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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ASSASSINATO REAL - P.2 / Jean Plaidy
ASSASSINATO REAL - P.2 / Jean Plaidy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ana vigiou o rei e vigiou a garota. Henrique estava inquieto; bebia desregradamente; os dias pareciam intermináveis para ele; ora estava nervoso e irritado, ora estava exultante. Mas isso era compreensível; o nascimento de um filho varão era da máxima importância, considerando que isso não apenas garantiria a dinastia Tudor, como também seria para Henrique um sinal dos céus de que ele tivera o direito de substituir Catarina.

Ana sentiu-se muito desconfortável durante os dias quentes que se seguiram, ansiosa pelo nascimento de sua criança. Sentia sobre si os olhos de todos; sentia que aguardavam o fator decisivo: o nascimento de um filho varão. Os amigos de Ana rezavam por um menino; os inimigos, por uma menina ou um natimorto.

Certo dia no final de agosto Ana teve a impressão de que a moça a quem vigiava com suspeita parecia mais animada e um pouco arrogante. E então flagrou Henrique lançando-lhe um olhar lascivo.

"Devo permitir que isso aconteça diante de meus próprios olhos?", questionou-se Ana "Não sou eu a rainha?"

 

 

 

 

Ela esperou até que Henrique estivesse a sós na alcova com ela. Então disse, olhos em brasa:

- Se você quer se divertir, prefiro que não faça isso diante de minhas vistas e com uma das minhas criadas!

Os olhos de Henrique arregalaram-se de fúria. Odiava ser pego. Ele já resolvera a questão com a sua consciência; não era nada este pequeno caso de amor com uma leviana que decerto perdera a virgindade há muito tempo; não valia nem mesmo uma confissão a um padre. Era um caso breve e trivial, iniciado depois de uma tarde em que abusara do vinho; era pouco mais do que um sonho.

"Livrei-me de uma esposa para me tornar um peão nas mãos de outra?", questionou-se.

Ele estava farto disso. Ele era o rei, ele iria possuí-la agora Ele já estava farto da arrogância de Ana.

Enquanto lutava em busca de palavras para expressar sua indignação, uma de suas aias entrou. Isso não deteve o rei. Era preciso que todos soubessem que ele era o rei absoluto e que a rainha desfrutava de seu poder através dele.

- Mantenha os olhos fechados, como aquelas que eram melhores que você fizeram antes!

As faces de Ana ficaram rubras. Ela se sentou na cama Respostas ferozes vieram a seus lábios, mas alguma coisa no rosto do rei paralisou-a Ela sentiu toda a raiva abandonar seu ser, porque agora só havia espaço para o medo mortal. O rosto de Henrique perdera também sua aparência corada; os olhos, repentinamente frios e cruéis, espiavam dentre pálpebras serradas.

Então ele começou a falar, lenta e deliberadamente:

- Jamais se esqueça de que detenho o poder para derrubá-la mais rápido do que a fiz ascender.

Henrique saiu do quarto; Ana se deitou de novo, quase desmaiando. A criada veio acudi-la, sabendo que a humilhação profunda poderia ter ferido uma mulher tão orgulhosa. Se Ana e Henrique tivessem estado sozinhos, ela teria lhe dado a resposta que seu marido merecia; teria chicoteado-o com a língua; mas eles não haviam estado a sós... e ainda assim Henrique não se importara com isso. Os inimigos de Ana na corte ouviriam falar disso; eles iriam falar sobre o começo do fim de Ana Bolena.

Henrique não se aproximou da esposa durante vários dias. Encontrou uma empolgação nova e fervorosa no conhecimento de que a luxúria era satisfatória e mais de acordo com sua natureza do que o amor. A moça era uma vadia, mas estava sempre disposta, mais do que disposta, a obedecer a seu rei. No amor, um homem argumentava e implorava; na luxúria, tudo de que ele precisava era exigir satisfação.

Pensava frequentemente em Ana, às vezes quando estava com a garota. Seus pensamentos estavam tão misturados que ele não conseguia defini-los. Algumas vezes Henrique pensava:

"Depois da gravidez, Ana será ela mesma novamente."

Então se lembrava de uma garota despreocupada debruçada sobre um lago em Hever, uma mulher adorável entretendo-o no Solar Suffolk. Ana, Ana.... não existe na Terra nada tão delicioso quanto Ana! Esse meu caso não é nada, Ana; e estará esquecido depois que você estiver comigo novamente.

E na missa ou no confessionário seus pensamentos eram maculados pelo medo. Suponha que o Todo-Poderoso mostrasse seu descontentamento com uma filha ou um natimorto! A vida com Catarina fora uma sucessão de crianças nati mortas, porque seu casamento com Catarina não fora casamento. Ele próprio dissera isso. E se o casamento com Ana também não fosse casamento?

Mas Deus iria mostrar-lhe que seu casamento fora casamento; Deus estava sempre disposto a cuidar daqueles que respeitavam e veneravam a Ele e a Suas leis, pessoas como Henrique VIII da Inglaterra.

A cidade inteira aguardava as notícias ansiosamente. As pessoas nas barcas que flutuavam Tamisa abaixo gritavam umas para as outras:

- O príncipe já nasceu?

Mal se tecia palavras ásperas contra a nova rainha; aqueles que tinham sido seus inimigos mais violentos pensavam nela agora não como a rainha, mas como uma mãe.

- Ouvi dizer que as dores começaram, pobre dama....

- Dizem que o nome do menino será Henrique ou Eduardo.... As mães lembravam as ocasiões em que haviam sofrido como a rainha sofria agora, e até aqueles que não se interessavam por partos reuniam-se às conversas. Lembravam da coroação, quando as fontes haviam jorrado vinho. Festas e desfiles também marcariam o nascimento de um filho varão para um rei que esperara 24 anos por isso; seria um evento ainda maior do que uma coroação.

- Deus salve o pequeno príncipe! - clamava o povo.

A duquesa-mãe de Norfolk mal conseguira dormir, tão ansiosa estava pelo evento. com o coração pesado de orgulho e preocupações, a duquesa assegurava-se de que Ana era uma garota saudável e de que o parto seria realizado pelas mulheres mais hábeis, empurrando para o fundo de sua mente aqueles temores que provinham de seu conhecimento sobre o rei. A pobre Catarina sofrera um aborto depois do outro; diziam que ela era doente, mas de onde ela contraíra tais doenças? Será que não fora através de seu contato íntimo com Sua Majestade? Não se podia dar voz a pensamentos como esses, porque isso seria traição, mas como os súditos mais leais podiam evitar que isso lhes viesse à mente? Ana, porém, era uma garota saudável. Esta iria ser a sua primeira criança. Ela atravessara sem complicações os nove meses de gravidez, e tudo prometia correr bem.

No pomar, abrigados pelas árvores cujos frutos começavam a cair, Catarina Howard e Francis Derham jaziam deitados nos braços um do outro. Por suas mentes mal passavam pensamentos sobre os eventos monumentais que em breve determinariam o curso da História.

- Por que eles não consentiriam em nosso casamento? - perguntou Francis. - É verdade que eu sou pobre, mas o meu berço é bom.

- Eles consentirão, tenho certeza-murmurou Catarina. - Eles precisam consentir!

- E por que não poderia ser em breve? Quando a duquesa tiver se recuperado de toda essa empolgação, ela certamente irá me ouvir, Catarina. Acha que eu devo tentar falar com ela?

- Sim - respondeu Catarina, toda feliz.

- Então estamos prometidos!

- Sim.

- Então me chame de marido.

- Marido - disse Catarina. E foi beijada por ele.

- Queria que estivéssemos longe daqui, esposa, em nossa própria casa. Tenho tão poucas oportunidades de ver você!

- Tão poucas! - suspirou Catarina.

- E soube que as damas da duquesa carecem de princípios, que elas são ousadas demais com os homens. Eu não gosto de saber que você está entre elas.

- Estou segura porque o amo.

Beijaram-se de novo. Catarina puxou-o mais para perto, sentindo a excitação excessiva que o contato físico com alguém que a atraía sempre produziria nela.

Derham beijou-a ferventemente, tão encantado por Catarina quanto Manox estivera. Mas Derham estava genuinamente apaixonado por ela; seus sentimentos eram governados pelo afeto, não apenas pela necessidade de saciar seus desejos. Ela era muito jovem, mas estava pronta para a paixão. Ele era um jovem audacioso, corajoso e viril; e o desejo evidente de Catarina por completar a intimidade do casal era tão encantador que ele sentira-se compelido a fazer os arranjos necessários, ainda que a pouca idade da moça o preocupasse.

O rapaz insistiu que eles deveriam se casar. Ele não podia imaginar nada mais delicioso. Já estavam realmente casados porque, como explicou a ela, segundo as leis da Igreja era necessário apenas que duas pessoas concordassem em fazer o contrato para que ele estivesse feito. Chamá-la de esposa aplacava seus temores de que ela fosse jovem demais; ouvi-la chamá-lo de marido fazia-o transbordar de alegria.

Ele tentava ser tão cuidadoso e gentil quanto pudesse com Catarina. Nada sabia sobre a experiência de Catarina com Manox. Catarina não lhe disse, não porque quisesse esconder, mas porque Manox não a interessava mais. Ela perguntara à sua avó se poderia ter um novo professor de música, e a velha dama, preocupada demais com os assuntos da corte para se preocupar com o que sua neta fazia, dera seu aval. E quando Catarina dissera o nome de um professor de meia-idade, sua avó assentira de novo. Em todo caso a duquesa não mais assistia às lições de música para vigiá-la. Manox quase sumira dos pensamentos de Catarina, exceto naquelas ocasiões desagradáveis em que ele tentava vê-la - porque estava furioso por ela ter rompido o caso tão abruptamente. Culpava Mary Lassells, não fazendo segredo de seu ódio e desprezo pela jovem. Obviamente, Catarina desejava jamais ter conhecido Manox, mas estava feliz demais para pensar em qualquer coisa além da consumação de seu amor com Francis Derham.

- Eu tenho um plano - disse Derham.

- Fale-me dele.

- E se eu pedir à Sua Graça para aceitar-me em sua casa?

- Acha que ela iria? - o pensamento deixou Catarina tremendo de emoção.

- Acho que talvez ela aceite. - Ele sorriu complacentemente, lembrando da ocasião em que Sua Graça, vendo-o entre outros rapazes, chamou-o para conversar por considerá-lo o mais bem-apessoado do grupo. - Tudo que posso fazer é tentar. Então estaremos sob o mesmo teto. Então poderei falar com sua avó a nosso respeito. Oh, Catarina, Catarina, como anseio por esse dia!

Catarina ansiava com a mesma intensidade.

Ele quase sussurrou para ela que eles não precisavam esperar. Por que deveriam, quando já eram marido e mulher? Catarina estava esperando que ele dissesse isso,

mas ele não o fez... ainda. Deitaram-se no gramado, olhando para as frutas maduras nas copas das árvores.

- Jamais me esquecerei do dia em que você me chamou de marido pela primeira vez - disse ele. - Lembrarei disso no momento da minha morte!

Catarina riu, porque a morte parecia um assunto muito distante e absurdo para um casal apaixonado.

- Também jamais esquecerei - disse a ele, e virou seu rosto para o dele.

Beijaram-se. Estavam trémulos; desejavam um ao outro ardentemente.

- Em breve estarei na casa da duquesa. Então irei vê-la com mais frequência... com mais frequência.

Catarina assentiu.

Na cama belíssima, que fizera parte do resgate de um príncipe francês, Ana jazia trespassada pela agonia do parto. Na sala adjacente, o rei caminhava em círculos. Ele podia ouvir os gemidos de Ana. Como ele a amava! Seus gemidos enchiam o coração de Henrique de medo de perdê-la. Ele era o mesmo amante a quem notícias da doença de Ana tinham lhe sido trazidas durante os tempos da peste.

"De bom grado, suportaria metade do seu sofrimento para curála", dissera Henrique na ocasião.

Lembranças de Ana passavam por sua mente. Seus risos, sua alegria; Ana, o centro de atenções nas justas e bailes de máscaras; sentada a seu lado assistindo às justas, tão bela, tão diferente de todas as outras que ele considerava difícil escolher entre prestar atenção em Ana ou na justa. Pensou nela em seus braços, seu amor e sua rainha.

Ele estava atormentado pelo remorso daquele lapso, porque a briga irritara-a, e - esse pensamento o fez suar frio - talvez tivesse produzido algum efeito nocivo no nascimento de seu filho.

Caminhava em círculos, sofrendo com ela. Quanto tempo? Quanto tempo? As veias de sua fronte pareciam querer saltar de sua cabeça.

- Por Deus! Se alguma coisa acontecer a ela, cabeças irão rolar... eu juro!

A garota com quem Henrique divertira-se recentemente olhou pelo vão da porta, sorrindo; fora mandada para acalmá-lo. Ele olhou para ela sem reconhecê-la.

Continuava caminhando, forçando os ouvidos e em seguida tampando-os com as mãos para bloquear os sons da dor de Ana. De repente seu medo foi varrido para longe, porque ele ouviu distintamente o choro de um bebé. Num segundo ele estava à beira da cama, tremendo de ansiedade. Na alcova fez-se um silêncio profundo. As parteiras estavam com medo de olhar para Henrique. Ana, lívida e exaurida, jazia na cama alheia a ele, ao quarto, talvez até a si própria.

- O que foi? - gritou.

As parteiras hesitaram, uma olhando para a outra, esperando que alguém assumisse a tarefa delicada de dar ao rei as noticias desagradáveis.

O rosto do rei ficou roxo; seus olhos ardiam. Em sua angústia, ele rugiu:

- Uma filha! - Sua voz era quase um lamento. Henrique estava derrotado, humilhado.

Ele se levantou, mãos em riste, palavras de ódio vertendo de sua boca. E seus olhos estavam em Ana, ainda imóvel sobre a cama. Por que isso tinha de acontecer a ele? O que ele fizera para merecer? O quê? Ele não procurara sempre fazer o certo? Não dedicara horas e horas ao estudo da teologia? Não escrevera O reflexo da verdade?

Não pensara cuidadosamente na questão de seu divórcio antes de agir? Não esperara pela decisão de sua consciência? E por quem ele trabalhara e sofrera? Não por si

mesmo, mas por seu povo, para salvá-lo dos rigores da guerra civil que durante o século anterior devastara a nação. Em nome desse ideal ele trabalhara, jamais se poupando, desafiando a ira de seu povo simples que não podia compreender seus motivos elevados. E esta era sua recompensa... uma filha!

Ele viu lágrimas rolarem dos olhos fechados de Ana. O rosto de sua esposa estava branco e marmóreo. Parecia que toda a vida esvaíra dela. Aquelas lágrimas mostraram-lhe que ela escutara tudo que ele dissera. E então, repentinamente, Henrique colocou de lado sua decepção. Também Ana sofrera profundamente; também Ana estava tão desapontada quanto ele. Ele se ajoelhou e a abraçou.

Henrique disse-lhe, com toda franqueza:

- Eu preferiria pedir esmolas de porta em porta a rejeitar você!

Depois que Henrique tinha saído, ela permaneceu parada, exaurida pelo esforço de parir sua filha, sua mente incapaz de dar ao corpo o descanso de que ele precisava. Ela havia falhado. Ela dera a luz a uma filha, não a um varão! Fora assim que Catarina de Aragão sentira-se quando Maria Tudor nascera. A esperança acabara. As profecias dos médicos e astrólogos tinham se provado erróneas. "Será um menino", haviam lhe assegurado. E então... nasce uma menina!

As batidas do coração de Ana, que tinham estado lentas, aceleraram. O que Henrique dissera? "Eu preferiria pedir esmolas de porta em porta a rejeitar você!" Rejeitar! Por que dissera isso? Claro que só poderia ter dito tal coisa se o pensamento de rejeitar Ana tivesse lhe passado pela cabeça. Ele rejeitara Catarina.

As faces de Ana estavam molhadas; ela devia ter chorado.

"Eu jamais conseguiria viver num convento", pensou.

E lembrou-se de como um dia acreditara piamente que Catarina tinha o dever de se retirar para um lugar como esse. Quão diferente a sugestão parecia quando aplicada a ela mesma! Ana nunca entendera o lado de Catarina... até agora.

Alguém se inclinou sobre ela e sussurrou:

- Sua Majestade precisa tentar dormir.

Ela dormiu um pouco e sonhou que era a plebeia Ana Bolena em Blickling; experienciou então uma grande felicidade. Quando acordou, ela pensou:

"A felicidade é uma questão de comparação. Eu nunca conheci uma felicidade realmente completa, porque naquela época meu corpo estava em agonia, e agora eu mal sei se tenho um corpo, e isso por si só já é o bastante."

Totalmente consciente agora, lembrou que não era mais uma menina em Blickling, mas uma rainha que fracassara em seu dever de parir um herdeiro homem. Lembrou que agora por todo o palácio - por todo o reino - as pessoas estavam falando sobre seu fracasso, especulando como isso repercutiria no relacionamento de Ana com o rei. Os inimigos de Ana estavam exultantes; os amigos, preocupados. Chapuys devia estar escrevendo uma carta para comunicar a seu senhor as boasnovas. Suffolk devia estar sorrindo de satisfação. Catarina provavelmente estava rezando por ela. E Maria Tudor devia estar se vangloriando: "Ela fracassou! Ela fracassou! O que o rei fará agora?"

O sono fortaleceu Ana, que começava a superar sua fraqueza de espírito. Ela lutara para conquistar sua posição; iria lutar para mante-la

- Meu bebé... - pediu Ana.

Trouxeram a criança e aninharam-na nos braços da mãe.

O rosto vermelho e enrugado pareceu lindo para Ana, porque a criança era dela. Segurou-a bem de perto, examinando-a, tocando-lhe o rosto levemente com os dedos, murmurando:

- Bebezinho... meu bebezinho!

Para Ana, agora pouco importava que a criança fosse uma menina. Tendo-a visto, estava convencida de que jamais pusera olhos numa criança tão bonita... Então, como poderia desejar que ela fosse diferente? Segurou a criança forte contra o peito, amando-a e ao mesmo tempo temendo por ela, afinal não era esta uma possível rainha da Inglaterra? Não, Ana ainda daria filhos ao rei. A primeira criança tinha sido uma filha, mas esta menina jamais iria se sentar no trono da Inglaterra, porque Ana teria filhos, muitos filhos. Ainda assim, Ana não tinha como não temer por sua criança; não tinha como não desejar que este bebé não fosse a filha de um rei e uma rainha. Se o bebé tivesse nascido em alguma outra casa que não a régia Greenwich, onde seu sexo não teria sido um assunto de tanta relevância, como a mãe estaria feliz! Ana não teria na cabeça nenhuma preocupação além do bem-estar da menina.

Quiseram levar o bebé, mas Ana não deixou. Queria a criança com ela, para segurá-la com força, para protegê-la.

Pensou nos olhos fanáticos de Maria Tudor. Quanto combustível o nascimento desta criança acrescentaria às chamas do ressentimento de Maria Tudor! Outra menina para tomar seu lugar, que ela perdera meramente por ser uma moça! Até aqui os conflitos com Maria Tudor tinham sido numerosos, mas a partir de agora uma verdadeira guerra seria declarada entre ela e a rainha Ana! E se não houvesse mais filhos? E se o destino da rainha Ana fosse o mesmo da rainha Catarina? Ou se... Quando falecesse, o rei deixaria um trono para esta criança, um trono que seria cobiçado ardorosamente por Maria Tudor. E então, talvez, o povo da Inglaterra fosse considerar que o maior direito ao trono cabia a Maria. Afinal de contas alguns consideravam que Catarina ainda era a rainha, e que esta criança recém-nascida era a bastarda, não Maria Tudor.

- Meu bebé, em que mundo complicado você nasceu! - murmurou Ana. Beijou calorosamente a criança. - Mas eu farei tudo ao meu alcance para tornar este mundo um lugar feliz para você. Seria capaz de matar Maria Tudor para que ela não tomasse de você, minha filha, o que é seu por direito!

Uma de suas aias inclinou-se sobre a cama.

- Sua Majestade precisa descansar...

Mãos seguraram o bebé. Relutante, Ana deixou que a aia levasse a criança.

- Ela será chamada Elizabeth, em honra à minha mãe e à mãe do rei - decidiu.

A corte estava tensa. O nascimento de Elizabeth era discutido à boca pequena nas cozinhas e nos apartamentos dos cortesãos; as mulheres reuniam-se nos jardins para conversar. Nas ruas, as pessoas diziam:

- E agora, o que será? Não é essa a resposta de Deus? Chapuys estava atento, esperando. Sondou Cromwell. Cromwell respondeu friamente, sem se comprometer; achava que o rei ainda gostava muito da dama para desejar qualquer mudança em seu relacionamento. Ele era diferente de Wolsey. Wolsey moldara a política real enquanto permitia ao rei acreditar que eram suas as decisões; Cromwell deixava a moldagem a cargo do rei enquanto se colocava inteiramente ao dispor de Sua Majestade. Qualquer coisa de que o rei precisasse, Thomas Cromwell providenciaria. Se ele quisesse deserdar Maria Tudor, Cromwell encontraria a forma mais rápida de fazer isso; se o rei quisesse descartar Ana, Cromwell pesquisaria uma forma de fazer isso. O lema de Cromwell era: "O rei tem sempre razão."

O rei ainda desejava Ana ardentemente, mas embora pudesse ser um amante apaixonado, queria que ela entendesse que não lhe cabia comandar, e sim obedecer. Uma amante pode comandar, mas uma esposa deve ser submissa. Ainda assim ele sentia falta de sua amante; até tivera a necessidade de substituí-la. Ele não podia olhar para Ana jovem, bonita, desejável - como olhara para Catarina. Ainda assim, parecia-lhe que as esposas são sempre esposas. Um homem é algemado a uma esposa segundo as leis da Santa Igreja, e ser algemado é uma condição deveras desagradável. Havia no pecado um sabor especial do qual a virtude carecia; e embora um homem pudesse ter uma resposta perfeitamente boa para sua consciência, o sabor existia. Ana não podia mais ameaçar com sua volta para casa; o palácio era sua casa, a casa da qual Henrique era, indubitavelmente, o senhor. Ela lhe dera uma filha... uma prova adicional de que Ana não era tudo que Henrique crera que ela fosse quando se pôs a persegui-la fanaticamente.

E portanto, apesar de Henrique ainda desejar Ana, depois de saciar seu desejo ele se transformava abruptamente naquela figura poderosa, rei e senhor.

Isso ficou claro logo depois do nascimento de Elizabeth. Ana queria manter a criança consigo, para alimentá-la pessoalmente, para tê-la o tempo todo sob seus cuidados. Além de seus sentimentos maternais, que eram fortes, Ana temia que o mal alcançasse sua filha por intermédio dos inimigos que a criança herdara da mãe.

Ao ver o berço da criança na alcova que compartilhava com Ana, o rei ficou estarrecido.

- O que é isso agora? - resmungou. - O que significa isso?

- Quero tê-la comigo - disse Ana, acostumada a comandar.

- Quer tê-la consigo! - repetiu, ameaçador.

- Sim. E irei dar-lhe de mamar pessoalmente, pois declaro que não confio em mais ninguém para fazer essa tarefa.

O rosto do rei ficou vermelho de raiva.

Furioso, Henrique foi a passos largos até a porta e chamou uma dama de honra. Ela entrou, assustada.

- Leve daqui a criança! - rugiu.

A moça olhou do rei para a rainha. O rosto da rainha estava lívido, mas ela não disse uma palavra. Estava tremendo, lembrando do que ele dissera antes do nascimento da criança; naquela ocasião ele não esperara até que eles estivessem a sós. "Jamais se esqueça de que detenho o poder para derrubá-la mais rápido do que a fiz ascender." E mais tarde: "Eu preferiria pedir esmolas de porta em porta a rejeitar você!" Ele não se importava com o que dizia, diante de quem. Importava-se tão pouco com os sentimentos dela que não se preocupava se, na corte, as pessoas especulassem que a influência de Ana estava à míngua. Assim, Ana observou impassível a moça retirar o bebé.

- Ela iria perturbar o nosso descanso! - disse o rei. Quando estavam sozinhos, Ana voltou-se feroz para Henrique.

- Queria mante-la comigo. Queria alimentá-la do meu próprio peito. Qual é o problema...

Olhos nos olhos, Henrique disse lentamente à esposa:

- Não esqueça que eu a ergui a rainha da Inglaterra Peço que não se comporte como uma plebeia.

A voz de Henrique estava à altura da frieza de seus olhos. Ela jamais notara o quanto Henrique poderia ser frio, o quão cruel era aquela boca pequena.

Ainda tremendo, Ana deu-lhe as costas, mantendo o queixo erguido, sabendo que ela, que há pouco tempo poderia ter-lhe exigido a satisfação de seus desejos, agora não podia ousar qualquer coisa além de obedecer.

O rei observou. com os cabelos soltos sobre os ombros, ela subitamente o fez lembrar-se da mocinha no jardim de rosas do Castelo de Hever. Henrique aproximou-se da esposa e pousou sua pesada mão no ombro dela.

- Deixe disso, Ana! - disse, virando o rosto da esposa para beijá-la. Então o coração de Ana se encheu de esperança; ela ainda tinha poder para comovê-lo; ela aceitara a derrota muito facilmente. Ela sorriu.

- Você pareceu tão determinado quanto a isso! - disse, tentando infundir um tom atrevido na voz; embora sentisse medo de insistir em manter Elizabeth consigo, sabia

o quanto era insensato demonstrar medo para um homem violento por natureza.

- Acalme-se, querida!

A voz de Henrique denotava o início do desejo. Ela entendia perfeitamente os humores do esposo. Ele prosseguiu:

- Uma rainha não deve dar de amamentar a seus filhos. Basta dessa história! - Ele riu. - Temos uma filha; precisamos conseguir agora um filho!

Riu com ele. Enquanto ele a acariciava, os pensamentos de Ana moveram-se depressa. Ela acreditara que, com o nascimento de um filho, sua grande luta estaria acabada; fortalecida pela nova honra, ela alcançaria uma segurança que não poderia ser abalada. Mas o Destino pregara-lhe uma peça. Ana dera ao rei não o filho que a teria colocado segura no trono, mas uma filha. A luta não estava terminada; estava apenas começando. O que acontecera antes iria parecer mera briga de comadres em comparação com a batalha que a aguardava. Ana iria precisar agora de toda sua perícia, visto que as armas com as quais conquistara suas primeiras vitórias tinham ficado cegas; e agora não era apenas por si mesma que ela precisava lutar.

Como sentia pena de Aragão, que passara por tudo aquilo antes dela! Que ainda estava passando por aquilo; uma veterana cujas armas eram a resistência e a tenacidade. Lutando no exército opositor, Ana iria precisar da mesma medida de resistência e tenacidade. Ela era agora uma mãe; era uma tigresa que vê seu filhote em perigo mortal. Ana sempre vira Catarina de Aragão como uma mulher patética, e Maria Tudor como uma menina mimada, mas agora elas eram suas inimigas mais ferrenhas, e se mantinham em guarda, esperando para desonrar sua filha.

Ana retribuiu os beijos de Henrique.

Ele disse:

- Ana, Ana, não existe ninguém como você, Ana!

E um ódio feroz se espalhou pelo íntimo de Ana, porque Henrique estava comparando-a com a mulher com quem tivera um caso antes do nascimento da filha. Antes Ana o teria expulsado da cama, e lhe dito o que pensava; agora ela precisava agir exatamente da forma oposta. Precisava seduzi-lo de novo, encantá-lo de novo. Seria mais difícil agora, mas ela iria fazê-lo, porque era imperativo que conseguisse.

Um pouco depois, quando Henrique descansava deitado a seu lado, Ana entrelaçou os dedos nos dele.

- Henrique... Ele resmungou.

As palavras tremeram nos lábios de Ana. E se ela pedisse para que ele a deixasse manter o bebé ali com eles? Não, isso seria insensato; ela não podia impor condições agora. Ana precisava olhar atentamente onde pisava, porque agora era apenas a esposa do rei. A rainha da Inglaterra carecia do poder de Ana Rochford e da marquesa de Pembroke; mas a rainha tinha toda a astúcia dessas damas, e ainda iria rir dos inimigos que profetizavam sua destruição.

- Henrique, agora que você tem uma filha, não é um bom momento para declarar Maria Tudor ilegítima? Sabemos muito bem que ela é, mas isso nunca foi oficializado.

Ele pensou nisso. Estava se sentindo um pouco magoado com Maria Tudor, que aplaudira e apoiara sua mãe desde que o divórcio fora aventado. Maria Tudor era uma jovem obstinada, uma filha desamada que ousara voltar-se contra seu pai, o rei.

- Por Deus! - exclamou Henrique. - Tenho sido condescendente demais com essa garota!

- Com toda certeza! E eu sempre lhe disse isso. Você precisa anunciar a ilegitimidade dela imediatamente, e cada autoridade inglesa deve concordar com isso.

- E se eles não concordarem, que o pior lhes aconteça! - rugiu Henrique.

Ela beijou sua face. Fora uma tolice preocupar-se tanto. Ela ainda detinha o poder de controlá-lo.

- Precisamos agir com cautela-disse o rei. - Temo que o povo não vá gostar disso. Eles fizeram de Catarina uma mártir, e de Maria Tudor também.

Ana não dava muita importância à vontade do povo. Eles tinham gritado "Não teremos nenhuma Ama Bolena!", e lá estava ela, no trono, apesar deles. O povo reunia-se e resmungava; às vezes causava distúrbios; às vezes marchava com tochas flamejantes nas mãos... Ainda assim, de nada valia dar muita atenção ao povo.

- Maria Tudor é uma menina estúpida e atrevida - sentenciou Ana. E quando o rei assentiu em concordância, ela acrescentou: - Ela deveria ser obrigada a servir de empregada para Elizabeth. Ela deveria ser levada a entender quem é a verdadeira princesa!

Então Ana se lançou aos braços de Henrique, gargalhando imoderadamente. Ele estava satisfeito com sua esposa. Tinha certeza de que ela não tardaria a dar-lhe um menino saudável.

O medo invadira o coração de Margaret Roper, a filha de Sir Thomas More; a paz vinha lentamente fugindo de seu lar. Abril era um mês muito agradável em Chelsea; no jardim da casa de seu pai, onde ela passara sua infância feliz e continuava a viver com seu esposo Will Roper, as árvores estavam florescendo; a água do Tamisa beijava gentil os degraus das escadas particulares. Quantas vezes Margaret sentara-se no banco de madeira com o pai, ouvindo-o ler para ela, seu irmão e irmãs, ou observando suas conversas cultas com o bom amigo Erasmo! Mas, tal a bruma de inverno, a mudança entrara lentamente na casa, e Margaret estava tomada pelo ódio, um sentimento que até agora não conhecera verdadeiramente. O ódio era voltado para aquela mulher com uma sexta unha na mão esquerda e um sinal horrendo no pescoço, uma mulher que enfeitiçara o rei, que separara a Inglaterra do papa e que pusera o pai de Margaret em risco mortal.

Quando Ana Bolena chegara à corte vinda do Castelo de Hever, a primeira sombra fora lançada sobre o Solar Chelsea. More reprochara Margaret por seu ódio, mas ela não conseguira sufocá-lo.

"Eu não sou uma santa", racionalizara.

Tecera palavras acres sobre Ana Bolena para suas irmãs, Elizabeth e Cecily; e agora, sentada no jardim observando o rio, hoje muito calmo, trazendo com ele os aromas misturados de piche, alga marinha, madeira podre e peixe, com os salgueiros em flor inclinando-se tristemente sobre a água, Margaret sentiu medo no próprio ar. Quando sua irmã adotiva, Mercy, saiu correndo da casa para vir sentar-se com ela, Margaret começara a tremer, receando que Mercy estivesse trazendo notícias de alguma catástrofe. Quando sua meia-irmã, Alice, apareceu a seu lado, Margaret sentiu os joelhos tremerem. Mas Alice viera apenas perguntar se Margaret poderia ajudá-la a alimentar os pavões.

Margaret lembrou-se de como a casa havia sido alguns anos antes. Lembrou-se de ver seu pai no coração da família, lendo para eles no quintal durante as noites longas de verão e dizendo preces dentro de casa, quase sempre com uma piada na ponta da língua. Seu pai era o centro deste lar; todos os outros se moviam ao seu redor; fosse ele removido, o que seria da família More?

"Será como a Terra sem o Sol", pensou ela

Lembrou-se de ter escrito cartas para o pai quando ele estava longe de casa, a serviço diplomático. Orgulhoso da filha, ele mostrara as cartas àquele grande erudito, Reginald Polé, que o cumprimentara por possuir uma filha tão inteligente. Ele lhe dissera isso porque sabia muito bem quando um elogio devia ser passado para o elogiado, sem risco de fomentar orgulho excessivo. Ele era um santo. E qual costumava ser o fim dos santos? Tornavam-se mártires. Margaret chorou baixo, tentando controlar-se porque não queria que as outras soubessem que ela estava atormentada; seu pai não teria gostado disso. Por que ela deveria agora remoer as lembranças da infância e de todos aqueles dias ensolarados nos quais seu pai fora o centro de sua vida, seu ente mais querido? Era o medo que a induzia a isso; medo daquilo que se aproximava velozmente de seu pai. O que reservava o destino a esse pai adorado amanhã, depois de amanhã, ou na semana seguinte? Uma melancolia profunda pesava sobre a casa; estava nos olhos de sua madrasta, que em geral sabiam desviar-se dos maus augúrios, mas desta vez fora impossível ignorá-los. Suas irmãs... estavam felizes ou quase histéricas? Seus maridos riam um pouco mais alto que de costume; e no jardim, ou pelas janelas da casa, seus olhos vez por outra corriam para o rio, como se estivessem esperando que uma barca viesse de Westminster ou da Torre, e parasse nos degraus particulares do jardim de Sir Thomas More.

Seu pai era a pessoa mais calma na casa. Contudo, às vezes demorava seu olhar sobre os outros, como se quisesse decorar os detalhes de cada rosto, para poder lembrar quando não pudesse mais vê-los. Ultimamente ele parecia possuído por uma grande calma, como se tivesse lutado contra um problema e encontrado a solução. Era um homem bom, um grande homem; e mesmo assim um homem divertido. Costuma-se esperar que um santo seja um pouco melancólico, sem gosto por prazeres e avesso a ver os outros se divertindo. Ele não era assim; ele adorava rir, adorava ver seus filhos rirem; tinha o coração cheio de bom humor.

"Nunca houve homem como papai!", suspirou Margaret.

Contava agora com 56 anos de idade, e desde que se demitira do cargo de chanceler, aparentava cada um desses anos. Quando menino, fora levado para a casa do cardeal Morton, que fora arcebispo de Canterbury. De lá matriculara-se em Oxford, onde se formara advogado. Em seguida ingressara no Parlamento, palestrara sobre teologia e fora reconhecido imediatamente como um rapaz brilhante. Havia em Thomas More todo o material do mártir. Em certa época ele chegara muito perto de se tornar monge, mas decidira casar-se.

- Algum dia o senhor se arrependeu dessa decisão, pai? - perguntara Margaret certa vez.

E ele rira e fingira pensar no assunto. Margaret sentirá uma felicidade profunda ao descobrir que não, ele jamais se arrependera. Isso era justo, porque, se um dia houve um homem que nasceu para ser pai, esse homem foi Sir Thomas More.

"Nunca houve uma família como a nossa", pensou Margaret. "Éramos felizes... felizes... antes de Ana Bolena chegar à corte."

Wolsey havia admirado Sir Thomas, havia usado-o; o rei conhecera-o, afeiçoara-se a ele, pedira seu auxílio ao redigir o repúdio às doutrinas de Lutero. Portanto, quando Wolsey foi descartado, fora More a escolha do rei para substituí-lo.

- More será chanceler. More terá o Grande Selo da Inglaterra sentenciara o rei. - Pois raras vezes gostei tanto de um homem!

Assim o pai de Margaret alcançara esse posto elevado. Mas ele nunca quisera ir para a corte. Não tinha ele comentado que iria servir primeiro a Deus e em seguida a seu soberano? Sendo um homem profundamente honesto, More não sabia conter a língua para poupar-se de problemas. Ele era um santo; mas que Deus jamais quisesse mostrar ao mundo que ele também poderia ser um mártir! Margaret ficara assustada quando ele se tornara chanceler, pois conhecia a opinião do pai sobre o divórcio.

- Ana Bolena jamais será rainha - dissera ela várias vezes a seu marido, Will. - Como ela poderá ser, se o papa não sancionará o divórcio?

- De fato, você fala a verdade, Meg - respondera Will. - Como isso pode acontecer? Um homem que tem uma esposa não pode desposar outra.

Naquela época ela temera por Will porque ele, interessado na nova fé, lera sobre ela secretamente, e agora não sabia por qual lado decidir. Ela temera as consequências, porque não teria suportado ver seu amado pai e seu querido marido em desacordo. Margaret discutira Martinho Lutero e suas doutrinas com o pai, estando ele sempre disposto a conversar com ela sobre qualquer assunto sério, acreditando que, embora ela fosse mulher, tinha o poder de pensar e raciocinar.

Margaret dissera-lhe:

- Pai, eu já ouvi o senhor falar várias vezes contra os procedimentos de Roma.

- E de fato critiquei Roma várias vezes, Meg. Mas eu acredito, filha, que as coisas que mais valorizo na vida se encontram melhor sob a guarda de Roma.

Margaret náo ousara contar-lhe que Will flertava com a nova fé. Ela náo entendia completamente o motivo. Supunha que Will, sendo jovem, preferia experimentar o novo, enquanto seu pai, não mais um moço, preferia as velhas tradições. No dia em que descobrira essa tendência em Will, Margaret considerara isso uma grande tragédia; mas que tragédia era essa, quando comparada com aquela que agora ameaçava se abater sobre seu pai?

A entrega do Grande Selo fora como a primeira trovoada que, num belo dia de verão, anuncia uma tempestade súbita.

Depois disso tudo estivera calmo, até aquele dia de abril, um ano atrás, quando três bispos tinham vindo convidá-los para a coroação daquela que seria feita rainha, mas que jamais seria aceita como tal na casa. More recusara o convite. Margaret sentiu um arrepio ao lembrar disso. Alguns dias depois da recusa os resultados haviam feito se sentir: ele fora acusado de suborno e corrupção. Uma acusação ridícula contra o homem mais honesto da Inglaterra. Mas nenhuma acusação era ridícula demais para lançar contra um homem tão proeminente que se recusara a prestar honras a Ana Bolena. E, recentemente, More recebera uma nova e mais alarmante acusação. Uma freira louca de Kent, de nome Elizabeth Barton, chocara os seguidores de Ana e pusera esperança no coração dos defensores de Catarina com suas profecias sobre desígnios malignos que aguardavam o rei e Ana, caso eles mantivessem seu relacionamento pecaminoso. A verdadeira rainha, declarara a freira, era Catarina. Ela tivera visões; ela entrara em transes e dera voz a profecias que teriam sido postas em sua boca pelo Espírito Santo. Como estivera em contato com a rainha Catarina e o imperador Carlos, a freira fora considerada perigosa. Ao ser presa e examinada na Câmara da Estrela, ela confessara ser uma impostora. E Sir Thomas More fora acusado de haver instigado essa mulher a fingir que o futuro lhe fora revelado, de modo a assustar o rei e induzi-lo a abandonar Ana e aceitar Catarina de volta.

Margaret lembrou como a família sentara-se à mesa, fingindo comer, dizendo uns aos outros que tudo ficaria bem, que a inocência do culpado era sua melhor defesa. More fora levado diante do conselho; fora interrogado pelo novo arcebispo, por Sua Graça de Norfolk - a quem Margaret temia pelos olhos frios e pela boca dura e cruel - e por Thomas Cromwell, cujas mãos grossas pareciam ansiosas por girar a engrenagem da prensa e fazer More responder às suas perguntas. Os olhos de peixe de Cromwell não guardavam nenhum calor, apenas astúcia. Mas este pai muito amado era tão inteligente quanto bom. Os argumentos de More haviam sufocado os de seus detratores, porque sua inteligência era mais aguçada que as deles. Margaret ouvira dizer muitas vezes que, com a exceção de Cranmer, seu pai não tinha um igual; e como nesta ocasião Cranmer estava no lado errado, o justo deveria prevalecer. Assim, os detratores do pai de Margaret tinham-no dispensado, a contragosto, porque não haviam conseguido engambelá-lo com seus argumentos frágeis.

Will viajara com Sir Thomas More, e depois contara tudo a Margare.t Em nenhum momento o pai de Margaret esmorecera diante das adversidades; Will, impressionado com isso, dissera a More que estava impressionado por vê-lo tão alegre.

More respondera que realmente se sentia alegre, e Will sabia o motivo? Ele dera o primeiro passo e o primeiro passo era sempre o mais difícil. Ele fora tão longe em seu caminho que agora era impossível voltar.

Esta fora, portanto, a causa de sua alegria Ele dera um passo na trilha que acreditava ser a certa; mas que trilha era essa, onde o perigo espreitava a cada curva? E qual seria o fim desse caminho? Isso acontecera há um ano, e agora ele já avançara muito por essa trilha; e a melancolia que pairava sobre eles agora... significava que ele estava chegando ao seu fim?

Mercy vinha correndo pelo jardim agora.

- Meg! - gritou. - Meg!

E Margaret não ousou olhar para ela, tão forte era o medo, tão atordoante o suspense.

O rosto agradável de Mercy estava vermelho por causa do exercício.

- Jantar, Meg! No que você está pensando... com o que está sonhando? Estamos todos esperando por você. Papai mandou chamá-la.

Margaret considerou que nunca ouvira palavras mais bonitas, e a beleza residia em sua doce normalidade. Tapai mandou chamá-la" Ela acompanhou Mercy até a casa.

Sentaram-se em torno da mesa grande, sua madrasta Alice, Cecily e seu marido Giles, Elizabeth e seu esposo, John e sua mulher, Mercy e Clement, Margaret e Will.

E ali na cabeceira da mesa ele estava sentado, o rosto mais sereno do que o de todos, como se não estivesse ciente das nuvens de preocupação que pairavam sobre a casa. Estava rindo, fingindo caçoar de Margaret por estar sonhando acordada, passando-lhe um sermão bem-humorado sobre os males da falta de pontualidade. E ela riu com os outros, mas sem ousar fitar os olhos do pai, por medo de que ele visse suas lágrimas. Ele sabia por que ela não queria fitá-lo; os dois eram as pessoas mais chegadas uma à outra naquela casa, e embora ele amasse imensamente sua família, era sua filha Meg que More tinha mais próxima ao coração. Assim, os outros riram; More era um feiticeiro que fazia mágicas com risos, conjurando-os não se sabia de onde. Mas Meg não riu; ela estava perto demais do mágico, conhecia seus truques, via seus passes, sabia que os olhos alegres vigiavam a janela, atentos a qualquer sinal.

Chegou como uma batida forte na porta externa.

Gillian, a pequena empregada da família, entrou correndo, boca aberta. Havia alguém lá fora que queria ver Sir Thomas.

Sir Thomas se levantou, mas o homem já estava na sala. Carregava um pergaminho nas mãos. Ele fez uma mesura extremamente cortês. Trazia o rosto triste, como se não tivesse grande amor por sua missão, que era um comando para que Sir Thomas aparecesse no dia seguinte diante dos comissários para fazer o Juramento de Supremacia.

Fez-se silêncio em torno da mesa; Margaret fitou o prato à sua frente, a madeira carcomida da mesa que ela conhecia tão bem, porque costumava sentar-se nesse lugar específico há mais tempo do que conseguia lembrar. Ela desejou que os pássaros não estivessem cantando tão alto, mostrando que não sabiam que este era um dia fatídico; desejou que o sol não estivesse deitando uma luz tão quente em seu pescoço, porque aumentava ainda mais a náusea que ela começava a sentir. Ela queria uma perfeita clareza mental para lembrar de cada detalhe daquele rosto tão querido.

Sua madrasta estava pálida como um cadáver; parecia prestes a desmaiar. A família inteira parecia petrificada; eles não se moveram, apenas ficaram parados, esperando.

Margaret olhou para o pai; os olhos dele começaram a piscar.

"Não, não!", pensou ela. "Não agora! Não suportarei se você transformar isto numa piada. Nem mesmo por eles. Não agora!"

Mas ele estava sorrindo para ela, implorando a ela. Margaret! Você e eu nos entendemos. Precisamos ajudar um ao outro.

Então ela se levantou da mesa, caminhou até o mensageiro, e olhando diretamente para o rosto dele, disse:

- Ora., vejam só! Se não é Dick Halliwell! Mãe... Todos... Este é apenas o Dick!

E eles pularam sobre o pai dela, ralhando com ele, dizendo-lhe que ele tinha ido longe demais com suas brincadeiras. E ali estava ele, rindo entre eles, acreditando que não se devia olhar para a infelicidade até que ela estivesse bem perto de você, tendo dito várias vezes que, uma vez que você tinha passado pela infelicidade, cada dia punha mais distância entre ela e você.

Margaret se dirigiu à ala infantil onde dormia com sua filha pequena, encontrando consolo no charme da criança, e imaginando o futuro da menina quando ela tivesse seus próprios filhos, de modo a não pensar neste dia e nos próximos.

Mais tarde, ouvindo vozes debaixo de sua janela, Margaret olhou para fora e viu seu pai caminhando com o duque de Norfolk que, ela presumiu, viera conversar sobre o dia seguinte. Margaret, mão no coração, como se temesse que os dois ouvissem-no bater alto, prestou atenção na conversa.

- Lutar contra monarcas é muito perigoso - disse Sua Graça. Como seu amigo, gostaria muito que cedesse à vontade do rei.

Então ela ouviu a voz de seu pai, que lhe pareceu muito menos tensa do que deveria estar.

- A única diferença que essa atitude colocará entre Sua Graça e eu é que morrerei hoje e Sua Graça amanhã.

Naquela noite Margaret não conseguiu dormir. A morte já parecia pairar sobre a casa. Ela lembrou do que ouvira sobre os condenados à Torre. Pensou naquela prisão soturna e comparou-a com esta casa feliz. Seu pai diria:

"Tive muitos anos de felicidade; deveria estar grato por tê-los tido, e não triste por nunca mais vir a tê-los novamente."

Margaret derramou lágrimas amargas e tomou sua filha nos braços, buscando conforto naquele corpinho. Mas não havia conforto para Margaret Roper. A Morte pairava sobre a casa, esperando arrebatar seu membro mais amado.

No dia seguinte, Sir Thomas More partiu. Margaret observou-o descer com Will a escadaria particular até o rio. Mantinha o queixo erguido, já parecendo um santo. Não olhou para trás; queria que sua família pensasse que em breve iria retornar para casa.

Catarina Howard estava no pomar, olhando através das árvores para o rio. Estava mais voluptuosa do que um ano atrás, quando encontrara com Francis Derham pela primeira vez durante a coroação. Agora deplorava o estado de suas roupas, sonhava com materiais finos e com arcos e flores para adornar seus cabelos.

Ainda não tinha 13 anos e já aparentava 17: uma moça bonita e curvilínea de 17 anos; era muito bonita, alegre e risonha; e apaixonada por Francis.

"A vida é bela", pensava Catarina.

E prometia vir a ser ainda mais. Francis era seu marido, ela era sua esposa. Um dia... um dia que não estava muito distante... iriam sê-lo no papel.

Enquanto estava ali, de pé, olhando para o rio, um par de mãos pousou sobre seus olhos. Ela soltou um gritinho de prazer, certa de que era Francis. Ele vinha visitá-la frequentemente, e eles se encontravam no pomar, visto que o rapaz ainda estava morando na casa do tio.

- Adivinhe quem é! - disse a voz amada e familiar.

- Adivinhar? - gritou, feliz. -Não preciso adivinhar... eu sei! Ela empurrou as mãos dele e girou nos calcanhares para vê-lo. Beijaram-se apaixonadamente.

- Trago boas notícias hoje, Catarina! - anunciou Francis. - Mal posso esperar para lhe contar.

- Boas notícias!

- As melhores. Espero que você concorde comigo.

- Conte, conte! Você precisa me contar.

Ele deu um passo para trás, rindo, saboreando o segredo, ansiando pelo momento da revelação e pelo prazer de ver a reação de sua amada.

- Muito bem, vou contar, Catarina. Sua Graça terá um novo servidor. Sabe qual é o nome dele?

- Francis... você!

Ele fez que sim com a cabeça.

- Então você estará aqui... debaixo do mesmo teto que eu! São notícias estupendas, Francis!

Eles se abraçaram.

- Será tão mais simples nos encontrarmos, Catarina.

Ela estava sorrindo. Sim, realmente seria muito mais simples para eles se encontrarem. E morar sob o mesmo teto lhes daria oportunidades com as quais ele ainda não sonhara.

A excitação de pensar em momentos a sós com Francis deixava-a com as faces coradas e os olhos brilhantes.

Alguns rapazes e moças iam até o pomar para namorar. Entre eles, Damport, o melhor amigo de Francis.

Francis e Catarina separaram-se ao vê-lo, e foram saudados com risos. Um dos rapazes disse, fingindo moralismo:

- Que vergonha, Derham, beijando a senhorita Catarina Howard! Derham respondeu:

- Por que eu não deveria beijar minha esposa? Uma das damas disse:

- Cuidado, querida, ele está iludindo você. Duvido que o Sr. Derham queira se casar tão cedo.

Derham riu de prazer.

- Por São João! Nenhuma data é próxima demais para meu casamento com Catarina Howard!

Catarina interrompeu a brincadeira ao apontar para uma barca que descia o rio.

- Vejam todos! - gritou ela. - Não é Sir Thomas More? Todos ficaram em silêncio, pensando no homem. Eles sabiam que

More dera um passo na direção do cadafalso quando a freira de Kent fora queimada por suas heresias. O que acontecerá agora?, perguntaram-se, e uma melancolia profunda acabou com sua alegria. Eles observaram a barca passar ao longo do rio em seu caminho para Westminster; e quando ela estava fora de vista, eles tentaram rir de novo, mas descobriram que já não tinham qualquer vontade.

A breve estadia na Torre provocara uma mudança profunda em Jane Rochford. Ao ver a pompa da coroação por trás das grades de sua cela, Jane percebera que só estava ali porque fora incrivelmente estúpida, e decidira que no futuro seria mais sábia. Ela sempre iria odiar Ana, mas isso não era motivo para espalhar esse fato perigoso aos quatro ventos. , Seu curto encarceramento tinha objetivado alertar a ela e a outros, mas Jane voltara à liberdade determinada a controlar seu ciúme histérico. Procurara Ana para pedir-lhe perdão. Ana aceitara as apologias de Jane, afinal, sempre sentira mais indiferença do que ódio por sua cunhada. Assim, Jane retornou para a corte como dama de companhia para Ana, e embora elas jamais pudessem se tornar amigas, fez-se um pacto entre as duas.

Passara-se mais ou menos um ano depois da coroação quando Jane, que gostava de descobrir os segredos das pessoas que a cercavam, fez uma grande descoberta.

Entre as aias de Ana havia uma jovem de certa beleza e comportamento tímido, uma integrante daquilo que se tornara conhecido como a facção anti-Bolena - o grupo que defendera Catarina e estava quieto agora, embora aparentemente atento para qualquer mudança no curso dos eventos.

Ao interceptar uma troca de olhares entre o rei e essa garota, Jane sentira-se exultante.

"Será possível que o rei está pensando em tomar para si uma amante... Que já esteja sendo infiel a Ana?"

O pensamento fez Jane gargalhar sozinha. Como ela fora estúpida ao falar mal de Ana! Que vingança pobre, que apenas a pusera na Torre! A vingança devia ser realizada subitamente; ela sabia disso agora.

Como seria divertido levar a notícia para Ana, gaguejar, derramar uma lágrima, murmurar: "Temo ter notícias terríveis para a senhora. Não estou certa se devo contar... Sinto imensamente que caiba a mim ser a portadora de notícias tão inquietantes..."

Ela precisava observar; precisava espionar; precisava agir com cautela. Ela ouviu por trás de portas; escondeu-se atrás de cortinas. Foi realmente ousada, sabendo qual seria a magnitude da ira do rei caso a flagrasse. Mas valeu a pena; ela descobriu o que queria.

Então precisou pensar muito para decidir como usaria essas informações. Ela poderia ir até Ana; poderia fazer com que ela arrancasse a história de seus lábios aparentemente relutantes; seria bom ver os olhos orgulhosos arderem, a raiva queimar naquelas faces insolentes, ver a petulante Ana Bolena humilhada. Por outro lado, e se ela levasse a notícia a George? Ela teria sua atenção completa; conquistaria sua aprovação, e George diria que Jane agira corretamente comunicando-lhe a notícia. Ela não conseguia decidir qual das duas alternativas mais a aprazia, e precisava agir depressa, porque havia outras na corte que bisbilhotavam a vida do rei e da rainha. Se outra pessoa fosse a portadora dessa notícia, todo o trabalho duro de Jane iria por água abaixo.

Por fim, decidiu contar a George.

- George, tenho uma coisa para contar a você. Estou com medo. Não sei o que fazer. Talvez você possa me aconselhar.

"Ele não está realmente interessado", notou Jane, repentinamente com raiva. "Ele acha que é algo que diz respeito a mim. Mas espere só até ele descobrir que é sobre a sua irmãzinha Ana!"

- O rei está tendo um caso de amor com uma das damas de companhia de Ana.

George, que estivera escrevendo, mal levantara os olhos do trabalho quando sua esposa entrara no apartamento. A notícia perturbara-o, mas não muito. Conhecendo o rei, ele considerava isso inevitável. Cedo ou tarde Henrique acabaria encontrando uma amante. O mais importante era que Ana precisava compreender isso e não irritar o rei mais do que ele já ficara com o nascimento de uma filha. Se ela permanecesse calma, fosse compreensiva, conseguiria manter o controle sobre ele. Mas se fosse ciumenta, controladora, poderia se ver numa situação muito semelhante àquela de Catarina. George iria aconselhá-la a tratar o assunto com a leveza que ele merecia.

- E então, não está impressionado por eu ter conseguido descobrir isso antes da maioria?

Ele olhou para a esposa com desgosto. Ela não conseguia ocultar o triunfo em seus olhos. George visualizou-a espionando; ele descobrira logo no começo de seu casamento que ela era uma espiã nata. E agora ela estava empolgada e alegre - e o demonstrava -, porque detinha uma informação que decerto magoaria Ana.

- Não, não estou impressionado. Você é muito inteligente, e tenho certeza de que não teve dificuldade em fazer essa descoberta. Também tenho certeza de que adorou fazer isso.

- O que você quer dizer? - inquiriu Jane.

- Exatamente o que acabo de dizer, Jane.

Ele se levantou, e teria passado por ela. Ela o deteve, colocando as mãos em seu casaco.

- Achei que iria agradar você, George. Agora gostaria de ter ido falar direto com Ana.

Ele estava feliz por Jane não ter feito isso. Ana andava nervosa e irritada; ultimamente, estava inclinada a fazer a primeira coisa que lhe passasse pela cabeça.

George se forçou a sorrir para Jane e a segurar-lhe a mão.

- Fico feliz por ter me contado primeiro. Jane fez beicinho e disse:

- Você parecia zangado comigo há um minuto. Por que, George? Por quê? Por que tudo que faço deixa você com raiva?

George percebeu que ela estava armando um daqueles estratagemas que ele tanto odiava.

- Claro que eu não estava zangado - respondeu. - Você imagina essas coisas.

- Você estava zangado comigo porque acha que ela ficará magoada. Não lhe importa que eu arrisque a minha vida...

- Para espionar o rei! - completou. Ele irrompeu numa gargalhada súbita: - Por Deus, Jane, eu gostaria de ver a expressão de Sua Majestade se flagrasse você espionando por uma fresta na porta! Ela bateu o pé. Seu rosto estava

lívido de raiva.

- Você acha isto engraçado! - vociferou.

- Bem, até certo ponto, sim. O rei, desfrutando de seu prazer pecaminoso, e você fazendo aquilo no que é verdadeiramente genial... espionar. E depois vindo aqui se gabar...

- Me gabar!

- Ora, não negue! Juro que nunca vi você tão satisfeita com alguma coisa.

Os lábios de Jane tremeram; lágrimas correram de seus olhos.

- Eu sei, não sou inteligente, mas por que você ri de tudo que eu faço?

- De tudo? - disse, rindo. -Eu lhe asseguro, Jane, que é apenas em raras ocasiões que sou capaz de rir do que você faz.

Ela deu um passo na direção dele, furiosa.

- Talvez você não ache essa história tão engraçada quando eu lhe contar quem é a dama!

Isso assustou George, e ela teve o prazer de ver que capturara toda sua atenção.

- Esqueci o nome dela. É tão acanhada que mal se faz notar. Ela é uma amiga de Chapuys. É uma daquelas que adoraria ver a rainha destronada.

Jane viu agora que seu marido estava profundamente perturbado. Não se tratava apenas de um caso amoroso trivial do rei; esta era uma situação política delicada. Era bem provável que os inimigos de Ana tivessem incumbido a garota de iniciar o relacionamento com o rei.

George começou a andar em círculos. Jane sentou-se num assento de janela e pôs-se a observá-lo. De súbito George se dirigiu à porta e, sem lançar um último olhar para Jane, saiu da sala. Jane quis rir, mas não havia risos nela. Ela cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.

George foi até Ana. Ela estava em seu quarto, lendo calmamente, fazendo marcas com a unha nas passagens que queria que Henrique lesse. Ana estava alimentando seu interesse em teologia porque o assunto interessava a Henrique. Ultimamente tentava prender o marido a si de todas as formas que conseguia imaginar. Estava aflita; pensava frequentemente em Catarina e no que lhe acontecera. Indagou-se por que não fora mais simpática com a primeira rainha do rei e riu de si própria; será que agora não estava entendendo o caso da antiga rainha porque o seu próprio tornava-se similar?

- Você parece alarmado, George - disse Ana, colocando seu livro de lado.

- Tenho notícias alarmantes.

- Conte-me rápido. - Ela soltou uma risada histérica. - Acho que estou preparada para qualquer coisa.

- O rei está tendo um caso.

Ana jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.

- Não posso dizer que estou surpresa, George.

- Não se trata de um caso normal. É importante, quando se considera quem é a garota.

- Quem?

- Jane não lembra o nome.

- Jane!

Eles trocaram olhares de entendimento.

- Jane tomou para si a missão de desvelar este caso - disse George. - Acho que desta vez Jane nos prestou um serviço. Ela descreveu a moça como acanhada e insípida como água.

- Ah! - exclamou Ana. - Sei de quem se trata!

- Ela pertence ao lado de nossos inimigos - disse George. - É bem provável que tenha iniciado o caso para engendrar a sua ruína, Ana.

Ana se levantou, faces rubras.

- Ela será banida da corte! Eu própria cuidarei dela. Mandarei que a tragam até minha presença! Eu...

George levantou a mão para reprimi-la.

- Ana, você está me aterrorizando. Esses seus ataques de cólera...

- Ataques de cólera! Como se eu não tivesse motivos para...

- Você tem todos os motivos do mundo para olhar onde pisa, irmã. Não deve fazer nada de forma impulsiva. Deve apenas observar. Tudo que você fala está sujeito a ser ouvido. O seu trono está vacilante! Não deve dizer nada disso ao rei; por hora deve fingir ignorância. Precisamos agir com cautela e segredo, porque esse caso do rei não é como os outros.

- Há momentos em que penso que o melhor que poderia fazer seria sair do palácio e jamais deitar os olhos no rei novamente.

- Anime-se. Pensaremos em algo. Há um ponto que você não deve esquecer: não deve dar ao rei qualquer sinal de que sabe de alguma coisa. Entre nós, pensaremos num plano.

- Isto é tão... humilhante! - gritou. - Por minha fé! Sofri mais humilhações desde que me tornei rainha do que em toda a minha vida.

- É parte do preço de ser rainha, Ana! Prometa... prometa que agirá com cautela!

- Claro, claro! Naturalmente eu devo...

- Não-replicou George, expressão severa - Não naturalmente, Ana. Sobrenaturalmente! Lembre-se de Maria...

- O que tem Maria?

- Você sabe muito bem a que eu me refiro. Como você pôde ser tão imprudente, tão estúpida, e dizer que se o rei fosse à França e você fosse o regente, encontraria uma razão para colocar Maria Tudor fora do caminho?

- Essa moça me enlouquece. É estúpida, obstinada...

- Disso nós sabemos bem. Mas a maior estupidez foi a sua, Ana, ao fazer declarações tão impensadas.

- Eu sei... eu sei. E lhe sou muito grata, George, por sempre me aconselhar.

- Estou lhe dando um conselho agora. Lembre das tolices que você fez antes, e contenha sua têmpera com o rei.

- Ultimamente tenho-o achado muito mais terno comigo - disse Ana, e deu uma gargalhada súbita. - E pensar que isso se deve apenas à sua consciência pesada!

- Ah! - exclamou George. - Ele sempre viveu sob o jugo de sua consciência. Mas, Ana, ele é uma pessoa simples. Você e eu sabemos disso, e podemos ser francos um com o outro. Henrique se orgulha muito de si mesmo. Seus versos... se ele soubesse que não os consideramos os melhores já escritos em sua corte, mandaria separar nossas cabeças dos ombros!

- com toda certeza! Ele se orgulha muito de si mesmo e de suas obras. George... -Ana olhou sobre o ombro. -Não há mais ninguém a quem eu possa dizer isto. - Ela fez uma pausa, mordendo os lábios, os olhos vasculhando o rosto do irmão. - Catarina teve uma filha, e depois... todos aquele abortos! George, eu me pergunto, será que não é o rei que não consegue gerar filhos?

George fitou a irmã.

- Eu não estou entendendo - admitiu ele.

- Ele não teve um filho sequer além de Richmond - disse Ana -Você já pensou nisso? E Richmond... ele parece possuir uma constituição um tanto frágil. Eu não acredito que ele chegará a uma idade avançada. Ele é o filho único do rei. Depois houve Maria, que é normal, mas Maria é uma garota e dizem que as garotas têm mais facilidade de sobreviver ao parto que os meninos. Então a minha Elizabeth, que também é menina... - Ana cobriu o rosto com as mãos. - E todos aqueles natimortos, e todos aqueles meninos que viveram para respirar por uma hora ou menos antes de morrer... George, será que isso se deveu a alguma fraqueza em Catarina ou será que...?

George silenciou-a com um olhar. Ele leu o terror por trás das palavras de Ana.

Ela disse num sussurro:

- Henrique não está de todo bem... Aquele lugar em sua perna...

- Ela fechou os olhos e estremeceu. - Parece tão sujo... - Tremeu de novo. - George, e se ele não puder ter filhos homens?

George cerrou os punhos, implorando-lhe com os olhos que ela parasse de falar sobre aquilo. Levantou-se e caminhou até a porta. Jane estava no corredor, vindo na direção da sala. Ele se perguntou:

"Será que Jane ouviu tudo? Será que ela escutou eu me levantar e caminhar até a porta? Teria ela recuado alguns passos da porta e então, no momento em que a abri, começado a caminhar lentamente em nossa direção?"

Ele não conseguiu ler nada no rosto da esposa. Os olhos de Jane brilhavam; ela estivera chorando. George precisaria tomar muito cuidado com Jane; tinha certeza de que ela era perigosa.

- Olá, Jane. Eu acabo de contar a Ana...

Ana lançou um olhar arrogante para sua cunhada, mas Jane não se importou, afinal George estava sorrindo para ela.

- Entre - convidou George.

Jane entrou. Os três sentaram-se juntos, mas Ana não quis falar sobre o assunto na frente de Jane. Ficou intrigada com a demonstração de amizade de seu irmão pela esposa. Seria possível que ele estivesse se reconciliando com seu casamento infeliz, tentando finalmente fazer com que ele funcionasse?

O rei cantarolava um trecho de canção. Ana observava-o. Ele parecia enorme, o corpanzil reluzindo de jóias. Henrique estava cada vez mais gordo, não mais o príncipe mais belo da cristandade; não mais o príncipe dourado. Era um homem grosseiro que tinha rosto avermelhado, olhos injetados e uma perna acometida por uma chaga asquerosa. Os olhos de Henrique estavam brilhando; ele era agora o amante, e ela lembrava bem do amante. Quantas vezes Ana já vira essa expressão em seus olhos? Só que antes esse olhar fora dirigido a Ana. Era realmente estranho saber que Henrique tinha seus desejos fixados em outra mulher. Estranho e aterrorizante.

- É uma canção encantadora. Sua?

Henrique sorriu. Ela estava reclinada na cama que ele lhe dera antes da gravidez. "Uma cama belíssima", pensou Henrique. "Por Deus, ela devia pesar sua sorte por possuir uma cama tão maravilhosa!"

Henrique duvidava de que existisse no mundo outra cama como aquela. Seu esplendor combinava com Ana, pensou Henrique, indulgentemente. Ana! Jamais haveria outra como ela, claro; nem mesmo a pequena.. Bem, ele jamais ousara comparar as duas, mas ela era sossegada, enquanto Ana era irritadiça e capaz de tirá-lo do sério. E um homem precisava variar um pouco, nem que fosse para provar sua masculinidade. Em momentos como esse ele sentia um carinho profundo por Ana, momentos em que ela dizia coisas como "A canção é sua?". Era apenas nos momentos em que aqueles olhos grandes e negros varavam-no, aparentando ler mais de sua mente do que ele queria, que Henrique sentia raiva da esposa. Ela era mais inteligente do que uma mulher tinha o direito de ser! Estrangeiros eruditos adoravam conversar com ela sobre as novas teorias luteranas, e elogiavam-na muito pela facilidade com que conversava com eles. Henrique não gostava disso. Toda glória que chegasse a uma rainha deveria alcançá-la através de seu rei. A beleza de Ana era grande e admirada; as roupas esplêndidas que ela usava, também. Mas sua inteligência, suas respostas afiadas e por vezes sarcásticas... Não, não; essas coisas irritavam-no profundamente.

Henrique precisava lembrar a Ana constantemente que fora ele o responsável por sua ascensão; que tudo que ela possuía agora era-lhe devido. Por Deus, havia momentos em que Ana parecia esquecer isso! Ana ainda era capaz de agradá-lo, ainda fazia-o ver que ele jamais conhecera nenhuma mulher que chegasse a seus pés, e que jamais viria a conhecer.

Mas isso também o irritava; isso mostrava que ele estava preso a Ana, e ele não gostava de estar preso. Recordava saudoso os dias antes de tê-la conhecido, antes que esta maldita perna começasse a atormentá-lo, quando ele era um gigante de cabelos e barba dourados, eclipsando a todos os outros homens em qualquer esporte; cavalgando, comendo, bebendo e amando mais do que todos. Uma época boa, quando ele ainda tivera Wolsey para cuidar dos assuntos do reino. Ana matara Wolsey quase como se o tivesse feito com as próprias mãos. Se não fosse por Ana, Wolsey ainda estaria vivo.

More estava na Torre de Londres. E Ana fora a causadora. E ainda assim... ninguém conseguia satisfazer Henrique como sua esposa. Insolente, superior, como só ela sabia ser, Ana atiçava em Henrique o desejo de subjugá-la. Às vezes sentia dificuldade em entender os sentimentos que nutria por Ana. Num momento ela lhe provocava uma fúria repentina e poderosa; no outro, um desejo ardente que exigia satisfação a qualquer preço. Jamais haveria uma mulher como Ana, mas fora ela quem o separara de seus dias de masculinidade esplendorosa. Ao conhecê-la, Henrique despedira-se de seus dias de jovem deslumbrante; durante os anos de sua fidelidade a Ana, Henrique passara gradativamente por um processo de degeneração. Henrique jamais iria ser novamente o homem que fora antes de Ana Bolena.

"Mas basta de introspeção!"

Henrique estava se esforçando para recuperar sua juventude. Havia uma mulher - aquela que em breve estaria de novo em

seus braços, olhando para ele com doce humildade

- que o assegurava de que ele era o maior de todos os homens e também o mais poderoso dos reis; que não queria outra coisa senão a honra de ser sua amante. Um bálsamo

suave nas feridas excruciantes que aquela bruxa de olhos negros, ali deitada na cama à sua frente, infligira-lhe. Mas no momento a bruxa estava elogiando-o docemente, e ele sempre achava-a irresistível nesse humor. A outra podia esperar um pouco.

- Sim, é minha - disse ele. - Irei cantá-la para você, mas não agora.

- Vou aguardar ansiosamente esse prazer.

Ele fitou Ana. Isso tinha sido um escárnio? Ela gostava de suas canções? Comparava-as com as de seu irmão, de Wyatt, de Surrey? Achava que as canções do rei sofriam na comparação?

Ela estava sorrindo docemente. Distraída, enrolava um cacho de seu cabelo. Os olhos negros estavam brilhantes esta noite, e as faces estavam coradas. Henrique ainda ficava fascinado ao contemplar a beleza de Ana, por mais familiar que ela tivesse se tornado.

A mocinha estava à sua espera. O respeito que ela nutria por seu rei era encantador. Henrique iria cantar sua música para ela, e sem dúvida ela aprovaria., e ele não iria ter qualquer dúvida sobre sua aprovação. A mocinha considerava-o maravilhoso. Ela não era inteligente; uma mulher jamais devia ser inteligente; sua missão na vida era agradar seu senhor. E ainda assim... Henrique orgulhava-se de sua rainha Mas qual era o problema se ele buscava amor em outras partes? O amor era um sentimento completamente másculo; além disso, as damas esperavam ser contempladas com o amor de um rei, e um monarca devia agradar suas súditas.

- Henrique... - disse ela

Ele parou, segurando o diamante que era o centro de seu casaco.

- Há uma coisa que preciso lhe dizer - disse Ana

- Não pode esperar?

- Acho que seria melhor que você ouvisse agora.

- Então diga depressa.

Ela se sentou na cama e estendeu as mãos para ele, rindo.

- Mas são notícias que eu preferiria não contar apressadamente

- disse Ana, olhando animadamente para Henrique.

- O quê? - disse o rei. - Ana, o que está querendo dizer?

Ele segurou as mãos da esposa, e ela se levantou para se posicionar de joelhos. Colocando o rosto bem perto ao dele, Ana perguntou:

- Diga-me, que notícias você gostaria que eu lhe desse, que notícias você iria gostar mais do que qualquer outra?

O coração de Henrique estava batendo acelerado. Será que era aquilo que ele tanto queria ouvir? Poderia ser realmente verdade? E por que não? Era a coisa mais natural... e mais esperada, aquilo que ele mais queria

- Ana! - exclamou.

Ela fez que sim com a cabeça

Henrique envolveu-a com os braços; ela se aninhou no pescoço de seu rei.

- Eu achei que isso iria agradá-lo - disse Ana

- Agradar-me? - Ele estava empolgado como um menininho. Nada no mundo dar-me-ia mais prazer!

- Então estou feliz.

- Ana, Ana, quando...

- Ainda demorará oito longos meses. Ainda assim...?

- Você tem certeza?

Ela assentiu, e ele a beijou novamente.

- Esse é para mim um presente mais valioso do que todas as jóias do mundo reunidas!

- Fico satisfeita em ouvir isso, porque houve momentos em que temi que a sua paixão por mim estivesse à míngua...

Ele interrompeu as palavras de Ana com um beijo.

- Você é uma menina muito boba, Ana!

- Acho que sim. Diga-me, você estava saindo para uma missão muito importante? Porque eu não via a hora de lhe contar isso....

Ele riu.

- Missão importante! Por Deus! Eu desertaria da missão mais importante do mundo apenas para ouvir essa notícia!

"Ele esqueceu a outra completamente", pensou Ana, exultante. Aqui estava de volta o amante terno. Essa notícia era tudo o que era preciso para atraí-lo.

Ele não iria abandoná-la, não nessa noite, nem na seguinte. Ele se esquecera da mocinha tímida; ele apenas estivera se distraindo com ela. Ana estava esperando um bebé. Desta vez, um filho; com toda certeza, um filho. Por que não? Tudo estava bem. Ele agira corretamente ao desposar Ana. Esta era a resposta de Deus!

Henrique sabia que seu povo ficaria eufórico quando o seu filho nascesse. Isso acabaria com seus lamentos e queixas. Ele esqueceu a garota com quem vinha se divertindo; era agora o esposo fiel; o pai de uma menina, prestes a ser o pai de um menino. Desistiu da ideia de ir para a França, e em vez disso iniciou uma turnê pelo interior da Inglaterra junto com Ana... a beligerante e poderosa Ana.

"Esta é a rainha que escolh;. Sejam bons súditos e amem a minha rainha... ou enfrentem a minha ira!"

A reunião do povo em torno de um único objetivo era assustadora. Um rei poderia punir alguns com severidade, mas, e quanto a muitos? O caso Dacres era prova de que o povo não estava ao lado de Ana. Dacres era devotado à causa católica, e portanto a Catarina, e por esse motivo Northumberland-ainda um grande admirador de Ana-brigara com o homem e o acusara de traição. Para Cromwell e Cranmer, esse parecera um bom momento para ordenar a decapitação de Lord Dacres. Assim, haviam-no levado para Londres, onde ele foi julgado pelos fidalgos. Os lordes, com coragem inesperada e imbuídos de um desafio inédito sob a regência despótica de Henrique, tinham absolvido Dacres. Isso parecera a Henrique uma traição da parte dos fidalgos, mas fora muito mais. Significara que esses gentis-homens sabiam possuir apoio popular por trás deles, apoio fortalecido pelo ódio a Ana - estivesse ela grávida ou não. Isso abalou Henrique e devastou Ana e seus paladinos. Parecia que agora todos estavam esperando pelo filho que ela prometera gerar; isso, obviamente, iria fazer toda a diferença; Henrique jamais poderia descartar a mãe de seu filho. Depois que Ana desse a luz a um menino - um que demonstrasse alguma promessa de se tornar um homem -, ela estaria segura. Até lá, Ana estaria pisando em ovos.

Ana estava mais nervosa do que qualquer um, com a provável exceção de George, poderia presumir. Costumava caminhar pelo terreno ao redor de Greenwich, pensando no futuro. Queria estar sozinha. Às vezes, quando se via em meio a pessoas alegres, Ana encontrava uma desculpa para se retirar. Estava muito assustada.

Todos os dias esperava e rezava por algum sinal de que estivesse grávida; mas nenhum chegava. Ela seguira um plano ousado, e aparentemente esse plano falhara.

O que será de mim? perguntava-se. Ela não poderia manter seu segredo por muito mais tempo.

Quando dissera ao rei que estava grávida, Ana acreditara que isso iria acontecer em breve. Por que ela não estava? Alguma coisa dizia-lhe que a culpa residia no seu esposo, e essa ideia era apoiada pelas experiências desastrosas de Catarina e com sua própria incapacidade de esperar outra criança. Havia Elizabeth, mas Elizabeth não era o bastante.

- Oh, Elizabeth, minha filha - murmurava Ana. - Por que você não nasceu menino?

Olhou para as nuvens vagando pelo céu de verão. Olhou para as folhas verdes nas árvores e murmurou:

- Antes que elas caiam eu terei de dizer a Henrique. Uma mulher não pode fingir eternamente que está grávida!

Talvez até lá... Sim, esse era o único pensamento que lhe provia algum alívio... Talvez até lá aquilo que fora uma fabricação de sua mente torturada se tornasse realidade. Talvez até lá ela estivesse com uma criança de verdade no útero, e não com uma imaginária.

Os dias se passaram. As pessoas já estavam olhando estranhamente para Ana. A rainha está bem? Como está magra! Será que está realmente esperando uma criança? O que você acha? Alguma coisa está errada? Será esta a punição de Ana por ter maltratado a pobre rainha Catarina?

Ela se sentou embaixo das árvores, rezando por uma criança. Quantas mulheres tinham se sentado debaixo dessas árvores, assustadas porque estavam prestes a parir uma criança! E aqui estava ela, assustada porque não iria dar a luz a uma, porque ela, vendo-se numa situação desesperada, encontrara nessa mentira uma saída possível para as suas dificuldades.

Sua irmã Mary veio e sentou-se a seu lado. Mary estava mais gorda, mais madura, mas ainda era a mesma Mary.

"Ainda incapaz de dizer não, aposto", pensou Ana, e subitamente sentiu o coração cheio de uma inveja amarga,

- Ana, estou com problemas terríveis - disse Mary.

- Quais problemas? - perguntou Ana, encontrando um alívio repentino quando seus pensamentos passaram de si própria para a sua irmã.

- Ana, você conhece Stafford?

- O quê! - gritou Ana. - Stafford, o camareiro?

- Esse mesmo - disse Mary. - Bem... ele e eu...

- Um camareiro! - gritou Ana.

- Tenho a impressão de que em toda a minha vida não conheci homem que me amasse mais - disse Mary. - Pensei que o melhor para mim seria renunciar a tudo e me casar com ele.

- O rei jamais dará seu consentimento - sentenciou Ana.

- Talvez quando ele souber que estou grávida...

Ana virou-se horrorizada para a irmã. Mary era viúva há cinco anos. Naturalmente Ana não esperara que ela levasse uma vida de freira, mas que ao menos ela fosse um pouco mais cuidadosa.

"Isso é tão típico da Mary!", pensou Ana. "Tão típico!"

Mary apressou-se em explicar.

- Ele é jovem, e o amor foi mais forte. E eu o amo tanto quanto ele a mim.

Ana manteve-se em silêncio.

- Ah! - prosseguiu Mary. - Eu poderia ter tido um homem de berço melhor, nunca poderia ter um que me amasse tão bem... nem um homem mais honesto.

Ana parecia fria, e Mary não seria capaz de suportar frieza agora. Ela não sabia do tormento de sua irmã; julgava-a feliz e segura, desfrutando de sua condição de rainha. Parecia descortês da parte de Ana não dar-lhe uma palavra de conforto sequer.

Mary se levantou.

- Eu prefiro desfrutar da companhia dele do que da companhia de uma rainhaf - gritou, e começou a correr na direção do palácio.

Ana observou-a. Mary - uma viúva - estava grávida, e com medo em decorrência disso. Ana - uma rainha e esposa - não estava, e, por causa disso, encontrava-se muito mais assustada do que Mary poderia entender! Ana jogou a cabeça para trás e desatou a rir imoderadamente. E quando o riso acabou, ela tocou as faces e encontrou-as molhadas por lágrimas.

Quando Ana contou a Henrique que não estava esperando uma criança, ele ficou furioso.

- Como um erro desses pode ocorrer! - inquiriu, desconfiado, seus olhos pequenos carregados de frieza e crueldade.

- Muito simplesmente! - retorquiu. - E se aconteceu, por que discutir com isso?

- Fui engabelado! - gritou. - Parece que Deus decretou que eu jamais terei um filho!

E ele lhe deu as costas, porque havia uma certa especulação em seus olhos que não queria que ela visse. Ele procurou a dama de companhia tímida.

- Ah! - exclamou. - Faz muito tempo que não sinto seus lábios, meu amor!

Ela era meiga, incapaz de reprová-lo.

"Quão diferente de Ana!", pensou.

E, rancoroso, lembrou como Ana dera-lhe ordens durante sua corte, e como continuou a tratá-lo como um igual depois de se tornar sua amante.

"Por Deus, nunca mais tolerarei isso", pensou. "Quem a fez ascender à nobreza, e então ao trono? Quem poderia fazê-la descer quando bem lhe aprouvesse? As mulheres deveriam ser todas meigas e submissas, como esta" com todas as suas forças, Ana tentava seguir o conselho do irmão, mas se via completamente incapaz de fazê-lo por muito tempo.

- Madge, vá até aquela mocinha - disse Ana à sua prima, uma moça adorável de quem gostava muito. - Vá até ela e lhe diga que eu gostaria de vê-la imediatamente.

Madge saiu. Enquanto esperava a chegada da moça, caminhou em círculos, tentando controlar sua têmpera, ensaiando o que dizer a ela.

A moça chegou, olhos baixos. Estava com medo de Ana que, apesar de seus esforços em permanecer calma, tinha os olhos em chamas.

- Quero que você saiba que recebi relatos terrivelmente desabonadores a seu respeito - disse Ana. - Não posso permitir que permaneça aqui como uma de minhas damas. Estou enviando-a de volta para a sua casa. Esteja pronta para partir assim que eu lhe der a ordem.

A moça mal olhou para Ana. Estava com o rosto corado, os lábios trémulos.

"Criaturinha acanhada!", pensou Ana, zangada. "E ela é a amante do rei! Não consigo entender o que Henrique viu nessa garota, fora o fato de que é bonitinha e muito meiga. Tenho certeza de que diz a Henrique que ele é maravilhoso!"

Ana esboçou um sorriso de desprezo e, então, subitamente, sentiu uma necessidade de se render às lágrimas. Aqui estava ela, a rainha, e precisava recorrer a métodos tão baixos para se livrar de suas rivais! Será que todos nesta corte estavam contra ela? Ela sabia que seu pai andava nervoso, imaginando por quanto tempo mais Ana conseguiria manter seu poder sobre o rei. Norfolk não mais se dava ao trabalho de ser cortês. Eles tinham brigado. Na última ocasião em que os dois haviam se visto, ele saíra furioso da sala, resmungando sobre Ana algo que ela preferia não lembrar. Suffolk observava tudo, matreiro, sorrindo dissimuladamente. A princesa Maria estava desafiando-a abertamente. E agora esta garota!

- Retire-se imediatamente de minha presença! - comandou Ana.

- Está banida da corte!

A reação da jovem foi ir direto ao rei, que prontamente contracomandou a ordem da rainha.

Ele deixou a garota e foi até Ana.

- O que significa isso? - inquiriu.

- Não admitirei que você corneta suas infidelidades debaixo do meu nariz!

- Madame! - rugiu o rei. - Devo lembrá-la de que eu sou o mestre aqui!

- Não obstante, você não pode esperar que eu sorria para suas amantes e as trate como se fossem minhas assistentes mais fiéis.

- Se isso for o que eu desejar, é assim que será, como fizeram as outras antes de você!

- Você não me conhece.

- Eu a conheço melhor do que ninguém. De onde provém sua autoridade senão de mim? Considere de que posição social eu a levantei. Não preciso fazer nada além de levantar o dedo para mandá-la de volta para onde veio!

- Então por que não levanta o seu dedo? - vociferou. - A sua amantezinha gostaria mais do trono do que eu. Ela é tão bela! Suas palavras são tão inteligentes! O povo iria aclamá-la. Mas, Henrique, ;, não acha que ela acabaria por colocá-lo à sombra? Tanta inteligência... , tanta beleza!

Henrique olhou para Ana com os olhos em brasa. Havia ocasiões em que ele poderia esquecer que era um rei e envolver aquele pescocinho com as mãos, e apertar e apertar

até que não houvesse mais um grama de ar em seus pulmões. Mas um rei não comete assassinato; outros o fazem por ele. Foi um pensamento rápido que apareceu por sua mente e sumiu antes que ele tivesse tempo de perceber sua presença.

Ele deu as costas para Ana e trovejou para fora da sala.

Jane Rochford escutara a briga. Estava empolgada. Sentiu um prazer imenso em saber que Ana estava passando por dificuldades com seu marido, exatamente como ela passara com George, embora com uma diferença.

Jane se afastou discretamente e retornou mais tarde, pedindo para ter uma palavra com a rainha. "Será que as damas poderiam ser dispensadas?", sussurrou ela. O que ela tinha a dizer era apenas para os ouvidos de Ana.

Jane expressou sua simpatia.

- Que vagabunda! Tenho certeza de que ela armou deliberadamente uma arapuca para o rei. Toda aquela timidez e relutância...

Jane observou Ana com os cantos dos olhos; será que seu comentário atingira um ponto vulnerável? Como deveria ser terrível, para alguém que demonstrou relutância a um rei e completa indiferença aos sentimentos de sua esposa, subitamente encontrar-se na posição inversa: ela, a esposa negligenciada; e a outra, alheia a seus sentimentos? Jane estava tão excitada que sentia dificuldade em falar; queria rir disso, porque era divertido demais.

- Mas eu não vim prestar minhas simpatias à querida irmã. Eu quero ajudar. Tenho um plano. Se eu alertasse os amigos dessa moça de que ela corre risco de cair em desgraça... eu não precisaria mencionar o rei, claro... Tenho certeza de que se ela fosse removida da corte o rei passaria a ser o mais leal dos esposos; e como uma mulher pode ganhar filhos quando seu marido não tem tempo para ela, mas apenas para outras mulheres!

Jane falava com veemência, mas Ana estava triste demais para notar. Para qualquer parte que olhasse, via uma ameaça de desastre. Ela era jovem e saudável, mas seu marido não era mais nem jovem nem saudável. Ana estava impossibilitada de ter uma criança, e sua situação exigia que ela ficasse grávida e que a criança fosse um menino. A culpa indubitavelmente residia na saúde do rei. Henrique jamais culpava a si mesmo; quando a culpa era sua, ele a atribuía a outra pessoa. Havia indícios, que remontavam a anos, de que tudo isso era culpa dele. E a situação de Ana parecia piorar a cada instante. Recentemente, Francis tomara uma atitude alarmante: voltara a falar sobre um matrimónio entre seu filho e Maria. Aparentemente, isso não era um absurdo? Maria era uma bastarda; como poderia uma bastarda ser tomada como esposa pelo filho do rei da França?

Havia apenas uma resposta: o rei da França não mais considerava Maria uma bastarda. As esperanças de Ana tinham encontrado novo alento quando o papa Clemente morrera e Paulo III assumira seu lugar. Paulo parecera mais inclinado a ouvir a razão, mas o que ela sabia sobre esses assuntos? Apenas o que era considerado sensato que lhe fosse dito! Francis, a quem Ana considerara seu amigo pessoal, que lhe demonstrara amizade genuína quando eles tinham se encontrado em Calais, decidira não ser seguro brigar com Carlos e com Roma. A França era inteiramente católica... essa era a resposta. Francis não podia posicionarse contra o seu povo; sua simpatia podia estar com Ana, mas a simpatia do rei precisava ser governada pela diplomacia. Francis estava lhe mostrando uma face menos amigável. Ana entendia agora que toda a Europa fora contra o casamento. Mas isso não significaria nada se Henrique estivesse a seu lado, se Henrique fosse o amante fiel dos tempos durante a espera. Mas Henrique estava se afastando de Ana; essa mocinha matreira, meiga e bonita da facção opositora era prova disso. O coração de Ana enchia-se de terror quando ela lembrava que muitas negociações já tinham sido realizadas antes que os boatos de um possível divórcio chegassem aos ouvidos de Catarina Todos na corte tinham sabido antes de Catarina; os cortesãos haviam falado à boca pequena sobre "O Assunto Secreto do Rei". Estaria o rei agora entregando-se a mais um assunto secreto? Assustada, disposta a aceitar qualquer mão salvadora, Ana ouviu os conselhos de Jane. Isso foi uma tolice. Ana devia saber que Jane não era uma diplomata; seu talento residia em ouvir atrás de portas e colocar as pessoas umas contra as outras. Henrique descobriu o que Jane estava fazendo.

- O quê! - esbravejou. - Isso é obra da esposa de Rochford. Ela será mandada para a Torre para aprender que não deve se intrometer em meus assuntos!

E, desta forma, Jane Rochford viu-se mais uma vez entrando na Torre pelo Portão dos Traidores. Ela chorou e gritou, amaldiçoando a si própria por sua estupidez. E pensar que chegara a isto apenas porque tentara ajudar a Ana! O que seria dela agora? Se um dia ela viesse a sair da Torre viva, ela seria mais inteligente, mais sutil... Na vez anterior ela viera para cá por culpa de sua imprudência; desta vez ela fora igualmente estúpida, mas finalmente aprendera sua lição. George não iria sentir qualquer gratidão pelo que ela fizera. Ele iria dizer: "Como você é estúpida, Jane!" Ou, se não fosse dizer, ao menos iria pensar.

Tudo isto ela fizera realmente por George... que não dava qualquer valor às suas intenções, que não nutria qualquer sentimento por ela.

- Acho que começo a odiá-lo! - murmurou, olhando através da janela estreita para o caminho de pedras lá embaixo.

George procurou sua irmã; secretamente, estava alarmado.

- Jane foi mandada para a Torre! - anunciou. Ana contou-lhe o que acontecera. George disse:

- A situação começa a ficar terrivelmente perigosa, Ana!

- Você me diz isso! Posso lhe assegurar que ninguém sabe disso melhor do que eu.

- Ana, você precisa agir com extrema cautela.

- Você sempre me aconselha cautela! - disse, rabugenta. - O que eu devo fazer agora? Eu agi com cautela, e cheguei a este estado. O que está acontecendo conosco? Mary está em desgraça; nosso pai, envergonhado, sempre encontra desculpas para não estar na corte, e quando está, mal olha para mim! E tio Norfolk está cada vez mais desbocado! Você, alarmado por eu não estar sendo cautelosa, e eu...

- Precisamos agir com prudência, só isso. Precisamos deter esse caso do rei com a moça; ele não deve prosseguir.

- Eu não me importo! E se não fosse ela, seria outra.

- Ana, pelo amor de Deus, ouça a razão! Não importaria se fosse outra; importa apenas que seja ela

- Você está dizendo... que há mais nisto do que um simples caso de amor?

- É precisamente o que estou dizendo. Madge Shelton entreabriu a porta.

- Peço seu perdão. Pensei que Vossa Majestade estava sozinha. Ela e George trocaram cumprimentos de primos, e Madge se retirou.

- Nossa prima é uma jovem muito bonita - comentou George. Ana lançou um olhar severo para o irmão.

- Ana, você irá me odiar pelo que lhe direi agora. É um remédio desesperado, mas acho que pode ser eficaz. Madge é linda, jovem, encantadora. O outro caso pode estar começando a empalidecer.

- George! Eu não entendo!

- Não podemos nos dar ao luxo de falar com volteios, Ana.

- Falemos francamente, pois. Você sugere... atirar Madge ao rei, para que ele esqueça a outra...

- Não é contra uma mulher que temos de lutar, Ana. É contra uma facção!

- Eu não farei isso. Por que Madge... ela é apenas uma jovem, e ele... Você não tem como saber, George, a vida que ele levou...

- Eu sei. Você já considerou que nós estamos lutando pela sua vida, irmã?

Ela tentou conter as lágrimas com ironia. Riu, talvez alto demais. George notara que ultimamente Ana adquirira o costume de rir imoderadamente.

- Desde que comecei a pensar em ser rainha, as pessoas deixam profecias onde eu possa vê-las. Já vi uma onde haviam me desenhado com a cabeça cortada! - Ela colocou as mãos sobre a garganta. - Não tema, George. Meu marido apenas está se divertindo fora do casamento, como fazem muitos. Antes ele era só felicidade com o nosso casamento, agora...

Ela deu com os ombros e se pôs a rir novamente.

- Silêncio, Ana! - acautelou. - E quanto a Elizabeth? Ela parou de rir.

- O que tem Elizabeth?

- Foi decretado que Maria é uma bastarda porque o rei se cansou de sua mãe, e como ela não tinha mais chances de dar-lhe um filho, decidiu que não continuaria casado com ela. Oh, nós conhecemos a consciência de Henrique, temos ciência do tratado que ele escreveu... conhecemos bem demais a história. Mas, Ana, estamos sozinhos e não precisamos temer um ao outro... Ah! Que coisa boa é ter neste mundo uma pessoa com quem você não precisa temer compartilhar seus receios! Ana, começo a achar que não somos tão carentes de sorte, você e eu.

- Por favor, pare. Você está me fazendo chorar.

- Não é hora para lágrimas. Eu disse que Maria foi decretada bastarda, embora sua mãe seja espanhola e aparentada ao homem mais poderoso da Europa. Ana, você é meramente a filha do conde de Wiltshire, que há muito não era mais do que Sir Thomas Bolena, que foi içado para seu condado apenas em honra a você. Ele poderia ser desnudado dessa honra facilmente. Ele não é nenhum imperador, Ana! Vê o que isto significa? Maria foi feita bastarda; e quanto a Elizabeth? Quem precisa temer o parentesco humilde dela?

- Sim - disse Ana, esbaforida. - Sim!

- Se o rei não tiver filhos, Elizabeth será rainha da Inglaterra... ou Maria será! Ana, você precisa lutar contra isso, você precisa se manter em sua posição pelo bem de sua filha.

- Você tem razão. Eu tenho minha filha.

- Portanto... Ela assentiu.

- Você tem razão, George. Acho que você frequentemente tem razão. Não esquecerei o que você disse sobre sermos afortunados. Sim, acho que somos, afinal, temos um ao outro.

No dia seguinte Ana enviou Madge Shelton com uma mensagem para o rei. De uma janela ela observou a garota abordar Henrique, que estava no pátio do palácio. Sim, ele foi cortês com Madge, mas quem não o seria com ela? Madge era linda e bem-humorada. Ela fez o rei rir. Ele estava sugerindo que os dois passeassem pelo jardim de rosas.

Ana acalmou sua consciência com a reflexão de que Madge era uma raposa, capaz de cuidar de si própria, e que provavelmente tivera muitos casos de amor antes. Ademais... havia Elizabeth!

A duquesa-mãe de Norfolk estava inquieta. Rumores vinham da corte, e ela não podia mais ignorá-los. A sorte não sorria para a rainha. A própria duquesa discutira com seu enteado, o duque, porque ele falara algo que ela considerara deveras impróprio, algo concernente à rainha.

"Jamais gostei desse homem", pensou. "Cruel, duro, oportunista!"

Bastava observar suas atitudes para saber para que lado o vento estava soprando. E para que lado o vento estava soprando? A duquesa não estava gostando nada desses rumores.

Fora-lhe prometido ser guardiã das propriedades da princesa Elizabeth, mais um sinal da amizade de Ana por ela

- Espero que a pobrezinha esteja bem e feliz. É um fardo imenso ser rainha, e ainda mais de tal rei! - murmurou para si.

A duquesa estava passando por dificuldades também em sua própria residência. As moças estavam fazendo muito barulho à noite, e ela ouvira boatos de que andavam dando muita liberdade aos rapazes.

Mandou chamar Mary Lasseis, de quem não gostava sobremaneira. A moça era de berço humilde, e quase sempre estava carrancuda. Era, na verdade, uma aia, e não deveria estar com as damas.

"Um dia desses terei de encontrar uma solução para isso", pensou a duquesa, e arquivou o assunto naquela gaveta mental abarrotada com notas esquecidas.

A garota veio à sua presença.

- Mary Lasseis, as moças têm feito muito barulho em seus aposentos à noite. As damas estão sob os meus cuidados, e desde a coroação de minha neta tenho disposto de pouco tempo para cuidar de meus próprios assuntos. Assim, decidi tomar umas poucas precauções para assegurar o comportamento correto da parte dessas jovens.

A moça estava sorrindo afetadamente, como se para indicar que havia todos os motivos do mundo para a duquesa tomar precauções. Isso enraiveceu a duquesa. Ela não gostava que a lembrassem de que fora negligente; teria preferido que a garota aparentasse achar que essas eram cautelas desnecessárias tomadas por uma duquesa excessivamente zelosa.

- Todas as noites, quando as damas tiverem se retirado para dormir, será dever, Mary Lasseis, que a chave dos aposentos seja deixada na fechadura no lado de fora da porta. Então, a uma hora combinada, mandarei alguém trancar a porta, e a chave me será trazida. A duquesa se recostou na cadeira, satisfeita com si própria.

- Acho que será um plano excelente, Sua Graça - disse Mary Lassells, um tom moralista na voz.

- Sua opinião não foi pedida, Mary Lassells - disse a duquesa com arrogância. - Isso bastará. Agora lembre-se disso, por favor, e mandarei alguém buscar a chave esta noite mesmo.

Mary nada disse. Era chocante considerar o que acontecia naquele quarto à noite. Catarina Howard agora comportava-se desavergonhadamente com Francis Derham. Ele levava vinho e frutas para ela, e os dois ficavam sentados na cama, rindo e conversando, dizendo a todos que, como eram realmente casados, não havia qualquer mal no que faziam. Derham estava profundamente apaixonado pela criança-isso era evidente-, e ela por ele. Ele poupava sua consciência fingindo que eles eram casados.

"Isso é uma estupidez", pensou Mary Lasseis.

E já era tempo para esse pecado ser interrompido.

Elas estavam tecendo planos para a noite. Que planejassem! Que choque iriam ter, quando estivessem esperando receber seus amantes, e descobrissem a porta trancada, mantendo-os do lado de fora! E assim seria todas as noites. Nada mais de brincadeiras, nada mais de festins pecaminosos.

Embora Manox não mais frequentasse os aposentos das moças, Mary Lasseis frequentemente pensava nele. Alguns diziam que ele ficara profundamente abalado ao perder a pequena Catarina Howard. E ela não tinha ainda nem 14 anos! Treze, no máximo. Será que ela achava que poderia pecar desse jeito sem jamais ser punida?

"Quando morrer, Catarina irá para o inferno, onde sofrerá tormentos por toda a eternidade, tenho certeza!"

E Mary Lasseis sentiu-se mais feliz ao pensar nisso.

As damas estavam rindo, convef sando de seu jeito bobo, quando Mary Lasseis foi até a porta para agir segundo as instruções da duquesa.

- Aonde você vai? - inquiriu uma garota.

- Apenas obedecer ordens de Sua Graça.

Mary colocou a chave na fechadura no lado de fora da porta. Dentro do quarto as moças ouviram-na trocar algumas palavras com alguém no corredor. Mary retornou para o interior do quarto, e a porta imediatamente foi fechada por fora.

Isso deflagrou um coro de excitação.

- O que significa isso?

- É uma piada?

- O que você disse, Mary Lasseis?

- Por que você entregou a chave?

Mary Lasseis fitou as moças e se pôs a fiar palavras moralistas:

- Sua Graça, a duquesa, está muito descontente. Ela escutou as risadas e conversas que se dão aqui à noite. Chamou-me a um canto e me deu instruções sobre o que fazer. Todas as noites a porta deste apartamento deverá ser trancada e a chave levada a Sua Graça.

Isso deflagrou gritos de raiva.

- Mary Lasseis! Você contou histórias para a velha!

- Garanto que não fiz isso!

- O que se pode esperar da filha de uma cozinheira?

- Minha mãe não é cozinheira.

- Oh, claro... alguma coisa dessa natureza.

- Não há motivo para tanto alvoroço. Sua Graça apenas me pediu para colocar a chave do lado de fora... Suponho que ela percebeu que sou mais virtuosa que o resto de vocês.

Dorothy Barwicke inquiriu:

- Você jura, Mary Lasseis, que não disse nada a Sua Graça sobre o que transcorre neste quarto?

- Eu juro!

- Então por que...

- Ela escutou o barulho que vocês fazem aqui dentro. Disse também que chegou a seus ouvidos comentários sobre o que acontece. com toda certeza os criados...

- Eles podem ter ouvido os gentis-homens subindo as escadas! disse uma moça com uma risadinha. - O Thomas, por exemplo, é muito estabanado.

- A verdade é que vocês estão sob suspeita - disse Mary Lasseis.

- Espero que Sua Graça não ache que fiz parte de seus festins!

- Impossível!

- Mary, você teria muita dificuldade de encontrar alguém que se dispusesse a ser seu parceiro.

As garotas puseram-se a rolar nas camas, rindo como loucas.

- Não ligue para elas, Mary! - disse Catarina. - Tenho certeza de que Manox gosta muito de você.

Ao ouvir isso, todas gargalharam histericamente. Catarina ficou magoada; ela não tencionara ser grosseira. Vira Manox e Mary juntos antes de romper com o rapaz, e considerou que os dois pareciam muito íntimos. Ela gostaria que Manox encontrasse alguém a quem apreciasse. E desejava o mesmo para Mary. Um relacionamento entre os dois parecia um arranjo satisfatório para Catarina.

Mary lançou um olhar cheio de ódio para ela.

- Ora, este é o fim de nossos festins! - decretou Dorothy Barwicke.

- A não ser...

-A não ser o quê? - gritaram várias vozes.

- Há alguns moços muito audaciosos entre nossos amigos. Quem sabe, um deles poderia achar uma maneira de roubar as chaves!

- Roubar as chaves!

As aventuras passariam a adquirir um sabor ainda mais especial se, antes de cada uma delas, fosse preciso roubar as chaves.

As jovens sentaram-se em suas camas e conversaram longamente. Mary Lasseis ficou entre elas, tremendo de ódio por todas, e particularmente por Catarina Howard.

Na cela de Sir Thomas More na Torre de Londres Margaret Roper estava parada diante do pai. Ele estava com os olhos muito tristes, mas sorria corajosamente. Margaret percebeu que há muito seu pai não parecia tão tranquilo. Margaret abraçou-o, contendo seus lábios de expressarem reproches contra aqueles que o haviam aprisionado; ela não queria manifestar qualquer ódio na presença dele, sabendo que isso apenas iria perturbá-lo.

Eles podiam apenas olhar um para o outro, sorvendo cada detalhe dos rostos tão amados, sabendo que apenas por milagre os dois poderiam desfrutar de mais um encontro. Ele era mais corajoso que ela. Talvez, ela pensou, para ele fosse mais fácil morrer do que ser esquecido. Ele conseguia sorrir; ela, não. Quando ela conseguiu falar alguma coisa, lágrimas começaram a rolar de seus olhos.

Ele compreendia os sentimentos da filha. Afinal ele sempre a havia entendido perfeitamente.

- Deixe-me olhar para você, Meg! Tem estado tempo demais ao sol. Há sardas no seu nariz. Cuide das crianças, Meg. Faça com que sejam felizes. Meg, você e eu podemos falar francamente um com o outro.

Ela fez que sim com a cabeça. Sabia que todo o faz-de-conta entre os dois estava chegando ao fim. Ele não iria dizer a ela, como deveria ter dito aos outros: "Isto há de passar!" Eles eram íntimos demais; eram incapazes de esconder alguma coisa um do outro. Ele sabia que era apenas uma questão de tempo antes que colocassem sua cabeça sobre o cepo.

- Zele pelas crianças, Meg. Não as assuste com histórias sinistras sobre morte. Fale-lhes sobre carruagens brilhantes e beleza Faça-os ver a morte como uma coisa adorável. Faça isso por mim, Meg. Não lamente quando eu sair desta prisão sombria. Meu espírito está enclausurado numa concha Ele anseia por ser libertado. Ele anseia por nascer. Portanto, deixe que essa concha seja partida! Não importa quem faça isso, o rei ou sua amante!

- Não fale sobre ela, pai... Mas contra ela..

Ele colocou as mãos nos lábios da filha, e fez uma prece pela pobre criatura

- Não a julgue, Meg. Como podemos saber o que ela está sofrendo neste momento?

Margaret desabafou:

- Em sua corte há esportes e danças. Por que eles haveriam de se importar se você, o mais nobre de todos os homens, está condenado à morte? Eles precisam se divertir; precisam destruir aqueles que se colocarem no caminho de seu prazer. Pai, não me peça para não amaldiçoálos... porque eu os amaldiçoo. Eu os amaldiçoo!

- Pobre Ana Bolena! - disse More tristemente. - Meg, sinto muita pena dela quando considero todo o sofrimento que sua pobre alma enfrentará em breve. Ela não se importaria de usar nossas cabeças como bolas para seus esportes, mas não está longe o dia em que a cabeça dela também rolará.

"Ele é realmente um santo", pensou Margaret.

Seu pai era capaz de defender aquela que iria causar a sua morte; podia ter pena dela, podia verter algumas lágrimas por ela. Ele falou sobre o rei com uma franqueza que jamais ela ouvira atravessar seus lábios. Ele disse que sempre haveria crueldade num homem incapaz de conter suas paixões.

- Não se atormente, querida filha, mesmo quando vir minha cabeça na Ponte de Londres. Lembre-se de que serei eu quem estará olhando você do alto e sentindo pena.

Perguntou sobre como estava a família, o jardim, a casa, os pavões. Ele conseguia rir; ele conseguia até mesmo brincar. E com o coração pesado de dor, contudo confortado, ela deixou o pai.

Depois do julgamento Margaret viu o pai ser levado de volta à Torre. Ele caminhou com a cabeça erguida, embora ela tenha notado que suas roupas estavam amassadas e sujas. Ela lembrou de quando ele costumava usar sua corrente de ouro ornamentada com rosas duplas, o casaco verde-escuro com colarinho de pele e mangas grandes, do qual gostava por suas mãos terem um formato estranho. Ela olhou para as mãos do pai, amando-o ainda mais por sua única vaidade. Margaret foi tomada por um novo surto de raiva ao ver que o tinham obrigado a caminhar entre os guardas, suas armas prontas para serem usadas caso ele tentasse escapar. Tolos, achavam que ele pensaria em escapar! Não sabiam que ele estava recebendo isso de bom grado, que ele dissera a Will: "Estou feliz porque dei o primeiro passo e o primeiro passo é sempre o mais difícil!" Não fora ele quem dissera que o homem que se coloca contra o rei corre o risco de perder o corpo, enquanto aquele que se submete a ele corre o risco de perder a alma?

Margaret correu até ele, conseguindo passar entre os guardas. Ela abraçou o pescoço do pai. Os guardas desviaram os rostos, para não expor as lágrimas que esse ato provocara em seus olhos.

- Meg! - sussurrou More. - Pelo amor de Cristo, não torne isto mais difícil para mim!

Depois não se lembraria de mais nada do que aconteceu até estar deitada no chão, com pessoas ao seu redor a sussurrar-lhe palavras de conforto. Estava cônscia apenas do calor inclemente de julho, e do fato de que jamais veria o pai vivo novamente.

Da Torre ele escreveu para ela, usando um pedaço de carvão, para dizer-lhe em qual dia seria executado. Nem mesmo nesse momento ele resistiu a brincar.

"Será no dia de Santo Tomás, uma data muito conveniente para mim. E jamais gostei tanto das suas maneiras do que quando você me beijou pela última vez. Pois gosto quando o amor filial e a caridade sincera falam mais alto que a cortesia mundana."

Ela iria ao funeral do pai. O rei dera seu consentimento - e isso era um privilégio - para que em sua execução Sir Thomas prometesse não empregar muitas palavras.

Então ele morreu. E sua cabeça foi empalada na Ponte de Londres para mostrar ao povo que ele era um traidor. Mas as pessoas olhavam para aquela cabeça com raiva e murmuravam solenemente; pois os cidadãos sabiam que olhavam para a cabeça de um homem que fora mais santo que traidor.

Henrique estava angustiado. Estava cansado de mulheres. As mulheres deviam ser uma diversão aprazível; os assuntos do reino deveriam ser as únicas preocupações merecedoras da atenção do rei.

O rei francês estava tentando renovar as negociações por um casamento com Maria. More estava na prisão aguardando execução; Fisher também. Ele postergara as execuções desses homens, ciente do sentimento do povo para com eles. Henrique nunca temera tanto o sentimento do povo.

Ana coloria todos os pensamentos dele. Ele estava zangado com ela, que o colocara nesta posição; zangado com seu desejo por ela, por mais breve que fosse, sem o qual sua vida seria incompleta. Ana trouxera-o a esta encruzilhada; ele podia desejar que ela jamais tivesse entrado em sua vida, mas não podia imaginá-la sem ela. Ele odiava Ana. Ele amava Ana. Ela era um distúrbio, uma irritação; ele jamais conseguiria escapar dela; pior ainda, não estava certo se queria. Obviamente uma situação deveras desafortunada para que um rei poderoso nela se visse. Ele rompera com Roma por Ana. O nome do papa tinha sido retirado dos livros de preces, e não era mencionado nas missas. Ainda assim, nas ruas as pessoas jamais cessavam de falar sobre o Papa, e com reverência. Wolsey estava morto, e com sua partida a política da Inglaterra mudara. Fora Wolsey quem acreditara que a Inglaterra precisava preservar o equilíbrio de poder na Europa; Henrique seguira uma política nova e cortara as relações da Inglaterra com o resto da Europa. A Inglaterra estava sozinha.

Esses problemas, que utrora teriam ficado a cargo do cardeal, eram agora do rei. Cromwell era inteligente e sagaz, mas um servo, não um líder; Cromwell fazia o que lhe mandavam. Por que um homem com tanto em seus ombros deveria ser atormentado por mulheres? Madge Shelton era uma moça deliciosa, mas Henrique já estava farto dela. Ana era Ana... não havia outra igual a ela, mas era uma bruxa. Inteligente demais, tentando reger a Inglaterra através dele; aconselhando aqui, ali e acolá. Esta situação era capaz de ferver o sangue de um homem ou o de um rei.

Ele precisava ser firme. Ana não conseguia engravidar; ele estaria melhor sem Ana. Ela o apoquentava, o distraía dos assuntos do reino. As mulheres eram para entreter na cama, não para se intrometer nos assuntos de um rei e de seu país.

O povo estava insatisfeito. Havia nobres demais dispostos a apoiar a causa católica, possivelmente conspirando com Chapuys. Eles não eram perigosos no momento, mas esse tipo de situação inevitavelmente implicava riscos. Henrique mantinha sua filha sob vigilância; ele acreditava que havia uma trama em andamento para retirá-la do país e levá-la ao imperador. E se esse guerreiro pensasse em levantar um exército contra o rei, ostentando como causa a restituição das posições de Catarina e Maria?

"Quantos nobres da Inglaterra, que agora obedeciam a seu rei, passariam para o lado do imperador?", questionou Henrique.

A consciência de Henrique dissera-lhe que se ele perseguisse a questão do divórcio, iria gerar um filho e assim salvaria a Inglaterra da guerra civil. Mas ele não produzira qualquer filho, e graças às suas ações a Inglaterra nunca estivera tão próxima da guerra civil desde o final dos conflitos entre as casas de York e Lancaster.

Henrique sondou alguns de seus conselheiros mais confiáveis a respeito de uma nova linha de ação. E se ele se divorciasse de Ana? Ela parecia incapaz de ter um filho. Não seria isso um sinal de Deus TodoPoderoso de que Ele não via com bons olhos a união de Henrique com Ana? Era estarrecedor; como uma jovem saudável podia ser tão estéril? Uma filha! Uma gravidez fingida! Os lábios de Henrique se curvaram. Como ela o tinha ludibriado! Como ela continuava a ludibriá-lo! Parecia que sempre que ele estava pensando que ficaria melhor sem Ana, ela o atraía e o tentava, de modo que, em vez de ocupar sua mente com planos para se livrar da esposa, Henrique se surpreendia fazendo amor com ela!

Ao ouvir a sugestão de um segundo divórcio, os conselheiros de Henrique menearam as cabeças negativamente. Havia coisas que nem os homens mais condescendentes podiam aceitar, coisas que nem os reis mais despóticos podiam realizar. Talvez os conselheiros tenham pensado em Sir Thomas More e John Fisher, que aguardavam a morte heroicamente na Torre; talvez tenham pensado nos cidadãos que falavam mal das atitudes do rei.

Divorciar-se de Ana ele podia, consideraram os conselheiros, contanto que aceitasse Catarina de volta.

Catarina! Isso fez o rei rugir como um animal ferido. Catarina de volta! Ana o enfurecia, Ana o atormentava, mas ao menos Ana o excitava. Que esses assuntos descansassem. Por nada no mundo ele iria receber Catarina de volta.

Todos esses assuntos tendiam a despertar a ira do rei. O novo papa enfureceu-o ainda mais, ao elevar John Fisher - um homem que estava na prisão por traição-ao posto de cardeal. Ao ouvir a notícia, Henrique espumou de raiva.

- Enviarei a Roma a cabeça de Fisher para que lhe ponham o chapéu cardinalício! - esbravejou.

A paciência de Henrique chegara ao limite. John Fisher foi executado. Em seguida foi a vez de Sir Thomas More. Agora eram estes os únicos traidores; esses carolas que haviam se recusado a reconhecê-lo como Chefe Supremo da Igreja seriam punidos com severidade. Seria um sinal para o povo de que todos aqueles que não fizessem a vontade de Henrique VIII da Inglaterra pagariam caro. Henrique incutiria na alma do povo um horror profundo. Haveria execuções públicas; haveria enforcamentos; haveria sacrifícios humanos à supremacia do rei. A compulsão homicida sempre estivera no coração de Henrique, mas agora ele matava com uma ferocidade maior do que quando eliminara homens como Empson, Dudley e Buckingham; os assassinatos desses homens tinham sido calculados, efetuados a sangue frio; agora Henrique matava por força da vingança e do ódio. Os instrumentos de tortura nos subterrâneos sombrios da Torre de Londres passariam a ser operados dia e noite. O rei estava determinado a subjugar completamente aqreles que se insurgiam contra sua autoridade.

Uma nuvem de fumaça funesta pairava sobre Londres. Os londrinos encolhiam-se nos cantos, assistindo horrorizados às mutilações, ouvindo os gritos e gemidos dos mártires.

O continente ficou estupidificado com as notícias das mortes de Fisher e More. A Igreja estava furiosa com o assassinato de Fisher, o mundo político chocado com o destino de More. O Vaticano fez ouvir sua voz, emitindo invectivas contra o monstro da Inglaterra. O imperador, estarrecido com a estupidez de um rei que podia se livrar do homem mais hábil de seu país, declarou:

"Fosse eu senhor de tal servo, teria preferido perder a mais bela cidade em meu domínio do que esse conselheiro."

A Europa pranteava por sábios, mas Londres pranteava por seus mártires, e o rei estava abalado, temeroso. Mas seu sangue fervia. Era bastante astuto para saber que qualquer sinal de fraqueza seria fatal para ele neste momento; ele fora longe demais para recuar. Quando dissera que um homem incapaz de conter suas ações é essencialmente cruel, More falara a verdade. O verdadeiro Henrique emergiu de trás daquela personalidade saudável e camarada que seu povo - como bons ingleses - admirava há tanto tempo. O egoísta frio, cruel e implacável foi exposto.

Mas a consciência de Henrique ainda existia, e ainda era capaz de fazê-lo tremer.

O que eu fiz, fiz por Ana!, dizia Henrique à sua consciência.

Ele não dizia "eu sou um assassino!" e sim "Eu sou um homem apaixonado!".

A notícia da execução de More foi levada ao rei enquanto ele jogava xadrez com Ana. Enquanto estava ali, sentado de frente para ela, Henrique visualizou, ao lado do rosto belíssimo de sua esposa, as feições calmas e ascéticas do homem a quem acabara de matar.

Levantou-se. Não tinha mais estômago para jogos. Sabia que havia assassinado um grande homem, um bom homem. E sentia medo.

Então olhou para Ana, sentada à sua frente, e soube como emudecer a voz persistente dentro de sua cabeça.

- Você foi a causadora da morte desse homem!

Então saiu da mesa e entrou em seus aposentos pessoais, batendo a porta atrás de si. Estava atormentado por uma angústia tão grande que nada parecia capaz de aliviá-la.

Ao cruzar a Ponte de Londres, os cidadãos não podiam olhar para cima sem ver as coisas nefastas ali exibidas. As cabeças de homens corajosos pingavam sangue; fora até ali que sua bravura os levara, porque na Inglaterra era insensato ser um bravo.

Nos lábios de todos estavam os nomes de More e Fisher. Esses homens eram santos louvados nos corações do povo. Porém, não poderia haver qualquer adoração manifesta a esses santos. Muitos dos monges preferiam a morte a admitir que Henrique era o Chefe Supremo da Igreja. Um grande número deles foi levado à Torre. Alguns eram torturados no ecúleo para traírem seus amigos; muitos encontravam sua sina no abraço da Filha do Coveiro, aquele instrumento vil recentemente inventado por Thomas Skevington, que contraía o corpo numa forma exatamente oposta ao ecúleo, de modo a forçar o sangue a sair pelos ouvidos e narinas; alguns eram mantidos pendurados nos tetos das masmorras pelos pulsos, encerrados em manoplas, até que suas mãos ficassem ensanguentadas e paralisadas; alguns tinham seus dentes arrancados das cavidades; alguns eram torturados com compressores de polegares ou de tornozelos. As pessoas murmuravam sobre as coisas pavorosas que aconteciam com esses homens santos na Torre de Londres. Alguns eram algemados em masmorras abafadas e deixados para esfaimar; alguns eram paralisados por confinamento contínuo numa daquelas câmaras chamadas de Parco Alívio, cujas paredes eram tão apertadas que nenhum hóspede podia andar, sentar nem deitar completamente; alguns eram atirados ao poço, uma caverna profunda onde os ratos eram ferozes como animais selvagens e viviam dos humanos que, algemados e indefesos, de pé com água imunda até a altura dos joelhos, precisavam enfrentá-los sem ser capazes de se defender. Alguns dos monges mais obstinados eram executados de uma forma pública e ultrajante: levados a Tyburn, eram enforcados até quase morrerem e libertados da corda; e enquanto jaziam inconscientes, seus abdómens eram abertos, suas entranhas arrancadas dos corpos mutilados e queimadas. E mesmo depois de mortos esses corpos ainda sofriam mais ultrajes.

Este seria o destino de qualquer um que questionasse a supremacia do rei da Inglaterra. Os londrinos ouviam os gritos dos anabatistas quando as chamas saltavam dos feixes de varas a seus pés, calcinando seus corpos. Na Europa falava-se sobre o terror que sufocava a Inglaterra; falavam em sussurros apressados, chocados. Quando Henrique ouviu sobre isso, riu com selvageria, recordando o estilo espanhol de tratar hereges, e de como, apenas há alguns meses, Francis e sua família tinham marchado por Paris cantando piamente enquanto luteranos eram queimados diante das portas de Notre-Dame.

Henrique sabia como suprimir rebeliões. Sabia como fazer o povo se ajoelhar diante dele.

BEu farei o que quero, nem que isso me custe a coroa!", dissera certa vez, e fora sincero. Era forte e impiedoso. Todos os homens tremiam diante dele. Não era mais o jovem feliz que buscava prazeres enquanto um cardeal reinava; ele era o senhor. Iria forçar todos a reconhecerem isso, por mais sangue que fosse necessário jorrar.

Ele agora tinha um plano que o fascinava: fazer de Thomas Cromwell seu pároco geral, e como tal mandá-lo visitar todas as igrejas e monastérios da Inglaterra. O Chefe Supremo da Igreja queria informar-se sobre o estado desses monastérios. Sua consciência estava atormentada pelas histórias sobre intimidades desfrutadas entre padres e freiras, e queria atestar sua veracidade! E se esses monastérios fossem realmente o cenário para orgias, como narravam tantos boatos? Ele se lembrava do caso de Eleanor Carey, aquela parente de Ana que tivera dois filhos ilegítimos com um padre. Essas coisas precisam vir à luz, e se havia algo que o Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra não iria tolerar em sua terra, era imoralidade! Ele iria sufocá-la, iria esmagá-la! Antes isso não fora da sua alçada, mas agora, quando pela vontade de Deus, ele era chefe da Igreja, Henrique estava determinado a pôr um fim a todas as práticas ímpias.

Thomas Cromwell teria como missão ir a esses lugares e trazer provas do que encontrasse - e sempre era possível confiar em Thomas Cromwell para encontrar as provas esperadas. E se essas provas exigissem a dissolução desses lugares, então dissolvidos eles iriam ser! Thomas também iria trazer uma lista dos bens armazenados nesses lugares; dizia-se que eles tinham grandes tesouros em seus cofres: jóias e obras de arte adequadas apenas ao palácio de um rei. Esse era um bom plano; mais tarde ele iria falar sobre isso com Cromwell.

De seu palácio Henrique viu a fumaça pairando sobre Londres. Isso estava sendo feito em nome da moral. Os anabatistas negavam a divindade de Cristo; eles mereciam morrer.

No terreno circundante ao palácio os homens juntavam-se para trocar sussurros. Alguma coisa estava em andamento. O rei estava nervoso. Houve um tempo, em seus dias de juventude, que ele havia caminhado entre o povo sem medo, mas agora isso pertencia ao passado. Se ele fosse permanecer numa casa, mesmo por uma noite, levava consigo um chaveiro para trocar as travas da porta de seu quarto; e todas as noites mandava que vasculhassem a palha de sua cama em busca de adagas ocultas.

- E agora, o que está acontecendo? - perguntou, e debruçandose em sua janela, ordenou aos berros que lhe dissessem que notícias novas estavam excitando aqueles homens.

Um pequeno grupo de cortesãos olhou para ele com algum alarme.

- Tenho certeza de que há alguma novidade! - vociferou o rei.

- Não me escondam!

- Não é nada, majestade, apenas o fato de que a cabeça de Sir Thomas More não se encontra mais na ponte.

- O quê? - rugiu o rei, para que ninguém percebesse que sua voz tremia. - Quem a tirou de lá?

Não houve resposta.

- Quem a tirou de lá?

- Não se sabe, Vossa Majestade. Sabe-se apenas... que ela não está lá.

Ele fechou a janela. Seus joelhos tremiam; seu corpanzil inteiro tremia. A cabeça de More, o mártir, fora removida da ponte, onde deveria ter permanecido com as dos outros traidores. O que significava isso? O que significava isso? Um milagre, era isso? Houve Um que se levantou dos mortos; e se esse homem, More, fosse outro?

Fechando os olhos, podia ver o rosto inteligente e gentil; podia recordar o humor, a cordialidade fingida. Lembrava-se bem demais do homem; muitas vezes Henrique caminhara pelo jardim Chelsea, seus braços nos ombros do amigo. Ele lembrou que, ao escrever seu livro denunciando Lutero, trabalhara com ele, cujo estilo lúcido e grande conhecimento do latim fora base para a maior parte da obra. E porque ele tivera a necessidade de mostrar a esse homem que não poderia desobedecer seu mestre, matara-o. Era verdade que não fora ele quem brandira o machado; era verdade que não fora ele quem colocara a cabeça decapitada entre as dos traidores; não obstante, era ele o assassino. Seu velho amigo More... a luz mais brilhante de seu rei! Ele lembrou desse homem no terraço do palácio com ele e Catarina, falando sobre as estrelas, apontando-as para o casal real, que na época estava interessado em astronomia. Agora o homem estava morto, ele que jamais quisera desfrutar da luz da vida na corte, ele que preferira viver calmamente no coração de sua família com seus livros. Ele estava morto; e sua cabeça desaparecera. Isso podia ser um milagre, um sinal!

Ana entrou, viu que ele estava tenso e foi surpreendentemente terna com ele, tentando confortá-lo.

- Você recebeu algum choque.

Ele olhou para Ana. Ela pensou que ele tinha o ar de um menino assustado que fora deixado no escuro.

- A cabeça de More desapareceu da Ponte de Londres!

Ela recuou um passo e o fitou, olhos arregalados; os dois agora estavam juntos em seu medo.

- Ana, o que você acha que isso significa? - perguntou o rei, buscando a mão da esposa.

Ana segurou a mão de Henrique e a apertou com firmeza. O medo por sua posição vinha se evaporando noite e dia, e agora ela podia se concentrar no milagre da cabeça desaparecida. Henrique precisava dela; em momentos como este, era a Ana que recorria. Ela compreendia agora que havia se sentido humilhada por muito pouco, e demonstrado excessivamente sua humilhação. Ela era a esposa de um homem que, detendo poder absoluto, queria fazer tudo a seu modo, mas que podia ser controlado por uma mulher mais inteligente que ele. Ana entendia agora que sua insensatez começara na época da coroação; entendia por que parecera perder seu poder sobre ele. Agora lá estava o rei, trémulo e amedrontado, supersticioso numa época de superstições, carecendo da coragem que fizera de Ana a criatura ousada que era.

Ela sorriu para ele.

- Milorde, alguém removeu a cabeça.

- Mas por que alguém faria isso?

- Ele era um homem com muitos amigos, e um desses pode ter retirado a cabeça decapitada do lugar ao qual ela pertencia.

- Eu entendo, Ana.

Henrique já estava se sentindo melhor. Fitou a esposa com olhos suaves e sentimentais. Ela era muito bonita, e agora era gentil e confortadora. E também era muito inteligente. Todas as outras empalideciam diante de Ana. Quando Ana o confortava, havia uma grande dose de verdade em seu conforto. Era bom estar com Ana.

- Aquele era o lugar ao qual sua cabeça pertencia-disse Henrique, feroz. - Ele foi um traidor, Ana.

- Como todos os que ousam desobedecer os comandos de Sua Majestade - garantiu Ana.

- Você diz a verdade. Foi um amigo dele quem tirou a cabeça de lá Por Deus, isso por si só foi um ato de traição!

Ela acarinhou a mão de seu rei.

- Claro que foi. Existem pessoas simples que sempre acham que os traidores são santos. Talvez seja bom colocar uma pedra sobre esse assunto. Por que ele deve nos preocupar? Sabemos que o homem mereceu morrer.

- Por Deus, você tem razão! - gritou. - Esse é um assunto de pouca importância!

Ele não quis sair de perto de Ana; ela afastava seus pensamentos da memória daquela cabeça cortada com seu olhos gentis a zombar dele. Era a reconciliação. Na corte, todos falavam:

- Ela, e apenas ela, exerce poder sobre o rei.

Os inimigos de Ana amaldiçoaram-na. "Se ela der ao rei um filho", diziam eles, "essa bruxa será rainha da Inglaterra até o dia de sua morte!"

Chapuys escreveu para seu imperador, Carlos, dizendo-lhe que o rei da Inglaterra vez por outra sucumbia à infidelidade, mas que a feiticeira era astuta e sabia como controlar o rei. Seria insensato conferir importância demais a seus romances breves com damas da corte.

Ana estava preparando o banquete mais esplêndido que a corte já vira. Ela estava eufórica. Tinha a impressão de que acordara de um pesadelo horrível, e que agora era novamente manhã, provando que os horrores tinham sido conjurados pela sua imaginação, que não existiam de fato. Como ela pudera ser tão tola? Como pudera ter acreditado que ela, que mantivera o rei em cheque por tanto tempo, perderia o controle sobre ele agora! Ela era suprema; a necessidade de Henrique por ela era apaixonada e perene. Agora que ele - como seu marido - estava consciente dos grilhões que o mantinham presos a ela, tudo que Ana precisava era dar-lhe um pouco mais de liberdade. A falha de Ana fora tentar mante-lo sob uma vigília rigorosa, como uma amante faria. Porém uma esposa precisava tratar seu marido com um pouco mais de sutileza, e ela levara dois anos de dúvidas e pesadelos para entender isso. Que ele buscasse prazer fora de seu leito, que andasse com outras mulheres... isso de nada serviria além de levá-lo a compará-las com sua rainha incomparável.

Ela agora estava mais feliz do que em qualquer outro momento de sua vida. Desenhou novas roupas. Convocou os cortesãos mais brilhantes para providenciarem um entretenimento que iria encantar o rei; o bem-humorado Wyatt, o sutil George, o gentil Harry Norris, o divertido Francis Bryan; e mais Henry Howard e aqueles rapazes divertidos Francis Weston e William Brereton; outros também, todas as estrelas brilhantes da corte reunidas em torno de Ana, com ela como o centro esplendoroso, como fora no começo e sempre haveria de ser. E o rei estava quase sempre em sua companhia.

Certo dia Ana viu um dos músicos mais jovens sentado sozinho tocando, e, encantada com seu toque delicado, parou para escutá-lo.

"Ele é mais do que apenas bom", pensou.

Mandou que Madge Shelton o trouxesse a sua presença. Ele era jovem e esguio, um moço bonito com dedos longos e olhos negros e sonhadores.

- Sua Majestade ouviu sua música - disse Madge ao rapaz. Ela a considerou muito boa.

O rapaz ficou maravilhado com a honra de ser notado pela rainha, que lhe sorriu graciosa.

- Gostaria que você tocasse um pouco - disse Ana. - Acho que podemos encontrar uma função para você em nossas festas. Creio que não temos tantos músicos de talento na corte para nos darmos ao luxo de dispensar um.

Ana encantou-se com o rapaz, tendo visto prontamente que ele estava tomado por uma admiração que não era apenas a admiração de um súdito por sua rainha. A mão com a pequena deformação estava oculta sob uma das mangas longas do vestido; a outra, comprida, branca, ornada com jóias, pendia elegantemente sobre o braço da cadeira. O rapaz não conseguia tirar seus olhos sonhadores de Ana; nunca estivera tão perto dela antes.

Qual é o nome do rapaz? - perguntou Ana a Madge depois que o tinha dispensado.

- É Smeaton, Vossa Majestade. Mark Smeaton.

- Ele estava mal vestido.

- É um dos músicos mais humildes, Vossa Majestade.

- Providencie para que tenha dinheiro com que comprar roupas. Ele toca bem demais para andar desmazelado. Diga-lhe que ele poderá tocar para mim. Encontrarei uma função para ele no entretenimento.

Ana afastou o rapaz de sua mente e se dedicou a novos planos. Havia um clima de euforia entre os seus amigos. George parecia mais jovem, excessivamente alegre. No dia da festa, a própria rainha estava jubilosa como nos seus tempos como amante do rei. Ela era o centro de toda a pompa, a estrela em torno da qual a alegria e os risos circulavam. E era também a artista mais adorável da festa. O rei assistiu ao entretenimento, seus olhos concentrados apenas em Ana.

"Ana!", pensou, sorrindo por dentro. "Por Deus, ela nasceu para ser rainha!"

Ela podia diverti-lo, podia encantá-lo, podia afastar todos os pensamentos desagradáveis de sua cabeça.

Ele esquecera Fisher. E More também, ou quase; a remoção de sua cabeça da Ponte de Londres não tinha sido um milagre, mas uma ação ousada de sua filha, Margaret Roper, que a furtara discretamente à noite. Ana fora informada disso e levara a notícia ao rei.

- Por Deus! - gritara Henrique. - O que ela fez foi Alta Traição, porque se opôs ao comando do rei!

Ana acalmara-o.

- Deixe estar, deixe estar! Foi uma ação corajosa. com toda certeza a moça amava muito o pai. O povo é sentimental. Não ia gostar de ver uma jovem punida por ter amado demais o pai. Esqueçamos essa história repugnante. Se Sua Majestade quiser me conceder um agrado, não leve adiante esse assunto.

Henrique franzira a testa e fingira considerar a questão, sabendo perfeitamente bem que seu povo não aprovaria uma reprimenda a Margaret Roper. Ana beijara-o e Henrique, com um tapa em sua coxa, dissera:

- Muito bem, querida, se você me pede, então que assim seja. Mas eu não gosto de traições... Definitivamente, não gosto!

Ela sorrira, muito satisfeita, e ele também. Um assunto desagradável havia sido encerrado.

Ele estava olhando para ela agora - a mulher mais linda na corte - e muitos desses jovens tinham os olhos sobre ela, prontos a dizer-lhe graças, se fossem ousados. Ele gostava de saber que os moços achavam-na desejável, ainda que isso o enchesse de fúria. Então ele riu. Ninguém ousaria dedicar à rainha mais do que um olhar dissimulado, porque seria traição lançar olhos cobiçosos sobre algo que pertencia ao rei; e todos conheciam bem o método que o rei empregava para cuidar dos traidores! Ele a chamou para que se sentasse a seu lado, para que deixasse que suas mãos a acariciassem.

Os inimigos da rainha agora sabiam que suas esperanças tinham sido prematuras; os amigos se perguntavam por que haviam se desesperado tanto.

Catarina Howard estava alegre como uma cotovia. Como o gafanhoto da fábula, dançava durante todos os meses de verão sem se preocupar com o inverno. Estava descobrindo que era mais do que ligeiramente bonita; era a mais bela de todas as damas; tinha, segundo alguns, uma leve semelhança com sua prima, a rainha. Desenvolveu uma paixão por vestir-se bem, e embora lhe faltasse dinheiro para comprar roupas, pedia ao namorado que lhe provesse. Derham também estava maravilhado. Estava encantado pela mocinha, que era tão deliciosamente jovem em alguns momentos, tão madura em outros. Além desvestidos, ele lhe dava muitos-outros pequenos luxos: vinhos, doces, frutas e flores. Assim, quando Catarina quis possuir um ornamento chamado "Funcho Francês", que estava sendo usado por todas as damas da corte que seguiam a última moda, Derham disse-lhe que conhecia em Londres uma mulherzinha corcunda que era muito hábil na confecção de flores de seda. Catharine implorou para que ele lhe encomendasse uma.

- Eu irei lhe pagar quando tiver os meios - disse-lhe, o que o fez sorrir e implorar que ela aceitasse o ornamento como um presente.

E assim foi. Mas, quando finalmente tinha o ornamento precioso, temeu usá-lo durante algum tempo, até dizer à duquesa que uma das damas lhe dera o ornamento de presente. A duquesa estava mais cuidadosa com a honra das damas aqui do que em Horsham.

Para a velha dama era cansativo ter de tomar aquela precaução de fechar a porta do quarto das moças todas as noites. Derham era um rapaz aventureiro; ele estava profundamente apaixonado. Não deixaria que uma chave o separasse de Catarina. com um pouco de coragem, planejamento e condescendência da parte das testemunhas com espírito esportivo, não era tão difícil assim roubar a chave depois que tinha sido levada para a duquesa.

Além disso, havia um sabor adicional em planejar o que deveria ser feito, caso o flagrassem.

- Você teria de correr para a galeria e se esconder lá!-disse Catarina.

- Isso eu poderia fazer com grande facilidade! - disse Derham. Ele ia à câmara a qualquer hora da noite; era uma aventura altamente excitante que ambos estavam desfrutando.

As outras observavam, sonhadoras. Derham era um jovem bonito e decerto muito apaixonado pela pequena. Havia algumas, como Dorothy Barwicke e uma recém-chegada, Jane Acworth, que sussurravam uma. para a outra que Catarina Howard era o tipo de garota que sempre teria homens a seu dispor. De que adiantava alertá-la? Ela era viciada demais no amor físico para dar-lhes ouvidos. Se ela percebesse que o caminho que estava trilhando poderia ser perigoso, poderia tentar reformar-se, mas decerto acabaria por voltar aos antigos hábitos. Ela era uma bonequinha sedutora, irresistível aos homens porque os considerava irresistíveis. Mary Lasseis achava que a duquesa devia ser avisada, em segredo, para que pudesse aparecer e pegar os dois no ato, mas as outras eram contra isso. Elas não queriam sondagens; não queriam perguntas. Elas alegaram que seriam implicadas; todas, até Mary Lasseis, que estava há meses na casa e que não considerara avisar Sua Graça antes.

A duquesa continuava inquieta. Além dos rumores que ouvia na corte, sentia a presença de intriga em sua própria casa. Ela vira Catarina ostentando seu novo Funcho Francês. Os céus sabiam que havia muitos homens ansiosos por tirarem vantagem de uma mocinha. Ela vira alguma coisa no rosto de Catarina, algum segredo guardado, e a memória dessa expressão voltava em seus pensamentos inquietos. Sua outra neta, ela acreditava, não era feliz; a duquesa preferia não pensar no que estaria acontecendo na corte; era melhor voltar sua atenção para a sua própria casa. Estariam os rapazes tomando liberdades com as moças? Ela precisaria arranjar um casamento para a jovem Catarina muito em breve. Na vez seguinte em que visse a rainha, iria trocar uma palavra com ela a respeito disso. Nesse ínterim, precisaria redobrar seu cuidado.

Às vezes a duquesa não dormia muito bem; às vezes ela acordava no meio da noite imaginando ter ouvido passos nas escadas, ou uma risada abafada. Há algum tempo ela suspeitava de que acontecia alguma coisa nos aposentos das mocinhas. Havia algumas moças atrevidas lá, ela tinha certeza.

"Preciso investigar isso", pensou. "Tenho de pensar em minha netinha, Catarina. Aquele Funcho Francês... Ela disse que o ganhou de Lady Brereton. Terá ganho? Será que a dama iria dar-lhe um presente tão bonito? E se um dos jovens gentis-homens estivesse buscando os favores de Catarina oferecendo-lhe presentes!"

Não era uma reflexão muito agradável.

Forçada por uma sensação de perigo iminente tanto na corte quanto em Lambeth, certa noite a duquesa se levantou da cama um pouco depois da meia-noite e foi até aquele lugar onde a chave para o apartamento das damas deveria ficar. A chave não estava lá. Embora estivesse tremendo de medo com o que poderia encontrar se fosse até o quarto, a duquesa não conseguia achar um motivo para não fazê-lo. Sempre tivera o hábito de evitar situações desagradáveis, mas desta vez não havia como fugir a seu dever.

Vestiu um robe e saiu de seu quarto para o corredor. Subiu lentamente a escada. Estava tensa, pois tinha certeza de que escutava vozes abafadas vindas do quarto. Ela parou diante da porta. Não escutou qualquer som dentro do quarto agora. Abriu a porta e ficou parada na soletra: Todas as damas estavam em suas camas, mas havia neste quarto uma atmosfera de tamanha tensão que era impossível não perceber. E a duquesa tinha certeza de que, embora estivessem de olhos fechados, as damas fingiam dormir.

Foi primeiro até a cama de Catarina Puxou o lençol e viu o corpo desnudo da neta. Catarina fingiu dormir profundamente demais para ser inocente.

A duquesa ouviu um leve rangido de tábuas. O som viera da galeria que corria ao longo de um lado do quarto. Foi acometida pela suspeita terrível de que, caso mandasse inspecionar a galeria, a inspeção não seria infrutífera. Isso daria muito assunto para mexericos, e não ousava deixar isso acontecer.

O pânico deixou-a furiosa. Queria culpar alguém pela negligência, mesmo sabendo que a culpada era ela própria. Catarina estava deitada de barriga para cima; a duquesa rolou-a na cama e desferiu uma palmada violenta nas nádegas da garota Catarina gritou; as garotas sentaram-se nas camas; cortinas foram abertas.

- O que aconteceu?

- O que foi?

"Será que as exclamações das moças são genuínas?", indagou-se a duquesa.

Catarina estava massageando a pele ferida, pois os anéis da duquesa haviam cortado sua carne.

- Quero saber quem roubou minhas chaves e abriu a porta! ordenou a duquesa.

- Roubou as chaves de Sua Graça...

- Abriu a porta..

"Ah, claro! Que vadias! Todas elas sabem muito bem do que se trata Graças a Deus, cheguei a tempo!"

Mary Lasseis estava tentando atrair a atenção da duquesa, mas ela não olhou para essa criaturinha matreira. A tola não compreendia que a duquesa não queria ouvir a verdade... e se a verdade fosse perturbadora?

- Amanhã cuidarei deste assunto - garantiu a duquesa - Se alguma de vocês teve qualquer relação com o sumiço das chaves, será chicoteada e mandada para casa em desgraça Não farei segredo dos seus pecados, estão ouvindo? Escutei ruídos aqui. Fiquem sabendo que se eu escutar mais ruídos, o pior irá lhes acontecer!

Ela saiu do quarto das moças.

- Pronto! - disse a duquesa enquanto se deitava para dormir. Fiz meu dever. Eu as alertei. Depois de uma ameaça como essa, nenhuma delas ousará se comportar mal. E se alguma delas tiver feito algo ruim, passará a andar na linha, se possuir algum juízo.

Pela manhã encontrou as chaves; não estavam em seu lugar correto, o que a fez esperar que tivessem estado lá o tempo todo. com sorte, houvera um deslize, e a porta havia passado a noite inteira destrancada.

Ainda assim, estava determinada a ficar de olho nas mocinhas, e, particularmente, em Catarina.

Chegou o dia em que, ao entrar no que era conhecido como a Sala das Damas, a duquesa viu Catarina e Derham juntos. A Sala das Damas era um cómodo comprido, agradável, extremamente bem iluminado, no qual as jovens sentavam-se para bordar, tricotar ou costurar. Naturalmente, uma sala como essa era proibida a cavalheiros.

A duquesa chegara à sala com os passos lentos e pesados de costume, e se Derham e Catarina não tivessem envolvidos numa folia, certamente a teriam ouvido aproximar-se.

Derham viera conversar com Catarina, e ela, fingindo maior interesse em seu bordado do que no rapaz, incitara-o a roubar a peça; em seguida, Catarina tentara recuperar seu pertence. Não estavam realmente interessados no bordado, exceto como uma desculpa para excitar seus sentidos, entregando-se a contatos físicos aparentemente casuais. Derham correra pela sala, brandindo no ar o bordado, e Catarina perseguira-o.

Encurralando-o atrás da roca, Catarina tomara o bordado, mas ele a abraçara pela cintura. Catarina escorregara para o chão; ele fizera o mesmo. Haviam rolado pelo chão juntos, Derham com seus braços ao redor da moça, Catarina gritando seus protestos deliciados. E foi precisamente assim que a duquesa flagrou os dois.

A duquesa parou no pórtico e gritou durante alguns instantes sem que o casal escutasse sua voz zangada.

Então caminhou decidida até eles. O casal finalmente a viu e ficou quieto, permanecendo à sua frente com as cabeças baixas.

A duquesa tremia de raiva. Sua neta, entregue a um comportamento tão impróprio! O vestido da garota estava rasgado no pescoço, notou Sua Graça, e isso indubitavelmente fora proposital! Ela estreitou os olhos.

- Deixe-nos imediatamente, Derham! - ordenou, ominosa. Este assunto ainda não acabou para você.

Ele lançou um olhar para Catarina e saiu.

A duquesa agarrou sua neta assustada pela manga e lhe rasgou as roupas, desnudando seus ombros.

- Sua mundana! - gritou. - O que significa este comportamento... depois de tudo que fiz por você!

Ela levantou seu cajado de ébano, e teria golpeado a cabeça de Catarina se a mocinha não tivesse se esquivado. A duquesa se acalmou um pouco, percebendo que de nada valeria fazer uma cena tão violenta.

Encurralou Catarina, empurrou-a a um sofá e, curvando-se sobre a neta, inquiriu:

- Até onde isso chegou?

- Não aconteceu nada-garantiu Catarina, temendo por Derham e também por ela própria. - Ele apenas... roubou meu bordado, e eu... tentei reavê-lo... e então... a senhora entrou.

- As mãos dele estavam na sua cintura!

- Ele fez isso para recuperar o bordado que eu lhe tinha tomado.

A duquesa preferiu acreditar que aquilo fora apenas uma brincadeira infantil. Não queria um escândalo. E se chegasse aos ouvidos do duque que coisas duvidosas aconteciam em sua casa, que as moças sob seus cuidados faziam estrepolias! Aquele homem malvado não hesitaria em espalhar a notícia, e então ela seria considerada incapaz de ser gestora das propriedades da princesa Elizabeth!

O incidente não poderia vazar daquela sala. Ainda assim, ela precisava mostrar a Catarina que não devia manter amizades perigosas com rapazes debaixo de seu teto. Ela disse:

- Se eu soubesse que os dois haviam feito alguma coisa errada, iria mandar você para a Torre; e a ele também! Conforme está, contentar-me-ei em ministrar a maior sova que você já recebeu na vida, Catarina Howard!

Então a duquesa viu algo que a horrorizou: sentada num canto, silenciosamente tremendo de medo, estava uma de suas protegidas, e ela devia ter presenciado a cena inteira.

A duquesa deu as costas para Catarina e caminhou até a dama.

- Jane Acworth! O que lhe passa na cabeça, ficando parada aí, testemunhando um comportamento como esse sem fazer nada? Qual você acha que é o seu dever? Assistir rapazes tomarem liberdades com Catarina Howard?

A garota, tremendo, disse:

- Sua Graça, não foi nada de mais...

Mas um golpe na têmpora da garota silenciou-a. A duquesa continuou a esbofeteá-la por alguns instantes.

- Se alguma coisa assim voltar a acontecer, garota, baixarei o chicote nos teus ombros! Catarina, vá para a minha alcova particular. Receberá sua punição lá!

Ao sair da sala, esbaforida, a duquesa ainda estava muito tensa. Mas, depois de bater em Catarina, fazendo a neta estremecer e berrar durante vários minutos, a duquesa sentiu que cumprira seu dever.

Depois de terminar o castigo de Catarina, a duquesa convocou Margaret Morton.

- Quero falar com Francis Derham. Mande-o para mim sem delongas!

Ele chegou. A duquesa não sabia como puni-lo. Devia bani-lo de sua casa. Na melhor das hipóteses, o rapaz fora ousado, mas havia alguma coisa muito atraente nessa ousadia. Além disso, ele era também um parente distante... de modo que talvez bastasse admoestá-lo.

- Quero deixar claro que você não tem qualquer perspectiva com minha neta. Você não poderia casar-se com ela. Quero que não se esqueça de sua posição nesta casa, Francis Derham!

- Vossa Graça, desculpo-me humildemente. Fui tomado por um ânimo animalesco...

"O ânimo animalesco da juventude", pensou.

Havia alguma coisa deliciosa nisso. Lembranças do passado distante acalmaram a duquesa. Desta vez, ela deixaria passar. Repreendera o moço; ele não voltaria a ser abusado com sua neta. Afinal, era um rapaz tão cortês e encantador!

O outono chegou; Ana foi brindada com uma grande alegria ao descobrir que finalmente estava grávida. O rei ficou eufórico. com toda certeza, se ele mostrasse ao povo um herdeiro homem, tudo que ele fizera antes seria esquecido.

Ana, determinada a dar a luz uma criança saudável, abriu mão de todas as diversões e passou a dedicar a maior parte de seus dias a ler e refletir sobre o passado.

Ela não podia recordar com muito orgulho os seus dois anos como rainha. Pareceu-lhe que a maior parte de seu tempo fora despendida em maquinações inúteis e subterfúgios sórdidos. Particularmente, o caso de Madge Shelton enchia-a de vergonha. Ela estava grávida novamente. Se desse a luz a um menino, seu desejo mais querido estaria satisfeito; então não iria pedir mais nada da vida.

Estava com suas damas, tecendo uma tapeçaria e fazendo perguntas sobre os pobres de Londres.

- Não seria melhor se, em vez de estarmos bordando este tapete, estivéssemos fazendo roupas para os pobres?

Era estranho ver Ana - que dedicara tanto tempo a planejar seus próprios vestidos, que dera ordens de cortar quilómetros de seda preta e tecido de ouro - costurando animadamente todo tipo de roupas para os pobres. Ela havia mudado, e a mudança tinha muita relação com os temores terríveis que a atormentaram por tanto tempo e que agora ela eliminara: o medo de perder o afeto do rei, e o medo de não conseguir dar um filho a ele.

Hugh Latimer fora um fator decisivo nessa mudança. O grande reformador chamara a atenção de Ana desde a primeira vez em que ouvira falar sobre ele. Quando Stokesley, bispo de Londres, mandara-o para a Torre, Ana empregara toda sua influência para libertá-lo. O rei, relutante, mas novamente apaixonado e incapaz de recusar qualquer coisa que ela lhe pedisse, concordou com a libertação, desta forma postergando em 25 anos o martírio de Latimer. Quando ele foi libertado, Ana desejou ouvi-lo pregar e mandou que o chamassem. Para sua surpresa, ao invés de expressar gratidão, o homem passara-lhe um sermão furioso, aconselhando o arrependimento àqueles que davam valor excessivo aos tesouros terrenos. Ana procurou o homem depois e perguntou onde ele achava que ela errara. Sem papas na língua, Latimer respondera que sua moralidade e religiosidade deveria ser um exemplo para aqueles sob seu comando. Impressionada com sua franqueza virtude pela qual ela nutria muito respeito -, Ana nomeou-o um de seus capeiões e começou a se dedicar a uma forma mais espiritual de vida. Sempre generosa, Ana adorava procurar a seu redor pessoas com problemas e pensar no que poderia fazer para ajudá-las. Ela sempre ajudara pessoas que iam lhe pedir auxílio, mas agora buscava sistematicamente por quem precisava de sua ajuda.

Embora menos supersticiosa do que o rei, ela não era completamente desprovida dessa fraqueza. Enquanto costurava roupas para os pobres, Ana se perguntava se não

estava fazendo isso para receber em troca um menino saudável. Estaria ela fazendo as pazes com os poderes superiores, como era o costume de Henrique? Estaria ficando um pouco parecida com seu esposo? Tinha seus momentos de medo. Henrique era capaz de gerar um menino saudável? O corpo do rei estava doente. E se fosse por esse motivo que Catarina fracassara, e ela também, até agora! Talvez ela estivesse, de certa forma, agradando a Providência.

Estava preocupada com a princesa Maria. Ana ainda temia a princesa e Catarina. Tinha a impressão de que, se essas duas estivessem juntas, poderiam estar tramando contra ela, e através dela, contra Elizabeth. Ela também temia Chapuys. Sabia que havia muitos nobres poderosos que não aprovavam o rompimento com Roma. Estavam todos apenas esperando que surgisse uma oportunidade para uma rebelião e a destruição de Ana. Não podia permitir que o fato de contar novamente com o amor do rei a cegasse para isso.

E enquanto bordava, Ana rezava por um filho.

O rei também rezava. Estava feliz com a mudança em Ana. Era bom vê-la mais calma, mais quieta. Era bom finalmente sentir-se esperançoso em relação a seu casamento com ela. Ele precisava se sentir esperancoso; o povo estava voltando a ficar inquieto. Os plebeus diziam que não chovia desde a morte de More. Eles sempre encontravam um motivo para uma colheita ruim, e a última fora péssima. O comércio de folha-de-flandres também não estava indo bem. Na verdade, parecia que o país estava passando por uma maré de azar, e esse tipo de situação sempre causava problemas aos reis.

O rei precisava de distração. Subitamente lhe ocorreu que uma das damas de honra de sua esposa era... bem, não tão bonita quanto diferente. Talvez ele a considerasse muito diferente de Ana; ela era muito calma, sempre se movendo como um ratinho. Era bonita, com uma boquinha bem desenhada e olhos grandes e vivos. Ela jamais seria uma líder nas festas, jamais iria brilhar, jamais iria magoar um homem com sua língua ferina! Mais diferente de Ana uma mulher não poderia ser. Foi isso a primeira coisa que o atraiu nela.

Quando Henrique deitava olhos nela, a moça baixava os seus rapidamente e ficava com as faces rosadas de vergonha. Era muito acanhada.

Em certa ocasião Henrique estava sentado sozinho, pensando que ainda faltava muito tempo para que seu filho nascesse, e se perguntando se havia alguma relíquia sagrada que os adivinhos poderiam lhe dar como proteção contra outra menina. Ele tinha um pouco de água benta, uma lágrima que Cristo derramara sobre Lázaro e um frasco com suor de São Miguel; todas essas relíquias ele comprara a alto preço durante a epidemia da doença do suor. Mas, a despeito dessas relíquias, a primeira criança de Ana fora uma menina. Ele estava tentando imaginar onde poderia comprar alguma coisa específica para assegurar o nascimento de um menino. Enquanto considerava o assunto, a dama de honra acanhada entrou no quarto e, ao vê-lo, fez-lhe uma mesura de um jeito assustado, e teria se retirado apressada se ele não a detivesse com um "Senhorita! O que deseja?".

- Sua Graça, a rainha.... - disse a garota, tão baixo que ele mal conseguiu ouvi-la.

- O que tem Sua Graça, a rainha?

Ele estudou a moça dos pés à cabeça. Pequena, enquanto Ana era alta; lenta de movimentos, enquanto Ana era rápida; meiga, enquanto Ana reluzia; trôpega nas palavras, enquanto Ana era brilhante; tímida, em vez de ousada; disposta a ouvir humildemente, em vez de desconcertar um homem com sua eloquência.

- Vim procurá-la...

- Aproxime-se - disse o rei. - E está tão perturbada em ver é rei quando procurava por sua rainha?

- Sim, Majestade... quero dizer, não, Majestade...

- Ora, decida-se! - disse Henrique, divertindo-se com a timidez da garota.

Ela não se aproximou muito. Henrique não a forçou, descobrindo que gostava de sua timidez, porque a maioria das mulheres que conhecera tinha se entregado rápido demais a ele.

Ela não conseguia pensar em nada para dizer, o que o agradou e o fez lembrar que Ana sempre tinha uma resposta na ponta da língua.

- Fique sentada um pouco aqui para me ouvir tocar. Traga-me o meu alaúde.

Ela levou-lhe o instrumento, cautelosamente. Ele tentou tocar os dedos da moça ao pegar o alaúde, mas ela foi mais rápida; deu um pulo para trás como se ele tivesse tentado esfaqueá-la. Ele não ficou zangado. Seus pensamentos estavam concentrados principalmente no seu filho e, portanto, em Ana. Mas ele gostou da garota. Ele se sentia tocado por sua timidez; ele gostava e respeitava esse comportamento entre os jovens de sua corte.

Ordenou-lhe que se sentasse. Ela o fez, repousando as mãos sobre o colo. Os olhos leitosos da moça observaram-no, e pareceram cheios de admiração.

Quando terminou, Henrique viu que os olhos da moça estavam cheios de lágrimas, tão encantada ficara com sua música. Então Henrique percebeu que há muito tempo não se sentia tão gratificado.

Ele perguntou o nome da moça. Ela lhe disse que era Jane Seymour.

Então ele a dispensou.

- Vá agora. Iremos nos encontrar de novo. Eu gosto de você, Jane! Não foi uma briga com Ana, apenas uma pequena irritação. Uma discussão ordinária, e ela, como era de costume, provou que estava certa. Jane Seymour jamais tentaria provar que tinha razão em alguma coisa.

"Ela é toda mulher", pensou Henrique. "E é assim que uma mulher deve ser. Mulheres são mulheres, homens são homens. É muito triste quando um tenta adentrar a província do outro."

Mandou chamar Jane Seymour. Ela seria honrada com a primeira audição de uma canção de sua autoria. Ela sentou-se para ouvi-lo, seus pés mal tocando o assoalho, o que a deixava com uma aparência indefesa. Ela era muito frágil.

Henrique fez perguntas a respeito da moça. Era filha de Sir John Seymour de Wolf Hall em Wiltshire. Ele não era um nobre poderoso, mas foi interessante descobrir que havia uma fina raiz de realeza na árvore genealógica de Sir John, desde que se escavasse fundo o bastante para encontrá-la. Henrique arquivou esse conhecimento. E enquanto tocava seu alaúde, pensou em Jane.

"Uma companheira tranquila e complacente", pensou Henrique. "Suficientemente bonita, com uma pele branca e sedosa; tímida e virgem."

O rei sentiu-se comovido; a virtude exercia esse efeito sobre ele. Todas às mulheres deviam ser virtuosas, disse a si mesmo.

A corte notou sua preocupação com a dama de honra. Chapuys e o embaixador francês riram juntos. Eles foram cínicos. Então o rei agora encantava-se com virgindade!

- Ele se refere a Jane Seymour! - disse o embaixador francês.

Ao que o embaixador espanhol replicou que duvidava imensamente de que Jane possuísse essa qualidade, estando há algum tempo na corte. Ele acresceu que o rei gostaria de saber que ela não era, para que, desposando-a sob a condição de que fosse virgem, quando precisasse de um divórcio pudesse encontrar muitas testemunhas para o contrário.

Mas o rei continuou considerando Jane com olhos sentimentais. Quando descobriram o que estava acontecendo, o pai e os irmãos de Jane - vislumbrando grandes possibilidades - deram-lhe conselhos, dizendo "Faça isso..." ou "De forma alguma faça aquilo...". A própria Jane também nutria certa ambição. Ela testemunhara muitas brigas entre o rei e a rainha, e entendia o rei muito mais do que este poderia julgar, tendo por base seus olhinhos tímidos.

Quando ele tentava beijá-la, Jane ficava corada; saía correndo e se escondia. E o rei, tendo-se tornado o paladino da virtude, iria contra sua consciência se forçasse a garota a alguma coisa. A mente de Henrique começou a digladiar-se novamente com sua consciência. E se este casamento com Ana tivesse sido errado? E se Deus mostrasse sua desaprovação através da criança? Os planos ainda não estavam bem moldados... havia em sua mente alguns planos enevoados, planos que lhe permitiam flertar com Jane e ao mesmo tempo respeitar sua virtude.

Henrique deu a Jane um medalhão com um retrato seu protegido por uma tampa. Ela passou a usá-lo numa corrente em torno do pescoço, tencionando que isso fosse um sinal de que se ela não fosse tão virtuosa, decerto se renderia aos avanços do rei, pois tinha grande admiração por sua pessoa. Henrique queria Jane; ele não podia tê-la; e isso tornava-a ainda muito desejável para ele.

Jane considerava a história de Ana uma lição: o que fazer antes, o que não fazer deoois. Mas, embora soubesse o que precisava fazer, Jane não era muito inteligente, e não conseguiu impedir que uma certa arrogância contaminasse seus modos; Ana não tardou a notar isso. Ela viu o medalhão que Jane estava usando, e perguntou educadamente se poderia vê-lo.

Jane enrubesceu, culpada, e cobriu o medalhão; nesse momento, as suspeitas de Ana chegaram ao ápice. Ela puxou o medalhão, quebrando a corrente ao fazer isso; ao abri-lo, deparou-se com o rosto sorridente do rei, usando coroa e uma capa cravejada de jóias.

Um ano antes Ana teria investido furiosamente contra Henrique; agora ela estava calada e indecisa. Viu na tímida Jane Seymour, com sua virtude tão apregoada, uma inimiga mais mortal do que qualquer outra mulher que chamara a atenção do rei.

Ela rezou, desesperada.

"Um filho! Preciso ter um filho!"

No castelo de Kimbolton, Catarina estava à morte. Ela vivera miseravelmente durante sua doença duradoura, pois não lhe pagavam o dinheiro que lhe era devido. Ela estava profundamente triste; não apenas fora separada de sua amada filha, mas quando perguntara se poderia ver a princesa antes de morrer, até mesmo esse pedido fora-lhe negado. Estava profundamente perturbada pelo destino de seu antigo confessor, o padre Forrest. Devido à sua aliança com Catarina, o velho fora tratado cruelmente nas mãos do rei; ele fora aprisionado e torturado de uma forma que ela não ousava contemplar. Catarina queria enviarlhe uma carta com palavras de conforto, mas temia que se uma carta sua fosse interceptada, isso causasse a execução do velho, embora, em seu caso, a morte pudesse ser a libertação mais feliz de seu sofrimento. Abell, seu outro confessor, era tratado com a mesma crueldade; era insuportável que seus amigos devessem passar por tudo isso.

Chapuys recebera a permissão relutante do rei para visitá-la, e chegara no dia do Ano-novo. Ela ficou deliciada em vê-lo, sabendo que era um verdadeiro amigo. Estava muito doente, e parecia 10 anos mais velha do que seus 50 anos. Ele sentou-se a seu lado na cama e ela, embora expressando piedade genuína por todos aqueles que tinham sofrido em seu nome, disse que nem por um instante havia considerado que estava errada em sua luta contra o rei.

Para o homem que causara as maiores dores de sua vida, Catarina não tinha reproches. Ela era a filha de um rei e uma rainha, e acreditava no direito divino da realeza. O rei iria considerar bastarda uma princesa porque havia sido enfeitiçado; ela tinha certeza de que Henrique ainda emergiria do feitiço e veria o quanto seus atos haviam sido despropositados. Catarina acreditava que era seu dever defender seus direitos e os de sua filha - não por razões pessoais, mas porque elas eram rainha e princesa. Catarina estava tão determinada quanto sempre, e preferiria sofrer alguma tortura a admitir que sua filha não era a herdeira legítima ao trono da Inglaterra.

com olhos cheios de lágrimas, ela falou sobre Fisher, com pesar sobre More; falou sobre Abell e Forrest; misericordiosamente, ignorava as mortes terríveis que aguardavam esses seus dois aliados fiéis.

Chapuys, o cínico, pensou: "Ela está morrendo pela mão de Henrique, exatamente como More e Fisher." Ele pensou nos anos de dor que esta mulher enfrentara, na tortura mental que lhe fora infligida pelo esposo. Aqui estava mais uma vítima da mão do assassino. O que importava se o método fosse diferente?

Chapuys não tinha qualquer conforto real para dar-lhe. Seu senhor não queria envolver-se numa guerra com a Inglaterra em nome de Catarina de Aragão e sua filha. Ele já tinha muitos problemas em outra parte.

Contudo, para confortá-la, ele insinuou alguma ação externa em seu benefício. Os olhos de Catarina brilharam. A visita de Chapuys deulhe novo alento. Era raro que o rei permitisse que ela fosse visitada por seus amigos.

Depois que ele saiu, outro incidente ocorreu que ajudou a suavizar a dor de não poder ter o conforto da presença da filha.

Era a noite de um dia frio, quando através do castelo ecoou o som de batidas altas na porta. A aia veio dizer-lhe que era uma mulher pobre que, tendo feito uma jornada pelo país, perdera seu caminho. Ela estava implorando que fosse permitido passar a noite no castelo, porque temia que ela e sua companhia congelassem até a morte.

Catarina mandou que as duas pobres almas fossem recebidas e alimentadas.

Ela estava cochilando quando a porta de seu quarto foi aberta e uma mulher entrou. Catarina, estarrecida, olhou para a recém-chegada por um momento, e então as lágrimas começaram a correr de seus olhos. Ela estendeu os braços, sentindo que era novamente uma menininha, navegando pelas águas rebeldes da Baía de Biscay, pensando no destino que a aguardava num país desconhecido onde iria se casar com um marido menino; ela estava jovem novamente, observando a terra ficar menos borrada, à medida que a nau se aproximava de Plymouth. com ela estava um cortejo de belas moças espanholas, e entre elas havia uma que, durante os anos infelizes que a Inglaterra lhe dera, fora sua amiga mais fiel. Esta garota casara-se com Lord Wiloughby; e eles tinham permanecido juntos até que, por comando do rei, Catarina fora banida da corte e isolada de todos a quem amava. E aqui estava Lady Wiloughby, chegando como uma estranha perdida na neve, para que pudesse estar com Catarina durante suas últimas horas na Inglaterra como estivera durante as primeiras.

Isso foi maravilhoso; ela ficou quase feliz.

- Se ao menos eu pudesse ver a minha filha. - murmurou.

Mas a chegada de sua amiga elevou o ânimo de Catarina. Ela se reanimou tanto que conseguiu sentar-se na cama, embora tivesse o corpo doente demais para realmente se recuperar. Durante aquela primeira semana de janeiro seu estado piorava cada vez mais. Ela pediu que a missa fosse rezada em seu quarto no dia 6, e então, doente como estava, pediu por material para escrever uma carta ao rei. Ela não o culpou; aceitava seu destino humildemente; pedia apenas que ele fosse um bom pai para sua filha Maria, e que zelasse pelos servos dela.

Henrique ficou eufórico ao receber a notícia da morte de Catarina A isso seguiu-se um momento de apreensão quando ele lembrou de seu rosto triste e pálido, e ouviu sua voz clamando justiça Então ele seguiu o mesmo procedimento que adotava quando o remorso o tocava: considerou a tragédia de Catarina culpa de outro que não ele.

Ele se assegurou que ele agira apenas segundo os motivos mais elevados e altruístas.

- Louvado seja Deus! - gritou. - Fomos libertados de todo o medo da guerra. Chegou o momento em que poderei lidar com os franceses melhor do que antes, porque, ao se perguntarem se agora eu irei me aliar ao imperador, eles farão tudo que eu quiser.

Ele agora iria mostrar que jamais fora casado com Catarina. Vestiu-se em amarelo e colocou uma pena branca em seu chapéu; afinal, por que um homem se enlutaria por uma mulher que não fora sua esposa!

- Tragam-me a minha filha! - gritou, e as enfermeiras trouxeram-lhe Elizabeth.

Embora com pouco menos que dois anos de idade, ela já era uma criança bonita e inteligente que gostava de ser exibida, e olhou para seu pai com muito interesse.

Ele pediu que todos os instrumentos musicais fossem tocados; os cortesãos deveriam dançar. Ele cumprimentou cada um dos cortesãos, mandando-lhes que prestassem honras à princesinha.

- Porque agora estamos livres da terrível ameaça de guerra! exclamava repetidamente.

Ana exultou ao receber a notícia. Foi um grande alívio. "Pela primeira vez", pensou, posso me sentir realmente como uma rainha. "Não há nenhuma rainha alternativa às minhas costas. Eu sou a rainha. Não há qualquer outra rainha além de mim!"

Ela estava mais feliz do que era seu costume. Imitando o rei, vestiu-se de amarelo.

Ana não sabia que Henrique chegara a discutir, com seus conselheiros mais confiáveis, a possibilidade de se divorciar dela. Não sabia que ele só voltara atrás nessa decisão porque os conselheiros tinham lhe dito que ele poderia se divorciar de Ana, mas, se o fizesse, teria de aceitar de volta Catarina.

Agora que Catarina estava morta, e Ana sentia-se mais segura, ela decidiu que podia ser menos dura com a princesa Maria. Assim, mandou uma das damas levar uma mensagem à jovem. Maria poderia ir à corte? Será que elas poderiam ser amigas?

- Diga-lhe que se ela for uma boa filha para seu pai, poderá vir à corte e contar comigo como sua amiga - disse Ana à mensageira. Diga-lhe que poderá caminhar comigo, e que não terá de ser minha caudatária para isso.

Maria, abalada pela morte de sua mãe, tão triste que não se importava com o que lhe acontecesse, enviou de volta a seguinte resposta: se ser uma boa filha para seu pai significava negar aquilo pelo que o sangue dos mártires fora derramado, ela não aceitaria a oferta de Ana.

- Menina estúpida! - esbravejou Ana. - O que mais eu posso fazer?

Então ela sentiu raiva, e a raiz de sua ira estava no conhecimento de que ela própria ajudara a tornar mais pesado o fardo dessa jovem órfã de mãe. Ana não podia esquecer o que ouvira sobre a morte miserável de Catarina, e em seu espírito novo e pio sentiu não apenas raiva, mas também remorso.

Ela insistiu novamente com Maria, mas a moça era teimosa, jamais disposta a esquecer ou perdoar. Maria era uma fanática; ela precisava ter tudo ou nada. Ela queria reconhecimento: sua mãe devia ser reconhecida como a verdadeira rainha, Ana devia ser dispensada, Elizabeth devia ser considerada bastarda. E apenas nesses termos Maria voltaria à corte.

Ana deu com os ombros, realmente zangada com a garota porque ela não a deixava se redimir.

"Quando o meu filho nascer, estarei numa posição forte e ela fará tudo que eu mandar. Se eu mandar que venha para a corte, ela virá à corte. Só que dificilmente cairá nas boas graças fazendo sob coerção o que poderia ter feito de livre vontade."

O começo do ano foi desastrosamente repleto de eventos para Ana. O primeiro distúrbio ocorreu quando Norfolk entrou esbaforido na alcova de Ana e lhe disse que o rei sofrera uma queda tão brutal de seu cavalo que talvez houvesse morrido. Isso abalou Ana; não que ela tivesse motivos para amar o rei, mas porque Ana sabia que, em sua presente situação, ela estaria em maus lençóis se o rei morresse. Ela precisava zelar pelos interesses de sua filha e da criança ainda por nascer. Felizmente, eles logo descobriram que o acidente não fora grave; o rei, que era um cavaleiro muito experiente, mal saíra ferido.

Depois de passar incólume por esse acidente, o rei foi tomado por uma intensa alegria de viver. Ele encontrou Jane Seymour sozinha num dos apartamentos da rainha.

As pessoas costumavam desaparecer do lado de Jane Seymour quando o rei se aproximava. Ainda que tímida, ela agora permitia certas liberdades. Henrique estava um tanto enamorado dêssa coisinha bonita e pálida, que era uma diversão agradável para um homem que mal podia esperar o momento do nascimento de seu filho.

- Aproxime-se, Jane! - disse no tom suave e cândido de um amante, acentuado por uma boa quantidade de cerveja e vinho.

Ela se aproximou muito cautelosamente, e então ele a puxou e a fez sentar-se em seu joelho.

- E então, Jane, o que você pensou quando o idiota do Norfolk saiu correndo por aí espalhando que eu tinha passado desta para melhor?

Os olhos de Jane se encheram de lágrimas.

- Ora, ora! Não há motivo para chorar. Aqui estou eu, saudável como sempre, exceto por uma perna ferida...

Ele gostava de falar sobre sua perna; ele passava boa parte de seu tempo pensando nela.

- Já foi examinada por cada médico da Inglaterra, Jane. Em vão. Tentei feitiços e poções... não adiantou... não adiantou...

Jane sorriu simpática. Henrique acariciou as coxas da amante.

Ele gostava de Jane. Podia ficar sentado a seu lado feliz, sentindo um prazer calmo, sem aquele desejo flamejante que podia atormentar um homem até que fosse saciado. Estar com ela era simplesmente agradável; ele a beijava e a acariciava, ia apenas até um certo ponto, e então retornava.

A porta se abriu; Ana estava observando os dois. Todos os temores que ela conseguira sufocar voltaram com toda a força. Ela conhecia Jane Seymour... arguta, paciente, atenta para oportunidades. De súbito, Ana entendeu o que eles esperavam, e por que Henrique podia esperar com tanta calma. Estavam esperando para ver se ela iria parir um menino. Se ela o fizesse, então Jane Seymour seria a amante do rei. Do contrário...

Ana perdeu o controle; sucumbiu a um ataque de fúria. Disse ao rei tudo o que tinha estado em sua mente e que, mesmo em seus momentos mais francos, jamais havia mencionado. Foi como se ela tivesse rasgado o quadro deslumbrante e agradável que Henrique fazia de si, e pendurasse em seu lugar uma imagem da verdadeira personalidade do rei. Riu da consciência de Henrique, de seu método infantil de sempre garantir para si próprio que ele tinha razão. Por acaso ele pensava que ela não via através disso? Por acaso ele pensava que os grandes homens que o cercavam também não viam?

Ana estava tão cheia de raiva, mágoa e terror que não percebia o que estava dizendo.

A primeira atitude de Henrique foi tentar acalmá-la, porque ele precisava pensar em seu filho, a quem ela daria a luz em breve.

- Fique em paz, querida, e tudo correrá bem para você.

Mas Ana não tinha como ficar em paz. Jane Seymour fugiu e se escondeu atrás das cortinas, cobrindo o rosto com as mãos e murmurando audivelmente:

- O que eu fiz? O que eu fiz?

Na verdade ela estava comemorando o que havia feito.

Afinal, o que poderia ter sido mais adequado para ela e seus defensores, considerando que, depois desse choque repentino, o filho de Ana nasceu prematuramente... e morto!

Tremendo, eles levaram as notícias ao rei. Ele crispou as mãos; seus olhos pareceram afundar na carne flácida de seu rosto, enquanto as veias inchavam-se em sua fronte. Tomado por uma fúria incontrolável, Henrique invadiu o quarto de Ana. Parou diante da esposa límpida, exausta e derrotada Palavras fluíram de sua boca pequena e cruel. Ela causara isto! Ela o humilhara! Ela o enganara, fazendo-o pensar que poderia lhe dar filhos! Ela era uma bruxa, uma feiticeira...

Ainda que debilitada por horas de agonia, Ana conseguiu responder com sua língua afiada:

- O único culpado é você. Isto aconteceu por causa do tormento que você me faz passar com o seu caso com aquela vadia!

Henrique retorquiu, iroso:

- Você não terá mais meninos meus! - E então, astuto e pio: Vejo bem que Deus não quer me dar filhos homens.

Mas ele não acreditava realmente nisso; não via que ele possivelmente possuía uma parcela de culpa nesse assunto.

- Quando você estiver em pé, teremos uma conversa - disse friamente.

Então ele saiu do quarto, pensamentos concentrados em Jane Seymour.

"Está claro que este casamento foi um erro", pensou Henrique. "Meu Deus, fui forçado a ele por feitiçaria! Ela era irresistível, com seus cabelos longos e seu rostinho petulante. Estava além do poder de um homem dizer-lhe não. Feitiçaria! É por causa disso que Deus não me permite ter filhos varões. Não seria justo, portanto, que eu fizesse uma nova união?"

Jane Seymour estava sentada em seus aposentos no palácio, aguardando o rei. Este apartamento - que era esplêndido e decorado com cortinas de tecido de ouro-há pouco pertencera a Thomas Cromwell, mas ele o desocupara para que Jane o usasse, pois, adjacente ao apartamento do rei, facilitava o acesso secreto de Sua Majestade.

Jane estava assustada com os grandes acontecimentos suscitados desde o dia em que o rei olhara para ela. Seus irmãos - Thomas e Edward - haviam planejado tudo, e os planos, eles disseram à irmã, eram todos em benefício de Jane. Edward era inteligente, sutil, ambicioso. Thomas era fascinante, audaz, ambicioso. "Veja só o que aconteceu a Ana Bolena!", haviam dito os dois. "Por que não poderia acontecer a Jane Seymour?" Era verdade que Jane não possuía os atrativos evidentes de Ana Bolena, mas os homens eram estranhos em seus gostos, e talvez o rei tivesse sido menos atraído pela beleza de Ana do que por sua relutância. Se Jane não tinha beleza e argúcia, podia ser tão relutante quanto Ana, e provavelmente com mais efeito, porque a timidez parecia mais natural em Jane do que parecera em Ana.

Portanto, Jane precisava curvar-se aos desejos de sua família. Chapuys e os imperialistas também estavam ao lado de Jane, ansiosos por apoiar qualquer um que pudesse colocar em desvantagem os partidários de Martinho Lutero.

E assim, lá estava Jane, humilde e acanhada, mas não completamente isenta de ambição, sentindo que talvez fosse bastante agradável usar uma coroa, e que derrubar a arrogante Ana Bolena iria ser ainda mais gratificante. Portanto, estava preparada para tomar o lugar de sua ama, embora um pouco assustada com a perspectiva; ela não podia deixar de ver que este papel ao qual fora forçada - ainda que não estivesse mais relutante em aceitá-lo - era muito perigoso. Ana estava perdendo seu lugar; Ana, que fora inteligente e bela; Ana, que segurara o rei durante cinco longos anos depois que se tornara sua amante. E quando Jane lembrava disso, não ousava divisar mais do que um ou dois meses no futuro. Seus irmãos tinham-na assegurado que tudo que ela precisava fazer era obedecer às suas ordens. Ela admirava seus irmãos; eles eram inteligentes, algo que Jane jamais fora; eles eram homens, enquanto Jane não passava de uma mulher fraca. Ela tinha medo do rei; quando ele colocava o rosto perto do seu e ela sentia o cheiro de vinho em seu hálito, quando olhava para o rosto inchado e repleto de veias roxas, quando os olhinhos injetados de sangue piscavam para ela, Jane precisava lutar contra um leve impulso de fugir. Jane não sentia qualquer pena ao pensar na rainha que precisaria ser destronada para que ela pudesse usar a coroa; Jane não era cruel ou rancorosa, mas apenas desprovida de imaginação. Crianças podiam comovê-la um pouco; eram pequenas e indefesas como ela própria, e ela se identificava com suas dúvidas, seu medo dos mais velhos, sua ignorância. Ela chorara um pouco pela princesa Maria, pois certamente essa criança sofrera um destino muito cruel; se Jane um dia viesse a ser rainha, faria tudo a seu alcance para que até a pequena Elizabeth fosse tratada com justiça, porque, ainda que fosse bastarda, era pelo menos uma criança, e uma criança muito pequena.

Os pensamentos de Jane voltaram àquele dia importante quando o mensageiro do rei fora até ela com uma carta e uma bolsa de ouro do rei. Os irmãos de Jane haviam esperado algum tipo de abordagem do rei, e a tinham instruído sobre o que ela devia fazer. Jane sempre era obediente; sua natureza exigia que ela o fosse; assim, ela obedecia a seus irmãos. Ela beijou a carta para mostrar o quanto estimava a pessoa do rei, o quanto ela, se fosse tratada com o respeito que lhe era devido, estava disposta a unir sua sorte à dele. A bolsa com ouro, ela recusou.

Jane escreveu:

"Ajoelho-me diante de Sua Graça, o rei, implorando-lhe que considere que sou uma gentil-dama de uma família boa e honrada. Não tenho riqueza maior que a minha honra, e eu não a entregaria nem se tivesse de passar por mil mortes. Se meu senhor o rei deseja dar-me um presente de dinheiro, rogo para que seja quando Deus me enviar uma boa oferta de casamento."

Evidentemente, o rei não ficou descontente com essa resposta. Jane escrevera essas linhas com medo, temendo que talvez seus irmãos tivessem ido longe demais e desagradado a Sua Majestade. Mas não! Os irmãos de Jane haviam estado certos; o rei ficara encantado com tanta modéstia e virtude. Ele queria agora que o mundo soubesse que a virtude das mulheres de sua corte era a posse mais valiosa aos olhos de seu rei. Os Seymour eram honrados; eles deveriam receber apartamentos no palácio perto dos aposentos do rei, para que a família e os amigos de Jane estivessem mais à vontade do que Ana e os seus. Ele nunca se sentira seguro com os amigos de Ana; eles eram inteligentes e sutis demais. Que o futuro lhe brindasse com boas brincadeiras físicas e um humor sadio que ele entendesse; estava farto de esperteza e escárnio, e as pessoas que escreviam e falavam dessa forma não mais ficariam sob a sua proteção. Não, ele gostava da companhia dos Seymour; eles o acalmavam, e era agradável contemplar uma mulher boa e virtuosa que lhe agradava sem despertar uma paixão muito insistente.

Ele sabia o que os Seymour queriam. Bem, bem, Ana não podia parir meninos. Uma filha de Catarina, uma filha de Ana! Ele se perguntou o que conseguiria de Jane. com Ana ele mal pensara em filhos no começo, tão grande fora seu desejo por ela, mas ele não iria se casar com Jane sem saber se ela poderia ter um filho; ele teria de se certificar de que ela era capaz de fazer isso antes de se comprometer novamente. Esta era uma situação delicada para os Seymour, que, embora estivesse plena de possibilidades deslumbrantes, também abundava em perigo. A força de Jane residira em sua relutância, e como ela poderia permanecer relutante e ao mesmo tempo provar ao rei que era capaz de parir seu filho? Se estavam para tomar uma atitude tão ousada, os Seymour precisavam ser cautelosos. Daí os apartamentos próximos aos de Sua Majestade; daí as visitas secretas do rei, quando ele sabia que Edward Seymour e sua esposa estavam ausentes, e Jane a sós e não tão acanhada, aguardando sua visita.

A corte que Henrique fez a Jane foi trivial em comparação àquela que ele fizera a Ana Bolena. Havia alguma coisa em Jane que o tranquilizava Quando estava com ela, não esquecia nem por um momento que ele era o rei, e nunca perdia de vista o real significado deste romance. Se Jane era diferente de Ana, ela também era diferente do rei; ele olhou para seus reflexos, lado a lado, no espelho; ele próprio grande e vermelho, ela pequena e branca; ele completamente senhor da situação, ela trémula, um pouco amedrontada. Ela não demonstrava descontentamento com a grosseria de Henrique, como Ana fazia às vezes; espertamente, fingia ignorância, como se não entendesse. E se dava um passo em falso, se fazia algo que despertasse a raiva de Henrique, ela se desculpava humildemente. com Jane Seymour, Henrique estava desfrutando um período de paz doméstica que ele não gozava desde que banira Catarina e trouxera Ana para viver com ele. Nos anos turbulentos de seu casamento, Henrique sonhara com a paz que iria conhecer no dia que em que Ana visse a luz da razão; isso fora um objetivo que ele, em seus momentos mais sentimentais, buscara ansiosamente, mas nunca conseguira alcançar. Agora aqui estava Jane, oferecendo-lhe uma vida pacífica. Ele podia deitar-se, fechar os olhos, desfrutar dessa vida, dizer o que lhe apetecesse, fazer o que lhe aprouvesse, e contar com a aprovação de sua amante.

Porém, a garota era um tanto insípida; ele percebeu isso depois de algumas noites com ela. Ela era passiva demais; nunca demonstrando nem avidez nem repulsa por Henrique; apenas meiga e submissa. Tudo que uma rainha deveria ser para um rei, é claro, mas...

"Ah!", pensou Henrique. "Estou pensando em Ana. Dei muito de mim a essa bruxa, pois é isso que ela é. Uma mulher detentora de um poder tão grande sobre mim que penso nela até mesmo quando me deito com outra. Enquanto Ana viver não haverá paz para mim, porque o poder de uma bruxa não conhece distâncias, e ela poderá lançar feitiços mesmo quando sua vítima estiver nos braços de uma mulher decente."

Jane não estava nem um pouco atormentada por esse amor secreto entre ela e o rei. Mas tinha medo da rainha, cujos ataques de fúria podiam ser terríveis; ela fora dama de honra por tempo suficiente para testemunhar muitas cenas entre eles, e nesses momentos a língua da rainha sempre fora mais hábil que a do rei. A rainha era fisicamente mais atraente do que qualquer outra mulher da corte; era impossível estar perto de Ana e não ver o efeito que ela exercia sobre aqueles a seu redor. Havia homens que, apaixonados pelas damas de honra da rainha, iam visitá-las, mas, uma vez no palácio, não conseguiam tirar os olhos da rainha. Tudo de que ela precisava era lançar-lhes uma palavra aleatória, ou um sorriso rápido, e eles se descobriam capazes de fazer qualquer coisa por ela. Ana tinha esse poder. Havia quem dissesse que o rei estava cansado dela; e de fato ele estava... às vezes. Havia quem dissesse que a única esperança de Ana seria dar ao rei um filho; isso era verdade em parte, mas não no todo. Jane testemunhara as manifestações dos sentimentos numerosos e conflitantes que o rei nutria por essa mulher. Ele sentia raiva e ódio, fortes o bastante para levá-lo ao assassinato; mas havia também outro sentimento, alguma fome apaixonada que Jane não entendia mas vagamente temia.

- E se as visitas de Sua Majestade produzirem em mim uma criança? - perguntara Jane certa vez.

Henrique tinha dado um tapinha carinhoso na coxa de Jane.

- Então, minha Jane, você iria agradar-me sobremaneira, porque teria provado que merece se tornar a minha rainha.

- Mas como eu poderei ser a sua rainha quando já existe uma rainha?

Os olhos de Henrique tinham brilhado como pequenos diamantes.

- Não esquente sua cabecinha com assuntos grandes demais para ela, Jane!

Isso fora um aviso: não se intrometa em assuntos do reino, criança. Uma coisa perigosa para uma mulher fazer.

Ainda assim, Jane continuava inquieta. Ela dizia a si própria que o rei estava enfeitiçado, que a rainha possuía feitiçaria em seus olhos; não era necessário ser inteligente para ver isso. Aqueles olhos grandes, negros, reluzentes, tinham mais encanto do que era natural para uma mulher possuir; e a rainha era imprudente no que dizia, como se possuísse algum poder oculto para protegê-la. Ela podia atrair homens para si com tanta rapidez e facilidade que só podia usar raízes mágicas. Ela podia tecer feitiços em torno do rei que, tendo finalmente percebido a maldade de sua esposa, estava agora tentando escapar de seu jugo. Ela havia trazido o Mal para a corte quando a ela chegara. Ela trouxera dor e humilhação para a rainha verdadeira e sua filha Maria. Jane podia chorar ao pensar na moça. E agora os feitiços de Ana estavam menos potentes, porque, embora ainda pudesse usá-los para atrair homens, não conseguia dar um filho ao rei. Isso era lógico, afinal as crianças vinham do céu e os poderes de Ana originavam-se do inferno. Ou pelo menos era assim que Jane via. Quando o rei a acariciava, ela fechava os olhos e dizia a si mesma:

"Preciso suportar isso, porque desta forma poderei salvar de uma bruxa nosso senhor o rei."

Ela rezava para que seu corpo fosse frutífero, porque assim poderia cumprir sua missão.

Ela pensava continuamente na princesa Maria. Ela a conhecera quando fora aia de Catarina, antes da chegada de Ana Bolena. Jane sempre deplorara a paixão louca do rei por Ana; secretamente, apoiara o lado de Catarina durante todos esses anos perigosos, e graças a isso conseguira a aprovação de Chapuys e de muitos nobres que condenavam o rompimento com Roma. Assim, eles tinham ficado satisfeitos quando ela despertara o desejo do rei, e haviam tentado ajudá-la e aconselhá-la.

Jane disse ao rei quando ele chegou:

- Estive pensando na princesa Maria.

- O que tem ela? - indagou com indiferença.

- Estive pensando nas provações de sua vida, e como foi lamentável ela ter sido expulsa da corte. Estive pensando se Sua Majestade não poderia aceitá-la de volta. Temo que ela sofra profundamente com a humilhação que lhe foi impingida.

O rei fitou-a com olhos estreitos. Ele disse, desesperado:

- Você é uma tola! Deveria solicitar promoção para as crianças que nascerem de nós dois, não para outras.

Depois que Henrique saiu, Jane assegurou-se que seu dever era resgatar o Chefe Supremo da Igreja Inglesa de uma meretriz que jamais iria libertá-lo nesta vida. E como Jane não imaginava outra forma de resgatá-lo que não fosse dando-lhe um filho, ela se ajoelhou ao lado de sua cama e rezou para que sua união com o rei desse frutos.

A rainha estava alegre. Os olhos enormes em seu rosto pálido, estava pródiga em sorrisos para todos a seu redor. O rei passava cada vez mais tempo com os Seymour, e não havia qualquer dúvida na mente de Ana de que Jane era sua amante; além disso, ela sabia que esse caso não era trivial; havia um significado profundo por trás dele. Aqueles dois irmãos de Jane eram ambiciosos; eles observavam e esperavam; a bem da verdade, a corte inteira estava esperando que alguma coisa acontecesse. A perda do menino de Ana, sussurravam eles, havia acabado com a rainha. Os cortesãos cínicos murmuravam:

- O rei está testando Jane? Se o rei está esperando para gerar uma criança antes de se divorciar de Ana, ele talvez tenha de esperar muito tempo!

Teria sido uma posição humilhante para qualquer pessoa; para Ana, foi agonizante.

"Isto aconteceu com Catarina enquanto eu e Henrique tentávamos conseguir o divórcio", pensou Ana "Isto aconteceu com Wolsey quando ele esperava sua queda. Deve ter sido isto que More e Fisher sentiram quando, em suas casas, esperavam por um destino que eles sentiam se aproximar, mas não sabiam de que direção viria."

Ana não era o tipo de pessoa que demonstrasse seu medo. Se durante as noites solitárias ela costumava acordar assustada, a fronte coberta de suor, tendo tido algum pesadelo no qual ela encontrava seu destino; se ela permanecia acordada por horas a fio olhando para a escuridão, pensando no rei com Jane Seymour, perguntando-se se seu marido alguma vez pensava nela, Ana jamais o demonstrava. Depois desses pesadelos, depois dessas vigílias noturnas, ela parecia tão alegre quanto sempre. Suas roupas ainda eram o centro das atenções da corte; ela se lançava fervorosamente ao planejamento de um novo vestido; não conseguia mais sentar-se em silêncio cosendo para os pobres, embora não os tivesse esquecido. Ela reunia em torno de si os rapazes e moças mais brilhantes. Assim como nos tempos em que Catarina ainda reinava e havia o grupo de Ana em oposição aos amigos sóbrios da rainha, agora havia o partido de Jane Seymour... mas a diferença era que o rei pertencia a ele. Os poetas e escritores orbitavam Ana, aparentemente sem se preocuparem em chamuscar suas asas. As festas de Ana ainda eram as mais glamourosas; comparadas a elas, as de Seymour eram banais e tediosas, mas a presença do rei sempre era garantida. O garboso Henry Norris, que supostamente estava apaixonado por Madge Shelton, comparecia apenas aos banquetes da rainha. As pessoas sorriam para esse homem que supostamente iria se casar com Madge mas estava sempre postergando as núpcias.

- Por que o pobre Norris faz isso? - perguntavam os cortesãos. - com certeza ele não espera se casar com a rainha!

Francis Weston e William Brereton, mais jovem e sofisticado, também eram encantados por Ana; Wyatt era-lhe fiel, como sempre. Ana encorajava suas atenções, encontrando grande conforto no amor desses homens, um bálsamo para o seu orgulho, que fora ferido tão severamente quando descobrira a preferência do rei pela insípida Jane Seymour. Ana parecia ter desistido de toda a sua prudência. Aceitava a homenagem que lhe era prestada por aqueles que a amavam; dançava e ria imoderadamente; estava mais alegre do que nunca, e suas expressões selvagens conferiam à sua beleza uma aparência estranha, que apenas a aumentava. Parecia que Ana queria atrair todos que a amavam para o seu lado, que apenas quando estava na companhia deles ela se sentia segura. Ela queria erguer uma muralha de amizade a seu redor. Ana tinha a seu lado, além de Madge Shelton, aquelas duas amigas, Margaret Lee e a irmã Mary Wyatt, em quem Ana depositava total confiança. Sua própria irmã Mary veio fazer-lhe companhia, e fazia-lhe bem contemplar a felicidade serena de Mary que, feliz em seu amor com Stafford, com quem se casara, era como uma lareira flamejante no inverno. Ana sentia-se segura com essas pessoas. Até Mark Smeaton, a quem ela promovera a um de seus músicos principais, podia demonstrar admiração apaixonada por Ana sem ser reprochado por isso.

Sempre havia aqueles que a observavam maliciosamente. Os olhos negros do embaixador espanhol encontravam-se com os do pároco geral do rei, e o espanhol adivinhava que pensamentos passavam pela cabeça feia e raspada de Cromwell. Jane Rochford estava agora francamente antipática com Ana, sem se preocupar se com isso provocava

a desaprovação de seu esposo.

Quanto a George, ele parecia ter sido contagiado pela imprudência de sua irmã. Agora ele raramente alertava Ana. Era como um homem que correra do perigo por muito tempo e agora, sentindo subitamente que não havia como fugir, desistia de correr.

Ana achava agradável sentar-se com George, Mary, Margaret Lee, Mary e Thomas Wyatt, para conversar sobre seus dias de infância antes que eles tivessem se separado e perdido contato uns com os outros.

Em certa ocasião, Ana disse:

- Lembro-me bem de como brincávamos juntos em Norfolk, e depois em Kent. Lembro de que todos falávamos sobre nossas ambições e o que iríamos ser.

George riu.

- A ambição é como a lua - filosofou. - Ela parece tão próxima, tão fácil de agarrar, mas, quanto mais você acha que se aproxima dela, mais distante descobre que ela está. A ambição é uma coisa muito perniciosa!

- Você disse que iria ser um grande poeta- disse Ana. - Wyatt também.

- Pelo menos ele alcançou sua ambição - disse George.

- Muito bem ela lhe fez! - disse Wyatt, olhando significativamente para Ana.

- Nós tivemos expectativas grandes demais - disse Ana. - Todos nós, exceto Margaret, minha irmã Mary e a sua irmã Mary. Elas foram as mais felizes.

Eles podiam olhar para essas três. Margaret, que estava casada e feliz com Sir Henry Lee; Mary Wyatt, que não tinha marido mas um semblante sereno; Mary Bolena, que tivera muitos amantes, não pelo lucro, mas pelo prazer. A ambição dessas três fora a felicidade; elas a tinham alcançado. Para os outros três a ambição fora o poder, e em certa medida eles também haviam conseguido. Ali estavam eles: Wyatt, cuja alegria residia em seus versos e, mesmo assim, jamais ficava satisfeito com eles, de modo que eles não podiam dar-lhe a felicidade completa; Ana, que quisera ser rainha e alcançara sua ambição, mas agora aguardava que alguém lhe anunciasse o desastre; George, que através da sorte de sua irmã conquistara a fama. Três daquelas crianças que tinham brincado juntas - as comuns, que não tinham sido inteligentes ou belas, ou nascidas para a grandeza - foram bem-sucedidas. Foram as inteligentes, que tinham sido ambiciosas demais- mas que de certa forma tinham tido seus desejos atendidos -, que conheceram o fracasso.

Ana disse:

- Nós escolhemos as coisas erradas; elas escolheram as certas.

E ninguém discordou de Ana, porque aquele era um assunto que todos eles consideravam terrivelmente desagradável.

O inverno daquele ano deu lugar à primavera. Ana dançava e cantava como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo. Ela perambulava pelo parque em Greenwich, observava as barcas singrarem o rio, sentava-se sob as copas das árvores. Às vezes ela brincava com os seus cães, rindo das estrepolias deles, mas, por trás de seu frenesi de alegria, seu coração estava triste e pesado. As vezes ela chorava e misturava lágrimas com risos; este era um estado de espírito perigoso, porque nele Ana não ligava para o que dizia ou fazia, e assim ficava à mercê de todos os seus inimigos. Ela chamava Smeaton e pedia que ele tocasse alguma coisa alegre, uma música que ela pudesse dançar, algo que a animasse. Queria ouvir músicas que falassem de amor e risos, não de tristeza. E os olhos grandes e negros do músico observavam-na apaixonados, enquanto seus dedos longos e ágeis tocavam para Ana, acalmando seu espírito.

Ana deu-lhe um belo anel, porque seu talento, disse ela, era grande e devia ser recompensado.

"Ele poderá vender o anel e comprar roupas bonitas", pensou Ana.

O pobre homem recebia pouca recompensa por seu trabalho. Mas Ana sabia que ele jamais iria vender o anel, porque ela o usara no dedo. E, ao pensar nisso, Ana ria, porque embora o rei a tratasse com indiferença, um músico pobre amava-a profundamente.

- Vamos! - gritava subitamente. - Façamos um baile de máscaras! Vamos nos divertir. Thomas, você e George colocam juntas as cabeças. Irei me divertir muito com isso. Mark, você tocará para dançarmos, e também para eu cantar. Vamos dançar e ficar alegres... Estou cansada de melancolia.

Alegando doença, Cromwell retirara-se da vida na corte durante vários dias. Precisava de solidão; ele tinha de planejar suas próximas investidas no jogo da política.

Ele não era um génio inspirado; tudo que pensara até hoje fora resultado de trabalho incessante, da paciência em dar um passo cauteloso e esperar até que seu pé estivesse bem apoiado antes de levantar o outro. Tinha total consciência de que se encontrava num momento de crise em sua carreira. Seu senhor dera-lhe uma ordem, e ele iria obedecer, ainda que a ordem não tivesse sido expressada com todas as letras. Governado por sua consciência, Henrique era incapaz de mencionar seus pensamentos mais vis; assim, era dever de um bom servo descobrir os desejos de seu senhor mesmo que nenhuma palavra tivesse sido trocada entre os dois. Assassinato é algo arriscado; antes de realizar os desejos do rei, Cromwell precisava considerar não o que era bom para o rei e o país, mas o que era bom para Cromwell. Cromwell tinha uma boa cabeça sobre um par de ombros fortes, e não tinha a menor intenção de separá-los. Quanto mais alto um homem subia, mais fácil era cair. Um passo em falso agora e ele cairia no vale escuro onde o esperavam o cepo e o machado do carrasco.

O imperador Carlos considerara que, agora que Catarina estava morta, ele podia renovar sua amizade com Henrique; fora por esse motivo que Chapuys tinha ido a Greenwich para uma audiência especial com o rei. Mas como Henrique podia tornar-se aliado de Carlos quando rompera tão definitivamente com Roma, e Carlos apoiava Roma? Roma, aparentemente, ficava entre o imperador e Henrique. Cranmer estava mais tenso do que a sua personalidade fria permitia. Cromwell não estava tão abalado quanto ele. Cranmer havia decidido que curso tomar, e era leal a esse curso; Cromwell estava disposto a examinar qualquer curso; ele usaria qualquer membro de qualquer religião conforme o necessário; ele iria apoiá-los num dia, queimá-los na fogueira no seguinte. Cromwell conseguia ver que existia alguma vantagem em um reatamento com o imperador; portanto, estava propenso a explorar esse curso de ação. Nessa época Cromwell estava muito ocupado saqueando os monastérios, mas ele sabia que se o imperador e Henrique deixassem de ser inimigos, essa situação poderia ser facilmente suspensa. Estava preparado para qualquer coisa.

Quanto a Ana, estava furiosa, e isso era natural. Uma possível reconciliação com o imperador era um insulto direto a ela. Ela fora excessivamente cautelosa em seu tratamento com Cromwell, jamais gostando dele ou confiando nele. Até agora Cromwell fora gentil, mas ele não acreditava que agora precisava tratar a rainha com tanta humildade assim. O rei insinuara que Jane Seymour estava grávida, e Cromwell precisava pensar no assunto muito seriamente. E se isso fosse verdade? E se houvesse uma necessidade para que Henrique se casasse com essa moça rapidamente para legitimar um possível herdeiro ao trono? O rei esperaria que Cromwell conseguisse essa proeza; e se Cromwell não a realizasse a tempo, o que aconteceria? Não fazia muito tempo, o rei desejara um divórcio com urgência, e o antecessor de Cromwell tinha fracassado. Cromwell estava preparado para lucrar com os erros do cardeal, pois estava resolvido a não cometer as mesmas falhas que Wolsey. Cromwell precisaria estar preparado. Era fácil ver que ele não precisava temer a ira da rainha Ana - principalmente se Jane estivesse de fato com uma criança no ventre. Este assunto secreto do rei estava sendo conduzido de forma bem diferente que aquele outro assunto secreto. Este consistia de uma série de insinuações e indiretas; a dama era tão recatada, tão envergonhada, que o rei precisava respeitar sua reserva. Ela não precisava sofrer - nem o rei através dela - a dor e o escândalo do divórcio. Como um homem podia se livrar de uma esposa que não quer, senão pelo divórcio?

Cromwell conhecia muito bem o velho fardo do rei: sua consciência. Sabia que era dada a mudanças drásticas e que sempre precisava ser aplacada. Mas também sabia o quanto era relativamente fácil aplacála; bastava mostrar-lhe o lado de um assunto que ela poderia aprovar, e esconder o lado que ela consideraria desagradável.

A consciência era serva do rei, podendo ser surda e cega quando a necessidade se apresentasse. Assim, Cromwell também não precisava perder seu sono por causa dessa criatura acomodada.

Cromwell decidira apoiar a aliança com a Espanha. O imperador era um aliado melhor do que Francis. A aliança com a França nunca provera lucros à Inglaterra. Henrique mostrara-se indócil na reunião - o que Cromwell e a maioria dos conselheiros consideraram deplorável. Mas o arguto Cromwell descobrira algo com isso: o rei ainda estava sob a influência de Ana.

Apesar de Jane Seymour, ainda dava ouvidos a Ana; apesar de Ana não ter conseguido dar-lhe um herdeiro, ainda a seguia como um cão segue uma cadela no cio. Essa fora uma conclusão alarmante. Cromwell conhecia seu senhor bem o bastante para entender que, se alguma coisa não fosse feita de imediato, Henrique iria descartar Jane Seymour, comprar novas relíquias sagradas, reconciliarse com a bruxa e iniciar mais uma empreitada para conseguir um filho. E se a rainha conquistasse novamente a estabilidade, o que aconteceria a Thomas Cromwell? O que acontecera a Thomas Wolsey! E isso não fora há tanto tempo assim para ser esquecido.

Cromwell sabia que era necessário que fosse realizada uma aliança com a Espanha, porque esse ato significaria a queda de Ana. Portanto, como fora desconcertante quando o rei insultara o imperador perante o próprio Chapuys, recordara tudo que ele fizera para postergar o divórcio, e proclamara que nem por uma centena de alianças ele iria se curvar perante Roma! Ele nomeara a si próprio chefe da Igreja, e chefe da Igreja ele iria permanecer. Se alguém deveria demonstrar humildade, esse alguém era o imperador Charles. Henrique chegara até mesmo ao cúmulo de dizer a Chapuys que ele acreditava que Francis tinha primazia sobre Burgundy e Milão.

Cromwell considerava essa postura uma completa estupidez. O rei não estava agindo com aquela perspicácia que era esperada de um estadista. Henrique ainda estava magoado com os insultos que recebera de Clemente, Paulo e Carlos. Ele não estava pensando no bem da Inglaterra. Henrique pensava apenas:

"Eles querem a minha amizade... eles, que se puseram contra mim; eles, que tramaram contra mim; eles, que me humilharam durante quatro anos!"

Ana dissera a Henrique:

- Ah! Então você é capaz de reatar a amizade com seus inimigos tão logo eles assobiem? Já esqueceu os insultos de Clemente? E por que ele nos insultou? Será que Clemente teria ousado fazer isso se não tivesse apoio? E por quem foi apoiado? Por quem senão esse Carlos que agora vem lhe pedir sua amizade, e de uma forma altamente arrogante! Oh, faça amigos, aceite seu papel humilde, esqueça os insultos a Sua Majestade, à sua rainha!

Henrique sempre temera a língua de Ana; ela sempre soubera encontrar o seu ponto fraco. Bem, ele sabia que Ana temia a aliança com a Espanha acima de qualquer outra coisa, afinal isso significaria sua derrota pessoal. Ainda assim, Henrique sabia que havia bom senso no que ela dissera. Esses homens tinham humilhado a ele e a ela, e quando Henrique fizera de Ana sua rainha, os insultos a ela passaram a ser insultos a ele. Esses homens haviam-no insultado duplamente!

De tudo isso Henrique se lembrara enquanto debatera com Chapuys, enquanto conversara com Cromwell e Audley - o chanceler que sucedera More. Cromwell e Audley haviam-no instado a engolir seu rancor e aproveitar a boa oportunidade. Mas não! Era o imperador que deveria procurá-lo humildemente. O egoísta estava ferido. Para curar suas feridas, Carlos precisava do bálsamo doce da reverência daquele que ele temia ser mais poderoso que ele próprio.

Cromwell, pela primeira vez numa longa associação obsequiosa, perdera a calma. Sua voz engrossara quando ele explicara seu ponto de vista a Henrique. Cromwell e o rei haviam gritado um com o outro.

- Perigo, Cromwell! Perigo! - alertara uma voz dentro de sua cabeça.

E ele tivera de pedir licença e se retirar para reaver o autocontrole. A discussão com o rei deixara-o tremendo dos pés à cabeça. Ele estava enjoado de medo e raiva.

Como seria simples para Henrique abandonar sua rixa com Roma! Que necessidade havia nisso, agora que Catarina estava morta? Apenas a gratificação dos sentimentos pessoais de Henrique! Ana e seus paladinos estavam por trás disso; eles queriam manter acesa a ira do rei. Será que a queda de Ana era uma condição apenas temporária?

Esses pensamentos incutiam grande terror no coração de Thomas Cromwell. Pela primeira vez em sua carreira com o rei, ele precisava agir sozinho. Assim, ele fingiu doença para se isolar do rei, para engendrar um plano, estudar seu efeito, sua reverberação, de todos os ângulos antes de ousar colocá-lo em prática.

Num dia ameno de abril, Cromwell emergiu de seu isolamento e pediu permissão para falar com o rei.

O rei lançou um olhar de desprezo para Cromwell, nunca tendo gostado dele, gostando ainda menos agora que lembrava do comportamento desse homem na última vez em que o vira. Ele, que sempre fora humilde e acomodado, ousando gritar com o rei, dizer-lhe que estava errado! Seria o humilde Thomas Cromwell, este secretário a quem ele fizera seu pároco-geral, um espião de Chapuys?

- Senhor, estou perplexo! - disse Cromwell.

Sua Majestade resmungou, ainda mantendo sua expressão de desgosto.

- Gostaria que Sua Majestade concedesse-me permissão para exceder os poderes dos quais desfruto agora.

Henrique olhou para seu servo com certa argúcia. "Por que não?", perguntou-se. Ele conhecia esse Cromwell: esperto como uma raposa, furtivo como um gato. Desde que conquistara um grande poder, ele pusera espiões por toda parte; se alguém queria saber alguma coisa, a forma mais simples era perguntando a Cromwell, que com rapidez e eficácia proviria a resposta Ele era o homem mais temido na corte. Um bom servo, pensou Henrique, embora irritante.

"E ainda chegará o dia em que ficarei tão irritado com seus modos rudes e seus métodos astutos, que mandarei remover-lhe a cabeça dos ombros... e depois sentirei remorsos, porque, por mais repelente que seja esse homem, tenho por certo que ele sabe o que faz", foi o comentário mental de Sua Majestade.

Cromwell poderia exceder seus poderes. Fez uma mesura e se retirou, satisfeito.

Algumas noites depois, ele convidou Mark Smeaton para jantar em sua casa em Stepney.

Quando recebeu um convite para jantar na casa do secretário do rei, Mark Smeaton ficou deliciado. Era de fato uma grande honra A rainha mostrara-lhe apreço, e agora aqui estava o secretário-chefe Thomas Cromwell em pessoa pedindo sua companhia!

"Provavelmente meu talento chegou ao conhecimento do secretário", pensou Mark, embora não soubesse que Cromwell tivesse gosto pela música.

Ele conhecia muito pouco a respeito de Cromwell. Ele o vira de vez em quando na corte, seus olhos frios vasculhando cada canto. Cromwell causara-lhe arrepios; Mark ouvira dizer que ninguém era considerado pouco importante para ser do interesse desse homem. Ele sabia muito a respeito da maioria das pessoas, e geralmente assuntos que elas prefeririam manter em segredo. E Cromwell armazenava cada pedacinho de informação que colhia, guardando-o até juntá-lo a outro pedacinho de informação, desta forma montando um quadro fiel do que ocorria na corte.

Mark nunca estivera tão feliz quanto no último ano. Ele começara a vida humildemente na cabana de seu pai. Ele observara seu pai trabalhar consertando cadeiras e outras coisas que as pessoas julgavam merecedoras de reparos. Ele ouvira música na serra e na plaina de seu pai; ele ouvira música na roca de sua mãe. Mark nascera com dois grandes talentos: beleza e amor pela música. Ele tinha um rosto pequeno, angular, com olhos negros grandes e luminosos, e cabelos que pendiam em cachos sobre seu rosto; suas mãos eram delicadas, seus dedos eram finos; a sua pele era bem branca. Ele dançava graciosamente desde seus tempos de menino, embora jamais tivesse recebido uma lição. Ele fora notado, e levado para a casa de um cavaleiro vizinho. Ali, ensinara a filha do cavaleiro a tocar diversos instrumentos musicais; depois que a moça se casara, seu benfeitor conseguira-lhe um lugar na corte... um lugar humilde, a bem da verdade. Ainda assim, Mark considerava-se abençoado por ter conseguido sua atual posição. Ele vira mendigos passarem pela porta de seu pai sem nada para comer, com os pés ulcerados e sangrando; mas esse não seria o destino de Mark! Uma posição na corte; o que viria em seguida?

Realmente, o futuro era-lhe promissor. Ele nunca soubera o quanto a vida poderia ser bela até o dia em que a rainha passara tão perto dele que Mark vira com clareza seus cílios longos, sua pele sedosa, e ouvira-a cantar, baixinho, para si, com a voz mais linda. Mark nem sabia como conseguira tocar nesse momento, tão profunda fora sua emoção.

Ela não apenas era o seu ídolo; era a sua benfeitora. Mark ainda era um adolescente, naquela idade em que era possível adorar de longe algum objeto reluzente, e estar completamente satisfeito com essa situação, ser amplamente recompensado por um sorriso; e a rainha era generosa com seus sorrisos, especialmente para com aqueles que a agradavam... e quem podia agradá-la mais prontamente do que aqueles que tocavam com virtuosismo as músicas que ela amava?

Às vezes a rainha chamava-o para tocar quando se sentia triste. Ele vira os olhos da rainha cheios de lágrimas - que ela sempre se apressava em enxugar. Nesses momentos ele sentira vontade de se atirar a seus pés e dizer: "Se Sua Majestade ordenar que eu morra, farei isso de bom grado!"

Mas isso seria uma tolice, porque que benefício ela poderia obter com a morte dele? Corriam rumores pela corte, e achando que conhecia a causa da infelicidade da rainha, ansiava por confortá-la. Ele podia fazê-lo com sua música, e tocava para a rainha de uma forma que nunca tocara antes em sua vida. Ela estava tão satisfeita com seu trabalho que lhe dera um anel com um rubi, uma peça muito valiosa que ele nunca, jamais, iria remover do dedo.

Isso fora há poucas semanas, e agora, enquanto pensava no convite para jantar em Stepney, Mark teve a impressão de que os eventos estavam se sucedendo com tanta velocidade em sua vida que ele não tinha como adivinhar para que direção apontavam.

Havia muitos ao redor da rainha que a amavam e não se esforçavam em ocultar seu amor. Tocando o cravo perto da rainha, Mark ouvira-os conversar com ela. Havia Sir Henry Norris, cujos olhos jamais se afastavam de Ana; ela sempre fingia repreendê-lo por sua imprudência, visto que supostamente ele estava apaixonado pela prima de Ana, Madge Shelton, embora sempre estivesse ao lado da rainha. Havia também Brereton e Weston, a quem ela admoestava alergremente, como se insinuasse que a repreensão não era para ser levada a sério. Havia Wyatt, com quem ela trocava provocações; eles riam juntos, embora fosse impossível não notar a tristeza em seus olhos quando fitavam um ao outro. Quanto ao próprio Mark, ele era apenas um rapaz de berço humilde, inadequado a ser companheiro daqueles senhores tão nobres e sua rainha. Ainda assim, ele não conseguia conter suas emoções nem ocultá-las completamente, e Ana podia perceber os sentimentos do rapaz e tratá-lo com mais indulgência por causa deles.

Dois dias antes de Mark receber o convite, Brereton não comparecera à câmara de visitas. Ele ouviu os nobres especulando sobre o que acontecera com ele. Ele o vira na barcaça... indo para onde? Ninguém tinha certeza.

- Ele deve estar envolvido em alguma aventura animada - disse a rainha. - Precisaremos extrair uma confissão de William quando ele se apresentar!

E ela ficara amuada, ou fingira ficar, Mark não tivera certeza Ele nunca tinha muita certeza sobre nada com relação à rainha. Quando a via rir com alegria excessiva, Mark tinha a impressão de que ela estava à beira das lágrimas.

Ela o encontrara sentado no assento de janela, viola sobre o colo. A rainha dissera com sua voz suave:

- Mark, como você parece triste! Conte-me o motivo.

Ele não podia dizer-lhe o que estivera pensando. Ele era apenas um menino bobo, um menino cujo pai era um carpinteiro, um menino que chegara longe devido à sua habilidade musical, e estar no apogeu de sua vitória podia ser melancólico porque ele amava a rainha.

Ele disse que não havia importância no motivo de sua tristeza; afinal por que a tristeza de um músico humilde seria do interesse de uma dama tão emérita?

A rainha dissera que achava que ele poderia estar triste porque ela falava com ele como uma pessoa inferior, e deveria ser de seu desejo que ela se dirigisse a ele como se fosse um nobre.

Ele se curvou até o chão, muito embaraçado, e murmurou:

- Não, não, minha dama Estou muito satisfeito com a forma como sou tratado.

Isso fora perturbador, porque ela talvez estivesse lhe dizendo que sabia de sua ridícula paixão. Ela era inteligente e sensível; como seria possível esconder dela um segredo?

No dia seguinte ele pegou a barcaça para Stepney. A casa de Cromwell ficava um pouco afastada do rio que banhava seu jardim. Smeaton saltou da barcaça e galgou os degraus particulares até o jardim. Alguns anos atrás ele teria ficado embasbacado com o esplendor da casa à sua frente, mas agora estava acostumado a Greenwich, Windsor e Hampton Court. Ele notou a habitação como uma mera casa confortável à margem do rio.

Passou pelos portões e atravessou o pátio. Bateu na porta e um serviçal veio abri-la. Ele poderia entrar? Ele era esperado. O rapaz foi conduzido através do grande salão até uma pequena câmara e convidado a se sentar. Ele fez isso, escolhendo uma cadeira próxima à janela, através da qual admirou o sol cintilando nas águas do rio, pensando que lugar agradável era aquele.

A porta deve ter sido aberta tão silenciosamente que ele levou algum tempo para perceber que não estava mais sozinho. Thomas Cromwell estava parado no pórtico. Em seu rosto pálido seus olhos brilhavam, como se ardendo com alguma excitação. Decerto não devia estar empolgado com a visita de um humilde músico da corte! Mas estava. Isso foi decididamente lisonjeiro. Na corte havia muitos que temiam esse homem. Mark costumava notar que quando ele entrava as palavras morriam nas bocas das pessoas, que logo tratavam de pensar num assunto inócuo. Por que o grande Thomas Cromwell mandara chamar Mark Smeaton?

Mark percebeu que a casa estava imersa num silêncio lutuoso. Pela primeira vez desde que recebera este convite Mark começou a se perguntar se talvez não tivesse sido como amigo que Cromwell o convidara. Ele sentiu as palmas das mãos úmidas com suor; estava tremendo tanto que se o secretário lhe pedisse para tocar um instrumento, ele por certo não o conseguiria.

Cromwell adentrou a sala.

- Foi bom que você tenha vindo tão pronta e pontualmente disse ele.

Mark respondeu, muito humilde:

- Quero que o senhor saiba, milorde, que de forma alguma sou insensível à honra...

Cromwell meneou suas mãos grossas e pesadas, como se estivesse dizendo: "Cale-se!" Era um homem rude; jamais cultivara modos corteses, mas não ligava para as críticas que alguns faziam a seus modos. A rainha não gostava dele, estando sempre a olhar na outra direção quando ele estava presente; ele não dava a mínima para isso. O rei podia gritar com ele, chamá-lo de camponês e mendigo; Thomas Cromwell não ligava para isso também. Palavras jamais o machucavam. Tudo com que ele se importava era em sustentar sua posição neste reino, e assim manter sua cabeça no lugar onde era mais natural que ela ficasse. Ele caminhou silenciosamente e, sendo muito gordo, deu a impressão de que estava fazendo algum esforço. Mais uma vez Mark percebeu o silêncio que o cercava, e sentiu um desejo insano de saltar pela janela, correr através do jardim até o píer particular e pegar uma barcaça que descesse o rio... não, não de volta para a corte onde jamais ficaria a salvo do olhar frio desse homem, mas de volta para a cabana familiar, onde poderia ouvir os sons de seu pai serrando madeira e sua mãe manejando a roca.

Ele ia se levantar, mas Cromwell fez-lhe um gesto para que permanecesse sentado e parou a seu lado.

- Você tem mãos bonitas e agradáveis, Smeaton. Não são do tipo que chamam de mãos de músico? - As mãos do próprio Cromwell eram enrugadas como pele de peixe. Ele levantou uma das mãos de Mark e fingiu estudá-la de perto. -E que anel bonito! Uma jóia muito valiosa. A pedra é um rubi, não é? Você é um jovem muito afortunado por possuir um anel como esse.

Smeaton olhou para o anel em seu dedo, e sentiu seu rosto corar até quase a cor da pedra. Havia algo penetrante nos olhos frios desse homem; Mark não gostou de vê-los tão de perto. Os dedos grandes, desajeitados, tocaram a pedra.

- Foi um presente, Smeaton? Mark balançou a cabeça.

- Gostaria de saber quem o deu.

Mark tentou ocultar a verdade. Dava-lhe asco ver aquelas mãos frias tocarem o anel. Ele não podia dizer a esse homem repulsivo: "Foi um presente da rainha." Portanto, ficou calado, e os dedos de Cromwell apertaram o pulso do jovem.

- Você não respondeu. Diga-me, quem lhe deu esse anel tão valioso?

- Foi... um dos meus mecenas... um que gosta como eu toco.

- Posso perguntar se foi um homem... ou uma dama? Mark moveu as mãos para debaixo da mesa.

- Um homem - mentiu.

Os braços de Mark foram agarrados com tanta brutalidade que ele quase deixou escapar um gemido; as mãos de Cromwell eram fortes, e Mark era frágil como uma menina.

- Está mentindo - afirmou Cromwell, a voz baixa e suave como seda

- Eu... não... Eu juro... Eu...

- Irá me dizer quem lhe deu o anel?

Mark se levantou.

- Senhor, vim a esta casa porque recebi um convite para jantar. Eu não tinha a menor ideia de que teria de responder às suas perguntas.

- Você veio para jantar - disse Cromwell, absolutamente inexpressivo. - Bem, menino, quando irá jantar é algo que depende do quão prontamente responder às minhas perguntas.

- Eu não sei sob qual autoridade... - balbuciou o pobre rapaz, à beira das lágrimas.

- Sob a autoridade do rei, seu estúpido! E agora, irá responder às minhas perguntas?

Um filete de suor escorreu pelo nariz de Smeaton. Nunca em sua vida ele estivera cara a cara com a violência. Todas as vezes em que mendigos tinham passado pela porta de seu pai, e que ele vira homens no pelourinho ou pendendo no cadafalso, Smeaton tinha olhado para o outro lado. Era incapaz de presenciar qualquer coisa inquietante. Era um artista; quando via dor, afastava-se dela e tentava conjurar música em sua cabeça para dispersar os pensamentos infelizes. E agora, olhando para Cromwell, percebeu que estava cara a cara com alguma coisa da qual era impossível desviar os olhos.

- Quem lhe deu o anel? - inquiriu Cromwell.

- Eu... eu lhe disse...

Smeaton cobriu o rosto com as mãos, escondendo as lágrimas que começam a brotar de seus olhos. Além disso, não conseguia mais olhar para o rosto frio e brutal que o confrontava.

- Comecemos! - disse Cromwell. - Preparados?

Mark descobriu os olhos e viu que não estava mais a sós com Cromwell. Dois homens grandes, vestidos como serviçais, ladeavam-no. Nas mãos de um deles havia uma corda e uma vara.

Cromwell fez um sinal com a cabeça para esses homens. Um deles segurou Smeaton de modo a paralisá-lo. O outro colocou a corda em torno da cabeça do rapaz, fazendo um laço através do qual introduziu a vara.

- Aperte a corda quando eu mandar - comandou Cromwell. Os olhos do rapaz estavam arregalados de terror; eles imploraram a Cromwell: "Não me machuque; eu não conseguirei suportar! Eu não consigo suportar dor física... nunca consegui..."

Cínicos, os olhos de Cromwell fitaram sua vítima. Um dos dedos grossos puxou a ponta de seu gibão.

Um gibão muito requintado... requintado demais para um músico. Diga-me, de onde veio esse belo gibão?

- Eu., eu...

- Aperte a corda - ordenou Cromwell.

A corda afundou na pele pálida da testa de Mark. Ele teve a impressão de que sua cabeça estava prestes a explodir.

- O gibão... de onde ele veio?

- Eu... eu não entendo...

- Mais forte... mais forte! Não tenho o dia inteiro para perder com alguém como ele.

Alguma coisa estava escorrendo pelo seu rosto, uma coisa quente e pegajosa. Ele podia vê-la sobre o seu nariz, imediatamente abaixo de seus olhos.

- Quem lhe deu o gibão? Aperte a corda, seu tolo!

Mark gritou. Sua cabeça latejava de dor; pontos negros, como notas musicais, dançaram diante de seus olhos.

- Por favor... pare! vou contar... sobre o gibão... Sua Majestade...

- Sua Majestade! - disse Cromwell com um sorriso súbito. Afrouxe a corda. Traga-lhe um pouco dágua. Sua Majestade...

- Sua Majestade pensou que eu estava maltrapilho, e como eu iria ser o seu músico, deu-me dinheiro para comprar o gibão.

- A rainha lhe deu dinheiro... - um dedo grande e frio apontou para o rubi. - E o anel...?

- Eu...

- A corda, idiota! Aperte! Vocês foram brandos demais com ele...

- Não! -gritou Mark - Você disse... água...

- Então, quem lhe deu o anel?

- A rainha.

- Traga-lhe água. A rainha deu a você o anel de rubi.

Mark bebeu; a sala estava girando a seu redor; o teto parecia ter afundado. Ele podia ver o rio através da janela... parecia desbotado e distante. Ouviu um canto vindo de uma barcaça que passava.

"Ah, se eu estivesse lá!", pensou Mark.

- Quero saber por que a rainha lhe deu o seu rubi. Essa era uma pergunta fácil.

- Ela ficou satisfeita com a minha música... ela é uma dama muito generosa.

- Extremamente generosa em seus favores, garanto! Sentiu-se enojado. Essa não era forma de falar sobre a rainha. Quis se levantar, empurrar para longe aquele rosto cínico e sorridente, correr para o ar fresco, fugir para a rainha.

- Você foi muito amistoso com a rainha?

- Ela foi muito graciosa...

- Vamos, nada de evasivas! Você sabe muito bem do que estou falando. A rainha deu-lhe dinheiro, roupas e um anel de rubi. Bem, por que não? Ela é jovem, você também. Você é um rapazinho muito bonito.

- Não estou entendendo...

- Subterfúgios não irão ajudá-lo. Você está aqui, sob o comando o rei, para responder perguntas. Você é o amante da rainha!

O choque dessas palavras fez a cabeça de Smeaton latejar de novo. Ele ainda podia sentir a pressão da corda em sua cabeça, embora na verdade ela estivesse completamente frouxa agora; a tortura fora interrompida por enquanto. Ele se sentiu muito mal; o sangue ainda estava escorrendo pelo seu rosto a partir do corte feito pela corda. Oh, por que ele aceitara o convite para jantar com Thomas Cromwell! Agora ele sabia por que as pessoas falavam com medo a respeito de Cromwell. Agora ele sabia por que elas paravam de falar quando Cromwell aparecia.

Cromwell bateu na mesa com os nós dos dedos.

- Aperte a corda.

- Não! - gritou Mark.

- Agora. Fale a verdade, ou será pior. Você é o amante da rainha. Você cometeu adultério com a rainha. Responda! Responda que sim!

- Não! - choramingou Mark.

Ele não podia mais suportar aquilo. Estava gritando de dor. Tinha a impressão de que seu sangue estava batendo contra a parede interna de sua cabeça, ameaçando esguichar para fora dela. Seu nariz também estava sangrando. Ele alternava gemidos e gritos.

- Precisa dizer a verdade - disse Cromwell. - Precisa admitir esse crime que você e ela cometeram.

- Eu não cometi nenhum crime! Ela... ela... é uma rainha... Não, não! Por favor... por favor... eu não aguento mais... eu não...

Um dos homens colocou vinagre debaixo de seu nariz, e Mark percebeu que ele desfrutara de um ou dois segundos de abençoada inconsciência.

Cromwell segurou o queixo do rapaz e balançou sua cabeça violentamente, fazendo com que Mark tivesse a impressão de que uma centena de facas afundavam em seu crânio.

- Isto não é nada em comparação com o que virá em seguida, se não responder às minhas perguntas. Admita que cometeu adultério com a rainha.

- Isso seria uma inverdade...

Cromwell bateu o punho cerrado na mesa; o barulho foi como um golpe de martelo na cabeça dolorida de Mark.

- Cometeu adultério com a rainha... Mais forte... mais forte, seus idiotas! Mais forte...

- Não! - gritou Mark.

E então o cheiro de vinagre, misturado a sangue, disse-lhe que estivera inconsciente de novo.

- Eu não posso... eu não posso...

- Escute! - rosnou Cromwell. - Cometeu adultério com a rainha... - A mão enorme de Cromwell se levantou e tomou o bastão das mãos de seu servo. - Admita! Admita! Cometeu adultério com a rainha. Cometeu adultério com a rainha... Admita! Admita!

Mark gritou.

- Qualquer coisa... qualquer coisa... por favor... eu não posso... eu não posso... suportar... minha cabeça...

- Admite, então?

- Eu admito...

- Cometeu adultério com a rainha...

Ele estava chorando, e suas lágrimas mesclaram-se com sangue e suor... e aquele cheiro odioso de vinagre não o deixava soçobrar para a paz. Ele desejara morrer por ela, mas ele não podia suportar um pouco de dor por ela. Um pouco de dor! Mas era uma tortura tão terrível! Sua cabeça estava latejando, sangrando. Jamais imaginara que podia haver agonia como aquela.

Cromwell disse:

- Ele admite adultério com a rainha. Leve-o daqui.

Os homens tiveram de carregá-lo, pois, quando se levantou, Mark não pôde ver nada senão um borrão no lugar das paredes, luz vindo da janela e uma miscelânea de rostos cruéis. Ele não conseguiu ficar em pé. Carregaram-no para uma câmara escura e o deixaram lá dentro, trancado. E enquanto afundava para o chão, perdeu a consciência uma vez mais.

Ficou deitado ali, meio desmaiado, não ciente da cela ou mesmo do que acontecera antes. Não sabia nada, exceto que existia uma dor que o estava enlouquecendo, e que ficava em sua cabeça. Sentiu um gosto de sangue na boca; o cheiro de vinagre estava forte em suas roupas, diabolicamente não permitindo que ele descansasse naquele mundo escuro que tanto desejava alcançar.

Estava semiconsciente, achando que se encontrava na cabana do pai, achando que estava sentado aos pés da rainha, e a escuridão que ele desejava eram os olhos dela, negros como a noite, belos e piedosos.

Mas agora alguém batia com um martelo em sua cabeça, e isso o estava machucando abominavelmente. Acordou gritando, e subitamente entendeu que não estava na cabana do pai, nem aos pés da rainha; estava numa sala escura na casa de Thomas Cromwell em Stepney, e tinha sido torturado... e o que ele dissera? O que ele dissera?

Ele havia mentido. Ele havia mentido sobre aquela por quem teria morrido! Soluços fizeram tremer seu corpo esguio. Ele iria dizer a seus algozes... iria dizer que tinha mentido para eles. Ele iria explicar: sentia tanta dor que nem percebi o que disse. "Ela é uma dama bondosa. Como eu pude dizer semelhante coisa a seu respeito! Como pude aviltar dessa maneira a rainha? E a mim mesmo? Mas não tolerava mais a dor em minha cabeça... era enlouquecedor. Não podia mais aguentar a tortura, Sua Mui Graciosa Majestade! Por esse motivo eu menti."

Ele precisava rezar para pedir forças. Precisava fazer alguma coisa, mas precisava explicar que havia mentido. Ele não podia deixar que eles acreditassem...

Ficou ali deitado, gemendo na escuridão, já esquecido da dor física porque se arrependia sinceramente do que fizera.

"Mesmo que eu lhes assegurasse que não fiz aquilo, eu já o disse... eu falhei para com ela."

Quase ficou feliz quando os viu novamente. O homem cruel estava com eles.

Mark babulciou:

- Eu menti... não fiz nada daquilo. A dor era grande demais para mim.

- Consegue se levantar? - indagou Cromwell num tom quase solícito.

Ele conseguiu se levantar. Sentia-se melhor. A cabeça doía terrivelmente, mas a vertigem pavorosa já passara. Sentia-se fortalecido. Não importava o que eles fossem fazer com ele, Mark não diria mais mentiras. Estava preparado para ir para o cadafalso pela rainha.

- Por aqui - instruiu Cromwell.

O ar gelado soprou seu rosto, fazendo seus ferimentos arderem. Ele cambaleou, mas os homens o ampararam. Estava tonto demais para adivinhar para onde o levavam. Conduziram-no pelas escadas do cais particular até uma barcaça.

Sentiu a brisa do rio. Sentiu o cheiro de rio, piche e sal marinho misturados a sangue e vinagre. Sentia-se firme de propósito. Via a si mesmo indo para o cadafalso em benefício da rainha. Mas primeiro ele precisava esclarecer para essas pessoas que ele mentira, que apenas sob uma tortura tão assustadora, tão enlouquecedora, ele poderia mentir a respeito da rainha Ana.

O rio estava tenebroso; a noite era alta. A barcaça foi levada para a margem. Mark foi empurrado e ordenado a sair. Sobre ele avultava-se uma torre cinza, sombria. Mark foi conduzido pela ponte de pedras. Iam encarcerá-lo na Torre! Sentiu-se repentinamente enjoado; a visão da Torre provocava-lhe isso. O que iria acontecer agora? Por que o levavam para a Torre? O que ele fizera? Ele aceitara dinheiro, aceitara um anel; esses tinham sido presentes de uma rainha que se deleitara com sua música. Ele não cometera qualquer crime.

- Por aqui - disse Cromwell.

Uma porta foi destrancada; passaram por ela. Estavam numa passagem escura de paredes lodosas; e um odor malsão ascendia das profundezas da escada espiral que o grupo estava agora descendo.

Um homem munido de uma lanterna apareceu. Suas sombras delinearam desenhos grotescos nas paredes.

- Sigamo-lo - disse Cromwell, quase gentil.

Estavam numa das muitas passagens que corriam debaixo da grande fortaleza. O lugar era úmido e lodoso; filetes de água corriam pelo assoalho de terra batida, e ratos debandavam quando as pessoas se aproximavam.

- Smeaton, você está na Torre de Londres.

- Eu já tinha percebido isso. Por que fui trazido para este lugar?

- Saberá muito em breve. Nesse ínterim, terei o prazer de mostrar-lhe o lugar.

- Prefiro sair daqui. Quero que saibam que quando eu disse... quando eu disse o que disse... eu menti...

Cromwell levantou um dedo grosso.

- Um lugar interessante, esta Torre de Londres. Achei que gostaria de conhecer o lugar antes de prosseguirmos nossa entrevista.

- Eu... não estou entendendo...

- Escute! Ah! Estamos mais perto das câmaras de tortura. Como esse infeliz geme! Provavelmente está desfrutando do ecúleo, um dispositivo que estica o corpo do prisioneiro. Néscios! Se respondessem às perguntas que lhes fazemos, tudo estaria bem para eles.

Mark vomitou de repente. O odor do lugar revoltava-lhe o estômago, sua cabeça latejava, ele estava sofrendo muita dor, e sentia dificuldade de respirar neste espaço confinado.

- Você ficará melhor depois - garantiu Cromwell. - Este lugar exerce um efeito forte naqueles que o visitam pela primeira vez. Olhe! Alguém se aproxima...

Cromwell puxou Mark para um canto da passagem. Gritos incompreensíveis, como os de um louco, ficaram mais altos.

Forçando os olhos, Mark percebeu que os gritos provinham de uma cabeça ensanguentada, pertencente a um homem que se aproximava; caminhava entre dois homens fortes usando uniformes de guardas da Torre, que a um só tempo apoiavam-no e continham-no. Mark engoliu em seco, horrorizado; não conseguia desviar os olhos da coisa abominável que deveria ter sido uma cabeça; sangue escorria dela, empapando as roupas de Mark; quando o homem passou, roçou o rapaz, debatendo-se, disposto a findar sua agonia golpeando a cabeça contra a parede.

A voz de Cromwell roçou sedosa no ouvido de Mark.

- Cortaram-lhe a orelha. Pobre idiota! Aposto que ele achou muito inteligente repetir o que ouviu a respeito da honra do rei.

Mark não conseguiu se mover; teve a impressão de que suas pernas estavam enraizadas naquele lugar horrendo; esticou um braço para se apoiar na parede pegajosa.

- Prossigamos - disse Cromwell, empurrando Mark.

A visita continuou. Mark estava estarrecido com o que via.

"Estou sonhando", pensou. "Não pode estar acontecendo; jamais poderia haver coisas como estas!"

Celas começaram a se alinhar na passagem. Cromwell mandou o homem iluminá-las com sua lanterna, para que Mark visse com os próprios olhos o que acontecia àqueles que desagradavam o rei. Mark olhou; viu homens mais mortos que vivos, roupas esfarrapadas cobertas de vermes, ossos ressaltados por baixo das peles. Esses homens gemiam e piscavam, protegendo os olhos daquela luz fraca, e seus grilhões faziam coro com seus choramingos. Mark viu coisas que antes haviam sido homens, mas eram agora meros ossos acorrentados. Viu morte, e sentiu seu odor. Viu homens restritos no Parco Alívio, tão paralisados por essa forma de confinamento que, quando Cromwell mandou um deles sair, embora seu rosto tenha se iluminado de alívio súbito, o homem não pôde se mover.

A lanterna iluminou os poços sombrios onde ratos nadavam e guinchavam num coro feroz enquanto lutavam entre si por mais um moribundo. Viu homens ensanguentados e dilacerados serem retirados das câmaras de tortura; escutou seus gemidos, viu suas mãos e pés ensanguentados, seus dedos mutilados dos quais as unhas tinham sido arrancadas, suas bocas disformes das quais os dentes haviam sido extraídos brutalmente.

- Essas masmorras foram muito utilizadas durante o reinado da maior parte de nossos reis cristãos - explicou Cromwell. - Sempre haverá tolos para arriscar a sorte. Venha, Smeaton, chegamos ao nosso destino.

Estavam numa câmara mal iluminada que, aos olhos aturdidos de Mark, parecia fervilhar com formas grotescas. Notou primeiro a mesa, porque nessa estava sentado um homem, e diante dele materiais de escrita. Sentiu em meio àquela atmosfera abjeta o odor repentino de vinagre, e o efeito imediato disso - tão reminiscente de sua dor - foi fazê-lo vomitar. No centro dessa câmara havia um pilar de pedra pesado do qual se projetava uma longa barra de ferro, e ao seu redor uma corda no fim da qual havia um gancho. Mark olhou intrigado para esse aparato, até Cromwell direcionar o olhar do rapaz para o instrumento de tortura alcunhado de Filha do Coveiro. Era uma construção simples, semelhante a um aro de ferro amplo, que por intermédio de um sistema de roscas, podia ser apertado em torno do corpo da vítima.

- Nossa Filha do Coveiro! - apresentou Cromwell. - Nenhum homem gosta do abraço desta vadia. É muito diferente, Smeaton, da sensação proporcionada pelos braços daquela

que muitos consideram a mais bela das damas da corte!

Mark fitou seu algoz como um coelho olharia para uma estola de pele. Estava petrificado, e embora quisesse gritar, correr, jogar-se contra as paredes num esforço para se matar - como aquele outro pobre coitado havia feito -, ele nada podia fazer senão ficar parado ali, olhando para os instrumentos de tortura que Cromwell mostrava-lhe.

- As manoplas, Smeaton! Um homem as veste e então fica dependurado... Quer experimentá-las? Não? Muito bem. Eu estava dizendo... elas são afixadas naquele gancho ali. Um homem fica dependurado ali por dias, numa tortura que você não pode imaginar... ainda. E tudo por não responder a algumas perguntas civilizadas. A estupidez dos homens não tem fronteiras, Smeaton!

Mark estremeceu, e o suor desceu correndo pelo seu corpo.

- As roscas de dedo, Smeaton! Veja, há sangue nelas. A Coleira Espanhola... veja esses pregos! Não são agradáveis quando premidos contra a carne. Você gostaria de ser obrigado a usar essa coleira por dias a fio? Mas não, você não seria tão insensato, Smeaton. Creio que você é um homem culto. É um músico, tem mãos de músico.

Não seria uma pena se essas mãos lindas fossem enfiadas nessas manoplas? Dizem que alguns homens perderam a habilidade manual depois de ficarem pendurados naquela haste.

Mark estava tão trémulo que não conseguia mais ficar de pé.

- Sente-se ali - disse Cromwell, e se sentou com Mark.

Recuperando sua compostura até certo ponto, Mark olhou em torno. Estavam sentados numa armação de madeira na forma de uma cuba, grande o bastante para conter um corpo humano. Em cada extremidade dessa armação estavam fixados sarilhos através dos quais podia ser passada uma corda.

Smeaton gritou alto:

- O ecúleo!

- Muito inteligente, Smeaton. Adivinhou corretamente. Mas não tema. Você é um rapaz sensato. Responderá as perguntas que eu lhe fizer, e não precisará ser submetido ao ecúleo ou à sua irmã, a Filha do Coveiro.

A boca de Mark estava seca, e sua língua era grande demais para ela.

- Eu... eu não posso... eu menti...

Cromwell levantou uma das mãos. Dois homens fortes apareceram, e pousando suas mãos no rapaz trémulo, começaram a despi-lo.

Mark tentou visualizar o rosto da rainha: podia vê-la claramente. Ele precisaria manter essa imagem à sua frente, a despeito do que eles fossem lhe fazer. Se ao menos ele pudesse recordar o seu rosto... se...

Ele estava quase desmaiando quando o deitaram na armação e apertaram os laços das cordas em seus pulsos e tornozelos.

O rosto de Cromwell estava perto do dele.

- Smeaton, eu não quero que façam isso com você. Não sabe o que acontece com os homens submetidos ao ecúleo? Alguns perdem a razão. Alguns nunca mais conseguem caminhar.

É uma dor que você não conseguiria imaginar, Smeaton. Apenas responda às minhas perguntas.

Fez um gesto com a cabeça para que seus assistentes ficassem a postos.

- Smeaton, você cometeu adultério com a rainha.

- Não!

- Você admitiu isso. Admitiu isso em Stepney. Não pode negar.

- Fui torturado... a dor... era grande demais.

- E fez você admitir a verdade. Pensei que havia lhe deixado claro que aquilo que você sentiu até agora não foi nada. Você está no ecúleo, Smeaton. Basta um sinal meu e esses homens começarão a operá-lo. Responderá às minhas perguntas?

- Eu menti... eu não cometi...

Podia ver nítido o rosto da rainha, sorrindo-lhe; seus olhos eram grandes fontes de escuridão abençoada. Perder-se nessa escuridão seria morrer, e a morte seria o fim da dor.

- Comecem - comandou Cromwell.

Os sarilhos foram virados para fora... Smeaton sentiu seu corpo sendo rasgado; ele gritou, e prontamente perdeu a consciência.

Vinagre. Esse cheiro odioso que não deixava um homem descansar.

- Admita, Smeaton! Você cometeu adultério com a rainha.

Ele ainda podia ver o rosto de Ana, mas agora estava borrado.

- Você cometeu adultério com a rainha...

Não havia nada além da dor, dor como mil agulhetas aquecidas varando seus braços e pernas. Pôde sentir suas juntas rangerem; achou que estavam prestes a quebrar.

Começou a gemer.

- Sim, sim... sim... qualquer coisa... Mas eu...

- Basta! - ordenou Cromwell, e o homem na mesa escreveu.

Mark estava chorando. Teve a impressão de que eles tinham derramado o vinagre maldito em seu rosto. Eles o espargiam com a brocha que ele vira pendurada na parede, adicionando dores novas em sua cabeça ensanguentada, fazendo-o encolher o corpo, o que, por sua vez, fê-lo gritar de novo, porque cada movimento era uma tortura aguda.

A voz de Cromwell pareceu vir de longe, muito longe.

- Há outros além de você, Smeaton.

Outros? Ele não sabia do que esse homem estava falando. Não sabia de nada além da dor, a dor excruciante que se derramava pelo seu corpo. Era como se tesouras quentes cortassem-lhe a carne; era essa toda a dor que ele acreditava existir; era essa toda a dor do mundo. E quanto maior a dor do corpo... maior a dor da mente. Porque ele dissera que morreria por ela, e a havia traído; ele mentira; mentira sobre ela; dissera coisas vergonhosas sobre ela porque... ele... ele era incapaz de suportar a dor.

- Quais são os nomes? - inquiriu Cromwell.

- Eu não conheço... nomes.

O vinagre de novo não! Eu não posso aguentar mais... Voltou a chorar.

- Não irá descansar enquanto não tiver dito os nomes.

Como ele poderia saber do que o homem estava falando? Nomes? Que nomes? Ele achou que era um menininho na roca de sua mãe.

- Pequeno Mark! Ele é um menino tão bonito... E sabe tocar o cravo... Mark, gostaria de ter uma posição na corte? O rei gosta muito de música...

A voz de Cromwell interrompeu seu delírio:

- Comecem de novo!

- Não! - gritou Mark.

- Os nomes - murmurou Cromwell.

- Eu... eu... não... sei... nenhum...

Estava voltando a agonia. Ele nunca conhecera agonia como essa. Tesouras ardentes cortando-lhe a carne... seus músculos sendo esticados... o maldito ecúleo dilacerando seus membros. Vinagre, o maldito vinagre.

- Mark Smeaton cometeu adultério com a rainha. Mas não só você! Você não é o culpado, Mark. A rainha o tentou, e quem é você, um músico humilde, para dizer não à rainha? Mas você não está sozinho nisto, Mark. Há outros. E esses outros são gentis-homens de berço nobre, Mark... Vamos, você já sofreu demais no ecúleo. Um homem não pode ter seus membros puxados eternamente... você sabe disso, Mark. Isso enlouquece os homens. Diga os nomes deles, Mark. Vamos. Foi Wyatt?

- Não houve nenhum... eu não sei de nenhum. Eu menti... Nem eu... nem...

Não, de novo não. Ele estava enlouquecendo. Ele não seria capaz de aguentar mais. O rosto da rainha estava ficando borrado. Ele precisava parar, parar. Estava enlouquecendo, enlouquecendo. Ele não iria dizer o que eles estavam lhe mandando. Ele não iria dizer o nome de Wyatt.

Puseram vinagre debaixo de seu nariz. Iam puxar seus membros novamente.

Viu a corte, tão claramente como se estivesse lá. Ela estava sorrindo, e alguém estava parado a seu lado.

- Norris! - gritou Mark. - Norris! A voz de Cromwell era gentil, suave.

- Norris, Mark. Muito bem. Certo. Quem mais, Mark? Basta sussurrar...

- Norris! Brereton! Weston! - gritou Mark.

Estava inconsciente quando eles o desamarraram e levaram seu corpo torturado dali.

Cromwell observou-o, um sorriso leve no rosto. Fora um bom dia de trabalho.

O dia seguinte foi o primeiro de maio. O Dia de Maio era uma das festas mais populares na corte, à qual o rei jamais deixava de comparecer. Ele já fora o campeão das justas, mas agora que sua perna o incomodava Henrique era obrigado a ficar sentado e observar outros obterem as glórias do dia. O desafiante principal do dia iria ser Lord Rochford e o chefe dos defensores iria ser Henry Norris. Não era agradável para um homem que já fora muito hábil perceber que a idade estava tomando conta de seu corpo, transformando-o num espectador em vez do esportista brilhante que já fora admirado por toda a corte.

Cromwell procurou o rei antes que ele fosse para o campo de torneios. O rosto de Henrique se encheu de mau humor ao ver o homem. Não queria falar com ele no momento, mas desta vez não conseguiu afugentá-lo. Ele tinha notícias, notícias perturbadoras, notícias que não podiam ser ignoradas por Sua Majestade por mais tempo do que o necessário. Cromwell falou; o rei escutou. Escutou em silêncio, enquanto seus olhos pareceram afundar em sua cabeça e seu rosto ficava tão púrpura quanto o seu manto.

Lá embaixo no campo de torneios os cortesãos aguardavam a chegada do rei. A rainha já estava em seu lugar, mas obviamente as justas não podiam começar sem a presença do rei. Ele chegou ao campo e tomou seu lugar ao lado de Ana. A justa começou.

Ele estava cônscio da presença de Ana a seu lado. Henrique tremia de fúria e ciúme. Estava pensando:

"Esta é a mulher a quem eu dei tudo: os melhores anos de minha vida, meu amor, meu trono. Por ela rompi com Roma; por ela corri o risco de despertar a antipatia de meu povo. E como ela me recompensa? Traindo-me com qualquer homem que lhe apetece!"

Henrique não sabia quem duelava lá embaixo agora; não se importava com isso. Uma névoa vermelha bailava diante de seus olhos. Virouse para o lado para vê-la. Estava mais bela do que nunca, e mais remota do que quando ele a vira no jardim de seu pai no Castelo de Hever. Ela o enganara; ela o traíra; ela rira dele; e ele a amara apaixonada e exclusivamente. Ele era um rei, e ele a amara; Ana não era ninguém, a filha de um homem que devia sua ascensão aos favores de seu rei... e ela zombara dele. Jamais o amara; amara apenas o trono e a coroa, e só o aceitara relutantemente porque não poderia ter o trono e a coroa sem tê-lo como esposo. A garganta de Henrique estava seca com a dor que ela lhe causara. Seu coração batia furiosamente. Seus olhos estavam assassinos; ele queria que ela sofresse por toda a dor que ela lhe causara... não tanto quanto ele sofrera, mas mil vezes mais. Ficou ainda mais irritado ao lembrar-se de como ela fingira ciúmes de Jane Seymour.

Ele olhou para o campo de torneios e viu Norris - um de seus amigos mais estimados e íntimos -, bonito, não tão jovem quanto os outros, Weston, Brereton e Smeaton, mas com um ar distinto, modos encantadores, um porte gracioso. Ele odiou Norris, por quem há poucos minutos nutrira grande estima. Viu também o irmão dela, Rochford; ele gostara do jovem; ficara feliz ao ascendê-lo, porque tinha méritos próprios: alegre, divertido, inteligente e atraente... e agora Cromwell descobrira que Rochford dissera coisas imperdoáveis, desleais e traiçoeiras sobre seu mestre real; ele rira dos versos do rei, rira das roupas do rei. E ele fizera uma coisa que, sozinha, fazia-o merecedor da morte: ele aviltara a masculinidade do rei, rira dele e sussurrara que as mulheres do rei jamais conseguiam sucesso ao ter filhos por culpa do próprio rei.

Smeaton... aquela criatura malnascida que nada tinha a recomendálo exceto o rosto bonito e a música que agradava a Ana mais do que a de Henrique. Ele, rei da Inglaterra, implorara por ela, subornara-a com ofertas de grandeza, e ela aceitara relutante... não por amor a ele, mas porque não podia recusar uma coroa reluzente.

Henrique estava louco de raiva, louco de ciúme. Estava furioso com ela pois ainda era capaz de feri-lo desse jeito; e furioso com si próprio por estar tão vulnerável agora quando planejara expulsá-la. Ele quase era capaz de saltar sobre ela agora... e se tivesse uma faca na mão iria afundá-la no seu coração. Nada poderia satisfazê-lo mais do que ver seu sangue jorrar. Ele queria esfaqueá-la de próprio punho, vê-la morrer, sentir a alegria de saber que ninguém mais iria desfrutar dela.

O sol de maio batia quente no rosto do rei. Suor escorria por seu nariz. Ele não viu as justas. Ele não podia ver nada além de Ana fazendo com outros amor voluptuoso como jamais fizera com ele. Henrique já sentira ciúmes de Ana em outras ocasiões. Já sentira vontade de mandar torturar aqueles que olhavam para ela, mas nunca tivera motivos reais para duvidar da fidelidade da esposa. Agora ele tinha, e sabia quem haviam sido seus amantes: Norris! Weston! Brereton! Wyatt? E aquele Smeaton! Como ela tivera a ousadia, ela a quem ele fizera rainha! Até um rapazinho humilde podia agradá-la mais do que ele!

Então algo atraiu sua atenção. Ana estava largando o seu lenço no ar; estava sorrindo, sorrindo para Norris, e Norris pegou o lenço, curvou-se, amarrou-o na ponta de sua lança enquanto os dois trocavam sorrisos que, aos olhos enciumados de Henrique, pareciam sorrisos de amantes.

A justa continuou. Henrique sentia a garganta seca e os músculos doloridos. Estava cheio de raiva enlouquecida e sabia que não conseguiria mais manter o controle. Se ele continuasse aqui, iria gritar com ela, iria agarrar os cabelos bonitos que ele amara enroscar nos dedos e torcê-lo em torno de seu pescoço até que não houvesse mais vida naquele corpo que ele amara tanto.

Ela falou com ele. Henrique não ouviu o que ela disse. Ele se levantou; ele era o rei, e tudo que fazia era importante. Quantas daquelas pessoas, que agora voltavam olhos aturdidos para ele, tinham rido dele por ser um marido cego, tinham rido de sua devoção por essa mulher que o enganara e o traíra com qualquer homem que a atraía na corte!

Foi o sinal para o fim da justa. Como ela poderia continuar, se o rei não mais queria assisti-la? Ana não ficou muito surpresa; não costumava atribuir muita importância aos comportamentos estranhos do rei; Henrique vinha sendo muito seco com ela; ela presumia que ele trocara Greenwich por White Hall, porque frequentemente ia a Londres para ver Jane Seymour.

O rei estava indo para White Hall. Dera ordens para Rochford e Weston serem presos assim que saíssem do campo de torneios. A Norris ele ordenou que cavalgasse de volta com ele.

Ele não podia desviar os olhos do belo perfil de Norris. Havia nesse homem uma certa nobreza que irritava o rei; ele era alto e empertigado, e sua personalidade gentil era aparente no perfil bem delineado e na boca elegante. Era um homem capaz de despertar a inveja em qualquer outro. O rei ouvira dizer que Norris estava na iminência de se casar com Madge Shelton que, em certa época - não muito tempo atrás -, agradara ao próprio rei. Henrique queria bem a Madge; ela era uma mulher atraente, bem-humorada e inteligente. Mas o rei cansara-se dela depressa; a única mulher de quem ele não se cansara rápido fora Ana Bolena. E ela... a raiva voltou a arder em seu peito. Vagabunda! Mundana! E pensar que ele, que sempre admirara a virtude nas mulheres, tinha sido amaldiçoado com uma esposa que era famosa na corte por sua leviandade! Era demais. Ela sabia que Henrique admirava a virtude nas pessoas que o cercavam; e ela rira dele, caçoara dele... junto com seu irmão, e Weston, Brereton e Norris...

Ele se inclinou para a frente em sua sela e disse, a voz tremendo de ódio:

- Norris, agora o conheço pelo que é, traidor!

Norris quase caiu da sela, tão grande foi sua surpresa.

- Sua Majestade... Não sei o que...

- Como não sabe? Aposto que sabe bem demais. O que pensa de mim? Que sou um poltrão que olha para o outro lado enquanto seus inferiores se divertem com sua esposa? Eu o acuso de adultério com a rainha!

- Senhor... isso é uma piada...

- Não é piada, Norris. E você sabe muito bem!

- Este é o maior engano que já se cometeu!

- Ousa negar?

- Nego veementemente, Majestade.

- Suas mentiras e evasivas de nada irão adiantar, Norris.

- Tudo que posso fazer é repetir, senhor, que não tenho nenhuma culpa do que estou sendo acusado - frisou Norris com dignidade.

Todo o sangue deixara o rosto habitualmente corado, exibindo uma rede de veias arroxeadas sob uma pele pálida.

- Será melhor para você se não mentir para mim, Norris. Não estou com humor para aturar mentiras. Confesse para mim, aqui e agora!

- Não há nada que eu possa confessar, meu senhor. Não tenho qualquer culpa da acusação que Sua Majestade apresenta contra mim.

- Ora, ora! Você conhece bem a conduta da rainha. Todos na corte sabem como se comporta.

- Asseguro a Sua Graciosa Majestade que nada sei contra a rainha.

- Não ouviu os rumores? Norris, eu estou avisando que não estou com humor para dissimulações.

- Não ouvi qualquer rumor, Majestade.

- Norris, sabe que sempre gostei muito de você. Ofereço-lhe perdão se confessar seu adultério.

- Majestade, prefiro morrer mil mortes a acusar a rainha de uma falta da qual, acredito piamente, ela não tem culpa alguma.

O rei quase sufocou de raiva. Não disse mais nada até que eles alcançaram Westminster. Então convocou o brutamontes Fitzwilliam, que Cromwell designara seu tenente, e deu ao homem a ordem de prender Norris e despachá-lo para a Torre.

Sentada à mesa de jantar do Palácio de Greenwich, Ana sentiu o primeiro sopro de intranquilidade.

Ela perguntou a Madge Shelton:

- Onde está Mark? Não está em seu lugar de costume.

- Não sei o que aconteceu com Mark, Majestade - respondeu Madge.

- Se a memória não me falha, eu não notei sua presença ontem à noite. Espero que ele não esteja doente.

- Eu não sei, madame - disse Madge, e Ana notou que os olhos de sua prima não encontraram os seus; era como se a moça estivesse com medo.

Mais tarde ela disse:

- Não estou vendo Norris. Madge, não é estranho que ambos estejam ausentes? Onde está Norris, Madge? Você deveria saber.

- Ele não me disse nada, madame.

- Como não? Ele é um amante muito negligente. Em seu lugar, eu não permitiria isso - disse Ana, num tom levemente malicioso.

Ela sabia muito bem, e sua prima também, que embora Norris supostamente estivesse apaixonado por Madge, era a rainha quem recebia sua atenção. Madge era encantadora; ela podia atrair facilmente, mas não tinha a competência de Ana para segurar homens. Weston já se sentira atraído por Madge, mas então fora tomado por uma atração mais profunda e irresistível pela rainha.

- Não sei o que está detendo Norris - disse Madge. Ana disse:

- Quer dizer que não sabe quem o está detendo!

E quando ela riu, sua risada saiu mais alta e aguda que o usual. Foi uma noite estranha; as pessoas agrupavam-se nos corredores do palácio para trocar sussurros.

- O que significa isso?

- Viram como Sua Majestade saiu do campo de torneio?

- Dizem que Norris, Weston e Brereton estão desaparecidos.

- Onde está Mark Smeaton? com toda certeza eles não prenderiam o jovem Mark!

A rainha estava ciente dessa calmaria estranha à sua volta Chamou seus músicos, e enquanto tocavam para ela, fitou o lugar vazio de Mark.

"Onde está Norris? Onde está Weston? Por que Brereton continua ausente?"

Ana passou uma noite insone, e no começo da manhã sucumbiu a um sono pesado do qual acordou tarde. Durante toda a manhã o palácio transbordou de rumores. Ana ouviu as vozes sussurrantes, notou os olhares penalizados dirigidos a ela, e seu temor aumentou ainda mais.

Sentou-se para jantar, determinada a ocultar a apreensão horrível na qual estava afundando. Quando não jantava com Ana, Sua Majestade mandava-lhe um servo com a mensagem cortês: "Tenha bom proveito, minha querida!" Neste dia ela esperou em vão pelo mensageiro do rei. Assim que ela terminou a refeição e removeu o guardanapo do colo, recebeu um mensageiro que anunciou a chegada a Greenwich de certos membros do conselho, e com eles, para seu desgosto, estava seu tio, o duque de Norfolk.

Seu tio parecia truculento e arrogante, muito satisfeito, como se algo que tivesse profetizado finalmente houvesse ocorrido. Ele se comportou não como um cortesão para com uma rainha, mas como um juiz para com uma prisioneira.

- O que significa isso? - inquiriu Ana.

- Por favor, fique sentada - pediu Norfolk.

Ela hesitou, querendo perguntar-lhe por que achava que poderia dizer-lhe quando sentar e quando se levantar; mas alguma coisa em seus olhos a conteve. Ela se sentou, cabeça empinada, olhos imperiosos.

- Quero saber por que o senhor se acha no direito de vir procurarme a uma hora dessas e perturbar-me com sua presença. Quero saber...

- A senhora saberá - disse Norfolk, sinistro. - Smeaton está na Torre. Ele confessou ter cometido adultério com a senhora.

Ela ficou muito pálida e se levantou, olhos faiscando.

- Como ousa vir trazer-me uma acusação tão vil?

- Componha-se, minha senhora - disse Norfolk, arrogante. Norris também está na Torre. - Então ele mentiu: - Ele também admite ter cometido adultério com a senhora.

- Eu não acredito que ele possa ter dito tamanha inverdade! Não acredito que qualquer um dos dois tenha dito isso. Por favor, deixe-me imediatamente. Declaro que o senhor irá sofrer por sua insolência.

- Vim por ordem do rei para conduzi-la à Torre. Lá ficará até segunda ordem de Sua Alteza.

- Preciso ver o rei - disse Ana. - Meus inimigos tramaram isso. Essas histórias que o senhor está me contando seriam trágicas, não fossem tão ridículas...

- Não é possível para a senhora ver o rei. - Não é possível para mim ver o rei? Esqueceu-se de quem sou eu? Declaro que desejo.

- A senhora deverá aguardar até segunda ordem do rei, e ele declarou que não deseja vê-la.

Ana estava realmente assustada agora. O rei mandara esses homens para prendê-la e levá-la para a Torre; dissera que não queria vê-la. Mentiras estavam sendo contadas

a seu respeito. Norris? Smeaton? Oh, não! Não esses dois! Eles tinham sido seus amigos, e ela teria posto a mão no fogo por sua lealdade. O que isto significava? George, onde estava George? Mais do que nunca, Ana precisava de seu conselho.

Ela disse, muito calma:

- Se essa é a vontade de Sua Majestade, estou disposta a obedecer. Na barcaça Ana sentiu muito medo. Lembrou-se de outra jornada para a Torre, de um falcão branco que tinha sido coroado por um anjo, do rei, esperando-a para recebê-la lá... ansioso para conceder a ela todas as honras que pudesse ofertar-lhe. Ana se virou para o seu tio.

- Sou inocente dessas acusações maldosas. Eu juro! Eu juro! Se o senhor levar-me à presença do rei, sei que serei capaz de convencê-lo de minha inocência!

Ana sabia que poderia convencer Henrique, se ao menos pudesse vê-lo... se pudesse segurar suas mãos... Ana sempre fora capaz de induzi-lo a fazer o que quisesse, mas ultimamente vinha sendo descuidada. Jamais tendo-o amado, não se preocupara muito com a possibilidade de perder seu afeto; sempre achara que, para mante-lo sob seu jugo, precisava apenas adulá-lo e diverti-lo. Ana jamais pensara que isto poderia vir a lhe acontecer, que ela seria afastada dele, sem permissão para vê-lo, uma prisioneira na Torre.

Norfolk dobrou os braços e olhou para Ana friamente. Qualquer observador externo imaginaria que ele era não seu parente, mas seu inimigo mais mortal.

- Seus amancebados confessaram - disse, encolhendo os ombros.

- O melhor que poderia fazer seria seguir-lhes o exemplo.

- Não tenho nada para confessar. Já não lhe disse? O que eu deveria confessar? Não acredito que esses homens fizeram confissões. Está dizendo isso para me atrair a uma armadilha. O senhor é meu inimigo. Sempre foi.

- Acalme-se! - sugeriu Norfolk. - Explosões como essa não irão lhe servir de nada.

Ana foi conduzida rapidamente até a barcaça. Dali a pouco o grande portão se abria para admiti-la.

- Senhor meu Deus, por misericórdia, ajuda-me - murmurou Ana. - Não sou culpada de nenhuma das coisas de que sou acusada.

Sir William Kingston saiu para recebê-la, assim como fizera naquela outra ocasião. Ela lhe perguntou:

- Sr. Kingston, irei para uma masmorra?

- Não, madame - respondeu Kingston.-Para os aposentos onde ficou durante sua coroação.

Ana se rendeu a lágrimas furiosas, e então começou a rir histericamente. E seus soluços, misturando-se a seus risos, eram dolorosos de serem ouvidos. Ela estava pensando naquela época e nesta... duas situações tão diametralmente diferentes, num espaço de tão poucos anos. Uma rainha vindo à sua coroação; uma rainha vindo a seu destino fatídico.

- É bom demais para mim! - gritou, rindo enquanto os soluços estremeciam-lhe o corpo. -Jesus, tenha piedade de mim!

Kingston observou-a até que a histeria tinha passado. Ele era um homem rude, mas foi impossível não sentir pena daquela mulher. Kingston vira algumas coisas horrendas naquele edifício escuro e triste, mas considerou aquela jovem rindo e chorando à sua frente um dos quadros mais patéticos que já testemunhara. Recebera-a em sua primeira vinda à Torre de Londres, considerara-a belíssima em seu vestido de coroação com os cabelos soltos sobre os ombros. Foi impossível para ele não comparar aquela mulher deslumbrante com esta pobre mocinha chorona, e isso o levou a sentir uma pena imensa dela.

Ela enxugou os olhos, controlou seu riso, e sua dignidade retornou. Ela ouviu um relógio bater cinco badaladas, e um som tão familiar e caseiro fê-la lembrar de assuntos ordinários. Sua família... o que seria deles?

Ana se virou para os membros do conselho, que estavam a ponto de deixá-la sob os cuidados de Kingston.

- Rogo aos senhores que intercedam a meu favor perante o rei; que lhe peçam para agir como um bom senhor em meu caso - disse Ana.

Depois que os membros do conselho tinham se retirado, Kingston conduziu-a a seus aposentos.

- Eu sou a esposa legítima do rei - disse Ana. E acresceu: - Sr. Kingston, sabe por que motivo estou aqui?

- Não - respondeu.

- Quando o senhor viu orei?

- Eu o vi duas vezes no campo de justas - disse ele.

- Então, Sr. Kingston, rogo que me diga onde está o meu pai.

- Eu o vi na corte antes do jantar - disse Kingston.

Ana ficou calada por algum tempo, mas acabou por não resistir a fazer a pergunta que se contorcia em sua garganta.

- E onde está o meu querido irmão?

Ele não pôde olhar para Ana. Por mais rude que fosse, não podia fitar a expressão de súplica em seu rosto enquanto lhe perguntava se o seu irmão estava a salvo.

Kingston disse-lhe evasivamente que a última vez que o vira fora no Palácio de York.

Ana começou a caminhar em círculos, murmurando para si própria:

- Serei acusada de me deitar com três homens e tudo que poderei dizer será "não"!

Começou a chorar baixinho, como se toda a fúria tivesse lhe sido drenada, e agora lhe restasse apenas a tristeza.

- Norris, como você pôde me acusar? Está na Torre, e agora iremos morrer juntos. E Mark, está aqui também? Oh, minha mãe morrerá de tristeza!

Ficou sentada durante algum tempo, pesando; então, virou-se para Kingston e perguntou:

- Sr. Kingston, irei morrer sem justiça? Ele tentou confortá-la

- Até o mais pobre súdito do rei tem direito à justiça - assegurou-lhe.

Ana olhou para ele um momento antes de irromper numa gargalhada longa e amarga.

Silêncio pairava sobre o palácio. No pátio, homens e mulheres trocavam sussurros, olhando furtivos sobre os ombros, temerosos do que aconteceria em seguida. Wyatt estava na Torre; quem seria o próximo? Nenhum homem no séquito da rainha estava seguro. Nas ruas as pessoas não falavam de outra coisa. Sabiam que a rainha era prisioneira na Torre; sabiam que ela iria ser julgada por crime de adultério. Os cidadãos lembravam de como o rei tentara livrar-se de Catarina; era isso o que ele agora tentava fazer com Ana? Aqueles que haviam gritado "Abaixo Ama Bolena!" agora murmuravam:

- Pobre dama. O que será dela?

Jane Rochford, olhando de sua janela, via os cortesãos e as damas cruzando o pátio. Ela esperara problemas, mas não tantos. Ana na Torre, onde ela própria amargara momentos horríveis! George na Torre! Era agora a vez de Jane rir, pois não haviam sido suas calúnias sussurradas que tinham posto Cromwell na pista? Não fora ela quem viraNorris e Weston fitar a rainha com olhares lascivos? Sim, e ela não hesitara em rir dessas coisas, de mostrá-las aos outros. "Ah! A rainha nasceu alegre, e o meu esposo me diz que o rei... não importa, mas de que serve uma mulher quando não pode gerar filhos..." O orgulhoso George estava agora na Torre, embora fosse dito à socapa que nenhum dano poderia lhe ser feito. Eram aqueles outros homens, aqueles que tinham sido amantes de Ana, que estavam fadados a morrer.

Jane jogou a cabeça para trás, e riu até sentir-se fraca. "Pobre Jane!", haviam dito Ana e George. "Pobre e tola Jane!" Eles não tinham se dado ao trabalho de lhe explicar seus comentários inteligentes; eles a tinham posto de lado, considerando-a estúpida demais para entender qualquer coisa. Ainda assim, esta tola desempenhara um papel crucial nos eventos atuais.

"Ah, Ana!", pensou Jane. "Quando eu estava na Torre, você foi visitar-me com suas roupas de tecido de prata e arminho! Ana, a rainha, e Jane a tola cujas tolices a tinham levado a ser acusada de traição. E agora, quem é a tola, Ana? Você, você e seus amantes... querida irmã! Não Jane, porque Jane está livre, livre de todos vocês... sim, livre até de George, porque agora ela não chora nem teme por ele. Agora ela pode rir dele e dizer Eu o odeio, meu esposo!"

E ele será libertado, porque nada fizera que fosse merecedor da pena de morte. E ele sempre fora um dos favoritos do rei. Seriam apenas os amantes de Ana que iriam morrer morte de traidores... Mas ele a amava tanto quanto qualquer um deles.

Os olhos de Jane se estreitaram. Seu coração começou a bater contra as costelas, mas sua mente estava muito calma. Ela podia ver o seu rosto bem nítido em sua mente: calmo e cínico, sempre corajoso. Se ele estivesse parado diante de Jane, seus olhos estariam desprezando-a, e ele diria: "Muito bem, Jane, você fez o pior que pôde! Sempre foi uma mulher vingativa e cruel." Vingativa! Ele usara essa palavra muitas vezes para descrevê-la. "Acho que você é a mulher mais vingativa do mundo!" Ele rira de seu gosto por ouvir atrás de portas.

As faces de Jane arderam em fogo. Ela desceu correndo a escadaria e saiu para a tarde quente de maio.

As pessoas olharam para ela com pena, como olhavam para aqueles cujos entes queridos encontravam-se em perigo. Deviam saber que George Bolena nada significava para Jane. Ela quase gritava ao pensar nele:

"Nada! Nada! Ele não significa nada para mim, porque eu o amei um dia, mas ele me ensinou a odiá-lo!"

Ela era uma partidária da verdadeira rainha Catarina. A princesa Maria era a herdeira legítima ao trono, não a bastarda Elizabeth!

Jane se juntou a um pequeno grupo reunido em torno de um chafariz.

- Mais alguma coisa aconteceu?

- Você ouviu falar sobre Wyatt... - disse um homem.

- Pobre Wyatt - acrescentou outro.

- Pobre Wyatt! - Os olhos de Jane faiscaram de ódio. - Nunca houve ninguém mais culpado do que ele!

O homem que fizera o comentário se afastou. Cometera uma estupidez ao dizer: "Pobre Wyatt!" Era burrice dizer coisas como essas.

- Tenho a impressão de que todos eles irão morrer - disse Jane.

- Mas não fiquem tristes por mim. Ela era minha cunhada, mas eu sempre soube. Meu marido está na Torre, e ele será libertado porque... porque...

E ela explodiu numa gargalhada frenética.

- É a tensão-disse uma mulher. - É porque George está na Torre.

- É engraçado - disse Jane. - Ele será libertado... e ele... ele é tão culpado quanto qualquer outro...

Os cortesãos fitaram Jane. Ela viu um homem um pouco afastado do grupo; sabia que esse era um espião de Thomas Cromwell.

- O que você está dizendo? - perguntou casualmente, como se aquilo não fosse importante para ele.

- Ele era tão amante dela quanto os outros! - gritou Jane. - Ele a adorava. Ele não conseguia afastar as mãos dela... ele adora beijá-la e acariciá-la...

- George...? - disse um dos cortesãos, uma expressão de surpresa no rosto. - Mas ele era irmão...

Os olhos de Ana faiscaram.

- E o que importa isso para... para aquele... monstro! Ele tinha sido amante dela. Pensa que eu, esposa dele, não sei dessas coisas? Pensa que eu nunca vi nada? Pensa que eu poderia fechar meus olhos para evidências tão óbvias? Ele estava sempre com ela, sempre entre quatro paredes com ela. Muitas vezes eu surpreendi os dois... juntos. Eu os vi abraçados como amantes. Eu os vi...

O hálito de Jane exsudava a anos de ciúmes e mágoas. Ela fechou os olhos e continuou gritando:

- Eles eram amantes, eu lhes digo! Amantes! Eu, esposa dele, não significava nada para George. Ele amava sua irmã. Riam juntos de todos nós que os cercávamos, dizendo que éramos tolos e cegos. Estou lhes dizendo o que sei. Eu vi... eu vi...

Alguém disse num tom de desgosto:

- É melhor ir para seu apartamento, Lady Rochford. Temo que os acontecimentos recentes foram pesados demais para seus ombros. A senhora está descontrolada.

Ela estava tremendo dos pés à cabeça. Abriu os olhos e viu que o espião de Cromwell deixara o grupo.

O rei não conseguia expulsar Ana Bolena de seus pensamentos. Cromwell falara com ele a respeito de Ana, dedicando ao assunto um entusiasmo imenso. Fechara os olhos, premira os lábios feios, pedira permissão para contar ao rei todas as abominações e coisas inefáveis trazidas à luz por sua diligente sondagem. O rei pensava continuamente sobre os assuntos que Cromwell trouxera a seu conhecimento, porque eles tinham sido um bálsamo para sua consciência. Ele odiava Ana, porque Ana o traíra; se ela lhe dera os momentos mais felizes de sua vida, também lhe dera os mais sofridos. Antes mesmo de Cromwell ter arrancado a confissão de Smeaton, Henrique pensara em trocar Ana por Jane Seymour; e como Jane estava com uma criança no ventre, essa atitude precisava ser imediata. Henrique sabia o que isso significava: que ele não iria embarcar em mais processos de divórcio. Havia dois argumentos que ele poderia usar para anular seu casamento: o primeiro era o contrato prévio de casamento de Ana com Northumberland; o segundo era o parentesco do próprio Henrique com Ana através de sua associação com Mary. Esses eram assuntos delicados: Northumberland jurara diante do arcebispo de Canterbury que não houvera qualquer contrato prévio de casamento, e isto antes dele próprio haver desposado Ana; ademais, Henrique estivera totalmente ciente desse assunto. Como ele poderia dizer agora que acreditava que houvera um contrato, se ele aceitara a liberdade de Ana e se casara com ela? Isso não era muito fácil. E este casamento com Mary; isso significaria que ele teria de tornar pública sua associação com a irmã de Ana; e obviamente havia o fato desonroso de que ele optara por esquecer disso quando desposara Ana. Entretanto, agora Henrique tinha a impressão de que essas duas oportunidades de se divorciar de Ana haviam sido empalidecidas pelas circunstâncias; como poderia um homem que estava se posicionando como um paladino da castidade usar qualquer um desses argumentos? Por outro lado, de que outra forma ele poderia casar-se com Jane a tempo de legitimar o fruto dessa união?

Não havia outro método, e esse era o método que ele queria. Ele queria ferreamente. Enquanto Ana estivesse viva, ele continuaria pensando nela sendo desfrutada e desfrutando de outros homens; ele não conseguiria suportar isso; ela significara muito para ele, e ainda significava. Mas seu casamento fora um erro. Henrique fora plenamente feliz com Ana antes do matrimónio, mas não gozara de um único momento de paz depois que eles tinham subido ao altar; e tudo fora culpa de Ana. Ela não conseguira gerar um filho varão, o que significava que os céus desaprovavam o casamento. Ele não podia ver outra saída senão fazer com que aquela cabeça linda fosse cortada daqueles ombros elegantes. Os olhos de Henrique brilharam quando ele pensou nisso. Amor e ódio, ele sabia, eram aliados íntimos.

"Nenhum outro homem irá tê-la!", era o pensamento principal de Henrique. "Ela não desfrutará de mais amantes; não rirá mais de mim com seus amancebados! Ela irá morrer... morrer... morrer, porque é uma bruxa, nascida para destruir homens; uma bruxa que merece, portanto, ser destruída."

Ana era culpada de adultério, e, pior ainda, de incesto; ele não podia esquecer isso.

Ah, como sentia-se magoado com o fato de uma pessoa a quem amara tão ternamente não fosse mais merecedora de continuar viva. Mas era seu dever doloroso fazer a justiça prevalecer.

Henrique chamou Cranmer e lhe disse:

- Este é um momento muito doloroso para mim, Cranmer. Eu queria que uma tarefa tão dolorosa como essa não tivesse caído em minhas pobres mãos.

Cranmer também estava preocupado. Ele estava aterrorizado com a possibilidade de um reatamento do rei com Roma. E então o que seria daqueles que haviam urgido o rompimento? Cranmer imaginou que já podia sentir o cheiro pungente dos cepos queimando e as chamas subindo por suas pernas.

Ele disse que estava tão triste e magoado quanto Sua Majestade, porque, depois de Sua Graça, o Rei, Cranmer amara sua rainha mais do que qualquer coisa viva. Ele pediu à Sua Majestade permissão para rezar por ela; ele amara sua rainha como amava Deus e seu evangelho. Apressou-se em dizer que todos que amavam a Deus agora deviam odiar Ana acima de todas as outras coisas, porque nunca uma mulher afrontara tanto o evangelho.

O pobre coração de galinha de Cranmer ficou carregado de medo por semanas a fio. Ele desejava que sua coragem fosse tão forte quanto suas crenças. E se ele, que fora ajudado pela rainha, que devia a ela seu cargo, fosse também mandado para a Torre? Aqueles que eram ascendidos num dia podiam ser derrubados no seguinte. Pensou numa jovem que ele amara e desposara em Nuremberg, para onde fora estudar as doutrinas luteranas, e a quem deixara em Nuremberg porque fora convocado a voltar para casa e se tornar arcebispo de Canterbury. Fora muito doloroso deixá-la para trás. Ela era uma jovem doce e amorosa; mas Henrique acreditava no celibato dos padres, e o que ele teria dito sobre um padre que tomara para si uma esposa? Cranmer deixara-a por Henrique; trocara uma esposa por um arcebispado, sacrificara o amor por um posto elevado na corte. E se ele caísse agora desse posto elevado para uma masmorra na Torre? Da Torre para a fogueira ou para o machado era um passo bem curto.

Henrique considerou reconfortante conversar com Cranmer. Ele era um homem que desejava fazer o certo tanto quanto o seu rei.

- Se ela cometeu pecados, então Sua Graça irá puni-la através de Deus - disse-lhe Cranmer.

- Através de Deus - repetiu Henrique. - Contudo, creio que ela tentará provar sua inocência. Digo-lhe uma coisa, não tenho qualquer intento de casar-me de novo, a não ser que seja coagido por meus súditos.

- Amém - disse Cranmer, e tentou não demonstrar com sua expressão que estava pensando em Jane Seymour e nos boatos de que ela já estava grávida.

Henrique deu um tapinha no ombro do arcebispo, chamou-o de amigo querido; e Cranmer implorou ao rei que essa situação infeliz não o afastasse do evangelho.

- Essa situação infeliz apenas irá me aproximar ainda mais do evangelho, bom Cranmer.

Cranmer se retirou mais feliz, e o rei estava aliviado com sua visita.

Ele chamou seu filho, o jovem duque de Richmond, e o abraçou.

- Porque esta noite sinto-me terno com você, filho.

Pensava em Ana à medida que falava. Quantas vezes ela lhe faltara com o respeito! Quantas vezes ela o perturbara! E ela, rindo dele... nos braços de seus amantes... Norris... Weston... Os rostos desses homens relampejaram na mente de Henrique, e estavam ao lado do de Ana, rindo do rei.

- Sua Majestade está profundamente perturbada - considerou o jovem duque.

A voz de Henrique quebrou num soluço. Ele se lembrou de um boato de que, quando considerara ir para a França e deixar Ana como regente, ela falara freneticamente em se livrar de Maria. Algumas pessoas tinham dito que ela planejara envenenar a filha de Henrique.

Ele segurou o menino firme contra seu peito.

- Você e sua irmã Maria devem agradecer a Deus por terem escapado daquela mundana maldita que tentou envenenar a vocês dois! declarou.

Ana estava desolada. Os dias sucediam-se lentamente. com ela permaneciam duas mulheres, dia e noite, a quem ela odiava e sabia serem suas inimigas. Elas tinham sido mandadas para serem suas aias por ordem do rei. Elas eram uma certa senhora Cosyns, uma espia e fofoqueira, e sua tia, dama Bolena, que era a esposa do tio de Ana, Sir Edward. Esta tia sempre nutrira ciúmes de sua sobrinha, desde a época em que ela fora uma menina precoce, considerada a mais inteligente da família. Essas duas, por instigação de Cromwell, banhavam Ana de perguntas, tentando fazê-la admitir seus crimes. Eram mulheres feias, matreiras, invejosas, que gostavam de sua posição e estavam felicíssimas em ver a desgraça da rainha. Cada comentário casual que caía dos lábios de Ana era repetido com alguma distorção para se tornar incriminador. Isso era precisamente o que Cromwell queria, e, portanto, ele estava satisfeito com o trabalho dessas mulheres. As damas que Ana teria gostado de ter a seu lado, aquelas que haviam provado serem suas amigas, não tinham permissão para visitá-la. Ela queria conversar com Margaret Lee e Mary Wyatt, com sua irmã Mary, com Madge. Mas não, ela precisava ser seguida, a despeito de para onde fosse, por essas duas mulheres hediondas e por Lady Kingston, que era tão fria quanto seu marido. Em sua posição de esposa do Zelador da Torre, Lady Kingston vira sofrimento demais para sentir alguma compaixão por uma mulher que, antes deste destino fatídico, havia desfrutado plenamente das boas coisas que a vida tinha a oferecer.

Mas as notícias conseguiam chegar até Ana. Seu irmão fora preso. Sob qual acusação? Incesto! Mas isso era grotesco! Como eles podiam dizer esse tipo de coisa! Isso era uma piada; George iria rir; eles não poderiam ferir George. O que George fizera para merecer isso?

- Eu fui estúpida e descuidada para comigo! - gritou Ana. - Fui cega e vaidosa. Mas o meu irmão querido... o que fez além de me ajudar? Preferia morrer mil mortes a vê-lo sofrer através de mim!

As mulheres arguciosas menearam as cabeças, memorizando cuidadosamente o que Ana dissera. Eliminando uma palavra aqui, uma frase acolá, elas fariam um relatório que agradaria imensamente a Thomas Cromwell.

- Wyatt aqui! - exclamou Ana. - Aqui na Torre?

E ela chorou por Wyatt, chamando-o de querido Thomas, e ficou arrasada, recordando os dias felizes da infância.

- Norris está aqui. Norris me acusou... Eu não posso pensar nisso a respeito de Norris... Oh, eu não posso! Ele jamais iria me trair!

Ela não podia acreditar que Norris a tinha traído! Então, argumentou Cromwell, se ela não acreditava que Norris poderia traí-la, não estava admitindo que havia alguma coisa para trair?

Quando Ana estava cansada, as mulheres fingiam confortá-la, armando suas armadilhas.

- E quanto aos gentis-homens na Torre? - quis saber Ana. Estão sendo torturados?

- Não, eu garanto - disse uma das mulheres. - Eles não estão sendo torturados!

Ana demonstrava grande preocupação com o conforto de seus amancebados, reportaram as mulheres.

- Farão baladas a meu respeito - disse Ana, sorrindo subitamente. - Ninguém sabe fazer baladas mais bonitas do que Wyatt.

Ela falava com grande admiração e sentimento sobre Thomas Wyatt, disseram elas a Cromwell. Ela chorava por seu bebé.

- O que será da minha filhinha? Quem cuidará dela agora? Sinto a morte muito próxima de mim, porque sei que o rei tem uma mulher para ocupar o meu lugar, mas como ele pode fazer uma nova rainha quando a anterior ainda respira? E quanto ao meu bebé? Ela não tem nem três anos ainda. É tão novinha, não é? Eu não posso vê-la. Peçam por mim, por favor! Nunca pensaram o quanto uma mãe pode desejar ver sua filha pela última vez? Não, não. Não a tragam para mim. O que ela iria pensar ao ver-me assim! Eu iria banhá-la com lágrimas e incutirlhe medo. Além disso, o simples pensamento por minha filha me aterroriza, porque ela é muito jovem para ser deixada sozinha neste mundo cruel... Não digam que eu quero ver o meu bebé.

Os olhos de Ana estavam empapados em medo; inteligentes como eram, podiam visualizar claramente a tortura mental que a princesa iria sofrer. Não ela! Não Elizabeth!

- Ela deve estar brincando na ala infantil agora. O que será dela? Afinal de contas, não é ela a filha do rei?

Então ela desatou a rir, e os risos terminaram num choro violento. Porque ela pensou:

"Talvez venham a chamá-la de bastarda.. E esta será uma punição para mim, por ter dito isso sobre a filha de Catarina. Ó Catarina, perdoa-me. Naquela época eu não conhecia o significado de ter uma filha. E se o rei..."

Mas ela não podia pensar; não ousava fazer isso. Ah, mas ela o conhecia, frio e calculista, movido por uma necessidade ardente de se livrar de Ana. Ela já era acusada de ter-se deitado com cinco homens, e um deles seu pobre e inocente irmão. E se eles dissessem que Elizabeth não era filha de Henrique? Será que ele iria nutrir amor por Elizabeth, agora que odiava sua mãe? E se ele desposasse Jane Seymour... Se ela se tornar rainha, será gentil com minha filhinha... tão gentil quanto eu fui com Maria? Jesus, perdoa-me. Eu pequei. Eu errei. E agora recebo esta punição. Acontecerá comigo o que aconteceu a Catarina, e não restará ninguém para cuidar

de minha filha, assim como não restou ninguém para cuidar de Maria.

Esses pensamentos fizeram-na chorar. Então lembrou que quando se tornara rainha de Henrique escolhera como seu lema "A Mais Feliz das Mulheres". Isso fez com que ela risse longa e amargamente.

- Como ela chora! Como ela ri! - sussurravam as mulheres. Como ela é instável... histérica e assustada! Seu comportamento tem todos os sinais de quem sente culpa!

Ana falava muito. Ela não dormia; ficava acordada olhando para a escuridão, pensando no passado, tentando adivinhar o futuro. O desespero a envolvia. O rei é cruel

e frio: ele sempre consegue encontrar uma justificativa quando deseja fazer uma coisa cruel. Estou perdida. Não há nada que possa salvar-me agora! Então ela sentiu esperança. Mas ele me amou um dia; um dia não houve qualquer coisa que Henrique não pudesse fazer por mim. Há até pouco tempo eu conseguia agradá-lo mais do qualquer outra mulher, se me desse ao trabalho disso. Ele está fazendo isso para me punir. Ele virá ver-me em breve; tudo ficará bem.

Mas não! Eu estou aqui na Torre e eles dizem coisas ruins a meu respeito. Meus amigos estão aqui. George, meu irmão doce e querido, a única pessoa em todo o mundo em quem eu realmente confio. E eles sabem disso! Foi por causa disso que o mandaram para este lugar, George. Foi por causa disso que eles o aprisionaram. Para que eu não tenha mais ninguém para me ajudar.

Ela pediu material de escrita. Ela iria escrever. Iria tentar esquecer os olhos cruéis de Henrique. Iria tentar esquecê-lo como era agora e lembrar daquele homem que dissera que o nome Ana Bolena era a música mais doce a seus ouvidos.

"O descontentamento de Sua Graça e o meu aprisionamento são coisas que me são tão estranhas que não tenho qualquer ideia a respeito de que devo desculpar-me..."

Ela escreveu freneticamente, a esperança voltando a seu coração enquanto a pena corria pelas páginas.

"Jamais um príncipe teve esposa mais leal e justa, e mais plena de afeto verdadeiro, que aquela que Vossa Graça conheceu em Ana Bolena - com cujo nome e posição eu poderia ter-me contentado se Deus e Sua Graça não tivessem preferido ascender-me. Tampouco em qualquer tempo, inebriada com minha posição de rainha, esqueci meu berço humilde. Minha satisfação sempre residiu em agradar a Sua Graça, mas nunca procurei agradá-lo por temor de cair numa situação como a que me encontro agora."

Ana parou de escrever. Estaria sendo ousada demais? Mas sentia a morte próxima e não se importava mais com consequências.

"Sua Graça ascendeu-me de uma condição inferior para sua rainha e companheira, algo muito acima de meu merecimento ou desejo. Mas se Sua Graça considerou-me merecedora dessa honra, não deixe qualquer perfídia de meus inimigos lançar uma sombra sobre sua apreciação por mim, nem por sua filha, a pequena princesa Elizabeth.

Ponha-me à provação, meu rei, mas permita-me desfrutar de um julgamento justo e não ter meus inimigos como querelantes e juizes. Permita-me receber um julgamento aberto, visto que minha verdade não teme vergonhas expostas. Então Sua Graça verá ou minha inocência provada - assim aplacando suas suspeitas e satisfazendo sua consciência - ou minha culpa declarada abertamente. Lembro a Sua Graça que, num julgamento justo, qualquer que seja o julgamento de Deus e de meu rei.

Sua Graça estará isenta de uma censura aberta, e Sua Graça está livre, diante de Deus e dos homens, não apenas para executar punições justas contra mim, como uma esposa infiel, mas para seguir seus intentos de substituir-me por aquela cujo nome poderia ter apontado há algum tempo, caso isso tivesse me parecido pertinente."

Ana estava com as faces rubras de raiva enquanto sua pena corria sobre o papel.

"Mas se Sua Graça já selou o meu destino, decidindo que apenas a minha morte e desonra será capaz de conceder-lhe a felicidade à qual almeja, então eu desejo de Deus que ele venha a perdoar seu grande pecado e, da mesma forma, o pecado de meus inimigos, os instrumentos usados por Sua Graça. Rogo a Deus que ele não lhe apresente um preço justo pelo uso cruel e desumano que será feito de minha pessoa nesse julgamento no qual eu e Sua Graça iremos ver-nos em breve. Não duvido (a despeito do que o mundo possa pensar a meu respeito) que minha inocência virá a ser conhecida abertamente, e justamente vingada."

Ela pousou sua pena, um sorriso amargo nos lábios. Essas palavras iriam sensibilizar Henrique; ela sabia sensibilizá-lo, e era a única, entre todos que o cercavam, com ousadia suficiente para tentar. Não estava preocupada com sua segurança pessoal; embora tivesse sido tola e vaidosa, Ana Bolena ainda possuía sua coragem magnífica Se algum dia chegasse a ler essas palavras, com sua referência ao julgamento de Deus, Henrique iria tremer em seus sapatos, e a despeito de como o rei as apresentasse à sua consciência, as palavras de Ana Bolena iriam perturbálo até os fins de seus dias. Henrique iria pensar nessas palavras enquanto estivesse deitado com Jane Seymour; e Ana exultou ao pensar no poder que ainda exerceria sobre ele da sepultura.

Ana tinha certeza de que Henrique planejava assassiná-la. Estava planejando isso com sangue frio, como qualquer plebeu poderia planejar livrar-se de uma esposa da qual tivesse se cansado, espancando-a até a morte, varando-a com uma faca ou atirando seu corpo no rio escuro. Ana estava assustada, experimentando todo o alarme de uma mulher que sabe estar sendo seguida na escuridão por um bandoleiro com assassinato no coração. Essa mulher, que pressentia a chegada de um destino fatídico, podia gritar por socorro; mas não havia ninguém que pudesse vir ajudar Ana Bolena, porque seu assassino era nenhum outro senão o homem mais poderoso da Inglaterra, dotado de uma fúria que ninguém poderia aplacar, cujos crimes seriam justificados pelos próprios arcebispos.

Começou a chorar por medo, e seus pensamentos afastaram-se de seus próprios problemas para aqueles enfrentados pelos homens que teriam de derramar seu sangue junto com o de sua rainha. E Ana culpou a si própria, porque não fora seu amor por lisonjas que os incitara a expressar tão abertamente seus sentimentos? Não fora o deflagrador desta tragédia o seu desejo de mostrar ao rei que, embora ele pudesse preferir outras, sempre haveria homens que iriam preferi-la?

Pegou a pena e se pôs a escrever mais.

"Meu último e único pedido será que eu, e apenas eu, carregue o fardo do descontentamento de Sua Graça; que ele não toque as almas inocentes desses pobres gentis-homens que, pelo que deduzo, encontram-se confinados por minha causa.

Se algum dia Sua Graça já tenha me guardado em seu coração - se algum dia o nome Ana Bolena tiver sido agradável aos seus ouvidos -, permita-me obter este pedido. Agraciando-me com ele, eu não mais importunarei Sua Majestade; partirei deste mundo rezando para a Santíssima Trindade pelo bem-estar de Sua Graça.

De minha lastimosa prisão na Torre, a 6 de maio.

ANA BOLENA."

Ela se sentiu melhor depois de ter escrito a carta. Guardaria o material de escrita para poder escrever de vez em quando. Contudo, estava preocupada, incerta de como a carta alcançaria o rei. Visualizou-a caindo nas mãos de Cromwell, o que era provável, porque ele a cercara com espiões. Eram parcas as chances de que a carta conseguisse chegar ao rei. Mas, se por boa sorte ela chegasse, Ana tinha certeza de que suas palavras iriam abalar Henrique. Ele, que um dia a reprimira por não escrever com frequência, decerto leria esta última carta.

Mas Ana estava temerosa, sentindo seu destino, conhecendo seu esposo bem demais, sabendo em que situação ele se encontrava, como ele precisava encontrar uma forma de desposar Jane Seymour e aplacar sua consciência. E pensando nesses assuntos, a esperança, que voltara a seu coração enquanto escrevia a carta, mais uma vez foi engolida por uma depressão profunda.

Smeaton jazia em sua cela. Não era mais um rapaz bonito. Os cachos negros de seus cabelos estavam emaranhados e emporcalhados com sangue e suor; suas feições delicadas tinham inchado com dor e tristeza. Parecia-lhe que havia apenas duas emoções no mundo: sofrer dor e não sofrer dor. Uma era agonia, a outra era bênção.

Ele mal se apercebera da atmosfera solene no tribunal, dos homens que aguardavam julgamento a seu lado. Respondera quando fora interrogado, dissera mecanicamente o que eles queriam ouvir, sabendo que não fazer isso seria convidar mais dor para o seu corpo.

- Culpado! - gritara. - Culpado! Culpado!

E diante de seus olhos ele vira, não o juiz e o júri, mas a sala escura na qual pairava o odor de sangue e morte, imiscuído ao cheiro de vinagre; viu a luz ténue, ouviu o crepitar assustador do funcionamento do ecúleo, sentiu novamente a dor excruciante de ossos sendo arrancados de seus encaixes.

Pudera apenas caminhar lentamente até o lugar que lhe fora designado. Cada movimento fora agonizante. Ele jamais conseguiria ficar ereto novamente; jamais conseguiria novamente caminhar a passos lépidos; jamais seus dedos sentiriam novamente um instrumento musical para tirar mágica dele.

Um homem grande e barbado aproximou-se de Smeaton quando ele estava deitado em sua cela e conversou com ele. Segurava um papel. Mandou Mark assinar o documento.

- Sabe qual é a recompensa justa dos traidores malnascidos, Mark?

- sussurrou uma voz em seu ouvido.

Não! Ele não sabia; ele não podia pensar; a dor furtara-lhe de seu poder de usar membros e mente.

Pendurado pelo pescoço, mas não para morrer. Estripado. Mark queria que ele prosseguisse? Mark não vira como os monges haviam morrido? Todos tinham sofrido mortes de traidores, e Mark era um traidor ainda maior do que eles haviam sido.

Dor! Ele gritou ao pensar nela; foi como se cada nervo em seu corpo gritasse em protesto. Um prolongamento daquela tortura que ele sofrera na masmorra sinistra? Não, não! Isso não!

Ele estava chorando, e o grande Fitzwilliam, debruçado sobre ele, sussurrou:

- Isso não é necessário, Mark. Isso não é nem um pouco necessário. Apenas escreva seu nome neste documento, e isso não irá acontecer com você. Não terá nada a temer.

Documento?

- Onde está? - indagou Mark, não "O que é?".

Ele não ousou perguntar isso, embora tenha tido a impressão de ver os lindos olhos negros da rainha a reprochá-lo. Não tinha certeza se estava na cela ou na câmara de visitas da rainha; ele estava tentando explicar-se a ela

"Ah, madame, não sabe as dores da câmara de tortura; são maiores do que a carne humana pode suportar."

- Assine aqui, Mark. Vamos! Deixe-me guiar sua mão.

- Depois o quê? Depois o quê? - gritou. - Não mais... não mais....

- Não mais, Mark. Tudo que precisa fazer é assinar o seu nome. Subscreva aqui, Mark, e verá o que ganhará com isso.

Mão guiada pela de Fitzwilliam, Mark colocou seu nome na declaração que fora preparada para ele.

Sir Francis Weston, o jovem bonito e rico, cuja esposa e mãe haviam oferecido ao rei um resgate imenso por sua liberdade, pôde encarar a morte mais estoicamente. O mesmo aconteceu com Sir William Brereton. Bonitos e elegantes, cheios de espírito de aventura, esses homens haviam chegado à corte; tinham visto outros serem executados em nome das desculpas mais fúteis. Viviam numa era de terror e estavam preparados para a sentença de morte desde o momento em que entraram na Torre. Não tinham culpa alguma, mas o que importava isso? Seu júri fora escolhido a dedo; e também os juizes; o julgamento resultante foi uma farsa; e eles detinham conhecimento suficiente para entender isso.

Lembravam-se de Buckingham, que fora para o cepo do carrasco aparentemente sob acusação de traição, mas verdadeiramente por seu parentesco de sangue com o rei. Agora eles, por sua vez, iriam morrer sob o machado do carrasco como traidores, enquanto o motivo verdadeiro era que o rei queria livrar-se de sua rainha atual para colocar no trono outra antes que ela dessa a luz a uma criança. Era brutal, mas era simples. A lei da corte era a lei da selva, e o rei dos animais era um leão devorador de gente que não poupava ninguém - homem ou mulher -, em seu afã de satisfazer suas necessidades egoístas.

Lembraram que eram gentis-homens; rezaram para que não se esquecessem disso, a despeito do que fosse lhes acontecer. Mark Smeaton cometera perjúrio e maculara sua honra; eles tinham certeza de que não afundariam tão baixo, a despeito do tormento que lhes fosse infligido. Tomavam como modelo seu companheiro mais velho, Norris, que, grave e estóico, encarou seus juizes.

- Inocente! - disse.

- Inocente! - ecoaram Weston e Brereton.

Isso de nada importou; eles foram considerados culpados e sentenciados à morte, todos os quatro; o machado do carrasco para três deles e o laço do enforcado para Mark, por conta de seu berço pobre.

O rei estava furioso com esses três homens. Como eles ousavam ficar em pé no tribunal, parecendo heróis, e declarar arrogantemente que não eram culpados! O povo era sentimental, e ele agradeceu a Deus que os cidadãos nunca tivessem gostado de Ana Bolena. Não iriam dizer uma única palavra em sua defesa agora; ficariam felizes em ver o fim da meretriz, da quase envenenadora, da feiticeira de poderes negros. Henrique agradeceu a Deus porque ninguém iria defendê-la. Seu pai? Oh, Thomas, conde de Wiltshire, não estava muito em evidência ultimamente. Estava doente e amargurado, e disposto a obedecer seu fei, temendo ser chamado para compartilhar do destino de sua filha e de seu filho. Norfolk? Não havia ninguém mais satisfeito que Norfolk com a derrocada de Ana Bolena. Eles brigavam há anos. Suffolk, o antigo inimigo de Ana, esfregava as mãos de felicidade. Northumberland? Que se danasse Northumberland! Doente e agonizante! Ele, um grande campeão! Northumberland deveria ser nomeado um dos juizes de Ana para ver o que acontecia àqueles que se opunham a seu rei. Esse homem já tivera problemas por causa de Ana antes; certamente iria ter de novo. Henrique não tinha nada a temer. Lord Rochford, aquele monstro maldito, estava seguro por trás de uma porta trancada, e o que ele tinha, além de uma língua venenosa, para defender a si próprio e à sua irmã? Ana pagaria um preço alto por rir do rei, primeiro enfeitiçando-o e depois enganando-o.

- Nunca mais, Ana - disse rancoroso. - Nunca mais eles beijarão seus lindos lábios, a não ser que gostem de beijá-los frios. Nunca mais verão juntos seu rosto lindo e seu corpo igualmente belo.

Uma praga sobre esses homens, que queriam passar-se por mártires! Estavam em pé, lado a lado, tendo suas vidas julgadas, e embora pudesse confiar em Cromwell para encontrar provas contra esses traidores, o povo murmuraria: "Tão jovens para morrer! Tão belos! Tão nobres! Como tanta bravura pode provir de homens culpados? E mesmo se eles forem culpados, quem jamais amara com imprudência na vida? Ora, até o próprio rei..."

Basta! Ele convocou Cromwell à sua presença.

- Vá até Norris! - comandou Henrique. - Eu gostava daquele homem. Ora, ele foi um amigo íntimo. Diga-lhe que sei o quanto a rainha é provocante. Diga-lhe que sei que ela podia ser irresistível quando queria. Vá até ele e lhe diga que serei misericordioso. Ofereça-lhe a vida em troca de uma confissão total de sua culpa Cromwell saiu, e retornou.

- Ah, Sua Clemente Majestade, como há súditos ingratos em seu reino!

- O que ele disse? - indagou Henrique.

Estava tremendo de medo em ouvir a resposta. Ele queria mostrar a confissão de Norris à sua corte; queria lê-la para o seu povo.

- A resposta foi a mesma que ele deu antes à Vossa Majestade. Ele preferiria morrer mil mortes a acusar a rainha, que é inocente.

Henrique perdeu o controle.

- Então enforque o homem! - gritou. - Enforque-o! Henrique saiu furioso da sala e pareceu ver a cabeça desprovida de corpo de More... e havia um sorriso escarninho naquela boca.

- Mil pragas contra todos os mártires! - murmurou Henrique.

A sala na qual Ana e seu irmão iriam ser julgados fora erguida apressadamente dentro do grande salão da Torre. Corajosamente, adentrou o recinto, olhou para a fileira de nobres que haviam sido selecionados pelo rei para julgá-la, e viu imediatamente que Henrique conseguira colocá-la diante de seus inimigos mais terríveis. O principal dentre eles era o duque de Suffolk, seu odioso rosto avermelhado reluzindo com prazer. Ali estava também o jovem duque de Richmond, que era firmemente contra ela porque tivera esperanças para o trono, por mais ilegítimo que ele fosse; ele foi influenciado por seu pai, o rei, e pelo duque de Norfolk, que se tornara seu sogro quando ele se casara com dama Mary Howard, a filha do duque.

Ana havia se preparado para a provação. Estava determinada a não perder a compostura diante de seus inimigos. Porém, quase perdeu o controle ao ver Percy no meio do júri convocado por Henrique. Ele olhou para ela através da sala, e para ambos pareceu que os anos tinham sido varridos para o limbo, que eram ambos jovens e apaixonados e que, da felicidade de uma salinha em Hampton Court, eles estavam dando uma espiada num futuro aterrorizante. Percy, fraco com seus defeitos físicos, ficou mortalmente pálido ao vê-la; mas ela levantou a cabeça ainda mais alto e sorriu arrogantemente, envergonhando-o com sua disposição em enfrentar qualquer destino que ávida lhe reservasse. Percy não era da mesma estirpe de Ana. Ele ficou tonto e desmaiou, caindo ao chão. Como ele poderia condenar aquela a quem jamais conseguira esquecer? E ainda assim, como ele não poderia condená-la, quando era o desejo do rei que ela fosse condenada? Percy não conseguiria enfrentar isso, assim como anos antes não conseguira enfrentar a ira de Wolsey, seu pai e o rei. A perspectiva privou-o genuinamente de sua saúde e ele teve de ser carregado para fora da sala do tribunal.

"Graças a Deus, meu pai não está entre os convocados para julgarme!", pensou Ana.

Ela temera que isso acontecesse; teria sido característico de Henrique forçá-lo a isso e característico de seu pai obedecer ao rei e enviar sua filha para a morte. Ela escapara da vergonha de ver a vergonha de seu pai.

Ela ouviu a lista de crimes pelos quais estava sendo julgada. Eles estavam dizendo que Ana traíra o rei com quatro homens e também com seu irmão. Estava sendo acusada de ter conspirado com eles contra a vida do rei. A engenhosidade de Cromwell até mesmo suprira as datas nas quais esses atos haviam ocorrido. Ela sorriu amargamente ao ouvir essas coisas, porque a primeira ofensa - supostamente ter estado com Norris - foi estabelecida para uma ocasião em que ela, tendo acabado de dar a luz a Elizabeth, ainda não deixara o resguardo.

Ao encarar seus querelantes, Ana pareceu ler as dúvidas que os atormentavam. Não havia nem mesmo um desses homens que não soubesse que ela estava ali porque o rei desejava substituí-la por Jane Seymour.

"Ó, justiça!", pensou Ana. "Se ao menos eu pudesse ter certeza da justiça!"

A decisão dos jurados não precisava ser unânime; uma maioria era o necessário para destruir Ana Bolena. Mas os olhos ardentes de Suffolk estavam olhando para aqueles a seu redor como se dizendo-lhes que esperava que nenhum deles desobedecesse os desejos do rei.

Lá fora nas ruas, onde homens e mulheres reuniam-se em grupos, a atmosfera era tempestuosa. Se Ana tivesse visto essas pessoas, teria ficado mais esperançosa. Muitos olhos choravam por ela, embora seus donos já tivessem falado mal da rainha. No apogeu do poder de Ana Bolena, eles haviam-na chamado de meretriz; agora eles não conseguiam acreditar que uma pessoa que se comportara com tamanha nobreza e coragem pudesse ser qualquer coisa senão inocente. Mães lembravam que ela tinha uma filhinha com pouco mais de três anos. Um destino terrível, trágico, pairava sobre Ana Bolena, e ela contava com a piedade do povo, assim como Catarina e Maria antes dela.

Suffolk sabia o que o povo estava pensando; ele sabia o que alguns dos jurados estavam pensando. Este era um reinado de terror. O rei bonachão removera sua máscara, desvelando um monstro capaz de assassinar e submeter a torturas desumanas as pessoas que se colocavam em seu caminho. Um homem precisava ser um louco para colocar seu corpo em tormento em benefício de Ana Bolena. Suffolk ganhou o dia quando eles pronunciaram a culpa da rainha.

- Condenada a ser queimada ou decapitada, segundo o prazer do rei! - declarou o duque de Norfolk, saboreando cada palavra como se elas tivessem um gosto muito doce a seu paladar.

O rosto de Ana não alterou sua cor; ela não piscou. Ana conseguiu fitar os olhos cruéis de seus inimigos e dizer, voz firme, cabeça erguida, olhos imperiosos:

- Deus ensinou-me como morrer, e ele fortalecerá minha fé. Ela sorriu arrogante para o grupo de homens.

- Estou propensa a crer que os senhores tiveram motivos suficientes para fazer o que fizeram mas devem ser outros que não aqueles forjados por esta corte.

Até Suffolk estremeceu ao ouvir essas palavras; até Norfolk virou a cabeça, envergonhado.

Mas a voz de Ana repentinamente embargou em lágrimas quando ela mencionou seu irmão.

- Quanto a meu irmão e aos outros que foram acusados injustamente, eu estaria disposta a sofrer muitas mortes para libertá-los.

O prefeito estava muito abalado, sabendo com certeza o que suspeitara antes: que eles não tinham encontrado nada contra Ana Bolena, apenas que eles tinham resolvido que era o momento de se livrar dela.

De volta a seus aposentos na Torre, Ana reviveu os momentos de seu julgamento repetidas vezes. Agradeceu a Deus pela força que possuía, rezou para que o Senhor sustentasse sua coragem.

Agora que Ana fora condenada à morte, Lady Kingston cedeu um pouco e permitiu que Mary Wyatt fosse visitá-la.

- Você não sabe o grande conforto que é para mim vê-la aqui, Mary - disse Ana.

- Você não sabe o conforto que sinto por vir - respondeu Mary.

- Não chore, Mary. Isto era inevitável. Não percebeu? Desde os primeiros momentos no jardim do Castelo de Hever... Ora, onde estou com a cabeça? Você não sabe a respeito daquela ocasião, nem eu desejo recordá-la. Ah, Mary, se eu tivesse sido boa, doce e humilde como você sempre foi, nada disto teria me acontecido. Fui ambiciosa, Mary. Quis uma coroa sobre a cabeça. Ainda assim, olhando para trás, não sei onde poderia ter escolhido outra estrada. Você não deve chorar, querida Mary, porque em breve terei superado toda a dor da vida. Mas chega de falar a meu próprio respeito. E quanto a George, Mary? Que notícias você tne traz sobre o meu querido irmão?

Mary não respondeu, mas as lágrimas que ela não conseguiu conter foram resposta suficiente.

- Ele se defendeu nobremente, isso você não precisa me dizer, Mary.

- De repente, os olhos de Ana brilharam. - Tenho certeza que ele deve ter aturdido seus querelantes. Mary, não lembra dos velhos tempos em Bliclding e Hever? Naquela vez em que ele recebeu um castigo merecido, meu irmão não foi convincente se defendendo? Mas desta vez... o que ele fez? Ele amou sua irmã. Um irmão não pode amar sua irmã sem que seja visto algum mal

nisso? Ah, George, desta vez em que era realmente inocente, você não conseguiu se salvar. Aqui não é Blickling, George! Aqui não é Hever! Estamos na corte maldita de Henrique VIII, meu esposo, que agora está prestes a me assassinar como assassinou você!

- Acalme-se - disse Mary. - Ana, Ana, você foi tão corajosa diante daqueles homens. Deve ser corajosa agora.

- Eu preferiria ser a vítima de um assassinato do que uma assassina. Fale-me sobre George.

- Ele foi nobre em sua defesa. Até Suffolk mal pôde acusá-lo. Houve muitas especulações na corte. As pessoas diziam: "Ninguém pode chamar esse homem de culpado!"

- E o que foi dito sobre... mim e George?

- Disseram o que você esperaria que eles dissessem! Jane estava lá., como testemunha contra ele.

- Jane! - Ana jogou a cabeça para trás e gargalhou. - Eu não gostaria de estar no lugar de Jane nos anos que estão por vir. Ela cometeu mentiras e perjúrios vis. Por... ciúme... ela levantou falso testemunho contra o próprio marido! Mas o que ela poderia ter dito sobre ele e eu? O que ela disse?

- Falou sobre uma ocasião em que apareceu em sua alcova enquanto vocês dois estavam na cama. Ele fora fazer-lhe algum pedido e a beijou. Disse pouco mais que isso. Foi uma vergonha. Eles não tinham nada contra ele. Eles não podiam declará-lo culpado, mas ele...

- Conte-me tudo, Mary. Não me esconda nada. Não sabe o que significa para mim ter você comigo finalmente, depois de ficar encarcerada por tanto tempo com mulheres que me odiavam? Seja franca comigo, Mary. Não esconda nada, que a franqueza é coisa de amigas.

- Deram-lhe um documento, Ana. Nele havia uma pergunta que eles não ousaram formular em voz alta, e ele....

- Sim? O que ele disse?

- Ele, sabendo que isso iria desagradá-los profundamente, leu em alto e bom tom o que estava escrito, de sua forma corajosa e impulsiva.

- Ah! Eu o conheço bem. Ele não nutria nenhum sentimento além de desprezo por aquele grupo de nobres selecionados... escolhidos pelo rei cujo único propósito é nos destruir... e demonstrou isso lendo em voz alta o que deveria ter ficado em segredo. Era sobre o rei? Mary fez que sim com a cabeça.

- Que o rei não era apto a ter filhos; que não havia qualquer virtude ou potência nele. Perguntaram-lhe se ele algum dia dissera essas coisas. E ele as leu em voz alta. Nenhum homem poderia ser permitido viver depois disso. Mas ele quis mostrar seu desprezo por todos eles. Quis mostrar que sabia ter sido condenado a morrer antes que seu julgamento começasse. Então disse que o rei queria que ele se declarasse culpado para que suas propriedades passassem para suas mãos. O rei poderia ter sua vida, mas não os seus bens.

- Oh, George! - gritou Ana. - E você me aconselhou tanto a não ser imprudente! Mary, nada posso fazer além de chorar, não por mim mesma, mas por meu irmão. Eu vim na frente, ele me seguiu. Devo ir para o cepo do carrasco para pagar por minha ambição desenfreada, por minha vaidade estúpida. Mas não deveria arrastar meu irmão comigo! Mary, eu não posso aguentar tanto sofrimento; é por isso que choro e estou arrasada. Mary, sente-se comigo, por favor. Fale-me sobre nossa infância. Thomas! E quanto a Thomas! Causa-me uma dor imensa pensar naqueles que amo e a quem arrastei para o desastre!

- Não lamente por Thomas. Ele não gostaria disso. Não gostaria de vê-la derramar uma única lágrima por ele, pois bem sabe que ele a amou profundamente. Temos esperança para Thomas. Ele não foi julgado com os outros. Talvez ele permaneça apenas como prisioneiro durante algum tempo, porque é estranho que não tenha sido julgado com os outros.

- Reze por ele, Mary. Reze para que este destino horrendo não caia sobre ele. Talvez eles tenham esquecido Thomas. Reze para que tenham esquecido Thomas!

Depois que Mary saiu, Ana jogou-se à cama. Sentia-se mais feliz. Prefiro meu fardo ao fardo do rei. Prefiro meu fardo ao fardo de Jane Rochford. Prefiro que seja a minha cabeça a rolar na palha do que a minha mão a acenar a ordem da execução.

Ela estava se preparando para uma jornada. Fora ordenada a se preparar para visitar o arcebispo de Lambeth. Ela deveria ir discretamente; aquela era uma ordem direta do rei. Ele não queria turbas histéricas à margem do rio para ovacionar a barcaça de Ana. Ele próprio recebera uma cópia da convocação, mas não queria ir; iria mandar seu velho porta-voz, o doutor Sampson, para representá-lo. Ficar face a face com Ana Bolena! Jamais! Havia lembranças demais entre os dois. E se ela tentasse usar suas bruxarias nele mais uma vez?

Henrique estava abalado. Vinha dormindo muito mal; costumava acordar assustado de pesadelos, chamando pelo nome de Ana e, com a neblina do sono ainda diante de seus olhos, achava que ela estava a seu lado. Ele despachara Jane Seymour para a casa de seu pai, que parecia o lugar mais adequado para ela estar. Ele não queria tê-la por perto durante os dias críticos, tendo anunciado que estava profundamente amargurado com a falsidade de sua esposa e não tomaria outra a não ser que o povo assim desejasse. Jane portanto não deveria atrair muita atenção. Sua condição - ainda que estivesse apenas no começo da gravidez - precisava ser considerada. Assim, Henrique ficava sentado sozinho, aguardando notícias de Lambeth. Enquanto isso, Ana, que quisera recusar a convocação, deixou a Torre e foi conduzida discretamente rio acima.

Foi conduzida até a cripta da residência do arcebispo. Ali, à sua espera, estavam Cranmer - parecendo atormentado mas decidido a cumprir seu dever -, Cromwell - mais feio e sinistro que nunca -, doutor Sampson, para representar o rei, e dois advogados, Wotton e Barbour, que, supostamente, estavam ali para representá-la.

Ela não estava naquele lugar há mais do que alguns momentos quando compreendeu qual era o motivo.

A voz de Cranmer estava macia como seda. Não havia um homem que pudesse apresentar um caso tão bem quanto ele. Sua voz quase acariciou Ana, expressando compaixão por seu estado infeliz.

Ela estava sob sentença de morte, para ser decapitada... ou queimada na fogueira.

Ele enfatizara a última palavra, ou Ana apenas imaginara isso? A forma como ele dissera fez Ana sentir medo e calor; teve a impressão de que as chamas já estavam calcinando sua pele.

A consciência do rei, prosseguiu Cranmer, atormentava-o profundamente. Ela firmara um contrato de casamento prévio com Northumberland! Isso, ela compreendia, tornava seu casamento com o rei ilegal.

- Northumberland negou isso perante os senhores! - gritou Ana.

- Os senhores mesmos aceitaram...

Cranmer estava calado e calmo; tão capaz de ajustar sua opinião à necessidade, tão inteligente, tão intelectual, tão impossível de se deixar confundir.

O próprio rei cometera uma indiscrição. Sim, Sua Majestade estava disposto a admitir uma associação com Mary Bolena, a irmã de Ana. Portanto, havia um parentesco entre Henrique e Ana.

Cranmer expôs as palmas como se dissesse: agora você entende a situação. Nunca foi casada com o rei!

Ela conseguiu manter a cabeça tão erguida na cripta de Lambeth quanto a mantivera na outra corte quando eles a tinham condenado. Eles iriam precisar de sua colaboração, não iam? Bem, jamais a teriam.

Cranmer ficou muito triste. Havia gostado muito de Ana, disse-lhe Cranmer;

Ela pensou: "Como eu odeio todos os hipócritas! Estúpida posso ser, mas hipócrita jamais. Como eu odeio você, Cranmer! Eu o ajudei a chegar à sua posição atual. A você também, Cromwell. Mas nenhum de vocês dois pensou em me ajudar! Mas a Cranmer eu odeio mais que a Cromwell, porque Cranmer é um hipócrita, e talvez eu odeie tanto esse defeito num homem porque sou casada com o hipócrita mais desavergonhado que já viveu."

Cranmer estava falando com sua voz grave e sonora. Ele tinha um dom para fazer insinuações sem pronunciar todas as letras. Ela estava pensando: "Eu tenho minha filhinha para considerar. Jamais deixarei que a chamem de bastarda."

Cranmer começou a baixar seu tom de voz. Estava insinuando a libertação de Ana. Havia um convento agradável na Antuérpia. E quanto aos jovens cujo destino ela lamentava e cuja inocência proclamava? Todo o país sabia o quanto ela estimava seu irmão, e ele a ela. Ela gostaria de vê-lo ir para o cepo do carrasco? E quanto à filha de Ana? O rei sentirse-ia mais inclinado a proteger uma criança cuja mãe o impressionara com seu bom senso.

A mente de Ana estava funcionando depressa. Seus pensamentos estavam dolorosamente claros. Caso o seu casamento com o rei fosse provado nulo, então Henrique nada mais iria querer dela. Ele poderia casar-se imediatamente com Jane Seymour se o seu matrimónio com Ana Bolena não fora válido. A criança que Jane carregava no ventre nasceria com pais legítimos. E por isto Ana recebia a oferta de um convento na Antuérpia, as vidas de seu irmão e daqueles homens inocentes que iriam morrer com ele. E se ela não fizesse... Mas uma vez ela sentiu o calor das chamas imaginárias a lamber-lhe os membros. E o que a sua recusa iria significar, em todo caso? Se o rei havia decidido deserdar Elizabeth, certamente iria fazê-lo. Ele sempre encontrara desculpas para tudo que queria fazer.

Ela tinha alguma coisa a ganhar e nada a perder, porque, se não havia sido casada com o rei, como ela pudera cometer adultério? O rei não poderia chamar de traição os casos de Lady Ana Rocheford e da marquesa de Pembroke.

O coração de Ana começou a se encher de esperança. Ela pensou: "George, meu querido irmão, eu o salvei! Você não irá morrer! Descarto a coroa com todo o prazer para poder salvá-lo!"

Cromwell retornou para o seu mestre esfregando com prazer suas mãos feias. Uma vez mais ele obtivera sucesso. O rei estava livre para escolher uma nova esposa quando quisesse, porque ele nunca fora casado com Ana Bolena. Ela própria concordara com isso.

Estava acabado. Eles a tinham enganado. Por ordem do rei, ela ficara em pé diante de sua janela para observá-los a caminho da Colina da Torre. Ana Bolena sacrificara em vão os direitos de sua filha. Embora ela não fosse rainha, aqueles homens tinham morrido. Não foi racional; não foi lógico; foi assassinato puro e simples.

A própria Ana tinha apenas mais um dia de vida. Mary Wyatt veio contar-lhe como aqueles homens nobres tinham morrido, seguindo o exemplo de George; como eles tinham feito seus discursos, que o protocolo exigia, como tinham enfrentado com bravura suas mortes.

- E quanto a Smeaton? - perguntou Ana.

Ela ainda pensava nele como um menino de olhos cândidos, e não podia acreditar que ele não iria dizer a verdade no cadafalso. Mary ficou em silêncio e Ana gritou:

- Ele não limpou meu nome da vergonha pública que me causou!

- Ela fitou em terror o rosto silencioso de Mary. Então, com muita tristeza na voz, disse: - Temo que a alma desse rapaz sofrerá muito por causa do falso testemunho que ele levantou.

De repente a expressão de Ana estava mais suave.

- Ah, Mary! Não demorará muito agora. Meu irmão e os outros se encontram agora, não tenho qualquer dúvida, diante do rosto do rei inaior, e eu irei segui-los amanhã.

Depois que Mary deixou a câmara, a tristeza de Ana retornou. Ela queria que eles não tivessem incutido-lhe esperanças na cripta de Lambeth. Ela havia se resignado a morrer, e então eles tinham lhe prometido a sobrevivência, e a vida era tão doce! Ela tinha 29 anos e era bonita; e embora estivesse se sentindo cansada da vida, quando eles haviam lhe permitido vislumbrar um futuro possível, como ela se sentira ávida por agarrá-lo!

Pensou em sua filha, e estremeceu. Três anos de idade... tão nova! Ela não iria entender o que acontecera à sua mãe. Deus, faça com que sejam gentis com Elizabeth.

Pediu que Lady Kingston viesse vê-la. Quando a mulher chegou, Ana trancou a porta e, com lágrimas correndo pelas faces, pediu que a dama se sentasse a seu lado.

Nem mesmo Lady Kingston poderia deixar de se sentir comovida diante de tanto sofrimento.

- É meu dever permanecer em pé na presença da rainha, senhora.

- Esse título não existe mais - foi a resposta. - Sou uma pessoa condenada, e não tenho mais qualquer posição nesta vida, mas, para o arejamento de minha consciência, peço-lhe que se sente a meu lado.

Ana começou a chorar, e suas palavras saíram incoerentes. Humildemente, ela se ajoelhou e implorou a Lady Kingston que fosse até Maria, a filha de Catarina, se ajoelhasse diante dela e rogasse para que ela perdoasse Ana Bolena pelos males que havia lhe causado.

- Porque, minha senhora Kingston, até que isso seja feito minha consciência estará atormentada.

Depois disso ela se sentiu mais em paz e não precisou expulsar da mente seus pensamentos sobre sua filha.

Ana recebeu a notícia de que sua morte não iria ocorrer na hora marcada; haveria uma postergação. Ela estivera quase alegre, mas saber que teria de passar mais algumas horas na Terra foi uma grande decepção.

- Sr. Kingston, soube que não morrerei antes do meio-dia, e isso me deixa muito triste, porque achei que a esta hora já estaria morta e livre de toda a dor.

- A dor será pouca-garantiu-lhe Kingston. - E será muito sutil. Ela respondeu:

- Disseram-me que o carrasco é muito bom, e tenho um pescoço pequeno.

Ela o abraçou com as mãos e riu. E quando sua risada acabou, uma grande paz tomou conta de seu espírito. Ela tinha mais um dia para viver e ouvira dizer que o rei queria que a hora de sua execução fosse mantida em segredo, e que não iria ocorrer na Colina da Torre, onde algum espectador casual poderia testemunhar sua morte, mas no jardim fechado. Aparentemente, o rei temia a reação do povo.

A noite transcorreu. Ela estava alternadamente alegre e melancólica. Chegou a brincar com o seu fim.

- Aposto que dirão que eu perdi a cabeça por causa do rei! Ela se ocupou escrevendo seu próprio poema fúnebre.

Ó morte,

embala-me em teus braços,

Nina-me ao descanso silente,

Liberta do meu peito amargurado o meu espírito inocente.

Toca os sinos funéreos

Para que anunciem minha morte;

Pois devo morrer,

Não há saída,

Devo morrer agora.

Ela se vestiu com tanto zelo que mais parecia estar indo a um banquete oficial do que ao cadafalso. Seu manto de damasco cinza, franjado com pele, era curto, e por baixo dele aparecia uma túnica escarlate. Trazia os cabelos entrelaçados com correntes de pérolas. Nunca estivera mais bela; as faces estavam rubras, os olhos reluzentes, e todo o sofrimento das últimas semanas parecera evaporar de seu rosto.

Auxiliada por quatro damas, entre elas sua amada Mary Wyatt, com muita dignidade e graça ela caminhou até o jardim diante da igreja de São Pedro. Lenta e calmamente, ascendeu os degraus até a plataforma que estava coberta por palha; e ela sorriu ao perceber que havia pouquíssimas testemunhas de seus últimos momentos; a hora e o lugar de sua execução tinham sido mantidos em segredo do povo.

Entre as pessoas que rodeavam o cadafalso Ana viu os duques de Suffolk e Richmond, mas não conseguiu sentir mais qualquer ódio por esses dois homens. Viu Thomas Cromwell, cujo filho mais velho estava agora casado com a irmã de Jane Seymour. "Ah", pensou Ana, "depois que minha cabeça tiver rolado na palha, ele saberá que uma barreira foi erguida, e que seu parentesco com o rei já é quase um fato consumado."

Ela chamou um homem que sabia ser um dos empregados pessoais de Henrique, e lhe pediu para enviar uma mensagem ao rei.

- Mande minhas lembranças ao rei, e diga-lhe que ele jamais deixou de promover a minha ascensão. De gentil-dama fez-me marquesa, de marquesa fez-me rainha, e agora que não resta uma posição mais elevada em honra para galgar, ele confere à minha inocência a coroa do martírio.

O mensageiro estremeceu. Ela era uma mulher prestes a enfrentar a morte, mas como ele poderia ousar conduzir uma mensagem como essa ao rei?

Depois de terminado o protocolo do cadafalso, Ana fez seu discurso de morte.

- bom povo cristão. Vim morrer neste lugar, de acordo com a lei, pois pela lei fui julgada para morrer, e portanto nada falarei contra ela...

As damas de honra de Ana choravam copiosamente. Ana ouviu seus soluços e sentiu-se profundamente comovida.

- Não pretendo agora acusar qualquer homem, nem falar qualquer coisa sobre aquilo de que me acusam, pois sei que qualquer coisa que eu pudesse dizer em minha defesa não seria de vosso interesse...

Quando ela falou sobre o rei, as palavras embargaram em sua garganta. Cromwell aproximou-se mais um pouco do cadafalso. Este era o momento que ele e o rei mais temiam. Mas, com a morte tão próxima, Ana não se importava mais com vingança. Ela se despira de toda amargura. Cromwell alteraria as palavras que ela falasse, não apenas de uma forma que agradariam mais ao rei, mas também de modo a não incutir na mente do povo a suspeita de que ela morria injustamente. O povo precisava ouvir que no final ela louvara o rei, que falara sobre ele como um príncipe misericordioso e um soberano gentil.

A voz de Ana clareou. Ela prosseguiu:

- Se um dia alguma pessoa vier a estudar a minha história, rogo que venha a ser justa para comigo. Agora despeço-me do mundo e de vocês, e peço, de todo o coração, que orem por mim.

Chegara a hora de Ana deitar a cabeça no cepo. Nenhuma das damas de Ana estava com as mãos firmes o bastante para remover os enfeites em seu cabelo; elas nada podiam fazer além de desviar os olhos do sofrimento de sua ama. Ana sorriu e soltou ela mesma os seus cabelos; então falou gentilmente com cada uma das damas, pedindo-lhes que não ficassem tristes e agradecendo os serviços que elas lhe tinham prestado. A Mary ela chamou a um canto e deu um livrinho de orações como presente de despedida, e sussurrou em seu ouvido uma mensagem de ânimo que ela deveria conduzir a seu irmão na Torre.

Então ela estava pronta. Deitou a cabeça no cepo. Seus lábios sussurravam seus próprios versos.

Adeus, prazeres do passado.

Sê bem-vinda, dor do presente.

É tão grande meu sofrimento

Que a vida não trará alívio.

Toquem agora os sinos funéreos

Meu doloroso réquiem,

Para que anunciem minha morte,

Que está bem perto.

Soe o réquiem dolorosamente,

Devo morrer agora.

Ela agora estava esperando, esperando pelo golpe rápido, aquela dor rápida e sutil.

- Senhor, tenha piedade de minha alma. Meu bom Deus...

Os lábios de Ana Bolena ainda se moviam quando sua cabeça caiu na palha.

A duquesa-mãe de Norfolk chorava caminhando em círculos no Solar Lambeth. Catarina Howard batia os punhos contra a cama, gritando de angústia. Sobre a cidade de Londres pairava um silêncio lutuoso. A rainha estava morta.

Em Richmond, o rei esperava pelo tiro de canhão que proclamaria o fim de Ana Bolena. Esperava ansioso. Estava aterrorizado com o que ela poderia dizer às pessoas que assistiam à execução. Ele sabia que o povo que nunca aceitara-a como sua rainha estava agora disposto a aceitá-la como mártir.

O cavalo de Henrique estava inquieto, ansioso por sair; porém não mais que o seu dono. E esse sinal que não tocava! O que aqueles estúpidos estavam fazendo? E se os amantes de Ana estivessem planejando um resgate? Estremeceu ao pensar nisso. Muitos homens haviam-na amado ternamente e ninguém sabia melhor que ele como era fácil render-se aos seus encantos. Ana mudara sua vida ao entrar nela; o que iria fazer ao sair?

Henrique visualizou os últimos momentos de Ana. Sabia que iria demonstrar grande coragem. Sabia que iria mostrar dignidade. Sabia que estaria bela o bastante para instilar piedade nos corações de todos que a vissem. Felizmente poucos tinham conhecimento da hora e do local da execução da rainha.

Ao redor de Henrique estavam seus cães e caçadores. Esta noite a caçada terminaria em Wolf Hall, mesmo que o cervo não os conduzisse até lá. Mas a espera estava sendo longa, e por mais que Henrique tentasse, não conseguia esquecer Ana Bolena.

Ele falou com sua consciência:

- Graças a Deus agora eu posso deixar Maria sem temer constantemente que ela encontre um fim terrível. Graças a Deus descobri o mal que se escondia no coração daquela meretriz.

"Agi corretamente", assegurava-se Henrique. Catarina sofrera por causa de Ana; Maria sofrera por causa de Ana. Graças a Deus ele descobrira isso a tempo! Graças a Deus ele voltara sua afeição para uma mulher mais merecedora!

O que os cidadãos iriam dizer quando ouvissem o tiro de canhão vindo da Torre? O que diriam de um homem que contraía matrimónio antes mesmo que o cadáver de sua esposa esfriasse?

Então ele ouviu um tiro de canhão vindo de longe. A sua boca se contorceu num desenho que misturava alegria e apreensão.

- Está terminado! - gritou.-Soltem os cães e sigamos em frente! Assim eles cavalgaram, para Wolf Hall, para o seu casamento com JaneSeymour.

 

NENHUMA OUTRA VONTADE SENÃO A DO REI

A DUQUESA-MÃE de Norfolk estava deitada na cama, muito triste. Uma nova rainha reinava no lugar de sua neta; uma criatura de faces pálidas que, praticamente desprovida de sobrancelhas, dava a imPressão de estar sempre surpresa; uma mulher submissa. E para colocá-la no trono o rei mandara a linda Ana Para o cePo do carrasco. Os sonhos da duquesa eram assombrados por sua neta, e ela acordava deles suada e trémula. Acabara de ter um desses sonhos, no qual imaginara ter estado entre esPectadores que assistiam Ana submeter seu lindo pescoço ao machado.

Ela começou a chorar em seus lençóis, vendo novamente Ana na corte, Ana em Lambeth; lembrou de favores prometidos dos quais agora jamais iria desfrutar. Na privacidade oferecida por sua alcova, a duquesa podia vociferar contra o rei:

- Gordo! Rude! Adúltero!

Henrique estava com 45 anos, e Ana, com apenas 29, perdera sua linda cabeça para que aquela Seymour pudesse se sentar no trono.

- Acautele-se, senhora Seymour - murmurou a duquesa. - Se não deres logo um filho ao rei, não conservarás a cabeça sobre os ombros por mais de um ou dois anos! E juro que estarei lá para ver o golpe do carrasco!

A duquesa começou a rir, lembrando que apenas uma semana depois do anúncio do casamento de Henrique com Jane, o rei, ao ver duas jovens lindíssimas, mostrara-se - e até mencionara o fato - arrependido de não tê-las conhecido antes de desposar Jane. com Ana não fora assim. Ela absorvera inteiramente a atenção de Henrique, e fora apenas quando não conseguira gerar um filho que seus inimigos haviam ousado tramar contra ela. "Compromissada a Servir e Obedecer." Fora esse o lema escolhido por Jane.

- Você irá servir, menina! - murmurou a duquesa. - Mas ainda não sabemos se gerará ou não um filho, e se não o fizer, não terá escolha senão obedecer caminhando humildemente para os braços do carrasco. Terá inimigos, assim como minha doce Ana os teve!

A duquesa enxugou os olhos e premiu os lábios ao pensar no homem que considerava como o maior desses inimigos, tanto para Ana quanto para ela mesma, um homem contra quem deveria manter-se continuamente em guarda: seu próprio enteado e tio de Ana, o duque de Norfolk.

Algumas das damas da duquesa chegaram para ajudá-la a se vestir. Eram umas meninas estúpidas. Ela as reprochou, por considerar suas mãos ásperas demais quando forçaram seu corpanzil para dentro de roupas pequenas demais para ele.

- Katharine Tylney! Essas suas unhas me arranharam toda! Você fez de propósito! Tome isso!

Katharine Tylney fez uma careta ao receber o golpe. O humor da velha duquesa estava muito ruim desde a execução da rainha, e a menor coisa a irritava. Katharine Tylney balançou os ombros olhando para as senhoritas Wilkes e Baskerville, as duas que também estavam ajudando a velha senhora a se vestir. Quando estavam fora do alcance dos ouvidos da duquesa, elas amaldiçoavam a velha, rindo de sua obesidade e têmpera, rindo porque, apesar de gorda, velha e feia, ela era vaidosa como uma mocinha, e precisava estar muito bem vestida e coberta de jóias a qualquer hora do dia.

Os pensamentos da duquesa voltaram-se para Ana, Jane e o rei. Pensou na falta de escrúpulos de Henrique, que não hesitara em recorrer ao assassinato para trocar uma pela outra. Pensou na astúcia de Cromwell, aquele bruto malnascido, e na crueldade de Norfolk e Suffolk.

Pensou e pensou, até ter a impressão de que, como sua neta, ela própria se encontrava à beira de um vulcão ativo.

A duquesa dispensou as mulheres e caminhou lentamente até a câmara de visitas para receber o primeiro visitante da manhã. Ela gostava de pompa e, como uma rainha, mantinha um séquito aqui em Lambeth como fizera em Norfolk. Ao entrar na câmara, viu uma carta pousada sobre a mesa. Ao aproximar-se, leu nela seu próprio nome. com a testa franzida de preocupação, ela olhou para a caligrafia, não a reconheceu, desdobrou a carta e começou a ler; e, à medida que leu, sentiu seus membros tremerem de raiva. Ela releu a carta.

- Isto não é verdade! - gritou em voz alta. Disse isso para convencer a si própria, porque não fazia muito tempo suspeitara daquilo que a carta dizia. -Não é verdade! - repetiu, furiosa. - Espancarei cruelmente quem redigiu esta carta. Imagine, minha neta comportar-se dessa maneira! Como uma criatura vil numa taverna!

Resfolegando, porque o menor esforço cansava-a, ela mais uma vez leu a carta, que sugeria que ela fosse discretamente aos aposentos das damas de companhia e visse, com os próprios olhos, que Catarina Howard e Francis Derham, que chamavam a si mesmos de marido e mulher, comportavam-se como tais.

- Debaixo do meu teto! - gritou a duquesa. - Debaixo do meu teto!

Ela tremia violentamente, pensando no que aconteceria se esse escândalo sórdido alcançasse os ouvidos de seu enteado.

Andou em círculos sem saber qual seria a melhor atitude a tomar. Lembrou-se de uma certa noite quando a chave dos apartamentos das damas não havia estado em seu lugar devido, e ela subira para encontrar as damas sozinhas, mas parecendo culpadas; lembrou de ter ouvido ruídos suspeitos na galeria. Houvera outra ocasião quando, ao entrar no quarto de costura, flagrara Catarina e Derham se agarrando.

Mandou chamar Jane Acworth; Jane estivera presente naquela ocasião no quarto de costura, e se fizera de cega enquanto Catarina e Derham comportavam-se impropriamente.

Os olhos de Jane brilharam de medo ao ver a ira da duquesa.

- Conhece esta letra?

Jane disse que não, não conhecia, e um tapa em seu rosto disse-lhe que era melhor pensar de novo. Mas Jane Acworth, ao ver os nomes de Catarina e Derhatn no papel, decidiu que não iria se comprometer. A letra, disse ela, indubitavelmente

fora disfarçada, e ela não tinha a menor ideia de quem poderia ter escrito a carta.

- Ponha-se para fora daqui! - vociferou a duquesa.

E, mais uma vez a sós, começou a caminhar em círculos. O que significava isto? Sua neta? Catarina Howard fora seduzida por um rapaz, que, embora de boa família, sendo aparentados com os Howard, era apenas um membro de um de seus ramos obscuros. Catarina, apesar de toda sua ignorância, apesar de ter-se comportado como um moleque na infância, era filha de Lord Edmund Howard. E se ela tinha realmente sido tão imprudente e estúpida, provavelmente arruinara suas chances de um bom casamento.

- Aquela vagabunda! - sussurrou a duquesa. - Como ousou permitir um homem em sua cama? Esse moço pagará com sua vida por isso! E ela... e ela... - A duquesa crispou as mãos. - Ela não imagina o que acontecerá quando eu lhe puser as mãos. Farei com que deseje nunca ter tomado tantas liberdades com o Sr. Derham. Farei com que deseje não ter nascido. Depois de tudo que fiz por ela...! Sempre disse a mim mesma que havia uma vagabunda em Catarina Howard!

Jane Acworth procurou por Catarina Howard. Alcançou-a prestes a ir ao pomar encontrar-se com Derham.

- Aconteceu uma coisa horrível - disse Jane. - Eu não queria estar no seu lugar!

- Do que está falando, Jane?

- Alguém escreveu para Sua Graça, contando tudo que você e Derham fazem.

Catarina empalideceu.

- Não!

- Sim! Sua Graça ficou iracunda. Ela me mostrou a carta e me perguntou se eu conhecia a letra. Jurei que não conhecia, mas em minha mente...

- Mary Lasseis! - sussurrou Catarina.

- Não posso jurar, mas é no que creio. Não devemos perder tempo. O que acha que acontecerá com você, Derham e todos nós?

- Não ouso pensar.

- Nós todas deveremos sofrer juntas por isso. Não duvido de que isso será o fim de nossos dias e noites agradáveis. A duquesa não pode ignorar isso, por mais que deseje. Eu não gostaria de estar em seu lugar, Catarina Howard, e certamente não gostaria de estar no lugar de Derham.

- O que você acha que farão com ele?

- Eu não tenho certeza, mas posso presumir. Dirão que o que ele fez com você foi criminoso. Talvez ele seja mandado para a Torre. Não, eles não o mandarão para o cepo do carrasco, porque assim todos saberão que ele seduziu Catarina Howard. Ele será levado para as masmorras e posto a ferros, ou talvez torturado até a morte. Os Howard são poderosos, e eu não gostaria de trocar de lugar com alguém que seduziu um membro de sua família!

- Por favor, não diga mais nada. Eu preciso ir!

- Sim. Vá e avise Derham. Ele não pode permanecer aqui para ser preso e condenado à Torre.

O medo deu asas aos pés de Catarina. Lágrimas derramaram-se de seus olhos e sua boca infantil tremia; ela não podia repelir de sua mente as imagens terríveis de Francis na Torre, aferroado, sofrendo uma morte lenta por causa de Catarina.

Ele a esperava no pomar.

- Você precisa fugir - disse a ele incoerentemente. - Não deve esperar. Alguém escreveu à Sua Graça, e irão mandar você para a Torre.

Ele ficou pálido.

- Catarina! Catarina! Onde ouviu essas coisas?

- Jane Acworth viu a carta. Sua Graça chamou-a para perguntar quem a escrevera. Estava lá... tudo sobre nós... e minha avó está furiosa.

Ousado e imprudente, muito apaixonado por Catarina, ele não queria pensar nessas coisas. Ele não podia fugir e deixar Catarina.

- Acha mesmo que eu iria deixá-la?

- Eu não suportaria se você fosse mandado para a Torre.

- Bah! - exprimiu. - O que nós fizemos? Não somos casados... marido e esposa?

- Eles não irão reconhecer isso.

- E o que tem isso? Nós somos marido e esposa. Isso é bom o bastante para mim.

Ele abraçou Catarina, e ela o beijou com um desejo que não era menos urgente por causa do perigo que se avizinhava, mas era ainda mais insistente. Ela segurou a mão do rapaz e correu com ele até aquela parte do pomar onde as copas das árvores formavam uma teia intrincada.

- Quero ficar o mais longe da minha avó que for possível. Ele disse:

- Catarina, não precisa ter tanto medo. Ela respondeu:

- Não é sem motivo. - Tomou o rosto do amado nas mãos e beijou-lhe os lábios. - Temo que não poderemos nos ver durante um longo tempo, Francis.

- O quê? - gritou, jogando-se na grama e puxando-a ao chão com ele. - Acha que alguma coisa poderia manter-me longe de você?

- Há uma coisa em mim que me incita a me afastar de você, e essa coisa é o meu amor.

Ela o abraçou forte, afundando a cabeça no gibão do rapaz. Ela estava vendo o corpo jovem e sadio de Francis acorrentado; ele a estava vendo ser tomada dele e entregue a algum nobre que seria considerado merecedor de ser seu marido. O medo concedeu um sabor novo à paixão do casal, e naquele momento de ousadia não se importaram se seriam descobertos ou não. Catarina sempre fora escrava do momento; Derham era obcecado como um zangão em seu voo de acasalamento; a morte não era barreira para o desejo.

O momento passou, e Catarina abriu os olhos para fitar o telhado de galhos, e sua mão tocou a grama fria que eles tinham por cama.

- Francis... Estou tão assustada...

Ele cofiou os cabelos castanhos de Catarina, que, iluminados pelo sol filtrado pelas folhas das árvores, estavam avermelhados.

- Não tenha medo, Catarina.

- Mas eles sabem, Francis, eles sabem!

Agora ele teve a impressão de sentir um metal frio atravessar-lhe a garganta. O que os Norfolk fariam com um homem que seduzira uma filha de sua família? com certeza decidiriam que ele não merecia viver. Em alguma noite escura, quando ele viesse a este mesmo pomar, braços talvez o agarrassem. Bateriam nele. Ele iria receber um golpe na cabeça, seguido por um segundo golpe para certificar que sua vida estava extinta. E então um corpo seria atirado ao rio. Ou ele seria acusado de traição? Era muito simples para os Norfolk condenarem por traição um homem pobre. A Torre... a temida Torre! Um homem ágil precisando amargurar o confinamento! Viver numa cela pequena quando se tinha o espírito de um aventureiro! Ter os braços algemados em grilhões pesadíssimos!

- Você precisa fugir daqui - disse Catarina.

- Quer que eu a deixe?

- Irei morrer de tristeza, mas não posso permitir que o machuquem. Não quero que você se lembre do amor entre nós como nada além do mais sublime deleite.

- Jamais poderia pensar em você sem sentir prazer.

Ela, que estava deitada, sentou-se de repente, assustada, - Acho que escutei...

- Catarina! Catarina Howard!

Era a voz da senhorita Baslcerville chamando por ela.

- Você precisa partir imediatamente! - gritou Catarina,

- Precisa deixar Lambeth. Precisa deixar Londres.

- E deixar você! Você não sabe o que está pedindo!

- Como não sei? Acha que quero perder você? Mas prefiro não tê-lo a meu lado a vê-los levarem você. Francis, acontecem coisas terríveis com os homens na Torre de Londres. Temo por você.

- Catarina!-chamou a senhorita Baskerville. -Venha cá, Catarina! Os olhos de Catarina imploravam a Francis que ele se fosse, mas o rapaz se recusava a deixá-la.

- Eu não posso deixar você!

- Irei com você.

- Se fizermos isso, eles irão nos encontrar imediatamente.

- Tem razão, se você me levasse, eles iriam nos achar. Eles iriam procurar por nós e trazer-me de volta e... oh, Francis, o que eles iriam fazer com você?

A senhorita Baskerville estava agora quase ao lado deles.

- Irei falar com ela - disse Catarina.

- Esperarei aqui até você voltar para mim.

- Não, não! Vá agora, Francis. Não espere. Alguma coisa me diz que cada momento é precioso.

Eles se abraçaram; beijaram-se longa e apaixonadamente.

- Esperarei aqui um pouco e torcerei para que volte para mim, Catarina - disse ele. - Não poderei ir antes de ter certeza de que esse problema irá passar.

Catarina deixou-o e correu até a senhorita Baskerville.

- O que aconteceu? - perguntou Catarina.

- Sua Graça quer vê-la imediatamente... você e Derham. Ela está possessa de raiva. Mandou que lhe levassem seu chicote. Algumas de nós fomos interrogadas. Ouvi dizer que Jane Acworth gritou em seu quarto. Acho que ela foi chicoteada... e que é tudo por causa de você e Derham.

- O que você acha que eles farão a Derham?

- Eu não sei. Não podemos fazer nada senão presumir. Estão dizendo que ele merece morrer.

Os dentes de Catarina começaram a bater.

- Por favor, me ajude - implorou. - Espere aqui um momento. Pode me dar um último momento com ele?

A moça olhou sobre o ombro.

- E se estiverem nos observando?

- Por favor! - gritou Catarina. -Um momento... Fique aqui... Chame o meu nome. Finja que ainda procura por mim. Juro que estarei com você num minuto.

Ela correu através das árvores até Derham.

- É tudo verdade! - gritou. - Eles irão matar você, Francis. Por favor, vá embora... Vá embora agora!

Ele estava completamente alarmado agora, sabendo que ela não estava assustada sem razão. Beijou-a novamente, considerou a ideia de levá-la com ele, consciente do quanto isso era absurdo, sabendo os percalços que ela ainda teria de enfrentar. Ele precisava deixá-la; o bom senso ordenava isso. Se ele desaparecesse, eles não tentariam encontrálo com muito afinco, preferindo deixar o assunto ser esquecido; com ele sumido, seria mais fácil abafar o caso. Além disso, ele poderia ainda conseguir manter contato com Catarina.

- Eu irei, mas primeiro me prometa que isto não será o fim disse Francis.

- Você acha que eu conseguiria suportar se fosse o fim?

- Escreverei cartas. Irá respondê-las?

Ela balançou a cabeça afirmativamente. Ela não era muito boa segurando uma pena, mas tinha certeza de que encontraria quem estivesse disposto a ajudá-la.

- Então vou deixá-la

- Não volte para casa em hipótese alguma, Francis. Não estará seguro lá. Já sabe para onde irá?

- Não tenho certeza ainda Talvez eu vá para a Irlanda, para me tornar pirata, fazer fortuna e poder voltar e reclamar Catarina Howard como esposa. Nunca esqueça, Catarina, que é isso que você é.

As lágrimas corriam pelas faces de Catarina. Ela disse com muita emoção:

- Jamais chegará o dia em que você dirá que eu o traí! Um último beijo; um derradeiro abraço.

- Não é um adeus, Catarina Jamais esqueça isso. Au revoir, doce Catarina Não esqueça a promessa que me fez.

Ela o observou desaparecer entre as árvores antes de correr de volta para a senhorita Baskerville. Temerosas, seguiram para a casa e para os aposentos da duquesa.

Quando a velha viu Catarina, seus olhos arderam em fúria. Agarrou-a pelos cabelos e empurrou-a contra a parede. Fechou a porta e pôs-se a gritar com a neta:

- Sua pequena prostituta! com idade tão tenra já cometendo indecências! O que você acha que fez? Tire esse olhar petulante da cara, vagabunda!

O chicote desceu violento rumo a Catarina enquanto ela se encolhia contra a parede. Contra seus ombros, coxas e pernas desceu o chicote. Não havia muita força nos golpes da duquesa, mas o chicote cortava a carne de Catarina e ela chorava, não pela dor, mas por Derham, porque não podia haver dor maior do que a perda de seu amado.

A duquesa atirou para longe o chicote e empurrou Catarina contra um sofá. Ela balançou a cabeça da garota, e fitou-lhe o rosto inchado pelo sofrimento.

- Então era verdade! - gritou furiosa a duquesa - Cada palavra era verdade! Ele esteve na sua cama em muitas noites! E quando alguém se aproximava ele se escondia na galeria! - A velha esbofeteou o rosto de Catarina, primeiro de um lado, em seguida do outro. - Que tipo de casamento você espera depois disso? Diga! O que pode querer Catarina Howard, cuja leviandade todos conhecem? - Bateu de novo em seu rosto. - Vamos casá-la com um carteiro ou um jardineiro!

Catarina estava histérica pela dor dos golpes e por sua preocupação com Derham.

- Mas você não se importaria! - vociferou a duquesa. - Para você um homem é tão bom quanto outro! Sua criatura vil!

A surra recomeçou. Catarina já chorara tanto que não tinha mais lágrimas.

- E o que acha que faremos com seu querido amante? Daremos uma lição ao pilantra. Mostraremos a ele o que acontece com aqueles que se arrastam sorrateiramente para as camas de suas superiores... ou que deveriam ser suas superiores...

E então vieram novamente as mãos adornadas com anéis pesados. O corpete de Catarina já estava esfarrapado, sua pele vermelha e ferida; e o chicote arrancara sangue de seus ombros.

A duquesa começou a sussurrar as coisas terríveis que seriam feitas a Francis Derham, caso viesse a ser capturado. Ela achava que tinha sido punida severamente? Bem, isso não iria ser nada em comparação com o que viria a ser feito com Francis Derham. Depois que tivessem terminado o serviço nele, o moço seria incapaz de se arrastar sorrateiro para as camas das donzelas. As lascivas, como Catarina, não encontrariam muito uso para ele, porque depois que o tivessem torturado... depois que o tivessem torturado...!

Saliva escorria dos lábios de Sua Graça; a liberação de veneno ajudou a reduzir seu medo. E se o duque ficasse sabendo daquilo? Ah, claro, a moral do próprio duque não podia resistir a um escrutínio cuidadoso, e já havia muitos escândalos na família Norfolk. E quanto à lavadeira Bess Holland que estava deixando uma duquesa de Norfolk irritada e enciumada? E quanto à própria rainha falecida, que tivera sangue Norfolk nas veias e fora acusada de incesto? Mas, estranhamente, aqueles que mais motivos tinham para não julgar os outros eram justamente os que o faziam com mais frequência e espalhafato. O próprio rei, que era um grande amante de vinho e mulheres, era o primeiro a condenar esse excesso em outros; e os cortesãos costumavam seguir o exemplo de seus reis! Se o duque soubesse disso, iria soltar sua risada sardónica e, com toda certeza, proferir perfídias sobre sua madrasta. Ela sentiu medo porque iriam culpá-la de negligência. A garota estivera sob sua guarda e ela permitira que um dano irreparável

fosse causado. E quanto às irmãs de Catarina? Um escândalo dessa magnitude derrubaria vertiginosamente suas chances no campo matrimonial. Portanto, não poderia haver qualquer escândalo, não apenas em benefício de Catarina, mas também de suas irmãs... e da duquesa-mãe de Norfolk. Ela abaixou o tom da voz; seus golpes ficaram mais fracos.

- Ora, algumas pessoas poderão pensar que as coisas chegaram mais longe do que chegaram realmente - disse a duquesa. - Ora, algumas pessoas estarão dispostas a dizer que houve intimidade completa entre você e Francis Derham. - Ela fitou o rosto da neta, mas Catarina mal ouviu o que lhe foi dito; muito menos compreendeu a importância das palavras. - Não obstante, Derham deverá sofrer! - prosseguiu, feroz, a duquesa.

A duquesa caminhou até a porta e chamou Mary Lassells e Katharine Tylney.

- Levem minha neta para seus aposentos. Ponham-na na cama. Ela precisa descansar um pouco.

As duas levaram Catarina. Mary Lasseis viu satisfeita que o corpo curvilíneo fora espancado com severidade.

"Ela mereceu!", pensou Mary Lassells.

Escrever para a duquesa fora uma atitude correta e apropriada Agora essa imoralidade chegaria ao fim. Nada mais de carícias e beijos naqueles membros alvos e macios. Mary Lasseis não sabia como conseguira contemplar aquele pecado todo por tanto tempo.

Em seus aposentos, a duquesa ainda tremia de agitação. Ela decidiu que precisava de conselhos, e pediu que seu filho, Lord William Howard, viesse vê-la. Quando ele chegou, a duquesa mostrou-lhe a carta e contou-lhe a história. Ele resmungou sobre damas lascivas que não podiam ser felizes enquanto não caíssem em pecado.

- Derham desapareceu - informou Sua Graça.

Lord William deu com os ombros. Ele achou que sua mãe estava conferindo importância excessiva a um fato trivial. Os homens e as mulheres jovens eram criaturas lascivas e sempre brincavam entre si. O fato de que Derham havia visitado o quarto de Catarina não era necessariamente um assunto digno de preocupação.

- Esqueça! Esqueça! - aconselhou Lord William. - Dê uma sova e passe um carão na mocinha. Quanto a Derham, deixe que vá embora. E reze para que nada disto chegue aos ouvidos do duque.

Era um conselho lógico.

Nenhum mal foi causado, disse a si própria a duquesa, que adormeceu serenamente na cadeira.

Mas ela acordou inquieta de seu cochilo, perturbada por sonhos com suas netas muito atraentes: uma, morta; a outra, vitalmente viva.

Então a duquesa tomou uma resolução, e esta ela estava determinada a cumprir, porque sentia que não apenas envolveria o futuro de Catarina Howard, como o seu. Catarina deveria ser mantida sob estrita vigilância; ela deveria receber instrução para deixar de agir como plebeia e se tornar uma dama. E algumas dessas mulheres, cujos modos a duquesa desaprovava, deveriam partir.

Desta vez a duquesa cumpriu suas resoluções. A maioria das jovens que compartilhavam do quarto com Catarina foi mandada para suas casas. Jane Acworth estava entre aquelas que restaram, visto que lhe fora arranjado um casamento com um Sr. Bulmer de York, e, pensou a duquesa, ela em breve iria embora de qualquer jeito.

A duquesa decidiu que deveria ver Catarina com mais frequência, para ensiná-la pessoalmente, embora precisasse reconhecer que dificilmente Jane Seymour iria encontrar um lugar em sua corte para a prima de Ana Bolena. Mas isso não importava. O essencial era fazer com que o passado desafortunado de Catarina fosse esquecido prontamente, e que a moça fosse preparada para contrair o tipo certo de casamento.

A princesa Maria achava que, desde que o rei deserdara sua mãe, o evento mais feliz que acontecera fora a morte de Ana Bolena. Maria estava com 20 anos, uma moça muito séria, com a amargura já marcada no rosto e um fanatismo emanando dos olhos. Estava desapontada e frustrada, perpetuamente na defensiva e movida por uma devoção fervorosa ao catolicismo. Era orgulhosa e a marca da ilegitimidade não abatera essa característica. Tinha amigos e defensores, embora, enquanto Ana Bolena havia vivido, essas pessoas não tivessem querido que sua amizade fosse conhecida. Mas agora os amigos e defensores da princesa Maria faziam menos segredo. O rei declarara que não escolhera uma esposa por satisfação carnal, mas apenas para garantir a perpetuação de sua nobreza. Fora por isso, dissera o rei, que ele escolhera uma mulher cuja idade e forma pareciam promissoras para a procriação. Sua escolha fora apoiada pelos imperialistas; ele escolhera Jane Seymour, que ainda era devota do velho catolicismo. Além disso, era sabido que Jane nutria grande afeto por Maria.

Como sempre, era necessário olhar para o chão antes de pisar. O rei mudara muito desde a morte de Ana; estava menos jovial; envelhecera consideravelmente e aparentava mais do que os seus 45 anos; não ria mais com a mesma frequência, e havia um brilho de culpa em seus olhos. As aventuras matrimoniais de Henrique até agora tinham sido fracassadas, e embora suspeitasse-se de que Jane já estava grávida desde antes da morte de Ana... bem, Catarina de Aragão engravidara muitas vezes sem qualquer resultado; e Ana também não lograra qualquer sucesso. O jovem Richmond, que era o único filho de Henrique, vinha cuspindo sangue desde a morte de Ana.

- Ana lançou um feitiço nele - disse Maria. - Ela queria matálo, assim como quis matar-me, e Richmond tem a sombra da morte em seu rosto.

E se Richmond morresse e Jane Seymour não desse um varão a Henrique? Elizabeth era agora uma bastarda, não menos que Maria.

- Está na hora da senhora se reconciliar com o rei - aconselharam os amigos de Maria.

- E difamar a minha mãe! - gritou Maria.

- A responsável pela posição de vossa mãe encontra-se agora igualmente deserdada e falecida. A senhora deveria tentar conquistar a amizade do rei.

- Não acredito que ele irá ouvir a mim.

- Há uma maneira de se aproximar dele.

- E que maneira é essa?

- Através de Cromwell. Não é apenas a melhor, mas também a única maneira possível para você.

O resultado foi que Cromwell foi visitar Maria no Castelo de Hunsdon, para onde ela fora banida Cromwell o fez animadamente, vendo bons motivos para voltar às graças da princesa Maria. Ele sabia que o rei jamais iria receber sua filha se ela não concordasse que o casamento de sua mãe fora ilegal e incestuoso; e se pudesse ser levada a admitir isso, Maria perderia a simpatia do povo. Havia muitos nobres na Inglaterra que deploravam o rompimento com Roma; que aguardavam silenciosamente por uma oportunidade para reparar a ligação com a Santa Igreja. Se eles conseguissem fazer isso, o que aconteceria àqueles que haviam lutado pelo rompimento? E não fora Thomas Cromwell o maior dos defensores do rompimento? Portanto, Cromwell muito teria a lucrar com a reconciliação do rei com sua filha.

Os olhos de Henrique consideravam a perspectiva exposta por Cromwell. Como ele odiava esse homem! Mas que grande trabalho ele vinha fazendo com as abadias menores, e trabalho ainda melhor viria fazer com as maiores! Se um dia haveria uma reconciliação com Maria, Cromwell tinha razão em pensar que este era o momento para fazê-la. Muitas pessoas consideravam que Mary fora maltratada. Os plebeus estavam particularmente prontos a interceder em seu benefício. Ele separara Maria de sua mãe, não permitira que ela visse Catarina em seu leito de morte. Ele não podia deixar de sentir sua consciência doer quando pensava em Maria. Mas, se realizasse uma reconciliação neste momento, ele próprio iria emergir dessa questão perigosa, não como um monstro, mas como um homem desorientado que estivera sob a influência malévola de uma meretriz e feiticeira. Ana, a mundana e quase envenenadora, poderia ser responsabilizada inteiramente pela forma como o rei tratara sua filha.

As pessoas iriam dizer: "Ora, tão logo a meretriz recebeu sua morte justa, o rei se reconciliou com sua filha!"

Uma morte justa! Henrique gostou dessa frase. Ele sofrera muitas noites insones recentemente. Ele acordara pensando que veria Ana a seu lado. Ele não conseguia dormir muitas horas seguidas por vez. Certa vez, sonhara com Ana olhando para um lago em Hever, e quando ele olhara também, vira a cabeça com seus cabelos negros e sangue vertendo do pescoço decepado.

"Uma morte justa!", pensou Henrique, complacente. E mandou Norfolk falar com sua filha no Castelo de Hunsdon.

- Diga à jovem que ela ê mimada e desobediente, mas que nós sempre estamos dispostos a perdoar aqueles que se arrependem.

Maria compreendeu que esperavam que ela negasse tudo que ela defendera anteriormente. Estava amedrontada com a tempestade que havia provocado, mas decidida a não voltar atrás.

- Minha mãe foi esposa legítima do rei - insistiu Maria. - Não posso dizer coisa alguma além disso!

Ela foi recordada ameaçadoramente que muitos tinham perdido as cabeças por dizer precisamente aquilo. Maria, que não era de se assustar fácil, tentou se convencer de que não poderia ir para o cepo do carrasco com a mesma facilidade como tinham ido Fisher e More.

Agora Maria podia ver que estivera errada ao acusar Ana pela forma como fora tratada. Norfolk foi rude com ela, insultando-a. Ela nunca fora tão humilhada enquanto Ana vivera. Ana chegara mesmo a implorar que elas enterrassem sua querela, e a garantir que, se Mary voltasse para a corte, seria tratada como uma igual e não como uma plebeia. Lady Kingston viera procurá-la com uma mensagem de Ana pedindo seu perdão e Maria dera com os ombros para isso. Perdão! Que direito a isso teria Ana Bolena?

Quando Maria morresse, ela decerto iria olhar para baixo e ver Ana ardendo no inferno. Ana cumprira os antigos rituais religiosos até o dia de sua morte, mas ouvira e até mesmo aplaudira as mentiras de Martinho Lutero, e por tal ato merecia a danação eterna. Maria não tinha um coração cruel; ela conhecia apenas dois caminhos:

o certo e errado, e o caminho certo era através da Igreja Católica Romana Nenhum católico verdadeiro arderia no inferno; mas esse era um destino do qual aqueles que não eram católicos não tinham como escapar. Mas agora Maria compreendia que, embora Ana certamente estivesse queimando no inferno por sua responsabilidade no rompimento entre Inglaterra e Roma, ela não podia ser totalmente culpada pelo tratamento dispensado pelo rei à sua filha mais velha. Maria decidiu então que, embora não pudesse perdoar Ana, ela iria ao menos ser o mais gentil possível com a filha de Ana.

Henrique ficou furioso quando as notícias foram levadas a ele. Ele esbravejou, dizendo que não podia confiar em Maria. Era um homem atormentado. Estava casado há poucos dias com Jane Seymour e já estava infeliz. Não podia esquecer Ana Bolena; estava insatisfeito com Jane; e estava furioso com Mary. A filha operando contra o pai! Ele não podia admitir isso! Convocou o conselho.

- Um homem não pode confiar nos seus parentes mais próximos! - gritou.

Um inquérito deveria ser realizado. Se ele descobrisse que sua filha era culpada de conspiração, ela deveria sofrer a penalidade dos traidores.

- Não admitirei mais desobediências! - esbravejou Henrique. Os traidores podem ser tratados de uma forma apenas, e, por Deus, garantirei que eles sejam tratados assim!

A tensão cresceu nos círculos da corte. Era sabido que, enquanto Ana vivera, Maria e sua mãe tinham mantido comunicações secretas com Chapuys; e que o embaixador tivera planos para-com o auxílio do imperador - colocar Catarina ou Maria no trono.

O rei, conforme era seu costume, escolheu Cromwell para fazer o trabalho sujo. O lacaio deveria ir secretamente às casas dos suspeitos e procurar provas contra a princesa.

A rainha foi ter com o rei.

- Por que vem me importunar? - resmungou o esposo recémcasado. - Não vê que estou ocupado com assuntos do reino?

- Sua Graciosa Majestade, vim falar-lhe - disse Jane, sem perceber que Henrique se encontrava num humor perigoso. - A princesa Maria sempre esteve presente em meus pensamentos, e agora que sei que ela se arrepende e deseja reaver seu afeto...

Jane não pôde prosseguir.

- Cale-se! - rugiu o rei. - E não se intrometa nos meus assuntos! Jane chorou, mas Henrique deu-lhe as costas. E em sua mente teve a impressão de ver um par de olhos negros rindo dele, e embora estivesse furioso, também estava sorumbático.

- Não há uma alma sequer em quem eu possa confiar - resmungou. - Os meus parentes mais próximos e aqueles que deveriam ser meus amigos mais queridos não pensam duas vezes antes de me trair!

Ávida de Maria corria perigo. Chapuys escreveu para ela, aconselhando-a a submeter-se à vontade do rei; era inseguro não fazê-lo. Ela precisava reconhecer que seu pai era o Chefe Supremo da Igreja; precisava concordar que sua mãe jamais fora realmente casada com o rei. Era inútil pensar que como filha de Henrique ela estava a salvo, porque não havia segurança para aqueles que se opunham ao rei. Chapuys aconselhou-a a pensar na última concubina do rei, a quem fora devotado exclusivamente durante muitos anos; Henrique não hesitara em manda-la para o cepo do carrasco; nem, em seu humor presente, hesitaria em mandar para a morte sua própria filha.

Mas o maniqueísta que Henrique se tornara sabia que sua popularidade caíra imensamente, quando se casara com Ana, e mais ainda quando a matara. E para que nível sua popularidade cairia se ele mandasse para a morte sua própria filha? A inimizade do povo - sempre um espectro negro pairando sobre sua cabeça, visto que ele não considerava sua dinastia sólida - parecia tão grande quanto estivera na época do rompimento com Roma. Ele instruiu Cromwell a escrever para Maria dizendo-lhe que se ela não abandonasse todas as suas crenças sinistras, perderia a chance de voltar às graças do rei.

Maria estava derrotada. Como até Chapuys era contra a sua rebeldia, ela cedeu, reconhecendo Henrique como Chefe Supremo da Igreja, admitindo que o papa era um impostor, e concordando que o casamento de sua mãe fora ilegal e incestuoso. Assinou os papéis que ele exigiu que ela assinasse e se retirou para a privacidade de seu quarto, onde chorou copiosamente, pedindo à sua santa mãe que a perdoasse pelo que fizera. Pensou em More e em Fisher.

- Ah! Bravos foram eles! - chorou.

Henrique ficou satisfeito. Em vez de uma filha recalcitrante, tinha uma filha obediente. Atormentado pela morte de Ana, ele queria assegurar a si próprio e ao mundo que agira com justeza ao se livrar dela. Era um homem de família; ele amava seus filhos. Ana ameaçara envenenar sua filha, sua amada Maria. Será que o seu povo não sabia que Ana tivera um destino justo? Não era mais Maria sua filha amada? Não importava que ela fosse ilegítima. Era sua filha e deveria vir para a corte. com a morte da meretriz que tentara envenenar sua filha, tudo ficaria bem entre ela e seu pai.

Jane estava jubilosa.

- Sua Majestade é o mais gracioso e clemente dos pais - disse a Henrique.

- O que diz é verdade, meu amor! - proclamou, sentindo-se bem com Jane, gostando novamente de sua pele branca e de seus cílios curtos. Ele a amava profundamente, e se ela lhe desse muitos filhos, ele iria amá-la ainda mais. Ele era um homem de família feliz.

Maria sentou-se à mesa real, a primeira em importância depois de sua madrasta, e ela e Jane tornaram-se as melhores amigas uma da outra. Henrique sorriu benignamente para elas. Havia paz em seu lar, porque sua filha obstinada não mais era obstinada. Tentou olhar para ela com amor, mas, embora sentisse afeto por Maria, não era um sentimento forte o bastante para ser chamado de amor.

Quando Jane pediu que Elizabeth também fosse trazida para a corte, Henrique disse que considerava isso justo.

- Se é o que você deseja, amor, será - disse, fazendo desse ato um favor para Jane.

Mas ele gostava de ver a criança. Ela era atraente e bem-humorada, e já possuía um toque da mãe.

- O rei gosta muito da jovem Elizabeth - diziam os cortesãos.

Quando morreu seu ilegítimo, o duque de Richmond, Henrique foi acometido por uma tristeza profunda. Declarou que Ana pusera-lhe um feitiço, porque não fazia senão dois meses desde que Ana fora executada, e desde esse dia Richmond começara a cuspir sangue.

Esse evento deixou Henrique ainda mais preocupado com a questão da sucessão. Estava perturbado porque o jovem Thomas Howard, meio-irmão do duque de Norfolk, ousara noivar, sem permissão de Henrique, com Lady Margaret Douglas, filha de Margaret de Escócia, irmã de Henrique. Isso fora realmente um crime negro. Henrique conhecia a ambição desenfreada dos Howard. Tinha certeza de que Thomas Howard aspirava ao trono através desse casamento proposto com sua sobrinha, e recordou mais uma vez o quanto era ténue o direito dos Tudor ao trono.

- Mandem o jovem Howard para a Torre! - gritou Henrique, e isso foi feito.

Ele também estava irritado com o duque, e Norfolk ficou aterrorizado, esperando que a qualquer momento fosse se juntar a seu meioirmão.

Se os Howard estavam perturbados, também Henrique estava. Ele odiava problemas internos mais ainda do que os problemas externos. O Henrique desse período era uma pessoa diferente daquele jovem que tivera a cabeça ocupada principalmente com jogos e caça de mulheres e animais da floresta. Viera ao mundo dotado com um físico e um cérebro invejáveis; mas como o físico fora magnífico e o cérebro simplesmente arguto, ele desenvolvera mais o primeiro que o segundo. Sendo um campeão nos esportes, não se dedicara a questões intelectuais. Amando seu corpanzil, cobrira-o

com jóias reluzentes, veludo e tecidos de ouro e prata. Em nome da glória de seu corpo ele pusera de lado a sua mente. Preocupara-se principalmente com a preservação e a conservação de sua própria pessoa, e como isso significava necessariamente a preservação e a conservação da Inglaterra, os assuntos do reino tinham se tornado importantíssimos para ele. Sob seu governo, a marinha inglesa crescera até atingir um tamanho formidável. Grandes quantias eram investidas anualmente na construção de novas naus e na manutenção daquelas já construídas. Ele queria separar a Inglaterra da Europa, provendo sua segurança. Embora não quisesse que a Inglaterra se envolvesse numa guerra, desejava inflamar Carlos e Francis a travarem outra, porque temia esses homens; mas temia-os menos quando lutavam um com o outro do que quando estavam em paz. Sua ideia principal era ter todos os seus inimigos potenciais lutando entre si enquanto a Inglaterra amadurecia da adolescência para a grande potência que Henrique sonhava torná-la um dia. Mas, para que isso viesse a acontecer, ele primeiro teria de ter paz em casa, porque sabia bem que não havia nada que enfraquecesse mais um país em crescimento do que uma guerra civil. Separar a Igreja da Inglaterra da Igreja de Roma fora uma atitude ousada, e o país ainda estava trémulo pelo choque. Muitos de seus cidadãos deploravam esse rompimento, e adorariam ver um reatamento com Roma. Inteligente e arguto, Henrique planejara um novo programa religioso. Nem por um momento ele quisera privar seus cidadãos dos ritos e cerimónias católicos que faziam parte de suas vidas. Mas a aceitação do povo de seu rei como Chefe Supremo da Igreja precisava ser uma questão de vida ou morte.

Portanto, paz interna e paz externa eram tudo que ele pedia para que a Inglaterra pudesse amadurecer dentro das melhores condições possíveis. Wolsey moldara-o para uma política muito parecida com a dele próprio. Wolsey acreditara que era dever da Inglaterra manter o equilíbrio do poder na Europa, mas fora menos qualificado que Henrique para alcançar esse objetivo. Wolsey carregara a culpa de aceitar subornos; nunca resistira a uma chance de aumentar os seus tesouros. Henrique não era tão cego a ponto de pôr em risco a posição da Inglaterra em troca de um ou dois presentes ofertados por poderes externos.

Henrique era tão ou mais ganancioso que Wolsey, mas tinha como necessidade primordial a preservação de sua própria pessoa através da Inglaterra. Henrique tinha os tesouros da Inglaterra a seu dispor, e neste momento estava considerando muito frutífera a dissolução das abadias. Wolsey jamais esquecera sua aliança com Roma; Henrique não nutria essa lealdade. com Wolsey fora Wolsey primeiro, a Inglaterra em segundo; com Henrique, a Inglaterra e Henrique significavam a mesma coisa. Cromwell acreditava que a Inglaterra deveria aliar-se a Carlos, porque Carlos representava o maior poder da Europa, mas Henrique não estava disposto a associar-se nem com Carlos nem com Francis, aferroando-se à sua política de preservar o equilíbrio do poder. Nem Wolsey nem Cromwell poderiam ser tão fortes quanto Henrique, porque esses dois sempre haviam sido assombrados por um temor, e esse temor era Henrique. Por conseguinte, Henrique gozava de maior liberdade de ação; podia tirar vantagem da ação repentina; podia fazer o que quisesse, sem precisar pensar em que desculpa se apoiar caso sua ação fracassasse. Era uma grande vantagem no jogo sutil em que ele se exercitava.

Refletindo sobre o passado, Henrique podia ver para onde sua preguiça o havia levado. Ele travara guerras que não haviam dado nada à Inglaterra e tinham drenado seu poder e riquezas. Assim, a riqueza acumulada com tanta cautela por seu pai ranzinza desaparecera gradualmente. Havia o exemplo do Campo do Tecido de Ouro, sobre o que ele podia agora refletir através dos olhos de um homem mais sábio e experiente, e ficar chocado com sua carência de senso político na época. Os reis que esbanjavam o sangue e os tesouros de seus súditos também esbanjavam sua afeição. Podia ver agora que fora por causa de seu pai que a Inglaterra se tornara uma potência na Europa, e que com o desaparecimento da riqueza acumulada por seu pai também desaparecera o poder da nação. Em meados dos anos 20 a Inglaterra praticamente não exercera importância alguma na Europa, e a Irlanda gerava muitos problemas internos. Quando Henrique falara sobre divorciar-se de sua rainha e passara a viver abertamente com Ana Bolena, seus súditos haviam murmurado contra ele, e a mais temida de todas as calamidades para um rei sábio - a guerra civil - ameaçara mostrar sua cara feia. Nessa época Henrique mal fora verdadeiramente um rei. Contudo, quando rompera com Roma, ele sentira sua força, e esse fora o começo de Henrique VIII como um verdadeiro regente.

Ele agora continuaria a reinar, e a força bruta seria seu mérito. Nunca mais qualquer outra pessoa que não o rei iria governar o país. Ele estava atento; os súditos também estavam atentos. Eles temiam sua fúria, mas Henrique era dotado de sensatez suficiente para entender a sabedoria daquele comentário de seu embaixador espanhol: "Aquele que muitos temem, teme muitos." E Henrique temia muitos, ainda que muitos o temessem.

A maior fraqueza de Henrique tinha raízes em sua consciência. Ele era o que os homens chamavam de um homem religioso, o que em seu caso significava um homem supersticioso. Jamais houve homem menos cristão que Henrique; jamais homem que fizesse mais questão de exibir sua religiosidade. Era cruel, brutal, impiedoso. Esse era o seu credo. Era um egoísta, um megalomaníaco; via a si próprio não como o centro da Inglaterra, mas do mundo. Em sua própria opinião, tudo o que fazia era certo; apenas precisava de tempo para ver o que fizera através de sua perspectiva pessoal, e então ter certeza de que agira com justiça. Ele extraía sua força dessa crença em si próprio; e quanto mais forte era essa crença, mais forte era Henrique.

Uma das maiores fraquezas de sua vida fora o sentimento nutrido por Ana Bolena. Mesmo agora, depois que ela morrera sob suas ordens, quando suas mãos estavam sujas com seu sangue inocente, quando em seus pensamentos via o corpo mutilado da mulher a quem um dia amara, quando sabia que se ela voltasse à vida ele faria tudo igual, Henrique não conseguia esquecê-la. Ele a odiara violentamente, apenas porque havia-a amado. Ele a matara por força de um ciúme apaixonado, e ela o assombrava. Havia vezes em que Henrique achava que jamais conseguiria esquecê-la. Até o fim de sua vida, Henrique tentaria esquecê-la. Por enquanto, estava tentando da forma mais óbvia, através de mulheres.

Jane! Ele gostava muito de Jane. Que egoísta não gostaria de uma mulher que lhe mostrava continuamente que ele era exatamente como desejava que as pessoas o vissem? Sim, ele gostava de Jane, mas ela o irritava. Jane deixava-o louco porque ele sempre sabia exatamente o que iria dizer; ela se submetia humildemente a seus abraços, e ele percebia que ela fazia isso porque considerava esse seu dever. Jane incomodava-o porque lhe oferecia aquela paz doméstica que sempre fora seu objetivo, mas só que, agora que a alcançara, considerara-a terrivelmente insípida. Jane enfurecia-o porque ela não era Ana.

Além disso, ela já o havia desapontado. Ela tivera seu primeiro aborto, e o motivo pelo qual ele fora forçado a livrar-se tão rapidamente de Ana, a recorrer a todos os tipos de subterfúgios para pacificar seus súditos, a dizer a seu povo que foram seus nobres que o incitaram a desposar Jane antes mesmo que o corpo mutilado de Ana tivesse esfriado, no fim das contas revelara-se um motivo inútil. Henrique poderia ter esperado alguns meses; poderia ter permitido que Cromwell e Norfolk o persuadissem; poderia ter contraído o matrimónio com Jane de uma forma mais digna. Era irritante.

Também era assustador. Por que todas as suas esposas haviam tido abortos? Pensou na estirpe do velho duque de Norfolk, primeiro com uma esposa, depois com outra. Por que o rei deveria ser amaldiçoado? Primeiro com Catarina, depois com Ana. A Catarina ele descartara; a Ana ele decapitara; ainda assim, ele se encontrava casado genuinamente com Jane, porque não estivera vivendo com nenhuma das outras duas quando desposara Jane; portanto, ele não poderia ter feito nada errado. Se havia desagradado a Deus ao se casar com Ana enquanto Catarina vivia, ele podia entender isso; mas ele fora um viúvo genuíno ao se casar com Jane. Não, ele estava preocupado sem motivos; ele iria ter outros filhos com Jane, e se não tivesse... bem, por que ele se livrara de Ana, afinal?

Em sua câmara em Windsor, Henrique pensava nesses assuntos quando percebeu um distúrbio no átrio abaixo de sua janela. Ao olhar para fora viu que um mensageiro estava à sua porta com notícias de que certos homens vinham a todo galope falar com o rei, porque tinham novidades alarmantes para ele.

Ao serem trazidos, eles se ajoelharam diante de Henrique.

- Senhor, trememos ao trazer essas notícias para Sua Majestade. Viemos a todo galope contar-vos que problemas começaram, pelo que ouvimos, em Lincoln.

- Problemas! - gritou Henrique. - Que tipo de problemas?

- Meu senhor, aconteceu quando seus homens chegaram a Lincoln para cuidar das abadias de lá. Houve um distúrbio, e dois deles foram mortos. Foram espancados, imagine Sua Majestade, até a morte.

O rosto de Henrique estava púrpura; seus olhos brilhavam.

- O que significa isso? Rebelião? Quem ousa rebelar-se contra o rei?

Henrique estava estarrecido. Será que ele conduzira o país para longe da guerra civil apenas para vê-lo ruir exatamente quando ele se congratulava por sua força? O povo, particularmente aquele do norte, desaprovara o rompimento com Roma. E a pilhagem das abadias fora a gota dágua que os incitara à ação. Bandos de pedintes já se formavam em todas as partes do país; aqueles que haviam tido por certos a comida e o abrigo proporcionado pelos mosteiros agora estavam desolados, e só havia uma forma para um homem sem teto sobre a cabeça alimentar-se na Inglaterra de Tudor, e essa forma era roubando dos outros. Por todo o país já se espalhavam hordas de homens famintos desesperados, e a suas fileiras somavam-se os monges e as freiras destituídos. Havia mais distúrbios no norte do que no sul porque os homens mais afastados da presença de Henrique podiam temê-lo menos. Assim, desaprovando o rompimento com Roma, nutrindo compaixão pelos monges, sentindo falta dos monastérios, essas pessoas haviam decidido que algo deveria ser feito. Elas tinham sido apoiadas pelos lavradores que, devido aos decretos dos enclausures, e da política de transformar terra arável em terra de pasto, tinham ficado sem casa. Lord Darcy e Lord Hussey, dois dos nobres mais poderosos do norte, sempre haviam apoiado a velha fé católica; portanto, os rebeldes sabiam que tinham esses homens às suas costas.

Henrique ficou furioso e apreensivo. Sentiu que essa iria ser uma grande provação. Se emergisse dela triunfal, lograria uma vitória estupenda e provaria ser um grande rei. Dois caminhos jaziam à sua frente. Ele poderia reatar com Roma e assegurar a paz em seu reino; poderia lutar contra os rebeldes e permanecer não apenas chefe da Igreja mas verdadeiramente chefe do povo inglês. Escolheu o segundo curso. Iria arriscar sua coroa para sufocar os rebeldes.

Isso significava reconciliação com Norfolk, porque onde quer que existisse uma guerra para ser travada, Norfolk precisava ser tratado com respeito. Ele iria mandar Suffolk para Lincoln. Henrique esbravejou com aqueles seus conselheiros que o advertiram para não se opor aos rebeldes. Ele lembrou-lhes que estavam compromissados em servi-lo com suas vidas, terras e bens.

Jane estava com medo. Ela era muito supersticiosa e, para ela, aquilo parecia um reproche direto dos céus contra a pilhagem sacrílega de Cromwell.

Ela foi até o rei, ajoelhou-se diante dele e manteve a cabeça baixa para não ver seus olhos inflamados.

- Meu senhor e esposo, ouvi as notícias. Temo que isso seja um castigo contra nós, por termos invadido as abadias. Sua Graciosa Majestade não poderia considerar a devolução dos pertences dessas abadias?

Durante alguns segundos Henrique ficou mudo de ódio. Ele viu Jane através da névoa vermelha em seus olhos, e quando falou sua voz saiu como uma trovoada.

- Levanta!

Ela ergueu olhos aterrorizados para o rosto de Henrique e se levantou. Ele se aproximou dela, respiração ofegante, dentes rangendo.

- Já não lhe disse para nunca se meter com meus assuntos? - disse muito lenta e deliberadamente.

Lágrimas desceram dos olhos de Jane; ela estava pensando em todas aquelas pessoas que vagavam pelo país sem um teto para cobrirlhes as cabeças; pensou nas criancinhas chorando por leite. Visualizou-se como uma rainha bondosa salvando o povo de uma calamidade terrível; e seus amigos, que ansiavam por um retorno às tradições antigas, regozijando-se com a restauração dos monastérios, e muito felizes com ela. Jane achava que era seu dever reconciliar o rei com Roma, ou pelo menos desviá-lo da maldade que se espalhara pelo mundo desde que Martinho Lutero fizera ouvir sua voz.

O rei apertou com violência o ombro de Jane, e aproximou seu rosto do dela.

- Já esqueceu o que aconteceu à sua predecessora? - indagou Henrique, ameaçador.

Jane fitou-o horrorizada. Ana tinha sido mandada para o cepo do carrasco porque fora culpada de alta traição. O que ele estava querendo dizer com isso?

Os olhos de Henrique estavam inflamados e cruéis.

- Pois não esqueça! - avisou o rei, e empurrou-a para longe.

Os homens do norte tinham seguido o exemplo dos homens de Lincolnshire. Isto não era um mero distúrbio; às fileiras da Peregrinação da Graça juntavam-se homens respeitados das províncias. O mais inspirador de seus líderes era um certo Robert Aske, e este homem, cuja integridade e honestidade de propósito eram bem conhecidas, tinha um talento para a organização; ele era um comandante nato, e sob seu comando os rebeldes do norte compuseram-se numa força formidável.

Henrique sabia perfeitamente bem o quanto era formidável. O inverno estava começando e ele não tinha um exército preparado. Agiu com visão e argúcia. Convidou Aske para discutir o problema.

Não ocorreu a Aske que alguém tão genial quanto Henrique poderia não ser tão honesto quanto o próprio Aske. Henrique cobriu o líder com toda sua camaradagem. Aske queria espalhar sangue sobre a Inglaterra? Claro que Aske não queria isso. Aske queria apenas aliviar o fardo do povo que

sofria. Henrique deu um tapinha afetuoso nas costas do homem. Ora, então Aske e o rei nutriam os mesmos interesses! Por que estavam brigando, afinal? Tudo que eles precisavam fazer era encontrar uma forma mutuamente satisfatória de fazer o que era certo para a Inglaterra.

Aske retornou para Yorkshire para contar as promessas verbais do rei. Os insurgentes debandaram. Fez-se uma trégua entre o norte e o rei.

No movimento havia homens menos calmos que líderes como Aske e Constable, e a despeito da crença de Aske nas promessas do rei, ele não pôde impedir um segundo levante.

Isto concedeu a Henrique uma desculpa para o que se seguiu. Ele decidira por essa ação antes mesmo de ver Aske; suas promessas para o líder tinham sido feitas com o propósito de ganhar tempo, de reunir forças, de esperar até o final do inverno. Ele jamais abriria mão da política que adotara e que continuaria a seguir até o final de seu reinado. Era força bruta e seu próprio governo absoluto e inquestionável.

Ele decidiu dar um exemplo sangrento e mostrar a seu povo o que acontecia àqueles que se opunham ao rei. Ao norte partiu Norfolk e o derramamento de sangue começou. Darcy foi decapitado; Sir Thomas Percy foi levado para Tyburn e enforcado; homens honestos que tinham pensado na Peregrinação da Graça como um movimento sagrado foram enforcados quase até a morte, cortados vivos e esvicerados, tendo suas entranhas queimadas enquanto ainda viviam; e finalmente sido decapitados. Aske aprendeu tarde demais que aceitara as promessas de um homem para quem uma promessa não era nada além de uma ferramenta a ser usada quando preciso e esquecida depois de servir a seu propósito. A despeito de seu perdão, ele foi executado e aferrado numa das torres de York para que todos pudessem ver o que era feito com os traidores. Constable foi levado para Hull e enforcado no portão mais alto na cidade, um aviso sinistro a todos que o viam.

O rei lambeu os beiços ao ouvir o relato das crueldades feitas em seu nome.

- É assim que devem morrer todos os traidores! - rugiu, e alertou Cromwell contra a clemência, sabendo muito bem que podia deixar o trabalho sujo para aquelas horríveis mãos.

Os países do continente, ao ouvir sobre os problemas internos do rei da Inglaterra, ficaram na ponta dos pés, esperando, observando. O inimigo declarado de Henrique, o papa Paulo, expressou publicamente sua satisfação. Os inimigos secretos de Henrique, Carlos e Francis, embora discretamente silentes, ficaram igualmente deliciados.

O papa, profundamente magoado com esse rei que ousara estabelecer um exemplo que ele temia ser seguido por outros, começou a planejar. E se a revolta contra Henrique fosse nutrida fora da Inglaterra? Reginald Polé estava no continente. Ele deixara a Inglaterra por dois motivos: em primeiro lugar, não aprovava o divórcio e o rompimento com Roma, e em segundo, sendo o neto daquele duque de Clarence que fora irmão de Eduardo iy estava perto demais do trono para viver em segurança na Inglaterra. Reginald escrevera um livro contra Henrique, e Henrique, fingindo interesse, sugerira a Polé que retornasse à Inglaterra para que pudessem discutir suas diferenças de opinião. Mas Polé não era uma mosca inocente para voar para a teia da aranha. Ele declinou da oferta do soberano. Em vez de ir para a Inglaterra, partiu para Roma, onde o papa nomeou-o cardeal e discutiu com ele um plano para atiçar as chamas que nesta época surgiam no norte da Inglaterra. Se Polé conseguisse destronar Henrique, por que ele não poderia desposar a princesa Maria, restaurar a Inglaterra ao papado e reger como seu rei?

Henrique agiu com astúcia e ousadia. Exigiu de Francis a extradição de Polé, para que ele pudesse ser mandado para a Inglaterra e julgado como traidor. Francis, que não queria desafiar o papa nem irritar Henrique, ordenou a Polé que deixasse seus domínios. Polé partiu para Flandres, mas Carlos estava tão relutante quanto Francis em desagradar o rei da Inglaterra. Polé precisou assumir um disfarce.

A postura dos dois monarcas mostrou claramente que eles nutriam um grande respeito pela ilha na costa da Europa, porque nunca um representante do papa fora tão humilhado.

Henrique podia ronronar de prazer. Ele estava sendo tratado com respeito no exterior e tinha esmagado uma revolta que ameaçara o seu trono. A coroa estava a salvo dos Tudor, e a Inglaterra estava a salvo da guerra civil. Ele sabia como governar o seu país. Ele tinha sido forte e emergido triunfante da situação mais perigosa que pairara sobre seu reino.

Mas ele recebeu ainda mais boas notícias. A rainha estava mais pálida que cfusual; sentia-se enjoada; tinha desejos por comidas especiais.

Henrique estava eufórico. Mais uma vez ele tinha esperanças de conseguir um filho.

Embora Henrique estivesse estourando de alegria, Jane tinha o coração cheio de medo. Jane tinha muitas coisas das quais sentir medo. A provação de dar a luz a uma criança a aguardava. E se ela não lograsse sucesso? Deitada em sua cama nos aposentos de Hampton Court que o rei planejara carinhosamente para Ana Bolena, Jane refletia sobre esses assuntos. Por sua janela podia ver as iniciais entrelaçadas em pedra: J e H, e onde estava agora o J um dia houvera um A, e o A fora retirado muito repentinamente.

O rei estava com excelente humor, certo de que desta vez iria ganhar um filho. Ele caminhava ruidosamente pelo palácio, comendo e bebendo com grande voracidade. Além disso, caçava sempre que sua perna não doía a ponto de impedi-lo.

Se Jane me der um filho, finalmente conhecerei a felicidade, disse a si mesmo.

Henrique garantia a si próprio que agira corretamente em cada coisa que fizera. Fora justo ao livrar-se de Catarina, que jamais fora verdadeiramente sua esposa; fora justo ao executar Ana, que tinha sido uma feiticeira; fora justo ao desposar Jane.

Fitando a pobre criatura pálida, acautelou-a a cuidar de si mesma, e a ameaçou dizendo que ficaria extremamente descontente se ela não se cuidasse. E toda a preocupação de Henrique não era pelo corpo frágil da esposa, mas pelo herdeiro que ele continha.

O verão quente passou. Jane ouviu falar das execuções e sentiu um arrepio. E sempre que olhava por suas janelas via aquelas iniciais. O J parecia tomar a forma de um A quando ela olhava, e então tornava a forma de uma outra coisa, borrada e indistinta.

A peste açoitou Londres, levantando-se dos esgotos fétidos e do lixo que se acumulara nas margens do rio depois que a maré baixara. As pessoas morriam como moscas em Londres. A morte se avizinhou de Jane Seymour durante aqueles meses.

Ela estava abatida. Sentia-se muito fraca, embora não ousasse mencioná-lo por temer enfurecer o rei. Sentia medo por si mesma e pela criança que carregava. Vinha nutrindo dúvidas sobre a execução de Ana, e seus sonhos começaram a ser assombrados por visões. Jane não podia esquecer de uma ocasião em que Ana flagrara a ela e ao rei juntos. Naquele momento Ana devia ter sentido o mesmo medo, a mesma angústia que Jane sentia agora, porque também estava grávida naquela época.

Jane não podia esquecer as palavras que o rei usara com ela mais de uma vez:

- Não esqueça do que aconteceu com a sua predecessora!

Não havia necessidade de pedir a Jane que se lembrasse de algo que ela jamais iria conseguir esquecer.

Jane passou a seguir mais rigorosamente os rituais religiosos, o que perturbou profundamente Cranmer e Cromwell, porque a religião da rainha pertencia ao tipo antigo. Mas eles não ousavam apresentar queixas ao rei, sabendo muitíssimo bem qual seria a sua resposta:

"Deixem a rainha comer peixe nas sextas-feiras. Deixem-na fazer o que quiser, contanto que me dê um filho!"

Por todo o país as pessoas esperavam as notícias do nascimento do filho do rei. O que aconteceria com Jane, perguntavam-se, se gerasse um natimorto? Ou se gerasse uma menina?

Muitos cidadãos teciam comentários cínicos sobre os matrimónios de Henrique, e de como sempre pareciam fadados ao fracasso. Ele já tinha duas filhas, Maria e Elizabeth - ambas proclamadas ilegítimas. E se nascesse mais uma menina? Ao pensar no que acontecera a Catarina de Aragão e a Ana Bolena, concluíam que talvez, para uma mulher, fosse melhor ser plebeia do que nobre.

A duquesa-mãe de Norfolk aguardava ansiosa por notícias. Um sorriso sardónico não lhe escapava dos lábios. Será que Jane Seymour seria bem-sucedida onde sua neta falhara? Aquela criatura adoentada triunfaria onde a deslumbrante e vigorosa Ana amargara o fracasso? Ela achava que não!

Catarina Howard torcia para que o rei gerasse um filho. Ela chorara copiosamente quando sua prima morrera, mas, ao contrário de sua avó, não nutria ressentimentos. A pobre rainha Jane não poderia ser feliz apenas porque a rainha Ana não o havia sido? Onde estava o bom senso em nutrir ressentimentos? Ela mal dava atenção às profecias funestas de sua avó.

Catarina mudara muito desde que sua avó espancara-a com violência. Agoraparecia realmente uma filha da família Howard. Estava mais calada e comportada. A descoberta de seu caso amoroso assustara-a terrivelmente. Ouvira um sermão de Lord William, que insistira em ver o episódio como a peraltice de uma moça irresponsável. Recebera um aviso muito sério de sua avó que, quando estavam a sós, não lhe escondia que sabia o pior. Catarina precisava esquecer tudo aquilo, precisava deslembrar o que acontecera, jamais poderia referir-se ao incidente, deveria negar o que fizera caso um dia alguém a questionasse. Ela fora criminosamente estúpida; disso não podia esquecer. E disso Catarina não esquecia. Suas asas tinham sido cortadas.

Catarina estava cada vez mais bonita, e seus modos gentis concediam um novo charme à sua pessoa. A duquesa estava propensa a esquecer aquele incidente lamentável; ela esperava que Catarina também estivesse. Não sabia que Catarina ainda recebia cartas de Derham, que por intermédio de Jane Acworth, cuja pena sempre estava a seu dispor, a correspondência vinha sendo mantida.

Derham escreveu:

"Não pense que a esqueci. Não esqueça que somos esposo e esposa, porque jamais esquecerei. Não se esqueça do que disse: Jamais chegará o dia que você dirá que eu o traí!. Porque eu não esquecerei de tal frase, e guardo a lembrança como um tesouro inestimável. Um dia retornarei para você..."

Excitava o espírito aventureiro de Catarina receber cartas de amor e precisar contrabandear as respostas para fora da casa. Descobriu que era muito agradável ver-se livre daquelas mulheres que haviam sabido sobre seu caso de amor com Derham e passado o tempo todo aludindo sarcasticamente ao assunto. Agora não havia mais aventuras amorosas na casa da duquesa-mãe; a velha mantinha a todos sob vigilância rigorosa. Catarina não mais queria aventuras amorosas. Ela compreendia a estupidez que cometera e estava muito envergonhada da liberdade que permitira a Manox. Ainda amava Francis, insistia para si mesma; ainda amava receber suas cartas; e um dia o moço iria retornar para ela.

Outubro chegou, e certa manhã, bem cedo, Catarina acordou com um badalo de sinos e o ribombar de tiros de canhão. Jane Seymour dera um filho ao rei.

Jane estava doente demais para sentir triunfo. Mal estava ciente do que acontecia em sua alcova. Silhuetas tomavam forma e desvaneciam. Havia um homem de rosto grande e avermelhado, que ria muito alto, afastando-a do sono pacífico que ela buscava. Jane ouvia vozes sussurrantes, vozes altas, risos.

O rei olhava preocupado para o seu filho, uma coisinha pequena e mirrada. Henrique sentia-se aterrorizado com a possibilidade de que essa criança, como suas antecessoras do mesmo sexo, fosse-lhe roubada antes de atingir a maturidade. Nem mesmo Richmond sobrevivera, embora tivesse sido um menino robusto; e este pequeno Eduardo era pequeno, pálido, fraco.

Ainda assim, o rei tinha um filho e estava deliciado com isso. Os cortesãos entravam e saíam da alcova de Jane. Queriam beijar sua mão; queriam congratulá-la. Ela estava cansada demais? Bobagem! Ela devia estar jubilosa. Afinal, fizera o que suas predecessoras não tinham conseguido: dar um filho ao rei!

Frutas e doces foram-lhe enviados, presentes do rei. Ela precisava demonstrar prazer com a atenção de Sua Majestade. Comeu sem saber o que comia.

A cerimónia do batismo começou na alcova de Jane. Eles a levantaram de seu leito e a conduziram até o altar decorado com coroas e as armas da Inglaterra bordadas em fios de ouro. Ali ela ficou acomodada sobre almofadas de damasco vermelho, embrulhada num manto de veludo púrpura estofado com arminho; mas o rosto de Jane parecia transparente contra o vermelho de suas vestes. Estava exausta mesmo antes que a levantassem de sua cama; a cabeça latejava de dor e as mãos ardiam em febre. Queria dormir, mas lembrava continuamente a si própria que era seu dever comparecer ao batizado do filho. Afinal o que o rei iria dizer, se visse a mãe de seu príncipe dormindo quando devia estar sorrindo de alegria?

Era meia-noite quando a procissão cerimonial, com Jane em seu meio, atravessou os corredores de Hampton Court até a capela. Jane afundou na inconsciência, recuperou-se e sorriu para as pessoas à sua volta. Viu a princesa Maria segurar o príncipe diante da pia batismal; viu seu próprio irmão carregando a pequena Elizabeth, cujos olhos pequenos piscavam de sono; viu Cranmer e Norfolk, os padrinhos do príncipe; viu a ama-seca e a parteira; e essa cena parecia tão vaga que Jane achou que era tudo um sonho, que seu filho ainda não nascera e que suas dores de parto estavam prestes a começar.

Através da névoa que pairava diante de seus olhos, Jane viu Sir Francis Bryan diante da pia batismal, e lembrou que esse homem fora um daqueles que, não fazia muito tempo, desfrutara do brilhantismo e da alegria de Ana Bolena. Os olhos de Jane descansaram sobre a figura de um homem velho e grisalho que segurava um círio e trazia uma toalha em torno do pescoço. Reconheceu-o como o pai de Ana Bolena. O conde parecia envergonhado, e tinha o ar infeliz de um homem que sabe ser merecedor do desprezo de seus iguais. Estaria esse velho pensando em seu filho e sua filha, que tinham sido condenados à morte em benefício deste pequeno príncipe a quem ele agora prestava honras por não ousar fazer outra coisa?

Incapaz de acompanhar a cerimónia devido aos ataques de tontura que continuavam a atormentá-la, Jane ansiava pela quietude de sua alcova. Queria o conforto de sua cama; queria escuridão, silêncio, descanso.

- Deus, em Sua infinita bondade e sabedoria, conceda uma vida longa e feliz ao nobre príncipe Eduardo, duque de Cornualha e conde de Chester, herdeiro e filho amado de Sua Graciosa Majestade, Henrique VIII.

As palavras pareciam uma maré indo e vindo sobre Jane, ameaçando afogá-la; ela se esforçava para respirar. Esteve apenas parcialmente consciente durante a jornada cerimonial de volta à sua alcova.

Alguns dias depois do batizado, Jane estava morta.

- Ah! - diziam as pessoas nas ruas. - Sua Majestade está desolada. Pobre homem! Finalmente encontrou uma rainha a quem poderia amar; finalmente tem um filho para sucedê-lo no trono; e agora precisa sofrer esta catástrofe!

Certos rebeldes levantaram suas cabeças, achando que o rei estava sofrendo demais para notá-los. O leão apenas fingia dormir. Quando levantou a cabeça e rugiu, os rebeldes aprenderam o que acontecia àqueles que ousavam erguer a voz contra o rei. As câmaras de tortura ficaram repletas. Orelhas e línguas foram decepadas; as vítimas mutiladas foram chicoteadas enquanto eram conduzidas nuas através das ruas.

Antes que Jane fosse enterrada, Henrique já debatia com Cromwell a respeito de quem escolheria para ser a sua próxima esposa.

Henrique estava procurando uma esposa. Politicamente isso era uma vantagem, porque assim seria capaz de prosseguir sua estratégia de manter seus dois inimigos conjeturando sobre seus próximos movimentos. Ele iria mandar embaixadores para a corte francesa; iria enviar insinuações para o imperador; e cada um deles temia uma aliança do outro com a Inglaterra.

Os problemas do continente perturbavam Henrique. A sua ansiedade era justificada, considerando que a guerra entre Carlos e Francis chegara a um fim, e que Polé persistia em seus esquemas para semear guerra civil na Inglaterra com a assistência de uma invasão por parte do continente. Poder oferecer-se no mercado de casamento era um grande trunfo no momento, e Henrique decidiu explorá-lo plenamente.

Embora Henrique estivesse ansioso por contrair um casamento politicamente vantajoso, ele não conseguia conter sua excitação com a perspectiva de uma nova esposa. Ele gostava de visualizá-la. Era bom ser um homem livre novamente. Tinha apenas 47 anos e estava disposto a ter uma nova esposa. Sua mente ainda era assombrada pela imagem de Ana Bolena. Henrique sabia exatamente que tipo de esposa queria: precisava ser bela, inteligente, vivaz; uma mulher que fosse tão animada quanto Ana, tão meiga quanto Jane. Ele assegurou a si próprio que, embora fosse imperativo fazer o casamento certo, ele não estava disposto a se comprometer com uma mulher que não lhe fosse aprazível.

Henrique pediu a Chatillon - o embaixador francês que assumira o lugar de Du Bellay na corte inglesa - que uma seleção das damas mais belas e prendadas na corte francesa fosse enviada a Calais. Henrique iria até lá inspecioná-las.

Claro que irei pessoalmente! - disse Henrique. - Como posso contar com alguém senão eu próprio para fazer esse serviço? Preciso vê-las com meus próprios olhos e ouvi-las cantar.

Ao receber esse pedido, Francis retorquiu de uma forma que enfureceu Henrique, e ele não foi a Calais proceder a uma inspeção pessoal de possíveis esposas.

Entre as candidatas, havia a belíssima Cristina de Milão, sobrinha do imperador Carlos. Ela se casara com o duque de Milão, que morrera, deixando-a como uma viúva virgem de 16 anos. Henrique estava interessado nos relatos sobre ela, e depois de ser esnobado por Francis sentia-se atraído por explorar o campo do imperador. Mandou Holbein fazer um retrato de Cristina. Quando o pintor trouxe o quadro, Henrique sentiu-se atraído, mas não o bastante para desejar fechar negócio imediatamente. Ainda estava mantendo negociações com os franceses. Foi reportado que Cristina dissera que, se ela tivesse duas cabeças, uma estaria a serviço do rei inglês, mas tendo apenas uma, estava relutante em ir para a Inglaterra. Ouvira dizer que sua tia-avó Catarina de Aragão fora envenenada; que Ana Bolena tinha sido executada devido à sua incapacidade de engravidar novamente. Obviamente, ela estava sob o comando de Carlos, mas esses relatos provavelmente despertariam a relutância do imperador em permitir a união.

A inquietude de Henrique não diminuía. Ele estava assustado com a possibilidade da amizade crescente entre Carlos e Francis ser um prelúdio de um ataque contra a Inglaterra. Ele sabia que o papa Paulo estava atiçando os escoceses a invadir a Inglaterra pelo norte. Enquanto isso, Polé estava agindo dissimuladamente no continente.

O primeiro ato de Henrique foi desferir um golpe violento contra a família de Polé na Inglaterra. Começou mandando Geoffrey, o irmão mais novo de Polé, para a Torre. Ali o menino foi torturado tão violentamente que disse tudo que Henrique queria que dissesse. O resultado foi que seu irmão, Lord Montague, e seu primo, o marquês de Exeter, foram presos. Até mesmo a mãe de Polé, a idosa condessa de Salisbury, que fora governanta da princesa Maria e uma das maiores amigas de Catarina de Aragão, não foi poupada.

Essas pessoas eram a esperança daqueles católicos que ansiavam por uma reunião com Roma, e Henrique observava cuidadosamente o seu povo para ver sua reação às prisões. Ele já tinha problemas suficientes dentro de seus próprios domínios, e com a ameaça de problemas externos ele precisava olhar onde pisava. Desta vez ele selecionou como vítima um erudito de nome Lambert, a quem acusou de ter levado a extremos as ideias originais de Martinho Lutero. O rapaz era acusado de ter negado o corpo de Deus como um sacramento de substância material, estando presente apenas sob forma espiritual. Lambert foi julgado e queimado vivo. Essa foi meramente a resposta de Henrique aos católicos. Estava dizendo a eles que não favorecia os extremos de nenhuma das duas religiões. Católico ou luterano, não importava. Não havia favoritismo por parte do rei. Tudo que ele pedia era obediência ao rei.

Francis considerou esse um bom momento para debilitar o comércio inglês. A Inglaterra prosperara muito na área comercial enquanto Francis e Carlos desperdiçavam a energia de seus povos na guerra. Henrique percebeu o que estava prestes a acontecer e agiu depressa. Prometeu aos mercadores flamengos que durante sete anos as mercadorias flamengas não pagariam mais impostos que os mercadores ingleses. Os mercadores flamengos-gente gananciosa - ficaram muito empolgados, vislumbrando anos de prosperidade à sua frente. Se o seu imperador fosse fazer guerra contra a Inglaterra, não encontraria muito apoio numa nação que estava se beneficiando de um bom comércio com esse país.

Essa foi uma boa estratégia, mas os temores de Henrique renovaram-se quando o imperador, visitando seus domínios, decidiu viajar através da França até a Alemanha, em vez de ir por mar ou através da Itália e da Áustria, como era seu costume. Isso pareceu a Henrique um gesto de grande amizade. Que planos os dois velhos inimigos formulariam ao se encontrarem na França? Será que a Inglaterra faria parte desses planos?

Cromwell, cujo grande interesse era desviar a Inglaterra do catolicismo e dessa forma assegurar sua própria posição, aproveitou essa chance de estimular Henrique a escolher uma esposa numa das famílias alemães protestantes. Cromwell expôs o seu plano. Há anos o velho duque de Cleves queria uma aliança com a Inglaterra. Seu filho clamava direito ao ducado de Guelders, um ducado que era para o imperador Carlos algo muito semelhante ao que a Escócia era para Henrique, país sempre propenso a ser uma fonte de problemas. Um casamento entre a Inglaterra e a casa de Cleves seria, portanto, uma ameaça séria ao poder do imperador em seus domínios holandeses.

Infelizmente, Ana, irmã do jovem duque, já fora prometida ao duque de Lorraine, mas esse não era um problema difícil de contornar. Holbein foi enviado para fazer um retrato de Ana. Quando viu o retrato, Henrique ficou muito empolgado e os planos para o matrimónio foram postos em andamento.

Henrique estava impaciente. Ana! O próprio nome o encantava. Ele visualizou essa Ana, gentil, submissa e muito, muito amorosa. Essa Ana iria ter consciência plena de seu dever. Ela não era filha de um cavaleiro humilde, e fora educada para contrair um casamento ilustre; saberia o que era esperado dela. Henrique mal podia esperar por sua chegada. Afinal ele iria conhecer a felicidade matrimonial, e ao mesmo tempo iria abalar o poder de Carlos e Francis.

- Ana! - exclamou.

E começou a contar os dias até a sua chegada.

Jane Acworth preparava-se para partir.

- Como irei sentir a sua falta! - suspirou Catarina. Jane sorriu matreira para a amiga.

- Não é de mim que sentirá falta, mas de sua secretária!

- Pobre Derham - disse Catarina. - Temo que ele ficará muito infeliz. Pois para mim é uma tarefa hercúlea deslizar a pena no papel.

Jane deu com os ombros. Seus pensamentos agora concentravam-se na nova casa para a qual iria, e no Sr. Bulmer, com quem iria se casar.

- Pensará bastante em mim, Jane? - perguntou Catarina. Jane riu.

- Imagino como será quando você receber as suas cartas. Ele escreve cartas muito bonitas e ouso dizer que ele a ama verdadeiramente.

- Ah! Ele ama sim. Querido Francis! Ele sempre foi muito fiel a mim.

- Você irá se casar com ele algum dia?

- Nós somos casados, Jane. Você sabe bem disso. Senão...

- Senão, como você poderia ter feito isso! Sei. Bem, ouvi dizer que você foi muito generosa nos favores concedidos a um certo Manox.

- Nem fale dele! Já coloquei uma pedra sobre esse assunto. Meu amor por Francis é eterno. Fui imprudente com Manox, mas não me arrependo de nada que fiz com Francis.

- Como você ficará solitária sem mim!

- Sim, você tem toda razão.

- E como é diferente esta vida da outra! Bem, quase nada acontece agora, além de enviar cartas para Derham e receber as dele. Antes, como costumávamos nos divertir!

- É melhor não falar sobre isso com o Sr. Bulmer! - alertou Catarina. Elas riam.

Fazia bem rir, e ela estava realmente triste com a partida de Jane. O recebimento e o envio de cartas proporcionara uma dose de empolgação a uma existência tediosa.

com a partida de Jane os dias ficaram longos e monótonos. Uma carta de Francis chegou. Depois de lê-la com muita dificuldade, Catarina enfiou-a no corpete e pensou nela o dia todo; mas a experiência da leitura não era a mesma sem a voz de Jane, porque a moça, além de hábil com a pena, era também uma leitora com vocação dramática. Precisava responder a Derham, mas como o trabalho não lhe apetecia, ela o pôs de lado.

A duquesa e Catarina conversaram a respeito dos assuntos da corte.

- Mas quando o rei escolherá uma esposa, afinal? Faz dois anos desde a morte da rainha Jane, e ele ainda não tem uma nova esposa! Eu lhe digo uma coisa, Catarina, se esse tão falado casamento com a duquesa de Cleves se materializar, poderei conseguir um lugar na corte para você.

- Como eu gostaria de ir para a corte! - gritou Catarina.

- Terá de zelar pelos seus modos. Embora eu tenha de admitir que eles melhoraram muito desde que... desde que... - A lembrança franziu o semblante da duquesa. - Creio que não se sairia tão mal na corte agora. Veremos. Veremos.

Catarina imaginou-se na corte.

- Precisarei de muitas roupas novas.

- Não pense que Lord William iria permitir que você fosse para a corte vestida em farrapos! Ora, nem mesmo Sua Graça, o duque, permitiria isso! Ra! Ouvi dizer que ele está muito zangado com essa proposta de casamento. O senhor Cromwell realmente puxou o tapete embaixo dos pés do meu nobre enteado. Bem, essa história não é boa para os Howard, e é um erro a família travar uma guerra íntima. E portanto... talvez não seja tão fácil assim achar um lugar para você na corte. E eu sei que o rei não gosta da disputa entre meu enteado e sua esposa. Não é adequado para um duque de uma casa nobre nutrir um sentimento tão forte por uma lavadeira a ponto de ostentar seu relacionamento diante da própria esposa. O rei sempre foi um homem moralista, e isso é algo que jamais devemos esquecer. Ah! Bata nas minhas costas, criança; acho que engasguei. Onde eu estava? Ah, sim, os Howard não se encontram nas boas graças do rei, enquanto o senhor Cromwell está. E esse matrimónio com Cleves é da autoria de Cromwell. Portanto, Catarina, provavelmente não será fácil encontrar um lugar para você na corte, porque, embora eu odeie o duque profundamente, ele é o meu enteado, e se ele não está nas boas graças do rei, nós também não estamos.

Em outra ocasião a duquesa mandou chamar Catarina. Seus olhos velhos, brilhantes como os de um pássaro, espreitaram-na por entre as rugas.

- Pegue meu manto, criança. vou caminhar no jardim e quero que me acompanhe.

Catarina obedeceu. Elas saíram da casa e caminharam lentamente através do pomar onde Catarina deitara tantas vezes com Derham. Ela sempre se sentia triste no pomar, incapaz de esquecer Derham. Mas agora ela mal estava pensando nele; sabia, pelo comportamento da duquesa, que ela trazia novidades, e estava torcendo que fossem sobre uma posição na corte.

- Você é uma criança atraente. Creio até que herdou alguns traços de sua prima trágica. Oh... não são traços óbvios. Os cabelos de Ana eram negros e também seus olhos. E Ana tinha um rosto delgado, inesquecível. Você tem cabelos e olhos castanhos, e um rosto arredondado. Ah, não, a semelhança não está no seu rosto. Seriam as suas gargalhadas repentinas? Os seus movimentos rápidos? Ela exsudava um amor à vida, e você também. Havia em Ana um pouco dos Howard, que aparecia em seus olhos. Também há bastante dos Howard em você; eis a semelhança.

Catarina gostaria que sua avó não falasse tão frequentemente em sua prima. Pensar em Ana Bolena sempre deixava-a triste.

- A senhora tinha notícias para mim? - lembrou à avó.

- Ah, notícias! Bem, talvez ainda não sejam notícias. É apenas uma ideia. E irei sussurrar essa ideia nos seus ouvidos, criança. Não duvido de que aquele duque de coração de pedra concederá sua aprovação, porque se trata de um casamento ilustre.

- Casamento! - exclamou Catarina.

- Lembra da sua querida mãe, Catarina?

- Vagamente, sim.

Reluzindo com lágrimas, os olhos grandes de Catarina pareciam dois topázios.

- A sua querida mãe tinha um irmão, e é ao filho dele, o seu primo, a quem achamos que você poderia ser prometida. É um rapaz adorável, que já se encontra na corte. É um moço muito bonito, de fato. Thomas Culpepper, filho de Sir John, irmão da sua mãe...

- Thomas Culpepper - sussurrou Catarina, seus pensamentos rodopiando de volta para um quarto em Hollingbourne, um som de passos, um protetor intrépido, um beijo no estábulo. Ela repetiu: -Thomas Culpepper! - Catarina percebeu que uma coisa muito incomum estava prestes a acontecer. Um sonho de infância iria se tornar verdade. Perguntou, ansiosa: - E ele...?

- Minha querida Catarina, contenha sua excitação. Isto é apenas uma sugestão. O duque terá de ser consultado. O consentimento do rei será necessário. É uma ideia. Eu não ia contar-lhe isso ainda... mas vendo-a linda e suficiente madura para as bodas, não resisti.

- Meu primo... - murmurou Catarina. - Avó... quando eu vivia em Hollingbourne... nós brincávamos juntos. Eu e ele nos amávamos muito naquela época.

A duquesa levou um dedo aos lábios.

- Silêncio, criança! Seja discreta. Este assunto ainda não pode se tornar de conhecimento geral. Fique calma.

Catarina percebeu que isso seria muito difícil. Queria estar a sós para pensar no assunto. Tentou imaginar qual seria a aparência de Thomas agora. Ela tinha apenas uma lembrança enevoada de um menininho, dizendo-lhe, com certa audácia, que um dia iria toma-la por esposa.

A carta de Derham roçou em sua pele. Pensar em Thomas empolgou-a tanto que ela perdera seu furor por ver Francis. Flagrou-se desejando que toda a sua vida tivesse transcorrido como aqueles últimos meses em que estivera sozinha.

A duquesa estava segurando os pulsos de Catarina; as mãos da velha estavam quentes.

- Catarina, quero falar muito seriamente com você. Você precisará de muita cautela. As coisas ruins que lhe aconteceram...

Catarina quis chorar. Oh, como a sua avó tinha razão! Se ao menos ela tivesse ouvido os conselhos de Mary Lasseis! Se ao menos ela não tivesse se permitido levar por aquele fluxo de sensualidade que na época fora adorável e refrescante, mas que agora era repulsivo de ser lembrado. Como ela se arrependera de seu caso com Manox quando conhecera Francis! Agora começava a se arrepender de seu amor por Francis ao voltar a pensar em Thomas.

- Você foi muito má - asseverou a avó. - Merecia ter morrido pelo que fez. Mas farei tudo que estiver a meu alcance por você. Os seus pecados jamais chegarão aos ouvidos do duque.

Catarina gritou mais por angústia que por raiva:

- O duque! E quanto a ele e Bess Holland?

A duquesa fitou-a severa. Ela poderia dizer o que pensava de seu parente pecador, mas não Catarina.

- Ele nada fez de errado ao tomar como amante a lavadeira de sua esposa. Ele é um homem. Você é uma mulher. Isso faz toda a diferença do mundo.

Catarina sentiu-se arrasada; começou a chorar.

- Enxugue os olhos, menina boba. Não esqueça por um instante sequer que os seus pecados ficaram para trás, e que deverá agir como se jamais os tivesse cometido.

- Sim, minha avó-disse Catarina, e a carta de Derham espetoulhe a pele.

Derham continuou escrevendo, embora não recebesse respostas. Catarina herdara parte do talento de sua avó para desviar os olhos das coisas desagradáveis. Pensou continuamente no seu primo Thomas e se perguntou se ele se lembrava dela, se ouvira a respeito de uma possível união, e se pensava no assunto.

Certo dia, caminhando pelo pomar, Catarina ouviu um farfalhar de folhas às suas costas. Virando-se, ficou cara a cara com Derham. Ele sorria; teria abraçado a moça se ela não tivesse recuado.

- Catarina, não aguentava mais de saudades.

Ela ficou calada e assustada. Ele se aproximou e segurou-a pelos ombros.

- Não recebi resposta para as minhas cartas. Ela disse, apressada:

- Jane casou e foi para York. Você sabe que nunca soube segurar direito uma pena

- Ah! - A expressão de Derham suavizou. - Foi apenas isso então? Graças a Deus! Eu temia...

Ele a beijou na boca. Catarina estremeceu; não respondeu ao beijo. Derham agora parecia preocupado.

- Catarina! O que a aflige?

- Nada me aflige, Francis. É apenas que...

Mas o coração de Catarina derreteu-se ao vê-lo parado à sua frente, tão carente, e não conseguiu dizer-lhe que não mais o amava. O ideal seria deixar a separação proceder gradualmente.

- A sua volta foi muito repentina, Francis...

- Você mudou, Catarina. Está tão solene, tão distante.

- Eu agi como uma rameira antes. Minha avó disse isso.

- Catarina, o que fizeram com você?

- Bateram-me com um chicote. Nunca tinha apanhado daquele jeito. O açoitamento deixou-me com dores semanas a fio. Fui trancada em meu quarto, e depois disso quase não me permitiram mais sair sozinha. Não vai demorar muito, procurarão por mim, tenho certeza.

- Pobre Catarina! E tudo isso você sofreu por minha causa! Mas nunca esqueça, Catarina, que você é a minha esposa.

- Francis! - Ela disse, e então engoliu em seco. - Isso não é possível. Eles jamais aceitarão isso, e o que acha que fariam se nós nos casássemos de verdade?

- Podemos fugir para a Irlanda.

- Eles jamais permitirão que eu parta. Nós iríamos sofrer mortes horríveis.

- Eles jamais irão nos alcançar, Catarina.

Ele era jovem e audacioso, tendo até bem pouco vivido como um pirata na costa da Irlanda. Tinha direito; queria levá-la dali. Ela não tinha coragem de contar-lhe que fora prometida a seu primo, Thomas Culpepper. Catarina perguntou:

- O que você acha que eles fariam com você se o vissem?

- Eu não sei. Ter você em meus braços compensaria qualquer sofrimento que isso pudesse me causar depois.

As palavras de Francis assustaram-na. Ela escapou, prometendo que iria vê-lo novamente.

Catarina estava perturbada. Agora que vira Derham depois de sua longa ausência, tinha certeza do que começara a suspeitar. Não o amava mais. Ela chorou até dormir, sentindo-se desonrada e culpada, sentindo-se miserável porque iria para o seu primo violada e impura. Por que não permanecera em Hollingbourne? Por que sua mãe morrera? Que destino cruel mandara-a para a duquesa onde havia tantas mulheres ansiosas por conduzi-la à tentação! Ainda não chegara aos 18 anos e já tinha pecado tanto... e completamente sem motivo ou sensatez.

Decidiu que iria romper com Francis. Não deveria haver mais encontros clandestinos. Iria casar-se com Thomas e ser uma boa esposa para ele, para que, depois de anos e anos de felicidade perfeita, os pecados que cometera na juventude parecessem um pequeno erro numa página belissimamente escrita.

Francis ficou magoado e zangado. Voltara à Inglaterra com o coração cheio de esperança. Ele lembrou a Catarina que a amava e a queria como esposa. Ele fizera algum dinheiro com seus atos de pirataria; nada tinha a temer dos Howard.

Catarina lhe disse que recebera notícias de que iriam mandá-la para a corte.

- Não gosto disso! - asseverou Francis.

- Mas eu gosto - retrucou Catarina

- Você não sabe que a vida na corte é repleta de leviandades? Ela encolheu os ombros. Odiava magoar as pessoas e estava sendo forçada a magoar Francis, a quem amara verdadeiramente, mas que era agora um motivo de arrependimento. Sentiu raiva de Francis porque ele estava forçando-a a magoá-lo.

- Você... fala de leviandades... quando nós dois...

Ele precisava deixar absolutamente clara a sua posição a respeito daquilo:

O que nós fizemos, Catarina, não foi nada. Você é minha mulher. Nunca se esqueça disso. Muitas pessoas se casam numa idade tenra Não fizemos nada errado.

- Você sabe que não somos marido e mulher! - retorquiu. Dizer que éramos não passou de uma ficção, algo que usávamos para afugentar a culpa. Nós cometemos pecado, e você sabe disso. Eu queria que jamais tivéssemos nos conhecido.

O pobre Derham ficou de coração partido. Durante todo o tempo em que estivera longe, não pensara em ninguém senão em Catarina. Ele implorou que ela lembrasse como o havia amado antes que ele fosse embora. Então lembrou dos rumores que ouvira sobre um provável casamento entre Catarina e Thomas Culpepper.

- Então é esse o motivo para a mudança dos seus sentimentos. Você vai se casar com esse Culpepper?

Ela perguntou que direito ele tinha de fazer uma pergunta como aquela, acrescentando:

- Basta que saiba que não irei casar-me com você. E se ouviu esses rumores, você sabe mais do que eu!

Eles brigaram. Ela o enganara, disse Francis. Como ela podia, estando compromissada com ele, pensar em se casar com outro homem? Ela devia fugir com ele imediatamente.

- Não! - gritou Catarina, os olhos cheios de lágrimas. - Francis, por favor, seja razoável. Como eu posso fugir com você? Não vê que isso significaria a morte para você? Eu feri você e você me feriu. A única esperança de uma vida boa para nós dois é jamais nos vermos novamente.

Alguém estava chamando por Catarina. Ela se virou para ele, implorando:

- Vá logo. Não ouso pensar o que aconteceria com você se o encontrassem aqui.

- Mesmo que me pusessem no ecúleo, não poderiam me ferir tanto quanto você me feriu.

Essas palavras trespassaram como facas o coração macio de Catarina Howard. Ela não podia ser feliz, sabendo que o magoara tão profundamente.

Será que ela jamais encontraria a paz e a felicidade por causa dos atos estúpidos que cometera quando era pouco mais que uma criança?

A aia que a estava chamando disse-lhe que sua avó queria falar com ela prontamente. E a duquesa parecia empolgada.

- Acho, minha querida, que você está indo para a corte. Assim que a nova rainha chegar, você será uma de suas damas de honra. Não tema! Posso ver que você tem todo o talento de que precisa para aquela vida. E vou contar-lhe um segredo. Quando estiver morando na corte, provavelmente terá muitas chances de se encontrar clandestinamente com Thomas Culpepper. Isso não excita você?

Catarina fez um esforço hercúleo para esquecer Francis Derham e pensar na vida empolgante que se estendia à sua frente. A corte... e Thomas Culpepper.

Henrique estava a caminho de Rochester para saudar sua nova esposa. Ele estava muito empolgado. Que casamento proveitoso iria ser esse!

"Ra! Carlos!", pensou. "O que está achando disto, hein? E você, Francis, que se imagina tão inteligente? Não duvido, caro imperador, de que Guelders será um espinho no seu traseiro carnudo por muito, muito tempo!"

Mas havia certas lembranças que ele não conseguia conter.

"Ana!"

Mas esta Ana seria muito diferente daquela outra. Ele pensou na belíssima miniatura que fora pintada por Holbein. A caixa na qual chegara era na forma de uma rosa branca, tão belissimamente executada que em si já era uma bela obra de arte; o tampo, em marfim esculpido, tivera de ser desparafusado para mostrar a miniatura no fundo da caixa. Henrique estava eufórico desde que recebera a pequena pintura. Oh, como ele iria se divertir com essa Ana! Não conseguia ver a hora em que a teria em seus braços, não apenas para desfrutar de seu corpo, mas para provocar o sardónico Francis e aquele Carlos que se achava tão astuto.

Henrique iria presentear sua noiva com uma pele esplêndida. Darlhe-ia sem qualquer cerimónia o agrado. Iria dispensar as aias de Ana, porque queria ter com ela como amante, não como rei. Deu uma risadinha. Desta vez todos concordavam que ele estava fazendo o tipo certo de casamento. Cromwell era um camarada inteligente; os seus agentes haviam reportado que a beleza de Ana de Cleves excedia a de Cristina de Milão como o sol empalidecia a lua!

Henrique se aproximava dos 50 anos, mas tinha a impressão de ter ainda 20, tão ansioso estava, como um noivo sedento por sua primeira esposa. Ana tinha cerca de 24 anos; essa idade parecia deliciosamente tenra para alguém de 50. Ela não falava muito bem inglês; ele não falava muito bem alemão. Isso adicionaria tempero ao namoro. Um amante experiente como ele não precisava de palavras para conseguir o que queria de uma mulher. Ele riu, pensando nos prazeres futuros.

"Desde seu casamento com Ana Bolena", diziam as pessoas, "não se vê o rei tão feliz!"

Quando chegou a Rochester, acompanhado por dois de seus atendentes, Henrique seguiu direto para a alcova de Ana. Diante da porta ele parou, horrorizado. A mulher que fez uma mesura diante dele não se parecia nem um pouco com a noiva que ele vinha idealizando. Era e não era o mesmo rosto que ele vira na pintura em miniatura. Tinha a fronte larga e alta, olhos escuros, cílios grossos, sobrancelhas escuras e muito marcadas. Seus cabelos negros estavam partidos no centro e escorriam pelos lados de seu rosto, O vestido não lhe caía bem, com um colarinho alto e rijo, que lembrava um casaco de homem. Tinha o corpo parrudo ao estilo das flamengas, e desde que Ana Bolena chegara à corte, os ingleses tinham adotado o gosto francês por corpos femininos. Henrique fitou-a estarrecido. Enquanto o rosto na miniatura tinha a coloração delicada de uma pétala de rosa, o rosto verdadeiro de Ana era acastanhado e marcado por sardas. Henrique achou-a muito feia, e como não lhe ocorreu que sua pessoa provocou um efeito semelhante nela, ficou mudo de raiva.

Só conseguiu pensar em se remover da presença daquela mulher o mais depressa possível. Seu plano para "plantar o amor", como o descrevera a Cromwell, fracassara.

Ele estava irritado demais para dar a pele a Ana. Ela não tinha o direito de ter em mãos um presente tão precioso! Ele estava furioso. Seu casamento sensato trouxera-lhe uma mulher que não o deliciava. Como seu nome era Ana, ele pensara na outra Ana, e sua visão de sua noiva fora de uma sósia de Ana Bolena com o temperamento dócil de Jane Seymour. E aqui estava ele, cara a cara com uma criatura cujo idioma ele não compreendia, cujo rosto o repelia. Ele fora enganado.

Holbein enganara-o! Cromwell enganara-o! Cromwell, aquele manipulador! Henrique rangeu os dentes de raiva. Sim, Cromwell fora o responsável por aquela situação infeliz. Cromwell trouxera-lhe Ana de Cleves.

- Maldição! - gritou. - Em quem um homem pode confiar? Decerto não naqueles que me trouxeram os relatos e os retratos dessa mulher. Estou chocado por eles terem tido coragem de elogiar essa mulher como fizeram. Eu não tenho qualquer apreço por esses biltres!

Mas ele foi bastante educado com Ana em público, para que as multidões de súditos não percebessem que o rei estava tudo, menos satisfeito. Ana, vestida em tecido de ouro adornado por pedras preciosas, parecia muito bonita para eles. Eles não sabiam que, entre quatro paredes, o rei estava admoestando Cromwell pela escolha e comparando sua nova noiva com uma égua estrangeira. Além disso, questionava se o contrato prévio de Ana com o duque de Lorraine não tornava ilegal seu casamento com ela.

A pobre Ana foi mantida deliberadamente em Dartford enquanto Henrique tentava encontrar alguma desculpa para não prosseguir o matrimónio. Ela estava melancólica. O rei não escondera o seu desinteresse por ela. Ana vira aquele rosto vermelho e gordo avermelhar-se ainda mais; vira os olhos pequeninos quase desaparecerem dentro da carne flácida; vira suas expressões de desprezo. Ela própria ficara desapontada; haviam-lhe feito relatos sobre um homem que fora um dia o príncipe mais belo no mundo cristão, mas a realidade apresentara-se na forma de um homem gordo com mãos grandes e brancas cobertas de jóias, envolto em vestes que poderiam abrigar dois homens com espaço de folga. No rosto de Henrique havia a marca de alguma doença interna; e bandagens avolumavam-se em torno de sua perna; ele possuía a boca mais maldosa e os olhos mais cruéis que ela já vira. Esperando em Dartford, Ana recordou as histórias que ouvira sobre esse homem. Como Catarina morrera? O que ela sofrera antes de sua morte? O mundo inteiro conhecia o destino trágico de Ana Bolena. E a pobre Jane Seymour? Era verdade que depois de ter dado um filho ao rei ela fora tão negligenciada que acabara por morrer?

Pensou na jornada longa e cansativa de Dusseldorf até Calais, e o canal que cruzava até o seu novo lar; pensou na jornada até Rochester; até então ela estivera razoavelmente feliz. Então ela o vira, e ao vê-lo percebeu que provavelmente havia uma dose de verdade nas histórias sobre o tratamento dispensado às suas esposas. E agora ela iria ser uma delas, ou talvez não, porque, tendo visto o desprezo em seu rosto, ela já deduzira o motivo da postergação. Ela não sabia se rezava para casar com o rei ou para sofrer a humilhação de ser mandada de volta para casa porque sua pessoa não o havia agradado.

Nesse ínterim, Henrique estava tendo ataques de fúria tão terríveis que todos em contato com o rei temiam por suas vidas. Não houvera um contrato prévio? Ele tinha certeza de que houvera! Ele deveria colocar em risco a segurança da Inglaterra gerando mais um bastardo? Sua consciência, sua mui escrupulosa consciência, não iria permitir que ele se comprometesse definitivamente antes de ter certeza absoluta.

Foi Cromwell quem precisou apelar à razão de Henrique; foi Cromwell quem teve de passar um bálsamo na mágoa do rei.

- Sua Graciosa Majestade, o imperador está celebrando em Paris. Não desposando essa mulher, Sua Majestade empurrará o duque de Cleves a uma aliança com Carlos e Francis. A Inglaterra ficará sozinha.

Cromwell foi loquaz e convincente; afinal, estava pedindo por si próprio. Se este casamento fracassasse, Cromwell fracassaria, e ele sabia que sua cabeça ficaria pousada sem qualquer firmeza sobre seus ombros, que o rei adoraria achar um motivo para arrancá-la dali. Mas Cromwell explicou bem a situação a Henrique. Henrique temia a guerra civil mais do que qualquer outra coisa, mas a segunda coisa que ele mais temia era a amizade entre Carlos e Francis, e esta já fora firmada. Henrique não se encontrava em posição de recusar desposar Ana de Cleves.

- Se eu tivesse sabido tão profundamente sobre esses assuntos antes, nós não teríamos prosseguido com as negociações para este matrimónio - disse Henrique, olhando ameaçador para Cromwell, como se os encontros entre Carlos e Francis tivessem sido arranjados por ele.

Henrique falou como um mártir ao proferir:

- Mas que escolha eu tenho agora? Que escolha senão subir ao altar e desposar essa... - As faces de Henrique incharam-se de raiva; um fulgor assassino despontou em seus olhos. - Que escolha senão desposar essa égua estrangeira!

A isso seguiu-se a cerimónia de casamento com seus homens e mulheres garbosamente vestidos, suas barcaças e bandeiras douradas.

Henrique - vestido em tecido de ouro bordado com grandes flores de prata, com seu manto de cetim púrpura decorado com diamantes-foi um noivo sorumbático. Cromwell estava aterrorizado, porque não sabia como aquilo iria terminar, e tinha em sua mente exemplos de homens que haviam desagradado ao rei, exemplos que fariam tremer até o homem mais corajoso. O Henrique de 10 anos antes jamais teria entrado neste casamento; mas este Henrique tinha mais medo de perder seu trono. Falara honestamente ao dizer, algumas horas antes da cerimónia, que, se não fosse pela segurança de seu reino, jamais iria subir ao altar com aquela mulher.

Cromwell não abandonou as esperanças. Ele conhecia bem o rei. Provavelmente alguma esposa seria melhor do que nenhuma esposa; e havia no mundo mulheres menos atraentes que Ana de Cleves. Ela era bastante dócil e o rei gostava dessa qualidade nas mulheres; ele se casara com a última precisamente por causa disso.

Na manhã depois do dia do casamento, Cromwell pediu uma audiência ao rei. Em vão procurou por uma expressão de saciedade no rosto vermelho de Henrique.

- Então? - rugiu Henrique, e Cromwell percebeu, com terror renovado, que seu senhor não gostava mais dele neste dia do que no anterior.

- Sua Excelsa Majestade, gostaria de saber se está satisfeito com sua rainha - murmurou o trémulo Cromwell,

- Não - disse o rei rancoroso, fitando Cromwell como se depositasse nele a responsabilidade pela catástrofe que lhe acontecera. Muito pelo contrário! Porque, ao sentir seus seios e barriga, descobri que nunca terei coragem de provar o resto.

Cromwell deixou seu mestre, muito assustado com o que o futuro lhe guardava.

Catarina Howard nem podia dormir, tão empolgada estava. Finalmente ela viera para a corte. Sua avó dera-lhe as roupas das quais iria precisar, e nunca, no curso de seus 18 anos, Catarina sentira-se tão feliz. Como era empolgante espiar através das janelas personagens que até agora tinham sido meros nomes para ela! Ela viu Thomas Cromwell caminhando pelo pátio, chapéu na mão, ao lado do próprio rei. Catarina estremeceu ao ver o homem.

- Cuidado com o filho do ferreiro! - acautelara a sua avó. -Ele não é amigo dos Howard.

Quanto ao rei, Catarina já o vira antes, ainda que a uma grande distância. De perto ele parecia maior, mais deslumbrante do que nunca... e também muito assustador, de modo que ela sentiu tanta vontade de correr dele quanto de Thomas Cromwell. O rei estava falando alto, rindo e praguejando, e seu rosto vermelho de raiva era uma visão alarmante. Algumas vezes ele costumava caminhar pelo pátio apoiado num cajado, e ela via o rei, rosto contorcido pela dor que a perna lhe causava, gritar com todos que o incomodavam. Suas faces estavam tão vermelhas e inchadas que seus olhos pareciam perdidos entre elas e a fronte. Esse rei provocou um calafrio na espinha de Catarina. Ela também viu Cranmer - silencioso e calmo em seus robes de arcebispo. Ela costumava ver seu tio e sempre tentava esconder-se, mas todas as vezes os olhos aguçados do homem flagravam-na.

Catarina estava gostando de sua vida, porque Derham não podia atormentá-la na corte como fizera na casa da duquesa, e sem vê-lo ela quase esquecia o remorso que tomara conta de seu ser. Ela amava a rainha, e chorava por ela porque era infeliz. O rei não a amava; ele aparecia com ela apenas em público. As damas sussurravam que quando elas iam até a alcova real à noite, o rei dizia boa noite para a rainha e nada se passava entre os dois até a manhã, quando o rei dizia-lhe bom dia. Elas riam do relacionamento extraordinário entre o rei e a rainha; e Catarina era inexperiente e boba demais para não rir com elas, mas sentia realmente pena da rainha triste. Mas Catarina sempre continha o impulso de rir com elas das roupas da rainha, que, apesar de muitas, eram todas de péssimo gosto.

- Ah! - sussurravam as damas. - Você deveria ter visto as roupas da outra rainha Ana. Como eram lindas as suas vestes, e como ela sabia usá-las! Mas essa aí! Não admira que não desperte o interesse do rei. Já, já, já! É tudo que ela pode dizer!

- Mas ela é muito gentil - defendeu Catarina.

- Ela não tem coragem de ser outra coisa!

Mas isso não era verdade. Catarina, que fora espancada tantas vezes pela mão pesada da duquesa, era suscetível à gentileza. Ela sentavase com a rainha para aprender o estilo flamengo de bordar, e sentia-se muito feliz por servir a Ana de Cleves.

Havia mais uma coisa que deixava Catarina feliz: Thomas Culpepper encontrava-se na corte. Ela ainda não o vira, mas todos os dias esperava sua reunião. Ouvira dizer que ele era um dos favoritos do próprio rei, e era seu dever dormir nos aposentos reais e supervisionar aqueles que cuidavam da perna do rei. Ela se perguntou se ele estaria lá, e se estaria tão ansioso pela reunião quanto ela.

Certa noite, Gardiner, o bispo de Winchester, deu um banquete. Catarina ficou muito empolgada com isso, porque ela iria cantar, e essa seria a primeira vez que o faria sozinha diante do rei.

- Você é uma pequena beldade! - disse uma das damas. - Que vestido encantador!

- Foi minha avó quem me deu - disse Catarina, acariciando o tecido requintado com o prazer de alguém que sempre desejara roupas bonitas mas jamais as possuíra antes.

- Se o seu canto chegar aos pés da sua beleza, você será uma jovem de muito sucesso.

Catarina dançou durante todo o percurso até a barcaça; cantou enquanto elas percorriam o rio; dançou ao entrar na casa do bispo. Quando a viam, as pessoas trocavam pequenos sorrisos. Ela era muito jovem e dotada de uma alegria contagíante.

- Cuidado para não esquecer as letras das canções!

- Ai, meu Deus, e se eu esquecer? O que me acontecerá?

- Será presa na Torre! - escarneceram as damas.

Catarina riu com elas, as faces rubras, os cachos castanhos voando sobre seus ombros.

Ela sentou-se diante da grande mesa como a mais humilde das damas. O rei, à cabeceira da mesa, estava barulhento. Comia e bebia com grande voracidade, como era de seu costume, congratulando o bispo por seus esforços culinários, engolindo grandes quantidades de vinho, arrotando alegremente.

- Sua Majestade gostaria de ouvir um pouco de música? - quis saber o bispo.

O rei estava sempre disposto a ser entretido, e não havia nada de que gostasse mais, quando estava com a barriga cheia de boa comida e vinho, do que ouvir um pouco de música. Sentia-se agradavelmente tonto; sorriu para Gardiner com olhos sonolentos. Um bom servo, um bom servo. Ele estava tão bem-humorado que teria sorrido até para Cromwell.

Henrique olhou sobre a mesa. Uma mocinha estava cantando. Ela tinha uma voz bonita; suas faces coradas lembraram-lhe rosas de junho, seus cabelos brilhavam como ouro avermelhado; ela era pequenina, roliça e muito bonita. Havia nessa jovem alguma coisa que despertou Henrique. Não que ela fosse muito parecida com Ana. Os cabelos de Ana tinham sido pretos, assim como seus olhos; Ana fora alta e esguia. Como essa menina poderia lembrar-lhe Ana? Ele não soube o que poderia ter-lhe passado essa impressão, mas, ainda assim, havia nela alguma semelhança... uma semelhança difícil de ser posta em palavras. Tudo que ele sabia era que essa jovem fazia-o lembrar de Ana. Era o jeito como inclinava a cabeça, como gesticulava as mãos, como se curvava graciosa para a frente... agora ela estava jogando sua linda cabeça para trás. Henrique ficou excitado, como há muito tempo não ficava. Nada havia empolgado tanto Henrique desde seus primeiros dias de casamento com Ana Bolena.

- Quem é essa mocinha que está cantando? - indagou a Gardiner.

- Essa, Sua Majestade, é a sobrinha de Norfolk, Catarina Howard. O rei deu um tapinha no próprio joelho. Agora ele entendera. Ana

também fora sobrinha de Norfolk. A qualidade inefável era explicada por uma semelhança de família.

- Sobrinha de Norfolk! - disse Henrique, e resmungou sem raiva, de modo que o resmungo saiu de seus lábios como o ronronar de um gato. Observou a garota

"Por Deus, quanto mais a vejo mais gosto dela!"

Ele a estava comparando com sua rainha coberta de sardas.

"Que venham a mim beldades inglesas, de rostos encantadores e vozes suaves."

Ele gostava de um inglês sonoro na língua de uma mulher, não de um alemão rude. Essa mocinha era como uma rosa, corada, risonha e feliz.

- Ela parece pouco mais que uma criança - disse a Gardiner. Norfolk estava ao lado do rei. Era astuto como um macaco, ladino como uma raposa. Ele sabia muito bem como interpretar aquele olhar suave nos olhos reais; ele conhecia o significado do tom meloso do rei.

Norfolk ficara furioso quando o rei escolhera Ana Bolena em vez de sua própria filha, Lady Mary Howard. Todas as famílias queriam meninos, mas as meninas, quando eram tão agradáveis aos olhos quanto Ana Bolena e Catarina Howard, tinham os seu usos.

- Gostamos muito dos talentos musicais de sua sobrinha - disse orei.

Norfolk murmurou que Sua Majestade era graciosa, e que sentia grande deleite com o fato de que um membro de sua família pudesse conceder algum pequeno prazer ao seu soberano.

- Ela nos concede muito prazer - corrigiu o rei. - Gostamos de seus modos, e também de sua voz. Quem é o pai da moça?

- Meu irmão Edmund, senhor. Sua Majestade certamente se recorda dele. Ele se saiu muito bem em Flodden Field.

O rei assentiu afirmativamente.

- Lembro bem - disse, gentil. - Um bom servo!

Ele estava disposto a ver, através de uma nuvem de benevolência, cada membro de uma família que poderia gerar uma jovem encantadora como Catarina Howard.

- Decerto Sua Majestade prestará à minha pequena sobrinha a grande honra de conhecê-lo. Para uma jovem, um cumprimento real a seus pequenos talentos naturalmente valerá mais que a mais preciosa das gemas.

- Claro que falarei com ela. Peça-lhe para vir até mim.

- Sua Majestade, rogo humildemente que seja paciente com a simplicidade da moça. Ela levou uma vida enclausurada até recentemente, ao vir para a corte. Temo que ela possa ser muito envergonhada e que desagrade Vossa Majestade com sua falta de jeito. Ela talvez seja humilde demais.

- Humilde demais! - O rei quase gritou. - Como é possível, meu senhor, que uma dama seja humilde demais! - Henrique estava impaciente por tê-la perto de si, para estudar a pele jovem, para congratulá-la, dizendo o quanto ela agradara o rei. - Traga-a a mim sem delongas.

O próprio Norfolk caminhou até Catarina. Ela parou de tocar e olhou para ele, uma expressão de medo no rosto. Norfolk sempre a aterrorizava, mas agora seus olhos reluziam especulativos e da forma mais amistosa possível.

Catarina se levantou.

- Fiz algo errado?

- Não, não! - disse Sua Graça. - O seu canto agradou Sua Majestade. O rei me disse que gostou muito de você. Fale claramente quando ele se dirigir a você. Não fale para dentro, porque ele acha isso muito irritante. Seja humilde, mas não envergonhada.

O rei aguardava impaciente. Catarina fez uma mesura e uma mão gorda, branca, deu-lhe um tapinha no ombro.

- Basta! - disse ele, nem um pouco descortês.

Ela se levantou e permaneceu parada e trémula diante dele,

- Gostamos do seu canto. Você tem uma bela voz.

- Sua Majestade é muito graciosa...

Ela balbuciou; suas faces coraram adoravelmente. Henrique observou o sangue colorir suas faces delicadas.

"Por Deus, não vejo uma dama assim desde Ana." E os olhos de Henrique encheram-se repentinamente de autocomiseração ao pensar em todo o mal que a vida lhe causara.

Ele amara Ana, que o havia enganado. Ele amara Jane, que morrera. E agora estava casado com uma égua estrangeira, quando em seu reino, parada diante dele - tão perto que só precisaria esticar o braço para puxá-la para si estava a rosa mais linda que já florescera na Inglaterra.

- Gostamos de ser graciosos com aqueles que nos agradam-disse Henrique. -Você chegou recentemente à corte? Venha! Sente-se aqui... perto de nós.

- Sim, Sua Majestade. Eu... vim recentemente...

Ela era um botão que apenas começava a desabrochar, pensou Henrique. Era a criatura mais perfeita na qual ele já pusera os olhos, porque, se Ana era irresistível, fora sempre arrogante, vingativa e autoritária, enquanto esta pequena Catarina Howard, com seus olhos de corça e modos gentis e assustados, tinha a beleza de Ana e a docilidade de Jane.

"Ah, como eu seria feliz se tivesse tomado como esposa esta mocinha adorável no lugar daquela criatura flamenga! Como eu teria adorado presenteá-la com peles caríssimas. Jóias também. Não há nada que eu não daria a uma jovem tão encantadora."

Ele se inclinou sobre ela. O hálito do rei, não tão agradável, aqueceu a face de Catarina, e ela recuou involuntariamente. Pensando que isso fora resultado de sua humildade natural, Henrique ficou apenas mais encantado com ela.

- O seu tio esteve falando comigo a seu respeito.

O tio! Ela corou novamente, sentindo que ele não devia ter dito nada bom sobre ela.

- Ele me contou sobre o seu pai. Um homem bom, Lord Edmund. E sua avó, a duquesa-mãe, é uma amiga nossa.

Catarina ficou calada. Ela não sonhara com tanto sucesso; até aqui considerara sua voz moderadamente boa, nada mais que isso, decerto não boa a ponto de atrair o rei.

- Está gostando da corte? - perguntou o rei.

- Gosto muito, Sua Majestade.

- Então estamos felizes porque nossa corte lhe agrada! - Ele riu e ela riu também. Ele viu os dentes bonitos de Catarina, seu pescoço pequeno e branco, e sentiu um desejo enorme de fazê-la rir mais.

- Agora que nós a descobrimos, gostaremos de ouvi-la cantar com mais frequência. O que acha disso?

- Acho que será uma grande honra.

Ela pareceu sincera. Henrique gostava do ar de juventude cândida de Catarina

- O seu nome é Catarina, pelo que sei. Conte-me, quantos anos tem?

- Dezoito, senhor.

Dezoito! Ele repetiu, e sentiu-se triste. Dezoito, e ele beirando os 50. Envelhecido, cansado, tenso. Às vezes sentia tonteiras. Frequentemente, depois de uma refeição lauta, sofria de desordens intestinais. A cada dia, em vez de melhorar, sua perna piorava. Ele não podia sentar-se mais num cavalo como costumara fazer. Cinquenta anos de idade... e 18!

Henrique analisou-a cuidadosamente.

- Você irá cantar e tocar para nós novamente.

Ele queria observá-la sem precisar falar. Seus pensamentos sucediam-se apressados. Ela era uma jóia preciosa Tinha tudo que ele desejava numa esposa: beleza, humildade, virtude, encanto. Sentia uma dor profunda ao olhar para ela e ver, às suas costas, a sombra da rainha. Ele queria Catarina Howard tão urgentemente como um dia quisera Ana Bolena. Sua fome por Catarina era mais patética que aquela que ele sentira por Ana, pois, quando amara Ana, ele fora um homem comparativamente mais jovem. Catarina era preciosa porque, com sua preciosa juventude, era um raio de luz nos dias escuros da meia-idade de Henrique.

Ela cantou maviosamente. Henrique sentia-se tentado a esticar os braços, puxá-la e guardá-la para si. Era a necessidade que a idade fria nutria pela juventude cálida.

"Eu seria um pai e um amante para Catarina, sendo ela mais jovem que minha filha Maria", pensou Henrique. "Ela é adorável o bastante para acender as chamas da paixão em qualquer um que não seja cego. E sua voz é um bálsamo para a minha alma!"

Henrique observou-a tocar novamente. Em seguida mandou que ela se sentasse a seu lado. A jovem não saiu do lado do rei durante toda a noite.

Uma onda de excitação varreu a corte.

- Você viu o rei com a senhorita Catarina Howard ontem à noite?

- Juro que nunca vi Sua Majestade tão encantado com uma jovem desde Ana Bolena!

- O que ela ganhará com isso? Será sua amante? O que mais poderia ser, se o rei já tem uma rainha?

- O rei tem um jeito de tratar suas rainhas, não tem?

- Silêncio! Quer ir para a Torre ou ser acusado de traição?

- Pobre rainha Ana, tão tola, tão alemã! E Catarina Howard é a moça mais linda que vemos na corte em muitos anos!

- Pobre Catarina Howard!

- Pobre uma ova!

- Você trocaria de lugar com ela? Lembre-se...

- Silêncio! Elas tiveram azar!

Cromwell não tardou a compreender as novas complicações quando lhe trouxeram as notícias sobre o afeto do rei por Catarina Howard. Teve a impressão de que o fim estava muito, muito próximo. Norfolk certamente iria explorar essa situação até onde pudesse. Catarina era uma católica, uma integrante da família católica mais devota na Inglaterra. Os eventos na Europa continental avultavam-se ameaçadores sobre Cromwell. Quando o imperador viajara através da França, houvera sinais de que sua amizade com Francis não era tão cordial quanto se esperava. Carlos não estava mais pensando em atacar a Inglaterra. E era apenas quando planos como esse interessavam a Carlos que ele se sentia propenso a tomar Francis como aliado. Distúrbios floresciam nos domínios de Carlos e ele se encontrava com as mãos atadas; o que era muito satisfatório sob o ponto de vista de Henrique, mas nada satisfatório sob o ponto de vista de Cromwell. Quando o duque de deves pediu por ajuda para proteger o ducado de Cleves, Henrique demonstrara que não estava propenso a ajudá-lo.

Cromwell via a situação claramente. Ele não cometera qualquer engano. Ele simplesmente havia jogado e perdera. Henrique desposara Ana de Cleves porque isso fora necessário para a segurança da Inglaterra; agora, porém, a Inglaterra superara esse risco específico e o casamento não era mais necessário, de modo que o rei podia procurar por uma desculpa para se livrar de seu ministro mais odiado. Cromwell estivera ciente disso o tempo inteiro. Ele não podia fazer um bom jogo sem as cartas certas. com Carlos e Francis mantendo uma amizade, ele tivera uma chance de vencer; quando as relações entre esses dois tornaram-se tensas, Cromwell começara a perder. Sob o conselho de Cromwell, Henrique colocara em torno do pescoço uma corda muito irritante. Agora os eventos tinham mostrado que ele não precisava mais suportar esse incomodo. E lá estava Norfolk, o responsável pelo maior azar de Cromwell, cultivando sua neta no coração do rei, promovendo encontros entre ela e Henrique, oferecendo a jovem como um sacrifício da Casa de Howard no altar dos desejos do rei, um altar já manchado de sangue.

A mente de Henrique trabalhava rapidamente. Ele precisava ter Catarina Howard. Ele estava feliz; estava apaixonado. Catarina era a mulher mais linda do mundo, e nenhuma outra poderia fazê-lo mais feliz. Era deliciosa, era encantadoramente humilde; e quanto mais Henrique a conhecia, mais ela o encantava. Simplesmente vê-la passeando pelos jardins de Hampton Court, que ele planejara afetuosamente para sua prima Ana, fazia-o sentir-se mais jovem. Ela iria ser a esposa perfeita; ele não a queria como sua amante - ela era doce e pura demais para isso. Ele a queria a seu lado no trono, para que ele pudesse continuar sua vida com nenhuma outra mulher além dela.

Ela estava menos envergonhada com ele agora. Estava sempre rindo, mas também sempre propensa a preocupar-se com os problemas dos outros. Doce Catarina! A mais adorável das mulheres! A rosa sem espinhos! Ana talvez tivesse sido a rosa mais linda que já florescera, mas, oh, os espinhos! Agora que estava chegando à velhice, ele não poderia escolher companhia melhor que essa linda jovem. Mas, pensando melhor, ele não estava tão velho assim! Ele podia gargalhar sonoramente, segurando a mão de Catarina na dele, premindo os dedos frios e roliços contra sua coxa. Ele não estava tão velho assim. Tinha anos de vida agradável à sua frente. Ele nunca quisera uma vida desregrada, disse a si mesmo. Tudo que quisera era estar casado e feliz com uma mulher, e não a havia encontrado até agora. Ele precisava casar-se com Catarina. Precisava torná-la sua rainha.

A consciência de Henrique começou a preocupá-lo. Ele percebeu que o contrato de Ana com o duque de Lorraine sempre estivera em sua mente. E fora por esse motivo que ele jamais consumara o casamento. Henrique tivera tantos infortúnios em suas empreitadas matrimoniais que decidira agir cautelosamente nesta. Ele nunca tinha sido um marido verdadeiro para Ana devido a seu medo de presentear a nação com outro bastardo. Ademais, a dama era-lhe desagradável e ele suspeitava de sua virtude. Oh, ele não dissera nada sobre isso na época, talvez por ser misericordioso demais, disposto demais a não acusá-la antes de ter certeza. Ele não contraíra este casamento de livre e espontânea vontade; contraíra-o apenas porque achava que a Inglaterra encontrava-se indefesa contra a união entre Carlos e Francis. A Inglaterra devia-lhe um divórcio, afinal ele não assumira esse compromisso desagradável visando apenas o bem da Inglaterra? E ele devia filhos à Inglaterra. Ele tinha um menino e duas meninas... mas essas duas últimas eram ilegítimas; e o menino não gozava de uma saúde excelente. Ele fracassara em tornar o trono seguro para os Tudor; ele precisava de mais uma oportunidade para fazer isso. Algo precisava ser feito.

A duquesa-mãe de Norfolk mal pôde acreditar em seus ouvidos ao receber as notícias. O rei e sua neta! Que dia maravilhoso este em que recebera notícias tão maravilhosas!

Ela iria tirar do baú as suas jóias mais caras.

- Se Catarina pôde atraí-lo usando aquelas coisas simples, como ficará mais encantadora depois que eu a tiver vestido!

Pela primeira vez ela e o duque concordavam em alguma coisa. O duque visitou-a, e esse foi o encontro mais agradável que os dois já haviam compartilhado. A duquesa-mãe nunca pensara que ela e o duque um dia juntariam suas cabeças para enredar uma trama. Mas, depois que o duque foi embora, a duquesa foi assaltada por temores, porque teve a impressão de que sua outra neta olhava-a das sombras escuras de sua alcova, lembrando-a de seu próprio destino trágico. O quão bela e orgulhosa estivera a rainha Ana no dia de sua coroação! A duquesa jamais iria se esquecer da visão de Ana adentrando a Torre para ser recebida por seu amante régio. E então, apenas três anos depois... A duquesa pediu por luzes.

- Declaro que as sombras desta causa me desagradam. Iluminem! Iluminem tudo! Estão pensando em deixar-me no escuro, suas mundanas?

A duquesa sentiu-se mais confortável depois que o cómodo foi iluminado. Tinha sido estupidez imaginar, ainda que só por um momento, que os mortos podiam retornar.

- Ela não pode morrer pelo que foi feito antes - murmurou a duquesa para si própria.

Então pôs-se a escolher suas jóias mais valiosas - algumas para Catarina encantar o rei; algumas para ela própria usar em mais uma coroação de mais uma neta.

O conde de Essex, que há até pouco tempo fofa o plebeu Thomas Cromwell, aguardava a morte. Sabia que isso era inevitável. Ele fora calculista e inescrupuloso; fora terrivelmente cruel; torturara os corpos de homens e sacrificara suas carnes às chamas; dissolvera os monastérios, infligindo grande dor a seus moradores, e, para justificar suas ações, inventara crimes que aquelas pessoas teriam cometido. com Sampson, duque de Chichester, ele orquestrara um caso contra Ana Bolena, e levara-a à morte através do único homem que poderia falar contra ela, um pobre e delicado músico que fora torturado violentamente. Todos esses crimes-e muitos outros - ele cometera, mas todos haviam sido sob o comando de seu mestre. Não tinham sido crimes de Cromwell; tinham sido crimes de Henrique.

E agora ele aguardava o destino que tantas vezes preparara para outros. Fazia 10 anos desde a morte de Wolsey, e tinham sido 10 anos de acúmulo de poder para Cromwell. E agora... aqui estava o fim inevitável. O rei livrara-se de Wolsey - por quem nutrira algum afeto por causa de Ana Bolena. Agora ele iria livrar-se de Cromwell - a quem, embora não amasse, sabia ser um servo fiel - por causa de Catarina Howard. Embora esta jovem, a quem o rei iria fazer sua rainha, não fosse portadora de qualquer malícia - sendo mais. propensa a rogar piedade para um inimigo do que de exigir sua punição -, seria devido a ela que Cromwell encontraria sua ruína. Os cruéis Norfolk e Gardiner tinham conquistado o poder desde que o rei mostrara sua preferência pela neta de Norfolk, e esses dois homens, que representavam o catolicismo em todas as suas antigas formas, naturalmente iriam querer destruir alguém que se posicionava vigorosamente a favor da nova religião. Enquanto estivera espoliando os monastérios, ele estivera a salvo, e sabendo disso ele deixara uma instituição muito rica intocada, para que numa emergência pudesse deitar seus tesouros aos pés do rei e assim conquistar algum respeito. Ele já fizera isso, e ao apresentar esse último prémio ganhara o título de conde de Essex.

Fora um triunfo breve, porque a posição de Cromwell era inquietantemente similar àquela na qual o próprio Wolsey havia se encontrado. Wolsey não mandara seus tesouros para o rei no esforço vão de se salvar? Hampton Court e York Place; suas casas, pratarias e tesouros de arte. Cromwell, como Wolsey antes dele, se quisesse agradar ao rei, precisaria livrar seu mestre de uma esposa que ele, Cromwell, apoiara. Mas se ele conseguisse fazer isso, colocaria no trono um membro da família Howard, que jurara destruí-lo.

Quando percebeu que Cromwell estava hesitando escolher entre dois males, porque não tinha certeza qual era o menor, o rei perdeu a paciência, e declarou que Cromwell estivera operando contra seus objetivos em obter uma solução para o problema religioso, e isso era, sem sombra de dúvida, um ato de traição.

Cromwell foi preso e levado para a Torre. Sorriu amargamente, imaginando os agentes do rei fazendo inventários de seus tesouros. Quantas vezes realizara atividades semelhantes em nome do rei! Cromwell jogara e perdera. Mas havia uma certa medida de conforto no conhecimento de que fora devido à má sorte, não a uma falta de habilidade, que chegara a este fim.

Um mensageiro foi anunciado; ele vinha da parte do rei. Isso renovou as esperanças de Cromwell. Ele servira bem ao rei. Decerto Sua Majestade não iria deserdá-lo agora. Talvez ele ainda pudesse ser útil para o rei. Sim! Aparentemente, ele podia. O rei precisava de Cromwell para efetivar sua liberação do casamento ao qual ele próprio o encaminhara. Se atendesse ao pedido do rei, qual seria a recompensa de Cromwell? O rei era sempre generoso, sempre misericordioso, e Cromwell seria recompensado depois de libertar o rei. Cromwell era um traidor e havia duas mortes designadas para traidores. Uma era a morte pelo machado, honrada e fácil. A outra? Cromwell conhecia a outra melhor que ninguém. Quantas pobres almas ele condenara a morrer daquele jeito? A vítima era enforcada, mas não morta; era eviscerada e suas entranhas queimadas enquanto tudo se fazia para preservar-lhe a vida; apenas então era decapitada. Essa seria a recompensa de Cromwell por seu último serviço para o seu mestre: em sua graciosa misericórdia, o rei mui cristão deixar-lhe-ia escolher um tipo de morte.

Cromwell fez sua escolha. Ele nunca deixava de servir ao seu rei.

Ana foi mandada para Richmond. Foi significativo o fato de que o rei não a acompanhou. Ela estava aterrorizada. Isso acontecera antes, com outra pobre dama no papel que agora deveria exercer.

O que haverá em seguida?, perguntou-se.

Estava sozinha numa terra estranha, entre pessoas cuja língua não falava, e sentia a morte muito próxima. Seu irmão, o duque de Cleves, estava muito distante, e era insignificante em comparação com este grande personagem, o seu esposo, um homem capaz de praticar o assassinato com a mesma naturalidade com que as outras pessoas comiam, bebiam e dormiam.

Desde que se casara com Henrique, Ana vinha sendo submetida a uma angústia mental tão grande que agora sentia-se fraca demais para a luta que indubitavelmente teria de travar por sua vida. Suas noites tinham sido insones; seus dias tão plenos de terror que uma inocente batida na porta fazia-a tremer como se estivesse febril.

Era rainha da Inglaterra há poucos meses e tinha a impressão de que vivera anos de tormento. Seu esposo não fizera o menor esforço em disfarçar seu desagrado por ela. Era cercada por aias que a arremedavam, encorajadas a essa descortesia por um rei propenso a qualquer ato cruel para desacreditá-la. Henrique sentia uma satisfação tão grande em magoá-la - e em inspirar os outros a fazer o mesmo - que dizia para quem quisesse ouvir o quanto a aparência da rainha o repugnava.

Uma certa Lady Rochford - uma de suas damas de companhia, que fora esposa do irmão falecido de outra rainha - era uma criatura das mais desagradáveis. Essa dama costumava ouvir por trás de portas e espioná-la, reportando tudo que dizia às damas que teciam comentários maldosos a seu respeito. Essas damas riam de suas roupas, sobre as quais Ana era a primeira a admitir não serem tão bonitas quanto as usadas na Inglaterra.

Como se todas essas coisas não fossem suficientes, o rei estava insinuando que Ana levara uma vida imoral antes de vir para a Inglaterra. Essa acusação injusta e mentirosa era, dentre todos os seus suplícios, aquele que mais a perturbava. Perturbava-a tanto porque Ana realmente acreditava que Henrique duvidava de sua virtude. Ana não conhecia o rei bem o bastante para compreender que isso era característico de sua pessoa, que acusava os outros de seus próprios defeitos, extraindo dessa atitude sua força moral, enganando a si próprio, convencendo-se de não ser culpado pelos destinos terríveis que impingia aos outros. Portanto, a pobre rainha Ana não podia ser uma mulher mais infeliz.

Havia uma mocinha, recentemente chegada à corte, que despertara o afeto de Ana. Ironicamente, a beleza e o encanto dessa menina haviam intensificado a animosidade do rei para com Ana

"O rei deseja livrar-se de mim, e colocar no trono a pobre Catarina Howard", pensou Ana. "É bem provável que consiga. Como sinto pena dessa jovem. Depois que eu tiver sido removida, ela passará a sofrer em meu lugar tudo que sofro agora!"

Ana estava sentada no assento de janela quando lhe trouxeram uma mensagem de que Lord Suffolk e Lord Southampton, com Sir Thomas Wriothesley, estavam do lado de fora, e queriam falar com ela.

A sala começou a girar ao redor de Ana; ela agarrou a cortina escarlate para não cair. Sentiu o sangue descer de sua cabeça. Chegara o momento. Seu destino batia à sua porta!

Quando Suffolk, Southampton e Wriothesley entraram no cómodo, encontraram a rainha caída no chão, desmaiada. Levantaram-na e ajudaram-na a sentar-se numa cadeira. Ela abriu os olhos e viu o rosto rosado de Suffolk aproximar-se do dela, e quase desmaiou de novo; mas esse nobre começou a falar com ela em tons suaves, e suas palavras eram tranquilizantes.

O que ele disse a Ana pareceu-lhe a melhor notícia que ela já ouvira em sua vida. O rei, por força de sua consideração por ela - que significava sua consideração pela casa de Cleves, mas de que importava isso? - queria adotá-la como sua irmã, desde que ela resignasse a seu título de rainha. O rei não lhe queria mal, mas ela sabia bem que jamais fora casada verdadeiramente com Sua Majestade devido ao contrato prévio com o duque de Lorraine. Fora por esse motivo que Sua Cautelosa Majestade jamais consumara o casamento. Tudo que ela precisava fazer era comportar-se de forma racional, e teria precedência na corte sobre todas as outras damas, com exceção apenas das filhas do rei e daquela que iria tornar-se sua rainha. Os ingleses pagantes de impostos iriam proporcionar-lhe uma renda de três mil libras por ano.

Irmã do rei! Três mil libras por ano! Isso era miraculoso! Isso era felicidade. Aquele monstro corpulento, suado, mal-humorado, desprezível e maligno não era mais seu marido! Ela não precisava viver perto dele! Ela poderia ter sua própria morada! Ela não precisava retornar para o seu país nublado, e poderia viver nesta terra linda, que já começara a amar apesar de seu rei! Ela estava livre.

Ela quase desmaiou novamente, despreparada como estava para a mudança da tristeza absoluta para a alegria plena.

Suffolk e Southampton trocaram olhares com Wriothesley. O rei não precisava ter sido tão generoso com essas três mil libras. Não lhe ocorrera que Ana estava ansiosa por livrar-se dele. Eles iriam esconder isso do rei; melhor seria que Sua Augusta Majestade acreditasse que fora o tato destes homens que persuadira esta mulher a aceitar a oferta.

Ana despediu-se de seus visitantes com um aceno alegre. Jamais Henrique Vin conseguira proporcionar tanta felicidade a uma de suas esposas.

Catarina estava pasma. Sua posição mudara de forma absolutamente repentina. Em vez de ser a mais humilde recém-chegada, ela era a pessoa mais importante da corte. Todos prestavam-lhe reverências. Até mesmo seu tio velho e sorumbático sempre tinha uma palavra agradável para Catarina, que agora achava que o havia julgado mal. A duquesa-mãe, sua avó, mandara-lhe suas jóias mais caras, mas essas eram pobres comparadas com aquelas que tinham chegado do rei. Ele a chamava de "ARosa sem Espinhos"; e era isso que estava inscrito em algumas das jóias que ele lhe dera. Ele escolhera o lema de Catarina, que era "Nenhuma Outra Vontade Senão a Dele".

Catarina sentia pena da pobre rainha, e odiava pensar que estava tomando o seu lugar; mas quando ouviu que Ana parecia estar mais feliz em Richmond do que estivera na corte, ela começou a desfrutar de seu novo poder.

Presentes foram mandados para ela, vindos não apenas do rei, mas dos cortesãos. A avó de Catarina bajulava-a, reprimia-a e alertava-a a um só tempo.

- Seja cuidadosa! Jamais uma só palavra sobre o que aconteceu com Derham poderá chegar aos ouvidos do rei!

- Eu preferiria contar tudo a ele - disse Catarina.

- Nunca ouvi uma besteira maior em toda a minha vida! - Os olhos negros de Sua Graça reluziram. - Sabe onde Derham está?

Catarina assegurou-lhe que não sabia.

- Isso é bom - disse a duquesa - Eu e Lord William falamos com o rei sobre as suas virtudes e de como você será uma rainha muito graciosa e amável.

- Mas eu serei? - indagou Catarina

- Sim, com toda certeza Agora, esqueçamos essas tolices. Venha mostrar-me esse anel de rubi no seu dedo. Devo lhe contar que eu e Lord William sentimos que o rei teria ficado extremamente irritado se tivéssemos sido menos lisonjeiros com você. Oh, que grande sorte você tem de ser amada pelo rei, Catarina Howard!

Catarina pensara que iria se sentir aterrorizada pelo rei, mas isso não acontecera. Ela não tinha nada a temer desse homem grande e gentil. A voz de Henrique mudava quando ele falava com ela. Henrique segurava-lhe a mão, acariciava-lhe as faces e partia-lhe com os dedos os cabelos. Algumas vezes ele premia os lábios contra a carne nos ombros macios de Catarina. Ele dizia a Catarina que ela significava muito para ele, que queria, acima de todas as coisas, fazer-lhe sua rainha, que ele tinha sido um homem muito infeliz até a primeira vez em que deitara os olhos nela. Catarina olhava pasma para aqueles olhinhos cheios dágua. Era esse o homem que mandara sua linda prima para a morte? Como a simplória Catarina poderia pensar mal desse homem que a fitava com lágrimas verdadeiras nos olhos?

Certa vez ele resolveu falar sobre a falecida prima de Catarina, porque via que Ana estava presente nos pensamentos da jovem. Afinal, elas tinham sido primas, e conhecido e gostado uma da outra.

- Venha sentar-se no meu joelho, Catarina-convidou Henrique. Ela se sentou enquanto ele premia o corpo de Catarina contra o dele e pôs-se a falar sobre Ana Bolena.

- Você foi tão iludida quanto eu por seu charme e beleza, não foi? Mas você era apenas uma menininha, enquanto eu era um homem. Sabia que ela tentou tirar a minha vida e envenenar minha filha Maria? Sabia que meu filho morreu por um feitiço que ela lançou sobre ele?

- É difícil acreditar nisso. Ela era muito gentil comigo. Tenho uma jóia que ela me deu quando eu era ainda um bebé.

- Doce Catarina, eu também guardo muitos presentes dela. Eu também não pude acreditar...

Para Catarina era mais fácil acreditar no rei, que estava perto dela, quando Ana era nada mais que uma lembrança.

Foi nessa época que Catarina reencontrou Thomas Culpepper. Era um dos gentis-homens da câmara particular de Henrique, e sendo muito bonito e educado, tinha agradado ao rei desde que ele o conhecera. Os deveres de Thomas, que incluíam supervisionar as ordens do médico concernentes à perna de Sua Majestade, mantinham-no próximo de Henrique, que o favorecera consideravelmente, e lhe dera vários postos que, embora exigissem pouco trabalho, proporcionavam uma boa remuneração; ele até mesmo lhe dera uma abadia. Henrique gostava de Culpepper. O rapaz o divertia. Em Kent, onde nascera, o rapaz envolvera-se em alguns escândalos, sendo inquieto e pouco cauteloso; mas o rei sempre era propenso a perdoar as faltas daqueles que ele queria a seu redor, assim como era propenso a encontrar faltas naqueles que queria afastar.

O conhecimento de que sua prima estava na corte não tardou a atingir Thomas Culpepper, pois desde a ascensão de Catarina Howard os cortesãos não falavam de outra coisa. Certa tarde, ao vê-la no jardim do lago, Thomas se dirigiu a Catarina. Ela estava parada de pé ao lado de uma roseira, o sol brilhando em seus cabelos castanhos. Thomas imediatamente compreendeu por que o rei estava tão apaixonado.

- A senhorita não irá lembrar-se de mim. Sou o seu primo, Thomas Culpepper.

Os olhos de Catarina se arregalaram e ela estremeceu de prazer. Estendeu ambas as mãos para o primo.

- Thomas! Estava ansiosa por vê-lo!

Ficaram parados ali de mãos dadas, estudando os rostos um do outro.

"Como ele é bonito!", pensou Catarina. "Ainda mais bonito que em seus tempos de menino!"

"Como ela é bonita!", pensou Thomas. "Como é adorável... e em vista do que lhe aconteceu durante as últimas semanas, quão perigosamente adorável!"

Mas para Thomas nada era muito interessante se não possuísse um elemento de perigo.

Ele disse, ousado:

- Como você ficou bonita, Catarina! Ela riu, deliciada.

- Isso é o que todos me dizem agora! Lembra do graveto que você me deu para cutucar a parede?

Eles começaram a rir de suas lembranças.

- E as aventuras que você costumava ter... e como nós costumávamos cavalgar no estábulo... e como você...

- Disse que eu não iria casar com nenhuma outra, senão com você!

- Você disse isso, Thomas. Mas depois nunca fez nada a esse respeito!

- Eu nunca esqueci! - mentiu Thomas. - Mas agora...

Ele olhou sobre o jardim e as sebes, repousando os olhos nas janelas do palácio.

"Neste exato momento pode haver olhos invejosos concentrados em mim", pensou Thomas Culpepper.

Vivendo próximo ao rei, Thomas conhecia bem seus ataques de ira. Este seu contato com Catarina era perigosamente doce.

- Agora é tarde demais - disse num tom melancólico. Catarina viu Thomas como o amante a quem ela fora prometida

durante muitos anos; ela esqueceu Manox e Derham e creu que sempre houvera apenas Thomas.

- Suponha que tivéssemos nos casado quando isso foi sugerido há cerca de um ano - conjeturou Thomas.

- Como nossas vidas seriam diferentes!

- E agora eu arrisco minha vida falando com você. Os olhos de Catarina arregalaram-se de terror.

- Então não devemos ficar aqui.

Ela riu subitamente. Essas pessoas que temiam o rei não o conheciam como ela. Sua Majestade era uma pessoa extremamente gentil, sempre disposto a fazer as pessoas felizes. Imagine se ele iria ferir o primo de Catarina se ela lhe pedisse para não fazê-lo!

- Catarina, eu não me importo de arriscar minha vida de novo. Valerá a pena fazer isso.

Thomas segurou a mão de Catarina e a beijou. Então deixou a prima sozinha no jardim do lado.

Eles não puderam resistir a encontrar-se em segredo. Encontraram-se em corredores escuros. Eles temiam que se o rei descobrisse que eles estavam se encontrando dessa forma, não poderia haver mais encontros. Às vezes ele tocava os dedos de Catarina com os dele, porém nada mais; e depois de alguns encontros estavam apaixonados um pelo outro.

Havia uma similaridade em suas naturezas. Ambos eram pessoas , passionais e imprudentes; eram primos em primeiro grau e sabiam agora que desejavam desfrutar de um relacionamento mais próximo; e como eles haviam, quando crianças, se prometido um ao outro no estábulo de Hollingbourne, sentiam que a vida fora cruel ao separá-los e juntálos novamente quando era tarde demais para se tornarem amantes.

Catarina nutria pouco medo por si própria, mas temia por ele. Thomas, um aventureiro imprudente que já estivera envolvido em mais de um romance perigoso, temia não por si, mas por ela.

Eles tocavam as mãos e diziam um para o outro:

- Oh, por que isto foi acontecer conosco? Catarina dizia para ele:

- Às três da tarde eu passarei pelo corredor que conduz à sala de música.

Ele respondia:

- Estarei por lá como se por acidente.

Todos os seus encontros eram assim. Os jovens esperavam por verse o dia inteiro, e então, quando alcançavam o ponto designado, muitas vezes havia outra pessoa por perto, e era-lhes impossível trocar mais do que um olhar. Mas ambos consideravam esse risco muito estimulante.

Houve uma ocasião em que ele, mais audacioso depois de dias sem nem mesmo conseguir vê-la de relance, puxou-a do corredor para uma antecâmara e fechou a porta.

- Catarina, não posso suportar mais isto. Não percebe que eu e você fomos feitos um para o outro? Não percebe que o nosso destino está traçado desde aquela noite em que eu escalei o muro até a sua alcova? Nós éramos apenas crianças naquela época, e os anos foram cruéis conosco, mas eu tenho um plano. Você e eu iremos deixar o palácio juntos. Iremos nos esconder e nos casar.

Catarina sentiu medo. Como sempre, estava disposta a se render à paixão do momento, mas teve a impressão de escutar a voz de sua prima acautelando-a. Catarina jamais iria conhecer a verdadeira história de Ana Bolena, mas ela a amara e sabia que seu fim havia sido terrível. Ana fora amada pelo mesmo homem imenso; aqueles olhos haviam ardido também por Ana; aquelas mãos cálidas e úmidas também haviam acariciado Ana. Ana não tivera a história triste de uma prima para acautelá-la

Culpepper estava beijando as mãos e os lábios de Catarina. O corpo jovem e sadio de Catarina sugeria a ela que se rendesse. Talvez com Manox ou Derham ela tivesse se rendido; mas não com Culpepper. Ela não era mais uma menina de cabeça oca. Sombras de seu passado avultaram-se sobre ela. Lembrou-se da voz aguda de Doll Tappit dizendo "Os gritos vindos das câmaras de tortura eram terríveis...". Catarina sabia como os monges tinham morrido; ela odiava pensar em outras pessoas sofrendo dor, e contemplar a possibilidade de uma pessoa a quem amava ser ferida foi o suficiente para abafar o seu desejo. Ela lembrou como Derham passara por sua vida; e naquela época ela fora a plebeia Catarina Howard. O que aconteceria com o homem que ousasse amar aquela que o rei escolhera para sua rainha!

- Não, não! - gritou Catarina, olhos cheios de lágrimas. - Isso não poderá acontecer. Ah, se pudesse! Eu daria toda a minha vida por um ano de felicidade com você. Mas não ouso fazer isso. Tenho medo do rei. Preciso permanecer aqui porque eu o amo, Thomas.

Ela se desvencilhou do primo. Aqueles encontros não poderiam acontecer mais.

- Amanhã... - disse ele. - Devemos nos encontrar aqui. Ouça, Catarina, devemos arruinar nossas vidas?

- Amanhã... - concordou Catarina, debilmente. -Amanhã. Ela correu para o seu apartamento, onde, desde que Ana partira

para Richmond, ela desfrutava de uma vida de rainha. Foi saudada por uma de suas damas de companhia, Jane Rochford, viúva de seu falecido primo George Bolena. Lary Rochford parecia empolgada. Ela disse que havia uma carta para Catarina.

Catarina não recebia muitas cartas. Ela pegou essa e a abriu. Franziu a testa, porque nunca tivera muita facilidade para a leitura.

Jane Rochford estava a seu lado.

- Será que eu posso ajudá-la?

Jane estava ansiosa por firmar uma amizade com Catarina. Ela não gostara da última rainha; Jane decidira aderir à causa católica e apoiar Catarina Howard contra Ana de Cleves.

Catarina deu-lhe a carta.

- É de uma Jane Bulmer - disse Jane. - A carta veio de York.

- Lembro-me dela. É Jane Acworth, que foi para York casar-se com o Sr. Bulmer. Diga-me o que está escrito.

A carta de Jane Bulmer tinha sido escrita cuidadosamente. Ela desejava a Catarina toda honra, riqueza e felicidade. Seu motivo para escrever era pedir um favor a Catarina. O favor era que conseguisse para ela um lugar na corte. Jane estava descontente com o campo; estava desolada. Um comando da futura rainha ao marido de Jane, de mandar sua esposa para a corte, tornaria Jane Bulmer muito feliz, e ela implorava pela ajuda de Catarina.

A ameaça estava na última frase.

"Sei que a rainha da Bretanha não esquecerá sua secretária..."

Sua secretária! Fora Jane Bulmer quem escrevera todas aquelas cartas reveladoras, íntimas e apaixonadas a Derham; Jane Bulmer tinha conhecimento de tudo que acontecera.

Catarina permaneceu sentada imóvel enquanto Jane Rochford lia a carta; seu rosto corou de vergonha.

Jane Rochford não costumava deixar que sinais como esses passassem sem serem notados. Ela, assim como Catarina, leu aquelas últimas palavras como uma insinuação de chantagem.

Num dia quente de julho Cromwell fez a jornada da Torre até Tyburn. Fora até Tyburn porque não deveria esquecer que era um homem de origem humilde. Algum tempo atrás isso o teria enervado, mas agora provocava-lhe um sorriso. Para um homem cuja cabeça estava prestes a ser cortada, que diferença fazia que isso fosse feito na Colina da Torre ou em Tyburn?

Ele obedecera a seu senhor até o fim; ele fora mais do que o servo do rei; fora o escravo do rei. Mas o gracioso soberano fora surdo a seus pedidos de misericórdia.

Ele estava cansado de Cromwell. Não permitira a Cromwell que falasse em sua própria defesa. Sua queda iria ajudar Henrique a recuperar a popularidade, visto que o povo da Inglaterra odiava Cromwell.

Os amigos de Cromwell? Onde estavam eles? Cranmer? Ele quase riu do pensamento de Cranmer ser seu amigo. Apenas um louco esperaria, da parte daquele covarde, lealdade em face do perigo. Ele sabia que o arcebispo declarara-se com o coração pesado de tristeza; dissera ao rei que amara Cromwell, e que ficara perplexo em saber que ele havia traído o rei; estava também profundamente preocupado com o fato de que se Cromwell, a quem amara, revelara-se um traidor, em quem o rei poderia confiar no futuro?

Cromwell dissera praticamente as mesmas palavras quando Ana Bolena fora levada para a Torre. Pobre Cranmer! Como ele sentia medo. Em sua imaginação, ele devia ter enfrentado a morte mil vezes. Nunca houve um homem mais ansioso por dissociar-se de um amigo caído!

Multidões aglomeravam-se para ver os últimos momentos de Cromwell. Ele reconheceu muitos inimigos. Pensou em Wolsey, que estaria entre os espectadores, se tivesse sobrevivido a Cromwell. Cromwell caminhara à sombra de Wolsey, lucrara com seu exemplo, com seu brilhantismo e erros; ele seguira a estrada para o poder e descobrira que ela conduzia a Tyburn.

No meio da multidão havia uma pessoa que verteu uma lágrima por ele. Era Thomas Wyatt, que acreditara tanto quanto Cromwell que as doutrinas de Lutero deviam ser mais divulgadas. Os olhos dos dois homens se encontraram. Cromwell compreendeu que Wyatt tentava confortá-lo, dizer-lhe que as crueldades que ele infligira a tantos tinham sido realizadas por ordem de Henrique e que Cromwell não era inteiramente responsável por elas. Esse rapaz não sabia o papel que Cromwell desempenhara na destruição de Ana Bolena. Cromwell rezou para que ele nunca descobrisse. Gostava de Wyatt.

- Não chore, Wyatt, porque, se eu não tivesse feito o que fiz, talvez não estivesse aqui agora - disse Cromwell.

Era hora de Cromwell fazer seu último discurso, de deitar a cabeça no cepo. Pensou em todo o sangue que fizera derramar, e tentou orar, mas não conseguiu pensar em nada além de sangue, e nos gritos de homens agonizantes e no ranger do ecúleo.

Sobre seu pescoço delgado desceu o machado. A cabeça de Cromwell rolou para longe do corpo, da mesma forma que, quatro anos antes, rolara a cabeça de Ana Bolena.

O rei estava encantado com sua noiva. No grande salão de Hampton Court ele a proclamou sua rainha. Há anos ninguém via o rei tão bemhumorado; Henrique estava rejuvenescido.

Alguns dias depois da proclamação, ele a levou de Hampton Court para Windsor, e estarreceu a todos isolando-se da corte para desfrutar da companhia de sua noiva em particular. Catarina parecia duplamente aprazível aos olhos do rei, tendo vindo depois de Ana de Cleves; ela era muito gentil, mas sempre disposta a rir; ela não era dotada de um humor sarcástico que o confundisse; sua conversa não tinha nenhum ranço de intelectualidade, apenas de gentileza. Ela era uma criaturinha passional, ou pouco temerosa dele, mas não muito. Ela era feminina e reagia aos seus carinhos. O rei jamais sentira-se tão inebriado de felicidade. Se tinha alguma falha, era a sua generosidade, a sua gentileza para com os outros. Ela dava roupas e jóias, explicando, a cabeça pendendo para um lado, os lábios deliciosos afastados:

"Mas é que caiu tão bem nela, e ela tinha tão pouco..."

Ou:

"Ela é pobre; se pudéssemos fazer algo por ela, como isso me faria feliz!"

Catarina era irresistível e Henrique não conseguia reprimi-la por seu excesso de generosidade. Na verdade ele gostava dessa característica, porque ele também usufruía sua parte dessa generosidade. Ele beijava e acariciava Catarina, e também conseguia fazê-la rir. Nunca Henrique sonhara com tanta felicidade.

Ana de Cleves recebeu uma ordem de ir à corte prestar sua homenagem à nova rainha. Houve muita especulação na corte sobre de como a rainha destronada iria se sentir quando se ajoelhasse diante de uma mulher que, não fazia muito tempo, fora sua dama de honra. Esperavase que Catarina fosse exigir uma grande homenagem da parte de Ana de Cleves para provar a si mesma e à corte que ela estava sentada com segurança no trono e tinha comando da afeição do rei. Mas quando Ana chegou e se ajoelhou diante da nova rainha, Catarina impulsivamente declarou que não deveria haver cerimónias entre as duas.

- Você não deve se ajoelhar para mim! - gritou, e as duas rainhas abraçaram uma à outra com lágrimas de afeto nos olhos; e foi Ana de Cleves quem se sentiu honrada, não Catarina Howard.

Catarina iria prestar honras à filha de sua sobrinha, Elizabeth, em parte porque ela era filha de sua prima, e em parte porque, de todos os seus filhos adotivos, era a Elizabeth que ela amava mais.

Maria estava disposta a ser amistosa, mas apenas porque Catarina viera de uma família que se mantinha fiel à antiga fé católica, e a amizade de Maria pelas pessoas dependia inteiramente de sua autencidade quanto ao catolicismo. Maria era seis anos mais velha que a esposa de seu pai, e considerou a menina excessivamente frívola. No começo Catarina aceitou a desaprovação de Maria, porque sabia que a princesa tinha sofrido muito, mas acabou queixando-se a Henrique de que ela não lhe prestara as devidas honras; ela acrescentou que, se ao menos Maria lembrasse de que, embora fosse mais jovem, Catarina era a rainha, ela estaria disposta a tratá-la como amiga. Isso resultou numa reprimenda severa do rei a Maria; mas amizade não era feita dessa forma, e como poderia a pobre, plebeia, frustrada Maria evitar uma certa dose de inveja pela deslumbrante Catarina, cuja influência sobre o rei parecia ilimitada? Maria era mais espanhola que inglesa; ela era dada a afundar em estados de melancolia profunda; passava horas ajoelhada rezando, remoendo a tragédia de sua mãe e o rompimento com Roma. Ela preferia fazer isso a cantar, dançar e ser feliz. De joelhos ela rezava para que o rei retornasse para a fé verdadeira em todas as suas antigas formas, para que ele seguisse o exemplo do país de sua mãe e merecesse a aprovação do céu estabelecendo uma Inquisição nesta ilha pecaminosa, torturando e queimando todos aqueles que mereciam esse destino, por serem hereges. Como poderia essa Catarina, uma frívola de coração mole, conduzir o rei a essa atitude? Não, jamais poderia haver uma amizade verdadeira entre Catarina e Maria.

O pequeno Eduardo ainda não tinha nem dois anos de idade. De rosto pálido e olhos cansados, o príncipe estava sempre sob os cuidados de sua devotada ama-seca, Mrs. Sibell Penn, que morria de medo de que alguma rajada de ar frio tocasse o menino e fizesse findar sua vida frágil.

Obviamente, era a Elizabeth que Catarina mais amava. A criança já guardava uma grande semelhança com Ana, tendo herdado do pai apenas a cor da pele. Catarina pedia a presença de Elizabeth à mesa com eles, ocupando o lugar de honra ao lado de Maria. Ela rogou por privilégios para Elizabeth.

- Ah! - disse Henrique, indulgente. - Parece que a Inglaterra tem um novo regente, e é a rainha Catarina!

- Não! - retrucou Catarina. - Porque como poderia eu, tão jovem e boba, reger este grande país? Isso é encargo de alguém que seja forte e inteligente.

Henrique gostava de ver as duas juntas: sua filha favorita e sua rainha idolatrada. Vendo-as felizes, o coração de Henrique inundava-se em contentamento.

"A filha de Ana está feliz com a minha nova esposa."

E como, para Henrique, isso parecia ser um sinal de perdão, ele não sentia mais o menor arrependimento em relação a Ana Bolena.

Ele e Catarina cavalgavam juntos no parque em Windsor. Henrique nunca passeara tão desacompanhado por cortesãos; queria aproveitar ao máximo cada dia que passava com essa menina adorável e risonha. Era agradável esquecer as preocupações do reino e ser um amante. Desejava não estar tão gordo, embora fosse incapaz de manter um regime frugal. Mas era lamentável suar e arfar quando se era o amante de uma jovem cheia de vida. Mas Catarina fingia não notar que ele se cansava rapidamente, e cuidava para que ele não se exercitasse tanto em sua perseguição a ela. Ela era perfeita: sua rosa sem um único espinho.

Henrique quase estava feliz com o fato de que a condição reduzida do tesouro não permitira muitos cerimoniais desta vez, querendo desfrutar de paz com sua jovem noiva.

Fizeram uma jornada curta e feliz de Windsor até Grafton, onde permaneceram até setembro. E foi enquanto estavam em Grafton que um incidente alarmante aconteceu.

Cranmer notou o incidente e decidiu fazer o máximo uso dele, embora, conhecendo a natureza amorosa do rei, soubesse não haver muito uso para esse conhecimento agora. Cranmer estava inquieto, sentindo-se assim desde a prisão de Cromwell, porque tinham caminhado muito lado a lado para que o extermínio de um não preocupasse seriamente o outro. Norfolk estava ascendendo, e ele e Cranmer estavam engajados amargamente na disputa sutil de dois grupos religiosos opostos. Pessoas como Catarina Howard eram apenas peças a serem removidas desta forma e daquela pelos dois lados; e a luta estava feroz e mortal. Cranmer, embora um homem de considerável poder intelectual, era um covarde. Seu grande objetivo era manter a cabeça afastada do cepo e os pés longe da fogueira. Ele não podia esquecer que perdera seu aliado Cromwell e precisava lidar sozinho com Norfolk, que era muito astuto. Cranmer estava tão determinado a tirar Catarina Howard do trono quanto os católicos tinham querido destruir Ana Bolena. Desta vez ele prestava reverências à nova rainha; ele a adulava; ele falava deleitosamente sobre ela com o rei, murmurando que confiava que agora Sua Majestade tinha a esposa que sua grande bondade merecia. E agora, com este incidente começando a desabrochar e com o casamento sem contar nem mesmo com um mês, Cranmer rezou para conseguir extrair o máximo de utilidade dele e levar Catarina Howard à ruína e servir a Deus da forma que o Senhor preferia ser servido.

Começara com algumas palavras proferidas por um padre em Windsor. Ele falara com desdém sobre a rainha, dizendo que soubera que certa vez, quando era ainda uma menininha, ela levara uma vida muito imoral. O padre imediatamente foi feito prisioneiro e colocado na torre do Castelo de Windsor, enquanto Wriothesley, a pedido do conselho, foi enviado para expor o assunto ao rei.

Catarina estava numa pequena antecâmara quando esse homem chegou. Ela ouviu o rei saudá-lo em voz bem alta.

- Quais são as notícias? - gritou Henrique. - Por Deus! Como estás carrancudo!

- Peço que Sua Majestade seja paciente comigo. O assunto que trago diz respeito à rainha.

- A rainha! -A voz de Henrique saiu num rugido de medo. Os modos dissimulados e a tristeza fingida nos olhos do visitante eram familiares a Henrique. Ele não queria imaginar que qualquer coisa pudesse perturbar seu idílio amoroso com Catarina.

- Decerto se trata apenas de palavras sem sentido de um velho genil - disse Wriothesley. - Mas o conselho considerou ser seu dever alertar Sua Majestade. Um certo padre em Windsor disse que tinha dúvidas sobre o decoro da rainha.

Catarina segurou-se na cortina, e teve a impressão de que estava prestes a desmaiar.

"Eu devia ter-lhe dito", pensou. "Então ele não teria se casado comigo. Então eu teria me casado com Thomas. O que será de mim? O que será de mim agora?"

- Que história é essa? - rugiu o rei. - Que história é essa?

- O padre estúpido, decididamente um maníaco, referiu-se à lassidão do comportamento de Sua Majestade, a rainha, quando se encontrara sob os cuidados da duquesa-mãe em Lambeth.

O rei olhou para Wriothesley de um modo que fez um calafrio correr pela espinha do homem. O rei estava pensando que se Catarina tinha sido uma vagabunda antes que ele a visse, ele estava propenso a esquecer isso. Não queria qualquer distúrbio em seu paraíso. Ela era uma jovem encantadora e de boa índole, um deleite constante, uma companheira adorável, uma companheira de cama servil; era sua quinta mulher, e a quarta roubara-lhe qualquer intenção de fazer mudanças apressadas. Ele queria Catarina como ele a via. Que uma maldição caísse sobre aquele que estilhaçasse qualquer ilusão!

- Ouça bem o que irei lhe dizer. Julguei que o conselho pensaria duas vezes antes de vir importunar-me com as parvoíces de um padre bêbado. Você diz que esse padre apenas repetiu o que ouviu. Fez bem em aprisioná-lo. Liberte-o agora, e o avise. Diga-lhe o que acontece aos homens que falam contra o rei... e, por Deus, aqueles que falam contra a rainha, falam contra o rei! Já cortei línguas por muito menos. Diga isso a ele, Wriothesley, diga isso a ele. E quanto àquele que disse essas mentiras malignas ao padre, diga-lhe que irei mante-lo confinado até ordem em contrário.

Wriothesley ficou feliz em sair dali.

Catarina, tremendo violentamente, pensou:

"Preciso falar com minha avó. Preciso explicar ao rei."

Ela quase esperara que o rei ordenasse a sua prisão imediata, e que fosse levada para a Torre e ordenada a deitar a cabeça no cepo, como acontecera com a sua prima. Ela estava histérica quando correu para o rei; estava com o rosto

corado de medo; impulsivamente, lançou os braços em torno do pescoço de Henrique e o beijou.

Ele a apertou contra seu corpo. Ele poderia ainda estar com dúvidas, mas não iria perder isto.

"Por Deus, se alguém disser alguma palavra contra a minha rainha, pagará caro por isso!"

- Por que está assim, querida? - perguntou Henrique, virando o rosto de Catarina para o dele, determinado a ler em suas expressões precisamente aquilo que queria. Tanta inocência! Por Deus, aqueles que falavam contra ela mereciam ter suas cabeças expostas na Ponte de Londres... e sim, eles teriam! Ela era pura e inocente, exatamente como Lord William e sua avó haviam lhe assegurado. Henrique tinha sorte mesmo sendo um rei - de possuir essa jóia do género feminino.

A lua-de-mel feliz prosseguiu.

A duquesa-mãe estava a portas fechadas com a rainha.

- Declaro que estou terrivelmente assustada - disse Catarina. Escutei cada palavra, e temi não ter forças de olhar para o rei depois que aquele homem se retirou!

- E o rei, disse alguma coisa a você?

- O rei não me disse nada.

- Julgo então que ele decidiu ignorar tudo.

- Eu me sinto tão mal! Prefiro contar isso a ele.

- Silêncio! Não diga bobagens. Sou velha e experiente. Você é jovem e insensata. Ouça o meu conselho.

- Ouvirei - disse Catarina - Claro que ouvirei. Foi o seu conselho que ouvi quando não contei tudo ao rei antes de nos casarmos.

- Calada! - asseverou a duquesa. E então, baixando sua voz para um sussurro: - Tenho notícias sobre Derham.

- Notícias de Derham!

- De Derham, foi o que eu disse. Ele está de volta à minha casa. É um moço muito encantador e não consegui guardar em meu coração qualquer rancor contra ele. Ele ainda fala a seu respeito com devoção indiscreta, e me pediu algo que eu não aconselharia que você lhe recusasse.

Ele disse que precisa vê-la de vez em quando, que você não precisa temê-lo. Ele a ama muito e não quer lhe fazer mal.

- O que ele pede?

- Um lugar na corte!

- Oh, não!

- Sim. E eu acho que você seria muito insensata se recusasse isso. Não fique tão assustada. Lembre-se de que é a rainha.

Catarina disse, lentamente:

- Tenho Jane Bulmer aqui, e também Katharine Tylney e Margaret Morton. Preferia ter recusado seus pedidos de virem para cá.

- Recusado seus pedidos! Você fala sem pensar. Já esqueceu que essas pessoas estavam em Lambeth e testemunharam com os próprios olhos o que aconteceu entre você e Derham?

- Eu preferia que elas não estivessem aqui. Elas são inclinadas a serem insolentes, sabendo que eu não ousaria dispensá-las.

Ela não contou à duquesa que Manox também a procurara, e que exigira uma posição na corte. Não havia necessidade de perturbar ainda mais a duquesa, e dizer-lhe que Manox, agora um dos músicos da corte, fora um dia amante de Catarina.

- Agora, você precisa me ouvir - disse a duquesa. - Derham deve vir para a corte. Você não pode recusar um pedido dele.

- Vejo que a senhora tem razão - disse Catarina. E assim Derham foi para a corte.

O deleite do rei por sua rainha não diminuiu com o passar dos meses. Eles saíram de Ampthill e foram para More Park, onde poderiam desfrutar de uma vida mais isolada. Henrique estava impaciente com todos os ministros que ousavam perturbá-lo; qualquer assunto de maior urgência era resolvido por carta. Ele estava feliz, desesperadamente aquecendo-se ao fogo da juventude de Catarina. Ele fazialhe carinhos até mesmo em público, declarando que finalmente descobrira a felicidade conjugal. Ele achava que isso era uma recompensa por uma vida religiosa. Havia mais uma bênção que ele pedia: filhos. Até agora ele conseguira pouco sucesso, mas de que importava isso? Catarina, por si própria, era mais do que qualquer homem sensato poderia querer.

Ela era uma criaturinha de coração mole, incapaz de magoar qualquer pessoa. Odiava ouvir falar das execuções que eram realizadas diariamente. Punha seus dedos roliços nos ouvidos, e Henrique a acariciava e murmurava:

- Calma, querida. Não quer que eu puna esses traidores?

- Eu sei que os traidores devem ser punidos severamente - disse Catarina. - Eles precisam morrer, mas deixe-os morrer pelo machado ou pela corda, não daquelas formas lentas, cruéis.

E ele, esquecendo como havia ralhado com Jane Seymour, ameaçando-a a não se meter em seus assuntos, pouco podia negar à sua nova rainha.

Aqueles católicos que ainda desejavam uma reunião com Roma consideravam o momento adequado para atacar os homens que haviam apoiado Cromwell, e Wyatt, entre outros, foi mandado para a Torre. Ele, ousado como sempre, defendeu-se, e Catarina pediu a seu tio Norfolk por clemência para Wyatt. Ela levou roupas quentes e comida para a velha condessa de Salisbury, que ainda estava na Torre.

O rei protestou.

- Não deixarei que faça isso, minha querida. Não deixarei.

- Sua Majestade irá me obrigar a deixar uma pobre velha morrer de fome?

Henrique colocou-a sobre seu joelho, e tocou-lhe as faces de modo a reprová-la, mas ela, com um gesto característico, segurou o dedo do rei e mordeu-o suavemente, o que o divertia. Assim, ele se flagrou rindo em vez de ralhando.

Ele não tinha como evitar. Ela era irresistível. Se ela queria levar roupas e comida para a velha condessa, então deveria. Ele iria tentar argumentar com ela sobre seu pedido, bem mais grave, de perdão para Wyatt.

- Agora ouça o que eu digo, minha querida. Wyatt é um traidor.

- Ele não é um traidor. É um homem corajoso. Ele não recua nem demonstra medo. Ele não teme expressar suas opiniões.

- Ah! - acrescentou o rei, malicioso. - E é o homem mais bonito na corte, você estava prestes a acrescentar isso!

- Ele é, de fato, e tenho certeza de que é um amigo verdadeiro de Sua Majestade.

- Então você o considera mais bonito que o rei, hein?

- O homem mais bonito, você disse. Não falamos sobre reis.

Ela segurou o rosto grande de Henrique nas mãos e estudou-o com uma expressão sapeca. - Não! Eu não diria que Thomas Wyatt é o homem mais bonito da corte, se tivesse incluído o rei na comparação!

O comentário fez Henrique rir e sentiu-se tão gratificado que ele precisou beijar a rainha e dizer para si mesmo:

"Uma praga sobre Norfolk! Ele pensa que pode me dizer como governar este reino! Wyatt é de fato um espírito audacioso e eu nunca condenei coragem num homem. Se ele é anticatólico, ao menos é honesto. Como um rei sabe quando os homens tramarão contra ele? Wyatt é um homem agradável demais para morrer. Sua cabeça é bonita demais para ser cortada de seus ombros. Indubitavelmente, poderemos perdoar Wyatt sob alguma condição."

O caso de Wyatt deixou Norfolk furioso. Ele discutiu com sua madrasta.

- O que a rainha quer fazer? Wyatt é nosso inimigo. Ela não tem bom senso suficiente para ver isso?

- Não fale assim da rainha em minha presença! - asseverou a duquesa-mãe. - Senão providenciarei para que seja punido, Thomas Howard.

- A senhora é uma velha louca! Importa-se que eu pergunte quem pôs a garota no trono?

- Pode perguntar o que quiser. Estou disposta a responder. O rei colocou Catarina Howard no trono porque ama seu rosto adorável.

- Bah! Você acabará no cepo um dia desses, sua bruxa velha. E a garota irá com você.

- Isso é traição! - gritou Sua Graça. Norfolk deu as costas para a duquesa e se retirou.

A duquesa ficou tão furiosa que foi direto ter com a rainha.

- Ele estava apenas fingindo amizade conosco - disse Catarina. -Acho que sempre soube disso...

- Eu o temo - admitiu a duquesa. - Há nele alguma coisa capaz de aterrorizar uma mulher, particularmente quando...

Elas se entreolharam. Então olharam sobre seus ombros. O passado precisava ser acobertado.

- Acautele-se com o duque! - disse a duquesa-mãe de Norfolk. Mas não havia no espírito de Catarina a qualidade da cautela. Ela demonstrou seu descontentamento tratando o duque com frieza. O rei notou isso e achou graça. Ele gostava de ver o orgulhoso Norfolk esnobado por sua rainha vivaz, cujo poder fluía dele próprio.

Norfolk foi tomado por uma fúria gélida. Essa Catarina era tão incontrolável quanto sua sobrinha Ana Bolena. Se o rei começasse a acreditar naquele boato que surgira depois de algumas semanas do casamento, não seria ele quem iria estender uma mão amiga para Catarina Howard

Astuto como sempre, Cranmer observava os problemas entre Norfolk e sua sobrinha. Ele estava feliz; Norfolk era um aliado valioso, e o fato de que eles, inimigos mútuos, fossem se juntar numa causa comum contra Catarina Howard não era uma situação insatisfatória. Contudo, mesmo se Cranmer tivesse um caso contra Catarina, iria esperar um pouco, considerando que seria uma tolice apresentá-lo ao rei em seu presente estado amoroso. Por quanto tempo mais o monarca gordo continuaria arrulhando como um pombo no cio?

Não havia sinal de uma mudança na atitude do rei para com Catarina. Durante toda da primavera e o verão, enquanto eles viajavam de lugar em lugar, Henrique foi um marido devotado. Ele preferia o afastamento relativo no campo a bailes e funções de Estado.

Contudo, Henrique foi acordado de seu torpor por notícias de uma revolta papista no norte. A revolta foi comandada por Sir John Neville, e não havia dúvidas de que fora influenciado, do continente, pelo cardeal Polé. Henrique rugiu, mal-humorado como um leão acordando de um sono longo. Não iria mais conter sua fúria. Desde que afinal descobrira sua felicidade, permita a si próprio ser clemente demais. Mas como poderia continuar a desfrutar da felicidade com Catarina se o seu trono corria o risco de ser roubado por traidores?

Ele não podia mais permitir que a idosa condessa de Salisbury continuasse viva. Sua execução fora postergada por tempo demais. Catarina tinha intercedido por ela, tinha conjurado imagens de uma anciã sofrendo frio e fome na torre. Que ela congelasse! Que esfaimasse! Todos os traidores deviam morrer assim! Ela era mãe de um traidor - um dos maiores e mais temidos que Henrique já conhecera. O cardeal Polé poderia estar a salvo no continente, mas sua mãe deveria sofrer em seu lugar.

- Ao cepo com ela! - bradou Henrique, e todos os apelos de Catarina não podiam detê-lo desta vez.

Henrique foi gentil com Catarina, procurando acalmá-la.

- Calma, meu amor. Deixemos esses assuntos repousarem. Ela não é a pobre velhinha que você pensa. É uma traidora e pariu traidores. Ora, você gostaria de ver seu rei e marido despencar do trono? Meu amor, de vez em quando os tronos precisam ser defendidos com sangue.

E assim a idosa condessa foi morta de uma forma muito cruel, porque ela, a última dos Plantagenetas, manteve sua coragem até o fim violento. Ela se recusou a deitar a cabeça no cepo, afirmando que a sentença era injusta e que ela não era uma traidora.

- Os traidores deitam suas cabeças no cepo, mas eu não sou traidora, e se quiserem a minha, terão de lutar por ela.

De todos os assassinatos que os homens cometeram sob o comando do rei, este foi o mais horrível. A condessa foi arrastada pelos cabelos até o cepo, e como não iria submeter a cabeça pacificamente, o carrasco desferiu-lhe golpes de machado até que ela, sangrando por muitos ferimentos, desabou agonizante ao solo, onde foi decapitada.

Essas mortes despertaram a ira de Henrique. O povo gostava de recontar os detalhes sangrentos. Eles sussurravam nos ouvidos uns dos outros, sempre simpatizando com os mártires.

Sempre fora o plano de Henrique, desde o rompimento com Roma, colocar os católicos contra os luteranos, assim como ele pusera Carlos contra Francis. A última insurreição fizera os católicos perderem o favoritismo do rei, e agora a consciência de Henrique dava-lhe várias pontadas em relação a Cromwell. Ele respondia à sua consciência dizendo que, ao agir a partir de acusações falsas levantadas por aqueles que o cercavam, levara à morte o melhor servo que um rei poderia ter tido. Assim, podia culpar os católicos pela morte de Cromwell e exonerar a si próprio. Norfolk caíra das graças do rei, enquanto Cranmer estava ascendendo. Henrique deixava a administração de seus assuntos nas mãos de alguns antipapistas liderados por Cranmer e pelo chanceler Audley, e seguiu para o norte numa expedição punitiva, acompanhado da rainha.

Henrique era passional na maioria das coisas que fazia Quando viajou para afirmar seu poder sobre seus súditos, agiu com extremo vigor. O seu método era a crueldade, e foi impossível para Catarina não se sentir revoltada com aquela jornada ao norte.

Amando mais romanticamente o belo Culpepper, Catarina sentia a necessidade de compará-lo com Henrique, e o rei nunca perdera tanto. Embora tivesse sido preparada para se esforçar ao máximo para agradar ao homem indulgente que conhecera até agora, Catarina estava descobrindo que esse não era o homem verdadeiro, e isso a enchia de horror. Não havia qualquer gentileza em Henrique. Catarina foi forçada a testemunhar o sofrimento das pessoas que tinham se rebelado porque queriam seguir aquilo que acreditavam ser a verdade. À medida que o casal real atravessava condado atrás de condado, Catarina testemunhava a crueldade infligida por Henrique e, pior ainda, era forçada a ver o deleite que toda aquela dor gerava no rei. Quando Henrique vinha acariciá-la, tinha a impressão de ser tocada por mãos sujas de sangue. Queria que o rei fosse um monarca amável; queria que as pessoas prestassem homenagens a ele; mas queria que elas o respeitassem sem temê-lo, como ela própria agora tentava desesperadamente fazer.

Ela desfrutara de muitas compensações ao renunciar a Culpepper para casar-se com Henrique. Maria, Joyce e Isabel, suas irmãs mais novas, tinham sido salvas de sua pobreza. De fato, não houvera um membro impecunioso em sua família que não desfrutara de sua generosidade. Isso não se aplicara apenas à sua família, mas também a seus amigos. Catarina queria sentir felicidade à sua volta; queria fazer o rei feliz; queria não ver ninguém preocupado com a pobreza, atormentado pelos infortúnios, abalado pelo pesar. Queria um mundo agradável para si mesma e para todos aqueles que o habitavam.

Quando o casal real chegou a Hull e viu o que restava de Constable, um banquete para as moscas, pendurado do portão mais alto onde Norfolk colocara-o há quatro anos inteiros, Catarina desviou o rosto, nauseada, enquanto o rei, rindo, apontava para ela a visão sinistra.

- Eis um traidor... ou o que restou dele!

Catarina deu as costas para o rei, sabendo que, por mais que ela tentasse, jamais iria amá-lo.

- Você é bondosa demais, querida!

O rei inclinou-se para ela e lhe deu um tapinha no braço, demonstrando que gostava de sua delicadeza, ainda que essa qualidade a fizesse verter uma lágrima por seus inimigos.

Ela pensava frequentemente em Thomas Culpepper, que se encontrava no séquito que os acompanhava. Frequentemente os olhos dos dois jovens se encontravam, e eles trocavam sorrisos. Jane Rochford notou isso, e aquela distorção peculiar em sua personalidade que sempre a fazia intrometer-se na vida dos outros, ainda que ela própria nada tivesse a lucrar com isso, fê-la dizer:

- O seu primo Culpepper é um rapaz garboso. Ele a ama verdadeiramente.

Posso ver isso nos olhos dele. E tenho a impressão de que Sua Majestade não lhe é indiferente, e quem poderia ser, sendo ele um rapaz tão belo? Sua Majestade, que é muito cautelosa, jamais se encontra com ele. Mas isso poderia ser arranjado.

Isso a fazia lembrar daqueles velhos dias de intriga, e Catarina não resistiu. Tinha a impressão de que só poderia suportar as carícias de Henrique se visse Thomas ocasionalmente. Carregava na mente cada detalhe do rosto de Thomas para que, quando o rei estava a sós com ela, Catarina pudesse, através do poder da imaginação, colocar Thomas em seu lugar, de modo a não demonstrar a repugnância provocada pelas carícias de Sua Alteza.

Derham veio uma ou duas vezes escrever cartas para ela. Ele a observava com olhos apaixonados, mas Catarina não temia qualquer mal vindo da parte de Derham. Ele lhe era tão devotado quanto sempre, e embora seu ciúme fosse grande, ele jamais faria qualquer coisa que prejudicasse a rainha. Derham nada sabia do amor de Catarina por Culpepper, e ela, não querendo causar-lhe dor, cuidava para que ele não descobrisse, e vez por outra lançava-lhe olhares suaves para demonstrar que se lembrava de tudo que eles tinham significado um para o outro. Em vista disso, Derham não conseguiu conter-se a sussurrar para seu amigo Damport que amava a rainha, e tinha certeza de que, se o rei morresse, ele iria se casar com ela.

Durante aquela jornada aconteceram muitos encontros com Culpepper. Lady Rochford estava em seu elemento; ela levava mensagens entre os amantes; ela ouvia por trás de portas.

- O rei continuará reunido com o conselho por mais duas horas. É seguro para Culpepper vir aos aposentos de Sua Majestade.

Catarina não sabia que seus relacionamentos com Culpepper começavam a se tornar motivo de fuxicos pela corte, sendo comentados por trás de mãos, muitas vezes suprimindo risadinhas.

Quando eles estavam em Lincoln, ela quase se rendeu a Culpepper. Ele implorava; ela hesitava; e então ela permanecia firme em sua recusa.

- Eu não ouso! - lamuriou Catarina.

- Ah! Por que você não fugiu comigo quando pedi?

- Antes eu tivesse feito isso!

- Devemos continuar estragando nossas vidas, Catarina?

- Eu não posso suportar essa tristeza, mas nunca, nunca, eu poderia suportar que você sofresse qualquer mal através de mim.

E assim continuaram as coisas, mas Catarina permanecia firme. Quando ela se sentia fraca, parecia perceber a presença de Ana Bolena implorando que ela tomasse cuidado, alertando-a para refletir sobre o destino de sua pobre prima.

Como ninguém demonstrava que o amor entre os dois era conhecido, eles acreditavam que era um segredo, e assim se tornavam mais e mais imprudentes. Houve uma ocasião em Lincoln em que eles ficaram a sós até as duas da manhã, sentindo-se seguros porque Lady Rochford estava mantendo guarda. Eles pareciam avestruzes, julgando-se inatingíveis quando, na verdade, estavam bem vulneráveis. Enquanto negassem a si próprios a satisfação que seu amor exigia, sentir-se-iam seguros. Não importava que as pessoas à sua volta estivessem cientes de sua intriga. Não importava que Cranmer estivesse apenas aguardando uma oportunidade.

Nesta ocasião em Lincoln, Katharine Tylney e Margaret Morton estavam de tocaia na escadaria diante dos aposentos da rainha, excitadas com a possibilidade de o rei aparecer de repente.

- Meu bom Jesus! - sussurrou Catarina Tylney enquanto Margaret espreitava o corredor. - A rainha não está na cama ainda?

Margaret, que um momento antes vira Culpepper sair dos aposentos da rainha, respondeu:

- Sim, está agora.

E as duas trocaram olhares de alívio, dando com os ombros e sorrindo com a imprudência e a frivolidade da rainha, lembrando uma à outra do comportamento de Catarina em Lambeth.

Muitos encontros igualmente arriscados aconteceram, com Lady Rochford sempre disposta a ajudar. Ela era agora a dama de companhia de maior confiança da rainha, oferecendo conselhos e informações. Catarina fora indiscreta a ponto de escrever para Culpepper antes que esta jornada começasse. Esta tinha sido uma indicação da grande ansiedade que ela sentia por ele, porque Catarina jamais sentira-se à vontade com uma pena, e escrever até mesmo uma poucas linhas custava-lhe um grande esforço. Ela escrevera a carta antes do começo da excursão, quando ela e o rei estavam na proximidades de Londres, e Culpepper não se encontrava com eles. Tinha sido uma tolice escrever. Mas tinha sido uma tolice ainda maior da parte de Culpepper guardar a carta. Contudo, estando apaixonados e sendo mais propensos a serem inspirados pelo risco do que se deixar desanimar por ele, eles cometeram muitas bobagens e esta foi apenas uma delas.

"Senti muita saudade de você, e rezei para que você também estivesse sentindo saudades de mim", escreveu Catarina. "Temi que você estivesse doente e nunca desejei mais qualquer coisa do que vê-lo. Meu coração morre um pouco quando penso que nem sempre poderei desfrutar da sua companhia. Venha ver-me quando Lady Rochford estiver aqui, para que eu possa desfrutar do prazer de estarmos juntos..."

E frases e frases como essas foram escritas laboriosamente pela mão destreinada de Catarina.

Ela passava os dias desejando encontrar-se com Culpepper, ainda que fosse brevemente. E a igualmente insensata Lady Rochford, comovida com os sentimentos da rainha, providenciava os encontros.

O rei não notou nada. Ele se sentia satisfeito; uma vez mais estava mostrando aos rebeldes o que acontecia àqueles que se levantavam contra seu rei. Ele podia dar as costas para a bajulação daqueles que buscavam por suas dádivas e buscar os encantos joviais de Catarina Howard.

- Nunca um homem foi tão feliz com sua esposa! - declarou Henrique.

E ele pensou que quando retornasse iria fazer a nação cantar um Te Deum, porque finalmente o Todo-Poderoso julgara adequado recompensar seu servo com uma jóia perfeita do género feminino.

Cranmer estava tão empolgado que mal conseguia tecer suas tramóias. Finalmente a oportunidade se apresentara. Nem mesmo o rei poderia ignorar aquilo.

Havia um homem na corte que era de pouca importância, mas por quem Cranmer sempre nutrira afeto. Esse homem era um protestante, duro e frio, um homem que jamais ria porque considerava o riso pecaminoso, um homem que usava a máscara de um mártir, um homem que poderia achar mais alegria num cilício do que numa taça de bom vinho. O nome desse homem era John Lasseis, um protegido de Cromwell que permanecera fiel a ele. Ele pregara a danação eterna para todos aqueles que não aceitavam os ensinamentos de Martinho Lutero.

Esse John Lasseis procurou Cranmer com uma história. Ao acabar de ouvi-lo, Cranmer tinha o coração tão cheio de esperança que por pouco não abraçou o homem.

- Meu senhor, há em minha consciência um peso que me tortura terrivelmente - disse Lasseis.

No começo, Cranmer ouviu procurando não demonstrar muito entusiasmo, sentindo que o assunto deveria ser alguma questão religiosa que o homem queria que fosse resolvida.

- Tremo com o que isso possa significar, porque diz respeito à Sua Graça, a rainha - disse Lasseis.

Foi nesse momento que Cranmer acordou de sua letargia; havia um lampejo de fogo em seus olhos.

- Meu irmão arcebispo, eu tenho uma irmã Mary; Mary foi enfermeira da primeira esposa de Lord William Howard, e depois de sua morte assumiu uma função no serviço da duquesa-mãe de Norfolk.

- Onde a rainha foi criada - deduziu Cranmer, animado.

- Perguntei à minha irmã por que ela não pedia para trabalhar para a rainha, pois tenho visto muitas das moças que trabalhavam na casa da duquesa-mãe assumirem postos na corte. "Não farei isso, mas eu sinto muita pena da rainha", ela me disse. Perguntei o motivo, e Mary respondeu: "Ora, porque ela é fútil e leviana" Pedi que me explicasse melhor seu comentário, e Mary contou-me uma história deveras alarmante.

- Sim, sim?

- Houve um certo Francis Derham, que dormiu na mesma cama que ela durante muitas noites, e outro, Manox, que a conheceu intimamente.

- Derham! - gritou Cranmer. - Manox! Ambos pertencem ao corpo de cortesãos da rainha!

Ele questionou mais Lasseis, e depois que ele descobrira tudo que o homem tinha a dizer, dispensou-o dizendo-lhe que prestara ao rei um serviço inestimável.

Cranmer pôs mãos à obra, feliz com o fato de que a ausência do rei concedia-lhe total liberdade. Mandou Southampton para questionar Mary Lasseis. Manox foi preso e levado até ele e Wriothesley. Derham foi para a Torre. Cranmer estava disposto a colher cada grão que brotasse, e quando eles estavam deitados lado a lado ele não duvidou de que tivera uma boa colheita. Então aguardou com impaciência o retorno do casal real.

Henrique estava com o coração cheio de satisfação ao retornar a Hampton Court. Ele estava cheio de planos que queria expor a seu confessor.

Urgia preparar uma comemoração pública em agradecimento às graças recebidas. Todo o país deveria saber que ele estava agradecendo a Deus por ter sido abençoado

com uma esposa amorosa, responsável e virtuosa. Mas a satisfação de Henrique teve vida curta. Ele estava na capela em Hampton Court quando Cranmer veio procurar-lhe. Os olhos de Cranmer evitavam encontrar os do rei, e ele trazia um documento nas mãos.

- Sua Excelsa Majestade, sinto imensamente colocar um assunto da mais absoluta gravidade em suas mãos, mas, sendo o assunto tão grave, não ouso fazer outra coisa. Rogo a Sua Graça que leia este documento quando estiver a sós.

Henrique leu o relatório sobre Catarina. Sua fúria foi terrível, mas não foi direcionada a Catarina, mas àquele que trouxera provas contra ela. Mandou chamar Cranmer.

- Isto é forjado! - gritou. - Isto não é verdadeiro! Sei disso porque tenho consolidada minha opinião sobre a virtude de minha esposa!

Henrique começou a caminhar em círculos, inquieto, o que encheu de medo o coração de Cranmer. Era cedo demais. O rei não iria abrir mão da rainha. Em vez disso, ele tentaria destruir aqueles que queriam destruí-la.

- Eu não acredito nisto! - vociferou o rei.

Cranmer exultou ao perceber um tiritar de dúvida na voz de Henrique. O rei prosseguiu:

- Mas eu não estarei satisfeito até ter certeza absoluta. - Ele fitou os olhos de Cranmer. - É preciso haver um exame. E... nenhuma dúvida quanto à honra da rainha poderá ser transpirada.

O rei deixou Hampton Court, e Catarina foi instruída a permanecer em seus aposentos. Seus músicos foram dispensados; disseram à rainha que não era momento para música.

Sobre Hampton Court desceu um silêncio profundo, como uma cortina negra cobrindo toda felicidade e alegria. O mesmo acontecera seis anos antes em Greenwich quando Ana Bolena procurara em vão por Brereton, Weston, Norris e Smeaton.

Catarina estava petrificada de horror. E quando Cranmer - acompanhado por Norfolk, Audley, Sussex e Gardiner - foi procurá-la, soube que o destino terrível que temera desde que se tornara esposa do rei finalmente caíra sobre ela.

Wriothesley inquiriu Francis Derham em sua cela.

- Você pode dizer a verdade, porque outros já confessaram por você - garantiu Wriothesley. -Você passou uma centena de noites nu na cama da rainha.

- Antes que ela fosse rainha - disse Derham.

- Ah! Antes que ela fosse rainha. Chegaremos a isso mais tarde. Você admite ter mantido relações imorais com a rainha?

- Não.

- Ora, nós temos formas de extrair a verdade. Houve relações imorais entre você e a rainha.

- Elas não foram imorais. Catarina Howard e eu considerávamos um ao outro marido e esposa.

Wriothesley meneou a cabeça devagar.

- Você a chamava de "esposa" diante de outros?

- Sim.

- E trocaram símbolos de amor?

- Sim.

- E parte dos domésticos da duquesa considerava vocês dois como marido e esposa?

- Sim, considerava.

- A duquesa-mãe e Lord William Howard consideravam vocês marido e esposa?

- Não. Eles o ignoravam.

- Mesmo assim, não era segredo.

- Não, mas...

- Todas as pessoas na casa sabiam, com â exceção da duquesa e de Lord William?

- Era sabido entre aqueles com quem costumávamos nos misturar.

- Você esteve recentemente na Irlanda, não esteve?

- Estive.

- E lá praticou atos de pirataria?

- Sim.

- Pelos quais você merece a forca, mas isso não importa agora. Você partiu para a Irlanda abruptamente?

- Parti.

- Por quê?

- Porque Sua Graça descobriu o relacionamento entre Catarina e eu.

- Não houve outra ocasião em que ela flagrou-o em companhia de sua neta?

- Houve.

- Foi no quarto de costura. Ela entrou e os flagrou um nos braços do outro?

Ele assentiu positivamente.

- E qual foi a reação de Sua Graça a isso?

- Catarina foi espancada. Eu fui alertado.

- Isso parece uma punição leve.

- Sua Graça acreditou que era apenas uma brincadeira.

- E você ingressou na corte logo depois que Catarina contraiu matrimónio com o rei? Sr. Derham, sugiro que o senhor e ela continuaram a viver imoralmente, de fato em adultério, depois do casamento da rainha com Sua Majestade.

- Isto não é verdade.

- Não é estranho que você tenha se juntado aos atendentes da rainha, passado a receber favores especiais, e permanecido apenas com o papel de servo da rainha?

- Não há nada estranho nisso.

- Jura que não foi cometido qualquer ato imoral entre você e a rainha depois que ela se casou com o rei?

- Juro.

- Ora, Sr. Derham, seja razoável. Isso lhe parece lógico em vista do que você significou para a rainha?

- Não me importo com o que possa parecer. Sei apenas que nenhum ato de imoralidade jamais ocorreu entre nós dois desde o casamento de Catarina.

Wriothesley suspirou.

- Você está tentando a minha paciência, rapaz - disse, e então o deixou.

Meia hora depois retornou, acompanhado por dois homenzarrões.

- Sr. Derham, uma vez mais, gostaria de pedir-lhe que confesse o adultério com a rainha - disse o secretário do rei num tom suave

- Não posso confessar o que não é verdade.

- Então preciso pedir para nos acompanhar.

Derham não era covarde. Ele sabia o significado daquela convocação; iriam torturá-lo. Ele premiu os lábios, e silenciosamente rezou pedindo toda a coragem da qual iria precisar. Recentemente ele levara uma vida aventureira: a prática da pirataria na costa da Irlanda não fora uma existência idílica. Ele enfrentara a morte mais de uma vez quando lutara por espólios no mar bravio. Ele correra muitos riscos na estrada da aventura, mas o horror da câmara de tortura era um desafio muito diferente.

Nos corredores da Torre pairava um odor nauseante de morte. Havia sangue ressequido no assoalho das câmaras de tortura. Se Derham admitisse o adultério, o que eles iriam fazer com Catarina? Eles não poderiam puni-la pelo que fizera antes. Não poderiam chamar isso de traição, mesmo que ela tivesse iludido o rei, fazendo-o acreditar que ainda era virgem. Não poderiam punir Catarina se ele se recusasse a dizer o que eles queriam. Ele não iria ceder. Preferia enfrentar todas as torturas do mundo a prejudicar Catarina com as mentiras que eles queriam que ele dissesse. Ela não o amava mais desde que ele retornara da Irlanda, mas Derham ainda a amava Ele não iria mentir.

Estavam despindo as suas roupas. Puseram-no no ecúleo. Wriothesley, um dos homens mais cruéis de toda a Inglaterra, estava parado em pé à sua frente, implacável.

- Você não é nenhum tolo, Derham. Por que não confessa o que fez?

- Quer que eu minta? - indagou Derham.

- Quero que você me permita poupá-lo da tortura.

As cordas estavam amarradas em seus pulsos; os molinetes foram girados. Ele tentou suprimir seus gritos; nunca imaginara que poderia existir uma dor tão intensa.

Finalmente gritou, e eles pararam.

- Diga, Derham. Cometeu adultério com a rainha?

- Não, não.

Wriothesley premiu seus lábios cruéis; ele meneou a cabeça para os algozes. Começou de novo. Derham desmaiou, e então eles passaram vinagre debaixo de seu nariz.

- Derham, seu estúpido. Nenhum homem pode suportar algo assim por muito tempo.

Isso era verdade; mas havia homens que não mentiam nem mesmo para se salvar da morte, mesmo se ela viesse através do ecúleo; e Derham, o pirata, era um desses homens.

Quando o prosseguimento da tortura prometia causar a morte de Derham, eles o tiraram da câmara. Ele estava desmaiado e talvez inválido, mas não lhes dissera nada.

Quando soube do que acontecera em Hampton Court, a duquesamáe se trancou em sua alcova e adoeceu de medo. A rainha trancada a sete chaves! Derham na Torre! Ela lembrou sua tristeza quando Ana fora mandada para a Torre; mas agora, lado a lado com a tristeza havia o medo, e desses dois sentimentos nasceu o pânico.

Ela não podia permanecer ociosa. Precisava agir. Ela não assegurara a pureza e a bondade de Sua Majestade? Ela não espancara a neta quando Catarina fora leviana? Ela não alertara Derham primeiro, e depois não extravasara sua raiva quando fora descoberto que ele e Catarina viviam como esposa e marido em sua casa?

Ela se pôs a caminhar em círculos no quarto. E se eles a questionassem? Os dentes da duquesa bateram. Ela visualizou o fim terrível da condessa de Salisbury, e viu a si própria correndo do machado do carrasco. Era rica; sua casa era repleta de tesouros. E o rei estava sempre disposto a eliminar os ricos, para pôr as mãos em seus bens! Visualizou os olhos matreiros do duque sorrindo para ela.

"Aquela garota acabará no cepo!", dissera o duque.

A duquesa reprimira o duque, aconselhando-o a tomar cuidado com a forma como falava sobre a rainha. O enteado era o seu inimigo mais mortal e agora ele iria ter uma chance de atacá-la abertamente.

Ela não podia perder tempo. Precisava agir. Desceu para o grande salão e chamou um servo de confiança. Mandou-o ir para Hampton Court, coletar as últimas notícias, e voltar para ela o mais rápido que pudesse. Esperou, angustiada, por seu retorno, mas, quando voltou, o servo pôde dizer-lhe apenas o que ela já sabia. A rainha e Derham tinham sido acusados de conduta indevida, e algumas das aias da rainha eram acusadas de cumplicidade.

A condessa pensou em Damport, o amigo de Derham, que sem dúvida conhecia os segredos do rapaz tão bem quanto ele próprio. Tinha em mente um plano nebuloso de suborná-lo para não contar o que sabia.

- Ouvi dizer que Derham se encontra encarcerado, e a rainha também - disse a condessa a Damport. - O que você sabe sobre esse assunto?

Damport disse que achava que Derham falara mais do que devia a um serviçal da corte.

Os lábios de Sua Graça tremeram. Ela disse que temia imensamente que em consequência daqueles relatos perniciosos algum mal acontecesse à rainha. Fitou temerosa Damport e lhe disse que gostaria de dar-lhe um pequeno presente. E em seguida deu-lhe 10 libras. Foi um ato estúpido e desajeitado, mas ela estava assustada demais para saber o que estava fazendo. Ela murmurou alguma coisa sobre não contar nada a respeito da amizade de Catarina Howard com Derham.

O medo deixando-a histérica, a duquesa-mãe caminhava de um cómodo da casa para outro. E se Catarina e Derham tivessem trocado cartas quando ele estivera afastado, na Irlanda!

Havia ali em sua casa alguns baús e cofres de Derham, porque antes de ir para a corte ela o recebera de volta na casa. Ele os deixara para trás ao fugir, e não os removera quando fora para a corte, sendo o tamanho de seus aposentos lá insuficientes para acomodá-los. E se os baús e cofres de Derham guardassem alguma prova incriminadora?

Pernas trémulas, voz aguçada pela histeria, a duquesa chamou alguns de seus servos de maior confiança. Disse-lhes que temia uma vinda dos embaixadores do rei a qualquer momento; a rainha encontrava-se em perigo; todos os pertences de Derham precisavam ser revistados, porque ela temia que houvesse neles alguma coisa que pudesse incriminar a rainha. Ela implorou às suas aias que dessem uma prova de sua lealdade, ajudando-a.

Um grande alvoroço varreu a casa. Baús foram violados; cofres foram arrombados. Foram encontradas algumas das cartas escritas por Jane Bulmer em nome de Catarina, e que haviam sido preservadas por Derham. As cartas foram queimadas. A duquesa chegou até mesmo a destruir objetos e peças de roupa que acreditou ser presentes de Catarina para Derham.

Depois que o trabalho estava terminado, a duquesa se retirou para a sua câmara, sentindo-se muito velha e cansada. Mas ela não iria poder descansar agora. Uma batida na porta anunciou o advento de novos problemas, os piores problemas possíveis.

- Sua Graça, o duque, está lá embaixo - disse a ela uma empregada assustada. - Ele exige ver a senhora imediatamente.

Catarina, diante daqueles cinco homens assustadores, ficou entorpecida de terror. Seus membros tremiam tanto, e seus olhos estavam tão arregalados, que eles chegaram a pensar que ela iria perder a sanidade. Catarina tivera um ataque de risos que terminara em choro; estava ficando ainda mais histérica que a sua prima, porque Ana não tivera um exemplo terrível em sua mente todo o tempo.

Havia uma coisa que a aterrorizava acima de todas as outras, e que lhe causava grande agonia mental. Ela não conseguia pensar em nenhuma forma de alertar Culpepper. Estava quase louca de preocupação com ele.

Os olhos frios de Norfolk escarneceram dela, parecendo dizer:

"Então você pensava que era muito esperta! Você é tal e qual a sua prima Ana Bolena. Oh, nunca um homem teve um par tão lamentável de sobrinhas!"

O tio de Catarina era ainda mais assustador que os outros quatro.

- Componha-se! Componha-se! - ordenou Norfolk. - Não pense em afogar a sua culpa em lágrimas!

Cranmer parecia muito mais gentil. Estava cauteloso, conhecendo bem a grande ternura que o rei nutria por Catarina. Estava determinado a agir cautelosamente por medo de precisar recuar. Seria com Cranmer que ela deveria falar, se quisesse falar.

com sua voz suave, Norfolk expressou o quanto estava triste em ver a rainha envolvida nessa situação. Francis Derham confessara ter vivido com ela como seu marido. Manox também conhecera-a intimamente. Seria melhor para ela dizer a verdade, pois o rei, apesar de estar com o coração partido, encontrava-se inclinado à clemência.

As respostas de Catarina mal eram audíveis. Ela prendia a respiração a cada vez que um deles falava, assustada com a possibilidade de ouvir o nome de Culpepper. Mas depois que os homens não falaram sobre seu amado, Catarina concluiu que eles não sabiam nada sobre o amor que ele nutria por ela e ela por ele; e isso animou tanto seu espírito que ela pareceu subitamente feliz. Ela confessou prontamente o que fizera antes de seu casamento com o rei. Sim, Derham chamara-a de esposa; sim, ela o chamara de marido. Sim... sim....

Norfolk, sem um só pensamento sobre seu próprio adultério com Bess Holland, balançou a cabeça, horrorizado com tanto pecado; mas em comparação com ele os outros pareceram quase gentis, e sua histeria estava passando. Eles não sabiam nada contra Thomas. Eles podiam mandá-la para o cepo como haviam feito com sua prima, mas Thomas Culpepper não iria sofrer através de seu amor por ela.

O concílio de cinco deixou-a, e Cranmer preparou um relatório do exame para mostrar ao rei.

Henrique aguardava o relatório numa impaciência febril. Não podia ocultar sua agitação. Ele havia mudado muito desde que lera o documento contendo as notícias que Cranmer declarara incapaz de transmitir verbalmente, tão comovido estava com a situação do seu mestre. O rosto usualmente púrpura de Henrique assumiu um tom cinzento, da cor do pergaminho, e as veias, geralmente tão cheias de sangue vermelho, agora pareciam linhas marrons desenhadas sobre a pele.

A voz de Cranmer assumiu o tom dolorido que ele sempre usava nesse tipo de situação. Falou sobre a vida íntima da rainha; volúpia e depravação foram as palavras usadas para descrevê-la. Falara de como essa mulher induzira o rei a amá-la e a contrair matrimónio com ela.

Norfolk observava cada expressão do rei e de Cranmer. Estava preocupado; afinal, essa decaída era sua sobrinha, e ele ajudara a recomendála ao rei. Norfolk possuía vastas riquezas materiais, e quando uma rainha era culpada de traição, os membros de sua família geralmente sofriam com ela. Ansioso por dissociar a sua pessoa de Catarina, sempre que podia falava com desgosto sobre ela e sussurrava calúnias a seu respeito. Dizia a todos o quanto sentia-se ofendido; sua família estava mergulhada no luto mais profundo por ter gerado mulheres rameiras como Ana Bolena e Catarina Howard. Disse que considerava que o único destino justo para Catarina Howard era a morte na fogueira. Garantia que ele iria comparecer à sua execução para saborear cada um de seus gritos, que antecipariam os tormentos que decerto aguardavam-na no inferno. Anunciou que se compadecia com o rei, a quem amava e de quem esperava não ser responsabilizado com as crias de sua família que o haviam logrado e traído. Norfolk rompeu seu relacionamento com sua madrasta, que, todos sabiam, fora a confidente da rainha; todos estavam cientes de que ele jamais fora amigo daquela velha, nem de sua neta indecorosa.

O rei nada podia fazer além de permanecer sentado, um olhar melancólico no rosto. Seu sonho havia acabado; agora precisava encarar a dura realidade. Ele se enganara a respeito de Catarina. Ela não era sua jóia do género feminino; ela não era inteiramente sua. Outros haviam desfrutado dela, e pensar nesses homens era uma grande tortura. Ele amara Catarina, que deveria ter sido a sua última esposa, que deveria tê-lo compensado por todos os seus casamentos infelizes. Aquilo estava sendo um golpe duro demais para Henrique, que levou as mãos ao rosto e se pôs a chorar copiosamente.

Chapuys resumiu os sentimentos do rei ao escrever para o seu senhor:

"Este rei ficou terrivelmente abalado com o caso da rainha, sua esposa, e decerto demonstrou maior tristeza por sua perda do que pelos pecados, perda ou divórcio de suas esposas precedentes. É como o caso da mulher que chorou mais amargamente pela morte de seu décimo marido do que pelas mortes de todos os outros juntos, embora todos tivessem sido bons homens, porque antes ela jamais enterrara um deles sem ter o seguinte em vista; e desta vez o rei não havia formado qualquer plano ou preferência"

Isso era verdade. No apogeu de seu ciúme por Ana, Jane estivera presente para confortá-lo; mas entre Jane e Catarina ele tivera a experiência desapontadora de Ana de Cleves. Ele perdera Catarina e se sentia trapaceado, porque não havia nenhuma jovem bela e desejável a seu lado para consolá-lo. E, na verdade, ele não desejava consolo de nenhuma mulher, senão da própria Catarina. Ele não era mais um garanhão errante; era um animal domesticado que queria apenas passar seus últimos dias em paz com uma companheira a quem amasse.

Assim, ele chorou copiosa e desavergonhadamente diante do concílio. Cranmer estremeceu ao ver aquelas lágrimas, porque elas indicavam que havia uma chance de que o rei quisesse abafar o caso e perdoar sua rainha. Aquelas lágrimas pareceram dizer a Cranmer:

"Os pecados já foram cometidos, esqueçamo-los!"

Mas o que seria de Cranmer se Catarina Howard reconquistasse sua influência sobre o rei? Cranmer conhecia duas formas de impedir isso. Ele poderia levar os boatos sobre o escândalo para o continente. Como Henrique iria se sentir se os príncipes dos outros reinos soubessem que ele mantivera uma esposa que o traíra? Espalhar a notícia dificultaria para Henrique perdoar a esposa. Mas havia outra alternativa, ainda mais satisfatória: descobrir que ela tivera um amante também enquanto vivera com o rei.

Damport foi aprisionado. Ele era o maior amigo de Derham, morara na casa da duquesa-mãe, e recentemente recebera de Sua Graça uma soma em dinheiro.

Damport suava de medo.

- Meus senhores, eu não sei nada... nada...

Não saber nada era uma condição terrível para alguém que precisava dizer alguma coisa. O que ele poderia dizer-lhe? Nada! Nada, a não ser aquilo que já sabiam.

- Por que a duquesa-mãe de Norfolk lhe deu dinheiro?

- Eu não sei! Eu não sei!

Não havia nada que pudessem extrair desse jovem a não ser aquilo que eles já sabiam, e o próprio Cranmer dera ordens para que eles obtivessem confissões.

- Ora, Damport, você é um amigo íntimo de Derham.

- Sim, sim, mas...

- Será muito melhor para você se falar.

- Mas eu juro que nada sei. Nada...

Eles o conduziram para a câmara de torturas onde Derham estivera antes dele, onde Mark Smeaton gemera em agonia.

- Vamos, Damport! O que isso significa para você? Não tem nada a perder. Queremos apenas que diga a verdade.

O cabelo de Damport estava úmido e colado em sua fronte; suor escorria pelo seu nariz; tudo que ele podia fazer era olhar boquiaberto para aqueles instrumentos vis. E o cheiro de morte naquele lugar provocava-lhe ânsias de vómito.

- Damport, como são bonitos os seus dentes! com certeza você tem muito orgulho deles!

Damport olhou ao redor como se procurando uma fuga daquela situação, mas a escuridão e as paredes lodosas não tinham qualquer sugestão a oferecer; não havia nada para aprender com o ambiente no qual estava, exceto que para ali muitos homens haviam descido ao nível dos animais mais rasteiros. Damport teve a impressão de que as sombras malignas que pairavam a seu redor na câmara escura eram os fantasmas daqueles que, tendo morrido em agonia, haviam retornado para assistir a angústia dos condenados à mesma sina. Esses algozes cruéis, esses inquisidores, não sentiam a presença daqueles fantasmas tristes; a crueldade era um lugar-comum para eles; eles haviam alcançado a total indiferença de tanto ouvir os gemidos dos homens torturados; para perceber isso, bastava olhar para seus rostos.

Damport choramingou:

- Se eu soubesse qualquer coisa, diria!

- Estávamos dizendo que seus dentes são bonitos, Damport. Vejamos se eles continuarão bonitos depois que tivermos usado nossas pinças neles!

Ele teve a impressão de que sua cabeça estava sendo arrancada do corpo; ouviu um estalido nauseante; seu gibão estava molhado e ele sentiu algo quente escorrer por seu peito; sentiu o cheiro de seu próprio sangue, e desmaiou. As palavras de seus torturadores pareceram marteladas em sua cabeça:

- Vamos, Damport, você sabe que Derham cometeu adultério com a rainha.

Eles tinham arrancado a maior parte de seus dentes, e tudo que ele conseguiu lembrar foi que Derham dissera que se o rei morresse ele iria se casar com Catarina Howard. Damport contou isso a seus torturadores, temendo sofrer mais. Eles ficaram desapontados, mas o homem estava sangrando muito e não teria suportado mais dor; e sua boca estava tão inchada que, mesmo se quisesse, não iria conseguir falar.

Retiraram-no da câmara de torturas. Precisariam dizer a Cranmer que não haviam conseguido arrancar nada de Damport e acreditavam que ele não tinha nada para contar. Cranmer seria tomado por aquela fúria gélida que era ainda mais aterrorizante que a ira ígnea de alguns homens.

De Manox não conseguiram nada interessante. Não havia provas suficientes contra ele. Manox era um dos músicos mais humildes, e realmente não fizera nada errado. Não mantivera encontros com a rainha, nem mesmo enquanto suas damas estavam com ela. Quanto às suas relações com Catarina em Hosham e Lambeth, ele estava disposto a falar. Era um velhaco tão óbvio que torturá-lo seria um desperdício.

Mas Cranmer não estava zangado. Na verdade, estava deliciado. O rei de Franca mandara suas condolências para Henrique, dizendo-lhe o quanto lamentara ouvir notícias sobre os pecados cometidos por Catarina, tão recentemente tornada sua rainha. Isso fora um bom sinal, e coisas ainda melhores prometiam acontecer.

"Por que a rainha quisera cercar-se por aquelas com quem compartilhara uma vida de leviandades antes de seu casamento?", perguntouse Cranmer.

Cranmer decidiu questionar todas as mulheres na corte da rainha que tinham estado a serviço da duquesa-mãe de Norfolk. Havia várias delas:

Katharine Tylney, Margaret Morton, Jane Bulmer, e duas de nome Wilkes e Baskerville como as principais entre elas. Foi através de Katharine Tylney e Margaret Morton que Cranmer descobriu a respeito de uma certa noite em Lincoln. O nome de Thomas Culpepper foi mencionado, e também o de Lady Rochford, que promovera os encontros. Haviam ocorrido vários encontros antes da jornada para o norte e durante ela.

- Tragam Culpepper! - ordenou Cranmer. Trouxeram-lhe Culpepper. Ele era um rapaz ousado e corajoso, como Francis Derham.

"Malditos sejam os homens corajosos e galantes!", pensou Cranmer, o covarde. "Quanto trabalho eles nos dão!"

Cabeça erguida, Culpepper admitiu seu amor pela rainha, admitiu que ele teria se casado com ela se pudesse. Nada errado acontecera entre eles, garantiu o rapaz.

Cranmer riu disso. Culpepper teria de admitir que acontecera tudo de errado entre eles! Como Cranmer conseguiria enraivecer mais seu monarca sequioso por amor?

- Ao ecúleo com ele! Que seja torturado até confessar! - ordenou. Derham tinha sido um pirata; ele enfrentara a morte mais de uma vez, e ela lhe causava menos horror do que a um homem como Cranmer, que jamais a vira de perto. O caso de Culpepper era muito parecido. Ele fora um jovem aventureiro, e sempre causara problemas a seus pais; fora um jovem rebelde e desregrado, com um talento para atrair encrencas. Havia uma qualidade que ele tinha em comum com Derham, e era a bravura.

Puseram-no no ecúleo. Ele suportou aquela dor excruciante, aquela tortura terrível, premindo os lábios com firmeza, e apenas de vez em quando, e com muita vergonha, ele deixava escapar um gemido de dor. Chegara até mesmo a sorrir no ecúleo e tentara lembrar do rosto de Catarina, ansiosa por ele.

"Tenha cuidado, Thomas. Tenha cuidado para não sofrer por seu amor por mim."

Thomas pensou que ela estava com ele, falando-lhe. Em seus pensamentos, respondeu a ela:

"Doce Catarina, pensa que eu faria qualquer coisa que pudesse causar-lhe sofrimento? Jamais sofrerá por minha causa, Catarina. Deixe que façam o que quiserem.

- Culpepper! Culpepper, seu jovem idiota! Não vai falar?

Ele tossiu, porque a dor era tanta que sentia dificuldade em falar.

- Eu já falei.

- De novo, de novo! Trabalhem mais depressa, seus idiotas! Ele precisa confessar!

Mas ele não confessou, e, sem a menor delicadeza, carregaram dali o seu pobre corpo torturado. Estavam cansados; tinham trabalhado muito em Culpepper sem obter qualquer resultado.

O rei ficou colérico ao saber que Culpepper estava envolvido. Henrique estava enlouquecido de ódio, dor, ciúme, humilhação e pena de si próprio. Ele chorou; ele se trancou em seus aposentos, dizendo que não queria ver ninguém. Isso... acontecendo com o rei da Inglaterra!

O rosto de Henrique estava coberto de tristeza; sua perna esquerda atormentava-o com dor; sua juventude desaparecera, levando com ela sua esperança de felicidade. Ele era um velho doente e Culpepper um homem jovem e bonito. Ele próprio admirara o charme de Culpepper. Ele protegera o rapaz, fazendo vista grossa para as suas peraltices, dizendo que o que ele fizera em Kent não precisava ser lembrado na corte. Ele amara esse rapaz; amara-o por sua inteligência e beleza. E este mesmo garoto, belo de rosto e limpo de perna, vira muitas vezes a chaga asquerosa na perna real, decerto rindo do fato de que nem todo o poder e riquezas da Inglaterra podiam comprar juventude e saúde como as dele.

"Talvez ele esteja menos belo agora que seus membros graciosos foram torturados", pensou o rei, liberando uma gargalhada rouca e chorosa.

Culpepper deveria morrer como um traidor; morreria desonrosamente e indignidades seriam cometidas contra o seu corpo. E quando sua cabeça estivesse na Ponte de Londres, será que Catarina iria sentir o mesmo desejo de beijar-lhe os lábios? O rei atormentou a si próprio com pensamentos dos dois juntos que só poderiam ocorrer a um sátiro, e o sangue ferveu em sua cabeça, ameaçando estourá-la

- Por cada dose de prazer que recebeu de seus amantes, Catarina receberá uma dose de tormento em sua morte!

Catarina - naqueles aposentos que haviam pertencido a Ana Bolena, sido usados brevemente por Jane, e mais brevemente ainda por Ana de Cleves - encontrava-se em tamanho estado de terror que as mulheres que a guardavam temiam que ela perdesse a sanidade. Ela se jogava na cama, chorando copiosamente; então ela se levantava e caminhava pelo quarto, fazendo perguntas sobre morte. Mandava chamar aqueles que tinham presenciado à morte de sua prima para dizer-lhe como Ana Bolena morrera. Ela chorava de dor, e então desatava a rir novamente, porque parecia irónico que fosse seguir o mesmo destino de Ana. Catarina quase perdeu o juízo quando soube que Culpepper fora aprisionado. Ela rezava incoerentemente:

- Senhor, não permita que façam mal a ele. Deixe-me morrer, mas poupe Thomas!

"Se ao menos eu pudesse ver o rei, conseguiria fazer com que ele me ouvisse", pensava Catarina. "Tenho certeza de que ele iria poupar Thomas, se eu lhe pedisse."

- Posso falar com Sua Majestade? Só por um momento! - implorava.

- Falar com Sua Majestade! - repetiam eles, balançando as cabeças. Como isso poderia acontecer? Sua Majestade estava furiosa com a conduta de sua rainha; ele não iria querer vê-la. E o que Cranmer diria, Cranmer que não iria conhecer a paz verdadeira até que a cabeça de Catarina Howard estivesse separada do corpo?

Ela se lembrou de como o rei a tratara antes, sempre indulgente, sempre afetuoso. Mesmo quando ele a reprimira por ser generosa demais, mesmo quando ele, zangado com os atos dos traidores, ouvira os apelos de Catarina por clemência, ele jamais demonstrara um único indício de raiva. com toda certeza, ele iria ouvi-la agora.

Ela fez um plano. Se conseguisse chegar ao rei, se conseguisse iludir seus carcereiros, ela saberia como se fazer irresistível a Henrique.

Estava calma agora, esperando por uma oportunidade. Um movimento rápido de sua mão para abrir a porta, e então descer correndo a escadaria dos fundos. Ela ficaria atenta pela primeira oportunidade e rezaria para que Deus a ajudasse.

A oportunidade chegou quando ela soube que ele estava assistindo à missa na capela. Ela iria correr até a capela e ajoelharia diante do rei para implorar sua compaixão, prometendo-lhe uma vida inteira de devoção se ele pudesse poupar a ela, Culpepper e Derham.

Aqueles que a guardavam, satisfeitos com sua calma, estavam sentados num assento de janela, conversando entre si sobre os estranhos acontecimentos na corte. Ela se moveu veloz na direção da porta; parou, lançou um olhar sobre o ombro, viu que não despertara a suspeita das suas atendentes, girou a maçaneta, estava na escadaria escura antes de ouvir a exclamação de surpresa às suas costas.

O medo deu-lhe asas aos pés. Chegou à galeria; ouviu o canto na capela. O rei estava lá. Ela conseguiria seu intento porque isso era essencial. Culpepper era inocente. Ele não devia morrer.

As atendentes da rainha estavam bem atrás dela, cheias de determinação em impedir que seu plano lograsse sucesso, completamente cientes de que seu castigo seria pesado caso Catarina alcançasse o rei. Elas agarraram o vestido de Catarina; capturaram-na um segundo antes que alcançasse a porta da capela. Arrastaram-na de volta para o apartamento. Os gritos de Catarina ecoaram pela galeria como o berro de um animal louco, misturando-se estranhamente com o canto que provinha da capela.

Alguns dias depois Catarina foi levada de Hampton Court. Foi conduzida pelo rio até uma prisão menos grandiosa no Solar Sion.

A duquesa-mãe estava de cama. Ela disse às suas aias:

- Não consigo me levantar. Estou doente demais. Sinto a morte se aproximando rápido.

Estava doente, e sua doença era o medo. Ouvira dizer que Culpepper e Derham tinham sido considerados culpados de traição. Ela sabia que eles não haviam sido julgados de fato, porque os homens não podiam ser condenados à morte por algo que não podia ser provado, e que eles não admitiam nem sob a tortura mais terrível! Mas esses dois homens corajosos não haviam convencido seus torturados que não responderiam à persuasão do ecúleo, e mesmo depois de sua sentença, diariamente foram levados para as câmaras de tortura para sofrer novas agonias. Mas nem uma só vez eles negaram seus protestos pela inocência da rainha desde o seu casamento.

Nunca, na lembrança da duquesa-mãe, homens haviam sido julgados dessa forma. Para os homens acusados com Ana Bolena houvera um julgamento, ainda que falso. Culpepper e Derham tinham sido levados para Guildhall e postos diante do prefeito, mas a cada lado do prefeito Suffolk e Audley haviam se sentado. A sentença fora pronunciada rapidamente, e os dois tinham sido julgados culpados e condenados a sofrer a morte lenta designada para os traidores.

A duquesa-mãe pensou sobre esses assuntos enquanto estava na cama, acordando aterrorizada ao ouvir o mais leve som vindo do andar térreo. Ela sabia que haviam sido feitos inventários de suas posses, e sabia que elas não falhariam em despertar a cobiça do rei, porque eram de grande valor.

Que chances ela tinha de escapar à morte? Até mesmo o duque, velho soldado como era, demonstrara considerar que a única atitude segura para um Howard era o exílio. Ele fizera retiro voluntário, na esperança de que o rei o esquecesse por enquanto, até que a sorte da família Howard tivesse retornado.

Enquanto a duquesa-mãe estava deitada em sua cama, aquilo que ela mais temia aconteceu. Wriothesley, acompanhado pelo conde de Southampton, chegou para vê-la.

O rosto da duquesa amarelou quando eles entraram. Eles pensaram que ela não estava aterrorizada, mas realmente sofrendo de alguma doença terrível. Não ousaram aproximar-se da cama, estando os horrores da praga ainda vívidos em suas mentes.

- Apenas viemos ver como Sua Graça está - disse Wriothesley falsamente, jamais desviando os olhos do rosto da velha. - Não se preocupe, esta é apenas uma visita. Queremos prestar nossas condolências pelos eventos lamentáveis que aconteceram em sua família.

A cor retornou lentamente a seu rosto. Os homens perceberam a melhora em sua aparência. Trocaram olhares. Seu pequeno estratagema fora bem-sucedido, e não poderia ter sido de outra forma, tendo sido a condessa sempre uma tola, propensa a crer no que queria ao invés de na verdade; e ela não podia esconder a sensação de descobrir que, afinal de contas, estava segura. A duquesa-mãe, esses dois homens sabiam, não sofria de qualquer praga, mas apenas das mazelas de uma consciência culpada.

Eles a interrogaram. Ela chorou e falou incoerentemente.

Ela não sabia de nada... nada! Assegurou-os. Ela pensara que a atração entre Derham e sua neta tinha sido meramente uma afeição entre dois jovens unidos por uma forte amizade. Ela não vira nenhum pecado nisso. Mas ela não os encontrara juntos, abraçados e se beijando? Ela considerara isso apropriado a uma dama que o rei escolhera para tomar como rainha? Ah, mas Catarina fora tão criança naquela época, e o contato com Derham não lhe causara nenhum mal... nenhum mal do qual ela soubesse. Mas ela não fora notificada sobre coisas escandalosas?

Ela não batera na menina, e Derham não fugira temendo por sua vida?

- Eu não sabia de nada! - afirmou entre lágrimas. - Eu não sabia de nada!

Os olhos astutos de Wriothesley examinaram cada detalhe da alcova da duquesa. Finalmente, ele disse:

- Creio que Sua Graça está em condições para ser transportada para a Torre.

Em Tyburn uma multidão reunira-se para ver a morte dos amantes da rainha. Culpepper primeiro. Como a rainha podia ter amado um homem como aquele? Tinha o rosto emaciado, os lábios caídos, a pele com aparência de queijo estragado; seus olhos tinham afundado em cavidades negras. As pessoas estremeceram de pavor, sabendo que não viam um amante da rainha, mas o que os algozes tinham feito dele. Culpepper era um sortudo, porque vinha de berço nobre, e iria ser apenas decapitado!

Derham podia dizer "Culpepper é um sortudo!". Ele não era de berço nobre, e embora tivesse implorado ao rei por perdão - o que significava ter pedido para morrer pelo machado ou pela corda -, o rei não estava propenso à piedade. Henrique não via razão para que a sentença não fosse executada conforme o ordenado pelos juizes.

Os olhos de Derham estavam anuviados pela dor. Sofrera muito desde que fora preso; nunca imaginara que poderia existir tanta crueldade no coração dos homens; na verdade, já ouvira relatos sobre o que acontecia naquelas masmorras sombrias abaixo da fortaleza da Torre de Londres, mas imaginar um sofrimento e vivenciá-lo eram duas experiências absolutamente diversas. Ele não queria viver, pois se vivesse jamais iria esquecer das paredes de pedra sombrias e lodosas, dos gritos terríveis de agonia, da dor e do odor de sangue e vinagre. Também jamais poderia esquecer daqueles instrumentos horrorosos, como monstros sem pensamento, obedientes à vontade maligna dos homens.

Tudo isso ele sofrera, e ainda tinha muito o que sofrer. Ele estivera submergido em dor, mas talvez ele não tivesse testado sua profundidade. A natureza era mais misericordiosa que os homens, proporcionando àqueles que sofriam grande dor o direito ao desmaio; mas os homens eram cruéis e acordavam suas vítimas dos desmaios para que a dor recomeçasse.

Ele se agarrou à lembrança gloriosa da inconsciência que inevitavelmente se seguia a uma dor excessiva. Havia outra alegria em seu coração, e era a seguinte: ele não traíra Catarina. Eles.poderiam matar Catarina, mas nem uma gota de seu sangue mancharia as mãos de Derham. Ele a amara; suas intenções para com Catarina haviam sido honestas. Movido pela paixão, ele fora incapaz de resistir a ela; mas isso era natural, não houvera pecado. Ele a chamara de esposa e ela o chamara de marido, e o maior desejo de sua vida havia sido desposá-la. Agora, aqui em Tyburn, aguardando a provação mais terrível de sua vida, ele pôde sentir uma leveza de espírito, porque seu fim não estava muito distante, embora eles certamente fossem revivê-lo para sofrer mais. Esses homens, cujos olhos cruéis eram indiferentes a seu sofrimento, esses monstros que eram apenas lacaios daquele assassino desprezível que reinava sobre a Inglaterra e a controlava com tortura e morte, eram merecedores de piedade, assim como o próprio Henrique. Porque um dia eles iriam morrer, e não iriam morrer como Derham morria; eles não iriam conhecer sua agonia física, mas também não conheceriam sua paz espiritual.

O laço estava em seu pescoço; ele balançou no ar. O aperto repentino causou-lhe uma dor breve, mas no momento seguinte percebeu que estava deitado na madeira rija e que não conseguia respirar; estava sufocando; mas estavam tratando-o solicitamente, para que retornasse à vida e sofresse mais dor.

Agora ele estava recuperado o bastante para sentir o cheiro da turba em Tyburn, para ouvir o murmúrio de suas vozes, para sentir as mãos de um homem em seu corpo, para ver um lampejo de metal, para experimentar agonia. Sentiu a faca fria contra a sua pele. Uma dor quente correu através dele. Contorceu-se e gritou, mas pareceu ouvir uma voz perto de si murmurar:

"Não falta muito, Derham. Agora não falta muito mais, Derham. Não pode demorar muito. Lembre que eles estão ajudando-o a partir deste mundo maligno."

Ele sentiu cheiro de fumaça.

- Meu Deus! - gemeu.

E se contorceu e pranteou novamente. Sentiu o cheiro de suas entranhas queimando. Mil facas brancas e quentes pareciam trespassá-lo. Tentou empertigar-se. Tentou implorar misericórdia. Não conseguia falar. Não podia fazer nada além de suportar a dor e entregar seu corpo torturado a um milhão de demónios famintos. Ele tocara a profundidade da dor, porque nunca houve agonia maior do que aquela suportada pelos homens que ficavam pendurados pelo pescoço, e então eram ressuscitados para sentir a faca que estripava seus corpos, para sentir a agonia de suas entranhas sendo queimadas.

Uma escuridão abençoada se fechou em torno de Derham; o golpe do machado pareceu uma carícia gentil em seu pescoço.

Jane Rochford estava de volta à Torre. Estivera muito calma enquanto fora levada para ali, mas agora seus olhos estavam ferozes, seus cabelos pendiam sobre seu rosto; ela não sabia por que estava lá; ela falava como se não estivesse lá.

- Geprge! Você aqui, George! - Ela começou a rir. - Então nós nos encontramos aqui, George. Isto é tão justo... tão justo.

Ela parou como se estivesse ouvindo uma conversa de outra pessoa. Então voltou a rir alto para então, de repente, começar a chorar. Lady Rochford havia enlouquecido.

Ela olhou pela janela e viu o Tamisa.

- Por que ela veio com toda pompa enquanto eu fui trazida como prisioneira? Vocês tinham tudo. O rei os amava. Oh, George, não fique aí nas sombras. Onde está a sua cabeça, George? Ah, sim, eu lembro. Eles a cortaram.

Ninguém ousava ficar com ela. Era assustador ouvi-la falar com pessoas que não estavam lá. Era arrepiante observá-la fitar o espaço vazio.

- É com o fantasma de George Bolena que ela fala? - sussurravam as pessoas. - Ele está realmente lá e não podemos vê-lo? Ele a está assombrando porque ela o mandou para a morte?

Os gritos de Jane aterrorizavam todos que os ouviam. Depois de algum tempo uma grande calma se assentou em seu espírito, mas a loucura perdurou em seus olhos.

Ela disse, baixinho:

- Ele veio escarnecer de mim. Ele diz que irei para o cepo por conta de minha maldade. Ele põe as mãos na cabeça e a levanta para me mostrar que não é realmente George, mas o fantasma de George. Ele diz que o machado que o matou foi brandido por mim e que eu o fiz por vingança. Diz que o machado que irá matar-me será brandido por mim e que eu o farei por tolice. Diz que sou duplamente assassina porque eu o matei e agora irei matar-me.

Ela se atirou contra o banco de janela, as mãos erguidas em súplica para um espaço vazio.

As atendentes de Jane observavam-na assustadas. Sentiam medo da lógica bizarra dos loucos.

A barcaça da rainha saiu do Solar Sion e desceu o rio até a Torre. Ela agora estava composta e parecia muito bonita em seu vestido de veludo preto. Agradeceu a Deus porque a noite caíra e ela não podia ver as cabeças decompostas, empestadas de moscas, dos homens que a haviam amado. O suspense chegara ao fim. Thomas estava morto.

Derham esta morto. Agora faltava apenas a morte de Catarina. Ela sentia muita pena da avó, que estava aprisionada na Torre. Pensou em Manox, em Damport e em Lord William, que, como membros de sua família e da morada de sua avó, haviam caído em suspeita devido a ela Ela ouvira que Mary Lasseis recebera uma comenda por sua honestidade ao trazer à luz o caso contra a rainha Ela ouvira que o rei, cuja dor e raiva tinham sigo imensas, agora estava se recuperando, e que agora permitia-se divertir por entretenimentos providos pelas damas mais belas da corte.

Catarina sentia-se calma agora, não nutrindo mágoa de ninguém a não ser, talvez, de seu tio Norfolk que, para salvar a própria pele, estava se gabando que fora por causa dele que a velha duquesa-mãe chegara a seu estado presente. Por ele, Catarina podia sentir muito pouco além de desprezo; ela lembrava que sua avó contara que ele fora muito cruel com Ana Bolena.

Lady Rochford estava com Catarina. Sua loucura a havia abandonado um pouco, embora agora estivesse retornando, e nunca se sabia quando ela podia voltar a ter visões.

Mas havia algum conforto para Catarina em ter Jane Rochford com ela, porque ela fora uma testemunha, e uma participante, da tragédia de Ana Bolena. Ela falava daquele momento triste há apenas seis anos, e Catarina reunia coragem ao ouvir sobre a nobreza com que Ana caminhara até o cepo do carrasco.

Sir John Gage, que tomara o lugar de Sir William Kingston como zelador da Torre, veio ter com ela em seu segundo dia na fortaleza

- Vim pedir-lhe que se prepare para a morte - disse à rainha, solenemente.

Ela tentou ser corajosa, mas não conseguiu. Não tinha ainda nem 20 anos de idade, tão jovem, tão bonita, tão apaixonada pela vida. Foi tomada pela histeria, e chorou tão contínua e violentamente que estava à beira da loucura.

Nas ruas, o povo murmurava contra o rei.

- O que significa isto? Outra rainha... e desta vez uma que era pouco mais que uma criança... condenada à morte!

- Dizem que ela nunca fez nada de mal... nem contra os seus inimigos.

- Não é estranho que um homem seja tão amaldiçoado em suas esposas?

Gage retornou para ela, e lhe disse que iria morrer no dia seguinte.

- Estou pronta! - anunciou Catarina.

E pediu para que lhe trouxessem o cepo, para que pudesse praticar deitar a cabeça sobre ele.

- Soube que minha prima morreu com muita bravura. Quero seguir seu exemplo. Mas ela era uma grande dama e temo que eu não seja, nem que jamais pudesse vir a ser. Aquilo que ela podia fazer com naturalidade, eu preciso praticar.

Era um pedido estranho, mas ele não pôde negá-lo. Assim, o cepo foi levado até o quarto da rainha. Ela mandou colocá-lo no centro do cómodo e, graciosamente, caminhou até ele, parecendo tão jovem e bonita que parecia uma criança brincando, fazendo de conta que iria ser executada. Ela pousou a cabeça no cepo, e manteve-a lá por muito tempo, até a madeira estar molhada com suas lágrimas.

Disse que estava cansada e que queria dormir um pouco, e caiu num sono profundo, pacífico, quase assim que se deitou. Enquanto dormia, seus cabelos castanhos caíram desordenados, seu semblante estava liso e imperturbado; sua boca sorria.

Sonhou ver sua prima Ana, que a acariciou como fizera quando ela tinha sido um bebé, tranquilizando-a, dizendo que a morte era fácil. Uma dor súbita e então a paz. Mas Catarina não conseguia se animar; parecia-lhe que, embora fosse inocente de adultério, era em alguma medida culpada devido ao que acontecera antes de seu casamento. Mas sua prima continuou tranquilizando-a, dizendo:

- Não, eu era mais culpada do que você, porque fui ambiciosa e orgulhosa, e feri a muitos, enquanto você nunca feriu a ninguém além de a si mesma.

Catarina sentiu-se confortada, e segurou com força o seu sonho.

Sabia agora que ela, como Ana, era inocente de qualquer crime merecedor de morte. Ana havia sido assassinada; ela estava prestes a sê-lo. Mas a morte seria rápida e não era nada a temer.

No começo da manhã, quando a acordaram, Catarina disse muito calma:

- Eu tinha esquecido que dia era hoje. Agora eu sei. Hoje é o dia em que eu vou morrer.

Ela caminhava com dignidade lenta-que ensaiara na noite anterior em sua alcova - até o local diante da igreja onde, seis anos antes, Ana Bolena morrera. Estava vestida em veludo negro, e tinha a pele muito pálida. Os olhos estavam arregalados, e ela tentou acreditar que via sua prima, sorrindo para ela detrás da neblina para a qual ela agora se dirigia.

- Devo morrer como uma rainha, como Ana morreu - pensou Catarina enquanto caminhava.

Estava acompanhada por Jane Rochford, que iria morrer com ela. A dignidade de Jane era tão completa quanto a da rainha. Seus olhos estavam calmos, e ela havia superado toda a loucura. Podia enfrentar a morte alegremente, pois lhe parecia que apenas morrendo conseguiria expiar o pecado que cometera contra seu marido.

O ar naquele início de manhã em fevereiro era frio e úmido; a cena era fantasmagórica. Catarina procurou, entre aqueles que tinham se reunido para vê-la morrer, pelo rosto de seu tio, e sentiu-se imensamente grata em saber que seria poupada de vê-lo ali.

Ela murmurou uma pequena prece para sua avó. Ela não iria rezar por Thomas e Francis porque agora eles estavam em paz. Teria Ana sentido essa calma estranha quando sua morte estava a passos de distância? Teria ela sentido esse sentimento que parecia insolitamente próximo à euforia?

Ela disse que iria pronunciar algumas palavras. Havia lágrimas nos olhos de muitos que a olhavam, porque Catarina não possuía uma única gota da arrogância que caracterizara a sua prima trágica. Em seu vestido negro de veludo ela parecia o que era, uma moça muito jovem, inocente de qualquer crime, cuja tragédia fora ter sido desejada por um homem cujo poder era absoluto. Alguns lembravam que embora Ana tivesse sido considerada culpada por um júri escolhido, tivera uma oportunidade de se defender, e isto ela havia feito com tal clareza, dignidade e veracidade que a posteridade não comprometida começava a acreditar em sua inocência. Mas a pequena Catarina Howard não tivera essa oportunidade; contrariamente à lei inglesa, ela iria ser executada sem um julgamento aberto, e havia apenas uma palavra para esse tipo de execução, e era muito feia: assassinato. Alguns precisavam se perguntar que tipo de homem era esse seu rei, que duas vezes em seis anos mandara uma jovem esposa para o cepo do carrasco! Eles lembravam que esse Henrique era o primeiro rei da Inglaterra a derramar sangue de mulheres no cepo e a queimá-las na fogueira. Possuiria esse rei valores morais tão elevados a ponto de expressar tamanho horror pelos pecados dessa criança?

Mas ela estava falando, e sua voz estava tão baixa que era difícil ouvila. E, à medida que falava, lágrimas caíram de seus olhos e desceram por suas faces-macias; ela estava falando sobre seu amante Culpepper, cuja cabeça todos podiam ver naquele espetáculo medonho sobre a Ponte de Londres.

Carolina estava tentando fazer as pessoas entenderem seu amor por aquele jovem, mas não conseguiu dizer-lhes como o conhecera e o amara quando, em Hollingbourne, ele entrara pela primeira vez em sua vida solitária.

- Eu amava Culpepper - disse Catarina, e procurou explicar ao povo como ele tentara convencê-la a não se casar com o rei. - Eu preferi ser senhora do mundo a tê-lo como esposo... E como a escolha foi minha, meu também foi o sofrimento, e minha grande tristeza é que Culpepper tenha morrido por minha culpa.

A voz de Catarina falhou na garganta; suas palavras ficaram mais débeis. O executor olhou à sua volta e lamentou o que precisava fazer, porque ela era tão jovem, apenas uma criança, e por mais duro que fosse o coração desse homem, ele lamentou imensamente que fosse sua a mão que iria cortar aquele pescoço.

Ela voltou seus olhos cheios de lágrimas e rogou que ele não postergasse. Ela gritou:

- Morro como rainha, mas preferiria morrer como esposa de Culpepper. Deus, tenha piedade de minha alma... Boa gente. Por favor, ore por mim...

Ela se ajoelhou e pousou a cabeça no bloco, não tão bem quanto o fizera em seu quarto, mas de uma maneira que fez muitos virarem as cabeças e enxugarem os olhos.

Estava rezando quando o executor, com um golpe veloz, baixou o machado.

As aias de Carolina, olhos cegos pelas lágrimas, correram para cobrir com um pano preto aquele corpinho mutilado. Então carregaramno para onde deveria ser enterrado na capela, perto do lugar onde jazia Ana Bolena.

Não muitos sentiram pena de Lady Rochford. Essa mulher esquálida era um contraste violento com a jovem e adorável rainha. Jane subiu ao cadafalso como uma peregrina que, depois de muita tribulação, alcançava o fim de uma jornada.

Falou à multidão e disse que não era culpada pelo crime pelo qual pagava esta pena dolorosa; mas ela merecia morrer, e acreditava estar morrendo como uma punição por ter contribuído para a morte de seu esposo por sua acusação falsa contra a rainha Ana Bolena. Quase eufórica, Jane deitou a cabeça no cepo.

- Ela está louca - disseram os espectadores. - Apenas os insanos podem morrer tão alegres.

Jane ainda sorria depois que o machado descera e seu sangue esguichara, misturando-se ao da rainha assassinada.

Em seu palácio em Greenwich, o rei estava parado, olhando para o rio. Sentia-se sozinho e desamado. Perdera Catarina. O corpo mutilado agora jazia ao lado de outra mulher por quem ele fora apaixonado, e a quem matara como agora havia matado Catarina.

Sentia medo. Agora ele sempre iria sentir medo. Fantasmas iriam assombrar sua vida... miríades de fantasmas, todos os homens e mulheres cujo sangue ele havia derramado. Eram tantos que não conseguia lembrar de todos, embora houvesse alguns que ele jamais iria esquecer. Buckingham. Wolsey. More. Fisher. Montague. Exeter e a condessa anciã de Salisbury. Cromwell. Sobre esses, podia argumentar com sua consciência que ele matara em benefício da Inglaterra. Mas havia outros que ele tinha se esforçado mais para esquecer. Weston. Brereton. Norris. Smeaton. Derham. Culpepper. George Bolena. Catarina... e Ana.

Pensou em Ana, a quem amara com tanto ardor. Jamais em sua vida amara tanto uma mulher como amara a Ana, nem jamais viria a amar; pois seu amor por Catarina fora o amor egoísta de um velho, o amor de um homem cansado da promiscuidade. Mas seu amor por Ana tivera toda a excitação da caçada, toda a urgência de um desejo apaixonado; toda a ternura, o romance e os sonhos de um idílio.

Então ele se assustou com um movimento a seu lado, e o cabelo ficou úmido em sua fronte, porque ele teve a impressão de que Ana estava parada a seu lado. Um segundo olhar disse-lhe que isso fora apenas uma imagem conjurada pela mente culpada de um assassino, porque não era Ana quem estava a seu lado, mas a filha de Ana. Havia muitas vezes que ela lembrava a mãe. De todos os seus filhos, era a esta a quem ele mais amava, porque era a mais parecida com ele; e também com sua mãe. Havia momentos em que ela o enfurecia; mas a mãe de Elizabeth também o enfurecera, e ele a amara. Ele amava Elizabeth, Elizabeth dos cabelos cor de fogo, e de natureza resoluta e passional. Ela jamais iria ser a beldade de cabelos negros que sua mãe havia sido; ela era quase ruiva, como seu pai. Henrique sentiu uma raiva repentina encher seu coração. Por que, oh, por que ela não lhe dera um menino?

Elizabeth não falou com ele, mas ficou parada a seu lado, sua atenção concentrada numa grande nau - a maior nau de Henrique - que estava singrando na direção da boca do rio. Ela observava a cena, os olhos cheios de admiração. Henrique sentiu muito orgulho de sua filha, que amava os navios que ele construíra.

Contemplar o navio animou Henrique. Ele precisava de ânimo, porque andava atormentado, e pensar ver fantasmas é algo inquietante para um homem supersticioso. Ele se flagrou pensando nesse homem que era Henrique da Inglaterra, que para ele sempre parecera uma figura poderosa, tão certa em tudo que fazia.

Ele era um grande rei. Fizera muito pela Inglaterra, porque ele era a Inglaterra Ele era um assassino; de vez em quando aceitava esse fato. Ele o aceitou agora, enquanto olhava para o rio, a filha de Ana a seu lado. Ele assassinara Ana, a mulher a quem mais amara, e cometera assassinato contra Catarina, a quem também havia amado; mas a Inglaterra começara a se erguer para a grandeza, porque ele e a Inglaterra eram um só.

Pensou nesta terra que ele tanto amava; no sol de abril, na chuva suave e cheirosa; nos campos verdejantes e nos jardins de flores silvestres; e no rio passando diante de seus palácios rumo ao mar. Não era apenas uma ilha na costa da Europa; era um país tornando-se poderoso, prometendo fortalecer-se ainda mais. E isso acontecera por intermédio de Henrique, que não permitia que nada se interpusesse entre ele e a grandeza, e ele era a Inglaterra.

Os pensamentos de Henrique recuaram por anos manchados de sangue. Gales estava subjugada; há poucas semanas ele assumira o título de rei da Irlanda; ele planejava casar seu filho Eduardo com uma princesa escocesa. Cada tesouro que ele conquistava era um tesouro para a Inglaterra. Henrique iria unir essas ilhas sob a Inglaterra e então...

Ele queria a grandeza para a Inglaterra. Queria que as pessoas, nos anos futuros, quando pensassem em seu reinado, não se lembrassem do sangue dos mártires, mas da glória da Inglaterra.

Havia sonhos nos olhos de Henrique. Viu navios maravilhosos. Ele fizera da sua marinha a mais esplendorosa que já existira. Chegara a considerar a possibilidade de tentar conquistar a França, mas nunca pusera esse plano em prática. A França era poderosa, e muito do melhor sangue inglês já fora derramado na França. Mas havia ainda novas terras a serem descobertas no globo. Homens partiam da Espanha e de Portugal e descobriam novas terras além do mar-oceano. O papa partira o globo de pólo a pólo e declarara que todas as terras descobertas no leste pertenceriam a Portugal, e no oeste pertenceriam à Espanha. Mas a Inglaterra possuía os melhores navios do mundo. Por que não poderia haver terras para a Inglaterra? Guerra? Ele não queria derramar sangue inglês, porque isso iria enfraquecer o reino e também Henrique, porque nunca, desde que Wolsey partira, deixando o governo em suas mãos, o rei esquecera que a Inglaterra era Henrique.

Não haveria derramamento de sangue pela Inglaterra, porque esse não era o caminho para a grandeza E se, nas gerações futuras, a Inglaterra assumisse o lugar da Espanha?

Henrique sempre odiara a Espanha tão profundamente quanto amava a Inglaterra. E se os navios ingleses carregassem mercadorias para as novas terras, em vez de guerra e pilhagem, em vez de fanatismo e inquisição? Ele tinha as naus... Se a Espanha enfraquecesse... Que futuro ele divisava para a Inglaterra!

Pensou no filho pálido e fraco que Jane lhe dera. O justo seria se fosse um filho de Ana quem iria concretizar os sonhos de Henrique para a Inglaterra. Ele olhou para a filhinha de Ana: animada, vigorosa, herdeira de tantos traços do próprio Henrique e de Ana Bolena.

"Ana, por que você não me deu um filho? Oh, se essa menina fosse um rapaz!"

O que o académico Eduardo iria fazer pela Inglaterra? Seria ele capaz de fazer aquilo que esta menina poderia fazer em seu lugar, fosse ela do sexo masculino? Henrique olhou para o rosto corado de Elizabeth, para seu perfil altivo, para os olhos cintilantes da menina observando o navio sumir no horizonte. Uma menina inútil!

Henrique estava tremendo sob a magnitude de seus pensamentos, mas seu momento de clareza esvaneceu. Ele era um homem velho e rabugento. Sua perna incomodava-o terrivelmente, e ele se sentia muito solitário, tendo acabado de assassinar sua esposa, cuja juventude e beleza tinham sido a fonte de calor e a luz na qual ele aquecera seu corpo.

Ele lembrou sua consciência - mais bem preservada do que seu corpo - de que Ana fora uma adúltera, uma traidora, que sua morte não tinha sido assassinato, apenas justiça.

Franziu o cenho ao deitar novamente os olhos em Elizabeth. Ela era arrogante, parecida demais com a mãe. Henrique quis expurgar de sua mente o som de gritos, misturados com vozes cantando numa capela. Catarina fora tão meretriz, traidora e adúltera quanto Ana.

O navio agora havia sumido, e ele não estava pensando mais em naus, e sim em mulheres. Pensou numa, bela e desejável como Ana, humilde e obediente como Jane, jovem e vivaz como Catarina. A língua quente de Henrique lambeu os lábios. Ele estava sorrindo.

"Preciso procurar por uma nova esposa... pelo bem da Inglaterra!"

 

 

                                                                  Jean Plaidy

 

 

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