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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ASSASSINOS INVENCÍVEIS / Lou Carrigan
ASSASSINOS INVENCÍVEIS / Lou Carrigan

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Brigitte Montfort está posando para um retrato pintado pelo jovem Samuel Dodecabro, em seu apartamento no “Edifício Cristal”, quando recebe um presente de Ano Novo: um ursinho de pelúcia. Quem o teria mandado? Quem saberia o seu endereço tão zelosamente escondido? Seria ele? Seria Número Um, o espião solitário da ilha de Malta, o único homem a quem Brigitte confiara seu coração?

Nesta aventura sensacional, passada nos Estados Unidos, a agente “Baby” enfrenta um inimigo diferente, inumano, que não se abala nem diante da beleza perigosa de seus olhos azuis..

Enviada em missão especial a uma festa de Ano Novo para a qual a CIA recebera um estranho convite, comparece disfarçada em gueixa, e presencia o assassinato de um refugiado húngaro, por um robô armado de lança-chamas, gases tóxicos e revólver. A valente espiã internacional enfrenta o robô, mas é facilmente derrotada. Nunca tivera um inimigo tão terrível, praticamente invencível.

A CIA recebe proposta dos donos do robô, proposta também feita aos soviéticos, chineses, britânicos, cubanos e a toda rede internacional de espionagem: quem pagar quinhentos mil dólares, poderá usar os “serviços” dos robôs para matar qualquer um, em qualquer lugar...

Brigitte, ao saber que a CIA aceitou a proposta imoral, pede demissão irrevogável e declara que dali por diante lutará contra a CIA e contra toda a espionagem internacional, até destruir todos os robôs.

Número Um, o único amor de Brigitte, cai prisioneiro dos robôs, é torturado, resiste a tudo, mas aplicam-lhe um novo “soro da verdade”, sob os efeitos do qual revela que enviou uma pista para “Baby”: um ursinho de pelúcia.

A agente “Baby” é atacada em seu apartamento por um robô quase humano e o enfrenta, seminua, conseguindo astutamente cegá-lo com dois tiros nas lentes, fazendo-o cair da altura de vinte e sete andares.

Conseguirá mesmo localizar Número Um? Cairá prisioneira dos robôs ou salvará a tempo seu grande amor?...

Brigitte Montfort está posando para um retrato pintado pelo jovem Samuel Dodecabro, em seu apartamento no “Edifício Cristal”, quando recebe um presente de Ano Novo: um ursinho de pelúcia. Quem o teria mandado? Quem saberia o seu endereço tão zelosamente escondido? Seria ele? Seria Número Um, o espião solitário da ilha de Malta, o único homem a quem Brigitte confiara seu coração?

Nesta aventura sensacional, passada nos Estados Unidos, a agente “Baby” enfrenta um inimigo diferente, inumano, que não se abala nem diante da beleza perigosa de seus olhos azuis..

Enviada em missão especial a uma festa de Ano Novo para a qual a CIA recebera um estranho convite, comparece disfarçada em gueixa, e presencia o assassinato de um refugiado húngaro, por um robô armado de lança-chamas, gases tóxicos e revólver. A valente espiã internacional enfrenta o robô, mas é facilmente derrotada. Nunca tivera um inimigo tão terrível, praticamente invencível.

A CIA recebe proposta dos donos do robô, proposta também feita aos soviéticos, chineses, britânicos, cubanos e a toda rede internacional de espionagem: quem pagar quinhentos mil dólares, poderá usar os “serviços” dos robôs para matar qualquer um, em qualquer lugar...

Brigitte, ao saber que a CIA aceitou a proposta imoral, pede demissão irrevogável e declara que dali por diante lutará contra a CIA e contra toda a espionagem internacional, até destruir todos os robôs.

Número Um, o único amor de Brigitte, cai prisioneiro dos robôs, é torturado, resiste a tudo, mas aplicam-lhe um novo “soro da verdade”, sob os efeitos do qual revela que enviou uma pista para “Baby”: um ursinho de pelúcia.

A agente “Baby” é atacada em seu apartamento por um robô quase humano e o enfrenta, seminua, conseguindo astutamente cegá-lo com dois tiros nas lentes, fazendo-o cair da altura de vinte e sete andares.

Conseguirá mesmo localizar Número Um? Cairá prisioneira dos robôs ou salvará a tempo seu grande amor?

 

 

 

 

Brigitte “Baby” Montfort cravou a faca rio ventre do ursinho de pelúcia. Mas com grandes cuidados para não destroçá-lo. A ponta da faca foi introduzida cautelosamente pelo baixo-ventre de “Nicanor”, buscando a costura escondida, até que a achou. Brigitte tratou de cortar os fios da costura e, aos poucos, o simpático ursinho que sabia dizer “Eu te amo”, foi deixando à mostra o seu conteúdo: recheio de algodão e uma leve armação de madeira, que servia de esqueleto ao brinquedo.

No meio de tudo isto, protegido por uma caixinha retangular de aço, o mecanismo que fazia o ursinho dizer “Eu te amo”: um sólido e pequeno disco negro que, ao ser inclinado o brinquedo, girava, recebendo a pressão de uma agulha que, como num pick-up de vitrola, fazia surgir o som num pequeno alto-falante. Um método engenhoso, mas comum no mundo inteiro, principalmente na fabricação de bonecas.

Sempre cautelosamente, Brigitte extraiu da barriga do ursinho aquele conjunto de peças, e o colocou sobre a mesa. Examinou o destripado “Nicanor” mas, como já esperava, nada mais encontrou dentro dele. Em compensação, encontrou o que procurava no conjunto de peças que transformavam o animalzinho em falante.

Ali, podia-se ler claramente gravado no leve metal da base de sustentação do conjunto:

 

LUCKY TOY, Ltd.

New York

N.Y. - USA

 

— Já encontramos, Peggy — disse Brigitte.

A empregada da espiã concordou com um gesto de cabeça. Se no princípio havia ficado surpreendida com as atitudes de Brigitte, agora entendia perfeitamente suas intenções.

— Agora, temos que encontrar essa casa chamada “Lucky Toy”, miss Montfort.

— Espero que não seja muito difícil. Há muitas maneiras de fazê-lo, mas o método mais seguro é dar uma espiada na lista telefônica. Quer me fazer o favor de trazê-la?

Peggy saiu atrás da lista telefônica. “Cícero” acompanhava com grande atenção a operação de estripamento do ursinho, pondo de banda comicamente sua cabecinha de rato. Fechou os olhinhos brilhantes quando a mão de Brigitte acariciou suas orelhas, ganindo baixinho de prazer.

— Está vendo, “Cícero”, de que modo tão simples pode-se conseguir uma pista... quando quem a fornece é um entendido em espionagem? Será que você gostaria de ser espião, “Cícero”?

O cachorrinho latiu agudamente, todo estremecido de prazer.

Peggy logo voltou com a grossa lista amarela da cidade de Nova Iorque e, enquanto Brigitte folheava procurando a palavra toy, ou seja, brinquedo, ficou examinando distraída o mecanismo do ursinho.

Brigitte levou apenas um minuto para encontrar o nome daquele fabricante de brinquedos. A “Lucky Toy Ltd.” ficava na rua Este 138, no Bronx. Isto é, exatamente na ponta deste bairro que fica entre os rios Harlem e East River.

— Foi fácil, não é mesmo? — disse Peggy.

— Acredita? — disse sorrindo Brigitte.

— Bem... creio que sim... não é?

— Não muito, esta é que é a verdade — suspirou Brigitte. — Preferia não haver encontrado esta pista, Peggy.

— Mas aí estaria completamente desorientada...

— No momento, sim. Mas isto, que nos pareceu tão fácil, acabou de me convencer de que eles têm efetivamente prisioneiro um grande amigo meu. A um amigo muito querido. Não me enganaram.

— Quem é? Qual deles é?

— Não estou muito certa. Mas quero convencer-me disto, Peggy. Além do mais, se é meu amigo, como demonstrou ao enviar-me o ursinho, seu nome importa muito pouco.

— Creio que não deve ser um amigo comum, miss Montfort. Ele conhecia o seu verdadeiro nome, e seu endereço em Nova Iorque.

— Não — murmurou Brigitte. — Não é um amigo comum, Peggy. E o mais querido de todos. O mais solitário, o mais triste, o mais decepcionado. Mas, assim mesmo, continua sendo o espião número um de todo o mundo.

— Mas, não, miss Montfort, o título número um lhe pertence.

— Ele é homem, e eu sou mulher. Eu sou a primeira do grupo feminino, e uma das primeiras do conjunto total. Mas, considero-o melhor que eu. Deve ter passado por muitos maus pedaços... e certamente, para obrigá-lo a dizer meu nome, para obrigá-lo a delatar-me, devem ter praticado mil barbaridades com ele, antes de aplicarem drogas, única maneira de conseguir uma delação de sua parte. Espero — e sua voz ficou levemente embargada — espero que ainda possa fazer alguma coisa por ele. E se não for assim.

Calou-se, ficando pensativa. Peggy aguardou em vão que ela concluísse a frase e, não resistindo à curiosidade, perguntou:

— O que fará, se não conseguir fazer mais nada por ele?

A espiã mais bela do mundo tinha agora os olhos como se estivessem congelados, frios; seu rosto habitualmente suave contraía-se numa expressão duríssima.

— Se eles o mataram, nenhum escapará para vangloriar-se disso.

— Entendo — disse Peggy, vivamente impressionada.

— Está melhor agora? — disso Brigitte disfarçando num sorriso.

— Sim. Mas a cabeça me dói...

— Chame a garagem e diga que preparem meu carro grande. O Mustang está bem. Depois, trata de arrumar minha bagagem noturna para missões sem tempo de retorno.

— Sem... tempo de retorno?

— Não sei quando voltarei... se voltar. E outra coisa, Peggy: tome um táxi, dê algumas voltas pela cidade e depois tome outro. Em seguida, mais dois, sempre procurando dar voltas, para despistar um provável perseguidor. Finalmente, alugue um carro e saia de Nova Iorque por alguns dias. Procure um lugar tranqüilo...

— Sua cabana junto ao lago?

— Não! Pode ser que já a tenham descoberto. Procure uma cidade o mais longe possível de Nova Iorque. Como por exemplo, Niagara Falls. É um lugar muito bonito — disse amavelmente — e não é obrigatório estar em lua-de-mel para conhecê-lo. Outra coisa: antes de regressar, telefone para cá. Ou para o “Morning News”, o meu jornal. E preste atenção: se não for eu mesma a atender ao telefone, fique por lá. E, todos os dias, telefone novamente. Só deve voltar quando eu mesma te disser que tudo já terminou, entendeu?

— Sim, miss Montfort. Mas... e quanto à sua segurança?

— A minha? — sorriu friamente a espiã. — Bem... acho melhor que você comece a ficar com pena dos senhores da Loja Lucky Toy, não de mim. E trate de fazer aquilo que lhe disse.

Rapidamente, trataram dos preparativos. Não era de duvidar que de um momento para o outro surgisse algum robô e nem sempre se podia confiar na sorte. O primeiro round fora vencido por Alexandre, mas no segundo fora Brigitte a vencedora. Já o terceiro... qualquer um dos dois podia vencer, e não convinha perder mais tempo. A qualquer momento, mesmo a mais afortunada das pessoas podia ver a sorte mudar...

Deste modo, enquanto Peggy chamava a garagem e procurava acondicionar na maleta o equipamento noturno que solicitara, a espiã dedicou-se a arrumar o conteúdo de sua fascinante maletinha vermelha, de florzinhas coloridas. Terminado o trabalho, Brigitte tratou de vestir-se, enquanto Peggy providenciava sua própria bagagem de emergência.

Brigitte foi até a porta do quarto de Peggy.

— Precisa de algum dinheiro?

— Não, miss Montfort. Sou tão bem paga que...

— Está certo, então. Não diga a ninguém para onde vai e não fale com ninguém. Espero que compreenda, Peggy: com ninguém mesmo. Ninguém deve saber onde você vai passar estes dias. É sua própria vida que está em jogo.

— Está bem, miss Montfort. Não... não direi... que vou para...

— Não! Nem a mim deve dizer para onde vai!

— Mas não disse que eu devia ir para Niagara Falis...?

— Não vá para lá. Vá a qualquer lugar, menos para lá. Eu não quero saber. Se for capturada, é bem possível que me dêem a droga também, de modo que prefiro nem saber aonde você vai.

— Em... entendo... sim...

— Ótimo! Está pronta?

— Estou.

— Pois então vamos embora. A propósito, leve o “Cícero” e aquele revólver que lhe dei.

— Já está na... maleta.

— Tire-o de lá. Vá até o banheiro e coloque-o preso à coxa, como eu.

Levantou a saia, deixando ver a pequena automática de cabo de madrepérola, presa à coxa esquerda por meio de uma larga tira de esparadrapo cor de carne. Acompanhou Peggy até o banheiro e ajudou-a na operação. Examinou-a com um ar aprovador e voltaram até o quarto desta, que fechou a mala. Brigitte, então, encaminhou-se para a porta.

Pouco depois, estavam na rua. Peggy tomou um táxi, carregando “Cícero”, que gania. A agente “Baby” dirigiu-se para a garagem subterrânea particular dos moradores do “Cristal Building”.

Depois de algumas brincadeiras com os empregados da garagem, todos enamorados da “alucinante miss Montfort”, ela saiu para a rua, bem instalada no seu imponente Mustang.

Contra todos os prognósticos, aquela mulherzinha belíssima estava disposta a dar início ao terceiro round contra os assassinos, que pareciam invencíveis.

 

A loja de brinquedos “Lucky Toy” ficava situada na rua 138 Este, no bairro do Bronx. Era uma loja bastante elegante, bem sortida, com todas as espécies de brinquedos: grandes vitrinas bem arrumadas, como aquela do macaco de bicicleta, pedalando briosamente, a cabeça movimentando incessante de um lado para outro. Viam-se pequenos carrosséis, centenas de soldadinhos de chumbo, centenas de índios, revólveres, armas espaciais, luvas de boxe, bastões de basebol, máscaras protetoras, bolas de rugby e futebol, bicicletas... um pouco de tudo.

Afastada o máximo possível da loja de brinquedos, a agente “Baby” estudava atentamente a fachada, e todas as pessoas que entrassem ou saíssem de “Lucky Toy”. Para isto, usava um binóculo potentíssimo, que aproximava as pessoas a ponto de colocá-las junto do carro. Casais com crianças, mamães com crianças, papais com crianças... As crianças saíam de olhos arregalados, carregando entusiasmadas os pacotes, cheias de ilusão! Um grupo de rapazes, que estavam discutindo diante da vitrina há mais ou menos quinze minutos, entrou, para logo sair carregando bastões de basebol e máscaras de proteção, sob o olhar invejoso dos colegas. Entraram a seguir dois casais sem filhos e três homens sozinhos... Mas todos tornaram a sair, carregando embrulhos.

Quase às duas horas da tarde, a espiã tratou de comer às pressas alguns sanduíches e tomou um pouco de café da garrafa térmica que trazia no carro. Às cinco da tarde, talvez um pouco mais, os empregados da loja começaram a se retirar. A última pessoa a sair, a qual fechou a porta, foi uma linda loura de bonitos olhos claros. Possivelmente, era a proprietária, ou gerente do negócio, talvez. Às cinco e meia, aparentemente, era mais uma loja fechada, para desgosto de algumas crianças que passavam por ali, detendo-se diante das vitrinas abarrotadas de brinquedos. Pouco depois das seis e meia, já era noite fechada. Na rua brilhava o anúncio luminoso, a cores, que se apagava e acendia lançando no espaço o nome da loja:

“Lucky Toy” em vermelho, “Lucky Toy” em verde, “Lucky Toy” em azul...

Depois de estudar cautelosamente o terreno que circundava a loja, “Baby” tratou de mudar de roupa dentro do carro, com grande habilidade. Em menos de cinco minutos, havia substituído seu bonito vestido por uma malha negra que lhe cobria todo o corpo, bem colante, mostrando suas belas curvas. Escondeu o vestido no banco traseiro, deu uma última olhada ao conteúdo da maleta de mão e empunhou o volante, O Mustang deslizou silenciosamente, passando diante da loja, para logo desaparecer na esquina seguinte. Finalmente, o carro parou quase no final do beco. Se não se havia enganado na primeira inspeção, podia alcançar o meio do conjunto da loja entrando pelo jardim daquela casa vizinha. O jardim se estendia por detrás do edifício de dois andares da loja, pelo que podia presumir que aquele caminho fosse conveniente.

Pulou a cerca com grande facilidade, de olho na casa, que estava de luz acesa. Era um risco muito grande que estava correndo, pois se os moradores a vissem chamariam a polícia... e seria o cúmulo se a agente “Baby” tivesse de desistir de seus planos por motivo tão vulgar quanto uma acusação de roubo.

Mas não foi assim e, em poucos segundos, estava na parte traseira, de onde, realmente, o jardim se prolongava até o centro do conjunto. Ao fundo havia uma parede de quase três metros de altura, obstáculo mais do que respeitável para ser vencido de um salto... Precisou de quatro tentativas para conseguir pendurar-se na borda da parede de tijolos com uma só mão, enquanto segurava a maleta com a outra. Prendeu a alça desta com os dentes para poder usar as duas mãos e, de um só impulso, conseguiu ultrapassar o muro, com a graça e agilidade de uma gatinha.

Estava, finalmente, no meio do conjunto. E dali foi fácil orientar-se até a “Lucky Toy” onde, muito provavelmente, estava prisioneiro o amigo que lhe enviara “Nicanor”. Desconfiou logo da existência de um porão, ou de aposentos isolados... Um lugar em que se pudesse torturar e matar impunemente uma pessoa.

O certo era que tinha recebido aquela pista com o nome de “Lucky Toy”, e naturalmente porque naquele lugar aconteciam coisas muito interessantes.

Uma fábrica de brinquedos... E os robôs não eram brinquedos? Brinquedos monstruosos, diabólicos, é verdade. Se haviam conseguido fabricar um ursinho que dizia “Eu te amo”, bonecas que caminhavam sozinhas e que também diziam frases inteiras de carinho, o que haveria de mais na idéia de que pudessem também fabricar aqueles assassinos perigosos e impassíveis? E por acaso Alexandre não podia ser considerado um brinquedo?

Depois de saltar outros dois muros, mais baixos que os anteriores, encontrou-se diante de um quarto, mais alto que o primeiro, do outro lado do qual, se não estava enganada, encontraria a parte traseira da loja. Teve que fazer verdadeiras acrobacias para alcançar o topo daquele muro. Por sorte, encontrou por ali algumas capas de lona usadas para cobrir automóveis, as quais empilhou até conseguir uma plataforma macia e circular de mais ou menos um metro de altura. Dali, então, depois de várias tentativas frustradas, conseguiu alcançar o alto do muro, de onde saltou rapidamente. Caiu do outro lado, em silêncio, sempre com a perícia de uma gatinha negra.

Havia um grande pátio, cheio de caixas enormes que deviam conter brinquedos, prontos a serem despachados para vários pontos do país. Ao fundo, via-se uma grande porta de madeira, de uma só peça, que se deslocava para a direita sobre rodas que resvalavam sobre trilhos. Abriu-a o suficiente para poder esgueirar-se até o interior do que lhe pareceu um armazém, ou uma oficina.

A luz de sua pequena lanterna logo brilhou, em rápidos lampejos, projetando-se nervosamente para todos os lados. Nada de mais. Era um armazém comum e se viam brinquedos em construção, outros em conserto, materiais variados, uma grande pilha de discos-voadores.

Mais além, via-se outra porta de duas folhas, não muito grande. Aproximou-se cautelosamente dela, no mais absoluto silêncio.

Estava quase a abri-la, quando ouviu o som de passos pesados, vindos do lado oposto, aproximando-se. Movimentou-se rapidamente, ficando de costas grudadas na parede. Inclinou-se um pouco, deixando a maleta no chão, e empunhou o revólver, apagando a lanterna.

A porta abriu-se e as pisadas passaram a soar ali dentro. Os passos detiveram-se a menos de duas jardas de Brigitte Montfort, no escuro. Ouviu o rumor de uma mão roçando a parede, tateando na escuridão.

A luz acendeu instantaneamente no armazém, e a espiã viu-se frente a um homem. Sua boca abriu-se de espanto e surpresa, ao ver diante de seus olhos aquela mulher magnífica, completamente vestida de negro, de malha colada ao corpo.

Cloc!

O revólver bateu secamente na sua testa e o homem tombou para trás, cambaleando. O segundo golpe ressoou surdamente, aplicado no lado do pescoço. E o homem caiu desfalecido, junto aos pés calçados de mocassins negros de Brigitte.

A espiã mais perigosa do mundo utilizou um rolo de arame de armação de brinquedos para amarrar solidamente as mãos e os pés do homem. Depois, tirou de sua maleta um rolo de esparadrapo cor de carne, cortou um pedaço e tapou a boca do vigia desmaiado.

Deu um último olhar em torno, pelas pilhas e caixas de brinquedos, acendeu novamente a pequena lanterna e saiu do armazém por um amplo corredor para o qual davam várias portas.

Abriu-as uma a uma, cautelosamente, mas não encontrou nada de interessante. O único ponto ao qual dedicou mais a atenção foi o escritório. Viu sobre a mesa o monte de etiquetas que pareciam bandeiras dos Estados Unidos e não pôde deixar de sorrir, ao entender como havia chegado às suas mãos aquele lindo ursinho que tivera de estripar.

Examinou uma das etiquetas em branco e escreveu, “Um ursinho Nicanor”.

Depois, escreveu atrás o endereço: Brigitte Montfort, “Cristal Building”, Manhattan, Nova York, N.Y.

Saiu do escritório, subiu de volta o corredor e, pouco depois, encontrava-se no armazém, inclinada, a examinar o vigia desmaiado, mantendo a luz da lanterna em seus olhos. Foi preciso sacudi-lo umas quantas vezes para que voltasse a si. O homem abriu os olhos, mas tornou a fechá-los, cego pela luz da lanterna.

— Estou procurando um homem — disse friamente a espiã — e quero saber onde está, em menos de um minuto, compreendeu?

O homem assentiu com a cabeça e Brigitte arrancou a tira de esparadrapo de um puxão, fazendo-o gemer de dor.

— Muito bem, agora comece a falar. Onde está homem?

— Não... não sei do que está falando — gaguejou o vigia.

— Pois vou dizer-lhe o que vai acontecer se antes de um minuto não conseguir encontrar meu amigo. Em primeiro lugar, arrancarei suas orelhas, depois, apesar da língua não parecer saber outra coisa a não ser dizer mentiras, eu a arrancarei, porque não gosto de mentiras. E finalmente, já que seus olhos parecem também não servir para grande coisa, eu os furarei com meu punhal. Já passou meio minuto... e juro que não estou brincando.

O homem empalideceu violentamente, em contraste com o sangue que lhe escorria pela cara, brotando da ferida que tinha na testa, provocada pelo primeiro golpe dado por Brigitte com o seu pequeno revólver.

— Ele está... ele está aí embaixo, no porão...

— Já salvou suas orelhas. Por onde se entra na o porão?

— Existe... existe um alçapão aí no armazém.

— Onde? Como se abre?

— É difícil... de explicar...

Um brilho irônico passou pelos olhos azuis da espiã. Mas o homem não pôde vê-lo, porque estava ofuscado pela luz da lanterna e não conseguia distinguir nada mais além daquele raio de luz que o cegava.

— Certo — disse em tom cordial Brigitte. — já que é tão difícil explicar, você mesmo vai abrir alçapão, está bem?

— Sim... sim...

Brigitte desenrolou o arame que prendia os pés do homem.

— Ponha-se de pé e caminhe para lá.

O homem pôs-se de pé com dificuldade e pôs-se a caminho. Afastou umas caixas e bateu com o pé no chão uma vez.

— É aqui. Mas se não me soltar minhas mãos, não poderei abrir.

— Oh, é verdade...

Desatou-lhe as mãos e o homem se inclinou, tateando no chão por alguns segundos até levantar o alçapão. O raio de luz da lanterna desviou-se uma fração de segundo, perfurando aquela impenetrável escuridão. Conseguiu vislumbrar os degraus de madeira...

Ouviu então o homem movimentar-se, bruscamente. Era um rumor que já ouvira antes inúmeras vezes, toda vez que alguém tentava atacá-la no escuro.

Sua única reação foi lançar a mão esquerda para diante, rígida, num espantoso golpe de caratê que acertou em cheio o plexo solar do vigia. Foi um golpe violentíssimo, bruto, quase cruel. Já esperava por aquela reação e havia calculado previamente aquele golpe, avaliando a distância para não haver possibilidade de erro.

Focou a lanterna no vigia. Ele estava caído junto ao alçapão, encolhido, tossindo espasmodicamente. Um ligeiro empurrão “amável” fez com que despencasse pelos degraus abaixo.

O barulho de sua queda foi enorme naquele lugar silencioso e escuro e, enquanto o vigia rolava escada abaixo, “Baby” saltou para o interior do alçapão, fechando a tampa sobre si, encerrando-se dentro. Deixou-se estar acocorada no alto do lanço de escadas, ouvindo atentamente a queda estrondosa do vigia.

Finalmente, tudo voltou ao silêncio.

Nem uma voz, nem um ruído, nem uma luz... Será que não havia ninguém por ali? Tinha atirado o vigia escadas abaixo para testar se aquilo era uma armadilha, para ver se apenas acabasse de entrar não atirariam sobre ela. Mas, se ninguém disparava contra o vigia que fizera um barulho tremendo, nem disparava agora, nem acendia as luzes...

Começou a descer lentamente, no mais completo silêncio. Chegou embaixo, esbarrou no corpo do vigia.

Nada.

Silêncio.

— Número Um — chamou. — Está aqui, Número Um?

Silêncio.

Acendeu novamente a lanterna. Viu duas mesas de trabalho, de madeira, montes de armações de arame; depois, um amontoado de cabeças de manequins, braços, pernas, troncos... um par de manequins quase terminados...

— Vejo que é incrivelmente valente, miss Montfort — disse a voz de Alexandre atrás dela.

Voltou-se velozmente, levantando o revólver e focando a lanterna em direção à voz. Viu um manequim que se aproximava dela, e retrocedeu; um passo.

— É inútil — disse a mesma voz, agora já de outro ponto — não poderá escapar.

Voltou-se novamente e tornou a iluminar naquela direção. Outro manequim estava se aproximando. Girou para outro lado e viu outro, e mais outro... Estremeceu ao perceber seis manequins comuns, dos que se vêem nas vitrinas. Alguns nem ao menos estavam terminados: faltava dar-lhes um toque de cor e vesti-los como homens normais. Sua estrutura brilhava à luz da lanterna e Brigitte voltou-se ora para um, ora para outro, rapidamente, fazendo mira, mas logo desistiu de disparar. Para quê? Não podia tampouco retroceder, ou adiantar-se, porque o círculo não podia ser quebrado...

— Não tenha medo, miss Montfort disse um deles. — Desta vez o plano não consiste cm matá-la. Nós lhe reservamos algo muito melhor.

— O quê? — perguntou Brigitte.

— É um plano muito bom. Até o momento, foi a única pessoa capaz de vencer um de nós. Isto exige um... intenso e profundo estudo de sua mente, de sua personalidade. Tem uma mente perfeita, agilíssima. Não se poderia imaginar que saísse viva da visita de Alexandre. Mas, sem dúvida, foi isto que aconteceu, e é preciso render-se às evidências. Foi pura sorte... ou capacidade de luta, agente “Baby”?

— Um pouco das duas.

— Sim, realmente, deve ser assim. De qualquer maneira, seu amigo não nos enganou: está provado que é perigosíssima.

— Onde está ele?

— Seu amigo? Ainda está vivo, se isto a consola. Na realidade, estamos convencidos de que temos como prisioneiros duas pessoas extraordinariamente bem dotadas de inteligência, astúcia, força física, valentia... Chegamos à conclusão de que merecem uma morte muito especial.

— Vão torturar-nos?

— Não, não! Vamos mantê-los vivos para... fazer algumas experiências. Somente isto, miss Montfort. Até logo.

— Será que vamos ver-nos...?

Calou-se bruscamente. Diante dela, um dos manequins havia levantado o braço esquerdo e ouvia-se agora um fino chiado de gás escapando. Brigitte ainda se lançou contra um dos manequins, tentando derrubá-lo com um empurrão, mas o robô permaneceu ali como uma viga cravada no solo, de pé, sem estremecer. Desta vez não havia nenhum peitoril para desequilibrá-lo. A espiã pensou em atirar, mas concluiu que os robôs poderiam matá-la imediatamente.

Caiu de joelhos, já quase desmaiada.

— Eu... eu... acabarei com... todos... com todos vocês...

E, antes de desmaiar definitivamente, ainda pode ouvir as risadas zombeteiras dos seis robôs à sua volta.

 

Ofuscada pela luz que inundava o quarto, pestanejou várias vezes. Ficou olhando para o teto, por um momento. Depois, já refeita, procurou sentar-se na cama. Uma cama larga, confortável, ricamente decorada.

A casa em que se encontrava aparentava riqueza. Uma riqueza correta, elegante, sóbria. O aposento era espaçoso, com banheiro privado. Um grande armário embutido, duas poltronas muito cômodas, tapete felpudo e uma janela larga que abria para a noite silenciosa.

Mas ali estava também Alexandre, seu primeiro conhecimento em matéria de robôs. O mesmo que havia assistido ao baile de máscaras, em sua armadura metálica, seus quatro olhos, um em cada lado da cabeçorra quadrada. Estava em pé, frente à porta do quarto, imóvel e indiferente como um monte de sucata disposta mais ou menos em forma humana. Os manequins, certamente, eram muito mais perfeitos e menos horripilantes. Ao menos, pareciam pessoas. Mas aquele não. Aquele, parecia exatamente o que era, e era o que parecia: um robô clássico, sem nenhuma aparência humana. Era seu primeiro inimigo, o que lhe recitara versos em japonês.

Brigitte pôs-se em pé, encarando desconfiada o robô, que permanecia silencioso, como se estivesse descansando.

Verificou prontamente que estava desarmada e que sua fantástica maleta vermelha de florinhas havia desaparecido. Aproximou-se da janela e deu uma olhada para fora. Não viu nada... apenas nuvens pesadas, como rendilhadas de prata, impedindo a lua de iluminar. Mas, depois de abrir uma das janelas, ouviu claramente o rumor do mar. Inclinou-se o máximo para fora e teve uma surpresa ao ver terra firme logo abaixo; não estava em lugar alto, mas no andar térreo de uma casa de praia.

Pareciam estar muito seguros quanto ao fato de “Baby” não poder escapulir dali.

Voltou a olhar desconfiada para o robô, enquanto se encaminhava para o banheiro. Meteu a cabeça debaixo do jorro de água fria da torneira, buscando alívio para a sensação de peso que sentia, devido aos efeitos do gás que respirara e a fizera desmaiar.

Enxugou vigorosamente a cabeça, penteou descuidadamente seus negros cabelos e voltou ao quarto. Alexandre continuava ali, indiferente a tudo.

De cenho franzido, Brigitte aproximou-se dele e tocou de leve no que parecia ser o seu peito, com a ponta dos dedos. Não ocorreu nenhuma descarga elétrica.

Examinou o olho frontal, que não passava de uma lente de câmara de televisão. Estava funcionando ou não? Decidiu experimentar. Passou pelo robô, abriu a porta do dormitório e saiu para o amplo corredor, recoberto de tapetes e vasos com plantas tropicais, de verdor exuberante. No fundo do corredor havia uma porta-janela que abria para o jardim.

Encaminhou-se para lá... e subitamente estacou ao ouvir os passos do robô, que saía do dormitório. O robô parou ao mesmo tempo em que ela. E continuou a segui-la no momento exato em que ela reiniciou sua caminhada em direção à porta que dava para o jardim. Os passos pesados do robô eram um tétrico acompanhamento dos seus pela silenciosa mansão, que aparentava ser enorme, luxuosa e alegre.

Abriu a porta-janela e saiu. Um ar úmido e frio a envolveu, gelando sua fina malha negra, colante. Agora podia ver o mar, próximo, estourando em ondas prateadas, rebrilhando ao luar, pois finalmente as nuvens cerradas haviam se dispersado.

Alexandre saíra atrás dela, estacando imóvel junto a um canteiro de hortênsias.

— Onde estamos? — perguntou Brigitte.

— Em uma ilha — respondeu laconicamente o robô.

— Que ilha?

— Não posso dizê-lo.

Brigitte concordou com a cabeça. A voz do robô não era mais a mesma, não era mais a voz de Alexandre. Era evidente que acontecera uma troca da pessoa encarregada de comandar o robô a distância. Era outro homem que estava nos comandos agora.

— Também não pode me dizer a que distância estamos da costa?

— Se está pensando em escapulir a nado é melhor que desista, miss Montfort. A distância é tamanha, que jamais chegaria a parte alguma... senão ao fundo do mar. E mesmo assim, somente no caso de que eu a deixasse escapar. Por favor, comporte-se. Já sabemos que é perigosa e valente. Não nos obrigue a matá-la agora.

— Quando será o momento?

— Amanhã, talvez depois... ou depois. Depende do dia em que se realize a reunião.

— Que reunião?

— Uma muito importante, a que talvez assistisse, caso não tivesse a má sorte de seguir a pista que a levou até a loja de brinquedos.

— Quer dizer que virá até a ilha um representante da CIA?

— Mais ou menos. Não está com fome?

— Bem... já que falou nisto, acho que sim.

— Pode ir à cozinha e preparar o que desejar. Aliás, pode andar por onde quiser, menos no segundo andar da casa. Espero que não me desobedeça, agente “Baby”.

— Claro que não. Onde fica a cozinha?

Um braço do robô levantou-se, apontando a direção. Brigitte pôs-se a caminhar, olhando para o robô, que ia assinalando em gestos mecânicos o caminho a seguir. Mas, assim que se encontrou dentro da casa, chegou facilmente à cozinha, e o robô teve que apressar os passos, para não perder de vista a espiã internacional.

A cozinha era muito grande, magnificamente equipada com tudo o que era imaginável. A geladeira era quase uma câmara frigorífica, onde havia de tudo. Brigitte entrou e voltou-se para o robô.

— Não vai entrar, Alexandre?

— Não — disse ele rindo. — Não gosto do frio... e detestaria ficar trancado aí dentro.

— Você é muito desconfiado — disse rindo também Brigitte.

— E você é bastante sabida. Apesar do frio não me afetar, prefiro esperá-la aqui mesmo.

— E quem lhe garante que eu não me tranque aqui dentro? — sugeriu ela.

— Pois pode fazê-lo. Dizem que as pessoas que morrem de frio ficam com um estranho sorriso nos lábios. Seria interessante ver seu sorriso congelado, miss Montfort.

Brigitte resmungou qualquer coisa em resposta e tratou de procurar o que comer.

— Que horas são, Alexandre? — disse em voz alta.

— Nove e meia da noite.

— Suponho que ainda do mesmo dia em que me apanharam no porão da loja de brinquedos.

— Sim, é isto mesmo.

— Então deve haver mais ou menos três horas que me capturaram. E neste espaço de tempo fui trazida até a ilha... Como me trouxeram? Em lancha, iate ou helicóptero?

— Se está tentando calcular, pelo tempo levado na viagem, a distância que a separa do continente, perde seu tempo, pois não darei nenhuma informação.

Dentro da câmara frigorífica, Brigitte encolheu os ombros e acabou de arrumar numa bandeja de plástico o que havia escolhido para comer. De passagem, carregou uma garrafa de champanha, cuja marca, se bem que não fosse “Dom Perignon”, safra de 55, era certamente de boa qualidade.

— Quando poderei ver o meu amigo? — perguntou, fechando a grossa porta.

— Quando quiser. Creio que Romeu ficará alegre em vê-la.

— Ele não se chama Romeu. Posso levar-lhe algo para comer?

— Sem dúvida. E do nosso interesse que se encontre em perfeitas condições físicas para a experiência.

Brigitte encarou o “olho” de Alexandre, ao mesmo tempo pensativa e irritada. Encolheu novamente os ombros e dedicou-se com calma a preparar a refeição. Era uma calma que estava longe de ser verdadeira, tamanha a ansiedade em encontrar-se com o homem que chamavam de Romeu e que, segundo suas deduções, só poderia ser o incrível, o solitário, o fabuloso espião Número Um, que morava na ilha de Malta, onde era conhecido pelo nome de Ângelo Tomasini...

Fritou dois bons bifes, quatro ovos na manteiga e meia dúzia de salsichas. Preparou rapidamente um purê de batatas, fez uma salada de cenouras e aipo, e abriu uma lata de suco de tomates, servindo-o em dois lindos copos.

Alexandre estava novamente imóvel. E, na realidade, não precisava mover-se para acompanhar seus movimentos, já que seus quatro olhos eliminavam qualquer dificuldade de visão.

— Quer que eu carregue a bandeja? — ofereceu-se o robô.

— Não, obrigado. Eu mesma a levarei.

Mas ficou paralisada olhando para a porta da cozinha, onde surgira subitamente um novo e inesperado personagem. Inesperado, devido ao seu aspecto insano. Tinha uma cabeleira enorme, toda branca, muito crespa, eriçada como um monte de arame farpado. Trajava uma espécie de macacão esverdeado, sujo, ensebado, rasgado em alguns lugares. Era incrivelmente magro, ossudo, amarelo. Parecia de fato um louco perigoso, de olhar desvairado, perdido...

Trazia um recipiente de alumínio do qual, com a mão, tirava algo de dentro que levava à boca, rindo de prazer. A comida escorria-lhe pelas barbas, ou voavam perdigotos para todos os lados com as risadas que dava.

Mas, ao deparar com Brigitte, deteve-se de súbito e encarou-a com os olhos pulando das órbitas. Olhou para o robô, voltou a fitar Brigitte e, súbito, deixou cair o prato, apontando para a espiã um dedo ensebado, trêmulo.

— Não! — gritou. — Isto não! Não quero faze-lo! Não quero que façam nada...! Não quero fazer isso!

Brigitte recuou ao ver que o homem saltava sobre ela, as mãos ossudas estendidas, crispadas como garras amarelas. Esquivou-se facilmente da primeira investida do louco, deixou a bandeja com a comida sobre o aparador de mármore branco e voltou-se rapidamente, pronta a enfrentar o velho de olhos esbugalhados, que tentava estrangulá-la.

Não havia dúvidas quanto à sua intenção, pois gritava:

— Eu a destruirei! Eu a farei em pedaços! Estraçalharei...!

Não é preciso dizer que isto seria um pouco difícil de conseguir, já que a nossa espiã internacional não estava disposta a deixar-se matar tranqüilamente, ainda mais por um velho maluco. Esquivou-se outra vez, evitando golpeá-lo, mas o ancião de cabelos eriçados como arame farpado saltou com inesperada agilidade e conseguiu segurá-la por um braço, num arranco brutal, rugindo de raiva. Alexandre aproximou-se deles, ordenando com veemência:

— Deixe-a, Adams! Deixe esta mulher em paz ou pagará caro por isto!

Brigitte decidiu-se pela maneira que lhe pareceu menos brutal. Continuava dominando a situação, esquivando-se com facilidade dos golpes do velho louco. Percebeu que, se deixasse Alexandre intervir, o velho sairia muito mais machucado do que se ela o afastasse.

Assim pensando, melhor o fez, não sem lamentar o golpe que aplicou no pescoço do louco, com o canto da mão. O velho deu um grito de dor e caiu de joelhos. Pôs-se a bater no próprio rosto, na boca, nos olhos, no nariz. Murros terríveis, num ataque que fez a espiã estremecer de horror. Mas Brigitte vacilou por uma fração de segundo somente. Deu um passo em direção ao velho, que continuava golpeando-se furiosamente, e o abateu, desmaiado, com um golpe seco, bem na nuca.

Alexandre parou junto ao velho louco de cabelos brancos, agora reduzido à impotência.

— Machucou-se? — perguntou o robô.

— Não — respondeu Brigitte — não precisa preocupar-se.

— A minha preocupação é no sentido de conservá-la nas melhores condições possíveis para a experiência.

— Oh, claro, já havia esquecido — e apontando para o louco: — Quem é ele?

— Não é da sua conta.

— Também não vai me dizer por que queria matar-me?

— Porque pensou que você era um robô.

Brigitte encarou, intrigada, o robô Alexandre. Depois de uns segundos de reflexão, concordou com um gesto de cabeça. Apanhou a bandeja e olhou para ele.

— Não pretende fazer nada pelo velho? — perguntou.

— Logo despertará. E agora, se quiser, posso guiá-la até onde está seu amigo Romeu. Ele não sabe que você está aqui, de modo que terá de agradecer esta agradável surpresa.

— Sim — sorriu Brigitte. — Sem dúvida, ambos lhe ficaremos muito agradecidos, Alexandre. Mas à nossa maneira...

— Diz isso em tom de desafio, espiã “Baby”.

Brigitte olhou para o velho estendido no chão. Convenceu-se de que acabara de salvar-lhe a vida, pois Alexandre evidentemente pretendia matá-lo. Quem seria aquele louco? Ele a teria de fato confundido com um robô?

Olhou duramente para Alexandre.

— Com franqueza, Alexandre — murmurou entre os dentes. — Enquanto eu e meu amigo vivermos, o desafio estará de pé. Acredite-me: vocês não sabem o que estão fazendo ao deixar-nos com vida.

 

Foi uma surpresa realmente agradável, mas não de todo surpreendente. Romeu encarou Brigitte fixamente, mas com olhos inexpressivos. Um lampejo de reconhecimento, para logo se extinguir no olhar embaciado e indiferente, característico dos homens derrotados, extenuados, desmoralizados.

Alexandre guiara a espiã até um quarto próximo, também no andar térreo da casa, onde se encontrava Romeu. Ela entrara, deixando a bandeja de comida sobre a mesa e aproximara-se do homem que jazia na cama, vestido de negro dos pés à cabeça, como ela. Tinha o rosto repleto de marcas das pancadas que recebera e estava quase irreconhecível. Mas Brigitte não precisava ver seu rosto para saber quem era. Bastou segurar-lhe uma das mãos e sentir a forte e terna pressão de seus dedos compridos e morenos.

— Número Um...

Os olhos negros tornaram a fitá-la, inexpressivos.

— Quem é você? Não a conheço.

— Não adianta mais fingir, Número Um. Nós estamos prisioneiros. E receio que desta vez será muito difícil escapar.

— Não a conheço — insistiu o prisioneiro, imóvel no leito.

Brigitte sorriu, inclinou-se e beijou de leve seus lábios feridos, a boca machucada de Número Um.

— Ainda não me reconhece? — murmurou.

Os olhos negros e duros do homem pareceram sorrir.

— Vejo que recebeu o ursinho... Ou não?

— Recebi — sorriu ela. — Mas, depois, houve a visita de um robô ao meu apartamento.

— Perdoe-me, Brigitte. Perdoe-me. Eles me deram drogas. Consegui agüentar todas as torturas, mas quando usaram a droga, não pude resistir.

— Já imaginava isso. Seria a única maneira de fazer Número Um trair sua “Baby”. Tem algum osso quebrado?

— Não.... creio que não... Mas não tenho certeza.

— Pode mover-se?

— Quase nada...

— Terá que dar um jeito, querido — sorriu ela, compreendendo que Número Um estava mentindo. — Mas lentamente. Não convém precipitar os acontecimentos. Já sabe que estão nos poupando para utilizar-nos numa experiência?

— Que experiência?

— Ainda não sei. Mas querem-nos em boas condições físicas, e acredito que vão permitir-me ajudá-lo a recuperar-se. Tenho a impressão de que vão tratar-nos como... como gladiadores, antes de entrar na arena, para enfrentar tigres e leões. É algo assim, querido. Será que pode comer alguma coisa?

— Se me ajudar a levantar, posso... tentar.

Brigitte ajudou Número Um a sentar-se na cama, ambos sempre vigiados pelo olho frontal do robô. Ficou ali, com uma expressão de dor, dobrado em dois, desanimado. Seus largos ombros de atleta pareciam caídos, desabados, e suas mãos tremiam levemente.

— Vamos, Número Um, fique em pé. Deve consegui-lo.

— Já que é assim... se desejam deixar-me novamente forte... como um gladiador, terão que deixar passar alguns dias, Brigitte.

— Eu o ajudo. Temos que chegar ao sofá. A comida está na mesa. Vamos tentar?

Passou o braço de Número Um sobre seus ombros e tentou levantá-lo. As longas e musculosas pernas da espiã quase dobraram, e teve que dar tudo para conseguir erguê-lo e mantê-lo de pé.

— Assim, muito bem. Agora, vamos até a mesa. Devagar. Ninguém está com pressa de morrer, Número Um.

Ajudou-o a chegar até o sofá. Finalmente, Número Um instalou-se ali e olhou inexpressivamente para Alexandre, um monte de aço, matéria plástica e circuitos eletrônicos; imóvel diante deles, máquina fiel que enviava imagens e sons a um lugar desconhecido.

— Brigitte, estou trabalhando para os russos — disse Número Um.

— E que me importa? Eu não, querido.

— Em Viena mataram um russo que...

— Já conheço a história. Suponho que conseguiu seguir alguém dali até Nova Iorque. Conheço toda a história dos robôs. E talvez, melhor do que você. Quanto estão lhe pagando os russos?

— Cem mil dólares.

— Não está mal. Espero que tenha boas amizades na Europa, Número Um. Talvez eu necessite de um emprego por lá. Mas, como sempre, avisará que exijo carta branca para trabalhar.

— Não compreendo... E a CIA?

— Não trabalho mais para ela.

Número Um encarou-a atentamente.

— O que aconteceu?

— Bem, a CIA aceitou uma oferta que não é do meu agrado.

— Referente aos robôs?

— Isto mesmo. Sempre arguto, Número Um. Será capaz de adivinhar o resto?

— Conhecendo-a, acredito que sim. Mas não me obrigue a raciocinar demais. Na realidade, não consigo nem me lembrar direito quem sou eu.

— Eu vou levá-lo até um espelho — sorriu docemente “Baby”. — Embora não ache que a imagem nele refletida possa lhe ajudar. Você está irreconhecível.

— Eu sei... O que aconteceu entre você e a CIA?

— Bem... Não gostei que aceitasse a oferta e apresentei minha demissão irrevogável. Alguém construiu estes robôs, Número Um. São assassinos invencíveis. Já sabe o que aconteceu em Viena. Pois algo semelhante ocorreu em Nova Iorque. Um robô assassinou, diante de cinqüenta testemunhas, um homem chamado Vânio Roczac, húngaro. Era...

— Eu vi tudo. Eu vi pela televisão de circuito fechado. Você estava linda com aquela fantasia de gueixa.

— Muito obrigada — riu Brigitte, acariciando as mãos do espião. — Em resumo: esta gente, que controla os robôs, fez uma proposta à CIA nos seguintes termos: alugar robôs para cometer assassinatos infalíveis, sem riscos de espécie alguma. Por meio milhão de dólares, mandam a qualquer parte um robô, que mata a pessoa indicada e depois é recuperado. No caso das coisas andarem mal, ele explode automaticamente. Isto significa que se pode assassinar quem quiser sem riscos físicos e sem comprometimentos políticos. Um robô jamais dirá nada comprometedor... E será logicamente destruído a distância se as coisas correrem mal durante a fuga.

— Já entendi... A CIA aceitou a oferta?

— Sim.

— É uma atitude bem própria de uma organização que foi capaz de vender o seu melhor homem na Europa. Julgo a CIA capaz disto e de muito mais.

— Não lamente o que já passou. Quer que eu corte o bife?

— Eu... creio que é melhor. Mal posso mover as mãos, Brigitte. Estou fraco. Eles me dão comida, mas me bateram demais. Receio que, quando perceberem que estou inutilizado pelo menos por duas semanas, decidam... parar de sustentar-me.

— Deixe que eles tirem suas próprias conclusões. Não lhes sugira isto... Naturalmente você sabe que este robô nos está... televisionando.

— Sim, eu sei...

— Um pedacinho de bife para o meu nenê...

Número Um sorriu e abriu a boca. Brigitte, sorrindo também, passou a dar-lhe comida na boca. Enquanto Número Um mastigava lentamente, olhou para Alexandre, o vigilante inexorável, atento e imóvel.

Número Um estendeu a mão para o copo de suco de tomate, mas precisou da ajuda de “Baby” para levá-lo aos lábios, pois sua mão tremia muito. Ela continuou a cortar o bife e a ajudá-lo a comer. Foi a única coisa que comeram, fora um pouco de purê de batatas que Número Um engoliu facilmente, sem precisar fazer força com os maxilares. Depois, Brigitte abriu o champanha e serviu duas taças.

— Imagino que essa fraqueza seja fingimento, Número Um — disse subitamente em russo.

— Na maior parte, sim — respondeu ele, também em russo.

— Bem, nesse caso...

— Miss Montfort — disse secamente o robô — quero que falem inglês e somente inglês. Se usarem qualquer outro idioma, eu os matarei imediatamente.

— Não precisa incomodar-se — disse ela, olhando amavelmente para o robô. — Trata-se somente do idioma russo. Você não o fala?

— Quero que conversem em inglês.

— Está bem. Você é quem manda... por enquanto. Verifiquei que não trataram corretamente as feridas do meu amigo. Posso fazê-lo?

— Pode.

— Neste caso, se me devolverem minha maleta...

— Sua maleta, miss Montfort, está bem guardada. Não deve tentar golpes tão manjados de espião. Se precisar de alguma coisa, é só procurar no armário do banheiro.

— Está certo. Vamos Número Um. Eu o ajudo a chegar até a cama.

Número Um se deixou levar, dócil e derrotado. Espreguiçou-se, gemendo como se qualquer movimento fosse doloroso para ele. Brigitte colocou as taças de champanha na mesinha de cabeceira. Serviu um gole a Número Um, sorveu outro e contemplou sorrindo o homem que mais a havia impressionado em toda sua vida.

— Não consigo acreditar que você esteja neste estado, querido — murmurou. — Vamos ver se consigo ajudá-lo.

Tirou as calças e a camisa de jérsei de Número Um. Este ficou apenas de cuecas. Suas pernas quase não haviam sofrido, mas no tronco viam-se nítidas manchas roxas e sanguinolentas dos inúmeros golpes recebidos. Brigitte voltou-se, cravando um duro olhar de reprovação no robô e dirigiu-se em silêncio até o banheiro. Voltou logo, carregada de remédios.

— Conseguirá nadar? — murmurou em russo.

— Sim...

Alexandre acercou-se, pesadamente, e uma das suas mãos metálicas tocou no ombro da espiã.

— Último aviso — disse acremente. — Tratem de falar em inglês. E não percam tempo em sussurrar, pois meus circuitos auditivos são extra-sensíveis.

— Eu somente perguntei se...

— Não importa, já que está feito. Mas advirto-a de que a uma só palavra a mais em russo, ou outra língua além do inglês, terei que matá-los.

Brigitte concordou com a cabeça e olhou para o tronco de Número Um. Parecia não saber por onde começar, mas tratou de pôr mãos à obra. Logo depois, o cheiro intenso de linimento espalhou-se pelo quarto. Ela o encarou sorrindo, para animá-lo. Sabia muito bem que Número Um estava sofrendo quase tanto quanto no momento em que recebera os golpes, mas agüentava firme, pois sabia que os bons efeitos do linimento seriam sensíveis em poucas horas. Brigitte levou ainda quase dez minutos para medicar Número Um, no peito e nas costas. Quando ia começar a tratar do rosto ferido, viu sua expressão crispada, o suor escorrendo...

— Por que não se queixa um pouco? — pro­testou ela. — Estou com a impressão de que você também é um robô.

— Ai! — disse Número Um.

Brigitte quase riu. Inclinou-se e beijou seus lábios inchados.

— Querido — disse. — Quando nos safarmos desta, eu e você temos que nos encontrar de um... modo normal, sem perigos.

— Em Paris? — sugeriu Número Um.

— É bom lugar.

— Dentro de dez dias?

— É um encontro perfeito.

— O otimismo de vocês me diverte — interrompeu o robô, rindo. — Dentro de dez dias ambos não passarão de cadáveres. Ou talvez nem mesmo isso, pois é provável que estejam no ventre de um tubarão.

— É proibido sonhar? — disse Brigitte irônicamente para o robô.

— É somente um monte de ferro — lembrou-lhe Número Um. — Não se pode esperar muito dele.

— Está certo. Vou tentar consertar um pouco este rosto atraente... Sabe de uma coisa, querido? É muito chato não poder beijá-lo para valer.

— Pois eu acho pior ainda.

E os dois desataram a rir, mas Número Um logo levou as mãos ao peito e crispou o rosto numa careta de dor.

— Está proibido de rir... por enquanto — disse Brigitte. — Ouça! Conhece um tipo amalucado, extravagante, de cabelos brancos, que se chama Adams?

— Não.

— Não o viu por aqui?

— Não vi esse sujeito. Mas vi outros. — Número Um encarou o robô. — Posso dizer seus nomes e como são?

— Por que não? — disse rindo o robô.

— Em primeiro lugar, existe uma mulher. Se chama Margot Stevens, é loura, de olhos claros, muito bonita e jovem.

— Ah! Deve ser a mulher que vi saindo por último da loja.

— Certamente. Pelo que entendi, ela e dois dos homens são os sócios proprietários da loja de brinquedos. Eles se chamam Percy Fowler e Aaron Chandler. Eu suponho que são eles que dirigem o negócio dos robôs. Pelo visto, aperfeiçoaram-se na construção de brinquedos de tal maneira que um dia fabricaram um robô. E um robô muito aperfeiçoado! Eles mesmos devem ter se surpreendido com o resultado do trabalho. Um robô que obedecia a sinais a distância. que se movia com desenvoltura, que podia levar câmaras de televisão nos olhos. Instalaram em seus braços maçaricos lança-chamas e gases que se expelem por meio de válvulas. Isto só na mão esquerda. Na direita leva um mecanismo idêntico ao de uma automática com silenciador, mas uma automática carregada com mais de vinte tiros. No interior do robô, colocaram um mecanismo para explodi-lo a distância, em caso de emergência. Isto foi planejado para evitar que alguém examinasse o robô e pudesse copiá-lo. Não parece correto?

— Sim — concordou Brigitte. — Agora, procure ficar quieto.

Colocou sobre o rosto de Número Um uma toalha, dobrada várias vezes, empapada de água quente colhida numa das torneiras do banheiro. Manteve-o assim por três ou quatro minutos, pacientemente. Depois, tirou-a e pôs-se a examinar o rosto avermelhado do amigo, procurando enxugá-lo cuidadosamente. Isto feito, molhou com adstringente as contusões das faces, queixo, testa. As feridas abertas, cobriu-as com gaze e esparadrapo.

— Você está muito mais feio agora — sorriu “Baby” — mas amanhã estará melhor.

— Foi um trabalho bem feito — disse o robô.

— Não seja mal-educado — advertiu-o Brigitte. — Não basta ser assassino, Alexandre? Por que ainda se intromete na nossa conversa?

— Porque neste momento quem o está manejando é Aaron Chandler — disse Número Um, sorrindo. — Tem menos senso de humor que Percy Fowler.

— Sim, já havia percebido... Quem mais mora na residência, Número Um?

— Três capangas pouco importantes. Seus nomes são: Heston, Bolowsky e Mackenzie. Eu me livrei deles em poucos segundos, mas os manequins intervieram e me lançaram gases.

— O mesmo aconteceu comigo. Acredita que sejam espiões profissionais?

— Não, não. São principiantes com sorte... momentaneamente. Têm boa mercadoria a oferecer, e assim fizeram. Isto é tudo.

— Têm mais alguma coisa para falar? — interveio Alexandre.

— Nós dois sempre temos o que conversar, Alexandre.

— Mas não acredito que seja novidade. Creio que é hora de recolher-se ao seu quarto, miss Montfort.

— Não posso ficar aqui?

— Não.

— Isto parece perigoso para vocês?

— Não. Mas já falaram demais. Jantaram, você já tratou dos ferimentos de seu amigo, trocaram idéias... Agora, trate de ir para o seu quarto.

— Suponho que devo obedecer — suspirou Brigitte; inclinou-se e beijou Número Um nos lábios, suavemente. — Até amanhã, meu amor.

— E se não voltarmos a ver-nos — disse ele — lembre-se: daqui a dez dias em Paris.

— Não esquecerei — riu Brigitte.

A porta do quarto de Número Um abriu-se naquele instante e entrou um dos manequins. Brigitte viu outros reunidos no comprido corredor. Trocou um olhar significativo com Número Um, encolheu os ombros e saiu. Alexandre seguiu-a, encaminhando-se para as escadarias brancas que levavam ao andar de cima e começando a subi-la pesadamente. Brigitte acompanhou-o com o olhar, até que um dos manequins tocou amavelmente no seu ombro.

E a mesma voz de Alexandre saiu pela boca do manequim agora.

— Retire-se. E lembre-se de que não deve nem tentar subir ao andar de cima.

Brigitte dirigiu-se ao seu quarto. Entrou e, quando ia fechar a porta, o manequim, que a seguira, entrou também. Foi ele quem fechou a porta, ficando ali junto dela. A espiã encarou-o com desagrado.

— Pensa em passar a noite aqui, robô? — resmungou.

— Isto mesmo.

— Bem... — ela olhou para a cama — pelo menos tenho certeza que não tentará nada de pecaminoso. Ou será que pode?

— Seu humor está passando dos limites, miss Montfort. Boa-noite.

A agente “Baby” tornou a encolher os ombros. Aproximou-se da cama e fingiu que ia tirar a malha negra que recobria seu corpo. Mas voltou-se para o robô, sorriu ironicamente e balançou o dedo em sinal negativo.

— Não, não, Alexandre. Pode desistir. Se quer mesmo ver o que está pensando... venha pessoalmente. Senão, pode desistir.

E estirou-se na cama, vestida como estava. Um minuto depois, dormia profundamente, tão tranqüila como se estivesse em seu leito de colcha cor-de-rosa, na Quinta Avenida.

Coisas da agente “Baby”.

 

Despertou bruscamente, sem saber como. Abriu os olhos, fitando o teto por instantes e, sem dúvida levada pelo sexto sentido que a despertara, virou a cabeça para a direita.

Estremeceu violentamente. Sentou-se de imediato, girando a cintura, de modo a enfrentar, com as mãos em posição de guarda de caratê, o personagem que estava junto da cama, em silêncio.

— Não me bata.., não me bata! — pediu este, suplicando.

Era o louco. Sua cabeleira branca e seus olhos esbugalhados brilhavam à luz da lua, que se via pela janela aberta, por onde entrava um ar úmido e frio.

— Que está fazendo aqui? — murmurou Brigitte, sem baixar a guarda, pronta para o que desse e viesse.

— Por favor... não me bata mais.

— Mas o que deseja? — disse a espiã, intrigada.

— Você é boa?

Brigitte ergueu as sobrancelhas, espantada. A pergunta era estranha. Se ela era uma pessoa bondosa? É verdade que já matara muitas pessoas que considerava más. Seria, porém, melhor do que os outros, uma vez que já matara?

— Acredito que sim, senhor Adams — disse sorrindo. — uma pergunta esquisita, não lhe parece?

— Eu, eu preciso ter certeza... Ouvi tudo o que falou com eles... Dizem que você é muito perigosa, que já matou muita gente e que é conhecida por “Baby”, espiã da CIA. Tudo isto é verdade?

— É verdade.

— Então... eu não compreendo...

— O que é que não compreende? Não sabe que o robô está nos vigiando?

— Não, ele não nos vê. Aaron está dormindo agora.

— Refere-se a Aaron Chandler, o homem que dirige os robôs?

— Sim.

Brigitte ia saltar da cama, pronta para entrar em ação, quando Adams a reteve por um braço.

— É inútil — sussurrou. — Não conseguirá nada. Nem também o seu amigo. No momento em que começassem a subir as escadas, soaria o alarma e todos os robôs voltariam a funcionar imediatamente. Também é impossível escapar da ilha, a menos que você possa nadar cinqüenta ou sessenta milhas... Não se pode fazer nada, miss Montfort.

— Bem, então, o que está fazendo aqui? Diga-me logo o que deseja.

— Se de fato é uma pessoa direita... Não entendo como você pode ser direita e já ter matado gente, mas eu vi em seus olhos a bondade. Você me bateu esta noite para evitar que o robô me matasse. Você, no fundo, é uma pessoa bondosa.

— Suponho que esta é a questão — sorriu Brigitte. — É verdade que agora ninguém está nos escutando, senhor Adams?

— Ninguém. O robô — apontou para o manequim de pé na porta do dormitório — está inativo agora. Eu me chamo Richard Adams.

— Sim.

— Sou o pai.

— O quê?

— O pai dos robôs. Eu os inventei, eu os construí.

— Acho que não vou cumprimentá-lo por isto, senhor Adams.

O velho maluco deu uma risada aguda.

— Não lhe agradam os meus filhos?

— Parecem-me horríveis. Sem dúvida, o senhor é muito talentoso, senhor Adams. Mas acho que deveria empregar seus dotes em coisas úteis e menos perigosas.

— Já fiz muitas coisas úteis, como por exemplo, as câmaras de televisão que levam nos olhos. São diminutas e muito sensíveis. E construí um aparelho de televisão do tamanho de um maço de cigarros. Quer vê-lo funcionar?

— Não creio que seja o momento adequado. Se Aaron Chandler acordar agora, nos descobrirá e provavelmente nos matará.

— Mas é que, fazendo funcionar o meu pequeno televisor, veremos tudo o que Aaron está fazendo... Veja, veja!

Tirou do bolso um pequeno aparelho e apertou um dos três botões laterais. Três segundos depois, o diminuto televisor iluminou-se, aparecendo uma imagem: a de um quarto pequeno à prova de som e onde se viam estranhos aparelhos.

Brigitte os identificou como os responsáveis pelo comando a distância dos robôs. Viam-se várias teIas de televisão, mas todas apagadas naquele instante. Diante dela, um homem parecia adormecido, com a cabeça apoiada no painel de comando.

— Esse é Aaron — murmurou Adams, rindo nervosamente. — E aí estão todos os aparelhos de controle dos meus filhos.

— Você está louco — grunhiu Brigitte, zangada.

— Não gosta do meu invento?

— Não.

— Refiro-me ao pequeno aparelho de televisão, transmissor-receptor. Eu sei que os japoneses e técnicos de outros países estão construindo receptores tão pequenos como este, mas as câmaras continuam sendo enormes. Aí está o meu segredo. Você pode adivinhar onde está a câmara que nos envia esta imagem?

— Não.

— Num livro — riu Adams. — cavei as folhas de um livro, fiz uma abertura na lombada e coloquei a câmara dentro. Por isso, sempre sei o que se passa na sala de comando. Quando quero, acendo o receptor, e pronto. Vejo tudo. Percebe como não há perigo no momento? Aaron dorme... Às oito da manhã, Margot virá rendê-lo, até as dez, hora em que Percy ocupa outra vez os comandos.

— Mas, senhor Adams: o que deseja afinal o senhor? Por que veio até aqui?

— Quero que me ajude a destruí-los... todos!

Brigitte semicerrou os olhos.

— Como disse?

— Quero destruí-los. Quero conseguir chegar à sala de comando e fazer explodir todos os meus filhos. É isto o que desejo fazer!

— Não estaria tendo tanto trabalho se não os houvesse construído.

— Fui enganado! Eu estava empregado na “Lucky Toy”, como desenhista de brinquedos. Imaginei e construí muitos brinquedos divertidos. Você gosta de crianças?

Brigitte ficou perplexa. Mas, no fundo, teve a impressão de que estava compreendendo afinal a verdade antes de Adams explicá-la.

A luz do pequeno receptor de televisão iluminava o rosto de ambos. Aaron Chandler continuava dormindo, debruçado sobre o painel de comando.

— Gosto muito de crianças — admitiu Brigitte.

— Eu já sabia. Eu também gosto muito delas. Sabe de uma coisa? Eu nunca me casei, não tive filhos, nem netos... Claro. Mas gosto muito de crianças, sim. Já teve ocasião de observá-las, boquiabertas diante de uma vitrina de brinquedos? Contemplando-as de dentro da vitrina, captando todas as suas expressões... Já teve oportunidade?

— Não.

— É uma pena. Há alguns anos, inventei um coelhinho que saltava, levando uma cenourinha na boca e parando de vez em quando para dar uma mordida nela. A cada mordida, a cenoura entrava um pouco mais na boca do coelhinho, que revirava os olhinhos para as crianças, movendo o rabinho muito branco... Como me diverti com aquele coelhinho! Chamava-se “Comilão”.

— Senhor Adams: Como foi enganado?

— Pelas crianças?

— Não, não. Refiro-me a Chandler e os outros.

— Ah, sim... Bem, eu era um bom desenhista de brinquedos e consegui um magnífico emprego em “Lucky Toy”. Um bom emprego no qual durante muitos anos vivi feliz, inventando bonequinhos... Lembro-me de uma boneca chamada “Patrícia”, que...

— Por favor, senhor Adams, continue a história.

— Sim, sim. Bem, eu trabalhava lá. A loja mudou algumas vezes de proprietário, mas eu continuava na oficina, inventando brinquedos fabulosos. Certo dia, a loja foi vendida a Margot Stevens, Aaron Chandler e Percy Fowler, que fizeram sociedade. Sabia que Percy e Margot são amantes?

— Não creio que isto me interesse agora.

— Está bem. Do que estávamos falando?

— Do seu trabalho.

— Bem... finalmente, inventei o mecanismo dos robôs. Eu queria fazer pequenos robôs e construí modelos infantis, que podiam andar sem ninguém ajudá-los. Já estava imaginando a cara das crianças. Eles chegariam à terra em discos-voadores e seriam marcianos... Viu os discos-voadores?

— Vi alguns no depósito da loja.

— Pois voam mesmo... pequenas distâncias, naturalmente, mas o suficiente para levar dois robôs marcianos. Um dia, Percy me disse que havia pensado a respeito do projeto dos robôs. E ordenou-me que os construísse maiores. Referia-se aos mecanismos, é claro.

— Perdão. Adams: ninguém sabia nada a respeito de sua invenção?

— Não! Era meu segredo profissional. Mais de vinte empresas de fabricação de brinquedos já me haviam oferecido emprego, nos últimos cinco anos, mas eu recusei todas as ofertas. Sentia-me bem ali na loja “Lucky Toy”, tinha ampla liberdade de ação e me pagavam esplendidamente. Percy insistiu em que eu construísse vários robôs grandes e um controle correspondente. Foi isto que me disse. Eu perguntei para que queria aqueles robôs grandes e me disse que tinha uma idéia colossal: fabricaríamos, primeiro, alguns robôs grandes e, quando a fabricação em série dos pequenos estivesse pronta, Faríamos sair na rua os robôs grandes. Que surpresa no mercado! Os robôs iriam pela rua e se aproximariam das crianças, dizendo: “Diga ao seu pai para comprar um Alexandre. Eu sou encontrado, em tamanho pequeno, na loja “Lucky Toy”.

— E foi convencido, não é?

— Claro! Já imaginou a repercussão e o prestígio profissional para mim? Além disso, trabalhava em “Lucky Toy” e, quanto mais dinheiro eles ganhassem, mais dinheiro ganharia eu... E a idéia de dirigir os robôs pela rua, e até por todo o país, se necessário, agradava-me: falaria com as crianças, contaria histórias... Sim, confesso que a idéia me agradou, miss Montfort.

— Mas eles não cumpriram sua parte.

— Não. Você já sabe do resto. Agora, eles que já conhecem os segredos do mecanismo dos robôs, colocam-nos em manequins e os utilizam para assassinar. Meio milhão de dólares por “tarefa”... Eu compreendo que assim ganharão muito mais dinheiro, e em menos tempo. Mas eu os matarei a todos! Destruirei Alexandre! E o primeiro que desejo matar é Aaron Chandler. É um gangster sujo. Sempre fora bandido. Mas eu o ignorava. Sabe de uma coisa? Pensa organizar com os robôs um novo Sindicato do Crime, assassinando por encomenda, como em 1930... E os assassinos serão os meus filhos!

— Isto é novidade! — exclamou Brigitte.

— É verdade! Estão organizando o negócio para atuar em tudo que renda dinheiro: roubos, assassinatos, espionagem... tudo! Eu os ouvi falando e vi seus rostos cheios de cobiça.

— Por que me atacou na cozinha, senhor Adams?

— Para convencê-los de que fiquei louco. Fingi acreditar que você era um robô feminino, que eles pretendessem construir também e ataquei-a para convencê-los de minha loucura, de que não passo de um velho louco e acabado. Mas não sou inofensivo, não... Eu conseguirei matar a todos.

— Acalme-se, senhor Adams.

— Estou calmo. Às vezes me chamam à sala de comando e me pedem que arranje uma ou outra coisa nas máquinas, se bem que já saibam quase tudo sobre elas. Trouxeram-me para cá mais ou menos há um ano e nunca mais me deixaram sair. Sou um pobre prisioneiro, obrigado a consertar robôs e a construir seus mecanismos. Quando entro na sala de comando, sou vigiado atentamente. Eu poderia destruir algo, mais seria morto logo e eles prosseguiriam. Estou aguardando uma oportunidade. Uma oportunidade de entrar ali, apoderar-me dos comandos e... bum! Matar a todos... todos! Você me ajudará?

Brigitte encarava meio sobressaltada ao velho de cabelos brancos.

— De que maneira posso ajudá-lo?

— Eu a avisarei quando chegar o momento. Enquanto isto, leia este livro — apanhou-o do chão e estendeu-o a Brigitte, que continuava sentada na cama. — Leia-o. Dentro, estão uns papéis que explicam o funcionamento dos comandos da sala. Você deve fingir que está lendo o livro, que pode levar até para o banheiro... ou algo parecido. Dê um jeito, mas não deixe de decorar estas instruções. Não são complicadas, asseguro. Tudo muito claro e simples. Assim, você saberá como agir quando atacarmos a sala de comando e, se me matarem, poderá destruir meus filhos malditos. Está bem, miss Montfort?

Brigitte sorriu secamente.

— Não creio que seja tão simples assim, senhor Adams.

— Não quer ajudar-me?

— Claro que quero. Vou estudar as instruções imediatamente. Quando acha que podemos atacar a mesa de controle?

— Não sei... Fazem cinco meses que espero por uma oportunidade, e não chegou... Mas tem que surgir. Mais dia, menos dia, conseguiremos.

— Entendo — murmurou Brigitte, decepcionada. — Bem, não perco nada aprendendo a manejar os controles dos robôs... Outra coisa: está seguro que são cinqüenta milhas da ilha até a costa mais próxima?

— Cinqüenta, no mínimo. Talvez sessenta, ou cem... Não sei. Mas é muita distância, estou certo.

— Também não sabe em que ilha estamos?

— Não. Já lhe disse que sou um pobre prisioneiro...

— Está bem. Sabe algo sobre uma visita que deve chegar à ilha? Creio que vêm vários membros pertencentes a diversos serviços de espionagem.

— São vários, sim. Mas não é nesta ilha, e sim na outra...

— Que outra?

— A que está a cinco ou seis milhas daqui, ao sul.

— Mas você me disse que não havia nada!

— Uma ilhota, com meia dúzia de palmeiras e arbustos, com um pequeno lago salgado ao centro. Ninguém poderia sobreviver ali, garanto. Fui lá há uns três meses, quando estavam planejando tudo. Fui levado para não ficar sozinho com o comando dos robôs... Nunca me deixam sozinho, quando os controles estão abandonados.

— Entendo. Há tubarões nestas águas?

— No verão, alguns. No inverno não sei se aparecem por aqui. Creio que os tubarões gostam de água quente. Vai tentar escapar a nado?

— Vou pensar.

— Não aconselho. Garanto que seria loucura. Além disso, prometeu ajudar-me.

— Eu sei. Quem são os homens que vão comparecer na reunião, senhor Adams?

— Seus nomes? Não sei, mas sei que comparecerão agentes russos, britânicos, cubanos, da CIA e outros. E representantes de alguns movimentos subversivos de alguns países. São dez ou doze homens, calculo. Talvez mais.

— Como virão?

— Em helicópteros, lanchas, iates... Não sei precisamente. Mas tenho certeza de que irão á ilhota para uma demonstração dos poderes dos robôs.

— Quantos robôs existem?

— Sete, que eu saiba. Não sei se construíram algum mais, ultimamente. É possível que existam alguns na reserva. Não sei.

— Sete — Brigitte sorriu, duramente. — Está bem, senhor Adams. Tem algo mais a dizer?

— Você é muito bonita.

— Mais alguma coisa? — riu alegremente Brigitte.

— Não... nada mais. Você me ajudará?

— O pacto está firmado — e estendeu a bela mão. — Boa-noite, senhor Adams.

— Adeus. Logo amanhecerá.

— Está bem. Mas como suspeito que espécie de experiência pretendem fazer comigo e meu amigo, vou tratar de descansar bem e dormir o máximo que possa. Adeus, Sr. Adams.

— Boa-noite.

Richard Adams esgueirou-se pela janela, depois de apagar o diminuto receptor de televisão. Saltou para fora e encostou as duas folhas. Brigitte levantou-se, fechou bem a janela e através dos vidros contemplou o mar, banhado pela lua. Cinqüenta milhas, de fato, era demais para ela. E mesmo para Número Um, no melhor de sua forma física. E a ilhota, na qual somente havia espinheiros, palmeiras e um lago de água salgada, também era carta fora do baralho.

Não podia confiar na ajuda de Richard Adams, o pobre velho construtor dos robôs... Estaria mentindo? A suspeita cruzou rapidamente pela cabeça da veterana espiã. Finalmente concluiu que não podia confiar em ninguém a não ser em Número Um. E assim mesmo, se não o injetassem com drogas...

Por fim, a agente “Baby” concluiu, desolada: somente podia contar com sua sorte proverbial, que nunca a abandonara antes. Era absurdo confiar em outra coisa.

Voltou para o leito e deitou-se. Ficou ainda algum tempo olhando o teto, de olhos abertos. Pelo menos, antes de morrer, conseguira ver Número Um outra vez. Mas por que pensar na morte, por que pensar em morrer?

Tinha um encontro marcado em Paris.

 

— Está fazendo um dia magnífico! — saudou alegremente Brigitte. — Como se sente hoje?

Número Um sentou-se na cama, sorrindo.

— Bastante melhor, garanto. Dormiu bem?

— Muito bem. Acho que também você não perde o sono por qualquer motivo. Quer que eu traga o café aqui, ou prefere tomá-lo comigo na cozinha, aproveitando para ajudar-me um pouco?

Número Um olhou para o robô que acompanhava Brigitte e para o que o vigiava. O primeiro estava dentro do quarto, junto da porta; o segundo ficara no umbral.

— Se estes dois ferros-velhos não tem nada em contrário, irei com você à cozinha.

— Pode ir, Romeu — disse uma voz feminina pela boca do robô.

— Ora, o que aconteceu? Não me diga que este robô é... bem... digamos, efeminado.

Brigitte pôs-se a rir. E também o robô soltou uma gargalhada na voz, de Margot Stevens.

— Você me conhece muito bem, Romeu. Sabe que sou uma mulher. Ou não pareço?

— Parecia ontem e anteontem... mas hoje as coisas mudaram. Estando Brigitte aqui, você não passa de um monte de carne com olhos e cabelos. Azar o seu, Margot. Se quer um conselho, esqueça-me: não fui feito para você, beleza.

— Você é um presumido, Romeu — disse secamente o robô.

— Posso ser presumido — e abraçou Brigitte pela cintura, — mas já tenho minha Julieta. Por favor, Margot, não nos interrompa. Pretendemos tomar café alegremente.

Saíram do dormitório, rindo. Afinal, a situação era a mesma rindo ou chorando. Na cozinha encontraram Richard Adams, que enfiava a mão numa panela, comendo como um porco, com as barbas sujas de molho. Olhou-os aterrado, esbugalhando os olhos. Brigitte pensou que ele de fato representava muito bem o papel de louco.

De repente, o velho pegou a panela e atirou-a furioso contra Brigitte, gritando alto. Um dos robôs adiantou-se levantando o braço para agredi-lo, mas ele, vendo-o, deu um grito agudo e fugiu pela porta dos fundos para o jardim. E fugiu no momento exato, pois o jato de fogo chamuscou a porta, deixando uma marca circular enegrecida, fumegante.

— O pobre Adams continua pensando que você é um robô — riu o manequim, dirigindo-se a Brigitte. — Infelizmente, acho que teremos que eliminá-lo.

Brigitte e Número Um não disseram nada e prosseguiram a conversa, imperturbáveis.

— Que gostaria de comer? — perguntou ela.

— Ovos, torradas, manteiga e café.

— Não quer suco de laranja?

— Não. Prefiro algo mais forte. Café, se for possível.

— Claro que é, querido — sorriu ela, beijando-o na boca. — Vamos tomar algo que nos reanime um pouco. Mas, se não me esqueço, ontem você não quis ovos.

— Ontem já passou — sorriu Número Um.

— E hoje é hoje — riu Brigitte. — Quer ir arrumando a mesa para mim?

E Número Um tratou de procurar pratos, xícaras e talheres, enquanto Brigitte cozinhava. Ele arrumou a mesa e colocou, num vaso de barro achado no armário, uma enorme hortênsia apanhada no jardim.

— Voilá — sorriu. — Oh, diabo! Estou falando francês e Margot pode não gostar. Os ovos estão com uma excelente aparência... Que tal uma salada de tomates?

— Vou prepará-la.

Comeram tranqüilamente, com a hortênsia entre ambos, olhando-se com tanto amor que até um robô não poderia deixar de perceber. Os dois vigias permaneciam junto, sempre com aqueles olhos estranhos grudados neles. Os dois espiões não lhe deram a mínima importância e, ao terminarem o café, Brigitte propôs:

— Vamos dar um passeio pela praia? O sol está radioso.

— Uma idéia magnífica. Me fará muito bem respirar um pouco de ar puro. Vamos tirar os pratos?

— Não — disse ela sorrindo. — Estou certa de que estes meninos sabem fazê-lo — olhou para os robôs — ou será que só sabem matar?

Saíram da casa, indo diretos para a praia. Os dois robôs sempre em seus calcanhares. Quando chegaram à areia, os pés dos pesados manequins começaram a afundar e seus passos tornavam-se difíceis. Diante do que, os dois espiões entreolharam-se significativamente e sorriram.

Passearam durante um quarto de hora, conversando sobre música, pintura, literatura... Afinal, Brigitte estendeu-se na areia e Número Um ao seu lado, aproveitando o sol de inverno.

— Sabe de uma coisa, Número Um? — perguntou ela. — Não faz muito tempo, uma feiticeira de Vodu, numa ilha do Caribe, prognosticou que eu teria quatro filhos.

— Que bruxa simpática! — sorriu o espião. — Se posso ajudar de alguma maneira...

— Acho que sim — riu Brigitte. — Mas não sei se já chegou a hora. Às vezes sinto-me terrivelmente cansada e me pergunto se vale a pena arriscar a vida em benefício dos outros.

— Está sacrificando a vida por alguém?

— Por todos... Por muita gente que não conheço. Acho que sou meio louca.

— Você, louca? — riu Número Um.

— É que me desagradam as pessoas que não pensam com honestidade.

— Bem, compreendo. Acho que você está se referindo a essa tua mania exagerada de aniquilar com os maus e ajudar os bons.

— Acha que vale a pena?

— Não sei... Eu também penso assim como você, às vezes... Mas não é fácil achar resposta para as próprias perguntas. Eu acho que somos espiões porque somos e isto é tudo. Esta questão de ajudar a quem merece é uma ilusão que imaginamos. Gostamos é da aventura, insisto. Ou então do dinheiro, do luxo. Sim, talvez seja isto o que nos agrade.

— Você está rico?

— Mais ou menos.

— Mais ou menos? — Brigitte encarou-o espantada. — Não acredito. Você é o espião mais caro do mundo!

— Sim, gasto muito também.

— Com quê?

— Muitas coisas: carros, minha vila, roupas... como bem, hospedo-me em bons hotéis.

Brigitte franziu o cenho.

— Quanto ganhou no ano passado?

— Creio que uns três milhões e meio.

— De liras?

— De dólares — grunhiu ele.

— Ah! E gastou tudo em roupas e hotéis? Você está me enganando, Número Um.

Ele a encarou, meio enfiado. Mas logo tomou a sorrir daquela maneira que parecia rejuvenescê-lo, levá-lo de volta a infância.

— Bom... andei ajudando algumas pessoas — admitiu.

— Incrível! Quer dizer que Número Um ainda possui um pedaço de coração que funciona... bondosamente?

— Estou desconfiado que você está me gozando — resmungou ele novamente. — E você não faz a mesma coisa?

— Mais ou menos. Eu, eu andei pensando numa maneira de ganhar muito dinheiro, Número Um. Nós dois podíamos montar um negócio juntos... Uma agência particular de espionagem. Já imaginou? “Baby” e Número Um juntos, dirigindo o próprio negócio. Ganharíamos milhões de dólares e teríamos oportunidade de ajudar muita gente. Seria ótimo, não?

— Acho que sim.

— Às vezes penso que estou desperdiçando minha vida. Também é possível ser útil sem ser espiã, sendo apenas mulher... uma mulher normal, com quatro filhos.

— E com um marido, suponho — sugeriu Número Um.

— Sim, claro.

— Espero que saiba escolher.

— Também já pensei nisto muitas vezes, Número Um, eu...

Parou de falar, bruscamente. Número Um olhou para a casa e viu três homens se aproximarem. Não eram robôs: eram homens mesmo.

— Esses são Heston, Mackenzie e Bolowsky — disse Número Um.

Brigitte assentiu com a cabeça. Olhou admirada para os robôs, mas estes não disseram nada. Continuavam ali, como que cravados na areia, provavelmente transmitindo a conversa para a sala de controle. Mas não receberam nenhuma informação sobre os três homens que se aproximavam.

Tudo o que ocorreu foi que os robôs deram meia-volta e tomaram o caminho de casa.

— De pé, namorados — grunhiu Heston, que ainda tinha o nariz inchado como uma batata do golpe que recebera de Número Um. — Vamos dar um passeio de lancha.

— Estamos bem aqui — disse Brigitte.

— De pé — o revólver de Heston foi apontado para sua cabeça — de pé, imediatamente!

Trataram de levantar-se, sacudindo a areia. Heston apontou para o pequeno cais, onde estavam ancorados um iate e duas lanchas de alta velocidade. Bem no meio do trapiche estava um robô, imóvel e atento aos seus movimentos.

Brigitte e Número Um caminharam até ali, contra a vontade. Ao passarem pelo trapiche, o robô foi girando, sempre com seu olho artificial fixado neles.

— Adeus, Margot — disse Número Um.

Bolowsky deu-lhe um empurrão em direção à lancha. Devia ser violento, mas conseguiu apenas alterar a marcha do espião, que voltou a cabeça e encarou-o com um olhar frio e irônico.

Mackenzie saltou primeiro para a lancha. Depois, os dois espiões e, a seguir, Heston e Bolowsky, de maneira que estivessem o tempo todo sob o controle dos três homens. Isto, sem levar em consideração a vigilância inalterável do robô, da borda do trapiche.

A lancha foi posta em movimento por Mackenzie, que a afastou rapidamente do cais, tomando o rumo sul

— Aonde vamos? — perguntou ingenuamente Brigitte.

— Para uma ilhota — sorriu Heston. — Vamos proporcionar-lhes a grande felicidade de ficar a sós numa ilha.

— Vão largar-nos numa ilhota?

— Exatamente. Uma ilhota que será muito importante dentro de algumas horas. De qualquer maneira, teriam que ir para lá, e os chefes decidiram que fossem agora para que se possa descansar do manejo dos robôs. É muito fatigante ficar vinte e quatro horas no controle dos robôs. E não é preciso se incomodar tanto por causa de vocês.

— Vão nos deixar ali sozinhos?

— Isto mesmo, miss Montfort. Mas podem tirar da cabeça a idéia de fugir. E se tentarem escapar a nado... Bem, isso é lá com vocês, se conseguirem desamarrar-se antes da nossa visita.

— Vão nos deixar atados, sem água e sem comida?

— A idéia é esta. É muito trabalhoso para nós ter que vigiá-los o dia inteiro. Vocês são tão perigosos que a votação foi unânime: ilhota com eles. Deste modo, ficarão amarrados nas palmeiras e, mais tarde, terão notícias nossas.

— Certo.

— Alegro-me que goste da idéia.

— Eu não a aprovo, somente me resigno com ela.

— Dá no mesmo. Por que não cala a boca? Aprenda com seu grande amigo Romeu. É mais silencioso que um morto.

— Ele só não fala porque não simpatiza com você.

Número Um olhou ironicamente para Heston. Seu sorriso foi tão zombeteiro que o ruivo se encheu de raiva e deu-lhe um pontapé na boca do estômago, deixando-o dobrado sobre si mesmo, respirando com dificuldade, quase de bruços no chão da lancha.

Brigitte não se alterou, pelo menos aparentemente. Limitou-se a encarar Heston de uma maneira tão gelada que este estremeceu sem querer. Brigitte nem se incomodou em ajudar Número Um, que se sentou sobre a coberta, por si mesmo, meio pálido, fazendo massagem no estômago.

— Nós atacaremos ao chegar à ilha — disse Brigitte rapidamente em russo. — Está preparado?

Número Um respondeu na mesma língua:

— Deixe este porco do Heston para mim — disse ligeiro.

Heston quase enfiou o revólver na boca de Brigitte, furioso.

— Ordeno que falem em inglês! Se continuarem assim, não viverão nem até a experiência!

— Estávamos só dizendo que você não passa de um porco — disse Brigitte.

Heston ficou apopléctico e ia golpear Brigitte, mas Mackenzie impediu-o, resmungando:

— Deixe-os em paz. Você acaba perdendo a calma e matando os dois. Não esqueça que estamos tratando com profissionais muito perigosos. Não procure fazer o jogo deles.

— Tem razão — resmungou Heston. — Mas esta noite terei o prazer de estar presente. E então veremos se continuam tão valentes e risonhos.

A ilha ficara para trás. Via-se ao longe surgir a ilhota, com as silhuetas das palmeiras contra o céu. A lancha corria tanto, que mais de uma vez deu de chapa na água, saltando no ar por instantes. A ilhota crescia rapidamente diante de seus olhos.

Cinco minutos depois estavam bordejando, lentamente, à procura de um lugar para desembarcar. Parecia difícil atracar, pois havia muitos recifes, formando pequenas barreiras de cinco a seis pés de altura, que impediam o desembarque.

Finalmente, surgiu a pequena praia que Heston e seus amigos estavam procurando. A lancha dirigiu-se para lá, já de motor cortado, deslizando até a quilha encravar-se na areia, rente à margem.

Heston desembarcou primeiro e voltou-se, revólver em punho.

— Desçam, namorados. Bolowsky, traga as cordas.

Número Um foi o primeiro a saltar e deu a mão a Brigitte, que se deixou cair docemente em seus braços, agarrando-se nele. Dirigiram-se para a margem abraçados pela cintura, vadeando lentamente as águas geladas.

Bolowsky saltou atrás, trazendo um rolo de cordas. Mackenzie foi o último, arrastando o cabo da amarra atada na proa da lancha e desenrolando-o em direção a uma palmeira, onde pretendia atá-lo.

— Vamos levá-los para o interior da ilha — disse Heston. — Seria desagradável se alguma embarcação passasse por ai e os visse. Devemos amarrá-los a palmeiras diferentes, para que... Aaaagg...!

Recebeu um soco tremendo, arrepiante, pior do que o pontapé que dera no espião. Foi um golpe tão violento que o antebraço de Número Um pareceu afundar-lhe no estômago, para sair nas costas. Um soco espantoso, aniquilador, com a força de um êmbolo.

Heston foi projetado de costas, largou o revólver e caiu na água.

Mackenzie, olhos esbugalhados de surpresa, com o rolo de cordas na mão, escapuliu para a água.

Bolowsky tentou atirar em Número Um, precipitadamente, pois devia prestar mais atenção à agente “Baby”, em lugar de concentrá-la em Romeu. O resultado desta falta foi que sua mão saiu da posição de tiro devido a um golpe suave de esquerda dado por Brigitte, enquanto com a direita ela o golpeava horizontalmente na garganta, um golpe seco, rápido, cortante. Bolowsky teve a impressão de que acabava de ser golpeado por um machado sem fio. Alguma coisa estalou em sua garganta, no peito, na cabeça. Ficou em pé, com água pouco abaixo da cintura, lívido como um cadáver, sem forças nem para respirar.

O mais esperto foi Mackenzie. Compreendeu que não poderia com aquela dupla perigosa e, em lugar de atacar, tratou de voltar para a lancha, vadeando a toda pressa, enquanto Bolowsky afundava lentamente na água e Heston gemia de dor, retorcendo-se no chão.

Número Um tratou de pegar o revólver de Heston, tirando-o da água. Apontou para as costas de Mackenzie e apertou o gatilho: Puf, puf, puf.

Ouviu-se o ruído de coisa molhada, inútil.

Brigitte já estava indo atrás de Mackenzie o mais depressa possível. Conseguiu alcançá-lo quando estava se encarrapitando na lancha. Puxou-o por um pé tentou jogá-lo na água, mas Mackenzie, com o pé livre, deu-lhe uma tremenda patada entre os seios, derrubando-a próximo a Bolowsky, que tentava inconscientemente manter-se na superfície.

— Brigitte! — gritou Número Um.

Acercou-se dela velozmente e procurou mantê-la à tona, segurando-a pelos ombros. Sabia muito bem que aquele golpe no peito acabaria com a resistência física de qualquer mulher...

— Um... depressa... corra daqui... — murmurou “Baby”.

Na margem, Heston estava se levantando com dificuldade. Bolowsky continuava lutando para não afundar.

Mackenzie conseguiu subir na lancha e estava procurando, às pressas, alguma coisa dentro do painel de comando. Número Um ajudou Brigitte a alcançar a margem, puxando-a pelo braço, enquanto Mackenzie ressurgiu na borda da lancha empunhando uma metralhadora portátil.

— Parem ou atiro! — gritou.

Número Um jogou-lhe o revólver inútil, caiu toda a força. Tarde demais aqueles três compreenderam que não haviam nunca conseguido derrotar com torturas aquele homem infernal. Mackenzie gritou ao perceber o gesto de Número Um e apertou o gatilho... justamente no momento em que o revólver acertou-lhe em cheio na boca, partindo-lhe os lábios e fazendo-o engolir dois ou três dentes. A força do golpe foi suficiente para fazê-lo cair de costas na coberta, sangrando abundantemente, quase desmaiado.

Enquanto isso, Número Um alcançou a margem, ainda arrastando Brigitte. Soltou-a quando viu Heston já recuperado e pronto para brigar, aproximando-se furioso, rugindo como um porco agonizante.

Bolowsky vadeava em direção à praia, ainda de rosto pálido, mas já disposto para o combate. Na lancha, Mackenzie pusera-se de pé e mantinha as mãos na boca, procurando deter a forte hemorragia. Cambaleava ainda, sustentando-se com esforço, olhando raivoso para a margem.

Heston armou um pontapé endereçado às virilhas de Número Um, mas este livrou-se agilmente, segurou-lhe o pé por baixo, levantou-o com violência, e Heston caiu de costas. Ainda estava no ar, quando Número Um obrigou a girar, fazendo-o cair de bruços na areia. Dobrou-lhe a perna, imobilizando-lhe o corpo contra a areia. E antes que Heston pudesse ao menos pensar em contragolpe, Número Um caiu de joelhos sobre os seus rins, com todo o peso.

Desta vez os gritos de Heston foram mais fortes, ou melhor, teriam sido, se Número Um não o tivesse golpeado no pescoço com uma cutilada que quase o matou, afundando sua cabeça na areia.

Voltou-se em direção ao mar no justo momento em que Bolowsky saía da água, pronto para atacá-lo pelas costas. Mas Brigitte, apesar da dor que sentia no peito, jogou-lhe um punhado de areia nos olhos, dando tempo a Número Um para alcançá-lo e, com brutal ferocidade, dar-lhe um pontapé no estômago.

Olhou para a lancha e viu Mackenzie inclinado, tateando às cegas em busca da metralhadora. Sentiu que não teria tempo de chegar antes que o outro apanhasse a arma. Levantou Brigitte pela mão.

— Corra... corra, Brigitte!

Pegou-a pela cintura e trataram de correr até as moitas que havia a pequena distância da praia.

Ainda não haviam alcançado o abrigo, quando por trás deles ouviu-se o crepitar inconfundível da metralhadora. As balas chocaram-se contra as palmeiras, arrancaram pedaços de plantas, salpicaram os dois de areia... Número Um pulou para o mato, arrastando Brigitte com ele. Caíram do outro lado de uma grande moita, que foi pulverizada por cima de suas cabeças, arrancada a bala, triturada, desmantelada.

— Temos que nos afastar de Mackenzie — murmurou Número Um. — Pode correr?

— Se você pode, eu... também.

Número Um bateu-lhe carinhosamente nas costas.

— Não há tempo nem pra pensar. Já!

Ergueram-se e puseram-se a correr para o meio da ilha, seguidos por outra rajada que pulverizou o matagal à volta. Número Um não pôde conter um grito de dor, girou sobre si mesmo e caiu rolando pelo chão.

— Um! — gritou Brigitte. — Você está...?

O espião pôs-se de pé num salto, sangrando no braço esquerdo. Caiu de joelhos quando outra rajada passou sobre suas cabeças e puxou Brigitte pela mão, obrigando-a a ajoelhar-se.

— Não foi nada. Somente um arranhão no braço... Esse sujeito está atirando às tontas. Vamos ficar calmos. Não precisamos mais correr; basta permanecermos escondidos. Não se mexa.

Levantou a cabeça lentamente, por entre as plantas. Viu Mackenzie com nitidez, olhando ansioso por cima dos arbustos, com a metralhadora pronta para disparar.

— Está desorientado — disse, escondendo-se atrás das plantas — e não se atreve a vir buscar-nos. Parece que conseguimos assustá-lo.

— Você estava fingindo — sorriu Brigitte. — Está mais forte do que eu.

— Eu só tirei forças da fraqueza — riu Número Um. — Acha que esse golpe no peito a enfraqueceu muito?

— Não. Já recebi outros piores. Logo estarei bem.

— Psiu... Vou verificar o que está fazendo o nosso amigo Mackenzie.

 

Mackenzie saltou na água, de olho na margem, com a metralhadora pronta para disparar. Alcançou-a quando Heston começava a recuperar-se, ajudado por Bolowsky, que mal se agüentava nas pernas.

— Foram para o interior da ilha — disse Mackenzie. — Quando encontrar esse sujeito vou...!

— É a segunda vez que nos derrota como se não estivesse fazendo nada!

Bolowsky levou Heston até a beira e o atirou n’água, para fazê-lo acordar. Ficaram os dois de joelhos, resfolegando, pálidos, sentindo o frio da água que escorria por seus rostos.

— O que faremos? — perguntou Mackenzie. — Vamos deixá-los aqui até a volta? De qualquer maneira, não poderão escapar.

Heston levantou-se com dificuldade, de olhos turvos.

— Esses dois vão me pagar! Vamos caçá-los como coelhos pela ilha! Bolowsky, vá buscar mais duas metralhadoras na lancha!

— Traga mais pentes sobressalentes — pediu Mackenzie.

Bolowsky e Heston foram até a lancha e pegaram duas metralhadoras e doze pentes para cada um. Voltaram para a terra, onde encontraram Mackenzie de olhos esgazeados, vigiando aterrorizado o matagal.

— Eles podem vir de qualquer lado...

— São apenas seres humanos — grunhiu Heston. — Vamos crivá-los de balas assim que surgirem. Não nos separaremos... formaremos um leque, de modo que possamos bater toda a ilha. Terão que ir recuando, até ficarem encurralados contra os rochedos da ponta norte. Ali então nós os mataremos.

— Não esqueça que os querem vivos, para a experiência...

— Que façam a experiência com ratos! — gritou Heston. — Não posso permitir que esses espiões zombem de mim como fizeram. Vamos caçá-los!

Dispuseram-se formando um pequeno arco, mas suficiente para que nada passasse despercebido à medida que se adiantavam. E se qualquer coisa parecesse suspeita, não vacilavam em soltar uma rajada. Assim, foram arrancando casca de palmeira, destruindo plantas, perfurando o chão...

Estavam quase alcançando a parte norte da ilha e não haviam visto nem sinal dos espiões.

— Eu... eu acho que é melhor deixá-los aqui, simplesmente — sugeriu Bolowsky, amedrontado.

— Não! Eles têm que estar na ilha, perto de nós... entre nós e o mar. E devem aparecer a qualquer momento. Não se descuidem. Lembrem-se de que são muito perigo... Ah! Estão lá!

Viram os dois aparecer correndo, juntos, subindo pelas rochas, com uma segurança e velocidade assombrosas.

Heston foi o primeiro a disparar sua metralhadora, raivosamente, logo secundado por Bolowsky e Mackenzie, de modo que as três rajadas foram quase simultâneas. Ouviram claramente as balas ricocheteando nas rochas, os gritos de “Baby” e Número Um... e a queda dos dois para o outro lado das pedras.

— Vamos! — gritou Heston. — Eles estão desarmados!

Correram até as rochas, atentos, prontos para disparar a qualquer movimento. Viram algumas manchas de sangue... e afinal chegaram à beira do penhasco. Lá embaixo, as ondas do mar reboavam formando branca espuma ao chorarem-se contra as rochas. Era escuro, de um azul profundo...

— Caíram no mar...

— Vamos olhar. Não confio neles. Podem estar nadando de mergulho. Fique aqui, Mackenzie. E se os vir na superfície, mande bala.

— Está bem.

Heston e Bolowsky desceram pelas rochas, sempre atentos, O mar rebojava, respingando os dois. Não havia um só lugar em que alguém pudesse esconder-se. Pelo menos, em terra firme. Na água, viam-se pequenas rochas que apenas afloravam à superfície. E, além disso, lá no alto, Mackenzie perceberia qualquer movimento.

— Está vendo alguma coisa? — gritou Heston.

— Não.

— Está bem. Vamos voltar para a lancha. Daremos ainda uma espiada, por via das dúvidas. Apesar de estar convencido de que os crivamos de balas e de que agora estão mortos, no fundo, não confio neles. A verdade é que não gosto nada desta caçada.

— Que caçada?

— A caçada de espiões. Vamos para a lancha.

 

— Eu disse que os queria vivos! — gritou Chandler, irritado. Não preciso de vocês para matar ninguém, Heston!

— Bem... eles nos atacaram. Eram muito perigosos, senhor Chandler. Não houve outra maneira senão atirar.

— Como aconteceu?

— Tiraram o revólver de Bolowsky e fugiram para o interior da ilha. Não podíamos deixá-los soltos e armados — mentiu Heston — e fomos atrás deles. Tivemos que nos defender. Caíram no mar... e não voltaram.

— Caíram no mar? — perguntou Margot.

— Isto mesmo. Crivados de balas.

— Tem certeza que não saíram?

— Absoluta — sorriu Mackenzie. — Ficamos vigiando muito tempo, eu e Heston, enquanto Bolowsky foi apanhar a lancha. Voltou com ela, andou por ali... Vigiamos cerca de quinze minutos. E não voltaram...

— Bem... Não ganharemos nada lamentando os dois — disse Percy Fowler. — Não nos devíamos ter incomodado tanto com eles, já que agora ficamos sem gente para a demonstração aos visitantes.

— Eram perigosos demais...

— Por isso mesmo! — irritou-se Chandler. — Queríamos justamente provar aos nossos visitantes que para os robôs não haveria inimigos perigosos. Tenho certeza de que os visitantes sabem da fama de Brigitte Montfort e do maldito Romeu! Se os robôs os derrotassem, ficariam convencidos da... Ora, está bem. Percy tem razão: não vamos perder tempo com isto.

— Talvez ainda possamos conseguir alguém para a experiência — sorriu malevolamente Heston. — Quando vão chegar os visitantes?

— Esta tarde, às cinco horas. Recebemos a confirmação dez minutos atrás.

— E o que faremos?

— Vou pensar — murmurou Chandler. — Vocês agora tratem de dar uma busca na ilha. Não quero ser apanhado de surpresa por ninguém.

— De acordo.

Bolowsky, Heston e Mackenzie saíram da pequena sala de comando, onde estavam reunidos Margot Stevens, Aaron Chandler e Percy Fowler.

Percy olhou ironicamente para Margot.

— Creio que a morte do seu Romeu não a alegrou muito.

— Não era “meu” Romeu — replicou secamente Margot.

— Certo. Era o Romeu de miss Montfort. Eu não entendo muito bem estes espiões. Parece que se amavam e, no entanto, cada um vivia a sua vida, separados... Vocês entendem?

— Não é o momento de perder tempo com bobagens — lembrou Aaron Chandler. — Os nossos visitantes vão chegar às cinco da tarde na ilhota. Quem vamos oferecer aos robôs como vítima?

— Podíamos jogar Adams aos robôs — sugeriu Margot, rindo cruelmente.

— Acho que você está brincando — resmungou Chandler. — Os homens que virão são todos espiões veteranos. Esperam ver algo fora do comum. O representante da CIA já viu em Nova Iorque, mas os outros não sabem de nada. Não podemos mandar meia dúzia de robôs contra um pobre velho maluco. Eles rirão de nós.

— Podemos dizer-lhes que voltem para os seus países e que lá, na época oportuna, terão uma demonstração individual.

— E ter esta trabalheira toda? Não. O importante é impressionar a todos de uma só vez, para evitar tanto incômodo e despesa. Uma só demonstração em massa, e ficarão convencidos. Receberão a senha para comunicação e teremos garantido os primeiros clientes.

— Pois então é preciso pensar depressa... e bem.

— Certo: vamos pensar. São onze horas da manhã. Temos quase seis horas para encontrar a solução.

 

Às quatro da tarde, Margot Stevens aproximou-se da praia, onde Heston e Bolowsky estavam conversando, cigarro na mão. Atrás dela vinham os sete robôs, seis quase idênticos a pessoas normais, vestidos corretamente, sem quase despertar suspeitas. O último era Alexandre, o velho conhecido de “Baby” Montfort da festa do milionário Albert Rockingham.

— Onde está Mackenzie? — perguntou Margot.

— Por aí. Aconteceu alguma coisa?

— É preciso levar os robôs para a ilha. Usem uma das lanchas. Vá buscar Mackenzie, Bolowsky. Enquanto isto, Heston ajudará a colocar os robôs na lancha, se for preciso.

— Está bem.

Bolowsky afastou-se dando a volta pela beira da praia. Heston e Margot foram até o cais, seguidos pelos robôs silenciosos. Suas passadas ressoavam fortemente no tabuado do trapiche. Estavam de chapéu e, a pequena distância, enganavam qualquer um, tamanha sua semelhança com pessoas. Caminhavam meio lentamente, mas quase humanos. Os sete entraram na lancha e Alexandre colocou-se no comando.

— O robô vai dirigir a lancha? — perguntou Heston.

— Vai.

— Espero que o consiga.

— Conseguira.

Heston encolheu os ombros e lançou o cigarro na água. Viu Mackenzie voltando com Bolowsky e chamou-os com a mão. Margot olhou para lá e fez sinal para que se apressassem. Os dois logo entraram na lancha.

Margot olhou-os com a testa franzida.

— Espero que cumpram as ordens direito. É só desembarcar os robôs na ilha e voltar com a lancha. Alguma dúvida?

Disse isto com a voz cheia de sarcasmo, mas os três patifes não estavam dispostos a discutir e trataram de saltar para a lancha, sentando-se entre os robôs. Mackenzie e Bolowsky olharam desconfiados para o robô Alexandre, mas este pôs a embarcação em movimento, sem dificuldade alguma. Dirigiu-a sem embaraço até a ilha, aonde chegaram sete ou oito minutos mais tarde.

Alexandre, então, voltou-se para os três homens.

— Desembarquem e ajudem os outros robôs a descer. Não deixe nenhum cair na água, Heston.

Era a voz de Aaron Chandler e Heston teve que obedecer sem discussão. Saltaram os três para a praia e aguardaram, enquanto os robôs faziam o mesmo. Nenhum deles precisou de ajuda. Se não fossem os movimentos pesados, passariam certamente por seres humanos. Chegaram à beira da praia, muito lentamente, afundando os pés na areia molhada.

Heston acenou para Alexandre, que continuava no controle da lancha.

— Hei! — chamou. — Agora é sua vez, Alexandre!

Mas Alexandre não desembarcou. A lancha deslizou vagarosamente, aproando para a direita, até que a popa voltou-se em direção à praia, perpendicular à ilhota. Então, ouviu-se roncar mais forte o motor e a lancha partiu em disparada, afastando-se velozmente.

Heston, Mackenzie e Bolowsky ficaram mudos de espanto.

— O robô deve ter enguiçado... — arriscou Bolowsky.

Um dos manequins parou em frente dele.

— Ninguém enguiçou, Bolowsky. Esta foi a nossa decisão.

— O quê? Que decisão? — gritou Heston.

Outro robô levantou o braço esquerdo e um fino e rápido jorro de gás partiu da ponta dos dedos, batendo em cheia no rosto de Heston, que recuou, olhos esgazeados de terror. Os outros robôs levantaram também os braços, e Bolowsky e Mackenzie receberam os cinco jorros de gás. Em menos de cinco minutos, os três homens jaziam desmaiados na areia.

Um dos robôs inclinou-se e revistou os três, tirando-lhes os revólveres. Com eles na mão, afastou-se para o interior da ilha. Três robôs carregaram Bolowsky, Mackenzie e Heston nos ombros, com a maior facilidade, e seguiram o primeiro.

O robô que servia de guia chegou a uma pequena clareira recamada de galhos picados pelas balas disparadas aquela manhã contra Brigitte e Número Um. Ali estacou, ficando imóvel. Heston e seus companheiros foram jogados ao chão, bem ao centro de um circulo formado pelos seis robôs, apavorantemente fiéis ao comando.

Restava apenas esperar.

A demonstração já podia ser realizada sem inconvenientes, pois os três ratos para a experiência haviam sido encontrados.

 

O primeiro a chegar foi o enviado cubano. Chegou numa lancha rápida, esporte. Na popa via-se a vara de pesca, encaixada no suporte, mas era evidente que não era a pesca que o trazia por ali. Localizou a prainha, deslizou até lá e cortou os motores, encravando-se na areia.

Não conseguira ainda alcançar a praia, quando surgiram outras três lanchas, do mesmo tipo, vindas de lugares diferentes. A oeste, ou seja, do lado do continente, apareceram duas lanchas mais, e três iates, todos convergindo para a ilha. Por cima das embarcações, três helicópteros, que manobraram e desceram em terra firme.

Não podiam ser mais pontuais. Às cinco e cinco, doze homens ocuparam a ilha, reunidos em bando, entreolhando-se com receio e desconfiança mútua.

Mas logo tiveram sua atenção voltada para os estranhos seres que se aproximavam, vindos do interior da ilha. Ninguém se surpreendeu demais, pois já estavam à par da meta daquela insólita reunião: contratar os serviços de assassinos infalíveis, invencíveis.

E, pelo menos à primeira vista, aqueles robôs pareciam difíceis de vencer.

Instintivamente, os doze se agruparam na beira da praia, quando dois dos robôs se aproximaram. Foi um gesto inconsciente de defesa. Todos olharam curiosos e desconfiados para os manequins, em silêncio.

Um deles então falou:

— Bem-vindos senhores. Observo com satisfação que estão presentes todos os convidados. Espero poder demonstrar-lhes logo a eficiência de nossos trabalhos. Por favor, sigam-me.

— Um momento — disse o enviado britânico. — Não há nenhum ser humano na ilha?

— Somente os senhores. E mais três que servirão de... cobaias.

— O que significa isto? — perguntou o russo.

— Vamos matá-los diante de todos, concedendo-lhes todas as oportunidades que desejem, se bem que, na realidade, não tenham meios de sobreviver. Mas, senhores, não é justamente isto o que pretendem ver demonstrado?

— Isto mesmo. Quem são os três homens?

— Pessoas... inúteis. Não se preocupem com eles. Venham por favor.

O robô pôs-se a andar e os doze homens foram atrás dele, seguidos por outro na retaguarda. Todos olharam para trás, intranqüilos.

Mas chegaram sem contratempo ao local em que os outros quatro vigiavam Heston, Mackenzie e Bolowsky, que já haviam acordado e estavam pálidos, assustados.

— Aqui estão as armas deles — disse o robô que os conduzia. — Vamos devolvê-las para que possam defender-se. Quanto aos senhores, é melhor que se abriguem para evitar o perigo de uma bala perdida, enquanto não termina o... espetáculo.

— Um momento, um momento — pediu de novo o britânico. — Quero examinar as armas.

— Estão em perfeitas condições para matar, asseguro. Pode examiná-las.

O inglês aproximou-se, pegou os três revólveres da mão do robô, abriu os tambores e examinou as balas. Voltou-se para o robô e declarou-se satisfeito.

— Parecem perfeitos.

— Todos têm o direito de esclarecer qualquer dúvida — disse o robô. — E podem tentar o que quiserem para dissipar suspeitas. Não desejamos que saiam daqui pensando que foram enganados.

— Eu quero experimentar uma coisa — disse o homem da CIA. — A menos que se importem que atire.

— Estamos muito longe de qualquer lugar habitado — disse o robô. — E quanto aos tiros, tome cuidado com os ricochetes. Pense bem.

— Já pensei — o agente norte-americano puxou a automática. — Posso atirar agora?

— À vontade.

O homem da CIA apontou para o peito do robô e apertou o gatilho. O ricochetear da bala ouviu-se claramente, zunindo acima das cabeças. O segundo disparo foi dado contra o ombro do robô, tentando alcançar a junção do braço ao corpo, ponto fraco provável. Novamente ouviu-se a bala ricochetear. O terceiro disparo foi dado astutamente contra o olho do robô... e novamente ouviu-se o ricochete, que desta vez cravou-se no solo, entre os pés do homem da CIA.

— Se não está satisfeito, pode continuar disparando — disse o robô. — Anteriormente o ponto fraco era os olhos, mas certa experiência que tivemos nos fez providenciar a colocação de vidro à prova de bala, resistente a qualquer bala comum, Alguém mais quer experimentar? Podem fazê-lo à vontade, Estamos à disposição dos senhores.

Ninguém disse nada.

— Muito bem — disse o robô amavelmente. — Agora será melhor que se abriguem, para evitar que um dos três homens tente feri-los. De qualquer modo, dois robôs ficarão à frente para protegê-los.

Os doze homens se ocultaram em meio ao matagal e por trás das palmeiras. Dois manequins tomaram posição de costas para eles, encarando Heston, Bolowsky e Mackenzie, que estavam mudos de terror.

Quando o robô jogou as armas para eles, recuaram, pálidos como cadáveres, Seus olhos esgazeados fitaram o robô.

— Não! — gritou Bolowsky — não podem fazer isto conosco, senhor Chan...

Antes de pronunciar o nome do chefe, o braço do robô subiu rápido e Bolowsky recebeu no peito uma bala. Caiu retorcido, com uma perna dobrada e o rosto crispado.

— Malditos! — gritou Heston. — Malditos porcos insensíveis!

Pegou o revólver e começou a disparar freneticamente contra o robô, louco de ódio, tremendo com violência. Mackenzie pegou outro revólver e correu para o interior da ilha.

Heston atirou até esvaziar o revólver, apesar de duas balas haverem ricocheteado contra ele; uma na perna direita e outra de raspão no corpo. Ao descarregar a arma, jogou-a contra o robô que se aproximava lentamente dele e que, levantando o braço, deu-lhe um golpe no peito que o arremessou longe.

Mas Heston parecia haver enlouquecido. Pôs-se de pé, gritando. O robô continuava a avançar sobre ele, implacável. Heston olhou para todos os lados como uma fera acuada. Viu uma grande pedra no chão e levantou-a com uma força imprevista. Esperou o robô e arremessou-lhe a pedra à cabeça, com toda a força... Mas o robô, imperturbável, aplicou-lhe outro golpe violento que tornou a derrubá-lo.

Heston voltou a levantar-se, tonto, cambaleante. Tinha manchas de sangue na perna e no corpo, e seus olhos estavam esbugalhados, quando o robô novamente aproximou-se.

Deu um passo rápido para o lado e tentou derrubar o robô com um calço, segurando-o pelo pescoço. Se conseguisse derrubá-lo, metade da parada estava ganha. Mas as chamas azuis se espalharam pelo corpo do robô e Heston foi jogado longe com o choque elétrico.

Estava tentando ficar em pé, quando a mão direita do robô levantou-se e dela duas chamas brotaram silenciosamente.

Heston deu um grito que ressoou por toda a ilha. Suas mãos se crisparam no peito, arregalou muito os olhos... e caiu de bruços.

O robô pegou-o por um pé e arrastou-o, deixando-o junto ao cadáver de Bolowsky. Voltou-se para a dúzia de visitantes e mostrou os dedos índex e polegar da mão direita.

— Dois — disse desnecessariamente. — Agora, se querem seguir-me, demonstrarei como se caça facilmente um fugitivo.

Os doze homens se levantaram. A maioria estava pálida. Em silêncio, seguiram instintivamente o robô, sem tirar os olhos do que iniciara a ação de extermínio contra os três ratos.

O robô se deteve e levantou o braço esquerdo. Uma chama comprida saiu de sua mão, até um grupo de arbustos, que enegreceram consumidos pelo fogo.

O robô passou por cima, inalterável, e lançou novo jato de fogo sobre o matagal, que instantaneamente carbonizou-se.

Mackenzie saiu correndo do matagal, antes que o robô o queimasse. Precipitou-se desesperado para a parte norte da ilha e começou a escalar as rochas.

O robô apagou o lança-chamas, mas o braço esquerdo permaneceu reto. Ouviu-se um leve estampido surdo e, subitamente, parte das rochas às quais

Mackenzie subia, saltaram em pedaços. Mackenzie continuou escalando depressa, mas o robô não lhe deu mais tempo. A pequena cápsula de explosivo concentrado partiu de sua mão novamente... desta vez com melhor pontaria.

Todos viram Mackenzie saltar pelos ares, destroçado, por entre estilhaços de rochas. Descreveu uma curva no ar e tombou ao pé dos rochedos, formando um quadro trágico, patético.

Fez-se um pesado silêncio, quase palpável, na ilha.

O robô voltou-se para os doze homens. Manteve-se algum tempo calado, observando-os com seus olhos que enviavam as imagens para longe dali.

— E então? — perguntou. — Desejam mais alguma prova, cavalheiros?

As cabeças balançaram negativamente. Um dos convidados, falando com sotaque sul-americano, perguntou:

— Como vocês podem ser derrotados?

— Ainda não sabemos — disse o robô. — Supomos que talvez uma bazuca. Ou uma granada de mão, se bem que, provavelmente conseguiria apenas derrubar-nos.

— E com a bazuca podemos destruí-los?

— Sim... mas muito pouca gente anda por ai com uma bazuca no bolso,

A piada provocou alguns sorrisos forçados.

— Desde quando podemos contratá-los?

— Desde agora. Todos já estão a par do sistema de comunicações conosco, e já sabem o preço da “operação”. Alguns dos senhores têm alguma encomenda para já?

Houve uma troca de olhares cheia de desconfiança, furtivos, entre os doze convidados para a “festa”.

— Entendo — disse o robô, amavelmente. — Nenhum quer que o outro saiba. Está certo. Se alguém deseja algo, poderá usar a senha mais tarde. Mais alguma pergunta?

— Sim — disse um negro. — Quem são vocês e onde estão.

— Já advertimos que esta pergunta não seria respondida. Só lhes cabe apontar a vítima e pagar quinhentos mil dólares por serviço. O resto é por nossa conta. Algo mais?

— Mais oui — disse o francês. — Como podemos saber se um dia não seremos nós que receberemos a visita de vocês?

O robô demorou a responder:

— E por que deveriam estar seguros disso?

— Comment? — disse o francês.

— Quero dizer que o robô de plantão matará a quem ordenarem, simplesmente. Sem distinção alguma. Nós somos cem por cento eficazes, senhores.

Os doze homens se agitaram, nervosos, desassossegados. Parecia que ninguém tinha mais nada para perguntar, nem opinar. O robô esperou quase meio minuto e, finalmente, disse:

— Agora, peço por favor aos senhores: permaneçam na ilha durante uma hora, até que anoiteça. Então, poderão regressar para de onde vieram. Quero avisar aos senhores que não tentem seguir-nos. Aguardarão a noite e voltarão para seus países. Isto é tudo. Obrigado pela visita e... cá estamos às ordens.

Os robôs encaminharam-se para a praia, na parte sul da ilha. Os homens separaram-se instintivamente, permitindo a passagem deles. Depois, seguiram atrás, pensativos. Logo viram a lancha que se aproximava e não se surpreenderam ao avistar no comando um robô clássico quadradão, feio. Permaneceram em silêncio até os robôs tomarem a lancha e, com Alexandre no comando, afastarem-se da ilhota.

— Realmente fora do comum tudo isto, não?

O americano encarou o britânico, que lhe oferecia um cigarro. Enquanto este o acendia, o maço passou por todo o grupo de espiões, sabotadores e revolucionários.

— Estranho, sim — concordou o da CIA — e muito arriscado.

— Eu também concordo — disse o francês.

— Tudo é perigoso — disse o russo. — E os robôs não serão mais perigosos do que qualquer outra coisa. É bem possível que evitem pequenos conflitos internacionais.

— Sim... — disse sorrindo um dos sul-americanos. — Quem morre nas mãos de um robô, somente saberá que foi escolhido como vítima, mas nunca saberá quem contratou o assassino. Isto significa que muita gente poderá morrer sem que ninguém se atreva a acusar ninguém. Seria diferente se o assassino fosse chinês, negro ou ruivo... Poder-se-ia acusar respectivamente a China, aos africanos ou aos irlandeses, por exemplo. Mas se o assassino é um robô, seu contratador pode ser qualquer um. É um alívio esta possibilidade de não agravar tensões políticas, não acham?

O sul-americano tinha evidentemente um humor muito especial, mas os outros não concordaram. O russo perguntou ao americano, apontando-lhe o cigarro:

— Qual é sua opinião definitiva?

— Não sei. Talvez a agente “Baby” estivesse com a razão.

— Ela está metida nisto? — disse o russo de cara amarrada.

Os outros fitavam curiosos ao homem da CIA, que percebeu o interesse que despertara ao citar o nome de “Baby”. E não resistiu à tentação de fazer suspense, deixando de responder à pergunta do soviético.

— Bem... — disse este. — Parece que precisamos aguardar a noite para sair daqui. Por mim, não me importo, mas quero saber se vamos ficar todos juntos ou cada um volta para o seu barco.

O homem da CIA lançou um rápido olhar ao soviético.

— Creio que preciso pensar a respeito — disse.

Foi o primeiro a separar-se do grupo, indo para o helicóptero. Os outros foram-se dispersando lentamente, regressando cada um ao seu lugar. Entraram nas lanchas, nos iates, nos helicópteros. De fato, a situação daqueles doze não era das mais cômodas. Uma reunião internacional de espiões, na qual adquiriram a certeza de que todos podiam dispor de robôs assassinos, não era muito tranqüilizadora.

 

Um dos sul-americanos teve muito pouca sorte, sem dúvida. Sua lancha era a mais fechada de todas. Para alcançá-la, teve que ir vadeando pela água, apoiar-se na borda e tomar o impulso para alcançar a coberta. Por sorte, pensou, tinha roupas secas na cabina e poderia...

Interrompeu seus pensamentos ao dar com um desconhecido junto dele, estendido no chão, todo vestido de negro e que parecia estar à sua espera, de braços abertos. Tentou abrir a boca para avisar os outros, ruas realmente aqueles braços fortes estavam à sua espera...

Não teve tempo de fazer nada, porque a mão esquerda do desconhecido tapou sua boca, o braço direito passou-lhe pelo pescoço, rudemente, aplicando-lhe uma gravata firme, que quase o matou. O sul-americano debateu-se em vão, de barriga para cima, estendido sobre o agressor, entre aqueles braços que pareciam de aço.

A noite chegou para ele antes dos outros. Tudo escureceu rapidamente, um zumbido nos ouvidos, a cabeça dando voltas na escuridão... e logo, percebeu junto ao seu um lindo rosto de mulher, o mais formoso que já vira, como se estivesse sonhando. Sonhando. Devia ser um sonho. Não podia existir uma mulher tão bela, com tão formosos olhos azuis. Certamente, quando acordasse, veria...

E adormeceu.

Não poderia imaginar que aquela formosa mulher existia realmente e que uma de suas mãos lhe estava tomando o pulso.

— Não aperte mais, Número Um: está morto.

Número Um libertou-se do cadáver, jogando-o para um canto da lancha. Rastejou até ele e revistou-o cuidadosamente. Demorou alguns segundos para encontrar o que estava procurando.

Levantou a mão, mostrando as chaves.

— Aqui estão as chaves de ignição. este sujeito era muito desconfiado.

—        Devia temer que lhe roubassem a lancha — disse “Baby” sorrindo. — Acredita que os helicópteros nos alcancem antes de conseguirmos chegar?

— Não. Temos os segundos de vantagem com a surpresa e a velocidade da lancha... Vamos tentar. Tome o revólver dele.

E jogou-o para Brigitte, que o pegou no ar, sorrindo.

— Você dirige?

— Sim. Vamos surpreender esta gente.

— E aos nossos amigos da ilha — sorriu friamente a espiã. — Adiante, querido: vamos caçar os robôs.

 

O agente russo foi o primeiro a perceber a veloz partida da lancha, sentado em seu helicóptero. Olhou-a por alguns momentos de cenho franzido, depois empalideceu.

Saltou do aparelho, ao mesmo tempo em que o agente britânico abandonava o seu, e correram juntos para a praia, seguidos do agente da CIA. Os outros estavam olhando, intrigados, a lancha que se afastava a toda a velocidade.

— Hei! — gritou o russo. — Aonde vai esse cara? Ainda não anoiteceu!

— Ora, cada um deve fazer o que quiser — disse o americano.

— Sim? — o russo olhou-o zangado. — Então vamos deixar que ele seja o único a seguir os robôs, e o único a saber onde está a base, para depois se apoderar do segredo?

— Mon Dieu! — exclamou o francês, em seu iate. — Não podemos permitir isso!

O agente da CIA foi o primeiro a correr para o helicóptero, seguido do russo furibundo e do fleumático britânico. Em menos de quinze segundos, todos os aparelhos estavam em movimento. Os mais desgostosos eram os de iate, que não haviam previsto a necessidade de rapidez, numa eventualidade.

* * *

Brigitte sorriu, olhando o céu.

— Aí vêm eles, querido. Espero que os helicópteros não tenham bombas.

— Não as jogariam. Simplesmente farão o que estamos fazendo. Ou seja, ir para a ilha dos robôs. O que pensa que acontecerá lá, com tanta gente?

— Não posso imaginar, mas tenho o pressentimento de que não vai ser divertido. Os robôs não gostarão da visita.

O robô que estava no cais enviou a imagem para um dos receptores da sala de controle, onde Margot Stevens, Percy Fowler e Aaron Chandler estavam comentando ainda o encontro entre os convidados e os robôs.

— Uma lancha se aproxima — disse Margot.

Os dois homens olharam para a tela, preocupados.

— Parece que um deles decidiu seguir a nossa.

— Podemos esconder os robôs e a lancha, e dizer que não sabemos nada a respeito, e que...

— Não há mais tempo. A lancha está chegando à ilha. Estou vendo o homem que a dirige... Mas não pode ser! Não pode ser!

Margot apontou com o dedo para a tela, onde já se distinguia a figura de um homem e uma mulher, abraçados pela cintura.

— Pois são eles — disse rindo: — Romeu e Julieta. Parece que Heston e os outros eram piores do que imaginávamos, meu querido.

— Não estão mortos!

— Ora, Percy! Não seja cretino, meu amor...

— Está claro que enganaram a Heston e aos outros. Devem ser grandes nadadores, e conseguiram escapar à vigilância. Ficaram na ilha, roubaram a lancha... e vêm atrás de nós. Acreditar em robôs, ainda vai, mas em ressuscitados...!

— Outras lanchas estão vindo... e os três helicópteros! Vão chegar todos juntos!

— Então, teremos que preparar uma recepção digna para eles, ou seja: mandar todos os robôs para enfrentá-los! Se deixarmos que nos conheçam, que saibam onde é a base, tudo estará perdido.

— Poderíamos fazer um acordo em que...

— Um acordo com a CIA? Com a MVD russa? Com o serviço de espionagem britânico? Com...!?

— Pois muito bem, foram eles que escolheram! Que morram todos!

* * *

Brigitte apontou o cais.

— Lá está um deles. Os outros não tardarão a aparecer... E lá vêm eles! Tão simpáticos! E lá está Alexandre, o meu querido robô Alexandre. Estão todos reunidos: o pequeno exército de robôs.

— Estamos já muito próximos, Brigitte... Pronta para saltar?

— Quando quiser, querido.

— Pois então, já!

Número Um fixou o volante da lancha, que se dirigia em linha reta para o cais, já relativamente próximo. Foram para a popa, entreolharam-se sorridentes e Número Um apontou para a esteira de espuma que a lancha ia deixando atrás.

— Até logo, “Baby”.

— Até logo, meu amor.

Saltaram os dois juntos, para o alto e, rápidos, encolheram as pernas, convertidos em uma bola, escondendo a cabeça entre os joelhos e segurando estes com os braços. Caíram na água como objetos redondos, afundando e deslocando-se violentamente, envoltos em borbulhas, girando até que a força do impulso cessou. Quando voltaram à superfície, encontravam-se a pouca distância da praia, ao mesmo tempo em que a lancha batia violentamente contra o iate dos ocupantes da ilha. Mergulharam rápidos para escapar aos efeitos da explosão inevitável, chegando a engolir água. Quando tornaram a emergir, o iate e a lancha formavam um só núcleo ardente, lançando espessas nuvens de fumo negro contra o céu avermelhado do poente. A marola violenta causada pela explosão colheu-os em cheio, afundando-os, para logo voltarem à tona. Brigitte pegou a mão de Número Um e os dois começaram a nadar para a ilha, desviando-se do cais, vendo os robôs através das chamas que se espalhavam pelo embarcadouro.

— Depressa! — disse Número Um. — Estão chegando os outros.

Separaram-se e nadaram a toda a pressa até umas rochas à direita do embarcadouro. Os robôs encaminharam-se para a esquerda, rumo ao local para onde afluíram as lanchas. Os iates estavam ainda a meia milha.

Número Um foi o primeiro a escalar as rochas e estendeu-se nelas, alcançando uma das mãos de Brigitte, que logo estava lá junto a ele.

Ficaram arquejantes, olhando para o céu. Os helicópteros sobrevoavam há mais de um minuto a ilha. Haviam retardado a marcha para seguir as lanchas, mas ao depararem com a ilha, adiantaram-se, compreendendo que aquele era o local procurado.

Número Um olhou admirado o peito de Brigitte e, sem poder resistir, apalpou um “terceiro” seio que se via na espiã.

— Vou ver se está molhado — disse sorrindo.

— Errou — disse ela. — Você não segurou o revólver, Número Um.

— Bem... creio que tenho sorte, não?

Sorrindo docemente, Brigitte meteu a mão sob a malha que cobria seu corpo e, pelo pescoço, sacou o revólver do sul-americano, envolto em plástico.

Desfez o embrulho e examinou a arma.

— Molhou-se um pouco, mas acredito que não falhe. Vamos até a casa, Um. Temos que nos apoderar do controle, antes que os robôs façam uma carnificina.

— Parece-me que não poderemos evitar parte dela.

Número Um apontou para a praia, onde um dos robôs, metido n’água até os joelhos, havia lançado uma de suas cápsulas de explosivo concentrado contra uma das lanchas, que saltou em pedaços, em meio a intensas labaredas vermelhas.

— Depressa! — disse Brigitte.

Correram até a casa, sem medo dos robôs, pois estavam todos na praia. Entraram facilmente pela porta da cozinha. Não havia ninguém ali. Correram pelo living, rumo ao vestíbulo.

— Devem estar lá em cima, não? — disse intrigado Número Um. — O que está procurando por aqui?

— Richard Adams... Vejamos se está no seu quarto!

Procuraram por todos os quartos do térreo, e somente um tinha sinais de gente: roupas no chão, sapatos, restos de comida...

— É aqui, mas não está — disse Número Um.

— Vamos para cima!

— Há um alarma: nos ouvirão.

— E que importa? — retrucou ele. — Já não contam com os robôs. Terão que se defender sozinhos.

— Está certo, amor — sorriu friamente Brigitte.

— Acredito que se defendam muito mal. Vamos... Espera!

Brigitte aproximou-se da cama e recolheu o pequeno receptor de televisão, abandonado ali por Adams.

— É estranho — murmurou, enquanto se punha a caminho. — Não acredito que o tenha esquecido de guardar. Está parecendo que fugiu às pressas, sem tempo de levá-lo.

Brigitte ligou o aparelho. A imagem surgiu em seguida. Viu Richard Adams na sala de controle, com Margot Stevens, Chandler e Fowler. O velho agitava furiosamente os braços, aproximando-se da mesa de controle, que Fowler manejava. Ouviu-se sua voz, crispada, pelo receptor, num final de frase:

— ... cometer mais assassinatos!

— Vão matá-lo — disse Brigitte. — Depressa, Um!

Largou o pequeno televisor e saiu rapidamente do quarto de Adams, seguida por Número Um, que ia desarmado.

 

— Saia imediatamente daqui, Adams! — gritou Chandler. — Saia, ou vai pagar caro!

— Não! Não deixarei que meus filhos cometam mais assassinatos! Não deixarei! Vou matar a todos! Eu destruirei todos!

Margot Stevens empurrou-o cruelmente, zombando:

— Saia daqui, velho louco — riu. — Vá lá na praia ver o trabalho de... de seus filhos.

— Sua cadela, prostituta, eu vou...

Adams parecia realmente louco. Apertou as mãos no pescoço de Margot Stevens e apertou-o com tal fúria que ela perdeu a voz. Seus dedos fracos e amarelos a teriam estrangulado se Aaron Chandler, furiosamente, não disparasse dois tiros nas costas do inventor de brinquedos. Este se imobilizou e Margot aproveitou a oportunidade para tirar-lhe as mãos do pescoço, empurrando-o violentamente, gritando de raiva e medo. Richard Adams foi arrastado para o fundo do quarto à prova de som, aos tropeços, de olhos arregalados, feições crispadas.

Caiu de bruços, como uma velha árvore morta, finalmente abatida pelo machado. Mas ainda conseguiu levantar a cabeça, levemente:

— A... as... sas... sinos... Assassinos!

Sua cabeça pendeu, o corpo estremeceu e finalmente ficou imóvel. Margot aplicou-lhe um pontapé nas costas.

— Devíamos tê-lo morto antes, velho maldito! — gritou.

Chandler afastou-a rudemente dali.

— Acalme-se — grunhiu. — Não podemos perder a cabeça por causa de um velho louco. Já morreu, esqueça-o. Está bem?

— Ia me estrangular! — gritou Margot, ainda pálida de medo.

— Mas não conseguiu. Esqueça. Vamos ver come está a praia.

Olharam as telas de televisão. Os robôs já haviam destruído três lanchas e se reagrupavam, lançando chamas para todos os lados. Os helicópteros tentavam descer agressivamente contra eles, mas os lança-chamas não permitiam. Justamente numa destas tentativas, um dos robôs levantou o braço esquerdo para o mais ousado dos helicópteros e lançou uma das cargas explosivas. O helicóptero saltou em pedaços ardentes, envolto em chamas, caindo ao mar, em uma linha oblíqua, diretamente de encontro a um dos iates que estavam chegando.

A explosão foi espantosa, um monte de madeiras brancas saltou numa coluna gigantesca, entre chamas, nuvens de espumas e fragmentos candentes, vermelhos, azuis, alaranjados...

— São invencíveis — gritou Fowler. — São realmente assassinos invencíveis! Quando construirmos mais, seremos os donos do mundo! Faremos um exército de robôs, para as guerras! Exércitos assassinos, para movimentos políticos! Exércitos!

A porta da sala de comando, que estava apenas encostada depois da entrada intempestiva de Adams, saltou como se tivesse saído dos gonzos. Uma gigantesca sombra negra entrou mais veloz e destruidora do que um raio. Margot soltou um gemido quando o ombro de Número Um a derrubou. Foi como se uma cana seca se opusesse a um furacão. Aaron Chandler ergueu rápido o revólver, pálido de susto, aterrorizado diante daquele homem que vinha direto para ele sem medo de sua arma. E num golpe velocíssimo, antes que Chandler puxasse o gatilho, a mão esquerda de Número Um atirou longe o revólver. Antes que ele pudesse gritar, a mão direita de Número Um, rígida como um machado, abateu-se sobre seu crânio, numa cutilada brutal, partindo-o com um ruído de madeira quebrada. Chandler caiu fulminado.

Percy Fowler ainda teve tempo de gritar. E ainda conseguiu sacar o revólver, apontando..o para aquele homem incrível.

Mas, parada na porta, a agente “Baby” disparou, friamente, sem alterar a fisionomia. Era como se estivesse praticando tiro ao alvo. Seus olhos azuis pareciam congelados. Foi um tiro caprichado, sem pressa e sem hesitações. A bala acertou precisamente onde a espiã desejou que acertasse: entre as sobrancelhas de Percy Fowler, que morreu instantaneamente e caiu sentado na poltrona frente ao painel de comando.

No chão, Margot Stevens havia apanhado o revólver de Aaron Chandler e apontava-o já para Número Um, que apenas pôde saltar para o lado.

Mas a agente “Baby” fez muito mais. Sem se alterar, sem perder a compostura, atirou novamente e Margot Stevens saltou para trás, com uma bala no coração, crispando o dedo no gatilho. A bala atingiu uma das telas de televisão, que explodiu violentamente, lançando estilhaços e fumaça para todos os lados. Por toda a mesa de controle passaram umas chispas azuis, crepitando.

E logo tudo ficou às escuras. Todas as luzes da casa se apagaram, bem como as telas e os aparelhos que comandavam os robôs a distância. Tudo desapareceu na escuridão.

— Um!... — gritou Brigitte. — Um!

Os fortes braços do espião a enlaçaram no escuro. Ouviu o riso alegre dele junto aos seus ouvidos:

— Não grite. Os robôs podem ouvir-nos.

— Você está bem? Não está ferido?

— Sim, mas não muito grave. Acho que poderei ir adiante. E você?

— Eu também — riu Brigitte, aliviada. — Está pensando a mesma coisa que eu?

— Creio que sim: os robôs deixaram de funcionar. Vamos sair e verificar como terminou a luta. Ou consertamos antes a luz da casa? É possível que o quadro de fusíveis seja aqui mesmo.

— Certo. Mas não precisamos de luz. Além disso, os robôs podem voltar a funcionar. Vamos dar uma olhada em nossos... colegas. Talvez algum ainda esteja vivo.

 

Era verdade.

E restavam vivos oito dos doze homens que haviam comparecido à demonstração na ilhota. Dois deles estavam feridos. O inglês havia explodido junto com seu helicóptero. Morreram também o francês e dois sul-americanos. Dois estavam feridos mas conseguiram escapar justo no momento em que os robôs apontavam para a sua lancha, saltando n’água.

Era um grupo sombrio aquele que encontraram na praia da ilha. Estavam examinando os sete robôs, que permaneciam imóveis dentro d’água, dois afundados até a cintura e os outros com água pelos joelhos. Três estavam ainda em atitude agressiva, com ambos os braços levantados.

Dentro de cinco minutos seria noite fechada. Naquele instante um esplendor avermelhado, no oeste, sobre o continente americano, permitia ainda certa visibilidade, mais que suficiente, embora mal pudessem distinguir os rostos uns dos outros.

Todos olharam para a praia quando viram as duas sombras negras se aproximando. E todos sacaram os revólveres, dispostos a enfrentar o que desse e viesse. Diante dos robôs, uma lancha em chamas que ainda não afundara avermelhava a cena e, ao fundo, o iate de Chandler continuava envolto em chamas cada vez mais mortiças, que lançavam rolos de fumaça negra para o céu. Uma das lanchas se desprendera das amarras e flutuava à deriva, mansamente.

— Somos amigos — Brigitte levantou a mão. — Não se preocupem mais com os robôs: já não funcionam.

O agente da CIA adiantou-se e encarou a mulher vestida de negro, lançando um olhar surpreendido para o homem.

— Você é “Baby”? — perguntou.

— Não.

— Então quem é?

— Que importa agora? O que importa é que tudo acabou, e que vocês podem partir.

O russo adiantou-se bruscamente:

— Partir? Por quê?

Brigitte encarou-o friamente. -

— Tem alguma sugestão melhor? — perguntou em russo.

— Você é russa? — perguntou ele.

— Não.

— Quem é? Por que não quer dizer? Que papel representa nisto tudo?

— O meu. Meu conselho...

— Não necessitamos de conselhos. Quem está naquela casa?

— Vivos ou mortos?

— Vivos.

— Ninguém.

— Vocês os mataram?

— Mais ou menos. Escute aqui, russo, nós acreditamos que...

— Já lhe disse que não me interessa a opinião dos outros. A questão agora é a seguinte: que vamos fazer com os robôs?

— O que disse? — indagou Brigitte.

— Os robôs. Não vamos deixá-los aqui...

— Eu pensava em jogá-los no fundo do mar.

— No fundo do mar? — exclamou o russo. — Está louca? Vocês farão o que quiserem, mas eu penso em levar um desses robôs para ser estudado!

— E para ser construído em série na Rússia? — cortou secamente Brigitte.

— E por que não? Os outros não vão fazer o mesmo? E não me interessa o que façam. Eu vou levar um robô.

— Eu também.

— E eu...

Todos queriam ficar com um robô. Menos Brigitte e Número Um, que estavam silenciosos, encarando aqueles homens que já haviam demonstrado sua falta absoluta de piedade, permitindo que quatro seres humanos fossem sacrificados na sua frente, na ilhota, somente para que se convencessem de que os robôs eram assassinos perfeitos, infalíveis, invencíveis.

— Há um pequeno problema — sorriu friamente Brigitte. — Vocês são oito e existem somente sete robôs. De maneira que um ficará sem o seu bonito brinquedo.

— Oito? Eu creio que somos dez — disse o cubano — ou vocês não querem nenhum?

— Não, muito obrigada — Brigitte levantou a mão. — E você, quer algum desses bonequinhos, querido?

— Não. Cedo a minha parte.

O russo apontou para eles.

— Claro que ambos estão fora do sorteio. E tratem de não interferir para que não acabem mal.

— Bem. Nós dois vamos sentar-nos na areia e apreciar o mar — disse sarcasticamente Brigitte. — E deixaremos que vocês tomem suas decisões.

— Assim está bem. E não se esqueça que somos oito, tão perigosos quanto vocês, e que estamos armados.

— Não interferiremos. Somente quero fazer uma pergunta: o que acontecerá depois do sorteio?

— Cada um irá para o seu lado, levando o seu robô. Não acredito que ninguém esteja disposto a brigar. Nos separaremos... e assunto encerrado.

— Uma boa idéia.

Brigitte apoiou-se ao braço de Número Um e os dois se afastaram até uma palmeira. Sentaram ali, olhando o grupo que discutia a maneira de sortear os robôs e dar o fora, pois na certa não tardariam a aparecer os barcos da Guarda Costeira para investigar o incêndio do iate, que era mais alto e se refletia nas nuvens e no céu negro.

— Vamos deixá-los partir? — sorriu Número Um.

— Como impedi-los? São oito, querido. Não tão perigosos como os robôs, mas creio que nossos esforços para reter os robôs seriam em vão, pois basta sobrar um deles com vida para que seja inútil o nosso sacrifício. Além do mais, só possuímos um revólver.

— Bem — disse Número Um. — Tanto faz que levem um como sete. Mas acho que deveríamos fazer algo para tentar impedi-los.

— Deixe-os. Que levem os robôs. Que se matem e destruam uns aos outros. O que nos importa?

— Ora, Brigitte, a mim você não engana com essas palavras de indiferença. Lutamos como loucos para chegar até aqui, e agora vamos deixar que nos levem o resultado de nossos esforços? Construirão centenas de assassinos invencíveis! Você pretende que eu acredite que não se importa?

— Deixe-os.

Número Um franziu a testa e encarou os olhos brilhantes, atentamente, na escuridão. Súbito, sorriu, levou uma das mãos de Brigitte nos lábios beijou-a e disse:

— Eu sei que você impedirá. Não sei como, querida, mas tenho certeza de que está guardando o último trunfo. Como sempre faz. Posso auxiliar em alguma coisa?

— Por enquanto, não. Deixe que partam tranqüilamente.

— Está bem. Eles...

“Tranqüilamente” não passava de uma suposição da agente “Baby”. Foram interrompidos por um tiro e viram um homem cair de costas, no grupo de espiões. Somente isso. Ninguém se alterou pela presença de mais um morto. Todos eram... da profissão.

Um deles se destacou do grupo e aproximou-se dos dois. Era o agente da CIA, que olhou fixamente para Brigitte, com o revólver fumegante na mão.

— O cubano não se conformou em ficar sem o robô e tive que matá-lo. Sinto muito.

— Para que tanta ternura? — disse Brigitte. — Que importa um morto a mais ou a menos?

— Creio... creio que você estava com razão. Não me interrompa... Sei que é a agente “Baby”. Eu... gostaria de ter coragem de desobedecer a ordens da Central, mas me mandaram que levasse um desses robôs e é isto que vou fazer. Quer algum recado para a Central, “Baby”?

— Somente para você, Johnny — sussurrou a espiã. — Se conseguir sair deste assunto com vida, coisa muito duvidosa, espero que não consiga dormir de remorsos até o fim de seus dias. Não entende a barbaridade que você e estes fanáticos estão fazendo? Assassinos invencíveis, robôs... Você é capaz de perceber a verdade?

— Sim. Mas devo obedecer.

— Sinto muito por você. Até nunca mais.

— Adeus.

O homem da CIA afastou-se, reunindo-se aos seis que ainda estavam vivos. Aparentemente, estavam de acordo e auxiliaram-se mutuamente a carregar os robôs para os helicópteros, iates, lanchas... Em dez minutos, os sete robôs, agora inativos, como ferro-velho, estavam a bordo dos veículos dos sete “sortudos”.

O iate do sul-americano foi o primeiro a partir, mas logo foi ultrapassado por duas lanchas, que rumaram para o sul. Os dois helicópteros subiram barulhentamente...

Número Um passou o braço pelos ombros de Brigitte e acomodou-se apoiado confortavelmente contra uma palmeira.

— Bem... estou aguardando o seu golpe de mágica, “Baby”.

— Acaso não está bem aqui, contemplando as estrelas... e comigo nos braços?

— É verdade. Vejo que nos deixaram duas lanchas, que devem ser dos donos dos robôs. Isto significa que podemos voltar ao continente e... separar-nos mais uma vez.

— Mas somente até o nosso encontro em Paris — recordou Brigitte.

— Claro. E então?

— Está bem. Vamos até a casa. Espero que as instruções de Richard Adams sirvam para alguma coisa.

— Do que está falando?

— Você já esqueceu que cada um desses robôs leva uma carga explosiva dentro, e que pode ser deflagrada por quem os aciona a distância?

— Eu sabia que você estava fingindo!

Uma luz violenta, clara, chegou até eles. Voltaram-se para ver o que era e a casa estava totalmente acesa, como antes do curto-circuito que queimara os fusíveis.

— Será que algum robô está consertando os defeitos?

— Vamos ver — sorriu Brigitte. Estavam a caminho da casa, quando perceberam as explosões distantes: duas no céu e cinco no mar, dispersas. Viram os clarões e logo depois os estampidos chegaram até eles, enquanto os helicópteros destruídos caíam no mar, envoltos em chamas. Em cinco pontos distantes, outros tantos incêndios indicavam as posições dos barcos que carregavam os robôs.

— Explodiram — sussurrou Número Um. — Explodiram todos os sete! Não foram a lugar algum, nem os robôs, nem os homens! Estão agora no fundo do mar...

— Este era seu verdadeiro lugar — disse Brigitte friamente. — Vamos até a casa, querido: parece que alguém se antecipou a nós.

* * *

Richard Adams estava caído sobre os botões de comando. Sua mão fraca, ossuda, amarela, se imobilizara sobre os botões marcados com a palavra: “Explosão.”

A caixa de fusíveis estava aberta e, no solo, viam-se manchas de sangue, certamente de suas feridas.

Sentada, rígida, Margot Stevens tinha os olhos arregalados, já vidrados.

Também Richard Adams estava de olhos abertos, vidrados, e tinha um estranho sorriso nos lábios. Brigitte inclinou-se para ele e passou a mão carinhosamente pelos cabelos brancos revoltos, rebeldes do velho construtor de brinquedos para crianças.

— Compreendo, senhor Adams — murmurou a espiã. — Não é agradável matar os próprios filhos, não é verdade?

— S... s... sim... eu... As... as crianças.

— Não terão jamais este brinquedo. Pode ficar tranqüilo. Vamos levá-lo para...

Mas já era inútil tentar qualquer coisa para salvar a vida de Adams. Chegara ao limite de suas forças e aquele esforço final, com duas balas nas costas, havia sido demais. Bem merecia o descanso eterno da morte.

Levava consigo o segredo dos assassinos invencíveis, que somente ele próprio conseguira vencer.

 

A festa foi um êxito completo. Na verdade, não pudera realizá-la na noite de Ano NOvo, no último dia de 1967, mas os amigos de Brigitte Montfort estavam bem com ela em qualquer noite do ano.

O quadro, finalmente terminado por Samuel Dodecabro, havia sido o centro e tema de todas as conversas. Todos o haviam admirado, e o bom Dodecabro não cabia em si de contente com mais sete encomendas de retratos. Uma delas era de Frank Minello, justamente o que falava sempre mais alto, perseguindo Brigitte por todo o apartamento, ante o olhar enciumado de Mike Grogan. Também este queria um quadro pintado por Dodecabro.

O pintor estava justamente se despedindo da espiã, no vestíbulo, retendo uma das douradas mãos entre as suas.

— Eu não sei... Bem, você sabe que não sou homem de falar muito, nem de fazer elogios. Quero dizer...

— Eu entendo, Samuel — sorriu “Baby”. — Se quer continuar bem comigo, somente precisa pintar, tão bem quanto a mim, aos meus amigos. E isto é fácil para você.

Dodecabro partiu, os olhos brilhantes. Era o êxito. Ali estava ao seu alcance!

— Nós também já vamos — disse Frank Minello, aborrecido.

Brigitte encarou os dois, Mike Grogan e o jornalista esportivo.

— Vão os dois juntos? — estranhou.

— Fizemos um pacto.

— Que pacto?

— Embriagar-nos e chorar juntos o nosso amor impossível.

Brigitte pôs-se a rir e os despediu com beijos que fizeram brilhar os olhos de Minello e Grogan. Suspirou, entrou no grandioso living e olhou para Peggy, que recolhia as bandejas, copos, garrafas...

— Deixa isso, Peggy. Amanhã terá tempo de sobra para fazê-lo.

— Sim, miss Montfort... Eu esqueci que vai partir no avião das dez da manhã.

A campainha da porta soou.

— Irei abrir, com sua permissão.

Peggy voltou acompanhando um personagem emburrado, sombrio, cujos olhinhos astutos pareciam evitar os olhos imensos e belos da espiã.

— Oh, mister Pitzer — disse esta, friamente. — Deseja algo?

— O assunto dos robôs se... resolveu de uma maneira... desconhecida, Brigitte. Ninguém sobrou para contar a história. Não encontramos nenhum robô, mas recebemos um chamado pelo rádio, feito do helicóptero que levava o nosso agente.

— Não sei do que está falando — mentiu calmamente Brigitte.

— O chamado dizia que a agente “Baby” tinha razão na questão dos robôs, que aquilo era... uma monstruosidade.

— É verdade que falaram assim? Fico contente em saber, Mr. Pitzer. Mas, por favor, seja breve. Não posso perder tempo com o senhor. Nem um segundo.

— Bem, somente vim comunicar que... refletiram sobre o assunto na Central. Em resumo, fui incumbido de solicitar que você retome a trabalhar Conosco.

— Deram-me razão?

— Parece que sim — grunhiu Charles Pitzer.

— Você também reconhece que eu estava certa?

— Mesmo que não acredite, eu sempre concordei com você neste caso. Gostaria de poder informar-lhe como terminou o caso, mas ninguém sabe, Navios da Guarda Costeira, encontraram uma ilha, com lanchas queimadas, naufragadas. E uma casa cheia de cadáveres, onde havia um painel de comando a distância. Mas todos estavam mortos. Todos os que tinham parte no negócio morreram.

— Lamento sinceramente — disse sorrindo com ironia a espiã mais astuta do mundo. — Isto servirá para valorizar os magníficos trabalhos de “Baby”.

— Bem... o caso é que o agente que estava no helicóptero disse em seu último chamado que a agente “Baby” estava naquela ilha...

— Que absurdo, tio Charlie!

— Não estava lá?

— Claro que não — replicou cinicamente a espiã.

— Hum... é uma pena que não possamos ter um relatório completo do que houve.

— Sim, é uma pena. Aceita uma taça de champanha, tio Charlie?

— Mas você disse que não podia me conceder nem um segundo.

— Agora posso. Bem... champanha com cereja, claro.

— Com cereja — sorriu Pitzer.

— Quer nos servir, Peggy? Bem, tio Charlie, vou passar uns dias fora, de férias. Não vou contar onde, porque quero descansar uma semana e...

— Está cansada de quê? — disse maliciosamente Pitzer.

— De nada... É que tenho um encontro muito importante para mim. De modo que tomaremos esta taça e... até a vista!

 

A belíssima passageira do vôo 715 da “Pan-Am”, já desembaraçada da alfândega, percorreu ligeira o caminho que levava à saída do aeroporto de Orly. Trazia somente uma maleta, que não deixara ninguém carregar. E um ursinho de pelúcia, de grandes olhos verdes e sorriso simpático. Era toda a sua bagagem. Para que levar mais a Paris? Lá se encontram milhares de modelos de roupas, em milhares de vitrinas.

À saída do enorme edifício estava um imponente carro-esporte, um Alfa-Romeu de cor vermelho-cereja. E junto ao carro, um homem imponente, atlético, viril, de ombros largos, expressão séria, dura. Um homem de olhos negros e cabelos cor de cobre, de mãos grandes com nervos salientes e dedos de artista.

Mas este chofer de táxi era muito abusado, caradura, porque, em lugar de dar a partida no carro, abraçou a belíssima passageira e beijou-a profunda e demoradamente nos lábios.

Depois, entreolharam-se e o homem, acariciando-lhe os cabelos, murmurou:

— Não é preciso falar muito, não?

— Não. Não somos do tipo que fala, fala e fala... Mas alguém quer dizer-lhe alguma coisa.

— Quem? — sorriu ele.

A belíssima, deslumbrante jovem de olhos azuis deitou no colo o ursinho “Nicanor”, que disse:

— “Eu te amo.”

 

 

Brigitte “Baby” Montfort cravou a faca rio ventre do ursinho de pelúcia. Mas com grandes cuidados para não destroçá-lo. A ponta da faca foi introduzida cautelosamente pelo baixo-ventre de “Nicanor”, buscando a costura escondida, até que a achou. Brigitte tratou de cortar os fios da costura e, aos poucos, o simpático ursinho que sabia dizer “Eu te amo”, foi deixando à mostra o seu conteúdo: recheio de algodão e uma leve armação de madeira, que servia de esqueleto ao brinquedo.

No meio de tudo isto, protegido por uma caixinha retangular de aço, o mecanismo que fazia o ursinho dizer “Eu te amo”: um sólido e pequeno disco negro que, ao ser inclinado o brinquedo, girava, recebendo a pressão de uma agulha que, como num pick-up de vitrola, fazia surgir o som num pequeno alto-falante. Um método engenhoso, mas comum no mundo inteiro, principalmente na fabricação de bonecas.

Sempre cautelosamente, Brigitte extraiu da barriga do ursinho aquele conjunto de peças, e o colocou sobre a mesa. Examinou o destripado “Nicanor” mas, como já esperava, nada mais encontrou dentro dele. Em compensação, encontrou o que procurava no conjunto de peças que transformavam o animalzinho em falante.

Ali, podia-se ler claramente gravado no leve metal da base de sustentação do conjunto:

 

LUCKY TOY, Ltd.

New York

N.Y. - USA

 

— Já encontramos, Peggy — disse Brigitte.

A empregada da espiã concordou com um gesto de cabeça. Se no princípio havia ficado surpreendida com as atitudes de Brigitte, agora entendia perfeitamente suas intenções.

— Agora, temos que encontrar essa casa chamada “Lucky Toy”, miss Montfort.

— Espero que não seja muito difícil. Há muitas maneiras de fazê-lo, mas o método mais seguro é dar uma espiada na lista telefônica. Quer me fazer o favor de trazê-la?

Peggy saiu atrás da lista telefônica. “Cícero” acompanhava com grande atenção a operação de estripamento do ursinho, pondo de banda comicamente sua cabecinha de rato. Fechou os olhinhos brilhantes quando a mão de Brigitte acariciou suas orelhas, ganindo baixinho de prazer.

— Está vendo, “Cícero”, de que modo tão simples pode-se conseguir uma pista... quando quem a fornece é um entendido em espionagem? Será que você gostaria de ser espião, “Cícero”?

O cachorrinho latiu agudamente, todo estremecido de prazer.

Peggy logo voltou com a grossa lista amarela da cidade de Nova Iorque e, enquanto Brigitte folheava procurando a palavra toy, ou seja, brinquedo, ficou examinando distraída o mecanismo do ursinho.

Brigitte levou apenas um minuto para encontrar o nome daquele fabricante de brinquedos. A “Lucky Toy Ltd.” ficava na rua Este 138, no Bronx. Isto é, exatamente na ponta deste bairro que fica entre os rios Harlem e East River.

— Foi fácil, não é mesmo? — disse Peggy.

— Acredita? — disse sorrindo Brigitte.

— Bem... creio que sim... não é?

— Não muito, esta é que é a verdade — suspirou Brigitte. — Preferia não haver encontrado esta pista, Peggy.

— Mas aí estaria completamente desorientada...

— No momento, sim. Mas isto, que nos pareceu tão fácil, acabou de me convencer de que eles têm efetivamente prisioneiro um grande amigo meu. A um amigo muito querido. Não me enganaram.

— Quem é? Qual deles é?

— Não estou muito certa. Mas quero convencer-me disto, Peggy. Além do mais, se é meu amigo, como demonstrou ao enviar-me o ursinho, seu nome importa muito pouco.

— Creio que não deve ser um amigo comum, miss Montfort. Ele conhecia o seu verdadeiro nome, e seu endereço em Nova Iorque.

— Não — murmurou Brigitte. — Não é um amigo comum, Peggy. E o mais querido de todos. O mais solitário, o mais triste, o mais decepcionado. Mas, assim mesmo, continua sendo o espião número um de todo o mundo.

— Mas, não, miss Montfort, o título número um lhe pertence.

— Ele é homem, e eu sou mulher. Eu sou a primeira do grupo feminino, e uma das primeiras do conjunto total. Mas, considero-o melhor que eu. Deve ter passado por muitos maus pedaços... e certamente, para obrigá-lo a dizer meu nome, para obrigá-lo a delatar-me, devem ter praticado mil barbaridades com ele, antes de aplicarem drogas, única maneira de conseguir uma delação de sua parte. Espero — e sua voz ficou levemente embargada — espero que ainda possa fazer alguma coisa por ele. E se não for assim.

Calou-se, ficando pensativa. Peggy aguardou em vão que ela concluísse a frase e, não resistindo à curiosidade, perguntou:

— O que fará, se não conseguir fazer mais nada por ele?

A espiã mais bela do mundo tinha agora os olhos como se estivessem congelados, frios; seu rosto habitualmente suave contraía-se numa expressão duríssima.

— Se eles o mataram, nenhum escapará para vangloriar-se disso.

— Entendo — disse Peggy, vivamente impressionada.

— Está melhor agora? — disso Brigitte disfarçando num sorriso.

— Sim. Mas a cabeça me dói...

— Chame a garagem e diga que preparem meu carro grande. O Mustang está bem. Depois, trata de arrumar minha bagagem noturna para missões sem tempo de retorno.

— Sem... tempo de retorno?

— Não sei quando voltarei... se voltar. E outra coisa, Peggy: tome um táxi, dê algumas voltas pela cidade e depois tome outro. Em seguida, mais dois, sempre procurando dar voltas, para despistar um provável perseguidor. Finalmente, alugue um carro e saia de Nova Iorque por alguns dias. Procure um lugar tranqüilo...

— Sua cabana junto ao lago?

— Não! Pode ser que já a tenham descoberto. Procure uma cidade o mais longe possível de Nova Iorque. Como por exemplo, Niagara Falls. É um lugar muito bonito — disse amavelmente — e não é obrigatório estar em lua-de-mel para conhecê-lo. Outra coisa: antes de regressar, telefone para cá. Ou para o “Morning News”, o meu jornal. E preste atenção: se não for eu mesma a atender ao telefone, fique por lá. E, todos os dias, telefone novamente. Só deve voltar quando eu mesma te disser que tudo já terminou, entendeu?

— Sim, miss Montfort. Mas... e quanto à sua segurança?

— A minha? — sorriu friamente a espiã. — Bem... acho melhor que você comece a ficar com pena dos senhores da Loja Lucky Toy, não de mim. E trate de fazer aquilo que lhe disse.

Rapidamente, trataram dos preparativos. Não era de duvidar que de um momento para o outro surgisse algum robô e nem sempre se podia confiar na sorte. O primeiro round fora vencido por Alexandre, mas no segundo fora Brigitte a vencedora. Já o terceiro... qualquer um dos dois podia vencer, e não convinha perder mais tempo. A qualquer momento, mesmo a mais afortunada das pessoas podia ver a sorte mudar...

Deste modo, enquanto Peggy chamava a garagem e procurava acondicionar na maleta o equipamento noturno que solicitara, a espiã dedicou-se a arrumar o conteúdo de sua fascinante maletinha vermelha, de florzinhas coloridas. Terminado o trabalho, Brigitte tratou de vestir-se, enquanto Peggy providenciava sua própria bagagem de emergência.

Brigitte foi até a porta do quarto de Peggy.

— Precisa de algum dinheiro?

— Não, miss Montfort. Sou tão bem paga que...

— Está certo, então. Não diga a ninguém para onde vai e não fale com ninguém. Espero que compreenda, Peggy: com ninguém mesmo. Ninguém deve saber onde você vai passar estes dias. É sua própria vida que está em jogo.

— Está bem, miss Montfort. Não... não direi... que vou para...

— Não! Nem a mim deve dizer para onde vai!

— Mas não disse que eu devia ir para Niagara Falis...?

— Não vá para lá. Vá a qualquer lugar, menos para lá. Eu não quero saber. Se for capturada, é bem possível que me dêem a droga também, de modo que prefiro nem saber aonde você vai.

— Em... entendo... sim...

— Ótimo! Está pronta?

— Estou.

— Pois então vamos embora. A propósito, leve o “Cícero” e aquele revólver que lhe dei.

— Já está na... maleta.

— Tire-o de lá. Vá até o banheiro e coloque-o preso à coxa, como eu.

Levantou a saia, deixando ver a pequena automática de cabo de madrepérola, presa à coxa esquerda por meio de uma larga tira de esparadrapo cor de carne. Acompanhou Peggy até o banheiro e ajudou-a na operação. Examinou-a com um ar aprovador e voltaram até o quarto desta, que fechou a mala. Brigitte, então, encaminhou-se para a porta.

Pouco depois, estavam na rua. Peggy tomou um táxi, carregando “Cícero”, que gania. A agente “Baby” dirigiu-se para a garagem subterrânea particular dos moradores do “Cristal Building”.

Depois de algumas brincadeiras com os empregados da garagem, todos enamorados da “alucinante miss Montfort”, ela saiu para a rua, bem instalada no seu imponente Mustang.

Contra todos os prognósticos, aquela mulherzinha belíssima estava disposta a dar início ao terceiro round contra os assassinos, que pareciam invencíveis.

 

A loja de brinquedos “Lucky Toy” ficava situada na rua 138 Este, no bairro do Bronx. Era uma loja bastante elegante, bem sortida, com todas as espécies de brinquedos: grandes vitrinas bem arrumadas, como aquela do macaco de bicicleta, pedalando briosamente, a cabeça movimentando incessante de um lado para outro. Viam-se pequenos carrosséis, centenas de soldadinhos de chumbo, centenas de índios, revólveres, armas espaciais, luvas de boxe, bastões de basebol, máscaras protetoras, bolas de rugby e futebol, bicicletas... um pouco de tudo.

Afastada o máximo possível da loja de brinquedos, a agente “Baby” estudava atentamente a fachada, e todas as pessoas que entrassem ou saíssem de “Lucky Toy”. Para isto, usava um binóculo potentíssimo, que aproximava as pessoas a ponto de colocá-las junto do carro. Casais com crianças, mamães com crianças, papais com crianças... As crianças saíam de olhos arregalados, carregando entusiasmadas os pacotes, cheias de ilusão! Um grupo de rapazes, que estavam discutindo diante da vitrina há mais ou menos quinze minutos, entrou, para logo sair carregando bastões de basebol e máscaras de proteção, sob o olhar invejoso dos colegas. Entraram a seguir dois casais sem filhos e três homens sozinhos... Mas todos tornaram a sair, carregando embrulhos.

Quase às duas horas da tarde, a espiã tratou de comer às pressas alguns sanduíches e tomou um pouco de café da garrafa térmica que trazia no carro. Às cinco da tarde, talvez um pouco mais, os empregados da loja começaram a se retirar. A última pessoa a sair, a qual fechou a porta, foi uma linda loura de bonitos olhos claros. Possivelmente, era a proprietária, ou gerente do negócio, talvez. Às cinco e meia, aparentemente, era mais uma loja fechada, para desgosto de algumas crianças que passavam por ali, detendo-se diante das vitrinas abarrotadas de brinquedos. Pouco depois das seis e meia, já era noite fechada. Na rua brilhava o anúncio luminoso, a cores, que se apagava e acendia lançando no espaço o nome da loja:

“Lucky Toy” em vermelho, “Lucky Toy” em verde, “Lucky Toy” em azul...

Depois de estudar cautelosamente o terreno que circundava a loja, “Baby” tratou de mudar de roupa dentro do carro, com grande habilidade. Em menos de cinco minutos, havia substituído seu bonito vestido por uma malha negra que lhe cobria todo o corpo, bem colante, mostrando suas belas curvas. Escondeu o vestido no banco traseiro, deu uma última olhada ao conteúdo da maleta de mão e empunhou o volante, O Mustang deslizou silenciosamente, passando diante da loja, para logo desaparecer na esquina seguinte. Finalmente, o carro parou quase no final do beco. Se não se havia enganado na primeira inspeção, podia alcançar o meio do conjunto da loja entrando pelo jardim daquela casa vizinha. O jardim se estendia por detrás do edifício de dois andares da loja, pelo que podia presumir que aquele caminho fosse conveniente.

Pulou a cerca com grande facilidade, de olho na casa, que estava de luz acesa. Era um risco muito grande que estava correndo, pois se os moradores a vissem chamariam a polícia... e seria o cúmulo se a agente “Baby” tivesse de desistir de seus planos por motivo tão vulgar quanto uma acusação de roubo.

Mas não foi assim e, em poucos segundos, estava na parte traseira, de onde, realmente, o jardim se prolongava até o centro do conjunto. Ao fundo havia uma parede de quase três metros de altura, obstáculo mais do que respeitável para ser vencido de um salto... Precisou de quatro tentativas para conseguir pendurar-se na borda da parede de tijolos com uma só mão, enquanto segurava a maleta com a outra. Prendeu a alça desta com os dentes para poder usar as duas mãos e, de um só impulso, conseguiu ultrapassar o muro, com a graça e agilidade de uma gatinha.

Estava, finalmente, no meio do conjunto. E dali foi fácil orientar-se até a “Lucky Toy” onde, muito provavelmente, estava prisioneiro o amigo que lhe enviara “Nicanor”. Desconfiou logo da existência de um porão, ou de aposentos isolados... Um lugar em que se pudesse torturar e matar impunemente uma pessoa.

O certo era que tinha recebido aquela pista com o nome de “Lucky Toy”, e naturalmente porque naquele lugar aconteciam coisas muito interessantes.

Uma fábrica de brinquedos... E os robôs não eram brinquedos? Brinquedos monstruosos, diabólicos, é verdade. Se haviam conseguido fabricar um ursinho que dizia “Eu te amo”, bonecas que caminhavam sozinhas e que também diziam frases inteiras de carinho, o que haveria de mais na idéia de que pudessem também fabricar aqueles assassinos perigosos e impassíveis? E por acaso Alexandre não podia ser considerado um brinquedo?

Depois de saltar outros dois muros, mais baixos que os anteriores, encontrou-se diante de um quarto, mais alto que o primeiro, do outro lado do qual, se não estava enganada, encontraria a parte traseira da loja. Teve que fazer verdadeiras acrobacias para alcançar o topo daquele muro. Por sorte, encontrou por ali algumas capas de lona usadas para cobrir automóveis, as quais empilhou até conseguir uma plataforma macia e circular de mais ou menos um metro de altura. Dali, então, depois de várias tentativas frustradas, conseguiu alcançar o alto do muro, de onde saltou rapidamente. Caiu do outro lado, em silêncio, sempre com a perícia de uma gatinha negra.

Havia um grande pátio, cheio de caixas enormes que deviam conter brinquedos, prontos a serem despachados para vários pontos do país. Ao fundo, via-se uma grande porta de madeira, de uma só peça, que se deslocava para a direita sobre rodas que resvalavam sobre trilhos. Abriu-a o suficiente para poder esgueirar-se até o interior do que lhe pareceu um armazém, ou uma oficina.

A luz de sua pequena lanterna logo brilhou, em rápidos lampejos, projetando-se nervosamente para todos os lados. Nada de mais. Era um armazém comum e se viam brinquedos em construção, outros em conserto, materiais variados, uma grande pilha de discos-voadores.

Mais além, via-se outra porta de duas folhas, não muito grande. Aproximou-se cautelosamente dela, no mais absoluto silêncio.

Estava quase a abri-la, quando ouviu o som de passos pesados, vindos do lado oposto, aproximando-se. Movimentou-se rapidamente, ficando de costas grudadas na parede. Inclinou-se um pouco, deixando a maleta no chão, e empunhou o revólver, apagando a lanterna.

A porta abriu-se e as pisadas passaram a soar ali dentro. Os passos detiveram-se a menos de duas jardas de Brigitte Montfort, no escuro. Ouviu o rumor de uma mão roçando a parede, tateando na escuridão.

A luz acendeu instantaneamente no armazém, e a espiã viu-se frente a um homem. Sua boca abriu-se de espanto e surpresa, ao ver diante de seus olhos aquela mulher magnífica, completamente vestida de negro, de malha colada ao corpo.

Cloc!

O revólver bateu secamente na sua testa e o homem tombou para trás, cambaleando. O segundo golpe ressoou surdamente, aplicado no lado do pescoço. E o homem caiu desfalecido, junto aos pés calçados de mocassins negros de Brigitte.

A espiã mais perigosa do mundo utilizou um rolo de arame de armação de brinquedos para amarrar solidamente as mãos e os pés do homem. Depois, tirou de sua maleta um rolo de esparadrapo cor de carne, cortou um pedaço e tapou a boca do vigia desmaiado.

Deu um último olhar em torno, pelas pilhas e caixas de brinquedos, acendeu novamente a pequena lanterna e saiu do armazém por um amplo corredor para o qual davam várias portas.

Abriu-as uma a uma, cautelosamente, mas não encontrou nada de interessante. O único ponto ao qual dedicou mais a atenção foi o escritório. Viu sobre a mesa o monte de etiquetas que pareciam bandeiras dos Estados Unidos e não pôde deixar de sorrir, ao entender como havia chegado às suas mãos aquele lindo ursinho que tivera de estripar.

Examinou uma das etiquetas em branco e escreveu, “Um ursinho Nicanor”.

Depois, escreveu atrás o endereço: Brigitte Montfort, “Cristal Building”, Manhattan, Nova York, N.Y.

Saiu do escritório, subiu de volta o corredor e, pouco depois, encontrava-se no armazém, inclinada, a examinar o vigia desmaiado, mantendo a luz da lanterna em seus olhos. Foi preciso sacudi-lo umas quantas vezes para que voltasse a si. O homem abriu os olhos, mas tornou a fechá-los, cego pela luz da lanterna.

— Estou procurando um homem — disse friamente a espiã — e quero saber onde está, em menos de um minuto, compreendeu?

O homem assentiu com a cabeça e Brigitte arrancou a tira de esparadrapo de um puxão, fazendo-o gemer de dor.

— Muito bem, agora comece a falar. Onde está homem?

— Não... não sei do que está falando — gaguejou o vigia.

— Pois vou dizer-lhe o que vai acontecer se antes de um minuto não conseguir encontrar meu amigo. Em primeiro lugar, arrancarei suas orelhas, depois, apesar da língua não parecer saber outra coisa a não ser dizer mentiras, eu a arrancarei, porque não gosto de mentiras. E finalmente, já que seus olhos parecem também não servir para grande coisa, eu os furarei com meu punhal. Já passou meio minuto... e juro que não estou brincando.

O homem empalideceu violentamente, em contraste com o sangue que lhe escorria pela cara, brotando da ferida que tinha na testa, provocada pelo primeiro golpe dado por Brigitte com o seu pequeno revólver.

— Ele está... ele está aí embaixo, no porão...

— Já salvou suas orelhas. Por onde se entra na o porão?

— Existe... existe um alçapão aí no armazém.

— Onde? Como se abre?

— É difícil... de explicar...

Um brilho irônico passou pelos olhos azuis da espiã. Mas o homem não pôde vê-lo, porque estava ofuscado pela luz da lanterna e não conseguia distinguir nada mais além daquele raio de luz que o cegava.

— Certo — disse em tom cordial Brigitte. — já que é tão difícil explicar, você mesmo vai abrir alçapão, está bem?

— Sim... sim...

Brigitte desenrolou o arame que prendia os pés do homem.

— Ponha-se de pé e caminhe para lá.

O homem pôs-se de pé com dificuldade e pôs-se a caminho. Afastou umas caixas e bateu com o pé no chão uma vez.

— É aqui. Mas se não me soltar minhas mãos, não poderei abrir.

— Oh, é verdade...

Desatou-lhe as mãos e o homem se inclinou, tateando no chão por alguns segundos até levantar o alçapão. O raio de luz da lanterna desviou-se uma fração de segundo, perfurando aquela impenetrável escuridão. Conseguiu vislumbrar os degraus de madeira...

Ouviu então o homem movimentar-se, bruscamente. Era um rumor que já ouvira antes inúmeras vezes, toda vez que alguém tentava atacá-la no escuro.

Sua única reação foi lançar a mão esquerda para diante, rígida, num espantoso golpe de caratê que acertou em cheio o plexo solar do vigia. Foi um golpe violentíssimo, bruto, quase cruel. Já esperava por aquela reação e havia calculado previamente aquele golpe, avaliando a distância para não haver possibilidade de erro.

Focou a lanterna no vigia. Ele estava caído junto ao alçapão, encolhido, tossindo espasmodicamente. Um ligeiro empurrão “amável” fez com que despencasse pelos degraus abaixo.

O barulho de sua queda foi enorme naquele lugar silencioso e escuro e, enquanto o vigia rolava escada abaixo, “Baby” saltou para o interior do alçapão, fechando a tampa sobre si, encerrando-se dentro. Deixou-se estar acocorada no alto do lanço de escadas, ouvindo atentamente a queda estrondosa do vigia.

Finalmente, tudo voltou ao silêncio.

Nem uma voz, nem um ruído, nem uma luz... Será que não havia ninguém por ali? Tinha atirado o vigia escadas abaixo para testar se aquilo era uma armadilha, para ver se apenas acabasse de entrar não atirariam sobre ela. Mas, se ninguém disparava contra o vigia que fizera um barulho tremendo, nem disparava agora, nem acendia as luzes...

Começou a descer lentamente, no mais completo silêncio. Chegou embaixo, esbarrou no corpo do vigia.

Nada.

Silêncio.

— Número Um — chamou. — Está aqui, Número Um?

Silêncio.

Acendeu novamente a lanterna. Viu duas mesas de trabalho, de madeira, montes de armações de arame; depois, um amontoado de cabeças de manequins, braços, pernas, troncos... um par de manequins quase terminados...

— Vejo que é incrivelmente valente, miss Montfort — disse a voz de Alexandre atrás dela.

Voltou-se velozmente, levantando o revólver e focando a lanterna em direção à voz. Viu um manequim que se aproximava dela, e retrocedeu; um passo.

— É inútil — disse a mesma voz, agora já de outro ponto — não poderá escapar.

Voltou-se novamente e tornou a iluminar naquela direção. Outro manequim estava se aproximando. Girou para outro lado e viu outro, e mais outro... Estremeceu ao perceber seis manequins comuns, dos que se vêem nas vitrinas. Alguns nem ao menos estavam terminados: faltava dar-lhes um toque de cor e vesti-los como homens normais. Sua estrutura brilhava à luz da lanterna e Brigitte voltou-se ora para um, ora para outro, rapidamente, fazendo mira, mas logo desistiu de disparar. Para quê? Não podia tampouco retroceder, ou adiantar-se, porque o círculo não podia ser quebrado...

— Não tenha medo, miss Montfort disse um deles. — Desta vez o plano não consiste cm matá-la. Nós lhe reservamos algo muito melhor.

— O quê? — perguntou Brigitte.

— É um plano muito bom. Até o momento, foi a única pessoa capaz de vencer um de nós. Isto exige um... intenso e profundo estudo de sua mente, de sua personalidade. Tem uma mente perfeita, agilíssima. Não se poderia imaginar que saísse viva da visita de Alexandre. Mas, sem dúvida, foi isto que aconteceu, e é preciso render-se às evidências. Foi pura sorte... ou capacidade de luta, agente “Baby”?

— Um pouco das duas.

— Sim, realmente, deve ser assim. De qualquer maneira, seu amigo não nos enganou: está provado que é perigosíssima.

— Onde está ele?

— Seu amigo? Ainda está vivo, se isto a consola. Na realidade, estamos convencidos de que temos como prisioneiros duas pessoas extraordinariamente bem dotadas de inteligência, astúcia, força física, valentia... Chegamos à conclusão de que merecem uma morte muito especial.

— Vão torturar-nos?

— Não, não! Vamos mantê-los vivos para... fazer algumas experiências. Somente isto, miss Montfort. Até logo.

— Será que vamos ver-nos...?

Calou-se bruscamente. Diante dela, um dos manequins havia levantado o braço esquerdo e ouvia-se agora um fino chiado de gás escapando. Brigitte ainda se lançou contra um dos manequins, tentando derrubá-lo com um empurrão, mas o robô permaneceu ali como uma viga cravada no solo, de pé, sem estremecer. Desta vez não havia nenhum peitoril para desequilibrá-lo. A espiã pensou em atirar, mas concluiu que os robôs poderiam matá-la imediatamente.

Caiu de joelhos, já quase desmaiada.

— Eu... eu... acabarei com... todos... com todos vocês...

E, antes de desmaiar definitivamente, ainda pode ouvir as risadas zombeteiras dos seis robôs à sua volta.

 

Ofuscada pela luz que inundava o quarto, pestanejou várias vezes. Ficou olhando para o teto, por um momento. Depois, já refeita, procurou sentar-se na cama. Uma cama larga, confortável, ricamente decorada.

A casa em que se encontrava aparentava riqueza. Uma riqueza correta, elegante, sóbria. O aposento era espaçoso, com banheiro privado. Um grande armário embutido, duas poltronas muito cômodas, tapete felpudo e uma janela larga que abria para a noite silenciosa.

Mas ali estava também Alexandre, seu primeiro conhecimento em matéria de robôs. O mesmo que havia assistido ao baile de máscaras, em sua armadura metálica, seus quatro olhos, um em cada lado da cabeçorra quadrada. Estava em pé, frente à porta do quarto, imóvel e indiferente como um monte de sucata disposta mais ou menos em forma humana. Os manequins, certamente, eram muito mais perfeitos e menos horripilantes. Ao menos, pareciam pessoas. Mas aquele não. Aquele, parecia exatamente o que era, e era o que parecia: um robô clássico, sem nenhuma aparência humana. Era seu primeiro inimigo, o que lhe recitara versos em japonês.

Brigitte pôs-se em pé, encarando desconfiada o robô, que permanecia silencioso, como se estivesse descansando.

Verificou prontamente que estava desarmada e que sua fantástica maleta vermelha de florinhas havia desaparecido. Aproximou-se da janela e deu uma olhada para fora. Não viu nada... apenas nuvens pesadas, como rendilhadas de prata, impedindo a lua de iluminar. Mas, depois de abrir uma das janelas, ouviu claramente o rumor do mar. Inclinou-se o máximo para fora e teve uma surpresa ao ver terra firme logo abaixo; não estava em lugar alto, mas no andar térreo de uma casa de praia.

Pareciam estar muito seguros quanto ao fato de “Baby” não poder escapulir dali.

Voltou a olhar desconfiada para o robô, enquanto se encaminhava para o banheiro. Meteu a cabeça debaixo do jorro de água fria da torneira, buscando alívio para a sensação de peso que sentia, devido aos efeitos do gás que respirara e a fizera desmaiar.

Enxugou vigorosamente a cabeça, penteou descuidadamente seus negros cabelos e voltou ao quarto. Alexandre continuava ali, indiferente a tudo.

De cenho franzido, Brigitte aproximou-se dele e tocou de leve no que parecia ser o seu peito, com a ponta dos dedos. Não ocorreu nenhuma descarga elétrica.

Examinou o olho frontal, que não passava de uma lente de câmara de televisão. Estava funcionando ou não? Decidiu experimentar. Passou pelo robô, abriu a porta do dormitório e saiu para o amplo corredor, recoberto de tapetes e vasos com plantas tropicais, de verdor exuberante. No fundo do corredor havia uma porta-janela que abria para o jardim.

Encaminhou-se para lá... e subitamente estacou ao ouvir os passos do robô, que saía do dormitório. O robô parou ao mesmo tempo em que ela. E continuou a segui-la no momento exato em que ela reiniciou sua caminhada em direção à porta que dava para o jardim. Os passos pesados do robô eram um tétrico acompanhamento dos seus pela silenciosa mansão, que aparentava ser enorme, luxuosa e alegre.

Abriu a porta-janela e saiu. Um ar úmido e frio a envolveu, gelando sua fina malha negra, colante. Agora podia ver o mar, próximo, estourando em ondas prateadas, rebrilhando ao luar, pois finalmente as nuvens cerradas haviam se dispersado.

Alexandre saíra atrás dela, estacando imóvel junto a um canteiro de hortênsias.

— Onde estamos? — perguntou Brigitte.

— Em uma ilha — respondeu laconicamente o robô.

— Que ilha?

— Não posso dizê-lo.

Brigitte concordou com a cabeça. A voz do robô não era mais a mesma, não era mais a voz de Alexandre. Era evidente que acontecera uma troca da pessoa encarregada de comandar o robô a distância. Era outro homem que estava nos comandos agora.

— Também não pode me dizer a que distância estamos da costa?

— Se está pensando em escapulir a nado é melhor que desista, miss Montfort. A distância é tamanha, que jamais chegaria a parte alguma... senão ao fundo do mar. E mesmo assim, somente no caso de que eu a deixasse escapar. Por favor, comporte-se. Já sabemos que é perigosa e valente. Não nos obrigue a matá-la agora.

— Quando será o momento?

— Amanhã, talvez depois... ou depois. Depende do dia em que se realize a reunião.

— Que reunião?

— Uma muito importante, a que talvez assistisse, caso não tivesse a má sorte de seguir a pista que a levou até a loja de brinquedos.

— Quer dizer que virá até a ilha um representante da CIA?

— Mais ou menos. Não está com fome?

— Bem... já que falou nisto, acho que sim.

— Pode ir à cozinha e preparar o que desejar. Aliás, pode andar por onde quiser, menos no segundo andar da casa. Espero que não me desobedeça, agente “Baby”.

— Claro que não. Onde fica a cozinha?

Um braço do robô levantou-se, apontando a direção. Brigitte pôs-se a caminhar, olhando para o robô, que ia assinalando em gestos mecânicos o caminho a seguir. Mas, assim que se encontrou dentro da casa, chegou facilmente à cozinha, e o robô teve que apressar os passos, para não perder de vista a espiã internacional.

A cozinha era muito grande, magnificamente equipada com tudo o que era imaginável. A geladeira era quase uma câmara frigorífica, onde havia de tudo. Brigitte entrou e voltou-se para o robô.

— Não vai entrar, Alexandre?

— Não — disse ele rindo. — Não gosto do frio... e detestaria ficar trancado aí dentro.

— Você é muito desconfiado — disse rindo também Brigitte.

— E você é bastante sabida. Apesar do frio não me afetar, prefiro esperá-la aqui mesmo.

— E quem lhe garante que eu não me tranque aqui dentro? — sugeriu ela.

— Pois pode fazê-lo. Dizem que as pessoas que morrem de frio ficam com um estranho sorriso nos lábios. Seria interessante ver seu sorriso congelado, miss Montfort.

Brigitte resmungou qualquer coisa em resposta e tratou de procurar o que comer.

— Que horas são, Alexandre? — disse em voz alta.

— Nove e meia da noite.

— Suponho que ainda do mesmo dia em que me apanharam no porão da loja de brinquedos.

— Sim, é isto mesmo.

— Então deve haver mais ou menos três horas que me capturaram. E neste espaço de tempo fui trazida até a ilha... Como me trouxeram? Em lancha, iate ou helicóptero?

— Se está tentando calcular, pelo tempo levado na viagem, a distância que a separa do continente, perde seu tempo, pois não darei nenhuma informação.

Dentro da câmara frigorífica, Brigitte encolheu os ombros e acabou de arrumar numa bandeja de plástico o que havia escolhido para comer. De passagem, carregou uma garrafa de champanha, cuja marca, se bem que não fosse “Dom Perignon”, safra de 55, era certamente de boa qualidade.

— Quando poderei ver o meu amigo? — perguntou, fechando a grossa porta.

— Quando quiser. Creio que Romeu ficará alegre em vê-la.

— Ele não se chama Romeu. Posso levar-lhe algo para comer?

— Sem dúvida. E do nosso interesse que se encontre em perfeitas condições físicas para a experiência.

Brigitte encarou o “olho” de Alexandre, ao mesmo tempo pensativa e irritada. Encolheu novamente os ombros e dedicou-se com calma a preparar a refeição. Era uma calma que estava longe de ser verdadeira, tamanha a ansiedade em encontrar-se com o homem que chamavam de Romeu e que, segundo suas deduções, só poderia ser o incrível, o solitário, o fabuloso espião Número Um, que morava na ilha de Malta, onde era conhecido pelo nome de Ângelo Tomasini...

Fritou dois bons bifes, quatro ovos na manteiga e meia dúzia de salsichas. Preparou rapidamente um purê de batatas, fez uma salada de cenouras e aipo, e abriu uma lata de suco de tomates, servindo-o em dois lindos copos.

Alexandre estava novamente imóvel. E, na realidade, não precisava mover-se para acompanhar seus movimentos, já que seus quatro olhos eliminavam qualquer dificuldade de visão.

— Quer que eu carregue a bandeja? — ofereceu-se o robô.

— Não, obrigado. Eu mesma a levarei.

Mas ficou paralisada olhando para a porta da cozinha, onde surgira subitamente um novo e inesperado personagem. Inesperado, devido ao seu aspecto insano. Tinha uma cabeleira enorme, toda branca, muito crespa, eriçada como um monte de arame farpado. Trajava uma espécie de macacão esverdeado, sujo, ensebado, rasgado em alguns lugares. Era incrivelmente magro, ossudo, amarelo. Parecia de fato um louco perigoso, de olhar desvairado, perdido...

Trazia um recipiente de alumínio do qual, com a mão, tirava algo de dentro que levava à boca, rindo de prazer. A comida escorria-lhe pelas barbas, ou voavam perdigotos para todos os lados com as risadas que dava.

Mas, ao deparar com Brigitte, deteve-se de súbito e encarou-a com os olhos pulando das órbitas. Olhou para o robô, voltou a fitar Brigitte e, súbito, deixou cair o prato, apontando para a espiã um dedo ensebado, trêmulo.

— Não! — gritou. — Isto não! Não quero faze-lo! Não quero que façam nada...! Não quero fazer isso!

Brigitte recuou ao ver que o homem saltava sobre ela, as mãos ossudas estendidas, crispadas como garras amarelas. Esquivou-se facilmente da primeira investida do louco, deixou a bandeja com a comida sobre o aparador de mármore branco e voltou-se rapidamente, pronta a enfrentar o velho de olhos esbugalhados, que tentava estrangulá-la.

Não havia dúvidas quanto à sua intenção, pois gritava:

— Eu a destruirei! Eu a farei em pedaços! Estraçalharei...!

Não é preciso dizer que isto seria um pouco difícil de conseguir, já que a nossa espiã internacional não estava disposta a deixar-se matar tranqüilamente, ainda mais por um velho maluco. Esquivou-se outra vez, evitando golpeá-lo, mas o ancião de cabelos eriçados como arame farpado saltou com inesperada agilidade e conseguiu segurá-la por um braço, num arranco brutal, rugindo de raiva. Alexandre aproximou-se deles, ordenando com veemência:

— Deixe-a, Adams! Deixe esta mulher em paz ou pagará caro por isto!

Brigitte decidiu-se pela maneira que lhe pareceu menos brutal. Continuava dominando a situação, esquivando-se com facilidade dos golpes do velho louco. Percebeu que, se deixasse Alexandre intervir, o velho sairia muito mais machucado do que se ela o afastasse.

Assim pensando, melhor o fez, não sem lamentar o golpe que aplicou no pescoço do louco, com o canto da mão. O velho deu um grito de dor e caiu de joelhos. Pôs-se a bater no próprio rosto, na boca, nos olhos, no nariz. Murros terríveis, num ataque que fez a espiã estremecer de horror. Mas Brigitte vacilou por uma fração de segundo somente. Deu um passo em direção ao velho, que continuava golpeando-se furiosamente, e o abateu, desmaiado, com um golpe seco, bem na nuca.

Alexandre parou junto ao velho louco de cabelos brancos, agora reduzido à impotência.

— Machucou-se? — perguntou o robô.

— Não — respondeu Brigitte — não precisa preocupar-se.

— A minha preocupação é no sentido de conservá-la nas melhores condições possíveis para a experiência.

— Oh, claro, já havia esquecido — e apontando para o louco: — Quem é ele?

— Não é da sua conta.

— Também não vai me dizer por que queria matar-me?

— Porque pensou que você era um robô.

Brigitte encarou, intrigada, o robô Alexandre. Depois de uns segundos de reflexão, concordou com um gesto de cabeça. Apanhou a bandeja e olhou para ele.

— Não pretende fazer nada pelo velho? — perguntou.

— Logo despertará. E agora, se quiser, posso guiá-la até onde está seu amigo Romeu. Ele não sabe que você está aqui, de modo que terá de agradecer esta agradável surpresa.

— Sim — sorriu Brigitte. — Sem dúvida, ambos lhe ficaremos muito agradecidos, Alexandre. Mas à nossa maneira...

— Diz isso em tom de desafio, espiã “Baby”.

Brigitte olhou para o velho estendido no chão. Convenceu-se de que acabara de salvar-lhe a vida, pois Alexandre evidentemente pretendia matá-lo. Quem seria aquele louco? Ele a teria de fato confundido com um robô?

Olhou duramente para Alexandre.

— Com franqueza, Alexandre — murmurou entre os dentes. — Enquanto eu e meu amigo vivermos, o desafio estará de pé. Acredite-me: vocês não sabem o que estão fazendo ao deixar-nos com vida.

 

Foi uma surpresa realmente agradável, mas não de todo surpreendente. Romeu encarou Brigitte fixamente, mas com olhos inexpressivos. Um lampejo de reconhecimento, para logo se extinguir no olhar embaciado e indiferente, característico dos homens derrotados, extenuados, desmoralizados.

Alexandre guiara a espiã até um quarto próximo, também no andar térreo da casa, onde se encontrava Romeu. Ela entrara, deixando a bandeja de comida sobre a mesa e aproximara-se do homem que jazia na cama, vestido de negro dos pés à cabeça, como ela. Tinha o rosto repleto de marcas das pancadas que recebera e estava quase irreconhecível. Mas Brigitte não precisava ver seu rosto para saber quem era. Bastou segurar-lhe uma das mãos e sentir a forte e terna pressão de seus dedos compridos e morenos.

— Número Um...

Os olhos negros tornaram a fitá-la, inexpressivos.

— Quem é você? Não a conheço.

— Não adianta mais fingir, Número Um. Nós estamos prisioneiros. E receio que desta vez será muito difícil escapar.

— Não a conheço — insistiu o prisioneiro, imóvel no leito.

Brigitte sorriu, inclinou-se e beijou de leve seus lábios feridos, a boca machucada de Número Um.

— Ainda não me reconhece? — murmurou.

Os olhos negros e duros do homem pareceram sorrir.

— Vejo que recebeu o ursinho... Ou não?

— Recebi — sorriu ela. — Mas, depois, houve a visita de um robô ao meu apartamento.

— Perdoe-me, Brigitte. Perdoe-me. Eles me deram drogas. Consegui agüentar todas as torturas, mas quando usaram a droga, não pude resistir.

— Já imaginava isso. Seria a única maneira de fazer Número Um trair sua “Baby”. Tem algum osso quebrado?

— Não.... creio que não... Mas não tenho certeza.

— Pode mover-se?

— Quase nada...

— Terá que dar um jeito, querido — sorriu ela, compreendendo que Número Um estava mentindo. — Mas lentamente. Não convém precipitar os acontecimentos. Já sabe que estão nos poupando para utilizar-nos numa experiência?

— Que experiência?

— Ainda não sei. Mas querem-nos em boas condições físicas, e acredito que vão permitir-me ajudá-lo a recuperar-se. Tenho a impressão de que vão tratar-nos como... como gladiadores, antes de entrar na arena, para enfrentar tigres e leões. É algo assim, querido. Será que pode comer alguma coisa?

— Se me ajudar a levantar, posso... tentar.

Brigitte ajudou Número Um a sentar-se na cama, ambos sempre vigiados pelo olho frontal do robô. Ficou ali, com uma expressão de dor, dobrado em dois, desanimado. Seus largos ombros de atleta pareciam caídos, desabados, e suas mãos tremiam levemente.

— Vamos, Número Um, fique em pé. Deve consegui-lo.

— Já que é assim... se desejam deixar-me novamente forte... como um gladiador, terão que deixar passar alguns dias, Brigitte.

— Eu o ajudo. Temos que chegar ao sofá. A comida está na mesa. Vamos tentar?

Passou o braço de Número Um sobre seus ombros e tentou levantá-lo. As longas e musculosas pernas da espiã quase dobraram, e teve que dar tudo para conseguir erguê-lo e mantê-lo de pé.

— Assim, muito bem. Agora, vamos até a mesa. Devagar. Ninguém está com pressa de morrer, Número Um.

Ajudou-o a chegar até o sofá. Finalmente, Número Um instalou-se ali e olhou inexpressivamente para Alexandre, um monte de aço, matéria plástica e circuitos eletrônicos; imóvel diante deles, máquina fiel que enviava imagens e sons a um lugar desconhecido.

— Brigitte, estou trabalhando para os russos — disse Número Um.

— E que me importa? Eu não, querido.

— Em Viena mataram um russo que...

— Já conheço a história. Suponho que conseguiu seguir alguém dali até Nova Iorque. Conheço toda a história dos robôs. E talvez, melhor do que você. Quanto estão lhe pagando os russos?

— Cem mil dólares.

— Não está mal. Espero que tenha boas amizades na Europa, Número Um. Talvez eu necessite de um emprego por lá. Mas, como sempre, avisará que exijo carta branca para trabalhar.

— Não compreendo... E a CIA?

— Não trabalho mais para ela.

Número Um encarou-a atentamente.

— O que aconteceu?

— Bem, a CIA aceitou uma oferta que não é do meu agrado.

— Referente aos robôs?

— Isto mesmo. Sempre arguto, Número Um. Será capaz de adivinhar o resto?

— Conhecendo-a, acredito que sim. Mas não me obrigue a raciocinar demais. Na realidade, não consigo nem me lembrar direito quem sou eu.

— Eu vou levá-lo até um espelho — sorriu docemente “Baby”. — Embora não ache que a imagem nele refletida possa lhe ajudar. Você está irreconhecível.

— Eu sei... O que aconteceu entre você e a CIA?

— Bem... Não gostei que aceitasse a oferta e apresentei minha demissão irrevogável. Alguém construiu estes robôs, Número Um. São assassinos invencíveis. Já sabe o que aconteceu em Viena. Pois algo semelhante ocorreu em Nova Iorque. Um robô assassinou, diante de cinqüenta testemunhas, um homem chamado Vânio Roczac, húngaro. Era...

— Eu vi tudo. Eu vi pela televisão de circuito fechado. Você estava linda com aquela fantasia de gueixa.

— Muito obrigada — riu Brigitte, acariciando as mãos do espião. — Em resumo: esta gente, que controla os robôs, fez uma proposta à CIA nos seguintes termos: alugar robôs para cometer assassinatos infalíveis, sem riscos de espécie alguma. Por meio milhão de dólares, mandam a qualquer parte um robô, que mata a pessoa indicada e depois é recuperado. No caso das coisas andarem mal, ele explode automaticamente. Isto significa que se pode assassinar quem quiser sem riscos físicos e sem comprometimentos políticos. Um robô jamais dirá nada comprometedor... E será logicamente destruído a distância se as coisas correrem mal durante a fuga.

— Já entendi... A CIA aceitou a oferta?

— Sim.

— É uma atitude bem própria de uma organização que foi capaz de vender o seu melhor homem na Europa. Julgo a CIA capaz disto e de muito mais.

— Não lamente o que já passou. Quer que eu corte o bife?

— Eu... creio que é melhor. Mal posso mover as mãos, Brigitte. Estou fraco. Eles me dão comida, mas me bateram demais. Receio que, quando perceberem que estou inutilizado pelo menos por duas semanas, decidam... parar de sustentar-me.

— Deixe que eles tirem suas próprias conclusões. Não lhes sugira isto... Naturalmente você sabe que este robô nos está... televisionando.

— Sim, eu sei...

— Um pedacinho de bife para o meu nenê...

Número Um sorriu e abriu a boca. Brigitte, sorrindo também, passou a dar-lhe comida na boca. Enquanto Número Um mastigava lentamente, olhou para Alexandre, o vigilante inexorável, atento e imóvel.

Número Um estendeu a mão para o copo de suco de tomate, mas precisou da ajuda de “Baby” para levá-lo aos lábios, pois sua mão tremia muito. Ela continuou a cortar o bife e a ajudá-lo a comer. Foi a única coisa que comeram, fora um pouco de purê de batatas que Número Um engoliu facilmente, sem precisar fazer força com os maxilares. Depois, Brigitte abriu o champanha e serviu duas taças.

— Imagino que essa fraqueza seja fingimento, Número Um — disse subitamente em russo.

— Na maior parte, sim — respondeu ele, também em russo.

— Bem, nesse caso...

— Miss Montfort — disse secamente o robô — quero que falem inglês e somente inglês. Se usarem qualquer outro idioma, eu os matarei imediatamente.

— Não precisa incomodar-se — disse ela, olhando amavelmente para o robô. — Trata-se somente do idioma russo. Você não o fala?

— Quero que conversem em inglês.

— Está bem. Você é quem manda... por enquanto. Verifiquei que não trataram corretamente as feridas do meu amigo. Posso fazê-lo?

— Pode.

— Neste caso, se me devolverem minha maleta...

— Sua maleta, miss Montfort, está bem guardada. Não deve tentar golpes tão manjados de espião. Se precisar de alguma coisa, é só procurar no armário do banheiro.

— Está certo. Vamos Número Um. Eu o ajudo a chegar até a cama.

Número Um se deixou levar, dócil e derrotado. Espreguiçou-se, gemendo como se qualquer movimento fosse doloroso para ele. Brigitte colocou as taças de champanha na mesinha de cabeceira. Serviu um gole a Número Um, sorveu outro e contemplou sorrindo o homem que mais a havia impressionado em toda sua vida.

— Não consigo acreditar que você esteja neste estado, querido — murmurou. — Vamos ver se consigo ajudá-lo.

Tirou as calças e a camisa de jérsei de Número Um. Este ficou apenas de cuecas. Suas pernas quase não haviam sofrido, mas no tronco viam-se nítidas manchas roxas e sanguinolentas dos inúmeros golpes recebidos. Brigitte voltou-se, cravando um duro olhar de reprovação no robô e dirigiu-se em silêncio até o banheiro. Voltou logo, carregada de remédios.

— Conseguirá nadar? — murmurou em russo.

— Sim...

Alexandre acercou-se, pesadamente, e uma das suas mãos metálicas tocou no ombro da espiã.

— Último aviso — disse acremente. — Tratem de falar em inglês. E não percam tempo em sussurrar, pois meus circuitos auditivos são extra-sensíveis.

— Eu somente perguntei se...

— Não importa, já que está feito. Mas advirto-a de que a uma só palavra a mais em russo, ou outra língua além do inglês, terei que matá-los.

Brigitte concordou com a cabeça e olhou para o tronco de Número Um. Parecia não saber por onde começar, mas tratou de pôr mãos à obra. Logo depois, o cheiro intenso de linimento espalhou-se pelo quarto. Ela o encarou sorrindo, para animá-lo. Sabia muito bem que Número Um estava sofrendo quase tanto quanto no momento em que recebera os golpes, mas agüentava firme, pois sabia que os bons efeitos do linimento seriam sensíveis em poucas horas. Brigitte levou ainda quase dez minutos para medicar Número Um, no peito e nas costas. Quando ia começar a tratar do rosto ferido, viu sua expressão crispada, o suor escorrendo...

— Por que não se queixa um pouco? — pro­testou ela. — Estou com a impressão de que você também é um robô.

— Ai! — disse Número Um.

Brigitte quase riu. Inclinou-se e beijou seus lábios inchados.

— Querido — disse. — Quando nos safarmos desta, eu e você temos que nos encontrar de um... modo normal, sem perigos.

— Em Paris? — sugeriu Número Um.

— É bom lugar.

— Dentro de dez dias?

— É um encontro perfeito.

— O otimismo de vocês me diverte — interrompeu o robô, rindo. — Dentro de dez dias ambos não passarão de cadáveres. Ou talvez nem mesmo isso, pois é provável que estejam no ventre de um tubarão.

— É proibido sonhar? — disse Brigitte irônicamente para o robô.

— É somente um monte de ferro — lembrou-lhe Número Um. — Não se pode esperar muito dele.

— Está certo. Vou tentar consertar um pouco este rosto atraente... Sabe de uma coisa, querido? É muito chato não poder beijá-lo para valer.

— Pois eu acho pior ainda.

E os dois desataram a rir, mas Número Um logo levou as mãos ao peito e crispou o rosto numa careta de dor.

— Está proibido de rir... por enquanto — disse Brigitte. — Ouça! Conhece um tipo amalucado, extravagante, de cabelos brancos, que se chama Adams?

— Não.

— Não o viu por aqui?

— Não vi esse sujeito. Mas vi outros. — Número Um encarou o robô. — Posso dizer seus nomes e como são?

— Por que não? — disse rindo o robô.

— Em primeiro lugar, existe uma mulher. Se chama Margot Stevens, é loura, de olhos claros, muito bonita e jovem.

— Ah! Deve ser a mulher que vi saindo por último da loja.

— Certamente. Pelo que entendi, ela e dois dos homens são os sócios proprietários da loja de brinquedos. Eles se chamam Percy Fowler e Aaron Chandler. Eu suponho que são eles que dirigem o negócio dos robôs. Pelo visto, aperfeiçoaram-se na construção de brinquedos de tal maneira que um dia fabricaram um robô. E um robô muito aperfeiçoado! Eles mesmos devem ter se surpreendido com o resultado do trabalho. Um robô que obedecia a sinais a distância. que se movia com desenvoltura, que podia levar câmaras de televisão nos olhos. Instalaram em seus braços maçaricos lança-chamas e gases que se expelem por meio de válvulas. Isto só na mão esquerda. Na direita leva um mecanismo idêntico ao de uma automática com silenciador, mas uma automática carregada com mais de vinte tiros. No interior do robô, colocaram um mecanismo para explodi-lo a distância, em caso de emergência. Isto foi planejado para evitar que alguém examinasse o robô e pudesse copiá-lo. Não parece correto?

— Sim — concordou Brigitte. — Agora, procure ficar quieto.

Colocou sobre o rosto de Número Um uma toalha, dobrada várias vezes, empapada de água quente colhida numa das torneiras do banheiro. Manteve-o assim por três ou quatro minutos, pacientemente. Depois, tirou-a e pôs-se a examinar o rosto avermelhado do amigo, procurando enxugá-lo cuidadosamente. Isto feito, molhou com adstringente as contusões das faces, queixo, testa. As feridas abertas, cobriu-as com gaze e esparadrapo.

— Você está muito mais feio agora — sorriu “Baby” — mas amanhã estará melhor.

— Foi um trabalho bem feito — disse o robô.

— Não seja mal-educado — advertiu-o Brigitte. — Não basta ser assassino, Alexandre? Por que ainda se intromete na nossa conversa?

— Porque neste momento quem o está manejando é Aaron Chandler — disse Número Um, sorrindo. — Tem menos senso de humor que Percy Fowler.

— Sim, já havia percebido... Quem mais mora na residência, Número Um?

— Três capangas pouco importantes. Seus nomes são: Heston, Bolowsky e Mackenzie. Eu me livrei deles em poucos segundos, mas os manequins intervieram e me lançaram gases.

— O mesmo aconteceu comigo. Acredita que sejam espiões profissionais?

— Não, não. São principiantes com sorte... momentaneamente. Têm boa mercadoria a oferecer, e assim fizeram. Isto é tudo.

— Têm mais alguma coisa para falar? — interveio Alexandre.

— Nós dois sempre temos o que conversar, Alexandre.

— Mas não acredito que seja novidade. Creio que é hora de recolher-se ao seu quarto, miss Montfort.

— Não posso ficar aqui?

— Não.

— Isto parece perigoso para vocês?

— Não. Mas já falaram demais. Jantaram, você já tratou dos ferimentos de seu amigo, trocaram idéias... Agora, trate de ir para o seu quarto.

— Suponho que devo obedecer — suspirou Brigitte; inclinou-se e beijou Número Um nos lábios, suavemente. — Até amanhã, meu amor.

— E se não voltarmos a ver-nos — disse ele — lembre-se: daqui a dez dias em Paris.

— Não esquecerei — riu Brigitte.

A porta do quarto de Número Um abriu-se naquele instante e entrou um dos manequins. Brigitte viu outros reunidos no comprido corredor. Trocou um olhar significativo com Número Um, encolheu os ombros e saiu. Alexandre seguiu-a, encaminhando-se para as escadarias brancas que levavam ao andar de cima e começando a subi-la pesadamente. Brigitte acompanhou-o com o olhar, até que um dos manequins tocou amavelmente no seu ombro.

E a mesma voz de Alexandre saiu pela boca do manequim agora.

— Retire-se. E lembre-se de que não deve nem tentar subir ao andar de cima.

Brigitte dirigiu-se ao seu quarto. Entrou e, quando ia fechar a porta, o manequim, que a seguira, entrou também. Foi ele quem fechou a porta, ficando ali junto dela. A espiã encarou-o com desagrado.

— Pensa em passar a noite aqui, robô? — resmungou.

— Isto mesmo.

— Bem... — ela olhou para a cama — pelo menos tenho certeza que não tentará nada de pecaminoso. Ou será que pode?

— Seu humor está passando dos limites, miss Montfort. Boa-noite.

A agente “Baby” tornou a encolher os ombros. Aproximou-se da cama e fingiu que ia tirar a malha negra que recobria seu corpo. Mas voltou-se para o robô, sorriu ironicamente e balançou o dedo em sinal negativo.

— Não, não, Alexandre. Pode desistir. Se quer mesmo ver o que está pensando... venha pessoalmente. Senão, pode desistir.

E estirou-se na cama, vestida como estava. Um minuto depois, dormia profundamente, tão tranqüila como se estivesse em seu leito de colcha cor-de-rosa, na Quinta Avenida.

Coisas da agente “Baby”.

 

Despertou bruscamente, sem saber como. Abriu os olhos, fitando o teto por instantes e, sem dúvida levada pelo sexto sentido que a despertara, virou a cabeça para a direita.

Estremeceu violentamente. Sentou-se de imediato, girando a cintura, de modo a enfrentar, com as mãos em posição de guarda de caratê, o personagem que estava junto da cama, em silêncio.

— Não me bata.., não me bata! — pediu este, suplicando.

Era o louco. Sua cabeleira branca e seus olhos esbugalhados brilhavam à luz da lua, que se via pela janela aberta, por onde entrava um ar úmido e frio.

— Que está fazendo aqui? — murmurou Brigitte, sem baixar a guarda, pronta para o que desse e viesse.

— Por favor... não me bata mais.

— Mas o que deseja? — disse a espiã, intrigada.

— Você é boa?

Brigitte ergueu as sobrancelhas, espantada. A pergunta era estranha. Se ela era uma pessoa bondosa? É verdade que já matara muitas pessoas que considerava más. Seria, porém, melhor do que os outros, uma vez que já matara?

— Acredito que sim, senhor Adams — disse sorrindo. — uma pergunta esquisita, não lhe parece?

— Eu, eu preciso ter certeza... Ouvi tudo o que falou com eles... Dizem que você é muito perigosa, que já matou muita gente e que é conhecida por “Baby”, espiã da CIA. Tudo isto é verdade?

— É verdade.

— Então... eu não compreendo...

— O que é que não compreende? Não sabe que o robô está nos vigiando?

— Não, ele não nos vê. Aaron está dormindo agora.

— Refere-se a Aaron Chandler, o homem que dirige os robôs?

— Sim.

Brigitte ia saltar da cama, pronta para entrar em ação, quando Adams a reteve por um braço.

— É inútil — sussurrou. — Não conseguirá nada. Nem também o seu amigo. No momento em que começassem a subir as escadas, soaria o alarma e todos os robôs voltariam a funcionar imediatamente. Também é impossível escapar da ilha, a menos que você possa nadar cinqüenta ou sessenta milhas... Não se pode fazer nada, miss Montfort.

— Bem, então, o que está fazendo aqui? Diga-me logo o que deseja.

— Se de fato é uma pessoa direita... Não entendo como você pode ser direita e já ter matado gente, mas eu vi em seus olhos a bondade. Você me bateu esta noite para evitar que o robô me matasse. Você, no fundo, é uma pessoa bondosa.

— Suponho que esta é a questão — sorriu Brigitte. — É verdade que agora ninguém está nos escutando, senhor Adams?

— Ninguém. O robô — apontou para o manequim de pé na porta do dormitório — está inativo agora. Eu me chamo Richard Adams.

— Sim.

— Sou o pai.

— O quê?

— O pai dos robôs. Eu os inventei, eu os construí.

— Acho que não vou cumprimentá-lo por isto, senhor Adams.

O velho maluco deu uma risada aguda.

— Não lhe agradam os meus filhos?

— Parecem-me horríveis. Sem dúvida, o senhor é muito talentoso, senhor Adams. Mas acho que deveria empregar seus dotes em coisas úteis e menos perigosas.

— Já fiz muitas coisas úteis, como por exemplo, as câmaras de televisão que levam nos olhos. São diminutas e muito sensíveis. E construí um aparelho de televisão do tamanho de um maço de cigarros. Quer vê-lo funcionar?

— Não creio que seja o momento adequado. Se Aaron Chandler acordar agora, nos descobrirá e provavelmente nos matará.

— Mas é que, fazendo funcionar o meu pequeno televisor, veremos tudo o que Aaron está fazendo... Veja, veja!

Tirou do bolso um pequeno aparelho e apertou um dos três botões laterais. Três segundos depois, o diminuto televisor iluminou-se, aparecendo uma imagem: a de um quarto pequeno à prova de som e onde se viam estranhos aparelhos.

Brigitte os identificou como os responsáveis pelo comando a distância dos robôs. Viam-se várias teIas de televisão, mas todas apagadas naquele instante. Diante dela, um homem parecia adormecido, com a cabeça apoiada no painel de comando.

— Esse é Aaron — murmurou Adams, rindo nervosamente. — E aí estão todos os aparelhos de controle dos meus filhos.

— Você está louco — grunhiu Brigitte, zangada.

— Não gosta do meu invento?

— Não.

— Refiro-me ao pequeno aparelho de televisão, transmissor-receptor. Eu sei que os japoneses e técnicos de outros países estão construindo receptores tão pequenos como este, mas as câmaras continuam sendo enormes. Aí está o meu segredo. Você pode adivinhar onde está a câmara que nos envia esta imagem?

— Não.

— Num livro — riu Adams. — cavei as folhas de um livro, fiz uma abertura na lombada e coloquei a câmara dentro. Por isso, sempre sei o que se passa na sala de comando. Quando quero, acendo o receptor, e pronto. Vejo tudo. Percebe como não há perigo no momento? Aaron dorme... Às oito da manhã, Margot virá rendê-lo, até as dez, hora em que Percy ocupa outra vez os comandos.

— Mas, senhor Adams: o que deseja afinal o senhor? Por que veio até aqui?

— Quero que me ajude a destruí-los... todos!

Brigitte semicerrou os olhos.

— Como disse?

— Quero destruí-los. Quero conseguir chegar à sala de comando e fazer explodir todos os meus filhos. É isto o que desejo fazer!

— Não estaria tendo tanto trabalho se não os houvesse construído.

— Fui enganado! Eu estava empregado na “Lucky Toy”, como desenhista de brinquedos. Imaginei e construí muitos brinquedos divertidos. Você gosta de crianças?

Brigitte ficou perplexa. Mas, no fundo, teve a impressão de que estava compreendendo afinal a verdade antes de Adams explicá-la.

A luz do pequeno receptor de televisão iluminava o rosto de ambos. Aaron Chandler continuava dormindo, debruçado sobre o painel de comando.

— Gosto muito de crianças — admitiu Brigitte.

— Eu já sabia. Eu também gosto muito delas. Sabe de uma coisa? Eu nunca me casei, não tive filhos, nem netos... Claro. Mas gosto muito de crianças, sim. Já teve ocasião de observá-las, boquiabertas diante de uma vitrina de brinquedos? Contemplando-as de dentro da vitrina, captando todas as suas expressões... Já teve oportunidade?

— Não.

— É uma pena. Há alguns anos, inventei um coelhinho que saltava, levando uma cenourinha na boca e parando de vez em quando para dar uma mordida nela. A cada mordida, a cenoura entrava um pouco mais na boca do coelhinho, que revirava os olhinhos para as crianças, movendo o rabinho muito branco... Como me diverti com aquele coelhinho! Chamava-se “Comilão”.

— Senhor Adams: Como foi enganado?

— Pelas crianças?

— Não, não. Refiro-me a Chandler e os outros.

— Ah, sim... Bem, eu era um bom desenhista de brinquedos e consegui um magnífico emprego em “Lucky Toy”. Um bom emprego no qual durante muitos anos vivi feliz, inventando bonequinhos... Lembro-me de uma boneca chamada “Patrícia”, que...

— Por favor, senhor Adams, continue a história.

— Sim, sim. Bem, eu trabalhava lá. A loja mudou algumas vezes de proprietário, mas eu continuava na oficina, inventando brinquedos fabulosos. Certo dia, a loja foi vendida a Margot Stevens, Aaron Chandler e Percy Fowler, que fizeram sociedade. Sabia que Percy e Margot são amantes?

— Não creio que isto me interesse agora.

— Está bem. Do que estávamos falando?

— Do seu trabalho.

— Bem... finalmente, inventei o mecanismo dos robôs. Eu queria fazer pequenos robôs e construí modelos infantis, que podiam andar sem ninguém ajudá-los. Já estava imaginando a cara das crianças. Eles chegariam à terra em discos-voadores e seriam marcianos... Viu os discos-voadores?

— Vi alguns no depósito da loja.

— Pois voam mesmo... pequenas distâncias, naturalmente, mas o suficiente para levar dois robôs marcianos. Um dia, Percy me disse que havia pensado a respeito do projeto dos robôs. E ordenou-me que os construísse maiores. Referia-se aos mecanismos, é claro.

— Perdão. Adams: ninguém sabia nada a respeito de sua invenção?

— Não! Era meu segredo profissional. Mais de vinte empresas de fabricação de brinquedos já me haviam oferecido emprego, nos últimos cinco anos, mas eu recusei todas as ofertas. Sentia-me bem ali na loja “Lucky Toy”, tinha ampla liberdade de ação e me pagavam esplendidamente. Percy insistiu em que eu construísse vários robôs grandes e um controle correspondente. Foi isto que me disse. Eu perguntei para que queria aqueles robôs grandes e me disse que tinha uma idéia colossal: fabricaríamos, primeiro, alguns robôs grandes e, quando a fabricação em série dos pequenos estivesse pronta, Faríamos sair na rua os robôs grandes. Que surpresa no mercado! Os robôs iriam pela rua e se aproximariam das crianças, dizendo: “Diga ao seu pai para comprar um Alexandre. Eu sou encontrado, em tamanho pequeno, na loja “Lucky Toy”.

— E foi convencido, não é?

— Claro! Já imaginou a repercussão e o prestígio profissional para mim? Além disso, trabalhava em “Lucky Toy” e, quanto mais dinheiro eles ganhassem, mais dinheiro ganharia eu... E a idéia de dirigir os robôs pela rua, e até por todo o país, se necessário, agradava-me: falaria com as crianças, contaria histórias... Sim, confesso que a idéia me agradou, miss Montfort.

— Mas eles não cumpriram sua parte.

— Não. Você já sabe do resto. Agora, eles que já conhecem os segredos do mecanismo dos robôs, colocam-nos em manequins e os utilizam para assassinar. Meio milhão de dólares por “tarefa”... Eu compreendo que assim ganharão muito mais dinheiro, e em menos tempo. Mas eu os matarei a todos! Destruirei Alexandre! E o primeiro que desejo matar é Aaron Chandler. É um gangster sujo. Sempre fora bandido. Mas eu o ignorava. Sabe de uma coisa? Pensa organizar com os robôs um novo Sindicato do Crime, assassinando por encomenda, como em 1930... E os assassinos serão os meus filhos!

— Isto é novidade! — exclamou Brigitte.

— É verdade! Estão organizando o negócio para atuar em tudo que renda dinheiro: roubos, assassinatos, espionagem... tudo! Eu os ouvi falando e vi seus rostos cheios de cobiça.

— Por que me atacou na cozinha, senhor Adams?

— Para convencê-los de que fiquei louco. Fingi acreditar que você era um robô feminino, que eles pretendessem construir também e ataquei-a para convencê-los de minha loucura, de que não passo de um velho louco e acabado. Mas não sou inofensivo, não... Eu conseguirei matar a todos.

— Acalme-se, senhor Adams.

— Estou calmo. Às vezes me chamam à sala de comando e me pedem que arranje uma ou outra coisa nas máquinas, se bem que já saibam quase tudo sobre elas. Trouxeram-me para cá mais ou menos há um ano e nunca mais me deixaram sair. Sou um pobre prisioneiro, obrigado a consertar robôs e a construir seus mecanismos. Quando entro na sala de comando, sou vigiado atentamente. Eu poderia destruir algo, mais seria morto logo e eles prosseguiriam. Estou aguardando uma oportunidade. Uma oportunidade de entrar ali, apoderar-me dos comandos e... bum! Matar a todos... todos! Você me ajudará?

Brigitte encarava meio sobressaltada ao velho de cabelos brancos.

— De que maneira posso ajudá-lo?

— Eu a avisarei quando chegar o momento. Enquanto isto, leia este livro — apanhou-o do chão e estendeu-o a Brigitte, que continuava sentada na cama. — Leia-o. Dentro, estão uns papéis que explicam o funcionamento dos comandos da sala. Você deve fingir que está lendo o livro, que pode levar até para o banheiro... ou algo parecido. Dê um jeito, mas não deixe de decorar estas instruções. Não são complicadas, asseguro. Tudo muito claro e simples. Assim, você saberá como agir quando atacarmos a sala de comando e, se me matarem, poderá destruir meus filhos malditos. Está bem, miss Montfort?

Brigitte sorriu secamente.

— Não creio que seja tão simples assim, senhor Adams.

— Não quer ajudar-me?

— Claro que quero. Vou estudar as instruções imediatamente. Quando acha que podemos atacar a mesa de controle?

— Não sei... Fazem cinco meses que espero por uma oportunidade, e não chegou... Mas tem que surgir. Mais dia, menos dia, conseguiremos.

— Entendo — murmurou Brigitte, decepcionada. — Bem, não perco nada aprendendo a manejar os controles dos robôs... Outra coisa: está seguro que são cinqüenta milhas da ilha até a costa mais próxima?

— Cinqüenta, no mínimo. Talvez sessenta, ou cem... Não sei. Mas é muita distância, estou certo.

— Também não sabe em que ilha estamos?

— Não. Já lhe disse que sou um pobre prisioneiro...

— Está bem. Sabe algo sobre uma visita que deve chegar à ilha? Creio que vêm vários membros pertencentes a diversos serviços de espionagem.

— São vários, sim. Mas não é nesta ilha, e sim na outra...

— Que outra?

— A que está a cinco ou seis milhas daqui, ao sul.

— Mas você me disse que não havia nada!

— Uma ilhota, com meia dúzia de palmeiras e arbustos, com um pequeno lago salgado ao centro. Ninguém poderia sobreviver ali, garanto. Fui lá há uns três meses, quando estavam planejando tudo. Fui levado para não ficar sozinho com o comando dos robôs... Nunca me deixam sozinho, quando os controles estão abandonados.

— Entendo. Há tubarões nestas águas?

— No verão, alguns. No inverno não sei se aparecem por aqui. Creio que os tubarões gostam de água quente. Vai tentar escapar a nado?

— Vou pensar.

— Não aconselho. Garanto que seria loucura. Além disso, prometeu ajudar-me.

— Eu sei. Quem são os homens que vão comparecer na reunião, senhor Adams?

— Seus nomes? Não sei, mas sei que comparecerão agentes russos, britânicos, cubanos, da CIA e outros. E representantes de alguns movimentos subversivos de alguns países. São dez ou doze homens, calculo. Talvez mais.

— Como virão?

— Em helicópteros, lanchas, iates... Não sei precisamente. Mas tenho certeza de que irão á ilhota para uma demonstração dos poderes dos robôs.

— Quantos robôs existem?

— Sete, que eu saiba. Não sei se construíram algum mais, ultimamente. É possível que existam alguns na reserva. Não sei.

— Sete — Brigitte sorriu, duramente. — Está bem, senhor Adams. Tem algo mais a dizer?

— Você é muito bonita.

— Mais alguma coisa? — riu alegremente Brigitte.

— Não... nada mais. Você me ajudará?

— O pacto está firmado — e estendeu a bela mão. — Boa-noite, senhor Adams.

— Adeus. Logo amanhecerá.

— Está bem. Mas como suspeito que espécie de experiência pretendem fazer comigo e meu amigo, vou tratar de descansar bem e dormir o máximo que possa. Adeus, Sr. Adams.

— Boa-noite.

Richard Adams esgueirou-se pela janela, depois de apagar o diminuto receptor de televisão. Saltou para fora e encostou as duas folhas. Brigitte levantou-se, fechou bem a janela e através dos vidros contemplou o mar, banhado pela lua. Cinqüenta milhas, de fato, era demais para ela. E mesmo para Número Um, no melhor de sua forma física. E a ilhota, na qual somente havia espinheiros, palmeiras e um lago de água salgada, também era carta fora do baralho.

Não podia confiar na ajuda de Richard Adams, o pobre velho construtor dos robôs... Estaria mentindo? A suspeita cruzou rapidamente pela cabeça da veterana espiã. Finalmente concluiu que não podia confiar em ninguém a não ser em Número Um. E assim mesmo, se não o injetassem com drogas...

Por fim, a agente “Baby” concluiu, desolada: somente podia contar com sua sorte proverbial, que nunca a abandonara antes. Era absurdo confiar em outra coisa.

Voltou para o leito e deitou-se. Ficou ainda algum tempo olhando o teto, de olhos abertos. Pelo menos, antes de morrer, conseguira ver Número Um outra vez. Mas por que pensar na morte, por que pensar em morrer?

Tinha um encontro marcado em Paris.

 

— Está fazendo um dia magnífico! — saudou alegremente Brigitte. — Como se sente hoje?

Número Um sentou-se na cama, sorrindo.

— Bastante melhor, garanto. Dormiu bem?

— Muito bem. Acho que também você não perde o sono por qualquer motivo. Quer que eu traga o café aqui, ou prefere tomá-lo comigo na cozinha, aproveitando para ajudar-me um pouco?

Número Um olhou para o robô que acompanhava Brigitte e para o que o vigiava. O primeiro estava dentro do quarto, junto da porta; o segundo ficara no umbral.

— Se estes dois ferros-velhos não tem nada em contrário, irei com você à cozinha.

— Pode ir, Romeu — disse uma voz feminina pela boca do robô.

— Ora, o que aconteceu? Não me diga que este robô é... bem... digamos, efeminado.

Brigitte pôs-se a rir. E também o robô soltou uma gargalhada na voz, de Margot Stevens.

— Você me conhece muito bem, Romeu. Sabe que sou uma mulher. Ou não pareço?

— Parecia ontem e anteontem... mas hoje as coisas mudaram. Estando Brigitte aqui, você não passa de um monte de carne com olhos e cabelos. Azar o seu, Margot. Se quer um conselho, esqueça-me: não fui feito para você, beleza.

— Você é um presumido, Romeu — disse secamente o robô.

— Posso ser presumido — e abraçou Brigitte pela cintura, — mas já tenho minha Julieta. Por favor, Margot, não nos interrompa. Pretendemos tomar café alegremente.

Saíram do dormitório, rindo. Afinal, a situação era a mesma rindo ou chorando. Na cozinha encontraram Richard Adams, que enfiava a mão numa panela, comendo como um porco, com as barbas sujas de molho. Olhou-os aterrado, esbugalhando os olhos. Brigitte pensou que ele de fato representava muito bem o papel de louco.

De repente, o velho pegou a panela e atirou-a furioso contra Brigitte, gritando alto. Um dos robôs adiantou-se levantando o braço para agredi-lo, mas ele, vendo-o, deu um grito agudo e fugiu pela porta dos fundos para o jardim. E fugiu no momento exato, pois o jato de fogo chamuscou a porta, deixando uma marca circular enegrecida, fumegante.

— O pobre Adams continua pensando que você é um robô — riu o manequim, dirigindo-se a Brigitte. — Infelizmente, acho que teremos que eliminá-lo.

Brigitte e Número Um não disseram nada e prosseguiram a conversa, imperturbáveis.

— Que gostaria de comer? — perguntou ela.

— Ovos, torradas, manteiga e café.

— Não quer suco de laranja?

— Não. Prefiro algo mais forte. Café, se for possível.

— Claro que é, querido — sorriu ela, beijando-o na boca. — Vamos tomar algo que nos reanime um pouco. Mas, se não me esqueço, ontem você não quis ovos.

— Ontem já passou — sorriu Número Um.

— E hoje é hoje — riu Brigitte. — Quer ir arrumando a mesa para mim?

E Número Um tratou de procurar pratos, xícaras e talheres, enquanto Brigitte cozinhava. Ele arrumou a mesa e colocou, num vaso de barro achado no armário, uma enorme hortênsia apanhada no jardim.

— Voilá — sorriu. — Oh, diabo! Estou falando francês e Margot pode não gostar. Os ovos estão com uma excelente aparência... Que tal uma salada de tomates?

— Vou prepará-la.

Comeram tranqüilamente, com a hortênsia entre ambos, olhando-se com tanto amor que até um robô não poderia deixar de perceber. Os dois vigias permaneciam junto, sempre com aqueles olhos estranhos grudados neles. Os dois espiões não lhe deram a mínima importância e, ao terminarem o café, Brigitte propôs:

— Vamos dar um passeio pela praia? O sol está radioso.

— Uma idéia magnífica. Me fará muito bem respirar um pouco de ar puro. Vamos tirar os pratos?

— Não — disse ela sorrindo. — Estou certa de que estes meninos sabem fazê-lo — olhou para os robôs — ou será que só sabem matar?

Saíram da casa, indo diretos para a praia. Os dois robôs sempre em seus calcanhares. Quando chegaram à areia, os pés dos pesados manequins começaram a afundar e seus passos tornavam-se difíceis. Diante do que, os dois espiões entreolharam-se significativamente e sorriram.

Passearam durante um quarto de hora, conversando sobre música, pintura, literatura... Afinal, Brigitte estendeu-se na areia e Número Um ao seu lado, aproveitando o sol de inverno.

— Sabe de uma coisa, Número Um? — perguntou ela. — Não faz muito tempo, uma feiticeira de Vodu, numa ilha do Caribe, prognosticou que eu teria quatro filhos.

— Que bruxa simpática! — sorriu o espião. — Se posso ajudar de alguma maneira...

— Acho que sim — riu Brigitte. — Mas não sei se já chegou a hora. Às vezes sinto-me terrivelmente cansada e me pergunto se vale a pena arriscar a vida em benefício dos outros.

— Está sacrificando a vida por alguém?

— Por todos... Por muita gente que não conheço. Acho que sou meio louca.

— Você, louca? — riu Número Um.

— É que me desagradam as pessoas que não pensam com honestidade.

— Bem, compreendo. Acho que você está se referindo a essa tua mania exagerada de aniquilar com os maus e ajudar os bons.

— Acha que vale a pena?

— Não sei... Eu também penso assim como você, às vezes... Mas não é fácil achar resposta para as próprias perguntas. Eu acho que somos espiões porque somos e isto é tudo. Esta questão de ajudar a quem merece é uma ilusão que imaginamos. Gostamos é da aventura, insisto. Ou então do dinheiro, do luxo. Sim, talvez seja isto o que nos agrade.

— Você está rico?

— Mais ou menos.

— Mais ou menos? — Brigitte encarou-o espantada. — Não acredito. Você é o espião mais caro do mundo!

— Sim, gasto muito também.

— Com quê?

— Muitas coisas: carros, minha vila, roupas... como bem, hospedo-me em bons hotéis.

Brigitte franziu o cenho.

— Quanto ganhou no ano passado?

— Creio que uns três milhões e meio.

— De liras?

— De dólares — grunhiu ele.

— Ah! E gastou tudo em roupas e hotéis? Você está me enganando, Número Um.

Ele a encarou, meio enfiado. Mas logo tomou a sorrir daquela maneira que parecia rejuvenescê-lo, levá-lo de volta a infância.

— Bom... andei ajudando algumas pessoas — admitiu.

— Incrível! Quer dizer que Número Um ainda possui um pedaço de coração que funciona... bondosamente?

— Estou desconfiado que você está me gozando — resmungou ele novamente. — E você não faz a mesma coisa?

— Mais ou menos. Eu, eu andei pensando numa maneira de ganhar muito dinheiro, Número Um. Nós dois podíamos montar um negócio juntos... Uma agência particular de espionagem. Já imaginou? “Baby” e Número Um juntos, dirigindo o próprio negócio. Ganharíamos milhões de dólares e teríamos oportunidade de ajudar muita gente. Seria ótimo, não?

— Acho que sim.

— Às vezes penso que estou desperdiçando minha vida. Também é possível ser útil sem ser espiã, sendo apenas mulher... uma mulher normal, com quatro filhos.

— E com um marido, suponho — sugeriu Número Um.

— Sim, claro.

— Espero que saiba escolher.

— Também já pensei nisto muitas vezes, Número Um, eu...

Parou de falar, bruscamente. Número Um olhou para a casa e viu três homens se aproximarem. Não eram robôs: eram homens mesmo.

— Esses são Heston, Mackenzie e Bolowsky — disse Número Um.

Brigitte assentiu com a cabeça. Olhou admirada para os robôs, mas estes não disseram nada. Continuavam ali, como que cravados na areia, provavelmente transmitindo a conversa para a sala de controle. Mas não receberam nenhuma informação sobre os três homens que se aproximavam.

Tudo o que ocorreu foi que os robôs deram meia-volta e tomaram o caminho de casa.

— De pé, namorados — grunhiu Heston, que ainda tinha o nariz inchado como uma batata do golpe que recebera de Número Um. — Vamos dar um passeio de lancha.

— Estamos bem aqui — disse Brigitte.

— De pé — o revólver de Heston foi apontado para sua cabeça — de pé, imediatamente!

Trataram de levantar-se, sacudindo a areia. Heston apontou para o pequeno cais, onde estavam ancorados um iate e duas lanchas de alta velocidade. Bem no meio do trapiche estava um robô, imóvel e atento aos seus movimentos.

Brigitte e Número Um caminharam até ali, contra a vontade. Ao passarem pelo trapiche, o robô foi girando, sempre com seu olho artificial fixado neles.

— Adeus, Margot — disse Número Um.

Bolowsky deu-lhe um empurrão em direção à lancha. Devia ser violento, mas conseguiu apenas alterar a marcha do espião, que voltou a cabeça e encarou-o com um olhar frio e irônico.

Mackenzie saltou primeiro para a lancha. Depois, os dois espiões e, a seguir, Heston e Bolowsky, de maneira que estivessem o tempo todo sob o controle dos três homens. Isto, sem levar em consideração a vigilância inalterável do robô, da borda do trapiche.

A lancha foi posta em movimento por Mackenzie, que a afastou rapidamente do cais, tomando o rumo sul

— Aonde vamos? — perguntou ingenuamente Brigitte.

— Para uma ilhota — sorriu Heston. — Vamos proporcionar-lhes a grande felicidade de ficar a sós numa ilha.

— Vão largar-nos numa ilhota?

— Exatamente. Uma ilhota que será muito importante dentro de algumas horas. De qualquer maneira, teriam que ir para lá, e os chefes decidiram que fossem agora para que se possa descansar do manejo dos robôs. É muito fatigante ficar vinte e quatro horas no controle dos robôs. E não é preciso se incomodar tanto por causa de vocês.

— Vão nos deixar ali sozinhos?

— Isto mesmo, miss Montfort. Mas podem tirar da cabeça a idéia de fugir. E se tentarem escapar a nado... Bem, isso é lá com vocês, se conseguirem desamarrar-se antes da nossa visita.

— Vão nos deixar atados, sem água e sem comida?

— A idéia é esta. É muito trabalhoso para nós ter que vigiá-los o dia inteiro. Vocês são tão perigosos que a votação foi unânime: ilhota com eles. Deste modo, ficarão amarrados nas palmeiras e, mais tarde, terão notícias nossas.

— Certo.

— Alegro-me que goste da idéia.

— Eu não a aprovo, somente me resigno com ela.

— Dá no mesmo. Por que não cala a boca? Aprenda com seu grande amigo Romeu. É mais silencioso que um morto.

— Ele só não fala porque não simpatiza com você.

Número Um olhou ironicamente para Heston. Seu sorriso foi tão zombeteiro que o ruivo se encheu de raiva e deu-lhe um pontapé na boca do estômago, deixando-o dobrado sobre si mesmo, respirando com dificuldade, quase de bruços no chão da lancha.

Brigitte não se alterou, pelo menos aparentemente. Limitou-se a encarar Heston de uma maneira tão gelada que este estremeceu sem querer. Brigitte nem se incomodou em ajudar Número Um, que se sentou sobre a coberta, por si mesmo, meio pálido, fazendo massagem no estômago.

— Nós atacaremos ao chegar à ilha — disse Brigitte rapidamente em russo. — Está preparado?

Número Um respondeu na mesma língua:

— Deixe este porco do Heston para mim — disse ligeiro.

Heston quase enfiou o revólver na boca de Brigitte, furioso.

— Ordeno que falem em inglês! Se continuarem assim, não viverão nem até a experiência!

— Estávamos só dizendo que você não passa de um porco — disse Brigitte.

Heston ficou apopléctico e ia golpear Brigitte, mas Mackenzie impediu-o, resmungando:

— Deixe-os em paz. Você acaba perdendo a calma e matando os dois. Não esqueça que estamos tratando com profissionais muito perigosos. Não procure fazer o jogo deles.

— Tem razão — resmungou Heston. — Mas esta noite terei o prazer de estar presente. E então veremos se continuam tão valentes e risonhos.

A ilha ficara para trás. Via-se ao longe surgir a ilhota, com as silhuetas das palmeiras contra o céu. A lancha corria tanto, que mais de uma vez deu de chapa na água, saltando no ar por instantes. A ilhota crescia rapidamente diante de seus olhos.

Cinco minutos depois estavam bordejando, lentamente, à procura de um lugar para desembarcar. Parecia difícil atracar, pois havia muitos recifes, formando pequenas barreiras de cinco a seis pés de altura, que impediam o desembarque.

Finalmente, surgiu a pequena praia que Heston e seus amigos estavam procurando. A lancha dirigiu-se para lá, já de motor cortado, deslizando até a quilha encravar-se na areia, rente à margem.

Heston desembarcou primeiro e voltou-se, revólver em punho.

— Desçam, namorados. Bolowsky, traga as cordas.

Número Um foi o primeiro a saltar e deu a mão a Brigitte, que se deixou cair docemente em seus braços, agarrando-se nele. Dirigiram-se para a margem abraçados pela cintura, vadeando lentamente as águas geladas.

Bolowsky saltou atrás, trazendo um rolo de cordas. Mackenzie foi o último, arrastando o cabo da amarra atada na proa da lancha e desenrolando-o em direção a uma palmeira, onde pretendia atá-lo.

— Vamos levá-los para o interior da ilha — disse Heston. — Seria desagradável se alguma embarcação passasse por ai e os visse. Devemos amarrá-los a palmeiras diferentes, para que... Aaaagg...!

Recebeu um soco tremendo, arrepiante, pior do que o pontapé que dera no espião. Foi um golpe tão violento que o antebraço de Número Um pareceu afundar-lhe no estômago, para sair nas costas. Um soco espantoso, aniquilador, com a força de um êmbolo.

Heston foi projetado de costas, largou o revólver e caiu na água.

Mackenzie, olhos esbugalhados de surpresa, com o rolo de cordas na mão, escapuliu para a água.

Bolowsky tentou atirar em Número Um, precipitadamente, pois devia prestar mais atenção à agente “Baby”, em lugar de concentrá-la em Romeu. O resultado desta falta foi que sua mão saiu da posição de tiro devido a um golpe suave de esquerda dado por Brigitte, enquanto com a direita ela o golpeava horizontalmente na garganta, um golpe seco, rápido, cortante. Bolowsky teve a impressão de que acabava de ser golpeado por um machado sem fio. Alguma coisa estalou em sua garganta, no peito, na cabeça. Ficou em pé, com água pouco abaixo da cintura, lívido como um cadáver, sem forças nem para respirar.

O mais esperto foi Mackenzie. Compreendeu que não poderia com aquela dupla perigosa e, em lugar de atacar, tratou de voltar para a lancha, vadeando a toda pressa, enquanto Bolowsky afundava lentamente na água e Heston gemia de dor, retorcendo-se no chão.

Número Um tratou de pegar o revólver de Heston, tirando-o da água. Apontou para as costas de Mackenzie e apertou o gatilho: Puf, puf, puf.

Ouviu-se o ruído de coisa molhada, inútil.

Brigitte já estava indo atrás de Mackenzie o mais depressa possível. Conseguiu alcançá-lo quando estava se encarrapitando na lancha. Puxou-o por um pé tentou jogá-lo na água, mas Mackenzie, com o pé livre, deu-lhe uma tremenda patada entre os seios, derrubando-a próximo a Bolowsky, que tentava inconscientemente manter-se na superfície.

— Brigitte! — gritou Número Um.

Acercou-se dela velozmente e procurou mantê-la à tona, segurando-a pelos ombros. Sabia muito bem que aquele golpe no peito acabaria com a resistência física de qualquer mulher...

— Um... depressa... corra daqui... — murmurou “Baby”.

Na margem, Heston estava se levantando com dificuldade. Bolowsky continuava lutando para não afundar.

Mackenzie conseguiu subir na lancha e estava procurando, às pressas, alguma coisa dentro do painel de comando. Número Um ajudou Brigitte a alcançar a margem, puxando-a pelo braço, enquanto Mackenzie ressurgiu na borda da lancha empunhando uma metralhadora portátil.

— Parem ou atiro! — gritou.

Número Um jogou-lhe o revólver inútil, caiu toda a força. Tarde demais aqueles três compreenderam que não haviam nunca conseguido derrotar com torturas aquele homem infernal. Mackenzie gritou ao perceber o gesto de Número Um e apertou o gatilho... justamente no momento em que o revólver acertou-lhe em cheio na boca, partindo-lhe os lábios e fazendo-o engolir dois ou três dentes. A força do golpe foi suficiente para fazê-lo cair de costas na coberta, sangrando abundantemente, quase desmaiado.

Enquanto isso, Número Um alcançou a margem, ainda arrastando Brigitte. Soltou-a quando viu Heston já recuperado e pronto para brigar, aproximando-se furioso, rugindo como um porco agonizante.

Bolowsky vadeava em direção à praia, ainda de rosto pálido, mas já disposto para o combate. Na lancha, Mackenzie pusera-se de pé e mantinha as mãos na boca, procurando deter a forte hemorragia. Cambaleava ainda, sustentando-se com esforço, olhando raivoso para a margem.

Heston armou um pontapé endereçado às virilhas de Número Um, mas este livrou-se agilmente, segurou-lhe o pé por baixo, levantou-o com violência, e Heston caiu de costas. Ainda estava no ar, quando Número Um obrigou a girar, fazendo-o cair de bruços na areia. Dobrou-lhe a perna, imobilizando-lhe o corpo contra a areia. E antes que Heston pudesse ao menos pensar em contragolpe, Número Um caiu de joelhos sobre os seus rins, com todo o peso.

Desta vez os gritos de Heston foram mais fortes, ou melhor, teriam sido, se Número Um não o tivesse golpeado no pescoço com uma cutilada que quase o matou, afundando sua cabeça na areia.

Voltou-se em direção ao mar no justo momento em que Bolowsky saía da água, pronto para atacá-lo pelas costas. Mas Brigitte, apesar da dor que sentia no peito, jogou-lhe um punhado de areia nos olhos, dando tempo a Número Um para alcançá-lo e, com brutal ferocidade, dar-lhe um pontapé no estômago.

Olhou para a lancha e viu Mackenzie inclinado, tateando às cegas em busca da metralhadora. Sentiu que não teria tempo de chegar antes que o outro apanhasse a arma. Levantou Brigitte pela mão.

— Corra... corra, Brigitte!

Pegou-a pela cintura e trataram de correr até as moitas que havia a pequena distância da praia.

Ainda não haviam alcançado o abrigo, quando por trás deles ouviu-se o crepitar inconfundível da metralhadora. As balas chocaram-se contra as palmeiras, arrancaram pedaços de plantas, salpicaram os dois de areia... Número Um pulou para o mato, arrastando Brigitte com ele. Caíram do outro lado de uma grande moita, que foi pulverizada por cima de suas cabeças, arrancada a bala, triturada, desmantelada.

— Temos que nos afastar de Mackenzie — murmurou Número Um. — Pode correr?

— Se você pode, eu... também.

Número Um bateu-lhe carinhosamente nas costas.

— Não há tempo nem pra pensar. Já!

Ergueram-se e puseram-se a correr para o meio da ilha, seguidos por outra rajada que pulverizou o matagal à volta. Número Um não pôde conter um grito de dor, girou sobre si mesmo e caiu rolando pelo chão.

— Um! — gritou Brigitte. — Você está...?

O espião pôs-se de pé num salto, sangrando no braço esquerdo. Caiu de joelhos quando outra rajada passou sobre suas cabeças e puxou Brigitte pela mão, obrigando-a a ajoelhar-se.

— Não foi nada. Somente um arranhão no braço... Esse sujeito está atirando às tontas. Vamos ficar calmos. Não precisamos mais correr; basta permanecermos escondidos. Não se mexa.

Levantou a cabeça lentamente, por entre as plantas. Viu Mackenzie com nitidez, olhando ansioso por cima dos arbustos, com a metralhadora pronta para disparar.

— Está desorientado — disse, escondendo-se atrás das plantas — e não se atreve a vir buscar-nos. Parece que conseguimos assustá-lo.

— Você estava fingindo — sorriu Brigitte. — Está mais forte do que eu.

— Eu só tirei forças da fraqueza — riu Número Um. — Acha que esse golpe no peito a enfraqueceu muito?

— Não. Já recebi outros piores. Logo estarei bem.

— Psiu... Vou verificar o que está fazendo o nosso amigo Mackenzie.

 

Mackenzie saltou na água, de olho na margem, com a metralhadora pronta para disparar. Alcançou-a quando Heston começava a recuperar-se, ajudado por Bolowsky, que mal se agüentava nas pernas.

— Foram para o interior da ilha — disse Mackenzie. — Quando encontrar esse sujeito vou...!

— É a segunda vez que nos derrota como se não estivesse fazendo nada!

Bolowsky levou Heston até a beira e o atirou n’água, para fazê-lo acordar. Ficaram os dois de joelhos, resfolegando, pálidos, sentindo o frio da água que escorria por seus rostos.

— O que faremos? — perguntou Mackenzie. — Vamos deixá-los aqui até a volta? De qualquer maneira, não poderão escapar.

Heston levantou-se com dificuldade, de olhos turvos.

— Esses dois vão me pagar! Vamos caçá-los como coelhos pela ilha! Bolowsky, vá buscar mais duas metralhadoras na lancha!

— Traga mais pentes sobressalentes — pediu Mackenzie.

Bolowsky e Heston foram até a lancha e pegaram duas metralhadoras e doze pentes para cada um. Voltaram para a terra, onde encontraram Mackenzie de olhos esgazeados, vigiando aterrorizado o matagal.

— Eles podem vir de qualquer lado...

— São apenas seres humanos — grunhiu Heston. — Vamos crivá-los de balas assim que surgirem. Não nos separaremos... formaremos um leque, de modo que possamos bater toda a ilha. Terão que ir recuando, até ficarem encurralados contra os rochedos da ponta norte. Ali então nós os mataremos.

— Não esqueça que os querem vivos, para a experiência...

— Que façam a experiência com ratos! — gritou Heston. — Não posso permitir que esses espiões zombem de mim como fizeram. Vamos caçá-los!

Dispuseram-se formando um pequeno arco, mas suficiente para que nada passasse despercebido à medida que se adiantavam. E se qualquer coisa parecesse suspeita, não vacilavam em soltar uma rajada. Assim, foram arrancando casca de palmeira, destruindo plantas, perfurando o chão...

Estavam quase alcançando a parte norte da ilha e não haviam visto nem sinal dos espiões.

— Eu... eu acho que é melhor deixá-los aqui, simplesmente — sugeriu Bolowsky, amedrontado.

— Não! Eles têm que estar na ilha, perto de nós... entre nós e o mar. E devem aparecer a qualquer momento. Não se descuidem. Lembrem-se de que são muito perigo... Ah! Estão lá!

Viram os dois aparecer correndo, juntos, subindo pelas rochas, com uma segurança e velocidade assombrosas.

Heston foi o primeiro a disparar sua metralhadora, raivosamente, logo secundado por Bolowsky e Mackenzie, de modo que as três rajadas foram quase simultâneas. Ouviram claramente as balas ricocheteando nas rochas, os gritos de “Baby” e Número Um... e a queda dos dois para o outro lado das pedras.

— Vamos! — gritou Heston. — Eles estão desarmados!

Correram até as rochas, atentos, prontos para disparar a qualquer movimento. Viram algumas manchas de sangue... e afinal chegaram à beira do penhasco. Lá embaixo, as ondas do mar reboavam formando branca espuma ao chorarem-se contra as rochas. Era escuro, de um azul profundo...

— Caíram no mar...

— Vamos olhar. Não confio neles. Podem estar nadando de mergulho. Fique aqui, Mackenzie. E se os vir na superfície, mande bala.

— Está bem.

Heston e Bolowsky desceram pelas rochas, sempre atentos, O mar rebojava, respingando os dois. Não havia um só lugar em que alguém pudesse esconder-se. Pelo menos, em terra firme. Na água, viam-se pequenas rochas que apenas afloravam à superfície. E, além disso, lá no alto, Mackenzie perceberia qualquer movimento.

— Está vendo alguma coisa? — gritou Heston.

— Não.

— Está bem. Vamos voltar para a lancha. Daremos ainda uma espiada, por via das dúvidas. Apesar de estar convencido de que os crivamos de balas e de que agora estão mortos, no fundo, não confio neles. A verdade é que não gosto nada desta caçada.

— Que caçada?

— A caçada de espiões. Vamos para a lancha.

 

— Eu disse que os queria vivos! — gritou Chandler, irritado. Não preciso de vocês para matar ninguém, Heston!

— Bem... eles nos atacaram. Eram muito perigosos, senhor Chandler. Não houve outra maneira senão atirar.

— Como aconteceu?

— Tiraram o revólver de Bolowsky e fugiram para o interior da ilha. Não podíamos deixá-los soltos e armados — mentiu Heston — e fomos atrás deles. Tivemos que nos defender. Caíram no mar... e não voltaram.

— Caíram no mar? — perguntou Margot.

— Isto mesmo. Crivados de balas.

— Tem certeza que não saíram?

— Absoluta — sorriu Mackenzie. — Ficamos vigiando muito tempo, eu e Heston, enquanto Bolowsky foi apanhar a lancha. Voltou com ela, andou por ali... Vigiamos cerca de quinze minutos. E não voltaram...

— Bem... Não ganharemos nada lamentando os dois — disse Percy Fowler. — Não nos devíamos ter incomodado tanto com eles, já que agora ficamos sem gente para a demonstração aos visitantes.

— Eram perigosos demais...

— Por isso mesmo! — irritou-se Chandler. — Queríamos justamente provar aos nossos visitantes que para os robôs não haveria inimigos perigosos. Tenho certeza de que os visitantes sabem da fama de Brigitte Montfort e do maldito Romeu! Se os robôs os derrotassem, ficariam convencidos da... Ora, está bem. Percy tem razão: não vamos perder tempo com isto.

— Talvez ainda possamos conseguir alguém para a experiência — sorriu malevolamente Heston. — Quando vão chegar os visitantes?

— Esta tarde, às cinco horas. Recebemos a confirmação dez minutos atrás.

— E o que faremos?

— Vou pensar — murmurou Chandler. — Vocês agora tratem de dar uma busca na ilha. Não quero ser apanhado de surpresa por ninguém.

— De acordo.

Bolowsky, Heston e Mackenzie saíram da pequena sala de comando, onde estavam reunidos Margot Stevens, Aaron Chandler e Percy Fowler.

Percy olhou ironicamente para Margot.

— Creio que a morte do seu Romeu não a alegrou muito.

— Não era “meu” Romeu — replicou secamente Margot.

— Certo. Era o Romeu de miss Montfort. Eu não entendo muito bem estes espiões. Parece que se amavam e, no entanto, cada um vivia a sua vida, separados... Vocês entendem?

— Não é o momento de perder tempo com bobagens — lembrou Aaron Chandler. — Os nossos visitantes vão chegar às cinco da tarde na ilhota. Quem vamos oferecer aos robôs como vítima?

— Podíamos jogar Adams aos robôs — sugeriu Margot, rindo cruelmente.

— Acho que você está brincando — resmungou Chandler. — Os homens que virão são todos espiões veteranos. Esperam ver algo fora do comum. O representante da CIA já viu em Nova Iorque, mas os outros não sabem de nada. Não podemos mandar meia dúzia de robôs contra um pobre velho maluco. Eles rirão de nós.

— Podemos dizer-lhes que voltem para os seus países e que lá, na época oportuna, terão uma demonstração individual.

— E ter esta trabalheira toda? Não. O importante é impressionar a todos de uma só vez, para evitar tanto incômodo e despesa. Uma só demonstração em massa, e ficarão convencidos. Receberão a senha para comunicação e teremos garantido os primeiros clientes.

— Pois então é preciso pensar depressa... e bem.

— Certo: vamos pensar. São onze horas da manhã. Temos quase seis horas para encontrar a solução.

 

Às quatro da tarde, Margot Stevens aproximou-se da praia, onde Heston e Bolowsky estavam conversando, cigarro na mão. Atrás dela vinham os sete robôs, seis quase idênticos a pessoas normais, vestidos corretamente, sem quase despertar suspeitas. O último era Alexandre, o velho conhecido de “Baby” Montfort da festa do milionário Albert Rockingham.

— Onde está Mackenzie? — perguntou Margot.

— Por aí. Aconteceu alguma coisa?

— É preciso levar os robôs para a ilha. Usem uma das lanchas. Vá buscar Mackenzie, Bolowsky. Enquanto isto, Heston ajudará a colocar os robôs na lancha, se for preciso.

— Está bem.

Bolowsky afastou-se dando a volta pela beira da praia. Heston e Margot foram até o cais, seguidos pelos robôs silenciosos. Suas passadas ressoavam fortemente no tabuado do trapiche. Estavam de chapéu e, a pequena distância, enganavam qualquer um, tamanha sua semelhança com pessoas. Caminhavam meio lentamente, mas quase humanos. Os sete entraram na lancha e Alexandre colocou-se no comando.

— O robô vai dirigir a lancha? — perguntou Heston.

— Vai.

— Espero que o consiga.

— Conseguira.

Heston encolheu os ombros e lançou o cigarro na água. Viu Mackenzie voltando com Bolowsky e chamou-os com a mão. Margot olhou para lá e fez sinal para que se apressassem. Os dois logo entraram na lancha.

Margot olhou-os com a testa franzida.

— Espero que cumpram as ordens direito. É só desembarcar os robôs na ilha e voltar com a lancha. Alguma dúvida?

Disse isto com a voz cheia de sarcasmo, mas os três patifes não estavam dispostos a discutir e trataram de saltar para a lancha, sentando-se entre os robôs. Mackenzie e Bolowsky olharam desconfiados para o robô Alexandre, mas este pôs a embarcação em movimento, sem dificuldade alguma. Dirigiu-a sem embaraço até a ilha, aonde chegaram sete ou oito minutos mais tarde.

Alexandre, então, voltou-se para os três homens.

— Desembarquem e ajudem os outros robôs a descer. Não deixe nenhum cair na água, Heston.

Era a voz de Aaron Chandler e Heston teve que obedecer sem discussão. Saltaram os três para a praia e aguardaram, enquanto os robôs faziam o mesmo. Nenhum deles precisou de ajuda. Se não fossem os movimentos pesados, passariam certamente por seres humanos. Chegaram à beira da praia, muito lentamente, afundando os pés na areia molhada.

Heston acenou para Alexandre, que continuava no controle da lancha.

— Hei! — chamou. — Agora é sua vez, Alexandre!

Mas Alexandre não desembarcou. A lancha deslizou vagarosamente, aproando para a direita, até que a popa voltou-se em direção à praia, perpendicular à ilhota. Então, ouviu-se roncar mais forte o motor e a lancha partiu em disparada, afastando-se velozmente.

Heston, Mackenzie e Bolowsky ficaram mudos de espanto.

— O robô deve ter enguiçado... — arriscou Bolowsky.

Um dos manequins parou em frente dele.

— Ninguém enguiçou, Bolowsky. Esta foi a nossa decisão.

— O quê? Que decisão? — gritou Heston.

Outro robô levantou o braço esquerdo e um fino e rápido jorro de gás partiu da ponta dos dedos, batendo em cheia no rosto de Heston, que recuou, olhos esgazeados de terror. Os outros robôs levantaram também os braços, e Bolowsky e Mackenzie receberam os cinco jorros de gás. Em menos de cinco minutos, os três homens jaziam desmaiados na areia.

Um dos robôs inclinou-se e revistou os três, tirando-lhes os revólveres. Com eles na mão, afastou-se para o interior da ilha. Três robôs carregaram Bolowsky, Mackenzie e Heston nos ombros, com a maior facilidade, e seguiram o primeiro.

O robô que servia de guia chegou a uma pequena clareira recamada de galhos picados pelas balas disparadas aquela manhã contra Brigitte e Número Um. Ali estacou, ficando imóvel. Heston e seus companheiros foram jogados ao chão, bem ao centro de um circulo formado pelos seis robôs, apavorantemente fiéis ao comando.

Restava apenas esperar.

A demonstração já podia ser realizada sem inconvenientes, pois os três ratos para a experiência haviam sido encontrados.

 

O primeiro a chegar foi o enviado cubano. Chegou numa lancha rápida, esporte. Na popa via-se a vara de pesca, encaixada no suporte, mas era evidente que não era a pesca que o trazia por ali. Localizou a prainha, deslizou até lá e cortou os motores, encravando-se na areia.

Não conseguira ainda alcançar a praia, quando surgiram outras três lanchas, do mesmo tipo, vindas de lugares diferentes. A oeste, ou seja, do lado do continente, apareceram duas lanchas mais, e três iates, todos convergindo para a ilha. Por cima das embarcações, três helicópteros, que manobraram e desceram em terra firme.

Não podiam ser mais pontuais. Às cinco e cinco, doze homens ocuparam a ilha, reunidos em bando, entreolhando-se com receio e desconfiança mútua.

Mas logo tiveram sua atenção voltada para os estranhos seres que se aproximavam, vindos do interior da ilha. Ninguém se surpreendeu demais, pois já estavam à par da meta daquela insólita reunião: contratar os serviços de assassinos infalíveis, invencíveis.

E, pelo menos à primeira vista, aqueles robôs pareciam difíceis de vencer.

Instintivamente, os doze se agruparam na beira da praia, quando dois dos robôs se aproximaram. Foi um gesto inconsciente de defesa. Todos olharam curiosos e desconfiados para os manequins, em silêncio.

Um deles então falou:

— Bem-vindos senhores. Observo com satisfação que estão presentes todos os convidados. Espero poder demonstrar-lhes logo a eficiência de nossos trabalhos. Por favor, sigam-me.

— Um momento — disse o enviado britânico. — Não há nenhum ser humano na ilha?

— Somente os senhores. E mais três que servirão de... cobaias.

— O que significa isto? — perguntou o russo.

— Vamos matá-los diante de todos, concedendo-lhes todas as oportunidades que desejem, se bem que, na realidade, não tenham meios de sobreviver. Mas, senhores, não é justamente isto o que pretendem ver demonstrado?

— Isto mesmo. Quem são os três homens?

— Pessoas... inúteis. Não se preocupem com eles. Venham por favor.

O robô pôs-se a andar e os doze homens foram atrás dele, seguidos por outro na retaguarda. Todos olharam para trás, intranqüilos.

Mas chegaram sem contratempo ao local em que os outros quatro vigiavam Heston, Mackenzie e Bolowsky, que já haviam acordado e estavam pálidos, assustados.

— Aqui estão as armas deles — disse o robô que os conduzia. — Vamos devolvê-las para que possam defender-se. Quanto aos senhores, é melhor que se abriguem para evitar o perigo de uma bala perdida, enquanto não termina o... espetáculo.

— Um momento, um momento — pediu de novo o britânico. — Quero examinar as armas.

— Estão em perfeitas condições para matar, asseguro. Pode examiná-las.

O inglês aproximou-se, pegou os três revólveres da mão do robô, abriu os tambores e examinou as balas. Voltou-se para o robô e declarou-se satisfeito.

— Parecem perfeitos.

— Todos têm o direito de esclarecer qualquer dúvida — disse o robô. — E podem tentar o que quiserem para dissipar suspeitas. Não desejamos que saiam daqui pensando que foram enganados.

— Eu quero experimentar uma coisa — disse o homem da CIA. — A menos que se importem que atire.

— Estamos muito longe de qualquer lugar habitado — disse o robô. — E quanto aos tiros, tome cuidado com os ricochetes. Pense bem.

— Já pensei — o agente norte-americano puxou a automática. — Posso atirar agora?

— À vontade.

O homem da CIA apontou para o peito do robô e apertou o gatilho. O ricochetear da bala ouviu-se claramente, zunindo acima das cabeças. O segundo disparo foi dado contra o ombro do robô, tentando alcançar a junção do braço ao corpo, ponto fraco provável. Novamente ouviu-se a bala ricochetear. O terceiro disparo foi dado astutamente contra o olho do robô... e novamente ouviu-se o ricochete, que desta vez cravou-se no solo, entre os pés do homem da CIA.

— Se não está satisfeito, pode continuar disparando — disse o robô. — Anteriormente o ponto fraco era os olhos, mas certa experiência que tivemos nos fez providenciar a colocação de vidro à prova de bala, resistente a qualquer bala comum, Alguém mais quer experimentar? Podem fazê-lo à vontade, Estamos à disposição dos senhores.

Ninguém disse nada.

— Muito bem — disse o robô amavelmente. — Agora será melhor que se abriguem, para evitar que um dos três homens tente feri-los. De qualquer modo, dois robôs ficarão à frente para protegê-los.

Os doze homens se ocultaram em meio ao matagal e por trás das palmeiras. Dois manequins tomaram posição de costas para eles, encarando Heston, Bolowsky e Mackenzie, que estavam mudos de terror.

Quando o robô jogou as armas para eles, recuaram, pálidos como cadáveres, Seus olhos esgazeados fitaram o robô.

— Não! — gritou Bolowsky — não podem fazer isto conosco, senhor Chan...

Antes de pronunciar o nome do chefe, o braço do robô subiu rápido e Bolowsky recebeu no peito uma bala. Caiu retorcido, com uma perna dobrada e o rosto crispado.

— Malditos! — gritou Heston. — Malditos porcos insensíveis!

Pegou o revólver e começou a disparar freneticamente contra o robô, louco de ódio, tremendo com violência. Mackenzie pegou outro revólver e correu para o interior da ilha.

Heston atirou até esvaziar o revólver, apesar de duas balas haverem ricocheteado contra ele; uma na perna direita e outra de raspão no corpo. Ao descarregar a arma, jogou-a contra o robô que se aproximava lentamente dele e que, levantando o braço, deu-lhe um golpe no peito que o arremessou longe.

Mas Heston parecia haver enlouquecido. Pôs-se de pé, gritando. O robô continuava a avançar sobre ele, implacável. Heston olhou para todos os lados como uma fera acuada. Viu uma grande pedra no chão e levantou-a com uma força imprevista. Esperou o robô e arremessou-lhe a pedra à cabeça, com toda a força... Mas o robô, imperturbável, aplicou-lhe outro golpe violento que tornou a derrubá-lo.

Heston voltou a levantar-se, tonto, cambaleante. Tinha manchas de sangue na perna e no corpo, e seus olhos estavam esbugalhados, quando o robô novamente aproximou-se.

Deu um passo rápido para o lado e tentou derrubar o robô com um calço, segurando-o pelo pescoço. Se conseguisse derrubá-lo, metade da parada estava ganha. Mas as chamas azuis se espalharam pelo corpo do robô e Heston foi jogado longe com o choque elétrico.

Estava tentando ficar em pé, quando a mão direita do robô levantou-se e dela duas chamas brotaram silenciosamente.

Heston deu um grito que ressoou por toda a ilha. Suas mãos se crisparam no peito, arregalou muito os olhos... e caiu de bruços.

O robô pegou-o por um pé e arrastou-o, deixando-o junto ao cadáver de Bolowsky. Voltou-se para a dúzia de visitantes e mostrou os dedos índex e polegar da mão direita.

— Dois — disse desnecessariamente. — Agora, se querem seguir-me, demonstrarei como se caça facilmente um fugitivo.

Os doze homens se levantaram. A maioria estava pálida. Em silêncio, seguiram instintivamente o robô, sem tirar os olhos do que iniciara a ação de extermínio contra os três ratos.

O robô se deteve e levantou o braço esquerdo. Uma chama comprida saiu de sua mão, até um grupo de arbustos, que enegreceram consumidos pelo fogo.

O robô passou por cima, inalterável, e lançou novo jato de fogo sobre o matagal, que instantaneamente carbonizou-se.

Mackenzie saiu correndo do matagal, antes que o robô o queimasse. Precipitou-se desesperado para a parte norte da ilha e começou a escalar as rochas.

O robô apagou o lança-chamas, mas o braço esquerdo permaneceu reto. Ouviu-se um leve estampido surdo e, subitamente, parte das rochas às quais

Mackenzie subia, saltaram em pedaços. Mackenzie continuou escalando depressa, mas o robô não lhe deu mais tempo. A pequena cápsula de explosivo concentrado partiu de sua mão novamente... desta vez com melhor pontaria.

Todos viram Mackenzie saltar pelos ares, destroçado, por entre estilhaços de rochas. Descreveu uma curva no ar e tombou ao pé dos rochedos, formando um quadro trágico, patético.

Fez-se um pesado silêncio, quase palpável, na ilha.

O robô voltou-se para os doze homens. Manteve-se algum tempo calado, observando-os com seus olhos que enviavam as imagens para longe dali.

— E então? — perguntou. — Desejam mais alguma prova, cavalheiros?

As cabeças balançaram negativamente. Um dos convidados, falando com sotaque sul-americano, perguntou:

— Como vocês podem ser derrotados?

— Ainda não sabemos — disse o robô. — Supomos que talvez uma bazuca. Ou uma granada de mão, se bem que, provavelmente conseguiria apenas derrubar-nos.

— E com a bazuca podemos destruí-los?

— Sim... mas muito pouca gente anda por ai com uma bazuca no bolso,

A piada provocou alguns sorrisos forçados.

— Desde quando podemos contratá-los?

— Desde agora. Todos já estão a par do sistema de comunicações conosco, e já sabem o preço da “operação”. Alguns dos senhores têm alguma encomenda para já?

Houve uma troca de olhares cheia de desconfiança, furtivos, entre os doze convidados para a “festa”.

— Entendo — disse o robô, amavelmente. — Nenhum quer que o outro saiba. Está certo. Se alguém deseja algo, poderá usar a senha mais tarde. Mais alguma pergunta?

— Sim — disse um negro. — Quem são vocês e onde estão.

— Já advertimos que esta pergunta não seria respondida. Só lhes cabe apontar a vítima e pagar quinhentos mil dólares por serviço. O resto é por nossa conta. Algo mais?

— Mais oui — disse o francês. — Como podemos saber se um dia não seremos nós que receberemos a visita de vocês?

O robô demorou a responder:

— E por que deveriam estar seguros disso?

— Comment? — disse o francês.

— Quero dizer que o robô de plantão matará a quem ordenarem, simplesmente. Sem distinção alguma. Nós somos cem por cento eficazes, senhores.

Os doze homens se agitaram, nervosos, desassossegados. Parecia que ninguém tinha mais nada para perguntar, nem opinar. O robô esperou quase meio minuto e, finalmente, disse:

— Agora, peço por favor aos senhores: permaneçam na ilha durante uma hora, até que anoiteça. Então, poderão regressar para de onde vieram. Quero avisar aos senhores que não tentem seguir-nos. Aguardarão a noite e voltarão para seus países. Isto é tudo. Obrigado pela visita e... cá estamos às ordens.

Os robôs encaminharam-se para a praia, na parte sul da ilha. Os homens separaram-se instintivamente, permitindo a passagem deles. Depois, seguiram atrás, pensativos. Logo viram a lancha que se aproximava e não se surpreenderam ao avistar no comando um robô clássico quadradão, feio. Permaneceram em silêncio até os robôs tomarem a lancha e, com Alexandre no comando, afastarem-se da ilhota.

— Realmente fora do comum tudo isto, não?

O americano encarou o britânico, que lhe oferecia um cigarro. Enquanto este o acendia, o maço passou por todo o grupo de espiões, sabotadores e revolucionários.

— Estranho, sim — concordou o da CIA — e muito arriscado.

— Eu também concordo — disse o francês.

— Tudo é perigoso — disse o russo. — E os robôs não serão mais perigosos do que qualquer outra coisa. É bem possível que evitem pequenos conflitos internacionais.

— Sim... — disse sorrindo um dos sul-americanos. — Quem morre nas mãos de um robô, somente saberá que foi escolhido como vítima, mas nunca saberá quem contratou o assassino. Isto significa que muita gente poderá morrer sem que ninguém se atreva a acusar ninguém. Seria diferente se o assassino fosse chinês, negro ou ruivo... Poder-se-ia acusar respectivamente a China, aos africanos ou aos irlandeses, por exemplo. Mas se o assassino é um robô, seu contratador pode ser qualquer um. É um alívio esta possibilidade de não agravar tensões políticas, não acham?

O sul-americano tinha evidentemente um humor muito especial, mas os outros não concordaram. O russo perguntou ao americano, apontando-lhe o cigarro:

— Qual é sua opinião definitiva?

— Não sei. Talvez a agente “Baby” estivesse com a razão.

— Ela está metida nisto? — disse o russo de cara amarrada.

Os outros fitavam curiosos ao homem da CIA, que percebeu o interesse que despertara ao citar o nome de “Baby”. E não resistiu à tentação de fazer suspense, deixando de responder à pergunta do soviético.

— Bem... — disse este. — Parece que precisamos aguardar a noite para sair daqui. Por mim, não me importo, mas quero saber se vamos ficar todos juntos ou cada um volta para o seu barco.

O homem da CIA lançou um rápido olhar ao soviético.

— Creio que preciso pensar a respeito — disse.

Foi o primeiro a separar-se do grupo, indo para o helicóptero. Os outros foram-se dispersando lentamente, regressando cada um ao seu lugar. Entraram nas lanchas, nos iates, nos helicópteros. De fato, a situação daqueles doze não era das mais cômodas. Uma reunião internacional de espiões, na qual adquiriram a certeza de que todos podiam dispor de robôs assassinos, não era muito tranqüilizadora.

 

Um dos sul-americanos teve muito pouca sorte, sem dúvida. Sua lancha era a mais fechada de todas. Para alcançá-la, teve que ir vadeando pela água, apoiar-se na borda e tomar o impulso para alcançar a coberta. Por sorte, pensou, tinha roupas secas na cabina e poderia...

Interrompeu seus pensamentos ao dar com um desconhecido junto dele, estendido no chão, todo vestido de negro e que parecia estar à sua espera, de braços abertos. Tentou abrir a boca para avisar os outros, ruas realmente aqueles braços fortes estavam à sua espera...

Não teve tempo de fazer nada, porque a mão esquerda do desconhecido tapou sua boca, o braço direito passou-lhe pelo pescoço, rudemente, aplicando-lhe uma gravata firme, que quase o matou. O sul-americano debateu-se em vão, de barriga para cima, estendido sobre o agressor, entre aqueles braços que pareciam de aço.

A noite chegou para ele antes dos outros. Tudo escureceu rapidamente, um zumbido nos ouvidos, a cabeça dando voltas na escuridão... e logo, percebeu junto ao seu um lindo rosto de mulher, o mais formoso que já vira, como se estivesse sonhando. Sonhando. Devia ser um sonho. Não podia existir uma mulher tão bela, com tão formosos olhos azuis. Certamente, quando acordasse, veria...

E adormeceu.

Não poderia imaginar que aquela formosa mulher existia realmente e que uma de suas mãos lhe estava tomando o pulso.

— Não aperte mais, Número Um: está morto.

Número Um libertou-se do cadáver, jogando-o para um canto da lancha. Rastejou até ele e revistou-o cuidadosamente. Demorou alguns segundos para encontrar o que estava procurando.

Levantou a mão, mostrando as chaves.

— Aqui estão as chaves de ignição. este sujeito era muito desconfiado.

—        Devia temer que lhe roubassem a lancha — disse “Baby” sorrindo. — Acredita que os helicópteros nos alcancem antes de conseguirmos chegar?

— Não. Temos os segundos de vantagem com a surpresa e a velocidade da lancha... Vamos tentar. Tome o revólver dele.

E jogou-o para Brigitte, que o pegou no ar, sorrindo.

— Você dirige?

— Sim. Vamos surpreender esta gente.

— E aos nossos amigos da ilha — sorriu friamente a espiã. — Adiante, querido: vamos caçar os robôs.

 

O agente russo foi o primeiro a perceber a veloz partida da lancha, sentado em seu helicóptero. Olhou-a por alguns momentos de cenho franzido, depois empalideceu.

Saltou do aparelho, ao mesmo tempo em que o agente britânico abandonava o seu, e correram juntos para a praia, seguidos do agente da CIA. Os outros estavam olhando, intrigados, a lancha que se afastava a toda a velocidade.

— Hei! — gritou o russo. — Aonde vai esse cara? Ainda não anoiteceu!

— Ora, cada um deve fazer o que quiser — disse o americano.

— Sim? — o russo olhou-o zangado. — Então vamos deixar que ele seja o único a seguir os robôs, e o único a saber onde está a base, para depois se apoderar do segredo?

— Mon Dieu! — exclamou o francês, em seu iate. — Não podemos permitir isso!

O agente da CIA foi o primeiro a correr para o helicóptero, seguido do russo furibundo e do fleumático britânico. Em menos de quinze segundos, todos os aparelhos estavam em movimento. Os mais desgostosos eram os de iate, que não haviam previsto a necessidade de rapidez, numa eventualidade.

* * *

Brigitte sorriu, olhando o céu.

— Aí vêm eles, querido. Espero que os helicópteros não tenham bombas.

— Não as jogariam. Simplesmente farão o que estamos fazendo. Ou seja, ir para a ilha dos robôs. O que pensa que acontecerá lá, com tanta gente?

— Não posso imaginar, mas tenho o pressentimento de que não vai ser divertido. Os robôs não gostarão da visita.

O robô que estava no cais enviou a imagem para um dos receptores da sala de controle, onde Margot Stevens, Percy Fowler e Aaron Chandler estavam comentando ainda o encontro entre os convidados e os robôs.

— Uma lancha se aproxima — disse Margot.

Os dois homens olharam para a tela, preocupados.

— Parece que um deles decidiu seguir a nossa.

— Podemos esconder os robôs e a lancha, e dizer que não sabemos nada a respeito, e que...

— Não há mais tempo. A lancha está chegando à ilha. Estou vendo o homem que a dirige... Mas não pode ser! Não pode ser!

Margot apontou com o dedo para a tela, onde já se distinguia a figura de um homem e uma mulher, abraçados pela cintura.

— Pois são eles — disse rindo: — Romeu e Julieta. Parece que Heston e os outros eram piores do que imaginávamos, meu querido.

— Não estão mortos!

— Ora, Percy! Não seja cretino, meu amor...

— Está claro que enganaram a Heston e aos outros. Devem ser grandes nadadores, e conseguiram escapar à vigilância. Ficaram na ilha, roubaram a lancha... e vêm atrás de nós. Acreditar em robôs, ainda vai, mas em ressuscitados...!

— Outras lanchas estão vindo... e os três helicópteros! Vão chegar todos juntos!

— Então, teremos que preparar uma recepção digna para eles, ou seja: mandar todos os robôs para enfrentá-los! Se deixarmos que nos conheçam, que saibam onde é a base, tudo estará perdido.

— Poderíamos fazer um acordo em que...

— Um acordo com a CIA? Com a MVD russa? Com o serviço de espionagem britânico? Com...!?

— Pois muito bem, foram eles que escolheram! Que morram todos!

* * *

Brigitte apontou o cais.

— Lá está um deles. Os outros não tardarão a aparecer... E lá vêm eles! Tão simpáticos! E lá está Alexandre, o meu querido robô Alexandre. Estão todos reunidos: o pequeno exército de robôs.

— Estamos já muito próximos, Brigitte... Pronta para saltar?

— Quando quiser, querido.

— Pois então, já!

Número Um fixou o volante da lancha, que se dirigia em linha reta para o cais, já relativamente próximo. Foram para a popa, entreolharam-se sorridentes e Número Um apontou para a esteira de espuma que a lancha ia deixando atrás.

— Até logo, “Baby”.

— Até logo, meu amor.

Saltaram os dois juntos, para o alto e, rápidos, encolheram as pernas, convertidos em uma bola, escondendo a cabeça entre os joelhos e segurando estes com os braços. Caíram na água como objetos redondos, afundando e deslocando-se violentamente, envoltos em borbulhas, girando até que a força do impulso cessou. Quando voltaram à superfície, encontravam-se a pouca distância da praia, ao mesmo tempo em que a lancha batia violentamente contra o iate dos ocupantes da ilha. Mergulharam rápidos para escapar aos efeitos da explosão inevitável, chegando a engolir água. Quando tornaram a emergir, o iate e a lancha formavam um só núcleo ardente, lançando espessas nuvens de fumo negro contra o céu avermelhado do poente. A marola violenta causada pela explosão colheu-os em cheio, afundando-os, para logo voltarem à tona. Brigitte pegou a mão de Número Um e os dois começaram a nadar para a ilha, desviando-se do cais, vendo os robôs através das chamas que se espalhavam pelo embarcadouro.

— Depressa! — disse Número Um. — Estão chegando os outros.

Separaram-se e nadaram a toda a pressa até umas rochas à direita do embarcadouro. Os robôs encaminharam-se para a esquerda, rumo ao local para onde afluíram as lanchas. Os iates estavam ainda a meia milha.

Número Um foi o primeiro a escalar as rochas e estendeu-se nelas, alcançando uma das mãos de Brigitte, que logo estava lá junto a ele.

Ficaram arquejantes, olhando para o céu. Os helicópteros sobrevoavam há mais de um minuto a ilha. Haviam retardado a marcha para seguir as lanchas, mas ao depararem com a ilha, adiantaram-se, compreendendo que aquele era o local procurado.

Número Um olhou admirado o peito de Brigitte e, sem poder resistir, apalpou um “terceiro” seio que se via na espiã.

— Vou ver se está molhado — disse sorrindo.

— Errou — disse ela. — Você não segurou o revólver, Número Um.

— Bem... creio que tenho sorte, não?

Sorrindo docemente, Brigitte meteu a mão sob a malha que cobria seu corpo e, pelo pescoço, sacou o revólver do sul-americano, envolto em plástico.

Desfez o embrulho e examinou a arma.

— Molhou-se um pouco, mas acredito que não falhe. Vamos até a casa, Um. Temos que nos apoderar do controle, antes que os robôs façam uma carnificina.

— Parece-me que não poderemos evitar parte dela.

Número Um apontou para a praia, onde um dos robôs, metido n’água até os joelhos, havia lançado uma de suas cápsulas de explosivo concentrado contra uma das lanchas, que saltou em pedaços, em meio a intensas labaredas vermelhas.

— Depressa! — disse Brigitte.

Correram até a casa, sem medo dos robôs, pois estavam todos na praia. Entraram facilmente pela porta da cozinha. Não havia ninguém ali. Correram pelo living, rumo ao vestíbulo.

— Devem estar lá em cima, não? — disse intrigado Número Um. — O que está procurando por aqui?

— Richard Adams... Vejamos se está no seu quarto!

Procuraram por todos os quartos do térreo, e somente um tinha sinais de gente: roupas no chão, sapatos, restos de comida...

— É aqui, mas não está — disse Número Um.

— Vamos para cima!

— Há um alarma: nos ouvirão.

— E que importa? — retrucou ele. — Já não contam com os robôs. Terão que se defender sozinhos.

— Está certo, amor — sorriu friamente Brigitte.

— Acredito que se defendam muito mal. Vamos... Espera!

Brigitte aproximou-se da cama e recolheu o pequeno receptor de televisão, abandonado ali por Adams.

— É estranho — murmurou, enquanto se punha a caminho. — Não acredito que o tenha esquecido de guardar. Está parecendo que fugiu às pressas, sem tempo de levá-lo.

Brigitte ligou o aparelho. A imagem surgiu em seguida. Viu Richard Adams na sala de controle, com Margot Stevens, Chandler e Fowler. O velho agitava furiosamente os braços, aproximando-se da mesa de controle, que Fowler manejava. Ouviu-se sua voz, crispada, pelo receptor, num final de frase:

— ... cometer mais assassinatos!

— Vão matá-lo — disse Brigitte. — Depressa, Um!

Largou o pequeno televisor e saiu rapidamente do quarto de Adams, seguida por Número Um, que ia desarmado.

 

— Saia imediatamente daqui, Adams! — gritou Chandler. — Saia, ou vai pagar caro!

— Não! Não deixarei que meus filhos cometam mais assassinatos! Não deixarei! Vou matar a todos! Eu destruirei todos!

Margot Stevens empurrou-o cruelmente, zombando:

— Saia daqui, velho louco — riu. — Vá lá na praia ver o trabalho de... de seus filhos.

— Sua cadela, prostituta, eu vou...

Adams parecia realmente louco. Apertou as mãos no pescoço de Margot Stevens e apertou-o com tal fúria que ela perdeu a voz. Seus dedos fracos e amarelos a teriam estrangulado se Aaron Chandler, furiosamente, não disparasse dois tiros nas costas do inventor de brinquedos. Este se imobilizou e Margot aproveitou a oportunidade para tirar-lhe as mãos do pescoço, empurrando-o violentamente, gritando de raiva e medo. Richard Adams foi arrastado para o fundo do quarto à prova de som, aos tropeços, de olhos arregalados, feições crispadas.

Caiu de bruços, como uma velha árvore morta, finalmente abatida pelo machado. Mas ainda conseguiu levantar a cabeça, levemente:

— A... as... sas... sinos... Assassinos!

Sua cabeça pendeu, o corpo estremeceu e finalmente ficou imóvel. Margot aplicou-lhe um pontapé nas costas.

— Devíamos tê-lo morto antes, velho maldito! — gritou.

Chandler afastou-a rudemente dali.

— Acalme-se — grunhiu. — Não podemos perder a cabeça por causa de um velho louco. Já morreu, esqueça-o. Está bem?

— Ia me estrangular! — gritou Margot, ainda pálida de medo.

— Mas não conseguiu. Esqueça. Vamos ver come está a praia.

Olharam as telas de televisão. Os robôs já haviam destruído três lanchas e se reagrupavam, lançando chamas para todos os lados. Os helicópteros tentavam descer agressivamente contra eles, mas os lança-chamas não permitiam. Justamente numa destas tentativas, um dos robôs levantou o braço esquerdo para o mais ousado dos helicópteros e lançou uma das cargas explosivas. O helicóptero saltou em pedaços ardentes, envolto em chamas, caindo ao mar, em uma linha oblíqua, diretamente de encontro a um dos iates que estavam chegando.

A explosão foi espantosa, um monte de madeiras brancas saltou numa coluna gigantesca, entre chamas, nuvens de espumas e fragmentos candentes, vermelhos, azuis, alaranjados...

— São invencíveis — gritou Fowler. — São realmente assassinos invencíveis! Quando construirmos mais, seremos os donos do mundo! Faremos um exército de robôs, para as guerras! Exércitos assassinos, para movimentos políticos! Exércitos!

A porta da sala de comando, que estava apenas encostada depois da entrada intempestiva de Adams, saltou como se tivesse saído dos gonzos. Uma gigantesca sombra negra entrou mais veloz e destruidora do que um raio. Margot soltou um gemido quando o ombro de Número Um a derrubou. Foi como se uma cana seca se opusesse a um furacão. Aaron Chandler ergueu rápido o revólver, pálido de susto, aterrorizado diante daquele homem que vinha direto para ele sem medo de sua arma. E num golpe velocíssimo, antes que Chandler puxasse o gatilho, a mão esquerda de Número Um atirou longe o revólver. Antes que ele pudesse gritar, a mão direita de Número Um, rígida como um machado, abateu-se sobre seu crânio, numa cutilada brutal, partindo-o com um ruído de madeira quebrada. Chandler caiu fulminado.

Percy Fowler ainda teve tempo de gritar. E ainda conseguiu sacar o revólver, apontando..o para aquele homem incrível.

Mas, parada na porta, a agente “Baby” disparou, friamente, sem alterar a fisionomia. Era como se estivesse praticando tiro ao alvo. Seus olhos azuis pareciam congelados. Foi um tiro caprichado, sem pressa e sem hesitações. A bala acertou precisamente onde a espiã desejou que acertasse: entre as sobrancelhas de Percy Fowler, que morreu instantaneamente e caiu sentado na poltrona frente ao painel de comando.

No chão, Margot Stevens havia apanhado o revólver de Aaron Chandler e apontava-o já para Número Um, que apenas pôde saltar para o lado.

Mas a agente “Baby” fez muito mais. Sem se alterar, sem perder a compostura, atirou novamente e Margot Stevens saltou para trás, com uma bala no coração, crispando o dedo no gatilho. A bala atingiu uma das telas de televisão, que explodiu violentamente, lançando estilhaços e fumaça para todos os lados. Por toda a mesa de controle passaram umas chispas azuis, crepitando.

E logo tudo ficou às escuras. Todas as luzes da casa se apagaram, bem como as telas e os aparelhos que comandavam os robôs a distância. Tudo desapareceu na escuridão.

— Um!... — gritou Brigitte. — Um!

Os fortes braços do espião a enlaçaram no escuro. Ouviu o riso alegre dele junto aos seus ouvidos:

— Não grite. Os robôs podem ouvir-nos.

— Você está bem? Não está ferido?

— Sim, mas não muito grave. Acho que poderei ir adiante. E você?

— Eu também — riu Brigitte, aliviada. — Está pensando a mesma coisa que eu?

— Creio que sim: os robôs deixaram de funcionar. Vamos sair e verificar como terminou a luta. Ou consertamos antes a luz da casa? É possível que o quadro de fusíveis seja aqui mesmo.

— Certo. Mas não precisamos de luz. Além disso, os robôs podem voltar a funcionar. Vamos dar uma olhada em nossos... colegas. Talvez algum ainda esteja vivo.

 

Era verdade.

E restavam vivos oito dos doze homens que haviam comparecido à demonstração na ilhota. Dois deles estavam feridos. O inglês havia explodido junto com seu helicóptero. Morreram também o francês e dois sul-americanos. Dois estavam feridos mas conseguiram escapar justo no momento em que os robôs apontavam para a sua lancha, saltando n’água.

Era um grupo sombrio aquele que encontraram na praia da ilha. Estavam examinando os sete robôs, que permaneciam imóveis dentro d’água, dois afundados até a cintura e os outros com água pelos joelhos. Três estavam ainda em atitude agressiva, com ambos os braços levantados.

Dentro de cinco minutos seria noite fechada. Naquele instante um esplendor avermelhado, no oeste, sobre o continente americano, permitia ainda certa visibilidade, mais que suficiente, embora mal pudessem distinguir os rostos uns dos outros.

Todos olharam para a praia quando viram as duas sombras negras se aproximando. E todos sacaram os revólveres, dispostos a enfrentar o que desse e viesse. Diante dos robôs, uma lancha em chamas que ainda não afundara avermelhava a cena e, ao fundo, o iate de Chandler continuava envolto em chamas cada vez mais mortiças, que lançavam rolos de fumaça negra para o céu. Uma das lanchas se desprendera das amarras e flutuava à deriva, mansamente.

— Somos amigos — Brigitte levantou a mão. — Não se preocupem mais com os robôs: já não funcionam.

O agente da CIA adiantou-se e encarou a mulher vestida de negro, lançando um olhar surpreendido para o homem.

— Você é “Baby”? — perguntou.

— Não.

— Então quem é?

— Que importa agora? O que importa é que tudo acabou, e que vocês podem partir.

O russo adiantou-se bruscamente:

— Partir? Por quê?

Brigitte encarou-o friamente. -

— Tem alguma sugestão melhor? — perguntou em russo.

— Você é russa? — perguntou ele.

— Não.

— Quem é? Por que não quer dizer? Que papel representa nisto tudo?

— O meu. Meu conselho...

— Não necessitamos de conselhos. Quem está naquela casa?

— Vivos ou mortos?

— Vivos.

— Ninguém.

— Vocês os mataram?

— Mais ou menos. Escute aqui, russo, nós acreditamos que...

— Já lhe disse que não me interessa a opinião dos outros. A questão agora é a seguinte: que vamos fazer com os robôs?

— O que disse? — indagou Brigitte.

— Os robôs. Não vamos deixá-los aqui...

— Eu pensava em jogá-los no fundo do mar.

— No fundo do mar? — exclamou o russo. — Está louca? Vocês farão o que quiserem, mas eu penso em levar um desses robôs para ser estudado!

— E para ser construído em série na Rússia? — cortou secamente Brigitte.

— E por que não? Os outros não vão fazer o mesmo? E não me interessa o que façam. Eu vou levar um robô.

— Eu também.

— E eu...

Todos queriam ficar com um robô. Menos Brigitte e Número Um, que estavam silenciosos, encarando aqueles homens que já haviam demonstrado sua falta absoluta de piedade, permitindo que quatro seres humanos fossem sacrificados na sua frente, na ilhota, somente para que se convencessem de que os robôs eram assassinos perfeitos, infalíveis, invencíveis.

— Há um pequeno problema — sorriu friamente Brigitte. — Vocês são oito e existem somente sete robôs. De maneira que um ficará sem o seu bonito brinquedo.

— Oito? Eu creio que somos dez — disse o cubano — ou vocês não querem nenhum?

— Não, muito obrigada — Brigitte levantou a mão. — E você, quer algum desses bonequinhos, querido?

— Não. Cedo a minha parte.

O russo apontou para eles.

— Claro que ambos estão fora do sorteio. E tratem de não interferir para que não acabem mal.

— Bem. Nós dois vamos sentar-nos na areia e apreciar o mar — disse sarcasticamente Brigitte. — E deixaremos que vocês tomem suas decisões.

— Assim está bem. E não se esqueça que somos oito, tão perigosos quanto vocês, e que estamos armados.

— Não interferiremos. Somente quero fazer uma pergunta: o que acontecerá depois do sorteio?

— Cada um irá para o seu lado, levando o seu robô. Não acredito que ninguém esteja disposto a brigar. Nos separaremos... e assunto encerrado.

— Uma boa idéia.

Brigitte apoiou-se ao braço de Número Um e os dois se afastaram até uma palmeira. Sentaram ali, olhando o grupo que discutia a maneira de sortear os robôs e dar o fora, pois na certa não tardariam a aparecer os barcos da Guarda Costeira para investigar o incêndio do iate, que era mais alto e se refletia nas nuvens e no céu negro.

— Vamos deixá-los partir? — sorriu Número Um.

— Como impedi-los? São oito, querido. Não tão perigosos como os robôs, mas creio que nossos esforços para reter os robôs seriam em vão, pois basta sobrar um deles com vida para que seja inútil o nosso sacrifício. Além do mais, só possuímos um revólver.

— Bem — disse Número Um. — Tanto faz que levem um como sete. Mas acho que deveríamos fazer algo para tentar impedi-los.

— Deixe-os. Que levem os robôs. Que se matem e destruam uns aos outros. O que nos importa?

— Ora, Brigitte, a mim você não engana com essas palavras de indiferença. Lutamos como loucos para chegar até aqui, e agora vamos deixar que nos levem o resultado de nossos esforços? Construirão centenas de assassinos invencíveis! Você pretende que eu acredite que não se importa?

— Deixe-os.

Número Um franziu a testa e encarou os olhos brilhantes, atentamente, na escuridão. Súbito, sorriu, levou uma das mãos de Brigitte nos lábios beijou-a e disse:

— Eu sei que você impedirá. Não sei como, querida, mas tenho certeza de que está guardando o último trunfo. Como sempre faz. Posso auxiliar em alguma coisa?

— Por enquanto, não. Deixe que partam tranqüilamente.

— Está bem. Eles...

“Tranqüilamente” não passava de uma suposição da agente “Baby”. Foram interrompidos por um tiro e viram um homem cair de costas, no grupo de espiões. Somente isso. Ninguém se alterou pela presença de mais um morto. Todos eram... da profissão.

Um deles se destacou do grupo e aproximou-se dos dois. Era o agente da CIA, que olhou fixamente para Brigitte, com o revólver fumegante na mão.

— O cubano não se conformou em ficar sem o robô e tive que matá-lo. Sinto muito.

— Para que tanta ternura? — disse Brigitte. — Que importa um morto a mais ou a menos?

— Creio... creio que você estava com razão. Não me interrompa... Sei que é a agente “Baby”. Eu... gostaria de ter coragem de desobedecer a ordens da Central, mas me mandaram que levasse um desses robôs e é isto que vou fazer. Quer algum recado para a Central, “Baby”?

— Somente para você, Johnny — sussurrou a espiã. — Se conseguir sair deste assunto com vida, coisa muito duvidosa, espero que não consiga dormir de remorsos até o fim de seus dias. Não entende a barbaridade que você e estes fanáticos estão fazendo? Assassinos invencíveis, robôs... Você é capaz de perceber a verdade?

— Sim. Mas devo obedecer.

— Sinto muito por você. Até nunca mais.

— Adeus.

O homem da CIA afastou-se, reunindo-se aos seis que ainda estavam vivos. Aparentemente, estavam de acordo e auxiliaram-se mutuamente a carregar os robôs para os helicópteros, iates, lanchas... Em dez minutos, os sete robôs, agora inativos, como ferro-velho, estavam a bordo dos veículos dos sete “sortudos”.

O iate do sul-americano foi o primeiro a partir, mas logo foi ultrapassado por duas lanchas, que rumaram para o sul. Os dois helicópteros subiram barulhentamente...

Número Um passou o braço pelos ombros de Brigitte e acomodou-se apoiado confortavelmente contra uma palmeira.

— Bem... estou aguardando o seu golpe de mágica, “Baby”.

— Acaso não está bem aqui, contemplando as estrelas... e comigo nos braços?

— É verdade. Vejo que nos deixaram duas lanchas, que devem ser dos donos dos robôs. Isto significa que podemos voltar ao continente e... separar-nos mais uma vez.

— Mas somente até o nosso encontro em Paris — recordou Brigitte.

— Claro. E então?

— Está bem. Vamos até a casa. Espero que as instruções de Richard Adams sirvam para alguma coisa.

— Do que está falando?

— Você já esqueceu que cada um desses robôs leva uma carga explosiva dentro, e que pode ser deflagrada por quem os aciona a distância?

— Eu sabia que você estava fingindo!

Uma luz violenta, clara, chegou até eles. Voltaram-se para ver o que era e a casa estava totalmente acesa, como antes do curto-circuito que queimara os fusíveis.

— Será que algum robô está consertando os defeitos?

— Vamos ver — sorriu Brigitte. Estavam a caminho da casa, quando perceberam as explosões distantes: duas no céu e cinco no mar, dispersas. Viram os clarões e logo depois os estampidos chegaram até eles, enquanto os helicópteros destruídos caíam no mar, envoltos em chamas. Em cinco pontos distantes, outros tantos incêndios indicavam as posições dos barcos que carregavam os robôs.

— Explodiram — sussurrou Número Um. — Explodiram todos os sete! Não foram a lugar algum, nem os robôs, nem os homens! Estão agora no fundo do mar...

— Este era seu verdadeiro lugar — disse Brigitte friamente. — Vamos até a casa, querido: parece que alguém se antecipou a nós.

* * *

Richard Adams estava caído sobre os botões de comando. Sua mão fraca, ossuda, amarela, se imobilizara sobre os botões marcados com a palavra: “Explosão.”

A caixa de fusíveis estava aberta e, no solo, viam-se manchas de sangue, certamente de suas feridas.

Sentada, rígida, Margot Stevens tinha os olhos arregalados, já vidrados.

Também Richard Adams estava de olhos abertos, vidrados, e tinha um estranho sorriso nos lábios. Brigitte inclinou-se para ele e passou a mão carinhosamente pelos cabelos brancos revoltos, rebeldes do velho construtor de brinquedos para crianças.

— Compreendo, senhor Adams — murmurou a espiã. — Não é agradável matar os próprios filhos, não é verdade?

— S... s... sim... eu... As... as crianças.

— Não terão jamais este brinquedo. Pode ficar tranqüilo. Vamos levá-lo para...

Mas já era inútil tentar qualquer coisa para salvar a vida de Adams. Chegara ao limite de suas forças e aquele esforço final, com duas balas nas costas, havia sido demais. Bem merecia o descanso eterno da morte.

Levava consigo o segredo dos assassinos invencíveis, que somente ele próprio conseguira vencer.

 

A festa foi um êxito completo. Na verdade, não pudera realizá-la na noite de Ano NOvo, no último dia de 1967, mas os amigos de Brigitte Montfort estavam bem com ela em qualquer noite do ano.

O quadro, finalmente terminado por Samuel Dodecabro, havia sido o centro e tema de todas as conversas. Todos o haviam admirado, e o bom Dodecabro não cabia em si de contente com mais sete encomendas de retratos. Uma delas era de Frank Minello, justamente o que falava sempre mais alto, perseguindo Brigitte por todo o apartamento, ante o olhar enciumado de Mike Grogan. Também este queria um quadro pintado por Dodecabro.

O pintor estava justamente se despedindo da espiã, no vestíbulo, retendo uma das douradas mãos entre as suas.

— Eu não sei... Bem, você sabe que não sou homem de falar muito, nem de fazer elogios. Quero dizer...

— Eu entendo, Samuel — sorriu “Baby”. — Se quer continuar bem comigo, somente precisa pintar, tão bem quanto a mim, aos meus amigos. E isto é fácil para você.

Dodecabro partiu, os olhos brilhantes. Era o êxito. Ali estava ao seu alcance!

— Nós também já vamos — disse Frank Minello, aborrecido.

Brigitte encarou os dois, Mike Grogan e o jornalista esportivo.

— Vão os dois juntos? — estranhou.

— Fizemos um pacto.

— Que pacto?

— Embriagar-nos e chorar juntos o nosso amor impossível.

Brigitte pôs-se a rir e os despediu com beijos que fizeram brilhar os olhos de Minello e Grogan. Suspirou, entrou no grandioso living e olhou para Peggy, que recolhia as bandejas, copos, garrafas...

— Deixa isso, Peggy. Amanhã terá tempo de sobra para fazê-lo.

— Sim, miss Montfort... Eu esqueci que vai partir no avião das dez da manhã.

A campainha da porta soou.

— Irei abrir, com sua permissão.

Peggy voltou acompanhando um personagem emburrado, sombrio, cujos olhinhos astutos pareciam evitar os olhos imensos e belos da espiã.

— Oh, mister Pitzer — disse esta, friamente. — Deseja algo?

— O assunto dos robôs se... resolveu de uma maneira... desconhecida, Brigitte. Ninguém sobrou para contar a história. Não encontramos nenhum robô, mas recebemos um chamado pelo rádio, feito do helicóptero que levava o nosso agente.

— Não sei do que está falando — mentiu calmamente Brigitte.

— O chamado dizia que a agente “Baby” tinha razão na questão dos robôs, que aquilo era... uma monstruosidade.

— É verdade que falaram assim? Fico contente em saber, Mr. Pitzer. Mas, por favor, seja breve. Não posso perder tempo com o senhor. Nem um segundo.

— Bem, somente vim comunicar que... refletiram sobre o assunto na Central. Em resumo, fui incumbido de solicitar que você retome a trabalhar Conosco.

— Deram-me razão?

— Parece que sim — grunhiu Charles Pitzer.

— Você também reconhece que eu estava certa?

— Mesmo que não acredite, eu sempre concordei com você neste caso. Gostaria de poder informar-lhe como terminou o caso, mas ninguém sabe, Navios da Guarda Costeira, encontraram uma ilha, com lanchas queimadas, naufragadas. E uma casa cheia de cadáveres, onde havia um painel de comando a distância. Mas todos estavam mortos. Todos os que tinham parte no negócio morreram.

— Lamento sinceramente — disse sorrindo com ironia a espiã mais astuta do mundo. — Isto servirá para valorizar os magníficos trabalhos de “Baby”.

— Bem... o caso é que o agente que estava no helicóptero disse em seu último chamado que a agente “Baby” estava naquela ilha...

— Que absurdo, tio Charlie!

— Não estava lá?

— Claro que não — replicou cinicamente a espiã.

— Hum... é uma pena que não possamos ter um relatório completo do que houve.

— Sim, é uma pena. Aceita uma taça de champanha, tio Charlie?

— Mas você disse que não podia me conceder nem um segundo.

— Agora posso. Bem... champanha com cereja, claro.

— Com cereja — sorriu Pitzer.

— Quer nos servir, Peggy? Bem, tio Charlie, vou passar uns dias fora, de férias. Não vou contar onde, porque quero descansar uma semana e...

— Está cansada de quê? — disse maliciosamente Pitzer.

— De nada... É que tenho um encontro muito importante para mim. De modo que tomaremos esta taça e... até a vista!

* * *

A belíssima passageira do vôo 715 da “Pan-Am”, já desembaraçada da alfândega, percorreu ligeira o caminho que levava à saída do aeroporto de Orly. Trazia somente uma maleta, que não deixara ninguém carregar. E um ursinho de pelúcia, de grandes olhos verdes e sorriso simpático. Era toda a sua bagagem. Para que levar mais a Paris? Lá se encontram milhares de modelos de roupas, em milhares de vitrinas.

À saída do enorme edifício estava um imponente carro-esporte, um Alfa-Romeu de cor vermelho-cereja. E junto ao carro, um homem imponente, atlético, viril, de ombros largos, expressão séria, dura. Um homem de olhos negros e cabelos cor de cobre, de mãos grandes com nervos salientes e dedos de artista.

Mas este chofer de táxi era muito abusado, caradura, porque, em lugar de dar a partida no carro, abraçou a belíssima passageira e beijou-a profunda e demoradamente nos lábios.

Depois, entreolharam-se e o homem, acariciando-lhe os cabelos, murmurou:

— Não é preciso falar muito, não?

— Não. Não somos do tipo que fala, fala e fala... Mas alguém quer dizer-lhe alguma coisa.

— Quem? — sorriu ele.

A belíssima, deslumbrante jovem de olhos azuis deitou no colo o ursinho “Nicanor”, que disse:

— “Eu te amo.”

 

 

                                                                                                    Lou Carrigan

 

 

 

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