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Series & Trilogias Literarias
Atlanta é uma cidade atormentada por problemas mágicos. Kate Daniels lutará para resolvê-los — não importa o custo.
A Consorte do Bando, Kate Daniels e seu companheiro, Curran, o Senhor das Feras, estão lutando para resolver uma crise de partir o coração. Incapazes de controlar suas feras, muitas crianças metamorfas não conseguem sobreviver até a idade adulta. Embora exista uma medicação que possa ajudar, o segredo para sua fabricação é guardado a sete chaves pelos bandos europeus, e não há nada que possa ajudar essas crianças em Atlanta.
Kate não suporta ver os inocentes sofrerem, mas a solução que ela e Curran encontraram ameaça ser ainda mais dolorosa. Os metamorfos europeus que outrora manobraram o Senhor das Feras pediram que ele arbitrasse uma disputa — e eles lhe pagariam em medicação. Com a sobrevivência dos jovens e o futuro do Bando em jogo, Kate e Curran sabem que devem aceitar a oferta —mas não têm muita dúvida de que estão indo direto para uma armadilha ...
Capítulo 1
Girei a lança.
— Mais um argumento e eu vou arrancar seu couro.
Julie revirou os olhos com todo o desprezo que uma garota de quatorze anos conseguia reunir e afastou o cabelo loiro do rosto. — Kate, quando vou usar isso na vida real?
— Você vai usá-lo nos próximos cinco segundos para me impedir de empalar você.
Nos meus vinte e seis anos, tive muitos empregos. Ensinar não foi um deles. Sobretudo, matei pessoas de formas sangrentas e criativas. Mas Julie era minha filha adotiva, minha responsabilidade, e praticar com uma lança seria bom para ela. Desenvolveria músculos, reflexos e equilíbrio, três coisas que ela precisaria quando fôssemos treinar com a espada.
Várias décadas atrás, a magia retornou ao nosso mundo, esmagando nossa civilização tecnológica e qualquer ilusão de segurança que tivéssemos com ela. Magia e tecnologia ainda lutavam pela supremacia, brincando com o planeta como duas crianças jogando uma bola uma para a outra. Quando uma funcionava, a outra desaparecia.
A polícia fazia o melhor que podia, mas na metade do tempo os telefones não funcionavam e todos os oficiais disponíveis respondiam a emergências importantes, como salvar crianças em idade escolar de um bando de harpias1 famintas. Enquanto isso, com recursos escassos e baratos, algumas pessoas faziam um ótimo trabalho predando umas às outras. Cidadãos inteligentes não saíam à noite. Se os criminosos não os pegassem primeiro, as aberrações mágicas com dentes gigantescos as fariam.
Cada pessoa era responsável por sua própria segurança, e nós dependíamos de magia, armas e lâminas. A magia de Julie era rara e altamente valorizada, mas inútil em combate. Ver as cores da magia não a ajudaria a matar um vampiro. Minha melhor amiga, Andrea, estava ensinando-a a lidar com armas de fogo, porque eu não conseguia acertar um elefante com uma arma de fogo a três metros, embora provavelmente pudesse detoná-lo até a morte com uma espada. Armas brancas2 eram o meu forte e o uso dessas eu poderia ensinar.
Golpeei a barriga de Julie me movendo devagar como uma lesma. Ela girou sua lança como um remo e bateu na minha, derrubando-a.
— E?
Ela me deu um olhar completamente vazio. Na maioria das vezes, Julie levava a prática a sério, mas tinha dias, como esse, onde algum interruptor apresentava defeito em sua cabeça, desconectando seu cérebro de seu corpo. Provavelmente algumas palavras certeiras de ‘mãe’, que eu poderia dizer, a fariam acordar, mas eu encontrara Julie há um ano na rua e a coisa toda sobre a maternidade ainda era nova para mim. Minha mãe morreu antes que eu pudesse formar memórias dela, então eu não tinha nenhuma experiência para recorrer.
Para piorar as coisas, usei magia para salvar a vida de Julie. Ela não podia recusar uma ordem direta minha, embora não soubesse disso e eu estava determinada que ela continuasse não sabendo. Depois de alguns erros, aprendi que a maneira como eu falava com ela fazia diferença. Se eu lhe desse instruções em vez de gritar ordens, Julie não tinha problema em me ignorar.
Ao nosso redor, os bosques do Bando estavam cheios de vida. O sol da tarde brilhava forte. Folhas sussurravam na brisa. Esquilos corriam de um lado para o outro nos galhos, completamente inabaláveis, apesar das várias centenas de metamorfos carnívoros morando ao lado. Ao longe, o som fraco de motosserras roncava— a estrada estreita que levava à Fortaleza corria o risco de se tornar intransponível e uma equipe de metamorfos havia sido despachada hoje de manhã para derrubar algumas das árvores.
Uma borboleta amarela flutuou. Julie assistiu.
Puxei minha lança para trás, invertia e apunhalei no ombro esquerdo dela com a ponta do cabo.
— Eita!
Suspirei. — Preste atenção por favor.
Julie fez uma careta. — Meu braço dói.
— Então é melhor você me bloquear, assim não vou fazer algo mais doer.
— Isso é abuso infantil.
— Você está choramingando. Estamos treinando bloqueio de lança.
Girei a ponta afiada da lança para frente e a apunhalei novamente, em câmera lenta. Julie prendeu minha lança com a dela e ficou parada lá.
— Não fique aí parada com sua lança. Você tem uma abertura, precisa fazer algo com ela.
Ela levantou a lança e fez uma tentativa indiferente de me esfaquear no peito. Eu dei a ela um segundo para atacá-la de volta, mas ela não se mexeu. Para mim chega. Acabou.
Virei a lança e varri as pernas dela. Julie caiu de costas e eu enfiei a lança no chão a alguns centímetros de seu pescoço. Ela piscou, o cabelo loiro pálido se espalhando pela sua cabeça.
— Qual é o seu problema hoje?
— Kevin convidou Maddie para a Dança da Lua.
Maddie, uma metamorfa ursa, era a melhor amiga de Julie. A Dança da Lua era a maneira do Bando deixar os adolescentes desabafarem—todas as sextas-feiras à noite, desde que a magia estivesse em baixa, os metamorfos colocavam os alto-falantes para fora, nas ameias3 da Fortaleza, e explodiam músicas de dança. Ser convidado para a Dança da Lua por um menino era compreensivelmente um grande negócio. Ainda não explicava por que dois meses de aula e prática de lutas haviam sumido da cabeça da minha filha.
— E?
— Eu devo ajudá-la a escolher a roupa para amanhã, —disse Julie, deitada lá como uma lesma.
— E isso é mais importante que a prática?
— Sim!
Eu puxei minha lança para fora do chão. — Bem. Vá fazer sua coisa com Maddie. Você me deve uma hora no sábado. — Nenhuma força no planeta poderia fazê-la se concentrar quando ela ficava assim, então continuar com a prática hoje era uma perda de tempo de qualquer maneira.
A criança-lesma se transformou em uma gazela ágil e ficou em pé rapidamente. — Obrigada!
— Sim. Sim.
Nós saímos da clareira. O mundo piscou por um segundo e uma onda de magia nos afogou, inundando a floresta. As moto-serras engasgaram e morreram, seguidas dos xingamentos coletivos vindo dos metamorfos que trabalhavam cortando as árvores.
O nome oficial desse fenômeno era ressonância Pós-Mudança, mas todos se referiam a ele como ondas mágicas. Elas saíam do nada e rolavam pelo mundo, apagando a eletricidade, matando motores de combustão interna, estrangulando armas e cuspindo monstros. Então a magia desapareceria, as luzes elétricas se acendiam e as armas de fogo mais uma vez se tornariam mortais. Ninguém podia prever o quão forte seria uma onda ou quanto duraria. Isso contribuiu para uma vida caótica, mas nós perseveramos.
As árvores se separaram, revelando um vasto campo gramado. No meio dela, a Fortaleza se erguia como uma montanha cinzenta feita pelo homem, um exemplo do que acontece quando várias centenas de pessoas profundamente paranoicas e sobre-humanas se reúnem e decidem que precisam de um lugar seguro para se esconder. De um lado, a Fortaleza parecia moderna, por outro, lembrava um castelo medieval. Nós nos aproximamos pelo norte, o que nos dava uma visão da torre principal, e a partir daqui o lugar parecia um arranha-céu sombrio e sinistro, com uma cobertura segura, onde Curran e eu fizemos nosso covil.
Não foi sempre assim. Nós não começamos nos olhando e decidindo instantaneamente que éramos almas gêmeas. Quando nos conhecemos, ele pensou que eu era uma mercenária imprudente capaz de desafiar a sua autoridade, só porque eu queria, e eu achava que ele era um bastardo arrogante e que tinha problemas suficientes para encher essa Fortaleza com eles de cima a baixo. Mas agora estávamos juntos. Ele era o Senhor das Feras e eu sua Consorte, o que me colocava em uma posição de autoridade sobre mil e quinhentos metamorfos, o maior grupo do sul. Eu não queria essa responsabilidade e, dada a escolha, correria o mais longe que pudesse, mas esse era o preço que tinha que pagar para ficar com Curran. Eu o amava e ele valia a pena. Ele valia tudo.
Nós circulamos a Fortaleza e passamos pelos portões largos e abertos para o pátio interno. Um grupo de metamorfos trabalhava em um dos veículos do Bando, um jipe modificado com um capô mais alto e deformado pela necessidade de conter dois motores, um para gasolina e outro para água encantada. Eles acenaram para nós enquanto passávamos. Nós acenamos de volta. Os metamorfos me aceitaram, em parte porque eu lutava pela minha posição e não lhes dava escolha, e também porque, apesar de Curran ser um homem justo, tinha uma tolerância muito baixa a besteiras. Nem sempre concordamos com as coisas, mas se os metamorfos apelassem diretamente para mim, ele não ignoraria a minha decisão, e o Bando gostava de ter a opção de uma segunda opinião.
A porta de aço reforçada estava bem aberta. O final de maio na Geórgia era quente e o verão ficava mais quente. Tentar colocar ar-condicionado na Fortaleza era uma proposta inútil, então todas as portas e janelas estavam abertas para ventilar melhor. Entramos em um corredor estreito e começamos a subir a enorme escadaria que era o terror da minha existência. Eu comecei a odiá-la na primeira vez que tive que escalá-la, e uma lesão no meu joelho só fez o ódio mais forte.
Segundo andar.
Terceiro andar. Escadas estúpidas.
— Consorte!
A urgência na voz me fez virar. Uma mulher mais velha correu em minha direção pelo corredor do terceiro andar, com os olhos bem abertos, a boca frouxa. Meredith Cole. Mãe de Maddie.
— Eles estão matando-as! —Ela agarrou em mim. — Eles irão matar minhas meninas!
Todos os metamorfos no corredor congelaram. Colocar as mãos em um alfa sem permissão era visto como agressão.
Tony, um dos assistentes de Doolittle, dobrou a esquina, correndo pelo corredor em nossa direção.
— Meredith! Espere!
Doolittle era o médico-mago do Bando. O medo tomou conta de mim. Havia apenas uma razão pela qual o médico do Bando mataria uma criança.
— Kate? O que está acontecendo? Onde está Maddie? —A voz de Julie aumentou.
— Me ajude! —Meredith apertou meu braço. Meus ossos gemeram. — Não deixe que eles matem minhas bebês.
Tony parou, sem saber o que fazer a seguir.
Eu mantive minha voz calma. — Mostre-me.
— Por aqui. Doolittle está com elas. —Meredith me soltou e apontou para o corredor.
— O que está acontecendo? —Julie choramingou.
Marchei pelo corredor. — Vamos descobrir em um minuto.
Tony esperou e andou atrás de nós quando passamos por ele. O corredor nos levava para a enfermaria médica.
— Ele está na parte de trás, —disse Tony. — Eu vou te levar lá.
Ele assumiu a liderança e nós o seguimos pela ala hospitalar até uma sala redonda. Seis corredores compridos e estreitos saíam da sala, túneis cinzentos de concreto. Tony escolheu o primeiro em frente. Uma porta de aço com um brilho prateado revelador esperava no final. Nós caminhamos para lá, o som dos nossos passos saltando das paredes.
Três barras, cada uma com a espessura do meu pulso, guardavam a porta, agora destrancadas. Meu coração apertou. Eu não queria ver o que estava por trás disso.
Tony agarrou o espesso suporte de metal que servia de maçaneta da porta, levantou-o e o abriu, revelando um quarto envolto em trevas. Atravessei. À minha direita, um homem negro de cinquenta e poucos anos, pele escura e cabelo salpicados de cinza estava ao lado de algumas cadeiras, Doolittle. Ele se virou e olhou para mim, e seus olhos normalmente gentis me disseram tudo o que eu precisava saber: meu maior medo se confirmou e não havia esperança.
À minha esquerda, duas celas de prisão de acrílico estavam lado a lado, inundadas de luz azulada vindas de lanternas a gás. Barras de aço e prata envolvia cada cela. Eu não vi portas. O único acesso às celas era através de uma queda no estilo da máquina de venda automática na frente.
Dentro das celas, dois monstros aguardavam. Deformados, grotescos, seus corpos torcidos em um pesadelo horrível de peças semi-humanas, garras de grandes dimensões, e manchas de pele densa. Estavam encolhidos no canto, separados pelo acrílico e barras, mas amontoados juntos. Seus rostos, com mandíbulas superdimensionadas e dentes estranhamente distorcidos fariam qualquer um nunca mais esquecer essa cena.
O monstro à esquerda levantou a cabeça. Dois olhos azuis humanos olhavam para nós, cheios de terror e dor.
— Maddie! —Julie agarrou as barras. — Maddie!
O outro monstro se mexeu. Eu reconheci as mechas de cabelos castanhos. Maddie e Margo. A melhor amiga de Julie e sua irmã gêmea estavam indo a loup.
Cada metamorfo tinha que enfrentar uma escolha: manter sua humanidade pela prática da ordem, disciplina e moderação constante pela sua própria vontade ou se render aos desejos violentos gerados pela presença de Lyc-V, o vírus mutante, e se tornar um loup insano. Loups assassinavam, torturavam e se divertiam com a dor dos outros. Eles não podiam mais manter uma forma humana ou totalmente animal. Uma vez que um metamorfo ia a loup, não havia como voltar atrás. O Bando os exterminava.
Durante períodos de estresse extremo, o Lyc-V explodia em grande número no corpo do metamorfo. A adolescência, com suas flutuações hormonais e montanhas-russas emocionais, era o período mais estressante que um metamorfo enfrentava. Um quarto das crianças não sobreviviam.
— Diga a ele. —Meredith implorou. — Diga a ele para não matar minhas filhas.
Doolittle olhou para mim.
O Bando tinha uma maneira complicada de descobrir a probabilidade de um metamorfo ir a loup baseado na quantidade de vírus no sangue. — Qual é o número de Lycos4?
— Dois mil e seiscentos para Maddie e dois mil e quatrocentos para Margo, —disse ele.
Mais de mil era praticamente uma garantia de loupismo.
— Há quanto tempo elas estão assim? —Perguntei.
— Desde as duas horas da noite passada, —disse Doolittle.
Sem chances. Foi a mais de catorze horas atrás. Nós estávamos apenas tentando adiar o inevitável. Droga.
Julie segurou as barras. Meu coração se contraiu em uma dolorosa bola dura. Alguns meses atrás, era ela que parecia assim, uma bagunça de parte humana e parte animal, seu corpo devastado pelo vírus. Eu ainda tinha pesadelos de quando fiquei em cima dela enquanto ela rosnava para mim, amarrada em uma cama de hospital, e quando acordo, ando até o quarto dela no meio da noite para me assegurar de que está viva e bem.
— Por favor, Consorte. Por favor. —Meredith sussurrou. — Você curou Julie.
Ela não tinha ideia do que estava me pedindo. O preço era alto demais. Mesmo se eu concordasse com isso—o que eu não faria—remover o vírus de Julie precisou da magia de um coven5 completo de bruxas, o poder de vários sacerdotes pagãos e minha quase morte. Foi uma coisa única que eu não conseguiria mais reproduzir.
— Julie se recuperou por causa da magia dela, —eu menti, mantendo minha voz suave.
— Por favor!
— Eu sinto muito. —As palavras tinham gosto de vidro esmagado na minha boca. Não havia nada que eu pudesse fazer.
— Você não pode! —Julie se virou para mim. — Você não pode matá-las. Você não tem certeza. Elas ainda podem sair disso.
Não, elas não podiam. Eu sabia, mas olhei para Doolittle de qualquer maneira. Ele balançou sua cabeça. Se as meninas tivessem alguma chance de recuperação, elas já teriam mostrado os sinais agora.
— Elas só precisam de mais tempo. —Meredith agarrou-se as palavras de Julie como alguém que está se afogando e se agarra a um canudo. — Só mais tempo.
— Vamos esperar. —Eu disse.
— Nós estaríamos apenas prolongando o sofrimento delas, —disse Doolittle calmamente.
— Vamos esperar, —repeti. Era o mínimo que poderíamos fazer por essa mãe. — Sente-se comigo, Meredith.
Nos sentamos juntas nas cadeiras vizinhas.
— Quanto tempo? —Doolittle perguntou em voz baixa.
Eu olhei para Meredith. Ela estava olhando para suas filhas. Lágrimas escorriam pelo rosto dela.
— Por quanto tempo for necessário.
Chequei o relógio na parede. Estávamos no quarto por mais de seis horas. As meninas não mostravam mudanças.
Ocasionalmente uma, depois a outra, enfurecia-se, batendo no acrílico, rosnando furiosamente, e depois caíam no chão, exaustas. Olhar para elas doía a alma.
Doolittle tinha saído por um par de horas, mas agora ele estava de volta, sentado sozinho perto da outra parede, seu rosto pálido. Ele não disse uma palavra.
Há alguns minutos, Jennifer Hinton, a alfa do clã Lobo, entrou na sala. Ela ficou de pé, encostada na parede, embalando sua barriga grávida com as mãos. Seu rosto tinha um olhar assombrado, e a ansiedade em seus olhos se aproximava do pânico. Aproximadamente dez por cento dos metamorfos lobos iam a Loup quando nasciam.
Meredith escorregou da cadeira. Ela se sentou no chão junto ao acrílico e começou a cantar. Sua voz tremia.
— Silêncio, bebezinho, não diga uma palavra ...
Oh Deus.
Jennifer colocou a mão sobre a boca e fugiu do quarto.
— Mamãe vai te comprar um rouxinol6...
Margo se mexeu e se arrastou até a mãe, arrastando uma perna torcida atrás dela. Maddie a seguiu. Elas se amontoaram juntas, as três, pressionadas contra o acrílico. Meredith continuou cantando, desesperada. Sua canção de ninar, tecida a partir de anos de amor e esperança, e tudo isso agora estava morrendo. Meus olhos lacrimejaram.
Julie levantou e saiu do quarto.
Escutei Meredith cantar e desejei ter mais magia. Magia diferente. Eu queria ser diferente. Mas desde que me lembro, meu pai adotivo, Voron, havia me aperfeiçoado em uma arma. Minha lembrança mais antiga era de tomar sorvete enquanto segurava minha espada no meu colo. Eu aprendi dezenas de estilos de artes marciais, lutei em arenas e poços de areia, poderia andar no deserto e emergir meses depois, sem maiores desgastes. Poderia controlar os mortos-vivos, um fato que escondia de todos. Eu poderia moldar meu sangue em um ponta sólida e afiada e usá-la como uma arma. Aprendi várias palavras de poder, palavras em um idioma tão primitivo, tão poderoso, que elas comandavam a própria magia crua. Não se pode apenas conhecê-las, você tinha que torná-las suas ou morrer. Lutei contra elas e as fiz minhas. No auge de um tsunami mágico, eu usei uma para forçar um exército demoníaco a se ajoelhar diante de mim.
E nada disso poderia me ajudar agora. Todo esse poder em mim, e eu não poderia evitar que duas garotas sentissem medo e a mãe delas chorasse. Eu só podia destruir, matar e esmagar. Gostaria de poder fazer todo esse sofrimento ir embora, apenas agitar meus braços no ar e isso desaparecer, pagaria qualquer preço que eu tivesse que pagar, e faria tudo ficar bem. Queria desesperadamente fazer tudo ficar bem.
Meredith ficou em silêncio.
Julie voltou, carregando uma barra de Snickers7. Ela desembrulhou-a com os dedos trêmulos, quebrou o doce ao meio e deixou cair cada pedaço através das fendas.
Maddie estendeu a mão. A mão dela com quatro protuberâncias atarracadas que um dia foram seus dedos e uma única garra de dez centímetros espetou o doce. Ela puxou para ela. Suas mandíbulas tortas se abriram e ela deu uma pequena mordida com dentes tortos no chocolate.
Meu coração estava partindo.
Margo se lançou contra o vidro, rosnando e chorando. O acrílico de meio metro de espessura nem estremeceu. Ela se lançou contra ele novamente, e novamente, lamentando. Cada vez que o corpo dela batia na parede, os ombros de Meredith se sacudiam.
A porta se abriu. Eu vi o familiar corpo musculoso e cabelo loiro curto. Curran.
Ele devia ter saído da Fortaleza, porque em vez de suas calças de moletom comuns, usava jeans. Quando se olhava para ele, você tinha uma impressão esmagadora de força. Seus ombros largos e peito poderosos esticavam sua camiseta. Bíceps esculpidos enormes em seus braços. Seu estômago era liso e duro. Tudo sobre ele falava de puro poder físico, contido, mas pronto para ser libertado. Ele se movia como um gato à espreita, gracioso, flexível e completamente quieto, espreitando os corredores da Fortaleza, um leão em seu covil de pedra. Se eu não o conhecesse e o visse chegando em um beco escuro, eu fugiria.
Sua presença física era alarmante, mas seu verdadeiro poder estava em seus olhos. No momento em que você olhasse suas íris cinzentas, sabia que ele não toleraria nenhum desafio a sua autoridade, e se os olhos dele ficassem dourados, você sabia que ia morrer. Em um ataque de ironia cósmica, ele havia se apaixonado por mim. Eu desafiava sua autoridade semanalmente.
Curran não olhou para mim. Normalmente, quando ele entrava na sala, nossos olhares se cruzavam para aquele momento silencioso de conexão, uma verificação rápida do tipo ‘Ei, você está bem?’ Ele não olhou para mim e seu rosto parecia sombrio. Algo estava seriamente errado. Algo além de Maddie.
Curran passou por mim até Doolittle e entregou-lhe um pequeno saco de plástico cheio de pasta cor de azeitona.
Doolittle abriu a bolsa e cheirou o conteúdo. Seus olhos se arregalaram. — Como ...
Curran sacudiu a cabeça.
— É a panaceia8? —Meredith virou-se para ele, os olhos subitamente vivos novamente.
A panaceia era produzida por metamorfos europeus, que a guardavam como ouro. O Bando estava tentando descobrir sua fórmula fazendo engenharia química reversa9 por anos e não chegara a lugar nenhum. A mistura de ervas reduzia as chances de loupismo ao nascer em 75% e revertia a transformação média em um terço dos adolescentes. Costumava haver um homem em Atlanta que de alguma forma conseguia contrabandear a droga em pequenas quantidades e que vendia ao Bando a preços exorbitantes, mas algumas semanas atrás os metamorfos o encontraram flutuando em um lago com a garganta cortada. A equipe de segurança de Jim rastreou os assassinos até a costa, os limites da nossa área de jurisdição.
Agora Curran segurava uma sacola. O que você fez, Sua Majestade Peluda?
— Há apenas o suficiente para uma dose única, —disse Doolittle.
Droga. — Você consegue mais?
Curran sacudiu a cabeça.
— Você deve escolher. —Disse Doolittle.
— Eu não posso. —Meredith recuou.
— Não a faça escolher. —Como diabos você poderia escolher um filho sobre o outro?
— Divida-o. —disse Curran.
Doolittle sacudiu a cabeça. — Meu senhor, nós temos uma chance de salvar uma delas ...
— Eu disse divida-o. —Curran rosnou. Seus olhos brilharam em ouro. Eu tinha razão. Algo ruim aconteceu, e não era apenas Maddie e Margo.
Doolittle fechou a boca com força.
Curran recuou e encostou-se à parede, com os braços cruzados.
A pasta foi dividida em duas partes iguais. Tony misturou cada uma em meio quilo de carne moída e jogou nas celas. As crianças atacaram a carne, lambendo-a do chão. Segundos se arrastaram, rebocando minutos em seu rastro.
Margo se sacudiu. O pelo do corpo dela desapareceu. Seus ossos se dobraram, se encolheram e se realinharam ... Ela gritou, e uma garota humana, nua e sangrenta, caiu no chão.
Obrigada. Obrigada, seja lá quem você for no andar de cima.
— Margo! —Meredith chamou. — Margo, querida, responda-me. Me responda, bebê.
— Mãe? —Margo sussurrou.
— Minha bebê!
O corpo de Maddie estremeceu. Seus membros se torceram. A distorção em seu corpo diminuiu, mas os sinais de animal permaneceram. Meu coração afundou. Não funcionou em Maddie.
— Ela está reduzida a coeficiente dois. —Disse Doolittle.
O coeficiente de mudança, a medida de quanto um corpo tinha mudado de uma forma para outra. — O que isso significa?
— É um progresso —disse ele. — Se tivéssemos mais panaceia, eu estaria otimista.
Mas nós não tínhamos. Tony tinha acabado de esvaziar a bolsa, ele a cortou e esfregou a parte de dentro do plástico na carne e depois raspou com a parte de trás da faca. Maddie ainda estava indo a Loup. Nós tínhamos que obter mais panaceia. Nós tínhamos que salvá-la.
— Você não pode matá-la! —A voz de Julie disparou em tom alto. — Você não pode!
— Quanto tempo você pode manter a criança controlada? —Curran perguntou.
— Quanto tempo é necessário? —Doolittle perguntou.
— Três meses. —Disse Curran.
Doolittle franziu a testa. — Você está me pedindo para induzir um coma.
— Consegue fazê-lo?
— Sim. —Disse Doolittle. — Não temos outra saída, a alternativa é a morte.
A voz de Curran estava cortada. — Efetivamente, todas as mortes relacionadas com o loupismo de crianças estão suspensas. Deixe-as sedadas em vez disso. — Ele se virou e saiu.
Parei por meio segundo para dizer a Julie que tudo ficaria bem e saí atrás dele.
O corredor estava vazio. O Senhor das Feras se foi.
Capítulo 2
Subi as ‘Escadarias da Perdição’ para o andar de cima. Queria ir atrás de Curran, mas Julie ainda estava apavorada e Meredith se dividia em abraçar uma filha e chorar pela outra. Ela não queria que induzíssemos um coma. Queria mais panaceia e não conseguia entender que não havia mais nada que podíamos fazer por enquanto. Foi necessário nós três—Doolittle, Julie e eu—e mais de duas horas para convencê-la de que Maddie precisava ser sedada. Quando finalmente saí da ala médica, Curran já tinha ido embora. Os guardas na entrada o viram sair, mas ninguém sabia onde ele estava.
Cheguei ao posto de guarda na entrada do nosso andar. Viver na Fortaleza era como tentar encontrar privacidade em uma caixa de vidro, e os dois andares superiores da torre principal eram nosso refúgio. Ninguém entrava aqui, a menos que a guarda pessoal do Senhor das Feras os investigasse, e eles não eram caridosos em aprovar visitantes.
Sentar em um quarto escuro assistindo uma criança sofrer enquanto a alma de sua mãe morria pouco a pouco era mais do que eu poderia aguentar. Precisava fazer alguma coisa. Tinha que desabafar ou explodiria.
Balancei a cabeça para os guardas e desci pelo corredor até uma longa parede de vidro que separava nosso ginásio particular. Tirei meus sapatos e entrei. Pesos esperavam por mim, alguns soltos, alguns ligados a máquinas. Vários sacos de areia pesados pendiam de correntes no canto, ao lado de um speed bag10. Espadas, machados e lanças descansavam nos ganchos da parede.
Meu pai adotivo, Voron, morreu quando eu tinha quinze anos, e depois meu tutor, Greg Feldman, cuidou de mim. Greg passou anos acumulando uma coleção de armas e artefatos, que ele deixou para mim. Havia perdido tudo. Minha tia nos visitou e deixou um pedaço de Atlanta em ruínas, incluindo o apartamento que eu herdara de Greg. Mas eu estava reconstruindo um novo arsenal lentamente. Não tinha armas preciosas na minha coleção, exceto a Matadora, minha espada, mas todas as minhas armas eram funcionais e bem-feitas.
Eu tirei a bainha da parte de trás das minhas costas com a Matadora, abaixei-a no chão e fiz flexões por alguns minutos para me aquecer, mas meu peso não era suficiente, então mudei para o saco de areia, martelando socos e dando chutes. A pressão, crescendo em mim pelas últimas horas, me alimentou. O saco estremecia com o impacto.
Não era justo que as crianças fossem a loup. Não era justo que não houvesse sinais de aviso. Não era justo que eu não pudesse fazer absolutamente nada sobre isso. Não era justo que se Curran e eu tivéssemos filhos, eu seria como Jennifer, acariciando minha barriga, aterrorizada com o futuro. E se meus filhos fossem a loup, teria que matá-los. O pensamento me incitou, me deixando em frenesi. Eu não seria capaz de fazer isso. Se Curran e eu tivéssemos um bebê, eu não poderia matá-lo. Não tenho isso em mim. Até pensar nisso era como o choque que se leva quando pula em um lago gelado.
Trabalhei no saco de areia por quase uma hora, mudei para o peso, depois fiz o saco de novo, tentando me aproximar da exaustão. Se eu me cansasse o bastante, pararia de pensar.
Exaustão provou ser difícil de alcançar. Passei as últimas semanas me recuperando, treinando, comendo bem e fazendo amor sempre que desejava. Eu tinha mais resistência do que o coelho dos comerciais antigos de bateria. Eventualmente alcancei o limite de um simples esforço físico. Quando finalmente parei, o suor escorria do meu corpo e meus músculos doíam.
Peguei uma espada de Cherkassy11 da parede e fui buscar a Matadora. A espada havia me custado um braço e uma perna há muitos anos quando eu ainda trabalhava para a Associação dos Mercenários. Eu a mantive em minha antiga casa, por isso tinha sobrevivido ao reino de terror da minha tia.
Levantei as duas espadas—a Cherkassy era mais pesada e mais curva, enquanto a Matadora era mais leve e reta—e comecei a cortar o ar, exercitando os músculos do braços e pernas. Com uma das espadas fiz arcos largos na minha frente, os arcos brilhavam por conta da velocidade do movimento, a outra atrás de mim fazia o mesmo movimento só que invertido, as duas ganharam velocidade até que um redemoinho de aço afiado me cercou. A Matadora assobiava enquanto cortava o ar, a lâmina, que comumente era pálida e opaca, brilhava como um raio de um sol de aço. Eu inverti a direção, mudei para a defesa e trabalhei por mais uns cinco minutos, enquanto caminhava, virei-me e vi Barabas de pé junto ao vidro.
Barabas era um metamorfo mangusto12, foi criado no clã bouda. Eles o amavam, mas logo ficou claro que ele não se encaixaria na hierarquia dos metamorfos hienas, então a Tia B, a alfa do clã Bouda, havia oferecido seus serviços para mim. Ele e Jezebel, a outra da dupla de desajustados da Tia B, agiam como minhas babás. Jezebel protegia minhas costas, e Barabas tinha a tarefa nada invejável de me guiar pelas políticas e leis do Bando.
Esbelto e de pele clara, Barabas era um espírito rebelde, e ele fazia tudo uma declaração de desafio, incluindo seu cabelo, que era permanentemente em pé em sua cabeça, formando picos espetados de uma cor laranja brilhante, que parecia estar em chamas. Hoje, o cabelo estava particularmente agressivo. Parecia que foi eletrocutado.
— Sim?
Barabas abriu a porta de vidro e entrou no ginásio, seus olhos acompanhando o movimento das minhas espadas. — Não leve a mal, mas às vezes você me assusta, Kate.
— Barabas, você desenvolve garras de cinco centímetros e pode levantar um pônei Shetland13 nas costas. E você me acha assustadora?
Ele assentiu. — E eu ainda trabalho com algumas pessoas muito assustadoras. Isso deveria te dizer algo. Como você não se corta?
— Prática. —Eu estava praticando desde que era alta o suficiente para manter minhas espadas longe de riscar o chão.
— Parece impressionante.
— Parecer impressionante é o principal objetivo. Este movimento com lâminas é usado quando você é derrubado do seu cavalo e cercado por inimigos. Ele foi pensado para permitir que você se locomova da maneira mais rápida possível entre seus adversários. A maioria das pessoas que o vir fazendo isso, decidem que é melhor estarem longe, em outro lugar.
— Eu não duvido disso. E se for um cara super espadachim que pular na sua frente? —Barabas perguntou.
Eu levantei a Matadora e desenhei um oito horizontal com a espada, rolando meu pulso.
— Símbolo do infinito14.
— Borboleta. —Acelerei e acrescentei a segunda espada abaixo. — Uma borboleta mais alta, uma borboleta mais baixa, alterne os braços, repita conforme necessário. Garganta, estômago, garganta, estômago. Agora ele não saberá o que guardar, então ou você o mata ou ele sai do seu caminho, e você continua andando até que esteja fora da multidão. Você queria alguma coisa?
— Curran chegou.
Eu parei.
— Ele chegou há cerca de uma hora, ficou parado por um tempo, observando você e subiu as escadas. Acho que ouvi a porta da cobertura. Pensei que talvez ele fosse descer de novo, mas já faz um tempo, então achei que você gostaria de saber.
Abaixei as espadas, peguei a Matadora e a bainha, e desci o corredor até uma escadaria curta.
O primeiro lance de escadas levava aos nossos aposentos privados, o segundo a cobertura. A cobertura era o nosso santuário, um lugar onde íamos quando queríamos fingir que estávamos sozinhos.
Empurrei a pesada porta de metal e andei para fora. A cobertura se estendia diante de mim, um largo retângulo de pedra, cercado por um muro de um metro de altura. Ao longe, no horizonte, o esqueleto de Atlanta erguia-se contra o pano de fundo do céu iluminado pela lua. Neblina encobria os edifícios arruinados, tornando-os azul-claros, quase translúcidos, e a casca da cidade outrora vibrante parecia pouco mais do que uma miragem. A noite estava quase no fim. Eu não percebi o tempo passar enquanto treinava.
Curran estava agachado no meio da cobertura, em cima de algum papelão. Ele ainda usava a mesma camiseta cinza e jeans. Na frente dele, uma engenhoca de metal preta estava virada de lado. Parecia a metade de um barril com longos pedaços de metal salientes para o lado. Os pedaços longos eram provavelmente pernas. A outra metade do barril esperava de cabeça para baixo à esquerda. Uma variedade de parafusos em pequenos sacos de plástico estava espalhada, com um manual de instruções por perto, suas páginas se movimentando com a brisa.
Curran olhou para mim. Seus olhos eram da cor da chuva, magnífico e sombrio. Ele parecia um homem que se resignou ao seu destino, mas que realmente não gostava. Seja lá o que estava pensando, não era boa coisa.
— E aí, chutador de bundas.
— Essa é a minha fala, —disse ele.
Eu fiz minha voz soar casual. — O que você está montando?
— Uma churrasqueira.
O fato de que nós já tínhamos uma churrasqueira e um forno perfeitamente bons a uns três metros atrás dele deve ter escapado à sua atenção.
— Onde você conseguiu isso?
— A equipe de extração de Raphael tirou um monte dessas dos escombros de uma velha loja de artigos para a casa. Ele me enviou uma como presente.
A julgar pelo número de partes, esta churrasqueira era mais complicada do que um reator nuclear. — Você leu as instruções?
Ele balançou sua cabeça, negando.
— Por que? Está com medo de levarem seu cartão de macho embora?
— Você vai me ajudar ou vai ficar tirando sarro de mim?
— Eu não posso fazer as duas coisas?
Encontrei as instruções, virei para a página da direita e passei as arruelas, porcas e os parafusos para ele.
Ele enfiou as porcas nos parafusos e apertou-as com os dedos. Os parafusos gemeram um pouco. Se eu quisesse desmontar essa coisa, precisaria de uma grande chave para isso. E possivelmente um martelo para bater na chave quando ela, com toda certeza, não se movesse.
Curran enfileirou as dobradiças com o topo da churrasqueira. Elas não pareciam certas.
— Eu acho que essas dobradiças estão para trás.
Ele balançou sua cabeça. — Vai dar certo.
Forçou os parafusos através dos orifícios das dobradiças, apertou os parafusos e tentou prender a tampa ao fundo. Eu o observei girar cerca de seis vezes. Enfiou os parafusos, fixou-os e encarou a churrasqueira mutilada. A tampa estava de cabeça para baixo e para trás.
Curran olhou para ela com revolta. — Para o inferno com isso.
— O que está incomodando você?
Ele se encostou na parede. — Já te falei sobre a vez que eu fui para a Europa?
— Não.
Eu me aproximei um pouco mais, ficando ao lado dele.
— Quando eu tinha vinte e dois anos, Mike Wilson, o alfa do Bando Fúrias do Gelo, veio a mim com um convite para ir a Cúpula Ibérica.
Mike Wilson liderava um bando no Alasca. Era o único bando nos Estados Unidos que rivalizava com o nosso em tamanho.
— A esposa de Wilson era europeia, belga, se não me engano, e eles costumavam cruzar o Atlântico a cada dois anos para visitar a família dela. Ela é sua ex-esposa agora. Eles se desentenderam, então ela pegou a filha deles e foi para casa dos pais dela.
Considerando que a casa estava do outro lado do Oceano Atlântico, ela deveria ter realmente desejado se afastar de Wilson.
— Mike não lutou pela filha?
— Não. Mas dez anos atrás eles ainda estavam juntos. Pararam em Atlanta a caminho da costa, e Wilson me convidou para ir com eles para a Espanha. Fez parecer que um acordo de acesso a panaceia estava na mesa, então eu fui.
— Como foi?
— Eu não esperava que a viagem fosse ruim e estava excessivamente otimista. —Curran cruzou os braços sobre o peito, fazendo seu bíceps crescer. — As coisas na Europa são diferentes. A densidade populacional é maior, as tradições mágicas são mais disseminadas e muitas estruturas têm idade suficiente para suportar as ondas mágicas. Os metamorfos são mais numerosos, e começaram a se organizar em bandos e reivindicar territórios desde o início. Havia nove bandos diferentes no topo, nove conjuntos de alfas, todos fortes, todos prontos para arrancar minha garganta a qualquer momento, e nenhum deles era honesto. Eram todos grandes sorrisos na minha cara e garras nas minhas costas no momento em que me virava.
— Pareceu divertido. Você matou alguém?
— Não. Mas eu realmente queria. Um metamorfo chacal de um dos bandos se aproximou de mim e queria fazer um acordo para vender panaceia, e no dia seguinte encontramos seu cadáver do lado de fora com uma pedra do tamanho de um pneu de carro onde sua cabeça costumava estar.
— Divertido.
— Sim. Eu levei dez pessoas comigo, alguns dos melhores lutadores do Bando. Pensei que todos eles eram fortes e leais. Voltei para casa com quatro. Dois morreram em ‘acidentes infelizes’, três me traíram por dinheiro e um se casou. O Bando ainda era jovem. Perder cada um deles doeu, e não havia nada que eu pudesse fazer sobre isso. Demorou meses para o vácuo que eles deixaram em seus cargos aqui no Bando se resolver.
Uma frustração antiga atava sua voz. Ele deve ter passado semanas pensando nisso, dissecando cada momento procurando o que ele poderia ter feito diferente. Eu queria poder voltar no tempo e espaço e socar algumas pessoas.
— Chegamos em casa em menor número, desarmados e de mãos vazias. Prometi para mim que nunca mais voltaria.
Eu esperei. Tinha que haver mais dessa história.
— Um dos alfas que conheci foi Jarek Kral. Filho da puta cruel e sanguinário. Ele é dono de um pedaço dos Montes Cárpatos Orientais15 e está em constante expansão. O homem é obcecado com o seu legado. Ele acha que é algum tipo de rei. A maioria de seus filhos morreram, seja por loup ou por que tiveram o azar de serem seus filhos. Apenas uma filha sobreviveu até a idade adulta e ele tentou entregá-la a mim.
— Ele o quê?
Curran me encarou. — Quando voltei ao nosso navio, havia uma garota de dezessete anos chamada Desandra esperando por mim com um bilhete. O plano era que eu me casasse com ela, e ele me pagaria a cada ano, desde que eu concordasse em enviar um dos meus filhos para ele. Jarek preferia que fossem dois filhos, como um tipo de seguro, já que um deles poderia morrer, mas se contentaria com um só.
Encantador. Quinze minutos em uma sala com Curran eram suficientes para mostrar a qualquer um com meio cérebro que ele não poderia ser comprado e que nunca venderia seus filhos.
— Você não aceitou sua oferta generosa, creio eu?
Curran sacudiu a cabeça. — Nem falei com a menina. Nós a mandamos de volta de onde ela veio. Jarek a casou com outro bando, os Volkodavi16 da Ucrânia.
Lobos Assassinos, hein. Nome interessante para um bando de metamorfos.
— Desandra viveu com o Volkodavi por alguns meses, e então Jarek mudou de ideia, fazendo-a se divorciar. Mais tarde, Jarek a vendeu para outro casamento, desta vez para um bando da Itália, os Belve Ravennati.
— Como ele é um pai gentil e amoroso. —Pulei no parapeito. Eu poderia escrever um livro sobre ter pais ruins, mas Desandra provavelmente me passaria para trás.
Um canto da boca de Curran se elevou em desprezo. — Não posso considerá-lo como o pai dela. Ele é o seu cafetão. Entrou em algum tipo de disputa com o Belve Ravennati durante a última reunião da Cúpula Ibérica, parece que os Belve o irritaram, então ordenou que Desandra voltasse para casa novamente. Desandra teve um ataque de rebeldia. Seu atual marido e seu ex-marido estavam ambos na reunião da Cúpula, então ela dormiu com os dois. Agora ela está carregando gêmeos, e os testes amnióticos17 mostram o DNA18 dos dois homens.
— Como pode isso, exatamente?
— Isso é o que me perguntei. —Ele fez uma careta. — Tive que perguntar a Doolittle. Existe um termo para isso, espere que vou te dizer. —Ele puxou um pedaço de papel do bolso de sua calça jeans e leu. — Superfecundação heteropaternal19. Aparentemente, isso significa gêmeos de pais diferentes. Eu nunca ouvi falar disso, mas Doolittle diz que é uma coisa real e acontece com metamorfos com mais frequência do que com humanos normais. Pelo que ele diz, há gêmeos idênticos e há gêmeos fraternos. Gêmeos fraternos ocorrem quando dois óvulos dentro de uma mãe são fertilizados de uma só vez. O ‘super-dessa-coisa-toda’ acontece quando esses diferentes óvulos são fertilizados por pais diferentes.
— Eu ainda não entendi como qualquer parte dessa bagunça épica é o nosso problema.
Curran fez uma careta. — Jarek controla um grande pedaço das Montanhas dos Cárpatos. Ele tentou tornar o casamento com Desandra mais atraente para os seus pretendentes, então prometeu que o primogênito de Desandra herdaria uma passagem lucrativa da montanha. Aparentemente, durante a reunião da Cúpula, Jarek, em discórdia com o atual marido de Desandra, disse que se ela engravidasse, ele preferiria matá-la e não ter nenhum neto antes de permitir que Belve Ravennati pusesse as mãos na passagem.
Matar uma mulher para matar a criança em seu ventre. Agora isso soava estranhamente familiar. — Ele iria?
Curran resmungou baixinho. — É difícil saber. Jarek sempre foi um fanfarrão e matou um de seus filhos durante um desafio. Mas o Jarek de que me lembro também estava decidido a se tornar uma dinastia. Agora, ele supostamente está fazendo ameaças públicas e considerando matar sua filha, que é sua única chance para seus planos de dinastia. Ele não tem mais filhos — Desandra é a única. Algo mais deve estar acontecendo. Mas de qualquer maneira, Desandra deve ter acreditado na ameaça do pai, porque quando ela percebeu que estava grávida, se aterrorizou. Escondeu a gravidez e esperou a próxima reunião da Cúpula acontecer, onde os três bandos envolvidos estariam presentes, só então divulgou a gravidez e a ameaça do pai publicamente. Jarek tentou atacá-la ali mesmo e quase começou uma guerra, porque os outros dois bandos se uniram para detê-lo.
— Certo. Eles querem a passagem. —Desandra morta não poderia dar à luz.
— Exatamente. No final, encontraram algum tipo de bando neutro que convidou Desandra para ficar com eles, segura e longe de todos. Ela está lá durante a maior parte de sua gravidez, mas seu parto está previsto para daqui a dois meses e os três bandos envolvidos estão indo lá para testemunhar o nascimento. Dependendo de quem for a criança que nascer primeiro, o bando poderá reivindicar a herança. As Montanhas dos Cárpatos estão bem entre os territórios de Volkodavi e Belve Ravennati, assim ambos querem essa passagem desesperadamente. Nenhum dos dois pais confiam no outro e confiam ainda menos em Jarek. Eles querem alguém forte para proteger ela e seus filhos e servir como testemunha imparcial do nascimento até que a herança seja estabelecida. Os bandos me convidaram para ser esse alguém.
As peças clicaram na minha cabeça. — E eles irão nos pagar com a panaceia. — Foi dessa forma que ele conseguiu.
Curran assentiu. — Dez barris. Isso duraria dez meses a um ano.
Nós poderíamos salvar Maddie. Poderíamos salvar o bebê de Jennifer. Se eu engravidasse do filho de Curran ...
Empurrei esse pensamento com firmeza para fora da minha mente. Eu não conseguiria trazer bebês para este mundo. Não enquanto meu pai ainda estivesse nele. Mas se acontecesse... — Temos que aceitar.
Curran parecia ter mordido uma maçã podre. — Sim, nós temos.
Um ano sem crianças indo a loup. O horrível rosto metade animal de Maddie brilhou diante de mim. A maneira como Meredith a olhara, seus olhos assombrados, seu rosto tomado pela dor, me dava toda a motivação que eu precisava. Alguns meses atrás, eu estava exatamente no mesmo lugar que ela, trancada na névoa aterrorizada, onde tudo o que você quer fazer é acordar e ver sua filha bem. Você quer tanto, tão desesperadamente que fará qualquer coisa, qualquer coisa para alguma cura mágica, mesmo a menor das chances. Você quer que o pesadelo termine, mas nunca termina. Como se coloca um preço para evitar isso?
Curran estudou as peças da chaminé. — O argumento é que, como estou longe, serei justo e neutro. Nenhum dos bandos vizinhos se ofereceu para o trabalho.
— Eles já a têm em um local neutro—pensei em voz alta. — Não faz sentido que não pudessem encontrar alguém forte o suficiente por perto para manter os três bandos na linha. É como ir a Los Angeles para contratar um guarda-costas para um trabalho em Atlanta.
— Hum-hum. A história deles não se encaixa muito. Desandra ainda está viva, o que significa uma das duas coisas: Jarek realmente não quer matá-la, o que significa que eles não precisam de mim, ou eles a têm em uma fortaleza onde ela está completamente segura e Jarek não pode chegar até ela, nesse caso, eles também não precisam de mim.
— Você disse isso a eles?
— Estão alegando que, como todos os três bandos estarão no mesmo lugar, o único alfa que eles conhecem forte o suficiente para impedi-los de transformar o local em um matadouro, sou eu.
Eu gostava cada vez menos disso. Eles nos deram uma argumento que não convencia, mas queriam Curran especificamente e balançavam a panaceia na frente de nossos narizes. Sabiam que ele não recusaria. — É uma armadilha.
— Ah, eu sei que é uma armadilha. — Curran mostrou os dentes. — Eles me ofereceram algo que sabem que não posso recusar e providenciaram que o nosso Bando soubesse desse acordo. Eu me reuni com os representantes enviados por eles ontem, só eu e Jim fomos a esse encontro. Quando voltei da reunião, os metamorfos ratos e os chacais já haviam deixado mensagens perguntando se poderiam me ajudar de alguma forma.
— Espertos. —Os metamorfos fofocam pior do que velhinhas em uma feira da igreja. Agora, rumores sobre os dez barris de panaceia estavam se espalhando pelo Bando como um incêndio. Se Curran não concordasse em ir, todos os pais com um filho menor de vinte anos invadiriam a Fortaleza e protestariam.
O Bando tinha muito pouco contato com metamorfos europeus. Havia alguns acordos comerciais provisórios, mas a única coisa que Curran estava realmente interessado era a panaceia, e os bandos europeus não estavam dispostos a vender ou compartilhar.
Nós olhamos um para o outro.
— Você fez algo para atrair a atenção deles? —Perguntei. — Por que nós? Por que agora?
Ele balançou a cabeça, sua voz tingida com um grunhido. — Não fiz nada e não sei porque agora.
— O que eles poderiam querer de nós?
— Eu não sei. Vou descobrir de uma forma ou de outra.
— O que Jim diz sobre isso?
— Ele também não sabe. Mas está investigando.
Jim Shrapshire era tão rasteiro quanto você poderia imaginar. Como chefe de segurança do Bando, ele guardava informações como ouro. Se Jim não sabia nada a respeito de algo era porque ou ele não achava importante ou era algo muito ruim. E eu aposto, que nesse caso, era algo muito ruim.
— Quando precisamos estar lá?
— Assim que pudermos. Ela está hospedada em uma pequena cidade na costa do Mar Negro20. Se pegarmos um navio de Savannah21 através do Atlântico, faremos a viagem em cerca de três semanas ou um pouco mais, desde que nada aconteça.
Precisamos sair rapidamente. O maior obstáculo seria encontrar um navio. Viagens pelo Atlântico nem sempre terminavam bem. O Mar Negro também não era fácil de atravessar. Os antigos gregos chamavam-no de Ponto Axeno, o Mar Hostil. Em nossos dias, mitos gregos eram leitura obrigatória que salvava vidas, e eu já li o suficiente deles para saber que o Mar Negro não era um lugar divertido.
— Onde no Mar Negro?
— Georgia.
Cólquida22. Especificamente, terra do guardião do Velocino de Ouro23, dragões e bruxas, onde os Argonautas24 haviam navegado e quase morrido. — Devemos obter os termos por escrito.
— Kate, acha que eu sairia dessa reunião sem um contrato? —Ele pegou uma pilha de papéis presos entre a caixa de papelão e o chão da cobertura e passou para mim. Analisei rapidamente o documento. Os três bandos juntos nos contrataram para proteger Desandra de todas as ameaças e agir conforme for o melhor para ela até o nascimento de seus filhos e por três dias depois.
— Isso de ‘agir conforme for o melhor para ela’ é uma cláusula muito ampla, —pensei em voz alta.
— Hum-hum. Me fiz o mesmo questionamento também. Alguém deve ter insistido em colocar isso.
— Está parecendo que Desandra não está em seu juízo perfeito e eles estão preocupados de que ela vá se machucar de propósito. —Percebi que Curran estava olhando para mim. — O que foi?
— O convite é para o Senhor das Feras e a sua Consorte. Entenderei se você escolher não ir.
Eu só olhei para ele. Mesmo? Ele significava tudo para mim. Se eu tivesse que morrer para que ele pudesse viver, colocaria minha vida em risco em um instante, e sei que ele faria o mesmo por mim. — Desculpa, não entendi, poderia repetir?
— Teremos que atravessar o oceano no meio da temporada de furacões, ir para um país estrangeiro cheio de metamorfos hostis e tomar conta de uma mulher grávida, enquanto todos planejam e esperam por uma oportunidade para nos esfaquear pelas costas.
Dei de ombros. — Bem, soa muito ruim se você coloca dessa maneira ...
— Kate, —ele rosnou.
— Que foi?
— Estou tentando dizer que você não precisa ir. Eu tenho que ir, mas você pode ficar se quiser.
Há-há. — Pensei que nós éramos uma equipe.
— E somos.
— Você está me confundindo e sendo contraditório.
Curran rosnou profundamente em sua garganta.
— Esse rosnado foi impressionante, mas não entendi nada do que ele quis dizer, Vossa Peludeza.
— Isso vai ser difícil. —Disse Curran. — Vai ser muito menos difícil se você vier comigo. Quer que eu seja claro, pois aqui está: preciso de você. Preciso de você porque te amo. Três meses sem você será o inferno. Mas mesmo que não fôssemos um casal, eu ainda precisaria de você. Você é uma boa lutadora, tem experiência como guarda-costas e conhece magia. Não temos muitos usuários mágicos entre nossos metamorfos, mas não sabemos se há magos entre os bandos europeus, e se eles nos atacarem com magia, não temos como nos defender. —Ele abriu os braços. — Mas eu a amo e não quero que se machuque. Não vou pedir para ir comigo. Isso seria como pisar na frente de um trem em movimento e dizer: — Ei, querida, venha para perto de mim.
Pulei da parede e fiquei ao lado dele. — A qualquer momento.
Ele apenas olhou para mim.
— Eu nunca matei um trem antes. Pode ser divertido tentar.
— Você tem certeza?
— Uma vez eu estava morrendo presa em uma jaula dentro de um palácio que sobrevoava uma floresta mágica. E algum idiota, perseguiu o palácio, subiu nele, atacou centenas de rakshasas25 e resgatou-me.
— Eu me lembro, —disse ele.
— Foi quando percebi que você me amava, —disse. — Eu estava na gaiola e ouvi seu rugido.
Ele riu. A tensão em seus ombros diminuiu. Ele me abraçou e eu o beijei. Ele tinha gosto de Curran—macho, vigoro e meu—e eu conheceria esse gosto em qualquer lugar.
— Vou com você, seu tolo. Não vai se livrar de mim assim tão fácil.
— Obrigado.
Além disso, seria bom sair de Atlanta. E ir para longe de Hugh d'Ambray—o Senhor da Guerra do meu pai biológico.
Meu histórico familiar é complicado. Se meu pai descobrisse que eu ainda estava respirando, ele moveria o céu e a terra para sufocar a vida do meu corpo. Durante vinte e seis anos, consegui me esconder à vista de todos. Mas então meu caminho se cruzou com o de Hugh d'Ambray e, alguns meses atrás, ele descobriu quem eu provavelmente sou. Não acredito que d’Ambray tenha cem por cento de certeza, mas sei que tem fortes suspeitas. Mais cedo ou mais tarde, ele irá bater à minha porta e eu não estarei pronta. Meu corpo se curou e eu estava aprendendo a moldar meu sangue em armas e armaduras, que é um dos maiores poderes do meu pai, mas eu precisava de mais prática.
A viagem me daria algum tempo e todos os dias eu ficaria mais forte. Boa sorte me procurando do outro lado do oceano, Hugh.
Curran se aproximou. Eu me inclinei contra ele. Abaixo de nós, a floresta se estendia à distância, e, além dela, à direita, as ruínas retorcidas de Atlanta escureciam o horizonte.
A ansiedade cresceu em mim e se fixou. As palavras saíram por conta própria. — Se tivermos filhos, qual a probabilidade deles irem a loup?
— Menor que a maioria. —Disse Curran. — Eu sou um Primeiro e não ficamos loucos com tanta frequência.
Os Primeiros eram uma raça diferente de outros metamorfos. Eles eram mais fortes, mais rápidos e tinham maior controle da mudança de forma. Mas ainda estavam sujeitos ao Lyc-V e ao horror do loupismo. — É possível?
— Sim.
Podia sentir a ansiedade crescendo dentro de mim, como se eu fosse um brinquedo de corda sendo acionado. — Quais são as chances?
Ele suspirou. — Não sei, Kate. Que eu saiba, ninguém na minha família foi a loup, mas, antes de perdê-los, eu era muito jovem para perguntar sobre coisas como esta. Só o que sei é que a probabilidade é menor. Nós vamos conseguir a panaceia, bebê. Prometo a você que vamos conseguir.
— Eu sei.
— Você quer ter filhos?
Tentei envolver minha mente em torno da ideia de ter filhos de Curran. Não era nem um pensamento, era uma ideia nebulosa distante, e olhar para essa ideia de perto parecia muito complicado agora. Tentei me imaginar grávida e não consegui. E se meu pai me encontrasse e matasse meus filhos? E se eles fossem a loup?
Curran tinha o olhar mais estranho no rosto. Percebi que estava me abraçando.
‘Ei, querida, quer ter filhos?’ ‘Espere, deixe-me enrolar na posição fetal como resposta’. Aff! Eu era um idiota.
— Talvez. Eventualmente. Quando as coisas se acalmarem. Você quer ter filhos?
Ele colocou o braço em volta de mim. — Sim. Mais tarde. Não tenho pressa.
O vento que nos banhava era fresco e carregava a promessa de um novo dia. Enquanto estávamos juntos, o sol apareceu na crista da floresta, um estreito pedaço de ouro tão brilhante que era doloroso olhar.
Estaríamos juntos e traríamos a panaceia para Maddie. Isso era tudo o que importava por agora.
Capítulo 3
Quando Curran e eu descemos do telhado em busca do café da manhã, Barabas nos emboscou com pilhas de papel.
— O que é isso? —Ponderei a pilha de cinco centímetros.
— Isso é tudo o que você precisa fazer antes de partir para o Mar Negro. —Ele apontou para a sala de conferências mais próxima. Um café da manhã fora preparado. Pratos com ovos mexidos, montes de bacon, montes de salsichas e montanhas de carne frita dividiam espaço com jarras de café e torres de panquecas. O cheiro girou em torno de mim. De repente eu estava faminta.
— Toda a Fortaleza já sabe que estamos viajando? —Perguntou Curran.
— Tenho certeza que aqueles que estão dormindo ainda não, mas o resto, sim. —Barabas colocou uma pilha sobre a mesa e segurou a cadeira para mim. — Para você.
— Estou com fome e não tenho tempo para essa papelada.
Os olhos de Barabas não tinham piedade. — Arranje tempo, Alfa. Você tem duas mãos. Pode comer e assinar simultaneamente.
Curran sorriu.
— Curtindo meu sofrimento? —Perguntei.
— Eu acho muito engraçado como você é capaz de enfrentar um tiroteio com nada além de sua espada, mas a papelada faz você entrar em pânico.
Barabas colocou uma pilha mais grossa na frente dele. — Essa é a sua, meu senhor.
Curran xingou.
Os metamorfos possuíam metabolismo acelerado, o que os ajudava a quebrar nutrientes e a economizar energia para mudar de forma. Mas esse mesmo metabolismo os fazia se empanturrar de comida. Ver Curran comer era uma experiência assustadora. Não é que ele se apressava ou devorava sua comida com as mãos, o problema era a grande quantidade que ele comia. Pensei que iria me acostumar com isso com o tempo, mas quando ele foi para o seu terceiro prato, eu pisquei. Ele não deve ter jantado ontem à noite.
A porta da sala de conferências se abriu e Jim entrou, como uma tempestade iminente. Com um metro e oitenta de altura, pele escura e um olhar que fazia você querer fugir e procurar a saída mais próxima, Jim trabalhava como chefe de segurança do Bando. Ele e eu nos conhecíamos há muito tempo, quando ambos trabalhamos para a Associação dos Mercenários e ocasionalmente íamos a missões juntos. Eu precisava do dinheiro e Jim não conseguia trabalhar com mais ninguém além de mim.
Jim se inclinou sobre a mesa. — Eu vou.
— Não. —Disse Curran. — Preciso de você aqui, liderando o Bando enquanto estivermos fora.
— Dê essa responsabilidade a Mahon.
Mahon Delany, o alfa do Clã Heavy, trabalhava como executor do Bando. Ele criou Curran depois que a família de Curran foi assassinada, e era provavelmente o mais respeitado dentre os quatorze alfas do Bando. Porém, não era universalmente amado.
— Os chacais irão se rebelar e você sabe disso, —disse Curran. — Você pode segurar os clãs juntos. Mahon não pode. Ele é antiquado e desajeitado, e se eu o colocar no comando, nós voltaríamos a ter uma guerra civil.
— E quem vai fazer sua proteção enquanto você está lá? Eles estão planejando algo contra você, então não é só descobrir o que vão fazer, mas quando e como vão fazer. Quem ficará de olho nisso para você?
— Não é você, —disse Curran. — Preciso de você aqui.
Jim se virou para mim. — Kate?
Se ele achava que eu estava ficando no meio disso, estava muito enganado. — Ah, olhe toda essa papelada que tenho. Não posso falar agora, muito ocupada.
Jim sentou na cadeira, parecendo que queria estrangular alguém.
Barabas colocou outra pilha de papel na minha frente. Ei!
— Você deve deixar Kate lidar com isso, —disse Jim. — Você nunca fez trabalho de guarda-costas. Ela tem mais experiência e é decente nisso.
Apontei um pedaço de bacon para ele. — Não sou apenas decente, sou muito boa nisso e você sabe.
— Nós já conversamos sobre isso, —disse Curran. — Ela guarda Desandra, eu rosno e resolvo as interferências com os bandos, e quando ela me disser para atacar, eu ataco. Tudo planejado, Jim.
— Ou pelo menos eles acham que sim. —Barabas pegou o papel que eu tinha acabado de assinar e soprou a tinta.
— Leve Barabas. —Jim disse de repente. — Se você não quer me levar, leve Barabas. Ele é astuto, paranoico e obsessivo. Será perfeito.
Curran olhou para mim. Eu olhei para Barabas. Ele mostrou seus dentes em um sorriso arrogante. — Bem, depois dessa recomendação, como posso dizer não?
— Quem você quer para apoio? —Perguntei.
— George. —Disse Barabas.
O nome verdadeiro de George era Georgetta, mas ela realmente ameaçava matar qualquer um que a chamasse pelo seu nome verdadeiro. Ela era filha de Mahon e trabalhava como escrivã do tribunal do Bando.
— George conhece as leis, —disse Barabas. — E é extremamente tranquila.
— Se você levar George, Mahon vai querer ir. —Disse Jim.
— Isso não é uma coisa ruim, —disse Curran. — Mahon é um lutador infernal e vai deixar você mais tranquilo sem ele por aqui. Além disso, ele é um urso. Os Cárpatos respeitarão isso.
— Já que eu vou. —disse Barabas. — Jezebel também vai querer ir.
— Não. —Jezebel, minha outra babá bouda, tinha um temperamento infernal.
— Posso perguntar por que?
— Você e Ethan discutiram na quarta-feira?
Barabas recuou. Ethan era o namorado de Barabas e o relacionamento deles tinha começado muito bem, mas agora estava saindo rapidamente dos trilhos.
— Não foi uma discussão. Foi uma conversa acalorada.
— Você sabe como eu descobri sobre isso?
— Tenho certeza que você vai me dizer.
— Vi Jezebel marchar com um olhar furioso, determinada em encontrar Ethan. Tive que passar meia hora explicando para ela que quebrar as pernas de Ethan não ajudaria o relacionamento de vocês. Ela reage com força esmagadora a qualquer insulto. Estamos indo para um lugar onde seremos superados em número, insultados e constantemente provocados. Um soco errado dela e nós estaremos ferrados.
— Ponto entendido. —Disse Barabas. — Mas eu mesmo vou quebrar as pernas de Ethan, gentilmente.
— Que tal Keira? —Jim disse.
Curran ergueu as sobrancelhas. — Você tem certeza?
— Sim.
— Quem é Keira? —Perguntei.
— Minha irmã. —Disse Jim.
— Você tem uma irmã? —Eu sabia que Jim tinha uma família. Mas nunca conheci ou vi nenhum deles.
— Ele tem três. —Disse Curran.
— Como é que eu nunca a conheci?
— Você a conheceu. —Disse Jim. — Simplesmente não se lembra porque eu não lhe contei quem ela era.
— Ah, então sua família será apresentada para mim somente se houver alguma necessidade que eu saiba, hein?
Ele me deu um olhar duro. — Isso mesmo.
Quando fazer uma piada com um mal-humorado metamorfo jaguar é seguro? — Tem certeza de que quer mandar sua irmã para outro lado do oceano conosco? Já que eu nem sequer sou digna o suficiente para conhecê-la e tudo mais.
— Keira é veterinária do exército. —Disse Jim. — Ela é boa e confiável.
Tentei imaginar uma versão feminina de Jim e o coloquei em um vestido. A imagem era perturbadora.
— Você pelo menos perguntou a ela? —Curran perguntou.
— Eu sei que ela vai.
— Bem, então ela está dentro, a menos que não queira.
Eu tinha assinado seis papéis e minha pilha não estava diminuindo. Era como se a papelada estivesse se reproduzindo enquanto eu trabalhava.
— Como vocês irão conseguir um navio? —Jim perguntou.
— Podemos ir atrás de um cargueiro comercial e pegar uma carona. —Disse Curran.
— Não vai funcionar. —Disse Jim. — Atravessar o Atlântico é muito difícil, a viagem pode levar três semanas ou mais. É provável que tenham a necessidade de sair da Europa com pressa e carregando dez barris de panaceia. Não há garantia de que o cargueiro que usarão para ir até lá, esteja disponível para viajar de voltar quando precisarem. Vocês precisarão contratar um navio e uma tripulação e eles terão que ficar atracados no porto por cerca de um mês a disposição de vocês.
— Então vamos contratar um. —Disse Curran. — Ou compre um. Eu não me importo.
— Não sei se podemos. Não é apenas uma questão de dinheiro. Será difícil conseguir um capitão e uma tripulação experientes em tão pouco tempo. —Jim tamborilou os dedos na mesa e se levantou. — Preciso pensar como vou providenciar isso.
Um jovem se aproximou e parou na porta. Ele se movia em completo silêncio, como um fantasma.
Ainda magro, mas começando a ganhar músculos, tinha cabelos castanhos curtos e o tipo de rosto que fazia você parar o que estava fazendo. Até pouco tempo atrás, as pessoas paravam e ficavam olhando porque ele era lindo. Agora elas paravam porque não tinham certeza do que um homem com um rosto como esse faria em seguida.
Quando ele era muito bonito, Jim o usara para o trabalho secreto. Todos, que não o conheciam, achavam que Derek Gaunt era um garoto bobo, um brinquedinho nas mãos das mulheres, mas ele não deixava nada escapar de sua atenção. O rapaz não teve exatamente uma infância feliz. Isso o tornara implacável, duro e disciplinado, e se dedicava completamente as tarefas a ele designada.
Coisas muito ruins aconteceram e o rosto de Derek pagou o preço. Sua boa estrutura óssea ainda estava lá, mas o trauma havia engrossado suas linhas de expressão e retirado quaisquer resquícios de suavidade de suas feições. Seus olhos castanhos tinham se tornado duros e distantes, e quando decidiam ser hostis ficavam completamente vazios. Eu vi esse tipo de olhar em combatentes veteranos. Esse olhar dizia que o inimigo não era um ser humano para eles e sim um objeto a ser executado.
Esse olhar me preocupava. Derek era um amigo confiável. Mesmo que todo o Bando se voltasse contra mim, ele ficaria ao meu lado. Mas o humor, a faísca que costumava fazer Derek quem ele era, estava ficando cada vez mais apagada. Se desaparecesse, Derek estaria mentalmente em um lugar ruim. Eu já estive nesse lugar e foi difícil sair desse buraco.
Curran fingiu não notar sua presença. Derek não disse uma palavra. Simplesmente ficou de pé, esperando.
— Sim. —Disse Curran sem se virar.
Derek assentiu e foi embora em silêncio. Até agora tínhamos cinco: Barabas, George, Mahon, Derek e provisoriamente Keira. O contrato especificava que os Cárpatos esperavam que não levássemos mais de quinze pessoas. Curran e eu decidimos que levaríamos dez, excluindo a nós mesmos. Era um bom número e mostrava que não estávamos com medo.
Jim sentou-se de novo com aquele olhar ligeiramente vidrado em seus olhos que normalmente significava que três quartos de seu cérebro estavam envolvidos em outro lugar.
— Você está bem? —Eu perguntei a ele.
Ele olhou para mim. — Onde diabos vou conseguir um navio ...?
Um guarda se aproximou da porta.
— Sim? —Eu perguntei.
— A Tia B está aqui e quer falar com a Consorte.
Encontrar-se com a alfa do Clã Bouda era como colocar a mão em um triturador de lixo desligado, mas que o interruptor poderia ser ligado a qualquer momento.
Curran se levantou. — Eu tenho que ir.
— Covarde. —Eu disse a ele.
Ele sorriu para mim. — Até mais, bebê. Vamos, Jim, você também tem que ir.
Eles desapareceram pelo corredor.
Olhei para Barabas. — Há apenas uma saída. Como eles planejam passar por ela?
— Eles vão se esconder na sala de segurança até que ela passe. Devo deixar a Tia B entrar? —Perguntou Barabas.
— Não há escapatória, não é?
— Não.
Suspirei. — Certo. Vamos acabar com isso.
A alfa do clã Bouda usava um vestido de verão branco e alegre com grandes papoulas vermelhas26 desenhadas no tecido.
Seu cabelo estava enrolado em um coque solto e despreocupado. Óculos de sol empoleirava-se acima de sua testa. Se você adicionasse um chapéu de palha e uma cesta ela estaria pronta para um piquenique.
A Tia B tinha cinquenta e poucos anos, mas o tipo de cinquenta e poucos anos que a maioria das mulheres desejaria. Sua pele era lisa, usava maquiagem sutil, mas bem-feita, gordinha, mas ainda atlética. Seus lábios sorriam com frequência, e sua voz era toda doçura e biscoitos, mas quando ela realmente olhava para você, o cabelo na nuca ficava em pé, porque percebia-se logo que ela era inteligente, implacável e perigosa como o inferno. Tia B governava o clã bouda, e qualquer um capaz de controlar mais de três dúzias de metamorfos hienas, nunca deveria ser tomado de ânimo leve. Eu a vi em ação. Não muitas coisas me deixaram arrepiadas, mas ela conseguiu. Por enquanto, Tia B me apoiava, mas eu não era ingênua. A nossa amizade era condicional: se eu deixasse de ter alguma utilidade para ela, Tia B esqueceria meu nome.
Atrás dela, Andrea Nash, minha melhor amiga e a atual beta do Clã Bouda, entrou na sala. Baixinha, loira e letal, Andrea estava noiva do filho de Tia B, Raphael. As pessoas realmente gostavam de Andrea. Ela parecia boa e acessível. Também podia atirar nos pontinhos desenhados de um dominó de grandes distâncias e se transformava em um monstro com garras do tamanho dos meus dedos.
Sorri para a Tia B e apontei para a mesa. — Por favor, junte-se a mim.
Para os metamorfos, uma oferta de comida tinha um certo significado. Poderia ser uma declaração de interesse romântico ou poderia ser uma confirmação do status alfa. Aqueles que ofereciam comida declaravam-se responsáveis por aqueles que a aceitasse. Apesar do fato de que a Tia B tinha me explicado sobre esse costume antes de eu me tornar a Consorte, ela tentou me alimentar. Como agora eu estava hierarquicamente mais alta do que a Tia B na cadeia alimentar, o jogo havia se virado.
— Não se importe se eu fizer. —Tia B sentou-se à minha direita. Andrea tomou posição atrás dela, como beta.
Eu olhei para ela. — Mesmo?
Andrea suspirou. — Ah bem, só não diga a ninguém. —Ela caiu na cadeira ao meu lado. Passei para ela um prato.
— O que te traz até aqui que seja suficiente para escalar todas essas escadas?
— Estou preocupada com o seu bem-estar. — A Tia B colocou um pedaço de bacon em uma panqueca, dobrou-a e deu uma pequena mordida. — E sobre o futuro do meu clã, naturalmente.
Naturalmente. — É sobre a viagem para o Mar Negro?
— Claro. Curran mencionou o incidente de Desandra?
Aqui vamos nós. — Sim.
— Ele também mencionou que fui eu quem escoltou aquela pobre criança de volta para o pai dela?
Ah garoto. — Não.
— Como esquecido ele é. —Tia B deu outra mordida na panqueca. — Meu falecido marido e eu tínhamos ido nessa viagem. Sua família era da Península Ibérica. Dizem que metade do nosso clã vem da África e a outra metade da Ibéria, mas eu discordo. Bem, o ponto onde quero chegar é: eu estava lá. Conheci o Jarek Kral, pai da Desandra. Ele é um troglodita.
Eu engasguei com o meu café.
— Ele é um bandido cruel e violento, sem qualquer fragmento de consciência.
Uau.
— Ele veio do nada, então está obcecado em construir sua 'linhagem real'. Está tão interessado em transmitir seus próprios genes defeituosos e escassos que isso está o deixando louco, e ele nem sequer tem um baralho completo para começar o jogo27. Cada um de seus filhos, com exceção de Desandra, foi assassinado ou se matou, então ele vende e negocia a moça como se ela fosse uma vaca premiada, e ela aceita isso. Desandra é uma capacho.
Certo. Este era claramente o dia para revelações francas do Clã Bouda.
Eu adicionei mais café à minha xícara. Curran estava certo. Se Jarek estava obcecado com a ideia de sua dinastia, ele não deveria estar ansioso em matar sua única filha por causa de alguma passagem na montanha. Os metamorfos dos Cárpatos estavam jogando um jogo complicado, e eu tinha a sensação de que eles planejavam marcar gols com as nossas cabeças decepadas.
Tia B olhou para a xícara. Barabas encheu de café.
— Obrigada querido. Kate, você deve entender como será recebida pelos europeus. Curran é o Senhor das Feras, uma singularidade entre os alfas. A maioria dos clãs consistem de uma única espécie de metamorfos, com alguns indivíduos de espécies diferentes ocasionalmente. Esses clãs são liderados por um ou dois alfas, e a maioria deles tem que se defender de desafios de rivais de dentro e de fora de seu território. Curran governa um enorme bando, com numerosos clãs prósperos e sua competição aqui nos Estados Unidos é mínima. Seu território é seguro.
— Isso é porque ninguém aqui é burro o suficiente para querer a liderança do Bando. —Disse Andrea.
— Precisamente. Mas os alfas dos Cárpatos não entendem completamente do que ele é capaz e, para eles, Curran apresenta uma oportunidade. Partido de uma premissa perigosa, ou eles planejam matá-lo pelo direito de se gabarem, ou, crendo que a maioria deles não é suicida, se beneficiar de uma aliança com Curran. O ponto é, para eles, Curran tem valor. Você, por outro lado, não tem valor algum. Eles não a conhecem e não ganham nada fazendo ‘amizade’ com você. Para eles, você é a diversão de Curran que se transformou em uma obsessão. Um obstáculo que deve ser removido, porque a maneira mais fácil de chegar a Curran é através de sua mulher.
— Ou panaceia. —Eu ainda não tinha certeza de onde ela estava indo com isso.
— Eu tenho minhas dúvidas se eles realmente irão negociar a panaceia. —Tia B fez outro envoltório de panqueca. — Mas tenho certeza de que no momento em que você sair do navio, será um alvo. Concorda comigo?
— Se eles querem dançar, eu ficarei feliz em aceitar.
Tia B suspirou. — Não tenho dúvidas sobre suas habilidades marciais, querida. Eu acho que todos nós aqui sabemos que você pode cuidar de si mesma em um corpo-a-corpo. Estou preocupada em a encontrar no fundo de uma ravina montanhosa com seu crânio aberto quando você tropeçou no caminho em um ‘acidente lamentável’. Ou o telhado de uma daquelas charmosas cabanas europeias entrando em colapso em cima de você, completamente por acaso. Ou alguém acidentalmente atirando em você nas costas a meia milha de distância. Isso seria terrível. Todos expressariam suas condolências e então mandariam uma linda jovem e compassiva envolta em um belo laço ao quarto de Curran para consolá-lo.
Eu me inclinei para frente. — Você honestamente acha que Curran aceitaria esse prêmio de consolação?
Ela se inclinou para mim. — Eu não quero descobrir. Também sei que Mahon está pensando em ir, e quando o velho quer alguma coisa, geralmente consegue o que quer.
Como diabos ela descobriu? — Você tem espiões no Clã Heavy?
— Eu tenho espiões em todos os lugares.
Olhei para Andrea, que colocava bacon no prato.
— Ela tomou chá com a esposa de Mahon. —Disse Andrea.
Tia B olhou para ela. — Você e eu precisamos trabalhar em seu ar de mistério.
Andrea encolheu os ombros. — Ela é minha melhor amiga. Não vou mentir para ela.
Levantei meu punho e Andrea bateu com o dela.
Tia B suspirou. — Mahon não foi na última viagem. Ele se culpa pelo nosso abjeto fracasso. Mahon ficou aqui, administrando o Bando e quase destruiu tudo o que Curran trabalhou tão duro para construir. Lembre-me qualquer dia desses, e eu vou te contar sobre o que ele fez com os chacais. Mahon não é seu amigo. Ele a apoiará, porque Curran a escolheu, mas aos olhos dele a metamorfa mais humilde é mais aceitável como companheira de Curran do que você. Não é pessoal. Mahon teve muita tragédia em sua vida, e isso fez com que ficasse desconfiado em relação aos não-metamorfos. Ele nunca se rebaixará a prejudicá-la, mas se algo de infeliz acontecer com você, ele respirará aliviado e esperará que Curran encontre uma boa garota metamorfa.
Mahon e eu chegamos a um entendimento. Nós não éramos melhores amigos, mas eu duvidava que ele me apunhalasse pelas costas. Apenas não era quem ele era. — Vai ter biscoitos no final desta palestra?
— Você precisa de um amigo nesse time. —Disse Tia B.
— É por isso que eu vou com você. —Andrea colocou um pouco de bacon na boca e mastigou.
— E quanto a você ser uma bestial? —O pai de Andrea começou sua vida como um animal que ganhou a habilidade de se transformar em humano. Isso faz dela bestial, e alguns metamorfos acreditam que pessoas como ela deveriam ser mortas.
— Eles não se importam, —disse a Tia B. — Em algumas coisas, os europeus são mais reacionários e, em outras, não são. Há muitos metamorfos nos Cárpatos, e os bestiais são raros, mas não estranhos. Andrea vai ficar bem.
— E Raphael se juntará a nós, —disse Andrea. — Então você recebe o dobro de apoio. Ninguém vai te matar em nosso turno.
Então toda a palestra foi para isso. Ganhei biscoitos depois de tudo. — Aaaah. Não tinha ideia de que você se importava tanto comigo. Estou tocada.
— Você deveria estar. —Andrea mordeu outra fatia de bacon. — Estou disposta a abandonar o terno abraço da minha futura sogra por sua causa.
— Sobre isso. —disse Tia B. — Estou indo também.
Deus querido, o biscoito era envenenado.
A boca de Andrea se abriu e eu tive a visão, que desejava não ter visto, do bacon mastigado.
— Parece que é a primeira vez que você está ouvindo falar sobre isso, hein Andrea? —Eu perguntei.
Ela assentiu. — Não foi isso que nós combinamos! Nós concordamos que Raphael e eu estaríamos indo com ela.
A Tia B encolheu os ombros. — Essa é uma das vantagens de ser alfa. Podemos mudar de ideia a hora que quisermos.
Andrea ficou boquiaberta para ela. — E o clã?
— Leigh e Tybalt podem administrá-lo em nossa ausência. Elas sobreviverão sozinhas por três meses.
— Curran não vai aceitar essa ideia, —eu disse a ela. Não tinha certeza se ele iria querer levá-la.
— Ele vai, se você pedir a ele, querida. O que eu vou dizer aqui não deve sair desta sala. —Tia B abaixou o garfo.
— Qualquer Consorte que seja agradável a Mahon é ruim para nós. Se o urso conseguir o que quer, você, Kate, nunca vai carregar o filho de Curran. E você—ela se virou para Andrea—nunca vai sentar no Conselho do Bando. Você é uma bestial. Ele não vai te matar, mas pode apostar que ele fará tudo o que puder para te expulsar. Seus filhos—meus netos—crescerão sabendo o que é ser um passo abaixo de todos.
Em um instante a loira engraçada desapareceu, e uma assassina fria com um olhar de mil metros ficou no lugar de Andrea. — Deixe-o tentar.
— Não! —Vermelho, brilhante como rubis iluminados, acenderam nos olhos da Tia B. — Não esperaremos que ele tente. Não há o suficiente de nós para conseguirmos nos defender. Nos preparamos e ficamos um passo à frente dos nossos adversários. Nós os forçamos a se defender. Você vai cuidar das costas de Kate, Raphael vai cuidar das de Curran, e eu vou cuidar de nossos interesses coletivos. Você irá precisar de panaceia, minha querida. Confie em mim. Eu vou me certificar de consegui-la.
Andrea levantou o dedo e abriu a boca.
— Minha palavra final, Andrea.
Andrea fechou a boca com força.
— Fale com Curran sobre isso. Fale quando estiverem a sós. Estarei fazendo as malas. Obrigada por um café da manhã adorável.
Tia B levantou-se e saiu.
Esperamos até as portas do corredor se fecharem atrás dela.
— Essa mulher me deixa louca. —Andrea rosnou.
— Ela é de verdade?
— Ela tem estado um pouco obcecada ultimamente, —disse Andrea. — Desde que me tornei beta e, em seguida, Raphael propôs casamento, tudo o que ela tem falado é de sua aposentadoria e de como vai passar o resto de seus anos estragando seus netos. Estes netos estão só na teoria. Raphael e eu não estamos com pressa. Ela diz que está cansada.
— Ela parece cansada para você?
— Ela vai sobreviver a mim. Serei uma mulher velha e a B ainda estará prometendo se aposentar. Conheço esse olhar. Ela vai a esta viagem, gostemos ou não.
Suspirei.
Andrea sacudiu a cabeça. — O Mar Negro, não é? Esse não é o lugar onde o Velocino de Ouro está e Jason criou um exército com dentes de dragão?
— Exatamente.
— O que aconteceu com Jason depois?
— Ele se casou com Medea, uma princesa bruxa que era da Cólquida.
— Eles viveram felizes para sempre?
— Ele a deixou por outra mulher, então ela matou seus filhos, cortou-os em guisado e o alimentou com eles.
Andrea colocou um pedaço de salsicha meio comida no prato e afastou-o. — Bem, pelo menos eu estarei lá para cuidar de você.
E isso me fazia respirar mais fácil. — Obrigada.
Andrea fez uma careta. — Não há de que. Eu tenho que dizer a Raphael que sua querida mãe está indo com a gente. Ele adorará essa novidade.
Fui procurar por Curran. Conhecendo-o, provavelmente estava escondido em algum lugar com Jim tentando finalizar a lista de metamorfos que estaríamos levando conosco. Aposto que ‘em algum lugar’ era o covil não tão secreto de Jim, dois andares abaixo do nível mais alto da Fortaleza.
Jim amava genuinamente seu trabalho e, de alguma forma, sempre encontrava pessoas que amavam trabalhar tanto quanto ele. Seus oficiais levavam toda a coisa de espião para o próximo nível e de alguma forma, simplesmente andar pelo corredor lotado deles até a sala de espionagem de Jim não parecia suficiente. Deveria ter pegado uma capa preta e caminhado dramaticamente, mostrando minhas facas.
Estava a cerca de cinco metros da sala de espionagem quando ouvi a voz de Mahon e parei. — ...não estou questionando suas habilidades. Ela é arrogante, indisciplinada e não aceita nada de ninguém. Estamos entrando em uma tempestade de merda. Eles atacarão sua aparência, seu relacionamento e seu status humano, e eu questiono o quão bem ela vai aguentar sob o estresse.
Pelo jeito Mahon e eu nunca chegaríamos a um acordo. Suas poucos palavras agora eram prova disso. Mas decidi que não queria ou precisava da aprovação dele, então pararia de tentar.
— Kate vai ficar bem. —Disse Curran.
— É uma má ideia.
— Você já falou isso, —disse Curran. — Kate vem conosco. Você se preocupa muito.
Entrei na sala. Curran, Jim e Mahon estavam em volta de uma pequena mesa da cozinha. Curran e Jim tinham canecas, que provavelmente continham o café patenteado de Jim: preto como alcatrão e viscoso. Um pedaço de papel estava na mesa—a lista de dez nomes. Curran e Jim decidiram a lista de quem estava indo e eu estava prestes a mudá-la.
— Eu já estava de saída. —Mahon retumbou e saiu da sala.
— Café? —Jim perguntou.
— Não, obrigada. —Eu sabia exatamente o gosto do café dele. — Tia B, Raphael e Andrea gostariam de ser incluídos.
Curran ergueu as sobrancelhas. — Por quê?
— Tia B diz que está preocupada com o meu bem-estar.
— Ela está mais preocupada em colocar as patas na panaceia. —Disse Jim.
— Sim, ela mencionou isso. —Olhei para Curran. — Pelo jeito, estamos levando dez pessoas. Você escolhe cinco e eu escolho cinco. Se eu levar Tia B, Raphael, Andrea, Barabas e Derek, completará os da minha metade.
— É justo. —Disse Curran. — Eu posso contar Derek como um dos meus. Isso lhe dará um lugar extra.
— Não, está tudo bem. Você deveria tomar o lugar extra.
— Eu sinceramente não me importo. —Disse Curran.
— Também não me importo. Você está me dando Tia B. Eu provavelmente lhe devo um lugar por isso.
— Merda. —Disse Jim, com o rosto enojado. — Vocês são como um casal que encontrou vinte dólares em um estacionamento. ‘Você aceita.’ ‘Não, fica para você.’ Não aguento isso. —Ele largou o café e balançou a cabeça.
— Tudo bem. —Disse Curran. — Se você quer Derek, ele é seu. Isso preenche a lista.
— Isso significa que estamos eliminando Paola da lista. Os ratos ficarão chateados. —Disse Jim.
— Eu vou lidar com os ratos. —Disse Curran.
Capítulo 4
Estava na colina gramada. À minha frente, um pôr-do-sol berrante queimava com intensidade violenta, as nuvens escarlates e carmesim flutuavam como bandagens na ferida aberta do céu sanguinário. Contra o pôr-do-sol, na planície abaixo, pessoas construíam uma torre. A magia se agitava ao redor delas, enquanto os blocos de pedra grosseiramente talhados erguiam-se no ar, sustentados pelo poder e pela vontade humana. Ao longe, outra torre se estendia para o céu.
Eu queria parar com aquilo. Cada instinto meu gritava que aquilo estava errado. Era perigoso e errado, e todos nós sofreríamos no final disso. Algo terrível aconteceria se essa torre fosse construída. Queria ir até lá e espalhar aquelas pedras.
Eu não conseguia me mexer.
Suor frio me encharcava. Não conseguia desviar o olhar. Acabei vendo a torre subindo bloco a bloco, um monumento ao crescente poder e ambição do meu pai. Continuou subindo, imparável, como um antigo exército, como um tanque esmagando tudo o que estava diante dele.
Alguém se moveu a minha direita. Eu me esforcei, tentando me movimentar, me virei e vi Julie. Vento agitava seus cabelos loiros. Ela olhou para mim, seus olhos aterrorizados. Lágrimas corriam por suas bochechas.
— Julie!
Sentei-me na minha cama. A escuridão reinava, diluída, mas não vencida pelo luar que entrava pela janela aberta. Meu rosto estava úmido. Passei meus dedos pelos cabelos. Eles saíram molhados. Suor.
Ótimo. Costumava ter pesadelos com Roland me encontrando, mas eles pararam quando Curran começou a me segurar à noite. Nunca haviam sido tão vivos como esse agora.
Talvez Roland estivesse tentando me encontrar. Na minha imaginação via Roland sentado a vários Estados de distância, transmitindo sonhos para minha mente como uma torre de TV. Precisava ter minha cabeça examinada, exceto que qualquer um que realmente a examinasse fugiria gritando.
As cobertas ao meu lado estavam amarrotadas. Curran deve ter saído da nossa cama no meio da noite. Bem, isso explicava. Ele não estava na cama, e vendo Maddie indo a Loup me chacoalhou. Foi estresse.
Eventualmente meu querido pai iria me encontrar, mas não seria hoje.
Tinha que verificar Julie. Eu não conseguiria dormir se não o fizesse. Saí da cama, vesti a calça de moletom e desci as escadas. A porta de Julie estava ligeiramente entreaberta. Isso não era comum. Bati os nós dos meus dedos em um crânio com ossos cruzados. NÃO ENTRE era o sinal que ocupava a maior parte da porta. Sem resposta.
Janice, uma metamorfa com quase trinta anos, enfiou a cabeça loira para fora da sala de segurança à minha direita. — Ela pegou seu cobertor e um travesseiro e desceu as escadas.
— Quando?
— Cerca de duas horas atrás.
Isso seria uma da manhã. Havia apenas um lugar onde Julie poderia ter ido.
Cinco minutos depois, entrei no quarto escuro, movendo-me calmamente na ponta dos pés. A única iluminação vinha da caixa de vidro na minha frente. Nela, submersa no líquido verde da solução de cura de Doolittle, flutuava Maddie. Vários tubos de soro corriam de seus braços para o suporte de metal com bolsas de líquido. Julie estava sentada ao lado dela no chão, prostrada sobre o cobertor, os cotovelos apoiados nos joelhos, o rosto escondido nas mãos.
Ah Julie. Atravessei o quarto e sentei ao lado dela. Ela não deu nenhuma indicação de que me ouviu.
Os ossos de Maddie se projetavam em ângulos estranhos, a carne esticada sobre o esqueleto distorcido como borracha meio derretida. Aqui e ali manchas de pêlo a lambiam, desfazendo de volta na pele humana. O lado esquerdo de sua mandíbula se arqueava, os lábios eram curtos demais para esconder o osso, e através do espaço eu podia ver seus dentes humanos. Seu braço direito, quase completamente humano, parecia tão magro, tão frágil, pouco mais do que osso envolto em pele.
Quando eu sentei lá e a observei, meu coração se apertou em uma rocha dura e dolorosa. Não foi só Maddie. Foi o desespero assombrado de sua mãe e irmã. Foi o pânico no rosto de Jennifer. Foi o medo mascarado em Andrea, que tinha ido ver Maddie na noite passada. Eu assisti a minha melhor amiga enquanto ela cruzava os braços no peito tentando se convencer de que esse não era o futuro dela. Ela amava Raphael.
Ela queria filhos e uma família, e os dois irmãos de Raphael foram a loup na puberdade e tiveram que ser mortos. Quando a Tia B disse que precisariam de panaceia, ela realmente quis dizer isso.
Foi o pavor gelado dentro de mim que dizia: ‘poderia ser seu filho’.
Maddie, a fofa garota engraçada, a quem todos conhecíamos e queríamos bem. Tínhamos que salvá-la. Eu tinha que salvá-la. Se houvesse alguma coisa que eu poderia fazer, seria devolver a vida dessa menina.
Julie se mexeu e levantou a cabeça. Seus olhos estavam vermelhos, a pele ao redor deles inchada. Eu queria poder fazer alguma coisa.
— Ela não está sofrendo.
— Eu sei. —Julie fungou.
— Eu estou aqui para ela. Sua mãe também e enfermeiras de Doolittle. Ela não está sozinha.
— Não é isso.
— Então, o que é?
— Estou tentando entender o porquê. —Sua voz quebrou. — Por quê? —Ela se virou e olhou para mim, os olhos cheios de lágrimas brilhantes e cheios de dor. — Ela é minha melhor amiga. Eu tenho somente uma. Por que tem que ser ela?
A pergunta de um milhão de dólares. — Você preferiria que fosse a Margo?
Julie sacudiu a cabeça. — Não. Ela se sente horrível, porque está bem e Maddie não está. Eu a abracei e disse que estava muito feliz por ela ter conseguido.
— Estou orgulhosa de você.
— Não é culpa da Margo que o medicamento não funcionou. Eu só não quero que seja Maddie. Eu quero que ela fique bem. É como se isso fosse o preço.
— O preço de quê?
— Da magia. De ser um metamorfo. É como se eles, por serem forte e rápidos, tem que pagar o preço por essas habilidades. Mas por que ela?
Eu gostaria de saber. Eu me perguntei exatamente a mesma coisa quando encontrei Voron morto, quando vi o corpo destruído de Greg Feldman, e quando Julie estava deitada em uma cama de hospital, tão sedada que seu coração mal estava batendo. Queria muito poupar Julie disso. Me matava não poder. Não sabia por que algumas pessoas passavam por tragédias após tragédias, como se a vida as testasse, e outras viviam alegremente, intocadas pela tristeza.
Eu disse a ela a verdade. — Não sei. Acho que é porque uma criança é a coisa mais preciosa que alguém possa ter. Mas há um preço para tudo, e nesse caso, ter filhos metamorfos sempre será um preço muito alto, porque é alguém que você ama.
Julie olhou para mim. — Por quê?
— Eu não sei. É assim que sempre foi.
Julie recuou. — Eu não quero isso. Se é assim que vai ser, não quero ter filhos.
A vida finalmente tinha marcado Julie suficientemente profundo. Agora minha filha decidiu não ter filhos, não porque não quisesse ser mãe, mas porque estava com muito medo do mundo em que estaria trazendo seus filhos. Isso era tão errado. Eu queria esfaquear alguma coisa.
Julie estava olhando para mim, esperando por algo.
— Ter filhos ou não os ter é a sua escolha, Julie. Quer você faça ou não, Curran e eu vamos amá-la de qualquer maneira. Você nunca precisará se preocupar que um dia deixaremos de amar você por isso.
— Bom, porque eu não quero filhos.
Nós ficamos em silêncio.
— Você está indo viajar? —ela perguntou.
— Sim. Você está chateada?
Julie encolheu os ombros. — Você é a alfa, tem que ir.
— Certo.
— E se alguém for capaz de ir buscar esse remédio, esse alguém é você. Eu entendo. —Sua voz muito baixinho. — Não morra. Apenas não morra, certo?
— Eu não tenho planos de morrer. Estou voltando com a panaceia e estamos tirando Maddie do tanque de cura.
— Eu ouvi Jim falando. —Julie disse calmamente.
Ah garoto.
— Ele disse que era uma armadilha e que você poderia não voltar.
Obrigada, Senhor Perfeito e Positivo, agradecemos o seu voto de confiança. — O mestre da espionagem sabe que você está espionando-o?
— Não. Eu sou muito cuidadosa e ele não olha para cima com muita frequência.
Eventualmente, eu teria que descobrir o que isso significava. — É uma armadilha. As pessoas que a montaram pensam que somos fracos e estúpidos. Prometo a você que se eles tentarem nos machucar quando chegarmos lá, vão se arrepender profundamente. Estaremos de volta com panaceia, enquanto eles ainda estarão tentando descobrir por que estão sentados em uma poça de seu próprio sangue, segurando suas entranhas. Você já me viu fazendo coisas perigosas antes.
— Você se machuca, Kate. Muito.
— Mas eu sobrevivo e eles não. —Eu a abracei com um braço. — Não se preocupe. Temos tudo sobre controle.
— Tudo bem. —Disse ela. — Eu só ...
Ela cerrou as mãos, olhando para a frente.
— Sim?
— Eu tenho sonhos ruins.
Eu também. — Com o que você sonha?
Ela se virou para mim, seus olhos assombrados. — Torres. Eu as vejo sendo construídas no gramado. Elas são torres terríveis. Olho para elas e choro. E eu vejo você e então você olha para mim e grita meu nome ...
Ah não. Garras frias espetaram minha espinha.
Por que teríamos o mesmo sonho? Tinha que ter um significado sobrenatural. Se o meu sonho era o resultado da minha magia ou o resultado de Roland procurando por mim, isso não afetaria Julie. Ele não poderia saber sobre Julie.
O ritual. Essa era a explicação mais provável. Quando curei Julie, misturei meu sangue com o dela.
Alguma parte da minha magia havia a contaminado. Agora nós compartilhávamos sonhos. Se tivéssemos sorte, isso era apenas um subproduto da minha magia se esticando para ela enquanto eu sonhava. Se fôssemos azaradas, então Roland estava tentando me encontrar transmitindo visões para minha cabeça, e Julie estava captando o sinal.
Droga.
Deve ter aparecido no meu rosto, porque Julie se concentrou em mim. — Significa algo, não é? O que significa Kate? Eu vi você. Você estava no meu sonho. Você também me viu?
Eu não queria ter essa conversa. Não aqui e não agora. Na verdade, eu queria poder nunca ter que falar sobre isso.
— Diga-me por favor! Eu tenho que saber.
Eu não estava planejando morrer, mas nunca ninguém planeja morrer. Se algo acontecesse comigo, Julie ficaria sem respostas. Ela tinha que saber algo pelo menos. Se eu estivesse em seu lugar, gostaria de saber.
— Kate, por favor ...
— Quieta, por favor.
A necessidade de me esconder tinha sido martelada em mim desde que pude entender as palavras. O número de pessoas sabendo do meu segredo subiu de uma para cinco no ano passado, e pensar nisso me levava direto para um lugar irracional onde eu precisava matar aqueles que sabiam. Eu não podia matá-los—eles eram meus amigos e a família que escolhi para mim—mas quebrar uma vida inteira de condicionamento era uma merda.
Se eu não contasse a ela e morresse, ela cometeria erros. Roland a encontraria e a usaria. Ela não sabia ainda, mas ela era uma arma. Como eu. Eu a criara e tinha a responsabilidade de mantê-la segura e de manter os outros a salvo dela.
— O que estou prestes a dizer não pode ser repetido. Não escreva no seu diário, não diga a sua melhor amiga, não reaja se insinuarem que sabem. Você entendeu?
— Sim.
— Há pessoas que te matariam se soubessem de você. Estou sendo muito séria, Julie. Esta é uma conversa sobre a vida e a morte.
— Eu entendo. —Disse Julie.
— Você aprendeu na escola sobre a teoria da Primeira Mudança?
— Claro. —Julie assentiu. — Milhares de anos atrás, magia e tecnologia existiam em equilíbrio. Então as pessoas começaram a trabalhar a magia, tornando-a cada vez mais forte, até que o desequilíbrio se tornou muito grande e a tecnologia inundou o mundo em ondas, isso foi a Primeira Mudança. As civilizações mágicas entraram em colapso. Agora, a mesma coisa está acontecendo, mas temos ondas mágicas em vez de ondas tecnológicas. Algumas pessoas pensam que isso é um ciclo e continuará acontecendo repetidamente.
Boa. Ela sabia o básico, então isso seria mais fácil. — Você me ouviu falar sobre Voron.
— Seu pai. —disse Julie.
— Voron não era meu pai biológico. Meu pai, meu verdadeiro pai, andou pelo planeta há milhares de anos, quando a magia fluía com força total. Naquela época, ele era um rei, um conquistador e um mago. Ele era muito poderoso e tinha algumas ideias radicais sobre como uma sociedade deveria ser estruturada, de modo que ele e alguns de seus irmãos construíram um enorme exército e invadiram o que agora é conhecido como Arábia Saudita, Turquia, Irã e Egito Oriental. O mundo era um lugar diferente do que é agora, e meu pai, o rei-mago, tinha uma grande área fértil para construir seu reino. Sua magia o manteve vivo por centenas de anos e ele conseguiu criar um império tão avançado quanto nossa civilização. E onde quer que fosse ele construía torres.
Julie piscou. — Mas ...
— Espere até eu terminar, por favor. —As palavras ficaram presas na minha garganta e eu tinha que me esforçar para empurrá-las para fora. — Quando a Primeira Mudança chegou, a tecnologia começou a sobrecarregar a magia. As cidades mágicas desmoronaram. Meu pai viu o que estava prestes a acontecer e decidiu que era hora de um longo cochilo. Ele se isolou, como ou onde ninguém sabe, e adormeceu. Um pequeno fio de magia ainda permanecia no mundo, e era o suficiente para mantê-lo vivo. Ele dormiu até a nossa Mudança, nosso apocalipse o acordou. Cheio de energia e entusiasmado, e imediatamente começou a reconstruir seu império. Ele não pode parar, Julie. É o que dá significado a sua existência. Desta vez ele começou com os mortos-vivos.
— A Nação. —Disse Julie, compreensão aparecendo em seus olhos.
— Exatamente. Meu pai escolheu se chamar Roland agora e começou a reunir pessoas com a habilidade de navegar em vampiros. Ele os organizou na Nação.
A Nação era um cruzamento entre uma corporação e um instituto de pesquisa. Profissionais e brutalmente eficientes, eles mantinham grandes estábulos de vampiros e tinham uma filial em todas as grandes cidades.
— Ninguém fala sobre Roland. —Eu disse a ela. — A maioria das pessoas não sabe que ele existe. E quase ninguém, nem mesmo os navegadores de mortos-vivos, sabem que pouco depois de acordar, Roland se apaixonou. Seu nome era Kalina e ela também tinha magia poderosa. Ela poderia, com sua magia, fazer alguém a amar. Kalina queria um bebê, então Roland decidiu lhe dar um. Eu sou esse bebê.
Julie abriu a boca. Eu levantei minha mão. Se ela me interrompesse, poderia não conseguir dizer o resto.
— Meu pai sempre teve problemas com seus filhos. Eles se tornavam poderosos e espertos, e assim que ficavam conscientes do perigo que era seu pai, tentavam o matar. Roland mudou de ideia e decidiu que seria melhor que eu não nascesse. Minha mãe sabia que para me salvar ela tinha que fugir. Ela precisava de um protetor, e o Senhor da Guerra de Roland, Voron, parecia uma boa escolha. Voron estava ligado a Roland por um ritual de sangue, e minha mãe teve que usar todo o seu poder para fazer Voron a amar, tanto que ela deixou Voron um pouco insano.
— Então ela basicamente o usou, —disse Julie.
— Você entendeu. Eles fugiram juntos. Minha mãe deu à luz a mim, mas Roland estava chegando muito próximo deles. Ela sabia que Voron teria mais chance em manter um bebê vivo e Roland nunca iria parar de persegui-la, então minha mãe ficou para trás, tentando ganhar tempo para Voron escapar. Roland a alcançou e a matou. Voron correu comigo e passou todos os momentos de sua vida me treinando para que um dia eu pudesse matar meu próprio pai.
Julie ficou pálida.
Eu esperei ela digerir tudo isso.
— Você quer matá-lo?
Essa era uma questão complicada. — Eu vou, se for preciso, mas não vou sair procurando por ele. Tenho Curran e você. Tudo o que quero fazer agora é manter vocês dois seguros. Mas se Roland me encontrar, ele vai me confrontar, Julie, e não tenho certeza se irei sobreviver. Lembra da foto de um homem que te mostrei? Hugh d'Ambray?
Eu mostrei a ela algumas semanas atrás e disse que ele era um inimigo. Na época, eu não estava pronta para longas explicações.
— Sim.
— Hugh é o substituto de Voron. Ele é o novo Senhor da Guerra de Roland. Muitas pessoas não sabem sobre o bebê perdido, mas ele sabe. Ele me encontrou e agora está muito interessado.
Agora vinha a parte difícil. — Quando você estava indo a loup, eu não pude curar você. Ninguém poderia curar você. Então eu ... — Roubei de você seu livre arbítrio. — ... misturei seu sangue com o meu para destruir o Lyc-V. Foi a única escolha. Sem isso, eu teria que te matar.
Julie olhou para mim.
— Estamos ligadas agora. Parte da minha magia está em você. Meu sangue te contaminou. Eu sonhei hoje à noite. Eu vi uma planície, um pôr-do-sol e torres. E eu te vi e te chamei.
— O que significa isso? —Julie sussurrou. — Significa que Roland está em nossas mentes?
— Eu não sei. Não sei se estamos vendo o passado ou o futuro ou se é meu pai mexendo com a minha mente a vários Estados de distância daqui. Seja lá o que for, não é bom. Você tem que tomar precauções. Não deixe seu sangue onde ele pode ser encontrado. Se você sangrar, queime os locais e as roupas. Se você sangrar muito, coloque fogo na cena ou despeje água sanitária nela. Esconda sua magia o máximo que puder. Eu não estou planejando morrer. Voltarei e ajudarei você a resolver isso. Mas se algo acontecer a nós, Jim sabe de tudo. Você pode confiar nele.
Uma porta se abriu atrás de nós. Doolittle entrou no quarto.
— Doolittle também sabe. —Eu disse a ela. — Há alguns livros no meu quarto. Vou fazer uma lista do que você precisa ler ...
Maddie se mexeu. Uma protuberância rolou em seu peito, como uma bola de tênis deslizando sob sua pele.
— Movimentos involuntários. —Disse Doolittle. — Nada para se preocupar.
Eu percebi que minha mão estava segurando o cabo da Matadora e soltei. Se Maddie fosse a loup e saísse daquele tanque atacando Julie, eu a cortaria sem hesitação. Esse pensamento fez minhas entranhas se agitarem.
Os olhos de Julie estavam enormes em seu rosto.
— Vai ficar tudo bem, —eu disse a ela.
— Eu não acho que vai, —disse Julie. — Nada está bem. Nada vai ficar bem.
Ela levantou.
— Julie ...
Assisti ela sair. A porta se fechou. Isso não foi do jeito que eu queria. Eu queria outra chance, mas na vida você raramente consegue isso.
Doolittle estava olhando para mim. — É bom que você disse a ela.
Não era bom. Parecia absolutamente ruim. — Preciso de um favor.
— Se estiver ao meu alcance, —disse ele.
— Curran e eu escrevemos nossos testamentos. Se eu não voltar, Meredith vai cuidar de Julie. Eu já falei com ela. Mas se isso realmente acontecer, em algum momento, Julie pode vir até você por respostas. Eu gostaria que você tivesse meu sangue. Estudar pode ajudar. —Doolittle já havia feito algumas análises uma vez. Ele seria a melhor pessoa para estudar mais.
Doolittle esfregou o rosto, hesitou—como se decidisse—e finalmente disse: — Esta viagem é um esforço tolo.
— Há uma chance de termos sucesso.
— Uma chance muito pequena. Não podemos confiar nessas pessoas. Eles não pretendem honrar suas promessas.
— Eu vou forçá-los a honrá-las, se for preciso. Não posso sentar perto de Maddie e vê-la morrer um pouco a cada dia. Essa frieza não está em mim, doutor.
— Não está em mim também, —disse ele. — Eu tenho medo do que estamos fazendo. Atrasar o inevitável só leva a mais sofrimento. É por isso que a morte deve ser rápida e indolor.
— Você me disse uma vez que não temos escolha sobre o que somos. Mas que temos escolha em quem nos tornamos. Eu sou a pessoa que deve entrar nesse navio ou eu nunca vou poder olhar nos olhos da mãe de Maddie. Você pode por favor investigar meu sangue?
Doolittle suspirou. — Claro que eu vou.
— Kate?
A voz de Curran passou pelo meu sonho. Hummm ... eu sorri e abri meus olhos, ainda meio dormindo. Curran se inclinou sobre mim. Meu lindo psicótico. Quando voltei da conversa com Julie, me arrastei para cama. Acordei algumas horas depois, quando ele chegou e se encostou ao meu lado, me puxando para perto, seu corpo tão quente contra o meu. Nós fizemos amor e eu dormi em seu peito.
— Kate? —Repetiu Curran. — Bebê?
Estendi a mão e toquei sua bochecha só para ter certeza que ele estava realmente lá. — Você deveria ficar na cama comigo.
— Eu adoraria, —disse ele. — Mas acabei de falar com Barabas.
— Hum-hum. —Ele realmente era ridiculamente bonito, uma beleza áspera, do tipo: mato-tudo-que-estiver-no-meu-caminho. Exatamente como eu gostava. — O que ele disse?
— Saiman está esperando por nós em uma sala de conferências. Ele diz que lhe deve um favor e Barabas ligou para ele convidando-o a vir até a Fortaleza em seu nome. —O ouro flamejou nos olhos de Curran. — Você se importaria de explicar isso, porque eu sou todo ouvidos?
Dez minutos depois, Curran e eu marchávamos pelo corredor em direção à sala de conferências. Quando você mora em um ambiente com excelente acústica povoada por pessoas com audição sobrenatural, você aprende a discutir em voz baixa, que era precisamente o que estávamos fazendo.
Um mês atrás eu recebi uma ligação tarde da noite da Associação dos Mercenários me informando que Saiman havia sido sequestrado. Um colecionador de informações e um especialista em magia, Saiman era um homem de negócios astuto que tinha os dedos em todos os tipos de tortas, de combate ilegal de gladiadores a um obscuro negócio de importação/exportação.
Cobrava preços exorbitantes por seus serviços, mas como o agradei no passado, em uma missão que tive que ser sua guarda-costas, ele me ofereceu um desconto. Eu o consultara algumas vezes, mas Saiman continuava a tentar me atrair para a cama, só para provar um ponto filosófico. Aguentei seus assédios até que ele teve a estupidez de desfilar nosso acordo profissional na frente de Curran. O Senhor das Feras e eu tínhamos um relacionamento complicado na época, e Curran não levou bem essa provocação, um fato que ele expressou transformando o armazém de Saiman, cheio de carros de luxo que haviam sido recentemente passados pela alfândega, em latinhas de refrigerante amassadas. Desde então, Saiman, que temia a dor física acima de tudo, vivia com medo mortal de Curran.
Saiman mantinha uma conta VIP28 na Associação dos Mercenários para os momentos em que ele precisava usar a força bruta, então quando alguns criminosos decidiram que seria uma boa ideia sequestrá-lo para um resgate, seu contador chamou a Associação dos Mercenários, que por sua vez chamou a mim. Eu lidei com os sequestradores e resgatei Saiman. Em troca, ele me devia um favor. Ontem pedi que Barabas ligasse para ele, era hora de receber o favor de volta.
Eu tinha conseguido esconder o incidente de Curran, porque tinha certeza que ele ficaria furioso. Explicar tudo isso agora se mostrou um pouco complicado.
— O Balconista da Associação ligou e disse que Saiman tinha sido sequestrado. O que diabos eu deveria fazer, deixá-lo lá?
— Deixe-me pensar ... Sim!
— Bem, eu não fiz.
— Ele não se importa com você. Se você morresse salvando-o, ele não daria a mínima. Ninguém nem saberia onde você estava.
— Jim sabia onde eu estava. —Êêêêê eu não deveria ter dito isso.
Curran parou e olhou para mim.
— Levei apoio, —eu disse a ele.
— Como quem?
— Grendel e Derek.
As sobrancelhas de Curran se juntaram. Ele percebeu que Derek sabia e não havia falado nada. Acho que também não deveria ter dito isso.
A melhor defesa é uma ofensa vigorosa. — Você está exagerando.
— Você saiu no meio da noite para resgatar um homem que não tem nenhum escrúpulo, que não se importa com a sua segurança, que planejou e manipulou para seduzi-la, e quando ele descobriu que não podia, agiu como um covarde e colocou você em perigo. Como devo reagir?
— Da última vez que verifiquei, eu era uma menina grande, toda crescida e capaz de colocar meus sapatos e balançar minha espada sozinha. Você não precisa gostar disso.
— Kate!
— Ele nos deve um favor. Um grande favor.
— Eu não preciso de nenhum favor dele. —Curran rosnou.
— Sim, você precisa. Se lembra daquele armazém de carros de luxo que você demoliu?
Curran apenas olhou para mim.
— Como você acha que esses carros caros importados entraram no país?
A resposta atingiu Curran como uma tonelada de tijolos. Sua carranca desapareceu. — Ele os importou pelo oceano. —Curran começou a descer o corredor, acelerando.
— Exatamente. —Correspondi seu passo.
— E ele evitou a alfândega porque os carros vieram em seu navio. Ele é dono de uma frota.
— Bingo.
Nós viramos a esquina. Uma metamorfa em nossa direção viu nossos rostos e tentou abruptamente reverter seu curso. Curran apontou para ela. — Chame Jim para mim, por favor.
Ela começou a correr.
— Nem sabemos se seus navios andam pelo Mediterrâneo. — disse Curran.
— Sim, sabemos. Durante os jogos da meia-noite, ele trouxe um Minotauro da Grécia.
Chegamos à porta e eu a abri.
Uma linda mulher asiática esperava por nós na Sala de Conferências Norte. Ela estava à beira dos trinta anos, de estatura média e constituição impecável, com uma cintura esbelta, curvas delicadas e pernas compridas. Um vestido de malha verde-escuro, justo ao seu corpo, com uma gola drapeada e um cinto abraçava sua figura, exibindo seu lindo cabelo escuro.
Um metamorfo a observava do mesmo modo que se observa um cão raivoso encurralado num beco.
Curran não se deixou enganar nem um pouco. — Saiman, você está linda. Obrigado por se vestir assim.
A mulher olhou para cima e eu vi o ar familiar de desdém em seus olhos.
— Você veio como mulher na esperança de que Curran não batesse em você?
A mulher fez uma careta. Protuberâncias bizarras deslizaram sobre seu rosto e braços, como se alguém tivesse colocados bolas de bilhar sob sua pele e elas girassem, rolando em todas as direções. Eu quis que meu estômago ficasse parado.
— Não. —Disse a mulher, enquanto sua pele se levantava, se esticava, se contorcia e se transformava em um tumulto revoltante.
— Eu simplesmente tinha um compromisso antes de vir aqui.
Seus cabelos se encurtaram, seus seios se desmancharam em um peito liso masculino, seus quadris se estreitaram, tudo se movendo simultaneamente em um processo coordenado e grotesco. Ácido queimou minha língua. A mudança de um metamorfo era uma explosão, uma rápida explosão de movimentos que levava alguns segundos. A mudança de Saiman era um ajuste metódico controlado, e observá-lo nunca deixou de fazer meu estômago entrar em pânico e tentar se esvaziar por qualquer meio necessário. Fechei os olhos por um longo momento, abri e vi um homem magro e careca cruzando os braços. Em sua forma neutra, Saiman era uma tela em branco: nem feio nem bonito, altura média, feições médias, cor da pele comum, corpo normal. O vestido de malha o fez parecer completamente ridículo. Eu tive uma súbita vontade de rir, mas a controlei.
— Eu trouxe algum dinheiro. —Saiman apontou para a mala ao lado dele. — Acredito que a taxa padrão da Associação para resgatar uma vítima sequestrada é de dez por cento do valor do resgate. Sinta-se à vontade para contar.
Claro. O dinheiro era a resposta padrão de Saiman. Pagar-nos seria a maneira mais fácil de se livrar de sua dívida conosco.
Curran ofereceu-lhe uma cadeira com a mão. — Não estamos interessados em dinheiro. Você gostaria de algo para beber?
— Está envenenado?
— É sábado. —Eu disse. — Nós só servimos veneno durante a semana.
— Sim, não somos selvagens completos. —Curran sentou-se. — Shawn, você poderia, por favor, trazer um pouco de água para mim e Kate, e um uísque para nosso convidado?
O metamorfo assentiu e partiu.
— Se sentindo melhor?
Saiman não olhou para mim. — Eu sinto muito, eu adoraria responder a isso, mas você sabe, se eu tentar conversar com você, seu amante peludo vai me cortar em pedaços.
Ah, bebê chorão.
— Nem um pouco. —Disse Curran. — Não tenho planos de cortar ninguém esta manhã.
Shawn entrou na sala, trazendo uma bandeja com uma jarra de água, uma garrafa cheia de uísque de cor âmbar e três copos. Curran a tirou das mãos do metamorfo e a colocou na mesa. — Obrigado.
Shawn saiu e Curran derramou água em dois copos e uísque no terceiro. — Não há motivo para não sermos todos civilizados.
Seu tom era leve, seu rosto relaxado e amigável. O Senhor das Feras estava em forma rara. Nós realmente precisávamos do navio.
Saiman tomou um gole do líquido âmbar e segurou-o na boca por um longo momento. — Certo. Você recusa meu dinheiro, me serve um uísque Highland Park29 de trinta anos, e ficamos na mesma sala por aproximadamente cinco minutos, mas nenhum dos meus ossos estão quebrados. Isso me leva a acreditar que você está sem saída e precisa desesperadamente de mim para alguma coisa. Estou morrendo de curiosidade para saber o que é.
Em seu lugar, eu teria cuidado com minha escolha de palavras.
— Eu tenho uma proposta de negócios para você, —disse Curran. — Gostaria de contratar um dos seus navios de transporte para transportar a mim, Kate e dez pessoas do meu povo. Nós lhe pagaremos uma taxa razoável.
— Meu razoável ou o seu? —Saiman estudou sua bebida.
— Nosso. Além disso, você não deverá mais nada ao Bando e vamos tornar sua vida menos inconveniente. Por exemplo, vamos parar de bloquear suas compras de imóveis.
— Você tem bloqueado suas compras? —Eu olhei para Curran.
— Não eu pessoalmente.
— O Bando e seus muitos representantes. —Saiman esvaziou o copo e serviu-se mais. — Se eu optar dar um lance por algum imóvel, o Bando inevitavelmente fará uma oferta contra mim, aumentará o preço e depois abandonará a oferta, deixando-me em uma saia justa e exposto. Tem sido muito inconveniente.
Aposto que sim.
— Você sempre me pareceu um homem que gosta de atenção, —disse Curran.
— Isso é completamente injusto. —Saiman apontou o dedo indicador para ele enquanto ainda segurava o copo. — Vamos direto ao assunto. Eu sei que uma delegação de metamorfos desembarcou em Charleston, sei que Desandra Kral, anteriormente do Bando Obluda, terá gêmeos, e sei que você foi convidado para atuar como seu guarda-costas e mediador da disputa de herança e que você será pago em panaceia por fazer o trabalho.
Saiman em poucas palavras. Eu não tinha ideia de como ele sabia disso tudo, mas ele sabia.
— Você precisa de um navio. Essa embarcação terá que ser capaz de atravessar o oceano, necessitará de uma tripulação experiente e necessitará de espaço para pelo menos quinze pessoas. Qual é o destino?
— Gagra30 na costa norte da República da Geórgia.
Saiman piscou. — Você quer dizer o Mar Negro? Vocês realmente querem ir para o Mar Negro?
— Sim. —Disse Curran.
Eu assenti. — Nós iremos.
Dizer coisas como ‘Nós achamos que isso é uma armadilha’ ou ‘Nós preferimos cortar nosso pé esquerdo do que ir’, colocaria em risco a nossa chance de conseguir o navio e nossas imagens de fodões.
Saiman se serviu de mais uísque. — Não posso deixar de salientar que os três grupos envolvidos poderiam ter encontrado alguém nas imediações para atuar como uma quarta parte neutra.
— Sabemos disso. —Disse Curran.
— Você já tentou reverter a química da panaceia? — Perguntei.
— Sim, na verdade eu consegui. —Disse Saiman. — Posso lhe dar a lista exata de ingredientes e quantidades. Mas o segredo não está na composição química, está no processo de preparação, que não posso repetir. Sendo claro, eles cozinham com magia e eu não sei os detalhes. Também tenho razoável certeza de que a panaceia é fabricada por uma única entidade ou organização e depois distribuída pela Europa.
— Por quê? —Perguntei.
— É um segredo bem conhecido que há cinco anos atrás o seu companheiro ofereceu trezentos mil dólares e proteção do Bando para quem quisesse lhe vender a receita e demonstrar sua preparação. Se a panaceia fosse fabricada por pessoas diferentes ou entidades diferentes, alguém estaria desesperado o suficiente para aceitar sua oferta.
Curran fez uma careta. — São quinhentos mil agora.
— Ainda não há compradores? —Saiman arqueou a sobrancelha.
— Não.
Saiman rodou o uísque em seu copo. — Suponha que eu forneça um navio. Atravessar o Atlântico é uma aventura perigosa. Entre os furacões, os piratas e os monstros marinhos, existe uma possibilidade muito real de que esse navio afundará e não de maneira metafórica. Estou no transporte há mais de uma década e ainda perco de dois a quatro navios por ano. Se você morrer prematuramente no meu navio, seus amigos assustadores do Bando me culpariam.
— Muito provavelmente. —Disse Curran.
— Então se você morrer, mesmo que não seja culpa minha, é claro, a probabilidade que eu continue vivo cai drasticamente. Estarei arriscando meu navio, minha tripulação e minhas finanças pela troca de alguma promessa tênue de uma possível boa vontade do Bando. Eu estou procurando a vantagem nessa história e não estou encontrando nenhuma.
— Você irá arriscar seu navio, sua tripulação e dinheiro, enquanto arriscamos nossas vidas. —disse Curran. — E já que estamos no assunto, eu garanto que se outro navio de sua frota atracar próximo ao nosso navio no meio da noite e sua tripulação tentar nos matar e afundar o navio para esconder a evidência, você não sobreviverá também.
Saiman se recostou e riu.
— O que você quer? —Eu perguntei a ele.
— Posição de Amigo do Bando. —Disse Saiman. — Concedido antes da partida.
Como Amigo do Bando faria dele um aliado. Garantiria que os metamorfos ficariam fora de seus negócios e o protegeria se um deles encontrasse Saiman em perigo iminente. Também lhe daria a capacidade de visitar os escritórios dos metamorfos sem ser imediatamente detido.
— Não. —Disse Curran. — Não vou te dar muito acesso.
— Não só isso, mas se você se tornar um Amigo do Bando e depois afundar seu navio conosco a bordo, os metamorfos não poderão vir atrás de você. —Eu disse.
— Você realmente acha que eu iria te afogar, Kate?
— Em um piscar de olhos, —eu disse a ele. — Você ainda me deve, Saiman.
— E eu estou tentando negociar com vocês, mas vocês devem fazer um esforço para chegarmos ao um meio termo.
— Não. —Eu disse. — Você não receberá a Posição de Amigo do Bando até retornarmos.
Saiman sorriu. — Então estamos em um impasse.
Nós olhamos um para o outro.
— E se eu for com vocês?
— O que? —Eu devo ter ouvido mal.
— Eu vou acompanhá-la em sua maravilhosa aventura, Kate. Dessa forma, se a nossa embarcação afundar, não posso ser culpado, porque estarei a bordo.
— Por que você viajaria conosco? —Perguntou Curran.
— Estou atrasado para uma viagem ao Mediterrâneo. Tenho interesses comerciais lá.
— Não. —Eu disse.
Os dois homens olharam para mim.
— Não é uma má ideia. —Disse Curran.
— Vocês dois ficaram loucos? Esta é uma ideia horrível. Para início de conversa, vocês dois se odeiam.
— Eu não odeio ele. —Saiman encolheu os ombros. — Ódio é uma palavra muito forte.
— Se eu o odiasse, ele estaria morto. —Disse Curran.
Eles eram loucos. — Quanto tempo leva para atravessar o Atlântico?
Saiman franziu a testa. — Depende das ondas mágicas, mas geralmente entre doze a dezoito dias.
Eu me virei para Curran. — Vamos ficar juntos em uma pequena embarcação por pelo menos duas semanas. O que acontecerá quando no segundo dia ele ficar entediado?
— Vai ficar tudo bem. —Disse Curran. — Nós podemos lidar com isso. Se ele ficar fora de controle, amarraremos ele ao mastro.
Saiman lançou-lhe um olhar irônico. — Nós estaremos usando o Rush. Este navio funciona com água encantada, vapor e diesel. Não tem um mastro forte o suficiente para me segurar.
Curran exalou. — Então vamos trancá-lo em um porão.
— O Rush não é um Brigue31, não tem porão. —Corrigiu Saiman.
— Tanto faz. —Curran ignorou seu comentário com um aceno de mão.
— Faça um contrato formal. —Eu disse. Saiman era egoísta e às vezes covarde, mas tinha uma ética de trabalho ridiculamente forte. Se pudéssemos prendê-lo com um contrato, ele não o quebraria.
— Ah, nós vamos, —Curran me assegurou. — Vamos falar de números.
Quinze minutos depois, Saiman saiu satisfeito, escoltado por Shawn. Ele estava carregando sua mala de dinheiro de volta e uma nossa. Saiman estava feliz, o Senhor das Feras estava feliz, então por que eu estava tão desconfortável?
— Você vai se arrepender disso. —Eu disse a Curran.
— Eu sei. Nós não temos escolha. Temos que conseguir a panaceia. —Ele se inclinou e me beijou. — Eu te amo. Obrigado pelo navio. Obrigado por fazer isso comigo.
Um pequeno arrepio me percorreu. — Eu também te amo.
Conseguir a panaceia significava que cada bebê nascido no Bando teria uma chance de quarenta porcento maior de sobrevivência. Significava que Maddie poderia se tornar ela mesma novamente. Para que isso acontecesse, Curran engoliria seu orgulho. Ele faria um acordo com Saiman, ele negociaria com os Cárpatos que o haviam humilhado, ele cruzaria o Atlântico e meio continente. E eu o apoiaria a cada passo desse caminho. Curran era responsável pelo bem-estar do Bando, e eu também. — Temos que conseguir a panaceia, —concordei. Isso era tudo que importava.
Capítulo 5
A caravana de veículos do Bando rugia e trovejava pela estrada. A magia estava em alta com força total e os motores de água encantada faziam tanto barulho que fechamos todas as janelas do carro. Curran dirigia. No banco de trás, Barabas e Derek sentados um ao lado do outro.
Nós deixamos Julie na Fortaleza. Ela queria vir conosco e depois desistiu. Nós nos despedimos. Julie me abraçou e chorou, tão desesperada e triste que eu quase chorei com ela. Sentamos juntas por vinte minutos, mas infelizmente não poderíamos demorar mais para sair. Ela ainda estava chorando quando saí. Eu esperava que essa não fosse minha última lembrança dela.
De alguma forma eu sempre conseguia estragar as coisas quando se tratava de Julie.
A estrada serpenteava por um pântano salino. Palhetas32 e ervas balançavam suavemente, dando-nos um vislumbre de lama molhada, exposta quando a maré baixa sugava a água do pântano. Passamos por uma placa de sinalização, um losango amarelo com uma tartaruga desenhada no centro33, seguida imediatamente por outra placa, um triângulo invertido com borda vermelha. Uma tartaruga no centro do triângulo tinha um cone escuro tocando sua boca.
— O que isso significa? —Barabas perguntou do banco de trás.
— Cruzamento de tartaruga mágica.
— Eu entendi a primeira, mas, e essa segunda?
— Cuidado com as tartarugas mágicas.
— Por quê?
— Elas cospem fogo.
Curran riu para si mesmo.
A estrada se virou. Subimos em uma ponte de madeira, as tábuas batendo um pouco sob a pressão dos pneus. Andamos mais oitocentos metros e passamos pelos portões reforçados de ferro do porto.
— Qual doca34 Saiman disse que é a dele? —Perguntou Curran.
Eu verifiquei o papel. — Berço dois. Logo abaixo da ponte.
A ruína da Ponte Memorial Eugene Talmadge35 surgiu à vista como se fosse uma miragem, com seus suportes de concreto saindo tristemente da água, os cabos de aço pendurados sobre eles como uma teia de aranha rasgada. Passamos pelos restos da ponte e Curran parou diante de um píer. Uma grande embarcação esperava na água, seus dois mastros negros erguendo-se acima do convés36, que deviam ter um pouco mais de cento e vinte metros de comprimento. Eu não sabia quase nada sobre navios, mas até eu sabia que esse não era um navio cargueiro37. Parecia mais um navio da marinha, e a enorme arma montada no convés só tornava esse fato mais evidente.
Curran estudou o navio. — Isso é um Cortador de Alta Resistência38 da Guarda Costeira.
— Como você sabe?
— Compramos uma arma de um navio desativado. É o que está montado na torre dos portões.
— Você acha que Saiman comprou um Cortador da Guarda Costeira? Quanto dinheiro ...
— Milhões. —Disse Barabas, com a voz seca.
Nós olhamos para o Cortador.
Um homem desceu a prancha. Grande, de ombros largos, ele usava um suéter simples e jeans. Uma barba castanha curta traçava sua mandíbula. Sua constituição muscular dizia que ele trabalhava para viver.
Nós saímos do carro.
O homem se aproximou de nós. Eu verifiquei seus olhos e vi uma superioridade familiar. Eles diziam que esse homem estava dolorosamente ciente de que seu mundo era povoado de pessoas de menor inteligência do que ele, e que ele estava lamentavelmente resignado com a ralé. Saiman.
— Posso apresentar o Rush? —Saiman disse. — Depois de ser USCGC Rush39, agora é só o Rush. Cento e quinze metros de comprimento, treze metros de altura, deslocamento de três mil, duzentos e cinquenta toneladas. Duas turbinas a gás, quatro geradores de água encantada, velocidade máxima durante a magia de vinte nós40, durante a tecnologia de vinte e nove nós41. Carregado com uma Otobreda42, arma de artilharia super-rápida de setenta e seis milímetros, três balistas43 e uma série de outros recursos adicionais, o que torna o melhor navio da minha frota. Meu navio almirante44.
— Não poupou despesas, hein? —Eu disse.
Saiman sorriu, exibindo dentes brancos e uniformes. — Eu prefiro viajar com segurança, se não, nem viajo.
Eu estava no convés do Rush, cheirando o ar salgado e saturado de mar, observando nossos suprimentos sendo carregados. Os marinheiros no navio do píer ao lado também observavam. Eles tinham um guindaste, que usavam para o carregamento. Nós tínhamos Eduardo Ortego, que pegava contêineres de mais de duzentos quilos e casualmente os jogava do chão no píer para cima, no convés, onde Mahon e Curran os pegavam e os colocavam no compartimento de carga.
Os marinheiros humanos ao lado pareciam um pouco chocados. Fiquei feliz que Eduardo estivesse vindo conosco. Mahon tinha escolhido o grande homem-búfalo como seu apoio e ninguém objetou.
Membros das famílias e vários metamorfos invadiram o Rush. Jim marchava, murmurando coisas em voz baixa. George mostrava cabines para sua mãe. O vento puxava o coque indisciplinado de seus longos cachos escuros, que ela tentou, sem sucesso, domar com um elástico. A esposa de Mahon, uma mulher afro-americana robusta e feliz, seguia a filha com um sorriso orgulhoso no rosto. George tinha uma constituição muscular parecida como o pai dela—era mais alta, mais forte e com ombros mais largos do que a sua mãe—mas o grande sorriso de George era o mesmo da mãe: brilhante e contagiante. Eu não era do tipo sorridente, mas quando qualquer uma delas sorria para você, era difícil não sorrir de volta.
O convés sob meus pés estava se movendo. No momento em que mudei meu equilíbrio para compensar, o navio tentou parar. A última vez que andei de navio foi há quase três anos. Claramente, isso não era como andar de bicicleta.
Andrea, por outro lado, não parecia está tendo problema algum com o equilíbrio. Ela se inclinou na amurada à minha direita, sorrindo. Raphael parou ao lado dela. Onde Andrea era baixa e loira, Raphael era alto, magro e moreno, com uma onda de cabelo quase preto caindo em seus ombros. Ele também era muito atraente. Alguns homens tinham essa qualidade indescritível, uma espécie de ar sensual masculino. Eles olhavam para você e você sabia que fazer sexo com eles seria uma experiência memorável. Raphael não tinha apenas esse ar, ele era seu próprio furacão sedutor. Também era um dos mais mortíferos caçadores que conheci. Raphael amava Andrea mais do que peixes amavam o mar. Ela o amava de volta e mostrava suas armas quando mulheres solteiras se aproximavam demais.
Barabas estava do meu outro lado, parecendo que iria vomitar a qualquer minuto. — Isso sempre se move tanto assim?
— Fica pior. —Raphael disse a ele.
— Você vai se acostumar com isso. —Andrea prometeu.
Uma mulher desceu do píer em direção ao navio. Ela andava com uma graça fácil e preguiçosa que falava de força e equilíbrio perfeitos, apesar dos saltos perigosamente altos de suas botas de couro preto. O caminhar de um metamorfo sempre o entregava.
Calça jeans preta abraçava seus quadris, e uma blusa vermelho-ferrugem com uma jaqueta jeans mostrava suas curvas. Seu cabelo, uma juba de cachos espiralados escuros, movia-se enquanto ela andava ressaltando seu passo suave.
Ela se virou e eu vi o seu rosto. Era impressionante: um rosto em forma de coração, pele da cor do café, com olhos escuros e uma boca sensual e cheia.
Eduardo ia começar a levantar mais um contêiner quando viu a mulher. Seu rosto mostrando choque. — Oi, Keira.
Ha! Então essa é a irmã de Jim.
Keira piscou para Eduardo. — Olá delícia.
Todo o sangue foi drenado do rosto de Eduardo. O contêiner voou, assobiando pelo ar, atravessou o convés e mergulhou na água do outro lado.
Keira riu baixo, uma risada feminina, e continuou.
— Ooopa. —Gritou Eduardo.
— Que diabos? —Curran rosnou.
— Me desculpe, aquele era mais leve, escapou.
— Você jogou, você pega.
Se esse contêiner for aquele com meus suprimentos de ervas e armas, eu vou ficar bem chateada.
Keira subiu a prancha. — Ei, Barabas. —Ela me ofereceu sua mão. — Keira. Irmã de Jim.
— Kate. A amiga de Jim. —Eu apertei sua mão. Bom aperto.
— Oi, Raphael. E você deve ser Andrea. Da Ordem, certo? —Keira perguntou.
— Sim. —Disse Andrea.
— Prazer em conhecê-las.
— Qual é o problema com você e Eduardo? —Barabas perguntou.
Keira sorriu. — É uma história engraçada. Quando Eduardo veio pela primeira vez à cidade, ele decidiu que nossas leis não se aplicavam a ele e não queria vir e dizer oi. Jim me mandou buscá-lo. Acho que me diverti um pouco demais caçando-o.
— Caçado-o? —Barabas perguntou.
— Hum-hum. —Ela sorriu, um lento e preguiçoso movimento dos lábios. — Eu também poderia ter deixado escapar que acho delicioso carne de búfalo.
Um Jeep do Bando parou no cais. As portas se abriram, Doolittle saiu de dentro dele com mais dois de seus assistentes. O médico do Bando examinou o navio, assentiu, pegou uma bolsa da parte de trás do Jeep e subiu na prancha. Os assistentes o seguiram, carregando sacolas e malas.
Hummm ... — O que está acontecendo?
— Não faço ideia. —Barabas observou Doolittle. — Seja o que for, não é minha culpa.
— Olá. —Doolittle subiu a bordo. — Por favor, me digam onde ficam as cabines.
— Por que você precisa das cabines? Você vai vir com a gente?
Ele se endireitou em toda a sua altura. — Sim. Eu vou.
— Quando isso foi decidido? —Curran não tinha dito nada sobre isso para mim. Nem Doolittle mencionou isso quando fui me despedir.
— Foi decidido esta manhã. As cabines, senhora?
Hummm. Talvez Curran, com aquele jeito típico dele, não tenha me dito. Eu apontei para as escadas. — Diretamente para baixo.
— Por aqui. —Doolittle desceu as escadas chamando os seus assistentes.
Barabas se inclinou para o lado e vomitou ao vento.
— Você percebe que não estamos ainda em alto mar? —Saiman perguntou atrás de nós.
Barabas mostrou o dedo do meio sem olhar para ele.
Saiman sacudiu a cabeça.
Algo me ocorreu. — Saiman, quão alto são os barulhos desses geradores de água encantada? —Andar em um carro movido por água encantada era um terror para os nossos ouvidos. Um gerador era provavelmente muito pior.
— A sala de máquinas é significativamente maior do que o espaço sob um capô típico de carros. —Disse Saiman. — Os geradores de navios flutuam na água encantada, diferente dos carros onde a água fica contida dentro dos motores, e a própria sala de máquinas é à prova de som. Você deve ouvir um zumbido agradável, nada mais. Caso contrário, os marinheiros enlouqueceriam com o barulho constante.
Saiman saiu.
Meia hora depois, o último caixote estava carregado e seguro. Os assistentes de Doolittle foram embora. A tripulação se moveu sobre o navio em uma dança complexa, preparando-se para navegar. Andrea e Raphael caminhavam por aí. Os últimos membros das famílias deixaram o navio.
Barabas examinou a multidão reunida no píer. Seu lábio superior tremeu no começo de um sorriso de escárnio. — Foda-se.
Ele se virou, mal evitando Curran, e desceu as escadas.
Sua Peludeza se apoiou na amurada ao meu lado. — Qual é o problema dele?
Eu mantive minha voz baixa. — Ethan não veio dizer adeus. Alguns dias atrás Ethan disse a Barabas que não tinha certeza se eles tinham um futuro juntos. É por isso que tive que segurar Jezebel para não quebrar as pernas de Ethan.
Curran sacudiu a cabeça. — Eu acho que Ethan tem certeza agora.
— Sim.
Os marinheiros começaram a tirar as correntes de ancoragem do navio.
— Ele disse quatro geradores de água encantada, não foi? —Eu perguntei.
— Sim.
— A regra é que quanto maior o mecanismo mágico, mais tempo demora para encantar a água. Quatro geradores gigantes, e a tripulação é o que, duas dúzias de pessoas? Eu me pergunto quanto tempo eles vão levar para fazer os geradores funcionarem. —Provavelmente ficaríamos por mais de uma hora ainda no porto.
— Por que eu sinto o cheiro de Doolittle? —Curran perguntou.
— Ele passou por aqui no caminho para sua cabine.
— Ah. Espere, o que?
— Ele disse que está viajando com a gente. Pensei que a ideia tinha sido sua.
— O que?
— Ele disse que foi decidido.
— E foi. —Doolittle subia a escada. — Eu decidi isso.
O convés em torno de nós ficou repentinamente silencioso. Todos olharam para Curran. Decidi olhar para ele também, assim não me sentiria excluída.
— Por quê? —Curran perguntou baixinho.
— Você sabe como identificar a panaceia?
— Eu sei quando sinto o cheiro dela. —Disse Curran.
— Mas você não sabe se é potente. Não sabe se a concentração das ervas no medicamento vai realmente fazer efeito. Você não sabe como testá-la.
— E o Bando?
— Por favor. Estou deixando o Bando aos cuidados de cinco médicos-magos trabalhando em instalações hospitalares de última geração. Você terá apenas a mim. —Doolittle nos examinou. — Eu trouxe metade das pessoas que estão aqui de volta da beira da morte. Se eu deixar vocês a própria sorte, irão perder a pequena gota de bom senso que têm e fazer coisas como correr pelo fogo, quebrar seus ossos e enfrentar criaturas de tamanho muito maior. Se persistem nessa tolice de viagem, eu devo estar nela para ter certeza de que pelo menos alguns de vocês voltem para casa vivos.
Doolittle não mostrava irritação, nem hostilidade, mas se Curran dissesse que ele não viajaria conosco, o doutor estava pronto para brigar.
Curran sorriu. — Nós apreciamos ter você a bordo, doutor.
Doolittle piscou. Ele provavelmente esperava uma luta maior, só que agora Curran havia lhe dado uma rasteira, aceitando sua vinda conosco sem maiores argumentos.
— Certo. —Ele finalmente falou, então se virou e foi embora.
Saiman entrou no convés e parou perto do nariz do navio. — Preciso da atenção de vocês, por favor!
Todos olharam para ele.
— Estamos prestes a navegar. Peço que por favor fiquem em silêncio para que a tripulação possa começar o encantamento.
Todos calaram a boca.
Saiman se recostou. Uma mudança sutil veio sobre ele. Ele parecia pertencer aqui no convés do navio.
Ele abriu a boca e cantou em voz áspera, mas clara.
— O velho Stormalong45 está morto e desaparecido46!
A tripulação pegou a melodia e cantou em coro. — Sim, sim, sim, Senhor Stormalong!
— O velho Stormalong está morto e desaparecido! —Gritou Saiman mais alto.
— Sim, sim, sim, Senhor Stormalong!
Algo se mexeu embaixo do navio como um gigante adormecido acordando lentamente de um sono profundo.
— É um canto do mar47 —Curran sussurrou para mim.
Magia fluía de Saiman e da tripulação, fundindo-se, infiltrando-se nos ossos de aço do navio, como se estivessem trazendo o navio para a vida com suas vozes e ao mesmo tempo tornando-se parte dele no processo.
Quando Stormy morreu, eu cavei seu túmulo,
Sim, sim, sim, Senhor Stormalong!
Eu cavei seu túmulo com uma pá de prata
Sim, sim, sim, Senhor Stormalong!
Algo ronronou profundamente dentro do navio. Magia cresceu profundamente abaixo. Os pêlos na parte de trás do meu pescoço subiram. A canção e a magia me prenderam e me puxaram para dentro dela. Eu queria participar, mesmo que não soubesse as palavras e minha voz assustaria os peixes no oceano. Toda a tripulação cantava junto agora, a voz de Saiman se misturando com os outros, fazendo parte do forte e poderoso refrão, seu ritmo como o bater de um coração.
Eu o levantei com um guindaste de ferro,
Sim, sim, sim, Senhor Stormalong!
E o abaixei em correntes de ouro
Sim, sim, sim, Senhor Stormalong!
Os geradores de água encantados ligaram, expulsando a magia em uma emocionante cascata. O Rush estremeceu e se afastou do píer.
O vento nos banhou, bagunçando meu cabelo. Outro tremor sacudiu o navio. O Rush avançou para o oceano. A tripulação bateu palmas. Saiman fez uma reverência sorrindo. Eu não tinha ideia de que ele tinha isso nele.
— Estamos a caminho. —Disse Curran.
— Sim, estamos. — Nós chegaríamos lá, iríamos lutar, e retornaríamos.
Atingimos nossa primeira tempestade no nosso primeiro dia de viagem. O oceano se agitava e fervia, suas águas eram cinzas e espumosas. Grandes ondas rolavam, cada uma do tamanho de uma casa, e nosso grande navio subia e descia, jogado como um barquinho de papel. A água martelava no casco, e o barco se inclinou tanto que achei que tombaríamos e todos nós nos afogaríamos, mas logo o navio se inclinava para o outro lado de novo.
Saiman se amarrou do lado de fora no convés. Quando pedi à tripulação que o verificasse, eles me disseram que o navio precisava de alguém que ficasse lá fora de olho no que estava acontecendo e essa era a sua coisa favorita a fazer. Subi um pouco as escadas para o convés e tive um vislumbre do que estava acontecendo lá fora. O mundo parecia um pesadelo, com o vento e a água unidos em um furioso combate primitivo. Saiman olhava para o vento com um grande sorriso no rosto respingado da chuva, enquanto o oceano fingia que era uma cadeia de montanhas em movimento. As ondas se elevavam e encharcavam o convés, e ele desaparecia de vista por trás da cortina de água.
Enquanto Saiman tinha seu momento psicótico e esquisito do lado de fora, o resto de nós se aninhava abaixo do convés. Um por um nos reunimos no refeitório. Poderia ser por causa da falsa sensação de segurança que uma quantidade maior de pessoas nos dá ou porque todo mundo queria dividir suas misérias uns com os outros—não importava, qualquer um dos dois motivos serviam. Eduardo e Barabas eram quem mais sofriam entre nós. Eduardo empalideceu e rezava baixinho, enquanto Barabas abraçava o balde e parecia verde. Por fim, Barabas nos confessou que era bom mesmo que ele morresse aqui depois de ter sido dispensado por Ethan, mas lamentava que estivesse nos levando com ele. Eduardo disse a ele para calar a boca e ameaçou jogá-lo em um bote salva-vidas, e então Barabas demonstrou que os metamorfos mangustos corriam de zero a sessenta em menos de um segundo e ameaçou se divertir brincando com as entranhas de Eduardo. Tiveram que ser mandados sentar um longe do outro, em cantos separados do refeitório. Eu me enrolei ao lado de Curran e adormeci. Se o navio decidisse afundar, não havia muito que eu pudesse fazer sobre isso.
A magia afogou a tecnologia logo depois da meia-noite. De manhã, o oceano havia se acalmado e o navio havia parado de tentar imitar um marinheiro bêbado no final de sua primeira noite de liberdade.
Tomamos um café da manhã e eu escapei do refeitório e subi no convés. O mar estava perfeitamente calmo, como um infinito cristal translúcido, polido até a lisura acetinada. Os motores mágicos quase não faziam barulho e o navio deslizava sobre as profundezas azuis sem fundo. O oceano e o céu pareciam intermináveis.
Examinei o mar por alguns longos minutos e segui para explorar o convés. Na parte traseira encontrei um grande espaço claro marcado por um H. Um heliporto48. Nenhum helicóptero à vista. Fui em direção ao heliporto. Um bom espaço livre e aberto. Eu sentia meus músculos travados depois de dormir no chão. Um pouco de exercício me faria bem. Me estiquei, virei e chutei o ar. Repeti o movimento algumas vezes. Lancei uma combinação rápida, pulei e esmaguei meu pé no queixo de um oponente invisível.
— Um nocaute. —Disse Curran atrás de mim.
Pulei no ar cerca de trinta centímetros e consegui posar com alguma aparência de dignidade. Ele conseguiu me pegar desprevenida de novo. Tinha que salvar minha dignidade. — Não. Isso não foi um nocaute. Apenas balancei o oponente um pouco.
— Eu não estava falando sobre o chute, bebê.
Ah. — Elogios, Vossa Peludeza. —Eu recuei e abri meus braços. — Quer treinar?
Ele tirou os sapatos.
Cinco minutos depois, estávamos rolando no heliporto enquanto ele tentava se soltar da minha chave de braço, depois de me derrubar no chão.
— Eu finalmente entendi o que alimenta a atração que um tem pelo outro. —Disse Saiman, com a voz seca.
Olhei para cima. Ele estava de pé a poucos metros de distância.
— Nos explique, então. —Curran tentou rolar por baixo de mim e se soltar da minha chave de braço. Oh não, você não vai.
— Vocês dois usam a violência como preliminares.
Eu ri.
Derek se aproximou, movendo-se naquele lânguido passo de lobo, tirou as botas e as meias e caiu em uma flexão de braço. Ele ainda estava fazendo o mesmo exercício quinze minutos depois, quando Barabas e Keira emergiram no heliponto e começaram a lutar. Barabas era chocantemente rápido, mas Keira e Jim claramente compartilhavam o mesmo conjunto genético, porque ela continuava acompanhando os movimentos de Barabas com facilidade.
Andrea e Raphael foram os próximos, e então Eduardo, George e Mahon também encontraram o heliporto. Assistir Eduardo e Mahon treinando era como ver dois rinocerontes tentando lutar. Eles se chocaram um contra o outro e em seguida, disputaram forças por dez minutos sem se mover um centímetro. Finalmente, com os rostos vermelhos, se separaram apertando as mãos.
— Obrigado. —disse Eduardo.
— Bom jogo. —Disse Mahon.
Raphael tirou a camisa. Ele usava uma camiseta preta por baixo que deixava seus ombros expostos. Andrea levantou as sobrancelhas, claramente apreciando a vista. Raphael entrou no heliporto com uma faca simples de quinze centímetros na mão. Era a única arma permitida durante os desafios do Bando, e durante a maratona de ataques que os metamorfos me deram, tentando tirar o meu lugar como a ‘Senhora das Feras’ do Bando, eu tinha me saído muito bem com a minha. Barabas se juntou a Raphael. Eles entraram em choque, muito rápidos, e dançaram pelo heliponto. A principal diferença entre um lutador de espada e um lutador de faca não era velocidade ou força. Quando um mestre de espada levantava sua espada, o resultado nem sempre era previsível. Ele poderia ferir seu oponente, desarmá-lo ou matá-lo. Mas quando um lutador de faca levantava sua faca, ele sempre pretendia matar.
A Tia B saiu para o heliporto usando calças largas de ioga. — Estou aqui apenas para me alongar. Kate, quer ajudar?
— Claro.
Trinta segundos depois, enquanto eu voava pelo ar, decidi que ‘ajudá-la’ não foi uma boa ideia.
— Tenha cuidado. —Disse Doolittle. Ele sentou-se ao lado, segurando um livro.
— Você vai se juntar a nós, doutor? — Raphael perguntou.
— Estou tomando banho de sol. —disse Doolittle. — E curtindo meu livro. Não me incomode com suas tolices.
Barabas levantou uma pasta. — Já que estamos todos aqui, eu preciso informá-los sobre a nossa situação.
— Que tal mais tarde? —Disse Keira. — Eu tenho planos.
— Que planos? —Barabas olhou para ela.
— Eu estava pensando em meditar, em algum lugar ao sol.
— De olhos fechados? —George perguntou.
— Talvez.
— Alguém sente em cima dela antes que ela escape. —Barabas levantou sua pasta. — É meu trabalho garantir que não entremos cegos nesse empreendimento. Você está aqui, então terá que sofrer com isso, goste ou não.
— Mas ... —Keira começou.
Curran olhou para ela.
— Ah, tudo bem. —Ela se sentou no convés. — Estou ouvindo.
— Vocês já devem ter ouvido falar sobre Desandra e os gêmeos. —Barabas começou. — No entanto, esta luta não é realmente sobre os bebês. É sobre território. Os Cárpatos formam uma cadeia de montanhas na forma de um C invertido que atravessa muitos países diferentes, incluindo Polônia, Eslováquia, Hungria, Romênia, Ucrânia e Sérvia. Estas montanhas constituem a maior área florestal da Europa e contêm mais de um terço de todas as espécies de plantas do Continente.
Keira bocejou.
Barabas revirou os olhos. — Aqui está a questão. É o paraíso dos metamorfos. Quilômetros e quilômetros de montanhas arborizadas, lagos, rios e um bom suprimento de água doce e caça. O terreno é fértil e a população humana é escassa. Você poderia jogar um batalhão de guardas florestais do exército nessas montanhas, e eles vagariam por anos, somente na companhia das próprias sombras.
— Parece bom. —Rugiu Mahon.
— E é. Área de primeira. Esse cara, Jarek Kral, descobriu isso há muito tempo. Ele abriu caminho até a liderança de um bando de lobos e passou os vinte anos seguintes assassinando, barganhando e planejando conseguir mais terras. Agora controla um grande pedaço no Nordeste dessa região. Ele é um filho da puta poderoso e tem sérios problemas de gerenciamento de raiva. Guarda rancor e nunca esquece de um insulto. Houve um metamorfo lobo que disse algo que Jarek não gostou. Três anos depois, Jarek o vê em um jantar, caminha em direção ao homem, o esfaqueia com uma faca, arranca o coração do sujeito do corpo, joga-o no chão e pisa em cima do órgão fazendo mingau. E depois volta para terminar sua comida. Ele é famoso por isso.
— Parece um homem adorável. —Disse George.
— Aqui, tenho uma foto dele. —Barabas passou uma foto para Eduardo à sua esquerda. — Jarek é um cara poderoso, mas ele tem um problema. Em trinta anos teve onze filhos. Sete foram a loup, dois foram mortos juntamente com a mãe das crianças quando um bando rival os emboscou, um desafiou Jarek e perdeu, e isso o deixou somente com Desandra. Jarek é como o nosso Mahon. Tudo com que ele se importa é sobre dinastias e alianças. Não ter um filho homem está enlouquecendo Jarek.
Mahon suspirou. — Espere até você viver tanto quanto eu. E eu tenho um filho. Só não fui o primeiro pai dele.
Curran sorriu.
A foto de Jarek finalmente chegou até mim. Um homem de quarenta e tantos anos olhava para o lado com uma expressão de escárnio e descrença no rosto, como se tivesse acabado de pisar em uma minhoca e estivesse perplexo que a criatura teve a ousadia de se prender ao fundo do seu sapato. Seu cabelo castanho ondulado caia ao redor de seu rosto, alcançando seus ombros largos, mas não fazia nada para suavizar o impacto do rosto. As feições de Jarek eram grosseiras: olhos grandes sob sobrancelhas grossas e inclinadas, nariz grande, boca larga, queixo firme e mandíbula quadrada. Era um rosto poderoso, masculino e forte, mas sem refinamento. Ele não parecia um criminoso, mas sim como um homem sem consciência, que matava porque era conveniente.
Não é o tipo de homem que eu gostaria de encontrar no meu caminho.
Curran olhou por cima do meu ombro. — Sim. Esse é ele.
Eu me inclinei contra ele e passei a foto para Raphael.
— Então, de volta para Desandra. —Disse Barabas. — Ninguém queria se aliar com Jarek, porque ele não é exatamente um homem de palavra. Então ele negociou usando a filha. Sozinha, Desandra não tem dinheiro. No entanto, seu primeiro filho herdará a Passagem Prislop49. É uma passagem no norte da Romênia, no limite de seu território, e tem uma linha Ley50 que passa por ela. Se você estiver indo da Rússia, Ucrânia ou Moldávia para a Hungria ou Romênia, terá que passar por ali. O que nos leva aos outros dois bandos.
Ele levantou uma foto. Uma família sentava-se ao redor da mesa. Três homens mais jovens, um idoso e três mulheres. — Volkodavi. Um bando misto, parte polaca, parte ucraniana, parte qualquer coisa. Eles estão em conflito contra os Cárpatos do Leste, na Ucrânia, e controlam as colinas do Leste. Aqui está Radomil, o primeiro marido de Desandra.
Barabas entregou a foto a Eduardo, que a passou para George. George piscou e endireitou-se. — Uau.
— Eu sei, não é? —Barabas sorriu.
Andrea se inclinou. — Deixe-me ver. Não é meu tipo. —Ela se inclinou para mostrar a Tia B. A Tia B ergueu as sobrancelhas.
A imagem foi de mão em mão até que finalmente chegou a mim. Radomil era bonito. Não havia outra palavra para descrevê-lo. Seu cabelo, um rico loiro dourado, repousava em ondas em sua cabeça, emoldurando um rosto perfeitamente simétrico. Uma boca generosa se estendia em um sorriso feliz mostrando dentes brancos, um toque de barba no queixo, maçãs do rosto salientes e olhos verdes de vidro, emoldurados por cílios loiros escuros e densos.
Curran olhou por cima do meu ombro e estudou-o com uma expressão perfeitamente neutra.
— O irmão e a irmã mais velhos de Radomil praticamente administram o bando. —disse Barabas. — Nós não sabemos muito sobre eles. Olhem essa. —Ele levantou outra foto. Um casal de adultos mais velhos e dois homens mais jovens, ambos bonitos, de cabelos escuros, olhos castanhos, com feições suaves, cabelos curtos e mandíbulas quadradas bem barbeadas.
— Gerardo e Ignazio Lovari, filhos de Isabella e Cosimo Lovari. Nosso foco deve estar em Gerardo.
— Não, querido. —Disse Tia B. — Nosso foco deve estar em Isabella. Eu a conheci antes. Aquela mulher governa Belve Ravennati. Todas os metamorfos de Ravena respondem a ela incluindo seus dois filhos. Eles são um bando muito disciplinado. Principalmente formados de lobos e muito voltado para a aquisição de bens.
— Tente lembrar de seus rostos. Todas essas pessoas estarão lá. —Disse Barabas. — E isso nos leva ao nosso lindo destino. Nós estamos indo para a Abkhazia. É um território disputado na fronteira entre a Rússia e a Geórgia, e é diretamente do outro lado do Mar Negro. Uma vez a cada cinquenta ou sessenta anos, a Rússia e a Geórgia decidem entrar em guerra e o território muda de mãos. O bando local é um bando de metamorfos chacais, não é grande, mas há gente suficiente para matar todos nós. Nós não sabemos nada sobre as intenções deles. Mas sabemos de algumas coisas importantes. —Barabas ergueu um dedo. — Número um: o casal alfa será o alvo mais provável.
Todos olharam em nossa direção. Curran sorriu.
— É assim que eu faria. —Disse Mahon. — Separe os alfas e você divide o bando. Se você fizer tudo certo, o bando irá se destruir sozinho.
Ser um alvo não me emocionava, mas não seria a primeira vez.
Barabas levantou dois dedos. — Número dois: eles tentarão reduzir nossos números.
— Usaremos o método de Camaradagem. —Disse Curran. — Ninguém vai a lugar algum sozinho. Escolha seus parceiros e fique com eles.
— Número três. —Barabas levantou três dedos. — Não confiem em ninguém. Eu não sei onde eles vão nos colocar, mas não teremos privacidade. Mesmo que seus quartos estejam vazios, podem ter certeza de que alguém está ouvindo você respirar. Não discuta nada importante a menos que você esteja do lado de fora e possa ver um lugar para escapar ao seu redor.
— E quatro. —Disse Curran. — Nós seremos provocados em cada momento. Em comum acordo, os três bandos nos querem lá. Individualmente, não. A única razão pela qual eles querem que nós arbitremos a situação da herança, é que nenhum dos três bandos tem capacidade o suficiente para derrotar os outros dois. Se dois bandos lutarem, o terceiro se aproveitará da fragilidade pós-luta do bando vencedor e o atacará, vencendo-o.
— Então, mesmo que alguém ganhe a princípio, perde depois, —disse Andrea.
Curran assentiu. — Para eles, somos um mal necessário. Os bandos fizeram planos, e alguns desses planos dependem de nos provocar a violência. Não importa o que seja dito a vocês, não se deixe ser incitado a dar o primeiro soco. Nosso comportamento deve ser irrepreensível.
— Isso vai ser muito divertido. —George murmurou em uma voz geralmente reservada para lamentar o trabalho extra empilhado em sua mesa no último minuto da sexta-feira.
— Falou e disse! —Raphael sorriu. — Esta será a melhor férias de sempre.
— Boudas. —George franziu o nariz.
Enquanto as grandes turbinas tecnológicas impulsionavam o Rush para a frente, o oceano permanecia sem vida, mas assim que o barulho desapareceu, a vida se reuniu em torno do navio. Os golfinhos precipitaram-se na água, lançando-se no ar. Frequentemente, os peixes grandes e em tons de arco-íris se juntavam a eles, girando acima da água enquanto saltavam. Em outro momento foi a vez de uma enorme sombra em forma de peixe, deslizar silenciosamente sob nós e seguir seu caminho. Cardumes brilhantes de peixes ziguezagueavam para frente e para trás ao lado do navio.
Uma semana depois de viagem, vimos uma serpente do mar quando estávamos saindo do heliporto. O oceano estava liso como vidro e de repente uma cabeça de dragão do tamanho de um carro subiu acima da água em um pescoço gracioso.
As escamas prateadas brilhavam ao sol. A serpente olhou para nós com olhos turquesa, grandes como um pneu, e mergulhou debaixo d'água. Saiman disse que era apenas uma serpente muito jovem, ou as coisas teriam sido consideravelmente mais difíceis.
Na manhã do décimo sétimo dia, passamos pelo Estreito de Gibraltar51. Foi menos impressionante do que o esperado. Uma costa verde apareceu de um lado por um tempo e depois desapareceu no azul do mar. A falta de drama foi completamente decepcionante.
Nós continuamos a viagem. Três dias depois de passar pelo Estreito de Gibraltar, subi no convés para um lindo dia. Água azul cristalina se espalhava até onde os olhos podiam ver. Aqui e ali, esboços de falésias sugerindo a existência de ilhas distantes, interrompiam o azul. Véus transparentes de nuvens cruzavam o céu como lanças finas de gelo vistos através de uma janela no inverno. A magia estava em alta e o Rush deslizava pela água, um pássaro de aço veloz.
Eu me sentei segurando uma xícara de café. Vento agitava meu cabelo. Saiman veio e sentou perto de mim.
— Nunca imaginei você como um marinheiro, —eu disse.
— Também nunca imaginei. Eu tinha dezessete anos quando precisei entrar em um barco de pesca de caranguejo por razões completamente alheias à pesca. Eu senti o cheiro do sal molhado no vento, senti o convés se mover e não saí desse barco por três anos. Fui realmente feliz lá. Eu prefiro mares frios. Gosto de gelo. É o chamado do meu sangue, suponho. Aesir52 ou Jotun53, faça a sua escolha.
— Porque você saiu?
Saiman sacudiu a cabeça. — O motivo é algo que eu não gostaria de compartilhar. Mas posso te dizer uma coisa, há momentos em que eu acredito que deveria ter ficado.
Ele se inclinou para frente, examinando o horizonte, e pela primeira vez desde que saímos do porto, seu rosto estava sombrio.
— Algum problema?
Saiman acenou com a cabeça para a água sem fim. — Nós cruzamos o mar Egeu.
— Você está preocupado que os idosos começarão a mergulhar nos penhascos porque o nosso navio está velejando com as cores das velas erradas54?
Barabas subiu até o convés e veio ficar ao nosso lado.
— Eu nunca entendi a lenda de Teseu. —Disse Saiman. — Ou melhor, eu entendo sua motivação para matar o Minotauro em um esforço para se estabelecer como líder. Eu não consigo entender a lógica por trás de Egeu se jogando no mar.
— Ele achava que seu filho não havia conseguido matar o Minotauro e morreu, —eu disse.
— Então ele decidiu desestabilizar o país ainda mais, que já pagava tributo a uma potência estrangeira, se matando e destruindo a dinastia real estabelecida? —Saiman sacudiu a cabeça. — Acho que está claro o que realmente ocorreu. Teseu liderou a invasão de Creta, destruiu sua super-arma na forma do Minotauro, voltou para casa e fez sua oferta pelo poder empurrando seu querido e velho pai de um penhasco. Todos fingiram que foi um suicídio e Teseu acabou encontrando Atenas e unificando a Ática sob sua bandeira.
Barabas soltou uma risada curta. — Ele provavelmente está certo.
— Prefiro a outra versão, —eu disse.
Saiman deu de ombros. — O romantismo será sua ruína, Kate. Para responder à sua pergunta, não estou preocupado com os gregos suicidas, mas com os compatriotas mais violentos. O mar Egeu é um paraíso para os piratas.
O romantismo será sua ruína, blá, blá. — Ora, não é por causa do perigo que você tem essa arma montada na frente? Ou é por outras razões? Porque eu sempre pensei que um homem tão poderoso como você estaria além da vontade de compensar a falta de atributos em outras áreas.
Barabas sorriu.
— Eu tinha esquecido que falar com você é como tentar acariciar um cacto, —disse Saiman secamente. — Obrigado por me lembrar.
— Sempre feliz em agradar.
— Eu não estou compensando nada. Há piratas de dois tipos. A maioria deles é oportunista, homicida e dirigida pelo lucro. Eles matam como meio para um fim. Eles avaliam um navio deste tamanho e percebem que uma batalha no mar seria muito cara e suas chances de vencê-lo são escassas. Infelizmente, há o segundo tipo: os loucos, estúpidos e os insanos. O navio não seria um impedimento, pelo contrário, eles o considerariam um grande prêmio. Capturá-lo imediatamente daria a eles um carro-chefe de poder de fogo decente e permitiria que fizessem um nome para si mesmos. Eles não podem ser convencidos com ...
Um pequeno navio apareceu em torno da borda oeste da ilha mais próxima. Saiman olhou para ele. Outra embarcação se juntou ao primeiro, depois um terceiro, um quarto ...
Saiman soltou um longo suspiro de sofrimento. — Certo. Por favor, vá buscar o seu brutamontes, Kate. Estamos prestes a ser abordados.
— Eu vou. —Barabas correu para longe.
Mais de uma dúzia de navios avançavam em nossa direção. Com magia, a arma gigante no nosso navio era inútil.
Um sino tocou: três toques, pausa, três toques, pausa. Uma mulher gritou, sua voz profunda. — Quartéis gerais55! Todas as mãos para as estações de batalha! Quartéis gerais!
— Você não deveria estar na cabine? —Perguntei.
— O navio deve ter apenas um capitão, —disse Saiman. — Russell é perfeitamente competente para lidar com qualquer emergência, e eu não quero prejudicá-lo com a minha presença.
Os metamorfos derramaram-se no convés, Curran na liderança. Andrea brandia uma besta.
Raphael andava a passos largos ao lado dela, carregando facas. Os barcos vieram direto para nós. O Senhor das Feras parou ao meu lado. — Você está planejando atirar neles?
— Isso seria inútil. Seus barcos são mais manobráveis. Eles simplesmente se dispersariam.
Uma pessoa mergulhou no oceano do barco principal. Isso deve ter sido um sinal, porque os piratas começaram a cair ao mar como se seus barcos estivessem em chamas.
— Que diabos? —Eduardo murmurou.
— Como eu disse, estamos prestes a ser abordados, —disse Saiman com paciência aflita.
Acima de nós, no topo de um veleiro, dois marinheiros manipulavam um polibolo56, um mecanismo de ataque que parecia uma besta em esteroides. Uma arma antipessoal, um polibolo disparava grandes flechas de besta com precisão mortal e como se fosse brincadeira, eram autocarregáveis e disparava como uma metralhadora.
Formas suaves atravessaram a água em nossa direção.
— Eles têm golfinhos treinados? —George perguntou.
— Não exatamente. —Saiman recuou em direção ao centro do convés.
Os golfinhos dispararam em direção ao Rush, todos nadando muito rápido sob as ondas.
Eu tirei a Matadora.
— Formem um perímetro, —gritou Curran. — Deixe-os subir no convés, aqui no seco será melhor para nós. Não deixe que eles te puxem para a água.
Fizemos um perímetro no centro do navio.
— Isso é absolutamente ridículo, —disse a Tia B.
Keira se espreguiçou. — Diversão, diversão, diversão ...
Algo se espatifou na lateral do casco. Uma mão cinza deformada agarrou a borda superior do convés e uma criatura saltou sobre o corrimão e aterrissou, pingando água. Nu, exceto por um arreio de couro, tinha pernas musculosas curtas, curvadas, mas eretas, o sol cintilando em sua pele espessa e brilhante. Seu corpo era a união de um tórax e um abdômen em um mesmo tronco, sem cintura. Ombros largos sustentavam dois braços maciços com mãos surpreendentemente pequenas. Seu pescoço, desproporcionalmente grosso, com uma protuberância nas costas, ancorava uma cabeça armada de longas e estreitas mandíbulas de golfinhos, cheias de dentes afiados como navalhas. Dois olhos humanos nos encaravam em um rosto estranho. Um bastardo dos grandes. Pelo menos cento e oitenta quilos.
Um metamorfo golfinho. Alguém me belisque.
Lendas gregas falavam de alguns piratas que capturaram o deus Dionísio. Eles estavam planejando violá-lo e vendê-lo como escravo. Furioso, Dionísio os transformou em golfinhos. Aparentemente, seus descendentes estavam vivos e bem, e ainda no negócio da família.
O pirata olhou para nós. Tinha um inferno de pescoço. Golpes na garganta seriam difíceis.
Outros piratas saltaram sobre o corrimão. Um, dois ... Sete ... Treze. Uma dúzia deles. Espere, quinze. Dezoito ... Vinte e um. As chances não estavam a nosso favor.
— Talvez eles vieram só para pedir uma xícara de açúcar, —eu disse.
Andrea soltou uma risada curta. Curran colocou a mão no meu ombro. — Isso é muito açúcar. Deve ser um bolo grande.
O líder dos metamorfos golfinhos abriu suas mandíbulas, exibindo dentes projetados para perfurar e segurar presas vivas e ativas. Palavras inglesas se espalharam em uma voz baixa, acentuadas e mutiladas. — Dê-nos o seu navio e sua carga e vocês poderão ir.
— Ele está mentindo, —disse Saiman. — Eu perdi dois navios para eles nos últimos seis meses. Nos matarão como gado por causa da carga.
— Você fala grego? —Perguntou Curran.
Saiman deu de ombros. — Naturalmente.
— Diga a ele que pense melhor sobre isso.
Uma linguagem melodiosa derramou-se de Saiman.
O metamorfo golfinho encarou Saiman como se tivesse crescido uma segunda cabeça.
— Deixem este navio, —disse Curran, sua voz se aprofundando. Ele estava prestes a explodir. — E vocês irão sobreviver. Este será seu único aviso.
Saiman traduziu.
O golfinho recuou e apontou para Curran. — Primeiro matarei você. Então estuprarei sua mulher.
O ouro afogou os olhos de Curran. Eu já tinha visto as pessoas colocarem um pé na boca. Mas esta era a primeira vez que via uma barbatana se enfiar em uma.
O corpo de Curran explodiu. A mudança foi muito rápida, quase instantânea. Segundos antes um homem estava ao meu lado, agora um monstro se elevava sobre mim, com mais de dois metros de altura. O pêlo cinza cobria seus membros musculosos, listras escuras cruzando-o como as marcas de um chicote. A colossal boca leonina se abriu, mostrando as presas de cimitarra57, e um alto som explodiu, perigoso, áspero, grotesco, primitivo em sua fúria e puro poder, como um desafio de batalha entregue por um tornado. O rugido batia direto nas entranhas, ignorando o pensamento lógico, fazendo seus nervos congelar. Eu já ouvi isso dezenas de vezes e isso ainda me abalava.
Os metamorfos golfinhos nunca tinham ouvido isso antes, e assim fizeram exatamente o que a maioria das pessoas faria quando confrontados com um leão enfurecido. Eles se encolheram, paralisados.
Eu me lancei para frente, desenhando a espada no ar enquanto golpeava. O líder pirata me viu chegando e levantou o braço para afastar o ataque. A lâmina da Matadora cortou a carne e o osso do pulso estreito como uma faca quente na manteiga. A mão do pirata caiu no convés. Ele agarrou o coto do braço e gritou, um grito estridente e doloroso. Enterrei minha espada em seu intestino e estripei-o com um único golpe.
Os piratas me cercaram. Atrás de mim, os metamorfos rosnavam, num coro aterrorizante: o rugido profundo dos Ursos Kodiak58, pai e filha se misturando com os uivos dos lobos e o rosnado irritado de um jaguar, misturado com gargalhadas psicóticas das hienas.
Eu esculpi o peito do pirata mais próximo, depois cortei um segundo atacante ao meu lado, o derrubando com um corte no pescoço. O cheiro de sangue enchia o ar. Atrás de mim, Derek se moveu, quebrando o pescoço e os membros dos piratas antes que eles tivessem a chance de se recuperar.
Golpeie a espada na virilha de um metamorfo golfinho, escancarando um profundo corte. Ele caiu, estalando os dentes para mim, e entre os corpos, eu vi Curran escolher um dos piratas do convés e quebrar sua espinha sobre o joelho. Ele jogou o corpo flácido do pirata de lado. Sua boca gigante de leão estava aberta, ele mordeu o ombro de alguém e eu ouvi o som de ossos sendo esmagados, seguido por um grito desesperado de gelar o sangue.
À esquerda, um enorme metamorfo golfinho avançou, empurrando metamorfos para fora do caminho. A seta da besta assobiou cortando o ar e cravou entre seus olhos. O golfinho girou e um pesadelo listrado de dois metros de altura que era Tia B o atacou, abrindo seu estômago. Ela enterrou a mão no corte e arrancou um punhado de tripas pálidas. Eu continuei me movendo, esculpindo meu caminho através dos corpos cinzentos e brilhantes.
Dentes morderam meu braço, rasgando o músculo. Eu inverti a minha espada e apunhalei a Matadora profundamente no pescoço do metamorfo golfinho. Ele gorgolejou. Sangue jorrava entre os dentes, queimando minha ferida enquanto a magia do meu sangue reagia ao Lyc-V no dele. Torci a lâmina, rasgando sua garganta. O pirata caiu. À minha esquerda, dois golfinhos empurraram Eduardo a toda velocidade do convés e mergulharam com ele.
Merda. Na água eles tinham uma vantagem. Eu inverti o meu curso, tentando cortar meu caminho para o lado.
Outro pirata bloqueou minha frente. Eu empurrei. Ele se transformou enquanto me atacava, e a lâmina perfurou a espessa saliência de seu pescoço. O golfinho gritou e bateu em mim. O impacto me derrubou. Voei um pouco e bati minhas costas na porta de uma cabine em um baque forte. Eita.
O golfinho mergulhou em mim, rápido demais para evitar, pesado demais para empurrá-lo. Levantei minha perna esquerda. O corpo me atingiu, o peso total pousando na minha perna. Dentes de golfinho curvados estalaram no meu rosto. Filho da puta pesado. Eu grunhi, dobrando meu joelho um pouco mais, e o empurrei direto para a ponta da minha espada. Moleza.
Ele se sacudiu, batendo na lâmina, como se estivesse levando um choque elétrico, seu peso prendendo minhas pernas. Puxei minha faca de arremesso com a mão esquerda e a apontei para o lado dele, transformando suas entranhas em mingau. O golfinho convulsionou. Dentes rasgaram minhas roupas, raspando meu lado. Eu o esfaqueei várias vezes. Sangue molhou minha mão, pulverizando meu rosto em uma névoa quente. O pirata guinchou, o grito agudo e desesperado se transformou em um gorgolejo, e caiu em cima de mim. Os cento e oitenta e tantos quilos me prenderam no lugar. Forcei, mas o corpo não se mexia. Droga.
De repente, o peso foi embora. O golfinho pairou um metro acima de mim e foi jogado sem cerimônia para o lado. Um monstro cinza manchado de sangue agachou-se na minha frente.
Curran.
— Você está tirando uma soneca? Vamos, Kate, eu preciso de você para essa luta. Pare de enrolar por aí.
Seu filho da puta. Me levantei rapidamente e peguei minha espada. — Você deve se achar muito engraçado.
Um golfinho se jogou para nós, vindo da direita. Curran se jogou nele e agarrou seu ombro, puxando-o para trás, e eu fatiei a garganta do pirata e perfurei seu coração com dois golpes rápidos.
— Apenas dizendo, você tem que se livrar sozinha do seu próprio fardo. Ter um corpo sexy e flertar não vai te levar tão longe aqui.
Corpo sexy e flertar, hum. Quando eu terminar de matar alguns ... — Tudo o que faço, aprendi com você, garotão.
Outro pirata apareceu. Eu me abaixei, cortando os tendões atrás de seu joelho, enquanto Curran o cortou e arrancou sua garganta. O pirata caiu.
— Garotão? —Perguntou Curran.
— Você prefere docinho?
O navio estava subitamente vazio. Sangue pintava o convés. Cadáveres cinzentos jaziam aqui e ali, rasgados e atacados por garras e dentes. Um enorme urso Kodiak desgrenhado rondava o convés, seu focinho pingando. O último pirata ainda em pé estava correndo em direção a Andrea e Raphael perto da proa59. Andrea levantou a besta. Ela ainda estava em forma humana. Raphael estava ao lado dela, leve em seus pés, suas facas pingando vermelho. Um rastro de corpos levava a eles, cravados com setas de besta. O pirata atacou. Andrea afundou duas setas em sua garganta. Ele gorgolejou, seu impulso levando-o para frente. Raphael o deixou chegar a três metros dele e o derrubou em uma fúria de ataques precisos.
Passou por eles uma pantera negra do tamanho de um pônei que bateu em um golfinho com uma enorme pata. O crânio do metamorfo se partiu, esmagado como um ovo sob um martelo.
À esquerda, uma criatura humanoide arrastava-se pelo convés, esbelto, pêlos avermelhados, com a cabeça redonda e as orelhas redondas e curtas. Garras marrons desproporcionalmente longas e afiadas projetavam-se de seus grandes dedos. Ele se abaixou um pouco e soltou outro corpo muito maior no convés. O corpo aterrissou em um jato de água e uma pilha desgrenhada de pêlo marrom se virou de lado e vomitou água salgada de um focinho meio-humano, meio-búfalo. Eduardo.
A fera avermelhada sentou ao lado dele, mostrando os dentes brancos e afiados. Seus olhos vermelhos brilhantes, da cor de um morango maduro, tinham pupilas horizontais, como as de uma cobra. Elas o faziam parecer demoníaco. Eu sabia de apenas um metamorfo com olhos assim—Barabas.
— Por que você não sabe nadar? —Sua dicção era quase perfeita.
Eduardo vomitou mais água no convés. — Nunca precisei.
— Estamos atravessando um oceano. Não lhe ocorreu aprender?
— Olha, eu tentei. Eu nado em uma piscina, me bato e depois afundo.
À frente, a frota de embarcações fugiu para trás da ilha. Corpos cobriam o convés. Eu contei. Quatorze. Nenhum deles é nosso. Nós estávamos sangrando, machucados, mas vivos. Os piratas estavam mortos.
Que desperdício de vida.
E eu adorei. Amei cada segundo: o sangue, a fúria, a satisfação inebriante de golpear e ver a lâmina ou impulso encontrar seu alvo ... Voron tinha conseguido. Fui criada e treinada para ser uma assassina, e nada, nem mesmo semanas felizes de paz na Fortaleza com o homem que eu amava, poderia mudar isso. Eu tinha chegado a um acordo com o que eu era há muito tempo atrás, mas às vezes, como agora, olhando por cima do convés coberto de cadáveres, sentia um remorso pela pessoa que eu poderia ter sido.
Curran, nu e coberto de sangue, envolveu seu braço agora humano em volta de mim. — Você está bem? —Ele perguntou baixinho.
Eu assenti. — E você?
Ele sorriu e me apertou para ele. Meus ossos gemeram.
— Parabéns. —Tentei sair do abraço. — Sobrevivi à luta, mas seu abraço vai me matar.
Ele sorriu e me soltou. Nós dois conseguimos.
— Nós temos um sobrevivente. —Gritou Raphael.
Cruzamos o convés até onde Raphael estava agachado. Um rapaz de uns vinte e poucos anos, cabelos escuros, deitado de costas, a perna direita retorcida sob um ângulo estranho, o rosto contorcido de dor. Raphael segurava a ponta da faca sobre o fígado do homem.
O olhar do homem se fixou em Saiman. Ele levantou a mão e disse alguma coisa, suas palavras saindo apressadamente.
Saiman perguntou alguma coisa. O homem respondeu.
Saiman se virou para Curran. — Ele tem algumas informações que seriam de interesse particular para você. Ele lhe dirá se o libertar, e blá, blá, blá ...
— Tudo bem. —Disse Curran.
Saiman acenou para o homem. O pirata disse algo, parou e olhou para mim. Saiman olhou para mim também.
— O que foi?
Saiman se virou para Curran. — Parece que isso é apenas para seus ouvidos. Acredito que é de seu interesse ter essa conversa em particular.
— Dê-nos algum espaço, —disse Curran.
As pessoas recuaram.
— Você quer que eu fique? —Eu perguntei.
Ele estendeu a mão e apertou a minha. — Não.
Recuei com os outros. Saiman se inclinou e sussurrou algo para Curran. Eles falaram baixinho. Saiman perguntou ao homem alguma coisa. O homem respondeu. Saiman retransmitiu de volta.
Curran se virou, seu rosto sombrio. Todo o humor fugiu de sua expressão. Ele encontrou meu olhar, mas não disse nada. Isso não era bom.
— Como você pode aceitar isso? —Andrea murmurou ao meu lado. — Eu estaria lá.
— Eu não contei a ele sobre o resgate de Saiman, —murmurei de volta. — Se ele precisa manter algo privado, estou bem com isso. Quando estiver pronto, ele vai me dizer.
— Tranquem este homem. —Saiman ordenou.
Dois marinheiros vieram, pegaram o pirata e o carregaram.
— Vamos limpar este lugar, —disse Curran.
Pessoas se espalharam. Ele veio em minha direção.
— Más notícias? —Perguntei.
— Nada que não possamos lidar.
Eu balancei a cabeça para ele e fomos ajudar a esfregar o sangue do convés.
Capítulo 6
Chegamos no porto de Gagra ao entardecer. Primeiro vimos as montanhas, picos baixos triangulares embainhados de verde-esmeralda vibrante, como se cobertos de denso musgo. O pôr-do-sol atrás de nós se deslocava para a direita enquanto o navio virava para um porto coberto. As águas profundas e quase púrpuras do Mar Negro se iluminavam em azul.
Todos os doze de nós esperávamos no convés. Os metamorfos pareciam desconfortáveis. Até mesmo George, que geralmente passava por tudo com um sorriso no rosto, parecia angustiada. Ela estava ao lado de seu pai, abraçando-o, enquanto o vento agitava os cachos escuros de seu cabelo.
— Você está bem, biscoito? —Mahon disse.
— Eu sinto um mau pressentimento sobre esse lugar, —ela murmurou. — Isso é tudo.
— Mando içar a bandeira? —Perguntou Saiman.
— Sim. —Disse Curran.
A bandeira listrada cinza e preta do bando com uma pata de leão negra subia pelo mastro.
A praia ficava cada vez mais perto. As montanhas entravam e saíam do mar em suaves curvas, encharcando suas bases na água. A praia era uma estreita faixa de terra pedregosa. Píeres de pedra estendiam-se nas ondas, como se acenassem para nós, e atrás deles, construções de pedra branca estavam empoleiradas no lado das montanhas, suas colunas voltadas para o mar. Elas pareciam gregas para mim, mas a maior parte do que eu sabia sobre a Grécia vinha de livros.
A água ficou turquesa. O Rush diminuiu a velocidade, então parou.
— O que estamos esperando? —Perguntei.
— Um sinal do porto, —disse Saiman. — Eu sugiro que você recolha seus pertences.
Nós já tínhamos empacotado. Tudo o que pretendia levar comigo estava em uma mochila, que Barabas prontamente confiscou. Aparentemente como uma alfa, eu não tinha permissão para carregar minha própria bagagem.
Vinte minutos depois, um clarão azul foi disparado do píer.
— Estamos livres para atracar, —disse Saiman. — Quando vocês terminarem de desembarcar, eu partirei. Tenho negócios em Tuapse, Odessa e Istambul. Voltarei dentro de uma semana ou mais.
Isso me agradou muito. Saiman gostava de se divertir, e nós ficaríamos ocupados tentando contê-lo.
Quinze minutos depois, a tripulação estava amarrando o Rush ao píer. Eu estava no convés lotado, Curran ao meu lado. A ansiedade de George me infectou. Eu queria sair do navio. Queria ver Desandra e começar a trabalhar.
Infelizmente, se eu começasse a andar de um lado para o outro como um tigre enjaulado, nove pessoas diriam que eu não era apropriada para estar aqui.
— Um comitê de boas-vindas, —anunciou Raphael.
Eu virei. Quatorze pessoas caminhavam em nossa direção ao longo do píer. Seis duplas de homens em casacos escuros, amarrados na cintura. Boa parte deles eram morenos, bronzeados e esbeltos. Alguns tinham barbas curtas. Cada um carregava um rifle por cima do ombro e uma adaga no cinto. Pareciam um bando de corvos negros voando em duas linhas.
Duas mulheres caminhavam na frente deles. A primeira usava uma blusa azul escura e jeans. Ela tinha mais ou menos a minha idade, cabelos escuros, sua pele era um bronze claro, o cabelo preso em uma trança. Seu rosto era interessante, com feições grandes e ousadas: olhos grandes, boca larga, nariz bem desenhado. A garota ao lado dela parecia estar à beira de seus vinte anos. Mais baixa, mais pálida, com uma cintura esbelta, usava um vestido branco. O vento puxou a cascata de seu cabelo castanho chocolate e suas roupas, e o tecido transparente se alargou, fazendo-a parecer etérea e leve. Ela flutuava sobre o concreto áspero.
A garota acenou. — Curran!
Ela o conhecia.
Curran xingou baixinho. — Eu vou ser amaldiçoado. Eles a arrastaram para isso.
Aparentemente ele a conhecia também.
— Curran! —Ela acenou novamente, ficando na ponta dos pés, e correu em nossa direção.
— Lorelei? —Gritou Curran.
A garota sorriu. Uau. A noite ficou um pouco mais brilhante.
Os marinheiros abaixaram a prancha e Curran começou a descer assim que bateu no píer.
Aparentemente, ele não podia esperar para vê-la.
— Quem é Lorelei? —Eu perguntei baixinho.
— Lorelei Wilson —disse Mahon. — Filha do Alfa dos Fúrias do Gelo.
O pai de Lorelei liderava o grupo do Alasca, o maior grupo de metamorfos nos Estados Unidos. Aquela que havia ido com a mãe quando Wilson e sua esposa europeia se divorciaram. Bem, era só o que me faltava.
— Como você tenta o Senhor das Feras? —Barabas murmurou. — Simples. Ofereça a ele uma princesa metamorfa.
Tia B estendeu a mão e gentilmente o acertou na parte de trás de sua cabeça.
— Eu já a odeio. —Andrea me disse. — George a odeia também, certo, George?
— Eu a achei adorável. —George se encostou ao meu lado. — Devemos dar a ela leite e biscoitos, e se prometer ficar quietinha, ela pode se sentar na mesa das pessoas grandes.
— Mostre algum respeito, —disse Mahon. — Ela é a herdeira dos Fúrias do Gelo.
George arqueou as sobrancelhas para ele. — Realmente, papai?
No píer, Curran chegou à caravana de recepção. A mulher de azul curvou-se. Lorelei deu um passo à frente, levantou os braços para um abraço, depois parou abruptamente, como se tivesse sido detida, e também se curvou. Curran disse alguma coisa. Ela sorriu novamente.
Toquei o cabo da Matadora apenas para ter certeza de que estava lá.
— Diplomacia, Kate, —Barabas sugeriu em voz baixa. — Diplomacia.
Eu me inclinei para perto dele. — Descubra quem a convidou, quais são suas ligações e se ela tem cordas, quem está puxando.
Ele assentiu.
Eu desci a prancha. O concreto áspero estava seco sob meus pés. Consegui caminhar em uma marcha lenta e deliberada e o píer pareceu durar para sempre. Precisava ser tão longo? Eles estavam indo estacionar uma transportadora aqui?
Eu finalmente cheguei a uma distância que já dava para ouvi-los.
— Você cresceu, —dizia Curran.
— Faz dez anos. —A voz de Lorelei tinha um leve traço de sotaque. Não era nem francês, nem italiano.
— Acabei de fazer vinte e um anos.
Eu me aproximei deles. Lorelei tinha olhos marcantes, grandes e azul-claros, emoldurados por cílios densos. Maçãs do rosto altas, suavizadas pela pele lisa e apenas um toque de bochechas arredondadas, resquícios da adolescência, um nariz estreito e pequeno, uma boca rosada e cheia. Seu cabelo, um marrom rico, caia sobre os ombros em ondas relaxadas. Ela irradiava juventude, beleza e saúde. Parecia ... pura. Eu era apenas cinco anos mais velha que ela, mas ao lado dessa menina, de repente me senti velha.
Curran estava olhando para ela. Não da mesma maneira que ele olhava para mim, mas ele estava olhando. Uma sensação estranha se acendeu em mim, quente e raivosa, formigando minha garganta por dentro com agulhas afiadas e quentes, e percebi que era ciúme. Acho que há uma primeira vez para tudo.
— Você tem visto o meu pai? —Lorelei perguntou. — Como ele está?
— Eu o vi no ano passado, —disse Curran. — Ele é o mesmo de sempre: duro e teimoso.
Eu cheguei mais perto e fiquei ao lado dele.
Lorelei ergueu as sobrancelhas. Seus olhos se arregalaram e um brilho de verde pálido rolou sobre suas íris. — Você deve ser a Consorte humana.
Sim, sou eu, a humana inválida. — Meu nome é Kate.
— Kate. —Ela repetiu, como se estivesse provando a palavra. — É uma honra conhecê-la.
Curran estava sorrindo para ela, aquele sorriso bonito e sexy que costumava tornar meu dia melhor. Empurrar Lorelei para o oceano não seria diplomático, mesmo que eu realmente quisesse. — O mesmo.
— Eu já ouvi muito sobre você. Mas onde estão minhas boas maneiras? Vocês devem estar com fome e cansados.
A mulher de azul deu um passo à frente, movendo-se com a graça de um metamorfo. Seus olhos brilharam verdes, captando a luz do navio. Então esses eram os metamorfos chacais locais que Barabas havia mencionado. Seus olhos me diziam que ela tinha experiência no que fazia, e o fazia muito bem.
A mulher de azul curvou-se. — Meu nome é Hibla. Estou aqui para ser o guia de vocês. —Ela indicou os homens ao lado dela. — Somos Djigits de Gagra.
Eu tinha lido sobre a Abecásia60. — Djigit, significava um cavaleiro habilidoso ou um guerreiro feroz. —Os djigits olharam para mim, a luz do sol da tarde acendendo seus olhos. Sim, todo mundo era um metamorfo, exceto eu.
— Vamos acompanhá-los a seus aposentos quando quiserem, —disse Hibla.
Curran acenou para o navio. Nosso pequeno bando começou a descer até o píer. Alguns momentos e eles estavam atrás de nós.
Lorelei fez uma reverência para Mahon. — Saudações ao Kodiak de Atlanta.
Mahon sorriu com barba e tudo. — O que aconteceu? A última vez que te vi, você era deste tamanho. —Ele estendeu o braço na altura da cintura.
Lorelei sorriu. — Eu não era tão baixinha.
Mahon riu.
Tia B era a próxima, sorrindo tão brilhante que eu achei que precisaria de óculos escuros. Sua voz era doce o suficiente para passar em uma torrada.
— Então você é a filha de Mike Wilson. Ele deve estar muito orgulhoso. Que garota linda você é.
— Obrigada. —Lorelei quase brilhava.
Oh, como você é ingênua. Quando uma bouda sorri para você, isso não é um bom sinal. Especialmente essa bouda em particular.
— Em nome de Gagra, estou aqui para estender a hospitalidade da minha bela cidade para vocês, —disse Hibla. — Gagra recebe vocês com todo o seu calor, seus lagos e cachoeiras, suas praias e pomares. Mas estejam avisados, se vocês vieram aqui com intenções violentas, deixaremos seus cadáveres para os corvos. Não temos nenhum problema em matar cada um de vocês.
— Discurso incrível. —Keira disse a ela. A irmã de Jim estava sorrindo e não parecia nada amigável.
— Obrigada. Trabalhei duro nele. Por favor, sigam-me.
Nós caminhamos pelo píer até a estrada pavimentada com pedras. Hibla manteve um ritmo acelerado, recitando em uma voz rouca e levemente acentuada. — Bem-vindos à Abecásia61. A cidade de Gagra é o lugar mais quente do Mar Negro. Temos um maravilhoso microclima com invernos quentes e verões agradáveis. Vocês encontrarão as atrações mais primorosas aqui.
Era como se ela estivesse lendo um guia de viagem invisível.
Curran olhava para Lorelei enquanto caminhávamos.
— Cultivamos uma variedade de frutas: pêssegos, caquis, damascos, romãs, tangerinas, limões e uvas. Nossa região é famosa por seus vinhos.
Isso é bom. Talvez eu pudesse encontrar uma garrafa de vinho dura o suficiente para bater Curran na cabeça e dá algum sentido nele.
— Qual bando dos três que nos contratou você serve? —Barabas perguntou.
— Os Djigits de Gagra não se associaram a nenhum de nossos convidados. Nossa fidelidade é ao bando local e ao Senhor do Castelo.
Era como se eu tivesse entrado em um mundo diferente. Do outro lado do oceano, havia arranha-céus em ruínas. Aqui havia castelos e senhores. Bem, tecnicamente a Fortaleza era uma espécie de castelo e as pessoas chamavam Curran de Senhor, mas em casa os metamorfos diziam isso com eficiência simples, do jeito que alguém diria, você. Aqui era dito com uma reverência solene.
— O Senhor do Castelo é um metamorfo? —Perguntou Curran.
— Não, ele é humano, —disse Lorelei.
— Senhor Megobari é um amigo, —disse Hibla. — Nossa economia sempre foi impulsionada pelo turismo. Após a Mudança, a região entrou em colapso, foi destruída por desastres naturais e guerra. Nossa cidade e nossas vidas estavam em ruínas. A família Megobari nos ajudou. Eles construíram hospitais, restauraram estradas e trouxeram negócios para cá. Eles não pedem nada em troca, exceto nossa proteção, que é oferecida gratuitamente e de bom grado.
Certo. A família Megobari era claramente formada de santos e a chacal local morreria para mantê-la respirando. Considerando como os homens olhavam para nós, tínhamos que nos assegurar de não ofender o anfitrião, porque esses metamorfos djigits levavam seus deveres a sério.
Todos nós seguimos Hibla pela cidade. As luminárias a gás em Gagra brilhavam em lavanda pálida, transformando a sólida pedra dos prédios em uma fraca miragem. Magia fluía pelas estradas estreitas e curvas. Pequenas ruas limpas, algumas asfaltadas, outras ainda com pavimento em ruínas, corriam ao longo da encosta da montanha, todas inclinadas para cima, cercadas por casas de todas as formas e tamanhos. Arquitetura persa, grega e moderna colidiam, como rastros de três navios diferentes.
Passamos por uma imponente mansão que poderia ter sido construída por um príncipe mouro. Ela se elevava, ladeada por palmeiras, três andares de estreitas janelas arqueadas, parapeitos texturizados e esculturas de paredes de pedra que pareciam leves e delicadas como rendas. Em algum momento no passado, essa mansão devia brilhar de tão branca, mas agora sua tinta descascava e as paredes verdes apareciam. Um edifício grego de colunas dóricas62 da cor da areia se seguia, e logo depois, as ruínas de um moderno prédio de apartamentos estavam espalhadas pela encosta da montanha. O resto do mundo parecia estar a mil milhas de distância. Se nos cansássemos do bando ou vivêssemos na expectativa de sermos encontrados por Roland, poderíamos encontrar algo assim, um canto isolado e silencioso do mundo. Ninguém nos encontraria aqui.
Bem, ninguém além de Lorelei.
— Quando você viu meu pai, ele mencionou-me?
— Não. —Curran disse a ela. — Não foi uma reunião informal. Mas tenho certeza que ele pensa em você com frequência.
Outro edifício outrora belo e agora destruído. Eu contei os andares. Sete. Muito alto. A magia odiava altos edifícios modernos e os atacava com extremo preconceito. Este edifício foi definitivamente abandonado — os buracos negros de suas janelas vazias mostravam um interior carbonizado. Quando as ondas mágicas derrubavam uma estrutura, elas a roíam primeiro. Este não mostrava sinais de danos pós-Mudança.
— O que aconteceu aqui? —Perguntei.
— Guerra. —Disse Hibla.
— Com quem vocês guerrearam? —George perguntou.
— Nós mesmos. A Abecásia está na fronteira entre a Rússia e a Geórgia. Cinquenta anos atrás eles entraram em guerra. Vizinhos lutaram contra seus vizinhos. Famílias se dividiram. Rússia venceu. Eles limparam a cidade. —Ela cuspiu as palavras como se estivessem cravejadas de vidro quebrado. — Todo mundo que era georgiano foi morto ou eLivros. —Ela acenou com a cabeça em outro prédio com janelas fechadas. — A cidade ficou marcada para sempre. A magia destruiu os outros edifícios, mas as ruínas da guerra permaneceram.
— Que lástima, —disse Tia B. — Sua cidade era linda.
— Ela será linda de novo, —disse Hibla.
Continuamos subindo, cada vez mais alto. A estrada da cidade se estreitou. Árvores densas de ambos os lados bloqueavam a vista, os galhos trançados com trepadeiras. Pequenos vaga-lumes flutuavam na brisa. Abruptamente as árvores terminaram e nós saímos em uma clareira. À esquerda, bem abaixo, o mar sem fim lambia a estreita faixa da margem. Em frente, as montanhas se curvavam suavemente para as ondas.
— O castelo. —Hibla apontou para a extrema direita, atrás de nós. Eu virei. Um enorme castelo coroava o topo da montanha, com suas paredes de pedra erguendo-se como a extensão natural da rocha viva. Torres largas retangulares subiam sob telhados azuis pálidos. As bandeiras compridas e estreitas que voavam nos finos pináculos63 do enorme edifício da torre principal pegavam os últimos raios do sol poente e brilhavam como se estivessem em chamas.
— Quantos anos tem o castelo? —Mahon perguntou.
— Celebramos seu vigésimo aniversário no ano passado.
Uau. Pós-Mudança A quantidade de mão-de-obra que essa estrutura levou deve ter sido impressionante. Como diabos eles conseguiram levar aquelas pedras pela montanha?
— Por favor. —Hibla nos convidou com um aceno de sua mão. — Acima desta estrada.
Subimos a montanha a passos rápidos. Mais rápido e eu teria que começar a correr. O caminho era íngreme e a luz estava morrendo rapidamente. Dez minutos depois, comecei a suar. Os metamorfos em volta de mim pareciam frescos como margaridas.
— Deve ser muito cansativo para a Consorte, —disse Lorelei ao meu lado.
Isso foi um pouco inesperado. Ela estava realmente preocupada?
— A estrada é íngreme e ela não tem o benefício da visão noturna.
Lorelei estava olhando para Curran. Então não, ela não estava realmente preocupada. Estava falando de mim como se eu não estivesse lá. Do mesmo jeito que alguém diria, seu cachorrinho está com sede? Ele precisa de uma tigela de água?
— Talvez uma montaria pudesse ser trazida ... —Lorelei sugeriu.
De um canto do meu olho, vi Barabas e George congelados. Sim, eu sei que ela estava me insultando. Controlem-se. — Obrigada por sua preocupação. Eu posso aguentar.
— Por favor, não é problema algum. Você poderia se machucar. Sei que até mesmo algo bobo como um tornozelo torcido pode ser um grande problema para um ser humano ...
Não soque a princesa do bando, não dê um soco na princesa do bando ...
— Nós não queremos que você se esforce para nos acompanhar.
Certo, ela foi longe demais. Dei a ela um grande sorriso.
O rosto de Curran estalou em uma expressão neutra. — Acabamos de chegar aqui, bebê. Ainda é cedo para você começar a matar pessoas.
Os olhos de Lorelei se arregalaram. — Eu não quis dizer qualquer ofensa.
Sim, você quis.
— Eu sinto muito. Estava apenas preocupada. Por favor me perdoe.
E agora qualquer coisa que eu dissesse com alguma sugestão de hostilidade me faria parecer uma idiota. Ela puxou meu tapete. Bem. Sempre haveria uma próxima vez. — Não se preocupe com isso.
Chegamos em uma curva. O castelo apareceu diante de nós, chocantemente enorme. Você poderia colocar pelo menos duas Fortalezas dentro de suas paredes. Paredes grossas também. Tinha que ter mais de um metro de profundidade.
Hibla levantou a cabeça e uivou, um uivo alto e fantasmagórico de chacal. O som passou por nós, fluindo para o céu. Outros uivos responderam. Metal tiniu e os portões maciços se abriram.
Hibla fez uma reverência. — Meu Senhor e Senhora. Bem-vindos ao Castelo Megobari.
Eu respirei fundo e caminhei ao lado de Curran para o castelo.
Eu tinha razão. As paredes tinham um metro e oitenta de espessura. Contei seis balistas e quatro armas antipessoal de alto calibre nas paredes, e isso era só o que eu podia ver. Este castelo foi construído para suportar um ataque de assaltantes sobrenaturais. A família Megobari tinha algum dinheiro para gastar, e eles usaram para se armar até os dentes.
Eu dei uma cotovelada em Curran. — O castelo deles é maior.
Ele piscou para mim. — O meu é mais alto. Não é o tamanho do castelo. É o que você faz com isso.
Nenhum guarda a vista ocupava o portão, mas quando passamos por baixo da ponte levadiça, me senti vigiada. Eu estava cem por cento certa de que se eu fizesse um movimento repentino, alguém enviaria uma flecha no meu caminho. A questão era, eles teriam a gentileza de dar o primeiro tiro só como uma advertência? Eu não queria testar especificamente essa teoria.
Atravessamos o pátio interno e seguimos Hibla até o prédio principal. Depois da cidade, quase esperava esculturas e molduras, mas o interior do castelo era desprovido de ornamentação como o exterior. Pedra castanha, corredores retos como o cabo de uma flecha, janelas arqueadas. Não havia portas, mas alguns nichos, posicionados de tal maneira que, se o castelo fosse violado, dois combatentes com poder de fogo à distância poderiam conter uma enxurrada de atacantes. Tudo era funcional, sólido e meticulosamente limpo.
Passamos por um par de metamorfos no corredor, ambos loiros. Eles nos olhavam com óbvia hostilidade. Eu olhei de volta. Quer vir, venha, é grátis. Tocar vai custar-lhe um braço ou uma perna. Sua escolha.
— Seus quartos estão no terceiro andar, —disse Hibla. — O jantar será servido às dez.
— Tarde para um humano, —eu disse. Na Fortaleza, costumávamos jantar em torno das nove. Metamorfos eram madrugadores, já que eles costumavam ficar acordados até a metade da madrugada.
— A família Megobari respeita os costumes de seus convidados, —disse Hibla.
— Eu vou ver todos vocês no jantar. —Lorelei disse, olhando diretamente para Curran.
— Estou ansioso por isso, —disse Curran.
Senti uma vontade de esfaquear algo e esmagá-lo. Lorelei recuou pelo corredor.
— Onde está Desandra? —Perguntou Curran.
— Ela está em seus aposentos, no terceiro andar também. —disse Hibla.
Curran se virou. — Hibla, precisamos ver Desandra. Agora.
Andrea passou sua bolsa para Raphael e veio ficar ao meu lado. Derek veio e ficou ao lado de Curran.
— Muito bem. —Hibla disse algo em um tom cadenciado.
A dúzia de pessoas foi dividida: oito foram com o resto do grupo, lideradas por um homem mais velho, e quatro vieram conosco. Subimos as mesmas escadas e, em seguida, Hibla virou à direita, enquanto o resto dos metamorfos virava à esquerda. Nós a seguimos até uma porta de metal, protegida por um homem e uma mulher nos mesmos casacos escuros. Eles se afastaram quando Hibla abriu a porta.
O fedor de frutas cítricas podres me atacou. Isso não era bom.
Entramos em um quarto enorme. Era do tamanho do meu primeiro apartamento se derrubasse todas as paredes. O vasto teto subia a nove metros de altura, e a escuridão obscurecia as enormes vigas de madeira que corriam bem acima. Havia roupas espalhadas por todo o chão, algumas desfiadas, algumas manchadas, papéis amassados jogados aqui e ali, pratos manchados de comida e cacos de vidro quebrados. Uma grande cama de madeira, com travesseiros e mantas empilhadas, estava encostada na parede. Uma mulher grávida sentava-se nela, seus longos cabelos emaranhados e pendurados sobre o vestido roxo. Ela olhou para cima. Suas íris brilhavam laranja com a fluorescência do metamorfo.
Eu olhei para Andrea. Ela olhou de volta para mim. Vi exatamente a mesma conclusão que tive em seu rosto: esse trabalho ia ser uma merda.
— Olá, Desandra. —Disse Curran.
— Vá se foder.
— Isso foi legal, —disse Curran. — Tem cheiro de comida podre aqui.
Desandra encolheu os ombros. — Por que você está aqui?
Nenhum vestígio de sotaque. Ela falava como se tivesse nascido nos Estados Unidos.
— Estamos aqui para cuidar de você.
— Isso é besteira e você sabe disso. —Ela mostrou os dentes. — Você vai fazer um acordo com qualquer bando que te pagar mais e vender esses pequenos parasitas que estão em meu útero. Então vá embora, faça seus negócios. Nada vai mudar para mim. Nada muda para mim.
— Terminou? —Curran perguntou.
— Você poderia ter me levado para longe de tudo isso, —ela rosnou.
— Você não teria durado uma semana em Atlanta. —Ele disse.
Ela apontou o dedo na minha direção. — E ela é melhor? Depois de todo o seu orgulho, e oh, ‘eu sou o Senhor das Feras e ninguém é bom o suficiente para mim’, você se acasalou com uma humana? Uma humana? Você é como eles. —Ela acenou com o braço para Hibla e os djigits. — Você não dará a mínima para o que acontecer com sua esposa humana se ela for desafiada. Por que você não vai embora?
Músculos flexionaram na mandíbula de Curran. — Pense o que você quiser, mas vou ficar aqui e vou te proteger.
— Você realmente acha que eles vão te dar panaceia por isso? Vamos lá, nem você é tão idiota.
O ouro brilhou nas íris de Curran. Eu tinha que pisar nesse furacão antes que ele saísse do controle. Coloquei minha mão no ombro de Curran. — Acho que seria melhor você sair um pouco, nos dê um tempo com ela.
Ele olhou para mim.
— E se você não se importar, eu agradeceria se enviasse Doolittle para cá.
Curran sacudiu a cabeça e olhou para Derek. — Feche o quarto. Ninguém entra a menos que Kate concorde.
— Sim, meu Senhor. —Disse Derek.
Curran saiu do quarto.
— É isso mesmo! —Desandra gritou. — Vá embora!
Derek parou na porta.
Eu examinei o quarto. Já vi esse tipo de confusão antes no quarto de Julie, quando ela passou pela fase ‘Eu não quero ir para a escola’. — Hibla, porque este quarto está sujo?
— A senhora Desandra não nos permite limpá-lo, —disse Hibla. — O pai dela mandou limpar uma vez e nós fizemos. Mas a senhora Desandra conseguiu deixá-lo novamente neste estado dentro de uma semana.
Assim como eu pensei. Eu me virei para Desandra. — Posso me aproximar?
Ela olhou para mim.
Eu esperei.
— Claro. —Ela encolheu os ombros.
Atravessei a sala, pulando as roupas—não havia outra maneira de se locomover. Algo mastigou sob meus pés. Sentei ao lado dela na cama.
— Eu entendo o que você está fazendo. Você sente que não está no controle da sua vida, mas este quarto é o seu espaço e você pode fazer o que quiser aqui. Aqui você está no controle. Infelizmente, ter comida no chão não é saudável. Apodrece. O mofo cresce nele e entra em seus pulmões. E a bagunça torna muito mais difícil de proteger você.
Ela zombou de mim. — Eu sou uma metamorfa.
— Os metamorfos são resistentes a doenças, mas não são imunes. Comida podre também dá aos insetos um lugar para se reproduzir, e cheira mal. O vidro quebrado não é seguro para ninguém andar. As pessoas que lhe trazem comida nem sempre são metamorfos. Eles podem se machucar e estarão apenas fazendo seu trabalho.
— Eu não me importo.
— Ter um quarto sujo não ajuda você a recuperar o controle da sua vida. Essa luta está lá fora. —Eu apontei para a porta aberta. — A bagunça só faz você parecer demente, o que sinaliza para as pessoas que não há problema em tratá-la como se você não fosse uma pessoa.
Desandra enfiou as mãos no cabelo emaranhado. — O que você quer de mim?
— Posso ter sua permissão para limpar este quarto?
— Por que você se importa?
— Porque me orgulho do meu trabalho. Agora, meu trabalho é cuidar de você e mantê-la segura. Este quarto não é seguro para você e seus futuros filhos. A bagunça também dificulta proteger você.
Desandra me encarou. — E se eu arrancar sua garganta?
Cavei na minha memória os argumentos que eu usava com Julie. — Por que você faria isso? Eu não fiz nada para você.
— E se eu disser não?
Andrea encolheu os ombros. — Se você disser não, então não vamos limpar o quarto. Mas eu tenho que lhe dizer que o quarto cheira mal, e esse cheiro impregna nas suas roupas e nos seus cabelos.
Pelo menos nos Estados Unidos, dizer a um metamorfo que eles cheiravam mal era um insulto dos grandes. Se isso não a motivasse, nada faria.
Desandra rosnou na minha cara.
— Estou do seu lado, —eu disse a ela. — Se você quiser demonstrar que está no controle de si mesma, convém levar a limpeza desse quarto em consideração.
— Eu não quero que você limpe nada.
— Muito bem. —Eu me levantei.
Eu dei dez passos para a porta antes que ela dissesse: — Tudo bem. Limpe.
— Obrigada. —Me virei para Hibla. — Por favor, traga latas de lixo, material de limpeza e um cesto.
Desandra rosnou. — Você é sempre tão educada?
— Sim.
— Então você sempre diz ‘por favor’ para tudo?
— Ela é a alfa do Bando de Atlanta, —disse Derek sem se virar. — Matou vinte e dois metamorfos em onze dias por essa posição, e tem o mesmo poder que o Senhor da Feras. Ela não precisa pedir ‘por favor’ a ninguém para fazer qualquer coisa.
Isso não foi exatamente útil. — Estou aqui apenas para um único propósito: mantê-la em segurança. Agirei sempre para o seu bem. Não me importo quem será o primeiro a nascer de seus filhos e não aceitarei nenhum suborno de ninguém. Farei o meu melhor para acomodá-la, mas quando sua segurança estiver em jogo, farei o que for preciso para mantê-la segura. Se isso significa que eu terei que amarrá-la e colocá-la em uma banheira, vou fazer isso e não me preocuparei com seus sentimentos.
Desandra suspirou.
Hibla reapareceu com sacolas e um carrinho cheio de material de limpeza, incluindo luvas de jardinagem. Eu os coloquei e comecei a pegar o lixo. Andrea se juntou a mim. Desandra ficou nos observando por cerca de cinco minutos, tentando ignorar o fato de que estávamos lá, depois saiu da cama e começou a andar de um lado para o outro e a pegar as roupas.
Foi assim que Doolittle nos encontrou, em nossas mãos e joelhos, pegando lixo.
— O que está acontecendo?
Eu me endireitei. — Este é o Doutor Doolittle. Ele é o médico-mago do Bando.
— Doolittle? —Desandra olhou para ele. — Sério?
— É o nome que escolhi ser chamado. —Doolittle olhou para ela, em seguida, olhou ao redor da sala. — Oh meu. Agora, jovem senhora, por que está tão suja?
Desandra se sentou no chão e olhou para ele com uma expressão desemparada no rosto. — Porque eu gosto.
— Eu sei que isso é um castelo, —disse Doolittle, naquela voz paciente e reconfortante que tornava impossível dizer não. — No entanto, eu usei o banheiro e parece que o encanamento moderno foi instalado com sucesso.
— Você não pode me fazer tomar um banho, —declarou Desandra.
— Minha senhora, você não tem dois anos. Na verdade, parece ter atingido a maturidade e tenho certeza de que ninguém pode obrigá-la a fazer algo que não deseja. Venha até a cama, por favor.
Eu segurei minha respiração. Desandra suspirou de novo, levantou-se do chão e sentou-se na cama. Eu exalei em silêncio. Doolittle colocou os dedos no pulso dela, contando os seus batimentos.
— Chegando alguém, —disse Derek.
— Quem é?
— Jarek Kral.
Eu me juntei a Derek na porta. Andrea se moveu para o meio da sala, entre nós e Desandra, e checou sua besta.
O homem que eu tinha visto na foto durante a palestra de Barabas andava pelo corredor em nossa direção. Ele parecia maior em pessoa, mais alto, mais largo, com o tipo de força bruta que normalmente significava uma luta desagradável.
Eu me virei para Desandra. — Você quer ver seu pai?
— Isso importa? —Ela perguntou, seu rosto claramente derrotado.
— Importa para mim.
— Então não. Não quero vê-lo.
Jarek Kral alcançou a porta. De perto a fotografia realmente não lhe fazia justiça: o mesmo cabelo castanho ondulado, o mesmo rosto grande e grosseiramente cortado. Suas feições poderiam ter sido mais refinadas, se não tivessem matizado a crueldade. Eu conhecia o tipo. Ele era o tipo de homem que poderia explodir sobre a menor coisa e a explosão seria violenta.
O escárnio era maior em pessoa também.
Ele chegou à porta. — Mova-se, —disse ele em uma voz acentuada.
— Sua filha não quer receber visitas agora, —eu disse.
Ele olhou para mim com os olhos escuros sob as pálpebras pesadas, como se acabasse de perceber que eu estava bloqueando seu caminho.
— Quem é você?
— Você pode me chamar de Kate. Eu sou a Consorte do Senhor das Feras.
— Afaste-se. —Seus olhos brilharam verdes.
— Não.
Atrás de mim alguém ofegou.
A voz de Jarek cresceu. — Quem disse que você pode fazer isso?
E aqui vamos nós, direto para o lago do drama sem tirar a roupa primeiro. — Você disse. —Puxei o contrato do meu bolso. — Este documento diz que devo atender aos melhores interesses da sua filha. Ela determinou que é de seu interesse não falar com você agora. Esta é sua assinatura. Isso me dá toda a autoridade que preciso.
Ele pegou o papel da minha mão e o rasgou.
— Eu tenho outra cópia. —Eu disse.
— Eu vou arrancar sua garganta! —Ele rosnou.
Tal pai tal Filha. — Se você tentar, não viverá para ver seus netos e meu trabalho estará terminado. Vou para casa mais cedo. Então, por favor, tente. Eu já sinto falta da minha casa.
Suas sobrancelhas se juntaram. Seu lábio superior tremeu.
— Um ataque a Consorte será tratado como um ato de guerra, —disse Derek.
Um grunhido gutural saiu de Jarek. Claramente, ele não se preocupou em procurar ‘restrição pessoal’ no dicionário.
Cheguei atrás de mim e coloquei minha mão no punho da Matadora. — Este é seu último aviso. Não tente entrar.
— O que está acontecendo? —Um homem subiu as escadas. Ele era loiro, alto e musculoso, com feições que deixariam um anjo com inveja—o primeiro marido de Desandra, Radomil, do bando de Volkodavi. Uma mulher o seguia, um pouco mais velha que eu, esbelta, com uma riqueza de cabelos dourados trançados para trás de seu rosto.
— Fique fora disso! —Jarek rosnou. — Você fez o suficiente.
Radomil retrucou algo em um idioma que eu não entendi. Uma torrente de palavras se derramou de Jarek.
— Você é um porco! —Radomil rosnou de volta em inglês. — Um porco imundo. Deixe Desandra em paz!
— Saia do meu caminho! —Jarek rugiu.
— Se Kral não cumprir o acordo, por que deveríamos? —A loira disse.
Eu os deixei gritarem um para o outro. Isso não me afetaria a menos que um deles tentasse entrar na sala.
Um homem alto de cabelos escuros se aproximou de nós. Onde o rosto de Radomil tinha um brilho saudável e bronzeado, este homem irradiava inteligência e parecia cansado dessa situação. Ele viu Jarek e Radomil. Suas sobrancelhas escuras se juntaram. Seus lábios se estreitaram em uma linha dura. Uma luz amarela rolou sobre suas íris. Uau.
O homem acelerou. Tinha que ser um dos irmãos Belve Ravennati, mas qual eu não sabia dizer. Sem abrandar, o italiano levantou o punho e virou-se para Jarek. O homem grande afastou-se e o italiano deu um soco em Radomil. Radomil rosnou como um animal e atacou o italiano.
Mais pessoas inundaram o corredor da esquerda, uma mulher de cabelos escuros mais velha na liderança. Jarek cuspiu alguma coisa. Radomil e o italiano lutaram, rosnando.
— Se eles mudarem de forma, nós trancamos a porta, —eu murmurei.
Derek assentiu.
Radomil empurrou seu oponente para frente, tropeçando no italiano. O homem de cabelos escuros caiu no chão com um rosnado lupino. A qualquer momento eles iriam ficar peludos, e então as coisas seriam infinitamente piores.
Uma sinistra gargalhada de hiena rolou pelo corredor, uma risada alta e insana que fazia você estremecer.
De repente todos pararam. Tia B estava no corredor.
— Então, foi para isso que nossos irmãos e irmãs europeus foram reduzidos, —disse ela, sua voz percorrendo o castelo. — Brigas nos corredores como crianças mimadas do jardim de infância. Não é de admirar que vocês precisem de nossa ajuda.
É isso aí, Tia B!
A alfa do Clã Bouda olhou para a mulher de cabelos escuros. — Olá, Isabella. Já faz muito tempo.
— Olá, Beatrice, —a mulher de cabelos escuros jorrou as palavras entre os dentes.
— Esse é seu filho no chão?
Isabella deu um curto comando. O homem de cabelos escuros ficou de pé e caminhou até ela. Isabella deu um tapa nele. O som soou pelo corredor. Os italianos se viraram e saíram sem outra palavra.
Eu olhei para Jarek Kral. Ele apontou o dedo para mim, abriu a boca, fechou-a, virou-se e foi embora.
A mulher loira disse algo para Radomil. Ele se afastou dela e foi embora.
— Você deve perdoar meu irmão, —disse a loira. — Ele é um homem muito gentil. Simplesmente não entende de política. —Suas sobrancelhas se uniram. Ela apontou por cima do meu ombro. — Quem é aquele homem?
— Ele é um médico. —Respondeu Andrea.
— Um médico? Algo está errado?
— Não. —Eu disse. — Ele está apenas realizando exames físicos de rotina.
Ela realmente parecia preocupada. — Ele vai tirar sangue? Desandra, posso segurar sua mão se você precisar de mim.
— Está tudo bem, —Desandra gritou.
Puxei minha voz oficial da Ordem para fora do baú mental onde a guardei por meses, desde que deixei o cargo com os Cavaleiros da Ajuda Misericórdia. — Eu sinto muito, mas tenho que te pedir para sair.
— Bem, é que. Só ... não a torturem. Ela já passou por tanto. —A mulher se virou e desceu as escadas correndo atrás de Radomil. Eu olhei por cima do meu ombro. Doolittle segurava uma seringa grande cheia de líquido rosado. Desandra acariciava seu estômago.
— O que é isso? —Eu perguntei.
— Amniocentese64 —disse Doolittle. — É um procedimento de rotina do líquido amniótico. Queremos ter certeza de que tudo está seguindo como deveria.
Tia B se aproximou de nós. — Bem, tudo correu bem.
— Você disse não ao meu pai. —Desandra disse para mim.
— Exatamente.
— Ele vai te matar por isso. —Disse Desandra.
— Ele pode descobrir que será muito mais difícil do que parece, querida, —disse Tia B. — O jantar está chegando. Kate, você pode querer se refrescar, trocar de roupa. Você cheira como o mar. Vão vocês duas. Derek e eu vamos cuidar de Desandra enquanto você está no banho.
Eu me virei para Derek. — Vou mandar Eduardo. Quando Desandra estiver pronta para ir jantar, vocês dois a seguirão. Ninguém entra no quarto se ela não quiser.
— Entendi. —disse Derek.
— Os quartos estão no final do corredor, —disse a Tia B. — Aqui, vou até o meio do caminho com você então voltarei para cá.
Nós caminhamos pelo corredor.
— Eu te disse, —disse Tia B calmamente.
— Me disse o que?
— Por favor, Kate. A linda menina nova no cais? Ela ainda usava branco.
— E?
— Absolutamente nada, querida. Apenas refletindo o quanto virginal e nupcial essa cor é.
Sim. Eu notei. Se eles estavam tentando influenciar Curran empurrando Lorelei debaixo do nariz, nem sequer foram sutis sobre isso.
— A sua é a primeira porta à direita. Andrea, você e Raphael estão em frente a eles. O resto de nós está no final do corredor, —disse a Tia B. — O som se propaga muito fácil aqui. Você pode ouvir praticamente tudo, então, se você gritar, viremos correndo.
Entendi. Nada do que disséssemos nos quartos seria privado, e nossos anfitriões provavelmente ouviriam tudo.
— Bom saber.
— Eu verifiquei e o jantar é um evento formal. Use um vestido, Kate.
Eu engoli um grunhido e Andrea e eu descemos pelo corredor.
— Trabalhamos em missões piores, —disse Andrea.
— Hum-hum. Todo esse lugar não parece certo para mim.
— Eu sinto o mesmo, —disse ela.
Chegamos à minha porta. Esperei até que Andrea abrisse a dela e entrei finalmente em nosso quarto e fechei a porta atrás de mim.
Um quarto considerável, até onde eu podia ver havia tapeçarias e tapetes nas paredes de pedra. Uma porta aberta oferecia acesso ao banheiro do lado esquerdo. Uma grande cama de dossel de madeira esperava no centro, com travesseiros de seda e cortinas roxas transparentes. Parecia algo saído dos romances históricos que Andrea gostava de ler.
Curran saiu do banheiro.
Eu balancei a cabeça para a cama. — Alguém se inspirou em um videoclipe de filme antigo.
— Eu sei. Também range como um filho da puta.
— Ótimo. Se decidirmos fazer amor, é melhor fazermos logo no corredor, já que metade do castelo vai saber sobre isso de qualquer maneira.
Curran fechou a distância entre nós. Sua voz era um sussurro silencioso no meu ouvido. — Não encontrei nenhum olho mágico escondido nessas paredes, mas alguém está nos ouvindo. Eu o ouvi respirando através das pedras.
Certo, ficamos presos nessa jaula de pedra, com bandos de metamorfos instáveis, tentando proteger uma mulher que precisava de ajuda psicológica urgente, e os espiões ouviam cada respiração nossa.
Coloquei meus braços em volta de Curran e inclinei minha cabeça contra seu ombro. — Eu já te disse o quanto gosto da Fortaleza?
— Não.
— Eu amo aquilo lá.
Ele sorriu. — Até as escadas?
— Especialmente as escadas. —As escadas separavam o nosso último andar de todos os outros, e as paredes eram à prova de som. Ele me beijou. Seus lábios selaram minha boca e o mundo parou por um longo momento. Quando nos soltamos para respirar, eu não me importava se alguém estava ouvindo. Pequenas faíscas douradas dançavam nos olhos de Curran. Ele não se importava também.
— Temos tempo? —Ele perguntou.
Olhei para o relógio. Vinte para as dez. — Não. Chegaremos atrasados.
— Mais tarde, então.
Eu sorri para ele. — É um encontro.
Proteger Desandra, conseguir a panaceia, voltar para casa. Um plano simples. Tudo o que tínhamos que fazer era passar por ele.
O jantar acontecia em um grande salão colossal e entrei com a mão no braço de Curran. O Senhor das Feras usava um terno preto e uma camisa cinza. Curran sempre detinha minha respiração, usando jeans e camiseta, calça de moletom ou simplesmente nada, mas esse terno era novidade. Feito sob encomenda, o terno o lisonjeava enquanto permitia a liberdade de movimento, e se ele tivesse que mudar de forma, as costuras fracas assegurariam que o terno se desmoronaria com o mínimo de esforço.
Em todo o nosso tempo juntos, eu o vi em um terno formal exatamente duas vezes, incluindo hoje. Curran poderia ser descrito de várias maneiras: perigoso, poderoso ... insuportável. Elegante geralmente não era um dos adjetivos usados e, enquanto ele caminhava ao meu lado, desejei ter uma câmera para poder registrar o momento. E então chantageá-lo com isso depois.
Ele deu de ombros novamente.
— Se continuar fazendo isso, o terno vai desmoronar.
— Eu deveria ter usado jeans.
— Então eu ficaria ridícula ao seu lado. —Eu deveria ter usado jeans também.
— Bebê, você nunca parece ridícula.
— Homem inteligente, —a Tia B disse atrás de nós.
Eu usava um vestido preto. Como o terno de Curran, foi feito sob medida para mim pelos alfaiates do Bando especificamente para a viagem. O tecido elástico me abraçava como uma luva, dando uma impressão enganosa de que era apertado. A saia artisticamente drapejada caia em linhas retas, escondendo o fato de que abria o suficiente para me deixar chutar um atacante mais alto do que eu na cabeça, e a alça diagonal sobre o ombro direito garantia que o vestido não caísse se eu precisasse mover-me rapidamente. O vestido também deveria estar fazendo maravilhas pela minha bunda, porque Curran tinha escorregado a mão pelas minhas costas duas vezes desde que saímos de nossos quartos.
Mas até o melhor vestido não oferecia nenhuma maneira de esconder a Matadora, então eu não me incomodei. O vestido veio com uma bainha de tecido embutida, forrada com couro, e minha espada descansava seguramente contra minhas costas. Eu deixei meu cabelo trançado. Sapatos simples pretos, com salto baixo encaixavam em meus pés. Eu me sentiria melhor com minhas botas, mas as botas não combinavam com o vestido. Até eu tinha padrões.
Tive que abrir mão de minhas facas, mas eu usava uma pulseira em cada pulso e um longo colar, tudo feito de prata trançada. Eles pareciam tiras de cota de malha e pesavam tanto quanto uma. Curran insistiu em minhas novas joias extravagantes. Dado que nós estávamos presos em um castelo cheio de metamorfos hostis, eu não lutei contra ele sobre isso.
Atrás de nós, Desandra entrou, imprensada entre Barabas e Derek. Tia B, Mahon e George atrás, depois Andrea e Raphael. Raphael era uma imagem de elegância urbana em preto, enquanto Andrea usava um vestido vermelho-ferrugem profundo. Parecia sangue e ela estava um arraso.
Doolittle recusou-se a ir jantar e ficou para trás em seus aposentos. Este lugar estava me deixando paranoica, pedi a Eduardo e Keira que ficassem com Doolittle e antes de sairmos ordenei a eles que se trancassem e barrassem a porta. Espero que Keira não decida experimentar bifes de búfalo.
Vasto, com paredes altas, o grande salão parecia cavernoso. Quatro grandes mesas, cada uma grande o suficiente para acomodar pelo menos vinte pessoas, ficavam em duas longas filas, deixando um grande espaço entre elas. Em direção ao extremo oposto do salão, uma mesa de cabeceira, em forma de ferradura retangular, esperava em uma plataforma elevada.
Eu examinei a sala, procurando por problemas. Três saídas: a que acabamos de passar, uma à esquerda e outra à direita, cada uma com um par de djigits. Não importa onde eu me sentasse, a menos que fosse na mesa principal, minhas costas seriam para uma das portas. Argh.
À esquerda, uma discreta escadaria levava à uma galeria de menestréis65, uma alta varanda interna que ocupava toda a extensão da parede esquerda. Sombras cobriam a galeria. Eu não vi movimento, mas se eu quisesse matar alguém, eu colocaria um atirador lá.
Nada disso me fazia sentir calorosa e relaxada.
Cerca de cinquenta pessoas circulavam pelo salão, algumas conversando em pequenos grupos, outras sozinhas. Homens usavam ternos e smokings. As mulheres usavam vestidos. A maioria dos olhos cintilavam com um brilho de metamorfo. As pessoas se viravam e olhavam para nós, olhavam para Curran, olhavam para a bainha da minha espada que se projetava sobre o meu ombro. Alguns homens olhavam mais baixos em meus seios. Eles eram metamorfos e notoriamente difíceis de matar, enquanto eu era uma humana. O fato de eu carregar uma espada afiada de metal nas minhas costas não os preocupava. Eu era uma esquisitice, a companheira humana. Eles me avaliaram como um cavalo em um mercado de gado, e meus seios estavam claramente causando uma impressão maior do que a minha espada.
Curran trancou os dentes.
— Acabamos de chegar aqui, —eu sussurrei. — É muito cedo para você começar a matar pessoas. —Repeti a frase dele de mais cedo.
— Nunca é cedo demais para mim, —disse ele.
— Vejo um padrão duplo66 aqui?
Hibla nos encontrou no meio do corredor e nos levou para nossos lugares. Curran e eu nos sentamos à cabeceira do lado direito de uma enorme cadeira de madeira que parecia ser um trono e tinha que pertencer à cabeceira da mesa. Lugar de honra. Ueba! Pelo menos minhas costas estavam protegidas.
Curran se sentou ao lado do ‘trono’, Desandra se sentou ao meu lado, e Andrea estacionou-se do outro lado de Desandra e olhou para a sacada. Raphael sentou ao lado dela, e Mahon e a Tia B sentaram-se ao lado dele. George estava atrás do pai dela. Barabas ficou atrás de mim.
— Você está pairando, —eu disse a ele.
— Eu devo pairar.
Eu me acomodei na grande cadeira. A galeria de menestréis surgia acima de nós à direita. Isso me incomodava. Eu não conseguia ter uma boa visão daqui. Se alguém atirasse em nós, não saberia até que fosse tarde demais. Podemos muito bem ter fixado um alvo na cabeça de Desandra.
— Hibla?
Nossa guia se inclinou para mim. — Sim senhora?
— Você poderia me dizer quem escolheu esses lugares?
— Senhor Megobari.
Ótimo. Trocar de lugar provavelmente o ofenderia até a morte e, além disso, todos os assentos nessa mesa ofereciam um grande alvo da galeria.
Curran se inclinou para mim. — Qual é o problema?
— Eu não gosto da galeria. Ela não é segura.
As pessoas se voltaram para uma entrada em frente a nós.
— Alguém está vindo, —Barabas murmurou.
Curran inalou. — Kral.
Jarek Kral entrou no salão. Ele usava um terno preto e andava como se todos na sala lhe devessem lealdade. Algumas pessoas olhavam para trás, enquanto outras tentavam desaparecer entre as pedras das paredes. Quatro homens caminhavam atrás dele, movendo-se em uníssono, uma unidade bem afiada. A maneira como examinaram a sala em busca de ameaças indicava experiência. Seguranças. Era de se esperar. Jarek não me parecia um homem que fazia amigos.
Jarek veio direto para a nossa mesa e sentou-se do outro lado do trono. Dois de seus homens sentaram ao lado dele, os outros dois ficaram atrás dele. Barabas nos deu um resumo básico sobre o pessoal de Kral. Este era seu círculo íntimo: dois irmãos com o sobrenome Guba, um careca de meia-idade que parecia poder atravessar paredes sólidas, e Renok, o segundo em comando de Kral, um alto metamorfo em seus trinta e poucos anos com a mandíbula de um boxeador, contornada por uma barba escura curta.
Jarek olhou para Curran. — Eu vejo que você cresceu, garoto.
Ele acabou de chamar Curran de garoto? Sim, ele fez.
— Eu vejo que você ficou mais velho, —disse Curran. — Você parece menor do que eu me lembro.
— Eu ainda sou grande o suficiente para você.
— Você nunca foi, e nunca será. Você está envelhecendo, Jarek.
— Da última vez eu queria te matar, mas você tinha Wilson te protegendo. Agora você está sozinho. Eu vou matar você desta vez. —Jarek sorriu, um controle de dentes.
Curran sorriu de volta. — Eu gostaria que você tivesse coragem suficiente para tentar. Eu já estou entediado.
Se Jarek conseguisse provocar Curran para a violência física, a falha seria de Curran. Mesmo se Curran vencesse, teríamos que ir para casa de mãos vazias e Desandra provavelmente não viveria o suficiente para dar à luz.
Os Belve Ravennati entraram na sala e sentaram-se no lado esquerdo da mesa em forma de ferradura. Tia B acenou para Isabella. Isabella a ignorou propositalmente. Seus dois filhos sentaram-se ao lado dela. Os irmãos italianos pareciam muito parecidos: ambos de cabelos escuros, ambos com olhos inteligentes e aguçados e uma camada de barba rala escura em suas mandíbulas. O mais alto, mais magro, tinha olhos marcantes, avelã claro e emoldurado por cílios escuros. Eles se destacavam em forte contraste com o cabelo quase preto. O outro era mais baixo, mais compacto, com olhos escuros. Um deles era Gerardo e o outro Ignazio, mas eu não conseguia lembrar qual era qual. Eu não me lembro de quem se casou com Desandra também, mas eu tinha certeza que o menor dos irmãos era aquele que foi esbofeteado.
Eu me inclinei para Desandra. — Qual deles é o pai?
— O bonito. —Disse ela, sua voz cheia de luto.
Obrigada, isso ajuda muito. — Olhos escuros ou castanhos?
— Castanhos. Gerardo.
Então o mais baixo e que foi esbofeteado era Ignazio.
Um momento depois, o Volkodavi veio pela entrada da direita e tomou seus assentos no lado direito da mesa em forma de ferradura. Boa ideia. Minimizava as chances deles se arremessarem do outro lado da mesa dos Belve Ravennati e tentassem matar uns aos outros com seus garfos.
As pessoas estavam tomando seus lugares. O jantar estava prestes a começar.
— Você não é digno de se sentar nesta mesa. —Disse Jarek.
Segundo round67.
— Faça-me sair daqui. —Disse Curran.
— Você não é nada. Sempre será nada, —disse Jarek. — Fraco como seu pai.
Seu desgraçado. Eu estendi a mão embaixo da mesa e toquei a mão de Curran. Ele apertou meus dedos.
— Meu pai tem um filho que governa o maior bando do sudeste dos Estados Unidos, —disse Curran. — Qual é o tamanho do território de Budek? Oh espere. Seu filho não tem um território, porque você o assassinou.
Um grupo de servos entrou, rolando enormes barris.
— A cerveja está naqueles barris?
— Eles são chamados de pipa, Kate, —Barabas disse calmamente atrás de mim. — E eu acredito que eles estão cheios de vinho.
O Lyc-V, o vírus metamorfo, tratava o álcool como veneno e tentava se livrar dele no momento em que atingia a corrente sanguínea. Mas, se os metamorfos bebessem rápido o suficiente e em grande quantidade, eles conseguiam se embebedar um pouco. Além da bebida, havia alguns humanos no corredor. Este lugar já era uma panela de pressão: uma palavra errada e explodiria. Por que diabos alguém iria querer adicionar álcool a essa mistura?
— A única razão pela qual você governa é porque seu país está cheio de cães covardes, —disse Jarek. — Aqui você não está apto a raspar as minhas botas. Venha até aqui e eu vou te ensinar o que é um verdadeiro alfa.
Ele não calaria a boca.
— Você tem conspirado e tramado há trinta anos e seu território se encaixa no meu dez vezes, —disse Curran, com um tom levemente entediado. — Eu poderia comprar seu território e o dinheiro não faria falta.
À esquerda, Gerardo encarava Radomil do outro lado da mesa. Os barris de vinho continuavam chegando. Isso poderia piorar?
— Você teve a chance de se juntar a mim, —disse Jarek. — Você cuspiu nela. E acha que pode vir aqui e me dizer o que fazer com minha filha?
— Abram caminho para o Senhor do Castelo, —gritou um homem. Os djigits na entrada diretamente em frente a nós chamaram a atenção.
— Sua filha é uma mulher adulta, —disse Curran. — Ela pode falar por si mesma.
— Até que ela pertença a outro homem, ela é minha para fazer o que eu quiser, —disse Jarek.
Para mim chega. Eu me inclinei para frente. — Ei você. Coloque suas patas onde sua boca está ou cale a boca. Ninguém quer ouvir você latir.
Os olhos de Jarek se arregalaram. Verde brilhou nas profundezas de sua íris, uma chama quente insana. Ele abriu a boca, mas nada saiu.
— Sim, desse jeito, —eu disse a ele. — Menos conversa, mais silêncio.
Percebi que Curran estava sentado completamente imóvel, olhando para a frente, concentrado intensamente.
— Lorde Megobari, —anunciou um homem.
Eu virei. Na entrada mais distante, entre dois djigits, Hugh d'Ambray entrou no salão.
Capítulo 7
Isso não estava acontecendo. Isso era uma alucinação causada pelo estresse. Hugh d'Ambray, o Senhor da Guerra de Roland, não estava aqui. Ele estava nos Estados Unidos servindo meu pai biológico. Este era seu gêmeo há muito perdido com a mesma altura, constituição e cabelo, que não sabia nada sobre mim.
Hugh olhou diretamente para mim e sorriu. Era o sorriso de um pescador que acabara de tirar um grande peixe da água e o colocou no barco.
Sim, era ele. Todo esse tempo eu estava espremendo o meu cérebro tentando descobrir o que Curran ou o Bando haviam feito para serem alvos dessa armadilha. Não foi Curran ou o Bando. Fui eu.
— Por favor, levantem-se para o Senhor do Castelo, —o mesmo homem gritou.
As pessoas ao meu redor se levantaram. Eu tranquei meus dentes e me forcei a me mover. Curran apertava minha mão com tanta força que doía.
Foda-se tudo para o inferno. Eu não poderia ter um descanso apenas uma vez na minha vida?
Hugh acenou. Sua voz percorreu o corredor, um tipo de voz que podia ser quieta e íntima ou interromper o clamor de uma batalha. — Sentem-se por favor. Não há necessidade de formalidade, somos todos amigos aqui.
Ele era real. Ele estava aqui. Adrenalina correu através de mim, enviando agulhas elétricas através das pontas dos meus dedos. Se ele pensava que eu iria desistir sem lutar, ficaria profundamente desapontado.
Todos ao nosso lado da mesa ficaram muito quietos. Eles estavam observando Curran e eu, e perceberam que algo estava realmente errado. O rosto de Andrea ficou branco como giz. Ela reconheceu D'Ambray.
Antes de deixar a Ordem da Ajuda Misericórdia, Andrea subiu o suficiente nas fileiras hierárquicas para receber informações sobre Roland, que era considerado o maior perigo para a Ordem. Ela observou Hugh do mesmo modo como se observava um cachorro raivoso. Raphael se aproximou dela, seus olhos fixos em Hugh também. Ele também sabia. Ela deve ter dito a ele.
Hugh atravessou o corredor, vindo em nossa direção. Alto, pelo menos cinco centímetros acima de um metro e oitenta, era musculoso como um gladiador romano, e seu traje não conseguia esconder esse fato. Ele se movia com perfeito equilíbrio, deslizando como se suas articulações fossem líquidas. Antes que minha mãe e Voron tivessem fugido, Hugh era o protegido de Voron. Meu pai adotivo o treinou, aperfeiçoando-o em um general perfeito para liderar os exércitos de Roland. Lutar contra Hugh seria como lutar contra meu pai. Seria a segunda luta mais difícil da minha vida. A primeira seria com o meu verdadeiro pai.
Examinei as portas. Nenhuma tropa. Hugh não tinha chamado reforços. Ele achava que poderia vencer a mim e a Curran sozinho?
Hugh estava se aproximando. Cabelos escuros, quase negros, caiam sobre os ombros, mais compridos do que a última vez que o vi. Uma pequena cicatriz marcava sua bochecha esquerda—também uma lembrança recente. Seus olhos eram de um intenso azul escuro e eles riam de mim enquanto se aproximavam.
Eu olhei de volta para ele. Sim, o show acabou. E agora?
Hugh circulou a mesa. Ele teria que se sentar ao lado de Curran. Querido Deus!
O rosto de Curran se transformou em uma máscara inexpressiva. Ele apertou minha mão e se inclinou um pouco para frente, colocando-se entre mim e Hugh.
Não o ataque, Curran. Não. Faça. Qualquer. Coisa.
Um djigit puxou a cadeira de Hugh para ele. Hugh sorriu, um lobo feliz confiante em seu covil e pegou um copo. Um empregado apareceu como por magia e derramou vinho tinto nele. Hugh levantou o copo. — Somos afortunados em receber o poderoso bando Obluda dos Cárpatos ...
Ele se virou para Jarek Kral, que levantou o punho com um sorriso autoindulgente. Atrás dele, os quatro metamorfos uivaram, e outros ecoavam seus uivos nas mesas.
— ... os famosos Volkodavi da Ucrânia ...
Radomil e sua família assentiram. Os membros do Volkodavi pularam e bateram em suas mesas.
— ... e os destemidos Belve Ravennati.
Os irmãos italianos assentiram. Seus membros do bando uivaram e bateram em sua mesa.
— Hoje à noite temos a honra de receber convidados para a nossa humilde morada. —Hugh se virou para nós. — O Senhor das Feras e sua Consorte se juntaram a nós e adicionarão sua sabedoria e conhecimentos para a feliz ocasião de receber novas vidas neste mundo. Vocês nos honram com suas presenças.
O silêncio foi ensurdecedor. Nós não íriamos gritar ou socar coisas.
Curran abriu as mandíbulas. — A honra é toda nossa.
Hugh se virou para a mesa. — Comemos, bebamos e celebremos.
Sentou-se, largou o copo e virou-se para Curran. — Eu odeio esses discursos.
— Posso imaginar, —disse Curran, a mesma expressão calma em seu rosto.
Hugh lançou-lhe um sorriso rápido. — Foi o que pensei. Você e eu somos homens de ação. Pelo menos, quando terminamos de falar, eles nos trazem comida.
Uma citação da Princesa prometida68. Era o meu livro favorito. Ele sabia ou isso era uma coincidência? Se ele sabia, como diabos descobriu?
Uma fila de empregados entrou no salão, seguida por um carrinho empurrado por outros quatro. No carrinho, um enorme javali assado estava em uma grande travessa forrada de folhas de uva.
— Ahh. Excelente. —Hugh pegou o garfo. — Estou morrendo de fome.
Meu coração martelava no meu peito como se tivesse acabado de correr uma maratona. A voz fantasmagórica de Voron sussurrando para mim: ‘Corra. Você não está pronta’.
Se eu fugisse, Hugh mataria o meu pessoal um por um até que eu voltasse. Ele não apenas me prendeu, mas também prendeu alguns reféns comigo. Não haveria fuga.
Os empregados começaram a distribuir pratos gigantescos repletos de carne e pão. Os metamorfos atacaram. Um prato foi colocado à minha frente: um pedaço espesso de carne, cozinhado apenas o suficiente para não ser cru, pão e uma romã aberta, as sementes vermelhas brilhando com a cor do sangue.
Barabas se inclinou entre Curran e eu e cortou um pedacinho da minha carne.
Certo.
Ele comeu, cortou um pedaço do pão, pegou duas sementes de romã, comeu e ficou quieto, mastigando devagar. Finalmente ele se inclinou para mim e disse baixinho. — Não está envenenado.
— Um metamorfo mangusto, —disse Hugh. — Muito prudente da sua parte.
— Sem ofensa. —Disse Barabas.
Hugh acenou para ele. — Claro. Teria feito o mesmo em seu lugar. Ser cuidadoso nunca é demais.
Aparentemente eu ganhei meu próprio testador de veneno pessoal. Fiz uma nota mental para falar com Barabas sobre isso quando o jantar acabasse.
Desandra se levantou. — Eu tenho que ir ao banheiro.
Andrea e eu nos levantamos. Minhas pernas pareciam de madeira. Desandra revirou os olhos e contornou a mesa até a porta à esquerda. Nós a seguimos. Atrás de mim, Hugh disse: — Então, Lennart, como foi a viagem? O Atlântico pode ser perigoso nesta época do ano.
Atravessamos o corredor e entramos em outro corredor. Eu corri e fiquei na frente de Desandra. Fizemos o detalhamento básico do ambiente e nos preparamos para o procedimento de segurança padrão de dupla. Em apuros, uma de nós protegeria Desandra, a outra lidaria com as ameaças. A magia estava em alta e isso me obrigava a me preparar para contramedidas. Durante a tecnologia, nós tomávamos outros procedimentos.
— Vire à direita, —disse Desandra. — Vocês duas vão me ver fazer xixi também?
— Por que o seu inglês é tão americano? —Andrea perguntou, sua voz seca.
— Minha mãe foi embora dois anos depois que eu nasci, —disse Desandra. — Uma boa mulher americana cuidou de mim. Meu pai a contratou para que eu aprendesse a língua. Disse que seria útil. Ele não me deixou levar Angela comigo quando me casei. A expulsou do bando. Eu não a vejo desde então.
Eu não gostava da Desandra. Não a conhecia e ela se mostrava difícil de proteger, mas sentia pena dela.
À minha frente, um cruzamento nos esperava. — Qual o caminho?
— Esquerda.
Nós viramos a esquina. Outro longo corredor deserto, iluminado por luzes amarelas vindas das luminárias a gás. Nenhum perigo aqui. Nenhum guarda também. Humm.
Finalmente, Desandra parou. — Gravidez estúpida. Bebês estúpidos. Não posso sentar por mais de dois minutos sem ter que correr para o banheiro. Juro que se qualquer um desses bastardinhos me chutar na bexiga mais uma vez, eu vou dar um soco nele.
E minha simpatia evaporou. — Se você tentar dar um soco no feto, nós a conteremos.
— Relaxe. —Disse Desandra. — Não vou me dar um soco. Eu só quero que esses garotos sejam superalimentados e saiam de mim logo. É aqui nessa porta.
Obrigada, universo.
Eu abri a porta. Um banheiro típico: três cabines, uma longa bancada de pedra com duas pias. Chão sólido, teto sólido, uma pequena janela de ventilação perto do teto, um metro e oitenta de comprimento por quinze centímetro de altura. Barras de aço protegiam a janela Chequei as cabines uma a uma. Vazias. Saí para o corredor. — Limpo.
— Oh, bom. Posso fazer xixi agora? Em algum momento deste século seria bom.
O metal ressoou contra o metal atrás de nós. Eu me virei. Uma placa na parede à nossa direita deslizou para o lado, e uma grade de metal caiu do teto e bateu no chão, bloqueando o corredor e nós dentro dele.
— Isso nunca aconteceu antes, —disse Desandra.
A esquerda, algo rugiu, um som áspero e feio, como cascalho sendo esmagado. O cabelo na parte de trás do meu pescoço subiu. Uma criatura virou a esquina, enorme, laranja brilhante. O rugido rolou adiante, pulsando, ameaçando.
Puxei a Matadora da bainha e fui para o centro do corredor.
Andrea abriu a porta do banheiro, pegou Desandra, empurrou-a para dentro, correu atrás dela e fechou a porta com força. Trabalhar com Andrea era fácil. Nós nem precisávamos conversar. Primeiro, teria que passar por mim, depois pela porta e depois por Andrea. Desandra estaria no final daquela longa viagem.
A fera deu um passo em minha direção. Olá, bicho esquisito. De que mitologia você saiu?
No banheiro, o metal gemeu seguido por um baque. Andrea estava arrancando as portas das cabines e bloqueando a porta do banheiro.
A besta ocupava a maior parte da largura do corredor, com pelo menos um metro e vinte de altura até o ombro. Pernas poderosas, quase felinas e formadas por feixes duros de músculo, sustentavam um corpo elegante com um peito largo que fluía em um pescoço grosso, comprido, mas móvel. Sua cabeça também era felina, redonda, armada de mandíbulas de jaguar, mas estranhamente larga. Duas dobras se erguiam atrás dos ombros. Eu não conseguia ver direito essas estruturas porque o bicho me encarava de frente. Deste ângulo elas pareciam asas. Deformadas, mas ainda asas.
O que diabos é você? Não era uma manticora69. Já tinha visto manticores antes, eles eram menores, e o contorno do corpo era completamente diferente. Manticores tinham uma estrutura parecida com gigantescos cães boxer70, retos, com todos os músculos definidos sob um suave pelo marrom. Essa criatura era mais felina, construída com agilidade e destreza em mente.
Como se tivesse lido minha mente, a fera deu outro passo à frente e sorriu para mim, exibindo um conjunto de dentes de vinte centímetros.
Meu, meu. Assustador.
Eu me concentrei na maneira como ele levantava suas patas. Viver com metamorfos me deu algumas dicas. Na caça, a principal diferença entre gatos e cães se reduz ao comprimento e à forma dos ossos do braço. Os gatos podiam virar as patas para cima, enquanto as patas dos cães eram fixadas permanentemente para baixo, características bastante aproveitadas nos treinos pelos instrutores metamorfos quando treinam seus alunos na forma de guerreiro. Girar a pata dava aos gatos maior capacidade de suprimir suas presas depois que eles corriam. Significava a diferença entre um predador de emboscada e um caçador de bando. Esta fera era um predador de emboscada. Ele iria agarrar e bater forte, e aqueles dentes e mandíbulas significavam que poderia destruir meu crânio com uma mordida. Eu tinha que tratá-lo como um jaguar.
Felizmente eu tinha alguma prática lutando com felinos.
O monstro deu outro passo. Quando a pata tocou o chão, o pêlo laranja de repente se movimentou.
Mas o que agora?
Outro passo.
Não era pêlo. A criatura era coberta de escamas alaranjadas afiadas que agora estavam levantadas como pêlos de cachorro quando estão prestes a atacar. Elas pareciam grossas também, como conchas de mexilhão. Então: era grande, tinha asas, era felino e blindado pelas escamas. Minha lista de possíveis locais alvos diminuiu. Com a minha sorte, cuspiria fogo em seguida.
Era um dragão? Algum tipo de dragão? De alguma forma, parecia felino demais para isso. Não que eu tenha encontrado muitos dragões. O único que eu vi era um morto-vivo e apodrecendo, mas era do tamanho de um grande dinossauro e sua cabeça tinha características reptilianas. Este aqui era um mamífero.
Não podia usar nenhuma palavra de poder agora. Nenhuma magia pesada. Não com Hugh a menos de duzentos metros de distância. Ele sabia que eu poderia usar uma espada, mas a extensão da minha magia era um mistério para ele e eu tinha que manter dessa forma o maior tempo possível. Pode chegar um momento em que a surpresa da minha magia possa significar a diferença entre viver e morrer.
Os brilhantes olhos azuis da criatura se fixaram em mim. Um fogo constante e frio queimava dentro de suas íris. A fera parecia com fome. Não com fome de comida, mas com fome de violência. Essa coisa não era nenhum saprófago71. Ele caçava os vivos e gostava muito disso.
Vamos ver o quanto você é inteligente. — Podemos acelerar isso? Eu tenho um jantar para voltar.
A fera enfiou as asas deformadas no corpo e se preparou para o ataque.
Essa coisa me entendeu. Isso nunca era um bom sinal.
A criatura veio em minha direção, ganhando velocidade, presas arreganhadas, olhos brilhando, engolindo a distância em saltos curtos.
Todo instinto animal no meu corpo gritava: Corra! Eu permaneci firme. Era um gato. Ele atacaria de qualquer jeito.
Salto, salto, salto.
Atacou.
Foi um salto glorioso, impulsionado pelos músculos duros de aço das pernas da fera. Veio para mim, garras e patas levantadas para matar.
Mergulhei para frente, girando enquanto caía e deslizei por baixo. A maior parte do corpo da fera pousou em mim e eu afundei a Matadora profundamente em sua virilha. Sangue quente espirrou no meu rosto e boca. A besta gritou.
Segurei sua perna esquerda para mim, tentando impedir que ela me estripasse com as suas garras, agarrei-me a ela e rasguei suas entranhas com a Matadora. A criatura uivou e cortou ao meu lado com as garras da perna direita, tentando me abrir.
Garras rasgaram o vestido. A dor açoitou a lateral do meu corpo. Argh. Doía como um filho da puta. Na próxima vez que me dissessem para usar um vestido em vez de couro, eu os mandaria se foder.
Esfaqueei novamente, empurrando a Matadora mais fundo. Mais sangue jorrou em uma inundação quente e pegajosa. A fera deveria já ter morrido. Mas não morreu. Atingiu-me e eu afundei em suas entranhas de novo e de novo. Morre logo!
Magia queimava minha lateral, como se alguém tivesse agarrado um punhado de gelo e empurrado direto para dentro do corte. Meu sangue reconheceu um invasor e reagiu, purgando-o de mim. Lyc-V. Essa porra de bicho era um metamorfo.
Sua regeneração significava que não iria sangrar até a morte. Eu não estava causando danos suficientes. Tinha que chegar aos seus órgãos vitais.
Cortei o ligamento na perna esquerda.
A besta se adiantou, me arrastando com ela. Eu o cortei novamente tentando mutilá-la, soltei e fiquei em pé rapidamente. Por meio segundo a criatura ficou de costas para mim, e eu pulei, entre as asas, agarrei seu pescoço e cortei sua garganta. A lâmina da Matadora escorregou nas escamas, mal tirando sangue. Merda. Isso deveria ter funcionado. A fera parou. Puxei o colar de prata do meu pescoço enrolei-o em sua garganta e deslizei a Matadora entre as aberturas do colar.
A besta se ergueu com prata pressionada contra o corte. Sufoque com isso, por que você não está sufocando?
Virei a Matadora, torcendo o colar em um garrote improvisado. Minha lateral parecia que alguém estava tentando me cozinhar viva.
A fera balançou, gorgolejando enquanto o colar se afundava mais ainda no corte. Apertei com toda a força que eu tinha. Se eu largasse ele me mataria. O bicho se jogou para a esquerda. Eu puxei minha perna para cima uma fração de segundo antes de bater na parede. Virei a Matadora mais um pouco, rezando para que meus dedos sangrentos não deslizassem.
A criatura balançou novamente. Meus braços estremeceram do esforço.
Ele virou. Não havia nada que eu pudesse fazer. O peso da besta me prendeu no lugar. Uma pressão esmagadora no meu peito. Isso me machucou. Meus ossos choramingaram e eu gritei.
Mais uma volta no garrote. Apenas um quarto de volta.
Não apague, não apague.
Apenas um quarto de volta.
Segurei. Minha respiração estava vindo em suspiros rasos e torturados. A fera convulsionou em cima de mim. Eu não conseguia sentir meus dedos.
O grande corpo ficou rígido em cima de mim. Uma longa respiração sibilante escapou e ficou fraca.
Levante-se, levante-se, levante-se. Ele não se levantaria. Não estava morto. Acabara de desmaiar. Eu poderia ficar aqui o dia todo, sufocando, e o Lyc-V iria mantê-lo vivo.
Eu me arrastei, tirando o peso das minhas pernas e rolei de joelhos. O colar tinha mordido profundamente na garganta da fera. Provavelmente cortou sua traqueia. Puxei a matadora. Presa. Eu grunhi, levantando a cabeça da fera, e virei a Matadora no sentido anti-horário. Um pouco mais. Um pouco mais ...
A corrente do colar começou a se soltar.
Um pouco mais ...
Os olhos da fera se abriram, um azul enfurecido quente. Eu puxei Matadora livre e cortei fundo, direto na ferida. O osso rangeu sob o aço mágico. A cabeça rolou livre do resto do pescoço.
Deslizei contra a parede, tentando recuperar o fôlego. Apenas descansaria aqui por um segundo. Meu peito doía a cada respiração. Eita.
A besta ficou imóvel.
Cuspi sangue para fora da minha boca. — Andrea! Limpo!
Os baques vieram do banheiro. A porta se abriu e Andrea entrou no corredor. — Puta merda.
Tentei limpar o sangue do meu rosto, mas desde que minhas mãos estavam com sangue, acabei me sujando mais ainda. Ótimo, grande ideia, Kate.
Desandra espiou por cima do ombro de Andrea. Seus olhos se arregalaram. — O que diabos é isso?
— Você já viu um desses antes? —Eu perguntei.
— Não.
Ela soou sincera para mim. Eu já tinha visto todos os tipos de coisas estranhas, mas nunca vi um desses também. O corpo sem a cabeça da criatura estremeceu. Andrea levantou a besta. Eu fiquei de pé.
As escamas douradas se movimentaram, viscosas como metal derretido, e desapareceram. Um torso humano decapitado estava esparramado no corredor. Cutuquei a cabeça agora humana para que eu pudesse ver o rosto. Um homem de quarenta e poucos anos. Cabelos castanhos, barba castanha. Nunca o vi antes.
Andrea xingou.
Eu me inclinei, tentando não estremecer quando meu peito protestou, peguei a cabeça pelos cabelos e mostrei o rosto para Desandra.
Ela balançou a cabeça.
— Talvez alguém no salão do jantar saiba. Por que não vamos lá e perguntamos?
Andrea assentiu e olhou para o chão. — Algum sangue aqui é seu?
— Não importa agora, não é? —Hugh me tinha aqui no castelo. Ele passou por um monte de problemas para me trazer aqui. Ele não teria feito isso se não tivesse certeza da única coisa que meu sangue lhe diria: que eu era a filha de seu chefe.
— Eu suponho que não, —disse Andrea.
Nós descemos o corredor, longe da grade.
— O que vamos fazer com o Hugh? —Perguntou Andrea.
— Nada, até sabermos qual é o seu plano.
— Quem é Hugh? —Desandra perguntou.
— Alguém que nós conhecemos, —disse Andrea. Nós viramos a esquina, atravessamos outro corredor. O barulho do salão ficando mais próximo.
De repente, Desandra parou. Ela segurou sua barriga com as mãos. Sua expressão ficou frouxa.
— O que foi? —Eu perguntei.
— Alguém acabou de tentar matar meus bebês. —Desandra piscou e vomitou no chão.
Capítulo 8
Entrei no grande salão, carregando minha espada em uma mão e uma cabeça decepada em outra. Todos de uma vez pararam o que estavam fazendo e se viraram para olhar para mim. Narinas dilatadas, sentido o cheiro de sangue. A conversa morreu.
Hugh me viu e congelou. Ou ele era um grande ator ou não tinha ideia do que tinha acontecido. Curran quase subiu em sua cadeira. Eu sabia exatamente o que ele viu. Vinte minutos atrás eu tinha saído para o banheiro. Agora pedaços rasgados do meu vestido pendiam do meu lado, encharcados de vermelho. O sangue manchava meu rosto e minhas mãos.
Atrás de mim, Andrea segurava Desandra, que estava pálida como um lençol.
Eu levantei a cabeça. — A quem isso pertence?
Você poderia ouvir um alfinete cair.
— Quem é o líder deste homem?
Sem resposta.
— Ele se transforma em uma criatura felina com asas. Alguém tem que conhecê-lo.
Um som de aplausos lentos e medidos quebrou o silêncio. Jarek Kral sorriu para mim. — Boa piada. Muito engraçado.
Eu matarei esse homem antes que isso acabasse.
— Você conhece este homem?
Jarek abriu os braços. — Ninguém conhece esse homem. Você traz isso para nós e nos conta essa história selvagem e nós devemos fazer o que com ela?
— Era um monstro, —disse Andrea.
— Somos todos monstros aqui. Ou você esqueceu? —Jarek riu. Seus metamorfos sorriram.
Desandra gritou algo em uma língua que eu não entendia. Jarek deu uma resposta irônica.
— Isso pode muito bem ser só a cabeça de um empregado. —Jarek se inclinou e olhou para Curran. — Talvez você devesse mandar seu animal de estimação parar de cortar as cabeças dos empregados do castelo ou senão iremos ficar sem gente que nos sirva o vinho.
As pessoas riram.
Pêlo cinzento desceu pelos braços de Curran e depois desapareceu.
— O quê? —Jarek se levantou. — Qual é rapaz? Você vai ou não vai fazer alguma coisa?
Curran trancou as mãos na mesa. Era uma mesa enorme. Tinha que pesar mais de mil quilos. A mesa rangeu e saiu do chão. As risadinhas morreram. As pessoas olharam com o rosto perplexo.
Curran manteve a mesa a trinta centímetros do chão por longos segundo. Seu rosto nem parecia fazer esforço.
Alguém fez um barulho de asfixia.
Curran colocou a mesa no chão, empurrando-a para o lado, na direção do lado de Jarek.
— Obrigado pela sua hospitalidade, —disse ele. — Acho que acabamos o nosso jantar.
Ele caminhou. Nosso pessoal se levantou. Ele os conduziu pelo corredor, então envolveu seu braço em volta de mim e saímos dali.
— Como ele era? — Perguntou Mahon.
Nós deixamos Desandra em seu quarto. Tia B e George decidiram passar a noite lá. O resto de nós se reuniu em nosso quarto. No momento em que Doolittle me viu, eu tive que deixá-lo examinar a minha lateral ferida.
Então fui cutucada, minhas feridas foram lavadas, e agora Doolittle cantava, chamando uma cura mágica sob sua respiração.
— Cerca de um metro e vinte de altura até o ombro, definitivamente felino, coberto de escamas laranjas. As escamas eram muito grossas e translúcidas, com bordas afiadas. Tinha asas. —Eu balancei minha cabeça. — Não tenho ideia do que ele era.
Mahon olhou para Andrea. — E você viu isso?
— Você está dizendo que Kate está mentido? —Barabas perguntou, sua voz seca.
— Sim, eu vi, —disse Andrea. —Ela serrou seu pescoço com o colar de prata. Não foi uma alucinação.
Doolittle terminou de cantar. Um frescor bem-vindo e calmante espalhou-se pelo meu lado. — Bom como novo.
— Obrigada, doutor.
As bordas das feridas estavam grudadas. Sem Doolittle, eu precisaria de pontos.
— Asas? —Perguntou Doolittle.
— Asas.
— As asas tinham penas?
— Mais ou menos. —Andrea disse a ele. — As penas não estavam totalmente formadas. Cada uma era como um simples filamento com um pouco de penugem.
Doolittle franziu a testa. — As escamas, até onde você viu, acha que elas acrescentariam peso ...
— Não faz sentido, —eu disse a ele. — Eu sei. Mas isso foi o que eu matei.
— Só porque tem asas não significa que pode voar, —disse Mahon. — Elas podem ser órgãos vestigiais72.
— Elas definitivamente pareciam muito estranhas, —eu disse.
Doolittle assentiu. — Vou examinar a cabeça.
Mahon olhou para Curran. — Falei com os Volkodavi e Belve Ravennati no jantar. Ambos estão convencidos de que Jarek quer matar sua filha. Quando ele prometeu, a princípio, uma das passagens pela montanha para o herdeiro, haviam quatro passagens através das montanhas. Houve alguns desastres naturais desde então. Agora há somente duas passagens. Ele fará qualquer coisa para segurar elas.
— A culpa recai muito óbvio para Jarek. —Barabas respondeu. — Eu o estudei e percebi que ele gosta de colocar a culpa em outra pessoa. Ele teria usado um lince ou um lobo para atacar um dos outros bandos. Matando duas cobras com um golpe só. Em vez disso, alguém usou algo que ninguém nunca viu antes.
— A questão é por quê? —Disse Keira. — Jarek ainda é o único com o motivo óbvio. Se Desandra morrer, ele não terá que desistir da passagem.
— Se ela morrer, ele pode também dar adeus aos seus netos, —disse Barabas.
— Os outros dois bandos o odeiam, —disse Mahon. — Mesmo que Desandra der à luz, eles não o deixarão chegar perto das crianças. Jarek pode usá-las para chantagear pela passagem.
— Chega. —Disse Curran.
Todos ficaram em silêncio.
— Estamos em alerta total, —disse ele. — Movam-se em grupos. Tranque suas portas. Ninguém vai ou fica em qualquer lugar sozinho. Você tem que usar o banheiro no meio da noite, você acorda todo mundo e vai junto.
— Precisamos ter uma reunião pela manhã, —eu disse a eles. — Precisamos definir os turnos de guarda e elaborar um cronograma. Vamos nos encontrar no quarto do Doolittle às oito.
— Nove. —Curran disse. — Kate precisa descansar.
Pessoas saíram do quarto. Ele fechou a porta e depois se agachou ao meu lado. — Chuveiro?
— Por favor.
Curran desapareceu no banheiro. O som da água corrente era como um sussurro do céu. De repente eu estava muito cansada. Eu me arrastei até o banheiro. Um chuveiro esperava por mim em um box de azulejos, meio escondido por uma cortina roxa em uma haste curva. O vapor subia para o teto. Eu puxei o zíper do meu vestido. Preso.
Curran se aproximou. Suas mãos cuidadosas tocaram meus ombros. O som de tecido rasgando guinchou no ar e os farrapos do vestido esvoaçaram.
— Obrigada.
Tirei minha calcinha arruinada, tirei meu sutiã, deixei-os cair no chão e entrei no chuveiro. A ducha quente tomou conta de mim. A água vermelha de sangue rodou pelos meus pés. Fechei meus olhos e fiquei sob a água. Inspirando, expirando. A luta acabou. Todos tinham sobrevivido, mas a guerra estava apenas começando.
Chequei meu lado. Doolittle era um milagreiro. Os cortes já estavam se fechando e listras de pele mais clara cruzavam meu bronzeado. Peguei shampoo e esfreguei meu cabelo. Cheirava a jasmim. Peguei uma toalha e comecei a limpar: pescoço, seios, barriga, ombros ...
Curran alcançou meu ombro. Percebi que ele estava nu, de pé no chuveiro comigo.
Ele pegou a toalha dos meus dedos e esfregou minhas costas. A água caia sobre nós. Fechou os braços em volta de mim e senti seu corpo musculoso pressionar e deslizar contra minhas costas. No mundo inteiro, não havia lugar melhor do que estar envolvida nele.
Seus braços estavam tensos. A tensão vibrava em seus músculos, como uma corrente elétrica sob sua pele.
Eu me virei em seus braços. Ele descansou a testa na minha. Fechei meus olhos. Sendo atacado por feras estranhas, eu poderia lidar. Estar no mesmo cômodo com o Hugh ...
— Uma palavra, —ele sussurrou, sua voz tensa com raiva reprimida. — Diga uma palavra e eu vou acabar com ele. Ele não verá o nascer do sol.
Eu olhei em seus olhos e percebi que ele faria. Ele sairia do chuveiro, mudaria de forma e lutaria com Hugh até que um deles parasse de respirar. Se eu escolhesse ficar, ele lutaria com Hugh para que eu fosse livre, e se eu escolhesse fugir, ele lutaria para que eu pudesse fugir. Ninguém em toda a minha vida me amou tanto assim. E por minha causa e de Hugh, e por causa de Jarek, agora Curran estava preso comigo neste castelo.
Fúria ferveu dentro de mim.
— Não. —Eu me forcei a dizer. — Ainda precisamos da panaceia.
Curran trancou os dentes.
Eu queria ir para casa. Queria voltar para a Fortaleza. Cortaria meu braço para teletransportar todos nós para lá e esquecermos que já viemos aqui. A frustração cresceu dentro de mim, alimentada pelo medo e pela raiva. Não havia absolutamente nada que eu pudesse fazer agora. Fugir ou lutar com Hugh, qualquer opção, condenaria todos que vieram conosco e todos que ficaram em casa.
Coloquei minha cabeça em seu ombro. Minhas mãos apertaram em punhos por conta própria.
Ele me segurou. — Eu sei. —Disse ele. — Eu sei.
Ficamos assim por um longo tempo, a água lavando sobre nós. Aos poucos, percebi que meus seios estavam pressionados contra ele, que ele estava duro e que ambos estávamos nus.
Eu me inclinei e beijei Curran, lambendo-o no ponto sensível sob sua mandíbula. Minha língua provou a barba loira. Meu corpo acordou, subitamente consciente e regozijando-se com o fato de que eu estava viva. Acariciei seu rosto, deslizando-me contra a parede lisa e dura de seu peito.
Um baixo som masculino veio dele, frustração e necessidade em um só. — Sua lateral está doendo? —Ele sussurrou.
Eu o queria desesperadamente. Precisava estar naquele lugar onde apenas nós dois éramos importantes e nada, exceto o amor, existia. Parecia que se eu não pudesse tê-lo, eu iria explodir. Balancei a cabeça e beijei sua boca, com os olhos abertos, e vi o momento exato em que ele se perdeu. Seus lábios se fecharam nos meus. Sua língua deslizou em minha boca. O gosto dele, o sabor masculino, era inebriante. Meu corpo se encheu de desejo. Cada célula se concentrava nele, gritando, mais, mais, mais! Eu senti suas mãos acariciando minhas costas, provei sua boca, senti cada centímetro duro dele pressionado contra mim. Deslizei minha mão para baixo e acariciei o comprimento quente dele.
Ele fez um barulho rude, um grunhido nascido do prazer.
Deus querido, eu tinha que tê-lo agora ou choraria.
— Eu quero muito você, —ele sussurrou.
Eu abri meus braços.
Nossa fúria, nossa preocupação, nossa frustração e nossa necessidade colidiram. Ele me pegou e me levantou em seus quadris, com as mãos debaixo da minha bunda. Eu me sentia tão viva. Tranquei minhas pernas ao redor dele. Os músculos de seus ombros se arqueavam sob meus dedos, fortes como cabos de aço. Ele estava olhando para mim, seus olhos cinzentos luminescentes com faíscas douradas e preenchidos com uma necessidade tão crua e honesta que me sentia tonta.
Ele beijou minha garganta, alimentando o fogo dentro de mim. Eu me inclinei para trás e deixei que ele me beijasse ainda mais. Ele lambeu meus seios, chupando meus mamilos. O choque de desejo pulsou através de mim, fundido e elétrico, e quando Curran se empurrou para dentro de mim, quente e duro, eu não me importava com nada mais além dele. Eu não queria pensar. Só queria senti-lo me tocar.
Minhas costas pressionaram contra o azulejo frio. Ele deslizava para fora e para dentro de mim, de novo e mais uma vez, bombeando em um ritmo suave no calor líquido. Uma necessidade ansiava construir dentro de mim, cada impulso enviando um pulso de prazer suave através do meu corpo, me impulsionando cada vez mais alto. Meus mamilos estavam tão endurecidos que doíam. Minhas pernas tremiam. Minhas articulações se tornaram moles. A antecipação cresceu dentro de mim, como uma onda ameaçando subir. Ele empurrou novamente. A felicidade explodiu dentro de mim. A onda quebrou e me afogou de prazer, cada contração do meu orgasmo um êxtase em si. Eu gritei. Um momento depois, ele gemeu e se esvaziou dentro de mim.
— Você me deixa louco, —ele me disse.
— Olha quem fala.
Cinco minutos depois, banhados e cansados, deixamos o chuveiro. Curran se esparramou na cama. Obriguei-me a me vestir—poderíamos acabar precisando pular fora da cama rapidamente para uma luta—ou se algo desmoronasse em cima da gente. Acima de nós, o ridículo dossel roxo se movia suavemente na brisa da noite. Era bom sentir o vento frio na minha pele.
Ele se inclinou para o lado, me segurou e sussurrou em meu ouvido, tão baixinho que pensei ter imaginado. — Eu quis dizer aquilo. Uma palavra e você nunca mais verá o rosto dele. De manhã, este castelo será uma fogueira e nós iremos para casa.
Eu teria que dizer isso com cuidado. As pessoas estavam nos ouvindo. Sussurrei de volta para ele. — Se navegarmos pela costa sudoeste, passaremos pelas ruínas de Troia. Você se lembra da história de Paris e Helena?
— Sim. —disse ele.
O filho favorito de Troia e famoso arqueiro, Paris, navegaram para Esparta. Ele veio sob uma bandeira de trégua. O rei espartano tratou-o como um convidado de honra e, em seguida, Paris roubou a esposa do rei, Helena, e esvaziou seu tesouro. Ninguém sabia realmente se ele sequestrou Helena ou se ela foi de livre vontade com ele. Não importava se o marido dela a amava ou a espancava todos os dias. O fato é que toda a Grécia se uniu contra Paris. No final, Troia era uma ruína fumegante.
Eu beijei sua mandíbula. — O arco e flecha nunca foi seu forte.
Ele trancou os dentes, fazendo seus músculos do maxilar se flexionarem.
Nós prometemos ser imparciais. Viemos em paz. Se quebrássemos essa paz e começássemos um banho de sangue, receberíamos um banho de sangue em troca. Ninguém veria isso como um ato de um homem tentando salvar a mulher que ele amava do Senhor da Guerra de seu pai. Os bandos europeus o veriam como um ato de traição de um homem que não aguentou ser insultado.
Atacar Hugh seria um ato de guerra. Sem mencionar que eu não tinha cem por cento de certeza que, mesmo que nós dois lutássemos contra ele, sobreviveríamos a esse confronto. Seja qual for o resultado, Roland teria uma desculpa para queimar a Fortaleza até o chão. Ele já via o Bando de Atlanta como uma ameaça, e essa seria a saborosa cobertura de seu bolo de massacre. Quando chegássemos em casa, as pessoas que conhecíamos e nos preocupávamos estariam mortas.
— Eu sinto muito. —Eu sussurrei. — Eu sinto muito.
— Por quê?
— É por minha causa. — Eu era a razão pela qual estávamos todos presos aqui. Não causei isso, mas eu era a razão disso.
Ele me puxou para ele e me apertou. — Você vale a luta, —ele disse no meu ouvido.
Ele não tinha ideia do quanto eu o amava.
— Todos nós nos oferecemos para estar aqui, —ele sussurrou. — E sem você, não teríamos uma chance de conseguir a panaceia. Precisamos disso desesperadamente.
Ficamos em silêncio. Por um longo momento, curtindo simplesmente estar ao lado dele. Se isso pudesse durar ...
— Ele não me atacou imediatamente, —eu sussurrei. — Isso significa que vai querer falar comigo.
— Não. —Disse Curran. — Não sozinhos.
— Mais cedo ou mais tarde essa conversa vai ter que acontecer. Se ele planeja me matar, por que passar por todo esse problema? Ele sabia onde eu estava. Poderia apenas ter colocado um franco-atirador no telhado do outro lado da rua da Cutting Edge e ter enfiado uma bala na minha cabeça enquanto eu destrancava o escritório.
Curran exalou sua frustração. — Farei tudo o que puder para mantê-la segura.
— Eu sei, —sussurrei. — E farei o mesmo por você.
Nós não devíamos ter vindo aqui. Fechei meus olhos. Eu tinha que dormir. Amanhã seria outro dia, outra batalha. Amanhã, Hugh se aproximaria de mim e eu precisaria estar pronta. Uma vez que descobríssemos quais eram seus planos, as coisas se tornariam muito mais simples.
Capítulo 9
Eu abri meus olhos. A magia se foi e Curran também. O relógio dizia dez para as sete. Tempo de sobra para se vestir e chegar aos aposentos de Doolittle a tempo da reunião.
Um prato esperava por mim na mesa, coberto com um guardanapo de papel. No guardanapo, rabiscos ásperos de Curran diziam que ele saiu para ir falar com Mahon, que os bandos queriam se reunir para ‘discutir problemas’ e que eu não me esquecesse de comer.
Sob o papel, o prato continha dois ovos e um pedaço de presunto do tamanho ideal para um leão. Eu comi um terço dele, escovei os dentes, coloquei meu jeans e prendi minha espada. Novo dia, nova batalha.
Nossas malas haviam sido trazidas do navio. Procurei através delas e peguei minha cópia surrada do Almanaque das Criaturas Mitológicas. Eu o tinha lido de capa a capa tantas vezes que havia memorizado páginas inteiras, mas às vezes olhar para ele me ajudava a ligar os pontos.
Nunca ouvi falar de metamorfos se transformando em gatos com asas, mas desde que o Lyc-V estava presente no sangue, muito provavelmente o mecanismo da transformação era o mesmo: o vírus infectava alguma criatura e então infectava um humano. O primeiro passo era descobrir o que era a criatura.
Os felinos com asas não eram figuras muito comuns na mitologia, mas ocorriam. Freja73, uma deusa nórdica, tinha uma carruagem puxada pelo céu por dois gatos gigantes, Brygun e Trejgun, que provavelmente tinham asas. Eles eram azuis e não laranja e não mudavam de forma. A Esfinge74 era um felino com asas e cauda de serpente, mas também tinha um rosto feminino. Tinha o poder da fala e, não possuía escamas. Griffins75 tinham cabeças de águia, então eu poderia descartá-las. Já tinha visto um manticore, e esse não era um.
Vasculhei as malas, procurando por mais livros. O Bestiário Heráldico76 me informava que o leão de São Marcos77 era o símbolo da cidade de Veneza. Isso não ajudava muito, a menos que Lorelei fosse de Veneza e tivesse trazido um bando de gatos predadores alados para matar todos nós e sequestrar Curran.
Rapaz, ela realmente conseguiu me chatear.
Não, o mais provável é que o leão de São Marcos fosse uma referência aos quatro profetas de Ezequiel. Mateus foi retratado como um humano, Marcos como um leão, Lucas como um touro e João como uma águia. Eu poderia verificar em Apocalipse78, sempre era um bom lugar para as referências de todos os tipos de animais estranhos ...
Algo me incomodava e eu me concentrei nisso. Apocalipse. Para realmente entender o Apocalipse, era preciso ler o livro de Daniel79. Em algum momento eu devo ter encontrado algo no livro de Daniel que era relevante para isso, porque meu cérebro estava me dizendo para ir e pesquisar nele.
Vamos ver: Alcorão80, Mitologia do povo do Cáucaso81... Achei que tinha embalado uma Bíblia. Eu sei que fiz. Sacudi a mala de cabeça para baixo. Livros espalharam-se pelo o chão. Uma pequena edição verde da Bíblia caiu. Encontrei.
Eu me sentei no chão e folheei as páginas. Estava tão concentrada que, quando finalmente encontrei, fiquei olhando por alguns segundos, só para ter certeza de que estava realmente lá. Foi no capítulo sete, onde Daniel descrevia a visão de feras mágicas em um de seus sonhos proféticos: ‘O primeiro parecia um leão, e tinha asas de águia. Eu o observei e, em certo momento, as suas asas foram arrancadas, e ele foi erguido do chão, firmou-se sobre dois pés como um homem e recebeu um coração de homem.’
Daniel, 7,4
O cabelo na parte de trás do meu pescoço se levantou.
Um metamorfo. Um metamorfo felino com asas, que tinha a capacidade de se transformar em um homem.
Espremi meu cérebro, tentando lembrar o que eu sabia sobre Daniel. Ele era um nobre judeu que, junto com outros três, havia sido levado à Babilônia82 por volta de 600 a.C para servir como conselheiro na corte do rei da Babilônia, Nabucodonosor II83, cuja principal pretensão à fama histórica era a construção dos Jardins Suspensos para seu apreço pessoal. Daniel teve muitos sonhos proféticos e apocalípticos e, de acordo com todos os relatos, viveu até uma idade avançada, conseguindo sobreviver à política tóxica da Babilônia.
O que Daniel poderia ter encontrado na Babilônia para ter essa visão? As únicas criaturas parecidas remotamente eram o lamassu assírio84, mas não havia registros de que fossem metamorfos. O Império Assírio estava em uma região que eu conhecia bem. A antiga Assíria, Babilônia e Nínive já existiam muito antes da história registrada. Elas floresceram a partir das ruínas do antigo império do meu pai.
O relógio dizia que estava quase na hora da reunião. Eu teria que continuar a pesquisa mais tarde. Empilhei meus livros no canto da sala, peguei a Bíblia e o Almanaque, fui direto para o quarto de Doolittle e bati com os dedos na porta.
— Entre! —Eduardo gritou.
Abri a porta. Um grande quarto se estendia diante de mim, facilmente tão grande quanto a suíte de Desandra. Duas portas estavam abertas, uma à esquerda levando a um quarto, a outra à direita abrindo para um banheiro. À esquerda, duas mesas tinham sido colocadas na forma de L, frascos, lâminas e copos de vidro alinhados na superfície. Doolittle sentava-se no canto L olhando através de um microscópio. À direita, dois sofás macios de grandes dimensões ladeavam uma mesa de centro. Derek sentava-se no mais próximo, segurando cartas na mão. Ele brincava com elas e os unia em uma única pilha. Do outro lado dele, Eduardo descansava, tomando um sofá inteiro sozinho. Ele segurava suas cartas em um grande leque.
— Entre? Como assim, Eduardo? Você nem sabia se era eu. —O repreendi.
— É claro que sabíamos que era você, —disse Derek.
— Ele cheirou você chegando, —disse Eduardo.
Essa era a vida com metamorfos lobos. Por que eu?
Eu me sentei em uma cadeira perto da mesa de Doolittle.
Ele olhou para mim. Um par de óculos empoleirado no nariz.
— Por que você usa óculos? O Lyc-V não lhe dá uma visão perfeita? —Perguntei.
Doolittle bateu nos óculos dele. — Sim, mas estes me fazem enxergar mais perfeito ainda.
Sua voz com seus tons costeiros da Geórgia me deixou com saudades de casa, quase o abracei.
— Como está a cabeça decepada?
— Muito agradável. —Doolittle abriu um refrigerador que estava ao lado dele. Dentro, a cabeça decepada descansava envolta em plástico e meio submerso no gelo.
— Qualquer novidade?
Doolittle recostou-se. — É um metamorfo. O sangue reage à prata e mostra a presença do Lyc-V.
— Aha! Então eu não sou maluca.
— Você é definitivamente maluca, —disse Derek. — Mas de uma maneira desastrada e fofinha.
Eduardo bufou.
— Não me deixe ir até lá. —Eu olhei para Doolittle.
— Eles estão meio rebeldes esta manhã, —ele me disse. — Infelizmente, meus recursos aqui são limitados. Não tenho acesso a nenhum dos métodos de sequenciamento genético que tenho em casa.
Havia mais, eu podia sentir isso. — Mas?
— Mas há o teste de Bravinski-Dhoni.
— Nunca ouvi falar.
Doolittle assentiu com um pequeno sorriso. — Isso é porque não é muito útil em circunstâncias normais. Não é prático. Mas, no entanto, muito confiável.
Ele empurrou uma prateleira de madeira de tubos de ensaio85 para mim. Cada um deles estava pela metade de sangue. Um pequeno rótulo identificava cada tubo de ensaio: Urso, Lobo, Bisão, Hiena, Mangusto, Chacal, Lince, Texugo, Leão e Rato.
A maioria dessas amostras provavelmente eram da nossa equipe. — Onde você conseguiu o chacal, o lince e o rato?
— Os metamorfos locais, —disse Eduardo.
— Hibla ficou chateada, —elaborou Derek. — Quando você estava lutando, alguém acionou o mecanismo da grade que trancou o corredor. O mecanismo do portão era vigiado por um guarda.
— Deixe-me adivinhar, o guarda local foi assassinado de uma maneira horrível.
— Provavelmente, —disse Derek. — O corpo está faltando, mas havia muito sangue. Hibla quer saber o que está acontecendo.
Doolittle pegou uma pipeta86 e mergulhou-a no tubo de ensaio do Lobo. — A essência do teste é baseada nas propriedades de assimilação do Lyc-V. Quando confrontado com o novo DNA, ele procura incorporá-lo.
Ele abriu o tubo de teste do Urso e deixou cair duas gotas da pipeta. O sangue ficou preto, rodou e se dissolveu.
— Reagiu. —Eu imaginei. O Lyc-V mastigou o DNA estranho.
— Precisamente. —Doolittle pegou um tubo de ensaio marcado como Urso II. — O sangue neste tubo de ensaio é de Georgetta, mas o sangue na sua frente é de seu pai.
Ele pipetou algumas gotas do tubo de ensaio de George e deixou-as cair no sangue de Mahon. Nada aconteceu.
— Mesma espécie. Mesma espécie o sangue não reage. Espécies diferentes há uma reação.
— Mas a diferença no DNA humano não afetaria?
— Afetaria, mas você não verá uma reação dramática. —Doolittle se inclinou para frente. — Nós testamos o sangue do homem que você matou com todas as amostras aqui. Com cada um deles o sangue do homem misterioso reagiu.
— Até o lince e o leão?
Doolittle assentiu. — Seja o que for, pode até parecer felino, mas não é. Se for um felino, seu DNA é significativamente diferente do DNA de um lince ou de um leão.
— Então, para onde vamos daqui?
— Tentamos obter mais amostras, —disse Doolittle.
Isso seria problemático, no mínimo. Eu tentei imaginar caminhando até o Volkodavi ou Belve Ravennati e dizendo a eles: Oi, nós suspeitamos que um dos seus homens possa ser um monstro terrível, podemos ter o seu sangue?
Sim. E eles simplesmente se deitariam para doar uma amostra.
— Eu poderia provocar uma briga, —disse Derek. — Conseguiria um pouco de sangue dessa maneira.
— Sem brigas. Nós não iremos começar nada. Só nos defenderemos.
— Isso é exatamente o que eu disse a eles. —Doolittle fulminou Derek com seu olhar. — Além disso, Kate, se você encontrar outro espécime, tente mantê-lo vivo até eu chegar lá.
Ha-há. — Vou tentar, doutor. Minha vez. —Abri a Bíblia e mostrei-lhe o verso de Daniel.
Doolittle leu, ergueu os óculos na testa e leu novamente. — Eu li a Bíblia centenas de vezes. Não me lembro de ler isso.
— Você não estava procurando por isso.
Derek veio e leu o verso.
Eu os apresentei a breve história de Daniel. — As bestas no sonho de Daniel são geralmente interpretadas como significando reinos, neste caso Babilônia, que eventualmente cairão da glória. Mas se tomado literalmente, isso poderia significar um metamorfo.
— Havia felinos alados na Babilônia? —Perguntou Doolittle.
— A única coisa que pode encaixar eram os lamassu, —eu disse a ele. — Lamassu serviam como guardiões da antiga Assíria. Hoje em dia a Assíria abrange quatro países: o sul da Turquia, o oeste do Irã e o norte do Iraque e da Síria. Os assírios gostavam de guerrear e lutavam com a Babilônia, Egito e praticamente todos que podiam razoavelmente conquistar na antiga Mesopotâmia87, por cerca de dois mil anos. Por volta de seiscentos a.C, babilônios, cimérios e citas, todas as nações que antes pagavam tributo à Assíria, finalmente se uniram e a saquearam. Nós não temos muitos registros dos assírios. Eles deixaram para trás algumas cidades arruinadas e relevos de pedra que retratam coisas divertidas, como empalar vilas inteiras de pessoas subjugadas e andar de carruagem caçando leões.
— Pessoas divertidas esses antigos assírios, —disse Derek. — Eles caçam, cantam, dançam e empalam as pessoas.
Uma piada vinda de Derek! Finalmente. — Bastante. Eles também construíram lamassu, enormes estátuas de pedra que guardavam os portões da cidade e as entradas para os palácios assírios.
Abri o Almanaque e mostrei a foto das colossais estátuas. — Rosto humano peludo, corpo de leão ou touro e asas.
— Por que cinco patas? —Doolittle perguntou.
— É conceitual: de frente, os lamassu parecem estar parados, mas de lado parecem andar. Aqui está uma coisa interessante: a Assíria não era tão longe daqui de onde estamos, cerca de mil e seiscentos quilômetros na trajetória mais curta. São mil e seiscentos quilômetros de montanhas e estradas terríveis, mas em termos de país, a antiga Assíria e as antigas Cólquidas eram praticamente vizinhas.
Derek franziu a testa para a foto.
— Mas eles têm rostos humanos, —disse Eduardo. — E sem escamas.
Eu assenti. — E esse é o problema. Também existem dezenas de teorias sobre quem ou o que os lamassu representam, mas nenhum deles diz que eles eram maus ou que comiam pessoas. Eles são vistos como guardiões benevolentes. As pessoas encontravam amuletos com lamassu e feitiços de proteção, e os modernos assírios ainda têm suas imagens em suas casas.
Doolittle estudou a foto. — Criar uma criatura com cinco patas demonstra mais compreensão do que observação.
— O que você quer dizer com compreensão?
— Eles não seguiram simplesmente o padrão da natureza e fizeram exatamente o que observaram nela, —disse Doolittle. —Eles entenderam a diferença entre percepção e realidade e retrataram um conceito em vez da cópia exata do que podiam ver.
Doolittle pegou um pedaço de papel e uma caneta e começou a desenhar. — Quando nascemos, desenvolvemos o pensamento concreto. Percebemos apenas o que vemos e ouvimos. —Ele nos mostrou o pedaço de papel. Nela, uma pomba sobrevoava uma gaiola esmagada.
— O que você vê?
— Um pássaro voando longe de uma gaiola quebrada, —disse Derek.
— O que simboliza?
— Liberdade. —Eu disse.
— O que mais?
— Fuga. —disse Eduardo.
Doolittle virou-se para Derek.
— Deixar um lugar que aparentemente é seguro para se aventurar no desconhecido, —disse Derek. — A gaiola é tudo que o pássaro conhece, o céu é tudo o que ele ainda quer fazer, mesmo que seja um risco.
— Ah! —Doolittle levantou o dedo indicador. — Todos esses são exemplos de pensamentos abstratos. Toda a nossa cultura é baseada na ideia de que um único conceito pode ter muitas interpretações diferentes. Nós encorajamos ativamente o desenvolvimento dessa habilidade, porque nos ajuda a resolver nossos problemas de novas maneiras. Assim fizeram os antigos assírios, aparentemente. Ao olhar para o lamassu, temos que considerar não apenas o que é, mas o que ele pode representar. Não podemos simplesmente tomar isso pelo significado concreto.
A pergunta de um milhão de dólares era, o que um grande felino com rosto humano e asas poderia simbolizar?
Uma batida soou e Andrea e Raphael entraram no quarto. Keira se aproximou e piscou para Eduardo.
— Pare com isso. —Eduardo disse a ela.
Eu me inclinei para Doolittle. — O que você acha que representa?
— Deixe-me pensar sobre isso, —disse ele.
Barabas foi o último a chegar. Estávamos sentindo falta de Curran e Mahon, e de Tia B e George, que estavam guardando Desandra. Teríamos que fazer a reunião sem eles.
— Desandra não se dá bem com os homens, —eu disse. — Precisamos ter uma mulher com ela o tempo todo. Estou pensando em três turnos, duas pessoas por turno. Meia-noite às oito da manhã, oito às quatro da tarde e de quatro à meia-noite. Voluntários?
Raphael levantou a mão. — Vamos pegar das oito as quatro.
— Eu posso pegar de quatro a meia-noite, —eu disse. — Preciso de um parceiro.
Derek levantou a mão. Perfeito.
— Vou pegar da meia-noite às oito, —disse Keira. — Não me importo de dormir no quarto e falei com George na noite passada. Trabalharemos bem juntas.
— E eu? —Perguntou Eduardo.
— Você e nosso bom médico estão unidos pelo quadril pelo resto da nossa estadia aqui, —eu disse. — Tenho a sensação de que Curran estará ocupado.
— Ele estará. —Barabas confirmou. — Tenho vários pedidos de reuniões com ele. Ele é um intermediador, então toda vez que os bandos decidirem conversar, irão querer Curran lá.
— Isso nos deixa com você, Mahon e Tia B. —eu disse. — Vou conversar com os dois e ver se eles se importariam em agir quando estivermos precisando de apoio extra: doze horas alertas, doze horas de folga. As mesmas instruções da noite anterior até segunda ordem: não vamos a lugar algum sozinhos, não assumimos riscos e, acima de tudo, não nos permitimos ser provocados. Uma última coisa: a pessoa mais perigosa neste castelo não é Jarek Kral ou qualquer um dos alfas dos bandos. É Megobari, o Senhor do Castelo.
Keira levantou as sobrancelhas.
— Você me viu lutar, —eu disse. — Não posso explicar agora, é complicado e estamos sendo ouvidos, mas digo isso com toda a credibilidade que tenho: ele é extremamente perigoso. Tem os meios e capacidade de matar todas as pessoas nesta sala e fará isso sem qualquer hesitação. Não o subestime.
Se essa criatura que combati for de fato um lamassu, Roland saberia sobre ela. Ele poderia até tê-lo usado, o que significava que Hugh também poderia usá-lo. Não tinha ideia qual seria o objetivo. Mas eu descobriria.
A reunião terminou, Raphael, Andrea e eu caminhamos para o quarto de Desandra. Eles começariam seu turno e eu queria checar Desandra.
— Eu estava pensando, —disse Andrea.
— Esse é um hábito perigoso.
— Eu vivo dizendo isso a ela, —disse Raphael.
— Oh, vocês dois estão em um motim. De qualquer forma, estava pensando que deveríamos espremer Desandra e tentar arrancar alguma informação dela. Ela conhece os dois bandos. Tem que ter uma ideia do que está acontecendo.
— Acha que conseguiremos tirar algo dela? —Para mim Desandra parecia tão estável quanto as ilhas havaianas—parecia bonita, mas se você procurasse mais a fundo, encontraria um vulcão. A última coisa que eu queria era que ela surtasse de vez no nosso turno.
— Certo. Você a viu. Ela não tem ninguém para conversar. Enquanto formos agradáveis e usarmos luvas de pelica, ela ficará feliz em conversar. Nós vamos conversar com ela.
Conversa de garotas, certo.
— Eu vou ficar no corredor, —Raphael nos disse.
Um minuto depois, Andrea e eu entramos no quarto de Desandra. George estava sentada na cama ao lado dela, que parecia tranquila, sem birras e beicinhos. A Tia B sorria de um jeito benigno, enquanto George cuidadosamente trançava o cabelo de Desandra.
Pedaços de papel de presente prateados e pedaços de papelão enchiam o tapete. Junto a eles estava uma escova de limpar vaso sanitário quebrada com um laço de fita e um cartão pendurado.
Longos fios de cabelos loiros estavam no carpete, sobre o papel de presente. Suas pontas sujas de sangue.
Eu apontei para a escova. — O que é isso?
— O pai dela mandou um presente para ela, —disse George com os dentes cerrados. — O cartão diz: Agora você terá algo para se defender da próxima vez.
Aquele maldito bastardo.
Eu balancei a cabeça para o cabelo. — E isso?
— Depois que recebemos o presente, ficamos um pouco emocionadas e arrancamos um pouco de cabelo, —disse Tia B. — Mas então decidimos que nosso cabelo era bonito e não deveríamos nos desfigurar, especialmente porque não machucaria nosso querido pai. Nem um pouco.
— Vai voltar a crescer, —disse Desandra.
— Não se preocupe, —George disse a ela. — Eu tampei todos os espaços sem cabelo.
— Por que você não escapou há muito tempo? —Perguntou Andrea. — Bastava ter saído e fugido para algum lugar onde ninguém tenha ouvido falar de Jarek Kral.
Desandra encolheu os ombros. — E fazer o que? Ser o que? Eu sou alguém aqui. Isso é tudo que sei ser. Além disso, onde eu poderia ir que ele ou um desses idiotas com quem ele me casou não me encontraria?
George terminou o cabelo e saiu da cama.
— Ela é toda sua, senhoras. —Disse a Tia B. — Estamos indo para nos refrescar.
Andrea estacionou-se na porta. Ela carregava duas SIG-Sauers88 em coldres de quadril, uma espingarda de assalto militar89 nas costas e, provavelmente, mais algumas armas em lugares que eu não conseguia ver.
— Como você está se sentindo hoje? —Perguntei. Kate Daniels, mestre de conversa de garotas.
— Como merda. Você já esteve grávida?
— Não.
— Deixe-me resumir para você: seus pés doem, suas costas doem, seus quadris doem. Nenhuma de suas roupas cabe, porque seu útero, que tem normalmente o tamanho de uma maçã, foi esticado ao tamanho de uma bola de basquete. As pequenas criaturas dentro de você continuam te chutando e girando. Você não pode comer coisas que normalmente come—elas te deixam nauseadas. Em vez disso, você come coisas estranhas como pepinos marinados e não pode parar até que eles também de deixem nauseados. O pior de tudo, você não é mais uma pessoa. Você é um contêiner. Todo mundo fica olhando, esperando o momento que você colocara seu bebê para fora.
Mordi a língua antes de dizer algo que a faria se aborrecer. — Esqueça o que eu perguntei.
Desandra encolheu os ombros.
— E os pais das crianças? —Andrea gritou. — Algum deles vem te ver?
— Radomil veio duas vezes. Gerardo também, mas ele é ... —Desandra moveu as mãos como se estivesse nadando estilo cachorrinho.
— Complicado? —Eu imaginei.
— Sim. Radomil não se importa que eu esteja carregando os dois bebês. Ele gosta dos dois. Mas me ofereci deixar Gerardo tocar minha barriga e sentir os bebês chutarem, e ele me disse que não queria porque não saberia se seria seu filho ou o de Radomil que estaria chutando. —Desandra suspirou. — Ele acha que sou uma puta porque dormi com Radomil.
Andrea fez grandes olhos para mim e assentiu me avisando para continuar.
Certo, continuar. Eu poderia fazer isso. — Por que você dormiu com Radomil?
Andrea colocou a mão sobre o rosto. Eu fiz uma careta para ela. Sabe de uma coisa, espertinha? Você vem fazer isso e eu vou ficar na porta.
Desandra endireitou-se. — Eu não sou uma puta, se é isso que você está perguntando.
— Eu não disse que você era. Estou apenas tentando entender as coisas. Acho que está claro que alguém está tentando te matar. Quanto mais eu souber, melhor posso antecipar novas ameaças.
Desandra suspirou novamente. — Bem. Quando eu tinha dezessete anos, o bastardo do meu pai, me casou com Radomil. Radomil tinha vinte e poucos anos. Eu pensei que minha vida tinha acabado, mas depois percebi que não era pior do que a vida que eu tinha em casa.
— Como foi? —Andrea perguntou.
— Não foi ruim, na verdade. Eles moram em lugar bonito em uma colina da Ucrânia. Havia pomares e bosques por toda parte. Aldeias. Nós íamos à cidade todos os sábados e passávamos pelo mercado. Radomil sempre me comprava alguma coisa. Ele é um cara legal. —Desandra se inclinou para frente. — Muito bom de cama. Quero dizer realmente muito bom. Eu não saia muito. Nós estávamos sempre ocupados. Você entende.
Sim, sim, nós entendemos. Você teve muita foda. — E sua família?
— Eles são legais. Sua irmã, Ivanna, é gente boa, e ela e seu irmão são inteligentes. Radomil ... Ele não é burro. É apenas ... Ele pensa de maneiras simples. Ele não se preocupa com a política. Eu soube pelos outros depois de um mês de casada que ele nunca estaria no comando.
— Qual é a fera dele? —Perguntei.
— Ele é um lince. Toda a sua família é.
— O que aconteceu com os pais deles? —Andrea perguntou.
— Mortos. —Desandra encolheu os ombros. — Morreram alguns anos atrás quando estavam lutando por seu território. Agora a família é Radomil, seus dois irmãos e duas irmãs. Ah e o avô deles. Ele é muito velho. Anda com uma bengala e metade do tempo não sabe onde está. Eu gostava de morar lá. Eles não me envolviam muito com as coisas da família, mas eu era muito jovem, não me importava.
— Então, por que você terminou? —Perguntei.
— Meu pai cancelou meu casamento. Eu só vivi com Radomil por cinco meses. Kral veio e me pegou.
— Radomil não lutou por você? —Andrea perguntou. Eu podia ver em seu rosto. Se alguém tentasse tirar Raphael dela, ela mataria qualquer coisa que estivesse em seu caminho para mantê-lo.
Desandra sacudiu a cabeça. — Ele não queria que eu fosse embora, mas seu irmão o convenceu a sair disso. Três anos depois me casei com Gerardo. Estive com ele por dois anos.
— Você gostava dele?
Desandra estava olhando para as mãos, o rosto cansado. — Sim. Eu gostava dele. Mas isso não importa agora.
— Eu sei que é uma droga, mas o que você me disser pode me ajudar a entender o que está acontecendo melhor.
Outro suspiro. — Isabella e seu marido dominam o Belve Ravennati. Gerardo e Ignazio têm algum poder, mas não o suficiente para fazer algo maior sem que seus pais assinem uma linha pontilhada. Isabella nunca gostou de mim. Enquanto a família de Radomil sempre foi descontraída, os Belve Ravennati sempre foram muito sérios. Tudo é importante e é tudo sobre dever e cuidar dos interesses da família.
Desandra enfiou um dedo na boca e imitou a ânsia de vomitar. Encantador.
— Eu era companheira de um beta. Eu deveria ter responsabilidades. Eles não me deixavam fazer nada. Estava tentando aprender um pouco de italiano e entrei sem querer em uma reunião deles e ouvir sua mãe dizer a Gerardo que eu era apenas um arranjo temporário. Então Isabella, Gerardo e eu estávamos na cúpula do comércio em Budapeste. Eles participaram dessa importante reunião. Eu poderia ter ido, mas sentei lá fora com os betas.
— Por quê? —Andrea perguntou.
— Porque os betas não sabem como manter a boca fechada, —disse Desandra. — Eles ficam entediados e grosseiros. Se você ouvir atentamente, pode descobrir as coisas.
Certo. Ela não era tão burra quanto fingia ser.
— Depois da reunião, meu pai me encontrou e me disse para fazer as malas. Eu disse a ele que não faria isso. Eu fui encontrar Gerardo. Ele estava fora de si. Esses quatro caras que seguem o meu pai por aí? São assassinos. Dois lobos, um rato e um urso. Eles fazem o que ele manda. Eles não têm ... conscientização.
— Consciência? —Eu imaginei.
— Sim. Isso. Eles foram me buscar na minha casa e disseram que iriam me levar. Gerardo disse que a única maneira de conseguir que eu ficasse seria lutar com meu pai. —Desandra olhou para mim. — Você não tem ideia do quanto meu pai é cruel. Eu vi ... —Ela mordeu o lábio. — Eu vi pessoas morrerem de formas que você nem imagina.
Suas narinas se alargaram. Ela se curvou ligeiramente, abraçando-se. Verde rolou sobre suas íris, esmeralda contra o negro das pupilas dilatadas. Ela pareceu inconscientemente se afastar de mim, colocando mais espaço ao redor de si mesma. Eu vi essa emoção o suficiente para reconhecê-la. Desandra estava com medo. Ela estava se lembrando de algo e a lembrança a petrificou.
— Eu gostava de um rapaz fofo da computação. Ele usava óculos. Trabalhava para o nosso bando. Ele fez alguma coisa—eu nem sei o que foi—e meu pai enfiou a cabeça dele em uma lança. Por dias podia ver da janela do meu quarto. Tive que mover minha cama para que a cabeça morta do cara bonitinho que beijei não estivesse olhando para mim enquanto eu dormia.
Se eu tiver a chance de matar Jarek Kral, farei. Nem precisei de provas para saber que ela estava dizendo a verdade. Pode-se fingir medo, mas não as respostas involuntárias do corpo a ele.
— Eu disse a Gerardo que lutar com meu pai era suicídio. Ele não era bom o suficiente para vencer meu pai comigo ou sem mim. Ele disse que eu era fraca e se eu não estivesse disposta a lutar com ele, eu deveria ir embora. E então ele pegou minhas roupas e as jogou no corredor.
Todo mundo que essa mulher conhecia a tratava como lixo. Ela não fazia nenhum esforço para lutar ou fugir. Simplesmente aceitava e atormentava a si mesma e aos outros em desafronta.
Desandra encolheu os ombros. — Eu não podia acreditar. Tínhamos feito sexo naquela manhã. Pensei que ele me amava, mas ao invés disso me expulsou. Eu tinha que sair de lá. Nós estávamos hospedados em um enorme hotel, então me escondi em uma varanda. Eu só queria chorar. Radomil me encontrou. Eu me sentia realmente sozinha e ele foi legal comigo. Ele me segurou e me disse que tudo daria certo. Eu também queria me vingar de Gerardo, então fizemos sexo ali mesmo naquela varanda.
Tá vendo? Era isso que você queria? Toda a feia história.
Raphael entrou pela porta.
Desandra endireitou-se e colocou uma perna sobre a outra. — Ei, lindo.
Toda vez que eu conseguia arranjar um pingo de simpatia por ela, ela fazia algo para incendiá-la.
Raphael olhou para ela. — Não estou interessado.
— É a barriga, não é?
— Não. —disse Andrea. — Sou eu. O que foi querido?
— Estamos indo em uma caçada.
— O quê? —Eu perguntei.
— Uma caçada. —disse ele. — Em cavalos.
Que diabos ...? — E da próxima vez iremos para um torneio de lanças? Talvez devêssemos nos reunir em uma Távola Redonda90?
Raphael deu de ombros. — Se fizermos isso, não vou querer usar armadura. Estamos todos convidados para a caçada e tenho certeza que é obrigatório.
— Ótimo! —Desandra pulou da cama. — Qualquer coisa para sair daqui.
Eu apontei meu dedo para ela. — Fique quieta. Todo o castelo está indo?
Raphael assentiu. — Todo mundo está indo.
Se ficássemos para trás, poderíamos ser emboscados e, com o castelo vazio, ninguém saberia nem se importaria.
Hugh estava tramando alguma coisa. — Eles sabem que ela está grávida de oito meses?
— Parece que sim. Aparentemente, há um prêmio se você vencer.
Ir caçar no meio das montanhas ou ficar em um castelo abandonado com uma Desandra histérica e sem assistência em caso de um ataque iminente? Escolhas, escolhas. — Vamos caçar.
A estrada se curvava diante de mim, seguindo uma margem de um lago verde à nossa esquerda. O lago era calmo, tocava suavemente a parte inferior da montanha projetando-se para ela. Altos ciprestes-italianos91 se alinhavam na estrada, cada um perfeitamente reto, como uma vela cônica, e entre eles, árvores de louro92 espalhavam seus galhos. À direita, via-se as encostas da montanha em fileiras compridas e suavemente curvas.
Minha égua era uma baio93 robusta e encorpada, com ombros curtos e cabeça reta. Ela se locomovia tranquilamente, subindo a velha estrada asfaltada, sem se importar com o cheiro de metamorfos por todos os lados. Eu tinha a sensação de que poderia guiá-la diretamente para o lago e ela não iria se contorcer.
Metamorfos caminhavam e andavam ao meu redor. Desandra tinha seu próprio cavalo. No começo, ela queria andar, então eu argumentei contra, e argumentei também contra o passeio a cavalo, mas ela bateu o pé a qualquer sugestão de usar uma carroça. Disse que não estaria andando de carroça, e que ela era filha de um alfa, e se não conseguisse o que queria, arrancaria algumas gargantas. Acabei avaliando todos os cavalos disponíveis para nós e escolhi a criatura mais velha e mais dócil que pude encontrar. Agora eu tinha uma mulher grávida em um cavalo que não parava de farejar. Claramente a égua tinha uma séria suspeita de que a humana que a montava era realmente um lobo e estava considerando fugir por sua vida. O útero de uma metamorfa loba tinha que ser feito de aço, porque não só Desandra não mostrava sinais de aflição, como também parecia nova como uma margarida.
Andrea também escolhera montar um cavalo. Estar em uma sela nos dava um bom campo de visão, e se precisássemos poderíamos usar os cavalos para bloquear uma ameaça. Derek decidira caminhar e alguns outros também, incluindo Curran, que estava convencido de que todos os cavalos tramavam secretamente contra ele. Como Andrea e eu mantivemos Desandra entre nós, ele acabou andando à minha esquerda e um pouco à frente, e Lorelei decidiu caminhar ao lado dele.
Eu ainda não consegui descobrir como ela estava envolvida em todo este caso. Tanto quanto eu poderia dizer, ela não parecia ter nenhum vínculo com os três grupos envolvidos.
Lorelei usava uma blusa azul clara e jeans que abraçavam sua bunda. Seu cabelo estava solto, soprando ao vento. Se estivéssemos em casa, alguém estaria enchendo meu saco a essa altura, porque, segundo os padrões do Bando, eles estavam andando muito perto e eu seria obrigada a rosnar, mas não estávamos em casa, e Barabas, andando em um cavalo branco diretamente atrás de mim estava quieto.
Lorelei conversava algo sobre esmagar uvas e fazer doces com vinho. Curran assentia. Eu peguei um vislumbre de seu rosto. Ele estava sorrindo. Parecia estar se divertindo. Eles estavam andando juntos e eu estava presa aqui. No meu cavalo.
Deveria ter sido mais do que uma linda jovem de vinte e um anos para me perturbar. Esta era uma experiência nova e indesejável. Culpa desse lugar. Todo mundo aqui estava esperando nos esfaquear pelas costas, então eu provavelmente estava vendo mais do que realmente é. Lorelei era uma criança. Legalmente, poderia ter vinte e um anos, mas quando ele a conheceu, ele tinha vinte e dois anos e ela doze. Só isso já deveria garantir que nada estava acontecendo.
Ela era filha de um homem que Curran conhecia, presa aqui provavelmente contra sua vontade, e ele estava sendo gentil com ela, porque poucas pessoas o eram. Ele e eu passamos por tanta coisa juntos. Ele me amava, eu o amava e precisava parar de medir a distância entre eles e prestar atenção ao meu ambiente. Eu tinha um trabalho a fazer.
Ninguém exigiu que eu usasse um vestido para a caça, então eu usava jeans, uma camiseta e um casaco masculino verde, que deixei desabotoado e enrolado nas mangas. Usava meu cinto com uma variedade de ervas em pequenas bolsas, meus protetores de pulso de couro estavam cheios de agulhas de prata, e eu levava duas espadas, a Matadora, que estava nas minhas costas, e uma outra espada, que usava no meu quadril. Qualquer um que tivesse um problema com o meu arsenal extra era bem-vindo para fazer o meu dia.
Hugh participava da comitiva. Ele montava um monstro de cavalo, um enorme garanhão, um baio mais escuro que a minha, com uma mancha branca na testa e manchas brancas nas patas. O cavalo dele era uma mistura das raças Shire94 e Clydesdale95, mas as características eram mais limpas e o peito mais desenvolvido. Era o tipo de garanhão que um cavaleiro iria para a guerra.
Hugh se aproximou. Ele usava um longo casaco preto, o mesmo modelo que o casaco de Hibla. O casaco era justo ao corpo e amarrado na cintura. Ele levava, atravessado ao peito, cintos de balas96 preenchidos, o casaco fazia seus ombros mais largos, sua cintura mais magra e seu corpo mais alto. Ele parecia estar à vontade com a coisa toda. Já que fingia ser o Senhor do Castelo, provavelmente decidiu vestir a fantasia por inteiro. Nenhum punhal, no entanto. Em vez disso, tinha uma espada de comprimento total em uma bainha. Eu só podia ver o punho, simples couro funcional com uma cruz de proteção.
Andrea se afastou para deixá-lo andar ao lado de Desandra.
Hugh se inclinou para frente, preocupação em seu rosto. — Como você está se sentindo hoje?
Desandra se sentou mais ereta. Era como se ela não pudesse se controlar. Qualquer coisa masculina imediatamente a chamava atenção. E Hugh era bonito, de um jeito masculino agressivo: olhos azuis, cabelos escuros e uma mandíbula quadrada raspada, tão bem feita que pensar em socá-la me fazia estremecer. Ele estava cercado por pessoas que se transformavam em assassinos naturais e inteligentes, mas estava completamente imperturbado, como se soubesse, com cem por cento de certeza, que se todos nós o atacássemos, ele poderia lidar com isso.
Curran tinha uma áurea feroz. Você sentia instintivamente que ele nunca estava muito longe da violência. Ela fervia sob sua pele, e quando ele queria intimidar você, o olharia como se você fosse uma presa. Mas Hugh era firme como uma rocha. Ele ria, de uma maneira fácil e bem-humorada, e enquanto isso arrancava sua cabeça.
— Estou bem. —Disse Desandra. — Obrigada por perguntar.
— Deixe-me saber se o passeio ficar muito difícil. Uma palavra e eu vou virar essa comitiva de volta. —Ele piscou para ela.
Desandra deu uma risadinha.
O que você está planejando, Hugh? Qual é o problema?
— Sinto muito por ontem, —disse Hugh. — Meu pessoal está investigando o assunto. Nós vamos encontrar quem mandou aquele filho da puta.
— Eu tenho certeza que você vai. —Desandra sorriu.
E eu tenho certeza que ele não vai.
— Faremos o nosso melhor para garantir sua segurança.
Eu acho que apenas o vômito subiu um pouco pela minha garganta. — De acordo com o contrato feito com o nosso Bando, somos nós que devemos garantir a segurança dela. Você está dificultando, encorajando-a a continuar nessa caçada.
— Eu amo caçadas. —Desandra apertou os dentes e me deu um olhar aguçado.
— Há muito pouco risco, —disse Hugh. — Ninguém tentaria nada com todos nós aqui.
— Ela está grávida de oito meses. —Qual diabos era a razão por trás de puxá-la para fora do castelo de qualquer maneira?
Hugh sorriu para mim, exibindo dentes brancos e uniformes. — Você tem que parar de medir um metamorfo pelos padrões humanos.
— Estou perfeitamente bem, —disse Desandra.
Ah, idiota. — Se a égua te jogar ...
— É para isso que você trouxe um médico-mago, —disse Hugh, apontando para trás, onde Doolittle cavalgava em uma égua castanha. — Ele parece ser muito capaz.
Curran se virou e estava olhando para nós com aquela expressão dele de Senhor das Feras.
— Bem, eu vou deixar você nas mãos hábeis de seus guarda-costas, —disse Hugh. — Alguém tem que liderar esta comitiva, ou podemos acabar em algum deserto e ter que roubar ovelhas para o jantar.
Desandra riu novamente.
Hugh estalou a língua e o garanhão levou-o suavemente para a frente do nosso desfile.
— Qual é o seu problema? —Desandra olhou para mim.
Eu me inclinei para ela e mantive minha voz calma. — Aquele homem é perigoso. —E se alguém me perguntasse há seis meses o que aconteceria se nós dois nos encontrássemos, eu diria que Hugh me atacaria na hora. Em vez disso, estávamos agora em uma caçada, trocando amabilidades farpadas.
— Ele é um humano. —Desandra zombou. — Eu posso arrancar sua garganta com uma mordida.
E nós estávamos de volta nessa obsessão de rasgar gargantas. Eu pensei em dizer a ela que eu era uma humana e em uma luta entre nós duas, ela não tinha chances, mas as pessoas estavam nos ouvindo. Além disso, ameaçar a pessoa que você está protegendo nunca era uma boa ideia. Ela se ressentiria de mim e, sem sua cooperação, manter sua vida seria muito mais difícil.
— Nem todos os humanos são iguais, —disse Andrea.
Se Desandra achasse que poderia lutar contra o preceptor dos Cães de Ferro, ela teria uma surpresa nada agradável. Hugh decidiria exterminar a todos que estivessem ligados a ela, começando pelos parentes e ex-maridos, e então celebraria com uma boa garrafa de vinho local.
A estrada subia cada vez mais alto até que finalmente chegamos a uma clareira limitada com enormes placas de pedras cinzentas. Escondida contra o penhasco de uma montanha, a clareira se espalhava em uma forma de trapézio97, com o lado mais estreito voltado para a montanha. Um curral feito com madeiras rústicas foi construindo diretamente contra a montanha. Abaixo de nós, bosques se espalhavam, verdes e exuberantes, subindo e descendo as curvas das montanhas até onde podíamos ver.
Três tronos de pedra estavam à beira da clareira, esculpidos na rocha com traços rústicos suavizados por séculos de chuva. O trono do meio se elevava, enorme, como se fosse feito para um gigante, e os outros dois eram menores. Pareciam ser muito antigos, assim como as lajes de pedra sob nossos pés. Este era um lugar antigo, permeado pela idade. Séculos atrás, algum tipo de rei deve ter se sentado aqui, no trono de pedra, examinando as montanhas.
Os djigits de Hibla desmontaram e vieram em direção aos nossos cavalos. Depois que também desmontamos, eles os levaram até o curral pela montanha e os amarraram.
Hugh sentou no trono. Me poupe ...
— Senhoras e senhores. As florestas que estão diante de vocês são ricas em diversão. Elas estão cheias de veados vermelhos98, de turs99—rei dos antílopes da montanha—gazelas, muflão100 ou ovelhas selvagens e cabras selvagens.
Ele claramente tinha experiência em falar em público. Sua voz ressoava através da clareira, alta o suficiente para ser ouvida por todos, mas ainda amigável e perfeitamente compreensível. Ele deve ter aperfeiçoado a habilidade dando discursos para suas tropas. ‘Hoje à noite nós estupraremos, mataremos e saquearemos ...’
— Nestas montanhas, temos uma boa tradição da caça de verão. As regras são simples: equipes de caçadores partem de manhã e retornam até o final do dia. Sua caça será examinada e julgada. Apenas animais adultos podem ser caçados. Aqueles que matarem jovens ou fêmeas com filhotes serão desqualificados. A equipe que vence a caçada ganha um prêmio do Senhor do Castelo.
Oh garoto, oh garoto.
Dois djigits trouxeram uma moldura retangular coberta com tecido azul escuro.
— Estamos dentro dos limites da antiga Cólquida. —Continuou Hugh. — Este é o berço da própria Geórgia. Muito antes da Era Comum, um reino de guerreiros e poetas floresceu aqui. Enquanto os habitantes da Europa ainda lutavam com instrumentos brutos de bronze, os ferreiros-feiticeiros de Cólquida dominavam o ferro e o ouro. Hoje prestamos homenagem à sua glória passada.
Hibla se aproximou do tecido e o puxou com um movimento de sua mão.
O ouro cintilava, brilhando sob a luz do sol. As pessoas ao meu redor sugaram uma respiração. O pêlo de um carneiro foi esticado na armação. Cada pêlo de quinze centímetros de comprimento de sua densa lã brilhava banhada com ouro amarelo radiante. Uau.
— Eu darei ao vencedor o Velocino de Ouro! —Proclamou Hugh.
Aplausos ondularam pela clareira. Alguém uivou excitado.
— Como os Argonautas de Jason, que vieram aqui em busca das riquezas de Cólquida, todos vocês viajaram para cá. Mas as riquezas que buscam são de um tipo diferente, as riquezas da sabedoria e da amizade. Este é o nosso presente para vocês. É meio dia. Vocês terão três horas para a caçada. Provem que são caçadores de primeira. Provem sua bravura e sua habilidade. Vão agora e o bando que trouxer a melhor caça para o nosso banquete esta noite ganhará direito de se gabar e o Velocino de Ouro.
A clareira tremeu quando cem pessoas aplaudiram em uníssono. A excitação carregou o ar. Eles estavam muito perto de começar a se transformarem. A perspectiva de uma caçada depois de serem confinados em um castelo empurrou os metamorfos para cima.
— E há um segundo prêmio, mais humilde, mas talvez mais útil.
Hibla levantou um recipiente de vidro. Segurava um saco plástico com um litro de pasta acastanhada. Panaceia.
— Será concedido ao metamorfo que matar o animal mais bonito.
Os olhos de Andrea se iluminaram. Ela deu uma cotovelada em Raphael.
— Antes que eu esqueça! —Hugh explodiu. — Olhe para a esquerda. Vocês vêm aquela passagem estreita entre duas montanhas? Fiquem longe dessa passagem. As criaturas que moram lá não aceitam intrusos. Meu povo irá junto com vocês como fiscais para garantir que vocês obedeçam às regras da caça. Boa sorte a todos!
— O Velocino de Ouro pertencerá a Obluda! —Rugiu Jarek Kral.
Desandra puxou o vestido pela cabeça.
— Não! —Eu gritei.
— Vou caçar. —Disse Desandra.
— O que vai acontecer com as crianças quando você mudar de forma?
— Elas vão mudar de forma também, —Lorelei me disse com um pequeno sorriso. — É muito comum que as mulheres metamorfas mudem de forma durante a gravidez. Alivia o estresse na coluna. Estou surpresa que você não saiba disso.
Eu me virei procurando por Doolittle. — Isso é verdade?
Doolittle assentiu. — Desde que ela não fique na forma de um animal por mais de algumas horas e não tente uma meia-forma, ela não deve ter problema.
Não havia nenhuma maneira no inferno que eu pudesse acompanhar um lobo. Eu me virei para Curran.
— Vai ficar tudo bem, —disse ele. — Nós vamos cuidar dela.
O que? — Eu pensei que você estaria do meu lado nisso.
— Estou.
— A humana está com muito medo de ficar sozinha. —Renok, o segundo em comando de Jarek Kral, sorriu para mim. — Você quer alguma companhia?
Curran se virou e olhou para ele. Eu tinha que dar crédito a Renok. Ele não vacilou. Muito corajoso ou muito estúpido. Possivelmente ambos.
— Certamente o Senhor das Feras não vai ficar para trás, —disse Hugh. — Os alfas de todos os outros grupos irão participar.
E agora, se ele ficasse para trás, seria um insulto gigante. As peças se encaixaram na minha cabeça. Hugh estava ansioso para conversar, e realmente queria ficar sozinho comigo. Ele não conseguia me separar dos outros no castelo, então tirou todo mundo de lá.
Curran olhou para mim. — Eu sei que você está preocupada com Desandra. É por isso que todos nós vamos garantir que nada aconteça com ela. —Ele fez uma pausa, certificando-se de que nossos olhares se conectassem. Seus olhos cinzentos eram claros e calmos. — Voltaremos antes que você perceba.
Eu ainda estava olhando para os olhos de Curran quando o rosto ao redor deles cresceu e mudou. Pêlo cinza o cobriu. Um enorme leão cinza estava em seu lugar.
As pessoas congelaram. Alguns olhavam de queixo caído. Alguns piscaram. Curran em forma de leão era chocante.
— Consorte? —Ele disse, palavra humana saindo perfeitamente da boca de um leão.
Eu tinha que dizer alguma coisa. — Boa sorte.
Ele levantou a cabeça e rugiu, o som de seu rugido se espalhando pela montanha. Metamorfos se encolheram.
Hugh sacudiu a cabeça, enfiou o dedo no ouvido e mexeu-o.
Lorelei tirou o vestido e deu um passo à frente, completamente nua, ombros para trás, a cabeça erguida. A nudez durou apenas um momento, antes de seu corpo se transformar em uma loba cinzenta esbelta, mas um momento foi o suficiente. Curran a vira. Ela ia caçar com ele, enquanto eu estaria presa aqui. Foda-se tudo para o inferno.
Nosso grupo cercou Desandra. Seu corpo girou, estendendo-se, a transformação tão rápida que foi quase instantânea, e ela se tornou uma enorme loba negra.
Todos ao meu redor mudaram. Mahon, uma enorme montanha escura de um urso Kodiak, rosnou ao lado de George, que não era muito menor. Keira rugiu, uma jaguar escura e ágil. Lobos, linces e chacais encheram a clareira. Eu era a única não metamorfa aqui?
Curran avançou pela encosta. Nosso povo e Desandra seguiram. Barabas parou, ainda humano.
— Vá. —Eu disse a ele. Tê-lo comigo não faria muita diferença, e Hugh encontraria algum pretexto para mandá-lo embora.
O corpo de Barabas se sacudiu. Um metamorfo mangusto do tamanho de um Rottweiler desceu a encosta atrás deles.
Curran estava caçando com Lorelei. O pensamento me feria, recusando-se a ir embora. Não deveria me incomodar, mas incomodava. Eu não queria que ele tivesse ido.
Um bando de lobos cinzentos saiu correndo—os Belve Ravennati partiram. O bando de Jarek—lobos, ursos e alguns ratos—seguiram para o sudeste, enquanto os linces Volkodavi cor de areia dispararam para a direita. Em um suspiro, a clareira estava vazia. Roupas descartadas cobriam as pedras antigas. Cavalos bufavam em seu curral.
Todo mundo foi embora.
— Então. —Disse Hugh. — Você nunca me contou se gostou das flores que eu mandei?
Capítulo 10
Eu me virei e olhei para Hugh, sentado no trono, com o braço esquerdo dobrado, o cotovelo apoiado no apoio de braços, apoiando a cabeça nos dedos curvados da mão. Estamos confortáveis, hein?
Esperei por esse momento a maior parte da minha vida. Agora que ele chegou eu não tinha ideia do que fazer com isso. Ansiedade corria através de mim em uma inundação gelada. Na minha cabeça, sempre imaginei que esse encontro envolveria espadas sangrentas e esfaqueamento. A falta de esfaqueamento era profundamente desconcertante.
— Me diz uma coisa, o que faz quando não há um trono pronto, esperando por você? Você carrega um modelo portátil, ou simplesmente dá ordens e conspira em qualquer lugar, como cadeiras de jardim e bancos de bar?
— Seu pai uma vez me disse que um cachorro sentado em um trono ainda é um cachorro, enquanto um rei em uma cadeira de balanço em ruínas ainda é um rei.
Boa escolha de palavras, justificando seu título oficial de preceptor dos Cães de Ferro. — Meu pai?
Hugh suspirou. — Vamos. Vi a espada sendo destruída, passei pelo que restou após a destruição de Erra e encontrei suas flores onde você e os metamorfos lutaram contra os Fomorianos um ano atrás. Eu senti a sua magia exalando em todos esses lugares. Não insulte minha inteligência.
Se era assim, então. — Bem. O que você quer?
Hugh abriu os braços. — O que você quer é a questão. Você veio aqui para o meu castelo.
— Essa sua fala sobre insultar a inteligência também vale para mim. Você colocou uma armadilha, me atraiu através do oceano, e agora estou aqui. Se você quisesse conversa fiada, poderíamos ter feito isso em Atlanta.
Hugh sorriu. Seus dentes são perfeitos demais, Hugh. Posso te ajudar totalmente com esse problema.
Fingi estudar o Velocino de Ouro. Ele estava apenas me distraindo. Logo iria mostrar suas reais intenções e me matar, de uma forma ou de outra. O velocino parecia muito perfeito para ter séculos de idade.
— Você realmente matou um carneiro com lã de ouro?
— Deuses, não. É fabricado, —disse ele.
— Como?
— Pegamos uma pele de carneiro, a revestimos em magia para evitar que ela queimasse e mergulhamos em ouro. O verdadeiro truque é conseguir a proporção de ouro e cobre. Eu queria manter a flexibilidade do ouro, mas é tão pesado que os pêlos individuais continuavam quebrando, e muito cobre fazia com que ficasse duro. No final, inventamos uma liga de cobre e ouro.
— Por que passar por todo esse trabalho?
— Porque reinos são construídos em cima de lendas, —disse Hugh. — Quando esses caçadores metamorfos estiverem velhos e grizalhos, eles ainda irão falar sobre o dia que foram para Cólquida e caçaram pelo Velocino de Ouro.
— Então você quer seu próprio reino? —Pensamento ambicioso.
Ele encolheu os ombros maciços. — Possivelmente.
— Meu pai está ciente dos seus planos? A história diz que ele não gosta de compartilhar.
— Não gosto do manto púrpura, —disse Hugh. — Nasci para a coroa de louros.
Os imperadores romanos vestiam o manto púrpura como sinal de seu ofício, enquanto os generais romanos vitoriosos cavalgavam por Roma em triunfo com coroas de louros sobre suas cabeças. Hugh não queria ser o imperador. Ele queria ser o general do imperador.
— Quais são seus planos, Kate? O que você quer?
— Ser deixada em paz. —Por enquanto.
— Você e eu sabemos que isso não vai acontecer.
Eu toquei o Velocino de Ouro. Os minúsculos pêlos de metal pareciam macios sob meus dedos.
— Eu matei Voron. —Disse Hugh baixinho.
O frio tomou conta de mim. Minha mente chamou uma lembrança: o homem, a quem considerei meu pai, em uma cama com o estômago aberto. Um odor fantasmagórico, pútrido, espesso e amargo encheu minhas narinas. Isso me assombrou ao longo dos anos em meu sono.
Eu virei.
O homem sentado no trono não estava mais relaxado. A arrogância e a alegria bem-humorada haviam desaparecido. Um remorso sombrio apareceu, misturado com uma resignação nascida de uma antiga tristeza.
— Você quer uma medalha por isso?
— Eu não planejei matá-lo, —disse Hugh. — Esperava que um dia chegasse a esse ponto, já que Roland o queria morto, mas naquele dia eu não fui lutar. Queria conversar. Queria saber por que ele me deixou. Ele era como um pai para mim. Fui em uma missão por alguns meses, e quando voltei, ele tinha ido e Roland me disse para matá-lo. Eu nunca entendi o porquê ele foi embora.
Eu sabia o porquê. — Demorou um pouco para rastreá-lo.
— Dezesseis anos. Ele morava nesta pequena casa na Geórgia. Eu fui até lá. Ele me encontrou na varanda, com a espada na mão. —A velha raiva não resolvida aguçou sua voz. — Ele disse: 'Vamos ver o que você aprendeu'. Essas foram as últimas palavras que Voron disse para mim. Ele me criou desde que eu tinha sete anos e depois saiu sem dizer adeus. Sem explicação. Nada. Eu o procurei por dezesseis anos. Ele era como um pai para mim e é isso que eu recebi quando me encontrou: ‘Vamos ver o que você aprendeu.’
Eu deveria estar furiosa, mas por alguma razão não estava. Talvez porque soubesse que ele estava dizendo a verdade. Talvez porque Voron me deixou assim também, sem as explicações necessárias. Talvez porque as coisas que aprendi sobre ele desde a sua morte me fizeram duvidar de tudo que ele me disse. Seja qual for o caso, sentia apenas uma tristeza oca e esmagadora.
Que emocionante. Eu entendia o assassino do meu pai adotivo. Só faltava, depois que isso terminasse, que o grande Hugh e eu sentássemos ao redor da fogueira e fumássemos o cachimbo da paz.
Ele estava esperando. Este era um monte de compartilhamento de informações. Voron sempre me avisou que Hugh era esperto.
Voron planejava estratégias por diversão. Essa conversa fazia parte de algum tipo de plano. Ele tinha que ter um, mas que plano era esse? Estava tentando descobrir com que facilidade eu poderia ser provocada? Ouvi-lo falar sobre Voron era como abrir um velho ferimento, rasgando-o com um prego enferrujado, mas Voron me diria para superar isso. Hugh queria conversar. Bem. Eu usaria isso contra ele.
— Como você o matou? —Bom e neutro.
Hugh encolheu os ombros. — Ele era mais lento do que eu me lembrava.
— Muitos anos longe de Roland. —Sem a exposição frequente à magia do meu pai, o rejuvenescimento de Voron diminuiu.
— Provavelmente. Eu o peguei com uma diagonal no intestino. Foi uma ferida feia. Deveria ter morrido na hora, mas ele segurou.
— Voron sempre foi difícil. —Vamos lá. Me mostre suas cartas, Hugh. O que de pior pode acontecer?
— Eu o levei para a casa e o deitei na cama, e então me sentei ao lado dele e tentei curá-lo. Não adiantou. Ainda assim, pensei tentar de novo. Então ele puxou uma pequena espada debaixo do travesseiro e se apunhalou no estômago.
Isso era típico de Voron. Mesmo morrendo, ele conseguiu tirar a vitória de Hugh.
— Morreu depois de meia hora. Esperei na casa por dois dias e finalmente saí.
— Por que você não o enterrou?
— Eu não sei, —disse Hugh. — Eu deveria, mas não tinha certeza se ele tinha alguém, e se ele tivesse, mereciam saber como ele morreu. Não deveria ter sido daquele jeito. Não queria que terminasse assim.
Nenhum de nós queria. Hugh sentia-se traído. Ele deve ter imaginado que encontraria o homem que o criou e teria todas as suas perguntas respondidas. Deve ter esperado que quando encontrasse Voron, seria uma competição de vida ou morte entre iguais. Em vez disso, encontrou um velho teimoso que se recusou a falar com ele. Foi uma vitória vazia e amarga e isso o consumia por mais de uma década. E ele merecia cada segundo disso.
Voron foi o deus da minha infância. Ele me protegeu, me ensinou, fez de qualquer lugar uma casa. Não importava em qual buraco nos escondíamos, nunca me preocupei porque ele estava sempre comigo. Se algum problema ousasse aparecer, Voron resolveria. Ele era meu pai e minha mãe. Algum tempo atrás, descobri que ele não me amou com esse amor incondicional que todas as crianças precisam, mas decidi que não me importava.
Fiquei ali, olhando para o Velocino de Ouro, e lembrei do cheiro daquele odor inesquecível de morte que eu havia sentido mais de uma década atrás. Tinha me atingido no momento em que entrei pela porta da nossa casa, e soube, imediatamente que Voron estava morto. Estava na porta, suja e faminta, minha faca na mão, enquanto fragmentos do meu mundo despedaçado caíam ao meu redor, e pela primeira vez na minha vida eu estava realmente assustada. Sozinha, com medo e desamparada, apavorada demais para me mexer, aterrorizada demais para respirar, porque toda vez que eu inspirava sentia o cheiro da morte de Voron. Foi quando finalmente entendi: a morte é para sempre. O homem que me ensinara essa lição estava a menos de seis metros de distância.
Cuidadosamente esmaguei o pensamento antes que puxasse minha espada.
— Onde você estava? —Perguntou Hugh.
Mantive a dor das memórias longe da minha voz. — Na floresta. Ele me deixou na floresta três dias antes.
— Cantil e uma faca? —Perguntou Hugh.
— Hum-hum. —Cantil e uma faca. Voron me levava para a floresta, me entregava um cantil e uma faca e esperava que eu voltasse para casa. Às vezes demorava dias. Às vezes semanas, mas sempre sobrevivi.
— Ele me deixou no deserto de Nevada uma vez, —disse Hugh. — Eu racionava água como se fosse ouro, e depois houve uma enchente durante a noite. A enxurrada me levou pelo lado do morro e entrou na ravina. Eu quase me afoguei. O cantil me salvou—havia ar suficiente para me segurar quando fui para debaixo d'água. Então sai do deserto, meio morto, e ele olhou para mim e disse: — Me siga. —E então o bastardo entra em sua caminhonete e sai. Eu tive que correr onze quilômetros até a cidade. Se eu pudesse levantar meus braços, eu teria estrangulado ele.
Eu conhecia o sentimento. Planejei a morte de Voron algumas vezes, mas também o amei. Enquanto ele estivesse vivo, o mundo tinha um eixo e não sairia do controle, e então ele morreu. Eu me perguntei se Hugh o amava de algum jeito. Ele devia amar. Só o amor pode se transformar em muita frustração. Ainda não explicava por que Hugh estava compartilhando essas informações tão facilmente.
— Encontrei o corpo dele.
— Sinto muito, —disse Hugh. Ou ele era um ator espetacular ou isso era arrependimento genuíno. Provavelmente ambos.
Foda-se. — Você deveria sentir. Destruiu minha infância.
— Foi uma boa infância?
— Isso importa? Era a única que eu tinha e ele era o único pai que conheci.
Hugh esfregou o rosto. Voron era o único pai que ele conhecia também, e ele deixou Hugh para resgatar minha mãe e eu. Suponho que de uma maneira estranha e diferente nós dois fomos abandonados por Voron.
— Ele lhe contou o porquê? —Perguntou Hugh.
— Porque o que?
— O Voron que eu conhecia tinha um núcleo de aço. Ele nunca teria traído o homem que jurou proteger. O homem que eu conhecia não roubaria a esposa do seu mestre e a filha deles e fugiria com elas. Ele não era um traidor.
— Você realmente não sabe?
— Não.
Tinha que ser uma mentira. Roland teria dito a ele. — Por que você não pergunta a Roland?
— Porque essa história o machuca.
Vamos cutucar o ninho de uma vespa com uma vara e ver o que sai? — Teme que seu comandante e chefe acabe com você?
Hugh se inclinou para frente. — Não. Não quero causar mais dor a ele.
Isso era genuíno ou ele estava brincando comigo? Bem. Vamos brincar, Hugh.
Cheguei mais perto e me sentei de lado no trono menor, minhas costas contra o braço da cadeira. — Quanto você sabe sobre a magia da minha mãe?
— Não muito. —Disse Hugh. — Roland era imprevisível quando se tratava de Kalina. Todos nós mantínhamos alguma distância dela.
Engraçado como ele continuava chamando meu pai de Roland. Ele sabia seu nome verdadeiro, mas ele não tinha certeza se eu sabia, então estava sendo cuidadoso.
— Ela era uma feiticeira realmente poderosa no sentido clássico da palavra. Tinha o dom do poder da sugestão do amor. Se ela queria que você a amasse, você amaria. Faria qualquer coisa para fazê-la feliz. Acho que Roland era imune, o que provavelmente o tornou muito especial para ela.
Hugh franziu a testa. — Você está falando ...
— Falei com algumas pessoas que conheciam os dois. A descrição que me deram foi, e passo a citar: — ‘Ela o enfeitiçou. Teve tempo de fazê-lo e amarrou-o com tanta força que ele deixou Roland por ela e passou os últimos anos de sua vida me criando.’
Hugh olhou para mim. Agora ele provavelmente estava se perguntando se eu tinha o poder da minha mãe e se eu poderia enfeitiçá-lo do jeito que ela enfeitiçou Voron. Agora nós dois estávamos desconfiados. Aí está. Dois podem jogar esse jogo.
— Você acredita nisso?
— Eu não sei. Gostaria que Voron estivesse por perto para que eu pudesse entender, mas algum idiota apareceu em minha casa e o matou.
Um uivo longo e prolongado veio da ravina. A cantoria estridente de um lobo na caça rolou acima das copas das árvores. Fiquei em pé no trono, mas não consegui ver nada. Apenas as árvores.
— Deixe-os aproveitar, —disse Hugh. — Eles são animais, é o que eles fazem. Perseguem, caçam e matam.
E foi assim que o Senhor do Castelo estava de volta.
— Por que diabos você nos arrastou nessa caçada?
— Porque eu queria falar com você, o seu pessoal paira em torno de você como abelhas em volta das flores. O que você viu em Lennart? É o poder? Ou é a segurança em números? Tentando reunir corpos suficientes para se proteger?
— Ele me ama.
Hugh recostou-se e riu.
Eu me perguntei se eu era rápida o suficiente para esfaqueá-lo. Provavelmente. Mas a punhalada me colocaria muito perto dele e ele iria retaliar.
— Ele é um animal, —disse Hugh. — Mais forte, mais rápido, mais capaz que a maioria de sua espécie, mas no núcleo ainda é um animal. Trabalho com eles. Eu os conheço muito bem. Eles são ferramentas para serem usadas. Eles têm emoções com certeza, mas seus impulsos sempre anulam seus sentimentos atrofiados. Por que você acha que fazem todas essas regras complexas para si? Fique por perto, mas não menos do que meio metro, ou você terá sua garganta arrancada. Coma depois que o alfa começar a comer, mas não se levante quando ele entrar na sala. Nós não temos essas regras de merda. Não precisamos delas. Você sabe o que nós temos? Temos cortesia, costumes, etiquetas. Os metamorfos imitam o comportamento humano da mesma forma que os estudantes imitam um artista mestre, mas confundem o complicado com o civilizado.
Blá, blá, blá. Por favor, me fale mais sobre os metamorfos, vovô Hugh, porque não tenho ideia de como eles pensam. Não é como se eu vivesse com mais de mil quinhentos deles e acabasse resolvendo seus problemas pessoais toda quarta-feira nas audiências da corte.
— Por um momento achei que você poderia ser um ser humano genuíno, mas acabou de me provar que eu estava errada. Obrigada. Isso tornará muito mais fácil matá-lo.
Hugh se inclinou para frente. Uma luz estranha dançou em seus olhos. — Quer tentar?
A qualquer momento. — Por que? Quer me mostrar o que aprendeu?
— Ooo. —Hugh sugou o ar, estreitando os olhos. — Perversa. Eu gosto de perversas.
Um rugido baixo e estranho veio através das montanhas, acabando em uma nota estranha, quase como um balido se a cabra que o fizesse fosse um predador e do tamanho de um tigre.
— Droga. —Hugh se levantou em seu trono. — Eu disse a eles para ficarem longe da passagem.
Eu me levantei. À esquerda, as árvores tremiam. Algo galopava pela encosta da montanha direto para nós.
— O que é isso?
— Ochokochi101. São grandes, carnívoros e longas garras. Eles gostam de empalar as pessoas com seus peitos.
— Eles o que?
— Eles te agarram e te empalam no peito deles. Os metamorfos assustaram o rebanho. Filhos da mãe estúpidos. Eu pedi uma coisa—uma maldita coisa—e eles não deram a mínima. O rebanho está se dirigindo para nós. Normalmente eu sairia do caminho deles ...
— Mas nós temos os cavalos. —Então me lembrei—o caminho até o local do curral era estreito e íngreme. Tínhamos sete cavalos e tirá-los a tempo de escapar era impossível.
— Exatamente. Quando os ochokochi enlouquecem assim, eles matam tudo que encontram no caminho.
Um baque surdo veio de baixo, o som de muitos pés pisando em uníssono. Quantos deles estavam vindo?
Hugh saltou do trono para o chão. — Eles estão vindo direto para nós.
Eu me movi para a esquerda, colocando-me entre a floresta e o curral com os cavalos. O som de pés batendo cresceu, como o rugido de uma cachoeira distante. Os cavalos relinchavam e se batiam no recinto, testando suas amarras.
As árvores estremeceram.
— Não deixe eles pegarem você. —Hugh sorriu para mim. — Pronta?
— Pronta como nunca estarei. —Soltei a espada sobressalente na minha cintura, desembainhei-a e deixei cair a bainha na grama.
Os arbustos de amora-preta na borda da clareira rasgaram, e a floresta cuspiu uma fera no espaço aberto. Ele tinha cerca de um metro e meio de altura, meio ereto como um gorila ou um canguru, apoiando todo o peso do corpo em duas enormes patas traseiras. Um longo pelo avermelhado, que lembrava a camurça, escorria de seus flancos. Seus membros dianteiros, parecidos com os de um chipanzé, eram musculosos, exibiam longas garras negras. Sua cabeça era de cabra, com uma testa larga e olhos pequenos, mas em vez do focinho estreito, seu rosto terminava em poderosas mandíbulas predatórias projetadas para cortar em vez de moer.
O que diabos era essa coisa?
A fera nos viu e se balançou para trás, abrindo os membros como se fosse um abraço. Uma crista pontiaguda de ossos se projetava de seu peito. Pedaços de algo nojento seco, que pareciam suspeitosamente resto de carne ensanguentada de alguém, se agarravam a ele.
Vá para o Mar Negro, conheça novas pessoas, veja belos lugares, morra na mão de um bode-canguru-carnívoro-mutante. Itens da minha lista de afazeres antes de morrer.
Puxei a Matadora da bainha traseira. Hugh levantou as sobrancelhas para as duas espadas, mas não disse nada. Está certo. Guarde quaisquer comentários e perguntas para o final.
A criatura abriu a boca, mostrando dentes afiados e uivou. O som terrível rolou pela clareira, nem rugido nem grunhido, mas um profundo barulho de uma criatura sem a capacidade da fala, impulsionado pelo medo e sede de sangue.
Balancei minhas espadas, aquecendo meus pulsos. Hugh desembainhou a espada. Era uma espada longa europeia simples, com uma lâmina de quase um metro de comprimento, uma simples cruz de proteção e um punho envolto em couro. O cabo era longo o suficiente para uso com uma ou duas mãos. A lâmina em forma de meia lua brilhava com um acabamento acetinado.
Os arbustos se quebraram. Mais ochokochi explodiram na clareira. O líder gritou novamente.
Hugh riu.
Os monstros caíram de quatro e correram em nossa direção.
Nós avançamos e balançamos ao mesmo tempo. Eu me movi para a esquerda, desviando do ataque e cortei o ombro da fera. A criatura gritou e bateu em mim com suas garras. Desviei apenas o suficiente para evitá-lo e girei as espadas em um padrão de borboleta praticado. A lâmina de baixo pegou o lado da besta, a de cima cortou ao lado de sua cabeça. Sangue pulverizou. O ochokochi recuou e desabou, com as pernas tremendo em violentos espasmos.
Eu girei minhas lâminas, cercando-me com uma parede de aço. Uma borboleta em cima, na frente, outra atrás, embaixo. Se eles podiam sangrar, podiam sentir dor. Então esperava que eles tivessem poder intelectual suficiente para se manterem afastados do perigo.
Um segundo animal me atacou. Cortei. Gritou em agonia, virou-se para o lado e ferido correu para a floresta. Banzai! Eu não tinha que matá-los. Só tinha que machucá-los o suficiente para fazê-los fugir.
Eles vieram até mim juntos, e eu atravessei os corpos da cor de ferrugem, cortando e cortando.
Eles berravam e rugiam. Respirei a violência que exalavam e me concentrei em cortar músculos e ligamentos. Fiz isso centenas de vezes na prática e em lutas reais, mas nenhuma memória e nenhuma prática poderia se comparar com a pura adrenalina de saber que sua vida estava em risco. Um movimento errado, um passo em falso, e eles me atropelariam. Eu seria empalada ou estripada até a morte. O medo estava em mim, um conhecimento constante no fundo da minha mente, mas isso não me paralisava, apenas tornava tudo mais nítido. Eu vi os ochokochi com clareza cristalina, cada fio de cabelo e cada olho em pânico e raiva.
Hugh trabalhava ao meu lado. Ele se movimentava com uma prática suave, do tipo que não pode ser aprendida em um dojo102 ou em uma briga simulada. Hugh girava com uma antecipação instintiva, um sexto sentido de saber onde pousar seu golpe e como virar a lâmina para o máximo impacto, e quando a espada dele tocava a carne, a carne rasgava. Ele cortava os corpos como se fossem manteiga, sem perder esforço, movendo-se sem uma pausa, como se dançando a um ritmo que só ele ouvia. Era como assistir meu pai. Eles o chamavam de Voron porque a morte seguia seu rastro, como seguiam os corvos nas antigas lendas. Se Voron era o Corvo da Morte, Hugh era sua foice.
Nós nos movemos em uníssono perfeito. Ele jogou um corpo para mim, eu cortei, dirigi um para ele, e ele terminou com um corte preciso e brutal.
Mais ochokochi espirrou contra nós como uma onda peluda.
Duas bestas corriam em minha direção, batendo as patas no chão em conjunto, apenas alguns centímetros de espaço entre eles. Eu não tinha para onde ir e não conseguiria parar os dois. Inverti as lâminas e esperei.
Eles vieram para mim, gritando. Dez metros.
— Kate! —Hugh gritou.
Nove. Um momento cedo demais e eles me esmagariam. Um momento tarde demais e minha vida acabaria.
Seis.
Quatro.
A respiração de suas bocas se derramou sobre mim.
Agora. Eu caí de joelhos e cortei as patas dianteiras com as duas espadas em um único corte. Antes que eles caíssem para a frente, com os músculos decepados e tendões colapsando sob seu peso, puxei as espadas para mim e me levantei. As duas bestas passaram direto, cada uma de um lado do meu corpo e caíram atrás das minhas costas, mutilados.
— Porra, isso foi lindo! —Gritou Hugh, puxando a lâmina de um corpo desgrenhado.
Um ochokochi se lançou contra ele, rápido demais para o golpe da espada. Hugh balançou o braço esquerdo. A parte de trás do punho dele martelou o crânio da criatura. O ochokochi balançou e caiu.
Eu tinha que evitar ser socada por ele a todo custo.
Não havia feras dentro da área de alcance. A onda de ochokochi havia quebrado contra nós. Os ochokochi restantes se espalharam, tentando me ladear. Eu recuei até que minhas costas tocaram as de Hugh. Eu não tinha ideia de como, mas sabia com cem por cento de certeza que suas costas estariam lá para me segurar.
— Está ficando cansada? —Perguntou Hugh.
— Posso fazer isso o dia todo.
O líder dos ochokochi gritou. Se todos viessem para nós de uma só vez, teríamos um tempo infernal protegendo os cavalos.
Outro grito estridente. Os ochokochi se viraram como se fossem um só e fluíram em uma corrente cor de ferrugem à direita, através dos arbustos e árvores longe de nós.
Eu exalei.
— Parece que escapamos por pouco. —Hugh sorriu.
Examinei o chão da clareira e os montes de pele cor de ferrugem pontilhando-a. — Os ochokochi contam para a caçada?
— Não.
— Droga. Lá vai minha chance de glória.
— Você está sem sorte, —disse ele.
Eu caí para frente, recuperando o fôlego, endireitei e tirei um pano do bolso. Tinha que limpar minhas espadas.
Depois da luta, Hugh não fez nenhum esforço para conversar. A hora de compartilhar havia passado, aparentemente, e nos concentramos em recuperar a clareira.
Às três horas, Hugh tirou uma trombeta do alforje e fez um barulho que faria os mortos sentarem-se em seus túmulos. Quinze minutos depois, equipes de caçadores de metamorfos começaram a chegar. Curran e companhia chegaram em segundo lugar depois dos Volkodavi. A floresta sussurrou e o leão cinza colossal passou por ela. Os lábios de leão se esticavam em um sorriso distintamente humano. Se os leões podiam parecer presunçosos, Curran sabia disso.
Levantei minhas sobrancelhas. Carcaças de veados, turs e cabras mortas foram empilhadas nas costas de Curran. Ele balançou, jogando-os no chão, a juba cinza voando ao vento e olhou para mim. E então olhou para a pilha de corpos vermelhos desgrenhados atrás de mim. Hugh e eu os arrastamos para uma grande pilha na beira da clareira para abrir espaço e impedir que os cavalos enlouquecessem.
O leão encolheu e um homem apareceu em seu lugar. — O que diabos é isso?
— Oi, querido. —Eu acenei para ele do meu poleiro em uma pedra e continuei polindo a Matadora com um pequeno pano.
Curran virou-se para Hugh. Sua voz era um rosnado. — Você fez isso?
— Eu só posso reivindicar responsabilidade por metade das mortes. O resto pertence à sua esposa ... noiva? —Hugh se virou para mim. — Você não é casada, não é? Qual é o termo?
Oh, seu bastardo.
— Consorte. —Barabas apareceu atrás de Curran. — O termo é 'Consorte.'
— Que curioso. —Hugh piscou para Curran. — Sem casamento, sem divisão de propriedade e sem amarras. Bem pensado, Lennart. Bem pensado.
Os olhos de Curran ficaram dourados. — Fique fora da minha vida.
Hugh sorriu. — Que o céu nos livre. Embora você deva saber que, se a caçada tivesse um prêmio pela matança mais elegante, ela teria vencido. —Ele se virou.
Curran olhou para mim. Ele nunca me pediu em casamento. O momento nunca havia surgido. Este fato não me incomodava até que Hugh esfregou em nossos rostos. Pensando bem, isso ainda não me incomoda.
Deslizei a Matadora na bainha nas minhas costas. — Como foi a caçada?
— Tudo bem, —disse ele.
— Alguém se machucou?
— Não.
Um lobo cinzento se aproximou e parou ao lado de Curran. Seu corpo se esticava e contorcia-se, e Lorelei estava ao lado de Curran. Nua novamente. Imagine só.
— Foi uma caçada muito gloriosa, —disse ela. — Curran é incrível. Eu nunca vi esse poder. Isso foi ...
— Eu tenho certeza que foi. —Esperei que ele dissesse para ela se afastar. Ele não fez isso. Ela estava muito perto, com as mãos praticamente tocando-o. Nenhum deles usava roupas e ele não disse para ela se afastar. Ele também não se afastou. Uma raiva fria e constante subiu dentro de mim e se recusou a se dissipar. Nudez não era grande coisa para metamorfos, mas se um homem nu estivesse tão perto de mim assim, Curran iria morder sua cabeça.
Eu esperei ele reagir. Não. Nada.
— Eu gostaria que você pudesse ter se juntado a nós, —disse Lorelei.
Eu sorri para ela.
Lorelei piscou e deu um passo cauteloso para trás.
— Eu me diverti aqui mesmo. —Levantei-me e entrei entre eles. Lorelei recuou para o lado, deixando-me passar. Curran não fez nenhum movimento em minha direção. Eu verifiquei seu rosto. Em branco. Estava fechado. Parecia que uma porta se fechou na minha cara.
Diga algo. Diga que me ama. Faça alguma coisa, Curran.
Nada. Argh.
Atrás de Curran, agora humana, Desandra colocou a mão nas costas dela, empurrando o estômago para fora e estremeceu. Radomil estava de pé ao lado dela, dizendo algo em um idioma que eu não conseguia entender. Deve ter sido algo engraçado, porque ela riu. E então sutilmente olhou para a esquerda, onde os italianos estavam arrumando suas roupas. Eu olhei também. Gerardo não estava olhando em sua direção. Seu rosto caiu em decepção.
Minha voz saiu fria. — Suas roupas estão naquela pedra, Vossa Majestade. Eu as dobrei para você.
— Obrigado. —Disse ele, sua voz casual.
— Há algo de errado? —Perguntei baixinho.
— Não. —Uma faísca de frustração brilhou em seus olhos e derreteu. Meu leão furioso estava lá, e estava tramando algo. De alguma forma, isso não fazia me sentir melhor.
Os djigits classificaram as caças e marcaram os cascos com diferentes tipos de cor. Esperamos os retardatários enquanto os metamorfos vestiam suas roupas. A quantidade de caça que mataram era desconcertante. Dezenas de animais perderam suas vidas. Eu esperava que eles tivessem a capacidade de congelar a carne, porque pensar em todo essa caça indo para o lixo me deixava doente.
O vencedor da equipe teria que ser declarado depois que a equipe do castelo tivesse a chance de pesar e separar os animais, mas o prêmio pelo animal mais bonito era dolorosamente óbvio: um belo tur adulto, pelo menos duzentos e trinta quilos, seus chifres como duas luas curvadas. Hugh tirou da nossa pilha e os djigits fizeram um grande show de carregá-lo.
— O caçador dessa bela caça se levantará e reivindicará seu prêmio? —Hugh gritou.
Tia B deu um passo à frente. Hugh fez uma reverência e a presenteou com a jarra de vidro contendo um saco plástico de panaceia. Todos aplaudiram.
Tia B sorriu e passou a panaceia para Andrea. — Meu presente para meus netos.
O alívio apareceu no rosto de Andrea. Estava lá por um mero piscar de olhos, mas eu vi. Ela abraçou o jarro por um minúsculo segundo antes de entregá-lo a Raphael.
Roupas foram colocadas de volta, cavalos foram libertados e começamos nossa descida para o castelo. As pessoas ao meu redor pareciam mais felizes, mais calmas, saciadas.
Curran andava na frente do meu cavalo. Lorelei deve ter percebido que não era um bom momento para testar minha paciência, e se mudou para falar com George atrás de nós. Curran continuou andando e eu continuei andando. Ou alguma coisa havia acontecido naquela caçada ou ele havia tramado algum tipo de plano demente e agora estava seguindo-o.
Nós não nos falamos.
À minha direita, Desandra conversava com Andrea sobre a caçada.
Pela primeira vez em meses me senti completamente sozinha. Era um sentimento familiar, mas meio esquecido. Eu me senti assim, isolada do mundo, quando Greg morreu. Ele cuidou de mim por quase dez anos após a morte de Voron. Sempre pensei que ele estaria lá, e quando foi assassinado, parecia que alguém havia quebrado minha vida com o golpe de um martelo. Os metamorfos nunca me trataram como uma estranha, mas neste momento eu estava completamente excluída. Eles ainda estavam no auge da emoção da perseguição. Isso os unia, e aqui estava eu, a solitária humana a cavalo, e Curran não falava comigo.
Era uma sensação desagradável e eu não gostava. Mas eu lidaria com isso. Não sabia qual era o problema de Curran, mas descobriria. Curran nunca fazia nada sem uma razão e ele era muito metódico, até mesmo seus encontros sexuais de uma noite foram premeditados.
Curran não iria perder a cabeça por Lorelei, não importava o quão bonita e jovem ela parecia. Ele havia inventado algum tipo de enredo, e agora estava implementando isso em sua forma metódica de Curran, e o fato dele não ter me falado sobre o seu plano significava que eu realmente não iria gostar. E era exatamente isso que me preocupava.
A estrada se curvou. Eu senti o peso do olhar de alguém em mim e olhei para cima. Hugh. Olhava para mim enquanto fazíamos a curva. Na frente dele, o castelo se erguia no topo da montanha. Era hora de colocar minha cara de durona.
Vinte minutos depois, desmontamos no pátio. Um djigit pegou meu cavalo. Curran, Mahon e Eduardo estavam conversando. Fiz um caminho mais curto para o grupo deles. Tinha algumas coisas que precisava conversar.
Com o canto do olho, vi Hibla correndo pelo pátio. Eu não queria falar com ela. Meu turno com Desandra estava prestes a começar e eu queria falar com Curran antes disso. Não venha até mim, não venha para mim ...
— Consorte!
Porcaria de vida. — Sim?
— Posso falar com você?
Não. — Claro.
Nós caminhamos em direção à parede, fora do caminho.
— A criatura que você matou. Ela tinha asas?
— Tivemos um novo ataque?
— Parece que sim. —Hibla baixou a voz. — Eu não quero começar um pânico ou uma caçada dentro das paredes do castelo. Você vai ver isso comigo?
Não sozinha, não vou. Procurei na multidão por Andrea, e vi ela e Raphael nas portas levando Desandra para dentro. Tudo bem.
— Derek! —Eu gritei.
Um momento depois, ele saiu da multidão como um fantasma.
— Venha comigo, por favor.
Capítulo 11
Caminhar pelo castelo parecia que ia durar para sempre. Nós atravessamos um corredor, viramos, cruzamos outro, subimos as escadas ...
— É um labirinto, —disse Derek.
— É para ser, —eu disse a ele. — Como aquele que fica debaixo do casino da Nação em Atlanta. Só que aquele foi projetado para impedir que os vampiros escapem, e este foi feito para impedir que atacantes alcancem pontos vulneráveis.
Subimos oito lances de escada, até que finalmente Hibla abriu uma porta pesada. Saímos para a ameia e fizemos o nosso caminho ao longo da lateral da parede em direção a uma torre de observação.
— Curran nunca faz nada sem um motivo. —Derek me disse baixinho.
Bem, bem, a súbita violação das regras de bom comportamento do Senhor das Feras em relação a Lorelei não passou despercebida.
Derek foi treinado por Jim para ser um observador, e agora o garoto estava preocupado comigo. Fiquei tocada por ele estar preocupado, mas a irritação aumentou dentro de mim. Navegar pela minha vida amorosa já era bastante difícil sem a ajuda injustificada de metamorfos lobos adolescentes.
— Você sabe de alguma coisa que eu não sei?
Ele balançou sua cabeça.
Chegamos a uma entrada. Uma pesada porta foi arrancada fora de suas dobradiças e encostada na parede. Seguimos Hibla pela porta e subimos outro lance de escadas e emergimos no topo da torre de observação. Perfeitamente circular, a torre foi projetada para permitir um ataque a quem se arriscasse a subir a encosta norte. Não que qualquer coisa desse tipo pudesse acontecer—o chão da encosta norte caia abruptamente em um penhasco completamente vertical.
Uma metralhadora antipessoal estava em um suporte giratório, voltada para o sul. Um escorpio103 de alta velocidade e tamanho médio estava montado atrás da metralhadora em uma base rotativa. Em forma de uma besta muito grande, o escorpio era o equivalente romano de uma metralhadora. Disparava flechas com velocidade suficiente para perfurar armaduras e, a julgar pelas engrenagens, esta era uma máquina de cerco autocarregável e com poder de fogo sequencial. Levaria duas pessoas para operar, mas uma vez que elas o armassem, o escorpio cuspiria flechas suficientes para derrubar um pequeno exército. Tanto a metralhadora quanto o escorpio descansavam em uma plataforma giratória, e trocá-los de um para o outro em caso de uma onda mágica levaria apenas alguns segundos. Esperto, Hugh. Muito esperto. Teríamos que roubar essa ideia para montarmos na Fortaleza. Isso é claro, se voltamos para a Fortaleza.
Dois djigits estavam ao lado das armas. Ambos pareciam pálidos.
Hibla assentiu e eles se afastaram, revelando uma longa mancha de sangue na pedra. Um braço cortado estava contra a parede. Dedos compridos e finos. Parecia ser do sexo feminino. Eu me agachei. Arranhões marcavam a pedra. À direita, pedaços de pele de chacal grudados aos blocos, colados com sangue seco. Ao lado deles havia uma escama alaranjada. O chacal de Hibla tinha morrido lutando.
Puxei um pequeno saco de plástico e peguei a escama para levar de volta a Doolittle. Havia mais de uma daquela coisa que me atacou por aí.
Derek inalou, agachou-se e cheirou as pedras.
— Há quatro vigias de torre, —disse Hibla. — O turno muda a cada doze horas, às seis da manhã e às seis da tarde. Nessa manhã, Tamara veio trocar o turno com a vigília noturna. Isso é tudo o que restou dela.
— Quem tem acesso à torre? —Perguntei.
— Ninguém. Depois que os vigias entram na torre, eles trancam a porta atrás deles. A porta ainda estava trancada quando Karim chegou para trocar de turno com Tamara. Tivemos que tirar as dobradiças da porta.
— Os outros vigias ouviram alguma coisa?
— Não.
Eu olhei para Derek. — Pegou qualquer coisa?
— O cheiro é semelhante do que te atacou no corredor, —disse ele.
Porta trancada, armamento pesado. O único acesso era pelo lado de fora, através da janela. Então as asas eram funcionais afinal. Porém, o que eu matei não tinha uma envergadura larga o suficiente para voar. Era um bastardo pesado também. Eu virei. O prédio principal do castelo surgia na minha frente. Muito alto, blocos, com um telhado azul.
— Ele planou até aqui, —eu disse. — Provavelmente decolou pulando da fortaleza principal, desceu planando e caiu aqui dentro, atacando Tamara. —A luta deve ter sido brutal e rápida, porque a chacal não teve a chance de pedir socorro.
— Por que levou o corpo? —Hibla perguntou.
— Eu não sei. —Algo tinha levado o outro guarda também, aquele que vigiava o mecanismo do portão que selava o corredor que fui atacada. — Você já ouviu falar sobre algo assim?
Hibla sacudiu a cabeça. — Não é um morador local. Eu conheço todas as criaturas locais.
— Deve haver quilômetros de montanhas lá fora. —E algumas delas geraram cabras-cangurus-mutantes com machados de osso em seus peitos. — Tem certeza de que esses metamorfos não saíram de uma ravina desconhecida?
Ela cruzou os braços. — Eu lhe disse que conheço todas as criaturas locais.
Lutei para não ranger os dentes. Ela me convidou para vir até aqui ver essa situação e agora decidiu ficar na defensiva.
— Alguns rumores de algo similar? Nada mesmo?
— Não. Eu preciso de informações úteis. Você não está sendo útil.
Pensei em pedir a ela que se inclinasse para que eu pudesse remover o bastão de ferro que ela tinha enfiado na própria bunda, mas entrar em uma briga com a chefe da segurança de Hugh não era do nosso interesse. Precisava manter um relacionamento amigável de trabalho, porque eu poderia ter que confiar em Hibla mais tarde.
Derek estava inclinado sobre a parede. — Kate?
Cheguei mais perto. A muralha do Sul erguia-se acima de um grande pátio interno. Bonecos de treino fixado ao longo das paredes. Mais a frente uma grande gaiola de metal pendurada em correntes, a cerca de dois metros do chão. Uma pilha de trapos estava dentro dela.
A pilha se agitou. Um pano foi jogado para trás e, em seguida, um rosto sujo olhou para mim.
— Que é aquele?
— Um prisioneiro. —Disse Hibla.
— Por que ele está em uma jaula?
— Ele pertence ao Senhor Megobari. Ele é um criminoso. Essa é a punição dele.
Hugh coloca pessoas em gaiolas. Que adorável. — Qual é o crime dele?
— Ele roubou.
— Quero falar com ele, me leva até lá.
Hibla fez uma careta. — É proibido.
— O contrato assinado pelos bandos me dá autoridade para perseguir e eliminar qualquer perigo que ameace Desandra. Uma criatura estranha a atacou e agora podemos concluir que há mais deles por aí. Isso me diz que Desandra está em perigo. Se o Senhor Megobari criar algum problema, diga-lhe que insisti. Ele vai acreditar em você.
O rosto de Hibla me disse que ela não tinha dúvidas sobre essa parte. — Me siga.
Entramos na torre e descemos uma escada em espiral.
— O cheiro dessas coisas é estranho, —disse Derek. — Como alguém que passa o dia mergulhado em pó de rochas. Deve ser algo que eles emitem somente quando transformados, porque eu não cheirei isso em ninguém antes.
— Quão atentos são os seus seguranças? —Perguntei.
Se olhar pudesse conduzir eletricidade, Hibla teria me eletrocutado no local.
— Eu não estou questionando sua competência, —disse a ela. — Estou tentando fazer o meu trabalho. Se um estranho escalar a parede, com que rapidez você saberia sobre isso?
— Se ele entrar na fortaleza, imediatamente, —disse Hibla. — Temos patrulhas nas portas e nos corredores. Eles são treinados para lembrar cheiros e rostos.
— E se ele entrasse em um dos prédios menores?
— Nós fazemos varreduras de cada estrutura duas vezes por dia. Podemos até não ver o invasor, mas sentiríamos o cheiro dele. Eu saberia dentro de doze horas.
Eu tinha que dar crédito a Hugh, sua segurança era boa. — Algum estranho desde que chegamos?
— Além de você e dos três bandos, não.
— Quantas pessoas, além de nós e vocês, estão no castelo?
— Os Volkodavi têm dezoito, os italianos vinte, e Jarek Kral vinte também.
Isso era cinquenta e oito, e incluir-nos chegaria a setenta. — E você está confiante de que seu pessoal pode se lembrar de setenta assinaturas de cheiros diferentes?
Hibla olhou para Derek.
— Sim. —Ele me disse. — Quinhentas pessoas passam pela Fortaleza durante todas as semanas. Eu reconheço todos os cheiros.
Eu sabia que a memória do cheiro do metamorfo era boa, mas eu não tinha ideia de que era tão boa assim. Pensar em lembrar em quinhentas assinaturas de cheiros fazia minha cabeça doer.
— Como você pode ser a Consorte de um bando de metamorfos e não saber disso? —Hibla disse da mesma maneira que alguém diria: Claro que a Terra é redonda, o que você é? Uma idiota?
Derek mostrou os dentes. Ótimo. Se ele fosse para a garganta de Hibla, eu teria uma bagunça em minhas mãos.
— Nos EUA, os metamorfos não oferecem informações sobre si mesmos aos outros, —eu disse a ela. — Eu aprendo conforme vou convivendo com eles, e o assunto de quantos cheiros vocês podem lembrar nunca surgiu.
Hibla verificou o rosto de Derek. — Podemos nos lembrar de milhares. Saiba que isso é importante. —Seu tom deixou claro que ela pensava que eu era uma idiota inadequada para o dever. Primeiro Desandra, agora ela. Já estava começando a me cansar da constante ladainha de que ‘você não é uma metamorfa’.
— Aprender outras coisas era uma prioridade.
— Que outras coisas?
— Como matar efetivamente um de vocês com uma faca de quinze centímetros. Eu aprendi rápido e pratico bastante. Há uma técnica de prender a lâmina da faca sob as vértebras cervicais de tal maneira que seu pescoço saia para fora. Lembre-me em algum momento, que vou te mostrar.
Hibla piscou.
Derek riu baixinho.
— E a cabeça do homem que matei? Você reconhece o cheiro dele?
— Não. —Admitiu Hibla.
— Então ele não veio com nenhum dos bandos.
— Não.
— E nós não sabemos como ele entrou no castelo?
Seu lábio superior se enrugou. — Não.
Estranhos ou não, os atacantes tinham que vir de um dos três bandos. Alguém fez uma barganha com o diabo e agora essas criaturas estavam andando entre nós disfarçadas.
Chegamos a uma pesada porta de aço barrada por uma haste de metal tão grossa quanto meu braço. Tinha que pesar pelo menos vinte quilos. Hibla levantou-a casualmente com uma das mãos e abriu a porta. Nós emergimos no pátio e eu fui direto para a jaula.
O prisioneiro me viu. A pilha de trapos mudou e uma mão manchada de sujeira chegou entre as barras em minha direção.
— Por favor ...
Ao meu lado, Derek fez uma careta. Um momento depois, também percebi o cheiro de urina e fezes velhas. Hugh era um bastardo do caralho. — Seu magnânimo Senhor Megobari deixa o prisioneiro sentar em seus próprios excrementos.
Houve uma pequena pausa antes de Hibla responder. — Não se pode fazer nada quanto a isso.
Sim, pode. Definitivamente pode.
Nós alcançamos a gaiola. Um homem olhou para mim através das grades com olhos febris. Não parecia muito velho. Era difícil dizer com toda a sujeira, mas possivelmente vinte anos. Cabelo loiro escuro imundo. Barba escassa. Suas maçãs do rosto se destacavam, afiadas como lâminas em seu rosto magro. A menos que ele fosse naturalmente esquelético, eles estavam matando-o de fome.
— Por favor. —Ele sussurrou.
Inglês. Fantástico.
— Bela Senhora, por favor, água.
Puxei um cantil de água do meu cinto e passei para ele. Ele pegou e bebeu avidamente, engolindo a água.
— Devagar. Se você beber muito rápido irá vomitar.
O homem continuou bebendo. Suas mãos tremiam. Ele mal parecia humano.
— Há quanto tempo ele está na gaiola?
— Dois meses, —disse Hibla.
Querido Deus. — E a última vez que ele teve água?
— Ele recebe uma xícara de água e uma xícara de mingau todas as manhãs.
Isso era tortura. Hugh dava-lhe apenas o suficiente para mantê-lo vivo, mas não o suficiente para acabar com a sede e a fome.
Eu já estive sem água. Quando você não tem, é tudo em que você pode pensar. Eu não me importava com o que o homem havia roubado, colocá-lo em uma gaiola e deixá-lo apodrecer em sua própria sujeira era desumano. — Como você pode servir um homem que faz isso?
Hibla endireitou os ombros. — Meu pai era despachante na estação ferroviária de Gagra. Quando a Mudança aconteceu, ele se transformou em um chacal no meio da estação. Uma vez que a onda mágica acabou, os guardas da ferrovia o cercaram e atiraram nele, e quando ele não morreu, eles o jogaram debaixo do trem que estava chegando. E então caçaram a nossa família. Eu, minha mãe e meus dois irmãos, tivemos que correr para as montanhas apenas com as roupas do corpo. Quando ando pela cidade agora, as pessoas se curvam para mim. Você quer saber por que eu sigo o Senhor Megobari? Eu faço isso porque devo a ele por hoje não estar presa também. Você pode ficar indignada com tudo o que quiser. Isso não me incomoda nem um pouco O prisioneiro apertou o estômago e vomitou água em si mesmo.
Hibla zombou. — Abzamuk104.
O homem balançou a cabeça, bebeu outro gole desesperado e abraçou o cantil para ele. — Obrigado. Obrigado, obrigado, obrigado.
— Qual é o seu nome? —Perguntei.
— Christopher. Christopher. Meu nome.
— Por que eles colocaram você na gaiola? —Perguntou Derek.
— Eu roubei. Muito ruim, muito, muito ruim. Errado. Foi um livro. Eu queria o conhecimento. —Seu olhar fixo em mim. — Bela Senhora, gentil Senhora. Obrigado.
Derek olhou para mim. — Ele não está mentalmente normal.
Não, ele definitivamente não estava. Ou ele já era louco antes ou sentar em uma gaiola por dois meses soltou alguns parafusos na cabeça. Louco ou não, o desespero em seu rosto era real. Hugh poderia deixá-lo morrer nessa gaiola e isso não o incomodaria nem um pouco. Mas incomodava o inferno fora de mim.
— Christopher, hoje uma guarda morreu no topo da torre, —eu disse a ele. — Você viu o que aconteceu?
Ele olhou para mim com olhos que eram luminescentes com uma mistura de inocência e admiração. — Eu vejo tudo. Eu vejo maravilhas.
Certo. As luzes estavam acesas, mas ninguém estava em casa105. — Você poderia me dizer o que viu?
— Um monstro. —O homem levantou as mãos, seus dedos se espalharam como garras. — Grande e laranja. Descendo, —huuuu—Cão mortal.
Cão mortal, eu tinha razão.
— É o caçador dos céus. Um protetor celestial.
Protetor celestial. Lendas chinesas falavam de dragões que agiam como guardiões celestiais, mas nenhum deles parecia gatos com asas. — O que você quer dizer com 'protetor celestial'?
— Um guardião que vigia um grande espaço. Um predador do céu.
Isso não me ajudou em nada. — Em que país eu procuraria esse predador?
— Não existe. —Christopher deu um sorriso triste. — Rochas e memórias esquecidas.
— O que aconteceu depois que a besta matou a guarda?
— Então eu morri por um tempo. Eu frequentemente morro, mas só por um minuto ou dois. A morte nunca fica. Ela só visita.
— Christopher, se concentre. O que a besta fez depois de atacar a mulher?
— Eu direi a você. Vou lhe contar tudo, mas preciso mais de água. —Christopher segurou o cantil de cabeça para baixo, com o rosto triste. — Acabou. Tudo vazio. Nada sobrou. Sonst nichts106.
Essa última frase soou alemão.
— Você me dá mais água e eu vou te dizer. Tudo. —Christopher assentiu.
— Você vai dizer tudo a ela de qualquer maneira, —Hibla rosnou. — Ou ...
Ou nada. — Derek, por favor me dê seu cantil.
Derek me entregou o cantil. Eu segurei. Christopher se concentrou no cantil.
— Diga-me o que você viu e é seu.
— Água primeiro.
— Não. Informação primeiro.
Christopher lambeu os lábios.
Virei o cantil em direção a Derek. Eu iria para o inferno por isso.
— A besta levou a mulher. Fora da parede. Ali! —Christopher apontou para a parede. — Ela mordeu o pescoço da mulher e levou-a embora.
Do outro lado da parede havia um penhasco. Fazia sentido. Tamara era uma mulher adulta, no mínimo cinquenta quilos extra de peso morto, provavelmente mais. Para carregá-la, a fera precisaria de um local alto para pular e começar a planar. Pulando da parede com várias centenas de metros de queda livre seria perfeito e ninguém poderia segui-lo. Nossa investigação nadou, nadou e morreu na praia.
— A besta falou? Você viu mais alguma coisa?
Christopher sacudiu a cabeça e apontou para a água. Nós não conseguiríamos mais nada dele. Dei a ele o cantil. Ele agarrou-o e escondeu-o sob os farrapos. Louco sim. Estúpido, não.
Nós nos afastamos.
— Eu compartilhei com você, —disse Hibla. — O que acha que está acontecendo?
Eu tinha que ser diplomática. — Estou formalmente aconselhando você a dobrar as patrulhas.
— Nós vamos, —disse Hibla. Verde rolou sobre os olhos. Ela pediu meu conselho, mas realmente não gostou que eu lhe dissesse o que fazer.
Diplomática. — Você contou ao Senhor Megobari sobre isso?
Ela levantou o queixo. — Nós fornecemos segurança. É o nosso problema.
Certo. Alguém no castelo estava se transformando em uma criatura gigante que ninguém jamais tinha visto antes e depois fugindo com os guardas, mas não contaremos ao responsável sobre isso. Por que isso seria ridículo? Na verdade, vamos mantê-lo sem saber o maior tempo possível, então quando ele for atacado, será pego completamente de surpresa. Estratégia fodida essa.
— Gloriosa senhora! —Christopher chamou da gaiola. — Você é muito gentil!
Pelo menos eu tinha facilitado sua vida, mesmo que por pouco tempo. — Precisamos ver o topo da torre principal.
Hibla levantou o queixo. — Eu vou te levar.
Enquanto nos afastávamos, Christopher agarrou as barras. Ele não disse nada. Apenas ficou lá sentado e nos observou ir embora.
— Você parece pensar que sou incompetente, —disse Hibla, enquanto caminhávamos pelo corredor até outro lance de escadas. — Sou boa no que faço.
Sabe de uma coisa? Foda-se. — Entendo. Você provavelmente trabalhou duro para chegar onde está agora. Executa este lugar da maneira que deseja executá-lo e, geralmente, não tem problemas. Agora você tem um castelo cheio de metamorfos cabeças quentes que estão nas gargantas uns dos outros, uma humana que está pisando em seus dedos e algumas criaturas estranhas que estão matando seu pessoal. Você é capaz e não quer decepcionar ninguém. Esta é sua casa e seu trabalho. Eu também não quero.
Ela olhou para mim. Eu não sabia se eu estava passando a mensagem ou não.
— Tudo o que quero fazer é manter meu pessoal em segurança e ir para casa. Nós não somos adversárias. Queremos a mesma coisa: você quer que a gente vá embora e eu quero ir embora. Não sou uma ameaça. Eu tenho experiência e juntas seremos muito mais fortes. Você deve achar a mesma coisa, porque foi atrás de mim e me trouxe para a cena de assassinato de Tamara. Mas eu não posso trabalhar com você se toda vez que eu sugerir algo ou questionar alguma coisa, você irá se irritar como um ouriço histérico. Você pode escolher o seu orgulho e perder mais pessoas, ou pode trabalhar comigo. Infelizmente ainda pode perder mais pessoas, mas pelo menos saberá que fez tudo o que podia para evitar isso. Deixe-me saber o que você decidiu.
Ela me estudou. — O que é um ouriço?
— Um animal com espinhos no corpo.
— Como eu vou saber que não são vocês quem estão fazendo tudo isso? Tudo começou depois que vocês chegaram.
— Boa pergunta, —eu disse. — Não fizemos isso, porque não temos motivo. Nós queremos a panaceia. Garantir que Desandra dê à luz com segurança é a única maneira de obtê-la. Por que nós a atacaríamos ou a seus guardas?
Hibla fechou as mandíbulas e não respondeu. Subimos as escadas, abrimos caminho por mais corredores e finalmente emergimos no telhado da fortaleza principal, um quadrado de pedra.
Derek se virou e fungou. Hibla também.
— Eu cheiro urina, —disse Derek para o meu benefício.
Eles caminharam até a beira do telhado, e o fedor me atingiu, um odor almiscarado e encharcado de amônia, como se alguém tivesse misturado vinagre, cebola e urina fresca, deu uma boa sacudida na mistura e espalhou pelo ar.
— Eca. —Derek fez uma careta.
— Felinos. —Hibla carregou tanto desprezo na palavra que sua voz estava praticamente pingando.
Uma mancha marcava as pedras pela borda oeste. Derek sacudiu a cabeça e fez uma pausa. — Marcas territoriais.
Longos arranhões brancos percorriam a pedra, onde um felino arrastara suas garras pelo chão. As marcas de arranhões tinham um metro e vinte de comprimento. Bastardo alto.
— Como o seu pessoal não ouviu isso? —Perguntou Derek.
— O castelo está cheio de pessoas estranhas, —disse Hibla. —— Provavelmente ouviram, mas não ligaram. —Ela mostrou os dentes. — Ele marcou seu território no nosso território. Em nossa casa. Quando eu o encontrar, ele morrerá.
Metamorfos. O fato dele ter matado duas pessoas era menos importante do que alguns arranhões e xixi.
Examinei a paisagem. À esquerda, o mar se estendia até o horizonte, azul e convidativo. Antes de ir embora eu teria que ir nadar. Nos outros três lados, erguiam-se montanhas, como dobras altas de veludo verde.
— De quantas maneiras você pode chegar a Gagra?
— O porto é o melhor caminho. A maioria das estradas foi destruída por desastres naturais, mas há um desfiladeiro a nordeste. E a ferrovia. Os trens grandes não a usam, mas pode-se andar por ela. Também há pequenos trens privados. Eles vão devagar, mas você pode contratá-los em qualquer grande cidade ao redor.
— Esses metamorfos são de fora da região. Suponha que um grupo deles vieram para cá. Você disse que eles não são locais, então eles não conhecem as montanhas e provavelmente trouxeram equipamentos e outros materiais. Eles não conhecem a região. Poderiam ter chegado aqui pelo ar, planando, mas esse tipo de deslizamento pelo ar sempre te coloca em um ponto só um pouco mais na frente do seu ponto de partida. Não parece ser uma maneira de se locomover muito eficiente ou muito rápido. E eles seriam muito visíveis, especialmente se voassem durante o dia.
Hibla assentiu. — Eles também não vieram pelo porto. Eu sou notificada de todos que chegam.
— Isso nos deixa com a ferrovia ou a passagem. Existe uma maneira de verificar se alguém veio através de um deles?
Hibla assentiu. — Há uma guarita na passagem. Eu posso te dizer amanhã se alguém passou por ela.
— E a ferrovia?
Hibla encolheu os ombros. — Isso será mais difícil, mas vou investigar. Vou colocar mais guardas nas paredes e colocar outra sentinela aqui.
— Faça com que eles carreguem tochas ou lanternas, —disse Derek.
— Podemos ver no escuro, —disse Hibla.
— Ele está certo, —eu disse a ela. — Mesmo com a visão noturna, no escuro você pode não notar imediatamente um guarda sendo atacado, mas você notaria uma tocha cair. É uma chatice e é entediante, mas é melhor do que estar morto.
Hibla assentiu. — Sim. Você tem razão.
— Eu também entrevistaria meu pessoal se fosse você, —eu disse.
— Eu conheço cada um deles. Nenhum deles fez isso.
— Isso é especulação do crime, —disse Derek. — Não sabemos por que esses assassinatos estão acontecendo e precisamos descobrir o porquê, para que possamos prever o próximo passo.
Eu assenti. — Dois de seu pessoal estão mortos, Tamara e o guarda no portão do corredor. Precisamos saber se havia algum elo entre eles. Eles podem ser vítimas aleatórias ou podem fazer parte de um padrão. Você precisa refazer os últimos passos deles. Tamara e o outro guarda tinham inimigos? Estavam em dívida com alguém? E assim por diante. No momento não sabemos o suficiente.
— Eles poderiam estar alvejando Desandra, —disse Hibla. — Eles poderiam estar mirando um dos bandos. Eles poderiam estar alvejando o Senhor Megobari.
— Exatamente. —Disse Derek. — Precisamos coletar informações e então podemos uivar no escuro.
Hibla nos levou de volta para a fortaleza principal e nos deixou sozinhos no pátio principal. Estava quase vazio, exceto por alguns djigits que cuidavam dos cavalos. Acima de nós o céu estava muito azul e bonito. Eu olhei para ele. Talvez eu visse um monstro voador e resolvesse todos os nossos problemas.
— Você está esperando uma pista cair em sua cabeça? —Derek perguntou.
— Sim. Diga-me se você ver alguma vindo.
— Não vejo nenhuma.
— Meus super-poderes mentais devem estar ficando enferrujados.
Nós caminhamos em direção ao quarto de Doolittle.
— O que você acha? —Eu perguntei a Derek.
— Jarek. —Disse ele. — Ele tem mais a ganhar.
Eu tinha que concordar com o raciocínio dele. O pai de Desandra era o único que realmente ganhava se ela não conseguisse sobreviver. Ele não gostaria de ser culpado por isso, então de alguma forma contratou ou se aliou a alguns estranhos metamorfos e agora eles estavam tentando matar sua filha. Era uma boa teoria. Exceto que, Jarek Kral, o fundador da dinastia, não se encaixava com Jarek Kral, o assassino da filha.
— Por que levar os corpos? —Eu pensei em voz alta.
— Escondendo as provas. Por diversão. Ou comida.
Eu olhei para Derek. O canibalismo era extremamente proibido entre os metamorfos. Comer corpos humanos desencadeava uma avalanche catastrófica de hormônios que levava diretamente ao loup. Isso deixava os metamorfos insanos.
Chegamos ao meu quarto. Abri a porta e enfiei a cabeça para dentro. Vazia.
— Curran?
Não. Não Curran. Sim, ele tinha um plano. Sim, e eu não iria gostar desse plano. Agora ele estava me evitando ativamente. Ótimo.
A porta à frente se abriu e Barabas saiu. — Um momento do seu tempo, Alfa.
— Claro. —Eu balancei a cabeça para Derek. — Leve a escama para Doolittle?
Ele assentiu. Passei a sacola com a escama e ele foi embora. Nós o observamos entrar no quarto de Doolittle.
— Ele está ficando cada vez mais sombrio, —disse Barabas.
— Derek?
— Sim. Em pouco tempo começará a emitir sua própria nuvem escura.
— Talvez todos nós possamos nos esgueirar por baixo da nuvem de sua escuridão. Você tem alguma informação para mim?
— Sim. Mas não aqui. —Barabas começou a atravessar o corredor, de volta às escadas. Eu o segui. Subimos as escadas e viramos, Barabas abriu uma porta e saímos para uma ampla varanda quadrada.
— Este lugar é um labirinto, —eu disse.
— E as pessoas nos ouvem através das paredes.
Nós caminhamos para o final da varanda.
— Lorelei Wilson. —Disse Barabas. — Vinte e um anos, filha de Mike Wilson e Genevieve de Vos. A família De Vos administra um dos maiores bandos de lobos da Bélgica. Eles possuem sua base nas Montanhas Ardenne, em Valônia, que é uma região de língua francesa do país. A família é muito próspera. Eles obtiveram sua riqueza durante o século XIX com a mineração de carvão e, com o passar dos anos, aumentaram-na, aproveitando a região rica em minerais. Atualmente produzem aço, Genevieve e Lorelei, por sua vez, têm acesso a muito dinheiro, então é improvável que seus motivos para estar aqui sejam financeiros.
Ela realmente era uma princesa metamorfa loba. — Como você conseguiu obter tudo isso?
Barabas deu um pequeno sorriso predatório. — As pessoas adoram conversar e eu adoro ouvir. Ser um demônio bonito também não atrapalha. Eu sou encantador.
— E tão cheio de humildade também.
— De fato.
— O que ela está fazendo aqui, Barabas? Ela não faz parte de nenhum bando por aqui. Como ela sabia sobre a nossa vinda para cá?
— Isso eu não posso responder. Ainda não. Posso te dizer que ela definitivamente tem um objetivo. Eu percebi as provocações dela ontem e hoje a você. Ela começa uma conversa cheia de bajulação. Faz de propósito.
— Obrigada.
O humor drenou do rosto de Barabas. — Como sua babá, eu agora tenho que trazer um fato desconfortável.
— Manda.
— Lorelei está muito perto de Curran. Ela também está monopolizando o tempo dele.
— Percebi.
— Eu não sei por que ele está fazendo isso, mas isso está enviando uma mensagem para os outros bandos, e eles também notaram.
Argh. E não havia nada que eu pudesse fazer sobre isso. Ameaçar Lorelei me pintaria como insegura. Não ameaçar Lorelei me faria parecer indiferente ou idiota. Seria muito mais fácil se Sua Peludeza tomasse as rédeas da situação e a rejeitasse.
— Tenho certeza de que isso faz parte de um plano, —disse Barabas. — Eu gostaria apenas de estar informado sobre esse plano. Apenas para o benefício da estratégia geral.
Isso fazia dois de nós. — Eu vou falar com Curran, —eu disse. — E as criaturas desconhecidas?
— Nada até agora. Ninguém jamais viu nada remotamente parecido com isso, ou se já viram, não falam nada.
Já imaginava. — Eu preciso me reunir com os três bandos individualmente. Você pode configurar reuniões para amanhã?
— Claro. Para que finalidade?
— Eu gostaria de uivar no escuro.
Barabas franziu a testa. — Não entendi.
— É um termo lobo. Quando você sente alguém no escuro, mas não sabe se ele é uma presa ou um rival, você uiva e vê se ele corre ou responde. Eu gostaria de uivar para os bandos e ver se alguém uiva de volta.
— Entendi. Eles vão aceitar a reunião conosco para evitar nos ofender e remover suspeitas deles mesmos, mas podem não responder a nenhuma pergunta e nós realmente não podemos obrigá-los a fazer isso.
— Eu vou me agarrar no que conseguirmos.
— Certo. Vou deixar você saber assim que eu descobrir mais. E Kate?
— Sim?
— Estou do seu lado, —disse ele.
— Obrigada.
Saí da varanda. Pensar em Lorelei me irritava, mas não havia nada a ser feito agora. Eu encontraria Curran hoje e descobriria que tipo de plano demente ele havia inventado. Até então, eu tinha que me concentrar em manter Desandra viva.
Tanto Andrea quanto George caçaram e mudaram de forma duas vezes em menos de seis horas. Elas estariam cansadas. Entre o homem na gaiola e Lorelei, eu por outro lado, estava novinha em folha. Raiva—uma opção melhor que a cafeína.
Uma sombra se desprendeu da parede e me seguiu. Derek, movendo-se silenciosamente pelo corredor, como uma sombra de um lobo letal caminhando com suas patas macias.
— Estou me sentindo perseguida com toda essa sua coisa de andar atrás de mim furtivamente. Por que você não me alcança?
Ele andou mais rápido. — Apenas tentando mantê-la segura.
Et tu, Brute107? — Primeiro, Barabas me diz que ele está do meu lado e agora você está me seguindo para me manter segura. Os dois sabem algo que eu não sei?
Derek deu de ombros. — Eu não gosto deste lugar.
— Nem eu. Doolittle olhou a escama?
— Sim. Ele quer falar com você.
Eu inverti o meu curso. Paramos no quarto de Doolittle. No interior, Eduardo e Keira estavam jogando cartas.
O bom doutor estava lendo um livro perto da janela.
— O que descobriu com a escama? —Perguntei.
— Como eu já esperava, dada a falta de equipamento. —Doolittle olhou para mim. — Não sou um milagreiro.
— Ele está limitado e isso está deixando-o irritado, —disse Keira.
Doolittle revirou os olhos. — A escama não é uma escama no sentido tradicional. É um escudo108.
— Isso não explicou nada, —eu disse a ele.
— Você já ouviu falar de um pangolim109? —Doolittle perguntou.
— Não.
— É um mamífero da família Pholidota, nativa de algumas partes da África e da Ásia. É semelhante em aparência a um tamanduá coberto por longas escamas córneas.
— Parece uma pinha andando, —ofereceu Eduardo. — Imagine um tamanduá que parece uma alcachofra andando por aí.
— As placas córneas do pangolim são feitas de queratina, —disse Doolittle. — Igual as nossas garras ou unhas. A pele tem várias camadas. A camada superior é a epiderme, que consiste em células mortas. Nas serpentes, as escamas são formadas na parte mais superficial da pele, na epiderme e estão conectadas umas as outras, o que permite a ecdise110. Em outras palavras, as cobras ejetam toda a camada externa da pele durante a muda. Em teoria, um metamorfo réptil teria escamas toda vez que ele ou ela se transformasse. Já os escudos são formados mais profundamente na derme, a camada mais profunda da pele. Eles são semelhantes aos cabelos em composição, pois cada um deles é enraizado individualmente e, embora possam ser semelhantes em aparência as escamas, os dois são estruturalmente diferentes.
— Então a escama da criatura desconhecida é um escudo. O que isso significa para nós? —Eu ainda não tinha certeza de onde ele estava indo com isso.
— Acredito que eles têm uma escolha, —disse Doolittle. — Quando um metamorfo muda de forma, ele ou ela controla certos aspectos da mudança: o comprimento das garras, a densidade da pele, a massa óssea e assim por diante. É isso que faz com que a forma de guerreiro se torne possível. Se esses metamorfos são capazes de produzir peles e escudos, eles podem escolher qual aparecer. Como os escudos se originam mais profundamente na derme, um metamorfo pode mantê-los escondidos até que seja necessário. Também testei as amostras de tecido da cabeça decepada, —disse Doolittle. — Seus níveis de Lyc-V e hormônios são quase o dobro dos nossos. Quanto mais altos forem os níveis de Lyc-V, desde que eles não resultem em loupismo, maior será o controle do metamorfo em seu corpo.
— Certo. Então, o que você está me dizendo é que eles podem escolher ter escamas ou não ter escamas?
— Sim.
— Mas, e as asas?
Doolittle abriu os braços. — Traga-me uma asa e eu vou te dizer mais.
Suspirei e caminhei para o quarto de Desandra. Derek me seguiu, o que era muito bom já que ele seria meu parceiro para o turno.
Enfiei Lorelei longe no canto profundo da minha mente, no mesmo lugar em que enfiei o fato de que Hugh d'Ambray estava a pouca distância. Se eu me concentrasse demais em um deles, faria algo imprudente.
Imprudência não estava no meu vocabulário nas atuais circunstâncias. Não se eu quisesse manter todos nós respirando.
Pelo menos a coisa Lorelei poderia ser resolvida de maneira muito simples. Eu tinha que encontrar Curran e conversar com ele. Ele não mentiria para mim. Claro que ele não faria.
Capítulo 12
Quando entrei pela porta, os olhos de Andrea estavam arregalados e tinha aquela expressão de sofrimento que normalmente significava que ela queria puxar a arma para fora e atirar em alguém.
— Está tudo bem?
— Os italianos venceram a caçada, —disse Raphael. — Nós devemos ter um grande jantar comemorativo em alguns dias em homenagem a eles.
Certo. Não foi realmente uma grande surpresa. Eu fiquei para trás, o que reduziu os números da nossa equipe para onze. Metade deles guardara Desandra, e eu tinha a sensação de que Tia B, Raphael e Andrea se concentraram puramente em conseguir a melhor caça para o prêmio da panaceia.
— Eu estava dizendo a eles que foi por causa de Gerardo, —disse Desandra. — São as longas pernas dele. Ele pode correr para sempre. A maioria dos homens não tem pernas sexy, mas ele tem. Elas são muito elegantes.
Aha!
— E, como eu estava dizendo, ele também é bem dotado.
Oh garoto.
Andrea virou as costas para Desandra e revirou os olhos. Raphael fez uma careta. Ambos pareciam escandalizados. Querido Deus, o que ela poderia ter dito para escandalizar boudas ...?
— Não, é verdade! —Desandra assentiu. — Certo, então a maioria dos caras não tem sacos bonitos, certo? Parecem peludos e enrugados como se algum pequeno animal morresse entre as pernas, mas o de Gerardo é como duas ameixas em um saco de veludo ...
Derek, que estava demorando na porta, deu um passo cuidadoso para a esquerda atrás da parede e desapareceu da minha vista.
Alguém me mate. Eu levantei minha mão. — Segure esse pensamento. Preciso pegar emprestado Andrea por um minuto. Agarrei seu braço e a puxei para o corredor. Atrás de nós, Raphael rosnou: — Não me deixe!
Andrea se inclinou para mim. — Ameixas.
— Ouça ...
Andrea ergueu as mãos, imitando as ameixas do tamanho de pequenos cocos e as moveu para cima e para baixo. Desandra não fazia ideia, mas eu estava prestes a salvar a vida dela trocando de turno com Andrea.
— Desculpa, estou atrasada. Houve outro assassinato.
— Onde?
— Na torre. —Contei a ela rapidamente os eventos. — Sinto muito por ter me atrasado, mas estou aqui agora para tirar Desandra de suas mãos.
— Eu te amo. De uma maneira puramente platônica. —Andrea enfiou a cabeça pela porta. — Querido, vamos lá.
Eles escaparam. Entrei e sentei na cadeira para poder ver a porta e Desandra. Derek se encostou do lado de fora.
Desandra tentou falar comigo. Deixei-a continuar com as suas explicações. Depois de ouvir por vinte minutos as descrições detalhadas e as comparações ponto a ponto das partes íntimas de Gerardo e Radomil, com demonstrações de tamanho, Desandra finalmente se cansou e adormeceu. Ela roncou um pouco, assobiando baixinho, sua barriga apoiada em um travesseiro pequeno.
Derek levantou e foi se sentar ao meu lado. — Como você pode suportá-la?
— Ela é solitária. Está grávida e assustada. Seu pai provavelmente está tentando matá-la, e nenhum dos homens com quem se casou está lhe oferecendo qualquer apoio. Nem podem protegê-la de seu próprio pai. Eu não me importo de lhe dar uma folga. Ela não é a pior pessoa que eu já protegi.
— Quem foi o pior?
— Um senador estadual escolheu o lado errado da lei e aceitou alguns subornos. Seu contador fez uma denúncia e expôs o senador. A esposa do contador estava convencida de que a proteção do Estado não era boa o suficiente, então eles ligaram para a Associação dos Mercenários. Eu fiquei com eles por setenta e duas horas. O contador e sua esposa brigavam o tempo todo. Havia quatro de nós protegendo-o, e no final do quarto dia, Emmanuel, um dos mercenários, cara grande, latino, muito calmo, foi embora. Ele apenas se levantou e foi embora. Perguntei a Emmanuel sobre isso mais tarde e ele disse que ou ia embora ou iria bater as cabeças dos dois uma na outra para que eles calassem a boca ...
Uma repulsa familiar rolou sobre mim, como um resíduo oleoso sujo com gordura podre. Um vampiro. Movendo-se pela direita. A única pessoa que poderia ter um vampiro neste castelo cheio de metamorfos seria Hugh.
Ele próprio pilotava ou tinha alguns Mestres dos Mortos escondidos nesse lugar, não importa, porque em algum lugar um necromante estava puxando as cordas de um vampiro, enviando-o firmemente para nós, como uma minhoca no anzol. Tentando descobrir se eu posso sentir vampiros, Hugh? Boa tentativa.
— Uma boa maneira de desperdiçar o salário, —disse Derek.
O vampiro chegou mais perto, sua mente preenchida com magia odiosa. O desejo de estender a mão e esmagar a mente desse vampiro como uma noz era quase demais. Estava perto, perto demais. Minha mão coçava. Eu queria pegar minha espada e esfaqueá-lo.
Eu não poderia apenas ficar sentada aqui. Se por algum milagre não fosse Hugh, poderia entrar no quarto e matar Desandra. Ela lutaria, mas um vampiro era o equivalente mais próximo da natureza a uma máquina de matar. Não tinha pensamento, consciência ou dúvidas. Como uma enorme barata predatória, obedecia apenas a um impulso básico: alimentar-se.
Abaixei minha voz. — Foi principalmente porque ele queria preservar sua imagem profissional. Você se lembra quando você e eu fomos à White Street? Naquele dia que você teve sua perna rasgada?
Derek assentiu. — Eu lembro.
Bom, eu esperava que ele se lembrasse que foi um vampiro que rasgou sua perna. — Acho que foi assim que Emmanuel se sentiu. Como se algo estivesse se aproximando dele e ele precisasse ir embora.
Derek olhou para mim, seus olhos castanhos concentrados.
— Mais umas dez horas e ele poderia ter cometido um homicídio. — Vamos, Derek. Vampiro. Dez horas111. Na parede.
— Então, deixe-me adivinhar, ele não recebeu o pagamento. —Derek se agachou em um movimento fluido. Ele me compreendeu.
O vampiro estava quase diretamente à minha esquerda. Eu senti. Ficava exatamente a três metros de distância, o que o colocou bem no final da sala. A parede tinha que ser oca e o vampiro estava atrás dela, eu não podia vê-lo, mas podia senti-lo.
— Não. E a Associação o multou com uma taxa de abandono de missão em andamento.
O vampiro mudou cerca de vinte e cinco centímetros para a esquerda. Derek virou-se ligeiramente. Ele estava rastreando o morto-vivo.
— Em seu lugar eu também teria ido embora. Quando você sente que precisa ir, então você vai.
Derek disparou em direção à parede. Ele correu por meio segundo, saltou, voando pelo ar e deu um chute na parede. O bloco de pedra quebrou e caiu, abrindo um buraco. Antes dos últimos pedaços baterem no chão, eu estava de pé e em movimento. Derek enfiou a mão no buraco e puxou um braço seco e ressecado. Ele torceu o pulso, dobrando o cotovelo, e eu apunhalei o buraco escuro. A Matadora afundou em carne vampírica, deslizando ao longo do osso. Precisei ajustar o ângulo. Nuvens finas de fumaça subiram da lâmina enquanto ela destruía o tecido morto-vivo que começou a derreter. Dei um puxão forte e a empurrei novamente. A ponta da espada pressionou a dura bola do músculo cardíaco e senti o momento exato em que o coração do sanguessuga se rompeu. Ele se contorceu no final da minha espada. Ainda vivo, desagradável.
Em menos de um suspiro, Desandra estava fora da cama e ao nosso lado. — O que ...?
Derek chutou a parede diretamente sob a abertura. Rachaduras dividiram os blocos de pedra. Ele chutou de novo. Pedaços de gesso caíram no chão. Pedras de gesso. Ahh, isso explicava. A última vez que verifiquei, os metamorfos eram fortes, mas não fortes o suficiente para abrir buracos em pedras sólidas.
Derek arrancou o vampiro da parede, batendo no chão e prendendo-o. Eu me movimentei com eles, mantendo a Matadora exatamente onde estava. Um corpo pálido se contorcia no chão: sem pêlo, nu. Sua pele tingida de verde claro se ajustava com muita força ao corpo, e todos os músculos e ligamentos subjacentes eram claramente visíveis, como se alguém tivesse pegado um atleta profissional, o embranquecesse e o desidratasse por algumas semanas.
O vampiro sibilou. Seus olhos me perfuraram: quente, vermelho brilhante e desprovido de qualquer pensamento, exceto por uma insaciável sede de sangue quente. A Matadora fumegava. A carne ao redor da lâmina começou a cair enquanto a espada derretia o coração do vampiro, tentando digeri-lo. O vampiro lutou para levantar. Derek se esforçou segurando-o. Os músculos do corpo de Derek estavam inchados do esforço. Eu me inclinei na Matadora.
O vampiro arqueou, levantando Derek por meio segundo. No momento em que removesse a lâmina, ele iria para a minha garganta. A Matadora estava demorando demais. Nós não poderíamos segurá-lo por muito tempo.
— Solte-o. —Puxei a lâmina livre. Derek lançou o vampiro na parede de pedra. O corpo pálido caiu com um baque, e eu o decapitei com um golpe rápido. A cabeça do vampiro rolou em direção a Desandra.
Ela cutucou com o pé e franziu o nariz. — Fedorento, não é?
Eu limpei a Matadora.
Derek ficou de pé e enfiou a cabeça na abertura. — Vejo uma passagem de três metros de largura com uma abertura vertical no final. Ele bateu em um retângulo duro da parede. — Isso é gesso. Parece ter o tamanho de uma pequena porta. O resto é pedra.
Leves pisadas vinham do corredor e quatro djigits correram para o quarto e pararam.
— Diga a Hibla que precisamos de serviço de limpeza, —eu disse. — Até poderíamos lidar com lixo nesse quarto e cheiros estranhos, mas agora temos um corpo morto. Se isso continuar, não poderemos dar uma classificação decente ao seu hotel.
— Sim. —Disse Derek, sua voz completamente inexpressiva. — E é melhor que o café da manhã seja muito bom, ou vamos reclamar com o gerente.
O jantar foi servido à meia-noite. Eu tinha gasto muitas calorias—a cura que Doolittle fez em mim mais cedo acabou queimando calorias selvagemente em meu corpo—e eu estava tão faminta que poderia ter comido crua uma daquelas cabras da montanha no pátio.
Sentada enquanto Desandra ainda cochilava e o pessoal do castelo despejava álcool no sangue de vampiro, incendiava-o e depois esfregava do chão, ignorando diligentemente minhas perguntas do tipo ‘Como um vampiro entrou no castelo?’ E ‘O que ele estava fazendo atrás da parede?’ me deu muito tempo para pensar.
Comecei a pensar em Curran e Lorelei, decidi que isso me enlouqueceria e me concentrei nos metamorfos alados. Eu queria ter acesso à biblioteca da Fortaleza. Gostaria de ligar para algumas pessoas e perguntar se elas já ouviram falar de algo assim. Mas eu não tinha recursos além do que estava na minha cabeça e dos poucos livros que tinha trazido comigo. Fixar em lamassu não me faria bem; não havia indicação de que os lamassus fossem metamorfos. Quando uma investigação começa, você simplesmente coleta os fatos.
Eu ainda estava no estágio de coleta de fatos. Tirar conclusões nesse momento me levaria a selecionar fatos que apoiariam minhas teorias e ignoraria aquelas que não se encaixaria. Esse era uma descida escorregadia, no final do qual havia mais corpos mortos.
Magia tinha maneiras de cuspir coisas novas e bizarras no mundo, então só porque eu não tinha ouvido falar delas não significava que esses caras não tivessem uma longa e sangrenta história em algum lugar. Até agora, eu teria questionado a existência de metamorfos golfinhos também, mas ter matado alguns me transformou em uma crente. Se um metamorfo baleia bamboleasse no castelo, eu nem piscaria um olho. Procuraria um arpão, mas não ficaria surpresa.
Então, suponha que isso fosse algum metamorfo esquisito, do tipo que-nunca-ninguém-viu-antes, coberto por escamas estranhas. Por que Hugh não estava virando o castelo de cabeça para baixo procurando por eles? Hibla me pareceu inteligente e capaz, mas também um pouco inexperiente. Isso não era um ataque contra ela—era provável que esse castelo nunca foi atacado, mas Hibla se importava em mantê-lo seguro, tanto que engoliu seu orgulho e veio me pedir ajuda. Considerando como deus e o mundo estavam lamentando o fato de que eu não era uma metamorfa e, portanto, era um ser inferior, a procura de Hibla por mim era nada menos do que um milagre.
Então ela não tinha experiência para lidar com isso, mas Hugh tinha experiência em espadas. Por que ele não estava providenciando resolver isso?
A melhor pergunta era: ele inventou essa coisa toda? Se isso fosse algum tipo de plano elaborado, eu não conseguia ver o que ele tinha a ganhar com isso, mas também não podia marcá-lo na lista de suspeitos em potencial, assim como não conseguia cruzar Jarek Kral, os Volkodavi ou os Belve Ravennati.
Eu adoraria eliminar um suspeito. Nem que fosse só um. Não me importava qual. Se eu conseguisse cortar um bando da lista, faria uma dancinha feliz bem ali na frente de todos e choraria de alegria.
A equipe de limpeza saiu. Derek levantou a cabeça e cheirou o ar.
Se alguém nos contratasse para outro trabalho de guarda-costas, eu lutaria com dentes e garras para levar Derek conosco. Ele cheirava pessoas vindo antes que eu as ouvisse chegando.
— Quem é? —Perguntei.
— Isabella. —Disse ele.
A matriarca de Belve Ravennati estava vindo nos fazer uma visita.
— Eu não quero falar com ela! —Desandra pulou da cama e saiu para o banheiro.
Certo. Levantei-me e Derek e eu bloqueamos a porta. Isabella Lovari desceu as escadas e foi na nossa direção. Uma jovem morena acompanhava-a.
Elas pararam diante de nós.
— Eu vim checar meu neto.
Alguém deve ter dito a ela sobre o vampiro. — Desandra está segura. Os bebês estão bem.
— Eu quero ver por mim mesma.
— Ela não quer ver você agora, —eu disse.
— Vou ter que insistir, —disse Isabella.
— Ou você poderia escolher falar com ela mais tarde no jantar, —eu disse.
Isabella estreitou os olhos e me olhou devagar. — Para uma humana em um covil de bestas, você tem muita arrogância. O que faz pensar que está segura?
Me desculpe, eu sou humana? Não fazia ideia. Que surpresa. — O que faz você pensar que eu não estou? —E que retorno incrível que foi. Nossa, eu sou demais.
Isabella sorriu, seus olhos frios como dois pedaços de carvão. — Quando um alfa está na sua frente, a resposta apropriada é respeito e medo, sua idiota humana. Se você fosse uma metamorfa, você saberia disso.
Xingamentos, huuu.
Derek mostrou os dentes.
— Se eu me encolhesse toda vez que um alfa de outro bando mostrasse seus dentes, eu não seria Kate Daniels, eu seria você.
Isabella olhou para mim. A mulher ao lado dela ficou tensa.
Você gostou disso? Aqui tem outro. — De onde eu venho, nós não desistimos de nossas noras só porque Jarek Kral rosna. Mas entendo que você faz as coisas de maneira diferente. Se Kral decidir tirar o dinheiro do almoço, me avise e nós ajudaremos você.
Isabella piscou. A mulher de cabelos escuros disse algo em italiano. O olhar de Isabella ganhou um brilho mortal. — Isso não ajudará em nada. Você está sendo substituída e você é tão estúpida que nem percebe isso. Quando um metamorfo ama uma mulher, ele não deixa outra mulher caçar ao lado dele, nem deixa ela terminar suas mortes. Quando Lennart te jogar fora, eu estarei esperando.
Ela se virou e foi embora, sua escolta mais nova a reboque. Eu esperei trinta segundos.
— Isso aconteceu?
Derek fez uma pausa antes de responder. — Sim.
— Então ele deixou Lorelei terminar suas mortes?
— Sim.
— Isso significa alguma coisa ou ela está apenas soprando fumaça na minha cara?
Derek suspirou. — Ele não deveria ter feito isso. É algo que os lobos fazem. Não é como oferecer comida, mas está perto.
Meu peito de repente adquiriu uma rocha pesada. Ele rolou dentro de mim, doendo.
— Também pode ser tomado de uma maneira diferente, —disse Derek. — Os pais deixam as crianças terminarem suas matanças. Irmãos mais velhos deixam as crianças menores fazerem isso ...
Eu olhei para ele.
— Ele não deveria ter feito isso, —disse Derek. — Mas ele nunca faz nada sem uma razão.
— Quando perguntei se você sabia de alguma coisa que eu não sabia, você mentiu para mim.
— Eu não menti. Apenas não ofereci informações. Eu não queria que você se preocupasse
Eu não estava preocupada. Quando Curran chegasse aqui, pretendia derrubá-lo, sentar em cima dele e sacudi-lo até que ele explicasse isso para mim. Até agora, ele a deixou ficar nua ao lado dele, ele a deixou caçar com ele, ele a deixou terminar suas matanças—seja lá o que isso significasse, e nas últimas vinte e quatro horas ele gastou mais tempo ouvindo Lorelei do que ele tinha me encontrado.
Um pensamento frio se contorceu através de mim. De um ponto de vista puramente lógico, Lorelei faria uma melhor Consorte. Ela era uma metamorfa, ela tinha laços com o maior bando de metamorfos dos Estados Unidos, e não tinha um pai que estava planejando exterminar os metamorfos porque eles estavam se tornando poderosos demais.
Logicamente fazia sentido, mas nada disso importava, porque o homem que dormiu ao meu lado ontem à noite me amava. Eu apostaria minha vida nisso. A maneira como as coisas estavam indo, eu poderia ter que fazer.
Derek saiu para o corredor e ficou lá.
— O que você está fazendo?
Ele acenou para as escadas. Curran correu, pulou, cobrindo os últimos degraus, e foi direto para mim, leve na ponta dos pés, irradiando energia física contida que me atraía como um ímã.
Eu examinei seu rosto. Ele parecia no limite, sua expressão desgastada, a linha de sua boca cansada, mas firme. Seus olhos diziam que ele estava cansado e irritado, e se você estivesse em seu caminho agora, ele estalaria seu pescoço sem hesitar e continuaria seguindo seu caminho.
Eu cruzei meus braços. — Você ...
Curran me abraçou e me beijou. Foi um beijo longo e demorado, feito de exasperação, alívio e felicidade. Ele sorriu para mim, aqueles olhos tão calorosos e acolhedores. — Eu queria fazer isso o dia todo.
Certo. Agora eu estava oficialmente perplexa. Esperei para ver se pontos de interrogação brotariam ao meu redor, mas o ar permaneceu claro.
Ele notou o buraco na parede. — O que diabos aconteceu?
— Nós redecoramos. —Eu mantive o meu nível de voz. — Onde você esteve?
— Os Belve e os Volkodavi queriam discutir as coisas e eu tive que me sentar como testemunha.
— Por cinco horas?
— Mais ou menos. Acabamos de terminar.
E Isabella deve ter vindo aqui para irritar Desandra.
Curran passou a mão pelo rosto, como se quisesse enxugar a fadiga. — Eles estão tentando estabelecer algum tipo de acordo para se unir contra Kral. Eu não como desde a caçada. Estou faminto.
— Eles tiveram sucesso?
— De jeito nenhum. Todo mundo estava cansado da caça e irritados para caralho. Eles brigaram sobre herança da passagem, e fizeram o seu melhor para isso, e acusaram um ao outro de tudo. Radomil adormeceu. Por alguns minutos, parecia que eles poderiam realmente concordar com alguma coisa. Então o irmão mais novo—Ignazio—decidiu que seria uma ótima ideia pular e anunciar que quando seu sobrinho nascesse, pelo menos ele nasceria esperto como seu pai, então ele deveria herdar a passagem e não o outro garoto, que foi concebido por um citrullo.
— O que é um citrullo?
— Pelo que eu entendi, é um idiota ou um demente. Curran sacudiu a cabeça. — Então os Volkodavi começaram a gritar. Os Belve gritaram de volta. Radomil acordou e alguém disse que ele havia sido insultado, mas aparentemente não disse quem fez isso, porque Radomil foi atrás de Gerardo e o chamou de parazeet e viridok.
— Parasita e bastardo, —eu traduzi. Voron era russo. Eu falava bem, melhor agora que eu tinha alguém em Atlanta para praticar, e andei por muito tempo com ucranianos para aprender a língua. Xingamentos foi a segunda coisa que mais aprendi, logo atrás de ‘sim’, ‘não’, ‘socorro’, ‘pare’ e ‘onde fica o banheiro?’.
— Ahh. —Curran assentiu. — Isso explica por que a mãe de Gerardo ficou furiosa.
— Então o que aconteceu?
— Então eu rugi. Todos declararam que ficaram insultados comigo e que não continuariam na reunião. Bom para mim, porque eu já estava farto deles. Eu não daria essas crianças para qualquer um dos bandos. Eles não dão a mínima para eles ou para Desandra. Quando eles estavam saindo, eu podia ouvi-los gritando um com o outro. Depois que Gerardo gritou para Radomil, toda maldição sob o sol, o irmão de Radomil disse a ele que homens inteligentes mantêm as cadelas no cio em uma corrente.
Eu desenvolvi uma forte vontade de socar os dois no rosto.
— Ele tem sorte que ele disse isso para Gerardo. Se ele tivesse me dito sobre você, teria sido o fim dele. Ele nunca mais diria mais nada.
Curran ficou em silêncio. Eu virei. Desandra estava na porta do banheiro. A cor sumiu do rosto dela. — Vitaliy disse isso?
Curran parecia que queria estar em qualquer lugar, menos aqui. — Sim.
— O que Gerardo fez?
— Ele o chamou de um nome que eu não entendi.
— Mas ele fez alguma coisa?
— Não. —Disse Curran.
— Entendo. —ela disse calmamente. — Acho que não vou jantar hoje. Minha corrente de cadela não é longa o suficiente.
— Desandra ... —Curran disse.
Ela levantou a mão. — Não. —Sua voz tremeu. Ela estava prestes a quebrar.
Eu precisava falar com Curran. Mas Desandra estava prestes a se perder. Abandoná-la ou conversar com Curran? Seria uma longa conversa.
Desandra fez um pequeno ruído estrangulado na garganta. Droga. Ele estava cansado, nós dois estávamos morrendo de fome e a privacidade estava em falta. Já havia esperado tanto tempo, poderia esperar até estarmos sozinhos. Me virei para Curran.
— Por que você não vai sem mim? Faça uma aparição, rosnando e tudo isso. Estarei aqui.
Curran olhou para Desandra por um longo momento. — Eu voltarei.
— Traga-nos um pouco de comida, —eu disse a ele. — E eu realmente preciso falar com você quando voltar.
— Certo. —Ele me beijou e saiu do quarto.
Derek entrou e fechou a porta atrás dele.
Desandra afundou na cama, pôs as mãos no rosto e começou a chorar.
Desandra chorava.
Alguém me mate. Nunca soube o que fazer ou o que dizer nessas horas. Peguei uma toalha macia do banheiro e trouxe para ela. Os ombros de Desandra tremiam. Ela soluçava baixinho. Na entrada, Derek fazia o melhor para desaparecer.
Eu sentei ao lado dela na cama. Ela gemia com uma voz fina e angustiante, seus soluços vazando completo desespero, como se seu mundo estivesse acabando. Seu pai era um idiota abusivo que a usava como moeda de barganha. Os dois homens com quem ela se casou não a amavam nem a seus filhos. Neste momento, só nós nos preocupávamos com o bem-estar dela, e o fazíamos porque seríamos pagos com panaceia no final. Eu gostaria de poder dizer algo ou fazer alguma coisa para ela se sentir melhor. Gradualmente, os soluços diminuíram. Ela se afastou de mim e pressionou a toalha contra o rosto.
— Eu me sinto tão sozinha, —ela disse baixinho. — Eu só queria que pelo menos um deles se importasse. Mas eles não se importam.
— Provavelmente não, —eu disse a ela.
Sua maquiagem tinha corrido e listras escuras de delineador manchado sujavam suas bochechas. Ela enxugou o rosto com a toalha. — E eu não tenho escolha.
— O que você quer dizer?
— Quando os bebês nascerem, o que vai acontecer? Eles vão me forçar a ir com o bando da criança que nascer primeiro? Eles vão tirar meus filhos de mim e me jogar de volta ao meu pai, para que ele possa me dizer todos os dias como eu lhe vali a passagem e que desperdício inútil eu sou?
— Eu não sei. —eu disse.
Ela olhou para mim e sussurrou: — Eu tenho medo de amar meus próprios bebês, porque eu não vou conseguir mantê-los.
Oh inferno.
Pensar em ser paga por toda essa miséria agitava meu estômago. Se dependesse só de mim, eu a tiraria daqui, longe de todos, recebendo meus honorários ou não. Mas não era sobre mim. Era sobre Maddie em coma, torcida em um caixão de vidro enquanto sua família rezava para voltarmos a salvo. Era sobre os futuros bebês de Andrea. E sobre os meus.
— Alguém está vindo. —disse Derek.
Eu me levantei da cama e me movi para a porta. Raphael e Andrea dobravam a esquina.
— O que vocês estão fazendo aqui?
— Nós a ouvimos chorando. —Disse Raphael.
— Foda-me. —Desandra disse da cama. — Uma mulher não pode chorar em paz?
— Não com essa acústica. —Andrea entrou no quarto e nos mostrou um prato de frutas. — Eu tenho lanches.
Derek olhou para o prato com aquele desejo em particular, como um cachorro faminto olha um bife suculento.
— Você vai ficar um pouco? —Perguntei a Andrea.
— Pode apostar.
Eu olhei para Derek. — Por que você não vai comer algo? Não sabemos quando Curran voltará.
— Vamos. —Disse Raphael a ele. — Eu vou andar com você.
Raphael piscou para mim, e ele e Derek decolaram.
Meia hora depois, Desandra tinha acabado de comer e estava desmaiada, ressonando. Nós nos sentamos no chão no tapete, o prato quase vazio de frutas entre nós. Eu roubei outro damasco. Ainda estava com fome.
— Você deveria ir jantar, —disse Andrea. — Vou ficar aqui com a senhorita grávida.
— Ainda é meu turno. Você já teve sua vez.
— Sim, mas a Princesa Wilson não está lá fora, colocando seus olhos em Raphael. —Andrea mostrou os dentes.
— Lorelei está no jantar?
— Sim. Sim, ela está. Está usando um vestido transparente e praticamente derreteu quando Curran olhou para ela.
Houve momentos em minha vida em que os poderes mentais supremos viriam a calhar. Nesse momento, desejei poder chegar telepaticamente ao refeitório e derrubar Lorelei de sua cadeira.
— Eu tenho um trabalho a fazer. —Eu me inclinei contra a cama e fechei meus olhos por um momento.
— Você está bem? —Andrea me perguntou.
Não, não, eu não estava bem. Pessoas estavam morrendo. Uma mulher grávida estava em perigo. Uma jovem metamorfa com uma forte influência política estava atrás de Curran e não havia nada que eu pudesse fazer sobre isso.
— Você sabia que Hugh tem um homem preso em uma gaiola no pátio interior? Ele está lá há semanas. Está lentamente morrendo de fome e sede. E eu não posso fazer nada para tirá-lo.
— A pior mudança de assunto de todos os tempos, —disse Andrea. — Eu pensei que nós estávamos falando sobre Lorelei?
— Eu não gosto dela. —Disse Desandra da cama.
Droga. — Eu pensei que você estava dormindo.
— Você nunca fala nada de interessante quando estou acordada.
— Isso é porque não confiamos em você. —Disse Andrea.
— Eu sei disso. Mas eu tenho fofocas sobre Lorelei e vocês não. —Desandra se levantou, apoiando-se nos travesseiros. — Como quem a convidou para essa reunião estúpida.
— Certo, eu vou cair nessa sua armadilha. Quem?
— Ela se convidou. —Disse Desandra. — Escreveu uma carta para Senhor Megobari e disse que ela e Curran eram amigos de infância e que conhecia muitas pessoas de Atlanta. Esta era sua única chance de vê-lo e ela pedia autorização para uma visita e que não daria trabalho algum.
Hugh deve ter amado isso. O bastardo presunçoso provavelmente riu quando leu essa carta. Como Lorelei descobriu sobre esse assunto?
— Quem sabia sobre Curran vindo para arbitrar a sua situação? —Perguntei.
Desandra encolheu os ombros. — Eu não sabia até duas semanas antes de Lorelei aparecer.
— Então ela teve informações privilegiadas, —disse Andrea. — Eu me pergunto onde ela conseguiu.
— Isso eu não sei. —Desandra fez uma careta. — Eu posso te dizer que quando ela saiu do navio, foi muito amigável. Mesmo. Fez todo o ato doce e inocente. —Desandra sacudiu os cílios. — Oh pobre de mim, eu sou uma flor doce e querida, muito delicada e ... qual é a palavra quando você é assim, oh, eu sou tão ingênua e só quero ajudar?
— Ingênua? —Andrea repetiu.
— Isso. Mas eu fiz a mesma coisa na idade dela. Logo vi que Lorelei é uma cobra. Quando ela percebeu que eu não estava prestes a ser sua melhor amiga, essa coisa toda doce saiu de cena e apareceu a verdadeira. Briguei com meu pai e ela me disse que eu era inapropriada. Então uma vez ... certo, bem, as mulheres grávidas ficam com gases presos. Seu estômago fica do tamanho de uma mochila, e quando você está assim, dói até respirar. Então peidei. Eu não pude evitar. Ela me chamou de vulgar. Eu disse a ela para cuidar da própria vida, e ela disse que eu era uma vergonha e que nenhuma pessoa autoconfiante iria se associar com alguém como eu. Eu era um constrangimento para meu pai e meu marido. Eu não tinha honra. —Desandra fez uma careta. — Ela deve ter crescido em um aquário ou algo assim. Tem todas essas ideias estranhas sobre como as pessoas devem se comportar. Como se ela fosse algum tipo de nobreza e todos nós somos apenas camponeses.
Interessante. — O que você fez? —Perguntei.
— Eu a investiguei. O pai dela é um grande alfa nos EUA, mas a mãe não aguentou, então levou Lorelei de volta para a Bélgica. Há apenas um grande bando de metamorfos na Bélgica, e os avós de Lorelei o estão administrando. Eles realmente não queriam sua mãe de volta, então permitiram que elas voltassem com uma condição: nenhuma delas pode ter nada a ver com o funcionamento do bando. A família lhes dá algum dinheiro e elas não passam necessidades, mas nenhuma delas pode ser uma alfa. Eles não queriam que elas competissem com o filho. Então, quando Lorelei me disse que eu era um constrangimento, eu disse a ela que era filha de um alfa e esposa de dois futuros alfas, e que três bandos estavam cruzando o mar por minha causa. Eu perguntei a ela o quão rápido ela acha que eles a jogariam no mar se eu pedisse para eles fazerem isso.
— Ha! —Andrea sorriu.
Eu não me importaria de jogar Lorelei no mar, mas agora a necessidade de socar Curran era muito mais forte. — O que ela disse?
— Ela ficou toda chocada, chorou algumas lágrimas de crocodilo, disse que eu era uma pessoa horrível e fugiu. Estávamos comendo na hora e ninguém a seguiu, o que provavelmente estragou o plano dela. —Desandra se inclinou para frente e estremeceu. — Uou. Eu continuo esquecendo de não fazer isso. De qualquer forma, eu cresci em um bando que era um campo minado. Eu gosto dessa palavra, a propósito. Muito agradável. Já vi o tipo dela antes. Lorelei é inteligente, o que significa que tem algum cérebro, mas também é jovem e inexperiente. Não entende como as pessoas funcionam e acha que todo mundo é muito mais burro do que ela. Ela é uma sociopata clássica: é charmosa e manipuladora, acredita que tem direito de ser assim, nunca sente genuinamente culpa e, quando oferece desculpas, é superficial. Ela falseia a felicidade e provavelmente pode falsear o amor. Ela não é uma psicopata—seu temperamento é encantador, não é necessariamente predatória, e eu não posso vê-la tentando se suicidar. Muito narcisista.
— Como diabos você sabe tudo isso? —Andrea perguntou.
Desandra suspirou. — Eu li muitos livros de psicologia. Comecei quando eu era criança. Estava tentando diagnosticar meu pai.
Bem, isso foi uma surpresa. — Qual é o veredicto?
— Ele é um megalomaníaco severo. Tem um distúrbio intenso de personalidade narcisista, completo com paranoia ocasional. Exibe cada um dos sete pecados mortais de narcisismo de Hotchkiss112. Foi assim que aprendi a manipulá-lo. Infelizmente, isso não ajudou com minha saúde mental, e ele também sabe como me manipular.
— Por que você ... —Andrea lutou por palavras. — Age como se estivesse desequilibrada?
— Autodefesa, —eu disse a ela. De repente, muitas coisas faziam sentido.
— Ela está certa, —disse Desandra. — Quanto tempo você acha que eu sobreviveria se eles soubessem que tenho um cérebro? A única razão pela qual não estou trancada é porque eles acham que sou emocional e estúpida. Eu estou emocional—os hormônios da gravidez não são brincadeira. Mas eu não sou burra. Minha mãe era esperta, e se você perguntar ao meu pai, ele mostrará a você muitos lugares onde as pessoas que pensavam que eram mais espertas do que ele estão enterradas a sete palmos abaixo do solo. Se a mãe de Gerardo pensasse por um momento que eu tinha mais cérebro que uma borboleta, ela me manteria trancada a chave por todo o tempo em que estive casada com ele. Quando disse ao Gerardo que não poderíamos lutar contra o meu pai, não fiz isso porque eu era fraca. Fiz porque eu sabia que não poderíamos vencer. Pensei nisso e avaliei as probabilidades, e elas não estavam a nosso favor. Sinceramente, espero que Jarek irrite Curran. Ele é a única pessoa aqui que poderia matá-lo. De qualquer forma, você viu o livro de Lorelei?
— Que livro? —Perguntei.
— Algum livro de fantasia que ela carrega por aí. Algo sobre uma princesa no trono em algum tipo de torre de cristal. Há um cavaleiro mais velho que a conhece desde que ela era criança, então ele faz uma espécie de jornada para conseguir uma joia mágica em forma de uma rosa azul para resgatá-la. Ele consegue a joia, liberta a princesa e ela faz dele seu rei. —Desandra me encarou. — Lorelei quer seu trono. Ela acredita profundamente que tem direito a isso. Na cabeça dela, Curran é o único jeito de conseguir isso. Kate, Lorelei fará de tudo para conseguir. E a oportunidade está tão perto que ela pode provar. Se eu fosse você, eu não ficaria perto de penhascos quando ela estivesse por perto, porque ela vai te empurrar.
— Se ela realmente quer, terá que entrar na fila. —O que Lorelei queria ou não queria importava muito pouco. Lorelei não me prometera nada. Curran, no entanto, havia me prometido tudo. Se ele estivesse planejando terminar nossa relação, eu queria saber o porquê. Eu dormiria e, amanhã de manhã, pegaria minhas respostas, seja qual elas fossem.
O som de passos veio de trás da porta, seguido por uma batida. Se continuasse assim, teríamos que investir em algumas barras de ferro e uma daquelas janelas deslizantes, para que eu pudesse abri-la e gritar para as pessoas irem embora.
— Quem é?
— Sou eu. —disse Hugh.
Andrea pegou sua Sig-Sauer.
O que diabos ele estava fazendo aqui? Era só o que me faltava. Andei até a porta. — Seja lá o que esteja vendendo, não estamos comprando.
— Abra a porta, Kate. Eu não vou te atacar no quarto de Desandra.
Bem. Abri a porta. Hugh estava do outro lado, em toda sua glória: botas pretas, calças escuras, jaqueta de couro escura sobre uma camiseta azul. Sua mandíbula perigosamente quadrada foi recém-raspada.
Bem, bem. Alguém se vestira para o jantar.
Ele olhou para o meu ombro. Eu olhei pelo canto do meu olho. Listras pretas do delineador de Desandra manchavam o tecido verde da minha camiseta. Ela deve ter roçado contra mim quando estava chorando.
Considerando que também estava borrada com sangue seco dos ochokochi, minha camisa estava começando a parecer tingida.
— Posso ajudar?
— Você não foi para o jantar, —disse Hugh, inclinando um braço na parede. — Eu vim para ver se tudo estava bem.
Isso era uma boa pose. — Você não poderia simplesmente enviar outro vampiro em vez disso? Eu não fiz ainda meu exercício noturno.
— Eu sinto muito. Da próxima vez, vou encontrar alguns cordeiros para o seu abate.
Ele não mostrava sinais de ir embora.
— Hibla lhe disse que um djigit foi morto na torre? Uma mulher. Seu nome era Tamara.
— Disse.
— Você está por trás desses ataques?
Ele sorriu. — E se eu estivesse, dizer a você não destruiria o propósito?
— Eu não sei qual é o seu plano, mas se você interferir na minha capacidade de fazer o meu trabalho, você vai se arrepender.
— Eu pareço assustado para você? —Ele perguntou, sua voz preguiçosa.
Ele estava tentando me incitar em um concurso de forças. Tenho experiência de sobra nesse tipo de concurso, Hugh. — Não, e isso me preocupa. Você deveria fornecer um ambiente seguro para esta mulher grávida. Em vez disso, seus guardas estão morrendo e algumas criaturas tentaram matá-la a sessenta metros do seu refeitório. Por que você não está espumando pela boca? Não te incomoda que alguém te faça de bobo em seu próprio castelo?
Hugh abriu a boca.
Curran subiu as escadas carregando uma bandeja cheia de comida com uma mão. George andava ao lado dele. Curran viu Hugh e se concentrou nele com uma intensidade unilateral.
— Aí vem a cavalaria. —Hugh piscou para mim.
Curran se interpôs entre mim e Hugh. Sua voz estava fria. — Um de nós não deveria estar aqui.
— Deixe-me adivinhar, isso seria eu?
— Sim. Seus convidados sentem sua falta.
Hugh riu. — Continuaremos nossa conversa mais tarde, Kate. —Ele foi embora.
— Você não poderia ter esperado trinta segundos? —Eu rosnei. — Eu queria ouvir sua resposta.
— Não. Ele nem deveria falar com você e tudo o que ele diz é mentira.
— Isso é comida? —Desandra gritou. — Estou muito faminta.
— Nós estávamos saindo, —disse Andrea.
— Sim, nós estávamos, —George confirmou. — Eu vim para levá-la ao seu quarto.
Elas decolaram. Suspirei e passei o prato para Desandra.
Mais tarde, depois que comemos, Desandra adormeceu, exausta, de verdade dessa vez. Derek voltou do jantar, viu Curran e pediu licença para ir ao banheiro. Curran e eu fechamos a porta e checamos a porta da sacada e as janelas. Eu coloquei um cobertor de reposição no chão. Ele se esticou e eu deitei ao lado dele.
Em torno de nós, a escuridão suave enchia o quarto cavernoso de Desandra.
Derek ainda estava no banheiro. O menino maravilha estava nos dando uma ilusão de privacidade.
— Estamos sendo ouvidos? —Perguntei.
— Se estamos, não posso ouvi-los.
Entendi. Uma vez que nós destruímos o vampiro, o esconderijo foi exposto.
— Eu vi Doolittle no jantar, —disse Curran. — Ele disse que tem algo importante para lhe dizer.
— Isso é urgente?
— Ele disse que esperaria até a manhã. Nós não conseguimos realmente conversar. Muitas pessoas ao redor. Sobre o que você queria conversar?
Isso teria que ser feito com cuidado, com alguma sutileza. Eu abri minha boca, tentando encontrar as palavras certas. Seja sutil ...
Ele ergueu as sobrancelhas. — Por que a demora?
— Tentando encontrar as palavras certas.
— Por que?
— Que diabos está errado com você? Você está deixando Lorelei ao seu lado nua, deixando-a terminar de matar sua caça? Você está fora de si ou eu preciso fazer as malas e ir embora?
Droga. Sutil, realmente sutil.
Ele sorriu para mim. — Eu te amo. Você não precisa se preocupar com Lorelei. Ela está feliz por ter crescido, então ela ostenta isso. É inofensiva.
— E a caça?
— Com quem mais ela iria caçar? —Curran deu de ombros e me puxou para mais perto. — Não tenho interesse em Lorelei. Ela é uma criança.
— Então, isso não faz parte de algum plano que você inventou?
— Não.
Isto deveria ter sido o fim, mas a suspeita permaneceu, me incomodando. Esmaguei isso. Ele disse que não estava interessado. Fim da história.
— Sobre o que você e Hugh conversaram enquanto caçávamos?
— Ele disse que matou Voron. —Eu tentei manter a dor fora da minha voz e não consegui.
Curran fez uma pausa. — Ele está mentindo?
— Acredito que não. Voron o criou do jeito que ele me criou, depois o abandonou. Eu o tirei de Hugh e depois Hugh o levou para longe de mim. Suponho que estamos quites. Mas eu ainda quero assassiná-lo.
— Talvez nós tenhamos essa chance, —disse ele.
— Talvez.
— Ele disse mais alguma coisa?
— Nada importante. Ele acha que os metamorfos são governados por seus impulsos.
— Se eu fosse governado pelos meus impulsos, ele estaria morto.
Ou você. — Curran ...
— Sim?
— Eu o vi lutar. Você se lembra da minha tia? Hugh é melhor.
— Não importa, —disse Curran. — Eu vou acabar com ele.
Mas isso importava para mim. Se Curran matasse Hugh, mas morresse lutando contra ele, não valeria a pena. Eu só tinha que matar Hugh primeiro. Moleza, fácil, baba.
— É este lugar, —eu disse a ele. — Está deixando todos nós fora de controle.
— Nós vamos para casa em breve. —Ele fechou os olhos.
Um estrondo ensurdecedor quebrou o silêncio. Eu pulei e fiquei em pé rapidamente. Derek saiu do banheiro.
O rugido familiar, como cascalho sendo esmagado, rolou pelo corredor, seguido por um furioso rugido profundo, pura fúria expelida em uma única torrente irracional. Eu ouvi esse som antes e era impossível esquecer. Era o grito de guerra de um metamorfo búfalo.
Capítulo 13
Curran abriu a porta e entrou no corredor. Eu bati a porta atrás dele. Derek tentou correr atrás de Curran, mas o garoto maravilha girou no pé no último momento, evitando a colisão na porta. Desandra era nossa primeira prioridade. Se ela morresse, Maddie e nossa chance na panaceia morreriam com ela.
— O que está acontecendo? —Desandra saiu da cama.
Eu tranquei a porta e soltei a Matadora da bainha. Derek arrancou suas roupas. Pêlo surgiu em seu corpo.
No corredor, um coro de rosnados viciosos de dor e rugidos profundos se espalhou. Algo uivou.
O cabelo na parte de trás do meu pescoço subiu. Eu liguei o interruptor de luz. A luz amarela brilhante inundou o quarto.
— O que está acontecendo? —Desandra gritou.
— Eu não sei. Fique atrás de mim.
Algo se chocou contra a porta com um baque alto. As tábuas rangeram.
Outro baque martelou a porta.
Eu recuei, a Matadora pronta. Ao meu lado, Derek mostrava seus dentes gigantescos.
As placas da porta se romperam com um estalo agudo, o som de lascas de madeira como um tiro. Dois corpos caíram no quarto, um cinza, e um dourado. Curran pousava de costas, uma fera amarela em cima dele. A besta levantou a cabeça felina e rosnou para mim, esticando duas enormes asas. Dois olhos verdes me encararam com um ódio quente e terrível.
A boca de Curran ficou boquiaberta. Ele empurrou o animal para baixo e mordeu seu ombro. As gigantes presas de leão cortam a carne como tesouras. Sangue grosso e vermelho molhava as escamas.
A besta uivou de dor e rasgou o lado de Curran com suas garras traseiras, tentando abrir seu estômago. O sangue encharcou o pelo cinzento. Os dois gatos rolaram, arranhando e rosnando.
A porta da varanda explodiu em uma cascata brilhante de cacos. Um segundo animal laranja atirou-se no quarto escuro.
— Saiam da frente! —Andrea gritou da porta.
Eu empurrei Desandra para o canto. A arma de Andrea disparou, cuspindo trovões de balas. Bam! Bam!
A besta estremeceu, cada tiro empurrando-a para trás.
Bam! Bam!
Ela continuou atirando. A bala atravessou a carne da criatura.
A onda mágica colidiu com a gente em uma inundação invisível. A tecnologia desapareceu do mundo em um instante.
Luzes se apagaram, a súbita escuridão se tornou negra e ofuscante. A arma de Andrea se entalou com as balas e parou de funcionar.
As lanternas mágicas lavanda se acenderam, derramando luz tingida de roxo no quarto.
Andrea virou-se para o lado e um bouda malhado passou por ela e saltou para a criatura, rasgando-a com um uivo. Raphael.
A besta balançou, um borrão laranja, e bateu Raphael de lado com uma garra. O bouda pousou enrolando-se e correu de volta para a fera.
Eu me lancei para o monstro laranja. Garras arranharam minha coxa, rasgando meu jeans e pele em um flash quente de agonia.
Ignorei, empurrei, afundando a Matadora profundamente entre suas costelas, e me retirei. Derek saltou, cortando as asas e agarrou-se às costas da fera, mutilando a espinha. A criatura uivou e girou, suas asas esticadas.
Eu me abaixei sob a asa e a cauda enorme me derrubou. Minhas costas bateram na parede. Ouô. O mundo girou.
Não. Não, seu filho da puta, você não vai matar uma mulher grávida hoje. Não no meu maldito turno.
Saltei para os meus pés e cortei o abdomên da criatura. A fera balançou, tentando jogar Derek de costas. Derek permaneceu em cima da criatura. Do outro lado, Raphael rosnava, mordendo e arranhando.
Desandra atacou a fera, pegou uma asa e a puxou para o lado. O osso estalou.
A besta girou novamente. Eu caí, me abaixei e fiz um corte profundo ao longo do intestino da besta. Entranhas derramaram-se em uma confusão de sangue quente. Esfaqueei o abdomên escamado de novo e de novo, tentando causar danos. Morra.
Morra agora.
Uma enorme forma desgrenhada invadiu a sala e mil quilos de urso Kodiak furioso colidiram com a fera como um trem desgovernado. O impacto levou a criatura de volta para a cama. A pesada peça de mobília voou, derrubada por seus corpos. A fera bateu contra a parede. A enorme pata do Kodiak subiu como um martelo. Os ossos grossos do crânio da fera rangeram, o cérebro caiu no chão. O mingau molhado espirrou na parede.
O urso se moveu e eu vi Curran subir na parede oposta, com os braços trancados na criatura alada.
Coberto de sangue, com os olhos brilhantes, ele parecia demoníaco. Um rugido áspero saiu da boca do Senhor das Feras. O braço esquerdo e uma parte do peito da criatura laranja estavam arrancados do lado direito e os ossos de sua cabeça esmagados. O sangue jorrava da abertura cravejada de ossos quebrados.
A besta se debatia, gritando. Curran mordeu a garganta exposta, agarrou a cabeça e arrancou-a do corpo, arremessando-a no chão.
O urso se derreteu em uma forma humana. Meu cérebro levou um segundo para processar que era uma mulher e não Mahon. Os olhos arregalados de George me encararam. Ela pegou minha mão. — Doolittle está ferido!
— Vá. —Andrea gritou para mim. — Vá, nós cuidamos disso!
Eu corri atrás de George no corredor. Meu lado direito e coxa gritava de dor. Sangue encharcava minha calça jeans, a maior parte era meu.
Pedaços de cadáveres cor de laranja cobriam o chão: uma asa, uma perna escamada. Eu nunca entendi porque um Metamorfo morto se tornava humano, mas pedaços dele rasgados em uma luta permaneciam na forma de animal. — O que aconteceu? Quem está lá?
— Tia B e papai. —George gritou por cima do ombro. — Mais rápido, Kate.
Eu a persegui, escorreguei no sangue, e meio tropeçando, meio correndo fui em direção ao quarto de Doolittle. Um jaguar bloqueou meu caminho e rosnou na minha cara, dentes grandes estalando.
— Sou eu! —Eu gritei em sua boca aberta.
Keira sacudiu a cabeça peluda e deu um passo, meio balançada para o lado. O sangue encharcava seu lado esquerdo.
A mobília estava em frangalhos. O vidro quebrado cobria o chão. No canto, Eduardo caído, respirando ofegantemente, seu corpo humano escorregadio de sangue. Entalhes irregulares atravessavam seu peito e estômago. O músculo vermelho pulsava nas feridas—o Lyc-V estava lutando para reparar o dano. Eu me agachei ao lado dele. Bom, pulso forte.
George agarrou meu braço e me puxou para o canto. Um imenso texugo do mel113 do tamanho de um pônei jazia no chão, a cabeça torcida em um ângulo estranho. Ah não.
Eu caí ao lado do corpo e procurei por um pulso no pescoço dele. Uma veia tremulou sob meus dedos, fraca, tão fraca. Minha mão ficou vermelha. Ele estava sangrando e com todo o maldito pêlo eu nem sabia onde.
Comecei a cantar, puxando a mágica para mim. Qualquer pequena cura que eu pudesse fazer era melhor que nada. Vamos. Vamos!
Doolittle ficou imóvel. Ele não tinha se transformado de volta, o que significava que ainda estava vivo. Também significava que o Lyc-V não tinha força suficiente para mudar sua forma. Ele estava morrendo.
Não, não, maldito seja. Eu recitei, colocando toda a minha magia na cura. Sem saber qual era a lesão, tudo que eu podia fazer era segurá-lo. Eu não era um médico-mago, mas eu tinha poder bruto.
George estava ao meu lado, com lágrimas escorrendo pelo rosto dela. — Salve-o. Você tem que salvá-lo.
Eu cantei, focalizada no corpo e no frágil fio da vida dentro dele. Isso me puxou para dentro, me puxando mais e mais fundo, até que era só eu e a frágil faísca da vida de Doolittle. Eu embalei com a minha magia, tentando ancorar.
A magia ferveu dentro de mim, sugou o corpo de Doolittle em um redemoinho doloroso. Parecia que minha carne estava arrancando meus ossos.
— Como ele está? —Perguntou Tia B, sua voz longe.
Uma sombra pairou sobre nós. Eu peguei um vislumbre de pele escura—Mahon se elevou acima de mim.
O corpo de Doolittle estremeceu. Um tremor sacudiu seus membros. Lentamente o pêlo desapareceu. O médico-mago deu um suspiro rouco. O sangue escorreu de seus lábios machucados.
Os olhos bondosos de Doolittle olhavam para mim, vermelhos e vidrados. — Pescoço quebrado. —Sua respiração saiu assobiando. Sua voz era fraca e rouca, quase um sussurro.
Merda. Metamorfos curavam membros quebrados, mas uma coluna quebrada era uma história diferente. — Não fale. Você trouxe algum pó de tanque de cura com você, doutor? —Era o mesmo pó usado na solução na qual Maddie descansava em casa.
Doolittle sorriu, um fraco sorriso triste. Meu coração se partiu.
— Sim.
— Consiga um tanque.
— O quê? —George se inclinou sobre mim.
— Encontre o pó para a solução de cura e prepare um tanque.
— Nós não temos um tanque!
— Use o que você puder encontrar. —Não era o tanque que importava, mas a solução dentro dele.
Eu a ouvi atravessar a sala, jogando detritos para fora do caminho.
— Não vai ajudar. C2 e C3114 estão fraturados.
Vértebras cervicais. Quanto menor o número, mais próximo do crânio e pior a lesão. — Não fale.
— C4 está esmagada, —o médico-mago sussurrou. — A medula espinhal está danificada. Dói respirar.
Eu continuei cantando, puxando a magia para mim em uma corrida desesperada. O pescoço dele não estava quebrado. Quebrado estaria bem. A luta havia esmagado o pescoço de Doolittle. As vértebras superiores cruciais tinham quebrado, cortando o elo entre seu cérebro e seu corpo. Ele estava morrendo.
— Bobagem, Darrien. —A Tia B se agachou ao lado dele. — Claro que você pode. Kate vai poder te curar.
Não, não posso.
— Estou sangrando internamente. Eu não posso parar isso. —Sua voz se dissolveu em um gemido rouco.
Lágrimas quentes rolaram pelas minhas bochechas.
— Não chore. —Doolittle sorriu. — Por favor, não. Eu tive uma vida longa ... uma vida útil e longa. —Sua voz quebrou em um ruído horrível. Ele parecia estar engasgando. — Eu estou ... pronto.
— Mas nós não estamos! —George gritou.
Meus lábios se moviam. Eu desejei com cada palavra sussurrada que ele vivesse, mas ele estava desaparecendo, deslizando pelos meus dedos. Doolittle me salvou mais vezes do que eu poderia contar. Eu o manteria vivo. Qualquer magia que eu tivesse, seria dele. Teria que ser o suficiente.
Viva! Eu desejei. Por favor, por favor viva. Por favor não vá.
Ele escorregou ainda mais para longe de mim. Eu estava perdendo-o, assim como havia perdido Bran115.
Eu cantava, concentrando toda a minha vontade naquela pequena faísca.
O mundo desapareceu. Os ruídos recuaram.
Meus lábios se moviam, sussurrando as palavras, e assim por diante ... Era um canto muito simples que a maioria das pessoas na minha linha de trabalho aprendia. Ele foi projetado para impulsionar a regeneração do corpo e eu me dediquei tudo que podia nele. Apenas a palavra seguinte que teria que proferir e a pequena porção de magia que ela invocava importavam. Se eu pudesse abrir meu corpo e pegar a magia contida nele para mantê-lo vivo, faria isso em um piscar de olhos.
Meus lábios estavam dormentes. Eu não conseguia sentir minhas pernas. A metade inferior de mim se transformou em um buraco cheio de dor.
Muita magia foi drenada muito rapidamente.
Os olhos de Doolittle reviraram o crânio.
— Kate! —George gritou.
— Deixe-me passar! —Hugh rugiu nas minhas costas. — Deixe-me passar, droga!
Meia dúzia de rosnados respondeu.
O canto me consumiu. Eu tinha afundado toda a minha magia nisso e agora me esforçava para me libertar.
Minha voz era um mero sussurro. — Deixe.
Curran se agachou ao meu lado.
— Deixe-o. —Deixe-o entrar.
Curran levantou-se. — Deixe-o passar.
Um momento depois, Hugh se ajoelhou ao lado de Doolittle. — Pescoço quebrado.
— Sim.
Hugh olhou para mim, seus olhos azuis me estudando.
— Você quer que ele viva?
— Sim.
Hugh recuou, levantou a cabeça e fechou os olhos. A magia pulsava dele, como o toque de um sino colossal. Tocou o chão sangrento. O vapor azul subiu do sangue, elevando-se.
O ar em volta de Hugh começou a brilhar. Senti a magia se mover, uma enorme corrente pesada. Tanto poder. Puta merda.
Segurei Doolittle com a minha magia, com medo de deixar ir. Eu cantava, mantendo-o amarrado à vida. A dor na boca do meu estômago cresceu em uma queimadura constante. Um fogo frio e doloroso se espalhou do meu estômago para o meu peito e pescoço.
O corpo de Hugh sacudiu com a tensão da magia que vibrava ao seu redor, lutando para se libertar. Hugh abriu os olhos. Eles brilhavam, cheios de um azul sobrenatural, elétrico e luminescente. Ele abriu os braços, palmas para cima ...
A magia partiu de Hugh e se derramou sobre Doolittle em um dilúvio. Ossos mastigaram.
Hugh piscou e seus olhos pareciam normais novamente.
— Feito. —Disse ele. — Ele vai viver. Você pode soltá-lo.
Eu fiquei em silêncio. A magia estalou, cortada. O fogo dentro de mim espirrou na minha cabeça e eu tive uma impressão absurda que saiu dos meus olhos.
Raphael correu para o quarto. — Nós vimos outro. Ele está ferido e indo para as montanhas.
Hugh ficou de pé. Curran girou já ficando em pé e olhou para mim.
— Vá! —Eu disse a ele.
Ele decolou, quase colidindo com Hugh enquanto corriam para fora da sala.
O peito de Doolittle baixava e subia em um ritmo constante e suave. Ele estava respirando.
Eu caí para trás e percebi que meu jeans estava encharcado. Estava sentada em uma poça do meu próprio sangue.
Deitei-me em uma pilha de cobertores, observando os metamorfos pela porta enquanto eles se moviam pelo quarto maior, vasculhando os destroços do laboratório de Doolittle. Eles haviam carregado a mim e Doolittle para o quarto, para que pudéssemos ficar fora do caminho deles. Deitei-me nos cobertores no chão, enquanto Doolittle estava submerso numa solução de cura numa banheira que os metamorfos haviam arrancado do banheiro. A porta do quarto estava em pedaços no chão, e do meu adorável ninho no cobertor, eu podia ver a suíte inteira.
Keira, agora de volta em forma humana, tentava limpar os escombros. Ela disse que ainda estava tonta. Eu disse a ela para se deitar. Em vez disso, amarrou uma toalha molhada na cabeça. Deve ter sido um inferno de luta, porque normalmente metamorfos sacudiam as concussões e continuavam andando.
Ao lado de Keira, Derek catava potes de plástico com vários remédios dos destroços que costumava ser um armário.
Eduardo ainda estava inconsciente. Desandra dava voltas em um vestido ensanguentado e heroicamente tentava pegar as coisas, apesar da barriga. Eu esperava que ela se enrolasse em uma bola, mas ao invés disso ela se movimentava hiperelétrica para lá e para cá. Mahon trouxe-a para o quarto de Doolittle pouco depois de Curran sair. De meu cobertor, podia ver Mahon se aproximando pela porta da frente.
Normalmente, a visão de um urso de quinhentos quilos não me enchia de confiança, mas agora, sabendo que ele estava bloqueando a porta, me deixava completamente reconfortada e feliz. Especialmente desde que manter Doolittle vivo tinha tomado cada gota de força que eu tinha. Meus braços se transformaram em algodão molhado e levantar a cabeça era um esforço. Neste momento, se uma borboleta pousasse em mim ela me derrubaria e eu não acordaria até a manhã seguinte.
Nenhuma palavra sobre Curran. Ele, Hugh, Tia B, Raphael e Andrea tinham saído há mais de uma hora.
Doolittle descansava ao meu lado no tanque improvisado. A solução de cura verde encharcava seu corpo. Ele não disse nada até agora ou abriu os olhos, mas sua respiração era uniforme.
Eu queria que ele acordasse. Queria que ele abrisse os olhos e me repreendesse por algo, qualquer coisa. Eu tomaria o remédio que ele pedisse, eu prometeria ficar na cama, faria qualquer coisa só para que ele acordasse.
Hugh dissera que ele viveria. Estar em coma tecnicamente contava como vivo.
Empurrei esse pensamento para longe de mim. Pensar que ele não conseguiria, não ajudaria em nada.
Barabas atravessou a porta, vestindo um par de calças de moletom e nada mais. Um corte largo atravessava seu pescoço e seu peito pálido. Ele me viu e entrou no quarto. George o seguiu, carregando uma tesoura e apontou para meu jeans ensanguentado. — Eu sinto muito. Tenho que cortá-los.
— Será que posso ter alguma privacidade? —Gritei para os outros no quarto.
— Não. —Disse Derek.
— Absolutamente não, —disse Keira. — Você pode ser modesta depois, quando não estivermos sob ataque.
— Isso provavelmente poderá ser um choque para você. —Barabas se agachou ao meu lado. — Mas sinto em dizer que todos nós já vimos mulheres nuas antes. A visão de suas pernas não vai traumatizar ninguém.
— Obrigada.
George pegou a tesoura, esticou meu jeans e cortou. O tecido puxou a ferida. Eu inalei bruscamente. Argh. George cortou o outro lado e puxou o jeans ensopado de sangue para longe. — Certo. Existem ferimentos. Mas não tenho certeza de quão grave isso é para um não metamorfo.
— Espelho?
Derek se levantou e passou para George um espelho de mão. Ela segurou. O canto esquerdo dele sumiu, mas foi suficiente para me dar uma visão do meu lado. Três longos cortes irregulares cortavam o lado inferior direito do meu estômago, indo em direção ao meu quadril para baixo sobre a minha coxa.
— Incline-o para mim?
Ela fez.
As feridas pareciam rasas. Elas sangravam e doíam muito, mas nenhum delas prejudicaria minha capacidade de balançar minha espada. Eu tentei mover minha perna. Ainda funcionava. Rangendo um pouco. Agonizando um pouco. Mas ainda funcionava.
Meu rosto doía também. Meu lábio estava inchado. — Como está meu rosto?
George pegou o espelho. — Pronta?
— Manda.
Ela levantou o espelho. Um grande hematoma floresceu em toda a sua glória azul no canto esquerdo do meu queixo. Minha boca estava inchada e cortada, e um longo corte serpenteava da minha linha do cabelo até minha orelha direita. O inchaço e a contusão vieram como cortesia de ser atingida pela cauda de um metamorfo. O corte, eu não tinha ideia.
— Eu sou um demônio sexy, não sou?
Ela estremeceu. — Não é tão ruim.
— É bom que Curran saiu. Ele pode não ser capaz de se conter. Se ele decidir me violentar em público quando voltar, espero que todos vocês olhem para o outro lado.
Mahon pigarreou na porta.
— Você tem um relatório para mim?
— O ataque envolveu cinco criaturas, —disse Barabas. — Tudo começou nesse quarto. Eles estouraram pela porta. Um destruiu o equipamento de Doolittle e atacou Eduardo e Keira que mutilaram a atacante e então o médico agarrou a garganta dela. —Barabas apontou para o cadáver da mulher do lado de fora da janela, em cima de uma pequena torre.
— Ele não a soltou. —George disse baixinho. — Quando cheguei aqui, ela havia quebrado tudo, rolou, agitou, bateu nas paredes com ele. Eduardo foi nocauteado e Keira estava machucada, mas Doolittle nunca a soltou. Tive que arrancá-la dele e ela tentou fugir.
— Ela estava morrendo, —disse Keira. — Doolittle apertou o pescoço dela e cortou a jugular. Seus dentes mantinham as feridas abertas e a sangrava. Trinta segundos a mais e ela não teria sido capaz de voar. —Ela colocou as mãos sobre o rosto. — Nós deveríamos ter lutado mais arduamente.
— Todos nós ainda estamos aqui, —disse Mahon da porta. — Você fez o seu trabalho.
— Enquanto Doolittle estava lutando, o segundo e terceiro atacantes bloquearam o acesso a esta sala, —disse Barabas. — Tia B e Mahon derrubaram um no corredor, e Curran encontrou o terceiro no corredor e acabou lutando no quarto de Desandra. A quarta criatura entrou pela sacada do quarto de Desandra depois que a briga começou. O quinto, não temos certeza de onde veio.
— Lesões. —Eu perguntei.
— Doolittle foi o pior de todos, —disse Barabas. — Derek tem um braço quebrado. Há alguns cortes e feridas, mas todo mundo ainda está vivo e se movimentando.
Eles vieram aqui primeiro. — Doolittle foi o alvo principal.
— Parece que sim.
Curran dissera que Doolittle queria conversar conosco. Ele deve ter encontrado algo, algo que fez dele um alvo.
Barabas sentou no chão ao meu lado, seu rosto sério.
— Sempre que você tem esse rosto, significa que algo desagradável está chegando.
— Você se lembra que me pediu para marcar reuniões com os três bandos amanhã de manhã? Você quer cancelar?
— De jeito nenhum. Eu quero ir e olhar nos olhos deles quando eles me disserem que não atacaram nosso médico no meio da noite. —A raiva explodiu dentro de mim. Eu acharia os idiotas responsáveis e eles pagariam.
Ninguém machucaria Doolittle e viveria. — Ele não é um combatente. Encontraremos quem quer que tenha vindo atrás dele e eu pessoalmente farei com que se arrependam do dia em que nasceram.
— Concordo. —Disse Keira. — Ninguém toca no médico e vive.
George entrou na minha visão. Ela segurava uma garrafa de líquido marrom na mão.
— O que é isso?
— Uísque. —Ela me entregou um pano amassado. — Aqui, eu preciso de você para morder isso.
Que diabos? — Por quê?
— Eu vou limpar suas feridas.
— O inferno que você vai. —Não com álcool. Ele não desinfetaria a ferida, a menos que ela a encharcasse, matasse as células vivas e, em geral, causaria mais mal do que bem. Sem mencionar que a ferida levaria uma eternidade para curar depois de ser tratada com álcool, e derramar uísque em um corte aberto garantiria cicatrizes.
— Kate. —Disse George, sua voz de repente muito paciente. — Você não tem o sistema imunológico de um metamorfo. Suas feridas precisam ser esterilizadas.
— Você não está esterilizando-as com uísque. Você é louca?
— Eles sempre fazem isso em filmes e livros. Tantas pessoas não podem estar erradas.
Eu canalizei todo tom de ameaça que eu tinha em minha voz. — George, se você chegar perto de mim com essa garrafa, eu vou te machucar.
— Certo. —George olhou para Barabas. — Podemos precisar segurar a Consorte.
Barabas olhou para Derek. Derek deu de ombros, como se dissesse, ‘eu não’. Barabas apertou meus braços no chão.
— Você precisa de mim para ajudar a segurá-la? —Desandra gritou. — Porque eu posso fazer isso facilmente.
— George! —Eu rosnei.
Ela abriu a garrafa. — Desculpe, vai doer. Eu não quero que você tenha septicemia116.
— Barabas, solte-me. Esta é uma ordem. —Tentei escapar, mas não tinha forças. Tirar Barabas de cima de mim era o mesmo que tentar levantar um carro.
— É para o seu próprio bem, —disse Barabas.
George deu um passo em minha direção com a garrafa.
— Solte-me, seus idiotas!
— Eu vou fazer isso rápido. —George se inclinou sobre mim.
— Parem! —Doolittle disse.
Todo mundo congelou.
— Georgetta, abaixe a garrafa.
George colocou a garrafa no chão e afastou-se dela.
Doolittle levantou-se na banheira e ficou olhando para nós. — Eu não tenho forças para dizer a vocês sobre todas as coisas erradas que estão fazendo. Solte a Consorte neste instante.
Barabas levantou as mãos. Eu caí no meu cobertor. Graças a Deus. Ele estava consciente. Obrigada, obrigada Universo.
— Derek, encontre uma grande garrafa azul marcada SOLUÇÃO SALINA ESTÉRIL. Georgetta, procure uma caixa de madeira verde com gaze limpa. Keira, você bateu com a cabeça?
Os olhos de Keira ficaram arregalados. — Sim. Entre outras coisas.
— Isso é uma toalha fria na sua cabeça?
— Ummm ...
— Deve estar fria. De preferência gelada. Visão embaçada?
— Não.
— Você vomitou?
— Um pouco. Estou bem agora.
— Você precisa congelar esse pano. Por que Eduardo está nu? Nenhum de vocês pensou na dignidade do homem? Encontre um lençol limpo e cubra-o, e alguém já checou os sinais vitais dele? Há uma mulher grávida aqui coberta de sangue e nenhum de vocês está alarmado com isso. Ninguém está ajudando-a a ficar limpa. —Doolittle nos examinou. — Eu deixo vocês por alguns breves minutos e vocês estão cortejando o desastre.
De repente, todos ficaram terrivelmente ocupados.
— Estou feliz que você esteja bem, doutor, —eu disse a ele.
— Eu não deveria estar vivo. —Ele olhou para mim. — Parece que foi a minha vez de ser o paciente.
— Não vamos fazer isso de novo, —eu disse a ele. — Você é muito melhor em ser o médico.
Doolittle hesitou. — Que tipo de cura ...
Eu li a pergunta em seus olhos. Ele tinha me visto curar Julie. Tinha visto meu sangue queimando o dela, limpando-o do vírus e ligando-a a mim, e agora ele queria saber se eu tinha feito algo com a minha magia que comprometia seu livre-arbítrio. Eu olhei em seus olhos e não vi gratidão ou alegria por estar vivo. Vi suspeita e medo. Ele estava apavorado por eu tê-lo transformado em uma abominação. Naquele momento, eu sabia com absoluta certeza que Doolittle preferia ter morrido ao ser trazido de volta à vida por mim.
Uma parede invisível levantou em torno de mim, me separando. Eu ainda estava no quarto. Ainda ouvia as pessoas que considerava como meus amigos se moverem, conversarem, mas eles pareciam impossivelmente distantes. Eu sentei lá, desconectada e sozinha.
Não importa quanto tempo passasse fazendo parte do Bando, não importa o quanto eu me sacrificasse ou quão dedicada eu fosse, os olhos de Doolittle me disseram que a divisão entre nós sempre permaneceria. O homem que me trouxe de volta da morte mais de uma vez agora olhava para mim com pavor de estar contaminado.
Eu forcei as palavras para fora. — Apenas forte medmagia. O tipo usual. E não fui eu. Você foi curado por um médico-mago. —Ou pelo menos eu tinha certeza de que Hugh seria classificado como um se ele tivesse se dado ao trabalho de solicitar a certificação. — Você ainda é você, Doutor. —Eu não o transformei em nehuma aberração.
A tensão desapareceu de seu rosto.
O desejo de fugir cresceu em mim, tão forte que se eu pudesse me levantar, eu teria saído. Eu não queria estar no mesmo quarto com ninguém. Queria ficar sozinha.
George apareceu, segurando a solução salina e uma caixa verde. — Eu trouxe gazes.
— Desandra primeiro. —Eu disse a ela.
George se virou para Desandra. — Venha comigo. Hora de se limpar.
— Mas eu gosto da minha roupa de guerra.
— Se você precisa de mim para segurá-la, —eu rosnei, — posso fazer isso facilmente.
— Tudo bem, tudo bem. —Desandra suspirou e seguiu George até o banheiro. Elas fecharam a porta.
Doolittle olhou para mim. — Você precisa ser contida?
— Estou bem.
— Deite-se, Kate. —Keira entrou no quarto e pegou o frasco sobressalente de solução salina e gaze.
Eu não percebi que estava sentada. Eu me forcei a ficar deitada.
— Muito bem. Sature as feridas, enxaguando-as com uma leve pressão. Certifique-se de que não restem detritos, —disse Doolittle.
— É pra já. —Keira derramou um pouco de solução salina sobre a gaze e começou suavemente limpar minha perna.
— Curran mencionou que você queria me dizer alguma coisa.
— Eu continuei pensando sobre o versículo de Daniel, —disse Doolittle. — Uma parte, em particular, se destacou para mim. Ele diz, ‘as suas asas foram arrancadas, e ele foi erguido do chão, firmou-se sobre dois pés como um homem e recebeu coração de homem’. Note que não menciona que o pêlo do leão ou as suas garras desapareceram. Só que as asas haviam sido arrancadas e elas o diferenciaram entre a fera e o homem.
— Eu não entendi, —disse.
— Você se lembra de como eu lhe disse que essas coisas podiam esconder suas escamas?
— Sim.
— Eu me perguntei se, desde o verso mencionado especificamente, as asas poderiam ser o estágio final de sua transformação. Os metamorfos mais comuns têm duas formas completas, humanas e animais.
— E a forma de guerreiro, —disse Keira.
— Essa é uma forma híbrida que é preciso de concentração para mantê-la, —disse Doolittle. — Estou falando de uma forma final que um metamorfo pode manter indefinidamente. Acho que nossos amigos laranjas têm três: humano, animal e alado. Acredito que em seu estágio animal eles podem ser muito semelhantes às espécies animais que ocorrem naturalmente.
Eu não gostava do som disso. — Por quê?
Doolittle baixou a voz para um sussurro. — Você se lembra de como eu testei o sangue da cabeça decepada contra todas as outras amostras de sangue?
— Sim.
— Eu tinha retirado amostras de fluidos de Desandra. Sangue, urina e líquido amniótico. Terminei os exames que faria com esses fluidos, e como eu estava expondo todas as amostras de fluido que tinha comigo ao sangue da criatura, testei o sangue de Desandra e o líquido amniótico só para completar os testes. Seu sangue reagiu. Seu líquido amniótico não. Um de seus filhos não é o que parece.
Oh maldito inferno!
Keira congelou com a gaze na mão. Se disséssemos a Desandra que um de seus filhos era um monstro, não havia como saber o que ela faria.
— Isso não pode sair deste quarto, —eu disse.
— Concordo, —disse Doolittle.
Eu olhei para o quarto principal.
— Eu não ouvi nada, —disse Derek.
— Nem eu. —Barabas me disse.
Poderia haver apenas duas possibilidades. Um, Desandra teve relações sexuais com um terceiro homem, além de Gerardo e Radomil. Isso era extremamente improvável. Por todos os seus flertes e declarações ultrajantes, ela nunca chegou a falar nada da existência de uma terceira pessoa, e sua angústia quando nos contou que Gerardo a estava dispensando era genuína. Ela não teria tido a chance de fazer sexo com algum estranho aleatório. Ela dormiu com Radomil porque sabia que ele seria gentil, e ela precisava dessa gentileza. Isso deixava com a possibilidade número dois: Gerardo ou Radomil abriam as asas em seu tempo livre e se divertiam mantado os guardas das torres.
Se Doolittle estivesse certo, os metamorfos alados poderiam assumir formas humanas e animais que os deixavam passar por metamorfos normais. Explicava por que os malucos alados de repente começaram a aparecer no castelo, —eram membros de Belve Ravennati ou dos Volkodavi e que, quando precisavam lutar, assumiam sua forma final. A pergunta de um milhão de dólares era a qual bando eles pertenciam? As criaturas pareciam mais felinas para mim, mas isso não significava nada.
— E a outra criança?
— É um lobo, —disse Doolittle.
Isso não nos dizia nada. Uma criança de dois metamorfos rolava dados genéticos: ele poderia herdar a fera de seu pai ou de sua mãe. Desandra se transformava em uma loba, se ela tivesse um filho com Gerardo, ele seria um lobo. Se ela tivesse um filho com Radomil, ele poderia ser um lobo ou um lince. Nós ainda não sabíamos nada, exceto que ela estava gestando um monstro dentro dela. Eventualmente eu teria que dizer isso a Desandra. Isso poderia ficar mais fodido?
Na porta, Mahon cruzou os braços. — Quem é você?
Uma mulher respondeu baixinho. O grande urso se afastou e uma mulher alta de quarenta e tantos anos entrou pela porta. De pele escura e graciosa, ela parecia árabe. Um adolescente e uma menina mais nova a seguiam.
— Meu nome é Demet, —disse a mulher lentamente. Senhor Megobari mandou chamar por mim. Para curar. —Ela colocou a mão sobre o coração. — Curador.
— Isso é muito bom, —disse Doolittle. — Porque eu não posso mexer minhas pernas.
Capítulo 14
Eduardo andava de um lado para o outro no quarto, pisando como se tivesse em cascos e olhando para a porta do banheiro. Demet pediu privacidade, e o banheiro era o único lugar que ainda tinha uma porta funcionando. Derek estava lá com eles. As feições dele eram o suficiente para impedir que ela decidisse tentar alguma coisa para prejudicar Doolittle.
Eduardo exalava e voltava para outro passo. Listras vermelhas manchavam sua camiseta branca—suas feridas foram profundas e ele não estava fazendo nenhum favor a elas andando dessa forma.
Keira também andava de um lado para o outro, virando apenas a distância de um fio de cabelo antes que se chocasse contra a parede. Barabas se sentou no meio da sala, seu rosto sombrio. Na porta, Mahon apareceu, uma sombra escura.
Nunca me ocorreu que algo estava errado. Quando colocamos Doolittle sentado na banheira, senti uma enorme avalanche de alívio. Nunca pensei em perguntar se ele estava bem ...
Curran entrou pela porta. Sangue encharcava seu lado direito. À esquerda, cortes profundos onde as garras dos monstros haviam perfurado sua carne cruzavam seus músculos. Ser abraçado por um felino voador de dois metros deixou sua marca.
Ele se aproximou de mim e se agachou.
— Você está bem?
Defina ‘bem’. — Sim. Você o pegou?
— Era uma mulher. Ela se jogou do penhasco. Seus cérebros estão espalhados no fundo da ravina.
Droga.
— O que está acontecendo? —Ele perguntou.
— Doolittle acordou. Mas não consegue mexer as pernas.
A porta da sala do banheiro se abriu e Demet saiu. Seu filho adolescente a seguindo.
Curran levantou-se. — Como ele está?
Demet disse alguma coisa. Seu filho se virou, nos apresentando suas costas. — Primeira lesão. —Demet apontou com os dedos na parte superior do pescoço, desenhando uma linha invisível. — Cervical. Curada. Sem problemas. Segunda lesão. —Ela varreu a mão para baixo, indicando um ponto inferior nas costas do rapaz.
— Lombar. L1 e L2117.
Demet levantou um, depois dois dedos e bateu no ombro do garoto. Ele virou.
— Ele sente tudo daqui a aqui. —Demet indicou com a mão da cabeça até o estômago. Ela lutou por uma palavra.
— Não todo ...?
— Alguma. —Barabas ofereceu.
— Tem alguma sensibilidade daqui até aqui. —Sua mão se moveu do estômago para baixo através da pélvis. — Pernas, não.
Doolittle estava paralisado de seus quadris para baixo. Minha mente não aceitava esse pensamento e o rejeitou. — Será que ele vai andar de novo? —Perguntou Curran.
Demet abriu os braços. — Possível. Fiz tudo o que pude por ele. —Ela fez uma pausa. — Tempo. Tempo, magia e descanso.
Ela se virou para mim. — Você tem ferimentos.
— Eu não me importo.
Ela tremeu. — Você se importa. Pouco tempo. Deve curar imediatamente.
— É minha culpa, —disse Eduardo. — Eu não consegui segurá-la.
— Ela voou, —disse Keira. — E ela era forte. Três de nós não puderam segurá-la.
Os olhos de Eduardo se arregalaram. Ele se virou no lugar, parecendo que iria quebrar a qualquer segundo. Estava entrando em parafuso, rápido.
— É minha culpa. Eu deveria ter o protegido. Deixei-o se machucar.
Ele se virou, indo em direção à porta. Curran entrou em seu caminho. — Pare.
Eduardo derrapou até parar.
— Olhe para mim.
O homem grande se concentrou no rosto de Curran.
— Supere. —Disse Curran, sua voz saturada de força. — Ainda estamos em perigo. Ainda preciso de você. Não desista de mim.
Eduardo exalou pelo nariz.
— Isso vale para todos vocês, —disse Curran. — Mais tarde, podemos nos sentar, chorar e pensar sobre o que deveríamos ter feito diferente. Agora nós trabalhamos. Fomos atacados. Eles ainda estão por aí. Vamos caçá-los e destruí-los.
Barabas sentou-se um pouco mais ereto. Keira se empurrou da parede.
Curran olhou para Eduardo. — Certo?
— Certo. —Disse o homem grande.
— Bom. —Curran virou-se para Demet. — Cure Kate.
Acordei com Curran sentado ao meu lado. Ele não disse nada. Apenas sentado ao meu lado e olhando para mim.
— Você estava me vendo dormir? Porque precisamos concordar que isso é assustador.
Ele não respondeu.
Nós estávamos sozinhos no quarto. Doolittle em sua banheira, Keira e todos os outros se foram. No segundo pensamento, as cobertas sob mim pareciam familiares. Eu estava na nossa cama. Ele deve ter me trazido para o nosso quarto. Normalmente acordava com o mínimo de barulho do lado de fora do quarto atrás de uma porta fechada. Como eu dormi tão pesadamente com ele me carregando? Doolittle tinha o hábito de escorregar sedativos em minha bebida, porque eu ignorava suas instruções para deitar e descansar, mas da última vez que o vi ele estava na banheira de cura. Demet e seu filho haviam cantado curas em minhas feridas. Eu me lembrei de uma onda de frescor suave que espumava pelos meus machucados. E então George me entregou um copo de água.
— George me sedou. Certo, a coisa de me drogarem tem que parar. Além disso, se um deles tentar me segurar de novo e querer derramar bebida no meu ferimento, matarei alguém. Isso também não é uma ameaça ociosa.
Curran não disse nada.
— Você está bem? —Eu perguntei.
Ele acenou para a parede.
Eu me concentrei. A magia ainda estava alta e, enquanto eu me sentava, senti algo se mexer por trás da pedra.
Não era um vampiro, mas algo estranho. Algo que eu não senti antes. Nós estávamos sendo ouvidos. A boca de Curran era um corte duro em seu rosto. Ele estava com raiva. Monumental, terrivelmente zangado.
Eu estendi a mão e toquei seu rosto, procurando por aquela conexão íntima. Ei. Ainda estamos bem?
Ele pegou minha mão, seus dedos fortes quentes e ásperos, e apertou-a. Certo. Nós ainda estávamos bem. Ele não precisava dizer mais nada.
— Doolittle falou com você? —Perguntei.
Ele balançou sua cabeça negando.
Estendi a mão para a mesinha de cabeceira, peguei um pequeno bloco de anotações e uma caneta e escrevi sobre o papel.
Ele testou o líquido amniótico de Desandra. Um dos bebês poderá crescer asas.
Os olhos de Curran se arregalaram. Ele pegou a caneta.
Ela dormiu com uma dessas coisas?
O mais provável é que Radomil ou Gerardo seja uma dessas coisas.
Como isso é possível?
Você tem duas formas, humana e animal. Doolittle acha que esses caras têm uma terceira forma: humana, animal e mosntro com asas.
Curran sacudiu a cabeça. — Qual deles?
Não há como saber. O líquido amniótico indica que um bebê é um lobo e o outro é a outra coisa. O lyc-V com genes de lobo poderia vir de Desandra. Eles devem saber ou suspeitar que Doolittle descobriu algo. É por isso que destruíram o laboratório dele.
Quem mais sabia que Doolittle coletou o líquido amniótico? Curran escreveu.
Ivanna com certeza. Eu escrevi. A irmã de Radomil se ofereceu para segurar a mão de Desandra, caso ela estivesse com medo. Na época, eu achava que ela era um ser humano decente. Mas outra pessoa poderia ter visto isso. Radomil e Ignazio estavam brigando no corredor enquanto Doolittle trabalhava.
Uma familiar batida cuidadosa soou pela porta. Barabas.
— Só um minuto. —Eu escrevi no pedaço de papel, vou provocar um pouco os bandos para ver se consigo uma reação.
Qualquer um que não esteja protegendo Desandra deverá proteger Doolittler. Ele escreveu.
Perfeito. — Tenho que me reunir com os bandos esta manhã, —eu disse em voz alta. — Qualquer coisa que você queira que eu os diga?
— Sim. —Curran pegou as notas e as picotou metodicamente em tamanhos de confete. — Diga a eles que não há como escapar de mim.
A minha primeira reunião era com os Belve Ravennati. Nós nos encontramos em uma gigantesca sacada em uma das salas públicas onde a mobília marrom-clara estava disposta em volta de uma mesa de centro. Os lobos de Ravena não me queriam em seus aposentos.
Eu sentei em um sofá em frente a Isabella Lovari. Gerardo sentou-se à sua esquerda. Seu irmão não estava em nenhum lugar para ser encontrado. Três outras pessoas se juntaram a nós, todas com uma postura semelhante: limpos e bem arrumados, os dois homens bem barbeados, o cabelo da mulher puxado para trás em um rabo de cavalo. Eles emitiam um ar quase militar e me observavam com uma atenção disciplinada. Este era um bando de lobos e eu era claramente o inimigo.
Barabas ficou atrás de mim, tomando anotações em um bloco de notas.
— Obrigada por concordar em conversar comigo, —eu disse. O inchaço na minha boca não tinha diminuído tanto quanto eu gostaria e falar doía.
Isabella me olhou. — Estou surpresa que você ainda esteja viva.
— Eu sou difícil de matar.
— Como uma barata.
— Não tenho certeza se é uma boa comparação. Nunca tive problemas em matar insetos pequenos, —eu disse.
Barabas limpou a garganta em voz baixa.
Isabella levantou as sobrancelhas. Com cinquenta e poucos anos, ela tinha uma espécie de precisão afiada sobre ela. Durante todo esse tempo que passei com o Bando, observei o comportamento dos alfas. Alguns lutavam, como Jennifer. Alguns, como os Lonescos do Clã Rato, tinham uma natural facilidade em interagir com as pessoas a seu cargo. Isabella não tinha nenhum dos dois. Ela irradiava o ar de comando. Era a obediência ou sofrer as consequências.
— Como você sabe, estamos tentando descobrir a natureza dos ataques à vida de Desandra, —eu disse. — Seu bem-estar e o bem-estar de seus filhos é nossa primeira prioridade.
— Você está tentando sugerir que estamos sob suspeita? —Perguntou Isabella.
— Eu não estou sugerindo, estou afirmando. Mas gostaria muito de tirar vocês da minha lista de suspeitos.
Barabas me passou um pequeno bilhete com uma palavra:
Diplomacia.
Isabella se inclinou para trás. — Estou insultada.
— Eu não dou a mínima, —eu disse. — Ontem à noite sua nora foi atacada. Nosso pessoal ficou ferido. Tenho dez metamorfos uivando por sangue. Estou procurando alguém para caçar. Pode ser você, pode ser Kral ou os Volkodavi. Eu realmente não me importo. Então vá em frente. Me dê uma razão para pintar um alvo suspeito no seu peito.
Os Belve Ravennati me encararam em silêncio atordoados.
Isabella riu baixinho. — Faça suas perguntas.
— Onde você estava ontem à noite por volta da meia-noite?
— Nos nossos aposentos. Meus filhos estavam com meu marido e eu.
— Os guardas podem dizer onde estavam?
— Não.
Os lobos de Isabella viraram a cabeça em direção ao corredor. Alguém grande estava vindo em nossa direção. Eu me inclinei para frente para dar uma olhada melhor. Mahon. O que foi agora?
O urso de Atlanta aproximou-se de nós, devagar, claramente sem pressa, e parou ao lado de Barabas atrás de mim. — Desculpe, estou atrasado.
Apoio na segurança. Uau. Bata-me com uma pena.
Os Belve Ravennati estavam olhando para mim. Certo. Onde nós estávamos?
Eu me concentrei nas expressões de Isabella. Essa era a razão pela qual eu vim aqui em primeiro lugar. — Temos motivos para acreditar que podemos identificar as criaturas que atacaram Desandra por meio de um exame de sangue. Vocês estariam dispostos a nos fornecer uma amostra de sangue?
— Absolutamente não.
Imperturbável. Ela não nos daria o sangue, mas o fato de podermos testá-lo não a incomodava.
O rosto de Gerardo também não demonstrou ansiedade. — Por quê? —Perguntei.
— Porque o sangue é um bem precioso. Eu não vou te dar acesso a ele apenas para usá-lo contra minha família por meios mágicos.
Bem, valeu a pena tentar. Eu olhei para Gerardo. — Quando você descobriu que Desandra tinha sido atacada?
— Um guarda nos disse logo depois que aconteceu, —disse ele.
— Você fez algum esforço para nos ajudar a garantir que Desandra estivesse segura?
Gerardo levantou o queixo. — Não.
— Você fez algum esforço para visitar a futura mãe de seu filho e ter certeza que ela está bem?
— Não.
— Por quê?
— Eu o proibi, —disse Isabella. — Meu filho gosta demais dessa mulher. Como ela é agora um alvo, estar perto dela o coloca em perigo.
Eu olhei para Gerardo. — Você não acha que deve alguma lealdade ...
— Para uma puta que dormiu com outro homem? —Isabella ergueu as sobrancelhas. — Eu posso entender por que você pode sentir simpatia por ela. Você não é casada.
Atrás de mim a caneta rangeu nos dedos de Barabas. Ele deve ter apertado demais.
Eu olhei para Isabella. Direto para a jugular, hein? O estranho era que doía. Isso me apunhalou em alguma parte feminina profunda da minha psique que eu não tinha ideia de que existia. — Lealdade para com a mulher que foi sua esposa por dois anos e que agora está carregando seu filho.
— Você não entende como é, —disse Gerardo. — Nunca saber se a sua mulher ama você ou se ela está apenas esperando o momento certo para apunhalar você pelas costas, porque seu pai a mandou fazer isso.
As sobrancelhas de Isabella se juntaram. — Meu filho merece uma mulher que é honrada e forte, que será uma parceira e uma alfa, em vez de uma fraca e burra que será apenas uma responsabilidade. Esta é uma conversa sem sentido. —Isabella olhou além de mim para Mahon. — Todos nós sabemos que a humana está sendo substituída. O jantar da noite passada foi uma prova definitiva disso.
O que aconteceu ontem à noite?
Mahon se inclinou para frente, com as mãos nas costas da minha cadeira. A madeira gemeu sob a pressão de seus dedos. — A Consorte ganhou minha lealdade. Não a insulte novamente.
O mundo estava ficando maluco.
— Tudo bem, —disse Isabella. — Você pode continuar jogando este jogo de fingir que é a Consorte, mas eu não preciso. Sua humana também sabe disso. Só é preciso ver o olhar no rosto dela quando Lorelei Wilson entra em uma sala. —Ela olhou para mim. — Você é um livro aberto e sabe que está sendo posta de lado. Pegue seus animais de estimação e nos deixe.
Eu levantei.
Mahon olhou para Gerardo. — Você não pode se esconder na saia da sua mãe para sempre.
O lobo mostrou os dentes.
— Chega. —Isabella se levantou e foi embora. Seus lobos seguiram. Um momento depois e estávamos sozinhos.
— O que aconteceu no jantar? —Eu perguntei uma vez que eles estavam fora do alcance da voz.
— Lorelei sentou-se ao lado de Curran, —disse Barabas.
— Na minha cadeira?
— Sim.
Curran mentiu para mim. A percepção disso me atingiu como um soco no estômago.
Ele entrou no quarto de Desandra, deitou-se ao meu lado, me abraçou e disse que eu não precisava me preocupar com Lorelei, isso tudo depois que ela se sentou na minha cadeira, ao seu lado, no jantar. Ele tinha que saber exatamente que tipo de impressão seria enviado para todos os outros. Ela literalmente tomou o meu lugar e ele permitiu.
O Universo ficou fora de controle. Eu me esforcei para me controlar. Tinha que terminar minha tarefa aqui. Eu não podia largar tudo e procurar por Curran e socá-lo no rosto. Não importa o quanto quisesse fazer isso. Não importa o quanto isso doesse.
Consegui fazer com que algumas palavras saíssem da minha boca. — E você não pensou em me contar isso?
Barabas suspirou. — Eu não queria incomodar você. Não esperava que eles jogassem isso em você. Eles não querem responder às perguntas, por isso estão tentando explorar qualquer ponto fraco.
Curran mentiu para mim. Eu tentei fazer minha mente aceitar isso e não conseguia. Por toda a minha vida, primeiro Voron, depois Greg, me ensinaram a não confiar em ninguém. Confiança, intimidade, honestidade completa com outro ser humano não era para mim. Era um luxo que alguém com o meu sangue não podia pagar. Eu ignorei tudo e confiei em Curran. Confiava nele tão completamente, que mesmo agora, diante da evidência de sua traição, eu estava procurando por possíveis explicações.
Talvez mentir para mim sobre isso fosse parte de algum plano. Talvez ...
Pisei o pensamento e esmaguei em pedaços. Eu tinha um trabalho a fazer. Lidaria com isso mais tarde. Coloquei aqueles fragmentos afiados no mesmo lugar escuro onde colocava as coisas que não podia resolver. Mas esse lugar estava ficando cheio. Minha capacidade de armazenamento para os problemas que eu não conseguia resolver estava ficando cheia. Não caberia muito mais.
— Qual o próximo bando? —Perguntei.
— Os Volkodavi, —disse Barabas.
— Lidere o caminho.
Os Volkodavi me encontraram em seus quartos, em uma grande área comum. Vitaliy, o chefe do clã e irmão de Radomil, apertou minha mão. Como Radomil, ele era alto e loiro. Ele era bonito, mas não tinha a quase perfeição de seu irmão.
Sentei em uma cadeira. Radomil sentou-se à minha frente.
— Onde está Ivanna? —Perguntei.
— Ela estará aqui logo, —disse Vitaliy.
Perguntei-lhes o mesmo conjunto de perguntas e obtive as mesmas respostas. Sim, eles estavam em seus aposentos, não, eles não poderiam explicar seu paradeiro, e eles não fizeram nada para ajudar ou verificar a Desandra. Radomil queria ir, mas Vitaliy o impediu, porque Desandra era uma garota legal, mas não valia a pena se machucar.
— Olha. —Radomil me disse em inglês quebrado. — Não nos importamos de conversar com você, mas não vamos te ajudar. Você e a garota Wilson, isso tornou as coisas complicadas. Você não é casada.
Ouvir isso novamente era como ralar a minha alma com um ralador de queijo. Sim, eu sei, não sou casada. Sim, Lorelei sentou ao lado de Curran no jantar. Eu sou irrelevante, sou humana, estou sendo substituída ... — Posso ver Ivanna, por favor?
Vitaliy suspirou e chamou: — Ivanna!
Um momento depois, Ivanna entrou no quarto. Ela parecia exatamente como eu me lembrava—uma esbelta mulher loira—exceto pelo lado esquerdo do rosto. Pedaços escamosos e escuros de pele danificada cobriam a têmpora esquerda, desaparecendo sob os cabelos.
— O que aconteceu com o seu rosto? —Eu perguntei.
Ivanna acenou com o braço. Enquanto ela se movia, seu cabelo mudou, e eu tive um vislumbre melhor: as manchas escamosas cobriam todo o lado esquerdo de seu rosto, da testa sobre sua bochecha e pescoço, quase cobrindo seus olhos e lábios. Sua bochecha tinha perdido um pouco de sua nitidez também, suas linhas suavizadas. Eu já tinha visto isso antes—os ossos dela haviam sido esmagados por um trauma grande e o Lyc-V estava em processo de reconstruí-lo camada por camada.
— Foi estupidez, —disse Ivanna. — Temos uma lareira no quarto. Eu estava realmente cansada depois da caçada e Radomil e Vitaliy entraram no meu quarto e decidiram discutir um com o outro. Vitaliy estava agitando os braços.
— Eu fiquei animado, —disse Vitaliy.
— Ele derrubou meu suporte de joias na lareira. Eu gritei com eles, fui pescar meu colar e acidentalmente pressionei a ignição. Um fogo se acendeu e me queimou. Pelo menos meu cabelo nasceu durante a noite ou estaria careca.
Besteira. Isso era uma queimadura química, completa com um padrão de pulverização. Ela estava mentindo através de seus dentes. Ou ela era estúpida, ou achava que eu era realmente estúpida, ou simplesmente não se importava. Eu estava apostando no último. Ela e todos os outros na sala sabiam que sem uma prova clara e indiscutível eu não poderia forçá-la a fazer nada.
— Isso é terrível, —eu disse.
— Vai sarar daqui a alguns dias. Há mais alguma coisa que você queria?
— Sim. Temos razões para acreditar que as criaturas que atacaram Desandra estão escondidas aqui no castelo. Nós desenvolvemos um exame de sangue que nos permite identificar essas criaturas.
Vitaliy, Radomil e Ivanna olharam para mim, seus rostos tão cuidadosamente neutros que tinha que ser um esforço controlado de vontade.
— Vocês estariam dispostos a nos fornecer uma amostra de sangue?
— Não. —Vitaliy disse lentamente. — O sangue tem muito poder.
— Nós não queremos ser amaldiçoados. —Radomil balançou a cabeça.
— Obrigada por ter vindo, —disse Ivanna. — Você não é uma pessoa ruim. Lamentamos que seu homem esteja sendo tão injusto.
Nós saímos. Enquanto nos afastávamos, Mahon pousou a mão no meu ombro. Foi um gesto quieto e quase paternal.
— Você viu os rostos deles? —Perguntei.
— Conseguimos uma reação, —disse Barabas. — Eu não sei o que ela significa, mas nós temos uma.
Jarek Kral foi minha última parada. O bando Obluda ocupava o lado norte do castelo. Eu sabia exatamente o que estava por vir.
— Ele tentará provocar você, —disse Barabas.
— Eu sei. —Se eu desse a Jarek qualquer pretexto para me atacar, ele ficaria muito feliz.
— Não reaja, Kate. —Barabas murmurou.
— Eu sei.
— Se ele tocar em você, você pode tocar de volta, —disse Mahon.
Aí sim. Eu vou. Você pode ter certeza que eu vou.
Nós viramos a esquina. Um longo corredor se desenrolou diante de nós, a luz das janelas pintando retângulos de luz no chão. Homens circulavam pelo corredor. Um dois ... doze. Jarek havia tirado a maior parte de seus soldados de suas camas para me dar as boas-vindas adequadas. Os metamorfos de Jarek olhavam para mim. Alguns abertamente mal-intencionados. Um metamorfo de cabelos escuros e mais velho à esquerda esticou a língua para fora e balançou-a. Mas não era encantador? Sua língua é muito longa. Chegue mais perto, eu vou consertar isso para você.
Continuei andando, Barabas e Mahon atrás de mim. A raiva e a mágoa dentro de mim se cristalizaram em uma gaiola gelada. Eu me escondi dentro dela, usando-a como minha armadura. Seja qual for o soco que Jarek Kral jogasse em mim, ele não iria quebrar essa gaiola. O gelo era muito grosso.
Enquanto nos movíamos pelo corredor, os metamorfos caíram atrás de nós. Alguém assobiou. Alguém cantou. Eu continuei andando.
À frente, um arco oferecia uma visão de uma grande sala. Assentos acolchoados e mesas de café esperavam agrupados—Hugh acreditava claramente que, se um conjunto de móveis fizesse seu trabalho, não havia motivo para ser criativo com a decoração. Jarek Kral estava esparramado em um dos sofás, observando-me caminhar na direção dele. Seus seguranças ladeavam o sofá. Um loiro alto—um dos dois irmãos que seguia Jarek por perto—um homem mais velho de cabeça raspada e músculos como um lutador peso-pesado, e Renok, meu ‘amigo’ de cabelos escuros, barba curta e uma crueldade inata em seus olhos.
Isso seria interessante.
— A puta de Curran vem nos visitar, —disse Jarek em inglês acentuado.
Os três homens riram como se tivessem combinado. Eu olhei para Mahon. — Você realmente não deveria deixá-lo falar com você assim.
As sobrancelhas grossas de Mahon se juntaram.
Eu sentei na cadeira. — Sua filha foi atacada na noite passada.
— E?
— E estou procurando por algumas reações paternais aqui, do tipo: ela está bem, está ferida? —Eu me inclinei para frente. — Você sabe, coisas que os homens perguntam quando seus filhos são atacados.
Jarek encolheu os ombros. — Por que eu deveria me preocupar? Para isso contratamos vocês. Para manter minha preciosa filha segura.
— Onde você estava ontem à noite à meia-noite?
— Aqui. Não é? —Jarek abriu os braços.
— Sim, —o homem careca mais velho disse.
— Aqui, —disse Renok e piscou.
Jarek Kral se inclinou para mim. Oh garoto. Aqui vamos nós. — O que ele vê em você? —Seu tom era leve, quase casual. — Você não é uma metamorfa, não é poderosa e nem é bonita. Sem um corpo bonito. Sem um rosto bonito.
Atrás de mim, Barabas respirou fundo.
— Você faz um bom sexo? —Jarek Kral apoiou o cotovelo na mesa e apoiou o queixo no punho. — Você chupa o pau dele?
Oh olhem, alguém pesquisou algumas palavras sujas no dicionário de inglês. Que fofo.
Jarek inclinou-se um pouco para frente, feliz consigo mesmo. — Ele gosta do pau dele chupado? Ou você não fez um bom trabalho? É por isso que ele está te trocando?
Amador. — Por que você está tão curioso sobre o pau de Curran? Você está procurando algo novo para chupar? Fique à vontade para perguntar isso a ele, mas tenho certeza que ele não gosta de você dessa forma Os três homens recuaram. Jarek piscou. Barabas riu baixinho.
— Tente prestar atenção aqui, —eu disse a ele. — Vou falar devagar, para que você possa entender. Sua filha foi atacada. Há criaturas estranhas neste castelo. Nós temos um exame de sangue que pode identificá-los. Você vai nos deixar testar seu sangue?
Jarek riu.
Ele não parecia nervoso, mas ele estava tão animado que eu não saberia dizer se ele estava reagindo.
— Talvez devêssemos testar o seu sangue. —Renok agarrou meu braço esquerdo. Ele foi rápido, mas eu o vi se mover e deixei ele fazer isso. Seus dedos se fecharam no meu pulso. Ele puxou meu braço, dobrando-o no cotovelo para expor o interior do antebraço. Esperei meio segundo para me certificar de que todos vissem e levei a palma da mão direita contra o pulso dele. Ele era forte, mas ele não esperava que eu fosse também. Seu aperto escorregou. Eu agarrei seu pulso com a mão direita e torci, arrancando seu braço. Ele se inclinou para a frente, tentando manter o ombro no encaixe. Eu puxei uma faca de arremesso da minha bainha e a dirigi através de seu músculo trapézio no topo de seu ombro, prendendo-o à mesa de café com uma faca.
A coisa toda levou meio suspiro.
— Então, pelo que entendi, isso é um não sobre a amostra de sangue? —Perguntei.
Jarek Kral me encarou.
Um grunhido irregular e áspero rasgou Renok, parte fúria, parte dor. Ele forçou se libertar.
Barabas se inclinou para frente e colocou a mão no pescoço de Renok. O metamorfo ficou parado.
Eu levantei. — Não vejo mulheres no seu bando. Isso é um erro. Desandra é filha do pai dela. Ela lutou na noite passada e ela gostou disso. Ela vai te matar um dia, e então vai ter filhos que nunca saberão o nome de seu avô. Sua tentativa patética de uma dinastia vai morrer com você.
O loiro e o pugilista pularam de pé. Mahon sacudiu a cabeça. — Pensem melhor sobre isso, rapazes, —ele disse baixinho, sua voz com ameaça profunda.
Jarek disse alguma coisa. Os lobos recuaram.
Eu me virei e saí. Mahon e Barabas me seguiram.
Caminhei pelo corredor indo em direção às escadas quase correndo. Do lado de fora das janelas, o dia estava claro: sol dourado, céu azul, vento agradável ... eu queria dar um soco no dia feliz, agarrá-lo pelo cabelo e bater até que ele dissesse porque diabos estava tão feliz. Sentia muita raiva e estava cansada desse lugar. Cansada de metamorfos, cansada de sua política e cansada de me conter. Pensar em Curran acabou de derramar mais gasolina no fogo. Eu tinha que me controlar e tinha que fazer isso agora, antes de explodir.
Chegamos a um banco acolchoado no recanto superficial.
— Vamos sentar aqui um minuto, —disse Mahon.
Eu não queria me sentar. Queria dar um soco em alguma coisa.
— Por favor, —disse Mahon.
Bem. Eu sentei. Ele sentou do outro lado. Barabas se encostou na parede ao meu lado.
— Eu nasci antes da Mudança, —disse Mahon. — Para mim, a magia mudou tudo. Marta é minha segunda esposa. Eu enterrei a minha primeira e nossos filhos. Não tenho amor por pessoas ‘normais’. Para mim, sou um normal. Eu sou um metamorfo, mas sou humano. As coisas que sofri foram feitas a mim por humanos ‘normais’, e eles as fizeram porque nunca tentaram me entender, e mesmo se o fizessem, não conseguiriam. Eu não pertencia a eles e eles com certeza não pertenciam a mim ou à minha família. Não havia terreno comum entre nós.
Por que ele estava me dizendo isso? Eu já me sentia como se tivesse passando por um desafio. Não precisava de socos extras.
— Você nunca será uma metamorfa, —disse Mahon. — Se você morar conosco por cem anos, um homem-urso recém-nascido será mais um metamorfo do que você.
Barabas olhou para ele. — Já é o suficiente. Houve muito agora a pouco. Ela não precisa de mais nada hoje.
— Deixe-me terminar, —disse Mahon, com a voz calma. — Você nunca entenderá totalmente o que é e nunca entenderemos totalmente você. Mas isso não importa. Você é Bando.
Eu pisquei. Devo ter ouvido mal.
— Por que aguentar as provocações deles? —Mahon perguntou. — Sei que isso vai contra a sua natureza.
— Porque toda essa situação não é importante. Conseguirmos a panaceia é o que importa, nosso pessoal e uma mulher grávida é o que importa. Eu posso fazê-los comer suas palavras, mas isso iria atrapalhar tudo. O Bando está contando comigo, explodir minha fúria em cima deles seria jogar o jogo que eles querem e isso nos prejudicaria. Prefiro ganhar muito no final do que ganhar pouco agora.
— E é por isso que não importa o que aconteça, você sempre será Bando. Porque você tem essa lealdade e contenção. —Mahon ergueu as mãos, como se segurasse uma bola invisível. — O Bando é maior que todos nós. É uma instituição. Uma coisa construída do autosacrifício. Somos uma raça violenta. Para existirmos em paz, temos que sacrificar essa violência. Temos que valorizar o controle e a disciplina, e isso começa na liderança. Ter uma alfa que é um canhão solto é pior do que não ter nenhum alfa. O mundo está caindo ao nosso redor em pedaços e será assim por algum tempo. É tudo sobre estabilidade agora, sobre dar às pessoas um lugar seguro, uma rotina reconfortante, para que elas não se sintam assustadas e não sintam a necessidade de recorrer à violência, porque se seguirmos esse caminho, nos autodestruiremos ou seremos exterminados. É por isso que nos enchemos de tantas regras. Algum dia, eu gostaria de ver as coisas mudarem. Gostaria que os desafios fossem embora. Nós perdemos muitas pessoas boas. Demorará um tempo, um longo tempo, talvez anos, talvez gerações para que tudo fique melhor, mas começará pelos líderes. Nós lideramos pelo exemplo.
Eu nunca esperaria ouvi isso dele.
Mahon me encarou. — Você e nós, temos coisas em comum. Você sabe o que é não ser ‘normal’, exceto que neste caso você veio de fora do Bando. Você pode respeitar nossos modos, mas não precisa tentar ser algo que não é. Algumas pessoas demoram mais para se ajustar, mas, com o tempo, você será aceita como você é. Não ‘humana’, não seja-lá-o-que-você-for, mas Kate. Única e diferente, mas não separada do Bando. Kate é apenas Kate e você pertence a nós. Isso é tudo que importa.
Eu era a Consorte durona e ele era o carrasco sombrio do Bando. Abraçá-lo nos corredores seria totalmente inadequado.
— Obrigada por sua ajuda, —eu disse.
— A qualquer momento. —Disse Mahon.
Barabas se virou para as escadas. Lorelei circulou o patamar e continuou subindo as escadas, seu vestido verde escuro com uma saia clara transparente balançando enquanto ela andava.
Barabas inalou. — Essa é ...?
— Agora não é a hora, —disse Mahon.
Oh não, agora era o momento perfeito. Ela estava subindo as escadas e, a menos que Curran a esperasse em seu quarto, ele estaria sozinho e disponível para uma pequena conversa.
— Onde está Curran agora? —Perguntei.
— É hora do almoço, —disse Barabas. — No grande salão.
Bom. Já era hora de falar com ele.
No momento em que chegamos ao grande salão, o bom senso em mim havia se manifestado. Marchar até Curran e bater nele, por mais satisfatório que seria, não conseguiria muito além de me fazer parecer uma idiota ciumenta que não conseguia se controlar. Eu não daria a ele e aos outros bandos essa satisfação.
Parei na porta. — Por que vocês dois não entram? Eu estarei bem atrás de vocês.
Mahon continuou. Barabas permaneceu por um longo momento.
— Eu só preciso de um minuto para mim.
— Kate ... Eu sou a última pessoa a dar conselhos sobre amor. Eu sempre procuro por parceiros calmos e razoáveis, porque sei que sou difícil e preciso de alguém para me firmar, mas depois fico entediado e insisto na relação até que eles me abandonem. Eu sei que estou fazendo isso, mas continuo repetindo o mesmo erro várias vezes, como um idiota, porque continuo esperando que seja diferente com o próximo cara, porque ele é diferente. Mas sempre acontece a mesma coisa, porque eu não mudo. As pessoas não mudam de repente, Kate. Você entende? —Ele se inclinou para frente e olhou para o meu rosto. — Somente ... demore mais de um minuto. Então não haverá arrependimentos depois.
Ele entrou no grande salão.
As pessoas sentavam-se à mesa, comendo, bebendo, conversando. A tensão vibrava em mim. Eu estava um pouco perto demais da violência. Imaginei andar lá e esfaquear Curran com um garfo. Barabas estava certo. Eu precisava de mais de um minuto. Precisava espirrar um pouco de água no meu rosto.
Em minha frente, um pequeno corredor levava ao lado. Se eu o seguisse, deveria me levar a um dos dois banheiros. Pisei no corredor. Uma porta estava entreaberta no meu lado direito, levando a uma pequena sala onde um conjunto de escadas de madeira escura subia.
Talvez fosse o caminho para a galeria do menestrel.118
Eu subi as escadas. Se houvesse algum atirador ali, queria encontrá-lo para uma conversa amigável. Se não, poderia olhar para o refeitório sem ser notada.
As escadas terminaram. Passei por uma porta na parede de pedra e me vi na galeria do menestrel no grande salão. Bom. Algo deu certo hoje.
O grande salão não tinha janelas, a única iluminação vinha das luzes elétricas ou, agora, com magia em alto, das luminárias em forma de tochas. Poderia ter sido no meio da manhã ou da meia-noite—a luz externa não faria diferença. A galeria estava encharcada de escuridão, o piso de madeira escura quase preta. Eu andei por ele. Duas portas, uma na parede oposta e a outra no meio do caminho, interromperam a parede de pedra. Além disso, nada. Vazio.
Eu me inclinei no trilho de madeira. Abaixo de mim, o grande salão se estendia muito abaixo, bem iluminado e com uma boa visão das pessoas.
As janelas dos corredores do castelo devem ter sido abertas para dar vazão ao ar aquecido com hálito humano e comida ainda quente, e uma corrente de ar fluía de baixo, trazendo consigo um toque de especiarias e mexendo as longas cortinas azuis e prateadas na parede à esquerda de mim. A partir deste ponto, eu provavelmente estava quase invisível para aqueles abaixo de mim.
Eu não percebi o quão alta a galeria era. Saltar sobre o trilho estava fora de questão. Meus ossos estalariam do impacto.
Curran atravessou a porta para o corredor. Ele caminhou até a mesa principal, onde Barabas se sentou ao lado de Mahon e perguntou a Barabas algo. Barabas abriu os braços em resposta. O rosto de Curran estalou em uma máscara ilegível familiar. Ele sentou em seu lugar no meio.
Um momento depois, Lorelei flutuou. Ela usava jeans apertados e uma blusa camponesa azul quase sem mangas. Os cabelos dela caíam sobre os ombros. Seu rosto parecia impecável. Como diabos ela teve tempo de mudar e chegar tão rápido?
Curran se virou para ela e disse alguma coisa. Ela sentou-se ao lado dele. Seu sorriso era nada menos do que radiante.
Parecia que alguém havia jogado um tijolo no meu estômago.
Ela perguntou-lhe alguma coisa. Ele pegou um prato de carne cortada. Se ele oferecesse comida para ela, eu pularia direto da galeria e o chutaria no rosto com minhas pernas quebradas.
Curran moveu o prato em direção a ela.
Não.
Ele colocou o prato para baixo.
Lorelei sorriu para ele, espetou uma fatia do prato com o garfo e inclinou-se para lhe dizer alguma coisa, com uma leve luz nos olhos.
Eles estavam sentados perto demais. Eu encarei Curran, desejando poder ver através de seu crânio em sua cabeça. Por que você está fazendo isso? Por quê?
— Talvez porque ela é mais jovem e mais bonita, —disse Hugh atrás de mim.
Eu não percebi que tinha falado em voz alta. Não ouvi ele se aproximar de mim também. Merda. Esta situação precisava ser resolvida muito rápido, porque estava me distraindo.
Hugh veio se inclinar ao meu lado, uma sombra enorme. Ele usava jeans e uma camiseta cinza. O tecido fino se encaixava em suas costas largas, seguindo os contornos de seus músculos do pescoço e do ombro. Eu conhecia essa construção corporal: uma mistura de força e alta resistência, flexível, móvel, mas capaz de esmagar qualquer coisa. Hugh seria muito difícil de matar.
Ele se virou, observando Curran abaixo. — Talvez ele a queira porque ela é uma metamorfa e seu povo a aceitaria. Ela vai ter uma ninhada de filhotes e todo mundo vai ficar feliz. Talvez porque ela traria uma aliança política. Talvez porque ela não vá discutir com ele. Alguns homens gostam de obediência.
— Obrigada pela sua análise, doutor. Medindo os outros pelo seu próprio padrão?
Ele inclinou a cabeça, apresentando-me com uma visão de seu queixo quadrado. Socá-lo seria uma merda. Eu machucaria minha mão com certeza. Voron havia escolhido bem. Normalmente eu não tinha nenhum problema com o meu corpo, mas agora desejava outros quinze centímetros de altura e mais dez quilos de músculos. Não nos faria iguais, mas aumentaria as minhas chances.
— Interessado em meus padrões? —Perguntou Hugh.
Perigo, lago congelado à frente. — Não.
— Se estamos falando de uma noite, estou procurando entusiasmo. Talvez alguém destemida. Obediência cega é chata. Eu quero me divertir, quero que ela se divirta, e quero fazer uma lembrança que vou gostar de lembrar.
— Muita informação. —As aventuras de uma noite de Hugh eram a última coisa que eu precisava saber.
— Você perguntou. Mas você não é uma aventura de uma única noite dele, Kate. Ou você é?
Eu dei a ele meu olhar duro.
Ele sorriu, um sorriso de lobo afiado. — Você sabe o que estou procurando em uma parceira? Um desafio.
— Boa sorte.
Ele riu baixinho, um som rouco. — Talvez estejamos pensando demais. Talvez o seu Senhor das Feras esteja inclinado para ela porque ele precisa de uma esposa e o pai dela não está planejando destruir tudo o que ele representa.
Ai! — É isso que Roland quer fazer?
Hugh suspirou e examinou as pessoas abaixo. — Olhe para eles. Eles acham que esta reunião é sobre eles, seus pequenos conflitos territoriais, seus problemas, suas luxúrias, desejos e necessidades. Eles se empanturram, brigam e mostram suas presas, e durante todo o tempo eles não têm ideia de que isso é tudo sobre você.
Gelo fino. Proceda com extrema cautela.
Ele se virou para mim, olhos azuis luminescentes. — Existem milhares de metamorfos. Mate cem e sempre haverá mais. Mas não tem outra como você há cinco mil anos. Eu mataria todos naquela sala abaixo por uma chance de conversar com você.
O gelo imaginário estava rachando sob meus pés. Ele estava levando isso a algum lugar muito estranho. — Muito dramático, você não acha?
— Estou apenas informando fatos. —Hugh se recostou no corrimão. — Lute comigo. Você sabe que quer.
Eu me inclinei para frente e apontei para a minha testa. — Diga-me se você vê IDIOTA escrito aqui.
— Com medo?
Dei de ombros. — Com medo do que vai acontecer depois que eu arruinar seu rosto e Hibla começar um massacre.
— Tem a minha palavra que não vou deixar você em qualquer lugar perto do meu rosto.
— Deixar?
Hugh sorriu.
Em outro minuto, eu precisaria de um pano para limpar toda a presunção que pingava dele. — Grande conversa para alguém com uma cicatriz no rosto.
— Se você ganhar, vou te dizer como eu a consegui.
Acenei minha mão para ele. — Não me interessa. Não quero saber disso.
— O que você quer saber?
— Isso importa? Até agora você se esquivou de todas as perguntas que fiz.
— Eu não achava que tinha um estilo de luta, —disse Hugh. — Se o inimigo estiver dentro do alcance, posso matá-lo, mas sempre achei que o que faço é um conjunto de técnicas que funcionavam no momento da luta. Afinal, qual seria a minha marca especial de violência, nunca foi algo em que pensei, até que eu vi você lutar. Admita, você sentiu o mesmo.
Eu senti. Nunca tinha visto alguém que luta como eu. Nós estávamos completamente em sincronia, tão perfeitamente que a lembrança disso era perturbadora.
Ele olhou para mim. — Eu quero experimentá-lo novamente. Lute comigo.
— Desculpe, mas para mim essa conversa encerrou.
— Kate, vamos lá.
— Estou falando sério. Não.
Hugh riu. — Você é uma provocação.
Abaixo de nós, Curran levantou-se. Lorelei também se levantou. O que agora? Curran atravessou o corredor e saiu pela porta sob a galeria. Lorelei seguiu-o.
— Você gostaria de espionar os pombinhos? —Perguntou Hugh.
— Não. —Eu não precisava de nenhum favor dele.
— Ter as informações corretas é a chave para vencer uma guerra.
— Eu não estou em guerra.
— Claro que você está, Kate. Você está em guerra consigo mesma. Uma parte de você sabe que há mais na vida do que ser a Consorte. Uma parte de você está se perguntando se ele está traindo você. Eles vão conversar, quer você escute ou não, e ouvi-los não vai mudar o que eles têm a dizer. —Ele acenou para a esquerda. — Eu vou. Sinta-se livre para se juntar a mim.
Algo dentro de mim estalou. Tinha que saber. Eu não confiava no homem que eu amava o suficiente para não ouvir. Isso dizia muitas coisas ruins sobre mim e naquele momento não me importava. — Bem.
Hugh foi até a porta mais próxima e a abriu. Andei através dele em um longo corredor curvilíneo. Eu podia ver uma varanda no final. Uma leve brisa, fria e temperada com a umidade salgada do mar, girava em torno de mim. O céu era de um azul brilhante e, diante daquela turquesa feliz e iluminada pelo sol, o corrimão pálido da sacada parecia quase brilhar.
Um longo tapete se estendia através do chão, abafando nossos passos. Vozes surgiram de baixo. Parei pouco antes de caminhar até a varanda e me encostei na parede.
Hugh encostou-se na parede oposta, me observando.
— Você não cuida bem de si mesmo, —disse Lorelei.
E ela estava pronta e disposta a ajudá-lo com isso.
— Você faz tantos sacrifícios.
Ele não poderia estar comprando esse monte de besteiras. O homem que manipulava sete diferentes personalidades alfas dos clãs do Bando em uma base diária não poderia ser tão estúpido.
— Deve ser solitário às vezes.
— É. —disse Curran.
Ele se sentia sozinho. Nós estávamos juntos quase 24 horas por dia nos últimos dois meses, mas ele se sentia sozinho. Quando no inferno ele teve a chance de ficar sozinho, exatamente?
— Às vezes é demais para uma pessoa. Eu entendo, —continuou Lorelei. — Depois que minha mãe deixou meu pai, tive que vir com ela e realmente não tive escolha. Tenho saudades do meu pai. Sinto falta de ser alguém. Na Bélgica, por causa do meu tio, minha mãe e eu não podemos fazer nada para o bando. Você não pode imaginar como é estar ciente de que a cada minuto você é uma convidada e deve pensar em cada palavra que sai da sua boca. Eu daria qualquer coisa por um lugar onde pertenço. Às vezes eu gostaria de poder criar asas e voar para longe. Apenas ir para algum lugar melhor. Algum lugar onde eu seria importante.
Ela ficou em silêncio.
— Sinto muito que isso esteja acontecendo com você, — disse Curran. — Parece que você se sente presa e sozinha.
— Eu sinto. Me desculpe, eu não pretendia jogar meus problemas em você.
— Está tudo bem.
— Não, não está. — Lorelei suspirou. — Às vezes sinto que não tenho ninguém para conversar. Pelo menos ninguém que me entende. Tenho certeza que você sabe como isso é. Sua companheira é humana. Há algumas coisas que ela simplesmente não consegue entender.
Eu lutei para não ranger os dentes.
— Somos diferentes, —disse Curran.
Sim, essas diferenças não te incomodavam até agora, idiota.
— Sinto muito que ela não pode estar com você e compartilhar a emoção de derrubar a presa depois de uma longa caçada. É uma experiência maravilhosa caçar ao lado de sua companheira. Você é muito altruísta a desistir dessa alegria. Eu não sei se eu poderia fazer isso.
Me dê uma folga.
— Todos nós devemos fazer sacrifícios. Caçar com a minha companheira é apenas uma das coisas que eu não posso fazer.
A maneira como ele disse isso, com profundo pesar, me apunhalou direto no peito.
— Talvez ela pudesse se tornar uma metamorfa?
— Ela é imune, —disse Curran.
Lorelei respirou fundo. — Então você desistiu da metade do que você é e de sua vida por ela? Eu sinto muito. E se os filhos dela nascerem humanos?
Sua puta.
— Então eu vou lidar com isso. —Ele parecia frio como uma geleira.
Meu peito doía. O mundo ganhou um leve tom de vermelho. Eu me concentrei em respirar. Inspirar. Expirar. Inspirar.
— Eu não deveria ter mencionado isso. É só que ela é muito mais frágil do que nós. Humanos morrem de doença. Eles são mais fracos e facilmente feridos. Se seus filhos nascerem humanos, eles herdarão sua fraqueza ... você não deveria desistir de seu ... eu sinto muito. Esqueça que eu disse qualquer coisa.
Expirar. Inspirar.
— Eu aprecio sua bondade. Já é hora de voltarmos, —disse Curran. — Já devem estar sentindo minha ausência.
Expire.
— Claro.
Uma porta bateu fechada. Hugh sacudiu a cabeça. — Não tinha certeza antes, mas agora tenho, o seu homem é um idiota.
A dor estava no meu peito, quente e sólida. — Cale a boca.
— Ele é um homem de visão limitada, Kate. Tudo o que ele gosta é o imediato: ela está dizendo a ele que você não pode caçar com ele, que você não cresce pêlos, e ele não está defendendo você. Doces deuses, seus filhos podem ser humanos. Que horror. Ele nem sequer considerou o que significa ter você a seu lado a longo prazo. Você entregou a ele um diamante vermelho de valor inestimável e ele está escolhendo pedaços de vidro porque elas são maiores e chamativas.
— Isso não é da sua conta. —Se concentre, Kate. Isto fazia parte do plano de Hugh. Separar-me de Curran e apresentar-se como uma alternativa melhor. Hugh estava jogando comigo. Eu estava andando na beira de um penhasco e precisava ser cuidadosa ou mergulharia nele, mas a névoa vermelha na minha cabeça estava dificultando a concentração.
— Existem dezenas de garotas como Lorelei. Elas acham que são especiais porque nasceram metamorfas e são fofas e mimadas. Elas esperam que o mundo se curve diante de seus pés. —Hugh apontou para o salão. — Eu posso ir lá agora, pedir que me tragam uma, e pela manhã eu vou ter dez como ela. Você é especial, Kate. Você nasceu especial, além de ter passado pela mão de ferro de Voron e sobrevivido. Curran não consegue ver. Há uma palavra antiga para isso: indigno.
— Você vai calar a boca? —Eu me desliguei.
Ele continuou falando, nunca levantando a voz, seu tom razoável, mas insistente. — Eu trabalho com metamorfos. Os conheço. Tenho eles na palma da minha mão. Eles não pensam como nós. Gostam de fingir que sim, mas sua fisiologia é simplesmente muito diferente. Eles não experimentam emoções complexas, eles experimentam desejos. É um fato frio e difícil de entender. Os metamorfos são governados por instintos e necessidades: o desejo de sobreviver, de comer e de produzir descendentes. Tudo o que eles fazem é ditado pelo pensamento animalesco: sentem medo e esse medo os leva a formar bandos, eles são levados a procriar e, assim, tornam-se agressivos em relação à concorrência, em um esforço para transmitir seus genes, eles fazem filhos ...
A mãe de Maddie brilhou diante de mim. — Eles amam seus filhos! Os defendem até o fim.
— Assim como chitas e lobos e aranhas. Mas esperar compaixão ou emoções complexas deles seria insensato. É um instinto de sobrevivência, Kate. Quando uma mãe humana perde um filho, é uma tragédia que quebra a vida. Quando uma criança metamorfa vira loup, eles choram por mais ou menos um mês, e então começam a trabalhar em um substituto.
Hugh levantou as mãos na frente dele, a uns trinta centímetros de distância, palmas voltadas uma para a outra. — Eles têm uma visão de túnel e vivem no momento. No momento, os instintos de Curran estão dizendo que você é um problema. Estar com você é muito complicado. Você não se encaixa perfeitamente na estrutura do mundo dele, e outros estão questionando a escolha dele. Você é uma fonte de atrito e agora ele encontrou uma alternativa mais adequada.
Eu não queria ouvir mais nada. Me empurrei da parede, mas ele bloqueou meu caminho.
— Saí da minha frente.
— Pergunte a si mesma se você se contenta em viver sua vida na sombra dele. Você sabe que foi feita para coisas maiores. No fundo ele também sabe disso. Ele sabe que não tem futuro com você, senão Curran já teria te implorado para se casar com ele. Quando um homem quer compartilhar sua vida com uma mulher, ele oferece tudo a ela.
— Mova-se. —Se ele não o fizesse, eu o moveria.
— Você precisa desabafar um pouco. Eu tenho um pátio de treino cheio de espadas. Lute comigo.
— Não.
— Se você está com muito medo de tentar, apenas diga que está com medo, e voltaremos a isso quando crescer coragem em você.
Voron. Era o que Voron costumava me dizer. Ele criticava minhas lutas, ele me espancava no treino, e quando eu errava, ele me repreendia: ‘Faça melhor’ era ruim. ‘Desleixada’ era pior. Mas nada se comparava a ‘Diga que você está com medo’. Não havia pecado pior do que não tentar, porque você não conseguia juntar coragem suficiente.
A raiva que havia fervido transbordou. A gaiola de gelo quebrou. Eu estava muito longe. Ele queria uma luta, eu daria uma luta para ele. — Bem. Lidere o caminho.
Capítulo 15
Eu segui Hugh pelas escadas. Nós emergimos no corredor e quase esbarrei em George. Ela viu Hugh. Seus olhos espertos se estreitaram. — Ei, Kate.
— Ei.
— Aonde você vai?
— Me exercitar um pouco.
George se virou. — Eu vou com você.
— Você é quem sabe.
Nós caminhamos pelos corredores até uma porta. Hugh abriu-a e saímos para o pátio interior. Seis grandes prateleiras de armas me receberam, organizadas por tamanho ao longo da parede mais próxima. Espadas, machados, lanças.
Ele deve ter se preparado antes, mas isso não iria ajudá-lo.
Passeei pelas prateleiras. Reconheci algumas lâminas japonesas119, mas a maioria era europeia, espadas bastardas120, sabres121. Uma antiga falcata122 esperava por guerreiros gregos, um gladius romano123 descansava ao lado de uma espada longa124 e uma faca alemã ao lado de seu descendente, o sabre. Cimitarra125, antigas espadas escocesas126, lâminas táticas127, cada uma delas não só prontas para serem usadas, mas belas, exemplares de armas que eram ferramentas de guerra e uma obra de arte ao mesmo tempo. Voron adoraria isso. Tinha que ser a coleção pessoal de Hugh. Era uma visão linda, contanto que alguém ignorasse o homem na gaiola morrendo lentamente de sede no canto.
Eu olhei para cima. Christopher estava nos observando através das grades com olhos assombrados. Eu pretendia levar água para ele esta manhã.
Hugh ficou do outro lado, me observando.
— Kate, —disse George. — O que você está planejando fazer?
— Estamos planejando treinar, —disse Hugh. — Apenas uma competição amigável.
— Esta é realmente uma má ideia, —disse George.
— O que eu ganho se eu ganhar esta competição amigável? —Perguntei.
Hugh acenou com a cabeça para as espadas de valor inestimável. — Você pode ter qualquer coisa daqui.
Eu examinei as lâminas. Seria insana se recusasse qualquer uma. — Qualquer coisa?
— Qualquer coisa neste pátio. Mas se eu ganhar ...
— Você não vai.
— Se eu ganhar, —disse Hugh — você vai me dizer como matou Erra. Que magia você fez, quais movimentos você usou. Você vai recriar essa luta para mim, até o último detalhe.
George sacudiu a cabeça. — Kate ...
— Combinado.
George suspirou.
Eu tirei minha bainha e coloquei a Matadora na prateleira mais próxima. Precisava de uma lâmina semelhante, algo com o mesmo alcance, peso e equilíbrio.
Hugh andou pelas prateleiras, pensando.
Cimitarra ... não. Um sabre me daria uma vantagem, mas isso deveria ser uma disputa equilibrada. Ele era mais forte, eu não tinha dúvidas disso. Ele era quinze centímetros mais alto, musculoso como um gladiador, e pesava mais de trinta quilos do que eu, no mínimo. Sua camisa se moldava a ele, e o músculo em seu torso parecia duro como uma armadura corporal. Mas toda essa massa muscular veio com um preço. Isso lhe custaria em resistência e velocidade, e eu tinha resistência saindo dos meus poros.
Nós paramos na mesma prateleira. Duas espadas quase idênticas esperavam diante de nós, cada uma com oitenta centímetros de comprimento. Uma borda profunda percorria o comprimento das lâminas de dois gumes. As pessoas chamavam isso de ranhura de sangue, porque imaginavam o sangue dramaticamente escorrendo pela borda. Na realidade, a ranhura não foi feita para canalizar o sangue, mas para aliviar o peso da espada sem comprometer sua resistência. Apesar de seu tamanho, uma dessas espadas gêmeas provavelmente pesaria apenas dois quilos e meio. Vamos ver, um tipo clássico com seis proteções cruzadas, com extremidades achatadas, alargadas e dobradas ligeiramente em direção à lâmina. Um punho de dez centímetros, enrolado com um cordão de couro. Um punho redondo simples. Não era uma obra de arte, mas uma ferramenta brutalmente eficiente, projetada para tirar vidas.
— Boa sorte, —disse Hugh.
Eu peguei uma espada, ele pegou a outra. Balancei minha lâmina. Hum. Mais leve que dois quilos e meio. Mais como um quilo e meio. Não, um quilo. Ponto de equilíbrio cerca de cinco centímetros. Boa espada. Rápida, forte e leve.
Nós nos afastamos das prateleiras, dando-nos algum espaço para dançar.
— Por que você não usa sua própria espada? —George perguntou.
— Ele pode quebrar ela.
— Eu não quebraria. —Hugh colocou a mão em seu coração.
— Ele quebraria, —eu disse a George. — Ele é um filho da puta.
Hugh riu. — Acabamos de nos conhecer e ela me conhece tão bem.
Encolhi meus ombros, movendo-os para frente, esticando minhas costas. — Regras?
— Contato total, —disse Hugh. — Até admitir a derrota.
Eu esperava até o primeiro sangue derramado. — ‘Contato total’ e ‘até admitir a derrota’, significava que nenhum de nós iria se segurar e não pararíamos até que um de nós estivesse encurralado ou em perigo real de perder um membro ou a nossa vida. Um de nós teria que dizer ‘acabou’ para a luta acabar.
— Você tem certeza disso? —Eu tinha muita agressividade para queimar.
— Você está com medo? —Perguntou Hugh.
— Não. É o seu funeral. Pronto?
Hugh abriu os braços. — Apresente-me à vida após a morte.
Eu pensei que você nunca pediria.
Andei em direção a ele. Ele esperaria técnicas europeias no uso de uma espada europeia. Ele não teria uma.
Se eu o matasse agora, ele nunca diria a Roland sobre mim. Poderia ser considerado apenas um acidente de treino. Minha espada escorregou e cortou sua aorta128. Oops! Sinto muito.
Eu estava fechando a distância. Hugh ainda estava com as mãos para fora. Ele não tinha ideia de como eu estava puta. Poderia fazer parecer um acidente. Eu poderia fazê-lo pagar por tudo que doía dentro de mim.
Peguei velocidade, girei e libertei minha violência, voando como uma pedra atirada de um estilingue. O mundo desacelerou, cada segundo se estendia como se estivesse debaixo d'água.
Cortei na diagonal, da direita para a esquerda, sobre o peito dele. Ele recuou para se esquivar. Fatiei da direita para a esquerda. Outro passo, mãos para cima.
Um golpe baixo, cortando da esquerda para a direita em toda sua parte inferior do estômago. Hugh ainda se esquivou, mas agora com um propósito.
Ele identificou os golpes—eu estava batendo nos ângulos cardeais de esgrima129. Agora era a hora. Inverti o corte, cortando na direção oposta do estômago. Hugh se moveu para trás, o ponto de sua lâmina para baixo, corpo girando, planejando me pegar com o cotovelo esquerdo.
Nossas espadas se tocaram.
Martelei meu punho esquerdo em sua mandíbula. O queixo rangeu e saiu do lugar. A boca de Hugh estava aberta, a mandíbula fora do lugar. Eu já tive meu maxilar deslocado antes. Agora a dor estava explodindo em seu crânio e tinha que ser excruciante.
Hugh tropeçou de volta. Eu o dirigi pelo pátio, golpeando o mais rápido que podia. Golpe. Golpe, Golpe. Ele cambaleou.
Minha lâmina pegou seu bíceps. O sangue jorrou brilhante e vermelho. A magia vibrava como uma corrente elétrica viva. Primeiro derramamento de sangue para mim.
Hugh deu um soco no próprio queixo. A mandíbula deslizou no lugar. Ele inverteu o aperto e trouxe a espada para baixo, cortando-me com golpes poderosos. Esquive, esquive, esquive. Uôu. Bati sua lâmina de raspão com a minha espada, mas se tivesse batido de frente, o poder absoluto disso teria tirado meu braço. Bom que eu não estava pensando em ficar parada.
— Está nervosinho.
Ele abriu a boca e rosnou.
Ha-ha, dói falar, não é?
— Você parece com dor. Você quer um tempo para se recompor?
Ele se desfez. Sua espada veio sobre sua cabeça, cortando para frente. Eu me esquivei e, tarde demais, percebi que ele esperava, porque enquanto me movia, ele continuou o balanço, puxando a lâmina para trás. Por um momento ele pareceu quase como um batedor, seu corpo em ângulo, seus quadris girados, enquanto ele colocava toda a sua força no balanço. Eu mal tive tempo de empurrar minha lâmina antes dele.
O golpe me bateu de volta. Eu cambaleei. Ele continuou vindo, batendo em mim com ataques pesados metódicos. A precisão de um bisturi, o poder de uma marreta. Eu recuei para a esquerda, para a direita, virando-me, tentando manter o movimento ao mínimo para não ficar cansada.
Ele empurrou.
Eu bloqueei muito devagar. A espada roçou meu ombro direito. A dor açoitou meu músculo. Ai.
— Dance mais rápido, Kate!
Sua mandíbula já funcionando novamente. Isso era alguma regeneração acontecendo. Eu saí do caminho. Hugh me bateu com o ombro. Voei e colidi com a parede. Minhas costas rangeram do impacto. Seu filho da puta.
Ele cortou na minha direção. Eu me abaixei sob o corte e me contorci para longe. Sua lâmina atingiu pedra. Custou-lhe um terço de segundo e consegui dar um chute na parte de trás do joelho. Com o joelho dobrado, Hugh se lançou para a frente e eu esmaguei a palma da minha mão esquerda na parte de trás de sua cabeça. Conheça a parede de pedra.
Hugh grunhiu, um som selvagem, uma parte de dor, três partes de pura fúria.
Poderia cortá-lo agora mesmo. Poderia enterrar minha espada nas costas dele. Mas não pareceria um acidente.
Eu o chutei novamente.
Hugh caiu e varreu minha perna debaixo de mim. Me deixei cair. Ainda estava no ar quando o enorme punho de Hugh apareceu, vindo em minha direção, acertando-me. Eu bati no chão, flexionando meu estômago, enquanto caía.
Hugh deu um soco no meu plexo solar.
Aaahhh Aaahh, isso doía. A dor me afogou, quente, intensa e ofuscante. Meu estômago se derreteu em agonia, o ar se transformou em fogo em meus pulmões, e todos os nervos do meu corpo gritaram.
Hugh ficou de pé rápido como um ninja e tirou sangue do rosto.
Eu apertei o punho da espada na minha mão, lutando contra a dor. Tinha que me levantar. Ele poderia ter me matado agora.
Ele não tinha, mas eu não podia deixá-lo vencer. Não, não está acontecendo.
Ele esperaria que eu ficasse de pé e me pegaria depois disso.
Eu poderia jurar que ouvi alguém gritando em algum lugar distante. ‘Levante-se, Kate.’
O pé direito de Hugh virou-se para trás, mirando para o meu lado. — Não há tempo para descansar.
Eu rolei no chute, meus joelhos dobrados. Seu pé se conectou com minhas canelas. Eu agarrei sua bota e chutei para fora em sua outra perna.
Hugh caiu. Eu rolei para trás e para os meus pés, espada para cima.
Hugh flexionou-se e saltou do chão. Ele mostrou seus dentes para mim, seus olhos brilhando com loucura. Ele parecia insano.
Você sabe o que? Foda-se. Acidente ou não, eu não me importava mais. Acabaria com ele aqui.
Eu sorri de volta, meu próprio sorriso psicótico demente.
Hugh gritou como um animal. Era um rugido feliz.
Eu o ataquei. Sua defesa era boa demais para o ataque interno, então eu fui para os braços. Corpo grande, grande coração.
Vamos ver quanto sangue tem em você, Preceptor.
Nós nos batemos e dançamos pela clareira. Eu afundei na onda de golpes, dançando no ritmo, fluído, rápido, a espada tão natural na minha mão que empunhá-la era como respirar. Ele era rápido, mas eu era mais rápida.
— Você quer saber como eu matei Erra? Assim. —Eu fatiei seu bíceps esquerdo. — E assim. —Outro corte, no peito. — Se você continuar a andar por aí vivo, eu vou contar a história toda.
Ele marcou um corte do meu lado. Eu abri dois cortes em seus braços. Dois contra um. Gostei desse placar.
Hugh balançou a cabeça, tentando tirar sangue que escorria por cima dos seus olhos. Eu continuei chegando. Ele deu um passo para trás. Outro.
Vinte e seis anos. Vinte e seis anos de olhar por cima do meu ombro, de viver em constante paranoia. Vinte e seis anos de preocupação em ser encontrada, em fingir ser mais fraca, em negar-me o contato humano básico. Eu deixei todas essas coisas me abastecerem. Minha espada tornou-se chicote, cortando, perfurando, girando, desenhando sangue vermelho quente de novo e de novo. Ele tentou tomá-la, mas eu estava muito rápida. Empurrei e ri quando a espada encontrou resistência.
Dor zumbiu dentro de mim, mas recuou para um lugar distante. Ele me cortou, mas eu não me importei. O mundo real desapareceu. Apenas raiva permanecia. Estava tão cansada de perder todo mundo que amava. Ele representava tudo que me causou dor e eu tinha que destruí-lo.
Ele lutava como Voron: habilidoso, inteligente e mortal. Lutar contra ele era magia. Era como brigar com meu pai. Mas eu havia vencido Voron quando tinha quatorze anos. Também venceria Hugh. Estava com muita raiva para parar.
Eu o levei de volta pelo pátio. Era ele e eu e duas espadas. Poderia continuar para sempre.
Continuaria para sempre. Ele desistiria primeiro.
Morra, Hugh. Morra por mim.
Morra.
— Kate!
Curran.
Eu recuei, apenas o suficiente para olhar na direção de sua voz. Ele estava na janela à direita. Lorelei estava ao lado dele, com o rosto frouxo de choque. Puta merda.
Todas as janelas tinham alguém dentro. As pessoas tinham saído para as varandas. Acima de nós no parapeito, os djigits de Hibla empunhavam bestas para mim. Na torre distante, mais dois soldados de Hibla preparavam o escorpio.
A realidade caiu em mim como um trem desgovernado. Se eu matasse Hugh, eles encheriam o pátio de flechas. Eu morreria.
Não me importava. Valeria a pena.
Eu me virei e vislumbrei George enquanto ela se afastava de nós.
George morreria comigo. Eles a acertariam com flechas suficientes que até mesmo a regeneração do metamorfo não conseguiria aguentar, e mesmo se sobrevivesse, o Bando reagiria. Haveria um banho de sangue.
Eu tinha que recuar. Queria continuar lutando tanto que doía.
Empurrei para o peito de Hugh, largando o ângulo bruscamente. Ele aparou, mas nós dois sabíamos que era muito baixo. Minha lâmina deslizou ao longo da dele e senti-a afundar em seu músculo oblíquo direito130. Raiva desapareceu de suas feições. A parede estava bem atrás dele. Hugh deu um passo lento e deliberado para trás. Eu segui, minha espada a poucos centímetros de seu estômago superior. Se eu pressionasse, ele teria um fígado lacerado.
Ele se encostou na parede. Um sorriso lento esticou seus lábios manchados de sangue.
— Eu gostaria de ouvir sua rendição.
Hugh se inclinou para frente, forçando a espada a morder mais fundo em seu músculo. Uma expressão estranha apareceu seu rosto, uma espécie de olhar focado, mas ligeiramente divertido, possessivo, não, convidativo ...
Hugh abriu a boca. — Acabou.
Não era uma rendição. Era uma provocação. Um ano atrás eu poderia tê-lo confundido com outra coisa ou me convencido de que eu estava lendo demais, mas um ano de estar apaixonada e ser desejada me deu base suficiente para identificar essa aparência de suas feições. Hugh estava sexualmente excitado.
Não era um ato. Era real.
Foda-se tudo para o inferno.
Não mostre que você percebeu.
Arranquei a espada, a limpei na camisa e a entreguei a ele. — Excelente espada. Obrigada pelo treino.
— Não, obrigado você. —Hugh se empurrou da parede. O sangue encharcava sua camisa. Seu rosto inchava no lado esquerdo. Ele deve ter se virado quando eu enfiei o rosto na parede. Provavelmente tentou salvar o nariz. Um nariz quebrado fazia seus olhos lacrimejarem e eu acabaria com ele muito mais rápido.
Todas as dores e ferimentos gritavam comigo de uma só vez. Meu estômago doía. Meu lado esquerdo provavelmente foi cortado. Meu lado direito parecia um pouco afundado, com uma dor latejante e familiar. Costela rachada. Esperemos que não esteja quebrada. Meus braços doíam em dez lugares diferentes. Minha camiseta não ficou completamente vermelha, como a dele, mas manchas brilhantes floresciam aqui e ali.
Eu me virei, me esticando levemente. Uau. Sentia como se alguém tivesse me batido com um saco de batatas cravejadas de navalha.
Um pequeno ruído me fez girar. Curran marchava em nossa direção, seu rosto escuro, seus olhos quase completamente dourados. Ele deve ter pulado pela janela. Olha só. O que Lorelei estaria fazendo sozinha?
— Você me deve uma revanche, —disse Hugh.
— Talvez. Um dia. —Quando você não estiver cercado por duas dúzias de guarda-costas.
— Isso é uma promessa.
Curran se aproximou de mim. — Você está bem, bebê?
— Ele chama você de bebê. —Hugh riu. — Eu amo isso.
— Cale a boca. —Disse Curran.
Levantei minha voz para que o público pudesse ouvir. — Sobre o meu prêmio?
Hugh sorriu. — Claro, —disse ele, sua voz carregada. — Você pode escolher à vontade qualquer coisa no pátio.
Eu me virei e apontei para Christopher na gaiola. — Eu quero ele.
Hugh piscou e trancou o queixo.
Sim, sim, você perdeu. Coloque suas calças de menino grande e pague.
O rosto de Hugh parecia sombrio. Ele realmente não queria desistir de seu brinquedo de tortura.
— Há algum problema? —Perguntou Curran.
— Não tem problema. —Hugh levantou a voz e latiu uma ordem em outro idioma.
Hibla saiu, puxando um grande chaveiro do bolso. Dois djigits a seguiram. Nós assistimos quando eles abriram as portas.
Hugh tirou a camisa, exibindo um torso premiado. Ele tinha um corpo como um modelo de anatomia—cada músculo afiado com precisão e tamanho exato: forte, poderoso, mas flexível. E sangrento. Eu devo ter cortado ele mais de vinte vezes. A maioria das feridas era pouco mais que cortes e rasgos rasos. Ele foi muito bom. Se eu tivesse ficado menos brava, ele poderia ter vencido. Esse pensamento me preocupou.
Hugh virou o braço esquerdo, exibindo três cortes precisos no tríceps131 abaulado. Se eu tivesse conseguido cortar mais fundo, teria desativado o braço em cada um deles. — Olhe para isso. —Hugh mostrou os cortes para Curran.
— Como uma fodida artista.
Eu caminhei em direção à jaula.
— Toque nela de novo e eu vou te matar, —Curran disse baixinho nas minhas costas.
— Ela não precisa da sua ajuda, —disse Hugh. — Mas toda vez que você quiser jogar, me avise.
Eu continuei andando. Meu quadril doía também. Vermelho atravessava meu jeans. Outro corte. Mais profundo que os outros. O inferno iria congelar antes que eu mancasse.
Os djigits abriram a porta e se afastaram de mim, com as mãos no ar. Christopher me encarou com olhos de coruja.
— Vamos, —eu disse a ele.
Ele piscou. — Minha Senhora.
— Você está livre. Venha comigo. Temos comida e água. —Estendi a mão para ele.
Ele agarrou meu braço com as duas mãos e beijou-o. — Minha Senhora. Minha linda Senhora. Obrigado, obrigado, obrigado.
Ele tinha um aperto de morte no meu pulso.
— Minha Senhora, minha querida Senhora, obrigado, obrigado ...
— Barabas! —Eu gritei. Eu tinha noventa por cento de certeza de que o ouvi durante a luta.
Um movimento e ele apareceu ao meu lado como que por magia. — Alfa.
— Poderosa Senhora. —Sussurrou Christopher. Seus dedos tocaram meu sangue. Ele olhou para mim, em seu rosto os olhos brilharam. — Minha Senhora! Servirei para sempre ...
— Shhh. —Coloquei meu dedo indicador esquerdo nos meus lábios. — Cale a boca agora.
Barabas se aproximou de mim e gentilmente soltou os dedos de Christopher. — Essa luta foi incrível, —ele disse baixinho.
É bom saber que eu ainda podia dar um bom show, porque eu com certeza não era boa para muito mais do que isso. — Por favor, certifique-se de que ele tome um banho, uma nova muda de roupa e um pouco de comida e água. Não dê muito, porque ele vai se devorar. Ele não está equilibrado mentalmente.
Barabas tirou Christopher da gaiola. O homem olhou para ele. — Eu morri, não foi? Você é um anjo?
— Claro. —Disse Barabas. — Siga-me para o chuveiro celestial.
Christopher deu alguns passos em pernas trôpegas e se virou, olhando para mim com uma expressão de completo desespero em seu rosto.
— Vá com o anjo, Christopher, —eu disse. — Conversamos depois.
Barabas virou-o e guiou-o para dentro do castelo.
Eu me virei para segui-los. Curran ficou no meu caminho. — O que diabos você estava pensando? —Ele perguntou baixinho.
— Saí da minha frente, —eu disse a ele, mantendo a voz baixa. O público estava se dispersando, mas não rápido o suficiente para o meu gosto.
Lorelei escolheu aquele momento preciso para sair correndo pela porta. Ela viu meu rosto e parou. Está certa. Mantenha distância, flor delicada. A frágil humana ainda está muito zangada. Na minha cabeça, eu corria para ela e a cortava com a minha espada. Ela tinha um pescoço fino. Não seria muito difícil.
Esmaguei esse pensamento. Eu não me rebaixaria.
Curran cerrou os dentes. Seu rosto tinha aquele tom relaxado que normalmente significava que uma tempestade estava prestes a entrar em erupção. — Eu preciso falar com você.
— Não agora. —Estava farta dele.
— Sim, agora.
— Mas como a princesa Wilson sobreviverá sem sua proteção viril enquanto você fala comigo?
Ouro rolou sobre os olhos.
— Quer saber de uma coisa. Ela está ali e eu estou aqui. Escolha.
— Não é tão simples assim.
— Então eu vou escolher por você. —Veja-me ir embora.
— Isso é uma ameaça?
— Não, isso foi um teste e você não passou. Não me siga.
Ele agarrou meu braço. Eu empurrei de volta. — Não me siga, —rosnei entre os dentes. — Ou eu juro por Deus, vou pegar minha espada e fodê-lo no coração com ela.
Ele me soltou. Caminhei pelo quintal, peguei a Matadora e continuei andando até o nosso quarto, onde tranquei a porta.
Capítulo 16
Às vezes, os prazeres simples da vida são os melhores. Como um banho quente depois de uma luta suada e sangrenta. Um entorpecimento pesado penetrou em meus braços. Hugh bateu como um aríete132. Realmente sentiria meus músculos pela manhã por bloquear seus golpes, na verdade a dor já havia começado. Eu me sentia toda quebrada. Com sorte, ainda seria capaz de me movimentar amanhã.
Fiquei embaixo da água, tentando não pensar, e me concentrei puramente em lavar meu cabelo e, em seguida, arrastei uma esponja ensaboada contra meus cortes. Doeu, mas dei as boas-vindas a dor.
Andrea uma vez me disse que eu tinha um problema em processar dor emocional. Eu não conseguia lidar com ela, então a substituía por dor física: ou eu a infligia nos outros ou em mim mesma. Bem, eu tinha muita dor física agora. Se ela estivesse certa, eu deveria estar flutuando em uma nuvem de felicidade nesse momento.
Finalmente a água correu clara. Eu saí e me olhei no espelho. Os cortes de mais cedo na minha coxa e estômago se abriram. Demet era muito, muito boa em medmagia, mas eu ainda era humana e agora estava com todos os cortes dos infernos abertos. Algum tempo atrás, Doolittle tinha feito tanto esforço para me curar que algumas das minhas antigas cicatrizes haviam desaparecido. Claramente, isso criou um desequilíbrio na quantidade de cicatrizes que eu deveria ter e o Universo decidiu compensar hoje.
Meia dúzia de cortes rasos cruzava meus braços e torso. Trabalho de Hugh. Eu não deveria ter deixado ele me provocar. Voron sempre me disse que treinou Hugh para lutar, mas também para comandar e planejar. Voron me treinou para matar. Hugh estaria dirigindo um exército, levando-o para a batalha, enquanto eu era uma assassina solitária nos bastidores, abrindo caminho através da massa de pessoas até meu alvo. Em uma luta de espadas simples, eu teria uma vantagem.
Nenhum de nós usou magia. Eu ainda não sabia toda a extensão da dele, e ele ainda não sabia muito sobre a minha. Pelo menos eu não me entreguei completamente.
Alguém havia deixado ataduras na mesa de cabeceira. Provavelmente um presente de Doolittle. Eu enfaixei o pior corte, sentei na cadeira com muito cuidado—minhas coxas doíam—e caí para frente. Meu corpo todo doía. Fechei meus olhos. Era apenas dor. Isso passaria. Eu só precisava de um minuto. Ainda faltava três horas antes do meu turno com Desandra começar.
Alguém bateu. Olhei para a porta, na esperança de queimá-la com o meu olhar e explodir quem quer que estivesse do outro lado.
Toc. Toc.
— Sim?
— Por favor, posso falar com você?
Eu não reconheci a voz. Certo. Vesti uma camiseta limpa e uma calça jeans, peguei a Matadora e abri a porta. Um jovem estava no corredor, vestido com uma roupa djigit. Adolescente, quase dezoito anos. Cabelo loiro escuro, olhos castanhos. Ele endureceu, balançando para a frente na ponta dos pés, como se esperasse ser pego a qualquer momento.
— O que você quer?
— Você está procurando pelas criaturas laranjas, —ele sussurrou em um inglês fortemente acentuado.
— Sim.
— Eu vou te levar onde eles se aninham, se você me pagar. Mas temos que ir depressa e sermos silenciosos.
Arrá. — Qual o seu nome?
— Volodja.
Um nome russo, abreviação de Vladimir. — Para que lado fica?
— Há duas horas. Na montanha. Eu quero três. —Ele levantou três dedos. — Três mil dólares.
— Parece um bom negócio para mim.
— Vou esperar na cidade, na estátua. —Ele desceu as escadas.
Meu uivo no escuro tinha valido a pena. Alguém ficou chateado com o exame de sangue e agora decidiram me fazer desaparecer. A única outra parte interessada em se livrar de mim seria Lorelei, e ela não tinha motivos para lutar comigo. Ela estava ganhando.
Eles realmente achavam que eu era idiota. Pelo menos o garoto não se ofereceu para me vender uma bela propriedade à beira-mar em Nebraska133.
Tirei minha camiseta—doeu—e prendi meu sutiã. Também doeu. Coloquei a camiseta de volta, encontrei minhas botas e fui para o quarto de Doolittle. Eu finalmente encontrei o fim de uma ponta neste nó bagunçado. Se eu o puxasse da maneira certa, isso me levaria à parte culpada. Mas eu precisaria de apoio.
A porta estava escancarada e ouvi a voz da Tia B do outro lado do corredor. — E então eu disse a ele que as contas estavam ótimas, mas uma mulher tinha que ter certos padrões ... Entre, querida.
Como ela sabia? Fui muito silenciosa. Passei pela porta. Os escombros desapareceram. Um quarto limpo e arrumado me recebeu, mobiliada com novas roupas de cama, cadeiras e escrivaninhas. Doolittle estava sentado em uma cadeira de rodas. Eu fiz o meu melhor para não estremecer. Eduardo se esticava na cama à direita. George sentava-se na outra cama. Keira sentava-se no peitoril da janela, enquanto a Tia B ocupava uma cadeira. Derek estava deitado no chão lendo um livro.
Todos, exceto Doolittle e Tia B, fingiram não olhar para mim. Nós fomos atacados, nós ainda estávamos sob cerco, e os metamorfos se tornaram sombrios. Minha briga com Hugh deve ter piorado as coisas de alguma forma. Ou isso, ou todos eles também sabiam que Curran havia encontrado um novo brinquedo.
Estranho.
— Um jovem djigit parou no meu quarto, —eu disse. — O nome dele é Volodja e por três mil dólares ele me levará até as montanhas e mostrará onde vivem os metamorfos maus.
— Que sorte. —Os olhos da Tia B se iluminaram. — Você gostaria de alguma companhia para esta armadilha maravilhosa, quero dizer, aventura?
— Eu gostaria.
— Eu vou. —disse Derek.
— Não. Eu já te coloquei em problemas o suficiente da maneira como as coisas estão. —Derek e eu éramos próximos. Se Curran decidisse acabar nosso relacionamento, eu não queria dividir a lealdade do garoto maravilha. Era assim que os bandos se dividiam, e tanto Derek quanto Barabas eram leais o suficiente para sair drasticamente comigo. Era melhor começar a me distanciar deles agora.
— Eu também vou. —disse Eduardo.
— Por que você não me deixa ir em vez disso, —disse Keira. — Você mal consegue ficar de pé.
— Acho que não tem problema ele ir assim mesmo, tudo o que ele tem a fazer é vir conosco e posar, —disse a Tia B.
Eduardo cruzou os braços sobre o peito, fazendo seu bíceps gigante crescer. — O que você quer dizer com posar?
— Quer dizer que você só precisa aparecer, cruzar os braços e franzir a testa, —traduzi.
Eduardo franziu o cenho. — Eu não faço isso.
— Desse jeito, —disse Derek apontando para ele.
Eduardo percebeu que seus braços estavam cruzados e os largou. — Vão se ferrar.
— Isso resolve tudo. Eu estou indo. —Keira pulou do peitoril da janela. — Além disso, eu te devo, menino bisão.
— Pelo quê? —Eu perguntei.
— Ele se machucou tentando me salvar, —disse Keira. — Quando a coisa me prendeu, ele o derrubou e prendeu-o no chão. Foi muito heroico.
Eduardo sacudiu a cabeça.
Perfeito. Entre a irmã de Jim e a Tia B, minhas costas estariam cobertas. — Preciso checar Christopher e estarei pronta para ir.
Três minutos depois bati na porta de Barabas, com a Tia B e Keira olhando por cima do meu ombro. Barabas abriu a porta.
— Como ele está?
O rosto de Barabas assumiu uma expressão de dor. — Até agora ele vomitou e tentou mergulhar na banheira.
— Ao mesmo tempo?
— Felizmente não. Ele está de molho. A sujeira está encardida em sua pele. Você está indo a algum lugar?
Expliquei o que estava acontecendo. — Se fizermos direitinho, podemos chegar ao fundo de quem contratou o menino. A menos que seja uma chance em um milhão de que ele esteja realmente dizendo a verdade.
— Tenha cuidado, —disse Barabas.
Saímos do castelo e pegamos a estrada sinuosa da montanha abaixo. O mar brilhava como uma enorme safira. O sol brilhava e o ar cheirava a água salgada e ao leve aroma dos damascos. A beleza disso era tão surpreendente que parei e olhei.
— Devemos ir nadar, —disse Keira.
Todos sabíamos que um dia relaxante na praia não estaria acontecendo, mas era bom sonhar. — Não há sapos no mar.
— Por que eu estaria interessada em sapos?
— Jim me disse uma vez que ele não sabia nadar, a menos que houvesse sapos envolvidos. Eu assumi que ele os comeu.
— Isso é nojento, —disse Keira. — Você realmente deveria parar de ouvir meu irmão. E ele nada como um peixe, a propósito. A casa do Clã dos Gatos tem uma piscina olímpica e ele nada vários quilômetros toda vez que vai para lá. Sapos. Aquele homem nunca comeu um sapo em toda a sua vida.
Tia B riu.
Começamos a descer a estrada sinuosa. O caminho de cascalho cheirava a pó de rocha. Os densos arbustos de amora-preta formavam uma parede sólida de verde nas laterais. De repente, percebi que estava morrendo de fome. Puxei um punhado de frutos do mato e enfiei-as na minha boca. Hummm. Doce.
— Os frutos são sempre melhores colhidos diretamente dos ramos, —disse a Tia B. Ela usava um vestido amarelo brilhante com um design branco estampado, óculos escuros e um chapéu de palha. Keira usava um vestido de verão com um corpete marrom claro e uma saia larga feita de tiras de tecido turquesa, branco e marrom claro, na altura dos joelhos que a fazia parecer cinco anos mais nova. As duas pareciam estar de férias, enquanto eu, com meu rosto machucado e sexy, grandes botas, jeans e uma espada, parecia que estava indo destruir um acampamento de bandidos.
— Qual é a conexão entre você e nosso belo anfitrião? —Perguntou Tia B.
As amoras-pretas têm um sabor muito pior quando tentam voltar à sua garganta. — Uhhhh ...
— Uhhh não é uma resposta. —Keira me informou.
Andrea não deve ter contado a ela sobre Hugh, e eu não queria explicar quem era meu pai. — Nós nunca nos conhecemos, mas fomos treinados pela mesma pessoa. Agora ele trabalha para um homem muito poderoso que vai me matar se me encontrar um dia.
— Por quê? —Keira perguntou.
— Problemas de família.
— Isso explica a atração. —Disse a Tia B.
— Atração?
— Você é aquela coisa que ele não pode ter. É chamado de fruto proibido.
— Eu não sou um fruto!
— Ele pensa que você é. Mas isso é bom, eu diria que é uma boa vingança, minha querida. —Tia B sorriu. — Tenho certeza que a maneira como Megobari olhou para você fez Curran nitidamente tonto.
Ouvir seu nome era como ser queimada. — Você vai parar de se intrometer na minha vida amorosa? —Eu rosnei.
— Eu não estou me intrometendo. Estou comentando.
Argh. — Eu só quero ir para casa.
— Não até termos toda a panaceia que nos foi prometida. —A Tia B ajeitou o chapéu. — Você não tem ideia do que é perder um filho para o loupismo. É verdade que você suportou a tragédia de Julie, mas eu dei à luz aos meus bebês. Eu cuidei deles, cuidei deles desde o momento em que eram pequenos e indefesos, eu os incentivei, e me enchi de esperanças para o futuro deles. Tinha tantos sonhos para eles. Os filhos pensam que os pais são deuses. Somos o centro do universo deles, que podemos consertar qualquer coisa, que podemos protegê-los, e então um dia eles descobrem que você não pode. Eu lembro do olhar dos meus filhos antes de matá-los. Eles pensavam que foram abandonados. Que eu os traíra. Raphael não vai passar por isso. Não se eu puder evitar.
Sua voz me disse que a ferida ainda estava lá. Tinha formado uma casca ao longo dos anos, mas a Tia B ainda lamentava seus filhos mortos. Quando ela me disse que veio nessa viagem para ficar de olho em mim, era uma meia mentira. Ela tinha vindo aqui pela panaceia e faria qualquer coisa para obtê-la. O único saco que ela ganhou não seria suficiente. Pensei em Maddie na caixa de vidro. Eu não podia culpar a Tia B. Faria qualquer coisa também para poupar meus filhos desse tipo de dor.
Se eu não tivesse filhos com Curran, eu não teria que me preocupar com isso. Uau. Nem tinha certeza de onde isso veio.
— Estou feliz que este Volodja veio até você, —disse a Tia B.
— Por quê? —Minha luta deve ter causado uma impressão maior do que eu pensava.
— Porque alguns abkhazianos falam russo. Eles são vizinhos. Você é a única no nosso grupo que pode traduzir rapidamente.
E aqui eu pensei que ela estava impressionada com as minhas incríveis habilidades marciais. Ego inflado hein, Kate?
Nós andamos pelas ruas. Casas abandonadas nos olhavam com janelas vazias, conchas daquilo que um dia foram. Na parede de um prédio vazio, pouco mais do que uma carcaça de concreto e aço, alguém havia desenhado um par de asas de anjo. Esperança para um futuro melhor ou uma lembrança de alguém que morreu.
Nós nunca saberíamos.
— Essa deve ser a estátua. —Keira apontou para um djigit de bronze em um cavalo. Ela ficava no meio de uma pequena praça. Atrás tinha uma pequena cafeteria.
Tia B inalou. — Devemos ir por ali. —Ela foi direto para a cafeteria. — Ele é um metamorfo chacal. Encontrará nosso cheiro.
A cafeteria ficava à sombra de uma imensa nogueira, um prédio azul-turquesa que tinha visto dias melhores.
— Padaria, —anunciou Keira.
Não diga! Eu sorri abertamente. Em Atlanta, Tia B preferia conduzir seus negócios com um prato de cupcakes ou uma fatia de torta.
— É algo engraçado? —Perguntou Tia B.
— Nós cruzamos metade do planeta e você encontrou uma padaria.
— Eu não vejo humor nisso.
Keira riu baixinho.
— Você deveria parecer mais ameaçadora, —disse Tia B. — Você é a substituta de Eduardo.
— Sim. —Eu concordei. — Menos riso, mais cara feia.
Keira cruzou os braços e fingiu franzir o cenho.
— Nós deveríamos ter trazido o búfalo, —disse Tia B.
Entramos no café. Uma mulher mais velha, de cabelos grisalhos, sorriu para nós por trás do balcão e gritou em uma linguagem cadenciada. A Tia B apontou para algumas coisas, o dinheiro foi trocado e, de repente, estávamos sentadas à mesa com alguns doces cheios de damascos. Ficamos paradas por cerca de quinze minutos quando o garoto entrou pela porta. Ele carregava um rifle. Uma mochila estava pendurada no ombro dele. Ele viu Tia B e Keira e parou.
— Você trouxe amigas.
— Sim.
— Está bem. Trouxe o dinheiro?
— Trouxemos. —Assegurou-lhe Tia B.
— Vocês estão prontas? —Perguntou Volodja.
— Prontas, se você estiver, —disse Tia B.
A trilha íngreme fazia uma curva para o sul, longe do castelo. Arbustos de amora-preta flanqueavam o caminho, estendendo ramos espinhosos pelo cascalho e terra. Nosso guia não disse uma palavra desde que deixamos a cidade cerca de uma hora atrás. Eu fiz o meu melhor para desligar meu cérebro e me concentrar na memorização do caminho de volta. Pensar em qualquer coisa inevitavelmente levava a Curran. Eu queria esfaquear alguma coisa. Na falta disso, poderia andar por aí.
Toda essa raiva não seria útil. A fúria emocional apenas te cansa.
— Como você sabe onde os metamorfos laranjas estão aninhados? —Perguntei. Qualquer distração seria bem-vinda.
— Eu os vi. —Volodja encolheu os ombros, ajustando o rifle em seu ombro. — Não está longe agora.
Eu não podia esperar para descobrir quem puxava suas cordas.
— Vamos, querida, —disse Tia B. — Onde está seu espírito de aventura?
No meio da trilha, a onda de magia nos afogou. Nós paramos, ajustamos e seguimos em frente. Uma hora depois, a trilha nos levou até a crista da montanha. Em frente, o mar brilhava.
Atrás de nós, no baixo vale, ficava a cidade. Um penhasco alto subia para a esquerda e dentro dele havia um buraco escuro.
— Caverna. —Explicou Volodja. — Nós entraremos.
— Você primeiro.
Volodja deu um passo à frente. Os arbustos à nossa direita farfalharam. Um homem de cabelos escuros entrou em cena.
Por volta de trinta anos, com uma barba curta, ele carregava um rifle e uma adaga e usava uma versão surrada de uma roupa de djigit. Um saco estava em seu ombro com pernas de uma cabra da montanha saindo dele. Um grande cão cinza e branco saiu e sentou-se ao lado dele. Larga e musculosa, ela tinha uma densa camada de pêlo. Poderia ser algum tipo de Molosser134—parecia que alguém pegou um São Bernardo135 e lhe deu o focinho e o pêlo de um pastor alemão136.
O caçador olhou para Volodja e disse alguma coisa. O garoto respondeu.
O caçador acenou com o braço livre. Eu queria ter um tradutor universal.
— O que ele está dizendo? —Perguntei.
— Ele é ... —Volodja colocou o dedo indicador na têmpora e virou a mão para trás e para a frente.
O caçador gritou alguma coisa. O cachorro a seus pés tropeçou em silêncio. Senti falta de Grendel. Eu gostaria de tê-lo trazido. Talvez ele mordesse Hugh e Curran por mim.
Volodja acenou para ele, como se fosse um mosquito, e foi para a caverna. — Nós vamos.
— Plokhoe mesto, —o caçador gritou.
Russo. Isso eu entendi. — Ele diz que este é um lugar ruim.
Volodja girou em seu pé, seu olhar afiado. — Você fala russo?
— Falo. Também fico com muita raiva quando as pessoas tentam me enganar.
Ele levantou as mãos. — Nenhum truque. Você quer as criaturas laranjas ou não?
— Queremos. —Disse Tia B. — Lidere o caminho.
— Agulshap, —disse o caçador. — Não entre na caverna.
Agulshap não soava como uma palavra russa. — O que agulshap significa?
— Eu não sei, —disse Volodja. — Eu já falei: ele é louco.
Keira sacudiu a cabeça. — Eu não gosto disso.
Eu também não gostava.
— Vamos. —Disse a Tia B. Seu rosto ainda tinha aquele sorriso agradável, doce como açúcar, mas seus olhos eram duros. De repente, senti pena de Volodja.
Ele puxou uma tocha de sua mochila e acendeu.
A boca da caverna se aproximava a cada passo. Mais alguns segundos e nos engoliria inteira.
A caverna se estendia sem fim, alta, gigante, vasta. Degraus de pedra esculpidos na rocha viva da montanha levavam abaixo, e meus passos enviavam pequenos ecos saltando para cima e para baixo das paredes lisas.
— Pouco longe, —explicou Volodja por cima do ombro.
— Claro como lama. —Keira murmurou.
Os degraus de pedra terminaram. A única luz vinha da tocha na mão do nosso guia. Atravessamos o chão da caverna até um arco áspero esculpido na rocha. Volodja entrou. Tia B seguiu, e então eu fui, com Keira atrás de nós. Chegamos a uma câmara redonda, com cerca de nove metros de largura. Outra saída, um buraco escuro, abria para a direita.
— Nós esperamos. —Disse Volodja.
Nós ficamos na escuridão. Isso não estava me enchendo de muita confiança.
Keira tocou meu ombro. Algo estava chegando.
O garoto mergulhou para a frente, pela segunda abertura. Eu corri atrás dele e acabei indo em direção a uma grade de metal que bateu na minha cara. O segundo baque anunciou outra grade batendo no lugar sobre a nossa única saída.
Eu pressionei contra a parede, entre as duas saídas. Estávamos presas.
— Foi o que eu imaginei, —disse Keira.
Tia B suspirou.
Nós só tínhamos que descobrir se isso era armação do menino ou se alguém o contratara para fazer isso.
Alguém brilhou uma luz através da grade. — Eu tenho uma besta, —disse uma voz masculina profunda. — Flechas de prata. Dê o dinheiro.
— Eu não entendo. —disse Tia B. — Onde estão os metamorfos laranjas? Volodja?
— Não há metamorfos. —Volodja riu, um risinho nervoso. — Você dá dinheiro e você pode ir. Garota humana fica.
— Não me sinto especial.
— Você está presa com a gente. Dê o dinheiro!
— Você está errado, querido, —disse Tia B. — Nós não estamos presas aqui com você. —Seus olhos acenderam em um brilho quente de rubi. — Você está preso aqui com a gente.
O vestido feliz explodiu. Seu corpo entrou em erupção, como se alguém tivesse acionado o detonador, mas a explosão de carne rodou, controlada, entrando em uma nova forma. Um monstro apareceu no lugar de Tia B. Suas pernas poderosas, suas laterais e costas embainhadas em pele avermelhada manchada com manchas de preto. Suas costas se curvavam ligeiramente. Ela levantou os braços, as garras de dez centímetros retas, como garras prontas para rasgar, e grandes músculos rolaram sob sua pele escura, prometendo poder devastador. O monstro estalou um focinho de hiena, as mandíbulas distorcidas, grotescamente grandes, abrindo e fechando, como uma armadilha para ursos.
O vestido de Keira voou. Um metamorfo jaguar bateu na grade. A besta foi disparada, o tiro passou longe. O metal guinchou e a grade voou por mim e bateu na parede. Homens gritaram. Um corpo voou, como uma boneca de pano arremessada por uma criança furiosa.
Mantive meu lugar, ficando atenta. Havia espaço para apenas uma delas na passagem e eu só ficaria no caminho.
Tia B correu atrás de Keira, puxou um homem que lutava e o jogou contra a parede ao meu lado.
Os olhos vidrados de Volodja olharam para mim em puro pânico. Ele não tinha mudado, o que significava que provavelmente não poderia segurar a forma de guerreiro.
A mão da Tia B com garras do tamanho de garfos apertou sua garganta. Ela estalou os dentes a meio centímetro de sua carótida. Um grunhido irregular saiu de sua garganta. — Quem contratou você, menino?
— Ninguém. —Ele exclamou.
— Quem te contratou? —A Tia B o puxou e bateu a cabeça dele contra a pedra.
— Kral! Jarek Kral!
Tia B apertou. Suas garras desenhavam uma linha vermelha brilhante no queixo do garoto. — O que você deveria fazer?
— Ele quer a humana morta. —Volodja lutou em seu aperto.
— Por quê?
— Eu não sei! Não perguntei!
Tia B lançou-o para o outro lado da sala e se abaixou na abertura.
Eu me movimentei e comecei a segui-la. Algo estremeceu. O chão abriu debaixo dos meus pés e eu caí em um poço escuro abaixo.
Um segundo não parece muito tempo, mas a mente humana é uma coisa incrível. Ele pode embalar não um, mas dois pensamentos curtos no espaço de um segundo, pensamentos como ‘Oh merda e eu estou prestes a morrer’.
A rocha brilhava diante de mim enquanto eu mergulhava na vasta escuridão vazia, agachando-me no ar, tentando me preparar para o impacto.
O ar assobiava por mim.
Minhas orelhas pegaram um zumbido. Meus instintos gritavam: Água!
Eu mergulhei no mar. Era como quebrar a toda velocidade em um chão de concreto. O impacto me bateu e tudo ficou escuro.
Sem ar.
Meus olhos se abriram. Eu estava rodeada em água salgada.
Meus pulmões queimavam. Eu me empurrei para cima. Minha cabeça saiu para a superfície e puxei o ar com um gemido rouco.
O gosto era doce e por alguns momentos não pude fazer nada exceto respirar.
Sobrevivi. O impacto deve ter me tirado da consciência por alguns segundos. Meus cortes doíam. Kate Daniels, edição sal-extra-nas-feridas.
Tentei chutar. Pernas ainda funcionavam. Braços movimentavam. Verificação do corpo completa, todos os sistemas funcionando. Eu me virei.
A luminescência verde fraca vinha do musgo crescendo nas partes mais ásperas das paredes, fazendo pouco para combater a escuridão. Ainda assim, era bom o suficiente para ver. Durante a tecnologia, este lugar teria sido escuro como breu.
Obrigada, Universo, por pequenos favores.
Flutuei nas minhas costas, tentando olhar em volta. Uma enorme caverna se erguia ao meu redor, o chão inundado de água do mar. Você poderia colocar metade de um campo de futebol dentro da caverna.
Eu me virei e nadei ao longo da parede. Eu nadava bem, mas minhas botas estavam dificultando. Elas pesavam em meus pés como dois tijolos.
Não havia como subir. As paredes eram íngremes. Uma pequena saliência de pedra projetava-se de um lado, com apenas dez centímetro de largura. Mesmo que eu pudesse subir, eu não poderia escalar essa altura. Muito alto, um buraco negro perfurava o teto. Eu devo ter passado por ele. Alguns metros para a esquerda e eu teria caído contra um chão de pedra.
Quando eu saísse disso, iria encontrar Volodja e seus amigos e agradecer por essa divertida excursão. Assumindo que sobrou alguma coisa depois que Tia B e Keira terminaram com eles.
Como diabos eu ia sair daqui?
Algo balançou na água na minha frente, um saco escuro. Eu me apressei. Um saco de lona, à prova d'água.
Humm.
O saco se mexeu.
Nadei a distância de dois metros de água entre mim e o saco com um único impulso. Claramente tive muita emoção por um dia.
O saco se torceu. Uma protuberância esticou o tecido de um lado.
Talvez alguém tenha colocado um gato em uma sacola e jogado aqui. Claro, se a minha experiência fosse alguma coisa, o saco conteria uma sanguessuga gigantesca que tentaria imediatamente me devorar. Então, novamente, considerando a bagunça atual, a sanguessuga poderia não me ver como um deleite saboroso. Não, não há inteligência por aqui.
O saco se torceu.
Sem coragem, sem glória. Nadei até a saco, puxei minha faca de arremesso e cortei a corda enrolada no topo. Aqui vai. Eu abri o saco e olhei para ele.
Um rosto humano olhava para mim com olhos brilhantes. Pertencia a um homem na faixa dos quarenta ou cinquenta anos, com barba grisalha curta, nariz de morcego e sobrancelhas grossas. Não havia nada excepcionalmente extraordinário, exceto pelo fato de ser do tamanho de um gato.
Eu já vi coisas loucas, mas isso era a cereja do bolo. Por um segundo meu cérebro parou, tentando processar o que meus olhos viam.
O dono do rosto saiu da bolsa na água e afundou como uma pedra.
Ele afundou. Porcaria.
Mergulhei e agarrei o corpo agitado. Ele não poderia ter mais de quarenta e cinco centímetros de altura.
O peso morto se batia em minhas mãos. Pelo menos treze quilos. Eu quase o deixei cair novamente. Nadei, arrastando-o para cima.
Nós chegamos a superfície.
Eu ofeguei por ar. Um pequeno punho disparou em minha direção. A dor explodiu no meu queixo. Bom soco. Eu balancei a cabeça, arrastei o homem que lutava até a borda de pedra e o joguei sobre ela. Ele subiu.
Nós nos encaramos. Ele usava uma túnica cor de bronze com um colarinho bordado, calça marrom escura e pequenas botas de montaria feitas de couro.
O que no mundo esse ser poderia montar? Um spitz137?
O homem piscou, me estudando.
Consegui encontrar um hobbit138 nas montanhas do Cáucaso. Eu me perguntava o que ele faria se eu perguntasse a ele sobre o segundo café da manhã139.
O homem abriu a boca. Uma série de palavras saiu dela.
— Eu não entendo, —eu disse em inglês.
Ele balançou sua cabeça.
— Ne ponimayu140.
Outro balançar negando. Russo não funcionou também.
O homem apontou para a esquerda, agitando os braços, frenético. Eu virei.
Algo deslizava pela água na parede oposta. Algo longo e sinuoso que deixava ondulações em seu rastro.
Segurei a faca na minha mão e pressionei meu corpo contra a parede, tão perto da pedra quanto pude.
A criatura deslizou para dentro da água. A superfície foi suavizada.
Outra onda, mais perto. Água suave novamente.
As notas musicais da abertura de um antigo filme, Tubarão, rolaram pela minha cabeça141. Obrigada. Apenas o que eu precisava.
Se eu fosse alguma coisa longa e sinuosa com dentes grandes e estivesse caçando algum almoço, eu nadaria debaixo da minha vítima.
Eu respirei fundo e mergulhei.
Um animal verde-prateado corria em minha direção através da água límpida. Quatro metros de comprimento, tão grosso quanto a minha coxa, com o corpo de uma enguia armado com uma crista de pontas compridas, nadava direto para mim, seus olhos grandes e vazios, como duas moedas amarelas contra as escamas prateadas.
A serpente abriu a boca, um grande buraco profundo cravejado de uma floresta de dentes finos como agulhas.
Eu pressionei contra a parede, meus pés contra a rocha.
A serpente se levantou e atacou. Usei a parede e me impulsionei, agarrei seu pescoço, abracei-o para mim com cada gota de força que tinha, e enfiei minha faca em suas guelras. As pontas afiadas cortaram meus dedos. A serpente se enrolou ao meu redor, seu corpo era um músculo único e poderoso. Arrastei a lâmina, rasgando as frágeis membranas das brânquias.
A serpente se contorceu, agitando a água. Eu me agarrei a ela. Se a soltasse eu iria morrer.
Meus pulmões imploravam por ar. Eu a esfaqueei de novo e de novo, tentando causar danos suficientes.
A serpente se contorcia, incrivelmente forte.
Pontos pretos nadaram diante dos meus olhos. Ar. Agora.
Eu a soltei e me empurrei para cima.
A serpente se lançou aos meus pés. Os dentes apertaram minha bota, mas não penetraram na sola grossa. Eu empurrei, tentando me soltar. Podia ver o teto brilhante onde o ar encontrava a água bem acima de mim. Outro pé. Vamos. Eu bati meu outro pé na cabeça da serpente.
Os dentes soltaram. Subir e puxei o ar.
O homem minúsculo na borda gritou.
A serpente saiu para a superfície ao meu lado. Eu a cortei, tentando cortá-lo ao meio. A serpente apertou meu pé novamente. Dentes morderam meu tornozelo e me puxaram para baixo.
Chutei o mais forte que pude, tentando nadar de volta. Se isso me arrastasse para baixo, estaria acabada. Magia era minha única chance. Eu puxei para mim. Não havia muito lá—uma onda mágica fraca.
A serpente puxou, me arrastando para cada vez mais fundo sob a água. Chutei sua cabeça. Uma vez. Duas vezes ...
A serpente soltou, virou e se afastou um pouco de mim. Nadei como se nunca tivesse nadado antes na minha vida. Meus músculos ameaçavam arrancar dos meus ossos.
Eu saí na superfície. Precisava de uma palavra de poder. Poderia comandá-lo para morrer, mas Ud, a palavra de poder ‘Morra’, geralmente falhava, e quando não funcionava, a reação me nocauteava de dor. Quanto mais forte a magia, menos dor, mas essa onda mágica era mais fraca que a maioria. A palavra da morte me machucaria como um filho da puta.
Eu não podia me dar ao luxo de ficar nocauteada neste exato momento ou terminaria o dia como comida de peixe. A única outra palavra de poder que eu tinha era ajoelhar. A serpente não tinha pernas.
A serpente se ergueu, subindo do mar, com a boca aberta. Um momento e iria bater em mim, como um aríete.
O homenzinho cuspiu uma única palavra de poder. — Aarh!
Uma torrente de magia se espatifou na serpente. Ela congelou, completamente imóvel.
Eu me lancei e enfiei a faca em sua espinha. A serpente estremeceu. Serrei através de sua carne, quase cortando em duas.
A serpente se sacudiu e caiu para trás. Eu chutei para longe.
A criatura convulsionou, transformando o mar em espuma. Eu nadei para longe, para a borda, ofegante. O homenzinho caiu contra a pedra. Um pequeno gotejamento de cuspe sangrento escorregava de sua boca.
Ele usou uma palavra de poder e funcionou. Obrigada. Obrigada, seja lá quem você for no andar de cima.
Eu segurei a borda. O homem pequeno se inclinou e segurou minha mão, me ajudando a segurar.
A serpente se agitou e se debateu, até que, finalmente, um minuto depois, ficou imóvel na água.
O homem acariciou minha mão, limpou o sangue de seus lábios e apontou para cima. Acima de nós, cerca de dois metros e meio acima da plataforma de pedra, um buraco estreito dividia a parede, com pouco menos de trinta centímetros de diâmetro. Não era grande o suficiente para mim.
O homem segurou as mãos juntas, como se estivesse rezando, e olhou para mim.
— Tudo bem. —Eu disse a ele. Nenhuma razão para nós dois ficarmos presos.
Eu me movi ao longo da borda até o ponto mais largo. Um total de quinze centímetros de espaço para trabalhar. Oh garoto. Levei quatro tentativas para me arrastar para cima—meus pés continuavam escorregando—mas finalmente consegui e abracei a parede.
O homem agarrou minha camisa e se levantou. Pés pisaram nos meus ombros. Esqueça treze quilos, ele tinha mais de vinte. Deveria pesar um terço disso pelo seu tamanho. Talvez fosse feito de pedras.
O homem ficou em meus ombros. Eu fechei minhas mãos e levantei meus braços contra a parede. Ele pisou em minhas palmas e deu um impulso.
Eu escorreguei e caí de costas na água. Saí para a superfície bem a tempo de vê-lo entrar no buraco e desaparecer.
Eu estava sozinha. Apenas eu e quatro metros de sushi fresco batendo nas ondas. Estava muito cansada. Meus braços pareciam algodão molhado.
Talvez tenha alucinado todo esse episódio do hobbit. Devo ter atingido a água com força, acabei com uma concussão mental e comecei a ver pequenos homens mágicos usando botas de montaria.
Eu me forcei a nadar. Flutuar na água não iria dar certo por muito tempo, estava exausta demais para me manter flutuando. Outra olhada ao redor da caverna confirmou o que eu já sabia—sem escapatória. Esperar aqui para ser resgatada era uma opção sem esperanças. Mesmo que Tia B e Keira conseguissem me encontrar, eu teria que passar horas flutuando a espera que elas conseguissem uma corda grande o suficiente para me tirar. As chances do homenzinho retornar com um destacamento de cavalaria de spitz para me libertar eram ainda mais escassas.
A serpente tinha que ter vindo de algum lugar. Simplesmente não havia peixes suficientes nessa pequena caverna para mantê-la viva e, a menos que ela se alimentasse de uma dieta constante de hobbits caucasianos, ela teria que se mover livremente entre a caverna e o mar.
Nadei até a parede onde a vi pela primeira vez e mergulhei profundamente através da água cristalina. Quatro metros para baixo, a montanha terminava e um túnel de três metros de largura se estendia diante de mim, conduzindo para fora. Eu não fazia ideia de quanto tempo seria a travessia.
Mergulhar em um túnel submarino de comprimento desconhecido, possivelmente se afogando, ou ficar na caverna até que eu me desgastasse, possivelmente me afogando? Às vezes a vida simplesmente não oferecia boas escolhas.
Respirei fundo, tentando saturar meus pulmões com oxigênio, e mergulhei embaixo. O túnel rolou na minha frente, estreitando-se até quase dois metros de largura. Eu continuei, chutando as paredes. Certa vez ouvi que era uma boa ideia não pensar em segurar a respiração enquanto a segurava. Sim. Isso é como não olhar para baixo ao atravessar um penhasco. Quando alguém diz: ‘Não olhe para baixo’, você vai olhar.
As paredes estavam se fechando em mim.
E se eu nadasse direto para um ninho de serpentes do mar?
Meu coração martelou no meu peito. Eu fiquei sem ar. Eu nadei, desesperada, lutando contra a água pela minha vida. O oceano estava ficando escuro. Eu estava me afogando.
As paredes do túnel se abriram abruptamente e, acima de mim, o azul translúcido se espalhava. Eu me debati, indo direto para cima.
Meu rosto rompeu a superfície. Um lindo céu brilhante se estendia acima. Puxei o ar. Oh uau. Deitei de costas por um longo segundo, respirando. Não estava pronta para morrer. Ainda não.
Flutuar na água era adorável e tudo, mas se mais serpentes do mar estivessem por perto, eu teria que dar o fora da água. Me concentrei. Estava em mar aberto. A costa—um sólido penhasco vertical—se elevava diante de mim. A montanha era quase reta. Escalá-la agora estava além de mim.
Me virei na água. Um vasto mar índigo se estendia em torno de mim, um campo constante de azul, exceto por uma pequena ilha a cerca de vinte e cinco metros de distância. Com apenas seis metros de largura, era mais uma rocha do que uma ilha, mas agora mesmo a ilha nanica serviria.
Nadei para ela. A água morna, cristalina, deslizava contra a minha pele, acariciando-me suavemente. Estava tão feliz por estar viva.
Cheguei à rocha, as paredes cravejadas de mexilhões, subi e aterrissei minha bunda nela. Terra firme. Terreno sólido lindo, maravilhoso e imóvel. Eu te amo ilha.
Deitei de costas. Provavelmente poderia encontrar meu caminho para a cidade uma vez que eu descansasse. Só teria que me mover ao longo da costa até chegar à civilização, mas agora nadar não era uma opção. Sair dessa pedra não parecia uma boa ideia. Poderia sentar aqui nesta pequena ilha e pensar sobre as escolhas que resultaram a minha chegada até aqui, a este lugar, quase afogada, exausta, com sangramento no tornozelo, e uma possível concussão que causou alucinações sobre hobbit.
O sol quente aquecia minha pele. Eu me virei de barriga para baixo, descansei minha testa no meu braço para evitar que meu rosto ficasse cozido e fechei os olhos. Minha mente imaginou um monstro escamado saindo do mar para me morder. Empurrei o pensamento de lado. Eu estava segura o suficiente aqui e estava cansada demais para me mexer.
— Aaaay!
Eu me sentei em linha reta. No Oeste, o sol estava rolando em direção ao mar, o céu adquirindo um tom alaranjado pálido. Dormi até a noite. Todos os meus dedos dos pés e das mãos pareciam ainda estar lá. Nenhum monstro saíra do mar e mordiscou qualquer dedo. Meu rosto não doía também. Minha pele parecia bronzeada mesmo no inverno e não queimava com facilidade, mas eu consegui queimá-la algumas vezes na vida e não me importei com a experiência.
— Aaay! —Um homem gritando.
Eu virei. Um barco se aproximou de mim. O caçador que eu conheci apoiou-se nos remos, seu cão peludo esperando ao lado dele. No nariz do barco, o homem pequeno acenava com os braços para mim.
— Viemos para salvá-la, —o caçador gritou em russo acentuado.
— Obrigada!
— Parece que você se salvou. —O caçador diminuiu a velocidade do barco e bateu suavemente contra a rocha. Eu subi a bordo.
O homenzinho sorriu para mim.
— Olá. —disse o caçador.
— Olá.
— Temos uma decisão importante a tomar. —Disse o caçador. — A cidade é para lá. —Ele apontou para o norte. — Duas horas e meia. Minha casa e jantar é para lá. —Ele apontou para o nordeste. — Uma hora. Eu vou te levar de qualquer maneira, mas vou ser sincero: a noite está chegando. Não é bom viajar no escuro enquanto a magia está no comando. Montanhas não são seguras.
Duas horas e meia até o castelo significava que ele teria de fazer uma viagem de volta no escuro sozinho ou ficar em algum lugar da cidade. Seu tom de voz me disse que ele não gostava muito da cidade. Se alguma estranha besta da montanha o comesse no caminho de volta, eu não seria capaz de viver comigo mesma. O castelo e todos dentro teriam apenas que sobreviver sem mim por mais doze horas.
— Sua casa e jantar, por favor.
— Boa escolha.
O nome do caçador era Astamur. Sua cadela, que acabou por ser da raça pastor caucasiano142, chamava-se Gunda, em homenagem a uma princesa mítica com muitos irmãos heróis mágicos. De acordo com Astamur, o homenzinho não nos daria o nome dele porque temia que isso nos desse poder sobre ele, mas o tipo dele era chamado de Atsany143, e eles não se importam de serem chamados assim.
— Eles vivem nas montanhas, —explicou Astamur, enquanto o barco deslizava pela costa. — Eles não gostam de ser vistos, mas eu resgatei um dos jovens deles uma vez. Então não se importam tanto comigo. Eles são um povo muito antigo. Estiveram aqui há milhares de anos. Deixaram suas casas em todo o lugar. Agora estão voltando.
— Como sobreviveram? —Eu ofereci minha mão para Gunda. Ela cheirou meus dedos, me olhou com uma expressão muito séria, e cutucou minha mão com o nariz por um carinho. Eu a acariciei. Realmente sentia falta do meu poodle de guarda.
Astamur encolheu os ombros. — Os Atsanys dormiram. Alguns dizem que se transformaram em pedras e voltaram à vida quando a magia retornou. Eles não falam o que aconteceu realmente.
— Como ele acabou no saco?
Astamur perguntou a Atsany em seu idioma. O homenzinho cruzou os braços sobre o peito e murmurou alguma coisa.
— Ele diz que os gyzmals144 o pegaram.
— Gyzmals?
Astamur mostrou os dentes para mim. — Homens-Chacais. É má sorte matar um Atsany, então eles o colocaram em uma sacola e o jogaram na água.
Volodja e seus colegas metamorfos. — Não é uma turma muito inteligente. Eles tentaram nos roubar.
— Quando a magia veio pela primeira vez, algumas pessoas se transformaram em gyzmals. Histórias disseram que os gyzmals eram maus. As pessoas estavam com medo. Quando as pessoas ficam com medo, coisas ruins acontecem. Muitos gyzmals foram mortos. Então Megobari veio. Agora os gyzmals dirigem a cidade, fazem o que querem. Ninguém pode dizer nada. Mas roubar pessoas, isso está indo longe demais. O garoto que te levou até a caverna tem uma mãe na cidade. Eu vou contar a ela sobre isso. Ela cuidará dele. —Astamur sacudiu a cabeça para mim. — Eu tentei te dizer: lugar ruim. É aí que Agulshap vive. O dragão da água.
Muitas de suas palavras começavam com letra A. — Não vive mais.
As sobrancelhas de Astamur se juntaram. Ele disse algo para Atsany. O homenzinho assentiu.
Astamur riu, sua risada profunda pairando acima da água. — Eu pensei que estava salvando uma garota bonita. Estou salvando uma guerreira! Nós deveríamos ter uma festa. Vamos celebrar.
Ele pousou o barco e eu o ajudei a arrastá-lo para terra. Subimos a montanha por cerca de uma hora, até que a trilha nos levou a um vale. Montanhas rolavam na distância e entre elas havia um pasto verde-esmeralda. Uma pequena e robusta casa de pedra se escondia na grama e, a poucos metros de distância, um bando de ovelhas com lã cinza encaracoladas baliam no amplo recinto.
— Pensei que você fosse um caçador.
— Eu? Não, eu sou apenas um pastor. Há um banheiro lá dentro. Fique à vontade. Minha casa é sua casa.
Passei pela porta. Dentro da cabana estava claro e limpo, com belas paredes de pedra e um piso de madeira. Tapetes turcos coloridos pendurados nas paredes. Uma pequena cozinha ficava à direita com um velho fogão elétrico.
Deve haver um gerador em algum lugar. Caminhei pela sala de estar, passando por um confortável sofá coberto por um manto branco e macio, continuei andando até o fundo da casa onde encontrei um pequeno banheiro com vaso sanitário, chuveiro e pia. Eu abri a torneira. A água espirrou na bacia de metal. Água encanada correndo por todo o caminho até aqui. Astamur estava vivendo bem.
Usei o banheiro e lavei meu rosto e minhas mãos. Quando saí, Astamur havia acendido uma fogueira em um grande buraco de pedra atrás da casa.
— Vamos cozinhar com fogo, —anunciou Astamur. — Jantar tradicional da montanha.
Atsany entrou na casa e voltou com uma pilha de cobertores. Eu ajudei a espalhá-los no chão.
Astamur tirou uma panela grande cheia de pedaços de cebola, carne e romã em um pouco de molho e começou a enfiá-los em grandes espetinhos.
Eu peguei o aroma do molho, um toque de vinagre e pimenta. Minha boca ficou molhada. De repente, percebi que estava morrendo de fome.
Astamur pôs os espetos acima do fogo e foi lavar-se. O aroma de madeira fumegante misturado com o cheiro de carne chiando sobre o fogo. O céu lentamente se tornou alaranjado e mais vermelho no Oeste, enquanto no Leste, acima das montanhas, era um roxo quase cristalino, da cor de uma ametista.
Astamur me ofereceu um espeto. Eu mordi a carne. A carne macia praticamente derretia na minha boca. Isso era o paraíso.
— Bom? —Astamur perguntou com preocupação.
— Hum-hum. —Eu disse a ele, tentando mastigar e falar ao mesmo tempo. — Delicioso. O melhor que eu já comi.
Atsany se recostou e riu.
O pastor sorriu largamente e me entregou uma garrafa de vinho. — Caseiro.
Eu tomei um gole. O vinho era doce, refrescante e surpreendentemente delicado.
— Então você mora aqui sozinho? —Eu perguntei.
Astamur assentiu. — Eu gosto daqui. Tenho meu rebanho. Tenho minha cadela. Tenho uma fogueira, um córrego cristalino da montanha e as montanhas. Eu vivo como um rei.
Atsany disse alguma coisa. Astamur encolheu os ombros. — Castelos são para governantes. Reis vêm e vão. Alguém tem que ser o pastor.
— Você sente falta de estar com outras pessoas na cidade? Deve se sentir sozinho aqui. —Eu não sentiria falta deles. Iria facilmente construir uma casa na montanha e viveria sozinha. Sem metamorfos. Sem mães de coração partido. Sem ‘Sim, Consorte’, ‘Por favor, Consorte’, ‘Ajude-nos, Consorte’. Agora, isso soava como pura felicidade.
Astamur sorriu. — Lá nas cidades as pessoas lutam. Eu lutei por um tempo até me cansar disso.
Astamur levantou a perna da calça. Uma cicatriz feia perfurava sua panturrilha. Parecia ser golpe de faca ou um golpe de espada.
— Russos.
Ele balançou as sobrancelhas para mim e tirou a camisa do ombro, expondo uma velha ferida de bala no peito. — Georgianos. —Ele riu.
Atsany revirou os olhos.
— Ele entende o que você diz? —Perguntei.
— Entende. Por causa de seu próprio tipo de magia. —Respondeu Astamur. — Se não fosse por suprimentos, eu nunca voltaria para a cidade. Mas um homem tem que fazer o que um homem precisa fazer. Difícil viver como um rei sem papel higiênico.
Nós terminamos de comer. Atsany pegou um cachimbo e disse algo com uma expressão solene.
— Ele diz que tem uma dívida com você. Ele quer saber o que você quer.
— Não, diga a ele nenhuma dívida. Ele não me deve nada.
As sobrancelhas grossas de Atsany se juntaram. Ele pegou o cachimbo e falou comigo em uma voz muito brava, pontuando suas palavras apontando o cachimbo para mim. Eu estava claramente em uma discussão muito séria. Infelizmente para ele, ele mal tinha meio metro de altura. Mordi o lábio inferior tentando não rir.
— Você quer uma versão curta ou longa? —Disse Astamur.
— Curta.
— Você salvou a vida dele, ele deve a você, então deve deixá-lo pagar de volta. Agora o que vou lhe dizer é um conselho meu. Não pagar a dívida a você fará com que ele fique muito infeliz em saber que ele deve a alguém. Então o que você quer? Você quer que ele lhe mostre onde há riquezas? Você quer que um homem se apaixone por você?
Se apenas o amor fosse assim tão fácil. Suspirei. — Não, eu não quero riquezas e tenho um homem, obrigada. Ele não é exatamente um homem. E eu não tenho mais certeza se ele é exatamente meu, mas isso não importa agora.
Astamur traduziu. — Então o que você quer?
— Nada.
— Tem que haver alguma coisa.
Bem. — Pergunte se ele pode compartilhar a palavra de poder comigo.
Astamur traduziu.
Atsany congelou e disse alguma coisa, as palavras vindo rápido como pedras caindo da montanha.
— Ele diz que pode matar você.
— Diga a ele que eu já tenho algumas palavras de poder, então provavelmente não vou morrer.
— Provavelmente? —Astamur levantou as sobrancelhas.
— Uma chance muito pequena.
Atsany suspirou.
— Ele diz que irá compartilhar, mas eu não posso olhar. Vou checar as ovelhas. —Astamur se levantou e foi em direção ao pasto. — Tente não morrer.
— Farei o meu melhor.
Atsany se inclinou para a frente, pegou um espeto e escreveu algo no chão. Eu olhei.
Uma avalanche de agonia me afogou, explodindo em um turbilhão de linhas brilhantes. Eu rolei para dentro, cada vez doendo mais e mais, como se minha mente estivesse sendo separada, raspada com uma lâmina de barbear fantasma, uma pequena camada excruciante de cada vez. Entrei na cascata de dor, cada vez mais rápido, tentando desesperadamente me segurar na mente.
Uma palavra surgiu do brilho. Eu tinha que reivindicá-la, ou ela me mataria.
— Aarh. Pare.
A dor desapareceu. Lentamente, o mundo retornou pouco a pouco: a grama verde, o cheiro de fumaça, os ruídos distantes das ovelhas, e Atsany limpando a terra com o pé. Eu fiz isso. Mais uma vez, eu fiz isso.
— Você não morreu, —disse Astamur, aproximando-se. — Estamos ambos muito felizes.
Atsany sorriu e disse alguma coisa.
— Ele quer que eu diga que você é gentil. Ele está feliz que você tenha a palavra. Ajudará você no castelo com todos aqueles lamassu. Ele não sabe por que você está lá de qualquer maneira. Você não sabe que eles comem pessoas?
Meu cérebro parou.
— Ele acha que temos lamassu no castelo?
— Ele diz que tem. Diz que viu um deles levar um corpo e depois comê-lo.
— Algo está matando pessoas no castelo, —eu disse. — Mas vi fotos das estátuas de lamassu. Eles têm pêlos e rostos humanos.
Atsany agitou seu cachimbo ao redor.
— Ele diz que é, qual é a palavra ... alegoria. Não há animais com cabeças humanas, isso é ridículo.
Olha quem está falando. Um homem mágico de cinquenta centímetros de altura em botas de montaria. Metamorfos chacais e dragões do mar está tudo bem existir, mas animais com rostos humanos são ridículos. Está bem então. Fico feliz que esclarecemos tudo.
Atsany levantou-se, caminhou alguns metros para a grama e começou a andar, colocando um pé na frente do outro, como se estivesse andando numa corda bamba. Ele virou-se bruscamente, deu cinco passos, virou-se novamente, desenhando um padrão complexo com seus passos.
— Os Atsanys têm memórias antigas. Observe com cuidado, —Astamur disse. — Este é um presente raro. Muitas pessoas nunca verão isso em sua vida.
O pequeno homem continuou. Um arrepio percorreu a grama como se estivesse abalado por asas invisíveis. As folhas de grama ficaram retas no rastro de Atsany. Uma imagem fraca se formou sobre a grama, semi translúcida, movendo-se como uma miragem. Uma vasta cidade estava rodeada por altas paredes texturizadas. Duas enormes estátuas de lamassu se estendiam ao longo da muralha da cidade, de frente para um portão em arco, e outras duas, menores, guardavam seus lados. Dentro dos portões, uma torre alta e estreita subia, tão alta que eu tive que levantar a cabeça para ver o topo. Era de manhã cedo. O sol ainda não havia se levantado, mas o calor já havia começado seu avanço. Eu senti um cheiro de açafrão, fumaça e umidade no ar—deve ter havido um rio próximo. Em algum lugar um cachorro latiu. Era como se uma fresta na janela no tempo tivesse sido aberta.
Este era o mundo do meu pai.
Uma coluna de fumaça subiu de uma das torres. Um homem com um longo manto laranja saiu dos portões, seguido por dois outros. Todos os três tinham longas barbas bem cortadas e chapéus cônicos, e cada um carregava uma jarra de ouro com um bico largo.
Um uivo distante rolou pela manhã. A imagem virou e vi um bando de lobos correndo com força pela planície. Cinza claro, com pernas longas e orelhas grandes, eles eram grandes demais para serem lobos normais.
Os portões se fecharam e o bando parou. Os lobos tremeram, seus corpos se contorceram e homens se levantaram em seu lugar. O líder, um homem careca mais velho, deu um passo à frente. O homem de barba disse alguma coisa e entregou-lhe o jarro. O metamorfo lobo bebeu direto da bica e passou adiante. Os jarros fizeram as rondas até que todo metamorfo tivesse bebido, e o bando devolveu os jarros aos homens barbados.
Os homens de robe se afastaram e dois soldados saíram do portão, vestindo armadura lamelares145 por cima de kilts146. Eles arrastaram um homem atado pelas mãos e tornozelos, largaram-no no chão e recuaram.
O homem se enrolou em uma bola, balbuciando em puro terror.
Os metamorfos ficaram furiosos. Lábios lupinos arreganhavam as presas e o bando rasgou o homem. Ele gritou, uivando, e eles o rasgaram em pedaços, rosnando e jogando sangue na terra. Ácido subiu no meu estômago. Eu desviei o olhar. Eu poderia matar um homem ou uma mulher em uma briga. Mas isso me deixou nauseada.
Finalmente ele parou de gritar. Eu olhei para cima e vi Astamur me observando. Ele acenou com a cabeça para a miragem.
— Você precisa prestar atenção nisso.
Eu olhei. A ruína sangrenta do corpo do homem jazia perto dos portões. Os lobos sentaram-se, como se esperassem por algo.
Um minuto se passou. Outro.
O corpo do alfa se abriu. Ele cresceu, a carne e osso em espiral. Asas saíram de seus ombros.
Escamas alaranjadas cobriram seu corpo. Os ossos de seu crânio se deslocaram, apoiando enormes mandíbulas felinas. O alfa rugiu.
Puta merda! Doolittle estava certo.
Um por um os lobos se transformaram. O líder correu pelos portões e entrou na torre. O resto o seguiu como se fossem um só. Um momento e o alfa saltou do topo da torre, espalhando suas enormes asas. Ele descia e subia e seu bando deslizava atrás dele.
Atsany parou. A miragem desapareceu.
O homenzinho começou a falar, parando para a tradução de Astamur. — Há muito tempo, havia um reino de Assur além das montanhas ao sul. O reino tinha muitos magos e seus exércitos se perderam em muitas conquistas, então os magos fizeram os lamassus. Eles usaram tribos de gyzmals e os modificaram com magia. É por isso que existem muitos tipos diferentes de lamassu: alguns têm corpos de touro, alguns têm de leão, outros têm de lobo. Eles escolheram touros e leões para suas estátuas, porque eram os maiores. Quando não eram necessários, os lamassu eram como gyzmals normais, mas quando uma cidade estava em perigo, os magos alimentavam os lamassu de carne humana, e então eles cresciam fortes e viciosos. Eles ganhariam asas e dentes terríveis, e então cairiam sobre o inimigo e os devorariam.
Eu nunca ouvi ou li nada remotamente assim, mas só porque eu nunca ouvi falar disso, não tornava isso impossível.
— As estátuas são um aviso. Eles querem dizer ‘Esta é uma cidade protegida por lamassu’. As cabeças humanas mostram que são humanos e animais, e as cinco pernas mostram que nem sempre são o que parecem. Nós conhecemos lamassu há muito tempo e ficamos longe deles. Nem todos os lamassu são maus, mas aqueles que escolhem comer carne humana são.
Se ele estivesse certo, qualquer um dos bandos no castelo poderia ser lamassu. — Então, como você pode dizer se um metamorfo é um lamassu?
Atsany encolheu os ombros. — Alimente-o com carne humana, —traduziu o pastor.
Duh. Faça uma pergunta idiota ... — Existe alguma outra maneira?
— Não.
— Eles têm algum tipo de fraqueza? Qualquer coisa especial?
Astamur suspirou. — Ele diz que eles não gostam de prata.
Eu devo ter parecido desesperada, porque Atsany veio e acariciou minha mão como se dissesse ‘vai ficar tudo bem.’
Suspirei. — Posso ter um pouco mais de vinho?
O céu ficou escuro. Deitei no cobertor observando as estrelas brilhando como diamantes. A lua brilhava, espalhando véus de luz etérea sobre as montanhas. Talvez fosse minha imaginação, mas a noite parecia mais brilhante aqui. Talvez as montanhas nos trouxessem mais perto da lua.
Uma calma suave veio sobre mim. O castelo e a tensão de estar lá tinham me desgastado, e agora eu não me importava nem um pouco com Curran, Hugh ou Roland. As paredes pressurizadas que estavam em mim enquanto eu estava lá caíram. Eu só queria ficar aqui, deitar no meu cobertor e ser livre.
Talvez se tivesse sorte, Hugh e Curran fugiriam juntos e levariam Lorelei com eles enquanto eu estivesse fora.
Eu provavelmente voltaria de manhã. Mas agora simplesmente não queria, e a ideia de fugir era tão doce que eu tinha medo de sucumbir a ideia. Poderia desaparecer nessas montanhas e viver uma vida simples: caçar, pescar, cultivar árvores frutíferas e não ter que se preocupar com nada.
Atsany nos contou grandes histórias de seu povo, de gigantes e dragões, de grandes heróis—Nartach147—e de cavalos alados. Astamur traduzia baixinho, sentado encostado em um travesseiro.
— ... o grande gigante Adau encontrou um estranho rebanho de cavalos em seu pasto. Ele cruzou os braços enormes e berrou. ‘De quem são estes cavalos? Eles se parecem com os cavalos do nartach, mas o nartach não ousaria ...’ —Astamur ficou em silêncio. Atsany piscou e cutucou a bota do pastor com seu cachimbo. Eu me inclinei. Astamur estava olhando para a montanha, sua mandíbula aberta.
Eu virei.
Uma enorme fera corria ao longo do ápice da montanha. Enorme, pelo menos, trezentos quilos, a criatura cobria a distância em grandes saltos. O luar traçou sua juba cinza que deslizava para fora dos grossos cordões de seus músculos. Ele não era besta nem homem, mas uma estranha mistura de quatro pernas dos dois, construída para correr apesar de seu tamanho.
Como diabos ele me encontrou?
Atsany pulou para cima e para baixo, agitando seu cachimbo. Sem tirar o olhar da fera, Astamur pegou o rifle. — Um demônio?
— Não, não é um demônio. —Bem que eu preferia que fosse um. — Esse é meu companheiro.
Atsany e o pastor se viraram para olhar para mim.
— Companheiro? —Disse Astamur.
Curran nos viu. Ele parou em um penhasco de pedra e rugiu. A declaração bruta de força rachou as montanhas, rolando pelos penhascos como um deslizamento de pedras.
— Sim. Não se preocupem. Ele é inofensivo.
Curran atacou a montanha abaixo. A maioria dos metamorfos, com exceção dos lamassu, tinha duas formas, humana e animal. Os mais habilidosos deles podiam segurar uma terceira, uma forma de guerreiro, um híbrido vertical e monstruoso dos dois projetado para infligir dano máximo. Curran tinha um quarto, um híbrido mais próximo do leão do que de um humano.
Eu só vi isso uma vez antes, quando Saiman o irritou e Curran perseguiu Saiman e a mim pela cidade. Foi a noite em que fizemos amor pela primeira vez.
Se ele achava que isso mudaria alguma coisa entre nós, ficaria seriamente desapontado.
A gigantesca besta leonina galopou montanha abaixo e atravessou a grama, vindo direto para nós. O luar que se derramava do céu iluminava seu corpo, destacando as listras escuras que atravessavam o pêlo cinzento.
Vinte metros. Quinze. Dez.
Atsany e Astamur congelaram, rígidos.
Cinco.
O leão colossal pulou e caiu a um passo de mim, a juba escura balançando. O impacto do seu salto enviou faíscas voando do fogo. Seus olhos queimavam com ouro derretido. A poderosa boca felina se abriu, mostrando presas terríveis do tamanho da minha mão. Curran rosnou.
Eu golpeei-o no nariz. — Pare com isso! Você está assustando as pessoas que me resgataram.
O leão cinza se transformou em uma forma humana. Curran ergueu as mãos como se estivesse esmagando uma pedra invisível. — Aaaaaaaaa!
Certo.
Ele agarrou a borda de uma grande pedra saindo da grama. Músculos se flexionaram em seu corpo nu. Arrancou a pedra do chão. A rocha de um metro e vinte de comprimento tinha que pesar centenas de quilos—seus pés afundaram na grama. Curran rosnou e atirou a pedra contra a montanha. A pedra voou, bateu como uma bala de canhão e rolou de volta para baixo. Curran a perseguiu, tirou outra pedra menor da terra e bateu contra a primeira.
Uau. Ele estava muito chateado.
Os olhos de Astamur eram tão grandes quanto pratos.
— Eu posso pedi-lo para colocá-las de volta depois que ele terminar, —eu disse a ele.
— Não. —Astamur disse lentamente. — Está tudo bem.
Curran pegou a pedra menor com as duas mãos e jogou-a no pedregulho maior. A pedra quebrou e desmoronou. Oops.
— Desculpe, quebramos sua rocha.
Atsany tirou o cachimbo da boca e disse alguma coisa.
— Mrrrhhhm. —Disse Astamur.
— O que ele disse?
— Ele disse que o homem deve ser seu marido, porque só alguém que amamos muito pode nos deixar loucos.
Curran chutou os restos da pedra, girou e marchou em minha direção.
Eu cruzei meus braços.
— Eu pensei que você estava morta! E você está aqui, sentada ao redor da fogueira, comendo e ...
— Ouvindo contos de fadas. —Útil, essa sou eu. — Estamos prestes a ter s'mores148 e você não está convidado.
Curran abriu a boca. Seu olhar parou em Atsany. Ele piscou. — Que porra é essa?
— Não o xingue. Você vai ferir seus sentimentos.
Atsany acenou para Curran, solenemente.
Curran sacudiu a cabeça e virou-se para mim. — Eu quase matei a B. A única razão pela qual ela ainda está viva é porque teve que me mostrar onde você caiu.
— Oh, então a princesa Wilson deixou você sair do castelo? Ela teve que assinar seu recibo de permissão? Você tem um passe, uau!
— Então é sobre isso? Esta é a sua resposta madura—ir para as montanhas ao invés de falar sobre isso e ter momentos de amor com um gnomo e um homem da montanha.
— Sim.
— Qual é o seu plano para amanhã? Lanchar com um unicórnio?
— Desde que isso não envolva você, tudo bem para mim.
— Então realmente? É isso mesmo. —Curran se virou. — Espere um minuto. Onde está o Hugh? Ele não deveria estar flexionando seu belo corpo para você?
— Estou surpresa que você tenha notado.
Ele apertou as mãos em punhos. Eu peguei uma pedra do tamanho de uma laranja e joguei em direção a ele. Foi voando.
Ele pegou no ar e a esmagou, estilo Senhor das Feras.
— Percebi. Simplesmente não pude fazer nada sobre isso.
— Você sabe qual é a diferença? Hugh pode ficar lá e flexionar todos os músculos que ele quiser. Não posso controlar o que ele faz. Mas posso controlar o que faço e não o encorajo. Você a deixa desfilar na sua frente nua. Você me disse que não tinha interesse nela e então a convidou a sentar-se à mesa—na minha cadeira. Você foi a um pequeno encontro com ela, onde explicou como estava se sentido sozinho e lamentou sobre todos os sacrifícios que faz ao ficar comigo.
Seus olhos brilhavam com ouro. — Você. Era você na varanda.
— Você passa todo o tempo acordado com ela, enquanto jogam infinitamente na minha cara que ninguém tem que responder nenhuma das minhas perguntas, porque eu estou claramente sendo trocada, já que não somos casados, eu sou fácil de substituir.
— Você quer se casar? Eu vou me casar com você agora. O gnomo é um pregador, se você quiser eu vou fazer isso.
— Isso é um inferno de uma proposta.
— O que ele disse? —Astamur perguntou.
— Ele quer que Atsany nos case.
Astamur retransmitiu isto. Atsany acenou com o cachimbo e Astamur traduziu de volta. Ha!
— O que foi? —Curran rosnou.
— Atsany diz que você não está pronto para o casamento. Você não tem o temperamento certo para isso.
Curran lutou com isso por um segundo.
— Deixe-me saber se sua cabeça vai explodir, então eu posso me abaixar.
— Nós não somos casados, porque toda vez que eu falo sobre casamento ou crianças, você enlouquece.
— Eu não!
— Há três semanas, perguntei se você queria ter filhos. Você parecia estar pronta para fugir.
— Eu acabara de ver uma criança em loup e passei horas tentando consolar sua mãe. —Acenei para os meus braços. — Você sabe o que, você está certo. Vamos ter filhos. Vamos ter uma ninhada deles. E quando meu pai idiota passar por Atlanta queimando tudo até o chão, nós dois choraremos juntos enquanto eles morrem. Ou pior, talvez nossos filhos sejam humanos. —Eu coloquei minha mão no meu peito. — Que o céu nos livre.
— Mesmo? Humanos? O que eu sou? —Ele rosnou.
Ai. — Você é um floco de neve especial149, é isso que você é. —Eu imitava Lorelei. — Mas eu nunca poderei me juntar a você em uma caçada. Que tortura ...
Ele deu um passo à frente. — Estamos juntos há um ano. Quantas vezes você me viu caçar?
Hum.
— Quantas vezes, Kate?
— Nenhuma.
— Isso é porque eu não caço. Eu sou um leão macho. Eu peso trezentos quilos. Você realmente espera que eu corra pelo mato atrás de um cervo? Quando quero um bife, quero facilmente um maldito bife. Não quero persegui-lo na floresta por duas horas e depois comê-lo cru. Eu tenho comida trazida para mim, e a única vez que eu tiro minha bunda e corro pelo mato é quando algo ameaça o Bando. Eu estive em uma caçada exatamente uma única vez nos últimos três anos. Fui porque eu tinha que ir, e uma vez que eles fugiram, eu encontrei uma boa rocha quente e tive um cochilo no sol. Sabe quando foi a última vez que tive que caçar para sobreviver? Depois que meus pais morreram. Até que Mahon me encontrou meio faminto.
Eu olhei para ele.
— Caçar juntos é algo que jovens lobos fazem quando tentam aprender a trabalhar em equipe. A maioria dos metamorfos não circula pelos bosques, a menos que o impulso de matar algo os atinja. Você tem alguma ideia de como é difícil pegar um cervo a pé? Há uma razão pela qual os humanos são os predadores mais bem-sucedidos do maldito planeta. Lorelei não sabe disso, porque é jovem e ingênua e nunca esteve fora do bando de seu tio. Ela nunca teve que sobreviver semanas na floresta, comendo vermes, ratos, gafanhotos, e qualquer outra merda que pudesse pegar, porque está morrendo de fome e desesperada. Ela acha que todo bando do mundo segue o mesmo padrão, mas você me conhece. Você sabe melhor. Ou pelo menos você deveria saber.
Eu abri minha boca.
— Eu não acabei. Hugh entende isso. Ele fez aquela farsa de caça porque queria que nós saíssemos correndo pela floresta, buscar carne para ele como se fôssemos subumanos, como se fôssemos seus cachorros, e então quando a trouxemos de volta, ele dá um prêmio de deleite. Se eu não tivesse que manter Desandra respirando, eu não teria ido. Eu só quero saber, é isso que você pensa de mim? Eu sou um cachorro para você?
— Não, você é o homem que eu amo e quem deveria me amar de volta. Em vez disso, você gasta todo o seu tempo com outra mulher. Aparentemente você terminou e esqueceu de me enviar o memorando.
— Eu estou com ela agora?
— Onde você estava esta manhã quando fui falar com os bandos?
Seus olhos me disseram que eu já sabia a resposta. Isso machucava. — Não se preocupe em responder. Eu sempre pensei que se você decidisse que não estávamos mais dando certo, pelo menos teria a decência de me dizer cara-a-cara.
— Tenho trinta e dois anos, —disse ele. — As mulheres se jogam em mim desde que eu tinha quinze anos. Você honestamente acha que Lorelei tem alguma coisa que eu não tenha visto antes?
— Ela tem o nome Wilson.
— E ela pode enfiar esse nome na bunda dela por todo o bem que vai fazer com ela. Eu não preciso me aliar aos Fúrias de Gelo. Eles estão a dez mil quilômetros de distância. O que diabos eu faria com eles?
Ele tinha um ponto, mas eu estava muito louca para admitir isso. — Tanto faz.
— E não só isso, mas se eu quisesse aquele bando, eu iria para o Alasca e pegaria de Wilson, e resolveria tudo entre mim e ele. Não preciso de Lorelei. E mesmo se eu fizesse, o que ela tem, Kate? Ela não é uma alfa, ela não tem noção de liderança ou obrigações. Ela não é o pai dela, e ela não consegue reivindicar as realizações do pai porque ela não é o pai dela.
De repente eu estava tão cansada. — Então, vamos analisar: ela não impressionou você com sua personalidade e seu cérebro, ela não tem valor estratégico e você realmente não quer entrar em suas calcinhas.
— Sim.
— Então, por que você está gastando todo o seu tempo com ela? O que você está fazendo parece uma traição. Uma traição óbvia e pública. Eu sei que você sabe disso.
Ele olhou para mim, seu maxilar definido.
Eu sentei em uma rocha. — Estou pronta para ouvir você a qualquer momento.
Curran suspirou. — Há uma recompensa por sua vida.
Eu caí para frente, descansando meu rosto em minhas mãos. Não, ele não faria ...
— O ataque pirata foi encomendado, alguém os contratou especificamente para matar você. Eles tinham sua descrição: cabelo escuro, espada e assim por diante. O pirata descreveu um homem que se parece muito com aquele babaca que está com Kral, Renok. Ele disse que o homem tinha um sotaque romeno. Eles foram pagos em euros. Trinta mil, o que é muito dinheiro. Jarek não é o tipo de perder trinta mil só para te matar. Esse tipo de trabalho ele mesmo faz.
— Por que eu ...?
— As notas de euro estão numeradas. O primeiro número de série no dinheiro denota o país. Depois que desembarcamos, Saiman levou o pirata de volta ao seu povo em troca de analisar o dinheiro. Foi impresso na Bélgica. Isso significava que Lorelei e Jarek Kral fizeram algum tipo de acordo.
Eu só olhava para ele.
— Lorelei chegou aqui com três pessoas do seu tio a escoltando. Subornei um deles, eles não gostam muito dela, e ele disse que Lorelei e Jarek Kral assinaram um contrato. Ele não sabia os termos exatos do contrato, mas envolve Lorelei se tornando alfa do Bando e explicita sua morte. Lorelei fez isso porque ela é uma criança ingênua e realmente acha que as coisas no mundo real funcionam assim. Jarek Kral fez isso porque ele está planejando chantageá-la ou usá-la para sua vantagem de alguma outra forma. Em qualquer caso, se eu conseguir colocar minhas mãos no contrato, ele vai ser desafiado, porque isso me dará uma prova de que ele planejou matar minha esposa. Eu posso legitimamente matá-lo.
Só pode estar de brincadeira comigo. — Eu não sou sua esposa.
— Eu não podia lutar a guerra em duas frentes, —disse Curran. — Algo estava atacando Desandra, e com tudo concentrado em mantê-la segura, eu não podia brincar com sua vida. Eu não queria que alguém atirasse em você ou uma pedra gigante caísse em sua cabeça. Eu não podia estar lá com você porque eles me mantiveram ocupado. Eu estava preso entre escolher obter a panaceia para o Bando ou mantê-la viva. Então fiz de conta me interessar por Lorelei, porque se eles achassem que eu estava mordiscando a isca deles, não havia razão para matar você e correr o risco de transformá-la em um mártir. Levei Lorelei em longas caminhadas onde ninguém nos via, enquanto Saiman andava pelo castelo fingindo ser ela, tentando encontrar o contrato e encontrar alguém que soubesse algo sobre isso.
— Saiman está no castelo?
— Ele esteve no castelo o tempo todo, exceto pela primeira noite. Eu o acompanhei como Mahon na manhã após o primeiro jantar.
Eu sabia a resposta, mas perguntei de qualquer maneira. — Por que você não me contou?
— Porque você não sabe mentir, Kate. Tudo o que você pensa está bem aí no seu rosto. Conheci crianças no jardim de infância que são melhores mentirosas do que você. Eu precisava que você parecesse ciumenta e preocupada, e precisava que fosse genuíno, então eles iriam te dispensar como um possível alvo. Todo o plano dependia disso.
Aha. — Isso é algum plano.
— Era um bom plano. Pensei nisso e o executei, e tudo estava dando certo até que você decidiu vir para as montanhas.
Eu escondi meu rosto em minhas mãos.
— Kate? —Ele perguntou.
Eu deveria estar com raiva e gritando, mas me sentia cansada e vazia.
— Kate? —Ele repetiu. — Está tudo bem?
Eu olhei para ele. — Não.
Ele esperou.
— Você me coloca no inferno porque acha que sou uma péssima mentirosa. —Minha voz estava completamente vazia. Eu não conseguia juntar sentimentos suficientes para qualquer outra coisa.
— Não foi bem assim ...
— Sim, foi, —eu disse baixinho. — Curran, pense nisso por um minuto. Minha vida está em perigo e você não confia em mim o suficiente para me contar sobre isso. Você não tem ideia do quanto me machucou.
— Eu estava tentando manter você viva. Mesmo que isso significasse que não poderíamos estar juntos. Mesmo que isso significasse assistir Hugh fazendo círculos ao seu redor como um tubarão. Você também não confia em mim, Kate. Por toda a merda que passamos juntos, você deveria ter me dado algum crédito, mas acreditou que eu perdi a cabeça por causa de uma garota depois de três dias.
Nem doía mais. Eu sentia só tristeza seca e vazia. — E esse é exatamente o problema.
— Kate? —Ele se agachou ao meu lado, um joelho no chão, e se inclinou para frente para olhar para o meu rosto. — Bebê?
Alguém me dê um soco.
Eu me esforcei para colocar tudo em palavras. Não funcionou. Acabei me desligando como um circuito sobrecarregado.
— Fale comigo.
Algumas palavras finalmente saíram. — Onde iremos a partir daqui ...
— Eu não quero ir a lugar algum. Eu te amo. Você me ama. Estamos juntos. Somos uma equipe.
De repente, minhas emoções se resolveram e a raiva finalmente correu para a fora. — Não, nós não somos uma equipe. Você me fez de boba no seu esquema. Você me tratou como se eu fosse uma idiota. Eu pensei em machucar Lorelei. Pensei em machucar você.
— Você não iria machucá-la. Ela é mais fraca que você.
— Você é um bastardo arrogante.
— Colocou para fora o suficiente? —Disse ele. — Você tem mais?
— Sim. Você é um idiota presunçoso.
— Sim, eu sou. —Ele apontou para mim. — Não se segure. Me diga como realmente se sente.
Eu lhe dei um soco no queixo. Foi um bom gancho sólido.
Curran sacudiu a cabeça. — Eu mereci isso. Estamos bem?
— Não.
— Por quê?
— Você ainda não entende. Hugh está jogando comigo. Ele acha que sou ingênua e estúpida, e acha que pode me seduzir. E você está fazendo exatamente a mesma coisa. Eu confiei em você e você usou isso contra mim. Você me levou por aí como se eu fosse cega. Nós não estamos bem.
— O que você está dizendo? —Ele estava olhando para mim. Eu vi algo estranho em seus olhos cinzentos e percebi que era desespero.
— Estou muito brava com você, Curran. Esta não é uma daquelas lutas em que ambos perdemos a paciência, lutamos, conversamos e ficamos bem. Esta é minha linha limite. Eu não sei se posso continuar daqui.
— Então é isso?
— Estou tentando decidir.
Eu confiei nele e ele quebrou essa confiança, e enquanto tentava entender tudo isso, não conseguia aceitar tudo o que ele fez. Parecia que ele veio me dar um abraço e deslizou uma faca entre as minhas costelas.
Curran abriu os dentes. — Eu fiz a única coisa que pude fazer. Tudo o que fiz e tudo o que eu disse foi para mantê-la viva. Eu sinto muito por ter feito você passar por isso, mas se eu precisasse, faria de novo. Mesmo que isso significasse que você iria embora com o Hugh amanhã. Você segura e viva é mais importante para mim do que ter você. Eu te amo.
Eu também o amava. Dentro de mim uma pequena voz me disse que em seu lugar eu teria feito a mesma coisa, não importava as consequências que tinha que suportar no final. Tê-lo vivo e com raiva de mim era infinitamente melhor que tê-lo morto. Mas amar alguém e estar com ele eram duas coisas diferentes.
— Se seu pai saísse da escuridão agora e dissesse: 'Venha comigo, ou todos aqui morrerão', você iria com ele, —disse Curran. — Sabendo que eu lutaria por você com tudo o que tenho, você iria embora. E porque iria querer me proteger e evitar que eu saísse atrás de você, me deixaria uma nota dizendo que eu não deveria procurá-la, que tudo entre nós acabou.
Não havia sentido em mentir. — Sim.
— Essa é a minha linha limite, —disse ele. — Você ainda iria embora?
— Sim. —Se sua vida estivesse em jogo, eu faria isso em um piscar de olhos.
— Mesmo se eu te deixar por causa disso?
— Sim.
Ele abriu os braços.
— Eu não posso mudar quem eu sou, —eu disse a ele. — Nem você pode. Entendi.
— Eu amo você e você me ama, e nós dois estamos muito fodidos para qualquer outra pessoa. Quem mais nos aguentaria?
Suspirei. — Bem, claramente somos loucos e essa relação está condenada.
— Eu te amo muito, —disse ele. — Por favor, não me deixe.
Ele se inclinou para frente. Eu sabia que ele me beijaria um momento antes dele encostar seus lábios nos meus, e percebi que queria. Eu me lembrei dele me segurando. Lembrei-me dele arriscando-se contra as probabilidades impossíveis para mim. Eu o fazia rir, eu disse a ele coisas que fariam a maioria dos homens normais correrem gritando, coisas que passei toda a minha vida mantendo em segredo, e eu o levei ao ponto de uma raiva quase ofuscante. Nos meus momentos mais sombrios, quando tudo estava desmoronando ao meu redor, ele me disse que tudo ficaria bem. O gosto dele, a sensação de seus lábios enquanto sua boca cobria a minha, o jeito que ele fazia o mundo desvanecer, como se me beijar fosse a única coisa que existia em sua vida, me puxou de volta no tempo, antes do castelo, antes de Hugh e antes de Lorelei. Curran era meu. Se minha vida estivesse em jogo, ele faria de novo, e eu ficaria brava com ele novamente. E se o contrário acontecesse, ele se enfureceria e rugiria, e eu diria a ele que o amava e que lutaria até a morte para mantê-lo respirando.
Ele estava certo. Nós nos amávamos e ninguém mais nos tolerava.
— Eu ainda estou com raiva de você, —sussurrei, e coloquei meus braços ao redor dele.
— Eu sou um idiota, —ele me disse, me puxando para mais perto. — Sinto muito. Você deveria fazer da minha vida um inferno pelos próximos cem anos.
— Nós precisamos dar a vocês alguma privacidade para o sexo de reconciliação? —Astamur perguntou.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Curran e eu decidimos que precisávamos de um pouco de privacidade. Nós pegamos emprestados alguns cobertores e subimos a encosta da montanha até uma pequena saliência. Fizemos amor nos cobertores e agora estávamos deitados em silêncio.
— Ainda está com raiva de mim? —Perguntou Curran.
— Sim.
— Você vai ficar comigo?
Eu mudei minha cabeça em seus bíceps e olhei para o rosto dele. — Sim. Estou presa.
— Como?
— Eu te amo demais para ir embora.
Ele beijou meu cabelo.
— Estou acostumada a prestar atenção em pessoas com espadas, —eu disse a ele. — Não vi a faca chegando. Você estava muito perto para eu perceber.
— Kate, eu não te esfaqueei.
— Você tem certeza? Porque ainda dói.
— Me perdoe, —disse ele.
— Me perdoe também. Você realmente achou que eu iria deixar você?
— Eu pensei que eu iria te perder de qualquer maneira. Conheço você tempo suficiente para saber disso.
Ele deliberadamente colocou todo esse esquema em ação pensando o tempo todo que eu iria embora. Deve ter sido difícil ficar preso, suas costas contra a parede, tentando desesperadamente fazer malabarismos em torno de mim, de Lorelei e os três bandos. E em seu lugar, eu poderia ter feito a mesma coisa. A vida era complicada.
— Eu quase desisti desse plano, —ele disse. — Mas então me lembrei que qualquer conversa com você, não importa o quão ruim fosse, é melhor do que conversar com uma cova no chão.
— Eu não sei. Uma cova não iria discutir com você.
Eu queria que ele risse. Em vez disso, ele me puxou para mais perto. — Não há nada que eu não vá fazer para mantê-la segura, —disse ele.
— Eu sei.
Nós nos deitamos juntos, nos tocando.
— Eu não posso acreditar que deixei Hugh me provocar para lutar com ele. Se você não tivesse gritado o meu nome, eu o teria executado, e então todos nós estaríamos mortos.
Uma sugestão de um grunhido levantou seu lábio superior. Seu corpo ficou tenso ao meu lado, o impulso violento viajando através dele como fogo pelo cordão de detonação. — Toda vez que ele olha para você, eu quero matá-lo, —disse Curran. — Eu tenho me imaginado estalando o pescoço dele.
— Eu imaginei matar Lorelei. Acho que seu plano deve ter funcionado, porque Isabella me disse que eu tenho um tipo de olhar no rosto quando a vejo.
— Você tem.
Eu me virei para ele. — Que tipo de olhar?
— Assassino. —Ele me beijou. — Barabas tentou me atacar ontem.
— O que?
— Quando a Tia B e Keira voltaram. Eu vi na cara dele. Ele estava andando em minha direção para me atacar e George o derrubou e chamou-me de bastardo frio.
— Você machucou ele?
— Não.
— Você não está ganhando nenhum concurso de popularidade ultimamente. Talvez deva trabalhar nisso.
— Eu sei. Talvez eu tenha sorte e seja tirado do cargo de alfa do Bando. Se acontecer, você iria embora comigo?
— Num piscar de olhos.
Ele finalmente sorriu. — Bom.
— A propósito, por que usar Saiman?
Ele fez uma careta. — Eu não tive escolha.
— Ele quer te esfaquear pelas costas.
— Como pessoa, Saiman é completamente amoral. Mas como homem de negócios, ele está acima de qualquer reprovação. Lembra quando ele assinou o contrato?
— Hum-hum.
— Há uma cláusula que estipula que ele deve fazer tudo o que puder para manter nossa segurança como um Bando e como indivíduos.
— Legal. —Saiman era incrivelmente escrupuloso quando se tratava de negócios. Ele se orgulhava disso. Nós assinamos o contrato e nos tornamos seus clientes. Agora, o mesmo ego que quase lhe custou a vida o fez trabalhar para nós, porque para ele nada menos que cem por cento de esforço serviria. Eu só esperava que sua ética profissional resistisse.
O céu ficou pálido. Um brilho dourado se espalhou por trás da montanha. O sol estava prestes a subir.
Em breve teríamos que voltar para o castelo e Hugh.
Eu amava Curran, e a maior parte do tempo com ele era tão fácil. Mas quando foi difícil, quase me quebrou. Me perguntei se era assim para ele também. Estar sozinha seria mais simples, mas eu não podia desistir dele. Ele me fazia feliz. Tão feliz que ficava o tempo todo olhando por cima do meu ombro, como se tivesse roubado alguma coisa e a qualquer minuto alguém exigisse que eu devolvesse.
— Isso não deveria acontecer, —eu disse.
— O que?
— Você e eu. Isso não estava no plano. O plano era estar sempre sozinha, se esconder e matar Roland. Ser feliz nunca foi uma prioridade. Alguma parte de mim ainda está convencida de que é um erro e, eventualmente, isso será arrancado de mim. No fundo eu espero que isso aconteça a qualquer momento. E qualquer indício que isso irá acontecer eu enlouqueço. Você é meu, você sabe disso, certo? Se você alguma vez tentar me deixar, não vou acabar bem.
— Eu não mereço você, —disse Curran. A mesma coisa desesperada que vi na noite passada cintilou em seus olhos. — Mas eu a tenho e sou um bastardo egoísta. Você é toda minha. Não me deixe nunca.
— Eu não vou. Não me deixe.
— Eu não vou. Se você algum dia desaparecesse, eu abandonaria o Bando e procuraria por você até encontrá-la. Não importa quanto tempo demorasse.
Eu sabia que ele não estava mentindo. Podia sentir isso. Ele me encontraria.
— Tentarei não desaparecer.
— Obrigado, —disse ele.
Quando o nascer do sol caiu sobre as montanhas, Astamur nos guiou até a cidade, onde nos despedimos.
Perguntei se havia algo que pudéssemos fazer por ele. Ele apenas balançou a cabeça. — Da próxima vez que alguém precisar de ajuda, ajude-o por mim. Eu te ajudei, você o ajuda, nós continuamos o ciclo.
Subimos a estrada, eu e um enorme leão. Foi decidido que o pêlo era preferível do que nu, e embora Astamur tivesse oferecido algumas roupas, elas não caberiam em Curran e nós dois tínhamos a sensação de que o pastor não tinha tantas roupas assim mesmo. O castelo apareceu diante de nós.
Suspirei.
— Eu sei, —disse Curran, palavras humanas emergindo perfeitamente da boca leonina. — Estamos quase terminando.
— Vou lembrá-lo disso na próxima vez que você vir o Hugh.
Um rosnado baixo reverberou na garganta de Curran.
— Controle seu temperamento, Vossa Majestade.
Nós dois sabíamos que lutar com Hugh ainda estava fora de questão. Eu ainda não tinha ideia de qual era o seu plano. Ele me colocou neste castelo. Não estava tentando ativamente me matar. Ele tentou me seduzir e me chamou de especial. Se as coisas continuassem assim ... Eu estremeci.
Curran olhou para mim.
— Apenas imaginando como seria a versão de flores e corações de Hugh.
— Como um mingau sangrento, —disse Curran. — Porque eu vou esmagar sua cabeça e seu cérebro vai escorrer de suas orelhas.
Eu só queria saber qual era o plano final.
Nós andamos pelos portões. A gaiola havia sido removida do pátio interno. Agora pendia de uma viga fixada a uma torre de guarda, na frente e no centro do pátio. Hibla sentava-se dentro dela. Eu parei. Ela olhou para mim com olhos febris assombrados, seu desespero tão óbvio que eu tive de me impedir de andar até lá e puxá-la para fora.
— Aí está você, —Hugh saiu das portas abertas da torre principal. — Sã e salva.
— Por que ela está em uma gaiola?
— As gaiolas precisam ser preenchidas. Esta estava vazia e ela parecia ser a melhor candidata.
Hibla falhou muitas vezes. Ela me deixou sair do castelo e me perdeu, e agora ele a colocou na gaiola para todo mundo ver. — Por favor, liberte-a.
Hugh suspirou. — Qual o seu problema com a gaiola? Tem alguém que eu possa colocar lá e você não quer ver sair?
— Você.
Ele deu de ombros. — Ela não iria me segurar.
— Falar é fácil. Experimente, d'Ambray, —disse Curran.
— Eu adoraria, mas como eu disse, a gaiola está ocupada. —Hugh se virou para mim. — Então, onde você foi?
Eu olhei para a gaiola.
Hugh encolheu os ombros. — Tudo bem. Alguém tire Hibla!
Um djigit deixou seu posto ao lado do portão e correu até a gaiola.
— Fui a algumas cavernas, caí, nadei e fui resgatada por um atsany e um pastor local.
— Parece que foi interessante.
— Estou cansada e com fome, —eu disse.
Hugh sorriu. — Eu vou te ver mais tarde, então.
E por que isso soava sinistro?
Curran se moveu entre ele e eu e fomos para o castelo.
Dez minutos depois, eu estava sentada na nossa cama comendo comida que George trouxe para mim da cozinha. Curran mudou de forma e vestiu roupas.
Mahon apareceu na porta. — Estou feliz que você esteja bem, —ele me disse.
Um momento depois, Barabas entrou pela porta. Um homem o seguia para o quarto. Uma nuvem de cabelos sedosos, extremamente claros, quase brancos, emoldurava seu rosto estreito. Sua pele deve ter sido naturalmente verde-oliva, mas agora tinha um tom ligeiramente cinza. Ele parecia estar em seus trinta e poucos anos, não apenas magro, mas tão esquelético que as roupas penduravam nele do jeito que fariam em um cabide. O homem me viu e sorriu. Seu rosto inteiro se iluminou, de repente jovem e feliz, seus olhos azuis luminescentes, ao mesmo tempo belos e impossivelmente distantes.
— Senhora, —disse ele.
Uau. — Oi, Christopher.
Ele veio e sentou no chão aos meus pés e suspirou feliz. — Bela Senhora.
— Como você está, Christopher?
Ele olhou para mim com um sorriso vazio e olhou para os meus sapatos.
— Como ele está? —Perguntei a Barabas.
— O que você vê é o que você tem. Ele está lúcido um minuto e depois não está mais. Acho que finalmente se convenceu de que não está morto. Ele insiste que costumava saber como voar, mas esqueceu. Ocasionalmente tenta, então eu tenho que observá-lo de perto em lugares altos.
Oh garoto. — Christopher?
Ele olhou para mim.
— Você é livre.
— Eu sou. —Ele assentiu. — Eu vou servi-la para sempre. Até o fim dos tempos.
— Não, você é livre. Não precisa me servir. É bem-vindo se quiser ficar, mas você pode ir se quiser.
Ele se inclinou e tocou minha mão com dedos longos. — Ninguém é livre neste mundo. Nem príncipes, nem magos, nem mendigos. Eu te servirei para sempre, minha Senhora.
Aha. — Vamos conversar sobre isso mais tarde quando você estiver melhor.
— Ótimo. —Disse Curran. — Outra boa adição à sua coleção estranha de desajustados.
— Eu me ofendi com isso, —disse Barabas.
— Não se preocupe, eu também. —Curran disse a ele.
— O que você fazia para Hugh antes dele te prender? —Perguntei.
— Eu cuidava dos livros dele. —Os dedos de Christopher se contorciam como se estivesse acariciando páginas invisíveis. — Ele tem livros muito interessantes. Você tem livros, Senhora?
Ótimo. Resgatei o bibliotecário de Hugh. — Alguns. Provavelmente não tão bons quanto os de Hugh.
— Está tudo bem. —Christopher me ofereceu um sorriso. — Eu vou ajudá-la a obter mais e depois vou cuidar deles para você.
— Christopher, sobre a besta laranja, —eu disse. — Aquele que matou uma guarda, lembra?
— O lamassu, —Christopher disse prestativamente.
— Você sabe o que são?
— Sim. —Ele assentiu com o mesmo sorriso distante.
— Por que você não me disse quando eu falei com você?
— Você não pediu.
Eu me virei e bati minha testa contra o poste de madeira da cama.
— Certo, a Senhora precisa de um momento, —disse Barabas. — Vamos.
— Isso ajuda? —Christopher perguntou com interesse.
Barabas pegou-o pelo braço e gentilmente levantou-o. — Devemos ir comer.
— Comida de verdade?
— Comida de verdade. Venha comigo.
Eles saíram da sala.
— Você sabe que ele está louco, certo? —Curran perguntou.
— Sei. Mas ele não vai sobreviver sozinho.
— Você é quem sabe, —disse Curran.
Passei o dia na cama, dormindo, comendo e depois dormindo de novo. Curran ficou de guarda em cima de mim, e qualquer sugestão de que eu deveria ir e guardar Desandra foi recebida com um rosto de pedra do Senhor das Feras. Ele tinha um ponto. Eu estava cansada e todo o meu corpo doía, como se tivesse passado por um moedor de carne.
Dez minutos antes das seis horas acordei porque alguém bateu à nossa porta. Curran bloqueou. O Senhor das Feras estava pendurado por um fio.
— ... informação. —Disse Hibla.
Eu rolei para fora da cama.
Curran se afastou. Hibla entrou no quarto, mantendo-se muito ereta, o queixo levantado, a espinha rígida. Não poderia parecer mais frágil se estivesse à beira de chorar. Eu a avisei. ‘Cuidado a quem você serve’.
— O que você tem para mim?
— Um grande grupo de estrangeiros vieram pelas montanhas. Eles não usaram a passagem nem o mar. Vieram pelos trilhos de trem a pé. Passaram por uma pequena aldeia não muito longe daqui. —Hibla me passou uma foto. O corpo de um jovem deitado de costas olhava para mim com os olhos vazios. Um buraco vermelho brilhante estava aberto onde seu estômago costumava estar, sua carne arrancada por garras e dentes. Eles se alimentaram dele. A segunda foto mostrava um close de um rosto. Bolhas roxas marcavam suas feições. Eu as vi antes no rosto de Ivanna.
Levantei a foto e mostrei para Hibla.
— Os aldeões disseram que os maiores cospem ácido.
— O que você quer dizer?
Hibla encolheu os ombros. — Não sabemos. Havia apenas seis sobreviventes. Eles mataram quarenta pessoas e comeram a maioria deles. Eu vi essas marcas em Ivanna.
— Eu as vi também, —eu disse.
— Se ela foi atacada, por que ela não disse nada?
— A menos que ela foi atacada por sua própria espécie, —disse Curran.
Puxei um pedaço de papel e comecei a rabiscar. — A primeira vez que vi Ivanna foi antes do jantar, quando Radomil e Gerardo brigaram no corredor. Ela viu Doolittle examinando Desandra e ficou chateada.
Eu escrevi e desenhei uma flecha. — Desandra foi atacada. —Eu desenhei outra flecha.
— Jantar com os bandos, —disse Curran.
Eu adicionei e desenhei outra flecha. — Doolittle foi atacado. Na manhã seguinte, Ivanna tem bolhas roxas.
— Se eu fosse um lamassu, e assumindo que um dos bebês de Desandra é um lamassu, —disse Curran, — saber que um médico está examinando-a me deixaria nervosa.
— Um dos filhos de Desandra é uma daquelas coisas? —Os olhos de Hibla se estreitaram.
— Provavelmente, —disse Curran.
— Suponha que Ivanna seja uma lamassu, —eu disse. — Ela vê Doolittle coletar o sangue. Sabe que há uma chance de descobrir que uma das crianças é uma lamassu, e que isso vai acabar com o disfarce do bando. Ela entra em pânico e tenta matá-la. Exceto que alguém em seu bando, seja Radomil ou mais provavelmente Vitaliy, a impede de fazer isso. O ataque fracassou, eles estão em perigo de serem descobertos, mas ainda querem que a criança nasça, porque querem a passagem da montanha.
— É claro que eles querem a passagem, —disse Curran. — Eles planam. Montanhas lhes dão uma enorme vantagem.
— Vitaliy cospe nela como uma punição e depois decide destruir as provas que Doolittle coletou em seu lugar.
— Doolittle disse que eles quebraram seu equipamento. —Não foi uma decisão ruim: não há necessidade de matar Desandra quando você pode simplesmente destruir o sangue. —Eles também foram os únicos que tiveram uma reação quando pedi o exame de sangue. Os italianos e Kral também não pareceram se importar, mas os Volkodavi pareciam preocupados.
— Mas por que eles comem pessoas? —Hibla perguntou.
— Isso permite que eles fiquem mais fortes e gerem asas, —disse Curran. Eu contei a ele todas as informações que recebi sobre a história do lamassu. — Provavelmente há um grande número deles se escondendo nas proximidades. Se o parto não der certo, todos podem invadir o castelo. É assim que eu faria.
— Eu posso prendê-los, —disse Hibla.
— Nós não temos nenhuma prova, —eu disse a ela. — Além disso, Desandra ainda está grávida. Uma vez que o bebê nascer, teremos certeza que são eles, mas até lá só temos suspeitas. Temos que ficar de olho neles. Hoje à noite no jantar, por exemplo.
O rosto de Hibla ficou solene. — É por isso que eu vim. Senhor Megobari me pediu para descobrir sobre a saúde do médico-mago e perguntar se você iria se juntar a ele para jantar esta noite fora do castelo. Sozinha.
— Não. —Disse Curran.
Hibla deu um passo para trás.
— Sim.
— Não.
— Diga ao Senhor Megobari que eu estarei lá.
Curran cruzou os braços.
— Eu vou passar sua mensagem. —Hibla se virou e saiu do quarto.
— Não. —Disse Curran. — Você não está indo.
— Você está me pedindo para não ir?
— Não posso pedir para você fazer nada. Nem eu tentaria. Quer ir sozinha para jantar com um cara que matou seu padrasto, que serve seu pai, e que ficou de pau duro quando você lhe deu uma surra. Como isso é uma boa ideia?
Esse é o meu psicótico. Sem rodeios, direto. — Ele nos trouxe aqui. Você, eu e todos nós. Quero saber o porquê. Acho que Hugh vai me dizer, porque ele está ansioso que eu saiba o quão grande, ruim e inteligente ele é. Precisamos saber o que estamos enfrentando.
— Ele coloca as pessoas em gaiolas e mantém mortos-vivos em suas paredes.
— O que ele pode fazer que não teve oportunidade de fazer até aqui? Antes de você ir falar com Lorelei na varanda, ele me disse que tudo isso era por minha causa. Ele fez toda essa reunião acontecer. Você não quer saber como ele conseguiu juntar todos esses bandos e orquestrar isso? Você não está curioso?
Os músculos de sua mandíbula flexionaram. Eu venci.
— Leve Derek. Hugh vai levar alguém com ele.
Ele deu um passo à frente. Eu poderia levar mais de um também. — Sem problemas. Eu posso até levar outra pessoa se você quiser.
— Derek é o suficiente, —disse Curran.
— Eu voltarei hoje à noite, —eu disse a ele. — Tudo vai dar certo. Não se preocupe.
Às sete horas, Hibla veio nos buscar. Nós a seguimos pela estrada até um estreito caminho pela montanha que levava para o norte, para uma montanha baixa que se erguia como uma presa de dragão ao norte do castelo. A metade ocidental fora destruída para dar lugar à estrada de ferro, e camadas de rocha se projetavam do penhasco. A estrada alcançou a montanha e se transformou em uma calçada pavimentada que mergulhava no lado da floresta da montanha.
Árvores subiam dos dois lados, não um crescimento selvagem, mas uma vegetação cuidadosamente cultivada, cortada para agradar aos olhos. A cada poucos metros havia um degrau de pedra. Pequenas lanternas a gás brilhavam em ambos os lados do caminho, com brilhantes faíscas com vaga-lumes dançando ao redor deles. Ao contrário das luminárias de lavanda no castelo, estas eram amarelas, magos tentaram colocar dessas em Atlanta, mas não conseguiram. Magia envolvida em torno de nós. Hugh se esforçara para impressionar.
O caminho subiu, virou-se, subiu novamente e virou-se novamente ... continuamos ziguezagueando pela montanha até que finalmente chegamos a uma pequena área de estar: um banco de madeira com uma mesa e um pouco de carne e pão cobertos por uma tela de tecido.
— Você e eu vamos esperar aqui, —Hibla disse a Derek.
— Se alguma coisa acontecer com ela, você vai morrer primeiro. —Derek disse a ela.
Bem, isso deixava as coisas mais tranquilas.
Eu subi mais o caminho. A vegetação se separou e vi uma grande mesa sob as árvores. As árvores do lado oeste haviam sido cortadas e um mar noturno se estendia diante de mim, azul e belo, enquanto o sol lentamente se punha em suas águas frias.
Hugh sentava-se à mesa. Ele usava jeans e uma camiseta preta. Senhor das Guerras no seu estilo mais casual.
Ele se levantou e sorriu para mim. Eu sentei na frente dele no lado norte, enquanto ele se sentou no sul. Minhas costas estavam viradas para estrada. Argh.
— Ninguém vai subir. —Disse ele e levantou uma garrafa. — Vinho?
— Água.
— Você não bebe muito, —disse ele.
— Eu bebi muito por um tempo.
— Eu também, —disse ele, e serviu dois copos de água, um para ele e outro para mim.
A mesa continha três pratos: frutas, carne e queijo. Tudo o que um líder guerreiro precisa.
— Por favor. —Hugh convidou.
Eu coloquei um pouco de queijo e carne no meu prato.
— Lindo, não é? —Ele acenou para o mar.
Isso era. Havia algo antigo nessa paisagem, algo impossivelmente sedutor. Milhares de anos atrás, as pessoas olhavam para o mar exatamente como fazíamos agora, hipnotizadas pelo padrão de luz noturna nas ondas.
Eles tinham seus próprios sonhos e ambições, mas no fundo deveriam ser como nós: eles amavam e odiavam, preocupavam-se com seus problemas e comemoravam seus triunfos. Muito tempo depois de irmos embora, o mar ainda permaneceria, e outras pessoas iriam assisti-lo e serem enfeitiçadas.
— Os Volkodavi são lamassu, —eu disse.
— Eu sei, —disse ele.
— Quando você descobriu?
— Quando vi um levantar voo do quarto do seu médico-mago. Os Volkodavi têm uma boa reputação na Ucrânia, mas eu ouvi algumas histórias. Pessoas desaparecendo. Monstros comendo corpos humanos. Então juntei as peças. Eles surgiram do nada há alguns anos atrás, assumiram a matilha local, e de repente a merda estranha começou. —Hugh cortou um pedaço de carne. — Seu pai odeia essa raça. Ele diz que eles foram feitos de uma maneira errada. Acredito que eles poderiam ser úteis sob as circunstâncias certas, mas eles têm muito pouca disciplina. Discipliná-los em soldados úteis seria difícil. Você teria que pegá-los desde a infância, e mesmo assim não haveria garantia.
— Você fala como se eles fossem filhotes de pitbull150.
— Não é uma analogia ruim, na verdade. Levaria algumas gerações para criar lamassus treinados. Porque se dá a esse trabalho? Um pastor alemão devidamente treinado pode matar do mesmo modo que um pit bull indisciplinado, e ainda é muito mais fácil de lidar.
Essa conversa estava me deixando chateada. Eu bebi minha água. — Eu gosto daqui, —disse Hugh.
— É lindo.
— Você deveria ficar, —disse ele. — Depois que Desandra der à luz e o Senhor das Feras levar seu bando para casa. Tire umas férias. Viva um pouco, nade no mar, coma uma comida deliciosa, mas que é ruim para você.
— Tenho certeza que seriam férias gloriosas até o momento em que você serviria minha cabeça em uma bandeja de prata para Roland.
— Você, eu entregaria em uma bandeja de ouro, —disse ele.
— De alguma forma isso não me faz sentir melhor.
— Você está realmente planejando lutar com ele? —Hugh se inclinou para frente.
— Se eu precisar.
Hugh largou o garfo e caminhou até a borda. — Veja essa pedra lá embaixo?
Levantei-me e fiquei à beira da mesa. Ele apontava para uma pedra pontiaguda que se projetava do lado da montanha.
Hugh abriu a boca. Magia quebrou como um chicote marcante. Uma torrente invisível de energia colidiu com a rocha. A pedra quebrou em pedaços.
Uma palavra de poder. Interessante. Quando eu usava as minhas, faltavam me matar de dor. Hugh não parecia que foi atingido.
— Eu só tenho uma pequena fração de seu poder. Você não tem ideia do que é ficar atrás dele quando passa. É como andar nos passos de um deus.
Eu sentei no meu lugar. Já havia ouvido isso antes.
Hugh estudou a pedra abaixo. — Você está viva há vinte e seis anos. Ele está vivo há mais de cinco mil. Ele não brinca com magia, ele é a magia. Ele pode criar coisas impossíveis. Se eu fosse ficar contra ele, ele iria me esmagar como um mosquito. Inferno, ele poderia nem notar que estava lá. Eu o sirvo porque não há ninguém mais forte.
Hugh se virou para mim. — Eu vi você lutar. Sou um fã. Mas se você planeja lutar contra o Construtor de Torres, você perderá.
Percebi que ele não estava blefando. Acertou em cheio. Se Roland viesse para mim agora, eu perderia. Querer lutar com ele agora parecia um pouco absurdo. Eu não tinha nem trinta anos. Não sabia usar minha magia. Os poucos truques que eu tinha na manga mal arranhavam a superfície. Na minha cabeça, sempre suspeitei que não seria capaz de detê-lo, mas a maneira como Hugh disse me fez ter certeza.
— O que faz você pensar que ele quer te matar? —Hugh se sentou.
— Ele tentou me matar no útero da minha mãe, matou minha mãe e enviou você para encontrar e matar o homem que eu chamava de pai. O que faz você pensar que ele não quer me matar?
— Ele é solitário, —disse Hugh. — Ele se desgasta. Pode envelhecer. É preciso muito esforço e, geralmente, ele fica por volta dos quarenta anos. Diz que é uma boa idade, madura o suficiente para inspirar confiança, jovem o bastante para não sugerir fragilidade. Ele aparentou essa idade por anos, mas agora está envelhecendo ativamente. A última vez que o vi, quatro meses atrás, parecia ter mais de cinquenta. Eu perguntei por que. Ele disse que isso o fazia parecer mais paternal.
Que doce. — Eu não estou engolindo isso.
— Pense nisso, Kate. Você é poderosa, inteligente, linda e capaz. Por que ele não iria querer uma filha assim? Você não acha que ele pelo menos tentaria conhecê-la?
— Você está esquecendo um detalhe importante. Eu não quero conhecê-lo. Ele matou minha mãe, Hugh. Ele me roubou a única pessoa com quem todas as crianças contam pelo amor incondicional. Você se lembra da sua mãe?
— Sim, —disse Hugh. — Eu tinha quatro anos quando ela morreu. Três anos depois, Voron me tirou da rua.
— Eu não me lembro da minha. Nenhuma palavra, nem um traço de perfume, nem uma imagem borrada, nada. Voron era meu pai e minha mãe. Voron, o Corvo da Morte, era uma autoridade indiscutível na minha vida. A única autoridade. Você o conhecia. Pense no que isso realmente significa.
— Então é vingança e uma festa de piedade ao mesmo tempo, —disse Hugh.
— Não. Não é vingança. É prevenção. Eu quero matar Roland para que nunca mais haja outra pessoa como eu.
— Isso seria uma tragédia, —disse Hugh.
— Isso seria uma bênção, —eu disse.
— Deixe o metamorfo ir embora, —disse Hugh. — Fique comigo por um tempo. Sem condições. Nenhuma obrigação ou expectativa. Quero ver se consigo fazê-la mudar de ideia.
— Eu pensei que nós já havíamos resolvido isso. Não seria uma boa ideia.
— O que está te segurando nele? O homem se preocupa com você de sua própria maneira limitada, mas você nunca se encaixará com eles, Kate. No fundo sabe disso. Eles sempre olharão para você como se fosse uma aberração perigosa. As pessoas temem o que não conseguem entender, mas podem trabalhar com isso. Animais não podem. Eles evitam o estranho ou tentam destruí-lo. Você pode sangrar por eles por cem anos e não mudarão de opinião. Dê um pequeno passo em falso e todos se voltarão para você.
Eu me virei e olhei para o mar. Curran lutaria até o último suspiro para me proteger. Se eu pedisse a Derek para andar no fogo, ele faria isso. Mas então lembrei de Doolittle olhando para mim com horror em seus olhos ...
— Está escorregando, —disse ele.
Eu arqueei minha sobrancelha para ele.
— Seu disfarce, —disse ele. — Alguns dos seus poderes estão aparecendo. Quanto você está escondendo?
— Eu acho que você nunca vai saber, —eu disse a ele.
Hugh apoiou os cotovelos na mesa. — Onde você se vê daqui a cinco anos?
— Se Roland não me encontrar?
— Sim.
— Na Fortaleza, fazendo o que estou fazendo agora.
— Quanto tempo isso vai durar, Kate?
— Espero que por um longo, longo tempo.
— Você está mentindo para si mesma. Voron nos transformou em assassinos. Podemos ficar bem sem violência por algumas semanas, mas depois de alguns meses, a mão começa a coçar para a espada. Você começa a procurar por essa emoção. Você fica irritável, a vida se torna obsoleta e, um dia, algum idiota cruza seu caminho e te ataca e, quando você o derruba, você sente a emoção da luta vir à tona e não perde a oportunidade de lutar, mesmo que seja brevemente. Se você tiver sorte, ele será muito bom e a luta durará alguns segundos. Mas mesmo que isso não aconteça, esse curto momento de triunfo é como ter um tiro de adrenalina. De repente, a cor volta à vida, a comida tem um gosto melhor, o sono é mais profundo e o sexo é arrebatador.
Eu sabia exatamente do que ele estava falando. Eu vivia e sentia isso.
— Não precisa dizer nada, —ele disse. — Eu sei que estou certo. Você e eu somos pássaros da mesma espécie. Nós não nascemos, fomos forjados, moídos e afiados para sermos exatamente o que somos. Você sentiu algo quando nós lutamos. Eu com certeza senti. Não sei o que você está fazendo com o metamorfo leão, mas seja o que for, tudo vai acabar logo. Aposto que você já vê sinais disso. Alguma parte dele gosta da atenção de Lorelei. É lisonjeiro. Uma garota jovem e atraente, disponível para cumprir tudo o que ele quiser, dando todos os sinais de que ela está pronta apenas para ele. O faz se sentir ainda mais poderoso. Mesmo que ele não tenha feito nada sobre isso, posso te dizer que ele pensou em fazer, sou homem, sei do que estou falando. Sexo é uma coisa engraçada: é sempre a mesma coisa, mas a gente sempre quer mais e com pessoas diferentes.
Eu me inclinei na minha mão e suspirei. — Por favor continue, doutor. Deixe-me saber quando nossa consulta acabar, para que eu possa assinar um cheque.
Ele riu. — O homem é um egocêntrico. Você sabe disso. Ele não entende completamente o que você é, e ele não gosta disso. Mas dê a ele alguns anos, e na próxima vez que uma Lorelei entrar em sua órbita, ele pode aceitar as ofertas dela. Ele vai dizer a si mesmo que ter um caso não é uma grande coisa. Não significaria nada. Ele não vai deixar você por ela. A próxima vez será mais fácil. A próxima mais fácil ainda. Antes que você perceba, isso se tornará uma coisa normal. Por que diabos você iria querer suportar isso?
— Falando de experiência pessoal?
— Sim. Quando percebi que havia me cansado, segui em frente. Deixe-me dizer, não importa o quão criativo você seja—e eu sou criativo—a mecânica do sexo é sempre a mesma. A diferença é a paixão. A paixão torna isso especial. Fazer sexo com uma mulher atraente é divertido, mas adicione paixão, faça dela aquela mulher que você ama ou odeia, e toda a experiência muda. Você sente algo por mim, Kate. Quer você queira admitir ou não, algo está aí. Posso garantir que nunca nos cansaríamos disso.
Uau. Ele colocou sua melhor cara de jogo e me bateu com tudo que tinha. — Não sinto.
Suas sobrancelhas se juntaram. — Não? É isso mesmo?
— É isso mesmo.
— Por quê?
— Porque você coloca pessoas em gaiolas, Hugh. Mesmo se eu estivesse sozinha e Curran não estivesse em cena, eu ainda não ficaria. Você veio aqui, para esta região, e fez o necessário para ganhar a boa vontade das pessoas o suficiente para construir este castelo vinte anos atrás. As pessoas na cidade vivem na pobreza. Metamorfos chacais, seus guardas do Castelo, estão roubando pessoas nas estradas, e ninguém vem até você reclamar, porque elas não esperam que você faça nada sobre isso. Quer saber a diferença entre você e Curran? Se você desse a ele este castelo, dentro de um mês haveria um tribunal, os devidos processos legais e uma força policial de trabalho responsável pelo bem-estar de seus cidadãos. Curran vê a si mesmo com um servo às pessoas que ele lidera, você se vê como o Senhor do Castelo, aquele a ser servido. Você trouxe estabilidade a este lugar, mas é a estabilidade de um escravo assustado que sabe que ele será agredido com uma vara se levantar a cabeça muito alto. Você está contente com as coisas como elas são, e quando alguém falha, as coloca em uma gaiola e lentamente as mata de fome.
Hugh recostou-se e sorriu, com uma expressão divertida curvando a boca. — Você é filha dele, —disse ele.
Não tinha certeza de como interpretar isso. Eu me inclinei para trás e cruzei meus braços.
— Sabe qual é o melhor talento de seu pai? Seu pai pode olhar para você e determinar exatamente onde você melhor se encaixará no mundo e o que você será para ele. É por isso que Roland não ficou muito feliz quando sua tia acordou. Não havia lugar para ela neste mundo.
— Então ele olhou para você e disse: ‘Você vai fazer uma excelente bola de demolição.’
Hugh assentiu. — Antes que a civilização se instale, eu chego e domino. Esmago a resistência, destruo a vontade deles, e então seu pai chega e me para. Ele traz ordem, justiça e beleza. Ele torna-se a salvação deles.
— Tenha cuidado, seu disfarce encantador está escorregando.
— Não há muito sentido em segurar o disfarce agora.
— Ah, então não cair em seu discurso de autopromoção finalmente me rendeu o direito à sua versão sem besteiras?
Ele sorriu, mostrando os dentes. — Aqui está: não vou deixar você entrar naquele navio.
Imaginei.
— Será muito mais difícil te tirar da Fortaleza deles. Você está me forçando a medidas drásticas.
— Eu não sabia que você era tão fácil de provocar.
— Antes de você sair, eu mandei o meu pessoal carregar panaceia em seu navio, —disse ele. — Seu homem recebeu um bilhete falando sobre isso e explicando que eles não são mais bem-vindos aqui.
— Eu pensei que você me daria sua versão sem besteira. De onde tirou essa panaceia, Hugh? Os bandos guardam como ouro. Eles nunca venderiam tanto assim para você.
— Não tenho necessidade de comprá-lo deles. Meu pessoal é que as faz.
— Besteira.
— Seu pai aprendeu a fazer quando era jovem. É um processo complexo, com muita magia feita na ordem correta, então aprender é o equivalente a um projeto de formatura. —Os olhos de Hugh ficaram duros. — Eu controlo todo o suprimento nesta parte do continente. A única maneira do Bando conseguir suas patas em uma gota de panaceia é irem embora agora, sem você.
Curran não me deixaria.
— Se ele preferir ficar, a situação ficará difícil, —disse Hugh. — Eu avisei a ele. Ele sabe que se ficar, é guerra.
— Ele vai ficar.
— Deus, eu espero que ele faça. Estou ansioso para matá-lo por três anos. Eu vou aproveitar o inferno disso.
Hugh não tinha apenas aproveitado a gravidez de Desandra. Ele projetou tudo isso. Ele puxou as cordas e os metamorfos tinham obedecido, porque ele tinha panaceia para chantageá-los. Ele manipulou todo mundo só para me trazer aqui.
— Se machucá-lo, eu vou matar você, —eu disse.
— Você vai tentar, e eu vou gostar disso também. Eu quis dizer o que eu disse, Kate. Você me faz sentir algo interessante. Isso é raro para mim. E eu gosto de ter você por perto. Você é engraçada.
— Engraçada. Seu maxilar está doendo quando você ri?
— ‘Minha mão não vai tremer’ —ele citou. — ‘Meu objetivo não vai diminuir. Meu rosto será a última coisa que você verá antes de morrer’. Você é hilária.
Essas foram as palavras que eu disse ao Conselho do Bando quando Curran estava em coma e eles tentaram me separar dele. Minha pele se arrepiou. Hugh tinha um espião no Conselho do Bando.
— Acho que terminamos aqui. —Eu me levantei.
— Eu sempre consigo o que eu quero, Kate, —disse ele. — É assim que funciono.
Eu andei pelo caminho e continuei andando. Derek me viu, levantou-se e me seguiu.
— O navio pode não estar lá. —Eu disse a ele em voz baixa.
— Eu ouvi, —disse ele. — Eles estarão lá. Não se preocupe.
Nós continuamos.
— Você é mesmo filha de Roland? —Perguntou.
— Sim.
— Eu não me importo, —disse ele. — Algumas pessoas não irão gostar, mas a opinião delas não é importante.
Eu não disse nada, mas a noite ficou um pouco mais clara.
Capítulo 18
O castelo zumbia com atividade. Servos amarravam grinaldas de luzes no corredor. As pessoas se moviam para lá e para cá. O ar cheirava a carne assada e especiarias.
Eu andei através dele, estranhamente desconectada, os sons silenciosos dos meus passos perdidos no caos comemorativo.
Derek levantou a cabeça, escutando. — É o jantar da comemoração da caça. Eles finalmente conseguiram organizar e cozinhar toda a caça. Nós devemos celebrar os vencedores à meia-noite.
Ótimo. Todo mundo estaria no salão de jantar. Isso estava indo melhor que encomenda.
Eu subi as escadas. Meu coração batia um pouco mais rápido. Peguei velocidade. Ele não iria embora sem mim.
Nem mesmo com a panaceia em jogo.
Entrei no nosso quarto.
Vazio. A pilha de meus livros havia desaparecido. As roupas de Curran, jogadas na cadeira, haviam desaparecido. A cama foi arrumada.
De jeito nenhum.
O som de água corrente saiu do banheiro e Curran emergiu, limpando as mãos com uma toalha. Ele usava calças de malha da marca registrada do Bando. Cinza e justa, elas se rasgavam com facilidade quando um metamorfo mudava de forma.
Atrás de mim, Derek entrou no corredor e fechou a porta.
— Você está aqui, —eu disse.
— Onde mais eu estaria?
— Hugh é dono da panaceia. —Ele também é um completo bastardo.
— Ele enviou uma nota. —Curran atravessou a distância e me abraçou. Meus ossos gemeram.
Coloquei meu rosto na curva do pescoço dele. O mundo de repente se acalmou. Os pedaços fraturados se encaixaram no lugar.
— Você achou que eu iria embora? —Curran sussurrou em meu ouvido.
— Não. —Eu o abracei de volta. — O que aconteceu com todas as nossas coisas?
— Qualquer coisa não essencial foi embalada e carregada. Eu mantive seu cinto com todas as suas coisas. Tem alguma mensagem para mim?
— Se formos ao jantar, vamos lutar. Além disso, ele espera que você o desafie.
Curran sorriu. Não era um sorriso bonito.
Nós olhamos um para o outro. Nós dois sabíamos que Hugh faria o seu movimento hoje à noite, e depois disso tudo terminaria. Poderíamos tentar correr para o navio agora, exceto que havíamos prometido proteger Desandra. Abandoná-la não era uma opção. Nós tínhamos dado a nossa palavra.
— Você está com fome, bebê? —Curran perguntou.
— Morrendo de fome.
— Então acho que devemos ir jantar.
— Boa ideia.
— O que você vai vestir?
— Meu rosto de fodona.
— Boa escolha, —disse ele.
— Deixe-me pegar minhas facas e pó de prata.
Entramos no grande salão e encontramos um novo arranjo de assentos indicados por pequenos cartões de identificação: os italianos estavam sentados à cabeceira do lado direito de Hugh, ao redor do lado direito da mesa em forma de ferradura. O resto de nós iria se sentar à esquerda de Hugh: meu nome vinha primeiro, depois o nome de Curran, depois Desandra, depois o resto da nossa turma. Sem dizer uma palavra, Curran e eu trocamos de lugar. Se Hugh quisesse que eu me sentasse ao lado dele, me sentaria o mais longe possível.
Examinei a mesa. Todos do nosso lado da mesa estavam vestidos para ‘impressionar’: calças de moletom e camisetas. Andrea me viu olhando e sorriu. Raphael piscou para mim. Mahon estava certo. Eu era Bando. Pelo menos todo mundo de calça de moletom cinza achava que sim. Se eu tivesse que lutar, eu não lutaria sozinha.
As paredes do grande salão ganharam novas decorações: espadas e machados pendurados em ganchos ao alcance. A porta para a saída lateral à esquerda estava fechada. Isso nos deixou com a saída a direita e a entrada da frente.
Jarek Kral olhava para o seu lado direito da mesa, uma careta amarga distorcia suas feições em uma máscara feia. Do outro lado, à esquerda, Vitaliy e Ivanna estavam sentados, com a cara de pedra. Eu examinei o resto dos rostos e meu olhar bateu em Lorelei. Ela olhou para mim com óbvio ódio. Eu pisquei para ela. Ela olhou de volta, indignada.
Alguém se movimentou atrás de mim. Eu virei. Barabas sorria para mim.
— Onde está Christopher? —Perguntei.
Ele apontou para a mesa lateral. Christopher se sentava ao lado de Keira, seus olhos azuis claros como um céu de verão sem uma única nuvem. Ele me viu e se levantou. Seus lábios se moveram em uma palavra. ‘Senhora’.
O cinto ao redor da cintura de Christopher parecia familiar, especialmente as bolsas penduradas. Eu tinha certeza que elas estavam cheias de minhas ervas. — Ele está usando meu cinto de reserva?
— Sim. —Disse Barabas. — Ele de alguma forma colocou as mãos no cinto enquanto carregávamos suprimentos para o navio. Tentei tirar isso dele, mas isso realmente o aborreceu e eu não queria machucá-lo.
— Isso é bom. Deixe-o tê-lo.
Eu sorri para Christopher.
Ele suspirou feliz e sentou-se.
Desandra entrou no vestíbulo, escoltada pela Tia B e George. Doolittle a seguia em uma antiga cadeira de rodas. Desandra pousou na cadeira à minha esquerda. — Você está viva.
— Eu estou.
— Ninguém me disse. —Ela suspirou. — Ninguém nunca me diz nada.
Dei de ombros, sentindo o peso reconfortante da Matadora nas minhas costas. A tensão no ar era tão espessa que me coçava.
As luminárias a gás em forma de tochas no grande salão cintilaram. A conversa morreu.
Através das portas escancaradas da entrada da frente, eu podia ver o corredor principal. Ao longo da muralha, as velas piscavam em seus castiçais. O brilho constante cintilou. Um momento se passou e eu senti uma onda de magia se aproximando rapidamente. Alguém estava vindo. Ao meu lado, Curran ficou tenso.
Uma magia suja tomou conta de mim como se alguém tivesse empurrado minha mente para uma carcaça apodrecida.
Vampiros. Muitos deles.
As pessoas se viraram para olhar o corredor. Alguns se levantaram e se inclinaram sobre as mesas para ter uma visão melhor.
Berrantes151 soaram em coro, um som antigo e alarmantemente tenso com um aviso. Os tapetes nas paredes se agitaram.
As pessoas marchavam pelo corredor, vindo em nossa direção. Eles usavam preto e cinza e se moviam em uníssono, dois a dois. Eu me concentrei no par principal. Hibla andava à esquerda. Seu cabelo estava puxado para trás de seu rosto e ela olhou diretamente para mim com um olhar frio e predatório. Foi embora a mulher que me pediu ajuda e implorou silenciosamente atrás das grades da gaiola. Esta agora era uma assassina, disciplinada, gelada e letal. Uma insígnia familiar marcava seu peito: uma pequena estrela de cinco raios com um meio círculo acima e um triângulo comprido a direita: o antigo hieróglifo de Sirius152, a insígnia dos Cães de Ferro. A voz de Voron veio das minhas memórias de infância: ‘Se você vir esse símbolo, corra.’
— Fomos enganados, eles não são djigits, —eu disse. — Estes são os Cães de Ferro.
— O que são eles? —Perguntou Tia B.
— Unidade de Elite de Guerra de Roland. —Disse Curran.
— Quanto isso é ruim? —Mahon perguntou.
— Ruim. —Disse Curran.
Ruim era um eufemismo. Cada Cão era um assassino implacável altamente treinado. Eles usavam armas, usavam magia, e muitos deles não eram humanos e escondiam mais surpresas do que um canivete suíço. Um único Cão de Ferro poderia abater uma dúzia de soldados normais. Eles serviam como força de comando do meu pai. Hugh d'Ambray era o preceptor de sua ordem.
Olhei para o rosto de Hibla. Eu me senti mal por ela. Tentei ajudá-la. Caí completamente na conversa fiada dela, quando me contou que era uma moradora local. Como eu pude ser tão estúpida? Não importa. Lição aprendida.
O primeiro par de Cães de Ferro entrou no grande salão e se dividiu, de pé em cada lado da porta, parados em uma pose de descanso.
Dois homens e duas mulheres seguiram, vestindo impecáveis ternos de negócios. Enquanto a primeira mulher entrava pela porta, com seus saltos altos estalando silenciosamente no piso, um braço esquelético apareceu enganchado na borda superior da entrada. Um vampiro rastejava até o grande salão sobre a borda superior da porta, os músculos flexionando como cabos de aço esfregando um contra o outro sob a sua pele ressecada e pálida. Outro morto-vivo o seguiu. Eles subiram a parede parecidos com lagartixas predatórias grotescas, impulsionadas pela vontade dos navegantes.
Hugh trouxera seus Mestres dos Mortos. Isso estava ficando cada vez melhor.
Os Mestres dos Mortos assumiram posições atrás das filas duplas dos Cães de Ferro. Por um longo suspiro o corredor ficou vazio. Você poderia ouvir um alfinete cair. Os metamorfos congelaram, silenciosos e cautelosos.
Hugh entrou virando a esquina. Ele usava armadura de couro. Flexível, mas reforçado com placas de metal, moldava-se a ele como se tivesse sido derretido, derramado sobre o corpo e deixado endurecer. Calças de couro soltas, mas grossas, protegiam suas pernas. Protetores de pulso de couro endurecido e placas de metal protegiam seus pulsos. Uma tira de couro, provavelmente escondendo uma fina e flexível comada de metal, protegia seu pescoço. Ele veio pronto para lutar contra metamorfos. Atacá-lo com garras não seria muito útil.
Ele marchou pelo corredor, vestindo preto e coberto de magia. Parecia indestrutível. Logo descobriria que aparências enganavam.
— Salve a Hugh d'Ambray, —os Cães de Ferro entoaram em uníssono, sua voz um alto coro.
Hugh atravessou a porta e caminhou até a nossa mesa, direto para a cadeira de Desandra à minha esquerda.
— Você está no lugar errado. —Ele estendeu a mão.
Desandra piscou, levantou-se e pôs a mão na dele. Hugh levou-a para a cadeira à direita de Curran e puxou-a para ela. Ela sentou. Ele se virou e sentou em seu lugar, ao meu lado.
Ótimo.
— Você não trouxe o suficiente, —disse Curran em voz baixa.
— Será suficiente, —disse Hugh. Sua voz cresceu. — Em homenagem à caça, eu trago entretenimento para vocês.
Os Cães de Ferro deram três passos para trás, girando, movendo-se em uníssono até formarem uma linha ao longo da parede à nossa direita, atrás dos metamorfos de Jarek. Pessoas entraram na galeria de menestréis, carregando pequenos tambores redondos, acordeões e outros instrumentos. Uma fileira de homens entrou no grande salão, vestidos com casacos djigits idênticos pretos. Os músicos montaram seus instrumentos, ajustando-se e se acomodando.
Uma melodia selvagem começou, rápida e flexível, os tambores acelerados como o ritmo de um coração. Os homens giraram pelo chão, dançando como um bando de corvos graciosos, girando e pulando. O dançarino principal desceu e girou no palco de joelhos. Eu estremeci.
Hugh fingia estar absorvido na dança. O que você está tramando, seu bastardo?
Algo puxou meu jeans. Olhei para baixo com cuidado. Atsany estava debaixo da minha cadeira.
Só pode estar de brincadeira comigo.
O homenzinho acariciou minha perna com seu cachimbo, piscou e apontou para o lado. Olhei para cima. Astamur estava ao lado da porta, encostado na parede. Ele usava um longo casaco largo de lã preta que o cobria da cabeça aos pés. Um rifle descansava em suas mãos. Ele olhou diretamente para mim e seus olhos estavam sombrios. O Cão de Ferro mais próximo estava a poucos metros de distância e alheio ao homem atrás dele. Ninguém prestava atenção nele, como se não pudessem vê-lo.
Eu olhei para baixo. Atsany havia ido embora. Eu me inclinei para Curran. — Você o vê?
— Quem?
— Astamur. Na porta.
Curran franziu a testa. Eu olhei para trás. Astamur tinha ido embora também.
Certo, tenho certeza que acabei de ver isso. Isso não foi uma alucinação.
Os dançarinos entraram em suas poses finais. A música acabou. Hugh bateu palmas. Aplausos relutantes seguiram das mesas laterais.
— Vai haver uma peça a seguir? —Perguntou Curran. — Nunca pensei que você fosse o tipo de teatro no jantar.
— Prometo que será um show que você nunca esquecerá, —disse Hugh.
Um homem e uma mulher entraram. O homem, esguio e gracioso, usava a roupa preta do djigit, limpo e arrumado, o cabelo escuro penteado para trás. A mulher usava um vestido prateado que cobria da cabeça aos pés. Justo no busto e na cintura, o vestido se soltava na saia. Ela parecia um cisne. Seus cabelos negros caíam em quatro tranças, duas sobre o peito, duas nas costas, passando pela estreita cintura. Um pequeno chapéu empoleirado em seu cabelo brilhante, com um véu branco arrastando-o para esconder suas costas.
A mulher se virou, de pé ao lado do homem. Seu rosto era lindo. Eu senti uma chama de magia. Parecia antigo.
— Milhares de anos atrás, a família de Suliko entretinha os antigos reis da Geórgia, —disse Hugh. — Hoje ela nos honra com sua presença. Eles vão dançar o kartuli153 para nós. Sintam-se afortunados. Vocês não verão outra dança como essa.
Uma música começou com um solo de algum tipo de flauta de bambu de cana, tão antiga que rolava através de mim, familiar e nova ao mesmo tempo, como um eco de alguma memória hereditária enterrada dentro de mim, nos lugares em que a mente e a razão não podiam alcançar. O homem estendeu a mão. A mulher colocou os dedos nos dele. Ele a levou para frente. Eles se curvaram.
Magia rolou. Os metamorfos continuavam sentados indiferentes a ela. Isso não seria uma dança normal.
— O que você está fazendo? —Eu apertei meus dentes.
— Você andou escondida por tanto tempo, esqueceu quem é, —ele disse. — Esse é o seu chamado de despertar.
— O que está acontecendo? —Perguntou Curran.
— Magia. —Eu disse a ele.
— A sua não é a única família antiga, —disse Hugh.
Os tambores se juntaram as flautas de bambu em um ritmo rápido. Suliko e seu parceiro recuaram—ele se moveu na ponta dos pés com botas altas de couro, ela deslizava como se tivesse rodas—e se separaram, movendo-se para as extremidades da sala. A mulher ficou na ponta dos pés, os braços levantados, tão graciosa que era quase doloroso de assistir. O homem se aproximou dela, desenhando um grande círculo com os pés, um braço dobrado no cotovelo e pressionado até o topo do peito, o outro estendido para o lado. Ele parou, digno, esperando que a mulher aceitasse o convite. Ela fez e eles deslizaram pelo chão, os braços levantados, em sincronia, mas nunca se tocando, um corvo preto e um cisne branco.
Magia rondava sobre eles em fluxos invisíveis. Isso me segurou. Era impossível não os assistir.
Os dançarinos se separaram novamente.
A música se acalmou, as notas rápidas e selvagens da flauta diminuíram, mais cuidadosas do que rápidas. A mulher se moveu com graça de tirar o fôlego, deslizando para trás, girando ... tão bonito. Eu não conseguia desviar o olhar. A magia me segurava fascinada.
Desandra começou a chorar baixinho. Nas mesas laterais, mais próximas dos dançarinos, as pessoas choravam. A música era agora uma mera respiração, delicada e intrincada, me puxando para dentro. Suliko se virou ...
Hugh pegou uma faca e cortou minha mão. Magia jorrou do meu sangue direto para os complexos fluxos de magia ao redor da mulher, como um fósforo aceso jogado em uma sala cheia de vapor de gasolina.
A magia explodiu.
Curran se moveu. Agarrei seu braço antes que ele pudesse atacar Hugh em plena vista de uma dúzia de vampiros e dos Cães de Ferro. — Não!
Os fluxos giravam, faiscando com ouro e púrpura, e uma imagem transparente desdobrava-se, estendendo-se por toda a extensão do salão, flutuando alguns metros acima do chão. Na imagem, uma batalha sangrenta assolava um vasto campo. Fogo e relâmpago. Uma metralhadora cuspia balas verdes brilhantes. Os lutadores rasgavam um ao outro, metamorfos estripavam seus oponentes, vampiros rasgavam corpos em armaduras táticas. A carnificina reinava, o rugido, os foles e os gemidos dos moribundos se misturavam em um estrondo terrível.
Um corpo caiu de lado, dividido em dois e minha tia entrou em cena. Ela usava a armadura de sangue carmesim e carregava duas espadas. Sangue manchava seu rosto, seu cabelo balançando, solto. Os lutadores pararam em suas fileiras. Ela abriu a boca e gritou. Uma palavra de poder explodiu dela. A magia se apoderou dos lutadores, mutilando os corpos, reta como uma flecha. Minha tia rasgou os corpos, a magia fluía como um dervixe em um padrão rápido como um raio, cortando membros e pulverizando sangue, imparável, sem piedade.
— Essa é a minha garota. —Hugh sorriu.
Minha tia entalhou um metamorfo urso, estripando-o ao meio com um golpe preciso, e eu vi sua espada.
Ela carregava a Matadora.
O cabelo na parte de trás do meu pescoço subiu. Não era minha tia. Minha tia estava morta. Essa sou eu. Eu me vi destruindo, ceifando vidas, cuspindo magia e trazendo a morte. À esquerda, uma massa de corpos explodiu e Hugh rugiu, coberto de sangue, com um machado ensanguentado na mão. Kate e Hugh se aproximaram, de costas um para o outro, a armadura de sangue vestindo-os. Por um breve momento ficaram sozinhos na carnificina, e então se separaram e voltaram para a batalha.
A visão desapareceu. Suliko estava de pé, com o rosto chocado.
— Que diabos é isso? —Jarek Kral rosnou.
— O futuro, —disse Hugh.
De jeito nenhum. Não, isso não seria meu futuro. Não se eu tivesse algo a dizer sobre ele.
— Não! —Suliko acenou com os braços. — Um dos futuros! —Sua voz acentuada vibrou com urgência. — Necessariamente não será esse. Esse é uma das possibilidades!
Ela gritou alguma coisa para Hugh em uma língua que eu não entendia. O homem se moveu entre ela e Hugh, protegendo-a.
— Você mentiu! —Suliko gritou.
Seu parceiro a conduziu para fora. Os músicos fugiram.
— Não importa o quanto você lute, você é o que é, —Hugh disse para mim. — Seu homem sabe disso também, não sabe, Lennart?
— Chega. —Curran resmungou. — Acabe com essa besteira, d'Ambray. Vamos lá. Você e eu.
Lorelei se levantou e foi até a nossa mesa.
— Você fala demais, —disse Hugh. — Acha que pode mesmo comigo?
Fiquei em pé e levantei meus braços, separando-os. — Senhoras, vocês são encantadoras. Mas nós ainda temos um trabalho a fazer. A última vez que verifiquei, ainda erámos responsáveis pela segurança de Desandra.
Os dois homens se encararam. Eles obviamente não davam a mínima para Desandra.
— Eu desafio você. —Lorelei apontou para mim.
Coloquei minha mão sobre meus olhos.
— Senta e cale a porra da boca, —Hugh disse a ela.
— Ela vai te matar, —disse Curran. — Vá se sentar.
Lorelei abriu a boca.
— Sente-se! —Curran rugiu.
O rosto de Lorelei ficou vermelho. Ela se afastou. Deve ter se preparado para esse momento, e ser mandada de volta ao seu assento não fazia parte da fantasia.
Uma segunda Lorelei entrou pela porta da entrada.
Hugh xingou. A primeira Lorelei ofegou.
A segunda Lorelei piscou para Curran e caminhou na nossa direção. Seu corpo fluía como cera derretida, reformando-se e transformando-se em um novo corpo, masculino, magro e careca. Saiman levantou um documento e colocou na frente de Curran.
— Como me foi pedido. O que eu perdi?
Curran pegou o documento e o analisou. — George?
George deu um passo em direção a ele e examinou o documento. — Sim. Assinado e com firma reconhecida. É legalmente incriminatório.
— Mostre para ele.
George se aproximou e colocou o papel na frente de Jarek Kral. Os olhos dele se arregalaram. — O que é isso?
— Este é um contrato entre você e Lorelei Wilson, no qual você promete que matará a minha Consorte, para que Lorelei possa tomar seu lugar, —disse Curran. — Em troca, ela deverá fornecer a você um dos nossos futuros filhos.
Todos falaram juntos imediatamente.
— Seu desgraçado! —Desandra ficou em pé rapidamente. Uma mistura de palavras estrangeiras e em inglês saia dela. — Seu filho da puta. Prefere ter um filho dele do que um dos meus?
— Curran é um Primeiro. —Jarek rugiu. — Será uma criança capaz de governar. Não qualquer porcaria que venha de você.
O vestido de Desandra rasgou. Fragmentos de tecido caíram no chão e uma enorme loba em forma de guerreiro correu para a mesa em direção a Jarek. Droga.
— Não! —Doolittle gritou. — Não a forma de guerreiro não!
Desandra deu um salto para a frente, agachando-se na mesa. Jarek se levantou, com o rosto enojado. Seu corpo expandiu, o pêlo encobrindo seus membros. — Você não ousaria ...
Ela bateu, as enormes garras como foices. Um pedaço da garganta de Jarek voou no ar. Eu peguei um vislumbre de sua espinha, sangrenta e rasgada. O sangue jorrou. O enorme metamorfo lobo que era Jarek Kral saltou sobre a mesa em direção a sua filha.
A voz de George soou. — Desafio aceito!
Renok e o homem careca ficaram de pé. Eu pulei para a mesa e puxei a Matadora para fora. Oh não, vocês não.
— Interfiram e irão morrer, —disse Curran.
O pessoal de Jarek parou.
Os dois lobos rolavam pelo chão, rosnando e mordendo. Jarek mordeu o braço esquerdo de Desandra. Ela martelou um soco vicioso em seu rosto e rolou em cima dele. Jarek tentou se afastar. Desandra levantou a mão e bateu no peito dele. Costelas quebradas como palitos de dentes. Desandra enfiou a mão no peito do pai, arrancou o coração dele e jogou-o no chão.
Todos pararam.
— Apodreça no inferno, seu bastardo. —Desandra se endireitou, suas mãos em garras monstruosas sangrentas. — Alguém mais quer levar meus filhos? Qualquer pessoa? Vamos!
Ela girou, apontando a mão para os Belve Ravennati, Volkodavi e o pessoal Jarek. — Estou esperando!
Ninguém se mexeu.
O rosto monstruoso de Desandra se sacudiu. Ela caiu para trás, se transformando de volta e pousou de costas. A sua barriga se movimentou em contração. — Os bebês!
— Ela está entrando em trabalho de parto, —disse Doolittle com voz entrecortada. — Eu preciso me aproximar.
Renok arrancou uma espada da parede e pulou, apontando para Desandra. Enquanto eu cobria a distância por cima da mesa, soube que chegaria tarde demais.
Uma flecha da besta de Andrea cravou no pescoço de Renok. Ele ignorou se lançando para Desandra.
Eu corri, tentando espremer a velocidade de cada fração de segundo.
A espada subiu em um arco de metal reluzente e desceu como um machado de carrasco. George se empurrou entre Renok e Desandra, e eu vi em câmera lenta, como se o tempo congelasse, o brilho da lâmina de metal enquanto ela descia, o ângulo do corte e o momento exato em que a lâmina decepou o ombro direito de George. O sangue carmesim cobriu a lâmina que passou através da articulação do ombro, de músculos e ossos com facilidade ridícula.
O braço de George deslizou do corpo dela e caiu.
Eu enfiei a Matadora no peito de Renok e fiz um buraco em seu coração.
George agarrou o pescoço de Renok com a mão esquerda, apertou-o e empurrou-o para trás. Ele voou e bateu na mesa. George escorregou em seu próprio sangue e caiu ao meu lado.
Mahon rugiu. Seu rosto se contorceu, seus olhos ficaram loucos e um enorme urso pardo Kodiak atacou o lobo caído, quase me derrubando.
Curran pousou ao meu lado, pegou Desandra e pulou a mesa, colocando distância entre nós e o enfurecido Kodiak. Derek pegou George e seu braço do chão e o seguiu. Corremos para os fundos do grande salão.
Mahon esmagou Renok e outro metamorfo lobo se transformou. O pessoal de Jarek ficou furioso em um flash de dentes e garras.
— Droga! Tudo foi para o inferno, —Hugh rosnou. — Não se envolvam.
Os Cães de Ferro recuaram.
— Formar um perímetro! —Eu gritei e puxei minha espada para fora. Andrea estava ao meu lado à direita, Raphael ao lado dela, Eduardo e Keira à minha esquerda. Nós nos tornamos um semicírculo, protegendo Desandra. Ela gritou.
A Tia B rasgou uma cortina e deixou cair no chão. Curran abaixou Desandra no chão, virou-se e pulou, mudando de forma enquanto caminhava. Momentos depois Curran rasgava os metamorfos lobos do bando Oblunda ao lado de Mahon. Os dois bandos restantes se afastaram, encostados a parede para evitar serem pegos na carnificina.
George gemeu nos braços de Derek.
— Calma, —ele disse a ela.
— Estou bem, estou bem, —disse George.
Preciso de água limpa —gritou Doolittle. Beatrice ...
— Estou aqui, —disse a Tia B. — Não é minha primeira vez que vou reconectar um membro.
— Posso ajudar? —Perguntou Saiman.
— Você já fez um parto? —Doolittle perguntou.
— Sim, fiz.
— Bom. Temos que fazer uma cesariana. Um de seus filhos está tentando matar o outro.
— Fascinante, —disse Saiman.
Um lobo correu em nossa direção. Eu cortei suas pernas, Raphael cortou sua garganta e Andrea atirou no coração dele.
Isabella marchou para nós, seus filhos a reboque. — Quero assistir ...
— Não. —eu avisei.
Ela abriu a boca. Eduardo se mexeu, ganhando centímetros de altura e largura e rugiu para ela. Isabella deu um passo para trás.
Desandra uivou, um grito agudo de pura dor.
Na outra parede, Curran e Mahon se enfureciam, dilacerando lobos. O último dos corpos desgrenhados parou de se mover. Curran e o urso gigante eram os dois únicos que restavam em pé. Mahon balançou e atingiu Curran, garras enormes arranhando em uma trilha sangrenta ao longo de seu lado. Curran rugiu. Mahon se levantou em suas patas traseiras. Curran se adiantou, trancou os braços no urso e o levou ao chão.
— Sou eu, —ele disse.
Mahon rosnou.
— Sou eu, —repetiu Curran. — George está segura. Vai tudo ficar bem.
Eu segurei minha respiração. Às vezes, os metamorfos ursos quebravam e iam a loucura. Foi assim que Curran se tornou o Senhor das Feras, —ele havia matado um metamorfo urso enlouquecido. Mas Mahon esteve sempre calmo. Ele estava sempre no controle ...
Mahon se levantou, jogando Curran de lado como se não pesasse nada. Curran pousou de lado e ficou de pé. O urso gritou e correu direto para a porta, tirando-a das dobradiças. Um momento e ele desapareceu no corredor.
— Malditos animais, —disse Hugh, desgosto no rosto.
Uma voz profunda rolou pelo castelo. — Já vi o suficiente.
Tudo parou. Astamur estava na porta.
Hugh se virou. — Quem é você?
Astamur abriu a boca. Nenhum som veio, mas eu o ouvi na minha cabeça, claro como se ele estivesse ao meu lado.
— Eu sou o pastor.
O rifle em suas mãos fluiu, como se estivesse líquido, transformando-se em um cajado comprido. Astamur olhou para Hugh. — Por vinte anos eu te observei. Você é ruim para esta terra. Você é ruim para o meu povo. Diga ao seu mestre que ele não era bem-vindo nessas montanhas quando era jovem e que ainda continua não sendo bem-vindo.
— Que fofo, —disse Hugh. — Mate-o.
O Cão de Ferro mais próximo se moveu em direção ao pastor.
Astamur levantou seu cajado. Senti uma faísca, uma pequena pitada de magia, como um vislumbre de uma nuvem de tempestade titânica em um relâmpago. A ponta de baixo do cajado bateu no chão. Uma luz branca brilhante nos afogou, como se uma estrela se abrisse e nos engolisse inteiros.
O chão tremeu. O trovão caiu, batendo meus tímpanos com um punho de ar. Ao meu lado os metamorfos apertavam as orelhas, gritando. O chão estremeceu sob meus pés. Eu pisquei, tentando limpar minha visão. As coisas entraram em foco devagar: no espaço vazio onde Astamur estava, uma rachadura cada vez maior subia pela parede. Uma brecha cortava o chão à minha direita, com um metro e meio de largura e percorrendo todo o salão até o corredor. Chamas azuis brilhantes saíram do buraco, cortando o grande salão em dois. Nós, o Volkodavi e os vampiros estávamos de um lado. Curran, Hugh, os Cães de Ferro e os Belve Ravennati estavam do outro.
Astamur dividira o castelo em dois. Puta merda.
Eu me virei para Curran. As chamas queimavam entre nós.
Curran começou a correr.
Um vampiro caiu do teto no fogo, explodindo em chamas. O fogo queimou a carne morta-viva. Ele brilhou intensamente como fogos de artifício e desapareceu em uma nuvem de cinzas.
— Não!
Curran parou, evitando as chamas no último segundo. Oh deus. Eu exalei.
Desandra gritou, e então uma criança chorou, um fraco som lamentoso. Eu olhei para trás. Saiman levantou um menino recém-nascido, molhado e ensanguentado. Um momento depois, Doolittle entregou uma segunda criança à Tia B. Ela se virou. A coisa em seus braços não era um bebê humano. Não era um lobo, não era um gato, era uma criatura estranha coberta de escamas macias, o começo de asas rudimentares saído de suas costas. A criatura gritou e tentou morder a Tia B.
— Seu primogênito é um lobo, —disse Doolittle.
A expressão desnorteada saiu do rosto de Radomil, deixando uma inteligência implacável no lugar.
— Já chega, —disse Radomil. — Mate todos.
Os Volkodavi rosnaram em uníssono. Suas peles humanas se romperam. Carne e osso ferviam, escamas cobriam os novos corpos e uma dúzia de lamassu levantou voo.
As chamas explodiram com laranja brilhante. O calor me banhou. O castelo rugiu novamente. Outro estrondo de trovão rolou, ofuscando os metamorfos. A rachadura se partiu de lado, separando metade do lamassu de nós.
— O castelo está se partindo, —disse Tia B. — Nós precisamos ir.
— Não sem Curran. —Eu puxei a mágica para mim. Talvez uma palavra de poder funcionasse. No lado oposto, Hugh disse alguma coisa e cambaleou para trás, como se alguém tivesse enfiado uma espada em seu estômago. Aposto que foi uma palavra de poder que saiu pela culatra. Nada mudou. As chamas continuavam a queimar.
Certo, risque a ideia da palavra de poder.
— Kate? —Keira perguntou. — O que nós fazemos?
Tínhamos que dar o fora daqui, antes que o castelo desmoronasse e mergulhasse do penhasco. Nos corredores, o lamassu não poderia nos atacar. Nós teríamos a vantagem.
Eu me virei para as chamas.
— Vá! —Curran gritou para mim através do fogo. — Vou te encontrar.
Não havia nada que eu pudesse fazer para ajudá-lo. Eu tinha que tirar nosso pessoal de lá e então eu voltaria e o encontraria.
— Estou voltando!
— Eu sei! —Ele acenou para mim. — Vai!
Eu me voltei para os metamorfos. —Pegue Doolittle, George e Desandra. Estamos dando o fora daqui.
— Não a deixe ir, —berrou Hugh para os Mestres dos Mortos. — Capture-a! Quero-a viva!
— Você não vai tocá-la, —rosnou Curran e atacou Hugh.
Eu queria ficar de pé e assistir. Queria saber que ele ficaria bem. Em vez disso, corri para a porta. Quanto mais cedo encontrasse uma maneira de tirar nosso pessoal daqui, mais cedo eu poderia ajudá-lo.
Barabas agarrou o lobo recém-nascido, enfiou-o nos braços de Desandra e levantou-a do chão.
Derek pegou Doolittle da cadeira, Tia B pegou George e Christopher acabou de alguma forma com o bebê lamassu. Eles me seguiram.
Um lamassu desceu sobre nós. Andrea atirou. A flecha mordeu o olho da fera. O lamassu girou, cambaleou e voou para o fogo. Seu corpo explodiu em chamas brancas. O fogo cresceu, ampliando a lacuna.
Uma porta bloqueava nosso caminho. Eu choquei meu ombro na madeira e bati de volta.
— Eduardo! —Eu gritei.
O metamorfo búfalo arrancou a porta. Estilhaços voaram.
Outro lamassu mergulhou em nós. Keira pulou, girando no meio do caminho. Uma pantera negra em forma de guerreiro golpeou o lamassu no ar. Ele caiu. Nós pulamos na carne laranja. Keira mordeu a garganta, arrancando grandes pedaços de carne.
O lamassu convulsionou, batendo uma asa contra o chão.
— Vá! —Eu gritei.
Os metamorfos passaram por mim indo pelo o corredor.
— Keira!
Ela se afastou do lamassu, alcançou a porta em dois grandes saltos e correu. Eu a segui.
— Mate-o. —berrou Hugh no corredor. O rugido de Curran respondeu. Ele estava me salvando de novo. Eu tinha que voltar e encontrá-lo. Eu tiraria nosso pessoal e então eu o encontraria.
Nós estávamos no lado sul, enfrentando um penhasco. Chamas bloqueavam o corredor à direita. Correr para a esquerda, para o leste e depois para o norte era a nossa única opção.
Um lamassu bateu na porta, derrapando na parede e nos perseguiu. Não havia espaço para manobrar nem para ele ou para nós.
Keira tentou passar por mim. Eu estendi minha mão, puxando-a. Hugh ou não, eu tinha que tirar meu pessoal do castelo.
Eu cuspi uma palavra de poder. — Aarh. Pare.
Magia foi arrancada de mim. Doeu muito, o mundo piscou. O lamassu congelou, seus membros paralisados. Keira passou correndo por mim. De repente uma enorme bouda malhada saltou sobre a minha cabeça e rasgou o lamassu, cortando seu pescoço com um golpe de garras. — Corra, —gritou Tia B. — Nós vamos acompanhar.
Corri e virei a esquina. Quatro corredores diferentes se ramificavam do principal. Droga, Hugh. Se eu sobrevivesse, o encontraria e o espancaria na cabeça com uma dessas pedras usadas para construir este maldito labirinto. Eu girei e vi a camisa branca de Barabas enquanto ele desaparecia atrás de uma esquina à direita. Eu corri atrás dele.
Keira e Tia B me alcançaram, ambas sangrando. Nós corremos pelo corredor. A esquina se aproximando. Barabas apareceu na esquina novamente, retornando e carregando Desandra, correndo a toda velocidade. Eu me joguei contra a parede, saíndo do caminho deles. Todos eles passaram por mim, voltando.
— Vampiros! —Andrea gritou quando passou por mim.
Magia dos mortos-vivos me alcançou, inchando como uma onda ao virar da esquina. Dane-se tudo para o inferno.
Girei cento e oitenta graus e os segui. Ao meu lado, Christopher estava sorrindo, correndo com um bebê agora humano em suas mãos. — Isso é tão divertido!
Isso tinha que ser algum tipo de pesadelo distorcido.
Nós dobramos a esquerda rapidamente, então outra, e irrompemos em outro corredor, paralelo ao primeiro. A revoltante magia dos mortos-vivos me invadindo. Os sanguessugas vinham atrás de nós e da direita, tentando nos prender. Um, dois ... Quatorze. Quatorze mentes de mortos-vivos.
Nós tínhamos Desandra, que mal estava consciente, dois bebês, Doolittle, que não podia andar, e George, que estava totalmente inconsciente. Não havia como vencer essa luta.
Eu parei e me virei.
— Senhora? —Christopher chamou.
— Kate? —Andrea parou ao meu lado. — O que você está fazendo?
— Os vampiros estão me perseguindo, não vocês, —eu disse. — Vão. Vou lutar com eles.
— Nem pense nisso, —disse Andrea. — Eu vou carregar você se for preciso.
— Eu sou sua alfa.
— Inferno, eu sei que você é.
Eu levantei a Matadora e cortei o meu antebraço esquerdo. O sangue jorrou, sua magia afiada. — Tirem nossos amigos e Desandra deste castelo. Proteja a panaceia. Isso é uma ordem.
Ela hesitou.
— Eu sei o que estou fazendo. Vá!
— Estou voltando para você.
— Bom. Vai!
Ela correu. Quem disse que eu não era uma boa mentirosa?
Os mortos-vivos estavam se aproximando. Eu me virei e entrei no corredor lateral, movendo-me devagar, sacudindo meu braço esquerdo de vez em quando. Vamos lá, tubarões. Há sangue na água.
A passagem curta terminou em uma escada. Bom, já que cheguei até aqui, subir não custa nada. Quanto mais longe eu atraísse esses caras, melhor.
Cheguei ao andar seguinte. Um quarto redondo estava diante de mim, o último andar de uma torre baixa sob um teto simples. Janelas arqueadas transformaram a parede em uma moldura de pedra para um céu noturno. Um lugar tão bom quanto qualquer outro.
O ar cheirava a fumaça espessa. À esquerda e à direita, o castelo queimava. Chamas saíam das fissuras fraturando as paredes de pedra.
Os vampiros estavam quase em meus calcanhares.
Parei no centro da sala e levantei minha espada. Eu provavelmente poderia pegar alguns dos mortos-vivos com a minha mente, mas qualquer Mestre dos Mortos treinado estaria lutando pelo controle, e os caras de Hugh provavelmente não seriam amadores fracos.
O primeiro vampiro correu para fora da abertura e se moveu para a minha direita. Movia-se de quatro, como se nunca tivesse andado na vertical. Uma pele espessa e pálida protegia seu corpo, a rede de músculos magros correndo sobre suas costas e membros. Eu poderia contar cada costela. Um cume espetado ao longo de suas costas. Sua cabeça se esticava para a frente como se alguém tivesse pegado os ossos do crânio e o puxado para apoiar as mandíbulas enormes. Um vampiro pré-Mudança.
Quanto mais velho o vampiro, mais o patógeno Immortuus transformava o corpo humano original. Este era realmente muito velho. Não havia nenhum traço do que já foi uma pessoa.
O sanguessuga me encarou com brilhantes olhos vermelhos, como dois carvões em um velho fogo. Eu encontrei vampiros pré-Mudança antes e sempre em conexão com meu pai. Eles não deveriam existir. Antes da mudança, não tínhamos magia, mas havia uma abominação letal e morta-viva.
Outro sanguessuga se juntou ao primeiro. Eles me encararam com olhos famintos, cheios de fome sem fim. Se suas mentes fossem soltas, eles me chacinariam e continuariam até que ficassem sem coisas para matar. Apenas o aperto mental de aço dos Mestres dos Mortos os manteria sob controle.
A horda de mortos-vivos se espalhou pela sala.
O primeiro sanguessuga desequilibrou suas mandíbulas e uma voz masculina fria e clara saiu. — Baixe sua espada. Coloque as mãos na parte de trás da sua cabeça.
Eu simplesmente olhei para ele. Eu podia sentir a mente do morto-vivo, uma mente odiosa no crânio quase vazio.
— Abaixe sua espada ou seremos forçados a subjugá-la.
Subjugar-me, hein. — Por que vocês não tentam?
Um vampiro se lançou para as minhas pernas. Eu cortei seu pescoço. Minha lâmina quase nem roçou. O sanguessuga caiu. Sangue de morto-vivo pingava no chão. O sangue me chamou, a magia tremendo e girando, viva por conta própria.
— Não há necessidade de violência.
Eu ri. As brilhantes faíscas da mente do vampiro me provocavam. Eu sempre quis esmagar um. Bastava apertá-lo com a minha magia até que ele explodisse como uma pulga entre duas unhas. Eu nunca havia tentado. Sempre tive que esconder meu poder.
O morto-vivo mudou de posição, movendo-se para o ataque. Eles me atacariam em um minuto.
— Quando um vampiro morre enquanto o navegador está controlando sua mente, o cérebro do navegador pensa que ele morreu em vez do vampiro. Dois resultados são possíveis, —eu disse, reunindo minha magia. — Um, o navegador fica catatônico, ou dois, ele enlouquece.
Os vampiros me encararam.
— Qual resultado que vocês acham que irá acontecer?
— Prendam-na. —Disse o homem.
Soltei a minha magia e agarrei as mentes dos mortos-vivos mais próximos e apertei. As cabeças dos três vampiros bem na minha frente explodiram. Uma névoa sangrenta salpicou as pedras e nos sanguessugas vizinhos. Sangue de mortos-vivos derramava no chão de pedra. Dois vampiros mais atrás gritaram com uma voz alta e feminina, um uivo sem sentido.
Um vampiro pulou em mim. Eu o fatiei com Matadora, agarrei mais mentes e apertei novamente. Mais cabeças explodiram, o espirro de sangue morto-vivo se espalhou como cravos carmesim. Sua magia me implorando para tocá-lo.
Outro sanguessuga saltou, enquanto o terceiro arrastou suas garras pelas minhas costas. Eu esmaguei suas mentes uma por uma, até restar apenas um, aquela cujo navegador ordenou que eu me rendesse.
Sangue quente pintava as pedras da torre ao meu redor. Seu perfume me envolveu. Sua magia me chamou, me puxando, implorando, esperando e ansiosa, como um gato arqueando as costas por um carinho. O que eu tenho a perder de qualquer maneira?
Eu estendi a mão e respondi a chamada do sangue.
Todo o sangue dos mortos-vivos correu para mim, derramando-se dos cadáveres sem cabeça, fundindo-se em riachos como capilares fluindo nas veias. O líquido espesso e viscoso se acumulou ao redor das minhas pernas. Eu espremi o corte do meu braço esquerdo e deixei o sangue do ferimento pingar na poça vermelha abaixo.
A primeira gota caiu e a reação desencadeou através de mim, como uma descarga de adrenalina. O sangue se retorceu sobre mim, de repente maleável. Ela cobria meus pés, minhas pernas, subindo pela minha cintura, cobrindo meu corpo. Não estava bem formada, não era uma armadura, mas um casaco flexível que parecia uma camada extra de pele, que envolvia a minha volta como seda carmesim. Parecia que eu estava sonhando.
O vampiro solitário se ajoelhou em um joelho e inclinou a cabeça. — Minha Senhora, —disse o navegador.
Eu levantei minha mão. O sangue escorreu pelo meu antebraço, endurecendo, formado um tridente154. Empurrei a arma de sangue para frente. Os olhos do sanguessuga brilharam em vermelho vivo—o Mestre dos Mortos abandonou a mente do vampiro—e eu enfiei o tridente no crânio, destruindo sua porcaria de cérebro.
O tridente desmoronou em pó. O sugador de sangue tombou. Eu me movi e o sangue se moveu comigo, flexível e leve. Então era assim que se fazia armaduras de sangue.
Um rugido rasgou a noite. Um gigante lamassu varria o céu em minha direção. As escamas em seu estômago brilhavam de laranja, refletindo as chamas abaixo. Lindo ... tão grande, como um dragão levantando voo. Ele se aproximou e bateu no telhado da torre. Pedras choveram ao meu redor. Um pedaço bateu no meu ombro e se chocou com a armadura. O vento das asas do lamassu bateu no meu rosto.
Ele virou-se, mergulhando para mim.
A realidade esmagou a magia suja que prendia o meu cérebro, quebrando a neblina hipnótica. Ah Merda.
Eu me abaixei, mas era tarde demais. As garras engancharam em meus ombros, perfurando a fina camada da armadura de sangue. Minhas pernas deixaram o chão. Cerrei meus dentes e o apunhalei direto com a Matadora, bem no intestino da besta, não foi o suficiente para causar danos sérios, mas o suficiente para fazê-lo ficar atento. O fogo brilhava abaixo de mim, as estruturas do castelo pareciam ilhas de pedra em um mar de chamas. O lamassu inclinou-se, balançando-se acima de uma alta torre quadrada. O topo da torre principal. Agora era minha chance.
Fiz força e empurrei mais ainda a Matadora para cima, de novo e de novo, atingindo os músculos com a minha espada. O sangue escorria pela lâmina pálida. Me solte. Me solte, seu filho da puta.
Com um rugido estrondoso, a fera me soltou. Eu mergulhei no ar, dobrando meus joelhos. O impacto socou meus pés. Aterrissei na ponta dos pés, rolei para frente, tentando espalhar a força de colisão e fiquei em pé.
Estávamos no topo da fortaleza, um quadrado de pedra. O lamassu pousou no final, seus distintos olhos verdes furiosos e familiares. Radomil.
O lamassu andou pata sobre pata, a boca cavernosa aberta.
Eu flexionei meu pulso esquerdo, peguei uma ponta afiada de prata do meu protetor de pulso e coloquei na palma da minha mão. Eu costumava ter agulhas finas, mas agora podia comprar mais prata.
Radomil baixou a cabeça, os músculos tensos.
— Pode vir. —Puxei magia para mim. A palavra de poder deu certo a última vez. Tentaria uma segunda vez.
Ele atacou.
Eu corri. — Aarh! Pare.
A dor de uma palavra de poder explodiu na parte de trás do meu crânio. A escuridão me assaltou. A dor me levou por um momento, mas voltei a realidade rapidamente.
O tempo diminui sua velocidade.
Radomil ficou congelado no meio do caminho. Eu bati a ponta afiada de prata em sua garganta, o esfaqueei com a Matadora em seu intestino, e empurrei a lâmina, enterrando-a com toda a minha força, abrindo um buraco em seu abdômen, da frente de seu corpo até as suas costas.
As pernas de Radomil tremeram. Puxei um saco de grânulos de prata em pó do meu cinto, rasguei-o e esvaziei-o na ferida.
Radomil virou-se. Garras correram pelas minhas costas. Parecia que alguém tinha pingado metal derretido na minha espinha.
Eu corri.
Neste momento prata estava queimando suas entranhas. Quanto mais tempo suas entranhas fossem derretidas, menos trabalho eu teria que fazer. O som de patas enormes batendo atrás de mim me perseguiu, bloqueando o som do fogo. Eu me lancei para o lado. Ele passou correndo por mim e girou, rosnando. Sangue cinza molhava o corte. Fervendo com prata, o corte se recusava a fechar, e seu corpo acelerava o sagramento, tentando limpar o metal venenoso de seu sistema.
Radomil balançou e me atacou. Uma grande pata felina desceu em mim. Eu fatiei com minha espada. Ele bateu em mim novamente, como um gato doméstico tentando rasgar um brinquedo, exceto que Radomil tinha quarenta vezes o tamanho de um gato doméstico. Eu cortei sua pata.
Radomil me bateu. Eu agarrei suas escamas e apunhalei seu peito com minha espada. Ele saltou para cima, as asas batendo, rugindo de dor e me levando com ele. Pendurada em seu pescoço a quatro metros acima do fogo que ardia abaixo. Me soltar era morrer. Radomil dobrou-se no ar. As garras de suas patas traseiras rasgaram minha armadura, desceram pelo meu lado e penetraram profundamente na minha perna direita. Meu corpo todo doía tanto que eu não me importava mais.
Radomil voltou para a torre, gritando. O buraco em seu estômago estava aberto. Agora ou nunca. Apunhalei minha espada diretamente na ferida. Radomil mergulhou. Minha mão escorregava do punho da espada. Por um meio segundo desesperado, segurei-me e caí. Não houve tempo para me preparar para o choque. O corpo laranja bateu na pedra com um baque molhado. Eu caí ao lado dele.
O mundo rodou. O ar desapareceu, sugado do Universo. Engoli em seco como um peixe em terra firme, tentando inalar e fracassando. Não desmaie. Apenas não desmaie.
Meus pulmões se abriram. Eu inalei o ar arruinado pela fumaça, tossi e rolei na vertical. Meu braço esquerdo estava mole. Doía muito, eu não sabia se estava quebrado. A umidade quente corria pelas minhas costas. Eu estava sangrando.
O corpo laranja estremeceu e derreteu de volta na forma humana. O lindo rosto de Radomil olhava para o céu.
Tudo doía. Doía muito, eu não podia dizer onde a dor era pior. Mas eu ainda estava respirando.
Sem a armadura, eu estaria morta. Suas garras teriam me matado.
Cambaleei para os meus pés e me arrastei até a porta que descia. Uma muralha de fogo me cumprimentou. O calor me empurrou de volta. Fora de questão. As chamas me cozinhariam em dois segundos.
Manquei para o lado leste do castelo e olhei para baixo. O chão era sólido, as pedras encaixadas tão próximas que bem poderiam ser um único bloco liso de asfalto. De jeito nenhum. Com uma corda talvez, e até assim seria arriscado. Sangrando, sem corda, e com um único braço, não.
Chamas enchiam o pátio. Os telhados das torres laterais haviam caído e as vigas enegrecidas despontavam como troncos na lareira. Rachaduras cheias de chamas laranja e azul fraturavam o enorme edifício.
O castelo estava se partindo. Parecia o inferno na Terra.
As portas de uma torre lateral explodiram. Formas peludas saíram delas—metamorfos em meia forma rompendo o caminho para os portões. Eu vi a camisa azul de Christopher. O familiar metamorfo leão cinza estava faltando. Curran não estava com eles. Ele não tinha conseguido sair. Onde está você?
Inalei uma lufada de ar cheio de fuligem e gritei. — Ei! Andrea! Olhe para cima!
Eles não me ouviram. Estavam correndo muito rápido, do jeito que alguém corre quando perseguido.
Pessoas em preto e cinza saíam pelas portas. Os Cães de Ferro, pelo menos quinze, provavelmente mais.
Os metamorfos corriam através do fogo. As costas desgrenhadas de Derek queimavam, o pêlo se acendeu em um flash. Ele continuou correndo, carregando Doolittle para frente. Os Cães de Ferro seguiram como se o fogo não estivesse lá.
Vão! Eu desejei. Vão!
Um bouda esbelto e mais escuro parou e se virou. Raphael. Andrea derrapou até parar, uma criatura bestial, menor que Raphael.
O primeiro Cão de Ferro caiu sobre eles, um homem alto e magro, brandindo um machado. Magia acendeu e mordeu Andrea no peito. Ela rosnou e arranhou o lado do Cão de Ferro. Raphael rasgou o estômago do Cão. O homem balançou o machado sem se importar com suas entranhas de fora. O machado roçou Raphael. O bouda bateu de lado e cortou a garganta do homem.
Raphael e Andrea se afastaram em direção aos portões.
Uma mulher enorme, de dois metros de altura e vestindo armadura, correu para eles. Eduardo se virou e investiu de volta para a luta. Andrea e Raphael deram um passo para o lado e Eduardo se chocou contra a mulher.
Eles lutaram, trancados em uma luta mortal. Eduardo a segurou e Raphael e Andrea a rasgaram de ambos os lados. Ela estremeceu.
Nos portões, Tia B entregou George a Keira, virou-se e voltou.
Os três metamorfos arrastaram a Cão de Ferro para baixo, rasgando-a. Um braço voou, jogado de lado.
O resto dos Cães estava quase neles. Eu apertei meus punhos. O que vocês estão fazendo? Vão! Corram.
A Tia B agarrou Raphael e Andrea pelos ombros e os atirou de volta. Eduardo ergueu-se. Ela gritou para ele. Ele hesitou por um momento e correu em direção aos portões. Tia B o seguiu.
Os Cães de ferro estavam se aproximando, Hibla na liderança.
Raphael e Andrea atravessaram os portões. O metamorfo búfalo corria com a Tia B em seus calcanhares.
Não adiantaria. Os cães os perseguiriam até o navio. Esse navio não conseguiria sair rápido o suficiente.
Tia B parou diante dos portões.
Não, não!
Ela bateu na trava ao lado do portão. A porta de metal caiu, separando-a do resto dos metamorfos.
Andrea gritou. Eu a ouvi, mesmo através do rugido do fogo. Raphael pegou a grade de aço.
A Tia B se plantou em frente ao guincho. Ela poderia escalar a parede, mas ficou onde estava.
Ela estava conseguindo tempo para o seu filho e Andrea.
Alguém puxou Raphael para longe da ponte levadiça do outro lado.
Os Cães de Ferro estavam quase lá.
Eu tinha magia para mais uma palavra de poder em mim. Mais uma. Eu não estava saindo desta torre de qualquer maneira. Eu juntei a magia fraca que tinha sobrado e gritei. — Osanda. Ajoelhem-se, seus bastardos.
O mundo ficou vermelho. A dor me dobrou ao meio. Eu caí sobre o parapeito. Magia queimava meus lábios—o sangue escorria do meu nariz para meu rosto.
Três Cães de Ferro afundaram os joelhos no chão. O resto fechou Tia B. Minha magia não chegou longe o suficiente. Não chegou a todos eles.
O primeiro Cão de Ferro saltou, anormalmente alto. Ele navegou sobre as chamas, seu rosto humano se transformando em algo monstruoso, inumano e coberto de agulhas. A Tia B empurrou-o para fora do ar, abriu o estômago e atirou-o ao fogo. Ele se agitou, queimando.
Corra! Vá, suba a parede, saia daqui. Vai!
Um homem alto saltou para ela da esquerda, balançando uma enorme lâmina, enquanto outro, menor e mais rápido, avançou para ela a partir da direita. A Tia B agarrou a espada do gigante e arrancou-a das mãos dele. O homem menor cortou seu lado e ela o jogou no fogo.
O gigante agarrou-a. A bouda enfiou as garras no intestino dele e arrancou as entranhas. Ele uivou, sua boca escancarada, e ela o empurrou de lado.
Os Cães de Ferro a cercaram, cautelosos. Talvez ela conseguisse sair disso. Ela tinha que sair disso.
Hibla levantou a mão. Um homem atrás dela inclinou a cabeça e começou a cantar. Um mago.
A Tia B se movimentou, pé sobre pé, observando-os com olhos vermelhos.
Saia daí—eu desejei. Vai!
O mago levantou os braços para cima e para fora. Três lâminas de prata saíram dele, arrastando correntes de prata atrás delas. Tia B recuou para o lado, mas as lâminas giraram e perfuraram o peito e o estômago, atravessando seu corpo e batendo no chão, do outro lado, as pontas das corretes se transformaram no último momento em um nó prateado. Por um segundo ela ficou congelada, as correntes de prata se esticando atrás dela, molhadas com seu sangue.
Oh Deus.
O mago trouxe seus braços juntos. As correntes se esticaram, ancorando a Tia B no lugar. Ela se esforçou, rugindo—a prata estava queimando-a. Mas as correntes seguraram. Ela mal podia dar um passo.
Hibla acenou com o braço. Dois Cães de Ferro avançaram com bestas.
Não, pelo menos, lutem com ela. Lutem com ela, seus bastardos.
As duas primeiras flechas rasgaram a Tia B, o impacto a sacudindo. Ela rosnou, esforçando-se.
Hibla assentiu. Eu acharia essa vadia, nem que tivesse que virar a porra do planeta inteiro de cabeça para baixo. Eu a encontraria e a mataria lentamente.
Os arqueiros recarregaram as bestas. Mais duas flechas rasgaram-na. Senti o impacto em mim, como se as flechas tivessem me alcançado.
Outras duas.
Não haveria mais vestidos floridos.
Mais duas flechas.
Ela nunca iria ver seus netos. Eu queria chorar. Queria chorar tanto, mas meus olhos estavam secos.
Mais duas flechas.
Ela gritou e gritou e eles atiraram nela. E eu estava presa aqui no topo da torre. Não pude ajudá-la.
Tia B cedeu. Seus joelhos tremeram. Ela se lançou para frente, seu corpo eriçado de flechas. Ela uivou para o céu. O nó de prata rasgando seu estômago. Hibla se aproximou, balançando uma espada larga. A lâmina cortou o grosso pescoço peludo da Tia B. Sua cabeça rolou para o chão.
Estava morta. Ela estava realmente morta.
Eles jogaram seu corpo para o lado como se fosse lixo e se esforçaram para levantar a grade com o guincho quebrado.
Uma fera escura saiu do fogo. O urso Kodiak espalhou os restantes dos Cães de Ferro como pinos de boliche. Tarde demais, Mahon. Muito tarde.
Eu o vi rasgar cada um deles, mas ficar em pé não era mais uma opção. Caí no chão. Meu batimento cardíaco estava muito alto em meus ouvidos. O urso mataria todos eles.
Eu queria ver Curran novamente. Queria fechar os olhos e nos imaginar de volta na Fortaleza, em nossos quartos fazendo amor em cima da ridícula cama ...
Tinha que me levantar. Tinha que me levantar e encontrá-lo.
Eu levantaria. Só precisava de um minuto. Apenas um minuto.
Um rugido de leão abalou a noite. Veio da direita.
Rolei de joelhos. Meu braço doía. Os cortes na minha perna direita estavam sangrando como se não houvesse amanhã. Algo vital foi cortado, porque a perna não queria segurar meu peso.
Rastejar não era uma opção. Eu me esforcei para me levantar. Calma, devagar. Vamos lá, pernas de merda. Eu poderia fazer isso. Me inclinei na parede e me levantei. Minha perna direita estava ficando dormente. Já não bastasse uma perna, agora era a outra. Apenas minha sorte.
Na torre a doze metros abaixo de mim, Hugh e Curran lutavam, suas silhuetas entre as chamas. Três Cães de Ferro andaram pelo telhado, mantendo distância de Curran, tentando o encurralar. Cinco corpos de Cães de Ferro e dois vampiros esparramados, imóveis. Curran os matara. Ele lutou para sair daquele salão, e ele matou todos eles, tudo o que Hugh tinha de apoio eram aqueles que estavam no telhado. Hugh nunca jogava justo.
Apenas Curran poderia ter feito isso e sobrevivido.
Hugh mancava, puxando seu lado esquerdo. Curran observava-o. Hugh era um homem grande, mas Curran em forma de guerreiro se erguia sobre Hugh. Seu pêlo encharcado de sangue, geralmente cinza, agora estava preto e vermelho contra as chamas.
Curran ficou parado. Minha garganta se contraiu. Normalmente, Curran passava por uma luta, imparável, usando todo o seu ímpeto e velocidade. Ele não estava se movendo agora, o que significava que estava perto de seu limite. Ele teve que lutar contra todos eles, enquanto Hugh só teve que lutar contra ele, e agora Hugh tinha mais resistência e estava lentamente desgastando Curran, pouco a pouco. Era o que eu faria.
Hugh atacou, sua espada brilhando com chamas refletidas. Ele avançou com graça inata, rápido e seguro. Curran afastou o primeiro golpe. Um segundo golpe, cortando seu peito, pegando de raspão. Curran se adiantou, mas Hugh dançou de volta.
Quando eu lutei com Hugh, ele tinha usado seus músculos, porque era sua melhor opção. Agora, lutando com Curran, usava pura habilidade.
As pernas de Curran estremeceram. Ele rosnou, tremendo.
Hugh atacou-o, levantando a espada e andando na ponta dos pés, procurando um ponto frágil em Curran. Golpe Cruzado. Ele inverteria a lâmina no final. Desvie, querido. Para a esquerda.
Oh Deus.
A lâmina cortou o lado de Curran e Hugh retirou-se no mesmo movimento impecável, mas não antes que as garras de Curran passassem pelo braço dele. O Cão de Ferro atrás de Curran, uma mulher baixinha, investiu contra Curran, tentando cortar as costas dele. O Senhor das Feras girou e bateu com o punho nela. Ela voou pela torre, rolou e desajeitadamente se levantou.
— Acabou, Lennart, —gritou Hugh.
Curran não respondeu.
Os Cães de Ferro voltaram a circular, tentando ficar atrás de Curran.
Hugh levantou a espada.
De novo não. Eu acabei de assistir a Tia B morrer. Eu não iria sentar aqui e vê-lo morrer também.
Recuei, virei, cerrei os dentes e corri. A beirada do telhado me atingiu. Eu pulei.
O ar assobiou por mim. Eu vi o chão abaixo, Hugh e Curran olhando para cima, com os rostos chocados.
A armadura de sangue se arrancou do meu corpo e se expandiu em uma bolha no ar. Eu pulei contra as pedras no calçamento.
A bolha de sangue estourou e se quebrou em pó seco. Bati na pedra com força e fiquei lá, deitada no chão. Sobrevivi.
Agora eu tinha que continuar viva. Meu braço esquerdo estava quebrado. Minha perna direita provavelmente estava quebrada também. Minha visão ficou embaçada.
— Ei, bebê, —disse Hugh. — Foi bom você aparecer. Peguem-na.
Meu braço direito estava debaixo de mim. Soltei a Matadora e puxei a faca de arremesso, escondendo-a com o meu corpo.
Os Cães de Ferro se aproximaram de mim. A mulher mais baixa estava na frente do grupo. Eu a deixei se aproximar.
Hugh atacou Curran, brandindo a espada em um amplo arco. Curran avançou. Hugh jogou a espada para a mão esquerda, tão rápido que era como se ele tivesse duas espadas e uma tivesse desaparecido, e golpeou o lado de Curran. Curran tentou agarrá-lo, mas Hugh se afastou para longe. Droga.
A mulher baixa agarrou meu cabelo. Eu a esfaqueei no pé, cortei a curva de seu joelho, esperei meio segundo para ela cair e cortar sua garganta.
Os dois Cães de Ferro restantes pararam. Eu me agachei, levantando um pouco meu corpo, mantendo meu peso no meu joelho esquerdo.
— Que porra é essa? —Rosnou Hugh. — Olhe para ela, está quase morta. Está de joelhos em uma única perna. Ela não pode nem ficar de pé e está derrubando vocês como se fossem crianças. Traga ela para mim viva. Agora, ou eu mesmo vou matar vocês.
Os dois Cães de Ferro avançaram: um homem de pele escura, esguio e musculoso, e um loiro mais alto e corpulento, de trinta e poucos anos.
Hugh atacou, empurrando a parte superior do peito. Curran se esquivou da esquerda. Hugh sacudiu a espada e golpeou o pescoço de Curran. Curran avançou, rápido, apontando para o lado esquerdo de Hugh com suas enormes garras.
Hugh apertou o braço e esfaqueou Curran no estômago. A lâmina afundou quase ao máximo. Hugh soltou e saltou para fora do alcance.
O homem loiro estava perto o suficiente de mim. Eu levantei por completo. Não conseguia sentir minha perna, mas ela obedeceu. Eu golpeei o peito do loiro, afastei seu impulso desesperado e esmaguei minha testa em seu rosto. Ele tropeçou. Dei uma cotovelada no outro Cão de Ferro na garganta, apunhalei-o no pescoço, girei e fiz um buraco no fígado do loiro.
Curran estava de joelhos. Sua cabeça caída. Hugh estava andando em direção a ele.
Corri. Minha perna dobrou debaixo de mim e eu caí.
— Espere a sua vez. —Hugh levantou a espada.
Curran levantou-se de joelhos e agarrou Hugh, empurrando-o pelos pés e prendendo os braços ao corpo. Hugh bateu com a cabeça no focinho de Curran. Curran grunhiu, jogou Hugh para o ar como se não pesasse nada e o jogou no parapeito de pedra, de volta para baixo. A coluna vertebral de Hugh quebrou como um palito. Ele gritou. Curran levantou-o e atirou-o na direção das chamas.
Magia me deu um soco, uma explosão azul brilhante vindo pela noite da direção onde Hugh foi jogado. Curran olhou para baixo, balançou-se e caiu.
Eu me arrastei para ele e embalei sua cabeça em meus braços.
O metamorfo leão estremeceu e voltou a sua forma humana. Olhos cinzentos olhavam para mim. — Oi, Chutadora de Bundas.
— Olá, Vossa Peludeza.
Eu beijei seus lábios sangrentos. Ele me beijou de volta.
— O bastardo se teletransportou, —Curran fez uma careta. — Você pode acreditar nisso?
— Foda-se! Ele é um fraco.
— Eu quebrei a coluna dele.
— Eu ouvi.
— Ele vai sentir isso de manhã.
Eu ri. Saiu um pouco sangrento.
— Nosso pessoal saiu? —Perguntou Curran.
— A maioria deles.
— Você tem que ir agora, —disse ele.
— Não.
— Sim. Ambas as minhas pernas estão quebradas e você não pode me carregar.
Eu limpei a fuligem do rosto dele. — Como diabos você conseguiu quebrar as duas pernas?
— Ele usou magia. Os ossos se fundiram mal. Dói um pouco.
Provavelmente doía como o inferno.
— Kate. —Disse ele. — Você vai queimar até a morte. Deixe-me e tente descer até a floresta antes que este lugar desmorone.
— Em um minuto eu vou me levantar e arrastar você para a borda da torre. Então vamos pular por cima do muro.
— Está a quinze metros de profundidade, —disse ele. — Isso é chamado de suicídio.
— Ou é chamado de morrer sob nossos termos.
— Deixe-me, caralho maldito.
— Não. É a minha vez de nos salvar. Nós vamos pular. —Eu tossi. A fumaça estava comendo meus pulmões. Eu estava tão cansada. — Eu só vou descansar meio minuto. Meu braço dói um pouco.
Eu deitei ao lado dele.
— Quer casar comigo? —Perguntou Curran.
— Você está me propondo agora?
— Parece um bom momento, —disse ele.
Ele merecia uma resposta honesta. — Se eu casar com você, então você será meu marido.
— Sim, é assim que funciona.
Espertinho. — Eu estarei arrastando você para baixo comigo.
— Eu pensei que nós já havíamos resolvido isso.
— Quando chegar a hora, não poderei dizer: 'Roland não lute contra ele. Ele não é ninguém importante para mim.’ Estaremos casados, não vai dá para usar essa desculpa.
— Você espera que eu aceitaria e me esconderia por trás dessa desculpa? —Ele perguntou. — Pensa tão pouco de mim assim?
— Não. Eu sei que não faria. Sei que isso não importa para você, porque você me ama. É algo que eu digo a mim mesma quando acordo no meio da noite e não consigo dormir.
O calor estava mais perto. Nós realmente tínhamos que sair desta torre.
— A proposta de casamento ainda está valendo? —Perguntei.
Ele assentiu.
— Então é um sim. Eu adoraria ser sua esposa.
Eu estendi a mão. Ele pegou minha mão e apertou-a.
Magia estalou. O chão de pedra abaixo de nós abriu. Uma pedra lisa saiu debaixo de nós. Escorregamos por todo o caminho até a estrada, parando suavemente. Pisquei e vi Astamur ao lado de uma carroça puxada por um burro. O burro e o pastor nos observavam.
— Bem? —Astamur perguntou. — Vocês dois vão ficar aí a noite toda?
Não era inglês, mas eu o entendia mesmo assim. Olhei para ele, boquiaberta.
— Eu teria resgatado vocês mais cedo, mas estavam tendo uma importante DR155.
— Que diabos ...? —Curran lutou para se levantar.
Agora não era a hora de procurar um presente na boca do burro156. Eu o apoiei e me arrastando o levei para a carroça. Ele caiu nas tábuas. Eu caí ao lado dele. O burro se moveu e a carroça nos levou para longe do castelo.
O fogo disparou acima da estrutura. Lentamente, como se hesitasse, as muralhas do castelo se desfizeram e caíram do penhasco, quebrando em milhares de blocos pedra.
— Quem é você? —Perguntei.
— Eu te disse, sou um pastor. Vigio estas montanhas.
— Você é imortal?
— Não. Ninguém é verdadeiramente imortal. Mas eu nasci há muito tempo atrás, quando a magia ainda era forte. Então a magia diminuiu e por um tempo eu dormi. Agora meu poder está de volta e eu sou um com as montanhas novamente.
— Por que você nos salvou? —Perguntei.
— Seu pai está perdido, —disse Astamur. — Eu o conheço há muito tempo. Nós nos conhecemos quando o mar e as montanhas eram mais jovens. Não importa quanto tempo o mundo passe, ele não mudará. Ele é o que é. Você não é tão ruim. Se esforça o máximo para ser melhor, mesmo assim deseja a violência, mas seu coração é bom.
Eu não sabia o que dizer.
— Um dia você terá que decidir um lado, —disse ele. — Tenho esperanças em você, então te digo a mesma coisa que disse ao seu pai. Se você vier a essas montanhas com as mãos abertas, eu irei recebê-la, mas se vier segurando uma espada, morrerá por ela.
— O que o pai dela decidiu? —Perguntou Curran.
— Ele escolheu não vir, o que é uma resposta em si. Existem antigos no mundo, como ele e eu. Eles estão acordando. Seu pai, vai querer usar você. Logo você pode ter que resistir.
— Você acha que eu posso ganhar? —Perguntei.
— Contra seu pai? Não, não agora. —Astamur disse. — Talvez com o tempo. Um guerreiro inteligente escolhe o tempo da batalha.
— Eu vou lembrar disso.
O burro bateu seus cascos muito altos. O vento salgado banhava meu rosto. Percebi que estávamos no píer.
— O navio se afastou, mas há um barco voltando. Eles estão planejando resgatar vocês do castelo, —disse Astamur. — É bom ter amigos.
Levantei a cabeça e vi Andrea e Raphael no barco.
Dez minutos depois fomos transportados para o convés do Rush. Andrea me sentou gentilmente contra a cabine. Eu me inclinei contra a parede. Curran deitou-se ao meu lado. Suas pernas não pareciam certas. Elas teriam que ser refeitas. Meus ossos doíam só de pensar nisso.
Derek descansava em seu estômago, as costas cobertas de queimaduras. Keira estava coberta de sangue. Todo o corpo de Eduardo coberto de fuligem e queimaduras. Mahon embalava George, com lágrimas nos olhos. Seu braço estava faltando. Merda.
— Vai ficar tudo bem, pai, —ela disse a ele.
— O que vou dizer a sua mãe?
— Você vai dizer a ela que eu salvei uma mulher durante o parto. —George olhou para o tecido da vela esticado no chão, onde Desandra estava enrolada com dois bebês nus.
Barabas me perguntou baixinho: — E quanto a Desandra?
— O que tem ela? A menos que Desandra queira que a deixemos em algum lugar, vamos levá-la conosco. Para onde mais ela iria?
Todo mundo estava sujo de sangue, feridos e sofrendo.
— Finalmente, —disse Saiman. — Podemos voltar.
Christopher veio para ficar ao meu lado e sorriu.
O Rush virou, pegou velocidade e deslizou para fora do porto. As montanhas recuaram.
Olhei para o conjunto de barris de metal que ficavam perto do nariz do navio, presos por cordas. Pelo menos conseguimos. Pelo menos temos a panaceia. Maddie não teria que morrer. Tia B nunca iria ver seus netos, mas pelo menos, se Raphael e Andrea tivessem bebês, eles não ...
— Olhem! —Raphael gritou, apontando para o norte.
Uma frota de navios ancorada atrás da curva do porto. Seis grandes navios, a maioria, maiores que o Rush. Uma bandeira dos Cães de Ferro balançava no mastro.
— Prendam a respiração. —Saiman murmurou ao meu lado.
O Rush deslizava pelo mar.
Um minuto se passou. Outro. O ar ficou denso com a tensão.
Nós nos viramos novamente e disparamos através das ondas azuis. A frota de Hugh desapareceu da vista. Eles nos deixaram ir. Eles não devem saber ainda o que aconteceu.
Doolittle apareceu movendo-se em uma cadeira de rodas antiga. Saiman realmente conseguiu isso para ele? Isso é tão atípico de Saiman. Doolittle pigarreou. — Alguém adulterou a composição.
Curran se levantou. — O que?
— Alguém adulterou a composição da panaceia, —disse Doolittle. — Os lacres estão quebrados.
Barabas puxou a tampa do tambor mais próximo, enfiou a mão e recuou. — Prata em pó.
— E arsênico, —disse Doolittle.
— Todos eles? —Perguntou Curran.
Os olhos de Doolittle estavam pálidos. — Todos os barris.
Maldito, desgraçado, Hugh.
— Como? —Andrea perguntou. — Como eles embarcaram? Eu pensei que você tinha verificado os barris depois que eles foram carregados.
— Eu fiz, —disse Doolittle. — E eu pessoalmente lacrei cada um deles. Saiman colocou guardas.
Saiman. Claro.
Curran levantou-se, agarrou Saiman pela garganta e puxou-o para cima. Os pés de Saiman deixaram o convés.
— Você! —Curran rosnou. — Você deixou o d'Ambray envenenar os barris.
Saiman não fez nenhum movimento para resistir.
Curran atirou-o pelo convés. Saiman bateu na parede da cabine de costas e se levantou. — Enfureça-se o tanto que você quiser, —disse ele. — Eu não tive escolha. O contrato que assinamos me obriga a fazer todo o possível para manter a segurança de vocês. Ficou claro para mim que sacrificar a panaceia era a única maneira de garantir a nossa sobrevivência. Esses navios de Hugh nunca nos deixariam ir. Eu fiz o que tinha que fazer para que todos pudéssemos ir para casa.
Curran balançou em seus pés, seus olhos de ouro puro.
— Largue-o, —eu disse. — Largue-o, querido. Acabou.
Curran fechou os olhos e recostou-se. Ele não se incomodou em esbravejar ameaças e promessas. Elas não fariam bem agora.
— Então foi tudo por nada? —Andrea disse, sua voz muito alta. — Tia B morreu por nada?
Raphael bateu com o punho no tambor, amassando-o. Eduardo xingou. Keira gritou, um som de pura frustração.
Eu não aguentei. Cobri meu rosto.
Tudo por nada. Tia B nunca iria ver seus netos por nada. A paralisia de Doolittle, o braço de George, as pernas de Curran, tudo para nada.
Lágrimas molhavam meus dedos. Percebi que finalmente estava chorando.
— Senhora? —Dedos frios tocaram minhas mãos, gentilmente. — Senhora?
Eu forcei a tirar minhas mãos do meu rosto. Não conseguia nem falar.
Christopher estava olhando para mim, seu rosto preocupado. — Por favor, não chore. Por favor.
Eu não podia evitar. As lágrimas continuavam rolando.
— Por favor, não chore. Aqui. —Ele puxou o giz do meu cinto sobressalente que abraçava sua cintura e começou a desenhar um glifo157 complicado no convés. — Eu farei mais. Vou fazer mais panaceia agora mesmo. —Ele começou a tirar ervas das bolsas. — Eu farei o quanto você quiser. Só por favor, não chore.
Duas horas depois, tínhamos nosso primeiro lote de panaceia. Doolittle testou e disse que era a mais forte panaceia que já vira.
Epílogo
A noite de outubro estava quente, mas a sacada da nossa sala de estar no último andar da Fortaleza era alta o suficiente para uma brisa fresca e agradável. Eu me escondi na varanda. Foi um longo dia. A nova estufa estava finalmente terminada e eu passei o dia cavando a terra e plantando as ervas necessárias para a panaceia. Era mais barato do que tentar comprá-las em grandes quantidades. Aprender a fazer a panaceia provou-se ser muito mais difícil do que o esperado. Eu finalmente consegui alguns resultados aceitáveis, mas as duas médicas-magas que Christopher estava treinando tiveram dificuldades. Nós conseguiríamos. Apenas levaria tempo e prática.
Ainda não sabíamos exatamente o que Christopher tinha feito para Hugh ou como ele acabou na gaiola. Christopher sustentava a história de que ele cuidava dos livros de Hugh, mas eu o tinha visto em um laboratório, e a maneira como ele lidava com ervas e equipamentos indicava anos de prática. Se não estava no laboratório, estava em algum lugar lá fora, geralmente no alto. Nós finalmente o convencemos de que ele não podia voar, mas adorava sentar-se nas paredes em algum local ensolarado e oculto, lendo um livro.
Abaixo de mim, no pátio da Fortaleza, tocava música e os membros adolescentes do Bando faziam o melhor para seguir o ritmo. Em algum lugar no meio da multidão, Maddie e Julie dançavam. Ou melhor, Maddie dançava e Julie pairava junto, esperando pegar sua amiga a qualquer momento se ela caísse. O coma forçado causou estragos na musculatura de Maddie. Demorou duas semanas depois que administramos a panaceia antes que ela pudesse se mexer. Ela ainda usava uma cadeira de rodas de vez em quando. No outro dia peguei ela e Doolittle segurando cabos de vassouras e lutando um com o outro em suas cadeiras de rodas nos corredores. Aparentemente eles estavam tendo uma luta justa.
Doolittle provavelmente estava lá também, ouvindo a música e reclamando do barulho. Estar em uma cadeira não parecia atrapalhá-lo. A situação de George tinha sido a pior. A tentativa de reconectar seu braço não havia demorado acontecer, mas por alguma razão, seu corpo rejeitou o membro, mesmo depois que Doolittle o recolocou pela segunda vez a bordo do Rush. O braço foi embora agora. George tinha que aprender a usar a mão esquerda para tudo, e isso a estressava. Desandra estava ajudando-a. Ela havia se adaptado bem. Eventualmente o fato de que um de seus filhos era um lamassu teria que ser tratado, mas por enquanto todo mundo estava ignorando isso. Havia alguma discussão no Clã dos Lobos quanto aonde ela se encaixaria na hierarquia dos Clãs, e quando Jennifer tentou provocar Desandra em sua forma muito habitual, Desandra disse a ela para esfriar a cabeça. Toda vez que lembrava disso, eu ria.
Enterramos a Tia B em uma colina ensolarada atrás da Casa Bouda. Não havia corpo no túmulo, apenas as coisas que ela havia levado com ela na viagem. Eu ia visitá-la a cada duas semanas. A torre da esquerda da Fortaleza recebeu o nome dela. Era onde as crianças ficavam quando precisavam ser tratadas com panaceia. Eu nunca pensei que sentiria falta dela, mas eu sentia.
Curran saiu na sacada e se sentou ao meu lado. Eu me inclinei contra ele e ele colocou o braço em volta de mim.
— Você está bem? —Ele me perguntou.
— Sim. Às vezes não parece real que nós passamos por tudo aquilo. —Eu me inclinei contra ele.
— Kate. —ele perguntou.
— Hum?
— Eu sou um idiota. E um egomaníaco arrogante. E um bastardo egoísta.
— Os dois primeiros, sim. Mas você não é egoísta. —Eu acariciei seu braço, sentindo o músculo sob a pele.
— Você é do jeito que é, Curran. Você tem razões válidas para ser assim. Eu sou do jeito que sou e também tenho minhas razões.
Ele beijou minha mão. — Eu te amo. —Disse ele. — Estou feliz que você esteja comigo.
— Eu também te amo. —Olhei em seu rosto. — O que há de errado?
Ele pegou uma pequena caixa de madeira e me entregou. O que diabos poderia ser tão importante sobre uma caixa de madeira para esse tipo de discurso?
— O que tem aqui?
— Basta abri-la, —ele rosnou.
— Eu não vou abri-la, não depois que você disse tudo isso. Pode explodir.
— Kate. Abra a caixa, —ele disse baixinho.
Eu abri. Um anel olhava para mim, deitado em veludo preto, um aro pálido com uma grande pedra brilhante em um tom de amarelo claro. Eu conhecia esse tom. Ele me deu um anel com um pedaço do Diamante Lobo158.
— Você vai achar que sou uma psicótica por ter gostado?
— Não. —Disse Curran.
Oh garoto.
Ilona Andrews
O melhor da literatura para todos os gostos e idades