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ASCÂNIO ou O OURIVES DO REI - P2 / Alexandre Dumas
ASCÂNIO ou O OURIVES DO REI - P2 / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ASCÂNIO ou O OURIVES DO REI

Segunda Parte

 

         QUATRO VARIEDADES DE BANDIDOS

Benvenuto atravessou apressadamente o Sena e foi a casa buscar, não um saco, como dissera ao conde d'Orbec, mas um cabaz que lhe oferecera, em Florença, uma prima freira. Depois, como desejava resolver o assunto naquele dia, e como já eram duas da tarde, não esperou por Ascânio, que perdera de vista, nem pelos artífices, que tinham ido jantar, e pôs-se a caminho da Rua Froid-Manteau, que era onde morava o conde d'Orbec. Este disse não poder entregar-lhe o ouro imediatamente, uma vez que havia uma série de formalidades indispensáveis a cumprir; havia que chamar um notário e redigir um contrato. De resto, o conde, que conhecia a falta de paciência de Cellini, pediu tantas desculpas da «inevitável» demora, usou tantas cortesias, que ninguém teria o direito de se zangar; e, assim, Benvenuto, acreditando serem verdadeiras todas aquelas dificuldades, resignou-se a esperar.

Então, Cellini, para aproveitar este atraso, mandou vir alguns dos seus artífices para, no regresso, o ajudarem à transportar o ouro. D'Orbec prontificou-se logo a enviar um dos seus criados ao Nesle com o recado de Cellini. Depois, começou uma conversa a respeito dos trabalhos do mestre-ourives, da alta estima em que o rei o tinha... enfim, falou de tudo o que poderia manter Cellini na melhor das disposições enquanto esperava. A verdade é que Benvenuto não tinha qualquer motivo para querer mal ao conde ou desconfiar dele. Se desejava suplantá-lo no coração de Colomba, ninguém sabia ainda esse desejo senão ele próprio e Ascânio. Benvenuto manteve-se, por isso, tão afável e cortês como o conde.

Não demorou pouco tempo a escolha e a contagem do ouro, segundo as prescrições do rei. Por sua vez, o notário demorou imenso a chegar, e a verdade é que um contrato não se redige num minuto. Em suma: quando terminaram as últimas formalidades e os últimos cumprimentos foram trocados, começava a cair a noite. Quando perguntou que resposta haviam dado os seus artífices, pois não havia meio de chegarem, o criado que levara a mensagem respondeu que os artífices não tinham podido ir, mas que ele próprio levaria com muito gosto o ouro do Senhor ourives. Benvenuto começou então a desconfiar de alguma coisa e recusou o oferecimento, sem todavia deixar de o agradecer.

Colocou então todo o ouro no cabaz e enfiou o braço pelas duas pegas, o que lhe dava maior segurança e facilidade de transporte do que um simples saco. Sob o traje, trazia uma boa cota de malha de aço com mangas, ao lado pendia-lhe a espada e na cinta reluzia o punhal. Pôs-se finalmente a caminho, com passos pesados mas firmes. Momentos antes pareceu-lhe ouvir as vozes abafadas de vários criados que também saíram, precipitadamente, mas evidenciando não seguirem o mesmo caminho que ele.

Hoje, que graças à Ponte das Artes, o ir-se do Louvre até ao Instituto é apenas um salto, o caminho que Benvenuto tinha a percorrer pouco mais seria; mas naquela época quase se tratava de uma viagem. Tinha que subir o cais até ao Châtelet, seguir a Ponte Meuniers, atravessar a Cite pela Rua de São Bartolomeu, passar à margem esquerda pela Ponte de São Miguel e, daí, voltar a descer o cais deserto até ao palácio de Nesle. Não é para admirar que, naquela época de ladrões e salteadores, Benvenuto, apesar da sua coragem, não fosse muito sossegado com tamanha quantidade de ouro no braço. De resto, se o leitor quiser acompanhar-nos de modo a precedermos Benvenuto de algumas centenas de passos, verá que os seus receios não são infundados.

Cerca de uma hora depois do pôr do Sol, quatro homens assaz mal-encarados e envoltos em grandes capas haviam-se ido postar no Cais dos Agostinhos, em frente à igreja. Naquele sítio o cais era apenas limitado por muros, e àquela hora achava-se totalmente deserto. Durante a sua permanência ali, os quatro homens apenas viram passar o preboste, que vinha de acompanhar Colomba ao Petit-Nesle, e que eles saudaram com o respeito devido às autoridades.

Falavam em voz baixa e com o chapéu sobre os olhos, num recanto exterior da igreja. Dois deles já nós os conhecemos: são os valentões empregados pelo visconde de Marmagne na sua desastrosa expedição ao Grand-Nesle; os seus nomes são Ferrante e Fracasso. Os outros dois companheiros têm a mesma honrosa profissão e chamam-se Procópio e Maledent. Para que a posteridade não venha a envolver-se em áridas discussões, como há mais de três mil anos faz a respeito do velho Homero, sobre a naturalidade dos nossos quatro valentões capitães acrescentaremos que Maledent era da Picardia, Procópio da Boémia, e Ferrant e Fracasso tinham visto a luz do Sol debaixo do belo céu de Itália. Quanto às suas respectivas artes em tempo de paz, Procópio era jurista, Ferrante um pedante, Fracasso um sonhador e Maledent um imbecil. Como se vê, o patriotismo não nos cega ao referirmo-nos ao único dos quatro industriais que era francês.

Em combate, eram quatro autênticos demónios.

Escutemos agora a afectuosa e edificante conversa que os ocupava. Ficaremos a saber muito melhor que espécie de homens eram e quais os perigos que corria efectivamente o nosso amigo Benvenuto.

— Olha, Fracasso — disse Ferrante —, pelo menos hoje não teremos o vermelhusco do visconde a estorvar-nos e poderemos sacar das espadas sem que o cobarde nos obrigue a vergonhosas retiradas.

— É certo — respondeu Fracasso —, mas já que nos deixa correr todos os riscos do combate, o que só lhe agradeço, devia também deixar-nos todo o proveito. Com que direito vai aquele diabo escarlate apossar-se de quinhentos escudos de ouro? Bem sei que os outros quinhentos que sobram são uma bela soma. Cento e vinte e cinco para cada um de nós, enfim, é qualquer coisa. Cada vez que me lembro que, nos tempos difíceis que vão correndo, ja me tenho visto na necessidade de matar um homem por dois escudos!...

— Por dois escudos?! Virgem Santa! — exclamou Maledent. — Não vês que isso é deitar a perder a profissão? Não digas semelhantes coisas quando estiveres ao pé de mim; quem nos ouvisse podia confundir-nos um com o outro, meu caro.

— Que lhe hei-de fazer?... — disse Fracasso com melancolia — a vida tem passagens bem aflitivas; há ocasiões em que se mataria um homem por um simples bocado de pão. Mas, voltemos ao nosso caso. Se não me engano, meus bons amigos, duzentos e cinquenta escudos valem exactamente o dobro que cento e vinte e cinco. E se nós, depois de termos liquidado o nosso homem, nos recusássemos a fazer quaisquer contas com esse grande ladrão do Marmagne?...

— Irmão — retorquiu Procópio com severidade —, esqueceis-vos de que seria faltar ao nosso tratado; seria frustrar um cliente, e há que ser leal em todas as ocasiões. Por isso] penso que devemos entregar os quinhentos escudos de oiro ao visconde, sem lhe faltar com uma só peça. Mas... distingamos: uma vez que ele os tenha metido na algibeira, e que se tenha convencido da nossa honestidade... não vejo porque não haveremos de cair sobre ele e recuperá-los...

— Bem imaginado! — disse Ferrante em tom doutoral. — Sempre te conheci muita probidade, aliada a muita imaginação.

— Não admira! É que estudei Direito durante algum tempo — explicou modestamente Procópio.

— Mas — continuou Ferrante, no tom enfatuado que lhe era habitual —, não compliquemos agora os nossos planos de acção. Recte ad terminum eamos. Deixemos por enquanto o visconde dormir descansado. Chegará a sua vez. De momento, trata-se apenas desse ourives florentino. Como medida de segurança, quiseram que fôssemos quatro a sangrá-lo. A verdade, porém, é que bastava um para fazer o trabalho e arrecadar a soma. Mas o capitalismo é uma chaga social, de modo que é melhor repartir-se o produto entre vários amigos. Despachemo-nos, pois, com prontidão e limpeza, que, como Fracasso e eu pudemos ver, não se trata de um homem vulgar. Resignemos, portanto, apenas por maior segurança, a atacá-lo todos ao mesmo. Deve estar a surgir. Atenção! Sangue-frio, pé ligeiro e olho alerta; cuidado com os botes à italiana que ele não deixará de usar.

— Ora, quem não sabe o que é receber um lance de espada, quer seja de ponta ou de talho! — exclamou Maledente desdenhosamente. — Uma noite, penetrei num castelo de Bourbon com objectivos pessoais. Surpreendido pela manhã antes de completamente alcançados os objectivos, fui obrigado a tomar a resolução de me manter ali escondido até à noite seguinte; e nenhum local me pareceu mais apropriado que a sala de armas do castelo. Havia ali grande profusão de panóplias e troféus, elmos, couraças, braçais, coxotes, tarjas e escudos. Retirei a estaca que sustentava uma daquelas armaduras e, ocupando o seu lugar, deixei-me ali ficar de pé, com a viseira descida, imóvel no meu pedestal.

— Tem imenso interesse — interrompeu Ferrante —, continua Maledent; pois em que melhor se pode empregar a espera de um feito que em contar outras empresas de guerra? Continua.

— Infelizmente, ignorava — prosseguiu Maledente — que era com aquela armadura que os jovens do castelo se exercitavam nas armas. Não tardou que aparecessem dois grandes mocetões de cerca de vinte anos, cada um dos quais desprendeu uma lança e uma espada, com que começaram a esgrimir pesadamente contra a minha carapaça. Pois bem, meus amigos, acreditem se quiserem, mas eu não tugi nem mugi debaixo de todos aqueles botes de lança e espada com que me mimosearam; consegui manter-me de pé firme como se fosse realmente de madeira e aparafusado na base. A minha sorte foi os dois engraçados serem medíocres espadachins. Mas, entretanto, apareceu também o pai, que os exortou a visar as partes vulneráveis da couraça. Valeu-me o meu padroeiro, S. Maledent, que eu ia invocando em voz baixa e que afastava os golpes. Até que aquele endiabrado pai, para mostrar aos filhos como se tirava uma viseira, agarrou numa lança, e logo ao primeiro golpe pôs a descoberto o meu rosto pálido e cadavérico. Julguei-me perdido.

— Pobre amigo! — disse Fracasso, melancolicamente — não era preciso tanto.

— Qual quê! Ao verem-me tão pálido e imóvel, caíram na parvoíce de me tomarem pelo fantasma de um antepassado; pai e filhos deitaram a correr tão vertiginosamente que me pareceu que os levava o demo. É claro que eu, pela minha parte, voltei-lhes as costas e desatei a fazer o mesmo. Contei-vos este caso para que saibais que sou sólido.

— De acordo; mas na nossa profissão, amigo Maledent — disse Procópio —, o que importa não é tanto saber receber estocadas como dá-las. O ideal é que a vítima tombe sem sequer soltar um grito. Olhai: numa das minhas viagens pela Flandres tive, certa vez, que desembaraçar um cliente de quatro amigos íntimos que viajavam juntos. O cliente queria que eu fizesse o trabalho com mais três camaradas, mas eu disse-lhe que ou me encarregava de todo o negócio ou não contasse comigo. Ficou combinado agir eu como entendesse e, se entregasse no fim os quatro cadáveres, receberia as quatro partes. Como estava bem ao facto do caminho que deviam seguir, resolvi esperá-los numa estalagem onde tinham necessariamente de passar.

O estalajadeiro fora em tempo dos nossos, mas deixara a vida activa para se dedicar ao trabalho muito mais seguro de despojar os viajantes debaixo de telha. Como ainda conservava alguns bons sentimentos, não me foi muito difícil associá-lo aos meus interesses mediante a módica retribuição de dez por cento dos lucros. Depois de tudo combinado, dispusemo-nos a esperar os nossos quatro cavaleiros, que não demoraram muito a surgir na volta do caminho, e que se apearam diante da estalagem com o objectivo evidente de se fazerem servir uma refeição e darem o penso aos cavalos. O estalajadeiro disse-lhes que o estábulo era tão pequeno que só entrando um por cada vez lá poderiam mover-se à vontade. O primeiro que entrou demorava-se tanto que o segundo, impaciente, foi saber a causa da demora; mas o segundo também não tardava menos a reaparecer, de modo que o terceiro, cansado de esperar, entrou por sua vez na cavalariça. Ao fim de algum tempo, começou o quarto a preocupar-se com a lentidão dos companheiros. O meu camarada disse-lhe então:

—Ah, eu sei o que é. Como o estábulo é muito pequeno, devem ter saído pela porta de trás.

Estas palavras encorajaram o nosso quarto viajante a juntar-se aos companheiros e a mim, pois, como já certamente adivinhastes, também eu estava na cavalariça. E como a coisa já não podia ter inconvenientes, não neguei a este último a satisfação de soltar um grito para dizer adeus a este mundo. Em direito romano, Ferrante, isto não poderia designar-se por trucidatio per divisionem necisi Mas... ora esta! — acrescentou Procópio, interrompendo-se — o nosso homem nunca mais aparece! Deus queira que lhe não tenha sucedido algo de mal! Daqui a pouco é noite cerrada.

— Suadentque cadentia sidera somnos — acrescentou Fracasso. — E a propósito, acautelai-vos, amigos, não vá esse Benvenuto aproveitar-se da escuridão para nos pregar uma partida igual à que eu próprio um dia usei. Foi durante um dos meus passeios à beira do Reno, rio dos sonhadores, e onde a paisagem é tão pitoresca como melancólica. Sonhava eu, pois, à beira do Reno, e vou dizer-vos qual era o assunto das minhas poéticas meditações. Tratava-se de enviar para o outro mundo um fidalgo chamado Schrenckenstein, se me não atraiçoa a memória. Ora a coisa não era fácil, porque o tal fidalgo jamais saía que não fosse bem acompanhado. Aqui tendes agora o plano em que eu segui. Vesti-me de maneira exactamente igual à sua e, por uma noite bem escura, esperei-o a pé firme, a ele e a todo o seu grupo. Quando os vi aproximarem-se na escuridão da noite solitária, obscuri sub nocte, atirei-me a Schrenckenstein como um desesperado; como ele vinha um pouco adiantado dos outros, não me foi difícil arrancar-lhe rapidamente o chapéu de plumas sem os companheiros verem e trocar de posição com ele. Atordoei-o então com o punho da espada e, no meio do tumulto, dos gritos e do barulho das espadas, pus-me a gritar: «A mim! A mim! contra os salteadores!» Foi tal o meu êxito, que os homens de Schrenckenstein caíram furiosos em cima do seu amo, matando-o instantaneamente, enquanto eu me punha a salvo, correndo pelas matas. Não se pode dizer que aquele honrado fidalgo não tivesse sido morto por dedicados amigos.

— O lance foi ousado — disse Ferrante — mas, rebuscando entre as recordações da minha juventude, posso contar-vos algo ainda mais audacioso. Como tu, Ferrante, também eu tinha que liquidar um certo senhor, sempre muito bem acompanhado e protegido. Foi numa floresta dos Abruzos. Fui-me a um lugar por onde o indivíduo passaria e, subindo a um enorme carvalho, deitei-me ao longo de um ramo muito grosso que atravessava o caminho; ali fiquei à espera, divagando. Nisto, o Sol nasceu; os seus primeiros raios pareciam longos cabelos de luz pálida caindo através dos galhos musgosos; o ar vivo da manhã circulava cheio de frescura e do chilrear dos pássaros; de súbito...

— Psiu! — interrompeu Procópio — ouço passos... Atenção! É o nosso homem!

— Ora bem! — murmurou Maledent lançando um rápido olhar a toda a volta. — Tudo deserto e calado. A sorte está por nós.

Os quatro permaneciam imóveis e em silêncio. Na escuridão, não se distinguiam os seus terríveis rostos tisnados, mas viam-se-lhes brilhar os olhos e crispar as mãos nos punhos dos espadagões. A sua atitude era de expectativa sobressaltada. Quase envolto em trevas, aquele grupo estático mas agressivo era digno do pincel de Salvator Rosa.

Era de facto Benvenuto quem se aproximava a passo rápido, sondando prudentemente com o olhar penetrante a escuridão diante de si. Já desconfiado, como vimos, e habituado à obscuridade, não lhe foi difícil ver, a vinte passos, os bandidos saírem da sua emboscada; assim, antes que caíssem sobre si, teve tempo para cobrir o cabaz com a capa e desembainhar a espada. Além disso, com o sangue-frio que jamais perdia, teve o cuidado de se colar à parede da igreja, podendo assim ver de frente todos os que o iam assaltar.

Atacaram-no impetuosamente: não podia fugir de maneira alguma e, a mais de quinhentos passos do castelo, era inútil gritar. Mas Benvenuto já nada tinha a aprender no manejo das armas; por isso recebeu os bandidos com vigor e habilidade.

Enquanto esgrimia, o pensamento de Benvenuto não permanecia inactivo; ocorreu-lhe uma ideia, rápida como um relâmpago. Era evidente que aquela emboscada lhe era exclusivamente dirigida. Se conseguisse enganar os assassinos sobre a sua identidade, estava salvo.

Para isso começou a escarnecer deles, por baixo das espadas, tentando induzi-los no pretenso engano.

— Olá! Que é que vos deu, meus bravos!? Estais doidos?... Que esperais levar de um pobre militar como eu? É a capa ou a espada o que pretendeis? Ah! espera aí, tu, tu!... Acautela as orelhas, diabo. Se é a minha lâmina que aspirais, primeiro tendes que ganhá-la. Mas deixai que vos diga que, para salteadores experimentados, como parecíeis, careceis de faro.

E ao dizer isto, Benvenuto, em vez de recuar, investia contra eles, mas sem se afastar mais que um ou dois passos da parede, para logo voltar a encostar-se a ela, ferindo continuamente de ponta e de talha, e tendo o cuidado de mostrar várias vezes a mão esquerda para os convencer de que não transportava o ouro. Por fim, a firmeza das suas palavras e a agilidade com que manejava a espada com mil escudos de oiro no braço, acabaram por lançar a dúvida no espírito dos bandidos.

— E esta!? Ter-nos-íamos de facto enganado, Ferrante? — disse Fracasso.

— Receio bem que sim. O homem parecia mais baixo, e este não traz o ouro consigo. O alma do diabo do visconde intrujou-nos.

— Ouro, eu?!... — exclamou Benvenuto esgrimindo prodigiosamente. — De ouro só trago um punhado de cobre desdourado; mas se o pretendeis meus meninos, tendes de pagá-lo mais caro do que se fosse ouro, já vos previno.

— Com mil diabos! — disse Procópio — é que é militar mesmo. Como podia um ourives esgrimir deste modo?... Apre! Esfalfai-vos vós, se quereis. Eu cá nunca me bato só pela glória.

E Procópio, sempre a resmungar, foi abandonando o combate, cuja intensidade decresceu logo mercê da sua saída e das grandes dúvidas que já tinham os restantes salteadores.

Benvenuto, ao ver-se menos investido, tratou de se desembaraçar dos bandidos e foi-se aproximando do palácio, esgrimindo sempre e levando sempre a melhor sobre eles. O bravo javali arrastava os cães para o seu covil.

— Vamos! vinde, vinde comigo, meus valentes! — dizia Benvenuto. — Fazei-me companhia até à entrada do Pré-aux-Clercs, até Maison Rouge, a casa da minha amante, que hoje me espera e cujo pai é taberneiro. Vinde, que o caminho não é nada seguro e até me agrada levar escolta.

Depois de ouvir isto, Fracasso desistiu também da perseguição e foi juntar-se a Procópio.

— Estamos a fazer figura de urso, Ferrante! — disse Maledent. — Este não é o tal Benvenuto! vá para o diabo!

— Mas é! mas é! É ele todo! — exclamou Ferrante, que acabava de entrever o cabaz do ouro enfiado no braço de Benvenuto, quando este, num movimento brusco, destraçara a capa.

Mas era tarde de mais. O palácio ficava já a menos de cinquenta passos, e a voz potente de Benvenuto cortava já o silêncio da noite, bradando:

— A mim! Ó do Palácio de Nesle! a mim! Acorrei!

Ainda bem Fracasso e Procópio não tinham voltado para trás, ainda Ferrante e Maledent não tinham podido redobrar de esforços na peleja, já os operários saíam em tropel do palácio e começavam a ajudar o seu mestre; já o enorme Hermann, o pequeno Jehan, Simão Canhoto e Tiago Aubry investiam armados de lanças.

Vendo isto, os valentões deitaram a fugir.

— Não corrais tanto, meninos! — gritava-lhes Benvenuto. — Escoltai-me só mais um bocadinho! Oh que falta de jeito!... Não conseguistes roubar a um homem só os mil escudos de ouro que lhe pesavam no braço!

Efectivamente, os bandidos, que apenas tinham conseguido fazer uma ligeira arranhadura na mão de Cellini, haviam debandado vertiginosamente, envergonhados, e Fracasso gemendo. O infeliz perdera o olho direito nos últimos lances, ficando zarolho para o resto da vida, o que acentuou ainda mais a melancolia do seu rosto pensativo.

— E agora, meus rapazes — disse Benvenuto aos companheiros, quando o ruído das botas dos assassinos se perdeu na distância —, depois desta bela façanha vossa, toca a cear! Vinde beber por esta vida que vos devo! Mas... Santo Deus! Onde está Ascânio, que não o vejo no meio de vós?

Não sei se os leitores se recordam que Ascânio se separara do mestre quando este saiu do Louvre.

— Eu sei onde ele está — disse o Jehan pequeno.

— E onde é, meu rapaz? — perguntou Benvenuto.

— Há mais de uma hora que anda a passear no fundo do jardim. O estudante e eu fomos ter com ele para conversarmos, mas ele pediu-nos que o deixássemos só.

«É estranho! — pensou Benvenuto — como é que não ouviu os meus brados?! Porque não teria acorrido com os outros?!...» Depois, em voz alta, disse:

— Não esperem por mim, vão ceando. Viva, Scozzone!

— Meu bom Deus! — exclamou ela — é então certo que vos queriam assassinar, mestre!?

— Sim, foi algo parecido.

— Jesus! — gritou Scozzone.

— Não teve importância, minha boa Scozzone, não teve importância — repetiu Benvenuto para tranquilizar a pobre Catarina, que se tornara mortalmente pálida. Agora o que é preciso é levar vinho lá acima, e do que aí houver de melhor para a ceia desses valentes rapazes. Vai pedir as chaves da cave a Dona Ruperta e escolhe tu.

— Mas vós não ireis de novo, suponho!... — disse Scozzone.

— Não, está sossegada; vou ter com Ascânio, que está no fundo do jardim; tenho assuntos graves a tratar com ele.

Scozzone e os operários voltaram para o atelier, e Benvenuto encaminhou-se para a porta do jardim. A Lua acabava de nascer, e por isso Benvenuto pôde ver distintamente Ascânio, que em vez de andar a passear subia a uma escada encostada ao muro do Petit-Nesle. Uma vez na crista do muro, o jovem cavalgou-o, puxou a escada para si, fê-la passar para o outro lado e desapareceu.

Benvenuto passou a mão pelos olhos como se não pudesse acreditar no que via; em seguida, tomando uma súbita resolução, foi direito à fundição, subiu à sua célula, montou sobre o parapeito da janela e, por meio de um salto bem calculado, achou-se sobre o muro do Petit-Nesle; então, servindo-se de uma videira que ali estendia os seus ramos nodosos, deixou-se escorregar sem ruído para o jardim de Colomba.

A terra ainda húmida da chuva da manhã abafava os passos de Benvenuto.

O mestre-ourives encostou o ouvido ao solo, perscrutando em vão o silêncio durante alguns minutos. Finalmente, um cochichar forneceu-lhe uma pista; levantou-se rapidamente e começou a avançar com precauções, tacteando e parando quase a cada passo. O ruído das vozes ia-se tornando cada vez mais distinto. Benvenuto continuou a aproximar-se do ponto donde ele procedia. Quando chegou à segunda alameda das que atravessavam o jardim, Benvenuto distinguiu na escuridão, ou antes, adivinhou, o vestido branco de Colomba, que estava sentada ao lado de Ascânio no banco que já conhecemos. Os dois jovens falavam em voz baixa mas animada e distinta.

Escondido por um maciço de arbustos, Benvenuto aproximou-se deles e pôs-se a escutar o que diziam.

 

         SONHO DE UMA NOITE DE OUTONO

Estava uma bela noite de Outono, calma e transparente. A Lua dispersara quase todas as nuvens, e as poucas que restavam iam deslizando afastadas umas das outras por sobre um fundo azul semeado de estrelas. Em redor do pequeno grupo que descrevemos tudo era calma e silêncio no jardim do Petit-Nesle, mas no interior daquelas três personagens tudo era vibração e angústia.

— Colomba, minha bem amada! — dizia Ascânio, enquanto Benvenuto, frio e pálido por trás dele, ia ouvindo mais com o coração que com os ouvidos — minha noiva adorada, porque teria eu surgido no teu destino? Quando souberdes todo o infortúnio e o terror das notícias que vos trago, haveis de maldizer o mensageiro de tantas desgraças.

— Enganais-vos, meu amigo — respondeu Colomba —, pois sejam quais forem as novas que me trazeis, hei-de bendizer-vos como a alguém que eu considero enviado por Deus. Não me foi dado escutar uma só vez a voz de minha mãe, mas estou certa de que a teria escutado com a mesma felicidade com que vos escuto. Por isso, Ascânio, falai; e se, como dizeis, tendes coisas terríveis para me dizer, ao menos a vossa querida voz será como um consolo no meio das amarguras.

— Muni-vos de todas as vossas forças e coragem — disse Ascânio.

Contou-lhe então toda a conversa que fora obrigado a escutar entre a Sr.a d'Étampes e d Orbec; expôs todo aquele odioso conluio contra o interesse do reino e, ao mesmo tempo, contra a honra de uma jovem. Viu-se obrigado a aguentar o suplício de explicar àquela alma ingénua e admirada com o mal, todo o infame acordo do tesoureiro. Teve de esclarecer aquela jovem, tão pura que nem corava ante as suas revelações, sobre os requintes de ódio e de ignomínia que o amor ferido haviam inspirado à favorita. Tudo o que Colomba nitidamente pôde entender foi que o seu namorado estava traspassado de amargura e terror, de modo que, como a hera, que não tem outro apoio além do arbusto a que se prendeu, Colomba vibrou e estremeceu com ele.

—Ascânio amigo — disse ela —, é preciso revelar a meu pai todo esse medonho projecto contra a minha honra. Meu pai nada sabe do nosso amor; deve-vos a vida, escutar-vos-á. Oh, tranquilizai-vos, ele saberá arrancar o meu destino às mãos do conde d'Orbec.

— Ai de nós!... — exclamou Ascânio em guisa de resposta.

— Oh, Ascânio!... — disse Colomba, percebendo tudo o que de cepticismo e dúvida havia na exclamação do namorado. — Como podeis supor em meu pai tão odiosa cumplicidade?! Sois injusto, Ascânio. Meu pai ignora tudo; nem suspeita sequer, tenho a certeza, pois embora me não tenha manifestado nunca uma grande afeição, não quereria ser ele próprio a lançar-me na desonra e na desgraça.

— Perdão, Colomba — prosseguiu Ascânio —, mas é que para vosso pai não existe desgraça no meio das riquezas; para ele basta um título para encobrir uma desonra, e o seu orgulho de cortesão julgar-vos-ia mais ditosa amante de um rei que esposa de um artista. Não devo esconder-vos nada, Colomba... O conde d'Orbec afirmou à duquesa d'Étampes que responderia por vosso pai.

— Meu Deus, será possível!?... — exclamou a jovem chorando. — Será possível que um pai venda a sua própria filha!?...

— Tem-se visto em todos os países e em todos os tempos, meu pobre anjo, e agora em França como jamais em parte alguma. Não deveis imaginar o mundo à semelhança da vossa alma, nem a sociedade à da vossa virtude. Infelizmente é verdade: a mais alta nobreza deste país tem, sem pudor, arrendado à libertinagem real a beleza e a juventude de suas esposas e de suas filhas. É coisa corrente na corte, e se vosso pai se quiser dar ao trabalho de se justificar, não lhe faltam os mais ilustres exemplos. Mas, perdoa-me, minha bem-amada Colomba, por ter ferido assim tão brusca e dolorosamente a tua alma casta ao contacto da realidade horrenda. Mas é necessário, a fim de que compreendas todo o abismo para onde te querem empurrar.

— Ascânio, Ascânio! — exclamou Colomba, escondendo a cabeça no ombro do jovem — também o meu próprio pai se põe contra mim?! Oh, sinto vergonha em repeti-lo! Onde posso então achar refúgio?... Ah, sim, em vossos braços, Ascânio! Sois vós quem tereis de me salvar! Já falastes a vosso mestre, a esse Benvenuto tão forte, tão bom e tão genial, segundo dizeis, e a quem eu quero bem apenas porque vós o amais?

— Não lhe queiras bem, não lhe queiras bem, Colomba! — exclamou Ascânio.

— E porquê? — murmurou a jovem.

— Porque ele ama-vos; porque, em vez do amigo com que julgávamos poder contar, é apenas um inimigo mais que teremos a combater; um inimigo, sim, e o mais terrível de todos. Ouvi.

Então Ascânio contou a Colomba como, no momento em que ia confiar tudo a Benvenuto, este lhe tinha revelado o seu amor ideal, e como o cinzelador tão benquisto de Francisco I, graças à palavra do rei, poderia obter dele tudo o que quisesse uma vez fundida a estátua de Júpiter. Ora Benvenuto contava pedir nada mais nada menos que a mão de Colomba.

— Meu Deus! só Vós nos podeis agora ajudar — disse Colomba, levantando os belos olhos e as mãos pálidas ao Céu. — Todos os aliados se nos transformam em inimigos, todo o porto de salvação se nos muda em escolhos e ameaça de perigos! Tendes a certeza de que fomos abandonados até esse ponto?

— Oh, demasiada certeza — disse o jovem. — Meu mestre representa agora tanto perigo para nós como vosso próprio pai, Colomba. O meu mestre, o meu amigo, o meu protector, o meu pai e meu Deus! Eis-me quase forçado a odiá-lo. E, no entanto, porque lhe hei-de querer mal, não me dizeis, Colomba? Apenas porque sofreu o ascendente a que deve ceder todo o espírito elevado que vos encontrar no seu caminho; porque vos ama como eu vos amo. O seu crime é afinal igual ao meu; mas o vosso amor por mim absolve-me. Que fazer. Meu Deus! Vai para dois dias que me interrogo, e ainda não sei se começo a detestá-lo se continuo a querer-lhe bem. Ele ama-vos, é certo; mas teve-me sempre tanta afeição!. A minha alma vacila e treme no meio desta agitação como a planta exposta ao vendaval-Oh, falar-lhe-ei, informá-lo-ei dos projectos do conde d'Orbec, e ele nos livrará deles. Mas..-e depois? E depois, quando nos enfrentarmos como inimigos, quando eu lhe disser que o seu discípulo é seu rival? Tal como o destino, a sua vontade poderosa será cega, Colomba, e ele desviará os olhos do homem que amou para ver apenas a mulher que ama; sim, Colomba!

Porque sinto perfeitamente que entre vós e ele, também eu não hesitaria. Sim, eu sacrificaria sem qualquer remorso o passado ao futuro do meu coração, a Terra ao Céu! Porque havia ele de agir de outro modo?... Ele é homem, e sacrificar o seu amor seria um acto que transcende a natureza humana. Lutaremos pois um contra o outro; e como hei-de eu, isolado e fraco, poder resistir-lhe?... Oh, não importa, Colomba: quando eu chegar um dia a odiar aquele a quem tanto e por tanto tempo quis, ah! nem por nada quereria infligir-lhe o suplício com que outro dia me torturou ao declarar-me o seu amor por vós.

Entretanto, Benvenuto, imóvel como uma estátua por detrás dos arbustos, sentia camarinhas de suor gélido deslizarem-lhe na fronte e a sua mão crispar-se-lhe sobre o coração.

— Pobre e querido Ascânio amigo! — disse Colomba — muito já sofrestes, e quanto não ireis sofrer ainda... Apesar de tudo, meu amigo, esperemos calmamente o futuro. Não exageremos as nossas dores. Para resistir ao infortúnio, para conjurarmos o nosso destino, somos três, a contar com Deus. Preferiríeis ver-me de Benvenuto que de dOrbec, mas antes queríeis que fosse para Deus que para Benvenuto, não é assim?... Pois bem! se não for vossa, serei de Deus, podeis ter a certeza, Ascânio. Ou vossa esposa neste mundo, ou vossa noiva no outro. É esta a promessa que vos faço, e saberei cumpri-la, ficai tranquilo.

— Obrigado, anjo do Céu, mil vezes obrigado! — exclamou Ascânio. — Esqueçamos este vasto mundo que nos rodeia, concentremos a nossa vida neste pequeno bosque onde nos encontramos. Colomba, ainda me não dissestes que me tínheis amor. Até poderia parecer que sois minha por não terdes melhor alternativa.

— Cala-te, Ascânio, cala-te — pediu Colomba. — Bem vês que apenas procuro santificar a minha felicidade impondo-ma como um dever. Amo-te, Ascânio, amo-te!

Benvenuto não teve forças para se manter mais tempo de pé; deixou-se cair de joelhos, apoiando a cabeça entre as mãos; os seus olhos fixavam-se desvairadamente na escuridão da noite, ao passo que apurava cada vez mais o ouvido à conversa dos jovens; escutava-os com a alma.

— Minha Colomba — repetia Ascânio —, amo-te; e há qualquer coisa que me diz que ainda chegaremos a ser felizes, e que o Senhor não abandonará o mais belo dos seus anjos. Santo Deus! no meio desta felicidade imensa de estar a teu lado, já nem sequer me lembra da atmosfera de sofrimento a que regressarei ao deixar-te.

— E contudo, é preciso pensar no amanhã — disse Colomba. — Ajudemo-nos, Ascânio, ajudemo-nos, para que Deus nos ajude. Creio que não seria leal escondermos o nosso amor de vosso mestre Benvenuto. É preciso revelar-lhe tudo, para que não se exponha a uma luta perigosa contra a duquesa e o conde d'Orbec. Não seria justo.

— Obedecer-vos-ei, querida Colomba, pois bem deveis saber que uma palavra vossa é uma ordem para mim. Mas o meu coração também me diz que tendes razão, que tendes sempre razão. Mas o golpe que lhe vou vibrar vai ser terrível... Ai de mim! sei-o por experiência própria. É possível que o seu amor por mim se transforme em ódio... é até possível que me expulse. Como resistirei então, estrangeiro, sem apoio nem asilo, a inimigos tão poderosos como a duquesa d'Étampes e o tesoureiro do rei?... Quem me há-de ajudar a frustrar os seus terríveis projectos?...

— Eu! — disse por detrás deles uma voz grave e profunda.

— Benvenuto! — exclamou o aprendiz sem ter necessidade de se voltar.

Colomba soltou um grito, levantando-se precipitadamente. Ascânio olhava o mestre entre colérico e afectuoso.

— Sim, sou eu, Benvenuto Cellini — prosseguiu o mestre-ourives —, eu, que vós não amais, Senhorinha, eu, que tu já não estimas, Ascânio, e que, todavia, venho salvar-vos.

— Que dizeis!? — exclamou Ascânio.

— Digo que venhais sentar-vos junto de mim, pois temos de nos entender. Nada tendes já que me revelar. Não perdi uma só palavra do que dissestes. Perdoai que vos tenha, casualmente, surpreendido, mas deveis compreender que mais valia que soubesse tudo. Disseste coisas bem tristes e bem terríveis para mim, mas algumas boas, também. Ascânio teve razão algumas vezes, mas outras foi injusto. É certo Senhorinha, que vos teria disputado ao seu amor, se vós o não amásseis, mas, uma vez que o amais, está tudo dito: sede felizes. Ele proibiu-vos de me terdes afeição, Senhorinha Colomba, mas eu vou obrigar-vos a isso, ao fazer com que venhais a ser dele.

— Querido mestre!... — exclamou Ascânio.

— Sofreis muito, Senhor — disse Colomba juntando as mãos.

— Oh, obrigado! — disse Benvenuto com os olhos húmidos de contidas lágrimas. — Vós sois capaz de o notar, mas não ele, o insensato! As lágrimas. Vós sois capaz de o notar, mas não ele, o ingrato! Às mulheres, porém, nada escapa. É muito simples: perco-vos; mas ao mesmo tempo sinto-me feliz por vos poder ser útil. Dever-me-eis tudo, e isso há-de consolar-me. Enganavas-te, Ascânio: a minha Beatriz, afinal, é ciumenta e não quer rival. Tu é que vais terminar a estátua de Hebe. Adeus, meu mais belo sonho! o último!

Benvenuto falava a custo, com voz rápida e entrecortada. Colomba inclinou-se gentilmente para ele e, colocando a sua mão entre as de Benvenuto, disse com voz suavíssima:

— Chorai, meu bom amigo, chorai.

— Sim, tendes razão — disse Cellini, rompendo em soluços.

Por algum tempo permaneceu assim, de pé, chorando silenciosamente, sacudido a espaços por uma tremura interna. O seu temperamento poderoso recebia grande lenitivo daquelas lágrimas tanto tempo reprimidas. Ascânio e Colomba olhavam com respeito aquela dor viva e profunda.

— Tirando o dia em que te feri, Ascânio, tirando aquele momento em que vi correr o teu sangue, é esta a primeira vez que choro há vinte anos — disse Benvenuto, reassumindo o seu ar habitual. — Mas este golpe foi também terrível. Olhai, ainda agora, detrás daqueles arbustos, era tal o meu sofrimento que por instantes senti desejos de me apunhalar. Se o não fiz foi por pensar que tínheis necessidade de mim. Salvastes-me a vida. Afinal, está tudo certo. Ascânio poderá dar-vos mais vinte anos de felicidade do que eu, Colomba. E além disso é meu filho: a vossa felicidade fará a alegria de um pai. Benvenuto saberá triunfar de Benvenuto como dos vossos inimigos. O sofrimento é, afinal património dos artistas, e quem sabe se de cada uma das minhas lágrimas não florirá uma bela estátua, tal como das lágrimas de Dante surgiam os contos do seu poema sublime. Como vedes, Colomba, já volto ao meu amor antigo, à minha querida escultura; ao menos ela jamais me abandonará. Fizestes bem dizendo-me que chorasse; toda a amargura do meu coração se me foi com as lágrimas. Fiquei triste, sim, mas de novo bom, e vou distrair-me da minha dor salvando-vos.

Ascânio tomou uma das mãos do mestre e estreitou-a entre as suas. Colomba tomou a outra levando-a aos lábios. Neste momento, Cellini respirou desoprimido e levantou a cabeça num gesto já cheio de energia.

— Ora vamos, meus filhos — disse sorrindo —, não me enfraqueçais agora o ânimo, que me vai ser muito preciso. O melhor será nunca mais voltar a falar de tudo isto. De hoje em diante, serei apenas vosso amigo, e nada mais; serei vosso pai. O resto é um sonho. E agora, falemos do que importa fazer e dos perigos que vos ameaçam. Ainda agora, ouvia-vos eu fazer os vossos projectos, estabelecer planos. Meu Deus! como sois ainda jovens e inexperientes!... Não fazeis a menor ideia do que seja a vida. Ofereceis-vos candidamente desarmados às investidas da sorte, e contais vencer a maldade, a cobiça e todas as paixões ululantes só com a vossa bondade e os vossos sorrisos!... Queridos loucos! Não importa: serei eu forte, astuto e implacável por vós. Já estou habituado, ao passo que vós, meus belos amigos, fostes criados por Deus para a felicidade e para o sossego; eu providenciarei para que cumprais o vosso destino. Ascânio, a cólera não há-de enrugar a tua fronte; a dor não há-de, Colomba, alterar as linhas tão puras do teu rosto. Tomar-vos-ei a ambos em meus braços, e far-vos-ei atravessar assim todos os charcos e misérias da vida, para apenas vos depor, sãos e salvos, na alegria e na felicidade. Para eu ser feliz, então, bastar-me-á olhar-vos. Só vos peço uma coisa, é que confieis cegamente em mim. A minha maneira de agir, às vezes brusca e estranha, poderá talvez assustar-vos, Colomba. Não raro, actuo como a artilharia que visa direita aos objectivos sem se preocupar com o que encontra pelo caminho. A verdade é que olho sempre mais à pureza das minhas intenções que à moralidade dos meios a empregar. Quando pretendo modelar algo de belo, não me preocupo de que a argila me suje os dedos. Acabada a estátua, lavo as mãos, é tudo. Que a vossa alma delicada e timorata, Colomba, me deixe toda a responsabilidade dos meus actos perante Deus. Eu e Ele entendemo-nos bem. Devo enfrentar inimigos poderosos. O conde é ambicioso, o preboste avarento, a duquesa habilidosa. Vós achais-vos em seu poder, e dois deles têm mesmo direitos sobre vós. Vai talvez ser necessário empregar a astúcia e a violência. Mas eu procederei de modo que tanto vós como Ascânio fiqueis fora de uma luta indigna. Vejamos, Colomba, estais pronta a fechar os olhos e a deixar-vos conduzir? Quando vos disser: «Fazei isto», fá-lo-eis? Quando vos disser: «Ide», ireis?

— Que diz Ascânio? — perguntou Colomba.

— Colomba — respondeu o aprendiz —, Benvenuto é bom e grande; ama-nos e perdoa-nos o mal que lhe fizemos. Obedeçamos-lhe, peço-vos.

— Pois então mandai — disse Colomba —, e obedecer-vos-ei como se fôsseis o enviado de Deus.

— Bem, minha filha. Só tenho a pedir-vos uma coisa, que vos custará talvez, mas a que tendes de vos decidir, e depois do que o vosso papel se limitará a esperar, deixando-me agir a mim e aos acontecimentos. E para que tenhais ambos ainda mais fé em mim, para que não hesiteis em confiar-vos a um homem cuja vida tem talvez manchas, mas cujo coração permaneceu puro, vou contar-vos a história da minha juventude. Mas, ai! todas as histórias se parecem, e o fundo delas é sempre a dor. Ascânio, vou contar-te como a minha Beatriz, o anjo de que te falei, participou na minha existência. Depois de saberes quem ela foi, vais certamente compreender melhor a minha resignação em perder Colomba, quando vires que, por este sacrifício, começarei finalmente a pagar ao filho a dívida de lágrimas contraída para com sua mãe. Tua mãe! Uma santa do paraíso, Ascânio! Beatriz quer dizer bem-aventurada; Stéfana quer dizer coroada.

— Tendes-me dito sempre que um dia me contaríeis essa história.

— Tenho — prosseguiu Cellini —, e chegou agora o momento de vo-la contar. Confiareis ainda mais em mim, Colomba, quando souberdes todas as razões que tenho para amar o nosso Ascânio.

Então, tomando nas suas as mãos dos dois jovens, Benvenuto começou a contar o que segue, na sua voz grave e harmoniosa, enquanto as estrelas cintilavam na noite calma, silenciosa e cheia de perfumes.

 

         STÉFANA

Há vinte anos, tinha a tua idade, Ascânio, e trabalhava em casa de um ourives de Florença chamado Rafael dei Moro. Era um bom artífice, e não lhe faltava gosto, mas, como apreciava mais descanso que o trabalho, deixava-se arrastar para divertimentos e prazeres com uma facilidade exasperante. Como os operários do atelier seguiam o mesmo caminho, não raro levados por ele, acontecia-me ficar muitas vezes sozinho em casa e, a cantar, ia terminando alguma obra. Naquela época cantava eu como Scozzone agora. Todos os ociosos da cidade iam naturalmente a casa de mestre Rafael pedir trabalho, ou antes, boa vida, pois tinha fama de ser um fraco e de nunca ralhar. Com tal feitio ninguém pode enriquecer e, como estava sempre sempre sem dinheiro, tornou-se em breve o ourives mais desacreditado de Florença.

Minto... Havia outro ainda com menos freguesia do que ele, e que descendia de uma nobre família de artistas. Mas não fora por inexactidão nos pagamentos que Gismondo Gaddi se havia desacreditado, mas por uma insigne falta de habilidade e, mais que tudo, pela sua sórdida avareza. Como tudo que se lhe confiasse saía errado ou estragado das suas mãos, e como já nenhum cliente de Florença se atrevia a entrar na sua loja, Gismondo começou a praticar a usura, emprestando dinheiro a juros altíssimos aos filhos-família da cidade. Este comércio deu-lhe melhor resultado que o anterior, pois Gaddi exigia sempre óptimas cauções, nunca se aventurando a qualquer negócio sem seguras garantias. Tirando isto, era, como ele próprio dizia, muito sensato e tolerante. Emprestava a toda a gente, compatriotas ou estrangeiros, judeus ou cristãos. Teria emprestado dinheiro a S. Pedro sobre as chaves do Paraíso, e a Satanás sobre os imóveis do Inferno.

Será preciso dizer que emprestava dinheiro ao meu pobre Rafael dei Moro, que em cada dia gastava o do dia seguinte, e cuja probidade jamais se havia desmentido? As contínuas relações de negócio, a espécie de interdição a que estavam submetidos, a própria vizinhança em que viviam, tinham aproximado os dois ourives. Del Moro vibrava de reconhecimento com a inesgotável bondade de Gaddi em lhe emprestar dinheiro, e este nutria profunda estima por um devedor tão cómodo e honesto. Numa palavra: eram os melhores amigos do mundo e Gismondo jamais faltaria a uma das divertidas jantaradas com que Rafael dei Moro o regalava.

Del Moro era viúvo, mas tinha uma filha de dezasseis anos chamada Stéfana.

Stéfana, aos olhos de um escultor, não seria bela, e no entanto a sua presença arrebatava à primeira vista. Sob a sua fronte, demasiado alta e pouco lisa para ser de mulher, sentia-se, por assim dizer, brotar o pensamento. Os seus grandes olhos húmidos e de um negro aveludado moviam o respeito e o enternecimento daqueles em que se fixavam. Uma palidez de âmbar envolvia todo o seu rosto de uma nuvem iluminada por um sorriso triste e encantador como o raio débil de uma manhã de Outono.

Habitualmente, Stéfana mantinha a cabeça inclinada como um lírio vergado ao vento da tempestade. Dir-se-ia a estátua da Melancolia. Mas, se levantava um pouco o rosto e os seus belos olhos se animavam, se as suas narinas se dilatavam, e o braço estendido dava uma ordem, então era forçoso adorá-la como a um arcanjo. Tu pareces-te com ela, Ascânio, salvo na sua fraqueza e no constante sofrimento. Nunca a alma imortal se me revelou mais claramente que naquele corpo frágil elegante e flexível. Del Moro, que receava a filha tanto como a amava, costumava dizer que apenas havia sepultado o corpo da esposa, pois Stéfana era o espírito da morta.

Naquele tempo, era eu um jovem estouvado, ardente e aventureiro. O que eu mais estimava era a liberdade; a seiva transbordava em mim, e eu dispendia todo esse ardor em disputas loucas e em loucos amores. No entanto, trabalhava com a mesma paixão com que me divertia e era mesmo o melhor operário de Rafael, o único que conseguia ganhar algum dinheiro. Mas o que porventura me saía das mãos com algum valor fazia-o eu por instinto e ao acaso. Tinha estudado com assiduidade os artistas antigos. Debruçara-me dias inteiros sobre os baixos-relevos e as estátuas de Atenas e de Roma, comentando-os continuamente com o lápis e o cinzel, e esta familiarização com os sublimes escultores da Antiguidade havia-me incutido uma grande pureza e segurança da forma; mas o que eu fazia era apenas imitar com sucesso, não criava. No entanto, volto a repetir-vos que era sem sombra de dúvida o mais hábil e o mais laborioso de todos os artífices de Del Moro. Por isso, o secreto desejo do mestre, soube-o depois, era ver-me casado com a filha.

Mas a constituição de um lar pouco me preocupava. Tinha sede de independência, de esquecimento e ar livre; ficava dias inteiros fora de casa, regressando derreado de fadiga; mas em poucas horas apanhava e ultrapassava os meus companheiros de trabalho. Era capaz de me bater por uma simples palavra e de apaixonar-me por um simples olhar. Que belo marido teria dado!

Aliás, a emoção que a presença de Stéfana me causava não era nada semelhante à sentida junto das belas mulheres da Porta dei Prato ou de Borgo Pinti. Quase me intimidava. Se alguém me dissesse que eu amava Stéfana com um amor diferente do de irmão, ter-me-ia feito rir. Quando regressava de alguma das minhas aventuras, não ousava sequer levantar os olhos para ela. Stéfana punha-se mais que severa, punha-se triste. Quando, pelo contrário, a fadiga ou o zelo me retinham em casa, procurava a companhia de Stéfana, o seu olhar doce e a sua voz tão suave. A afeição que sentia por ela tinha algo de muito sério, algo de sagrado, que eu não notava mas de que pressentia o encanto. Quantas vezes, no meio de diversões ruidosas, o pensamento de Stéfana surgia no meu espírito, e logo os companheiros perguntavam porque me havia tornado de repente tão pensativo. Muitas vezes, ao puxar pela espada ou pelo punhal, pronunciava o seu nome como se fora o da santa da minha devoção; e notei que, sempre que tal acontecia, retirava-me do combate sem o menor ferimento. O meu doce afecto por aquela jovem, bela, inocente e terna, permanecia no fundo do meu coração como num santuário.

Quanto a ela, fria e digna para com os meus preguiçosos companheiros, era para mim toda indulgência e bondade. As vezes, descia ao atelier e ia sentar-se junto do pai; embora curvado sobre o meu trabalho, eu sentia então o seu olhar fixar-se em mim. Não conseguia explicar a mim próprio a razão desta preferência, mas sentia-me orgulhoso e feliz com ela. Se algum operário, numa lisonja grosseira, me dizia que a filha do mestre estava enamorada de mim, respondia-lhe com tanta cólera que ele nunca mais abordava o assunto.

Um acidente de que Stéfana foi vítima, por aquele tempo, mostrou-me até que ponto ela se havia radicado no mais profundo do meu coração.

Certo dia em que se encontrava no atelier, um operário embriagado, manejando desastradamente o cinzel, vibrou-lhe uma terrível martelada no dedo mínimo da mão direita. A pobre jovem soltou um grito lancinante mas, pesarosa por não se ter sabido dominar, e como para tranquilizar-nos, pôs-se a sorrir, enquanto a sua mão sangrava copiosamente. Creio que teria morto o desastrado se não estivesse tão preocupado com ela.

Gismondo Gaddi, que estava presente, disse que conhecia um cirurgião nas proximidades e correu a chamá-lo. Era um medicastro qualquer, que fez o penso a Stéfana, e foi, depois, vê-la todos os dias; mas era tão ignorante e negligente, que a ferida gangrenou passado algum tempo. Então, aquele animal declarou doutoralmente que, segundo todas as probabilidades, e apesar dos seus esforços, Stéfana ficaria aleijada do braço direito.

A miséria de Rafael dei Moro já não lhe permitia consultar qualquer outro médico; mas eu, depois de ouvir a sentença do imbecil doutor, não fiquei de braços cruzados. Subi ao meu quarto, esvaziei a escarcela que continha todas as minhas economias e corri a casa de Giácomo Rastelli de Perúsia, cirurgião do papa e o mais hábil de toda a Itália. Como eu insistisse vivamente, e como a soma que lhe oferecia era muito considerável, o cirurgião acompanhou-me imediatamente, dizendo: «Ah! Os namorados!...» Depois de examinar o ferimento, assegurou-nos que se responsabilizava pela sua cura total e que, antes de quinze dias, Stéfana servir-se-ia do braço direito tão bem como do esquerdo. Apeteceu-me beijar o digno ancião. Começou a fazer um penso aos pobres dedos de Stéfana, que logo experimentou um grande alívio da dor. Mas, alguns dias depois, foi necessário extrair a cárie dos ossos.

Stéfana pediu-me que assistisse à operação, a fim de lhe dar coragem, mas eu não lhe pude dar o que não tinha, pois, ao vê-la sofrer, quase me desfaleceu o coração no peito. Mestre Giácomo servia-se de grossos instrumentos, que causavam um sofrimento atroz a Stéfana. Os gemidos, que ela não podia conter, dilaceravam-me a alma; sentia as minhas fontes inundadas de suores frios.

Não tardou que aquele suplício se tornasse superior às minhas forças. Aqueles instrumentos grosseiros torturando os delicados dedos de Stéfana também me torturavam a mim. Levantei-me e supliquei a mestre Giácomo que suspendesse a operação por um quarto de hora, apenas até eu voltar.

Desci ao atelier e, aí, como que inspirado por um génio bom, fabriquei um instrumento de aço fino e delicado, mas cortante como uma navalha de barba. Corri a entregá-lo ao cirurgião, que com ele começou a operar com tanta facilidade e leveza que a minha querida enferma deixou quase de sentir dor. Ao fim de cinco minutos a operação estava acabada e, quinze dias depois, Stéfana dava-me a beijar aquela mão que, segundo ela dizia, eu lhe tinha conservado.

Ser-me-ia impossível referir as emoções pungentes por que passei, ao presenciar outros sofrimentos da minha pobre Resignada, como eu lhe chamava às vezes.

Nela, a resignação era, efectivamente, como que a atitude natural da sua alma. Stéfana não era feliz; a desordem e a imprevidência do pai dilaceravam-na; e era na religião que buscava consolo, pois, como todos os desgraçados, era piedosa. Muitas vezes, quando entrava num templo, pois sempre amei a Deus, deparava com Stéfana a um canto, chorando e rezando recolhidamente.

Em muitas das aflições que a incúria de mestre dei Moro lhe causava, Stéfana recorria a mim com uma confiança e uma nobreza que me encantavam. Dizia-me então, com a simplicidade dos nobres corações:

— Benvenuto, peço-vos que passeis a noite a trabalhar, a ver se acabais aquele relicário, ou este gomil, pois não temos já dinheiro algum.

Cedo ganhei o hábito de submeter à sua apreciação todas as obras que terminava, e tanto os seus conselhos como as suas correcções eram sempre de um gosto e de uma acuidade inelutáveis. A solidão e o sofrimento tinham elevado e engrandecido o seu pensamento para lá do que podia jamais esperar-se. As suas palavras ingénuas mas profundas fizeram-me adivinhar muitos segredos da Arte e abriram novas perspectivas no meu espírito.

Lembro-me de lhe ter mostrado, um dia, o modelo de uma medalha que estava a gravar para um cardeal, e que representava, numa face, a sua efígie, e na outra, Jesus Cristo caminhando sobre as ondas e estendendo a mão para São Pedro, com esta legenda: «Quare dubitasti?» Porque duvidaste?

Stéfana gostou muito da efígie, que estava parecida e nítida. Em seguida pôs-se a contemplar demorada e silenciosamente o motivo na outra face.

— O rosto de Nosso Senhor está muito belo — disse ela por fim — e se se tratasse apenas de Apolo ou de Júpiter não tinha nada a dizer. Mas Jesus é mais do que belo, Jesus é divino. Este rosto é de uma pureza de linhas arrebatadora, mas a alma, onde está? Admiro o homem, mas é em vão que procuro Deus. Vede bem que não sois só artista, Benvenuto, sois cristão também. Olhai: o meu coração sangrou muitas vezes, que o mesmo é dizer que muitas vezes duvidou também... Mas, numa dessas vezes, quando vencia o abatimento, vi Jesus estender-me a mão e dizer-me também as palavras sublimes: «Porque duvidaste?» Ah, Benvenuto, a vossa imagem é menos bela do que Ele. No seu rosto celestial havia, ao mesmo tempo, a tristeza do pai a quem afligimos e a clemência do rei que perdoa. A sua fronte resplendia, mas na sua boca pairava um sorriso. Era mais do que grande, era bom.

— Esperai, Stéfana — disse-lhe eu.

Apaguei o que tinha esculpido e, ao fim de um quarto de hora, já tinha esboçado um novo rosto para Jesus Cristo.

— Era assim? — perguntei, mostrando-lho.

— Oh! Era, era! — respondeu ela com os olhos rasos de lágrimas — foi assim que o Salvador me apareceu nas horas da minha amargura! Sim, reconheço-o pela sua expressão de misericórdia e de majestade. Pois bem, Benvenuto, porque não haveis de proceder sempre assim? Antes de trabalhardes a cera, trabalhai o vosso pensamento. Já possuís a forma, conquistai a expressão; tendes a matéria, procurai a alma; que os vossos dedos nunca sejam mais do que criados do vosso espírito, sim?

Eram estes os conselhos que me dava aquela criança de dezasseis anos, na sua sensatez sublime. Ficando sozinho, meditava no que ela me dizia, e achava que ela tinha razão. E, assim, ela rectificou e esclareceu muito a minha intuição. Possuidor da forma, tratei de conseguir a ideia, identificando depois tão bem uma como a outra, que me saíssem das mãos unidas e confundidas, tal como Minerva saíra totalmente armada do cérebro de Júpiter.

Meu Deus! Como a juventude é encantadora e como as minhas recordações estão vivas! Colomba, Ascânio, não podeis imaginar como esta noite me faz lembrar as que passei ao pé de Stéfana, sentados os dois no banco do jardim do seu pai. Ela olhava o céu, e eu olhava-a a ela. Já lá vão vinte anos, e lembra-me como se fosse hoje. Estendo a mão, e cuido sentir a Sua; é a vossa, meus filhos. O que Deus faz, é bem feito.

Oh! bastava-me vê-la caminhar, tão branca no seu vestido branco, para que uma grande Paz descesse à minha alma. Muitas vezes, separávamo-nos sem ter dito uma só palavra; no entanto, daquele nosso mudo encontro levava eu um mundo de pensamentos que me tornavam melhor.

Mas tudo isto acabou um dia, como todas as felicidades deste mundo.

Rafael dei Moro já não tinha mais progressos a fazer na miséria. Já devia ao seu bom vizinho Gismondo Gaddi a soma de 2000 ducados, que não sabia como pagar. Esta dívida desesperava-o. Querendo ao menos salvar a filha, confiou a um dos artífices do atelier o seu projecto de a dar em casamento, provavelmente para que ele mo viesse dizer. Mas o tal artífice era um dos imbecis que me tinham exasperado com as suas calúnias à amizade fraterna de Stéfana. Aquele desastrado nem sequer deixou Rafael acabar de falar.

— Renunciai a tal projecto, mestre dei Moro — disse-lhe. —A proposta seria muito mal recebida, posso afiançar-vos.

O ourives era orgulhoso e, concluindo que eu o desprezava por causa da sua pobreza, nunca mais falou em semelhante assunto.

Poucos dias depois, Gismondo Gaddi foi reclamar a sua dívida, e como Rafael lhe pedisse mais algum tempo, Gismondo disse-lhe:

— Olhai lá: dai-me a mão de vossa filha, que é sensata e económica, e eu vos darei quitação de toda a dívida.

Del Moro rejubilou. Gaddi passava por ser um pouco avarento, ciumento e brusco, mas era rico, e o que os pobres mais admiram e invejam é, naturalmente, a riqueza. Quando Rafael falou desta inesperada proposta a sua filha, esta nada lhe respondeu. Mas, à noite, quando nos separámos depois do serão, Stéfana disse-me:

— Benvenuto, Gismondo Gaddi pediu-me em casamento e meu pai acedeu. Dizendo estas palavras, deixou-me só. Levantei-me como accionado por uma mola e, preso de estranho furor, saí de Florença e pus-me a vaguear pelos campos.

Durante toda aquela noite, em que, ora corria como um louco, ora me estendia chorando sobre a erva, mil pensamentos furiosos e desesperados atravessaram o meu espírito transtornado.

Stéfana, mulher de Gismondo!... dizia comigo, quando caía em mim e tentava coordenar ideias. Este casamento, que me faz estremecer, oprime-a e aterra-a também, certamente; e como ela me preferia... sim, foi isso mesmo! fez um apelo mudo à minha amizade e ao meu ciúme. Oh! E que desesperados ciúmes sinto! Mas, com que direito? Gaddi tem um carácter sombrio e violento mas, para ser justo, que mulher poderia também ser feliz comigo? Não sou eu também brutal, aventureiro e desassossegado? Não me empenho a todo o instante em perigosas contendas e em amores pagãos?... Poderei modificar-me? Não, talvez nunca. Enquanto o sangue me ferver nas veias, como ferve, terei sempre uma mão no punhal e um pé fora de casa.

Pobre Stéfana! Fá-la-ia sofrer e chorar! e ao vê-la pálida e abatida, sentiria ódio por mim mesmo, e também por ela, pois a sua presença sofredora seria para mim como uma contínua censura. Acabaria por morrer, e eu teria sido o seu assassino. Ah, bem sinto que não nasci para as alegrias calmas e puras da família. Preciso de liberdade, espaço, tempestades; tudo menos a paz e a monotonia da felicidade. Meu Deus! Acabaria por despedaçar desastradamente aquela flor delicada e frágil. Torturaria com as minhas injúrias aquela alma adorada, aquela existência que me era tão cara; e, com remorsos, a minha própria vida, o meu coração. E será ela mais feliz com Gismondo Gaddi? Porque há-de ela casar-se com Gismondo. Vivíamos tão felizes! Ao fim e ao cabo, Stéfana não ignora que a existência e o espírito de um artista não se compadecem com os laços rígidos e apertados, com as necessidades burguesas de uma família. Seria preciso dizer adeus a todos os meus sonhos de glória, abdicar do futuro do meu nome, renunciar à arte, que vive da liberdade e do poder. Que será do criador aprisionado a um canto do lar? Dizei, ó Dante Alighieri? Miguel Angelo, meu mestre! como vos havíeis de rir, vendo o vosso discípulo embalar os filhos ou pedir perdão à esposa!... Não, é preciso ser corajoso para comigo, generoso para com Stéfana. É preciso permanecer só e triste no meu sonho e no meu destino!

Como estais vendo, meus filhos, não me faço passar por melhor do que o que fui. Havia muito egoísmo na minha decisão, mas também muito viva e sincera afeição a Stéfana; todo aquele delírio me parecia razoável.

No dia seguinte, voltei bastante calmo ao atelier e pareceu-me que Stéfana também estava calma, se bem que mais pálida que o costume. Passou-se assim um mês. Uma noite, Stéfana, ao recolher aos seus aposentos, disse-me:

— Benvenuto, dentro de uma semana serei mulher de Gismondo Gaddi.

Como ela demorou ali ainda uns momentos, pude olhá-la bem. Estava de pé, triste, uma mão no peito, curvada ao desgosto. O seu belo sorriso era de uma tristeza de fazer chorar. Olhava-me dolorosamente, mas sem a sombra da menor censura. O meu anjo, prestes a abandonar a Terra, parecia dizer-me adeus. Permaneceu assim, muda e imóvel, durante um minuto; depois, entrou em casa.

Estava escrito que nunca mais voltaria a vê-la neste mundo.

Também dessa vez saí para fora da cidade, correndo como um insensato, mas não regressei no outro dia nem nos que se lhe seguiram. Continuei a caminhar até que cheguei a Roma.

Fiquei cinco anos na velha cidade; comecei a ganhar fama, suscitei a amizade do papa, tive duelos, amores e sucessos; mas não estava satisfeito, faltava-me qualquer coisa. Não passava um dia sem que voltasse o meu olhar para os lados de Florença. Nem uma só noite deixei de ver Stéfana, em sonhos, pálida e triste, olhando-me do umbral da casa de seu pai.

Cinco anos depois, recebi de Florença uma carta lacrada a preto. Tantas vezes a li e reli que me ficou para sempre gravada na memória e no coração.

Dizia assim:

 

Benvenuto, vou morrer. Benvenuto, eu amava-vos.

Vou dizer-vos o que foram os meus sonhos. Conhecia-vos tão bem como vós mesmo. Pressenti todo o génio que existe em vós, e que um dia vos fará grande. Li-o na vossa fronte espaçosa, nos vossos olhares ardentes e no gesto inflamado; e compreendi que esse génio impunha graves deveres àquela que viesse um dia a usar o vosso nome. E aceitava esses deveres. A felicidade tinha para mim a solenidade de uma missão a cumprir. Eu não teria sido apenas a vossa esposa, Benvenuto, mas também a vossa amiga, a vossa irmã e a vossa mãe. Sabia bem que a vossa existência pertence a todos, mas eu não teria querido mais que o direito de consolar-vos nos vossos desgostos. Teríeis sido completamente livre, meu amigo, sempre e em todas as coisas. Já estava tão habituada às vossas dolorosas ausências, aos impulsos do vosso temperamento!... Todas as constituições poderosas têm poderosas necessidades. Quanto mais alto e por mais tempo planou a águia, mais demoradamente tem, depois, que repousar em terra. Mas quando vos libertásseis dos sonhos febris do vosso génio, eu veria sempre acordar o meu sublime Benvenuto, o Benvenuto que amo e que só a mim teria pertencido! Jamais teria feito a menor censura às vossas horas de esquecimento, pois nada teriam de injurioso para mim. E, sabendo-vos ciumento, como épróprio dos corações nobres, ciumento como o deus da Escritura, quando não estivésseis em casa permaneceria eu nela, longe dos olhares, na solidão que me agrada, esperando-vos e rezando por vós. Aqui está o que teria sido a minha vida.

Quando vi que me abandonáveis, submeti-me à vontade de Deus e à vossa, fechei os olhos e entreguei-me nas mãos do dever e do destino. Meu pai impunha-me um casamento que o livrava da desonra; obedeci. Meu marido foi duro, severo, impiedoso. Não se contentando com a minha docilidade, exigiu de mim um amor que estava acima das minhas forças, castigando-me da involuntária tristeza com actos brutais. Creio ter sido uma esposa digna e pura, mas, ai de mim, Benvenuto! uma esposa sempre bem triste. Deus quis-me recompensar, neste mundo, dando-me um filho. Os beijos e as carícias de meu filho impediram-me que sentisse, durante quatro anos, os ultrajes, os maus tratos e a miséria. Sim, a miséria, pois meu marido, que tudo queria ganhar, acabou por arruinar-se, e esta ruína causou-lhe a morte, ocorrida no mês passado. Que Deus lhe perdoe, como eu lhe perdoo.

Dentro de poucas horas será também a minha vez de morrer, Benvenuto. Lego-vos o meu filho.

Tudo aconteceu pelo melhor, creio. Quem sabe se a minha fraqueza de mulher não teria traído o papel que queria desempenhar junto de vós? Mas ele, o meu Ascânio (parece-se comigo), será um companheiro mais forte e mais resignado. Ele vos amará melhor, e talvez mais, até.

Fazei por meu filho o que eu teria feito por vós.

Adeus, meu amigo; eu amava-vos e amo-vos. Repito-vo-lo agora, sem vergonha nem remorso, às portas da eternidade, porque este amor era santo. Adeus! Sede grande, eu vou ser feliz; levantai algumas vezes os olhos ao Céu para que eu vos veja.

               Vossa. Stéfana.

 

— E agora, Colomba e Ascânio, confiais ou não em mim? — perguntou Benvenuto. — Estais prontos a executar o que vou aconselhar-vos? Os dois jovens responderam emocionados e afirmativamente.

 

         VISITAS DOMICILIÁRIAS

No dia seguinte àquele em que esta história foi contada nos jardins do Petit-Nesle, à luz das estrelas, o atelier de Benvenuto mostrava, desde manhã, o aspecto costumado. O mestre trabalhava no saleiro de ouro cuja matéria-prima tão denodadamente defendera dos quatro salteadores que lha queriam tirar além da vida. Ascânio cinzelava o lírio da duquesa d'Etampes. Tiago Aubry, preguiçosamente estendido numa cadeira, fazia mil perguntas a Cellini, que lhe não respondia, e que obrigava, assim, o estudante amador a ter de responder a si próprio. Pagolo olhava disfarçadamente Catarina ocupada em quaisquer lavores femininos. Hermann e os outros artífices limavam, batiam, soldavam, cinzelavam, enquanto a cantiga de Scozzone ia animando o trabalho.

No Petit-Nesle não se registava a mesma tranquilidade. Colomba tinha desaparecido.

Ia por lá um grande rebuliço. Procurava-se, chamava-se, mas em vão. Dona Perrine soltava altos gritos, enquanto o preboste, chamado à pressa, tentava extrair dos lamentos da boa dama qualquer indício que lhe fornecesse uma pista para encontrar a ausente ou, talvez, a fugitiva.

— Ora vejamos, Dona Perrine, dizíeis então que a última vez que a vistes foi ontem à tardinha, momentos depois de eu ter saído... — perguntava o preboste.

— Ai de mim, senhor! sim. Deus do Céu! Que aventura!... A pobre e querida menina pareceu-me um bocadinho triste. Foi desembaraçar-se de todos aqueles enfeites de corte e pôs um simples vestido branco... Santos do Céu, tende piedade de nós! Depois, disse-me: «Dona Perrine, a tarde está linda, vou dar um passeio pela alameda.» Podiam ser sete horas. Aqui esta senhora — disse Perrine, indicando Pulquéria, a ajudante, ou melhor, a superiora que lhe haviam dado —, como é seu hábito, já tinha recolhido aos seus aposentos, certamente para executar aqueles lindos vestidos que sabe fazer, e eu tinha-me posto a coser na sala de baixo. Não sei quanto tempo aí fiquei a trabalhar... é possível que, em certa altura, os meus pobres olhos fatigados se tenham fechado contra minha vontade e eu perdesse o acordo, por momentos...

— Como é vosso hábito — interrompeu Pulquéria com azedume.

— No entanto — prosseguiu Dona Perrine, sem se dignar rebater a mesquinha calúnia > por volta das dez horas levantei-me da minha cadeira e fui até ao jardim ver se Colomba

não estaria por lá esquecida das horas. Chamei; e como ninguém me respondeu, pensei que já Se tivesse recolhido e deitado sem o meu auxílio, como às vezes faz, para não me incomodar, aquela santa menina. Deus de misericórdia! Quem teria pensado!... Ah, Senhor Preboste, Posso afiançar-vos que se seguiu alguém, não foi um namorado, mas um raptador. Tinha-a educado em tais princípios...

— E esta manhã!? E esta manhã!? — perguntou o preboste impaciente.

— Esta manhã, quando vi que ela não descia... Virgem Santa, socorrei-nos!

— Dai ao demo as ladainhas! — exclamou o Sr. dEstourville. — Concisão, e nada de lamúrias! Quando vistes que não descia?...

— Ah, Senhor Preboste, não podereis impedir-me de chorar até que a encontrem. Esta manhã, Senhor, inquieta de não a ver ainda (ela era tão madrugadora!...), fui bater à porta dos seus aposentos para a despertar; e, como não me respondia, abri a porta. Ninguém! A cama estava intacta. Então, pus-me a gritar, a chamar... perdi a cabeça! e ainda não quereis que eu chore!...

— Dona Perrine — disse severamente o preboste —, não teríeis permitido a entrada de alguém aqui no palácio, durante a minha ausência?...

— Alguém, aqui no palácio?!... Não faltava mais nada! — respondeu a governanta assumindo ares de estupefacção, e com a consciência pouco tranquila neste particular. — Não mo tínheis vós expressamente proibido, Senhor?... Desde quando é que eu me permiti transgredir as vossas ordens!? Alguém, aqui?! Isso sim!

— Esse Benvenuto, por exemplo, que se atrevia a gabar a beleza da minha filha, não tentou subornar-vos?

— Qual quê!? Havia de lhe ser mais fácil escalar a Lua... Ah, eu sabia como recebê-lo sabia!...

— Então nunca deixastes entrar no Petit-Nesle um homem, um homem novo?

— Um homem novo?! Deus do Céu... um homem novo!... E porque não o Diabo!?...

— Quem é então — perguntou Pulquéria — esse belo rapaz que veio bater dez vezes à porta, e a quem eu fechei dez vezes a porta na cara?

— Um belo rapaz?... Deveis ter cataratas nos olhos, minha cara! Não sendo o conde d'Orbec... Ah!... já sei. Referis-vos talvez a Ascânio... Conhecei-lo muito bem, Senhor Preboste: é aquele rapaz que vos salvou a vida. Agora me lembro, sim: tinha-lhe mandado consertar as fivelas de prata dos meus sapatos. Mas, é um jovem, um aprendiz!... Ora, ora, minha amiga, ponde óculos! Que digam estas paredes e este chão se ele algum dia aqui entrou dentro.

— Basta! — interrompeu o preboste com severidade. — Se iludistes a minha confiança, vós o pagareis, D. Perrine! Vou já a casa desse Benvenuto; Deus sabe como esse campónio me receberá, mas é preciso.

Contra toda a expectativa, Benvenuto recebeu o preboste com grande cortesia. Ao ver o seu sangue-frio, o seu à-vontade e cortesia, o Sr. d'Estourville nem ousou exprimir as suas suspeitas. Disse apenas que sua filha Colomba, totalmente aterrorizada, havia fugido de casa na véspera. Depois, acrescentou que, desnorteada como estava, podia talvez ter-se refugiado no Grand-Nesle, ou ter desmaiado ao atravessá-lo, sem que Benvenuto o soubesse. Em suma: mentiu o mais desastradamente que era possível.

Mas Cellini aceitou de bom grado todas as histórias e todos os pretextos do preboste, levando a sua complacência ao ponto de simular não se aperceber de nada. Foi mesmo mais longe, lamentando de todo o seu coração o preboste, e afirmando-lhe que se sentiria muito feliz se pudesse restituir a filha a um pai que sempre a havia rodeado de uma afeição e de uma ternura tão comoventes como dignas. A fugitiva procedera muito mal em abandonar uma tão doce e segura protecção, dizia Benvenuto. De resto, como prova do sincero interesse que o preboste lhe merecia, punha-se desde logo à sua disposição para o secundar em todas as suas buscas, tanto no Grand-Nesle, como onde quer que fosse.

O preboste, meio convencido, e tanto mais impressionado com aqueles elogios quanto era certo que os não merecia, iniciou então com Benvenuto Cellini uma escrupulosa busca ao seu antigo Palácio do Grand-Nesle, de que conhecia todos os cantos e recantos.

Assim não ficou uma só porta por empurrar nem um só armário ou baú por entreabrir. Depois do palácio, passou ao jardim, percorreu o arsenal, a fundição, o celeiro e a cavalariça, examinando tudo meticulosamente. Durante toda a busca, Benvenuto, fiel à sua palavra, auxiliou grandemente o preboste, fornecendo-lhe todas as chaves à medida que iam sendo precisas e indicando um ou outro corredor que o Sr. d'Estourville esquecia. Chegou mesmo a aconselhar-lhe que deixasse um dos seus homens em cada aposento visitado a fim de que a fugitiva não pudesse passar-se furtivamente de um para outro.

Depois de ter esquadrinhado tudo, ao fim de duas horas de buscas completamente inúteis, o preboste, seguro de nada ter esquecido, e confundido com tantas gentilezas do seu hospedeiro, deixou o Grand-Nesle, cumulando Benvenuto de desculpas e agradecimentos.

— Sempre que queirais voltar — disse o mestre-ourives —, ou se precisardes de recomeçar aqui as vossas buscas, já sabeis que a minha casa está sempre à vossa disposição, tal qual como quando vos pertencia. Aliás, não faço mais que a minha obrigação, Senhor; pois não nos comprometemos nós, por tratado, a viver como bons vizinhos?...

O preboste agradeceu, e como não sabia de que maneira retribuir as gentilezas de Benvenuto, ao sair desfez-se em elogios à gigantesca estátua de Marte que o artista estava, como dissemos, a executar. Benvenuto fê-lo rodear a estátua, acentuando-lhe as espantosas proporções, que eram de mais de sessenta pés de alto por cerca de vinte passos de circunferência, na base. O Sr. dEstourville retirou-se desolado. Como não pôde achar a filha no Grand-Nesle, convenceu-se que ela tinha encontrado asilo algures na cidade, que naquela época já era suficientemente grande para embaraçar o próprio chefe da polícia. E, de resto, tê-la-iam raptado ou teria ela fugido? Nenhuma circunstância para tirá-lo daquela incerteza. Pôs-se então à espera de que, no primeiro caso, ela conseguisse escapar-se, e, no segundo, de que reconsiderasse e voltasse para casa. Encheu-se de paciência, e foi deixando passar o tempo, contentando-se com interrogar Dona Perrine vinte vezes ao dia; esta não se cansava de invocar todos os santos do paraíso, e continuava a jurar por tudo que não recebera ninguém no Petit-Nesle e a afirmar que, tal como o senhor Preboste, não desconfiava de Ascânio.

Todo aquele dia e o seguinte se passaram sem notícias do paradeiro de Colomba. O preboste pôs então todos os seus homens em campo, o que só não fez mais cedo para ver se podia evitar falatórios e conservar a reputação. Mesmo assim, forneceu-lhes todos os sinais de Colomba sem dizer de quem se tratava, de modo que as indagações foram efectuadas com relativa discrição. Mas, conquanto se não desprezassem as mínimas pistas, todas as buscas que se efectuaram foram infrutíferas.

O preboste nunca fora para Colomba um pai afectuoso e terno, é certo; mas se não se desesperava, enchia-se de despeito; se o seu coração não sofria, sofria o seu orgulho. Pensava indignado no belo partido que «aquela tola» ia talvez perder, e já imaginava, com raiva, os gracejos e sarcasmos com que a corte ia acolher a sua desastrosa aventura.

Por fim, houve que anunciar esta desgraça ao noivo de Colomba. O conde d'Orbec afli-giu-se com ela, mas apenas à maneira do comerciante a quem avisam de que as suas mercadorias se deterioraram. O caro conde era filósofo, de modo que prometeu ao seu digno amigo que se a coisa não transpirasse demasiado, o casamento não deixaria de efectuar-se. E como era homem que sabia aproveitar a ocasião, não deixou escapar o momento de dar a entender vagamente ao preboste os projectos da Sr.a d'Étampes a respeito de Colomba.

O preboste ficou deslumbrado com tamanha honra, e o seu desgosto pelo desaparecimento de Colomba redobrou. Maldisse a hora em que a ingrata se furtou a um destino tão belo e tão nobre.

Pouparemos os nossos leitores a conversa que esta conferência do conde d'Orbec deu lugar entre os dois velhos cortesãos. Diremos apenas que a dor e o desespero tomaram nela uma feição bizarramente comovedora. E como a desgraça aproxima os homens, o sogro e o genro separaram-se mais unidos do que nunca, e sem poderem suportar a ideia de terem de renunciar ao brilhante futuro que entreviram.

Combinaram, é claro, não falar do desaparecimento de Colomba a ninguém, excepto à duquesa d'Étampes, que era uma amiga demasiado íntima e uma cúmplice demasiado interessada para que pudesse ficar fora do segredo.

Foi bem pensado, porque a duquesa tomou logo o caso muito mais a peito que o pai e o noivo, além de que estava, como sabemos, muito mais apta que ninguém a fornecer pistas e sugestões ao preboste para as suas buscas.

Efectivamente, sabia do amor de Ascânio por Colomba e, como tinha obrigado o jovem a assistir a toda a conspiração, podia presumir que Ascânio, ao ver que tramavam contra a honra da sua amada, se decidira a um acto desesperado. No entanto, Ascânio dissera-lhe que Colomba o não amava e, sendo assim, não era de supor que se tivesse prestado a tais projectos. Ora a duquesa d'Etampes conhecia suficientemente o jovem para saber que ele jamais se atreveria a provocar a resistência e o desprezo de Colomba. E, no entanto, apesar de toda esta argumentação que ilibava Ascânio de suspeitas, a sua intuição de mulher ciumenta dizia-lhe que era no Palácio de Nesle que Colomba devia ser procurada e que, antes de mais, era preciso vigiar Ascânio.

Mas, por outro lado, a Sr.a d'Étampes não podia dizer aos seus amigos onde baseava as suas conjecturas, pois teria de confessar-lhes que amava Ascânio e que, na imprudência da sua paixão, confiara ao jovem todos os seus projectos a respeito de Colomba. Assim, contentou-se com assegurar-lhes que, ou se enganava muito, ou Benvenuto era o culpado, Ascânio o cúmplice e o Grand-Nesle o asilo. Por mais que o preboste afirmasse e jurasse que tudo tinha visto e esquadrinhado, não conseguiu demovê-la; e como ela lá tinha as suas razões, obstinou-se de tal maneira que acabou por fazer nascer a dúvida no espírito do Sr. d'Estourville que, todavia, tinha a certeza de ter procurado bem.

— De resto — acrescentou a duquesa —, tenciono mandar chamar Ascânio e interrogá-lo. Descobrirei, tudo, podeis estar certos.

— Ah, Senhora, sois demasiado bondosa — disse o preboste. «E vós demasiado patetas», murmurou a duquesa entre dentes. Depois disto, disse-lhes que se fossem.

Uma vez só, a duquesa pôs-se a imaginar a melhor maneira de chamar Ascânio à sua presença; mas ainda não tinha decidido, quando lhe vieram anunciar o jovem aprendiz. Não podia, pois, vir mais a propósito. Vinha calmo e frio. A duquesa envolveu-o num olhar tão penetrante que parecia querer ler nele até ao fundo do seu coração. Mas Ascânio nem pareceu dar por tal.

— Senhora — disse inclinando-se —, venho mostrar o vosso lírio quase pronto. Só lhe falta a gota de orvalho de duzentos mil escudos que prometestes fornecer-me.

— Está bem. E a tua Colomba? — foi a única resposta da duquesa.

— Se é à Senhorinha d'Estourville que vos quereis referir, Senhora, de joelhos vos suplico que não volteis a proferir o seu nome ao pé de mim. Peço-vos humilde e instantemente que nunca mais se fale desse assunto entre nós. Far-me-eis essa mercê?

— Ah!... Ah! Despeito?!... Ahn!. — exclamou a duquesa, cujo olhar profundo nem por um instante deixara de fixar-se em Ascânio.

— Seja qual for o sentimento que me anime, Senhora, e ainda que houvesse de incorrer no vosso desagrado de hoje em diante, ousarei recusar-me a manter convosco qualquer conversa sobre este assunto. Jurei a mim mesmo sepultar para sempre essas lembranças no mais profundo do meu coração.

«Ter-me-ia enganado? — pensou a duquesa. — Será que Ascânio nada tem a ver com o desaparecimento de Colomba? Querem ver que a jovem, de bom ou de mau grado, seguiu qualquer outro raptor e, estragando os projectos da minha ambição com a sua fuga, vai agora servir os interesses do meu amor?...»

Depois de feitas mentalmente estas reflexões, a duquesa prosseguiu em voz alta:

— Ascânio, acabais de me pedir que nunca mais vos fale dela; e de mim, consentireis que vos fale? Como vedes, estou pronta a aceder ao vosso pedido; mas quem sabe se este outro assunto de conversa vos não será ainda mais desagradável que o primeiro...

— Perdoai, Senhora, se vos interrompo — disse o jovem —, mas a bondade que acedestes ao meu pedido encoraja-me a fazer-vos um outro. Embora de família nobre, sou apenas um pobre e obscuro jovem, educado na sombra de um atelier de ourives, e, deste claustro artístico, vi-me, de repente, trasladado para uma sociedade brilhante, ligado ao destino dos impérios, e tendo, apesar de fraco, poderosos fidalgos por inimigos e um rei por rival. E que rei, Senhora!... Francisco I, um dos príncipes mais poderosos de toda a Cristandade. De repente, ombreei com os mais ilustres nomes e com os destinos mais brilhantes. Amei sem ser amado, e amaram-me sem que eu tivesse amor. E quem foi amar-me, Santo Deus!... Vós, uma das mais belas, uma das mais nobres damas da Terra! Tudo isto acabou por causar grande perturbação dentro de mim e à minha volta. Tudo isto me aturdiu e aniquilou, Senhora! Eis-me assustado como um anão que despertou entre gigantes. Baralham-se-me as ideias e os sentimentos, sinto-me desorientado entre todos estes ódios terríveis e todos estes amores implacáveis, no meio de todas estas ambições gloriosas. Senhora, deixai que respire. Concedei ao náufrago que volte a si, e ao convalescente que retempere as forças. Tenho esperança de que o tempo acabará por restituir a ordem à minha alma e à minha vida. Dai-me tempo, Senhora, dai-me tempo, e, por quem sois! não vejais hoje em mim senão o artista que vem perguntar-vos se achais a sua obra a vosso gosto.

A duquesa fixou em Ascânio um olhar cheio de dúvida e de espanto. Jamais tinha podido supor que aquele jovem, uma criança quase, pudesse falar naquele tom, simultaneamente tão poético, tão grave e tão severo. A verdade é que se sentia obrigada a obedecer-lhe, e não lhe falou senão na preciosa flor que ele lhe trazia, cumulando-o de elogios e conselhos, e prometendo-lhe fazer os possíveis por lhe enviar muito em breve o enorme diamante que remataria a obra. Ascânio agradeceu e despediu-se testemunhando o seu reconhecimento e respeito.

«É este o mesmo Ascânio?!... — murmurou para si a Sr.a d'Étampes, mal ele saiu. — Parecia dez anos mais velho. Quem lhe inspiraria esta gravidade quase irresistível? O sofrimento? A felicidade? Teria sido sincero, ou aconselhado por Benvenuto? Estará a desempenhar admiravelmente um difícil papel, ou deixa falar o coração?»

Ana começou a perder a cabeça. A estranha vertigem que sempre se apoderava dos que lutavam com Benvenuto Cellini começava também a dominá-la, apesar do vigor do seu espírito. Mandou várias pessoas espiar Ascânio, que era, assim, sempre seguido nas raras vezes que saía. Mas nada puderam descobrir. Até que a Sr.a d'Etampes mandou chamar o preboste e d'Orbec, e aconselhou-lhes, em tom peremptório, que tentassem nova busca ao Palácio de Nesle, mas de surpresa.

Os dois obedeceram, é claro, indo surpreender Benvenuto em seus trabalhos. Cellini» porém, recebeu ainda melhor os inesperados visitantes do que o preboste quando lá foi sozinho. Mostrou-se tão cortês e liberal que parecia nem dar-se conta do que aquela busca tinha de injurioso para si. Dirigindo-se amigavelmente ao conde dOrbec, contou-lhe a cilada que lhe tinham armado naquele dia em que saíra de casa do conde carregado de ouro-Depois observou que fora também naquele dia que se dera o desaparecimento da Senhorinha d'Estourville.

Também desta vez se ofereceu para acompanhar os visitantes, e para, como ele acentuou, ajudar o preboste a retomar os seus direitos de pai, cujos deveres sagrados ele, Benvenuto, compreendia muito bem. Depois congratulou-se de que tivessem chegado a tempo de lhe poder fazer ainda as honras do castelo, pois que, dentro de duas horas, devia partir para Romorantin, uma vez que a benevolência de Francisco I se dignara escolhê-lo para o grupo de artistas que deviam ir ao encontro do imperador.

De facto, os acontecimentos políticos tinham evoluído tanto como os da nossa humilde história. Carlos V, encorajado pela promessa pública do seu rival e pelo compromisso secreto da duquesa d'Etampes, encontrava-se já a escassas jornadas de Paris. Constituíra-se uma deputação para o ir esperar e, efectivamente dOrbec e o preboste tinham ido encontrar Cellini em trajos de viagem.

— Se se vai de Paris com a escolta toda — disse d'Orbec em voz baixa ao preboste —, é porque não foi ele o raptor de Colomba, e não temos mais nada que fazer aqui.

— Já vo-lo tinha dito antes de virmos — respondeu o preboste.

No entanto, sempre se decidiram pela investigação, e começaram a busca ao palácio com meticuloso cuidado. Benvenuto acompanhou-os a princípio mas, vendo que a visita domiciliária se estava a alongar demasiado com minúcias e cautelas intermináveis, pediu licença para os deixar continuar sozinhos, uma vez que, tendo de partir dentro de meia hora, precisava dar certas ordens e instruções aos seus artífices de modo a que, no regresso, tudo estivesse pronto para fundirem o seu Júpiter.

Benvenuto desceu efectivamente ao atelier, distribuiu trabalho aos operários, pediu-lhes que obedecessem a Ascânio como a ele próprio, disse algumas palavras em italiano ao ouvido do jovem discípulo, disse adeus a todos e preparou-se para deixar o palácio. Um cavalo selado e pronto esperava-o no primeiro pátio.

Neste momento, Scozzone foi ter com Benvenuto e, chamando-o de parte, disse-lhe preocupada:

— Sabeis, mestre, que a vossa partida me vai deixar numa bem difícil situação?

— Como assim, minha Scozzone?...

— Pagolo ama-me cada vez mais.

— Sério?!

— E não se cansa de me falar do seu amor.

— E tu que lhe respondes?

— Ora! Obedecendo-vos, digo-lhe que espere um pouco, que pode ser que sim...

— Pois muito bem!

— Muito bem?! Mas não vedes que ele toma a sério tudo o que lhe digo, e que afinal são compromissos que tomo para com ele?! Esqueceis-vos que há já quinze dias que me prescrevestes tal comportamento para com ele?

— Sim... creio que sim, já não me lembro bem.

— Pois eu lembro lindamente. Durante os primeiros cinco dias tentei dissuadi-lo docemente; disse-lhe que devia dominar-se e não pensar em mim. Nos cinco dias seguintes, escutei-o em silêncio, o que era uma maneira bem comprometedora de lhe responder; mas era uma ordem vossa, e eu obedeci-lhe. Finalmente, nos cinco últimos dias, vi-me reduzida a lembrar-lhe os meus deveres para convosco e ontem, mestre, cheguei a implorar-lhe que fosse generoso e ele foi-o ao suplicar-me que consentisse.

— Ah, isso já é outra coisa — disse Benvenuto. —- Ora graças a Deus!...

— Ouve agora, pequena. Durante os três primeiros dias da minha ausência, deverás deixar-lhe acreditar que o amas; e nos três seguintes, far-lhe-ás a confissão desse amor.

— Quê?!... E sois vós que tal me dizeis, Benvenuto?! — exclamou Scozzone, picada na excessiva confiança que o mestre mostrava a seu respeito.

— Tranquiliza-te. Quem pode censurar-te, se sou eu próprio que te autorizo?

— Meu Deus — disse Scozzone — ninguém, bem sei! Mas... colocada assim entre a vossa indiferença e o seu amor... Deus sabe se acabarei por o amar verdadeiramente!...

— Ora, ora! Em seis dias?... Não te sentes com forças para resistir durante seis dias?...

— Está bem! Concedo-vo-los! Mas não demoreis mais do que seis dias.

— Não tenhas medo, minha pequena, voltarei a tempo. Adeus, Scozzone.

—Adeus, mestre! — exclamou Catarina, amuando, sorrindo e chorando, tudo ao mesmo tempo.

Enquanto Benvenuto Cellini dava estas instruções a Catarina, o preboste e d'Orbec chegaram ao fim das suas investigações.

Mal se tinham visto livres e sós, entregaram-se às suas buscas com uma espécie de frenesim. Exploraram sótãos, revistaram caves, sondaram todas as paredes e arrastaram todos os móveis. Ora impetuosos como credores, ora pacientes como caçadores, tudo viram e reviram, escalonando criados por onde quer que passavam. Cem vezes voltaram subitamente atrás, examinando mais de vinte a mesma dependência, até que, dando por finda a expedição, regressaram excitados e rubros sem nada terem descoberto.

— Então, Senhores? — disse-lhes Benvenuto, que montava naquele instante a cavalo — não acharam, não é verdade? Oh, como o lamento! como o lamento!... É que eu bem sei a angústia que padecem dois corações tão sensíveis e amantes como são os vossos, Senhores. E apesar da minha ânsia em vos ajudar, vejo-me forçado a partir!... Perdoai-me, e aceitai as minhas despedidas. Mas... ah!... Se na minha ausência tiverdes de voltar ao Grand-Nesle, não hesiteis, vinde e fazei de conta que estais em vossas casas. A única consolação que me resta, ao ter de deixar-vos nessa inquietação mortal, é que espero saber, ao regressar, que já tereis encontrado, vós, Senhor Preboste, a vossa amada filha, e vós, Sr. dOrbec, a vossa linda noiva. Adeus, meus Senhores.

Depois, voltando-se para os companheiros de trabalho, que se tinham agrupado nos degraus, e entre os quais faltava Ascânio, decerto pouco interessado em avistar-se com o rival,! disse:

— Adeus, meus rapazes! Se na minha ausência o Senhor Preboste desejar visitar terceira vez o palácio, não deixeis de o receber como é devido a um seu antigo possuidor.

Proferidas estas palavras, Jehan pequeno abriu a porta, e Benvenuto, metendo esporas ao cavalo, partiu a galope.

— Como vedes, meu caro, não passamos de dois papalvos — disse o conde d'Orbec ao preboste. — Quando se raptou uma jovem, não se parte assim para Romorantin com toda a corte!

 

         CARLOS V EM FONTAINEBLEAU

Não era sem graves hesitações e angústias terríveis que Carlos V tinha pisado terras de França, onde até o ar e o sol lhe eram, por assim dizer, inimigos. Não podia esquecer-se de que aprisionara e maltratara o rei daquele país, e que tinha, pelo menos dizia-se, envenenado o delfim. Toda a Europa esperava que Francisco I exercesse terríveis represálias sobre o seu rival, que assim se lhe punha tão à mão. Mas a audácia de Carlos, esse grande jogador de impérios, não lhe permitira recuar e, uma vez sondado habilmente e preparado o terreno, atravessou corajosamente os Pirenéus.

Contava também com amigos dedicados na corte de França e confiava, sobretudo, na ambição da duquesa d'Étampes, na fatuidade do condestável, Anna de Montmorency e no cavalheirismo do rei.

Vimos já como e porquê a duquesa desejava ser-lhe prestável. Quanto ao condestável, era diferente. O escolho dos homens de Estado foi sempre, e em todos os países, a questão das alianças. A política reduzida neste e em muitos outros pontos a ser tão conjectural como a medicina, engana-se muitas vezes ao estudar os sintomas das afinidades entre os povos, e ao arriscar certos remédios para os ódios entre as nações. Ora, para o condestável, a aliança espanhola tornara-se uma monomania. Metera-se-lhe na cabeça que a salvação da França dependia dela e, assim, desde que agradasse a Carlos V, que todavia lutara durante vinte e cinco anos contra o seu rei, o condestável de Montmorency pouco se importava de desagradar aos outros aliados, aos Turcos e aos protestantes, ou de perder tão excelentes oportunidades como a que a Flandres dava a Francisco I.

O rei confiava cegamente em Montmorency. E a verdade é que o condestável, nas últimas batalhas contra o imperador, dera provas de um inaudito poder de decisão, imobilizando o inimigo. É certo que isso foi conseguido à custa de uma província inteira, que era uma décima parte da França e ficou transformada num deserto... Mas o que mais o impunha à admiração do rei era a orgulhosa rudeza e a inflexível obstinação do ministro, qualidades que só um espírito superficial podia confundir com habilidade, integridade e firmeza. Daí resultava que Francisco I ouvia o grande subornador de pessoas, como lhe chamava Brantome, com uma deferência semelhante ao medo que inspirava aos seus superiores o terrível recitador de padres-nossos, que lardeava os seus oremos com enforcamentos.

Carlos V podia portanto contar seguramente com a sistemática amizade do condestável.

Mas ainda depositava mais confiança na generosidade do seu rival. E podia, porque Francisco I levava a grandeza até às fronteiras da insensatez. «O meu reino — dissera ele «não obriga a portagem, como as pontes, e eu não vendo a minha hospitalidade.» O astucioso Carlos V sabia bem que podia confiar na palavra do rei fidalgo.

E contudo, ao penetrar no território francês, o imperador não conseguiu dominar umas certas dúvidas e apreensões. Na fronteira, foi encontrar os dois filhos do rei, que se tinham deslocado ao seu encontro; e por onde quer que passava, todos os cumulavam de atenções e marcas de respeito. Mas o cauteloso monarca estremecia ao pensar que todas aquelas belas aparências de cordialidade escondiam talvez uma cilada. «Muito mal se dorme em terra estrangeira», dizia ele. Em todas as festas que davam em sua honra, o rosto do imperador mostrava-se inquieto e preocupado e, à medida que ia penetrando no coração da França, tornava-se mais triste e mais sombrio.

De cada vez que fazia a sua entrada numa nova cidade, perguntava a si próprio, no meio dos discursos e sob os arcos triunfais, se seria aquela cidade que iria servir-lhe de prisão. Depois, murmurava no íntimo da mente: «Não é esta nem qualquer outra: o meu cárcere é a França inteira; e todos estes cortesãos obsequiosos não passam de meus carcereiros.» De hora a hora, crescia a ansiedade deste tigre, que já se julgava na jaula e via grades por toda a parte.

Um dia, num passeio a cavalo, o travesso mas simpático Carlos de Orleães, que se prezava de corajoso e amável como qualquer filho da França, saltou agilmente para a garupa do cavalo do imperador, enlaçando Carlos V:

— Agora — exclamou com infantil alegria — sois meu prisioneiro!

Carlos V tornou-se mortalmente pálido e quase lhe deu uma tontura.

Em Châtellerault, o pobre cativo imaginário foi encontrar Francisco I, que lhe fez um acolhimento de irmão, e que, no dia seguinte, em Romorantin, lhe apresentou toda a sua corte, a galante e valorosa nobreza, glória da França, e os artistas e letrados, glória do rei. Recomeçaram então as festas e surpresas, cada vez mais faustosas e brilhantes. O imperador a todos mostrava boa cara, mas no fundo receava cometer a mais pequena imprudência. De vez em quando, como para sondar a sua liberdade, saía ao romper da alva do castelo onde o tinham alojado, e via com prazer que, além das honras que lhe prestavam, ninguém embargava os seus movimentos; mas quem sabe se o não estariam espiando de longe... Por vezes, à guisa de capricho, alterava o programa e o itinerário das jornadas, com o que exasperava Francisco I, que via assim perderem em brilho e magnificência as festas e cerimónias que preparava.

Quando estavam já a duas jornadas de Paris, recordou com terror o que Madrid tinha sido para o rei de França. Parecia-lhe evidente que a capital devia ter sido julgada a prisão mais honrosa e mais segura para um imperador. Estava tão convencido disso, que pediu ao rei para seguirem imediatamente para Fontainebleau, de que tantas maravilhas lhe tinham dito. Não era preciso tanto para transtornar todos os planos de Francisco I; mas, como este era demasiado hospitaleiro para exteriorizar a sua contrariedade, apressou-se a mandar recado à rainha que seguisse para Fontainebleau com todas as suas damas.

A presença de sua irmã Eleonor e a confiança que ela depositava na lealdade do esposo, acalmaram a inquietação do imperador. Mas, por mais tranquilizado que o imperador se sentisse naquela ocasião, a verdade é que nunca havia de estar à vontade enquanto fosse hóspede de Francisco I. O rei de França era o espelho do passado, Carlos V era do paradigma do futuro. O monarca dos tempos modernos não podia compreender o herói da Idade Média. Era impossível a simpatia entre o último dos cavaleiros e o precursor dos diplomatas.

É verdade que para certos historiadores Luís XI podia reivindicar este título de precursor dos diplomatas mas, quanto a nós, Luís XI não foi tanto o diplomata que se serve da astúcia* como o avarento que amealha.

No dia da chegada do imperador, houve uma grande caçada na floresta de Fontainebleau. A caça era um dos grandes prazeres de Francisco I, mas para o imperador significava apenas uma coisa: fadiga. Contudo, Carlos V aproveitou ciosamente esta nova ocasião para se certificar de que não estava prisioneiro. Deixou passar toda a comitiva, tomou por uma vereda lateral e embrenhou-se na floresta até se perder. Vendo-se só e livre como o ar que passava através dos ramos das árvores, livre como as aves que atravessavam o ar, ficou mais ou menos convencido da sua liberdade e recuperou algum bom humor. Não obstante, não pôde dominar um resto de inquietação quando, ao reunir-se a Francisco I, este correu para ele excitado com o ardor da caça e empunhando ainda a longa lança ensanguentada. Na sua atitude transparecia todo o ardor combativo do valente guerreiro de Marignan e Pavía.

— Vamos lá, meu bom irmão! Mais alegria! — disse Francisco I a Carlos V, pondo-lhe um braço afectuosamente à volta do pescoço, depois que os dois soberanos se apearam à porta do palácio, e conduzindo-o até à galeria de Diana, adornada com as pinturas maravilhosas de Rosso e Primatício. — Santo Deus! Pareceis-me tão preocupado como eu estava em Madrid. Mas haveis de concordar que eu tinha algumas razões para isso, pois era vosso prisioneiro, ao passo que vós sois meu hóspede, estais livre e achais-vos em vésperas de um grande triunfo. Por conseguinte, alegrai-vos connosco, senão por estas festas, demasiado fúteis, decerto, para um grande político como vós, ao menos pensando que ides castigar esses grandes bebedores de cerveja flamenga, esses intrometidos que pretendem renovar as comunas... Ou melhor: esquecei esses rebeldes e cuidai apenas em vos divertirdes entre amigos. Não vos agrada a minha corte?

— A vossa corte é admirável, meu irmão — disse Calos V —, e eu invejo-vo-la. Também eu tenho uma corte, bem a vistes, mas é severa e grave, não passa de uma sombria assembleia de homens de Estado e de generais, como Lannoy, Pescara, António de Leyra. Mas vós, além de vossos guerreiros e negociadores, além dos vossos Montmorency e dos vossos Dubellay, além de vossos sábios, além de Budée, Duchâtel, Lascaris, tendes os vossos poetas e os vossos artistas: Marot, João Goujon, Primatício, Benvenuto e, sobretudo, mulheres adoráveis: Margarida de Navarra, Diana de Poitiers, Catarina de Médicis e tantas outras, que começo verdadeiramente a pensar que trocaria de boa vontade as minhas minas de ouro pelos vossos campos de flores.

— Oh, e ainda não vistes a mais bela de todas essas flores — disse Francisco I ingenuamente ao irmão de Eleonor.

— É certo, e estou ansioso por poder contemplar tão grande formosura — disse o imperador que, pela alusão do rei, percebera tratar-se da duquesa d'Étampes. — Creio agora que tem toda a razão os que dizem que tendes o mais belo reino do mundo.

— E vós o mais belo condado, a Flandres; e o mais belo ducado, Milão.

— Recusastes o primeiro, no mês passado — disse o imperador —, e disso vos estou grato. Mas cobiçais o segundo, não é verdade? — acrescentou o imperador, com um suspiro.

Por Deus, primo! — exclamou Francisco I — não falemos hoje de coisas sérias! Confesso que, depois dos prazeres da guerra, nenhuns outros prazeres me custa tanto ver perturbar como os prazeres de uma festa.

-A verdade é que... — prosseguiu Carlos V com a expressão de um avarento ao admitir a necessidade de pagar uma dívida — a verdade é que quero muito ao Milanês, e dar-vo-lo é arrancar-me a alma.

— Não faleis em dar, mas em restituir, que é mais justo e menos doloroso para vós, meu irmão. Mas não se trata agora disso. Vamo-nos divertindo, e falaremos do Milanês mais tarde.

— Presente ou restituição — disse o imperador —, a verdade é que tereis nele um dos mais belos ducados do mundo, porque será vosso, meu irmão, é coisa decidida. Timbrarei em respeitar os meus compromissos para convosco com a mesma facilidade com que respeitais os vossos para comigo.

— Valha-me Deus! — exclamou Francisco I, começando a impacientar-se com a obstinação do imperador em abordar os assuntos sérios. — Que falta vos faz o Milanês, meu irmão? Não sois rei das Espanhas, imperador da Alemanha, conde da Flandres e, pela influência ou pela espada, senhor de toda a Itália, desde o sopé dos Alpes até à extremidade das Calábrias?...

— Mas vós possuís a França — disse Carlos V com um suspiro.

— E vós as índias e os seus tesouros; tendes o Peru e as suas minas.

— Mas vós tendes a França!

— Possuís um império tão vasto que nele o Sol nunca se põe.

— Mas vós possuís a França!... Que diríeis se eu me enamorasse tão apaixonadamente desse diamante dos reinos como vós vos enamorastes do Milanês, a pérola dos ducados?...

— Olhai, meu irmão — disse Francisco I gravemente —, vejo essas questões capitais mais com a intuição que com o raciocínio. Mas, assim como no vosso país costumais dizer: «Não toqueis na rainha», também vos digo: «Não toqueis na França.»

— Meu Deus! — disse Carlos V — não somos primos e aliados?!...

— É certo — respondeu Francisco I —, e espero que de ora em diante nada virá desmentir esse parentesco e essa aliança.

— Também assim o espero — disse o imperador. — Mas — prosseguiu, com o seu sorriso e o seu olhar hipócrita — poderei acaso responder pelo futuro?... Impedir, por exemplo, que o meu filho Filipe leve a melhor com o vosso filho Henrique?

— A questão não será perigosa para nós se for Tibério a suceder a Augusto...

— Que importa o soberano!? — exclamou Carlos V, inflamando-se. — O império será sempre o império, a Roma dos Césares era sempre Roma, mesmo quando os Césares já não eram Césares senão no nome.

— De acordo; mas o império de Carlos V não é o império de Octávio, meu irmão — disse Francisco I, começando a irritar-se. —- Pavia foi uma grande batalha mas não pode comparar-se com Áccio. E depois, Octávio era rico, ao passo que vós, apesar dos vossos tesouros da índia e das minas do Peru, tendes as finanças muito alquebradas. Já nem a treze nem quatorze por cento conseguis qualquer empréstimo; as vossas tropas pilharam Roma porque já não recebiam soldo, e agora revoltam-se porque já não podem pilhar mais nada.

— E vós, meu irmão? Não alienastes os próprios domínios da coroa? Não vos vedes obrigado a respeitar Lutero só para que os príncipes da Alemanha vos emprestem dinheiro?...

— E o pior — prosseguiu Francisco I — é que as cortes do vosso país estão longe de ser tão cómodas como o senado, enquanto que eu posso gabar-me de ter, de uma vez para sempre, libertado os reis dessas sujeições.

— Vós?! Se não tendes cautela sereis obrigado a aceitar a tutela de vossos parlamentos!.-A discussão animava-se à medida que os dois monarcas sentiam inflamar-se de novo o

antigo ódio que por tanto tempo os separara. Francisco I estava quase a esquecer a hospitalidade, e Carlos V a prudência, quando o rei de França se lembrou, de repente, que estava em sua casa. .

— À fé de cavaleiro, meu cunhado, que parece que nos vamos zangar! — exclamou rindo. — Não vos dizia ainda agora que era melhor não falarmos de coisas sérias e deixar as discussões para os nossos ministros?..,. Ora vá, assentemos, de uma vez para sempre, que sereis senhor de todo o mundo menos da França, e não se fala mais nisso.

— Menos a França e menos o Milanês, meu irmão — prosseguiu o imperador, reparando na imprudência que cometera e dominando-se imediatamente. — Sim, porque o Milanês é vosso. Prometo-vo-los e renovo a minha promessa.

Trocadas que foram estas recíprocas garantias de amizade, abriu-se a porta da galeria e a duquesa d'Êtampes surgiu. O rei foi ao seu encontro e conduziu-a até junto do imperador, que, vendo-a pela primeira vez e sabendo o que se passara entre ela e o seu embaixador, a fitava com o seu mais penetrante olhar.

— Meu irmão — disse o rei sorrindo —, vedes esta bela dama?...

— Não só a vejo, como a admiro — respondeu Carlos V.

— Pois bem, quereis saber o que ela pretende?

— Ainda que seja uma das minhas Espanhas, dar-lha-ei.

— Não é isso, meu irmão.

— Que é então?

— Deseja que eu vos retenha em Paris até que tenhais rasgado o tratado de Madrid e ratificado o compromisso que acabais de renovar.

— Se o conselho for bom, deveis segui-lo — respondeu o imperador, inclinando-se diante da duquesa, tanto por cortesia como para esconder a palidez súbita que as palavras de Francisco I lhe haviam provocado.

Não teve tempo para acrescentar mais nada, e Francisco I não pôde notar o efeito das palavras que dissera no tom de gracejo que Carlos V estava sempre pronto a tomar a sério, pois a porta acabava de se abrir novamente e toda a corte se espalhou na galeria.

Durante a meia hora que precedeu o jantar, e durante a qual se misturou toda aquela fidalguia elegante, espirituosa e corrompida, repetiu-se aquela cena que já descrevemos a propósito de uma recepção no Louvre. Eram os mesmos homens, as mesmas mulheres, os mesmos cortesãos e os mesmos criados. Trocaram-se, portanto, como de costume, os mesmos olhares de amor e os mesmos esgares de raiva, misturaram-se os sarcasmos, as lisonjas e os galanteios. Carlos V, ao ver entrar Anne de Montmorecy, que, com razão, considerava o seu mais seguro aliado, foi ao seu encontro e entabulou uma conversa com ele e com o duque de Medina, seu embaixador.

— Assinarei tudo o que quiserdes, condestável — dizia o imperador, que conhecia a lealdade do velho militar. — Preparai-me um auto de doação do Milanês e, por Santiago! assinar-vo-lo-ei de chapa, embora seja o mais belo florão da minha coroa.

Um documento?! — exclamou o condestável, repelindo veementemente uma precaução que traduzia desconfiança. — Um documento, Majestade?! Quem vo-lo pediu!? Ah» nada de documentos escritos, Majestade! A vossa palavra é quanto basta. Entrastes em França sem uma garantia escrita, e imaginais agora que teremos menos confiança em vós do que aquela que em nós depositastes?!...

E não vos arrependereis, Senhor de Montmorency — respondeu o imperador estendendo-lhe a mão —, não vos arrependereis. O condestável afastou-se.

— Pobre tolo! — exclamou o imperador para o duque de Medina Sidónia. — Aquele, a fazer política, é tão cego como as toupeiras a fazerem os seus túneis. " E o rei, majestade? — perguntou Medina.

— O rei é demasiado orgulhoso da sua nobreza de alma para não acreditar na nossa, deixar-nos-á tolamente partir, e nós fá-lo-emos prudentemente esperar. Fazer esperar, meu caro Medina — prosseguiu Carlos V —, não é faltar à palavra, é apenas isto: adiar.

E a duquesa d'Etampes? — perguntou Medina.

— Veremos — respondeu o imperador, enfiando e desenfiando um magnífico anel que trazia no polegar da mão esquerda, e que ostentava um diamante soberbo. — Ah, preciso de ter uma grande conversa com ela...

Enquanto o imperador trocava rapidamente estas palavras em voz baixa com o seu ministro, a duquesa zombava impiedosamente de Marmagne, e diante do preboste, a propósito das suas proezas nocturnas.

— Refere-se acaso aos vossos bravos, Sr. de Marmagne, essa prodigiosa história que Ben-venuto anda a contar a torto e a direito a toda a gente? Diz ele que, atacado por quatro bandidos, e podendo apenas defender-se com um braço, obrigou-os a escoltarem-no apenas até casa... Estaríeis vós entre esses valentões tão requintadamente educados, visconde?...

— Senhora — respondeu o pobre Marmagne, rubro de vergonha —, não foi precisamente assim que as coisas se passaram. Benvenuto conta assim para se gabar.

— Sim, sim... não duvido que enfeite o caso a seu favor, dourando os pormenores, mas o fundo é verdadeiro, visconde, o fundo é verdadeiro; e em tal matéria, o fundo é que importa.

— Senhora — respondeu Marmagne —, prometo-vos que tirarei desforra, e que desta vez serei mais bem sucedido.

— Perdão, visconde, não se trata de tirar qualquer desforra, mas de recomeçar totalmente. Esse Cellini riu-se de vós!

— Sim, porque eu não estive lá... — murmurou Marmagne, cada vez mais enfiado. — Se eu lá tivesse estado, aqueles miseráveis não teriam fugido!

— Oh — disse o preboste —, aconselho-vos a que vos considereis batido. Com esse Cellini nunca tereis sorte.

— Nesse caso, parece-me que nos podemos consolar um ao outro, meu caro preboste — respondeu Marmagne —, porque, se é verdade o que por aí se diz, também podeis agradecer a Cellini, além da perda do Grand-Nesle, o recente desaparecimento de uma das suas moradoras. No entanto, se é certo que não vos trouxe felicidade, parece que anda agora muito ocupado em promover a da vossa família...

— Sr. de "Marmagne! — exclamou violentamente o preboste, furioso por notar que a sua tragédia doméstica já era do domínio público — desejo que me expliqueis mais tarde o significado dessas palavras.

— Senhores, senhores... — exclamou a duquesa — suplico-vos que vos não esqueçais da minha presença. Nem um nem outro tem razão. Nas derrotas o que há a fazer é reunir-se a gente contra o inimigo comum, sem lhe dar a alegria de ver os vencidos degolarem-se entre si. Vai-se passar à sala de jantar; a vossa mão, Sr. de Marmagne. Pois bem! Já que os homens e as suas forças falham perante Cellini vejamos se a astúcia de uma mulher terá melhor sorte. Toda a vida disse que os aliados só estorvam, e preferi lutar sozinha. Bem sei que os perigos são maiores, mas ao menos não temos que partilhar com ninguém os louros da vitória.

— Que impertinente! — exclamou Marmagne — olhai com que familiaridade ele fala ao nosso grande rei! Dir-se-ia um fidalgo e, afinal, não passa de um miserável cinzelador!...

— Que dizeis, visconde?!... Mas é um fidalgo, e o que há de mais fidalgo! — disse a duquesa rindo. — Conheceis algum, dentre as nossas velhas famílias, que descenda de um tenente de Júlio César e que possua três flores-de-lis e o lambel da casa de Anjou no seu brasão?... Não é o rei que dá honra ao cinzelador falando-lhe; é ele, pelo contrário, que engrandece o rei dirigindo-lhe a palavra, bem vedes.

Efectivamente, Francisco I e Cellini conversavam naquele momento com a familiaridade a que os grandes da Terra tinham habituado o artista eleito do Céu.

— Então, Benvenuto — dizia o rei —, como vai o nosso Júpiter!

— Preparo-lhe a fundição, Majestade — respondeu o artista.

— E para quando será?

— Logo que regresse a Paris, Majestade.

— Chamais os nossos melhores fundidores, Cellini; não menosprezeis nada, para que a operação resulte o melhor possível. Se precisardes de dinheiro, não tendes mais que dizer, já sabeis.

— Já sei que sois o maior, o mais nobre e o mais generoso rei da Terra — respondeu Benvenuto — mas, graças aos honorários que Vossa Majestade me manda entregar, sou rico. Quanto à fundição da estátua, se o permitis, Majestade, ninguém senão eu a há-de preparar e executar. Desconfio de todos os fundidores franceses... não que os julgue incompetentes, mas receio que, por qualquer sentimento nacionalista, não quisessem pôr o seu talento ao serviço de um artista estrangeiro. E também, confesso-vos, Majestade, faço tanto empenho em que o meu Júpiter seja um êxito, que não posso consentir que passe por outras mãos além das minhas.

— Bravo, Cellini, bravo! — exclamou o rei — isso é que é falar como verdadeiro artista!

— E além disso — acrescentou Cellini — quero ter o direito de reclamar a promessa que Vossa Majestade me fez...

— É justo, meu amigo. Se ficarmos satisfeito deveremos outorgar-vos uma grande mercê. Não nos esquecemos; e ainda que viéssemos a esquecer-nos, o nosso compromisso foi feito diante de testemunhas. Não é assim, Montmorency? Não é assim Poyet? O nosso condestável e o nosso chanceler se encarregariam de nos lembrar a palavra dada.

— Oh! é que Vossa Majestade não pode adivinhar o valor que essa promessa tomou para mim depois que me foi feita!...

— Pois bem, Benvenuto, ela será cumprida. Mas... já se abrem as portas da sala. Para a mesa, meus Senhores, para a mesa!

E Francisco I, aproximando-se de Carlos V, abriu com ele o cortejo de muitos e ilustres convivas. Os dois soberanos entraram ao mesmo tempo e sentaram-se em frente um do outro. Carlos V entre Eleonor e a duquesa d'Étampes, Francisco I entre Catarina de Médicis!... e Margarida de Navarra.

O banquete decorreu alegremente entre o requinte de saborosos pratos. Francisco I, no seu elemento, isto é, entre prazeres e magnificências, divertia-se como um monarca e ria como um vilão de quanto lhe dizia a espirituosa Margarida de Navarra. Por seu lado, Carlos V cumulava a duquesa d'Étampes de gentilezas e atenções. Todos os outros convivas falavam ou de arte ou de política; e assim decorreu o banquete.

A sobremesa, os pajens trouxeram, como de costume, água para as mãos. A duquesa d Etampes pegou então no gomil e na bacia de ouro destinados a Carlos V, tal como Margarida de Navarra fez em relação ao rei, lançou alguma água na bacia e, pondo um joelho em terra, segundo a etiqueta espanhola, apresentou a bacia ao imperador. Este mergulhou as Pontas dos dedos na água perfumada e, sem deixar de contemplar a sua bela e nobre servidora, sorrindo, deixou deslizar para o fundo do vaso o precioso anel de que já falámos.

— Vossa Majestade perde o seu anel — disse Ana, mergulhando por sua vez os lindos dedos e retirando delicadamente a jóia, que apresentou a Carlos V.

-— Guardai esse anel, Senhora — respondeu em voz baixa o imperador. — Está em mãos demasiado belas para que eu o pretenda reaver. E, em seguida, acrescentou, mais baixo ainda:

— Aceitai-o por conta do ducado de Milão.

A duquesa sorriu e calou-se. A pedra caíra a seus pés e valia um milhão.

Quando passavam da sala de jantar ao salão e do salão à sala de baile, a duquesa chamou Benvenuto Cellini, que passava perto dela:

— Sr. Cellini — disse a duquesa, entregando-lhe o anel que servira de penhor da aliança entre o imperador e ela —, dai este diamante a vosso discípulo Ascânio para ele o engastar na jóia que sabe. É a gota de orvalho que lhe prometi.

— Gota de orvalho caída dos dedos da própria Aurora!... — exclamou o artista com um sorriso irónico e uma galantaria afectada.

Depois, ao mirar o anel, estremeceu ligeiramente e uma pequena ruga vertical sulcou-lhe a fronte. Reconhecera o diamante que engastara em tempos por ordem de Clemente VII e que ele próprio fora entregar ao imperador da parte do pontífice.

Para que Carlos V se desfizesse de tal jóia e a favor de uma mulher, era forçoso que houvesse qualquer convénio, qualquer tratado oculto, enfim, uma obscura aliança entre a duquesa d'Étampes e o imperador.

 

Enquanto Carlos V continua a passar, em Fontainebleau, os dias, e sobretudo as noites, naquelas alternativas de angústia e confiança que tentámos descrever, enquanto intriga, escava, mina, promete, arrepende-se e volta a prometer, lancemos uma olhadela ao Grand-Nesle e vejamos se algo ali se passa entre os moradores que lá se conservaram.

 

         O MONGE CABEÇUDO

Ia por lá grande revolução. O monge cabeçudo, velho fantasma do antigo convento sobre cujas ruínas se construíra o Palácio de Amaury, havia quatro dias que fazia as suas aparições. Dona Perrine vira-o passear, à noite, nos jardins do Grand-Nesle, vestido com o seu longo manto branco e caminhando a passos que não deixavam marcas no solo nem faziam ruído de espécie alguma.

Como é que Dona Perrine, habitando no Petit-Nesle, tinha visto o monge cabeçudo passear às três horas da manhã nos jardins do Grand-Nesle? É o que não poderemos dizer sem cometer uma pavorosa indiscrição; mas, como antes de mais nada somos historiógrafos, os nossos leitores têm o direito de saber os pormenores mais secretos da vida das personagens que pusemos em cena, mormente quando esses pormenores devem lançar uma luz tão esclarecedora na sequência dos acontecimentos.

Dona Perrine, que, com o desaparecimento de Colomba e a retirada de Pulquéria, se tornara inútil, com a partida do preboste tornara-se senhora absoluta do Petit-Nesle. O jardineiro Raimbault, por medida de economia, estava, como dissemos, apenas contratado ao dia. Dona Perrine achava-se, pois, rainha absoluta, mas também rainha pavorosamente solitária, do Petit-Nesle, de modo que se enfadava durante o dia e morria de medo durante a noite.

Como remédio para durante o dia, lembrou-se de cultivar as suas amistosas relações com Dona Ruperte, as quais lhe deviam abrir as portas do Grand-Nesle. Assim, pediu licença para visitar as suas vizinhas, e a licença foi-lhe logo vivamente concedida.

Mas, visitando as suas vizinhas, Dona Perrine achou-se naturalmente em contacto com os seus vizinhos. Dona Perrine era uma alentada matrona de trinta e seis anos que dizia ter vinte e nove. Gorda, rechonchuda, frescalhota ainda, sempre afável, a sua entrada no atelier devia forçosamente constituir um acontecimento onde forjavam, talhavam, limavam, Martelavam e cinzelavam dez ou doze artífices folgazões, gostando do vinho e do jogo, ao domingo, e do belo sexo ao domingo e aos dias de semana. Assim, três velhos conhecidos nossos, ao fim de três ou quatro dias estavam pelo beicinho. Eram eles Simão Canhoto, o alemão Hermann, e Jehan Pequeno.

Quanto a Ascânio, Tiago Aubry e Pagolo, se escaparam ao encantamento foi por certo porque já tinham posto as ideias algures.

Os restantes críticos não deixaram também de receber algumas faúlhas daquele fogo cruel mas, reconhecendo-se modestamente menos aptos a triunfar, apressaram-se a lançar água sobre as faúlhas antes que elas originassem incêndio.

O Jehan Pequeno amava pelo estilo de Querubim, isto é, enamorara-se sobretudo do amor. Ora, como muito bem se pode entender, Dona Perrine não era mulher que se prendesse a tão leviano afecto. Simão Canhoto prometia uma chama mais duradoira e, portanto, um futuro mais estável, mas Dona Perrine era demasiado supersticiosa... Um dia, vira Simão Canhoto benzer-se com a mão esquerda, e logo pensou que era com essa mão que devia assinar o contrato de casamento. Ora Dona Perrine estava convencida de que o sinal da cruz com a mão esquerda só podia dirigir-se ao Diabo, e ninguém lhe tirava da cabeça que um contrato de casamento assinado com a mão esquerda só podia fazer dois infelizes. Por isso, sem confessar os motivos da sua recusa, foi logo tirando todas as esperanças ao apaixonado Canhoto.

Restava Hermann. Oh! Hermann era outra coisa...

Hermann nem era um leviano, como Jehan Pequeno, nem um enjeitado da natureza como Simão Canhoto. Hermann tinha em toda a sua pessoa qualquer coisa de muito honesto e de muito cândido que quadrava ao coração de Dona Perrine. Além disso, Hermann, em lugar de ter a mão direita à esquerda e a esquerda à direita, servia-se de ambas com tal energia que mais parecia ter duas mãos direitas. Era, de resto, um homem magnífico. Dona Perrine fixou nele a sua escolha.

Mas Hermann era, como sabemos, de uma ingenuidade a toda a prova. Assim, as primeiras ofensivas de Dona Perrine, isto é, as denguices, os franzimentos de boca e as piscadelas de olho, malograram-se totalmente ante a timidez nativa do honesto alemão. Contentava-se ele com olhar Dona Perrine através dos seus grandes olhos. Tal como os cegos do Evangelho, que «occulos habebant et non videbant», Hermann não via; ou se via, era apenas o conjunto da digna governanta, sem atentar no pormenor. Dona Perrine propôs então que se fizessem passeios, já pelo Cais dos Agostinhos, já nos jardins do Grand-Nesle e Petit-Nesle, e em cada passeio escolhia infalivelmente Hermann para seu par. Este facto causava uma imensa felicidade ao tímido gigante. O seu enorme coração germânico acelerava-se de cinco ou seis pulsações por minuto mal Dona Perrine se apoiava no seu braço. Mas, fosse pela dificuldade de pronunciar o francês, fosse porque experimentava maior prazer escutando o objecto dos seus pensamentos, Dona Perrine pouco conseguia tirar dele além das frases sacramentais: «Pom tia, tsenhorinha» e «Ateus, tsenhorinha», que Hermann proferia geralmente com o intervalo de duas horas uma da outra, a primeira ao tomar o braço de Dona Perrine, a segunda ao retirar-se. Ora, conquanto este apelativo de «senhorinha» fosse imensamente lisonjeiro para Dona Perrine, e aquelas duas horas de conversa, sem receio de ser interrompida, constituíssem algo de muito agradável, Dona Perrine teria preferido que o seu monólogo fosse ao menos interrompido por algumas interjeições que pudessem fornecer-lhe uma noção estatística dos progressos que ia fazendo no coração do seu taciturno par.

Mas, ainda que esses progressos se não traduzissem em palavras ou na fisionomia de Hermann, nem por isso deixavam de ser constantes. O fogo que ardia no coração do honesto alemão, e que Dona Perrine diariamente atiçava com a sua presença, ameaçava transformar-se num autêntico vulcão. Hermann acabou por compreender a preferência que Dona Perrine lhe concedia, e só esperava certificar-se um pouco mais para se declarar. Dona Perrine percebeu aquela hesitação e, um dia, à despedida, viu-o tão agitado nos degraus do Petit-Nesle, que lhe pareceu uma obra de misericórdia estreitar-lhe a mão. Hermann, no auge da satisfação, correspondeu com idêntica manifestação de afecto. Mas qual não foi o seu espanto ao ver que Dona Perrine soltava um grito lancinante. Delirante, Hermann esqecera-se de dosear a pressão dos seus dedos. Cuidou mesmo que, quanto mais forte apertasse, tanto mais exacta ideia daria da violência do seu amor. Esta devia ser de facto grande, pois pouco faltou para esmagar a mão da pobre governanta.

Ao vê-lo estupefacto com o seu grito, Dona Perrine receou desencorajá-lo no preciso momento em que ele acabava de arriscar a sua primeira tentativa, e por isso resolveu sorrir de qualquer maneira. Depois, descolando os dedos momentaneamente aglutinados, disse-lhe:

— Não foi nada, Sr. Hermann, não foi absolutamente nada!

— Mil pertões, tsenhorinha Berrine — disse o alemão —, mas é que eu amo-fos muito, e apertei-fos a mão comovi amo! Mil pertões!

— Não haveis de quê, Sr. Hermann; não haveis de quê! Espero que o vosso amor seja um amor honesto, de que uma mulher não tenha que corar.

— Por Teus, tsenhorinha! — disse Hermann — poteis acretitar nos meus sentimentos! Não me atrefia a falat-fos, mas foto que me atrefi, amo-fos, amo-fos, amo-fos fertateiramente!

— E eu, Sr. Hermann — disse Dona Perrine com certa denguice —, creio poder afirmarmos... pois sois um honesto jovem, incapaz de comprometer uma pobre mulher, que... Meu Deus!... não sei como o diga!...

— Oh! Tizei! Tizei!— exclamou Hermann.

— Pois bem! Creio poder afirmar-vos que... Oh, eu não devia dizê-lo...

— Nein! Nein! Fós tefeis, fós tefeis tizê-lo! Tizei! Tizei!

— Pois bem... Confesso-vos que não me sinto indiferente à vossa paixão.

— Hurra! — exclamou o alemão no auge da alegria.

Ora uma noite, findo o habitual passeio, e já depois que a Julieta do Petit-Nesle tinha acompanhado o seu Romeu até à porta do Grand, ao regressar sozinha e ao passar em frente ao portão do jardim, avistou ela a branca aparição a que aludimos, e que, segundo a digna governanta, não podia ser outrem senão o «monge cabeçudo». Escusado será dizer que Dona Perrine correu para casa louca de pavor e foi barricar-se nos seus aposentos.

Na manhã seguinte, todos no atelier foram postos ao corrente da aparição. É claro que Dona Perrine revelou apenas o facto em si, sem aduzir pormenores circunstanciais.

O frade cabeçudo tinha-lhe aparecido, e era só o que sabia dizer. Fizeram-lhe perguntas, mas não acrescentou mais nada.

Em todo o dia não se falou noutra coisa em todo o Grand-Nesle. Uns acreditavam na aparição do fantasma, os outros riam-se. Ascânio tomou partido contra a aparição e tornou-se chefe dos incrédulos, isto é, Jehan Pequeno, Simão Canhoto e Tiago Aubry.

O partido dos crentes compunha-se de Dona Ruperte, Scozzone, Pagolo e Hermann.

A tardinha, houve reunião no segundo pátio do Petit-Nesle. Dona Perrine, assoberbada de perguntas acerca do monge cabeçudo, tinha pedido que a deixassem coordenar as ideias durante o dia e, mal começou a escurecer, declarou-se pronta a tudo contar como se tinha passado. Dona Perrine teve a intuição de que uma história de almas penadas contada à luz do Sol não convenceria ninguém, ao passo que na obscuridade o seu efeito seria infalível.

O seu auditório era formado por Hermann, que se sentara à sua direita, Dona Ruperte, sentada à sua esquerda, Pagolo e Scozzone, sentados ao lado um do outro, e Tiago Aubry, que se estendera sobre a relva entre os seus dois amigos Jehan Pequeno e Simão Canhoto. Quanto a Ascânio, havia declarado sentir tal desprezo por aquele género de histórias da avozinha, que nem queria assistir.

— Tsenhorinha Berrine — disse Hermann, depois de uns momentos de silêncio que cada um aproveitou para tomar a posição mais cómoda —, ites então contar-nos a história do Fate capetçudo?

— Vou — disse Dona Perrine —, mas sempre vos quero prevenir que é uma história terrível. No entanto, como somos todos pessoas tementes a Deus, embora haja alguns incrédulos entre nós, e também porque o Sr. Hermann seria capaz de correr com o próprio demónio, se ele se apresentasse, vou contar-vos essa história.

— Pertão, pertão, tsenhorinha Berrine, mas tse fier o Temónio, não tefeis contar comigo, Pater-me-ei com quantos homens quitsertes, nandjã com o Tiabo.

— Bater-me-ei eu com ele, se vier, Dona Perrine, não tenhais medo; contai — disse Tiago Aubry.

— A fossa história mete algum carfoeiro, tsenhorinha Berrine? — perguntou Hermann. :

— Um carvoeiro?! — exclamou a governanta admirada. — Não, Sr. Hermann.

— Não imborta, é o mesmo.

— Porquê um carvoeiro?!

— É que nas hitstórias alemãs há tsempre um carfoeiro. Mas, não imborta, a fossa hitstória tampem tefe tser muito linta.

— Pois sabei — começou Dona Perrine — que neste sítio onde estamos, antes mesmo de construírem o Palácio de Nesle, existiu uma comunidade de frades onde se encontravam os homens mais belos que possais imaginar, e o mais pequeno dos quais devia ter o corpo do Sr. Hermann.

— Que raça de comunidade! — exclamou Aubry.

— Calai-vos, tagarela! — disse Scozzone.

— Itso! itso! calai-fos, tagarela! — repetiu Hermann.

— Já me calo, já me calo — disse o estudante. — Prossegui, Dona Perrine.

— Principalmente o prior, chamado Enguerrand — continuou a narradora —, era um perfeito homem. Tinham todos barbas pretas e lustrosas e uns olhos negros muito brilhantes. Mas o prior tinha a barba ainda mais preta e os olhos ainda mais negros e faiscantes que os outros. Além disto, os dignos frades eram de uma piedade e de uma austeridade a toda a prova, e possuíam ainda umas vozes tão doces e harmoniosas que vinha gente de muitas léguas em redor só para os ouvir cantar vésperas. Foi pelo menos o que me disseram.

— Pobres monges!... — disse Ruperte.

— É deveras interessante — disse Tiago Aubry.

— É tsoprenaturah — disse Hermann.

— Um dia — prosseguiu Dona Perrine, lisonjeada com os testemunhos de aprovação que a sua narrativa levantava —, levaram à presença do prior um jovem que pedia para entrar como noviço no convento. Ainda lhe não despontara a barba, mas os seus grandes olhos eram negros como o ébano, e os seus cabelos, longos, pretos e brilhantes como o azeviche, de maneira que foi logo admitido. O belo jovem disse chamar-se António, e pediu ao prior que o associasse de qualquer modo ao seu próprio serviço, o que Dom Enguerrand não recusou. Se a voz dos frades era maravilhosa, a de António não se podia comparar a nada, tão fresco e melodioso lhe saía o canto. Quando, no domingo seguinte, o ouviram cantar, todos os assistentes se sentiram arrebatados; e, no entanto, a sua voz perturbava tanto como encantava; tinha um timbre que despertava nos corações ideias mais mundanas que celestes. Mas todos os frades eram tão puros que apenas os estranhos se aperceberam daquela singular perturbação; e Dom Enguerrand, que também nada sentira de semelhante, ficou tão maravilhado com a voz de António que, dali em diante, o encarregou de cantar sozinho o responso das antífonas.

Por outro lado, a conduta do jovem noviço era exemplar, e ele servia o prior com um zelo e ardor incríveis. A única coisa que podia censurar-se-lhe eram as suas contínuas distracções. Sempre e por toda a parte os seus olhos ardentes seguiam o prior.

— Que olhais, António?

— Olho-vos, meu pai — respondia o jovem monge.

— Olhai o vosso livro de orações, António. Que olhais ainda?

— A vós, meu pai.

— António, olhai a imagem da Virgem. Mas... que olhais de novo!?

— A vós, meu pai.

— António, olhai o crucifixo que adoramos.

Por outro lado, Dom Enguerrand, ao fazer o seu exame de consciência, começou a notar que depois da chegada de António era mais assaltado por maus pensamentos que anteriormente. Dantes nunca pecava mais de sete vezes ao dia, que é, como se sabe, o propósito dos santos, e às vezes, por mais que recapitulasse a sua conduta durante o dia, não conseguia contar mais que cinco ou seis pecados. Mas, depois, o total das suas faltas quotidianas começou a subir a dez, doze e mesmo até quinze. Tentava emendar-se no dia seguinte; rezava, jejuava, disciplinava-se o pobre frade, mas em vão. Cada vez contava mais pecados.

Em breve a soma chegou a vinte. O pobre Dom Enguerrand já não sabia que fazer; sentia que, mau grado seu, se estava a danar, e notou (observação que consolaria qualquer outro mas que mais o aterrou a ele) que os mais virtuosos dos seus monges estavam submetidos à mesma influência, estranha, inaudita e incompreensível. Se, dantes, bastavam vinte minutos, meia hora, o máximo, para as suas confissões, passaram a demorar horas inteiras no confessionário. Foi preciso retardar a hora da ceia.

Entretanto, uns certos rumores que corriam na região chegaram também até ao convento. O senhor de um castelo das redondezas tinha perdido a sua filha Antónia, que, uma bela tarde, desaparecera para não mais ser vista — como a minha pobre Colomba. Só com a diferença que a minha Colomba era um anjo, ao passo que aquela Antónia estava, ao que parece, possessa do Demónio. O pobre castelão tinha procurado a filha por montes e vales, tal como o Senhor Preboste, mas em vão. Só faltava procurar no mosteiro e, como ele sabia que o espírito maligno costuma às vezes refugiar-se nos conventos para melhor escapar às perseguições, mandou o seu capelão pedir licença a Dom Enguerrand para visitar o seu... O prior acedeu com a melhor boa vontade. Quem sabe se não viria assim a descobrir-se aquele poder maléfico que, havia um mês, tanto se fazia sentir sobre ele e os seus companheiros... Mas todas as buscas resultaram inúteis, e o castelão já ia retirar-se, mais desesperado que nunca, quando toda a comunidade, que se dirigia para a capela, calhou de passar junto dele e de Dom Enguerrand. O castelão via-os maquinalmente passar dois a dois quando, de repente, soltou um grande grito, dizendo:

— Santo Deus! É Antónia! é a minha filha!

Antónia, pois era de facto ela, tornou-se pálida como um lírio.

— Que fazes tu aqui com esse hábito sagrado!? — perguntou o castelão.

— Que faço aqui, meu pai? — disse Antónia — morro de amores por Dom Enguerrand.

— Sai imediatamente deste convento, desgraçada! — exclamou o fidalgo.

— Só morta sairei daqui, meu pai — respondeu Antónia.

E então, apesar dos brados e imprecações do castelão, a filha correu para a capela, no seguimento dos monges, indo ocupar o seu lugar costumado no coro. O prior, imóvel e estupefacto, permanecia como petrificado. Furioso, o castelão queria ir em perseguição da filha, mas Dom Enguerrand pediu-lhe que esperasse até ao fim dos ofícios para evitar maior escândalo em lugar tão sagrado.

O pai consentiu e seguiu Dom Enguerrand até à capela.

Estava-se nas antífonas e, como se fora a voz do próprio Deus, o órgão preludiava majestosamente. Um canto admirável, mas irónico, mas amargo, mas terrível, respondeu aos sons do sublime instrumento. Era a voz de Antónia; todos os corações vibraram profundamente. O órgão prosseguiu, calmo, grave, imponente, parecendo querer esmagar com a sua magnificência celeste o clamor amargo que, debaixo, o insultava. E então, como que aceitando o desafio, as modulações de Antónia elevaram-se furiosas, mais desoladas e ímpias do que nunca. Todos esperavam desvairadamente o que iria resultar daquele diálogo formidável, daquela troca de blasfémias e orações, daquela estranha luta entre Deus e Satanás. Foi no meio de um silêncio cheio de estremecimentos e arrepios que, após um versículo blasfemo, a música celeste desabou, como um horrível trovão, sobre todas as cabeças inclinadas à excepção de uma. Foi algo assim como a voz fulminante que os condenados deverão ouvir no dia do juízo final. Antónia procurou lutar ainda mas desta vez o seu canto não foi mais que un grito agudo, medonho, lancinante, como que um riso de danação, caindo em seguida, hirta e pálida, sobre o pavimento da capela. Quando a foram levantar, estava morta.

— Jesus, Maria, José! — exclamou Dona Ruperte.

— Pobre Antónia! — disse ingenuamente Hermann.

— Farsante! — murmurou Tiago Aubry.

Todos os outros ouvintes de Dona Perrine se conservaram em silêncio, tal foi o poder da sua história mesmo sobre os incrédulos. Scozzone enxugou uma lágrima e Pagolo fez o sinal

da cruz.

— Quando o prior viu o enviado de Satanás pulverizado pela cólera de Deus — prosseguiu Dona Perrine —, julgou-se para sempre livre das ciladas do tentador; mas ainda não tinha terminado a expiação da sua imprudência em dar guarida a uma possessa do Diabo. Assim, na noite seguinte, mal acabara de adormecer foi despertado por um ruído de grilhões. Abriu os olhos e voltou-os instintivamente para a porta, que se abriu, ao mesmo tempo que um fantasma com o hábito branco dos noviços se aproximou do seu leito e, pegando-lhe no braço, gritou-lhe:

— Eu sou Antónia! Antónia que te ama! Deus concedeu-me todo o poder sobre ti, visto que pecaste, senão por actos, ao menos por pensamentos.

E daí por diante, todas as noites, à meia-noite, a terrível aparição voltou implacável e fielmente. Por fim, Dom Enguerrand resolveu ir em peregrinação à Terra Santa, morrendo por especial graça de Deus no momento preciso em que ajoelhava diante do Santo Sepulcro.

Mas Antónia ainda não estava satisfeita; de modo que, voltando a sua atenção para os outros monges, que, à semelhança do prior, tinham pecado, começou também a aparecer-lhes durante a noite, despertando-os brutalmente e gritando-lhes com uma voz medonha: «Eu sou Antónia! Sou Antónia que te ama!» Daí o porem-lhe o nome de frade cabeçudo. Quando passardes à noite por qualquer rua e que um capucho cinzento ou branco se aproxime de vós, tratai logo de recolher a casa. É o «frade cabeçudo» que busca uma presa.

Quando destruíram o velho convento para edificarem o castelo julgou-se que se iria acabar com o «frade cabeçudo», mas parece que ele tem predilecção por este lugar e, assim, tem reaparecido em diferentes épocas nestes sítios. E, Deus nos perdoe! eis que o desgraçado volta a aparecer agora...

— Que Deus nos preserve da sua malícia!

— Amen! — disse Dona Ruperte, persignando-se.

— Amen! — disse Hermann estremecendo.

— Amen! — repetiu Tiago Aubry, rindo.

E cada um dos presentes proferiu aquela mesma palavra no tom correspondente à impressão sentida.

 

         O QUE SE VÊ À NOITE DO ALTO DE UM CHOUPO

No dia seguinte, em que toda a corte devia regressar de Fontainebleau, foi a vez de Dona Ruperte declarar ao auditório que também tinha uma grande revelação a fazer.

É claro que tanto bastou para que, à mesma hora, todos se reunissem no mesmo local onde tinham escutado Dona Perrine.

Os artífices sentiam-se bastante à vontade, pois Benvenuto escrevera a Ascânio dizendo que ficaria ainda uns dois ou três dias em Fontainebleau a fim de preparar a sala onde devia expor o seu Júpiter. Dizia também que tencionava fundir aquela estátua mal chegasse a Paris.

Por seu lado, o preboste apenas tinha aparecido uma vez no Grand-Nesle, para perguntar se se tinha sabido alguma coisa da filha. Mas, tendo-lhe Dona Perrine respondido que continuava tudo na mesma, voltou imediatamente para o Châtelet.

Os moradores do Grand e do Petit-Nesle gozavam, pois, da maior liberdade, uma vez que ambos os amos se achavam fora.

Quanto a Tiago Aubry, apesar da entrevista marcada para aquela tarde com Gervásia, a sua curiosidade fora mais forte que o amor, de maneira que ficou para ouvir Dona Ruperte, pensando todavia que a sua narração seria mais breve que a de Dona Perrine e ainda chegaria a tempo ao encontro.

Ora o que Dona Ruperte tinha a contar era o seguinte.

A história do frade não lhe saíra da cabeça em todo o serão, de modo que, ao recolher ao quarto, tremia como varas verdes com receio de que o fantasma de Antónia lhe aparecesse; nem os santos relicários que tinha à cabeceira da cama a puderam tranquilizar.

Ruperte trancou e barricou a porta, mas também isso a não tranquilizou, pois a velha governanta estava ao corrente dos hábitos dos fantasmas; não ignorava que os espíritos se riem de todos os entraves materiais.

Dona Ruperte reparou transida que a janela não tinha qualquer guarda-vento e que até as próprias cortinas faltavam, pois tinham ido para lavar. Correu então a espreitar debaixo da cama, revistou todos os armários e não deixou o mínimo recanto por inspeccionar. É que ela sabia muito bem que o Diabo não ocupa grande espaço, uma vez recolhido o rabo, as unhas e os chifres, tanto que Asmodeu conservara-se um ror de anos encarquilhado numa garrafa.

Mas, enfim, o quarto estava totalmente solitário e não havia o menor vestígio do monge cabeçudo.

Ruperte deitou-se algo mais tranquilizada sem, no entanto, apagar a candeia. Uma vez na cama, a velha governanta deitou um rápido olhar à janela e viu uma sombra gigantesca desenhando-se na noite e interceptando a luz das estrelas. A boa Ruperte estremeceu de medo e ia já pôr-se a gritar, quando se lembrou que a colossal estátua de Marte se erguia mesmo defronte da sua janela. Voltou então a olhar para aquele lado e reconheceu perfeitamente todos os contornos do deus da guerra. Isto bastou para momentaneamente a tranquilizar, e resolveu fazer por dormir.

Mas o sono, esse tesouro do pobre que tantas vezes o rico lhe inveja, não anda às ordens de ninguém. Deus, à noite, abre-lhe as portas do Céu, e então ele, caprichoso, visita apenas quem lhe dá na gana, furtando-se a quem o chama e batendo à porta dos que o não desejam. Ruperte invocou-o por largo tempo, sem resultado. Finalmente, por volta da meia-noite, a fadiga venceu-a. Pouco a pouco, os sentidos da boa governanta foram-se embotando, e os seus pensamentos, ordinariamente mal ligados entre si, quebraram o fio imperceptível que os reunia e espalharam-se como contas de um rosário. Apenas o seu coração, agitado pelo temor, continuou em vigília; depois, acabou também por adormecer, e tudo se esfumou. Só a candeia bruxuleava ainda.

Mas, como todas as coisas humanas, também a chama acabou por se extinguir duas horas depois que Dona Ruperte adormeceu. Assim, a pretexto de que se acabava o azeite, começou a enfraquecer, a crepitar, lançou um grande clarão e morreu.

Precisamente naquele instante, Ruperte sonhava algo de terrível. Sonhava que, ao regressar, à tarde, de casa de Dona Perrine, era perseguida pelo frade cabeçudo; mas, ao contrário do que geralmente acontece nos sonhos, Dona Ruperte tinha voltado a encontrar as pernas dos seus quinze anos, de modo que fugia tão depressa que o monge cabeçudo, embora mais parecendo deslizar que caminhar sobre a terra, apenas conseguira chegar a tempo de apanhar com a porta do Grand-Nesle no nariz. Sempre a sonhar, Ruperte ouviu lamentos e baterem à porta. Mas, como bem se compreende, não estava nada interessada em abrir. Acendeu a candeia, subiu as escadas quatro a quatro, entrou no quarto, meteu-se na cama e apagou a candeia. Mas, ao apagá-la, deu de cara com o monge cabeçudo, que a olhava através dos vidros. Tinha subido pela parede como um lagarto e tentava entrar pela janela. No seu sonho, Ruperte ouvia o irritante ruído das unhas do fantasma a raspar os caixilhos.

É evidente que não há sono durável com semelhante sonho. Ruperte acordou com os cabelos em pé e gelados de suor. Os seus olhos esbugalhados de medo, vencendo toda a resistência da dona, foram pousar na janela, e o que viram fez-lhe logo soltar um grito horrível.

Eis o que viu.

A cabeça colossal da estátua de Marte lançava fogo pelos olhos, pelo nariz, pela boca e pelas orelhas.

A princípio, julgou-se ainda adormecida e pensou que o que via era apenas a continuação do seu sonho. Mas depois de se beliscar até fazer sangue, e depois de se benzer e rezar três padres-nossos e duas ave-marias, a excomungada aparição não havia meio de desaparecer.

Aflita como estava, Ruperte encontrou ainda assim força bastante para estender o braço, agarrar no cabo da vassoura e bater com ele no tecto. Como Hermann dormia por cima do seu quarto, a governanta tinha esperança de que o corpulento alemão ouvisse e corresse em sua ajuda.

Mas por mais que Ruperte batesse, Hermann não dava o mínimo sinal de si.

Mudou então de sentido, e em vez de bater no tecto, para acordar Hermann, começou a bater no sobrado, para ver se despertava Pagolo. Mas Pagolo, que dormia efectivamente por baixo de Dona Ruperte, ainda parecia mais ferrado no sono que Hermann. Ela bem batia, mas a respeito de resposta, nada.

Ruperte mudou então de direcção e, em vez da linha vertical, começou a utilizar a horizontal. Ascânio dormia ao lado, por isso Ruperte começou a bater na parede que os separava.

Mas no quarto de Ascânio, tal como nos de Hermann e Pagolo, tudo se mantinha no máximo silêncio. Era evidente que nenhum dos três artífices se encontrava no quarto. Por instantes, Ruperte pensou que o frade cabeçudo os tinha raptado aos três. E como esta suposição era pelo menos terrível, Ruperte, cada vez mais sucumbida pela certeza de que ninguém viria em seu socorro, resolveu esconder a cabeça entre os lençóis e esperar.

Esperou assim uma hora, hora e meia, talvez duas horas; depois, como nenhum ruído se ouvia, recobrou certa coragem e meteu a cabeça cautelosamente fora da roupa; espreitou com um olho, depois com os dois, mas a espantosa visão tinha desaparecido. Extinguira-se o fogo na cabeça de Marte, tudo estava mergulhado em trevas e silêncio.

Não obstante aquelas trevas e aquele silêncio, Ruperte estava muito pouco tranquilizada, de maneira que não voltou a pregar olho. Ouvido à escuta e olhos esbugalhados, assim ficou a boa mulher toda a santa noite, até que o raiar da aurora, atravessando os vidros da janela, lhe anunciou que tinha passado finalmente a hora dos fantasmas.

Ora foi exactamente isto o que Ruperte contou, e importa dizer que a sua narrativa ainda obteve maior sucesso que a de Dona Perrine, na véspera. Foi profunda a impressão causada, sobretudo em Hermann e Dona Perrine, e em Pagolo e Scozzone. Os dois rapazes desculparam-se por nada haverem ouvido, mas fizeram-no com tal tremura e embaraço na voz que Tiago Aubry desatou a rir. Quanto a Dona Perrine e Scozzone, nem articularam palavra. Ficaram sucessivamente tão vermelhas e tão brancas que, se fosse de dia, poderia ter-se pensado que iam morrer de congestão e, dez segundos depois, de inanição.

— Portanto, Dona Perrine — disse Scozzone, que foi a primeira a dominar-se — , afirmais ter visto o frade cabeçudo a passear no jardim do Grand-Nesle?

— Tão bem como vos estou vendo a vós, minha filha — respondeu Dona Perrine.

— E vós, Dona Ruperte, afirmais ter visto a cabeça de Marte emitindo fogo?

— Ainda a estou a ver!

— Já sei — disse Dona Perrine — , a maldita alma penada escolheu a cabeça da estátua para domicílio e, como um fantasma tem sempre que aparecer a determinadas horas, desce, passeia, e sobe depois quando lhe apetece. Isto de deuses pagãos e espíritos malignos lá se entendem como os ladrões nas feiras. São todos almas do Inferno, por isso aquele falso deus Marte deu guarida ao medonho frade cabeçudo.

— Tentes a tcertetza, tona Berrine? — perguntou o ingénuo alemão.

— Absoluta, Sr. Hermann, absoluta.

— Dja'stou arrepiato! — murmurou o vigoroso jovem, estremecendo.

— Com que então, acreditais em almas penadas, Hermannzinho?... — disse Aubry.

— Acretito.

Tiago Aubry encolheu os ombros mas, intimamente, dispôs-se a esclarecer todo aquele mistério. Não devia ser-lhe difícil, uma vez que entrava e saía do palácio como se fosse da casa. Decidiu adiar o seu encontro com Gervásia para o dia seguinte e deixar-se ficar aquela noite no Grand-Nesle até às dez horas. Às dez horas, despedir-se-ia de todos fingindo que se ia embora, mas não; permaneceria no jardim, e havia de subir a um dos choupos; escondia-se entre os ramos e travava conhecimento com sua excelência o fantasma.

E, de facto, tudo se passou como o estudante planeara. Saiu sozinho do atelier, como de costume, bateu a porta com estrondo para que pensassem que saíra e, em seguida, correndo para o choupo, agarrou-se ao primeiro ramo, elevou-se e num instante estava no topo da árvore. O seu esconderijo ficava mesmo em frente da cabeça da estátua e dominava tanto o Grand como o Petit-Nesle, de modo que não poderia passar-se nada nos jardins nem nos pátios que ele não visse.

Enquanto Tiago Aubry se instalava no seu poleiro, desenrolava-se um grande sarau no Louvre, onde todas as janelas jorravam luz. Carlos V decidira-se finalmente a deixar Fontai-nebleau e a arriscar-se a entrar na capital. Como dissemos, os dois monarcas tinham entrado em Paris naquela mesma tarde.

A festa de boas-vindas que se preparara ao imperador estava a decorrer com um brilho e uma magnificência ainda superiores a todas as outras. Havia ceia, jogo e baile. No Sena, deslizavam dezenas de gôndolas iluminadas por lanternas coloridas e, fazendo ouvir a música das orquestras que transportavam, quedavam-se em frente da famosa varanda donde, trinta anos mais tarde, Carlos IX, viria a fazer fogo sobre a multidão. Entretanto, uma infinidade de barcos tapetados de flores passava de uma margem para a outra todos os convivas que do bairro São Germano se dirigiam ao Louvre ou que dele regressavam.

Entre esses convivas contava-se naturalmente o visconde de Marmagne.

O visconde era, como já dissemos, um peralvilho rosado e loiro com pretensões de grande conquistador. Tinha-lhe parecido que uma linda condessinha cujo marido se encontrava no exército de Sabóia o havia olhado de certa maneira; e, além disso, o nosso visconde cuidou entender que a condessinha não ficara insensível à significativa pressão dos seus dedos enquanto dançavam. Numa palavra: quando a dama dos seus pensamentos abandonou o Louvre, imaginou ler no olhar que ela lhe deitou que, se ela fugia, como Galateia para ao pé dos salgueiros, era porque tinha esperança de ser ali perseguida por ele. E foi o que fez Marmagne. Como ela morava ao cimo da Rua de Hautefeuille, o visconde tomou um barco, que o levou do Louvre até à Torre de Nesle, e já seguia ao longo do cais pensando atingir a Rua de Santo André através da dos Agostinhos, quando ouviu passos atrás de si.

Era quase uma hora da manhã. A Lua entrara no seu último quarto, de modo que a noite estava bastante escura. Ora, entre as raras qualidades morais com que a natureza dotara Marmagne, a coragem não ocupava, como sabemos, grande lugar. Por isso, aquele ruído de passos, que parecia como que o eco dos seus, começou a preocupá-lo, e então, envolvendo-se ainda mais hermeticamente na capa e levando instintivamente a mão ao punho da espada, acelerou a marcha.

Mas aquela aceleração não lhe serviu de nada. Os passos que pareciam seguir os seus puseram-se logo no novo ritmo, e até pareciam ganhar vantagem, de modo que, ao passar em frente ao pórtico dos Agostinhos, pressentiu que iria ficar a par do seu companheiro de marcha se, depois de passar do passo simples a passo acelerado, não passasse imediatamente de passo acelerado a passo de ginástica. Estava quase decidido a tomar essa iniciativa extrema, quando ao ruído dos passos se juntou o som de uma voz.

— Por Deus, meu fidalgo! — dizia aquela voz — bem fazeis em apressar a marcha em lugar tão perigoso como este e a hora tão adiantada. Não ignorais por certo que foi aqui que assaltaram o meu caro amigo Benvenuto, aquele sublime artista que a esta hora se encontra em Fontainebleau, mal suspeitando o que lhe vai cá por casa. Mas, como creio que levamos o mesmo caminho, podemos seguir a par porque, se nos aparecerem desses larápios, eu vos prometo que pensarão duas vezes antes de nos atacarem. Numa palavra: ofereço-vos a segurança da minha companhia se quiserdes conceder-me a honra da vossa.

Às primeiras palavras do nosso estudante, Marmagne reconheceu uma voz que lhe não era completamente estranha e, ao ouvir o nome de Benvenuto Cellini, recordou-se logo do loquaz académico que tão preciosas informações lhe dera um dia sobre o interior do Grand-Nesle. O visconde parou logo, uma vez que a companhia do «doutor» Tiago Aubry oferecia uma dupla vantagem. Em primeiro lugar, servia-lhe de escolta, e, em segundo, podia fornecer-lhe qualquer outra informação sobre o inimigo, informação de que ele saberia, é claro, tirar todo o partido. Acolheu, portanto, desta vez, o académico da melhor maneira que pôde.

— Boa noite, meu jovem amigo — disse Marmagne, em resposta às palavras de boa camaradagem que Tiago Aubry acabava de lhe dirigir no escuro da noite. — Que dizíeis ainda agora desse caro Benvenuto que eu julgava ir encontrar no Louvre e que, afinal, se deixou ficar em Fontainebleau como um inválido?

— É o que se chama andar com sorte! — exclamou Aubry. — Pois sois vós, meu caro visconde... de... Ou vos esquecestes de me dizer o nome, ou eu o esqueci... Vindes do Louvre? Que tal está aquilo? Um encanto, ahn?... Danças!... amores!... E vós?... vós andais na bela conquista, não?... Ah! sempre me saístes um coleccionador!...

— Palavra de honra! — disse Marmagne num tom pretensioso — sois bruxo, meu caro! Venho de facto do Louvre, onde o rei me contou coisas interessantíssimas, e onde estaria ainda a esta hora se uma encantadora condessinha me não tivesse dado a entender que preferia a solidão a toda aquela barafunda. E vós? Donde vindes?

— Donde venho? — disse Aubry, desatando a rir. — Ah, não podeis calcular, meu caro! Acabo de ver a coisa mais cómica que possais imaginar. Pobre Benvenuto!... Palavra de honra! ele não merecia isto!

— Então que aconteceu a esse caro amigo?

— Em primeiro lugar, se vindes do Louvre, sabei que eu cá venho do Grand-Nesle, onde passei duas horas empoleirado como qualquer papagaio que se preza.

— Oh, diabo! A posição não devia ser lá muito cómoda...

— Não interessa, não interessa! Até dou por bem empregada a cãibra que apanhei só por ter podido ver o que vi. Ah! Ah! Eu sufoco!... Ah! Ah! Eu sufoco a rir só de pensar nisto!

Tiago Aubry foi acometido por uma tal convulsão de hilaridade que em breve contagiou o visconde. Este pôs-se a fazer coro sem saber de que se ria. Por esta razão, foi ele, é claro, o primeiro a parar o riso.

— E agora, meu jovem amigo, agora, que também já me ri graças ao poder contagiante das vossas gargalhadas, não me quereis contar essas coisas mirabolantes que vistes? Bem sabeis que sou íntimo do nosso Benvenuto; se nunca me encontrastes em sua casa foi apenas porque as minhas ocupações quase me não deixam tempo para os amigos, e o pouco que me deixam reservo-o para... aquilo que sabeis. Mas isso não é motivo para que me não interesse por tudo o que lhe diz respeito. Grande e amigo Benvenuto! Dizei-me o que se passa então no Grand-Nesle durante a sua ausência. Nem calculais quanto isso me interessa.

— Que se passa? — disse Aubry. — Ah, não! é um segredo...

— Um segredo para mim, que tanto estimo e admiro Benvenuto?! que ainda agora, no Louvre, encareci todos os elogios que o rei lhe fez?! Ah, isso não é bem feito! — exclamou Marmagne em tom de censura.

— Se eu tivesse a certeza de que não iríeis contar a ninguém, meu caro... Ah! como diabo vos chamais?... Enfim, dir-vos-ia tudo, porque a verdade é que estou tão aflito por contar a minha história como os carros do rei Midas por contar a sua.

— Então, vá lá, dizei, dizei!... — repetiu Marmagne.

— Prometeis guardar o maior segredo?

— Prometo, juro-vos!

— Dais a vossa palavra de honra?

— Palavra de fidalgo!

— Pois sabei só que... Mas antes disso, uma coisa, meu caro. Conheceis a história do monge cabeçudo?

— Sim, já a ouvi contar. Trata-se de um fantasma que aparecia, segundo dizem, no Grand-Nesle.

— Justamente. Pois se a sabeis, já vos posso contar o resto. Imaginai só que Dona Perrine...

— A governanta de Colomba?

— Justamente. Bem se vê que sois dos amigos da casa. Pois ficai sabendo que Dona Perrine, quando passeava à noite, por motivos de saúde, nos jardins do Grand-Nesle, pareceu-lhe ver também a passear por ali o monge cabeçudo, ao passo que Dona Ruperte... Sabeis quem é Dona Ruperte?...

— Não é a velha criada de Cellini?

— Justamente. Pois Dona Ruperte, por seu lado, tinha visto flamejar os olhos, o nariz e a boca da grande estátua de Marte que certamente já observastes no jardim do Grand-Nesle.

— Oh! uma verdadeira obra-prima! — exclamou Marmagne.

— Como tudo que faz Cellini, exactamente: uma obra-prima. Ora aquelas duas respeitáveis donas tinham assentado em que as duas aparições eram determinadas pela mesma razão, isto é, que o demónio que passeava à noite com o hábito de frei cabeçudo, ao cantar do galo recolhia-se no interior da cabeça do deus Marte, que era afinal um lugar digno de criatura tão danada como ele, e, ali, era queimado entre labaredas enormes, que chegavam a sair pelos olhos, pelo nariz e pelas orelhas da estátua.

— Mas que história é essa que me quereis impingir, meu caro amigo? — disse Marmagne, ignorando se o estudante estava a falar a sério ou a brincar.

— Apenas uma história de almas penadas, meu caro.

— Então um rapaz culto como vós acredita em semelhantes patetices?!...

— É o acreditas! — disse Tiago Aubry. — Por isso mesmo é que eu quis passar a noite empoleirado no choupo. Foi para tirar a coisa a limpo e descobrir quem era o demónio que verdadeiramente punha o palácio em estado de alarme. Fingi que saía e, em vez de fechar a porta do Grand-Nesle por fora, fechei-a por dentro; depois, caminhando no escuro, aproximei-me do choupo, que já trazia debaixo de olho, e em menos de cinco minutos estava empoleirado nele, mesmo à altura da cabeça da estátua. Adivinhai agora o que vi.

— Como quereis que adivinhe? — disse Marmagne.

— Dizeis bem; só se fôsseis bruxo poderíeis adivinhar o que se passou. Em primeiro lugar, abriu-se a porta, a porta grande do pátio... sabeis qual é, não?

— Se sei! — disse Marmagne.

— Vi a porta abrir-se e um homem meter o nariz de fora para ver se havia alguém no pátio. Era Hermann, o corpulento alemão.

— Ah, bem sei... Hermann, o alemão — repetiu Marmagne.

— Depois de se certificar bem de que o pátio estava deserto, e depois de olhar para todos os lados, menos para onde mal sonhava que eu pudesse estar, saiu de todo, fechou a porta, desceu os cinco ou seis degraus e foi direito ao pátio do Petit-Nesle, a cuja porta bateu três pancadas. A este sinal, uma mulher saiu do palácio e foi abrir. Era a nossa amiga Dona Perrine que, pelos vistos gosta de passear à noite como o nosso Golias.

— Falais sério?! E esta Pobre!... preboste!...

— Esperai aí, esperai aí, que ainda não é tudo! Enquanto eu os seguia com os olhos e eles entravam no Petit-Nesle, ouvi de repente chiarem a meu lado os caixilhos de uma janela. Voltei-me, a janela abriu-se e apareceu Pagolo, esse bandido. Quem havia de dizer, ahn? Sempre com os seus padres-nossos e ave-marias!... Pois Pagolo, depois de usar das mesmas precauções que Hermann, cavalgou a balaustrada e, deslizando ao longo da goteira, de varanda em varanda, chegou até junto da janela... sabeis de quem, visconde?

— Sei lá! Da janela dos aposentos de Dona Ruperte?...

— Qual quê! De Scozzone, o modelo amado de Benvenuto, uma morena de truz! Estais a ver, ahn? como esse patife...

— É deveras engraçado! Mas, foi tudo o que vistes?

— Esperai, esperai, que vos estou a guardar o melhor para o fim. Já ides saber.

— Escuto-vos — disse Marmagne — , é de morrer a rir.

— Esperai só um momento! Enquanto estava a ver o nosso Pagolo passar de varanda para varanda, em riscos de quebrar o pescoço, ouvi novo ruído, que vinha de muito perto do tronco da árvore onde eu me encontrava. Olhei para baixo, e quem vi? Ascânio, que saía da fundição abafando os passos.

— Ascânio, o discípulo predilecto de Benvenuto?...

— Ele próprio, meu caro. Uma espécie de menino-do-coro a quem se daria a hóstia sem confissão. Fiai-vos nas aparências!...

— E com que objectivo saía Ascânio?

— Ora aí está! Com que objectivo? Era precisamente o que eu perguntava a mim próprio. Mas bem depressa deixei de perguntar, porque Ascânio, depois de se ter certificado, como Hermann e Pagolo, de que ninguém o podia ver, trouxe da fundição uma escada muito comprida, que foi apoiar de encontro às espáduas de Marte, subindo por ela. Como a escada estava exactamente do lado oposto ao meu, perdi-o de vista a meio da ascensão, mas, quando tentava descobrir o que lhe teria acontecido, inflamaram-se, de repente, os olhos da estátua.

— Que dizeis?! — exclamou Marmagne.

— A pura verdade, meu caro; e confesso que se não tivesse observado bem os antecedentes que acabo de contar, teria passado um mau bocado. Mas, como tinha visto desaparecer Ascânio, pensei logo ser ele o responsável de tudo.

— - Mas que diabo ia fazer Ascânio àquela hora na cabeça da estátua?

— Ora aí está precisamente o que eu perguntava a mim próprio; e como ninguém podia satisfazer-me a curiosidade, resolvi descobrir por mim mesmo o que se passava. Arregalei os olhos o mais que pude e não tardou que, olhando através dos da estátua, conseguisse descortinar um belo fantasma de mulher, todo vestido de branco, aos pés do qual Ascânio estava de joelhos como ante a imagem da Virgem. Desgraçadamente, o fantasma tinha as costas voltadas para mim, de maneira que não lhe pude ver o rosto, mas vi-lhe o colo. Ah, que lindíssimo colo têm os fantasmas, meu caro visconde! Um colo de cisne, imaginai só isto, e branco, branco como a neve! Por isso Ascânio, aquele ímpio, o olhava com adoração. Com tal adoração que acabou por me convencer que o fantasma era afinal uma autêntica mulher. Que dizeis a isto, meu caro, esconder a bem-amada na cabeça de uma estátua!...

— Oh! Sim, sim! É genial — disse Marmagne, reflectindo e rindo ao mesmo tempo. — E não fazeis qualquer ideia de quem possa ser essa mulher?

— Nem a mais pequena ideia, palavra de honra! E vós?

— Tão-pouco!

— E que fizestes ao descobrir tudo isso?

— Eu? Comecei a rir de tal maneira que perdi o equilíbrio e, se não fosse um ramo providencial a que me agarrei, teria quebrado o pescoço. Como já nada mais tinha a ver ali, e como na queda descera quase até ao solo, saltei para este, corri em silêncio para a porta e tomei o caminho de casa rindo ainda quando vos encontrei e me obrigastes a contar a coisa. Agora, preciso que me aconselheis. Já que pertenceis ao número dos amigos de Benvenuto, que opinais que faça em relação a ele? Quanto a Dona Perrine, ele nada tem que ver com isso; a dama é maior, e por conseguinte, senhora dos seus actos. Mas quanto a Scozzone e à vénus que mora na cabeça de Marte, o caso já é diferente.

— Quereis então que vos diga o que deveis fazer?

— Justamente, pois não estou pouco embaraçado, meu caro... meu caro... nunca me lembra o vosso nome!...

— A minha opinião é que deveis calar-vos muito bem calado. Se as pessoas se deixam enganar, tanto pior, é porque são tolas. E agora, meu caro Tiago Aubry, resta-me agradecer-vos a boa companhia e a desenfastiante conversa; eis-nos chegados à Rua Hautefeille e, confidência por confidência, é aqui que mora o objecto dos meus pensamentos.

— Pois então adeus, meu grande, meu caro, meu excelente amigo! — disse Tiago Aubry apertando a mão do visconde. — O vosso conselho é avisado, e o melhor que tenho a fazer é segui-lo. E agora, adeus e felicidades. Que Cupido vele por vós!

Os dois companheiros separaram-se então; Marmagne para subir a Rua Hautefeille e Tiago Aubry para tomar pela de Poupée, até à da Harpa, em cuja extremidade vivia.

O visconde mentira ao desastrado académico quando lhe afirmou não ter a menor suspeita de quem podia ser o demónio-fêmea que Ascânio adorava de joelhos. A sua primeira ideia foi que o habitante de Marte tinha que ser Colomba, e quanto mais reflectia no caso mais se convencia disso. Como já dissemos, Marmagne votava, por então, tanto ódio ao preboste como a dOrbec ou a Cellini, e, assim, achava-se na crítica situação de não poder fazer mal a uns sem ser agradável aos outros. De facto, se nada revelasse, d'Orbec e o preboste continuariam desnorteados e Benvenuto lucraria. Mas se, pelo contrário, denunciasse o rapto, exasperar-se-ia Benvenuto, e o preboste e d'Orbec rejubilavam, um por encontrar a filha e o outro a noiva. Marmagne resolveu, por fim, meditar no caso até descobrir a saída que mais vantajosa se lhe apresentasse.

A indecisão do visconde não foi longa. Embora lhe ignorasse o motivo, Marmagne sabia do interesse da duquesa d'Etampes pelo casamento do conde d'Orbec com Colomba. Pensou que uma tão importante revelação lhe faria ganhar, em perspicácia, no conceito da duquesa o que recentemente havia perdido em valentia. Resolveu, pois, apresentar-se no Palácio dEtampes na manhã seguinte, muito cedo, e contou tudo à duquesa. E o que resolveu, executou-o fielmente.

Por um destes acasos que tantas vezes auxiliam as más acções, a duquesa encontrava-se apenas na companhia dos seus fiéis d'Orbec e d'Estourville quando lhe foram anunciar o visconde de Marmagne. Todos os outros cortesãos se encontravam no Louvre, fazendo a corte a Francisco I e ao imperador.

O visconde saudou respeitosamente a duquesa, que apenas lhe respondeu com um daqueles sorrisos muitos seus, e que se compunham de orgulho, protecção e desdém em partes iguais. Mas Marmagne fingiu não reparar nesse sorriso tão seu conhecido, por lhe ter sido tantas vezes dirigido e por ter visto a duquesa d'Étampes dirigi-lo tantas vezes a outros. Marmagne podia agora, com uma só palavra, transformar aquele sorriso de desprezo num sorriso todo graça e amabilidade.

— Então, Sr. d'Estourville — disse ele voltando-se para o preboste — , a filha pródiga já voltou ao lar paterno?

— Que engraçado, visconde! — exclamou o Sr. d'Estourville com um gesto ameaçador

e corando de raiva.

— Oh, não vos agasteis, meu nobre amigo, não vos agasteis, peço-vos — retorquiu Marmagne. — Se vos disse aquilo foi só porque se ainda não encontrastes vossa filha, posso eu dizer-vos onde ela foi fazer o ninho.

— Vós?! — exclamou a duquesa, com o mais encantador e afectuoso dos sorrisos. — E onde?... Onde?... Dizei depressa, suplico-vos, meu tão caro Marmagne!

— Na cabeça da estátua de Marte que Benvenuto modelou no jardim do Grand-Nesle.

 

         MARTE E VÉNUS

Tal como Marmagne, também o leitor adivinhou certamente toda a verdade, por mais estranha que ao princípio pudesse parecer. Era, de facto, a cabeça do colosso que servia de asilo a Colomba. Marte albergava Vénus, tal qual dissera Tiago Aubry. Pela segunda vez, Benvenuto fazia intervir a obra na sua vida, chamando o artista em socorro do homem; depois de ter posto génio e pensamento nas suas estátuas, punha nelas também as suas esperanças de salvação. Se, em Roma, a sua arte servia de esconderijo à escada com que se evadiu de Santo Angelo, agora, em Paris, garantia a liberdade de Colomba e a felicidade de Ascânio.

Mas chegados a este ponto da nossa narrativa, convém que recuemos um pouco no tempo a fim de a tornarmos mais clara e compreensível.

Quando Cellini acabou de contar a história de Stéfana, seguiram-se alguns momentos de silêncio. Enquanto duraram, Benvenuto, perdido nas suas recordações, ora tumultuosas e terríveis, ora brilhantes e triunfais, via perpassar a imagem melancólica e serena de Stéfana, morta aos vinte anos. Ascânio, com a cabeça inclinada para o chão, tentava recordar os traços daquela que, curvada sobre o seu berço, tantas vezes acordara com as lágrimas escaldantes do seu pranto. Quanto a Colomba, olhava enternecida aquele Benvenuto que uma outra mulher, jovem e pura como ela, tanto tinha amado. A sua voz parecera-lhe, pela primeira vez, quase tão doce e suave como a de Ascânio, e entre aqueles dois homens, que verdadeiramente a amavam, Colomba sentia-se instintivamente tão segura como a criança nos joelhos da mãe.

— Então? — perguntou Benvenuto após uma pausa de alguns segundos — quererá Colomba confiar o seu futuro ao homem a quem Stéfana confiou o de Ascânio?

— A vós, meu pai, e a ti, meu irmão — respondeu Colomba, estendendo-lhes as mãos com uma graça cheia de modéstia e dignidade — , abandono-me cegamente.

— Deus vos pague, minha bem-amada — disse Ascânio — , Deus vos pague por confiardes em mim.

— Prometeis, então, Colomba, obedecer-me em tudo? — continuou Cellini.

— Em tudo — disse Colomba.

— Pois então, meus filhos, escutai. Eu sempre acreditei que com o tempo e a ajuda de Deus o homem pode quanto quer. Ora, para vos salvar do conde d'Orbec e da infâmia, e para vos dar a meu filho Ascânio, preciso de certo tempo, Colomba, e já faltam poucos dias para a vossa união com o conde. Para já, o que mais importa é retardar essa bárbara união, não é, Colomba, minha filha? Há ocasiões nesta vida em que, para evitar um crime, uma falta é necessária, e portanto, desculpável. Sereis suficientemente corajosa e constante? O vosso amor, que tanta dedicação e pureza tem, será também capaz de coragem? Dizei.

— Ascânio que responda por mim — disse Colomba sorrindo castamente para o jovem.

— É ele quem deve dispor de mim.

— Tranquilizai-vos, mestre — disse Ascânio — , Colomba será corajosa.

— Nesse caso, se confiais na nossa lealdade e na vossa inocência, tereis coragem para deixar esta casa e seguir-nos?

Ascânio teve um movimento de surpresa. Colomba permaneceu um minuto em silêncio olhando Cellini e Benvenuto; depois levantou-se e disse com simplicidade:

— Onde é preciso ir?

— Colomba! Colomba! — exclamou Benvenuto, comovido com tal prova de confiança,

— que nobre e santa criatura sois! Julgava eu que depois de ter conhecido Stéfana já não poderia admirar estas qualidades noutra mulher. Mas enganava-me, e ainda bem, porque tudo dependia da vossa resposta. Agora já estamos salvos, o que não há é um minuto a perder. Deus que nos dá este momento supremo é para que o aproveitemos. Dai-me a vossa mão, Colomba, e vinde.

A jovem baixou o véu, como para esconder de si mesma o rubor que sentia, e seguiu o mestre e Ascânio. A porta de comunicação entre o Petit-Nesle e o Grand-Nesle estava fechada mas a chave estava na fechadura. Benvenuto abriu-a sem ruído.

Chegada àquela porta, Colomba parou.

— Esperai só um momento — disse comovida.

E ao deixar aquela casa, que já não lhe garantia um asilo seguro e honesto, aquela pobre rapariga ajoelhou-se e rezou. A sua oração ficou entre ela e Deus, mas devia ter-lhe pedido perdão para seu pai, pelo que ia fazer. Depois, ergueu-se calma e forte, e continuou a caminhar atrás de Cellini. Ascânio, com o coração turbado, seguia-os em silêncio, contemplando amorosamente um vestido branco que desaparecia nas sombras da noite. Atravessaram assim o jardim do Grand-Nesle; as canções e as gargalhadas dos operários, que ceavam festivamente no palácio, chegavam despreocupados e felizes até junto dos nossos amigos, que experimentavam a emoção indefinível dos instantes supremos da vida.

Quando chegaram ao pé da estátua, Benvenuto dirigiu-se à fundição, onde entrou, reaparecendo pouco depois com uma alta escada, que encostou ao colosso. Toda esta cena era iluminada pelo clarão pálido da Lua. O mestre, depois de dar à escada a estabilidade máxima, aproximou-se de Colomba e pôs um joelho em terra. Uma emocionada expressão de respeito suavizava o seu olhar potente.

— Minha filha — disse então à jovem — prende os braços em volta do meu pescoço e segura-te bem.

Colomba obedeceu, sem pronunciar uma só palavra, e Benvenuto levantou-a como se fosse uma pena. Depois, voltando-se para Ascânio, disse:

— Deixa que o pai leve lá acima a sua filha bem-amada.

E o vigoroso ourives, carregado com o seu fardo precioso, começou a elevar-se na escada com uma agilidade e uma segurança impressionantes. Com a graciosa cabeça abandonada no ombro do mestre, Colomba via através do véu o rosto viril e carinhoso do seu salvador e experimentou (pobre rapariga!) um sentimento de confiança filial que totalmente ignorava. Quanto a Cellini, era tal o poder da sua vontade que, tendo nos braços aquela por quem duas horas antes suspirava, não lhe tremia a mão, não se lhe acelerava o pulso, nem se quebrantava qualquer dos seus músculos de aço. Ordenara ao seu coração que permanecesse calmo, e assim sucedera.

Quando atingiu o pescoço da estátua, abriu nele uma pequena porta, por onde entrou com Colomba. No interior daquela cabeça colossal de uma estátua que media cerca de vinte metros, havia uns pequeninos aposentos circulares com dois metros e meio de diâmetro e mais de três metros de pé-direito.

O ar e a luz podiam entrar perfeitamente através de aberturas praticadas nos olhos, ouvidos, nariz e boca. Cellini construíra aquele quartinho quando trabalhava na cabeça da estátua, ali guardando todos os utensílios de que se servia, para não ter que os levar consigo várias vezes ao dia. As vezes, quando subia a trabalhar, levava o almoço consigo, de maneira que, à hora habitual, também não precisava de descer para fazer aquela refeição. Depois de lá ter posto a mesa, lembrou-se de armar um leito e, ultimamente, costumava ir para lá dormir a sesta. Nada mais natural, pois, que se tivesse lembrado de levar Colomba para esconderijo tão seguro e inacessível.

— É aqui que devereis permanecer, Colomba — disse Benvenuto — , resignando-vos a não sair, minha querida filha, senão à noite. Esperai neste asilo, sob o olhar de Deus e a guarda da nossa amizade, até que os meus esforços sejam coroados de êxito. Júpiter — acrescentou sorrindo, numa alusão à promessa de Francisco I — acabará o que Marte hoje começa. Como vedes, temos o Olimpo por nós, e vós tendes a vosso favor o Paraíso. Como não havemos de triunfar?... Vá, Colomba, agora é preciso sorrir um bocadinho, senão do presente, ao menos pensando no futuro. Digo-vos sinceramente que podeis ter esperança, senão em mim, pelo menos em Deus. Já estive numa prisão muito mais cruel que a vossa, Colomba, e a esperança multiplicou-me a força e a coragem. A partir de hoje e até ao dia da nossa vitória, não vos tornarei a aparecer, minha filha. Vosso irmão Ascânio, sobre quem não pesam tantas suspeitas, nem tanta vigilância, vos virá ver e velar por vós. Vou encarregá-lo de transformar este quarto de operário em célula de mosteiro. E agora, que vou deixar-vos, fixai bem estas palavras: tudo o que tínheis a fazer, minha corajosa e confiante Colomba, já o fizestes; o resto, agora, é comigo e com a Providência. Ouvi bem o que vos digo. Suceda o que suceder, por mais desesperada que vos pareça ou que seja realmente a situação em que vierdes a encontrar-vos, mesmo que vos achásseis ao pé do altar e tivésseis que dizer o sim ao conde d'Orbec, jamais desespereis do vosso amigo, Colomba. Confiai no vosso pai e em Deus. Eu vos juro que hei-de chegar a tempo. Sentis-vos capaz de tal fé e de tal firmeza? Dizei.

— Sinto — disse a jovem com voz firme.

— Está bem — continuou Cellini — , e agora, adeus. Deixo-vos nesta pequenina solidão. Quando todos dormirem, Ascânio providenciará para que nada vos falte durante o dia. Adeus, Colomba.

Estendeu a mão a Colomba, mas a jovem ofereceu-lhe a testa pura e formosa a beijar, tal qual como fazia sempre a seu pai. Benvenuto estremeceu, mas, semicerrando os olhos e dominando, a um tempo, pensamentos e paixões que lhe fervilhavam no peito, depôs naquela fronte um beijo de pai, murmurando:

— Adeus, bem-amada filha de Stéfana.

Desceu depois rapidamente até junto de Ascânio e, com a maior calma e naturalidade, foram ambos juntar-se aos companheiros de trabalho, que comiam, bebiam e riam sem descanso.

Começou então uma nova vida para Colomba, que se sentia mais rainha que prisioneira.

Os pequenos aposentos aéreos foram mobilados da seguinte maneira. Além da mesa e do leito que já havia e eram preciosamente trabalhados, Ascânio levou uma cadeira baixa de veludo, um espelho de Veneza, uma pequenina biblioteca com as obras espirituais predilectas de Colomba, um crucifixo prodigiosamente cinzelado, uma jarrinha de prata, também de Cellini, e a que todas as noites eram mudadas as flores.

Era tudo o que podia conter o quartinho etéreo, rescendente de inocência e graça.

Colomba costumava dormir durante o dia. Assim lho aconselhara Ascânio, com receio que a jovem traísse a sua presença com qualquer acto involuntário. Acordava com a luz pálida das estrelas e os trinados do rouxinol, ajoelhava-se no leito, diante do crucifixo, e por largo tempo rezava, absorvida em fervente oração. Em seguida, cuidava-se; penteava os seus lindos e longos cabelos, toucava-se um pouco diante do espelho e, sentando-se na cadeira de veludo, punha-se a sonhar. Em dado momento, uma escada vinha encostar-se à estátua. Ascânio subia e batia docemente à porta. Se Colomba já estava pronta, ia abrir, e o seu amigo permanecia junto dela até se ouvir bater a meia-noite na Torre dos Agostinhos. Então, se estava bom tempo, Colomba descia ao jardim. Ascânio voltava para o Grand-Nesle e dormia algumas horas, enquanto Colomba dava o seu passeio nocturno, recomeçando os sonhos da sua alameda, mas mais próximos agora da realidade. Duas horas depois, a branca aparição regressava ao gracioso refúgio, onde esperava o dia lendo e respirando o perfume das flores que acabava de colher, enquanto os rouxinóis cantavam no Petit-Nesle e os galos no Pré-aux-Clercs.

Um pouco antes da aurora, Ascânio ia outra vez visitar a sua noiva, levando-lhe as provisões do dia, habilmente subtraídas a Dona Ruperte graças à colaboração de Cellini. Começavam então deliciosas conversas, onde alternavam recordações de namorados e projectos de futuros esposos. Algumas vezes, Ascânio deixava-se ficar muito tempo em silenciosa e embevecida contemplação da sua amada. Colomba deixava-se olhar, ora pensativa, ora sorrindo. Chegava a acontecer despedirem-se sem terem pronunciado uma só palavra em toda a noite. Era então quando mais coisas haviam dito um ao outro. Cada um tinha já no seu coração tudo o que o outro poderia dizer-lhe, além do que o coração não diz e só Deus entende.

O sofrimento e a solidão durante a juventude tem isto de bom, que, engrandecendo e aperfeiçoando a alma, conservam-lhe também toda a frescura. Colomba, apesar de senhorilmente pura e digna, era ao mesmo tempo de uma alegria esfuziante de juventude. Além dos dias em que sonhavam, e daqueles em que riam, havia outros em que brincavam como duas crianças e, coisa maravilhosa, não eram esses dias — ou melhor, essas noites, pois, como sabemos, os dois jovens tinham invertido a ordem da natureza — não eram esses dias os que passavam mais depressa. O amor, como toda a chama, brilha tanto mais quanto maior é a obscuridade.

Nunca Ascânio, com a mais pequena palavra, sobressaltou a timidez e a pureza daquela criança, que lhe chamava irmão. Amavam-se e estavam sozinhos. Mas era justamente por estarem sós que melhor sentiam a presença de Deus, e era justamente por se amarem que respeitavam o seu amor como uma coisa santa.

Ainda a aurora quase não tingia os telhados das casas, já Colomba mandava pesarosamente o seu amigo embora, não, porém, sem o voltar a chamar dez vezes, como Julieta a Romeu. Havia sempre qualquer coisa de muito importante que um tinha esquecido de dizer ao outro. Mas, por fim, era preciso separarem-se. Até cerca do meio-dia, em que se confiava a Deus e adormecia, Colomba ficava então só, ora sonhando, ora escutando os pensamentos que murmuravam no seu coração as avezitas que despertavam cantando sob as tílias do seu antigo jardim. É claro que, ao recolher ao Grand-Nesle, Ascânio retirava a escada.

Colomba amava aquelas avezitas, que com seu canto e alegre esvoaçar tanto a distraíam. Era para elas que, todas as manhãs, esfarelava um pouco do seu pão à entrada da boca da estátua. Os atrevidos vinham, a princípio, debicar o pão e logo esvoaçavam. Mas, passados alguns dias, estavam tão familiarizados que se deixavam ficar muito tempo, e pagavam com canções a refeição de Colomba. As aves compreendem as almas aladas das raparigas. Houve mesmo um audacioso pintassilgo que se atreveu a incursões no interior do aposento, e acabou por se habituar a comer na linda palma da mão da sua protectora. Mais tarde, quando as noites começaram a arrefecer, a avezita deixou-se apanhar pela jovem prisioneira, que o colocou no seu seio, onde dormiu até ao dia seguinte, não obstante a visita de Ascânio e o passeio de Colomba. Cativo por vontade, nunca mais deixou de acoitar-se onde Colomba o acarinhava.

Ao romper da alva, punha-se a cantar. Colomba aproximava-o então dos lábios de Ascânio para que este o beijasse e devolvia-lhe a liberdade.

E assim passava Colomba o tempo na cabeça da estátua.

Apenas dois acontecimentos foram perturbar o sossego daquela existência; foram as duas visitas domiciliárias do preboste. Numa das vezes Colomba despertou em sobressalto com a voz do pai; não era um sonho, como lhe pareceu a princípio; o Sr. d'Estourville estava realmente no jardim do Grand-Nesle e Colomba ouviu Cellini dizer-lhe:

— Quereis então saber o que é este colosso, Senhor Preboste? É a estátua de Marte que Sua Majestade teve a bondade de me encomendar para Fontainebleau. Uma pequenina jóia de quase vinte metros, como vedes. Só isso.

— É muito grandiosa e bela — retorquiu o preboste. — Mas vamos ao que importa; não é isso que venho procurar.

— Não era coisa que pudesse esconder-se!... E passaram adiante.

Colomba, ajoelhada e com os braços estendidos, sentia vontade de gritar: «Meu pai, meu pai! estou aqui!» Mas, lembrando-se do conde d'Orbec e dos odiosos projectos da Sr.a d'Étampes, dominou-se imediatamente e, na segunda visita do preboste, aquele impulso de ternura filial foi muito menos violento. É verdade que a voz do Sr. d'Estourville lhe chegava aos ouvidos acompanhada pela fala repugnante do conde:

— Ora aqui está uma estátua bem estranha e grande como uma casa. Se resistir ao Inverno, as andorinhas poderão fazer ali o ninho.

Na manhã desse dia, em que Colomba ficou aterrorizada só de ouvir a voz do noivo, Ascânio tinha-lhe trazido uma carta de Cellini.

 

Minha filha, sou forçado a partir, mas ficai tranquila, pois deixo tudo preparado para a vossa libertação e felicidade. O triunfo está-nos garantido por uma promessa do rei, e vós não ignorais que Francisco I nunca faltou à sua palavra. Conservai, portanto, toda a vossa esperança. Volto a dizer-vos, amada filha minha, que ainda que vos vísseis na igreja, prestes a pronunciar as palavras que unem para sempre, não devíeis esquecer que a Providência vela por vós. Juro-vos que Ela há-de intervir a tempo.

         Adeus. Vosso pai.

         Benvenuto Cellini.

 

Se esta carta encheu de alegria o coração de Colomba, teve também o lamentável efeito de infundir nos dois jovens uma exagerada e perigosa sensação de segurança. A juventude é incapaz de moderação nos seus sentimentos; por isso, passa muitas vezes do desespero à extrema confiança; para ela, o céu, ou está revolto de tempestade, ou docemente colorido de azul. Julgando-se seguros com a ausência do preboste e a carta de Cellini, começaram a descurar antigas precauções, cuidando mais do amor que da prudência. Foi assim que Colomba acabou por ser vista por Dona Perrine que, felizmente, a tomou pelo monge cabeçudo. Ascânio, por sua vez, acendeu uma noite a candeia antes de ter corrido os cortinados e os reposteiros; a luz foi, como vimos, notada por Dona Ruperte. As narrações das duas comadres despertaram a curiosidade de Tiago Aubry, e o indiscreto estudante, tal como o Horácio da Escola de Mulheres-, foi revelar tudo precisamente àquele a quem se tornava mais perigoso que o dissesse. O resultado de tal confidência já nós o sabemos.

 

Mas voltemos ao Palácio d'Étampes.

Quando perguntaram a Marmagne como fizera tão preciosa descoberta, o visconde nada quis revelar, assumindo ares de mistério. A verdade era demasiado simples e não lhe encarecia a penetração nem a diligência. Por isso, preferiu dar a entender que fora graças à sua astúcia e a algumas lutas que chegara aos magníficos resultados que viam e admiravam. A duquesa, como dissemos, estava radiante; ia e vinha, interrogando o visconde sem descanso. Tinham enfim na mão a pequenina rebelde que tantas preocupações causara. A duquesa ardia em desejos de ir verificar por si mesma a revelação de Marmagne. Aliás, depois do que tinha acontecido, depois da fuga, ou melhor, do rapto de Colomba, esta de modo algum devia continuar a viver no Petit-Nesle. A duquesa encarregar-se-ia de a trazer para o seu palácio, onde a guardaria muito melhor que a aia e o noivo: guardá-la-ia como uma rival.

A duquesa ordenou que lhe preparassem uma liteira.

— A coisa afinal ficou mais ou menos secreta — disse a Sr.a dÊtampes ao preboste. — E vós, d'Orbec, vós não sois homem que se preocupe com estes desaires, pois não? Sendo assim, não há motivos para que o casamento se não realize, nem para que os nossos projectos se não mantenham.

— Senhora, decerto! — disse o preboste, inclinando-se satisfeito.

— E sob as mesmas condições, não é, duquesa? — perguntou d'Orbec.

— Naturalmente, meu caro conde! E quanto a Benvenuto — continuou a duquesa — , culpado ou cúmplice de um rapto infame, podeis ficar descansado, caro visconde, que nos vingaremos, vingando-nos.

— Mas ouvi dizer, Senhora — começou Marmagne — , que o rei, no seu entusiasmo pela Arte, tomou tais compromissos para com ele, no caso de êxito na fundição do seu Júpiter, que Cellini será atendido em qualquer pedido que faça.

— Tranquilizai-vos, que é aí mesmo que eu lhe preparo uma surpresa... e que surpresa! — exclamou a duquesa com um sorriso terrível. — Confiai em mim, deixai-me agir sozinha.

Era o melhor que tinham a fazer. A duquesa mostrava-se mais impaciente, mais activa e bela do que nunca. A alegria trasbordava-lhe nos gestos, nas palavras e na fisionomia. Sem querer perder mais um minuto, ordenou ao preboste que chamasse os seus archeiros e, pouco depois, d'Orbec, Marmagne e o Sr. d'Estourville, precedidos pelos sargentos deste, chegavam à porta do Palácio de Nesle, seguidos a distância pela Sr.a d'Etampes que, fremente de impaciência e pondo a cada instante a cabeça fora da liteira, ficou à espera, no cais.

Era a hora do jantar dos operários; por isso, apenas Ascânio, Pagolo, Jehan Pequeno e as mulheres se encontravam no Grand-Nesle. Benvenuto só era esperado no dia seguinte à noite, ou na manhã subsequente. Ascânio, que foi quem recebeu os visitantes, julgou tratar-se de uma terceira visita domiciliária; como tinha recebido a este respeito ordens muito categóricas de Cellini, não opôs a menor resistência, recebendo-os, pelo contrário, com mostras de grande cortesia.

O preboste dirigiu-se imediatamente à fundição com os amigos e os archeiros.

— Abri-nos esta porta — disse dEstourville a Ascânio.

O coração do jovem estremeceu com terrível pressentimento. No entanto, podia estar enganado e, como a menor hesitação levantaria logo suspeitas, Ascânio entregou a chave ao preboste sem pestanejar.

— Agarrai nessa escada grande — disse o preboste aos seus archeiros.

Os homens obedeceram e, guiados pelo Sr. dEstourville, foram direitos à estátua. Aí, o preboste encostou ele mesmo a escada e preparava-se para subir. Mas Ascânio, pálido de raiva e de terror, fincou o pé na primeira travessa da escada, dizendo:

— Senhores, que pretendeis!? Esta estátua é a obra-prima do mestre e foi confiada à minha guarda. O primeiro que lhe puser a mão, seja para o que for, previno-vos, é um homem morto!

Enquanto isto dizia, Ascânio puxou de um punhal estreito e afilado, mas com tal têmpera o aço que de um bote furava um escudo de ouro.

A um sinal do preboste, os archeiros avançaram para Ascânio com a lança em riste. O jovem opôs uma defesa desesperada, ferindo dois homens; mas que podia fazer contra oito archeiros, além do preboste, Marmagne e d'Orbec?... Viu-se forçado a ceder ao maior número. Depois de o lançarem ao chão, garrotearam-no e amordaçaram-no, enquanto o preboste começou a sua ascensão pela escada, seguido por dois archeiros por causa das surpresas.

Colomba tudo tinha visto e ouvido; o pai foi encontrá-la sem acordo. Ao ver tombar Ascânio, julgara-o morto.

Vendo isto, o preboste, mais furioso que preocupado, pôs a filha bruscamente sobre os ombros possantes e voltou a descer. Por fim, tomaram todos o caminho do cais, com os archeiros a arrastar Ascânio, que dOrbec observava com atenção. Pagolo viu passar o seu camarada, mas não se mexeu. Jehan Pequeno tinha desaparecido. Apenas Scozzone, que não compreendia nada do que se passava, tentou barrar-lhes a passagem, exclamando:

— Que violência é esta, Senhores!? Porque levais Ascânio? Quem é esta mulher?

Mas, neste momento, entreabriu-se o véu de Colomba e Scozzone reconheceu o modelo da estátua de Hebe. Afastou-se então, pálida de ciúme, e deixou passar, sem proferir palavra, o preboste e os amigos, os archeiros e quem levavam.

— Que quer isto dizer!? Porque maltratastes aquele jovem!? — exclamou a Sr.a d'Etampes ao ver Ascânio garroteado, pálido e a escorrer sangue. — Soltai-o, soltai-o já!

— Aquele jovem, Senhora, opôs-nos uma resistência desesperada e feriu dois dos meus homens; é sem dúvida cúmplice de seu mestre, e parece-me da maior urgência conduzi-lo a qualquer lugar seguro.

— Além disso — murmurou d'Orbec ao ouvido da duquesa — , é tão parecido com aquele pajem italiano que vi em vossa casa a assistir a toda a nossa conversa que, se trajasse de outro modo e não falasse o nosso idioma, ia jurar, Senhora Condessa, que era ele mesmo.

— Tendes razão, Senhor Preboste — disse bruscamente a duquesa, arrependendo-se de ter mandado soltar Ascânio. — Tendes razão, pode ser perigoso restituir a liberdade àquele jovem. Tomai conta dele.

— Levai-o para o Châtelet — disse o preboste.

— E nós, Senhores — disse a duquesa, junto de quem tinham posto Colomba ainda sem acordo — , para o Palácio d'Étampes!

Instantes depois, ouviu-se o galope de um cavalo ao longo do cais.

Era Jehan Pequeno que corria a contar a Cellini o que acabava de passar-se no Grand-Nesle.

Quanto a Ascânio, entrou no Châtelet sem ter visto a duquesa e ignorando o papel que ela desempenhara no acontecimento que acabava de deitar por terra todas as suas esperanças.

 

         DUAS RIVAIS

A duquesa d'Étampes, que tanto ouvira falar de Colomba e que tanto queria vê-la, não podia ter desejado melhor ocasião. A pobre rapariga estava ali, a seu lado, desmaiada.

É evidente que, durante todo o trajecto, a ciumenta duquesa não parou de olhar a sua encantadora rival. Vendo-a tão bela, os seus olhos, ardentes de cólera, iam pormenorizando cada um dos seus encantos, analisando cada um dos seus traços, contando uma a uma todas as perfeições da pálida rapariga, agora em seu poder, ao alcance mesmo da sua mão. Estavam pois reunidas aquelas duas mulheres, que aspiravam a um mesmo amor e disputavam um mesmo coração; uma era rancorosa e cheia de poder, a outra era fraca, mas amada; se a duquesa possuía o brilho da sedução, Colomba dispunha da beleza e da juventude; à paixão daquela, opunha esta, inconscientemente, a sua inocência. Depois de separadas por tantos obstáculos, encontravam-se e enfrentavam-se finalmente; o vestido de veludo da duquesa pesava já, enxovalhando-o, sobre o vestido branco, tão simples, de Colomba.

Apesar de Colomba estar desmaiada, Ana não era a menos pálida das duas. A muda contemplação a que se entregava devia desesperar o seu orgulho, destruindo-lhe todas as esperanças, porque, enquanto murmurava contrariada: «não me tinham enganado, é bela, muito bela!», a sua mão apertou tão convulsamente a da jovem, que a fez voltar a si. Descerrando as pálpebras sobre os seus olhos magníficos, Colomba disse:

— Magoais-me, Senhora.

A duquesa, ao ver que a jovem recuperava os sentidos, largou-lhe imediatamente a mão.

Mas a percepção da dor havia precedido, na jovem, o regresso das suas faculdades intelectuais. Depois de pronunciar aquelas palavras quase num grito, ficou alguns segundos olhando a duquesa com espanto, incapaz de coordenar as ideias. Por fim, após um instante de observação lúcida, perguntou:

— Quem sois, Senhora, e aonde me levais? Mas, de repente, retraindo-se, exclamou:

— Ah, já sei... já me lembro! Sois a duquesa d'Étampes!

— Calai-vos! — ordenou imperiosamente a Sr.a d'Etampes — Calai-vos, que em breve estaremos a sós e podereis espantar-vos e gritar à vontade.

Um olhar duro e altivo acompanhou estas palavras; mas foi o sentimento da sua dignidade e não aquele olhar nem as palavras que impôs silêncio a Colomba. Por isso, até chegarem ao Palácio dEtampes, a jovem conservou-se no mais absoluto mutismo. Uma vez no palácio, a um sinal da duquesa, Colomba seguiu-a até ao seu oratório.

Quando as duas rivais se encontraram frente a frente e, finalmente, sós, olharam-se um ou dois minutos com altivez, em silêncio; mas as expressões dos rostos eram totalmente diferentes. Colomba estava calma, porque a sua esperança na Providência e em Benvenuto não diminuíra. Ana estava furiosa com aquela tranquilidade, mas o seu furor apenas se exteriorizava através da alteração do rosto. A duquesa contava poder dobrar aquela débil rapariga apenas com o aço da sua vontade. Foi ela quem cortou o silêncio.

— Pois minha jovem amiga — disse a duquesa num tom que, apesar da doçura, não deixava dúvidas sobre o amargo dos pensamentos — , eis-vos enfim restituída à autoridade paterna! E ainda bem. Mas... deixai-me felicitar-vos pela vossa bravura; sois muito ousada para a vossa idade, minha filha!...

— É que Deus é por mim, Senhora — respondeu Colomba com simplicidade.

— A que deus vos referis, minha filha?... Ah! É com certeza ao deus Marte... — retorquiu a duquesa com a impertinente ironia que tanto usava na corte.

— Só conheço um Deus único, Senhora: o Deus bom e eternamente protector, o Deus que recomenda a caridade aos ricos e a humildade aos grandes. Desgraçados dos que não reconhecem o Deus de que falo, Senhora, porque também Ele um dia os não reconhecerá.

— Muito bem, Senhorinha Colomba! — exclamou a duquesa — não podíeis ter escolhido melhor ocasião para pregar moral; gostaria até de vos felicitar, se não estivesse convencida de que, para encobrirdes o vosso impudor, me estais a lançar aos olhos a poeira de novo descaramento.

— Olhai, Senhora — respondeu Colomba sem qualquer azedume, mas com um ligeiro encolher de ombros — , eu não procuro desculpar-me perante vós, pois ignoro ainda em virtude de que direito poderíeis acusar-me. Quando meu pai me interrogar, responder-lhe-ei com respeito e com mágoa. Se me fizer Censuras, procurarei justificar-me; mas, até lá, Senhora Duquesa, resignai-vos a não ouvir palavra da minha boca.

— Compreendo; a minha voz importuna-vos e preferis ficar a sós com vossos pensamentos para pensardes mais à vontade naquele que amais, não é?

— Nenhum ruído, por mais importuno que seja, poderia impedir-me de pensar nele, Senhora, mormente sabendo-o infeliz.

— Ousais então confessar que lhe tendes amor?!

— Está nisso a diferença entre nós as duas, Senhora, já que vós o amais sem ousar confessá-lo.

— Que imprudente!... — exclamou a duquesa dEtampes. — Desafiais-me?!

— Não — respondeu Colomba com doçura — , não vos desafio; se vos respondo é só porque me obrigais a responder-vos. Deixai-me só com os meus pensamentos, que eu vos deixarei com os vossos projectos.

— Pois bem! já que a isso me obrigas, criança, já que te julgas suficientemente forte para lutares comigo, já que confessas o teu amor, também eu confessarei o meu; mas, ao mesmo tempo, confessarei também o meu ódio. Sim, amo Ascânio, é verdade; e a ti, odeio-te! Afinal, para que havia de estar a dissimular contigo?... Não és tu a única a quem tudo posso dizer?... Não és tu a única que, digas o que disseres, ninguém acreditará?... Sim, amo Ascânio.

— Nesse caso, lastimo-vos, Senhora — respondeu Colomba docemente — , porque Ascânio ama-me.

— Sim, é certo, Ascânio ama-te... Mas, pela sedução, se puder, pela mentira, se for necessário, ou até pelo crime, se não houver outro remédio, hei-de roubar-te esse amor; ouviste!? O meu nome é Ana d'Heilly, duquesa d'Etampes.

— Ascânio amará, Senhora, aquela que melhor o amar.

— Pois não querem lá ver!... — exclamou a duquesa, irada com tanta confiança. — Supões então que no mundo só existe o teu amor, ou que nenhum se lhe pode comparar?...

— Não digo isso, Senhora. Pelo contrário: uma vez que eu amo assim, outro coração pode amar do mesmo modo. O que eu duvido é que tal coração seja o vosso.

— E que eras tu capaz de fazer por ele, tu, que te gabas de um amor a que o meu não pode comparar-se?... Até agora, que é que já lhe sacrificaste? A obscuridade da tua vida?... O aborrecimento da tua solidão?...

— Não senhora, mas a minha tranquilidade.

— E a que a terias tu preferido? Ao ridículo amor do conde d'Orbec?...

— Não, mas à minha obediência filial.

— Que lhe poderás dar? Fá-lo-ás rico, poderoso, temido?...

— Senhora, não, mas espero fazê-lo feliz.

— Pois eu — disse a duquesa d'Étampes — faço por ele muito... muito mais! Imolo-lhe a ternura de um rei; ponho a seus pés riquezas, títulos e honras. Dou-lhe um reino para ele governar!

— Sim, é verdade... — disse Colomba sorrindo — o vosso amor dá-lhe tudo o que não seja... amor.

— Ah! Basta! Basta de tão ultrajante comparação — exclamou a duquesa com violência, ao sentir que estava a perder cada vez mais terreno.

Fez-se então um silêncio que Colomba sustentou sem dificuldade, mas que a duquesa d'Étampes só conseguiu suportar mascarando com sinais de irritação o embaraço que sentia. No entanto, o seu rosto foi-se pouco a pouco descontraindo, uma expressão mais doce, um clarão de sincera ou fingida benevolência começou a iluminar gradualmente a sua fisionomia. Mas, se ia pedir tréguas no combate, era apenas para mais tarde poder esmagar a rival com todo o peso de um triunfo que o seu orgulho exigia.

— Ora dizei-me cá, Colomba — começou a duquesa em tom quase afectuoso — , se te dissessem «Dá a tua vida por ele», que farias?

— Oh!. Dá-la-ia com júbilo!

— Também eu! — exclamou a duquesa, com uma entoação que se não provava a sinceridade do sacrifício, provava pelo menos a violência do amor. — Mas... a vossa honra?... — continuou ela — sacrificá-la-íeis também por ele?...

— Se com a minha honra quereis dizer a minha reputação, sim; mas se quereis sacrificar a minha virtude, não.

— Pois quê?! Não lhe pertencestes ainda?!... Não é ainda vosso amante?!

— É apenas meu noivo, Senhora.

— Oh! Não o amais, não o amais! — retorquiu a duquesa — preferis-lhe a honra, uma palavra!...

— E se vos dissessem, Senhora — prosseguiu Colomba, irritada apesar da sua habitual doçura — «Renuncia, por amor dele, a todos os teus títulos e grandeza; imola-lhe o rei, não em segredo, que era demasiado fácil, mas publicamente»... se vos dissessem: «Ana d'Heilly, duquesa d'Etampes, troca pelo seu obscuro atelier de ourives, o teu palácio, as tuas riquezas e os teus cortesãos»?...

— Recusaria, no seu próprio interesse — respondeu a duquesa, como se lhe fosse impossível mentir debaixo do olhar profundo e penetrante com que a sua rival a sondava.

— Recusaríeis?

— Recusava.

— Oh! Não o amais! — exclamou Colomba — preferis-lhe as honrarias, quimeras!

— Mas se eu vos digo que é pensando nele que quero conservar a minha condição!... — retorquiu a duquesa, exasperada com o novo triunfo da rival. — Se eu vos digo que é apenas para que ele as partilhe que eu pretendo conservar honrarias e riquezas!... Mais tarde ou mais cedo todos os homens acabam por apreciar essas coisas...

— Decerto — respondeu Colomba, sorrindo — , mas Ascânio não é um de todos esses homens.

— Calai-vos! — exclamou, furiosa, e pela segunda vez, Ana d'Heilly.

A poderosa e astuta duquesa d'Etampes não conseguiu, pois, levar a melhor com aquela jovem simples, que supunha poder aterrar elevando apenas a voz. Às suas iradas e irónicas perguntas, Colomba tinha respondido sempre com uma calma e uma modéstia que desconcertavam a Sr.a d'Étampes. A duquesa sentiu bem que o ímpeto cego do seu ódio a tinha feito seguir por caminho errado. Por isso, resolveu mudar de táctica. Não previra que Colomba pudesse ser tão bela nem tão inteligente e, não podendo fazer vergar a sua rival, resolveu apanhá-la desprevenida.

Por seu lado, como vimos, Colomba não se mostrou grandemente afectada pelas duas explosões de cólera que escaparam à Sr.a d'Étampes; tudo o que fez foi encerrar-se num silêncio frio e digno. Mas a duquesa, em virtude do novo plano que acabava de traçar, aproximou-se da jovem com um sorriso encantador e, tomando-lhe afectuosamente a mão, disse:

— Perdoai-me, minha filha, pois creio que me deixei vencer pela cólera. Não me queirais mal por isso; levais-me tantas vantagens que não deveis estranhar que sinta algum ciúme. Pobre de mim! Deveis pensar, como toda a gente, que eu sou uma mulher má! Mas crede que o meu destino é que é mau, e não eu. Perdoai-me pois. Lá porque se deu a coincidência de ambas amarmos Ascânio, não é razão para nos odiarmos uma à outra. Aliás, visto que é a vós que ele unicamente ama, deveis ser indulgente. Sejamos como irmãs, quereis? Falemos ao coração uma da outra, e eu hei-de fazer os possíveis para esbater a desagradável impressão que a minha cólera insensata certamente vos deixou.

— Senhora!... — exclamou Colomba, com reserva e retirando a mão num reflexo de repulsa instintiva.

Depois, acrescentou:

— Dizei, escuto-vos.

— Oh! — retorquiu a Sr.a d'Étampes em tom jovial e como se compreendesse perfeitamente aquela reserva da jovem — tranquilizai-vos, pequenina selvagem, pois não vos peço a vossa amizade sem vos oferecer uma garantia. Olhai: para que saibais bem quem eu sou, para que me conheçais tal qual eu me conheço a mim própria, vou, em duas palavras, contar-vos a minha história. O meu coração não se parece nada com a minha história, e é vulgar caluniarem-se aquelas pobres mulheres, como eu, a quem chamam grandes damas. Ah, como a inveja é injusta em dizer mal de quem mais merecia lástimas e piedade!... Vós, por exemplo, minha filha, que pensais vós de mim? Sede franca. Que sou uma mulher perdida, não é?

Colomba, com um gesto embaraçado, mostrou acanhamento em responder a tal pergunta.

— Mas, se me perderam — continuou a Sr.a d'Etampes — , terei eu a culpa? Vós, que fostes feliz, Colomba, não desprezeis demasiado aquelas que sofreram. Vós, que vivestes até aqui em casta solidão, jamais podereis saber o que é ser criada para a ambição. Oh! mas àquelas que destinam a esta tortura, como às vítimas que ornavam de flores, apenas se mostra da vida o lado brilhante. Não se trata de amar, mas sim de agradar. Foi assim que, desde a juventude, os meus pensamentos deviam tender apenas a seduzir o rei. A beleza que Deus dá à mulher para que ela a troque por um amor verdadeiro, a mim obrigaram-me a trocá-la por um título; do meu encanto fizeram eles uma cilada. Pois bem, Colomba: em que quereis vós que se transforme uma pobre criança que ainda ignora o que é o bem e o mal, e a quem dizem: «O bem é o mal, e o mal é o bem»?... Assim também, ainda que os outros me tenham por perdida, eu não desespero. Deus me perdoará, talvez, pois não tive ninguém a meu lado que me falasse dele. Que queríeis que fizesse, assim isolada, fraca e sem amparo?... Desde logo, foram a astúcia e a mentira que preencheram a minha existência. E, no entanto, eu não estava talhada para desempenhar este papel terrível; e a prova, quereis saber qual é? a prova é que eu amei Ascânio; a prova é que, sentindo que o amava, senti uma grande felicidade e também uma enorme vergonha. E agora, minha querida e tão pura Colomba, dizei-me: sois capaz de me compreender?

— Ah, sou! — respondeu ingenuamente Colomba, enganada por aquela falsa boa fé, que mentia com aparência de verdade.

— Nesse caso, tereis pena de mim... — exclamou a duquesa. — Deixar-me-eis amar Ascânio de longe, sozinha, sem esperança. E assim não serei vossa rival, visto que ele me não amará. E em paga, eu, que conheço o mundo, as suas astúcias, enganos e ciladas, eu vos farei as vezes da mãe que perdestes: guiar-vos-ei, salvar-vos-ei. Vedes bem que agora podeis confiar plenamente em mim porque já conheceis a minha vida. Uma criança em cujo coração fizeram germinar paixões de mulher, eis o meu passado. O meu presente, sabei-lo vós, é a vergonha de ser considerada publicamente a amante do rei. O meu futuro é o meu amor por Ascânio; não o seu, porque (vós o dissestes, e a mim própria o tenho dito muitas vezes) Ascânio nunca me terá amor. Mas, por isso mesmo que este amor permanecerá puro, ele me purificará. Agora, é a vossa vez de falar e ser franca. Dizei-me tudo, contai-me a vossa história, minha filha.

— A minha história, Senhora, é bem curta e, principalmente, bem simples — respondeu Colomba. — Resume-se em três amores. Amei, amo e amarei Deus, meu pai e Ascânio. Há apenas que, no passado, o meu amor por Ascânio, que ainda não tinha encontrado, era apenas um sonho; hoje é sofrimento e, amanhã, uma esperança.

— Muito bem — disse a duquesa, comprimindo o ciúme no coração e as lágrimas nos olhos — , mas não tenhais apenas uma meia confiança, Colomba. Que ides agora fazer? Como haveis de lutar, frágil criança, contra duas vontades tão poderosas como a de vosso pai e do conde dOrbec? Além de que o rei vos viu, e ama-vos...

— Oh, meu Deus!... — murmurou Colomba.

— Mas como essa paixão era obra da duquesa d'Étampes, vossa rival, Ana d'Heilly, vossa amiga, saberá livrar-vos dela. Não nos preocupemos pois com o rei, mas com vosso pai e o conde. A sua ambição não é tão fácil de despistar como a ternura banal de Francisco I.

— Oh, não useis então de meia bondade comigo — exclamou Colomba — , salvai-me também dos outros como me salvais do rei.

— Só há um processo... — disse a duquesa, parecendo reflectir.

— Qual é? — perguntou Colomba.

— Mas assustar-vos-ia, não o quereríeis seguir...

— Oh, se é só preciso coragem, dizei-o!

— Vinde cá, e ouvi — disse a duquesa, puxando Colomba afectuosamente para junto de si e passando-lhe a mão em torno da cintura. — Mas vede bem, não vos vades assustar com as primeiras palavras que vou dizer-vos.

— É assim tão medonho?... — perguntou Colomba.

— Sois uma jovem de virtude rígida e sem mancha, minha filha, mas, infelizmente, vivemos numa época e num mundo em que essa encantadora inocência é apenas uma arma a mais para os vossos inimigos, com os quais vós não podereis, por vosso lado, combater com as armas de que eles se servem para vos atacar. Pois bem. Fazei um grande esforço sobre vós

própria, descei das alturas do vosso sonho e baixai ao nível da realidade. Ainda agora dizíeis que sacrificaríeis a vossa reputação por amor de Ascânio... Pois bem: nem tanto é preciso fazerdes. Imolai-lhe apenas a aparência de fidelidade ao seu amor. Tentardes lutar, fraca e sozinha, contra o vosso destino, sonhardes casar com um aprendiz de ourives, vós, uma filha de fidalgo, é loucura! Crede nos conselhos de uma amiga sincera; não lhes resistais, deixai-vos levar, permanecei no íntimo do vosso coração noiva pura, a esposa de Ascânio, e dai a vossa mão ao conde d'Orbec. Os seus projectos ambiciosos apenas exigem que useis o seu nome; e, uma vez condessa dOrbec, facilmente destruireis os seus projectos infames; não tereis mais que falar e queixar-vos. Ao passo que, agora, quem vos dará razão na vossa luta?... Ninguém. Eu própria não poderei ajudar-vos contra a legítima autoridade de vosso pai, enquanto que, se se tratasse de estragar os cálculos de vosso marido, com que facilidade vos ajudaria!... Pensai nisto. Obedecei, para não terdes que obedecer mais; para vos tornardes independente simulai alienar a vossa liberdade. Então, forte pelo pensamento de que Ascânio é o vosso esposo legítimo, e de que uma união com qualquer outro não passa de um sacrilégio, fareis o que vos ditar o vosso coração; a vossa consciência calar-se-á e o mundo, aos olhos de quem se salvarão as aparências, dar-vos-á razão.

— Senhora! Senhora! — murmurou Colomba, levantando-se e inteiriçando-se de encontro ao braço da duquesa, que tentava retê-la. — Não sei se vos estou a compreender bem, mas parece-me que o que me aconselhais é uma infâmia!...

— Que dizeis?! — exclamou a duquesa.

— Digo que a virtude não é para subtilezas, Senhora. Digo que os vossos sofismas me causam vergonha por vós e que, sob a aparente amizade com que o vosso ódio se cobre, vejo a cilada que me armais. Pretendíeis desonrar-me aos olhos de Ascânio, não é assim?... Porque vós não ignorais que Ascânio nunca amará, ou deixará de amar, toda a mulher que despreze!

— Pois bem: seja! — disse a duquesa, deixando cair a máscara — estou farta disto! Ah, tu não queres cair na minha cilada, como tu dizes?... Pois bem, cairás no abismo para onde te vou empurrar. Ouve só isto: quer queiras, quer não queiras, desposarás d'Orbec.

— Nesse caso, a violência de que sou vítima me desculpará e, mesmo que tenha de ceder, não terei profanado a religião do meu coração.

— Vais então lutar?!...

— Por todos os meios ao alcance de uma pobre rapariga. Previno-vos que direi Não até ao fim. Podeis juntar a minha mão à desse homem, que eu direi Não! Podeis arrastar-me até ao altar: direi Não! Podeis forçar-me a ajoelhar diante do sacerdote, que eu, diante dele, direi Não!

— Que importa? Ascânio pensará que aceitaste esse casamento...

— Creio que não terei de me submeter a tal violência.

— E com quem contas para te socorrer?

— Com Deus, no Céu, e com um homem na Terra.

— Mas, visto que esse homem está preso...

— Esse homem está livre, Senhora.

— Quem é então?

— Benvenuto Cellini.

Ao ouvir pronunciar o nome daquele que tinha pelo seu mais mortal inimigo, a duquesa rangeu os dentes. Mas, quando ia a repetir este nome, acompanhado de qualquer imprecação terrível, um pajem soergueu o reposteiro e anunciou o rei.

A duquesa d'Êtampes saiu precipitadamente do aposento e com um sorriso nos lábios foi ao encontro de Francisco I, puxando-o para o seu quarto e fazendo sinal aos criados para vigiarem Colomba.

 

         BENVENUTO EM APUROS

Uma hora depois da detenção de Ascânio e do novo rapto de Colomba, Benvenuto Cellini deixava o seu cavalo seguir a passo, ao longo dos Agostinhos. Acabava de deixar no Louvre o rei e a corte, a quem, durante todo o caminho, entretivera com a narração de factos curiosos, que entremeava com as suas próprias aventuras. Mas, uma vez restituído à sua solidão, voltou de novo a mergulhar nos pensamentos que o preocupavam. O conversador frívolo cedera o lugar ao pensador profundo. Alargando o bridão ao cavalo, com a fronte inclinada, Cellini ia meditando na fundição do seu Júpiter, de que já não dependia só a sua glória de artista, mas também a felicidade de Ascânio. O bronze fermentava no seu cérebro antes de ferver na fornalha. Aparentemente, porém, parecia calmo.

Quando chegou à porta do palácio ficou um momento parado, admirando-se muito por não ouvir o barulho dos martelos. O negro castelo estava mudo e melancólico como se não houvesse nele vivalma. O mestre bateu por duas vezes sem que ninguém lhe viesse abrir a porta; enfim, à terceira vez, Scozzone apareceu.

— Ah, mestre, até que enfim que chegais! — exclamou ela ao ver Cellini. — Ai de nós!... Porque não viestes duas horas mais cedo!?...

— Que aconteceu? — perguntou Cellini.

— O preboste, o conde dOrbec e a duquesa dEtampes vieram. — E então?

— Fizeram uma busca!

— E depois?

— Acharam Colomba na cabeça da estátua de Marte.

— Impossível!

— A duquesa d'Etampes levou Colomba para o seu palácio e o preboste mandou conduzir Ascânio ao Châtelet.

— Ah! fomos traídos! — exclamou Benvenuto batendo com a mão na testa e com o pé no solo.

Depois, e como o primeiro ímpeto deste homem era sempre a vingança, deixou o cavalo seguir sozinho para o estábulo e correu para o atelier bradando:

— Todos aqui! Todos!

Um instante depois, todos os artífices estavam reunidos.

Um por um, tiveram que submeter-se a um interrogatório em forma; mas todos ignoravam não só o esconderijo de Colomba, mas também como fora que os inimigos da jovem tinham podido descobri-lo. Todos, até Pagolo, de quem Benvenuto a princípio suspeitara,

demonstraram claramente a sua inocência, a ponto de não ficar qualquer dúvida no espírito do mestre. É preciso dizer que Cellini nem ao de leve suspeitou do honrado Hermann, e de Simão Canhoto só muito ligeiramente.

Vendo que, por este lado, não havia nada a averiguar nem a vingar, Benvenuto, com a rapidez que lhe era habitual, tomou uma resolução, e, depois de se ter certificado bem de que a sua espada lhe pendia do flanco e de que o punhal deslizava rápido na bainha, ordenou a todos que se mantivessem nos seus postos para os poder chamar em caso de necessidade. Dito isto, saiu do atelier, desceu num salto os degraus de pedra e correu para a rua.

Desta vez, tanto o rosto como o andar e todos os seus outros movimentos traíam a mais viva agitação. De facto, mil pensamentos, mil projectos e mil sofrimentos entrechocavam-se e confundiam-se no seu espírito. Lastimava a ausência de Ascânio precisamente na ocasião em que era mais necessário, pois todos os aprendizes não eram de mais para a fundição do seu Júpiter, e Ascânio era o mais inteligente de todos.

Colomba fora raptada, e podia, no meio de todos os seus inimigos, perder a coragem. Aquela sua serena e sublime confiança, que lhe servia de baluarte contra os maus pensamentos e os perversos projectos de seus inimigos, estava talvez prestes a dissipar-se, abandonando-a entre tantas ameaças e insídias.

Mas, no meio de todos estes pensamentos dolorosos, uma lembrança fervilhava no seu espírito. Recordava-se de que, um dia, tendo aventado a Ascânio a possibilidade de uma cruel vingança por parte da duquesa d'Etampes, ele respondera, sorrindo: «Ela nada ousará contra mim porque, com uma só palavra, eu posso deitá-la a perder.» Benvenuto quis então conhecer aquele segredo, mas o jovem havia respondido: «Mestre, hoje seria uma traição. Esperai, até ao dia em que seja uma defesa.»

Benvenuto compreendera aquela delicadeza e esperara. Mas agora era urgente saber, era preciso ver Ascânio. Foi portanto para este objectivo que dirigiu primeiramente os seus esforços.

Em Benvenuto, a execução seguia imediatamente a decisão. Ainda mal não acabara de dizer a si próprio que era preciso ver Ascânio e já batia à porta do Châtelet. Abriu-se logo o postigo gradeado, e um dos sargentos do preboste perguntou a Cellini quem era. Outro homem estava por detrás dele, na sombra.

— O meu nome é Benvenuto Cellini — respondeu o mestre ourives.

— Que desejais? — perguntou o sargento.

— Ver um prisioneiro que se encontra aqui.

— Como se chama o prisioneiro?

— Ascânio.

— O prisioneiro está no segredo, não pode ver ninguém.

— E porque está no segredo?

— Porque é acusado de um crime que implica pena de morte.

— Então, mais uma razão para que eu o veja! — exclamou Benvenuto.

— Tendes uma lógica singular, Sr. Cellini, mas sem aceitação no Châtelet — disse, em tom chocarreiro, a voz do homem escondido na sombra.

— Quem escarnece quando eu faço um pedido — exclamou Benvenuto.

— Eu — disse a voz — , eu, Roberto d'Estourville, preboste de Paris. A cada um a sua vez, Sr. Cellini. Em todas as lutas há partida e desforra e, se vós ganhastes a primeira mão, ganho eu agora a segunda. Já vos esqueceu que vos apoderastes ilegalmente do meu palácio?... Pois eu apoderei-me do vosso aprendiz, e fi-lo segundo a lei. Assim como não me quisestes restituir o que era meu, também eu vos não soltarei Ascânio, podeis ficar certo do que vos digo. Mas, já que sois tão corajoso e empreendedor, e como tendes um exército de companheiros dedicados, porque não vindes tomar o Châtelet? Porque não vindes, meu conquistador de cidadelas? Vinde, nobre escalador de muralhas, emérito arrombador de portas, vinde, que cá vos espero!

Proferidas estas palavras, o postigo fechou-se.

Benvenuto soltou um rugido e lançou-se de encontro à porta maciça mas, apesar do esforço conjunto de pés e mãos, a porta não sofreu o mínimo abalo.

— Força, amigo! força! — gritou o preboste do outro lado da porta — isso! batei, batei, que o mais que podeis fazer é barulho... mas cuidado com a ronda! Se fazeis demasiada música, os archeiros cair-vos-ão em cima! Olhai que o Châtelet não é o Palácio de Nesle; pertence a Sua Majestade, e veremos se mandais mais em França que Francisco I.

Benvenuto olhou em torno e viu no cais um marco desenterrado que dois homens médios talvez não conseguissem levantar. Correu para ele e pô-lo nos ombros com a mesma facilidade com que uma criança levanta uma pedra de calçada.

Mas, ao fim de alguns passos em direcção à porta, reflectiu que, uma vez arrombada, encontraria a guarda interior, e que tal via de facto podia levá-lo também à prisão; à prisão, numa altura em que a liberdade de Ascânio dependia da sua. Deixou, pois, cair o marco, que, por efeito do próprio peso, se foi enterrar algumas polegadas no chão.

É claro que o preboste devia estar a espreitá-lo através de alguma fresta, pois que se ouviu uma segunda gargalhada.

Benvenuto afastou-se a toda a pressa para não ceder ao perigoso desejo de se atirar contra aquela porta.

Foi direito ao Palácio d'Étampes.

Se pudesse ao menos avistar-se com Colomba, talvez que tudo ainda não estivesse perdido. Quem sabe se Ascânio não teria, num momento de efusão, confiado à noiva o segredo que se recusara a revelar ao mestre?

A princípio tudo correu bem. A porta do palácio estava aberta e Benvenuto atravessou o pátio e entrou na sala de espera, onde se encontrava um corpulento lacaio agaloado dos pés à cabeça e que era uma espécie de colosso com dois metros de altura e cerca de um de largo.

— Quem sois? — perguntou o lacaio a Cellini, olhando-o com desdém.

Noutra ocasião, Benvenuto teria respondido àquele olhar insolente com uma das suas habituais violências mas, como se tratava de ver Colomba, como se tratava de salvar Ascânio, conteve-se.

— Sou Benvenuto Cellini, o ourives florentino — respondeu.

— E que desejais?

— Ver a Senhorinha Colomba.

— A Senhorinha Colomba não pode aparecer.

— E porquê?

— Porque seu pai, o Sr. d'Estourville, preboste de Paris, a confiou à guarda da Senhora Duquesa, recomendando-lhe que velasse por ela.

— Mas eu sou um amigo.

— Mais uma razão para que sejais suspeito.

— Pois, mesmo assim, é preciso que eu a veja — disse Benvenuto, que começava a enervar-se.

— Pois eu digo-vos que não a vereis — respondeu o lacaio.

— E ao menos a duquesa, está visível?

— Tão-pouco.

— Nem para mim, que sou o seu ourives...

— Para vós, menos que para ninguém.

— Nesse caso, tendes ordens especiais para não me receber!... — exclamou Benvenuto.

— Nem mais nem menos — respondeu o criado — , agora é que dissestes tudo.

— Saberás acaso, amigo, que tenho um feitio especial? — disse Cellini com aquele riso terrível que precedia em regra as suas explosões de cólera. — Não sabeis que é precisamente onde me não querem deixar entrar que eu entro mais depressa?...

— Ah, sim?!... E como é isso? Dizei, peço-vos, que me quero fartar de rir.

— Olha: quando, por exemplo, há apenas uma porta e um patife como tu...

— Sim, que fazeis?... — disse o lacaio.

— Que faço? — disse Benvenuto, juntando a acção às palavras — estendo o patife no meio do chão e arrombo a porta.

Efectivamente, Benvenuto apenas com um soco fez rolar o lacaio para quatro ou cinco passos de distância, e com um pontapé arrombou a porta.

— Socorro! Socorro! — gritou o criado, agarrando o queixo com ambas as mãos.

Mas este grito aflitivo do pobre diabo era inútil. Ao entrar na antecâmara Benvenuto achou-se diante de seis criados, que pareciam estar ali apenas à sua espera.

Concluiu que a duquesa tinha sabido do seu regresso e que tomara todas as precauções.

Noutras circunstâncias, e armado como estava de espada e punhal, Benvenuto teria malhado sobre toda aquela criadagem como em centeio verde; mas um tal acto de violência no palácio da favorita de Francisco I podia ter péssimas consequências. Pela segunda vez no espaço de poucos minutos, e contra o seu costume, Benvenuto deixou que a razão dominasse a cólera e, certo de que podia chegar até junto do rei, pois, como sabemos, havia ordens para o deixarem passar a qualquer hora, Cellini embainhou a espada, já meio saída, e retrocedeu, parando a cada passo como um leão em retirada. Atravessou lentamente o vestíbulo, depois o pátio, e encaminhou-se para o Louvre.

Desta vez, Benvenuto retomara o seu ar tranquilo e caminhava no passo habitual. Mas esta calma era apenas aparente. A sua testa cobria-se de grossas camarinhas de suor, enquanto uma cólera surda ia fermentando no seu cérebro, fazendo-o sofrer tanto mais quanto procurava energicamente dominá-la. Não havia nada que repugnasse mais àquele carácter violento do que uma espera inerte, ou o obstáculo miserável de uma porta fechada e a recusa grosseira de um lacaio insolente. Estes homens fortes, a quem o pensamento obedece, não conhecem mais desespero que o de uma resistência material insuperável. Naqueles momentos, Benvenuto teria dado dez anos de vida para que um homem qualquer o acotovelasse; enquanto ia caminhando, levantava a cabeça, de quando em vez, e fixava o seu olhar terrível nos que passavam a seu lado, como a dizer-lhes: «Vejamos, não haverá entre vós um desgraçado que esteja farto de viver?... Se houver algum, aqui me tem, é só dizer!»

Um quarto de hora depois, Benvenuto entrava no Louvre e, parando na sala dos pajens, pedia para falar imediatamente a Sua Majestade.

Queria contar tudo a Francisco I, apelar para a sua lealdade, e, se não obtivesse a liberdade de Ascânio, pedir que ao menos lhe fosse permitido vê-lo. Durante todo o caminho pensara no que devia dizer ao rei e, como não faltavam a Benvenuto pretensões de eloquência, ia bastante satisfeito com o pequeno discurso que preparara. A verdade é que toda aquela agitação, as terríveis e súbitas notícias, os ultrajes sofridos, os obstáculos que não pudera ou não quisera vencer, tudo isto tinha inflamado o sangue nas veias do irascível artista. Latejavam-lhe as fontes, o coração batia-lhe com força, as suas mãos tremiam. Nem ele próprio sabia que excitação ardente e dolorosa duplicava as energias do seu corpo e da sua alma. Um dia de vida concentra-se, assim, às vezes, num minuto.

Foi, pois, em semelhante estado de espírito que Benvenuto se dirigiu a um pajem e pediu para ser conduzido à presença do rei.

— O rei não vos pode receber — respondeu o jovem.

— Não me reconheceis? — perguntou Benvenuto.

— Reconheço-vos perfeitamente.

— O meu nome é Benvenuto Cellini, e o rei recebe-me a qualquer momento.

— É justamente por vos chamardes Benvenuto Cellini — respondeu o pajem — que não podeis entrar.

Benvenuto quedou estupefacto.

— Ah, sois vós, Sr. de Termes — prosseguiu o pajem, dirigindo-se a um cortesão que tinha entrado ao mesmo tempo que o mestre-ourives — , entrai, entrai. Entrai Senhor Conde de Faye. Entrai, Senhor Marquês de Prés.

— E eu?! E então eu?! — exclamou Benvenuto, branco de cólera.

— Vós? Ainda não há dez minutos que o rei, ao entrar, disse: «Se aquele insolente florentino se apresentar, digam-lhe que o não quero ver e aconselhem-lhe a máxima docilidade, de outro modo terá de ir comparar o Châtelet com o castelo de Santo Angelo.»

«Paciência! dai-me paciência, meu Deus!... — murmurou Cellini em voz surda — a verdade é que não estou habituado a que os reis me façam esperar. O Louvre não pode comparar-se ao Vaticano, nem Francisco I a Leão X, e, apesar disso, jamais esperei à porta do Vaticano! Mas... ah... entendo! É isso; o rei estava no palácio da duquesa... Francisco I sai de casa da amante, e ela predispô-lo contra mim. É o mesmo, tenho que ser paciente por amor de Ascânio e de Colomba!»Mas, apesar desta bela resolução de ser paciente, Benvenuto teve de se apoiar a uma coluna. O seu coração trasbordava e não sentia as pernas. A afronta do rei ferira-o no seu orgulho, mas ainda mais na amizade. A sua alma estava repassada de amargura e desespero; os lábios cerrados, o olhar sombrio e as mãos crispadas diziam a violência da sua dor.

Mas, ao cabo de um minuto, a sua emoção estava dominada e, inspirando ruidosamente, ergueu a fronte e saiu a passo firme e decidido. Todos os que ali se encontravam viram-no afastar-se com uma espécie de respeito.

Se Benvenuto parecia calmo, isso devia-se apenas ao espantoso dom que tinha sobre si mesmo; em realidade, estava mais desvairado e furioso que o leão nas redes. Por algum tempo caminhou ao acaso, sem saber por onde ia, com o olhar enevoado e, nos ouvidos, apenas o latejar impetuoso do sangue; de vez em quando, como sucede com os ébrios, perguntava a si próprio se dormia ou estava acordado. Era a terceira vez, no espaço de uma hora, que o punham na rua. Era a terceira vez que batiam com a porta na cara a Benvenuto Cellini, o favorito de príncipes, reis e papas, cujas portas se abriam sempre de par em par mal se ouvia o ruído dos seus passos. E, no entanto, a despeito da tríplice afronta recebida, não tinha o direito de exteriorizar a sua cólera; era preciso esconder o seu despeito, dissimular o vexame até salvar Colomba e Ascânio. Ao olhar a multidão que passava perto dele, calma e despreocupada, ou correndo a seus afazeres, parecia-lhe ler no seu rosto a triplicada injúria que acabava de sofrer. Foi talvez o único momento da sua vida em que esta grande alma humilhada duvidou de si mesma. Mas, passado um quarto de hora deste errar desordenado e cego, Benvenuto caiu em si e levantou a cabeça. O abatimento deixara-o e era, de novo, presa da sua febre de acção.

— Deixá-los! — exclamou em voz alta, tão dominado estava pelo pensamento e tanto a alma lhe devorava o corpo. — Deixá-los espezinhar o homem; não conseguirão prostrar o artista. Vamos, escultor! obriga-os, com a tua obra, a arrependerem-se do que fizeram.

Ao acabar de pronunciar estas palavras, Benvenuto, arrastado por um impulso mais forte que ele próprio, tomou o caminho de Tournelles, essa antiga residência real onde morava ainda o velho condestável Anne de Montmorency.

O nosso impetuoso Cellini teve, porém, que esperar a sua vez durante quase uma hora antes de ser conduzido à presença do ministro-soldado de Francisco I, sempre rodeado por um sem-número de cortesãos e solicitadores.

Anne de Montmorency era um homem de grande estatura, pouco curvado ainda pela idade, frio, hirto e seco, de olhar vivo e palavra concisa e breve. Nunca ninguém o vira de bom humor. Sentir-se-ia humilhado se alguém o surpreendesse a rir. Que este velho carrancudo tenha agradado a um príncipe tão sociável e gentil como Francisco I, só poderá talvez explicar-se pela lei dos contrastes. O monarca sabia recusar com tanta bonomia, que os que não obtinham o que desejavam saíam bem dispostos, ao passo que, de junto do condestável, até os que despachava a contento saíam furiosos. O seu talento era medíocre, e apenas inspirava confiança ao rei pela inflexibilidade militar e pela autoritária gravidade do seu carácter.

Quando Benvenuto entrou, passeava ele no seu quarto, de trás para diante, como de costume. Respondeu com um ligeiro movimento da cabeça à saudação de Cellini; momentos depois, parando de repente e fixando nele o seu olhar penetrante, perguntou:

— Quem sois?

— Benvenuto Cellini.

— Que profissão tendes.

— Ourives do rei — respondeu o artista, espantado de que a sua primeira resposta o não tivesse dispensado de responder à segunda pergunta.

— Ah, é verdade — rosnou o condestável. — Já vos estou a reconhecer. Então que quereis, meu caro? Que vos encomende uma estátua? Se contáveis com isso, perdestes o tempo, já vos previno. Dou-vos a minha palavra de honra que não percebo patavina de arte, nem desta mania artística que assolou o reino. Parece uma epidemia a que só eu fui poupado. Não, mestre-ourives, a escultura não é o meu forte, nem muito menos. Por isso, o melhor que tendes a fazer é ir bater a outra porta. Boas-tardes.

Benvenuto fez um movimento.

— Ora, ora! Que isto vos não desconsole — prosseguiu o condestável. — Não faltam para aí cortesãos que queiram macaquear o rei nem ignorantes a presumir de entendidos. Mas eu, ouvi bem, só percebo cá do meu ofício, que é o de fazer a guerra; e digo-vos que admiro mil vezes mais uma boa camponesa que todos os dez meses me cinzela um filho, isto é, um soldado, do que um estatuário que perde o seu tempo a compor uma infinidade de homenzinhos de bronze que só servem para encarecer o preço dos canhões.

— Senhor — disse Benvenuto, que tinha ouvido toda esta longa heresia com uma paciência de que o próprio se espantava — não vim falar-vos de coisas de arte, mas de coisas de honra.

— Ah!... mas isso já é outro caso. Dizei já o que pretendeis de mim.

— Lembrai-vos, Senhor, de Sua Majestade ter dito uma vez na vossa frente que, no dia em que eu lhe levasse a estátua de Júpiter fundida em bronze me concederia qualquer mercê que eu lhe pedisse e que vos encarregava, bem como ao chanceler Poyet, de lhe recordardes esta sua promessa, caso ele a viesse a esquecer?...

— Lembro-me, e daí?

— Pois, Senhor, aproxima-se o momento em que terei de pedir-vos que refresqueis a memória de Sua Majestade.

— É então isso que vindes pedir-me?! — exclamou o condestável. — É para me pedirdes que cumpra o meu dever que vindes importunar-me?...

— Senhor!...

— Sois um impertinente, Senhor ourives. Ficai sabendo que o condestável Anne Monte-morency não precisa que o incitem a ser um homem honesto. O rei pediu-me que gravasse

na memória algo de que ele se podia vir a esquecer, e bem devia tomar mais vezes tal precaução, isto sem ofensa para ele, é claro. Pois bem: lembro-me perfeitamente da promessa e recordá-la-ei a Sua Majestade, ainda que o importune. Adeus, mestre Cellini. Passemos adiante.

Dito isto, o condestável voltou as costas a Benvenuto e fez sinal para que entrasse outro pretendente.

Benvenuto, por seu lado, saudou o condestável, cuja franqueza brusca lhe não desagradava, e, animado sempre pelo mesmo ardor, movido sempre pelo mesmo pensamento ardente, apresentou-se em casa do chanceler Poyet que morava perto, isto é, nas Portas de Santo António.

Aí também teve que esperar uma boa meia hora. Mas Benvenuto estava irreconhecível: até já se habituava a esperar.

— Senhor — disse ele, quando por fim o conduziram à presença do chanceler — , venho recordar-vos a promessa que o rei um dia me fez diante de vós, e da qual não só vos tomou por testemunha mas também por fiador.

— Sei ao que vos referis, Sr. Benvenuto — interrompeu Poyet — , e, se assim o desejardes, estou pronto a recordar essa promessa a Sua Majestade. Mas também vos previno que, judicialmente, não vos assiste qualquer direito, uma vez que um compromisso tomado de repente e deixado a vosso arbítrio não é válido perante os tribunais nem constitui qualquer título de direito. Portanto, se o rei satisfizer o vosso pedido, será apenas por cavalheirismo e bondade.

— É tal qual como eu o entendo, Senhor — retorquiu Benvenuto —, e só vos peço que cumprais o encargo de Sua Majestade quando e onde for mister, deixando o resto depender apenas da benevolência do rei.

— Ora ainda bem que assim é — disse Poyet — , pois adentro desses limites podeis contar inteiramente comigo.

Benvenuto saiu de casa do chanceler mais tranquilo de espírito, mas sempre com o mesmo fogo nas veias, como as mãos sempre febris. A sua mente, exaltada por tantas impaciências, injúrias e cóleras, fora obrigada a conter-se durante muito tempo; mas agora trasbordava livremente; para ela parecia já não existir o espaço e o tempo, de modo que, ao regressar a casa, a passos largos, Benvenuto via, numa espécie de delírio luminoso, Stéfana, a casa de Moro, o Castelo de Santo Angelo e o jardim de Colomba. Ao mesmo tempo, sentia renascerem-lhe forças mais que humanas; parecia-lhe que estava a viver fora deste mundo.

Foi sob esta exaltação estranha que Benvenuto entrou no Grand-Nesle.

Esperavam-no todos os aprendizes, tal como ele havia ordenado.

— Vamos à fundição de Júpiter, meus rapazes! Vamos a isto! — gritou ainda do limiar da porta.

E correu para o atelier.

— Bom dia, mestre — disse Tiago Aubry, que havia entrado cantando alegremente logo atrás de Cellini. — Então não me vistes nem me ouvistes? Tenho vindo a chamar-vos há mais de cinco minutos, correndo atrás de vós pelo cais; vínheis tão depressa que venho sem fôlego. Mas... que tendes hoje todos, que estais tristes como juízes?...

— A fundição! — continuou Benvenuto, sem responder a Tiago Aubry, que, aliás, tinha visto e ouvido vagamente na rua. — A fundição! É a nossa última esperança. Triunfaremos, meu Deus? Ah, meu amigo — continuou ele depois, em frases sincopadas, dirigindo-se ora a Tiago Aubry, ora aos aprendizes. — Ah, meu caro Tiago, que triste notícia aqui me esperava! Aproveitaram-se bem da minha ausência!...

— Mas que tendes, mestre? — inquiriu Aubry, sinceramente preocupado com a agitação de Cellini e com a profunda tristeza dos operários.

— Tragam sobretudo lenha de pinho bem seca! Bem sabeis que me estou a abastecer dela há mais de seis meses. Que tenho, meu caro Aubry? Tenho o meu Ascânio aprisionado no Châtelet e Colomba, a filha do preboste, que ele tanto ama, caiu nas mãos da duquesa d'Etampes, sua inimiga. Conseguiram dar com ela na estátua de Marte, onde eu a tinha escondido. Mas nós os salvaremos. Olá! olá! Onde vais Hermann? A lenha não está na cave, está no depósito das madeiras.

— Ascânio preso?! — exclamou Aubry — e Colomba raptada!?...

— É triste, mas é verdade. Qualquer infame espião deve tê-los visto e foi revelar um segredo que até a vós próprio escondi, caro Tiago. Ah, mas se chego a saber quem foi!... À fundição, meus rapazes! A fundição! E ainda não é tudo. O rei já não quer receber-me; ele, que me chamava o seu amigo!... Quem poderá acreditar na amizade dos homens!?... É certo que os reis não são homens, são reis. Enfim: debalde corri ao Louvre! não o pude ver, não pude dizer-lhe uma só palavra. Ah, mas a minha estátua lhe falará por mim! Preparem o molde, meus amigos, não há um minuto a perder. E a pobre Colomba a ter que sofrer os insultos daquela mulher!... E aquele infame do preboste a escarnecer de mim!... E o carcereiro torturando talvez Ascânio!... Ah, que terríveis visões tenho tido hoje, meu caro Tiago! Dava dez anos de vida a quem conseguisse chegar até junto de Ascânio, falar-lhe e trazer-me um segredo que ele sabe e que poria a orgulhosa duquesa à minha mercê. Sim, Ascânio sabe um segredo capaz de tudo isso, meu caro Tiago, mas o seu coração é tão nobre que se recusou a confiar-mo. Não importa, Stéfana, nada temas por teu filho; eu o defenderei enquanto tiver um sopro de vida, e hei-de salvá-lo! Oh, sim, salvá-lo-ei! Ah, mas esse traidor que nos vendeu, onde se encontrará ele para eu o estrangular! Ah, Stéfana, faz que eu viva três dias ainda, pois receio que o fogo que me devora me tire a vida. Ai, se eu morria sem acabar o Júpiter*.... À fundição, rapazes! À fundição!

As primeiras palavras de Cellini, Tiago Aubry ficou pálido como um morto, pois suspeitou logo ter sido ele a causa de toda aquela desgraça. A medida, porém, que Benvenuto prosseguia, deixou de ter qualquer dúvida a esse respeito. Quando o mestre acabou de falar, qualquer projecto deve ter surgido no espírito de Tiago Aubry, pois desapareceu sorrateiramente, enquanto Cellini, cada vez mais febril, corria para a fundição seguido pelos operários e gritando como um louco:

— A fundição! A fundição! A fundição!

 

         AS DIFICULDADES DE UM HONESTO RAPAZ PARA QUE O METESSEM NA CADEIA

O pobre Tiago Aubry saíra desesperado do Grand-Nesle. Não havia que duvidar: fora ele que traíra, embora involuntariamente, o segredo de Ascânio. Mas quem teria sido então que o traíra a ele mesmo, Aubry? Não fora certamente aquele nobre senhor cujo nome ignorava; um fidalgo, podia lá ser! Devia ter sido esse tratante do Henriet; a não ser que fosse Robin... ou então Charlot, ou Guilherme... A verdade é que o pobre Aubry perdia-se em conjecturas, pois confiara o segredo a mais de uma dúzia de amigos íntimos, entre os quais não parecia fácil descobrir o culpado. Mas que importava, afinal? O primeiro, o verdadeiro e o único culpado era ele, Tiago. O espião infame que acusara Benvenuto era ele. Em vez de fechar a sete chaves no coração um segredo surpreendido a um amigo, fora semeá-lo por toda a parte: e, assim, a sua língua maldita havia causado a perda de Ascânio, um irmão. Tiago Aubry começou a arrancar os cabelos, a dar socos em si próprio e a cobrir-se das injúrias mais revoltantes para castigo da sua odiosa conduta.

Os remorsos que sentia tornaram-se tão pungentes e lançaram-no em tal desespero que, talvez pela primeira vez na vida, Tiago Aubry pôs-se a meditar e a reflectir. No fim de contas, não era quando tivesse arrancado todo o cabelo, quando o peito estivesse roxo e a consciência em pedaços, que Ascânio estaria salvo. Antes de mais nada, era urgente reparar o mal que fizera, e estar a desesperar não servia senão para perder tempo.

O honesto Tiago conservara na memória aquelas palavras de Benvenuto: «Dava dez anos de vida a quem conseguisse chegar até junto de Ascânio, falar-lhe e trazer-me um segredo que ele sabe e que poria a orgulhosa duquesa à minha mercê.» Contrariamente aos seus hábitos, o jovem pusera-se, como dissemos, a reflectir. O resultado das suas reflexões foi que precisava de introduzir-se no Châtelet fosse de que maneira fosse. E, uma vez lá, tinha que avistar-se com Ascânio.

Entrar como visita, nem pensar. Se o próprio mestre o não conseguira! Mas, se era impossível entrar lá na qualidade de visita, devia, pelo contrário, ser facílimo entrar como prisioneiro. Pelo menos o estudante assim pensava. Entraria pois como tal e, uma vez obtido de Ascânio o seu valioso segredo, nada mais tinha a fazer no Châtelet; correria a casa de Cellini com o segredo salvador, não para lhe reclamar os dez anos de vida, mas para lhe confessar o seu crime e pedir-lhe perdão.

Maravilhado com a sua riqueza imaginativa e orgulhoso com os extremos da sua dedicação, tomou o caminho do Châtelet.

«Ora vejamos... — ruminava Tiago Aubry ao dirigir-se a passo decidido para a tão desejada prisão — vejamos bem, que é para não se cometer disparates; tratemos de nos pôr bem ao corrente do que se passa, pois toda esta história ainda me parece mais intrincada que o fio de lã que a Gervásia me dá para desemaranhar quando lhe quero dar um beijo... Vejamos, recapitulemos os factos. Ascânio amava Colomba, filha do preboste; bem. Como o preboste a queria casar com o conde d'Orbec, Ascânio raptou-a; muito bem. Depois, não sabendo que fazer com a encantadora rapariga, escondeu-a na cabeça de Marte; optime. O esconderijo, palavra de honra, era do melhor que há; só um animal como eu é que... adiante! Ora, é de supor que, graças às minhas informações, o preboste se reapoderou da filha e mandou prender Ascânio. Como pude ser tão besta!... Mas agora, aqui é que a porca torce o rabo. Que vem a duquesa d'Étampes para aqui cheirar em toda esta embrulhada? Ela detesta Colomba, de quem todos gostam. Porquê? Ah, já sei! Os aprendizes riam-se e Ascânio corava sempre que se falava na duquesa... É claro! a Sr.a d'Êtampes morre de amores por Ascânio e abomina a rival. Tiago, meu amigo, não passas de um miserável, mas podes-te gabar de uma inteligência sólida! Bem... mas agora como é que Ascânio tem maneira de deitar a duquesa a perder? Como é que o nome do rei salta para a baila com o de uma tal Stéfana? Porque é que Benvenuto invoca Júpiter a todo o instante, que é uma invocação bem pagã para um católico? Diabos me levem se percebo patavina! Mas também não é absolutamente necessário que eu perceba tudo. No calabouço de Ascânio é que está a luz; portanto o que importa é fazer com que me lancem nesse calabouço. Depois se verá.

Dizendo isto, Tiago Aubry, que havia chegado ao termo da sua caminhada, vibrou uma veemente batedela na porta do Châtelet. Abriu-se o postigo gradeado e uma voz rude perguntou o que queriam. Era do carcereiro.

— Quero uma masmorra na vossa prisão — respondeu Aubry com voz tenebrosa.

— Uma masmorra?! — exclamou o carcereiro estupefacto.

— Sim, uma masmorra; a mais negra e a mais subterrânea. E ainda será mais do que o que mereço.

— E porquê?

— Porque sou.um grande criminoso.

— E que crime cometestes?

«É verdade! que crime cometi eu?» perguntou a si mesmo Aubry, que não tivera tempo de arquitectar um crime conveniente.

Depois, como apesar dos elogios que a si mesmo fizera minutos antes a sua imaginação não estava nada fértil, repetiu:

— Que crime?...

— Sim, que crime? — disse o carcereiro.

— Adivinhai! — sugeriu Tiago. E acrescentou para si:

«Este engraçado deve saber mais de crimes do que eu; apresenta-me uma lista, e é só escolher.»

— Assassinastes alguém? — perguntou o carcereiro.

— Qual quê! Por quem me tomais?! — exclamou o estudante, cuja consciência se revoltava à ideia de passar por homicida.

— Então, roubastes? — prosseguiu o carcereiro.

— Roubar?! Essa é boa!...

— Mas então que diabo fizestes!? — exclamou o carcereiro, quase a chegar ao fim da paciência... — Não basta alguém dizer-se criminoso, é preciso indicar que crime cometeu!

— Mas, se eu vos afirmo que sou um miserável, um celerado... se vos afianço que mereço ir para o segredo...

— O crime! Dizei o crime! — voltou a repetir o carcereiro.

— O crime? Pois bem! Traí a amizade.

— Isso não é crime nenhum — disse o carcereiro. — Boas-tardes. E fechou o postigo.

— Ai não é crime?! não é crime?!... Então que é?...

E Tiago Aubry, voltando a empunhar a pesada aldraba com ambas as mãos, recomeçou a bater ainda com mais violência.

— Que é que temos ainda? — disse uma terceira voz do interior do Châtelet!

— É um doido que quer à viva força entrar para o Châtelet — disse o carcereiro.

— Então se é um doido, o seu lugar não é aqui, é no hospital.

— No hospital?! exclamou Tiago Aubry, fugindo a sete pés. — No hospital! Cos diabos! Isso não! O que quero é entrar no Châtelet. Os mendigos e os esfarrapados é que se metem no hospital, e não as pessoas que têm, como eu, trinta moedas na algibeira. Essa agora!... No hospital! Já viram carcereiro mais miserável para quem trair o amigo não é crime?... Com que então, para se ter a honra de ser admitido na cadeia é indispensável matar ou roubar, ahn!... Mas... agora me lembro, porque não teria eu seduzido qualquer rapariga?... Gervásia...

E apesar da sua inquietação o estudante desatou a rir à gargalhada.

— Ora pois! Afinal — disse ele — , não foi mas podia ter sido. Já está achado o crime para mim. Seduzi Gervásia.

E Tiago Aubry correu a casa da jovem, galgou os sessenta degraus que levavam ao seu modesto apartamento e, de um salto, surgiu no meio do quarto, onde a graciosa costureirinha, com o vestido em provocante desalinho, e o ferro na mão, passava a sua roupa branca.

— Ah! — exclamou Gervásia, soltando um lindo gritinho. — Ai que medo me metestes, Senhor!

— Gervásia, minha Gervásia querida! — exclamou Aubry avançando de braços abertos para a sua namorada. — É preciso que me salves a vida, meu amor!

— Um momento, um momento! — disse Gervásia servindo-se do ferro como de um escudo. — Que me quereis, Senhor vagabundo, que há três dias que se vos não põe a vista

em cima!

— Tens razão, Gervásia, sou um desgraçado. Mas a prova de que te amo é que, no meio da minha desgraça, me lembrei de ti para te pedir ajuda. Repito-te Gervásia, tens que me salvar a vida.

— Compreendo; embriagastes-vos em qualquer botequim e depois envolvestes-vos em desordem. Agora andam à vossa procura para vos meterem na cadeia, e a pobre da Gervásia é que tem de vos esconder da polícia. Ide para a prisão, Senhor, ide, e deixai-me tranquila.

— É justamente o que eu pretendo, minha pequenina Gervásia; o que eu quero é ir para a cadeia, mas aqueles miseráveis não me querem lá.

— Meu Deus! Tiago! — disse a jovem, com uma expressão terna e compassiva. — Estás doido?!...

— Também eles dizem que estou doido, e querem mandar-me para o hospital, quando no Châtelet é que eu preciso de entrar!

— Queres entrar no Châtelet? E para quê, Aubry? Não sabes que é uma prisão medonha e que se diz que quem lá entra uma vez nunca mais sai?...

— Mas eu preciso de lá entrar! Dê lá por onde der, preciso, e urgentemente! Não há outra maneira de o salvar...

— Salvar quem?

— Ascânio.

— Que Ascânio? Aquele belo jovem que é discípulo do vosso amigo Benvenuto?

— Esse mesmo, Gervásia. Está no Châtelet, imagina, e por culpa minha!...

— Deus do Céu!...

— De maneira que — disse Tiago — tenho de ir ter com ele e salvá-lo.

— E porque está no Châtelet?

— Porque amava a filha do preboste e seduziu-a.

— Pobre rapaz! E prendem por isso?

— Prendem. Gervásia. Compreendes, ele tinha-a escondida... vou eu e descubro tudo; e, como um imbecil e um miserável que sou, contei a toda a gente.

— Menos a mim! — exclamou Gervásia, picada. — Era de esperar.

— Então não te contei?!

— Nem uma palavra. Só para os outros é que tendes conversa. Quando cá vindes é só para me beijar, beber e dormir; para conversar, nunca. Pois ficai sabendo que uma mulher gosta de conversar.

— Então que estamos nós a fazer agora? — disse Tiago. — Na minha terra, isto é conversar.

— Sim, porque precisais de mim.

— Não nego que me podias fazer um grande jeito...

— E qual?

— Podias dizer que eu te tinha seduzido.

— E não seduziste, grande patife?!...

— Eu?! — exclamou Tiago Aubry espantado. — Eu, Gervásia?! Eu, seduzi-te?!...

— Pobre de mim! Seduzida, sim, é essa a palavra! Indignamente seduzida pelas vossas falinhas mansas, pelas vossas falsas promessas.

— Pelas minhas falas mansas, pelas minhas falsas promessas?!

— Com certeza. Torno-to a dizer.

— Então não dizíeis que, se eu vos não amasse a valer, morreríeis de amor?...

— Tens a certeza de que disse isso? Tem graça! não me recordo...

— Dissestes também que se eu vos amasse, então casaríeis comigo...

— Vós o dissestes.

— Nunca, Gervásia, nunca! Meu pai obrigou-me a fazer um juramento tal como Amílcar a Aníbal...

— Que juramento?

— Fez-me jurar que morreria solteiro, como ele.

— Oh! — exclamou a costureira, puxando, com facilidade muito feminina, as lágrimas em apoio das palavras. — Ora aqui está como são os homens! Fazer promessas a uma pobre rapariga nada lhes custa mas, depois de a seduzirem, já se não lembram de nada... Ah, mas também eu juro que foi esta a última vez que me deixei enganar!

— Fazes bem, Gervásia — disse o estudante.

— E pensarmos que se fizeram leis contra os gatunos, os bolsistas e os salteadores e não há qualquer castigo para os malvados que causam a perdição das raparigas.

— Mas há, Gervásia — disse Aubry.

— Há?...

— Evidentemente! pois não vês que mandam o pobre Ascânio para o Châtelet por ter seduzido Colomba?...

— E foi bem feito — disse Gervásia, a quem a perda da honra parecia ser muito mais sensível agora, que estava bem convencida de que nunca viria a casar com Aubry. — Sim, foi muito bem feito, e só queria que vos mandassem também para o Châtelet, como a ele.

— Valha-me Deus, é justamente o que eu mais desejo neste momento! e para isso conto contigo Gervásia...

— Contais comigo?

— Conto.

— Escarnecei, vá, ingrato!

— Juro-te que falo a sério. Ah, Gervásia... se tu tivesses a coragem de...

— De quê?

— De me acusar diante do juiz...

— Acusar de quê?

— De te ter seduzido... Ah, mas tu nunca serás capaz!...

— Quê?! Nunca serei capaz?!... — exclamou a jovem indignada — nunca serei capaz de dizer a verdade?!...

— Pensa só que tens que prestar juramento.

— Prestá-lo-ei.

— Quê?! Serás capaz de jurar que fui eu que te seduzi?!...

— Sou, sou, sou! Cem vezes, se for preciso!

— Então está tudo salvo — disse o estudante satisfeito. — Eu cá por mim teria receio; um juramento é uma coisa tão grave!...

— Era capaz de jurar neste mesmo instante só para que vos metessem no Châtelet!

— Óptimo!

— Encontrareis lá o vosso amigo Ascânio...

— É o meu maior desejo.

— Tereis tempo para fazerdes penitência.

— Não peço mais do que isso.

— Onde está o oficial da justiça?

— No Palácio da Justiça.

— Pois aí vou eu.

— Vamos os dois, Gervásia.

— Sim, os dois; assim o castigo será mais rápido.

— Aqui tens o meu braço, Gervásia — disse o estudante.

— Vamos, Senhor! — disse a costureira.

E os dois encaminharam-se para o Palácio da Justiça, tal qual como costumavam ir passear, aos domingos, para o Pré-aux-Clercs ou para a colina de Montmartre.

Contudo, à medida que se aproximavam do templo de Témis, como Tiago designava poeticamente o monumento em questão, Gervásia começou a retardar consideravelmente a marcha. Quando chegaram ao escritório, a jovem parecia subir com grande dificuldade os degraus; finalmente, mesmo à porta do oficial da justiça, não se aguentou nas pernas e o estudante viu-se obrigado a segurá-la à força de braços.

— Então, Gervásia? faltou-te a coragem?...

— Não — disse ela — , mas é que tive sempre muito medo dos oficiais da justiça.

— São homens como outros quaisquer!

— Sim, mas é que terei de contar-lhe certas coisas que...

— E então? Contá-las-ás.

— Será preciso jurar...

— Jurarás.

— Tiago — perguntou Gervásia — , estás bem certo de que me seduziste?

— Essa é boa! Então não mo repetias tu própria, ainda agora?...

— Bem sei... mas... é estranho; agora vejo as coisas de maneira diferente...

— Pronto! — exclamou Tiago consternado — é o que eu receava. Vejo que não és capaz.

— Tiago, meu amigo, leva-me outra vez para casa — pediu a jovem.

— Gervásia! Então, Gervásia!? Não foi isto o que me prometeste.

— Tiago, nunca mais te farei qualquer censura, nunca mais te falarei de nada destas coisas... Gostei de ti porque me agradavas, foi o que foi.

— Era isto! era isto o que eu temia! Mas agora é demasiado tarde.

— Tarde, porquê?!

— Vieste aqui para me acusar, e hás-de fazê-lo!

— Nunca, Tiago! Nunca! Tu não me seduziste, Tiago. Eu é que te provoquei.

— Está dito, pronto!

— E... além disso... — acrescentou a costureira baixando as pálpebras — só se pode ser seduzida uma vez...

— Que vez?...

— A primeira vez que amamos...

— E esta, ahn!... Tu que me tinhas feito acreditar que nunca tinhas amado ninguém antes de mim!

— Tiago, leva-me a casa.

— Ah, isso é que não levo! — exclamou Aubry tão exasperado com a recusa de Gervásia como com os motivos em que ela a apoiava. — Não! não, e não!

E bateu à porta do juiz.

— Que fizeste? — exclamou Gervásia.

— Bati! Bem viste.

— Entrai! — gritou uma voz nasalada.

— Não quero entrar — disse Gervásia, esforçando-se inutilmente por retirar o braço que o estudante segurava. — Não entro!

— Entrai! — repetia a voz, ainda mais fanhosa.

— Tiago... olha que eu grito!... — disse a costureira.

— Porque diabo não entrais?! — disse pela terceira vez a voz, mas agora mais próxima. Quase no mesmo instante, a porta abriu-se.

— Então que pretendeis? — perguntou um homem alto e magro, todo de preto, que fez tremer a rapariga da cabeça aos pés.

— É esta jovem — responde Aubry — que vem apresentar uma queixa contra um maroto que a seduziu.

E empurrou Gervásia para a horrível sala escura e suja que servia de vestíbulo do gabinete do oficial da justiça. No mesmo instante, como accionada por mola, fechou-se a porta.

Gervásia deixou escapar um pequeno grito de surpresa e de terror e foi sentar-se, ou melhor, deixar-se cair, num escabelo encostado à parede.

Quanto a Tiago Aubry, com medo que a jovem o chamasse ou corresse atrás dele, fugiu através de corredores apenas conhecidos pelos estudantes e pelos advogados, indo dar ao pátio da Santa Capela, donde seguiu tranquilamente até à Ponte de S. Miguel, por onde Gervásia tinha infalivelmente de passar.

Meia hora depois, surgia ela.

— Então? — pergunta Aubry correndo-lhe ao encontro — que tal?

— Obrigastes-me a dizer uma grande mentira — disse ela — mas tenho esperança de que Deus ma perdoe atendendo à boa intenção.

— Tomo a responsabilidade — disse Aubry. — Agora diz-me: como é, que a coisa correu?

— Sei lá! Estava tão envergonhada que mal me lembro do que se passou. O que sei é que o senhor oficial da justiça me fez um interrogatório, e que eu respondi, umas vezes que sim, e outras que não. O que desconfio é que nem sempre respondi como devia.

— Desgraçada! — exclamou Aubry — quando Deus quer, fostes para lá dizer que vós é que me seduzistes!...

— Não, lá isso não! — disse a costureira — creio que não fui tão estúpida como isso.

— Deste-lhe ao menos a minha morada, para que eles possam ir prender-me?...

— Dei — murmurou Gervásia.

— Então, bem — disse Aubry. — Esperemos agora, que Deus há-de fazer o resto.

E, depois de ter acompanhado a casa e consolado a rapariga da falsa deposição que fora obrigada a fazer, Tiago Aubry recolheu também à sua, cheio de fé na Providência divina.

Efectivamente, fosse a Providência, fosse o acaso, a verdade é que, na manhã seguinte, Tiago Aubry recebeu uma contrafé a mandá-lo comparecer diante do oficial da justiça.

Esta contrafé era, de momento, tudo o que Tiago mais ardentemente desejava, e, no entanto, tão respeitável coisa é a justiça, ao lê-la, um grande arrepio lhe percorreu todo o corpo. Mas apressemo-nos a dizer que a certeza de ver Ascânio e de poder salvar o amigo que traíra depressa extinguiram aquele sinal de fraqueza.

A contrafé mandava-o comparecer ao meio-dia, e eram apenas nove da manhã; resolveu ir ainda a casa de Gervásia. A jovem estava ainda mais agitada que na véspera.

— Então? — perguntou ela.

— Vê! — disse Aubry triunfante e mostrando o papel coberto de hieróglifos. — Vê!

— Para que horas?

— Para o meio-dia. Foi a única coisa que pude decifrar.

— Nesse caso não sabeis de que sois acusado...

— Que pergunta! De te ter seduzido, minha pequenina Gervásia.

— Não vos esqueça que mo exigistes!

— Estou pronto a declarar por escrito que tu te recusavas insistentemente a fazer a acusação.

— Portanto, nunca me haveis de querer mal por vos ter obedecido, não?

— Pelo contrário, ficar-te-ei sempre muitíssimo grato.

— Aconteça o que acontecer?

— Aconteça o que acontecer.

— Sim, porque se eu disse tudo aquilo foi só porque me obrigastes.

— Decerto.

— : E se, na aflição em que estava, eu tivesse dito mais do que devia... também mo perdoais?...

— Perdoo-te tudo, minha querida, minha divina Gervásia!

— Ai! — disse Gervásia suspirando — grande patife, foi exactamente assim que me desgraçaste!

Como se vê, decididamente Gervásia tinha sido seduzida.

Faltava apenas um quarto para o meio-dia quando Tiago se lembrou subitamente de que estava citado para as doze. Despediu-se carinhosamente de Gervásia e, como o caminho era longo, desatou a correr. Soavam as doze badaladas quando Aubry bateu à porta do oficial da justiça.

— Entrai! — gritou a mesma voz nasalada.

Desta vez, o convite não teve de ser repetido. Com o sorriso nos lábios, o nariz curioso e o gorro sobre a orelha, Tiago entrou na sala do alto cavalheiro de preto.

— Como vos chamais? — perguntou este.

— Tiago Aubry — respondeu o estudante.

— Que sois?

— Estudante.

— Que fazeis?

— Seduzo raparigas.

— Ah, então foi com certeza contra vós que ontem me apresentaram queixa. Foi... foi...

— Gervásia Perret Popinot.

— Está bem. Sentai-vos ali e esperai a vossa vez.

Cinco ou seis pessoas, de rosto, idade e sexos diferentes, esperavam já na sala e, naturalmente, como tinham chegado primeiro, foram primeiro interrogadas. Depois do interrogatório, algumas saíam sós, ao passo que outras saíam na companhia de um ou dois guardas do prebostado. A sorte das últimas era o que Aubry ambicionava, pois não ignorava que eram imediatamente conduzidas ao Châtelet.

Por fim, foi chamado o estudante.

Tiago Aubry levantou-se de um salto e correu para o gabinete do meirinho com o entusiasmo de quem vai para uma festa.

Havia dois homens no gabinete do oficial de diligências. Um, ainda mais alto, mais sombrio e mais seco que o da sala de espera, o que cinco minutos antes teria parecido impossível a Aubry, era o escrivão. O outro, gordo, pequeno, redondo, de olhar alegre, boca sorridente e fisionomia jovial, era o meirinho.

O sorriso de Aubry cruzou-se com o deste último, e o estudante sentiu tanta simpatia pelo oficial de justiça que lhe apeteceu ir estreitar-lhe a mão.

— Eh, eh, eh!... — riu o meirinho, olhando o estudante.

— Muito bem disposto estais, Senhor — disse o estudante, rindo também.

— Mas que pândego!... — retorquiu o beleguim — Puxai uma cadeira e sentai-vos. Tiago Aubry obedeceu e sentou-se, cruzando a perna e bamboleando-se na melhor das disposições.

— Ora vamos cá a isto — disse o meirinho esfregando as mãos. — Senhor escrivão, deixe ver daí o depoimento da queixosa.

O escrivão levantou-se e, graças à sua espantosa estatura, bastou-lhe erguer-se sobre a secretária para atingir o outro lado e retirar dum montão de papéis o processo de Tiago Aubry.

— Aqui está — disse o escrivão.

— Ora vejamos. Quem é a queixosa? — perguntou o oficial de diligências.

— Gervásia Perret Popinot.

— É isso — disse o estudante basculando a cabeça - — , é isso mesmo.

— Menor — disse o escrivão — menor de dezanove anos.

— Oh... Oh! Menor!... — exclamou Aubry.

— Pelo menos é o que se colige das suas declarações...

«Pobre Gervásia! — murmurou Aubry. — Razão tinha ela de dizer que estava tão perturbada que nem soube o que respondeu. A mim confessou ela que tinha vinte e dois anos... Mas, não importa, deixá-la lá passar por mais nova.»

— Com que então, meu grande pândego — disse o meirinho — , sois acusado de ter seduzido uma menor! Eh, eh, eh!

— Eh, eh, eh! — fez por sua vez Aubry, partilhando da hilaridade do juiz.

— Com agravantes — interrompeu o escrivão, juntando o seu timbre esganiçado às vozes joviais do magistrado e do estudante.

— Com agravantes!? — repetiu o juiz.

— Diabo! — exclamou Tiago Aubry — gostava bem de conhecer essas agravantes...

— Como a queixosa durante seis meses permaneceu insensível a todos os pedidos, todas as seduções do acusado...

— Seis meses? — tomou Tiago — perdão, senhor escrivão, mas creio que deve haver engano...

— Seis meses, Senhor, está escrito! — prosseguiu o homem de negro, em tom que não admitia réplicas.

— Pois que sejam lá os seis meses — disse Aubry — «mas que perturbada devia estar realmente!...»

— O dito Tiago, exasperado com a sua indiferença, ameaçou-a...

— Oh... Oh! — exclamou Tiago.

— Oh... Oh! — repetiu o juiz.

— Mas — continuou o escrivão — , a dita Gervásia Perret Popinot mostrou-se tão corajosamente inabalável, que o audacioso pediu perdão, dizendo-se arrependido das suas más tenções.

— Ah... Ah! — murmurou Aubry.

— Ah Ah! — exclamou o oficial de diligências.

«Pobre Gervásia! — recomeçou o estudante, falando consigo mesmo e sacudindo os ombros. — Onde teria ela a cabeça!»

— Mas — prosseguiu o escrivão — aquele arrependimento era só fingido. Infelizmente, porém, a queixosa, na sua inocência e candura, acreditou nele; e uma noite, em que teve a imprudência de aceitar um convite do acusado para jantarem juntos, o dito Tiago Aubry dissolveu na sua água...

— Na sua água?! — interrompeu o estudante.

— A queixosa declarou que nunca bebe vinho — prosseguiu o escrivão. — O dito Tiago Aubry dissolveu na sua água uma substância etilizante.

— Olhai lá, senhor escrivão — exclamou o académico — , que diabo estais para aí a ler!?

— O depoimento da queixosa.

— Impossível! — disse Tiago.

— Está escrito? — perguntou o meirinho.

— Está escrito — respondeu o escrivão.

— Continuai.

«Que importa? — disse Tiago Aubry para consigo — quanto mais culpado, tanto mais seguramente me mandarão para ao pé de Ascânio. Deixemos também passar mais isto da droga.» Prossegui, senhor escrivão.

— Então, confessais? — perguntou o juiz.

— Confesso — disse o estudante.

— Ah, grande patife! — exclamou o meirinho, desatando a rir e a esfregar as mãos.

— De maneira que — continuou o escrivão — , a pobre Gervásia, obscurecida a sua razão, acabou por confessar ao sedutor que o amava.

— Ah! — disse Tiago.

— Ditoso patife! — murmurou o oficial de diligências, com os olhos minúsculos a brilhar.

— Mas... mas... — exclamou Aubry — nada disso é verdade!

— Negais?

— Absolutamente.

— Escrevei — disse o meirinho — , escrevei que o acusado rejeita todas as acusações que lhe são imputadas.

— Esperai! Esperai! — exclamou o estudante, lembrando-se de que, se negasse a sua culpabilidade, não seria mandado para a cadeia.

— Então negais apenas parcialmente? — perguntou o juiz.

— Confesso que há algo de verdade nisso... não na forma mas na essência.

— Oh, uma vez que confessastes ter-lhe dado a beber o líquido perturbante — disse o juiz — bem podeis confessar também o que se lhe seguiu.

— De facto — prosseguiu Tiago — , uma vez que confessei isso do líquido perturbante, bem posso confessar, senhor escrivão... confesso... Mas, a falar verdade — continuou em voz baixa — , razão tinha Gervásia para me dizer que...

— Mas é que ainda não é tudo... — interrompeu o escrivão.

— Como não é tudo?!...

— O crime do acusado para com a ofendida Gervásia teve consequências terríveis. A desditosa rapariga apercebeu-se de que ia ser mãe.

— Ah! Desta vez... — exclamou Aubry — desta vez é de mais!

— Negais a paternidade? — perguntou o juiz.

— Nego não só a paternidade mas até a gravidez.

— Escrevei — disse o juiz — que, tendo o acusado negado não só a paternidade mas até a gravidez, será feita uma investigação a esse respeito.

— Um instante, um instante! — exclamou Aubry, compreendendo que, se se provasse que Gervásia tinha mentido num único ponto, todo o resto se desmoronaria. — Um instante! Foi Gervásia quem afirmou o que o senhor escrivão acaba de vos comunicar?

— Textualmente! — respondeu o escrivão.

— Então... se ela o disse... — continuou Aubry — se ela o disse... então...

— Então?... — perguntou o oficial de diligências.

— Então, deve ser certo.

— Escrevei que o acusado se reconhece culpado de todas as acusações. O escrivão escreveu.

«Justos Céus! — dizia para consigo o estudante — se Ascânio merecer oito dias de Châte-let por ter apenas requestado Colomba, eu, que enganei Gervásia, que a embriaguei e seduzi, posso contar, pelo menos, com três meses de cárcere. E Gervásia, depois de tudo isto, com ar de mártir!... Sim: Joana d'Arc terá de se apagar ao pé dela!»

— Nesse caso — interrompeu o juiz — confessais todos os crimes de que vos acusam?...

— Confesso, Senhor — respondeu Tiago sem hesitar — , confesso. Esses e todos os outros que queirais. Sou um grande malvado, senhor oficial de diligências; não me poupeis.

— Anda lá, grande maroto! — murmurou o juiz naquele tom em que um tio de comédia fala a seu sobrinho. — Grande maroto!

Inclinando então a sua grande cabeça redonda, vermelha e entumescida, sobre o peito, o oficial de justiça pareceu reflectir profundamente durante alguns minutos, findos os quais, reerguendo a cabeça e levantando o indicador direito, disse:

— Em vista de... escrevei, senhor escrivão — em vista de o mencionado Tiago Aubry, estudante da Universidade, ter declarado haver seduzido a jovem Gervásia Perret Popinot com belas promessas e falsos protestos de amor, condenamos o dito Tiago Aubry a vinte soldos de multa, a tomar conta da criança, se esta for do sexo masculino, e ao pagamento das custas.

— E a prisão? — exclamou Aubry.

— Qual prisão?! — perguntou o juiz.

— Mas... a prisão, que dúvida!... Então não me condenais a prisão?!

— Não.

— Não pensais mandar-me conduzir ao Châtelet, como fizeram a Ascânio?...

— Quem é Ascânio?

— Ascânio é um discípulo de mestre Benvenuto Cellini.

— E que fez ele?

— Seduziu uma jovem.

— Que jovem?

— A Senhorinha Colomba d'Estourville, filha do preboste de Paris.

— E então?

— Então digo que isto não passa de uma grande injustiça, pois que ambos cometemos o mesmo crime e, afinal, dão-nos castigos diferentes! Pois quê?! A ele mandai-lo para a prisão e a mim obrigais-me a pagar uma multa de vinte soldos?! Mas então já não há justiça neste mundo!?...

— Pelo contrário — respondeu o juiz — , é precisamente porque há uma justiça bem entendida que isso se decidiu desse modo.

— Que dizeis?!

— Que há honra e honra, meu jovem pândego. A honra de uma fidalga equivale à prisão, mas a de uma costureira custa apenas vinte soldos. Se tínheis tanta vontade de ir para o Châtelet, porque não procurastes antes uma duquesa?

— Mas isso é horrível!... Imoral! Abominável! — exclamou o estudante.

— Meu caro amigo — disse o juiz — , pagai a vossa multa e ide-vos embora. : — Não pagarei a multa nem me vou embora.

— Nesse caso, vou chamar dois archeiros que vos acompanharão à cadeia; ficareis ali até pagardes.

— É só o que peço.

O juiz chamou dois guardas.

— Conduzam este pândego a Grands-Carmes.

— A Grands-Carmes? — exclamou Aubry — e porque não há-de ser ao Châtelet?

— Porque para o Châtelet não vai ninguém por dívidas, percebeis? Porque o Châtelet é fortaleza real, e é preciso ter cometido um grande crime para lá entrar. Queríeis então ir nada menos que para o Châtelet, meu pandegozinho?...

— Um momento, um momento! — disse Tiago Aubry — um momento.

— Que há ainda?

— É que se não é para o Châtelet que me levam, então prefiro pagar a multa.

— Ah, se pagais, pronto, não há mais nada a dizer. Senhores guardas, podeis ir-vos, este jovem deseja pagar.

Os dois archeiros saíram e Tiago Aubry tirou da sua escarcela vinte soldos, que alinhou em cima da secretária do juiz.

— Vede se está certo — disse o oficial de diligências.

O escrivão levantou-se então e, para dar cumprimento à ordem recebida, arqueou-se em abóbada por sobre a mesa e os papéis que nela estavam, com aquele privilégio insólito que possuía o seu corpo de se alongar indefinidamente. Assim postado, com os pés no chão e as mãos sobre a secretária do juiz, tinha qualquer coisa de um tenebroso arco-íris.

— Está certo — disse ele.

— Então ide-vos, meu pândego — disse o oficial de diligências — , dai lugar a outros que a justiça tem mais de que se ocupar que de vós.

Tiago Aubry compreendeu que não havia nada a fazer e retirou desesperado.

 

         ONDE TIAGO AUBRY GANHA PROPORÇÕES ÉPICAS

«Ah! Esta é de primeiríssima ordem! — dizia para consigo o estudante, ao deixar o Palácio da Justiça e ao seguir maquinalmente pela Ponte dos Moinhos, que ia terminar quase em frente ao Châtelet. — Ah, esta é de primeira!... Ainda quero ver a cara da Gervásia quando souber que a sua honra foi avaliada apenas em vinte soldos! Tenho a certeza que vai dizer que fui indiscreto, que fiz revelações que não devia, e quererá arrancar-me os olhos da cara. Mas... quem vejo eu além!...»

Quem o estudante via era nem mais nem menos que o pajem daquele fidalgo tão amável a quem se habituara a confiar os seus segredos, e que considerava como o mais entranhado dos seus amigos. O jovem havia-se encostado ao parapeito da ponte e entretinha-se a fazer malabarismos com seixos.

«Ah! Graças a Deus!... — exclamou o estudante — não podia vir mais a propósito. O meu amigo, cujo nome ignoro mas que me parece estar muito bem cotado na corte, deve ter influência suficiente para me mandar para a cadeia. É a Providência que me envia o seu pajem para me dizer onde posso encontrá-lo, já que nem lhe sei o nome nem a morada.»

E, para se aproveitar do que considerava uma oferta da Providência, Tiago Aubry avançou em direcção ao pajem que, reconhecendo-o por sua vez, deixou que os três seixos se lhe imobilizassem sucessivamente na mesma mão, cruzou a perna direita sobre a esquerda e aguardou o estudante com aquele ar escarninho tão característico da corporação a que tinha a dita de pertencer.

— Boas-tardes, senhor pajem — exclamou Aubry logo que lhe pareceu que já seria ouvido.

— Boas-tardes, estudante — respondeu o jovem. — Que fazeis por este bairro?

— Se quereis que vos diga a verdade, procurava alguma coisa que já não me faz falta pois que vos encontrei. Procurava a morada do meu excelente amigo, o conde de... o barão de... o visconde de... enfim: a morada de vosso mestre.

— Desejais então avistar-vos com ele?... — perguntou o pajem.

— Neste instante, se possível.

— Andais com sorte, pois está agora em casa do preboste.

— No Châtelet?

— Sim, e deve estar a sair.

— É bem feliz por poder entrar no Châtelet quando lhe apetece! Mas, está assim tão bem relacionado com o preboste, o meu amigo visconde de... conde de... barão de...?

— Visconde.

— O meu amigo visconde de... de... dizei-me, vá — continuou Aubry, desejando aproveitar-se da ocasião para conhecer finalmente o nome do seu amigo. — Visconde de...?

— Visconde de Mar...

— Ah! — exclamou o estudante, vendo aparecer à porta do Châtelet aquele por quem esperava, e sem deixar acabar o pajem. — Ah, caro visconde, eis-vos finalmente! Tenho andado à vossa procura, mas acabei por encontrar-vos.

— Boa tarde! — disse Marmagne evidentemente contrariado com o encontro. — Boa tarde, meu caro. Bem gostaria de conversar convosco, mas infelizmente estou cheio de pressa. Por isso... adeus.

— Um instante, um instante! — exclamou Tiago Aubry, agarrando-se ao braço do seu interlocutor. — Um instante, que diabo! não podeis ir-vos assim! Primeiro tenho a pedir-vos um imenso favor...

— Vós?

— Sim, eu. E bem sabeis que a lei do Céu diz que os amigos se devem ajudar.

— Amigos?!...

— Decerto! Não sois vós meu amigo?... Que é que faz a amizade? Não é a confiança?... Ora, que maior confiança pode haver que a que tenho em vós?... Não vos conto todos os meus segredos, e até os dos outros?...

— E já tivestes de vos arrepender disso?

— Nunca pelo menos em relação a vós. Mas, em relação a outras pessoas, já assim não acontece. Há um homem em Paris que eu dava tudo para encontrar e ainda um dia, com a ajuda de Deus, me há-de vir cair às mãos.

— Meu caro — interrompeu Marmagne, julgando saber quem era aquele homem de que falava Aubry — , como já vos disse, estou cheio de pressa...

— Mas esperai um pouco, pois já vos disse que me podíeis prestar um serviço...

— Então falai depressa.

— Estais bem visto na corte, não é verdade?...

— Meus amigos o dizem...

— Tendes lá algum poder, portanto?...

— Os meus inimigos não o ignoram...

— Pois bem! Meu caro conde... meu caro barão... meu caro...

— Visconde.

— Fazei que eu entre para o Châtelet.

— E a que título?

— A título de preso, muito simplesmente.

— A título de preso?! Singular ambição a vossa!...

— Que quereis, é o meu maior desejo...

— E qual é o vosso objectivo, uma vez dentro do Châtelet? — perguntou Marmagne, que começava a desconfiar que a pretensão do estudante escondia qualquer novo segredo de que podia vir a tirar proveito.

— A outro que não fôsseis vós, não o revelaria, meu bom amigo, pois aprendi à minha custa, ou antes, à custa de Ascânio, que há que saber calar. Mas convosco é diferente! Sabeis bem que para vós não tenho segredos.

— Nesse caso dizei depressa.

— E se eu disser, far-me-eis entrar no Châtelet?...

— Neste mesmo instante.

— Pois bem, meu amigo. Sabei apenas que tive a imprudência de revelar a outras pessoas, além de vós, que tinha visto uma encantadora jovem na cabeça do deus Marte...

— E daí?

— Os cabeças doidas! Pois não andaram para aí a propalar a história a torto e a direito, até que ela foi parar às orelhas do preboste!... Ora, como a filha lhe tinha desaparecido alguns dias antes, o preboste pensou logo que era ela que tinha escolhido tal esconderijo. Preveniu o duque d'Orbec e a duquesa d'Étampes, e foram todos fazer uma busca domiciliária no Palácio de Nesle enquanto Benvenuto Cellini estava em Fontainebleau. Levaram Colomba e prenderam Ascânio.

— Ora!...

— É como vos digo, meu caro. E sabeis quem dirigiu tudo isto? Um certo visconde de Marmagne.

— Mas... — interrompeu o visconde, a quem não agradava ver o seu nome pronunciado constantemente pelo estudante — mas ainda me não dissestes que necessidade tendes de entrar no Châtelet...

— Não compreendeis?

— Não.

— É que eles prenderam Ascânio...

— Bem sei.

— Mandaram-no para Châtelet...

— E então?

— O que eles não sabem, o que ninguém sabe, além da duquesa d'Étampes, Benvenuto e eu, é que Ascânio está de posse de uma certa carta que pode causar a perdição da duquesa. Compreendeis agora?

— Começo a compreender... Mas ajudai-me, meu amigo.

— Compreendeis, visconde — prosseguiu Aubry, aristocratizando-se cada vez mais — preciso de penetrar no Châtelet, chegar até junto de Ascânio, apoderar-me da carta, ou do seu segredo, sair da prisão, ir encontrar-me com Benvenuto e combinar com ele algum processo para fazer triunfar a virtude de Colomba, o amor de Ascânio; para grande confusão dos Marmagnes, dos d'Orbecs, do preboste, da duquesa d'Etampes e de toda aquela malta.

— É muito engenhoso — disse Marmagne. — Agradeço a vossa confiança, meu caro estudante. Não tereis de vos arrepender.

— Prometeis-me então a vossa protecção?

— Para quê?

— Ora essa! Para me fazerdes entrar no Châtelet, como vos pedi.

— Contai com isso.

— Agora mesmo?

— Esperai aí!

— Onde estou?

— Aí mesmo.

— E onde ides?

— Buscar-vos a ordem de prisão.

— Ah, meu amigo, meu caro barão... meu caro conde!... Mas, olhai cá, não seria melhor dardes-me o vosso nome e a vossa morada, para caso de vir a a precisar de vós?...

— É inútil, volto já.

— Sim, voltai depressa; e se no vosso caminho deparardes com esse maldito Marmagne, dizei-lhe...

— O quê? — perguntou o visconde.

— Dizei-lhe que fiz um juramento. '

— Qual?

— De que me há-de morrer às mãos.

— Adeus — exclamou o visconde — , adeus! esperai-me aí.

— Até já — disse Aubry — , fico à vossa espera. Ah! Sois um verdadeiro amigo, um homem em quem a gente pode confiar. Só queria saber...

— Adeus, senhor estudante — disse o pajem, que se mantivera fora da conversa e se preparava para acompanhar o amo.

— Adeus, gentil pajem — respondeu Aubry — mas antes de vos irdes prestai-me um serviço.

— Qual?

— Quem é este nobre senhor a quem tendes a honra de pertencer?

— Este, com quem acabais de conversar por mais de um quarto de hora?

— Esse mesmo.

— Esse a quem chamais vosso amigo?

— Sim.

— Não sabeis como se chama?

— Não.

— Mas é...

— Um fidalgo muito conhecido, não é?

— Decerto.

— Influente?

— Depois do rei e da rainha, é ele quem tudo pode.

— Ah!... E então dizeis que se chama...?

— Chama-se visconde... mas olhai que já se volta e me está a chamar. Desculpai...

— Visconde de...

— Visconde de Marmagne.

— Marmagne?! — exclamou Aubry — o visconde de Marmagne?! Aquele jovem fidalgo é o visconde de Marmagne?!...

— Ele próprio.

— Marmagne! o amigo do preboste, de d'Orbec, da Sr.a d'Etampes?!

— Em pessoa.

— E o inimigo de Benvenuto Cellini?...

— Precisamente.

— Ah! — exclamou Aubry, vendo todo o passado como ao clarão de um relâmpago... — Ah! Agora percebo!... Ah! Marmagne, Marmagne!...

Então, vendo-se sem armas, o estudante, por um movimento rapidíssimo, apoderou-se do espadim que o pajem trazia à cintura e lançou-se em perseguição de Marmagne, gritando:

— Pára aí!

Ao primeiro brado, Marmagne, inquieto, voltara-se e vira Aubry correr para ele de espada em punho. Percebeu imediatamente que fora, enfim, descoberto. Só tinha dois caminhos a seguir: a fuga ou a espada. Ora Marmagne não sentia coragem bastante para esperar, mas também não se sentia suficientemente cobarde para fugir. Escolheu uma alternativa inesperada e intermédia, que foi atirar-se para dentro de uma porta que encontrou aberta, esperando poder fechá-la por dentro. Mas, infelizmente para Marmagne, a porta estava presa por um cadeado que não pôde soltar, de maneira que Aubry entrou no pátio antes de ele ter tido tempo de alcançar a escada.

— Ah! Marmagne, visconde danado! Espião maldito! Salteador de segredos! Ah! És tu! Conheço-te finalmente, e estás-me nas mãos! Em guarda, miserável! em guarda!

— Senhor — respondeu Marmagne, tentando impressioná-lo com o tom de grande fidalgo — , imaginais que o visconde de Marmagne dará ao estudante Tiago Aubry a honra de cruzar espadas com ele?!...

— Se o visconde de Marmagne não dá a Tiago Aubry a honra de cruzar espadas com ele, Tiago Aubry terá a honra de enfiar a sua espada no corpo do visconde de Marmagne!

E para tirar todas as dúvidas à pessoa a quem dirigia esta ameaça, Tiago Aubry encostou a ponta da espada ao peito do visconde e, através do acolchoado do gibão, fez-lhe sentir levemente o ferro.

— Assassinos! — gritou Marmagne. — Acudam! Socorro!

— Oh! Grita quanto quiseres — disse Tiago. — Terás deixado de gritar antes que alguém chegue. Portanto, o que de melhor tens a fazer, visconde, é defenderes-te. Em guarda, pois, visconde! Em guarda!

— Pois se assim o queres, espera que já vais ver! — exclamou o visconde.

Como os nossos leitores certamente já observaram, Marmagne não era o que se pode chamar um bravo. Mas, como qualquer outro fidalgo daquela época cavalheiresca, tinha recebido uma educação militar. Passava mesmo por ter muita habilidade para a esgrima. É certo que também se dizia que esta reputação lhe servia geralmente mais para evitar duelos do que para sair vencedor daqueles a que não podia fugir. Seja como for, a verdade é que Marmagne, ao ver-se tão assediado por Aubry, puxou pela espada e pôs-se imediatamente em guarda, segundo todas as regras da arte da esgrima.

Mas se Marmagne era conhecido pela sua habilidade entre os fidalgos da corte, todos os estudantes reconheciam em Tiago Aubry um incontestável talento para a esgrima. Daqui resultou que, logo ao primeiro passe, os dois adversários perceberam a sua força. Marmagne, porém, com uma espada seis polegadas mais longa que a de Aubry, isto é, a do pajem, tinha uma grande vantagem sobre o estudante, que ficava, assim, inferiorizado para o ataque.

Para manter Aubry constantemente a distância, bastava ao visconde apontar-lhe a sua espada à cara. O estudante bem tentava atacar, fazia fintas, dobrava-se; mas Marmagne, sem mesmo ter necessidade de recuar, bastava-lhe reunir o pé direito ao esquerdo e já estava fora do alcance do espadachim. Por isso, também já duas vezes a longa espada do visconde tinha aflorado o peito de Tiago, enquanto que este, mesmo empenhando-se a fundo, ainda não tinha furado senão o ar. Aubry percebeu que se continuasse daquela maneira estaria perdido e, para que o adversário não suspeitasse da ideia que acabava de lhe ocorrer, continuou a atacá-lo e a defender-se com os passes e as fintas habituais, ganhando insensivelmente polegada a polegada algum terreno. Quando julgou estar bastante perto do visconde, expôs-se de repente, como que por inépcia. Marmagne, vendo o adversário descoberto, lançou-se a fundo; mas Aubry, que já o esperava, esquivou-se facilmente e voltou à primeira posição; depois, vendo que a espada do adversário lhe passava duas polegadas acima da sua cabeça, saltou a fundo, tão hábil e vigorosamente, que o espadim do pajem desapareceu até ao punho no peito do visconde.

Marmagne soltou um daqueles gritos agudos que revelam logo a gravidade de uma estocada; depois, baixando a mão, empalideceu, deixou cair a espada e tombou de bruços no pavimento.

Precisamente naquele momento, chegava uma patrulha da ronda, atraída pelos gritos de Marmagne, pelas indicações do pajem e pela vista da multidão que se apinhava junto à porta. Como Aubry conservava ainda na mão o espadim ensanguentado, prenderam-no imediatamente.

A princípio Tiago ainda quis oferecer alguma resistência mas, ao ouvir o chefe da patrulha gritar: «Desarmem esse patife e levem-no já para o Châtelet», entregou imediatamente a arma e seguiu docilmente os guardas até à prisão tão ambicionada. Durante o caminho ia admirando os desígnios da Providência, que assim lhe concedia, ao mesmo tempo, as duas coisas que mais vivamente almejava: vingar-se de Marmagne e aproximar-se de Ascânio.

Desta vez ninguém lhe pôs a menor dificuldade em o receber na fortaleza real. Apenas como, de momento, o Châtelet regurgitava de locatários, levantou-se uma longa discussão entre o carcereiro e o inspector da prisão; por fim, estas duas veneráveis personagens pareceram chegar a um acordo, em virtude do qual o carcereiro acenou a Aubry para que o seguisse, fê-lo descer trinta e dois degraus, abriu uma porta e empurrou-o para uma negra enxovia que fechou logo em seguida.

 

         DAS DIFICULDADES QUE UM HONESTO CIDADÃO ENCONTRA PARA SAIR DA CADEIA

Por instantes, Aubry ficou atordoado com aquela súbita passagem da luz para a mais completa escuridão. Onde estava, não sabia.

Achar-se-ia longe ou perto de Ascânio? Ignorava-o. No corredor que acabava de atravessar divisara apenas duas portas além da sua. Mas o seu grande objectivo fora alcançado; encontrava-se debaixo do mesmo tecto que cobria o seu amigo.

Como não podia permanecer indefinidamente no mesmo ponto, e como na outra extremidade da masmorra, isto é, a cerca de quinze passos, se notava uma pálida claridade, filtrada através de clarabóia ou coisa parecida, avançou cautelosamente um pé na direcção da luz mas, ao segundo passo, faltou-lhe o pavimento e desceu de roldão três ou quatro degraus; iria certamente embater na parede com toda a violência, quando os seus pés foram embargados por um obstáculo que logo o fez tropeçar. É claro que o nosso estudante ficou bastante confuso.

O obstáculo que involuntariamente salvara Aubry de rachar a cabeça de encontro à parede soltou um profundo suspiro.

— Perdoai — disse Tiago, pondo-se logo em pé e tirando delicadamente o barrete. — Perdoai, pois creio que vos pisei, inconveniência que jamais teria cometido se se visse alguma coisa aqui.

— Pisastes — disse uma voz — o que durante sessenta anos foi um homem, mas que em breve se vai tornar um cadáver para toda a eternidade.

— Nesse caso — disse Tiago — , só é maior o meu pesar por vos ter incomodado num momento em que, como bom cristão, devíeis estar a ordenar as vossas contas com Deus.

— As minhas contas estão em ordem, senhor estudante. Pequei como um homem, mas sofri como um mártir; espero que Deus, ao pesar as minhas culpas e os meus sofrimentos, achará a soma destes muito superior à daquelas.

— Assim seja — disse Aubry — , é isso o que do coração vos desejo. Mas, se isto vos não fadiga demasiado, meu caro companheiro — e digo «meu caro» pois pressinto que me não guardais rancor pelo pequeno acidente a que devo, afinal, ter-vos conhecido — , se isto vos não fadiga muito, dizia eu, explicai-me como pudestes conhecer que eu sou estudante.

— Conheci-o pelo vosso traje, e principalmente pelo tinteirinho que trazeis pendente da cintura, no lugar onde um fidalgo traz habitualmente o seu punhal.

— Conheceste-lo pelo meu traje e pelo tinteiro?! Essa agora! E não me dizíeis há momentos que vos estáveis finando?

— Penso, de facto, ter chegado finalmente ao termo dos meus males. Sim, espero adormecer hoje na Terra para despertar amanhã no Céu.

— Pela minha parte, não vejo qualquer objecção — respondeu Tiago. — Mas, falando-vos com franqueza, permiti que vos faça notar que a situação em que vos encontrais não costuma inspirar gracejos a quem nela se vê.

— E quem vos disse que eu gracejava? — murmurou o moribundo soltando novo e profundo suspiro.

— Pois quê?! Não dissestes que me tínheis reconhecido pelo meu traje e pelo tinteiro que uso à cinta?... Pois, por mais que olhe não consigo ver sequer uma das minhas mãos!

— É possível — respondeu o prisioneiro — , mas quando tiverdes permanecido, como eu, quinze anos nesta enxovia, os vossos olhos enxergarão nas trevas tão bem como dantes viam em plena luz do dia.

— Pois que mos arranque o Diabo antes que tal suceda! — exclamou o estudante. — Quinze anos!... permanecestes quinze anos aqui nesta prisão?!...

— Quinze ou dezasseis, não sei... talvez mais. Já deixei há muito de contar os dias e de medir o tempo.

— Mas cometestes algum crime abominável para terdes sido tão impiedosamente castigado? — perguntou o estudante.

— Estou inocente — respondeu o prisioneiro.

— Inocente?! — exclamou Tiago com terror. — Lá isso agora!... Disse e torno a dizer-vos, caro companheiro, que me não parece ocasião para gracejos.

— E eu já vos disse e repito que não gracejo.

— Mas então mentir ainda é pior; o gracejo não passa de um jogo de espírito que não ofende o Céu nem a Terra, enquanto que a mentira é um pecado mortal que compromete a salvação da alma.

— Nunca menti.

— Estais inocente e passastes quinze anos nesta prisão!...

— Cerca de quinze anos, já vo-lo disse.

— Essa agora!... — exclamou Tiago — e eu que também estou inocente!

— Que Deus vos proteja, então — disse o moribundo.

— Deus me proteja? porquê?

— Deus vos proteja, sim, porque o culpado ainda pode ter esperança de perdão, o inocente nunca!

— É profundo o que acabais de dizer, meu amigo, mas muito pouco tranquilizador.

— Disse apenas a verdade.

— Mas, enfim — continuou Tiago — , deveis ter qualquer pequena coisa a pesar-vos na consciência; aqui entre nós, que ninguém nos ouve, podeis falar.

E Tiago, que efectivamente começava a divisar os objectos na escuridão, pegou num escabelo e, escolhendo um ângulo da parede junto ao catre do moribundo, foi aí colocá-lo, sentando-se o mais confortavelmente que lhe foi possível.

— Ah! Não quereis falar, meu amigo, não confiais em mim! Compreendo-vos, quinze anos nesta horrível masmorra devem ter-vos tornado desconfiado. Pois bem! Chamo-me Tiago Aubry, tenho vinte e dois anos, sou estudante, como notastes. Tinha uns certos motivos, que só a mim interessam, para querer que me metessem no Châtelet. E cá estou há dez minutos, e tive a honra de vos conhecer. Aqui tendes toda a minha vida; agora, que me conheceis tão bem como eu próprio, é a vossa vez de falar; escuto-vos, meu caro companheiro.

— Pois eu — disse o moribundo — sou Êtienne Raymond.

— Étienne Raymond... — murmurou o estudante — não conheço.

— Em primeiro lugar — disse o que acabava de se dar a conhecer — , éreis apenas uma criança quando aprouve a Deus fazer-me desaparecer da superfície da Terra; em segundo lugar, a minha vida era tão silenciosa que ninguém notou o meu desaparecimento.

— Mas quem éreis, enfim? Que fazíeis?

— Era o homem de confiança do condestável de Bourbon.

— Oh... Oh! E, como ele, traístes o Estado... Agora já não me admira.

— Não. Recusei apenas trair meu amo; é tudo.

— Ora vejamos. Como se passou isso?

— Eu vivia em Paris, em casa do condestável, enquanto este morava no seu castelo de Bourbon — LArchambault. Um dia, vejo vir o capitão da sua guarda com uma carta do condestável para mim. Naquela carta ordenava-me que entregasse imediatamente ao portador um pequeno pacote lacrado que encontraria nos aposentos do duque, no fundo de um armário, junto à cabeceira do leito. Conduzi o capitão ao quarto, aproximei-me do armário e abri-o. O pacote lá estava no lugar indicado; entreguei-o ao mensageiro, que logo se fez de novo ao caminho. Uma hora depois, vieram do Louvre alguns soldados, comandados por um oficial, e ordenaram-me, por sua vez, que os levasse aos aposentos do duque, onde foram direitos ao armário próximo à cabeceira do leito. Abriram, mas foi em vão que procuraram o que queriam; o pacote já ia longe, em poder do mensageiro do duque.

— Diabo! Diabo! — murmurou Aubry, que começava a interessar-se vivamente com o relato do seu companheiro de infortúnio.

— O oficial proferiu terríveis ameaças contra mim, que apenas lhe respondi ignorar em absoluto o que vinha ali buscar. É claro que, se lhe tivesse dito que acabava de entregar o pacote lacrado ao mensageiro de meu amo, eles tê-lo-iam perseguido e talvez alcançado.

— Mas fizestes lindamente! — interrompeu Aubry. — Procedestes como o melhor e mais leal dos servidores.

— Então o oficial deixou-me entregue a dois archeiros e regressou ao Louvre acompanhado pelos outros dois. Ao cabo de meia hora voltou com ordens para me conduzir ao castelo de Pierre-en-Scise, que ficava em Lião. Puseram-me ferros aos pés, ataram-me as mãos, atiraram-me para dentro de uma carruagem e colocaram um soldado à minha direita e outro à esquerda. Cinco dias depois, achava-me encarcerado numa prisão que estava longe de ser tão negra e rigorosa como esta; mas, que importa? — murmurou o moribundo — uma prisão é sempre uma prisão e acabei por me habituar a esta como a qualquer outra.

— Hum... — exclamou Tiago Aubry — isso prova que sois filósofo.

— Três dias e três noites se passaram assim — prosseguiu Etienne Raymond. — Finalmente, durante a quarta noite, fui despertado por um ligeiro ruído; abri os olhos; a minha porta rodava nos gonzos; uma mulher com o rosto velado entrou acompanhada pelo ajudante do carcereiro; este pousou uma candeia sobre a mesa e, a um sinal da minha nocturna visitante, saiu humildemente. Então ela aproximou-se do meu leito e levantou o véu; soltei um grito.

— Hem! Quem era ela? — perguntou Aubry, aproximando-se vivamente do narrador.

— Era a própria Luísa de Sabóia, a duquesa de Angoulême em pessoa. Era a regente de França, a mãe do rei.

— Ah!... Ah! — exclamou Aubry — e que ia ela procurar junto de um pobre diabo como vós?

— Ia procurar aquele pacote lacrado que eu entregara ao mensageiro do duque e que continha as cartas de amor que ela imprudentemente escrevera àquele que então perseguia.

— Olha, olha, olha! — murmurou Aubry entre dentes — aqui está uma história demoniacamente parecida com a da duquesa d'Étampes e Ascânio.

— Ora! Todas as histórias de princesas loucas e apaixonadas se parecem — respondeu o prisioneiro, que parecia ter ouvidos tão aperfeiçoados como os olhos. — Pobres mas é dos pequenos, que do dia para a noite se vêem enredados nessas histórias!...

— Um momento! um momento! profeta da desgraça — exclamou Aubry — , que diabo estais para aí a dizer?! Não vedes que também eu estou enredado numa história de princesa louca e apaixonada?...

— Ah, sim? Pois nesse caso podeis dizer adeus à luz e à vida.

— Ide para o diabo com as vossas profecias do outro mundo! Que tenho eu a ver com tudo isto!? Não é a mim que amam, é a Ascânio.

— E era porventura a mim que amavam?... — continuou o prisioneiro — — Era a mim cuja existência até então tinham ignorado?... Não, mas encontrando-me situado entre uma afeição estéril e uma vingança fecunda, foi a mim que esmagaram, no seu choque.

— Virgem Santa! — exclamou Aubry — não se pode dizer que sejais lá muito tranquilizador, meu bravo. Mas, voltemos à princesa, pois se a vossa história me faz tremer é precisamente porque não podia interessar-me mais.

— O que ela queria era, pois, como já vos disse, reaver aquelas cartas. Em troca delas prometia-me favores, honrarias e títulos. Para reaver aquelas missivas, teria extorquido novamente 400 000 escudos a outro Semblançay, ainda que este tivesse de pagar a sua aquiescência com o cadafalso.

Respondi-lhe então que não estava na posse de tais cartas, que não as conhecia, nem sabia o que ela queria dizer.

Saiu furiosa e, durante um ano, não ouvi falar mais em tal.

Ao fim desse ano ela voltou e repetiu-se a mesma cena.

Foi então a minha vez de lhe pedir e suplicar que me deixasse sair. Fi-lo em nome de minha mulher e de meus filhos, mas tudo foi inútil. Tinha de entregar aquelas cartas ou morreria na prisão.

Um dia, descobri uma lima no meu pão.

O meu nobre amo tinha-se lembrado de mim. Era evidente que, andando fugido e exilado, não podia libertar-me nem pela recomendação nem pela força.

Enviou então a França um dos seus criados, que conseguiu que o carcereiro me entregasse aquela lima, dizendo-me da parte de quem vinha.

Limei uma das grades da janela. Fiz uma corda com os lençóis e desci por ela; mas ao chegar à extremidade, estava ainda longe do solo. Invoquei o nome de Deus e deixei-me cair; parti uma perna; uma das rondas da noite foi dar comigo estendido e sem acordo.

Mudaram-me então para o Castelo de Chalon do Sona, onde permaneci cerca de dois anos, findos os quais a minha perseguidora foi ver-me de novo. Eram as cartas, sempre aquelas malditas cartas, que a levavam. Daquela vez trouxe consigo o torturador da prisão. Mandou aplicar-me várias torturas; mas foi uma crueldade inútil, pois não obteve, nem podia obter, nada do que queria. Eu nada mais sabia além de que tinha entregue aquelas cartas ao mensageiro do duque.

Um dia, ao beber água da bilha que me punham, descobri no fundo um saco cheio de ouro.

Subornei o ajudante do carcereiro, ou melhor, o miserável fingiu deixar-se subornar. A meia-noite veio abrir a porta da minha cela. Saí, segui-o através dos corredores; já sentia, já respirava o ar dos vivos; já me julgava livre. De repente, vários soldados caíram sobre nós e amarraram-nos. O meu guia simulou render-se aos meus pedidos, a fim de se apoderar do ouro que me vira nas mãos; depois traíra-me para receber a recompensa prometida aos denunciadores.

Foi então que me trouxeram para esta masmorra do Châtelet.

Foi aqui que, pela última vez, me apareceu Luísa de Sabóia. Vinha seguida pelo carrasco

A ameaça de morte não conseguiu mais do que as promessas, as ameaças e a tortura Ataram-me as mãos; prenderam-me uma corda ao pescoço e passaram-me através de uma argola de metal. Dei sempre a mesma resposta e acrescentei que a minha inimiga, dando-me a morte, vinha ao encontro dos meus desejos, pois estava desesperado com tão longo cativeiro.

Foi por isso, sem dúvida, que resolveu prolongar-me a vida. Saiu, e o carrasco também.

Daí em diante nunca mais os vi. Que é feito do meu nobre duque? Que é feito da cruel duquesa? Ignoro-o, pois desde então, e devem ter passado quinze anos, nunca mais troquei uma palavra com um ser vivo.

— Morreram ambos — disse Aubry.

— Mortos ambos?! O meu nobre duque morreu?! Mas ainda devia ser novo! não teria mais que cinquenta e dois anos... Como morreu ele?

— Foi morto no cerco de Roma, e julgo que...

Tiago Aubry ia acrescentar: «por um amigo meu», mas conteve-se a tempo, pensando que aquele pormenor poderia muito bem esfriar as suas boas relações com o ancião. Como se pode ver, Tiago Aubry ia-se tornando prudente.

— Julgais que...? — prosseguiu o prisioneiro.

— Por um ourives chamado Benvenuto Cellini.

— Há vinte anos teria amaldiçoado aquele que lhe desse a morte. Hoje digo com todo o coração: «Bendito aquele que o matou!» E deram-lhe uma sepultura digna dele, do meu nobre duque?

— Creio que sim. Construíram-lhe um mausoléu na Catedral de Gaête e puseram-lhe um epitáfio onde se diz que, comparados ao que ali repousa, Alexandre Magno era quase insignificante e César não passava de um descarado.

— E a outra?

— Que outra?

— A minha perseguidora.

— Morta também; morta há nove anos.

— É isso; uma noite, na minha cela, vi uma sombra ajoelhada, rezando. Bradei, e a sombra desapareceu. Era ela que me vinha pedir perdão.

— Pensais então que, no instante da morte, ela perdoou?

— Assim o espero, para salvação da sua alma.

— Mas, nesse caso, deviam ter-vos posto em liberdade!

— É muito possível que ela o tenha recomendado; mas a minha pessoa é tão insignificante que, no meio de toda aquela catástrofe, deviam-se ter esquecido de mim.

— Nesse caso, também vós lhe ides perdoar ao morrer?...

— Jovem, ajudai-me a levantar um tanto do catre para eu rezar pelos dois.

E o moribundo, soerguido por Tiago Aubry, confundiu na mesma oração o seu protector e a sua perseguidora, aquele que sempre se lembrara dele, em sua afeição, e aquela que nunca o esquecera no seu ódio: o condestável e a regente.

O prisioneiro tinha razão. Os olhos de Tiago Aubry começavam a habituar-se à escuridão e distinguiam já o rosto magnífico do moribundo. Era um belo ancião, emagrecido pelo sofrimento, de barba branca e fronte calva. Lembrava uma daquelas cabeças sonhadas por Dominiquino ao executar a sua Confissão de São Jerónimo.

Quando acabou de rezar, soltou um suspiro e deixou-se cair de novo sobre a enxerga. Tinha desmaiado.

Tiago Aubry, a princípio, cuidou que o seu companheiro estava morto. Contudo, correu para a bilha da água, encheu a mão de água e salpicou-lhe o rosto. O moribundo voltou a si.

— Fizeste bem em me socorrer, meu jovem amigo — disse o velho. — Aqui tens a tua recompensa.

— Que é isso? — perguntou Aubry.

— Um punhal — respondeu o moribundo.

— Um punhal? E como se encontra em vossas mãos?

— Ouve. Um dia, ao trazer-me o meu pão e água, o ajudante do carcereiro pousou a lanterna no escabelo que, por acaso, estava junto à parede. Havia nesta uma pedra saliente, e na pedra, algumas letras gravadas à faca. Não tive tempo de as ler mas, quando o homem se foi embora, raspei a terra com as mãos, fiz uma espécie de barro e tirei o molde daquelas letras. Li Ultor.

Que significava esta palavra «vingador»? Aproximei-me novamente da pedra. Tentei abalá-la. Ela oscilava como um dente no seu alvéolo. A força de paciência e repetindo dezenas de vezes o mesmo esforço, consegui finalmente arrancá-la da parede. Meti logo a mão no buraco deixado pela pedra e encontrei este punhal.

Voltou-me então o quase extinto desejo de liberdade e resolvi-me a escavar, com este punhal, uma passagem para qualquer masmorra vizinha. Uma vez ali, combinaria com o seu ocupante um bom plano de evasão. De resto, ainda que nada daquilo viesse a resultar, escavar a terra e sondar a muralha já era uma ocupação. Quando tiverdes permanecido, como eu, vinte anos numa enxovia destas, sabereis, meu jovem amigo, que terrível inimigo é o tempo.

Aubry estremeceu dos pés à cabeça.

— E pusestes em execução o vosso projecto? — perguntou ele.

— Pus, e com mais facilidade do que pensava. Como já para aqui estou há doze ou quinze anos, ninguém supõe já que eu me possa evadir. Talvez nem sequer saibam já quem eu sou. Conservam-me aqui tal como a cadeia que pende daquela argola. O condestável e a regente morreram. Só eles se lembravam de mim. Etienne Raymond é já um nome desconhecido para toda a gente.

Aubry sentiu a fronte cobrir-se-lhe de suor, ao considerar o total esquecimento em que caíra aquela existência perdida.

— E então? — perguntou ele — e depois?

— Então — disse o velho — , há mais de um ano que escavo o solo e consegui já abrir, por baixo da parede, um pequeno túnel por onde um homem pode passar.

— Mas que fizestes de toda a terra que íeis retirando do túnel?

— Ia-a semeando pela masmorra, como se fosse areia, e, à força de caminhar sobre ela, acabou por se integrar no solo.

— E onde fica o tal buraco?

— Debaixo do meu catre. Em quinze anos, nunca se lembraram de o mudar de sítio. O carcereiro apenas desce à masmorra uma vez por dia. Quando ele se ia embora, depois de fechadas as portas e extinto o ruído dos passos, afastava o meu catre e atirava-me à obra. Quando se aproximava a hora da visita, repunha o catre no seu lugar e deitava-me nele.

Anteontem deitei-me para nunca mais me levantar. Tinha chegado ao termo das minhas forças e hoje estou chegado ao termo da vida. Sê, pois, bem-vindo, meu jovem amigo; tu me ajudarás a morrer e eu, em troca, far-te-ei meu herdeiro.

— Vosso herdeiro?! — disse Tiago admirado.

— Com certeza. Deixo-te o meu punhal. Sorris? Que herança mais preciosa se poderá deixar a um prisioneiro?... Este punhal é talvez a tua liberdade.

— Tendes razão — disse Aubry — , e agradeço-vos. Mas esse túnel que abristes para onde dá?

— Ainda não tinha alcançado o outro lado, mas estava pertíssimo. Num dos últimos dias cheguei a ouvir distintamente na cela contígua o som de uma voz.

— Diabo!... — exclamou Aubry. — E pensais...?

— Penso que, com algumas horas de trabalho, acabareis a minha obra.

— Obrigado — disse Aubry — , obrigado.

— E agora, um padre. Queria um padre — disse o moribundo.

— Esperai, meu pai — disse Aubry — , esperai. É impossível que recusem semelhante pedido a um moribundo.

E correu para a porta, desta vez sem tropeçar, pois que os seus olhos se tinham habituado à escuridão. Ali, bateu fortemente com os pés e com as mãos. Um dos ajudantes do carcereiro não tardou a descer.

— Que estardalhaço é este!? — perguntou — que é que quereis?

— O velho desta cela está a morrer — disse Aubry — e pede um sacerdote. Recusar-lho-eis?...

— Hum... — murmurou o guarda. — Não sei porque é que estes tipos pedem todos um sacerdote. Está bem, vai-se-lhe mandar um.

Efectivamente, passados dez minutos apareceu o padre com o santo viático, precedido por dois acólitos, um com a cruz e o outro com a campainha.

Foram momentos solenes os da confissão daquele mártir, que só tinha a revelar crimes alheios e que, pedindo perdão para si, ainda o pedia mais para os causadores do seu infortúnio.

Por pouco impressionável que fosse Aubry, não pôde deixar de cair de joelhos, recordando as suas orações de criança, que julgava esquecidas.

Quando o prisioneiro terminou a sua confissão, foi o sacerdote que se inclinou diante dele e lhe pediu a sua bênção.

O ancião sorriu, feliz como um bem-aventurado, estendeu uma mão por sobre a cabeça do sacerdote, a outra na direcção de Aubry, soltou um profundo suspiro e caiu para trás.

Tinha sido o seu último suspiro.

O padre saiu, como tinha vindo, acompanhado pelos dois ajudantes, e a masmorra, um instante iluminada pelo trémulo clarão dos círios, voltou a mergulhar na obscuridade.

Tiago Aubry achou-se então só com o morto.

Era uma bem triste companhia, especialmente pelas reflexões que suscitava. Aquele homem, que ali jazia numa enxerga, tinha entrado inocente para a prisão, permanecera nela vinte anos e, se ia sair, era porque a morte, essa grande libertadora, o tinha ido buscar.

O jovem estudante estava irreconhecível. Pela primeira vez na sua vida encontrava-se face a face com um pensamento supremo e sombrio. Pela primeira vez, sondava com o olhar as escaldantes vicissitudes da vida e as calmas profundidades da morte.

Mas, depois, uma ideia egoísta começou a germinar no seu coração. Pensava em si mesmo, inocente como aquele homem, mas como ele arrastado no torvelinho daquelas paixões reais, que quebram, que devoram e aniquilam uma existência. Se Ascânio e ele desaparecessem por sua vez, como desaparecera Étienne Raymond, quem pensaria neles?

Talvez Gervásia...

Benvenuto Cellini certamente.

Mas aquela, o mais que podia fazer era chorar; e quanto a Benvenuto, ao bradar pela carta que está em posse de Ascânio, confessava a sua própria impotência.

E como única oportunidade de salvação, como única e derradeira esperança, não lhe restava mais que a herança daquele finado, um velho punhal que já havia enganado a expectativa dos seus dois primeiros donos.

Tiago Aubry, que tinha escondido o punhal no peito, levou convulsivamente a mão ao punho a fim de se certificar que ainda lá estava.

Neste momento abriu-se a porta. Vinham buscar o cadáver.

— Quando é que me trazeis o jantar? — perguntou Tiago Aubry — tenho fome.

— Daqui a duas horas — respondeu o ajudante do carcereiro. E o estudante ficou só na sua cela.

 

           UM HONESTO FURTO

Aubry passou aquelas duas horas sentado no seu escabelo, com o pensamento em ebulição e o corpo imóvel.

A hora anunciada, o guarda desceu, renovou a água e o pão; era o que, na linguagem do Châtelet, se chamava um jantar.

O estudante lembrou-se então de que o moribundo lhe dissera que a porta da cela só se abria uma vez em vinte e quatro horas. Contudo, deixou-se ficar ainda muito tempo sentado no mesmo lugar, sem fazer um único movimento, por recear que o acontecimento do dia alterasse os hábitos da prisão.

Graças à clarabóia, não tardou a notar que a noite descia. Fora um dia cheio, esse que terminava. De manhã, o interrogatório do juiz; ao meio-dia, o duelo com Marmagne; à uma hora, a prisão; às três, a morte do prisioneiro; e, agora, as primeiras tentativas de libertação.

Um homem, durante a vida, não conta muitos dias semelhantes a este.

Tiago Aubry levantou-se lentamente e aproximou-se da porta para escutar se vinha alguém; em seguida, para que ninguém descobrisse vestígios de terra no seu gibão, tirou-a, afastou a enxerga e viu a abertura de que lhe falara o moribundo.

Deslizou, como serpente, através da estreita galeria, que poderia ter dois metros e meio de profundidade, e que, depois de mergulhar sob a parede, se dirigia de novo para a superfície, no outro lado.

A primeira cavadela que deu com o punhal, Aubry sentiu imediatamente, pelo som produzido no solo, que em breve acabaria o túnel e chegaria a qualquer lugar. Mas aonde? Não podia adivinhar.

Mas nem por isso deixou de prosseguir activamente no trabalho, fazendo o mínimo barulho possível. Apenas de vez em quando saía da galeria, como faz um mineiro, para semear pela cela a terra, que acabaria por obstruir o túnel; em seguida, deslizava novamente pela abertura e prosseguia na obra.

Enquanto Aubry trabalhava, Ascânio pensava tristemente em Colomba.

Também ele fora, como vimos, conduzido ao Châtelet, e, tal como a Aubry, haviam-no lançado numa masmorra. No entanto, talvez por acaso, ou por recomendação da duquesa, a sua enxovia era um pouco menos nua e, portanto, um pouco mais habitável que a do estudante.

Mas que importava a Ascânio um pouco mais ou um pouco menos de comodidade? A sua cela seria sempre uma cela, e o seu cativeiro uma separação. Sentia muito mais a falta de Colomba que a da luz do dia, da liberdade e da vida. Se Colomba ali pudesse estar, aquela negra masmorra transformar-se-ia num lugar delicioso, num paraíso.

É que os últimos tempos da sua vida tinham sido de tanta doçura para o jovem! Pensando de dia na sua amada, e ficando, à noite, perto dela, jamais pudera pensar que aquela felicidade acabaria. No entanto, é certo que pressentira por vezes uma mão de ferro a oprimir-lhe o peito. Era apenas a vaga suspeita de um perigo que ameaçava desabar, mas sempre afastara rapidamente essas dúvidas sobre o futuro para melhor poder entregar-se às delícias do presente.

E agora ali estava numa masmorra, sozinho, longe de Colomba; e ela talvez prisioneira em qualquer convento, donde não poderia sair senão passando pela capela onde a esperava o marido que lhe obrigavam a aceitar.

Duas terríveis paixões velavam à porta das celas dos dois jovens: o amor da duquesa d'Etampes, junto à de Ascânio, a ambição do conde d'Orbec junto à de Colomba.

Assim, rnal entrou na sua masmorra, Ascânio sentiu-se bem triste e bem abatido. Era um desses temperamentos delicados e ternos que têm necessidade de se apoiar constantemente numa organização robusta.

Lançado numa prisão, o primeiro cuidado de Benvenuto teria sido o de explorar a porta, sondar as paredes, percutir o solo, a fim de descobrir se algum deles ofereceria à sua viva e combativa inteligência qualquer meio de evasão. Ascânio sentou-se no leito, deixou descair a cabeça para o peito e murmurou o nome de Colomba. A ideia de que alguém pudesse evadir-se de uma masmorra de tripla grade de ferro e paredes de dois metros de espessura nem sequer lhe passou pela cabeça.

A sua masmorra era, aliás, como dissemos, um pouco menos nua e desconfortável que a de Tiago. Possuía uma cama, uma mesa, duas cadeiras e uma velha esteira. Além disso, sob uma pedra saliente, em jeito de alpendre, luzia uma candeia. Devia ser a cela dos privilegiados.

O sistema alimentar era também de categoria superior. Em vez do pão e da água que levavam uma vez por dia ao nosso estudante, Ascânio dispunha de duas refeições, vantagem que, no entanto, era compensada pelo aborrecimento de ver duas vezes o seu carcereiro. Essas refeições, diga-se em abono da filantrópica administração do Châtelet, não eram absolutamente execráveis.

Mas a Ascânio pouco importava esse pormenor. Frugal por temperamento, e vivendo muito pela imaginação, era uma dessas organizações poéticas que parecem viver apenas de perfumes e orvalho. Sempre mergulhado em suas reflexões, comeu um pedaço de pão, bebeu algumas gotas de vinho e continuou a pensar em Colomba e em Benvenuto Cellini; em Colomba, em quem punha todo o seu amor, em Cellini, em quem punha todas as suas esperanças.

Até àquele momento, Ascânio jamais se havia ocupado de quaisquer pormenores ou encargos da existência. Benvenuto provia a tudo; Ascânio contentava-se com respirar, sonhar com qualquer obra de arte e amar Colomba. Era como o fruto que cresce em árvore vigorosa recebendo dela toda a seiva.

Se, no momento em que o prenderam e conduziram ao Châtelet, Ascânio pudesse ter visto Benvenuto Cellini, e este lhe dissesse «Sossega, Ascânio, porque eu velarei por ti e por Colomba», a sua confiança no mestre era tal que, animado apenas por aquela sua promessa, teria esperado tranquilamente que as portas da prisão se abrissem, certo de que chegaria esse momento.

Mas, desgraçadamente, não tinha visto Benvenuto, e este ignorava que o seu discípulo amado, o filho da sua Stéfana, estava preso. Era preciso um dia para o irem prevenir a Fon-tainebleau, isto supondo que alguém se lembrasse de o fazer; era preciso outro dia para o regresso a Paris, e em dois dias os inimigos dos dois namorados podiam ganhar um grande avanço sobre o seu defensor.

Por isso, passou o resto do dia e a noite que se seguiu à sua detenção sem dormir; ora passeava pela cela, ora se sentava, ora se atirava para o leito, a que, por especial atenção, que provava até que ponto o preso fora recomendado, tinham posto lençóis brancos. Durante todo aquele dia e toda aquela noite, durante toda a manhã do dia que se lhes seguiu, nada aconteceu de novo a não ser a visita regular do ajudante do carcereiro, levando as refeições. Cerca das duas horas da tarde, segundo os seus cálculos do tempo, pareceu-lhe ouvir vozes próximo. Era um murmúrio surdo e indistinto. Ascânio pôs-se à escuta, dirigindo-se para o lado donde o ruído parecia proceder; era um dos ângulos da sua cela. Aplicou o ouvido à parede e ao solo; o ruído vinha distintamente de baixo da terra.

Ascânio pensou que teria vizinhos separados dele apenas por uma estreita parede ou um pavimento muito delgado.

Ao cabo de duas horas, cessaram aqueles murmúrios e tudo voltou a mergulhar em completo silêncio.

Para o meio da noite, recomeçou o ruído, mas a sua natureza era diversa. Já não era o que fazem duas pessoas conversando, mas a ressonância de pancadas surdas e apressadas como as de pedreiro desbastando a pedra. Aquele barulho vinha, de resto, do mesmo ponto, jamais se interrompia e aproximava-se cada vez mais.

Por mais preocupado que estivesse, este barulho não deixou de merecer a Ascânio alguma atenção, pelo que permaneceu com os olhos fixos na direcção donde provinha. Devia-se estar a meio da noite e, apesar da insónia da véspera, Ascânio nem sequer pensava em ir dormir.

O ruído continuava. Como não eram horas de trabalho ordinário, tornava-se evidente que era qualquer prisioneiro que trabalhava na sua evasão. Ascânio sorriu melancolicamente ao pensar que, ao chegar junto de si, aquele desgraçado, agora cheio de esperanças de liberdade, não teria conseguido mais que mudar de cela.

Por fim, o barulho tornou-se tão próximo que Ascânio correu para a candeia, pegou nela e levou-a para o local onde se fazia ouvir. Quase no mesmo instante, o solo levantou-se no ângulo da enxovia fendendo-se a saliência e dando passagem a uma cabeça humana.

Ascânio soltou um grito de espanto, logo seguido de outro de alegria; respondeu-lhe uma exclamação não menos jubilosa. Aquela cabeça era a de Tiago Aubry.

Instantes depois, graças à ajuda de Ascânio, ao seu tão original como inesperado visitante, os dois amigos caíram nos braços um do outro.

É claro que as primeiras perguntas e respostas foram um tanto incoerentes; até que, por fim, à força de trocarem frases inconsequentes, acabaram por dominar-se e esclarecer os acontecimentos. Ascânio pouca coisa tinha, de resto, a dizer, e muito de que ser informado. Assim, Aubry fez-lhe o relato de tudo. Como tinha chegado ao Palácio de Nesle quase ao mesmo tempo que Benvenuto; como tinham sido informados da detenção de Ascânio e do rapto de Colomba; como Benvenuto correra como louco para o atelier, gritando: «A fundição! A fundição», e como ele, Aubry, correra também, mas para o Châtelet. O que se passara depois no Palácio de Nesle, Aubry ignorava-o completamente.

Mas à Ilíada comum sucedera a Odisseia pessoal. Aubry contou a Ascânio a sua decepção ao ver que não o queriam meter na prisão; referiu a sua visita a Gervásia, a denúncia desta ao oficial de diligências, o seu terrível interrogatório que não tivera outra consequência além daquela multa de vinte soldos tão humilhante para a honra de Gervásia. Contou por fim o seu encontro com Marmagne, quando começava a desesperar de que o metessem na cadeia, e tudo o que lhe acontecera desde aí até ao momento em que, ignorando em que cela ia penetrar, fendeu com a cabeça a camada de terra que lhe faltava perfurar e, à luz da candeia, deu de cara com o seu amigo Ascânio.

Depois deste relato de Aubry, os dois amigos caíram de novo nos braços um do outro.

— E agora — disse Tiago Aubry — , ouve bem o que vou dizer-te, pois não há um minuto a perder.

— Antes de mais nada — exclamou Ascânio — , fala-me de Colomba!

— Colomba? Nada sei. Creio que em casa da duquesa d'Etampes.

— Em casa da duquesa?! Em casa da rival?!

— Então sempre é verdade o que se diz do amor da duquesa por ti? Ascânio corou e balbuciou algumas palavras indistintas.

— Oh, não é preciso corar — exclamou Aubry. — Caramba! Uma duquesa!... E uma duquesa que é a amante do rei! Só eu é que não tenho dessas sortes... Mas voltemos ao que interessa.

— Sim — disse Ascânio — , voltemos a Colomba.

— Ora bolas! Não se trata agora de Colomba. Trata-se de uma carta.

— Que carta?

— De uma carta que a duquesa d'Êtampes te escreveu.

— E quem te disse que eu possuía uma carta da duquesa?

— Benvenuto Cellini.

— Porque te revelou isso?

— Porque precisa dessa carta com urgência, porque me comprometi a levar-lha, porque tudo o que fiz até agora foi apenas para obter essa carta.

— Mas que é que Benvenuto pretende fazer com essa carta? — perguntou Ascânio.

— Lá isso palavra! nem sei, nem me diz respeito. Disse-me apenas: «Preciso dessa carta.» Eu disse-lhe: «Pois bem, eu a obterei.» Eu fiz com que me metessem na cadeia para a obter. Aqui estou, dá-ma e eu me encarregarei de a fazer chegar às mãos de Benvenuto; Mas... que é isso!? Que é que tu tens!?

Esta pergunta motivara-a o reentristecimento do rosto de Ascânio.

— O que eu tenho, meu pobre Aubry, é mágoa de que te arriscasses a tanto para... para nada!

— Quê?! — exclamou Tiago Aubry. — Já não possuis essa carta?!

— Está aqui! — disse Ascânio, levando a mão ao bolso do seu gibão.

— Ora ainda bem! Dá-ma cá, para a levar sem demora a Benvenuto.

— Esta carta não sairá do meu bolso, Tiago!

— E porquê?

— Porque desconheço as intenções de Benvenuto.

— Benvenuto tenciona servir-se dessa carta para te salvar...

— Causando a perdição da duquesa d'Étampes, é evidente. Aubry, não deitarei nunca uma mulher a perder.

— Mas essa mulher quer a tua desgraça! Essa mulher detesta-te! quero dizer... adora-te...

— E queres tu que em paga desse sentimento...?!

— Mas é exactamente como se ela te odiasse, uma vez que tu a não amas... Foi ela, aliás, a causadora de tudo isto.

— Como?

— Foi ela quem te mandou prender e quem raptou Colomba.

— Quem te disse?

— Ninguém; mas quem, senão ela, poderia ter sido?

— Ora essa! O preboste, o conde dOrbec, Marmagne, a quem tu próprio confessas tudo ter revelado.

— Ascânio! Ascânio! — exclamou Aubry desesperado — tu perdes-te!...

— Antes quero perder-me que agir como um cobarde.

— Não é uma acção cobarde, visto que é Benvenuto quem se encarrega de a executar.

— Ouve, Tiago — disse Ascânio — , e não me queiras mal pelo que vou dizer-te. Se fosse Benvenuto que aqui estivesse em teu lugar e me dissesse: «Foi a duquesa d'Étampes, tua inimiga, quem ordenou a tua prisão e o rapto de Colomba; é ela quem a tem em seu poder e quer forçar a sua vontade; só poderei salvar Colomba servindo-me dessa carta», pedir-lhe-ia que me jurasse que não mostraria esta carta ao rei e entregar-lha-ia. Mas nem Benvenuto aqui está, nem posso ter a certeza de que a perseguição me venha da duquesa. A ti não posso eu confiar esta carta. Aubry desculpa, mas tu próprio confessas ser um cabeça-no-ar...

— Juro-te, Ascânio, que o dia que acabo de viver me envelheceu dez anos.

— Esta carta, Aubry, ou a havias de perder ou, na melhor das intenções, usá-la por forma condenável; por isso, ficará onde está.

— Mas, meu amigo — exclamou Tiago Aubry — , pensa que só essa carta te pode salvar; foi Benvenuto quem o disse.

— Benvenuto me salvará sem ter necessidade de recorrer a ela; o rei deu-lhe a sua palavra de que lhe concedia uma grande mercê no dia em que o seu Júpiter estivesse fundido. Pois bem, quando tu supunhas que Benvenuto se tornava louco, porque não fazia mais que gritar «A fundição! A fundição!», começava ele a trabalhar na minha salvação.

— E se a fundição falhasse?... — disse Aubry.

— Não há esse perigo — respondeu Ascânio, sorrindo.

— Como assim, se é coisa que acontece aos melhores fundidores de toda a França?!...

— Ao pé de Benvenuto os melhores fundidores franceses não passam de aprendizes.

— Mas quanto tempo pode demorar essa fundição?

— Três dias.

— E para levar a estátua à presença do rei, quanto tempo será preciso?

— Outros três dias.

— Seis ou sete dias ao todo, pelo que vejo. E se, antes desse tempo, a Sr.a d'Étampes obrigar Colomba a desposar dOrbec?...

— A duquesa d'Étampes não tem quaisquer direitos sobre Colomba. Colomba resistirá.

— Sim, mas o preboste, como pai, tem direitos sobre Colomba; Francisco I, como rei, tem igualmente direitos sobre ela. E se ambos ordenarem que se realize aquele casamento?...

Ascânio empalideceu.

— Se, quando Benvenuto pedir e alcançar a tua libertação, já Colomba for esposa de outro, que farás da tua liberdade?

Ascânio passou um lenço pela testa, a fim de enxugar as camarinhas de suor que as palavras do estudante faziam nascer, enquanto que, com a outra mão, procurava na algibeira a carta libertadora. Mas, no próprio instante em que Aubry julgava que ele ia ceder, Ascânio sacudiu a fronte, como a acabar com toda a hesitação.

— Não! — disse ele — não! Só a Benvenuto. Falemos de outra coisa.

E pronunciou estas palavras com tanta decisão que se tornava evidente que, pelo menos de momento, era inútil insistir.

— Nesse caso — disse Aubry, parecendo tomar interiormente uma resolução importante — meu amigo, para falarmos de outra coisa, poderemos fazê-lo amanhã de manhã, ou à tarde, pois receio bem que vamos permanecer aqui muito tempo. E, para te falar com franqueza, todas as tribulações do dia e o meu trabalho durante a noite fatigaram-me em extremo; enfim, não se me dava de ir descansar um bocado. Fica-te, pois, na tua cela, que eu volto para a minha. Quando quiseres ver-me, não tens mais que chamar. Entretanto, puxa essa esteira para cima do buraco que eu fiz, para que não nos cortem as comunicações. Boas-noites! E como a noite é boa conselheira, espero encontrar-te amanhã mais razoável.

E dizendo isto, e não querendo atender às observações com que Ascânio tentava retê-lo, Tiago Aubry mergulhou no seu túnel e, rastejando, dirigiu-se para a sua cela. Quanto a Ascânio, seguindo o conselho do amigo, mal as pernas do estudante desapareceram na galeria puxou a esteira para aquele ângulo da masmorra. A via de comunicação que acabava de estabelecer-se entre as duas celas ficou assim completamente dissimulada.

Em seguida, atirou o gibão para cima de uma das duas cadeiras que, com a mesa e a candeia, constituíam todo o seu mobiliário, e estendeu-se no leito; apesar da inquietação que o martirizava, não tardou a adormecer. A fadiga do corpo levou de vencida os tormentos do espírito.

Quanto a Aubry, em vez de fazer como Ascânio, pois tinha pelo menos tanta necessidade de dormir como ele, contentou-se com sentar-se apenas no escabelo e pôs-se a reflectir profundamente, o que, como o leitor bem sabe, era tão contrário aos seus hábitos que se tornava evidente estar ele a matutar qualquer lance de truz.

A imobilidade do estudante prolongou-se por cerca de um quarto de hora, findo o qual se levantou vagarosa e resolutamente, dirigindo-se à abertura do túnel, por onde novamente deslizou, mas com tantas precauções e observando um tão perfeito silêncio que, ao atingir a outra extremidade, e ao soerguer a esteira, notou com grande contentamento que a operação que acabava de realizar não tinha despertado o seu amigo.

Era tudo o que Aubry desejava. Ainda com maiores precauções que há pouco, saiu da sua galeria, aproximou-se, retendo a respiração, da cadeira para onde Ascânio atirara o gibão, e, com o olhar fito no adormecido jovem, e o ouvido atento ao menor ruído, tirou da algibeira a preciosa carta tão ambicionada por Cellini, metendo no sobrescrito um simples bilhete de Gervásia que teve o cuidado de dobrar exactamente da mesma maneira que a carta da duquesa.

Em seguida, e usando sempre das mesmas cautelas, dirigiu-se para o canto da cela, levantou a esteira e desapareceu no túnel, não antes de a ajustar de novo, por baixo, de modo a afastar todas as suspeitas de Ascânio.

Era tempo pois, mal tinha acabado de chegar à sua cela, sentiu a porta de Ascânio girar nos gonzos e ouviu a voz do seu amigo bradar com a entoação de quem acorda sobressaltado:

— Quem anda aí?

— Eu — respondeu uma voz doce — , nada temais, sou uma amiga.

Ascânio, meio vestido, soergueu-se ao ouvir aquela voz que julgava reconhecer, e viu à luz da candeia uma mulher com o rosto velado. Essa mulher aproximou-se lentamente do jovem e retirou o véu. Ascânio não se havia enganado, era a duquesa d'Étampes.

 

         ONDE SE PROVA QUE A CARTA DE UMA COSTUREIRINHA PODE FAZER TANTA CHAMA E CINZA, AO QUEIMAR-SE, COMO A CARTA DE UMA DUQUESA

Havia uma tal mistura de tristeza e compaixão no rosto da bela Ana d'Heilly que Ascânio se deixou enganar mais uma vez ficando perfeitamente convencido, ainda antes de a duquesa ter começado a falar, de que ela estava completamente inocente da catástrofe que desabara sobre ele e Colomba.

— Vós aqui, Ascânio?! — disse ela, em tom melodioso. — Vós, a quem eu queria dar reinos e palácios?! vós numa prisão?!

— Ah! Senhora — exclamou o jovem —, é então verdade que nada tendes a ver com a perseguição que nos movem?

— E suspeitastes de mim um só instante, Ascânio?! — disse a duquesa. — Sendo assim, bem razão tendes para me odiar e não me resta mais que queixar-me, em silêncio, de tão mal conhecida ser por aquele que conheço tão bem.

— Não senhora, não. Disseram-me que havíeis sido vós a causadora de tudo isto mas eu recusei-me a acreditá-lo.

— Bem, Ascânio! Não me tendes amor, bem o sei, mas pelo menos em vós o ódio não se confunde com a injustiça. Tivestes razão, Ascânio. Não só nada tive a ver com o que aconteceu como ignorava ainda tudo. Foi o preboste, o Sr. dEstourville, quem, tendo tido, não sei como, conhecimento de tudo, foi ter com o rei, obtendo dele ordem para vos prender e reapoderar-se de Colomba.

— E Colomba está em casa do pai? — perguntou ansiosamente Ascânio.

— Não — disse a duquesa — Colomba está comigo.

— Convosco, Senhora?! — exclamou o jovem. — E porquê em vossa casa?!

— Ela é muito bela, Ascânio — murmurou a duquesa —, e eu compreendo muito bem que a prefirais a todas as mulheres do mundo, ainda quando a mais amante dessas mulheres vos oferecesse o mais rico dos ducados.

— Amo Colomba, Senhora — disse Ascânio —, e deveis saber que sempre se prefere o amor, esse bem celeste, a todos os bens da Terra.

— Sim, Ascânio, vejo agora que a amais acima de tudo. Houve um tempo em que supus que a vossa paixão por ela fosse apenas um amor banal. Mas enganei-me. Oh! Bem vejo agora — acrescentou num suspiro — que ter-vos mais tempo separados um do outro era ir contra a vontade do próprio Deus.

— Ah! Senhora! — exclamou Ascânio, juntando as mãos — Deus concedeu-vos o poder de nos reunir. Sede grande e generosa até ao fim, Senhora, e fazei a felicidade de duas crianças que vos amarão e bendirão toda a sua vida.

— Pois seja! — disse a duquesa — confesso-me vencida, Ascânio. Sim, estou pronta a proteger-vos, a defender-vos. Mas, ai de mim! quem sabe se a esta hora já não será demasiado tarde!...

— Demasiado tarde?! Que quereis dizer? — perguntou Ascânio.

— Quem sabe se a esta hora também eu não estarei desgraçada.

— Desgraçada?! E porquê, Senhora?

— Por vos ter amado.

— Por me terdes amado?! Vós desgraçada, e por minha causa?!

— Sim, por ter sido imprudente, por vos ter escrito.

— Como pode isso ser?! Não vos percebo, Senhora...

— Então não compreendeis que o preboste, munido de uma ordem do rei, mandou fazer uma busca geral ao Palácio de Nesle? Não vedes que essa busca visa principalmente as provas do vosso entendimento com Colomba e que, portanto, será efectuada principalmente no vosso quarto?

— E então? — perguntou Ascânio impaciente.

— Então — prosseguiu a duquesa — se encontrarem no vosso quarto aquela declaração que escrevi, num momento de delírio... se esse bilhete for reconhecido como meu e mostrado ao rei, que eu já enganava e que em breve iria trair por amor de vós, não compreendes que, nesse mesmo momento, todo o meu poder cairá por terra? Não compreendeis que deixarei de poder fazer o quer que seja por vós e por Colomba? Não compreendeis que estarei desgraçada?...

— Oh! Tranquilizai-vos, Senhora! — exclamou Ascânio — não correis qualquer perigo. Esse bilhete tenho-o aqui comigo, pois jamais me abandonou.

A duquesa respirou e o seu rosto passou da expressão de ansiedade para a da alegria.

— Jamais vos abandonou, Ascânio!? — exclamou ela por sua vez — jamais vos abandonou?... E a que sentimento devo eu que essa ditosa carta nunca vos tenha abandonado?

— A prudência, senhora — murmurou Ascânio.

— A prudência!... Já me ia enganando outra vez, meu Deus! E no entanto, podia estar bem convencida, bem desenganada. A prudência!... Pois bem, Ascânio — acrescentou ela com ar de quem faz um grande esforço sobre si mesmo —, uma vez que não tenho a agradecer-vos senão a vossa prudência, achais prudente guardar aqui esse bilhete que, uma vez conhecido, impedirá de vos salvar a única pessoa que pode fazê-lo? Não vedes que a todo o momento podem descer à vossa cela e revistar-vos à força?

— Senhora — disse Ascânio com a sua voz doce, e naquela entoação levemente melancólica dos corações puros quando se vêem forçados a duvidar —, ignoro se a intenção de nos salvardes, a Colomba e a mim, está no fundo do vosso coração como está nos vossos lábios. Ignoro se não foi apenas o desejo de reaver essa carta, que tanto mal vos pode fazer, que aqui vos trouxe. Ignoro, enfim, se uma vez de posse dela, da protectora que vos mostrais, não passareis a nossa inimiga. Sei apenas uma coisa, Senhora, é que essa carta vos pertence e que, desde o momento que vindes reclamá-la, eu não tenho o direito de a conservar.

Ascânio levantou-se, foi direito à cadeira onde tinha o gibão, meteu os dedos numa algibeira e tirou uma carta cujo sobrescrito a duquesa logo reconheceu.

— Aqui está, Senhora — disse ele —, um papel por vós tão desejado e que, sem poder ser de utilidade para mim, tanto mal vos pode causar. Recuperei-o, Senhora; rasgai-o ou fazei dele o que vos aprouver. Eu fiz o que devia, agora é convosco.

— Ah! Ascânio, sois verdadeiramente um nobre coração! — exclamou a duquesa empolgada por um sentimento espontâneo de que são às vezes susceptíveis até as almas mais corrompidas.

— Aproxima-se alguém, Senhora, tende cautela! — exclamou Ascânio.

— Tendes razão — disse a duquesa.

E ao ruído dos passos que efectivamente se aproximavam, Ana d'Heilly estendeu vivamente a mão para a candeia, chegando o sobrescrito à chama, que logo se propagou, devorando-o num instante. A duquesa, porém, não o largou senão quando o fogo estava quase a atingir os dedos, e a carta quase consumida revoluteou no ar; quando chegou ao chão, estava completa-mente reduzida a cinzas, mas a duquesa nem por isso deixou de as pisar várias vezes.

Neste momento, surgiu o preboste no limiar da porta.

— Preveniram-me de que estáveis aqui, Senhora — disse ele com ar inquieto, olhando alternadamente para Ascânio e para a duquesa —, e apressei-me a vir ao vosso encontro para me pôr às vossas ordens. Poderei ser-vos útil em alguma coisa, ou careceis das forças sob o meu comando?

— Não, Sr. d'Estourville — disse a duquesa, sem poder dissimular o sentimento de profunda alegria que lhe trasbordava do coração para o rosto. — Não, mas nem por isso vos desejo agradecer menos a vossa solicitude e boa vontade. Vim apenas no intuito de interrogar este jovem que mandastes prender e certificar-me da sua culpabilidade.

— E qual foi o resultado do vosso exame? — perguntou o preboste num tom a que não pôde deixar de imprimir um travo de ironia.

— Penso que Ascânio é menos culpado do que supunha, pelo que vos recomendo que hajais com ele de moderação e cuidados. Vejo que o alojamento do pobre rapaz deixa muito a desejar. Não poderíeis dar-lhe outro quarto melhor?

— Será a primeira coisa a fazer de manhã, senhora, pois os vossos mais pequenos desejos são ordens para mim. Desejais algo mais? Quereis continuar a interrogar este jovem?

— Não, Sr. dEstourville — respondeu Ana —, já sei tudo que pretendia saber. Pronunciadas estas palavras, a duquesa saiu da cela, lançando a Ascânio um último olhar misto de reconhecimento e paixão.

Seguiu-a o preboste, fechando-se logo a porta da masmorra.

«Caramba! -«- murmurou Aubry, que não tinha perdido palavra da conversa entre Ascânio e a duquesa. — Caramba, foi por pouco!»

O primeiro cuidado de Marmagne, ao voltar a si, fora o de mandar prevenir a duquesa de que acabava de receber um ferimento que podia ser mortal e de que antes de morrer precisava de lhe revelar um segredo da mais alta importância para ela. A duquesa foi imediatamente e Marmagne disse-lhe então que fora atacado por um certo estudante chamado Tiago Aubry, que pretendia entrar no Châtelet a fim de se encontrar com Ascânio e levar a Cellini uma carta que se encontrava em posse do jovem prisioneiro.

Bastaram estas palavras para a duquesa compreender do que se tratava e, maldizendo a paixão que ainda uma vez a fizera sair dos limites da sua prudência habitual, correu ao Châtelet, não obstante serem já duas da manhã, mandou abrir a cela de Ascânio e representou com o jovem a cena que acabámos de presenciar e que, segundo ela pensava, teve o desfecho desejado, sem, no entanto, iludir completamente Ascânio.

Como disse já Tiago Aubry, a coisa esteve por um fio.

Mas apenas estava realizada metade da tarefa; o mais difícil estava por fazer. É certo que o estudante estava de posse da preciosa carta que correra o risco de ser destruída para sempre; mas para que essa carta pudesse ter todo o seu valor real, era urgente que fosse entregue a Cellini.

Ora Tiago Aubry estava preso e bem preso, e das palavras do seu predecessor concluíra não ser fácil sair do Châtelet depois de lá ter entrado. Tal estava Aubry como o galo da fábula, que encontrara uma pérola e não sabia que fazer da sua riqueza.

Tentar fugir pela violência era impossível. É certo que com o seu punhal Aubry podia matar o guarda que lhe trazia as refeições, e em seguida apoderar-se-lhe do fato e das chaves; mas, além de que esta medida extrema repugnava ao excelente carácter do jovem, também não lhe oferecia uma segurança por aí além. Havia dez probabilidades contra uma de que o reconhecessem, revistassem, despojassem da valiosa carta e o recambiassem para a masmorra.

Tentar uma fuga à Cellini era ainda mais incerto. A masmorra ficava mais de três metros abaixo do solo e a clarabóia, por onde coava o único raio de Sol, era reforçada por espessas grades de ferro. Seriam precisos alguns meses para arrancar uma só dessas barras, e ainda que conseguisse sair pela clarabóia, para onde deitaria esta? Em que pátio se acharia depois o fugitivo? Que enormes muralhas lhe vedariam depois a passagem, entregando-o nas mãos dos vigias?

Restava, é claro, a corrupção; mas, graças à sentença do meirinho, que avaliara em vinte soldos a honra de Gervásia, já só podia dispor de dez, soma insuficiente para tentar o mais ganancioso carcereiro de uma prisão vulgar e que seria indecente oferecer a um guarda de uma fortaleza real como era o Châtelet.

Temos, pois, que concordar que a situação de Tiago Aubry era cruelmente embaraçosa.

De tempos a tempos, parecia que uma ideia libertadora surgia na sua mente, mas tal ideia devia implicar bem graves consequências pois, cada vez que se apresentava com a persistência das boas ideias, o rosto de Aubry ensombrava-se profundamente e os suspiros que exalava demonstravam bem que o pobre rapaz se entregava a uma violentíssima luta interior.

Esta luta exacerbou-se e prolongou-se de tal maneira que, em toda aquela noite, o estudante nem sequer pensou em deitar-se; ora passeava de um lado para o outro, ora se sentava, ora se levantava. Era a primeira vez que lhe acontecia velar para reflectir. As suas anteriores vigílias haviam sido todas, ou para beber, ou para jogar, ou para amar...

Ao despontar do dia, a luta pareceu enfim terminar pela vitória de uma das forças em combate, pois que Tiago Aubry soltou um suspiro ainda mais lamentoso que todos os outros e atirou-se para cima da enxerga como um homem totalmente abatido.

Mal se tinha deitado, ouviu passos na escada. Os passos foram-se aproximando, a chave rangeu na fechadura, os ferrolhos chiaram, a porta girou nos gonzos e dois homens da justiça surgiram no limiar; um era o meirinho, e o outro o seu escrivão.

O desagrado da visita foi temperado pelo prazer de Tiago Aubry ao deparar com aqueles seus dois velhos conhecimentos.

— Ah! Ah! Meu jovem pândego — disse o oficial de diligências ao reconhecer Tiago Aubry —, com que então volto a encontrar-vos; e sempre conseguistes que vos metessem no Châtelet? Mas que grande patife me saístes! Seduzis as jovens e pondes os fidalgos no espeto! Bonito! Mas desta vez, tende cuidado! A vida de um fidalgo é mais cara que a honra de uma costureira. Ah! Desta vez, a coisa não se resolverá com vinte soldos!

Se as palavras do juiz eram terríveis, o tom em que as pronunciara tranquilizou um tanto o jovem preso. Aquele homem de face jovial, em cujas mãos tivera a sorte de cair, parecia tão boa alma que fazia crer que dele nada de fatal podia vir. É verdade que não se podia dizer o mesmo do seu escrivão pois, a cada ameaça do meirinho, basculava ele a cabeça em lúgubre sinal de aprovação. Era a segunda vez que Tiago Aubry via aqueles dois homens lado a lado e, a despeito das preocupações que lhe causava a sua precária situação, não podia deixar de comentar para si, filosoficamente, os caprichos do acaso que, num momento de fantasia, reunira lado a lado dois indivíduos tão opostos no carácter e no físico.

O interrogatório começou. Tiago Aubry nada escondeu. Declarou que, tendo reconhecido no visconde de Marmagne um fidalgo por quem fora várias vezes traído, sacara da espada de um pajem e desafiara-o. Marmagne tinha aceitado o repto, de modo que ambos contenderam por momentos até que o visconde tombou. Nada mais sabia.

— Nada mais sabeis! Nada mais sabeis! — murmurou o juiz, ditando o interrogatório ao escrivão. — Mas também não é preciso, o vosso caso é claro como água, tanto mais que o visconde de Marmagne é um dos grandes favoritos da Sr.a d'Etampes que, segundo parece, também já vos recomendou ao confessor...

— Diabo! — exclamou o estudante, que começava a ficar apreensivo. — Dizei-me cá, Senhor Juiz, o caso está assim tão feio como dizeis?

— Muito mais, meu caro amigo, muito mais! Não é que tenha por costume intimidar os meus clientes; se vos falo assim é para que, se tiverdes quaisquer disposições a fazer...

— Disposições a fazer?! — exclamou o estudante. — Mas, dizei-me, senhor meirinho, credes que isto implica risco de vida?

— Mas, decerto! — disse o juiz. — Pois quê?! Atacais um fidalgo em plena rua, forçai-lo a bater-se convosco, traspassai-lo com a espada e ainda perguntais se correis risco de vida?! Pois correis, sim, meu caro amigo, e muito grande.

— Mas, ora! tais recontros dão-se todos os dias e não me consta que os culpados sejam perseguidos!

— Pois não, mas isso é entre fidalgos, meu jovem amigo. Sim, porque se aprouver a dois fidalgos cortarem-se as goelas, estão no seu direito de fidalguia e o rei nada tem a ver com isso. Mas imaginai só que um dia os vilões se lembravam de se bater com os fidalgos!... Como há vinte vezes mais vilões que fidalgos, estes deixariam de existir; e seria pena, não achais?

— E quantos dias pensais que poderá durar o meu processo?

— Uns cinco ou seis.

— Quê?! — exclamou o estudante — cinco ou seis dias, e... pronto?!

— É claro! Morre um homem e vós confessais que o matastes; a justiça não precisa de ouvir mais nada. Mas — acrescentou o juiz, dando ao semblante uma expressão ainda mais carregada de bondade —, se dois ou três dias mais vos podem ser agradáveis...

— Muito agradáveis.

— Pois bem: arrastaremos a escrita e ganharemos tempo. No fundo, sois um bom rapaz e eu gostaria bem de fazer alguma coisa por vós.

— Agradeço-vos — disse o estudante.

— E agora — perguntou o juiz de instrução levantando-se —, tendes algum pedido a formular?

— Bastaria que me mandassem um sacerdote, pode ser?

— Certamente, estais no vosso direito.

— Nesse caso, Senhor Juiz, dizei que me mandem um.

— Vou já tratar disso, meu jovem amigo. Não me queirais mal.

— Querer-vos mal?! Pelo contrário, estou-vos gratíssimo!

— Senhor estudante — disse então a meia voz o escrivão, aproximando-se de Tiago Aubry —, seríeis capaz de me fazer um grande favor?

— Com o maior prazer — disse Aubry. — Qual é?

— Mas... se calhar tendes parentes ou amigos a quem pensais deixar tudo quanto tendes...

— Amigos? Só um, e está, como eu, na cadeia. Quanto a parentes, só tenho alguns primos, aliás bastante afastados. Por isso, falai à vontade, senhor escrivão.

— Senhor sou um pobre chefe de família, com cinco filhos...

— E daí?

— Daí, nunca tive sorte com o meu emprego, que aliás exerço, como tendes visto, com escrúpulo e probidade. Todos os meus colegas me passam à frente.

— E porquê?

— Porquê? Ah! Porquê?... Vou dizer-vo-lo.

— Dizei.

— Porque têm sorte.

— E porque têm sorte?

— Ides já sabê-lo.

— Terei muito prazer.

— Têm sorte... (aqui, o escrivão baixou ainda mais a voz) têm sorte porque trazem sempre corda de enforcado no bolso. Percebeis?

— Não.

— Sois de inteligência difícil. Mas prestai atenção. Fazeis testamento, não é?

— Testamento, eu?! E para quê?!

— Ora essa! Para que não haja processo entre os vossos herdeiros. Pois bem: escrevei no testamento que autorizais Marco Bonifácio Grimoineau, escrivão de diligências, a reclamar do carrasco um bocadinho da vossa corda.

— Ah!... — exclamou Aubry com voz estrangulada — percebo.

— E concedeis-me o que vos peço?

— Ora esta!...

— Jovem, olhai bem o que prometeis. Muitos outros fizeram idêntica promessa e, afinal, ou morreram infestados ou não foram capazes de escrever correctamente o meu nome (Marco Bonifácio Grimoineau) e houve contestação. Outros, então, apesar de culpados, conseguiram a absolvição e foram-se. A verdade é que já começava a desesperar quando aparecestes vós.

— Não tem dúvida, senhor escrivão, não tem dúvida — disse Tiago. — Desta vez podeis ficar sossegado que, se me enforcarem, tereis o que tanto desejais.

— Ah, não tenhais dúvida, Senhor, enforcam-vos com certeza.

— Então? Grimoineau! — chamou o juiz.

— Já vou, Senhor Juiz, já vou! Então fica combinado, senhor estudante?

— Combinado.

— Palavra de honra?

— Palavra de vilão!

«Então — murmurou o escrivão, despedindo-se — creio que desta vez terei o que preciso. Vou já dar esta boa notícia à minha mulher e aos meus filhos.»

E foi juntar-se ao meirinho, que bonacheiramente lhe censurou a demora.

 

         ONDE SE VÊ QUE A VERDADEIRA AMIZADE PODE LEVAR A DEDICAÇÃO ATÉ AO CASAMENTO

Ficando só, Aubry mergulhou em reflexões ainda mais profundas que as anteriores; e a verdade é que temos de concordar que da sua conversa com o meirinho podiam sair amplos temas de meditação. No entanto, apressemo-nos a dizer que quem pudesse ler no seu íntimo veria que a situação de Ascânio e Colomba, situação que dependia da carta que tinha em seu poder, ocupava o primeiro lugar nas suas preocupações e que, antes de pensar em si próprio, o que faria a seu tempo, ia pensar neles.

Haveria meia hora que Aubry cogitava nestas coisas quando a porta da sua cela se voltou a abrir e o guarda apareceu.

— Fostes vós que pedistes um padre? — perguntou ele, resmungando.

— Sim, fui eu — disse Tiago.

«Diabos me levem se sei o que têm eles todos a fazer com este monge danado! O que sei é que não podem deixar um pobre homem tranquilo mais de cinco minutos.» Entrai, Reverendo Padre, entrai e aviai-vos — disse o ajudante do carcereiro, dando passagem ao sacerdote.

Em seguida voltou a fechar a porta e, sempre resmungando, lá se foi, deixando a sós o recém-chegado e o preso.

— Fostes vós que me mandastes chamar, meu filho? — perguntou o padre.

— Fui, Reverendo Padre — respondeu o estudante.

— Desejais então confessar-vos, não é assim?

— Não é precisamente isso, queria apenas falar convosco a respeito de um caso de consciência.

— Pois então dizei, meu filho — disse o sacerdote, sentando-se no escabelo —, e se as minhas fracas luzes nos puderem guiar.

— Foi justamente para vos pedir conselho que solicitei a vossa presença.

— Escuto-vos.

— Reverendo Padre — disse Aubry —, sou um grande pecador.

— Feliz daquele que, pelo menos, o reconhece.

— Mas não é tudo, pois não só sou um grande pecador como vos disse, mas fui também o causador de que outros caíssem em pecado.

— E poderá haver alguma reparação para o mal que cometestes?

— Penso que sim, Reverendo Padre. Aquela que arrastei comigo para o abismo era uma inocente rapariga.

— Então seduziste-la? — perguntou o sacerdote.

— Sim, Reverendo Padre, foi isso mesmo.

— E quereis então reparar a vossa falta?

— Pelo menos é essa a minha intenção.

— Há só uma coisa a fazer.

— Bem o sei, e por isso demorei tanto a decidir-me. Se houvesse outra alternativa, tinha-a escolhido, qualquer que fosse.

— Desejais então desposá-la...

— Lá desejar, não desejo, não!... Não vos quero mentir; não desejo, mas... mas resigno-me.

— Mais valia um sentimento mais puro, mais elevado.

— Que quereis, meu Reverendo Padre, há pessoas que nasceram com vocação para o casamento e outras para o celibato. Este último era o meu caso e, se não fossem as circunstâncias extremas em que me encontro, juro-vos que...

— Está bem, meu filho; mas como vos podeis arrepender de tão boas intenções, dir-vos-ei que quanto mais depressa as realizardes melhor.

— E esse «quanto mais depressa» quando poderia ser?

— Meu Deus! — respondeu o padre — como se trata de um casamento in extremis, obtêm-se logo todas as dispensas, de modo que depois de amanhã...

— Pois seja depois de amanhã — exclamou o estudante com um suspiro

— E ela, a jovem?

— Que tem?

— Ela estará de acordo?

— De acordo com quê!?

— Com o casamento.

— Essa é boa!... De acordo e agradecida! Não é todos os dias que lhe fazem tais propostas.

— Então não há nenhum impedimento?

— Nenhum.

— Os parentes do vosso lado?

— Ausentes.

— Do lado dela?

— Desconhecidos.

— Como se chama?

— Gervásia Pierrette Popinot.

— Quereis encarregar-me de lhe transmitir esta notícia?

— Se quereis ter esse incómodo, Reverendo, ficar-vos-ei infinitamente grato.

— Preveni-la-ei hoje mesmo.

— Dizei-me, Reverendo Padre: não poderíeis por exemplo levar-lhe uma carta?

— Não, meu filho; todos quantos nos dedicamos ao serviço dos presos prestámos juramento de que jamais levaríamos qualquer mensagem da sua parte a não ser depois da execução. Nessa altura, tudo o que quiserdes.

— Obrigado, mas nessa altura já não valia a pena. Fiquemos pelo casamento — murmurou Aubry.

— Não há algo mais que me queirais dizer?

— Nada, a não ser que, se duvidassem das minhas afirmações ou se surgisse qualquer obstáculo, o oficial de diligências tem em seu poder uma queixa da dita Gervásia Pierrette Popinot, a qual provaria à justiça que tudo quanto afirmei é exacto.

— Confiai em que saberei aplanar todas as dificuldades — retorquiu o padre, que julgara perceber que Tiago Aubry não agia com entusiasmo cedendo apenas à necessidade. — Daqui a dois dias...

— Daqui a dois dias...?

— Tereis restituído a honra àquela a quem a tirastes.

— Ai de mim! — murmurou o escolar, soltando um profundo suspiro.

— Bem, meu filho — exclamou o Padre —, quanto mais um sacrifício nos custa, tanto mais agradável é a Deus.

— Caramba! — disse o estudante — nesse caso, Deus pode estar-me bem agradecido. Ide, Reverendo Padre, ide.

Não fora efectivamente sem uma viva oposição a si próprio que Tiago Aubry tomara aquela decisão. Como dissera a Gervásia, tinha herdado muito da antipatia paterna pelo casamento, e fora preciso a sua amizade por Ascânio, aliada à ideia de ter causado a sua desgraça, para chegar àqueles extremos de abnegação. É certo que a consideração de alguns dos mais belos exemplos de dedicação da Antiguidade não foi estranha à concepção do seu gesto.

Mas, perguntará o leitor, que tem a ver o casamento de Gervásia e Aubry com a felicidade de Ascânio e Colomba? Como é que Aubry desposando a sua amante poderá salvar o seu amigo?

Queira o leitor dar-se ao incómodo de acabar de ler este capítulo e verá a sua curiosidade satisfeita. Mas creio que podia evitar esse incómodo com um espírito mais subtil...

Depois que o sacerdote partiu, Aubry, impossibilitado já de voltar com a palavra atrás, pareceu mais sossegado. É o que acontece sempre com as resoluções, mesmo as mais terríveis; a calma vem sempre após elas; o espírito repousa depois da luta, o coração sossega depois da indecisão.

Tiago Aubry entregou-se, pois, a um despreocupado repouso até ao momento em que percebeu ruídos na cela de Ascânio. Pensou logo que aqueles ruídos eram causados pela entrada do carcereiro com o almoço, e isso era uma garantia de tranquilidade para as próximas horas. Consequentemente, deixou passar alguns minutos e, quando lhe pareceu que já nenhum ruído perturbava o silêncio, enfiou pela galeria de comunicação e, ao fim de poucos segundos, soerguia com a cabeça a esteira da cela de Ascânio. Esta encontrava-se mergulhada em completa escuridão.

Aubry chamou em voz baixa; ninguém respondeu; a masmorra estava completamente deserta.

A primeira reacção de Aubry foi um sentimento de alegria. Ascânio estava livre, pensou, e nesse caso já ele não tinha necessidade de... Mas não tardou a recordar-se das palavras da duquesa recomendando que mudassem Ascânio para uma cela mais cómoda. A recomendação da Sr.a d'Étampes fora atendida e o ruído que o estudante tinha ouvido correspondia à mudança do seu amigo.

O clarão de esperança que lhe surgira no espírito desapareceu como um relâmpago.

Deixou recair a esteira e, aos recuões, voltou para a sua cela. Sentia-se desanimado. Até a companhia do amigo por quem se sacrificava lhe tinham tirado.

Não lhe ficava outro recurso que entregar-se à reflexão, mas Tiago Aubry tinha já reflectido durante tanto tempo e com resultados tão dolorosos, que resolveu antes dormir.

Atirou-se, pois, para cima do leito e, como andava com as horas de sono muito atrasadas, não tardou a vencer as preocupações de espírito adormecendo profundamente.

Sonhou que tinha sido condenado à morte e enforcado. Mas, como o carrasco não havia encerado suficientemente a corda, o enforcamento ficara incompleto. O pior de tudo foi, porém, que o enterraram mesmo assim. Aubry começava já a devorar os próprios braços, como é uso, quando o escrivão, que não desistia de obter o seu pedaço de corda, apareceu, voltou a abrir o coval e lhe restituiu, ao mesmo tempo, a vida e a liberdade.

Pobre Tiago! Aquilo não passava de um sonho, de modo que, quando o estudante acordou, achou-se outra vez sem liberdade e com a vida muito insegura.

Toda aquela tarde, a noite, e o dia seguinte se passaram sem que Aubry recebesse outras visitas além das do carcereiro. Tentou tirar dele algumas palavras, mas nada conseguiu.

A meio da noite seguinte, dormia o estudante o seu primeiro sono quando a porta da sua cela girou nos gonzos, acordando-o de sobressalto. Por melhor que durma qualquer preso, o ruído de uma porta a abrir-se acorda-os infalivelmente.

O estudante ergueu-se na sua enxerga.

— Levantai-vos e vesti-vos — disse a voz rude do carcereiro enquanto por trás de si brilhavam, à luz da tocha que trazia, as alabardas de duas sentinelas do prebostado.

A segunda injunção era perfeitamente inútil pois, como a enxerga de Tiago não dispunha de qualquer espécie de roupa, o estudante deitava-se sempre vestido.

— Onde me quereis conduzir? — perguntou Tiago Aubry, ainda estremunhado.

— Não vos falta curiosidade — disse o carcereiro.

— Contudo, gostaria de saber — continuou o estudante.

— Vamos lá e pouca conversa! Acompanhai-me. Era inútil qualquer resistência; o preso obedeceu.

O carcereiro ia à frente; depois seguia Tiago Aubry, e os dois guardas fechavam o cortejo.

Aubry olhava em redor de si com uma inquietação que nem se dava ao trabalho de esconder. O seu receio era uma execução nocturna. Uma coisa, porém, o tranquilizava; não via padre nem carrasco.

Ao cabo de dez minutos, Aubry achou-se na primeira sala aonde o tinham conduzido ao entrar para o Châtelet, mas aí, em vez de se dirigirem para a porta de entrada, como Tiago chegara a imaginar, tanto a desgraça nos predispõe para as ilusões, o seu guia abriu uma porta dissimulada num ângulo, passando todos a um corredor interior que ia dar a um pátio.

A primeira coisa que o preso fez ao encontrar-se de novo ao ar livre e ao voltar a ver o céu foi respirar a plenos pulmões. Não sabia quando lhe voltariam a conceder tão mimoso regalo.

Em seguida, divisando ao fundo do pátio as janelas ogivais de uma capela do século XIV, começou a adivinhar do que se tratava.

A veracidade de narração que nos impusemos obriga-nos a revelar que, àquele pensamento, as forças quase lhe faltaram.

Contudo, a lembrança de Ascânio e de Colomba, bem como a grandeza da bela acção que ia praticar, salvando-os, ampararam-no na sua angústia.

Assim pensando, caminhou a passo bastante seguro em direcção à igreja. Ao passar os umbrais da porta, acabou de compreender tudo.

O sacerdote achava-se já no altar; uma mulher aguardava-o no coro: era Gervásia.

Ao atravessar a nave, encontrou o governador do Châtelet, que lhe disse:

— Pedistes que vos fosse concedido, antes de morrer, restituirdes a honra à jovem a quem a tirastes. O pedido era justo e vai-vos ser outorgado.

Tiago sentiu a cabeça andar-lhe à roda, mas levou a mão à carta da duquesa d'Étampes e recobrou coragem.

— Oh! Meu pobre e querido Tiago! — exclamou Gervásia, vindo lançar-se nos seus braços. — Quem me houvera de dizer que esta hora tão desejada havia de soar em semelhantes circunstâncias!...

— Que queres tu, minha querida... — exclamou o estudante recebendo-a de encontro ao peito. — Só Deus sabe a quem deve castigar ou recompensar. Submetamo-nos à Sua divina vontade.

Depois, em voz baixa, e passando-lhe sorrateiramente para a mão a carta da duquesa:

— Para Benvenuto! Só a ele!

— Que é lá isso!? — exclamou o governador precipitando-se para os noivos.

— Nada. Estou a dizer à Gervásia que a amo.

— Como é de crer que ela não venha a ter tempo de se aperceber do contrário, são inúteis semelhantes protestos. Aproximai-vos do altar e apresse-se a cerimónia.

Aubry e Gervásia, sem soltarem pio, caminharam para o sacerdote. Ao chegarem perto dele, ajoelharam, e a missa começou.

Bem gostaria Tiago de poder trocar algumas palavras mais com Gervásia que, por seu lado, ansiava por exaltar a sua gratidão para com o estudante; mas dois guardas postados de um e outro lado dos noivos espiavam todos os seus gestos e palavras. Já tinham tido muita sorte que o governador, movido decerto pela compaixão, lhes tivesse permitido aquele abraço, graças ao qual a carta da duquesa passara das mãos de Aubry para as de Gervásia. Se essa oportunidade se tivesse perdido, a vigilância que depois se exerceu sobre os desposados teria tornado perfeitamente inútil a abnegação de Tiago.

Era evidente que o sacerdote tinha recebido instruções especiais, pois que a cerimónia foi consideravelmente abreviada. Quiçá pensasse também que não valia a pena fazer grandes recomendações conjugais e paternais a um homem que ia ser enforcado dentro de dois ou três dias.

Terminada a alocução, dada a bênção e dita a missa, Aubry e Gervásia pensaram que lhes seriam concedidos alguns breves momentos a sós, mas não aconteceu assim. Apesar das lágrimas de Gervásia, que se desfazia literalmente em água, os guardas separaram-nos.

Tiveram, no entanto, o tempo necessário para trocar um eloquente olhar. Os olhos de Aubry pareciam dizer: «Pensa na missão que te confiei.» Os de Gervásia pareciam responder: «Fica descansado, que eu me desempenharei dela ainda hoje ou amanhã de manhã, o mais tardar.»

Em seguida arrastaram cada um para seu lado. Gervásia foi galantemente posta no meio da rua. Tiago foi reconduzido, com certa delicadeza, à sua masmorra.

Ao ali entrar, o estudante soltou um suspiro mais profundo do que quantos exalara desde a sua entrada na prisão: estava casado!

Foi assim que, qual novo Curtius, Tiago Aubry, por mera dedicação, se precipitou no abismo do himeneu.

 

         A FUNDIÇÃO

Agora, com licença dos nossos leitores, deixemos por instantes o Châtelet e voltemos ao Palácio de Nesle.

Aos gritos de Benvenuto, todos os artífices tinham acorrido, seguindo-o até à fundição.

Todos sabiam como ele era no trabalho; mas jamais lhe tinham visto brilhar no rosto semelhante ardor; os seus olhos pareciam emitir labaredas. Se alguém o pudesse ter modelado naquele instante, tal como ele ia modelar o seu Júpiter, teria dotado o mundo com a mais bela e prodigiosa estátua do génio da Arte que ainda ninguém realizou.

Estava tudo pronto; o modelo de cera, recoberto da sua camada de barro, esperava, circundado de ferro e já no forno de cápsula, o instante de vida. Até a lenha já estava preparada, e Benvenuto acendeu-a em quatro pontos diferentes; como era lenha de pinheiro que o artista mandara secar cuidadosamente durante muito tempo, o fogo depressa se comunicou a todas as partes do forno e o molde não tardou a tornar-se o centro de uma fogueira imensa. A cera começou então a sair pelos orifícios de escape, enquanto que, por sua vez, o molde começou a cozer. Ao mesmo tempo, os artífices cavavam junto ao forno uma enorme fossa onde o metal devia entrar em fusão, pois Benvenuto queria que se não perdesse um só instante e que, mal o molde estivesse cozido, se procedesse à fundição.

Foi necessário um dia e meio para que toda a cera escorresse do molde. Durante esse tempo, enquanto os artífices se revezavam, por quartos, para repousar, como os marinheiros de um navio de guerra, Benvenuto não saiu de junto do forno, ora alimentando a enorme fogueira, ora incitando os companheiros de trabalho. Até que, em dado momento, conheceu que toda a cera havia escorrido e que o molde estava perfeitamente cozido. Faltava ainda a fundição do bronze e o seu escoamento para o interior do molde.

Nesta altura, os operários, que não podiam compreender o ardor furioso e a força sobre-humana de Cellini, pediram-lhe que repousasse algumas horas mas, como eram horas a acrescentar ao cativeiro de Ascânio e aos tormentos de Colomba, o mestre recusou. Aquele homem parecia feito do mesmo bronze em que ia fundir um deus.

A fossa estava terminada. Benvenuto e os homens cingiram então o molde de potentes cabos e, com a ajuda de cabrestantes especiais, levantaram-no, com infinito cuidado, até atingir o nível do forno; uma vez aí, fixaram-no por meio da terra extraída da fossa, comprimindo-a por camadas e incluindo alguns tubos de barro cozido que constituiriam respiradouros. Com todos estes preparativos se gastou todo o resto do dia, e chegou a noite. Havia quarenta e oito horas que Benvenuto não se deitara, nem se havia sentado uma só vez. Os operários suplicavam-lhe que descansasse uns momentos, Scozzone ralhava, mas Benvenuto nada queria ouvir. Era como se o animasse uma força mágica; às súplicas, respondia com ordens breves e duras a cada operário, segundo as tarefas que se impunham; era um verdadeiro general em campanha, ordenando a manobra aos seus homens.

Benvenuto quis proceder imediatamente à fundição. O enérgico artista, que sempre vira cederem-lhe todos os obstáculos, tinha agora que experimentar o império das suas forças sobre si próprio. Esmagado pela fadiga, devorado de apreensões, ardendo em febre, ordenava ao seu corpo que agisse, e aquele corpo de ferro obedecia, enquanto os seus companheiros se viam forçados a retirar-se um após outro, tal como os feridos durante a batalha a quem levam para a retaguarda.

O forno para a fundição estava pronto. Benvenuto mandara-o encher de lingotes de cobre e estanho, simetricamente dispostos uns sobre os outros, e de modo a que o calor circulasse perfeitamente entre eles para que a fusão fosse mais rápida e completa. Tal como para a primeira fornalha, Benvenuto acendeu a nova fogueira e, como era tudo lenha de pinheiro impregnada de resina, não tardaram a formar-se chamas tão alterosas que passado pouco tempo atingiram o telhado da fundição; como este era também de madeira, pegou fogo imediatamente. À vista e, sobretudo, ao calor deste incêndio, todos os operários à excepção de Hermann se afastaram. Mas o vigoroso alemão e Benvenuto bastaram para enfrentar a situação. Cada um deles pegou num machado e começou a abater os pilares de madeira que sustentavam o barracão. Servindo-se então de compridos arpões, Benvenuto e Hermann lançaram os escombros ardentes para a fornalha, e a violência das chamas ateou-se de tal maneira que os metais começaram imediatamente a fundir.

Mas, nesta altura, chegou Benvenuto ao termo das suas forças descomunais. Havia perto de sessenta horas que não dormia e vinte e quatro que não tomava qualquer alimento, sem nunca deixar de ser a alma de todo aquele trabalho, o eixo de toda aquela azáfama. Uma febre terrível apoderou-se dele; as suas habituais boas cores deram lugar a mortal palidez. Não obstante encontrar-se numa atmosfera tão ardente que ninguém conseguia permanecer a seu lado, sentia os membros tremer e bater os dentes como se estivesse em plenas neves da Lapónia. Os companheiros, notando o seu estado, correram para ele e redobraram de insistências para que saísse e repousasse. Benvenuto ainda quis resistir, dissimular a sua derrota, porque para aquele homem ceder, mesmo ante o impossível, era uma vergonha; mas teve que confessar que se sentia desfalecer. Felizmente, porém, a fusão estava concluída; o mais difícil estava feito; o resto era uma tarefa mecânica fácil de executar. Chamou Pagolo, mas Pagolo não estava. No entanto, aos gritos dos companheiros, que repetiam o seu nome em coro, o jovem apareceu; vinha, segundo disse, de rezar pelo feliz sucesso da fundição.

— Não é ocasião para rezar! — exclamou Benvenuto — o Senhor disse: «Quem trabalha reza.» O momento é de trabalho, Pagolo. Ouve, sinto-me morrer; mas, quer morra, quer não morra, o que é preciso é que o meu Júpiter viva. Pagolo, meu amigo, é a ti que confio a direcção da moldagem, e estou certo de que, se quiseres, a saberás executar tão bem como eu próprio. Bem sabes, Pagolo, o metal não tardará a estar pronto; não podes enganar-te quanto ao seu grau de cozedura. Logo que se torne vermelho, darás ordem a Hermann e a Simão Canhoto que peguem cada um no seu maço. Ai, Deus!... que dizia eu?... Ah, sim... depois, hão-de bater uma pancada nos dois tampos dos fornos. Então, o metal há-de correr... e... se eu tiver morrido, deveis dizer ao rei que ele me prometeu conceder-me uma graça... que é... Oh! Meu Deus! Já não me lembro!... Que é que eu devia pedir ao rei?... Ah, já sei!... Ascânio... senhor de Nesle... Colomba, a filha do preboste... d'Orbec... a duquesa d'Étampes... Ah!... Enlouqueço!

Como Benvenuto começava a cambalear, Hermann correu para ele e amparou-o. Em seguida, tomou-o nos braços e levou-o para o seu quarto, enquanto Pagolo, encarregado de dirigir a moldagem, dava ordens para que a operação prosseguisse.

Terrível delírio se apoderara entretanto de Benvenuto Cellini. Scozzone, que, tal como Pagolo, devia estar rezando, acorreu para lhe prestar ajuda. Mas Benvenuto não cessava de gritar.

— Estou morto!... Vou morrer!... E Ascânio!?... E Ascânio!?... Que será de Ascânio?... Naquele momento, mil visões delirantes se lhe apresentavam ao olhar febril. Ascânio, Colomba e Stéfana, ora cresciam ante os seus olhos como espectros, ora se desvaneciam como sombras. Depois perpassavam as imagens ensanguentadas do ourives Pompeios, que matara com uma punhalada, e o correio-mor de Sena, que matara com um tiro de arcabuz. Na sua mente, o presente e o passado confundiam-se. Ora era Clemente VII que mantinha Ascânio na prisão, ora era Cosme I que queria forçar Colomba a desposar d'Orbec. Depois, dirigia-se à duquesa Eleonor, cuidando falar com a duquesa d'Etampes; suplicava, ameaçava. Logo a seguir, ria-se na cara da pobre e chorosa Scozzone; dizia-lhe que era preciso ter cuidado, não fosse Pagolo quebrar o pescoço a correr assim pelas cornijas como um gato. Depois, a estes momentos de agitação delirante, sucediam intervalos de prostração completa, durante os quais parecia aproximar-se o fim.

Esta agonia durava havia cerca de três horas. Benvenuto encontrava-se num daqueles períodos de torpor que dissemos quando, de repente, Pagolo irrompeu pelo quarto, pálido, sucumbido, exclamando:

— Que Jesus e a Virgem nos socorram, mestre! Está tudo perdido! só o Céu agora nos poderá valer!

Benvenuto, em seu torpor, parecia desmaiado e moribundo; no entanto estas palavras penetraram como um estilete até ao mais profundo do seu coração. A névoa que obscurecia a sua inteligência dissipou-se e, tal como Lázaro levantando-se à voz do Senhor, soergueu-se do leito, gritando:

— Quem foi que disse que estava tudo perdido enquanto Benvenuto vivia ainda!?

— Ai de nós, mestre! fui eu! — disse Pagolo.

— Rematado infame! — exclamou Benvenuto. — Estava então escrito que me havias de trair constantemente!?... Mas descansa, que Jesus e a Virgem, que invocavas ainda agora, lá estão para ajudar os homens de boa vontade e para punir os traidores...

Neste momento ouviram-se os operários, que se lamentavam chamando:

— Benvenuto! Benvenuto!

— Ele aqui vem! Ele aqui vem! — exclamou o artista precipitando-se para fora do quarto, pálido de morte mas com recuperadas forças e razão. — Ele aqui está! E ai de quem não tenha cumprido o seu dever!

Em dois saltos, Benvenuto achou-se na fundição, indo encontrar abatida e estupefacta toda aquela turma de operários que deixara cheia de ardor. O próprio Hermann parecia morrer de cansaço; o colosso cambaleava e tinha que apoiar-se a um dos pilares do barracão que ainda estava de pé.

— Ora vamos lá, ouçam-me! — exclamou Benvenuto, com voz terrível, caindo no meio deles como um raio. — Ainda não sei o que aconteceu, mas por minha alma vos asseguro que terá remédio. Obedecei-me pois, mas passivamente, sem dizer palavra, porque matarei o primeiro que hesitar. Isto que disse é para os maus. Para os bons, só tenho a dizer isto: a liberdade, a felicidade de vosso companheiro Ascânio, que tanto amais, dependem do êxito deste trabalho. Vamos pois a isto!

Ditas estas palavras, Cellini aproximou-se do forno para ajuizar por si mesmo da situação. A lenha não tinha sido bastante, de maneira que o metal arrefecera, solidificando.

Benvenuto viu imediatamente que a coisa podia ser solucionada. Era evidente que Pagolo tinha descuidado a vigilância e o calor da fornalha fora-se abaixo. Era preciso reforçar imediatamente as chamas e liquefazer o mais possível todo o metal.

— Lenha! — exclamou Benvenuto — lenha! Procurem-na por toda a parte onde a possa haver. Corram às padarias e, se for necessário, paguem-na a peso de ouro. Tragam até às últimas aparas que houver na casa. Se Dona Perrine te não quiser abrir as portas do Petit-Nesle, arromba-as; tudo é permitido em campo inimigo. Lenha! Lenha!

E, para dar o exemplo, Benvenuto pegou num machado e começou a abater os dois postes que ainda estavam de pé, e que depressa tombaram com o resto do telhado, que Benvenuto lançou imediatamente para a fogueira; quase ao mesmo tempo, chegavam por todos os lados os companheiros carregados de lenha.

— Isso mesmo! — exclamou Benvenuto — estais dispostos a obedecer-me?

— Estamos! Estamos! — gritaram todas as vozes — a tudo o que mandardes e enquanto nos restar um sopro de vida.

— Então, escolhei tudo o que for carvalho e lançai-o primeiro; a lenha de carvalho faz um fogo mais vivo, e assim o remédio será mais rápido.

Num instante começaram a chover na fornalha tantas braçadas de carvalho que Benvenuto viu-se obrigado a gritar:

— Basta!

A portentosa energia da sua alma comunicara-se a todas as outras; todas as suas ordens, todos os seus gestos, eram compreendidos e executados no mesmo instante. Apenas Pagolo, de vez em quando, murmurava entre dentes:

— Quereis fazer impossíveis mestre, olhai que isso é tentar a Deus.

A isto respondia Cellini com um olhar que queria dizer: «Descansa, que ainda teremos as nossas contas a ajustar.»

Entretanto, apesar das sinistras profecias de Pagolo, o metal começava a entrar de novo em fusão e, para apressá-la, Benvenuto lançava de vez em quando no forno algumas placas de chumbo, remexendo toda a massa fundente com uma comprida barra de ferro. Aquele cadáver de metal começava, como ele dizia, a regressar à vida. À vista de tão bom andamento, Benvenuto, alegre, já não sentia febre nem fraqueza; também ele ressuscitava.

Até que se começou a ver o metal ferver e subir. Sem perder um segundo, Benvenuto abriu o orifício do molde e mandou bater sobre os tampos do forno, o que também foi executado imediatamente. Mas, como se esta obra gigantesca devesse ser, até ao fim, um combate de Titãs, mal se tiraram os tampos Benvenuto não só notou que o metal não corria com suficiente rapidez mas também que a sua quantidade era insuficiente. Ocorreu-lhe, então, no mesmo instante, uma ideia suprema, como só aos grandes artistas pode lembrar.

— Metade de vós — disse ele — fique aqui para lançar lenha à fogueira; a outra metade siga-me.

Momentos depois, reapareceram todos, transportando baixela de prata e de estanho, lingotes, gomis meio terminados e tudo o que de metálico puderam achar. Benvenuto deu o exemplo, e logo todos lançaram as suas cargas preciosas ao forno, que logo tudo devorou, bronze, chumbo, prata, cinzelagens maravilhosas, com a mesma indiferença com que teria devorado o próprio artista se também ele para lá se tivesse atirado.

Mas, graças a este acréscimo de matérias fusíveis, o bronze tornou-se perfeitamente líquido e, como que arrependido da sua anterior hesitação, começou a correr em caudal. Sucedeu então um momento de ansiosa expectativa, que quase se transformou em terror quando Benvenuto se apercebeu de que todo o bronze escorrido não atingia o orifício do molde.

Sondou-o então com uma comprida vara e sentiu que, sem ter chegado ao topo do cavado, o bronze tinha no entanto ultrapassado a cabeça do Júpiter.

Então, ajoelhou e deu graças a Deus. A obra que devia salvar Ascânio e Colomba estava terminada. Se Deus o quisesse permitir, sairia perfeita. Mas isso Benvenuto só o poderia saber no dia seguinte.

Aquela noite foi, como era de supor, uma noite de angústia: Benvenuto, apesar de exausto, quase não dormiu, e o tempo que dormiu não lhe foi descanso. Mal o artista cerrava os olhos, os objectos reais davam lugar aos fantásticos.

Via o seu Júpiter, esse senhor dos céus, esse rei de olímpica beleza, feio e disforme como o seu filho Vulcano. Não compreendia. Teria sido por causa do molde? Da fundição? Ter-se-ia enganado na sua obra? Ter-se-ia o destino desta vez burlado do artista? Então o peito comprimia-se-lhe, as fontes latejavam-lhe febris e Benvenuto despertava com o coração aos saltos e a testa inundada de suor. Durante alguns momentos ainda duvidava, confundindo a verdade com a mentira, a vigília com o sonho. Por fim, recordava-se de que o seu Júpiter estava ainda escondido no molde, como o filho no seio de sua mãe. Recordava então uma a uma todas as precauções que tomara, e pedia a Deus que atentasse em que o seu desejo não era apenas fazer uma bela estátua, mas também uma boa acção. Depois, mais calmo e sossegado, adormecia ao peso de um cansaço que parecia jamais dever deixá-lo; e começava então um novo sonho, ainda mais insensato e terrível que o primeiro.

Mas o dia nasceu e, ao ver a luz, Benvenuto sacudiu o jugo do sono e dos pesadelos. Em poucos segundos estava a pé e vestido; num salto, achou-se na fundição.

O bronze, evidentemente, ainda estava mais quente do que convinha para se pôr em contacto com o ar. Mas Benvenuto tinha tanta pressa de saber o que tinha a esperar da sua obra e do rei, que começou a descobrir a cabeça da estátua. Quando pôs a mão no molde, a sua palidez era tal que parecia estar para morrer.

— Ainta estais toente, mestre? — perguntou uma voz, em cujo sotaque Benvenuto reconheceu Hermann. — Tefíeis ficar na cama.

— Estás enganado, amigo Hermann — disse Benvenuto, admirado de o encontrar tão cedo a pé. *— Se ficasse na cama, morria. Mas como é que já estás levantado a estas horas?!

— Antafa apatsear — disse Hermann, corando até ao branco dos olhos —, gosto muito te patsear, te manhã tseto. Quereis quefos adjute, mestre?

— Não! Não! — exclamou Benvenuto. — Ninguém toca neste molde; só eu! Espera!... Espera!...

E, cuidadosamente, começava a descobrir a parte superior da estátua. Por miraculoso acaso, o metal chegara mesmo ajusta. Se Benvenuto não tivesse tido a ideia de lançar no forno as suas pratas, salvas e gomis, a fundição não teria resultado; a estátua não teria cabeça.

Mas felizmente não acontecera assim. Júpiter tinha cabeça, e maravilhosamente bela.

Vendo isto, Benvenuto cobrou coragem para descobrir sucessivamente todas as outras partes da obra. Aos poucos, o molde foi caindo como uma casca, e Júpiter, livre, enfim, dos pés à cabeça, surgiu magnífico e majestoso, como convinha ao rei do Olimpo. O bronze não apresentava o mínimo defeito em toda a estátua. Quando caiu o último pedaço de greda, ouviu-se um grito geral de animação entre os operários que, em silêncio, se tinham vindo aproximando e agrupado em torno do mestre que, demasiado ocupado com os pensamentos que aquele triunfo lhe suscitava, nem sequer tinha dado fé da chegada deles.

Mas, àquele grito, que também o tornava feliz como um deus, Benvenuto levantou a cabeça e disse com um sorriso de orgulho:

— Ah! Vamos ver se o rei de França se atreve a recusar o primeiro pedido que lhe fizer o autor de semelhante estátua!

Em seguida, como que arrependido daquele seu primeiro assomo de orgulho, que todavia lhe estava no carácter, Benvenuto caiu de joelhos e, pondo as mãos, rezou em voz alta uma acção de graças ao Senhor.

Quando acabava de rezar, Scozzone veio a correr dizer a Benvenuto que a senhora de Tiago Aubry pedia para lhe falar a sós, pois era portadora de uma carta do marido que só a Benvenuto podia entregar.

Scozzone teve de repetir o nome do visitante, pois Benvenuto ignorava que Aubry tivesse legítima esposa. Mas nem por isso deixou de apressar-se em ir ao seu encontro, deixando todos os companheiros dando largas à sua admiração e ao orgulho de o terem por mestre.

No entanto, depois de minuciosa inspecção, Pagolo conseguiu descobrir uma ligeira imperfeição no calcanhar do deus; fora sem dúvida devida a qualquer pequeno obstáculo que impedira o metal de chegar, naquele ponto, até ao fundo do molde.

 

         JÚPITER E O OLIMPO

No mesmo dia em que Benvenuto pusera a descoberto a sua estátua, mandou dizer a Francisco I que o seu Júpiter estava fundido e que desejava saber quando devia levar o rei do Olimpo à presença e apreciação do rei de França.

Francisco I respondeu a Benvenuto que seu primo o imperador, e ele, deviam ir caçar, na quinta-feira seguinte, para Fontainebleau; que Benvenuto não tinha mais que mandar transportar a estátua, de modo a poder figurar, nesse dia, na galeria grande do castelo.

A resposta era seca. Tornava-se evidente que a duquesa d'Étampes lograra predispor fortemente o rei contra o seu artista predilecto.

Mas, fosse por orgulho, fosse porque confiava em Deus, Benvenuto contentou-se em responder, sorrindo:

— Está bem.

Naquele dia era segunda-feira. Benvenuto mandou colocar o Júpiter num carro e, montando a cavalo, acompanhou-o ele próprio, sem o abandonar um só instante, com receio de que sucedesse' alguma desgraça. Quinta-feira, às dez da manhã, Benvenuto e a sua obra chegavam a Fontainebleau.

Bastava ver passar Benvenuto para se conhecer que levava na alma sentimentos de nobre orgulho e esperança. A sua consciência de artista dizia-lhe que tinha realizado uma obra-prima, e o seu coração de homem honrado segredava-lhe que ia fazer uma boa acção. Estava portanto duplamente feliz e levantava bem alto a cabeça, como homem sem ódios nem temores. O rei ia ver o Júpiter e, sem dúvida, achá-lo belo. Montmorency e Poyet recordar-lhe-iam a sua palavra. O imperador e toda a corte estariam presentes. Francisco I ver-se-ia compelido a cumprir a palavra dada.

Por seu lado, a duquesa d'Étamps, com menos suave alegria, mas com idêntica e ardorosa paixão, urdia os seus planos. Tinha triunfado do primeiro ímpeto de Benvenuto, quando este se apresentou em casa dela e no Louvre. Debelara aquele perigo, mas a duquesa pressentia que havia outro maior na promessa do rei a Benvenuto e queria a todo o custo afastá-lo também. Com aquela profunda habilidade feminina que nela quase equivalia ao génio, a duquesa precedera Cellini e tomara as suas disposições.

Cellini não tardaria a reconhecer a terrível intuição da duquesa.

Ao entrar na galeria onde o seu Júpiter ficaria exposto, Benvenuto reconheceu logo o golpe de mestre que a favorita lhe vibrava, e por instantes sentiu-se aniquilado.

Aquela galeria, esplendorosa já com as pinturas de Rosso, que só por si bastavam para distrair a atenção da maior obra-prima, tinha sido enriquecida ainda durante os três últimos dias

com as belas estátuas enviadas de Roma por Primando, quer dizer, com as maiores maravilhas da escultura antiga, obras consagradas pela admiração de vinte séculos. Desafiando toda e qualquer comparação, esmagando qualquer rivalidade, lá estavam Ariana, Vénus, Hércules, Apolo, Júpiter, o grande Júpiter Olímpico, figuras ideais, sonhos do génio, eternidades de bronze, formando como que um concílio sobre-humano, um tribunal sublime cuja sentença faria tremer qualquer artista.

Colocar o seu Júpiter ao lado do antigo, naquele olimpo, era atirar a luva a Fídias, era uma espécie de profanação e de blasfémia que, por mais confiante que estivesse no seu valor, fez recuar três passos Benvenuto.

Acrescentemos a isto que aquelas estátuas imortais tinham ocupado, como aliás era seu pleno direito, os pontos mais belos e evidentes, de maneira que ao pobre Júpiter de Cellini não restavam mais que uns poucos cantos obscuros, aonde apenas se podia chegar depois de ter passado sob o olhar fixo e imponente das maravilhosas estátuas antigas.

Benvenuto, triste, com a cabeça inclinada, de pé junto à porta da galeria, percorria-a com um olhar melancólico mas maravilhado.

— Sr. Dom António Le Maçon — disse ele ao secretário do rei, que o acompanhava —, eu quero, eu devo levar já daqui o meu Júpiter. O discípulo não se atreverá a disputar com os mestres. A criança não tentará lutar contra os antepassados. Proíbem-mo o meu orgulho e a minha modéstia.

— Benvenuto — respondeu o secretário do rei —, acreditai no que vos diz um amigo sincero. Se fizerdes o que dizeis, desgraçais-vos. Aqui entre nós, digo-vos que essa prova de desencorajamento é precisamente o que se espera de vós, que assim admitireis a vossa impotência. Por mais que eu apresente as vossas desculpas ao rei, Sua Majestade, que está impaciente por ver a vossa obra, nada quererá ouvir e, sob a influência premente em que está da Sr.a d'Étampes, retirar-vos-á imediatamente e sem apelo as suas boas graças. É o que se espera e o que eu receio. Não é portanto com os mortos, mas com os vivos, que a vossa luta é perigosa.

— Tendes razão, Senhor — respondeu o mestre ourives — compreendo-vos e agradeço-vos o terdes-me lembrado de que não tenho o direito de querer poupar o meu amor-próprio.

— Ora ainda bem, Benvenuto. Mas escutai ainda um último conselho. A Sr.a d'Étampes está hoje demasiado encantadora para não ter em mente alguma perfídia. Arrastou com tanta graça e alegria o imperador e o rei para um passeio no bosque, que chego a recear por vós que ela encontre maneira de por lá os demorar até à noite.

— Pensais isso?! — exclamou Benvenuto, empalidecendo. — Mas nesse caso estaria perdido, a minha estátua seria vista a uma luz falsa que lhe tiraria metade do valor!

— Deus queira que me tenha enganado — disse Dom António Le Maçon —, e esperemos os acontecimentos.

Cellini começou de facto a esperar, mas com uma ansiedade frenética. Colocara o seu Júpiter o menos mal possível, mas não tinha a mínima ilusão de que, ao cair da noite, o efeito da estátua não seria medíocre e, noite fechada, não chegasse mesmo a ser mau. O ódio da duquesa tinha calculado tão bem como a ciência do escultor; em 1541, já ela adivinhava um artifício da crítica do século dezanove.

Benvenuto olhava com desespero para o Sol, que descia sobre o horizonte, e estudava ansiosamente todos os ruídos que chegavam de fora. Além dos criados, ninguém mais se encontrava no palácio.

Deram as três. As intensões da duquesa começaram a tornar-se evidentes, e o seu sucesso começava a não oferecer dúvidas. Benvenuto deixou-se cair desalentado sobre uma poltrona.

 

Estava tudo perdido; primeiro, a sua glória. Aquela luta febril no meio da qual quase sucumbira, e que já havia esquecido, por pensar que, graças a ela, triunfaria, teria apenas por resultado a vergonha. Contemplava dolorosamente a sua estátua, à volta da qual adejavam já as sombras da noite, e cujas linhas já começavam a parecer menos puras.

De repente, veio-lhe uma ideia espantosa; levantou-se, chamou Jehan Pequeno, que trouxera consigo, e saiu precipitadamente. Nenhum ruído anunciava por enquanto o regresso do rei. Benvenuto correu a casa de um marceneiro da vila e, com a sua ajuda e a dos seus operários, construiu, em menos de uma hora, uma pequena peanha de carvalho, montada sobre quatro esferas que rolavam facilmente para qualquer lado.

O seu receio agora era de que a corte chegasse; mas, às cinco horas, o seu trabalho estava terminado, a noite descia e os reais caçadores e a sua comitiva ainda não tinham chegado ao castelo. Onde quer que a duquesa se encontrasse naquele momento, devia estar certa de ter triunfado.

Benvenuto montou rapidamente a sua estátua com o pedestal sobre a peanha rolante e quase invisível. Júpiter segurava na mão esquerda a esfera do Mundo e, na direita, um pouco elevada acima da cabeça, o raio que parecia querer lançar. Benvenuto dissimulou uma enorme tocha entre o bronze de que eram feitos os raios.

Terminava ele estes preparativos, quando se ouviram soar as fanfarras, anunciando o regresso do rei e do imperador. Benvenuto acendeu a tocha, colocou Jehan Pequeno por detrás da estátua, que totalmente o ocultava, e pôs-se a aguardar a entrada do rei. O seu coração batia célere.

Dez minutos depois, a porta do castelo abriu-se de par em par e Francisco I surgiu, dando a mão a Carlos V.

Vinham, a seguir, o delfim, a delfina, o rei de Navarra e o resto da corte. O preboste, a filha e d'Orbec vinham em último lugar. Colomba estava pálida e abatida; mas, mal avistou Cellini, ergueu a cabeça e bailou-lhe nos lábios um sorriso de sublime confiança que lhe iluminou todo o rosto.

Cellini enviou-lhe um olhar que significava:

«Tranquilizai-vos; aconteça o que acontecer, não desespereis; eu velo por vós.»

Quando a porta da galeria se abriu, Jehan Pequeno, a um sinal do mestre, imprimiu um ligeiro impulso à estátua, que começou a deslizar suavemente sobre as quatro esferas, deixando para trás os deuses antigos, e indo, por assim dizer, ao encontro do rei, como se viva fosse. Todos os olhos se voltaram subitamente para ela. O clarão da tocha, caindo do alto, produzia um efeito luminoso ainda mais favorável que a luz do dia.

A duquesa d'Etampes mordeu os lábios.

— Creio, Majestade — disse ela —, que a lisonja é um pouco exagerada, e que era ao rei da Terra que competia ir ao encontro do rei do céu.

O rei sorriu, mas era evidente que a lisonja não lhe desagradava. Segundo o seu costume, a obra fez-lhe a princípio esquecer totalmente o autor e, poupando à estátua uma boa metade do caminho, caminhou direito a ela, e por muito tempo examinou-a em silêncio. Carlos V, que apesar de ter um dia, em ocasião de bom humor, apanhado o pincel a Ticiano, era muito mais político que conhecedor de arte, por isso, tal como os cortesãos, que não tinham direito a ter opinião, esperava que Francisco I emitisse a sua para se pronunciar.

Durante todo aquele silêncio expectante, Benvenuto e a duquesa trocaram um olhar de profundo ódio.

Mas já o rei, subitamente, exclamava:

— É belo! Belíssimo! Confesso que esperava muito, mas não tanto.

A partir deste momento iniciou-se um não acabar de elogios e exclamações de espanto entre os cortesãos, e a começar pelo próprio imperador.

— Se se conquistassem os artistas como as cidades — disse ele ao rei —, declarava-vos já uma guerra para a conquista deste.

— Mas com tudo isto — interrompeu a duquesa furiosa —, nem sequer se deita um olhar a essas belas estátuas eternas lá ao fundo. E, no entanto, creio que valem um bocadinho mais que todos os manipansos de hoje.

O rei aproximou-se então das esculturas antigas, cujas cabeças ficavam quase todas na penumbra devido à iluminação demasiado baixa; nenhuma delas podia competir em efeito com a bela estátua de Cellini.

— Fídias é sublime, evidentemente — disse o rei —, mas pode existir um fídias no século de Francisco I e de Carlos V, como existiu outro no século de Péricles.

— Oh! Quem dera!... — exclamou Ana com azedume. — Mas uma coisa é parecer e outra ser. Um artifício de iluminação não deve ser tomado pela verdadeira Arte. Mas, que faz ali aquele véu? Esconder-nos-á algum defeito? Dizei francamente, mestre Cellini!

A duquesa apontava para um panejamento real com que o artista pretendera dar mais majestade à sua estátua.

Até àquele momento, Benvenuto permanecera imóvel e silencioso junto à sua obra e, aparentemente, tão frio como ela. Mas, ao ouvir as palavras da duquesa, sorriu desdenhosamente e os seus olhos lançaram um clarão de impiedosa malícia. Então, com a santa audácia de um artista pagão, arrancou o véu com mão vigorosa.

Benvenuto esperava ver explodir a duquesa.

Mas, de repente, e graças a uma incrível força de vontade, pôs-se a sorrir com uma doçura terrível e, estendendo airosamente a mão a Cellini, estupefacto desta reviravolta, disse em tom de criança mimalha:

— Afinal, estava a ser injusta convosco; sois um grande escultor, Cellini. Perdoai-me as minhas críticas; dai-me a vossa mão, e de ora em diante sejamos amigos, quereis?

Depois, baixando a voz e com espantosa volubilidade, acrescentou:

— Pensai bem no que ides pedir, Cellini. Que não seja o casamento de Colomba e Ascânio, ou juro-vos que farei a desgraça deles e a vossa!

— E se eu pedir outra coisa — disse Benvenuto no mesmo tom —, reforçareis o meu pedido, Senhora?

— Oh! — exclamou ela — com certeza, juro-vo-lo. O rei há-de conceder-vos o quer que peçais.

— Não preciso de lhe pedir o casamento de Ascânio e Colomba, Senhora, porque sereis vós própria que lho haveis de pedir.

A duquesa sorriu com desdém.

— Que estais vós para aí a segredar? — disse Francisco I.

— A Senhora Duquesa d'Etampes estava a ter a bondade de me recordar — respondeu Benvenuto — que Vossa Majestade me tinha prometido uma mercê no caso de ficar satisfeito.

— E essa promessa foi feita na minha presença, Majestade — disse o condestável avançando —, na minha e na do chanceler Poyet. Foi Vossa Majestade que nos encarregou, a mim e a ele, de vo-la recordar...

— É verdade, condestável — interrompeu o rei bem disposto —, mas isso era para se eu próprio me não lembrasse; dou-vos porém a minha palavra de que me recordo perfeitamente. Por isso, como vedes, a vossa intervenção não me desagrada, mas torna-se inútil. Prometi a Benvenuto que lhe havia de conceder o que me pedisse logo que o seu Júpiter estivesse concluído. Foi assim, condestável? Tenho boa memória, chanceler? É, pois, altura de falardes, mestre Cellini, estou à vossa disposição; mas peço-vos, todavia, que considereis menos o vosso mérito, que é imenso, que as limitações do nosso poder.

— Pois bem, Majestade — disse Cellini —, uma vez que vos encontro em tão feliz disposição para com este vosso indigno criado, gostaria de pedir-vos pura e simplesmente a amnistia para um pobre estudante que no cais do Châtelet se envolveu em discussão com o visconde de Marmagne, tendo-o traspassado com a espada ao defender-se.

Todos se admiraram com a insignificância do pedido, e a duquesa dEtampes mais do que ninguém. Olhou para Benvenuto estupefacta como se não tivesse ouvido bem.

— Ora esta! — exclamou Francisco I — o que me pedis é afinal que use apenas do meu direito de graça, pois creio que se trata de um caso de condenação à forca.

— Oh! — exclamou a duquesa — já contava falar a Vossa Majestade a respeito desse jovem. Recebi notícias de Marmagne, que já se encontra melhor, e que me mandou dizer ter sido ele quem começou a discussão. De modo que o estudante... como é que lhe chamais, mestre Benvenuto?

— Tiago Aubry, Senhora Duquesa.

— De modo que o estudante — prosseguiu ela — não teve a menor culpa. Creio que fareis bem, Majestade, em conceder imediatamente a Benvenuto o que vos pede, não vá ele arrepender-se ainda de vos ter pedido tão pouco.

— Pois bem! — disse Francisco I. — Faça-se o que desejais; e como quem dá depressa dá duas vezes, como diz o provérbio, desejo que a ordem de libertação desse jovem seja expedida ainda esta noite. Ouvis, meu caro chanceler?

— Perfeitamente, e Vossa Majestade será obedecido.

— Quanto a vós, mestre Benvenuto — disse Francisco I —, segunda-feira que vem vinde ter comigo ao Louvre; temos que regular certos pormenores que estão a ser muito descurados por parte do meu tesoureiro em relação a vós.

— Mas, Majestade, bem sabeis que a entrada no Louvre me foi...

— Está bem! está bem! Quem tinha dado essa ordem, revogá-la-á. Era uma medida de guerra e, como agora não tendes senão amigos à minha volta, tudo será restabelecido em atmosfera de paz.

— Olhai, Majestade — disse a duquesa —, uma vez que estais em maré de concessões, acedei também a um pequeno pedido meu, embora vos não tenha feito nenhum Júpiter.

— Não — disse Benvenuto em voz baixa —, mas tendes feito de Danae muitas vezes.

— E qual é esse pedido? — perguntou Francisco I, que não ouvira o epigrama de Cellini. — Falai, Senhora Duquesa, e crede que a solenidade do momento não pode aumentar o desejo que tenho sempre de vos ser agradável.

— Pois bem! É que Vossa Majestade se digne assinar, segunda-feira, o contrato de casamento da minha jovem amiga Senhorinha d'Estourville com o conde d'Orbec. O Sr. d'Estourville, aqui presente, muito vos agradeceria essa mercê.

— Mas não se trata de qualquer mercê — disse Francisco I —, é um prazer que preparo a mim mesmo e de que ainda terei que ficar agradecido, juro-vos.

— Nesse caso, Majestade, fica combinado para segunda-feira? — perguntou a duquesa.

— Segunda-feira — disse o rei.

— Senhora Duquesa — disse então Benvenuto a meia voz —, não tereis pena de que o belo lírio que encomendastes a Ascânio não esteja pronto para essa ocasião?...

— É claro que tenho; mas que se lhe há-de fazer?... Ascânio está preso...

— Ele está, mas eu não — disse Benvenuto. — Vou terminá-lo e, assim, a Senhora Duquesa tê-lo-á a tempo.

— Ah! Palavra de honra! se o fizerdes, direi que...

— Que direis, Senhora?

— Direi que sois um homem encantador.

E a duquesa estendeu a mão a Benvenuto que, com rematada galantaria, e depois de ter pedido licença ao rei com um olhar, a beijou.

Nesse momento, ouviu-se um pequeno grito logo abafado.

— Que foi? — perguntou o rei.

— Majestade, peço-vos perdão — disse o preboste —, é a minha filha que não se sente bem.

«Pobre criança! — murmurou Benvenuto — supõe que a traí.»

 

           CASAMENTO DE RAZÂO

Benvenuto queria partir naquela mesma noite, mas o rei insistiu tanto que se viu forçado a permanecer no castelo até à manhã seguinte.

De resto, com aquela rapidez de concepção e decisão que lhe conhecemos, Benvenuto resolveu preparar para o dia seguinte o desfecho de uma pequena intriga que havia muito tempo iniciara. Era um assunto à parte, que queria ultimar completamente antes de se entregar de alma e coração à defesa de Ascânio e Colomba.

Ficou pois para a ceia dessa noite, e ainda almoçou na manhã seguinte; depois, cerca do meio-dia, após se despedir do rei e da duquesa d'Etampes, pôs-se a caminho com Jehan Pequeno.

Mas cavalgavam sem pressas. Era evidente que Cellini queria chegar a Paris apenas a uma determinada hora, e eram, de facto, sete da noite quando descia a Rua Harpe.

Mais: em vez de se dirigir directamente ao Palácio de Nesle, foi bater à porta de um dos seus amigos, Guido, médico de Florença. Logo que soube estar ele em casa, e que poderia cear na sua companhia, disse a Jehan Pequeno que regressasse sozinho a casa e que dissesse que o mestre tinha ficado em Fontainebleau, devendo só chegar no dia seguinte. Disse-lhe ainda que estivesse com o ouvido à escuta para quando ele batesse. Jehan Pequeno partiu imediatamente, prometendo executar fielmente todas as instruções.

A ceia estava pronta, mas antes de se sentar à mesa Cellini perguntou ao seu amigo se não conhecia um bom e honrado notário que pudesse mandar chamar, pois precisava de quem lhe lavrasse um contrato inatacável. O amigo respondeu que sim e mandou imediatamente chamar o próprio genro.

Meia hora depois, quase no fim da ceia, chegou o notário. Benvenuto levantou-se logo e, fechando-se a sós com ele, fez-lhe lavrar um contrato de casamento de que apenas os nomes dos nubentes ficaram em branco. Depois de o lerem e relerem, a fim de se certificarem de que não continha qualquer vício que o pudesse anular, Benvenuto retribuiu principescamente o trabalho do notário, meteu o contrato na algibeira, pediu ao amigo uma espada do mesmo comprimento da que trazia, meteu-a sob a capa e pôs-se a caminho de Nesle. Caíra a noite.

Ao chegar à porta, bateu apenas uma leve pancada. Aquela abriu-se logo. Jehan Pequeno estava no seu posto.

Cellini fez-lhe várias perguntas. Os artífices estavam a cear e não esperavam o mestre senão no dia seguinte. Cellini ordenou então ao rapaz que guardasse o silêncio mais absoluto sobre o seu regresso, e em seguida dirigiu-se para o quarto de Catarina, de que conservava uma chave, entrando, fechando a porta, escondendo-se por trás de um reposteiro e esperando.

Um quarto de hora depois, ouviram-se passos leves na escada. Abriu-se novamente a porta e Scozzone entrou, por sua vez, com uma candeia na mão; tirou a chave da fechadura, fechou a porta por dentro, pousou a candeia na pedra do fogão e sentou-se num grande cadeirão, voltada para onde estava Benvenuto. Este viu com espanto que o seu rosto, outrora tão aberto, iluminado e alegre, se havia tornado triste e pensativo.

A verdade é que Scozzone sentia algo muito parecido com o remorso.

Dantes, víamo-la sempre alegre e despreocupada; é que então era amada por Benvenuto. Enquanto ela sentira esse amor, ou melhor, esse sentimento de benevolência no coração do mestre; enquanto flutuara nos seus sonhos, como nuvem doirada, a esperança de ser um dia a esposa do escultor, mantivera a sua alma e o seu coração iluminados por essa expectativa e o seu passado purificara-se pelo amor. Mas quando percebeu que as aparências a tinham iludido, e que o que julgara ser paixão em Cellini não passara afinal de um capricho de artista, Scozzone começou a descer, passo a passo, de esperança em esperança; o sorriso de Cellini, que fizera reflorir a sua alma precocemente desbotada, afastara-se dela; e, assim, a sua alma, pela segunda vez, perdeu a frescura.

Com a sua alegria infantil, fora-se também, pouco a pouco, toda a pureza que lhe andava associada. A tristeza e o desgosto faziam voltar ao de cima o seu antigo carácter e a sua passada vida. Imaginando que Cellini a havia trocado por qualquer ignota amante, Scozzone ficou-lhe no entanto fiel por um resto de orgulho. Pagolo requestava-a havia muito tempo; Scozzone falou deste amor a Cellini, julgando assim fazer despontar nele o ciúme; mas enganou-se, porque Cellini, em vez de se zangar, pusera-se a rir, e em vez de lhe proibir qualquer encontro com Pagolo, ordenara-lhe mesmo que o recebesse. Daí em diante sentiu-se totalmente perdida e passou a confiar a sua vida ao acaso, com a indiferença de outrora, como se essa vida fosse uma folha caída e amarelecida levada pelo vento.

Foi então que Pagolo conseguira triunfar da sua indiferença. Afinal Pagolo era jovem e, apesar do seu olhar hipócrita, não se podia negar que era um bonito rapaz. Pagolo estava apaixonado por ela e repetia-lho incessantemente, ao passo que Benvenuto deixara de lhe dizer que a amava. Estas duas palavras «amo-te» são a linguagem do coração e, embora com mais ou menos ardor, é preciso que o coração fale essa linguagem com alguém.

Foi assim que numa hora de ociosidade, de despeito, e quiçá de ilusão, Scozzone disse a Pagolo que o amava. Mas dissera-lho sem verdadeiramente o amar; dissera-lho com a imagem de Cellini na alma e o seu nome nos lábios.

E então, de repente, pensou que talvez o mestre, cansado daquela paixão ignota e sem fruto, voltasse um dia para ela e, ao vê-la fiel, apesar das suas próprias ordens, recompensá-la-ia da sua dedicação, não desposando-a, pois quanto a isso a pobre rapariga já não acalentava a mínima ilusão, mas votando-lhe algum resto de estima e piedade, que ela tomaria como uma ressurreição do seu antigo amor.

Eram todos estes pensamentos que entristeciam o rosto de Scozzone, tornando-a pensativa e suscitando-lhe remorsos.

Mas, de repente, no meio da sua meditação, Scozzone estremeceu e levantou a cabeça; ligeiro ruído se ouvira na escada, e quase imediatamente uma chave introduzida na fechadura rodou rápida e a porta abriu-se.

— Como é que entrastes?! Quem vos deu essa chave, Pagolo!? — exclamou Scozzone, levantando-se. — Há só duas chaves desta porta, uma está ali e Cellini guarda a outra...

— Minha querida Catarina — disse Pagolo rindo —, que caprichos tendes!... Ora abris a porta às pessoas, ora lha fechais na cara!... E se elas tentam usar da força para aqui entrarem, ameaçais gritar por socorro!... Pois bem, resolvi usar de astúcia.

— Ah, dizei-me depressa que conseguistes subtrair essa chave a Cellini sem que ele desse conta; dizei-me que ele ignora que a tendes em vosso poder, porque se me dizeis que foi ele mesmo quem vo-la deu, morrerei de vergonha e desgosto!

— Tranquilizai-vos, minha bela Catarina — disse Pagolo dando duas voltas à chave e indo sentar-se junto dela, depois de a obrigar também a sentar-se. — Não, Benvenuto já vos não ama, mas é como aqueles avarentos que têm um tesouro que não lhes serve para nada, mas do qual não querem que ninguém se aproxime. Não, esta chave fi-la eu mesmo. Quem pode o mais pode o menos; o ourives fez-se serralheiro. Vede lá se vos não amo Catarina!... As minhas mãos, habituadas a florir de pérolas e diamantes belas corolas de ouro, não tiveram dúvida em manejar um ignóbil pedaço de ferro. É verdade, mazona, que este ignóbil pedaço de ferro era uma chave, a chave do paraíso...

Neste ponto, Pagolo quis pegar na mão de Catarina mas, ante o espanto de Cellini, que não perdia um gesto nem uma palavra desta cena, Catarina repeliu-o.

— Ora vá! — disse Pagolo — esse capricho vai-te durar muito?...

— Olhai, Pagolo — disse Catarina num tom tão repassado de tristeza que penetrou até ao fundo do coração de Cellini — sei bem que quando uma mulher cedeu já não tem o direito de se recusar; mas se aquele por quem ela teve essa fraqueza for um homem generoso, e se ela lhe disser que estava de boa fé, pois tinha perdido a razão, mas que se enganara, esse homem tem o dever de não abusar desse momento de engano. Pois bem, Pagolo, olhai o que vos digo: cedi às vossas instâncias, e no entanto não vos amava... amava outro, Cellini. Desprezai-me; podeis e deveis mesmo fazê-lo, mas, por quem sois! não me atormenteis mais.

— Bem! — disse Pagolo — bem! Tendes grande jeito para essas coisas. Mas pensai que, depois de me terdes feito esperar tanto tempo por esse favor que me censurais, vou agora dispensar-vos de um compromisso que afinal tomastes livremente, para comigo?!... Não. E quando penso que tudo isso é por causa desse Benvenuto, um homem que tem o dobro da vossa idade e da minha, um homem que vos não ama, que vos despreza, um homem que vos trata como uma...

— Basta, Pagolo! basta! — exclamou Scozzone rubra de vergonha, de ciúme e de cólera.

— Benvenuto já me não ama, é certo, mas houve um tempo em que me teve amor e ainda me estima.

— Está bem. E então porque não casou convosco, uma vez que vo-lo prometera?...

— Prometera?! Nunca. Benvenuto nunca me prometeu tornar-me sua mulher; porque, se o tivesse prometido, cumpriria a sua promessa. Eu tinha um imenso desejo de me elevar a essa posição e, à força de o desejar, nasceu-me a esperança; depois a esperança cresceu, trasbordou, e eu comecei a vangloriar-me dela como de uma certeza ou uma realidade. Não, Pagolo, não — prosseguiu Catarina, deixando recair a mão, com um sorriso triste, entre as do aprendiz —, Benvenuto nunca mo prometeu.

— Ora bem! Vedes agora como sois uma ingrata, Scozzone? — exclamou Pagolo, apertando a mão da jovem e tomando por reconciliação o que era apenas um sinal de abatimento.

— A mim, que vos prometo, que vos ofereço tudo o que Benvenuto, conforme confessais, nunca vos prometeu, nunca vos ofereceu, a mim, que vos sou dedicado, que vos amo, repelis-me; ao passo que a ele, que vos traiu, tenho a certeza de que lhe repetiríeis com gosto essa confissão que tanto vos pesa de me terdes feito a mim, que vos amo.

— Oh! Se ele aqui estivesse, Pagolo — exclamou Scozzone —, recordar-vos-íeis que o traístes por ódio, ao passo que eu o traí apenas porque o amava.

— Porque me dizeis isso? — retorquiu Pagolo, a quem a distância a que imaginava Benvenuto tranquilizava. — Porque dizeis isso? Então qualquer homem não tem o direito de se fazer amar por uma mulher, quando essa mulher não pertence a outro?... Se ele aqui

estivesse, Scozzone, dir-lhe-ia apenas isto: «Vós abandonastes e traístes Catarina, esta pobre Catarina que vos amava tanto. Primeiro, ela conheceu as angústias do desespero, depois encontrou no seu caminho um bom e honrado rapaz que soube apreciar o seu valor, que a amou e lhe prometeu o que vós nunca lhe quisestes prometer, isto é, desposá-la. É pois a ele que hoje competem os vossos direitos, e a ele que pertence essa mulher.» Vejamos, Catarina, que teria respondido o teu Cellini?

— Nada — disse por trás do entusiasmado Pagolo uma voz rude e seca —, absolutamente nada.

E uma mão de ferro caiu-lhe no mesmo instante sobre o ombro, congelando subitamente a sua eloquência, prostrando-o no solo, tão pálido e tremente como temerário se mostrava momentos antes.

Era um quadro singular: Pagolo de joelhos, dobrado em dois, cadavérico e assombrado; Scozzone meio erguida do seu cadeirão, imóvel e muda, figurava a estátua do Espanto; Benvenuto, esse, de pé, segurava, com uma mão, o punho de uma espada embainhada, e com a outra, uma espada nua; o seu olhar era simultaneamente irónico e ameaçador.

Seguiu-se um instante de terrível silêncio, em que Pagolo e Scozzone permaneceram interditos debaixo do cenho carregado do mestre.

— Traição! — murmurou Pagolo humilhado — traição!

— Sim, traição da tua parte, miserável! — respondeu Cellini.

— Ora pronto! — disse Scozzone — queríeis ainda agora que ele aqui estivesse, Pagolo... pois aqui o tendes.

— Sim — disse o aprendiz, vexado da sua figura diante da mulher a quem queria agradar —, mas ele está armado e eu não tenho qualquer arma.

— Trago-te uma — disse Cellini, recuando um passo e deixando cair aos pés de Pagolo a espada que tinha na mão esquerda.

Pagolo olhou para a espada, mas não fez o mínimo movimento.

— Vamos — disse Cellini —, apanha essa espada e põe-te em pé. Estou à espera.

— Um duelo?! — murmurou o aprendiz com os dentes a bater de terror. — Sou acaso tão forte à espada como vós, para me bater em duelo convosco?...

— Está bem — disse Cellini, passando a sua arma de uma para a outra mão —, lutarei com a esquerda e isso restabelecerá o equilíbrio.

No rosto de Benvenuto desenhava-se um profundo desprezo; Scozzone afastou-se um passo, sem procurar esconder o profundo desagrado que lhe subia ao rosto.

— Mais valia que te tivesses lembrado de quanto fiz por ti antes de me tirares a mulher que tinha confiado à tua honra e à de Ascânio — disse Benvenuto. — Agora é tarde para te lembrares disso. Em guarda, Pagolo! Em guarda!

— Não! Não! — murmurou o cobarde, recuando sobre os joelhos.

— Então, se te recusas a lutar como um bravo — disse Benvenuto —, vou punir-te como culpado.

E, embainhando a espada, puxou pelo punhal, sem que o seu rosto fosse alterado por qualquer sentimento de cólera ou de compaixão. E avançou a passos lentos mas inexoráveis em direcção ao aprendiz.

Scozzone precipitou-se entre os dois, com um grito. Mas Benvenuto, sem violência, com um simples gesto, irresistível porém, como seria o de uma estátua de bronze, afastou a pobre rapariga, que foi recair, meia morta de susto, no cadeirão. Benvenuto continuou a aproximar-se de Pagolo, que recuou até à parede.

Ali, o mestre, chegando junto dele, encostou-lhe ao pescoço a ponta do punhal, dizendo:

— Encomenda a tua alma a Deus; tens cinco minutos de vida.

— Perdão! — exclamou Pagolo com voz estrangulada — não me mateis! Perdão! Perdão!

— Quê?! — exclamou Cellini — então tu, sabendo como eu sou, atreveste-te a seduzir a mulher que me pertencia?! Acabo de saber, de descobrir tudo, e ainda esperas que te perdoe?!... Estás a brincar, Pagolo!

E o próprio Benvenuto, a estas palavras, desatou a rir, mas com um riso estridente e terrível que fez arrepiar o aprendiz até à medula dos ossos.

— Mestre! Mestre! — exclamou Pagolo, sentindo a ponta do punhal começar a picar-lhe a pele. — Não fui eu... foi ela que me arrastou.

— Traição, cobardia e calúnia! Ainda um dia hei-de esculpir um grupo com estes três monstros — disse Benvenuto — e há-de ser qualquer coisa de horroroso. Foi então ela que te arrastou, miserável?... Esqueces-te de que eu estava ali há pouco e que ouvi tudo?!...

— Oh! Benvenuto — murmurou Catarina, juntando as mãos —, não é verdade que está a mentir?

— É — disse Benvenuto —, e também é verdade que mentia quando se dizia pronto a desposar-te. Mas descansa, que vai ser castigado por esta dupla mentira.

— Sim, castigai-me — exclamou Pagolo —, mas com misericórdia. Castigai-me, mas não me mateis!

— Mentias ao dizer que foi ela que te arrastou!

— Mentia, sim; sou eu só o culpado. Amava-a como um louco, e vós bem sabeis a que faltas pode arrastar o amor.

— Mentes, tu não a amas!

— Ah, mestre! juro-vos que desta vez não minto.

— Amas então verdadeiramente Scozzone?.

— Oh, sim, amo-a! — prosseguiu Pagolo, que percebeu que a única maneira de parecer menos culpado aos olhos de Cellini era justificar o seu crime com a violência de paixão. — Sim, amo-a.

— E és capaz de repetir que não mentias quando lhe propunhas casamento?

— Sou, mestre.

— Tê-la-ias tornado tua esposa?

— Se ela deixasse de vos querer, tinha.

— Nesse caso, toma-a; dou-ta.

— Que dizeis?! Burlais-vos de mim, não é?...

— Não, nunca falei tão a sério; e se duvidas, olha bem para mim.

Pagolo lançou ao mestre um olhar furtivo, e viu em cada um dos seus traços que de um momento para o outro o juiz podia ceder o lugar ao carrasco, e baixou a cabeça gemendo.

— Tira esse anel do dedo, Pagolo — disse Benvenuto —, e enfia-o no dedo de Catarina. Pagolo obedeceu passivamente à primeira parte da ordem do mestre. Este fez sinal a Scozzone para que se aproximasse, o que a jovem fez.

— Estende a mão, Scozzone —, disse Benvenuto. Scozzone obedeceu.

— Acaba — disse Cellini.

Pagolo enfiou o anel no dedo de Scozzone.

— Agora — disse Benvenuto —, que o noivado se consumou, passemos ao casamento.

— Ao casamento?! — murmurou Pagolo — ninguém casa desta maneira; são precisos notários, um padre...

— É preciso um contrato — continuou Benvenuto, tirando da algibeira o que mandara lavrar. — Aqui está um, preparado e pronto, só falta apor os nomes.

Pousou o contrato sobre a mesa, pegou numa pena e, entregando-a a Pagolo, disse:

— Assina, Pagolo, assina.

— Ah! Caí numa cilada — murmurou o aprendiz.

— Han?! Que tens a dizer? — exclamou Benvenuto sem elevar o diapasão da voz, mas dando-lhe uma entoação terrível. — Uma cilada? E onde está a cilada? Fui eu que te induzi a vires ter com Scozzone ao quarto?... Fui eu que te aconselhei a que lhe dissesses que a querias tornar tua mulher?... Pois bem, Pagolo: fá-la então tua mulher e, quando fores seu marido, mudar-se-ão os papéis: se eu vier ao quarto dela, será a tua vez de ameaçar e a minha de ter medo.

— Oh! — exclamou Catarina, passando do terror extremo a uma louca alegria, e rindo às gargalhadas só de imaginar a situação que o mestre acabava de supor. — Ah! Como havia de ser cómico!...

Pagolo, um tanto refeito já do seu terror devido ao novo aspecto que tomava a ameaça de Cellini, e graças às gargalhadas de Scozzone, começava a encarar as coisas com mais senso. Tornou-se-lhe evidente que o queriam levar daquele modo a um casamento em que estava apenas mediocremente interessado. Pareceu-lhe que tal casamento seria um fim demasiado trágico para aquela comédia e começou a pensar que, com alguma firmeza da sua parte, poderia talvez fazer a coisa por menos.

— Na verdade — murmurou ele, traduzindo em palavras a alegria de Scozzone —, concordo que seria divertido mas, infelizmente, tal nunca poderá vir a suceder.

— E porquê!? — exclamou Benvenuto, tão admirado como deve ficar um leão ao ver uma raposa revoltar-se contra si.

— Não, tal não acontecerá — repetiu Pagolo —, antes quero morrer; matai-me. Ainda não tinha acabado de pronunciar estas palavras quando Cellini, de um salto, se

achou perto dele. Pagolo, ao ver brilhar o punhal, atirou-se para o lado com tanta rapidez e sorte, que a punhalada que lhe era dirigida apenas o atingiu ligeiramente no ombro, indo o ferro, sob a mão vigorosa do ourives, cravar-se até duas polegadas na talha do lambril.

— Consinto! Consinto! — exclamou Pagolo. — Perdão, Cellini! estou pronto a obedecer-vos em tudo.

E enquanto o mestre arrancava a custo o punhal, que havia atingido a própria parede, Pagolo correu para a mesa onde estava o contrato, agarrou nervosamente na pena e assinou. Toda esta cena foi tão rápida que Scozzone não teve tempo de desempenhar nela o mínimo papel.

— Obrigada, Pagolo — disse ela, enxugando as lágrimas que o terror lhe tinha feito chegar aos olhos e reprimindo ao mesmo tempo um leve sorriso. — Obrigada, meu caro Pagolo, pela honra que consentis em me conceder; mas, como importa que nos expliquemos agora de uma vez para sempre, ouvi o que vos digo: ainda agora não me queríeis... agora sou eu que vos não quero a vós. Isto que digo não é para vos mortificar; desejo apenas continuar a ser quem sou.

— Nesse caso — disse Benvenuto, com o máximo sangue-frio — se tu o não queres, Scozzone, morrerá.

— Mas... se sou eu quem recusa!... — exclamou Catarina.

— Morrerá — repetiu Cellini —, não se há-de dizer que um homem me ultrajou e ficou impune. Estás pronto, Pagolo?

— Catarina!... — implorou o aprendiz — Catarina, em nome do Céu! tende pena de mim! Catarina, amo-vos; Catarina, hei-de amar-vos sempre! Catarina, assinai! Catarina, sede minha mulher, suplico-vos de joelhos!

— Vamos, Scozzone, decide-te depressa — disse Cellini.

— Oh! — exclamou Catarina, amuando — não, estais a ser demasiado severo comigo, que tanto vos amei, que... enfim, acalentava sonhos tão diferentes?... Mas... Deus meu! — exclamou de repente a louca rapariga, passando novamente da tristeza ao riso — vede, Cellini, que lastimoso aspecto o do pobre Pagolo. Oh! Perdei já esse ar lúgubre, Pagolo, ou jamais consentirei em vos aceitar por marido. Ai, mas que cómico estais!...

— Salvai-me primeiro, Catarina — disse Pagolo —, depois, se quiserdes, rir-nos-emos

à vontade.

— Pois bem, meu pobre rapaz!... Já que tanto vos obstinais...

— Ah! sim, quero! — exclamou Pagolo.

— Sabeis o que fui e o que sou?

— Sim, sei.

— Não vos engano?

— Não.

— Não vos arrependereis?

— Não! não!

— Dai-me a vossa mão. É esquisito, não esperava nada isto... mas, pronto! sou vossa

mulher!

E ela pegou na pena e assinou por sua vez, como esposa respeitosa, por baixo da assinatura do marido.

— Obrigado, minha Catarinazinha, obrigado; hás-de ver como eu te vou tornar feliz.

— E se ele faltar a esta promessa — disse Benvenuto —, escreve, Scozzone; esteja onde estiver, virei recordar-lha pessoalmente.

Ao dizer isto, Cellini, com os olhos fitos no aprendiz, retirou lentamente o punhal e embainhou-o; em seguida, pegando no contrato devidamente assinado, dobrou-o cuidadosamente e meteu-o na algibeira; dirigindo-se depois a Pagolo, com aquela ironia que lhe conhecemos, disse:

— E agora, amigo Pagolo, embora vós e Scozzone sejais já marido e mulher à face dos homens, ainda o não sois à face de Deus, e será só amanhã que a Igreja santificará a vossa união. Até lá, a vossa presença aqui seria contrária a todas as leis divinas e humanas. Boa noite, pois.

Pagolo ficou pálido como a morte; mas, como Benvenuto lhe mostrava imperativamente a porta, afastou-se aos recuões.

— Não há ninguém como vós, Cellini, para ter destas ideias — disse Catarina rindo perdidamente. — Mas escuta, meu pobre Pagolo — disse a jovem dirigindo-se ao aprendiz no momento em que ele ia abrir a porta —, deixo-vos sair porque assim deve ser; mas podeis ir descansado, Pagolo, pois juro-vos pela Santa Virgem que quando estivermos casados nenhum homem, nem mesmo Benvenuto, poderá ver em mim outra coisa senão uma esposa digna.

E quando a porta se fechou, a jovem voltou-se para Cellini e disse alegremente:

— Benvenuto, acabas de me dar um marido mas livras-me por hoje da sua presença. Enfim, sempre é uma compensação.

 

         RECOMEÇO DAS HOSTILIDADES

Três dias depois da cena que acabámos de vos contar, outra, de um género completa-mente diferente, se preparava no Louvre.

Chegara-se a segunda-feira, data marcada para a assinatura do contrato. Eram onze da manhã. Benvenuto saiu do Palácio de Nesle, foi direito ao Louvre e, com certa emoção, mas a passos firmes, subiu o grande escadório.

No salão de espera onde o conduziram, foi encontrar o preboste e d'Orbec, que conferenciavam a um canto com um notário. Colomba, branca e imóvel como uma estátua, estava sentada a certa distância. Era evidente que se tinham afastado dela para que a pobre jovem nada pudesse ouvir; e ela, de cabeça descaída e olhos átonos, parecia nem estar ali.

Cellini passou junto dela, deixando cair estas palavras:

— Cá estou; coragem!

Colomba reconheceu-lhe a voz e ergueu a cabeça com uma exclamação de alegria. Mas antes que tivesse tempo de fazer qualquer pergunta ao seu protector, já ele tinha entrado no salão contíguo.

Um porteiro soergueu uma pesada tapeçaria e o ourives passou ao gabinete do rei.

Mas aquelas palavras de esperança bastaram para reanimar a coragem de Colomba; a pobre jovem julgava-se já abandonada e, portanto, perdida. O Sr. d'Estourville havia-a arrastado até ali, meia morta de aflição, apesar da sua fé viva em Deus e em Benvenuto. No momento de partir, fora tal a sua angústia e desespero que, abdicando de todo o orgulho, chegou a suplicar à duquesa que a deixasse entrar para um convento, comprometendo-se a renunciar a Ascânio contanto que a não entregassem ao conde d'Orbec. Mas a duquesa não se contentava com uma meia vitória; para atingir os seus fins precisava que Ascânio acreditasse na traição daquela que amava; por isso repeliu com dureza as súplicas de Colomba. Mas agora a jovem cobrava novo ânimo, ao lembrar-se de que Benvenuto lhe tinha recomendado que se conservasse confiante e calma, mesmo sobre os degraus do altar.

Ao entrar no gabinete do rei, Cellini apenas encontrou a duquesa d'Etampes; era quanto desejava; se ela lá não estivesse, teria solicitado o favor da sua presença.

Não obstante ter queimado a carta fatal e estar convencida de que dali nada mais tinha a recear, a duquesa não saboreava sem inquietação a sua presente vitória. Tranquila quanto à estabilidade do seu poder, sondava aterrada todos os perigos que lhe podiam advir da sua paixão. Sucedia sempre assim com a duquesa; quando descansava das preocupações devidas à sua ambição insaciável, era a vez de a devorarem os ardores das suas outras paixões. Orgulhosa e apaixonada, o seu sonho foi engrandecer Ascânio, tornando-o feliz; mas o jovem, embora de origem nobre, pois os Gaddi, a que pertencia, eram antigos patrícios de Florença, não aspirava a outra glória além da da Arte. E disto a duquesa pudera aperceber-se bem.

Se ele entrevia algo em suas esperanças, era qualquer forma puríssima para um vaso, um gomil ou uma estátua; se ambicionava diamantes e pérolas era apenas para os reunir em flores ainda mais belas que as que o céu fecunda com o seu orvalho; títulos e honras nada significavam para ele se não fossem uma consequência do seu próprio talento. Que faria na vida activa e agitada da duquesa este inútil sonhador? A primeira tormenta, aquela planta delicada sucumbiria com as flores que já ostentava e os frutos que prometia. Quiçá desencorajado e indiferente se deixasse um dia arrastar pelos projectos da sua real amante; mas, sombra pálida e melancólica, passaria a viver apenas das suas recordações e saudades. Ascânio aparecia finalmente à duquesa tal qual era, um temperamento requintado e cativante, mas com a condição de não ser tirado da sua atmosfera calma e pura; era uma criança adorável que nunca chegaria a ser verdadeiramente adulta. Podia dedicar-se apaixonadamente a um sentimento, jamais a uma ideia. Nascido para as doces expansões de uma mútua ternura, sucumbiria ao choque terrível dos acontecimentos e das lutas. Era exactamente o homem indicado para o amor da duquesa, mas não para a sua ambição.

Tais eram as reflexões da duquesa quando Benvenuto entrou; tais eram as nuvens do seu pensamento que lhe obscureciam a fronte.

Os dois inimigos mediram-se com o olhar; o mesmo sorriso irónico pairou ao mesmo tempo nos lábios de ambos; o olhar semelhante que trocaram anunciou a cada um que estavam preparados para uma luta terrível.

«Ao menos este — pensava Ana — é um justador perigoso que dá gosto vencer; é um adversário digno de mim. É verdade que hoje não tem lá muitas probabilidades a seu favor; vou abatê-lo sem grande glória para mim.»

«Decididamente, Sr.a dÉtampes — dizia consigo Benvenuto — sois uma grande mulher; muitas das lutas que tenho tido com homens não me deram metade do trabalho que a que empreendi contra vós. Por isso, podeis ter a certeza de que, se vos combato com armas corteses, combato-vos com todas as que tenho.»

Houve uns momentos de silêncio durante o qual os dois adversários se entregaram a estes curtos monólogos. Foi a duquesa a primeira a interrompê-lo, dizendo:

— Chegais bem cedo, mestre Cellini. É ao meio-dia que Sua Majestade deve assinar o contrato do conde d'Orbec, e são apenas onze e um quarto. Permiti que vos apresente as desculpas de Sua Majestade, mas não é ele que chega atrasado, sois vós que chegais adiantado.

— Sinto-me feliz, Senhora, por ter chegado tão cedo, visto que tal impaciência me proporciona esta honra de um encontro a sós convosco, honra que instantemente teria solicitado se o acaso, a quem agradeço, não tivesse vindo ao encontro dos meus desejos.

— Olá! Benvenuto! — disse a duquesa — ter-vos-iam os reveses tornado lisonjeiro?...

— Os meus? Não, Senhora Duquesa, os dos outros. Considerei sempre uma rara virtude ser-se o cortesão da desgraça; e aqui tendes a prova, Senhora.

E dizendo estas palavras, Cellini tirou de sob a capa o lírio de ouro de Ascânio, que só naquela manhã terminara. A duquesa soltou um grito de surpresa e alegria. Jamais tão maravilhosa jóia lhe deslumbrara o olhar, jamais uma dessas flores que se encontram nos jardins encantados de As Mil e Uma Noites pôde aspirar a tanta graça e a tão rematada beleza.

— Ah! — exclamou a duquesa, estendendo a mão para a flor — tinheis-ma prometido, Benvenuto, agora me lembro; mas, confesso-vos que não contava muito com ela...

— E porque desconfiar da minha palavra? — disse Cellini, rindo. — Ofendíeis-me, Senhora.

— Oh! Se a vossa palavra me tivesse prometido uma vingança em vez de uma galantaria, estaria absolutamente certa da vossa exactidão em a cumprir.

— E quem vos disse que não se trata de uma e outra? — retorquiu Benvenuto, retirando um pouco a mão, de modo a ficar sempre senhor da jóia.

— Não vos compreendo — disse a duquesa.

— Achais que, transformadas em orvalho precioso — disse Benvenuto mostrando à duquesa o diamante que tremia no fundo do cálice, e que ela recebera, como sabemos, da munificência corruptora de Carlos V —, as arras de certo contrato que deve subtrair o ducado de Milão à França, fazem bonito efeito?

— Falais por enigmas, meu caro ourives; infelizmente o rei vai chegar e não tenho tempo de os decifrar.

— Eu vou dar-vos a solução, nesse caso. A solução é um velho provérbio: « Verba volant, scripta manent»; o que quer dizer: O que está escrito, está escrito.

— Pois bem, enganais-vos, meu caro ourives: o que estava escrito, está queimado; não penseis que me intimidais como a uma criança, e dai-me essa jóia que me pertence.

— Um instante, Senhora, deixai-me advertir-vos que isto é também um talismã que perderá em vossas mãos toda a sua virtude. O meu trabalho é ainda mais precioso do que pensais. Onde a multidão vê apenas uma jóia, nós os artistas escondemos muitas vezes uma ideia. Desejaríeis vós ver essa ideia? Olhai, nada mais fácil: basta carregar nesta mola invisível. A haste entreabre-se, como vedes, e no fundo do cálice aparece, não um verme roedor, como em certas flores naturais ou em certos corações falsos, mas algo de parecido, ou ainda pior; a desonra da duquesa d'Etampes, escrita pelo seu próprio punho e assinada por ela.

Enquanto falava, Benvenuto carregou na mola, o que fez abrir a haste, e tirou o bilhete da corola resplandecente. Desenrolou-o lentamente, mostrando-o depois de chapa à duquesa, pálida de cólera e muda de terror.

— Por esta não esperáveis vós, Senhora, não é assim? — começou Benvenuto em voz calma, enrolando novamente o bilhete e voltando a introduzi-lo na flor. — Se conhecêsseis os meus hábitos, Senhora, não ficaríeis tão surpreendida; há um ano, escondi uma escada numa estatueta; há um mês, escondi uma jovem na cabeça de uma estátua; e hoje, que podia eu esconder numa flor? um papel, quando muito; foi o que fiz.

— Mas — exclama a duquesa —, esse bilhete, esse bilhete infame, queimei-o com as minhas próprias mãos! vi as chamas, pisei as cinzas!...

— E lestes esse bilhete que haveis queimado?

— Não! não! Que insensatez a minha! Não o li!

— É pena, porque estaríeis agora convencida de que a carta de uma costureira pode produzir tanta chama e cinza como a de uma duquesa.

— Mas então enganou-me, esse cobarde... Ascânio!

— Ah! Senhora, não desconfieis desse casto e puro jovem, que, de resto, se vos enganasse não fazia mais do que servir-se para convosco das armas que contra ele usais. Ah! Não, não, ele não vos enganou; não seria capaz de resgatar a sua vida, nem a de Colomba, por meio de um embuste. Não, ele é que foi enganado.

— E por quem? dizei.

— Por um rapaz, por um estudante, o mesmo que feriu o vosso agente secreto Marmagne; chama-se Tiago Aubry e o visconde deve ter-vos dito duas palavras a seu respeito.

— É certo — murmurou a duquesa —, Marmagne disse efectivamente que esse Tiago Aubry estava a tentar penetrar até junto de Ascânio para lhe tirar essa carta.

— E vós, então, decidistes logo descer à cela de Ascânio; mas os estudantes são rápidos, como sabeis, e o nosso já tinha tomado a dianteira. Enquanto vós saíeis do Palácio d'Étampes, deslizava ele para a cela do seu amigo, e quando vós ali entráveis, saía ele de lá.

— Mas eu não o vi, eu não vi ninguém!...

— Em geral, não se pensa em olhar todos os cantos; se vós o tivésseis feito, teríeis levantado uma esteira e visto uma pequena galeria cavada entre a cela de Ascânio e a vizinha.

— E Ascânio? e Ascânio?...

— Quando entrastes, ele dormia, não é assim?

— É verdade.

— Pois bem: durante o sono, Aubry, a quem ele se tinha recusado a entregar esta carta, tirou-a do bolso do seu gibão, tendo colocado outra em seu lugar. Iludida à vista do sobrescrito, pensastes que queimáveis o bilhete da duquesa d'Étampes e não fazíeis mais que queimar uma epístola da Senhorinha Gervásia Perrette Popinot.

— Ah! Mas esse Aubry que feriu Marmagne, esse vilão que esteve quase a assassinar um fidalgo, há-de pagar caro a sua insolência! Já está preso e condenado.

— Está livre, e é principalmente a vós que deve a sua liberdade.

— Que dizeis?!

— É o pobre preso cujo perdão tivestes a gentileza de solicitar comigo a Francisco I.

— Oh! Como fui insensata! — murmurou a duquesa d'Étampes, mordendo os lábios. Em seguida, depois de olhar fixamente Benvenuto, perguntou-lhe com voz entrecortada e anelante:

— Que pretendeis em troca dessa carta?

— Creio que já vo-lo deixei adivinhar, Senhora...

— Adivinho mal; dizei.

— Pretendo que peçais ao rei a mão de Colomba para Ascânio.

— Ora vamos, senhor ourives — disse Ana com um riso forçado —, muito mal conheceis a duquesa d'Étampes se pensastes que o meu amor recuaria perante uma ameaça.

— Não reflectistes antes de me responder, Senhora.

— Contudo, mantenho a resposta.

— Dignai permitir, Senhora, que me sente sem cerimónia, e que por momentos fale convosco sem qualquer rodeio — disse Benvenuto com aquela familiaridade sublime que é própria dos homens superiores. — Não passo de um humilde escultor, e vós sois uma grande duquesa, mas permiti que vos diga que, apesar da distância que nos separa, nascemos para nos compreendermos um ao outro. Não tomeis os vossos ares de rainha, que são inúteis; não é minha intenção ofender-vos, quero apenas esclarecer-vos, e a vossa altivez não vem a propósito, visto que o vosso orgulho não está em jogo.

— Sois na verdade um homem singular — disse Ana rindo, mau grado seu. — Vejamos;

falai.

— Pois, como vos dizia, Senhora Duquesa — começou friamente Benvenuto —, apesar da diferença das nossas fortunas, as nossas posições são sensivelmente as mesmas e podemos não só entender-nos, mas servir-nos também mutuamente. Ficastes indignada quando vos propus que renunciásseis a Ascânio; pareceu-vos coisa impossível e insensata, e no entanto eu já vos tinha dado o exemplo, Senhora.

— O exemplo?...

— Sim, se vós amáveis Ascânio, eu amava Colomba.

— Vós?!

— Sim, eu. Amava-a como ainda não tinha amado senão uma vez. Teria dado por ela meu sangue, a minha vida e a minha alma; e apesar disso, dei-a a Ascânio.

— Ora aqui está uma paixão bem desinteressada — exclamou a duquesa com ironia.

— Oh! Não façais escárnio da minha dor, Senhora; não troceis das minhas angústias. Sofri muito; mas, bem vedes, compreendi que aquela jovem não me estava destinada, tal como Ascânio a vós. Escutai-me bem, Senhora: nós somos ambos, se esta aproximação vos não fere demasiado, nós somos um e outro destas criaturas que têm existência e sentimentos à parte e são pouco inclinadas a conviver com os outros. Servimos ambos, Senhora, um ídolo mostruoso e soberano, cujo culto nos engrandeceu a alma colocando-nos acima da humanidade. Para vós, Senhora, esse ídolo é a ambição; para mim, é a Arte. Ora, as nossas divindades são ciumentas e dominam-nos sempre e em toda a parte. Vós desejastes Ascânio como uma coroa; eu desejei Colomba como uma galateia. Vós amastes como duquesa, eu como artista; vós perseguistes, eu sofri. Oh! Não penseis que vos calunio intimamente; admiro a vossa energia e agrada-me a vossa audácia. Pense o mundo o que quiser, é grande alguém revolver o mundo só para criar uma situação à pessoa amada. Reconheço nisso uma paixão magistral e forte, e sou a favor desses caracteres sobre-humanos, pois tudo o que escapa ao previsto, tudo o que sai da regra, me tenta. Ora, amando muito embora Colomba, compreendi que o meu temperamento altivo e selvagem não ficava bem ao pé daquela alma pura e angélica. Colomba amava Ascânio, o meu gracioso e suave discípulo; a minha alma rude e possante ter-lhe-ia causado medo. Então, com voz potente e imperiosa, ordenei ao meu amor que se calasse e, como ele resistisse, chamei em meu auxílio a Arte divina, e os dois precipitámos e esmagámos aquele amor rebelde. E logo a escultura, a minha verdadeira e única amante, colou-me à fronte os seus lábios ardentes, e senti consolo para a minha mágoa. Fazei como eu, Senhora Duquesa, deixai esses jovens entregues ao seu amor de anjos, não perturbeis o seu céu. O nosso domínio é a Terra, com as suas dores, as suas lutas e os seus inebriamentos. Procurai na ambição um refrigério contra o sofrimento; fazei e desfazei impérios para vos distraírdes; brincai com os reis e os senhores do mundo, para vos repousardes. Será engraçado, baterei palmas e aprovarei. Mas não destruais a paz e a alegria daqueles pobres inocentes, que se amam com tão doce amor sob o olhar de Deus e da Virgem Maria.

— Quem sois afinal, mestre Benvenuto Cellini? Não vos conhecia — disse a duquesa admirada — quem sois?

— Por Deus! um Homem com maiúscula, Senhora! Assim como vós sois também uma autêntica Mulher superior — respondeu o artista rindo com a sua costumada ingenuidade —; e se não me conhecíeis, já vedes que vos levava uma grande vantagem, porque eu já vos conhecia exactamente como sois, Senhora.

— É possível — disse a duquesa — mas então a minha opinião é que as mulheres superiores amam melhor e com mais ardor que os homens superiores, pois se riem das vossas abnegações sobre-humanas e defendem os que amam com unhas e dentes até ao derradeiro minuto.

— Persistis então em recusar Ascânio e Colomba?

— Persisto em amá-lo eu mesma.

— Seja. Mas uma vez que não quereis ceder às boas, tende cuidado! Tenho a mão pesada e poderia fazer-vos passar um mau bocado. Já reflectistes tudo o que tínheis a reflectir, não é assim? Estais, pois, bem decidida a recusar o vosso consentimento à união de Ascânio e Colomba?

— Bem decidida — respondeu a duquesa.

— Está bem. Ocupemos então os nossos postos, porque me parece que a batalha vai começar.

Efectivamente, a porta abria-se naquele momento e um bedel anunciou o rei.

 

         CASAMENTO DE AMOR

Francisco I apareceu dando a mão a Diana de Poitiers, com quem estivera a visitar um filho doente. Diana tinha, não sei por que instinto de ódio, pressentido vagamente a humilhação que ameaçava a sua rival, e por nada deste mundo queria perder tão doce espectáculo.

Quanto ao rei, não tinha qualquer pressentimento, não via nada e de nada suspeitava; julgava a duquesa e Benvenuto perfeitamente reconciliados e, como ao entrar os viu juntos, saudou-os ao mesmo tempo, com o mesmo sorriso e a mesma inclinação de cabeça.

— Bons-dias, minha querida rainha da beleza; bons-dias, meu rei da Arte; de que faláveis os dois? A vossa conversa devia ter sido animada, ao que parece.

— Oh! Majestade, falávamos de política — disse Benvenuto.

— E qual era o assunto em que exercitáveis a sagacidade? dizei-me, peço-vo-lo.

— A questão em que presentemente todos falam.

— O ducado de Milão?

— Sim, Majestade.

— E então? Que dizíeis dele?

— Éramos de opiniões opostas, Majestade: um de nós dizia que o imperador podia muito bem recusar-vos o ducado de Milão, dando-o a vosso filho para se desquitar da sua promessa.

— E qual de vós dizia isso?

— Creio que era a Sr.a d'Étampes.

A duquesa tornou-se horrivelmente pálida.

— Se tal fizesse o imperador, cometia uma traição infame — disse Francisco I —, mas não o fará.

— Em todo o caso, se o não fizer — disse Diana entrando por sua vez na conversa —,

não será porque não lho tenham aconselhado, segundo se diz.

— E quem? — exclamou Francisco I com cólera. — Quem lhe teria dado tal conselho?

— Santo Deus! — exclamou Benvenuto — não vos irriteis tanto, Majestade; dizíamos isso como poderíamos dizer qualquer outra coisa; eram simples conjecturas à maneira de conversa. Somos fracos políticos, a duquesa e eu, Majestade. A Sr.a d'Étampes, embora não precise, é demasiado feminina para se ocupar de outra coisa que não sejam os seus vestidos e toucados; e eu, Majestade, sou demasiado artista para me ocupar de outra coisa além da minha Arte. Não é assim, Senhora Duquesa?

— A verdade, meu caro Cellini — disse Francisco I —, é que cada um de vós foi tão bafejado pela sorte, que nada tendes a invejar aos outros, nem mesmo o ducado de Milão. A Senhora Duquesa d'Étampes é rainha pela sua beleza, e vós sois rei pelo vosso génio.

— Rei, Majestade?!

— Sim, rei; e se não tendes três lírios no vosso brasão, como eu, estou a ver-vos um na mão que se me afigura mais belo que quantos já desabrocharam à luz do Sol ou no campo de uma pedra de armas.

— Esta flor não é minha, Majestade, pertence à Sr.a d'Etampes, que a tinha encomendado a meu discípulo Ascânio; apenas como este não podia terminá-lo, e a Sr.a dÉtampes devia ter pressa de ver esta jóia em suas mãos, pus-me eu à obra e terminei-a, pois desejava ardentemente fazer que ela se tornasse o símbolo da paz que há dias jurámos em Fontaine-bleau diante de Vossa Majestade.

— É uma pura maravilha — disse o rei, estendendo a mão para lhe pegar.

— Não é, Majestade? — respondeu Benvenuto, retirando a mão com naturalidade — e bem merece que a Senhora Duquesa pague com magnificência ao jovem artista a quem se deve esta obra-prima.

— É essa a minha intenção — disse a Sr.a d'Étampes —, reservo-lhe uma recompensa que faria a inveja a um rei.

— Mas bem sabeis, Senhora — interpôs Cellini —, que não é essa recompensa, por mais preciosa que seja, a que ele ambiciona. Que quereis, Senhora?... nós, os artistas, somos caprichosos... e, muitas vezes, aquilo que, como dizeis, faria inveja a um rei, a nós só nos merece desdém.

— Não obstante — retorquiu a duquesa, com a fronte ruborizada de cólera —, terá de contentar-se com a recompensa que lhe destino, pois já vos disse, Benvenuto, que só em situação extrema lhe concederei outra.

— Pois bem! Vais então tu dizer-me o que é que ele deseja — disse Francisco I a Benvenuto, estendendo novamente a mão para o lírio —, e se não for coisa exorbitante trataremos de a conseguir.

— Observai a jóia com atenção, Majestade — disse Benvenuto, metendo a haste da flor na mão do rei — examinai bem todos os pormenores, e acabareis certamente por concluir que todas as recompensas ficam aquém do que merece uma tal obra-prima.

Dizendo estas palavras, Benvenuto fixou o seu olhar penetrante na duquesa, mas esta possuía um tal domínio sobre si mesma que viu sem pestanejar a jóia passar das mãos do artista para as do rei.

— É verdadeiramente um milagre — disse o rei. — Mas onde fostes descobrir este magnífico diamante que inflama o cálice desta flor belíssima?

— Não fui eu quem o descobriu, Majestade — respondeu Benvenuto num tom de cativante bonomia —, foi a Senhora Duquesa d'Étampes quem o forneceu a meu discípulo.

— Não vos conhecia este diamante, duquesa — disse o rei —, donde vos veio?

— Ora, provavelmente donde vêm todos os diamantes, Majestade; das minas de Guzarate ou de Golconda.

— Oh! — disse Benvenuto — este diamante tem uma grande história, e se Vossa Majestade deseja conhecê-la, contar-lha-ei. Este diamante e eu somos velhos conhecidos, pois é esta a terceira vez que me passa pelas mãos. Encastoei-o, pela primeira vez, na tiara de Sua Santidade o Papa, onde fazia um belo efeito; mais tarde, por incumbência de Clemente VII, cravei-o num rico missal que Sua Santidade ofereceu ao imperador Carlos V; depois, como o imperador desejava trazê-lo constantemente consigo, decerto como recurso em situação extrema, pois vale mais de um milhão, montei-lho em anel. Não o viu Vossa Majestade na mão de seu primo imperador?

— Agora me lembro, é verdade! — exclamou o rei — trazia-o de facto no dia do nosso primeiro encontro, em Fontainebleau. Como é que este anel se encontra em vosso poder, duquesa?

— Sim, dizei — exclamou Diana, com os olhos faiscantes de alegria —, dizei, por favor, como foi que um diamante desse valor passou das mãos do imperador para as vossas?

— Se tal pergunta vos fosse feita a vós — disse a duquesa d'Étampes —, tenho a certeza de que não vos seria difícil responder, Senhora, uma vez que confessais certas coisas a outras pessoas além do vosso confessor.

— Não respondestes à pergunta, Senhora — retorquiu Diana de Poitiers.

— Sim — disse também Francisco I —, como foi esse diamante parar às vossas mãos?

— Perguntai a Benvenuto — respondeu a Sr.a d'Étampes, numa última provocação ao seu inimigo —, ele vo-lo dirá.

— Diz então — exclamou o rei —, diz imediatamente.

— Pois bem, Majestade! — disse Benvenuto — quando vi este diamante também eu concebi estranhas suspeitas. E como naquela altura a Senhora Duquesa e eu éramos inimigos, não me desagradava descobrir-lhe algum segredo que a pudesse perder aos olhos de Vossa Majestade. Resolvi por isso pôr-me em campo, e acabei por descobrir...

— O quê?...

Benvenuto deitou um olhar rápido à duquesa e viu que ela sorria. Agradou-lhe aquela força de resistência, e em vez de terminar brutalmente a luta com um só golpe resolveu prolongá-la como o atleta seguro da vitória mas que, tendo encontrado um adversário digno de si, quer fazer-se admirar em toda a sua força e destreza.

— Acabaste por descobrir o quê?... — repetiu o rei.

— Descobri que ela o havia muito simplesmente comprado ao judeu Manassés. Sim, porque ficai sabendo, para vosso governo; desde que entrou em França, vosso primo o imperador tem lançado tanto ouro pelo caminho que se vê obrigado a empenhar os seus diamantes, e a Sr.a d'Étampes recolhe com real magnificência o que a pobreza imperial não pode conservar.

— Por Deus, que me apraz ouvir isso! — exclamou Francisco I, duplamente lisonjeado na sua vaidade de amante e na sua emulação de rei.

— Mas, bela senhora, estou agora a pensar — acrescentou, dirigindo-se à duquesa — que vos devíeis ter arruinado com semelhante compra, e é a mim que compete reparar a desordem que causou nas vossas finanças. Tende a bondade de nos recordardes que sois nossa credora do valor dessa pedra, pois é na verdade tão bela que desejo que ela vos venha, senão das mãos de um imperador, ao menos das de um rei.

— Obrigada, Benvenuto — disse a duquesa a meia voz —, começo a crer que nascemos de facto para nos entendermos.

— Que estais dizendo? — perguntou o rei.

— Oh, nada, Majestade! Estava a pedir desculpa à Senhora Duquesa da minha primeira suspeita, o que ela me perdoa com extremada generosidade, tanto mais que esse lírio que vedes me fez conceber uma outra suspeita.

— Que suspeita? — perguntou Francisco I, enquanto Diana, a quem o subterfúgio de Benvenuto não conseguira enganar, devorava com o olhar a sua triunfante rival.

A duquesa dEtampes percebeu que o seu infatigável inimigo não tinha ainda deposto as armas, e pelo seu rosto perpassou uma sombra de terror. É preciso porém dizer que essa sombra não durou mais que um segundo, e que, aproveitando a nova preocupação causada no

espírito do rei pelas últimas palavras de Benvenuto, a duquesa tentou apoderar-se do lírio, que Francisco conservava nas mãos, mas Benvenuto interpôs-se com grande naturalidade entre ela e o rei.

— Esta segunda suspeita — começou Cellini, sorrindo —, confesso que era tão indigna que não sei mesmo se o impudor de a confessar agora não agravaria muito a infâmia de a ter concebido. Sendo assim, só por ordem expressa de Sua Majestade eu ousaria...

— Ousai Cellini, ordeno-vo-lo! — exclamou o rei.

— Pois bem! Confesso que, ao princípio, com o meu ingénuo orgulho de artista, estranhei que a Sr.a d'Etampes tivesse encarregado o aprendiz de um trabalho que o mestre teria muito gosto e orgulho de executar para ela. Lembrais-vos do meu discípulo Ascânio, Majestade? É um jovem e belo cavaleiro, digno de posar como Endimião.

— E então — interpôs o rei, cujo sobrecenho se carregara ante a suspeita.

Desta vez, apesar de todo o seu habitual domínio sobre si mesma, era evidente que a duquesa se sentia supliciar. Por um lado, lia nos olhos de Diana de Poitiers uma curiosidade pérfida, por outro, não ignorava que se Francisco I era capaz de perdoar a traição ao rei, jamais perdoaria uma infidelidade de amante. Entretanto, Benvenuto, simulando não reparar na sua angústia, prosseguiu:

— Peço-vos perdão, minhas Senhoras, do que o meu pensamento possa ter de impertinente para os Franceses, mas estou habituado ao feitio das nossas princesas italianas, que em matéria de amor são muito humanas... Assim, pois, lembrando-me da beleza de Ascânio, supus que um sentimento completamente estranho à Arte...

— Mestre — disse Francisco I franzindo as sobrancelhas —, vede lá o que ides dizer.

— Por isso me desculpei antecipadamente da minha temeridade e pedi para não falar.

— Sou testemunha, Majestade — disse Diana —, de que vós lhe ordenastes que falasse; e agora, que começou...

— É sempre altura de nos calarmos quando sabemos que o que se vai dizer é uma mentira — disse a duquesa.

— Calar-me-ei, se assim o quereis, Senhora — respondeu Cellini —. Sabeis bem que basta para isso uma palavra vossa.

— Sim, mas quero eu que prossigais — disse o rei. E voltando-se para Diana de Poitiers: — Tendes razão, Diana, há certas coisas que é preciso aclarar completamente. Pois falai, falai, Senhor — prosseguiu o rei, envolvendo o escultor e a duquesa num mesmo olhar.

— Não passava tudo isto de meras conjecturas quando uma incrível descoberta veio abrir, de repente, novos caminhos à minha investigação...

— Qual? — exclamaram ao mesmo tempo o rei e Diana de Poitiers.

— Quanto me custa!... — murmurou Cellini à duquesa.

— Majestade — disse a Sr.a d'Étampes —, para ouvir toda esta longa história não tendes necessidade de segurar essa jóia na mão. Vossa Majestade está tão habituado a segurar o ceptro com mão firme, que tenho receio que essa flor tão frágil se quebre em suas mãos.

E enquanto isto dizia, a duquesa, com um daqueles seus inimitáveis sorrisos, estendeu a mão para se apoderar da jóia.

— Perdoai, Senhora Duquesa — disse Cellini —, mas como o lírio desempenha papel importante nesta história, permiti que, para juntar ao relato a demonstração...

— O lírio desempenha papel importante na história que ides contar, mestre?! — exclamou Diana de Poitiers, arrebatando subitamente a flor das mãos do rei. — Então tem a Sr.a d'Étampes razão, e mesmo que a história não seja o que eu desconfio, mais vale que esta jóia esteja em minhas mãos que nas vossas pois, intencionalmente ou não, Vossa Majestade podia destruí-la por um gesto invencível.

A duquesa, julgando-se perdida, tornou-se horrivelmente pálida; tomou nervosamente a mão de Cellini e entreabriu os lábios para falar mas, recaindo em si, a sua mão soltou a do artista cerrando novamente a boca.

— Dizei o que tendes a dizer — exclamou ela entre dentes —, dizei... E acrescentou em voz baixa, só para Benvenuto:

— Se ousais.

— Sim, dizei, mas cuidado com as vossas palavras, meu mestre — disse o rei.

— E vós, Senhora, cuidado com o vosso silêncio — disse Benvenuto.

— Estamos à espera! — exclamou Diana, incapaz de conter a sua impaciência.

— Pois bem! Imaginai, Majestade, sabei, Senhora, que a Senhora Duquesa e Ascânio se correspondiam.

A duquesa procurou em si própria, e depois à sua volta, qualquer arma com que pudesse apunhalar o artista.

— Correspondiam-se?! — exclamou o rei.

— Correspondiam, sim; e o que ainda é mais maravilhoso é que se tratava de amor nessa correspondência entre a Senhora Duquesa d'Êtampes e o pobre aprendiz cinzelador.

— Provas, mestre, provas! Espero que tenhais provas! — explodiu o rei furioso.

— Santo Deus! Pois tenho, Majestade — respondeu Cellini. — Vossa Majestade deve compreender que jamais me deixaria levar por tais suspeitas se não tivesse provas.

— Então, se as tendes, dai-mas imediatamente — disse o rei.

— Disse ainda agora que as tinha, mas não fui exacto: era Vossa Majestade que há pouco as tinha.

— Eu?! — exclamou o rei.

— E quem as tem, neste momento, é a Sr.a de Poitiers.

— Eu?! — exclamou Diana.

— Sim — respondeu Benvenuto que, entre a cólera do rei e o ódio e o terror das duas maiores damas do mundo, mantinha todo o seu sangue-frio e à-vontade. — Sim, porque as provas estão nesse lírio.

— Neste lírio?! — repetiu o rei, retomando a jóia das mãos de Diana de Poitiers e virando-a e revirando-a com uma atenção que, desta vez, nada tinha de amor à Arte. — Neste lírio?!...

— Sim, Majestade, nesse lírio — continuou Cellini. — Vós sabeis quais elas são, Senhora — disse ele em tom significativo, voltando-se para a duquesa, arquejante.

— Transijamos — murmurou-lhe a duquesa. — Colomba não casará com d'Orbec.

— Não basta — murmurou-lhe Cellini. — É preciso que Ascânio despose Colomba.

— Nunca! — murmurou-lhe a duquesa.

Entretanto o rei ia fazendo girar entre os dedos a jóia fatal com uma ansiedade e uma cólera tanto mais dolorosas quanto ele as não ousava trair.

— As provas estão neste lírio?! Neste lírio?! — repetia ele — mas nada vejo dentro da jóia!...

— É que Vossa Majestade desconhece o segredo que a faz abrir.

— Há então um segredo!... pois mostrai-mo imediatamente, ou melhor...

Francisco I fez um movimento para quebrar a jóia; as duas mulheres soltaram um grito. Francisco I deteve-se.

— Majestade, seria pena — exclamou Diana —, é uma jóia tão maravilhosa!... Dai-ma para as mãos, Majestade, porque se tem segredo eu o descobrirei.

E os seus dedos finos e ágeis, dedos de mulher tornados ainda mais subtis pelo ódio, percorreram atentamente todas as asperezas, todos os cavados da jóia, enquanto a duquesa d'Étampes, prestes a desfalecer, lhe seguia, com olhar quase feroz, todas as tentativas infrutíferas. Por fim, fosse sorte, fosse adivinhação de rival, Diana tocou no ponto preciso e a flor abriu-se.

As duas mulheres soltaram de novo um grito simultâneo, uma de alegria, a outra de terror. A duquesa precipitou-se a arrebatar o lírio das mãos de Diana; mas Benvenuto reteve-a com uma mão, enquanto que com a outra lhe mostrava a carta que tinha tirado do seu esconderijo. De facto, num olhar rápido lançado ao cálice da flor, certificou-se de que estava vazio.

— Consinto em tudo — disse a duquesa, aniquilada e já sem forças para sustentar semelhante luta.

— Jurais pelos Livros Sagrados?

— Pelos Livros Sagrados!

— Então, mestre? — disse o rei impaciente — onde estão essas provas!?... Vejo um espaço habilmente cavado no seio da flor, mas está vazio.

— De facto está — respondeu Cellini.

— Sim, mas podia ter contido qualquer coisa — disse Diana.

— A Sr.a de Poitiers tem razão — respondeu Benvenuto.

— Mestre! — exclamou o rei com os dentes cerrados — sabeis que vos pode ser perigoso prolongar mais este gracejo, e que mais poderosos que vós se arrependeram de brincar com a minha cólera?...

— Só de pensar que posso incorrer nela, me desespero — respondeu Cellini sem se desconcertar —, mas nada do que eu disse é para a suscitar, e espero que Vossa Majestade não tenha tomado a sério as minhas palavras. Acaso podia eu fazer tão levianamente uma acusação tão grave?... A Sr.a dÊtampes poderá mostrar-vos as cartas que este lírio conteve, se tendes curiosidade em as ver. Todas elas tratam efectivamente de amor, mas do amor do meu pobre Ascânio por uma nobre donzela... amor que, à primeira vista, pode bem parecer insensato e louco. Mas Ascânio, julgando, na sua imaginação de artista, que uma bela jóia pode valer uma bela jovem, dirigiu-se à Sr.a dÊtampes como a uma providência, e fez deste lírio o seu mensageiro. Ora vós sabeis bem, Majestade, como a Providência tudo pode, e certamente não ides ter zelos desta, pois que, fazendo o bem, ela vos associa aos seus méritos. Aqui está toda a chave do enigma; e se os rodeios com que vo-lo apresentei puderam ofender Vossa Majestade, perdoai-me, recordando-vos da preciosa e nobre familiaridade que até agora me tendes dignado conceder.

Este quase académico discurso mudou completamente a face da cena. A medida que Benvenuto falava, a fronte de Diana carregava-se, a da duquesa desenrugava-se e o rei recuperava o seu sorriso e o seu esplêndido humor. Quando Benvenuto acabou de falar, Francisco I disse para a duquesa:

— Perdão, minha bela Ana, mil vezes perdão de ter suspeitado de vós por um instante. Que poderei fazer, dizei-me, para resgatar a minha falta e merecer o vosso perdão?

— Outorgar à Senhora Duquesa d'Étampes o pedido que ela vos vai formular, tal como Vossa Majestade já me concedeu aqueloutro que lhe fiz.

— Falai por mim, mestre Cellini, pois sabeis o que desejo pedir — disse a duquesa, com uma boa graça que Benvenuto não esperava.

— Pois bem! Visto que a Senhora Duquesa me encarrega de ser seu intérprete, sabei, Majestade, que o seu desejo é ver intervir a vossa omnipotente autoridade a favor dos amores do pobre Ascânio.

— Naturalmente! — disse o rei rindo. — Consinto de todo o coração em fazer a felicidade do gentil aprendiz. Quem é a namorada?

— Colomba d'Estourville, Majestade.

— Colomba d'Estourville?! — exclamou Francisco I.

— Que Vossa Majestade se digne lembrar que é a Senhora Duquesa d'Étampes quem lhe solicita esta graça. Olhai, Senhora, vinde em meu auxílio — acrescentou Benvenuto, fazendo emergir da algibeira uma ponta do fatal bilhete —, porque se continuais em silêncio, poderá Sua Majestade cuidar que agis por pura complacência.

— É certo que desejais esse casamento, Senhora?... — perguntou Francisco I.

— É, Majestade — murmurou a Sr.a d'Étampes —, desejo-o... vivamente. O advérbio surgiu graças a nova exibição da carta.

— Mas como posso saber — retorquiu Francisco I — se o preboste aceita para genro um homem sem nome e sem fortuna?

— Em primeiro lugar, Majestade — respondeu Benvenuto —, o preboste, como súbdito fiel, podeis estar seguro de que não terá outra vontade que não seja a do seu rei. E depois, Ascânio não será um genro sem nome, visto que se chama Gaddo Gadi, e um dos seus antepassados foi senhor de Florença. É ourives, é certo, mas em Itália seguir a Arte não é descer. De resto, ainda que não fosse fidalgo de antiga estirpe, uma vez que eu me permiti inscrever o seu nome nas cartas de nobreza que Vossa Majestade me mandou dar, é fidalgo novo. Ah! Não penseis que esta minha dedicação representasse qualquer sacrifício para mim. Recompensar o meu Ascânio é recompensar-me duas vezes. Aí o tendes, pois, senhor de Nesle; e, quanto a fortuna, eu farei que não lhe falte. Poderá, se quiser, deixar o atelier e adquirir uma companhia de lanceiros ou um cargo na corte; o que tenho chega e sobra para isso e para mais.

— E nós providenciaremos, é claro — disse o rei —, para que a vossa generosidade não altere demasiado a vossa bolsa.

— Sendo assim, Majestade... — exclamou Benvenuto.

— Que viva o nosso Ascânio Gaddo Gadi, senhor de Nesle! — disse o rei entre gargalhadas, tal era o bom humor em que o pusera a certeza da fidelidade da duquesa.

— Senhora — disse Cellini a meia voz —, não podeis, em consciência, deixar que um senhor de Nesle permaneça no Châtelet; isso estava bem para Ascânio...

A Sr.a dEtampes chamou um oficial da guarda real e disse-lhe algumas palavras em voz baixa, as quais terminavam pelas seguintes: «Em nome do rei!»

— Que fazeis, Senhora? — perguntou Francisco I.

— Nada, Majestade — respondeu Cellini. — A Senhora Duquesa mandou apenas buscar o noivo.

— Onde?

— Onde a Sr.a d'Étampes, conhecendo a bondade do rei, lhe disse que esperasse.

Um quarto de hora depois, a porta do salão onde se encontravam Colomba, o preboste, o conde d'Orbec, o embaixador de Espanha e quase todos os fidalgos da corte, excepto Mar-magne, ainda de cama, abriu-se. Um porteiro de câmara bradou:

— El-Rei!

Francisco I entrou, dando a mão a Diana de Poitiers, e seguido de Benvenuto, que amparava com um braço a duquesa d'Etampes, e com o outro Ascânio, quase tão pálidos um como o outro.

Ao ouvirem que chegava o rei, todos os cortesãos se voltaram, ficando por instantes estupefactos ante o grupo que se lhes deparou. Colomba esteve a ponto de desfalecer.

Mas o espanto redobrou quando Francisco I, fazendo o escultor passar à sua frente, disse em voz alta:

— Mestre Benvenuto, tomai por alguns momentos o nosso lugar e a nossa autoridade. Falai como se fôreis o rei, e que vos obedeçam!

— Olhai, Majestade — respondeu o artista —, que para desempenhar bem o vosso lugar terei de usar de toda a magnificência.

— Isso, isso, Benvenuto! — disse Francisco I rindo — cada tirada de magnificência será uma lisonja.

— Quanto folgo, Majestade, que me ponhais tão à vontade. Vou lisonjear-vos o mais que puder. E agora — prosseguiu, voltando-se para a corte — não esqueçais que é o rei quem fala pela minha boca. Senhores notários, preparastes já o contrato que Sua Majestade se digna assinar? Escrevei o nome dos esposos.

Os dois notários pegaram na pena e prepararam-se para escrever nos dois contratos, um dos quais devia ficar nos arquivos do reino, e o outro no seu gabinete.

— Por um lado — continuou Cellini —, a nobre e poderosa Senhorinha Colomba d'Estourville.

— Colomba d'Estourville — repetiram maquinalmente os notários, enquanto os presentes escutavam com o máximo dos espantos.

— Pela outra parte — continuou Cellini —, o muito nobre e muito poderoso Ascânio Gadi, senhor de Nesle.

— Ascânio Gadi?! — exclamaram ao mesmo tempo o preboste e d'Orbec.

— Um artífice?!... — exclamou dolorosamente o preboste, voltando-se para o rei.

— Ascânio Gadi, senhor de Nesle — prosseguiu Benvenuto, sem se deixar comover —, a quem Sua Majestade concede cartas de naturalização, bem como o lugar de intendente dos castelos reais.

— Se Sua Majestade assim o ordena... obedecerei — disse o preboste —, no entanto...

— Ascânio Gadi — continuou Benvenuto — por consideração de quem Sua Majestade concede a Dom Roberto d'Estourville, preboste de Paris, o título de camareiro-mor.

— Majestade, estou pronto a assinar — disse d'Estourville, finalmente conquistado.

— E eu? — exclamou d'Orbec e eu?

— Quanto a vós — prosseguiu Cellini, continuando a exercer interinamente as funções reais —, perdoo-vos o inquérito que tinha o direito de mandar fazer sobre a vossa conduta. Mas a clemência, tal como a generosidade, são virtudes de um rei... não é, Majestade? Ora aqui estão os contratos; assinemos, Senhores!

— Mas é que vai bem no papel de rei! — exclamou Francisco I, feliz como um monarca em férias.

Depois, passou a pena a Ascânio, que assinou com uma grafia trémula e que, depois de ter assinado, passou a pena a Colomba, que a Sr.a de Poitiers, cheia de bondade, fora chamar ao seu lugar, amparando-a. As mãos dos dois amantes tocaram-se, e tanto bastou para que os seus donos quase perdessem os sentidos.

Seguiu-se Diana de Poitiers, que passou a pena à duquesa d'Etampes, passando-a esta ao preboste, o preboste a d'Orbec e d'Orbec ao embaixador de Espanha.

Debaixo de todos estes nomes, Cellini escreveu distinta e firmemente o seu. E, no entanto, não era ele quem fazia o menor sacrifício.

Depois de assinar, o embaixador de Espanha aproximou-se da duquesa, dizendo-lhe:

— E os nossos planos, Senhora, continuam de pé?

— Oh! Meu Deus! — exclama a duquesa — fazei o que vos parecer. Que me importa a França! Que me importa o Mundo!...

O duque inclinou-se e voltou para junto de um sobrinho, jovem diplomata ainda inexperiente, que lhe disse:

— Então, de acordo com as intenções do imperador, não será o rei Francisco I, mas seu filho, que será duque de Milão...

— Não será um nem outro — respondeu o embaixador. Entretanto, prosseguiam as assinaturas.

Por fim, quando todos escreveram o seu nome por baixo da felicidade de Ascânio e Colomba, Benvenuto aproximou-se de Francisco I e, pondo um joelho em terra, disse-lhe:

— Majestade, depois de ter dado ordens como rei, venho pedir algo a Vossa Majestade como humilde e reconhecido servidor. Quereis conceder-me uma última graça?

— Diz, Benvenuto, diz lá — respondeu Francisco I, que estava em maré de concessões e pensava ser este acto da realeza o que torna o rei mais feliz. — Diz, que desejas tu?

— Voltar à Itália, Majestade — disse Benvenuto.

— Que significa isto!? — exclamou o rei — quereis deixar-me, quando ainda vos restam tantas obras-primas a realizar para mim?!... Não quero.

— Mas, Majestade — respondeu Benvenuto —, eu voltarei, juro-vos. Agora, porém, deixai-me partir, deixai-me ir rever o meu país; tenho neste momento grande necessidade de o fazer. Não vos direi quanto sofro — continuou o artista, baixando a voz e sacudindo melancolicamente a cabeça —, mas sofro muito, e só os ares da pátria poderão cicatrizar-me o coração. Vós sois um grande e generoso rei que muito amo; permiti que eu me vá curar, ao sol da minha terra, tendes a minha palavra de que voltarei. Deixo-vos Ascânio, o meu pensamento, e Pagolo, a minha mão; eles bastarão aos vossos sonhos de artista até ao meu regresso. Depois de receber o beijo das brisas de Florença, minha mãe, voltarei para vós, meu rei, e então só a morte poderá separar-me de vós.

— Ide então — disse Francisco I, com tristeza. — A Arte precisa de ser livre como as andorinhas. Ide.

E Francisco I estendeu a mão a Benvenuto, que a beijou com reconhecimento. Quando se retirava, Benvenuto passou junto da duquesa.

— Quereis-me muito mal, Senhora? — disse ele, passando-lhe para as mãos o bilhete fatal que, como um talismã, acabava de realizar coisas impossíveis.

— Não — disse a duquesa, radiante por recuperar finalmente a perigosa carta —, não; e no entanto, para me vencerdes servistes-vos de processos...

— Ora! ora! — exclamou Benvenuto — apenas pretendia ameaçar-vos. Pensastes que chegaria a mostrar este bilhete?...

— Deus do Céu! — disse a duquesa com uma expressão indescritível. — Ora aqui está o resultado de ter suposto que éreis como eu!

No dia seguinte, Ascânio e Colomba casaram-se na capela do Louvre, e, não obstante o protocolo, os dois jovens conseguiram que Tiago Aubry e sua mulher assistissem à cerimónia.

Foi, de facto, uma excepção sem precedentes, mas temos de concordar que o pobre estudante bem a tinha merecido.

 

         CASAMENTO DE CONVENIÊNCIA

Oito dias depois, Hermann desposou solenemente Dona Perrine, que lhe levou um dote de vinte mil libras e a certeza de que ia ser pai.

Apressemo-nos porém a esclarecer que foi sobretudo esta certeza que determinou o bravo alemão.

Na própria noite do casamento de Ascânio e Colomba, a despeito de todas as súplicas dos dois jovens, Benvenuto partiu para Florença.

Foi durante este regresso a Itália que ele fundiu a sua estátua de Perseu, ainda hoje um dos ornamentos da Praça do Palácio Velho, e que ficou sendo a sua mais bela obra, talvez apenas porque foi realizada durante a sua maior dor.

 

                                                                                Alexandre Dumas  

 

                      

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