Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ASSASSINATO NO SILVER BLAZE Alec Baurer
ASSASSINATO NO SILVER BLAZE Alec Baurer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O táxi parou lentamente na Place Vendôme, em Paris. Um homem de cabelos grisalhos apeou com um pulo do banco de trás. Era forte, tinha olhos azuis (de um azul cor de gelo!) e o nariz era grande e roliço. Entrou numa das joalherias da rua.
Um atendente contornou o balcão e veio apertar cordialmente a mão do recém-chegado:
– Bonjour! Bienvenue, Monsieur Colasanti!
– Bonjour, Pierre.
O homem de cabelos grisalhos vestia roupas sociais, como se fosse um autêntico homem de negócios. Era cliente antigo da loja e conhecia pessoalmente cada um dos vendedores.
– Preciso de um colar, Pierre. Um colar deslumbrante, não importa o preço!
– Bien sûr! Par ici, Monsieur Colasanti.
Monsieur Colasanti tinha um sotaque estrangeiro. O vendedor, de uns vinte e cinco anos, levou-o para os mostruários. Pierre era um rapaz esquelético, amarelo e com cabelos cor de palha seca. Trabalhava há cincos anos na joalheira, e conhecia todos os gostos de seus clientes.
Então Monsieur Colasanti queria um colar? Para quem era? Ah, para a mulher... Tinham brigado!... Ah, Monsieur Colasanti queria fazer as pazes com ela? Une excellente idée! Uma joia sempre resolvia as coisas, não é? Sim, é claro que eles tinham o colar certo.
O jovem vendedor piscou o olho com ar de cumplicidade.
Havia colares de todos os tipos e tamanhos. Colasanti não demorou a escolher um colar de contas coloridas.
— Este aqui, Pierre.
Pierre elogiou devidamente a escolha. Era um item de muito bom gosto. Com certeza a esposa de Monsieur Colasanti iria gostar!... Embora nem todas as mulheres fossem iguais. Algumas gostavam de coisas exóticas; outras não eram tão exigentes, ficavam felizes com qualquer bijuteria. Mas aquele colar ali... Era magnifique!
Pierre perguntou se Monsieur Colasanti estava com pressa.
— Oui, Pierre. Preciso pegar o avião das três.
— Parfaitament, Monsieur.
O jovem atendente pôs o colar num delicado estojo verde-oliva. Continuou falando (o que, aliás, é uma característica dos vendedores em qualquer parte do mundo)... falando...
O casamento era uma coisa muito boa. Sim, nem sempre; às vezes havia uma briguinha aqui, outra briguinha ali. Há quantos anos Monsieur Colasanti estava casado?
Conferindo o relógio, Monsieur Colasanti disse que estava casado há poucas semanas.
E já tinham brigado? O vendedor sorriu, com a compreensão de quem sabe como são as mulheres.
– Não foi culpa dela, Pierre. Eu é que fui grosseiro...
Ah, então a culpa tinha sido de Monsieur Colasanti? Essas coisas aconteciam, não é mesmo? Mas o bom é que se podia remediar a situação... Ele também já tivera crises em família. Sim, a mulher era ciumenta; fora uma confusão e tanto!... Agora tudo ia bem, tinham se reconciliado e...
Mas Monsieur Colasanti interrompeu a narrativa do extraordinário caso doméstico do rapaz. O avião...
Pierre respondeu que compreendia.
— Je m’excuse, Monsieur.
— Merci beaucoup.
Monsieur Colasanti foi para o caixa e pagou com o cartão de crédito. Agradeceu novamente, e saiu correndo para o táxi. O carro deixou o meio-fio e, depois de se misturar ao tráfego, tomou o rumo do aeroporto.

 

 


 

 


2.

– Bea!

Com cara de sono, Beatriz Lepperstein levantou-se do sofá, esfregando os olhos. Parado na porta, seu marido tinha um olhar misterioso; trazia o terno dobrado no braço e na mão, um estojo verde. Ela não parecia muito empolgada.

Uma bela mulher, pensou ele.

– Oi – disse Beatriz timidamente.

– Dormindo a essa hora, querida?

– Por que não ligou? Eu teria ido buscar você.

Moacir Colasanti moveu os ombros, contemplando a esposa com um fervor quase sagrado. Lembrou-se do quanto ela devia estar magoada, de como ele fora rude e imaturo. Por baixo de seu rosto macio, Beatriz apresentava marcas claras de aborrecimento.

Ela tinha uma linda pele cor de pêssego, e os cabelos abundantes caíam como cachos louros pelas costas.

– Ué, não vai me dar um beijo?

– Desculpe, querido...

– Assim está melhor!... Então, como passou esses dias?

– Mais ou menos... O jardineiro falhou de novo; o jardim está horrível. Aquele velho nunca faz o que eu peço. Por duas vezes eu disse a ele para arrancar as azaleias e plantar cravos. Prometeu que faria isso e mais aquilo, mas até agora nada. Você vai falar com ele, Moa, não vai?

Moacir riu e pendurou o terno no cabide. As habituais desavenças de Beatriz com o velho Honeyde!

Mostrou o estojo que tinha na mão direita.

– Adivinhe o que comprei para você, Bea!

Colasanti tinha 55 anos — mais do que o dobro da idade dela! E ali estava ele, mostrando o estojo com um dócil ar de um buldogue que quer agradar a sua dona.

Beatriz olhou para o objeto, um pouco mais animada.

– O que é?... Oh, você comprou isso em Paris? Para mim?

– Você não sabe o trabalho que me deu... Quase cheguei atrasado ao aeroporto. Estou pagando minha dívida, Beatriz. Eu disse a você que ia trazer um presente. Aqui está! Amo você, querida.

– Oh, obrigada!... Posso abrir agora?

– Mas é claro. Quero ver se fica bem em você.

Ela abriu a caixinha e extraiu o colar. Ficou olhando para ele, sem acreditar. Ergueu-o, para ver os reflexos da luz nas contas de vidro.

– É... maravilhoso! Não devia ter feito isso, Moa. Eu não mereço algo tão caro!

– Não seja boba!... Você merece muito mais. Nunca conheci uma mulher tão formidável, Bea. Nunca, nunca...

Enquanto dizia isso, o olhar de Moacir se entristeceu. Uma lembrança o atormentava há vários dias... Aproximou-se da esposa, e a abraçou:

– Tenho sido mau com você. Será que consegue me perdoar?... Será que consegue, meu amor?

Beatriz Lepperstein balançou a cabeça, zangada.

– Quando nos casamos, você disse que seria bom comigo. Mas você não tem sido bom, Moa!... Está sempre chamando minha atenção, querendo saber aonde fui e o que fiz o dia todo. Eu não gosto disso! Eu me sinto tão... vigiada. Você prometeu que cuidaria bem de mim, que nunca me faria sofrer! Mas... por que você está agindo assim? Por quê?

– Sim, eu sei... Eu sinto ciúmes, não consigo evitar. Você é tão bonita! Não enxergo nada além de você, Bea. Me perdoe, Bea! Me perdoe...

Era uma frase que, ao longo dos anos, se acostumara a usar com frequência. Servia esplendidamente para amainar os ânimos de uma mulher. No íntimo, ele sabia que não conseguiria cumprir a promessa. Mas era um paliativo – pelo menos isso.

Com carinho, ele levou Beatriz até a janela. Dali eles tinham uma boa visão da propriedade; o gramado descia pelo morro até o muro cinzento da rua. Uma área muito calma e pacata de Joinville.

– Está gostando da casa? – perguntou ele, para quebrar o silêncio. – Eu disse a você que poderia contratar mais uma empregada?

– Sim. A agência respondeu que vai mandar uma moça na semana que vem. Tenho tanta vergonha... Me sinto tão inútil numa casa tão grande! Você deve me achar tão tola...

– Tola? É claro que não. Eu amo você, é isso o que importa. Se alguém vier aqui com críticas, mande-o falar comigo.

– Você é um amor. Fico tão feliz quando você fala bem de mim!

Moacir sorriu; às vezes, quando ficava ouvindo Beatriz, tinha a impressão que estava tratando com uma criança.

– Escute... Estou pensando em levá-la comigo na minha próxima viagem. Irei para Dubai e depois para a Nigéria. Se quiser... e eu ficaria feliz se você aceitasse... vou amanhã mesmo comprar uma passagem e...

Mas ele não pôde terminar a frase. Quando ouviu a palavra viagem, Beatriz deu um pulinho de alegria, entusiasmada.

– Eu tenho que lhe contar uma coisa! Desculpe, tenho que falar agora, antes que me esqueça... Lembra que falamos do iate que vimos no site de turismo?

– Que iate?

– Um barco grandão... Aquele que está ancorado na Baía da Babitonga! Eu liguei para o homem, e ele o alugou para mim por três dias. Não é incrível? Sempre sonhei em navegar, dar uma volta pelo mar... Você acha que fiz bem?

– Você fez o quê?

– Eu aluguei o barco... O que é? Você não gostou?

– Mas... e a viagem a Dubai?

Beatriz não chegou a ouvir os protestos. Estava eufórica com a sua pequena arte.

– Tudo bem, Moa. Outra hora eu vou para lá, ou para qualquer lugar que você queira... Estou tão orgulhosa de mim mesma!

– Você... você arranjou tudo isso?

– Sim, eu mesma. Sozinha. Já fiz até a lista com o nome das pessoas que vamos convidar para ir conosco. Veja, não são muitas. Ah, será uma delícia!...

Beatriz pegou um papel da mesinha de centro e o entregou a Colasanti.

Colasanti leu o papel com os nomes, sentindo o chão tremer debaixo dos pés.

– O que é isto?

– Esses são os nossos passageiros... Oh, Moa, será maravilhoso! Eu incluí a sua irmã, viu? Quero que Neusa vá conosco. Ela é uma pessoa tão solitária, pobrezinha. Depois que o marido morreu, ela ficou meio depressiva. Não sai de casa, não faz nada. Faço questão que Neusa seja convidada, está bem?

Mas Colasanti não estava escutando a mulher.

– Wed-der-hof — soletrou, quase sem ar. — Que paranoia é essa? Wedderhof... Este não é aquele cretino que eu processei?

– Ah, não seja tão sensível! – disse ela, fazendo beicinho. – Esse é sim o jornalista... É por isso que devemos convidá-lo. Ele escreveu o que não devia, mas você já deu o troco. Moa... Não podemos viver de mal com as pessoas. Faça as pazes com ele... E com todos os outros!

Ele segurou-se para não cair, enquanto a sala girava como um pião. Esfregou as têmporas, lentamente.

– Bea... Sabe quando eu farei as pazes com essa gente? Nunca, Bea... Nunca! Esqueça... Você não me convencerá a telefonar para eles. Nem você, nem ninguém...


3.

 

O duque Salles estava olhando o Big Ben...

O símbolo da pontualidade britânica.

Os ingleses são malucos. Chá às cinco horas... Troca de guarda no palácio de Buckingham... Tanta pompa e metade do mundo passando fome...

O ódio ardia no coração do duque Salles. Tudo estava bem minutos atrás. Até atender a ligação de Colasanti. Fora o início do fiasco e de seu aborrecimento. Com a raiva crescendo dentro de si, ficou ouvindo. Aquela voz no telefone... A cadência na fala...

Um convite... para uma turnê... no mês que vem. Será que Salles poderia vir?

O duque havia hesitado. Refletiu em todas as coisas que gostaria de dizer, de todas as regras que gostaria de ditar. Aquele Colasanti... Era um patife, um cafajeste de marca maior. Salles quis responder que não iria, que estava viajando pelo Quênia, que sua próxima parada seria o Cazaquistão.

— Esse convite é de Beatriz, Sr. Salles — disse Colasanti após uma pausa.

Beatriz! A menção do nome mexeu com os sentimentos do duque.

Salles baixou o celular e encheu os pulmões de ar. Esperou alguns segundos; depois retomou a ligação. Se poderia vir? Respondeu que sim – ele iria. Respondeu quase sem ouvir a própria voz. Iria – mas por causa de Beatriz.

Ele não gostava de Colasanti. Um sujeitinho com a maior cara-de-pau do mundo. Já tinham sido sócios, naturalmente, mas isso só agravava o caso. Ele não merecia Beatriz. Aliás, todos diziam que ela não casara por amor. Beatriz fora tão assediada pelo italiano que, por fim, desistira de fugir. Colasanti era quase 30 anos mais velho – por que uma mulher, jovem e rica, tinha se rendido àquela paixão sem eira nem beira? Ninguém sabia. Talvez nem ela mesma soubesse.

Norton Salles desligou o celular. Com ódio, continuou olhando para o Big Ben...


4.

 

As luvas enfiadas na terra, Neusa Brenneison cavava. Nem as toupeiras cavam com essa vontade, pensou divertida. Mas tudo pelas flores! Pena que, no inverno, a maioria das espécies murche e perca as folhas. Pena... As orquídeas e rosas eram sua vida, seu principal hobby.

Neusa lembrou que as coisas nem sempre tinham sido assim. Meses antes seu marido ainda estava vivo. Albert era seu confidente, aquele que a tirava de suas crises de depressão. Mas agora... Pobre Albert! Tão ativo, tão alegre. Vencido por um maldito enfisema pulmonar. De uma hora para outra, o mundo de Neusa ruíra. Por isso, para não sucumbir, começara a cultivar suas petúnias e astromélias. Uma ótima terapia.

Bem... Aquela não era toda a verdade. Ela já perdera a alegria muito tempo antes da doença fatal. Desde que soubera que Albert tinha... como é que se dizia... um affair! Nunca teria descoberto o romance se ele, certa vez, não tivesse esquecido o tablet em casa... Fora o pior dia de sua vida. O dia em que soubera que o marido estava se relacionando com outra mulher.

Graças a Deus, isso não importava mais. A viuvez tinha suas vantagens... Levava a vida sem ter que prestar contas a ninguém. Recebia a sua pensão, viajava, comprava o que queria... Uma vida livre e folgada.

O celular tocou em seu bolso. Neusa descalçou as luvas, sem perder o bom humor. Olhou o visor. O número era conhecido. Apertou a tecla.

– Alô... Sim, o que é?... Se posso ir? Talvez... Ah... Verei na minha agenda. Não, estou brincando... Vocês fazem questão?... Você faz questão!... Está bem, eu aceito.

Neusa deu tchau e esperou que a chamada fosse encerrada. Depois, devagar, se levantou. Droga!, disse baixinho. O seu rosto estava crispado. Com raiva, deu um chute na bandeja de flores. Droga, repetiu.


5.

 

O Karmann Ghia ia em velocidade de passeio, e o vento soprava pela vidraça aberta. Wellington Santelo sentia o espírito leve; nada lhe agradava mais do que a liberdade de guiar sua relíquia sobre quatro rodas. A pressão do emprego; a chateação com os vizinhos de condomínio; as faturas atrasadas – tudo isso ficava para trás, numa outra página de sua existência.

Lançou um olhar para o espelho de águas sob a ponte Rio-Niterói. Pode haver sensação melhor? Quem dera que sempre houvesse folgas como essa!

Outros motoristas, na pista paralela, faziam ultrapassagens em lugares proibidos. Santelo xingou, socando o volante, inconformado. Cáspita!...

A irresponsabilidade daquela gente... Um bando de assassinos! Como é que tinham a coragem de por a própria vida em perigo, dirigindo com tanta imprudência? Lamentável que tivessem carteira de habilitação. Uma pouca vergonha...

Ele não era tão descuidado. Dirigia com segurança, sem viradas bruscas e sem acelerar demais. Deus sabia quantas vezes fizera coisas que, em sua consciência, considerara erradas. Mas o que importa é que sobrevivera. O homem não pode se entregar, sem mais aquela, para ser queimado na fogueira dos inquisidores.

E o mundo estava cheio de inquisidores, loucos para ver o fogo crepitar, ele bem o sabia.

Gente sem escrúpulos, que faziam qualquer coisa por um punhado de dinheiro. Matadores de aluguel, pistoleiros – uma laia que não prestava para nada.

E o pior – agora matavam por qualquer motivo. Por um par de tênis, que fosse. Ou menos. A sociedade virara uma selva de humanos patéticos, sedentos de sangue.

Ele jamais matara ninguém. Nunca faria isso. Nunca! A não ser, claro, se estivesse sob ameaça. Nesse caso, seria até um dever moral reagir, acabar com o problema. Mas, em seu íntimo, rezava para que esse dia não chegasse.

Ouviu dois pips de seu telefone. Sem tirar os olhos do asfalto, Wellington Santelo abriu a caixa de mensagens. Havia apenas duas palavras:


Confirmado?

Insista... Talvez ele tenha reconsiderado.


Beatriz.


Com um clique ele se lembrou. Beatriz! Ela tinha ligado dias atrás, falando sobre um cruzeiro de iate pelo Caribe. Caribe não! Era outro lugar, na costa brasileira. Queriam que ele viesse, que era convidado de honra. Surpreso, Santelo dissera que precisava pensar no assunto, resolver alguns negócios. Não era bem isso. A sua hesitação tinha outra razão. Aquele atual marido dela era insuportável, um sujeito ordinário! Como é que ela caíra na rede do crápula?

As mulheres são mesmo uma caixa de Pandora.

Antes disso Beatriz fora casada com um professor universitário, e morava numa casa boa. De repente, largara tudo e entrara com uma ação de divórcio. Fora o começo de sua amargura. Como um parasita, Colasanti passara a cortejá-la, com mil presentinhos e agrados... Os dois tinham casado em menos de dois meses, numa festa que tivera destaque nas colunas sociais. Um escândalo total!

Santelo suspirou. Agora os dois pombinhos o convidavam para um tour de alguns dias num iate... Era uma coisa que não a atraía nem um pouco. Que nojo!

Mas...

Releu a última frase: Insista... Talvez ele tenha reconsiderado. Ali estava! Aquilo sim lhe interessava. E se... sim, havia uma possibilidade.

Digitando com o polegar da mão direita, escreveu Confirmado e enviou a mensagem. De leve, meteu o pé no acelerador...


6.

 

– É um idiota!

A voz de Joana Canelles reverberou pelo apartamento da Av. Paulista. Seu rosto, turvo e rígido, se retorceu numa carranca terrível.

– Calma, mamãe.

– O que eles pensam que sou?

Sara não respondeu. Estava acostumada aos faniquitos de sua mãe. Instalada preguiçosamente no sofá, a moça fechou bruscamente a sua agenda. Deu um bocejo e depois ajeitou as pontas dos cabelos negros.

Madame Canelles sapateava pela sala, indignada. Agitava os braços, com vigor:

– Uma boneca empetecada, cheia de dengos. Eu a avisei de que deveria ficar atenta. Esses homens só querem o dinheiro dela. Agora mais isto! Aposto que todas as despesas ficarão por sua conta. O marido que ela arrumou não presta.

– A senhora quer tomar sua medicação agora, mamãe?

– Uma grande tola, é o que ela é. O quê? Ah, a medicação! Sim, ainda bem que você lembrou... Aquele homem é um falso. Cheio de sorrisos e fingida bondade. Conheço gente desse tipo quando bato o olho.

– A água...

– Nunca confiei nele, nem por um minuto. Eu disse para Beatriz que não era um bom partido. Tão jovenzinha, com toda vida pela frente. Ele ainda vai matá-la, escute o que eu digo.

Sara levou um susto quando ouviu Madame Canelles falar em morte. Olhou para a velha senhora, amedrontada. Todo o corpo estremeceu, e uma cor pálida cobriu seu rosto:

– Quem vai matar quem?

– O que deu em você, Sara?

– A senhora está me deixando nervosa...

– Bobagem! É a coisa mais natural matar por dinheiro. Aquele Colasanti tem um olhar perverso, cheio de segundas intenções. Quando o vi pela primeira vez, falei para mim mesma: “Aí tem tramoia! Esse camarada não é flor que se cheire. Garanto que já esteve na prisão.” Tenho uma ótima intuição com essas coisas.

Madame Canelles foi até a janela, olhando a cidade lá embaixo. Não era bonita, e sua fúria aumentava a fealdade de seus traços. Pareceu refletir por um instante, tentando ajustar os pensamentos. Por que será que Beatriz telefonara para ela?

Por quê? Será que temia pela sua vida?

Não havia como saber.

– Pobre criança! Está muito enganada se acha que vou ajudá-la. Irei para a turnê, mas não moverei um dedo se acontecer alguma coisa.

– A senhora disse turnê? Posso ir junto?

A pergunta a tirou bruscamente de suas divagações. Se Sara poderia ir junto com ela?

Joana virou a cabeça, e fitou a filha por cima dos óculos. Tinha um indizível orgulho dela. Era uma bela criatura. Tão parecida com o pai! E como o pai totalmente desleixada e aérea.

– Certamente que não, minha querida. Você ainda é uma fugitiva, lembre-se. Não quero que alguém a denuncie...

– Pôxa, mãe!

– A única pessoa que irá comigo é Miss Kaline. Ela poderá me trazer o barbitúrico quando eu pedir... E poderá massagear minhas costas se eu sentir alguma dor.

– Miss Kaline? Por que ela?

– Porque sim. Entendeu, mocinha?

Madame Canelles encerrou a questão:

– E agora, vá arrumar seu quarto. Você larga tudo pelos cantos... Janet disse que não é paga para arrumar sua bagunça a toda hora.

– Janet... argh! Ela é uma metida. Uma metida insolente.

Sara saiu da sala, pisando duro. Joana sorriu consigo mesma:

“Miss Kaline... Que maravilha! Ela sempre foi minha melhor companhia.”


7.

 

– Ridículo!

A metros dali, uma criança olhou para Demétrio Wolfgramm, chocada. A menininha cutucou a mãe, de mansinho:

– Mamãe, com quem aquele tio está falando?

– Alice, que feio! O que eu lhe disse sobre espiar as pessoas?

– Mas eu não estava espiando!

– Nada de mas, espertinha. Veja lá, um navio!

O mirante de Joinville tinha uma vista ampla do mar. A mulher apontou a baía, lá longe, em que se via um objeto prateado. Demétrio não prestou atenção nelas. Aliás, não prestava atenção em ninguém. Pensava no e-mail que tinha recebido nessa manhã.

O conteúdo era muito curto:

 

Queremos que você venha. Em nome das coisas boas que vivemos juntos. Tenho muita estima por você. Serão dias agradáveis para todos.


B.


Como acreditar naquilo? Beatriz devia ter enlouquecido. Ela sempre fora um pouco fútil, sem qualquer capacidade intelectual. Wolfgramm sabia disso de primeira mão – fora casado com ela por dois anos.

Ele se apaixonara – não negava – por causa de sua beleza, e dos olhos de um lindo verde esmeraldino. Mas os encantos físicos não haviam garantido uma sintonia mental entre eles. Ela simplesmente era preguiçosa demais para se interessar pela vida conjugal.

Pecado imperdoável.

A cabeça dela era incapaz de assimilar a importância de certas coisas. Até que um dia viera com a insinuação de que queria o divórcio. Ele quase perdera o juízo.

A separação tinha sido discreta, sem tumultos ou sessões de tribunal. Tudo muito civilizado.

Agora aquilo!

Ridículo.

Um convite para um tour – na mesma baía que ele via dali de cima. Demétrio sentiu o sangue ferver em suas veias.

Todo o ressentimento, que jazia enterrado por tanto tempo, voltou à tona.


8.

 

Depois de um dia movimentado, o escritório de advocacia estava vazio. Ajeitando suas coisas, Zelly Gonçalves tinha acabado seu expediente e se aprontava para sair.

O Sr. Brós, seu patrão, se aproximou com um olhar interessado. Embora exigisse empenho no trabalho, era um bom ouvinte dos problemas dos subalternos.

– Estivemos analisando seu pedido, Zelly. Resolvemos dar as férias que você tem a receber. Se ainda não tiver mudado de ideia...

As linhas do rosto da moça se suavizaram. Era por natureza meiga, risonha e cordial. E a boa notícia a deixou feliz.

– Que bom ouvir isso, Sr. Brós.

– Você sabe que gostamos de tudo o que vem fazendo pela nossa firma. – Ele fez uma pausa: – Então decidiu mesmo ir para a excursão?

Ela piscou os olhos, desconcertada:

– Oh, o senhor não esqueceu... Sim, decidi ir. Acho que mereço tirar uma folga, nem que seja por poucos dias. Apagar algumas feridas do passado...

– Como é o nome do sujeito que a convidou?

– Colasanti. Ele casou dois meses atrás. Pelo que disse, a esposa quer fazer uma lua-de-mel diferente.

– E resolveram convidá-la como acompanhante?

Zelly riu:

– Não, senhor. Acho que haverá mais gente. O iate foi fretado para várias pessoas.

– Não quero me intrometer em sua vida... Colasanti – não é aquele que foi seu namorado?

– Tem uma memória de elefante... Tem alguma coisa de mim que ainda não saiba?

– Pareço tão intrometido assim? – perguntou o Sr. Brós, encabulado. – Não precisa falar disso, se não quiser.

– Eu sei, tudo bem. Nós namoramos por algum tempo. Meu pai dizia que ele era muito velho para mim. Mas sabe o que acho de Moacir hoje? Que ele era arrogante, prepotente e orgulhoso. Senti vontade de matá-lo quando me deu o fora. Depois entendi que essa foi a melhor coisa que poderia ter acontecido.

– Espero que vá para lá com a alma leve. Uma mulher magoada é uma criatura perigosa.

Dando um tapinha nos ombros dele, Zelly deu um risinho misterioso:

– Ele que se cuide... Vou levar meu vidrinho de cicuta comigo. Se ele não se comportar...

Uma ruga de preocupação surgiu na testa do Sr. Brós, enquanto ela, dando um tchau, saía do escritório.


9.

 

– Depois da guerrinha de vocês, eles fizeram isso? Você devia morrer de vergonha.

O redator de esportes do Folha Joinvillense, Rob, riu com gosto. A provocação era dirigida a seu colega, Dieter Wedderhof, responsável pela coluna social. Fora da sala era possível ouvir o ruído do departamento de redação do jornal.

Wedderhof ficou quieto, e não respondeu à brincadeira do amigo. Gordo e sisudo, não tinha qualquer vontade de rir. Fitava a carta convencional que tinha vindo pelo correio.

– Pois é...

– Essa é a carta que mandaram? – perguntou Rob, sugestivamente. – Posso ler?

– Sem piadinhas, por favor.

– Está bem. Você é quem manda, Sr. Seriedade.

O texto da correspondência dizia o seguinte:

 

Sr. Wedderhof,

 


Nós dois tivemos pontos de vista divergentes no passado. O senhor escreveu coisas em sua coluna que feriram a minha moral... Nem tudo era verdade. Tive que me defender, espero que entenda. Lamento pelo processo judicial que fui forçado a abrir. Era meu direito legítimo, como cidadão.

Mas quero que esqueça isso. Eu e minha esposa vamos celebrar nossas núpcias a bordo do iate Silver Blaze. Queremos convidá-lo para uma turnê de dois dias pela baía da Babitonga. Ficaríamos honrados com a sua presença. A data da saída – 28 de dezembro. Todas as despesas correm por nossa conta.

 

Obs. Repito que não guardo mágoas...


Moacir Colasanti

 


– Realmente incrível – disse Rob, após uma rápida leitura. – Acha que ele está sendo sincero? “Repito que não guardo mágoas”. Uma frase e tanto!

– Você me pergunta se ele está sendo sincero? Não sei. – Wedderhof olhou o colega, pensativo: – Esse italiano é uma raposa velha! Primeiro quase acaba com minha reputação, e agora vem com essa história de iate. O que você faria no meu lugar?

– O que eu faria? Ora, que dúvida! Eu iria, claro. E levaria uma boa máquina fotográfica.

– Você iria. Por quê?

– No mínimo dará uma ótima reportagem. Você verá pessoalmente de que modo esses ricaços torram o dinheiro. As pessoas gostam dessas picuinhas.

– Eu sei disso. Por que você acha que escrevo essas bobagens? Você sugere que eu devo ir... É um milagre.

– Você está falando sério? – Rob ergueu os braços: – Você tem que ir. Será o maior furo de sua carreira. Esqueça o que Colasanti fez; o caso na justiça já foi resolvido. E você deve reconhecer que teve culpa nisso. As coisas que você escreveu eram de uma fonte suspeita, eu lhe disse isso. Mas, paciência, aquilo é caso passado.

O jornalista tamborilou os dedos na mesinha.

– Não sei... Ainda não estou convencido. De um lado você tem razão – posso fazer uma reportagem. Mas, por outro, tenho medo de mim mesmo.

– Medo de si mesmo! Que ideia é essa? Medo do quê?

Na testa de Wedderhof uma veia tinha saltado, sintoma de suas violentas emoções.

– Do que posso fazer quando estiver face a face com ele – disse. – Não consigo esquecer certas ofensas. Simplesmente não consigo!


10.

 

Atrás da escrivaninha, o homem com pincenê no olho direito pesquisava um manual de armas de fogo. Vez e outra copiava um ponto interessante num bloco de notas a seu alcance.

De repente a porta do escritório se abriu e um senhor entrou. Tinha os cabelos brancos penteados para trás, e usava uma camisa de mangas longas.

– Edmund Fëll?

Cheio de nervosismo, o senhor esperou ansiosamente pela resposta. O homem com o pincenê pigarreou, contrariado. Empurrou o livro para o lado e analisou o invasor, interrogativamente. Devagar, respondeu:

– Ja, ich bin.

– Ótimo. Preciso que faça um trabalho para mim. Temo que acabarei ficando louco.

Fëll não gostou do tom de voz. Fez um gesto apontando a cadeira.

– Bitte! Um trabalho... Com quem estou falando, se me permite saber?

– Sou Moacir Colasanti. Venho sendo perseguido, e isso tem que parar. – E fechou os punhos: – É um insulto. Nunca enfrentei uma situação tão idiota. Sempre levei uma vida sossegada, sem fazer mal a uma mosca. Agora, sem mais aquela, sou ameaçado de morte. Não tolero uma coisa dessas; o senhor será meu guarda-costas. Temos que agir, e depressa.

Fëll olhou para cima, tentando compreender a mentalidade de Colasanti. Com certeza era alguém acostumado a mandar, a manter os outros sob seu controle. Refletiu no tipo de resposta que deveria dar.

– Eu sinto muito, mas o senhor foi mal informado. Não sou guarda-costas. O que eu faço é investigar casos criminais. Nada além disso.

– Sim, eu sei. Estou usando uma figura de linguagem. Quero que investigue um assunto que está me deixando doente. Já fiz de tudo, mas não descobri nada. Prefiro pagar alguém que faça isso por mim.

– Dan ist es gut. O senhor, então, quer que eu faça uma investigação. Sobre o quê?

– Sobre as ameaças que recebi.

– Jawohl? Quais foram as ameaças?

– As coisas que... eu acho... os assassinos geralmente escrevem. “Você tem os dias contados”... “Seu corpo vai ser jogado para os peixes”, coisas assim.

– Coisas assim? – perguntou Fëll, erguendo as sobrancelhas. – Terá que ser mais específico, se quiser que eu o ajude.

Colasanti respirou fundo. Aparentemente ouvir objeções não compunha a sua rotina.

– Vou lhe dizer o que aconteceu. Minha esposa... Beatriz... teve a ideia de fazer uma turnê... Alugou um iate por uns dias. Uma loucura! Depois que aquela floreira caiu na cabeça dela, e ela foi parar no pronto-socorro, Beatriz ficou meio doida! Ela levou treze pontos, o senhor acredita? Treze pontos... Não sei como, mas ela me convenceu a convidar algumas pessoas. Até aí tudo bem... Menos de uma semana depois, comecei a receber mensagens no celular. Anônimas, claro. Uma coisa horrível... Fiquei indignado! Imagine o senhor, nunca passei por nada disso em minha vida. Parece que feri os sentimentos de alguém, e essa pessoa resolveu acertar as contas comigo...

O olhar de Fëll continuava fixo em Colasanti.

– Eu entendo... O senhor acha que vão tentar matá-lo durante a turnê. Mas, eu lhe pergunto: o que exatamente quer que eu faça?

– O senhor subirá conosco no iate, caramba! Vou lhe dar carta branca. Vai ficar de olho em todo mundo. Se perceber alguma coisa estranha... ou alguém suspeito... virá falar diretamente comigo. A partir daí, eu mesmo tomarei minhas providências. Está de acordo?

Fëll quis entender a proposta:

– Ou seja, a minha comissão é descobrir quem... dentre os que estarão a bordo... está tramando o seu assassinato!

– Sim. Desde que minha outra mulher foi assassinada, uma maldição se abateu sobre mim... Difamação, falsidades, e agora isto! Devo ter cuspido na coroa do rei da Dinamarca.

Fëll ponderou que a Dinamarca não devia ter um rei, mas achou melhor não reparar a incorreção.

– Como ela morreu?

– Quem?

– O senhor acabou de mencionar que sua mulher foi assassinada. Como aconteceu?

– A morte de Bianca? O automóvel dela caiu numa grota. A perícia diz que alguém cortou os freios... Foi muito trágico, sabe?

– Ela tinha algum problema de saúde?

Colasanti encarou o detetive, desgostoso. “Que sujeito intrometido! Por que ele está fazendo essas perguntas? Que é que isso interessa agora?”.

Com um silvo agudo, respondeu:

– Não. Só dislexia.

– Dislexia... Isso praticamente descarta a possibilidade de mal súbito.

Colasanti fez um gesto de impaciência:

– Escute aqui... O senhor vai assumir meu caso ou não? Se quiser minha biografia, podemos falar disso numa hora mais conveniente.

– Veremos, mein Herr. Tenho uma exigência a lhe fazer, para começar. Preciso da lista de passageiros. Vou ter que saber quem são as pessoas que vão embarcar.

Colasanti pareceu ficar mais tranquilo. Pediu que Fëll lhe emprestasse um papel; fez um rascunho com os nomes solicitados.

– Confio em sua ajuda. Como eu disse, nunca passei por uma coisa dessas... Estes são o dia e a hora do embarque! Esteja lá... Tenha um bom dia!

Fëll viu o italiano sair. Lentamente, pegou a lista com os nomes; olhou com tristeza para o livro de balística e balançou a cabeça, pesaroso.


Capítulo 1

 

Garcia era dono do bistrô Faias de Cobre. Tinha uma seleta equipe de funcionários – garçons e cozinheiros, mas ele não delegara a nenhum deles o trabalho de receber os fregueses e conduzi-los à mesa. Garcia gostava dessa parte de suas atribuições. Manter o contato vis-a-vis com as pessoas era um de seus distintos prazeres.

Ele fizera reformas no prédio, tudo para que o bistrô tivesse uma atmosfera mais moderna. Na cozinha eram feitos escalopes de carne, peixe grelhado e camarão ao molho. Tudo com muito estilo. Havia um cuidado especial com o brilho dos garfos e a brancura das toalhas de mesa. Garcia tinha chiliques quando via um empregado com a gravata torta ou o terno amarrotado.

Nesta noite, as mesas estavam quase todas ocupadas. Taças tiniam e as pessoas conversavam em voz alta.

Levitando entre as mesas, com a simpatia de um bon vivant, Garcia estava atento a tudo. Tão atento que viu o cavalheiro estranho que, naquele instante, entrou pela porta do bistrô. O cavalheiro tinha o corpo empertigado, um monóculos, e o cabelo umedecido por um suspeito produto gelatinoso... Uma figura e tanto! O rosto era inconfundivelmente familiar.

– Sr. Fëll! Que prazer tê-lo novamente conosco.

– Guten Abend, Sr. Garcia!

– Os jornais falaram muito no senhor ultimamente. Todos nós lemos com interesse o caso do sargento e do rubi roubado. Como descobriu que a filha era míope?

– Ela não conseguia ler a bula de remédios.

– Que bom para o senhor. Quer que lhe indique uma cadeira?

Fëll fez que não com a cabeça. Tinha abotoado o casaco, como se fizesse um frio daqueles! Agradeceu e olhou em volta como se tivesse outra coisa em mente.

– Nein, danke. Estou aqui por que fui convidado por uma mulher.

– Ah, sim! – disse Garcia, e piscou-lhe o olho, zombeteiramente. – Está dando adeus à vida de solteiro, pois não.

– Não me refiro a esse tipo de mulher – disse Fëll, envergonhado. – O sobrenome dela é Lepperstein. Sabe em que mesa ela está?

– Perfeitamente. Por falar nisso, ela citou o seu nome. Pediu que eu levasse o senhor até lá assim que aparecesse. Ela está, digamos, um pouco... ansiosa. Por aqui.

Garcia conhecia seu métier. Fez um gesto lá para dentro. Passaram por um salão, uma porta e entraram na área reservada. Garcia parou e apontou uma mesa central.

– É ali, Sr. Fëll. O menu está perto do guardanapeiro. Mandarei um garçom atendê-lo. Saiba que ficamos honrados com sua ilustre presença.

– Danke.

O chefe do bistrô se afastou. Fëll ficou observando a mesa central, pensando na mulher que tinha marcado aquele encontro. Ele tentou lembrar-se do que sabia dos Lepperstein. Pouca coisa. Apenas que na casa da família houvera certa vez um roubo; empregados tinham sido demitidos, meio mundo comparecera à polícia, e nada fora provado. Coubera a ele formular uma teoria que incriminava o chofer da casa no furto.

Com passos miúdos, Fëll aproximou-se da mesa. Quando chegou mais perto, viu a mulher. Ela era realmente encantadora, assim como imaginava. Usava um vestido de um ombro só na cor magenta, e uma echarpe em volta do pescoço. Magra, tinha os ombros retos e uma pose divina. Estava ali sentada, e o olhar distraído passeava pelo salão; com um palito, brincava com uma azeitona no pratinho.

Fëll olhou a cena por alguns minutos, antes de se aproximar ainda mais. Lembrou-se do que tinha lido sobre Beatriz Lepperstein. Os tabloides – isto é, as páginas de fofoca – diziam que ela era frívola, sem profundidade, com um gosto por coisas caras. Um rótulo um pouco cru, pensou ele, mas talvez muito perto da realidade.

O austríaco resolveu ir em frente. Perto da mesa, disse em voz alta:

– Srta. Lepperstein?

Ela levantou os olhos, surpresa. Olhou para ele com uma estupidez quase bovina:

– Oh, quem é o senhor?

– Sou Edmund Fëll. A senhorita ligou para mim, lembra?

Beatriz Lepperstein continuou olhando para ele. Finalmente pareceu cair das nuvens. Com um miado, botou a mão na frente da boca:

– Oh, santo Deus... Desculpe, eu não reconheci o senhor. Sim, fui eu que liguei. Sente-se, por favor. Estou tão feliz que tenha vindo!

Fëll inclinou o corpo, em sinal de agradecimento. Puxou a cadeira e sentou-se solenemente.

– Sem problemas, senhorita.

– Eu – disse ela hesitante – eu já pedi. Mas o rapaz deixou o menu aqui.

– Gut – disse Fëll gentilmente.

A Srta. Lepperstein estava envergonhada, como se conhecesse muito bem as próprias limitações.

– O senhor me desculpe... Papai falava tanto de suas proezas. Nós crescemos ouvindo as histórias dele. Eu não sabia mais a quem recorrer... Foi então que me lembrei de seu nome. Espero que não tenha ficado chateado comigo.

– Claro que não. Eu conheci seu pai. Ein guter Mann, o velho Lepperstein. Um grande colecionador de selos...

– Sim – disse ela, sem interesse.

O garçom passou nesse instante. Fëll pediu um hours d’ouevre e um prato de sopa. Depois voltou a se concentrar na moça que, distraída, tinha os pensamentos em outro lugar. Ele julgou que ela estivesse sob uma grande angústia mental.

– Está se sentindo bem, senhorita?

Beatriz levantou a cabeça, admirada. Deu a impressão de não ter entendido a pergunta.

– Sim, estou bem – disse, por fim.

E antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, perguntou:

– O senhor acha que eu sou burra, Sr. Fëll?

Ele olhou para a mulher, tentando adivinhar o que ela queria dizer.

– Se eu acho que a senhorita é burra? Wie können wir das klären? Não acho que alguém a considere burra.

Ela deu um sorriso, cansado.

– Está enganado, Sr. Fëll. Todos acham que sou ignorante. Meu pai vivia me dizendo que sou uma cabeça de vento. Creio que minhas amigas pensam a mesma coisa. Só Moacir – e aqui os olhos dela se iluminaram –, bem, o senhor vê, ele é o único que me entende. Eu o amo tanto.

– E ele a ama?

– Sim, tenho certeza que sim. Oh, o senhor acha que...?

Beatriz ficou subitamente inquieta, e seus lábios tremeram. Estava surpresa com as palavras dele. Fëll abanou as mãos, e tentou consertar a sua gafe:

– Não estou sugerindo nada, weißt du was ich meine? Foi só uma pergunta.

– É mesmo? Que bom... Por um segundo fiquei tão preocupada. O senhor é detetive. Cheguei a achar que sabia de alguma coisa que eu não sei.

Fëll ficou um pouco desnorteado com a situação. Honestamente falando, estava intrigado. Por que será que a Srta. Lepperstein tinha ligado, implorando para que ele viesse até ali? O que havia no fundo daquele caso todo?

Resolveu falar francamente:

– Entschuldigen Sie mir... Mas tenho que insistir. A senhorita está mesmo bem?

Ela não respondeu imediatamente. Sua testa se franziu, como se estivesse se esforçando para ordenar os pensamentos. Parecia uma fortaleza pronta para desabar.

– Não estou bem... Por que esconder isso? Eu creio – e Beatriz se inclinou para frente – que alguém está querendo me matar.

A declaração feriu os ouvidos de Fëll como um chicote. Lembrou que já tinha escutado essas palavras antes.

– Alguém está querendo matá-la!

– Eu tenho recebido ameaças – disse ela em voz baixa.

– De que espécie?

– Estão no meu celular. Aqui! Veja.

Fëll pegou o aparelho, curioso. Uma das mensagens dizia: “O seu dia está chegando.” E a outra: “O seu corpo descansará no fundo do mar.” O remetente era desconhecido. Ele leu mais duas, mas o teor era mais ou menos igual. Fëll voltou para a segunda mensagem:

– Este trecho “descansará no fundo do mar”... A que supõe que está se referindo?

A Srta. Lepperstein respondeu impetuosamente:

– Ora, vamos, Sr. Fëll. Eu organizei uma turnê marítima. Várias pessoas participarão. O senhor também estará lá conosco... Moacir insistiu nisso. É lógico que isso significa só uma coisa – que eu serei morta a bordo do iate.

– Entendo. E o que sugere que eu faça?

– O senhor deve me proteger. Julga-se capaz disso?

– O seu marido... Ele sabe dessas mensagens?

– Não – disse ela, com desânimo. – Quero poupá-lo dessas preocupações. Ele já tem tantos problemas...

– Uma última dúvida. Acha que seu marido também foi ameaçado?

– Eu... eu creio que não – disse Beatriz sem muita certeza. – Moacir... Ele me teria contado. Está dizendo que... Oh, mas isso é terrível! Bon Dieu!...

Fëll lembrou as palavras de Colasanti – que ele não quisera alarmar a esposa; que escondera de todos o que vinha acontecendo. Talvez ali... sim, era bem provável...

Fëll resolveu ser honesto com a Srta. Lepperstein:

— Eu não quero que fique decepcionada, senhorita, mas o seu marido... Bem, ele falou comigo. Ele mostrou... ameaças semelhantes.

Os olhos de Beatriz se arregalaram:

— Oh, Sr. Fëll! Moacir foi ameaçado? Eu... eu não sabia. Por que ele não me disse nada?

Fëll sorriu da ingenuidade da moça:

— Talvez pela mesma razão. Ele não queria que a senhorita se preocupasse.

— Oh, meu herói! Ele não é um amor?

– Das ist möglich — respondeu o austríaco. — Vamos fazer o seguinte. De qualquer modo, vou estar com vocês. Tomarei a peito cuidar desse caso, e vou protegê-la se notar algum perigo.

– Viva! – Beatriz deu um gritinho, entusiasmada. – Fico tão aliviada! Obrigada, Sr. Fëll. Muito obrigada!

A alegria dela foi tão intensa que Fëll sorriu, satisfeito.

 

– Bea!

Ela se assustou ao ouvir o seu nome.

– Moacir!... O que você está fazendo?

– Sou eu que quero saber!... Onde você esteve?

Colasanti ergueu-se do sofá. Tinha os olhos cheios de cólera, e o copo de vodca tremia em sua mão.

– Você... estava me esperando? Por quê?

– Por quê?! Você não tem nada mais inteligente para perguntar? ... Ora, por quê? Eu sou seu marido; tenho o direito de saber aonde você foi a essa hora da noite...

– Eu deixei um bilhete...

– Não diga!... E o telefone? Tentei ligar para você – nada, estava off line!... Bea, por favor, me diga... Você está me traindo? Eu exijo que fale a verdade.

– Traindo... Você enlouqueceu? É claro que não!...

– Está certo, foi uma pergunta tola. Que mulher contaria para o marido a história de sua infidelidade!... Acho que ando mesmo bebendo demais!

Beatriz Lepperstein não se mexeu, os ombros caídos. Fechou a porta vagarosamente. Era quase meia-noite, e ela sentia o corpo cansado e dolorido.

– Escute, não vamos falar nisso de novo... Depois de amanhã teremos o nosso tour. Temos muitos arranjos para terminar amanhã... Vamos dormir, está bem?

– É muito fácil falar – disse Colasanti, com desdém. – Chego em casa, ansioso para beijar minha esposa... Sim, ansioso para abraçá-la. Então... assim que entro... chamo por ela. O que eu ouço?... Nada! Chamo pela segunda vez. Talvez ela esteja no banho e não tenha me ouvido! E o que ouço agora?... Nada! Começo a ficar desesperado. O que pode ter acontecido? Será que foi assassinada, e o corpo dela está jogado no chão do quarto?... Corro para lá, fora de mim. E o que eu encontro?... Nada! Nada!

Com força, ele atirou o copo contra a parede. Beatriz se encolheu, e começou a soluçar baixinho.

– Me perdoe!... Eu não queria magoá-lo. Eu o amo!... Amo tanto!

Colasanti ficou ali parado, bufando, sentindo o ódio latejar em suas veias. Depois, aos poucos, aproximou-se da mulher e tocou nela:

– Bea, me ouça... Eu preciso que você me ajude. A lista de passageiros que nós fizemos... Essas pessoas são confiáveis?

– O que está dizendo? É claro que são confiáveis!... Você mesmo as conhece, Moa.

– Sim, eu sei. Mas você tem certeza que nenhuma delas, por assim dizer, tem ressentimentos de nós?

– Eu não entendo... Por que alguém teria ressentimentos? Nós sempre as tratamos tão bem!... O que você está querendo dizer?

No olhar dela surgiu um misto de apreensão e insegurança.

– Não, Moacir! Você está sugerindo que...? Não, isso é horrível demais!...

– Calma, querida. Não estou sugerindo nada. Eu só fiz uma pergunta!... Calma! Desculpe-me se a envolvi nisso, sim?

Beatriz ergueu os olhos. Havia neles uma dor contida, mas palpável.

– Moacir, o que foi que nós fizemos?... Será que deveríamos cancelar o passeio? Se quiser, eu posso...

– Nem pense nisso! Todos já confirmaram que virão. Vamos manter as coisas de pé. Seria uma desonra se, a essa altura, déssemos para trás. A única coisa que devemos fazer é ter cuidado...

E, como de si para si, repetiu baixinho:

– Precisamos ter cuidado, Bea. Se fizermos isso, tudo vai dar certo.

 

A coluna de Dieter Wedderhof dizia:


“Há poucas coisas novas debaixo do sol, amigo leitor. Isto significa que foram poucas as coisas que, nesses anos todos, conseguiram me surpreender. Mas esta semana fiquei realmente perplexo. Fui convidado para a turnê pela Baía da Babitonga que o casal Colasanti e Lepperstein programou! Ele, firme e comedido; ela, frágil e emocional.

Outras ilustres personalidades que estarão presentes: Joana Canelles, o duque Norton Salles, Neusa Brenneison (irmã de Colasanti), e o prof. Wolfgramm (ex-marido de Beatriz).

Espero que essa gentileza sirva para acabar com as hostilidades que, tempos atrás, existiram entre nós.


Capítulo 2

 

Eram nove horas da manhã do dia 28 de dezembro.

No trapiche do bairro Espinheiro, o Silver Blaze se preparava para sair. Com piscina a bordo, uma sala para danças, bares e camarotes, o barco era magnífico. As turnês tinham se tornado muito disputadas, o que obrigava os administradores a vender bilhetes com algumas semanas de antecedência.

Sem se comover com a correria, Edmund Fëll estava ali parado, desatento a todo o tumulto. Pensava nas circunstâncias que o tinham conduzido até ali. Lembrava distintamente da voz de Colasanti... da ginga incontrolável de seu corpo... dos seus passos frenéticos pelo tapete da sala de Fëll .

Estava quente ali no trapiche. A intervalos, os apitos do iate cortavam o ar, chamando os retardatários.

O ambiente era festivo e contagiante. Levantando a cabeça, Fëll viu quando uma senhorita de saia azul turquesa apareceu no convés do iate fretado.

Fëll reconheceu a moça. Ele tinha decorado o nome dos passageiros. Com mais algumas pesquisas na internet!... Tanto a identidade quanto a aparência de toda a tripulação estavam bem vivas na cabeça de Fëll.

Aquela era Neusa Brenneison.

Ela era bonita, um encanto — uma dessas raridades que arrasam um coração desprevenido. Usava sapatos de cetim, calça cigarette mostarda e blusa de seda. Uma pessoa madura, centrada e audaciosa.

No convés, a moça olhou para o céu. Tempo bom, sem nuvens. Depois, olhou para baixo. De leve, a testa da Srta. Brenneison se franziu ao ver a camada de gel nos cabelos de Fëll. Não conseguiu ocultar a admiração. Que coisa exagerada!, pensou. “Tem gente que não se olha no espelho!”

A Srta. Brenneison não tinha gostado do barco. Sem hidromassagem, nem shows, e nem bufê à uma hora da madrugada? O cúmulo! Que conforto havia ali? Era uma mulher que amava a sofisticação, cosméticos e badulaques. Calmamente, analisou a baía. Estava tão séria que parecia uma estátua do Madame Tussaud’s Museum.

Mexendo no monóculo, Fëll adiantou-se alguns passos. Quase foi atropelado. Uma senhora de olhar gélido passou por ele como um meteoro. Fëll deu um salto asmático para o lado.

“Por Deus!”, ele suspendeu a respiração para assistir.

A dama lançou um olhar de desprezo para o detetive, como se quisesse indicar claramente que ele estava obstruindo o seu caminho. Fëll reconheceu-a imediatamente. Joana Canelles. Mora em São Paulo... Rica, imponente e casca grossa. Trabalhou na restauração de pinturas renascentistas para museus de arte. Atualmente aposentada.

Fëll virou a cabeça. Atrás de Madame Canelles, praticamente colada em seus calcanhares, ia uma moça loura de uns 25 anos. A jovem levava uma estola de mink nos braços e uma valise na mão. Corria como louca para acompanhar os passos rápidos e enérgicos da velha dama. Mentalmente, Fëll examinou aquela estranha cena de submissão. Além dos detalhes pitorescos, havia nisso um componente novelesco.

Enquanto Fëll olhava aquilo, um rapaz gordo parou atrás dele:

– Patético, não é mesmo? Madame Canelles é fogo!

O rapaz tinha um corpo volumoso, recheado de banha. Mas isso não o incomodava nem um pouco, pois havia uma sugestiva amabilidade em sua voz.

Este é Wellington Santelo!, pensou Fëll. Já gerenciou uma firma de seguro privado. Nasceu em Palermo, Sicília. Faculdade de engenharia... Faz desenhos de mecânica... Jovem, ambicioso e solteiro.

– Madame Canelles? — perguntou Fëll para puxar conversa.

– Exatamente — respondeu Santelo com naturalidade. — Uma verdadeira rainha. Eu se fosse o senhor evitaria falar muito com ela.

– Por quê?

– Nada pessoal. Ela é um pouco maluca. Acho que enveredou numa jornada em busca de redenção.

– Maluca? — murmurou Fëll desconfiado.

– É, o senhor sabe. Uma mulher na idade dela... Feia, com um passado de perdas e derrotas. É natural que a pessoa fique um pouco amarga. Não sei se o senhor me entende.

– Warscheinlich... Obrigado pelo aviso.

– De nada. Meu nome é Santelo. Wellington Santelo. Ao seu dispor.

– Danke, Sr. Santelo.

Santelo olhou vivamente para o austríaco.

– Ah, entschuldigung. Fëll.

– Prazer – disse Santelo. Depois sorriu: – Vai embarcar, Sr. Fëll?

– Sim.

– Recomendo que vá logo. O barco vai zarpar... Espere. F-ë-l-l... O senhor é o detetive? Acho que já li a seu respeito... Está nos jornais, não é? Seja bem-vindo. Em que cabine ficará?

– Número 12.

– Bom número. Par. Se precisar qualquer coisa, pode contar comigo.

Dizendo isso, Santelo subiu a bordo. Uma boa pessoa aquele moço! , aprovou Fëll satisfeito. “Uma figura sensata e um exemplo positivo, com uma sobriedade precoce.”.

No convés, uma jovem mulher saiu da cabine do capitão e caminhou na direção de Santelo. Edmund Fëll viu que os dois se cumprimentaram alegremente.

– Trouxe os suflês, Willy? – riu Beatriz Lepperstein.

– É claro, Bea. Eu amo suflês, você sabe. Química, é como vivo dizendo.

– Tome cuidado, Willy. Os suflês engordam – e o riso dela se prolongou.

– Bea, ainda bem que você não é minha nutricionista. Que é isso? Você está divina.

Sim, a Srta. Lepperstein estava divina. Visual seguro e convencional, com peças contemporâneas. Mas Fëll guardava outra imagem dela em sua memória. Ainda lembrava com clareza do medo da Srta. Lepperstein no Faias de Cobre.

Com espantosa agilidade, Fëll adiantou-se como quem não quer nada, olhando tudo à sua volta com indiferença.

No deck, Beatriz despediu-se de Santelo e abriu o leque. O gesto foi feito com tanta suavidade, tanta graça! Os dedos seguravam o cabo com delicadeza, treinados e femininos. O leque começou a ir para lá e para cá num vaivém perfeito e feliz. A boca, reta e minúscula, era sorridente. Os ombros tinham uma forma sólida e calma. Usava um cachecol colorido, que conferia uma aparência pouco usual. Todos concordavam que a Srta. Lepperstein tinha um dom único, especial — o dom para ditar a moda. Mulheres imitavam seu estilo, sua alva maquiagem, a cor de suas roupas. Um editor de uma revista dedicara a ela três ou quatro páginas, explicando seus gostos, sua dieta e o tecido de seu pijama de dormir. Por trás da pele cor de polvilho e sua voz de andorinha existia uma mulher ardente, apaixonada pela vida.

Que mulher magistral, pensou Fëll admirado.

Ao ver o austríaco, a Srta. Lepperstein parou tentando ajustar os pensamentos. Depois soltou uma exclamação de surpresa e prazer.

– Sr. Fëll! Que bom que veio. Receava tanto que fosse me decepcionar... Papai apostou comigo que o senhor não viria. Oh, que bom!

– Fräulein Lepperstein! Tão linda e atraente, Mädelein.

– Pare, papai sempre diz que as pessoas vivem me estragando. E o senhor, o que fez? Está tão elegante!

A Srta. Lepperstein o olhou com benevolência. A sua boca se abriu sensivelmente. Sorriu com simpatia, um brilho forte em suas pupilas.

Ela era mesmo extraordinária.

Fëll quis responder, mas uma voz o interrompeu:

– Olá, Bea! Aí está você.

Fëll se virou na direção da voz.

Perto dele, um homem subiu a rampa de embarque. Alto, cabelos bem alinhados — Fëll reconheceu Moacir Colasanti.

Depois de por os pés no barco, Colasanti passou ao lado do austríaco sem externar a menor emoção. Foi direto abraçar Beatriz. Disse um “Oi, querida” em voz baixa perto de seu ouvido. Aquele gesto... O dono que vem afirmar a posse de sua ave de estimação.

Colasanti olhou para Fëll como se nunca o tivesse visto.

— Quem é? — acrescentou falando com a esposa.

A Srta. Lepperstein fez um ar enigmático.

– Quero que você adivinhe, Moa. É um grande amigo de papai. Aliás, foi você mesmo que o convidou, lembra?

– Espere... Agora me lembro. Não é o aquele que escreve diplomas?

– Dossiês, meu bem. Dossiês.

– Claro, agora sei — disse Colasanti. — Falei com o senhor em seu escritório. Fëll, não é?

– Sr. Fëll, este é meu marido.

– ‘Freut mich! – disse o detetive.

– Meu sogro vive enaltecendo o senhor. O senhor é criminólogo, não é?

– Em certo sentido...

– Então me diga... Em sua opinião, existe alguma possibilidade de alguém ser assassinado neste barco?

– Querido...

– Bea, deixe o homem responder, sim? Ele é o especialista!

– Sim – disse Fëll, fleumático. – Um crime pode acontecer em qualquer lugar. Metrô, casa de campo, no quinto andar de um edifício e, claro, aqui no barco. Mas esperamos que isso não aconteça, nicht wahr?

– Falou o perito. Era só isso o que eu queria saber.

– Céus, vocês não têm outra coisa para discutir? – perguntou Beatriz.

– Calma, Bea – disse Colasanti. – Você cresceu numa redoma de vidro, sob o olhar atento do pai e da mãe. Coisas más acontecem no mundo real. Foi só uma brincadeira.

– Pode ser, querido. Mas você sabe que eu não gosto. Assassinato, morte... Oh, eu fico toda arrepiada!

Um longo apito cortou os ares. Homens correram e a rampa de embarque foi removida.

Beatriz deu alguns gritinhos, empolgada.

– Estamos partindo, estamos partindo! Oh! Venha, Moa, eu quero ver o mar.

Fëll continuou olhando Colasanti. Qualquer coisa no italiano era teatral, falsa. Talvez fosse o sorriso sedutor, um pouco indiscreto demais naquela ocasião. Ou até mesmo o modo como alisou o cabelo... Um estilo clássico, sutil e onipotente, talvez.

Todos foram até a amurada assistir à partida do cais. A âncora foi içada. Depois de algumas manobras, o iate começou a singrar a Lagoa do Saguaçu.

A alguns metros dali, Joana Canelles estava reclinada numa cadeira de praia. De óculos pretos e um chapéu ráfia, ela fez uma careta. Toda a cena feita por Moacir e Beatriz...

– É nojento! Ele circula ao redor dela como uma galinha choca – disse Madame Canelles venenosamente. – Que papelão! Não sei como Beatriz fez uma coisa tão infantil. Poderia ter casado com alguém mais novo, mais maleável. Em vez disso, caiu na lábia desse velho mulherengo. Se ela fosse pobre, e não tivesse onde morar, tudo bem. Embora ele ainda dure pelo menos uns vinte anos. Mas Beatriz não precisa de nada disso; tem dinheiro e mais dinheiro... As pessoas às vezes fazem cada uma!

Ao seu lado, o colunista Wedderhof olhou para Madame Canelles, surpreso. Ele desviou os olhos para a acompanhante dela; perto dali, a empregadinha espanava a poeira dos objetos trazidos pela patroa. “Pobre menina!, pensou ele. Trabalhar para essa víbora... Como é mesmo o nome dessa mocinha? Miss Katrine... ou Miss Lavine...”

É lógico que Wedderhof gostava de boatos. Quanto maior a intriga, melhor. Quando ouviu o comentário de Madame, aproveitou instintivamente a chance:

– Desculpe me intrometer... Mas a senhora conhece bem o Sr. Colasanti?

– Se eu conheço bem? — perguntou a Sra. Canelles. Fez um gesto de desprezo: — Mais do que deveria, posso lhe garantir. Conheço toda a família... Pais, primos, sobrinhos. Uma gente que gosta de suplantar os outros. Que vive no pináculo da montanha e não olha para ninguém.

Joana teria continuado seu discurso, mas um alarme interior fê-la se calar. Olhou para o colunista, desconfiada.

– Ora, ora... Mas quem é o senhor, afinal de contas?

Wedderhof inclinou-se educadamente:

– Muito justo, Madame. Eu deveria ter me apresentado. Wedderhof, às suas ordens.

– Wedderhof, hum – disse a grande dama. – O que o senhor faz?

– Anos atrás, trabalhei em redação, cobrindo esporte e economia. Hoje escrevo para um jornal que... bem, ainda estamos crescendo.

– É um jornalista?

– De certa forma.

A Sra. Canelles odiava jornalistas. Francamente falando, a Sra. Canelles odiava quase tudo nesse mundo.

– Por que está aqui, Sr. Wedderhof? Alguma reportagem sobre como os ricaços gastam a sua fortuna? Uma casta que vive em luxo e ócio à custa da maioria trabalhadora e empreendedora do país?

– Mais ou menos – disse ele, constrangido.

– Eu devia ter imaginado. É um daqueles malditos fofoqueiros.

Wedderhof assumiu um ar de superioridade.

– Está sendo um pouco dura, Madame. Não me considero...

– E quem se importa? — retrucou a Sra. Canelles. — São todos iguais. Nossas origens e trajetórias são totalmente opostas.

– Espero provar para a senhora que não, Madame. Nós...

Mas Joana não queria ouvir explicações.

– Em vez de ficar aí tentando se justificar, me responda uma coisa. O senhor foi convidado?

– Naturalmente. Aqui... Veja, aqui está o convite.

– Isso não quer dizer nada.

Wedderhof suspirou derrotado.

– Como queira, Madame. Não vou insistir.

– De quem é o convite? De Beatriz?

– Não, de Colasanti.

– Jura? O senhor é um homem privilegiado! Ele odeia a imprensa. Desde aquela história da morte da esposa... Sabe que ele já foi casado antes disso, não sabe, Sr. Wedderhof?

– Sim, eu sei, Madame.

A Sra. Canelles virou o corpo e deu um berro para a empregadinha:

– Venha aqui, Kaline. Pare de esfregar as minhas roupas. Faça um pouco de vento, por favor!

Kaline veio correndo e começou a abanar a patroa. Joana voltou-se de novo para Wedderhof:

– Bom, o que eu ia dizendo? Ah, sim. A morte de Bianca... era assim que se chamava a mulher. Alguns jornais divulgaram umas coisas que ele não gostou. Disseram que ele tinha causado a morte da mulher, ou algo assim. Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, disseram que estava em vias de resgatar a estabilidade familiar. Em todo caso, foi um escarcéu.

– E o que a senhora acha? A morte da mulher, quero dizer...

– Se ele é culpado? Pode-se esperar qualquer coisa de homens assim. Matam para ver a vítima cair. Parecem inocentes, mas são capazes de tudo. Anote o que digo.

Wedderhof considerou a opinião um pouco extremista. Mas era um começo. Resolveu continuar:

– Por que será que fizeram isso? Isto é, por que alugar um iate e convidar exatamente essas pessoas? Gostaria de saber o que os outros pensam disso.

Madame Canelles fez um ar convencido:

– Pois eu posso dizer ao senhor o que eles pensam. Ali, aquele é o duque Salles!... Ele está se mordendo por dentro. Ele tem um bom caráter, mas já circulou no submundo dos negócios escusos envolvendo trabalho semiescravo. Parece que o velho Colasanti fez um empréstimo, e babau – está demorando a devolver o que deve. Aquela outra, com a saia verde... por sinal, horrorosa... é a ex-namorada de Colasanti. Filha de um programador de voo e de uma comissária de bordo, e arisca como um bichinho do mato. Acho que se chama Zelly não-sei-o-quê. Ficou muito sentida com o término do namoro. É uma bobalhona; deveria ter ficado feliz! Por aí a gente vê como essas moças de hoje são instáveis.

Wedderhof se sentia nas nuvens.

– O outro ali... Não é o ex-marido da Srta. Lepperstein?

– É outro que tem muita coisa entalada na garganta. Tudo ia bem, até que um dia Beatriz argumentou que não estava contente. Tiveram um desentendimento qualquer, que acabou em divórcio e acrimônia públicos. Dá para acreditar numa coisa dessas? É o que eu digo... Certas pessoas fazem as coisas mais impensáveis.

– Sim, tem razão. Como é o nome dele?

– Wolfgramm... É professor de física ou matemática, uma dessas matérias que ninguém gosta.

– Temos também um detetive. Por que será que veio?

– Detetive? Quem?

O colunista não teve certeza, mas julgou que Madame Canelles ficara assustada.

– O cara ali, com a gosma de lesma no cabelo. É Edmund Fëll, que tem...

– Oi, pessoal! – disse uma mulher, interrompendo a conversa. – Estão se divertindo? Que passeio mixuruca, o que é que vocês me dizem?

Era a Srta. Brenneison, a mulher com os sapatos de cetim. Ninguém parecia ter notado a sua aproximação.

A Srta. Brenneison encostou o corpo na amurada. Deu um olhar entediado para a baía.

– Não sei quanto a vocês, mas para mim é um pecado desperdiçar um dia tão bonito – acrescentou. – Um clima desses... Bom para plantar hortênsias, mexer no jardim... Vocês acreditam que já me arrependi de ter vindo para cá?

– Que coincidência – disse Wedderhof. – Estávamos falando disso agora mesmo, Srta...?

– Brenneison. Neusa Brenneison.

– Prazer. Eu sou Wedderhof. Esta é...

– Sim, já sei. É Joana Canelles, não é?

Neusa olhou espantada para Kaline.

– Me perdoe, Joana querida. Mas quem é sua simpática companheira?

– Oh, ninguém especial. Tenha bons modos, Kaline! Continue abanando. Assim não... mais rápido!

Kaline corou e abanou com renovado vigor. Um pequeno redemoinho de poeira se formou no convés.

Neusa e Wedderhof se entreolharam. Wedderhof deu de ombros, na dúvida.

– Eu falei com Moacir, tentei convencê-lo a cancelar o programa – acrescentou Neusa, mudando de assunto. – Imaginem o que ele respondeu... “Não posso! Não dá!” A mesma coisa de sempre. Disse que não poderia cancelar, que todos já tinham sido notificados... Por Deus, às vezes não acredito que tenho um irmão tão passivo!

– Irmão, Srta. Brenneison?

– Sim, Sr. Wedderhof. Oh, o senhor não sabia!

– Não.

– Eu sou mesmo uma tonta. Pois é, Moacir é meu irmão mais velho.

Wedderhof fez um “ah!” de compreensão.

– Neusa querida, você é tão ingênua! – disse Joana, sem misericórdia. – O seu irmão desconectou-se de tudo; está completamente enfeitiçado! O amor é altruísta, mas a paixão é loucura. Andou atrás de Beatriz como se fosse um cordeirinho. Mandou maços e mais maços de flores. Beatriz sempre foi tão independente! Ela só aceitou casar com ele por pena. E pena não é a melhor base para um casamento sólido e um casal amplamente compatível.

Cerca de meia hora depois, o capitão anunciou que se aproximavam da Vila da Glória.

Edmund Fëll desceu até o seu camarote, 12. A sua mala era volumosa; além das roupas, tinha trazido os papéis com o resultado de suas pesquisas. Guardou as coisas e saiu, trancando a porta atrás de si. Voltou ao deck superior. O iate estava parado no atracadouro.


Dos Herdeiros – das Flores – das Claras – e a Grande


As ilhas que haviam ficado para trás.

Fëll viu a Srta. Lepperstein sozinha na amurada.

– Gostando do passeio, senhorita?

– É o máximo, Sr. Fëll! Veja esta paisagem.

Fëll sorriu.

– Fico mais aliviado. Achei que estaria preocupadíssima.

– Por causa das ameaças ou do meu marido?

– Dos dois. Não necessariamente nessa ordem...

Beatriz fez um gesto de desdém.

– Oh, não se preocupe... Os assassinos não agem à luz do dia.

– Acha mesmo, senhorita?

– Eu sim. E sabe por quê, Sr. Fëll?

– Não.

– Porque o senhor está aqui. Vai cuidar de nós, não vai?

– Vou, mas não sugiro que seja tão otimista. O otimismo é algo bom, mas depende muito das circunstâncias. Está vendo aquelas pessoas? Talvez ali esteja alguém que tramou a sua morte. Ainda não sabemos quem é o autor daquelas mensagens; se houver um criminoso entre nós, devemos ficar vigilantes. Todo cuidado é pouco.

Beatriz mordiscou a ponta do polegar; aterrada, olhou para o grupo de passageiros no convés.

– O senhor acha?

– Deixe-me contar a história. Estou uma tarde em meu escritório, sem nenhum caso para resolver. A porta se abre e, muito exaltado, um homem entra. Ele fala de certas ameaças que lhe foram mandadas, e diz colericamente que aquilo não pode continuar. Tento acalmá-lo, mas isso só aumenta o nervosismo dele. Ele menciona uma excursão de iate, de vários convidados... A insinuação é que, de alguma maneira, há alguém que quer matá-lo. E que essa pessoa estará impreterivelmente a bordo do barco. Para encurtar o caso, digo que me disponho a ajudá-lo, e que preciso que ele me forneça o nome dos passageiros. Ele rabisca os nomes e depois sai; a partir dali, a responsabilidade do caso é minha. Procuro pesquisar os antecedentes daquelas pessoas, o que fizeram, o que fazem e quais as profissões. Não é muito, mas já é melhor que nada. Mas então, antes do dia do embarque, a própria esposa do cavalheiro marca um jantar comigo. Qual é a confissão que ela faz? Que também foi ameaçada, embora não tenha dito nada ao marido. A essência das mensagens é parecida, o que sugere que o remetente delas seja a mesma pessoa. O quadro começa a se delinear. Hoje, portanto, tenho apenas um objetivo, senhorita; ficar de olho nos passageiros, para ver como agem e se algum deles tem alguma atitude suspeita. Se alguém tiver mesmo tramado alguma coisa, proponho-me a descobrir isso antes que a coisa tome proporções maiores. Quem é a moça que veio com Madame Canelles?

– Aquela garota loura? Joana a apresentou como Miss Kaline; disse que é uma enfermeirinha que contratou no Panamá... ou será Paraguai? Parece uma moça esforçada...

– Miss?... Ela é americana?

– C-creio que sim...

– Trabalha há tempo com Madame Canelles?

– Não sei... Um mês ou dois, acho. Por quê?

– Srta. Lepperstein, preciso ter uma visão geral do meu território de atuação. Para saber com quem vou lidar, e o que devo esperar de algum eventual confronto.

Beatriz deu um sorriso amarelo.

– Ou seja, o senhor precisa se ambientar... É assim que se diz, Sr. Fëll?

– Exatamente, senhorita. Vejo que tem uma boa noção das coisas.

– Oh, não minta para mim. Papai usava muito esse termo. Lembrei por acaso...

– De onde conhece o Sr. Santelo?

– Wellington? A mãe dele era muito amiga da nossa família. Ele fez faculdade, morou em outro país por alguns anos e, agora que voltou, pensei que seria bom tê-lo com a gente. Wellington é festeiro e já deu socos na porta de boates. Agora, finalmente, tenta reverter essa imagem.

– Acredita que ele poderia...

– Não, Sr. Fëll, que horror! – exclamou Beatriz. – Wellington é um rapaz muito bem educado. Estou certa que ele nunca faria mal a ninguém.

– Nem ao Sr. Colasanti?

– Eu... acho que não. Eles se conhecem, sim. Mas... Sr. Fëll, o senhor acredita que... entre os dois...

– Senhorita, eu não acredito nada. Como eu lhe disse, preciso ter uma visão do que está acontecendo ao meu redor. Quem são essas pessoas, quais são as suas preferências, quais são os seus temores... Só assim posso chegar a um veredito sobre a nuvem negra que paira sobre a senhorita e o seu marido.

– Sim, eu compreendo...

Fëll duvidou que a Srta. Lepperstein tivesse compreendido. Sentiu que não adiantaria continuar batendo na mesma tecla. Tentou mudar de assunto:

– Fui para meu camarote... Por que paramos?

– O comandante anunciou que estamos no Distrito do Saí. Ele falou em frutos do mar, acho eu. Gosta de frutos do mar, Sr. Fëll?

– Nein, nein... Mas tenho um espírito aventureiro. Desce comigo, senhorita?

Fëll e a Srta. Lepperstein misturaram-se aos que desciam em terra. Fëll tentou contar o número de pessoas presentes.

O seu pensamento foi: “É uma combinação estranha de gente. Primeiro o Sr. Colasanti me relatou que corre risco de vida. Depois a Srta. Lepperstein disse que recebeu ameaças. Será que são indícios de um assassinato prestes a acontecer? Um assassinato! Mas por quem? E por quê?”.


Capítulo 3

 

O duque Salles estava com um guia turístico na mão e, escorado na bengala, falava com Marques, o capitão do barco.

Salles não tinha descido na ilha. Não gostava de camarão, de enchovas, ou de qualquer outro primo ou parente da espécie. Se fosse por ele, estaria num sambaqui, ou num sítio arqueológico no Iraque ou no Iêmen, menos ali, no iate, passeando por aquela poça de água.

O duque tinha seus roteiros de viagem favoritos e, em definitivo, aquela baía não estava neles. Mas às vezes era preciso fazer sacrifícios – essa era uma de suas frases mais frequentes. Se não consegue mudar o mundo, adapte-se a ele.

Apontando o guia, Salles perguntou:

– Em São Chico, em que trapiche vai nos deixar, comandante? O trapiche do Museu do Mar?

– Não. Próximo do mercado público.

– Irão à Igreja Matriz?

– Não, senhor. A Srta. Lepperstein não quer qualquer demora; faremos só o almoço.

– Nada de turismo, então.

– Apenas na baía, senhor – disse Marques.

– Eu vi que temos um detetive conosco – prosseguiu o duque, em voz baixa. – Foi requisitado pela companhia?

– O Sr. Fëll? Ele não fazia parte da lista original, pelo que sei. O nome dele foi acrescentado nesta semana. Acho que o casal lembrou-se de incluí-lo em última hora.

– Algum motivo especial?

O capitão estava bem alinhado em seu uniforme, e não era por vaidade ou exibicionismo. Desconfiado, olhou para Salles.

“Esse homem... o receio... O que será que tem a esconder?”

– Eu realmente não sei, senhor. Talvez seja só imaginação minha, mas... se quer minha opinião... também fiquei cismado.

– Que curioso – disse o duque, pensativo. – Não acho que seja imaginação sua, comandante.

Depois de conversar mais alguns minutos, Salles subiu para a cobertura e Marques seguiu para a rampa de embarque.

Joana Canelles foi a primeira a voltar da ilha, acompanhada de Miss Kaline; depois, Santelo e em terceiro lugar, Fëll. Com rigorosa correção, o capitão juntou-se ao detetive. Cordialmente, comentou:

– Temos um bom dia hoje, hein, senhor? E o pessoal parece animado.

Fëll anuiu, com um aceno.

– Sim, é verdade.

– Tenho uma coisa para o senhor.

Marques extraiu um cartão do bolso. O gesto foi tão brusco que o austríaco chegou a gesticular, interrogativamente. Aquilo era uma surpresa. Não estava esperando recado algum de ninguém. Pelo menos não na forma impressa.

– De quem é?

– Do Sr. Colasanti, senhor.

Edmund Fëll pegou o cartão. Seus anos na área criminal o haviam acostumado a suspeitar de todo tipo de correspondência. Relutou por um segundo ou dois; quando por fim abriu o cartão, leu:


“Venha ao leito n. 5. Tenho que dar novas orientações.”

 

C. “


As frases tinham sido escritas à mão. Após examinar minuciosamente o bilhete, Fëll enfiou-o no bolso da camisa.

– Colasanti está no camarote dele neste momento, bitte?

– Sim.

– Gut.

A parada no distrito fora breve – não tinha se passado nem uma hora. E agora o detetive recebia aquela intimação...

Com ar arrojado, Fëll foi direto para os leitos. Alguma coisa lhe dizia que devia atender o apelo de Colasanti o mais rápido possível. Enquanto caminhava, notou que a maioria dos passageiros tinha se distribuído desordenadamente pelo deck.

À esquerda da popa, Neusa Brenneison sorria ao homem que, por coincidência, a achara ali a sós. Ela possuía alguma coisa de rebelde em seu jeito cândido. De cabelos louro-avermelhados, em cachos, ela sabia perfeitamente qual era o tipo de poder que conseguia exercer sobre o sexo oposto. Tanto assim que tinha hipnotizado completamente o sujeito com boné tirolês e camisa de malha que estava com ela. Discutiam uma bobagem qualquer, mas isso os distraía mais do que o cenário ao redor deles.

A atenção de Fëll, entretanto, não ficou concentrada nos dois. Ele fixou o olhar no alemão que, fumando calmamente, fotografava as ilhas com uma câmera digital, à proa do iate. Lembrou-se da foto que tinha visto num dos sites. Aquele homem era Dieter Wedderhof, o redator de uma coluna num jornal. Não devia estar habituado aos tênis de atletismo, pois de tempo em tempo mudava de posição, incomodado. Parecia um turista no Brasil; toda a sua postura dizia que era um gênero de executivo ou empresário, mais à vontade em camisas de abotoadura e sobretudos do que num traje de verão.

Antes de chegar ao camarote 5, a Srta. Brenneison, que ele acabara de avistar no deck, o alcançou. Parecia chateada quando apontou por cima do ombro.

– Homens! Como são irritantes! Conheço os homens – garantiu, persuasivamente. – Sei do que são capazes para enlouquecer uma mulher.

Fëll sorriu do desabafo.

– E o que é, Fräulein?

– A indiferença ou o amor doentio – disse a Srta. Brenneison. – Qualquer um dos dois é fatal. Alguns não ouvem quando você diz o que pensa; outros são apaixonados demais. Não sou movida a folhas de alface, fatias finas de peixe grelhado e malhação! Sou uma mulher normal; é assim que quero ser tratada.

Ele estreitou os olhos:

– Gosta de meios-termos, Srta. Brenneison?

– O senhor me conhece? Creio que não fomos apresentados.

– É meu ofício saber das coisas.

– Ah, sim, o senhor é o tira. O nome é Fëll, acertei?

– Richtig!

– Então vou ser sincera. Não, eu não gosto de meios-termos, Sr. Fëll. Para mim todas as coisas têm seu lugar. Estou aborrecida, o senhor vê. Meu irmão definitivamente não regula bem! O estresse já me consumiu muitas calorias.

Fëll percebeu que ela se referia a Colasanti.

– Ele é muito condescendente – acrescentou a Srta. Brenneison. – Veja só o que ele permitiu que Beatriz fizesse. Ela convidou o ex-marido para a excursão, o senhor consegue acreditar nisso?

– O rapaz com o boné tirolês?

– Ele é Demétrio Wolfgramm. Beatriz disse que queria que o ex estivesse aqui conosco, que mulher! Moacir poderia ter dito que não, poderia ter falado qualquer coisa. Mas o que fez ele? Deu sua permissão, dá para entender? Agora Moacir está aí, bufando de ciúme, andando de um lado para o outro como um touro selvagem. Isso não vai acabar bem, ouça o que estou dizendo.

– Julga que pode haver problemas?

– Tenho certeza. Moacir sempre foi um homem irascível, fez o que bem quis por toda a vida. Acha que ele vai aturar por dois ou três dias um sujeito que já foi casado com a mulher dele? Pode apostar que não. O que eu não entendo é como Beatriz conseguiu fazer a cabeça dele... Meu irmão parece um pião de corda nas mãos dela, Sr. Fëll.

– Dizem que foi ele quem correu atrás dela, antes do começo do namoro.

– Beatriz é bonita, não nego. Terrivelmente bonita. Pernas longas, 1,75 metro de altura, um corpo modelado pela academia e pelo tênis. Mesmo assim, nunca vi Moacir desse jeito. E agora com um rival a bordo... Estou tão temerosa!

– Fique tranquila, senhorita – disse Fëll num tom paternal. – Os dois saberão se comportar. Seu irmão nada tem a recear. Pelo que eu soube, foi Beatriz quem largou o marido anterior. Não creio que ela seria tão imatura a ponto de reatar com o homem que abandonou.

– Talvez. Ai, ai, tomara que Moacir não fique mordido com toda essa situação.

Fëll teve a sensação de que a Srta. Brenneison era uma mulher indiscutivelmente fashion. Uma dessas pessoas estabanadas, dadas a faniquitos e desmaios. Ou não. Eventualmente poderia ser só fingimento. Fëll achou que ela queria escapar de alguém, por isso estava indo ao camarote dela, o 6. Algo bem insensato, naturalmente.

Uma jovem muito vaidosa, pensou ele. Viúva... Personalidade forte. Uma mulher perigosa! Terá ela engendrado as ameaças?

Chegou ao nº 5. Bateu à porta. Houve um momento de silêncio. Depois, ruídos de passos. Ruídos cansados, quase se arrastando. Colasanti entreabriu uma fresta.

– Entre... Rápido! Não pretendo que ninguém o veja.

Colasanti fechou a porta com pressa. Apreensão e medo se aliavam nele. Parecia uma borboleta espetada num isopor, lutando para se livrar. Ou uma doninha encurralada em sua toca, com fogo se aproximando por todos os lados. Isso dará um vislumbre de seu horror e nervosismo. Caminhava pelo cômodo, os dedos sobre os lábios, refletindo como um filósofo grego. Um cerimonial que durou pouco tempo, porém. Sacudindo os braços, girou, dirigindo-se a Fëll:

– Então, já descobriu qualquer coisa? Não quero apressá-lo... Mas ando num estado de nervos lamentável. Tanta gente em minha volta, e todas as coisas abjetas que dizem... Bando de sanguessugas! O senhor é o único que pode me proteger. Qual deles será que intenciona fazer-me mal? Se eu soubesse... Há dias que vivo agitado, imaginando quando virá o golpe. Ou de que lado virá o golpe.

Fëll não respondeu. Observou Colasanti com um olhar perscrutador. Já ouvira todos aqueles argumentos, e podia predizer o que o magnata diria a seguir. Havia um tom inegavelmente dramático em seus gestos, que destoava absolutamente do sujeito controlado que era diante dos outros.

Houvera um tempo em que o nome da família Colasanti fora citação recorrente nas colunas de economia. Na área de metalurgia ou indústria de plásticos. Isto antes de uma repentina falência abalar os investimentos financeiros. A queda fora irreparável; ninguém apostava que os italianos se recuperassem do tombo. Mas aí viera o anúncio do casamento do velho com a herdeira dos Lepperstein, um evento que causara comentários sensacionalistas que continham toda sorte de especulações.

– Estou em maus lençóis – continuou Colasanti. – O senhor precisa fazer alguma coisa! Basta apenas que faça o preço, não pechincharei. O quê? O senhor não é homem que se possa comprar facilmente, entendo. Mas faço questão, tenho algumas reservas e pretendo usá-las, não se preocupe. Já lhe afiancei isso e vou honrar minha promessa.

A maneira com que se expressou! O austríaco coçou o nariz, e fez um aceno de pouco caso.

– Temos mais de uma dúzia de pessoas aqui – respondeu Fëll. – O senhor me visitou em meu gabinete dizendo que corria um sério risco. Facilitaria o trabalho se pudesse direcionar suas suspeitas. A começar, por que acha que estão querendo matá-lo?

– Não faço ideia. Vingança. Rixa. Quem é que sabe? Como já lhe disse, enviaram-me mensagens para o celular. “Está perto o dia de prestar contas”, coisas desse tipo. Ontem as palavras foram especificamente relacionadas com esta viagem. “Finalmente seu corpo descansará no fundo da baía”! Tive uma noite insone... Oh, que pesadelo!

– Em resumo, sua esposa não foi informada sobre essas mensagens.

– Não, por Deus. Acho melhor não metê-la nisso. Ainda que haja preferências divergentes, amo Bea loucamente.

– Muito bem, o senhor já deixou isso claro. Vamos ao ponto que nos interessa: o que sugere que eu faça?

– Ótimo, ótimo – disse Colasanti. – A minha intenção é que investigue alguém. Conforme for, pagarei seus honorários depois que tiver chegado a uma conclusão segura.

– Não sou investigador. Deve ter entendido mal seu sogro.

– Não seja tão mesquinho, Sr. Fëll. Valores não é problema. Estive a ponto de falar com a polícia, mas acho que daria muito na vista. Não quero nenhuma publicidade, porco cane!

– Eu realmente desejaria compreender aonde quer ir com isso.

– A lugar nenhum. Não agora. Só preciso saber algo sobre Wedderhof.

– Quem é Wedderhof? – perguntou Fëll, com uma inocente máscara de dúvida.

– É o colunista que Beatriz convidou. Está tirando fotografias da paisagem, pelo que vi. Não confio nele, em absoluto. Acho que ele embarcou por algum motivo sórdido. Um motivo que preciso conhecer.

– Quer dizer, o fumante... Por que ele?

– Porque é uma raposa intrometida. Ele escreveu coisas horrorosas a meu respeito... Calúnias, um monte de mentiras. Chegou a afirmar que matei Bianca, minha segunda esposa. Eu... o senhor vê... um assassino? Escreveu que eu mexi nos freios e que, em sua opinião, fora por causa disso que o carro descera a ribanceira. Fiquei fora de mim. Falei com meus advogados, exigi que o abelhudo respondesse por seu acintoso artigo. Ah, foi uma briga feia... Quase desmantelamos o jornalzinho deles. Tiveram que publicar uma retratação... Eu jamais teria convidado esse parasita, mas Beatriz disse que deveríamos esquecer o passado e virar a página. Beatriz... Que mulher formidável! Mas algumas vezes tão impertinente... Ela disse que faríamos dessa turnê uma viagem de reconciliação. Não é engraçado – viagem de reconciliação? Como se as coisas fosse tão simples assim. Para ela, basta meia dúzia de palavras para solucionar anos de guerra acirrada!... Tolice! Nada é tão fácil. As mulheres são muito simplórias... Acham que existem fórmulas mágicas para a paz mundial!

– A sua irmã julga que o senhor esteja... digamos... incomodado com a presença do Sr. Wolfgramm.

– Neusa... Eu já deveria ter imaginado! Não se preocupe com ela; Neusa sempre me superprotegeu. Ela acha que sou um velho gagá, que não sabe o que faz. Esse é o núcleo de tudo. Típico dela! Não ligue, estou pouco me lixando para esse Wolfgramm... Ele perdeu e eu ganhei, é assim que vejo as coisas. Beatriz quis que ele viesse, acho que sentiu pena. Pouco me importa, não me preocupo nem um pouco.

– Conhece bem esse homem? – perguntou Fëll.

– Não conheço, e nem faço muita questão. Ah! Percebo... O senhor supõe que ele...

– Não estou supondo nada. Mas já pensou nessa possibilidade?

– Sim, já pensei nisso. Mas... quando eu olhei para ele... não me pareceu que fosse capaz de arquitetar uma coisa dessas. Tem uma cara de anemia! Em que universidade ele é professor? Escola dos mauricinhos?

O detetive não respondeu. Achou que Colasanti estava errado; mas era de se duvidar que quisesse ouvir outro ponto de vista. “Homens assim só enxergam a sombra da própria prepotência”, disse Fëll consigo.

Colasanti colocou a mão na testa, num movimento febril:

– O senhor pode se retirar agora? — perguntou numa voz nasal. — Bebi um pouco... acho que administrei mal as doses. Que vergonha, não? Deve pensar que sou uma pessoa notável. Sim, aposto que é o que está pensando... Desejo descansar um pouco antes da próxima parada.

Uma mudança indescritível tinha se operado nele. Parecia trêmulo. Fëll lembrou que o vira no bar do barco; talvez estivesse ligeiramente alcoolizado. Levantou-se para sair:

– Farei o que me pede. Mas não como questão de trabalho. Como hobby...

– Que se dane, o senhor! Hobby, hobby... Eu já lhe falei que vou pagar! Está enganado se julga que quero esmolas... Se Beatriz lhe perguntar, diga que fui repousar alguns minutos. Insisto que mantenha tudo em sigilo. Qualquer coisa que descobrir, ou que quiser me dizer, mande me chamar. Irei imediatamente.

Fëll não enxergou nele nenhum traço de virilidade. Ergueu as sobrancelhas. Essa gente, pensou com desgosto. Vivem se embebedando por qualquer coisinha. Mais um daqueles fatos desagradáveis que abalavam a sua fé no processo humano.

– Faço votos de que melhore de sua enxaqueca. Bitte...

Fëll retirou-se do camarote. Não havia quase nada na cabine de Colasanti. Aparentemente era modesto em se tratando de luxo ou de ostentação. Em cima da cômoda jaziam dois ternos bem dobrados e um sobretudo em cashmere bege. Era tudo.

Fëll ficou pensando no significado daquela estranha entrevista. Era difícil concluir alguma coisa. E para piorar, quando pisou no convés, foi abordado por Demétrio Wolfgramm, que lhe acenou amigavelmente.

– Bom dia!

– Guten Morgen!

Wolfgramm deu um olhar de esguelha para o cabelo lambido do detetive, ceticamente. “Que gosto esquisito, macacos me mordam!” Wolfgramm era um rapaz bem apessoado, e sabia se impor. Mas ali, diante de Fëll, ele ficou momentaneamente mudo, como se não soubesse bem o que dizer. Um plebeu de cabelos castanhos, filho de família de classe média.

“Este é o ex-marido da Srta. Lepperstein”, avaliou Fëll. “Tem cara de uma pessoa esperta... Um sujeito que sabe bem onde pisa. Será que ele... É preciso ficar de sobreaviso, para ver o que ele fará o resto do dia...”.

– Viu a Srta. Brenneison? – perguntou Wolfgramm, por fim. – Eu estava com ela há pouco, e acho que acabamos nos desencontrando. É um barco imponente... tantos decks...

– Se refere a Neusa Brenneison?

– Sim.

– Falei com ela há alguns instantes. Ela disse que estava indo para o camarote dela.

– O senhor não saberia – Wolfgramm hesitou: – o número?

– 6, do lado esquerdo...

– Que bom... Finalmente alguém que me dá uma informação! Obrigado.

O rosto do rapaz se contraiu num sorriso. Tinha uma boa índole, pelo que dava para perceber. Não era desses que usa o descaso para aparecer. Era possível que se sentisse um pouco superior aos outros, mas isso não o desvalorizava. Um homem franco? Talvez. Fëll julgou que Wolfgramm dispunha de todos os atrativos para flechar instantaneamente um coração feminino.

– Desculpe por perguntar, mas o senhor é o investigador? Pelo menos foi o que ouvi dizer.

– Sim.

– Que interessante... Gosto de falar de assuntos criminalísticos; disseram-me que o senhor é perito nisso. Está aqui a trabalho?

Havia uma nota de preocupação na voz? Ou era só curiosidade?

– Vim relaxar. Dizem que a brisa marinha abre os poros do pulmão...

– É mesmo? Se é uma teoria médica, deve ter seus méritos... Bem, obrigado de novo.

Wolfgramm acenou e foi para o lado do leito 6. Foi direto, sem olhar para trás.

Que vai fazer, meu velho? perguntou-se Edmund Fëll. Falar imediatamente com o alemão? Noch nicht! Depois. Vamos até o bar. Temos que tirar uma dúvida que ficou nessa história toda.

O barzinho ficava no segundo deck. Por mais que alguém quisesse adivinhar o que ele pretendia ali, teria fracassado vergonhosamente. Fëll foi até o barman, com quem teve um breve diálogo.

– Não, senhor – respondeu o moço.

Outra frase de Fëll.

– Não – foi a nova resposta.

Na terceira pergunta, o barman fez um sinal afirmativo:

– Sim, senhor. Ele esteve sim.

Era um mistério: sobre quem estavam falando? Ele? Um pronome muito vago para se adequar a quem quer que fosse.

– O que ele bebeu, bitte?

– Bebeu rum, senhor.

– Só rum?

– Sim.

Fëll pareceu satisfeito com a resposta. Agradeceu e saiu do salão. Tão formal como um esquimó com seu arpão de caça.

O nosso italiano empresário, disse, o cenho franzido. Então ele bebeu apenas rum. Um vício? Ou uma válvula de escape?... para o estresse?

Sob a supervisão do capitão, o barco havia voltado às águas mais profundas do litoral. Ao meio-dia, chegou a São Francisco do Sul.


Capítulo 4

 

– O que deseja beber, senhor?

– Guaraná, bitte – disse Fëll.

Fëll estava almoçando no Nauticus Restaurante. Depois que o garçom se afastou, ele deu uma olhada obsequiosa pelo aposento.

Viu que, a alguns metros de sua mesa, a Srta. Lepperstein ia de uma mesa a outra dos passageiros do Silver Blaze. Falava atenciosamente com cada um deles, e para cada qual dizia uma palavra de gratidão. Ninguém negava que ela tinha um intenso brilho natural. Era uma garota espantosa; mas o que surpreendia mesmo era sua aparente tranquilidade, sua equilibrada indiferença à opinião pública. Circulava entre as mesas com a elegância de uma duquesa. A sua altura e seu corpo magro dominavam o restaurante.

Ao mesmo tempo tão maravilhosa e tão ordeira!

Como um furacão que varre tudo o que vê pela frente, Madame Canelles entrou pela porta e escolheu uma mesa mais aos fundos. Com a atitude de quem não quer fazer amigos, olhou com soberba por cima de todo mundo. Num longo vestido branco e um chapéu de abas com um véu, seu caráter não poderia ser mais sombrio. Um exemplo claro de apatia social! Um detalhe que dá nos nervos, pensou Fëll. Madame Canelles não tinha interesse por nada e nem ninguém. Claro, a não ser por Miss Kaline que continuava colada nela como um caramujo. O detetive teve pena dela. Assim que ambas apareceram, a velha senhora (Devia ter 60 ou 65 anos!) ditou algumas ordens secas e ríspidas, num tom que não admitia desobediência. A moça correu precipitadamente para puxar a cadeira de Madame. O cabelo caía sobre a testa em mechas curtas e rebeldes, enquanto se esforçava em atender os desejos da patroa.

– Depressa, Kaline! Não temos o dia todo nisso. Odeio o calor. Odeio esse tempo. Vamos logo, você sabe que essa umidade faz mal a minha pele.

Alguns clientes se remexeram em seu lugar, repugnados.

Mais à direita, acenando com a cabeça, o gordo Santelo sorria divertido. Era evidente que a cena das duas mulheres parecia uma comédia de costumes.

A enfermeira Madame Canelles era americana – Fëll tinha se certificado disso. Ela lembrava um objeto frágil, desses que estilhaçam facilmente. Fëll percebeu que a Sra. Lepperstein parou perto da mesa de Miss Kaline. Depois de um cumprimento, sentou-se diante dela:

– Sua patroa está azeda hoje, darling! Como é que você consegue ser tão obediente?

– Ser meu serviço, Miss Lepperstein – murmurou a jovem, timidamente.

– É seu serviço, sim. Mas tudo tem limites. Quando vejo como ela trata você, lembro-me dos meus anos de colégio. Em nossa classe havia uma professora muito má; ela nos odiava, e nós a odiávamos. Que criatura! Todos nós tínhamos pavor de suas aulas. Nós simplesmente a detestávamos. Um dia resolvemos pregar uma pequena peça nela; colocamos um sapo na sua pasta de livros. Foi a coisa mais hilária que eu já vi! Quando ela viu o sapo, caiu durinha... Sim, juro. O zelador da escola teve que chamar uma ambulância para socorrer a coitada... Ela não nos tratou melhor depois disso, mas pelo menos tivemos a nossa pequena vingança.

Miss Kaline olhou para ela com ar impotente.

– Vamos fazer o seguinte – disse a Srta. Lepperstein. – A velha Canelles deve ser detida. Você não é escrava dela. É hora de acabar com essa tirania. Ouça, vamos dar uma lição nela... Não vou permitir que ela estrague nosso passeio. Deixe comigo, Kaline; vou pensar numa maneira de domar a fera.

E Beatriz piscou o olho para a americana.

Por sobre o tom manso, a frieza da declaração feriu o ouvido de Edmund Fëll. Aquilo soou como uma ameaça de morte. De lado, ele conferiu se outros tinham escutado aquelas palavras. Aparentemente não. O barulho dos talheres... o vai e vem das pessoas... O barulho abafava o murmúrio das vozes.

Ele continuou enfiando os dentes em seu salmão, despreocupadamente. A Srta. Lepperstein seguiu o seu roteiro, até que por fim parou em frente da mesa do austríaco. Ela sorriu graciosamente.

– Posso me sentar, Sr. Fëll?

– Claro que sim, senhorita.

– Tudo bem com o senhor? Que privilégio é ter uma celebridade conosco. Papai quer que o senhor o visite algum dia desses. Ele diz que o senhor é um profundo analista da natureza humana. Que consegue avaliar a personalidade de uma pessoa e dizer se ela oculta alguma inclinação para o crime. Acho isso fascinante!

– Anda assistindo a muitos filmes policiais, senhorita.

– Não mesmo. Nunca gostei de violência. Acho nojento! Gosto de filmes românticos. Ah, o senhor deveria ter visto meu casamento! Como a maioria das noivas, eu estava pálida e ansiosa. O vestido era de um rico cetim branco e, sobre a cabeça, usava uma grinalda de flores, que não chegava a cobrir o queixo. E a aliança então? Foi feita de ouro da mina de Clogau St. David, no norte do País de Gales. — Ela fez uma pausa prolongada. — Mas... não vamos falar nessas coisas... Como está se sentindo?

– Está tudo bem, Fräulein – Fëll passou o guardanapo nos lábios. – Estou maravilhado com tudo. Ist eine sensationelle Reise.

– E o camarote? É confortável?

– É ótimo.

– Que bom.

Fëll viu uma nuvem passar pelo rosto dela. Mas aquilo durou um breve segundo. Beatriz disse:

– Oh, eu quero tanto que todos fiquem satisfeitos! Faz anos que estou idealizando um cruzeiro. Alguns dizem que sou ambiciosa. Outros falam que não dou valor à fortuna da minha família, que estou esbanjando o que papai adquiriu com tanto esforço... Bobagem! Devemos semear a felicidade... Por que guardar o dinheiro num banco se posso usá-lo para alegrar as pessoas?

– Diga-me uma coisa, liebchen.... Foi a senhorita quem elaborou a lista de passageiros? Todos parecem tê-la em alta consideração.

– Moacir me ajudou a fazer a lista. Queríamos pouca gente, nisso estávamos de acordo. Para ser sincera com o senhor, conheço todos eles, mas nem todos são muito familiares. Talvez o assassino esteja olhando agora para nós dois e nós nem saibamos. Não é assim que pensa, Sr. Fëll?

Fëll fixou os olhos nela a fim de ver se a jovem estava brincando. Ela perguntou quase num sussurro:

– Já suspeita de alguém?

– O que disse, senhorita?

– Eu perguntei se já suspeita de alguém.

– Ainda não.

– Eu fico imaginando, Sr. Fëll... Por que alguém teria alguma coisa contra mim? Nunca fui de sair; nunca me envolvi em nenhuma encrenca. Já fui casada antes, naturalmente, mas quando me divorciei, sempre tentei fazer um acordo amigável. Nunca cobicei o dinheiro de ninguém, nem roubei nada. Como é que posso comportar-me permanentemente como símbolo feminino, a despeito da curiosidade das pessoas, se nem sei o que está acontecendo!

– Eu diria que as possibilidades são infinitas, senhorita. Pode ser que a senhorita saiba de alguma coisa que pode arruinar alguém; ou pode ser que tenha ouvido alguma coisa que não devia saber; ou talvez tenha prejudicado alguém no passado, e essa pessoa agora queira a revanche. Ou pode ser que seu marido seja o alvo primário, e a senhorita foi acrescentada à lista do assassino por uma mera questão de logística; ou pode ser que não tenha feito nada, e um psicopata a escolheu aleatoriamente como próxima vítima. Ou pode ser...

– Sr. Fëll, está me deixando confusa. Mais um pouco e o meu cérebro vai dar um nó.

– Entschuldigung, Fräulein! Eu devia ter ido mais devagar.

– Não faz mal. Bem, não adianta falar nisso – suspirou a Srta. Lepperstein. Levantou-se: – Continue o almoço, Herr. Amei a sua vinda.

Ela foi para a mesa seguinte.

Fëll pôs-se a observar a mesa mais próxima, à sua direita. Nela, Santelo tinha se sentado na companhia de uma bela moça. O nome dela?... Fëll teve que consultar o papel com o nome dos passageiros. Ah, ali estava: Zelly Gonçalves; nacionalidade: brasileira. Olhos de safira. Volumosa cabeleira de cor castanho, cortada em camadas.

A Srta. Gonçalves estava se entendendo espetacularmente bem com o homem dos suflês. Suflês, aliás, que ele trouxera numa sacola... Faziam um bonito par. Primeiro Santelo ria, depois cortava religiosamente o doce com a faca; então era a vez da moça rir, maravilhada com a gula do rapaz. Santelo não devia ter mais de 35 anos. Já a Srta. Gonçalves tinha 28 – o detetive encontrara o dado no site do escritório de advocacia Brós Brós Júnior.

– Você parece muito alegre – dizia Zelly. – Que bom que esteja gostando do tour!

– Acha que estou assim por causa disso, Zelly? – perguntou Santelo. – Ora, querida, passear de barquinho é uma chatice. Imagine que miséria – ficar à deriva, balançando para lá e para cá, vendo o céu e o mar! Na TV a cabo tem coisa muito melhor. Sem falar no enjoo... Não, você pode ter certeza de que estou sorrindo por outra razão. É que hoje estou confiante, Zelly. Acho que encontrei um patrocinador para o projeto que desenvolvi.

– Um projeto... O que é?

– Aí é que está! Ainda é segredo, não posso revelar muita coisa... Depois que sair do papel, direi a você do que se trata.

– Você sabe mesmo manter o suspense! – queixou-se a Srta. Gonçalves.

– Não é por maldade, é só uma forma de prevenção. Antes do registro da patente, você sabe como é...

– Está bem, vou fingir que entendi, Wellington. Coma mais um pedaço, coma.

– Calma, não se ofenda comigo, por favor. Não sou tão ruim! Diga-me uma coisa, onde é que está Colasanti? Parece que não veio para o almoço.

– Veio, sim. Ele voltou para o iate. Disse que tinha uma papelada para arrumar. Pessoalmente, acho que ele foi para o barzinho.

Santelo largou o garfo; apertou os olhos, puxando pela memória.

– Existem muitas coisas que eu não compreendo. Beatriz, por exemplo; parece que ela virou uma colecionadora de maridos. Este é o seu terceiro casamento. Tantos divórcios! Se fosse pelo dinheiro, ainda haveria alguma lógica nisso. Mas não, quando ela fica entediada com o marido, ou quando vê que fez uma escolha errada, dá o fora assim que pode. Primeiro foi o cara que usava litros de desodorante, e que tinha uma pulseira de ouro. Um boyzinho, é o que se dizia por aí. Foi uma total decepção! Beatriz e ele não ficaram juntos nem mesmo um ano. Depois veio Wolfgramm, aquele sujeito sentado lá; aqui entre nós, acho que ele é um anarquista, ou pelo menos é essa a impressão que dá. Ele também cria cãezinhos bassê. Não é muito fofo?

– Pare, não zombe das pessoas, Welly.

– Falou a Madame das Boas Maneiras! Parecia que Wolfgramm seria o homem da vida de Beatriz. Nada mal, o cara criava cãezinhos, estava com a bola toda. E, note, Beatriz sempre gostou de bichinhos. Mas não dizem que tudo o que é bom, dura pouco? Pois o romance não durou e eles se separaram. Tudo contribuindo para a sua bulimia e depressão. Por fim surgiu Colasanti; ouvi dizer que ela não o quis, no início. Que na verdade ela casou com ele porque viu nele a figura do próprio pai; coisas da psicologia feminina, e não sei mais o quê. O que você acha?

– O que eu acho sobre o quê?

– Zelly! Estou falando de Beatriz; por que você acha que ela casou com aquele velho enguiçado?

– Eu vou lá saber! Para mim, os dois deveriam morrer.

– Morrer? — espantou-se Wellington. — Fale baixo!

– E daí? – disse a Srta. Gonçalves em tom de desafio. – Que ouçam! Que falta de respeito... Um homem com essa idade casar com uma moça por causa dos atributos físicos dela! Que mundo é esse? A lei não deveria permitir a união de um casal tão heterogêneo. Devia existir a pena de morte para uma coisa dessas! Tenho raiva, Welly. Raiva!

Santelo parou de comer, assustado.

“Casal tão heterogêneo”? Um termo e tanto, pensou Fëll. Definitivamente ainda havia coisas que conseguiam surpreendê-lo.

Terminada a refeição, depois de pagar a conta, Edmund Fëll saiu do restaurante. Foi atrás de Wedderhof, que ia para o cais.

Por causa do tráfego humano, Fëll demorou dois minutos – preciosos minutos! – até sair da multidão. Quando o alcançou, o jornalista estava discutindo com alguém ao celular. Wedderhof resmungava, aborrecido:

– Você mandou alguém me vigiar, é? Pois saiba que vou enxotar o arruaceiro. Sou perspicaz demais para cair nas malhas de um detetive. Fui prevenido de que isso aconteceria... Não me importo... Não quero nem saber quem é o homem! Ninguém se mete em minha vida, ouviu? Ninguém. Espionagem, bah. Eu sou osso duro de roer, já devia saber. Se pretende alguma coisa de mim, está perdendo seu tempo... Se isso é um desafio? Sehr gut! É um desafio! Tenha um bom dia.

Dito isso, Wedderhof fechou o aparelho. Deu mais uma baforada em seu charuto, depois foi para a prancha de embarque.

Têm coisas que vão muito mal, sussurrou Fëll. Que sujeito fenomenal... Do que será que desconfiou? Acha que pagaram alguém para controlar seus movimentos. Ou será que...?

Fëll se sobressaltou. Será que o colunista estava mesmo falando com alguém? Ele poderia estar fazendo de conta que... Mas por que faria isso?

Um barulho chamou a atenção de Fëll, interrompendo seus pensamentos.

Tinha se formado um pequeno círculo de pessoas mais adiante.

– Sim, vocês são incríveis! – exclamou uma voz de mulher. – Quanta ternura! O amor é uma coisa tão linda.

Fëll viu que o duque Salles ajudava Madame Canelles a subir a rampa. Mais para cima, no convés do iate, Beatriz abraçava afetuosamente o marido.

Os gritos eram de Neusa Brenneison, que estava logo atrás do casal. Neusa batia palmas com fervor.

– Oh, que adoráveis! Ai, que inveja. Vocês deviam escrever um livro com dicas matrimoniais. Iria ser um bestseller! Nunca vi ninguém que se merecesse tanto como vocês.

– Você é tão temperamental, Neusa – reclamou Beatriz, com um olhar de censura. – Que exagero!

– Temperamental, eu? Não sou, não, Bea. Dessa vez você achou o homem certo, eu garanto. Meu irmãozinho vai cuidar muito bem de você, não é, Moa?

– Neusa, eu... – disse Colasanti, embaraçado.

– Poupe as palavras, Moa. Você sempre foi um péssimo orador. Lembra daquela vez que quis recitar aquele poema para mamãe? Você ficou tão encabulado que não conseguiu nem dizer o título. Pobrezinho... Estou tão emocionada! Nunca imaginei que você voltaria a se casar, meu querido. E com uma mulher tão... tão fabulosa.

– Tenha dó, Neusa! – sorriu Beatriz. – Eu não sou fabulosa. Gostaria que você me visse de manhã, na hora que acordo.

– Discordo, honey – disse Colasanti olhando para ela. – De manhã, ou de tarde, você é minha musa, Bea. É a mulher mais doce e meiga que já conheci.

– Oh!

– Calem-se e esperem, vocês dois – disse Neusa imperativamente. – Temos que guardar uma lembrança desse dia. Pensem em seus filhos... Eles vão querer um retrato. Ei, o senhor!

Neusa correu para Wedderhof. Olhou para ele com firmeza:

– O senhor tem uma máquina fotográfica, não é, Sr. Wedderhof?

– S-sim — gaguejou o homem.

– Ótimo. Venha comigo.

– Mas...

– Um fotógrafo, temos um fotógrafo – gritou a Srta. Brenneison, trazendo Wedderhof pelo braço. – Fiquem onde estão! Vamos celebrar essa ocasião... Fiquem em seus lugares, sim?

– Neusa, que idéia boba! – disse Beatriz. — Não quero minha foto em pôsteres, broches e chaveirinhos!

Beatriz articulou mais alguns protestos. Wedderhof bateu duas ou três fotos.

– Pronto, pronto, agora chega – disse Colasanti. – Acho que não vão querer uma mulher irritada. Desculpe, gente, mas preciso de minha esposa por alguns minutos.

Sem se perturbar, ele acenou com a mão. Moacir e Beatriz se afastaram alegremente. Quando a Srta. Brenneison ficou só, um sorriso cínico brincou na boca dela. Fëll ficou olhando para ela, pensativo.

Finalmente o iate desatracou. Alguns passageiros foram para o salão principal observar a baía da Babitonga. O relógio apontava 1 e quarenta e cinco da tarde.


Capítulo 5

 

Fëll parou na proa, e aspirou o ar.

– Enquanto a tardinha cai, o barquinho vai – cantarolou.

Ouviu vozes à sua direita. Vozes exaltadas. Fëll virou ligeiramente os quadris; dois homens batiam boca a alguns metros dele. Um deles era Colasanti; o outro, Wellington Santelo.

– Olha, eu já expliquei a você. Esqueça este projeto!

– Escute, eu...

– Esqueça... Não vou financiar nada – rugiu Colasanti. – Quantas vezes tenho que repetir a mesma ladainha?

– Eu compreendo, eu compreendo – respondeu Santelo humildemente. – Sua esposa disse que talvez o senhor tivesse reconsiderado...

– Você acreditou nisso? Valha-me Deus! Bea lhe disse? O que é que ela sabe a meu respeito?... Vou poupar todo um trabalho futuro para você. Risque o meu nome de sua caderneta! Não vou dar um tostão sequer para esse empreendimento. Passe bem.

Colasanti bateu em retirada.

“Que velho avarento”, pensou Santelo, furioso. “Tomara que apodreça com os seus milhões!”.

Santelo enrolou os papéis que trazia consigo e depois contemplou as ilhas.

Fëll resolveu se aproximar.

– Um dia majestoso, jawohl! Sol, céu azul... Um dueto perfeito.

– O senhor? – perguntou Santelo, desconfiado. – Há quanto tempo está aí?

– Acabei de chegar... Por quê?

– Por nada. Gosta disso, Sr. Fëll? Prefiro Bali... Para os balineses, o estado natural do ser humano é a felicidade. Dormem com a cabeça voltada para o maior vulcão da ilha, que para eles é o símbolo da vida. Eles cremam os mortos ao ar livre, com música, cantos e banquetes. Gosto de um cotidiano cheio de festas, cerimônias e rituais. Isto me deprime!

O detetive notou o mau humor do rapaz. Santelo pertencia a essa geração de jovens que consideram uma chatice qualquer coisa que as pessoas mais velhas digam ou pensem. Usava uma bermuda verde-oliva, e uma camisa folgada na medida para sua massa corporal.

– Peço perdão, acabei de chegar... mas não pude deixar de ouvir a conversa – admitiu Fëll. – Sobre o que estavam falando?

– Eu bem que suspeitei. É uma espécie de patrocínio malogrado, sabe? Se eu lhe explicasse os detalhes, seria um marasmo sem fim... Melhor nem começar.

– Era sobre uma invenção, certo? Algo que revolucionaria o mundo...

– Nem tanto, mas até que passou perto.

“Essa é nova!”, pensou Santelo consigo mesmo. “Agora dei para dar satisfações a esse indivíduo!”.

– Vamos fazer o seguinte, posso lhe fazer uma pergunta?

– Keine Angst, por que não?

– O senhor está de férias? Quer dizer, o senhor deve estar aqui por alguma razão.

– Não acredita que estou apenas espairecendo?

– Quer que eu seja franco? Não, o senhor não tem cara disso. Acho que veio com alguma comissão.

– E qual seria essa comissão? – perguntou Fëll brejeiramente.

– Gostaria que o senhor me dissesse.

– É mesmo? Tenho que elogiar a sua sinceridade. Eu lamento, mas não posso entregar o ouro, não é assim que vocês dizem? Vim para investigar preventivamente uma coisa que ainda não aconteceu.

– Pode dizer pelo menos quem está envolvido?

– Infelizmente, essa é outra incógnita.

– Acabou de formular um paradoxo. Deixe-me ver... Posso lhe dar uns toques, se quiser – ofereceu-se Santelo. – Sou muito bom em avaliar fisionomias. Eu posso falar dos passageiros, não é uma oferta sedutora? Eu sei quem é essa gente, poderia lhe dar algumas orientações.

Fëll não precisava daquela ajuda, afinal tinha feito o seu dever de casa. Mas aquiesceu.

– É muita bondade sua, meu jovem. Pode começar falando de Madame Canelles... Percebi, de manhã, que parece conhecê-la muito bem.

– Não sou amigo dela, se é o que está pensando. Madame Canelles é uma dessas mulheres controladoras, que querem que as coisas andem sempre do seu jeito. Tipo aquelas rainhas mandonas do Oriente Médio, que um belo dia morriam com uma lança enfiada nas costas. Mas, aqui entre nós, Madame Canelles é uma mulher traumatizada, que perdeu o marido... num acidente de lancha, acho eu... e que agora tem uma filha foragida da polícia francesa. É um estágio de degradação irreversível.

– A filha é foragida?

– Furto, alguma coisa do gênero. Está vendo aquela mulher ali? Aquela é Neusa Brenneison. Ela é muito amável, muito boazinha, mas eu ficaria de olho nela se fosse o senhor. Eu admito, a conversa dela é normal, ela sabe muita coisa de jardinagem, é atenciosa, e tudo o mais. Hoje mesmo falei com ela sobre o sistema de injeção dos carros atuais... só para testar... e reconheço que a Srta. Brenneison não ficou para trás. Ela é esperta. Se o senhor pretende impedir algum crime, eu recomendo que comece por ela. Vou lhe citar o nome de outro candidato que tem fortes motivos para machucar alguém. É aquele homem lá, o ex de Beatriz, o Sr. Wolfgramm.

– Das ist sehr interessant! Fale-me um pouco do Sr. Wolfgramm – articulou o austríaco.

– Até que estava demorando, o senhor me pegou nessa! Tudo bem, eu confesso, não sou muito íntimo do Sr. Wolfgramm. Para mim, ele é gente boa; Beatriz era loucamente apaixonada por ele. Ela vivia postando fotos no facebook, os dois em lugares exóticos, comendo esfihas e pulando de bungee jumping. Parece que era tudo fogo de palha; um dia ela ficou enjoada de tudo e se mandou de casa. Foi uma coisa meio covarde, sair assim sem dar qualquer explicação. Foi quase uma deserção, se é que o senhor me entende. Mas não interessa – Beatriz fez o que fez. No fim das contas, foi ela quem saiu perdendo. Eu não ficaria nem um pouco admirado se me dissessem que foi o Sr. Wolfgramm quem sumiu com o colar dela, hoje de manhã.

Fëll aguçou os ouvidos:

– Que colar?

– Não o informaram? – perguntou Santelo. – Parece que Colasanti deu para Beatriz um daqueles colares de vidro... feio e fajuto, por sinal... Mas hoje, depois de subir a bordo, o colar sumiu da caixa de joias. Ela ficou muito aborrecida. E pensar que, anos atrás, as mulheres usavam espartilhos e cintas apertadas! Maquiar-se era um hábito reprovável. Quer saber, é infantilidade dela... Essas coisas a gente compra em dúzias em qualquer loja de quinquilharias.

– Por que acha que o Sr. Wolfgramm roubou o colar?

– Eu não disse que ele roubou o colar. Acho que ele deu um sumiço nele. Para zangar Beatriz, sei lá. Ele esteve no camarote dela, eu vi. Teve a ocasião e a oportunidade.

Fëll olhou curiosamente para Santelo. Continuou escutando as ponderações do rapaz, mas intimamente fazia cálculos em outro nível.

O siciliano tamborilou os dedos.

– Não quero ser descortês, Sr. Fëll, mas... O senhor se importaria se eu...

– Nein, de modo algum. Pode ir.

Santelo movimentou a mão num gesto que poderia significar tanto agradecimento como impaciência, e se afastou.

Fëll ficou andando o resto da tarde pelo tombadilho. Estava checando as coisas... Ameaças tinham sido feitas. Era inadmissível que um assassinato fosse cometido... e debaixo de seu nariz? Nein, nein, era preciso ficar acordado.

Quando passou em frente do camarote de Madame Canelles, ouviu a risada alegre de Miss Kaline.

– Pare de rir, Kaline – ralhou Joana Canelles. – Estamos entre pessoas da alta sociedade. Comporte-se adequadamente.

– Yes, yes, eu já entendi.

Fëll franziu a testa e subiu os degraus para o outro deck. Os seus olhos aquilinos vasculhavam todos os rostos, todas as expressões... numa caçada silenciosa atrás de indícios.

– Nada de incomum... Talvez tudo não passe de um mal-entendido.

O que ele não sabia era que as coisas iriam mudar em breve.


Capítulo 6

 

A tarde terminou sem incidentes. Para o jantar, Edmund Fëll vestiu um terno preto. Botou uma camada generosa de gel no cabelo e saiu da cabine.

Topou com a Srta. Brenneison a alguns metros da porta do camarote. Ela olhava as águas longínquas, saboreando a brisa do início da noite. Estava vestida no melhor estilo low profile, com bolsa de palha e tudo. Refletia nalguma coisa, e não percebeu a chegada do detetive.

– Tudo bem, senhorita?

– Oh! – ela deu um gritinho e pôs os dedos no peito. – O senhor me assustou! Meu Deus... E se eu sofresse do coração?

Fëll deu um passo para trás, encabulado.

Mesmo na pouca luz, a cabeleira rubra dela era densa, esplêndida. Uma sensação! Dessas que são cuidadas com xampu caro e condicionador. Usava uma sandália de camurça e um vestido com rendas vermelho. Pintara as unhas numa leve cor esverdeada.

Envergonhado, Fëll disse:

– A senhorita não sofre do coração.

– Não? O senhor é cardiologista?

– A sua aparência... É muito saudável para uma mulher com um problema vascular. Além disso, a senhorita sabe manejar muito bem os homens. Eu vi que eles literalmente caem a seus pés. Uma mulher de coração fraco não seria tão eficiente.

– Que elogio! – exclamou Neusa. – Está flertando comigo? Ou é um poeta?

– Um pouco dos dois – disse ele, com inédita liberdade. – O ócio é a melhor fonte de inspiração. A aposentadoria compromete os músculos, mas liberta a alma.

– Essas frases não são suas, são? Qual foi a sua última grande poesia? “Febre em pleno Alasca”? Belo título.

– O conto chamava-se “Lobos Famintos”. O tema gravitava em torno de uma alcateia que está num barco. Aos poucos, os lobos vão se devorando, até que não sobra nenhum.

Neusa parou de sorrir. Uma manta de seriedade cobriu seu rosto.

– O que quer dizer?

– Quero dizer que estou preocupado — disse Fëll, relanceando-a com um olhar penetrante.

– Oh, é mesmo? Com o quê?

– Com o seu irmão. Vamos falar francamente. É lógico que a senhorita sabe o que está acontecendo.

– Eu deveria?

– Aposto que sim – disse Fëll, baixando a voz. – Não me leve a mal. Não estou fazendo nenhuma acusação. Quero a mesma coisa que vocês – descobrir de quem partiram as ameaças. Se trabalharmos juntos, acho que chegaremos mais rápido às respostas.

– Sim... Talvez. Acho que tem razão. Mas... Quem é que faria uma coisa tão louca? Eu já pensei muito nisso... Sr. Fëll, só um psicopata agiria assim.

– Um psicopata? Não, eu não diria isso... Pode ser uma retaliação. Esse quadro bate com a premeditação. A senhorita lembra de alguém – que está aqui conosco – de alguém que alguma vez disse qualquer palavra áspera contra Colasanti? Alguém que poderia querer se vingar de algum desaforo ou ofensa?

– Por Deus, o senhor fala de um jeito muito trágico! Desaforo ou ofensa! O senhor não conhece Moacir. Ele tem um dom inacreditável. As pessoas simplesmente não vão com a cara dele. É ciúme, posso lhe garantir. Elas não conseguem suportar o sucesso que ele faz com as mulheres. A inveja é um sentimento desprezível... Eu odeio isso! Odeio.

– Tudo bem, senhorita. Não vamos entrar em especulações psicológico-filosófico-sociológicas. Deixe as coisas como estão, jawohl? Se surgirem mais detalhes, falaremos de novo... Como eu ia dizendo, sou um poeta frustrado. Os críticos dizem com veemência que eu deveria colher tomates e tamarindos.

Neusa fitou Fëll com aprovação, grata com a mudança de assunto.

– Então o senhor também é escritor! Podemos esperar um Nobel ou ainda é cedo?

– Ninguém falou nisso, por enquanto.

– Por que continua escrevendo?

– A teimosia de um sedentário, Fräulein.

Neusa enganchou o braço de Fëll.

– Já vi que é um homem bastante espirituoso. Quer vir comigo? Estou indo ao restaurante.

– Com prazer. Posso perguntar só uma coisa? O que estava admirando, ali parada?

– A-acho que se enganou. Eu não estava admirando nada. Estava olhando as estrelas. É uma tolice minha, o senhor vê. Algumas pessoas olham as nuvens. Dizem que elas fazem charadas no céu. Cada um com suas manias.

Fëll ficou em silêncio. A Srta. Brenneison não tinha cara de quem ficava olhando as estrelas. Provavelmente ela estava esperando alguém, pensou ele. Alguém que acabara não vindo.

Foram para o restaurante do iate. Eram cerca das oito e meia, e praticamente todos já estavam no local.

– Sr. Fëll, quero apresentar um amigo.

– Jawohl? Quem é, senhorita?

– Espere um pouco.

Neusa olhou pelo salão.

– Lá está – exclamou ela.

Neusa apontou Demétrio Wolfgramm, o homem de bonezinho europeu, numa mesa dos fundos.

– Fique aqui, Sr. Fëll. Eu já volto.

– Está bem.

Neusa atravessou o salão. Demétrio estava conversando com Zelly Gonçalves, a secretária no Brós Brós Júnior.

Quando Neusa parou ao lado dos dois, Demétrio se calou, envergonhado. Ela cumprimentou Zelly sem o menor embaraço. Neusa virou-se para o homem e perguntou alguma coisa. Demétrio acenou com a cabeça, e levantou-se.

Fëll olhou para eles, enquanto vinham pelo restaurante. Wolfgramm, sem jeito, olhava para os lados, sem saber o que fazer. Neusa o trouxe calmamente na direção do detetive.

– Quero apresentar a você, Demétrio, um homem com inclinações literárias.

– Vejam só! – resmungou Demétrio. – Acho que já nos conhecemos, não é, Sr. Fëll?

Fëll fez um aceno seco.

“Esse homem é um namorador impenitente!”. Essa era uma das coisas que feria seus princípios puritanos.

Fëll lembrou tudo que tinha lido e ouvido sobre Demétrio Wolfgramm. Sim, ali havia razões para ódio. O marido rejeitado de Beatriz! Talvez Wolfgramm fosse responsável pelas mensagens anônimas. A pergunta era: por que agora? Será que teria ficado ofendido com o convite para a turnê? Era possível. Talvez ele fosse um homem com dificuldades para perdoar. A ação do divórcio, pelo que todos diziam, fora iniciativa da Srta. Lepperstein. Não devia ser fácil conviver com essa ideia — ser desprezado e pisado pela própria esposa.

Neusa olhou ao redor, procurando uma mesa.

– Vamos sentar, senhores?

Demétrio concordou, de mau humor.

– Essa gente olha como se fôssemos vagens falantes!

Ficaram perto da mesa de Wellington Santelo. Sorrisos. Gestos amistosos.

Depois de sentar, Fëll disse:

– Esse nome – Wolfgramm! O senhor não escreveu certa vez uma resenha sobre a origem das palavras?

– Leu aquilo? Um caso vergonhoso. Na verdade, eu tinha contestado um artigo de outro leitor. Perdi meu tempo entrando naquele debate. Vou lhe dar um conselho. Nunca discuta por causa de um acento agudo, de um sufixo ou de qualquer outro erro gramatical. Deixe que violem o idioma!... Que se dane a ignorância alheia.

Wolfgramm tinha seus 30 anos. Um rosto sem vincos, aberto, cordial. Poderia trabalhar como adido comercial, se quisesse. Vestia uma camisa polo branca. Tudo nele revelava muito asseio. Era um pequeno dândi, Fëll concluiu. Desses tão higiênicos que escovam até tirar o esmalte do dente.

A comida veio com eficiência. Todos se revezaram pedindo água mineral e um pratinho de azeitonas. O professor pediu vinho.

– Sou fã de vinho – explicou Demétrio. – Nem todos gostam. Mas eu não dispenso. Um Château d’Yquem que, à moda francesa, se bebe junto com bocados de foie gras, uma iguaria de fígado de ganso!...

– Bom para você – disse Neusa.

Fëll lançou um olhar casual pelo restaurante, tentando identificar todos os que estavam ali.

Na mesa mais próxima, Santelo atacava o prato de suflê de goiabada. O rapaz tinha uma faca de cabo curto e comia com excepcional ferocidade. Zelly Gonçalves (que tinha vindo sentar-se com ele) ficou assombrada com tanto apetite.

– Que fome, Wellington! – disse Zelly. – Coma mais devagar. Se papai visse você! Ele nos ensinou a ser muito regradas nos doces.

– Que chato, hein?

– Vivíamos num povoado paupérrimo. Lamparinas de querosene à noite, rádio de pilha... Sem rede de esgoto, nem água encanada. Retirávamos a água de igarapés, três vezes por dia. Graças a Deus, fiquei pouco tempo em casa. Morei a maior parte da vida na Bélgica... Me formei nos estudos em novembro.

– Parabéns, doutora.

Os dois riram. Fëll achou que não podiam ser levados muito a sério. Fácil de compreender por que tinham ficado a sós o dia todo.

Fëll sentiu um toque no braço e voltou à realidade. Viu que Neusa o cutucava por cima da toalha.

– Posso lhe fazer uma confissão, Sr. Fëll?

– Aber natürlich... Fühlen Sie sich frei!

– Moacir está muito brabo – disse Neusa, baixinho. – Ele não suporta o alemão redator.

– Wedderhof?

– Sim, ele mesmo. Estamos aqui nesse braço de mar. Não há como fugir. E se algo acontecesse? Quanto tempo até que alguém possa nos socorrer? Foi esse Wedderhof que escreveu que Moacir teve uma vida escandalosa antes de casar com Beatriz.

– Vida escandalosa?

– Uma ficha criminal, o que poderia ser pior? Consigo citar de memória a manchete: “Os homens nem sempre são francos. Ninguém sabe o que planejam fazer. Gostam de álcool, dirigem em alta velocidade, usam entorpecentes... Os Colasanti foram riquíssimos décadas atrás. Indústria têxtil, e por aí vai. Mas tiveram um tombo e nunca mais se recuperaram. Moacir é apenas um herdeiro falido do que sobrou.” Foi abjeto! Uma coisa horrível!

– Que coragem!

– Que coisa interessante! – disse Wolfgramm.

– Interessante, Demétrio? Pois eu digo que foi muito atrevimento...

– Você me entendeu mal, Neusa. Estou falando da Sra. Canelles... Veja lá. É a primeira vez que a enfermeirinha lambe-botas não está com ela. O que será que aconteceu?

– Joana é extravagante... Deve ter trancado a moça no camarote. Em compensação, parece que encontrou uma outra companhia... Pobre duque! Ele não está muito satisfeito. Esperem, eu vou descrever essa cena. “O olhar de Madame Canelles é frio, e seus dedos seguram o cálice de champanhe. O charmoso duque não está nem um pouco interessado nela. O duque verifica o salão com olhos distraídos. Que contraste — o elegante duque Salles ao lado de Madame Canelles! Que jogo estranho! Madame Canelles se desdobrando em duas para agradar; uma coisa que fere toda a Convenção de Genebra!” Então, eu me saí bem?

– Das war wunderbar – aplaudiu Fëll, sorrindo. – Quem é esse duque? Quero dizer, o que é que ele faz?

– Salles tem muitas e muitas posses – disse Wolfgramm. – Não é por nada que Beatriz o convidou. Conhece o mundo como a palma da mão. Esteve recentemente na Somália. Conhece tudo sobre a globalização e seus efeitos na economia.

– Tem uma calma impressionante.

– Oh, ele é assim – respondeu Neusa. – Tem a cautela de um cão pastor. Dizem que é só verniz. Dizem que por dentro não suporta pressões, e fica zangado por qualquer coisa! É um megalômano. Importa chefs de Paris. Encomenda de alfaiates italianos ternos para si e os filhos. Eu pessoalmente acho que ele é capaz de cometer os maiores crimes. Creio que, se ele fosse matar, mataria sem um pingo de remorso.

“É uma boa descrição”, pensou Fëll. Norton Salles tinha mãos longas e brancas, e o cabelo moreno. Deixara crescer um bigodinho que cultivava com amor. Mas por baixo disso, quem é que podia ver? Talvez fosse um chantagista. Ou um desses recrutadores de jovens para atos suicidas.

Edmund Fëll se empertigou para fazer um comentário. De súbito, o seu semblante se imobilizou. Curvou a cabeça, curioso.

Fëll viu que, do outro lado do restaurante, Moacir Colasanti tinha se erguido de sua cadeira. Havia em sua cara uma determinação de quem vai à guerra. Colasanti ajeitou os punhos do smoking e caminhou resolutamente para frente. Debruçou-se sobre a mesa de Madame Canelles. Fëll notou que ele falava alguma coisa aos ouvidos dela, sem corar e sem pestanejar. A fisionomia de Madame Canelles congelou. Um furor sem medida fez saltar as suas têmporas.

– Essa é boa! – comentou Demétrio.

Neusa gesticulou.

– Psiu! Ouça!

Fëll continuou observando atentamente o desenrolar daquela cena. Colasanti ficou inclinado na mesma posição por dez ou quinze segundos. Finalmente, vermelha de raiva, Madame Canelles deu um grito assustador.

– Ah!

Um profundo silêncio caiu no restaurante.

– Retire-se daqui!... Saia!... Saia! – exclamou repetidas vezes.

Colasanti, ajustando o smoking cor de vinho, virou-se e voltou para a sua mesa. Sentou-se como se não tivesse feito nada. O que foi um belo golpe de dissimulação.

O duque, que havia ficado imóvel até ali, fez um gesto com a mão.

Logo um garçom veio com um copo de água. Madame Canelles levantou os braços em busca de ar. O duque ajudou a abanar, mais por conveniência do que por solidariedade.

Na outra mesa, Santelo riu:

– Ué, temos teatro ao vivo.

– Esses barcos estão cada vez mais intercontinentais – disse Zelly.

– Acho que meu irmão enlouqueceu – disse Neusa espantada. – Deus do céu, o que é que ele fez? Moacir... Moacir...

– Foi a coisa mais doida que eu já vi – disse Demétrio. – Juro que foi.

Os olhos de Fëll ficaram fixos em Colasanti. Calmamente, o italiano tinha voltado para junto de Beatriz. Beatriz sorria com o canto da boca.

O detetive lembrou-se de Beatriz dizendo: Ouça, vamos dar uma lição nela, Kaline. Não vou permitir que ela estrague nosso passeio. Deixe comigo, Kaline. Vou acabar com a tirania dela.

Pelo visto, o que acabara de acontecer fazia parte da lição! Um ato de ousadia, ohne Zweifel!

Fëll virou-se para Demétrio.

– Não quero me meter em sua vida. Mas gostaria que me dissesse uma coisa. A Srta. Lepperstein foi sua esposa...

– Sim... sim...

– Ela herdou muita coisa com a separação?

– Se ela herdou...? — a voz de Demétrio converteu-se no som de um címbalo. — Sr. Fëll, francamente! Que pergunta é essa?

– Não responda se não quiser...

– Ora, mas não há segredo nisso. Ela não herdou nada. Tínhamos casado em regime de divisão de bens. Eu fiquei com as minhas coisas e ela, as dela. Beatriz não é interesseira, se é o que quer saber. Mas – e aqui houve uma pausa: – Mas, a impressão que dá, é que ela ficou tão... burra. Veja a expressão no rosto dela! Nunca a vi tão submissa; parece uma cabra assustada. Acho que esse Colasanti é um...

Wolfgramm parou e engoliu em seco. Olhou para Neusa.

– Esse Colasanti é um...? – estimulou Neusa, numa frase que beirava o escárnio.

– Melhor não dizer. Por que, Sr. Fëll?

– Bem, desse mato não sai coelho – fungou Fëll. – Por nada.

Olharam para ele com espanto. O austríaco pegou uma cereja e começou a mastigá-la devagarinho. Pensativo, completou:

– Isso não é nada bom. É o que eu digo... Uma pessoa ameaçada de morte não devia se expor dessa maneira. Não devia...


Capítulo 7

 

Eram 23 horas.

O refeitório estava quase vazio. Santelo saíra primeiro, dizendo que esperava uma ligação de seu sócio. Depois fora a vez de Madame Canelles, amparada por Miss Kaline e o duque.

“Ainda está abalada”, avaliou Fëll, quando viu a dama passar. “Faltou pouco para ter uma parada cardíaca.”

Demétrio e Neusa, seus companheiros de mesa, disseram que iriam dormir cedo. Disseram que estavam exaustos. Ele acenou com a cabeça, e olhou a saída dos dois, pensativo.

“Ela é viúva...Ele, divorciado... Sim, dariam um bonito casal. Pena que Wolfgramm seja um pouco indelicado, às vezes...”

Colasanti falava com Beatriz, em sussurros. Estava com os olhos injetados. Fëll ouviu-a dizendo:

– Pare de beber, Moa... Por favor!

– Fique quieta... Ninguém manda em mim. Ninguém! Eu bebo até quando eu quiser...

– Mas você... Olhe! Você já não consegue ficar em pé... Moa!... Vá descansar, sim? Eu também vou... Amanhã será outro dia!

– Não e não!...

“Tudo muito deprimente”, disse o detetive para si mesmo. Não estava cansado; muito pelo contrário, sentia-se alerta. Tinha a sensação de que alguma coisa aconteceria a qualquer momento.

Por outro lado, sabia que tinha que meditar. Para isso, nada melhor que sair dali e andar ao ar livre.

Levantou-se e olhou pelo salão. Tudo calmo? Ótimo! Saiu.

Fëll bebera alguns aperitivos. Havia círculos de suor no terno. A noite estava quente e não soprava nenhum vento na baía. Ao sair do bar, esbarrou num senhor parado junto à popa. Pelo clarão da lua, reconheceu que era o duque.

O homem voltou-se e apertou a mão do austríaco.

– Boa noite, Sr. Fëll.

– Guten Abend, Sr. Salles.

– Lindo. Espetacularmente lindo – disse o duque mostrando as águas enluaradas. – E pensar que Beatriz fez a reserva de tudo isto com exclusividade. É maravilhoso! Foi uma ideia e tanto!

Afirmou aquilo subentendendo muita consciência. Existia uma aura de disciplina nele. Um indivíduo que viajara o mundo várias vezes!... Essencialmente íntegro em sua simplicidade irremovível.

– Concordo – disse Fëll.

– Perdoe-me, não quero aborrecê-lo. Se estiver com sono...

– Não estou com sono.

– Eu me referia a Beatriz. Ela é sempre tão direitinha no que faz. Tem uma diligência invejável.

– Pelo que vi, é uma mulher muito detalhista.

– Sim, tem toda razão. Embora... não estou falando por mal... embora talvez seja um pouco sonsa.

Salles tinha um poder de persuasão realmente magnânimo. Os olhos verdes se locomoviam com a serenidade de anos de treino. É provável que fosse mesmo descendente de uma família nobre.

– Gostaria de subir ao convés superior, Sr. Fëll? Dali se vê melhor.

– Claro, warum nicht?

E enquanto subiam a escada, Salles acrescentou:

– Deve me desculpar mais uma vez, mas o senhor está atrás de algum crime? Espero que não. Falaram de tantos casos que resolveu.

– Entschuldigung?...

– O senhor tem uma fama considerável, sabia? E Beatriz tem um espírito brincalhão. Convidou um rol de pessoas simplesmente impressionante. Onde a conheceu?

– Em Chongqing, China.

– Francamente?... China, quem diria. O pai dela, o Sr. Lepperstein, é um amante de velharias, talvez o senhor saiba.

– É um vício – admitiu Fëll. – Pobre homem, teve uma série de aborrecimentos. Aquele lamentável roubo de uma estatueta... Já esteve em Chonqging, Sr. Salles?

– Não. Olhe que sou um turista inveterado!

Salles dispunha de senso de humor e, como distração, narrou uma aventura vivida em Beersheva, no sul de Israel.

Eram 11 e meia quando desceram para se recolher. Antes que chegassem ao camarote 12, alguém saiu das sombras. Era Colasanti. Tremia como uma vara verde. Sem a menor hesitação, agarrou o braço de Fëll e o puxou para um canto, deixando Salles para trás. Tinha os olhos esbugalhados e o bafo rescendia a álcool.

– Herr – quase se jogou de joelhos –, eu lhe rogo. Descobriu sobre Wedderhof? Tenho que saber quem é esse homem. A imagem dele me persegue o dia todo.

Fëll ficou paralisado. Balançou a cabeça.

– Só uma coisa, antes disso. O senhor por acaso já conversou com ele? Disse-lhe que seria investigado?

– Por Deus, não. Por quê?

– Ele desconfia.

– Como, é impossível! – bradou o italiano. – Impossível.

– Temo que não. De algum modo, ele sabe.

Numa ação insólita, Colasanti apoiou-se para não cair. Estava zonzo, chocado.

– Quero que desista da investigação, o senhor me compreende? – terminou por dizer. – Não o interpele. Não fale com ele, nem faça nada. Farei o restante. Quanto ao seu pagamento, darei um cheque amanhã.

Cambaleou de novo. Fëll achou que devia estar mesmo bêbado. “Aqui está um homem vulnerável. Como é que as pessoas são tão descuidadas? Ninguém pode se defender nesse estado!”.

Colasanti fez um esforço para falar.

– Vou tomar o último gole. Com licença...

– Quer que o leve até lá?

– Não, obrigado. Eu... ora... vou sozinho.

E saiu andando para o bar. Fëll gesticulou contrariado e voltou para junto de Salles.

– Este homem é perigoso: ele acredita no que diz.

– Fases – disse o duque, impassível. – A falta de experiência é o pior inimigo do homem. Mas concordo com o senhor. Alguém nessa idade não devia ser tão leviano.

Conferindo o relógio, Salles deu um pequeno assobio.

– Já é tarde. Boa noite, Herr. Vou deitar-me cedo hoje. Dizem que é terapêutico...

Com uma vênia, afastou-se pelo corredor, como se estivesse atrasado para algum compromisso. Balançando a cabeça, Fëll entrou em sua cabine. Sentia-se alerta, quase inconformado. Nada ia bem. Foi remexer na valise, de onde tirou um jogo de dominó. Começou a jogar em silêncio. Era um mero relaxante antes de dormir.

No restaurante tinham ficado Beatriz, Wedderhof e Zelly Gonçalves. O alemão mexia no smartphone, como se estivesse lendo alguma coisa. Havia uma agenda aberta na mesa.

Zelly folheava uma revista de modas. Tinha um olhar triste, distante.

Perto dela, a Srta. Lepperstein resolveu interpelar a moça:

– Uma noite agitada, não?

– Muito.

– Você se assustou?

– E como!

Beatriz riu.

– A nossa amiga Canelles aprontou uma boa!... Que cena!

– É.

Zelly parecia intimidada, sem saber o que responder.

– Você – disse a Srta. Lepperstein – você foi namorada de Moacir, não foi?

– S-sim.

– Ele me falou de você. Aliás, foi ele que insistiu para convidá-la... Acho que ele gosta muito de você.

A Srta. Gonçalves hesitou. Não estava preparada para um confessionário.

– Nós... nunca deixamos de ser amigos.

– É disso que estou falando. Ele gosta de você como amiga... O que você imaginou?

– Nada...

– Você tem tios, Zelly? — prosseguiu Beatriz, incansável.

– Eu... sim... Um tio. Ele mora no Marrocos.

– Já o visitou alguma vez?

– Não... — respondeu a Srta. Gonçalves, relutante. Deu um olhar inquiridor. — Nunca pude... Quando não se tem dinheiro, pensa-se sempre nele... e como ele faz falta.

– Seu tio é bom?

– Papai e ele eram muito amigos, mas viviam às turras. Mamãe chamava-o de sovina.

– Sua mãe diz? Oh, querida... Todos nós somos sovinas e maus... Invejamos o que o outro tem, e quando não tem, dissemos: “Oh, como eu queria que fulano tivesse!”. Tudo hipocrisia. Sim... Somos ruins desde que nascemos.

Zelly fez um “ah!”, melindrada.

– Estou deixando você com vergonha? – perguntou Beatriz, perplexa. – Mas é claro... Desculpe-me, eu não queria... Estou sempre trocando os pés pelas mãos. Todos dizem que sou tão desastrada... Mas eu não sou desastrada! Não sou... E sabe por que não?

Zelly estava sem ar. “Essa mulher é louca”, pensou consigo mesma. Já tinha visto muitas pessoas assim; pessoas confusas, sem a menor noção do que estão fazendo.

– Sabe por que não sou desastrada? – Beatriz repetiu a pergunta.

– Porque é uma mulher muito inteligente? – arriscou a moça.

– Inteligente? – os olhos da outra brilharam. – Você acha?... Oh, amiga!... Esse foi o maior elogio que já recebi. Você acha mesmo?

“É doidinha! Logo, logo vai chorar!”.

Mas Beatriz voltou a ficar séria.

– Eu sei que você tem boas intenções, Zelly. Mas não... Eu não sou inteligente. Todos dizem que sou desmiolada... Todos dizem, você entendeu bem?

– Não é verdade – disse Zelly. – Moacir não acha... Ele diz que você é encantadora!

– Oh, é mesmo? Ele é um doce... Ele é muito bom comigo. Mas – posso lhe contar uma coisa?

– O quê?

– Eu descobri que alguém está querendo me matar!

– Matar?...

Zelly quase caiu de costas. Lembrou-se de quando era menina... e de seu pai. Lembrou-se da tarde em que fora caçar... e do tiro que dera em si mesmo.

Ela olhou para o colunista, à procura de ajuda. Mas Wedderhof parecia afundado em sua leitura.

Moacir entrou pela porta. Olhou para as duas, e fez um aceno:

– Você ainda está aí, Bea... Posso me sentar com vocês?

A Srta. Gonçalves ficou de boca aberta. Beatriz piscou-lhe o olho.

– Claro, querido. Venha...

Ele se aproximou, o corpo mole. Tentou sorrir:

– Olá, Zelly... Tudo bem? Que bom revê-la, sabia? Sempre achei que você me odiasse...

– Eu? Imagina...

– Águas passadas?

– Sim, lógico...

As palavras saíam enroladas da boca de Moacir. Como se estivesse com a língua colada e pastosa.

– Sobre o que conversavam? Hein, Bea... Hein...

– Escute... Já é tarde, Moa. Eu levo você para a cama...

– Não!

– Por favor!...

– Não seja ridícula! A noite nem começou... Depois eu me deito. Quero mais um drinque.

Beatriz ficou sem ação.

– Mais um drinque?... Moa, não! Eu lhe peço...

– Você me pede? E quem é você... para dizer que não?

Ela olhou para Zelly:

– Amiga, diga a ele que pare... Diga a ele!

– Eu...

– Garçom! – chamou Colasanti. – Mais um, sim?

O rapaz atrás do balcão não se moveu. Parecia indeciso.

– Faça o que ele diz! – disse a Srta. Gonçalves inesperadamente. – Não se preocupe, eu me responsabilizo por ele.

Foi a vez de Beatriz sentir um arrepio percorrendo a espinha.

– O que... o que está dizendo? Ele não pode...

– Ele pode, sim. Se ele diz que quer um drinque, dê um drinque ora. Por que fazer um escândalo?...

– Mas...

– Olhe... Eu tomo conta dele, está certo? Vá se deitar... É como você disse antes – amanhã será outro dia! Vá se deitar!

– Isso não está acontecendo! – murmurou Beatriz. – Não está acontecendo... Deve ser um sonho! Sim, isso tudo é um sonho. Eu vou acordar logo! Eu vou acordar logo...

Moacir abria e fechava a boca, como um peixe fora da água.

Wedderhof tinha parado de ler. Olhava para os três, fixamente. Depois se ergueu e pegou suas coisas.

“Vai acabar sobrando para mim”, pensou ele e saiu.

Beatriz recuou alguns passos. Tinha os braços esticados, em sinal de súplica:

– Moa, eu amo você! Venha comigo!... Venha...

– Acho que está perdendo seu tempo – disse Zelly. – Vá! Vá! É melhor.

Ela fez um gesto imperativo. Beatriz continuou dizendo a mesma frase. De repente se virou e saiu correndo.

Zelly se inclinou para a bolsinha e tirou o estojinho de blush. Com calma, começou a retocar a maquiagem.

– Beba, seu porco! – disse para Moacir. – Não é isso o que você quer? Beba até morrer...

Colasanti olhava para a porta, sem compreender. Devagar, sua cabeça foi baixando até tocar a mesa:

– O que foi que eu fiz? – soluçou. – Bea... Bea... Volte! Volte...


Capítulo 8

 

Enquanto isso, Fëll estava jogando dominó...

Ficou assim durante uns bons vinte minutos. Uma batida na porta o retirou da concentração. Foi olhar quem era.

– Ah, é o senhor! – exclamou ao abrir a porta. – Guten Abend! Procurando por alguém?

– Guten Abend. Posso entrar? – perguntou Wedderhof, hesitante. – Nunca durmo antes das duas.

– Pretende falar comigo?

– Se possível.

– Entre.

Espiou lá fora, mas o alemão estava só. À direita, para o lado da popa, uma senhorita contemplava o céu. Suspeitou, pelas linhas de sua silhueta, que era Miss Kaline. Sua patroa já devia ter se recolhido, ou ela não estaria ali. Por puro acidente, percebeu que o barco não se movimentava nesse instante.

“Paramos! Deve ser daqui que iremos adiante amanhã.”

Wedderhof, que se precipitara para dentro da cabine, descalçava as luvas. Tinha um tórax largo – o aspecto clássico de um viking! Pelo terno abotoado, devia estar sentindo frio. O que era uma contradição – a temperatura atingia a casa dos 35°.

Fëll fechou a porta. Voltou a se sentar e, reclinado no banquinho, fitou o colunista.

– Vamos pular os preâmbulos, se não se importa. O que busca exatamente? Não está aqui para curar sua insônia. Quer fazer alguma pergunta, acredito.

– Nein, nein – respondeu o colunista. – Pode ser... bem, talvez eu devesse botar as cartas na mesa.

– Ah, então pretende me fazer uma confissão. Sem fotografias, então?

– Não – sorriu, sem graça. – Além de escritor, sou ornitólogo. O senhor não está no catálogo de aves, está?

– É esse o trabalho que lhe compete? Achei que era uma espécie de espião industrial.

O austríaco falava sem pestanejar.

– Se fosse, eu seria um espião muito atrapalhado! – disse Wedderhof. – Ainda mais assim, sem uma camuflagem! Tenho um péssimo instinto para essas coisas. Sou a pessoa menos talhada, acredite-me. Vim me desculpar pelo que fiz à tarde. Acho que o senhor percebeu a quem me referi quando falei ao telefone...

– Aquela história de “sou osso duro de roer”? Ja, ich weiss. O senhor estava se reportando a mim.

– Wie gut, vejo que vamos nos entender perfeitamente. Não quero que leve a mal o que eu disse. Mas, o senhor vê, não me sinto bem por ter alguém me vigiando, cuidando de mim como se fosse um assassino desgraçado.

– Como intuiu?

– Nada muito difícil. Ele próprio me jurou que eu seria investigado. Diz que mandei umas mensagens ameaçadoras, e não sei mais o quê. Afirmou que já tinha se prevenido e que, se eu quisesse mesmo atirar nele, teria que driblar primeiro o astuto Sr. Fëll. Quando vi o senhor embarcar, todas as minhas dúvidas se esfumaram.

– Foram essas as exatas palavras dele?

– O astuto Sr. Fëll e tudo o mais? Foram sim.

Fëll amoleceu o corpo desapontado. Subitamente a sua vinda até ali perdera o propósito.

Wedderhof tinha uma cara de pateta, e a defensiva que tomara não contribuía em nada para redimi-lo. Foram interrompidos por outra batida na porta. Os dois se entreolharam. Fëll foi abrir.

– Está acordado, que bom! – disse a Srta. Lepperstein lá de fora. – Imaginei que devia deitar tarde.

A expressão de sua face era fascinante. A boca, pintada de leve, espelhava vitalidade. Entretanto, uma chama a mais vigorava na Srta. Lepperstein. Wedderhof deu um passo para o lado e ficou atrás do biombo.

– Vim checar como vão as coisas, Sr. Fëll. Está bem instalado?

– Alles ist wunderbar, senhorita.

– Que bom!... Temos que cuidar bem de nossos amigos. Se precisar de alguma coisa, toque a campainha; há atendentes que servem à noite.

– Danke schön!

Ela hesitou. De repente disse:

– Eu sei de tudo, Sr. Fëll.

O detetive piscou algumas vezes, como se não tivesse entendido.

– Verzeihen Sie mir?...

– Sobre Moacir... E Wedderhof... O senhor sabe, uma mulher nota essas coisas. Os homens são assim... Acham que podem cuidar de tudo...

– Também fez isso, senhorita – disse ele, em censura. – Ou esqueceu o nosso segredinho?

– Sim, mas meu caso é diferente!... Oh... Por que... o senhor me diga... por que alguém está querendo me machucar? Nunca... nunca fiz nada a ninguém!

– Já ouviu falar de efeito colateral?

– Sr. Fëll!...

– Talvez a senhorita não seja o alvo, já pensou nisso? Talvez... é isso é apenas uma hipótese... talvez a pessoa visada seja seu marido.

Ele viu que a ideia era complexa demais para ela.

– O alvo... meu marido... Então, o senhor continua achando que vão me matar porque casei com o homem errado na hora errada?

– É o que precisamos averiguar.

– E o senhor fará isso?

– Se ainda quiser...

– Se eu ainda quiser? Pensei que tivesse deixado tudo claro quando falei com o senhor!

– Gut, é bom ouvi-la ratificar. O seu marido dispensou meus serviços. Preferiu ficar por sua conta e risco.

Ela ergueu o queixo, sem vacilação.

– Eu não sou como meu marido! Estamos entendidos? Meu sogro causou muitos ressentimentos quando a firma foi à bancarrota. Muitos funcionários demitidos nunca foram pagos. Infelizmente Moacir herdou alguns traços indecorosos do pai. Ele se meteu em algumas transações perigosas no passado. Moacir é autoconfiante... Ele acha que pode com tudo e com todos. Sabe o que ele está fazendo agora? Ficou lá no bar, bebendo. Eu não sou como ele! Eu preciso do senhor... Preciso!...

– Agradeço a sua confiança. Mas quanto a lista... Ela não foi feita com base nas amizades de vocês?

– Sim... e não – Ela mordeu o lábio: – Vou ser sincera com o senhor. Fui um pouco egoísta... A verdade é que duas ou três pessoas que contatamos disseram que não poderiam vir. Pensei logo em substituí-las. Não consultei Moacir sobre os novos nomes; eu mesma os selecionei e mandei os convites.

– Como ele reagiu?

– Ficou extremamente irritado.

– Lembra quais foram os nomes que acrescentou? Talvez seja importante.

– Foram...

Um barulho interrompeu a mulher. Ela se virou, assustada. Incrivelmente, não viu Wedderhof atrás do biombo. Ela prosseguiu:

– Eu peço ao senhor, fique de olhos abertos. Tenho a sensação de que estão tramando alguma coisa contra meu marido. Eu o amo tanto!

Fëll aprovou a moça energicamente.

– Muito bem. Gosto de sua lucidez! Irei cuidar para que nada aconteça aos dois. Vou ficar de plantão, está bem? Olharei por ele, se isso a consola.

Os olhos de Beatriz se encheram de água. Caminhou até ele e lhe deu um abraço desajeitado.

– Obrigada!... Eu sabia que podia contar com o senhor. Bem, vou indo. Estou sendo tão dramática.

Fëll tentou disfarçar o rubor.

– Noto que recuperou o seu colar, senhorita. Disseram que tinha sido furtado.

– Meu colar... furtado? Não, não, ele estava entre meu par de luvas. Neusa me ajudou a procurá-lo... Oh, ela é tão prestativa! Boa noite, Sr. Fëll.

– Gute Nacht, Srta. Lepperstein.

Depois de fazer um aceno, ela foi embora.

– Desculpe-me pelo... ruído – disse Wedderhof, saindo de seu esconderijo. – Eu não queria atrapalhar. Meus pés ficaram dormentes. O que acha que ela queria?

– WeiB ich nicht...

– Gente estranha, não?

Fëll ficou analisando o que havia por trás dessa observação. Cinismo?

– Um prato cheio para sua próxima página, jawohl?

– Não nego. É meu meio de vida, não?

– Falar dos outros e desenterrar todo tipo de coisa podre – um meio de vida? Se fosse eu, não teria muito orgulho.

– Ah, o senhor é um moralista! As pessoas gostam de ler sobre as celebridades. Se vão bem, o que fizeram, se tiveram filhos... Besteiras. Mas que vendem. E vendem bem!

– Creio que o mundo estaria melhor sem esse lixo.

– Oh-oh – riu Wedderhof. – Eu não julgo ninguém. Eu só alimento a avidez das pessoas. Imagine amanhã, quando elas lerem o que eu vi minutos atrás. É com coisas assim que mantenho a fidelidade de meus leitores.

– O que foi que viu?

– Oh-oh... Esse é o ponto, é disso que estou falando! Eu disse uma coisa tão vaga... e o senhor já se interessou e quer saber mais.

– Sr. Wedderhof! O caso aqui é mais sério do que imagina. Um crime pode acontecer... Vou lhe pedir que fale as coisas com toda a clareza. Kann es sein?

O alemão parou de rir. Deu um pigarro, sem jeito.

– Percebo, percebo... Vi que Colasanti bebe como um gambá. Ficou se engraçando com aquela mocinha, a Srta. Gonçalves. Aliás, estou mentindo. Foi o contrário – foi a mocinha que se engraçou com ele. A pobre Beatriz quis morrer! Não sei como não se jogou do barco.

– A Srta. Gonçalves se engraçou...

– Foi uma coisa meio imatura... Beatriz pediu ao insensato do marido que não bebesse. Ele já estava para lá de Bagdá. Mas o que a Srta. Gonçalves fez? Disse ao garçom para trazer outro drinque.

– Com que intenção?

– Vá lá saber... Por afronta, ou despeito. Uma mulher enciumada é um bicho perigoso.

Fëll aquiesceu com a cabeça.

– Espero que não guarde rancor de mim – disse Wedderhof, para finalizar a conversa. – Que horas são?

– Meia-noite.

Subitamente, o alemão parecia ter pressa. Depois de enfiar as luvas no bolso e ajeitar o cabelo, saiu. A testa de Fëll ondulou em duas ou três rugas.

Deu sequência ao jogo de dominó. Errou quatro ou cinco jogadas seguidas, uma tolice causada por sua total falta de interesse no tabuleiro.

Devia ser meia-noite e quinze quando escutou o tiro. O estouro foi seco, e o som se extinguiu como um trovão. Fëll empalideceu e logo se pôs de pé.

– Heilige Gott... O que foi agora?

Após vacilar alguns segundos, aguardando que o som se repetisse, foi para a porta. Lá fora o barrigudo Santelo torcia o trinco da cabine número 14. Ao avistar o detetive, o siciliano veio em sua direção. Estava de bermudas e tinha gotas de suor na testa.

– Que calor, Sr. Fëll – arfou. – Um barco com um ar-condicionado que não funciona! Que pobreza... Também ouviu? Acho que são fogos.

– Não são fogos. Foi um tiro.

– Tem certeza? Por quê?

– O som... Veio de lá.

Fëll saiu andando a passos largos. A intervalos regulares, sacudia a cabeça. Santelo hesitou, mas acabou indo atrás dele. Os dois homens caminharam diretamente para a proa. Desse lado do convés, a estibordo – tudo calmo. A alguns metros dali, o capitão Marques apareceu na passarela. Arquejava, lutando para ajeitar o quepe.

– Um disparo... Quem está atirando?

– É o que estamos apurando, comandante. Aqui parece tudo em ordem. Venha, vamos!

Completando a comitiva, o capitão os acompanhou. O luar ia alto na baía, uma bola dourada à superfície da água. Assim que pisaram a bombordo, um grito partiu da quarta cabine do corredor. Dando um salto, Santelo adiantou-se impetuosamente, dizendo:

– Ali ... Vejam!

Passaram pela sala das máquinas. A luz escoava pela porta da cabine mais à frente. O grito se repetiu. Quando olharam pela porta aberta, um quadro surpreendente os chocou. Wedderhof estava de joelhos no camarote. Com o braço, amparava o corpo da Srta. Lepperstein.

– Querem dar uma ajuda, homens! – exclamou ele ao vê-los. – Ou vão ficar assistindo?

Os três entraram na cabine. Fëll olhou para o rosto de Beatriz Lepperstein; parecia morta. Os braços, estendidos molemente em torno de si, estavam em absoluto repouso. Uma lágrima havia se cristalizado no canto de seu olho.

A circunstância era tão impressionante que uma suspeita varou suas mentes. Que ela havia levado um tiro. No chão, à esquerda da entrada, estava caída a bolsa com os cosméticos.

– Mantenha quem vier, capitão, fora da cabine – comandou Fëll. – Afaste todos. Nada de curiosos. E, cavalheiros – virou-se para adverti-los: – não toquem em nada. Ela está viva, Sr. Wedderhof?

– Sim, eu já examinei o pulso... Acho que o tiro a acertou de raspão. Ajudem-me!... Vamos levá-la para a cama...

Fëll e Santelo ajudaram o alemão a carregar a mulher. Deitaram Beatriz na cama; ela se mexeu um pouquinho, gemendo de dor.

– O que... puf... aconteceu? – perguntou Santelo, suando.

– Alguém atirou nela – disse Wedderhof laconicamente.

Fëll olhou para os dois. Lembrou-se da moça, poucos minutos atrás, dizendo: “Eu não sou como meu marido! Eu preciso do senhor! Preciso...”.


Capítulo 9

 

– Um tiro foi disparado – disse Fëll, inspecionando o camarote. – A pergunta é: onde foi parar a bala?

– O quê? – perguntou Santelo.

– A bala... Se ela passou de raspão, deve ter se encravado na parede. Mas onde? Onde?

Santelo piscou os olhos, perplexo.

– Não me interprete mal... Mas precisa ver isso agora, Sr. Fëll?

Fëll ficou de joelhos e começou a engatinhar pelo camarote.

– Nada de arma... Sim, talvez seja melhor prorrogar a busca para depois. Tudo bem com a mulher?

– Creio que sim – respondeu Wedderhof. – Ela só está zonza... Deve ser por causa do estrondo. Mas, se tivéssemos um médico, seria melhor.

– Capitão! – chamou Fëll.

O capitão Marques entrou, mostrando o mais puro terror. Fixou os olhos na cama, torcendo para que a Srta. Lepperstein ainda estivesse respirando.

– Sim?

– Temos um médico a bordo, ou qualquer profissional da área?

– Temo que não – corou Marques. – É que nunca aconteceu uma coisa tão chocante. Ninguém imaginou...

– Ninguém imaginou, mas aconteceu – disse Fëll rispidamente.

– Eu lamento, senhor. Vou providenciar agora mesmo.

O capitão ia sair, mas Beatriz fez um gesto trêmulo com a mão. Era um gesto consternador, por definição estatística.

– N-não... precisa. Foi só um... arranhão.

Todos se admiraram com a sua força de superação.

– Senhorita – disse Fëll. – Não é hora para essas manifestações. Eu insisto...

– Não! – repetiu Beatriz. – Capitão... por favor... não vá!

Marques hesitou.

– Como quiser, senhorita.

Marques olhou para Fëll. Parecia ter alguma coisa a dizer.

– Fale, capitão — disse o detetive.

– Há uma pessoa lá fora... Disse que quer falar com o senhor.

– Quem é?

– Aquela jovem que fala inglês.

– Miss Kaline? Ela deseja falar comigo? – perguntou Fëll sem entender como é que alguém pedia uma audiência naquelas circunstâncias. – Está bem. Espere só um instante...

Fëll virou-se para Dieter Wedderhof.

– Antes disso, uma pergunta. O que o senhor estava fazendo nesta cabine?

– Não estava fazendo nada! – gaguejou Wedderhof. – Eu ouvi o estouro e vim ver o que tinha acontecido.

Fëll esfregou o queixo pensativamente.

– Ouviu o estouro, certo.

– Não está pensando que eu... Ora, maldição! Isso é um abuso!

– Veremos, veremos – respondeu Fëll. Olhou para Santelo através da lente do monóculo. – Pode nos fazer um favor, meu rapaz? Confira se os passageiros acordaram com a detonação. Bata em todos os leitos.

– Digo a eles o que aconteceu?

– Nein, apenas efetue a consulta.

Santelo apertou ligeiramente as pálpebras e saiu. Raios, não entendia por que tinha que fazer aquilo a essa hora.

O austríaco voltou-se para o jornalista:

– Prossiga, Sr. Wedderhof.

Wedderhof puxou a gola da camisa com desagrado.

– Não vejo por que... Eu estive com o senhor. Estive em sua cabine.

– Durante algum tempo.

– É, já vi que não adianta argumentar – suspirou Wedderhof. – Pois bem, eu saí de sua cabine e escutei o som do disparo uns cinco minutos depois. Estava do outro lado do barco. Vim logo para cá. Parei ali na porta e fiquei vendo... a mulher...! Vocês chegaram no momento em que me ajoelhei a fim de ajudá-la.

– Muito bem. Falaremos sobre essa versão mais tarde.

Fëll fez um aceno para Marques. Pediu que ele liberasse Miss Kaline.

– Faça-a entrar...

O homem saiu. Logo, a americana entrou. Miss Kaline era a única que tinha sido detida no deck. Aproximou-se, olhando com horror o aposento desarrumado. Em todo o comprimento da peça, arremessadas aqui e acolá, estavam as contas do colar da Srta. Lepperstein.

– Desculpe-nos, Miss... Kaline. É esse seu nome, richtig?

– Yes, it is.

– Compreende bem o nosso idioma?

A americana respondeu novamente que sim.

– Reconhece essa mulher? – perguntou Fëll suavemente.

Ela olhou para a cama, muito atenta a tudo.

– É a esposa de Mister Colasanti.

– Agora, responda com toda exatidão. Onde a senhorita estava quando foi dado o tiro?

– Em meu quarto.

– Qual é o número?

– 9, desta lado.

– Estamos no número 7. O próximo, portanto. Então deve ter ouvido distintamente o revólver.

– Yes, mais ou menos.

– Perdoe-me. A senhorita não esteve à popa do barco minutos antes da meia-noite?

Ela fitou o detetive como se tivesse recebido uma bofetada.

– Non – respondeu, em seu peculiar sotaque.

– No canto esquerdo da popa – ele insistiu.

Tornou a negar, em movimentos curtos e lacônicos.

– Voltando ao nosso tema – Fëll gesticulou para terminar o assunto. – Diz ter distinguido o disparo, liebchen. Deixou a cabine para averiguar o que ocorria?

– Não. Eu estava lendo e queria dormir.

O traje dela não condizia muito com sua versão. Uma saia bege e sapatos de salto alto. Estranho para quem tencionava se deitar.

– Alles in Ordnung – ele não foi avante em seu questionário. – Pode ir, Miss Kaline. – E assim que ela saiu: – Parece, Sr. Wedderhof, que está numa situação confortável. Ninguém testemunhará contra o senhor. Por enquanto.

O colunista ficou vermelho.

– Testemunhar contra mim? Não tenho nenhum envolvimento com o acidente.

– Acidente? Uma bela palavra... mas que não se adequa bem. Poderíamos aventar que foi uma tentativa de suicídio. Nesse caso, contudo, não acredito que a bala teria feito a trajetória que fez. Consegue ver o orifício ali?

Fëll mostrou um furo na parede, perto do forro. Continuou:

– Não, alguém esteve aqui. O colar em pedaços, que parece ter sumido, comprova isso. É preciso, pois, recuperar todas as questões precedentes.

Voltou a se agachar para examinar a mulher semiconsciente. A beleza nos traços da fisionomia não tinha se alterado. Beatriz Lepperstein estava completamente ali, ilesa, tangível. Ela ainda gemia, e volta e meia passava a mão pela cabeça.

“Ela precisa de atendimento médico... Ou, pelo menos, um sedativo. Deve ter recebido um golpe na nuca...”

Ainda de bermudas, o siciliano Santelo voltou com a face transmutada. A ansiedade havia evoluído até um ponto nada promissor.

– Não vão gostar das notícias, senhores – sussurrou.

– Was ist jetzt?

– O nosso amigo Colasanti. – E acrescentou: – Eu entrei na cabine dele. Quis... Foi esfaqueado!

– Esfaqueado?

Fëll, que o tempo todo fora austeramente impessoal, abafou uma exclamação.

– Como foi? – perguntou Wedderhof.

– E crê que eu saiba? – replicou o siciliano. – Bati na porta. A ordem era averiguar todos os camarotes. Como ninguém atendeu, entrei... Está na cama, o infeliz.

– Morto?

O aceno afirmativo estourou uma reação devastadora, tóxica, entre todos. Tudo era muito irregular.

O camarote de Colasanti era vizinho ao da esposa. Houve uma atropelada corrida. A porta, que Santelo deixara aberta, lançava um fio de luz para o exterior. Sobre o leito, o homem de bruços parecia ter caído no sono. A única exceção era a lividez pos-mortem da pele.

– Um segundo corpo – disse Fëll empalidecendo. – Ali do lado, um ataque e... aqui... um assassinato! Deve haver um engano aqui, pois é uma improbabilidade matemática. Zum Teufel! Eu falhei... Falhei miseravelmente.

Improbabilidade matemática! Um termo que se aplicava bem aos fatos. Fëll ficou ali de pé, olhando com espanto o quadro à frente deles. Com os dedos vacilantes segurava o monóculo perto do nariz.

Puderam ver a faca fincada na espinha de Colasanti, embora notassem apenas o cabo dela. Eram 12 e 40 da madrugada. A lâmpada do teto iluminava o relógio sobre o criado-mudo. A coloração da face do homem lembrava uma efígie de gesso. Pelo cabelo sem pentear, e o aspecto de desleixo, devia ter deitado logo após vir do restaurante.

– Péssimas notícias – o alemão repetiu as palavras de Santelo. – Se o caso já era complicado, agora ficou pior.

– É uma chacina. Um verdadeiro crime em massa.

Ninguém contestou o siciliano.

– Está morto há pelo menos meia hora – analisou Fëll, se abaixando. – O sangue já coagulou... A perfuração na carne – profunda. Isso é significativo, pois mostra que a punhalada foi desferida sem hesitações. Um ódio consumidor... rancoroso...

– Mas por quê? Quem faria essa iniquidade?

A pergunta de Wedderhof se justificava.

– Temos que ver isso depois – disse Fëll. – Primeiro temos que saber o que aconteceu com a Srta. Lepperstein.

– Será que tem a ver com as ameaças?

– Ela lhe contou...?

– Não... Ouvi vocês conversando.

– Sim... as ameaças... Acho que tem tudo a ver.

O austríaco olhou para os dois homens com visível desconfiança. É óbvio que não podia revelar o que pensava daquilo tudo. Afinal... aqueles dois... tudo muito suspeito!

“Um deles estava com a mão no trinco da porta... Iria entrar em sua cabine ou sair? O outro, por sua vez, estava no local do ataque à mulher... Terá sido ele quem...?”

Fëll praguejou mentalmente.

“Nada de tirar conclusões afobadas! Há uma coisa que falta... Mas o quê? O quê?”

– A arma! – exclamou. – Temos que encontrar a arma que deflagrou o tiro!

– Com tanta água ao nosso redor? – perguntou Wedderhof, com pessimismo. – O agressor já se livrou dela... Nunca iremos achá-la no fundo da baía.

– Talvez... Mas não custa tentar. Deixo essa tarefa ao encargo de vocês.

Fëll fez mais uma e outra recomendação e, depois de dar uma evasiva, saiu. Santelo fitou o cadáver de Colasanti, aturdido.

– E agora... O que faremos?

– Nada – disse Wedderhof. – Fomos postos para escanteio, ou você não notou?

– Por quê?

– Quem é o grande investigador aqui? Nós ou ele?

Deixando a dupla para trás, Fëll foi para a cabine da Srta. Lepperstein. Miss Kaline tinha voltado e cuidava dela.

– Ela ter um calo na cabeça – disse a moça, sem se virar. – Precisa descansar... Sofreu muito, a coitadinha! Achei o revólver, ali fora...

Ele ficou surpreso. De fato, o revólver estava em cima da penteadeira. Fëll pegou um lenço e, cuidadosamente, examinou a arma.

– Onde estava?

– Perto de cabine 11.

– Dentro da cabine?

– Fora... No chão...

Beatriz abriu os olhos, desorientada. Fazendo um esforço sobre-humano, perguntou:

– Onde... onde estou?

O detetive puxou a cadeira e sentou-se ao lado dela.

– Em seu camarote, senhorita.

– Então eu não... morri?

– Não, não morreu.

– Ai... O que aconteceu comigo?

– É o que gostaria que me dissesse. Nós não sabemos.

Ela agarrou a coberta, estremecendo ligeiramente.

– Eu não tenho certeza... A última coisa que fiz foi falar com ela – Kaline. Depois vim para cá... Ai... Sim, é isso mesmo. Abri a porta e... sim, fiquei tateando no escuro... para achar o interruptor. E... Oh, Sr. Fëll! O que aconteceu depois?

– Temo que atiraram na senhorita.

– Atiraram... Não! Quem seria capaz de uma selvageria dessas? Quem?

Fëll moveu os ombros. Tinha uma expressão sombria, e pensava na sequência de eventos.

– A senhorita demorou a acender a luz; isso confundiu a mira do assassino. Como só tinha uma bala, fugiu logo em seguida.

– Fugiu... Mas não antes de me golpear. Ai...

– É!... Srta. Lepperstein, receio ter uma má notícia para lhe dar.

Ela o olhou, ansiosa, como se ele tivesse puxado o pino da granada.

– É sobre Moa?... Sr. Fëll, o que é? Ele...? Por Deus, o que é!... Moa... Moa...

Beatriz caiu num choro incontido.

“As coisas devem ter sido mais ou menos assim”, pensou Fëll, tocando a mão dela. “Primeiro, o marido foi morto... uma coisa fácil, visto que ele estava desacordado devido ao porre. Depois o assassino escondeu-se em algum lugar... (onde?) Quando ouviu a Srta. Lepperstein abrir a porta do quarto, ele pôs em prática a segunda parte de seu plano. Aproximou-se por trás e segurou-a pelo colar... Depois, apertou o gatilho! Quando ela gritou, achou que tinha acertado. Para completar o trabalho, deu uma coronhada e saiu correndo.”

Beatriz passou a mão no pescoço, onde havia um vergão vermelho na pele.

– Ai!... Que dor! Por que tanto ódio, Sr. Fëll? Por quê?

– Existem muitas teorias... O mais provável é que seu marido fez algum inimigo. E... como eu já lhe disse... a senhorita entrou sem querer nessa história.

– Mas é terrível!... O senhor acha que sei de alguma coisa... de algum segredo... que pode prejudicar alguém?

– Tudo levar a crer que sim. Eu sei que não é a hora apropriada, mas... tente um pouco... não se lembra de nada assim?

– Nada! Oh, por favor!... Como eu poderia?...

– É pena – disse Fëll. – Não quero alarmá-la, mas temo que ainda não esteja livre de perigo, Srta. Lepperstein.

– Perigo? – perguntou ela, com uma expressão apatetada. – Diga o que o senhor pensa... Eu já perdi Moacir... Moa... A razão de minha vida! Diga! O que está sugerindo?

– Estou sugerindo que... quem quer que tenha maquinado o crime... voltará a agir, para terminar o que começou. Por isso, não importa o que aconteça, não saia daqui! Eu lhe rogo! Miss Kaline ficará aqui, sob ordem expressa de não abrir para ninguém. Para ninguém! Entendeu, Miss?

A enfermeirinha anuiu, os olhos muito abertos.

– Well... Mas... e minha patroa, Mister!

– Deixe comigo. Vou avisar Madame Canelles...

Fëll repetiu as instruções. Depois deixou a cabine.

“Agora vamos às investigações iniciais”, disse para si mesmo.


Capítulo 10

 

Quem teria esfaqueado Colasanti?

Fëll passou a noite em claro, tentando encontrar uma resposta para essa pergunta.

Às oito da manhã, a maioria dos passageiros estava no convés. Havia uma reclamação geral entre eles. Todos queriam saber o que tinha acontecido; dois ou três queriam entrar na cabine do morto. Fëll foi duro – ninguém poderia entrar; não, não havia nada a declarar.

Acompanhado do capitão Marques, o detetive cruzou a fita que isolava a área. Os dois entraram na cabine 5. Haviam obtido a planta do barco; a planta com nome de todos os ocupantes dos leitos.

– Teremos uma visita esta manhã, comandante – disse Fëll.

– Uma visita? Que tipo de visita?

– Falei com o delegado Yamb. Eu o contatei por telefone. Contei a ele sobre os acontecimentos desta noite. Ele disse que virá ainda hoje de manhã. Posso lhe perguntar que medidas pretende adotar?

– Quero levar o barco ao cais. Imagino que haverá um inquérito... No porto terão mais recursos para isso. A tecnologia e todas as suas vantagens...

– É o que supúnhamos.

– Está hesitando. Por quê?

– Comandante, tenho uma alternativa. Desde que não se oponha, logicamente.

– Vejamos...

– Vou lhe propor a solução desse caso até às nove horas da noite... A solução do crime, ouça bem, e a revelação de quem foi o seu autor. Há uma coisa que preciso lhe pedir, comandante.

– Ah... O que é?

– Que mantenha a embarcação estacionada aqui. Isso facilitará muito as coisas. Assim poderemos investigar o caso sem pressa.

Marques fitou demoradamente o seu companheiro. O pedido transgredia todas as normas de sua responsabilidade contratual.

– Está dizendo que começarão imediatamente a investigação do caso?

– Sim. Se não conseguirmos desbaratar o caso até às nove horas, será aberta uma sindicância externa. Quanto antes agirmos, melhor. Temos que seguir os rastros ainda frescos.

– É uma quebra grave dos regulamentos – declarou Marques. – Sei de seu prestígio, mas...

– Temos que aproveitar a chance! É um erro deixá-la escapar.

– Isto significa que querem solucionar o caso aqui mesmo?

– Wunderbar! Note, eu e o senhor sabemos que estamos diante de uma chance única. O assassino só pode ser alguém do barco. Se fosse de fora teríamos visto uma lancha se afastando – ontem havia lua cheia. Nenhum dos suspeitos saiu do barco. Todos continuam confinados aqui, o que restringirá a um só local a atuação da polícia. Se todos forem liberados, é lógico que o interrogatório da maioria dispenderá o dobro do trabalho. Não podemos desistir agora. Não podemos desistir, entendeu!

– Está bem; farei o possível. Mas acho que teremos um motim... Veja a cara deles; estão prontos para pular em cima de nós!

O cadáver de Colasanti permanecia jogado na cama. A seu lado, um lenço com uma mancha vermelha. Muito provavelmente envolvera o cabo da faca na hora da punhalada. Para encobrir as digitais? Ou para limpar os respingos na mão assassina?

– Este homem morreu enquanto dormia. Sem esboçar nenhuma defesa... Depois, devagar, o criminoso foi para a cabine da Srta. Lepperstein. Um tiro e pronto... Estava terminado o seu intento.

– Sim; mas por que matar os dois?

– É o que veremos.

Não havia vestígios no criado-mudo. O homem fora deitar-se com o smoking e de sapatos – isso era digno de nota. Fëll apalpou o cadáver e extraiu a carteira de seu bolso. Encontrou algumas cédulas de dinheiro e três ou quatro cartões de crédito. Havia um nome diferente em cada cartão. Fëll soltou uma exclamação e marcou alguma coisa em sua agenda, em letra hieroglífica. Pôs a carteira de volta. Depois se abaixou perto de dois objetos caídos no tapete.

– Prendedores de gravata, wie interessant. Dois. – Recolheu-os e acrescentou: – Artigos baratos, mas muito úteis.

Para o capitão, a descoberta não teve qualquer significado. Parecia claro de quem eram os prendedores. Quanto ao homem, não havia como afirmar qual a hora de sua morte. Podiam apenas presumir que fora uns vinte ou trinta minutos antes do tiro dado contra Beatriz Lepperstein.

– O sangue estava coagulando – disse Fëll. – Quer dizer que houve um intervalo entre os dois fatos... Primeiro, temos a morte de Colasanti; meia hora depois, o ataque contra a esposa. Tudo muito bem executado.

Pôs os prendedores no bolso, e olhou em volta.

– O que mais me dói é saber que fui avisado... E não fiz nada. Absolutamente nada.

– Foi avisado do quê?

– De que poderia haver um assassinato.

– Por quem?

– Pelos dois... Disseram basicamente a mesma coisa. Lamento ter sido tão obtuso.

Fez uma pausa.

– Podemos suspender as buscar. Vamos esperar a chegada do delegado Yamb.

Deixaram a cabine.

Ele procurou a Srta. Brenneison com os olhos, mas a moça não estava no convés.

A família do italiano ainda não fora notificada do homicídio. As prescrições de Fëll tinham sido dadas numa reunião às duas e meia da manhã. Ele fora curto, seco, mas objetivo. Não queria nenhum vazamento de informações.

“– Devemos fazer uma inspeção antes de alarmar quem quer que seja” – dissera ele. – “Se espalharmos qualquer rumor, logo teremos uma enxurrada de curiosos aqui. E o resultado seria desastroso... Concorda comigo, Sr. Wedderhof?”.

“– Fique tranquilo... Meus lábios estão selados!”

Fëll lembrou-se da expressão irônica do colunista. Havia alguma coisa por baixo daquele sarcasmo...

Antes que pudesse pensar melhor sobre o caso, uma lancha barulhenta atraiu sua atenção. Após atracar no iate, um homem desceu da lancha. Baixinho, magricela, e de bigode eriçado, subiu na embarcação. Apesar de seu tamanho, possuía uma pose de inflexibilidade! Uma pose que correspondia a seu cargo de delegado. Vinha acompanhado de um policial e de uma equipe de peritos laboratoriais.

– Sr. Yamb – disse o austríaco. – Guten Tag, Sr. Yamb.

– Sr. Fëll... Está caçando um novo emprego? Deveria ser inspetor, já lhe falei. Tem a terrível qualidade de estar presente a esses crimes desagradáveis. Qual o problema, meu velho?

– Venha! Vou lhe mostrar.

Foram abrindo espaço entre os tripulantes. Estavam ali o professor Wolfgramm, a Srta. Gonçalves, o duque Salles e Santelo. Madame Canelles, completando o enxame, mostrava uma cara indecifrável.

Wolfgramm segurou o braço de Marques e o puxou para longe da turma. Perguntou:

– Alguma pista, capitão? O senhor sabe... não é todo dia que se presencia um assassinato. O que desvendaram até agora?

– Nada. Está tudo estagnado.

– Os procedimentos, não?

– É, creio que sim...

–Vão nos comunicar se descobrirem quem é o assassino?

– Evidentemente.

Marques se expressou no tom mais normal do mundo – com voz grave e uma tranquilidade quase extrema.

– Os exames de rotina, lógico – disse Wolfgramm. – Eu ia esquecendo. Tivemos esse... assassinato a noite passada. Sim, é cedo para saber o que aconteceu. Tomara que esse Fëll saiba o que faz.

– Dizem que sim.

– É um charlatão, vão por mim – disse Santelo. – Desde que ocorreu o crime, não parou de mandar na gente. “Não ligue para este!”, “Não ligue para aquele!” Ele pensa que tem o rei na barriga.

– Coitado, não fale uma coisa dessas – disse Zelly. – Não o critique, Welly. Talvez ele descubra o criminoso. Que, aliás, é um de nós.

– Bobagem! Pois eu digo que o criminoso já deu o fora.

– Como? Nadando?

– Sei lá... Essa investigação vai dar em nada.

– É o que você quer? – perguntou o duque Salles, sorrindo. – Que a investigação dê em nada?

– Olha, para mim tanto faz – disse Santelo. – Não fui eu, e basta.

– Basta para você – disse Wolfgramm. – Para a polícia, não. Eles vão querer provas. Você acha que vão ficar satisfeitos com um simples “Não fui eu”? A democracia apoia-se em baionetas e sangue.

– Não é o que estou querendo dizer – respondeu o siciliano. – O que estou dizendo é que não fiz nada. A opinião desses detetives não tem a mínima importância.

– Wellington! – disse Zelly. – Que coisa feia de se falar.

– Pois ele tem razão – disse Joana Canelles, friamente. – Se foi um de vocês quem deu a facada, dou meus parabéns!

Zelly olhou para ela, horrorizada.

Marques viu que a discussão não acabaria tão cedo. Disse um “Senhores, com licença!” e saiu de fininho. Voltou a se juntar ao comboio dos investigadores.

– Lorotas – dizia Yamb. – É claro que fizeram bem em me chamar, meu amigo. O caso merece sim prioridade. Mortes assim são um assunto sério. Se tivesse podido, eu teria vindo antes.

Estavam diante do camarote 7. Fëll bateu na porta; lá dentro, ouviu-se um ruído de pés. Então, uma voz perguntou:

– Who is?

– Sou eu, Miss Kaline. Abra, bitte.

A chave girou e a porta se abriu.

– Danke!

– Entrem.

– Como vai a mulher?

– Ficar acordada a noite toda.

– Você deu o sedativo?

– Sim.

Beatriz estava sentada na beira da cama; havia uma amargura infinita em seus olhos. Veias grossas sobressaíam-lhe na testa.

– Srta. Lepperstein... Este é o delegado Yamb!

– Delegado!... Graças a Deus!

– Viemos ver como está passando, senhorita.

Ela se colocou de pé. Balançou um pouco, mas conseguiu manter o equilíbrio. Sentou-se diante da penteadeira.

– Nada bem, Sr. Fëll. Horrivelmente, para dizer a verdade. Acabei de perder meu marido e quase fui morta. Não poderia ser pior... Veja essas olheiras!

– Ainda tem dores?

– Dores... Estou cheio delas. Removi bolsas de gordura sob os olhos, fiz duas operações no nariz e uma lipoaspiração. Oh, nunca estive tão mal!

– Vejo que arrumaram a bagunça.

Ela apontou Miss Kaline.

– Essa menina... É uma benção! Cuidou de mim... muito bem.

Fëll virou-se para Yamb. Fez um resumo dos acontecimentos da noite. O delegado ouviu em silêncio; excitado, disse:

– Só uma pergunta... Quando foi a última vez que a senhorita viu seu marido vivo?

– Por quê? – perguntou Beatriz, estupidamente.

– Ora – disse ele, meio envergonhado. – Para reconstituir os fatos. Temos que estabelecer a hora aproximada da morte... Pelo que entendi, o assassino não desceu em terra. Todos serão interrogados; e vamos comparar os álibis para tentar ver quem é o culpado.

– Oh, é mesmo?... Está bem. Vi meu marido a última vez no restaurante.

– Sóbrio?

– O quê?

– Estava lúcido ou tinha bebido?

– Estava bêbado... Oh, sim. Muito bêbado!

– E depois?

– Eu pedi que parasse de beber, mas ele queria mais.

– O que fez depois?

– Nada... O que eu poderia fazer?

– Não, não – disse Yamb, com calma. – Quero saber o que a senhorita fez a seguir.

– Ah... Eu sai.

– E ele?

– Moacir ficou lá.

– Sozinho?

– Não, acho que não... Ficou aquele repórter. Ou não?

– Mais alguém?

– Zelly! Sim, Zelly...

– A senhorita – aonde foi?

– Eu?... Andei um pouco no convés; então... sim, fui falar com o Sr. Fëll.

– Depois?

– Depois fui até a cabine de Kaline.

– Que horas eram?

– Quando saí de lá... acho eu... já passava da meia-noite. Sim, sim... Não foi, Kaline?

– Sim, Mrs.

– Não percebeu nada quando voltou ao seu camarote?

– Como assim?

– Algum vulto ou sombra?

– Não... Tentei ligar a luz e... e senti alguém me puxando por trás. Foi... oh, foi terrível!

Fëll viu a emoção tomar conta dela.

– Ficamos gratos, senhorita. Permaneça aqui, ok?

– Sr. Fëll – disse a Srta. Lepperstein. – Pode me fazer um favorzinho? Peça a Neusa que venha até aqui. Deve estar tão abalada!... Ela gostava muito de Moacir. A família sempre foi muito apegada. Quero falar com ela...

– A Srta. Brenneison – disse ele, com uma cara de dúvida. – Não é uma boa idéia...

– Ora, tenho certeza que ela é inocente. Peça a ela, sim?

– Está bem, farei o que deseja. E você, Miss, não se preocupe com sua patroa. Ela lhe deu licença para continuar com a Srta. Lepperstein.

Saíram. Yamb cofiou o bigode; disse:

– Uma mulher muito bonita. Uma daquelas atrizes norueguesas. Mas um pouco... como diria?... burra. Não parece entender nossas perguntas!

– Bonita e jovem.

– Sim, e jovem. Morta numa noite de verão! Um enredo de filme. Como é que pode haver pessoas que fazem mal a essas beldades? Nunca vi uma quantidade tão grande de mortes inqualificáveis. Mata-se crianças, mulheres e idosos por qualquer ninharia. A insensibilidade tomou conta e prepondera. O cinema só apresenta bombas, explosões e tiros. Conceitos abstratos como certo e errado, justo e injusto — tudo é relativo, dizem.

– O sobrenome dela é Lepperstein. Muito citada nas colunas sociais. O nome soa familiar?

– Claro, claro...

– Agora, vamos ao outro caso.

Entraram na cabine de Colasanti.

Yamb mostrou um ar atento e laborioso, como um labrador quando vê um esquilo.

– Então essa é a vítima – ele checou a cena e ajoelhou-se perto do cadáver. – Parece ter tido uma morte indolor, rápida.

– Aprecie tudo, mein Freund – disse o austríaco. – Nesse ínterim, vou dar uma olhada na planta do barco. Há alguns pontos a ser esclarecidos.

Os olhinhos vivos de Yamb tiveram um brilho refulgente, tentando adivinhar as intenções do detetive. Tirou respeitosamente o chapéu da cabeça ovalada. O policial, que vinha em seus calcanhares, abriu uma pasta e se muniu de um par de luvas. Uma dupla diligente! Ambos puseram mãos à obra.

– Podemos ocupar a sua cabine um momento? – Fëll perguntou ao capitão.

– Sim, naturalmente.

– Obrigado. Uma última impertinência... Peça que um de seus assistentes avise aos passageiros que falarei com eles às dez horas.

– Às dez horas... Certo. Roger, venha cá!

O comandante despachou o rapaz com o recado, e então os dois foram para a cabine número 1. Havia uma mesa e cadeiras. Fëll esticou a planta do barco na mesa. Alisou o papel e indicou o desenho da ala a bombordo.

– Aqui, leito 7... Beatriz Lepperstein, atacada com um tiro... bem, talvez meia-noite e dez. É difícil especular um horário exato. Nós todos escutamos o seu grito. A arma – um revólver 38, eu mesmo conferi – é largada perto da cabine 11. O que sabemos da mulher? Que é vaidosa, e casou com um homem com o dobro de sua idade. Nunca foi modelo e nem se deu bem como dona de joalheria. É rica, sim. Alugar um barco só para si e seus convidados requer, obviamente, posses pecuniárias. Por que alguém haveria de matá-la? Roubo? É uma teoria que não podemos ignorar.

– Mas por que o assassino atiraria nela se, como diz, pretendia apenas assaltá-la?

– Não assaltá-la. Roubá-la – disse Fëll, e levantou o dedo. – Observe o quadro. A mulher é detentora de dinheiro, todos aqui sabem disso. Bastaria que um desses ditos amigos estivesse em dificuldades financeiras. Ele pede um empréstimo a Beatriz, mas ela lhe nega ajuda. O resto seria consequência. Ontem à noite, tendo ela ido falar comigo em meu camarote, o criminoso entra na cabine dela, digamos, para procurar as joias... Não, não há como seguir essa linha de raciocínio! Eu estava considerando que ela, ao voltar, poderia ter flagrado o ladrão. Ele, para evitar um escândalo, teria atirado nela... Nein, diese Idee ist verkehrt! Estou indo por um caminho errado. Não estou relevando Colasanti. Há o pedido dele para que eu investigasse o Sr. Wedderhof. Que desconfiança havia ali? Vingança – por motivos pessoais. Poderia até ser. Mas, nesse caso, por que a mulher teria que morrer?

– Sugere que isso deixa Wedderhof encrencado?

Fëll assumiu um ar meditativo; disse:

– Precisamente. E tem um fato que piora sua situação.

– Qual?

– Bem, não vamos nos afobar. É melhor esperar o delegado.

Marques concordou; pôs-se a estudar a planta do iate.

Yamb não demorou a vir, esfregando as mãos com um servilismo fora do comum.

– Já pedi a remoção do corpo. Vamos examinar a faca, à procura de digitais. Eu particularmente não acho que encontraremos alguma coisa. O lenço – nele o agressor deve ter enrodilhado os dedos. Pelo que o conheço, você já deve ter uma opinião sobre isso, caro Fëll. Respeito muito a autoridade que você tem nessa matéria, meu velho. Embora nem todos os meus colegas de distrito concordem comigo. Não é mesmo muita sorte que esteja com tanta frequência na cena de um crime?

– Atribui isso a sorte? – perguntou o austríaco. – Para ser sincero, eu poderia ter evitado o assassinato...

– Compreensível... Não podemos sair por aí salvando todas as pessoas... Se o conheço bem, já averiguou alguma coisa enquanto nós vínhamos para cá. O que é?

– As iniciais impressas no cabo da arma.

– Do revólver?

– Sim. Pode nos fazer um favor, oficial? Pode ir buscá-lo para nós? Está em minha cabine, 12.

O policial, um rapaz louro, de uniforme bem ajeitado, acenou e saiu. Yamb deu dois passos, e contemplou o mapa sobre a mesa.

– A planta do barco. Tem utilidade?

– Sim.

Fëll não respondeu mais nada. Ficou andando de lá para cá, pensativo. O jovem louro retornou, e o austríaco foi em sua direção, com energia.

– Hier – pegou a arma, dentro de um saquinho plástico. – Vejam a inscrição.

Aproximaram-se um pouco; olharam para a coronha. Bem visíveis, havia duas letras.

– D e W – leu Yamb. – As iniciais do nome do portador. O que significam?

– Temos duas opções. Vamos interrogar a primeira opção. Chame-nos, capitão, o Sr. Wedderhof.


Capítulo 11

 

Marques atravessou o deck dos dormitórios e foi até o restaurante. Wolfgramm, Madame Canelles, o duque e a Srta. Gonçalves tomavam café.

“Que bom! Parece que se resignaram...Quiseram entrar nas cabines 5 e 7, mas foram proibidos. Viram que não adianta se zangar por pouca coisa!”

Wedderhof não estava ali. O comandante subiu até a cobertura do barco.

O alemão estava deitado na espreguiçadeira; olhava o sol que refletia na piscina. Levou um susto quando o capitão apareceu.

– Nada de reportagens hoje, senhor?

Por alguns segundos, Wedderhof perdeu a fala. Pigarreou e mexeu os ombros.

– Hoje não.

– Que droga de caso, não?

– É. Um anticlímax total.

– Não quero incomodá-lo... Pediram-me que lhe dissesse que querem falar com o senhor.

– Por que isso não me surpreende? – perguntou, suspirando. – Não importa... Vi que veio uma equipe de homens capacitados. O que estão fazendo?

– Nada demais. Acho que vão interrogar todo mundo; a coisa de sempre.

– Maldita a hora que entrei naquele camarote. Verdamnis! Vão me acusar, já sei. Acharão digitais, o escambau... Preferiria ser preso por fraude e peculato.

– Acho que o senhor pode ficar sossegado. Ainda não formalizaram nenhuma acusação. Eles querem apenas que venha depor.

Wedderhof ergueu-se com ar cansado, e jogou o charuto na piscina.

– Se pelo menos houvesse cinzeiros por aqui! – resmungou. – Bem, vamos lá...

Fëll recepcionou o colunista com cordialidade. Levou-o para a cadeira:

– Sente-se, bitte! Agradeço por ter vindo. Precisamos de sua colaboração. Este é o delegado Yamb...

– Olá a todos! – disse Wedderhof, contrariado. – Delegado Yamb, é? Já ouvi esse nome... Posso perguntar por que decidiram nos barrar no barco?

– É uma pergunta justa. A rigor, decidimos isso para facilitar a recolha dos depoimentos. O senhor concordará que qualquer demora nisso pode comprometer a confiabilidade das testemunhas. Além disso, é melhor agir enquanto a poeira ainda não baixou.

– Compreendo...

– O senhor é natural de Munique?

– Sim.

– Há quanto tempo está no país?

– Há mais de trinta anos. Desembarquei no porto de Santos. Vim com roteiro pronto.

– Trabalhou para algum jornal lá fora?

– Sim.

– The Edmonton Journal?

Wedderhof estreitou as pálpebras:

– Está citando um jornal australiano – disse. – Ora vamos, não sou mais um adolescente! Se puder, vá direto ao ponto. O que querem de mim? Não sou guardião espiritual de ninguém.

Yamb achou a resposta muito oportuna. Fëll às vezes fazia perguntas que davam nos nervos.

– É esperto, Sr. Dieter Wedderhof – disse o detetive. – Pois muito bem. Vou ser mais direto.

Inclinou-se sobre a mesinha onde estavam os mapas, e empurrou a arma.

– Isto é seu?

– Não.

– Tem certeza? Não deseja ver a incrustação na coronha?

O alemão quis responder que não. Mas pegou a arma e analisou sua base. Leu as iniciais, e depois jogou-a de volta na mesa.

– Não significa nada. Pode ser a assinatura do fabricante.

– Wirklich? Que prodigioso! – disse Fëll. – Do fabricante... Quer dizer que não é sua?

– Seguramente.

– Vamos ser francos. Confidenciou-me ontem que não é ornitólogo, Sr. Wedderhof...

– Ah, o senhor tem boa memória!... Bem, é lógico que não fico observando pássaros. O senhor sabe... tivemos que pagar uma indenização a Colasanti. Ele alegou danos morais. Que cafajeste! Tudo o que nós noticiamos era verdade. Quando recebi o convite para vir a esse cruzeiro, achei que era uma brincadeira de mau gosto. Eu jamais aceitaria, podem acreditar em mim. (Tenho um modo de vida muito próprio que condiciona meu corpo e espírito...) Rob riu tanto; disse que eu deveria vir – no mínimo daria uma boa matéria para nossa edição de domingo. Começo a lamentar a minha rendição!

– Qual foi o pomo da discórdia entre vocês?

– A morte da outra mulher de Colasanti. O nome dela era Bianca Dual. O caso Dual... O laudo técnico mostrou que houve sabotagem dos freios do veículo. Ela desceu a ribanceira; o corpo foi resgatado já sem vida. Mas, antes de morrer, a mulher deixou uma pista sobre quem, supostamente, foi o causador do acidente. Veja... vou lhes mostrar.

Wedderhof abriu um site no laptop.

– É uma foto exclusiva. É esta aqui!

Fëll contemplou a tela do aparelho. A foto era nítida; mostrava o painel de um veículo – nele, uma letra M escrita com um líquido vermelho.

– Isto é sangue?

– Exatamente. O sangue da Sra. Dual. Ela escreveu essa letra com o dedo indicador. É lógico que a Sra. Dual queria transmitir alguma coisa... Como podem ver, o marido tornou-se logo o principal suspeito. Nosso jornal foi incisivo – eu mesmo escrevi... com veemência... que o homem deveria ser investigado.

– Ele tinha motivos para matá-la?

– Ele tinha todos os motivos do mundo. Colasanti estava endividado até o pescoço. A fortuna que herdou com a morte dela veio na hora certa.

– E?

– O caso foi arquivado. Disseram que faltavam evidências. Disseram que tínhamos visto os eventos por refração através das grossas lentes do exagero. A resposta do italiano foi imediata – entrou com um recurso jurídico.

– Vocês perderam a causa... Ao buscar a vingança, a pessoa crê que aquele que lhe causou um dano deve pagar na mesma medida, para que sinta a mesma dor e a humilhação que ela experimentou ao ser lesada. Talvez, por isso, o senhor quisesse a morte dele!

– Eu... querer o quê? Ora, ora. Não sou tão vingativo, senhores.

– Talvez haja mais coisas – disse Fëll. – Coisas que ainda não foram esclarecidas.

– O quê, por exemplo?

– É o que vamos descobrir. Sr. Wedderhof, ouça com cuidado. Todos nós, sob pressão, fazemos coisas que, em circunstâncias normais, não faríamos. O que o senhor fez?

O alemão riu.

– Que frase! Todos nós, sob pressão... Muito boa. Posso citá-la no livro sub-standard que vou escrever?

– Não respondeu a minha pergunta.

– Não fiz nada. Juro que não.

– Está bem, pode ir – disse Fëll peremptoriamente.

Todos o olharam, estranhando a sua frieza.

Wedderhof levantou-se e fez menção de sair.

– Só mais uma pergunta – disse o detetive austríaco. – Quem o convidou para essa viagem?

– Quem me convidou? A assinatura era de Colasanti. Mas, aqui entre nós, acho que foi a Srta. Lepperstein quem escreveu a carta. Ele não teria tido a idoneidade para formular uma carta daquelas.

– Está bem. Danke schön!

– Disponham.

Wedderhof foi embora. Yamb não ocultou o desapontamento:

– O homem se esquivou habilmente do que você lhe disse. Um jornalista! Uma raça de abutres, que cai em cima de qualquer coisa que cheira mal... De preferência, cheia de escândalos. Quase me tornei querelante de uma ação por descriminação por causa dessa gente.

– Evidentemente ele não faria uma confissão – disse Fëll –, mas sempre vale a pena tentar. Temos, cavalheiros, mais um ás no baralho.

– Temos mais um ás no baralho, é? Espero que tenhamos resultados melhores daqui por diante.

– Muito justo. Muito apropriado.

– Qual é a segunda opção?

– O sedutor professor Wolfgramm. Há poucos minutos, ele quis saber o que tínhamos descoberto. Vamos lhe dar a possibilidade de cooperar conosco. Traga-o para nós, oficial!

Fëll fez uma descrição do homem. O policial saiu.

Wolfgramm estava no barzinho, debruçado no balcão. Tomava um aperitivo. Deu um sorriso amargo quando o policial louro se aproximou.

– Sr. Wolfgramm?

– Eu mesmo.

– Pode vir comigo? Precisamos de seu depoimento.

– Sem problema. Posso terminar meu trago?

– Senhor...

– Está bem, já entendi. Vocês estão com pressa.

Tomou mais um gole, e acompanhou o policial.

– Uma noite tensa – disse Wolfgramm. – Muito tensa! Vocês são bem pagos, calculo. Mal chegaram e já estão interrogando os passageiros. Gosto dessa rapidez.

– É um elogio?

– Lógico. Aprovo essa agilidade. Todos têm uma coisa a esconder. Alguém irá falar, ouça o que digo. No fim, alguém dirá uma coisa que não deve, e pah! Ninguém mais estará a salvo. A tática de vocês é excelente.

– Uma filosofia interessante – disse o policial. – Por aqui... o camarote do capitão!

– Alguém já depôs?

– Um senhor de altura mediana, gordo.

– É mesmo? Wedderhof... Qual o critério de seleção?

– Nenhum. Todos terão que vir.

– Bom... Quem não deve, não teme.

Wolfgramm entrou na cabine 1. Fëll o recebeu na porta.

– Bom dia, Sr. Wolfgramm. Deve nos perdoar se atrapalhamos a sua recreação, mas achamos que sua vinda seria indispensável.

– Tudo bem, conheço o modus operandi... ou como vocês chamam esses inquéritos.

– Ótimo. Você é um rapaz instruído. Conhece as leis, os procedimentos. Dá aulas de geografia, não é?

– Linguística.

– Linguística, sehr gut. Teorias sobre evolução da fala humana e o surgimento dos idiomas...

– Mais ou menos. Depois do colapso do comunismo soviético, é a única coisa boa que sobrou. Aqui entre nós... eu sempre quis ser médico psicofarmacologista. Mas meu pai se opôs.

Fëll anuiu maquinalmente. Olhou para o professor durante alguns segundos.

– Há quanto tempo conhece a Srta. Lepperstein?

– Crescemos juntos – respondeu Wolfgramm. – É difícil crer que tenha acontecido uma coisa tão monstruosa. Pobre Beatriz... Sempre tão terna. Sempre pronta para ajudar os amigos. Tão meiga com crianças e gatos!

– Ela foi sua esposa. Como a separação o afetou?

– Ah, foi um mar de rosas. Liberdade e vida boa... Era tudo o que eu queria! Não gostaria de falar disso, se vocês não se importam.

– Acho que não tem muita escolha...

– Por quê? Não vejo relação entre uma coisa e outra.

– Sr. Wolfgramm, quem vê cara não vê coração. A Srta. Lepperstein e Colasanti vinham sendo ameaçados. Não vim aqui para passear; os dois queriam proteção, e aceitei ajudá-los. Admito que falhei – e lamento profundamente! Mas, no que depender de mim, pretendo corrigir esse erro. Agora, se pudermos parar de brincar de gato e rato, vou fazer de novo a pergunta: Como a separação o afetou?

Wolfgramm empertigou o corpo.

– Muito bem, vocês gostam de jogar às claras. O que posso dizer é que a ideia não foi minha.

– Então, ela tomou a iniciativa. Sob que alegação?

– Alegação? Nenhuma. Qual o melhor modelo de família? Saudável, urbana, bonita, consumista e, especialmente, pequena. Nós nos enquadrávamos em tudo. Mesmo assim, ela não estava feliz. Disse que tinha se arrependido. Foi uma ópera-bufa.

– O que o senhor fez?

– O que fariam no meu lugar? Deixei-a ir. Não ia rastejar aos pés dela. Não sou esse tipo de homem.

– Beatriz voltou a namorar... Isso o surpreendeu?

– Sim. Quando ela partiu, pensei que jamais casaria outra vez. Bem, eu estava enganado.

– Sentiu-se humilhado?

– Não vou mentir... Eu me senti um lixo. Por que uma mulher faria uma coisa dessas? Se Bea tivesse ficado sozinha, eu teria compreendido. Mas arrumar outro marido... e em tão pouco tempo! O que ela pretendia provar?

– Não pensou em lavar sua honra com sangue?

– Eu pensei em muita coisa, sim. Mas... bem, ainda sigo os ditames éticos.

– Qual foi a sua impressão de Colasanti?

– A pior possível. Um sujeitinho metido à besta.

– Já o conhecia?

– Não.

– Por que a antipatia?

– Era ciumento, possessivo. Via coisas que não existem.

– Um mau partido?

– Exatamente, o senhor resumiu bem a questão. Beatriz teve outros relacionamentos; foi casada duas vezes. Já tinha uma opinião formada sobre o assunto. Jamais imaginei que voltaria a namorar seriamente. Fiquei muito surpreso quando soube do pedido de casamento. E que ela tinha aceitado! Eu disse a mim mesmo: “Que prancha podre é o amor! Você dá um passo errado e pum!”.

– Onde esteve ontem à noite, das doze horas em diante?

– Em meu dormitório. Não saí e...

– Perdão. Que número é?

– 10. Ao lado do seu.

– Ja. Continue.

– Não há o que acrescentar. Fiquei recolhido. Tenho hábitos fixos; evito o mais que posso a vida social. Alguns dizem que sou um eremita, mas pouco me importa. Como parte jurássica da população, eu não me dou bem com a tecnologia. Botões, comandos, senhas e neologismos... Não sou um homem cibernético. Sou avesso, por vocação e por escolha, ao mundo de bips, sites e e-mails. Há vantagens inegáveis — mas que podem escravizá-lo, afastá-lo das relações afetivas realmente significativas. Prefiro estudar qualquer coisa; não fico sentado falando do clima ou se este ou aquele ator vai casar.

– Não flertou com a Srta. ... como é mesmo o nome dela?

– Gonçalves... Se flertei com ela? Nós estivemos juntos sim. Falei com ela umas 11 e meia. Depois fomos dormir. O camarote dela é 17.

– Agora uma pergunta indelicada. (Cedo ou tarde, a verdade inevitavelmente virá à tona.) Este artefato é seu?

Fëll apresentou o revólver. O rapaz escancarou os olhos, num temor quase imoral. Saltou do assento, picado por um inseto invisível.

– É meu, sim. Onde...?

– Então é seu! Tem licença para a arma?

– Tenho registro, claro. Eu havia mostrado esse revólver ontem a Salles. Um homenzinho inteligente! Disse-me para ter cuidado, se não quisesse me meter em apuros. Vejo que ele tinha razão.

– Salles – o confidente de Madame Canelles?

– É, eles se dão bem.

Wolfgramm ainda estava inconformado:

– Como... como a conseguiram? Gostaria que me dissessem.

– Não sabe mesmo? – perguntou Fëll, incrédulo. Cismava com a perplexidade do professor. – Pois devia saber de onde veio. O senhor tem sono de pedra?

– Não. Acordo se um alfinete cair no corredor.

– Se é assim, deve ter acordado essa noite.

– Quem é que não acordou? Todo o vai e vem no convés. Um monte de gente andando para lá e para cá. Portas batendo. O desespero... Nenhum médico para dar assistência. Presenciei uma coisa dessas no Caribe. Uma mulher foi intoxicada. Uma experiência que me traumatizou.

– Magnífico. Se é assim, deve ter ouvido também a detonação, minutos antes disso.

O lábio de Wolfgramm tremeu.

– O tiro... Beatriz... Foi minha arma?

– Foi. Apenas uma curiosidade. Sabe manejar facas? Se for perito nisso, não acho que sairá ileso de uma investigação mais rigorosa.

– O que está insinuando? Eu seria incapaz de cometer um assassinato! Eu gosto de Beatriz. Querem mesmo descobrir a verdade sobre esses crimes? Dou meu total apoio; que o culpado seja punido.

– Obrigado por ter vindo – finalizou Fëll. – Chamaremos se surgir alguma dúvida.

Wolfgramm fez um aceno e ficou de pé.


Capítulo 12

 

Depois que Wolfgramm saiu, Yamb esfregou a lapela da camisa.

– E aí? – perguntou ele. – O que achou do homem?

– Muito corajoso – disse Fëll. – Agora já sabemos de quem é o revólver.

– Poderíamos prendê-lo...

– É cedo. Temos que descobrir por que a arma foi achada perto da cabine 11.

– O assassino deve tê-la perdido na fuga.

– Nein, nein. Há uma razão por trás disso. Tem outra coisa: ainda não sabemos de quem é a faca que matou Colasanti.

– Acha que é de alguém da tripulação?

– Sim. Santelo, ontem, comeu suflê – ele tinha uma faca! Temos que averiguar o que aconteceu com ela.

– Santelo? – perguntou Yamb.

– É um engenheiro mecânico, residente no Rio de Janeiro. Amigo da Srta. Lepperstein. Lembra, capitão, do jantar de ontem à noite? Quando Colasanti foi para a mesa de Madame Canelles?

– Lembro – disse Marques.

– Foi uma cena espantosa – disse Fëll. – O que será que ele queria com ela? A única pessoa que poderia nos esclarecer isso é a própria Madame Canelles. Mas duvido que ela seja tão gentil. O grito que ela deu! E tudo por causa de algumas palavras que Colasanti lhe disse. O que pode ter sido? Talvez um fato questionável... Ou alguma coisa relacionada ao passado dela.

– Do que vocês dois estão falando? – perguntou Yamb.

Fëll fez um resumo dos acontecimentos no restaurante. Yamb fez um gesto imperativo:

– Você diz que havia um homem na mesa dessa Madame Canelles?

– O duque Salles.

– Certo.

– Ele deve ter escutado a frase que Colasanti disse à Madame. Ja, das ist es. Precisamos falar com o Sr. Salles... Pode trazê-lo para nós, policial? Os cabelos do duque são acinzentados; ele está de bengala e tem um bigodinho.

– Com licença – disse o jovem e saiu.

O duque Salles não demorou. Entrou com elegância e olhou para os homens. Deu um “olá!” cordial e sentou-se.

Tudo nele era lúcido, como se tivesse treinado seus movimentos. Um desses cavaleiros descritos nas lendas medievais. Lentamente, descansou as mãos na bengala. Sim, tudo aquilo era muito triste. O que ele pensava da noite passada?

– Um fato tétrico. Nunca vi nada parecido. Uma coisa revoltante. Para mim, a justiça deveria ser implacável nesses casos. Eu votaria pela prisão perpétua. Nem um dia a menos. – Rapidamente, completou: – Os senhores vão cancelar a excursão?

– Sim.

– Desejam investigar os fatos, compreendo. O senhor é detetive particular, Sr. Fëll?

Fez a pergunta com curiosidade.

– Sou – respondeu o austríaco. – Tento fazer aflorar nas pessoas aquilo que elas geralmente buscam ocultar para fins de convívio social. Algum problema?

– Não, nenhum – disse o duque. – Deve me desculpar, não estou realmente interessado nisso. Por mim, tudo bem. Mas, sabem, há pessoas incomodadas. Argumentam que vocês estão fazendo um inquérito ilegal. Acho que, se isso se generalizar, as coisas podem se complicar. Minha única base de julgamento é meu gosto pessoal e intransferível.

Fëll gesticulou compreensivamente:

– Não esquente com isso. A única coisa que queremos do senhor é que nos forneça o relato do que sabe. Poderia nos apresentar sua identidade, para começar?

– O quê?

– A sua identidade, bitte.

– Ah, sim.

O duque meteu a mão no bolso da calça.

– Peço perdão, mas é que não estou acostumado a esses métodos. Aqui está.

– Hmm... Tudo em ordem, aparentemente. Que horas embarcou ontem de manhã?

– Fui dos primeiros a vir. Umas 8 e quinze. Gosto de chegar cedo a meus compromissos. Felizmente tive bom trânsito.

– Quem o recebeu? A Srta. Lepperstein?

– Sim.

– Que camarote ocupa?

– 13. Eu mesmo escolhi, na verdade. Tenho minhas excentricidades, se é que me entendem. Acho uma tolice essas superstições populares.

– Jawohl? Agora, a respeito de Madame Canelles. Quem é ela?

– Uma aventureira, amante de tudo o que a riqueza pode comprar. Acho que tem sangue de uma família burguesa de São Paulo. Viaja sete meses por ano. Já esteve na Índia, Paraguai e em alguns países balcânicos. Eu diria que não tem destino fixo. Viaja pelo prazer de ver outras culturas. Daria uma ótima correspondente internacional.

– O senhor participou de algum desses roteiros?

– Não. Somos dois velhos que se esbarram vez e outra, nada mais.

– São bons amigos, pelo que pudemos notar ontem. São iguais até nos trejeitos.

– Contanto que ela não pise em meus calos!... Sou avesso a brigas. Consigo ser muito bonzinho quando as pessoas me dão a devida consideração.

– Vamos falar do jantar. O senhor e ela estavam à mesma mesa, conversando.

– Ela havia me requisitado. Ela veio falar comigo às 7 e meia, dizendo que achava tudo muito entediante. Joana é um pouco antissocial, sabem. Me perguntou se, durante o jantar, poderíamos compartilhar uma mesa.

– Deu alguma razão?

– Nenhuma.

– Como encarou isso?

– Achei anormal, mas não havia por que recusar.

– Pode-nos dar a sua opinião sobre Colasanti?

– Se quiserem...

– Como o descreveria, Sr. Salles?

– Um homem desequilibrado, Seguia Beatriz por toda parte... Isso já na época em que ela ainda era casada com Wolfgramm. Parecia obcecado por ela. Um comportamento mercurial.

– Diria que ele foi a causa do divórcio?

– Não. Beatriz sempre foi uma mulher imprevisível. Curta e grossa — principalmente em seus relacionamentos. Nunca tolerou ser dominada. Existem mulheres possessivas; querem que o homem se dedique completamente a elas. Beatriz não é assim; ela tem uma atitude liberal. Deixa os homens soltos – nunca teve um pingo de ciúme.

– Por quanto tempo namoraram?

– Quatro ou cinco meses. Foi um casamento muito rápido. Até hoje, quando penso nisso, fico cismado.

– Por quê?

– Eles viviam em mundos diferentes. Ele, um empresário, virtuose da canastrice. Doido, caprichoso e impiedoso. E ela, impulsiva, cheia de não-me-toques. Sim, eram mundos diferentes demais.

– Polos opostos se atraem...

– O senhor provoca arrepios e gargalhadas simultaneamente, Herr Fëll. Polos opostos se atraem, mas não dessa maneira.

– Por que não?

Salles se reclinou.

– Faro. Havia muito plástico em volta do pacote.

– Diria que ele era pobre?

– Pobre? Não, eu diria que Colasanti era um ex-milionário. A família dele tinha dívidas, mas ele sobrevivia bem. Somava uma boa renda suplementar com a especulação na bolsa.

– Retornemos um pouquinho a outro assunto. O que Colasanti comentou para Madame Canelles por cima da mesa, ontem de noite?

– Perdão?...

– Durante o jantar... O comentário dele... e o grito de Madame Canelles.

– Ignoro. Não pude ouvir.

– Mas o senhor estava lá.

– Não tão perto assim.

– Na cadeira vizinha.

– Mesmo assim, a dois metros.

– Poderia ter lido os lábios.

– Não sou especialista nessas técnicas.

– Supõe que Madame Canelles seria capaz de cometer um crime?

– Ridículo – respondeu o duque, mantendo a sua postura. – Ela não quis vir; veio mais por educação. Mas matar? Impossível.

– E se tivessem uma rixa?

– Rixa? Seria incrível.

– Parece muito convicto em suas respostas.

– Joana é inofensiva. Resolveria tudo com classe, com calma. Ela tem sangue quente, mas é uma boa mulher. Um fenômeno de honestidade, e ainda mais de rigor.

– Até agora vimos exatamente o contrário disso. Não acha que ela trata Miss Kaline com uma certa... tirania?

– Kaline é nova, precisa aprender a se relacionar com pessoas de todas as idades. Não será a nacionalidade norte-americana que lhe abrirá o caminho para a fortuna. Todos precisam de certa orientação.

– De onde é a moça?

– Trabalhava no Hotel Ritz-Carlton, na praça Vendôme, Paris. Arrumadeira, ou copeira... uma dessas funções. Joana praticamente a adotou quando botou os olhos nela. A pobrezinha estava encrencada com alguma coisa.

– Então ela tem talento! – disse Fëll.

O duque concordou; quis acrescentar qualquer coisa. Hesitou. Acabou se calando. Mexeu no bolso e tirou dali sua cigarreira de prata.

– Bem, senhores, não vão permitir que eu fume aqui dentro. Voltarei para meu exercício matinal. Se me derem licença...

Yamb não se opôs. Com lentidão, o duque apoiou a bengala no chão e deixou a cabine.


Capítulo 13

 

Houve uma pausa. O delegado se remexeu na cadeira. Pensou na quantidade de crimes não resolvidos; nas páginas e páginas de documentos que entulhavam as estantes dos fóruns... E se a morte de Colasanti se tornasse apenas mais uma pasta – mais um crime sem solução?

Balançou a cabeça; disse:

– Vou sair uns minutos, Fëll. Vou acompanhar a remoção dos corpos. Não posso me isentar de cumprir minhas responsabilidades.

– Ja. Peça que examinem a faca. Quero um relatório detalhado sobre ela ainda hoje.

– Está bem.

Yamb virou-se e saiu, acompanhado de seu fiel subordinado. Fëll reclinou-se:

– Capitão Marques, já é meio-dia. Bem, não acho que devamos interromper nossa tarefa. Ordene ao cozinheiro que prepare o almoço; um dos atendentes pode trazê-lo até aqui. Enquanto isso, vamos oficializar uma entrevista com Miss Kaline.

A norte-americana veio com olhos acanhados. Os cabelos caíam-lhe verticalmente sobre os ombros. Olhou para Fëll com incrível submissão. Envergava um ar de morte.

– Sente-se, Miss. Já notamos que se expressa bem em nosso idioma. Não é necessário nos apresentarmos. Já conhece o comandante, não?

– Sim.

– Wonderful! Ficaríamos muito gratos se pudesse nos dizer algo a respeito de sua patroa.

Kaline pôs as mãos no colo, num movimento de expectativa. Estava aflita – embora não se pudesse detectar de onde provinha a sua ansiedade.

– Sei pouca coisa de minha patroa, Mister...

– Não faz mal. Serão perguntas simples. Por exemplo, em que circunstâncias a senhorita foi contratada por Madame Canelles?

– Circunstâncias?

– Foi em Paris, suponho.

– Sim, em Paris – respondeu ela, feliz por encontrar uma resposta. – Ela foi muito amorosa por mim, senhor. Eu estava abandonada, sem ninguém para cuidar de mim. Ela mostrar um coração muito bom; ela me acolher e me aceitar como sua amiga.

– Mostrou, é? Miss Kaline – a senhorita estranhou Madame Canelles nos últimos dias? Qualquer atitude, ou frase que ela disse?

– Mrs. Joana estar muito braba. Devem tê-la zangado, senhor. Ela nunca foi tão nervosa.

– Nervosa... Por quê?

– Como quer que eu saiba, senhor? É uma mulher muito fechada. Odeia ser incomodada. I don’t disturb.

– Pense bem agora, Miss. Crê que sua patroa seria capaz de cometer um crime?

A moça empalideceu.

– Não, Mister – disse depressa. – Mrs. Joana estar se medicando. Não pode sofrer emoções fortes. O médico a proibiu.

– Isto, se para ela um crime for uma emoção forte – murmurou Fëll. – Quanto à noite de ontem, desconfiamos que a senhorita não nos contou tudo.

– Mas eu já lhes disse que não vi nada!

– Sim. Mas ficaram dúvidas, é o que quero dizer. Não esteve mesmo fora de seu camarote? Tenho certeza que a vi no convés.

Ela suspirou. Mexeu a cabeça levemente.

– Não fui leal com o senhor – disse. Ficou ruborizada e perguntou: – O homem de chapéu que veio de manhã... Ele é inspetor de polícia?

– É um delegado.

– Eu mentir para o senhor. Fiquei assustada... Eu estive, sim, na popa do barco. Eu... sabem... vocês foram duros comigo. Pensei que iriam imaginar coisas ruins de mim... Eu não queria que isso acontecesse!

– Sem problemas, Miss. Lembra-se, por acaso, da movimentação no convés? Notou quando, antes da meia-noite, um homem... Wedderhof... veio a meu dormitório?

– Não.

– Julguei tê-la ouvido dizer que tinha estado no convés.

Kaline o fitou curiosamente.

– Acho que eu estava de costas quando o senhor atendeu o homem. É por isso que eu não ver ninguém.

– Esquece-se, Miss, que Wedderhof está no camarote 18. Lá atrás do barco, portanto. A senhorita não escutou nada quando ele saiu?

– Não. Mas eu sei de outras coisas. Ontem, depois do que ocorreu no restaurante, minha patroa estava muito chateada. O escândalo com Mr. Colasanti... Ela ficar irritada com ele. Eu quis acalmá-la, mas ela não me dar atenção. Andava batendo os pés com raiva. Só foi dormir às onze horas. Tomou um sedativo e, mesmo assim, deitou-se furiosa.

– Você sabe o que Colasanti disse a ela?

– Sim. Ele falar do ex-marido dela... sim, foi o que ela disse.

– Nada mais?

– Apenas frases confusas.

– Você está no leito número 9, senhorita. Após deixar Madame Canelles, lá pelas onze, voltou até sua cabine ou permaneceu no convés?

– Fui mudar de roupa. Depois eu ir para a popa.

– Encontrou alguém no caminho?

– Não... sim!... Mr. Salles! Ele estava encostado, olhando o mar. O duque ser um homem tão bom! Sorriu para mim e me perguntou se Mrs. Joana estava bem. Ele disse: ‘Que caso terrível, hein? Ela não deveria fazer uma coisa tão má.’ Eu não pude, o senhor vê, adivinhar o que ele pretendia dizer. ‘Pobre Joana’, ele disse: ‘Vai se incomodar se não aliar-se com ela.’ Falamos um pouquinho e depois fui me trocar.

– Viu a Srta. Lepperstein, ou o esposo dela?

– Não, Mr.

– Na hora do disparo... Foi ver o que estava acontecendo?

– Achei que era um rojão... é assim que se pronuncia?

– Rojões soltam luzes.

– Luzes? Eu não ver nada... Oh, fiquei tão assustada!

– Por quê, Miss?

– A gente pensa tantas coisas... Mrs. Joana já tentou o suicídio uma vez. Alguém me contar que ela tomou um vidro de pílulas. Também misturar sais de banho com veneno.

– Você então supôs que ela...

– A coitada sofre de depressão, Mr.

– Ela tem um revólver, Miss?

– Não sei... Eu nunca mexer no que é dela. Gosta de tudo bem organizado. Ela mesma dobra as roupas; depois guardar tudo no armário.

– Talvez ela seja compulsiva.

Fëll notou que Miss Kaline falava com certa urgência. O seu nervosismo era manifesto: ora movia os pés e balançava o corpo, ora umedecia os lábios e entrelaçava os dedos.

– Está agoniada, Miss?

– Tenho que ir, Mr! Ser hora de dar comprimidos para Miss Lepperstein!

– Como é que ela está?

– Muito triste, mas bem.

Fëll decidiu dispensá-la.

– Foi muito sincera conosco, Miss. Vá.

Ela caminhou até a porta; parou.

– Eu ouvi vozes altas há pouco, Mr. – disse. – Parece que Mrs. Joana perdeu a faca de abrir embrulhos. Está tão nervosa! Dizer que quer fazer uma queixa à polícia.

– Obrigado.

Ela inclinou-se, num gesto de agradecimento, e saiu. Edmund Fëll tamborilou os dedos.

– Há um mistério aqui, capitão. Algo que destoa da personalidade dessa moça.

– As pulseiras?– perguntou Marques.

– As pulseiras... Por quê?

– É um palpite. Elas não são de um material vulgar. Devem ter custado uma nota.

– Warscheinlich... é provável. Sugere que são falsas?

– Não... Seria muita pretensão! O que acho é que ela não é a pobre infeliz que aparenta ser. E se... sim, e se ela for sobrinha de Madame Canelles?

Fëll olhou para o comandante como se ele tivesse perdido o juízo.

– Sobrinha? Não, uma coisa muito ficcional. Devemos, em primeiro lugar, descobrir outro detalhe. “Ela não devia fazer uma coisa tão má”, teria dito o duque para Miss Kaline. Quem é ela? Por enquanto, porém, vamos ter uma prosa com a velha Canelles. Está nos devendo uma ou duas explicações bem apropriadas.

Marques sentiu um calafrio na espinha. Agora começavam a pisar num terreno mais desafiador.


Capítulo 14

 

Joana Canelles olhou-os com desprezo. A mensagem era óbvia – não arrancariam nada dela; nem mesmo sob tortura. Espichada na espreguiçadeira, os óculos caídos no nariz, a mulher era uma rainha a quem tinham vindo reverenciar.

– Queríamos falar com a senhora, se concordar, bitte – disse Fëll, com cavalheirismo.

– Ssss – sibilou ela, curvando o pulso. – Sobre o quê?

– Horários, atos, encontros... essas frivolidades.

– O senhor tem um estilo muito particular, no qual duas vertentes de horror, a fantasmagórica e a repulsiva, se combinam muito bem.

Ela voltou a gesticular em sinal de pouco caso. Continuava a não se interessar por ninguém, muito menos por eles. Que qualidades naturais havia nela? Para sermos honestos, as unhas não lhe ficavam mal. Poderiam romper uma artéria do ofensor com um simples raspão. O penteado, esculpido em longas sessões nos salões de beleza, era impecável.

– Se querem saber se o matei, a resposta é curta. Não, não fui eu. Mas, se desejam que diga se teria tido uma razão... oh, sim, isso não faltava.

– Uma mulher pouco convencional – elogiou Fëll. – Tem têmpera. Eu asseguraria que fez curso de psicologia. Irá aos serviços fúnebres?

– Não. Éramos apenas conhecidos. Não vou ao enterro de pessoas que não compõem o meu círculo íntimo. Meu fornecedor, o farmacêutico, a vizinha que toca violino – a morte de nenhum deles me fará cancelar meus compromissos.

Fëll se impressionou com a arrogância de Madame Canelles. A raiva fazia a voz vibrar forçada e trêmula.

– Deve odiar essas pessoas.

– Sim.

– Madame, estivemos interrogando a tripulação. A senhora perdeu mesmo uma faca?

– Lógico que não. Tenho orgulho de ser muito meticulosa. Mamãe me ensinou a ter capricho; aliás, foi só essa a herança que recebi dela. Não perdi nenhuma faca.

– Disseram-nos que a senhora foi dormir cedo, ontem.

– Kaline! Sim, não adianta negar; foi ela. Aquela criança tola! Eu devia tapar-lhe a boca. A hora em que eu me recolho não interessa a ninguém.

– Nós a pressionamos, madame.

– Não diga! Vocês a pressionaram... Vocês são tão maldosos! Ela se atirou no chão, ou vocês a algemaram?

– Não há nada contra a senhora que a comprometa. Por que não iniciamos com um fato mínimo, mas que deve ser esclarecido? – perguntou Fëll, ignorando a observação maliciosa. – Diz que não faltou mesmo uma faca esta manhã?

– O senhor é mesmo insistente! Ela lhes revelou que tenho um estojo?

– Não.

– É? Que menina estúpida!...

– Segundo ouvi, a senhora teria feito um pequeno alvoroço. Achei que devíamos pesquisar.

A mulher gesticulou uma segunda vez, com desdém. O chapéu ficava bem nela, embora não melhorasse o seu aspecto.

– Façam o que quiserem.

– Talvez não queira falar a respeito, mas o que Colasanti quis com a senhora ontem, durante o jantar?

– Ele era um imbecil, se é que se deve dizer tal coisa de alguém que morreu. Não tinha muito cérebro. Achava ser o senhor do mundo. Só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis. É uma frase que li. Definitivamente não era o tipo de homem com quem eu teria me casado.

– Então a senhora o desprezava. Por que aceitou o convite de vir para cá?

– O senhor não está compreendendo. A questão não é essa; ele me dava náuseas. Um ricaço falido com ares de príncipe, pois sim! Um verdadeiro palerma. Faltava-lhe a determinação de um homem de verdade.

– Então a senhora o conhecia bem...

– Não quanto deveria, mas vi logo que valia menos que um centavo.

– E sobre ontem. O que ele aprontou?

– Em minha opinião, o senhor está se metendo num assunto que não convém. Não sei o que busca, e se é mesmo um investigador... Vou ignorar essa pergunta.

– Há testemunhas que dizem ter ouvido o diálogo entre a senhora e ele.

– Boatos. Estão mentindo.

– E seu marido? Por que não veio ao passeio?

– Está sendo indelicado – disse Madame Canelles. – Álvaro morreu há 5 anos.

Fëll coçou a cabeça, desconsolado.

– Realmente? Perdoe-me a gafe. Houve uma reportagem no Folha de São Paulo. Um acidente em Fernando de Noronha. Uma lancha alugada... A senhora não pôde tirá-lo da água... ele não era bom nadador.

– Tem um charme diabólico para recordar de desgraças! Sim... Álvaro se afogou e eu não pude salvá-lo. E ponto.

Ela inalou o ar com um suspiro.

Fëll passou o lenço pelo rosto.

– E quanto à ontem de noite? Foi se deitar sob o efeito de calmantes, imagino...

– Vejo que Kaline contou tudo sobre mim! Meus hábitos, meus horários para dormir... Há algo que não saibam?

– A marca do calmante, por exemplo.

– Meu remédio é contra convulsões. Diazepam 10mg.

– Então não é para insônia?

– Não.

– Em quanto tempo faz efeito, madame?

– Dez... quinze minutos.

– Miss Kaline saiu logo depois?

– Ela saiu antes. Acho que... quando apaguei as luzes. Fiquei ouvindo quando ela fechou a porta – lentamente, e sem bater, assim como ensinei a ela. Algumas empregadas são tão descuidadas! Batem a porta como se quisessem derrubá-la.

– O tiro foi dado mais ou menos à meia-noite e dez. A senhora acordou?

– Acordei, claro. Mas não pude discernir o que havia acontecido. Antes de dormir de novo, ouvi rumor de vozes. Calculei que fossem reminiscências de meu sonho.

– Quando soube do crime, madame?

– Fui acordada por Santelo. Ele disse que alguém tinha tentado balear Beatriz. Não acreditei nele, obviamente. Um homem que se empanturra de doces... bah! Beatriz é uma dessas mulheres que querem um elogio. Se põe um vestido bem feito, ela quer que você lhe diga: “Que fabuloso”, ou “Bela costura!” Quando você a exalta, ela fica toda boba. Se você não repara, fica cismada; diz que a pessoa é indelicada. Oh, é uma mulher tão arrogante! Detesto essa espécie de gente. Por que alguém iria atirar nela? Não, não acreditei em Santelo, de forma alguma. Fui ver pessoalmente o que havia acontecido.

– A senhora foi ver pessoalmente... Ao ouvir a detonação, a senhora levantou imediatamente?

– Fiquei deitada.

– Sim, compreendo. Outra coisa que nos intriga. Quem a convidou para vir a essa excursão?

– Beatriz me escreveu. Ela é uma mulher tão infantil! Já a recriminei tantas vezes! Eu vivia dizendo a ela: “Você não é a garotinha de antes. Sempre amorosa e sorridente!” Ela havia se tornado tão autoritária!... Nunca se importou com minhas queixas. Sim, ela se transformou numa criatura muito intransigente!

Como Madame Canelles gostava de adjetivos!

Fëll acenou com a cabeça; perguntou:

– Miss Kaline é sua sobrinha, madame?

– Minha o quê? É evidente que não.

– Estamos gratos pela sua ajuda – disse Fëll, arrematando a conversa. – Obrigado por dar o seu depoimento.

Fazendo uma cara de cética, Madame Canelles acrescentou:

– Eu sei de sua reputação, Sr. Fëll. O velho Lepperstein falou muito a seu respeito. Dizia que era um homem muito arguto e disciplinado. Se for mesmo esperto, o senhor vai resolver esse caso. Isso é uma coisa que devemos a Beatriz, apesar de tudo.


Capítulo 15

 

– Então, o que conseguimos até agora?

Yamb estava sentado na ponta oeste da mesa. A tripulação comia no restaurante do iate, mas o chef trouxera o prato deles para a cabine do comandante.

Fëll acenou para o delegado; consultou o bloco de anotações.

– Por um lado, os ardis do assassino incitam à suspeita e podemos tentar desconstruí-los, como se fossem um véu encobrindo a verdade. Duas coisas me parecem essenciais. Que Colasanti tenha sido assassinado primeiro, e com uma facada, e que o camarote 11, daquela ala, esteja vago.

Largando o garfo, Yamb puxou para si a planta do barco:

– Eu consigo ver a associação entre a morte do homem e do ataque contra a esposa. Embora não compreenda o porquê do uso de armas distintas. Mas quanto à cabine 11, não noto nenhuma relação.

– Perfeito. Tatsächlich, o assassino utilizou um recurso engenhoso. Por que não matou os dois com a faca? Não haveria barulho, ninguém se alarmaria. Dois golpes e... zás, estaria executado o crime. Notem, todavia, que existia um intuito por trás disso. Qual? Despistar a polícia, ou quem quer que viesse a fazer a investigação. O revólver, que pertence ao professor Wolfgramm, foi deixado no local intencionalmente. Por que razão, vocês dirão? Incriminar o professor. E a faca? A mesma coisa. Sabemos do nome de duas pessoas que possuíam facas no iate. Santelo, o homem dos suflês, e Madame Canelles, que tem consigo uma faca de abrir embrulhos. No raciocínio entra o leito 11. Na cabine número 13 está hospedado o Sr. Salles, o duque. No camarote 9, Miss Kaline. Diz essa moça que, mesmo estando na cabine vizinha à da Srta. Lepperstein, não percebeu ninguém correndo pelo convés logo depois de ouvir a detonação. Ora, ou ela mentiu, e viu alguém sim, ou foi ela mesma quem matou os dois, o que, a princípio, não tem base, pois não sabemos o que poderia ter concorrido para que ela fizesse isto. Mas, supondo que ela não viu realmente ninguém, pode ter sido por dois motivos. A) O assassino, assim que deu o tiro, voltou para o seu próprio camarote, que fica na mesma ala. Temos ali o quarto do Sr. Salles e da Srta. Gonçalves. B) Ou ele fez o contorno pela proa, que estava livre naquela hora. Há, entretanto, uma terceira hipótese. A cabine número 11 está vaga, conforme citei. Se tiver premeditado os crimes, o assassino bem que poderia tirar partido disso. Vejamos o que ele poderia fazer – destrancar previamente a cabine e, logo após o disparo, ocultar-se ali dentro até a poeira baixar. Foi, aliás, o que fez.

– Nesse caso, basta perguntar ao capitão aqui se alguém emprestou a chave.

– Já fiz isso.

– E?

– Ninguém emprestou – respondeu Marques.

– O que praticamente derruba sua teoria – sorriu Yamb.

– Pelo contrário – disse Fëll, resolutamente. – Fui conferir se a porta da cabine 11 estava trancada. Analisei o trinco, mas nele não havia digitais. Um outro detalhe confirmou o que eu supunha.

– Estava arrombada.

– Exatamente. Estava arrombada. Como adivinhou?

O queixo do delegado caiu.

– Tem certeza?

– Eu experimentei. Foi forçada com alguma ferramenta. Falta só desvendar se o lugar serviu mesmo para o esconderijo do assassino.

– Está indo num ritmo alucinante, meu velho.

– Preparem-se! Vamos interrogar agora uma senhorita brasileira. Doze e meia... Vejam, ela é pontual!

A Srta. Gonçalves, com passo decidido, entrou na cabine. Todos lançaram um olhar de respeito para ela. Sem se abalar, cumprimentou-os amavelmente. Não tinha vaidades. Apenas sentou-se e esperou.

– Alegro-me que tenha vindo, senhorita.

– Já passei por situações muito mais espinhosas – disse a Srta. Gonçalves. – Meu irmão era membro de uma gangue. Ele dependia de metadona, que substitui a heroína no tratamento de um viciado. Ajudei-o várias vezes a sair de apuros. Aprendi a lidar com a violência e a morte na marra.

– Notei há pouco, no restaurante, que estava sozinha... Não quis a companhia de Santelo?

– Boa pergunta. É que tem havido comentários. Aquela famigerada faca... que ele tinha ontem no almoço...

– Ora, senhorita. Há mais gente que pode ter instrumentos cortantes. Além do que, se observou bem, ele trouxe a faca também hoje.

– Não é a mesma. É outra, que ele apanhou na cozinha.

– Por quê?

– Para desafiar os detratores, creio.

As respostas de Zelly Gonçalves eram espontâneas. Fëll notou que a expressão facial combinava com o que ela dizia.

– Seja franca, senhorita. Acha que ele seja o culpado?

– Não. É um homem solitário, mas inofensivo. Um tanto guloso, mas absolutamente inofensivo.

– Quantos anos tem, senhorita? Vinte e seis?

– 28.

– Quem a convidou?

– Beatriz. Soube que eu havia retornado da Europa. Mandou-me um cartão.

– Quanto ao Sr. Colasanti... Que conexão havia entre a senhorita e ele?

– Éramos ex-namorados. Coisas da minha adolescência; nada sério. Bem, é possível que não devesse dizê-lo a vocês... De qualquer maneira, Joana Canelles já deve ter contado tudo.

– Posso garantir que não. Ex-namorados... Onde mora?

– Travessa Oliveira Bello, Curitiba.

– Quantos anos estudou na Bélgica?

– Estive lá durante 9. Por dois, fiquei em Valência, Espanha.

– Tem um currículo invulgar, senhorita.

– Concordo – disse Yamb.

– Obrigada! Sinto-me lisonjeada. Mas quanto aos fatos de ontem à noite, tenho pouco a lhes dizer.

– Em que camarote está?

– O 6. Não estava dormindo à meia-noite, na hora do disparo. Lembro que ouvi, quartos de hora antes, Madame Canelles gritar com a enfermeira.

– Quartos de hora... Às onze, por aí?

– On-ze... Não, não foi tão cedo.

– Prossiga...

– Como eu dizia, escutei Madame Canelles xingando a enfermeira. Cheguei a cogitar em ir até lá, na cabine 2, e falar com as duas. Acusar, humilhar ou insultar é uma forma barata de parecer forte. Não é cristão, sabem. Depois que escutei o tiro, a primeira coisa que me ocorreu foi que a moça americana havia atirado na patroa. Fiquei com medo de que ela invadisse meu camarote.

– Um temor estranho, nicht richtig?

– Prefiro viver prevenida, Sr. Fëll! Chaveei a porta, e nada aconteceu.

– Depende do ângulo que se olha, senhorita. Tivemos um homicídio!

– De qualquer modo... — respondeu a Srta. Gonçalves rispidamente.

– Agiu bem, fique tranquila. Diga, conhecia alguém no barco além de Colasanti?

– Ninguém.

– Nem a Srta. Lepperstein?

– Pessoalmente não. Tinha lido sobre ela. Moacir fez uma boa escolha. Ela é bonita, tem decoro. Os flashes vivem atrás dela.

– Ele nunca propôs reatar o namoro?

– Nunca. Ele era muito convicto em suas opiniões.

– Um pouco turrão, nicht wahr?

– Oh, sim.

– Irritava-se facilmente?

– Às vezes.

– Por que romperam?

– Eu era tão inexperiente nessa época! Tínhamos diferenças irreconciliáveis.

O austríaco fechou pesadamente a agenda.

– Senhorita, esse era o nosso questionário. Acabou. Estamos felizes por ter vindo falar conosco.

Em vez de ir, ela vacilou. Enrubesceu, e abaixou a vista:

– Peço que não me levem a mal... Mas quero fazer uma pergunta.

– Faça.

– O senhor crê mesmo que foi algum de nós?

– Cem por cento, Fräulein. Dos que estão nesse barco, um é o criminoso. Trata-se de não deixar impune um ato que transgrediu o contrato implícito que dá sustentação a sociedade. Viver e deixar viver. Mas não há por que se preocupar. Dificilmente haverá um ataque durante o dia.

– Já é um consolo. Até logo.

Zelly se retirou do salão.

– Uma jovem ponderada – disse Yamb. – Muito perceptiva.

Edmund Fëll o olhou fixamente.

– Também achei. Há só uma coisa que não podemos esquecer.

– É?

– Ela foi ex-namorada da vítima.. Isto, meu amigo, sempre soma pontos, no fim das contas.

– Está sendo impiedoso... Por que ela mataria Colasanti? Vingança? Pouco provável.

– Exemplos assim ainda proliferam. Em muitos casos, o amor coagula em ódio. Vê-lo pode ter piorado as coisas. Esse crime transpira a largueza de espírito com que foi praticado.

– É uma aposta grande e corajosa — declarou Yamb.

Fëll bateu o dedo na mesa:

– Alguém nesse barco é o culpado. Temos que verificar quem, e rápido.


Capítulo 16

 

– Cavalheiros – disse Marques. – Quero que saibam que estou triste com todo esse episódio. Mas nossa firma tem normas...

Ele estava vermelho, e um pouco constrangido. Havia duas manchas de suor no uniforme branco.

Fëll fez um aceno:

– Jawohl, wir verstehen es. O barco não pode ficar ancorado aqui. Meu bom comandante, vou lhe propor que tenha um pouco de paciência. Todos os passageiros têm uma ficha na testa – nela está escrito suspeito. Não podemos relevar isso. Foi essa gente que embarcou ontem de manhã. Nenhum deles desceu; nenhum deles subiu no meio da viagem. A chave da charada é saber quem arrombou a porta da cabine 11. Feito isso, teremos solucionado o mistério.

– Pretendem manter o prazo que estipularam?

– Nove horas da noite? Sim.

– Bom... desejo que tenham êxito! Posso ajudá-los... Há um rapaz no bar que presenciou uma coisa interessante. Gostariam que falassem com ele.

– Certamente.

– Venham comigo.

Fëll e Yamb se entreolharam. Alguém tinha visto alguma coisa! Os três seguiram até o barzinho. Lá, o capitão do barco chamou um dos garçons:

– Estêvão! Venha cá!

Um rapaz muito nervoso se adiantou. Era magro, seco e atarracado. Fëll reconheceu que era um dos garçons que estivera no restaurante, na noite anterior.

– Senhor, eu...

– Coragem, Estevão... Não tenha medo. Senhores, Estevão é um rapaz competente. Ele viu uma coisa muito estranha. É sobre dois copos, não é, filho?

– Espere – disse Fëll. – Creio que é melhor começar com um esclarecimento. Esse fato que vai nos contar... Quando aconteceu?

– Ontem à noite, senhor.

– Na hora do jantar?

– Sim. Quando fiz os aperitivos.

– Prossiga, bitte.

– Eu quero me desculpar, senhor... O que eu vi pode ter uma causa natural... Posso ter me enganado...

– Fique calmo – disse o austríaco suavemente. – Seja direto e fale-nos dos copos, sim?

– Fui eu que misturei as bebidas ontem. Tenho curso de coquetelaria. Trabalhei o dia inteiro e sei de cor o que todos pediram. Aquele professor bebeu dois martínis, o siciliano gordo tomou um uísque duplo com guaraná, o homem do charuto quis uma soda...

– Não precisa dar a lista...

– Mas é preciso, senhor!... Notem... o cavalheiro que morreu pediu rum.

– Quantas vezes?

– Cinco ou seis...

– Inclusive à noite?

– Sim. Ele pediu rum ao jantar. Lembro-me de como queria que eu preparasse o drinque. Duas doses de rum, uma rodela de limão e gelo picado. Eu até já tinha reservado a garrafa para ele. Fiquei surpreso quando o homem do charuto, à noite, também quis uma dose de rum.

– Está se referindo a Wedderhof... Ele que antes, à tarde, apenas tomou soda.

– Justamente, senhor.

– Wundergut...

– Nunca questiono o que o gosto das pessoas, mas na hora achei aquilo extraordinário. “Pensei que só o Sr. Colasanti bebia rum”, disse eu, tentando puxar conversa. Ele sorriu: “Beber alivia o medo”, respondeu.

– Isto foi antes ou depois das nove?

– Depois. Ao preparar o copo, pus nele gelo em cubos. Bastante gelo, conforme ele queria.

– Wedderhof tomou quantas doses?

– Uma só. Mas lembro que ele voltou uma vez e me pediu para acrescentar limão.

– Estava sentado na mesa junto à porta?

– Sim, senhor.

– Ele foi até o bar, ou você levou o copo à mesa?

– Ele veio até o balcão.

– Mais alguém o atendeu?

– Não, senhor.

– Então, na segunda vez, ele só botou limão?

– Sim. Perguntei se queria mais gelo, mas ele recusou. Foi o que estranhei mais tarde.

– O quê?

– O copo com gelo em cubos estava na mesa do Sr. Colasanti.

– Wirklich? Não se enganou com a localização das mesas?

– Tenho boa memória, senhor.

– Tem certeza?

– Tenho. Eu sei disso por causa do gelo em cubos, senhor.

– Sim, naturalmente. Está há tempo na profissão?

– Seis anos, senhor.

– Hum...

– Eu sei o que vi, senhor! Os copos dos dois homens foram trocados.

– Creio que suspeita de alguma coisa, meu jovem – disse Yamb. – Desembuche!

– Não é nada demais... Informei ao capitão que o caso era esquisito. Sabem como é... Ninguém daria seu copo a outra pessoa. A bem dizer, duvido que o Sr. Colasanti aceitasse. O drinque tinha uma composição toda particular.

– Com gelo picado.

– Exatamente.

– E?

– Com todo o respeito, senhor, acho que o copo do alemão continha veneno.

Fëll coçou o nariz como um felino, desaprovando o garçom. A incredulidade pairava nas linhas de seu rosto.

– O que está dizendo é bem grave, Estevão.

– Senhor, eu sei, mas... O indivíduo que morreu – fui eu que o ajudei. Fui eu que o levei até o camarote... Estava muito pálido, sentado àquela mesa. Balbuciava coisas... que não ouso repetir, senhor.

– Havia alguém com ele?

– Uma moça... Sim, a Srta. Gonçalves. Foi ela que me solicitou que eu o ajudasse... Ela é... com o perdão da palavra... meio maluca! Primeiro exigiu que eu servisse mais uma dose para o homem; prometeu que tomaria conta dele. Depois ficou ali sentada, olhando para ele... sem mexer um dedo.

– Os outros já tinham se recolhido?

– Todos, senhor.

– Que horas eram?

– Onze e meia, um pouco depois, talvez. Colasanti reclamou que sentia o corpo dolorido.

– Muito álcool...

– Senhor, não era só o álcool! Havia algo mais. Algumas doses não fazem aquilo com um homem!... Ele mal podia andar. Tive que arrastá-lo até a cabine.

– Número 5?

– Sim, senhor. Chegou a brincar que devíamos tê-lo envenenado.

– O que exatamente ele disse?

– “Vocês deviam arrumar outro cozinheiro! Ele põe veneno em vez de tempero.” Mas, aqui comigo, fiquei pensando. Quando voltei ao bar, fui até a mesa. Lá encontrei o copo trocado.

– Supõe que ele falava sério?

– Sim, senhor. Gaguejava como uma criança. Para mim ou foi veneno, ou um sonífero.

– Sonífero?

– Sim.

– Não bebeu mesmo demais?

– Não, senhor. O hálito...

– Você chegou a entrar no camarote?

– Eu abri a porta e liguei as luzes; fui com ele até a cama.

– Alguma coisa incomum no quarto?

– Não, senhor.

– Nenhum prendedor de gravata no chão?

– Prendedor de gravata? Não... Na verdade, saí logo. Não queria que me vissem ali.

– A luz do camarote do lado estava acesa?

– A luz do número 7? Apagada, senhor.

– Como sabe? A luz não escoa debaixo da porta...

– Colasanti foi até lá e abriu a porta. Ficou desapontado ao ver que não havia ninguém.

– Quando a Srta. Lepperstein saiu do restaurante ontem, alguém foi com ela?

– Não, ninguém. A Srta. Lepperstein é uma mulher muito boa, senhor! Ela implorou que o marido a acompanhasse... Mas a Srta. Gonçalves! Ah, sim, a Srta. Gonçalves foi tão cruel...

– Compreendo, meu rapaz. Bem, prestou-nos um favor inestimável. Danke!

Fëll parecia ter terminado o interrogatório. Afastou-se alguns metros, pensativamente. O delegado aproveitou para anotar os dados do garçom.

Os três saíram. Yamb perguntou:

– Qual é o próximo passo?

– Vamos ver como vai a Srta. Lepperstein – disse Fëll. – Uma das tarefas da diplomacia é explorar áreas de concordância.

– Acho difícil...

– Não custa tentar.

O tombadilho estava vazio. De longe ouviram uma voz gritando na cabine 7.

– E agora essa! – exclamou Yamb, estupefato. – O que será que aconteceu?

– Vamos... Depressa!

Fëll saiu a passos largos, tomando a ofensiva.

Quando chegaram na porta da cabine, viram três mulheres lá dentro. Beatriz era uma delas; os cabelos estavam desgrenhados e revoltos. Enfurecida, apontava o dedo para Madame Canelles:

– Foi você! Eu sei que foi você! Sua megera... Você o matou! Você atirou nele!

– Absurdo! – respondeu a velha, ofegante. – Não sabe o que está dizendo!

– Eu não sei? Sua assassina!... Oh, sim, eu vi com meus próprios olhos. A arma é sua... É sua!

– É minha? Desde quando ando por aí armada? Você enlouqueceu, Beatriz...

– Enlouqueci, é? Que grande piada...

Joana estremeceu. Havia uma expressão pavorosa em seu rosto.

– Não vim aqui para ser insultada, Beatriz! Nós duas dissemos coisas sem querer.

– E daí? Você já obteve o que queria... Matou meu marido! O que vai fazer agora? Atirar em mim? Pois tente... Tente!

– Que tolice, querida! Eu jamais atiraria em você.

A Srta. Lepperstein notou os homens na porta. Animou-se subitamente, e ergueu o punho.

– Ela atirou nele, Sr. Fëll!... Ela matou meu marido!

– Senhorita, nós...

A Srta. Lepperstein ficou aturdida com a inércia deles.

– Vocês têm que prendê-la! Mexam-se... Não vão fazer nada? Posso provar que foi ela!

– Tudo tem seu tempo – disse Fëll resolutamente. – Madame Canelles, é melhor que se retire.

– Tudo bem, eu saio. Quando puder, devolvam minha enfermeira, sim?

Joana saiu, com sua costumeira altivez. Quase atropelou Yamb que, providencialmente, deu um salto para o lado.

“Hurra! Que imponência...”.

Beatriz jogou-se na cadeira, febril. O detetive lançou um olhar frio:

– Como ela entrou aqui?

– Eu sinto muito... Alguém bateu; achei que era Neusa. Essa mulher devia ser responsabilizada por genocídio e crimes contra a humanidade!

– Que isso lhe sirva de lição. Não abra para ninguém, ouviu? Não posso garantir por sua segurança se a senhorita continuar sendo imprudente.

– Desculpe-me... Eu lamento, fui uma tonta.

– Aqui, Mrs. Seu remédio...

– Ponha ali, Kaline. Obrigada.

A enfermeirinha pôs o copo na mesinha. Endireitou o corpo, e comprimiu os lábios. Estava transtornada por causa da discussão. Beatriz acrescentou:

– Vá atrás de sua patroa, darling.

– Sorry?

– Vá, vá, Kaline. Ela está a ponto de ter uma congestão. Vá lá! Cuide dela... Volte mais tarde! Eu ficarei bem.

– Ok.

A moça fez um gesto agradecido e se retirou.

Fëll virou-se para a Srta. Lepperstein. Admirou a sua tenacidade. Uma mulher um pouco lenta nas ideias, mas prática.

– Trouxeram boas notícias para mim, senhores?

– Nem tanto, senhorita.

– Não?

– Qualquer um pode ter matado seu marido. E o pior – ninguém tem um álibi. Todos estavam em lugares potencialmente suspeitos. Desde a hora em que Colasanti saiu do restaurante até ser morto passaram-se poucos minutos. Qualquer pessoa teria tido oportunidade de se esgueirar até o camarote dele.

– As pistas...

– Esse é o maior agravante. As pistas apontam para várias direções. Para seu ex-marido (Wolfgramm), para Wedderhof, para a Srta. Gonçalves... E todos tinham motivos! Policial, pode fazer um favor? Chame a Srta. Brenneison! Ruiva, jovem; está na cabine 6.

O rapaz saiu. Fëll andou pelo recinto; todos aguardaram em silêncio. Ele grunhiu insatisfeito. Estacou em seco e disse:

– Senhorita, a nossa situação exige uma ação mais arrojada. A violência tende a entrar numa espiral sempre ascendente. Cada homicídio tem consequências nefastas não apenas para a vítima, mas também para o agressor. Se havemos de evitar outra morte, temos que conjugar as nossas forças. Vamos recapitular o que já sabemos... Se notar qualquer erro, por favor, nos corrija. Está de acordo?

– Bem, sim...

– E você, delegado?

– Em vista do nosso fracasso atual – disse Yamb – , estou de acordo.

– Gut, então vamos começar.

Fëll juntou as mãos e se concentrou.


Capítulo 17

 

– Tudo se resume aos fatos que apuramos.

– O que é pouco. Pouquíssimo – disse o delegado.

Fëll fez um aceno afirmativo.

– So sind die Sachen! É como se houvesse uma conspiração por trás disso tudo. Como se todos tivessem planejado o assassinato e a mão de cada um constasse no resultado final.

– Está exagerando, não está?

– Por quê?

– Ora, bolas, meu amigo! Quem é que conceberia um plano desses? Como se todos tivessem planejado o assassinato e a mão de cada um constasse no resultado final. É gente demais! Dois ou três unidos numa mesma intenção, vá lá. Mas uma dúzia – impossível!

– Yamb, Yamb – disse Fëll, contrariado. – Não estou dizendo que o caso tenha sido esse. Estou fazendo uma ilustração.

– Ah...

– Senão, vejamos o nosso campo de possibilidades. Wedderhof – nós o encontramos junto da Srta. Lepperstein. Eu lhes pergunto: como é que as iniciais dele estão no revólver e ele, ainda por cima, é flagrado na cena do crime? Certo, já tivemos uma explicação – o professor Wolfgramm assumiu que a arma é dele. Qual é, afinal, a parte que toca ao colunista nesse episódio todo? Colasanti tinha me contratado porque sua vida corria perigo. Chegou a me confessar que estava com medo de Wedderhof. E, como se o caos não bastasse, agora o garçom diz que desconfia que Colasanti tenha sido dopado. Diz que ele não se sentia bem quando o levou até o camarote dele. Essa é uma pista importante. Afinal, Colasanti falou comigo um pouco antes disso no convés. Muito lívido sim, mas ainda assim lúcido. Es ist nächst unglaublich! Por que tantos indícios apontam para um único homem? Tantas coisas, é isso o que é! E temos também a história do arrombamento. Se Dieter Wedderhof furtou a arma de Wolfgramm, é evidente que foi ele quem violou a fechadura da porta da cabine 11. Mas, nesse caso, por que ele ficou junto da Srta. Lepperstein, depois de lhe dar a coronhada na cabeça? Há variantes que não se ajustam ao mecanismo.

– E se não foi o assassino quem arrombou a porta?

– É uma hipótese. Além disso, há o colar arrancado. As contas dele estavam esparramadas por todo o quarto. É como se o assassino, num ato insano, o tivesse agarrado e puxado furiosamente. Percebam! Uma punhalada em Colasanti, uma apenas, quase com negligência, e um repelão violento no colar da Srta. Lepperstein, seguido do tiro que varou a parede. Há aqui dois tipos de brutalidade. O segundo tipo, bem mais destacado.

– Talvez o homem, ao ser esfaqueado, estivesse inconsciente ou já estivesse morto. (A autópsia vai nos revelar se ingeriu alguma substância.) A violência não era obrigatória, portanto.

– Sim, isso é provável – disse Fëll, com voz débil. – Vamos fazer um apanhado das coisas que têm que ser respondidas. Observemos o seguinte: a. Quem quebrou a fechadura do número 11? b. Os prendedores de gravata são do Sr. Salles? c. Madame Canelles tomou o remédio que citou? d. O que Wedderhof fez? e. O Sr. Santelo abria ou fechava a porta quando, após o disparo, o vi em frente do camarote dele? f. Quando o revólver do professor foi roubado? g. Miss Kaline não viu mesmo ninguém? Quanto ao item e: quantos segundos se passaram até que abri a minha porta, surpreendendo, com isso, Santelo com a mão no trinco do leito 14?

– Dez a quinze segundos?

– Bestimmt, afinal, no início, fiquei bastante perplexo. Suponhamos que foi Santelo quem cometeu os dois atentados. Se viesse pela popa, com caminho desimpedido, o siciliano... talvez... pudesse voltar a tempo para a própria cabine.

– Isso contradiz sua tese sobre a cabine 11!

– Sim, falta um sentido aqui, não posso negar. Por que iria o homem preparar um esconderijo se não tencionava usá-lo? Mas, e se aquele lugar fosse só uma prevenção, para o caso de ficar encurralado ou sentir a aproximação de alguém? Talvez ele tenha visto o deck vazio – ou pode ter entrado em pânico –, o que fez com que o plano inicial fosse por água abaixo. Sobre Miss Kaline, item g, é bom notar que primeiro ela disse que não estivera à popa do barco. Em seguida ela corrigiu a sua versão, mas veementemente garantiu que, na hora do crime, já estava na cama. Foi o que Zelly Gonçalves também disse sobre si mesma. Testemunhos muito dúbios. E existe o fato da Srta. Gonçalves ter sido namorada de Colasanti. Tudo é possível em se tratando de jogos de amor. Além do que, como afiançou Madame Canelles, o casamento da Srta. Lepperstein desagradou a muita gente. A quem?

– É um mistério como o revólver do professor tenha sumido de sua bagagem – assinalou Yamb. – É de se estranhar que sua cabine estivesse aberta para que alguém entrasse e furtasse a arma.

– Está esquecendo uma coisa.

– Qual?

– Quase todo o grupo se conhece. Não existia, ontem, uma razão específica para se trancar os camarotes. A Srta. Brenneison diz ter estado com Wolfgramm até umas onze da noite. Dez e quarenta ou dez e cinqüenta... Alguém, depois de sair do restaurante, poderia facilmente ter se esgueirado até a cabine dele.

– Como o assassino sabia que lá havia um revólver?

– Esse é um tópico que é bom analisar mais tarde. Uma mulher muito nebulosa é Madame Canelles. Ela se espanta que todos fujam dela, mas não fez uma tentativa sequer para ser mais simpática. Pelo contrário, tiranizou todo mundo, como se todos fossem meras marionetes. Como confiar nas palavras que disse a respeito da pílula? Sim, a velha madame devia estar muito debilitada com a cena que aconteceu depois do jantar, mas daí a ir dormir sedada vai uma boa distância. Podemos aqui juntar o item h à relação: h. O que Colasanti murmurou para Madame Canelles, e por que ela ficou tão irritada? O duque Salles poderia nos informar. Pena que não queira encrencas com ninguém. Segundo Miss Kaline, ele mencionou algo sobre alguém ( que denominou de ela ), que teria feito o que não devia. Disse ele: “Pobre Joana Canelles, vai se incomodar se não conseguir se aliar a ela”. Quem é esse ela? É óbvio que é a Srta. Lepperstein.

– Eu? – perguntou Beatriz.

– Sim, a senhorita. Quando seu marido se levantou e percorreu o salão até chegar à mesa de Madame Canelles, o rosto dele estava rígido. Como se tivesse sido encorajado, instado por outra pessoa a fazer aquilo!

A mulher mordiscou a ponta do dedinho:

– O senhor acha que fui eu que o encorajei?

– Ich zweifel gar nicht – respondeu Fëll. – A senhorita o convenceu a se erguer e ir até lá. E, por causa desse ato, pode ter trazido a desgraça sobre ambos. A senhorita me contatou um pouco antes do crime e disse que sabia das ameaças que Colasanti vinha sofrendo. Frisou que ele ficara muito contrariado ao ler que a senhorita incluiu na lista de passageiros o nome de algumas pessoas sem consultá-lo.

– Exatamente.

– Quem foi incluído?

– Que nome?

– Sim.

– Deixe-me ver... Acho que foi Wellington Santelo... não, esse já estava na lista... Eu mandei uma mensagem de texto para Zelly Gonçalves... sim, lembro disso porque ela não confirmou logo. E... quem mais?... ah, claro que sim... escrevi um e-mail para Demétrio. Ele não gostou muito, mas acabou cedendo... Foram esses dois, acho.

– As ameaças começaram a vir depois disso?

– Não sei... Não consigo guardar datas, Sr. Fëll. Eu sei que, de uma hora para outra, fui bombardeada com aquelas palavras tão... tão... Por favor, não quero me lembrar! Fiquei tão apavorada!

– Tudo bem. Já nos ajudou muito, senhorita. Podemos supor, então, que o nome de uma dessas pessoas irritou o seu marido. A Srta. Gonçalves ou o Sr. Wolfgramm! Qual deles? E por que razão?

– O esboço que você está fazendo, meu chapa, não é nada restritivo – disse Yamb, sem entusiasmo. – Abre um leque enorme de possibilidades. Temos que diagnosticar logo o problema! A hora está passando.

– A hora está passando... Nosso prazo para solucionar o caso lhe parece curto?

– Pois é, e ainda essa! Sou muito recalcitrante quanto a isso, quero que saiba. Uma investigação geralmente envolve meses de trabalho e dezenas de peritos. Ninguém diz: “É, vai ser moleza! Hoje às nove da noite, senhor, venha pegar os resultados!” Você está abusando da sorte...

– Sorte! – exclamou Fëll. – Um pouco de reflexão e de psicologia criminal vai ser suficiente para nós. Quanto ao que faremos... Enquanto a Srta. Brenneison não vem, vamos falar com Wedderhof.

O colunista veio, sisudo. Aborrecido por essa nova intimação. Cumprimentou Beatriz com um “olá!” seco, brusco.

– Achei que iam me deixar em paz.

– Pedimos desculpas; não queremos impor sanções e embargos. Surgiram algumas novas questões. Temos o dever de averiguar.

– Tradição não tem aroma, nem textura. Vamos ao que interessa, schnell – respondeu Wedderhof, mordendo o charuto. – Pretendo me livrar logo dessas... amenidades.

Falou quase com asco.

– Warum nicht? Poderia, para começar, nos dar seu passaporte, Sr. Wedderhof? As amenidades, como o senhor mesmo diz.

O alemão extraiu o passaporte da carteira, contrariado. Fëll olhou o documento, e testou se estava bem colado, virando as folhas. Deu-o de volta.

– Já comeu alguma vez creme brûlé, Sr. Wedderhof?

– Lá vamos nós! Que creme é esse?

– É uma sobremesa inglesa. Diz aí, no carimbo, que já esteve em Londres.

– Está brandindo um falso realismo. Meu filho estuda lá. Mas não por que eu quero; não gosto daquele país. O mal é essa globalização. Oswald fez aulas de computação, sabe tudo de internet, e ainda faz curso de balé.

– Balé?

– Sim. Por quê?

Fëll ficou imaginando o filho daquele homem rodopiando num palco, saracoteando os quadris e as ancas... Teve um calafrio!

– Nada, nada. Prossiga...

– É o que digo. Tudo melhorou. O espectro da guerra é menos presente hoje do que em décadas anteriores. Mais gente desfruta bens materiais e maior proteção contra as intempéries e o tempo. A fome tornou-se um fenômeno insular, produzida principalmente por lutas civis. O mundo vai bem. Menos a juventude, que pula, dança, e frequenta discotecas. É uma paranoia! E se você tenta objetar, eles dizem que vão sair de casa, vão morar em outro planeta. Um tormento!

– Então esteve em Londres. E não conhece o creme brûle?

– Definitivamente não.

– Deve perdoar minha incapacidade de compreender certas coisas. É que apareceram alguns detalhes do enigma. Chamamos o senhor porque: 1. é de todos o mais misterioso que há no barco; 2. o próprio Colasanti queria que eu o vigiasse; 3. é o único que flagramos na cena do assassinato; e 4. pelo que nos disseram, foi o senhor quem trocou o copo de bebida de Colasanti ontem à noite.

Apesar de ficar teso, Wedderhof não entrou em pânico. Olhou fixamente seu interlocutor, sem demonstrar temor ou ansiedade.

– Isso é algum truque?...

– Tantas questões – continuou Fëll, teatralmente. – A sua conduta... As suas ações... Até o momento, o que falta é arranjar um motivo plausível pelo qual o senhor mataria, e voilá... eis o assassino!

– O que falta é bom senso! Vocês devem ser doidos... O próximo capítulo disso é previsível e mesquinho, um passo precipitado que não honra a inteligência humana. Nada me moveria a matar uma pessoa. Se investigarem o duque Salles, verão que tinha dinheiro a haver de Colasanti. Isso sim é que poderia impulsionar a execução de um crime.

– Ele tinha dinheiro a haver?

– Há anos. Vocês não sabiam?

– É verdade, senhorita?

– Talvez... não sei – gaguejou a Srta. Lepperstein.

– É claro que ela não sabe – disse Wedderhof. – Ele se negava a devolver o valor emprestado. Uma jogada muito suja, desonesta. Com o perdão da palavra, mas o seu marido não respeitava os sentimentos de ninguém. Uma infantilidade, é o que vivo dizendo. Desaprovo essa leviandade.

– É um fato espantoso! Mas Salles está no barco a convite dele!

– Sim, e daí? Os dois se conheciam; foram bons colegas. Até surgir essa fissura que desmontou a amizade.

– Bom, e sobre os copos. Dizem que o senhor os trocou propositalmente.

– Quem?

– Alguém que pretende continuar anônimo. Parece que foi na hora em que Colasanti havia se distanciado da mesa e a Srta. Lepperstein estava distraída com o garçom.

Wedderhof se inclinou alguns centímetros.

– Está blefando! Tenho uma noção de conjunto e planejamento.

– Ambos, o senhor e Colasanti, preferiram rum. Porém houve uma pequena diferença no modo de servir as bebidas. Ele solicitou gelo picado. O senhor, gelo normal.

– Isso constitui uma prova para vocês? Com vocês não existe aquele tédio que tantas vezes se instala quando a investigação não progride! Não passa de um vandalismo arbitrário.

– Achamos que merece uma explicação, Sr. Wedderhof.

– Pois só há uma explicação. Qualquer um poderia ter pego meu copo, tê-lo enchido de veneno, e posto na mesa do homem. Qualquer um.

– Ninguém disse que havia veneno no copo. Por que aventou essa hipótese?

O colunista puxou a gola do colarinho.

– Analogia de ideias, ora!

– Analogia de ideias? Aposto que sim. O senhor é quem diz que é? Que tal nos dizer o que sabe? Não nos subestime...

O timbre da voz do austríaco tinha endurecido.

– Ah, é assim? – retrucou Wedderhof, aborrecido. – Vocês são insaciáveis! Se me quiserem, é assim que eu sou. Pois eu não lhes direi mais nada...

Sem se importar com a impressão que causaria, Wedderhof levantou-se.

– Boa tarde, senhores.

Como um touro enfurecido, saiu peremptoriamente. Houve um silêncio no camarote.

Beatriz repetia um “puxa vida!”, impressionada.

– Quinze e meia – disse o delegado. – Não sei quanto a vocês, mas estou apreensivo. Se pelo menos tivéssemos uma testemunha que cooperasse conosco... Uma só, e estaríamos feitos.


Capítulo 18

 

– Temos que ser mais rigorosos com essa gente – continuou Yamb. – Ou isto ou estaremos perdidos.

– Consolem-se, Herren, ainda temos munição – disse Fëll. – Investigar é um exercício implícito, minucioso e persistente.

– Quem dera!

– Lembrem-se de que não sabemos de onde veio a faca, mas temos a ficha técnica do revólver.

– Que consolo!

Ouviram uma batida de leve na porta. O policial entrou e dirigiu-se a Fëll:

– A Srta. Brenneison disse que virá daqui a pouco.

– Algum problema?

– Parece muito triste. Uma moça está lá com ela, dando apoio.

– Que moça?

– Bonita, e de olhos verdes, senhor.

– Bonita?

O rapaz ficou ruborizado.

– Sim, senhor.

– Sei... Deve ser a Srta. Gonçalves. Ótimo, é bom mesmo que alguém fique com ela.

– E agora?

– Acho que poderíamos fazer uma coisa. Como eu dizia, temos algumas indicações sobre o revólver. Srta. Lepperstein, vou lhe pedir licença!

Beatriz olhou para ele; empalideceu:

– Vão sair?

– Sim, é preciso.

– Claro, eu... Peço desculpas, estou sendo ridícula! Podem ir.

– Temos que interrogar de novo algumas pessoas. Mas voltaremos assim que der. Já sabe quais são as ordens!

– Fico aqui, trancada, esperando por vocês.

– Trancada? Não, esse é um termo forte. Eu diria protegida.

Fëll curvou-se num cumprimento e os quatro saíram.

– Fique aqui, meu jovem. Não deixe ninguém entrar. A não ser, a Srta. Brenneison, está bem? Nós voltaremos logo.

– Sim, senhor.

O policial perfilou-se diante da porta da cabine.

– E nós? – perguntou Yamb.

– Nós vamos falar com Wolfgramm.

– Por que ele? Não acha que ele já foi muito incisivo no que disse para nós?

– Isso foi antes. As pessoas são instáveis; o ponto de vista delas pode mudar. Temos que estar lá quando isso acontece.

Procuraram o homem no tombadilho superior. Encontraram-no sentado sozinho, mexendo em seu tablet. Empurrou o aparelho para o lado quando viu que tinha companhia.

– Consultando seu blog? – perguntou Fëll.

– O quê? Não, eu já lhes disse que não sou muito adepto dessas coisas. Eu leciono, senhores. Tenho que me manter atualizado.

Cruzou os braços, docilmente:

– Ainda na caçada?

– É o que parece...

– As expectativas são boas?

– Digamos que sim.

– Isso é bom. Tomara que consigam.

– O que tem feito?

– Pouca coisa. Estive falando com Kaline.

– Tornou-se amigo dela?

– Amigo? Não chega a tanto. Mas garanto que ela foi uma ouvinte mais jeitosa que vocês! É uma arte rara nas mulheres; a maioria não se importa com o que os outros pensam. Gostam de falar mas não ligam para o que você diz, e advogam todo tipo de independência.

Fëll aprovou o comentário; era da mesma opinião, embora não dissesse isso tão abertamente.

– Já que mencionou Miss Kaline, o que acha dela?

– Muito jeitosa, conforme disse. O sotaque enrolado e os tiques faciais ajudam a criar um misto de charme e comédia. Esteve ontem em minha cabine. Eu quis dar-lhe um livro, mas ela recusou, dizendo que não poderia lê-lo.

– Ela é analfabeta?

– Como?

– Miss Kaline. Você disse que ela recusou o livro, dizendo que não poderia lê-lo.

– Não, ela é alfabetizada. Os americanos leem muito! O caso é que ela ainda não domina perfeitamente o nosso idioma. Foi sensato da parte dela admitir isso.

– Ela esteve ontem em sua cabine. O que fez lá?

– Foi ontem à tarde. Neusa Brenneison tinha um recado para mim e pediu que Kaline viesse falar comigo. Moça muito graciosa, cavalheiros. O pai dela era advogado em uma respeitável companhia de navegação de origem dinamarquesa.

– Parece ser um conquistador, Sr. Wolfgramm. Tem uma mulher jogada a seus pés e já dá trela a intimidades com uma segunda.

– Na verdade... o senhor note a minha honestidade... as coisas são assim. Elas se deliciam quando um homem as ilude. Mulheres são criaturas tão volúveis. Não tem – e o homem bateu o dedo na têmpora – massa encefálica.

– Inclui aqui a Srta. Lepperstein?

– Obviamente. Se ela tivesse massa encefálica, não teria me largado e ido embora. Eu fiz tudo por ela, dei a ela um lar, dei abrigo. Mas o que Beatriz fez? Jogou tudo pela janela. Fácil assim. Tornou-se o centro de um romance açucarado com aquele galã italiano.

– Hum...

– Acham que sou um sátiro poderoso, um vilão pervertido que obriga uma mulher a sair comigo? Essa forma de amor visceral não é para mim. As pedras que arremessam contra mim contêm um alto teor de inveja escondida, moralismo hipócrita e feminismo barato. Entretanto, suponho que não vieram até aqui para falar disso, pois não? Seria maçante, garanto.

– Certo. Viemos aqui tirar uma dúvida sobre a arma. Admitiu que ela é sua.

– É minha, lógico. Procuro mais colaborar que polemizar. O que não podem atestar é que fui eu quem atirei. Alguém a furtou.

– Não tem provas de que o senhor estava em sua cabine na hora em que o tiro foi disparado.

– Quem diz que não estive?

– Ontem, perto das onze e meia, Miss Kaline estava à popa do barco. O que fazia ali sozinha? É provável que esperasse alguém. Se juntarmos os fragmentos... die Bruchstücke... ver-se-á que, talvez, fosse o senhor.

– Deve estar sonhando. Não marquei encontro com ela.

– Sonhando? Vamos mais além. Quem é que da tripulação sabia que o senhor tinha uma arma?

– Todos sabiam. Exibi-a ontem de manhã, quando aquele repórter... o maldito intrometido... quis tirar uma fotografia nossa. Empunhei o revólver, para uma ou duas poses, acho. Depois voltei a guardá-lo na mochila.

– À noite, quando foi jantar, chaveou a porta do camarote?

– Não pensei que houvesse necessidade. Nunca supus que tivéssemos um ladrão entre nós.

– Então não chaveou a porta?

– Não.

– E ao retornar, sentiu algo de errado no quarto?

– Nada.

– Que horas eram?

– Já devo ter dito isso hoje de manhã...

– Não custa nada repetir.

– Onze e meia, esse é o horário em que fui dormir. Não saí até que ouvi o fuzuê.

– É possível, portanto, que ao se deitar o revólver já não estivesse mais na mochila.

– Não fui conferir – respondeu Wolfgramm. – Mas, se tudo ocorreu como está dizendo, é de se supor que não estivesse.

– Agora uma pergunta mais intrigante. Verificou quem se hospedou no camarote 11?

– Deixe-me ver... Miss Kaline está no número 9. Não posso afirmar... Bem, pode ser que seja nosso colega Salles.

– Errou. ‘Nosso colega Salles’ está no 13. No número 11 não há ninguém.

– Sério? Eu estava pronto a jurar que havia.

– Era só isso – disse Fëll. – Estamos gratos por parar um pouco para nos atender.

– Já vão embora? Ora, disponham. Gostaria que me fizessem um favor...

– Qual?

– Depois da perícia, podem destruir o revólver. Arcarei com as despesas. Não seria ético guardar uma arma com a qual quiseram matar minha ex-mulher. Comprometeria ainda mais nosso relacionamento.

– Será feito.

Wolfgramm ficou olhando enquanto eles se afastavam. Tinha as pupilas dilatadas, como um animal que vê a rede se fechar cada vez mais sobre si.

– Sensível, o moço – disse Yamb – Vem armado a uma festa, e agora está com remorsos das consequências.

– É. Mas ele deu um indício – disse Fëll. – Colasanti tinha a saldar um empréstimo do Sr. Salles.

– E dinheiro sempre gera atitudes censuráveis! Sugere que falemos de novo com o duque?

– Sim, é o que sugiro. Ele é um lobista. Julgo que poderia nos contar mais coisas, se quisesse.

Marques aproveitou a pausa para intervir:

– Vou me ausentar por alguns minutos, senhores. Estarei na cabine de comando, se precisarem.

– Seguramente. Obrigado por nos ajudar, capitão.

O trio se dividiu. Yamb e Fëll foram para a ré do barco, procurando pelo duque.

Não demoraram a vê-lo. Salles estava falando com Santelo, explicando alguma coisa sobre as maravilhas arquitetônicas do mundo. Depois disse que desaprovava o regime comunista, bem como a burguesia bolchevique.

Pela cara de tédio de Santelo, uma conversa nada estimulante!

“Que xaropada!”, pensava Santelo, fitando o céu.

– Que tarde quente, ah! – exclamou Fëll, ao se aproximar.

– Quente mesmo – disse Salles, abanando o chapéu. – Até quando ficaremos aqui, no meio da baía?

– Até que tivermos o enigma resolvido.

– Ou seja, nunca – disse Santelo, emburrado.

– Esperamos que não.

– Olha, vocês podem dizer o que quiserem. Acho uma tremenda perda de tempo manter a gente preso aqui. Vocês não vão achar o assassino.

– Por que não?

– Ele seria muito idiota se matasse alguém sem ter preparado a rota de fuga. É claro que ele premeditou tudo; nada foi feito por acaso. Eu teria feito isso, se estivesse no lugar dele.

– É um argumento corrente para amortecer a consciência? — aventurou Fëll.

– Faça os cálculos. Nós fomos convidados com semanas de antecedência. O criminoso, depois de receber o convite, teve todo o tempo do mundo para elaborar o plano. Ou vocês acham que ele simplesmente veio e, por um impulso cego, fez o que fez? Absurdo.

– Concordo. Ele urdiu bem a trama.

– Outra coisa. Acho que é uma insensatez manter a imprensa longe disso. Vocês deveriam contatar o quanto antes os veículos de comunicação. Ação e engajamento!

– Por quê?

– Para dar destaque ao assassinato. Há um criminoso entre nós? Ótimo. Façam-no cometer um erro. Recorrentemente, os jornalistas são os maiores urubus que existem. Jamais desistem de uma presa. Quanto mais sádicos e escabrosos os detalhes, maior é a curiosidade popular. Quanto maior a curiosidade, maior a pressão para que a verdade venha à tona.

O discurso deixou Santelo sem ar. Tinha falado com vigor, quase com paixão.

– De certa forma, tem razão – disse Fëll. – Mas há uma coisa que não levou em conta.

– O que é?

– O assassino já está sendo pressionado.

– Por quem?

– Nós.

– He, he! Que bom que pensem assim. Vieram conversar comigo, ou o assunto é com o Sr. Salles?

– O assunto é com o Sr. Salles.

– Divirtam-se – disse o siciliano, e se afastou prontamente.

O duque balançou os ombros, com pesar.

– Um bom sujeito, mas um pouco exaltado. Fala de alpacas, lã e sacrifício de crianças como um típico nativo. Imagino que queiram algo de mim. O que é dessa vez?

– Nada muito difícil. O senhor havia emprestado algum dinheiro a Colasanti, algum tempo atrás?

O tom seco da pergunta causou um choque. A fisionomia do homem se turvou.

– Quem foi o bisbilhoteiro que...? Sim, eu tinha dado a ele uma pequena soma...

– O bisbilhoteiro também disse que foi há alguns meses. E que ele nunca restituiu o valor que o senhor lhe emprestou.

– Chispas e trovões! Estão indo longe demais nisso. É fácil julgar coisas passadas pelas lentes estabelecidas pela posteridade.

– Sr. Salles, vamos ficar no essencial.

A cólera fez o duque esmurrar a bengala no chão. Ergueu expressivamente as sobrancelhas.

– Está surdo? Ninguém me obrigará a falar.

– Devo preveni-lo de que o silêncio não será de nenhuma valia. A polícia conseguirá extrair de seus filhos se é ou não um agiota.

– Pois eu exijo um advogado – replicou Salles, a voz alterada. – Não me sujeitarei a esse escrutínio. Sim, quero um advogado!

– Com certeza, é um direito que tem – respondeu Fëll, sem se mover. – Afirmo, porém, que não melhora em nada seu caso.

O punho do homem bateu descontrolado na amurada do convés. Raciocinou velozmente, e então, mais calmo, disse:

– Se isso lhes interessa, nós dois fomos sócios anos atrás. Depois que emprestei o dinheiro, as coisas mudaram dramaticamente. Ele não fez a devolução, certo. Pode-se dizer que a quantia, em certa época, me fez muita falta. Eu poderia ter ido adiante – tenho a promissória. Desisti em deferência às boas relações que sempre mantive com a irmã dele.

– A Srta. Brenneison?

– Sim. Ela é muito correta, já suportou tanto sofrimento. Primeiro foi a morte da cunhada, naquele acidente estúpido; o automóvel sem freio... aquela história toda. E o pior é que as duas estiveram juntas toda a tarde daquele dia. Depois, foi a vez do marido, atingido por um câncer incurável. Tive tanta pena da coitada! Aquela bolsa... Fui eu quem a dei de presente a ela.

– A bolsa?

– Custou caríssimo, mas não me importo. “Faça o melhor que puder”, esse é o meu lema.

Fëll percebeu que Salles tinha um cacoete. Ele contava determinadas coisas como se lhe dessem um grande prazer interior. Não que a sua carapaça de marajá não fosse autêntica. Mas debaixo dela – que sentimentos habitavam ali? Que filão de emoções havia em seu coração?

– Se puderem permitir que eu vá... – disse o duque, vacilante. – Tenho que dar uns telefonemas.

– Vá, o senhor está livre.

Salles desapareceu no tombadilho, ajeitando a gravata bem passada. Yamb esperou até que ouviram seus passos à distância.

– Tem um fogo dentro de si! Não calculei que fosse se alterar tanto.

– Tocamos em seu ponto frágil – disse Fell. – Böse Beispiele verderben gute Sitten.


Capítulo 19

 

– Procurando por mim, senhores?

A Srta. Brenneison veio na direção deles pelo convés. Usava um vestido leve e democrático. Tinha os olhos inchados (chorara boa parte do dia), mas conservara intacto o seu autodomínio.

– Sim. Se estiver bem, gostaríamos de lhe falar.

– Estou bem.

– Vamos para minha cabine. Lá poderemos conversar sossegadamente.

Depois de passar para a cabine, o detetive fechou a porta. Todos se instalaram confortavelmente numa cadeira. Olhou para a mulher por um momento.

Neusa Brenneison parecia ser a única que sentira a morte do irmão. Dentre todos, era também a única que estava sensibilizada com todo o drama. Tinha um talhe modesto, e o rosto exprimia um palpável desconsolo.

– Eu nunca iria sonhar... Um crime com esse sangue-frio! Devem me perdoar, acho que não estão a fim de aturar uma mulher de coração mole. Mas eu realmente não entendo como é que alguém pode cometer tamanha perversidade!

– É difícil...

– Vou ter que cuidar dos preparativos para o enterro. Quando vão nos liberar?

– Logo, senhorita. Não queremos causar nenhum inconveniente para ninguém, mas não tivemos alternativa.

– Já fizeram algum progresso?

– Acreditamos que sim.

– Quem é o maior suspeito?

– Sinto dizer, mas ainda não conseguimos apurar. Todos estão sob quarentena.

– Inclusive eu?

– Sim.

– Muito bem. O que querem de mim?

– Primeiro, uma pergunta pessoal. É viúva?

– Sim, já por dois anos. Albert morreu de um cancro no fígado. Era um mecânico de mão cheia; morreu tão novo, tão jovem. Descuidou da saúde; era um glutão, apaixonado pelas boas coisas da vida e que vivia em permanente conflito com as pessoas obcecadas por dietas e pela luta contra as bebidas. O organismo sucumbiu...

– Seu irmão foi acusado pela morte da primeira esposa. O caso ganhou imensa projeção. Acha, Srta. Brenneison, que seu marido teve envolvimento na morte daquela mulher?

Neusa abriu a boca, atônita.

Yamb se remexeu, pouco à vontade com aquela reviravolta na conversa.

– Fëll, não acha que está sendo indiscreto? Não creio que...

– Perdão, acho que me expressei mal – disse Fëll, envergonhado. – Não estou querendo dizer morte deliberada. Não, não estou dizendo que seu marido a matou de propósito. Mas dizem que ele mexeu no veículo dela um dia antes.

– Acha que Albert desregulou alguma coisa sem querer?

– Isso mesmo.

– É possível... Eu nunca havia pensado nisso, mas agora que o senhor diz. Sim, é possível.

– Como souberam do acidente?

– Pela equipe de paramédicos, acho.

– Por que a culpa recaiu sobre Colasanti?

– Denúncia anônima, pelo que sei...

– Ele tinha motivos para se livrar da mulher?

– Não, é claro que não! Os dois se amavam...

– Mas mesmo quem ama, mata.

– Sim, mas... Por que, afinal, estamos falando disso? Isso é passado...

– Vamos seguir em frente... – disse Fëll abrindo os braços. – Foi dito que ontem uma arma foi exibida em público. Por acaso, lembra-se disso?

– Não.

– Dizem que o professor Wolfgramm teria empunhado um revólver, que retirou de uma sacola.

Ela reprimiu uma exclamação.

– Ei, sim, eu me lembro disso! Foi de manhã, antes de levar nossas bagagens para o camarote. Demétrio fez, sim, o que o senhor diz. Ele posou com o revólver em punho. Argumentou que gosta dos spaguetti western. Quis imitar o ator de um filme, sei lá.

– A atitude dele ofendeu alguém?

– Foi um pouco constrangedor.

– Escute, o revólver é o ponto vital. Buscamos todas as pistas que apontem para ele.

– Estou percebendo.

– Não se omita em dizer o que sabe, ou o que julga saber. A senhorita mandou, na tarde de ontem, Miss Kaline falar com Wolfgramm?

A resposta da Srta. Brenneison foi direta:

– Ela levou um recado...

– Ela demorou?

– Não pedi que me trouxesse resposta e, portanto, não voltei a encontrá-la antes do jantar.

– A Srta. Gonçalves teve antigamente um caso com Colasanti. Acha que ela ainda...

– Estou certa que não! Eram bons amigos, só amigos.

– Parece muita convicta disso. Por quê?

– Porque sua ideia é fantasiosa, Sr. Fëll. O que lhe sugere que ela... Oh! – ela calou-se, os olhos abertos. – Imagina que Zelly poderia... Sim, compreendo.

– É claro que compreende. É uma moça perspicaz, temos visto. E então, o que nos diz?

– Improvável, mas possível.

– Exatamente o que eu dizia comigo mesmo. ‘Se falarmos com a Srta. Brenneison... Ela dará para nós as respostas que queremos. ’ E aqui estamos.

– Não estou sendo afirmativa!

– Logicamente, logicamente... Não se aflija, depois separaremos o ouro do vil metal. Sobre seu irmão... Ele era alcoólatra?

– O senhor faz cada pergunta! Está tentando me irritar? Que mania insuportável!

– Nein, não foi o que eu perguntei. A interrogação é: seu irmão era alcoólatra? Sim ou não?

– Quer que eu fale a respeito disso? O senhor é repulsivo! Não, não julgo que ele era.

– Eu, a senhorita e o Sr. Wolfgramm sentamos perto da mesa do casal, à noite. Lembra quando Colasanti foi xingado por Madame Canelles?

– Isso foi obra de Beatriz. Ela convenceu Moacir a ir até a mesa de Madame. Outro de seus joguinhos idiotas.

– Sim. Mas não é esse o quadro que queremos que relembre. A senhorita é uma mulher observadora. Verificou se Wedderhof rondava a mesinha dos dois, durante a ausência de Colasanti?

– O repórter?

– Sim.

– Ele esteve nas proximidades. Não me importei com ele. Fiquei vigiando a cara de Beatriz. Tão orgulhosa de si, de sua riqueza, de sua aparência! Usa tantas joias que parece uma joalheria ambulante. Uma mulher que nunca olhou para os pobres e desvalidos.

– E o que ela fez?

– Sorriu quando a velha Canelles começou a gritar.

– Sorriu, é? Então deve ter achado tudo muito cômico.

– É o que acabei de dizer. Ela manipulava Moacir sem nenhuma vergonha ou pudor.

– E Wedderhof? Não se concentrou nele?

– Não.

– É uma pena – Fëll reclinou-se, escondendo o desapontamento. – Está apaixonada por Wolfgramm, senhorita?

– Não! Quem disse uma coisa dessas?

– Ninguém. É que ele diz que todas as mulheres são volúveis. É só um alerta.

A moça acenou e, em seguida, endireitou o busto. Muito bonita, refletiu Yamb.

– A Srta. Lepperstein queria vê-la. Já foi até lá?

– Não. Vou até lá agora.

– Vamos acompanhá-la.

Se a Srta. Brenneison ficou chateada com a proposta, camuflou isso muito bem. Saíram da cabine.

De longe viram Dieter Wedderhof e o duque Salles conversando com o policial diante da cabine da Srta. Lepperstein.

– Eh, homens, vieram na hora exata – comentou o duque, em tom de quem se desculpa. – Este jovem está imbuído de bons propósitos, mas precisamos mesmo falar com Beatriz.

– Wirklich? – perguntou Fëll. – Do que se trata?

– Nosso amigo aqui diz que se lembrou de um detalhe ligado ao jantar de ontem.

– Ah, é? O que foi?

Wedderhof bufou. Passou o lenço na testa, arquejante. Parecia acanhado agora que todos os olhos estavam fixos nele.

– Prefiro tratar disso com a Srta. Lepperstein.

– Warum nicht? É para já.

Fëll bateu na porta. Ela se abriu.

Beatriz se assustou com a entrada daquela avalanche humana. Recuou alguns passos, alarmada.

– Oh...

– Está tudo bem, senhorita. Acho que teremos novas revelações. Pode falar, Sr. Wedderhof. Estamos ansiosos para ouvi-lo.

– Assim, com todos vocês aqui? — perguntou o homem, inquieto e sem nenhuma cordialidade.

– Penso que não tem outra escolha... — cacarejou Fëll.

O colunista ficou alguns segundos sem dizer nada. Seu rompante de entusiasmo tinha esfriado sensivelmente.

– Fazer o quê... Eu refleti bastante na última hora. Eu sei quem mexeu no meu copo. Quero que a senhorita me diga se estou certo em minhas conjeturas.

A Srta. Lepperstein botou a mão no peito. Olhou para o grupo de pessoas ali, dentro de sua cabine.

– Se estiver ao meu alcance...

– Acho que está. Peço que me desculpem, é que fiquei meio eufórico.

– Estou ficando nervosa! O senhor não vai me dizer que...?

– Foi o seu marido — disse Wedderhof secamente.

– Como?

– Creio que foi o seu marido quem trocou o meu copo.

– Moa? – perguntou a Srta. Lepperstein, piscando muito os olhos. – Por que ele faria isso?

– Reconheço que não sei. Mas é a resposta mais plausível.

– Não faz sentido – disse Neusa.

Lembrando-se do caso mais tarde, Fëll notou que a partir dali as coisas começaram a acontecer vertiginosamente.

– Eu sei que é estranho! – acrescentou Wedderhof. – Mas eu consigo ver tudo nitidamente. Depois de provocar Madame Canelles, Colasanti veio até minha mesa. Disse alguma coisa sobre o nosso desacordo; pediu perdão pela ação indenizatória. Aquela lenga-lenga toda! Eu já tinha tomado meu drinque. Mas sei que ele veio com o copo dele na mão.

Salles citou um provérbio latino:

– Nem tudo pode andar ao nosso paladar.

– Está dizendo que meu irmão fez a troca dos copos? – perguntou Neusa, com desdém. – Ora, vamos! Isso é uma calúnia!

Yamb olhou para a mesinha. Notou que o copo com o remédio, que Miss Kaline tinha preparado para a Srta. Lepperstein, continuava ali. Não parecia ter sido tocado.

– Entenda como quiser, senhora – grunhiu Wedderhof. – Eu sei o que aconteceu. Se não quiser acreditar, não posso fazer nada.

– Estou tão confusa – disse Beatriz, apertando a cabeça. – Moa estava com remorsos... Ele comentou comigo. Mas isto? Por quê?

– Esperava que a senhorita me dissesse.

– Eu não vi nada. Não vi... Diga a ele, Sr. Fëll! O senhor sabe que eu diria se soubesse.

O detetive fez um gesto lacônico:

– Sim, não se aflija, senhorita.

– Tudo é uma farsa – prosseguiu a Srta. Brenneison. – O senhor é uma farsa, Sr. Wedderhof! Primeiro escreve aquela reportagem acusando Moacir daquela fatalidade com Bianca e o veículo. Agora está insinuando que ele quis... ora, nem sei o quê! É muita ousadia!

– Não estou insinuando nada.

– Desde quando é que um repórter fala a verdade? Vocês distorcem os fatos... Falam tudo o que lhes convêm. Bando de cretinos!

Fëll ficou espantado com a explosão da mulher. Toda a fleuma dela tinha sumido e um ódio consumidor ardia em suas pupilas.

Ele percebeu, pelo canto do olho, que uma sombra tapava a porta aberta. Virou o corpo – não notou ninguém.

Atrás de Fëll havia apenas o policial e o duque.

– A sua declaração é muito séria, Sr. Wedderhof – disse o delegado. – Se estiver mentindo, terá que responder por perjúrio.

– Qual é! Eu conheço o código civil, a constituição... Vocês é que estão sendo omissos. Estou lhes dizendo, em alto e bom som, que Colasanti pôs o copo dele na minha mesa.

– Com que objetivo?

– Como é que eu vou saber? Vocês são os defensores implacáveis da lei; descubram!

– Isto é uma infâmia! – gritou Neusa. – O senhor está manipulando as coisas. Colasanti pôs o copo dele na minha mesa! Seu jornalistazinho de araque!

Wedderhof enxugou a testa, as mãos trêmulas e pesadas.

– Segurem esta mulher! Segurem-na... Ou eu não respondo por mim.

– Resolveu mostrar as garras?... O que vai fazer? Também vai escrever um monte de asneiras sobre mim? — Ela riu desdenhosamente: — Até que faria gosto!

Fëll tinha perdido a cor. Murmurou uma praga:

– Pessoal, olhem o nível! A decência... Delegado!

Mais que depressa, Yamb chamou o oficial e ordenou:

– Tire a Srta. Brenneison daqui! Já!

– Senhor...

– Não discuta! Tire-a daqui.

O policial arrastou a Srta. Brenneison para fora da cabine. Ela protestou com veemência:

– Me solte! Que jeito de tratar uma mulher!

Alguns minutos se passaram antes que a calmaria voltasse a reinar; Fëll disse:

– Muito melhor... O senhor pode prosseguir.

– Prosseguir como? Eu acabei de ser desmoralizado! Isso já é demais!

– Vocês deviam ser mais enérgicos com essa mulher – reprovou o duque. – Parece uma lei rígida, mas é um avanço humanístico. Ela é ardilosa! A leniência não educa ninguém.

Yamb não gostou da recomendação.

“Que cada um cuide de si mesmo!”, pensou ele.

Fëll viu que agora Wedderhof olhava para Salles. Com uma expressão atenta. Parecia perturbado. Alguma coisa que tinha ouvido? Alguma coisa que estava vendo?

Beatriz continuou murmurando consigo mesma, aturdida.

– Me dão licença? – perguntou Wedderhof. – Tenho que sair daqui.

Ele ainda olhava para o duque, um pensamento fixo em sua mente. Estava refletindo, refletindo...

– Sr. Fëll, pode vir para minha cabine daqui a meia hora? Calculo que cometi um grande engano.

– Que engano? — perguntou Fëll.

– Daqui a meia hora — repetiu Wedderhof. — Até lá poderei lhe explicar tudo. Tenho que... colocar as ideias em ordem.

– Daqui a meia hora, então.

Fazendo uma vênia, Wedderhof virou-se para a Srta. Lepperstein:

– Eu lamento o incômodo. Agora as coisas estão se aclarando. Não foi Colasanti... o copo...

– Não? — perguntou Beatriz. — Sr. Wedderhof quem... quem foi?

–Vou revelar isso mais tarde... na hora oportuna. Senhores!...

Wedderhof saiu do camarote. Yamb coçou a nuca:

– Que um raio me parta se entendi essa!

– Tsc, tsc – reprovou Fëll. – Não consegue imaginar, mein Freund?

– Nem um pouco! Ele está aqui, expondo uma suspeita; tudo vai bem, até que dá uma louca nele. Subitamente ele diz que cometeu um engano e sai, sem mais nem menos. Essa é a investigação mais trabalhosa de que já participei.

– Está fazendo um julgamento muito insensível. Creio que finalmente vamos chegar a um porto seguro.

– Julga que ele lembrou de alguma coisa?

– Sim.

– O que será?

– Se eu soubesse, não estaríamos mais aqui. Estaríamos prendendo o assassino.

Fëll não desgrudava os olhos do duque. Norton Salles falava com uma suavidade clássica, quase científica. Por que será que Wedderhof olhara tão insistentemente para ele?

– O jeito é aguardar. Eu sugiro, delegado, que voltemos para a cabine do capitão. Vai ficar bem, senhorita?

– Vou. Suportei tudo até agora, não? – respondeu Beatriz, debilmente. — Prisioneira em minha própria lua-de-mel!

Fëll sentiu pena dela.

“Que resignação incrível! Tomara que as provações dela tenham um fim logo.”

– Tenho que lhe dar os parabéns. Aguente mais um pouco, senhorita.

Todos saíram da cabine.

Um espetáculo diferente os surpreendeu do lado de fora. A poucos metros, um casal brigava no convés.

Com energia, o professor Wolfgramm segurava o braço da Srta. Brenneison, tentando dominá-la. Ele estava pálido e havia um arranhão (que sangrava!) em sua face.

– Seu ordinário! – uivava ela. – Você achou que poderia me descartar quando quisesse?

– Pare, Neusa! O que foi que eu fiz?

– Não seja tão fingido! Acha que pode brincar com os sentimentos dos outros, Demétrio? Acha que pode?

– Contenha-se, querida. Eu rogo a você...

O vexame era total. Havia um tom de impotência na voz de Wolfgramm.

Assistindo à cena, o policial e Wedderhof – que ainda não havia ido para seu camarote.

– Parece que o casalzinho se desentendeu – disse Wedderhof.

– Ei, paparazzi! Isso não é da sua conta – vociferou Wolfgramm. – Caia fora!

Fëll revirou os olhos – que dia movimentado e caótico!

Neusa livrou o braço com um safanão; estava arfando quando disse:

– Adeus, Demétrio. Nem tente me seguir!...

– Espere... Vamos conversar! Neusa!

Ela se esquivou e se afastou decididamente.

Demétrio Wolfgramm balançou a cabeça, abalado. Olhou furiosamente ao redor.

– Quem foi o canalha que jogou ela contra mim? Que se apresente e dê um passo à frente!...

– É um desafio? – perguntou Wedderhof. – Não é uma proposta muito original!

– Senhores – interveio Yamb. – Cadê a diplomacia? São cinco e meia... Temos um inquérito para terminar.

– Fique fora disso, delegado! Essa questão é entre mim e ele.

– Pois não é mais. Oficial, conduza o Sr. Wedderhof para a cabine dele; depois volte ao seu posto. E o senhor, abra caminho!

O policial e Wedderhof foram para a popa do barco. Demétrio Wolfgramm, por sua vez, subiu para o outro tombadilho.

“Isso não vai ficar assim”, pensava ele. “Não vai mesmo.”

Fëll, Yamb e o duque ficaram sozinhos. Depois de uma pausa, Salles disse:

– Senhores, vou para o barzinho. Se precisarem de mim, estarei ao dispor.

Ele se foi. Yamb elevou as mãos languidamente:

– Vivendo e aprendendo... Quanta maluquice! Há uma distorção inerente nisso tudo; todos se esforçam por ser surpreendentes e originais. Já vi de tudo hoje. Mortes, rixas, contendas...

Fëll apontou um ponto branco que se movia na baía.

– É uma lancha... e vem para cá. Devem estar trazendo uma das provas do crime. Gut... Vamos fazer nosso último interrogatório.


Capítulo 20

 

– Onde coloco?

– Na mesa, bitte. Ali ficará à vista de todos.

Estavam na cabine do capitão. O delegado, com a maior sutileza, pôs o saquinho plástico na mesa. Dentro dele, a faca usada no assassinato.

– Os peritos fizeram um bom trabalho – elogiou Fëll. – Agradeça a eles pela boa vontade em nos mandar este artefato. Isso vai facilitar o nosso inquérito daqui por diante. Agora, a ação propriamente dita. Vamos falar com o viciado em suflês – Santelo.

Wellington Santelo instalou-se na cadeira. Deitou um olhar à mesa, mas não disse nada.

– Queremos lhe fazer mais algumas perguntas, tudo bem?

– Por mim, tudo okay. O que querem saber? Que sou engenheiro mecânico, falo bem duas línguas... Tenho também uma bandeira helvética, meu pai era consultor de investimentos suíços, morou num subúrbio de Zurique e tinha um Morris Minor azul.

– Vamos nos limitar ao dia de ontem.

– Ainda isso! Houve algum avanço?

Fëll ignorou a pergunta.

– Por exemplo, conhece essa faca, perto de seu braço?

O gordo siciliano se debruçou alguns milímetros:

– Eventualmente.

– Eventualmente? Isso significa que é sua?

– Em absoluto. Não é minha.

– Conhece, mas não é sua. Há uma contradição aí.

– É de Madame Canelles.

– Realmente?

– O cabo. É desproporcionalmente longo. Ela usou a faca para abrir um presente que Salles lhe deu ao jantar.

– O Sr. Salles... Que presente era?

– Um anel, ou coisa do tipo.

– Onde ela guardava a faca?

– Na bolsinha, creio. Sabem que certa vez ouvi uma palestra de sociologia? Dizia que as mulheres usam bolsas para se proteger dos olhares masculinos na rua. Não é curioso?

– Sumamente. Sr. Santelo, para nós a noite passada é um enorme mistério. Ora, o clima era abafado, quente. Mesmo assim, todos se recolheram cedo, antes das doze.

– É que existem certos atritos, sabe? Briguinhas não curadas. Para agravar...

Santelo foi dispensado.

– Muito comunicativo, o cidadão – comentou o delegado. – E eloquentemente inadequado. Duvido que tenha algum escrúpulo.

– Já saberemos. Vejamos agora Madame Canelles.

A velha senhora olhou o envoltório de plástico. Ficou impassível.

– É minha, sim.

– Creio que disse, de manhã, que não trazia nenhuma faca consigo.

Ela ajeitou o chapéu e empertigou-se.

– Ssshhhh... Tenho que congratulá-los pela insistência. Foi roubada de minha bagagem.

– Quando?

– Não sei, mas deve ter sido fácil. Muita gente esteve ontem em meu camarote.

– Phantastisch! Pode enumerá-las?

– Todos estiveram lá. ‘Oi’, ‘tudo bem?’, as falsidades de sempre.

– Deve me desculpar, Madame Canelles, mas sua faca não foi roubada durante o dia.

– Por que não?

– Há testemunhas que dizem tê-la visto com ela, à noite.

Madame murmurou ‘hm, é isso!’, e sacou a bolsinha. Extraiu dela uma faca de cerâmica.

– Deve estar falando desta aqui. Terminamos por aqui, senhores. Telefonei a meu sobrinho. Ele deve estar vindo me buscar.

– Deve nos perdoar, Madame. Ninguém pode sair do iate até às nove da noite.

– Isso... isso é um ultraje! — resmungou ela.

– Garanto que não. Mas... a senhora entende... há algumas coisas que precisam ser resolvidas.

– Esse martírio não vai ter fim? Arre!

Joanna Canelles saiu, sibilando majestosamente.

– Uma boa charada, essa que temos – disse Yamb. – Creio que Madame Canelles mentiu para nós. A faca que ela apresentou tem cabo curto. Santelo foi reticente. ‘Uma faca de cabo desproporcionalmente longo.’ Logo, não é a mesma.

– Existem várias possibilidades – atalhou Fëll. – Um diz que lia na hora que foi feito o disparo contra Beatriz Lepperstein, outro, que já dormia, etc. E tudo, repito, numa noite em que ninguém devia ter se recolhido antes das três da madrugada. Todos fizeram coisas suspeitas; até mesmo Miss Kaline é uma incógnita. Ela jura que nos contou tudo, mas será que fez isso? Se verificarmos bem, não tem cara de enfermeira. Não possui qualquer qualificação. E contratada na França? É desconcertante! Outro exemplo é a Srta. Gonçalves. Diz ela que se trancou no camarote, aterrorizada com o estampido do tiro. É uma ação que não combina com uma moça tão intrépida. Dos homens, aquele que surpreendeu foi o duque. Há uma aspereza nele que não é normal. Negou-se terminantemente a falar sobre alguns fatos. Uma péssima estratégia – a honestidade teria sido melhor. Não acho que mataria por míseros trocados, mas pode haver razões que ainda ignoramos. Minhas conclusões até aqui são claras?

– Claríssimas.

– Também temos o professor Wolfgramm. Ele falou, ontem, com Miss Kaline. Isto tem que ser revisto. Não existem provas de que haja qualquer coisa errada nisso, mas é bom ver todos os ângulos da questão. Os dois podem ter feito uma aliança. É uma hipótese sombria, mas não deixa de ser uma hipótese.

– Tão sombria – acrescentou Yamb – quanto a história de Colasanti provocando Madame Canelles. O que ele pode ter falado a ela?

– Sinceramente, não estou muito interessado nisso. O que interessa é que ele foi até a mesa, e que, nesse instante, alguém aproveitou a sua ausência e botou qualquer coisa em seu aperitivo.

– Um fato sem nenhum viés.

– Venha, vamos fazer uma pequena verificação.

Foram até a cabine número 3. Fëll apontou para os dois lados do deck.

– Note, o assassino tinha campo aberto para atuar. Ele podia correr para cá ou para lá. Lá e cá! Popa e proa... Por precaução, arrombou a porta do leito 11, aquela porta ali, mais atrás! Eu pergunto: por que não arrombou também a porta do camarote 3? Este aqui – que também está vago.

– Ah! Uma coisa que dá o que pensar.

– Exatamente. Isso nos leva a supor que a sequência dos crimes já havia sido planejada. Primeiro, Colasanti. Depois...

Fëll fez uma pausa repentina. Um lampejo de luz cruzou seu espírito, e ele deu um pinote.

– Depois? – perguntou Yamb.

– Nada. Acabei de ver uma outra possibilidade. Ja, das ist möglich! Eu deveria ter compreendido antes!

– Que possibilidade?

– Talvez a única vítima devesse ser a Srta. Lepperstein.

– É? Esquece que o assassino usou duas armas. Portanto, o alvo eram duas pessoas. Ou está querendo dizer que Colasanti foi morto de gaiato?

– Ainda não sei. Tenho que verificar... Deve estar aqui, em minha agenda.

– Duas armas, Fëll, lembre-se disso. O criminoso, ao vir para cá, estava pronto para matar. Ou será que, se queria atacar apenas a mulher, não sabia se devia apunhalá-la ou atirar nela? Outrossim, as armas pertenciam a pessoas diferentes. Por outro lado, por que o homem foi esfaqueado? Outra dúvida: qual foi a motivação do crime?

– Dinheiro sempre é um bom motivo. Quem se beneficiaria financeiramente da morte do casal? Creio que ninguém – exceto... lógico... a Srta. Brenneison.

– E ela tem sangue quente! Mas mesmo que não tivesse, é bom lembrar que as pessoas, às vezes, fazem coisas surpreendentes. É como você disse: Todos nós, sob pressão, fazemos coisas que normalmente não faríamos.

– É hora de ver o que Wedderhof quer de nós.

Passaram pelo policial que guardava a cabine da Srta. Lepperstein. Contornaram a popa. O sol brilhava alto.

A porta da cabine 18 estava entreaberta. Sem qualquer delicadeza, Fëll a empurrou e entrou.

Fëll parou em seco. Sentiu um nó no estômago quando viu o corpo de Wedderhof.

– Acho que estamos atrasados – comentou.

Dieter Wedderhof estava caído no chão, de barriga para cima. Imóvel, duro, sem sinais vitais. Os dois tiveram um estremecimento. Yamb se agachou apressadamente:

– Morto! Que mancada...

– Como foi?

– Sangramento... Obstrução da traqueia. Um rombo no pescoço. Um furo na jugular. Morte imediata. O instrumento ainda está aqui! Veja! É um acessório feminino.

– Ponta triangular e arestas redondas e polidas. Um limpador de unha...

– Perdemos nosso depoente – disse o delegado. – Se pelo menos soubéssemos o que ele queria conosco. Tinha lembrado de alguma coisa importante. Queria falar conosco sobre isso. Alguém o silenciou...

– O assassino deve ter escutado a conversa. Viu que sua identidade seria exposta e resolveu acabar com a ameaça.

Fëll se abaixou. Apalpou a garganta do cadáver:

– Um golpe só... Seco, inesperado, certeiro. Quem seria capaz de uma proeza dessas?

– Alguém que tenha estudado anatomia, medicina. Ou que tenha uma tremenda dose de sorte. Havia várias pessoas na cabine da Srta. Lepperstein. Qual delas você acha que pode ter sido?

– Lá estava o duque, a Srta. Brenneison, Wedderhof e a própria Beatriz Lepperstein.

Fëll citou a sombra que, por instante, tinha visto na porta. Teria outra pessoa ouvido a conversa? Se alguém tivesse surgido naquela hora, com certeza teria ouvido as afirmações do jornalista.

– Tem uma coisa que Wedderhof viu ou ouviu. Ele estava falando sobre Colasanti... não, isso foi um pouco antes. Depois que a Srta. Brenneison foi levada para fora, o rosto de Wedderhof mudou. Ele olhou para Salles, como se tivesse notado alguma coisa que, até ali, tinha passado despercebida. Mas o quê?

– Você disse “viu ou ouviu”. Ver, não acho que ele tenha visto. Mas ele pode ter ouvido. Sobre o que estávamos falando?

– O duque argumentou que deveríamos ter sido mais severos com a mulher. Ele disse: “Ela é ardilosa”. Foi depois disso que Wedderhof assumiu aquele comportamento inexplicável. Falou de um engano... de Colasanti.

– Ele pode ter lembrado alguma coisa relacionada à Srta. Brenneison – sugeriu Yamb.

– Pode ser. “Ardilosa”! Será que lembrou que fora ela quem mexera nos copos? Ou que, em outra ocasião, já a vira em circunstâncias suspeitas. Também tem a sombra... Qualquer um pode ter ouvido a voz de Wedderhof. Não podemos descartar a Srta. Gonçalves que, pelo jeito, incentivou a bebedeira de Colasanti. Foi ela quem ficou sozinha com ele no restaurante. O garçom afirmou que ele não estava embriagado; só os exames toxicológicos podem esclarecer se ingeriu alguma outra substância.

– O que é isto?

O delegado apontou duas ampolas de vidro âmbar de 5 mL no criado-mudo.

– É um tipo de sedativo – disse Fëll, verificando as ampolas. – A questão é: por que estão aqui?

Pela posição do corpo, Wedderhof não caíra estrondosamente. Primeiro viera a pancada; apoiado num dos joelhos, recebera o golpe com o limpador de unhas. Obstrução da traqueia, sem dúvida.

Os dois fizeram uma revista no camarote. Havia o smartphone, uma maleta com artigos de higiene e a máquina fotográfica. Nessa era de aplicativos e ferramentas digitais, aparentemente as pessoas não carregavam muita bagagem. Debaixo da cama, sapatos e o par de tênis; e do lado...

– As coisas vão ficar interessantes – disse Yamb. – Veja o que eu achei!

E puxou de lá um pé-de-cabra.


Capítulo 21

 

– Que matança! – bufou o capitão do barco. – Que chacina, senhores!

Marques olhou o cadáver e voltou a resmungar. Tinha vindo ao camarote de Wedderhof assim que fora informado da nova tragédia.

– Sabem o que isso significa? Estou desempregado. Inapelavelmente desempregado.

– Capitão, fique calmo.

– Esse pé-de-cabra... Foi com ele que arrombaram aquela cabine?

– Suspeitamos que sim.

– Ai, quanta desgraça...

Fëll balançou a cabeça, e esperou por uma pausa nas lamentações.

– Sim, é tudo uma desgraça. Por isso, capitão, vá imediatamente e reúna toda a gente na sala de jogos. Diga que queremos falar com eles. Também o policial.

– A Srta. Lepperstein?

– Ela deve ficar na cabine.

– Falo sobre o assassinato?

– Deixe isso por nossa conta.

Marques saiu, desanimado.

– O que pretende fazer? – perguntou Yamb, conferindo que eram quase 7 e meia. – Parece que boas risadas, fúrias honestas, lágrimas sentidas e um toque de drama, são sua especialidade!

– Vamos revistar as bagagens. Às vezes é necessário um tratamento de choque. Avisou os peritos criminais?

– Avisei. Acho que não gostaram... Eles vieram aqui, entregaram a faca e foram embora. Meia hora depois a gente volta a contatá-los... Torço para que você saiba o que está fazendo.

Passaram para o convés do barco. A tarde chegava ao fim.

Fëll entrou na sala de jogos; ainda não havia ninguém. Os dois se instalaram confortavelmente para esperar a tripulação. Yamb sentia um peso indefinível nos ombros.

“Dois crimes. Tantos suspeitos... E nós, vagando nesse vale de sombras tenebrosas!”

Em poucos minutos, o salão foi se enchendo. Um atrás do outro, todos vieram e foram se sentando. Norton Salles entrou e sem cerimônia procurou um lugar longe dos outros. A eletricidade impregnava o ar.

Marques e o policial apareceram por último. O capitão fez um gesto para Fëll:

– Todos aqui. Divirtam-se...

– Danke.

– Acho que falta um – atalhou Wolfgramm. – Aquela víbora venenosa não veio.

– Se está se referindo ao Sr. Wedderhof – disse Fëll friamente –, lamento informá-lo de que a víbora venenosa está morta.

Houve algumas exclamações convenientes de horror e surpresa. Wolfgramm deu um assobio:

– O caso se complica, hein? – disse, numa entonação um pouco exagerada.

– Sim, se complica. Para todos vocês.

– Como ele morreu? – perguntou Madame Canelles asquerosamente.

– Um ferro pontiagudo no pescoço – esclareceu Fëll. – Mas primeiro deram uma pancada na cabeça. Estava fora de combate quando foi assassinado.

– Quem quer que esteja fazendo isso, devia maneirar na crueldade – disse o duque Salles. – Se a coisa continuar nesse embalo, acabará virando um thriller de terror.

– Quem quer que esteja fazendo isso? – zombou Santelo. – Está querendo tirar o corpo fora, seu burocrata engomadinho?

O rosto do duque pintou-se com as cores do arco-íris.

– Você não tem o direito... Que deu em você para... para...

– Herren! – berrou Fëll. – Não é hora para essas picuinhas. Ouçam bem! Todos vocês, tragam as suas coisas a esse salão. Agora! Para que não haja qualquer dúvida, todos passarão por uma revista. Presumimos que o assassino articulou engenhosamente cada passo seu; não foram, por assim dizer, atos impensados, atos impulsivos, sem uma estratégia bem definida. Assim sendo, como estamos próximos do prazo limite...

– Trazer nossas coisas? – perguntou Zelly. – Por quê?

– De qualquer forma, todos irão embora logo. Busquem suas coisas... Primeiro, o Sr. Wolfgramm. Oficial, vá com ele!

– Já tenho minha bagagem aqui – disse Neusa Brenneison. – Eu sabia que uma hora vocês iriam nos revistar.

– Muito bem, Srta. Brenneison. Venha... Quanto aos outros, vão. Recolham tudo o que trouxeram consigo e voltem aqui.

A maleta de Neusa era pequena, mas prática. Havia um estojo com óculos, roupas e uma cinta. Yamb pôs tudo para fora. No fundo da maleta, um frasco de xampu de coco e algumas cartelas de jogo. Além de uma revista com fotos de carros antigos, havia também um par de luvas com um forte odor de graxa.

Ele empurrou as luvas com asco e suspendeu as cartelas.

– Joga, senhorita?

– Às vezes. Quem é que não joga?

Ela disse isso com certa vergonha. Viciada em jogatina? Yamb refletiu que muitas pessoas eram, e tinham problemas. Não parecia ser o caso daquela mulher, mas... Durante uma fração de segundos, nenhum dos dois falou nada.

– Onde passou a última hora, senhorita?

– Estive em minha cabine. Entediada. Chorando... Depois do incidente com Demétrio!... Eu me sentia um trapo. Eu julguei que ele fosse um homem mais ponderado. Não estava a fim de ver ninguém...

– É bipolar? – perguntou Fëll.

– É tão evidente assim? – Neusa deu um sorriso derrotado. – Piorou com a morte de Albert. Enviuvar nessa idade não é uma experiência muito agradável. Tomo remédios que poderiam nocautear um elefante.

– Faz suas unhas em casa, senhorita?

– As unhas? Não, vou a uma manicure. Uso um creme esfoliante e pronto. Gosto de cuidar de mim, sabem. Mexo com terra, flores... Sou muito vaidosa, por que não dizer?

– Vou lhe fazer uma pergunta pessoal. Quem a senhorita estava esperando ontem à noite, no convés, antes de irmos para o restaurante?

– Quem eu estava esperando? Está okay, minha mentira foi mal contada. Eu queria falar com Moacir, pedir-lhe que não fosse tão relapso. Passei ontem o dia todo, Sr. Fëll, observando toda essa gente e sabe o que descobri? Pouca coisa, para não dizer nada. Achei que devia alertar meu irmão. Sei que teria adiantado pouco, mas achei que devia pelo menos fazer a minha parte. – Ela fez uma pausa. Olhou para os dois homens e perguntou: – O que exatamente aconteceu com o Sr. Wedderhof?

Fëll deu de ombros.

– Não sabemos. Chegamos ao camarote dele para ouvir o que queria nos dizer. Encontramo-lo morto.

– Creem que foi homicídio?

– A senhorita não?

– Eu não tenho opinião formada. Mas é óbvio que ele levava um peso enorme na consciência.

– Onde pretende chegar, Srta. Brenneison? Pelo visto, está querendo dizer que Wedderhof se suicidou... Sim, as circunstâncias, as evidências, o estado de espírito dele – algumas coisas parecem apontar para isso. Mas creio que ainda não podemos ter certeza; nessa altura dos acontecimentos temos que ir com calma.

A Srta. Brenneison fez uma expressão de quem não ficou convencida. “Por que está tão ansiosa em garantir que foi suicídio?”, pensou Fëll. “Será uma casualidade ou há algo que queira ofuscar?”

Fëll se inclinou e, quase aos sussurros, perguntou:

– Aproveitando a ausência do professor... O que acha dele?

– Eu estava enganada sobre ele – retrucou ela sem um pingo de humor. – Demétrio não gosta de mim. Fui tapeada... Não é incrível? Ele gosta de outra, os senhores veem como são as coisas.

– Outra? Quem?

Neusa sorriu amargamente.

– Fui uma tonta. Servi como isca... Acreditam nisso? Uma isca! Perguntem a Demétrio... Ele que se explique.

– Obrigado.

A revista da mochila de Wolfgramm foi mais difícil. Era uma mochila cheia de bolsos e zíperes. Própria para quem pratica alpinismo e faz trilhas no Quilimanjaro. Encontraram um livro de Chomsky; Fëll o folheou, mas não havia bilhetes soltos. Moedas, um walkman, apostilas de um curso de informática – tudo espremido entre as roupas. No meio disso, um lenço com marcas de batom. Havia palavras em inglês bordadas no canto inferior:


Zip code

Eye

Lip

Lady

Yourself


Fëll cheirou o lenço – um odor de alfazema e de fritura! Ele afastou o nariz, desconfiado. Encarou o professor:

– Um acróstico... A primeira letra de cada palavra forma uma nova palavra: Zelly. Este é o seu segredo?

– Ah, nada escapa ao senhor!

– Isso é desprezível! Ficou com uma mulher para... Queria que a Srta. Gonçalves sentisse ciúmes. Ela também é volúvel?

– Não – respondeu Wolfgramm com ardor. Lançou um olhar fiel para Zelly: – O senhor não entendeu. Eu a amo! Conheço Zelly há tempo. Quando a vi a bordo, não consegui acreditar... Era um milagre! Queria chamar a atenção dela, e quando conversei com Neusa, tive uma ideia. Funcionou, não é?

Fëll se admirou com a frieza do professor. Estava começando a entender por que o casamento com Beatriz tinha naufragado. Um sujeito tão desarrazoado! Tão impiedoso!

– A Srta. Gonçalves lhe deu o lenço?

– Ontem, depois do jantar.

– Esta tarde... Depois da discussão com Wedderhof, aonde foi?

– Para o deck superior.

– Alguém o viu?

– Como é que vou saber? Mas... não, acho que não.

– Faltou mais alguma coisa, além do revólver?

– Não.

Além da estola de mink, Madame Canelles tinha uma bolsa em couro e tecido importado. Zíper em metal dourado e alça de mão. Havia os tradicionais vestidos – em cores berrantes e vivas; alguns vidrinhos com drágeas, aspirinas e um frasco com toxina botulínica.

“Botox”, pensou Yamb e fitou a mulher misericordiosamente. Se ela usara aquele produto, não surtira efeito nenhum – pelo menos, não para melhor.

– Depois que saí da cabine do capitão, fui para a cobertura. Não, Kaline não ficou comigo. Eu lhe disse para dar uma volta... Eu queria fazer o telefonema e falar com Charles a sós. Sim, Charles está chateado! Mas isso passa – não é o que o senhor disse?

– Perfeitamente, Madame. Fique com os outros, por favor. É a sua vez, Miss Kaline.

– Que mulher! – sussurrou Yamb. – As roupas estão completamente fora de época! Parece um manequim...

Fëll acenou e pegou a mala da americana. Pouca coisa – balas de menta, um lenço com as letras “S. C.” bordadas no canto inferior, um vidrinho com um indescritível líquido esverdeado (“Sabonete de maçã verde, Mr.!”), tintura para cabelo e um diário com anotações. Enfiada entre algumas peças íntimas, Fëll tocou numa caixinha quadrada; pegou-a e depois de dar uma chacoalhada, devolveu-a ao seu lugar.

– Miss, o que fez esta tarde?

– Estive com Mrs. Canelles. Depois ir para meu camarote, ler.

– Que livro é?

– Vinhas da Ira, de Sir Walter-Scott.

– Steinbeck.

– Mr.?

– O livro que citou... É de Steinbeck.

– Oh, é mesmo? Eu não gravar o nome do escritor. Mas ficar fascinada com a estória.

Zelly Gonçalves tinha uma bolsa da Petite Jolie. Tudo estava bem dobrado e arrumado. Um cheiro acridoce e penetrante se espalhou pelo salão. “Gott! Abrimos a porta da fábrica de perfumes!” Além das peças de vestuário, havia um molho de chaves, dois jogos de baralho, um laptop e uma caixinha de produtos de beleza. Fëll remexeu avidamente a caixinha; soltou um gemido interrogativo.

– Algo errado? – perguntou a Srta. Gonçalves.

– A senhorita tem lixas de unha, uma tesourinha e um aparador de cutículas. Não tem um limpador de unhas?

– Tenho, sim. Deve estar aí no meio.

– Temo que não.

– Oh! Que estranho... Eu sempre levo tudo comigo. Devo tê-lo perdido...

– Por acaso, não o perdeu na garganta do Sr. Wedderhof?

Zelly ficou lívida.

– Está dizendo que... meu limpador... Mas que coisa macabra! É hediondo!

– Só nos responda: a senhorita não ouviu uma conversa hoje à tarde? Uma conversa que seria sua perdição, e que a obrigou a eliminar o jornalista?

– Não, por quem o senhor me toma? – revidou a Srta. Gonçalves. – Fiquei no salão de festas. Os garçons – eles podem testemunhar... Eles me viram lá!

– Então tem um álibi!... Era de se esperar. Depois falaremos com os garçons... Próximo!

Zelly foi se sentar, soluçando baixinho. Wolfgramm correu para junto dela; murmurou um “Corja de miseráveis!” e estendeu um lenço para a moça.

Era a vez do duque. A mala de Norton Salles continha os pertences de um homem cosmopolita. Um pen drive, um paletó, gravatas (uma delas nova), um passaporte, alguns dólares e um elástico rasgado. Discretamente, Fëll abriu o passaporte; ficou impassível por alguns segundos.

“Hip, hip”, pensou consigo mesmo.

A seguir, pegou as gravatas – faltavam os prendedores.

“Hurra!”

– Viajo só com o básico – disse o duque. – Não costumo levar muitas tralhas.

– Pode emprestar um pouco a bengala, duque?

Salles vacilou; mas acabou cedendo.

Fëll pegou a bengala e a girou como se fosse um taco de beisebol. Pesou-a na mão e a devolveu.

– Leve e resistente...

– Foi uma experiência?

– Nada demais. Depois da discussão entre Wolfgramm e Wedderhof, o senhor foi para o bar. Ficou quanto tempo lá?

– Até há pouco, quando o comandante me chamou.

– Pode provar isso?

– Lamento, mas a resposta é não. Eu poderia ter saído a qualquer hora, se quisesse matar o colunista.

– Deu uma joia para Joana Canelles ontem à noite?

– Uma joia? Obviamente não.

Chegou a vez de Santelo. Antes disso, Fëll trocou algumas palavras com o policial.

– Viu quando o duque arrumou a bagagem?

– Sim – disse o rapaz louro.

– Ele não trazia mais nada?

– É curioso, senhor... Quando saímos da cabine, ele jogou um pacote na água. Ouvi um baque, mas não pude ver o que era.

– Ótimo, meu jovem. Vá, peça que a Srta. Lepperstein venha para cá.

A checagem da mala de Santelo foi meticulosa. Planilhas de desenho, duas ou três revistas, lápis e réguas – tudo se misturava numa profusão de cores e formas.

– Não fiz muita coisa. Fiquei zanzando pelo iate. A estrutura de aço – tudo isso me inspira. Pontes, prédios e meios de transporte – gosto de megaconstruções. Não sou um Niemeyer, mas a gente tem que se espelhar em alguém. Do nada, nada se cria.

– Esteve perto do camarote do alemão?

– Acho que estive. Mas não me perguntem se vi alguma coisa... Não vi nada, meus senhores. Fico feliz que finalmente vamos sair daqui.

– Sr. Santelo...

Fëll não conseguiu concluir a frase. O policial entrou no salão, quase sem ar; caminhou até Yamb, e cochichou alguma coisa em seu ouvido. O homem deu um pulo na cadeira:

– Que horror! Está certo disso?

– Sim, senhor.

– O que foi? – perguntou Fëll.

– Uma emergência.

– Que tipo de emergência?

– A Srta. Lepperstein...

– Espere! Pode ir, Sr. Santelo.

O siciliano pôs-se de pé, contrariado. Viu que não queriam que ele escutasse o resto do diálogo.

– Com a breca! – disse Santelo, e se afastou.

– Então, o que foi?

– O que temíamos, aconteceu – continuou Yamb.

– Depressa, diga!

– A srta Lepperstein... está morrendo.


Capítulo 22

 

Beatriz gemia, jogada de lado sobre a cama. Tinha as mãos enrijecidas e a respiração acelerada.

– O remédio!... – gemeu ela. – Um gosto amargo... Meu estômago! Me ajudem...

Fëll se debruçou e verificou o pulso da mulher. Alto. Inconstante.

Yamb instintivamente foi para a mesinha. O copo continuava lá, mas a quantidade de água era menor. Ergueu-o contra a luz e depois deu uma fungada. O aroma era intenso e enjoativo.

– Veneno!

– Que tipo de veneno?

– Ricino ou arsênico...

– Está certo disso?

– Não.

O delegado soltou uma blasfêmia.

– Por que eu não pensei nisso? Este copo ficou aí a tarde inteira! Aquela enfermeirinha passou a perna em nós, de qualquer forma.

– Miss Kaline? — perguntou Fëll.

– Você não viu nas coisas dela? Aquele frasco... Sabonete de maçã verde, uma ova!

– Ao contrário – disse Fëll. – Acho que o que você disse favorece a inocência dela. Se o copo ficou na mesa, qualquer um pode ter acrescentado o veneno.

– Este caso está me deixando de cabelos grisalhos.

Yamb levou a Srta. Lepperstein até a pia do banheiro. A Srta. Lepperstein teve um acesso de vômito. Voltou com o rosto flácido, sem cor.

– Quem está fazendo isso comigo, Sr. Fëll? Quero sair daqui... Vão acabar me matando! Eu... eu não quero morrer. Não quero...

– O medicamento ficou nesta mesinha, senhorita. Quantas pessoas vieram, entraram... Quantas pessoas circularam nesta cabine... Era a chance perfeita.

Yamb estava em ebulição. Não era um pessimista, mas a tarefa que tinham diante de si lhe parecia invencível. Os minutos passavam, passavam... Raios! Como vislumbrar uma luz naquele mar de interrogações e enigmas?

– Pouco mais de uma hora – grunhiu. – É melhor admitir a derrota, meu caro.

– Um gosto tão amargo – gemeu Beatriz. – Não era o gosto do remédio que Kaline deu para mim de manhã. Acham que eu vou morrer? Tão amargo...

– Não, a senhorita bebeu pouco. Tudo ficará bem.

– Tentaram me matar duas vezes... Duas vezes num só dia. Quem está por trás disso? O que foi que eu fiz?

Os braços da mulher tremiam convulsivamente.

– Fizemos um sacrifício em vão – prosseguiu Yamb. – Daqui a pouco todos deixarão o iate. Nós ficaremos aqui... com cara de bobos.

Fëll meditava. Sabia que o tempo se escoava. A morte de Colasanti... Depois o assassinato de Wedderhof! Alguém agira... Alguém tinha destruído a vida dos dois. Agora a coisa fora longe demais. A Srta. Lepperstein estava ali, com sintomas de envenenamento.

– Alguma coisa não confere? O quê? Todas as provas foram apresentadas... A verdade está em algum lugar. Onde?

“Alguma coisa não se ajusta em todos esses episódios. O quê? Gaita-de-foles na Bolívia... Gaita-de-foles... Dentes falsos! Não! Não é isso... Calor – 40 graus... Óculos de sol... Chaminé.... “Tem pessoas que usam roupas fora de época!” Roupas... época!”

Uma ruga se formou em sua testa. Os olhos por trás do monóculo cintilaram violentamente.

– Nosso sacrifício não foi em vão... Schliesslich! Julgo que o caso está perto do desfecho.

– Oh, Sr. Fëll!

– Sim, senhorita. Fiquei aqui pensando... Tudo está se encaixando maravilhosamente.

– Precisam de ajuda? – perguntou Marques, aparecendo na porta. – Tenho algum conhecimento de primeiros socorros. Eu cuido dela para vocês...

– Wunderbar, capitão. O senhor chegou oportunamente. Venha, vou lhe dar algumas instruções.

Sem a mínima consideração, Fëll puxou o homem para fora da cabine. Parlamentou com ele por dois ou três minutos. Marques arqueou as sobrancelhas, alarmado.

A seguir, Fëll e Yamb voltaram para a sala de jogos.

Madame Canelles e Miss Kaline esperavam por eles. Parecia que tinham alguma coisa a dizer. A moça estava assustada como um passarinho; sua voz saiu suplicante e queixosa:

– Queremos falar com o senhor, Mr. Fëll.

– Pois, não. Vamos sentar.

O peito de Miss Kaline subia e descia num ritmo irregular.

– Nós não sermos leais com os senhores...

– Ela contou um monte de coisas, é isso o que ela está querendo dizer – atalhou Joana Canelles. – Vocês devem ter ficado com a pulga atrás da orelha. Diga a verdade a eles, Kaline.

– Não é necessário – disse Fëll. – Eu sei de tudo... Pelo menos da maior parte...

– Mister?

– Vocês duas engambelaram todo mundo, hein?

– O que quer dizer?

– Engambelar significa enganar, Miss – disse Yamb gentilmente.

– Ela sabe disso, meu amigo. Ou não é mesmo, Srta. Sara Canelles?

A moça soltou uma exclamação de espanto. Madame Canelles, por outro lado, cruzou as mãos no colo, pacientemente.

– O senhor acha que sabe... Então nos diga.

– Não, eu não acho. Eu sei. Eu sei que essa moça, que a senhora apresentou como sua enfermeira, é sua filha. Muitas coisas apontavam para isso. Primeiro, a falta de qualificação farmacêutica. Depois, o lenço na mala com as duas iniciais – S. C. Lembrei que li o nome de sua filha num site: Sara Canelles. Tem mais... A sua filha trabalhou alguns meses no Hotel Ritz Carlton, em Paris. Mas houve um escândalo – clientes começaram a reclamar do sumiço de objetos. Foi feita uma averiguação. Acharam várias coisas no quarto de Sara. Ela acabou sendo indiciada... A senhora interveio; quis pagar a fiança e encobrir o caso. Não deu certo. Num ato sem explicação, a senhora conseguiu fugir com a sua filha. Suborno?... Ousadia?... Ninguém sabe. Mas aí surgiu a complicação: Sara estava livre, mas a nódoa no nome estava lá, indelevelmente marcada. Não podia ser apagada. Quando foi convidada para esta turnê, o seu dilema cresceu. Como trazer a filha sem o risco de passar por um vexame? A solução – fazê-la passar por outra pessoa. Sim, era perfeito! Além disso, a senhora fez seu papel com maestria. Aquela rigidez! Aquelas frases duras! Tudo isso tornou a personagem da americana indefesa mais convincente, mais real.

– A teoria é apaixonante. Mas, se Kaline é minha filha, não acha que alguém a teria reconhecido?

– A aparência, hum... Na bagagem tinha uma tintura para cabelo. A cor e um penteado causam uma mudança profunda.

– O sotaque?

– Imitação.

– Estes documentos?

– Forjados. Mas creio que está mentindo, Madame. Alguém descobriu o ardil. Ontem à noite, Colasanti foi até a sua mesa. Ele deve ter dito algo assim: “Como sua filha fica bonita de cabelos louros!” Ou: “Vejo que a senhora é uma mãe extremosa!” Qualquer coisa do gênero, mas que deixou a senhora irritada. Desconfiei logo que havia uma razão simples para os seus gritos, Madame. Mas só hoje discerni a conexão que existe entre vocês duas.

A máscara de Madame Canelles se descolou por um instante.

– O senhor não é casado. Não sabe quanta coisa um pai ou uma mãe investem para criar uma filha. Tantas preocupações! Tantas noites sem dormir! Depois vem o dia em que ela sai de casa e vai para longe. A saudade vira uma dor constante... De repente – aquela filha está presa! Presa como uma criminosa comum... O que o senhor faria nessa situação? Ficaria de braços cruzados, vendo enquanto ela afunda?

– Entendo, senhora.

Joana fez um esforço para aplacar a emoção. Ergueu o queixo desafiadoramente:

– O senhor não entende... Mas então? O que pretendem fazer? Vão denunciar Sara?

Yamb sentiu os olhos felinos da mulher cravados nele. Na verdade, estava surpreso com aquelas revelações. Virou-se para a moça. Havia uma expectativa torturante no rosto de Miss Kaline – isto é, Sara Canelles.

– Bem – respondeu ele. – Não acho que estamos aqui para discutir um caso de extradição. Suponho que nosso alvo atual é um assassino, não é mesmo, Fëll?

– Perfeitamente.

– Obrigada – disse Madame Canelles, um pouco menos beligerante.

Salles se aproximou com uma palpitante expressão de interesse. Coçou a nuca, depois perguntou:

– Tudo em ordem, senhores? Vocês saíram correndo como se fosse o fim do mundo. Como está Beatriz?

– Melhor. Ela teve um ligeiro mal-estar.

– Que bom! Já tivemos a nossa cota de mortes.

– Foi uma pequena intoxicação. O comandante está cuidando dela.

– Ele é médico?

– Não. Ele tem um certo conhecimento na área.

Talvez fosse impressão de Yamb, mas Salles parecia ter ficado preocupado. Teria sido por causa da nota sobre a Srta. Lepperstein?

– Já que está aqui, Sr. Salles – disse Fëll –, pode nos dar um minuto? Sente-se... O senhor é uma pessoa vivida. Queríamos falar sobre isso, se não se opõe.

– Naturalmente.

– No início, nós supúnhamos que o senhor fosse agiota. Deixe-me terminar... Aos poucos, no entanto, as coisas foram mudando de figura. Alguém disse que viu o senhor dando um presente a Madame Canelles ontem à noite.

– Já lhes garanti que não fiz isso.

– Sim, porque na verdade foi o contrário: ela entregou um presente ao senhor. Em retribuição a um trabalho que fez por elas. Achamos uma gravata nova entre suas coisas, Sr. Salles. O fato é que o senhor não é um agiota, mas um falsificador. Um falsificador de documentos.

– Alguém tem que deter o seu ego, Sr. Fëll.

– Quando abri a sua mala, havia um passaporte com a sua foto... mas não com o seu nome. Isso por si só já é um crime – falsidade ideológica. Agora mesmo Madame Canelles apresentou documentos falsos para nós.

– Qualquer um pode fazer uma falsificação. Basta ter uma impressora escaneadora, tinta e uma foto 3x4. Sou inexpugnável, Sr. Fëll.

– Quando me deixou ontem à noite, no convés, o senhor parecia transtornado – disse Fëll. – Deduzo que, quando o senhor viu Colasanti, lembrou que tinha alguns assuntos particulares a acertar com ele. Presumo que teve que esperar até que o garçom o ajudasse a chegar até o camarote dele...

– Pode ir parando. Não estive na cabine dele, se é isso o que está dizendo.

– Aonde foi, então?

O duque relutou em falar.

– Eu tinha combinado uma coisa com Miss Kaline. Ela pode confirmar... Eu estava com o senhor no deck de cima quando lembrei que ela disse que me esperaria na popa do barco. Depois que descemos, e o senhor falou com Colasanti, fui me encontrar com a moça.

– Miss Kaline... O senhor queria agradecer-lhe pela gravata que recebeu?

– Talvez. E daí? Quem é que se importa? Se não tiverem mais nenhum assunto, com licença...

O duque levantou-se e fez uma mesura. Depois voltou para seu lugar, do outro lado do salão.

– Schade! – suspirou o austríaco. – Devíamos ter-lhe dado voz de prisão quando tínhamos as provas em mãos.

– Espero que isso lhe ensine uma lição – disse Madame. – O senhor pode saber de muitas coisas, mas...

– Senhora, devo adverti-la que, se Fëll estiver certo, logo o duque estará preso em nossa rede – interrompeu Yamb. – Falsificações e lavagem de dinheiro... É o cúmulo da audácia!

Sara se encolheu, espantada com a agressividade do delegado. Parecia a ponto de chorar. Madame Canelles deu-lhe um olhar imperativo:

– Controle-se, filha! Não se assuste por qualquer coisinha.

– Desculpe, mãe...

Fëll consultou o relógio. Eram vinte para as nove.

– Cuide desse inquérito mais tarde, delegado. Agora temos um assunto mais urgente para tratar. Temos um assassino para desmascarar.


Capítulo 23

 

Edmund Fëll olhou para o grupo de pessoas, e fungou. “Acendam as luzes”, era a mensagem subliminar, “o célebre ator acaba de subir ao palco.”.

Aquela reunião era mesmo exótica.

– E finalmente estamos aqui, para dar um fim a esse caso. Estivemos durante o dia diante de um assassinato incompreensível – de Moacir Colasanti. Depois, para complicar o que já estava complicado, tivemos a morte do Sr. Wedderhof. Foi uma investigação árdua, mas acho que tenho as respostas certas.

– Não é emocionante! – bufou Wolfgramm. – Ele acha que tem as respostas certas!

– Silêncio! – disse Neusa. – Se não quiser ouvir, pelo menos cale a boca.

– Continue, Sr. Fëll – estimulou a Srta. Gonçalves.

– Pois bem, conforme eu estava dizendo, a investigação chegou ao fim. E, em linhas gerais, o que aconteceu foi o seguinte: 1o. Colasanti é morto com uma facada; 2o. Acontece o primeiro atentado contra a Srta. Lepperstein; 3o. Wedderhof é assassinado com um objeto triangular; e 4o. A Srta. Lepperstein quase morre envenenada.

– Quando? – perguntou Neusa. – Essa é nova para mim.

– Há pouco – disse Santelo. – Aqui é assim. Pessoas morrem, e ninguém é informado de nada.

– O assassino agiu conforme um plano premeditado, é verdade. A primeira coisa que fez foi mandar as mensagens de texto com as ameaças. Apesar disso, é incrível como conseguiu desferir dois golpes numa só noite – e sem que ninguém tenha visto nada. Acompanhem comigo os passos que ele deu ontem à noite. Primeiro, o criminoso põe um sonífero na bebida de Colasanti. O garçom disse que, na hora de deixar o restaurante, Colasanti não conseguia se erguer da cadeira. Intrigado, o garçom inspecionou a mesa e qual não foi a surpresa! Alguém trocara os copos de lugar. De início, nossa desconfiança pendeu para Wedderhof, o único que também tinha bebido rum. Será que o jornalista teria motivos para matar Colasanti? Sim, havia um rancor mal curado entre eles. Mas isso não nos interessa, por enquanto. O fato é que, com o italiano inconsciente, foi fácil dar-lhe a facada fatal.

“Pronto, estava consumado o primeiro crime. Rápido, eficaz e silencioso! Agora faltava a outra vítima. Mas, antes de falar do resto, é necessário esclarecer uma coisa. Eliminar a Srta. Lepperstein não estava nos planos iniciais do assassino. Isso só foi acrescentado ao plano por causa da presença de uma pessoa: Edmund Fëll.”

– Eu já lhe disse – interrompeu Salles. – O seu ego é maior do que o senhor.

Impávido, o detetive continuou:

– Vou retomar esse detalhe mais adiante. Pouco antes do tiro, a Srta. Lepperstein esteve em minha cabine. Ela pressentia que alguma coisa estava para acontecer. Quando volta para seu camarote, alguém a puxa por trás. Com violência, o colar é rasgado e uma arma dispara. O tiro erra o alvo e perfura a parede. Mas o assassino não sabe disso. Ele, para fechar o homicídio com chave de ouro, bate com a coronha da arma na nuca da mulher. Ela cai desmaiada. Na fuga, o criminoso larga o revólver.

“Quando eu saio para o tombadilho, vejo Santelo com a mão no trinco da porta de sua cabine. Ele está suado e reclama do calor. Vamos para a cabine de Beatriz Lepperstein. Quem já está ali, ajoelhado perto do corpo? Wedderhof. Depois que Beatriz volta a si, aviso-a do perigo que ainda corre. Peço-lhe que ela não saia da cabine e deixo Sara tomando conta dela.”

– Quem? – perguntou Wolfgramm.

– A filha de Madame Canelles – Miss Kaline.

Houve alguns cochichos entre os presentes, intrigados com a revelação. Joana Canelles ergueu o queixo garbosamente.

– A filha? – Wolfgramm deu um assobio. – Vejam só! A ladra...

– Isso não vem ao caso, Sr. Wolfgramm – advertiu Fëll. – Vamos nos concentrar nos fatos de ontem à noite. Onde parei? Ah, sim, Sara ficou com a Srta. Lepperstein.

“Qual foi o álibi que cada um apresentou? Zelly Gonçalves tinha falado com Colasanti no restaurante. Wedderhof disse que a viu discutindo com Beatriz e que Beatriz saiu de lá em prantos. Zelly diz que, depois disso, foi ler em sua cabine. Madame Canelles alega que tomou seus comprimidos e dormia profundamente. (Tudo parecia um clichê.) Sara diz que estava pronta para se deitar. Mas, quando a vimos, o traje de Sara não era bem esse. De qualquer modo, que motivos ela teria para matar o casal? Nenhum, aparentemente. Salles, por sua vez, tinha um desagravo financeiro para vingar. Wolfgramm era o ex-marido – e talvez ciumento.”

– Ciumento, eu? Isso não passa de especulação.

– Quais seriam os motivos de Zelly? Ela namorou Moacir Colasanti anos atrás, e foi rejeitada. Isso seria suficiente? Já vamos ver. Agora a pergunta era: o que Beatriz Lepperstein tinha a ver com essa história? Por que alguém iria querer matá-la?

“Esta tarde, Wedderhof afirma que foi o próprio Colasanti quem trocou os copos, ontem. Então, sem mais aquela, ele olha para Salles e diz que se enganou. O que ele viu? Ou o que ele ouviu? Para disfarçar, Wedderhof diz que vai nos revelar tudo dali a meia hora. Várias pessoas ouvem-no falar. Pouco depois, quando chegamos à sua cabine, o colunista está morto.

“Pensei logo numa teoria. Poderia ter sido o próprio Wedderhof quem matara Colasanti. Poderia ter sido ele quem atirara na Srta. Lepperstein. Poderia ter sido ele quem colocara o veneno no copo dela. Claro, tudo fazia sentido. Ele tinha dito: “Eu sei quem mexeu no meu copo. Quero que a senhorita me diga se estou certo em minhas conjeturas.” Dizendo que precisava falar com a Srta. Lepperstein, ele entrara na cabine dela. Enquanto todos se moviam para lá e para cá, Wedderhof poderia ter introduzido o veneno na água. Bastariam alguns goles e a Srta. Lepperstein estaria morta... Depois disso, ele recorrera ao suicídio. Tudo apontava para isso. Ele estivera nos locais certos. O pé-de-cabra foi encontrado em sua cabine. Wedderhof tivera o motivo, as oportunidades e as armas.

“Vamos fazer um restart. Vamos analisar outra possibilidade. Para quem reverteria o dinheiro, caso Colasanti e a esposa morressem? Para a Srta. Brenneison?

– Isso é ridículo! – esbravejou Neusa. – Moacir me implorou para vir. Por que eu iria matá-lo?

– Estamos apenas testando, experimentando, afiando e polindo todas as hipóteses. Vejamos Wolfgramm – o revólver era dele. Talvez Wedderhof tenha se lembrado de Demétrio Wolfgramm quando citou o episódio dos copos. Todos vimos a discussão entre os dois, à tarde, quando saímos da cabine de Beatriz. Mas ninguém viu o que Wolfgramm fez depois que foi intimado pelo delegado a se retirar. Ele pode ter voltado e ido falar com o jornalista. Lá, assim que entrou na cabine, pode ter enfiado o objeto de metal no pescoço dele. Mas suponhamos que estivéssemos seguindo pistas falsas desde o início.

– Pistas plantadas intencionalmente? – perguntou Yamb.

– Jawohl! Pistas que pretendiam desnortear qualquer investigação posterior. Notem – o revólver, segundo a Srta. Sara, estava jogado diante da porta da cabine 11. Exatamente a porta que tinha o trinco estourado. Num primeiro momento, poderíamos deduzir que era uma coincidência; mas e se não tiver sido uma coincidência? Outro ponto: no chão da cabine de Colasanti encontramos dois prendedores de gravata. De quem seriam? Teriam sido perdidos pelo assassino? Eu lhes digo, porém, que os prendedores não foram perdidos – eles estavam lá de propósito. Tudo fazia parte de um jogo previamente elaborado.

“Wedderhof e Zelly disseram que viram a Srta. Lepperstein no restaurante, pedindo ao marido que não bebesse mais. Ele retrucou que iria beber o quanto quisesse. Wedderhof sai. Há um pequeno desentendimento entre as duas mulheres; Beatriz sai, chorando. Zelly e Colasanti ficam a sós; ele a esta altura está morrendo de sono. Enquanto o garçom arrasta o homem para a cabine dele, o assassino já está lá dentro, à espera.

– Pouco provável – resmungou Santelo. – O garçom teria visto.

– Não se ele estivesse no closet. Depois de matar Colasanti, o criminoso vai para minha cabine. Dali, visita Miss Kaline. A seguir, volta para o seu camarote, despedaça o próprio colar e dá um tiro no vazio.

– Beatriz? – balbuciou Wolfgramm, revoltado. – O senhor deve ter tomado algum alucinógeno.

– Não tomei alucinógeno nenhum. Justamente, Beatriz Lepperstein! Tudo tem seu fundamento. O senhor mesmo disse que ela não era tão tola quanto fazia crer diante de todo mundo! Perguntei a mim mesmo: por que ela teria mudado tanto assim? Reparem que várias partes se juntam quando se analisa friamente o caso. A Srta. Sara disse que havia um calo na cabeça da Srta. Lepperstein! Lembro que, quando Colasanti veio falar comigo em meu escritório, ele mencionou que, dias antes, uma floreira tinha caído e acertado a esposa; ela chegara a fazer pontos por causa do acidente. Esta poderia ser a origem do calo! Havia também uma marca violácea em seu pescoço, supostamente um vergão causado pelo colar que fora arrancado. Mas outra vez não existia prova de que a marca fosse recente. A primeira vez que conversei com Beatriz Lepperstein, ela usava uma echarpe, que cobria inteiramente o busto. E ontem, durante o dia, ela envergou um cachecol cashmere, uma peça que as pessoas normalmente não tiram do armário no verão. Originalmente, ela pretendia cobrir a marca na pele do pescoço com o colar, mas, por infelicidade, ele tinha caído entre a roupa de sua bagagem. Só mais tarde, e com ajuda da Srta. Brenneison, o colar foi recuperado. Yamb disse algo sobre mulheres que vestem roupas fora de moda, e isso foi significativo. Comecei a relacionar as coisas. E se a Srta. Lepperstein estivesse fingindo a sua fragilidade? E se ela estivesse fazendo um faz de conta?

“Notem o que aconteceu quando Wedderhof falou com a Srta. Lepperstein, hoje à tarde. Depois que Neusa Brenneison foi levada para fora, o duque disse: “Ela é ardilosa!” Como num passe de mágica, o rosto de Wedderhof se transformou numa pedra. “Sim”, ele deve ter refletido, “ela é ardilosa. Está nos enganando desde o início!” Mas ele não estava pensando na Srta. Brenneison. “Eu vi Colasanti vindo para a minha mesa, ontem à noite – e a esposa veio junto com ele. Ela deve ter trocado os copos!” Para disfarçar a sua suspeita, marcou conosco que fôssemos conversar com ele mais tarde. Depois da confusão com Wolfgramm, Wedderhof é escoltado pelo policial de guarda, e os dois se afastam. É a chance perfeita; com o terreno livre, a Srta. Lepperstein sai de sua cabine e, sorrateiramente, se move pelo convés e entra na cabine de Zelly Gonçalves, um pouco adiante. Ali furta o limpador de unhas e, quando sente que não será vista, vai pela popa e bate na porta de Wedderhof. Assim que executa o crime, Beatriz deixa o pé-de-cabra e o vidrinho com o sonífero em locais que sabe que serão revistados.

– Como ela voltou para a própria cabine, se o policial estava novamente montando guarda? – perguntou Santelo.

– Creio que foi fácil. Ela permaneceu na cabine de Zelly; era um risco mas que não podia ser evitado. Quando eu e Yamb descobrimos o cadáver, chamamos o oficial, e com isso lhe deixamos o caminho outra vez aberto.

– Por que Beatriz tomou veneno, se ninguém desconfiava dela? – interveio Sara.

– Pela mesma razão que arrombou a cabine 11 e não a cabine 3 – para despistar. Em realidade, não houve ingestão de veneno nenhum. Ela deixou o copo com o remédio intencionalmente na mesinha; acrescentou um pó tóxico, mas em vez disso tomou alguma outra coisa que causou sintomas de mal-estar. Fizemos exatamente o que ela julgou que faríamos: começamos a teorizar sobre a quantidade de pessoas que poderiam ter cometido aquela barbaridade. Uma coisa inteligente!

– Ainda não estou convencido – teimou Demétrio Wolfgramm. – Por que Bea faria isso? É surreal demais.

Fëll uniu a ponta dos dedos.

– Por que ela fez isso? Por ter uma personalidade narcisista; ou por ter dificuldades em se relacionar com homens dominadores. Quem é que vai saber? Alguém sob pressão é capaz de muitas coisas. Depois de casar, a Srta. Lepperstein não demorou a descobrir que Colasanti é truculento, cisma com tudo o que ela faz e é cheio de ciúmes. E o pior, o homem ainda está sob acusação de ter colaborado com a morte da mulher anterior. Ela fica inquieta, como uma leoa na jaula. Ela pensa, pensa... Até que uma ideia lhe ocorre. Havia só um jeito de sair daquela enrascada – dar um fim definitivo no marido. Mas não poderia ser uma morte num lugar isolado, pois isso logo atrairia suspeitas que poderiam incriminá-la. Assim a Srta. Lepperstein planeja a excursão pela baía, um evento público, e que atenuaria efetivamente as desconfianças. Depois de alugar o iate, ela senta e começa a pensar em pessoas que tem algum tipo de destempero com Colasanti. Um a um, ela anota os nomes. Ele fica zangado ao saber disso tudo, mas acaba mordendo a isca. “Se for para o bem de todos”, diz consigo mesmo, “eu aceito a turnê.” Mas então Colasanti toma uma atitude que não está nos projetos dela – ele vem e me contrata. Quando ela fica ciente disso, sua reação instintiva deve ter sido de horror, afinal a intervenção de um detetive, não importa o seu status ou sua fama, sempre proporciona alguns inconvenientes. Mas, em seguida, retomando as rédeas de seu plano inabalável, a Srta. Lepperstein pensa o seguinte: “Não posso desistir agora... Vou perpetrar o crime! Como poderei manter esse investigador longe de mim? Tenho que reajustar algumas coisas; talvez um pouco mais de insanidade... alguns pequenos retoques!” Foi assim que ela concebeu as mensagens para si mesma, o tiro que atingiu a parede do camarote... e, para dar mais realismo ao seu papel de mulher devotada e feliz, passou ontem o dia agarrada a Colasanti, demonstrando um amor fiel e verdadeiro.

– Se ela fez mesmo tudo o que o senhor diz – redarguiu Santelo –, fomos muito paspalhões por não ter suspeitado do ardil dela.

– Em partes, sim – disse Fëll, estalando os beiços. – Essa mulher tem uma genialidade pueril... automática, extremamente eficaz. Conseguiu iludir a todos nós.

– Menos o senhor – disse o duque.

– Nenhum estratagema, por mais sofisticado e engenhoso que seja, é imune a falhas. Sim, tive o privilégio de notar isso a tempo, mas a que custo? Duas pessoas morreram, senhores, e terei que arcar com parte da responsabilidade nisso.

Deu um suspiro cavo e grave. Tão cavo e grave que, por uns segundos, o silêncio imperou no salão.


Capítulo 24

 

Minutos depois, Fëll e Yamb decidiram que o capitão deveria levar o iate para o cais. Acompanhado de Neusa Brenneison, o austríaco fez a sua última visita a uma pessoa que, em breve, responderia pelos seus atos num tribunal.

– Tem certeza que quer fazer isso, Srta. Brenneison? – perguntou ele. A porta da cabine da Srta. Lepperstein estava na frente deles.

Ela apertou os lábios finos, resolutamente.

– Tenho, sim.

– Se fosse por mim, eu não permitiria que viesse até aqui, senhorita. Acho que não deveria se despedir da viagem dessa forma. Espero que saiba o que está fazendo.

– Eu também, Sr. Fëll.

O comandante Marques abriu a porta depois da primeira batida. Evidentemente ainda não estava a par dos últimos fatos.

– Capitão, como está a sua paciente?

– Bastante bem. Essa menina tem uma resistência de ferro.

– Fico muito grato por ter cuidado dela. Gostaríamos de lhe pedir que levasse o barco para o porto. O pesadelo já terminou.

– É bom ouvir isso. Quem é o autor dos crimes?

– Pergunte ao delegado. Ele foi para a cabine de comando. Lá o senhor obterá todos os detalhes.

– Muito bem – disse Marques, e saiu.

Beatriz estava deitada numa posição fetal. Entreabriu os olhos e, quando viu quem era, sentou-se na cama.

– Bem, estão aqui para me trazer um pouco de conforto?

– Sim, senhorita. O maior conforto que pudermos dar.

Fëll não se sentia feliz. No fundo, tinha uma admiração secreta por aquela mulher. Tão linda, tão sagaz e... tão fatal. Era uma pena que tivesse usado a inteligência para uma coisa tão vil. Se alguém a houvesse orientado melhor... Que atriz não teria saído dali?

– Quem foi que matou meu marido?

A voz dela era um cicio suave, quase inaudível. Olhava ora para o detetive ora para a cunhada, com uma angústia teatral e plástica.

– Receio que o jogo acabou, senhorita – respondeu Fëll. – Chegou a hora de por as cartas na mesa.

– Jogo? Do que o senhor está falando?

– Apesar de tudo, tenho que lhe tirar o chapéu. Quase fui enganado... Na noite em que conversou comigo no restaurante, a senhorita me perguntou se eu a achava burra. Posso lhe dizer, com toda a sinceridade, que não. A senhorita é uma das mulheres mais envolventes que já conheci.

Beatriz escutou aquilo com os ombros caídos. Parecia mesmo que iria chorar, e o rosto transmitia o mais completo abandono. Ela refletia e olhava para eles.

A medida que compreendia o significado das palavras de Fëll, seu corpo foi se erguendo, até assumir uma postura firme e altiva. De repente, a sua extrema tristeza se dissipou e ela deu uma gargalhada. Foi uma gargalhada sinistra... Espontânea...

– Ah, um ponto para o senhor. Quer dizer que todo o meu esforço foi em vão?

O detetive fitou aquela mulher... aquela espetacular mulher... e teve pena.

– Não em vão. Apenas insuficiente.

– Então me diga. Qual foi o meu erro?

– A senhorita deveria ter parado na história do tiro em falso. Mas a tentação foi forte demais. Achou que poderia ir mais longe. Chegou ao ponto de forjar um envenenamento!

– Eu não fui convincente? Eu treinei tanto...

– A senhorita foi convincente. Mas quando entrei aqui, vi o seu cachecol ali na cômoda. Lembrei de algo que o delegado tinha dito e fiquei pensando: “E se... sim... e se tiver muita palha nessa espiga?” Quanto mais eu considerava essa hipótese, mais a coisa me parecia plausível. Apenas ficou uma dúvida: como é que conseguiu fazer essa marca no pescoço?

Ela levantou-se, com ar de superioridade.

– Foi um pouco doloroso, mas gostei do resultado. Tive que friccionar um fio de náilon por um bom tempo. Vou lhe confessar tudo, já que estamos mesmo fazendo confidências. Isso não fazia parte do que eu imaginei no começo. Um dia Moacir apareceu em casa com um colar, uma coisa realmente cara. Queria fazer as pazes comigo, que hipócrita! Disse que comprou o colar em Taiwan ou em Paris... Eu já tinha pago o aluguel do iate, e feito um rascunho com o nome de todos os convidados que, pelo que eu sabia, tinham alguma conta a acertar com ele. Joguei o colar num canto do meu porta-joias; estava resolvida a nunca mais usá-lo. Fiz o meu jogo de cena e ele aceitou a minha ideia de passear alguns dias num barco. Ficou fulo da vida, claro, quando lhe mostrei a lista de pessoas que iriam conosco. Nada demais; acabou dizendo sim a todos os meus caprichos. No fim, Moacir era um fraco, que faria qualquer coisa para se redimir de seu machismo irracional.

“A única coisa que eu não previa é que ele iria procurar o senhor. Papai sempre mencionou o senhor com respeito; acho que ele o comparava a um totem sagrado – pobre papai! Confesso que não fiquei aterrorizada com isso, Sr. Fëll. Sempre achei que as pessoas tem uma inclinação para o exagero. Mas...”

– Mas é melhor prevenir do que remediar – concluiu o detetive, compreensivamente.

– Exato. Não é nada pessoal, me entende? Fiquei analisando o seguinte: se eu matasse o meu marido, haveria várias pessoas que serviriam de testa-de-ferro para mim e que seriam investigadas. Haveria pistas para seguir: a faca seria de um, as moedas seriam de outro, e assim por diante. Algum deles certamente teria um remédio para dormir consigo; seria fácil furtá-lo e colocar algumas gotas no drinque de Moacir. Os peritos ficariam doidos, perdidos num mar de suposições. Qual seria o desfecho? A investigação travaria, e finalmente seria arquivada. Quem é que ficaria correndo atrás de depoimentos, visitando tantas pessoas em tantos lugares diferentes?

“Mas com o senhor na história, tudo ficava um pouco mais difícil. Desistir estava fora de cogitação. O jeito era enfeitar, aprimorar o que eu tinha planejado. O que eu poderia fazer? Como dar um toque de autenticidade para afastar qualquer suspeita de mim? Como? Pensei em botar um explosivo na cabine de Moacir, mas isso logo me pareceu muito mirabolante. Até que veio o clique! Sim, e se eu fingisse também ser uma vítima do assassino? Que tanto o meu marido quanto eu estávamos sendo jurados de morte? Era uma coisa ambiciosa e que exigiria muita determinação para ser executada, mas... ora, seria perfeito! Comprei outro celular, e comecei a mandar mensagens para mim mesma, com aquelas frases que o senhor leu. Qualquer mulher sabe que, com o tempo, uma pulseira pode marcar a pele do braço; peguei um fio e consegui fazer um sinal parecido aqui. Agora o colar tinha uma utilidade! Arrumei um pé-de-cabra num mercado e, depois, o sedativo pela internet.”

– O revólver? Como soube que Wolfgramm traria o seu?

– Eu fui casada com ele, conheço todos os seus hábitos. Demétrio sempre andou armado, exibindo aquela arma para quem quer fosse. Quem o via dizia que era um pistoleiro dos filmes de John Wayne!

“Quando eu e o senhor jantamos juntos, fiquei um pouco apreensiva. Mas tudo correu bem; o mais importante é que descobri que eu estava fazendo meu papel com relativo realismo. Quando embarquei, ontem de manhã, a primeira coisa que fiz foi me orientar. Visitei um por um, e entrei nos camarotes, fazendo minhas obrigações de anfitriã. Todos ficaram muito falantes e não pararam de mostrar o que tinham trazido. Marquei tudo mentalmente. Quando precisasse de alguma coisa, já saberia para onde me virar. Vi que o duque tinha uns prendedores de gravata na cadeira – peguei-os sem que ele notasse.

– O seu único imprevisto foi Wedderhof. Ele suspeitou, no último instante, que a senhorita poderia ter a culpa no incidente dos copos.

– Ele pediu por isso. Ficou indo de um lado para o outro, apenas buscando material para seu jornal imundo! Sr. Fëll, não tenho vergonha em dizer que, nesse caso, senti prazer quando o matei. Vocês deveriam ter visto a cara dele! “Srta. Lepperstein! Entre, em que posso ser útil?” Um ordinário! Agarrei a banqueta e bati nele enquanto estava de costas. Quando enfiei o treco nele, caiu sem dizer um ai. Não julgam que fiz bem?

– Eticamente falando, ninguém tem o direito de matar uma pessoa, senhorita.

Beatriz sorriu diabolicamente:

– O senhor, então, é um homem que segue as leis.

– Eu tento. Sem leis, o mundo seria uma anarquia.

– Não deixa de ser louvável. Mas o senhor não quer me perguntar por que fingi ter sido envenenada?

– Foi a cereja do bolo, creio eu.

– Que expressão interessante! É, foi mesmo a cereja. Para dizer a verdade, eu não tinha maquinado nada tão radical. Veneno? Ontem, a simples menção disso me faria passar mal. Mas hoje, falando com Miss Kaline...

– Sara. Já sabemos quem ela é... assim como a senhorita.

– Que ótimo! Hoje, falando com Sara, perguntei se ela conhecia mesmo alguma coisa de medicina. A menina me disse que sim; ela havia estudado a ação dos tóxicos na corrente sanguínea, e dos seus terríveis efeitos. Ela foi para a cabine dela, ali do lado, e trouxe uma caixinha cheia de pequenos grãos de uma cor cinza... uma cor de chumbo; explicou que era um veneno para matar ratos. Retirei uma pitada e a guardei cuidadosamente em um pacotinho de papel. Quando eliminei o jornalista, fiquei muito preocupada. E se eu tivesse sido ousada demais? Se alguém tivesse me visto? Foi quando me lembrei do veneno; misturei-o com o remédio que tinha ficado ali e... interpretei de novo o meu papel de mulher frágil e jurada de morte.

– A caixinha... Devíamos ter revistado melhor aquela moça – suspirou Fëll, lembrando da revista na bagagem.

Neusa Brenneison estivera calada até ali, ouvindo com pavor o relato frio e calculista da Srta. Lepperstein.

Num gesto dissimulado, ela meteu a mão na bolsa. Deu um sorriso feroz e puxou alguma coisa metálica.

– Concordo com o senhor – disse, com um timbre irreconhecível. – Deveriam ter revistado a todos muito melhor. Às vezes as pessoas mentem na alfândega...

Levantou a pistola e apontou-a para Beatriz.

– Está acabado, Bea. Você matou o meu irmão... É justo que eu vingue o sangue dele.

A Srta. Lepperstein esbugalhou os olhos, estarrecida.

– Não, Neusa... O que é que você está fazendo?

– É meio tarde para suplicar por misericórdia. Você precisa pagar por toda a maldade que fez. Sim, está na hora de pagar por tudo. Eu sou o anjo vingador...

O dedo premiu lentamente o gatilho. Como uma mola, Fëll ficou na linha de tiro:

– Pare! Não cause mais sofrimento, senhorita!

– Um ato de heroísmo, estou sensibilizada! – provocou Neusa venenosamente. – Saia da frente, Sr. Fëll. Não é hora para demonstrações de coragem!

– Nein! Reflita bem, a senhorita não quer fazer isso.

– Não quero? Desde quando o senhor é psicólogo? Vou atirar primeiro no senhor e depois nela. Uma bala a mais ou a menos...

– Nein – teimou ele imperiosamente. – Já basta de gente morta. Lembre-se de seus próprios pecados, Srta. Brenneison.

– Meus pecados? Por acaso, sabe quem eu sou, ou o que eu fiz no passado?

– Sei o bastante. Tem coisas que pesam em sua consciência... Não aumente a carga que já está carregando.

– Tenho coisas em minha consciência? Vamos parar com essa palhaçada... Saia, estou avisando.

– Você também já matou, senhorita. Hoje de tarde, Wedderhof explicou, do jeito dele, que Moacir Colasanti era culpado pelo desastre que matou a esposa anterior, Bianca. Ele mostrou a foto de uma letra M, inclinada para a esquerda, desenhada com sangue no painel do automóvel. A letra teria sido escrita por ela e apontaria o presumível responsável pelo problema nos freios... Mas Bianca tinha dislexia; uma pessoa com essa deficiência tem dificuldades de ler e escrever. Nesse caso, ela pode ter escrito um N invertido e o primeiro traço do M foi feito involuntariamente pelo dedo que escorregou.

– Cale-se!

– Deixe-me terminar... Santelo conversou ontem comigo, e ele me disse que a senhorita sabia tudo sobre carros e o funcionamento deles. E na sua mala havia luvas de mecânico. Tudo levava a crer, portanto, que a senhorita teria condições de mexer e desregular os freios do automóvel de Bianca Dual.

Neusa continuou de arma em punho. Mas a sua convicção tinha diminuído consideravelmente.

– Grande dedução! – debochou. – Que motivo eu teria para matar aquela lambiscoia?

– O seu marido estava tendo um caso com ela. Os jornais disseram que vocês estavam com as relações estremecidas na época da tragédia... E que a senhorita foi muito solidária com seu irmão durante o funeral. Foi uma forma de compensá-lo pelo seu ato trágico, não foi?

Uma lágrima rolou pelas faces intumescidas da Srta. Brenneison.

– Eu amava Albert, se quer saber... Ela o seduziu, aquela meretriz! Ficou dando em cima dele, até que ele fraquejou. Meu marido era tão bonito, Sr. Fëll... Tão bonito e ingênuo! Ela fez dele gato e sapato e depois o descartou. Ah, prometi a mim mesma que isso não ficaria assim! Senti uma satisfação imensa quando soube que... que ela estava morta.

– Está vendo? Vocês duas tem traumas parecidos. Agora, me dê essa arma...

Ela secou o rosto, e sorriu.

– Não, o senhor venceu. Cada um tem coisas que deve pagar. Vou quitar a minha conta...

A Srta. Brenneison virou a mão e ouviu-se um estampido.

O corpo dela caiu e ficou inerte no chão.

– Ela atirou em si mesma – balbuciou Beatriz, em choque. – Que louca! O senhor não deveria ter jogado toda essa sujeira no ventilador...

Fëll olhou tristemente para a mulher.

– A realidade pode ser difícil de suportar... Anos na prisão, sem direito a apelação. Não tem medo disso, senhorita?

Houve um tropel de passos no tombadilho e logo a cara assustada de Yamb surgiu na porta.

– O que foi agora? Se isso continuar assim, ainda terei que implantar uma ponte de safena.

– Tudo acabou, meu amigo.

– O que deu nela?

– Tinha uma pistola escondida... Acho que pode considerar resolvido o caso Dual.

– Fëll, não brinque comigo. Estou muito velho para que façam chacota de mim.

– Foi ela, delegado – ajuntou Beatriz. – Não sei o que dizer... Uma família tão desequilibrada...

Yamb olhou incrédulo para os dois; Fëll virou-se para a mulher:

– Está pronta para responder pelo que fez?

– Estou. Sinto que as coisas tenham chegado a esse ponto.

– Sente? Eu deveria chorar com essa declaração.

– Talvez... Quero agradecer ao senhor por ter confiado em mim. No fundo, eu sei que sempre quis o meu bem.

Fëll passou para o convés e fitou o luar prateado na água. Baixinho, recitou:

– Kennst du das Land, wo die Citronen blühn – Dahin, dahin! Möcht ich... ziehn. – Por cima do ombro, disse: – Pode algemá-la, delegado.

Yamb obedeceu.


Capítulo 25

 

Naquela mesma noite, às 11 horas, o iate parou no trapiche. Estavam de volta ao local de onde tinham saído na manhã anterior.

As águas eram um espelho escuro e silencioso.

Havia uma ambulância no píer. Assim que o barco atracou, uma equipe de paramédicos subiu a rampa. Yamb deu as orientações para o translado dos corpos.

Zelly aproximou-se de Fëll, perto da rampa de desembarque.

– A loucura terminou, finalmente. Graças ao senhor.

Fëll fitou a moça.

– Uma coisa dessas não subsiste por muito tempo, senhorita. Mais cedo ou mais tarde, a verdade sempre dá as caras.

– Mesmo assim, quem é que poderia imaginar? Beatriz! Quando o senhor soube?

– Soube o quê?

– Que ela estava por trás disso tudo – explicou a Srta. Gonçalves. – Foi mesmo na hora em que ela fingiu o envenenamento? O cachecol, e assim por diante...

– Foi sim. Havia outras particularidades, logicamente, mas tudo começou a se desvendar naquele instante.

Houve uma pausa. Fëll não sabia se devia acrescentar alguma coisa; virou-se para ela e, com um tom paternal, perguntou:

– Gosta mesmo dele, Srta. Gonçalves?

Zelly mexeu os ombros, com simplicidade.

– Gosto. O senhor não acha que faço bem?

– Não sei... Cada um tem seu próprio ponto de vista sobre esse assunto.

– Puxa, o senhor não é muito estimulante!

– Deveria ser?

– Sim, deveria – disse ela. Havia uma certa tristeza em sua voz. – Vivo sozinha, tenho que me sustentar e pagar o aluguel. Sempre tive azar no amor...

– Está se referindo a Colasanti?

– A ele também. Mas eu já o perdoei...

– Perdoou realmente?

– O que quer dizer?

– Se me lembro bem, foi a senhorita ontem que pediu ao garçom para que trouxesse mais uma dose para Colasanti. Acho que, no fundo, ainda estava com raiva dele.

– O que passou, passou – disse Zelly, olhando para o mar. – O que importa é que alguém me deu uma nova chance. Não quero desperdiçá-la, não desta vez.

– Que chance, querida? – perguntou Wolfgramm, trazendo duas bolsas. – Estão falando de mim?

O rapaz pousou a bagagem e pôs uma manta em volta dos braços da moça.

– Sobre meu emprego – disse Zelly rapidamente. – Eu estava esclarecendo o Sr. Fëll que tenho um ótimo emprego. É uma chance que não posso desperdiçar.

– Não pode, mas vai – respondeu Wolfgramm, endireitando as costas.

– Como?

– Mulher minha não precisa trabalhar fora... Ela terá uma casa para cuidar e alguns poodles para mimar. O resto é balela.

Os olhos de Zelly estavam úmidos.

– Querido...

A Srta. Lepperstein passou ao lado dos três. Parou e soprou uma mecha com o canto da boca:

– Desejo que vocês sejam felizes, Deme. Estou falando com toda a sinceridade.

– Ah, obrigado – gaguejou Wolfgramm.

– Eu gostaria de abraçá-los, mas... – Beatriz levantou os punhos algemados. – Se puderem, me convidem para o casamento. Desculpe-me por tudo o que fiz, Deme.

– Tudo bem, Bea...

O rapaz estava visivelmente constrangido. O oficial conduziu a Srta. Lepperstein pela rampa abaixo.

– Que desfaçatez! – murmurou Zelly. – Primeiro sai por aí matando a torto e a direito, e depois se comporta como um cordeirinho manso.

– Creio que ela não é tão má assim – disse Fëll, com uma inflexão fora do comum. – Envolveu-se com o homem errado, e depois não conseguiu lidar com as consequências... Em outras circunstâncias, não acho que faria o que fez.

– O senhor está defendendo ela? Ora, faça-me o favor, Sr. Fëll! Ela é uma assassina... Tem que pagar pelo que fez! Estou desapontada com o senhor. Venha, Demétrio. Vamos sair daqui...

Wolfgramm sussurrou um “Mulheres!”, desalentado; depois agarrou as bolsas e seguiu a moça, que descia a rampa como uma locomotiva desenfreada.

– Nos veremos na próxima – gritou para o detetive.

– Se houver uma próxima.

– Sempre há, Sr. Fëll. Sempre há.

Enquanto os corpos eram levados, Norton Salles apareceu ao lado de Fëll. Indicou as macas:

– Homus lupus homini... É uma sentença bem apropriada, não concorda?

– O senhor não parece muito abalado.

– Quem esteve em todos os continentes, como eu estive, já viu coisas muito piores.

– Eu não me referia a isso. Ainda temos um ponto em aberto, duque – prosseguiu Fëll. – Quando verifiquei a carteira de Colasanti, após a sua morte, encontrei vários cartões de crédito – todos eles com nomes diferentes. Quando o senhor falou nele, disse que Colasanti tinha sido seu sócio. Eu perguntei a mim mesmo: “Os dois foram sócios? Em que empresa? Qual foi o tipo de sociedade?” A verdade não é atraente, algumas vezes. Sim, vocês dois foram sócios... numa firma de negócios ilegais! Colasanti, segundo a opinião geral, era um homem falido. Mas e seu estilo de vida? Viagens! Uma mansão! A festa suntuosa quando casou com a Srta. Lepperstein! De onde tirava seus ganhos? De algum ato ilegal? Era uma possibilidade. Quando vi os cartões de crédito... touché... a possibilidade virou uma certeza. Colasanti estivera metido em alguma tramoia. Quando o senhor disse que estava ressentido com ele, por causa de um empréstimo não quitado, as coisas tomaram um novo rumo. Por fim – a mala, o passaporte falso, os dólares... O círculo se fechou. Apenas alguém com os meios adequados consegue burlar a lei.

– O senhor suspeita que tenho esses meios?

– Tudo favorece essa dedução. O senhor tem status – que lhe confere um álibi. O senhor tem reputação – quem é que desconfiaria de alguém tão conceituado? Além disso, o senhor há pouco jogou na água alguma coisa que poderia incriminá-lo e do qual tinha que se livrar. Creio que, pelo elástico que encontramos, era um maço de dólares. Dinheiro! Dinheiro proveniente de seus negócios escusos...

– Ah, o policial...

– Sim. Ele disse que viu o senhor arremessando um pacote e depois ouviu um baque na água.

– Acho que, se fiz isso, as provas agora estão no fundo da baía. É isso o que o senhor quer dizer?

– Ainda temos o que está em sua mala. E...

Fëll parou de falar. O duque, com sua fala macia, ajeitava calmamente os punhos do paletó. A mala!

– Oh! – disse o detetive, com uma suspeita cruzando a sua mente. – Compreendo... O senhor já deu um jeito nela.

– Pessoas como eu sempre têm um ás na manga. É preciso estar preparado para tudo. Sem provas, calculo que não poderão me prender. O que significa que não há flagrante. Portanto, conforme eu já disse, estou livre. Boa noite!...

Salles se afastou. Fëll acompanhou o homem com os olhos. “Está acuado... Ele sabe que sua carreira de falsário chegou ao fim. Um bom jogador nunca demonstra que as cartas não são boas.”

Atrás do detetive, uma mulher perguntou:

– Nós vamos ser fichadas, Sr. Fëll?

– Fichadas, Madame? Não entendi...

– A documentação que forjamos – disse Madame Canelles, altivamente. – Existem leis contra essas coisas, creio eu.

– Mamãe! – ralhou Sara. – Não precisamos falar disso agora... Não é mesmo, Sr. Fëll?

– É hora sim – respondeu Madame Canelles. – Então, o que o senhor diz: seremos fichadas ou não?

Fëll sentiu uma dor em sua úlcera.

– Olhe, Madame, a sua filha tem razão. Não é hora para discutir isso... Mas aconselho a senhora a não se preocupar. Já chega de processos por hoje.

– É mesmo? – Madame Canelles hesitou. – Se for assim, tem a nossa gratidão. Espero que um dia possamos lhe retribuir o seu generoso gesto. Até logo!

– Madame!...

– Vamos, Sara.

– Já estou indo, mamãe. Vou só afivelar minha sandália.

Quando ficaram a sós, Sara olhou timidamente para Fëll.

– Mães... Elas são meio neuróticas!

– Vejo que gosta muito dela. O amor filial, es ist wunderbar! Mas isso também me intriga: a senhorita sabia que, com seu depoimento, quase pôs a sua mãe na fogueira?

– Eu? Por quê?

– O quadro que a senhorita pintou... “Madame Canelles fazer isto”, “Madame Canelles fazer aquilo”! Havia um crime a ser resolvido. Não calculou que iríamos desconfiar dela?

– Eu só contei o que eu mesma vi – disse Sara. – Eu sabia que mamãe era inocente. O senhor foi muito simpático por ajudar a polícia...

– Tchau, Miss Kaline.

– Sr. Fëll!...

O último a desembarcar foi Santelo.

– Vou logo avisando – disse o siciliano. – Não gosto de sentimentalismo... O senhor é do comitê de despedida?

– Não – sorriu Fëll.

– Menos mal. Senão eu pulava da proa e ia nadando até a praia.

– Temos uma questão que não foi respondida, meu rapaz.

– Já sei, que desenhos são aqueles que eu trouxe?

– Exato.

– Sem comentários – finalizou Santelo, erguendo a mão. – É segredo de Estado... Talvez eu ainda escreva uma monografia para a revista Science. Até lá, paciência...

O gordo desceu e sumiu na área coberta pelo toldo.

Yamb se juntou a Fëll; bateu de leve em suas costas.

– Mais uma caçada bem-sucedida. Temos que incluí-lo em nossa lista de gratificações, se a coisa continuar assim.

– Uma caçada – sublinhou Fëll. – É como alguém acabou de dizer: sempre haverá uma próxima.

 

 

                                                                  Alec Baurer

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades