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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ASFALTO SELVAGEM / Nelson Rodrigues
ASFALTO SELVAGEM / Nelson Rodrigues

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ASFALTO SELVAGEM

 

Era em Vaz Lôbo, uma segunda-feira. De manhã, bem cedinho — seriam umas sete ou sete e meia, no máximo — apareceu a andorinha, com a mudança. O caminhão enorme, que entupia a rua, encostou no 78, que era, justamente, a última casa da Vasconcelos Graça, do lado esquerdo de quem vem. Prédio velho e triste, de um andar só, com a pintura descolando nas paredes. O último inquilino, um “seu” Felipe, saíra de lá em rabecão. A mulher o abandonara, levando os filhos, um menino e uma menina. “Seu” Felipe, su­jeito caladão, sempre de cara amarrada, era sócio de uma casa de jóias, na cidade. Traído e abandonado, tomou um corrosivo violento. Morreu junto ao rádio que estava ligado para o programa do Jóquei, na “Jor­nal do Brasil”. Enquanto estrebuchava no chão, o Teófilo de Vasconcelos anunciava, ao microfone: — “Foi dada a saída!” Pois bem: — atiraram o homem num caixão de alumínio e o rabecão levou o corpo para o Instituto Médico-Legal. De lá, veio para uma capelinha, junto do Pronto Socorro. A espôsa apareceu, no velório, de passagem. Chega, pára, faz uma prece. Em seguida, suspende um filho de cada vez; e, emborcan­do a criança sôbre o rosto do cadáver, dizia-lhe:

— Beija teu pai, beija.

Cada um dos filhos roçou com os lábios aquela testa úmida. E a menorzinha, a menina, sentiu na bôca o suor do defunto. Fêz uma caretinha de nôjo e cuspiu nas costas da mão. Zózimo de Barros Guimarães veio morar, com a família, na mesma casa. Naturalmente, a senhoria aproveitou para aumentar o aluguel que, no tempo de “seu” Felipe, era quase de graça. Mas, como eu ia dizendo: — encostou o caminhão e, logo a seguir, veio o táxi com os novos moradores. “Seu” Zózimo saltou na frente e pagou o automóvel. Desceram a mulher, D. Engraçadinha, bonita senhora, e os cin­co filhos: — o rapaz, Durval, de 19 anos, cujo perfil lembrava o do falecido John Barrymore; e as meni­nas: — Matilde, a mais velha, com 17 anos, Arlete, com 16, Margarida (ou Cuida), com 15, e Silene, a caçula, com 14. A mais velha emprestava à menor o lenço amarrotado:

— Limpa o nariz.

Resfriada, Silene estava, desde a véspera, coro uma coriza inestancável. Vizinhas, das janelas próxi­mas viram a garôta assoar-se. Entraram todos e Dur­val, que foi o último, ainda se virou e olhou uma mo­rena robusta, que aparecia, no sobrado defronte, ao lado de uma velha e uma criança. A morena, cheia de corpo, seria a primeira amizade da família naquela rua. Chamava-se Altamira e era professôra de acor­deão.

Na sala de visitas, “seu” Zózimo trata de abrir as janelas, de par em par, para que o sol entrasse. Sabia que o último inquilino morrera ali. Não pôde evitar a reflexão: — “Será que eu vou também?”. Viu-se morto, com os pés amarrados, com algodão nas nari­nas. Chama a mulher:

— Escuta aqui, Engraçadinha!

Eis a verdade: — era marido e tinha-lhe mêdo. Tudo na espôsa o intimidava e o pior momento, sem­pre desagradável e ameaçador, era quando ficavam sòzinhos, no quarto. Para “seu” Zózimo, a companhia da mulher era a solidão irremediável. Êle achava graça ao ouvir falar em “intimidade conjugal”. Não havia, ali, nenhuma intimidade, nem quando estavam na cama, nem quando dormiam juntos, nem quando faziam os filhos. Não entendia nem aquêle nome ines­perado de Engraçadinha. Parecia mais um apelido de família e não um nome oficial, de batismo, de registro civil, de certidão de casamento e, futuramente, de ates­tado de óbito. De vez em quando, êle bebia — adquirira o vício da bebida — e, com uma insolente coragem alcoólica, fazia-lhe a pergunta:

— Quem é você?

Claro que, sóbrio, não teria jamais o desplante de interrogá-la. Andando de um lado para outro, D. En­graçadinha (era protestante) estava sempre fazendo alguma coisa — resmungava

— “Vocês” não me entendem.

“Vocês” era o marido. Usava o plural para humi­lhá-lo, talvez. E com os filhos, a mesma coisa. Chama­va cada um de “vocês”. E o marido, quando sóbrio, perguntava de si para si: — “Como é que eu fiz filhos nessa cara?” Precisava repetir para si mesmo como se quisesse adquirir uma certeza impossível: — “Já foi minha! no escuro, mas já foi minha!” No escuro, sim. Sempre de noite, jamais de dia. Podia repetir de si para si ou anunciar para todo mundo: — “Eu nunca a vi nua!” Era verdade. Nunca, nunca!

 

Êle costumava beber nos botecos mais inesperados e mais sórdidos. Evitava os bares de melhor aspecto o sobretudo, os de luz fluorescente. Não tolerava a luz fluorescente e preferia as lâmpadas antigas, amare­ladas e tristes. Bebia até encharcar-se, ora cerveja, ora cachaça. Ensopando-se de álcool em comunhão com bêbedos desconhecidos, “seu” Zózimo pensava no seu amor. Aliás, no ônibus, no lotação ou no trabalho, ocorria-lhe comumente evocar sua primeira noite com D. Engraçadinha. Ouvia ainda a voz da mulher:

— Fecha a luz.

Êsse amor nas trevas, como se fôssem dois cegos, era o seu ódio. Nunca a vira nua, nunca. Ou por outra: — já a vira, sim, uma única vez, por um segundo, uma fração de segundo, Ela estava no banheiro, tomando banho. Ah, êsse corpo molhado! Levanta-se devagar, os pés descalços. Êle próprio se sentia abjeto. Fora de si, de cócoras, quase de gatinhas, colara o ôlho no bu­raco da fechadura. Era o tempo em que as portas ainda tinham buracos de fechadura. Vira aquela nudez mo­lhada e total. Mas sentia uma tal pusilanimidade diante da mulher que não teve coragem de prolongar aqui­lo. Voltou para a cama, o coração aos pinotes. Meteu-se debaixo da coberta — tiritando de febre. E esperou. D. Engraçadinha vem do banheiro. Está com um quimono azul, já esgarçado nos cotovelos, “Seu” Zózimo empurra o lençol; balbucia o apêlo:

— Querida...

Afasta-se para dar-lhe espaço na cama. D. Engra­çadinha estaca; olha-o, espantada; e recua, murmu­rando:

— Você olhou!

Protesta.

— Não!

— Olhou, sim! Eu sei que olhou!

— Eu juro! Queres que eu jure? Dou-lhe minha palavra de honra!

Sentia-se mais abjeto do que nunca. Mas D. En­graçadinha não o odeia mais. O ódio extinguira-se no seu coração, até o último vestígio. Olha-o com um es­panto sem piedade. Diz, lenta, sem desfitá-lo:

— Você é um canalha. Você se casou comigo por­que é um canalha.

O pobre-diabo teve vontade de tapar os ouvidos. Pedia, por tudo, que ela parasse, que não dissesse uma palavra mais. O pior de tudo é que D. Engraçadinha falava sem paixão nenhuma, nenhuma. Estava com o quimono em cima da pela (e êle a vira sem nada, tão nua, pelo buraco da fechadura!). Com uma incons­ciente graça feminina ela enxuga a nuca, por debaixo dos cabelos molhados. Disse, nada irritada.

— Saia.

Passou por ela, de cabeça baixa. Ela o enxotava como quem afasta uma barata com o lado do pé.

Agora estavam ali, em Vaz Lôbo. “Seu” Zózimo foi espiar no corredor e especular, calcando o assoalho gasto: — “Aqui deve ter escorpião”. No banheiro e na cozinha, azulejos descolavam das paredes. D. En­graçadinha dá ordens aos sujeitos do caminhão:

— Olha: — põe isso aqui.

O homem, um crioulão, quase um “King-Kong”, colocou num canto o sofá esburacado. “Forte pra chuchu”, pensa Silene, passando as costas da mão na coriza, “Seu” Zózimo dá um pulo no quintal. Chão de cimento rachado, um pequeno tanque de lavar roupa, e, em cima, uma caixa d’água, onde iriam encontrar, mais tarde, uma ratazana morta boiando.

Bonita, sim, bem bonita. Assim era D. Engraçadi­nha. Pena é que não se cuidasse mais. “Para que?” perguntava ela. “Sou uma velha”, suspirava. Mas fôra linda, linda, e já aos 13 anos tinha um corpo de mulher. Pertencia a uma das melhores famílias do Es­pírito Santo. Em Vitória, àquele tempo, quem não conhecia o Dr. Arnaldo, ou seja, por extenso: Dr. Ar­naldo Pereira de Almeida, advogado e orador como poucos? Ganhara causas importantíssimas e acabou metendo-se na política. Na primeira eleição venceu longe. Mais um pouco e era o Presidente da Assembléia Legislativa. Já se falava no seu nome para Governador do Estado. Era, fisicamente, uma bela figura, com uma cabeleira meio heróica, que lembrava a de Pinheiro Machado ou de Carlos Gomes; e, num tempo em que não se usava mais bengalas, Dr. Arnaldo tinha uma, de castão de prata, que não abandonava nunca. Êsse homem era tão íntegro e emanava uma tal autoridade, que, certa feita, da própria tribuna da Câmara esta­dual não trepidou em declarar:

— Eu me casei virgem.

Era, não uma declaração de bens, mas, se assim se pode dizer, uma declaração de costumes. Suas pala­vras podiam dar margem a galhofas irresponsáveis. De fato, não se esperava essa confissão pessoal. Mas, em seguida, todos compreenderam o alcance do gesto. Quando Dr. Arnaldo desceu da tribuna, ainda excitado, foi abraçado, em silêncio, pelos colegas. Só houve, a rigor, uma excreção. Um deputado, por sinal um bandalho, um inescrupuloso, foi visto, pouco depois na sala de café, às gargalhadas: e dizia, então — “Mas êsse Arnaldo é uma besta! Oh, que animal!”

E, súbito, acontece o imprevisível. Uma tarde, o Dr. Arnaldo chega em casa. Parecia mais satisfeito do que nunca. Entra na biblioteca, tranca-se lá dentro. Pouco depois, ouviu-se um barulho, um estouro, que parecia uma bombinha junina, lá fora. Na hora do jantar, vão chamá-lo. Batem, e ninguém responde. In­sistem, e nada. Acabam arrombando. Eis o que acon­tecera: — Aquêle homem, que era um bem sucedido no lar, na sociedade, na religião, na política — metera uma bala na cabeça.

 

— Amantes, nunca as teve!

Quem falava assim, com essa convicção profunda e mesmo agressiva, era o Dr. Odorico Quintela, promo­tor ainda obscuro, mas rapaz de muito talento. Êle não ia pedir a palavra, porque achava o morto “um medíocre”. Mas alguém não identificado o cutucara: — “Fala você agora! Fala, anda!” Êsse cochicho, ao pé de um túmulo, criara o problema. Fôra empurrado por um, e, em seguida, por muitos. Êle, que sofria de asma e era um humilde — talvez sua humildade fôsse de fundo asmático — êle pulou, com inesperada agili­dade, para a sepultura em frente. Chuviscava.

O caixão ia esperar mais um orador — o quinto — e uma senhora calcula: — “Vem por aí um toró brabo!” Dr. Odorico estava no cemitério por acaso, ou, melhor: — não estava por acaso. Desde que soubera cio suicídio, correu para ver o cadáver e ficou ao lado da família, sem arredar pé. Parecia um parente e foi, nessa falsa qualidade, que recebeu os pêsames do pró­prio Governador, o qual acrescentou: — “Grande per­da! Grande perda!” E ninguém podia imaginar que o Dr. Odorico não era parente, não era nada. Conhecia o morto de nome, de vista, e sempre o abominara. De fato, olhava com ressentimento de promotor, de vago promotor de Vale das Almas, aquêle sujeito que tinha tudo: — o poder, o dinheiro, a filha, e que filha!

Fizera quarto ao defunto, numa vigília de falso parente e de falso amigo. E, não satisfeito, acompa­nhara o entêrro. No cemitério, continuavam a pergun­tar: — “O senhor é parente?” Resmungava: — “Mais ou menos”. Sòlidamente desconhecido do morto, es­tava ali por causa da filha. Aquela menina o atraía como uma fatalidade. Vira Engraçadinha umas duas ou três vêzes, ao lado do pai. Tanto bastara para a sua imaginação de inibido, de solitário. Ao chegar ao cemitério, colocara-se, imediatamente, atrás da peque­na. O noivo, um tal de Zózimo, a enleava. O Governa­dor, que era outra nulidade, segurou numa das alças. Todos então — uma duas mil pessoas — foram ca­minhando. Aqui e ali, uns ciprestes meio tristes. Che­gam junto à sepultura e começam os oradores.

Quando desceu o quarto orador, que devia ser o último, foi cutucado, inesperadamente. E como estava num cemitério, à beira de um túmulo, no meio de ou­tros túmulos, o simples empurrão pareceu-lhe como que sobrenatural. Ouvira também uma voz desconhecida a incitá-lo. Houve um fluxo e refluxo de gente. Por um instante deixou de caminhar pelos próprios meios. Sentiu-se flutuar. No segundo em que o cutu­caram, êle, sem tirar os olhos de Engraçadinha, ima­ginava, com uma dor surda: — “Mas que peitinhos!” Usava, para si mesmo, o diminutivo de “peitinho” e começava a transpirar. Quando se viu em cima de uma sepultura e olhou aquela ondulação de caras à sua frente, teve um esgar de chôro. Mas ah! Aquêle homem que apodrecia virtualmente numa promotoria vagabunda agigantou-se. Era manso e deixou de sê-lo. Quem sabe se não estava ali a sonhada oportunidade de projetar-se? Tomou-se dessa agressividade que há no fundo de qualquer tímido. Abria os braços, dava berros ou cerrava os punhos. Estavam, presentes, des­de o Governador, para quem um oficial de gabinete acabava de abrir o guarda-chuva; demais autoridades civis e militares, amigos, parentes, populares e a filha (a filha única, com a bêsta do noivo ao lado!). A prin­cípio, houve uma irritação e quase um murmúrio con­tra êsse orador inesperado e abusivo. Todo mundo queria ir para casa. Mas Dr. Odorico acabou empol­gando o auditório e a si mesmo. O Governador baixa a voz: — “Quem é êsse rapaz?” O oficial de gabinete sentiu-se vencido, porque não sabia. O promotor, porém, só pensava em Engraçadinha. Ia no meio do discurso, quando lhe ocorre uma hipótese assustadora: — “E se, de repente, eu mudo de assunto e começo a elogiar os peitinhos dessa menina?” Imaginava o es­panto da multidão, o terror das autoridades. Houve um instante em que lhe veio a tentação, quase diabólica, de parar tudo e recomeçar o discurso em têrmos de um erotismo hediondo. Diria, então: — “Meus senho­res e minhas senhoras! Não é nado disso! O que inte­ressa são os peitinhos da nossa Engraçadinha! Amigos, orai por êsses dois seios pequeninos!”

Sentiu-se no limiar da loucura. Mas, coisa curio­sa! Não teve mêdo de ficar louco, e, pelo contrário: — desejou a loucura como uma solução. Súbito, estaca. A menina começa a chorar com uma violência inesperada. O noivo, o tal Zózimo, aperta Engraça­dinha de encontro ao peito. O orador já não se lembra do que dizia antes. Repete, furioso:

— Amantes, nunca as teve!

A consciência de que já dissera isso acabou de enfurecê-lo.

Aponta para Engraçadinha:

— Vejam esta imagem! Guardem esta fisionomia!

Queria dizer, nos ardores de sua retórica, que En­graçadinha era o amor do morto. Amor puro, sublime. Com as feições contraídas num espasmo maior, voci­ferava :

— Nunca um pai amou tanto uma filha! Deus sabe que foi êste o maior amor da terra!

A eloqüência tem suas ciladas imprevisíveis. É óbvio que o obscuro promotor de Vale das Almas fala­va num “amor elevado” ou, para repetir a sua expres­são: “sublime”. Todavia, quarenta e oito horas de­pois, o povo queria interpretar um simples e irrespon­sável efeito retórico como uma lúgubre insinuação.

Caiu, finalmente, a tempestade. E, por um mo­mento, a multidão não soube o que fazer. Olhava-se em tôrno como se pudesse existir, num cemitério, tol­dos, marquises. Surgiram, màgicamente, alguns guar­da-chuvas. Logo, porém, a ventania virou um deles pelo avêsso. Risos. Corre-corre. Num mausoléu próxi­mo, um anjo de mármore, flechado nas costas, recebia a chuva na cara e em todo o corpo nu. Houve uma debandada um tanto desrespeitosa. Parecia uma tem­pestade exagerada de fita de cinema, com relâmpagos de estúdio e jorros artificiais de mangueira. Senhoras corriam, torciam mas pedras os saltos altos. Está claro que a fuga não foi total. Parentes, amigos íntimos, os admiradores mais fanáticos permaneceram. Havia, agora, porém, uma certa urgência irritada. Colocaram o caixão nas correntes. O Governador já se retirara acompanhado das outras autoridades. Era o fim. En­graçadinha ainda sacudiu algumas pétalas no interior do túmulo. O noivo sussurrava-lhe:

— Você vai se resfriar!

Perto, o promotor pensava: — “O vestido colado nas coxas!” Quando Engraçadinha saiu, levada pelo noivo (um cretino), pelos tios, primos, Dr. Odorico disse para si mesmo, sem violência, olhando-a até su­mir: — “Merece um crime sexual”... Depois, enfiando o sapato nas pôças dágua, veio caminhando, cada vez mais perdido. A chuva varrera a apoteose fúne­bre nunca vista.

 

Nada mais comprometido do que a memória dos suicidas. “Matou-se por que?” é o que todos pergun­tam. Há os motivos conhecidos e, além desses, outros mais outros, ainda outros. Acontece que, no caso do Dr. Arnaldo, não havia motivos, nem conhecidos, nem desconhecidos. Diante de um fato brutal e sem expli­cação, o povo de Vitória e de todo o Espírito Santo ficou, a princípio, estatelado. Um dos amigos mais chegados do prócer pessedista disse e repetiu:

— Foi um êrro! Um êrro!

Até o momento de estourar os miolos o Dr. Ar­naldo era o político mais popular do Estado. Seria fatalmente Governador e muitos arriscavam o vaticínio da Presidência da República. Dizia-se, com certo humor respeitoso, que era popular até entre os vira-latas que, na rua, vinham lamber-lhe as botinas. É certo que não lhe conheciam atos, projetos ou medi­das de bem público que justificassem tal projeção. Os descontentes rosnavam, com amarga objetividade: — “Nunca fêz nada! Nunca tapou um buraco!” E, por coincidência, havia na sua rua, bem na esquina, um buraco escandaloso, uma cratera imensa e eu quase dizia cínica. Mas o Dr. Arnaldo — é preciso que se note — tinha, se assim posso dizer, o gênio do cum­primento. Político nato, com uma sagacidade extraordinária, era o homem público que mais cumprimen­tava no Espírito Santo. Saudava conhecidos, desconhe­cidos, e, digo mesmo: — saudava, de preferência e com maior efusão, os desconhecidos. Tal cordialida­de pode parecer apenas uma dessas virtudes médias. Mas não se faz uma sociedade com heroísmos e com heróis. Seria intolerável uma sociedade em que todos fôssem heróis, em que o cobrador da luz o fôsse e assim o vizinho, o guarda-noturno, o literato, o ciclis­ta, o padeiro. E embora tivesse feito muito pouco ou mesmo nada, o fato é que o povo o amava.

Mas o povo tem seus abismos, que convém não mexer, nem açular. Aquêle suicídio revolveu, justa­mente, essas profundezas escuras e vorazes. O curioso é que foi um incidente mínimo ou, por outra, uma in­discrição inocente que traumatizou a opinião pública. Eis o episódio: — na volta do cemitério, o médico da família teria dito a alguém:

— Imagina você o que eu descobri na cama do Dr. Arnaldo, debaixo do travesseiro? Faz uma idéia?

O outro não fazia idéia nenhuma. Então o médico contou que encontrara, lá, o livro “Nossa Vida Sexual”, de um autor alemão. Era uma confidência ou, se preferirem, uma inconfidência sem importância. Podia-se estranhar que, tendo na sua biblioteca, os clássicos fabulosos, os Tito Lívios, os Horácios, os Calderons, os Lope de Vegas, o suicida optasse para uma leitura mais moderna. A indiscrição soltou, na rua, os abismos da alma popular. Cada um de nós, individualmente, pode não ter o sexo na cabeça; mas o povo o tem. O pobre para sobreviver precisa da pornografia. De um momento para outro, aquêle livro de divulgação, limpamento didático, nobremente científi­co, parecia mais uma parede rasbiscada de privada.

Senhoras diziam entre si, num horror cochichado:

— “Nossa vida Sexual!” Então, aconteceu esta coisa atroz — uma cidade ou, mais do que isso, um Estado inteiro passou a especular sôbre o suicídio. Impossí­vel discriminar o fato objetivo da maledicência fantasista e vil. O homem acatava de ser enterrado e já se improvisava todo um folclore erótico a respeito. Por exemplo: — uma criada veio dizer que o morto nunca mandara para a lavadeira a sua roupa inte­rior. As suas peças íntimas, êle, em pessoa, as destruía ou pior: — as incinerava! No fundo da casa, e sem que ninguém visse, queimava, dia após dia, num rito abjeto as camisas e ceroulas. Por que, a trôco de quê? Era o que ninguém saberia jamais. O povo não teve pena de nada. Até sua barbicha em ponta, evocativa de Pasteur, sugeriu a idéia de um bode, por, assim dizer, sobrenatural. Eis a verdade: — o grande homem da véspera não está livre de ser o bode do dia seguinte, um bode de chifres anelados e ornamentais.

E, no entanto, havia uma falha nessa lenda sexual: faltava uma mulher. Não se conhecia uma figura feminina na vida do Dr. Arnaldo. Por onde andaria a amante ou, pluralizando, por onde andariam as amantes do ilustre pessedista? Foi então que surgiu, outra vez, o Dr. Odorico Quintela. Aliás, desde o sui­cídio, que êle não deixava Vitória. Descurava da promotoria, não aparecia lá. Engraçadinha não lhe saia da cabeça. Às vêzes, no seu quarto de solitário, res­mungava para si mesmo: — “O único bode sou eu!” E, um dia, entrando numa farmácia para comprar um comprimido, viu uns sujeitos discutindo; sôbre o suicídio. Súbito, deu-lhe um ódio meio vesgo, uma dessas raivas obtusas. Atirava patadas no chão. — “Vocês são burros! O que é que vocês têm nessa cabeça? Pois eu sei, eu!” Percorreu, uma por uma, aquelas caras atônitas. E largou o berro triunfal:

— A filha!

 

Repetia:

— A amante é a filha!

O som da própria voz deu-lhe mêdo. Houve um silêncio na farmácia. Chamara aquêles homens de burros e ninguém reagira. Estavam todos espanta­dos e êle muito mais. Cercado de caras sôfregas, não se mexia. Teve vontade de gritar-lhes: — “Vocês estão radiantes com o incesto. Satisfeitíssimos. Assim é o povo: — tem fome de sangue e excremento”. Mas não disse nada. Sentiu que, a partir daquele momento, não seria mais responsável nem pelas próprias pala­vras, nem pelos próprios atos. O farmacêutico, um feio esguio, com perfil violento de gato, o avental man­chado de pomada, ainda perguntou-lhe:

— O senhor acha?

Olha em tôrno. Cata fósforos, cigarro. Ergue o rosto:

— Acho, perfeitamente, acho. E dai?

Acende o cigarro com a mão trêmula. Olhando aquelas caras próximas, ocorre-lhe a idéia de que não há nada mais obsceno do que o rosto humano. Conti­nua, na sua violência contida, dirigindo-se a um su­jeito de chinelos, que devia ser vizinho da farmácia:

— O senhor está espantado? Mas escuta: — eu sou promotor. Dr. Odorico Quintela — estou em Vale das Almas. Conhece, Vale das Almas? Pois bem: — eu seria muito burro, creia, seria muito burro se ainda me espantasse. Eu não me espanto mais. Diga-me, quê é um incesto?

Os outros já lhe faziam rapapés. Era tratado de doutor para cima. O farmacêutico arrisca — “Não é normal, doutor!” Dr. Odorico deixa escapar um “Ora!” sarcástico:

— Isso de pai que se apaixona pela filha ou irmão pela irmã, isso é meu metier, minha rotina, meu ganha-pão. Perceberam?

Ri, pesadamente. Em seguida, passa as costas da mão na bôca molhada. Ninguém diz nada. Num estado de tensão intolerável, começa a pensar absurdos: — “Só a cara é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu!” Idéias, como se vê, sem nenhum cabi­mento. Ergue a voz, nítida, vibrante:

— Qualquer um — não faço exceção — qualquer um é capaz de coisas piores. Por exemplo: — eu! — e repete, furioso: — Eu sou capaz de coisas muito piores. Digamos que eu fôsse pai dessa menina, sim, dessa Engraçadinha, eu...

Pára. Olha um por um e balbucia: — “Passar bem”. Muito olhado, abandona a farmácia. Todos, ali, acharam, textualmente, que êle estava “fraco da me­mória”.

Foi assim, numa farmácia, entre remédios, que nasceu a fábula do incesto. O próprio Dr. Odorico, num exagêro irritado, afirmara que o povo precisa de “sangue e excremento”. Nem tanto, nem tanto.

Havia, porém, um perigo óbvio. A notícia de um incesto não pode andar em tôdas as mãos. Cada fa­mília tem suas trevas interiores, que é preciso não pro­vocar. De mais a mais, o amor abjeto atrai os espíritos fracos, as mentes não formadas. Por enquanto, havia uma só Engraçadinha. E se, de repente, por um im­pulso de imitação, começassem a aparecer outras, e mais outras, muitas Engraçadinhas? Coincidiu que, naquela altura, um funcionário do Tesouro, senhor já, dos seus quarenta e poucos metesse uma bala na ca­beça. Vejam bem: — uma bala na cabeça! Era pai também de uma filha única, cuja idade regulava com a de Engraçadinha. Houve uma relação entre os dois suicidas e as duas adolescentes? Quem poderá dizê-lo?

E, coisa curiosa ou lamentável, não sei: — as mu­lheres adoraram a fábula sórdida. Nos seus cochichos, as senhoras pareciam despir a menina e com que frívola crueldade! Dizia-se muito: — “Quase não tem seios. Os seios só agora estão nascendo!” Mentira, porque o busto de Engraçadinha fazia bastante volume. Parodiando o Dr. Odorico, poder-se-ia dizer que êsse mexerico universal era, justamente, a nostalgia de “sangue e excremento”.

Quarenta e oito horas depois do episódio da far­mácia, um senhor gordo entra num bar. Toma um re­frigerante, encaminha-se para o reservado dos homens. Lá, descobre na parede, escrita a lápis, uma quadrinha ignóbil. O nome de Engraçadinha estava ali com uma rima fácil. A impropriedade do local — e a miséria do poeta desconhecido — assombraram aquêle homem.

Como eu ia dizendo: — o senhor gordo teve a pa­ciência de copiar a quadrinha, num papel que apanhou no bôlso. Saindo dali, êle tomou um táxi. Durante o caminho ia lendo e relendo os versos miseráveis. Já lhe parecia que estava num mundo de canalhas de ambos os sexos. E concluía para si mesmo, com uma satisfação profunda e gratuita: “Inclusive eu! Eu tam­bém sou um canalha!” Ali, sòzinho, teve um riso grosso, que fêz o chofer virar-se. O passageiro lia mais uma vez o papelucho infame.

 

Disse para o chofer:

— Aqui.

Saltou na residência do Dr. Arnaldo. Era uma casa de 1900 — construída ao tempo da febre amarela e da vacina obrigatória (o falecido não admitia futurismos). As portas fechadas, as samambaias da varan­da, as trepadeiras nas grades, tudo tinha um certo sabor de morte ou, digamos, um aroma de entêrro recente. O caixão do eminente pessedista saíra dali.

O gordo já pagou ao chofer e sobe a escada de pedra. Naquela casa, o passado estava em tôda a par­te, as camas, os espelhos, os quartos conservaram a me­mória de partos, bodas e velórios. O homem entrou na sala grande de teto alto, com um quadro da Ceia numa parede e na outra, em frente, uma natureza morta. No chão, uma escarradeira de louça, com flôres desenhadas em relêvo. Ninguém se lembrara de acen­der a luz. Estavam presentes umas cinco parentas; num canto, ao lado do noivo, Engraçadinha. Os vestidos pretos — a noite já caía — aumentavam a pe­numbra da sala, Uma das senhoras vira-se para o re­cém-chegado :

— Até que enfim!

Aquêle homem de poderosa caixa torácica enche a sala com a sua voz de barítono: — “Tenho livro de ponto?” Saíra um momento, para comprar cigarros, e demorara-se quatro horas. Mas êle já anunciava:

— Tenho novidades.

Dá à mulher o papel dos versos — “Vê isso e passa adiante. Mas não deixa Engraçadinha ler”. Neste mo­mento, bate o telefone. Engraçadinha atende; chama:

— Tio Nonô.

O gordo vai atender. Estupefata, a tia Zezé lê aqui­lo e a princípio não entendia nada. Relê; pouco a pouco, vai compreendendo. A obscenidade a ofende como uma agressão física. Passa adiante. Agora é a vez de Tia Ceci, uma velhinha miúda e nostálgica. Olha a quadrinha indecente e logo a enxota de si. Em se­guida, apanha o rosário que lhe escarre dos joelhos e percorre as contas com os dedos febris. A tia Zezé es­pia o marido ao telefone na outra extremidade da sala: vira-se para as outras, num rompante:

— Eu odeio este homem! — e repete, trincando os dentes: — Odeio!

Já a quadrinha da privada andou de mão em mão. Engraçadinha ainda perguntou: — “Deixa eu ver?” Houve uma negativa assustada: — “Você não!” Tia Ceci agarra-se novamente, ao rosário, num pânico de mulher jamais tocada — virgem do bêrço ao túmulo. E, súbito, rompe, à entrada do corredor, um riso ines­perado e selvagem, uma dessas gargalhadas vitais. Era Tio Nonô que, no telefone, explodia na sua ferocidade jocunda. Tia Zezé ergue-se, fora de si:

— Eu não agüento mais! não posso!

Com uma das mãos, cobre o rosto. Antes de desli­gar, tio Nonô ainda bramia, arredondando a voz de barítono, numa modéstia triunfal:

— Eu não como ninguém! Eu não como ninguém!

Tia Zezé senta-se: — “Não respeita nem a morte!” Tinha uma dilatação e as contrariedades a sufocavam. Já o gordo do pescoço grosso e bovino punha o fone no gancho. Por um momento, tira o lenço e enxuga na testa, em tôda a cara e na nuca, o suor grosso como óleo. Enfia o lenço no bôlso traseiro da calça. Ainda arquejava da gargalhada recente. Uma outra procura­va aquietar tia Zezé: — “Não liga!” Mas, quando o ma­rido se aproxima, fica de nôvo, fora de si:

— Foi você que escreveu isso?

Êle perdeu a paciência:

— Está de porre mulher? — Pausa e vira-se para as demais; exagera: — Isso está em tôdas as paredes da cidade! E agora?

A própria tia Zezé está muda. Olha o marido com um esgar de nôjo. Intimamente, porém, não consegue evitar diante dêsse homem uma certa sensação de deslumbramento. Êle é todo barriga, ou mais: — tem uns quadris imensos. De vez em quando, precisa pôr-se de perfil para atravessar as portas. Os dois se olham. Tio Nonô aponte para Engraçadinha:

— Aquela menina. Ainda não tem nem alma. Mas até aí morreu o Neves. A alma vem com o tempo. O pior é que já está na bôca do povo.

Engraçadinha não se move. Pelo contrário: — conserva um jeito, digamos, meio alado. O tio quer sacudi-la. — “Antigamente, eu só via em paredes de mictório nome de político, deputado. De menina de família, é a primeira vez!” Insistia: — “Nunca vi nome de menina de família!” Súbito, tia Zezé começa a gritar:

— E você acredita? Responde! Você acredita? — Esganiçava a voz: — Acredita nessa quadrinha?

Não deu resposta imediata. Andou de uma extre­midade a outra da sala. Responde com outra pergunta:

— Quero que vocês me digam, ou me expliquem o seguinte: — por que é que, na véspera do pai mor­rer, Engraçadinha levou uma surra. De bengala. Não levou uma surra? De bengala? Pois é, levou? E por quê?

A mulher baixa a cabeça, chora. Tio Nonô aproxima-se de Engraçadinha, inclina-se: — “Por quê? Apanhaste, por quê?” Nenhuma resposta. O gordo olhou em torno: — “Tem muita gente aqui. Vamos conversar na biblioteca”. Em silêncio, com inesperada docilidade, Engraçadinha o acompanha. Tio Nonô vai na frente, pensando: — “Essa menina não reage. É linda e parva. Mas, e a surra?” Um pai que nunca tinha batido e, súbito, ia espanca de bengala! Na biblioteca, tio Nonô fecha a porta. Aquêle gordo também a assustava. Êle ria de uma maneira total; havia, sim, na sua gargalhada uma plenitude quase obscena. Res­pira fundo e começa:

— Você quase não fala. Fala agora. Parece que esconde alguma coisa. O que é que você esconde?

Desviando a vista, e com enleio muito leve, disse:

— Estou grávida...

O tio inflama as narinas como se fôsse ventar fogo.

 

— Irmão, telefone!

Estremeceu:

— Pra mim?

Repetiram:

— Telefone.

Tudo assustava o Irmão Fidélis, tudo o fazia sofrer. Vira-se para os demais:

— Com licença.

Tinha sempre o ar de quem pede perdão por uma falta imaginária. Abandonou a sala da reitoria; ia confuso e dilacerado. Há poucos instantes, conversan­do com os outros irmãos — inclusive o Reitor — dei­xara escapar, por um desses lapsos fatais, uma gafe abominável. O assunto era, ainda e sempre, a paixão incestuosa que, segundo o povo, teria levado o Dr. Ar­naldo ao suicídio. Ninguém, ali, admitia a hipótese ou pelo menos: — não a admitia da bôca para fora. Dr. Arnaldo sempre fôra um homem de fé. Era visto, nas procissões, de cabeça descoberta, empunhando um círio.

Durante a conversa, alguém se lembra de dizer que o Jackson Figueiredo estava fazendo falta ao Brasil — uma falta imensa e desesperadora. Então, entre uma fala e outra, o Irmão Fidélis declara brus­camente :

— Acho o Jackson Figueiredo um pateta.

Foi só. Instantaneamente, sentiu a inconveniência brutal. Atônito, ainda fêz um gesto, como se quisesse recolher a gafe, reavê-la, torná-la sem efeito. Cercado de silêncio por todos os lados, envolvido por aqueles batinas inapeláveis, chegou a pensar numa retratação suicida: — “O pateta sou eu”, diria. Mas calou-se. Olhava para um, para outro — e, sobretudo para o Reitor — com um esgar de chôro. Perguntava de si para si: — “Mas o que é que eu tenho com o Jackson Figueiredo?” O Reitor, em voz baixa, com uma doçura alarmante, insinuando uma ironia muito tênue, e olhando para o teto, pergunta:

— O Irmão acha isso? Tem certeza? E por que pateta? O Irmão sabe o que está dizendo? Quem so­mos nós para julgar um Jackson Figueiredo?

Esgazeou os olhos para o Reitor. Aquêle homem podia enxotá-lo, escorraçá-lo. Irmão Fidélis estava, ali, no Colégio S. Gregório — o mais importante do Estado — há dois meses, dando aulas. Quase não falava e só abria a bôca para concordar. E, de repente, diz aquela coisa e sobre quem? O Jackson! O Irmão Osmar põe mais lenha na fogueira:

— Ou o pateta é o Irmão?

Irmão Fidélis decide: — “Haja o que houver, não darei nada! Nada!” Trincou os dentes e repetiu para si mesmo, na sua pusilanimidade feroz: — “Ninguém me arranca uma palavra!” Súbito, chamam-no ao te­lefone. Pede licença, retira-se quase correndo. Geral­mente, tinha mêdo do telefone. Achava que um cha­mado telefônico é uma janela aberta para o infinito. Atravessando o corredor, ia pensando: — “Bonito, se me põem na rua!” Parecia-lhe, além do mais, que o afogado não é um morto comum; e o Jackson Figuei­redo morrera no mar. “Deus prefere os afogados”. Atende com voz estrangulada: — “Alô!” Do outro lado da linha, uma voz feminina se esganiça tôda:

— Irmão Fidélis?

Balbucia:

— Quem fala?

E a mulher:

— Pelo amor de Deus, venha Irmão Fidélis! Olha: — apanha um táxi! Nós pagamos aqui. Mas venha! — E soluçava: — venha!

Irmão Fidélis a reconhecia, por fim: — era D. Zezé, a irmã do Dr. Arnaldo, tia de Engraçadinha. Faz espanto: — “Mas que foi que houve?” E ela, fora de si:

— Só falando pessoalmente. Mas não demore! Es­tou esperando!

Êle desliga. Acha intolerável essa mulher que es­lava sempre a um milímetro da histeria. Caminhando lentamente, pensava na gafe: — “O Jackson é um blefe, um bôbo. Não fêz nada, não deixou nada. Es­creveu um romance que é uma vergonha. Mas, que tenho eu com isso?” Naquele momento, o suicídio do Dr. Arnaldo doeu-lhe fisicamente como uma nevralgia. O velho prometera-lhe um lugar na chapa do partido para as próximas eleições: — “Indico seu nome”. E, súbito, o homem mete uma bala na cabeça. Ao rece­ber a notícia, limão Fidélis cerram os dentes para não explodir: — “Ah, cretino! Bestalhão! Palhaço!” Como diz o povo, a morte tira-lhe o pão da bôca.

 

Assim que o Irmão Fidélis sai, para atender o te­lefone, o Irmão Osmar baixa a voz para o Reitor:

— Pederasta.

— Quem?

— O Irmão Fidélis.

O Reitor, recostado na cadeira, as duas mãos en­trelaçadas em cima do ventre, suspira:

— Eu desconfiava.

Irmão Osmar continua, enquanto o Reitor volta o olhar para o teto. No momento em que o outro ia, tal­vez, citar os fatos ou, pelo menos, apresentar teste­munhos idôneos, o Irmão Fidélis, de volta, aparece na porta. Calam-se e o recém-chegado, no seu desespêro, deduz, com uma contração do estômago: “Estavam fa­lando de mim”. Mas sua indignação maior não era contra os dois, mas contra o outro, o cretino, que se matara. Abaixa-se para falar com o Reitor:

— Da casa do Dr. Arnaldo, telefonaram. Pedem com urgência a minha presença.

Com uma cintilação nos olhos azuis — era de ori­gem alemã — o Reitor diz, sem desfitá-lo:

— Pode ir, mas cuidado, meu filho, cuidado! Você é muito impulsivo!

Gagueja:

— De fato, foi uma leviandade. E quem sou eu para julgar um homem...

O Reitor interrompe, incisivo: — “Um espírito!” Rápido, confirma:

— Exato. Um espírito como Jackson Figueiredo? Não testou à altura: e aquilo me escapou, nem sei como. Mas o senhor pode ficar certo e eu prometo...

Saiu, de lá, com o rosto em fogo. Ia, porém, mais aliviado, quase recuperado. Humilhara-se de uma ma­neira satisfatória e oportuna. Imagina: — “O homem gostou”. Na porta do colégio, apanha o primeiro táxi e avisa ao chofer: — “Não precisa correr”. Pouco adiante, quando o carro passava por um muro, teve uma surpresa: — via, lá, escrito a carvão, de ponta a ponta, o nome “Engraçadinha”. Vira-se no assen­to, achando aquilo espantoso. Pela primeira vez, de fato, o nome de uma menina, direita, de família, apa­recia nas paredes como se fôra propaganda eleitoral. E o Irmão Fidélis achou graça numa hipótese que lhe ocorreu: — talvez, um dia, surgissem, no mesmo muro, dois nomes. De um lado, “Engraçadinha”, de outro lado, “Prestes”, ou seja: — o Sexo e a Revolução. Riu, baixinho, considerando que acabava de fazer um acha­do feliz, inteligente. Fôsse como fôsse ali estava, na­quele muro, o apêlo de uma colossal luxúria popular.

 

Sim, para o tio Nonô, aquilo foi o maior espanto de tôda a sua vida. Engraçadinha sempre lhe parecera “linda e parva”. Vivia repetindo a frase já referida: — “Essa menina ainda não tem alma”, acrescentando a título de compensação: — “A alma vem depois”, intimamente, porém, achava que, daí a duzentos anos, ela continuaria sem alma do mesmo jeito e cada vez mais espêssa. Com a sua expiração tumultuoso de gor­do repetia:

— Grávida?

Fêz que sim com um movimento de cabeça.

Tio Nonô não diz, mas pensa: — “Estou besta! Com a minha cara no chão!” Passa a mão pela ca­beça. Levanta-se, abre os braços:

— Mas não é possível! Eu não acredito! Pára diante da menina: — Mas escuta cá: — você sabe o que é isso? De mais a mais, eu não creio que teu noivo...

Interrompe:

— Não foi o meu noivo.

O desesperador era o jeitinho doce, era a leve, muito leve, quase imperceptível vaidade, com que ela falava. A princípio, o gordo não entendeu, ou, então: — precisou realizar mentalmente o fato: — “Não foi teu noivo?” Êle começa a querer rir. A gargalhada es­tava se formando. Senta-se:

— Mas, se não foi teu noivo...

Os dois se olham. Engraçadinha perdeu a expres­são da menina que ainda não é nem adolescente. Tem um olhar inesperado e duro, que o confunde ainda mais. Êle pensa, ao mesmo tempo que a olha, numa curiosidade atormentada: — “Está com um quê de prostituta”. E, então, sua mente começa a ser traba­lhada pela grande suspeita. Baixa a voz:

— Quem foi o cara?

Fêz um ar de menininha (que cínica):

— Não sei.

Ao mesmo tempo que apanha o pulso da menina, o gordo arqueja no riso de angústia e de ódio:

— Conta pra mim: Foi teu pai? Diz! Foi?

Aperta o braço da sobrinha. E pensa: — “Eu não sou tão cínico, porque odeio. Não sei a quem, mas odeio”. Êle achava que o ódio é próprio dos simples, dos puros.

 

Quase grita:

— Meu pai?

Olha, de lado, a mão quente e fôfa que ainda a segura. Repete, como se falasse para si mesma: — “Meu pai?” Súbito, desprende-se com violência. Tio Nonô ergue-se também. Engraçadinha recua diante do gordo. Êste pergunta, de nôvo, avançando:

— Foi ou não foi teu pai?

Engraçadinha estaca. Põe as mãos para trás e olha o tio agora sem mêdo. E, de repente, gira, sôbre si mesma, numa pirueta de ágil e alegre infantilidade. Soou falso aquêle movimento frívolo, em princípio de gravidez. Desesperado, estrangula a voz (Que vontade de dar-lhe um tapa na bôca):

— Responde!

E ela:

— Quem sabe?

De perfil para êle, ergue o rosto. Foi a petulância, o desafio que o enfureceu. Balbucia, com os beiços tre­mendo: — “Sim ou não. Fala ou te arrebento!” Estão frente a frente. Ela começa a chorar:

— Pois foi meu pai, pronto!

Quase sem voz, o tio arqueja:

— Teu pai?

Não entende, ou, por outra: entende muito bem. Imaginava: — “Era um casto. Eis aí o resultado da castidade”. Riu-se dos que são fisicamente puros. Re­petia, agora exultante: — “O desejo do puro é hedion­do”. Vira-se para a sobrinha que, sentada, continua chorando:

— Te deu a surra por quê?

Levanta o olhar.

— Ciúmes.

E êle:

— Do teu noivo?

Corrigiu:

— De todos. Também do meu noivo e até do se­nhor.

— De mim? E por quê de mim? A trôco de quê? — Repetia a pergunta: — Ciúmes de mim?

Ciciou, como se alguém pudesse ouvi-los:

— Êle achava que o senhor queria alguma coisa comigo.

Sem tirar os olhos da menina, bradou:

— Mas então o homem estava louco! Maluco!

Ergueu-se, novamente furioso: e uma coisa o es­panta: estava enojado! — “Eu não devo ser tão canalha, porque...” De fato, sofria como nunca e êste so­frimento lhe fazia um certo bem. Repetia para si mes­mo: — “Sou menos sórdido do que pensava”. Não sabe o que fazer, o que pensar. “Essa pequena esconde o quê?” Perguntava a si mesmo. Fêz-lhe o última per­gunta (foi uma curiosidade vil):

— Êle usou violência?

E a pequena:

— Como?

Sacudiu a cabeça:

— Nada.

Enxugou o suor das mãos. De nôvo, sentiu no olhar da pequena, no sorriso e até na maneira de sen­tar-se, de separar os joelhos — sentiu o instinto da prostituta. Tinha uma bôca de mulher que sabe beijar, que sabe molhar o beijo. Parecia amoral como uma planta ou um bichinho de avenca. Êle passa as costas da mão nos beiços: — “Não sabe o que fêz”, conclui. Numa surda cólera, ergue-se:

— Tua tia precisa saber disso!

Encaminhou-se para a porta. Engraçadinha corre atrás, barra-lhe a passagem.

— Não!

Com uma energia selvagem, diz-lhe: — “Não meta mulher nisso!” Exasperado, empurrou-a. Ela bate com o pé, esganiçando a voz em grito: — “Não quero!” Mas êle já saía pelo corredor, numa alucinação. Ia buscar a mulher, a cretina da mulher. No meio do corredor, pára um momento: — “Quando ela disse que o pai tinha ciúmes de mim — olhou como se... Tinha saliva nos cantos da bôca...” Perguntava a si mesmo: — “Seria uma insinuação ou quê?”

 

O Irmão Fidélis entrou sem bater na casa de En­graçadinha. Vinha amargo, pagara o carro e resmun­gava: — “Não vou cobrar o táxi, claro”. Ao vê-lo, tia Zezé arremessou-se:

— Até que enfim!

E êle, doce, ainda pensando em Jackson Figuei­redo :

— Como vai a senhora, D. Maria José?

Tia Zezé respirou fundo:

— Vou me separar, Irmão Fidélis! Desta vez, ah, vou!

Chorava. Em silêncio, êle a contemplava com a sua bondade compreensiva; suspira também: — “Vir­tude é sacrifício!” — Desde a morte do Dr. Arnaldo, que o Irmão Fidélis se dedicava, com astuta obstina­ção, a dominar essa mulher. Sabia que uma histérica, uma desequilibrada, podia ser-lhe útil. As neuróticas espalham o terror e são militantes e irresistíveis. An­tes de atendê-la, saiu cumprimentando as pessoas pre­sentes, uma por uma, e parou com uma cordialidade especial e mesmo terna junto de tia Ceci; “Ah, como está?” Ouvira dizer que a velhinha só tomava banho de bacia, banho de assento. Tia Ceci apanhou, sôfrega, a mão dêle e a beijou. Cumprimentou Zózimo também. Êste não retribuiu porque cochilava na cadeira. Final­mente, êle se encaminhou para a tia Zezé, que se assoava. Tôdas, ali, o consideravam uma espécie de santo. Êle falava manso, falava macio, e uma alegria muito pura parecia embelezar o seu rosto. Inclina-se diante de tia Zezé:

— Estou à sua inteira disposição.

Levou-o para a varanda. Abriu o coração: — “Te­nho nojo dêsse homem, nojo. O senhor sabe o que é o nojo? Vou lhe dizer mais: — Deus me perdoe, mas se meu marido morresse...” Irmão Fidélis interrompe: — “A senhora está exaltada. Mas isso passa, pode crer que passa”. Pouco a pouco, ela foi-se acalmando. Sus­pira: — “Ah, Irmão Fidélis, que seria de mim sem o senhor?” De fato, aquêle homem dava-lhe uma sensa­ção de presença consoladora e solidária. Disse mesmo: — “Só o senhor me compreende”. Por fim, êle dá-lhe o conselho:

— Olha, faz o seguinte: — Quando a senhora es­tiver muito zangada com o seu marido, encha a bôca de água. Mas não engula. Conserve a água na bôca e deixe seu marido falar.

Meio aturdida, perguntou: — “Que mais?” Irmão Fidélis teve um riso bom: — “O rosto é óbvio. Com a bôca cheia, a senhoria não pode responder e assim não haverá discussão. Entende agora? Nem discussão, nem briga, por falta de adversário”. E insistia, com a voz velada em doçura: — “O seu marido não é per­feito. Ninguém é perfeito. Mas tem suas qualidades”. Tia Zezé ouvia cada palavra com uma fisionomia atô­nita e com uma voluptuosidade, digamos assim, ma­terial. Sentia nascer ou renascer em si, no mais intimo do seu ser, uma onda de indulgência para com o ma­rido. Sussurra, como que o adorando:

— O senhor tem razão. Tem sempre razão.

Nôvo sorriso.

“Não exageremos!” E pensava — “Precisa estômago para aguentar essa mulher!” Neste momento, ouve-se um barulho. Tio Nonô invadiu a sala, como se a inundasse com os seus quadris, a sua barriga. Apro­ximou-se com um riso ofegante. Estava certo de que a sobrinha era uma prostituta instintiva. Por um mo­mento, mas só por um momento, o rosto do Irmão Fi­délis foi uma máscara cruel, de uma malignidade implacável. Também o tio Nonô vacila, pois não espe­rava encontrá-lo. E pensa: — “Êsse urubu aqui!” Sem o dar a perceber, Irmão Fidélis tinha-lhe ódio. Mas já lhe estendia a mão, num exagero de cordialidade:

— O amigo vai bem?

Tio Nonô vira-lhe as costas e se dirige à mulher:

— Êle pode ouvir?

Replicou, como uma fanática: — “Tudo!” Então, o gordo fala para os dois:

— Ouve essa! E também o senhor! Isso que an­dam dizendo pela cidade, e que você leu na quadrinha — é verdade, ouviu? É verdade! Foi aquêle cachorro, o crápula do teu irmão! Engraçadinha me contou isso assim, assim!

Diante do gordo, a mulher não se mexia, petrifi­cada de assombro. E outro que sofreu foi o Irmão Fi­délis. Aquilo doeu-lhe até nos maxilares. Teve vontade de soltar palavrões. Repetia para si mesmo: — “É então verdade e o cretino não me contou nada, nunca me fêz uma insinuação! Gostava da filha e eu não sabia, nem podia imaginar. Ah, se eu soubesse! Teria sugerido com jeitinho, claro, com tato, uma autoriza­ção não expressa, mas que a besta entendesse. Diria, por exemplo, que ninguém manda nos próprios senti­mentos. Eu ficaria de posse do segrêdo, seríamos cúm­plices, nós dois!” O Irmão Fidélis só acreditava na fi­delidade entre cúmplices; repetia, na sua frustração: — “Só o cúmplices é fiel!” Mas o Dr. Arnaldo, em vez da cumplicidade, preferira uma bala na cabeça. Naquele momento, tia Zezé voltava a si murmurando: — “Não acredito, não pode ser”. Então, o Irmão Fi­délis tem uma ardente inspiração; ergue a voz:

— Mas se isso é verdade, então mais do que nunca essa menina precisa de nós! Precisa de Deus! Vamos salvá-la!

O que aconteceu depois foi indescritível. O Irmão Fidélis ia, na frente, a fronte alta de fanático, levando, de roldão, o gordo e tia Zezé.

 

Caminhando no corredor — seguido do gordo e de tia Zezé — o Irmão Fidélis imaginava a miséria do deputado morto. Parecia ver o velho sátiro altas horas, andando pela casa: descalço, as ceroulas de amarrar nas canelas, o lábio caído, a pupila ardente. E uma curiosidade o ralava: — teria havido ‘luta, resistência, talvez um grito abafado? Admitia também que o po­lítico tivesse tapado com a mão a bôca da pequena. Quando o Irmão Fidélis, no fundo do corredor, torce o trinco e abre a porta da biblioteca, tem a surpresa: — não havia lá ninguém. Vira-se para o gordo e a tia Zezé:

— Quede?

E o tio Nonô, espiando por cima do seu ombro:

— Ué!

Engraçadinha estava ali agora mesmo e já sumi­ra? Tia Zezé volta para o corredor e chama aflita:

— Engraçadinha! Engraçadinha!

Calado, o rosto bem erguido, o Irmão Fidélis tinha na cabeça duas figuras dessemelhantes e mesmo con­traditórias: — de um lado, o “fauno legislativo” (se­gundo outra expressão feliz e sarcástica que lhe ocor­rera), e de outro lado, Jackson Figueiredo. Ora pensa­va num, ora noutro, ora no incesto, ora na gafe. No pânico de ficar mal junto ao Reitor, já se contradizia frontalmente: — “O Jackson era um líder, afinal de contas. Tinha uma agressividade que falta ao Tristão”. Enquanto tia Zezé procurava Engraçadinha, tio Nonô vira-se para o Irmão e o acomete, com a sua feroci­dade jocunda:

— Lá no cemitério, disseram que o meu cunhado era um grande homem! Eis o grande homem! — Mos­trava o riso bestial para o outro: — Por isso é que eu não acredito em herói, não acredito em ninguém!

Irmãos Fidélis jamais gostara de tio Nonô e agora menos do que nunca. Odiou-o com tôda a violência. Mas, por fora, não se deu por achado e parecia ouvi-lo com uma fraternal deferência. Na medida de sua raiva, tornou-se ainda mais suave e de uma humilda­de ainda mais afetada. O gordo continuava, com a boca encharcada de saliva:

— Quando vejo uma estátua eqüestre, acho que o herói é que devia ser o cavalo! — E repetia, para exas­perar o Irmão Fidélis: — O homenageado é que devia testar por baixo, de quatro, montado!

O Irmão sorria apenas, como se aquilo fôsse um paradoxo cordial e inofensivo. Mas havia uma alusão à besta do Dr. Arnaldo. Subitamente sério, mas sem perder a doçura, objetou:

— A um morto se perdoa.

Foi só. Por trás do jeito manso, porém, êle se ima­ginava de pedra na mão, batendo na cabeça daquele monstro, até afundar-lhe a testa, destruir-lhe tôda a cara. Felizmente, tia Zezé aparecia; e chamava alguém, atrás de si:

— Vem, Engraçadinha, vem. Entra.

 

Eis o que acontecera na biblioteca: — tio Nonô saíra, como vimos. Sòzinha, a pequena torce a ponta do nariz entre o indicador e o polegar; espreme uma espinha, ainda pequenina, que estava nascendo e que começava a doer um pouquinho. Pensava: — “Ah, se o tio soubesse!” Mas ninguém sabia de nada.

Por fim, a pequena ergue-se e decide: “Não digo nada a tia Zezé”. Não gostava da pobre senhora e quando a via por perto, pensava na sua irritação: — “Tem morrinha”. De fato, tia Zezé, já de certa idade, quase não se perfumava. O uso do perfume parecia-lhe uma confissão de temperamento voluptuoso. Cri­ticava uma amiga, bem mais môça, que passava água de colônia nos braços e, até, nos seios. Mas Engraça­dinha, com o egoísmo e as incompreensões normais dos seus 18 anos, não gostava de “gente velha”. E quando tia Zezé vinha com suas idéias de outra geração, a menina saía resmungando, para si mesma: — “Essa chata!” Pouco depois que tio Nonô saiu da bi­blioteca, Engraçadinha vai para o quarto, que era na segunda porta do corredor, à direita. Entra lá e tran­ca-se. Só não quer pensar em Sílvio. (Nunca mais pen­sar em Sílvio). E, no quarto, coloca-se diante do es­pelho. Primeiro fica de perfil; depois, de frente. E, por último, com um sorriso muito leve e um olhou inten­cionalmente doce — como se tivesse um flerte consigo mesma — ela vai erguendo a sáia, devagarinho. Olha, então, numa curiosidade meio atônita, as próprias coxas. Tem um movimento lindo de cabeça, como uma espanhola de balé. Às vêzes, ela, Letícia e as coleguinhas comparavam as cosas entre si e Engraçadinha ganhava, longe. Vendo-a assim, alguém acharia que tôda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma. Certa vez, na rua, um moreno escuro, de beiços pesados, atirou-lhe o galanteio:

— Gostosa!

Em casa ligou rápido para Letícia. Contou-lhe: — “Imagina! Fui chamada de gostosa!” Tinha certeza que a outra não lhe chegava aos pés. Aliás, por onde passa­va, Engraçadinha ia sentindo, em tôrno, a efervescên­cia do desejo anônimo e geral. Ficava prestando aten­ção; pensava: — “Aquêle está me olhando”. Quando passava por um espêlho, olhava-se, meio de perfil, para si mesma. Nada a excitava mais do que a própria imagem. E, agora, já pensava em tirar tudo, para ver a nudez começar nos pés e subir pelas pernas, pelos quadris, pelo ventre. Começava a desabotoar nas costas. Súbito, batem na porta. Vira-se, de lábios cerrados. Tia Zezé a chama e Engraçadinha tem vontade não sei de quê. Oh, que chateação, meu Deus! Tia Zezé mexe no trinco: — “Abre! Abre!” E a menina para si mes­ma: — “Ih, não sei porque gente velha não morre!” Abre a porta com violência:

— Que troço chato!

Tia Zezé entra. Não acredita ou, por outra, não queria acreditar. Como tôda pessoa nervosa, não podia suportar a dúvida, precisava de certezas frenéticas, e que lhe fôssem convenientes. Sua atual “certeza frené­tica” era a inocência da sobrinha. Mas, ao ver a peque­na, — sentiu novamente a dúvida na carne e na alma; baixou a voz:

— Se houver alguma coisa — e se você está... — não quis dizer “grávida”; e continua: — Você nega, ouviu. Nega até o fim!

Deu moxoxo:

— Ih, titia! Sei lá do que é que a senhora está falando!

Já com palpitações, a velha puxa Engraçadinha:

— Vem comigo, vem!

A garôta ia repetindo:

— Gozado! Todo o mundo, hoje, cismou com a minha cara!

 

O Irmão Fidélis faz-lhe festa, como se ignorasse tudo:

— Como vai a nossa amiguinha?

Engraçadinha não esperava encontrá-lo ali. De pé atrás, nem retribui o cumprimento. Olha para o outro lado; e pensa: — “Tio Nonô contou pra todo o mundo, mas que se dane”. O gordo atravessou-se na frente do Irmão:

— Escuta, Engraçadinha: — repete, para êles, re­pete, o que você me disse!

Tia Zezé olha êsse marido. Fecha os olhos, amaldiçoando-o, interiormente: — “Canalha!” Nenhuma resposta de Engraçadinha. Tio Nonô levanta a voz, com um comêço de fúria:

— Eu estou falando! — E mais controlado: — Você não disse, aqui, ainda agora que estava grávida? — Ergue a voz: — Disse ou não disse?

Calada, os lábios cerrados, Engraçadinha lembra-se do crioulo, operário de uma obra, que a chamara de “Gostosa”. (Só não queria pensar em Sílvio). O crioulo tinha um cabelo farto debaixo do braço.

A hipótese de que, de repente, ela negasse tudo, enfureceu tio Nonô. Berra:

— Fala!

Súbito a pequena vira as costas para os três. Tia Zezé pede a Deus, com tôda a violência de sua fé, que Engraçadinha negasse até morrer. Em pé, crispada, faz uma promessa: — Se Engraçadinha negasse, ela, tia Zezé ofereceria um círio do tamanho de um homem, a S. Francisco do Canindé. Tio Nonô está fora de si: — “Ah sem-vergonha!” Agarra a Sobrinha pelo braço. Então, ouve-se a voz, fina, mas vibrante, do Irmão Fidélis:

— Um momento!

Erguia uma das mãos, como se quisesse pacificar aquelas almas. Tio Nonô, meio confuso, volta-se. Numa afetação ainda maior de humildade, Irmão Fi­délis começa:

— Eu queria falar, a sós, com a nossa amiguinha. Vocês me dão licença? Tenho certeza que a mim — fala para a menina — não é Engraçadinha? — a mim ela dirá.

Tio Nonô vacila. Irmão Fidélis leva-o para um can­to, cochicha a hipótese: — “Talvez seja mentira! Nessa idade, a virgem é meio delirante...” O outro tem um alegre e bestial espanto: — “Virgem grávida, Irmão?” Sempre em voz baixa, Irmão Fidélis explica: — “A gravidez talvez seja tão falsa como o incesto. E pode deixar, que eu arranco a confissão”. O gordo acabou saindo; mas bufava: — “Ou ela confirma ou... Vaqui­nha!” Tia Zezé o acompanha. Irmão Fidélis fecha a porta à chave. Por um momento, junto à porta, contem­pla Engraçadinha. Considerou que, de fato, a menina tinha uma maneira feia de sentar-se, separando muito os joelhos. Aproxima-se, então, e senta-se, de frente para a garota. Mas logo ergue-se. Achava que o homem sentado não alcança jamais a sua plenitude. Andando de um lado para outro, levanta a voz:

— Menina! O ser humano é incorruptível! Nada corrompe o ser humano! A corrupção é uma impossi­bilidade! Só existe o falso corrupto! O pior devasso é ainda um puro!

Dizia isso aos berros e com uma sinceridade que o apanhou de surprêsa.

 

Ainda ofegante, Irmão Fidélis põe-se de cócoras diante da menina e a segura pelos pulsos. Sem desfitá-la, estrangula a voz:

— Olha pra mim.

E ela:

— Estou olhando.

O Irmão pensa: — “Não vou agüentar muito tempo essa posição”. A articulação dos joelhos já lhe doía. Continua:

— Agora fala.

Admira-se:

— Mas o que? Falar o quê?

Aperta os pulsos da menina:

— Tudo!

Um pouco atônita, olha-o sem responder. Irmão Fidélis ergue-se (muito incômoda a posição). Apanhando uma cadeira, decide: — “Ela vai me contar tudinho!” Vem sentar-se de frente para Engraçadinha, quase joe­lho com joelho. De longa data, já notara que aquela menina, tinha, por vêzes, em tôrno dos olhos, um halo intenso. Para si mesmo, concluía: — “Eu sei como interpretar essas olheiras!” Exaltou-se de nôvo. E, coisa curiosa! Não fingia, nem representava. Toma, entre as suas, as mãos de Engraçadinha:

— Menina! — e repete, com uma violenta chama interior — Não sei o que houve, nem importa. Você é mais pura do que antes. Agora, sim, é que você é, real­mente pura!

Pára confuso... Pergunta a si mesmo: — “Mais pura depois do incesto?”. Vacila: — “Vou dizer que até as prostitutas são incorruptíveis. Mas ela entenderá isso? É por que “até” se as prostitutas são como nós?” Ergue a voz, com surdo sofrimento:

— Até as prostitutas são incorruptíveis! — e de nôvo baixo: — Olha aqui, vamos fazer o seguinte: — eu pergunto e você responde. Se por acaso, foi teu pai — eu não estou afirmando; é uma hipótese — mas se foi teu pai, você dirá: — “Foi meu pai”. Eu continua-rei perguntando: — Onde e quando? Naturalmente, foi aqui, presumo. Teu pai não te levaria para outro lugar — e faz a pergunta à queima-roupa: — “Foi no teu quarto?”

Ergueu o rosto:

— Biblioteca.

Olha em tôrno:

— Aqui?

E ela:

— Sim.

“Numa biblioteca!” — é o seu espanto. Com uma sensação de triunfo, sente que Engraçadinha dirá tudo. Com um mínimo de voz, sem valorizar a pergunta, Ir­mão Fidélis continua:

Êle te chamou e...

Interrompe:

— Fui eu a culpada.

Balbucia:

— Você? E culpada como?

Engraçadinha imaginava: — “O Irmão finge que nem me liga. Vem aqui e não olha pra mim. Duvido! Fingimento puro. Bem que no entêrro de papai, lá no cemitério, houve uma hora em que êle ficou me roçando. Mas eu, que não sou boba, percebi tudo. Quero ver a cara dêle, agora. Êle pensa que eu sou uma menina bobinha, cheia de pudor!” Irmão Fidélis pede: — “Con­tinua”. Suspira:

— Tenho vergonha.

Êle apanha com a mão o queixo da menina e ergue o seu rosto:

— Vergonha por quê? De mim? Mas, oh! Eu já não te disse que todos nós somos puros e cada vez mais puros? O pior devasso — o mais sujo — é, ainda, ima­culado. Fala! Eu não olho pra ti. Tapei o rosto. Agora explica: — você se diz culpada e por que?

Continua de cabeça baixa:

— Êle não queria.

— E você?

Ergue o rosto, numa espécie de desafio:

— Eu queria!

O Irmão Fidélis pensa: — “Foi ela que o tentou, que o atraiu, que o destruiu. Essa menina perde qual­quer um!” E não entendia como um pai feio e lívido, de canelas e coxas finas, um magro lúgubre — podia fascinar a filha adolescente. Fala:

— Bem. Você queria e êle não. Mas continua, e olha: — não importa o que você tenha feito. Um sim­ples ato não basta para corromper ninguém — e afir­mou enfático, arbitrário: — Não temos nada com os nossos atos! Agora, responde: — você chamou seu pai para cá?

Perguntava a si mesmo: — “Por que na biblioteca e não no quarto, dêle ou dela, e alta madrugada?” Já imaginava que o velho deputado tivesse experimentado um dêsses desejos bruscos e mortais. Com súbita ale­gria, Engraçadinha pergunta:

— O senhor se lembra daquela festa? Que papai deu? Aquela? Do noivado do Sílvio. O senhor se lem­bra, sim!

Claro que o Irmão Fidélis se lembrava. Sem tirar os olhos dêle, Engraçadinha pensava: — “Minhas coxas são mais bonitas que as de Letícia. E, além disso, Letícia tem varizes. Eu não suporto, não tolero varizes!” Engraçadinha pensa naquela noite e parece ter a festa diante dos olhos:

— Pois é: — foi o baile do noivado e da formatura de Sílvio. A noiva era Letícia. Eu estava de branco — um vestido muito bonito, que fêz muito sucesso — e até ouvi um palpite gozado; alguém me disse: — “Você parece mais noiva que Letícia”. E foi nesse dia, exatamente, quer dizer, nessa noite, exatamente. Pouco depois da valsa...

O Irmão Fidélis não podia compreender: — “Mas num dia de festa? Com a casa cheia?” Engraçadi­nha ri:

— Com a casa cheia. Não sei onde eu estava com a cabeça. Imagina que nem fechei a porta. Fechei só com o trinco.

Parecia feliz da própria audácia ou imprudência. Ficou subitamente de pé, como se precisasse de um certo espaço para evocar aquêle momento de sua vida. Espantado, sem o demonstrar, Irmão Fidélis ouvia tudo. O rosto de Engraçadinha deixara de ser uma máscara inescrutável. Êle a via pela primeira vez assim com a bôca sôfrega e cruel. “Estará grávida?” era a sua dú­vida. Por sua vez, Engraçadinha olhava-o sem pena: — “Também me acha gostosa. Babão como os outros”.

Começa, com os olhos brilhantes:

— Imagina o senhor que havia, lá na festa, no meio dos convidados, uma moça, aliás, bonita, muito bonita, — e repetia: — a mais bonita de tôdas. Dan­çando, ela disse ao par. Não disse, pensou: — “Vou acabar com êsse noivado, com êsse casamento”. Está prestando atenção?

O Irmão Fidélis começa a sofrer: — “Essa bestalhona está me fazendo de idiota”.

 

Sim, fôra há dois meses atrás, na festa de Sílvio. Êste, mocíssimo, formava-se em Direito (como o tio, Dr. Arnaldo) e noivava oficialmente com Letícia. Um e outro primos de Engraçadinha. Dr. Arnaldo o educa­ra. Sílvio era filho e (note-se) filho póstumo de um irmão do Dr. Arnaldo, o Severino. De fato, meses após a morte de Severino, num desastre de trem, nasce o ga­roto. A mãe, tia Guida, ainda arquejando das dores, balbucia:

— Ah, se o Severino estivesse aqui.

Dois anos depois, ela morre também e, se não me engano, da espanhola. “Tipo da morte estúpida”, di­riam . Ao que um parente, senhor ilustrado e irreverente, respondeu com lúgubre sarcasmo: — “Quem não morreu na gripe?” Dr. Arnaldo tinha por Severino um afeto quase obtuso, espécie de veneração, sei lá. Carregou o órfão de pai e mãe como se fôsse um menino-deus. Homem sóbrio, taciturno, fêz com o sobrinho o que não faria nunca com a filha. Por várias vêzes, abandonou o jeito austero e veio mudar a fraldinha do guri. De­pois, cheirava as mãos e ia lavá-las. Com a filha, fôra sempre um contido. Mesmo porque — diga-se de pas­sagem — a nudez de uma filha, ainda que de tenra idade, causava-lhe (coisa estranha!) um certo asco. Uma vez foi até interessante. A mãe de Engraçadinha pôs o casalzinho de primos na mesma banheira para o banho comum. Dr. Arnaldo soube e zangou feio:

— Tirando o pudor da menina? Ou será que você não tem consciência? Onde está a sua religião, mulher?

Era o caso de perguntar pela relação entre a fé e a inocência óbvia da nudez infantil. Mas estava deci­dido que o Dr. Arnaldo ia ficar sòzinho, com a filha e o sobrinho. D. Olímpia, que sempre fôra uma senhora lânguida, melíflua, de pressão baixa, suscetível de nos­talgia sem motivo — morreu de repente. Êle ficara com os dois e havia o cochicho mais ou menos univer­sal: — “Gosta mais do Sílvio que da Engraçadinha”.

 

Ouvindo Engraçadinha, Irmão Fidélis começou a ter-lhe um certo ódio: — “Cínica! Cínica!” Tio Nonô já a chamara por duas vêzes:

— Como é êsse negócio?

Resposta do Irmão Fidélis: — “Está quase”. Mas a pequena não ia direta ao fim. Perdia-se em detalhes e parecia mesmo ter o propósito de irritá-lo e confun­di-lo. Com a garganta apertada, Irmão Fidélis quis interromper:

— E teu pai?

Engraçadinha, porém, sem pressa, falava de tudo — de Sílvio, de Zózimo, de Letícia, da tal moça bonita, e esquecia o pai. Tornava-se evidente que prolongava, maldosamente, o mistério. Tia Zezé bate de nôvo:

— Vocês abrem?

Pensando: — “O Irmão vai ficar besta!” — Engra­çadinha continua:

— A moça bonita disse para alguém: — “Vai na biblioteca. Dá um pulo lá”. E explica: — “Tenho uma surprêsa pra ti”. Êsse alguém teve mêdo. Quando aca­bou a dança, ela foi na frente — não havia na festa uma tão linda. Ficou combinado que, cinco minutos depois, o fulano apareceria. Quando êle passou a mão no trinco e abriu a porta, viu aqui — olha — aqui...

A própria Engraçadinha colocou-se no lugar e re­petia :

— Aqui onde estou. Viu a moça nua. Completamente nua.

Irmão Fidélis balbucia: — “Quem viu? Teu pai?” E só no fim — depois de torturá-lo bastante — é que Engraçadinha disse o nome:

— Não foi meu pai. Meu pai não sabia de nada. Foi Sílvio. Sílvio não; Zózimo. Foi Zózimo.

Pausa. Desesperado, Irmão Fidélis pergunta: — “E a moça nua?”

Engraçadinha teve um sorriso muito tênue:

— Eu.

 

Houve um silêncio. Engraçadinha continuava com o sorriso tênue, quase imperceptível. Irmão Fidélis pensava, com uma surda irritação: — êle for­mava, uma imagem falsa, infiel, daquela menina. Quando a via, pela casa, no meio das tias, costumava pensar: — “É uma bestalhona”. Não o era, pelo con­trário: — sua graça leve seria talvez o disfarce de uma alma profunda. Mas o Irmão ainda não sabia se fôra Sílvio ou Zózimo. Realmente, não sabia.

Diante dêle, sem desfitá-lo, Engraçadinha imagi­nava: — “Está besta comigo. Com cara de tacho”. E o fato de ter surpreendido um homem que, precisa­mente, lidava com almas e conhecia a imaginação do pecado — dava-lhe uma vaidade muito doce e muito aguda. Irmão Fidélis ergue-se. Experimentava um sentimento de frustração. Teria preferido à pior das hipóteses, ou seja — a paixão incestuosa e realizada. O incesto seria uma arma na sua mão. Dominaria a família. Em vez de incesto, porém, tinha havido o quê? Um defloramento, puro e simples, entre primos. Nova­mente, o Irmão Fidélis pensa, com amargura, no deputado morto: — “Aquêle animal gostava, sim, da filha. Tinha-lhe paixão. Matou-se por mêdo. Não teve coragem de ir até o fim”. De resto, sempre achara que o velho escondia, por trás do feitio austero, da poli­dez gelada, uma pusilanimidade abjeta.

 

Engraçadinha mentia. Precisava convencer a famí­lia que Zózimo... A verdade é que jamais contaria tudo a ninguém. Não dissera ao Irmão Fidélis que, no dia da festa, já acordara zangada. Tia Ceci — a que só se lavava na bacia — estava no banheiro. A menina bate lá, com muxoxos:

— Tem gente?

E aquela velhinha frágil, quase incorpórea: — “Já vai”. Falava com uma voz fininha de criança que baixa em centro espírita. Sentia na sobrinha a agres­sividade da adolescente e tinha-lhe pavor. Andando de um lado para outro, no corredor — e coçando a cabeça — Engraçadinha resmungava: — “Que amolação!” — Mas antes que a outra saísse, tocou, em­baixo, o telefone. Em seguida, gritaram:

— Engraçadinha!

Desceu, com a camisola em cima da pele. Se o pai visse, havia de dar-lhe um passa-fora: — “Andando nua pela casa?” Dr. Arnaldo não admitia e mandara mesmo uma das aias avisar à menina: — “Tem que dormir de calça!” Ao apanhar o telefone, Engraçadi­nha já sabia que era Letícia (primas e pareciam irmãs). A outra suspira no telefone:

— Tenho mêdo, Engraçadinha!

Coçou o nariz:

— De quê?

Letícia, que já tomara banho, já se arrumara, sus­pira, novamente:

— Sei lá! Eu me sinto tão feliz, mas tão!

E era justamente essa felicidade que a apavorava. Ao despertar, antes das cinco, pensara na festa de logo mais. Contava, agora, para a prima, que a euforia lhe dera uma brutal cólica. Explica, triste e insegura da própria felicidade:

— Emoção. Já fui três vêzes!

Foi aí que Engraçadinha insinuou: — “Aliás, casamento até na porta da Igreja se desmancha”. Para quê? Do outro lado da linha, a prima toma um susto: — “Não fala assim!” E gemia: — “Isola!” Mais que depressa bateu as três pancadinhas na madeira. En­graçadinha despedia-se:

— Vou tomar banho. Te telefono depois.

E a outra:

— Telefona.

Engraçadinha sobe. A festa ia ser ali porque o Dr. Arnaldo fizera questão de dar a casa e, mais do que isso, de fazer todos os gastos. Queria pagar até o mais ínfimo e obscuro salgadinho, até a mãe-benta mais humilde e tostada. Primas, tias, vizinhas, numa roda viva, faziam doces, noite e dia, e andavam pela casa aos tropeções, nos preparativos. Dr. Arnaldo aparecia na copa, na cozinha, e, grave, numa emoção contro­lada, fazia a pergunta geral: “Está faltando alguma coisa?” De vez em quando, Tio Nonô também apare­cia com a sua plenitude obscena. Furtava mães-bentas com exultante descaro. Certa vez, enfiara uma na bôca com papel e tudo. Tia Zezé precisava ralhar com o marido e enxotá-lo: — “Tira a mão daí!” Mas como eu ia dizendo: — “Engraçadinha sobe e tia Ceci vinha saindo do banheiro. Pequenina de natureza e com o desgaste do tempo, tinha algo, na sua fragilidade in­tensa, de múmia de anão. Ela entra lá, tranca-se. O próprio banho era para Engraçadinha uma experiên­cia sempre nova. E só uma coisa a irritava: — que o espelho fôsse pequeno e ela não se visse de corpo in­teiro. Teve que se pôr nas pontas dos pés para espiar os seios, que apanhou por baixo, com as duas mãos. Arrancara a camisola, por cima da cabeça, com um movimento selvagem. Baixava o rosto para se ver melhor. Olhava a própria nudez com triunfante vo­racidade. E, antes de cair debaixo do chuveiro, pen­sava em Sílvio: — “Sujeito burro! Vá ser burro assim no diabo que o carregue! Palhaço!”. E parecia-lhe um absurdo que, conhecendo as duas, desde meninas, êle tivesse preferido Letícia. Diante do espêlho, com os olhos escurecidos de ódio, ela parecia estar discutindo, argumentando com o noivo da outra: — “Seu animal! A Letícia tem as coxas finas, horrorosas, o joelho os­sudo e o umbigo — você já viu o umbigo de Letícia? Responde: — já viu o umbigo? Te juro e por essa luz que me alumia: — o umbigo mais feio que já vi na minha vida”. O que ela estava querendo dizer, a si mesma por outras palavras, é que nenhuma mulher é bonita sem um umbigo bem feito. Já debaixo do chuveiro, passando espuma pelo corpo, continuava o seu monólogo irritado: — “De mais a mais, tem uma barriguinha ridícula!” Quando acabou o banho, pôs a camisola no braço e atravessou do banheiro para o quarto — tão nua!

Tia Zezé, que ia descendo, viu e ralhou:

— Teu pai não gosta!

 

De noite, a. festa. Depois do almôço, Letícia salta de um táxi, com a mãe, duas irmãs e a criada. Entra, com um ar meio atônito e pergunta:

— Tem Eparema?

Com a mão apertava o ventre. Só acreditava na “Flora Medicinal”. A mãe explica para as outras tias: — “Nervosa”. Sobe correndo para o banheiro, enquan­to tia Zezé cata, no armário, o vidro. Mais tarde, mu­dam a roupa juntas. Súbito, de costas para Engraçadi­nha, Letícia deixa escapar o lamento: — “Tenho as coxas muito finas”. Vira-se para a outra. Puxa a com­binação e repete, com pena e, ao mesmo tempo, com raiva: — “Não são finas?” Engraçadinha, diante da penteadeira passa verniz nas unhas; olha pelo espelho: — “Nem tanto, nem tanto”. Soprando as unhas, a pe­quena pensa: — “Burro como Sílvio nunca vi”. Caíra a noite; a orquestra já chegaria. Pouco depois, a mãe de Letícia vem vê-la. Baixa a voz para a filha:

— Melhor?

Agora era o fígado. A noiva, que tomara o remédio amargo, e ia repetir a dose (a título de precaução), geme: — “Sei lá!”. Passava baton, diante do espêlho, e gostaria de ter as coxas mais grossas, como Engraça­dinha. Súbito, a orquestra, de umas cinco figuras, co-meça a tocar. Nervosíssima, e com o pavor de novas cólicas, Letícia puxa Engraçadinha. Queria ter a prima ao lado. Tia Cotinha vem com mais uma colher de remédio. — “Toma! Toma!” Letícia, meio torturada (por causa das coxas finas e dos quadris um pouco estreitos), bebe de uma vez. Desceram as escadas, ao mesmo tempo; e naquela atmosfera cálida de música, de vozes, de ombros nus — Letícia experimentou um brusco deslumbramento. Já sofria menos o sentimento de inferioridade. Pararam, no último degrau. Sílvio aproxima-se (tão bonito!) e segurava a noiva pela mão. Olhando para outro lado, Engraçadinha ouviu o rapaz sussurrar para Letícia:

— Linda!

Engraçadinha sorria, disfarçando a própria fúria: — “Bobão!” Sentia-se muito mais bonita do que a pri­ma. E erguia a cabeça — os cabelos, em silêncio, des­ciam até os ombros. Ali, nas salas, tinha de tudo: — feias, simpáticas, bonitas ou simplesmente passáveis. Mas não havia nenhuma tão linda. Todos a olhavam. O Zózimo veio tirá-la. Sorriu para o noivo, num des­contentamento cruel. Zózimo dançava mal e era tão sem graça! No meio do fox teve que ralhar com o noi­vo: — “Não aperta tanto!” Em seguida, dançou outras vêzes, muitas vêzes. Cêrca de meia-noite, começou a desesperar-se: todo mundo a tirava, menos Sílvio. Prometia a si mesma: — “Eu me vingo!” Finalmente, depois da meia-noite (era desejada por todos, menos por êle), vai buscá-lo: — “Você não dança comigo?” Letícia, ao lado, dizia, melíflua:

— Dança com Engraçadinha, meu bem.

Saem os dois. A princípio, Engraçadinha não fala nada. Está comovida até as raízes do ser. Finalmente, ergue e aproxima o rosto; fala bem de perto, para que êle sinta o gôsto de sua bôca e veja a côr molhada de sua língua. Sussurra: — “Depois da dança, deixa pas­sar uns cinco minutos e vai pra biblioteca. Eu te espe­ro lá”. Fôra, sim, na frente. E, na biblioteca, numa espécie de embriaguez foi tirando tudo. Por um mo­mento, teve a sensação de que jamais uma mulher se despira tanto ou ficara tão nua. Sílvio abre a porta e estaca. Não entendia aquela nudez súbita e, com a mão no trinco, pensou em correr, fugir. Engraçadinha disse, quase sem mover os lábios:

— Vem.

Sílvio deu um passo. Com o calcanhar, empurra e fecha a porta. Caminha lentamente para a moça. Passa-lhe a mão por trás da cabeça; agarra os seus cabelos. Ela balbucia, num delírio:

— Tua noiva não faria isso!

Primeiro, êle a beija no pescoço. Depois, antes de juntar bôca com bôca, soluça:

— Cachorra!

 

Engraçadinha não contara ao Irmão Fidélis o “cachorra” que Sílvio lhe atirara ao rosto, com uma bôca de ódio. Depois de a beijar no pescoço, o rapaz a carregou. O pêso da menina fê-lo, por um momento, dobrar os joelhos; quase, quase aquêle corpo escorre­gou-lhe dos braços. Contraiu a cara no esfôrço. E, por um segundo, uma fração de segundo, pensou: — “Isso não está acontecendo!” Engraçadinha imagina, numa feroz alegria: “E se êle me levasse, nos braços, pelada, para a sala?” O espanto, o horror dos convidados ao ver Sílvio abraçado à sua nudez!

O rapaz queimava a pele da garôta com a sombra áspera e quente da barba. Parecia não saber o que fazer com o corpo nu. Olhava para os lados: — “Letícia não merece isso”. Foi Engraçadinha que estendeu o braço (moreno e bonito), apontando:

— Ali.

Levou-a para o divã. Sùbitamente, descobria que sempre a desejara, sempre. Naquele momento, a pou­cos passos, o pai conversava com deputados e o pre­feito; o noivo andava, meio perdido, por entre os con­vidados, com o jeito doce e lancinante de pobre-diabo. Letícia perguntava a todo mundo, com a humilhação do abandono: — “Viu o Sílvio?” E ninguém podia ima­ginar que, na biblioteca fechada apenas com o trinco — aquêle corpo enroscado! Repetia para si mesmo: — “Crápula! Crápula! Eu sou um crápula! Me cuspam na cara!” Se um convidado desgarrado, ou o próprio Dr. Arnaldo (ou Letícia) entrasse, de repente?

Desesperado, Sílvio diz e repete:

— Somos dois loucos! Dois loucos!

Engraçadinha passa-lhe as unhas nas costas; balbucia:

— Abre a bôca, anda... abre...

Sílvio obedece. Fome e sede de uma bôca por ou­tra. Engraçadinha crispa-se, enquanto a saliva caía da bôca para o queixo. Disse, ofegante:

— Bôbo! Letícia não chega aos meus pés!

 

Também não contaria ao Irmão Fidélis que, de­pois, Sílvio a empurrara:

— Põe a roupa.

Êle próprio enfia o paletó com uma urgência pâ­nica. Agora, de costas para a prima, apanha um cigar­ro e começa a catar os fósforos. Tinha ódio de si mes­mo, ou, pior, nojo. Vira-se para Engraçadinha:

— Depressa! e insistia: — Depressa, antes que ve­nha alguém!

Só agora é que, numa prudência retardatária, vai fechar a porta à chave. Engraçadinha, feliz, calçava as meias. Espicaçou-o: — “Por que não olha?” Êle, que ainda não achara os fósforos, continuou de costas. Perguntava, fora de si: — “Onde é que eu botei essa caixa?” Só então lembrou-se que a emprestara a um deputado e que êste não a devolvera. Com um cigarro inútil entre os dedos, pensa, olhando Engraçadinha, que certas mulheres são prostitutas natas.

Engraçadinha sorria-lhe:

— Gostou?

Recua:

— Não!

Ela o desafia:

— Duvido!

Instintivamente, Sílvio procura os fósforos que emprestara ao deputado. Ela ainda tem, no lampejo do olhar, a embriaguez da própria audácia. O rapaz sofre com um nôvo raciocínio: — “Ela foi louca, mas eu aceitei a loucura!” Desesperado com a falta de fósforos, começa:

— Bem. Eu quero deixar bem claro o seguinte: eu não fui culpado de nada e você foi culpada de tudo. Exato?

A pergunta saiu como um apêlo. Engraçadinha es­tende a mão:

— Dá o lenço pra eu limpar o batom — repete: — Está todo sujo de batom. Dá o lenço.

Enquanto a menina passa a cambraia fina no seu rosto, Sílvio bate na mesma tecla:

— Você reconhece que foi a culpada? Reconhece? Eu estava quieto, no meu canto — eu não estava quieto no meu canto? não estava ao lado da minha noiva? — Fala! — berra — diz qualquer coisa!

Em silêncio, Engraçadinha molha a ponta do len­ço na língua e passa a fazenda úmida na mancha de batom. Sílvio fala, ainda:

— Foi você que me chamou pra biblioteca. Pois bem: chego aqui e você está pelada — repetiu, na sua fúria. — Tôda a culpa é sua!

Engraçadinha arrumara o lenço e o colocava no bôlso do rapaz. Ergueu o rosto e com uma voz macia, um sorriso muito tênue, pergunta

— Escuta aqui, seu cretino: — você quer dizer o quê? Que você foi forçado, que não queria? Ora, Síl­vio! Você é algum bebèzinho? E não se esqueça que você foi o primeiro.

O rapaz ergue a voz:

— Eu te disse, eu te avisei, que, em hipótese ne­nhuma, deixaria Letícia! Foi ou não? Responde — foi ou não foi?

Engraçadinha exaltou-se também:

— Se você é noivo, eu também sou noiva! Ou não sou? E com que cara vou aparecer ao meu noivo e di­zer: — “Sílvio me fêz isso assim, assim!” Você acha que o Zózimo vai gostar? Pimenta nos olhos dos ou­tros é doce de leite!

Sílvio queria falar, mas o som não saía. No seu espanto e no seu ódio, olhava a prima. Lembrou-se do momento em que abrira a porta e vira aquela nudez espantosa. Sentiu que, se fixasse a imaginação, o dese­jo ia romper novamente de não sei que profundezas, Fecha os olhos e quase soluça:

— Eu amo minha noiva!

Corrige:

— Ex-noiva!

Abre os olhos. Balbucia: — “O quê?” E ela:

—Vocês homens são uns covardes! Então você fêz o que fêz e vai me abandonar — por quê? Olha! — Eu vou deixar Zózimo, e você, Letícia! Mas claro, evidente!

Sílvio sentou-se. Mais uma vez, procura os fósfo­ros. Jamais tivera por alguém um ódio tão violento:

“Como é ordinária! Eu devia quebrar-lhe a cara, agora! Dar-lhe um sôco na bôca! Ainda ri, a cachorra! Por isso que há uns caras que matam mulher!” Lívido ergue-se; dirige-se à pequena, com a voz estrangulada: — Eu devia te dizer uns palavrões...

— Diz.

E êle:

— Devia te quebrar a cara...

Oferece o rosto:

— Quebra.

Sílvio tem os olhos cheios de lágrimas. “É uma prostituta! Uma vagabunda!” E já lhe parecia que ne­nhuma mulher trai por amor ou desamor. O que há é o apêlo milenar, a nostalgia da prostituta que existe ainda na mais pura. Pensava na noiva que devia estar desesperada. Encaminha-se para a porta e, súbito, es­taca. Vim-se, pergunta:

— Que tal o cabelo?

— Despenteado.

Olha para um lado e outro. Explode:

— Pente! Onde é que eu arranjo um pente?

Engraçadinha não se mexe. Sonha: — “Tu és meu. Letícia que se dane. Só meu”. Humilhado, pede:

— Quer arranjar um pente?

Enquanto ela sai por um momento, Sílvio, com o inútil cigarro entre os dedos, tem ódio também do deputado a quem emprestara os fósforos. Podia ter pedido a Engraçadinha para trazer uma caixa: — “Isso não. Seria demais”. A menina volta com o pente. Retocara a pintura. E ela própria se oferece:

— Deixa que eu penteio.

Enquanto a prima reparte o cabelo do rapaz, Sil­vio está pensando: — “Se eu estivesse num lugar de­serto ou passeando num barco, com essa miserável, eu a empurraria”... E já imaginava Engraçadinha no mar, ou na lagoa, debatendo-se, engolindo água, e êle abrindo-lhe a cabeça com o remo, até afundá-la... Com o pente na mão esquerda, Engraçadinha passava a mão direita na cabeça do primo. Sorri, quando acaba:

— Nós somos amantes.

Êle baixa a voz:

— Amanhã, vamos ter uma conversa muito séria.

Sai. Entra na sala e vê o deputado dos fósforos. Encaminha-se para êle, indignado: — “O senhor quer me ceder seu fogo?” Acende o cigarro e embolsa a caixa com uma sensação de triunfo, exclama:

— É minha!

Letícia já o chamava. Era de uma família de ner­vosos e deprimidos. Valorizava e dramatiza pequeninos contratempos. A ausência do noivo parecera-lhe uma catástrofe. Recebeu-o com uma euforia feroz: — “Oh, meu bem! Você demorou!” Sílvio a puxou para si, como se quisesse protegê-la da ameaça que só êle co­nhecia. Olhava em tôrno, perguntava a si mesmo se em cada uma daquelas mulheres existia o apêlo da pros­tituta eterna. Dançou duas ou três vêzes com Letícia. Via Engraçadinha passando com o cego, obtuso e bo­vino Zózimo. Tio Arnaldo aproximou-se e batia-lhe nas costas: — “Você tem sorte, Sílvio. Há poucas meninas de família. Estão desaparecendo. Letícia é uma das últimas”. Cêrca das quatro da manhã, leva Letícia em casa. Engraçadinha está só na sala, chei­rando as flôres de um jarro, diz-lhe:

— Vou deixar a porta do quarto apenas encosta­da. Empurra e entra. Te espero.

 

Irmão Fidélis baixa a voz:

— Posso te fazer uma pergunta?

— Claro!

Insiste:

— E você responde?

— Respondo.

Respira fundo:

— Silvio foi o primeiro?

— Não ouvi.

Repete:

— Pergunto se, de fato, teu primo foi o primeiro ou se...

— Juro!

— E teu noivo?

A menina sente a dúvida do Irmão. Pensa: — “Bôbo!” Ri.

— O senhor quer que eu jure? Eu juro. Quer? Pela alma de meu pai?

Põe a mão no braço da pequena:

— Basta a tua palavra.

Mas a pequena continua:

— Naturalmente, o senhor pensa que, se eu, noiva de um, estive com outro, é porque, com certeza... Mas quero que Deus me cegue se minto. E lhe digo mais: — “Sílvio, quando voltou, não queria acreditar”...

 

Realmente, quando Sílvio chegou e a viu na sala, sozinha, quis retroceder. Acabara de levar Letícia; to­mara entre as suas as mãos da noiva, beijara uma e outra, com remorso, com vergonha e pensando: — “Tenho nojo de Engraçadinha!” Balbuciou, com mêdo de olhar Letícia: — “Adeus”. A noiva tem um certo espanto: — “Não me beija?” Êle ia responder que já lhe beijara as duas mãos. Letícia ergueu o rosto:

— Na bôca.

Roçou com os seus os lábios da pequena. Partira, fugindo. Puxou um cigarro. Experimentou a alegria de encontrar a caixa de fósforos; e fêz todo o percur­so de volta, repetindo para si mesmo: — “Tenho nojo daquela cara!” Tudo em Engraçadinha cheirava a voluptuosidade ordinária. E, sobretudo, uma coisa não lhe saía da cabeça: — a agilidade instantânea e acrobática com que a menina se enroscara. Sentira os rins triturados, sob a pressão das coxas. Entra na sala, di­zendo para si mesmo: — “Nunca mais”, ao dar com Engraçadinha, ia passar adiante. A prima está só; as empregadas andavam na copa, cobrindo os pratos, pu­xando cadeiras. Engraçadinha, que estava mexen­do numas flores, vira-se bruscamente e barra-lhe a passagem. Teve vontade de empurrá-la. Mas estava diante dela, sem ação e meio atônito. Mentalmente, comparava as duas: — Engraçadinha, que vira, ainda há pouco, tão delirante; e Letícia, que era de uma feminilidade tão sofrida e, ao mesmo tempo, tão de­licada. A pequena diz que o espera no quarto. Neste momento, Dr. Arnaldo sai da biblioteca, já de robe de chambre, chinelos. Disse, ao passar: — “Bonita, a festa”. Engraçadinha pede:

— A bênção, papai!

— Deus te abençôe!

E assim que êle some, Engraçadinha olha para Silvio. Faz-lhe com a bôca um bico de beijo, sussurra: — “Meu amante!” E êle:

— Nunca mais!

 

Claro que nunca mais. Todavia, pouco mais em­purrava a porta da prima. Em calças de pijama, nu da cintura para cima, descalço, aproximou-se da cama. Sentiu a mão da pequena no seu braço. Não podiam fazer barulho e Engraçadinha dizia: — “Chega pra cá”. Sílvio fica de bruços, com a cara enfiada na me­tade do travesseiro. Ela fala tão próximo que o rapaz sente a sua respiração na orelha. Ocorreu-lhe, então, a curiosidade que o Irmão Fidélis teria depois:

— Fui o primeiro?

Rio, no escuro:

— Seu burro! Ou você não percebeu?

Arqueja:

— Sei lá! Mulher é tão falsa!

Êle pensa: — “Não tem alma. É só fêmea”. Ah, se Letícia soubesse que, naquele momento, êle estava com Engraçadinha! No quarto em trevas, a intimidade era mais voraz, misteriosa e ameaçadora. Com surdo de­sespêro, pergunta:

— E teu noivo?

Com as unhas ela risca, novamente, as costas do primo. Êle sente na pele lanhos de fogo. Queria saber: — “Teu noivo te beija?” E ela: — “um boboca!” Fa­lam tão baixo que a voz é quase inaudível. E como não vêem o movimento dos lábios, têm que adivinhar cada palavra. Sílvio teima: — “Beija ou não beija?” E, de­pois, tem uma curiosidade ainda mais aguda e mais sofrida:

— Vocês nunca passaram de beijo?

Engraçadinha morde o seu ombro. Sílvio geme. Ela, então, beija na carne do rapaz a marca dos pró­prios dentes. Pergunta: — “Doeu?”: Diz: — “Um pouco”. Cicia:

— Meu amante.

Afunda a cara na fronha. Então, Engraçadinha falia juntinho do seu ouvido:

— Casa comigo?

Vira-se e senta-se na cama. A pequena senta-se também. Baixo e violento, êle a desilude:

— Está maluca? Mas oh criatura! Pensa, racioci­na! Eu sou noivo, você é noiva! E tio Arnaldo? Se tio Arnaldo souber, se desconfiar! Meu Deus do céu, se Letícia... Nem quero pensar! De mais a mais, Letícia põe a mão no fogo por ti!

— Vou falar com Letícia!

Desesperado, vira a menina e a segura pelos dois braços. Fala, rosto com rosto:

— Se você falar com Letícia. Olha: — eu nunca me julguei capaz de matar ninguém! Mas se você tiver essa audácia, eu sou capaz, nem sei! Te mato, Engra­çadinha !...

Larga a prima. Ela não se mexe. Deixa que Sílvio, fora de si, abandone o quarto. Começa a amanhecer. Engraçadinha sai da cama e vem abrir a janela; sumiu no alto a última estrêla da noite.

 

O almoço saiu tarde. Na mesa (Sílvio continuava no quarto), Dr. Arnaldo e Engraçadinha. Com o seu feito austero, de aparente positivista, e, depois de en­xugar os lábios com o guardanapo, pigarreia:

— Tive uma idéia.

Faz uma pausa desnecessária. Ainda uma pequena tosse e continua:

— Passa o arroz. Pois é: — estive pensando que os dois casamentos podiam coincidir.

Com o rosto sem mobilidade, a face hirta de más­cara, parecia ver os dois casais ajoelhados ante o mes­mo altar: — Engraçadinha e Zózimo, Letícia e Sílvio. Repetia para si mesmo com o olhar parado: — mesmo altar, mesma igreja, mesmo padre, mesmos coroinhas. Por um momento, fica assim, num meio sonho, en­quanto a filha baixa os olhos. Depois, êle suspira e serve-se de arroz.

Em seguida ao cafèzinho, que tomava aos peque­nos goles, com uma certa beatitude, uma fisionomia transcendente, Dr. Arnaldo sai para a Câmara. Os jor­nais já falavam, abertamente, de sua candidatura para o Govêrno do Estado. Logo depois, Engraçadinha saía também para a casa de Letícia. “Antes que Sílvio acor­de”, ia pensando. Foi uma surpresa na casa de Letícia. “Olhe quem está aí”, gritou a mãe da pequena. Letícia apareceu, no alto da escada:

— Sobe! Sobe!

— Volto já.

Deixou a velha com duas vizinhas, subiu. Em cima, enlaça a prima. Sopra-lhe:

— Houve uma desgraça.

A outra balbucia:

— Não me assusta.

Entram no quarto. Letícia fecha a porta à chave. Engraçadinha, sentada numa extremidade da cama, tira do sei o lenço pequenino. Começa a chorar. Ao mesmo tempo pensa — “Como é feia sem pintura”. Letícia pede: — “Fala! Conta!” Depois de assoar-se no lencinho, vira-se para a outra:

— Estou grávida!

Silêncio. Estupefata, Letícia, pergunta: “Como é que o Zózimo foi fazer uma coisa dessas?” Engraçadinha chora mais forte. Por entre lágrimas, espia a reação:

— Grávida de teu noivo.

 

Com o lábio inferior tremendo, e quase sem voz, Letícia disse:

— Eu não ouvi direito Engraçadinha, por favor, quer repetir?

Por um momento, a menina vacila. Tem mêdo, vergonha ou asco, sei lá. Não tirava os olhos de Letí­cia e êsse rosto tão próximo e sensível metia-lhe pavor. Como doeu em Engraçadinha o olhar da outra, um olhar estrábico de angústia! Seu impulso foi dizer-lhe: “Não foi nada. Eu não disse nada. Adeus!” Mas calou-se, ou, por outra, — ainda com a cêra das lágrimas pelo rosto, repetiu, com voz nítida e vibrante:

— Estou grávida do teu noivo.

Letícia entrelaça as mãos na altura do peito. Com uma orla de suor no lábio superior, não quer acreditar:

— Do Sílvio? Fala! Do Sílvio?

Então, Letícia começa a andar de um lado para outro: “Não é possível” — eis o que pensa — “Não pode ser! Foi o Zózimo e não o ‘Sílvio”. Repetia para si mesma: — “Sílvio não foi, ó meu Deus!” Tinha von­tade de assombrar a casa com seus gritos; tinha von­tade de bater com a cabeça nas paredes. Súbito, esta­ca diante de Engraçadinha. Perguntou, rouca:

— Por que Sílvio?

Põe a mão no ventre da prima, como se já pudesse sentir a maternidade palpitar como um coração. Mas Engraçadinha continuava com a cintura e o ventre de virgem. Sentindo que ia, pouco a pouco, matando a outra, Engraçadinha responde:

— Sílvio gosta de mim.

No seu espanto, pergunta:

E você dêle?

E ela, com involuntária doçura:

— Eu dêle.

Apertando a cabeça entre as mãos — sem uma lágrima — voltada para a parede, Letícia teria uma por­ção de pequenas curiosidades femininas. Gostaria de saber o dia, a hora, sobretudo, onde os dois, pela pri­meira vez... De costas para a prima, e com um dilaceramento tão fundo, ela começava a sonhar em voz alta:

—Se você está grávida, é claro que não foi uma só vez. Foram muitas vêzes — súbito, exalta-se: — Ainda ontem, êle me beijou, Engraçadinha! Desculpe que eu te fale assim — me beijou na bôca e já gosta­va de ti!

Engraçadinha tem mêdo de respirar: — “Letícia vai morrer!” A outra, de costas para ela, queria rezar. Na sua pânica fragilidade, vivia fazendo promessas. De vez em quando, punha uma vela num pires, em in­tenção de alguém, de um desejo, de uma esperança. E se não eram promessas, recorria a simpatias familia­res que empregadas e vizinhas lhe ensinavam. Agora, teria simplesmente rezado. Chegou a iniciar uma ora­ção, que logo truncou. Lembrara-se que Sílvio devia ter visto Engraçadinha nua. “Claro que viu”, repetia. Ela própria achava lindo o corpo da prima. Vira-se para Engraçadinha; começa:

— Eu sei que, se você diz, não há dúvida...

A outra corta:

— Juro!

E Letícia, fora de si:

— Você não mentiria. Sílvio é o culpado. E já emendava: — “Culpado, não. Em amor não há culpa­dos, ninguém é culpado. Simplesmente, as coisas acon­tecem. Mas como eu ia dizendo. Desculpe, Engraçadi­nha, às vêzes o raciocínio me foge. O que é mesmo que eu estava dizendo? Ah, sim! Se Sílvio é o pai...”

— Ou você duvida?

Atrapalhou-se:

— Absolutamente. Eu acredito em você. E outra coisa, Engraçadinha: — eu mesmo falo com Sílvio.

Engraçadinha continuava sentada. A outra aproxima-se. Tinha uma sensação de luz, como se a febre fizesse arder, nos seus cabelos, um halo intenso. Inclina­-se um pouco, puxa e aperta de encontro ao seio a ca­beça da prima. Já Engraçadinha começa a sofrer. Per­gunta de si para si: — “Ou será fingimento. Fala assim, mas quem sabe?” Ao mesmo tempo, raciocina: — “Letícia é boa. Tem inveja de mim — da minha pele e das minhas coxas — mas é boa de coração, um anjo”. Lembrou-se de que, na infância de ambas, Letícia bei­java na bôca cãezinhos de rua. E, outra vez, Letícia espiara o parto de uma gata. Ante o processo misterio­so da natureza, aquêle trabalho de espasmos sucessi­vos, ela garotinha de cinco anos, assistira a tudo. Vira a golfada de gatinhos — e com que curiosidade mara­vilhada! Nenhum nojo e nem mesmo mêdo, e sim o instinto certo. Depois, levantara-se com o vestido man­chado de vermelho e nenhum pavor daquele sangue ardente de parto.

Já Engraçadinha tomara-se de uma espécie de ódio contra o bicho. Anos depois, sonhou que ela é quem se contraía naquela golfada de vida. Agora Letícia passa­va as mãos nos cabelos da pequena; e repetia baixo:

— Falo, ainda hoje, com o Sílvio. Falo, Engraçadinha.

 

Ao despedir-se, Engraçadinha apertou as duas mãos de Letícia: — “Você é um anjo”. O interessante é que, ao mesmo tempo, aceitava e negava a bondade da amiga. “Vai fazer uma sujeira comigo”, era o seu pânico. Voltando para casa, prometia a si mesma: — “Mas se Letícia usar de falsidade, faço um escândalo, conto tudo a papai, no mesmo instante”.

Depois do jantar, Letícia e a mãe apareciam na casa de Engraçadinha. Logo que pôde, Letícia vira-se para os demais:

— Vou namorar com o meu noivo!

Para Sílvio, soou falso a alegria da pequena. Olhou-a com certo mêdo: — “Representa”. Por sua vez, Letícia sente que a naturalidade do noivo é afetada demais. “Finge como eu”, pensa. Já não tinha dúvida de que Engraçadinha dissera a verdade. Saem os dois Na varanda, junto da grade, ficam, por um momento, calados. Letícia deduz: — “Tem remorso”, Caminham até a extremidade da varanda e, brusca­mente, ela pergunta:

— Sílvio! Por que você não foi sincero, não foi leal comigo, Sílvio? Por que?

O rapaz não entende: — “Mas eu sempre fui sin­cero!” E ela, sem olhá-lo:

— Como se explica que, sendo meu noivo, você goste de outra? Ame outra?

Recuou, assombrado: — “Eu não gosto de nin­guém. Gosto de você”! Letícia crispa a mão no seu braço:

— Por que você mente, Sílvio? Você está men­tindo!

E êle:

— Dou-lhe minha palavra! Você acredita na mi­nha palavra?

Repete chorando:

— Não é de mim que você gosta. Você gosta de Engraçadinha. Olha para mim e responde: “Não é de Engraçadinha que você gosta?”

Sùbitamente, compreende tudo. Diz algo: — “Ela falou contigo. Não falou contigo? Eu sabia!” Letícia olha-o como a um homem perdido para o seu amor. Pensa: — “O Sílvio! Meu amor é por tôda a vida. Sem­pre gostei de ti, desde garotinho, Sílvio. Deus sabe que eu não minto. E eu não presto, eu sou má, porque te­nho ódio de Engraçadinha. Mas ela é tão bonita, En­graçadinha é linda e que corpo! Ah, se eu tivesse o corpo de Engraçadinha, ou as coxas!” O rapaz está fora de si:

— Essa menina é cínica!

Agarra-se a êle: “Fala baixo!” E continua, quase boca com bôca:

— Sílvio, eu não admito que você fale assim da mãe do seu filho!

— Que mãe e que filho?

Pergunta num sôpro de voz:

— Ou você não sabe que Engraçadinha está grá­vida? De ti, sim, senhor!

Tem um riso sórdido, pesado:

— Te disse isso? É mais ordinária do que eu pen­sava! Ah, cínica! Letícia, meu amor, eu te juro! Quero morrer leproso, se não é verdade o que eu vou dizer: Escuta. Eu não tive nada com Engraçadinha, nunca.

Letícia pedia: — “Fala baixo! Fala baixo”! E o rapaz:

— “Só tive ontem. Ontem foi a primeira vez. Ou melhor: na madrugada de hoje! Hoje, ouviu?” Sílvio a sacudia: — “E queres que eu te conte tudo?” Deixou o noivo falar:

— Quando eu abri a porta da biblioteca, ela esta­va lá, nua. Vê que sem-vergonha! Completamente nua!

Protestou:

— Não! Se ela te esperou nua, foi por amor, ou não sentes que foi amor? Eu não fiz isso, eu não faria isso, por causa talvez da minha formação... Mas o que importa é o amor. O amor que eu não tive. Ela te deu tanto, Silvio!

Parou, exausta. Queria dizer-lhe: — “Eu não te dou a ninguém. Te quero para mim. Fica comigo. Foge comigo. Vem”. Soluça:

— Sílvio, você tem que casar com Engraçadinha.

 

Sílvio perdeu a cabeça:

— Escuta! Meu bem, você não sabe o que está dizendo!

Novamente, Letícia trava-lhe o braço:

— Fala baixo! Fala baixo!

Tinha mêdo que o tio Arnaldo aparecesse, de repen­te. Sílvio baixa a voz:

— É uma mentirosa! Mentiu, Letícia! E eu não queria! Foi uma cilada!

Letícia apanha o rosto do ser amado entre as mãos. Pergunta:

— Não era virgem? Era. Deixou de ser virgem por ti e contigo.

Na sua violência, êle quis objetar que também se finge virgindade. Mas Letícia, abraçada ao noivo (e se alguém os surpreendesse?), unindo seu corpo ao dêle, embriagando-se com o seu hálito, não o deixou falar:

— Eu quero! — repetia — Eu quero!

Êle a contempla com espanto, quase com ódio. Parecia-lhe que o altruísta é um pobre ser vazio, sem ima­ginação nem voluptuosidade, que, afinal, não sacrifica nada. Disse: — “Você não me ama!” Letícia balbucia: — “Não te amo, Sílvio?” Olha-o, ainda uma vez, como se quisesse ter uma memória dessa másca­ra atormentada. Sente o que jamais sentira: agora que o perdia, teve por êsse homem um desejo brusco e cruel. Prende nos dentes o seu lábio, até sangrar. Síl­vio recua, levando a mão à bôca. Estão calados e ofegantes. Foi Sílvio quem primeiro falou:

— Acredita em mim...

Ao mesmo tempo pensa: — “Letícia nunca me bei­jou assim!” Ela passa de leve os dedos nos seus lábios: — “Te feri? Te machuquei?” Continua, com a imaginação trabalhada pela febre:

— Promete que... Sílvio, eu jurei que tu serias noivo de Engraçadinha... E te peço — sou eu que te peço, Sílvio! — que você repare... É uma reparação. É um direito que não temos o de humilhar ninguém. E você desejou, Sílvio! É uma menina, quase uma criança, que você desejou na noite do nosso noivado. Conta pra mim. Não é verdade? Querido, eu compreen­do! Não me zango, pode falar!

Pára. O rapaz não tem o que dizer. Letícia queria perguntar: — “Mas ela ficou mesmo nua? E comple­tamente? Tirou as meias? Tu achaste o corpo bonito? É lindo? Não é lindo? Oh, Sílvio” Mas não perguntou nada. Sentindo-se doente da imaginação, vira-se para o noivo:

— Vamos, Sílvio. E não te esqueças: se, por acaso, você se recusar...

Letícia caminha um pouco na frente. Silvio quer segurá-la pelo braço: — “Vem cá”. Ela se desprende:

— ...Se você não fôr marido de Engraçadinha, nunca mais — isso é sério! — nunca mais falarei con­tigo . Vem!

Desesperado, Sílvio a seguiu. Ao mesmo tempo, Dr. Arnaldo aparecia na porta:

— Vocês sumiram! Mas venham: Engraçadinha, Zózimo! Onde está o Zózimo?

— Saiu.

E o Dr. Arnaldo:

— Ora pinóia! Vem cá, Sílvio, Letícia chega aqui. O Zózimo não volta mais?

Engraçadinha teve de explicar que Zózimo estava com nevralgia. O velho ainda resmungou: — “Algum foco!” Todos reunidos, êle, com uma suave satisfa­ção, uma vaidade sóbria, contou a idéia que lhe ocor­rera: os dois casamentos, no mesmo dia, na mesma igreja, na mesma hora. Sílvio olha, primeiro para Le­tícia, depois para Engraçadinha. Com uma contração no estômago, apanha um cigarro. Tio Arnaldo insistia. Fazia os cálculos, em voz alta!

— Dez coroinhas!

Dr. Arnaldo era o homem de pequenas fixações. O projeto de casamento simultâneo ia empolgá-lo. Que­ria a opinião de todos. Com uma das mãos na bengala e a outra em cima do joelho, virava-se para as tias e para os noivos, com uma cintilação meio sinistra no olhar triste e fixo:

— Que tal?

 

Assim que Sílvio e Letícia passaram da sala para a varanda — uns cinco minutos depois — aparecia lá o Zózimo. Se alguém perguntasse a Engraçadinha: — “Por que é que o Zózimo é teu noivo?”, ela não saberia responder. Agora mesmo, ao olhá-lo — sem ternura, nem pena — ela experimentava um sentimento cruel de tédio. “Chato”, repetia para si mesma. O rapaz sen­ta-se, a seu lado. Por um momento, Engraçadinha fe­cha os olhos e pensa, na sua irritação: — “Sua nas mãos”. E outra coisa que a exasperava: a humildade de Zózimo. Não se contam às vêzes em que ela troçara dos seus modos: — “Não se deve ser tão humilde. Você é humilde demais”. Então o rapaz, numa humil­dade ainda maior, babujava:

— Eu tenho veneração por você!

Ela se crispava, como se aquela veneração a eno­jasse. Por vêzes, o espicaçava: — “Você parece que gosta de se rebaixar. Eu grito com você. Pois reaja!” Chegou a adverti-lo: — “Um dia, vou fazer uma expe­riência contigo: vou te dar uma bofetada. Mas olha! Se você não der outra, brigo contigo!” O noivo abria os braços, numa incompreensão honesta e profunda: “Você acha que eu vou te bater, Engraçadinha?” Era, porém, benquisto naquela casa. Prestava pequenos ser­viços à família; pagava a conta da luz e do gás para o velho; dava injeção nas tias. Como eu ia dizendo: Zó­zimo senta e Engraçadinha já o recebe com o pé atrás:

— Você bebeu!

Balbucia :

— Quem?

E ela, com cara de nojo:

— Não bebeu? Ah, bebeu! Estou sentindo o chei­ro de bebida. Confessa: bebeu?

— Juro!

Mentia. Embora não tivesse o vício da bebida, vi­nha do batizado de um sobrinho, e, sabe como é: con­versa daqui, dali, e, sem sentir, tomara de quatro a cinco chopes. Não estava bêbedo, claro; mas era fraco para bebida. Sentia-se, nêle, uma certa crepitação sus­peita, digamos. De resto, o hálito de álcool não admi­tia dúvidas. Ainda uma vez, mentia por humildade e não lhe ocorreu a confissão normal e válida: o batiza­do do sobrinho. Com uma crueldade triunfante, ela re­petia: — “Quer dizer que você deu pra beber!” E acres­centou: — “Não tolero bêbedo. Vira pra lá”. Descon­certado, negava ainda: — “Não bebi, filhinha”. En­graçadinha pensa, naquele momento, que riscara as cos­tas de Sílvio, com as unhas, de alto a baixo. Pergun­tava, de si para si: — “Será que êle vai no meu quar­to, hoje?” E, súbito, Zózimo pára de negar. Admite:

— Bebi, sim. Pouca coisa, mas bebi. Perdão, mi­nha vidinha.

Quis segurar-lhe o braço. Engraçadinha foge com o corpo: — “Enxuga as mãos, enxuga. Que melação!” Zózimo puxa o lenço: — “Desculpe”. E, de fato, aquê­le suor inestancável das mãos e entre os dedos é a sua humilhação irredutível. Engraçadinha perde a pa­ciência:

Zózimo, pelo amor de Deus! Por que você ainda pede desculpas? Eu falo demais, Zózimo. Eu não tenho nada que você beba ou deixe de beber, por que você não se impõe? Nem parece homem!

Com a mão enxuta, apanha a de Engraçadinha:

— Você está nervosa!

Tinha um olhar triste, um olhar de perdão, que a enfurecia. Ela não se conteve. Trinca os dentes:

— Zózimo, vamos acabar, Zózimo!

Faz espanto:

Engraçadinha vacila: — “Devo esperar mais dois ou três dias ou decidir já?” Não resistiu. Arranca a aliança do dedo (ao mesmo tempo, controlava a volta do pai que foi ao banheiro) e a entrega ao noivo:

— Toma!

Os beiços do rapaz começavam a tremer: — “Que é isso?” Baixa a voz:

— Leva!

Apanha a aliança. Quis protelar: —”Você me dá amanhã”. Teima: — “Agora”. O pobre diabo pergunta a si mesmo, num dilaceramento total: “Mas o que é que fiz? Eu não fiz nada!” Diz: — “Engraçadinha, eu...” As lágrimas estão caindo. Depois: — “Engraçadi­nha...” A menina corta:

— Escuta: — “Você gosta de mim? Muito bem: — se gosta, vai embora. Vai embora, pelo amor de Deus! Nós não combinamos. Mas vai embora! Ou você quer que eu grite? Quer que eu dê um escândalo? Zózimo, vai embora! E leva a aliança!”

Como um louco, o rapaz ergue-se: — “Você me expulsa?” A própria Engraçadinha está espantada com à sua raiva. Antes que o pai aparecesse, diz: — “Não chateia, e olha: não somos mais noivos, não somos nada. Depois, eu falo com papai. Some da minha fren­te”. Êle chega a dar dois passos. Estaca e retrocede. Baixa a voz:

— Eu sou o mesmo. Você conta comigo, sempre. Adeus.

Ela não se entendia. O que era simples tédio, fun­dira-se, de repente, num ódio ativo e devorador. Ti­vera de escorraçá-lo de si. Sentia-se livre de uma hu­mildade que parecia enroscar-se, materialmente, nas suas pernas.

 

Todos concordaram com o Dr. Arnaldo. “Ótima idéia”, disseram. Animado, o deputado ergueu-se. Êsses pequenos êxitos da vida familiar davam-lhe uma certa embriaguez. Nessas ocasiões, chegava a pensar na Presidência da República. Letícia já ia se despedir. Puxa o noivo para um canto: — “Vai dizer aquilo a Engraçadinha”. Enquanto Sílvio se afasta, Letícia in­veja a facilidade sôfrega com que Engraçadinha se des­pira. Concluiu que a prima arriscara a própria nudez porque não tinha, nem varizes, nem coxas finas. Sílvio está falando baixo para Engraçadinha:

— Você me paga. E quero te avisar uma coisa: eu me casaria com a última das vagabundas, menos con­tigo. E não diz nada, não fala, Engraçadinha, porque eu perco a cabeça e te quebro a cara agora mesmo!

Engraçadinha, sorri-lhe com uma naturalidade muito doce: — “Você vai lá? A porta está só encos­tada”. Trêmulo, êle volta para a noiva. Letícia não quer que êle a acompanhe. Baixa a voz: — “Não, não e não!” Submete-se, desesperado. Mas tarde, no quar­to, Sílvio anda de um lado para outro, numa alucinação. Depois, descalço, sai e caminha no escuro. Junto à porta de Engraçadinha, empurra. Fechada. Torce o trinco. Tranca-se à chave. Outra vez mexe no trinco. Na sua angústia, teria posto abaixo a porta. Se pudesse gritar: “Sou eu! Abre!” Nunca a desejara tanto. E, ali, os braços em cruz, passa muitas vêzes o corpo na porta. Depois, volta para a cama, chorando.


CAPÍTULO XIII

Deitada na cama, com a camisola puxada até os joelhos, sentira alguém mexer no trinco, pelo lado de fora. Aquilo deu-lhe uma brusca euforia. Riu, no es­curo: — “É êle! Veio!” Pensava, trincando os dentes: — “Não abro e bem feito!” Imaginou o sofrimento, o desejo de Sílvio. Passava o rosto, o corpo na porta. Depois, Engraçadinha percebeu que êle se afastava, le­vando para longe a sua febre. Repetiu para si mesma: “Bobo”, trança os pés, ri baixinho, levando a mão à nuca.

De manhã, bem cedinho, liga para a prima. Com a maior facilidade, simula tristeza, desespero e até chora.

— Sabe o que êle me disse ontem? Que me quebra­va a cara!

Do outro lado, Letícia faz espanto:

— Não é possível! Disse isso? Sílvio mudou mui­to! Mas pode deixar. Falo com êle, não está direito. Mas escuta, Engraçadinha. Teu noivo? Sabe ou descon­fia?

Suspira:

— Desmanchamos.

— Já?

— Ontem.

Por um momento, Letícia calou-se. Lembrava-se de Zózimo, que era um bom, um manso, um dos poucos homens no Brasil que ainda se ruborizavam. Ficava vermelho por tudo. Um simples cumprimento o deixa­va atônito. Tio Nonô, com o seu exagero caricatural e a sua grandiloqüência de gordo, costumava dizer: — “Todo tímido é candidato a um crime sexual”. Letícia tinha por êle uma ternura apiedada. Arrisca a pergunta: —”Ficou triste, o Zózimo? Ou já esperava?” Engraçadinha irritou-se:

— Vocês estão muito enganados com o Zózimo! Não queira saber o que tenho sofrido! Aparenta uma coisa, mas olha: — quando está sòzinho comigo, um cavalo!

Letícia balbuciou: — “Não parece!” Foi então que Engraçadinha tomou coragem e fêz a pergunta:

— E você. Triste? Diz a verdade: — você gostava muito de Sílvio, gostava? Mas não minta, Letícia!

Fazia a pergunta com inesperada; sinceridade. E se, naquele momento, a outra tivesse pedido o noivo de volta, talvez, Engraçadinha, quem sabe? Gostava de Letícia e não queria perdê-la. O único sofrimento que a espantava era o da prima. E, ali, no telefone, chegou a pensar: — “Sílvio podia continuar as duas coisas: — noivo de Letícia e meu amante!” Teve uma vontade doida de rir. “Depois, marido de Letícia e meu amante da mesma maneira!” Prendeu o riso, mas já mudava de opinião, com seu egoísmo de apaixonada: — “Está muito bem assim e vamos deixar como está”. Letícia estava dizendo:

— Te juro, Engraçadinha: não tenho raiva de ti. Tu não és culpada de nada. E, além disso, olha: — se há uma culpada sou eu!

— Por quê?

Respirou fundo (sorria por entre lágrimas) :

— Eu amo Sílvio, mas falta a meu amor, sabe o quê? Desejo? Falta desejo a meu amor. É isto! E o homem não perdoa, nem aceita. O defeito é meu.

Engraçadinha não soube o que dizer. A bondade da prima a confundia. Pensava, com surdo sofrimento: — “Letícia quer ser melhor que todo o mundo. Tanta bondade chateia?”. Novamente, teve a suspeita de uma abnegação simulada. Letícia suspira:

— Eu não interesso. Olha: — você faz o seguinte: — não fala, não diz nada. Eu resolvo tudo. Converso, hoje mesmo, com tio Arnaldo.

— Com papai?

— Mas claro! Não podemos perder tempo. Ou você se esquece que está grávida?

De fato, esquecera a falsa gravidez. Letícia continuou:

— Sílvio diz que não. Diz que não houve tempo. Mas eu prefiro acreditar em ti. E, afinal de contas, Engraçadinha, êsse casamento tem que sair o mais depressa possível, o quanto antes. Você não pode casar de véu e grinalda e uma barriga de nove meses.

Suspira:

— É mesmo, mas tenho medo. Mêdo de papai. Fala amanhã. Amanhã você fala.

Teimou:

— Hoje.

E ela:

— Está bem: — hoje. Mas escuta: — hoje, mas sem a minha presença. Vou passar o dia fora. Aparece aqui, depois do jantar. Está bem? Depois do jantar?

 

Preparou-se e avisou que ia, primeiro à cidade, e depois, à casa de tia Zenaide. Acrescentou nervosa: — “Talvez eu jante lá. Ainda não sei”. Teve um arre­pio intenso. Era o mêdo do pai. Aquela polidez que era, digamos, fisicamente gelada, a espantava. Teria preferido talvez que fôsse como Tio Nonô. Antes o riso ultrajante, a vitalidade bestial do outro, do que a afe­tação lívida do Dr. Arnaldo. Saiu, depois de beijar a tia Ceci que vinha da varanda. Ia apanhar condução mais adiante. Chega na esquina e dá com o Zózimo, lá, numa tocaia de ex-noivo. A menina bate com o pé e tem o muxoxo:

— Que inferno!

Na obstinação de sua humildade, começa:

— Engraçadinha, olha aqui...

Interrompe furiosa:

— Não adianta! Quantas vêzes quer que eu repita a mesma coisa? E que amolação!

O rapaz arquejava: — “Você não mudou de idéia?” A menina olha para os lados. Tem mêdo que vizinhos, ou simples transeuntes reparem. Exclama:

— Oh, meu Deus! Ou será que eu não falo portu­guês?

Gostaria de ter pena desse homem, um mínimo de pena. Êle, porém, a olhava como se a lambesse! Men­talmente fazia a comparação: a humildade de Zózimo e a violência do outro. Sílvio falara, até, em quebrar-lhe a cara. Por um momento ela perguntou a si mesma se êle seria capaz de lhe dar uma surra. Zózimo estava mostrando, na palma da mão, a. aliança devolvida:

— E você aceitaria, de volta, a aliança? Ao menos isso? Só isso, Engraçadinha. Aceita?

Exasperou-se:

— Zózimo, estão me esperando. Alguém está a mi­nha espera. Você me compreende ou preciso ser mais clara? Eu gosto de outro. Eu não queria dizer, mas você me força, Zózimo! De quem é a culpa? Sua! Está satisfeito? E, agora, você vai me responder: — você se casaria comigo, nessas condições? Sabendo que eu vou enganar, trair? Não, claro. Pois é, Zózimo!

Pergunta, quase sem voz:

— Gosta de outro?

E ela:

— Evidente! Convenceu-se?

Ela poderia ter acrescentado: — “O sujeito disse que me quebraria a cara, que me dava um soco na bôca! E você, Zózimo, com essa humildade, que é que vai querer você? Pelo amor de Deus!” Zózimo ergue o rosto:

— Engraçadinha, já que é assim... Você desculpe, mas se um dia...Você já sabe, não sabe?

Ela teve que apertar a mão encharcada.

 

Sílvio tomou um choque, ao vê-la entrar no escri­tório. Pouco antes, falara, no telefone, com Letícia. E quando soube que esta ia falar com o tio Arnaldo, to­mou-se de uma fúria obtusa e potente. Em voz baixa, mas violento, foi dizendo: — “Mas isso está passando da medida! Você está louca?” Letícia exaltou-se tam­bém:

— Se você disser mais uma palavra, passo a consi­derar você um canalha!

Balbuciou: — “Letícia!” A noiva, ou ex-noiva, foi implacável: ...

— Vou dizer ao tio Arnaldo isso assim, assim. E, depois logo depois, comunica-se à família. Até logo.

Desligou. Engraçadinha apareceu pouco depois. A pequena vinha pensando: — “Eu não entendo Letícia. Isso é até suspeito. Ninguém entrega o amor, a vida, a felicidade, de mão beijada”. Julgava sentir na abne­gação da prima algo de falso. “E cuida de tudo, por quê?” Sorria para o primo estupefato. Funcionários da firma andavam por perto. Com uma voz quase inaudível, brincou:

— Dá um beijo?

E êle, pálido:

— Vamos ali.

Levou-a para o corredor. Engraçadinha sentiu, ao passar, que todo o escritório a olhava. Meses atrás, ela confessara a Letícia: — “Gosto de ser desejada”. Con­versaram junto ao bebedouro de água gelada. Ela bai­xa a voz, docemente:

— Você foi lá? Não foi?

Não entendeu. Engraçadinha insiste: — “Você não mexeu no trinco da porta? Era você?” Disse com a voz estrangulada:

— Não!

— Seu mentiroso! Foi e bateu com o nariz na porta! Não bateu com o nariz na porta? Mas olha: — hoje pode ir. Pode ir que eu só deixo encostada. Não fecho.

Olha em tôrno. Ninguém. Então, ali mesmo, Sílvio deu-lhe a bofetada e tão inesperada e violenta que En­graçadinha chegou a dobrar os joelhos, como se fôsse desmaiar. A bolsa caiu e a menina apóia-se na parede. Automàticamente, Sílvio apanha a bolsa e a entrega. Ela passa dois dedos no canto da bôca: — sangrava e enxuga levemente. Diz sem desfitá-lo, um pouco sofrida:

— Te amo.

 

Ligou da casa de tia Adelaide (eram seis e pouco) :

— Ah, tia Zezé. Sou eu!

— Engraçadinha?

E a menina:

— Papai já chegou? Ah, já? Pergunta se eu posso jantar aqui, pergunta!

— Um minutinho.

Sorriu:

— Eu espero.

Enquanto tia Zezé ia e vinha, a pequena repetiu para si mesma: — “Fui esbofeteada”. Olhava as pri­mas (Marli e Zuzana) que a tinham levado ao telefone. Sorria-lhes em silêncio e, com a mão livre, num movi­mento inconsciente, acariciou a face batida. A bofeta­da fôra para ela um prazer agudo e nôvo, um encanto desconhecido. Imaginava os dois casados. Seria uma convivência dilacerada de voluptuosidade. Talvez êle a esbofeteasse outras vezes, quem sabe?

Naquele momento, tia Zezé procurava o Dr. Arnal­do. O velho chegara há pouco da Câmara Estadual; dirigira-se à biblioteca, depois de beber água gelada. Quando tia Zezé bateu, êle estava examinando um pa­recer, ou, por outra: — não estava examinando nada. Com o papel esquecido em cima da mesa, pensava no que ouvira, minutos antes, na Assembléia. Eis o fato — ia saindo, quando vê o Saraiva, num grupo de depu­tados. Achava o Saraiva uma das cabeças daquela Casa. Aproxima-se para cumprimentá-lo. No grupo estava também o Aprígio, velho colega, já avô, e um sujeito indigno de qualquer cargo eletivo. Vivia pelos corre­dores contando anedotas, as mais desprimorosas. Ago­ra mesmo, o Aprígio não se pejava de esfregar na cara dos presentes a sua intimidade sexual. Assim concluía tal indivíduo: — “Comigo não tem bandeira! Minha mulher conhece tudo! E não precisa trair para conhe­cer mais!” Foi tal a fúria do Dr. Arnaldo que esteve para dar umas bengaladas no sátiro imundo. — “Ah, o Hitler aqui! Encostava êsse miserável no muro e tome bala!” Tia Zezé bate e entra:

— Engraçadinha pode jantar com Adelaide?

Dr. Arnaldo pensou um pouco. Não dava nunca uma resposta imediata. Era de parecer que se deve fingir uma dúvida para valorizar as decisões. Suspira:

—Pode jantar. Eu deixo.

Tia Zezé sai sòzinho, na sua raiva impotente, Dr. Arnaldo ainda imaginava o Hitler, como ditador do Brasil, fuzilando deputados como aquele, que levava para a alcova conjugai as misérias dos alcouces. Houve um momento em que Dr. Arnaldo ergue-se, empunhan­do a bengala; o ressentimento tornou sua fisionomia ainda mais lívida e ainda mais lúgubre. Mas batem no­vamente. O deputado senta-se às pressas, ainda arque-jante. Letícia abre a porta e faz alegremente a per­gunta :

— Dá licença?

Fôsse outra, e não Letícia, a sobrinha de sua pre­ferência enternecida, e teria permanecido rígido como uma estátua de si mesmo. Eis a verdade: — êsse ho­mem público, de uma afetividade escassa ou nula, fazia duas ou três exceções. Letícia era uma delas. Tinha-lhe afeto e, mesmo, admiração. Êle costumava dizer, com o seu jeito grave e irrecorrível: — “Letícia não é como as outras. Letícia é diferente!” Em que consistia essa “diferença” só o próprio poderia dizê-lo. Mas o fato é que êle julgava perceber na sobrinha uma certa “ordem sexual”. Não sei se traduzo corretamente o pensamento do deputado; digo (“ordem”, como pode­ria dizer “harmonia” ou, se quiserem, “disciplina”). Nas outras sobrinhas, inclusive na própria filha, Dr. Arnal­do sentia como que uma disposição voluptuosa. Receava que um pretexto banal deflagrasse essa voluptuosidade contida. Letícia, não. Êle saiu de onde estava, fêz tôda a volta da mesa de jacarandá e veio, com a inseparável bengala, recebê-la:

— Como vai a feliz noiva?

Riu, ou sorriu, muito vermelha:

— Assim, assim. Um pouco resfriada.

Fê-la a sentar-se. Letícia que, geralmente, era uma menina tranqüila e até, por vêzes, um pouco calada, co­meçava a sentir um dilaceramento. Em pé, apoiando-se na bengala, Dr. Arnaldo olhava para a pequena, com a esperança, de que ela fôsse fria. Já não lhe bastava uma sexualidade saudável e dominada. Não. Queria mais. Repetiu para si mesmo: — “A espôsa deve ser fria”. Continuou, duramente, o seu monólogo: — qual­quer volúpia, mesmo entre marido e mulher, é uma mácula, realmente uma mácula. Sorriu para Letícia, que não sabia por onde começar. Êle respirou fundo:

— Você está bem, Letícia — e repetiu, com mais ênfase. — Agora, você está bem. Muito bem.

(Era de parecer que uma futilidade repetida adqui­re foros de transcendência). Depois de assoar-se ligei­ramente, Letícia guardou na bôlsa o lencinho bordado. Começa, vacilando:

— Tio Arnaldo, eu vim porque... — pára e conti­nua precipitadamente. — Eu estou aqui como filha, como se fôsse filha do senhor.

— Filha?

E ela:

— Faz de conta que eu sou sua filha.

Sorria, no seu enleio. O velho inclina-se, vivamente:

— Ótimo. Eu gosto de você como uma filha, vejo você como uma filha. Não faço diferença entre você e Engraçadinha. Ou faço? Faço diferença?

Responde, atrapalhada:

— Não, absolutamente. Aliás, desde que papai morreu, eu considero o senhor como pai.

Pensa: — “E se êle soubesse que a filha foi deflorada?” Ao mesmo tempo ocorre-lhe a reflexão: — “Palavra linda “deflorada!”” Imagina o choque do velho ao receber a noticia. Êle espera e deduz: — “É nobre de­mais para ser sensual”. Parecia-lhe que a mulher “no­bre” tem de ser fria, já que qualquer desejo — mesmo de marido para mulher — é fatalmente vil. Letícia que­ria fazer uma certa preparação. Deu-lhe a notícia, po­rém, à queima-roupa:

— Titio, eu não sou mais noiva de Sílvio.

Silêncio. Discreto espanto do tio:

— Como? Ou será que ouvi mal? Repete.

Letícia respira fundo:

— Infelizmente, titio... Quero que o senhor com­preenda... Mas eu e Sílvio, de comum acordo, acha­mos que era melhor acabar...

O velho não se mexia. Era de opinião que um ho­mem de certa responsabilidade (êle não era nenhum joão-ninguém), sim um homem de certa responsabili­dade não pode perder a cabeça. Seu padrão de compor­tamento pessoal e político era um Epitácio, um Frontin. Um ou outro tinha, na vida prática, um ar de retrato oficial. Diante de Letícia, quis manter essa atitude chatamente fotográfica. E como realmente não exteriorizava o seu tumulto interior, sentia-se mais do que nunca um Frontin, um Epitácio. Outro êxito pessoal sobre a emotividade foi a voz firme e nítida:

— Você está brincando? Não pode ser, minha filha! Desmanchar um noivado que não tem 48 horas? E, além disso, não, Letícia, não, e nem creio que você seja des­sas... — e repete pondo a bengala em cima da secretária: — Se você fôsse uma leviana, vá lá! Uma menina como você só faria se tivesse um motivo, um grande motivo. Minto? Fala!

Tomou coragem:

— Titio, há, titio, êsse motivo! Pode crer: — há! Dissera tudo de um jato. Ainda contido, êle pensa que a figura de um Frontin, de um Epitácio (a face do Frontin era rósea como nádega de anjo) não compor­tava nem berros, nem murros. Mais do que nunca, cumpria-lhe não se exaltar. Pensou também nos deba­tes da Câmara dos Comuns de bom nível. Letícia come­ça a achar que aceitara uma missão superior às suas fôrças: — “Titio não sabe de nada. O meu noivado é um detalhe. O importante é Engraçadinha. Ah, quan­do êle souber que Engraçadinha foi deflorada! É como é que eu vou dizer? Como? Êle foi até o fundo da bi­blioteca e volta, lentamente. Está sentindo falta de alguma coisa e não sabe o quê.” Estaca diante da so­brinha :

— Bem. Há um motivo. Vejamos qual.

Letícia torce e destorce as mãos.

— Titio, eu soube que Silvio gosta de outra. Êle próprio não nega. O senhor não acha que isso é um motivo?

Desta vez, êle perde um pouco a calma:

— Há outra? Sílvio gosta de outra? Ah, não! Pro­testo e como?

Continua sentindo que lhe faltava alguma coisa. Mas o quê? Repetiu, com energia: — “Ah, não! Nunca! Não acredito”. Letícia está sob a idéia, fixa: — “Quando êle souber da gravidez!” Dr. Arnaldo anda de um lado para outro. Coisa curiosa! No meio de sua angústia geral, há um sofrimento menor e indefinível. “Falta alguma coisa”, repetia para si mesmo. Já se controla menos e pergunta:

— E que outra? Se você afirma, sabe. Ou não sabe? Tem que saber! — Alteia a voz: — “Quem é a outra?”

Letícia vacila: — “Digo ou não? Ou é melhor di­zer?” Conclui: — “Vou dizer”. Sem desfitá-lo, pede:

Não se exalte, titio. Não quero que o senhor fi­que zangado.

Pela primeira vez, zangou-se, de fato:

— Menina, quem é que está exaltado ou zangado? Você não me conhece, menina!

Já lhe custa conservar o autocontrôle. E continuava a sentir que lhe faltava, mas o quê? Olha em tôrno e, súbito, pousa a vista na bengala. Era aquela a origem da angústia menor e marginal. De fato, sem a bengala sentia-se um ser desfalcado, incompleto. Com um movimento sôfrego e triunfante, apanhou-a em cima da mesa de jacarandá. Agora, sim! Com aquilo na mão, voltava a ser êle mesmo, em tôda a plenitude. Volta-se para Letícia, que o olha, atônita. Exige:

— Há uma outra. Muito bem. Tem um nome. Quero o nome. O nome!

Disse, afinal:

— Engraçadinha.

Estupefacto, murmura:

— Não... Não...

Mas a outra, desesperada, foi até o fim:

— Êles se gostam, titio! Êles se amam! Devem se casar!

O tio recua como se tivesse recebido um pé no peito. Logo, reage; perde a cabeça. Deixou o ar de fotografia de Presidente ouvindo o Hino Nacional. Não é mais retrato. Deu murros na mesa: — “Menina, você está louca! Está maluca, menina?” Arquejava: — “Impos­sível! Qualquer casamento, menos êsse! Não admito! Engraçadinha com Sílvio, não!” Letícia ergueu-se. Co­meçou a sentir uma pressão nos maxilares. Sua calma se fundiu numa agressividade histérica:

— Vão se casar, sim! Ela está grávida! — E solu­çava: — Grávida!

O velho já não gritava mais. Não esmurrava a mesa. Tinha mêdo.

 

Sim, teve mêdo, espanto e, sobretudo, mêdo. Que­ria falar e não tinha voz. Ao mesmo tempo experimen­tou uma sensação de velhice súbita. Olhou as próprias mãos como se elas tivessem envelhecido, de repente. Balbuciou sem cólera:

— Letícia, escuta: — não pode ser, Letícia!

A sobrinha, com o rosto mergulhado nas duas mãos, soluçava. Com a mão trêmula, Dr. Arnaldo puxou uma cadeira; sentou-se de frente para a môça:

— Olha pra mim, Letícia, assim, olha. Agora res­ponde: — minha filha está grávida de Zózimo?

E ela:

— De Silvio.

Exaltou-se de nôvo. Põe-se de pé. Súbito, olha a porta. Fora de si, vai lá e torce a chave. Pensa: — “Ela não sabe. Ninguém sabe. Só eu sei!” Junto da porta, agarrado à bengala, pensa ainda: — “Ou está mentin­do?” Toma-se de um ódio sem motivo contra a sobrinha que lhe dera a notícia. Aproxima-se, com um passo pesado, quase se arrastando. Senta-se novamente. Le­tícia amassa o lencinho que tem a inicial bordada. Êle vai num crescendo:

— Por que Sílvio? Por que exatamente Sílvio e não Zózimo ou qualquer outro?

Chora:

— Foi Sílvio!

Berra:

— Você só sabe dizer: — “Foi Sílvio”! Mas não havia nada entre os dois! Fala! Havia?

Ora sentava-se, ora erguia-se para sentar-se nova­mente. Imaginava: — “Lá fora, hão de ouvir nossas vozes! As velhas estão assanhadas, mas que se danem!” E na sua fúria, disse de si para si: — “Todas as velhas são malucas!” A saliva era uma espuma no canto da

— Olha, Letícia! Para mim, nesse caso, a gravidez é um detalhe! — e repetia: — Por uma razão, que só eu conheço, a gravidez é um detalhe! Não importa, percebeste? A gravidez não importa — estás ouvindo?

O lencinho monograma estava aberto no seu regaço. Atônita pensava: — “Está com um olhar de lou­co”. Disse, crispada:

— Estou ouvindo.

Arquejava:

— Portanto, escuta: -— se me disseres que minha filha está grávida de outro e não do Sílvio! Mas de outro, ouviste? Se disseres isso, eu cairei, aqui, agora, agora mesmo, de joelhos, assim, olha!

Realmente caía de joelhos pensando: — “Estou ve­lho !” Abria os braços para o alto e enchia a biblioteca com a sua voz:

— Graças, meu Deus, porque minha filha está grá­vida de outro e não de Sílvio!

Há uma pausa. Dr. Arnaldo ergue-se. O pêso que sentia nas costas, a dor das articulações, a vista turva, era velhice. Supunha que as velhinhas estivessem amon­toadas na porta, escutando e, na certa, espiando pelo buraco da fechadura. “As velhas são loucas”, repetia para si mesmo e experimentava um envenenado prazer nessa fixação. Dirige-se para a sobrinha. Torce a bôca na súplica:

— Diz que não foi Sílvio, diz!

Letícia exaltou-se também:

— Mas, titio! Foi Sílvio, titio! Sílvio!

Dr. Arnaldo senta-se. Fala para si mesmo, a meia voz:

— Eu não entendo. Gravidez sem um flerte, sem um namôro, sem amor?

E ela, quase gritando:

— Êles se gostam, titio!

Mas êle continuava, sem lhe dar atenção:

— Amanhã, Engraçadinha vai comigo ao médico. Balbucia:

— Médico?

Vira-se para a sobrinha:

— Ou você pensa que vou deixar êsse filho nascer — Trinca os dentes: — De mais a mais, pode ser men­tira. Mulher mente muito. Com motivo, ou sem mo­tivo, mente. O médico vai me dizer se ela deixou de ser virgem. E se há tal gravidez, direi: — “Tira!”

Em pé, numa cólera maior, repetia como se o mé­dico estivesse ali, presente, ainda de luva: — “Tira!” Letícia não entendia:

— Mas o senhor, titio, sempre foi contra o aborto! Além disso, tem tempo! Se êles se casarem logo, não precisa sacrificar a criança!

O velho aproxima o rosto da sobrinha para que ela visse bem de perto o riso encharcado e hediondo:

— Sua burra, escuta! Qualquer criança pode nascer, menos essa! Essa, nunca! E nem se trata de casamento, nem de gravidez. Você não percebe. Mas eu sei. Êle sabe!

Aponta para o alto: —”Deus sabe! Êle está comi­go, porque sabe!” Falava de Deus, como de um cúm­plice . Seu tom agora era baixo, caridoso e ignóbil. Dominada pela proximidade dessa cara, Letícia não dizia uma palavra. Tinha-lhe mêdo. Era um tio nôvo que estava diante de si. Então, a moça pensou no sonho que Engraçadinha tivera e que lhe contara. No tal sonho, a prima ia, através de contrações sucessivas, expelindo gatinhos. E agora o Dr. Arnaldo dava a idéia de uma gravidez igualmente sobrenatural e abjeta. Letícia tem uma histeria:

— Titio, é sua filha! É seu neto!

Agarrou-o. Êle a empurra violentamente. Baixa a voz:

— Deus está dizendo “tira!”.

Olha-o: — “Enloqueceu”, pensava. E, de repente, começa a sentir uma pena intolerável desse homem, percebe que êle se tornou velho, pela primeira vez velho, de uma velhice maligna e devoradora. Não teve coragem de dizer-lhe: — ‘“Titio, eu gosto muito do senhor, gosto mais do que antes, sim, titio?” Foi neste momento que bateram na porta. Dr. Arnaldo volta-se num movimento de ira:

— Não te disse? Estavam ouvindo na porta! São as velhas! Cheiram os lençóis, sabem tudo!

Foi abrir a porta. Berra, para a tia Ceci: — “Que é?” A outra responde, com sua voz de criança morta que baixa em Centro Espírita:

— Zózimo quer falar com você.

Estupefato, repete:

— Zózimo? Olha, faz o seguinte: — diz que eu atendo já.

Tia Ceci afasta-se e Dr. Arnaldo volta com um nôvo ânimo:

— Por essas e outras, é que eu sou fatalista! Só acredito no destino! Só existe o destino! E não é uma coincidência? Que êle apareça agora? Vai, meu anjo, sai um pouco! Quero falar com essa besta!

Veio levá-la até a porta. Antes de sair, Letícia baixa a voz:

— É sua filha! Seu neto!

E êle transfigurado:

— Eu sei, eu sei! Só farei o que Deus quiser, o que Deus mandar!

Aperta a mão do velho:

— Acredito no senhor. Sei que o senhor é bom.

Dr. Arnaldo dá-lhe um tapinha no rosto:

— Manda o Zózimo aqui, êsse animal!

Vem sentar-se, decidido: — “Amanhã, o médico vai-me raspar a criança!” Deus estava com êle, a seu lado. E, novamente, pensa no noivo da filha: “Como é que êsse cavalo vai deixar outro passar-lhe a perna? Êle é que devia ser o pai! Ah, se a gravidez fôsse de Zózimo e não de Sílvio!” O seu desprêzo por Zózimo foi mais profundo do que nunca. E já lhe parecia que na infidelidade o culpado era a vítima, o adúltero o enganado. Teve uma satisfação doloríssima: — “Bem feito que êle já comece com um bom par de chifres!” Note-se a incoerência total com todos os seus critérios anteriores. De fato, Dr. Arnaldo sempre fôra de pare­cer que a infiel devia ser arrastada pelos cabelos, e despida na rua! Zózimo pedia licença e entrava. Dr. Ar­naldo assumiu, de nôvo, o ar de retrato oficial:

— Como vai o ilustre? Mas sente-se!

Chamava-o de ilustre com uma afetuosa ironia. Então, aquêle rapaz, que estava continuamente enxu­gando as mãos no lenço ordinário, começou a falar em Engraçadinha: — “Imagine o senhor, que eu não fiz nada e ela está zangada comigo”.. Ao mesmo tempo divertido e dilacerado, Dr. Arnaldo não perdia uma palavra: “Só existe o destino”, pensava. Zózimo estava falando na aliança devolvida e a exibia na palma da mão. Dr. Arnaldo interrompe bruscamente:

— Escuta cá: você gosta mesmo de Engraçadinha? Gosta de verdade?

— Venero!

Aquêle “venero” surpreendeu o velho. “Veneração sexual!” Praguejou interiormente. Continuou, cada vez mais incisivo:

— Mas espere. Não falo em sexo. Refiro-me ao amor. Você tem por minha filha um amor como eu entendo: — um amor elevado, tem? Responda, jovem:

— O que é que você faria por minha filha?

— Tudo!

O velho atalha: — “Tudo o quê? É vago! Vou lhe dar um exemplo. É uma hipótese, compreendeu? Di­gamos que você faça uma viagem. Sim, uma viagem. Passa uns meses fora e quando volta: — é um exemplo grosseiro, mas serve. Ao voltar você encontra sua noiva grávida. Não vai acontecer, é claro. Grávida de outro, percebe? Que faria o amigo? Entenda: — sua noiva vai ter um filho de outro. Qual seria sua reação? Va­mos, meu amigo. Emudeceu? Então, você não ama. Você não conhece o amor! Mas responda!”

Zózimo ergue-se, lentamente. E, súbito, começou a berrar.

 

A princípio, Dr. Arnaldo não entendeu. Não espe­rava aquela agressividade de tímido, aquela paixão de humilde. Zózimo gritava com tôdas as forças:

— Que idéia faz o senhor de mim? Duvida de meu amor? Eu amo sua filha! Amo! Eu!

Pára arquejante: — “É um falso humilde, um falso tímido”, concluía Dr. Arnaldo com uma satisfação en­venenada. E parecia-lhe, mais do que nunca, que a hu­mildade é o disfarce de sombrias iniqüidades. Levan­tou-se (intimamente satisfeito e mesmo com uma certa euforia) e veio pôr-lhe as duas mãos no ombro:

— Calma, jovem, calma! Você é muito nôvo! Não se exalte e pra quê? Não vale a pena!

O outro repetia ainda, ofegante:

— Amo sua filha!

Agora em pé, o velho deixa passar um momento; começa:

— Mas você não respondeu ainda à minha pergunta. O que é que você faria?

Responde com outra pergunta:

— Mas isso é verdade? Isso aconteceu?

Sente o terror do rapaz. Zózimo tem o rosto de sempre. “Voltou a ser humilde”, pensa Dr. Arnaldo. Irrita-se; tem a sensação de que aquela humildade lambia as pessoas. Exalta-se:

— Rapaz! Fiz uma pergunta concreta e responda concretamente. Você se casaria — responda! — Você se casaria com uma noiva grávida de outro? Sim ou não? Você a levaria ao altar? E reconheceria o filho como seu?

Disse, com um esgar de choro:

— Sim.

Dr. Arnaldo andava de um lado para outro. De repente, olha as mãos: — vazias. Deixara novamente a bengala em cima da mesa. Sôfrego, vai apanhá-la; e, com a bengala, recomeça a caminhar, de uma extremi­dade a outra da biblioteca. Sem olhar o outro, ordena:

— Continua. Não pára. Fala.

Zózimo, porém, atônito, não sabia o que dizer: — “Êle me experimenta. Esconde alguma coisa. Mas o quê? Esconde o quê?” Súbito, o velho estaca:

— Escuta: e se isso que eu apresentei como hi­pótese... Digamos: — se fôr verdade. Se, de fato, a minha filha — Engraçadinha... Está prestando aten­ção? Se ela, digamos, por uma fraqueza, ninguém é perfeito, nem infalível...

Olha a máscara atônita do genro. Pergunta a si mesmo: — “Devo dizer? Parece um bom sujeito. E se fôr um canalha? Se fôr um crápula?” Senta-se; põe a mão no joelho do rapaz:

— É verdade, ouviu? Engraçadinha está grávida. Os dois levantam-se num movimento simultâneo. Há uma pausa. “Eu me precipitei. Não devia ter dito. Devia esperar mais um pouco. Êle não fala por quê?”. Súbito, Zózimo cerra os punhos:

— Oh, graças, meu Deus! Graças!

Agarra Dr. Arnaldo.

— Dr. Arnaldo, se isso aconteceu, se é verdade que... Eu a amo mais do que antes. E se, porventura — Deus a livre e guarde! — mas se, um dia, ela se pros­tituir, nunca, Dr. Arnaldo. Ela seria sagrada para mim, da mesma maneira ou até mais... Diga à sua filha que se isso é verdade, eu não mudei! Eu não mudo, Dr. Ar­naldo !

Tremia tanto diante do velho, que êste pensou: — “Vai cair com ataque!” Zózimo senta-se, de nôvo. De­seja com tôdas as suas fôrças que, de fato, essa gravidez seja, não hipotética, mas real. Já imaginava que Engra­çadinha havia de se comover com a sua atitude meio suicida: — “Poucos fariam isso. Raros. Talvez nin­guém ou só eu mesmo. Além do mais, farei questão — absoluta! — de reconhecer o filho. E o amarei como se fôsse meu”. Sentindo a própria bondade, Zózimo experimentou uma vaidade profunda. “Sou realmente bom”, repetia para si mesmo. Sonhava que sua bondade podia talvez despertar o interesse sexual da menina. Muitas vezes, a gratidão ajuda a deflagrar o desejo. Continua a pensar: — “Até agora, não houve entre nós um beijo de verdade. Nunca houve entre nós um beijo de língua. Ela fecha a bôca. Não quer ser beijada por mim, claro; e o meu beijo ainda não sentiu sua saliva. Talvez agora, diante da minha bondade”... Transfigurado, vira-se para o sogro; agarra-o pela manga do paletó:

— Outra coisa que eu faria questão que o senhor dissesse: ela não precisa tirar o filho, nem deve.

O velho foi duro.

— Essa criança não pode nascer.

Balbucia:

— Não ouvi.

Dr. Arnaldo não entendia o homem que perdoa a adúltera. “Preciso dêsse casamento, mas é repugnante. Zózimo gosta dessa gravidez. Está feliz — e mesmo ex­citado — porque outro a possuía”. Com uma certa náu­sea, repete:

— A criança tem de ser sacrificada.

Fêz a pergunta sôfrega:

— Por que?

E o velho:

— É preciso, meu filho. Seria imoral e, além disso, há um motivo, que você não conhece e que... — com surda irritação, acrescenta: — O que importa não é essa criança. Mas os filhos teus, realmente teus.

Ia dizer: — “Essa criança deve ser “raspada”, já” A expressão “raspada”, que usava mentalmente, pare­ceu-lhe cruel demais para ser dita. Levando Zózimo até à porta, dizia-lhe: — “Você quer o casamento? Ainda quer? Pois Engraçadinha — eu juro! Dou-lhe a minha palavra! — será sua esposa. Já lhe menti alguma vez? Eu não minto, rapaz, eu nunca menti!” O jovem, que queria ser bom, generoso, até o fim, ainda insiste: — “Mas o filho...” Dr. Arnaldo cortou, e já com um prin­cípio de ódio:

— Há abortos morais! Rigorosamente morais! E tolha: passa por ai amanhã. Vai com Deus e escuta: — eu estou apreciando a sua bondade! Você é um ca­ráter!

Ficou vendo o Zózimo afastar-se e pensava: “Não é nobre, não é generoso, não é altruísta, não é nada!” Parecia-lhe que tudo era uma perversão violenta, o puro prazer de sentir-se traído, de imaginá-la nos braços de outro. Da porta da biblioteca, chama:

— Letícia! Letícia!

A sobrinha, que estava se despedindo de Zózimo, apareceu, pouco depois. O velho respira fundo: — “Te­lefona para a casa de tia Adelaide. Que Engraçadinha venha já. Obrigado. E não há nada. Não se preocupe. Eu sou pai. O principal dever do pai é proteger”. Vol­tou para o interior da biblioteca, na certeza de que Deus estava a seu lado. “Deus não me abandona”, era o que repetia, numa certeza triunfante.

 

Tia Adelaide mandou trazê-la de carro. Despedindo-se da velha, que era diabética, e das primas, sopra no ouvido de uma delas:

— Reza por mim.

Salta em casa e Letícia, nervosíssima, a esperava embaixo. No caminho, ora pensava no pai, ora no pri­mo. Com o vento da velocidade espalhando seus cabe­los e queimando seu rosto, pensava: — “Aposto que, hoje Sílvio vai bater no quarto”. Ainda não decidira se deixaria ou não a porta apenas encostada. Salta e faz a pergunta assustada:

— Papai sabe?

— Tudo!

— E que tal?

Subindo a escada de pedra, Letícia ia dizendo: — “Teve um abalo tremendo, claro. Mas acho que, com jeito... Depende de você, Engraçadinha”... A pequena geme: — “Estou com um mêdo danado”. Em cima, Letícia crispa a mão no braço de Engraçadinha:

— Quero te dizer uma coisa. Toma nota: — não há ninguém no mundo que goste mais de você do que eu. Sou tua maior amiga, agora e sempre!

Engraçadinha contempla a prima com espanto. Ja­mais a vira com êsse fervor: — “Não te abandonarei nunca”, repetiu com um desespêro que lembrava o de Zózimo. Caminharam, juntas até a porta da biblioteca. Letícia despede-se baixo: — “Estou na sala. Felicida­des”. Engraçadinha entra e leva em si o terror de crian­ça batida. Encosta a porta e caminha atônita na dire­ção do pai. Êste deixa que ela se aproxime. Diz:

— Puxa a cadeira, minha filha. Senta perto de mim.

Ao vê-la, sente de nôvo o ódio na carne e na alma. Mas, coisa curiosa! É uma fúria dominada, fria, raciocinante, que não impede uma certa polidez maligna. En­graçadinha senta-se, com os lábios brancos e uma tal contração no estômago que imagina: — “Acabo vomi­tando aqui!” Sem tirar os olhos da pequena, Dr. Ar­naldo pensa: — “Vou assustá-la com o meu silêncio. Apenas olhando e sem dizer nada, já começo quebran­do a sua resistência. Ela precisa ter mêdo”. Engraçadi­nha pergunta a si mesma: — “Por que êle olha só e não fala? Não diz nada. Acabo gritando”. Um sorriso muito leve dá um mínimo de vida aos beiços lívidos do velho. Pensa: — “Onde entra o sexo, tudo é possível. Mas foi acontecer justamente o que não devia, o que não podia acontecer. Tinha um noivo e por que não se entregou ao noivo? Ou, ainda, por que não se entregou a outro qualquer, menos a Sílvio?” Afinal, êle não se conteve. O próprio silêncio já o sufocava. Decide: — “Vou falar-lhe baixo e macio, quase sem voz. Assim ela terá mais mêdo”. Faz-lhe docemente a pergunta:

— Explica, filha. Como é que você sem sair de casa, vivendo entre velhos quase dementes, você ar­ranjou um filho?

— Eu amo Sílvio, papai!

E êle:

— Por que Sílvio e não teu noivo?

Chora:

— Não sou mais noiva. Desmanchei o noivado.

Dr. Arnaldo começa a ter mêdo de si mesmo: — “Acabo matando essa desgraçada!” — Embora achando que sua doçura premeditada é uma indignidade, con­tinua :

— Minha filha, e se eu lhe disser que você é ainda noiva e mais noiva agora do que nunca? E se eu lhe disser que eu jurei — eu! — que você será espôsa de Zózimo ?

Ergue-se e recua: — “Papai, eu amo Sílvio!” Rá­pido, Dr. Arnaldo a agarra pelos dois braços. Cara a cara com a filha, estraçalha as palavras nos dentes:

— Sua cretina! Se eu disser que Sílvio não é teu primo, nunca foi primo! Sílvio é teu irmão! Ouviste? Teu irmão!

Diante da filha, rebenta em soluços.

 

Balbuciou:

— Papai!

Por um momento, contemplou, gelada, em silêncio, aquêle pai quebrado, em ruínas. Êle repetia para si mesmo: — “Não quero chorar! Não posso chorar!” Mas enterrou o rosto nas duas mãos; cerrava os dentes como se quisesse morder o próprio choro. Estupefata, Engraçadinha pensava: — “Irmão! Que irmão? E por que irmão?” Ao mesmo tempo, teve uma sensação de pena, ou melhor: — não era pena, era repugnância ou as duas coisas juntas, talvez. No seu desespêro, Dr. Arnaldo diz de si para si: — “Ela me vê chorando como um pulha!” Súbito, teve a certeza de que a menina o desprezava. Engraçadinha jamais sonhara que, algum dia, aquêle velho magro, com a sua face hirta de más­cara, pudesse chorar com essa violenta, essa apaixonada fragilidade. Teve vontade de gritar-lhe: — “Pára de chorar, pára!” Talvez sentisse desprêzo, talvez. Mas sentia também uma crispada vergonha dessas lágrimas de homem e de velho. — Ela deixou boiando no ar a pergunta:

— Irmão?

Repetiu outras vezes, sentindo que a garganta se fechava: — “Irmão?” Teria enchido a sala com os gritos de “Irmão?” Gritaria até rebentar a voz: “Por que irmão?”. Dr. Arnaldo erguia o rosto, ofegante, passa­va as costas das mãos nos olhos. Nunca ninguém o vira chorar, nunca. Procurando o lenço, pensava: — “Ela me despreza, sim!” E onde está o diabo do lenço? Me­teu a mão no bôlso das calças. Ao longo dos seus qua­renta anos de vida, só chorara sòzinho (enfim, encontrou o lenço num bôlso inesperado). Quantas vêzes, no quarto, metera a cara no travesseiro para sufocar a saudade de uma morta? Ó não se perdoava, agora, de ter chorado na frente da filha, que era a pior teste­munha, a mais implacável. Já se assoara e guardava o lenço no bôlso traseiro da calça. Numa calma dila­cerava, espiava a filha. Engraçadinha estava branca e com o lábio inferior tremendo. Diz:

— Mas eu não entendi, papai!

Enojado da própria fraqueza, Dr. Arnaldo não res­pondeu imediatamente. Ao passo que ela, agora que o vira tão fraco e perdido, — jamais vira um homem cho­rar assim — ela começava realmente a desprezá-lo. Mas talvez pelo hábito do respeito ou do mêdo, ainda não tinha consciência dêsse desprêzo. Dr. Arnaldo baixou a voz, as suas mãos estavam trêmulas:

— Teu irmão.

Ela não quer compreender, não quer aceitar. “Por que meu irmão?” Foi a pergunta desesperada. O pai respondeu:

— Porque é meu filho! — e repetiu, alteando a voz: — Meu filho!

Ergueu-se e anunciou, alto e vibrante, como se de­safiasse um invisível auditório: — “Meu filho!” Ela baixa a cabeça, une as mãos na altura do peito, fecha os olhos. Mas em vez de fazer uma prece pensava: — “Filho do meu pai! Meu irmão!” Levantou-se para sentar-se, novamente. Dr. Arnaldo apanha a bengala e, já com certa excitação, caminha até o fundo da bi­blioteca. A humilhação de ter chorado diante da filha, chegava a doer-lhe nos ossos. Precisava exaltar-se de nôvo, gritar, sacudir a bengala, para meter-lhe mêdo. De longa data, era de parecer que a mulher entende mais o grito, entende mais a ameaça do que o argu­mento, o fato. Tôdas gostam de sofrer na carne o es­pasmo do medo. “Vou gritar”, decidia. Mas, antes que êle se aproxime, Engraçadinha rompe o si­lêncio :

— Papai, quer chegar aqui um instantinho, papai?

O pai percebe o tom de surda irritação. Imagina: — “Será que vai ter a audácia de me interpelar?” Mais do que nunca sentiu que precisava vencer pelo mêdo. Devia gritar mesmo sem fúria ou com uma fúria ape­nas simulada. Vem sentar-se diante da filha. A doçura da própria voz o surpreende.

— Fala, minha filha.

Encara-o:

— E agora?

O velho tem a sensação de que é um ser esvaziado. Nada por dentro, nada. Ou melhor: — por dentro só o vácuo. Ainda há pouco chorara como um pulha, sim, como um pulha. E agora, o que sentia era, justamente, a impossibilidade de sofrer. Por um momento, desejou ser o pulha das lágrimas. Engraçadinha começa a se desesperar:

— E agora, papai ?

Disse:

— Reze, minha filha.

Irrita-se:

— Escuta, papai!

Interrompe:

— Você é moça, minha filha, nova...

Naquele momento, êle daria tudo para sofrer. “Eu sofria ainda agora e já não sofro”, era o seu lamento interior. Engraçadinha continuou:

— Mas, papai, não é isso, papai! Escuta! Eu tenho 18 anos...

— Reza.

Aquilo a enfureceu. Levanta a voz:

— Até hoje, até ainda agora, eu tinha um primo. Nunca ninguém chegou junto de mim pra dizer: — “Teu primo é teu irmão!” Sílvio sempre foi meu primo, sempre! — e pergunta, na sua violência contida: — Está ouvindo, meu pai?

Diante dela, com uma monstruosa impotência para a dor, êle repete na sua fixação triste e doce: — “Reza”... Diria sempre a mesma coisa, no mesmo tom brando. Ela, porém, já não se contém: — “Vou até o fim. Direi tudo”.

— Eu gostei desse primo desde garotinha. — Baixa a voz: — Um dia, ou uma noite, sei lá, eu me entreguei ao meu primo. O senhor compreende? Ao primo. Escuta, papai: — quando eu me entreguei, era ainda meu primo, como sempre fôra. De repente, o senhor, que nunca me disse nada, não é, papai? O senhor vem e diz: “É teu irmão!” E já tinha acontecido tudo!

Começa a chorar. O pai balbucia, como se falasse do fundo de um sonho: — “Teu irmão”. Engraçadinha ergue o rosto:

— Papai, eu não tenho culpa de nada!

Ela gritava. Foi a cólera da filha que o despertou. Ergueu-se. Oh, graças, porque voltava a sofrer! De nôvo sentia a dor. Experimentou a saudade da cunha­da morta — tão desejada em vida e mais desejada de­pois que a perdera. Com uma dor exultante, berrou:

— Você me acusa?

Trincou os dentes:

— Acuso!

Recuava diante da cólera paterna, mas ia repetin­do: — “acuso!” Por um momento, êle pára. Pensa: — “Quero que ela me irrite mais! Que me desafie!” De­sejou, com tôdas as forças, que a filha o insultasse. “Se ela me insultar, quebro-a em dois!” Repetia mentalmente: — “Em dois!” Não tinha mêdo da própria vio­lência, embora se sentisse bem próximo da insânia. Ocorreu-lhe a hipótese: — “E se eu enlouquecesse agora?” Desafiou a filha:

— Continua! Por que não continua? Sou o cul­pado, e que mais?

Apertava a cabeça entre as mãos, soluçando. O velho a contemplava, com um sorriso mau: — “Não é só sexo. Também chora”. Engraçadinha teria pouco o que dizer. Soluçava ainda:

— Por que o senhor não me disse? Teve dezoito anos para me dizer!

No seu espanto, levantou-se:

— Dizer, eu? Eu não diria nunca. Ou querias — sua miserável — que eu fôsse contar para todo mundo que fôra amante de minha cunhada? Isso ia morrer comigo, ia enterrar-se comigo e apodrecer com a minha carne e com minha alma! Só eu sabia e Êle?

Continuava a falar de Deus como de algo pessoal, tangível, como o amigo ou cúmplice fisicamente palpá­vel. Ninguém mais conhecia a paixão. No confessioná­rio, dizia tudo, menos que fôra amante, por uma hora, por um momento, da cunhada. O irmão, que êle ado­rava, estava fora, viajando. Podia desejar tôdas as mu­lheres, menos aquela. Aquela, nunca! E, no entanto, ela passara, por lá, uma tarde. Vinha trazer um re­cado do irmão, ou melhor: — vinha mostrar uma car­ta do irmão. Leram juntos o trecho final: — “Você e o Arnaldo são tôda a minha vida”. E, súbito, o dese­jo nasceu sem uma palavra, sem um olhar. Ela foi ar­rastada. Balbuciava, no seu espanto: — “Aqui não”. Agora, olhando para Engraçadinha, êle pensava: — “Não direi a ela, nem a ninguém, que foi aqui mesmo”. Instintivamente, olhou para o divã: — “Lá!” E, às vezes, na Assembléia Legislativa, presidindo a sessão, pensava que, no divã, a mão puxando a calça, o tra­balho dos quadris... O filho que não podia nascer. Súbito, o irmão morre lá fora. Enquanto o caixão vem do sul, ela, amassando o lencinho, diz-lhe: — “Agora pode nascer”. Foi só. Anos depois, êle achava: — “Só conhece o amor quem possuiu a cunhada impossí­vel”. Olhou, uma última vez, para o divã de um mo­mento eterno.

— O senhor nunca se lembrou que tinha uma filha!

Atônito, quis segurá-la pelo braço: A pequena des­prendeu-se, violentamente:

— Não me toque!

— Você me desafia?

E ela:

— Desafio!

Êle pensou: — “Mulher precisa ter mêdo físico”.

Vai até a porta, abre e grita para dentro:

— Ninguém venha cá!

Empurra a porta e fecha à chave. Engraçadinha recua: — “Mas que é isso, papai?” Olha para os lados, na esperança da fuga impossível. Dr. Arnaldo puxa o cinto de couro grosso. Mas não se apressa. Pensa ainda na outra, na morta. Veio-lhe uma reflexão: — “Os magros como eu só devem amar vestidos”. Tinha ódio da própria nudez esguia e lívida. Caminha para a filha. Esta grita:

— Não, papai! O senhor nunca me bateu, papai!

E êle, fora de si;

— Não corra!

Engraçadinha tenta fugir, colocar-se detrás dos móveis. Mas, recuando, de costas, tropeça e cai em cima do divã. Dr. Arnaldo bate nas costas, nas pernas, nos braços. Dir-se-iam lambadas de fogo. Ela esganiça a voz:

— Não, paipaizinho, não!

O velho continua, porque o terror da filha o exas­pera. Está conhecendo um prazer inesperado, uma em­briaguez devoradora. Ela berra: — “Basta! Basta!” Êle pára, bruscamente. Engraçadinha soluça ainda, enovelada no divã:

— Papaizinho!

 

Cada lanho deixara na sua carne — costas, braços, pernas, até coxas — uma sensação de fogo. O ve­lho já não batia mais — estava de pé, o cinto dobrado na mão, exausto de odiar. Enquanto a filha em cima do divã, enroscada, tem um chôro manso, um chôro hu­milde, um pranto sem raiva — o pai gagueja:

— Pede perdão, anda!

Êle próprio sente que sua cólera desapareceu até o último vestígio. Sem se virar, enxugando a coriza com as costas da mão, soluça:

— Perdão, papai.

Atônito (e mesmo enojado) da própria violência, Dr. Arnaldo senta-se na outra extremidade do divã. Engraçadinha continua soluçando. Agora, que não apanha mais, sente uma paz intensa, uma calma arden­te. Mas na pele cortada a chicote, isto é, a cinto, per­siste a sensação de fulgor. Passando a mão no nariz, olha o velho, de lado, furtivamente. Dir-se-ia: que era um pai desconhecido, um pai inesperado, que ela via pela primeira vez. Dr. Arnaldo costumava dizer, com uma vaidade meio triste: — “Jamais dei um tapa na minha filha, um cascudo, nada”. Era verdade: — nun­ca! E apesar disso, ou por isso mesmo, havia entre os dois um limite cortante, de cerimônia, de polidez ou, digamos a palavra exata, desamor. Agora, porém — por mais estranho que pareça — o pai tinha a ilusão de que estavam mais unidos. Pensa: — “Começou a gostar de mim. Já me tem amor”. Ou estaria engana­do? Gostaria de observá-la sem ser visto. Repetiu para si mesmo: — “Só os que batem são amados pelas crian­ças e pelas mulheres”. Em vez de recolocar o cinto, atira-o longe: — “Ela me chamou de papaizinho, pela primeira vez. Nunca me tinha chamado assim”. Ao ba­ter na filha, julgara perceber, no seu olhar atônito, a sombra de um prazer selvagem. Gostou de ter medo! — e repetia com certeza fanática — “A mulher gosta de ter mêdo!” Ela apanhava e nunca sua bôca fora tão voluptuosa.

Vira-se para Engraçadinha:

— Chega pra cá. Senta aqui.

Engraçadinha, na outra extremidade do divã, pas­sa novamente a mão no nariz. De cabeça baixa — sem querer olhá-lo — foi se aproximando, lentamente. Pensa — “Letícia deve ter escutado os meus gritos”. Imagina o espanto e o terror da prima — inclusive das tias — quando perceberam que ela apanhava. Letícia era das que dizem, com o rosto em desafio: — “Panca­da, não!” E ela mesma, Engraçadinha, fartara-se de gabar-se para as colegas e as outras primas: — “Nun­ca apanhei!” Subitamente, aos 18 anos — e depois de conhecer o amor, fisicamente — levara a primeira sur­ra. O curioso é que, ali mesmo, decidiu que não guar­daria segrêdo. Suas amiguinhas iam saber. Imaginava o espanto das outras quando anunciasse: — “Levei uma surra de papai”. Ela própria não entendia o de­leite de uma nova e voluntária humilhação.

 

Letícia escutara o primeiro grito, sim. Pouco an­tes, Sílvio aparecera:

— Titio sabe?

E ela:

— Já.

Desesperado, ia dizer qualquer coisa, quando se ouviu o berro de Engraçadinha. A primeira idéia que ocorreu a Letícia foi de que Dr. Arnaldo estava ma­tando a filha. Agarra o primo:

— Vai lá!

— Pra quê?

Segura-o pelos dois braços:

— Não deixa, Sílvio!

As tias cochichavam entre si: — “É Engraçadi­nha que está apanhando!” Tia Zezé, que aparecera por lá acompanhada do marido gordo, exclamou triun­fante:

— Bem feito!

Letícia volta-se, como se fôsse agredi-la: — “A se­nhora não tem coração!” A outra empinou o queixo:

— Sua fedelha!

Mas já o Tio Nonô, com a sua ferocidade jocunda — êle ria de tudo e por tudo; ria até nos velórios — arrastou-a para a varanda: — “Não te mete, mulher, Mania de se meter!” Mas a tia Zezé abanava-se com uma revista, feliz de ver Engraçadinha apanhando. “Debocha de mim”, ia pensando. O gordo ria ainda: — “Quem precisava de umas bolachas é você, mulher!” Estaca, furiosa: — “Se faça de tolo!”

— Você não vai?

Engraçadinha continuava gritando. Sílvio perdeu a paciência:

— Escuta, Letícia! Essa situação foi criada por você! A culpada é você!

Berrou:

— Por que todo homem é covarde?

O rapaz podia ter respondido: — “Se você não fôsse mulher, partia-lhe a cara!” Mas calou-se, ou, por outra: — disse simplesmente: — “Eu não posso ir, por­que vou me atracar com meu tio!” Parou por aí, mas pensava: “Se êle me esbofeteasse, teria tôda a razão, tôda. Porque, afinal de contas, eu lhe deflorei a filha”. Letícia atirou-se em cima de uma cadeira, aos soluços. Tia Zezé, na sua cólera de nervosa, de irritada, dá, de leve, com o cotovelo, em Tio Nono: — “Olha o his­terismo!” Naquele momento, Sílvio passava, a cami­nho da rua. Ia pensando: — “Eu não devia voltar”. E repetia: — “Se eu tivesse um pingo de vergonha na cara, não voltaria nunca mais”. Até que Letícia não ouviu mais gritos de Engraçadinha, nem escutava o som da correia estalando na sua carne. Apertando o rosto entre as mãos, ela cerrava os lábios: “Ah, se eu fôsse homem! Ia lá, quebrava a cara daquele velho sem-vergonha!” Pela primeira vez odiava alguém: — “Não falo mais com êle, oh, meu Deus!” Ao mesmo tempo, decidia: — “Hoje, vou dizer tudo a Engraçadi­nha, tudo!” Ia passar a noite lá e dormiria com a pri­ma. — “Engraçadinha só tem uma amiga no mundo: — eu!”

 

Dr. Arnaldo não batia mais. Estavam sentados, lado a lado, no diva. De perfil, um para outro, e ca­lados. Súbito vira-se para a filha e a faz virar-se também:

— Engraçadinha, olha pra mim.

Ergue o rosto:

— Estou olhando.

Ela tem um certo enleio, uma brusca vergonha da­quele rosto tão próximo e daquele olhar de fogo. O pai continua:

— Não tira os olhos dos meus. Assim.

Depois que lhe batera, o velho sentia que já existia entre os dois um vínculo intenso. “Nunca nos olha­mos tanto”, era o que pensava. Continua:

— Amanhã, vou te levar ao médico.

Balbuciou:

— Médico?

— Sim.

Engraçadinha baixa a cabeça. Êle não podia ima­ginar que a pequena acabava de sentir um estreme­cimento que se extinguiu no fundo do seu ser. Desde 13 para 14 anos que tinha uma inveja maravilhada das senhoras que vão aos médicos especialistas. Nos cochichos com as coleguinhas, da mesma idade, pouco mais ou pouco menos, fazia uma afetação de pudor: — “Eu tinha vergonha”. Mentira. Vergonha nenhuma. E pelo contrário: — tinha uma pungente curiosidade. Aquilo mexia com tôda a sua imaginação. Tanto que sempre imaginava: — “Quando eu fôr casada, de vez em quando apareço no médico de senhoras”. Mesmo que não tivesse nada, diria: — “Ando com uma dor aqui. Ovário, não é, doutor?” Êle, então, responderia: — “Vamos examinar”. De vez em quando, criava a cena, retocando-a aqui e ali, acrescentando e substi­tuindo detalhes. Fazia questão, porém, que fôsse um médico ainda moço, bem parecido, e cuja barba densa e bem feita desse ao rosto uma sombra azulada. Fin­gindo enleio, simulando timidez, de olhos baixos, ar­risca :

— Que médico?

E êle:

— O nosso.

Sem dizer nada, resmunga para si mesma: — “Logo êsse!” Achava o médico da família, textualmen­te, um “chato” e, ainda por cima, um velho. Êsse não tinha graça, oh! De mais a mais, pai de não sei quan­tos filhos e um sujeito que, quando se assoava, dava roncos hediondos dentro do lenço. Faz sua voz mais doce: — “Papai, o senhor não acha que é melhor, tal­vez, um médico que não conheça a gente?” Dr. Ar­naldo ergue o rosto, vivamente.

— Desconhecido? — vacila: — Talvez. É mesmo. Tem razão. Desconhecido é melhor.

Ela gostava de Sílvio, tinha loucura por Sílvio. E acabava de ser ofendida e humilhada. Apesar de tudo — embora sofresse — experimentava, ao mesmo tempo, uma espécie de euforia e, mesmo, de vaidade. Sim, agora podia ir ao especialista, queixando-se de dores imaginárias. Ao vê-la, o médico havia de fingir puro interêsse profissional. Mas, por dentro, estaria pensan­do: — “Linda!” Ela já premeditava, para si, uma ati­tude de pudor. Claro que ia ficar vermelha. E só que­ria ver a reação do Fulano. Súbito, começou a sofrer. — “E Sílvio, meu Deus?”

O pai estava falando:

— Outra coisa, minha filha: — ninguém pode sa­ber de nada.

Admirou-se: — “Nem Sílvio?” — Foi violento:

— Nem Sílvio, nem Letícia, nem ninguém. Só eu e você. Vou apressar o casamento de Sílvio com Letícia e o teu com Zózimo.

Estremeceu: — “Zózimo?” Teve uma irritação profunda, um ódio que a fêz trincar os dentes. Por um momento veio-lhe a tentação de dizer: — “Qualquer um, menos êsse, papai!” De fato, o único desejo que a exasperava e, mesmo, humilhava era o de Zózimo. “Êsse palhaço”. Dr. Arnaldo ergue-se: — Você dei­xa que eu falo com Sílvio, mas olha: — êle não pode saber — jamais! — que é seu irmão, está ouvindo? Respondeu: — “Sei!” Agarrou-a com violência:

— Jura que não dirás a ninguém, nunca?

— Juro.

Sacudiu-a:

— Pela alma de tua mãe?

E ela:

— Pela alma de minha mãe.

Subitamente calmo, o velho baixa a voz:

— Vai, minha filha, vai.

Engraçadinha abandona a biblioteca. Dr. Arnaldo vem sentar-se no divã: — “Essa Letícia que passa o noivo adiante, com a maior irresponsabilidade”. Êle não consegue pensar em Sílvio. Seu ódio esquece o fi­lho. No fundo do corredor, Letícia a esperava sôfre­ga. Atirou-se nos seus braços; e chorava: — “Oh, En­graçadinha! Estou chorando de ódio!” E a outra: — “Não liga!” Letícia fala baixo: — “Põe a mão no meu coração, põe! Vê como está batendo!” Vem de braço com Engraçadinha e ainda sopra: — “Tia Zezé é uma víbora!” Engraçadinha suspira; êsse afeto ao seu lado, êsse carinho faz-lhe um imenso bem. Na sala, as ve­lhinhas viram-se para ela com essa curiosidade malig­na que qualquer mulher tem por outra que acaba de apanhar. Letícia segreda: — “Queres que eu fique aqui e durma contigo? Telefonei para mamãe, queres?” Res­pondeu saturada: — “Não obrigada. Não vale a pena. Amanhã te falo”.

Depois que a outra saiu trancou-se no quarto. Pen­sava ora em Silvio, ora no médico. Odiava Zózimo. Deixando a camisola escorregar, pela cabeça, sobre o corpo nu, pensava: — “Não posso deixar a porta encostada”. Tinha certeza de que êle viria. Veio, de pés descalços, para junto da porta. Brinca com a cha­ve, torcendo-a, destorcendo-a, uma porção de vezes. Pergunta a si mesma: — “Deixo a porta encostada ou não?” Teria essa coragem? Encosta o corpo na porta. Sente a chave entre os seios. “Êle não pode entrar, não pode entrar, não pode!” Destorce a chave e entreabre. Em seguida, empurra a porta e a fecha novamente. De onde estava apaga a luz. Ficou assim muito tempo, calada, no sonho da carne e da alma. E, de repente, sente passos. Alguém mexe no trinco.

 

Era êle. O corpo inteiro colado à porta, Engraça­dinha sorri para si mesma, numa selvagem euforia. Oh, Sílvio! Viria sempre, sempre! “Minha vidinha, es­tou aqui! Não posso falar, mas estou aqui! Olha: — sou tua! Morde aqui, querido, morde, meu amor, oh! querido!” Do outro lado, com seu obstinado desejo, o lábio encharcado, êle mexe na porta. Diz, num sôpro: — “Engraçadinha!” Sabe que a prima está ali. E, sú­bito, Engraçadinha cai com um ombro, projeta um lado do busto e esmaga o seio contra o trinco. Não fala, mas, se pudesse, ela pediria: — “Machuca, oh, machu­ca!” Não pode falar, mas, ah, agora está pensando: — no médico e em Silvio. No doutor, cobriria os olhos com uma das mãos, choraria talvez. O médico não ia des­confiar dessa afetação de pudor e pelo contrário: — acharia normal a vergonha de uma menina que ainda reagia como virgem. Com o trinco magoando um dos seios — ela pensava: — “Oh, Sílvio! Que interesse posso ter num médico desconhecido? Tolinho, êle está tão acostumado que nem liga! E como é chato êsse exame! Tão desagradável! Eu queria uma médica, mas papai preferiu homem!” Sim, diria isso a Sílvio e mais: — “Vou obrigada, Sílvio! Você me julga uma menina sem pudor, oh, Silvio!”

No corredor, êle torce o trinco e não entende a re­sistência ou por outra: acha que é a mão de Engra­çadinha, a mão, e não o seio. Sente-se abjeto de vir, ali, tôdas as noites, como um sátiro da madrugada. É um desejo noturno que chega com a hora certa. O ra­paz já se imagina uma espécie de vampiro de novela, de filme. Por vêzes, dá-lhe vontade de fazer, em si mesmo, uma mutilação hedionda. Não desejar mais, nunca mais. Escorraçá-la: — “Não te quero! Vai-te” E não sofrer, sobretudo não sofrer! Se ao menos pu­desse gritar, junto à porta: — “Engraçadinha! Abre, Engraçadinha!” Ouvir-lhe a resposta — “Sim” ou “Não” — mas ouvir-lhe a resposta. Ou, então, se pu­desse pôr a porta abaixo! Se pudesse derrubar essa porta, ah essa porta! Podia estar ali de paletó de pi­jama e nem isso: — vinha sempre de peito nu! Repe­tiu para si mesmo: — “Não abre!” Experimenta subi­tamente, na carne e na alma, a certeza de que ela ja­mais abriria. “Tôdas as noites, estarei aqui, de joe­lhos diante desta porta, de joelhos. Mas eu sei que ela não abrirá! E se eu batesse? Todos acordariam, mas se eu batesse?” Na sua fúria, pensa: — “Não tenho na­da com os outros! Os outros que se danem!” Fala bai­xinho, com a bôca encostada na fechadura:

— Engraçadinha.

Nada ainda. Toma-se de um pudor obtuso. “Se eu passar o resto da vida aqui, ela não abrirá nunca!” Imaginou-se morrendo, junto à porta de Engraçadi­nha, agonizando e morrendo. De manhã, quando ela abrisse a porta, tropeçaria nêle, no seu cadáver. Faz mais uma tentativa: — torce o trinco, pela última vez. Espera mais um pouco. Começou a odiá-la. Ódio e desejo. E quanto mais a odiava, mais a desejava: — “Sua cretina! Sua sem-vergonha! Eu te conheço e olha: — já te meti a mão na cara! Sangrou um pouco, não sangrou? Ah, sangrou? E outra coisa: — a primeira vez em que estivermos sòzinhos, eu vou te dar uma bofetada — olha! — com a mão aberta!” Já estava de joelhos. Sabia que ela estava, junto à porta, com o corpo colado (mas não podia imaginar que esmagava ora um seio, ora outro, contra o trinco e contra a cha­ve). “Deve estar amanhecendo”, foi o que pensou. Er­gueu-se, torceu outra vez o trinco e, desesperado, veio andando pelo corredor, rente à parede e uma dor atra­vessando a fronte. Entra no quarto, caminha para a cama, cambaleando. Cai de bruços, mete a cara no tra­vesseiro, morde a fronha, estrangula o choro.

 

Dr. Arnaldo saiu de casa, pela manhã, bem cedi­nho. Perguntava a si mesmo: — “Falar com Sílvio?” E decidia: — “Não. Ainda não”. Eis a verdade — não po­dia dar-lhe nunca a notícia, à queima-roupa: — “Você é meu filho, não sobrinho”. Sílvio não poderia saber até que êle, Arnaldo morresse, e mesmo depois de sua morte. Tomando um táxi na esquina, pensa: — “Engra­çadinha sabe”. E se a filha dissesse? Saíra cedo para descobrir um ginecologista de confiança. “Em cuja dis­crição se possa confiar”, foi a frase que êle formulou para si mesmo.

 

Em casa bate o telefone. Era Letícia. A criada res­ponde:

— Está dormindo.

Irritou-se:

— Acorda.

E a outra:

— Um momentinho, D. Letícia.

Com pouco mais, vem Engraçadinha, com o quimono rosa em cima da camisola. Nos pés, as sandalinhas de arminho, presente da própria Letícia. Fora dormir tarde demais e o pior era a dor no seio. “Síl­vio deve estar maluco!” Ao mesmo tempo, ocorreu-lhe o raciocínio: — “Irmão só por parte de pai!” Boceja:

— Alô!

— Engraçadinha?

Foi quase indelicada:

— O que é que há?

— Tudo bem?

Coça debaixo do braço:

— Mais ou menos.

E Letícia:

— Olha! Quero que você seja sincera. Se eu te fi­zesse uma certa pergunta. É o seguinte: — você nunca desconfiou de nada?

— Não entendi.

Titubeia:

— Bem. É o seguinte: — eu e você fomos criadas juntas. Te pergunto se, durante êsses anos todos, você nunca desconfiou. Responde!

— Como desconfiar? E de quê? Letícia, fala por­tuguês claro. Você está fazendo um mistério danado.

Suspirou:

— Só falando pessoalmente. Passo por aí, depois do almoço.

Lembrou-se do médico:

— Depois do almoço, não. Vou ao médico. Mais tarde.

A outra decidiu-se:

— Então, já. Passo aí agora.

— Passa.

Quando voltou do quarto, teve uma tentação: “E se eu der um pulo no quarto de Sílvio?” Desistiu e por um motivo: — desde a véspera, estava covarde: — “Papai pode ver e me mata”. Mas, ao passar pela porta do primo (ou irmão), experimentou uma espé­cie de vertigem. Quase, quase passou a mão no trinco. Conclui, porém: — “É perigoso. Pode dar o azar” Foi esperar Letícia deitada. Cruzando os pés — conti­nuava a dor no seio — tinha agora ódio de Zózimo: — “Tão cínico que sabe que eu estou grávida de outro. Não estou, mas êle pensa que estou e é a mesma coisa. Pois não é que o desgraçado diz que não se importa, que está tudo ótimo, ora veja! E imagine eu me casan­do com êsse idiota. Na primeira noite, quando êle me puser a mão, ah eu vou pôr a boca no mundo!”

 

Estava cochilando, quando a prima abre a porta e chama:

— Engraçadinha.

Começava a sonhar com Sílvio. Vira-se na cama e boceja: — “Como é?” Letícia senta-se, nervosíssima. Pergunta de si para si: — “Será que ela não desconfia mesmo ou finge? Ah, deve ter percebido alguma coisa”. Começa:

— Tenho uma surpresa para ti.

Engraçadinha vira-se: — “Surprêsa” Letícia sus­pira: — “Olha só como eu estou tremendo!” Mostra a mão que, de fato, tremia. Pergunta:

— Primeiro, eu quero saber o que houve ontem. Não dormi direito, pensando. E outra coisa: — titio morreu pra mim. O que êle fêz contigo não tem perdão. Mas deixa pra lá e conta: — o que ficou resolvido?

Sem conseguir odiar o velho, responde:

— Sabe como é, papai. Quer o seguinte: — o teu casamento com Sílvio e o meu com Zózimo. Só.

Aquilo a enfureceu:

— Mas que absurdo! Por essas e outras, é que, bom! E você? O que me interessa é você? O que você resolveu ?

Engraçadinha não respondeu. Senta-se na cama. Passa a mão por traz da cabeça e enfia os dedos nos cabelos. No momento ela pensa no médico. Chegaria no consultório e na hora do exame começaria a chorar. O médico acharia, digamos, uma graça paternal: — “Mas que é isso?” A própria enfermeira iria consolá-la: — “Não chore. Chorando por quê?” E essa premeditação de pudor já a arrepiava. Vira-se para a prima:

— Não sei de nada. Só pensando muito.

Letícia tira a mão do seu braço. Levanta-se e vai fechar a porta à chave. Senta-se novamente na cama:

— Agora a surprêsa. Responde: — quando você me contou a sua gravidez e eu disse que a solução era o teu casamento com Sílvio, o que é que você achou?

Admirou-se: “Mas achei como?” Letícia não sabe continuar: — “Mas será que ela é cega?” Continua.

— Engraçadinha, você não achou que era abnega­ção demais? Seja sincera. Não achou? Responde: Ab­negação demais?

Vacila:

— Confesso que, se eu estivesse em teu lugar, não faria isso, ali, não! Em amor, eu sou muito egoísta. Você me conhece.

E ela, sôfrega:

— Pois é. Você não faria, ninguém faria. Mas olha — o próprio fervor parecia embelezá-la — eu faria isso e muito mais. Engraçadinha, olha para mim.

A outra obedece. Está imaginando o momento em que, no consultório, a enfermeira lhe diria, segredan­do: — “Tira a calcinha”. Baixaria então o olhar e teria duas rosetas na face. Está claro que, nessas ocasiões, a mulher finge naturalidade ou pudor, ou, ainda, um altivo constrangimento. Mas, o que existe, realmente, é o disfarce de uma voluptuosidade que tôdas negariam com a maior violência. Letícia continua, com um há­lito de febre:

— O que eu queria te dizer é o seguinte: — sabe por que eu faria tudo por ti e muito mais? Sabe? E estou disposta até, ouve: — se eu tiver de casar com Sílvio, eu deixarei, eu! Deixarei que tu sejas a aman­te dêle.

Estava rouca de angústia. Crispa a mão no braço de Engraçadinha:

— E sabe por quê?

Balbucia:

— Por quê?

Súbito, o rosto de Letícia tornou-se uma máscara de loucura. Enlaça Engraçadinha, com selvagem ener­gia, e a derruba na cama. Depois, sorve-lhe a boca num beijo sem fim.

 

No automóvel, a caminho da cidade, o Dr. Arnal­do tem uma inspiração súbita: — “O Vasconcelos!” Era, de longa data, seu companheiro de escritório. Já iluminado, êle pensa: — “Onde é que eu estava com a cabeça que não me lembrei do Vasconcelos?” O homem era o que se pode chamar um “irresponsável sexual”. Casado, apinhado de filhos, tinha namoradas e amantes por tôda a parte; seu desejo não escolhia, não selecionava, e êle próprio, na sua voracidade uni­versal, era o primeiro a confessar: — “Tudo que cai na rede é peixe!” (Ninguém entendia que o Dr. Ar­naldo, com sua integridade quase mórbida, pudesse admitir um sujeito assim inescrupuloso e assim bandalho). Mas o fato é que o Vasconcelos tinha uma imensa e abominável experiência. Dr. Arnaldo salta na cidade com a esperança de que o outro pudesse dar-lhe um conselho decisivo. Por sorte, o Vasconcelos já chegara e examinava as folhas de um processo. Há o “bom dia normal” de parte a parte. Dr. Arnaldo en­gendra uma história que, entre parênteses, era mediocremente engenhosa: — “Direi que se trata de uma afilhada, mocinha menor, e que deu um mal passo”. Chamou o Vasconcelos e começa:

— Senta aí. Vamos conversar.

Vasconcelos puxa a cadeira. Era um senhor, já, barrigudo, bexigoso e diabético. “O que é que as mu­lheres vêem nêle?” Eis o espanto do Dr. Arnaldo. Tosse ligeiramente e vai falando:

— Talvez você me possa tirar de uma dificuldade. É o seguinte.

O outro, que era realmente prestimoso, já prome­te: — “O que estiver no meu alcance, já sabe”. Dr. Ar­naldo ergue-se, com sua bengala fatal. Andando de um lado para outro, suspira:

— Imagina. Tenho uma afilhada nessas e nessas condições. Aconteceu uma coisa muito desagradável: — A menina deu um mal passo. Veja você!

“História convincente”, pensava o Dr. Arnaldo sentando-se. “Mordeu a isca”, concluiu, satisfeito com a própria naturalidade. Vasconcelos não se deu por achado embora deduzisse: — “Aí tem dente de coe­lho”. Mas, como o problema não era seu, foi perfeito:

— Já sei. — E baixa a voz, sem desfitá-lo: — Te­nho um médico — e você conhece — que é tiro e queda. O Bergamini. Você conhece. Não conhece o Bergamini? Conhece. Pois é: — êsse.

Pigarreia: — “De confiança”? Então, o Vascon­celos, que era um exuberante, pôs o Bergamini nas nuvens:

— O Bergamini é um gênio! Faz o seguinte, Arnal­do, e por minha conta: — “manda tua afilhada lá. Manda e uma coisa te garanto: — tua afilhada vai sair nova. Pode casar direitinho, na igreja, com véu, grinal­da. Você não se lembra daquele caso? Te contei. Aque­la pequena, a famosa. É. Teve um filho meu. Te con­tei, sim. Ela foi lá e o Bergamini arranjou-lhe uma nova virgindade. A pequena casou outro dia. Passou o filho adiante e casou. O filho é a minha cara. Casou com flores de laranjeiras e outros bichos. O Bergamini é uma fábrica de virgens!”

Impassível por fora, Dr. Arnaldo levantou-se, com uma brusca euforia. Em pé, de costas para o Vascon­celos, pensava: — “Que burro que eu sou! Não me lembrei que era possível reconstituir!” Lança, ao aca­so, a pergunta:

— Caro?

De pé, o outro enfia as mãos nos bolsos: — “Bem. Mais caro que aborto. Cobra menos por aborto. Mas vale a pena e olha — uma anestesia leve, uma costurazinha boba, e um servicinho que é uma jóia. Queres o endereço? Te dou. Naquela rua.”

Em silêncio, o rosto inescrutável como uma más­cara, Dr. Arnaldo escreve rapidamente o endereço. Guarda o papel, levanta-se. Repete para si mesmo: “E não pensei que se podia costurar...” Com uma insistên­cia meio desagradável, o outro sopra-lhe ao ouvido:

— Tua afilhada vai sair mais virgem do que nunca.

 

Engraçadinha ainda quis fugir com a bôca. Mas Letícia, que estava por cima, agarrou-a pelos cabelos, imobilizou seu rosto e abre os lábios para o beijo. En­graçadinha trinca os dentes: — “Não! Não!” Subjuga­da, não entendia ainda. Quis gritar. A outra fechou-lhe então a boca com o desesperado beijo. Por um instante, Engraçadinha pensou: — “Não é Letícia! Não pode ser Letícia!” Ou seria Letícia com a fôrça e a violência de um homem. Já sufocada, tem um movimento de agili­dade inesperada e frenética: — consegue escorregar por baixo, virar sobre si mesma e sair pelo outro lado. Olha para a porta. Letícia, porém, mais rápida e as­tuta, antecipa-se: — corre na frente e barra a passa­gem. Ofegante, recua; torce a chave e a tira da fecha­dura. Na cabeceira da cama, Engraçadinha decide: — “Se ela se aproximar, eu grito”. Instintivamente passa as costas da mão na bôca. Balbucia:

— Indecente!

Letícia dá um passo na sua direção. Mas a outra arqueja:

— Não venha que eu grito! Quer ver como eu grito?

Letícia tem um esgar de chôro:

— Engraçadinha, escuta! Olha, Engraçadinha!

Não se perdoava ter beijado, de repente. Fora traí­da por um desejo brusco, quase mortal; e ninguém mais espantada do que ela mesma com o próprio im­pulso. “Não era o momento! Não era ainda o momen­to!” repetia para si mesma. Engraçadinha aponta a porta:

— Saia daqui, saia, já!

— Primeiro, escuta! Eu explico — pedia, na sua ardente humildade: — Deixa eu explicar!

— Isso é tara!

Soluça:

— Amor!

— Tara!

“E se ouvirem lá fora?” era o mêdo de Letícia. Começa a chorar:

— Ao menos escuta! Você não diz — Deixa eu falar, sim? — Não diz que gosta de Sílvio, desde garotinha? Pois eu também, desde menina, eu era dêste tamaninho...

Era tal o mêdo de irritá-la que escolhia as pala­vras e não terminava as frases. Prosseguiu, incerta, com uma intolerável pressão na cabeça: — “Há tantos anos que eu só penso em você e só vivo para você...” Com um fervor que a transfigurava, promete, tiri­tando :

— Eu não me aproximo. Falo de longe. Olha: — daqui, falo daqui. Só te peço que me ouças. Mas senta, senta, Engraçadinha!

Sorria agora, por entre lágrimas. Enquanto En­graçadinha sentava-se, Letícia teve a idéia de cair de joelhos e falar assim, prostrada em adoração. Teve mêdo, porém, de assustá-la. “Fico mesmo em pé”, de­cidiu. E, antes de continuar, pede, na sua voz mais doce: — “Não tenha mêdo, nem horror de mim, Engraça­dinha!” Atônita, a prima nem responde. Já ouvira fa­lar em mulher que só gosta de mulher. Letícia a bei­jara como se fôsse arrancar-lhe os lábios; insinua:

— Eu pensei que você já soubesse...

Crispou-se:

— De quê?

E Letícia:

— Não se zangue, Engraçadinha — pausa e com­pleta: — soubesse do meu amor.

Fez uma boca de nojo: — “Amor de mulher?” Ao mesmo tempo, diz para si mesma: — “Está louca!” E pergunta — “Você não se enxerga? Está pensando que eu sou alguma tarada como você?” A outra en­fureceu-se :

— Engraçadinha! Não chama meu amor de tara! — e, novamente, doce, com um olhar de súplica insu­portável: — “Tomamos tantas vezes banho juntas, — não foi? Você ia me chamar: — “Vamos tomar banho, vamos?” Ou nega?”

— E daí?

Letícia baixa a voz:

— Eu te ensaboava! Passava o sabão e fazia muita espuma!

— Vá-se embora!

A outra sonhava:

— Você me chamava para brincar de namorado. Fala sério: — não me chamava? Chamava. Dizia pra mim: — “Você é o homem!” E eu era o homem. A gente se beijava — é ou não é?

Era verdade, sim. Com 10, 12 e até os 14, as duas viviam representando imaginários amores. Na hora do beijo, Engraçadinha queria dar a face; a outra, porém, queria a boca. Mas era um beijo tão leve, tão doce, um beijo quase imperceptível que não devorava, não mordia, não molhava. Letícia poderia ter lembrado, ainda, que, no colégio — colégio das melhores famí­lias — as meninas tinham flertes entre si, namoros, ternuras, ciumadas. Letícia perguntava: — “Não era bom? Não era, Engraçadinha?” Queria que Engraça­dinha dissesse, simplesmente: — “Era bom”. Mas a prima, em silêncio, com os olhos muito abertos, pen­sava: — “Essa não é Letícia!” Tinham vivido anos, de mãos dadas, como duas gêmeas. E, súbito, ela desco­bre uma outra Letícia, tão diferente da anterior, e que, no seu desejo, tinha uma vontade quase homicida. En­graçadinha poderia apontá-la para todos os parentes: — “Essa não é Letícia! Nunca foi Letícia!” Agora a outra queria aproximar-se novamente. Engraçadinha ameaça:

— Chamo papai, já, já! Quer ver como eu chamo?

Pára onde estava. Sorri tão humilde que, imedia­tamente, Engraçadinha pensa em Zózimo, na humil­dade de Zózimo. E Letícia:

— Eu te peço perdão! Não faço mais e...

Foi dura:

— Não! Você não merece perdão! Se você tivesse a tara e a guardasse para si, vá lá! Mas dizer, confes­sar e, ainda por cima, me dar um beijo de homem, ah, não! Não falo mais contigo!

Rouca de ódio (e de amor), pergunta:

— Não fala mais comigo? Sua burra! Está pen­sando que alguém gosta de você como eu gosto? Teu pai te deu uma surra! Sílvio tem mêdo de ti! Eu não! Te dei o noivo ou minto? Farei tudo por ti? — Que que­res que eu faça? Queres que eu arranje amantes pra ti? Eu arranjo!

Engraçadinha não entende a ferocidade desse amor, de um altruísmo tão abjeto, capaz dos heroísmos e das renúncias mais ignóbeis. E, sobretudo, tem mêdo de ser amada assim. Letícia, aproxima-se, quase sem pisar, devagarinho, como se não quisesse assustá-la. Como uma magnetizada, Engraçadinha desta vez não se mexe, não fala, quase não respira. Naquele momen­to, teve uma breve alucinação. E, com efeito, pareceu-lhe que vinha a seu encontro, com movimentos lerdos e pacientes, um dêsses monstros cegos, que habitam o fundo do mar. Em seguida, volta a si. Está numa pas­sividade atônita. Quase sem mover os lábios, sussurra para Letícia:

— Não é normal. Isso não é normal.

A prima enfureceu-se:

— Ah, não é normal! Escuta! Se fôsse normal, eu não te daria meu noivo! Eu não viveria por ti!

O que Letícia queria dizer, por outras palavras, é que o amor normal não tem imaginação, nem audácia, nem as grandes abjeções inefáveis. É um sentimento que vive de pequeninos escrúpulos, de vergonhas me­díocres, de limites covardes. Não falou assim, claro, mas o sentido foi êste. Acabou agarrando a prima e a sacudindo:

— Queres experimentar? Queres? Agora, neste mo­mento? Pois me dá na cara! Me xinga, anda! Ninguém te ama como eu! Me dá na cara para que eu apanhe calada!

Imóvel e vibrante como um pássaro na mão que o segura, Engraçadinha gostaria que a outra jamais tives­se existido. Olham-se por um momento. E, súbito, En­graçadinha a esbofeteia. Letícia cai, de joelhos, diante dela. Engraçadinha ergue o rosto — hirta de nojo.

 

O escritório era num segundo andar. Descendo as escadas, o Dr. Arnaldo ia pensando: — “Eu não devo ir” — e repetia: — “Não posso ir. Afinal sou muito conhecido”. Sim, que diriam seus inimigos se o vissem num ginecologista, com uma filha solteira? Lembrou-se do Aprígio — o deputado obsceno — e conclui: — “Êste soltaria foguetes”. Que fazer? Dr. Arnaldo pára, um momento, no último degrau da escada. Ao mesmo tempo, admite que a filha não podia ir sòzinha, sem uma assistência, sem uma proteção.

Dr. Arnaldo vacila e acaba voltando. Sobe os dois lances da escada, com certo sacrifício (o coração não andava bem). Entra e anuncia o que era óbvio:

— Voltei.

Vasconcelos pára de bater a máquina. Antes de começar, o velho teve de vencer um último escrúpulo. Põe a mão no joelho do companheiro:

— Há um momento da vida em que o homem pre­cisa confiar em alguém. Preciso de ti, Vasconcelos. Só você pode me ajudar, percebeu?

Dr. Arnaldo acabava de decidir: — “Tenho que acompanhar Engraçadinha ao ginecologista. Sou Pre­sidente da Assembléia Legislativa, mas preciso estar ao seu lado”. Ao subir as escadas, de volta, imaginara a hipótese de que o médico pudesse desrespeitá-la bes­tialmente. Admitia: — “Não é provável, mas é possí­vel”. De resto, olhava os ginecologistas em geral com a maior suspeição: — “Quem me diz que um dêles, ou, precisamente, êsse Bergamini, não venha a abusar de minha filha?” Continuou:

— Vasconcelos, vou explicar porque confiei — pigarreia e prossegue — em você. Pelo seguinte: — você pode ser safado, mas tem filhas.

(Dr. Arnaldo empregou a palavra “safado” com certo esforço, certo constrangimento). O Vasconcelos entende de fazer a ressalva:

— Olha! Eu sei que nesse particular, sou mais sujo do que pau de galinheiro. Mas há o seguinte: — eu não como ninguém, ou, por outra: só de maior idade. Você sabe disso. É uma atenuante.

Dr. Arnaldo pigarreia: — “Prefiro não respon­der”. Estava mais do que nunca decidido a não desam­parar a filha. Ergue-se e começa a andar, em silêncio, de um lado para outro. Pensa; “Eu preciso acreditar na bondade do Vasconcelos”. Estaca diante do amigo:

— Aliás, uma de suas filhas, se não me engano, é da idade da minha, pouco mais ou menos. Bem: eis o que eu queria dizer: — a tal afilhada não é afilhada. É minha filha.

Põe a mão no ombro do amigo: — “Ter que con­fessar isso é uma humilhação para mim”. Respira fun­do e acrescenta: — “É a maior humilhação da minha vida”. Os dois se olham; Dr. Arnaldo desvia os olhos: — “Acabo chorando”. Não era duro, não era rijo como antes; e passa adiante:

— Vasconcelos, você tem intimidade com êsse Bergamini, não tem? Deve ter claro. Êsse homem é, na­turalmente, um canalha...

Vasconcelos atalha: — “Tem filhas”. O velho exalta-se:

— Tem filhas e faz isso! Mas, não importa: — pre­cisamos exatamente de um canalha. Um médico decen­te não faria isso. Escuta, Vasconcelos: — quero levar Engraçadinha numa hora especial, de preferência à noite? Você me entende? Fora do expediente. Não que­ro que ninguém veja, ninguém saiba!

— Dá-se um jeito. Posso citar o seu nome?

Suspira (estava achando a ginecologia uma espe­cialidade hedionda):

— É bom. Convém que êle saiba que sou eu. Mas uma coisa te juro: — se êsse crápula falar, eu o ponho na cadeia, ah ponho!

Vasconcelos levanta-se. — “Telefono já”. E o velho, sentando-se: — “Telefona”. Sofre agora como nunca: — “Eu ter que contar isso a terceiros!” Mas queria acreditar que o Vasconcelos, um “canalha sexual” fôsse, apesar disso, um bom. No telefone, o Vasconce­los está dizendo:

— Exatamente: — o Dr. Arnaldo, sim. Queria ter uma conversa contigo. Assunto particular. Olha: — um negócio sério, ouviste? Você pode vir agora? Está certo. Vem. Está aqui. Esperamos.

Vira-se para o Dr. Arnaldo: — “Vem. Não te dis­se”? O velho tem um esgar de nojo:

— Eu queria saber se êsse bandido fazia um ne­gócio dêsses numa das filhas!

Então o Vasconcelos baixa a voz:

— Não brinca, que uma das filhas dêle suicidou-se. E olha: — vais gostar do Bergamini.

 

Quando Engraçadinha saiu do banheiro, de rou­pão, ainda enxugando a nuca, Sílvio apareceu na outra extremidade do corredor. Ela o esperou. Tomara um banho muito demorado. Perfumara todo o corpo e a própria nudez lhe parecia mais doce do que nunca. Não queria lembrar-se de Letícia. Que pensaria o médico? Êle não era de pedra. Se ela própria enamorava-se de si mesma (tinha uns seios pequenos e tão absurda­mente lindos!) Uma vez por outra, durante o banho, ao mesmo tempo que fazia espuma pelo busto, suspi­rava por Sílvio. “Êle me esperava”. (E não queria pensar no desejo de Letícia). Podia ter atravessado do banheiro para o quarto. Parou, porém, Sílvio apressa o passo. Engraçadinha não se move. Tem mêdo que venha alguém. Sílvio baixa a voz:

— Por que não abriu?

Tem os olhos do desejo e, com uma dor surda, imagina que ela veste o roupão por cima da pele. En­graçadinha responde;

— Por que não quis!

Gosta de vê-lo sofrer. “Oh, querido! Você não sabe! Eu não posso! Queria, mas não posso!” O rapaz se enfurece:

— Sua cínica!

Sorri-lhe, docemente:

— Pode xingar.

E êle:

— Responde: — se você não gosta de mim, por que fêz aquilo na biblioteca?

— Mas eu gosto de ti!

— Mentira!

A qualquer momento, podia aparecer uma empre­gada, uma tia, ou o próprio Dr. Arnaldo. Sem desfitá-lo, diz:

— Adeus.

Quer passar, mas o outro a segura pelo braço:

— Abre e fecha o roupão. Um instantinho só. Abre.

Por um momento, ela duvidou, tentada. Trincou os dentes:

— Não posso. Adeus.

No desespêro de perdê-la, humilha-se:

— Promete que, de noite, deixa a porta encos­tada? Promete?

E ela:

— Primeiro responde: — você me ama?

O rapaz pensa em Letícia:

— Te digo logo mais — repete. — Te dou a resposta, no quarto, logo mais. Posso vir de noite?

Enxugou a nuca:

— Quem sabe?

Tiveram de separar-se, porque ouviam passos. Rá­pido. Sílvio entrou no banheiro e Engraçadinha no quarto. Fecha a porta à chave. Erguendo o rosto, dei­xa o roupão escorregar. Nunca se sentira tão nua. O médico fingiria, no exame, um interêsse castamente profissional. Mas havia de sentir o encanto da virgem sòmente possuída duas vêzes.

 

Dr. Bergamini veio no melhor automóvel de Vi­tória. Era rico, milionário, e acabava de mandar uma filha estudar na Suíça, outra nos Estados Unidos. Di­zia-se, dêle, com um humor brutal, que restaurava a virgindade até de viúvas. Ao vê-lo, Dr. Arnaldo faz o comentário interior: — “Eis o homem que reconsti­tui!” Cumprimenta o deputado, com um sorriso de dentes bonitos e gengivas sadias. Disse a banalidade inevitável: — “Já o conhecia muito de nome”. E ajuntou:

— Eu votei no senhor.

Dr. Arnaldo foi muito sêco:

— Obrigado.

Vasconcelos puxa o Dr. Bergamini para a sacada. Em voz baixa, conta-lhe o caso. Dr. Arnaldo anua de um lado para outro: — “É estúpido que só agora, depois de tantos anos, eu me sinta pai. Só agora”. Vasconcelos está dizendo: — “Você faz o serviço com um pé nas costas”. Voltam os dois. O que surpreende no médico, é a intensidade e, ao mesmo tempo, a do­çura do olhar. Inclina-se:

— Pois não. Faço, não direi com prazer, mas com carinho.

Dr. Arnaldo pensa: — “Fabrica virgindade, o ca­nalha!” E foi nesse momento que ocorreu uma coisa muito curiosa. O médico põe a mão no ombro do depu­tado e diz-lhe, como se lêsse no seu pensamento:

— O senhor deve estar fazendo um péssimo juízo de mim, não é verdade?

Dr. Arnaldo atrapalhou-se; quis ainda assim res­ponder duramente: “Meu amigo, eu não julgo nin­guém. O senhor é um profissional. Preciso dos seus serviços. Nada mais”. O outro continuou, e agora com uma ironia delicada, mas bem nítida:

— Faço questão de explicar. Um momento! É rá­pido. Como eu ia dizendo: — eu era um médico que usava a ética tradicional como todo o mundo. Achava o abôrto uma indignidade e nunca me passaria pela cabeça a idéia de devolver a virgindade de uma pobre moça. Note que eu falo ao pai e não ao deputado, ao homem público. Não me interessa o Poder, a Auto­ridade, o Estado. Mas eu linha uma filha, justamente a mais velha, linda garota, linda. Minha filha gostou de alguém e, vamos usar a expressão do povo: — deu um mal passo. Família rigorosa, muito preconceito e, resumindo: — minha filha se matou. Ora, eu lhe digo, ao senhor que é pai, digo-lhe com a maior naturali­dade: — eu daria tudo e insisto: — absolutamente tudo para que minha filha tivesse encontrado um crápula. Um crápula igual a mim, sim, senhor. Entendeu?

Dr. Arnaldo pigarreia: — “Realmente”. O olhar do médico é, agora, de uma doçura desesperadora. Diz ainda:

— Parece falso, eu sei. Mas eu farei quantas vir­gens puder.

Ao lado, o Vasconcelos que, além de sátiro, era um emotivo, um sentimental irrecuperável, tinha von­tade de chorar. Dr. Arnaldo concluía: — “Fala bem, o miserável!” Dr. Bergamini combinava tudo. Mas quando o deputado falou em acompanhar a filha, foi incisivo:

— Meu amigo, eu falei claro. Entenda: — a me­nina que quer ser virgem é, exatamente, a minha filha. Sim, a que morreu. Desculpe, não me leve a mal. Sua filha sòzinha. Dez da manhã. Passar bem.

 

“Está tudo salvo!” Eis o que pensava o Dr. Arnal­do ao tomar o táxi. O médico não lhe saía da cabeça. Sentia-se na mais desagradável das perplexidades. “Um cínico”, repetia para si mesmo. Cínico e algo mais, talvez. A história da filha morta parecia-lhe in­verossímil. Fôsse como fôsse, o Dr. Arnaldo reconhe­cia que um canalha útil, um canalha necessário, possui uma fascinação e uma autoridade irresistíveis.

Ao descer em casa, tem a surpresa: — tio Nonô o esperava. De branco, passando o lenço no suor da testa, o gordo estava ali, na varanda, há meia hora. Já conversara com as velhinhas da casa; e, pouco an­tes, ao ver Engraçadinha de passagem, fizera para si mesmo o comentário maligno: — “Essa menina não tem vida. Uma água morna. Tem a idade mental de oito anos”. Recebe o cunhado no alto da escada; fala baixo:

— Precisava falar contigo.

O rosto do Dr. Arnaldo toma a expressão de um descontentamento cruel. Pensa, indignado: — “Essa besta ainda me trata de “tu”, de “você”!” Quis ser duro:

— Você chegou em má hora. Não posso atender.

Tio Nonô o acompanha. Finge humildade:

— Mas Arnaldo! O assunto — e baixa a voz — o assunto é sério. Aquêle título...

Dr. Arnaldo, que ia na frente, estaca. Pergunta, pálido:

— Que título?

E o outro:

— O tal dos cem contos, que você avalizou. Se vence hoje.

Olha-o de alto a baixo:

— Pague!

No seu ódio impotente, pensa novamente em Hitler. Diz para si: — “Ah, o Hitler aqui! Fuzilando êsse pa­lhaço!” Pensa ainda, ao mesmo tempo que caminha na direção da biblioteca: — “Só a tiro! Sá a bala!” Abre a porta: — “Nessas horas é que o Hitler é bom!” O gordo vai atrás. Ainda com a humildade que é o disfarce de um feroz sarcasmo, diz e repete para si mesmo: — “Todos os canalhas são magros!” Pergunta, docemente:

— Como é, Arnaldo?

Perde a cabeça:

— Não lhe dou um tostão! O título que vá para o protesto!

Insiste:

— Mas Arnaldo! E seu nome? Não tenho níquel!

Andando de um lado para outro, o deputado não se perdoa a leviandade de ter avalizado aquilo. Sua vontade era meter-lhe a bengala na cara. Ah, o ca­chorro! Assinara o título porque a irmã — outra cre­tina! — só faltara ajoelhar-se a seus pés. Volta-se para o cunhado.

— Olha aqui, seu miserável! Eu estou resolvendo um assunto de vida ou morte. Saia! Retire-se!

O outro não se mexia: — “Arnaldo, entenda! É hoje a data do vencimento! Eu posso ir para o pro­testo. Você, não!” Dr. Arnaldo repete, lívido de ódio:

— Ter um canalha na família!

Tio Nonô o encara, com uma cínica deferência. Imaginava aquêle magro nu. Ao mesmo tempo teve que se prender para não estourar numa de suas garga­lhadas selvagens. Dr. Arnaldo vocifera: — “Você não se ofende, homem! Chamo-lhe de canalha e você não se ofende?” Repete com um prazer bestial: — “Crápula! Crápula!” E, apesar de tudo, a passividade daquele gordo causava-lhe uma espécie de deslumbramento. Tio Nonô responde, sem desfitá-lo:

— Eu não me ofendo, nunca me ofendo, nunca me ofendi!

Tal capacidade de não se ofender — jamais! em hi­pótese nenhuma! — dava-lhe uma força sinistra, uma potência lúgubre. Insiste:

— Arnaldo, o meu nome não é nada. Eu não sou ninguém. É o seu, Arnaldo! O seu que está em jogo! Compreenda: — é o seu!

Fora de si, o velho bate com a bengala na secre­tária de jacarandá:

— Basta!

Tio Nonô cala-se. Dr. Arnaldo aponta com a ben­gala para a porta:

— Saia! Retire-se!

O gordo não se mexeu. Deixa passar um momento. Sentindo que o cunhado está seguro (“Êle não me es­capa!”), faz a pergunta:

— Em que ficamos? Não tenho um níquel — e re­pete, com uma imensa vontade de rir: — Ou você paga ou...

Dr. Arnaldo ia repetir: — “Crápula! Crápula!” Ao mesmo tempo, sente que é inútil insultar um homem que não reage. No seu desespero, repete paro si mes­mo: — “Êle não se ofende!” Experimenta um súbito cansaço de tudo e de todos. Fecha os olhos e respira fundo: “Eu só devo sofrer pelos meus dois filhos. Di­nheiro não vale nada”, ergue o rosto:

— Procure o Vasconcelos, no escritório, de tarde. Telefone pra êle — e grita: — Agora saia! Pelo amor de Deus, saia!

Tio Nonô abandona a biblioteca. Pouco depois, já na rua, diz, de si para si: — “Eu não me ofendo. Nada me ofende”. Estava com os olhos cheios de água.

 

Chegou na porta da biblioteca:

— Chama Sílvio.

— Não está.

— Foi onde?

Responderam:

— Casa de Letícia.

E êle:

— Manda Engraçadinha aqui.

Enquanto esperava a filha, veio sentar-se novamen­te. Lembrava-se do que dissera o médico: — “Eu não julgo ninguém”. Mentira. Na verdade, julgava todo o mundo. Era, se assim posso dizer, um irritado nato e hereditário. Digo “hereditário”, porque o pai, um Juiz de Direito, já o era. Dr. Arnaldo, que falava escassa­mente, tinha uma imensa agressividade interior. Sua polidez era, justamente, o disfarce de profundas cóleras secretas. Mas êle acabava de estar com o ginecologista. Por mais estranho que pareça, aquêle bandido ginecológico desconcertara-o. Esperava ver uma face lívida e lúgubre. Em vez disso, encontrara um homem estra­nho, um velho que ainda demonstrava uma certa ple­nitude; e pior do que isso: — o cínico pretendia desa­fiar a própria classe com uma ética pessoal. Dr. Bergamini tratara-o com um respeito apiedado, uma es­pécie de indulgência superior. Imaginem: — vivia de abortos e, não obstante, ditava normas de comporta­mento! “Mas em todo caso” — pensa Dr. Arnaldo, “quem sou eu para julgar os meus dois filhos?” Instin­tivamente olhou para o diva. Ali, possuíra a cunhada, a espôsa do irmão. Adorava o irmão e possuíra a cunha­da. “Eu não devo julgar Engraçadinha, nem Sílvio”. Por um momento sentiu-se impotente para julgar até mesmo os abortos do Dr. Bergamini. Engraçadinha aca­bava de aparecer:

— Papai?

Ergue-se:

— Entra, minha filha.

Recebeu-a com uma ternura trêmula de velho. Per­gunta, de si para si: — “Vale a pena pedir desculpas pela surra?” Inclina-se para a menina:

— O médico ficou para amanhã, mas olha — tudo se resolve. O que passou, passou... Felizmente — pigarreia — felizmente, agora, há meios que permitem...

Gagueja, escolhe as palavras. Como dizer-lhe que um especialista pode reconstituir uma virgindade? Ver­melho, baixa a voz:

— Como eu ia dizendo: — o médico fará em você uma intervenção pequena, que não demora nada, uns cinco minutos. E quando você sair de lá, está ouvin­do? Pode casar na igreja com véu, grinalda.

Pareceu-lhe desnecessário dizer que ela não sofre­ria. Engraçadinha estava de cabeça baixa; ergueu o rosto e disse: — “Papai, eu não estou grávida”. O velho recebeu um impacto: “Não?” Explica, nova­mente de olhos baixos: — “Eu disse que estava, porque, o senhor compreende — eu queria comprometer Sílvio e...” Então, aquêle homem teve, ali, uma fraqueza, que o surpreendeu, ao mesmo tempo que o envergonhava: — curvou-se e beijou, não na testa, mas nos cabelos. Espantada também, a menina balbuciou: — “Papai!”.

Furioso com a própria debilidade, fala atropelan­do as palavras:

— Olha: — eu vou dizer ao Zózimo que o médico constatou que você... — pára, com uma brusca vergo­nha. Não, nada. Depois nós combinamos.

 

Letícia saíra de lá desfigurada pelo ódio. Passara pelas tias, sem se despedir. Eis o que dizia a si mesma, por outras palavras: — Engraçadinha, que não quisera o seu amor, teria o seu ódio. “Ela me paga”, repetia, com os dentes trincados. “Como é burra! Que importa se o amor é normal ou não! O que importa é o amor!” Che­ga em casa, diz para a mãe: — “Mamãe, olha: — o verdadeiro amor mete mêdo. Pode crer: — ninguém quer ser amado, mamãe!” Correu para o telefone e chamou Silvio. Pede, muito doce e sofrida:

— Vem, meu amor! Vem!

Esperou-o no jardim. Quando Sílvio aparece, agar­ra-se. Surprêso, êle não entende aquêle chamado do desespêro. Letícia pergunta, bruscamente:

— Tu me amas?

Faz espanto:

— Ou você duvida?

— Responde.

E êle:

— Mas claro!

Leva-o para o caramanchão: — “Ainda me queres para tua esposa? Queres? Fala! Queres!” Sentiu no hálito da moça o gosto da boca. Letícia repetia:

— Meu e não de Engraçadinha! Escuta: — Engra­çadinha é uma bruxa! Se eu te contasse, meu amor, o que ela quis fazer comigo! Tem uma tara, Engraçadi­nha tem uma tara! Beija, me beija!

 

Beijando-a, na boca, repete para si mesmo: “Ta­ra?” Quando se desprendem, quer saber:

— Tara?

Letícia respira fundo. Encosta a cabeça no seu peito. Sussurra: — “Como o teu coração está batendo!” E pensa: — “Engraçadinha, eu não te dou Sílvio! Êle é meu, só meu!” Sílvio faz a noiva levantar o rosto:

— Mas fala! Vocês brigaram?

Vacila.

— Mais ou menos!

Letícia sofre Se, ao menos, pudesse esquecer En­graçadinha, se pudesse não desejá-la? Queria, ao me­nos, não se lembrar dos banhos que tomaram juntas! Tem o lamento interior: — “Eu não tenho culpa de ser como sou!” Em seguida, acrescenta, para si mesma, com sofrida altivez: — “Gosto de ser como sou!” Novamente, Sílvio a interroga:

— Mas bruxa por quê ? E que tara é essa ?

Ergue-se:

— Vamos sair.

E êle:

— Para onde?

Vacila. Tinha, em si, uma ardente vontade de fuga. Uma fuga desesperada e sem destino. Queria falar lon­ge de casa, longe da mãe, das tias, das criadas, dos conhecidos. Leva-o. O automóvel que ganhara, de pre­sente, no dia dos seus anos, estava, lá fora, encostado no meio-fio. Chamava-o: — “Vem! Te levo!” Entraram. Então, de perfil para êle, mantendo uma velocidade macia, quase imperceptível — foi mentindo, no seu desespero:

— Nunca desconfiaste de nada?

Sílvio começava a ter mêdo: — “Desconfiar de que?” Letícia finge irritação:

— Oh! vocês homens são cegos! Tão cegos... En­graçadinha não é o que você pensa. Eu também — te juro! — eu me deixei iludir. E se eu disser...

Diminui a marcha do carro. Acaba dobrando numa esquina qualquer. Era uma rua deserta. Vira-se para o noivo diz baixo, na angústia da própria mentira:

— ...se eu te disser que hoje, ainda hoje, ela me beijou na boca? Olha só como eu estou arrepiada! Na boca, Sílvio, como se fôsse homem!

Duvidou de si mesmo: — “Mas quem?” Respondeu, com surdo sofrimento.

— Engraçadinha, Sílvio! Compreende? Você, quan­do chegou, não me achou triste? Oh, Sílvio! Eu já des­confiava, mas não tinha certeza. Fazia umas brincadei­ras e quando nós tomávamos banho, ela queria me en­saboar, me ensaboava um tempão e...

No seu desespêro, Sílvio quis duvidar até o fim:

— “Ou você está enganada? Tem certeza? Olha para mim, Letícia! Responda: — tem certeza?” Ao mes­mo tempo, pensava: — “Engraçadinha gosta de mu­lher? Engraçadinha?” Houve um momento em que, na sua fúria, Letícia já não sabia se estava ou não men­tindo. Falava com apaixonada sinceridade.

— Ela se declarou a mim, Sílvio! — Começou a chorar. Eu recebi uma declaração de Engraçadinha! Eu acho até, ouviu? Está ouvindo? Acho que Engraça­dinha tem algum desequilíbrio mental!

Fora de si, gritou:

— Mas Letícia! E o que ela fêz na biblioteca? Co­migo ?

Riu do rapaz:

— Por isso é que eu digo: Vocês homens! Escuta, Silvio! Ou você não percebe a esperteza? Foi es­perteza, Sílvio! — Baixa a voz, crispa a mão no seu braço: — Mulheres assim precisam fingir que gos­tam de um homem! É um despistamento! Não gosta de Zózimo e ficou noiva por quê? Claro! E quem diz que Dão gosta de mulher e de homem, ao mesmo tempo? Sabe lá?

Num silêncio atônito, não sabia o que pensar. Gos­taria de estar horrorizado e só horrorizado. Mas sen­tia uma sensação de horror, de asco e, ao mesmo tem­po, de voluptuosidade. Ela pensava, sob a embriaguez da mentira: — “Eu não gosto de ti e de Engraçadinha? De Engraçadinha, não! Gosto só de ti! e Engraçadi­nha, não. Detesto. Engraçadinha desprezou o meu amor!” Sílvio queria duvidar, ainda:

— Letícia, e se ela te beijou sem maldade? Quem sabe?

Teve vontade de esbofeteá-lo:

— Sem maldade, como? Beijo na boca sem mal­dade? Por favor, Sílvio!

Súbito, agarra-o. A facilidade, e, mais do que isso, a paixão com que mentia, a aterrava. Dir-se-ia que era outra, e não ela mesma — outra, que mergulhava num lúcido e implacável delírio. Puxa para si o rapaz “Beija! Quero sentir uma bôca de homem! Um beijo de homem: oh, Sílvio!” Êle a beijou sem desejo. Letícia pensava, cravando as unhas na sua nuca: — “Ah, se eu gostasse de outra e esquecesse Engraçadinha?” Repetia, para si mesma: — “Esquecer Engraçadinha”!

 

Voltaram para casa. O rapaz vinha pensando: — “Engraçadinha é isso!” Repetiu, em voz alta:

— Engraçadinha é isso!

E ela:

— Posso te fazer uma pergunta? E você me res­ponde?

“Eu devia estar mais enojado”, pensava. Suspira:

— Respondo.

Devia achar Engraçadinha muito vil e muito baixa. E, no entanto, não podia evitar uma sensação volup­tuosa. “Eu sou menos normal do que pensava”. A noi­va faz a pergunta;

— O que é que você sente por Engraçadinha?

— Por que?

— Amor?

Diz, sem olhar.

— Não.

Pausa. Insiste.

— Desejo?

Responde:

— Depois que eu soube, você acha que eu... Letícia, eu considero o seguinte: — entre homem e mu­lher, não há perversão possível. Acho tudo direito, fa­buloso, moral e — frisava: — Entre homem, e mulher, claro. O que Engraçadinha fêz, na biblioteca, eu achei até... pára e completa — bonito. Achei bonito.

Suspira.

— Ela fêz o que eu não fiz Não é isso? Fêz o que eu não fiz, nem faria — repetiu.

Atrapalhou-se: “Eu não disse isso, ora Letícia!” A pequena, que moderara a marcha do automóvel, en­costou noutra ruazinha quieta. Cruza os braços; sem olhá-lo, e sem nenhuma excitação, numa calma intensa, vai falando:

— Você pensa que eu não tenho coragem? E se eu lhe disser que Engraçadinha não é melhor do que nin­guém? Se eu lhe disser que faria a mesma coisa? Que­res que eu faça? Queres? Agora? Leva-me para longe, bem longe, ou, então... Ela fêz em casa. Não foi em casa ? Oh: — Mamãe, hoje, vai sair e eu... Eu te espero.

Disse, apenas:

— Não.

Aquilo doeu-lhe na carne e na alma:

— Você disse “não” à Engraçadinha?

Abraça Letícia:

— Você é minha noiva. Eu quero você como es­posa. Engraçadinha só podia ser amante. E eu agi — confesso — eu, naquele momento, agi como... Não agi bem. Fui um canalha

Roça com: os lábios os lábios do noivo; pergunta: — “Não me quer como amante?” Disse:

— Como espôsa. Vamos, Letícia. Eu te quero como espôsa. Vamos.

Voltaram. No momento em que se despediram, ela fêz a última tentativa:

— Eu te espero. Mamãe não está em casa. Janta fora. Você vem e... Sim?

 

Claro que não viria. O que experimentava, acima de tudo, era uma espécie de ódio, ou melhor: — ódio, não, asco. Tomou-se de um sábio asco da vida. Pa­rou numa esquina: — experimentou uma brusca ne­cessidade de uma sordidez ainda maior. Sim, precisava de algo ainda mais vil. Beber até cair com a cara en­fiada no ralo. Ou, então, beber acompanhado. Passar a noite, com uma prostituta ao lado, bebendo, também. Imagina-se com uma delas, os dois bêbedos, xingando-se. O diabo é que ia à casa de mulheres e lá en­contrava, não uma prostituta, mas uma funcionária, exatamente uma funcionária, atônita de tédio e que chamava os clientes de “Meu filho”. Lembrou-se de uma conhecida desse tipo, a Geni — tão amorosa e tão triste (não se despia, completamente, nunca; fora anavalhada nos dois seios e conservava o pudor do “sou­tien”). Com certa nostalgia da Geni, liga para a casa de mulheres. A outra fêz-lhe uma festa imensa. Quase chora:

— Hoje, não posso. O Barone está no quarto. Vem amanhã, vem? Promete?

O Barone era uma ex-estrela da luta romana, hoje retirado, freguês certo e nababesco da Geni. Sílvio bufa: — “Olha, vou falar, agora com uma menina de família, que não chega aos teus pés”. A outra tem um riso áspero e debochado (sem prejuízo da alma boa, meiga e sonhadora de futura suicida). Sílvio deixa o telefone e sente, agora, a necessidade de ver e ouvir Engraçadinha. Pensa: — “A verdadeira prostituta é Engraçadinha e não Geni”. No seu ressentimento, re­pete: “Quem devia levar a navalhada nos seios era a Engraçadinha”. Ao aproximar-se de casa, vê, ao longe, Engraçadinha. Estava no portão (talvez à sua espera). Diz para si mesmo” — “Tão linda e...” Apressa o passo, na angústia de chegar. Exclama, alegremente:

— Escuta, Sílvio

Baixa a voz:

— Foi bom eu te encontrar sòzinha. Olha Engra­çadinha: — nunca na minha vida — escuta, ouve o resto — nunca na minha vida eu vi uma mulher tão or­dinária como você! Tão sórdida!

Balbucia, assombrada, sem entender essa violên­cia: — “Mas que é isso?” Êle ri, com certo nôjo de si mesmo:

— Eu não sabia que você tinha essa tara! Que gos­tava de mulher! Como você é indigna!

 

Na sua fúria, quis segurar-lhe o braço:

— O que é que você está dizendo?

Desprendeu-se, violentamente:

— Tira a mão! E outra coisa: vim aqui só pra te di­zer isso! — Olhou-a, de alto a baixo, e com uma sa­tisfação hedionda, atirou-lhe o insulto: — Tarada!

— Vem cá, Sílvio!

Mas êle já se afastava, em passadas largas e fir­mes. Correu atrás: — “Escuta aqui, seu!” Sílvio estaca:

— Volta ou já sabe! Você não me conhece. En­graçadinha! Olha que eu, bom!

E ela:

— Você vai se arrepender...

Novamente o rapaz vira-lhe as costas e apressa o passo. Ela pensava: — “Tem que ouvir. Dou-lhe uma tapa na bôca!” Em cima da calçada, teve uma breve vacilação. Olha em torno; no alto de uma saca­da, uma vizinha estava olhando. Experimentou uma brusca vergonha. Ergue o lábio superior num sorriso falsíssimo, acena com os dedos para Sílvio que, mais adiante, virara-se, por um momento. Gritou-lhe:

— So long, Sílvio!

Fêz questão de cumprimentar a vizinha da sacada com, um nôvo sorriso. E, depois, veio caminhando, num passo bem normal. “A vizinha deve ter percebido tudo. Melhor, e que se dane!” Dizia para si mesma: — “Foi Letícia, claro! Só pode ter sido Letícia!” Fora de si, continuava: — “Eu devia ter dito a Sílvio: — tudo isso é sua mãe, ouviu? A mãe dêle, não! Morreu coitada, nem tem culpa. Mas cachorro!” Teria perdoado tudo, tudo. Se o rapaz lhe dissesse a pior palavra que uma mulher pode ouvir ela gostaria. Há momentos (nem sempre, claro), mas há momentos em que a mulher gosta de ser xingada “Mas dizer que eu gosto de mu­lher, eu? Ah, não. E só porque Letícia foi soprar no ouvido?” Subindo a escada de pedra, chegava a ter mêdo da própria violência. Pela primeira vez, julga­va conhecer o ódio: — “Eu matava Letícia, ah, mata­va!” No pequeno armário do banheiro, havia uma se­ringa de borracha. Imaginou-se enchendo aquilo de iôdo e, depois, dando dois esguichos nos olhos de Le­tícia.

Em cima, Dr. Arnaldo está deixando o telefone. Vira-se, alegremente, para a filha:

— Letícia vem aí.

Balbucia:

— Letícia?

Êle continua, numa satisfação evidente:

— Tudo resolvido.

Espantadíssima pergunta: — “E quê, papai?” En­laçou-a e foram caminhando para a biblioteca:

— Imagina que eu ando com uns lapsos. Você preci­sava de uma companhia para ir ao médico. Eu não podia ir, ou, melhor, não devia ir. Entre parênteses, eu acho que, para a filha, o pai não tem sexo. Compreende? Não há entre pai e filha — ou não devia haver — o problema do pudor. Em todo o caso eu não me sentiria bem.

Pára e faz, bruscamente, a pergunta.

— Você teria pudor de mim, minha filha? Ou não?

— Ia responder: — “Sim! Muito!” Atenuou a res­posta:

— Um pouco.

Dr. Arnaldo deu-lhe um alegre tapinha no rosto; nova­mente grave, admite: “É justo! É justo!” Continua:

Eu estava disposto a mandar você sozinha. Outra pessoa não podia, porque ninguém deve saber. Nin­guém! Mas veja você como eu ando com a cabeça. Não me lembrei da única pessoa que sabe e que podia ir com você. Só ainda agora, coisa de um minuto, é que eu disse: — “É mesmo! Letícia!”

Nervosíssima, começa:

— Papai...

Pausa. Faz um esforço:

— Quero ir sòzinha.

Admira-se:

— Por quê?

E ela:

— Tenho vergonha.

Não entende:

— De Letícia?

— De Letícia!

Aquilo o irrita:

— Mas não tem cabimento. Ora veja! E por que vergonha de Letícia?

Êle fartara-se do dizer, com ênfase, convicção: — “Sou favorável ao pudor. O pudor é bonito”. Mas ajuntava: — “Há, porém momentos em que... Num parto, por exemplo”. E afirmava, depois de olhar em tôrno com um jeito incisivo, de quem desafia possíveis objeções: — “No parto, não cabe o pudor!” Nessas ocasiões de certeza profunda seu olhar adquiria uma luminosidade intensa. Argumentou:

— Você e Letícia foram criadas como duas irmãs, ou, melhor, como duas gêmeas! Não entendo êsse pudor. Até estranho! E, pelo contrário, a presença de Letícia é uma proteção e...

Faz uma pausa inesperada. Está sofrendo. Con­tinua :

— Minha filha, Letícia vai, porque é preciso e eu faço questão. Mas eu quero te dizer o seguinte: — a mulher deve ter pudor sempre. Mesmo no parto! — E repetia, na sua incoerência: — Mesmo no parto! Teu pudor está certo. Mas Letícia vai.

Pediu: — “Letícia, não!” O velho irritou-se:

— Letícia, sim! Sabe e é a única pessoa que pode ir. Mas escuta!

Baixa a voz, seu rosto toma a expressão de um so­frimento intolerável:

— Só não pode saber que tu e Sílvio... Isso, nunca! Agora, sai um pouco, minha filha, sai um pouco!

A menina abandona a biblioteca. Êle vem sentar-se no divã: — “Não sei como uma mulher — qualquer uma! — pode ir a um ginecologista com naturalidade”. Ergue-se e, andando de um lado para outro, prossegue, numa espécie de polêmica consigo mesmo: “Naturalidade nenhuma!” E pelo contrário: — parecia-lhe que a mulher devia entrar num gabinete ginecológico com certa unção, como quem atravessa um misterioso limite. Êle não sa­beria explicar por que “unção” e nem que desespera-dor limite era êste. Pensava confusamente essas coisas mas sem lhes encontrar uma formulação exata.

 

Deixando Engraçadinha, Sílvio apanhou uma condu­ção, em seguida. Ia para o bairro das mulheres. Durante o trajeto, pensou: — “Engraçadinha é que devia estar lá!” Imaginava — e com que envenenada satisfação! — a menina, lá, de combinação, numa das janelas ilumina­das. Êle teria preferido Geni — a que levava em cada seio o risco da navalha. Mas, já que esta andava com Barone, lembrou-se de uma outra. Hula, judia de olhos verdes e verruga no queixo. Por mais estranho que pa­reça, Sílvio queria apenas perguntar a Geni, Hula ou outra qualquer:

— O que é que você acha da mulher que gosta de mulher?

Não desejava ninguém, e perguntava a si mesmo: — “Nem Engraçadinha?” Nem Engraçadinha. Não deseja­ria ninguém naquele momento. Talvez Engraçadinha. Ou nem essa. Essa, menos do que qualquer outra. Letícia o esperava. Pensa: — “Amo Letícia”. Chega no bairro das mulheres e dirige-se à pensão que freqüentava. Não podia imaginar, porém, que teria de viver ali uma das experiências mais estranhas e abjetas de tôda a sua vida. Logo ao entrar na sala, vê Zózimo, completamente em­briagado (bebera a tarde tôda), no meio de mulheres e fregueses. Êle acabara de dizer qualquer coisa e todo mundo rebentava numa gargalhada. Sílvio teve a idéia de retroceder. O bêbado, porém já o vira. Chamava-o:

— Vem cá! Chega aqui!

Geni que estava numa mesa com o Barone, ergue-se e veio ao seu encontro. Bebera também: — “Sumiu? Vem!” Baixa a voz: — “Amanhã te espero!” O Barone, a dis­tância ,sorria-lhes, paternalmente. O ex-campeão de luta-romana, inteiramente careca, uma barriga quase intransportável, sorria de tudo e de todos. No meio da sala, Zó­zimo desvencilhava-se de alguém que quer agarrá-lo. Aponta Sílvio, que se aproxima:

— Êle conhece! — vira-se para Sílvio, com lábio encharcado: — Você não conhece?

A nova gargalhada ofende e humilha Sílvio como uma agressão indefensável. Quer segurar o rapaz: — “Vamos, Zózimo!” O outro puxa o braço, num repelão:

— Tu não conhece a minha futura?

Quer puxá-lo, novamente:

Geni vem de lá: — “Êsse Zózimo é um número! Uma bola!” Zózimo dá murros no próprio peito:

— Eu! Eu, sim, eu! — Entorta a bôca e começa a desafiar todo imundo: — Minha noiva está grávida de outro, sim, senhor! E aqui o Sílvio conhece a minha noiva. Não conhece? — Ri, pesadamente: — Não é um bijú?, um bijú!

Tenta arrastá-lo.: — “Vamos embora”. Mas o outro continua, na sua idéia fixa:

— Minha noiva está grávida e nem sei quem é o cara. Mas escuta, Sílvio! Eu estou dizendo aqui a êsses cretinos...

Olha em torno. Abraça o amigo. Grita:

— ...estou dizendo — tenho razão ou não tenho ? — Estou dizendo que não se chama uma adúltera de adúl­tera! Não é, Sílvio? Você acha que eu vou chamar de adúl­tera uma moça que traiu antes do casamento?

Assombrado, Sílvio fora sentar-se numa mesa vaga, num canto. Hula não aparecia; devia estar com alguém, de longe, olha aquela abjeção com uma espécie de deslumbramento. O bêbedo anda circularmente pela sala; sú­bito, estaca:

— Vou reconhecer o filho. Faz de conta que é meu. Sou muito homem pra mudar a fraldinha do meu filho!

Desata a chorar. Um gaiato faz voz de falsete: — “Chuta tua noiva pra mim!” Zózimo gira sôbre si mes­mo, procurando o gaiato: — “Vocês não entendem! Nin­guém entende!” E repete: — “É uma indignidade insul­tar uma adúltera”. Outro bate-lhe nas costas: — “Já de chifre, rapaz!” O bêbedo ri:— “Chifre!” E súbito, baixa a cabeça e, no passo pesado e incerto, sai dando marradas no ar. Apesar da embriaguez, ocorre-lhe uma reminiscência de cinema. Pára e, num esforço de equilíbrio, ras­pa o chão com o pé como um touro de desenho animado. De repente, cambaleia e acaba derramando-se no chão. Foi carregado; Sílvio ajuda. Na cara de Zózimo as lágri­mas vêm misturar-se com a baba. Chora:

— Minha adúlterazinha!

 

No meio do jantar, aparece Letícia. Engraçadinha crispa-se na cadeira. Dr. Arnaldo mostra a cadeira vaga: — “Sente-se, Letícia”. Respondeu, numa alegria agres­siva:

— Acabei de jantar.

Atônita, Engraçadinha não tira os olhos do pai. Êste acaba de enxugar os lábios com o guardanapo:

— Vem passar a noite aqui, Engraçadinha. O médi­co é de manhã. Letícia dorme contigo.

 

A mãe, que já ia saindo, atendeu o telefone. Grita:

— Pra ti, Letícia!

— Quem é?

E a velha:

— Tio Arnaldo!

Estremeceu. Por um momento, e só por um momen­to, teve a tentação de mandar dizer que não estava. Mas a mãe havia de estranhar: — “Que é que há?” Estava no quarto, sentada diante da penteadeira. Ergueu-se, com um frio correndo pelo estômago. Veio dilacerada por uma suspeita ou, melhor, por uma quase certeza: — “Engra­çadinha falou!” Ainda hesitou diante do telefone; repe­tiu para si mesma: — “Eu não devia ter beijado. Devia ter esperado um pouco mais, Ainda não era a ocasião”. Atende:

— Alô, titio!

E Dr. Arnaldo:

— Ah, Letícia? Tudo bem? Escuta, Letícia: — eu queria um favorzinho teu, pode ser?

A moça experimenta uma brusca euforia: —”Não sabe! Nem desconfia!” Êle a tratava como sempre, com uma grave ternura. Mas o velho continuava: — queria que ela acompanhasse a prima ao médico. Letícia encos­tou-se à parede, transfigurada. Balbuciou:

— Vou, sim! Levo, claro! Titio, não há problema!

Êle tossiu ligeiramente:

— Êsse exame, você compreende, não compreende? Convém uma acompanhante. E ninguém melhor que você, que está a par...

Que coisa linda, que selvagem doçura ouvir aquilo! Todo o seu ódio extinguiu-se de repente, no fundo do seu ser, até o último vestígio. “Oh, Engraçadinha! Perdoa que eu tivesse dito aquilo ao Silvio! Eu pensei que te odiasse e menti!” Dr. Arnaldo concluía:

— Escuta, Letícia. O médico é de manhã. Por que é que você não passa a noite aqui, não dorme com Engraçadinha? Posso então contar contigo?

 

Agora está na casa de Engraçadinha. Ora falava com uma tia, ora com outra, numa excitação meio febril. De vez em quando, olhava para Engraçadinha, que, um pouco atônita, tentava ler uma revista. Letícia precisava não dar a perceber a violência de sua felicidade. Tinha vontade de rir, de chorar. Houve um momento em que cantarolou não sei que verso. Seu mêdo era que perce­bessem a sua excitação. Disfarçou. Mas, sem olhá-la, Engraçadinha sentia a naturalidade vibrante, a calma fremente da outra. Dr. Arnaldo ergueu-se:

— Chega aqui, Letícia.

Ela trincava os dentes para não chorar de felicidade. O velho a levou para a varanda. Enquanto o ouvia, Letí­cia pensava: — “Ah, se eu fôsse o médico! Eu queria ser êsse médico!5’ Por um momento, ocorreu-lhe uma fanta­sia absurda: — imaginou-se estudando Medicina, só para tratar de Engraçadinha. Só a receberia depois do expe­diente. Diria para a enfermeira: — “Pode ir. Pode ir”. A enfermeira sairia. Dr. Arnaldo estava dizendo, velando a voz, para que ninguém os ouvisse (e quase não fazia mo­vimento com os lábios):

— Você sabe que tudo isso tem que ficar entre nós.

Sussurrou:

— Sei.

Pensava, mais do que nunca, no imaginário consultó­rio, onde ela, de avental, como uma médica de filme tra­taria de Engraçadinha. Desejaria que o consultório fôsse exclusivamente da prima. Mas está claro que não seria possível essa exclusividade. Que diriam os parentes? Os colegas? A cidade? Precisaria aceitar outros clientes, sem discriminação. Mas êstes seriam apenas um disfarce. A enfermeira não podia desconfiar de nada, isola! Ao lado do tio Arnaldo, imaginava a cena do consultório e com uma nitidez tão meticulosa e implacável que começou a sentir uma espécie de vertigem. O velho estava dizendo:

— Eu caí na asneira de contar a Zózimo. Imagine! Contei a Zózimo que Engraçadinha estava grávida. Pre­cipitação imperdoável!

— Contou?

Suspira:

— Contei. Na conversa, aquilo saiu. Mas, Zózimo reagiu bem. Rapaz de caráter. Reagiu bem, disse que casava. Uma mentalidade superior. Mas, em matéria de casamento, não convém favores e é de todo o interesse que o marido encontre uma virgem. Você entende, Letícia ?

— Também acho.

Animou-se:

— O casamento que começa por um favor está liqui­dado. Em sexo, não cabem os favores! E Engraçadinha vai ao médico... Olha, Letícia! Confio em você! Vai ao médico, justamente, para — não sei como dizer — para fazer uma operação que... Coisa sem importância cirúr­gica, mas que... Em, suma: sairá do consultório virgem. Então, eu poderei dizer ao Zózimo: — “Aquilo que eu lhe disse é falso!”

Riu, sombriamente. Letícia teve um lamento inte­rior: “Por que não sou eu o médico de Engraçadinha!-” Sempre falando baixo, inflamou-se:

— Pode parecer absurdo — e a juntou com uma sa­tisfação feroz: — Mas será menos absurdo quando êle constatar, êle próprio constatar que... Letícia, Engra­çadinha é como se fôsse sua irmã...

Apanhou a mão da sobrinha, apertou-a: — “Eu sei que posso confiar em você”. Letícia começava a ter raiva do médico do dia seguinte. O ginecologista ia tratar En­graçadinha como se fôsse uma cliente normal ou talvez a desejasse, quem sabe? Letícia sabia, através de uma amiga casada, que o ginecologista começa, normalmente, com a pergunta: — “Quando foi deflorada?” Isso quando é, naturalmente, uma cliente de primeira vez. Faz a per­gunta e vai enchendo uma ficha. Deu-lhe ódio que um desconhecido tratasse Engraçadinha com essa brutalidade profissional. Dr. Arnaldo baixava ainda mais a voz:

— Entendeu? Para todos os efeitos, Engraçadinha é virgem. E olha, Letícia: — Você não diga isso nem a sua mãe. A ninguém.

Ele respira fundo, ao mesmo tempo que pensa em Sílvio. Precisava falar com o filho. Decide, porém: — “Ainda não. Mais tarde”. Tinha mêdo daquele encontro. “Eu o evito e êle me evita”. Tanto êle, como o filho, sen­tiam-se humilhados e tristes. Enquanto Letícia volta para a sala, Dr. Arnaldo lembra-se, ao que ouvira, certa vez, na Camara. “Se não me engano foi o Aprigio”. O Aprigio afirmara que no Rio, e um pouco em São Paulo, a vir­gindade era um detalhe. O miserável assoalhara: — “Lá ninguém é virgem. Ninguém quer ser virgem”. Só a pena de morte!

 

Engraçadinha está com a revista abandonada no regaço. Já a folheara sem ler uma linha, sem olhar uma foto. Ergue o rosto, encosta a cabeça. Está desesperada de ódio: — “Eu sei o que ela está pensando. Por Deus do céu, estou com vontade de fazer, sabe o quê? Apanho a seringuinha de borracha e encho de iôdo”. Ah, se a outra tivesse a coragem! “Ela não me conhece”. A pró­pria Engraçadinha já não se entendia mais. Aquêle sen­timento envenenado, aquela onda selvagem que rompia de não sei que profundezas, era desconhecida na sua vida. Deixaria a seringuinha com iodo dentro da gaveta da mesinha de cabeceira. E se ela se aproximasse...

— Engraçadinha.

Abre os olhos, assustada. Era Letícia. Aproximara-se sem rumor. Estava sentada a seu lado. Com uma voz quase inaudível, disse:

— Você é muito cínica!

E a outra:

— Deixa eu falar. Engraçadinha!

Dr. Arnaldo, porém, aproxima-se. Estava olhando o relógio de pulso::

— Como é, pessoal? Está na hora de dormir. Vocês não vão dormir?

As duas levantaram-se. Engraçadinha vai na frente. Pensa: — “Como e que Sílvio pode achar que eu... Mas êle não tinha a culpa. A culpada era a Letícia, a sem-vergonha. Como, de um momento para outro, uma amizade de tantos anos amizade de tôda uma vida, podia extinguir-se num beijo, um simples beijo?”

Entraram as duas no quarto. Automaticamente, Letícia, que passara por último, torceu a chave. Sem uma palavra e com uma rigidez de máscara no rosto, Engraçadinha vai ate a porta e a deixa apenas fechada com o trinco. Letícia balbucia, sem nenhuma afetação, e com ardente humildade:

— Desculpe.

Não quer assustá-la. Engraçadinha decide: — “Vou deixar a porta encostada”. Eis o que lhe ocorrera — estar com a prima num quarto trancado seria aceitar uma intimidade quase física. Ao passo que Letícia, em silêncio, sentia, em todo o ser um sereno deslumbramento. “Passar tôda uma noite, no mesmo quarto, com Letícia”, eis o sofrimento, o mêdo surdo de Engraçadinha. Diz para si mesma: — “Não mudo de roupa”. Parecia-me que abrir um botão da blusa seria um gesto de abandono, uma sugestão de impudor, quase uma cumplicidade. “Vou-me deitar vestida”. Só com os pés livres e nus, os pés que, certa vez, fizeram Letícia dizer: — “São bem feitos! Lindos!” E o eram realmente, de um modelado voluptuoso e perfeito.

Com mêdo de olhá-la e velando a voz, Letícia per­gunta:

— Posso apanhar um pijama?

De costas, respondeu:

— Apanha.

Só. Mas qualquer palavra que Engraçadinha lhe dissesse era uma carícia. Apanhando o pijama, Letícia pensa: — “Vou passar a noite em claro”. Já fechou a gaveta; está de pé. Sonha, ao mesmo tempo que desabotoa o vestido nas costas: — “Morrer com Engra­çadinha”. E continua: — ser enterrada com a prima, lado a lado, unidas na mesma eternidade nupcial. Engra­çadinha está na janela: — “Ela vai tirar tôda a roupa. Pensa, naturalmente, que eu vou olhar. Pois sim!” Sem virar-se, Engraçadinha está dizendo:

— Você dorme na cama.

— E você?

— Eu me arranjo.

— Mas, Engraçadinha!...

E ela:

— Não aborrece, Letícia! A eterna mania!

Baixou a cabeça: — “Está certo, Engraçadinha, está certo!” A própria sujeição deu-lhe um prazer agudo. Só depois que a prima deitou-se é que Engraçadinha veio apanhar uma colcha e improvisou, longe da outra, uma espécie de cama, no chão. Letícia ainda perguntou: — “Você não muda a roupa?” Disse: — “Não”. Foi só. Na felicidade de tê-la tão próxima, Letícia pensa: — “Não direi mais nada”. Imóvel na cama, os pés unidos, as mãos entrelaçadas como uma morta, Letícia imagina-se ginecologista da prima. Engraçadinha não sabe se fecha ou não a luz. Tem mêdo das trevas. Sílvio brigara. Sílvio não viria. Diz sem voz, apenas com o movimento dos lá­bios: — “Sílvio”. Finalmente, levantasse e apaga o quarto. Vem deitar-se. Tem mêdo. Sente que anda um abismo solto nas trevas.

 

Sílvio chegou cêrca das três horas. Não entende por que o tio ainda não o chamara. Acabara de deixar o Zó­zimo em casa. O bêbedo, agarrado a êle, chorando sòrdidamente, repetia, na sua fixação de ébrio: — “Você co­nhece a minha futura. Não conhece? A minha futura, Sílvio? Conhece. Grávida, não sei de quem, nem interessa”. Aquêle bêbedo, obcecado pelo perdão da adúltera, era terrível. Sílvio largara-o nos braços dos pais. Agora, entrava em casa. Conseguira não pensar em Engraçadi­nha. Súbito, lembra-se da tara como de uma flor secreta, que tivesse nascido em não sei que solidões tremendas. Êle vem caminhando, mansamente, através do silêncio. Estaca, diante do quarto de Engraçadinha. Ainda vacila. Empurra a porta, que cede. “Abriu!” — foi sua excla­mação interior. Avança na direção da cama. Diz, fora de si:

— Engraçadinha!

 

Murmurou:

— Engraçadinha.

Letícia estava acordada e a prima também. Senti­ram quando alguém empurrou a porta. Engraçadinha pensa, dentro da escuridão: — “Sílvio. Acha que eu gos­to de mulher e veio. Tem ódio de mim e veio. Seu ódio é amor”. Ela mesma já não sabe o que é amar, e o que é odiar. Só sabe que Sílvio entrou e pisa de leve, tão leve, que mais parecem pés imateriais, calçados de silêncio.

A princípio, Letícia não entende: “Alguém!” eis o que pensa. “Alguém!”, repete para si mesma, ao mes­mo tempo que o estômago se contrái numa náusea de mêdo. Tranca os lábios para não gritar. O ser desconhecido está junto da cama. Diz, quase sem voz:

— Engraçadinha!

Sílvio, que procura a prima e a deseja! Oh, Sílvio! Letícia não responde. Ser chamada de Engraçadinha. Sente a mão de Sílvio deslizando e segurando, apertando um dos seus pés. Letícia quase não respira, como se o seu hálito pudesse trair-lhe a identidade. Por um mo­mento, Sílvio segura na mão a vida delicada e vibrante daqueles pés. Letícia está pensando: — “Sílvio! Eu não sou Letícia, eu sou Engraçadinha!” E continua, sentin­do na carne a mão áspera e quente: — “Ah, se eu fôsse Engraçadinha, eu me acariciaria...” Ela não entendia como certas mulheres não têm desejo por si mesmas ou ainda: — como certas mulheres não se possuem a si mes­mas. A mão de Sílvio abandona os pés. Sobe, Letícia mal respira: — “Êle não desconfiou ainda”. A mão pousa­da no joelho. E pensa: — “Engraçadinha viu Sílvio en­trar. Sabe que êle está comigo”. E passar por Engraça­dinha, ser Engraçadinha, viver a vida da outra, ter por um momento o seu nome, receber as suas carícias! Sílvio deixa-se enganar pela insânia dos sentidos.

Engraçadinha não se mexe. E se eu me levantar e acender a luz? Já, não; ainda não. Acaricia-se a si mes­ma: “Como é bom! Como é bom!” Ouve Sílvio balbuciar seu nome ainda uma vez, num lamento estrangulado:

— Engraçadinha.

Quer que ela fale. Bôca com bôca, Sílvio diz a Letícia: — “vim, querida! Não queria e vim!” Passa-lhe a mão pelo rosto e não sente que não são as feições de Engraçadinha. Depois, a agarra pelos cabelos, que não são tão leves e macios como os da mulher desejada; nem os lábios têm a mesma voluptuosidade. Êle gostaria que Engraçadinha fizesse como da primeira vez, que Engraçadinha trançasse os pés no alto. Hoje, ela se conserva pas­siva — atônita no sonho da carne e da alma. Sílvio repete para que a falsa Engraçadinha ouça:

— Te amo! Meu amorzinho!

Virá sempre. Tôdas as noites, empurrará a porta. Chegará alta madrugada e empurrará a porta. Pela primeira vez, ela não fala. É possuída no silêncio e nas tre­vas e sem uma palavra. Não chora como antes; não solu­ça, como antes: — “Oh, Sílvio! Sílvio! Sílvio! Oh, Sílvio”. Repetir seu nome e, depois, mordê-lo, estraçalhá-lo. Dila­cerar nos dentes o seu nome! Por fim, ficar sùbitamente hirta, gelada. Assim fora da última vez e agora não. Agora deixa-se possuir em silêncio. Não diz uma única vez o nome do ser amado. Êle sente apenas o rumor dos dentes trincados. E êle não percebe o beijo de Letícia não tem o gosto da bôca de Engraçadinha. Esta, na outra extremidade do quarto, rola; está de bruços, com o rosto amassado contra o travesseiro. Morde a fronha. Pode­ria chamá-lo: — “Estou aqui, Sílvio!” Ou ainda: poderia levantar-se para acender a luz. Mas fica onde está. Repe­te para si mesma: — “Eu não posso, Sílvio! Quero e não posso!” Sentir que era ela que estava sendo desejada e possuída — e não Letícia — dava-lhe um prazer quase mortal.

Letícia perdera o sentimento da própria identidade. Não era Letícia, jamais fora Letícia. Teve vontade de repetir num sôpro de voz: — “Eu sou Engraçadinha e não Letícia!” Ah, se ela pudesse perder a memória de si mesma, nunca mais ser Letícia, transformar-se em Engra­çadinha! Nos braços de Sílvio, sonhava. Enlouquecer e, como certos loucos, tomar uma nova e fantástica identi­dade, imaginar-se para sempre Engraçadinha. E, depois, ao morrer, queria que gravassem, no túmulo triste em letras de bronze, o nome de Engraçadinha e não de Letícia. Oh, ser enterrada como Engraçadinha e assim apodrecer!

De bruços, Engraçadinha sente que êles sofrem agora e que há, nas trevas, um grito prestes a subir como um dardo de loucura. Os dois parecem agonizar, parecem morrer. Sílvio morde as palavras como se elas pudessem sangrar: “Querida! Vidinha! Ah, querida! Querida!” E no chão, Engraçadinha os acompanha. “Sou eu, não ela! Sou eu e não Letícia! Eu, Sílvio!” O grito, que gostaria de dar, não chegou a erguer-se; partiu-se no fundo do seu ser. Súbito, uma paz imensa no quarto. Êle não sabe nada. Engraçadinha sente um vazio de êxtase perdido. Sílvio levanta-se. Depois do desejo sente o asco. Inclina-se sobre O rosto da outra e diz, quase chorando:

— Sua vaca!

Tateando, apanha o paletó no chão, junto da cama. Vai cambaleando. Pensa: — “Letícia, o que sinto por Engraçadinha não é amor, é desejo. Desejo Engraçadinha e nada mais. Só amo você, Letícia”. Sai do quarto; sem rumor, encosta a porta. Caminha, rente à parede. No seu desespêro, imagina, novamente, para si, uma mutila­ção hedionda. Não desejar Engraçadinha. Não deseja1: ninguém.

 

Pode parecer estranho, mas eis a verdade: depois que Sílvio saiu, não houve, entre as duas, uma única pala­vra. Engraçadinha decide, acomodando a cabeça no tra­vesseiro: — “Eu não direi nada. Faz de conta que não sei de nada”. Letícia sentia-se dentro ainda do sonho: — “Por um momento, deixei de ser eu mesma” — e repete, com o ser erguido em adoração — “Eu fui Engraçadi­nha”. Queria para si: — “No meu túmulo o nome de Engraçadinha e, por baixo, também em bronze, as duas datas: — de nascimento e da morte de Engraçadinha”. Adormeceram quase ao mesmo tempo. Engraçadi­nha teve um dos sonhos mais exasperantes de sua vida. Via o interior de uma igreja, de belos santos seminus; nos altares o sono dos círios. Duas noivas ajoelhadas. No sonho, Engraçadinha exclama: — “Sou eu!” Era, sim, uma das noivas; e a outra: — Letícia. A voz de um invisível padre estava perguntando se ela queria mesmo ser espôsa de... No próprio sonho, Engraçadinha fazia es­panto: — “Mulher já pode ser espôsa de mulher?” Coisa curiosa! Ela observava a possibilidade com um espanto divertido mas sem horror. Horror nenhum. E, subitamen­te, Sílvio apareceu no lugar de Letícia. Em seguida, já não era mais Sílvio e sim o ginecologista. De joelhos, Engraçadinha virou-se para ver os santos seminus, real­mente lindos.

 

Bateram na porta:

— Engraçadinha! Engraçadinha!

Era o Dr. Arnaldo. Letícia acorda, assustada:

— Já vai, titio!

O tio vinha somente advertir:

— Olha a hora do médico!

Eram sete e meia da manhã. Antes de bater na porta da filha, o velho passara no quarto do filho. Du­rante a noite, chegara a uma decisão: “Preciso falar com Sílvio o quanto antes”. Concluíra, com o maior desprazer, que estava com mêdo de uma explicação, cara a cara. Dr. Arnaldo vivia dizendo: — “Medo é uma palavra que risquei do meu dicionário!” E, realmente, só recua­va, só transigia por exigências da vida política, social e familiar. E nunca por covardia. “Não sou covarde!” Bate no quarto do filho e encontra o chão imundo de cinza e pontas de cigarro. Tem; um espanto consternado.

— Que é isso, meu filho?

O outro, que estava nu da cintura para cima, a cara incendiada de febre, enfia o paletó de pijama:

— Insônia.

O fato de chamá-lo “meu filho”, embora convencio­nalmente, perturbou-o. Antes de entrar ali, Dr. Arnaldo premeditara cada palavra e a respectiva inflexão: — “Devo ser prático e objetivo”. Sílvio especula: — “E se êle me insulta ou me agride?” Imaginou-se esbofeteado pelo tio e obrigado a reagir, ou, pelo menos, a defender-se. Sem alterar a voz e sem nenhuma emoção aparente, o velho disse tudo:

— O que passou, passou. Vamos passar uma esponja no passado. O que houve entre você e Engraçadinha foi um pesadelo. O remédio é esquecer. Esquecer e perdoar. Você vai casar-se com Letícia e Engraçadinha com Zó­zimo .

Calou-se, realmente satisfeito. Decorara as frases e conseguira repeti-las integralmente, sem acréscimo ou omissão de uma vírgula. Essa fidelidade da memória o envaideceu. Desesperado, mas contido, Sílvio respondeu sem olhá-lo: — “Está bem, titio!” Dr. Arnaldo respirou fundo e despedia-se: “Até já!”

Andara bem evitando uma referência direta e obje­tiva. A palavra “pesadelo” fora um achado. “Fui feliz”, admitia. Pouco depois, chamava Engraçadinha. No quarto, Sílvio acendia um nôvo cigarro que, como os anteriores, não fumaria até o fim: — Oh, como Engraçadinha estava diferente! Deixara-se possuir com uma passividade de amo­rosa ressentida.

Entre as duas primas, não houve um “bom dia”, nada. Não se falavam. Ambas sentiam-se ainda traumatizadas pelo prazer da noite. Letícia levara, na bolsa, uma escôva de dentes; preferiu, porém, usar a de Engraçadinha. De­pois que a outra saiu. Engraçadinha entra no banheiro. Lavou-se com deleite e o requinte de quem vai pecar. Ouvira alguém dizer (ou lera) que o ginecologista é o adultério da mulher fiel. Na porta do quarto, já pronta, Letícia teve ciúmes desse banho que não acabava mais. Mais do que nunca, sofreu não ter estudado medicina (só para examinar Engraçadinha). Finalmente, Engra­çadinha voltou para o quarto. Letícia quis acompanhá-la, mas ela se opôs:

— Fica do lado de fora.

Implorou:

— Queria falar contigo. Um momento, um instantinho.

Parou, junto à porta: — “Pois fala”. Baixou a voz:

— Te juro que nunca mais. Te dou minha pala­vra de honra. Eu não faço — pela vida de minha mãe! — Não faço nunca mais, Engraçadinha! Você me perdoa?

Ergueu o rosto duro:

— Você morreu para mim. E me espera aí fora, sim?

Dr. Arnaldo levou-as de carro. Eis a verdade: es­tava emocionado. Recomendou: — “Quero que Letícia assista. Olha, Letícia: — você fica ao lado de Engraça­dinha”. Engraçadinha vira-se para o velho: — “Papai, eu não quero que ninguém me olhe”. Dr. Arnaldo afagou-a nos cabelos: — “Criança!” Engraçadinha sonha­va: — “Só quero ver a cara dêle na hora!” Na esqui­na do médico, as duas saltam. Dr. Arnaldo indicou o lugar onde as esperaria. Disse: — “Felicidades”.

Sobem. Tocam a campainha. O próprio médico abre a porta. Olha uma e outra; pergunta:

— Quem é a Engraçadinha?

A menina dá um passo: — “Eu”. Dr. Bergamini faz um sinal: — “Entra”. Engraçadinha obedece, com o comentário interior: — “Que velho bonito, meu Deus do céu!” O médico está dizendo a Letícia:

— Fica sentadinha na sala de espera. Acompa­nhante do lado de fora.

Engraçadinha sentia que, ao primeiro olhar e an­tes da primeira palavra, êle a desejara.

 

No seu desespêro, Letícia teve vontade de descer e, como uma doida, ir procurar o Dr. Arnaldo: — “O médico não me deixou entrar!” O miserável queria fi­cai* só com Engraçadinha. Letícia pensava, confusa-mente, que não há solidão maior e mais desesperadora que a da cliente bonita (sem acompanhante) e o ginecologista (sem enfermeira). Dir-se-ia o único ca­sal da terra. “Ah, porque não estudei medicina?” Mé­dica para examinar Engraçadinha e nada mais. Do lado de fora, procurava escutar o barulho de ferros. Nada ainda; apenas as duas vozes. Não conseguia, po­rém, entender as palavras. Falavam baixo. Ah, creti­no, ah, sujo!

Engraçadinha entrara. O médico, quase belo no seu avental, fechou a porta. De passagem, a menina olha para a mesa, com uma curiosidade maravilhada. Que coisa doce, que coisa linda, despir-se para um ho­mem que não é namorado, nem noivo, nem marido, nem amante! Se a mulher tem um mínimo de imagi­nação, há de comover-se, claro, há de maravilhar-se com êsse abandono diante de um desconhecido! “Vi­rei aqui outras vezes”, decide Engraçadinha. Desde garotinha que invejava as senhoras que iam ao médi­co. Ah, de quando em vez, ela poria a mão no lado, queixando-se: — “Estou com dor aqui”. Sim, fingi­ria a dor para ir ao ginecologista. Eis o que ela dizia a si mesma, por outras palavras: — há um momento em que a senhora honesta experimenta um certo tédio, certa saturação da rotina amorosa. Certos exames são uma maravilhosa imitação de pecado.

Dr. Bergamini está diante dela. Ainda não fala. Sim, o Dr. Bergamini não tem pressa da primeira pa­lavra. Engraçadinha pensa: — “A mesa está detrás de mim”. A mesa, com os seus estribos de metal. O médico apanha um cigarro e o acende. Êle sente que essa pequena, realmente linda, tem o enleio de uma pri­meira vez. Dr. Bergamini conhece muito bem essa cal­ma tensa, essa serenidade vibrante.

Súbito, êle sorri:

— Tem mêdo de mim?

Respondeu sôfrega:

— Não.

E o médico:

— Ou tem?

Contradiz-se, vermelha.

— Tenho.

Não mentia. Aquela voz de homem, densa e, apesar disso, de uma doçura viril, a assustava. Sentia, real­mente, um mêdo instintivo que, ao mesmo tempo, era de uma voluptuosidade quase insuportável. Tôdas as raízes do seu ser estavam crispadas. Engraçadinha já olhara várias vezes os antebraços do médico e pensa com uma angústia deliciosa: — “Parece gorila!” Ao mesmo tempo, imaginou-se raptada, numa floresta, por um macaco gigantesco. Nua, nos braços do King-Kong do filme. Êle continuava:

— Escuta, meu anjo: — primeiro vamos conversar.

Baixa a voz:

— Tenho vergonha.

Esse “Tenho vergonha” foi um exagero, do qual se arrependeu imediatamente. “Não devia ter dito isso”, foi o que pensou. Dr. Bergamini sorria-lhe ainda. Sabia que a adolescente, no ginecologista, tem um escrúpulo muito tênue ou nenhum. E, pelo contrário: — ela põe, no próprio impudor, uma docilidade tocante. Despe-se com uma espécie de ânsia. Salvo, naturalmente, o caso daquelas que têm uma feminilidade escassa ou nula.

Toma entre as suas as mãos leves e macias da cliente:

— Deve ter vergonha. Pode ter vergonha. Acho a vergonha naturalíssima.

Pensava, com bondade, na sua ternura divertida: “Não tem vergonha. Dissimula, mas o quê?” Êle apren­dera no “metier” de muitos anos, que mais importante são os ovários da alma. Polemizava com os colegas: — “Os verdadeiros órgãos genitais estão na alma” Graças a essa “mania da alma”, incompatibilizara-se com tôda a classe. Era apontado pelos médicos em geral como um bandido da especialidade. Muitos recusa­vam-lhe o cumprimento e havia os que diziam aberta­mente: — “Devia estar na cadeia!” E como se não bas­tasse “a alma” que êle esfregava na cara de todo o mundo, ainda tinha o cinismo lúgubre de fazer abortos — às vêzes, vinte por dia. E mais: — tomava dinheiro de umas pobres moças para costurar-lhe a virgindade. Já se esboçava um movimento, na classe, para cassar-lhe o diploma e metê-lo no presídio, como um “gangster” da profissão.

Dr. Bergamini abandona o cigarro pela metade, no cinzeiro. Volta-se para Engraçadinha:

— Escuta: — seu pai conversou comigo. Êle quer que eu faça, em você, uma operação:

Interrompe:

— Que operação?

E êle:

— Olha! É o seguinte: uma coisa rápida que não dói nada. Eu dou uma injeção; você sente apenas a pi­cada da agulha, só. E nem demora nada: uns dez mi­nutos.

Engraçadinha deixa passar um momento. Pergun­ta: — “E se doer? Doutor, eu sou muito covarde para dor!” Novamente, Dr. Bergamini apanha as duas mãos da pequena:

Suspira:

— Confio, mas... vacila e pergunta: — Pra que a operação?

O médico beija uma e outra mãos da menina:

— A operação é para você casar direitinho, na igreja, de véu e grinalda.

Numa brusca euforia, Engraçadinha diz para si mesma: — Já começou! Êsse negócio de beijar minhas mãos! Aposto que, daqui a pouco, êle vai querer que eu sente no colo! E pensava: — “Ah, Silvio aqui!” Compa­rou os dois: o médico e o namorado. Silvio era claro, fino, depilado; Dr. Bergamini, pesado, maciço e peludo. Novamente, Engraçadinha imagina-se arrebatada por um gorila, através da floresta; imagina-se triturada pelo bicho. Gostaria de passar a mão, de lixar a mão na barba do médico. Barba bem feita, mas de uma sombra azulada e intensa. Ela estremecera quando Dr. Berga­mini beijara as duas mãos.

O médico prossegue:

— Mas olha! Farei isso, claro, se você quiser. Não importa o seu pai — e repete: — O que importa é você. O cliente é mais importante do que tudo.

Êle gostaria de dizer — mas a menina não enten­deria — gostaria de dizer que para o médico e, sobre­tudo, para o ginecologista, a cliente é algo assim como uma Joana D’Arc. Achou graça (o próprio Dr. Bergamin achou graça) do espanto de Engraçadinha se êle bruscamente, a chamasse de Santa Joana. Repete sem desfitá-la:

— Neste momento, para mim, só você existe.

Novamente, estêve para dizer-lhe que, diante do ginecologista, a meretriz mais vil deve ser venerada. Todavia a palavra “veneração”, que usou mentalmen­te, chocou-o porque lembrava uma doença do seu “metier”. “Não devia me tocar!” Eis o que repetia para si mesma Engraçadinha. “Silvio pensa que eu gosto de mulher. Bem feito!” Dr. Bergamini não larga­va as suas mãos. Ela já o olhava mais firme e quase com desafio; e, sem querer, começava a entreabrir os lábios, talvez numa leve insinuação de beijo. Dr. Ber­gamini gostaria de continuar a afirmar-lhe que, se fôsse o caso, estaria com a cliente e contra o pai, a fa­mília, a sociedade.

Súbito, Engraçadinha fêz a pergunta:

— E se eu estiver grávida?

E êle:

— Bem. Isso é o que vamos ver. Mas admitamos que sim. Eu acho — eu, pessoalmente — que você deve ter o filho. Quer ter o filho, caso esteja... Quer?

Disse, com súbita paixão:

— Quero!

Êle, que havia abandonado as mãos da menina, volta a apanhá-las. Disse-lhe, então, por outras pala­vras, que só um canalha, um verdadeiro canalha, pode discriminar a “mãe solteira” da outra.

— Então, escuta: — tenha seu filho. Não interessa o seu pai, ou sua mãe, ou a vizinhança. Tenha o filho de qualquer maneira!

Ela queria ter, sim, o filho. Com as mãos livres, faz uma inconsciente carícia no próprio ventre. “Não vou tirar!” Se o pai quisesse bater-lhe, fugiria até de casa. O filho de Sílvio. Não podia casar. Muito bem: — ficaria com o filho de Sílvio. E quando estivesse já com a deformação da gravidez, passaria pelo ser ama­do, e o olharia, como se dissesse: — “Teu filho!” Zó­zimo (bobão!) passaria por pai. Carregaria o menino, ou a menina, com o carinho de sua falsa e abjeta pater­nidade.

“Por que é que êle não me examina logo?”, pergun­tava Engraçadinha a si mesma, com sofrida impaciên­cia. O corpo de Sílvio era branco, como o de uma moça, e o do médico, sólido e escurecido de cabelos. Dr. Bergamini ergue-se:

— Vem cá!

Levanta-se também. Crispada, espera. O médico indica uma porta na extremidade do consultório:

— Está vendo ali?

— Estou.

E êle:

— Entra lá e muda a roupa.

Engraçadinha experimenta uma contração no es­tômago. O médico vai apanhar a luva. Para êle, aquê­le momento jamais fora rotina, hábito ou monotonia profissional. Pelo contrário: — era algo de nôvo, de perpétua e violentamente nôvo. E não pelos órgãos puramente físicos. Como ignorar, como fazem tantos im­becis convencionais, os ovários da alma? A partir do momento em que a cliente acomodava o salto nos estribos de metal, tornava-se santa.

Engraçadinha entrou no pequeno cubículo ladrilhado. “Vou te trair, Sílvio!” Oh, impudor que nenhu­ma igreja condena! Por um momento, deu-lhe a ten­tação de fingir uma desesperadora inocência e tirar tudo, fazer como fizera com o Sílvio, na biblioteca. He­sita, um momento. Que diria ao médico se, de repente, aparecesse absurdamente nua? Quis experimentá-lo. Entreabre a porta. Pergunta:

— Doutor, tiro tudo?

E se êle dissesse: — “Pode tirar”? Dr. Bergamini, que estava colocando a luva, disse:

— Não ouvi.

Repetiu:

— É para tirar tudo?

 

Ao mesmo tempo que perguntava se era para “ti­rar tudo”, Engraçadinha pensava: — “Nenhum médi­co faz o que êle fêz”. Sem a ter visto nunca, apanhara as duas mãos e beijara uma e outra. Ela não se dei­xara iludir pela falsa naturalidade dessa ternura.

Dr. Bergamini, que, a princípio, não ouvira, cor­rige :

— Tudo, não. Só a calcinha.

Quando Engraçadinha reaparece, êle, que fumava usando a mão esquerda, encosta o cigarro no cinzeiro. Já estava de luva. Vira-se para ela:

— Chega aqui, meu anjo.

A menina aproxima-se. “É agora”, dizia para si mesma. Para o médico, aquêle momento já se repeti­ra, na sua vida profissional, umas mil vezes. Mas êle não teve a sensação de uma experiência conhecida e banalizada. Pelo contrário: — contraiu-se como se fôs­se uma primeira vez, sempre uma primeira vez. Cos­tumava dizer para os colegas que ainda o cumprimen­tavam: — “Há uma ocasião em que o ginecologista precisa sentir-se um S. Francisco de Assis”. Êle perde, por um instante, a sua identidade convencional, para viver, apaixonadamente, a sua plenitude franciscana. Ai daquele (era o Dr. Bergamini que o dizia), ai da­quele que, na ginecologia, não consegue jamais pros­trar-se como um S. Francisco de Assis. Começava a vi­ver, exatamente, êste momento.

Engraçadinha já não finge mais o enleio da ado­lescente que não é de todo mulher. Ergue a fronte com uma certa paixão. Por debaixo do vestido os quadris estão livres e vibrantes. “Vou trair Sílvio”, foi sua ex­clamação interior. Traí-lo sem que êle soubesse. Hu­milhá-lo.

Dr. Bergamini segurava nas pontas da toalha de li­nho. Chama.

— Você põe os pés aqui. Aqui, é.

Abria a toalha na frente de Engraçadinha. Êle re­petia sempre: — “A partir do momento em que a cliente introduz o salto dos sapatos...” Sim, o salto nos estribos de metal (referia-se à cliente de primei­ra vez), a partir desse momento, o médico deixa de ser o simples profissional atento, o simples técnico; transcende a si mesmo. O Dr. Bergamini achava que, em tais ocasiões, o ginecologista não devia sentar-se no banquinho próprio, mas ajoelhar-se. Ficar de joe­lhos, numa humildade total.

Dr. Bergamini sabe que a cliente de primeira vez faz, para o ginecologista, um jogo de pequeninas simu­lações. Ela não pode dar a perceber que leva em si uma voluptuosa curiosidade, um sentimento de pecado — mas um pecado sem mácula.

O médico vê Engraçadinha de olhos fechados, bôca crispada. Faz-lhe uma breve exortação. O que quer dar a entender, em suma, é que aquêle não era um local próprio para o pudor. Acrescenta:

— O médico, aqui, não é nada. A cliente, tudo. Ou por outra — faz de conta que eu sou, aqui, um S. Fran­cisco de Assis.

Gostaria de dizer, ainda, que a cliente, seja qual fôr, é o ser imaculado. Para si mesmo, repetiu: — “Nes­te momento você não tem mácula, nenhuma, nenhuma”. Ao mesmo tempo, reconhece que S. Francisco não ra­ciocinaria tanto e que... Calou-se. Disse apenas:

— Você aqui não deve ter pudor.

Abriu os olhos; ergueu a cabeça:

— Não é pudor.

Os dois se olharam. Encostou, novamente, a cabeça no pequeno travesseiro. “Bem feito, Sílvio!”, pensava Engraçadinha. Lá fora, na sala de espera, Letícia trin­cava os dentes, unia os joelhos. Ah, o cachorro daque­le médico! Pensa que, se estivesse lá dentro, ah, se es­tivesse lá dentro! Odiou o ginecologista que lhe barra­ra a entrada.

Dr. Bergamini ergue-se. Pergunta, com sofrida hu­mildade (sentia-se, realmente, um S. Francisco de Assis):

— Isso quando aconteceu:

Engraçadinha fixa o médico. Seu olhar é, agora, a um só tempo mais doce e mais profundo. Responde com outra pergunta:

— Estou?

Insiste: — “Quando foi?” Ao saber que tudo acon­tecera há dias, disse:

— É cedo.

A menina entreabria os lábios, sem desfitá-lo. Com a língua umedecera o sorriso. Perguntava a si mesma:

— “Será que êle não percebe? Ah, se eu fôsse o médi­co!” Imaginou-se no lugar do Dr. Bergamini (Dr. Ber­gamini diante de uma cliente de 18 anos. Em primei­ro lugar, quando a cliente perguntasse: — “Tiro tudo?” — responderia: “Tudo”. Estava só, sem acom­panhante e sem enfermeira. E se a cliente perguntara é que admitia, claro, ela própria, a necessidade de des­pir-se de maneira absoluta. Logo que aparecesse nua, êle começaria por tomar-lhe o peso. Diria: — “Sobe na balança!” Subiria, nuazinha, na balança. Êle faria o comentário: — “Sabe que você é linda?” Repetiria: — “Linda!” E, súbito, a beijaria no pescoço, nas costas, na curva do ombro).

Engraçadinha pergunta:

— O que é que o senhor vai fazer, doutor?

Ela sentia no médico uma perturbadora humilda­de. Dir-se-ia que Dr. Bergamini a olhava como que adorando. Sim, adoração e não desejo. “O Zózimo me adora”, pensou. Dr. Bergamini respondia:

— Vou-lhe fazer aquela operaçãozinha. Uma coisa à-toa.

Sabia e, ainda assim, perguntou:

— Pra que, hem Doutor?

E êle:

— Você não quer sair daqui virgem? Não quer?

Endureceu o rosto:

— Não!

— Por quê?

Estava espantado e inquieto. “Tôdas querem, você, não?” Fêz a volta da mesa. Engraçadinha repete: — “Eu, não”. E continua:

— Doutor, eu vou ser franca. O senhor prefere, não prefere? Que eu seja franca? Pois é, Doutor, eu sou noiva de um e isso aconteceu com outro.

Dr. Bergamini começou a sofrer. Fêz espanto: — “E seu noivo? Você não gosta do seu noivo?” Res­pondeu :

— Gosto.

Não gostava de Zózimo, claro. Mentia, porém, com uma intenção. Queria que êle sentisse que ela podia gostar de Silvio, Zózimo e, até dêle, médico. Fêz-lhe um desafio:

— O senhor acho que uma mulher pode gostar de mais de um ao mesmo tempo? Acha?

Dr. Bergamini não sabe o que responder. (Apren­dera, em 20 anos de ginecologia, que a mulher normal, equilibrada, é capaz de amar dois, três, quatro ao mes­mo tempo. O amor múltiplo é uma exigência sadia de sua carne e de sua alma. A exclusividade que ela dá, e que o homem exige, representa um equívoco ou, pior: — um aviltamento progressivo e fatal. Cada minuto de fidelidade significa assim um nôvo desgaste. Há tão pouco amor por isso mesmo: — porque o degradam com devêres, com obrigações. Como dever, como obri­gação, a fidelidade é uma virtude vil) ! Com uma ver­gonha mesclada de asco, êle responde:

— A mulher só deve amar um de cada vez.

Ao mesmo tempo que dizia isso, teve ódio de si mesmo e da própria covardia. Gostaria de responder, aos berros: “Ame. A mulher séria é a que ama. En­quanto não ama, ela não é nada. A mulher que não ama acaba apodrecendo”. Diria ainda: — “Não amar é apodrecer”. Era o que tinha aprendido na sua clínica ginecológica. Até aquela data, não encontrara um cân­cer feminino que não tivesse sua origem na pura e sim­ples falta de amor. Mas como poderia atirar essas ver­dades eternas e brutais para uma adolescente que começava a amar? Fazia abortos, desafiando a ética da classe; era considerado um bandido da especialidade; mas não tinha coragem de aconselhar a uma cliente ca­sada: — “Não ama seu marido? Pois ame alguém e já. Não perca tempo, minha senhora”. Perplexo e angus­tiado, ouvia Engraçadinha dizer:

— Eu me conheço, doutor. E não adianta. Se o se­nhor fizesse isso, daqui a um mês ou dois aconteceria a mesma coisa, compreende? E eu teria de voltar sempre.

Deixara de ser menina. De um momento para ou­tro, tornara-se mulher. Pedia, por fim: — “Vamos fa­zer o seguinte: — eu digo a papai que o senhor fêz a operação e o senhor confirma”. Êle quis saber, pela úl­tima vez: — “Não quer, então? Eu faço o que você qui­ser. Não quer mesmo?” Deu-lhe a mão para que des­cesse da mesa. Engraçadinha sentia nos quadris livres uma selvagem plenitude. Oh, peito de gorila! Rígido, como qualquer colega convencional, êle manda:

— Vá se vestir.

Tirara a luva. Repetia, com surdo sofrimento: se fôsse realmente um S. Francisco de Assis, e não um po­bre ser degradado por escrúpulos, teria dito a essa me­nina: — “Ame!” O médico senta-se, apanha o cigarro. Engraçadinha pensa com surdo sofrimento: — “Man­dou que eu me vestisse!” Na sala de espera, Letícia junta mais os joelhos, como se tivesse pudor pela pri­ma. Dr. Bergamini insistia:

— Meu anjo, vá se vestir, vá!

Estava sentado. Em pé. Engraçadinha teve o la­mento: — “Êle não quer! Êle não quer!” Por um mo­mento, não sabe o que fazer. Quase sem desfitá-lo, diz, lentamente:

— Eu estou vestida. Eu não quero me vestir mais do que estou.

Atônito, o cigarro esquecido nos dedos, êle com­preende, subitamente, tudo. Engraçadinha inclina-se, entreabre os lábios, oferecendo a bôca para o beijo. Dr. Bergamini ergue-se, e, novamente, apanha as duas mãos da pequena e beija uma e outra. Baixa a voz, doce, mas firme:

— Vá se vestir.

Diante dêle, pergunta:

— Não me quer?

E êle:

— Vá se vestir.

Passa por êle, de cabeça baixa, dilacerada de ver­gonha. Põe a pecinha elástica e minúscula: — “Creti­no!” Sentado, eis o que pensa o Dr. Bergamini: — “Se eu fôsse S. Francisco de Assis, teria dado amor a essa pequena!” Sentia-se de uma pusilanimidade abjeta. Engraçadinha aparece. Êle continua com a idéia fixa: — “Não sou um S. Francisco de Assis! Eu não diria nunca a uma esposa”: — “Traia o seu marido, para não apodrecer!” Passa a mão no ombro de Engraçadinha:

— Eu mentirei para seu pai. Direi que fiz a ope­ração.

Levou-a até a porta. Disse para Letícia, com certa tristeza:

— Devolvo-lhe a nossa amiga.

Sentia-se um fracassado. As duas despedem-se: no meio da escada, Letícia, que imaginava não sei que iniqüidades, pergunta quase chorando: — “Abusou de ti? Fala! Abusou”. Olhou-a, firme:

— Quem sabe?

Acabava de decidir: — “Hoje vou abrir a porta para Silvio!”

 

Dr. Arnaldo estava na calçada, junto do automóvel. Andava de um lado para outro e, de vez em quando, apanhava o relógio no bolso do colete. Olhava a hora e resmungava:

— Tarde!

“E se o miserável”, eis o que pensava. Imaginava as hipóteses mais hediondas. Felizmente fora uma grande idéia mandar Letícia. A presença de uma acom­panhante ou melhor, de uma testemunha, e repetia para si mesmo, com satisfação: — “A presença de uma testemunha constrange, inibe e acovarda o médico”. Em pé, em cima do meio-fio e sempre com a bengala, sus­pira: — “Ah, ser pai!” Durante 18 anos, eis a verdade que precisava admitir o quanto antes — durante de­zoito anos ignorava a filha. E, súbito, a descobre; sabe agora, por experiência própria, que nada se compara a uma envergonhada ternura tardia. Olha, de nôvo, o relógio e tem um espanto indignado: — “Uma hora, já!” Estava inclinado a admitir que, mesmo com a acompanhante, um médico inescrupuloso pode-se per­mitir pequeninos abusos. Na sua cólera de magro, vi­brante em cima da calçada, pensa: — “Meto-lhe a ben­gala!” Neste momento aparecem as duas. Precipita-se. Ainda olhou Engraçadinha, com sofrida curiosidade. Estava calma e sorria-lhe. Êle deduz que ela não so­frera nenhum ultraje bestial. Vem de braço, com a fi­lha, para o automóvel. Com uma excitação quase im­perceptível, baixa a voz:

— Tudo bem, minha filha?

E virava-se também para Letícia. As duas respon­dem, simutâneamente:

— Tudo.

Entram no carro. Êle falaria, mais tarde, com o medico. Ou, por outra, queria ter com aquêle canalha (era indubitàvelmente um canalha da especialidade), queria ter um último e enojado encontro. Não lhe con­cederia senão um mínimo de palavras: — “Quanto é?” Pagaria, e só. E se, mais tarde, o encontrasse, na rua, passaria adiante, sem cumprimentá-lo. No automóvel, com a filha e a sobrinha, passou o braço por trás e puxou Engraçadinha para si. Baixa a voz:

— Doeu?

E ela:

— Pouco.

— Não te disse?

Êle não entendia que, com aquêle recurso cirúrgi­co, tão delicado, rápido e indolor, todo o mundo não fôsse virgem. Embora fôsse, incontestàvelmente, um “gangster” da profissão, o Dr. Bergamini era, ao mes­mo tempo, um achado. Ah, o bandido! “Nego-lhe o cumprimento!”, repetia para si mesmo. Ao lado de Engraçadinha, no automóvel, Letícia lembrava-se do ginecologista e, instintivamente, juntava as pernas, num selvagem pudor. Engraçadinha, de olhos muito abertos, sonhava: — “Êle não me quis!” E já imagina: — “Se eu voltasse lá? Vou voltar. Deixo passar uns dias e, de repente apareço. Mas, ah! Desta vez, quando eu sair do cubículo, nua! Duvido que êle...” Na sua imaginação o médico já não era médico, ou, por outra: — era um ser duplo, um andrógino de médico e gorila. Faz para si mesma a pergunta: — “Será que as outras não pensam o que eu penso? Será que elas não desejaram ser roubadas por um gorila, nuazinhas?” De repente, fixa o pensamento em Sílvio: — “Como é que êle não percebeu que era Letícia e não eu’? Como o homem é burro, meu Deus!” Chegaram em casa. Dr. Arnaldo volta-se para Letícia:

— Almoça aqui. — E, para Engraçadinha: — Você precisa ter um certo repouso. Não precisa?

Enquanto paga ao chofer, ocorre a Dr. Arnaldo uma reflexão que, por fatalidade, coincidia, em tudo por tudo, com a concepção que o Dr. Bergamini fazia da especialidade: — “O ginecologista” — era o que pensava o Dr. Arnaldo ao receber o troco do chofer — “devia ser um casto”. Embolsa o trôco e continua o seu raciocínio: “Casto e santo”. Deixou que Engraçadinha e Letícia passassem à frente, e, começando a subir, jun­tamente com as duas, já imaginava o médico com um par de sandálias severas, de sandálias tristes, entran­do num claustro lúgubre e gelado.

Em cima. Zózimo o esperava:

— Bom dia, Dr. Arnaldo.

Dr. Arnaldo estende a mão, com alegre surpresa:

— Olá Zózimo!

Pensa: — “Essa besta!” Convida, num gesto largo: — “Mas vamos entrar! Vamos entrar!” Agora que En­graçadinha sofrera uma pequena operação, leve e deli­cada como um retoque (exatamente, retoque), agora que Engraçadinha era novamente virgem, o velho já olhava Zózimo com certo desprazer. Fazia-lhe várias restrições, inclusive esta: — “Transpira muito nas mãos. Num marido, a humildade, se não fôr bem medida, tor­na-se abjeta. Isso mesmo: — abjeta!” Passa a mão pela cintura do rapaz (sem abandonar a bengala) e suspira, satisfeito:

— Foi bom você aparecer. Precisamos conversar.

Cruzam com Sílvio. Dr. Arnaldo diz-lhe: “Tudo bem, Sílvio! Tudo bem!” Não lhe piscou o olho, para sublinhar as próprias palavras, porque não seria nobre e afetaria a dignidade de sua atitude. Entra com Zózi­mo no biblioteca. Dr. Arnaldo queria que o outro sen­tasse, ao passo que êle permaneceria de pé. Achava que o simples fato de sentar-se já retira de uma pessoa um pouco de sua compostura. Efetivamente, Zózimo senta-se e começa, com certa avidez:

— Devo-lhe uma explicação...

Rápido, Dr. Arnaldo interrompe:

— Um momento!

“Eu devo falar primeiro”, pensava. “Há um fato nôvo que devo esfregar-lhe na cara!” Depois de uma ligeira tosse nervosa, ergue o rosto e vai falando:

— Acabo de chegar do médico — e especifica, bai­xando a voz: — Ginecologista. Muito bem: — eu fui lá por motivos óbvios.

“Óbvio” era uma palavra que usava muito e com particular agrado. Continuou, com uma excitação pro­gressiva: — “Sou um pai. Tenho meus deveres. Precisa­va saber”. Faz uma pausa. Desconcertado, Zózimo pen­sa: — “Êle me considera um crápula”. Dr. Arnaldo faz-lhe, à queima-roupa, a pergunta: — “Você acredita em Deus?” Vermelho, responde:

— Mais ou menos.

Exulta:

— Por quê “mais ou menos”. Que fé é essa? Pois eu lhe digo: — quando o ginecologista examinou a mi­nha filha e vira-se para mim e diz: — “Virgem!” Foi o que êle me disse. Compreendeu, jovem? Fez todos os exames, absolutamente todos! E quando me disse isso, sabe qual foi a minha reação? Eu pensei: — “Deus existe”.

E, de fato, naquele momento, êle sentia, na biblio­teca, quase que a presença física de Deus. Sim. Deus parecia-lhe algo de pessoal, de tangível, de visível. Es­cancara o olhar e teve a idéia de que, se quisesse, se estendesse a mão, Deus seria algo de materialmente palpável. Afirmava, apaixonadamente:

— A virgindade da minha filha é uma prova, ou você não entende? Uma prova da existência de Deus! Eu fui lá supondo, até, uma gravidez. Nada disso! Gravidez nenhuma e mais virgem do que nunca. Acre­dite em Deus, jovem! Minha filha não depende — isto é o importante! — não depende da generosidade de um noivo.

Atônito, balbucia:

— O que eu queria dizer é que...

Novamente, o velho interrompe:

— Meu amigo, depois do que eu lhe disse, você não acha — pensa bem! — não acha que qualquer comentário é inútil e, mesmo, desprimoroso? Escute, jovem: — o marido que na noite de núpcias constata, êle mesmo que... Você não acha que êsse marido deve dar graças a Deus?

 

Silvio vinha passando pelo corredor, quando En­graçadinha o puxa pelo braço: — “Vem cá!” E fala baixo (o pai e Zózimo estavam na biblioteca):

— Você e Letícia no meu quarto, de madrugada, hem? Que dois!

Vira-se, estupefato: — “Letícia?” Ela contrai a bôca com cínica voluptuosidade:

— Letícia, sim! Ou você não percebeu que era Le­tícia e não eu? Eu estava lá, mas olha: — Letícia dei­tou-se na minha cama e eu dormia em cima da colcha, no chão, junto do guarda-vestido! Sim, senhor!

Lívido, com uma orla de suor em cima do lábio superior, não quer acreditar: — “Letícia? Foi Letícia?” com o olhar procura a noiva. Engraçadinha o desafia: — “Quer que eu chame Letícia?” Foi ao encontro da prima e a trouxe pelo braço: — “Quem é que estava na minha cama, esta madrugada? Quem?” Letícia tem vontade de chorar. Murmura, com um olhar de súplica intolerável:

— Eu.

Sílvio olha ora uma, ora outra. De repente, os três sentiram-se unidos por uma dessas cumplicidades im­placáveis. Todavia, não saberiam explicar que vín­culo muito tênue e, ao mesmo tempo, irredutível, aca­bava de ligá-los. Dir-se-ia que, a partir daquele momento, teriam um destino comum e espantoso. Sílvio encostou a mão na parede. Experimentava uma espé­cie de vertigem. Abria a bôca e não conseguia falar. Elas, caladas, perceberam a sua angústia. Não era an­gústia, mas um prazer tão violento, tão brutal que êle sentia-se subitamente gelado, sim, de volúpia. “Foi Le­tícia e não Engraçadinha!” Possuir uma pela outra, amar Letícia e não Engraçadinha, e na presença de Engraçadinha! Embora com ódio de si mesmo, embora achando-se um ser vil, chama uma e outra. Com a garganta crispada de prazer (um prazer que êle não conhecia), pergunta:

— Vocês fariam isso outra vez? Letícia, escuta: — dorme aqui, Letícia. Arranja uma desculpa e dorme aqui.

De nôvo, os três sentiram que, quisessem ou não, eram cúmplices. Foi tal o sofrimento de Sílvio (e eu­foria) que a voz lhe fugiu. Com um olhar turvado pelo desespêro, continua, afinal: — “Nada se compara, nada...” Queria dizer, por outras palavras, que não há embriaguez mais completa, não há delícia mais pro­funda do que ver o ser amado traindo. Aperta o pulso de Engraçadinha: — “Você não quer vêr? Responde, Engraçadinha! Você, que me ama, você não quer vêr — eu e Letícia? Ver?” Olha a cara atônita de Engraçadi­nha. Esta passa a mão pelo rosto — confusa e dilace­rada.

Sílvio repete:

— Sim ou não?

Engraçadinha vira-se lentamente para Letícia:

— Você dorme aqui?

E a outra, baixo:

— Sim.

Sílvio sente que começa o martírio:

— Deixa a porta encostada.

Respondeu:

— Deixarei.

Êle saiu dali como um louco. Mais tarde, na cidade, entra numa loja de ferragens. Pede:

— Eu queria uma navalha.

 

Em pé, junto ao balcão, repetiu:

— Queria uma navalha.

O caixeiro, um rapaz de óculos, com um esparadrapo no pescoço, indaga:

— Que marca?

Faz a pergunta e, ao mesmo tempo, espreme uma espinha. Silvio vacila, como se uma simples marca fôsse um problema inesperado e desagradável. Gostaria de parecer alguém que fêz do uso da navalha um hábito antigo e cotidiano. Deixou escapar uma mentira des­necessária: — “Eu nunca usei gilete”. Pergunta a si mesmo, com surda irritação: — “Por que fui dizer isso?” Pigarreia:

— Qualquer marca. Não tenho preferência.

E, por um momento, teve a sensação (o que era um absurdo) a sensação de que o outro sabia. Por ou­tras palavras: — sabia que, pouco antes, êle, Engraça­dinha e Letícia haviam feito o pacto de um amor tris­te e miserável. Sim, com um mínimo de palavras, os três tinham-se entendido. Êle não sabia explicar essa compreensão que não exigia um argumento, um racio­cínio. Enquanto o caixeiro de esparadrapo ia e vinha. Sílvio teve tempo de pensar: — “O amor devia ser um casal e, ao mesmo tempo, uma testemunha”. Repetia, para si mesmo, e já agora com uma sensação de fogo na garganta: — “Uma testemunha passiva, talvez sen­tada numa cadeira ou na extremidade da cama, mas presente”. Essa terceira presença, muda e atônita, tor­naria o prazer sobre-humano. “O prazer de um deus”, disse para si mesmo, enquanto que o caixeiro, já de volta, abria, diante dêle, três estojos.

Apanhando e abrindo uma das navalhas, êle continuava pensando, por outras palavras, o seguinte: — certos prazeres dão subitamente ao homem a sensação de que êle já foi deus algum dia. “Eu fui deus”, refle­tia. Ao mesmo tempo ocorreu-lhe a idéia de que uma navalha é realmente linda. Ergue o rosto febril:

— Qual é a melhor?

Olhava agora o esparadrapo do rapaz: — “Furúnculo”, deduziu. O caixeiro apanha uma das navalhas:

— Essa aqui — por exemplo — mais cara, mas vale a pena. Tenha a bondade.

Sentiu na mão a lâmina. Nada mais gelado que o fio da navalha. Diz para si mesmo: — “Se êle soubesse o que eu estou pensando. Se soubesse que, logo mais, as duas me esperam no quarto!” Respira fundo:

— Fico com essa.

Escolhera ao acaso. Na verdade, repetiu para si mesmo, “todas são lindas”. Enquanto o caixeiro ia em­brulhar um dos estojos, êle, com um sofrimento inefá­vel, pensava: — “Não foi preciso convencê-las”. E mais: — não fora preciso nem convencer-se a si mes­mo. Continuou, enquanto o rapaz do esparadrapo pas­sava o barbante no embrulho estreito e comprido: — “Quem sabe se antes, muito antes...” Êle queria ad­mitir um passado, inacessível à memória dos homens, em que o amor normal exigisse, além do casal, uma testemunha, sòmente olhando e sentada. Recebeu o estôjo e pagou. Agora esperava o trôco. Só de pensar que iria encontrá-las, à sua espera, sentiu um tal afluxo de sangue na cabeça que julgou desfalecer.

O caixeiro dava-lhe o troco.

— Às suas ordens.

E êle, embolsando o dinheiro:

— Passar bem.

Na rua, tratou de desfazer o embrulho. Apanhou a navalha e a guardou; em seguida, deixou cair, junto ao meio-fio, o papel e o estôjo. Coisa estranha! Com a navalha viva no bolso, experimentou um sentimen­to de paz intensa, uma brusca euforia. Dir-se-ia que ela vinha dar-lhe um nôvo poder, um dom misterioso, talvez encantado. De vez em quando tinha vontade de abrir a lâmina dentro da luz. Parou numa esqui­na; pergunta: — “E se eu telefonar, agora, para En­graçadinha, dizendo que não quero?”

Quis desviar o pensamento. Mas não se libertava daquela fixação hedionda. Olhava sem ver as pessoas, os prédios, os carros. As duas o amavam; ia trair uma e outra. Mas qual delas ia ser amada e qual delas ia ser apenas traída? Então, disse, a meia voz:

— Engraçadinha!

E não entendia porque Letícia aceitara aquêle amor que admitia ou, por outra, que precisava, para a sua plenitude, de uma testemunha. Engraçadinha era só sexo e seu olhar, seu sorriso, seu andar, seus qua­dris, vinham pesados de voluptuosidade. “Se titio sou­besse que, em casa, nós três...” Mas continuava sem entender Letícia, a doce, a maravilhosa, a cálida faci­lidade do seu abandono.

Pôs a mão no bolso da navalha. A certeza de que ela estava lá — e viva — deu-lhe novamente aquela sensação de segurança. Repetia para si mesmo: — “Te­lefono para Engraçadinha?” Por um momento, quase cedeu à tentação de ligar. Conteve-se. Pensava:

— Eu sou um crápula.

 

Pouco depois que Sílvio saiu, Dr. Arnaldo apare­ceu na porta da biblioteca:

— Engraçadinha!

— Eu?

E o velho:

— Traz Letícia.

Zózimo estava lá. Fizera várias tentativas para fa­lar. Dr. Arnaldo, porém, na sua euforia de pai de uma virgem (a palavra virgindade não lhe saía da cabeça), Dr. Arnaldo não o deixava prosseguir:

— Jovem, a situação agora mudou de figura. — E insistiu, com ênfase: — Mudou radicalmente. Minha filha já não depende mais da generosidade do noivo

Súbito, Zózimo perdeu a paciência. Ergueu-se e, por sua vez, interrompeu vivamente o velho:

— Dr. Arnaldo, o senhor, naturalmente, deve fazer um péssimo juízo de mim.

O deputado virou-se, estupefato: — “Eu?” Por singular coincidência, no exato momento em que Zó­zimo disse isso, o velho estava pensando; “Mas que animal!” Dir-se-ia que o outro, por uma dessas vidências súbitas e realmente inexplicáveis, lera no seu pen­samento. Um pouco desconcertado, dispõe-se a ouvir:

— O amor é tão raro, hoje em dia, tão difícil, que o homem ama errado.

Dr. Arnaldo pensava ainda na virgindade da filha: — “Como assim?” Aquilo pareceu-lhe obscuro e irri­tante. O outro prosseguia, numa excitação progressiva:

— O senhor sabe, naturalmente, que o meu pai é casado em segundas núpcias.

Dr. Arnaldo encara o futuro genro com evidente desagrado. Parecia dizer: — “Ora veja! O que é que eu tenho com isso?” Zózimo percebeu a impaciência e irritação do outro. Explicou, angustiado:

— Eu acabo já. Estou no fim. Mas, como eu ia di­zendo: — eu tinha oito — veja bem! — oito anos, quando um dia. Ainda me lembro como se fôsse hoje. Meu pai vem me buscar em casa e me leva para a casa de uma velha tia.

Dr. Arnaldo começava a ouvir, com um nôvo inte­resse. Zózimo estava dizendo: — “A tia caiu de joe­lhos aos seus pés”. Foi contando. O pai empurra a ve­lha e arromba uma porta. Lá dentro, estava a mãe de Zózimo, com um sujeito. O rapaz arqueja:

— Meu pai podia ter levado a polícia. Mas, não. Fez-se acompanhar de uma única autoridade: — o fi­lho de oito anos. Queria que eu visse o adultério. Er­gueu-me nos braços e sacudia-me: — “Tua mãe, meu filho! Tua mãe!”

Há uma pausa. Em voz baixa, com um olhar suplicante, Zózimo pergunta: — “Compreende agora?” A rigor. Dr. Arnaldo não compreendia nada. “Por que êle me contou isso?” Era o que perguntava a si mesmo. O rapaz gostaria de concluir: — “Depois disso, eu passei a achar que só a adúltera tem razão”. Mas quan­do fala, diz outra coisa:

— O senhor acha que meu pai amava minha mãe? Nunca. Se amasse, teria admitido o adultério, simples­mente. Eu li não sei onde que “amar é dar razão a quem não tem”. Uma vez que eu amo sua filha, dou-lhe razão, desde já, mesmo no adultério. Entende ago­ra? A minha atitude dizendo que aceitaria sua filha, ainda que grávida de outro, não é falta de caráter ou de...

Cala-se, ofegante. Desejaria dizer que neste mun­do a bondade precisa ser justificada. Ou é justificada ou rejeitada. Conclui, balbuciando: — “Não queria que o senhor interpretasse mal...” A princípio perplexo, Dr. Arnaldo pensa: — “Para uma mulher como En­graçadinha, de uma sexualidade tão acentuada...” E continuou: — “... Para certos temperamentos femi­ninos, convém um marido que prèviamente perdoa...” Decide, bruscamente: — “Preciso casá-la quanto an­tes”. Vai até a porta e chama as duas. Põe a mão no ombro do futuro genro; diz, como se, de repente, tives­se a certeza de que a filha, cedo ou tarde, trairia:

— Realmente, realmente.

 

Quase meia-noite.

Letícia deitou-se na cama e Engraçadinha no chão, em cima da colcha, junto ao guarda-vestido. Já no escuro, Letícia pergunta:

— E se êle não vier?

Respondeu, com uma certeza fanática:

— Virá.

Silêncio. Engraçadinha pensa na conversa que ti­vera com o pai, na presença de Letícia e de Zózimo. Eis o que resolvera Dr. Arnaldo: — “Daqui a três meses”. Responderam: — “Sim”. Três meses! Mas que importa­va Zózimo, o casamento, o vestido de noiva, a igreja? O pai ainda batia na mesma tecla: — o casamento no mesmo dia. Zózimo concordou com tudo. Mas o que, no momento, gelava Engraçadinha até os ossos era es­perar. A poria estava apenas encostada.

Em plena madrugada, sentem que alguém a em­purra. Engraçadinha, quase sem respirar, pergunta a si mesma: — “Vai escolher quem?” Silvio estava no quarto. Letícia crispa-se na cama. O rapaz torce a cha­ve. Caiu, ali, uma solidão desesperadora. O rapaz pen­sa: — “Elas não desconfiam de nada”. Súbito, acende a luz.

As duas olham, num deslumbramento. Êle abre a navalha e caminha.

 

Durante o jantar, Dr. Arnaldo observara, com uma surprêsa inquieta, que a filha e a sobrinha esta­vam tristes. Tomando sopa, êle perguntava de si para si: — “Será o casamento?” Talvez sim, talvez não. O velho tinha um hábito levemente irritante: não to­mava uma colher de sopa sem que, em seguida, en­xugasse os lábios com o guardanapo. Êle admitiria a tristeza de Engraçadinha. Não gostava do futuro ma­rido. Mas Letícia amava Sílvio. Enxugando os lábios mais uma vez, dirigiu-se a Letícia:

— Amanhã, vou falar com tua mãe.

Letícia balbucia:

— Ótimo.

Êle sentia como se, de súbito, tivesse caído sobre ambas a mesma, exatamente a mesma tristeza. “E não falam!” Era a exclamação interior do velho. Arrisca a pergunta, depois de encostar ligeiramente, nos lábios, o guardanapo:

— Mas que é que há? Alguma novidade? Você, En­graçadinha?

A pequena estremeceu. Ergueu o rosto. Ela estava pensando naquele exato momento, pensando que se­ria ou a amada ou, simplesmente, a testemunha. “Mas eu não posso amar”, repetia para si mesma, com uma dor surda: — “Sílvio é meu irmão”. Poderia ver, ape­nas ver o ser amado traindo. Ver e nada mais; apenas ver! Quando o pai a chamou, toma um susto. Balbu­cia atônita:

— O quê, papai?

Êle, já impaciente, abrindo o guardanapo sobre as coxas magras, dá-lhe com certo humor um breve pito também extensivo à sobrinha:

— Você está jururu, minha filha! E por quê? Sim, por quê? Não há motivo, ou há? Há motivo? Você, Letícia! Há motivo?

Engraçadinha parecia incerta: — “Mas, papai!” Ao passo que Letícia, caindo em si, foi mais incisiva:

— Absolutamente, titio!

O velho exaltou-se:

— Então, por quê essa cara? Alegria, pessoal! Eu não admito que, no dia em que se marca a data do ca­samento, vocês façam essa cara de entêrro!

Letícia protestou, vermelha:

— Oh, titio!

Insistiu, com certa excitação: “Eu quando fiquei noivo de tua mãe” — virou-se para Engraçadinha; e continuava, na sua embriaguez retrospectiva: — “Foi um grande dia da minha vida!” Continuava a enxugar os lábios com o guardanapo, embora já tivesse acaba­do a sopa; prosseguia: — “Tua mãe foi o único amor que eu tive na vida!” E, como se desafiasse invisíveis opositores, repetiu:

— Único! Por isso eu digo — passou o guardanapo na bôca — digo que se pode perfeitamente, amar uma única pessoa, até morrer!

Faltava com a verdade, mas sem nenhuma cons­ciência da mentira. Só depois dessa preleção emocio­nada (ultimamente andava excitado), é que subita­mente, êle se lembrou que pelo contrário, jamais ama­ra a mulher; e que, ao seu lado, experimentara apenas tédio, ou seja, êsse tédio que êle considerava normal e inevitável no casamento. Na altura da sobremesa, Dr. Arnaldo fêz uma reflexão que o surpreendeu e, mesmo, o consternou: — “Só um débil mental pode casar-se na presunção de que o casamento é divertido, variado ou simplesmente tolerável. É divertido como um tú­mulo”. Essa idéia, que jamais lhe ocorrera, deixou-o estupefato. Estupefato e indignado consigo mesmo. “Eu pensei isso!”, foi seu estupor honesto. Acabara o pêssego em calda, que era uma de suas preferências de mesa. Enxugou ainda uma vez os lábios. Ergueu-se, apoiando-se na bengala:

— Vou ler um pouco.

Era uma inverdade; não ia ler nada. Dava essa desculpa desnecessária para trancar-se na biblioteca. Lá, deitado no divã, com a bengala encostada, entre­gava-se à saudade da “cunhada impossível”. Essa me­ditação solitária era o seu grande momento de cada noite. A caminho da biblioteca, pensou, subitamente e com alarma: — “O lar, êsse divertido túmulo”. Dir-se-ia que um demônio interior lhe soprava essas coisas abomináveis. Não pensava assim, Deus o livre; mas o tal demônio secreto fazia variações da mesma imagem: — “O lar é arejado como um túmulo”, etc., etc. Fechou-se na biblioteca. Sentou-se no divã, o mes­mo em que a possuíra. Repetia para si mesmo, sen­tindo que o remorso exasperava o seu desejo: — “Eu não devia ter amado a mulher de um irmão”.

Deitado de bruços sobre o divã — e com desespe­rada nostalgia carnal, usava o sofisma que êle próprio achava miserável: — “Se a irmã de minha mulher; se fôsse uma irmã de minha mulher...” Pensando na mulher do irmão, argumentava consigo mesmo: — “O homem mais íntegro pode desejar a irmã da espo­sa. Êle sente que possui êsse direito, quase êsse direi­to...” Trincando os dentes, fala sòzinho, à meia-voz:

— Eu não podia desejar e, muito menos, possuir a mulher do irmão...

O sofrimento tornava o seu prazer quase mortal.

 

Parou no meio do quarto. As duas não se mexiam. Ambas de camisola. Êle olha uma e outra. “Eu amo Letícia”, era o que dizia a si mesmo. E, agora, que es­tava ali, no quarto iluminado, entre as duas, espanta­va-se com a violência do próprio prazer. Estava com o rosto contraído e parecia não ter pressa da primeira carícia e da primeira palavra, certo de que o som da própria voz ou o esboço de um único gesto poderia deflagrar tôda a volúpia ainda contida. Nem Engraçadinha, nem Letícia entendiam o fio da navalha caindo entre ambas.

Aproxima-se de Letícia. Mas vira-se bruscamente para Engraçadinha. Baixa a voz:

— Chega aqui.

E para Letícia:

— Te amo, Letícia.

Estava rouco de angústia. Parecia-lhe incrível que, entre duas mulheres — uma para ser amada, outra para ser traída — um homem pudesse ter uma eufo­ria assim monstruosa. Agora está entre Engraçadinha e Letícia (e nem uma, nem outra sabem qual vai ser a possuída e qual a testemunha); uma delas balbucia:

— Essa navalha!

Então, êle encosta a lâmina, muito de leve, no ros­to de Engraçadinha. A menina experimenta um terror inefável. Sílvio faz o mesmo em Letícia. Êle desejaria dizer-lhes que o simples casal quebra o êxtase amo­roso. É preciso alguém mais: a testemunha! Passara o dia sob a obsessão delirante da testemunha. Repetia para si mesmo: — “Alguém vendo, alguém...”

Fala baixo:

— Essa navalha. Não é linda? Engraçadinha, não é linda?

Balbuciou:

— Linda.

E êle, agora, para Letícia:

— Se não fôsse essa navalha... — Pára, com di­ficuldade de expressão: — Eu posso fazer tudo agora que tenho uma navalha.

Letícia empurra Engraçadinha:

— Beija. Sílvio! — e repetia, lívida de volúpia: — Beija, anda!

O rapaz põe a navalha debaixo do travesseiro. Volta-se para a prima. Quer enlaçá-la. Ela, porém, num movimento inesperado e ágil, desprende-se. Está agora de pé e recua:

Levanta-se também. Ao mesmo tempo, Letícia er­gue-se e, ràpidamente, coloca-se detrás da prima. Com uma expressão de voracidade exultante, êle exclama (sem todavia altear muito a voz):

— Segura, Letícia!

Já se entendiam sem palavras. Quando Letícia passou por Engraçadinha, Sílvio compreendeu que a outra queria dominar a prima por trás, prender-lhe os braços e torná-la, assim, indefesa e derrotada. Sílvio sente uma euforia cruel. Imagina que a noiva quer ver o ser amado traindo.

O rapaz avança:

Atrás de Engraçadinha, Letícia pede:

— Beija! Beija!

Aquela resistência (ou simulação de resistência) torna ainda mais intensa a voluptuosidade. Já Sílvio e Letícia teriam preferido que Engraçadinha realmente resistisse, lutasse até perder as fôrças. Aquêle amor não devia ser consentido. Se estivessem num lugar es­pantosamente deserto — onde Engraçadinha pudesse gritar até perder as forças! “Eu seguro Engraçadinha! Eu dou Engraçadinha a Sílvio!” Imóvel, Engraçadi­nha deixa-o aproximar-se. Diz para si mesma: — “Que vontade, ah, que vontade de te beijar”. Dentro da ca­misola sua nudez vibrava. Não se mexia, sentindo-o tão próximo: — “Tu não sabes. Mas eu sou tua irmã! Não posso, Sílvio! Não posso!” E, ao mesmo tempo, queria que êle fôsse implacável. Pensava: — “Sílvio, não im­porta que eu lutei Deixa que eu lute, Sílvio!” E, sú­bito, pensa na navalha. Tem um sonho violento e bre­ve com a lâmina. Se êle encostasse o fio no seu pes­coço. Repetia para si mesma: — “A navalha é linda, oh, meu Deus! É linda!”

Êle a segura pelos dois braços. Engraçadinha sente que não lutará. Espera apenas que Sílvio incline o rosto, que o beijo de Sílvio possua a sua bôca. Ao mes­mo tempo, a mão de Letícia passa pelos quadris da prima.

E o rapaz:

— Meu amor!

Súbito, batem na porta. Chamam da porta:

— Engraçadinha! Engraçadinha!

Era o pai.

 

Eis o que acontecera: — Dr. Arnaldo passara al­gumas horas fazendo a meditação diária sobre a “cunhada impossível”. Era, por assim dizer, uma sau­dade com hora marcada, uma saudade que ocorria, regularmente, após a última refeição. Sòzinho na bi­blioteca, fechado à chave, êle se entregava à sua nos­talgia carnal. Era tão intensa a evocação que por mo­mentos, a bem amada parecia tornar-se visível e tan­gível. E quando, finalmente, êle abandonava a biblio­teca, vinha fisicamente exausto e pior: — seus olhos faiscavam dentro de um halo tão negro que parecia feito de rolha queimada.

Naquela noite, após cumprir a sua rotina de me­mória, Dr. Arnaldo saíra da biblioteca. Nunca desejara tanto a que morrera. Pára um momento, junto da por­ta da biblioteca, imagina a própria imagem. Via-se a si mesmo como sátiro esguio de olheiras violentas, lábios lívidos, e mais, — este sátiro, ali, parado, no cor­redor, usava ceroulas de amarrar nas canelas, com duas voltas. — Alquebrado — um pouco ofegante — cami­nhou. Para êle era um esforço conservar-se em pé. Dir-se-ia que a saudade da cunhada o ralara tanto, por dentro, que até os seus ossos eram agora de uma fra­gilidade desesperadora. Súbito, Dr. Arnaldo estaca. Ou­vira vozes, nitidamente três vozes. Vinham de onde? E repetia para si mesmo que eram três vozes, duas femi­ninas e uma masculina. Aproxima-se e não tem dificul­dades em localizar. Estava assombrado: — “Vozes no quarto de Engraçadinha”.

Considerou, então, que, sendo assim, não podia ter escutado voz de homem. Fora vítima, certamente, de uma ilusão auditiva. “Estão acordadas”, deduziu. Letícia e Engraçadinha. Felizmente, a sobrinha estava lá. Do contrário, podia supor, até, que Sílvio, talvez Síl­vio... Pára junto à porta de Engraçadinha. As vozes vêm de lá; mas falam baixo, tão baixo que não dá para separar e entender as palavras.

Bate, chama:

— Engraçadinha! Engraçadinha!

E não entende a luz acesa. Veio a resposta sôfrega:

— Pronto, papai!

Sílvio recua, encosta-se à parede. Quase sem res­pirar, vai até a cama, introduz a mão debaixo do tra­vesseiro e apanha a navalha. Êle não sabe o que faria com a lâmina aberta. Letícia trinca os dentes. Engraça­dinha está descalça junto à porta o silêncio da cami­sola cai sobre os seus quadris. Do lado de fora o velho faz perguntas:

— Luz acesa, por quê?

Êle sentia-se mais magro do que nunca. Insiste, es­pantado e descontente:

— Sentindo alguma coisa?

Mente, incerta:

— Nada, papai! Dôr de cabeça. Mas passa.

E êle:

— Fecha a luz, minha filha.

“Ainda bem que Letícia está aí”, suspirou o Dr. Arnaldo. Vacila ainda, mas desconfiar de quê? E re­pete para si: — “Letícia está junto”. Todavia, chama a outra: — “Letícia, está acordada?” A sobrinha res­ponde:

— Boa noite, titio.

— Boa noite, Letícia.

Eis a verdade: — houve um momento que, julgan­do ter escutado uma voz de homem, em surdina, êle chegara a imaginar uma possibilidade tão miserável que... Não, não. Seria demais. Engraçadinha alteia a

— A bênção, papai.

O velho respira fundo:

— Deus te abençoe.

Dr. Arnaldo retira-se, ou, por outra: afasta-se al­guns passos e pára. Olha para a extremidade do corredor: — o quarto de Sílvio estava iluminado e teve a idéia de passar por lá. Mas a verdade é que, depois do que acontecera ultimamente, passara a ter mêdo do rapaz. Mêdo ou vergonha ou as duas coisas (também remorso). Poderia limitar-se a bater na porta do filho para desejar-lhe apenas “boa noite”. Nem isso: — “Vou dormir”, decidiu.

 

Estavam calados e atônitos. Ao chamar pela filha. Dr. Arnaldo interrompera, bruscamente, aquêle delírio. O que ficara, da embriaguez recente e maligna, era apenas o vácuo. O prazer desaparecera até o último vestígio. Sílvio põe novamente a navalha debaixo do travesseiro. Esperam ainda que o velho tenha tempo de mudar a roupa e deitar-se.

Sílvio fala quase sem voz, apenas com o movimen­to dos lábios:

— Engraçadinha, senta aqui.

Quer que ela venha sentar-se ao seu lado para em seguida deitar-se. Engraçadinha vira-se para Letícia:

— Vai!

E a outra, empurrando-a de leve:

— Você.

Ainda há pouco, quando Letícia, por trás, prende­ra os seus braços, Engraçadinha experimentara a sen­sação da mulher que vai ser violada. Podia ter-se desvencilhado, com facilidade. Todavia, preferiu deixar-se dominar, simulando para si mesma uma fraqueza inexistente. Chegara a pensar: —”Se eu morder Sílvio, talvez êle me dê um tapa na bôca!” A idéia de apa­nhar na bôca deu-lhe um prazer muito agudo. Oh, sen­tir mêdo diante do homem que derruba e subjuga! E, súbito, a voz do pai apaga o sonho, corta o desejo. Síl­vio aproxima-se; diz:

— Escuta.

Êle a puxa para si. Estão em pé, no meio do quar­to, quase bôca com bôca (Engraçadinha sente, confusamente, que a proximidade de um rosto o desfigura, dá-lhe uma vida grotesca e terrível). Sílvio fala:

— Eu te amo.

Letícia aproxima-se, com uma face hirta de sonâmbula. Nem êle, nem os outros lembram-se mais da interrupção de há pouco. Letícia quer estar junto dos dois. Vai ser traída e quer ver o rosto do ser amado contraído em volúpia mortal, quer ver os pés trançados no alto, em delírio. Crispa a mão no braço de Sílvio; pede baixo: — “Beija Engraçadinha!” Êles não se mo­vem. Letícia passa uma mão por detrás de cada cabe­ça, empurra um rosto contra o outro — para o beijo. Sílvio continua:

— Eu amo você e não Letícia.

Êsse tom de adoração exaspera Engraçadinha. Gos­taria de gritar-lhe: — “Não é isso, Sílvio! Não é isso!” Sonhava com uma violência que o rapaz agora lhe ne­gava. Gostaria de gritar. Se estivessem num lugar de­serto, num ermo desesperador, então sim, gritaria. Ah, não queria êsse amor triste apenas terno, nem violen­to nem cruel. Correr num descampado, tropeçar e cair, levantar-se para cair novamente; e, por fim, deitada, apanhar na bôca — apanhar com as costas da mãos na bôca. Oh, triste amor quando os dois querem e aceitam e não há então violência! Oh, triste amor quan­do o homem deseja e a mulher se oferece! E não poder dizer, simplesmente dizer: — “Eu quero ser violada!”

Sílvio a segurou pelo pulso:

— Vem.

— Para onde?

— Te levo.

Sussurra:

— Tenho mêdo.

Êle fala junto de sua orelha pequenina e sensível:

— Vamos para a biblioteca. Não queres? Como da primeira vez. Vamos — e repetia: — Eu te levo.

Passara nele tôda a violência. Agora o seu desejo e triste. Engraçadinha pensa: — “Não sabe que é meu irmão! Não sabe!” E, por um momento, tem ódio do pai que o fizera irmão. Sílvio vai até a cama apanhar a navalha debaixo do travesseiro. Quando volta, Letícia trava-lhe o braço, numa súplica:

— E eu?

Sílvio a encara:

— Você fica.

Êle a olha como se, de repente, a odiasse. Letícia tem uma brusca cólera:

— Você não vai me trair. Não gosto de você. Vou ser traída por Engraçadinha. Só amo Engraçadinha.

Sílvio a empurra e leva dali Engraçadinha. Letí­cia daria tudo, tudo, para ver o ser amado traindo. O rapaz e Engraçadinha abandonam o quarto; descal­ços, deslizam pelo corredor, rente à parede. Abrem a biblioteca e entram. Êle torce a chave. Engraçadinha diz para si mesma: — “Sou irmã”. Sílvio já não que­ria a testemunha calada e terrível. Angustiado, cerra tôdas as cortinas da biblioteca para que a luz não pas­se. Em seguida, acende. Quando, porém, agarra Engra­çadinha, esta balbucia:

— Não beija.

— Por quê?

Crispada, não responde. Então. Sílvio curva a ca­beça e a beija no pescoço. Engraçadinha desprende-se com violência. Recua; diz-lhe, com um sofrimento qua­se doce:

— Sou tua irmã. Não prima: — irmã.

Repete, até saturá-lo: — “Somos irmãos, Sílvio!” Conta-lhe tudo. Êle aperta a cabeça entre as mãos, na impotência do seu ódio: — “Sou teu irmão?” Súbito, põe-se a rir, pesadamente: — “Sim, há três minutos sou teu irmão! Três minutos!” Oh, meu Deus, êsse parentesco que desabava maciçamente sobre êle! Pa­recia-lhe uma lúgubre indecência que, em três minu­tos, a vida o transformasse de amante em irmão. Fora de si, repetia: — “Eu não te quero como irmã! Eu não te aceito como irmã!” Odiou essa mãe longínqua que se entregara a um cunhado. Diante dêle, Engraça­dinha parecia pedir perdão de ser irmã. E o que o punha louco é que podia puxar o relógio e contar o tempo:

— Sou teu irmão há cinco, dez, vinte, vinte e cinco minutos, meia-hora!

Aquilo não lhe saía da cabeça: — “Eu não era e sou, por quê?” Engraçadinha sentara-se na extremida­de do divã, transida de mêdo (o mêdo fazia nascer tôda a voluptuosidade; invejava as mulheres que são violadas). Súbito, êle cai de joelhos diante dela:

— Queres?

Repetiu: — “Queres”. Silêncio. No corredor, Letícia prostrava-se em adoração junto à porta. Sílvio pas­sa a mão na cabeça de Engraçadinha e a agarra pelos cabelos: — “Se continuares calada, é porque queres como eu. Responde. Queres?” Nada, ainda. Êle não pergunta mais. Diz, sem voz: — “Tira tudo. Fica nua. Nua”. O sonho rompeu da angústia. Houve um mo­mento em que Engraçadinha ia gritar; êle tapou-lhe a bôca brutalmente, ao mesmo tempo mordia-lhe os ca­belos para não gritar também. A resposta perdera o sentimento da própria identidade. Imaginou que eram dois monstros cegos que morriam de amor numa ge­lada floresta marinha. Muito depois — quase ao ama­nhecer — Sílvio ergueu-se. Ela estava quieta — nessa calma intensa que há na carne durante o sono da alma. Sílvio passou alguns minutos, em pé, de olhos fecha­dos, como se orasse.

Por fim, apanhou a navalha. De repente, Engraça­dinha o viu fazer um risco intenso e luminoso. Era a luz quebrando-se na lâmina viva. Na sua mão, a na­valha tornou-se ainda mais leve, macia, diáfana. Êle feriu a alma da própria carne. Foi um golpe único e exato. Decepado, o cacho do sonho e da vida pendeu de filête vibrante. Finalmente, soltou-se.

 

Não se sabia ao certo, na família, a idade de tia Ceci. Talvez uns oitenta, setenta e oito. Naquela noite, antes de dormir, tomara o seu banho de assento. E, de­pois, derramara talco em si mesma. Enfim, cheirosa como um bebê, vestiu-se. Há muito tempo deixara de ter seio. Ao sair do banheiro, veio para o quarto, ca­minhando pelo corredor, no seu passinho imperceptí­vel — era tão leve e pequenina de uma fragilidade desesperadora — ela pensava na própria morte. Queria para si um enterro como o de Delfim Moreira, puxado por cavalos brancos e de penacho. Sim, antigamente os enterros eram mais bonitos. “Assassinaram o Pinheiro Machado”, pensou.

Tia Ceci entrou no quarto. Preparou-se para dor­mir. Nas últimas noites, dera para sonhar com o Del­fim Moreira. Era um velho bonito (aliás, um presiden­te sempre é bonito). Ela fora ao Rio e vira o Delfim Moreira. Tirara a cartola para ouvir o Hino Nacional. Quando êle passou, na carruagem, ela tia Ceci, pôs-se na ponta dos pés; gritou, esganiçadamente: — “Viva o Doutor Delfim Moreira!” Da carruagem, o Presidente sorria, fazendo um aceno — e tinha qualquer coisa de chinês na fisionomia.

A velhinha deitou-se. Naquela casa, ninguém con­cedia a mínima importância à tia Ceci. Estava nessa idade em que a pessoa perde como que o direito de in­sistir na vida. De vez em quando, o Dr. Arnaldo a olha­va, entre surprêso e descontente, como se perguntasse: — “Como? Ainda vive? Não morreu ainda? Ora veja!”

Agora estava na cama com os pequeninos pés de fora — pés tão leves e tão frios. Ela pensava na Revolta da Armada, quando ouviu um grito de homem. Mas não se espantou, nem teve mêdo. Tia Ceci dormia mais de dia, na cadeira, com o rosário no regaço, escorren­do pelos joelhos. De noite, tinha insônias. Que signifi­cava um grito a mais para quem vivia em meio a uma fauna misteriosa e triste de ruídos noturnos? Tôdas as noites Tia Ceci ouvia outros gritos, outras vozes. Na calçada, transeuntes retardatários davam berros e ri­sadas. Ela desperta, com o rosário nas mãos, imagi­nava que êsses transeuntes não seriam como nós, mas duendes de rua ou ainda: — mais vampiros do que simples moleques. Sílvio acabara de gritar. Todavia, tia Ceci não acreditou nos próprios ouvidos. Seria talvez um moleque, fazendo uma miserável imitação de grito.

O verdadeiro grito parece falso. Aquêle que sofre uma amputação ou, para repetir as palavras do próprio Sílvio, aquêle que sofre uma “mutilação hedion­da”, grita como nenhum outro faria. Dir-se-ia que ape­nas imita, que apenas falsifica a dor da carne para sempre ferida. Tia Ceci acha que alguém estava cini­camente imitando um grito.

 

Enquanto tia Ceci pensava na vacina obrigatória (a Saúde Pública queria vacinar as mulheres na coxa), Dr. Arnaldo abria um livro que um colega, o Saraiva, lhe emprestara. O Saraiva, que era a maior cabeça da Câmara — uma inteligência de escol — soprara ao seu ouvido, passando-lhe o volume: — “Lê isso, que vale a pena”. O livro estava encapado para evitar as cos­tumeiras indiscrições. O título dizia tudo: — “Nossa Vida Sexual” e o autor era de fora. Há várias noites que o Dr. Arnaldo lia (ou relia), fatalmente, o capítulo reservado às posições. Dir-se-ia que tudo o mais care­cia de interêsse. E o que impressionava é que o refe­rido trecho, embora descritivo, conservava um tom de casta objetividade. Dr. Arnaldo estava fazendo a re-leitura do capítulo, quando escutou aquêle grito de homem.

Era um berro, um uivo. No primeiro instante, êle duvida também. Admitiu que fôsse uma imitação de grito. Alguém estaria fazendo uma cínica simulação de dor. Com o livro aberto, esperou ainda. Todavia, fêz esta reflexão: — “Dentro de casa?” Ergueu-se, atônito, e, instintivamente, apanhou a bengala.

Em seguida, e simultâneamente, dois gritos femi­ninos. Precipitou-se para a porta, de bengala erguida. Três gritos dentro de casa. Abre a porta e se arremessa pelo corredor. Viu um vulto branco, batendo, com os punhos cerrados, na porta da biblioteca: — Letícia.

No seu quarto, tia Ceci ouvia tudo. Escutava a voz do Dr. Arnaldo:

— Letícia! Letícia!

Corre-corre na casa. Ataques de mulher. Mas tia Ceci ouvia demais. Escutava vozes, gargalhadas, passos. Alta madrugada, sentia gatos e galos no corredor. Ela própria não ligava mais para o escarcéu noturno. Fora a um médico, levada por tia Zezé; ouvira uma conver­sa de arteriosclerose. Há muito tempo que a velhinha não sentia mais tristeza, nem medo. Sim, há muito tempo que sua vida era um fio manso, um fio doce de memória. Ah, Delfim Moreira com calça listrada, boti­nas de botão! Também sua alegria era tão rala, tão tênue! E agora, dentro da noite, ouvia um gemido de homem — pesado gemido, pessoas correndo e trope­çando no corredor.

Tia Ceci julgava ouvir os berros do Dr. Arnaldo:

— Lençóis! Tragam lençóis!

Quando o velho chegara na porta da biblioteca, Letícia batia ainda, soluçando. Fora de si, êle a puxa pelo braço e a atira longe. Por sua vez, Dr. Arnaldo bate com a bengala e, simultâneamente, com o punho livre:

— Abram! Abram!

Súbito, alguém, pelo lado de dentro, escancara a porta. Ao entrar, o velho tropeça em Engraçadinha, alucinado, êle a derruba com um empurrão. Corre e, súbito, estaca. Via Sílvio e estupefato perguntava: — “Por que Sílvio e ensangüentado?” O espantoso é que êle não o reconhecera pelo grito. Aproxima-se:

— Sílvio! Sílvio!

Tem uma contração de estômago diante de tanto sangue. Olha para um lado e outro; berra; e berra para Engraçadinha que, encostada junto à parede, tapava o rosto com uma das mãos. Êle pensa: — “Vou vomitar!” Sempre com a bengala, pede aos berros:

— Lençóis! Lençóis!

Por um momento, teve uma sensação de impotên­cia diante da hemorragia. Continuava sem entender: — “Engraçadinha, aqui, de camisola, com Sílvio? E Letícia, do lado de fora, batendo na porta?” Apareceu o lençol — que alguém tinha arrancado da cama de Tia Ceci.

O velho amassava o lençol e queria estancar a hemorragia. Sílvio não olhava para ninguém, ou pior: — não tirava os olhos do pai. Oh, êsse olhar do homem que ainda sangra da mutilação! Dr. Arnaldo tapa, su­foca, a flor de sangue e vida. Berra:

— Assistência!

As tias não se mexem, como se aquêle lençol ver­melho as maravilhasse. Então, na sua fúria, êle uivou os mais hediondos palavrões. A própria Letícia, lívida, corre, em camisola, para o telefone. O que exasperava o Dr. Arnaldo era que estava sofrendo, digamos assim, uma inibição atroz. Estava lúcido e prático demais. Providenciara os lençóis, mandara chamar a assistên­cia e cuidava do filho com um diligência, ativa e efi­ciente. Essa eficiência é que parecia desumana. Teria preferido o desespêro. Gostaria de soluçar, de bater com a cabeça nas paredes, de mergulhar o rosto nas duas mãos e chorar como um menino, como uma crian­ça. Em vez disso, eis o que acontecera: — desabara so­bre êle um vácuo gelado. Oitava para enganar-se a si mesmo e aos outros. Todavia aquela impotência para o desespero era alucinante. Tinha que simular excita­ção. Os palavrões serviam-lhe como compensação. Eis a sua esperança: — “Daqui a pouco vou sofrer!”

E, súbito, nôvo berro:

— Fora daqui! Fora!

Escorraçava, enxotava as velhinhas. Só a tia Ceci ficou. Entrara de mansinho, com o pisar imperceptível dos pés miúdos; sentou-se num canto. Olhava o san­gue sem espanto. Alguém tinha-lhe dito: — “Sílvio machucou-se. Caiu e machucou-se”. Eis o que ela pen­sava, olhando sem mêdo e, com um mínimo de espan­to, apenas com uma curiosidade quase alegre, o sobri­nho mutilado: —”Caiu, Sílvio caiu”. Novamente, lem­brava-se de Delfim Moreira. Naquele tempo, as senho­ras usavam penas no chapéu e espartilho. Delfim Mo­reira tinha um sorriso bom. Sim, sorria como se fôsse um tio, um pai de todo o mundo. Por vêzes, ela achava que o Nosso Senhor devia ter a cara de Delfim Moreira.

Dr. Arnaldo pergunta:

— Por quê, meu filho, por quê? — E repetia: — Por quê você fêz isso?

Pensava: — “Não tira os olhos de mim!” Ao mesmo tempo, achava que devia ter feito a pergunta chorando. (Se ao menos, pudesse chorar! Ah, gostaria de mostrar ao filho que estava sofrendo até onde um pai pode sofrer). Sem desfitá-lo, o rapaz arqueja:

— Pai...

A princípio, não entende. Sílvio não sabia, não podia saber. Mas o rapaz insiste, com um olhar de bi­cho (exatamente, um olhar de bicho ferido): — “Meu pai”. Lívido, e sentindo-se mais magro do que nunca, pensa: — “Engraçadinha contou!” O ódio que sentiu pela filha deu-lhe uma brusca euforia. Enfim, experi­mentava um sentimento vivo e poderoso dentro do seu vácuo. “Daqui a pouco, estarei sofrendo e chorando”, pensou. “Mato Engraçadinha! Mato-a a pauladas!” Prometeu a si mesmo, apertando a mão do filho. Ainda não entendia porque êle se mutilara. “Mato-a de pan­cadas”, continuava. Não podia negar a própria pater­nidade. Todavia, preferiu não dizer nada.

 

Tia Ceci não sabia quanto tempo cochilou. Quan­do despertou, o médico da Assistência estava lá, com um enfermeiro. Dr. Arnaldo dizia ao doutor:

— O senhor, naturalmente, compreende que não é um acidente — e repetia a palavra — não é um aci­dente comum... A natureza do ferimento exige um sigilo e nem creio que o senhor queira desmoralizar um jovem que, de mais a mais, é noivo...

Tia Ceci viu levarem o rapaz. “Silvio machucou-se”, era o que sabia. O fio de memória passava por 1910. “A Saúde Pública quer vacinar coxa de mulher”. As tropas descem para a cidade. “Não podem vacinar coxa de mulher!” Durante dois dias, todos sofreram naquela casa, menos tia Ceci. De noite, na sua insônia de velhinha, ouvia gargalhadas cínicas por tôda a casa. No terceiro dia, Dr. Arnaldo apareceu. Vinha ainda mais esquálido, as faces mais ardentes e as canelas mais finas e vibrantes. Ao pensar na própria imagem julga-se parecido com um espectro de sátiro. Entra em casa e chama Engraçadinha. Tia Ceci, que vinha pelo corredor, no seu pequenino passo leve, viu os dois en­trarem na biblioteca.

Pai e filha estão finalmente sós. Êle estava mais forte porque, finalmente, chorara, no hospital. Ajoe­lhara-se junto à cama do filho e pedira perdão, mil vezes perdão. Sílvio não respondera uma única vez. Mas não tirava os olhos do pai. E, agora, diante de Engraçadinha, o velho sentia que jamais seria perdoa­do. “Vou morrer sem perdão”, era a sua certeza faná­tica.

Segurou a filha pelo pulso:

— Olha! Vim aqui te matar!

 

No seu ódio gelado, dominou a filha:

— Você é a culpada! Você!

Passara duas noites e dois dias, no hospital, sem dormir, bebendo cafèzinhos. Há dez anos não fumava. Dez anos! E, agora, com dois, três maços nos bolsos, não largava o cigarro. Fumava um atrás do outro, para saturar-se, até os ossos, de nicotina. Pensava: — “Estou cada vez mais magro!” Nos últimos dias ocor­ria-lhe pensar, freqüentemente, na própria figura. Es­peculava sobre a impressão que podia causar nos ami­gos, conhecidos e desconhecidos. Parecia-lhe que todo o mundo devia achá-lo sinistramente magro. Êle pró­prio considerava que assim esguio, com as mãos lívidas e os pulsos tão finos, assemelhava-se a um espectro de sátiro. “Ora veja!” E por quê “espectro de sátiro”. Era o que perguntava sem compreender por que atribuía a si mesmo tal semelhança. No hospital, certos doentes, já em convalescença, faziam-no parar:

— Como vai seu filho?

Tinha vontade de retribuir a cortesia a bengaladas. Corrigia:

— Sobrinho.

Passava adiante. Mas não via ninguém, ali, sem que perguntasse a si mesmo: — “Será que êsse sabe?” Vivia cercando o médico; baixava a voz:

— Conto com o senhor. Ninguém pode saber. Ninguém.

E ajuntava, sem ter de quê: — “Como presidente da Assembléia Legislativa...” Não completava a frase. Mas o simples fato de anunciar, e sempre com o acom­panhamento de um pigarro, de anunciar a sua quali­dade, a sua posição, insinuava ou um obséquio ou uma ameaça. Houve um momento em que, na sua excitação de tresnoitado, baixava a voz (seu hálito queimava) ;

— O senhor compreende: uma mulher pode per­der o útero, os ovários. Ela não muda.

Teve vontade, até, de sugerir que, num caso de histeria, a remoção de certos órgãos femininos podia significar um beneficio positivo para a própria mulher e para a família. Não chegou a tanto porque, dada as circunstâncias, não queria parecer irônico ou irreve­rente. Continuou, baixo e incisivo:

— Mas o homem, não! O homem é outra coisa. E o que aconteceu a meu filho, sobrinho...

Subitamente, começou a chorar. Oh, graças, graças! Chorava e sofria. Quis desculpar-se: — “O senhor compreende...” O médico foi admirável:

— Compreendo, compreendo.

Agarrava-se também com as enfermeiras: enfia­va-lhes dinheiro na mão: — “Ninguém pode saber!” repetia na sua obsessão pueril e lúgubre. Repetia para si mesmo que, na mulher, a extração de certos órgãos constitui um alívio, um descanso, ao passo que para o homem... De vez em quando, andando pelo corredor, alta madrugada, com o cigarro queimando nos dedos: — “Sílvio não é homem! Sílvio deixou de ser homem!” Até que, de repente, pensa na alma, descobre a alma. Dir-se-ia que uma luz o atravessava: —”Sim, a alma!” Abandonando um cigarro pela metade e acendendo um outro, tratava de pôr em ordem as duas idéias: — “Mas se uma simples mutilação, uma mutilação puramente física...” A enfermeira apareceu com um cafèzinho. Depois de agradecer e mexendo o café, continuou, ilu­minado: — “A alma está intacta”. E, afinal de contas, quem dá a nossa identidade é a alma. “Se a alma” — raciocinava contra si mesmo — “não foi mutilada, se a alma permanece”. Passou uma noite inteira fumando, tomando cafèzinho e repetindo: — “A alma! Se Deus existe; sim, se Deus existe, o que vale é a alma e tudo o mais é detalhe!” Sob a excitação da insônia, repetia, com a sua fúria de magro: — “Qualquer mutilação é um detalhe!” Quando a enfermeira veio, quase ao amanhecer, com um outro cafèzinho, êle disse, com uma fronte erguida de fanático, de santo:

— Tudo é detalhe!

Passara 48 horas sem dormir, ou, por outra: cochi­lara alguns minutos, atirado em cima de uma cadeira. Mas o sono era tão tênue e tão ralo, tão transparente e, ao mesmo tempo, tão semelhante à realidade, que au­mentava a sua angústia. Num dêsses cochilos, vira-se na Assembléia demonstrando, por A mais B, que os nossos órgãos, ainda os supostamente essenciais — constituem, isoladamente ou em conjunto, um detalhe. Dirigindo-se ao plenário, dava murros no peito: — “A igreja está comigo”. Durante os dois dias, sem comer e sem dormir, entrava, de vez em quando, no quarto do filho. Na porta, estava um papel taxativo: — “Proi­bidas as visitas”. No quarto em penumbra, o filho dormia. Todavia, o Dr. Arnaldo não acreditava naquele sono. “Êle me odeia, e por que, se a culpada foi Engra­çadinha?”

Por um breve momento, Sílvio abre os olhos. O ve­lho inclina-se, sôfrego:

— Sílvio.

E o rapaz diz, quase sem mover os lábios:

— Pai.

Só Dr. Arnaldo continuava a repetir para si mes­mo que, se Deus existe, o que acontecera fora um de­talhe, um vil, um miserável, um ínfimo detalhe. E a culpada era Engraçadinha. “Sílvio continua o mesmo, exatamente o mesmo. E se mudou, se deixou de ser êle mesmo, então Deus não existe”.

 

Letícia aparecera por lá. Barrou-lhe a passagem:

— Volta.

Sem pintura, os lábios quase brancos, balbuciou:

— Queria ver Sílvio.

Repetiu, sumário:

— Volta.

A pequena ainda vacilava: — “Mas, titio!” Êle crispa a mão no seu braço:

— Olha! Eu não sei o que foi que houve. Sei ape­nas que você e Engraçadinha e, sobretudo, Engraçadi­nha — respira fundo e prossegue: — Engraçadinha, a cadela da minha filha. Pode ser minha filha, mas é uma cadela. Sei que vocês duas são culpadas.

Começa a chorar: — “Mas eu não fiz nada. Eu nem...” Dr. Arnaldo corta, com a voz estrangulada:

— Saia da minha frente, sua...!

Teve um brusco mêdo desse velho lívido e trêmulo. Afastou-se, gelada de mêdo e de vergonha. Eis o que Letícia ia pensando: — “Engraçadinha é mais culpa­da...” Estaca adiante. Vacila um momento e retro­cede. Disse, num jato:

— Engraçadinha não é culpada de nada. A culpada sou eu, Engraçadinha, não.

Ao mesmo tempo, pensa: — “Eu morreria por En­graçadinha”. A idéia de sacrificar-se e, mesmo, de morrer pela outra — essa idéia a transfigurou. Foi no­vamente expulsa. Bateu-lhe, de leve com a bengala, nas pernas, enxotando-a: — “Rua!” Enfim, Letícia partiu. Dr. Arnaldo ficou, no corredor, apoiado na bengala — e odiando a filha. Precisava odiar a filha para não enlouquecer. E precisava também (sobretudo isso!) convencer-se de que mutilação era um detalhe. “O diabo é que eu não estou convencido”, pensava. De fato, não estava de todo convencido: “É um detalhe”, repetiu, começando a chorar. Se Deus existe, é um detalhe!

Na última vez, porém em que esteve no quarto Sílvio passou uns cinco a dez minutos acordado. Su­bitamente, Dr. Arnaldo percebeu, pela expressão do seu olhar e de sua bôca, percebeu que o filho deixara de ser êle mesmo. Era um outro ser, um pobre ser am­bíguo, lúgubre, com um olhar de boi atônito, ou, me­lhor: — não de boi, mas de peixe, de lerdo e fantástico animal submarino.

Neste momento, olhando aquêle ser enfaixado, aquele ser enrolado na cintura, o velho foi tomado de uma certeza maligna:

— Não é um detalhe! Deus não existe!

 

Todos os médicos do hospital e as enfermeiras o haviam aconselhado:

— O senhor precisa descansar. Dormir um pouco.

Ouvia e pensava: — “Realmente, não é um deta­lhe”. O médico que cuidava de Sílvio veio caminhando com o velho pelo corredor:

— O senhor vai e, mais tarde, depois de dormir três ou quatro horas — volta.

Respirou fundo: — “Tem razão. Preciso descansar” Deixando o médico, decide: — “Mato Engraçadinha”. E pensa, descendo as escadas do hospital, que se Sílvio morresse já não seria um cadáver como os outros. Certos mutilados têm uma morte própria, uma morte exclusiva, de uma solidão mais gelada.

 

Diante da filha, e cara a cara com a filha, estra­çalha nos dentes um palavrão. E continua:

— Você vai morrer!

Coisa curiosa! Sentia, ao mesmo tempo que a do­minava, que Engraçadinha estava sem mêdo. Erguia o rosto em desafio:

— Eu não vou morrer!

Êle não entende. Pergunta: — “Não vai morrer?” E ela:

— Eu não!

Berra:

— Você me desafia?

Engraçadinha desprende-se violentamente:

— Desafio! E olha: — eu vou ter um filho.

O velho recua, desconcertado. Repete: — “Filho?” Não parou mais:

— Um filho! Que há de nascer! E ninguém vai to­car nesse filho!

Pára. Os dois se olham. O velho tem um esgar de chôro: — “Um filho, um neto”. Diz, quase sem voz:

— Os dois precisam morrer: — você e seu filho.

 

Chega, ali, com um ódio frio, sem paixão, de uma lucidez gelada. Estava diante da filha e continuava com obsessão do corpo magro (Os magros só devem amar vestidos, eis o que pensou, lembrando-se das próprias canelas finas e vibrantes).

Baixa a voz:

— Essa criança não pode nascei

A voz lhe fugia e êle repetiu para si mesmo: — “Se Deus existe, o sexo é um detalhe”. Êsse rosto erguido diante dêle, êsse corpo a um tempo erecto e fremente, essa bôca mais cruel que voluptuosa! Êle continua, sen­tindo-se odiado:

— Você vai ao Bergamini...

— Não vou!

E o velho, sem ouvi-la:

— Vai ao Bergamini...

— Não.

Pára assombrado. Dr. Arnaldo pensa que devia estar gritando, devia estar assombrando a casa com os seus gritos. Mas sua vontade quebrava-se na impotência de odiar. Se ao menos explodisse em palavrões! A por­nografia irresponsável e selvagem daria, sim daria uma espécie de excitação, de embriaguez, de violência arti­ficial. Com dor nos maxilares, pergunta:

— Não vai ao Bergamini por quê?

— Não quero.

Alteia a voz:

— Mas por quê?

E ela passando, de leve, a mão pelo ventre, numa involuntária ternura:

— O filho é meu — e completou, velando a voz: Só meu.

Estende para Engraçadinha a mão crispada:

— É filho de Silvio.

— Era.

O velho não entende: — “Era?” Ela ergue o rosto, fecha os olhos:

— Morreu.

— Quem?

— Sílvio.

Espanta-se:

— Está vivo.

— Morto.

O velho exaltou-se novamente. Berra (Oh, graças, porque o ódio rompia, finalmente). Anda de um lado para outro, tropeça nas cadeiras. Grita com a filha e, ao mesmo tempo, pensa: — “Digo ou não digo pala­vrões?” O que êle queria dizer, e as palavras lhe fu­giam, é que qualquer mutilação é um detalhe. Não im­porta a hemorragia. O sangue pode esguichar, enso­pando muitos lençóis. E, apesar disso, a amputação, qualquer que seja, é um detalhe. “Um detalhe!” repe­tiu. “A Igreja está comigo!” E continua:

— Eu vim do hospital e deixei Sílvio vivo!

— Morto!

E êle:

— Cachorra!

Gritou também:

— Assassino!

Estupefato, balbucia:

— O quê?

Numa euforia cruel, que a embeleza, repete, apai­xonadamente:

— Assassino!

— Eu?

Disse ainda, com um mínimo de voz e quase sem ódio:

— Assassino.

Êle ia perguntar, e não o fêz, por que assassino? Arquejante, olha apenas. Sente que qualquer palavra é inútil. Como convencê-la que a mais hedionda das mutilações é um detalhe? Ninguém entenderia, só Deus. E, novamente, com envenenada satisfação, faz de Deus um cúmplice. Dir-se-ia que Deus está, ali, como uma terceira presença — física, palpável, solidária. Não há mais nada a dizer, mas êle precisa excitar-se, simu­lar para si mesmo um mínimo de chama, de paixão, de loucura.

Agarra a filha:

— Escuta! Se outra vez você me chamar de assas­sino ...

Ao mesmo tempo que a segura com a mão livre, ergue a bengala:

— ...se me chamares, eu...

Engraçadinha interrompe, com um ódio sem vio­lência, quase terno:

— Assassino.

Gagueja:

— E se eu te abrir a cabeça?

— Duvido.

Geme:

— Tu me desafias?

— Assassino.

Naquele momento, ela pensava: — “Culpado de tudo, de tudo! Por que não calou? Só êle sabia e por que não calou?” Se o pai tivesse guardado o mistério para si mesmo, Sílvio seria apenas o amante e não o irmão. E depois, quando se casasse com Letícia, con­tinuaria sendo ainda o amante, eternamente. A ben­gala continua no alto. Todavia, o velho sabe que não vai desfechar o golpe. “Se ela me cuspisse na cara” — eis o que pensa — “se me cuspisse, talvez eu me exaltasse”. Mas seu ódio era descontínuo, não conse­guia, fixá-lo. E não entendia a coragem da filha, a sua calma intensa, a sua apaixonada serenidade. Depois que vira o ser amado mutilar-se — perdera todo o mêdo e todo o espanto. Dir-se-ia que êle também a ferira na carne, para sempre. Agora, diante do pai, sentia apenas o pesado vazio do êxtase perdido. Gos­taria de dizer ao velho: — O que estava lá, no hospital, era outra coisa, outro ser e não o verdadeiro Sílvio. Ela pensava, por outras palavras: — “O verdadeiro Sílvio está comigo, em mim”. Repetia: — “Silvio em mim, tão profunda e dolorosamente no meu útero”.

Dr. Arnaldo baixa a cabeça:

— Vai.

Deixa a filha afastar-se alguns passos. Súbito, grita:

— Escuta!

Engraçadinha estaca. Êle põe-se a berrar, numa euforia total:

— Aqui só há um morto. Eu! Só eu morri! Só eu estou morto!

Engraçadinha estava tão voltada para si mesma, que mal olhava e mal ouvia êsse magro frenético e exultante.

Dr. Arnaldo parecia agredir o mundo com a pró­pria morte:

— Morri, Engraçadinha, morri!

Lá fora, junto à porta, escutando tudo, amontoa­vam-se as velhinhas. Tia Ceci deduz: — “Arnaldo mor­reu”. Engraçadinha abre a porta e sai. De vez em quando, julga ver o risco luminoso da navalha.

 

A partir de então, sempre que cruza com o tio Ar­naldo no corredor, tia Ceci confirma, para si mesma: — “Morreu, Arnaldo morreu”. O velho não saía do hos­pital. Não admitia a visita de ninguém, e, muito menos, de parentes. Considerava os parentes (textual) — “uma corja”. Só vinha em casa, de passagem, para tomar banho, mudar de roupa interior. Dava um pulo diário na Assembléia, um pulo rápido, mas, coisa curiosa: —-sentia, lá, um desses tédios irremediáveis. Até o Sarai­va, que a sua grande e subserviente admiração, até o Saraiva já o imitava. Passara a achá-lo, textualmente, “outra bêsta”. No quinto dia, aparecera, no hospital, um repórter, farejando aquela desgraça de família. Dr. Arnaldo precipitou-se; arrastou-o para um canto:

— Não houve nada, rapaz! Toma, toma, pra uma cervejinha!

Enfiou-lhe na mão uma nota de cinco mil réis. E, assim, põe o jornalista de lá para fora. Por um mo­mento, êle experimenta a sua vaidade de capixaba. E, com efeito, graças a Deus ainda se podia, no Espírito Santo, silenciar um jornal com tão pouco. No Rio, ja­mais. A imprensa carioca era uma vergonha. Andando pelo corredor, de uma extremidade a outra, e cumpri­mentando ora um médico, ora uma enfermeira, ora um convalescente — pensou na recente polêmica entre o Macedo Soares e o Geraldo Rocha. Só matando a pau­ladas, no meio da rua. E o Dr. Arnaldo pensava: — “Ah, o Hitler aqui! O Hitler punha o Geraldo e o J. E. numa parede, e mandava fuzilar!” Talvez o fuzilamen­to fôsse uma solução benigna demais, indolor demais. O Hitler também podia fazer o seguinte: — amarrar o Macedo Soares e o Geraldo num pé de pesa. Os dois teriam que beber, de gatinhas, numa cuia de queijo Palmira e de comer numa lata de goiabada. “Uns to­madores de dinheiro!”, concluía para si mesmo. E se tal polêmica fora possível, já não se podia falar em “família brasileira!” Uma família que lê semelhante imprensa nunca foi família nem aqui, nem na China!”

Súbito, uma enfermeira aparece: — “Seu filho está chamando”. O velho retifica:

— Sobrinho. Não é filho: — sobrinho.

Êle veio, em passos rápidos, do fundo do corredor. Pensava agora no Benedito Valadares. O olhar do Benedito, e não só o olhar: — o ventre (o Benedito tinha uma certa barriga), mas sobretudo o olhar era de um Nero de fita de cinema. Detestava o Benedito. E, nova­mente, imaginou-o, também de gatinhas, sòlidamente amarrado num pé de mesa — bebendo água numa cuia de queijo Palmira.

Entrou no quarto do filho. Aquela penumbra en­louquecia o doente e as visitas. Na sua fúria, pensa: “Será que os cretinos dêsses médicos não percebem que essa penumbra é criminosa?” O médico já vai saindo:

— Está bem melhor — e repete, na sua cordiali­dade melíflua e mercenária — bem melhor. Tomou um caldinho. Com licença.

Aproxima-se do leito. Experimenta agora uma pena brutal. É um sentimento nôvo na sua vida. Inclina-se sobre aquela carne para sempre ferida. E, ao mesmo tempo, ocorre-lhe uma imagem exasperante e absurda: — o Benedito Valadares lavando-se numa banheira de leite de cabra, como um flácido Nero de fita de cinema. Dr. Arnaldo ajoelha-se; solução (encostara a bengala na cama):

— Meu filho, quero o teu perdão para morrer. Vo­cê me perdoa?

O mutilado responde, com um olhar atônito de monstro marinho:

— Não.

 

Ficou ainda algum tempo de joelhos, junto à cama do filho. Sabia, porém, com uma certeza desesperadora, que Sílvio jamais o perdoaria. Ergueu-se, com esforço:

— Deus te abençoe, meu filho.

E, ao mesmo tempo, pensava em Benedito Vala­dares. Perguntava a si mesmo: — “Parece incrível que eu, neste momento, exatamente neste momento, diante do meu filho...” Sim, diante do filho, diante de uma cicatriz hedionda, que ainda sangrava — era incrível que êle pensasse em Benedito Valadares. Via o político mineiro, com um certo ar, um certo jeito de Nero de Cecil B. de Mille e, sobretudo, com êsse mínimo de barriga que o corrupto exige. Depois de curvar-se e apanhar a bengala, respira fundo:

— Vou-me embora, meu filho.

“Se êle, ao menos, não me olhasse”, era o que di­zia a si mesmo. Renunciara ao perdão, para sempre. Abandonando o quarto, deixando aquela penumbra meio lunar de fundo marinho — pensava: — “O ser humano é tão débil mental que pode pensar na mutila­ção de um filho e, ao mesmo tempo, no Benedito Vala­dares”. Cumprimentando uma enfermeira, com uma leve inclinação de cabeça, êle fêz de si mesmo um exemplo: — “Eu. Vejamos eu. Estou aqui sofrendo pelo meu filho”. E, simultaneamente, não lhe saía da cabeça a figura do Benedito Valadares. Era, já, uma fixação humilhante. Benedito Valadares sempre o impressio­nara por um detalhe pueril: — a barriga de magro. Era, sim, um magro barrigudo. E o Dr. Arnaldo desce as escadas do hospital, num amargo descontentamento de si mesmo: — “Eu só devia pensar no meu filho” Entretanto, não se libertava do político mineiro, que continuava, dentro dêle, ralando-o. Furioso, com a barriga de magro, o Governador de Minas teria mandado fazer uma piscina suntuária no próprio Palácio da Liberdade. E a imagem que perseguia agora o Dr. Arnaldo, e não lhe dava sossego, era a do Benedito na tal piscina — montado num tubarão de borracha.

Quando ia saindo, apareceu o diretor do hospital, o Dr. Barcelos. O médico abriu-lhe os braços, na sua efusão de mercenário. (“Ah, ladrão!” foi a praga in­terior do deputado), Dr. Barcelos perguntava:

— Já vai?

E êle:

— Volto já.

Ao mesmo tempo que apertava a mão do médico (uma nulidade voraz!), pensava: — “Dizem que o Be­nedito assina despachos na banheira!” Talvez fôsse exagero, caricatura folclórica, talvez. A ser verdade, porém, vamos e venhamos: — era mesmo um Nero de Cecil B. de Mile. “O Brasil precisa de um Hitler”. O médico baixa a voz:

— E seu filho?

Corrigiu, furioso:

— Sobrinho.

Pareceu surpreso, quase consternado:

— Não é filho?

Repetiu, agressivo:

— Sobrinho!

E o outro, atrapalhado, com uma aguda suspeita de “gaffe”:

— Ora veja!

Secamente, e ressentido com os preços do hospital, faz um aceno: — “Até já”. Toma um táxi e, no mo­mento de dar o endereço, confunde-se. Pergunta a si mesmo: “Vou para onde?” Para casa? Eis a verdade: — não tinha nada a fazer em casa, absolutamente. Ao mesmo tempo, o filho — ainda sangrando da mutilação — o escorraça, o enxotara do hospital. “Não serei jamais perdoado!” E repetiu, com uma certa doçura: — “Jamais!” Jamais ou nunca mais. Diz: —”Êle me odeia!” Logo, porém, retifica: — “Êle não pode odiar” Parecia-lhe que o rapaz teria a mesma impotência para o amar e para o ódio. Passou alguns minutos pensan­do só no filho e na hemorragia inestancável — esque­cido do Benedito Valadares.

Foi ao descer em casa, e ao pagar o “chauffeur”, que êle se enfureceu, novamente. Recebendo o troco, vociferava, interiormente: — “Se é verdade essa his­tória, se êle, realmente, tomava banho e, ao mesmo tempo recebia o Secretariado; se, ensaboado, despa­chava...” Fremente de imaginação, Dr. Arnaldo come­çava a subir os degraus: — “Onde é que nós estamos?” Pára no meio da escada. Apoiado no corrimão, pensa ainda no seu cruel sarcasmo: — “Um governador que despacha nu é puro Molière!” (Jamais lera Molière). A não ser que, para bem do Brasil, tudo fôsse simples e irresponsável folclore. Em todo caso, era estranha e suspeita aquela figura de magro barrigudo.

Zózimo aparece na porta. Abre um riso largo e bom. Então, transtornado de alegria — uma súbita e dilacerada alegria — Dr. Arnaldo sobe precipitada­mente:

— Oh, Zózimo!

E o rapaz, sem entender a veemência do velho, deixando-se envolver e abraçar:

— Dr. Arnaldo!

O deputado continua (numa satisfação que o en­vergonha e que êle próprio acha estúpida) :

— Vamos conversar, ó Zózimo!

Arrasta-o para um banco, colocado numa extremi­dade da varanda. O Dr. Arnaldo exulta porque, afinal, parece que se libertou daquela fixação idiota, mil vezes idiota, do Benedito Valadares. Começa comovido:

— Escuta, Zózimo, eu estou pra te perguntar uma coisa...

O diabo era a vontade de chorar. Pigarreia:

— Você, Zózimo, tem, não tem, ou estou enganado? Uma certa vergonha, digamos assim — você entende? — vergonha de ser bom?

Balbucia:

— Como?

Realmente, não entendia nada. Na sua confusão, chegou a desconfiar que talvez o velho tivesse bebido, pela primeira vez na vida. Ao mesmo tempo, repeliu a hipótese. Não queria admitir absolutamente um Dr. Arnaldo bêbedo. O velho respirou fundo e tenta ser claro:

— Agora mesmo, Zózimo, neste instante: — você está vermelho! Eu só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam! Zózimo, creia: — ninguém se ruboriza mais no Brasil! Por isso é que eu acho, não sei se estou enganado: — mas acho que você tem vergonha de ser bom!

Zózimo não sabia onde se meter. Dr. Arnaldo er­guia-se:

— Zózimo, o que eu queria dizer. Não tenha vergo­nha de ser bom, Zózimo, mas o que eu queria dizer é o seguinte: — eu quero que você se case, imediatamente, com Engraçadinha. Entende?

Eis o que pensa Dr. Arnaldo: — “Se êle soubesse que Silvio deixou de amar, de odiar”. Ergue a voz:

— Engraçadinha é sua! Fique com Engraçadinha!

Zózimo parecia espantado: — “Minha?” Dr. Ar­naldo afasta-se. Entra na sala; vê Engraçadinha:

— Chega aqui, minha filha.

De braço com a filha, caminha, lentamente, até a extremidade do corredor:

— Vamos imaginar o seguinte: — se eu estivesse morrendo. E se eu te chamasse e te fizesse um último pedido? Você atenderia?

— Depende.

O velho estaca. Começa a sofrer:

— Minha filha! Não se recusa o pedido de quem está morrendo!

Êle, desesperado, já começava a imaginar que a filha também fora ferida, para sempre; que talvez ti­vesse perdido o útero e os ovários da alma. Pergunta, sem amor, nem ódio:

-— Mas que pedido?

Dr. Arnaldo deixa passar um momento. Aperta o braço da pequena:

— Tira êsse filho. Não deve nascer. Não pode nas­cer. Sim?

— Não?

Crispa a mão no braço da moça:

— E se eu te disser que é um último pedido? O último, Engraçadinha? Você compreende o que é “o último?” Responde: sabe o que é pedir pela última vez e nunca mais? Nunca mais pedir? Fazes isso por mim?

— Não.

Por um momento, só por um momento, teve vonta­de de bater-lhe na bôca com as costas da mão. Ao mes­mo tempo, sentiu que era inútil. Pensava novamente em Benedito Valadares: — o magro barrigudo! Deixa a fi­lha e, sem uma palavra, entra na Biblioteca e tranca-se lá. Caminha até a secretária, abre a gaveta e embolsa o revólver. Anda de um lado para outro, sempre com a bengala (a besta obscena do Aprígio espalhara a ane­dota segundo a qual êle era amancebado com a ben­gala). Há dois dias que, vivendo a agonia do filho, não pensava na “cunhada impossível”. Só a possuíra uma vez, uma única vez. Um magro ou, pelo menos, certos magros não devem se despir para o amor. Sentando-se no divã, êle pensa em si mesmo e nas suas canelas espectrais. E, então, começa a se despir. Pela primeira vez — após tantos anos — teve ódio daquelas ceroulas de amarrar nas canelas, com duas voltas. An­dou um momento, pela biblioteca, de botinas, bengala, com a sua nudez esguia e lívida. Essa auto-flagelação de magro deu-lhe uma satisfação feroz. Em seguida começou a vestir-se, novamente. Amarrando as cerou­las, imaginou, ainda uma vez, o Benedito Valadares cavalgando um tubarão de borracha; e, depois, via o mesmo Benedito Valadares, no banho, despachando, com um secretariado subserviente e alvar.

Finalmente vestido, Dr. Arnaldo tira o revolver. Olha a arma com um corto amor triste. Naquele momento, queria só pensar na mutilação do filho. Se pudesse excluir tudo o mais, afastar de si o magro barri­gudo de Minas ou, ainda, o Macedo Soares, de gatinhas, bebendo água na cuia de queijo Palmira — se pudesse pensar e só pensar na cicatriz que ainda sangrava. Lembrou-se do ventre da cunhada, o ventre que não podia ter beijado. Rezar, talvez. Não, não quero rezar. Apanha o revólver, introduz lentamente o cano na bôca. Mas aquilo pareceu-lhe de tal forma uma pene­tração obscena que preferiu, então, o tiro na cabeça. Encosta o cano na fronte. “Agora, só vou pensar em Sílvio”. Mas houve uma espantosa superposição de imagens — de Sílvio, dos lençóis ensangüentados, do Benedito nu, assinando despachos. Puxou o gatilho.

Morreu sentado.

 

Quando o delegado saiu da biblioteca, tia Zezé atracou-se com a autoridade. Soluçava:

— Autópsia, não! Autópsia, não!

De um momento para outro, o homem foi envol­vido e quase varrido por uma onda de velhas. Cercado, agarrado por umas cinco ou seis, tropeçou numa delas e ia caindo; balbuciou:

— Calma! Que é isso? Calma!

Tia Zezé, que era a menos velha e, justamente, a mais frenética, berrava: — “A família não quer! A família não admite!” Em meio de todo aquêle alarido feminino, só a tia Ceci — pequenina e ressecada como a múmia de uma anã — só a tia Ceci passava, doce­mente, com jeito meio alado, por entre os gritos e os ataques. A morte não a espantava. Segundo lhe parecia, não era a primeira vez, nem seria a última, em que o Dr. Arnaldo morria. Há tempos, ela o vira berrar: — “Eu morri!” Lembrava-se de Aquidabã, onde tinham sido despedaçados tantos guardas-marinhas.

O delegado, que estava ali, acompanhado do co­missário e dois detetives, e que já olhara o cadáver — teve de usar uma certa energia:

— Escuta, minha senhora! Oh, minha senhora, um momento! — E repetia: — Um momento! Posso falar, minha senhora?

Quase o agredia: — “Autópsia, não!” Simplesmen­te, a autoridade, já indignada, queria dizer que não ia haver autópsia, absolutamente: — “O suicídio está ca­racterizado”, afirmou, fêz uma pausa e disse com um certo e premeditado preciosismo verbal: — “Liberei o corpo, minha senhora!” Ela, porém, fora de si, numa fixação delirante, abraçava-se à autoridade: — “Tudo, menos autópsia!” Sempre tivera horror de médico le­gisla. Fora vizinha de um dêles. O homem parecia-lhe um fauno lúgubre de necrotério. Vira-o, uma vez, ao re­gressar de uma miserável exumação. Pois o homem es­tava transfigurado, uma cintilação nos olhos e tôda uma euforia de necrófilo inconfesso. Não, não admitia que... O delegado desvencilhou-se, finalmente, e ia repetindo:

— Liberei o corpo! Com licença! E passando o lenço no suor da testa e da nuca, insistiu: — Liberei o corpo!

Imediatamente, a residência encheu-se. Ninguém entendia o suicídio: — “Como? E por quê?” Até o Aprígio apareceu por lá, num desses assombros totais. Perguntava a um e outro: — “Não foi crime?” Levara anos a fazer uma troça diária e feroz do extinto; dizia, abertamente, com o riso imenso que o fazia sacolejar-se como uma estátua de préstito carnavalesco: “Um quadrúpede de 25 patas!” Essa síntese triunfal chegava a arrepiar. E eis que, de repente, recebe a notícia de que o homem, contra tôdas as previsões — metera uma bala na cabeça. O Aprígio respeitava os suicidas, ou, por outra — só respeitava os suicidas. No seu exagêro debo­chado, estava inclinado a crer que a morte natural é uma indignidade. Afirmava ainda, a encharcar-se de chope: — “Deus prefere os suicidas”. Pois bem: — o Aprígio fôra um dos primeiros a correr para a residên­cia do colega. Ia com o Xavier, que era taquígrafo na Câmara. O Aprígio desabafava, na sua impressão pro­funda :

— Agora acredito, sim, agora acredito que o Ar­naldo era casto. Casto, no duro, casto batata.

O Xavier não entende:

— Por quê?

E o Aprígio, fúnebre:

— Claro! O sujeito que não papa ninguém só tem uma solução: — a bala na cabeça!

Entram na casa do morto. E, súbito, o deputado vê, num canto, a filha do colega, a Engraçadinha. Por um momento, a morte passa para um plano secundário. Cutuca o taquígrafo: — “Espia!” Estava assombrado. Bandalho como êle só, costumava dizer na sua irresponsabilidade jocunda: — “Mulher, a partir de 11 anos!” Era um alegre, e, mesmo, um obsceno exagêro. Todavia, recebia, na Câmara, a visita de meninas de 15, 16. A filha do morto, com a sua graça adolescente, correspondia ao seu gôsto brutal. Xavier virou-se para Engraçadinha. Os dois foram, sòrdidamente, cumpri­mentá-la :

— Meus pêsames.

Engraçadinha assoa-se no lencinho:

— Obrigada.

O Aprígio era assim. De vez em quando, assal­tavam-no desejos medonhos.

O Xavier, vermelho, agoniado, concordava em que Engraçadinha era, realmente um biju. E, então, numa melancolia pesada e honesta, aquêle patife jocundo suspira: — “Vê tu. Quando eu me lembro que aquela menina vai se casar com uma bêsta e que eu, que nós...” A frustração doeu-lhe fìsicamente como uma nevralgia.

 

Ninguém escutara o tiro, ou, por outra: ouviu-se um barulho, um estampido. Mas a impressão, que se teve, foi de uma bombinha junina, inofensiva e irres­ponsável. Só depois é que, na hora do jantar, bate­ram na porta. Nenhuma resposta. Chamaram um bom­beiro hidráulico, que, por coincidência, estava, no mo­mento, desentupindo uma pia. O rapaz era forte. Meteu, primeiro, os ombros; em seguida, o pé. A porta abriu-se com estrondo. Eis o que viram: — o Dr. Ar­naldo, sentado, a cabeça tombada para a frente; en­costada na cadeira, a fidelíssima bengala. As velhi­nhas da casa, as criadas, encheram as salas, os quartos, a varanda, com seu alarido. Apenas a tia Ceci não cho­rava, nem sofria. Não era a primeira vez que Arnaldo morria.

Engraçadinha estava deitada. Ouviu o barulho e correu. Alguém vinha saindo da biblioteca:

— Morreu!

Exclamou para si mesma: — “Papai!” Sabia que era êle. Quando Dr. Arnaldo fizera o “último pedido”, o “último” (para nunca mais), ela já o viu como um cadáver. Olhava para o velho e tinha a sensação de que êle estava morto — tão morto como o Sílvio. Ninguém mais morto do que o Dr. Arnaldo ao pedir aquela “úl­tima vez”. Ao vê-lo afastar-se, ela sabia que o pai ia matar-se. E agora a família punha-se a ter ataques.

Alguém a sacudia:

— Chora, menina!

Balbuciou:

— Eu?

E a tia:

— Chora!

Depois que vira a lâmina viva na mão de Sílvio, depois que vira a navalha fazer um risco de luz — ela já não podia chorar. Era tão pouco o suicídio do pai diante da mutilação de Sílvio! Alguém que, no seu desespêro gelado, não identificou, alguém berrava-lhe:

— Chora, menina!

“Meu filho”, pensa — “meu filho vai nascer”. Po­dia chorar por Sílvio e não pelo pai. “Mas Sílvio está em mim, o verdadeiro Sílvio está em mim”. No leito do hospital, agonizavam os restos de Sílvio. “O verda­deiro Sílvio está comigo”. E, súbito, começa a chorar. Não era pelo pai, mas por Sílvio. Chorava aquela mu­tilação em flor!

Uma voz sussurrou-lhe:

— Vai ver teu pai!

Alguém opôs-se:

— Já, não!

E ela:

— Quero ver!

Tias que, de momento, não identificou, a levaram. Sussurravam: — “Cuidado! Cuidado!” Cuidado de quê e por quê? Diante do pai, com orifício de bala na fronte, ela não sabe o que fazer. Morto, estava me­nos pálido do que em vida. E, súbito, Engraçadinha caí de joelhos diante do morto (a bengala não o aban­donara). Soluça com tal violência que, em redor, houve um alívio. “Tem sentimento”, eis o que pensavam as velhinhas.

Ela, porém, não chorava pelo pai. Chorava por Síl­vio, pela mutilação. Se, naquele instante, pudesse adi­vinhar! Mas, no primeiro momento, ao vê-lo de nava­lha — pensou em si. Imaginou que o rapaz ia marcar-lhe o rosto ou, talvez decepar-lhe um seio. E se pen­sasse que ia ferir-se a si mesmo, ia ferir para sempre a própria carne!

Depois a câmara ardente. Numa parede da sala, um grande quadro: — a ceia, em relêvo prateado; e em outro uma natureza morta. Ela continuava choran­do. À meia-noite, quiseram levá-la:

— Vem descansar um pouco!

Reagia:

— Não!

E alguém:

— É tarde!

Ela, porém, não abandonou o velório. E ninguém podia imaginar que seu morto não era aquêle. Chora­va por um morto que ainda agonizava. Aquêle que estava ali, velado por altas autoridades, políticos, jor­nalistas e homens do povo — era o morto errado. Sú­bito, o Zózimo, que estava a seu lado, desde o primeiro instante, Zózimo pede:

— Meu anjo, você precisa dormir.

Vira-se, atônita, como se só agora o tivesse iden­tificado. Ergue-se:

— Vem cá, Zózimo.

Leva-o para uma saleta. Lá, agarra-se a êle:

— Oh, Zózimo! Vamos fugir, Zózimo!

Não entende:

— Fugir?

E ela, fora de si:

— Se você me ama, se você gosta de mim, oh, Zó­zimo — vamos fugir!

Zózimo não podia imaginar — e ela não diria nunca — que a noiva chorava por um morto que ainda agonizava. Fugir para longe daquele hospital, onde os restos de alguém sangravam eternamente.

 

Repetia, na Obsessão da fuga: — “Vamos, Zózimo, vamos!” O rapaz travou-lhe o braço:

— Para onde? Fala!

Ela trincou os dentes com tanta violência que Zó­zimo a segurou pelos dois braços e a sacudiu:

— Engraçadinha, escuta! Olha, Engraçadinha!

Tornou-se hirta nos seus braços. Por um momen­to, êle apertou a noiva de encontro ao peito e pensou mesmo em beijá-la na fronte. Engraçadinha, porém, desprendeu-Se bruscamente, recuando. Cruza os braços, num arrepio muito intenso. Êle, que sentira o corpo da menina unido ao seu, vibrando e vivendo junto ao seu por um instante, êle respirou fundo. Desejá-la naquele momento, quando havia um morto na sala... Ao abraçá-la, esmagara com o peito os seios da pequena. (E. no entanto, a poucos passos dali, um mor­to era velado). O brusco desejo, quase à sombra dos círios, deu-lhe um deslumbramento mesclado de ver­gonha e asco.

Baixa a voz:

— Querida, eu não sabia que você...

Pára, desorientado. Queria dizer que jamais ima­ginara que ela tivesse tanto amor pelo pai. Acrescentou para si mesmo: “Aliás, é muito bonito quando uma filha adora o pai. É lindo!” Engraçadinha pensa, transida de febre: — “Se êle soubesse que choro outro morto e não êste!” Queria ainda fugir para tão longe!

Ergue o rosto:

— Zózimo, eu te chamei aqui porque... Quero casar por êsses dias. Está ouvindo, Zózimo?

E êle:

— Continua.

A gente se casa e, olha: — não fico aqui nem mais um minuto — repetiu, rosto a rosto: — Nem mais um minuto. Não se esqueça! Se fôr preciso, me caso com a roupa do corpo e a gente embarca no mesmo dia.

O rapaz não entende essa fuga pânica: — “No mesmo dia? Você não acha que...” Interrompeu, vio­lentamente :

— No mesmo dia, Zózimo! Eu disse no mesmo dia! Saímos da igreja para a estação. E nem da igreja, Zó­zimo: — não quero casamento religioso. Do civil, nós saímos para a estação. Mas se você não quiser, ainda está em tempo.

Diante dêle, sonhou em voz alta: — “Nós vamos para o Rio. E, outra coisa: — eu posso morrer de fome no Rio” — começou a chorar — “mas não fico aqui!” Êle apanha as mãos da pequena; foi de humor doce e triste: “Morre-se de fome, pronto. Não se discute” Engraçadinha não terminara. Diz, sem desfitá-lo:

— Você sabe que estou grávida?

O velho negara a gravidez, e jurara: — “É virgem! A virgindade de munia filha prova a existência de Deus!”. Zózimo responde: — “Sei”. Engraçadinha co­meça a tremer:

— Grávida de outro, Zózimo! Por enquanto, você aceita. E se, depois, você odiar o meu filho? E, se odiar a mãe e o filho? Zózimo, escuta: — sabe por que meu pai morreu? Porque eu disse: — “Não tiro o meu filho!” Matou-se por isso. Zózimo, você me ama?

Apanha as mãos da noiva, beija uma e outra:

— Você duvida?

Ergueu a voz:

— Fala, me ama de verdade? Ama, Zózimo?

Quis agarrá-la:

— Escuta, Engraçadinha! Olha pra mim! Eu tenho veneração — escuta, Engraçadinha!

Desprende-se violentamente:

— Mentira! Você não gosta de mim! Ninguém gos­ta de ninguém!

O outro, desesperado, repete: — “Escuta, meu amor!” E ela, chorando:

— Responde: — o que é que você faria par mim, além de aceitar minha gravidez?

— Tudo!

Olhou-o com sôfrega curiosidade, como se o visse pela primeira vez (ao mesmo tempo, passa a mão pelo nariz). Êsse “tudo” que êle oferecia pareceu-lhe vago. Lembra-se de Letícia e pergunta:

— Olha! Eu tenho uma pessoa — uma pessoa, ou­viu? — que gosta de mim. O nome não interessa. Essa pessoa me disse que era capaz, até, — escuta essa, Zó­zimo — até de arranjar amantes para mim. Amantes!

Atônito, repetiu: — “Amantes?” Houve uma pau­sa. Engraçadinha sente que, como qualquer homem, Zózimo põe, no próprio amor, o limite de sua dignida­de pessoal. E, no entanto (eis o que ela pensa por ou­tras palavras), amar é justamente fazer indignidades. Parecia tomada de insânia: — “Não disse? Você não me ama!” Sem desfitá-lo, acrescentou, lentamente: — “Se me amasse, você arranjaria amantes para mim!” Desatinado, Zózimo ia responder, quando abrem a por­ta. Os dois se voltam, ao mesmo tempo: — era tia Zezé.

Entrou com uma bandeja:

— Trouxe pra ti, Engraçadinha!

Fazia tempo que a procurava por tôda a parte. Engraçadinha bateu com o pé:

— Ih! Não quero!

E a outra:

— Um biscoitinho só, minha filha!

Virou-lhe as costas:

— Ah, não aborrece a senhora também! Que amolação!

Zózimo interpõe-se:

— Um momento, tia Zezé!

A velha não gostou:

— Menina, olha êsses modos!

Já o rapaz a levava:

— Não liga! Está nervosa!

Tia Zezé sai, com o biscoitinho rejeitado. Zózimo volta. Engraçadinha o espera, em pé, os braços cruza­dos, com um sorriso muito leve, mas de uma intensa malignidade. Êle começa:

— Gosto tanto de ti que...

Mentira!

Com um certo asco da própria maldade, ela per­gunta a si mesma: — “Será que eu quero mesmo que êle me arranje amantes? E êle teria essa coragem?” A própria Engraçadinha não entendia aquela cruelda­de frívola e inútil que a levava a torturá-lo. Em vez de estar, ali, humilhando o noivo — a troco de nada — devia estar na sala, fazendo quarto a um morto, em­bora chorando outro. Mas reconhecia que era tão bom, tão gostoso destruir um homem! Se quisesse — eis o que ela pensava — se quisesse, Zózimo ficaria de gatinhas, ali, para que ela o montasse. E assim, levando-a na garupa, os dois invadiriam o velório.

Saturada de si mesma, suspira:

— Vamos, Zózimo.

E êle:

— Te amo.

Parou um momento. Pergunta, baixo (com uma maldade quase doce) :

— Você arranjaria, Zózimo, os amantes?

Quase chorando, responde:

— Eu disse que faria tudo!

Êle pensa: — “Está doente. Fora de si”. Amou-a mais por isso, — porque a sentia enferma da carne e da alma.

Olha-o ainda:

— Já vi que você não gosta de mim. É um con­versa fiada muito grande. Vamos.

Passou adiante. O rapaz a seguiu, dilacerado.

 

Estão, de nôvo na sala. Uma senhora levanta-se:

— Senta aqui.

Oferecia-lhe uma cadeira. Engraçadinha senta-se. Ergue o rosto para olhar o sono dos círios. De momen­to a momento, chegavam novas coroas. Uma delas, de orquídeas, provocou um murmúrio. Uma senhora cutu­ca outra: — “Espia só! Era digna, realmente, de um Chefe de Estado”. Houve, ali, um cochicho universal: — “De quem? De quem?” Tio Nonô, imenso, põe-se de cócoras, com suas pernas curtas de gordo. Impressio­nado com os outros, desenrolou a fita roxa, com le­tras douradas: — era do Governador.

Tio Nonô ergue-se. Um sujeito magro soprou-lhe:

— Deve ter custado os tubos!

Naquele momento, o Deputado Aprígio aparece na porta da varanda. Perdera Engraçadinha de vista e, no seu desejo fácil e irresponsável, achava que, sem ela, o velório estava incompleto, falhando. Há uns vin­te minutos que perguntava ao taquígrafo Xavier: — “Onde diabo se meteu essa cara?” E arriscou mesmo uma “blague” vil, segundo a qual estaria ali, fazendo quarto, não ao morto, mas à filha. Cochichou sòrdidamente para o taquígrafo, com o riso contido: — “O meu defunto é a menina!” Descobre Engraçadinha, fi­nalmente. Volta, para a varanda, trêmulo; puxa o ta­quígrafo: — “Se eu pegasse essa menina...” O taquí­grafo sorvia-lhe as palavras como um sorvete...

Na sala, Zózimo vinha — pedindo licença — tra­zer uma xícara de café para a noiva. Inclinava-se para a menina:

— Toma.

— Biscoito, não.

— Por quê?

Suspirou:

— Só o cafèzinho.

— Então, toma.

Êle próprio queria servi-la, de colherzinha em colherzinha, como a uma doente ou a uma criança. En­graçadinha, porém, rejeitou o carinho. Apanhou a xí­cara, O bobão ainda soprou: — “Cuidado para não derramar!” A noiva dardejou-lhe um olhar irritado. Tomando o café, aos pequenos goles, sente que já não é a mesma. “Sou outra”, repetia para si mesma, com uma dor surda. Algo morrera em si. Zózimo, com sua odiosa solicitude, insistia:

— Está bom de açúcar?

Nem lhe respondeu (chato!). Mexendo a xícara (gostava, realmente, de muito açúcar; mas não pediria a êle), ela pensa que, antigamente, até dormindo os seus sonhos vinham pesados de voluptuosidade. Fora possuída em sonho tantas vezes! Lembrava-se de uma vez — há muito tempo — quando tinha uns 12 anos, talvez. Vira um cavalo de corrida e, por um momento, ante a beleza elástica e vibrante do animal, o fogo das ventas, a flama das crinas e, sobretudo, a violência dos quadris — sentiria um breve deslumbramento. “Nada é tão nu como um cavalo”. Ainda agora perguntava a si mesma se as outras mulheres não se perturbam com certos cavalos espantosamente nus.

Zózimo a ofendia, outra vez, com a sua miserável solicitude:

— Coração, dá, que eu levo.

Pedia-lhe a xícara. Engraçadinha pensava que, an­tes, não podia encostar-se na quina de um móvel, sem crispar-se tôda. Às vezes, o simples olhar de um ho­mem como que a transfigurava. Seu corpo tornava-se, então, erecto e vibrante. E, agora, tinha a sensação de que subitamente perdera o dom de amar. Desde que vira Sílvio mutilar-se — tornara-se um pobre ser sem imaginação, nem voluptuosidade. Seu sonho agora era triste. Lera, há dias, num anúncio de jornal, o nome de um remédio contra “frieza”. Ah, o mêdo de ser fria, o mêdo de ser possuída e ter ódio do amor!

 

E, no entanto, horas depois, no cemitério, quando o quinto orador, que seria o último, afirma que o Dr. Arnaldo “jamais tivera amantes” — ela vibra, brusca­mente, as costas para a sepultura recém-aberta do pai. Zózimo curva-se, vivamente:

— Não chora, meu amor!

Ela tombava para o túmulo vizinho; projetava seu corpo contra a quina de pedra. Protegendo-a, Zózimo passava-lhe a mão pelos cabelos. Ficou assim alguns instantes, com um movimento quase imperceptível, súbito, quando mais delirante era a apologia fúnebre do orador, Engraçadinha começa a soluçar violentamente. O orador chegou a parar, desconcertado. Trin­cando os dentes, hirta de volúpia, ela parecia agonizar e morrer nos braços de Zózimo. Seu grito final vibrou, perdidamente, em todo o cemitério.

 

                                                                                Nelson Rodrigues  

 

                      

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