Vivia-se uma era de falsidade. Todos suspeitavam de todos — e com um bom motivo! Nunca se sabia quando um aliado de confiança iria se voltar contra você, mostrar as presas e fazê-lo em pedaços. Os vampiros e os vampixiitas estavam em guerra — a Guerra das Cicatrizes — e o resultado dependia de encontrar e matar o Senhor dos Vampixiitas. Se os vampiros fizessem isso, a vitória seria deles. Caso contrário, a noite pertenceria a seus primos de sangue de pele púrpura, que levariam os vampiros à extinção. Três vampiros foram enviados pelo Sr. Desmond Tino para caçar o Senhor dos Vampixiitas — Vancha March, Larten Crepsley e eu, Darren Shan. Sou um meio-vampiro. O Sr. Tino nos disse que outros vampiros não poderiam nos ajudar em nossa caçada, mas não-vampiros, sim. Porém, o único que nos acompanhava era um Pequenino chamado Harkat Mulds, embora uma feiticeira conhecida como Lady Evanna também tivesse viajado conosco por pouco tempo durante a nossa jornada. Depois que deixamos o Senhor dos Vampixiitas escapar sem que percebêssemos, no primeiro dos quatro encontros previstos, viajamos até a cidade onde o Sr. Crepsley nasceu. Não esperávamos encontrar o Senhor dos Vampixiitas lá — viemos procurar e deter uma gangue de vampixiitas que estava assassinando humanos. Atraímos mais dois parceiros na cidade — minha ex-namorada, Débora Cicuta, e Lucas Leopardo. Lucas era o meu melhor amigo. Disse que havia se tornado um caçador de vampixiitas e jurou que nos ajudaria a dar um fim ao vampixiita assassino. O Sr. Crepsley suspeitava de Lucas — acreditava que ele tinha sangue demoníaco —, mas eu o persuadi a conceder o benefício da dúvida ao meu velho amigo. Nosso alvo era um vampixiita insano com um gancho na mão. Acabou que ele era outro dos meus ex-parceiros — C.C., sigla que originalmente significava Chico Chicória, embora ele alegasse agora que queria dizer Criatura Carnívora. Antes ele era um guerreiro ecológico, até suas mãos serem arrancadas a mordidas pelo homem-lobo no Circo dos Horrores. Ele me culpou pelo acidente e havia se unido aos vampixiitas para se vingar. Nós poderíamos ter matado o C.C., mas sabíamos que ele estava ligado aos outros vampixiitas e optamos por enganá-lo, fazendo com que nos levasse até o seu esconderijo. O que não sabíamos é que éramos de fato as moscas na armadilha, e não as aranhas. Bem abaixo das ruas da cidade, dezenas de vampixiitas estavam à nossa espera. Entre eles o Senhor dos Vampixiitas e o seu defensor, Gannen Harst — o irmão com o qual Vancha March não se dava. Numa caverna subterrânea, Lucas Leopardo revelou suas verdadeiras intenções. Ele era um meio-vampixiita e havia armado tudo com C.C. e o Senhor dos Vampixiita para que fôssemos atraídos até o nosso destino final. Mas Lucas nos subestimou, pois eu o dominei e o teria matado — se C.C. não tivesse capturado Débora e ameaçado matá-la em represália. Enquanto tudo isso estava acontecendo, meus amigos foram para cima do Senhor dos Vampixiitas, mas como não tiveram chances de se aproximar, ele escapou. Os vampixiitas poderiam ter nos massacrado, mas teríamos matado muitos deles no decorrer. Para evitar a carnificina, Gannen Harst deixou que fôssemos embora e nos deu quinze minutos de vantagem para que fugíssemos — seria mais fácil para os vampixiitas nos matar nos túneis. Enquanto eu levava Lucas Leopardo como refém e Vancha trazia um vampitiete — um humano que havia sido treinado de acordo com os hábitos dos vampixiitas — a reboque, nós fugíamos, deixando C.C. livre para fazer todas as coisas terríveis que quisesse com Débora. Corríamos em meio aos túneis, exaustos e confusos, sabendo que os vampixiitas logo estariam fervilhando no nosso encalço e nos retalhariam se nos alcançassem...
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CAPÍTULO UM
Corríamos com pressa pelos túneis, com o Sr. Crepsley na frente, Vancha e eu no meio com nossos prisioneiros, e Harkat tomando conta da retaguarda. Conversávamos o mínimo possível e eu tapava a boca de Lucas sempre que ele começava a falar — não estava com paciência para ouvir suas ameaças ou insultos. Eu não usava relógio, mas fiquei contando os segundos dentro da cabeça. Pela minha conta, cerca de dez minutos ou coisa parecida haviam se passado. Havíamos saído dos túneis modernos e estávamos de volta ao emaranhado de túneis antigos e úmidos. Ainda havia um longo caminho a percorrer — tempo suficiente para os vampixiitas nos alcançarem. Chegamos numa encruzilhada e o Sr. Crepsley virou à esquerda. Vancha começou a segui-lo e parou de repente. — Larten! — Ele o chamou de volta. Quando o Sr. Crepsley voltou, Vancha se agachou. Estava quase invisível no meio da escuridão dos túneis. — Temos que tentar nos desvencilhar deles. Se formos direto para a superfície, eles estarão sobre nós antes de chegarmos à metade do caminho. — Mas pode ser que nos percamos se desviarmos — afirmou o Sr. Crepsley. — Não conhecemos esta área. Podemos ir parar num beco sem saída. — Sim — suspirou Vancha —, mas é um risco que teremos que correr. Vou servir de isca e voltar pelo caminho que viemos. O resto de vocês tenta achar uma rota alternativa de saída. Vou tentar encontrá-los mais tarde, se a sorte dos vampiros estiver comigo. O Sr. Crepsley pensou nisso por um instante e depois acenou rapidamente com a cabeça. — Boa sorte — disse ele, mas Vancha já havia partido, desaparecendo rapidamente no meio da escuridão, movendo-se no silêncio quase perfeito dos vampiros. Descansamos um pouco, para depois pegarmos o túnel à direita e seguirmos em frente. Harkat estava agora tomando conta do vampitiete que Vancha havia raptado. Movíamo-nos rápido, porém cuidadosamente, tentando não deixar sinais de que havíamos passado por aquele caminho. No final do túnel, desviamos mais uma vez para a direita. Enquanto entrávamos numa nova bifurcação, Lucas tossiu em alto e bom som. Na mesma hora, o Sr. Crepsley caiu sobre ele. — Faça isso de novo e você morre — vociferou meu mentor enquanto eu sentia a lâmina de sua faca apertando a garganta de Lucas. — Eu tossi de verdade... não foi um sinal — vociferou Lucas em resposta. — Não importa! — sibilou o Sr. Crepsley. — Na próxima vez o matarei. Lucas ficou em silêncio depois disso, assim como o vampitiete. Seguimos em marcha constante para cima, navegando instintivamente pelos túneis, prosseguindo com dificuldade em meio à água e ao lixo. Sentia-me péssimo, cansado e esgotado, mas não diminuí o ritmo. Devia ser dia claro lá em cima, ou quase isso. Nossa única esperança era sair dos túneis antes que os vampixiitas nos encontrassem — a luz do sol provavelmente os impediria de continuar nos perseguindo. Pouco tempo depois, ouvimos os vampixiitas e os vampitietes. Eles estavam
subindo pelos túneis com muita velocidade e não se preocupavam em ser sorrateiros. O Sr. Crepsley recuou um pouco para ver se eles estavam nos seguindo, mas parecia que não haviam encontrado o nosso rastro — aparentemente, todos foram atrás de Vancha. Continuamos a subir, aproximando-nos cada vez mais da superfície. Nossos perseguidores ficavam entrando e saindo do raio de alcance da nossa voz. Pelos sons que faziam, eles perceberam que não estávamos seguindo pela trilha mais curta, pararam e se espalharam para nos procurar. Eu imaginava que estávamos a, pelo menos, meia hora da superfície. Se eles nos localizassem, certamente estaríamos condenados. Os túneis eram tão apertados quanto escuros — um único vampitiete, bem posicionado, não teria dificuldade de nos matar a todos com um rifle ou uma balista. Estávamos seguindo cuidadosamente por sobre uma pilha de entulhos, num túnel que estava caindo aos pedaços, quando fomos finalmente avistados. Um vampitiete com uma tocha na mão entrou no túnel, nos alcançou com um feixe de luz intenso e berrou, triunfante: — Eu os encontrei! Estão aqui! Eles... O sujeito não conseguiu prosseguir. Uma figura saiu das sombras por trás dele, agarrou sua cabeça e a virou fortemente, primeiro para a esquerda e depois para a direita. O vampitiete caiu no chão. Aquele que o atacou fez uma pausa curta o suficiente para apagar a tocha e depois saiu correndo. Não precisei olhar para saber que era Vancha. — Bem na hora — murmurou Harkat enquanto o príncipe desgrenhado se juntava a nós novamente. — Fiquei acompanhando-os por um tempo — disse Vancha. — Ele não é o primeiro que eu pego. Simplesmente se aproximou de vocês um pouco mais do que os outros. — Você tem alguma idéia de quanto falta para chegarmos à superfície? — perguntei. — Não — respondeu Vancha. — Cheguei a estar na frente de vocês mais cedo, mas fiquei dando cobertura durante os últimos quinze minutos e deixando algumas pistas falsas. — E quanto aos vampixiitas? — indagou o Sr. Crepsley. — Estão próximos? — Sim — respondeu Vancha, que logo desapareceu para continuar a nos dar cobertura. Um pouco mais à frente, nos vimos em túneis familiares. Havíamos explorado grande parte da infra-estrutura da cidade enquanto caçávamos os vampixiitas, e já havíamos passado por aqui umas três ou quatro vezes. Estávamos a menos de seis ou sete minutos de um local seguro. O Sr. Crepsley assobiou em alto e bom som, chamando Vancha. O príncipe rapidamente se juntou a nós e apressamos o passo vigorosamente, diante da nova perspectiva.
— Lá vão eles! O grito veio de um túnel à nossa esquerda. Não paramos para checar quantos estavam por perto — abaixamos a cabeça, empurramos Lucas e o vampitiete e corremos. Os vampixiitas não demoraram a se lançar sobre nós. Vancha foi para trás e ficou distraindo-os com seus shurikens — estrelas cheias de pontas afiadas, que eram letais quando arremessadas por alguém tão experiente quanto Vancha March. Pelas vozes histéricas, vi que a maior parte dos vampixiitas e vampitietes — se não todos eles — estava agora convergindo sobre nós, mas o túnel pelo qual seguíamos era reto e não havia nenhuma bifurcação se abrindo para os lados. Nossos inimigos não tinham como pegar atalhos e nos atacar pelos lados ou pela frente — eles eram obrigados a nos perseguir. À medida que nos aproximávamos do nível da rua, os túneis iam ficando mais iluminados e meus olhos de meio-vampiro rapidamente se ajustavam à luz turva. Agora eu conseguia ver os vampixiitas e os vampitietes se arrastando no nosso encalço — e eles podiam nos ver! Os vampixiitas, assim como os vampiros, haviam jurado não usar nenhuma arma que disparasse projéteis, como revólveres ou arcos, mas os vampitietes não tinham esse tipo de limitação. Eles começaram a atirar em nossa direção assim que ficamos sob sua mira, por isso fomos forçados a correr curvados. Se tivéssemos que percorrer uma distância mais longa agachados daquela maneira desconfortável, eles já teriam com certeza nos abatido um de cada vez. Mas um minuto depois que eles começaram a abrir fogo, chegamos numa escada de aço que dava num bueiro. — Subam! — clamou Vancha, enquanto arremessava uma carreira de shurikens na direção dos vampitietes. O Sr. Crepsley me pegou e me empurrou escada acima. Não protestei por ser o primeiro. Fazia todo o sentido — se os vampixiitas viessem com tudo, o Sr. Crepsley estaria melhor preparado para rechaçá-los. No topo da escada eu me segurei e depois tentei levantar a tampa do bueiro com os ombros. Ela voou para fora, iluminando o caminho. Subi e rapidamente dei uma olhada em volta. Eu estava no meio de uma ruela; era bem cedo e não havia ninguém por perto. Inclinando-me por sobre o bueiro, gritei: — Está limpo! Segundos depois, Lucas Leopardo se arrastou para fora do bueiro, fazendo caretas à luz do sol (quase cego depois de ficar tanto tempo dentro dos túneis). Em seguida veio Harkat, seguido pelo vampitiete. Houve um breve intervalo depois disso. Os revides furiosos das armas ecoavam túnel abaixo. Temendo pelo pior, fiz menção de descer a escada novamente para ver como estavam o Sr. Crepsley e Vancha, quando o vampiro de cabelo laranja surgiu do bueiro, ofegando freneticamente. Quase que na mesma hora, Vancha veio atrás. Os dois devem ter pulado, um logo após o outro.
Assim que Vancha saiu inteiramente, saí cambaleando pela rua, peguei a tampa, a arrastei e a coloquei de volta no lugar. Eu e os outros três a rodeamos; Vancha pegava diversos shurikens, o Sr. Crepsley suas facas, Harkat seu machado e eu a minha espada. Esperamos dez segundos. Vinte. Meio minuto. Um minuto se passou. O Sr. Crepsley e Vancha suavam em profusão sob a luz pálida do sol da manhã. Ninguém apareceu. Vancha ergueu uma sobrancelha e olhou para o Sr. Crepsley. — Você acha que eles desistiram? — Por enquanto. — O Sr. Crepsley acenou com a cabeça, recuou cautelosamente, e voltou sua atenção para Lucas e o vampitiete, certificando-se de que os dois não haviam fugido. — Devíamos sair... desta cidade — disse Harkat, enquanto limpava uma camada de sangue seco que envolvia seu rosto cinzento e suturado. Assim como o Sr. Crepsley e Vancha, ele havia se cortado em muitas partes do corpo depois do seu confronto com os vampixiitas, mas as cicatrizes não eram profundas. — Seria suicídio ficarmos aqui. — Saiam correndo — murmurou Lucas, antes que eu o amordaçasse novamente, calando sua boca. — Não vou deixar Débora para trás — afirmei. — C.C. é um assassino demente. Não vou abandoná-la à sua mercê. — O que você fez àquele maníaco para deixá-lo tão furioso? — perguntou Vancha, enquanto espiava por um dos buraquinhos que havia na tampa do bueiro, ainda não totalmente convencido de que estávamos a salvo. As peles de animal que ele usava eram farrapos pendurados pelo seu corpo, e seu cabelo tingido de verde estava manchado de sangue. — Nada — suspirei. — Houve um acidente no Circo dos Horrores. Ele... — Não temos tempo para lembranças — interrompeu-me o Sr. Crepsley, rasgando a manga esquerda de sua camisa vermelha, que havia sido rasgada em tantos lugares quanto as peles de Vancha. Ele se voltou para o sol com os olhos meio fechados. — No estado em que estamos, não podemos ficar tanto tempo debaixo do sol. Seja qual for a nossa opção, temos que fazê-la logo. — Darren tem razão — disse Vancha. — Não podemos partir. Não por causa de Débora — por mais que eu goste dela, não me sacrificaria para salvar sua vida — e sim pelo Senhor dos Vampixiitas. Sabemos que ele está lá embaixo. Temos que pegá-lo. — Mas ele está muito bem protegido — protestou Harkat. — Estes túneis estão cheios de vampixiitas... e vampitietes. Morreríamos com certeza se descêssemos... novamente. Digo que devemos fugir e voltar... mais tarde, com reforços. — Você se esqueceu do conselho do Sr. Tino — retrucou Vancha. — Não
podemos pedir ajuda a outros vampiros. Não me importa se nossas chances são pequenas... Temos que tentar derrubar suas defesas e matar seu Senhor. — Concordo — disse o Sr. Crepsley. — Mas agora não é o momento. Estamos feridos e exaustos. Temos que descansar e desenvolver um plano de ação. A questão é: aonde vamos nos esconder... nos apartamentos que estamos usando ou em outro lugar? — Em outro lugar — respondeu Harkat na mesma hora. — Os vampixiitas sabem onde... moramos. Caso fiquemos aqui, seríamos loucos se voltássemos para onde... eles podem nos atacar na hora em que desejarem. — Não sei — murmurei. — O jeito como nos deixaram fugir foi estranho. Sei que Gannen disse que era para poupar as vidas dos seus companheiros, mas, se tivessem nos matado, teriam garantido a vitória na Guerra das Cicatrizes. Eu acho que tem mais coisa aí do que ele estava deixando transparecer. Por terem nos poupado quando estávamos encurralados em seu território, duvido que eles venham aqui em cima para lutar no nosso. Meus companheiros ficaram em silêncio, refletindo sobre a questão. — Acho que devíamos retornar à nossa base e tentar dar algum sentido a tudo isso — afirmei. — Mesmo se não conseguirmos, poderemos ao menos descansar um pouco e cuidar dos nossos ferimentos. E então, ao cair da noite, atacaremos. — Essa me parece uma boa idéia — concordou Vancha. — Um plano tão bom quanto qualquer um — suspirou o Sr. Crepsley. — Harkat? — perguntei ao Pequenino. Seus olhos verdes e redondos estavam cheios de dúvidas, mas ele fez uma careta e acenou positivamente com a cabeça. — Acho que somos tolos por ficar, mas se... formos, creio que pelo menos temos armas e provisões lá. — Além do mais — acrescentou Vancha, com a cara fechada —, a maior parte dos apartamentos está vazia. É um lugar tranqüilo. — Ele passou um dedo ameaçador pelo pescoço do vampitiete capturado, um sujeito de cabeça raspada com o “V” escuro dos vampitietes tatuado acima de cada orelha. — Quero que algumas perguntas sejam respondidas, mas o interrogatório não será nada agradável. Será melhor que não haja ninguém por perto para ouvir. O vampitiete zombou de Vancha como se não tivesse se impressionado, mas pude ver medo em seus olhos marejados de sangue. Os vampixiitas tinham forças para suportar torturas horríveis, mas os vampitietes eram humanos. Os vampiros podiam fazer coisas terríveis com um humano. O Sr. Crepsley e Vancha enrolaram seus mantos e peles em volta das cabeças e ombros para proteger-se do pior do sol. Depois, empurrando Lucas e o vampitiete na frente, subimos num telhado, assumimos nossas posições e seguimos esgotados para a base.
CAPÍTULO DOIS
A “base” era o quinto andar de um bloco de apartamentos antigos e completamente abandonados. Foi onde Lucas havia montado seu acampamento. Mudamo-nos assim que nos juntamos a ele. Ocupamos três apartamentos no mesmo andar. Enquanto o Sr. Crepsley, Harkat e eu deixamos Lucas amarrado no
apartamento do meio, Vancha pegou o vampitiete pela orelha e o arrastou para o apartamento da direita. — Vamos torturá-lo? — perguntou o Sr. Crepsley, parado em frente à porta. — Sim — afirmou o vampiro abruptamente. Não gostei da idéia, mas as circunstâncias clamavam por respostas rápidas e verdadeiras. Vancha só estava fazendo o que tinha que ser feito. Às vezes, na guerra, não há espaço para compaixão ou humanidade. Assim que entrei em nosso apartamento, corri para a geladeira. Ela não funcionava — o apartamento não tinha eletricidade —, mas guardamos nossas bebidas e alimentos em seu interior. — Alguém está com fome ou sede? — perguntei. — Vou comer bife... com bastante sangue... batatas fritas e uma Coca-Cola para começar — disse Lucas de forma sarcástica. Ele se acomodou confortavelmente no sofá e ficou sorrindo para nós como se fôssemos uma família grande e feliz. Eu o ignorei. — Sr. Crepsley? Harkat? — Água, por favor — pediu o Sr. Crepsley, tirando seu manto vermelho em farrapos, para que pudesse examinar seus ferimentos. — E bandagens — acrescentou. — Você está ferido? — quis saber Harkat. — Na verdade, não. Mas os túneis pelos quais nos arrastamos não eram higiênicos. Devíamos todos limpar os nossos ferimentos para evitar infecções. Lavei minhas mãos e depois nos alimentamos um pouco. Eu não estava com fome, mas sentia que devia comer — meu corpo só estava funcionando por causa do excesso de adrenalina; ele precisava de comida. Harkat e o Sr. Crepsley também se empanzinaram e logo havíamos devorado tudo até a última migalha. Não oferecemos nada para Lucas. Enquanto cuidávamos dos nossos ferimentos, olhei com ódio para Lucas, que sorriu de volta, em tom de brincadeira. — Quanto tempo vocês levaram para armar tudo? — indaguei. — Fazer-nos vir para cá, falsificar todos aqueles documentos com o meu nome e me mandar para a escola, atraindo-nos para os túneis... quanto tempo? — Anos — respondeu Lucas orgulhosamente. — Não foi fácil. Você não sabe metade da história. Aquela caverna onde foi montada a armadilha... nós a levantamos do nada, junto com os túneis de saída e os que davam nela. Construímos outras cavernas também. E me orgulho especialmente de uma delas. Espero que eu tenha a chance de mostrá-la a vocês uma hora dessas. — Você correu todo esse risco só por nossa causa? — perguntou o Sr. Crepsley, espantado. — Sim — respondeu Lucas, convencido.
— Por quê? — questionei. — Não teria sido mais fácil nos enfrentar nos túneis mais antigos que já existiam? — Mais fácil, sim — concordou Lucas —, mas não tão divertido. Desenvolvi um gosto pelo aspecto dramático da coisa ao longo dos anos... um pouco parecido com o do Sr. Tino. Você devia gostar disso, tendo trabalhado por tanto tempo para um circo. — O que eu não entendo — cismou Harkat — é o que o... Senhor dos Vampixiitas estava fazendo lá embaixo, ou por que o outro vampixiita... o ajudou nos seus planos insanos. — Não tão insanos quanto vocês poderiam pensar — retrucou Lucas. — O Senhor dos Vampixiitas sabia que vocês estavam a caminho. O Sr. Tino lhe falou sobre todos os caçadores que seguiriam os seus passos. Ele também disse que fugir ou se esconder não era uma opção... se o nosso Lorde não reagisse e encarasse aqueles que o caçavam, a Guerra das Cicatrizes estaria perdida. Lucas fez uma pausa antes de prosseguir: — Quando soube do meu interesse, e do de C.C, por vocês, ele nos consultou e juntos traçamos esse plano. Gannen Harst nos advertiu de que tudo poderia dar errado... ele é experiente e teria preferido um confronto direto... mas o Senhor dos Vampixiitas compartilha do meu gosto pelo teatral. — Esse Senhor de vocês — perguntou o Sr. Crepsley. — Ele se parece com o quê? Lucas riu e balançou um dedo na direção do vampiro. — Agora não, Larten. Você não espera honestamente que eu o descreva, espera? Ele tem tido muito cuidado para não mostrar o rosto, mesmo para aqueles que o seguem. — Poderíamos torturar você até abrir a boca — resmunguei. — Duvido — disse Lucas com um sorriso malicioso. — Sou meiovampixiita. Posso agüentar qualquer castigo que vocês me infligirem. Deixaria que me matassem antes de trair o clã. — Ele tirou a jaqueta pesada que usava desde que nos encontramos. Seu corpo começou a exalar odores químicos fortes. — Ele não está mais tremendo — observou Harkat abruptamente. Lucas havia lhes dito que se resfriava com facilidade, e por isso tinha que usar um monte de roupas e se lambuzar de loções para se proteger. — É claro que não — retrucou Lucas. — Isso tudo foi para enganá-los. — Você tem a astúcia de um demônio — resmungou o Sr. Crepsley. — Enquanto alegava que estava sujeito a resfriados, você usava luvas para esconder as cicatrizes nas pontas dos dedos e se lambuzava de loções que o deixavam com cheiro de doente para mascarar seu fedor vampixiita. — O cheiro foi a parte difícil — riu Lucas. — Sabia que seus narizes sensíveis iriam farejar o meu sangue, por isso tive que distraí-los. — Ele amarrou a cara. — Mas não foi fácil. Meu olfato também é altamente desenvolvido, por
isso os vapores acabaram com as minhas narinas. As dores de cabeça são terríveis. — Meu coração está sangrando por você — rosnei com sarcasmo enquanto Lucas ria, deleitando-se. Ele estava se divertindo um bocado, muito embora fosse nosso prisioneiro. Seus olhos estavam iluminados de uma alegria demoníaca. — Você não vai ficar rindo assim caso C.C. se recuse a trocá-lo por Débora — avisei. — É bem verdade — admitiu. — Mas vou viver apenas para ver você e o repulsivo Crepsley sofrendo. Poderia morrer feliz sabendo do tormento que sentirão caso C.C. retalhe sua querida namoradinha. Balancei a cabeça, horrorizado. — Como você ficou tão perverso? — perguntei. — Éramos amigos, quase irmãos. Você não era tão demoníaco antes. O que aconteceu? O rosto de Lucas ganhou uma expressão melancólica. — Fui traído — afirmou calmamente. — Isso não é verdade — respondi. — Eu salvei a sua vida. Desisti de tudo para que você pudesse viver. Não queria me tornar um meio-vampiro. Eu... — Cala a boca! — vociferou Lucas. — Pode me torturar se quiser, mas não me insulte com suas mentiras. Sei que você e o repulsivo Crepsley armaram contra mim. Eu poderia ter sido um vampiro poderoso e majestoso, e viver longamente. Mas você deixou que eu continuasse sendo humano, para que prevaricasse ao longo de uma vida curta e desprezível, fraco e medroso como todo mundo. Bem, quer saber de uma coisa? Eu os superei em esperteza! Fui no encalço daqueles que estavam do lado oposto e acabei ganhando meus poderes e privilégios de direito de qualquer maneira! — Por mais que isso tivesse lhe feito bem — disse o Sr. Crepsley, bufando. — O que você quer dizer? — vociferou Lucas. — Você desperdiçou a sua vida com ódio e vingança — prosseguiu meu mentor. — De que vale a vida se não há alegria ou um intento produtivo? Teria sido melhor viver cinco anos como humano do que quinhentos como um monstro. — Não sou um monstro! — rosnou Lucas. — Sou... — Ele parou e resmungou algo para si próprio. — Chega de besteira — declarou em voz alta. — Vocês estão me cansando. Se não têm nada mais inteligente para dizer, fiquem com as bocas fechadas. — Seu patife, descarado! — bradou o Sr. Crepsley, virando as costas da mão na cara de Lucas, fazendo jorrar sangue. Lucas riu do vampiro com sarcasmo, limpou o sangue com os dedos e depois os levou aos lábios. — Em breve, numa noite dessas, será o seu sangue que eu vou jantar — sussurrou ele, para depois se silenciar. Exasperado e cansado, o Sr. Crepsley, Harkat e eu também nos calamos.
Terminamos de limpar nossos ferimentos e depois fomos nos deitar para relaxar. Se estivéssemos sozinhos, teríamos apagado — mas nenhum de nós ousou fechar os olhos sabendo que havia uma fera destrutiva como Lucas Leopardo na sala ao lado.
Mais de uma hora depois que Vancha levara seu vampitiete para um canto, ele voltou. Seu rosto estava abatido e, embora tivesse lavado as mãos antes de entrar, não teve como remover todos os vestígios de sangue. Parte dele era seu mesmo, de ferimentos que ganhou nos túneis, mas a maior parte veio do vampitiete. Vancha encontrou uma garrafa de cerveja quente no refrigerador pifado, arrancou a tampa e a entornou vorazmente. Normalmente ele nunca bebia nada além de água fresca, leite e sangue — mas o momento atual não tinha nada de normal. Ele esfregou a boca com as costas da mão quando terminou e depois olhou para as manchas vermelhas e desbotadas em sua carne. — Ele foi um homem valente — disse Vancha calmamente. — Resistiu por mais tempo do que eu achava que seria possível. Tive que fazer coisas terríveis para obrigá-lo a falar. Eu... — Ele estremeceu e abriu outra garrafa. Havia lágrimas amargas em seus olhos enquanto bebia. — Ele está morto? — indaguei com a voz trêmula. Vancha suspirou e olhou para o nada. — Estamos em guerra. Não podemos nos dar ao luxo de poupar as vidas dos nossos inimigos. Além do mais, na hora em que terminei, deixá-lo vivo parecia uma crueldade. Matá-lo, no fim das contas, foi um gesto de misericórdia. — Louvai aos deuses dos vampiros pelas pequenas misericórdias — riu Lucas, para depois se esquivar quando Vancha se virou, pegou um shuriken e o arremessou em sua direção. A estrela de pontas afiadas ficou enterrada no sofá, menos de um centímetro abaixo da orelha esquerda de Lucas. — Na próxima não errarei — jurou Vancha, fazendo enfim com que o sorriso sumisse do rosto de Lucas, assim que este percebeu o quanto o príncipe falava sério. O Sr. Crepsley se levantou, pôs uma mão no ombro de Vancha para tranqüilizá-lo e o levou até uma cadeira. — O interrogatório valeu a pena? O vampitiete tinha alguma novidade para revelar? — perguntou. Vancha não respondeu imediatamente. Ele ainda estava encarando Lucas. Até que percebeu que haviam lhe feito uma pergunta e esfregou seus olhos largos com uma de suas peles de animal. — Ele tinha muita coisa para dizer — resmungou Vancha, para depois se calar e olhar para a garrafa de cerveja em suas mãos, como se não soubesse como ela foi parar lá. — O vampitiete! — disse ele finalmente, em voz alta,
depois de ficar um minuto calado, balançando a cabeça freneticamente, enquanto os olhos entravam em foco. — Sim. Descobri, para começo de conversa, por que Gannen não nos matou e por que os outros lutaram com tanta cautela. — Inclinando-se para frente, ele fez a garrafa vazia de cerveja girar até onde Lucas estava, que por sua vez a jogou para o lado, para depois encarar o príncipe novamente, com um olhar arrogante. — Só o Senhor dos Vampixiitas pode nos matar — concluiu Vancha, calmamente. — O que você quer dizer com isso? — franzi a testa. — Ele está preso às regras do Sr. Tino, assim como nós — explicou Vancha. — Assim como nós não podemos chamar ninguém para nos ajudar a caçá-lo e enfrentá-lo, ele não pode pedir para que seus subordinados nos matem. O Sr. Tino disse que ele tinha que nos matar com as próprias mãos para garantir a vitória. Ele pode recorrer a todos os vampixiitas que quiser para nos enfrentar, mas se um deles nos atingir profundamente e infligir um ferimento fatal, estarão destinados a perder a guerra. Eram notícias excelentes e as discutimos avidamente. Até agora, achávamos que não tínhamos nenhuma chance contra os subordinados do Senhor dos Vampixiitas — simplesmente havia muitos para que pudéssemos abrir caminho entre eles. Mas se não tinham permissão para nos matar... — Não podemos nos deixar levar por isso — alertou Harkat. — Mesmo não podendo nos matar, eles podem... nos atrasar e nos subjugar. Caso venham a nos capturar e nos entregar para... o seu Senhor, bastará que ele... atravesse nossos corações com uma estaca. — Por que eles não mataram você? — perguntei a Harkat. — Você não é um dos três caçadores. — Talvez eles não saibam disso — respondeu o Pequenino. Lucas murmurou algo em voz baixa. — O que foi? — gritou Vancha, cutucando-o fortemente com o pé esquerdo. — Eu disse que não sabíamos antes, mas agora sabemos! — disse Lucas, zombando de nós. — Pelo menos — acrescentou ele, irritado — eu sei. — Você não sabia quem eram os caçadores? — indagou o Sr. Crepsley. Lucas balançou a cabeça. — Sabíamos que vocês eram três e o Sr. Tino nos disse que um deles era uma criança, por isso descartamos Darren de cara. Mas quando apareceram cinco — vocês três, Harkat e Débora — não sabíamos exatamente quem eram os outros. Imaginamos que os caçadores fossem vampiros, mas não queríamos correr riscos desnecessários. — É por isso que fingiu ser nosso aliado? Você queria se aproximar de nós para descobrir quem eram os caçadores? — perguntei. — Essa era uma parte do plano — Lucas balançou a cabeça afirmativamente embora eu quisesse, acima de tudo, me divertir com vocês. Foi
um prazer ficar perto a ponto de poder matá-los na hora em que quisesse, protelando o golpe fatal até o momento certo. — Ele é um idiota — disse Vancha bufando. — Qualquer um que não mata o seu adversário na primeira oportunidade está atrás de encrenca. — Lucas Leopardo é muitas coisas — afirmou o Sr. Crepsley —, mas não é bobo. — Ele passou o dedo pela longa cicatriz no lado esquerdo do seu rosto, enquanto refletia profundamente. — Foi você que bolou todo esse plano, não? — perguntou a Lucas. — Claro que sim — respondeu Lucas com um sorriso afetado. — Você contabilizou cada reviravolta possível? — Tantas quantas eu pude imaginar. O Sr. Crepsley parou de afagar sua cicatriz e apertou os olhos. — Então deveria ter pensado no que aconteceria se escapássemos. O sorriso de Lucas se abriu ainda mais, mas ele não disse nada. — Qual era o plano “B”? — questionou o Sr. Crepsley, com a voz cansada. — Plano “B”? — repetiu Lucas inocentemente. — Não brinque comigo! — sibilou o Sr. Crepsley. — Você deve ter traçado planos alternativos com C.C. e Gannen Harst. Assim que nos revelou a sua posição, não poderia se permitir ficar sentado esperando. O tempo é precioso, agora que sabemos onde o seu Senhor está escondido e que aqueles que estão ao seu lado não podem tirar as nossas vidas. O Sr. Crepsley parou de falar e ficou batendo com os pés no chão. Vancha estava logo atrás dele. Seus olhares se entrecruzaram e, como se os dois vampiros fossem um só, exclamaram: — Uma armadilha! — Eu sabia! Ele subiu pelos túneis com muita rapidez — rosnou Vancha, enquanto corria para a porta do apartamento para abri-la e checar o corredor do lado de fora. — Deserto. — Vou tentar a janela — afirmou o Sr. Crepsley, enquanto seguia na direção dela. — Não faz sentido — devolveu Vancha. — Os vampixiitas não atacariam ao ar livre durante o dia. — Não — concordou o Sr. Crepsley —, mas os vampitietes sim. — Ele foi até a janela e abriu a cortina pesada que bloqueava os raios nocivos do sol. E prendeu a respiração. — Pelas tripas de Charna! — exclamou, ofegante. Vancha, Harkat e eu corremos para ver o que o havia desconcertado (Vancha pegou Lucas pelo braço no caminho). O que vimos fez todos dizermos palavrões, exceto Lucas, que ria em delírio. A rua estava cheia de carros da polícia, caminhonetes do exército, policiais e soldados. Estavam alinhados em frente ao prédio e espalhados pelas laterais. Muitos carregavam rifles. No prédio em frente, avistamos homens nas janelas,
também armados. Enquanto observávamos, um helicóptero descia do ar e flutuava uns dois andares acima de onde estávamos. Havia um soldado no helicóptero com um rifle tão grande que poderia ser usado para matar elefantes. Mas o atirador não estava interessado em elefantes. Mirava no mesmo alvo dos que estavam no prédio e na rua — nós!
CAPÍTULO TRÊS
Como havia um forte holofote apontado para a janela, visando nos ofuscar, todos nos viramos para o lado e fechamos a cortina novamente. Ao mesmo tempo em que recuava, Vancha entoou o seu palavrão mais alto e menos sutil, enquanto olhávamos inquietos um para o outro, esperando que alguém sugerisse um plano.
— Como foi que eles se esgueiraram sem que... nós pudéssemos ouvir? — perguntou Harkat. — Não estávamos prestando atenção no que estava acontecendo lá fora — respondi. — Mesmo assim — insistiu Harkat — deveríamos ter... ouvido as sirenes. — Eles não usaram sirenes — disse Lucas rindo. — Foram alertados para que viessem calmamente. E, antes que vocês percam tempo checando, eles já tomaram os fundos do prédio e o telhado, assim como a frente. — Enquanto o encarávamos cheios de perguntas, ele prosseguiu. — Mas eu não estava distraído. E os ouvi chegando. Vancha berrou furiosamente com Lucas e depois se jogou sobre ele. O Sr. Crepsley ficou em seu caminho para tentar argumentar, mas Vancha, sem pensar, empurrou o amigo para o lado e caiu em cima do meio-vampixiita, com um olhar mortífero. Uma voz vinda do lado de fora, amplificada por um megafone, o conteve. — Vocês aí dentro! — dizia aos berros. — Assassinos! Vancha hesitou, com os punhos cerrados, mas acabou apontando para Lucas e anunciou, rosnando: — Mais tarde! — Virando-se, ele correu para a janela e empurrou a cortina um pouco para o lado. As luzes do sol e do holofote invadiram a sala. Enquanto deixava a cortina voltar para o lugar, Vancha bradou. — Apaguem a luz! — Sem chance! — respondeu a pessoa que segurava o megafone, rindo. Vancha ficou ali por um instante, pensando, e depois acenou para o Sr. Crepsley e Harkat. — Chequem os corredores em cima e embaixo. Descubram se eles estão dentro do prédio. Não os enfrentem... se aquele bando começar a atirar, seremos sumariamente executados. O Sr. Crepsley e Harkat o obedeceram cegamente. — Traga aquele protótipo de cachorro até aqui — pediu-me Vancha, e então arrastei Lucas até a janela. Vancha apertou o pescoço do meio-vampixiita e rugiu em seu ouvido: — Por que eles estão aqui? — Eles acham que vocês são os assassinos — riu Lucas. — Os tais que mataram todos aqueles humanos. — Seu filho de uma besta! — vociferou Vancha. — Por favor — respondeu Lucas presunçosamente. — Não seja grosseiro. O Sr. Crepsley e Harkat retornaram. — Eles estão ocupando totalmente dois andares... acima — reportou Harkat. — A mesma coisa embaixo — disse o Sr. Crepsley, inflexível. Vancha disse outro palavrão e pensou rapidamente. — Vamos ter que atravessar os pisos — concluiu. — Os humanos estarão
nos corredores. Não esperam que desçamos pelos apartamentos. — Esperam sim — discordou Lucas. — Eles foram alertados para ocupar cada cômodo abaixo, acima e adjacente. Vancha encarou Lucas em busca do menor sinal de blefe. Como não encontrou nenhum, suas feições ficaram mais tranqüilas e os indícios fantasmagóricos da derrota brotaram em seus olhos. Foi então que ele balançou a cabeça e deixou a auto-comiseração para trás. — Temos que falar com eles — afirmou. — Descobrir qual é a nossa situação e talvez ganhar algum tempo para que possamos refletir. Alguém quer se oferecer? — Como ninguém respondeu, ele resmungou. — Creio que isso quer dizer que serei o negociador. Só não ponham a culpa em mim se tudo der errado. — Deixando a cortina cobrindo a janela, ele bateu numa das vidraças, inclinouse para frente e gritou para os humanos que estavam lá embaixo. — Quem está aí e que diabos querem? Fez-se uma pausa, até que a mesma voz de antes falou conosco usando um megafone. — Com quem estou falando? — perguntou a pessoa. Depois que consegui me concentrar na voz, percebi que era de uma mulher. — Não interessa! — devolveu Vancha berrando. Outra pausa. E então: — Sabemos os seus nomes. Larten Crepsley, Vancha March, Darren Shan e Harkat Mulds. Só quero saber com qual de vocês estou falando. Vancha ficou de boca aberta. Lucas se curvou de tanto rir. — Diga a eles quem você é — sussurrou Harkat. — Eles sabem muito. Melhor agir como se estivéssemos... cooperando. Vancha acenou positivamente e depois gritou pelo buraco coberto na janela. — Vancha March. Enquanto ele fazia isso, fiquei olhando por uma fresta na lateral da cortina, em busca de pontos fracos na defesa lá embaixo. Não encontrei nenhum, mas consegui ver a mulher que falava conosco — era alta e corpulenta, com cabelo curto e branco. — Ouça, March — gritou a mulher enquanto eu me afastava da janela. — Sou a inspetora-chefe Alice Burgess. Estou comandando este show de horrores. — Uma escolha irônica de palavras, embora nenhum de nós tivesse feito qualquer comentário. — Se vocês quiserem fazer um acordo, terão que negociar comigo. Um aviso: não estou aqui para brincadeiras. — Tenho mais de duzentos homens e mulheres aqui fora e dentro do prédio, loucos de vontade para acertar seus pretensos corações com rajadas de balas. Se eu perceber que vocês estão nos enganando, eu mando abrir fogo. Entendido? Vancha mostrou os dentes e falou rispidamente:
— Entendi. — Depois repetiu, mais alto, para que ela pudesse ouvir. — Entendi! — Muito bem — respondeu a inspetora-chefe Burgess. — Em primeiro lugar... seus reféns estão vivos e ilesos? — Reféns? — respondeu Vancha. — Lucas Leonardo e Mark Ryter. Sabemos que estão com vocês, por isso não dêem uma de inocentes. — Mark Ryter devia ser o vampitiete — assinalei. — Você é tãããããão observador — riu Lucas, antes de empurrar Vancha para o lado e colocar sua cabeça perto da janela. — Aqui é Lucas Leonardo! — gritou, fingindo estar em pânico. — Eles ainda não me mataram, mas assassinaram Mark. E o torturaram antes. Foi horrível. Eles... Ele parou, como se o tivéssemos interrompido no meio da frase e deu um passo para trás, fazendo uma reverência, satisfeito com seu desempenho. — Filhos da... — A oficial disse um palavrão pelo megafone, depois recobrou o juízo e nos abordou calma e friamente. — O.K. Vou dizer o que devem fazer. Libertem o refém que restou. Quando ele estiver seguro, sob nossa custódia, entreguem-se, um de cada vez. Se percebermos que estão armados, ou que farão uma manobra inesperada, vocês já eram. — Vamos conversar — gritou Vancha. — Não quero papo — vociferou Burgess. — Não vamos soltá-lo — resmungou Vancha. — Você não sabe quem ele é, o que ele fez. Deixe-me... Ouviu-se o disparo de um rifle e uma rajada de balas irrompeu do lado de fora do prédio. Caímos no chão, dizendo palavrões e gritando, embora não houvesse motivo para preocupação — os atiradores estavam mirando deliberadamente para cima. Quando o som estridente das balas cessou, a inspetora-chefe mais uma vez nos dirigiu a palavra. — Isso foi um aviso... o último. Da próxima vez, atiraremos para matar. Nada de barganhas. Nada de negociações. Nada de conversa. Vocês vêm aterrorizando esta cidade há mais de um ano e isso termina aqui. Chega! Ela fez uma pausa e depois acrescentou: — Mais dois minutos. Depois disso, iremos atrás de vocês. Um silêncio perturbador sobreveio. — Isso é tudo — murmurou Harkat depois de um punhado de segundos que passavam lentamente. — Estamos fritos. — Talvez — suspirou Vancha. Seu olhar se voltou para Lucas, que deu um sorriso. — Mas não morreremos sozinhos. Vancha juntou os dedos da sua mão direita, dando forma a uma lâmina de carne e osso. O vampiro levantou a mão sobre a cabeça como se fosse uma faca
e avançou. Lucas fechou os olhos e esperou pela morte com um sorriso no rosto. — Espere — disse o Sr. Crepsley delicadamente, detendo-o. — Há uma saída. Vancha parou. — Como? — perguntou, desconfiado. — A janela — prosseguiu o Sr. Crepsley. — Vamos pular. Eles não estão esperando por isso. Vancha pensou no plano. — A queda não é problema — pensou. — Não para nós. É para você, Harkat? — Cinco andares? — Harkat sorriu. — Eu poderia fazer isso... dormindo. — Mas o que faremos assim que chegarmos lá embaixo? — indagou Vancha. — O local está cheio de policiais e soldados. — Nós voaremos — disse o Sr. Crepsley. — Eu carrego Darren. Você carrega Harkat. Não será fácil... eles podem atirar em nós antes de ganharmos velocidade no vôo... mas, com sorte, teremos sucesso. — Isso é uma loucura — resmungou Vancha, piscando em nossa direção — Mas eu gostei! — Ele apontou para Lucas. — Mas, vamos matá-lo antes de partirmos. — Um minuto! — gritou Alice Burgess pelo megafone. Lucas não havia se movido. Seus olhos ainda estavam fechados e continuava sorrindo. Não queria que Vancha matasse Lucas. Embora tivesse nos traído, ele fora meu amigo. A idéia de ser assassinado a sangue-frio me incomodava. Além disso, eu tinha que pensar em Débora — caso matássemos Lucas, C.C. certamente iria assassiná-la para se vingar. Preocupar-me com ela era uma loucura, considerando o perigo que estávamos correndo, mas não pude evitar. Estava prestes a pedir a Vancha para que poupasse a vida de Lucas — embora não achasse que ele fosse me ouvir — quando o Sr. Crepsley se antecipou a mim. — Não podemos matá-lo — afirmou, parecendo aborrecido. — Como? — Vancha piscou. — Não será o fim do mundo se formos capturados — disse o Sr. Crepsley. — Trinta segundos! — gritou Burgess, tensa. O Sr. Crepsley ignorou a interrupção. — Se formos capturados vivos, teremos chances de escapar mais tarde. Mas se matarmos Lucas Leopardo, não creio que seremos poupados. Esses humanos estão prontos para nos abater na primeira oportunidade. Vancha balançou a cabeça, inquieto. — Não gosto disso. Preferia matá-lo e me arriscar.
— Eu também — concordou o Sr. Crepsley. — Mas temos que pensar no Senhor dos Vampixiitas. Temos que colocar a caçada acima dos nossos anseios particulares. Poupar Lucas Leonardo é... — Dez segundos! — berrou Burgess. Vancha olhou fixamente para Lucas durante mais alguns segundos, indeciso, depois disse um palavrão, virou a mão e deu um tabefe em sua nuca com as costas da mão. Lucas caiu no chão. Achei que Vancha o havia matado, mas apenas o nocauteara. — Isso deve deixá-lo calado por algum tempo — resmungou Vancha, enquanto checava seus cinturões de shurikens e enrolava suas peles bem apertadas em volta do corpo. — Se tivermos uma outra chance, nós o encontraremos e acabaremos com ele. — Terminou o tempo! — avisou-nos Alice Burgess. — Saiam imediatamente ou abriremos fogo! — Prontos? — perguntou Vancha. — Pronto — disse o Sr. Crepsley, sacando suas facas. — Pronto — afirmou Harkat, verificando a cabeça de seu machado com um dedo largo e cinzento. — Pronto — anunciei, desembainhando a minha espada e segurando-a no meio do peito. — Harkat pula comigo — disse Vancha. — Larten e Darren... vocês vêm depois. Dê-nos um segundo ou dois para que possamos deixar o caminho livre. — Boa sorte, Vancha — disse o Sr. Crepsley. — Boa sorte — respondeu Vancha, para depois sorrir barbaramente, bater de leve nas costas de Harkat e pular pela janela, estilhaçando o vidro e rasgando a cortina, tendo Harkat não muito atrás. O Sr. Crepsley e eu esperamos os segundos que combinamos, pulamos através do que sobrou da janela seguindo os nossos amigos, e caímos de imediato no solo como se fôssemos dois morcegos sem asas, dentro do caldeirão infernal que nos aguardava.
CAPÍTULO QUATRO
Enquanto o chão se aproximava rapidamente, juntei as pernas, curvei o tronco, abri as mãos e aterrissei me agachando. Meus ossos super-resistentes absorveram o impacto sem se quebrarem, embora a força do contato tivesse me feito rolar para frente, quase fazendo com que a minha própria espada me
empalasse (o que seria uma maneira vergonhosa de morrer). Ouvi um grito agudo de dor à minha esquerda, e enquanto dava um salto para me levantar, vi o Sr. Crepsley deitado no chão, mexendo em seu tornozelo direito, incapaz de ficar em pé. Ignorando meu amigo ferido, ergui minha espada numa manobra defensiva e procurei por Vancha e Harkat. Nosso pulo pela janela havia surpreendido a polícia e os soldados. Os oficiais caíam uns sobre os outros tornando impossível que alguém fizesse uma boa mira. Harkat havia agarrado um jovem soldado no meio da confusão, segurava-o próximo ao peito, e girava rapidamente para que ninguém tivesse tempo de atirar em suas costas. Enquanto isso, Vancha havia se voltado para a líder do bando. Enquanto eu observava, ele atacou diversos oficiais e soldados, pulou sobre um carro e levou a inspetora-chefe Alice Burgess ao solo, numa manobra com perfeita precisão. Enquanto todos os olhos humanos se fixavam em Vancha e na inspetorachefe, corri até onde o Sr. Crepsley estava e o ajudei a se levantar. Seus dentes se apertavam de dor e pude dizer na mesma hora que seu tornozelo não iria suportar seu peso. — Está quebrado? — perguntei, gritando, enquanto o arrastava para trás de um carro em busca de proteção antes que alguém caísse em si e atirasse em nós. — Creio que não — respondeu ele, ofegante —, mas a dor é intensa. — Ele caiu atrás do automóvel e esfregou a carne em torno do seu tornozelo, tentando massageá-lo para se livrar da dor. Do outro lado, Vancha estava em pé, com a garganta de Alice Burgess em uma das mãos e o megafone na outra. — Ouçam bem! — berrou ele para a polícia e os soldados pelo megafone. — Se algum de vocês atirar, a sua chefe morre! Logo acima, as pás do helicóptero zuniam como as asas de mil abelhas furiosas. Fora isso, o silêncio era total. Burgess quebrou-o. — Esqueçam de mim! — gritou ela. — Acabem com essas aberrações agora mesmo! Diversos atiradores ergueram suas armas, obedientes. Vancha apertou os dedos em torno da garganta da chefe de polícia. Os olhos dela incharam aflitivamente. Os atiradores hesitaram e depois baixaram as armas lentamente. Vancha afrouxou sua pegada, mas não a soltou completamente. Segurando a mulher de cabelos brancos à sua frente, ele se arrastou até onde Harkat estava. Os dois recuaram, recuaram e lentamente foram parar na trincheira onde eu e o Sr. Crepsley nos escondíamos. Juntos, parecíamos um caranguejo desajeitado enquanto nos movíamos, mas a manobra deu certo. Ninguém atirou. — Como está a situação? — perguntou Vancha, agachado ao nosso lado,
arrastando Burgess. Harkat fez a mesma coisa com seu soldado. — Má — disse o Sr. Crepsley, com sobriedade, enquanto cruzava o seu olhar com o de Vancha. — Você não pode voar? — perguntou Vancha delicadamente. — Não nesse estado. Os dois se encararam em silêncio. — Então teremos que deixá-lo para trás — disse Vancha. — Claro. — O Sr. Crepsley deu um sorriso sem graça. — Vou ficar com ele — falei na mesma hora. — Isso não é hora de heroísmos vãos — resmungou Vancha. — Você vem conosco... ponto final. Balancei a cabeça. — Que se danem os heroísmos vãos... estou sendo prático. Você não pode voar comigo e com Harkat nas suas costas. Demoraríamos muito tempo para ganhar velocidade. Os tiros nos atingiriam antes de chegarmos ao fim da rua. Vancha abriu a boca para discordar, mas percebeu que meus argumentos eram procedentes e se calou. — Vou ficar também — disse Harkat. Vancha suspirou. — Não temos tempo para esse tipo de asneira! — Não se trata de asneira — disse Harkat calmamente. — Eu estou viajando com Darren. Aonde ele for, eu vou. Onde ele ficar, eu fico. Além do mais, você terá mais chances de escapar... sem mim. — Como está tão certo disso? — perguntou Vancha. Harkat apontou para Alice Burgess, que ainda estava ofegante por causa da mão de Vancha que apertava sua garganta. — Sozinho você poderá carregá-la e usá-la como um... escudo até levantar vôo. Vancha suspirou, desanimado. — Vocês são inteligentes demais para mim. Não vou ficar aqui sentado tentando enrolá-los. — Ele levantou a cabeça por sobre o capô do automóvel para observar as tropas que os cercavam, apertando bastante os olhos por causa da luz do dia. — Fiquem para trás — avisou — ou estes dois vão morrer! — Vocês... nunca... fugirão — disse Burgess, num tom de voz baixo e áspero, com os olhos pálidos e azuis cheios de ódio, enquanto sua pele branca e fantasmagórica exibia um rubor profundo de alguém que estava profundamente irritada. — A primeira... mira certa que eles fizerem... vai acabar com vocês! — Então, temos que nos certificar de que eles não terão essa chance — riu Vancha, cobrindo a boca de Alice com a mão antes que ela pudesse responder. O sorriso da inspetora sumiu. — Não vou poder voltar para resgatar vocês. Se ficarem, estarão por sua própria conta.
— Já sabemos — concordou o Sr. Crepsley. Vancha levantou os olhos na direção do sol. — É melhor vocês se entregarem imediatamente e rezarem aos deuses para que sejam colocados numa cela sem janelas. — Sim. — Os dentes do Sr. Crepsley rangiam, em parte por causa da dor no seu tornozelo e em parte devido aos raios mortais do sol. Inclinando-se para frente, Vancha sussurrou de modo que Burgess e o soldado não pudessem ouvir. — Se eu escapar, voltarei para pegar o Senhor dos Vampixiitas. Ficarei esperando na caverna onde lutamos na noite passada. Vou lhes dar um prazo até meia-noite. Se não estiverem por lá até essa hora, irei atrás dele sozinho. O Sr. Crepsley acenou com a cabeça. — Faremos o máximo possível para escaparmos. Se eu não puder andar, Darren e Harkat escaparão sem mim. — Ele nos encarou com um ar inquisidor. — Sim? — Sim — respondeu Harkat. Encarei-o em silêncio durante mais algum tempo e depois baixei a cabeça. — Sim — murmurei relutante. Vancha resmungou, depois estendeu a mão livre. Todos colocamos uma das mãos sobre a dele. — Boa sorte — disse o Príncipe, antes de cada um de nós repetir o mesmo voto. Então, sem mais delongas, Vancha se levantou e se afastou, com Burgess presa à sua frente. Ele havia deixado o megafone cair no caminho. Parou para pegá-lo e se dirigiu às tropas novamente. — Estou fugindo — gritou calmamente. — Sei que sua função é me deter, mas se atirarem, a sua chefe morre também. Se forem espertos, esperarão que eu cometa um erro. Afinal de contas — disse, rindo — vocês têm carros e helicópteros. Eu estou a pé. Estou certo de que vocês poderão acompanhar o meu passo até chegar a hora certa de atacar. Jogando o megafone para o lado, Vancha levantou a inspetora-chefe do chão, segurou-a à sua frente como se fosse uma boneca e saiu correndo. Um oficial veterano correu até onde o megafone estava, pegou-o e deu ordens. — Controlem-se! — gritou. — Mantenham suas posições. Esperem até ele tropeçar ou largá-la. Ele não pode escapar. Apontem as armas em sua direção, esperem até que o tenham sob mira, e depois façam com que ele... O oficial parou abruptamente. Enquanto falava, ele vinha observando Vancha correr na direção de uma barricada que estava no final da rua, mas num piscar de olhos o vampiro havia desaparecido e, para os humanos, parecia que ele havia simplesmente sumido no ar.
Enquanto a polícia e os soldados se amontoavam na frente, incrédulos, com as armas prontas para atirar, olhando para o chão como se achassem que Vancha e sua chefe haviam afundado dentro dele, o Sr. Crepsley, Harkat e eu sorrimos um para o outro. — Pelo menos um de nós conseguiu escapar — disse o Sr. Crepsley. — Teríamos conseguido o mesmo se você não fosse tão desajeitado — resmunguei. O Sr. Crepsley levantou os olhos na direção do sol e seu sorriso desapareceu. — Se eles me deixarem numa cela com uma abertura para o sol entrar — disse ele calmamente — não vou esperar para arder até a morte. Escaparei ou morrerei tentando. Acenei positivamente, com a cara fechada. — Todos iremos. Harkat virou o seu soldado de frente para que pudesse nos encarar. O rosto do jovem estava verde de medo e ele era incapaz de falar. — Será que o deixamos ir ou... tentamos usá-lo como objeto de barganha? — perguntou Harkat. — Deixe-o — afirmei. — É menos provável que atirem em nós se nos entregarmos livremente. Se tentarmos fazer alguma espécie de troca, depois de Vancha ter escapado com sua chefe, acho que nos matarão. — Temos que deixar nossas armas também — disse o Sr. Crepsley, pondo as facas de lado. Não queria me separar da minha espada, mas o bom senso prevaleceu e a deixei numa pilha junto com as facas do Sr. Crepsley, o machado de Harkat e as outras pequenas bugigangas que vínhamos carregando. Depois desenrolamos as mangas de nossas camisas, levantamos as mãos sobre as cabeças, gritamos que estávamos nos entregando e saímos andando — o Sr. Crepsley mancando de uma perna — para sermos detidos e aprisionados pelos oficiais de expressão fechada, que nos algemaram, nos xingaram, nos jogaram dentro de camburões e nos levaram para longe — rumo à prisão.
CAPÍTULO CINCO
Fiquei numa cela que não tinha mais do que quatro por quatro metros, cuja altura era de, mais ou menos, três metros. Não havia janelas, além de uma pequena na porta — e nada de espelhos de dupla face. Havia, sim, duas câmeras de vigilância nos cantos acima da porta, uma mesa longa com um gravador sobre
ela, três cadeiras e eu — além de três oficiais de polícia com a cara fechada. Um deles estava em pé perto da porta, segurando um rifle colado ao peito, com o olhar atento. Ele não havia me dito o seu nome — não havia pronunciado nenhuma palavra — mas dava para lê-lo em seu distintivo: William McKay. Os outros dois não usavam insígnias, mas haviam me dito seus nomes: Con e Ivan. Con era alto, moreno e esbelto, tinha modos rudes e um sorriso de desprezo sempre a postos. Ivan era mais velho e mais magro e tinha cabelos grisalhos. Parecia cansado e falava suavemente, como se as perguntas o estivessem deixando exausto. — Darren Shan é o seu nome de verdade, como nos foi dito? — perguntou Ivan pela vigésima vez desde que eu fora preso. Eles ficavam fazendo as mesmas perguntas várias e várias vezes, sem dar indícios de que iriam parar com aquilo. Não respondi. Até então eu não havia dito nada. — Ou é Darren Horston o nome que vem usando recentemente? — perguntou Ivan depois de alguns segundos de silêncio. Nenhuma resposta. — E quanto ao seu companheiro de viagem... Larten Crepsley ou Vur Horston? Olhei para as minhas mãos, que estavam algemadas, e não disse nada. Examinei a corrente que ligava as algemas: era de aço, curta e grossa. Eu achava que poderia parti-la se quisesse, mas não estava certo disso. Meus tornozelos também estavam presos com algemas. A corrente que as unia era curta quando fui detido. A polícia deixou que ela ficasse me prendendo enquanto pegava as minhas impressões digitais e me fotografava, mas a tirou e a substituiu por uma mais longa, logo depois que me trancaram dentro da cela. — E quanto à aberração? — perguntou o oficial chamado Con. — Aquele monstro de pele cinzenta. O que ele... — Ele não é um monstro! — vociferei, quebrando meu voto de silêncio. — Oh? — Con sorriu com desdém. — O que é aquilo, então? Balancei a cabeça. — Você não acreditaria em mim se eu lhe contasse. — Tente — encorajou-me Ivan, mas apenas sacudi a cabeça mais uma vez. — E quanto aos outros dois? — perguntou Con. — Vancha March e Larten Crepsley. Nossos informantes nos disseram que eles eram vampiros. O que você tem a dizer sobre isso? Sorri, desanimado. — Vampiros não existem — respondi. — Todo mundo sabe disso. — É verdade — disse Ivan. — Não existem. — Ele se inclinou sobre a mesa, como se fosse me contar um segredo. — Mas aqueles dois não são totalmente normais, Darren, como estou certo de que você sabe. March
desapareceu como se fosse um mágico, ao passo que Crepsley... — Ele tossiu. — Bem, não conseguimos fotografá-lo. Sorri quando ele disse aquilo e olhei para as câmeras de vídeo. Os vampiros possuem certos átomos peculiares que faz com que seja impossível capturá-los em filme. A polícia podia tirar fotos do Sr. Crepsley de todos os ângulos que imaginasse, com as melhores câmeras disponíveis — e não obteria um resultado visível. — Olha o sorriso dele! — vociferou Con. — Ele acha isso engraçado! — Não — retruquei, tirando o sorriso do rosto. — Não acho. — Então por que está rindo? Encolhi os ombros. — Estava pensando em outra coisa. Ivan caiu de volta na cadeira, decepcionado com as minhas respostas. — Pegamos uma amostra do sangue de Crepsley — afirmou. — E da coisa chamada Harkat Mulds também. Descobriremos o que eles são quando os resultados voltarem. Seria uma vantagem para você contar-nos tudo o que sabe agora. Não respondi. Ivan esperou por um instante, e depois passou uma das mãos pelos seus cabelos grisalhos. Suspirou desesperadamente e recomeçou com a bateria de perguntas. — Qual é o seu nome verdadeiro? Qual é a sua relação com os outros? Onde...
Mais algum tempo se passou. Eu não tinha como avaliar exatamente há quanto tempo estava aprisionado. Achava que era por um dia ou mais, mas, sendo realista, só haviam se passado, provavelmente, quatro ou cinco horas, talvez menos. Era mais provável que o sol ainda estivesse brilhando lá fora. Pensei no Sr. Crepsley e fiquei me perguntando como ele estava se virando. Se estivesse numa cela como a minha, ele não teria com o que se preocupar. Mas se o tivessem colocado numa cela com janelas... — Onde estão meus amigos? — perguntei. Con e Ivan estavam discutindo algo em voz baixa. E agora olhavam para mim, com expressões de cautela. — Você gostaria de vê-los? — perguntou Ivan. — Só quero saber onde estão. — Se você responder às minhas perguntas, poderemos providenciar um encontro — prometeu Ivan. — Só quero saber onde eles estão — repeti. — Estão por perto — resmungou Con. — Muito bem trancafiados como você. — Em celas como essa? — perguntei.
— Exatamente iguais — respondeu Con, que depois olhou em volta para as paredes e sorriu quando percebeu a razão da minha preocupação. — Celas sem janelas — riu, para depois cutucar o parceiro. — Mas isso pode ser mudado, não pode, Ivan? Que tal se transferirmos o “vampiro” para uma cela com janelas belas e redondas? Uma cela com vista para o mundo exterior... o céu... o sol. Não falei nada, mas encarei Con com um olhar furioso. — Você não gosta de ouvir essa conversa, gosta? — Com sibilou. — A idéia de colocar Crepsley num cômodo com janelas o aterroriza, não? Encolhi os ombros, indiferente, e desviei o olhar. — Quero falar com um advogado. Con caiu na gargalhada. Ivan colocou a mão na boca para esconder um sorriso. Até mesmo o guarda com o rifle riu maliciosamente, como se eu tivesse contado a piada mais engraçada de todos os tempos. — O que há de tão engraçado? — vociferei. — Conheço os meus direitos. Tenho direito a um telefonema e a um advogado. — É claro — afirmou Con, exultante. — Até mesmo assassinos têm os seus direitos. — Ele bateu na mesa com os nós dos dedos e depois desligou o gravador. — Mas quer saber... vamos sonegar esses direitos. Vamos sofrer as conseqüências disso, mas não estamos ligando. Temos você preso aqui e não deixaremos que tire proveito dos seus direitos até nos dar algumas respostas. — Isso é ilegal — resmunguei. — Vocês não podem fazer isso. — Normalmente não — concordou ele. — Normalmente a nossa inspetorachefe irromperia e criaria um caso se soubesse de algo assim. Mas a nossa chefe não está aqui, ou está? Ela foi seqüestrada pelo seu colega assassino, Vancha March. Fiquei com os lábios pálidos quando ouvi isso e percebi o que ele queria dizer. Com a chefe fora do caminho, os dois haviam tomado a lei com as próprias mãos e estavam preparados para fazer o que fosse necessário para descobrir onde ela estava e resgatá-la. Isso poderia lhes custar suas carreiras, mas não importava. A questão era pessoal. — Vocês terão que me torturar para me fazerem falar — afirmei duramente, testando-os para ver até onde estavam dispostos a chegar. — Tortura não é conosco — disse Ivan na mesma hora. — Não fazemos esse tipo de coisa. — Ao contrário de algumas pessoas que podemos mencionar — acrescentou Con, para depois jogar uma foto na minha direção. Tentei ignorá-la, mas meus olhos se voltaram automaticamente para a figura que nela aparecia. Percebi que se tratava do vampitiete que havíamos pegado como refém naquela manhã nos túneis, aquele que se chamava Mark Ryter — que Vancha havia torturado e assassinado. — Não somos maus — afirmei calmamente. Mas pude ver as coisas do seu
ponto de vista e entendi como devemos parecer monstruosos. — Há alguns aspectos de toda essa trama que vocês desconhecem. Não somos os assassinos que vocês procuram. Estamos tentando detê-los, assim como vocês. Con entoou uma gargalhada. — É verdade — insisti. — Mark Ryter era um dos vilões. Tivemos que ferilo para descobrir alguma coisa sobre os outros. Não somos seus inimigos. Vocês e eu estamos do mesmo lado. — Essa é a mentira mais deslavada que já ouvi — vociferou Con. — Você acha que somos idiotas? — Não acho que vocês são idiotas. Mas estão sendo mal orientados. Vocês foram enganados. Vocês... — Inclinei-me para frente, ansioso. — Quem lhes contou onde estávamos? Quem lhes disse nossos nomes, que éramos vampiros e que éramos os assassinos que vocês estão procurando? Os policiais olharam um para o outro, apreensivos, até que Ivan se pronunciou. — Foi uma dica de um anônimo. O dito cujo ligou de um telefone público, não deixou nome e já havia sumido quando fomos checar. — Isso não lhe parece algo um tanto suspeito? — perguntei. — Recebemos dicas de anônimos o tempo todo — disse Ivan, mas ele parecia inquieto e eu sabia que tinha suas dúvidas. Se estivesse sozinho, talvez pudesse deixá-lo a par da minha maneira de pensar e persuadi-lo a me conceder o benefício da dúvida. Mas, antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, Con jogou outra foto em cima da mesa, e depois mais uma. Eram doses de Mark Ryter, cada um com detalhes mais horríveis do que o anterior. — As pessoas que estão do nosso lado não matam outras pessoas — disse ele friamente. — Mesmo querendo tê-lo feito — acrescentou de forma significativa, apontando um dos dedos na minha direção. Suspirei e deixei para lá, sabendo que não poderia convencê-los da minha inocência. Alguns segundos de silêncio se passaram enquanto eles sossegavam depois da troca de palavras e se compunham. E então ligaram o gravador e as perguntas recomeçaram. Quem era eu? De onde eu vim? Para onde Vancha March foi? Quantas pessoas nós matamos? E daí por diante...
A polícia não estava chegando a lugar nenhum comigo, e isso os estava frustrando. Um outro oficial chamado Morgan, que tinha olhos extremamente aguçados e cabelos castanho-escuros, se juntou a Ivan e a Con. Ele se sentou com as costas firmes e as mãos abertas em cima da mesa e desferiu um olhar frio e inabalável na minha direção. Eu tive a sensação de que Morgan estava ali para ser desagradável, embora até então ele não tivesse tido nenhuma atitude violenta contra mim. — Quantos anos você tem? — Con estava perguntando. — De onde você é?
Há quanto tempo está aqui? Por que escolheu esta cidade? Quantos mais você já matou? Onde estão os corpos? O que... Ele parou ao ouvir uma batida na porta. Virou-se e foi ver quem havia chegado. Os olhos de Ivan acompanharam Con, mas os de Morgan continuaram fixos em mim. Ele piscava uma vez a cada quatro segundos, não mais, não menos, como se fosse um robô. Con conversou em sussurros com a pessoa que estava do lado de fora, depois deu um passo atrás e gesticulou para que o guarda armado com o rifle se afastasse. O sujeito deu um passo para o lado e apontou sua arma na minha direção, a fim de que eu não tentasse fazer nada engraçado. Eu esperava um outro oficial de polícia, ou talvez um soldado — não vi ninguém do exército desde que fora preso —, mas o sujeito humilde e baixinho que entrou me pegou totalmente desprevenido. — Sr . Blaws? — perguntei, ofegante. O inspetor de colégio que havia me forçado a entrar na Mahler’ s parecia nervoso. Estava carregando a mesma maleta enorme de antes e usando o mesmo chapéu-coco antiquado. Ele avançou meio metro e então parou, relutando em se aproximar ainda mais. — Obrigado por ter vindo, Walter — disse Ivan, levantando-se para apertar a mão do visitante. O Sr. Blaws acenou de um jeito insignificante. — Fico feliz por poder ajudar. — Você quer uma cadeira? — perguntou Ivan. O Sr. Blaws balançou a cabeça rapidamente. — Não, obrigado. Prefiro não ficar aqui parado por mais tempo do que o necessário. Tenho muitos lugares para visitar. Você sabe como é. Ivan acenou com a cabeça, compreensivo. — Tudo bem. Você trouxe os papéis? O Sr. Blaws acenou positivamente. — Os formulários que ele preencheu, todos os arquivos sobre ele que estão sob nosso poder. Sim. Deixei-os com um homem na recepção. Ele os está fotocopiando e me devolverá os originais antes de eu partir. Preciso ficar com os originais para não desfalcar o arquivo da escola. — Tudo bem — repetiu Ivan antes de dar um passo para o lado e virar a cabeça na minha direção. — Você pode identificar este garoto? — perguntou oficiosamente. — Sim — afirmou o Sr. Blaws. — Ele é Darren Horston. Matriculou-se na Mahler’ s em... — Ele fez uma pausa e franziu a testa. — Esqueci da data exata. Devia saber, pois a estava vendo antes de entrar aqui. — Está certo — sorriu Ivan. — Vamos pegar os dados nas fotocópias. Mas este é definitivamente o garoto que se chamava Darren Horston. Você tem
certeza? O Sr. Blaws acenou positivamente e com firmeza. — Ah, sim — afirmou. — Nunca me esqueço do rosto de um aluno, especialmente de um que cabulava aulas. — Obrigado, Walter — disse Ivan, pegando o inspetor de alunos pelo braço. — Se precisarmos de você novamente, iremos... Ele parou. O Sr. Blaws não havia se movido. Estava me fitando com olhos arregalados e lábios trêmulos. — É verdade? — perguntou o Sr. Blaws. — O que os jornais estão dizendo... ele e seus amigos são os assassinos? Ivan hesitou. — Não podemos garantir nada neste momento, mas assim que nós... — Como você foi capaz? — gritou o Sr. Blaws na minha direção. — E a pobrezinha da Tara Williams... sua própria colega de turma! — Não matei Tara — afirmei, já cansado. — Não matei ninguém. Não sou um assassino. A polícia prendeu as pessoas erradas. — Ha! — bufou Con. — Você é um monstro — resmungou o Sr. Blaws, erguendo sua maleta no ar, como se fosse jogá-la em mim. — Você devia ser... você devia... devia... Ele não conseguiu dizer mais nada. Seus lábios se apertaram e seu maxilar se fechou. Dando as costas para mim, ele seguiu na direção da porta. Enquanto o inspetor saía, reagi a um impulso infantil e o chamei de volta. — Sr. Blaws! — gritei. Ele fez uma pausa e olhou para trás com um ar questionador. Adotei uma expressão inocente e apavorada. — Isso não vai prejudicar as minhas notas, vai, senhor? — perguntei delicadamente. O inspetor do colégio ficou de boca aberta, me encarou furiosamente quando percebeu que eu o estava provocando, levantou o nariz, virou-se abruptamente e saiu andando pelo corredor. Ri em voz alta enquanto o Sr. Blaws partia, confortando-me absurdamente com a expressão irada do homenzinho irritante. Con, Ivan e o guarda com o rifle riram também, sem querer, mas Morgan não. Ele continuava tão inflexível quanto antes, com uma ameaça terrível e não expressa em seu olhar penetrante e mecânico.
CAPÍTULO SEIS
Ivan foi substituído por um oficial de polícia corpulento chamado Dave, logo depois que o Sr. Blaws partiu. Dave agiu amigavelmente — a primeira coisa que ele fez quando chegou foi me perguntar se eu gostaria de alguma coisa para comer ou beber mas isso não me surpreendeu. Já havia visto seriados de TV
suficientes para saber tudo sobre a rotina do bom e do mau policial. — Estamos aqui para ajudá-lo, Darren — garantiu-me Dave, enquanto abria um sachê de açúcar e o entornava numa xícara de plástico cheia de café quente. Um pouco de açúcar caiu para o lado, sobre a mesa. Tenho noventa por cento de certeza de que ele derramou de propósito... Dave queria que eu pensasse que ele era estabanado. — Tirar essas algemas de mim e me deixar livre seria de grande ajuda — disse de forma irônica, ao observar Dave atentamente enquanto abria outro sachê de açúcar. Morgan me preocupava mais... Con podia me maltratar um pouco quando as coisas ficassem mais difíceis, mas eu acreditava que Morgan era capaz de fazer coisa pior; mesmo assim, eu teria que ter um cuidado a mais com Dave, ou ele arrancaria todos os meus segredos. Já estava acordado há um bom tempo. Estava tonto e exausto. Propenso a cometer deslizes. — Tirar as suas algemas e soltar você. — Dave sorriu de um jeito malicioso, piscando para mim. — Boa! É claro, ambos sabemos que isso não vai acontecer, mas há coisas que eu posso fazer. Arrumar um advogado. Um banho. Uma troca de roupas. Um bom beliche para passar a noite. Temo que você vai ficar conosco durante um bom tempo, mas não precisa ser uma estadia desagradável. — O que eu tenho que fazer para torná-la agradável? — perguntei com cautela. Dave encolheu os ombros e tomou um gole do seu café. — Ai! Quente demais! — Abanando os lábios com a mão para esfriá-los, ele sorriu. — Nada de mais — disse ele em resposta à minha pergunta. — Diganos o seu nome verdadeiro, de onde você vem e o que está fazendo aqui. Esse tipo de coisa. Balancei minha cabeça ironicamente — novo rosto, as mesmas velhas perguntas. Dave viu que eu não responderia, por isso mudou de tática. — Essa fórmula já ficou velha, certo? Vamos tentar outra coisa. Seu amigo, Harkat Mulds, disse que precisa de sua máscara para sobreviver, que irá morrer se ficar exposto ao ar durante mais de dez ou doze horas. Isso é verdade? Acenei, com cautela. — Sim. Dave parecia abatido. — Isso é mau — murmurou. — Muito, muito mau. — O que você está querendo dizer? — perguntei. — Isto aqui é uma prisão, Darren. Você e seus amigos são suspeitos de assassinato. Há regras... normas de procedimento... coisas que temos que fazer. Apreender objetos como cintos, gravatas e máscaras de possíveis assassinos quando eles são detidos é uma das regras. Fiquei duro na cadeira.
— Vocês pegaram a máscara de Harkat? — vociferei. — Fomos obrigados. — Mas ele vai morrer sem ela! Dave girou os ombros cuidadosamente. — Só temos a sua palavra. Não é o suficiente. Mas se você nos contar o que ele é e por que o ar normal lhe é mortal... e se nos falar sobre os seus outros amigos, Crepsley e March... talvez possamos ajudar. Lancei um olhar furioso na direção do policial. — Então quer dizer que tenho que delatar meus amigos ou você vai deixar Harkat morrer? — perguntei com desdém. — Que maneira horrível de colocar a questão — protestou Dave cordialmente. — Não temos a intenção de deixar nenhum de vocês morrer. Se o seu pequeno e incomum amigo piorar, iremos levá-lo correndo para a ala hospitalar e cuidar dele, assim como estamos fazendo com o homem que vocês tomaram como refém. Mas... — Lucas está aqui? — interrompi. — Vocês estão com Lucas Leopardo na ala hospitalar? — Lucas Leonardo — corrigiu ele, ignorando o apelido de Lucas. — Nós o trouxemos até aqui para se restabelecer. Assim fica mais fácil escondê-lo do assédio da mídia. Eram ótimas notícias. Achei que havíamos perdido Lucas. Se pudéssemos passar por ele na hora da fuga e o levássemos conosco, poderíamos usá-lo quando chegasse a hora de tentar salvar a vida de Débora. Estiquei minhas mãos acorrentadas sobre a cabeça e bocejei. — Que horas são? — perguntei casualmente. — Desculpe — disse David, sorrindo. — Essa informação é confidencial. Baixei os braços. — Lembra que você me perguntou mais cedo se havia alguma coisa que eu queria? — Sim — respondeu Dave, arregalando os olhos com um ar confiável. — Tudo bem se eu der umas voltas durante alguns minutos? Minhas pernas estão cheias de cãibras. Dave parecia desapontado — ele esperava um pedido mais complicado. — Você não pode deixar esta sala — afirmou. — Não estou pedindo isso. Uns dois minutos andando de um lado para o outro já vão servir. Dave perguntou a Con e Morgan o que eles achavam. — Deixe-o — disse Con —, contanto que fique do lado da mesa onde está. Morgan não disse nada, só acenou uma vez com a cabeça para dizer que por ele estava tudo O.K. Empurrei minha cadeira para trás, levantei-me, afastei-me da mesa, fiz
barulho com a corrente que prendia os meus tornozelos, afrouxando-a, e depois fiquei andando de uma parede até a outra, esticando as pernas, tentando tirar a tensão dos meus músculos, formulando um plano de fuga. Depois de algum tempo, parei e apoiei minha testa sobre uma das paredes. Comecei a chutar de leve o rodapé com meu pé esquerdo, como se fosse alguém nervoso e claustrofóbico. Na verdade eu a estava testando. Queria saber qual era a sua grossura e se era possível atravessá-la. Os resultados do teste não foram promissores. Pela sensação que tive e pelo eco abafado dos meus chutes, deu para ver que ela era feita de concreto sólido, com dois ou três blocos de espessura. Daria para destruí-la de qualquer maneira, mas isso exigiria muito trabalho e — o que é mais crucial — tempo. O guarda na porta teria muitas oportunidades de apontar sua arma e atirar. Assim que me ergui de onde estava, comecei a andar novamente, com os olhos se movendo da porta para a parede, e depois para a face dianteira da cela. A porta parecia bastante sólida — de aço —, mas talvez a parede na qual ela fora encaixada não fosse tão grossa quanto as outras. Talvez eu pudesse pô-la abaixo mais rápido do que se fosse pelas laterais ou por trás. Esperar até o cair definitivo da noite, na esperança de que a polícia me deixasse sozinho na cela, e começar a pô-la abaixo... Não. Mesmo se a polícia me deixasse, as câmeras de vídeo instaladas nos cantos sobre a porta não estariam desligadas. Alguém estaria me observando o tempo todo. O alarme soaria assim que eu investisse contra a parede e o corredor lá fora estaria cheio de policiais em segundos. Teria que ser pelo teto. De onde eu estava, não dava para saber ao certo se ele era reforçado ou normal, se era possível atravessá-lo ou não. Mas era a única rota de fuga lógica. Se me deixassem sozinho, poderia destruir as câmeras, ir até as vigas do teto e, com sorte, deixar meus perseguidores bem para trás ao longo do caminho. Não daria tempo para procurar Harkat e o Sr. Crepsley, de modo que teria que torcer para que eles conseguissem fugir sozinhos. Não era um grande plano — eu ainda não tinha descoberto como iria fazer para que os policiais saíssem; não achava que eles iriam se recolher para dormir e me deixar pegar no sono como se fosse a Bela Adormecida —, mas pelo menos era o começo de um. O resto iria fazer sentido ao longo do caminho. Eu bem que esperava por isso! Andei por mais alguns minutos, até que Dave me pediu para sentar novamente e voltamos às perguntas. Desta vez, elas vieram com mais rapidez do que antes, com mais urgência. Eu tinha a sensação de que sua paciência estava chegando ao fim. A violência não devia estar muito distante. A polícia estava aumentando a pressão. As ofertas de comida e de bebida não estavam mais sendo feitas, e o sorriso de Dave era uma pálida sombra do que ele ostentava anteriormente. O oficial corpulento havia afrouxado o botão do
seu colarinho e suava em profusão enquanto me martelava com uma pergunta atrás da outra. Ele havia desistido de perguntar qual era o meu nome e de onde eu vinha. Agora queria saber quantas pessoas eu havia matado, onde estavam os corpos, e se eu era apenas um cúmplice ou um membro ativo da gangue de assassinos. Em resposta a suas perguntas eu ficava dizendo: — Não matei ninguém. Não sou seu inimigo. Vocês pegaram a pessoa errada. Con não era tão educado quanto Dave. Ele havia começado a bater na mesa com os punhos fechados e se inclinava para a frente de forma ameaçadora toda vez que me dirigia a palavra. Acreditava que ele estava a poucos minutos de começar a me bater, e eu começava a me proteger dos socos que por certo estavam por vir. Morgan não havia mudado de posição. Ele ficava sentado, quieto e em silêncio, olhando para mim incansavelmente, piscando uma vez a cada quatro segundos. — Há outros? — resmungou Dave. — São só vocês quatro ou há mais assassinos na gangue que não conhecemos? — Não somos assassinos — suspirei, esfregando os olhos, tentando ficar alerta. — Você os matou e depois bebeu seu sangue ou foi o contrário? — insistia Dave. Balancei a cabeça e nada respondi. — Vocês realmente acreditam que são vampiros ou essa é apenas uma história para encobrir os seus crimes...? Ou algum jogo doentio no qual estão viciados? — Deixem-me em paz — sussurrei, baixando o olhar. — Vocês entenderam tudo errado. Não somos seus inimigos. — Quantos você matou? — bradou Dave. — Onde estão... Ele parou. Algumas pessoas vinham se precipitando pelo corredor do lado de fora durante os últimos segundos, que agora estava cheio de policiais e de funcionários, todos gritando desenfreadamente. — Que diabos está acontecendo? — vociferou Dave. — Quer que eu vá checar? — perguntou William McKay, o guarda que portava o rifle. — Não — respondeu Con. — Eu vou. Fique de olho no garoto. Con foi até a porta, bateu e gritou para que alguém viesse abri-la. Ninguém respondeu, por isso ele gritou novamente, mais alto, e desta vez veio um funcionário para abri-la. Assim que saiu, o oficial de expressão pesada segurou pelo braço uma mulher que estava passando e rapidamente arrancou algumas respostas dela.
Con teve que se inclinar para bem perto da mulher para ouvir o que ela dizia. Assim que entendeu o que estava acontecendo, o policial a largou e voltou correndo para a cela, com os olhos arregalados. — É uma fuga! — gritou Con. — De quem? — berrou Dave, dando um salto. — Crepsley? Mulds? — Nenhum dos dois — disse Con, soluçando. — Do refém... Lucas Leonardo! — Leonardo? — repetiu Dave, indeciso. — Mas ele não é prisioneiro. Por que ele iria querer fugir... — Não sei! — gritou Con. — Aparentemente, ele recuperou a consciência há alguns minutos, ficou a par da situação e depois matou um guarda e duas enfermeiras. O rosto de Dave ficou pálido e William McKay quase deixou cair o rifle. — Um guarda e duas... — murmurou Dave. — Isso não é tudo — disse Con. — Ele matou ou feriu outros três enquanto saía. Estão achando que ele ainda está no prédio. O rosto de Dave ficou paralisado. Ele ameaçou sair porta afora, mas se lembrou de mim, fez uma pausa e olhou para trás. — Não sou assassino — falei calmamente, encarando-o no fundo dos olhos. — Não sou quem você quer. Estou do seu lado. Desta vez, eu acho que ele meio que acreditou em mim. — E quanto a mim? — perguntou William McKay enquanto os dois oficiais saíam um atrás do outro. — Eu fico ou saio? — Venha conosco — vociferou Con. — E quanto ao garoto? — Vou tomar conta dele — disse Morgan delicadamente. Seus olhos não haviam se desgarrado do meu rosto, mesmo quando Con falava sobre Lucas para Dave. O guarda saiu correndo junto com os outros, batendo a porta. Finalmente eu estava sozinho — com Morgan. O oficial de olhos pequenos e atentos ficou sentado me encarando. Quatro segundos — uma piscada. Oito segundos — outra piscada. Doze segundos — mais uma outra. Ele se inclinou para frente, desligou o gravador e depois se levantou, alongando o corpo. — Estava achando que nunca iríamos nos livrar deles — afirmou. Depois de andar até a porta, ele olhou pela janelinha em seu topo e falou suavemente, com o rosto escondido das câmeras que estavam instaladas mais acima. — Você terá que atravessar o teto, mas creio que já tinha percebido isso, não? — Como? — perguntei, assustado. — Vi você examinando a sala enquanto estava se “exercitando” — disse ele, sorrindo. — As paredes são muito grossas. Você não terá tempo de atravessá-las.
Não falei nada, mas encarei fixamente o oficial de cabelo castanho, tentando decifrar quais eram as suas intenções. — Vou atacá-lo daqui a um minuto — disse Morgan. — Vou fazer um show para as câmeras, fingir que me enfureci e pular no seu pescoço. Bata na minha cabeça com seus punhos, com força, que irei desabar. Depois disso, a decisão é sua. Não tenho chave para tirar suas algemas, por isso você terá que se livrar delas sozinho. Se não puder... use a força. Não tenho como estimar quanto tempo você terá, mas com todo o pânico nos corredores lá fora, haverá tempo de sobra. — Por que você está fazendo isso? — perguntei, atordoado com os acontecimentos inesperados. — Você verá — disse Morgan, virando para me encarar e avançando de uma maneira que, aos olhos da câmera, pareceria violenta e ameaçadora. — Estarei indefeso quando cair no chão — acrescentou, enquanto acenava os braços freneticamente. — Se você resolver me matar, não terei como impedi-lo. Mas pelo que ouvi, você não é do tipo que mata um oponente indefeso. — Por que eu iria querer matá-lo se você está me ajudando a escapar? — perguntei, confuso. Morgan sorriu de um jeito sórdido. — Você verá — repetiu, e depois mergulhou sobre a mesa, na minha direção. Eu estava tão espantado com o que estava acontecendo que, quando ele apertou meu pescoço com suas mãos, não fiz nada, só fiquei encarando-o meio pasmo. Quando ele começou a apertar com mais força, o instinto de autopreservação veio à tona. Jogando minha cabeça para trás, ergui minhas mãos acorrentadas e o empurrei para longe. Ele bateu nas minhas mãos e veio para cima de mim mais uma vez. Numa só guinada me levantei, empurrei sua cabeça para baixo, a prendi no meio dos meus joelhos, ergui os braços, juntei as mãos e o atingi com força na nuca. Com um grunhido, Morgan deslizou da mesa, caiu no chão e ficou ali imóvel. Fiquei preocupado, achando que o tinha ferido de verdade. Depois de correr em volta da mesa, me agachei para sentir sua pulsação. Enquanto eu me inclinava, me aproximei o suficiente de sua cabeça para enxergar, através da fina camada de fios de cabelo, o que havia no seu couro cabeludo. O que vi fez um calafrio percorrer a minha espinha. Por baixo do cabelo, tatuado na carne, havia um “V” enorme e arredondado — a marca dos vampitietes! — Vo-vo-vo-você é um... — Estremeci. — Sim — disse Morgan, delicadamente. Ele havia caído com o braço esquerdo cobrindo o rosto, escondendo a boca e os olhos da lente da câmera. — E me orgulho por servir àqueles que, por direito, são os soberanos da noite. Rolei para longe do vampitiete policial, mais nervoso do que nunca. Eu achava que os vampitietes serviam apenas ao lado de seus mestres. Nunca me
ocorreu que alguns poderiam estar trabalhando secretamente como humanos normais. Morgan abriu o olho esquerdo e me fitou sem se mover. — É melhor você se mandar — disse ele, sibilando — antes da cavalaria chegar. Lembrando-me de onde estava e do que havia em jogo, me pus de pé e tentei não prolongar o choque por ter encontrado um vampitiete aqui entre os policiais. Queria pular em cima da mesa e fugir pelo teto, mas antes tinha que me preocupar com as câmeras. Agachei-me, peguei o gravador, cruzei a sala rapidamente e usei a base do aparelho para destruir as câmeras, inutilizando-as. — Muito bem — sussurrou Morgan enquanto eu voltava atrás nos meus passos. — Muito inteligente da sua parte. Agora voe, morceguinho. Voe como se o diabo estivesse atrás de você. Pairando sobre o vampitiete, encarei-o de onde estava, joguei o meu pé direito para trás, o máximo que minhas correntes permitiam e lhe dei um chute com força na lateral da cabeça. Ele resmungou, virou para o lado e ficou ali parado. Não sabia se ele estava realmente inconsciente ou se isso era parte do seu teatro, mas não fiquei para descobrir. Pulando sobre a mesa, juntei as mãos, fiz uma pausa, e depois afastei os pulsos o máximo possível, usando todos os meus poderes de vampiro. Quase desloquei os braços, o que me fez rugir de dor, mas deu certo — a corrente que ligava as minhas algemas partiu-se ao meio, deixando minhas mãos livres. Fiquei em pé sobre as pontas da corrente que prendia os meus tornozelos, segurei-a no meio e a puxei para cima rapidamente. Rápido demais, por sinal — rolei para trás e caí da mesa, direto no chão! Gemendo, rolei para o lado, me levantei, fiquei em pé sobre a corrente mais uma vez, apoiei minhas costas contra a parede e tentei novamente. Desta vez fui bem-sucedido e a corrente se partiu em duas. Enrolei os dois pedaços em volta dos meus tornozelos para que não tropeçasse, e depois fiz a mesma coisa com as correntes que se dependuravam dos meus pulsos. Eu estava pronto. Subi em cima da mesa novamente, agachei-me, respirei bem fundo e então pulei, com os dedos de ambas as mãos firmes e esticados. O teto, felizmente, era feito de reboco de má qualidade, e por isso meus dedos o atravessaram, sem que ele oferecesse o mínimo de resistência. Enquanto pairava no ar e abria os braços, meus antebraços foram se conectando com as vigas de ambos os lados. Estendi os dedos e fiquei segurando os pedaços de madeira que detinham a minha queda enquanto a gravidade me arrastava de volta para a terra. Fiquei pairando por um instante até parar de oscilar. Depois, transportei as pernas e o corpo para fora da cela, rumo à escuridão e à liberdade que ela prometia.
CAPÍTULO SETE
Havia um vão de meio metro entre as vigas nas quais eu me encontrava e as que estavam mais acima. Não era muito — o que fez a vida se tornar muito desconfortável —, mas era mais do que eu poderia esperar. Enquanto me alongava, fiquei tentando ouvir sons de perseguição na cela
mais abaixo. Não havia nenhum. Pude ouvir pessoas colidindo umas com as outras e dando ordens aos gritos no corredor. Dessa forma, ou a polícia não estava a par de que eu havia fugido ou descobrira que seu caminho estava bloqueado pela multidão que fugia em pânico. Qualquer que fosse a resposta, o tempo estava do meu lado; tempo que eu não havia negociado e do qual poderia muito bem usufruir. Havia planejado fugir o mais rápido possível, deixando o Sr. Crepsley e Harkat para trás, mas agora eu estava numa posição que me permitia procurar pelos meus amigos. Mas onde começar? A iluminação estava boa aqui em cima — havia muitas fendas no meio do reboco, e a luz vazava das salas e dos corredores abaixo — permitindo que eu enxergasse dez ou doze metros adiante, para onde quer que olhasse. O prédio era muito grande e, se meus amigos estivessem detidos em outro andar, não haveria esperança de encontrá-los. Mas se eles estivessem por perto e eu me apressasse... Correndo por sobre as vigas, cheguei no teto da cela que estava ao lado da minha, parei e fiquei atento. Minha audição aguçada detectaria qualquer som mais alto do que uma batida de coração. Esperei alguns segundos e não ouvi nada. Segui em frente. As duas celas seguintes estavam vazias. Na terceira eu ouvi alguém se coçando. Pensei em gritar os nomes do Sr. Crepsley e de Harkat, mas se houvesse policiais na cela, eles acionariam o alarme. Só havia uma alternativa. Respirei fundo, agarrei as vigas de ambos os lados com as mãos e os pés e depois usei a cabeça para golpear o reboco frágil do teto. Soprei poeira dos lábios, pisquei para tirá-la dos olhos e depois me concentrei na cena abaixo. Estava pronto para cair sobre o teto se um dos meus amigos estivesse lá dentro, mas o único ocupante daquela cela era um homem barbado que levantou os olhos na minha direção, boquiaberto, piscando sem parar. — Desculpe — falei, forçando um sorriso apressado. — Sala errada. Retirando-me, segui em frente apressado, deixando para trás o prisioneiro assustado. Mais três celas vazias. A seguinte estava ocupada, mas por dois sujeitos que falavam alto e que foram capturados por tentarem roubar uma loja de esquina. Não parei para verificá-los — a polícia dificilmente colocaria um assassino em potencial junto com uma dupla de assaltantes. Outra cela sem ocupantes. Achei que a seguinte também estava vazia, e quase segui em frente quando meus ouvidos captaram um leve roçar de tecido. Parei e fiquei ouvindo com atenção, mas não havia sons adicionais. Arrastandome para trás, com a pele coçando por causa das lascas isolantes que cobriam o reboco do teto como se fosse neve, fiquei em posição, respirei fundo mais uma vez e mergulhei de cabeça.
Um atento Harkat Mulds pulou da cadeira onde estava sentado e ergueu os braços defensivamente enquanto minha cabeça surgia no meio da nuvem de poeira que desceu. Foi então que o Pequenino viu quem era, se levantou, tirou a máscara (Dave havia obviamente mentido quando disse que ela havia sido apreendida) e gritou meu nome com uma alegria incontida. — Darren! — Olá, parceiro — saudei-o, sorrindo, usando minhas mãos para alargar o buraco. Sacudi a poeira do meu cabelo e das sobrancelhas. — O que você está fazendo... aí em cima? Suspirei por conta da pergunta estúpida. — Passeando! — falei rapidamente e depois estiquei a mão para baixo. — Vamos... não temos muito tempo e precisamos encontrar o Sr. Crepsley. Tinha certeza que Harkat tinha mil perguntas a fazer — eu também, como por que ele estava completamente sozinho e não estava algemado —, mas ele percebeu como era arriscada a nossa posição, segurou a mão que eu estendi e deixou que o puxasse, sem dizer nada. Ele teve mais dificuldade para segurar nas vigas do que eu — seu corpo era bem mais arredondado — até que finalmente ficamos lado a lado e começamos a nos arrastar para frente, sem conversar sobre a nossa situação. As oito ou nove celas seguintes estavam vazias ou ocupadas por humanos. Eu estava ficando ansioso em relação ao tempo que já havia transcorrido. Independente dos acontecimentos relacionados a Lucas Leopardo, minha fuga estava prestes a ser notada mais cedo ou mais tarde, e a perseguição seria intensa quando viesse. Perguntava-me se seria mais inteligente desistir agora que estávamos adiantados, quando alguém falou de um ponto da cela sob nós, bem na minha frente. — Estou pronto para dar uma declaração agora — disse a voz, e pela segunda sílaba deu para saber quem estava falando... o Sr. Crepsley! Estendi a mão na direção de Harkat para que parasse, mas ele já havia feito o mesmo, pois também havia escutado. — Já era hora — afirmou um policial. — Deixe-me ver se o gravador está funcionando... — Não importa o seu diabólico equipamento de gravação — desdenhou o Sr. Crepsley. — Não me dirijo a máquinas inanimadas. Nem fico desperdiçando palavras com bufões. Não falarei com você e nem com o seu parceiro à minha esquerda. Quanto ao cretino perto da porta com o rifle... Tive que segurar uma risada. A velha raposa astuta! Ele deve ter nos escutado rastejando até aqui e estava nos deixando a par do que acontecia na cela, dizendo precisamente quantos policiais estavam presentes e sua localização. — É melhor você tomar cuidado — vociferou o policial. — Olha que eu posso...
— Você não pode porcaria nenhuma — interrompeu-o o Sr. Crepsley. — Você é um idiota. O oficial que estava aqui antes, pelo contrário... Matt... me pareceu ser um homem sensível. Vão buscá-lo que eu confessarei. Caso contrário, meus lábios permanecerão fechados. O oficial disse um palavrão, depois arrastou os pés para se levantar e seguiu na direção da porta. — Fique de olho nele — disse para os outros dois. — Ao menor sinal de movimento... batam nele com força! Lembrem-se de quem e do que ele é. Não corram riscos. — Descubra que confusão é essa que está acontecendo lá fora — disse um dos oficiais enquanto seu colega saía. — Do jeito que as pessoas estão correndo, deve ter acontecido alguma emergência. — Deixa comigo — disse o oficial, antes de pedir para a porta ser aberta e sair em seguida. Indiquei a esquerda para Harkat, onde estaria o guarda em frente à porta. Ele deslizou para frente em silêncio, parando assim que ficou logo acima do policial. Ouvi sons vindos do oficial que estava ao lado do Sr. Crepsley, sintonizeime com sua respiração pesada, mudei de posição mais ou menos um metro, e ergui minha mão esquerda, com o polegar, o indicador e o médio esticados. Contei até dois e abaixei o dedo médio. Mais dois segundos e abaixei o indicador. Finalmente, acenando prontamente para Harkat, abaixei o polegar. Ao meu sinal, Harkat largou as vigas e caiu por sobre o reboco do teto, fazendo-o em pedaços. Acompanhei-o quase que na mesma hora, trazendo minhas pernas para baixo antes, uivando como um lobo para dar um efeito mais dramático. Os policiais não sabiam o que fazer depois da nossa súbita entrada. O guarda perto da porta tentou erguer seu rifle, mas o corpo de Harkat, que caía verticalmente, colidiu com seus braços e o fez largar a arma. Enquanto isso, o meu oficial ficou de boca aberta, olhando para mim, sem fazer nenhum movimento para se proteger. Enquanto Harkat se erguia e dava murros no guarda, eu preparei meu punho para que o oficial ganhasse uns cinco socos na cara. O Sr. Crepsley me conteve. — Por favor — disse ele educadamente, enquanto se levantava e batia de leve no ombro do oficial. — Com licença. O oficial se virou como se estivesse hipnotizado. O Sr. Crepsley abriu a boca e soprou o gás especial dos vampiros para nocautear o sujeito. Uma baforada e os olhos do oficial já estavam se revirando nas órbitas. Peguei-o enquanto caía e o deitei delicadamente no chão. — Não esperava que vocês fossem chegar tão rápido — disse o Sr. Crepsley para manter a conversa, enquanto pegava a tranca de sua algema esquerda com os dedos da mão direita.
— Não queríamos deixá-lo esperando — falei com firmeza, ansioso para sair logo dali, mas não querendo parecer menos calmo do que meu velho amigo e mentor, que parecia totalmente despreocupado. — Vocês não deviam ter vindo atrás de mim — disse o Sr. Crepsley, que se livrou de suas algemas com um clique. Ele se agachou para soltar as correntes que envolviam seus tornozelos. — Eu estava muito tranqüilo. E essas algemas estão ultrapassadas. Eu já escapava de outras parecidas com essas antes dos oficiais que me prenderam nascerem. Nunca foi uma questão de se eu iria escapar, mas de quando. — Ele sabe ser irritante... e sabichão de vez em quando — comentou Harkat secamente. O Pequenino havia nocauteado o guarda e pulado para cima da mesa, com a intenção de voltar para a segurança do teto. — Podemos deixá-lo para trás e voltar mais tarde para buscá-lo — sugeri ao vampiro enquanto ele se livrava do que ainda estava prendendo suas pernas. — Não — disse ele. — Posso muito bem sair com vocês agora que estão aqui. — Ele tremeu quando deu o primeiro passo para frente. — Mas, falando sério, umas poucas horas a mais teriam sido bem-vindas. Meu tornozelo já sarou consideravelmente, mas ainda não está cem por cento. Um pouco mais de descanso teria sido benéfico. — Você vai conseguir andar? — perguntei. Ele acenou com a cabeça. — Não vou vencer corridas, mas não atrasarei vocês. Estou mais preocupado com o sol... ainda tem mais de duas horas e meia dele para agüentar. — Vamos resolver esse problema quando chegar a hora — falei rapidamente. — Agora, você está pronto para seguir ou quer ficar aqui de papo furado o dia inteiro até a polícia voltar? — Está nervoso? — perguntou o Sr. Crepsley, com um brilho nos olhos. — Sim — respondi. — Não fique. O pior que os humanos podem fazer é nos matar. — Ele subiu na mesa e fez uma pausa. — No final da noite que está por vir, a morte poderá parecer uma bênção. Com aquele comentário melancólico, ele seguiu Harkat até o mundo sombrio das vigas. Esperei até que soltasse suas pernas e depois pulei atrás dele. Espalhamo-nos um pouco para que não ficássemos um no caminho do outro, até que o Sr. Crepsley perguntou que direção deveríamos tomar. — Certo — respondi. — Essa trilha dá nos fundos do prédio, creio. — Muito bem — disse o Sr. Crepsley, movendo-se em ziguezague à nossa frente. — Arrastem-se lentamente — sussurrou enquanto olhava para trás — e tentem não pegar nenhuma lasca. Harkat e eu trocamos um olhar triste — a expressão “frio e distante” poderia ter sido inventada por alguém com o Sr. Crepsley em mente — e depois
corremos atrás do vampiro antes que ele se adiantasse muito e nos deixasse para trás.
CAPÍTULO OITO
Abrimos nosso caminho derrubando a parede que ficava nos fundos do prédio e nos vimos no segundo andar, sobre uma viela deserta. — Você consegue pular? — perguntei para o Sr. Crepsley. — Não — respondeu ele —, mas posso escalar.
Enquanto o Sr. Crepsley se dependurava na beira do buraco na parede e enfiava as unhas no meio dos tijolos, Harkat e eu pulamos, caímos no chão e nos agachamos, vasculhando as sombras em busca de sinais de vida. Assim que o Sr. Crepsley se juntou a nós, corremos para o final da viela, onde paramos para fazer uma busca no terreno. O Sr. Crepsley olhou para cima, na direção do sol. Ele não estava muito forte — já que irradiava um brilho pálido, outonal, vespertino —, mas duas horas de exposição poderiam ser fatais para o vampiro. Se estivesse usando o manto, ele poderia puxá-lo para cobrir a cabeça e se proteger, mas o havia deixado no apartamento. — O que fazemos agora? — perguntou Harkat, olhando em volta, indeciso. — Vamos encontrar um bueiro e seguir por baixo da terra — respondi. — Eles não terão como nos acompanhar pelos túneis e o Sr. Crepsley não precisará se preocupar com o sol. — Um plano notável — afirmou o Sr. Crepsley, enquanto esfregava o seu tornozelo direito dolorido e procurava uma tampa de bueiro. Não havia nenhuma por perto, por isso seguimos em frente, Harkat e eu escorando o vampiro, agarrando-nos às paredes do beco. Havia uma bifurcação no final. A pista da esquerda dava numa rua principal movimentada, a da direita numa outra viela escura. Virei para a direita num impulso e estava começando a adentrar o beco quando Harkat me deteve. — Espere — disse ele, sibilando. — Estou vendo um caminho por baixo. Olhei para trás e vi um gato remexendo num monte de entulho que havia caído de uma lata de lixo revirada, que por sua vez escondia uma tampa de bueiro redonda. Corremos em sua direção, enxotamos o gato — que rosnou furiosamente em nossa direção antes de fugir, pois gatos não gostam muito de vampiros — e chutamos o lixo para longe da tampa. Em seguida, eu e Harkat a puxamos e a pusemos de lado. — Eu vou primeiro — afirmei, enquanto começava a descer a escada e adentrava a bem-vinda escuridão. — Depois o Sr. Crepsley. E, por último, Harkat. Eles não questionaram as minhas ordens. Como Príncipe Vampiro, era minha função assumir o controle da situação. O Sr. Crepsley teria se oposto caso discordasse da minha decisão, mas no correr normal dos acontecimentos ele estava satisfeito em seguir o meu comando. Desci a escada. Os degraus estavam frios e meus dedos formigavam com o contato. À medida que me aproximava do fundo, fui esticando a perna esquerda para descer da escada... ... e então a recolhi rapidamente quando uma arma disparou e uma bala tirou um pedaço da parede que estava perto da lateral do meu queixo! Com o coração disparado, me agarrei à escada, com os ouvidos zumbindo por causa do eco da bala, me perguntando como a polícia havia descido até ali
tão rapidamente e como descobrira o caminho que havíamos tomado. Foi quando alguém deu uma gargalhada na escuridão e disse: — Meus cumprimentos, vampiro. Estávamos o esperando. Meus olhos se apertaram. Não havia nenhum policial — era um vampitiete! Apesar do perigo, me agachei perto da escada e olhei túnel adentro. Havia um homem grande em pé no meio das sombras, distante demais para que eu pudesse identificá-lo. — Quem é você? — vociferei. — Alguém que segue o Senhor dos Vampixiitas — respondeu. — O que está fazendo aqui? — Bloqueando a sua passagem — respondeu ele, rindo. — Como sabia que viríamos por este caminho? — Não sabíamos. Mas imaginávamos que vocês fossem fugir pelos túneis. Nosso Senhor ainda não os quer por aqui... o dia é longo e ele se diverte ao pensar em você e no seu amigo vampiro arrastando-se por ele... por isso bloqueamos todas as entradas para o mundo subterrâneo. Quando a noite cair, vamos nos retirar, mas até lá estes túneis são zonas proibidas. Dito isso, ele atirou em mim novamente. Era um tiro de advertência, assim como o primeiro, mas não quis ficar ali para que ele pudesse continuar testando a sua pontaria. Subi a escada, pulei para fora do bueiro como se tivesse sido impelido e falei um palavrão em voz alta enquanto chutava uma grande lata vazia no meio do beco. — Era a polícia? — perguntou o Sr. Crepsley, mal-humorado. — Não... vampitietes. Bloquearam todas as entradas para os túneis até o cair da noite. Querem que soframos. — Eles não podem estar tomando conta de todas... as entradas, podem? — perguntou Harkat. — Grande parte delas — respondeu o Sr. Crepsley. — Os túneis que ficam muito perto da superfície estão cuidadosamente interligados. Ao escolher o ponto certo, um homem pode bloquear as trilhas que começam em seis ou sete entradas. Se tivéssemos tempo, poderíamos encontrar um caminho mais adiante, mas não temos. Precisamos desistir dos túneis. — Para onde iremos então? — perguntei. — Vamos correr — respondeu o vampiro, simplesmente. — Ou mancar, como é o caso. Tentaremos evitar a polícia, encontrar um lugar para que possamos nos esconder e esperar o cair da noite. — Isso não vai ser fácil — assinalei. O Sr. Crepsley encolheu os ombros. — Se você tivesse agüentado firme até o pôr-do-sol para fugir, teria sido mais fácil. Como não o fez, temos que fazer o melhor que pudermos. Venha — disse ele, dando as costas para o bueiro. — Vamos seguir em frente.
Parei para cuspir amargamente no buraco e então fui atrás do Sr. Crepsley e de Harkat, deixando a decepção dos túneis bloqueados para trás, para me concentrar no movimento seguinte.
Menos de três minutos depois, a polícia já estava começando a seguir o nosso rastro. Ouvimos os policiais saindo da delegacia, gritando uns com os outros, abarrotando carros, tocando buzinas, ligando sirenes barulhentas no volume máximo. Nosso movimento era constante, mas não havíamos nos afastado muito — vínhamos evitando ruas principais, preferindo andar por becos escondidos, que tinham o hábito incômodo de se interligarem. Teria sido melhor seguir pelos telhados, mas isso significava expor o Sr. Crepsley ainda mais aos raios do sol. — Isso é inútil — disse o vampiro assim que paramos ao lado de um prédio que dava para uma rua comercial movimentada. — Não estamos fazendo progresso algum. Temos que subir. — Mas o sol... — falei. — Esquece — vociferou ele. — Se eu me queimar, que se dane. Isso não me matará imediatamente... mas a polícia acabará comigo se me alcançar! Enquanto acenava com a cabeça, fiquei procurando uma maneira de subir nos telhados. Então me veio uma idéia. Vi a rua cheia de gente e depois olhei para as minhas roupas. Eu estava sujo e desgrenhado, mas minha aparência não era muito pior do que a de qualquer garoto que estivesse passando por uma fase de grunge ou metaleiro. — Nós temos dinheiro? — perguntei, tirando o grosso da sujeira do rosto e alisando o cabelo para trás com um pouco de cuspe. Depois enfiei as correntes das minhas algemas por baixo das mangas da camisa e das calças, impedindo que elas ficassem à mostra. — Que hora para fazer compras! — resmungou Harkat. — Sei o que estou fazendo — sorri. — Temos dinheiro ou não? — Eu tinha algumas notas, mas a polícia as pegou — disse o Sr. Crepsley. — Estou... como os humanos dizem... endurecido? — Duro. — Dei uma gargalhada. — Não importa. Eu me viro. — Espera! — disse Harkat enquanto eu seguia em frente. — Aonde você vai? Não podemos nos separar... agora. Temos que ficar juntos. — Não vou demorar — respondi. — E não vou correr riscos inúteis. Esperem por mim aqui mesmo. Se eu não voltar em cinco minutos, vão embora sozinhos que os alcanço mais tarde, nos túneis. — Aonde você... — começou o Sr. Crepsley, mas eu não tinha tempo para discussões, por isso saí sorrateiro da viela antes que ele terminasse e segui rapidamente pela rua, em busca de um armazém. Fiquei de olho para ver se havia algum policial ou soldado por perto, mas
não encontrei nenhum nas redondezas. Alguns segundos depois, avistei uma loja do outro lado da rua, esperei o sinal ficar verde, atravessei e adentrei o recinto. Havia uma mulher de meia-idade e um jovem de cabelos compridos atrás do balcão. A loja estava bastante movimentada — havia seis ou sete clientes — o que era bom. Isso significava que eu não iria chamar atenção. Uma TV à esquerda do vão da porta estava ligada num canal de notícias, mas o som estava baixo. Havia uma câmera de segurança acima da TV, girando e gravando tudo, mas isso não me incomodou — com todos os crimes dos quais fora acusado, não ia ligar se fosse fichado por um simples roubo! Andei pelas galerias de cima a baixo, procurando pelos artigos de verão. Não era hora de ficar catando óculos escuros e chapéus que pudessem me proteger do sol, mas tinha certeza que eles tinham umas bugigangas em algum lugar. Perto de uma prateleira de produtos para bebês, eu as encontrei — vários frascos de protetor solar, esquecidos numa velha prateleira com defeito. As opções não eram muitas, mas aquilo serviria. Li rapidamente o que estava escrito nos rótulos, procurando o bloqueador mais forte possível. Fator dez... doze... quinze. Escolhi o frasco com o número mais alto (era para bebês com a pele mais clara, mas não contaria isso para o Sr. Crepsley!) e depois fiquei com ele na mão, indeciso, perguntando-me o que deveria fazer em seguida. Eu não era um ladrão de loja experiente. Havia roubado alguns doces com amigos quando era mais jovem, e uma vez afanei um jogo de bolas de golfe de um primo, mas nunca gostei de fazer isso e não levei essa carreira adiante. Estava certo de que meu rosto iria me denunciar se eu simplesmente enfiasse o frasco no bolso e tentasse sair andando da loja. Pensei nisso durante alguns segundos e então pus o protetor disfarçadamente na cintura, cobri-o com a bainha da minha blusa, peguei outro frasco, me virei e fui até o balcão. — Com licença — disse, dirigindo-me para a senhora enquanto ela atendia um dos outros clientes —, você tem alguma loção Sun Undone? — Eu havia inventado o nome e esperava que não houvesse uma marca à venda com aquele nome. — Só o que está nas prateleiras — vociferou a mulher, irritada. — Oh. — Sorri. — Tudo bem. Obrigado. Vou colocar essa de volta. Estava me virando quando o jovem de cabelos compridos falou: — Ei! Espera aí! — Com um frio na barriga eu olhei para trás com uma expressão de dúvida, preparando-me para correr. — Não era o Sunnydun que você queria, era? — perguntou. — Temos um engradado dele lá atrás. Posso pegar um frasco se você... — Não — interrompi-o, relaxado. — Era Sun Undone. Minha mãe não usa outra coisa.
— Fique à vontade — disse ele, encolhendo os ombros, não mais interessado em mim, enquanto se virava para atender outro cliente. Voltei e deixei o protetor em cima do balcão, para então seguir na direção da porta o mais despreocupadamente possível. Acenei cordialmente para o rapaz enquanto passava e ele meio que acenou para mim de volta. Estava com um pé do lado de fora da loja, satisfeito comigo mesmo, quando avistei um rosto familiar na TV e parei, emudecido. Era eu! A fotografia deve ter sido feita naquela manhã, quando eu estava sendo preso. Eu parecia pálido, faminto e assustado, com as mãos algemadas, o olhar atento e um policial me segurando em cada braço. Voltei para dentro da loja, estiquei o braço e aumentei o volume. — Ei! — resmungou o rapaz. — Você não pode... Ignorei-o e me concentrei no que o locutor estava dizendo. “... pode parecer inofensivo, mas a polícia recomenda que o público não se deixe levar por sua aparência. Darren Shan — ou Darren Horston, como ele também é conhecido — é um adolescente, mas está mancomunado com assassinos brutais e pode também ser um assassino.” Minha fotografia sumiu e foi substituída pela imagem de uma locutora com expressão austera. Poucos segundos depois, minha foto apareceu novamente, menor desta vez, no canto superior direito da tela. A de Harkat apareceu no esquerdo, e retratos falados e precisos do Sr. Crepsley e de Vancha March surgiram no meio. “Repetindo nossa incrível notícia de última hora”, disse a locutora. “Quatro supostos membros da gangue de assassinos conhecida como os Vampiros foram presos hoje pela manhã. Um deles, Vancha March”, o fio em volta do desenho de Vancha se acendeu, “fugiu, levando como refém a inspetora-chefe Alice Burgess. Os outros três foram presos e detidos para interrogatório, mas escaparam de forma violenta há vinte minutos, matando ou ferindo seriamente um número não divulgado de oficiais e enfermeiras. Eles são tidos como extremamente perigosos e estão armados. Caso os veja, não se aproxime. Em vez disso, ligue para um dos seguintes números...” Desviei o olhar da TV atordoado. Eu já devia saber que a mídia iria explorar uma história dessa importância, mas inocentemente supus que só teríamos a polícia e o exército para nos preocupar. Nunca havia parado para pensar nos alertas por toda a cidade e em como eles iriam nos afetar. Enquanto me levantava, digerindo os novos acontecimentos, chocado por saber que havíamos sido responsabilizados pelos assassinatos cometidos por Lucas na delegacia, a senhora de meia-idade atrás do balcão apontou para mim e arfou em voz alta: — É ele! O garoto! O assassino!
Assustado, levantei os olhos e vi que todas as pessoas dentro da loja estavam me encarando, com seus rostos retorcidos de medo e horror. — É aquele que chamam de Darren Shan! — berrou um cliente. — Dizem que ele matou aquela menina, Tara Williams... que bebeu do seu sangue e a comeu! — Ele é um vampiro! — gritou um senhor idoso e enrugado. — Tragam uma estaca! Temos que matá-lo! Isso teria sido engraçado se eu tivesse visto num filme — pensar naquele velhinho atravessando o coração endurecido de um vampiro com uma estaca era ridículo —, mas eu não tive tempo de ver o lado engraçado das coisas. Levantando as mãos para mostrar que não estava armado, saí de trás da porta. — Derek! — gritou a balconista para o jovem. — Pegue a arma e atire nele! Isso foi o suficiente. Virei-me rapidamente, saí correndo pela rua, sem parar por causa do trânsito, desviando dos carros enquanto eles freavam, ignorando os motoristas enquanto estes apertavam suas buzinas e me dirigiam ofensas. Parei na entrada do beco, onde um preocupado Harkat e o Sr. Crepsley me esperavam. Tirei da cintura o frasco de protetor solar e o dei para o vampiro. — Espalhe isso pelo seu corpo, rápido — falei, ofegante, enquanto me curvava para pegar fôlego. — O que... — Ele começou a perguntar. O vampiro arrancou a tampa do frasco e entornou metade do seu conteúdo nas mãos, passando-o no rosto, na careca e em outras áreas expostas. Esfregou a loção, entornou o resto, esfregou-o também e depois jogou o frasco no meio do lixo. — Pronto. — Estamos fritos — murmurei, enquanto me levantava. — Vocês não vão acreditar... — Lá estão eles! — alguém berrou, me interrompendo. — São eles... os Vampiros! Os três olharam em volta e eu vi o velhinho enrugado da loja arrancando um rifle das mãos do atendente de cabelos compridos. — Dê-me isso — gritou. — Eu caçava veados quando era mais jovem! Jogando a bengala para o lado, o pensionista se virou, ergueu o rifle com uma velocidade admirável e atirou. Caímos no chão enquanto a parede sobre nossas cabeças explodia em fragmentos. O velho atirou novamente, chegando ainda mais perto do alvo. Mas ele teve que fazer uma pausa para recarregar. Enquanto isso, nos levantamos, demos meia-volta e fugimos; o Sr. Crepsley balançava sua perna ferida para frente e para trás como se fosse um Long John Silver{1} insano. A multidão atrás de nós parou por um instante, sem saber se sentia medo ou
excitação. Então, rugindo furiosamente, todos pegaram pedaços de pau, barras de ferro e tampas de lata de lixo para correr atrás de nós. Não era mais uma mera multidão e sim uma turba com sede de sangue.
CAPÍTULO NOVE
Para começo de conversa, disparamos na frente da turba — humanos não se comparam a vampiros ou pequeninos em termos de velocidade —, mas de repente o tornozelo direito do Sr. Crepsley começou a inchar e seu ritmo foi aos poucos diminuindo.
— Não... bom — suspirou ele assim que paramos numa esquina para descansar. — Não posso... continuar. Vocês devem prosseguir... sem a minha companhia. — Não — respondi na mesma hora. — Estamos levando-o conosco. — Não posso... prosseguir — disse ele, apertando os dentes para suportar a dor. — Então vamos ficar e lutar — falei. — Mas temos que ficar juntos. Isso é uma ordem. O vampiro forçou um sorriso sem graça. — Cuidado, Darren — afirmou. — Você pode ser um Príncipe, mas ainda é meu assistente. Posso obrigá-lo a ter juízo se for necessário. — É por isso que tenho que mantê-lo ao meu lado — sorri. — Você não me deixa ficar convencido. O Sr. Crepsley suspirou e se curvou para esfregar a carne rósea em volta do seu tornozelo. — Olha! — disse Harkat, fazendo-nos levantar a cabeça. O Pequenino havia puxado para baixo a escada de uma saída de emergência. — Vai ficar difícil para eles nos seguirem se... chegarmos aos telhados. Temos que subir. O Sr. Crepsley acenou com a cabeça. — Harkat tem razão. — Será que a loção o protegerá do sol? — perguntei. — Do pior dele sim — respondeu meu mentor. — Estarei vermelho quando o sol se pôr, mas ela deve impedir que as queimaduras sejam graves. — Então, vamos! Fui o primeiro a subir na escada, o Sr. Crepsley veio depois e Harkat ficou por último. A turba surgiu no beco quando Harkat estava içando suas pernas, e a turma que estava na frente quase o pegou. Ele teve que chutar as mãos destes para se soltar e depois veio correndo atrás de nós. — Deixe-me atirar! — gritava o velhinho com o rifle. — Saiam da frente! Posso acertá-los! — Mas havia muita gente na viela. O aperto era muito grande e ele não conseguia levantar a arma para mirar. Enquanto os humanos brigavam para ver quem ia botar primeiro a mão na escada, nós subíamos os degraus. O Sr. Crepsley se movia mais rápido, agora que tinha uma grade para se apoiar. Ele estremeceu assim que saiu das sombras e foi atingido em cheio pela luz do sol, mas não diminuiu a velocidade. Parei no topo da saída de emergência e esperei pelo Sr. Crepsley. Enquanto estava ali em pé, sentindo-me mais confiante do que há alguns minutos, um helicóptero apareceu no meio do céu e alguém gritou para mim através de um megafone. — Parem onde estão ou vamos atirar! Falei alguns palavrões e depois gritei para o Sr. Crepsley.
— Rápido! Temos que ir agora ou... Não consegui prosseguir. Lá de cima, um atirador abriu fogo. O ar a minha volta começou a zunir por causa das balas, que emitiam um som agudo e lancinante enquanto batiam nas barras da saída de segurança. Gritando loucamente, me joguei escada abaixo e me choquei com o Sr. Crepsley e Harkat. Se o Sr. Crepsley não estivesse segurando a grade com força para aliviar a pressão em seu tornozelo machucado, teríamos todos caído lá embaixo! Descemos alguns degraus, onde o atirador não podia nos ver, e depois nos acotovelamos numa plataforma... desgraçados... encurralados. — Eles podem ter que sair... para reabastecer — disse Harkat, esperançoso. — Claro — afirmei, bufando — daqui a uma ou duas horas! — Como os humanos lá embaixo estão se saindo? — perguntou o Sr. Crepsley. Coloquei a cabeça do lado de fora e olhei para baixo. — Os primeiros conseguiram chegar no topo da escada. Estarão sobre nós daqui a um ou dois minutos. — Estamos numa boa posição pra nos defender aqui — disse o vampiro, meditando. — Eles terão que atacar em pequenos grupos. Poderemos empurrálos de volta. — Claro — bufei novamente —, mas o que isso vai trazer de bom? Mais alguns minutos e a polícia e os soldados chegarão. Não vão demorar muito tempo para subir no prédio ao lado e nos abater com seus rifles. — Estamos condenados em cima e condenados embaixo — disse Harkat, enxugando algumas gotas de suor verde de sua cabeça calva e redonda. — Só nos resta... — Ele apontou para a janela que estava atrás de nós, que dava no prédio. — Outra armadilha — reclamei. — Tudo que a polícia terá a fazer é cercar o prédio, invadi-lo com equipes armadas e nos desentocar... daí estaremos acabados. — É verdade — concordou o Sr. Crepsley, precavido —, mas e se eles tiverem que brigar para entrar? E se não estivermos aqui quando eles chegarem? Olhamos para o Sr. Crepsley com uma pergunta no olhar. — Sigam-me — disse ele, enquanto abria a janela e se arrastava para dentro. — Tenho um plano! Dando as costas para os humanos que avançavam vindos de baixo e o helicóptero que planava mais acima, Harkat e eu mergulhamos janela adentro e caímos num salão, onde o Sr. Crepsley estava em pé, tirando a poeira da camisa como se estivesse esperando um ônibus numa manhã preguiçosa de domingo. — Prontos? — perguntou assim que nos juntamos a ele. — Prontos para quê? — respondi, exasperado.
— Prontos para criar um tumulto — riu o vampiro, que andou até a porta mais próxima, parou por um instante e depois bateu nela com a parte lisa da mão. — Vampiros! — gritou. — Vampiros no prédio! Todos para fora! Ele se afastou, nos encarou e começou a contar. — Um. Dois. Três. Quat... A porta abriu como se tivesse sido arrombada e uma mulher descalça usando uma camisola minúscula saiu em disparada pelo corredor, berrando de medo e agitando as mãos sobre a cabeça. — Rápido! — gritou o Sr. Crepsley, pegando-a pelo braço e conduzindo-a na direção das escadas. — Vá para o térreo! Temos que sair! Vamos morrer se ficarmos! Os vampiros estão aqui! — Aaaaaiiii! — gritava ela, para depois correr desesperadamente escada abaixo. — Estão vendo? — disse o Sr. Crepsley, radiante. — Estou — respondi com um sorriso malicioso. — Eu também — afirmou Harkat. — Então mãos à obra — falou o vampiro, enquanto pulava para a porta seguinte, batia nela e berrava: — Vampiros! Vampiros! Cuidado com os mortosvivos! Harkat e eu nos adiantamos a ele, imitando seus gritos e batidas, e em segundos o corredor estava cheio de humanos aterrorizados, correndo para todos os lados, sem direção, uns esbarrando nos outros, quase voando rumo à segurança das escadas. À medida que íamos chegando ao fim do corredor, olhei por sobre a grade da escada e vi os que estavam descendo batendo de frente com os integrantes da turba, que haviam invadido o prédio numa tentativa de nos encontrar em seu interior. Aqueles que fugiam não tinham como sair, e aqueles que nos perseguiam não conseguiam entrar. Que maldade! — Rápido — disse Harkat, batendo nas minhas costas. — Eles estão vindo pela... escada de incêndio. Olhando para trás, vi o primeiro de nossos perseguidores enfiando a cabeça dentro da janela. Virei para a esquerda e corri para o corredor seguinte com Harkat e o Sr. Crepsley, para provocar alarmes falsos, expulsar os habitantes humanos de seus apartamentos e obstruir o corredor que ia ficando para trás. Enquanto o primeiro pelotão da turba se chocava com os moradores em pânico, pegamos outro corredor, fugimos para uma escada de incêndio que havia no outro lado do prédio, nos arrastamos para fora e pulamos para o bloco de apartamentos vizinho. Saímos em disparada por este último, espalhando a mesma mensagem de alerta, batendo em portas, alertando todos aos berros sobre a presença de vampiros, provocando o caos.
Enquanto seguíamos para os fundos do prédio, pulamos para um terceiro bloco de apartamentos e mais uma vez fizemos os humanos saírem em disparada para salvar suas vidas. Mas quando chegamos no final deste, fizemos uma pausa e olhamos para o beco lá embaixo e para o céu mais acima. Não havia sinal da horda e o helicóptero sobrevoava os dois prédios que haviam ficado para trás. Podíamos ouvir sirenes da polícia se aproximando. — Agora é hora de perdermos as estribeiras — disse o Sr. Crepsley. — O caos que ficou para trás irá durar, no máximo, um punhado de minutos. Temos que aproveitar bem este tempo. — Para onde vamos? — perguntei, vasculhando os prédios em volta. Os olhos do Sr. Crepsley se moveram de um prédio para o outro e se fixaram numa estrutura de poucos andares à nossa direita. — Vejam — disse ele, apontando. — Parece deserto. Vamos tentar chegar até lá e rezar para que a sorte dos vampiros esteja conosco. Não havia escada de incêndio onde estávamos, por isso descemos correndo as escadas que ficavam nos fundos do edifício e caímos no beco. Grudados nas paredes, nos arrastamos até o prédio no qual havíamos ficado de olho, quebramos uma janela para poder entrar — nenhum alarme soou — e nos vimos numa fábrica velha e abandonada. Subimos uns dois andares, cambaleando, e depois corremos o mais rápido que podíamos até os fundos. Lá encontramos a estrutura de um prédio de apartamentos que estava condenado. Disparando pelo andar de baixo, fomos dar no outro lado do prédio, no meio de um emaranhado de vielas apertadas, escuras e desertas. Paramos e ficamos atentos a sons de perseguição. Não havia nenhum. Trocamos olhares rápidos e vacilantes, e depois eu e Harkat abraçamos o Sr. Crepsley. Ele ergueu seu pé direito doído e seguimos mancando num ritmo mais lento do que antes, aproveitando o momento de repouso, mas calejados o suficiente para saber que ainda não havíamos saído da frigideira. Não mesmo. Fugimos pelo meio das vielas. Passamos por algumas pessoas, mas nenhuma delas prestou atenção em nós — a tarde estava ficando escura, com nuvens pesadas enchendo de sombras os becos já sombrios. Podíamos enxergar claramente com nossa visão aguçada, mas para os humanos nós parecíamos ser nada mais do que figuras vagamente definidas à meia-luz. Nem a horda e nem a polícia nos seguia. Ainda podíamos ouvir o tumulto que eles criavam, mas que não chegou a sair dos três blocos de apartamentos que havíamos aterrorizado. Por enquanto, estávamos livres. Paramos atrás dos fundos de um supermercado para tomar fôlego. A perna direita do Sr. Crepsley estava roxa até a altura do joelho e ele devia estar sentindo uma dor imensa. — Precisamos de gelo — afirmei. — Eu poderia entrar no supermercado e...
— Não — vociferou o vampiro. — Você já inspirou uma horda com esse negócio de fazer compras. Podemos nos sair muito bem sem ter que incitar uma outra. — Só estava tentando ajudar — murmurei. — Eu sei — disse ele, suspirando —, mas riscos precipitados só fazem piorar as coisas. Meu ferimento não é tão sério quanto parece. Algumas horas de descanso e tudo vai ficar bem. — E que tal essas caçambas? — perguntou Harkat, batendo em dois grandes compartimentos de lixo pretos. — Poderíamos rastejar para dentro deles e esperar... o cair da noite. — Não — retruquei. — As pessoas usam caçambas como essas o tempo todo. Seríamos descobertos. — Então aonde? — insistiu Harkat. — Não sei — falei rispidamente. — Talvez possamos encontrar um apartamento vazio ou um prédio abandonado. Poderíamos nos enfiar no de Débora se ele estivesse perto daqui, mas estamos tão longe... Parei e me fixei numa placa de rua ao lado do supermercado. — Travessa Baker — murmurei, esfregando a parte superior do nariz. — Conheço este lugar. Já estivemos aqui antes, quando procurávamos os assassinos vampixiitas, e antes de encontrarmos C.C. e Lucas. — Viajamos para tudo quanto é lugar em nossa busca pelos assassinos — comentou o Sr. Crepsley. — Sim, mas me lembro desse lugar porque... porque... — Franzi a testa e então me veio a lembrança que me fez estalar os dedos. — Porque Richard mora aqui perto! — Richard? — disse o Sr. Crepsley, franzindo a sobrancelha. — O seu amigo do colégio? — Sim — respondi, entusiasmado. — A casa dele fica a apenas três ou quatro minutos daqui. — Você acha que ele vai nos abrigar? — perguntou Harkat. — Talvez, se eu puder lhe explicar o que está acontecendo. — Os outros o olharam com desconfiança. — Vocês têm alguma idéia melhor? — desafiei-os. — Richard é meu amigo, confio nele. O pior que pode fazer é nos dar as costas. O Sr. Crepsley pensou por um instante e depois acenou positivamente com a cabeça. — Muito bem. Vamos lhe pedir ajuda. Como você disse, não temos nada a perder. Deixamos o supermercado, seguimos direto para a casa de Richard e desta vez fiquei saltitando de alegria. Tinha certeza que ele iria nos ajudar. Afinal de contas, eu havia salvado sua vida nas escadarias da Mahler’ s. Chegamos na casa de Richard em pouco mais de quatro minutos. Sem
perder tempo, subimos no telhado e nos escondemos na sombra de uma larga chaminé. Vi uma luz vinda do quarto dele no primeiro piso, por isso, assim que me certifiquei de que Harkat e o Sr. Crepsley estavam instalados, me arrastei até a beira do telhado e me agachei. — Espere — sussurrou o Sr. Crepsley, enquanto se aproximava de mim. — Eu vou com você. — Não — sussurrei de volta. — Ele pode se assustar ao ver vocês. Deixa eu ir sozinho. — Muito bem — disse ele —, mas ficarei esperando do lado de fora da janela, caso você corra perigo. Eu não imaginava que tipo de perigo poderia correr, mas o Sr. Crepsley estava com uma expressão resoluta, por isso simplesmente acenei, me dependurei no telhado, segurando-me com os dedos dos pés, enfiei as unhas das mãos nas pedras da parede e depois desci até o quarto de Richard como se fosse uma aranha. As cortinas estavam fechadas, mas não totalmente, por isso pude ver o interior do quarto do meu amigo. Richard estava deitado em sua cama, com um saco de pipocas na mão e um copo de suco de laranja apoiado em cima do peito, vendo uma reprise da Família Adams. Richard ria das palhaçadas que as aberrações faziam na TV, e eu tive que rir de como era bizarro ele estar assistindo àquilo na mesma hora em que três aberrações noturnas da vida real haviam acabado de aparecer. O destino tem um senso de humor estranho. Pensei em bater na janela, mas isso poderia assustá-lo. Examinei a tranca simples que havia por dentro do vidro, a apontei para o Sr. Crepsley (que havia escalado a parede atrás de mim) e ergui as sobrancelhas para fazer uma pergunta silenciosa: — Você pode abri-la? O vampiro roçou os dedos polegar, indicador e médio da mão direita muito, mas muito rapidamente. Assim que produziu uma forte estática, ele baixou a mão, apontou para a tranca e fez um pequeno gesto na intenção de erguê-la. Nada aconteceu. O vampiro fechou a cara, se arrastou para olhar mais de perto e depois bufou. — Ela é feita de plástico! — Virei-me para o lado a fim de esconder um sorriso. — Não importa — disse o Sr. Crepsley, enquanto fazia um pequeno buraco no vidro com a unha do seu dedo indicador direito. Aquilo só produziu um pequeno rangido, que Richard não ouviu por causa do som da TV. O Sr. Crepsley empurrou o vidro para dentro, abriu a tranca com o dedo e depois saiu da frente para que eu pudesse passar. Respirando fundo para me acalmar, abri a janela com um empurrão e
entrei no quarto o mais despreocupadamente possível. — Oi, Richard — falei. A cabeça de Richard se virou de repente. Quando percebeu quem era, seu queixo caiu e ele começou a tremer. — Está tudo bem — continuei, me aproximando um pouco mais da cama, erguendo as mãos num gesto de amizade. — Não vou machucá-lo. Estou em apuros, Richard, e preciso da sua ajuda. Estou com vergonha de lhe pedir isso, mas será que eu podia me esconder aqui com dois dos meus amigos por algumas horas? Vamos ficar no guarda-roupa ou debaixo da cama. E não vamos incomodar, prometo. — Vam-vam-vam... — gaguejou Richard, com os olhos arregalados de medo. — Richard? — perguntei, preocupado. — Você está bem? — Vam-vam-vampiro! — disse ele em voz baixa, apontando um dedo trêmulo na minha direção. — Oh — afirmei. — Você soube. Sim, sou um meio-vampiro, mas não é nada do que você está pensando. Não sou mau e nem assassino. Deixe-me chamar meus amigos, e assim que ficarmos à vontade, vou lhe contar tudo sobre... — Vampiro! — gritou Richard, mais alto desta vez, para então se virar na direção da porta do quarto e berrar com todo o ar dos pulmões: — Mamãe! Papai! Vampiros! Vampiros! Vampiros! Vam... Seus gritos foram abafados pelo Sr. Crepsley, que entrou no quarto, passou voando por mim, e segurou o garoto pelo pescoço, respirando bem no seu rosto. Gases subiram pelo nariz de Richard e entraram em sua boca. Durante um segundo ele lutou, aterrorizado. Até que suas feições relaxaram, seus olhos se fecharam e ele caiu de novo na cama. — Vá dar uma olhada na porta! — disse o Sr. Crepsley, sibilando, rolando para fora da cama e se agachando no chão, em posição de defesa. Obedeci imediatamente, muito embora a reação de Richard tivesse me deixado com um aperto no peito. Abri uma fresta da porta e fiquei ouvindo para ver se a família de Richard estava vindo verificar a razão dos seus gritos. Mas eles não vieram. O aparelho de TV maior da sala de estar estava ligado e o barulho deve ter encoberto os berros do menino. — Está tudo bem — afirmei, fechando a porta. — Estamos seguros. — Grande amizade — vociferou o Sr. Crepsley, tirando algumas pipocas que haviam ficado grudadas em suas roupas. — Ele ficou apavorado — falei, com tristeza, enquanto olhava para Richard. — Somos amigos... ele me conhecia... eu salvei sua vida... e mesmo assim achou que eu estava aqui para matá-lo. — Ele acredita que você é um monstro sedento por sangue — afirmou o Sr.
Crepsley. — Os humanos não entendem os vampiros. Sua reação foi previsível. Teríamos antecipado isso e o deixado em paz se tivéssemos pensado claramente. O Sr. Crepsley se virou lentamente e vasculhou o quarto. — Este seria um bom lugar para nos escondermos. A família do garoto provavelmente não irá incomodá-lo quando vir que ele está dormindo. Há bastante espaço no guarda-roupa. Acho que nós três cabemos lá dentro. — Não — falei com firmeza. — Não vou me aproveitar dele. Se tivesse oferecido sua ajuda, tudo bem. Mas não o fez. Estava com medo de mim. Seria errado ficar. A expressão do Sr. Crepsley mostrou qual era a sua opinião, mas ele respeitou a minha vontade e seguiu na direção da janela sem discutir. Estava indo atrás dele quando vi que, durante a breve contenda, a pipoca havia caído em cima dos lençóis e o copo de suco de laranja entornara. Assim que parei para colocar a pipoca de novo dentro do saco, encontrei uma caixa de lenços de papel, arranquei alguns e os usei para limpar o grosso do suco de laranja entornado. Certifiquei-me de que estava tudo bem com Richard, coloquei a TV em modo silencioso, despedi-me em silêncio do meu amigo e saí calmamente, para continuar fugindo dos humanos mal orientados que queriam acabar comigo.
CAPÍTULO DEZ
Seguimos pelos telhados. Não havia helicópteros por perto e as sombras da tarde escura nos mantinham escondidos, por isso parecia mais seguro seguir em frente pelo alto, onde poderíamos ganhar um bom tempo. Movendo-nos cuidadosa, porém rapidamente, visamos áreas bem distantes
do caos que havia ficado para trás, onde poderíamos nos esconder para passar a noite. Durante quinze minutos ficamos pulando e deslizando de um telhado para o outro, sem sermos vistos por ninguém, afastando-nos cada vez mais dos humanos que estavam nos caçando. Finalmente chegamos num velho silo caindo aos pedaços — um prédio no qual grãos costumavam ser armazenados. Ainda havia uma escada em espiral pela qual se podia entrar no prédio pelo lado de fora, embora os primeiros degraus estivessem apodrecidos e já começassem a esfarelar. Pulando de um telhado para a parte superior das escadas, subimos até o topo, abrimos com um chute a porta que estava trancada e entramos. Fechamos a porta e fomos adentrando o silo cada vez mais por uma passagem estreita, até chegarmos numa plataforma semicircular, onde nos deitamos. Havia buracos e frestas no teto acima e a luz opaca era forte o suficiente para que pudéssemos enxergar o que havia lá fora. — Vocês acham que ficaremos... seguros aqui? — perguntou Harkat, abaixando a máscara. Filetes de suor verde inundavam as cicatrizes e suturas do seu rosto cinzento. — Sim — respondeu o Sr. Crepsley, confiante. — Eles terão que organizar uma busca completa. Não se darão ao luxo de deixar uma só pedra desvirada. Isso os retardará. Só de manhã ou mais tarde é que conseguirão chegar até esta parte da cidade. — O vampiro fechou os olhos e massageou suas pálpebras. Mesmo ensopada de protetor solar, sua pele havia ficado rosada. — Como você está? — perguntei. — Melhor do que podia esperar — respondeu ele, ainda esfregando as pálpebras. — Comecei a sentir uma dor de cabeça terrível, mas agora que não estou mais debaixo da luz solar, talvez ela diminua de intensidade. — Meu mentor abaixou os dedos, abriu os olhos, alongou a perna direita e olhou, horrorizado, para a carne inchada que ia do seu tornozelo até o joelho. Ele havia tirado os sapatos mais cedo, o que fora uma boa idéia, mas eu duvidava que pudesse tirar o sapato direito agora. — Só espero que isso passe também — murmurou. — Você acha que vai? — perguntei, enquanto examinava o machucado feio. — Com sorte — afirmou, esfregando a perna com cuidado. — Se não, teremos que sangrá-la. — Você quer dizer cortá-la e deixar o sangue escorrer? — perguntei. — Sim. Momentos de desespero clamam por medidas desesperadas. Mas vamos esperar e ver... com sorte o ferimento vai sarar sozinho. Enquanto o Sr. Crepsley cuidava do tornozelo, eu fiquei tirando as correntes que envolviam os meus pulsos e pernas e tentei abrir as trancas. O Sr. Crepsley havia me ensinado os princípios básicos de como abrir fechaduras, mas ainda não tinha pegado o jeito da coisa. — Veja — disse ele alguns minutos depois, quando viu que eu não chegava a
lugar nenhum. O vampiro trabalhou rapidamente nos fechos e em segundos as correntes e algemas estavam amontoadas no chão. Esfreguei a minha pele livre agradecido e depois me voltei para Harkat, que estava usando a bainha de seu manto para enxugar o suor verde do rosto. — Por que eles não colocaram algemas em você? — perguntei. — Eles colocaram — respondeu o Pequenino —, mas as tiraram... assim que entrei na minha cela. — Por quê? A boca enorme do Pequenino se abriu num sorriso pavoroso, cheio de malícia. — Eles não sabiam o que eu era ou... o que fazer comigo. Perguntaram se eu estava sentindo... dor, então disse que sim. Perguntaram se as algemas estavam... machucando, então disse que sim. E então as tiraram. — Assim, simplesmente? — Sim — respondeu, rindo. — Que indigente sortudo — afirmei, torcendo o nariz. — Ser parecido com algo inventado pelo... Dr. Frankenstein tem as suas vantagens, às vezes — informou-me Harkat. — Também era por isso que eu estava... sozinho. Pude ver que eles estavam inquietos... à minha volta, pouco depois que eles começaram a me... entrevistar, pedi para que não me tocassem... disse que sofria de uma doença infecciosa. Você devia tê-los visto... correndo! Nós três demos gargalhadas em voz alta. — Você devia ter-lhes dito que era um cadáver que havia ressuscitado — afirmei, rindo. — Isso os teria feito pararem de se preocupar tanto! Relaxamos depois disso e nos deitamos apoiados na parede do silo, sem dizer muita coisa, com os olhos meio fechados, ruminando sobre os acontecimentos do dia e da noite que estava por vir. Eu estava com sede, por isso, depois de um tempo, subi pelas escadas internas e fui atrás de um pouco d’água. Não encontrei nada, mas achei algumas latas de feijão numa prateleira em cima de uma das salas que ficavam na fachada do prédio. Trouxe-as comigo, as abri com as unhas e eu e o Sr. Crepsley nos empanturramos. Harkat não estava com fome — ele podia passar dias a fio sem comida se fosse necessário. Os feijões se acomodaram perfeitamente no meu estômago — frios como estavam — e por isso fiquei deitado por uma hora, calmo e pensativo. Não estávamos com nenhuma pressa. Tínhamos até meia-noite para nos encontrarmos com Vancha (supondo que ele havia conseguido fugir) e não levaríamos mais do que duas horas para seguir pelos túneis até a caverna onde havíamos enfrentado os vampixiitas. — Você acha que Lucas escapou? — perguntei por acaso. — Estou certo disso — respondeu o Sr. Crepsley. — Aquele sujeito tem a
sorte de um demônio e uma astúcia equivalente. — Ele matou gente... policiais e enfermeiras... enquanto estava fugindo. O Sr. Crepsley suspirou. — Não pensei que ele fosse capaz de atacar aqueles que o ajudaram. Eu o teria matado antes de sermos presos se soubesse o que estava planejando. — Como você acha que ele ficou tão malévolo? Ele não era assim quando o conheci. — Sim, era — discordou o Sr. Crepsley. — Ele ainda não havia desenvolvido sua personalidade maligna. Nasceu mau, como acontece com certas pessoas. Os humanos lhe dirão que todos podem ser ajudados, que todos têm uma chance. De acordo com a minha experiência, as coisas não são bem assim. Pessoas boas às vezes podem optar pela maldade, mas pessoas más não podem optar pelo inverso. — Não acredito nisso — afirmou Harkat calmamente. — Acho que o bom e o mau existem... em todos nós. Podemos nascer inclinados a nos tornarmos... mais um do que o outro, mas o direito de escolha está lá. Tem que estar. Caso contrário, somos meros... títeres do destino. — Talvez — resmungou o Sr. Crepsley. — Muitos vêem a coisa assim. Mas eu não concordo. A maior parte das pessoas nasce com liberdade para escolher. Mas há aqueles que desafiam as regras, que são malignos desde o princípio. Talvez eles sejam títeres do destino, nasceram daquele jeito por uma razão, para nos testar. Não sei. Mas monstros naturais existem. Nesse ponto, nada do que você disser pode abalar os meus conceitos. E Lucas Leonardo é um deles. — Mas então isso não é culpa dele — afirmei, franzindo a testa. — Se ele nasceu mau, não pode ser culpado por ter crescido e virado esse demônio. — Não mais do que um leão poderia ser culpado por ter se tornado um predador — concordou o Sr. Crepsley. Pensei naquilo. — Se esse é o caso, não deveríamos odiá-lo... deveríamos sentir pena dele. O Sr. Crepsley balançou a cabeça. — Não, Darren. Você não deve odiar ou sentir pena de um monstro... deve simplesmente temê-lo e fazer tudo que está ao alcance das suas forças para destruí-lo, antes que ele possa fazer o mesmo com você. — Inclinando-se para frente, ele bateu na plataforma dura com os nós dos dedos. — Mas lembre-se — afirmou com firmeza. — Quando nos aventurarmos nos túneis hoje à noite, Lucas Leonardo não será nosso inimigo principal... e sim o Senhor dos Vampixiitas. Se aparecer uma chance para matar Leonardo, aproveite-a de qualquer jeito. Mas se tiver que optar entre ele e o Senhor ao qual serve, ataque primeiro o segundo. Temos que colocar nossos sentimentos pessoais de lado e nos concentrar em nossa missão.
Harkat e eu acenamos para o vampiro, concordando, mas ele ainda não havia terminado. Apontando para mim com um dedo longo e ossudo, o vampiro prosseguiu: — Isso também se aplica à Srta. Cicuta. — O que você quer dizer? — perguntei. — Os vampixiitas podem usá-la para nos tentar. Sabemos que eles não podem nos matar... só o seu Senhor pode ousar nos retalhar. Então, eles poderão tentar nos separar, tornando assim mais fácil a nossa captura. Será doloroso, mas você precisa deixar todo o sentimento que tem por Débora de lado, até cumprirmos a nossa missão de matar o Senhor dos Vampixiitas. — Não sei se vou conseguir fazer isso — afirmei, com o olhar abatido. O Sr. Crepsley me encarou com firmeza e depois baixou a cabeça. — Você é um Príncipe — afirmou calmamente. — Não posso lhe dar ordens. Se o seu coração está seduzido por Débora e se for impossível resistir ao seu chamado, você deve segui-lo. Mas peço para que se lembre dos vampiros que serve e do que acontecerá ao nosso clã caso falhemos. Acenei, sóbrio. — Não me esqueci. Só não tenho certeza se, no calor do momento, estarei em condições de abandoná-la. — Mas você sabe que deve? — insistiu o vampiro. — Você entende como é importante fazer a opção certa? — Sim — sussurrei. — Basta. Confio em você para que faça as escolhas certas. Franzi a sobrancelha. — Você parece cada vez mais com Sebá Nilo, a cada ano que passa — comentei secamente. Sebá fora o vampiro que ensinara ao Sr. Crepsley as regras do clã. — Tomarei isso como um elogio — disse ele, sorrindo, para depois se recostar, fechar os olhos e descansar em silêncio, deixando-me a sós para pensar em Débora e no Senhor dos Vampixiitas, e contemplar a decisão desesperada que eu poderia ser obrigado a tomar.
CAPÍTULO ONZE
O tornozelo do Sr. Crepsley havia melhorado consideravelmente na hora em que deixamos o silo para enfrentar o nosso destino. Sua carne ainda estava coberta por uma mancha roxa horrorosa, mas o pior do inchaço havia sumido. Ele testou o tornozelo o mínimo possível durante a nossa jornada pelos túneis, mas
conseguiu ficar em pé quando precisou, sem ser amparado. Não houve rebuliço algum quando resolvemos adentrar a escuridão ameaçadora. Quando chegou a hora, simplesmente descemos os degraus do silo, irrompemos por uma porta que havia sido fechada com tábuas, encontramos um bueiro, nos enfiamos por debaixo das ruas e seguimos em frente. Não encontramos nenhum vampixiita ou armadilhas. Não falamos nada durante a jornada. Cada um de nós sabia o quanto aquilo tudo era sério e o quanto nossa condição era desfavorável. A vitória era improvável e, mesmo se viesse, fugir parecia impossível. Se conseguíssemos matar o Senhor dos Vampixiitas, nossos seguidores iriam com certeza acabar conosco para se vingar, já que suas mãos não estariam mais atadas pelas profecias do Sr. Tino. Estávamos marchando rumo ao nosso destino e as línguas tendiam a parar de se mexer nessas Horas, por mais coragem que tivéssemos. Depois de uma longa e tranqüila jornada, alcançamos os túneis recémconstruídos, mais secos e quentes em comparação com as vias mais antigas, e bastou uma curta caminhada para chegarmos na caverna onde havíamos enfrentado os vampixiitas há menos de vinte e quatro horas. Vinte e quatro horas... pareciam anos! Diversas velas acesas foram colocadas em cantos espalhados pelas paredes e a luz revelava uma caverna aparentemente deserta. Os corpos dos vampixiitas que matamos na noite anterior haviam sido arrastados, embora ainda houvesse poças com sangue seco. A porta enorme do outro lado da caverna estava fechada. — Andem com cuidado — disse o Sr. Crepsley, assim que parou na entrada. — Mantenham suas armas abaixadas e... Ele parou abruptamente e ficou com cara de tacho. Pigarreou e falou num tom de voz surpreendentemente manso. — Algum de vocês está armado? — É claro que sim... — comecei e parei tão subitamente quanto o Sr. Crepsley, enquanto minha mão descia para a cintura, onde minha espada normalmente estaria embainhada. Mas não agora. Eu a abandonara quando fui preso e, com tudo que havia acontecido desde então, não me ocorreu substituí-la. — Hum... você não vai acreditar nisso... — murmurei. — Você também se esqueceu? — perguntou o Sr. Crepsley, suspirando. Olhamos com ar suplicante para Harkat. O Pequenino balançou a cabeça cinzenta sem pescoço. — Desculpem. — Que brilhante! — vociferou o vampiro. — É a batalha mais importante das nossas vidas e viemos desarmados. Que tipo de idiotas somos nós? — Os maiores que já espreitaram as sombras da noite — falou alguém cuja voz vinha de dentro da caverna.
Congelados, olhamos para a escuridão, com os dedos estremecidos e impotentes. Até que uma cabeça surgiu por cima do vão da porta e nossos corações se acalmaram novamente dentro dos peitos. — Vancha! — comemoramos. — O primeiro e único — disse o Príncipe, sorrindo. Ele desceu do teto, balançando-se onde estava pendurado. Assim que aterrissou, virou-se para nos saudar. Harkat e eu corremos para abraçar o homem sujo e malcheiroso de cabelo pintado de verde, coberto por peles de animais. Os olhos grandes de Vancha se arregalaram, surpresos. Logo depois, sua boca pequena esboçou um sorriso. — Seus tontos e idiotas — falou ele, rindo, enquanto nos abraçava também. E estendeu os braços na direção do Sr. Crepsley. — Você não tem um abraço para mim, Larten, meu velho camarada? — perguntou em voz baixa. — Você sabe onde pode enfiar o seu abraço — retrucou o Sr. Crepsley. — Oh, que ingratidão — lamentou-se Vancha, para depois nos soltar e dar um passo atrás, acenando para que entrássemos na caverna. — É verdade o que acabei de ouvir? Que vocês vieram desarmados? — Tivemos uma tarde difícil — disse o Sr. Crepsley, fungando, com o rosto enrubescido. — Deve ter sido a tarde mais terrível da história para vocês terem se esquecido de vir armados para a briga do século — falou Vancha, rindo a valer, para depois ficar mais sério. — Vocês conseguiram escapar com tranqüilidade? Algum aborrecimento? — Nossa fuga foi relativamente fácil — disse o Sr. Crepsley. — Houve alguns momentos complicados ao longo do caminho... já fazia muito tempo que eu não fugia de uma horda enfurecida... mas considerando tudo, acho que nos saímos esplendidamente bem. Nossos captores, no entanto, não tiveram tanta sorte... Ele falou para Vancha sobre Lucas, e os guardas e as enfermeiras que o meio-vampixiita matou. O rosto corado de Vancha — ele passou muitas décadas envolvido num duelo particular com o sol — ficou ainda mais escuro quando ouviu as notícias. — O apelido desse sujeito foi muito bem escolhido — resmungou. — Se já houve um ser humano cuja alma esteve ligada a um leopardo, foi ele. Só peço aos deuses para que eu possa ter uma chance de rasgar sua garganta hoje à noite. — Você terá que entrar na fila — afirmei. Ninguém riu. Sabiam que eu não estava brincando. — De qualquer maneira — prosseguiu Vancha —, uma questão de ordem de cada vez. Não vou ligar se tiver que pegar os vampixiitas de mãos vazias... é a minha maneira favorita de lutar — mas vocês três vão precisar de mais do que seus próprios punhos e pés para que tenham alguma chance de sair dessa com
vida. Por sorte, o titio Vancha andou ocupado. Sigam-me. Vancha nos levou para um dos cantos mais escuros da caverna, onde havia armas empilhadas ao lado de uma figura grande e imóvel. — Onde você arrumou essas? — perguntou Harkat, pulando sobre as armas antes que eu e o Sr. Crepsley tivéssemos a chance. Revirando-as, ele encontrou uma faca denteada e um pequeno machado de duas cabeças, o qual ele girou por sobre a cabeça, encantado. — Os vampixiitas as largaram por aí enquanto estavam recolhendo os seus mortos — explicou Vancha. — Imagino que eles supunham que viríamos armados. Se soubessem o quanto vocês são cabeças-ocas, teriam tomado mais cuidado. Ignorando as zombarias do Príncipe, eu e o Sr. Crepsley reviramos a pilha. Ele pegou duas facas longas e algumas menores para lançar. Encontrei uma adaga da qual gostei. Enfiei uma das facas no bolso de trás da minha calça, para uma emergência, e então fiquei pronto. — O que é isso? — perguntou Harkat, acenando com a cabeça na direção do corpo grande que estava no chão. — Minha convidada — respondeu Vancha, enquanto rolava a figura para cima. O rosto branco e pálido de uma amarrada, amordaçada e enfurecida inspetora-chefe Alice Burgess veio à tona. — Urfl guffle snurf! — gritava ela, em meio às dobras de sua mordaça, deixando claro que não estava nos saudando ou desejando sucesso em nossa empreitada. — O que ela está fazendo aqui? — vociferei. — Ela me fez companhia — disse Vancha, com um sorriso malicioso. — Além do mais, eu não sabia o que esperar quando retornasse. Se a polícia tivesse vindo pelos túneis e esgotos, eu poderia precisar dela para negociar a minha passagem. — O que pretende fazer com ela agora? — perguntou o Sr. Crepsley, friamente. — Não tenho certeza — respondeu Vancha, franzindo a testa, enquanto se agachava para examinar a inspetora-chefe. — Tentei lhe explicar tudo enquanto passávamos o dia numa floresta a algumas milhas de distância da cidade, mas acho que ela não acreditou em mim. De fato, pelo que me mandou fazer com meus contos de vampiros e vampixiitas, sei que não acreditou! — O príncipe fez uma pausa. — Dito isso, há de se convir que ela seria uma ótima pessoa para termos do nosso lado. Pode ser que venhamos a precisar de um par a mais de mãos na batalha que está por vir. — Será que poderíamos confiar nela? — perguntei. — Não sei — afirmou Vancha. — Mas há uma maneira de descobrir.
Vancha começou a desamarrar os nós da mordaça da inspetora-chefe. Ele parou no último nó e se dirigiu a ela com firmeza. — Só vou dizer isso uma vez, por isso preste atenção. Estou certo de que o primeiro impulso que você terá quando for solta será gritar, dizer palavrões e nos falar da encrenca em que estamos metidos. E quando estiver de pé, com uma arma na mão, poderá ficar com vontade de nos apunhalar e se vingar. Ele fez uma pausa antes de prosseguir. — Não! — Seu olhar era austero. — Sei o que você pensa sobre nós, mas está errada. Não matamos a sua gente. Estamos aqui para pegar os assassinos. Se você quer colocar um fim nesse suplício, venha conosco e lute. Você não tem nada a ganhar nos atacando. Mesmo se não estiver acreditando no que estou dizendo, aja como se estivesse. Caso contrário, a deixarei aqui, embrulhada que nem um peru. — Animal! — falou a plenos pulmões a inspetora-chefe, enquanto Vancha removia sua mordaça. — Vou vê-los enforcados por isso, todos vocês. Terão as cabeças raspadas, manchadas de alcatrão e cobertas de penas, para depois serem incineradas enquanto seus corpos ficam balançando! — Ela não é magnífica? — perguntou Vancha sorrindo, enquanto soltava seus braços e pernas. — Ficou assim a tarde toda. Acho que estou ficando apaixonado. — Seu bruto! — gritou ela, enquanto avançava em sua direção. Vancha a pegou pelo braço e a segurou no ar, com uma expressão ameaçadora. — Lembra-se do que eu disse, Alice? Não quero deixá-la aqui, a mercê dos nossos inimigos, mas o farei se você me forçar a tal. A inspetora-chefe o encarou com raiva, para depois virar a cabeça de lado, aborrecida, e calou a boca. — Melhor assim — disse Vancha, enquanto a soltava. — Agora pegue uma arma... duas ou três se preferir... e prepare-se. Temos um exército das trevas para enfrentar. A inspetora-chefe nos fitou, indecisa. — Vocês são malucos — murmurou ela. — Vocês esperam que eu acredite que são vampiros, mas não assassinos? Que estão aqui para acabar com um bando de... como vocês os chamam? — Vampixiitas — respondeu Vancha, alegremente. — Que esses vampixiitas são os vilões e vocês estão aqui para atacá-los, muito embora eles estejam em dezenas e vocês sejam quatro? — Isso resume tudo — afirmou Vancha, com um sorriso malicioso —, tirando o fato de que agora somos cinco, o que deve fazer toda a diferença. — Seu maluco — resmungou Alice, mas mesmo assim se abaixou para pegar uma longa faca de caçador, a testou, e pegou mais algumas poucas facas.
— O.K. — prosseguiu, enquanto se levantava. — Não acredito na sua história, mas por enquanto irei acompanhá-los. Se dermos de cara com esses vampixiitas e se eles forem tudo isso que estão dizendo, ficarei do seu lado. Se não... — Ela apontou para a garganta de Vancha com a maior das facas e a puxou rapidamente para um dos lados. — Adoro quando você fala em tom ameaçador — disse Vancha, rindo, para depois ver se todos estavam preparados, enrolar seus cintos de shurikens em volta do peito e nos conduzir na busca do covil dos vampixiitas.
CAPÍTULO DOZE
Não fomos muito longe antes de toparmos com nosso primeiro obstáculo. A porta enorme que dava para o lado de fora da caverna estava fechada e não abria. Era o tipo de porta que você encontra em cofres-fortes de bancos. Havia uma grande fileira de trancas com combinações no meio, debaixo de um trinco circular.
— Fiquei mais de uma hora tentando abrir isso aqui — disse Vancha, batendo nos pequenos cadeados enfileirados. — Não consegui entender nada. — Deixe-me dar uma olhada — disse o Sr. Crepsley, dando um passo à frente. — Não sou muito perito em trincos como esses, mas já consegui entrar em cofres antes. Poder ser que eu... — Ele foi diminuindo o tom de voz, ficou examinando as trancas por um minuto, depois disse um palavrão em alto e bom som e chutou a porta. — Algo errado? — perguntei delicadamente. — Não podemos ir por aqui — vociferou. — As combinações são muito complexas. Teremos que encontrar um caminho alternativo. — É mais fácil falar do que fazer — respondeu Vancha. — Já vasculhei a caverna em busca de túneis e passagens secretas... não encontrei nenhuma. Este lugar foi especialmente construído para a ocasião. Acho que a única passagem é por aqui. — E quanto ao teto? — perguntei. — Os vampixiitas desceram por ele na última vez em que passamos por aqui. — Há painéis removíveis no topo da caverna — disse Vancha — mas o espaço acima deles só pode ser acessado por aqui, não pelo túnel. — Será que não podíamos atravessar a parede, em volta da porta? — perguntou Harkat. — Eu tentei — disse Vancha, acenando na direção de um buraco que ele havia feito alguns metros à nossa esquerda. Ela é revestida de aço. Aço reforçado. Até mesmo os vampiros têm os seus limites. — Isso não faz sentido — murmurei. — Eles sabiam que viríamos. Querem que venhamos. Por que nos deixariam presos aqui? Deve haver uma passagem. — Agachei-me e examinei as fileiras de pequenos mostradores, cada um deles continha dois números. — Explique-me esta tranca — pedi ao Sr. Crepsley. — É uma combinação. Isso é bem claro. Os medidores estão aqui embaixo. — Ele apontou para uma série de pequenos discos no meio dos mostradores. — Se você os virar no sentido horário, obterá um número mais alto; se o fizer no sentido anti-horário, um mais baixo. Quando os números corretos estiverem selecionados em todas as quinze janelas, a porta se abrirá. — E cada número é diferente? — perguntei. — Suponho que sim. — Ele suspirou. — Quinze trancas diferentes, quinze números diferentes. Eu poderia acabar descobrindo o segredo, mas levaria vários dias e noites. — Isso não faz sentido — repeti, olhando para os números sem sentido nas janelas. — Lucas ajudou a projetar essa armadilha. Ele não teria construído algo pelo qual não poderíamos passar. Deve haver... — Parei. Os dois últimos mostradores estavam vazios. Apontei-os para o Sr. Crepsley e perguntei o porquê. — Elas não devem fazer parte do código — disse ele.
— Então só temos que nos preocupar com treze números? Ele sorriu, pesarosamente. — Isso deve nos poupar metade de uma noite ou coisa parecida. — Por que treze? — pensei em voz alta, e depois fechei os olhos e tentei imaginar o que Lucas deve ter pensado (não se tratava de uma experiência agradável!). Ele tivera uma enorme paciência para nos enganar e nos levar à derrota, mas agora que estávamos perto do fim, não dava para imaginá-lo colocando uma pedra no nosso caminho que levaria uma semana para ser removida. Deveria sim, estar ansioso para nos pegar. O código que ele escolheu devia ser um daqueles bem rápidos de decifrar, por isso tinha que ser simples; algo que parecesse impossível, mas que na realidade era simples como... Suspirei e então comecei a contar. — Tente esses números enquanto eu os canto — disse para o Sr. Crepsley, com os olhos ainda fechados. — Doze... Vinte e um... Três... Continuei até chegar em... — Quatro... Quinze. — Parei e abri os olhos. O Sr. Crepsley girou o último contador anti-horário para quinze. Ouviu-se um clique e o trinco circular pulou para fora. Surpreso, o vampiro o pegou e o girou. Ele virou facilmente ao seu toque e a porta redonda se abriu. O Sr. Crepsley, Harkat e Vancha me encararam, admirados. — Como...? — perguntou Vancha, ofegante. — Ah, por favor! — disse Alice Burgess, bufando. — Não é óbvio? Ele simplesmente converteu o alfabeto em números, começando com um e terminando com vinte e seis. É o código mais simples que existe. Uma criança poderia decifrá-lo. — Oh — disse Harkat. — Agora entendi. A era I, B era... 2, e daí por diante. — Certo — afirmei, sorrindo. — Usando tal código, escrevi “Lucas Leopardo”. Sabia que seria algo fácil assim. — A educação não é maravilhosa, Larten? — disse Vancha, com um sorriso malicioso. — Vamos ter que assistir aulas noturnas quando tudo isso terminar. — Quieto! — vociferou o Sr. Crepsley, que não estava se divertindo nem um pouco. Ele olhava para a escuridão do túnel que prosseguia. — Lembre-se de onde estamos e de quem estamos enfrentando. — Você não pode falar com um Príncipe assim — resmungou Vancha, enquanto se alongava e se concentrava na extensão do túnel que tinha pela frente. — Façam fila — disse ele, enquanto avançava para ficar na dianteira. — Eu vou na frente, Harkat em segundo, Alice no meio, Darren atrás e Larten por último. Ninguém discutiu. Embora fôssemos todos da mesma categoria, Vancha era muito mais experiente, e ninguém tinha dúvidas sobre quem estava comandando a operação. Assim que entramos no túnel, começamos a avançar. Embora o teto não
fosse alto, o túnel era largo e dava para caminhar confortavelmente. Havia tochas presas nas paredes em intervalos regulares. Procurei por bifurcações do túnel principal, mas não consegui ver nenhuma. Continuamos seguindo em frente. Havíamos percorrido algo em torno de quarenta metros quando um som agudo e ressonante vindo de trás fez todos nós darmos um pulo. Assim que nos viramos, vimos alguém em pé no vão da porta que havíamos acabado de atravessar. Quando nos aproximamos da luz da tocha mais próxima, soubemos imediatamente quem era aquele sujeito com ganchos em cima da cabeça — C.C.! — Senhora e senhores! — disse ele, num rugido. — Bem-vindos! Os proprietários da Caverna da Vingança lhes desejam todo o sucesso do mundo e esperam que vocês aproveitem bem a sua estadia. Se tiverem alguma reclamação, por favor não hesitem em... — Onde está Débora, seu monstro? — gritei, tentando passar na frente do Sr. Crepsley aos empurrões. O vampiro me conteve com um braço firme e balançou sua cabeça, tenso. — Lembre-se do que discutimos no silo — sibilou ele. Fiquei forçando a barra por um instante, mas depois dei um passo atrás e fiquei olhando para o vampixiita insano, que estava pulando com um pé de cada vez, rindo como um doido. — Onde ela está? — perguntei asperamente. — Não muito longe daqui — respondeu ele, rindo, enquanto sua voz percorria os estreitos confins do túnel. — Bem perto se você andar em linha reta. Mais ainda se pensar que a reta pode ser para baixo. — Ele parou de dançar e nos encarou friamente. — Débora está por perto, camarada — sibilou. — E está viva. Mas não ficará por muito tempo, caso não venha comigo agora, Shan. Deixe seus amigos podres para trás e entregue-se, que eu a deixarei partir. Fique com eles e prossiga na sua busca detestável que eu a mato. — Se você fizer... — rosnei. — O quê? — respondeu ele, me ridicularizando. — Vai me matar também? Você terá que me pegar primeiro, Shanzinho. É muito mais fácil falar isso do que fazer. C.C. é rápido, meu filho... de fato, tão rápido quanto uma gazela. — Ele parece tanto com o Vampirado — sussurrou o Sr. Crepsley, se referindo ao vampixiita louco que havíamos matado há muitos anos. — É como se o seu espírito tivesse sobrevivido e encontrado um lar dentro do C.C.. Eu não tinha tempo para me preocupar com espíritos do passado. Enquanto eu pensava na oferta, C.C. apontou para um buraco à sua esquerda — que estava coberto por um painel quando passamos por ele —, mergulhou em seu interior e pôs a cabeça para fora, sorrindo loucamente. — Que tal, Shanzinho? A sua vida pela de Débora. Podemos fechar ou eu
faço ela gritar? Este era o meu momento da verdade. Eu entregaria a minha vida com alegria se isso significasse a salvação de Débora. Mas se o Senhor dos Vampixiitas quisesse tirar o máximo de nós, teria que levar a sua gente a uma vitória sobre os vampiros. Meu dever era para com aqueles que haviam colocado sua fé em mim. Tinha mais para pensar do que em mim mesmo. E, embora isso me doesse intensamente, baixei a cabeça em resposta à oferta de C.C. e disse delicadamente: — Não. — O quê? — gritou C.C. — Fale mais alto... não consigo ouvi-lo. — NAO! — urrei, sacando minha faca e lançando-a em sua direção, embora soubesse que não poderia atingi-lo onde estava. O rosto de C.C. se contorceu de ódio. — Cretino! — rosnou, mostrando os dentes. — Os outros disseram que você não se trocaria por ela, mas eu estava certo de que o faria. Muito bem. Que seja como você quiser. Vamos ter ensopado de Débora para o café-da-manhã! Rindo para mim, ele se recolheu e fechou o painel da passagem com força. Queria correr atrás dele, bater no painel e gritar para que trouxesse Débora de volta. Mas sabia que ele não o faria, por isso me contive — simplesmente. — Você fez bem, Darren — disse o Sr. Crepsley, colocando a mão no meu ombro. — Fiz o que tinha que ser feito — afirmei, suspirando, sem sentir o menor prazer por causa de seu elogio. — Esse era um daqueles vampixiitas dos quais vocês estavam falando? — perguntou Burgess, visivelmente abalada. — Esse é um dos nossos garotos com lábios da cor do rubi, com certeza — respondeu Vancha num gorjeio. — Eles são todos assim? — perguntou a inspetora-chefe, com os olhos arregalados e o cabelo branco encrespado de medo. — Oh, não — disse Vancha, fingindo um olhar inocente. — A maior parte deles é bem pior! Então o Príncipe deu uma piscada, olhou para frente e seguiu andando, conduzindo-nos para o interior daquele túnel que mais parecia uma garganta, para dentro do estômago da armadilha monstruosa dos vampixiitas, onde o destino e a morte nos aguardavam.
CAPÍTULO TREZE
O túnel seguia para frente e para baixo ao longo de quinhentos ou seiscentos metros, antes de se abrir para uma caverna enorme feita pelo homem, com paredes lisas e um teto extremamente alto. Três lustres pesados de prata estavam pendurados no teto, cada um deles enfeitado com dezenas de velas vermelhas,
grossas e acesas. À medida que entrávamos na caverna, vi que sua forma era oval, mais ampla no meio e mais estreita nas extremidades. Havia uma plataforma instalada em frente à parede do lado oposto em que estávamos, suspensa sobre pilares de aço robustos, a quinze metros de altura. Caminhamos em sua direção, com as armas em riste, espalhados para formar uma fila reta, Vancha bem na frente, com os olhos se movendo para a esquerda, para a direita e para cima, procurando vampixiitas. — Parem — disse Vancha enquanto se aproximava da plataforma. Paramos na mesma hora. Achei que ele avistara um vampixiita, mas estava olhando para o chão, perplexo, porém nada amedrontado. — Vejam isto — murmurou, acenando para que nos aproximássemos. Dei um passo, fiquei ao seu lado e senti minhas entranhas congelarem. Estávamos em pé na beira de um poço — oval como a caverna — que estava cheio de estacas com pontas de aço de dois ou três metros de altura. Lembrava o poço na Sala da Morte na Montanha dos Vampiros, só que este era muito maior. — Um poço para que caiamos... dentro? — perguntou Harkat. — Duvido — disse Vancha. — Os vampixiitas o teriam coberto se quisessem que caíssemos aqui dentro. — Ele olhou para cima. A plataforma fora construída exatamente em cima do poço, os pilares de apoio vinham do meio das estacas. Agora que estávamos perto, podíamos ver uma prancha longa que ligava a parte traseira direita da plataforma até um buraco na parede que ficava atrás. Também havia uma corda grossa que ia da parte dianteira esquerda da plataforma até o lado do poço em que estávamos, que por sua vez estava amarrada a uma grande estaca que a segurava. — Parece que esse é o único caminho pelo qual podemos seguir — notei, mas não estava gostando nem um pouco daquela configuração. — Poderíamos margear o poço e subir pela parede — sugeriu o Sr. Crepsley. Vancha balançou a cabeça. — Olhe de novo. Examinei atentamente a parede, assim como fez o Sr. Crepsley. Ele viu o que estávamos procurando pouco antes de mim e resmungou algo infame em voz baixa. — O que é? — perguntou Harkat, já que seus olhos verdes e redondos não eram tão aguçados quanto os nossos. — Há um monte de pequenos buracos na parede — afirmei. — Ideais para serem atravessados por dardos ou balas. — Eles acabariam conosco em segundos se tentássemos escalá-la — disse Vancha. — Que idiotice — murmurou a inspetora-chefe Burgess. Olhamos para trás
em sua direção. — Por que colocar uma armadilha aqui e não no túnel? — perguntou ela. — As paredes do túnel poderiam estar salpicadas de buracos como essa. Não teríamos nenhum lugar para nos virarmos, nenhum lugar para correr. Seriamos alvos fáceis. Por que deixá-la assim até agora? — Porque não é uma armadilha — disse-lhe Vancha. — É um aviso. Eles não querem que sigamos por ali. Querem que usemos a plataforma. A chefe de polícia franziu a testa. — Achava que eles queriam matar vocês. — E querem — prosseguiu o Príncipe —, mas querem brincar conosco antes. — Que idiotice — murmurou a inspetora-chefe mais uma vez, apertando sua faca perto do peito, virando-se lentamente para examinar a caverna como um todo, embora esperasse que demônios viessem das paredes e do chão para atacar. — Vocês estão sentindo o cheiro? — perguntou o Sr. Crepsley, franzindo o nariz. — Gasolina. — Acenei com a cabeça. — Está vindo do poço. — Talvez devêssemos recuar — sugeriu Vancha, e rapidamente nos afastamos, sem a necessidade de um outro aviso. Examinamos a corda presa à estaca. Estava bem trançada e esticada, amarrada de um jeito profissional. Vancha a testou arrastando-se por alguns metros, enquanto ficamos parados com nossas armas nas mãos, dando-lhe cobertura. O Príncipe parecia pensativo quando voltou. — É forte — afirmou. — Acho que ela agüentaria todos nós ao mesmo tempo. Mas não iremos correr esse risco. Vamos atravessar um de cada vez, na mesma ordem em que viemos pelo túnel. — E quanto à plataforma? — perguntou Harkat. — Pode estar armada para... cair quando estivermos sobre ela. Vancha acenou com a cabeça. — Quando eu me levantar, vou correr para a abertura do outro lado da prancha. Não suba até eu estar seguro. Quando o fizer, siga na direção do túnel. O mesmo vale para todos vocês. Se derrubarem a plataforma enquanto a estivermos atravessando, um de nós com certeza morrerá. — Grande — bufou a inspetora-chefe. — Então tenho uma chance em cinco de atravessá-la e sobreviver. — As chances são boas — disse Vancha. — Muito maiores do que as que teremos quando os vampixiitas atacarem. Vancha verificou se seus shurikens estavam bem amarrados, segurou a corda, subiu nela alguns metros e depois ficou balançando, de modo que ficou pendurado de cabeça para baixo. Começou a atravessar, mão sobre mão, pé
sobre pé. A corda terminava num ponto íngreme, mas o Príncipe era forte e não hesitou. Estava quase a meio caminho da travessia, dependurado sobre o poço de estacas mortais, quando uma figura apareceu na boca do túnel. Burgess a viu primeiro. — Ei! — gritou ela, levantando uma das mãos para apontá-la. — Há alguém ali em cima! Nossos olhos — e os de Vancha — se voltaram para a entrada do túnel. A luz era fraca e era impossível dizer se a figura era grande ou pequena, macho ou fêmea. Até que ela deu um passo a frente sobre a prancha e o mistério foi esclarecido. — Lucas! — sibilei, com os olhos cheios de ódio. — E aí, rapazes? — saudou-nos o meio-vampixiita, avançando pela prancha a passos largos, sem o menor medo de cair e de ser empalado pelas estacas. — Chegaram direito até aqui? Eu os estava esperando há anos. Achava que vocês tinham se perdido. Estava preparando uma equipe de busca para ir no seu encalço. Lucas alcançou a plataforma e andou até a cerca que ia até a altura da cintura e seguia pelas laterais do poço. Olhou para baixo na direção de Vancha e sorriu como se estivesse recebendo um velho amigo. — Nos encontramos novamente, Sr. March — disse ele, rindo, enquanto acenava de maneira sarcástica. Vancha rosnou como um animal e começou a se arrastar mais rápido do que antes. Lucas ficou olhando, entretido, e depois enfiou a mão no bolso, tirou um fósforo e o segurou à sua frente para que nossos olhos pudessem fitá-lo. Ele deu uma piscadela, se agachou e acendeu o fósforo no chão da plataforma. Aproximou-o do seu rosto por um instante, enquanto queimava, até jogá-lo casualmente por sobre a cerca — dentro da cova encharcada de gasolina. Ouviu-se uma explosão que quase arrebentou meu tímpano. Chamas se ergueram do poço como se fossem dedos enormes e incandescentes. Elas se elevaram por sobre a beira das plataformas, mas não ameaçaram Lucas — que ria em meio à muralha de fogo vermelha e amarela. As chamas chamuscaram o teto e a parede até o fundo — e consumiram completamente a corda e Vancha, engolindo o Príncipe por inteiro num piscar de um olhar repleto de labaredas.
CAPÍTULO QUATORZE
Lancei-me impulsivamente para frente quando vi Vancha desaparecer em meio às chamas, mas fui rapidamente empurrado para trás pelas ondas de fogo que rolavam na minha direção. Enquanto elas se espalhavam sobre o chão da caverna ou sumiam no ar acima de nossas cabeças, o som da gargalhada de
Lucas Leopardo enchia os meus ouvidos. Protegendo os olhos com as mãos, fitei a plataforma e o vi pulando de um lado para o outro, erguendo uma espada pesada sobre a cabeça, divertindo-se e berrando com uma alegria perversa. — Tchau, Vancha! — gritava ele. — Até mais, Sr. March! Adios, principezinho! Adeus, vam... — Não escreva meu obituário ainda, Leonardo! — disse uma voz enfurecida que vinha do meio do fogo e, enquanto o queixo de Lucas caía, as chamas iam morrendo aos poucos, revelando um Vancha March chamuscado, enegrecido, mas muito vivo, pendurando-se na corda com uma mão e apagando furiosamente as chamas no cabelo e nas suas peles com a outra. — Vancha! — gritei, contentíssimo. — Você está vivo! — É claro que estou — respondeu ele, sorrindo penosamente, enquanto apagava as últimas chamas. — Você é um texugo duro na queda, não? — observou Lucas amargamente, olhando para baixo na direção do Príncipe. — Pois é — rugiu Vancha, com um brilho no olhar. — E você ainda não viu nada... espere até eu colocar minhas mãos no seu pescoço esquelético, seu infeliz! — Estou com taaaaanto medo — bufou Lucas. Então, enquanto Vancha subia novamente, ele correu para o final da plataforma onde a corda estava amarrada e bateu nela de leve com sua espada. — Não mesmo — falou, rindo à socapa. — Mais um centímetro e eu o deixo cair para a morte. Vancha parou e examinou Lucas e a extensão de corda que ainda tinha para atravessar, calculando as chances que tinha. Lucas ria secamente. — Desista, March. Até mesmo um tolo como você sabe quando foi derrotado. Não quero cortar esta corda... ainda não... mas se eu cismar, não haverá nada que você possa fazer para me deter. — Vamos ver — rugiu Vancha, antes de tirar uma estrela do cinto e a jogar na direção do meio-vampixiita. Lucas nem sequer recuou enquanto o shuriken se enterrava numa zona vulnerável da plataforma de aço, sem causar perigo. — Não há ângulo — disse ele, bocejando, nem um pouco impressionado. — Você não pode me atingir daí, por mais que sua pontaria seja boa. Agora, será que você pode descer e se juntar aos seus amigos no chão, ou terei que ser sórdido? Vancha cuspiu em Lucas — o cuspe caiu bem longe do alvo — e depois abraçou a corda com os braços e as pernas para rapidamente deslizar sobre a fonte das chamas e para longe da plataforma, onde o estávamos esperando. — Sábia manobra — disse Lucas, enquanto Vancha se ajeitava e examinávamos seu cabelo e suas costas em busca de brasas. — Se eu tivesse uma arma — murmurou Burgess —, poderia apagar esse
sujeitinho convencido. — Você está começando a ver as coisas do nosso ponto de vista — observou Vancha, de esguelha. — Ainda estou indecisa em relação a vocês — respondeu a inspetora-chefe —, mas sei identificar o mal absoluto quando o vejo. — Agora, então — anunciou Lucas em voz alta — que estamos todos prontos, vamos começar o show. — Colocando dois dedos entre os lábios, ele assobiou três vezes, em alto e bom som. Acima de nós, painéis no teto se rasgaram, enquanto vampixiitas e vampitietes desciam usando cordas. Painéis semelhantes se abriram nas paredes da caverna e mais inimigos surgiram e começaram a avançar. Contei vinte... trinta... quarenta... mais. A maior parte deles estava armada com espadas, machados e porretes, mas alguns vampitietes carregavam rifles, pistolas e bestas. Recuamos para a beira do poço enquanto os vampixiitas e vampitietes se fechavam sobre nós, de modo que não podiam nos atacar por trás. Olhamos para as fileiras de soldados com caras fechadas, contando silenciosamente, enquanto íamos perdendo as esperanças à medida que percebíamos o quão subjugados estávamos. Vancha falou em voz baixa: — Acho que há dez ou doze para cada um de nós — comentou. — Alguém possui algum favorito, ou vamos dividi-los ao acaso? — Pode pegar quantos quiser — afirmei, enquanto avistava um rosto familiar no meio da multidão à minha esquerda —, mas deixe aquele sujeito para mim. A inspetora-chefe Burgess suspirou quando viu para quem eu estava apontando. — Morgan James? — Boa noite, senhora, saudou-a o policial/vampitiete de olhar cortante, de um jeito zombeteiro. Ele havia tirado o seu uniforme. Agora estava usando a camisa marrom e a calça preta dos vampitietes, e havia pintado círculos vermelhos de sangue em volta dos olhos. — Morgan é um deles? — perguntou a inspetora-chefe, chocada. — Sim — respondi. — Ele me ajudou a escapar. Sabia que Lucas iria matar os seus colegas... e deixou que o fizesse. O rosto dela se turvou. — Shan — berrou ela, enfurecida —, se você o quiser, terá que lutar comigo para pegá-lo... aquele desgraçado é meu! Virei-me para discutir com ela, vi o brilho feroz em seus olhos e cedi com um aceno. Os vampixiitas e vampitietes pararam a cerca de três metros de onde estávamos, balançando suas armas, com olhares em alerta, esperando uma
ordem para atacar. Na plataforma, Lucas grunhia de felicidade e então bateu palmas. Do canto do olho, pude ver alguém aparecendo na boca do túnel atrás de nós. Olhando para trás, percebi que duas pessoas haviam saído e estavam atravessando o suporte que dava na plataforma. Ambos eram familiares — Gannen Harst e o Senhor dos Vampixiitas. — Vejam — sussurrei para meus companheiros. Vancha gemeu em voz alta quando viu a dupla, virou-se rapidamente, sacou três dos seus shurikens, mirou e os arremessou. A distância não era um problema, mas o ângulo — da mesma forma que aconteceu quando ele estava pendurado na corda e mirava em Lucas — não era favorável e as estrelas só acertaram a face inferior da plataforma. — Saudações, meu irmão — disse Gannen Harst, acenando com a cabeça para Vancha. — Temos que subir lá! — disse Vancha rispidamente, enquanto buscava uma maneira de se aproximar. — Se você for na frente, irei atrás, com prazer — afirmou o Sr. Crepsley. — A corda... — começou Vancha, mas parou quando viu um grupo de vampixiitas entre nós e a estaca onde a corda estava amarrada. Até mesmo o indômito e sempre otimista Príncipe sabia que não havia como passar por tantos adversários. Se o elemento surpresa estivesse do nosso lado, poderíamos ter aberto caminho a golpes, mas, depois do nosso último encontro, eles estavam preparados para ataques descuidados e inesperados. — Mesmo se alcançássemos a... corda — disse Harkat —, aqueles que estão na plataforma poderiam cortá-la antes de... atravessarmos. — Então o que fazemos? — rugiu Vancha, frustrado. — Morremos? — sugeriu o Sr. Crepsley. Vancha estremeceu. — Não tenho medo da morte, mas não vou me apressar para abraçá-la. Ainda não terminamos. Não estaríamos aqui em pé conversando se isso já tivesse acontecido... eles já teriam nos atacado. Dêem-me cobertura. — Assim dizendo, ele se virou para os três na plataforma, que agora estavam lado a lado, perto da prancha. — Gannen! — gritou Vancha. — O que está acontecendo? Por que seus homens ainda não nos atacaram? — Você sabe o porquê — respondeu Harst. — Eles temem que possam matá-los no calor da batalha. De acordo com Desmond Tino, só nosso Senhor pode matar os caçadores. — Isso quer dizer que eles não se defenderão se atacarmos? — perguntou o Príncipe. Lucas soltou uma gargalhada. — Pode sonhar, seu velho estúp...
— Já chega! — gritou Gannen Harst, silenciando o meio-vampixiita. — Não me interrompa enquanto eu estiver falando com o meu irmão. — Lucas olhou furiosamente para o protetor do Senhor dos Vampixiitas, mas depois baixou a cabeça e se calou. — É claro que eles se defenderão — disse Harst, encarando Vancha novamente —, mas espero que possamos evitar tal cena. Além de correr o risco de matar você, já perdemos muitos bons homens e não queremos sacrificar mais ninguém. Pode ser possível fazer um acordo. — Estou ouvindo — disse Vancha. Gannen Harst dirigiu um rápido olhar para Lucas. Este, então, cobriu a boca com as mãos e gritou na direção do teto. — Pode baixar, C.C.! Fez-se uma pausa, até que um painel no teto se abriu e alguém foi baixado através do vão, presa numa corda — Débora! Senti um baque no coração assim que a vi e, num impulso, levantei os braços, como se pudesse alcançá-la e pegá-la, apesar da grande distância que nos separava. Ela não parecia ter sofrido nas mãos (ganchos) do insano C.C., embora sua testa estivesse ferida, suas roupas rasgadas e ela aparentasse estar bastante exausta. Suas mãos estavam amarradas nas costas, suas pernas estavam presas e começou a chutar Lucas assim que ficou no nível da plataforma. Eles apenas riram e C.C. baixou mais um metro, a fim de que ficasse numa altura baixa demais para atingi-los. — Débora! — gritei desesperadamente. — Darren! — gritou ela. — Vá embora! Não confie neles! Eles deixam Lucas e C.C. fazerem o que quiserem. Até obedecem suas ordens. Fujam rapidamente antes que... — Se você não calar a boca espontaneamente — vociferou Lucas —, vou obrigá-la a tal. — Ele projetou sua espada e a roçou na corda fina que a amarrava. Era tudo que separava Débora de uma queda fatal no poço. Débora percebeu o perigo que estava correndo e começou a morder a língua. — Muito bem — disse Gannen Harst quando o silêncio voltou. — Agora... a nossa oferta. Só estamos interessados nos caçadores. Débora Cicuta, Alice Burgess e o Pequenino não nos interessam. Estamos em número muito maior, Vancha. Nossa vitória está garantida. Vocês não podem nos vencer, apenas nos ferir, e talvez nos frustrar morrendo nas mãos de alguém que não é o nosso Senhor. — Isso bastaria para mim — disse Vancha, torcendo o nariz. — Talvez — acenou Harst com a cabeça. — E estou certo de que Larten Crepsley e Darren Shan sentem a mesma coisa. Mas e quanto aos outros? Será que dariam sua vida, com tanto bom grado pela causa do clã dos vampiros? — Eu daria! — desembuchou Harkat.
Gannen Harst sorriu. — Já esperava essa sua postura, ser cinzento. Mas não precisa. Nem as mulheres. Se Vancha, Larten e Darren baixarem as armas e se entregarem, vamos libertar o resto de vocês. Poderão sair andando, ilesos. — De jeito nenhum! — gritou Vancha na mesma hora. — Eu não rolaria para o lado e morreria nem na melhor das hipóteses... e com certeza não irei fazê-lo agora, quando há tantas coisas em jogo. — Também não concordo com tal acordo — afirmou o Sr. Crepsley. — E quanto a Darren Shan? — perguntou Harst. — Ele concordará com nosso acordo, ou condenará seus amigos à morte, junto com vocês? Todos os olhos se fixaram em mim. Levantei os meus na direção de Débora, dependurada na corda, apavorada, ensangüentada, desolada. Eu tinha como libertá-la. Era só fazer um acordo com os vampixiitas, encarar uma morte rápida em vez de uma, talvez, mais lenta e dolorosa, e salvar a vida da mulher que amava. Seria desumano da minha parte não aceitar fazer tal acordo... ... mas eu não era humano. Era um meio-vampiro. E mais — um Príncipe Vampiro. E Príncipes não fazem acordos, não quando o destino de sua gente está em jogo. — Não — respondi desgraçadamente. — Vamos lutar e morrer. Um por todos e todos por um. Gannen Harst acenou, compreensivo. — Eu esperava por isso, mas uma das partes tem sempre que abrir a negociação com uma oferta baixa. Muito bem... deixe-me fazer outra proposta. Com o mesmo perfil básico da primeira. Baixem suas armas, entreguem-se e deixaremos seus humanos partirem. Só que, desta vez, Darren Shan terá que enfrentar, cara a cara, nosso Senhor e Lucas Leonardo. O rosto de Vancha se enrugou, com reservas. — Do que você está falando? — Se você e Larten se entregarem sem lutar — prosseguiu Harst —, permitiremos que Darren duele com o nosso Senhor e Lucas Leonardo. Serão dois contra um, mas ele estará armado. Se Darren vencer, libertaremos vocês três junto com os outros. Se perder, executaremos você e Larten, mas os humanos e Harkat Mulds estarão livres. Ele fez uma pausa e depois continuou: — Pensem — solicitou, insistentemente. — É um acordo bom e honesto, melhor do que vocês poderiam esperar. Vancha desviou sua atenção da plataforma, preocupado, e olhou para o Sr. Crepsley em busca de um conselho. O vampiro, a princípio, não sabia o que dizer e simplesmente balançou a cabeça sem falar coisa alguma. — O que você acha? — Vancha me perguntou. — Deve haver alguma coisa por trás disso — murmurei. — Por que colocar
a Vida do seu Senhor em risco quando eles não precisam fazê-lo? — Gannen não mentiria — afirmou Vancha. Seu rosto endureceu. — Mas ele poderia não ter nos contado toda a verdade. Gannen! — berrou. — Que garantia você pode nos dar de que será uma luta justa? Como podemos saber se C.C. ou os outros não se juntarão para ajudá-los? — Eu lhe dou minha palavra — disse Gannen Harst delicadamente. — Só a dupla que está aqui em cima da plataforma comigo é que enfrentará Darren Shan. Ninguém mais interferirá. Matarei qualquer um que ousar desequilibrar a luta, de um jeito ou de outro. — Isso para mim é suficiente — disse Vancha. — Eu acredito nele. Mas é assim que queremos que seja a coisa? Nunca vimos seu Senhor lutar, por isso não sabemos do que ele é capaz... mas sabemos que Leonardo é um oponente ardiloso e perigoso. Os dois juntos... — Ele fez uma careta. — Se concordarmos com a proposta de Gannen — disse o Sr. Crepsley — e enviarmos Darren para enfrentá-los, estaremos arriscando tudo. Se Darren vencer, ótimo. Mas se perder... O Sr. Crepsley e Vancha me encararam longa e profundamente. — E então, Darren? — perguntou o Sr. Crepsley. — É um fardo grande demais para carregar sozinho. Você está preparado para assumir tamanha responsabilidade? — Não sei — suspirei. — Ainda acho que há alguma coisa por trás disso. Se as chances fossem iguais para os dois lados, eu cairia dentro. Mas não creio que sejam. Acredito que... — Parei de repente. — Mas isso não importa. Se essa é a melhor chance que temos, vamos agarrá-la. Se vocês dois confiam em mim, eu aceitarei o desafio... e a culpa, caso venha a falhar. — Ele disse isso como um vampiro de verdade — percebeu Vancha afetuosamente. — Ele é um vampiro de verdade — respondeu o Sr. Crepsley, o que me fez sentir um orgulho me queimando por dentro. — Muito bem — gritou Vancha. — Aceitamos. Mas primeiro vocês devem libertar Harkat e os humanos. Depois disso, Darren enfrentará o seu Senhor e Lucas. Só então, se a luta for justa e ele perder, é que eu e Larten entregaremos nossas armas. — O acordo não é esse — respondeu Harst com firmeza. — Vocês devem deixar as suas armas de lado e se entregar antes... — Não — interrompeu Vancha. — Vamos fazer as coisas desse jeito ou nada feito. Você tem a minha palavra de que deixaremos seus homens nos levarem se Darren perder... supondo que ele perca justamente. Se a minha palavra não é boa o suficiente, então temos um problema. Gannen Harst hesitou, mas depois acenou bruscamente. — Sua palavra vale — afirmou, e depois mandou C.C. puxar Débora e
escoltá-la. — Não! — berrou C.C. — Lucas disse que eu poderia matá-la! Disse que eu poderia cortá-la em pedacinhos e... — Agora estou dizendo diferente! — rugiu Lucas. — Não tente me enganar. Haverá outras noites e outros humanos, muitos dele... mas há apenas um Darren Shan. Ouvimos C.C. resmungando, mas ele acabou puxando a corda e Débora subiu com uma série de solavancos curtos e desconfortáveis. Enquanto eu esperava que Débora nos fosse devolvida, fui me preparando para a luta com a dupla que estava em cima da plataforma, limpando minhas mãos, checando minhas armas, despindo minha mente de todos os pensamentos, exceto os que diziam respeito à batalha. — Como você se sente? — perguntou Vancha. — Bem. — Lembre-se. Tudo o que importa é o resultado. Lute sujo se precisar. Chute e cuspa, arranhe e belisque, atinja-os abaixo da cintura. — Eu o farei — respondi com um sorriso. Baixando o tom de voz, perguntei: — Você vai realmente se render se eu perder? — Eu dei a minha palavra, não? — disse Vancha, para depois piscar e sussurrar num tom de voz mais baixo ainda do que o meu. — Eu prometi que jogaria minhas armas no chão e deixaria que nos levassem. Assim o farei. Mas não falei nada sobre deixar que nos mantenham presos ou não pegar nossas armas novamente! Os vampixiitas à nossa frente abriram uma passagem no meio enquanto C.C. marchava, arrastando Débora pelo cabelo. — Pare com isso! — gritei furioso. — Você a está machucando! C.C. mostrou os dentes e deu uma gargalhada. Ele ainda estava usando uma lente de contato vermelha e não havia substituído a que perdera na noite anterior. Sua barba cerrada estava salpicada de pedaços de musgo, galhos, lama e sangue. Seria fácil sentir pena dele — ele fora um homem decente antes de perder as mãos para as mandíbulas do Homem-Lobo no Circo dos Horrores — mas eu não tinha tempo para compaixão. Lembrei-me de que ele era o inimigo e apaguei todos, os vestígios de piedade da mente. C.C. jogou Débora bem na minha frente. Ela gritou de dor, depois se levantou e se jogou nos meus braços. Eu a abracei com força enquanto ela soluçava e tentava falar. — Shhh — falei. — Calma. Você está em segurança. Não diga nada. — Eu... preciso — ela chorou. — Tenho tanto... para dizer. Eu... Eu te amo, Darren. — É claro que sim. — Sorri e meus olhos se encheram de lágrimas. — Que cena tocante — disse Lucas, sorrindo com desprezo. — Alguém me
passa um lenço? Eu o ignorei e segurei o rosto de Débora a uma certa distância do meu. Beijei-a rapidamente e depois sorri. — Você está péssima — falei. — Que encantador! — Ela meio que riu e depois me encarou, suplicante. — Não quero ir embora — disse em voz baixa. — Não antes do final da luta. — Não — retruquei rapidamente. — Você tem que ir. Não quero que fique e veja tudo. — No caso de você morrer? Eu acenei com a cabeça e seus lábios se afinaram até quase desaparecerem. — Também quero ficar — disse Harkat, vindo por trás, com os olhos verdes cheios de determinação. — É o seu direito — concordei. — Não irei detê-lo. Mas preferia que não o fizesse. Se você dá valor à nossa amizade, pegará Débora e a inspetora-chefe, as conduzirá à superfície, e se certificará de que elas saiam daqui em segurança. Não confio nesses monstros... eles podem se alvoroçar e nos matar a todos caso vençamos. — Então eu vou ficar para lutar... ao seu lado — disse Harkat. — Não — respondi delicadamente. — Não desta vez. Por favor, em meu nome e no de Débora, você pode ir? Harkat não gostou nada daquilo, mas acenou positivamente, relutante. — Vamos lá, então — disse uma voz, rispidamente, atrás de nós. — Se eles vão embora, vamos deixá-los sair. Levantei os olhos e vi o traiçoeiro oficial de polícia chamado Morgan James vindo em nossa direção. Ele carregava um pequeno rifle, cuja coronha cutucava as costelas de sua inspetora-chefe. — Tire as mãos de mim! — vociferou ela, virando-se furiosamente na direção do sujeito. — Calma, chefe — disse ele com a fala arrastada, sorrindo como um chacal, erguendo o rifle. — Odiaria ter que atirar em você. — Quando voltarmos, você será passado — afirmou ela, rispidamente. — Não voltarei — respondeu Morgan com um sorriso malicioso. — Vou guiá-los até a caverna no final do túnel, trancá-los do lado de fora para me certificar de que não farão um tumulto e depois me mandar com os outros quando a luta terminar. — Você não escapará fácil assim — disse Burgess, bufando. — Vou persegui-lo e o farei pagar por isso, mesmo se tiver que dar meia volta ao mundo. — É claro que vai — riu Morgan, para depois cutucar suas costelas novamente, desta vez com mais força.
A inspetora-chefe cuspiu em seu ex-oficial e depois o empurrou, agachando-se perto de Vancha para amarrar os cadarços. Enquanto fazia isso, ela lhe sussurrou algo pelo canto da boca. — O sujeito com manto e capuz... é aquele que você tem que matar, certo? — Vancha acenou com a cabeça sem dizer uma palavra, conservando sua expressão. — Não gosto da idéia de mandar o garoto até ali em cima para enfrentá-lo — afirmou Burgess. — Se eu conseguir abrir um pouco de espaço e lhes der cobertura, será que você ou Crepsley conseguem subir lá? — Talvez — respondeu Vancha, mal mexendo os lábios. — Então eu verei o que posso fazer — concluiu Burgess enquanto terminava de amarrar os sapatos, se levantava e piscava. — Vamos — falou em voz alta se dirigindo a Harkat e Débora. — O ar aqui está fedendo. Quanto mais rápido sairmos, melhor. A inspetora-chefe começou a caminhar, empurrando Morgan para o lado, determinada em seu caminhar. As fileiras de vampixiitas à sua frente foram se abrindo, formando uma passagem. Apenas alguns poucos estavam entre nós e a estaca na qual a corda estava amarrada. Harkat e Débora olharam para trás, na minha direção, com um certo pesar. Débora abriu a boca para dizer alguma coisa, mas as palavras não saíam. Chorando, ela balançou a cabeça e me deu as costas, com os ombros trêmulos. Harkat a abraçou e a conduziu para fora, seguindo a inspetora-chefe. Burgess estava quase na boca do túnel, saindo da caverna, quando parou e olhou para trás. Morgan estava ao seu lado, segurando o seu rifle. Harkat e Débora estavam alguns metros atrás, progredindo lentamente. — Rápido! — falou Burgess rispidamente para a dupla que se arrastava. — Isso aqui não é uma procissão fúnebre! Morgan sorriu e olhou automaticamente para trás na direção de Harkat e Débora. Enquanto o fazia, a inspetora-chefe entrou em ação. Jogando-se sobre ele, Burgess agarrou a coronha da arma, rompendo a carne macia da barriga do sujeito, com força e rapidez, trespassando-a. Morgan gritou de dor e surpresa, e depois pegou o rifle de novo enquanto ela tentava afastá-lo. Ele quase o puxou da mão da ex-chefe, mas não conseguiu, e por isso o par rolou pelo chão, enquanto brigava pela posse da arma. Pouco atrás, os vampixiitas e os vampitietes se moviam para interceptá-los. Antes que as tropas que avançavam a alcançassem, Burgess pôs um dedo no gatilho do rifle e o apertou para dar um tiro. Ele poderia estar apontado para qualquer lado — Alice não teve tempo de mirar — mas, por sorte, estava voltado para o maxilar do vampitiete com o qual estava lutando — Morgan James! Houve um clarão e ouviu-se um troar de artilharia. Depois disso, Morgan caiu ao lado da inspetora-chefe, berrando de agonia, pois o lado esquerdo do seu rosto havia se tornado uma massa sangrenta e retalhada.
Enquanto Morgan se erguia, com as mãos segurando o que restara do seu rosto, Burgess deu uma coronhada em sua nuca, deixando-o inconsciente. Então, enquanto os vampixiitas e vampitietes vinham no seu encalço, ela se apoiou sobre as costas do ex-oficial, ergueu o rifle, mirou cuidadosamente e deu uma salva de tiros na direção da plataforma — tentando acertar Lucas, Gannen Harst e o Senhor dos Vampixiitas.
CAPÍTULO QUINZE
Balas acertaram a plataforma, o muro, a parede e o teto. Os três homens na linha de fogo se esquivaram rapidamente para trás, mas não o suficiente — uma das balas acertou o Senhor dos Vampixiitas bem no ombro direito, arrancando sangue e um grito lancinante de dor!
Ao som dos berros de seu Senhor, os vampixiitas e vampitietes explodiram em fúria. Gritando e uivando como animais enfurecidos, eles se lançaram em massa sobre a inspetora-chefe, que ainda estava atirando. Subindo uns em cima dos outros, na pressa de pegá-la, eles desciam sobre Burgess numa onda de violência, passando por Harkat e Débora ao longo do caminho. Meu primeiro instinto foi correr na direção de Débora e tirá-la do meio da multidão, mas Vancha me segurou antes que pudesse me mover e apontou para a corda — que não estava mais protegida. Percebi imediatamente que aquela era a nossa primeira prioridade. Débora teria que cuidar de si própria. — Quem vai? — perguntei, ofegante, enquanto corríamos na direção da estaca. — Eu — respondeu Vancha, já segurando a corda. — Não — discordou o Sr. Crepsley, colocando uma das mãos no ombro do Príncipe. — Tem que ser eu. — Não temos tempo para... — começou Vancha. — Isso é verdade — interrompeu-o o Sr. Crepsley. — Não temos tempo. Deixe-me passar então, sem discussão. — Larten... — rugiu Vancha. — Ele tem razão — afirmei delicadamente. — Tem que ser ele. Vancha ficou de boca aberta. — Por quê? — Porque Lucas era o meu melhor amigo e Gannen é o seu irmão — expliquei. — O Sr. Crepsley é o único que pode se concentrar totalmente no Senhor dos Vampixiitas. Você ou eu ficaríamos com um dos olhos em Lucas ou Gannen, não importa o quanto tentássemos ignorá-los. Vancha pensou no que eu havia dito, acenou com a cabeça e largou a corda, limpando a área para o vampiro. — Infernize a vida deles, Larten — disse o Príncipe. — Deixa comigo — respondeu, sorrindo, o Sr. Crepsley. Ele tomou posse da corda e começou a fazer a travessia. — Temos que lhe dar cobertura deste lado — afirmou Vancha, enquanto sacava um punhado de shurikens e olhava para a plataforma. — Eu sei — respondi, com os olhos voltados para os vampixiitas que se agitavam à minha frente, pronto para enfrentá-los quando acordassem para a ameaça que representava o desafio do Sr. Crepsley. Um dos três que estavam em cima da plataforma deve ter avistado o Sr. Crepsley, pois Vancha subitamente jogou duas de suas estrelas — de onde estava, ele tinha uma boa visão do trio — e pude ouvir palavrões vindo de cima assim que um deles pulou para o lado, desviando-se dos shurikens. Fez-se uma pausa e depois veio um rugido que se espalhou por toda a caverna, sobrepondo-se aos gritos e à confusão provocada pelos vampixiitas em
conflito. — Servos da noite! — bradou Gannen Harst. — Vejam o nosso Senhor! O perigo se aproxima! Cabeças se viraram e olhos se fixaram, primeiro na plataforma, depois na corda e no Sr. Crepsley. Com uivos e ofegos renovados, os vampixiitas e vampitietes se viraram e correram para o ponto onde eu e Vancha estávamos. Se não houvesse tantos deles, teríamos sido mortos, mas seus números não trabalhavam a seu favor. Muitos atacavam ao mesmo tempo, o que resultou em caos e confusão. Por isso, em vez de encararmos uma muralha sólida de guerreiros, tivemos condições de abater um de cada vez. Enquanto brandia minha espada de um lado para o outro e Vancha batia forte com as mãos, avistei Gannen Harst andando às escondidas até o final da plataforma onde a corda estava amarrada, com uma adaga afiada na mão direita. Não era necessário ser um gênio para adivinhar quais eram suas intenções. Berrei para Vancha, alertando-o, mas não havia espaço para ele se virar e arremessar. Gritei para o Sr. Crepsley para que se apressasse, mas ele ainda estava muito longe de um local seguro e não podia andar mais rápido do que já estava andando. Assim que Harst alcançou a corda e se preparava para cortá-la, alguém atirou nele. Ele se agachou e rolou para trás, desviando das balas, enquanto estas faziam com que o ar à sua volta ficasse vermelho. Fiquei na ponta dos pés e avistei uma Alice Burgess ferida, exaurida, mas ainda viva, de pé, com o rifle na mão, recarregando-o com a nova munição que havia roubado de Morgan James. Bem à sua frente estavam Harkat Mulds e Débora Cicuta; Harkat com seu machado, Débora brandindo uma pequena espada de maneira desajeitada, ambos protegendo a inspetora-chefe de um punhado de vampixiitas e vampitietes que não haviam sido atraídos para tomar conta da corda. Senti vontade de aplaudir em alto e bom som o que vi, e o teria feito se um vampixiita não tivesse ido de encontro às minhas costas e me jogado no chão. Enquanto eu rolava para o lado na intenção de evitar uma pisada, o vampixiita mergulhou sobre mim. Prendendo-me ao chão, ele envolveu meu pescoço com seus dedos e começou a apertar. Comecei a esmurrá-lo, mas ele tinha toda a vantagem — eu estava acabado! Mas a sorte dos vampiros estava do meu lado. Antes que seus dedos pudessem se fechar e sufocar minha garganta, um dos seus próprios homens foi atingido por Vancha, caiu para trás, foi de encontro a ele e o fez cair para o lado. Enquanto meu antagonista berrava, frustrado, eu me levantei, peguei uma clava que alguém havia deixado cair durante a luta e acertei um golpe com toda a força em seu rosto. O vampixiita caiu, gritando, e eu estava de volta à luta. Vi um vampitiete girar um machado na direção da corda que estava
amarrada à estaca. Rugindo, arremessei a clava em sua direção, mas já era tarde demais — a lâmina do machado rasgou os fios da corda, cortando-a por inteiro. Meus olhos se voltaram para o lugar onde o Sr. Crepsley estava dependurado, e minhas vísceras se apertaram enquanto ele se balançava sob a plataforma, em meio às chamas vermelhas do poço, que ainda ardiam intensamente. Parecia levar uma eternidade para a corda alcançar a extensão de seu arco e balançar de volta até onde eu estava. Quando o fez, o vampiro já estava fora do meu raio de visão, o que quase parou o meu coração. Então baixei o olhar e percebi que ele ainda estava agarrado à corda, embora houvesse escorregado alguns metros. Assim que as chamas começaram a lamber a face inferior de seus pés, ele começou a subir novamente e em dois segundos já estava livre do fogo e de volta à sua trilha para chegar na plataforma. Um vampitiete esperto conseguiu sair do meio da escaramuça, ergueu uma besta e atirou no Sr. Crepsley. Errou. Antes que ele pudesse atirar novamente, encontrei uma lança e a acertei na parte superior do seu braço direito, o que o fez cair de joelhos, gemendo. Olhei novamente para o ponto de onde Burgess estava atirando, dando cobertura ao Sr. Crepsley enquanto este escalava. Débora estava lutando com um vampitiete que tinha o dobro de seu tamanho. Ela o havia envolvido com os braços para que não pudesse usar sua espada e havia cravado uma faca em suas costas, logo acima da cintura. Estava arranhando o rosto dele com as unhas e usando o joelho esquerdo de uma maneira muito perversa. Nada mau para uma professora inglesa! Enquanto isso, Harkat estava retalhando vampixiitas e vampitietes em pedaços. O Pequenino era um lutador experiente e letal, muito mais forte e rápido do que parecia. Muitos vampixiitas o atacavam, na esperança de lhe aplicar um golpe violento na lateral do corpo — nenhum deles sobreviveu para escrever suas memórias. Então, enquanto Harkat despachava outro vampitiete com uma virada quase casual do seu machado, ouviu-se um grito alto, quase animalesco, quando um C.C. furioso entrou na briga. Ele estava preso no meio de um bando de vampixiitas, incapaz de entrar com tudo na peleja. Até que ele finalmente se soltou, se fixou em Harkat e caiu sobre o meu amigo, com os ganchos brilhando e os dentes rangendo. Lágrimas de fúria escorriam lentamente dos seus olhos separados. — Vou matar você — disse ele, rugindo. — Matar você! Matar você! Matar! Ele aproximou os ganchos da mão esquerda da cabeça de Harkat, mas o Pequenino desviou e esmurrou as garras para o lado com a parte chata do
machado. C.C. levou o outro feixe de ganchos na direção do estômago do Pequenino. Meu amigo abaixou a mão livre na hora certa e conseguiu segurar o braço de C.C. acima do cotovelo, detendo a ponta dos ganchos a menos de um centímetro de seu diafragma. Enquanto C.C. gritava e cuspia em Harkat, o Pequenino pegou calmamente as fitas que prendiam os ganchos ao braço de C.C., soltou-as e jogou a manopla para longe. C.C. deu um berro como se tivesse sido apunhalado e bateu em Harkat com o coto que havia na extremidade do seu cotovelo. Harkat não deu a menor importância; simplesmente se ergueu, apoderando-se da outra manopla de seu antagonista e a arrancou também. — NÃO!!! — gritou C.C., enquanto mergulhava atrás de seus ganchos. — Minhas mãos! Minhas mãos! C.C. recuperou seus ganchos, mas não podia amarrá-los de volta sem a ajuda de alguém. Berrou para que seus companheiros o ajudassem, mas eles já tinham mais com o que se preocupar. Ele ainda estava gritando quando Alice Burgess baixou seu rifle e olhou para a plataforma. Virei-me para ver o que ela observava, avistei o Sr. Crepsley subindo pela grade e também relaxei. Todos os olhares aos poucos foram sendo desviados para a plataforma e a batalha foi acalmando. Quando as pessoas viram o Sr. Crepsley em pé na plataforma, subitamente pararam de lutar e passaram a prestar atenção na cena, sentindo, assim como eu, que nossas disputas não eram mais relevantes — o único embate que importava era o que estava prestes a começar naquele plano superior. Quando todos se calaram, um estranho silêncio que durou um minuto ou mais se abateu sobre nós. O Sr. Crepsley ficou em pé na sua ponta da plataforma, impassível, enquanto seus três oponentes se posicionaram igualmente de guarda na deles. Finalmente, no que os pêlos da minha nuca começavam a voltar à posição normal — eles estavam arrepiados desde o começo da batalha — o Senhor dos Vampixiitas deu um passo à frente na direção da grade, abaixou o capuz, encarou a todos que estavam no chão e falou.
CAPÍTULO DEZESSEIS
— Que a luta se encerre — disse o Senhor dos Vampixiitas num tom de voz baixo e nada melodramático. — Não há necessidade de que ela transcorra, por enquanto. Era a primeira vez que eu via o rosto do Senhor dos Vampixiitas e fiquei
surpreso com o quanto ele parecia normal. Havia construído em minha mente a imagem de um tirano violento, irascível, de ar selvagem, cujo olhar poderia transformar água em vapor. Mas esse era apenas um homem nos seus vinte ou trinta e poucos anos, de compleição normal, cabelo castanho claro e olhos muito tristes. O ferimento que ele recebera em seu ombro era secundário — o sangue já havia estancado — e ele o ignorava enquanto falava. — Sabia que isso estava por acontecer — afirmou delicadamente o Senhor dos Vampixiitas, virando a cabeça para encarar o Sr. Crepsley. — Des Tino previu isso. Ele disse que eu teria que enfrentar um dos caçadores aqui, acima das chamas, e que muito provavelmente seria Larten Crepsley. Tentamos desfazer essa profecia e atrair o garoto para cá em seu lugar. Por um instante achei que teríamos sucesso. Mas, no meu coração, sabia que era você que eu teria que enfrentar. O Sr. Crepsley ergueu uma sobrancelha, descrente. — O Sr. Tino lhe disse qual de nós iria triunfar? – perguntou ele. Um leve sorriso brotou nos lábios do Senhor dos Vampixiitas. — Não. Ele disse que qualquer coisa poderia acontecer. — Isso é encorajador — devolveu o Sr. Crepsley, secamente. O vampiro ergueu uma de suas facas para aproveitar a luz do candelabro acima de sua cabeça e examinou a lâmina. No instante em que fez isso, Gannen Harst tomou a frente de seu Senhor, em posição de defesa. — O acordo está desfeito — disse Harst bruscamente. — A proporção de dois para um não se aplica mais. Se você tivesse enviado Darren Shan como combinado, teríamos mantido nossa parte da barganha. Como veio no lugar dele, não deve esperar que venhamos a lhe oferecer as mesmas vantagens generosas. — Não espero nada que venha de loucos e traidores — disse o Sr. Crepsley maliciosamente, fazendo os vampixiitas e vampitietes na caverna murmurarem em segredo. — Presta atenção — vociferou Gannen Harst — ou eu vou... — Paz, Gannen — disse o Senhor dos Vampixiitas. — O tempo para ameaças já passou. Vamos deixar de lado as armas e a destreza sem guardar nenhum rancor. O Senhor dos Vampixiitas saiu de trás de Gannen Harst e sacou uma espada curta e farpada. Harst, por sua vez, sacou uma espada reta e mais longa, enquanto Lucas assobiava e tirava da cintura um punhal de ouro e uma corrente longa e cheia de ferrões. — Você está pronto, Larten Crepsley? — perguntou o Senhor dos Vampixiitas. — Já fez as pazes com os deuses? — Já fiz isso há muito tempo — respondeu o Sr. Crepsley, com ambas as facas nas mãos e o olhar alerta. — Mas, antes de começarmos, gostaria de saber o que acontece depois. Se eu vencer, os meus aliados serão soltos ou terão que...
— Nada de barganhas! — disse o Senhor dos Vampixiitas, rispidamente. — Não estamos aqui para fazer acordos. Estamos aqui para lutar. O destino dos outros... da minha gente e da sua... pode ser resolvido depois que guardarmos as espadas. Só nós é que importamos agora. Tudo o mais não tem sentido. — Muito bem — resmungou o Sr. Crepsley, para então se afastar da grade, se agachar e avançar na direção de seus oponentes. No chão, ninguém se movia. Vancha, Harkat, Débora, Burgess e eu havíamos baixado as armas e esquecido de todos que estavam ao redor. Para os vampixiitas, seria uma tarefa fácil nos capturar, mas eles estavam tão atraídos quanto nós pelos eventos que transcorriam na plataforma. Enquanto o Sr. Crepsley avançava, os três vampixiitas iam assumindo uma formação em “V” e se arrastavam alguns metros para frente. O Senhor dos Vampixiitas estava no meio, Gannen a um metro dele à esquerda, Lucas Leopardo à mesma distância, à direita. Era uma estratégia eficaz e cautelosa. O Sr. Crepsley teria que atacar pelo meio — ele tinha que matar o Senhor dos Vampixiitas; os outros não importavam. Quando atacasse, Harst e Lucas teriam como atacar de ambos os lados de uma vez só. O Sr. Crepsley parou de repente na frente dos três, com os braços estendidos para se proteger contra ataques súbitos que poderiam vir de qualquer um dos lados. Seus olhos estavam focados no Senhor dos Vampixiitas e não piscaram uma vez sequer enquanto eu observava a cena. Alguns segundos tensos se passaram. Até que Lucas começou a atacar o Sr. Crepsley com sua corrente. Vi os ferrões brilharem enquanto serpeavam na direção da cabeça do meu mentor — eles causariam sérios danos caso o atingissem. Mas o vampiro era mais rápido do que o meio-vampixiita. Virando a cabeça um pouquinho para a esquerda, ele evitou a corrente e os ferrões por um centímetro e depois enfiou a faca que trazia na mão esquerda com força e precisão no estômago de Lucas. Enquanto o Sr. Crepsley atacava Lucas, Gannen Harst balançava sua espada na direção do vampiro. Minha boca se abriu para gritar um alerta, mas vi que não precisava me preocupar — o vampiro já estava esperando a medida defensiva e girou o corpo delicadamente para se esquivar do golpe, planando fora do alcance da curva que ela traçava, chegando a ficar surpreendentemente próximo do Senhor dos Vampixiitas. O Sr. Crepsley usou a faca na mão direita para açoitá-lo, buscando rasgar a barriga do Senhor dos Vampixiitas. Mas o líder foi rápido e bloqueou o golpe com sua espada dentada. A ponta da faca do Sr. Crepsley acertou a cintura do Senhor, mas só arrancou uma gota de sangue. Antes que o vampiro pudesse desferir outro golpe, Lucas o atacou com sua adaga. Ele saiu cortando desenfreadamente o Sr. Crepsley — desenfreado demais para avaliar com precisão — e o forçou a recuar. Depois, Gannen Harst
se aproximou e infligiu golpes violentos com sua espada, obrigando o Sr. Crepsley a cair no chão e rolar para trás a fim de que pudesse escapar. Ambos estavam sobre ele antes que pudesse se levantar, com as espadas cintilando e a corrente de Lucas açoitando-o. Foram necessárias toda a força, velocidade e inteligência do Sr. Crepsley para desviar das lâminas, sair do raio de ação da corrente, recuar e se levantar antes que o dominassem. Enquanto os vampixiitas corriam atrás do vampiro, temi que eles pudessem derrotá-lo — as espadas e a corrente estavam atravessando as defesas do Sr. Crepsley, cortando-o ali, talhando-o acolá. Os ferimentos não representavam ameaças para a sua vida, mas era só uma questão de tempo até uma espada cortar profundamente o seu peito ou estômago, ou os ferrões da corrente rasgarem seus olhos ou o nariz. O Sr. Crepsley devia saber do risco que estava correndo, mas continuou a cuidar da retaguarda, parando de levar a batalha ao inimigo, simplesmente recuando e se protegendo da melhor maneira possível, dando cada vez mais terreno, e deixando que eles o empurrassem na direção da grade no final da plataforma, onde seria encurralado. — Ele não vai conseguir agüentar isso — murmurei para Vancha, que estava em pé ao meu lado, com os olhos grudados na plataforma. — Ele vai ter que correr algum risco, e logo, antes que o encurralem. — Você acha que ele não está a par disso? — retrucou Vancha, sucinto. — Então por que ele não... — Calma, garoto — afirmou o Príncipe imundo, calmamente. — Larten sabe o que está fazendo. Eu não tinha tanta certeza. O Sr. Crepsley era um lutador experiente, mas achava que, desta vez, as coisas estavam além da sua capacidade. Um de cada vez, ele poderia enfrentar qualquer vampixiita. Mesmo numa situação de dois contra um, eu achava que ele poderia sair vitorioso. Mas três contra um... Procurei encontrar uma maneira de subir na plataforma — se eu pudesse me juntar a ele, poderia mudar o curso da batalha. Mas naquele mesmo instante, a luta acabou tendo uma reviravolta final. O Sr. Crepsley estava quase encostado na grade, a menos de meio metro de um beco sem saída. Os vampixiitas tinham noção da posição difícil em que ele se encontrava e avançaram com uma avidez renovada, sentindo que o fim estava próximo. Lucas desferiu um outro golpe com sua corrente, visando o rosto do vampiro novamente, pela milionésima vez, mas desta vez o Sr. Crepsley não desviou dos ferrões mortais e nem saiu do seu caminho. Em vez disso, largou a faca que segurava na mão esquerda, erguendo-a, e agarrando a corrente no ar. Seus dedos foram atravessados pelos espinhos e seus dentes se apertaram por causa da dor, mas ele não a largou. Puxando rapidamente a corrente, ele fez Lucas se chocar contra o seu corpo. No último instante possível ele abaixou a
cabeça, fazendo o rosto de Lucas colidir com sua testa. O nariz de Lucas ficou todo arrebentado e esguichava sangue. Ele gritou muito alto e caiu no chão. Enquanto o sujeito caía, o Sr. Crepsley arremessou a faca que estava em sua mão direita na direção de Gannen Harst, o que o deixou desarmado. Enquanto Harst saía instintivamente do caminho da faca, o Senhor dos Vampixiitas atacou meu mentor com sua espada. O Sr. Crepsley se esquivou da ponta da espada que vinha em sua direção. Ao bater com o corpo na grade, ele se virou de modo que ficou encarando seus oponentes de longe, agarrou a barra do parapeito, jogou as pernas e o corpo para cima com uma velocidade espantosa e acabou fazendo uma parada de mãos sobre ela. Enquanto nós, que estávamos no chão, olhávamos estupidificados, espantados com a manobra inesperada, o Sr. Crepsley baixou o corpo até o queixo ficar no mesmo nível da grade, e depois impeliu o corpo para longe usando toda a sua força. O vampiro planou, esticando-se ao máximo, pelo ar, voando por sobre o Senhor dos Vampixiitas, Gannen Harst — que havia se posicionado à frente de seu Senhor para protegê-lo, como havia feito várias vezes durante a luta — e Lucas Leopardo, que ainda estava caído sobre a plataforma. O Sr. Crepsley caiu em pé como se fosse um gato, atrás das costas desprotegidas do Senhor dos Vampixiitas. Antes que o meio-vampixiita ou Gannen Harst pudessem reagir, o vampiro pegou o Senhor pelo colarinho de sua camisa com a mão esquerda, agarrou suas calças pela cintura com a direita, ergueu-o do chão, girou o corpo na direção da beira da plataforma — e o lançou para fora de cabeça para baixo, na direção do poço cheio de estacas mais abaixo! Deu tempo para que o Senhor dos Vampixiitas gritasse — uma só vez — antes de cair sobre as estacas com um baque que me fez estremecer. As estacas o empalaram em doze lugares diferentes, incluindo o coração e a cabeça. Seu corpo se contorceu umas duas vezes e depois parou, enquanto as chamas começavam a queimar seu cabelo e suas roupas. Tudo aconteceu muito rápido; a princípio eu não consegui entender. Mas, à medida que os segundos se passavam e os vampixiitas olhavam, desconcertados e perturbados, para o cadáver do seu líder que queimava dentro do poço, a verdade plena os ia abatendo. O Sr. Crepsley havia assassinado o Senhor dos Vampixiitas... sem seu líder, eles teriam que encarar a derrota iminente... a Guerra das Cicatrizes havia terminado... o futuro era nosso... nós havíamos VENCIDO!
CAPÍTULO DEZESSETE
Era incrível. Era maravilhoso. Estava quase além de qualquer crença. Enquanto a alma dos vampixiitas se despedaçava como a fumaça que se erguia do corpo morto de seu Senhor, que ardia no meio das chamas, a minha se elevava enquanto eu sentia como se meu peito fosse explodir de alívio e
felicidade. Na hora mais tenebrosa, apesar da desvantagem, contra todas as expectativas, havíamos levado a briga para o campo do inimigo e colocado seus planos destrutivos na espada. Mesmo nos meus sonhos mais delirantes, jamais poderia ter imaginado algo tão doce. Meus olhos se ergueram enquanto o Sr. Crepsley andava até a beira da plataforma. O vampiro estava sangrando, suando e totalmente exausto, mas uma luz que poderia iluminar toda a caverna brilhava em seus olhos. Avistando-me no meio dos abalados vampixiitas, ele sorriu, ergueu uma das mãos para fazer uma saudação e abriu a boca para dizer alguma coisa. Foi quando Lucas Leopardo gritou ferozmente e se jogou firmemente sobre as costas do vampiro. O Sr. Crepsley caiu para frente, agitando os braços, tentando se segurar na grade. Por uma fração de segundo, parecia que ele iria conseguir se segurar e subir novamente, mas a gravidade o tragou para baixo com uma velocidade enjoativa, por sobre a cerca, sem que pudesse se segurar... para dentro do poço onde já estava o Senhor dos Vampixiitas.
CAPÍTULO DEZOITO
Embora Lucas tivesse enviado o Sr. Crepsley para um mergulho vertiginoso rumo à morte inevitável, ele também jogou, acidentalmente, uma tênue corda de salvação para o vampiro. Enquanto o Sr. Crepsley tombava, Lucas se inclinou sobre a grade, ansioso para ver o vampiro cair sobre as estacas e morrer. E
enquanto o fazia, a corrente que ele usara como arma — a qual ainda segurava na mão direita — se desenrolou e caiu ao lado do Sr. Crepsley como se fosse uma corda. Estendendo uma mão desesperada, o vampiro agarrou a corrente, mais uma vez ignorando a dor dos ferrões que se enterravam na carne da palma de sua mão. A corrente alcançou o seu limite, estendendo-se ao máximo, interrompendo a queda do Sr. Crepsley. Na plataforma, Lucas se lamentava enquanto o peso do Sr. Crepsley fazia a corrente se apertar em volta da carne de sua mão direita. Ele tentava soltá-la, mas não conseguia. Enquanto inclinava metade do corpo para fora da grade, lutando para se livrar da corrente, o Sr. Crepsley chegou ao topo, agarrou a manga da camisa de Lucas e o puxou ainda mais para baixo, sem ligar para sua própria vida, com a intenção única de acabar com a de Lucas. Enquanto os dois caíam — Lucas gritando, o Sr. Crepsley rindo — Gannen Harst estendeu o braço e conseguiu segurar a mão esquerda de Lucas, que se agitava freneticamente. O vampixiita gemia de dor enquanto o peso de dois homens estendia os músculos e os tendões do seu braço, mas conseguiu se segurar com firmeza numa viga de apoio. — Largue-me — gritava Lucas, enquanto chutava o Sr. Crepsley, tentando nocauteá-lo. — Você vai nos matar a ambos! — É essa a minha intenção! — respondeu, rugindo, o vampiro. Ele não parecia estar nem um pouco perturbado com o risco de morte iminente. Talvez fosse o fluxo de adrenalina pulsando em suas veias por ter matado o Senhor dos Vampixiitas — ou talvez ele não estivesse ligando para sua própria vida se isso significasse a morte de Lucas. De qualquer maneira, ele havia aceitado o seu destino e não fez nenhuma tentativa para escalar o corpo de seu oponente em busca de segurança. De fato, ele começou a puxar a corrente para baixo, tentando fazer Gannen Harst soltar Lucas. — Pare! — berrou Harst. — Pare ou vamos deixá-lo cair lá embaixo! — Tarde demais! — urrou o Sr. Crepsley. — Fiz dois juramentos a mim mesmo quando vim aqui para baixo. Um, que mataria o Senhor dos Vampixiitas. Dois, que mataria Lucas Leonardo! Não sou homem de deixar um trabalho pela metade, portanto... Ele puxou com muito mais força do que antes. Mais acima, Gannen Harst ofegava e fechava os olhos para tentar combater a dor. — Não posso... agüentar... muito tempo! — dizia ele, gemendo. — Larten! — gritou Vancha. — Não faça isso! Não troque a sua vida pela dele. Vamos seguir o seu rastro depois e acabar com sua raça! — Pelo sangue negro de Harnon Oan... não! — rugiu de volta o Sr. Crepsley. — Ele está nas minhas mãos agora, por isso vou matá-lo. Deixe que esse seja o fim de tudo!
— E quanto... aos seus... aliados? — gritou Gannen Harst e, enquanto as palavras penetravam o crânio do Sr. Crepsley, este parou de lutar e olhou para cima, cautelosamente, na direção do ex-protetor do Senhor dos Vampixiitas. — Assim como você está com a vida de Lucas Leonardo em suas mãos — afirmou Harst rapidamente —, eu detenho as vidas dos seus amigos. Se você matar Lucas, vou ordenar suas mortes também! — Não — respondeu o Sr. Crepsley calmamente. — Leonardo é um demente. Sua vida não deve ser poupada. Deixe-me... — Não! — berrou Gannen Harst. — Poupe Lucas que eu pouparei os outros. O acordo é esse. Concorde rapidamente antes que eu solte a ambos e dê prosseguimento à carnificina. O Sr. Crepsley parou, pensativo. — A vida dele também! — gritei. — Poupe o Sr. Crepsley, ou... — Não — disse Lucas rispidamente. — O maldito Crepsley morre. Não deixarei que ele saia dessa ileso. — Não seja estúpido! — vociferou Gannen Harst. — Você também morrerá se o largarmos! — Então morrerei — afirmou Lucas, sarcástico. — Você não sabe o que está dizendo! — sibilou Harst. — Sei sim — respondeu Lucas delicadamente. — Vou deixar que os outros partam, mas Crepsley morre agora, pois ele disse que sou perverso. — Lucas olhou para baixo, na direção de um silencioso Larten Crepsley. — E se eu tiver que morrer com ele, que seja assim... danem-se as conseqüências. Enquanto Gannen Harst olhava para Lucas, boquiaberto, o Sr. Crepsley olhou para onde eu e Vancha estávamos. Enquanto nossos olhares se cruzavam num entendimento amargo, Débora correu para onde estávamos. — Darren — gritava ela. — Temos que salvá-lo! Não podemos deixá-lo morrer! Nós... — Psst — sussurrei, beijando sua testa, abraçando-a. — Mas... — insistia ela, em meio a soluços. — Não podemos fazer nada. — Suspirei. Enquanto Débora se queixava e encostava o rosto no meu peito, o Sr. Crepsley se dirigia a Vancha. — Parece que nossos caminhos terão que se separar, Majestade. — Sim — Vancha falava em voz baixa, com amargura. — Partilhamos tantos bons momentos — disse o Sr. Crepsley. — Grandes momentos — corrigiu-o Vancha. — Você vai cantar em meu louvor nos Salões da Montanha dos Vampiros quando retornar, e fazer um brinde à minha memória, mesmo que seja apenas com um copo d’água? — Vou beber um engradado de cervejas em seu nome — jurou Vancha —
e cantar canções fúnebres até minha voz ficar rouca. — Você sempre levou as coisas ao extremo — riu o Sr. Crepsley. Depois, seu olhar se voltou para mim. — Darren — começou. — Larten — respondi, sorrindo, desajeitado. Senti vontade de chorar, mas não podia. Havia um silêncio incômodo dentro de mim ao qual minhas emoções não reagiam. — Rápido! — gritou Gannen Harst. — Minha mão está se soltando. Mais alguns segundos e irei... — Alguns segundos bastarão — disse o Sr. Crepsley, que não se afobava nem mesmo quando sua morte era iminente. Sorrindo com tristeza para mim, ele disse: — Não deixe que o ódio domine a sua mente. Minha morte não precisa ser vingada. Viva como um vampiro livre, não como uma criatura desesperada, perversa e movida pela vingança. Não se transforme em alguém como Lucas Leonardo ou C.C. Meu espírito não descansará em paz no Paraíso se você ficar igual a eles. — Você não quer que eu mate Lucas? — perguntei, incerto. — Mate-o de qualquer maneira! — rugiu o vampiro. — Mas não dedique sua vida à tarefa. Não... — Não... agüento... mais! — anunciou Gannen Harst, ofegante. Ele estava tremendo e suando por causa do esforço. — Nem precisa mais — respondeu o Sr. Crepsley. Seus olhos se voltaram para Vancha, para mim e depois para o teto. Ele olhava como se pudesse ver através das camadas de rocha, concreto e terra acima do céu. — Deuses dos vampiros! — berrou. — Que eu triunfe, mesmo na morte! Então, enquanto o eco de seu último grito reverberava pelas paredes da caverna, o Sr. Crepsley largou a corrente. Ele planou no ar por um instante impossível, quase como se pudesse voar... e depois caiu como uma pedra sobre as estacas de pontas afiadas logo abaixo.
CAPÍTULO DEZENOVE
No último instante possível, quando tudo parecia perdido, alguém numa corda se balançou vindo do teto, riscou o ar, agarrou o Sr. Crepsley pela cintura, e subiu com ele para a segurança da plataforma, onde ambos caíram em pé. Enquanto eu olhava, pasmo, com o queixo caído, o salvador do Sr. Crepsley se virou — era
Mika Ver Leth, um dos meus colegas Príncipes Vampiros! — Agora! — berrou Mika, e ao seu grito um exército de vampiros desceu pelos buracos do teto e caiu no chão, aterrissando ao lado dos perplexos vampixiitas e vampitietes. Antes que nossos oponentes tivessem chance de se defender, nossas tropas já estavam sobre eles, balançando espadas, lançando facas, batendo com machados. Na plataforma, Gannen Harst gritava, desesperado: — Não! — E se jogou sobre o Sr. Crepsley e Mika. Enquanto Harst dava o bote, Mika deu um passo, calmamente, ficando à frente do Sr. Crepsley, sacou sua espada, e a virou com toda força na direção do vampixiita que avançava, arrancando sua cabeça do pescoço, fazendo-a voar como se fosse uma bola de boliche sem direção. Enquanto o corpo sem vida e sem cabeça de Gannen Harst tombava sobre a plataforma, Lucas Leopardo gritou, se virou e saiu correndo rumo à segurança do túnel. Ele quase chegou ao final da prancha quando o Sr. Crepsley pegou uma das facas de Mika emprestada, mirou com cuidado e a fez voar na direção do meio-vampixiita. A faca se enterrou no meio das omoplatas de Lucas. Ele ofegou, parou, virou-se lentamente, com o rosto pálido, os olhos inchados, e as mãos tentando pegar o cabo da faca, incapazes de arrancá-la. Tossindo sangue, ele caiu sobre a prancha, teve breves espasmos e se calou. Ao redor, os vampiros estavam acabando com seus oponentes. Harkat e Vancha haviam se juntado aos guerreiros e estavam liquidando vampixiitas e vampitietes alegremente. Atrás deles, a inspetora-chefe Alice Burgess olhava para a carnificina, sem saber quem eram esses novos soldados. Sentia que estavam do seu lado, mas resolveu ficar com o rifle a postos, em todo caso. Débora ainda soluçava contra o meu peito — ela não havia olhado para cima e percebido o que estava acontecendo. — Está tudo bem — falei para ela, enquanto levantava a sua cabeça. — O Sr. Crepsley foi salvo. Ele está vivo. A cavalaria chegou. — Cavalaria? — repetiu ela, olhando em volta, enxugando as lágrimas dos olhos. — Não entendo. O quê...? Como...? — Não sei! — afirmei, rindo sem parar, e então agarrei o braço de Vancha assim que ele se aproximou. — O que está acontecendo? — berrei em seu ouvido. — De onde veio essa gente? — Eu mandei-os virem! — gritou ele, alegremente. — Quando fugi ontem, voei até a Montanha dos Vampiros e lhes contei o estava acontecendo. Eles voaram de volta comigo. Tiveram que andar cautelosamente... pedi para que não interferissem até que matássemos o Senhor dos Vampixiitas... mas estão aqui desde o começo, esperando. — Mas... eu não... é...
Parei antes que meus balbucios levassem o que havia de melhor em mim. Não entendera como eles fizeram para se arrastar tão silenciosamente, ou como Vancha havia alcançado a Montanha dos Vampiros e voltado com tanta rapidez — mesmo voando, ele levaria algumas noites para fazê-lo — mas o que importava? Eles estavam lá, mandando ver. O Sr. Crepsley estava vivo e Lucas Leopardo e o Senhor dos Vampixiitas mortos. Por que ficar fazendo questionamentos? Enquanto eu girava como uma criança no dia de Natal, cercada pelos presentes mais incríveis dentro de uma sala, vi uma figura incrivelmente familiar surgindo no meio da luta, com o cabelo alaranjado salpicado de sangue, algumas cicatrizes novas para se juntarem à mais longa que havia no lado esquerdo do seu rosto, mancando sobre seu tornozelo machucado, mas nem por isso curvado. — Sr. Crepsley! — gritei, jogando-me em seus braços. — Mestre Shan! — respondeu ele, rindo, abraçando-me com força. — Você achou que eu estava acabado? — Sim — solucei. — Ah! — disse ele, com mais uma risada. — Você não vai se livrar assim de mim com facilidade. Ainda tem muito o que aprender sobre nossos hábitos e costumes. Quem além de mim teria paciência para ensiná-lo? — Seu velho tolo! — afirmei, fanhoso. — Seu moleque mal-educado! — retrucou, para depois me empurrar para trás e olhar para o meu rosto. Ele ergueu uma das mãos, limpou as lágrimas e a terra que caíam sobre minhas bochechas e então... então... então...
CAPÍTULO VINTE
Não. Não foi assim que aconteceu. Gostaria que tivesse sido. Com todo o meu coração e minha alma, gostaria que ele tivesse sido resgatado e nossos inimigos derrotados. Naquele momento terrível e impossivelmente longo de sua queda, eu imaginei meia dúzia de
situações fantásticas, nas quais Mika, o Arqueiro ou o Sr. Altão interviriam para mudar o curso do destino, e todos sairíamos dali andando e sorrindo. Mas não era para ser assim. Não houve nenhuma chegada da cavalaria no último minuto. Nada de salvamentos milagrosos. Vancha não havia voado para a Montanha dos Vampiros. Estávamos sozinhos, como tinha que ser, como o destino assim queria. O Sr. Crepsley caiu. Foi empalado pelas estacas. E morreu. E foi horrível. Não posso nem dizer que foi rápido e misericordioso, como foi para o Senhor dos Vampixiitas, pois ele não morreu na mesma hora. As estacas não o mataram instantaneamente e, embora sua alma não tivesse mais ficado entre nós por muito tempo, seus gritos enquanto estava lá se retorcendo, sangrando e morrendo, queimando e gritando, ficarão comigo até o dia da minha morte. Talvez eu até mesmo os leve junto comigo quando me for. Débora chorava copiosamente. Vancha uivava como um lobo. Lágrimas verdes escorriam dos olhos verdes e redondos de Harkat. Até mesmo a inspetorachefe fungava o nariz e havia virado o rosto para não ver a cena. Mas eu não. Eu não podia. Meus olhos ficaram secos. Cambaleando para frente, parei na beira do poço e olhei para as estacas lá embaixo e para os dois corpos que estavam sendo rapidamente despidos de sua carne pelas chamas. Fiquei em pé como se estivesse de guarda, sem me mexer ou desviar o olhar, não prestando nenhuma atenção nos vampixiitas e vampitietes que saíam em silêncio da caverna. Eles poderiam ter nos executado, mas seu líder estava morto, seus sonhos destruídos e não estavam mais querendo brigar — nem mesmo por vingança. Mal pude notar Vancha, Débora, Harkat e Alice Burgess enquanto se aproximavam. — Temos que ir agora — murmurou Vancha depois de um tempo. — Não — respondi, melancólico. — Vou levá-lo conosco, para que seja devidamente enterrado. — Vai demorar horas até o fogo se extinguir — afirmou Vancha. — Não tenho pressa. A caçada terminou. Temos todo o tempo do mundo. Vancha suspirou profundamente e depois acenou com a cabeça. — Muito bem. Vamos esperar. — Eu não — disse Débora, soluçando. — Não posso. É horrível demais. Não posso ficar e... — Ela começou a chorar. Eu queria confortá-la, mas não podia. Não havia nada que eu pudesse dizer para fazê-la se sentir melhor. — Vou cuidar dela — disse Burgess, tomando conta da situação. — Vamos subir o túnel e esperar por vocês na caverna menor. — Obrigado, Alice — agradeceu Vancha. Burgess fez uma pausa antes de sair. — Ainda não estou certa quanto a vocês, se são realmente vampiros ou não.
E não tenho a menor idéia do que vou dizer ao meu pessoal sobre o que aconteceu aqui. Mas conheço o mal quando o vejo e gosto de pensar que também conheço o bem. Não ficarei no caminho de vocês quando chegar a hora de partirem. E se precisarem de alguma ajuda, é só ligar. — Obrigado — repetiu Vancha, e dessa vez ele conseguiu esboçar um tímido sorriso de gratidão. As mulheres se foram, Débora chorando e Burgess consolando-a. Elas atravessaram as fileiras de vampixiitas e vampitietes que se retiravam, que por sua vez deram passagem, humildemente, à dupla que ajudara a provocar a queda de seu Senhor. Minutos se passaram. As chamas continuavam altas. O Sr. Crepsley e o Senhor dos Vampixiitas eram incinerados. Até que uma dupla estranha veio mancando para nos enfrentar. Um não tinha mãos, embora carregasse um par de manoplas penduradas no pescoço. O outro tinha metade do rosto e gemia deploravelmente. C.C. e Morgan James. — Vamos pegar vocês, seus sujos! — vociferou C.C., apontando de um jeito ameaçador com seu coto esquerdo. — Gannen deu sua palavra de que os deixaria partir, por isso não podemos atacá-los agora, mas vamos caçá-los depois e fazê-los lamentar por terem nascido. — É melhor que venha preparado, Gancho — comentou Vancha, secamente. — Seremos adversários de mão cheia. C.C. sibilou com a piada e fez que ia atacar o Príncipe. Morgan o deteve, resmungando com os dentes cerrados — sendo que metade deles havia sido destruída pela bala de Burgess. — Vamof embóua. Non fale a pena! — Ah — retrucou Vancha, rindo maliciosamente. — Isso é fácil de dizer. Desta vez, foi C.C. que teve que afastar Morgan James enquanto ele lutava para pôr as mãos em Vancha. Falando palavrões e brigando um com o outro, os dois recuaram, se juntaram às fileiras de colegas silenciosos e saíram para cuidar dos ferimentos e tramar sua vingança. Mais uma vez estávamos sozinhos à beira do poço. A caverna estava mais tranqüila agora. Quase todos os vampixiitas e vampitietes haviam saído. Só uns poucos e últimos soldados errantes ainda permaneciam. Entre eles estavam Gannen Harst e um sorridente Lucas Leonardo, que não se conteve e se aproximou mais uma vez para uma última gargalhada zombeteira. — O que temos cozinhando no fogo, rapazes? — perguntou, levantando as mãos como se quisesse avisá-los. — Vá embora — respondi francamente — ou irei matá-lo. O queixo de Lucas caiu e ele me olhou fixamente. — A culpa é toda sua — afirmou ele, fazendo um beiço. — Se você não tivesse me traído.
Ergui minha espada, na intenção de parti-lo ao meio. Vancha a virou para o lado com a palma da mão, antes que eu arrancasse sangue do sujeito. — Não — afirmou, interpondo-se entre nós. — Se você o matar, os outros voltarão e acabarão conosco. Deixa para lá. Iremos pegá-lo depois. — Sábias palavras, irmão — afirmou Gannen Harst, aproximando-se de Vancha. Seu rosto estava retorcido. — Já houve muita matança. Nós... — Some daqui! — disse Vancha, rispidamente. A expressão de Harst ficou turva. — Não fale comigo assim... — Não vou avisá-lo novamente — rugiu Vancha. O ex-protetor do Senhor dos Vampixiitas ficou arrepiado de raiva, depois ergueu as mãos em paz e se afastou do irmão. Lucas não o acompanhou. — Quero lhe contar — disse o meio-vampixiita, com os olhos fixos em mim. — Não! — sibilou Gannen Harst. — Você não deve! Agora não! Você... — Eu quero lhe contar — repetiu Lucas, mais impetuoso desta vez. Harst disse palavrões em silêncio, olhou para nós, um de cada vez, e depois acenou com a cabeça, tenso. — Muito bem. Mas vá para longe daqui, onde ninguém possa ouvir. — O que vocês estão tramando agora? — perguntou Vancha, desconfiado. — Você vai saber — disse Lucas, rindo, segurando no meu ombro esquerdo. Eu o afastei. — Tire suas mãos de mim, seu monstro! — E cuspi. — Ora, ora. Não seja impaciente. Tenho notícias que estou louco para lhe dar. — Não quero ouvir nada. — Ah, quer sim — insistiu. — Você vai ficar fulo consigo mesmo daqui até a lua se não vier para escutar. Queria lhe dizer o que ele podia fazer com suas notícias, mas havia algo em seu olhar perverso que me fez parar. Hesitei por um instante e então fui para um canto onde meus amigos não podiam me ouvir. Lucas me seguiu, Gannen apressou o passo. — Se vocês o machucarem... — alertou-os Vancha. — Não o faremos — prometeu Harst, e então parou, protegendo-nos com seu corpo para que o resto não nos visse. — Bem? — perguntei, enquanto Lucas sorria para mim de um jeito malicioso. — Já rodamos muito por aí, não, Darren? — assinalou. — Da sala de aula em casa até esta Caverna da Vingança. De humanidade para vampirismo e para
vampixiitismo. Do dia para a noite. — Fale-me algo que não sei — resmunguei. — Costumava pensar que as coisas poderiam ser diferentes — afirmou ele delicadamente, com o olhar distante. — Mas agora acho que as coisas eram para ter sido exatamente dessa maneira. Era seu destino me trair e formar uma aliança com os vampiros, seu destino se tornar um Príncipe Vampiro e liderar a caça ao Senhor dos Vampixiitas. Assim como era meu destino encontrar o meu caminho no meio da noite e... Ele parou e uma expressão ardilosa brotou em seu rosto. — Detenha-no — resmungou Lucas, enquanto Gannen Harst me segurava pelos braços e me imobilizava. — Está pronto para mandá-lo para o reino dos sonhos? — Sim — disse Harst. — Mas rápido, antes que os outros intervenham. — Seu desejo é uma ordem para mim — disse Lucas sorrindo, para então aproximar seus lábios da minha orelha direita e sussurrar algo terrível... algo pavoroso... algo que mudou tudo o que eu pensava até agora e assombraria todos os meus momentos de despertar e adormecer a partir daquele instante. Enquanto ele se afastava, depois de me atormentar com seu segredo devastador, abri a boca para contar a novidade para Vancha. Antes que pudesse pronunciar uma sílaba, Gannen Harst respirou sobre mim o gás do sono dos vampiros e vampixiitas. Enquanto os vapores enchiam os meus pulmões, o mundo à minha volta se desvanecia até eu cair, inconsciente, no sono atormentado dos condenados. A última coisa que ouvi antes de apagar foi a gargalhada histérica de Lucas — o som de um demônio vitorioso e tagarela.
CAPÍTULO VINTE E UM
Não sabia onde estava quando acordei. Abri os olhos e vi um teto bem acima de mim, com vários painéis arrancados, três candelabros queimando vagamente agora que suas velas eram meros tocos de cera. Não conseguia pensar em onde poderia estar. Sentei-me, gemendo, e procurei pelo Sr. Crepsley, para perguntar a
ele o que estava acontecendo. Foi então que me lembrei. Queixando-me enquanto as lembranças dolorosas retornavam, fui me levantando com dificuldade e olhei em volta, desesperado. O fogo no poço das estacas estava quase extinto. O Sr. Crepsley e o meio-vampixiita estavam chamuscados, montes irreconhecíveis de ossos quebradiços e enegrecidos. Vancha e Harkat estavam sentados na beira do poço, com os rostos abatidos, lamentando-se em silêncio. — Por quanto tempo apaguei? — perguntei aos berros, enquanto me jogava na direção do túnel que dava para o lado de fora da caverna, caindo de joelhos de maneira desajeitada por conta da minha afobação. — Calma — disse Vancha, enquanto ajudava a me levantar. Bati em suas mãos para afastá-las e me virei furiosamente em sua direção. — Por quanto tempo? — perguntei, enfurecido. Vancha me encarou, preocupado, e depois encolheu os ombros. — Três horas, talvez mais. Minhas pálpebras se fecharam em desespero e me deixei cair novamente. Tarde demais. Eles já estariam na metade do caminho até o outro lado do mundo àquela altura. — O que houve? — perguntei. — O gás só deveria me deixar desacordado por quinze ou vinte minutos. — Você estava exausto. Foi uma longa noite. Estou surpreso por você ter acordado tão cedo. Está amanhecendo lá fora. Não esperávamos que você fosse levantar antes do crepúsculo. Balancei minha cabeça em silêncio, enfastiado. — Você está bem, Darren? — perguntou Harkat, mancando enquanto se juntava a nós. — Não — respondi com rispidez. — Não estou bem. Nenhum de nós está. Levantei-me e esbarrei na dupla confusa enquanto seguia lenta e dolorosamente até o poço, onde olhei mais uma vez para os restos em brasa do meu mais querido amigo e mentor. — Ele está em estado de choque — ouvi Vancha murmurar delicadamente para Harkat. — Tenha paciência. Ele vai levar algum tempo para se recuperar. — Recuperar! — gritei, enquanto me sentava e ria como se estivesse ensandecido. Vancha e Harkat se sentaram ao meu lado. Vancha à minha esquerda, Harkat à direita. Cada um deles colocou uma das mãos sobre as minhas numa demonstração silenciosa de apoio. Minha garganta se apertou e eu achei que iria finalmente chorar. Mas depois de alguns segundos as lágrimas ainda assim não vieram, por isso meu olhar se voltou novamente para o poço, enquanto meus pensamentos retornavam para a revelação assustadora de Lucas.
As chamas baixaram e a caverna esfriou. E ficou mais escura, no que as velas mais acima foram se extinguindo uma de cada vez. — Seria melhor se subíssemos ali e... acendêssemos novamente as velas — disse Harkat —, caso contrário não teremos como... enxergar direito quando descermos para... pegar os ossos do Sr. Crepsley. — Deixem-no aí — afirmei, de maneira rabugenta. — Esse é um lugar tão bom quanto qualquer outro para o último descanso. Harkat e Vancha me encararam com olhares vagos. — Mas era você que queria enterrá-lo — lembrou-me Vancha. — Mas isso foi antes de Lucas me levar ali para o canto — afirmei, suspirando. — Agora não importa mais onde o iremos deixar. Nada mais importa. — Como você pode dizer isso? — vociferou Vancha, furiosamente. — Nós vencemos, Darren! Matamos o Senhor dos Vampixiitas! O preço que pagamos foi alto, mas valeu a pena. — Você acha? — perguntei amargamente. — É claro que sim! — respondeu ele, gritando. — O que é perder uma vida quando poderíamos perder milhares? Sabíamos que havia a possibilidade de que algo assim pudesse vir a ocorrer. Teríamos sacrificado todas as nossas vidas se fosse necessário. Sinto a perda de Larten tanto quanto você... ele era meu amigo há muito mais tempo. Mas morreu honrosamente e deu a sua vida por uma causa que era justa. Se seu espírito estiver nos vendo agora, deve estar desejando que celebremos sua grande vitória, não que lamentemos sua... — Você se lembra da primeira vez que demos de cara com o Senhor dos Vampixiitas? — interrompi-o. — Lembra-se de como ele se disfarçou de servo, para que não o notássemos e atacássemos os outros, permitindo que ele escapasse? Vancha acenou a cabeça, circunspecto. — E daí? — Ele nos enganou naquele momento, Vancha, e o fez novamente. Não ganhamos guerra nenhuma. O Sr. Crepsley morreu em vão. Vancha e Harkat ficaram pasmos. — O quê...? Eu não... Você está dizendo...? O quê? — Harkat finalmente ofegava. — O meio-vampixiita com o manto em cima da plataforma era um chamariz — suspirei. — Não era a mesma pessoa que vimos na clareira. Lucas me contou a verdade antes de sair. Esse foi o seu presente de despedida. — Não! — retrucou Vancha, com a respiração ofegante e o rosto pálido. — Ele mentiu! Aquele era o Senhor deles. O olhar de desespero que brotou em seus rostos quando o matamos...
— ... era genuíno — afirmei. — A maior parte dos vampixiitas e dos vampitietes que estavam na caverna acreditava que ele era seu Senhor. Eles foram enganados, assim como nós. Só Gannen Harst e um punhado de outros sabia a verdade. — Então voltamos para onde estávamos no começo? — queixou-se Vancha. — Ele está vivo? Temos alguma idéia de como é sua aparência? Alguma maneira de saber onde ele vai aparecer? — Não exatamente — respondi com um meio sorriso. — Agora só restam dois caçadores. Isso mudou. — Respirei longamente, com ar descrente, e olhei para o poço novamente. Não queria lhes contar o resto da história, não com a morte do Sr. Crepsley e a notícia da fuga do Senhor dos Vampixiitas tão frescas em nossas mentes. Teria lhes poupado desse golpe adicional se fosse possível. Mas eles tinham que ser avisados. No caso de algo me acontecer, eles teriam que saber, para que pudessem espalhar a novidade e seguir em frente sem mim, se fosse necessário. — Eu sei quem ele é — sussurrei friamente. — Lucas me disse. Contou seu grande segredo. Harst não queria que ele o fizesse, mas acabou fazendo de qualquer maneira, para me ferir ainda um pouco mais, como se a morte do Sr. Crepsley não fosse o suficiente. — Ele lhe contou quem é o... Senhor dos Vampixiitas? — perguntou Harkat, ofegante. Acenei positivamente. — Quem? — gritou Vancha, levantando-se num só pulo. — Quem faz parte dessa escória e manda outros fazerem o seu trabalho sujo? Diga-me que irei... — É Lucas — respondi, e a força de Vancha o abandonou. Enquanto caía no chão, ele me olhou, horrorizado. Harkat também. — É Lucas — repeti, sentindome vazio e apavorado por dentro, sabendo que jamais me sentiria de um jeito diferente até que (a menos que) ele fosse morto, mesmo se eu vivesse até os mil anos. Umedecendo meus lábios, concentrando-me nas chamas, eu disse a terrível verdade em voz alta. — Lucas Leopardo é o Senhor dos Vampixiitas. Depois disso só havia o silêncio, o fogo e o desespero.
Darren Shan
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