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ASSIM FALA O CORAÇÃO / Johanna Lindsey
ASSIM FALA O CORAÇÃO / Johanna Lindsey

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ASSIM FALA O CORAÇÃO

 

Nascida em berço de ouro, Brigitte de Louroux foi vítima de uma traição e submetida à servidão. Ela tinha jurado jamais servir um homem. Mas de repente, surgiu em sua vida Rowland de Montville, um impetuoso e obstinado guerreiro, que ela entregaria sua inocência devido à inusitada paixão que aflorou em seu coração. Ambos viverão o feitiço do verdadeiro amor.

 

                             França, 972 D.C.

            Brigitte de Louroux suspirou, sem afastar seus claros olhos azuis do ganso cevado que jazia na sua frente sobre a mesa de trabalho. Com o cenho franzido, concentrada, a jovem continuou depenando o animal, tal como lhe tinham ensinado recentemente. Esta era uma tarefa nova para esta garota de dezessete anos, uma entre muitas às quais, com lentidão, já começava a habituar-se. Fatigada, a moça separou uma mecha de sua larga cabeleira loira do rosto.

            O sangue do ganso sacrificado salpicou no avental e na parte inferior da túnica de lã parda, que aparecia por abaixo. Todos os finos vestidos de Brigitte se achavam danificados pelas imundas tarefas que agora lhe eram impostas. Entretanto, esse fatigante trabalho tinha sido escolhido por ela, à jovem recordou a si mesma: sua própria e obstinada eleição.

            Do outro lado da mesa se encontrava Eudora, observando Brigitte cumprir sua tarefa. Os olhos pardos de Eudora observaram de forma compassiva a sua ama, até que esta levantou o olhar e sorriu com uma expressão protetora.

            - Não é justo! - Resmungou a criada, e seus olhos ficaram subitamente repletos de fúria. - Eu servi na casa de seu pai durante toda minha vida, com grande satisfação, agora devo permanecer ociosa enquanto vocês trabalham.

            Brigitte baixou o olhar e seus olhos azuis se umedeceram.

            - Isto é melhor do que me render aos planos que Druoda tramou contra mim - murmurou a menina.

            - Essa dama é muito cruel.

            - Eu sei. - disse Brigitte com uma voz suave. - Temo que não agrado à tia de meu irmão.

            - Ela é uma cobra! - exclamou Eudora com veemência.

            A mãe de Eudora, Althea, atravessou a cozinha, agitando uma enorme colher.

            - Ela é uma santa, Eudora. Druoda nos obriga a chamá-la de lady, mas no fundo ela não passa de uma vaca preguiçosa. Cada dia que passa, ela se torna mais obesa, enquanto que eu só faço perder peso desde que cheguei aqui. Ela me disse que me cortaria os dedos se provasse o alimento enquanto cozinho, mas, eu me pergunto, como posso cozinhar sem provar a comida? Devo provar o que cozinho, entretanto, ela me proíbe. O que posso fazer?

            Eudora sorriu e enquanto fazia uma careta.

            - Podíamos jogar excrementos de frango em sua comida que ela não descobriria, devíamos fazer isso. - Brigitte sorriu.

            - Você não se atreveria, Althea. Druoda acabaria com você, podendo até despedi-la. Se não te matasse antes. Chegaria possivelmente a te despedir.

            - É verdade, milady. - Althea soltou um breve risinho, e todo seu enorme corpo se sacudiu. - Mas foi agradável imaginá-la, saboreando uma torta de excrementos.

            Eudora voltou a ficar séria novamente.

            - Tudo foi terrível para nós desde que Druoda começou a mandar aqui. Ela é uma dama muito cruel, e seu marido um covarde que não faz nada por detê-la. Lady Brigitte não merecia ser tratada como a faxineira na mais humilde da mansão. - Sua fúria se intensificou. - Ela é a filha da casa e seu meio irmão deveria ter assegurado o futuro da moça depois da morte de seu pai. Agora que ele...

            Eudora parou bruscamente e baixou a cabeça envergonhada, mas Brigitte sorriu.

            - Está bem, Eudora. Quintin está morto e estou consciente disso.

            - Só quis dizer que ele deveria ter feito certos arranjos com seu senhor. Não é justo que você tenha que se submeter à vontade de uma mulher como Druoda. Ela e seu marido vieram aqui suplicando a clemência de lorde Quintin logo depois que o barão morreu. O jovem não deveria tê-los aceitos. Agora já é tarde. Ambos parecem acreditar que este feudo lhes pertence, e não a você. Seu irmão foi um grande homem, mas neste caso...

            Brigitte silenciou à outra jovem com um olhar severo, e seus claros olhos azuis brilharam com ferocidade.

            - O que você esta falando sobre Quintin é injusto, Eudora. Meu meio irmão não podia saber que Druoda me manteria afastada do conde Arnulf. Mas o conde é nosso senhor e, a partir de agora, meu legítimo tutor, não importa o que Druoda diga, ele mesmo se ocupará de estabelecer meu futuro. Só devo chegar até ele.

            - E como vai chegar ao conde se Druoda não lhe permite abandonar a mansão? - perguntou Eudora energeticamente.

            - Encontrarei uma forma. - A voz de Brigitte não parecia convincente.

            - Se vocês tivessem outros membros da família. - Althea suspirou, sacudindo a cabeça.

            - Não tenho mais ninguém. Você deveria saber Althea, visto que se encontrava aqui quando meu pai se converteu no senhor de Lourox. Ele contava com poucos parentes, e os últimos faleceram na campanha do rei para recuperar Lotharingia. Da parte de minha mãe não mais havia ninguém, dado que ela se encontrava sob a tutela do conde Arnulf quando se casou com o barão.

            - Milady, Druoda está forçando a trabalhar como se fosse uma mera servente. Logo começará a batê-la também - afirmou Eudora com a voz séria. - Se você conseguir chegar ao conde Arnulf, então, sugiro que o faça imediatamente. Não pode enviar um mensageiro?

            Brigitte deixou escapar um profundo suspiro.

            - Quem, Eudora? Os serventes fariam com agrado o que eu lhes pedisse, mas necessitam de permissão para abandonar a mansão.

            - Leandor, sem dúvida, estaria disposto a ajudá-la. Ou, inclusive, algum dos vassalos. - Insistiu Eudora.

            - Druoda também mantém Leandor confinado na mansão - declarou Brigitte. Nem sequer lhe permite ir até a abadia dos Bourges para comprar vinho. E convenceu aos vassalos de meu irmão de que seu marido, Walafrid, será senhor do feudo aqui uma vez que ela consiga me desposar, e de que me encontrará um marido que não se atreverá a despedi-los... De maneira que nenhum deles ousará lhe desobedecer por minha causa... O conde Arnulf se encontra a mais de um dia de viagem de Louroux. Como posso chegar até ele?

            - Mas...

            - Te cale, Eudora! - ordenou Althea a sua filha com um olhar de advertência. - Está incomodando a nossa ama. Acaso lhe permitiria viajar sozinha pela campina? Converter-se-ia numa presa fácil de ladrões e assassinos?

            Brigitte sentiu um calafrio, mesmo com o calor dos fogos da cozinha e ao suor que lhe corria pela frente. Observou com pesar o ganso morto, e pensou que se as perspectivas do futuro não podiam ser piores.

            Eudora olhou à filha do barão com expressão compassiva.

            - Por que não vai alimentar Wolff, milady? Eu terminarei de depenar o ganso em seu lugar.

            - Não. Se Hildegard entrasse e não me encontrasse trabalhando, correria para contar a Druoda. Quando Mavis se queixou por eu fazer tais tarefas, foi golpeada e expulsa. E eu não pude fazer nada para ajudar a minha velha amiga. Os soldados seguem as ordens da Druoda, não as minhas. E logo, descobri que Mavis tinha morrido na rota, assassinada por uns ladrões! Perder ao Mavis foi como perder outra vez a minha mãe. - A compostura de Brigitte começou a desmoronar-se com rapidez.

            Imediatamente, a jovem secou as lágrimas que tinham brotado de seus olhos. Desde seu nascimento, Mavis se tinha encontrado a seu lado como sua dama de companhia. A anciã celta tinha sido uma segunda mãe, um consolo e ajuda constante para sua pequena, protegida da morte da verdadeira mãe da menina.

            - Vá, milady. - Althea afastou docemente Brigitte da mesa. - Vá alimentar a seu cão. Ele sempre consegue te animar.

            - Sim, vá, milady. - Eudora se aproximou da mesa para ocupar o lugar de sua ama. - Eu terminarei de depenar o ganso. E se vier Hildegard, derrubaremos a com bofetadas.

            Brigitte sorriu ante a imagem da obesa faxineira de Druoda sendo esbofeteada. Logo, tomou um prato de sobras de comida para Wolff. Permitiu que Althea lhe colocasse seu manto de lã sobre os ombros e, antes de abandonar a cozinha com cautela, assegurou-se de que o vestíbulo estivesse vazio. Por fortuna, só dois criados se encontravam ali, ocupados em sua tarefa, nenhum deles elevou o olhar.

            Brigitte conhecia todos os serventes da mansão por seu nome, visto que eles eram como da família; todos, exceto Hildegard, que tinha chegado com a Druoda e Walafrid. Essa tinha sido uma casa feliz antes da inesperada morte de Quintín até a transformação da tia, de hóspede a ama.

            Lá fora, o ar estava fresco. Brigitte caminhou nessa direção, passando junto às habitações da servidão, frente aos estábulos de cavalos e cabras. Junto a estes, encontrava-se o curral das vacas e, mais à frente, os dos carneiros ao lado do curral de porcos. Wolff se achava preso, ao lado do curral. Ali o tinha posto Druoda. Wolff, o cão favorito de Brigitte, que nunca tinha conhecido mais que a liberdade, agora se encontrava tão prisioneiro como sua proprietária.

            O pai da menina tinha encontrado ao animal sete anos atrás, no bosque que cobria a maior parte das terras entre o Louroux e o rio Loira. Brigitte logo que tinha completo dez anos, quando o barão levou o cachorrinho a casa. Era evidente que o animal se tornaria imenso e, sem dúvida, não tinha sido a intenção do homem destiná-lo como mascote de sua filha. Porém a pequena se apaixonou por Wolff a primeira vista e, mesmo que fosse proibida de aproximar-se do cão, não era possível mantê-la afastada. Logo depois o animal se encantou com a menina, e já não houve mais razão para separá-los. Agora que Brigitte media um metro sessenta de altura, a imensa cabeça branca de Wolff lhe chegava quase ao queixo. E, quando o animal se levantava sobre suas patas traseiras, superava à menina em mais de trinta centímetros.

            Wolff tinha percebido a proximidade de sua proprietária e se sentou para aguardá-la impacientemente junto à entrada de seu recinto. Era estranho, mas o cão sempre parecia conhecer os movimentos de Brigitte. Freqüentemente, no passado, tinha sabido quando ela abandonava a mansão e, por esta ciente disso, a acompanhava pelo caminho. Sempre tinha se resultado impossível para a menina dirigir-se a qualquer canto sem a presença de Wolff. Mas Brigitte já não saia mais, e tampouco o cão.

            A jovem sorriu quando abriu o portão do curral, para logo voltar a fechá-lo, uma vez que sua mascote esteve fora.

            - Sente-se como um rei, verdade? Por não ter que aguardar com seus amigos até a hora do jantar. - Inclinou-se para lhe abraçar, e suas largas tranças caíram sobre a imensa cabeça do animal. Mesmo que a maioria das mulheres de Berry acostumasse usar longos mantos de linho, Brigitte sempre os tinha detestado. Suas tranças não eram indecentes, e lhe agradava a liberdade de não levar constantemente a cabeça coberta, embora sempre usasse um manto de linho branco para ir à igreja.

            Sempre usava um vestido de lã fileira parda ou, com o tempo quente, de algodão leve tingido de cor azul ou amarela. Suas túnicas eram geralmente azuis, de um linho claro no verão e de uma lã escura no inverno.

            - Pode agradecer a Althea por me tirar da cozinha, ou não estaria contigo agora.

            Wolff lançou um latido em direção à casa antes de atacar sua comida. Brigitte riu e se sentou junto ao cão, com as costas apoiada contra as estacas do curral. Dali, a jovem olhou por cima da elevada parede que circundava a mansão.

            Era difícil além do alto muro, a menos que elevasse o olhar. Toda a mansão, os estábulos, as cabanas dos serventes e os parques estavam rodeados por grosas paredes de pedra, principalmente na época dos conflitos bélicos. Seu avô tinha lutado em várias batalhas para conservar seu feudo e, em sua juventude, seu pai tinha sofrido numerosos ataques contra sua herança. Os últimos vinte anos tinham visto tantas guerras com os sarracenos, que quase ninguém na França contava com os homens necessários para assediar os seus vizinhos. Brigitte apenas podia distinguir a horta situada na região sul. A última vez que tinha visto florescer as árvores frutíferas, sua vida era completamente diferente. Um ano atrás, ao lado de Quintin e Mavis. O feudo pertencia a Quintin, embora ela sempre tivesse seu dote matrimonial. Agora tudo lhe pertencia, mas não podia governá-lo. Devia casar-se, ou a posse do feudo voltaria para o poder do conde Arnulf.

            Brigitte refletiu sobre seu patrimônio. Era uma propriedade valiosa, com numerosos acres de terra fértil no centro da França, abundante fauna nos bosques e uma próspera aldeia. E, durante vinte e sete anos, tudo tinha pertencido a Thomas de Louroux, seu pai.

            A mansão era magnífica. Lorde Thomas a tinha construído no mesmo lugar da antiga casa, depois de ter sido esta incendiada durante um ataque dirigido por um vassalo rebelde do conde Arnulf. A metade da aldeia e a mansão tinham sido queimadas, e muitos servos morreram. As cabanas de argamassa e juncos puderam ser reconstruídas, mas não foi assim com os serventes. Com o tempo, entretanto, a aldeia tinha crescido, e agora contava com uma numerosa servidão, ligada a terra e ao Louroux. Uma fortaleza se construiu para proteger a propriedade, levantado sobre uma colina nua a pouco mais de um quilômetro para o norte.

           Brigitte olhou nessa direção e observou a elevada torre iluminada pelo sol da tarde. Ali tinha nascido Quintin. Um lugar incomum para um nascimento de uma criança, mas a primeira esposa de Thomas de Louroux se encontrou inspecionando o local, no momento de chegar as primeiras dores.

            Lorde Thomas havia desposado com Leonie de Gascuña pouco depois de converter-se em vassalo do conde Arnulf. Lady Leonie era a filha de um cavalheiro sem terras, mas a pobreza da dama não tinha sido suficiente para desanimar a um homem apaixonado. Ela brindou seu marido com um formoso filho, nascido pouco depois das bodas. Mas a sorte não durou. Quando Quintin fez quatro anos, sua mãe viajou a Gascuña para assistir à bodas de sua única irmã, Druoda, com um escrivão, Walafrid de Gascuña. Leonie e toda sua corte foram cruelmente assassinadas por soldados de Magyar, enquanto atravessavam Aquitaine na viagem de volta ao Louroux.

            Thomas se achou fora de si com sua perda e o conde Arnulf, aflito ante a infelicidade de seu vassalo predileto, o persuadiu a casar-se com sua mais formosa pupila, Rosamond de Berry. Depois de um adequado período de luto, Thomas obedeceu, e a encantada Rosamond conseguiu cativar seu coração. Seu abundante dote resultou numa bênção para Louroux. Acaso algum outro homem podia ser tão afortunado de amar a duas mulheres e encontrar a felicidade com cada uma delas?

            Anos depois, Rosamond deu à luz a uma menina, a quem ela e Thomas chamaram Brigitte, a beleza da pequena era evidente desde seu nascimento. Nesse período, Quintin tinha oito anos e já era escudeiro do conde Arnulf, em cujo castelo ele se encontrava aprendendo as habilidades de um guerreiro. Brigitte era uma menina feliz, amada por seus pais e adorada por seu meio irmão. Embora só o visse nas breves visitas dele à mansão, não poderia tê-lo amado mais mesmo que ele tivesse sido seu verdadeiro irmão, ou tivesse vivido em sua constante companhia.

            A vida era maravilhosa para Brigitte, até que aconteceu a morte de sua mãe, quando ela só tinha com doze anos. Pouco depois, sentiu-se ainda mais desolada quando Quintin, armado cavalheiro dois anos depois, partiu com o conde Arnulf em uma peregrinação para Terra Santa. Seu pai a consolou como pôde, embora sua dor fosse imensa. Seu pai a mimou terrivelmente durante os anos seguintes. Brigitte se tornou arrogante e intransigente, mas seu orgulho foi castigado quando morreu seu pai três anos mais tarde.

            Por fortuna, Quintin retornou a casa em 970, pouco depois da morte do barão, para assumir a autoridade de senhorio de Louroux, depois de uns meses, chegaram Druoda e seu marido, e insistiram que ele os acolhesse na mansão. Quintin não se atreveu a negar as demandas de sua tia e o marido. Druoda parecia uma mulher submissa e retraída. De fato, Brigitte virtualmente não notava a presença da dama na casa, exceto durante as comidas. Seu irmão tinha chegado para ficar e isso era o único que importava à pequena. Ambos se consolavam mutuamente pela morte de seu pai.

            Então, o abade do monastério borgoñés de Cluny foi seqüestrado por piratas sarracenos, enquanto cruzava os Alpes através do passado do Grande São Bernardo. O conde de Borgoña se encolerizou e solicitou a ajuda de seus vizinhos para desfazerem-se suas terras de assaltantes sarracenos, que tinham aterrorizado todas as passagens ocidentais dos Alpes e o sul da França durante mais de um século. Embora o Conde Arnulf jamais se visse prejudicado por tais piratas, necessitava de Borgoña como aliado, e aceitou enviar muitos de seus vassalos e cavalheiros para começar batalha contra os saqueadores. E Quintin foi também destinado a lutar.

            Ele se sentiu encantado. A vida de um cavalheiro era a guerra, e ele tinha estado ocioso durante mais de um ano. Tomou à maioria de seus vassalos e homens, e a metade dos soldados que vigiavam a fortaleza. Só deixou sir Charles e a sir Einhard, ambos os anciões e propensos a freqüentes enfermidades, e também a sir Stephen, um dos cavalheiros da casa.

            E assim, partiu Quintin em uma brilhante manhã, e foi essa a última vez que Brigitte viu seu meio-irmão. A jovem não sabia dizer com exatidão quando o escudeiro de Quintin, Hugh, tinha levado as notícias de sua morte. Só sabia que tinham acontecido vários meses antes que ela pudesse superar o forte impacto emocional. Porém, podia recordar com claridade as palavras do Hugh: "Lorde Quintin caiu quando os nobres franceses atacaram uma das bases piratas em Ródano." A dor jamais abandonou a jovem.

            Brigitte se achava muito aturdida pelas mortes acontecidas em sua família para perceber as mudanças que estavam acontecendo em sua casa, ou para perguntar-se por que os vassalos de Quintin não retornavam, ou porquê Hugh tinha voltado para a costa sul, Mavis tinha tratado de lhe advertir que notasse tais mudanças, em particular, a transformação de Druoda. Mas só pode compreender quando encontrou Wolff trancado com os outros cães.

            Brigitte enfrentou a Druoda. Foi então quando, pela primeira vez, percebeu que a tia de seu irmão não era a mulher que ela tinha acreditado conhecer.

            - Não me chateie com besteiras, menina! Tenho assuntos mais importantes que atender!? Disse Druoda com arrogância.

            Brigitte se irritou.

            - Com que direito...?

            - Com todo o direito! - interrompeu-a Druoda. - Como sou a única parente de seu irmão tenho todo o direito de assumir a autoridade nesta casa. Você ainda é uma donzela e necessita um tutor. Naturalmente, Walafrid e eu seremos nomeados responsáveis.

            - Não! - replicou a menina. - O conde Arnulf será meu tutor. Ele se ocupará de velar por meus interesses.

            Druoda era quinze centímetros mais alta que Brigitte, e se aproximou para amedrontá-la.

            - Minha menina, você não terá voz neste assunto. As donzelas não escolhem seus tutores. Bem, se não tivesse parentes, então o conde Arnulf, como senhor de seu irmão, passaria a ser seu tutor. Mas você não está sozinha, Brigitte.

            Druoda esboçou um sorriso presunçoso e adicionou:

            - Tem a mim e ao Walafrid. O conde Arnulf nos outorgará seu tutoria.

            - Eu falarei com ele - respondeu a menina com segurança.

            - Como? Não pode abandonar Louroux sem uma escolta, e vejo que terei que lhe negar isso. E o conde Arnulf não virá até aqui, visto que ainda não sabe que Quintin morreu.

            Brigitte afogou sua exclamação.

            - Por que não foi informado?

            - Acreditei que seria melhor aguardar - disse Druoda com indiferença. - Até que te desposasse. Não há necessidade de incomodar a um homem tão ocupado com a busca de um marido adequado, quando eu sou perfeitamente capaz de escolhê-lo sem sua ajuda.

            - Escolhê-lo você? Jamais! - exclamou a menina com indignação. - Eu mesma escolherei meu marido. Meu pai me prometeu a liberdade de escolher, e Quintin esteve de acordo. O conde Arnulf sabe.

            - Não seja ridícula. Uma menina de sua idade é muito jovem para tomar uma decisão tão importante. Mas que idéia tão absurda!

            - Então não me casarei! - afirmou Brigitte impulsivamente. - Irei para um convento de monjas! - Druoda sorriu e começou a caminhar pela habitação com ar pensativo, enquanto falava.

            - Seriamente? Uma dama que jamais trabalhou, só sabe fiar? Pois então, se desejas ser noviça, deve começar imediatamente sua capacitação. - Voltou a sorrir. - Sabia você que as noviças trabalham dia e noite como vulgares faxineiras? Brigitte elevou o queixo com atitude desafiante, mas não respondeu.

            - Pode começar sua aprendizagem aqui e agora. Sim, isso poderia ajudar a melhorar sua disposição.

            A menina assentiu obstinadamente. Demonstraria a Druoda que poderia ser uma perfeita noviça. Tampouco mudou de opinião quando, dias depois, retornou ao seu quarto e percebeu que todos seus pertences tinham desaparecido. Então, Druoda a aguardava para lhe informar que as noviças não possuíam elegantes dormitórios e que, a partir de agora, viveria em uma dos estabelecimentos dos serventes no outro lado do pátio.

            Mesmo assim, Brigitte jamais considerou a idéia de abandonar a mansão. Nem sequer quando sir Stephen se recusou a levar sua mensagem a Arnulf, pensou a menina em viajar sozinha para a casa do conde. Mas quando Mavis foi expulsa, Brigitte teve que ser aprisionada para impedir que partisse com a donzela. Três dias depois, a jovem foi liberada.

            O tempo perdido não deteve a menina. Dirigiu-se diretamente ao estábulo, sem pensar nas conseqüências que poderia conduzir o abandonar sozinha a mansão. Leandor, o oficial de Louroux, detalhou-lhe os perigos quando a descobriu preparando seus arreios.

            - Se partires, arriscar-se-á a ser estuprada e assassinada - tinha-lhe advertido o homem, irado ante a imprudência da menina. - Milady, não posso deixá-la ir sem escolta.

            - Irei, Leandor. - tinha respondido Brigitte com tom firme - Se não pode encontrar Mavis, então, cavalgarei até o castelo do conde Arnulf e conseguirei sua ajuda. Já é hora de que ele se inteire das sujas jogadas de Druoda. Deveria ter partido muito antes.

            - E se te atacam no caminho?

            - Ninguém se atreveria. A pena por ferir uma mulher nobre é muito grande. Devo encontrar a Mavis.

            Leandor baixou a cabeça.

            - Não desejava revelar, mas sua dama de companhia foi encontrada ontem à noite. Está morta.

            A menina retrocedeu estupefata.

            - Não - sussurrou, sacudindo a cabeça. - Não, Leandor.

            - Uma mulher só nunca está segura, nem sequer uma anciã como Mavis. E você, milady, com sua beleza, arriscar-se-ia muito mais que um mero assassinato.

            Ante a inesperada morte de seu fiel amiga, a jovem se havia sentido abatida uma vez mais. E as sinistras predições do Leandor tinham conseguido debilitar sua determinação de abandonar a casa sem escolta. Aguardaria. Cedo ou tarde, o conde Arnulf teria que aparecer. Enquanto isso, Druoda devia acreditar que ela ainda tinha intenções de ingressar em um convento. Talvez, isso deteria os propósitos casamenteiros da dama... ao menos, por um tempo.

 

            Arles, uma antiga cidade no coração da Provenza, tinha sido construída vários séculos atrás à beira do rio Ródano. Alguma vez foi uma importante comunidade romana, era denominada "a pequena Roma", e ainda se conservavam dessa época algumas antiguidades, como um palácio levantado pelo Constantino, um anfiteatro e uma arena, ainda intactos.

            Arles era uma cidade desconhecida para Rowland de Montville. Mas inclusive um lugar estranho jamais podia apresentar dificuldades para um jovem cavalheiro. Desde o momento que abandonou seu lar na Normandia seis anos atrás, ele enfrentou incontáveis desafios e descobriu quão deficiente era, na realidade, na sua educação.

            Rowland tinha aprendido a arte de escrever, feito pouco comum entre os nobres, e, além disso, era um nato guerreiro. Mas muitos nobres franceses sem instrução o consideravam vulgar, intratável, porque o jovem não era refinado. Ele se assemelhava a seu pai, um rústico nobre rural.

            O jovem era consciente de sua falta de refinamento. Em todos esses anos, depois de abandonar Luthor de Montville, mais de uma vez tinha amaldiçoado o seu pai por ter descuidado desse aspecto de sua educação. As damas se sentiam ofendidas por Rowland. Os cavalheiros de menor categoria riam ante sua vulgaridade, o qual tinha provocado mais de uma rixa durante todo esse tempo.

            Ele tratou de melhorar. Fez que seu escudeiro lhe ensinasse as corretas regras de etiqueta, mas suas maneiras recentemente adquiridas lhe causavam mal estar e se sentia muito tolo. Como poderia desfazer-se dos dezoito anos de educação vulgar? Sem dúvida, não era essa uma tarefa fácil de executar.

            Em Arles, o jovem se surpreendeu ao topar-se com outro cavalheiro instruído por Luthor. Roger de Mezidon tinha a alma negra, se era isso possível, e Rowland tinha esperado não voltar a ver o homem nunca mais. Ele ainda não se recuperou de seu assombro, quando foi abordado por Gui de Falaise, quem tinha viajado até Arles precisamente para lhe encontrar.

            - As ordens de seu pai foram, como de costume, muito explícitas - declarou Gui, logo depois de abraçar-se com o Rowland e trocar notícias. Fazia seis anos que não se viam, mas tinham sido muito amigos - Eu não devia retornar à mansão sem antes te haver encontrado!

            - Nesse caso, não faltaste a seu dever - afirmou Rowland com secura.

            A ele não lhe agradava que Gui tivesse jurado lealdade ao seu pai, mas era consciente de que o homem não conhecia o Luthor tão bem como ele.

            - Bom, te encontrar era só parte de minha missão? reconheceu Gui. - A outra parte é te levar de volta comigo. Rowland se surpreendeu, mas se forçou a ocultar seu assombro.

            - Por quê? - perguntou com tom severo. - Acaso a idade conseguiu enternecer meu pai? Esqueceu ele que me expulsou de casa?

            - Segue ainda ressentido, Rowland? - Os olhos verdes do Gui refletiram uma profunda preocupação.

            - Você sabe que eu só queria lutar pelo rei da França, que era o senhor de nosso duque. Mas Luthor se negou. Converteu-me em um valoroso guerreiro, mas jamais me permitiu demonstrar minhas habilidades. Santo Deus, em toda minha vida não me afastei de Montville nenhuma só vez, e ali estava eu, com dezoito anos e um pleno cavalheiro, e meu pai pretendia me reter em casa como se tratasse de um bebê de fraldas. Não foi possível tolerá-lo.

            - Mas sua rixa com o Luthor não foi pior que outras - insistiu Gui. - Batia-te, como sempre o fazia, corpo a corpo.

            Os olhos azuis de Rowland se obscureceram.

            - Sim, isso viu você, mas não ouviu as palavras que pronunciava logo depois. Eu também fui responsável, admito-o, porque ele me provocou com sua presunção de que jamais perderia um combate frente a mim, nem mesmo quando se estivesse aproximando da tumba. Se ele não tivesse feito tal alarde diante de sua esposa e filhas, eu não teria afirmado que partiria sem sua permissão para, provavelmente, não retornar jamais. Mas ele disse irado, e ele então respondeu: "Sai e será o fim! Jamais te permitirei que retorne!".

            - Não sabia que tinham chegado a tanto. Mas isso ocorreu faz seis anos, Rowland, e as palavras ditas com fúria não devem ser recordadas para sempre.

            - Mas ele o disse, e meu pai jamais se retrata. Mesmo que esteja equivocado e saiba muito bem que está, não é capaz de retificar.

            - Sinto muito, Rowland. Nunca soube a gravidade da disputa. Partiu, e eu sabia que tinha brigado com o Luthor, mas ele jamais voltou a falar disso desde que foi. Agora compreendo por que ele nunca esteve seguro se voltaria para casa ou não. Mas sei que o velho guerreiro te sentiu falta. Estou convencido de que teria me enviado a ti muito antes, se tivesse encontrado a forma de fazê-lo sem perder seu prestígio. Você conhece o Luthor: é todo orgulho.

            - Ainda não me há dito por que foi levantada minha expulsão.

            - Seu pai quer que esteja perto para reclamar seu feudo em caso de que ele morra - informou Gui com brutalidade.

            O rosto de Rowland empalideceu lentamente. - Luthor está morrendo?

            - Não! Não quis dizer isso. Mas está com certo problema. Sua meio-irmã, Brenda, casou-se.

            - De modo que a bruxa por fim conseguiu companheiro - Roland deixou escapar um breve risinho. - Presumo que o sujeito tem que ser estúpido e de aspecto repugnante.

            - Não, Rowland, casou-se com Thurston de Mezidon.

            - O irmão de Roger! - exclamou Rowland.

            - Ele mesmo.

            - Por quê? Thurston era um homem arrumado e agradava muito às damas. Por que quereria ele casar-se com a Brenda? A moça não é só tão nojenta como sua mãe, mas além disso é terrivelmente feia.

            - Acredito que o dote da jovem o atraiu - sugeriu Gui com tom vacilante.

            - Mas o dote matrimonial de Brenda não era muito grande.

            - Ouvi que lhe fez acreditar o contrário; e a moça estava apaixonada. Também se diz que Thurston quase a mata de pancadas na noite de núpcias, uma vez que descobriu que a dote não era nem a metade do que ele tinha esperado.

            - Suponho que ela mereceu cada tapa - disse Rowland espontaneamente.

            Todo mundo sabida da falta de amor entre o Rowland e suas duas meias-irmãs maiores. Ele tinha sofrido cruelmente nas mãos das mulheres desde sua mais tenra infância sem que ninguém o protegesse. Na verdade não sentia nada por elas agora, nem sequer compaixão.

            - E minha irmã Ilse - prosseguiu Rowland?, ela e seu marido continuam vivendo com o Luthor?

            - Oh, sim. Geoffrey jamais abandona suas bebedeiras o suficiente para construir uma mansão em seu pequeno feudo - respondeu Gui com tom depreciativo. - Mas se produziu uma importante mudança. Geoffrey subitamente fez uma íntima amizade com Thurston.

            - É?

            - Esse é um mau presságio para o Luthor. Tem um genro que está furioso pelo miserável dote de Brenda e que quer muito mais de Montville. Seu outro genro vive sob seu mesmo teto e é afável com Thurston. Luthor sente que deve manter-se em guarda agora, visto que é muito possível que seus dois genros se unam contra ele.

            - O que pode temer Luthor? Tem suficientes homens.

            - Não subestime Thurston. Esse sujeito tem a ambição e a cobiça de dois homens. Fez saques violentos em Bretaoa e Maine, conseguiu juntar um exército bastante grande, o suficiente para obrigar a Luthor reforçar seu exercito em Montville. Esta certo que acontecerá uma guerra se não assassinarem antes ao ancião senhor.

            - Acha que Thurston seria capaz de recorrer ao assassinato?

            - Sim, Rowland, isso acredito. Já houve um acidente inexplicável. E se morrera Luthor sem que você estivesse ali para reclamar Montville, Thurston e Geoffrey o reclamariam para si e necessitaria de um exército tão poderoso como o do duque para recuperá-lo.

            - E se não o quero?

            - Não pode dizer isso, Rowland! Seria capaz de abandonar os cavalos que amas, a terra que Luthor deseja para ti?

            Rowland enfiou uma mão em sua abundante cabeleira ondulada. Não havia razão para fingir.

            - É verdade, desejo-o. É a única coisa que quero de Luthor.

            - Então, retornará para casa? - perguntou Gui, esperançoso. - Embora tenha jurado não fazê-lo?

            - Eu sou como meu pai em muitos aspectos, Gui, falo uma tolice, não vou levá-la até a cova. Sustento-a durante algum tempo, talvez, mas não para sempre. - Rowland soltou um leve risinho. - Embora ele também se retratasse, ou ao menos, isso parece.

            - Mudaste, meu velho amigo. Recordo suas muitas brigas com o Roger de Mezidon só porque não queria retificar uma afirmação. Topaste-te com esse descarado em algum de suas viagens?

            - Está aqui, com o conde de Limousin. - Gui se surpreendeu.

            - Inteiramo-nos que a habilidade de Roger. Ele conseguiu juntar terras por todo o reino. Pergunto-me como tem tempo de servir a tantos senhores.

            - É tão ambicioso como seu irmão maior, Thurston.

            - E falaste com o Roger? - pergunto Gui com ansiedade.

            Rowland encolheu os ombros.

            - Sim, vi-lhe. Não me provocou tanto como estava acostumado a fazê-lo, mas agora não está tão seguro de poder me vencer.

            - Cresceste muito da última vez que te vi. Está mais alto e mais musculoso também. Apostaria que inclusive é mais alto que Luthor agora e ainda não vira um só homem que pudesse olhar ao ancião por acima.

            Os lábios de Rowland se curvaram em uma careta de satisfação.

            - Seja como for, superei Roger, para desgraça do patife.

            - Mas mudasse em outros aspectos? - aventurou-se a perguntar Gui, e seus olhos verdes brilharam.

            - Acaso os francos conseguiram te abrandar? - Agachou subitamente a cabeça, antecipando o golpe brincalhão de seu amigo.

            - Não? É de supor então que agora teremos dois Luthors em casa?

            Rowland soltou um grunhido.

           - Ao menos, eu só golpeio quando alguém me provoca, o qual é muito mais do que pode dizer-se de meu pai.

            Era verdade. Luthor de Montville era um homem rude, robusto, a quem outros senhores enviavam seus filhos para adestrar-se, dado que os meninos retornavam a casa convertidos em fortes e bons guerreiros.

            Rowland era o único filho varão de Luthor, seu bastardo. O lorde não dava importância a esse fato, mas ele detestava sua condição. A mãe de Rowland procedia de uma aldeia próxima. Uma mulher sem dinheiro, nem família, tinha morrido no parto, conforme tinham informado a ele, e a parteira tomou ao menino a seu cuidado. Luthor jamais soube da existência desse filho até um ano meio mais tarde, quando a anciã que tinha atendido Rowland estava a ponto de morrer e fez chamar o lorde.

            Luthor não tinha outro filho varão, por isso levou para casa Rowland, para perto de sua esposa, expressando uma vez mais seu desprezo por Hedda, porque esta só lhe tinha dado duas meninas. Hedda odiou o bebê no primeiro momento e jamais se ocupou dele, até que o menino cresceu o suficiente para sentir a maldade de sua madrasta. Desde que Rowland cumpriu os três anos, Hedda e suas filhas lhe batiam por qualquer razão.

            Luthor jamais fez nenhum esforço por impedir o cruel tratamento de que era objeto seu filho. Ele mesmo tinha sido criado com rudeza e acreditava que toda sua força se devia a sua dura juventude.

            Com seu pai, Rowland aprendeu a reprimir a ternura e a controlar todos seus sentimentos, exceto a ira. Ele foi treinado para correr, saltar, nadar, cavalgar, lançar a fêmea de javali ou a tocha de armas com incrível precisão, e empunhar a espada ou usar os punhos com brutalidade e destreza. Luthor soube ensinar bem a seu filho, batendo-o pelos enganos cometidos e lhe elogiando de muito má vontade os acertos.

            A infância dele ficou marcada por surras recebidas não só dentro, mas também fora do lar, já que os filhos dos nobres levados ao Luthor para o adestramento eram maliciosos, em especial, Roger de Mezidon, que era dois anos mais velho que Rowland e tinha chegado ao Montville quando o menino logo que tinha cinco. As sovas diárias continuaram até que Rowland adquiriu suficiente força para defender-se. E se Luthor não impediu os cruéis entendimentos da Hedda e suas duas filhas quando ele era pequeno e indefeso, tampouco deteve Rowland quando este cresceu o suficiente para devolver os golpes.

            A vida resultou mais fácil para o jovem uma vez que respondeu ao primeiro ataque. Logo depois, não voltou a exercer represálias contra as mulheres da casa. Preferiu ignorá-las. Já não havia razão para temer o abuso das damas e só se ocupou de repelir os golpes dos moços maiores e de Luthor.

            - Podemos partir pela manhã? - perguntou Gui a seu amigo quando chegaram à moradia de Rowland nos subúrbios do Arles. Uma vez ganha a batalha, a cidade inteira se entregou à celebração e já não havia razão para permanecer ali. - Quanto antes nos partamos, melhor. Levou-me quase meio ano te encontrar.

            - E o que te fez me buscar aqui? - inquiriu Rowland.

            - A batalha, certamente - respondeu Gui com um amplo sorriso - Algo que aprendi é que em qualquer lugar que esteja a guerra, ali você estará. Já deve ter tantos feudos como Roger, depois de todas as batalhas que livraste.

            Rowland deixou escapar uma breve risada e seus olhos brilharam como safiras.

            - Eu brigo por ouro, jamais por terra. A terra precisa cuidados, e me agrada a liberdade de vagar a meu prazer.

            - Então, deve possuir uma valorosa fortuna em ouro.

            Rowland sacudiu a cabeça.

            - A maior parte se foi com mulheres e bebida, mas mesmo assim, tenho alguma fortuna.

            - E saqueou os sarracenos?

            - Isso também. Esses piratas têm sedas e peças de cristal, abajures em ouro, por não mencionar as jóias.

            - E a batalha?

            - Houve muitas batalhas - Respondeu Rowland - Os sarracenos têm acampamentos ao longo de toda a costa. Mas a mais importante se encontra na Niza. Entretanto, não tiveram uma boa atuação, porque brigavam sem armadura. Caíram como camponeses frente aos hábeis cavalheiros. Alguns conseguiram escapar em seus navios, mas saqueamos seus acampamentos e logo ateamos fogo.

            - Suponho que cheguei bem a tempo, então.

            - Sim. Meus serviços ao duque da Borgoña terminaram. Podemos partir pela manhã. Mas esta noite, esta noite te farei passar um momento agradável, mon ami. Conheço um botequim apropriado junto à entrada do norte, onde servem uma saborosa sopa e cerveja doce. - Rowland riu de repente. - Não imagina quanto senti falta da cerveja de meu pai. Os franceses podem afogar-se em seu maldito vinho, eu sempre estarei disposto a beber cerveja com os camponeses.

            Rowland pegou seu chicote e embainhou sua larga espada; logo, colocou um longo manto de lã sobre os ombros. Atrás deixou a cota e a armadura. Ele tinha crescido para converter-se em um homem de esplêndida figura, pensou Gui com satisfação. Duro como uma rocha, firme e forte, Rowland era um verdadeiro guerreiro. Admitisse ou não, Luthor estaria orgulhoso de ter este filho a seu lado na batalha.

            Gui deixou escapar um suspiro. Rowland tinha crescido sem o amor de uma só pessoa. Era natural que, em ocasiões, ele fosse áspero, cruel e se irritasse com facilidade; tinha todo o direito a sê-lo. Mesmo assim, Rowland também possuía excelentes qualidades. Era capaz de demonstrar tanta lealdade por um homem, como ódio por outro. E não lhe faltava senso de humor. Na verdade, Rowland era um grande homem.

            - Devo te advertir, Gui - disse ele quando entraram na cidade. - Roger de Mezidon também tem descoberto as virtudes do botequim a que nos dirigimos, já que certa donzela apanhou seu interesse ali.

            - E o teu também, sem dúvida - demarcou Gui com tom divertido. - Você e ele sempre se sentiram atraídos pelas mesmas mulheres. Competiram também por esta?

            Rowland fez uma careta ante a lembrança recente. - Sim, brigamos. Mas o trapaceiro se aproveitou enquanto eu estava despreparado, depois de que eu tinha tomado umas quantas taças de mais.

            - Então perdeu?

            - Não é isso acaso o que acabo de te dizer? - respondeu Rowland com brutalidade. - Mas essa será a última vez que brigarei com um homem por algo tão insignificante. As mulheres são todas iguais e muito fáceis de conseguir. Ele e eu temos inteligência o suficiente para não brigar por um par de saias.

            - Ainda não me perguntaste pela Amélia - observou Gui com cautela.

            - É verdade, não te perguntei - replicou Rowland.

            - Não sente curiosidade?

            - Não - respondeu. - Perdi meus direitos sobre a Amélia ao partir. Se ela ainda seguir livre na minha volta, então, talvez, voltarei a reclamá-la. Se não... - encolheu-se os ombros. - Encontrarei outra. Não tem muita importância para mim.

            - A moça está livre, Rowland. E te esperou fielmente durante estes seis anos.

            - Não lhe pedi que o fizesse.

            - Mesmo assim, ela aguardou. A moça espera casar-se contigo e Luthor está de acordo. Já começou a tratá-la como a uma filha.

            Rowland deteve a marcha e franziu o cenho.

            - Ela sabe que eu não estou disposto a me casar. O que brindou o matrimônio a meu pai mais que um par de filhas aproveitadoras e uma esposa nojenta?

            - Não pode comparar a todas as mulheres com sua madrasta? afirmou Gui. - Com segurança, suas viagens pela França te demonstrou que nem todas as damas são iguais.

            - Ao contrário. Aprendi que uma mulher pode ser muito doce quando quer algo, mas, de outra maneira, é uma bruxa. Não, não desejo uma esposa que me esteja enganando todo o tempo. Prefiro queimar no inferno a me casar.

            - Está atuando como um besta, Rowland - aventurou-se a afirmar Gui. - Já sei que há dito isto antes, mas pensei que tinha trocado de opinião. Deveria te casar. Desejará um filho algum dia. Deve ter a alguém a quem deixar Montville.

            - Com segurança, terei um ou dois bastardos. Não preciso me casar para isso.

            - Mas...

            Os escuros olhos azuis de Rowland se entrecerraram.

            - Tenho uma opinião muito firme sobre isto, Gui, de maneira que não siga me perseguindo.

            - Muito bem - aceitou Gui com um suspiro - Mas, o que acontecerá Amélia?

            - Ela já conhecia minhas idéias quando veio a minha cama. É muito besta se pensou que voltaria a considerá-lo.

            Reataram a marcha e Rowland suavizou seu tom ao prosseguir.

            - Além disso, é a última mulher que eu recomendaria por esposa. Tem uma boa figura e é bonita, mas é muito promiscua. Roger a teve antes que eu, e sem dúvida, também muitos outros antes que ele. Você mesmo, possivelmente, também saboreaste a moça. Vamos admite-o.

            O rosto do Gui avermelhou e se apressou a trocar de tema.

            - Quanto falta para chegar a esse botequim? - Rowland soltou uma estrondosa gargalhada ao perceber a inquietação de seu amigo e lhe deu uma palmada nas costas.

            - Te tranqüilize, mon ami. Nenhuma mulher merece uma disputa entre amigos. Tem minha permissão para possuir a qualquer dama que eu tenha. Como te disse antes, todas são iguais e muito fáceis de conseguir, inclusive Amélia. E, com respeito a sua pergunta, o botequim está ali diante. Assinalou um edifício situado ao final da rua. Dois cavalheiros se encontravam deixando o lugar e ambos o saudaram com a mão.

            - Esses homens brigaram a meu lado na última batalha - explicou Rowland. - Borgoñeses do Lyon. Ao que parece, todo o reino colaborou na expulsão dos sarracenos. Inclusive os saxões enviaram seus cavalheiros.

            - Se eu tivesse chegado antes, eu teria lutado também. - comentou Gui com melancolia.

            Rowland deixou escapar um breve risinho.

            - Ainda não saboreaste sua primeira batalha? Suponho que Luthor não terá estado ocioso durante todos estes anos, ou sim?

            - Não, mas foram só combate contra bandidos.

            - Então, deve esperar ansioso o enfrentamento com o Thurston.

            Gui sorriu, ao mesmo tempo em que chegavam ao botequim. - Para falar a verdade, não pensei muito nisso. O único que me preocupou desde que saí de casa foi a possibilidade de não conseguir te fazer voltar, dado que, se isso ocorria, eu tampouco poderia retornar.

            - Então, deve-te sentir muito aliviado, né?

            - Sem dúvida. - Gui soltou uma gargalhada. - Preferiria enfrentar ao demônio, antes que à fúria de Luthor.

            Ao entrar, encontraram o botequim repleto de cavalheiros que bebiam junto a seus escudeiros e soldados. O lugar era de pedra e muito espaçoso. Os homens se achavam junto à enorme fogueira, onde se assava a carne ou congregados em grupos, conversando. Havia mesas de madeira com bancos de pedra e a maioria já se encontrava ocupados. Face à existência de duas portas, uma a cada lado da imensa habitação, o lugar estava muito quente e carregado. Quase todos os cavalheiros levavam postos trajes de couro e malhas de ferro; seus escudeiros, só o objeto de couro. Nenhum deles parecia muito cômodo.

            Em casa, longe da batalha, Rowland e seus vizinhos, Gui, Roger, Thurston e Geoffrey, todos preferiam a capa de três lados sobre a larga camisa que usavam sob o traje de couro. Sujeita sobre um só ombro, a capa lhes permitia livre acesso à espada que sempre levavam, mas não era tão incômoda como a cota ou a túnica de couro. Rowland, entretanto, estava acostumado a preferir a túnica, dado que nunca tinha conseguido habituar-se à capa. Acha que o traje era efeminado, e o fato de que Roger de Mezidon se visse efeminado com o objeto a tornava até mais repugnante aos olhos dele.

            Roger se encontrava no botequim com dois de seus vassalos e seus escudeiros. Gui tinha viajado sem seu próprio escudeiro e Rowland se encontrava sozinho visto que tinha perdido o seu escudeiro, e ainda não tinha sido substituído.

            Rowland conhecia um dos vassalos de Roger, sir Magnus, quem era tutelado do pai de seu senhor. Ao igual ao filho de Luthor, sir Magnus tinha vinte e quatro anos e tinha recebido seu treinamento junto com o Gui e Roger e o mesmo Rowland.

            Roger, de vinte e seis anos, era o maior de todos e, de um princípio, transformou-se no líder. Tinha sofrido uma penosa juventude, com a certeza de que, como segundo filho, deveria lavrar seu próprio caminho no mundo. Invejava Rowland porque, bastardo ou não, ele estava seguro de possuir Montville algum dia. O fato de que um bastardo fosse herdar, enquanto que ele, filho de um nobre, não contaria com tal privilégio, resultava-lhe muito irritante. Rowland e Roger rivalizavam em tudo e este, sendo o maior, geralmente ganhava e, em cada oportunidade, se vangloriava com malícia pela vitória. Durante toda sua juventude, ambos os jovens tinha brigado e discutido mais que se tivessem sido irmãos, e a luta não tinha cessado com a idade.

            Roger percebeu a chegada de Rowland e decidiu ignorar. Mas sir Magnus viu o Gui e se levantou para lhe saudar.

            - Santo Deus, Gui de Falaise, o pequeno! - exclamou Magnus com efusão. - passaram anos da última vez que te vi. Não tomou ao velho Luthor de Montville como seu senhor?

            - Sim - respondeu Gui com tom severo.

            Ficava enfurecido quando alguém o chamava daquele apelido de infância. O pequeno. De fato tinha uma estatura pequena, e esse fato não podia modificar-se. Isso lhe tinha convertido em objeto de brincadeiras quando era jovem e uma peça fácil para homens como Roger e Magnus, que estavam acostumados a tirar vantagens de seus enormes tamanhos. Rowland se tinha compadecido dele e tinha tentado lhe proteger, lutando freqüentemente em seu lugar. Isto tinha criado um vínculo entre ambos, e Gui sentia que, por essa razão, devia a seu amigo uma inflexível lealdade.

            - E o que trouxe o vassalo de Luthor até o Arles? - perguntou Roger.

            - Há problemas...

            Antes que Gui pudesse continuar, Rowland lhe deu uma cotovelada nas costelas e interveio.

            - Meu pai sentiu minha falta - disse com tom jovial, fazendo com que Magnus se engasgasse com sua cerveja. Todos os pressente sabiam que tal afirmação era absurda. Roger franziu o cenho ante a resposta e Rowland previu que uma batalha o aguardava na Normandia.

            Ele se sentou em um banco de pedra no outro lado da mesa, frente a seu velho inimigo. Uma garçonete, aquela por quem ambos os jovens tinham lutado, serviu a cerveja aos recém chegados e se manteve perto, deleitando-se com a tensão que tinha provocado sua presença. Já antes tinham combatido por ela, mas nunca dois homens tão brutais e, de uma vez, tão desejáveis, como esses dois jovens.

            Gui permaneceu de detrás de Rowland, inquieto ante a expressão sombria de Roger. Era este um homem arrumado, com os olhos azuis e o cabelo loiro característicos dos normandos, mas agora seu rosto se achava marcado com linhas severas, ameaçadores. Ria de forma estranha, exceto com sarcasmo, e seu sorriso estava acostumado a ser depreciativo. Rowland e Roger eram semelhantes em estatura; ambos, jovens musculosos e fortes, de considerável tamanho. Mas o semblante de Rowland não era tão duro como o de seu adversário.

            Sem dúvidas, de aparência agradável. Rowland também guardava um certo senso de humor e um toque de amabilidade.

            - De modo que seu pai te sentiu falta? - comentou Roger laconicamente. - Mas, por que enviar a um cavalheiro para te buscar, quando qualquer lacaio poderia te haver encontrado?

            - Demonstra um inadequado interesse em meus assuntos, Roger - observou Rowland de modo cortante. Roger esboçou um sorriso sarcástico.

            - Meu irmão casou com sua irmã - disse, estendendo os braços para tomar à garçonete e sentá-la em seu colo, ao mesmo tempo que jogava um olhar de soslaio para seu antigo rival. - Um matrimônio equivocado, em minha opinião.

            - Espero que não espere que isso nos converta em parentes - grunhiu Rowland.

            - Jamais reconheceria parentesco algum com um bastardo - respondeu o outro com rudeza.

            O silêncio foi denso, até que as gargalhadas burlonas de Roger encheram a habitação.

            - O que ocorre? Acaso não tem resposta, Rowland? - provocou, e abraço à moça que tinha no seu colo? O bastardo perdeu seu valor desde que o derrotei.

            Uma explosão deveria ter acompanhado ao repentino esplendor que apareceu nos olhos de Rowland, mas ele falou com incrível calma.

            - Sou um bastardo, isso é bem sabido. Mas um covarde, Roger? Tinha começado a suspeitar isso de ti. A última vez que combatemos, assegurou-te de que estivesse bêbado antes de me atacar. - Roger começou a levantar-se, jogando na menina para um lado, mas o severo olhar de Rowland o penetrou. - Equivoquei-me, Roger. Você não é um covarde. Você tenta à morte com suas palavras e o faz com intenção.

            - Rowland, não! - exclamou Gui, e tentou deter seu amigo, que já começava a levantar-se.

            Mas o vulcão que ardia no interior de Rowland foi impossível de deter. Ele empurrou Gui para um lado, ficou de pé e extraiu sua espada, movendo-se com tal rapidez, que soltou o banco de pedra de seus suportes, este caiu sobre o chão, atirando aos outros.

            A atenção da sala se concentrou nos combatentes, mas Rowland e Roger ignoraram tudo, exceto seu adversário. Em um ato de alarde, Roger jogou a cerveja da mesa com um tapa. Mas a cerveja se derramou sobre um cavalheiro bêbado e o homem se equilibrou antes que Rowland pudesse atacar.

            Ele esperou com impaciência, ao mesmo tempo em que a ira bulia em seu interior, mas não aguardou muito. O combate entre o Roger e o cavalheiro insistiu aos outros a lutar e, em poucos instantes, a habitação se converteu em um campo de batalha. Os guerreiros bêbados atacavam, enquanto que os sóbrios tentavam defender-se. Dois soldados se lançaram sobre o Rowland sem razão, e ele perdeu de vista ao Roger no tumulto. Gui foi em sua ajuda, e os dois amigos não demoraram para vencer a seus oponentes.

           Rowland estava a ponto de em busca de Roger quando, detrás de si, ouviu o agudo estrépito do aço. Então, girou, para encontrar-se ao Roger, surpreso, visto que a espada tinha sido arrebatada da mão. Detrás dele, achava-se um cavalheiro, a quem Rowland não conseguiu identificar. O estranho olhou a ele e estava a ponto de falar quando, repentinamente, Roger recolheu sua arma e atravessou ao homem.

            Rowland se sentiu muito indignado para lançar-se contra seu velho inimigo. Antes que pudesse recuperar-se, um escudeiro bêbado jogou a parte plana da espada sobre a cabeça de Roger. Roger caiu aos pés de Rowland, junto ao cavalheiro que ele mesmo tinha ferido.

            - Deixa-o, Rowland? suplicou Gui, lhe sujeitando a mão.

            Ele lhe lançou um olhar fulminante. - Acaso não o viu? Tentou me atacar pelas costas, e este bom homem o impediu.

            - Vi que Roger se aproximava, Rowland, isso é tudo. Com segurança, tivesse-te advertido antes de atacar.

            - Conheço o Roger melhor que você, Gui, e te asseguro que sua intenção era me matar sem prévio aviso - grunhiu Rowland.

            - Então, desafia-o quando se recuperar - implorou-lhe Gui. - Mas não apele ao assassinato. Deixa passar por agora.

            Rowland nunca tinha matado a um homem indefeso, e aceitou à petição de seu amigo. Inclinou-se junto ao cavalheiro que tinha ido a sua ajuda, que provavelmente lhe tinha salvado a vida.

            - Este homem ainda vive, Gui - gritou - Levaremos ao cirurgião de meu acampamento.

            Gui vacilou.

            - E o que faremos com o Roger?

            - Lhe deixe - respondeu Rowland chateado - Talvez, um destes homens o mate primeiro e me economize a espada.

 

            Rowland se encontrava aguardando ansiosamente junto ao consultório do médico, ao mesmo tempo em que Gui passeava pelos arredores, angustiado.

            - Já passaram três dias, Rowland - disse com impaciência. - Se o homem tiver que morrer, morrerá. Não há nada que possa fazer para lhe ajudar.

            Rowland lançou um olhar irado a seu amigo. Já tinha discutido o mesmo assunto.

            - Devemos partir, Rowland. Roger fugiu furtivamente durante a noite, de modo que agora não pode lhe desafiar. Como estão as coisas, não chegaremos a casa antes da primeira nevada.

            - Uns poucos dias mais não importarão.

            - Mas você nem sequer conhece este homem.

            - Sua impaciência não diz muito em seu favor, Gui. Estou em dívida com ele.

            - Não pode estar tão seguro disso.

            - Claro que sim.

            Finalmente, a porta da loja se abriu e o médico do duque se aproximou dos dois homens com ar fatigado.

            - Esteve consciente uns instantes, mas é tempo o suficiente para saber se viverá. A hemorragia cessou, mas pouco posso fazer pelas lesões que tem em seu interior.

            - Chegou a falar? - O médico assentiu.

            - Ao despertar, acreditou encontrar-se em uma aldeia de pescadores. Ao que parece, passou várias semanas na costa, recuperando-se de umas feridas.

            Rowland franziu o cenho.

            - Feridas?

            O doutor sacudiu a cabeça.

            - Esse jovem deve estar amaldiçoado. Foi deixado à mercê de uns camponeses. Apenas conseguiu sobreviver. Afirma que permaneceu inconsciente uma semana e que não pôde mover-se nem pensar durante uns dias mais. Recebeu um golpe na cabeça.

            - Quem é? - perguntou Rowland com ansiedade.

            - Sir Rowland, o homem está gravemente ferido. Não quis pressionar, só me dediquei a escutar o que desejava dizer. Encontrava-se muito alterado. Quando insisti em que não podia levantar-se, tratou de explicar ele de sua ferida. Disse algo a respeito de uma irmã, sua preocupação pela moça, mas voltou a desabar-se antes que pudesse me contar do que se tratava, parecia muito perturbado.

            - Posso lhe ver?

            - Está outra vez inconsciente.

            - Aguardarei na loja até que desperte. Devo falar com ele.

            - Muito bem.

            Gui continuou com suas súplicas uma vez que o doutor partiu.

            - Vê?, o médico não parece muito preocupado. Partamos a casa. Já não há nada que possa fazer aqui.

            Rowland tinha perdido a paciência com seu velho amigo. Sentia-se moralmente obrigado a permanecer ali.

            - Maldição! Atua como uma mulher resmungona! Se estiver tão ansioso por ir, então sai... Sai!

            - Rowland, só acredito que é urgente nos apressar. Já pode ser muito tarde. É provável que em minha ausência, Thurston de Mezidon tenha atacado, antes da chegada do frio.

            - Parte já. Eu te alcançarei no caminho.

            - Mas não posso permitir que viaje só.

            Rowland lançou um olhar severo a seu amigo.

            - E desde quando necessito uma escolta? Ou é que não confia em que te seguirei? Oh sim, já vejo que é isso. - Soltou uma breve risinho - Leva meus pertences contigo, então. Deixa só meu cavalo e minha armadura. Desse modo, poderá estar seguro de que te seguirei. Se não surgir dificuldades, reunir-me-ei contigo entre o Ródano e o Loira. Se não estiver lá, não me espere se não conseguir te alcançar.

            Com certa relutância, Gui partiu e seu amigo permaneceu sentado junto à cama da paciente durante o resto da tarde. Essa noite, sua vigília se viu recompensada quando o ferido abriu os olhos. O homem tratou de levantar-se, mas Rowland o deteve.

            - Não deve te mover. Sua ferida voltará a sangrar.

            Os brilhantes olhos pardos do doente se posaram sobre o Rowland.

            - Conheço-te? - Falou calmamente em francês e logo, respondeu a sua própria pergunta. - Estava ontem à noite no botequim.

            - Isso passou faz três noites, meu amigo.

            - Três? - grunhiu o ferido. - Devo encontrar a meus homens e retornar ao Berry imediatamente.

            - Não irá a nenhuma parte, ao menos, não por algum tempo.

            O homem soltou um gemido.

            - Necessita do médico?

            - Só se pode realizar um milagre e me curar neste instante - sussurrou o doente.

            Rowland sorriu.

            - O que posso fazer por ti? Salvou-me a vida e está sofrendo por isso.

            - Sofro por minha própria imprudência. Só duas vezes em minha vida elevei minha espada a sério combate e, em ambas as oportunidades, aproximei-me da morte. Jamais escuto as advertências. Sempre penso que os homens lutarão limpamente. E isso me custou um alto preço para aprender a lição.

            - Sei que acaba de te recuperar de uma ferida na cabeça. Foram os sarracenos?

            - Sim. Ia com outros três perseguindo um bando que fugia. Quando os alcançamos, eles se voltaram para lutar. Então meu cavalo caiu e me jogou pelos ares. Quando por fim despertei, encontrei-me em uma aldeia de pescadores, com uma dor de cabeça que não desejo a ninguém e me informaram que tinha estado inconsciente durante uma semana. Vim a Arles logo que me recuperei. Não tive sorte para encontrar a meus vassalos. Acreditava que acharia a um ou dois nesse botequim, mas não vi nenhum.

            - Mas, felizmente para mim, encontrava-te ali essa noite.

            - Tive que reagir quando vi que um homem se aproximava por trás - declarou o ferido.

            - Bom, salvaste a vida de Rowland de Montville. O que posso fazer em troca?

            - Reza por minha rápida recuperação.

            Rowland riu, visto que o homem conservava o humor mesmo com um lastimoso estado.

            - Sem dúvida, orarei por ti. E seu nome? Devo sabê-lo se tiver que implorar aos Santos.

            - Quintin de Louroux.

            - É franco?

            - Sim, de Berry.

            - Sua família vive ali?

           - Meus pais morreram. Só fica minha irmã e... - O homem fez uma pausa? - Há algo que pode fazer por mim.

            - Não tem mais que mencioná-lo.

            - Meus vassalos, os três que traje comigo. Se pode encontrá-los por mim, estarei-te muito agradecido. Assim, poderia enviar um a casa para informar a minha irmã que estou vivo, mas que ainda não retornarei até dentro de algumas semanas.

            - Sua irmã achava que estavas morto?

            Quintin assentiu, inclinando fracamente a cabeça.

           - Suponho que sim. Acreditei que só me levaria uns poucos dias reunir a meus homens e partir para o Berry. Mas agora o médico diz que devo permanecer nesta cama durante três semanas. Não posso tolerar a idéia de que minha irmã esteja chorando minha morte.

            Tanta preocupação por uma mulher era incompreensível para Rowland.

            - Deve amá-la muito.

            - Estamos muito unidos.

            - Então pode estar tranqüilo, meu amigo. Encontrarei a seus cavalheiros e lhe enviarei isso. Mas me pede muito pouco. Considerar-me-ia honrado se me permitisse lhe levar as notícias a sua irmã em pessoa. Liberar-te dessa preocupação seria só um pequeno pagamento ao muito que devo.

            - Não posso te pedir tanto - negou-se Quintin.

            - Me ofenderei se não o faz. De todos os modos, devo viajar para o norte, visto que meu pai requereu minha presença em Montville. Só me atrasei para me assegurar de seu estado. E não ouviste falar dos cavalos de guerra de Montville? São animais majestosos e com certeza suas boas notícias chegariam aos ouvidos da sua irmã o mais rápido possível.

            Os olhos de Quintin se iluminaram.

            - Encontrará minha casa sem dificuldade. Não tem mais que perguntar uma vez que te aproxime de Berry e lhe indicarão o caminho para o Louroux.

            - Encontrarei. - assegurou Rowland - Você só deve descansar e recuperar suas forças.

            - Agora já poderei descansar - afirmou Quintin com um suspiro. - Estou muito agradecido, Rowland.

            Ele se levantou para partir.

            - É o menos que posso fazer por ti, e não é nada, considerando que me salvou a vida.

            - Sua dívida está saldada - assegurou o doente. - Não diga a minha irmã que me feriram outra vez. Não desejo lhe causar mais angustia. Só lhe diga que ainda devo permanecer ao serviço do duque, mas que logo retornarei.

            Depois de ter deixado atrás Arles, percebeu Rowland que desconhecia o nome da irmã de Quintin do Luoroux. Mas não tinha importância... encontraria a jovem de todos os modos.

 

            Druoda da Gascuña se encontrava em seu quarto, recostada sobre um longo canapé verde, comendo passas de uva e saboreando o néctar de um doce. Já tinha cansado a tarde e, embora o inverno houvesse sido benigno até o momento, Druoda estava habituada aos climas mais quentes do sul da França e insistia em manter acesa a chama de um braseiro para esquentar a habitação.

            Em seus pés, encontrava-se ajoelhada Hildegard, preparando as unhas de sua ama para as pintar, outra das numerosas práticas que Druoda tinha aprendido das despreocupadas mulheres do sul. Não muito tempo atrás, ambas as damas se viram privadas de todo luxo. Só recentemente, tinham trabalhado dia e noite, alimentando a viajantes, lavando roupa suja de outras pessoas e cozinhando. Este deplorável trabalho tinha sido necessário, visto que o pai de Druoda não lhe tinha deixado nada. Seu marido Walafrid, possuía uma imensa casa, mas não contava com suficiente dinheiro para mantê-la. De modo que ambos tinham convertido a residência em uma estalagem e contratado Hildegard como ajuda.

            Graças à morte do sobrinho de Druoda, Quintin, os dias de árduo trabalho tinham terminado. Tudo tinha sido meticulosamente calculado: assumiriam a tutoria de Brigitte de Louroux, ocultariam a notícia da morte de Quintin ao barão, a seu senhor. Druoda se sentia satisfeita por haver-se desembaraçado da única pessoa que poderia informar a má nova ao conde Arnulf. Sob suas ordens, Hugh tinha retornado à costa sul para verificar a morte de Quintin. Em realidade, ela não necessitava de confirmação alguma, mas requeria tempo, e aguardar que Hugh e os vassalos voltassem com os pertences de seu sobrinho lhe proporcionaria o lapso necessário para desposar Brigitte sem a intromissão do conde.

            Sim, se acontecesse as bodas antes que Arnulf soubesse da morte de Quintin, então não haveria razão para nomear a um tutor, visto que a menina contaria com um marido. Só restava impedir que a dama fosse ao conde e isso poderia ser feito, mantendo-os afastados. Uma vez que a casasse, Arnulf não poderia intrometer-se. Não, o homem deixaria a propriedade nas mãos do legítimo marido de Brigitte, que, por sua vez, seria controlado por Druoda.

            O marido, ah, essa era a parte mais difícil! Encontrar a um homem que desejasse lady Brigitte o suficiente para submeter-se às exigências de Druoda tinha sido o maior desafio. A mulher contava com uma larga lista de possibilidades, uma lista obtida dos serventes, visto que a mão da moça tinha sido solicitada várias vezes ao longo dos anos. Druoda acreditava ter encontrado, por fim, o candidato adequado no Wilhelm, lorde do Arsnay. O homem já tinha requerido à dama em duas ocasiões, mas Thomas e Quintin tinham rechaçado a petição, incapazes de entregar a sua adorada Brigitte a alguém mais ancião que seu próprio pai e, menos ainda, com a desonrosa reputação do lorde do Arsnay.

            Wilhelm era perfeito para os planos da Druoda. Um homem que raramente deixava sua propriedade em Arsnay, que não visitaria freqüentemente Louroux para inspecionar o patrimônio de sua esposa; um homem que desejava tanto uma jovem virgem e formosa, que estava disposto a deixar Walafrid ao mando de Louroux. O velho tolo acreditava que só uma esposa virgem poderia lhe brindar o filho que com tanto desesperava ter. Não era especificamente Brigitte o que ele procurava, embora sua beleza o deslumbrasse. Era a inocência da menina o que o homem requeria. E qual outra jovem aceitaria casar-se com um ancião? Lorde Wilhelm era também vassalo de Arnulf, de modo que o conde não questionaria a eleição de Druoda.

            A mulher se recostou sobre o respaldo canapé e suspirou com satisfação. Wilhelm era a solução aos seus planos e se sentia extremamente satisfeita consigo mesma, visto que na noite anterior tinha concluído os acertos com o homem. O lorde se achava tão prendado de Brigitte que, sem dúvida, consentiria em tudo. E, no ano seguinte, a moça sofreria um desafortunado acidente, dado que não seria apropriado que sobrevivesse a seu marido, e não seria mais um estorvo ao trabalho de Druoda. A mulher já tinha conseguido desfazer-se de Mavis com total facilidade; logo, chegaria a vez de Brigitte. A jovem morreria, Wilhelm seria o lorde de Louroux e Walafrid conservaria seu posto de senhor do feudo. Dessa forma, Druoda poderia governar para sempre os domínios de Louroux.

            - Quando o dirá à menina, Druoda?

            A pergunta do Hildegard provocou um sorriso no pálido e redondo rosto de sua ama.

            - Esta noite, quando Brigitte se encontre esgotada, depois de trabalhar durante todo o longo dia.

            - Por que está tão segura de que aceitará? Nem sequer eu admitiria me casar com o Wilhelm do Arsnay.

            - Tolices - repreendeu Druoda. - Pode ser que o homem não seja muito bonito em seu aspecto e que tenha idéias um pouco excêntricas a respeito das virgens e os filhos varões, mas possui uma fortuna. E não esqueça que a dama não tem alternativa. - Hildegard olhou a sua ama com incerteza, e Druoda riu.

            - Deixa-a protestar. Não pode fazer nada para impedir este matrimônio.

            - E se escapar?

            - Contratei a dois mercenários que a vigiarão até o momento da cerimônia. Os trajes já estão.

            - Pensaste em tudo - disse a criada com admiração.

            A ama esboçou um sinistro sorriso.

            - Tive que fazê-lo.

            Druoda tinha nascido amaldiçoada com um corpo gordo e a cara de lua de seu pai, enquanto que sua irmã, Leonie, tinha sido abençoada com o delicado aspecto de sua mãe. Druoda sempre tinha invejado a beleza de sua irmã e, quando esta se casou com o esplêndido barão de Louroux, a inveja se transformou imediatamente em ódio pelo casal. Uma vez mortos Leonie e seu marido, esse ódio se concentrou em Brigitte.

            Agora Druoda possuiria tudo o que, alguma vez, tinha tido sua irmã. Não contava com um marido tão magnífico entretanto, visto que Walafrid era um pobre exemplo da espécie. Mas isso convinha a Druoda. A mulher tinha uma férrea vontade e nunca tolerou a autoridade de nenhum homem. Aos quarenta e três anos, por fim, poderia alcançar tudo àquilo que lhe tinha sido negado na vida. Com Brigitte convenientemente casada e fora de seu caminho, poderia governar Louroux e se converteria em uma grande dama, uma dama de fortuna e influência.

            Essa noite, Brigitte foi chamada ao espaçoso quarto da Druoda, habitação que, uma vez, tinha pertencido a seus pais. Uns chamativos canapés tinham sido somados ao cenário e a imensa cama de madeira se achava coberta com uma recarregada colcha de seda vermelha. Os gigantescos armários se encontravam repletos com os numerosos mantos e túnicas que Druoda tinha mandado confeccionar. As mesas de madeira tinham sido substituídas por umas de bronze, algumas das quais se achavam adornadas com candelabros de ouro puro.

            Brigitte detestava o estado atual da habitação, carregado com as extravagâncias da Druoda. A mulher se encontrava reclinada sobre um sofá com um ar majestoso. Seu tosco e pesado corpo estava vestido com, ao menos, três túnicas de linho de diversas cores e tamanhos. O vestido exterior tinha mangas amplas e seus punhos se achavam bordados com pequenas esmeraldas. Estas gemas eram até mais exclusivas que os diamantes e custavam uma fortuna. O cinturão também estava salpicado de esmeraldas, ao igual ao adorno que levava o elaborado penteado de sua cabeleira escura.

            Brigitte tinha trabalhado durante todo o dia, arrancando a erva ao parque da mansão. No passado, esse trabalho sempre tinha sido atribuído a três ou quatro servos como parte dos trabalhos que deviam a seu senhor; entretanto, esta vez, a moça a tinha efetuado sem ajuda. Encontrava-se exausta e esfomeada, visto que não lhe tinha sido permitido deter-se até terminar com o trabalho, e logo que acabava de finalizá-lo. Mas ali estava Druoda, frente a um belo banquete estendido sobre a mesa. Havia ali mais comida da que a mulher poderia ingerir; um suculento porco, diversos pratos de verduras, pão, fruta e pasteis.

            - Eu gostaria de me retirar, Druoda. - Brigitte falou por fim, depois de uns quantos minutos de silêncio. - Se não me contares porque estou aqui...

            - Sim, imagino que estará cansada e faminta disse Druoda com indiferença, ao mesmo tempo em que se levava outro pastel à boca.

            - Me diga moça, sente que está trabalhando em excesso? Mas não, não acho, visto que nunca te queixa.

            - Druoda, agradeceria se me dissesse por que me chamaste - insistiu a jovem com tom cansado.

            - Penso que sua obstinação foi muito longe, não acha? - Logo prosseguiu sem aguardar a resposta? - Claro que sim. Esqueceu dessa tolice do convento. Tenho maravilhosas notícias, Brigitte. - Culminou sua frase com um sorriso.

            - Que notícia?

            Os lábios de Druoda se curvaram em uma careta de desagrado.

            - Sua atitude para mim não foi precisamente a que eu tivesse desejado. Mesmo em contraste com a bondade de meu coração me forçou a consertar um esplêndido matrimônio para ti.

            A revelação da mulher deixou sem fala com Brigitte. Vária vez havia dito a Druoda que ainda não desejava desposar-se.

            - E bem, moça? Não tem nada que dizer nestes momentos?

            - Não tinha idéia de que podia ser tão generosa, Druoda - disse finalmente a jovem, tratando de produzir um tom que não pudesse ser interpretado como sarcástico.

            - Sabia que me agradeceria, e com razão, porque seu prometido é um homem de importância. E se sentirá feliz ao saber que ele também é vassalo de seu senhor, o conde Arnulf, de modo que esse bom homem, sem dúvida, não se atreverá a lhe rechaçar. Sim, minha querida menina, é realmente afortunada.

            Brigitte continuou ainda reprimindo sua ira, embora seus olhos azuis brilhassem perigosamente.

            - E o que ocorrerá com meu período de luto? Como ousa tratar de me casar quando ainda estou chorando a morte de meu irmão?

            - Seu prometido está ansioso por concretizar o acerto e não poderá atrasar-se. Pela manhã, iremos a sua mansão para celebrar as bodas. Posso confiar que te vestirá adequadamente e estará pronta para partir antes do meio-dia?

            A jovem vacilou. Assim, poderia abandonar à mansão e, talvez, inclusive viajassem de direção ao castelo de Arnulf - Estarei preparada - respondeu calmamente, para logo adicionar? Mas ainda não me há dito seu nome.

            Druoda sorriu com infinito deleite.

            - Seu prometido é lorde Wilhelm do Arsnay.

            Brigitte afogou uma exclamação, e a outra mulher a observou com satisfação ao ver que o delicado rosto da menina perdia sua cor.

            - Está impressionada por sua boa fortuna? - perguntou Druoda com tom conciliador.

            - Lorde Wilhelm!

            - Um homem excelente.

            - É um obeso, lascivo, detestável e asqueroso porco! - exclamou a jovem, depois de ter perdido sua anterior cautela. - Preferiria morrer antes que me casar com ele!

            Druoda riu.

            - Que caráter! Primeiro, escolhe um convento e agora, é a morte antes que a desonra!

            - Falo a sério, Druoda!

            - Então, suponho que terá que se matar? disse a dama com um suspiro. - Pobre Wilhelm, estará muito decepcionado.

            - Não tenho que me casar com ele só porque você o decidiste. Partirei daqui se insistir. Não me preocupa o que possa me acontecer na rota, visto que nunca poderá ser pior que desposar ao homem mais repulsivo de toda Berry.

            - Temo-me que isso é inaceitável. Não me acreditará capaz de permitir que arrisque aos perigos do caminho, verdade? Dei minha palavra com respeito a estas bodas e se celebrará.

            Brigitte se ergueu com dignidade, tratando com desespero de controlar-se.

            - Não me pode forçar a me casar com esse homem tão detestável, Druoda. Esquece um fator muito importante. Mesmo que esse seja o candidato de sua eleição, o conde Arnulf segue sendo meu lorde e deve passar primeiro por sua aprovação. Ele nunca seria capaz de me entregar ao Wilhelm do Arsnay, embora seja seu vassalo.

            - Acha que não?

            - Sei que não!

           - Você me subestima, menina - grunhiu Druoda, abandonando já sua fingida atitude, e se inclinou para frente, em direção a sua presa. - O conde dará seu consentimento porque acreditará que este matrimônio é o que você deseja. Não é estranho que uma jovem escolha a um ancião como marido, visto que, dessa forma, estará segura de lhe sobreviver e gozar, algum dia, da liberdade da viuvez. E você, minha menina, com sua obstinação, é das que desejariam essa liberdade. O conde Arnulf, sem dúvida, acreditará que você deseja neste acordo.

            - Eu lhe revelarei o contrário, embora deva dizer-lhe no dia das bodas!

            Druoda a esbofeteou com crueldade, ferozmente e com prazer.

            - Não tolerarei mais arrebatamentos de ira, Brigitte. Casará antes que o conde Arnulf possa assistir à cerimônia. Se me desafiar, me verei obrigada a tomar medidas severas. Uma boa surra poderia te infundir o respeito apropriado. Agora, sai daqui. Fora!

 

            O sonho de Brigitte foi interrompido depois de apenas umas poucas horas de descanso. Antes que a menina conseguisse avivar-se por completo, uma presunçosa Hildegard lhe informou que seria transladada uma vez mais a seu antigo quarto. Não era estranho que Druoda lhe permitisse voltar, só a fim de lhe facilitar os preparativos para reunir-se com o prometido.

            Brigitte passou quase uma hora inundada em uma imensa banheira, relaxando seu dolorido corpo. Mas nada pôde fazer pela aspereza de suas mãos, nem por suas unhas rotas, evidências de comprimentos meses de árduo trabalho.

            Depois do banho, a jovem se dirigiu a seu guarda-roupa. Só lhe tinham deixado dois objetos respeitáveis. No interior do baú, havia um pequeno cofre, mas já não se encontravam as valiosas jóias que este alguma vez tinha contido. Um pente e um espelho de aço eram tudo o que ficava do que, no passado, tinha sido uma fabulosa coleção de jóias. Brigitte revisou uma pilha de objetos de algodão e extraiu duas túnicas de fino linho azul, bordadas com fios de prata. O objeto mais largo, sem mangas, era para usar debaixo da mais curta, com mangas largas e amplas. Surpreendeu-se ao ver que o sutiã do vestido exterior ainda seguia vestido de deliciosas safiras incrustadas. Seu pai lhe tinha presenteado com o traje antes de morrer. O traje se completava com um longo manto, bordado com uma trancinha de prata, que se sujeitava com uma imensa safira. Por que razão não lhe teria tirado as pedras?

            Brigitte só pôde imaginar que não tinham notado a presença desses objetos quando ela se mudou às estabelecimentos dos servos. De outro modo, jamais teria seguido em posse de tão muito valiosas pedras. Ao igual às esmeraldas, as safiras eram mais caras que os diamantes ou as pérolas. Essas pedras, ao menos, poderiam comprar a liberdade.

            À hora do crepúsculo, aproximaram-lhe um cavalo à entrada da mansão. A moça levava postos seus vestidos azuis e o luxuoso manto aceso ao redor do pescoço. Uma vez mais, parecia ter recuperado seu antigo aspecto. A via formosa, inclusive desafiante, com seu cabelo dourado sujeito em duas largas tranças que lhe caíam sobre os ombros até a cintura.

            Druoda já tinha montado e se encontrava aguardando-a. Também se achavam ali dois homens muito robustos, a quem Brigitte nunca antes tinha visto. Sem apresentar à moça, nem lhe oferecer explicações, Druoda conduziu o caminho através do portão principal, que circundava a mansão. Os homens iniciaram o rodeio sem afastar-se de ambos os lados da jovem.

            Só umas horas mais tarde, quando se encontravam a dois quilômetros dos domínios de lorde Wilhelm, Druoda diminuiu a marcha o suficiente como para que Brigitte pudesse lhe perguntar a respeito dos sujeitos e confirmar assim suas suspeitas.

            - Estão aqui para te vigiar - informou-lhe a mulher com brutalidade. - Eles se encarregarão de que não desapareça antes da cerimônia.

            A jovem se enfureceu. Como poderia escapar se não cessavam de vigiá-la?

            O resto do dia não resultou menos penoso. Passaram a tarde com lorde Wilhelm e sua robusta filha. Wilhelm era um homem obeso, mais ancião que o pai de Brigitte, com mechas de cabelo espaçado e cinza que tomavam sua cabeça. Era um sujeito repulsivo, com um nariz vermelho e bulboso e uns olhos pequenos e negros, que não se separaram de sua jovem prometida até que foi servido o banquete.

            Jantaram na sala principal, uma habitação vazia, exceto pelas mesas de madeira lavrada e a armadura que adornava as sombrias paredes de pedra. Brigitte não pôde provar a comida, seu estomago dava voltas ao observar aos outros deglutirem seus mantimentos. Druoda se encontrava muito cômoda, em companhia de seus congêneres glutões.

            Primeiro, serviram-se medusas e ouriços de mar, que foram rapidamente devorados. O prato principal, carne assada de avestruz com molho doce, carneiro e presunto, comeram-no com igual rapidez. Por último, chegaram as tortas e as fritas em mel, acompanhados por um vinho aromatizado com mirra. Em geral, um banquete estava acostumado a durar horas, mas este culminou em menos de uma.

            Depois da comida, Brigitte acreditou que vomitaria quando foi forçada a presenciar o entretenimento que Wilhelm tinha planejado: a luta de um cão domesticado contra um lobo. A moça amava os animais e essa classe de espetáculos a perturbava-na.

            Saiu correndo do vestíbulo e, ao chegar ao pátio, respirou profundo, feliz de encontrar-se afastada dos outros. Mas seu alívio não durou muito, já que a filha do Wilhelm a seguiu e lhe disse bruscamente:

            - Eu sou a ama desta casa e sempre será assim. Você será a quarta esposa jovem de meu pai e se pretende governar aqui, terminará como as outras... morta.

            Muito aturdida para responder, Brigitte se afastou, cambaleando-se. Logo abandonaram a casa do Wilhelm e a moça balbuciou seu adeus depois de um véu de lágrimas.

            O pranto continuou lhe nublando a visão enquanto cavalgava de caminho a casa. Os guardas não se separavam de seu lado e se perguntou como poderia chegar até o castelo de Arnulf se esses dois fornidos sujeitos não cessavam de vigiá-la.

            Embora, em realidade, o que poderia perder se fazia o desesperado intento de chegar até o conde? De repente, secou os olhos com fúria e cravou os calcanhares a ambos os lados de seu cavalo. Por uns instantes, a moça e sua égua se afastaram dos outros. Mas os guardas tinham esperado este incidente e a alcançaram com facilidade, antes que ela conseguisse deixar atrás ao último quarto da aldeia de Wilhelm.

            Os homens levaram a jovem ao lugar onde Druoda esperava, e Brigitte se enfrentou a um golpe que tomou despreparada e a jogou do cavalo. A moça caiu no lodo, quase sem respiração. Isso acrescentou sua ira até o ponto de explorar, mas não descarregou a fúria contra Druoda. Pelo contrário, reprimiu-a e foi golpeada. Logo se limpou o lodo do rosto e permitiu que a transladassem bruscamente até o lombo de sua égua.

            Brigitte se sentiu ferver de raiva, mas guardou silêncio. Esperou com paciência a que seus acompanhantes afrouxassem a vigilância, cuidando sempre de cavalgar afundada nos arreios e dar toda a impressão de obediência. Mas sua atitude estava muito longe de ser total.

            Tão absurda em seus pensamentos, que não percebeu que já tinha escurecido até que o ar da noite lhe açoitou as bochechas. Imediatamente, elevou-se o capuz do manto para cobrir a cabeça. Ao fazê-lo, estudou furtivamente a seus companheiros e observou que só Druoda se encontrava cavalgando para seu lado. Os dois guardas se adiantaram a fim de proteger às mulheres contra os assaltantes noturnos.

            Esta era sua oportunidade. De noite, poderia ocultar-se na escuridão. Nunca a encontraria tão perto do conde Arnulf como nesse momento. Sujeitou ambas as rédeas em um punho e depois de aproximar-se de Druoda, para açoitar a égua da mulher, insistindo ao animal a equilibrar-se para os guardas, ao mesmo tempo em que ela girou e se lançou ao galope na direção oposta.

            Esta vez conseguiu afastar um considerável trecho, antes que os homens iniciassem a perseguição. Logo depois de avançar um quilômetro pela rota, diminuiu a marcha e se internou no bosque onde as sombras, negras como o ébano, proporcionavam-lhe um perfeito esconderijo. Saiu da égua e começou a caminhar lentamente junto ao animal através da escura. Um instante mais tarde ouviu os guardas correr pelo antigo caminho.

            Brigitte conhecia esses bosques, já que freqüentemente os tinha atravessado com seus pais, em suas freqüentes visitas ao castelo de Arnulf. No outro lado das árvores, havia um caminho mais largo, a antiga rota entre o Orleans e Bourges e esse atalho a levaria até o conde. Só lhe restava atravessar o bosque, embora fosse uma difícil façanha.

            À medida que seu temor pelos guardas de Druoda se diminuía, os aterradores sons dos bosques começaram a acossá-la e recordou as tétricas advertências do Leandor a respeito de ladrões e assassinos, grupos de bandidos que moravam por esses lugares. Acelerou o passo até que se encontrou quase correndo e de repente, lançou-se por entre as árvores, até chegar a um pequeno claro. O pânico a embargou. Olhou ao redor com desespero, esperando ver uma fogueira rodeada de homens. Deixou escapar uma exclamação de alívio, já que não era um claro onde se encontrava, a não ser o caminho... tinha saído ao caminho! Voltou a internar-se nas sombras e se despojou de todas suas roupas, exceto a velha túnica de lã que lhe cobria a pele. Logo, envolveu os objetos ao redor da cintura e se colocou, uma vez mais, o manto, embora não o prendeu, de modo que, se tropeçava com alguém, poderia tirar-lhe com rapidez e ficar novamente com o traje de uma camponesa.

            Voltou a montar a égua e cavalgou para o sul, sentindo-se livre, alvoroçada. Já não haveria bodas com Wilhelm. E já não teria que seguir suportando Druoda, visto que Arnulf não a aceitaria com agrado, uma vez que Brigitte lhe contasse as maldades da mulher em Louroux. A moça se sentiu quase enjoada, à medida que sua viçosa égua avançava a toda velocidade. Já nada poderia detê-la.

            Porém, de repente, algo interrompeu sua marcha. O cavalo parou e se levantou e, pela segunda vez no dia Brigitte se encontrou sendo atirada no chão, tratando de recuperar a respiração. Ficou de pé logo que pôde, temerosa de que o animal pudesse atacá-la. Mas a égua permaneceu imóvel e, ao aproximar-se, a moça percebeu a razão.

            - E o que temos aqui?

            O cavalheiro se encontrava dignamente montado em seu cavalo de guerra, o animal mais gigantesco que Brigitte tinha visto jamais. O homem era, do mesmo modo, imenso, provavelmente de mais de um metro oitenta de estatura. Levava posta uma armadura e oferecia um espetáculo verdadeiramente espantoso. Ao tirar o elmo, surgiu uma abundante cabeleira loira que lhe caía justo debaixo da nuca, era um estilo muito curto para um francês. Entre as sombras da noite, a jovem não conseguiu lhe ver os traços do rosto com claridade.

            - Está bem, mulher?

            A profunda voz do cavalheiro surpreendeu à moça.

            - É isto tudo o que pode dizer, cavalheiro, depois de ter jogado uma dama de seu cavalo?

            - Uma dama, né?

            Muito tarde, Brigitte recordou que levava posta sua túnica camponesa. Decidiu permanecer em silêncio. Voltou a montar a égua com rapidez e tratou de arrebatar as rédeas da mão do homem. Mas não o obteve, visto que ele não deixou das sujeitar com seu punho de aço.

            - Como se atreve? - repreendeu-o a jovem. - Acaso não lhe basta ter causado minha queda? Agora também tenta me deter? - O cavalheiro riu, e ela prosseguiu com arrogância. - O que pode lhe resultar tão divertido? - Poderia me convencer de que é uma senhora com esses ares tão altivos, mas não o é - declarou ele com tom zombador, para logo adicionar: - Uma dama sozinha, sem escolta?

            A mente de Brigitte começou a girar a grande velocidade, mas, antes que pudesse escolher uma resposta, o cavalheiro continuou.

            - Virá comigo.

            - Espera! - gritou a moça, ao mesmo tempo que ele parou de girar a égua para arrastá-la consigo.

            - Pare! - O cavalheiro a ignorou, e lhe lançou um olhar fulminante pelas costas. - Aonde me leva?

            - Levarei para onde eu me dirijo, e outros poderão te devolver com seu amo. Estou seguro de que ele estará encantado de recuperar seu cavalo, se não sua serva.

            - Acha que eu sou uma servente?

            - Sua égua é muito fina para pertencer a uma servente - prosseguiu o homem. - E nem mesmo um lorde convencido com seus favores daria de presente a uma servente um objeto tão caro como esse.

            - O manto é meu, e o cavalo também!

           - Não esbanje sua astúcia comigo, mulher - ingeriu-lhe ele, com ar conciliador? - Não me importa o que diga.

            - Deixe me ir.

            - Não. Você roubou, e não posso encobrir uma ladrazinha - afirmou o cavalheiro com tom severo, e logo adicionou:

            - Se fosse um homem, apunhalaria com minha espada sem perder o tempo em te devolver. Não me siga provocando com suas mentiras.

            "Bom, ao menos, não tudo estava perdido", pensou Brigitte. Em qualquer lugar que esse homem a levasse, sem dúvida, a gente a reconheceria e, então, esse ignóbil cavalheiro perceberia seu engano. De algum modo obteria, ao menos, enviar sua mensagem ao conde Arnulf. Transcorreu uma hora, e logo outra, antes que abandonassem a rota para encaminhar-se em direção ao Louroux. Então, Brigitte começou se sentir verdadeiramente aterrorizada.

            Não poderia tolerar que a devolvessem uma vez mais, a Druoda. Jamais voltaria a ter outra oportunidade de escapar novamente.

            A moça desembarcou do cavalo lentamente e correu com desespero para um bosquezinho próximo. Tropeçou e caiu, raspando as mãos e o rosto contra o acidentado chão. Suas bochechas pareceram arder, e umas lágrimas apareceram em seus olhos. Levantou-se e correu, mas o cavalheiro a seguia e conseguiu alcançá-la antes que ela pudesse voltar a internar-se no bosque.

            De pé, ao seu lado, o homem a pareceu imponente, sem dúvida tão gigantesco como ela o tinha imaginado em um princípio. Como odiava a esse sujeito!

            - Quem é você? - perguntou Brigitte com rudeza - Quero saber seu nome, porque, algum dia, far-lhe-ei pagar por tudo o que me tem feito!

            - E que te tenho feito?

            - Traz-me de volta ao Louroux!

            - Ah! De maneira que isso é. É de Louroux de onde está fugindo. - Ao culminar sua frase, o cavalheiro riu. Brigitte ficou tensa.

            - E lhe agrada que eu sofra por sua causa?

            - Não me importa. - encolheu-se os ombros?. Meu assunto aqui é com o ama de Louroux.

            - Que assunto lhe traz até a Druoda? - perguntou a moça, acreditando que era a Druoda a quem ele se referia.

            - Nada de sua incumbência, mulher - respondeu o cavalheiro com desdém.

            - Ainda não me há dito seu nome - recordou-lhe ela. Ou acaso me teme dizer isso?

            - Te temer eu? - repetiu ele com tom incrédulo? Se alguma vez for tão besta para permitir que uma mulher me faça mal, então, não será isso mais do que mereço. Rowland de Montville, para lhes servir - adicionou a modo de brincadeira.

            Quando o cavalheiro voltou a arrastá-la para a égua, o pânico se apoderou de Brigitte. A moça se voltou e apoiou suas pequenas mãos sobre o peito do homem.

            - Por favor, sir Rowland de Montville, não me leve ao Louroux, Druoda me manterá prisioneira.

            - Prisioneira? Merece que lhe golpeiem por seus roubos. A dama será muito clemente se tão somente te encerrar.

            - Digo-lhe que não roubei nada!

            - Mentira! - grunhiu ele. - Suficiente! Minha paciência se acabou!

            O cavalheiro tomou as rédeas da jovem e assim continuaram o curto trecho que restava até o Louroux. Foi Hildegard quem os recebeu no pátio, e os olhos da criada se iluminaram ao ver Brigitte com o alto cavaleiro.

            - Acaso alguma vez aprenderá, moça? Milady foi muito justa contigo, mas, esta vez, temo que terá que pagar por suas tolices. Será melhor que a aguarde em sue quarto.

            - A qual te refere Hildegard? - perguntou a jovem com tom mordaz. - Ao meu antigo ou recente quarto? Não me responda. Irei ao quarto, já que, sem dúvida, terminarei ali antes que termine a noite.

            Rowland sacudiu a cabeça, enquanto observava a Brigitte, que atravessava orgulhosamente o pátio para uma curta fileira de acomodações.

            - Por todos os Santos - comentou com um suspiro, uma vez que a jovem teve entrado em uma dos estabelecimentos. Nunca vi uma servente tão insolente.

            - O que? - Hildegard olhou para o quarto e logo, ao homem, obviamente confundida.

            Rowland soltou uma gargalhada irônica.

            - Tentou me convencer de que era uma dama. Mas eu não me deixei enganar tão facilmente. Não só deveria castigá-la por seus roubos, mas também por sua audácia. Se me pertencesse, juro que essa moça não seria tão arrogante. Hildegard permaneceu em silêncio. Era evidente que o cavalheiro tinha confundido a lady Brigitte com uma simples servente!

            - Querem passar à sala, sir? Lady Druoda lhes estará muito agradecida por lhe haver devolvido sua... sua... propriedade.

 

            Hildegard explicou rapidamente a Druoda o ocorrido, ao mesmo tempo que o cavalheiro se dispunha a tomar assento frente à mesa da grande sala. O jovem parecia muito satisfeito com o vinho e a comida que lhe tinham servido. Hildegard soltou um tolo risinho e jogou um cauteloso olhar ao convidado.

            - Servi-o com vinho para soltar a língua.

            - Tomou tudo?

            - Precisamos saber o que lhe contaram sobre Louroux, não é assim? Ainda lhe vê erguido, mas não durará assim muito tempo. Vêem.

            - Eu me encarregarei do normando. Tenho algo mais importante para ti - anunciou-lhe Druoda, lançando um olhar malicioso para os aposentos do Brigitte. - A moça hoje quase consegue escapar, mesmo com esses imbecis que contratei para impedi-lo. Se não fosse pelo cavalheiro, teria conseguido e todos nossos lucros já estariam perdidos. Dez chicotadas lhe farão pensar duas vezes antes de voltar a tentá-lo.

            - Quer que a golpeiem?

            - Cruamente. E te assegure de lhe tampar a boca. Não desejo que se inteire toda a mansão, mas sim quero que a moça sofra o suficiente para não estar em condições de voltar a escapar. Não lhe tire sangue. Wilhelm não aceitaria uma esposa desfigurada. - Druoda sorriu a sua velha amiga. - Estou segura de que o lorde se deleitará danificando-a ele mesmo, se for verdade o que se diz do homem.

            Depois repassar as ordens, Druoda se aproximou do cavalheiro. Ele tinha os olhos fechados e a cabeça encurvada, como se estivesse lutando por manter-se acordado.

            - Estou agradecida - expressou a mulher de modo altivo, enquanto avançava.

            O cavalheiro abriu os olhos, mas transcorreram vários segundos antes que conseguisse fixá-los. Era um jovem incrivelmente arrumado, com um queixo forte, agressivo, um nariz aquilino e olhos azuis como a safira. Sim, era, sem dúvida, muito de aparência agradável.

            - É você a ama de Louroux?

            - Sim.

            Rowland sacudiu a cabeça para esclarecer sua visão, mas o espetáculo que tinha diante de si não se alterou. A robusta mulher parecia ter o dobro de sua idade e não concordava com a imagem da irmã de Quintin que ele se formou. Por que razão teria esperado encontrar a uma dama formosa ou, ao menos, jovem?

            - Trago-te muito boas notícias, milady - anunciou Rowland subitamente? - Seu irmão ainda vive.

            - Comete um engano, sir! - afirmou Druoda de modo cortante. - Eu não tenho irmãos.

            O jovem tentou levantar-se, mas sua visão voltou a empanar-se e caiu sobre o banco, amaldiçoando em silencio à mulher por lhe haver servido um vinho tão forte.

            - Sei que acredita que seu irmão morreu, mas estou aqui para te informar o contrário. Quintin de Louroux ainda segue com vida.

            - Quintin... está vivo! - Druoda se deixou cair sobre o banco, junto ao cavalheiro normando? - Como... como é possível?

            - O escudeiro de seu irmão acreditou que o tinham assassinado, e o besta estava tão ansioso por abandonar o combate, que partiu sem antes certificar-se sobre a morte de seu amo. Uns pescadores encontraram a seu irmão e o levaram a sua aldeia. Levou-lhe muito tempo, mas se recuperou.

            Druoda recuperou rapidamente a compostura. Não havia razão de inquietar-se. Era óbvio que esse homem a acreditava irmã de Quintin.

            - Onde está... meu querido irmão agora?

            - Em Arles, de onde acabo de chegar. Dirigia-me para o norte, de modo que Quintin me pediu me deter e te trazer a notícia, dado que ele se atrasará. Não deseja que chore mais do necessário.

            - Demorou-se? E para quando devo esperar sua volta então?

            - Para dentro de um mês, ou talvez, menos. Druoda ficou de pé.

            - Foste muito amável em vir até aqui para me trazer tão agradáveis notícias. Estou-te seriamente agradecida.

            - Milady, estou em dívida com seu irmão e este não é mais que um pequeno favor. Seu irmão me salvou a vida.

            A mulher não perdeu tempo em averiguar toda a história.

            - Certamente, será meu hospede esta noite. Enviarei-te alguma jovenzinha para que te faça companhia.

            Rowland tratou de levantar-se novamente e esta vez o obteve.

            - Obrigado, milady.

            Druoda sorriu, despediu-se com cortesia e lhe deixou aguardando o Hildegard, que conduziria às quartos.

            Ao sair ao pátio, topou-se com a criada.

            - Encarregaste-te da moça?

            - Acaso não ouviu os uivos de seu cão? Alegra-me que o animal esteja encerrado.

            - Maldição, Hildegard! Então, alguém sabe o que estiveste fazendo! - exclamou Druoda com rudeza.

            - Só o cão com seu agudo ouvido - assegurou-lhe Hildegard. - Ninguém mais estava ali para advertir quanto sofria a moça.

            Logo, a criada perguntou:

            - Que notícias trouxe o normando?

            - As piores. Te apresse a lhe mostrar uma habitação e volta em seguida. Temos muito que fazer. Hildegard obedeceu as ordens e se dirigiu à quarto da Druoda, para encontrar a sua ama caminhando nervosamente pela habitação.

            - O que aconteceu?

            - Quintin está vivo.

            - Oh não! - grito a criada. Nos matará!

            - Silêncio, mulher! - exclamou Druoda com voz áspera. - Já matei antes. E não duvidarei em voltar fazê-lo, se isso me permite conservar o que ganhei. Não deixarei que me arrebatem isso tudo. Meu sobrinho não retornará até dentro de umas quantas semanas; ou ao menos isso diz o normando.

            - Se Quintin vier aqui, Brigitte lhe contará tudo - lamentou Hildegard.

            - A moça não estará aqui para contar. - Assegurou Druoda com firmeza. - Farei que a transladem à propriedade do Wilhelm para aguardar ali as bodas. Logo, irei levar lhe a notícia da morte de Quintin ao conde Arnulf. Desposaremos a Brigitte antes que retorne meu sobrinho. E, se posso arrumar tudo segundo meus planos, para que ele não retorne jamais - concluiu a dama com tom severo.

 

            Brigitte permaneceu deitada em seu pobre leito, imóvel, permitindo que as lágrimas lhe brotassem com total liberdade. Mas o chorar só o fazia sacudir os músculos e o mais ligeiro movimento lhe resultava agonizante.

            Ainda lhe custava acreditar o que tinham feito com ela. Logo que acabava de lavar suas roupas enlodadas, quando Hildegard e os dois guardas apareceram na habitação. A moça foi amordaçada e despojada de seu gasto vestido, e nem sequer teve tempo de sentir-se humilhada ao ser exposta ante dois homens, antes que fosse jogada de cara contra a cama e sujeita com firmeza. Então, sobreveio a dor, quando Hildegard começou a açoitá-la com sua correia de couro. Era como se uma língua de fogo lhe consumisse as costas cada vez que o látego caía, e a moça não pôde a não ser gritar contra a mordaça que lhe cobria a boca. Perdeu o conhecimento antes de sentir o último golpe e, ao despertar, encontrou-se sozinha, ainda nua.

            Brigitte começou a chorar uma vez mais, mas apenas por um instante. Não se renderia! Só teria que reunir suas roupas com as safiras e conseguir um pouco de comida. Faria um esforço por levantar da cama e, novamente, trataria de escapar. Desta vez, poderia levar a Wolff consigo.

            Rowland se sacudiu enquanto dormia, perturbado por um sonho que se reiterava uma e outra vez desde que tinha memória. Os sonhos podiam ser agradáveis ou terríveis, alguns aterradores, mas a natureza deste, em particular, resultava incompreensível para ele. Não aparecia freqüentemente, ao menos, não com a freqüência com que o tinha atormentado em sua terna juventude, mas sempre aparecia em sua mente quando se encontrava perturbado.

            O sonho estava acostumado a começar com um sentimento de satisfação. Então, apareciam umas imagens: o rosto de um jovem emergia da escuridão e logo, o de uma moça. Ambos os rostos permaneciam juntos, observando-o das alturas. Mas jamais tinham atemorizado a Rowland. Havia uma grande ternura e felicidade nesses rostos, uma felicidade que ele nunca tinha conhecido em sua vida. Mas então, algo estava acostumado a quebrantar esse sentimento de sorte, embora Ele nunca conseguisse averiguar o porquê. Os rostos se esfumavam e, em seu lugar, acontecia uma série de efêmeras cenas, acompanhadas por uma sensação de angústia. Então, Rowland despertava com um terrível sentimento de perda e incapaz de compreender a razão.

            O mesmo aconteceu esta vez. Caiu da cama e despertou bruscamente, com o sonho ainda vívido na memória.

            Ele voltou a deitar se no leito e sacudiu a cabeça. Por muito que tivesse descansado, não tinha sido suficiente para despojar a seu corpo dos efeitos do álcool.

            De qualquer modo, ele detestava vinho. Por que demônio não tinha pedido cerveja? Ainda drogado, levantou-se da cama e se dirigiu para o corredor. Caminhou lentamente pelo escuro corredor. Um tênue resplendor avermelhado se filtrava pelas escadas para o vestíbulo, criando sombras intermitentes sobre os gigantescos muros. Demorou vários minutos para se orientar-se, e olhou em ambas as direções, para cima e para baixo, para ver se havia alguém por ali. Necessitava desesperadamente um pouco de cerveja para limpar a mente.

            Brigitte conteve a respiração e pressionou as costas contra o muro. Encontrava a apenas uns metros do cavalheiro. Ele poderia reconhecê-la entre as sombras? Sentiu desejos de correr, mas suas pernas recusaram mover-se. Ainda sentia o corpo dolorido, e se corria agora, teria que partir sem seu cão, sem suas roupas, sem um cavalo. Tudo o que tinha conseguido reunir até o momento era um pouco de comida, que tinha envolvido em um pequeno saco. Permaneceu imóvel, sem sequer atrever-se a respirar.

            Rowland a viu e ainda quando não chegou a reconhecê-la na penumbra, conseguiu ver a larga cabeleira loira. Caminhou para a moça, ao mesmo tempo em que a idéia da cerveja começou a desvanecer-se. Se não podia limpar a mente com cerveja, passaria, ao menos, a noite com a encantada jovem que Druoda, obviamente, tinha-lhe enviado. Era um mínimo gesto de cortesia entreter aos hóspedes com alguma companhia e, embora a moça parecia um pouco relutante a agradá-lo, ele logo conseguiria entusiasmá-la.

            Sem dizer uma palavra, Rowland introduziu a jovem em seu quarto e fechou a porta. Não cessou de sujeitá-la por temor a perdê-la na escuridão. Mas a liberou quando a ouviu choramingar.

            - Não te machucarei - assegurou-lhe com doçura. - Jamais machuco ninguém sem razão. Não tem por que me temer.

            Ele, ainda drogado, não percebeu que estava falando de maneira atropelada e indistinta, nem que alternava seu francês com alguns vocábulos da antiga língua escandinava que seu pai lhe tinha ensinado fazia muito tempo.

            - É meu enorme tamanho que te atemoriza? - Perguntou observando a pequena figura da jovem. - Não sou muito diferente de qualquer outro homem. Continuou estudando à moça, até que, de repente, reconheceu-a. - Maldição, mulher, está pondo a prova minha paciência de uma maneira incrível! Acaso não causastes problemas suficientes por um dia? Já não tratarei de te persuadir gentilmente. Tomarei o que sua ama me enviou e terminarei contigo!

            Brigitte se sentiu aterrorizada desde o momento em que o cavalheiro tinha começado a falar, já que a habitação de Druoda se encontrava no outro lado do corredor e com segurança, poderia ouvi-los. Mas a moça não podia entender o que esse homem lhe dizia. Estava bêbado, falava de maneira confusa. O tom de sua masculina voz era duro, severo, o suficiente para fazer notar a jovem que, uma vez mais, seus intentos tinham sido frustrados. Já não teria forma de escapar essa noite.

            Rowland interpretou o silêncio da moça como um consentimento e começou a tirar as roupas. Mas o vinho não só lhe tinha entorpecido a mente. O desejo tinha desaparecido. Propôs-se, então, jogar com a mulher, jogando-a sobre o leito e lhe abrindo a capa, sem surpreender-se absolutamente ao encontrá-la nua. Com os dedos, acariciou-lhe a suavidade das pernas e a junção entre as coxas. Continuou a exploração com rudeza, subindo para os seios. Eram seios amplos, suaves, arredondados. Ficariam ali marca pela manhã, evidências da incrível força que exercia ele sem notá-lo.

            Mesmo assim, não se encontrava machucando Brigitte. Nada podia machucá-la. A moça desmaiou assim que suas costas doloridas tocaram o leito com selvagem violência. Não vestia nada debaixo da capa visto que não podia suportar nada que lhe roçasse as costas. Apenas tinha sido capaz de suportar o manto. O contato de sua dolorida pele contra a áspera cama lhe tinha resultado intolerável.

            Entretanto, Rowland não sabia que a jovem se achava inconsciente. Tampouco percebeu que seus próprios movimentos se tornavam mais e mais lentos, nem que estava a ponto de dormir. Assim que se colocou em posição para a cópula, o jovem desmaiou.

 

            Hildegard golpeou à porta do normando muito cedo à manhã seguinte, desejando que o cavalheiro partisse logo que fosse possível. Um instante depois, um grito apavorante proveio do interior do quarto e a criada abriu a porta imediatamente.

            - Santo Deus! - exclamou ao ver Brigitte e ao normando com os corpos nus e entrelaçados sobre o leito. - Druoda matará alguém por isso!

            A faxineira se apressou a sair da habitação, deixando Brigitte e Rowland olhando-se um no outro, surpreendidos e envergonhados.

            A moça afastou do homem, e deixou escapar um gemido ao pressionar as costas contra o colchão. Embora a dor já não era tão intensa, ainda continuava dolorida. Não tinha conseguido escapar de Druoda e era esse cavalheiro quem lhe tinha frustrado ambos os intentos.

            Já bastante tinha sofrido com a terrível tortura do dia anterior, para descobrir agora que também tinha sido violada. Podia existir uma mulher tão desafortunada como ela? Tinha sido violada, mas, graças a Deus, desmaiou e não podia recordar o momento. Por esse gesto de misericórdia, Brigitte se sentiu agradecida.

            Rowland se levantou e começou a vestir-se com rapidez. Não pôde evitar de olhar à figura nua que tinha esquentado seu leito. Deixou escapar um grunhido. O corpo da jovem tinha sido agradável para acariciar e admirar, o qual era muito mais do que podia dizer do resto da moça. Toda ela se achava imunda e enlodada. Nem sequer podia lhe adivinhar a idade, embora seu corpo fosse firme e seu rosto, doce e delicado. Ainda não tinha esquecido a feminina voz, jovial e melodiosa; porém, era isso tudo que podia recordar da dama. Morto de calor, Ele se voltou para evitar o olhar penetrante de Brigitte.

            Ela se esclareceu garganta.

            - Dá-te conta do que tem feito comigo?

            ? Sim - respondeu Rowland com voz rouca. - Acaso tem importância? - adicionou, um pouco mais seguro, enquanto colocava a capa de sua espada. - Não posso dizer que tenha sido um prazer. Com sinceridade, não recordo o momento em que te possuí.

            A moça não esteve muito segura de ter ouvido corretamente.

            - Não recorda?

            - Estava bêbado - informou ele de modo categórico, incapaz de pensar em nada que não fosse admitir a verdade.

            A jovem começou a soluçar e Rowland olhou ao redor como se procurasse ajuda. Jogo um olhar ofegante para a porta, mas nesse instante, Brigitte começou a rir e ele se voltou para enfrentá-la.

            - Ficou louca, mulher? seu tom parecia confuso.

            - Talvez eu deva agradecê-lo. Depois de tudo, esta desgraça é nada, comparada com o infortúnio do que me salvaste. Lorde Wilhelm já não me quererá, agora que fui violada por um cavalheiro bêbado.

            Rowland não teve oportunidade de responder, dado que, nesse instante, Druoda apareceu na habitação, seguida de sua fiel amiga Hildegard. Druoda se via furiosa e descarregou toda sua ira no Brigitte.

            - De modo que é certo! Arruinaste todos meus planos ao te entregar a este homem! - exclamou com voz histeria. - Lamentará isto toda sua vida, Brigitte!

            - Eu não me entreguei, Druoda - declarou a jovem com firmeza. - Ele me arrastou até aqui e me violou.

            - O que? - estalou a dama e seu rosto adquiriu um intenso tom púrpura.

            Brigitte se levantou lentamente, cobrindo-se com o manto para preservar seu recato e se voltou para o Rowland.

            - Lhe diga como cheguei até aqui.

            Ele olhou primeiro a Brigitte e logo a Druoda. Compreendeu então, que tinha cometido um engano e como não era homem de deixar cair suas culpas sobre outros, admitiu a verdade.

            - Ocorreu tal como diz a jovem. Encontrei-a perto de meu quarto e supus que era para mim. Os anfitriões geralmente enviam uma...

            - Mas o que estava fazendo você aqui? - perguntou Druoda a gritos, e Brigitte começou a pensar com rapidez, para oferecer uma desculpa parcialmente certa.

            - Vim em busca de mantimentos, visto que ontem quase não comi.

            - Comida? A Druoda estava resultando difícil acreditar toda essa história.

            A moça estendeu um braço para assinalar o chão.

            - Ali estão, nesse saco que deixei cair. - Rezou para que Druoda não decidisse revisar o interior, visto que havia ali muitos mais mantimentos dos que a jovem podia ingerir em uma só refeição.

            Mas Druoda não estava interessada em detalhes irrelevantes.

            - E por que não gritou, Brigitte? Desejava que ele te possuísse para poder arruinar meus planos!

            - Não, isso não é verdade! - exclamou Brigitte com tanto temor como indignação.

            - Por que não pediu ajuda então?

            A moça sob a cabeça e sussurrou lentamente:

            - Porque desmaiei.

            Rowland se pôs se a rir.

            - Não se tem feito nenhum dano então, se ela não pode recordá-lo. Tudo segue como se nada tivesse acontecido.

            - Não tem problema???! - exclamou Druoda. - A moça era virgem... e estava prometida a outro.

            - Virgem! - repetiu o jovem, surpreso. Pelo visto, isso não lhe tinha ocorrido.

            Que diabos de confusão ele se meteu!

            A reação dele fez pensar a Druoda.

            - Como é possível que você não percebeu?

            - Estava muito... muito bêbado para notá-lo, esse detalhe! - replicou Rowland com brutalidade, novamente furioso consigo mesmo.

            - Isso não desfaz seu engano? queixou-se Druoda com amargura.

            A mulher começou a passear ansiosamente por toda a habitação, ignorando aos jovens. Deveria ter matado à moça a muito tempo, mas já era muito tarde, visto que seu desaparecimento será questionado pelo desiludido noivo. E o que ocorreria agora com ele? Ele nunca aceitaria casar-se com Brigitte, dado que só estava disposto a desposar-se com uma virgem.

            De todos os modos, devia desfazer-se da jovem e imediatamente, antes da volta de Quintin.

            - Druoda. - Hildegard se aproximou para sussurrar lhe ao ouvido. - Entregue-a ao cavalheiro e assim, resolverá seu problema.

            - Como?

            - É óbvio que o homem a confundiu com uma servente e com segurança, ainda pensa deste modo. Faça que a moça parta com ele.

            - Mas ela negará ser uma faxineira uma vez que se encontrem a sós - respondeu-lhe Druoda com um sussurro.

            - Provavelmente, já o tenha feito, mas não lhe acreditou, ele a considera uma ladrazinha e mentirosa, você só tem que confirmar essas crenças. Diga que ela tramou tudo isso. Invente qualquer desculpa para que ele a leve e não a devolva jamais.

            - Hildegard, é um gênio! - resmungou Druoda com satisfação.

            - Primeiro, te apresse a tirar o cavalheiro desta habitação, antes que perceba que não há sangue de virgem no leito.

            - O que?

            - Pelo visto, Brigitte já paquerou antes com outro.

            Druoda ficou tensa e a ira ardeu em seu interior. A jovenzinha tinha enganado todo mundo. Por um lado, era melhor que tivesse ocorrido esse desafortunado incidente, já que Wilhelm do Arsnay teria anulado o matrimônio logo que tivesse descoberto a verdade a respeito da noiva. A sugestão de Hildegard era perfeita. Brigitte se converteria em uma servente e o normando a levaria consigo.

            - Vá ao meu quarto, Brigitte e me espere lá - ordenou-lhe Druoda com rudeza.

            A moça elevou a cabeça com indignação.

            - E o que passará com ele?

            - Faz o que te disse!

            Sem mais vacilação, a jovem recolheu seu saco de comida e abandonou a quarto com passo firme.

            Druoda a seguiu até a porta e ali se dispôs a aguardar, até que a curiosidade do cavalheiro lhe insistisse a romper o silêncio. A espera não foi muito larga.

            - O que pensa fazer com ela?

            A dama ignorou à pergunta e, com sua atitude mais altiva, jogou um olhar enojado à habitação.

            - Este lugar empesta a luxúria - afirmou com desagrado, e se retirou do quarto bruscamente.

            Rowland a seguiu, para detê-la assim que chegaram ao vestíbulo.

            - Perguntei-te o que faria com a moça. Sei que cometeu muitas faltas, mas nisto é inocente. Não a machuque.

            - Sei muito bem quem é o culpado de tudo isto - disse Druoda lentamente, condenando ao cavalheiro com os olhos.

            - Foi seriamente um engano, milady. Prometeu me enviar uma mulher durante a noite, a menos que não recorde suas palavras com precisão.

            A dama deixou escapar um suspiro de impaciência.

            - Devia aguardar a moça que tinha destinada para ti, em lugar de tomar a esta, cujo único valor era sua inocência.

            - O valor de uma servente não se mede por sua castidade.

            - Neste caso, sim. Essa jovem é muito imaginativa... uma mentirosa, por dizê-lo sinceramente.

            - O que pensa fazer com ela?

            - Não penso fazer nada, nada absolutamente. Agora te pertence: tem minha bênção para tomá-la.

            Rowland sacudiu lentamente a cabeça.

            - Não, milady, não a quero.

            - Não pensava o mesmo ontem à noite - recordou Druoda com tom severo. - Havia um senhor de umas terras longínquas que estava disposto a casar-se com ela só porque era inocente. Agora que isso já não é possível, não a quero mais aqui. Se não a levar daqui, farei que a matem a pedradas por ser a rameira em que você a converteu. Como sua ama, tenho todo o direito de fazê-lo.

            - Sem dúvida, não será capaz de fazer semelhante coisa.

            - Você não compreende. - A mente de Druoda começou a trabalhar a toda velocidade. - Essa moça era a debilidade de meu irmão. Ele se apaixonou pela moça e a tratava como se fosse uma lady. Por essa razão, ela é tão rebelde. Se acha acima de sua condição. Nasceu para servir, mas os cuidados de meu irmão a tornaram vaidosa.

            - Se seu irmão a ama tanto, a jovem deveria estar aqui para quando ele retorne.

            - E permitir que ele se inteire de que o homem a quem enviou em boa fé violou a sua amada? Ele reservava à moça para si - adicionou Druoda astutamente. - Quintin se voltará numa fera quando se trata dessa jovem. Detesto admiti-lo porque me envergonha, mas meu irmão tem toda a intenção de desposá-la. Devo afastá-la quanto antes daqui. Não posso permitir que ele a encontre na mansão a sua volta e se case com uma serva. Você a leva e se assegure de que não volte jamais, ou eu me verei obrigada a matá-la.

            Rowland se sentiu totalmente impotente, preso a uma serviçal a quem não necessitava, uma mulher que só seria um estorvo em sua viagem de volta a casa. Porém, não tinha outra alternativa. Não podia deixar morrer à moça.

            - Irei preparar meu cavalo, milady - anunciou-lhe com tom irado. - Faz que enviem à moça ao estábulo e a levarei comigo.

            - Não esteja tão molesto, sir. Estou segura de que terá mais sorte em lhe retirar esse ar arrogante e uma vez que tenha conseguido domá-la, verá como satisfaz todas suas necessidades. - Ao ver que não conseguia apaziguar o ânimo dele, Druoda adicionou: - Na verdade sinto que sua visita tenha finalizado desta forma. E me permita te dar um conselho. Evitará muitos problemas com a moça sem não lhe diz que seu senhor ainda segue vivo.

            - Por que?

            - A jovem acredita que Quintin morreu. Se soubesse que está vivo, faria de tudo para encontrá-lo. E não acredito que deseje isso mais que eu, se de fato se considera amigo de meu irmão.

            Ele deixou escapar um grunhido. Não seria muito agradável para Quintin descobrir que Rowland tinha abusado da moça que ele planejava desposar, fosse ou não sua serviçal.

            - Tem minha palavra. A jovem jamais retornará.

            Logo que Rowland partiu do vestíbulo. Druoda mandou chamar Hildegard. A satisfação de ambas as mulheres era ilimitada.

            - Vá ajudar Brigitte a recolher seus pertences. A moça deverá reunir-se com seu novo senhor no estábulo. Ele a esperará, mas não muito, de modo que te assegure de que se apresse. - O rosto de Druoda se iluminou de felicidade.

            - Mas, o que acontecerá se a jovem se nega a ir com ele? - pergunto a criada.

            - Diga que eu renunciei de sua tutoria. Ela ficará tão feliz, que não ousará a questionar sua boa sorte até que seja muito tarde. Explique que o normando está arrependido do que fez e insiste em levá-la com o conde Arnulf, quem se encontra visitando duque de Maine.

            - Mas isso não é verdade.

            - Claro que não, mas se ela acredita nisto, não se oporá a seguir a direção que tome o normando, até que deixem atrás os domínios de Maine. E, uma vez que a moça se encontre em algum ponto longínquo do norte, mesmo que consiga escapar à vigilância do cavalheiro, dificilmente consiga retornar sozinha ao Berry. - Druoda sorriu. Por fim, tudo tinha encaixado em seu lugar!

 

            Brigitte se aproximou timidamente ao estábulo. Resultava-lhe estranho abandonar Louroux a plena luz do dia, em lugar de escapulir-se durante a noite. O milagre não era perfeito, certamente. Poderia partir, mas tinha que partir com o homem que a havia possuído, um homem a quem desprezava e que lhe conhecia intimamente, mesmo que ela não sabia nada dele. Sentia uma humilhação que nunca antes havia sentido, novamente, experimentava uma profunda amargura.

            Ao entrar no estábulo, encontrou ao cavalheiro de pé, junto a seu imenso cavalo cinza. O potro não parecia amigável, mas tampouco seu amo parecia muito afável. Os escuros alhos azuis de Rowland lançaram labaredas de ira quando a jovem lhe aproximou.

            - O fiz esperar muito? - perguntou a moça com acanhamento.

            Ele conseguiu conter sua fúria.

            - Só sobe no cavalo - ordenou-lhe, exalando um suspiro de frustração.

            Brigitte se afastou.

            - No seu cavalo? Mas eu posso viajar no meu.

            - Por Deus, ou sobe neste animal, ou te deixarei aqui!

            Deixá-la ali? Ela não podia correr esse risco.

            - Então, peço que me deixe cavalgar atrás de ti - suplicou-lhe, pensando em suas doloridas costas.

            - E o que fará com sua bolsa? - perguntou com impaciência.

            - Colocarei entre nós.

            - Anda! Tem medo de te aproximar muito?

            - Oh, não! - Brigitte apressou-se a responder. - Disse que o que aconteceu ontem à noite foi um engano, e acredito.

            - Você pode ter certeza absoluta. Eu gosto das mulheres dispostas... e, certamente, mais atrativas do que você - afirmou Rowland, observando o sujo manto e a emaranhada cabeleira da jovem.

            Brigitte se sentiu ferida em seu orgulho, e seus claros olhos azuis se encheram de lágrimas. Mesmo assim, permaneceu em silêncio. Esse homem não tinha nenhum direito de insultá-la, mas devia partir antes que Druoda mudasse de opinião. Rowland se voltou para montar o imenso cavalo e logo estendeu uma mão para ajudá-la a subir. Brigitte aceitou o braço estendido, mas de repente o soltou encarando-o de forma furiosa.

            - Se me tanto detesta, por que me leva contigo? - perguntou sem rodeios.

            - Não tenho alternativa.

            "De certo modo ela imagina suas razões", pensou a jovem com tristeza. Hildegard tinha mentido... o cavalheiro não desejava levá-la consigo. Mas Druoda era perita em impor às pessoas sua vontade, inclusive a um homem como esse. A moça se sentiu uma carga, mas não tinha opções a não ser partir.

            Voltou a tomar a mão do cavalheiro e subiu com facilidade até os arreios. A bagagem do cavalheiro se encontrava pendurado em ambos os lados do imenso potro cinza, o que dificultava a posição da jovem, em especial, com seus próprios pertences sujeitos entre ambos.

            Brigitte tratou de acomodar-se da maneira mais confortável possível, endireitando-se lentamente para não danificar suas doloridas costas. Esperou que Rowland começasse a marcha, mas ele parecia estar aguardando por algo.

            - O que aconteceu? - perguntou ela receosa, ao ver que o ele não se movia. Estou pronta.

            Ele deixou escapar um suspiro.

            - É tão ignorante como parece ou está me provocando de propósito?

            - Te provocando? Por que?

            - Você tem que se segurar em mim, mocinha, ou cairá do cavalo.

            - Oh! - Brigitte ficou vermelha e ficou feliz que ele não pudesse vê-la. - Mas não consigo te rodear com os braços. Minha bagagem de roupas me impede disto.

            - Então, segure na minha manta - ordenou Rowland com brutalidade, para logo depois olhá-la por cima do ombro e prosseguir com tom mais severo ainda. - E te advirto que trate de não te soltar. Se cair do cavalo e machucar alguma parte do corpo, eu não pararei para te ajudar.

            - E se minhas feridas me impossibilitam de segurá-lo? - perguntou sobressaltada.

            - Matar-te-ei e acabarei com suas feridas.

            Ela soltou uma exclamação.

            - Não sou um animal para que me sacrificar enquanto estou ferida!

            - Não me ponha a prova.

            Brigitte se sentiu muito surpresa para continuar com a discussão. Com grande relutância, segurou a manta do cavalheiro. Assim que esteve sujeita, ele começou o percurso. Atravessaram a entrada rapidamente, para logo passar pela aldeia. Concentrada em manter-se presa ao cavaleiro, ela não pôde saudar os serventes que, a seu passo, agitavam as mãos em sinal de despedida.

            Rowland acelerou o passo quando chegaram a estrada. Seu desejo por abandonar o feudo parecia ser tão intenso como o de Brigitte, o humor da moça melhorou quando se movimentaram para o norte, ao rumo de Orleans, visto que Maine se encontrava nessa direção. Era uma lástima que Arnulf não se achasse em Berry, já que sua intenção era passar o menor tempo possível em companhia desse homem. Mesmo assim, demoraria vários dias para chegar a Maine, era algo que não podia evitar.

            Ah, mas seria agradável voltar a ver Arnulf. O velho cavalheiro era, na verdade, temível; mas suas bruscas maneiras não intimidavam a Brigitte, ela sabia que ele possuía um coração de ouro. O conde choraria a morte de Quintin, e ela desejou não ser portadora de notícia tão infeliz.

            O caminho os conduziu através do vale, rico em cultivos durante outono e verão. Os ciprestes foram plantados há trezentos anos, achavam-se agora curvados e retorcidos, dando assim ao vale do Ródano um aspecto solitário e sombrio.

            À medida que Brigitte imaginava sua reunião com o conde, Rowland meditava com amargura. Sua cólera se voltava mais e mais intensa. A inoportuna carga que levava lhe custaria um alto preço, embora não recebesse nada em troca, visto que não queria essa prostituta. Teria que alimentá-la no caminho e pagar a passagem para atravessar o rio Loira, entre o Orleans e Angers. Pior ainda, a jovem o atrasaria, já que seu cavalo se encontrava sobrecarregado. Sua volta para casa seria bastante penosa, que parecia uma eternidade. Rowland suspirou com mau humor e irritação.

            O largo caminho por que ele passava, o centro da França, geralmente era muito movimentado. Muitos viajavam para o sul, alguns poucos se dirigiam às regiões mais frias do norte, de modo que Rowland não se viu atrasado por outros viajantes. Mesmo assim, Gui já estaria, sem dúvida, muito adiantado, depois de ter viajado a maior parte do caminho pelo rio.

            E que notícias o aguardavam em casa? Haveria Thurston de Mezidon iniciado o ataque, tal como temia Gui? Demoraria, ao menos, uma semana de viagem antes de chegar a averiguá-lo. À medida que o cavalo galopava seu destino a Montville, a irritação de Rowland começava a desaparecer.

 

            Já era meio-dia quando eles se aproximaram da estalagem, localizada na beira da estrada. Só chegariam a Orleans na noite seguinte. O cavalo poderia descansar enquanto atravessassem o rio, mas logo, caminharia ainda mais de cem quilômetros de viagem antes de chegar a Montville, o cavalo era o mais prezado tesouro de Rowland, o melhor do estábulo de seu pai. O animal não estava habituado a transportar mais que o peso do dono; e ele detestava sobrecarregá-lo.

            Havia alguns paroquianos na estalagem administrada pelos monges. Mais à frente da hospedaria, existia uma pequena aldeia. Um dos viajantes tinha aspecto de comerciante; o outro de um velho cavalheiro, acompanhado por seu escudeiro, uma esposa e suas duas filhas. O terceiro era um peregrino. Rowland inclinou brevemente a cabeça para saudar os três homens, antes de conduzir seu cavalo para o celeiro. Perguntou-se o que eles pensariam, ao vê-lo viajar sozinho com uma mulher. Certamente, não achariam que ela era seu escudeiro, mas lhe serviria como tal.

            Rowland desembarcou do potro cavalo e logo, estendeu um braço para ajudar à moça a descender. - Alguma vez na vida tomou banho, mulher?

            Os olhos da jovem se dilataram, e Rowland descobriu que eram grandes e de uma cor azul claro, O queixo elevado da moça refletia seu orgulho, algo que ele terminaria antes de chegar em Montville. Sua madrasta amedrontaria qualquer servo insolente que habitasse o castelo.

            - Eu tomo banho com freqüência - respondeu Brigitte com voz suave, e seu olhar desafiante? - Mas ontem à noite me acidentei e não tive tempo de me banhar.

            - Aproveita e tome banho, agora que tem oportunidade - sugeriu-lhe com tom brusco.

            - Mas há gente nos arredores - objetou a moça, horrorizada. - Não posso me banhar na presença de estranhos.

            - Não acredito que possa atrair a atenção destes homens - assegurou Rowland com deliberado sarcasmo. - Te apresse. Partiremos em menos de uma hora.

            Por Deus, esse cavalheiro não voltaria a chamá-la imunda! Brigitte começou a caminhar para um lugar afastado da hospedagem, onde poderia ocultar-se de olhares curiosos, mas ele lhe gritou:

            - Fique onde eu possa ver-te.

            A moça se zangou. Por acaso ele temia que a atacassem ou acreditava que ela fosse escapar? Não pensava em fugir. Necessitava de amparo até chegar a Maine e ao conde Arnulf.

            Depois de encontrar uma pedra grande e plana junto ao rio, a jovem se ajoelhou. Tirou seu manto e o enxaguou várias vezes, para logo se inclinar lentamente e esfregar o rosto com a água gelada. Seguiram então os braços e, mais tarde, suas pernas. Por último, soltou o cabelo, pegajoso pelo lodo, e afundou a cabeça no rio. Pôde perceber o olhar de varias pessoas e seu rosto ardeu com vergonha. Mas já tinha conseguido se limpar, e decidiu que se esse cavalheiro rústico voltasse a chamá-la de suja, lhe cuspiria na cara.

            Brigitte abriu o saco que continha seus pertences para extrair primeiro o alimento que tinha levado consigo e logo, seu pente. Seu espelho de aço lhe revelou que seu rosto não estava realmente machucado, a não ser por umas marcas levemente rosadas que logo se esfumariam. Além do que tinha recuperado seu aspecto habitual.

            Um vento gelado ajudou a secar seu cabelo, ao mesmo tempo em que o sol brilhante secava seu manto úmido. Brigitte devorou com avidez o pão doce e os docinhos feitos por Althea, enquanto, de vez em quando, observava o esbelto cavalheiro, quem, no pátio da estalagem, atendia a seu cavalo e a ignorava por completo.

            Rowland fingiu estar completamente concentrado no asseio de Huno, mas não cessava de jogar olhares rápidos para Brigitte, encantado com a beleza dela. O banho tinha revelado as delicadas formas de seu delicioso rosto e sua cabeleira loira era maravilhosa. Possuía todo o aspecto de uma aristocrata, então compreendeu Rowland o tolo comportamento de Quintin com relação a moça. Teria que ser cuidadoso, para não sucumbir aos seus encantos. Não demonstraria a essa mocinha o mais ligeiro interesse. Ela era uma servente, e seria sempre, afirmou Rowland em silêncio.

            Ele se viu forçado a recordar dessa situação quando se aproximaram três homens - Perdão, sir - começou a dizer um deles. - Vieste do sul? - Rowland assentiu, e o homem de barba prosseguiu. - Que notícias traz do conflito? Foram expulsos os sarracenos?

            - Sim, todos os esconderijos dos piratas foram incendiados - respondeu Rowland e, sem desejos de continuar aquela conversação, voltou-se a limpeza do cavalo.

            - Vê, Maynard. - O comerciante aplaudiu ao velho cavalheiro. - Eu tinha dito que não necessitariam de ti. Deste-nos uma notícia muito boa, jovem. Afirmou, dirigindo-se a Rowland. - Eu sou Nethard de Lyon e ele é meu irmão, sir Maynard. Viemos para entregar um carregamento de vinho ao bispo de Tours. E este bom homem é...

            - Jonas de Savoy - completou o peregrino?. Também venho de Tours, depois de visitar a tumba de São Martin. No próximo ano irei a Terra Santa.

            As boas maneiras forçaram a Rowland a apresentar-se. Não pôde evitar de sorrir com ironia situação, estava ao redor de senhores respeitáveis vestidos de peregrino, num lugarzinho como aquele.

            Havia muitos como ele, que viajavam a cada ano por diferentes infernos e lugares sagrados.

            - Não podemos evitar de admirar sua esposa, sir Rowland - comentou Nethard com tom amável. - Não todos os homens são tão afortunados.

            - Deve nos perdoar, jovem - adicionou Jonas. - Meus olhos se deleitam ao olhar tanta beleza.

            - A moça não é minha esposa - explicou Rowland, antes de voltar-se mais uma vez mais para o cavalo, desejando que esses homens partissem.

            Mas os três permaneceram em seus lugares.

            - Sua irmã, então?

            - Não.

            - Sua companheira? - insistiu Nethard.

            - É minha serviçal - anunciou Rowland bruscamente.

            - Mas tem um porte aristocrático - disse Jonas, surpreso.

            - O sangue às vezes engana. - afirmou Rowland - A jovem é uma servente nata.

            - Bastarda, então?

            - Não sei nada a respeito de seus pais - respondeu Rowland, um pouco bravo.

            - Interessado em vendê-la? - inquiriu Nethard. O homem conseguiu a completa atenção de Rowland.

            - Com licença, o que há dito?

            Os olhos de Nethard de Lyon cintilaram.

            - Está interessado? Pagaria um preço justo pela tê-la adornando minha casa.

            Rowland tinha desejado se desfazer da moça, mas tinha dado sua palavra a Druoda.

            - Acredito que não seja possível. Quando deram de presente a jovem, prometi que jamais lhe permitiria retornar a esta área.

            - Quando te deram de presente! Isso é incrível! - exclamou Nethard, sobressaltado?. Então, o dono deve ter sido uma mulher, ciumenta pela beleza da moça.

            - Uma mulher, sim. - Rowland aceitou a explicação oferecida, disposto a não discutir mais.

            - Mas você não a quer - continuou Nethard com perspicácia. - Isso é fácil de perceber. Esta jovem nasceu para ser adulada.

            Rowland soltou um rouco grunhido.

            - Mesmo que fosse Vênus, seria uma carga para mim. Entretanto, devo levá-la comigo.

            O homem sacudiu a cabeça.

            - Ah, é uma lástima que tão valiosa jóia não seja apreciada - comentou, deixando escapar um suspiro.

            - É uma moça bela - admitiu Rowland com expressão sombria. - Mas ainda segue sendo uma carga.

            - Está cego - afirmou o comerciante; depois de oferecer gentis despedidas, os três cavalheiros partiram.

            Rowland franziu o cenho e seus olhos transpassaram aos viajantes que se afastavam. O que podiam saber esses homens? Os francos estavam acostumados a adular suas mulheres e adorar sua beleza. Para ele, tudo isso não passava de grandes tolices. Uma mulher era só isso, uma mulher, e nada mais. Era ridículo lhe conferir alguma importância. Ela estava ali para servi-lo e isso era tudo.

 

            Uma vez que sua dourada cabeleira esteve seca e sedosa, Brigitte a sujeitou em duas largas tranças. Voltou a fechar o saco de seus pertences e, com pesar voltou a unir-se com Rowland no pátio. Ele assinalou um banco na galeria da estalagem e mandou esperar ali.

            Brigitte se irritou com a brutalidade desse homem. Tinha esperado que ele fizesse algum comentário a respeito do seu aspecto, tanto desinteresse a irritava. Porém, cumpriu as ordens do cavalheiro e se dispôs a esperá-lo pacientemente no lugar indicado. A movimentação da estalagem não melhorou seu humor, visto que muitos homens a observavam com descaramento e isso a incomodava.

            Rowland tinha entrado na hospedaria para pedir alimento, feliz porque a moça tinha levado sua própria comida. Uns minutos mais tarde, um jovem estranho se aproximou de Brigitte. Ela teria apreciado a nova companhia, se ela entendesse o idioma do jovem estrangeiro, inglês ou irlandês segundo seu aspecto. Mesmo assim, ele não se afastou, mas continuou tentando se comunicar, admirando-a com o olhar, agradando-a com suas gentis maneiras.

            De repente, Rowland apareceu do nada, com os braços cruzados e uma expressão irada no rosto. Inclinou-se e, estendendo uma mão, levantou violentamente Brigitte. A jovem começou a protestar por tanta rudeza, mas parou ao topar com seu olhar gelado.

            - Conhece este homem?

            - Não.

            - E, mesmo assim, convida-o para sentar a seu lado e inicia uma conversa - disse Rowland com fúria, sem afastar o olhar do atemorizado jovem.

            - Não foi assim - negou Brigitte. - Embora não me opus quando decidiu sentar-se. Não pude entender nada do que disse, de modo que não foi nada.

            - Sempre te comporta assim com estranhos? - perguntou em tom severo, ignorando as últimas palavras de Brigitte.

            Ela se apressou a defender-se.

            - Não fiz nada mal. Só necessitava de um sorriso amável.

            - Não disto que você realmente necessita - afirmou Rowland com um tom ameaçador.

            Sem esperar a resposta de Brigitte, ele a sujeitou sobre braço e a retirou a empurrões da estalagem. A jovem se sentiu envergonhada ao ser tratada como um menino travesso, e tentou liberar-se.

            - Quero que me solte! - gritou.

            Rowland parou imediatamente e girou para olhar com uma expressão incrédula no rosto.

            - O que quer?

            - Não há razão para que me trate desta forma - queixou-se ela.

            - Sua ama estava certo. Sua audácia é surpreendente - grunhiu Rowland.

            Sem pronunciar outra palavra, montou seu cavalo e pôs Brigitte atrás de si. Uma vez mais, começaram o percurso, cavalgando a toda velocidade. Nenhum dos dois voltou a falar durante o resto do dia. Ao cair da tarde, Rowland saiu da estrada para penetrar em um bosque.

            - Por que tomamos este caminho? - perguntou timidamente a jovem logo depois de um breve instante, intimidada pela escuridão.

            - Seu silêncio foi uma bênção - respondeu ele de forma brusca. - Devo encontrar um lugar para passar a noite.

            Brigitte ficou estupefata.

            - Quer dizer que dormiremos aqui?

            - Por acaso vê alguma aldeia nas arredores? - inquiriu Rowland com sarcasmo.

            A moça permaneceu em silêncio, e vários imagens perturbadoras surgiram em sua mente.

            Rowland parou em um lugar de vegetação tão densa, que a escuridão era completa. Havia uma pequena claridade entre as árvores, e ele ordenou que a jovem juntasse algumas lenhas para armar uma fogueira. Ela obedeceu sem protestar, enquanto ele sujeitava seu cavalo.

            - Ainda restou um pouco de comida se deseja compartilhá-la - ofereceu-lhe Brigitte, caso ele não tivesse comprado mantimentos aos pobres monges da estalagem.

            - Traga-a. - Respondeu Rowland, antes de acender a lenha que ela tinha reunido.

            A jovem extraiu os últimos mantimentos de seu saco e ambos se sentaram para comer em silêncio. O crepitante fogo criava sombras ao redor, fazendo que o resto do bosque parecesse ainda mais escuro. Brigitte não pôde evitar se perguntar como um homem tão arrumado poderia ter um temperamento tão odioso. Acaso todos os normandos eram rudes, dominantes e constantemente mal humorados?

            - Quanto tempo falta para chegar a Maine? - arriscou-se a perguntar, uma vez que terminou a refeição. Nunca tinha estado ao oeste de Berry.

            - Por que pergunta?

            - Só queria saber - sussurrou ela, temerosa ante ao intenso olhar do cavalheiro. - depois de tudo, separaremos lá.

            - Não quero ouvir nada a respeito de nos separar e te advirto para não me provocar.

            - Mas não te agrada minha companhia. - Disse Brigitte calmamente.

            - Isso já não tem importa! Fui obrigado a te aceitar e agora não posso me desfazer de ti.

            - Por que me odeia tanto?

            - Por acaso você não me odeia também - perguntou Rowland com indiferença.

            Ela o olhou surpreendida.

            - Se acha que te odeio só porque me tratou com aspereza desde que abandonamos Louroux, está equivocado.

            O homem riu e todo seu rosto pareceu iluminar-se. Seus traços ficaram muito mais agradáveis com um sorriso.

            - Então me considera rude, não é?

            - Claro que sim. - Respondeu Brigitte com indignação - Não faz mais que me ameaçar e me intimidar. Na estalagem, me tratou como se eu não tivesse o direito de falar com quem eu quisesse.

            - Você não tem nenhum direito. - Uma vez mais, seu tom era gelado, e seu olhar sorridente tinha desaparecido. - Sejamos claros, moça. Você não falará com ninguém sem permissão.

            Brigitte esboçou um sorriso divertido.

            - Você não fala sério. Suponho que não pode evitar ser como é, mas acredito que está ultrapassando dos limites. Estou seriamente agradecida por seu amparo, mas o fato de ser minha escolta não te dá direito de me impor ordens.

            Rowland afogou uma exclamação e logo, disparou.

            - Por todos os Santos! Ela tinha razão! Advertiu-me o quão presunçosa você é, mas não acreditei que seria tão boba de provar suas sacanagens comigo!

            Rowland já tinha tido o suficiente. Sabia que o melhor seria afastar-se dessa moça. Levantou-se e caminhou com passo firme para o cavalo, para cavalgar a toda velocidade em direção qualquer. Um revigorante passeio poderia apaziguar sua cólera.

            Brigitte o observou partir, estupefata. Sua confusão logo se transformou em medo, quando os sons do cavalo se tornaram mais e mais distantes.

            - O que fiz? - sussurrou - Por que me odeia tanto?

            A jovem se aproximou do calor do fogo e se cobriu com o manto. Ele retornaria, disse, tratando de convencer-se. Com certeza retornaria.

            Os sons da noite voavam com o vento e se voltavam cada vez mais forte e aterradores. Brigitte estremeceu cobrindo-se até a cabeça com o manto. Orou pelo bem estar de Rowland de Montville e logo, elevou suas súplicas a Deus.

            - Por favor, retorna - murmurou com ansiedade - Juro que não voltarei a te elevar a voz. Se for necessário, permanecerei muda, mas retorna!

            Finalmente, o crepitante fogo afogou outros sons da noite e a cercou até desfalecer no mundo dos sonhos..

            Rowland a encontrou assim. Extraiu uma manta de sua bagagem e se deitou sobre o chão junto a ela.

 

            Rowland despertou imediatamente ao perceber um perigo iminente. Ficou de pé, extraiu automaticamente sua espada e girou em busca do intruso. O céu do amanhecer criava escuras sombras difíceis de penetrar, e mesmo se esforçando, não conseguiu distinguir nada. Extremamente tenso, permaneceu imóvel e se dispôs a aguardar.

            Foi quando viu a besta, sentada sobre suas enormes patas, a menos de dois metros de distância. Assemelhava-se com um cão, mas nunca tinha visto um tão grande.

            Sem afastar os olhos do animal, Rowland estendeu uma bota para sacudir à moça dormida. Brigitte acordou com lentidão e, ao vê-la mover-se, a besta se levantou. O cão avançou em direção a jovem, saltando graciosamente.

            - Fique atrás de mim, rápido! - ordenou-lhe Rowland com um severo sussurro.

            - Por quê? - A moça se surpreendeu com o tom de voz de Rowland e, ao vê-lo elevar a espada, sussurrou: - O que acontece?

            - Se aprecia sua vida, faça o que digo! - respondeu ele com rudeza.

            Brigitte ficou de pé, imediatamente, ocultou-se atrás das imensas costas do cavalheiro. Aterrorizou-se por ouvir o ameaçador grunhido de um animal e, com vacilação, foi espiar à besta. Mesmo sobre a tênue sob luz do amanhecer, não pôde confundir aquela forma. Saiu correndo de seu esconderijo para ficar entre o homem e o cão. Rowland a observou incrédulo, enquanto ela abraçava ao imenso animal e ria enquanto este a lambia o rosto e gemia.

            - Por acaso tem algum poder estranho para dominar às bestas? - perguntou Rowland, admirado. "Será que essa moça é uma bruxa?"

            Brigitte o olhou e esboçou um sorriso brilhante.

            - É meu cão. Seguiu-me até aqui.

            Rowland embainhou a espada e deixou escapar um grunhido.

            - Me recuso a acreditar que te seguiu durante todo o trajeto desde Louroux.

            - Eu o criei e está me seguindo durante anos. Deve ter escapado de sua jaula ontem à noite, na hora de comer. É um cão muito inteligente.

            Rowland se voltou em silêncio. Montou seu potro e, sem olhar na direção da jovem, e começou a caminhar.

            - Aonde vai? - perguntou ela a gritos.

            Ele respondeu por cima do ombro.

            - Se tiver sorte, trarei carne fresca em minha volta. Você aproveita o tempo para preparar o fogo.

            E, então, partiu. Brigitte deixou escapar um suspiro. As promessas da noite anterior estavam convertendo em uma pesada carga. Mas, ao menos, ele tinha retornado.

            Ao perceber que os imensos olhos de Wolff a observavam, a moça sorriu com deleite.

            - Bem, pequeno, deve estar cansado depois desta longa viaje. - Rodeou ao animal com os braços e o estreitou com força?. Oh, Wolff, Wolff, fico tão feliz que tenha vindo! Deveria ter te trazido comigo, mas tive medo de perguntar. De todos os modos, encontraste-me e jamais voltaremos a nos separar. Sinto-me muito melhor agora. O normando me protegerá dos perigos do caminho e você, meu rei, me protegerá dele!

            Os temores de Brigitte se diluíram com a chegada de Wolff, e a moça não conseguia esconder o deleite.

            - Venha, temos que acender o fogo antes que ele retorne, porque é um homem perverso e não gosta de esperar. Você deve estar faminto, Wolff. - A jovem começou a reunir paus e ramos para a fogueira, e o cão a seguiu, sem afastar um só instante de seu lado. Suponho que, ontem à noite, pegou Leandor de surpresa e não aguardou por seu jantar. Ou, Leandor mesmo soltou. Sim, é bem capaz de havê-lo feito se acreditava que eu te necessitava.

            Brigitte continuou conversando com Wolff como sempre tinha feito, expressando seus pensamentos em voz alta. O fogo não demorou para acender sobre as brasas, podendo aquecer suas mãos geladas. Depois que se penteou, foi trançar sua enorme cabeleira, neste momento Rowland retornou e jogou uma robusta lebre sobre a terra.

            - Prepara-a e reserva a pele para guardar os restos uma vez que tenhamos comido. - Ordenou-lhe com tom brusco, para logo pousar os olhos sobre Wolff, que se encontrava com a cabeça jogada sobre o colo de sua dona. - E o cão deve partir. Não temos comida para compartilhar com ele.

            - Wolff não me deixará agora que conseguiu me encontrar. - afirmou Brigitte com convicção - Mas não se preocupe em alimentá-lo. É um excelente caçador e não precisa alimentá-lo?. Tomou a imensa cabeça do animal entre suas mãos e o olhou fixamente aos olhos.

            - Lhe mostre, Wolff. Traga seu jantar e eu o cozinharei. Rowland observou ao cão afastar do acampamento e sacudiu a cabeça:

            - Seriamente pensa em cozinhar para esta besta?

            - Ele não é uma besta - corrigiu-lhe Brigitte com um tom desaprovador. - Embora sua raça seja desconhecida, possui um magnífico tamanho e uma incrível astúcia. É claro que eu cozinharei para ele. Wolff é domesticado. Não come mantimentos crus.

            - Muito menos eu - replicou Rowland. - Se apresse com sua tarefa.

            Antes de culminar a frase, ele jogou uma adaga junto à lebre morta. Brigitte a recolheu e fez uma careta. Fazia pouco tempo que tinha aprendido a esfolar os animais, mas gostava de fazê-lo.

            Obviamente ele não tinha intenções de executá-lo. Já tinha se sentado frente ao fogo, para limpar a lança que tinha utilizado para matar à presa. Por um momento, ela se sentiu agradecida por Druoda havê-la obrigado a aprender vários trabalhos serviçais.

            - Como devo te chamar? - perguntou Brigitte para iniciar uma conversação.

            Ele respondeu sem olhá-la.

            - Pode me dizer "senhor".

            - Senhor Rowland?

            - Só senhor.

            - Isso é ridículo? disse ela, sem afastar os olhos de sua tarefa. - Te chamarei Rowland. E você já sabe meu nome. Agradeceria se o usasse. Não me agrada ser chamada de "mulher" ou "moça" o tempo todo.

            Os olhos de Rowland arderam em fúria.

            - Lá vamos nos de novo. Olhou-a com uma expressão severa. - O dia acaba de começar, e você já está me dizendo o que você fará e o que você quer!

            Brigitte elevou a cabeça, confusa.

            - O que disse para te zangar?

            Ele ficou de pé e jogou a lança ao chão em um súbito arrebatamento de cólera.

            - Provocou-me de propósito, fingindo ser o que não é. Você é uma servente e eu sou seu amo, e exijo que deixe de atuar como se assim não o fora. Já empenhei minha palavra e estou sendo obrigado a te conservar até o dia de sua morte. Mas não provoque seu destino, ou esse dia chegará muito antes do que imagina.

            O assombro de Brigitte foi maior do que ela podia expressar. Algo, finalmente, começava a clarear.

            - Desta sua palavra a Druoda, é isso o que você quer dizer?

            - Sim, quando ela te entregou para mim.

            - Essa mulher não tinha direito! - exclamou. Eu não sou uma serviçal. Jamais fui uma servente!

            - Druoda também me disse que você mentia demais, e me advertiu que costumas dar azas a sua imaginação.

            - Você não compreende. Druoda é minha tutora, visto que meus familiares morreram. Essa mulher não é minha ama, ele é apenas a tia de meu meio irmão. Ela não podia me entregar a ti.

            - Sua ama tinha intenções de te matar a pedradas, jovem e o teria feito, se eu não tivesse aceito trazê-la comigo.

            - Sem dúvida, teria me assassinado, já que você arruinou os planos que ela tinha para mim.

            - Então admite que te salvei a vida. Dê-me paz, embora que seja só por essa única razão.

            - Não tem direito de me conservar como servente. Sou uma dama! Meu pai foi barão!

            Rowland se aproximou de tal forma, que seus olhos pareceram quase negros.

            - Não me interessa o que foi antes. Agora é minha serva. É obrigada a me obedecer e se te ouço negá-lo mais uma vez, te castigarei com chicotadas. Agora te apresse e vá cozinhar esta carne! - bramou. - Já perdemos tempo o suficiente por hoje.

            Brigitte caminhou aturdida para o fogo e lágrimas começaram a rodar por suas bochechas. Sentiu-se tão infeliz, e teve vontade de perguntar por que não pararam em Maine. Sabia a razão. Também nisso, Druoda havia mentido.

            O que podia fazer agora? Se tentasse conversar com esse homem obstinado e lhe dizer o quão equivocado estava, ele lhe bateria. Não seria capaz de tolerar outros açoites em cima de suas costas ainda doloridas.

            Rowland observou à moça murchar, até que ela o olhou com uma expressão tão desolada, que ele só conseguiu afastar o olhar, sentindo-se quase arrependido. Quase, embora não efetivamente.

            Por que ela parecia tão angustiada? Sua nova vida não poderia ser mais dura do que ela tinha vivido até então. Ele tinha visto suas mãos marcadas e sabia que ela estava habituada ao trabalho duro. Não teria mais que servir a uma enorme família, só a ele, Rowland. Ele não tinha lhe salvado a vida? Ela não poderia, ao menos, estar agradecida por isso?

            Os pensamentos de Rowland se interromperam quando Wolff retornou ao acampamento e depositou dois frangos aos pés de Brigitte. Ele sacudiu a cabeça, admitindo, em silêncio, que, depois de tudo, o cão devia pertencer a Louroux. Uma das tarefas da jovem ali tinha sido, provavelmente, encarregar do cuidado do animal. De que outra forma poderia a besta poderia entender por completo as ordens dessa mulher, a menos que estivesse habituado a obedecê-la?

            Com o reaparecimento de Wolff, as silenciosas lágrimas de Brigitte se transformaram em fortes soluços e Rowland ficou em pé bruscamente.

            - Maldição! Já derramou lágrimas suficientes!

            Wolff começou a uivar, somando-se aos gemidos de sua dona, e Roland elevou os braços com irritação e se separou do fogo com passos rápidos.

            Por fim, a moça cessou de chorar e o cão lhe secou as lágrimas com a língua. Brigitte respirou profundamente e se dispôs a continuar a tarefa. Poucos instantes depois, a comida do cão estava assando junto à lebre, e a jovem se sentou para descansar, olhando a seu adorado mascote com expressão angustiada.

            - O que vou fazer agora, Wolff? - perguntou, como se esperasse uma resposta. - Ele me converteu em sua serviçal e não há ninguém mais que eu para lhe dizer que não tem direito de fazê-lo. Druoda fez isto comigo! - exclamou com veemência, e seus olhos lançaram brilhos de ira.

            Quando Rowland retornou, a lebre já estava cozida e Wolff tinha devorado seu alimento. Enquanto comiam em silêncio, Brigitte não afastou os olhos da terra.

            - Falarei contigo, e espero te tranqüilizar - disse por fim Rowland com tom brusco. - Não tem por que me temer, se fizer sempre o que te ordeno.

            - E se não o faço? - perguntou a jovem logo depois de uma pausa.

            - Te tratarei do mesmo jeito que trato a qualquer outro servente - afirmou ele de modo categórico.

            - Quantos serventes têm? - inquiriu Brigitte.

            - Como servente só tive um escudeiro, que acaba de morrer. Há muitos trabalhando na casa, mas todos estão sob as ordens de meu pai. Você é a primeira que responde unicamente a mim.

            - Pensa em me levar para sua casa?

            - Sim - enquanto Brigitte considerava a resposta, ele prosseguiu: - Cuidará de minhas roupas, servirá minha comida e limpará minha habitação. Só obedecerá minhas ordens. Vai trabalhar menos, não vai?

            - Muito menos - Ela admitiu.

            Rowland ficou de pé e a olhou fixamente.

            - Quero obediência. Tudo dará certo, se não me aborreceres. Está disposta a aceitar sua sorte e de uma vez por todas parar com suas provocações?

            Brigitte vacilou, e logo se apressou a responder, por medo a perder a coragem.

            - Não vou mentir. Eu o servirei. Mas se encontro uma oportunidade de abandoná-lo, não duvidarei em fazê-lo.

            Ela tinha esperado uma nova onda de ira, mas ele só franziu o cenho.

            - Não, não conseguirá escapar de mim - afirmou em uma língua estrangeira.

            - O que?

            - Disse "a convido a aprender o idioma nórdico, visto que muitos em Montville que não falam outra língua".

            - Disse isso tudo em tão poucas palavras? - perguntou Brigitte com cepticismo.

            Mas Rowland não respondeu a sua pergunta.

            - Vamos, estamos perdendo tempo, o cão pode vir conosco. Será um fino presente para meu pai. Brigitte abriu a boca para protestar, mas parou. Quando chegasse o momento, o normando descobriria que Wolff jamais voltaria a separar-se de sua proprietária.

 

            Não chegaram a Orleans antes do anoitecer, e voltariam a acampar ao cair da tarde. Brigitte passou as intermináveis horas em sua incômoda posição atrás de Rowland, tratando de se convencer de que ainda poderia seguir tolerando sua desafortunada situação durante algum tempo. Pelo menos se encontrava longe de Berry e Druoda.

            Um marido era o que necessitava, já que, uma vez que ela estivesse casada, Druoda não se beneficiaria com sua morte, nem poderia reclamar direito algum sobre Louroux. Mas, para casar-se, Brigitte necessitava da aprovação de Arnulf ou do senhor do condado. O rei da França era o senhor de Arnulf, e ali estava, então, a solução. A moça poderia se dirigir a corte e casar-se sem o conhecimento da Druoda. Só precisava encontrar a alguém que a levasse até ao rei da France e a corte de Lothair. Então, seria livre e Druoda se veria forçada a abandonar Louroux.

            Quando acamparam essa noite, Brigitte se sentia tão satisfeita com seus próprios pensamentos, que começou a contemplar os sucessos mais recentes como uma verdadeira bênção. O terceiro dia transcorreu velozmente, já que Rowland dedicou a ensinar-lhe a língua de seus ancestrais. Não era um idioma fácil de aprender, mas ela não demorou a aprender vários vocábulos, impressionando-o com sua rapidez.

            O começar de um novo dia era sempre prazeroso, já que Rowland logo descobriu que Wolff era na verdade um excelente caçador. Despertavam pela manhã, para encontrar duas robustas lebres e um ganso silvestre aguardando-os.

            O homem estava admirado e, mais uma vez, satisfeito, por ter o animal trabalhando para ele. Isto ajudou a dissipar sua fúria, a tal ponto, que chegou a fazer amizade com o cão e, para surpresa de Brigitte, Wolff se via muito satisfeito com seu novo amigo. Assim, com um feliz estado de ânimo, continuaram os três seu trajeto pelo caminho.

            Na tarde seguinte a sua chegada a Orleans; iniciaram uma viagem pelo Rio e então o humor de Rowland pareceu melhorar ainda mais. Brigitte concluiu que a ira do normando se devia ao fato, em parte, à demora no regresso de casa. Essa noite, uma vez finalizada o jantar, ela decidiu interrogá-lo.

            - Por que tem tanta pressa?

            Ela se achava dentro da coberta, dormindo de lado, com a cabeça sobre as mãos. Rowland se encontrava sentado em seus pés, contemplando o rio.

            Rowland explicou brevemente que seu pai tinha enviado um vassalo para encontrá-lo e que logo começaria uma guerra em Montville.

            - Por desgraça, Gui demorou vários meses para me achar, visto que eu me encontrava no sul da França. Pode ser que a batalha já tenha acabado.

            A informação despertou o interesse de Brigitte.

            - De modo que acaba de vir do sul, não é?

            - Sim, depois de lutar contra os sarracenos. Os olhos da moça cintilaram.

            - Espero que tenha matado a muitos! - exclamou impulsivamente, sabendo que um sarraceno tinha sido o assassino de seu irmão.

            - Assim foi - grunhiu Rowland?. Mas por que isso teria te interessa? Os piratas só ameaçaram o sul e você te encontrava muito longe de ali.

            - Não temia por mim - ela explicou, e seus olhos brilharam com odeio contra o homem que tinha assassinado a Quintin. - Só espero que os sarracenos estejam todos mortos, cada um deles, sem exceção.

            Rowland soltou um breve risinho.

            - Então minha Vênus é sanguinária. Jamais acreditei nisso.

            Brigitte baixou o olhar para o fogo e deixou escapar um longo suspiro. Não valia a pena explicar como se sentia. Esse homem era alheio a todo tipo de sentimento.

            - Não sou sanguinária - afirmou com voz serena. - Os sarracenos tinham que ser destruídos, isso é tudo.

            - E assim foi.

            Brigitte se voltou de costas para fogo, mas pôde perceber que os olhos do normando ainda continuavam observando-a e se sentiu incomoda. Por que a tenha chamado de "sua Vênus", será que ela começava a agradá-lo? Então rezou para que assim fora.

            Com a certeza de que Rowland não parava de observá-la, a jovem se sentiu mais e mais nervosa, até que recordou que não se encontrava sozinha. Wolff se estava estendido ao seu lado. Seu fiel mascote não permitiria que o normando a atacasse. Com essa reconfortante idéia, Brigitte por fim dormiu.

            Uma tormenta ameaçava o dia seguinte, mas não foi assim. O dia nasceu e certamente haveria uma grande chuva. Eles tomaram uma embarcação, para alcançar seu destino. Mas o mal tempo dificultou a continuação de sua jornada. Isto irritou profundamente Rowland, que permaneceu em silêncio e mal humorado durante a maior parte do dia.

            Ele estava furioso consigo mesmo por se sentir debilitado pelo frio, já que o clima era suave comparado ao suportado durante a maior parte de sua vida. Os últimos seis meses no sul da França tinham esquentado seu sangue, e ele considerava isso um sinal de fraqueza.

            A noite tornou-se mais fria do que a viagem. Brigitte se aconchegou junto a Wolff para esquentar-se e não se importou que Rowland se deitasse a seu lado, já que, dessa forma, protegia-lhe as costas contra o vento gelado. Que momento para retornar a casa, em pleno inverno! Rowland desejou que a moça soubesse costurar, já que ele necessitava de um casaco quando chegasse a Montville.

            Voltou-se para ela e, ouvir sua respiração regular, soube que se achava profundamente adormecida. Tomou entre suas mãos uma longa trança loira e acariciou sua bochecha com a sedosa mecha. Mesmo que não pudesse ver seu rosto, ele recordou de seus encantadores traços, dado que, na noite anterior, tinha-a contemplado o suficiente para gravar eternamente essa imagem em sua mente.

            Rowland tinha começado a sentir orgulhoso dela. Não só era extraordinariamente formosa, mas também inteligente, e já tinha começado a compreender a difícil língua nórdica.

            Parecia ter aceitado como senhor e a via disposta a lhe servir. Isto o agradava, visto que, desse modo, não teria que depender dos serventes de seu pai. Ainda podia recordar as várias ocasiões em que tinha sofrido com a indiferença dos servos, todos ocupados em cumprir ordens de Hedda.

            Ela seria uma excelente criada. Por essa razão, sentia-se resistente a levá-la para sua cama. Tinha a certeza de que cometeria um grave erro ao alterar a relação que existia entre ambos. Finalmente, Rowland se colocou de costas a Brigitte e exalou um longo suspiro, amaldiçoando-a por ser tão encantadora.

 

            A tormenta se encaminhou para o sul, e o bom tempo os acompanhou durante todo o seguinte dia. Chegaram aos domínios do conde de Tournaine, e Brigitte quis visitar o monastério de San Miguel, mas a embarcação parou apenas para descarregar os passageiros e receber a dois novos viajantes antes de voltar a zarpar.

            Os recém chegados eram dois saxões altos e de aspecto rude. Os duques saxões tinham expulsados os francos do reino oriental, para governar a Alemanha sob as ordens do Otto, o que não agradou aos franceses. Estes possuíam um aspecto desalinhado com grandes barbas de cor de trigo seco. Vestiam grosas túnicas de pele, que lhes conferiam um aspecto selvagem e ameaçador. Encontravam-se armados.

            Os saxões se mantiveram afastados, mas às vezes pousavam seus olhos sobre Brigitte com evidente interesse; a jovem se sentiu um pouco perturbada e se aproximou ainda mais de Rowland. O homem não a olhou, nem mesmo quando a mão da moça roçou acidentalmente a sua. Durante vários dias, ele parecia evitar encará-la e Brigitte se perguntava o motivo.

            À tarde seguinte, depois de seis dias de viagem, chegaram ao ponto de confluência entre os rios Maine e Loira, e foi ali onde eles descenderam. Ela preferia caminhar do que ocupar seu incômodo assento na parte traseira do cavalo, mas Rowland não permitiu, já que estava decidido a cobrir a maior distancia possível antes do anoitecer.

            Logo escureceu e eles pararam em um pequeno bosque junto à margem esquerda do Maine. Com o rio a uns poucos metros de distância, Brigitte pensou em banhar-se. Logo que Rowland partiu em busca de alimento, ela se apressou a juntar lenha para o fogo e, depois de extrair uma túnica de sua bolsa, saiu correndo para a água.

            No outro lado do rio, havia uns pântanos desérticos de aspecto horripilante sob a luz azul do crepúsculo. De repente, Brigitte avistou uma figura negra, quadrada, que se aproximava flutuando sobre a água, ela se paralisou. Em seguida, retrocedeu para a borda, e percebeu que se tratava de uma embarcação. Escondendo-se, então, atrás de uma árvore. Wolff se aproximou para esconder-se a seu lado e lhe esfregou suas orelhas, enquanto observava com impaciência o lento avanço da embarcação. Finalmente, jogou um olhar a seu cão e franziu o cenho.

            - É melhor ir procurar seu próprio jantar, Wolff. O normando aceita a carne que traz, mas não acredito que seja capaz de te devolver o favor caçando para ti. - O animal não se moveu, e ela o empurrou brandamente - Vá embora, eu estarei bem logo que passe essa embarcação.

            Observou o cão se afastar e logo, voltou o olhar para o rio, para ver que a embarcação continuava avançando com enorme lentidão. Brigitte sabia que devia voltar para acampamento antes da volta de Rowland.

            Por fim, a embarcação se afastou, e ela se apressou em despir-se e inundar-se na água gelada. Seus dentes começaram tremer, e ela se esfregou rapidamente, sem deixar de permanecer alerta ante a possível aparição de uma nova embarcação.

            Finalizou saiu correndo da água gelada. Todo seu corpo começou a tremer, e ela se vestiu com uma túnica limpa, sem se secar. Ela caminho cautelosamente para o acampamento, amaldiçoando-se por não ter acendido o fogo antes do banho. O lugar se via tão escuro como a boca de lobo; e ela se sentia congelada.

            De repente, avistou o chiado das chamas, e acreditou que enlouqueceria de terror. Conteve a respiração, até que reconheceu a familiar figura de Rowland agachada junto ao fogo.

            - Quase me matas de susto - disse Brigitte enquanto avançava, deixando escapar um longo suspiro de alívio Quanto tempo está aqui?

            O olhar do normando a fez estremecer.

            - O suficiente para me perguntar por que não a encontrei uma mulher imprudente nem o fogo acesso.

            - Não achava que fosse retornar tão logo.

            - Acha que posso caçar na escuridão? - perguntou ele com tom mordaz. - Esperei muito para acampar. Não haverá carne a menos que seu Wolff tenha melhor sorte. Vejo que não está contigo.

            - O mandei caçar depois que você partiu.

            Rowland ficou de pé para levantá-la.

            - Venha aqui, mulher. Onde esteve?

            Brigitte vacilou. Conhecia esse tom. A barba tinha começado a crescer no queixo do normando e lhe conferia um aspecto ainda mais perverso. Seus olhos escuros refletiram o fogo que ardia em seu interior e, quando ele estendeu as mãos para tocá-la, a jovem soltou uma exclamação e retrocedeu com um salto. Mesmo assim, Rowland pôde agarrar um de seus braços empapados.

            - Então nadar te pareceu mais importante do que acender uma fogueira para nos proteger deste frio? - Ele não lhe bateu e isso a fez criar coragem.

            - Não foi minha intenção te incomodar.

            - A mim? - Ele grunhiu. - Olhe para você. Tem o braço congelado e os lábios azuis? - Empurrou-a bruscamente para o fogo.- Esquente-se. Santo Deus!... Por acaso perdeu a razão, mulher?

            Brigitte se voltou e, de costas ao fogo, olhou-o com os lábios trementes.

            - Queria estar limpa e não me posso banhar completamente enquanto você estiver por perto.

            - Por que não?

            Ela baixou o olhar, e agradeceu que o homem por não percebeu o rubor em suas bochechas em meio da intensa escuridão.

            - Não seria correto.

            - Correto? - bramou ele, e parou imediatamente, para percorrer seus olhos na figura da jovem. Cada curva era visível sob o delicado tecido aderido à pele úmida.

            Quando, por fim, seu olhar se topou com o de Brigitte, seus olhos azuis escuros ardiam, mas não de ira. Essa era uma expressão que ela não tinha visto com freqüência em sua resguardada vida, mas a reconheceu instintivamente. Então, se sentiu aterrorizada.

            Ela começou a retroceder, esquecendo a presença do fogo na suas costas. Mas Rowland sujeitou com rapidez uma de suas longas tranças e a atraiu rudemente para si. Brigitte começou a golpear com força o firme peito musculoso, mas um dos poderosos braços do homem a prendeu de forma que foi incapaz de se mover.

            Com a outra mão, Rowland elevou sua cabeça e seus olhos contemplaram o pálido e delicado rosto de maneira lenta e possessiva.

            - Talvez, eu possa te esquentar muito mais que esse fogo, sabia? - Disse com uma voz rouca, lançando lhe um olhar ofegante, e logo continuou com suavidade. - Não conseguirá nada resistindo, se for isso o que tem em mente. E você já sabe disto.

            Brigitte tinha estado tão segura de que ele não a desejava... O que tinha feito mudar de opinião? Rowland a estreitou com mais força e logo, liberou a para desatar o cinturão. Nesse momento, a jovem saltou. Se conseguisse se afastar da luz das chamas, podia se ocultar na escuridão. Mas, logo que começou a afastar-se, as mãos do normando voltaram a apanhá-la. Rowland a fez girar, para logo elevá-la entre seus braços.

            - Você realmente achou que poderia escapar de mim?

            Seu tom de voz não era severo. De fato ele parecia divertido ante a reação dela. Brigitte lançou um olhar fulminante e ele riu aparentemente encantado.

            - Onde está a mulher que morreu de medo quando a pus sobre minha cama? Vejo que recobrou a memória daquela noite.

            - Vangloria-se muito - replicou ela com aspereza, irritada ante a divertida atitude do normando. - Me apavorei devido à dor das costas e não por temor a ti.

            - O que ocorreu a suas costas?

            - Fui espancada... graças a ti - respondeu com tom severo, lhe condenando com os olhos.

            Rowland franziu o cenho e a depositou brandamente sobre a manta que ele mesmo tinha estendido junto ao fogo. Contra os protestos da jovem, tirou seu cinturão e a túnica, para logo levantar o vestido e tocar a área machucada. Então, voltou a apoiar a moça sobre a manta e a olhou fixamente.

            - Dói-te ainda?

            - Não, por que?

            - Ainda tem machucados. Devem ter sido açoites muito violentos para que continuem as marcas uma semana depois. Claro que os merecias, depois de ter roubado a sua ama.

            - Já te disse que não sou uma ladrazinha. Fizeram-me isto porque tentei escapar...

            Brigitte parou de falar porque ele não a estava escutando. De repente, a boca de Rowland se apoderou de seus lábios e ela se sentiu completamente indefesa frente à força daquele homem. Só conseguia se sujeitar-se na abundante cabeleira loira para lhe afastar a cabeça.

            - Você nunca me terá!

            Ele se levantou e separou as suas mãos com facilidade.

            - Pensa em dificultar minha vida? - perguntou com um sorriso. Sem aguardar a resposta, soltou um breve risinho e tirou a pesada manta de ferro e a túnica. A moça lançou uma exclamação e tentou levantar-se, mas ele voltou a empurrá-la sobre a manta para sujeitá-la com uma mão, enquanto com a outra se despojava de suas calças.

            Brigitte fechou os olhos, forçando-se a não gritar, ao mesmo tempo que Rowland lhe capturava ambas as mãos junto aos ombros. Tudo tinha sido tão fácil para ele, tão condenadamente fácil! Ela voltou a abrir os olhos, que cintilaram com fúria.

            - Odeio-te!

            Ele a contemplou durante um longo instante e, ao olhar escuro de seus olhos azuis, Brigitte se surpreendeu, ao descobrir subitamente que se sentia atraída por Rowland. Não podia afirmar que o amava. Além do que, ele era rude e grosso e, freqüentemente, cruel com seus comentários. Mas também era forte, decidido e justo. Sim, embora sofresse em admitir, esse homem a agradava. Além disso, pensou Brigitte, ele a olhava com ternura e, sim, até com amor. Mesmo fingindo estar tomando só o que lhe pertencia, havia muito mais nesse ataque, muito mais.

            Rowland pensava a quão encantadora era essa moça e quanto a desejava. Era uma jovem especial, sedutora e o tinha conseguido cativar. Jamais admitira para Brigitte, mas já começava a sentir um profundo afeto pela moça.

            Depois de beijar seu rosto encantador, os lábios de Rowland descenderam pelo delicado pescoço até chegar aos pequenos seios. Eram seios frágeis como porcelana, mas suaves e arredondados como uma fruta amadurecida. Impaciente por absorver a doçura da moça, ele separou suas coxas e a penetrou.

            Rowland afogou uma exclamação. A obstrução virginal ainda estava ali! Sentiu-se confundido, mas não disse nada. Com doçura, moveu-se no interior da jovem, sentindo-a relaxar mais e mais depois do primeiro impacto. Se moveu com um supremo cuidado, até que estremeceu e caiu estendido sobre o delicado corpo feminino. Um instante depois se afastou, para recostar-se junto à moça e observá-la com um sorriso nos lábios.

            - Por que te sorri com tanta presunção? - perguntou ela com fúria?. Disse que não me machucaria, mas o fez!

            - É natural, já que era virgem.

            - Mas... - começou a balbuciar Brigitte e Rowland riu ante a perturbação da moça.

            - Não pode me culpar por esse mal entendido. Se não tivesse desmaiado, teria percebido.

            - Mas disse que havia me possuído.

            - Estava bêbado. É comum um homem bêbado fazer coisas que nem sempre recorda. - Encolheu-se os ombros. Só supus que havia te possuído. Mas não foi assim.

            Brigitte permaneceu imóvel, em silêncio, aturdida por vários pensamentos perturbadores.

            Rowland acariciou a curva de seu queixo com infinita doçura.

            - O que isso importa, minha joiazinha? Tenha ocorrido antes ou agora, segue sendo minha.

            - Mas, se soubesse da verdade, Druoda jamais teria me entregue a ti.

            - Mas teria te entregue a outro, então, onde está a diferença?

            Sem esperar a resposta, Rowland se apoderou dos lábios da jovem em um terno, prolongado beijo. Quando por fim voltou a afastar-se, ele perguntou:

            - Te machuquei muito?

            - Não.

            A resposta de Brigitte refletiu um tom de amargura, e ele sacudiu a cabeça.

            - Tratei de me reprimir. Desejei-te muito antes que isto, mas não quis te tocar.

            - Então, por que o fez agora? - A voz da jovem soou tão curiosa como reprovadora.

            Rowland arqueou uma sobrancelha.

            - E me pergunta isso, depois de ficar com suas roupas úmidas e aderidas ao corpo me mostrando cada curva de seu corpo? Não sou de pedra, menina.

            Brigitte deixou escapar um suspiro. Tinha sido uma besta ao confiar nesse homem.

            - Disse que eu não te atraía - recordou-o - Por acaso todas suas afirmações são mentirosas?

            - Não percebi o quão formosa eras. Teria que ser cego para não me sentir atraído para ti. E me agrada saber que nenhum outro homem a possuiu.

            Rowland esboçou um sorriso satisfeito e sua arrogância irritou à moça.

            - Quisera que tivessem existido centenas de homens antes que você!

            O homem só riu ante esse repentino arrebatamento de ira e ela o empurrou com fúria.

            - Se afaste de mim, seu enorme caipira!

            Rowland lhe permitiu levantar-se e, sem cessar de rir, observou-a tomar a túnica e caminhar airadamente para o rio.

            - Aonde vai? - gritou, mas ela não parou.

            - Vou me banhar outra vez, agora que você me sujou! - respondeu Brigitte por cima do ombro e as gargalhadas dele a seguiram durante todo o caminho para a água.

 

            Brigitte se encontrava imóvel junto ao fogo, com as mãos e pés atados com cintas de sua bolsa, sem conseguir conciliar o sonho.

            Rowland de Montville não só a havia possuído, mas também logo se viu tão satisfeito e seguro de si, que ela começou a detestá-lo.

            Por essa razão, uma vez que ele se dormiu, Brigitte começou a considerar a idéia de escapar. "Sim", tinha pensado, "isso demonstraria a esse caipira que ela pouco se importava com Rowland de Montville ".

            A lua ainda não tinha se elevado, quando Brigitte se separou do normando, tomou sua bolsa e foi despertar Wolff, afastando se sigilosamente do acampamento. Depois de se afastar alguns metros do fogo, deteve-se para colocar as sandálias e, então, pôs-se a correr a toda pressa.

            Em sua fuga, apenas ouviu os sons das suas próprias pegadas, sem perceber que Rowland tinha saído em sua busca. Quando ele a agarrou seu braço bruscamente, Brigitte lançou um grito de terror. Em seguida, ele começou a arrastá-la ao acampamento.

            Uma vez junto ao fogo, Rowland parou para observá-la, com o corpo tenso pela fúria e uma expressão malévola em seus olhos.

            - Desta vez pode se considerar felizarda, porque não te adverti que não ousasse escapar. Mas te aviso agora. Se voltar a tentá-lo, sentirá nas costas o que é um verdadeiro castigo: um açoite por cada hora que eu demorar em te encontrar.

            Brigitte se estremeceu, sentindo de antemão a dor nas costas.

            - Então, da próxima vez, deverei me assegurar de que nunca poderá me encontrar - sussurrou com voz tão suave, que ele não conseguiu escutá-la.

            Rowland franziu o cenho.

            - Exijo-te que repita o que acaba de dizer, mulher. A jovem elevou o queixo com uma atitude desafiante e a mentira brotou espontaneamente em seus lábios.

            - Perguntava-me o que ocorreria se não conseguir me encontrar.

            - Sempre te encontrarei. Prometi que jamais escaparia de mim, e minha palavra é minha vida. Se for tão burra para voltar a tentá-lo, mulher, me deixe te dizer algo. Meus açoites não são como aqueles que só te deixaram machucada. Eu surro para tira sangue. Minhas marcas a acompanharão por toda a vida e, desse modo, nunca esquecerá que deve me obedecer.

            Então, Rowland tomou a cinta para amarrar suas mãos e pés e logo falou de modo sinistro.

            - Assim poderei descansar em paz.

           Logo depois Brigitte ouviu o som de umas pegadas junto ao acampamento e logo, o repentino latido de Wolff.

            As ações seguintes ocorreram de uma maneira confusa para a jovem. Rowland empunhou sua espada. Mas havia dois homens e ele só podia lutar com um. O outro o atacou pelas costas, golpeando sua cabeça com uma tocha. Com horror, Brigitte observou a Rowland desabar-se.

            A jovem lançou um grito e Wolff se equilibrou sobre o homem que tinha atacado ao normando. Entretanto, Brigitte não teve tempo de observar a cena, já que o outro assaltante correu para ela e se ajoelhou a seu lado.

            - Te apresse em matar à besta - gritou ele a seu companheiro. - E logo, terá sua recompensa.

            Brigitte observou o rosto sorridente do homem. Era um dos saxões da barcaça! Mas eles não tinham descido do barco quando ela e Rowland desceram. Como tinham conseguido chegar até ali?

            - Por que se juntou ao cavalheiro? - perguntou o saxão, ao mesmo tempo que cortava as cordas que amarravam a jovem?. Por acaso ele te roubou da casa de seu amo?

            Brigitte se sentia muito aterrorizada para falar mas o homem não aguardou a resposta.

            - Não tem importância. Por ti, vale a pena termos abandonado nosso percurso e assassinar a este homem. Sim, você vale. Com os selvagens grunhidos de Wolff, que atacava o outro homem, Brigitte começou a entender o saxão. Esses velhotes tinham a seguido e atacado Rowland com o propósito de raptá-la. Brigitte estava destinada a sair do inferno de um normando, só para entrar num inferno maior de um saxão.

            Ela voltou a gritar quando o homem apoiou a adaga no seu pescoço para rasgar-lhe a túnica. Mas, no instante seguinte, Wolff o atacou por atrás, para jogá-lo a vários metros de distância. O saxão não voltou a incomodá-la. Brigitte se voltou, incapaz de observar seu adorado mascote. Recordando da luta entre o cão e o lobo no castelo de Wilhelm, e se estremeceu com as lembranças. Quando Wolff terminou com sua vítima, esta se converteu em uma figura mutilada, igual ao lobo de Wilhelm ao finalizar a luta. Ambos os saxões tinham sido horrivelmente mortos. O pescoço e o estômago do outro homem tinham sido rasgados com crueldade. Quando a calma voltou a reinar no acampamento, Brigitte olhou a seu redor e não pôde reprimir uns violentos espasmos. Wolff se aproximou, mas, ao vê-lo coberto com o sangue das vítimas, ele sentiu náuseas.

            Brigitte nunca tinha visto um homem assassinado; mas ali se encontrava, sozinha, no meio do bosque, com três homens mortos. Três? Depois de se desfazer dos últimos vestígios das cordas que lhe atavam, ela correu para o corpo de Rowland, que jazia imóvel junto ao fogo. Não estava ensangüentado, mas estava totalmente rígido.

            Encontrava-se livre, observou Brigitte, "Livre! Já podia se encaminhar para o rei Lothair! Rowland estava morto!"

            E, então, a monstruosidade do fato a golpeou. Porque ela não se sentia aliviada e satisfeita?

            - Eu não posso permanecer aqui - disse em voz alta. Ficou de pé e tocou a cabeça de Wolff para tranqüilizá-lo, mas retirou a mão manchada de sangue. Imediatamente, esfregou-a na terra, para logo assinalar em direção ao rio.

            - Vá te lavar, Wolff. Vá nadar. - O cão não se moveu, até que ela bateu um pé com fúria no chão. - Faz o que ti digo. Eu reunirei minhas coisas e partiremos logo que esteja limpo.

            Wolff, então, partiu, mas Brigitte não começou a recolher seus pertences. Permaneceu imóvel, observando o corpo inerte de Rowland. O vento sacudiu as folhas das árvores, e ela sentiu frio, mas não se agachou para tomar seu manto. Só baixou o olhar para a manta onde tinha estado deitada com aquele homem.

            No mesmo lugar se encontrava, tremendo, quando Wolff retornou ao acampamento. O cão estava empapado, mas limpo, e ela o chamou, esboçando um débil sorriso. Recolheu a manta para secá-lo, mas parou, quando o animal se sacudiu e a molhou. Foi então quando ouviu o gemido.

            Brigitte se paralisou. Um dos homens continuava com vida. Mas, qual? Ela não desejava averiguá-lo, já que não queria enfrentar nenhum deles.

            - Vamos, Wolff! Temos que partir daqui. Jogou a manta sobre o cão e o esfregou brevemente. Logo, recolheu seus pertences e correu para o cavalo de Rowland, mas parou o chegar ao potro. O tamanho do animal a intimidava, em especial, sem a imensa figura do cavalheiro colocado nos arreios. Como conseguiria montar sem a ajuda do normando?

            Depois de vários intentos, conseguiu subir no gigantesco cavalo e, agitada pelo esforço, jogou um olhar em busca de Wolff. Mas o cão ainda seguia junto ao fogo, farejando o corpo de Rowland. Brigitte o chamou uma e outra vez, mas o animal se sentou junto ao normando, recusando-se a mover-se.

            A jovem deixou escapar um suspiro de desespero. Então era ele. Rowland ainda estava vivo. Ela deveria ter previsto que esse arrogante caipira era muito duro para morrer tão facilmente. Saiu do cavalo e caminhou lentamente para o fogo. Depois de jogar um olhar fulminante em Wolff, inclinou-se para examinar Rowland.

            Tinha uma enorme protuberância na nuca. A arma do saxão devia ter girado ao bater, pensou a jovem, e só o lado plano da acha tinha o machucado. De repente, notou que Rowland respirava. Embora com uma forte dor de cabeça, sem dúvida, o normando despertaria. Brigitte lançou um olhar penetrante a Wolff, que continuava estendido junto ao corpo do homem.

            - Não espera que fique para ajudá-lo, não é? Devo partir.

            Ela ficou de pé, mas o cão não se levantou.

            - Vou avisá-lo de forma categórica? - Se ficar aqui, este homem o aprisionará. É isso o que quer? Deseja sofrer em suas mãos asquerosas?

            Ainda assim, a besta permaneceu imóvel junto ao ferido. Brigitte perdeu a paciência e exclamou.

            - Digo-te que este caipira não necessita nossa ajuda! Vamos embora!

            Ela começou a se afastar do acampamento, mas olhou por cima do ombro para ver se Wolff a seguia. O cão se aproximou mais ao normando, para apoiar a cabeça junto ao corpo estendido de Rowland.

            - Droga, fique com ele então! - exclamou Brigitte. - Mas está muito equivocado se acha que este homem te tratará melhor que eu. Só receberá chutes em troca de seus esforços por agradá-lo, é seu jeito de ser.

            Afastou-se indignada, decidida a não olhar atrás. Mas, antes que conseguisse alcançar o potro, Wolff uivou de um jeito que ela nunca tinha ouvido. O som percorreu o bosque, e Brigitte se voltou para encontrar ao cão tocando ligeiramente a barriga do normando, como se quisesse acordá-lo.

            - O largue, Wolff! - ordenou-lhe, temerosa de que Rowland despertasse antes que ela partisse. Ela correu para afastar o cão, mas parou ao ver o fio de sangue que gotejava das costas do homem. Rowland se encontrava muito ferido. Mas, como tinha acontecido? Com grande esforço, Brigitte conseguiu vira-lo. Então, viu a espada que o normando tinha deixado cair antes ao desmaiar. O extremo da arma tinha aterrissado sobre uma enorme pedra, na posição certa para penetrar na barriga do homem a ser derrubado.

            - Mereceria morrer com sua própria arma - comentou com frieza.

            Não conseguia ver a gravidade da ferida, mas havia uma grande quantidade de sangue no chão e na túnica de Rowland. Voltou-se para Wolff, que a olhava com atitude espectador e lhe disse obstinadamente:

            - Não sou obrigada a ajudá-lo depois de tudo o que me fez. Se curar sua ferida, poderia despertar e perderia minha oportunidade de escapar. Além disso, não estou segura de que vá morrer se não o ajudar.

            Brigitte parou para olhar uma vez mais ao cavalheiro ferido. Logo, deixou cair os ombros e prosseguiu:

            - Me escute. Estou falando com tanta frieza e malícia como ele. Não posso deixar morrer um homem, nem sequer a este.

            - Alegra-me ouvir isso.

            Ela afogou uma exclamação quando os escuros olhos de Rowland se abriram para olhá-la.

            - Quanto tempo está consciente? - perguntou violentamente.

            - Desde que começou a falar com brutalidade - grunhiu ele? - Sinto uma terrível dor de cabeça.

            - Veja suas costelas, normando, está sangrando como um porco esfaqueado - declarou a jovem com aspereza.

            Rowland se levantou lentamente, mas se deixou cair sobre um cotovelo, para levar uma mão sobre a cabeça.

            - Ai, Deus! Sinto que como tivesse a cabeça rachada. - Em seguida jogou um olhar severo para a moça. - Você me fez isto?

            - Se está doendo, eu adoraria te feito isto! - respondeu ela. - Mas não foi assim. Um homem te golpeou por atrás sem que percebesse.

            - É mais fácil acreditar que você o fez - comentou o ele com cepticismo.

            - Então, olhe ao seu redor. Ali há dois corpos preparados para ser enterrados.

            Rowland olhou, sobressaltado, e logo seus olhos se posaram sobre Wolff, que continuava estendido ao seu lado.

            - Pelo visto, subestimei-te, cão.

            - Recorda-o na próxima vez que tentar me atacar - advertiu-lhe Brigitte? - Se eu soubesse o quão temível é Wolff, você teria sentido suas afiadas presas muito antes, tal como ocorreu com esses dois saxões.

            - Saxões?

            - São os dois viajantes da embarcação.

            Ele franziu o cenho.

            - Devem ser ladrões. O que outra razão teriam para nos seguir?

            - Oh, sim, eram ladrões. - assentiu Brigitte com amargura - Mas era a mim que tentavam roubar.

            - Droga! - grunhiu Rowland? - Sabia que me causaria problemas com esse rosto atrativo que tem. Suponho que paquerou com esses saxões na barcaça, não é?

            - Como se atreve! - exclamou a moça com tom severo - Não posso alterar meu aspecto, mas jamais tento um homem intencionadamente. Não me interessa despertar o desejo de nenhum caipira. Você também não está ileso, o que me fez foi repugnante.

            - Chega!

            - Não, não chega! - bramou a jovem, sentindo desejosa de feri-lo ainda mais a Rowland. - Considera-se meu senhor, mas não me defendeu desses bandidos, quando se supõe que um amo deve proteger a seu serviçal. Afirmaria que perdeste seus direitos sobre mim, visto que não cumpriste com suas obrigações.

            - Machucaram-lhe? - perguntou ele.

            - Bom... não, mas não foi graças a ti.

            - Então, se não houve dano, não escutarei mais a respeito de direitos e obrigações. Além disso, eu fiz um tremendo esforço para te proteger. Tenho feridas para demonstrá-lo.

            Brigitte sentiu remorso por tê-lo provocado, e decidiu permanecer em silêncio. - Conforme acredito, prometeu curar minha ferida, não foi assim? - Recordou-lhe Rowland.

            - Curarei, apenas compreenda isto: não me sinto obrigada a fazê-lo só porque você se considere meu senhor.

            - Então, faça por que é uma boa cristã. - Suplicou com tom fatigado, fechando os olhos fracamente. - Acaba já com isto.

            Ela se virou e caminhou para o cavalo, a fim de revisar sua bagagem em busca de algo que pudesse servir como vendagem. Mas Rowland a deteve antes que ela abrisse o pacote.

            - Não encontrará nenhum tecido aí. - Ela se virou para olhá-lo. - Uma camisa velha servirá - Tiras de uma camisa não serão suficientemente largas. Terá que procurar entre suas roupas.

            - Minhas roupas! - exclamou Brigitte, enquanto retornava graciosa para deter-se junto a ele. - Não tenho tantos vestidos para arruinar por sua causa. Usarei uma das mantas.

            - Necessitamos dessas mantas, já que à medida que avancemos para o norte, o clima se tornará mais frio - anunciou Rowland de modo categórico.

            Ela tomou sua bolsa com impaciência e extraiu seu vestido mais gasto. Ao se virar para Rowland percebeu que ele já se desprendeu do cinturão e estava tratando de tirar túnica. Ela vacilou um instante, observando seus enormes esforços, até que por fim ajudou a despojar-se do objeto. Ele se encontrava pálido e débil, mas, mesmo assim, não cessou de contemplá-la com atenção, enquanto limpava cuidadosamente a ferida e enfaixava suas feridas com seu vestido de linho. Uma vez finalizada a tarefa, Brigitte o ajudou a vestir uma túnica limpa e depois de cobri-lo com a manta, foi acender uma nova fogueira.

            - Poderia lavar o sangue de minha roupa, senhorita? - perguntou Rowland.

            Ela assentiu imediatamente, já que ele tinha pedido, não ordenado. Recolheu a túnica do chão e se dirigiu para o rio. Ao retornar ao acampamento, pendurou o objeto em um ramo da árvore e se aproximou para ver se ele encontrava dormido.

            - Dói-te o inchaço da cabeça? - perguntou com voz suave.

            - Sim. - respondeu ele com uma careta - Com que me bateram?

            - Com uma acha. - respondeu a jovem - Teve sorte. Poderia ter morrido.

            - Grr! - grunhiu Rowland. - Sinto como minha cabeça fosse explodir.

            "Que pena que não aconteceu", pensou Brigitte, e se ruborizou ante sua própria crueldade.

 

            O aroma de carne assada despertou Brigitte. Uma breve olhada no acampamento descobriu que os corpos dos saxões tinham sido retirados. Rowland se encontrava agachado frente ao fogo, com Wolff estendido a seu lado. Ela olhou a ambos com expressão severa.

            - Meu deus, fez muito trabalho, considerando a gravidade de sua ferida - comentou com tom mordaz.

            - Bom dia, mocinha.

            Ela ignorou a saudação.

            - Me diga, por favor, sua ferida foi aberta?

            Rowland soltou um breve risinho.

            - Não, Huno fez o trabalho - respondeu, inclinando a cabeça em direção ao cavalo.

            - E a carne?

            - Seu cão se encarregou disso.

            Brigitte lançou um olhar reprovador a seu mascote.

            - Traidor! Acaso tem que gastar suas energias para agradá-lo?

            - Costuma falar assim com seus animais? - perguntou Rowland, jogando lhe um olhar de soslaio.

            - Só com esse - respondeu a jovem com um tom áspero. - Embora não parece estar comportando-se bem ultimamente.

            - Suponho que não espere que te responda.

            - Claro que não - respondeu, irritada. - Não sou tola, Rowland.

            Ele franziu o cenho.

            - Acredito não ter te dada permissão para que me chamasse dessa forma.

            - Não pedi sua permissão.

            Os escuros olhos azuis de Rowland se serraram.

            - Me chamará de "senhor".

            - Não o farei. Você não é meu senhor. - negou Brigitte com firmeza - Meu pai foi meu senhor e, logo meu irmão. Mas agora meu senhor é o conde de Berry. Eu não o chamarei de senhor, mas você é só Rowland de Montville. Referirei a ti como Rowland ou canalha normando, não importa qual.

            Rowland se levantou para se aproximar da moça com um brilho de ira nos olhos.

            - Advirto-te, mulher...

            - Mulher! - exclamou ela -Meu nome é Brigitte... Ouviu? Brigitte! Se voltar a me chamar mulher, gritarei!

            A expressão sombria de Rowland se transformou em um olhar surpreendido ante a repentina ira da jovem.

            - Acaso o demônio se apoderou de ti esta manhã? O que te aconteceu moça?

            - Você está diabólico! - gritou ela, a beira das lágrimas - Não tem direito o de se levantar e andar por aí, quando esteve a ponto de morrer a apenas algumas horas. Você tem o demônio no corpo. Deveria estar débil, mas ele te dá forças!

            - Deve ser isso. - Rowland soltou uma potente gargalhada. - Então planejava escapar e acreditava que eu estava muito fraco para te deter. Bom, lamento te decepcionar, mas desde pequeno me ensinaram a tolerar com coragem as dores. Essa manhã, chegaremos em Angers, depois de algumas horas.

            Desta vez, Rowland não fez Huno cavalgar rápido. Em lugar de apresentar seus respeitos ao conde de Anjou, ele parou no monastério para adquirir suprimentos e realizar alguns reparos. Logo, abandonaram a cidade. Brigitte se sentiu confusa.

            - Por que não ficamos para passar, ao menos, uma noite? Sem dúvida, faria-te bem um descanso. Um dia mais de atraso valeria de muita coisa.

            - Não acredito que seja necessário - respondeu Rowland com brutalidade.

            Ambos tinham permanecido em silencio durante o trajeto de Angers, mas agora Brigitte se encontrava pronta para iniciar uma nova batalha.

            - Por que razão evita as cidades? Cada vez que chegamos a uma, apressa-te a abandoná-la logo que é possível.

            Ele não se voltou para olhá-la.

            - Não é conveniente permanecer em um lugar desconhecido.

            - Claro que não. É muito melhor dormir no relento, sobre a terra gelada - disparou a jovem com sarcasmo.

            - Age como uma esposa rabugenta. - afirmou Rowland em tom severo - Deixa já de protestar, mulher.

            Brigitte se sentiu ferida, mas também acovardada. Cavalgaram junto a uma larga sucessão de vinhedos sobre as colinas baixas dos subúrbios de Angers, para logo penetrar em uma zona pantanosa. E, à medida que se afastavam da cidade, a irritação da jovem aumentava. Não poderia gozar de uma cama morna essa noite, nem teria companhia. Desse modo, jamais conseguiria conseguir ajuda.

            - Não posso acreditar que Angers não te resulte familiar. Tenho certeza que deve conhecer alguém ali. Ainda podemos retornar.

            - Não tenho intenções de retornar, moça. E não, não conheço ninguém ali.

            - Mas sua casa não se encontra muito longe daqui, não é verdade? - perguntou Brigitte.

            - Fica a uns poucos dias mais de viagem. Mas isso não significa que deva conhecer gente em Angers. Jamais passei muito tempo ali. Meu pai nunca me permitiu me afastar de casa. E quando me parti, dirigi-me para o este.

            Ela soltou um breve risinho ante o comentário - Alguma vez te permitiu te afastar? Que filho de nobre deve permanecer perto de casa? O filho de um lorde está acostumado a ser enviado para Corte, para seu treinamento. Se não foi assim contigo, então deve proceder de um lar camponês.

            Rowland ficou tenso.

            - Meu pai preferiu me treinar pessoalmente - disse com tom gelado - E, uma vez que chegamos em Montville, sem dúvida, descobrirá que sou bastardo. Minha mãe foi uma servente e sou filho bastardo de meu pai.

            - Oh. - Brigitte não pôde pensar em nenhum comentário inteligente.

            - Não me preocupa admiti-lo.

            - Eu faria o mesmo, se fosse meu caso. - afirmou a moça - Mas eu não sou bastarda.

            Ele deteve o cavalo e logo, voltou-se para olhar a jovem.

            - Sua língua necessita de um descanso, moça? disse com frieza - Uma breve caminhada poderia te ajudar. Imediatamente, desceu-a para a terra lamacenta, ignorando seus gritos de cólera. Logo, insistiu ao cavalo a prosseguir a marcha e Brigitte não teve outra alternativa que segui-lo em companhia de Wolff.

 

            Rowland parou sobre o topo da uma colina, a uma pequena distancia de Montville, seu lar. Brigitte se inclinou para obter uma melhor visão do lugar onde residiria durante um tempo. Um grosso manto de neve cobria toda a paisagem: da fortaleza, situada sobre uma pequena colina, até a aldeia e, mais atrás, as pradarias, os hortas, os cultivos e o bosque.

            A neve não cessava de cair, recordando a jovem os perturbadores instantes da noite anterior quando, ao primeiros flocos de neve caíram, Rowland se aproximou em busca de seu calor. Brigitte preferia congelar-se, mas ele tinha insistido em estreitar com força sua delicada figura feminina, ignorando seus protestos. Mas, esta vez, ele não tinha tentado violá-la. Talvez, devido à ferida, ou aos roucos grunhidos de Wolff... Ela não estava segura. Ele apenas tinha lhe dado vários beijos ternos no pescoço, até que ela o afastou. Depois disso, Rowland não havia tornado a incomodá-la, contentando-se em depositar uma mão pesada sobre o quadril em sinal de posse.

            Brigitte tratou de apagar a lembrança da noite anterior enquanto contemplava o lar do normando. Pensou, em troca, o que diria ao enfrentar-se ao lorde de Montville.

            Acreditaria quando lhe contasse quem era e o que lhe tinha acontecido? Rowland começou a descer pela colina, e ela sentiu os primeiros indícios de temor. O que aconteceria se ninguém acreditasse em sua palavra? O que aconteceria se jamais conseguisse abandonar esse lugar e se visse forçada a passar o resto de sua vida trabalhando como serva?

           Atravessaram a entrada, e um guarda agitou uma mão para saudar Rowland. Ninguém saiu para recebê-los. O pátio se via desértico e batido pelo vento. Nem sequer o encarregado do estábulo saiu para encontrar os recém chegados ou para atender ao cavalo.

            - Aconteceu alguma coisa estranha aqui? - perguntou Brigitte com inquietação, ao mesmo tempo que Rowland desmontava seu cavalo e a ajudava a descender.

            - Tudo parece em ordem.

            - Mas, por que ninguém veio te receber? Os guardas devem ter informado a seu pai de sua chegada - continuou a moça, enquanto começavam a caminhar para a mansão.

            - Sim, com claro, ele já deve saber que estou aqui.

            - E, ainda assim, não veio te saudar? - perguntou ela, sobressaltada.

            Ele esboçou um sorriso indulgente.

            - Só um imbecil abandonaria o fogo quente num dia como este.

            - Mas nem sequer um servente veio te atender - insistiu Brigitte.

            Rowland encolheu os ombros.

            - Já descobrirá que Montville não é um lugar muito hospitaleiror, Brigitte. Jamais esperei outro recebimento.

            - Disse que seu pai tinha muitos servos.

            - E tem, mas todos giram ao redor de Hedda e, sem dúvida, ela se encarregou de atarefá-los com trabalhos sem-fim quando se inteirou de minha chegada. A dama realiza enormes esforços para evitar que me sinta bem acolhido aqui. Não acredito que tenha mudado só porque me encontrei ausente durante estes últimos seis anos. Minha madrasta é uma mulher perversa. Aconselho-te que te mantenha fora de seu caminho, porque sei que não a agradará.

            - Por quê? Nem sequer me conhece.

            - Não precisa te conhecer. - Rowland soltou um risinho afogada. - Hedda te desprezará só porque é minha servente. Essa mulher sente prazer em arruinar minha vida. Sempre consegue assegurar-se de que não haja um servo perto quando eu o necessito. Mas agora te tenho, e ela não poderá te dar ordens. Isso não lhe agradará.

            - Hedda te odeia então?

            - Eu lhe recordo seu fracasso de não brindar meu pai um filho varão. Minha mãe não era de Montville. Quando ela morreu, Luthor me trouxe aqui e me colocou por cima das duas filhas que Hedda tinha lhe dado. Tudo o que vê aqui será meu algum dia; um filho bastardo será dono da herança e não as filhas legítimas de Luthor.

            - Então, suponho que suas irmãs também o odeiam. - comentou a jovem com um suspiro - Que linda família tem, Rowland. E me traz aqui para viver entre esta gente tão desagradável.

            - Não tema, joiazinha. Tranqüilizou-a com tom alegre - Eu te protegerei contra a ira de todos.

            A mansão era imensa e a sala principal, era construída em madeira e pedra. Os mantimentos se alojavam no mesmo quarto onde estavam os dois gigantescos fogões. Em um deles, borbulhavam os caldeirões e se assava uma parte gigantesca de carne. Vários serventes se moviam apressados, servindo o jantar a um numeroso grupo de pessoas.

            No centro da sala, havia três mesas. Uma destas se encontrava elevada sobre um soalho, situada em paralelo com as outras duas, um pouco mais largas, repletas agora de soldados, homens armados, cavalheiros, seus escudeiros e varias mulheres. O fogão mais pequeno se achava rodeado de bancos. Para a esquerda, no segundo piso, havia uma arcada que permitia ao espectador observar tudo o que estava acontecendo no salão.

            No centro da mesa principal, sobressaía-se a figura de um ancião de enorme tamanho, com o cabelo da cor de trigo e vestido ao estilo normando. Não levava barba, e seu rosto estava marcado com profundas rugas. Sua expressão refletia um caráter forte. Embora não parecesse com Rowland, Brigitte soube que se tratava de Luthor, o lorde de Montville.

            A cada lado do homem havia duas mulheres; uma um pouco mais velha que Rowland; a outra, muito mais velha. Eram, sem dúvida, mãe e filha, já que seus traçados eram idênticos: queixo bicudo, olhos pequenos, nariz proeminente e encurvado.

            Com o reboliço da multidão, ninguém percebeu a presença dos recém chegados, e ela teve a oportunidade de estudar tudo que ocorria na sala. Mas sua observação não durou muito. Ao perceber o aroma da habitação, Wolff deixou escapar um uivo, para logo atacar o cão mais próximo antes que Brigitte alcançasse. Os outros cachorros se somaram à briga, causando um terrível alvoroço.

            O rosto de Brigitte adquiriu um brilhante tom carmesim. Seu mascote estava provocando um escândalo tão atroz, que o resto da sala repentinamente se calou. Nervosa, ela tentou afastar Wolff, mas Rowland a deteve.

            - Deixa-o, Brigitte. - disse entre risadas, incrivelmente divertido - Este é um território novo para ele. É ardiloso para se impor desde o começo.

            - Mas está me envergonhando.

            - Por que? - Ele arqueou uma sobrancelha. - Não esqueça que agora me pertence. E só está tentando demonstrar aos cães de meu pai que já têm um novo líder. Isso é algo que em Montville entendemos muito bem.

            - O que? Lutar para ganhar a autoridade?

            - Aqui é assim.

            - Mas seu pai é o amo daqui, ou não?

            - Claro que sim. - assentiu Rowland - Mas eu sou obrigado a lhe desafiar, e ele a mim também.

            - Isso é ridículo!

            - Não aqui, moça. Luthor não o aceitaria de outra forma. O homem governa pela força, como fizeram seus antecessores. Acredita que se não poder vencer a seus homens, então não está preparado para dirigi-los. E todos devem saber que ele ainda pode derrotar seu herdeiro.

            - Isso é bárbaro! - exclamou Brigitte, e em seguida se recuperou o suficiente para adicionar: - Você é um bárbaro também.

            Rowland sorriu agradado, observando os claros olhos azuis da jovem.

            - E só agora descobriu?

            Nesse instante, uma jovem roliça de cachos castanhos se aproximou correndo. Surpreendida, Brigitte observou à moça jogar-se nos braços de Rowland e beijá-lo profusamente.

            - O que aconteceu? - protestou a jovem quando ele a separou de seu lado. - Por que não pode me saudar corretamente, mon chér?

            Ele franziu o cenho.

            - Amélia, o que houve alguma vez entre nós foi privado, entretanto, você insiste em fazê-lo público. Acaso não tem vergonha, mulher? Como se atreve a te jogar em meus braços ante os olhos de todos?

            Amélia afogou uma exclamação e seus olhos negros se dilataram pela ira.

            - Aguardei sua volta durante todos estes anos. Luthor sabe e não se opõe.

            - O que sabe meu pai? - inquiriu Rowland. - Contou-lhe sobre nossas relações? Acaso ousou desonrar seu pai contando de sua promiscuidade?

            - Por que me ataca dessa forma? - perguntou Amélia - Não contei a ninguém sobre nosso relacionamento. Luthor só viu como sofri quando você partiu. Achou muito divertido.

            - E o que supõe que pensará agora, depois de presenciar sua audácia? E seu pai que nos está observando? Droga, Amélia! - grunhiu ele - Não te pedi que me esperasse. Por que o fez? Jamais te prometi matrimônio.

            - Eu acreditava...

            - Pensou errado! - interrompeu ele. - E foi muito parva em me esperar, quando seu pai poderia ter te encontrado um matrimonio. Nunca tive intenção de retornar a Montville, e você sabia.

            - Oh, não, Rowland - apressou-se a dizer a jovem. - Sempre soube que voltaria, e assim foi.

            - Chega, Amélia. Meu pai me espera.

            - Besteira! - A moça olhou para Rowland. Enquanto Brigitte se afastou, incômoda sobre semelhante conversação.

            - Ah! Agora entendo! - exclamou - Casou-se. Seu bastardo! - bramou com os olhos cheios de fúria - Cão infiel! Rowland ficou tenso e lhe lançou um olhar fulminante.

            - Tome cuidado, mulher, ou sentirá o castigo de minha mão, e logo terei que matar seu pai quando desafiar-me por isso. Se não puder pensar em ti, então o faz por ele.

            Umas lágrimas brotaram nos olhos escuros da Amélia.

            - Como pôde te casar com outra?

            Ele exalou um suspiro de exasperação.

            - Não me casei! E jamais o farei, porque todas vocês são iguais, com suas malditas queixa e lamentos. São capazes de esgotar a paciência de qualquer homem. Nunca desposarei uma mulher de quem não posso me desfazer uma vez acabada a fascinação e que, além disso, pode converter-se em uma cobra.

            Rowland se afastou, deixando Brigitte sem saber o que fazer, visto que ele tinha esquecido por completo sua presença. Amélia lhe lançou um olhar hostil, e ela se apressou a seguir ao normando. Ao caminhar, manteve a cabeça erguida, ignorando a multidão de olhos curiosos. Sentiu-se completamente sozinha, mas se animou quando Wolff se aproximou, depois de derrotar o último cão de Montville. Ao menos, sua mascote tinha brindado um espetáculo digno de admiração.

            Luthor de Montville ficou de pé para receber Rowland, mas foi essa sua única manifestação ante a volta de seu herdeiro. Brigitte se sentiu aturdida frente a tão estranho encontro entre pai e filho. Nenhum dos dois sorriu, nem pronunciou uma palavra de afeto. Ambos permaneceram encarando-se, com expressão indiferente, pelo menos pareciam mais adversários do que amigos. Observaram-se um a outro por um instante, estudando as mudanças que tinham tido lugar nesses seis anos.

            Finalmente, Luthor se decidiu a falar.

            - Está atrasado.

            - Atrasaram-me.

            - Gui me informou - assentiu Luthor com um tom de desagrado - Deteve-te atender o leito de morte de um francês. Isso te pareceu mais importante do que o futuro de Montville?

            - O homem salvou minha vida. Só me levou uns poucos dias averiguar se continuaria vivo.

            - E está?

            - Sim.

            - Já saldaste sua dívida?

            Rowland assentiu com uma leve inclinação de cabeça, e isso pareceu tranqüilizar seu pai.

            - Bem. Não quero nenhum ato de lealdade a não ser com Montville um vez que tenha começado o conflito. Viajou sozinho com esta carga? - perguntou Luthor, observando Brigitte, mas sem encará-la. - Onde está seu escudeiro?

            - Perdi-o no sul - respondeu Rowland e logo, sorriu - Mas esta carga é muito competente.

            Luthor soltou uma estrondosa gargalhada, igual ao resto dos homens. Amélia, quem já se somou ao grupo, apressou-se a formular um comentário agudo.

            - Não sabia que na França se acostuma a levar a uma prostituta como escudeiro.

            Rowland se voltou contra ela pronto para uma réplica, mas seu olhar caiu sobre Brigitte e pôde notar as lágrimas que brilhavam nos claros olhos azuis da moça.

            - Sinto muito, mocinha - disse com doçura. - Há muitas damas aqui que deveriam pertencer ao sub mundo.

            O comentário suscitou em mais de uma exclamação, inclusive a de Brigitte. Surpreendeu-lhe que Rowland saísse em sua defesa quando, fazia apenas um instante que ele mesmo a tinha ultrajado.

            Antes que ela pudesse reagir, Amélia falou com rudeza.

            - Como te atreve me insultar dessa forma, Rowland?

            Ele lançou lhe um olhar gelado.

            - Se não tolera insultos, Amélia, evita formulá-los.

            Amélia se voltou imediatamente para Luthor.

            - Milord, seu filho não tem direito de me tratar desse modo. E não só me ofendeu. Ele disse "muitas damas".

            - Ele fez isso? - Luthor deixou escapar um breve risinho, sem sair em defesa da Amélia, nem de suas próprias damas, que mastigavam sua crescente fúria em silêncio. O lorde se virou para Brigitte e perguntou:

            - Tem nome a mulher?

            - A mulher tem nome - respondeu a jovem com audácia - Sou Brigitte de Louroux, milord.

            Rowland franziu o cenho.

            - Agora é Brigitte de Montville, minha serviçal.

            - Isso é discutível - declarou Brigitte com voz cortante. Logo, se virou e caminhou com passo gracioso para o fogo, levando Wolff consigo.

            - Sim! - riu Luthor - Agora entendo por que demoraste.

            - Ainda tem que se adaptar seu novo amo. Até agora, não tem feito mais que causar problemas.

            - Como conseguiu uma jovem tão bela e um animal tão esplêndido?

            - A moça foi me dada pela força - respondeu Rowland brevemente - e o cão a seguiu. Luthor estudou a jovem um instante.

            - Essa mulher se comporta como uma dama. Juraria que é de berço aristocrático. Possui certo ar de arrogância.

            Ele lançou um olhar penetrante a seu pai.

            - Não permita que ela te ouça dizê-lo, pai, porque é isso justamente o que desejaria te fazer acreditar.

            - Quer dizer que a jovem afirma ser uma dama?

            - Sem dúvida, realizará enormes esforços para te convencer.

            Luthor franziu o cenho.

            - Está seguro de que não o é?

            - Droga! - exclamou Rowland - Estou convencido! Ela esta me atormentando o bastante. Assim não chateie com isso, velho.

            - Me chamando de velho, né? - grunhiu o lorde. - Te apresente no pátio ao amanhecer e veremos quem é velho.

            Rowland assentiu em silêncio. Não desejava repetir a antiga disputa.

            Depois de se informar a respeito dos preparativos para a batalha contra Thurston de Mezidon, Rowland voltou o olhar para Brigitte, que se encontrava sentada em frente ao fogo, de costas ao grupo. Sua magra mão acariciava distraidamente a imensa cabeça de Wolff. Rowland se perguntou o que estaria pensando a jovem enquanto contemplava o dançar das chamas. O que ia fazer com essa pequena atrevida? Por que insistiria ela em mentir a respeito de sua condição? Tinha tentado tudo, exceto jurar ante Deus. Embora Rowland soubesse que Brigitte jamais se atreveria a fazê-lo, porque era uma jovem de fé. Ela tinha demonstrado ao ficar a cuidar de sua ferida em lugar de escapar. Poderia tê-lo deixado morrer, mas não o fez. Talvez, não o odiava tanto como afirmava.

            Ele deteve uma criada e sussurrou algo ao ouvido. Logo, observou-a aproximar-se de Brigitte, cuja imagem externa era incrivelmente serena, embora em seu interior fervesse de ira contida. A jovem já não acreditava ser capaz de suportar Rowland por muito mais tempo. Distraída em suas reflexões, Brigitte não ouviu a criada aproximar-se e se sobressaltou quando esta lhe deu uma palmada no ombro.

            - O que quer? - perguntou com rudeza.

            Os olhos da criada se dilataram confundidos. A jovem não sabia como comportar-se frente a desta formosa mulher francesa que, mesmo que seu senhor a considerava uma serviçal, parecia pertencer à nobreza.

            - Sir Rowland ordena que sente-se com ele à mesa e coma antes dele se retirar para descansar - informou-lhe com nervosismo.

            - Ele quer isso, né? - Brigitte se virou para o centro da sala para encontrar Rowland observando-a, e sua fúria se intensificou. - Bem, pode dizer a esse arrogante que não estou disposta a me rebaixar me sentando ao lado dele na mesa!

            Os olhos da criada pareceram sair de órbitas.

            - Não posso lhe dizer isso! - Brigitte ficou de pé.

            - Então, eu o farei.

            - Por favor! Não o faça. Conheço-o e sei que ficará enfurecido, ama.

            Brigitte olhou à outra moça com uma expressão curiosa.

            - Por que me chamou ama?

            A criada afundou a cabeça com acanhamento.

            - Me... Pareceu-me adequado.

            Brigitte sorriu e, embora não percebesse, seu sorriso deslumbrou a vários espectadores.

            - Pois fez bem. Qual é seu nome?

            - Meu nome é Goda.

            - Goda, sinto ter sido rude. Jamais descarreguei minha fúria contra a servidão, e Deus sabe que não me tornaria nem um pouco parecida com Rowland.

            - Reunir-se-á com sir Rowland então?

            - Não. Mas pode me mostrar minha habitação. Só desejo um pouco de intimidade.

            - Sim, ama - assentiu Goda calmamente.

            Os olhos de Rowland seguiram Brigitte, quem abandonou a sala com a criada. Recordou o sorriso que a jovem tinha brindado Goda e, de repente, sentiu enormes desejos de voltar a ver essa expressão, mas dirigida só para ele.

            "Veja no que está se metendo, Rowland", pensou divertido. Está começando a cortejar a uma servente!“.

 

            Brigitte foi conduzida a um pequeno quarto para serventes, situada no outro lado do pátio. O quarto não era muito melhor do que o alojamento que esteve em Louroux, mas, ao menos, este contava com uma cama limpa e numerosas mantas. Depois de guardar seus pertences em um velho armário e limpar as teias de aranha da habitação, a jovem suplicou a Goda que a guiasse até o quarto de banho e lhe levasse um pouco de comida.

            A criada obedeceu sem protestar, Brigitte se sentiu agradecida. Tinha chegado a sonhar com um banho quente e não se importou em banhar-se no banheiro reservado aos servos. Já tinha quebrantado as regras ao pedir a Goda comida, dado que a nenhum criado estava permitido gozar dos privilégios do serviço.

            Mais tarde, Brigitte se encontrava sentada na cama, secando o cabelo, junto a lamparina que amavelmente Goda lhe tinha proporcionado. De repente, Rowland abriu a porta sem avisar. Isso enfureceu a jovem, quem decidiu ignorá-lo.

            - Este quarto conta com sua aprovação, mulher? - perguntou ele depois de um prolongado silêncio.

            - O que faz por aqui, Rowland? - Perguntou ela com a voz cansada.

            - Vim ver como se encontrava - respondeu ele. - E ainda não me respondeste.

            - O que te importa se o quarto me agrada ou não? - perguntou Brigitte com amargura.

            - Sei que este quarto é melhor do que tinha em Louroux.

            - Você não sabe de nada! - resmungou a jovem. - Só o supõe porque me viu entrar ali.

            - Imagino que agora me dirá que aquele não era seu aposento em Louroux.

            - Não é minha intenção te dizer nada - replicou ela com pesar - Falar contigo é como conversar com um muro de pedra.

            Rowland ignorou o insulto.

            - Se esse não era seu aposento, Brigitte, então, por que entrou lá?

            - Porque sou obstinada. Ou acaso não o notaste?

            - Oh, claro que notei - assentiu ele entre risadas.

            - Não é divertido, Rowland - replicou com tom severo - Acha que sou servente devido a circunstâncias que eu mesma provoquei com minha obstinação.

            - O que quer dizer?

            - Não acreditará em nada do que eu diga, e estou cansada de sua incredulidade.

            Ele atravessou a habitação para deter-se diante de Brigitte. Então, elevou-lhe o queixo com um dedo, forçando-a a suportar seu penetrante olhar.

            - Admite então que já está na hora de mudar sua atitude? - perguntou com voz suave.

            - Você brinca comigo, Rowland, e isto não me agrada! - exclamou a jovem com rudeza. - Jamais pensaria em te seduzir, mesmo que esse fosse meu único recurso.

            Rowland pegou pelos ombros e a atraiu para si.

            - Me seduzir, joiazinha? Mas você já me seduziu. - Tomou o rosto entre as mãos e acariciou seus lábios com um terno beijo. Brigitte se surpreendeu ante a agradável sensação que experimentou nesse instante e transcorreram vários segundos antes que o detivesse, golpeando o peito, até que ele por fim se afastou.

            - Se tivesse um pouco de decência, não me procuraria mais para satisfazer seus prazeres lascivos! - exclamou a jovem.

            - Ah, Brigitte, você não cumpre com sua parte do jogo - disse Rowland com um suspiro de decepção.

            - Não é minha intenção participar de seu jogo! - replicou ela, indignada - Pode me considerar sua servente, mas jamais poderá negar que eu era inocente até que você me tocou. E nunca serei sua prostituta!

            - Apenas eu a tive, chérie, e só eu a terei. Isso não te converte em uma prostituta.

            - Para mim, sim!

            Rowland deixou escapar um profundo suspiro.

            - O que terei que fazer para que seja mais complacente?

            - É uma brincadeira, não? - Ela soltou uma risada irônica, e se separou dele para caminhar para a cama e logo, voltar-se com os braços cruzados e os olhos faiscavam de ira.

            - Primeiro, rouba-me minha inocência e logo diz que isso não tem importa. Humilha-me e obriga-me a te servir. Supõe que devo agradecê-lo por isso.

            - Droga! - grunhiu Rowland - Vim aqui para reparar os maus entendidos e só recebo reprimendas.

            - Nunca poderá reparar o dano que me fez... Nunca!

            - Então, eu perco meu tempo. - Rowland virou e se encaminhou em direção à porta com raiva. Lá, ele fez uma pausa para olhar Brigitte melancolicamente. - Vou te fazer um aviso, mulher. Eu posso fazer a vida agradável ou insuportável... Eu não me importo mais. Até que você modifique o seu comportamento ou não, porque eu estou ficando cansado de sua teimosia..

            Imediatamente, saiu e fechou a porta com violência. Brigitte se sentou na cama e um sentimento de melancolia começou a embriagá-la. Wolff se aproximou para lamber seu rosto.

            - O que vou fazer, Wolff? - perguntou com desgosto - Este homem quer que eu me renda alegremente e lhe sirva com um sorriso. Como poderia fazê-lo? - Seus olhos azuis se encheram de lágrimas. - Odeio-o! Devia te-lo deixado morrer! Por que não o fiz? Devemos fugir deste lugar, Wolff, o mais rápido possível!

 

            Ao se reunir com seu pai no pátio, bem cedo na manhã seguinte, Rowland continuava de mau humor. A apenas um dia de sua chegada a casa, já se via obrigado a demonstrar suas forças. Mas, essa não era a única razão que causava a expressão séria de seu rosto. Amélia também tinha colaborado.

            Na noite anterior, tinha escutado suaves golpes em sua porta, ele tinha acreditado que Brigitte tinha decidido desculpar-se e aceitar sua derrota. Aquela idéia provocou nele uma forte excitação e, quando abriu a porta, seu rosto deu marcadas amostras de pesar.

            - Sua desilusão é evidente, Rowland - comentou Amélia com um toque de amargura. - Esperava encontrar sua prostituta de cabelos loiros.

            - Vai embora, Amélia - ordenou ele, irado. - Aqui não foi convidada.

            - Já me convidará quando cansares da resistência dessa jovem - afirmou ela com convicção. - Apenas sua resistência o atrai, nada mais. - Deixou escapar um falso risinho - Você é bastante grosso. Mas eu não me importo. Entretanto, ela sim. Não é verdade?

            A expressão de Rowland se tornou ainda mais severa.

            - Será melhor que comece a procurar outro homem para esquentar sua cama em uma noite fria, Amélia.

            - Tudo isso por causa daquela prostituta? - resmungou a moça.

            - Ela não está em questão. Amélia, compartilhamos várias noites de prazer, mas quando parti daqui, nosso caso terminou. Sinto que o tenha acreditado de outro modo. - Rowland não estava disposto a discutir o tema de Brigitte com essa jovem.

            Amélia se virou para sair correndo da habitação. Ele fechou a porta com violência, furioso consigo mesmo por rechaçar o que tão generosamente lhe ofereciam. O certo era que ele desejava outra, uma mulher a quem só poderia possuir pela força, e detestava ver-se obrigado a forçá-la.

            Ao enfrentar seu pai em pleno amanhecer, ele não cessava de refletir sobre seu encontro com Amélia. Sua sombria expressão aborrecida não passou despercebida.

            - O que te preocupa, Rowland? - perguntou Luthor, ao mesmo tempo em que alistava suas armas - Acaso te abrandaste durante estes anos de ausência e teme não poder realizar uma boa demonstração?

            - Se alguém tem medo aqui, esse é você, velho - respondeu Rowland com brutalidade.

            - Já veremos. - O lorde soltou um breve risinho e logo prosseguiu com tom amável. - Soube das suas múltiplas aventuras. Sim, devem haver esgotado os incessantes esforços do rei Lothair por recuperar Lotharingia. Ele encolheu os ombros.

            - Não havia emoção. Uma batalha era ganha; outra, perdida. Toda batalha deve alcançar um fim algum dia, mas me pergunto se essa chegará a uma solução algum dia.

            - Então, dirigiu-te primeiro a Champagne e logo depois a Borgoña? - perguntou Luthor com indiferença.

            - Está muito bem informado - grunhiu Rowland.

            - Tenho muitos amigos que, sempre, enviavam-me notícias a respeito de seu paradeiro. Meus ensinos foram muito úteis na Provenza. Agradaria-me participar dessa batalha.

            - Ela se acabaria rapidamente.

            - Que rota tomou para atravessar o centro da França em sua volta a casa?

            Rowland se surpreendeu ante a curiosidade de seu pai, mas mesmo assim, respondeu.

            - Viajei pelo de Loira até o Berry. Ali, entreguei a mensagem que me tinha sido confiada e me entregaram à moça.

            - Então atravessou Blois e Maine em seu caminho direto para Montville?

            - Não, viaje pelo Loira desde Orleans até a confluência com o Rio Maine. Logo, tomei um caminho direto para o norte.

            - Passou por Angers então?

            Ele observou a repentina nota de alarme na voz de seu pai, e franziu o cenho.

            - Sim, que importância tem isso?

            - Não, não tem importância - respondeu Luthor, e logo adicionou: comecemos.

            Rowland encolheu os ombros ante ao insistente interrogatório de seu pai, e se preparou para o desafio. Luthor estava acostumado a sobressair nessas demonstrações de força, mas nos últimos anos anteriores a sua partida de Montville, ele tinha obtido melhorar seu rendimento, o desejo de derrotar o seu pai sempre tinha obcecado, mas os meios para alcançar a vitória se demoraram na sua chegada.

            Os primeiros sons metálicos das espadas atraíram outros até o pátio. Os ruídos da batalha despertaram Brigitte, quem correu apressada para a porta de seu quarto, temendo que Montville estivesse sendo atacado. A jovem soltou uma exclamação quando viu Rowland e seu pai em combate. Imediatamente, colocou o manto de lã e correu para o lugar da cena, sem sequer subir o capuz para cobrir sua larga cabeleira solta. Deteve-se junto a dois soldados para observar com horror: Luthor perseguia seu filho com um e outro golpe de sua pesada espada, forçando-o a retroceder. Rowland não podia fazer mais que repelir os ataques com sabre e escudo. Assim continuaram a luta até chegar ao extremo final do pátio e, então, por fim ele rechaçou com potência um golpe da espada de Luthor e começou seu próprio ataque, forçando a seu pai a retroceder.

            - Quanto tempo faz que começaram com isto? - sussurrou Brigitte a um dos soldados, sem afastar os olhos de Rowland.

            - Não muito - respondeu o homem.

            Mas a luta durou até tornar-se interminável. O sol saiu e subiu pelo céu, e a batalha continuou violenta, sem a rendição de nenhum dos dois combatentes. Brigitte se cansou só em observar. Conhecia o enorme peso de uma espada de um cavalheiro. Ela só podia levantar uma com ambas as mãos. A força física e a vontade desse prolongado combate demandava, não cessavam de admirá-la.

            O espetáculo logo se voltou monótono, já que os homens atravessavam o pátio uma e outra vez, alternativamente, atacando ou defendendo-se. De repente, o ritmo se alterou, como se os dois combatentes tivessem renovado suas reservas de energia. A espada de Rowland girou rapidamente para as costelas de Luthor, mas, em um segundo, trocou de direção e o atacou pela esquerda. O golpe tomou ao lorde despreparado. Não elevou o escudo com suficiente rapidez, e a arma de seu filho lhe rasgou os suspensórios da malha até internar-se no ombro.

            Ambos os homens se paralisaram. Brigitte supôs que a luta tinha finalizado. Então, para seu completo assombro, Luthor começou a rir. Que classe de gente era essa? No instante seguinte, o lorde despojou Rowland de sua espada e pressionou sua própria arma contra o peito dele.

            Rowland lançou seu escudo ao chão, admitindo em silêncio sua derrota, e Luthor baixou seu sabre.

            - Devia ter continuado depois de me ferir, Rowland, - sugeriu o lorde entre risadas - em lugar de se deter para ver a gravidade de seu inimigo.

            - Se fosse um inimigo real, velho, sem dúvida, teria continuado - respondeu ele.

            - Então, talvez, devamos considerar esse fato e declarar um empate. Sim... Por uma vez, não teremos vencedor. Está de acordo?

            Rowland assentiu, esboçando um grande sorriso de satisfação. Logo, assinalou o ombro de seu pai e sugeriu:

            - Deve cuidar dessa ferida.

            - Quase não sinto o arranhão - grunhiu Luthor. - Seus arranhões necessitarão dos cuidados de sua preciosa donzela.

            Ele se voltou para encontrar o olhar atento de Brigitte. A moça parecia um ser encantado com o cabelo caindo desalinhado sobre os ombros, como raios de ouro sob a luz do sol. Ela baixou timidamente os olhos e Rowland, hipnotizado, esqueceu seus doloridos músculos.

            Mas, a estrondosa gargalhada de seu pai atraiu sua atenção.

            - Devora a pobrezinha com os olhos, rapaz. - brincou Luthor - Não pode aguardar até que estejam sozinhos?

            Ele se ruborizou.

            - Hoje me orgulhaste, Rowland. - continuou Luthor - É um filho digno de respeito. Sim, foi um verdadeiro desafio com sua espada, e sei que sua ferida ainda não está completamente curada. Aprendeu bem todos meus ensinos e mais ainda.

            Rowland não soube o que dizer. Era a primeira vez que seu pai o elogiava e, além disso, tão profusamente. Por fortuna, Luthor não esperou resposta alguma. Virou-se e caminhou para a casa, deixando ele o observando atônito. Seu pai tinha mudado. Talvez, estava se tornando velho na verdade.

            Brigitte e Rowland ficaram sozinhos no pátio, uma vez que os outros partiram para a sala.

            - Sua ferida abriu - reclamou a jovem. Ele esboçou um sorriso conciliador.

            - Não foi intencionadamente. Ocupará-te de curá-la?

            - Suponho que não terei outra opção, já que não vejo ninguém se aproximar em sua ajuda - respondeu ela com um tom severo.

            - Por que está com raiva? - perguntou Rowland com incerteza.

            - Por ti! - respondeu Brigitte, levando-as mãos ao quadril para adotar uma pose transtornada. - E por essa tolice que acabo de presenciar!

            - Foi tão somente um esporte, cherie.

            - Isso não foi esporte. Foi uma loucura. - replicou com veemência - Poderiam ter se matado um no outro!

            - Não lutamos para matar, Brigitte - explicou com paciência. - Não foi mais que uma prova de força. Acaso os franceses não acostumam provar suas habilidades com a espada?

            - Bom, sim - respondeu ela com relutância - mas não tão enérgicamente. Vocês brigaram como se estivesse em jogo sua honra.

            Rowland deixou escapar um breve risinho.

            - De certa forma, assim foi. Nossas lutas são sempre energéticas aqui. Luthor insiste em que seus discípulos sejam os melhores. Meu pai é um perito guerreiro e para falar a verdade, nunca antes tinha durado tanto em um combate com ele.

            - Mas foi uma luta igual. Inclusive eu pude perceber. De fato, poderia havê-lo derrotado se não te tivesse detido.

            - Dá-te conta de que me está elogiando, cherie? - zombou ele com um sorriso.

            Brigitte se ruborizou com acanhamento.

            - Eu... eu...

            - Vamos, vamos - interrompeu-a com fingida severidade - Não arruine o único elogio que ouvi nesses lábios com uma réplica mordaz. Seja piedosa, ao menos, por esta vez.

            - Burla-te de mim, Rowland. E mudou o assunto segundo sua conveniência.

            - Era um assunto aborrecido - disse ele evasivamente. - E, além disso, já perdemos muito tempo aqui. Começo a acreditar que tenta me reter discutindo aqui contigo para me debilitar com uma perda de sangue.

            - Não é má idéia. - demarcou Brigitte - Mas venha. Minha habitação está perto.

            - Não, preciso trocar de roupa, e tenho ataduras em meu quarto. Você só me leve até ali.

            - Necessita ajuda para caminhar? - perguntou ela.

            Ele assentiu.

            - Sinto que não possa mover um só músculo. - grunhiu - Mas se você me dá a mão, cherie, seguir-te-ei aonde vá.

            - A mão, né? - repetiu a jovem com rudeza. Não sei se lhe quero dá-la.

            Rowland pegou a mão dela e começou a caminhar em direção à mansão.

            - Então, suponho que você deverá me seguir - disse, ao mesmo tempo em que a arrastava até a casa.

            O quarto de Rowland se encontrava em uma completa desordem, e os olhos de Brigitte observaram um armário aberto, as roupas espalhadas, a cama desfeita e o tapete espremido. Uma grossa capa de pó cobria a mesa de mármore e uma pequena cadeira e os muros estavam enegrecidos com fuligem.

            - Seriamente dorme aqui? - perguntou ela com expressão enojada.

            Ele sorriu.

            - A habitação esteve desocupada durante muitos anos e estava apressado esta manhã quando a deixei. Acredito que não te levará muito tempo ordená-la.

            - Eu? - exclamou ela, e se voltou para olhá-lo. Rowland deixou escapar um suspiro.

            - Por favor, Brigitte, não comece de novo com isso. É muito te pedir que satisfaça algumas de minhas necessidades?

            A jovem titubeou. Rowland pedia, não ordenava, e isso era suficiente, ao menos no momento.

            Uma vez finalizados as ataduras, Brigitte começou a arrumar a bagunça. Rowland sorriu. Encontrava-se a sós com a moça e Wolff não estava presente. Inclusive, ela parecia estar de bom humor.

            - Que cor acha que me cai bem, cherie?

            - O azul, sem dúvida, e possivelmente o castanho escuro. Acredito que o castanho escuro ficaria muito bem.

            - Então, não te importará me fazer uma ou duas túnicas novas, verdade? Tenho tão pouca roupa...

            - Não conseguirá me enganar com esse olhar inocente. Costurarei para ti, só para provar que sou capaz de fazê-lo. Mas não acha que por isso aceitarei ser sua pulseira.

            Uma vez selecionada uma velha túnica e finalizados as vendagens, a jovem se dispôs a partir. Mas ele a deteve.

            - Não quero que parta ainda.

            - Por quê? - perguntou ela, elevando a voz.

            - Brigitte, te tranqüilize e deixa já de tentar escapulir para a porta. Não vou violar-te. - Exalou um profundo suspiro?. Seriamente me tem tanto medo?

            - Sim - respondeu a jovem com franqueza. Ele franziu o cenho.

            - Fui muito rude contigo antes?

            Ao ver que ela não respondia, Rowland prosseguiu.

            - Considera-me um homem cruel, Brigitte?

            - Foste muito cruel. - voltou a responder a jovem com franqueza - Suas maneiras deixam muito que desejar, Rowland, e você se irrita com muita facilidade.

            - Você também. - observou ele. Brigitte sorriu.

            - Eu sei. Tenho muitos defeitos. Sou consciente deles. Mas estávamos discutindo os seus, os quais parece não perceber.

            Ele elevou uma mão para acariciar-lhe a bochecha.

            - Por ti, estou disposto a mudar.

            Ela ficou totalmente surpresa, e logo a jovem perguntou:

            - Por quê?

            - Para ver-te sorrir com mais freqüência.

            - Tenho poucas razões para sorrir, Rowland - disse ela sinceramente.

            - Prometo-te que logo as terá.

            Brigitte se afastou, e seus olhos começaram a obscurecer-se com indignação.

            - Está fazendo joginhos comigo?

            - Não, sou sincero - assegurou-lhe Rowland com doçura.

            Imediatamente, inclinou-se para beijá-la; primeiro brandamente para não atemorizá-la e logo, com maior intensidade. Ela estava seriamente aterrorizada e tratou de afastá-lo. Mas Rowland não a liberou, mas sim a rodeou com os braços para estreitá-la com força. Quando os seios da jovem pressionaram contra seu peito, ele se sentiu nas nuvens. Essa jovem mexia com seus sentidos, mas não cessava de rechaçá-lo. Com os lábios, acariciou-lhe a delicada curva do pescoço.

            - Ah, Brigitte, desejo-te - sussurrou ao ouvido.

            - Rowland, prometeu que não me violaria - balbuciou, sem fôlego, enquanto lutava para soltar-se.

            - Me deixe te amar. - murmurou ele com voz rouca - Deixa-me, Brigitte.

            Beijou-a antes que ela pudesse resistir, mas a moça por fim conseguiu liberar-se.

            - Rowland, está me machucando! - exclamou.

            Ele se inclinou para observá-la e pôde ver os machucados em seus delicados lábios.

            - Droga, Brigitte! Por que é tão frágil? - Queixou-se.

            - Não posso evitá-lo. - respondeu ela com voz trêmula - Fui criada com doçura. Minha pele é sensível e não está habituada a semelhante tratamento.

            Rowland elevou seu queixo e roçou brandamente os lábios com um dedo.

            - Não foi minha intenção te machucar - murmurou com ternura.

            - Eu sei - admitiu Brigitte - Mas está tentando de me forçar.

            Ele sorriu com certo remorso.

            - Não posso evitá-lo.

            O comentário enfureceu à moça.

            - Por acaso vai me culpar novamente? Desta vez, minhas roupas não estão molhadas nem aderidas a meu corpo.

            - Não.

            - Então, me diga o que fiz, para me assegurar de não voltar a fazê-lo jamais! - exclamou Brigitte com veemência.

            Rowland soltou uma estrondosa gargalhada.

            - Ah, joiazinha, é tão inocente! O mero fato de te ter perto me excita. Acaso não sabe o quão formosa és?

            - Deverá te manter afastado, então.

            - Oh, não, Brigitte - recusou-se ele, sacudindo a cabeça lentamente, mas obstinadamente - Você é o que todo homem deseja, mas só pertence a um: a mim. Jamais me afastarei de ti.

            - Eu não te pertenço, Rowland. - Ela lutou até soltar-se e retrocedeu uns poucos passos - E nunca te pertencerei.

            - Por que me odeia tanto? - bramou com desespero.

            - Você sabe por que.

            - Prometi que mudaria.

            - Disse isso, e imediatamente, tentou me tomar pela força. Não posso acreditar em sua palavra.

            - É muito severa ao me julgar, Brigitte. O que aconteceu foi apenas um instante de descontrole meu.

            - Quer dizer que devo viver com um constante temor então? Desejo sabê-lo agora, Rowland.

            Ele franziu o cenho. Não podia afirmar sinceramente que jamais voltaria a forçá-la, porque, embora não a queria dessa forma, sabia-se incapaz de controlar-se frente a essa moça. Mas, maldição, tampouco desejava terrorizá-la e se irritava que ela o pudesse temer.

            - E bem, Rowland?

            Ele se voltou, perturbado.

            - Não me pressione mulher! - bramou.

            Os olhos de Brigitte o buscaram suplicantes.

            - Devo saber a resposta.

            - Terei que pensá-lo. Agora, vamos - ordenou-lhe com rudeza - É hora de comer.

 

            A sala não se achava muito movimentada essa manhã, mas Luthor se encontrava ali e requereu a presença de Rowland a seu lado.

            Brigitte se dirigiu para uma imensa habitação próxima ao fogo, onde se armazenavam e preparavam os mantimentos. Guardavam-se ali todos os utensílios de cozinha: caldeirões de ferro e couro, vasilhas de sal, gavetas de pão. Os copos e jarras de prata se achavam empilhados sobre umas prateleiras e em uma imensa despensa, as marmitas de lata e ferro, e os pratos de madeira e chumbo. Os frascos de especiarias se encontravam alinhados sobre prateleiras e, na parte traseira da habitação, estavam acumulados os barris de grãos. Junto à entrada, uma gigantesca mesa se achava repleta de queijo e pão fresco, e a seu lado borbulhava um imenso caldeirão de cidra.

            Sem esperar ordens, Brigitte serviu uma enorme porção de pão e queijo para Rowland, mas, uma vez depositado o prato na sua frente, abandonou-o imediatamente para sentar-se junto ao fogo, onde a servidão recebia comida. Era comida de serventes, mas não se importou: sentia-se muito perturbada para se preocupar com o alimento.

            Logo que Rowland partiu da sala, Brigitte pediu a Goda um pouco de sabão e artigos de limpeza e se dirigiu apressada ao quarto ele. Passou ali o resto do dia, esfregando e arrumando. As roupas do normando eram escassas, mas seus armários estavam repletos de valiosos pertences: finas peças de cristal, jóias e ouro, tapeçarias de desenhos orientais e vários fardos de tecido, que a jovem se perguntou se planejaria converter-se em comerciante.

            Uma vez que Brigitte teve finalizado a tarefa, a habitação se transformou em um lugar atrativo e acolhedor. As peles que cobriam as janelas a protegiam do frio, de uma vez que permitiam o passo da luz. Sobre o chão, estendia-se um imenso tapete fabricado com retalhos de pele, muito confortáveis. A gigantesca cama tinha travesseiros de plumas, lençóis de linho e um grosso edredom.

            Brigitte não podia evitar se perguntar quanto tempo transcorreria antes que se visse forçada a dormir ali. Esse era o desejo de Rowland e ele não se preocupava em dissimulá-lo.

            Ao cair da tarde e aproximar-se a hora dele retornar aos aposentos, ela começou a sentir-se inquieta. Tinha sido mais fácil combater ao normando durante a viagem. Tinha aceito sua rudeza, refugiando-se em seus próprios arrebatamentos de ira. Mas Rowland se via diferente agora, cuidadoso de não machucá-la. Isso tinha conseguido derrubá-la, visto que já não sabia como comportar-se.

            Ao retornar à sala, Brigitte já tinha tomado uma decisão. Até sua natureza se encontrava contrária, mas isso não podia remediar-se. Preferia arriscar-se a morrer congelada durante a fuga, do que permanecer em Montville para satisfazer os caprichos de Rowland.

            Quando entrou no grande salão, a moça percebeu que ele ainda não se chegara. Imediatamente, serviu-se um prato de comida e se sentou sobre um banco vazio, esperando terminar sua refeição antes da chegada do normando. Serviria o mais rápido possível, para logo retirar-se da habitação. Se o que ele havia dito era verdade, que apenas a presença dela o tentava, então só lhe restaria uma noite de inquietação, já que estava disposta a partir pela manhã.

            Wolff se encontrava jogado junto à mesa do lorde. O mesmo Luthor lhe jogava partes de carne e outras sobras, mas quando o cão percebeu a presença de sua ama, levantou-se para aproximar-se dela e ela o recebeu com um sorriso. Outro cachorro se aproximou, atraído pelo aroma a comida, Wolf não demorou para o afugentar.

            Ela se inclinou para acariciar a cabeça de seu mascote.

            - Vejo que até o lorde se preocupa em mimar-te. Mas não te afeiçoe muito com este lugar, já que logo nos partiremos.

            O cão lhe lambeu a mão e ela franziu o cenho.

            - Desta vez, não me fará trocar de opinião, Wolff. - Muito tarde, percebeu Brigitte que se encontrava falando em voz alta, e elevou o olhar imediatamente, mas só Wolff se achava a seu lado. Olhou por volta do centro da sala para ver se Rowland tinha entrado durante esse instante de distração, mas ele ainda não se apresentou para jantar.

           Na mesa do lorde, encontrava-se sentado um arrumado cavalheiro, a quem a jovem nunca tinha visto antes. Os olhos de Brigitte se posaram sobre o jovem durante um instante, mas ele percebeu o olhar e lhe correspondeu com um sorriso nos lábios. Em seguida, levantou-se e se aproximo da moça.

            - Milady. - Realizou uma pronunciada reverência frente a Brigitte - Sou sir Gui de Falaise. Não me informaram que tínhamos convidados.

            A jovem conhecia de nome ao cavalheiro. Era o vassalo de Luthor que tinha sido enviado em busca de Rowland para levar o de retorno a casa.

            - Acaso ninguém te há dito quem sou, sir Gui? - perguntou ela com tom amável.

            - Acabo de retornar de uma ronda de vigilância, lady. - Explicou Gui, e logo sorriu. - Mas esta sala jamais se viu agraciada por tanta beleza. Foi um verdadeiro descuido de Luthor o não mencioná-la. - Seus olhos verdes cintilaram ao contemplar a jovem.

            - É muito amável - comentou Brigitte com acanhamento.

            - Me diga - prosseguiu ele com um sorriso -? qual é o nome de dama tão encantadora?

            A moça vacilou. Gui a tinha acreditado que era uma dama de um princípio. Por que haveria então de lhe ocultar a verdade?

            - Sou lady Brigitte de Louroux - respondeu calmamente.

            - Quem é seu senhor? Pode ser que eu o conheça.

            - O conde Arnulf de Berry é meu senhor agora - apressou-se a informar ela, como se ninguém pudesse ser capaz de duvidá-lo.

            - Vieste aqui com ele?

            - Não.

            - Oh, não me dirão que tem um marido que a trouxe até aqui - disse Gui com evidente decepção.

            - Não sou casada - respondeu Brigitte, e logo decidiu revelar toda a verdade - Sir Rowland me trouxe aqui contra minha vontade.

            O arrumado rosto do cavalheiro deu marcadas amostras de surpresa e confusão.

            - Rowland? Não compreendo.

            - É muito difícil de explicar, sir Gui - afirmou Brigitte um pouco inquieta.

            Ele se sentou a seu lado.

            - Me deve contar isso, se Rowland a raptou...

            - Rowland não é totalmente culpado - admitiu ela com relutância. - No passado, meu pai foi barão do Lauroux e logo meu irmão o sucedeu. - Contou ao Gui toda a história, e ele a escutou, absorto, até que ela teve terminado.

            - Mas Rowland não é tolo - protestou Gui - Sem dúvida, notou que você é uma dama, sem importar o que Druoda lhe tenha contado.

            Brigitte exalou um suspiro.

            - Aconteceram muitas coisas que o fizeram acreditar na palavra de Druoda em lugar da minha.

            - Alguém deve forçar Rowland a notar o engano que cometeu - afirmou Gui com veemência.

            - Tentei-o, sir Gui, seriamente, mas tudo foi inútil. Rowland me quer como serviçal, e acredito que prefere ignorar a verdade porquê esta não lhe convém. - Gui se surpreendeu porque o comentário era uma precisa descrição do temperamento de seu amigo.

            A gigantesca porta da sala se abriu para dar passo a Rowland. Brigitte se levantou imediatamente, já não muito segura de ter feito o correto. Mas, depois de tudo, que tinha feito ela a não ser contar a verdade? E sir Gui parecia acreditá-la. Ele poderia converter-se em seu aliado. - Rowland chegou - a moça informou a seu novo amigo.

            - Devo lhe servir a comida.

            Gui ficou de pé, indignado.

            - Não, lady Brigitte. Você não deve trabalhar como uma vulgar serva.

            - Oh, claro que sim - respondeu ela - Do contrário ele me baterá.

            O rosto do Gui avermelhou de ira, ao mesmo tempo que a moça se voltou e ela se afastou com pressa. Encheu um imenso prato com chouriços, salsichas e carne, e voltou o olhar bem a tempo para ver a afetuosa saudação de Rowland e a fria resposta de seu amigo.

            Brigitte levou a comida até Rowland, jogando breves olhadas por volta dos dois homens, que já tinham iniciado uma acalorada discussão.

            A disputa atraiu a atenção de muitos na sala, e a moça começou a sentir-se inquieta. Se tão somente pudesse ouvir eles que estavam dizendo! Mas não tinha o suficiente valor para aproximar-se.

            - Que ardil tramaste, mulher?

            Brigitte conteve a respiração e se voltou para Luthor.

            - Não sei a que se refere milord - respondeu-lhe com firmeza, mas sem atrever-se a lhe olhar.

            - Vi-te falando com meu vassalo, e agora ele está discutindo com meu filho. Esses dois são bons amigos, moça. Nunca antes vi discutir.

            - Eu não fiz nada que deva lamentar - replicou Brigitte obstinadamente, ao mesmo tempo em que depositava o prato sobre a mesa.

            Luthor se ergueu e ficou ao lado da moça.

            - Seja o que for, espero que não provoque um desafio. Não me agradaria perder um bom homem justo as vésperas de uma batalha.

            - Isso é tudo o que seu filho significa para você? Um bom homem que possa brigar por sua causa?

            - Estou falando de sir Gui, mulher, já que não há nenhuma dúvida de quem seria o vencedor. Se acreditasse que meu filho poderia estar em perigo por sua culpa, já a teria esfolado viva, dama ou não.

            Os olhos de Brigitte se dilataram. Luthor conhecia a verdade! Maldição! Esse homem sabia que ela era uma dama e, entretanto, não estava disposto a impedir que seu filho a humilhasse, até consciente da injustiça que isso implicava.

            - Isto é desprezível! - resmungou a jovem, transfigurada. Sabe que sou uma dama e, mesmo assim, permite que seu filho me trate como a uma serva.

            Luthor soltou um breve risinho.

            - Isso não tem importância para mim. Rowland afirma que você é uma servente e eu o aceito. Não estou disposto a contrariá-lo.

            - Mas ele está equivocado! - exclamou ao jovem.

            - Me entenda, mulher. Todo homem necessita um filho que o suceda depois de sua morte. Mas, além disso necessito que Rowland lute ao meu lado por meu feudo. Ele é motivo de orgulho para mim. Há alguns anos, estive a ponto de perdê-lo por uma tolice, e só esta batalha preparada contra mim o trouxe de volta. Agora que ele está aqui, não me arriscarei a perdê-lo uma vez mais.

            - Brigitte!

            A jovem se estremeceu ante a ensurdecedora chamada, e se voltou para ver o Rowland, que se aproximava com o rosto vermelho de ira. Brigitte sentiu que os joelhos tremiam.

            - Ah, mulher - disse Luthor quase com tristeza - Temo que se lamentará o que seja que afirma não ter feito.

            Ela lhe lançou um olhar fulminante.

            - E também permitirá que me bata, não é assim?

            - Você não é minha responsabilidade, moça - respondeu o ancião, afastando-se.

            - Não te refugie junto a meu pai, mulher - grunhiu Rowland. - Ele não te ajudará.

            Brigitte falou calmamente, tentando desesperadamente ocultar seu pânico.

            - Jamais esperei que o fizesse. Já me disse que aprova tudo o que faz.

            - Então foi buscar sua ajuda?

            - Não, Rowland - interveio Luthor - A moça não veio a mim. Eu lhe falei primeiro.

            - Não a defenda, pai - advertiu ele com frieza.

            O lorde vacilou apenas um instante e logo partiu, deixando os sozinhos jovens. Rowland tomou o braço da moça e ameaçou batê-la. Brigitte se aterrorizou, mas em lugar de afastar-se, jogou-se para ele e, tomando da túnica, estreitou seu corpo com força, até sentir o calor do firme e musculoso peito.

            - Se for me castigar, Rowland, utiliza um chicote - suplicou-lhe - Não poderia sobreviver a um golpe de seu punho, não quando está tão furioso. Me mataria.

            - Droga! - grunhiu ele, tratando de afastá-la. Mas Brigitte recusou soltá-lo.

            - Não! Está irado e não é consciente de sua própria força. Mataria-me com seus punhos. É isso o que quer?

            - Te afaste, Brigitte - ordenou Rowland com tom severo, embora sua ira já tinha começado a dissipar-se. Brigitte percebeu a mudança em sua voz; logo, percebeu também a alteração de seu corpo e viu um estranho brilho nos olhos. Um temor substituiu a outro no interior da jovem e se afastou imediatamente.

            - Não... não quis me jogar em seus braços dessa forma - desculpou-se com vacilação. Rowland deixou escapar um suspiro.

            - Vá a sua habitação. Por hoje já causaste suficientes problemas aqui.

            - Não foi minha intenção te causar dificuldades - murmurou ela com tom moderador.

            Mas, os olhos de Rowland se obscureceram e todo seu corpo voltou a ficar tenso.

            - Sai de minha vista, mulher, antes que mude de opinião!

            Brigitte chamou Wolff e partiu pela porta que conduzia ao estábulo. Uma vez fosse da sala, estremeceu. O que o tinha encolerizado dessa forma? Que lhe haveria dito Gui na disputa?

            Ao passar junto às cavalariças, percebeu que o cavalo de Rowland se encontrava em companhia de outros quatro que ela não recordava ter visto. Sem dúvida, esses cavalos pertenciam a sir Gui e a seus companheiros. Mas Luthor comandava a muitos homens. Perguntou-se onde guardariam os outros animais, mas decidiu não averiguá-lo. Só queria ter um cavalo disponível quando chegasse o momento de escapar.

            Cobriu-se com o manto e o capuz antes de atravessar o pátio para seu pequeno quarto. Não tinha nevado nesse dia, mas o ar estava gelado. Com esse clima, a fuga lhe resultaria difícil. Entretanto, já estava decidida, e nada a faria trocar de opinião.

            Sua habitação se achava fria e escura, e não haveria braseiro para enfraquecê-la essa noite. Sem brasas nem velas. Tão valiosos artigos nunca eram cedidos aos serventes. Brigitte não teve outra alternativa que deitar-se. Ao menos, sentiria-se mais cômoda na cama. Não tirou a roupa, já que não desejava perder o tempo em vestir-se quando chegasse a hora de escapar.

            Ouviu Wolff mover-se na escuridão e lhe falou com rudeza.

            - Fica quieto e dorme enquanto pode, porque não descansaremos nem um instante uma vez que não tenhamos escapado deste lugar. E isso ocorrerá muito em breve, meu rei.

 

            Várias horas mais tarde, depois de colocar outras duas túnicas para proteger-se contra o frio e tomar todas as mantas da habitação, Brigitte se dirigiu para o estábulo em companhia de Wolff. Tinha decidido não buscar comida, por temor a que alguém a visse rondando pela sala. Sem dúvida, seu mascote poderia prover mantimentos para ambos, e ela ainda conservava a pedra de luz que Rowland tinha lhe dado no bosque.

            Por sorte, os quatro cavalos estranhos se encontravam ainda no estábulo; desse modo, não se veria forçada a tomar o imenso cavalo do normando. Huno era muito grande para ela e, pior ainda, Rowland jamais cessaria de procurá-la se levava seu prezado animal, porque um cavalo de guerra era muito mais valioso que qualquer servo.

            Os outros quatro corcéis não eram tão gigantescos, e um deles, de cor castanha, não retrocedeu assustado, quando ela se aproximou para selá-lo. Com seus pertences sujeitas à arreios e as rédeas na mão, Brigitte caminhou cautelosamente para a escuridão do pátio. Então começaram seus verdadeiros temores. Sabia que a maioria das mansões contava com outro meio de acesso, além da entrada principal vigiada por guardas; mas encontrá-lo seria uma tarefa difícil, já que, sem dúvida, a tal porta deveria estar oculta no muro. Louroux tinha um túnel secreto para casos de sítio, mas só uns poucos na casa conheciam tal passadiço.

            - Vamos, Wolff - sussurrou a jovem - Devemos descobrir como sair desta fortaleza. Me ajude a encontrar uma porta, Wolff... uma porta. Mas sem fazer ruído.

            Iniciou a busca junto aos estabelecimentos dos serventes e se dirigiu sigilosa para a parte traseira da mansão. Ali encontrou os currais de animais e um gigantesco refúgio. Perguntou-se se guardariam aí o resto dos corcéis, mas decidiu não investigar. Continuou caminhando lentamente com o passar do muro, conduzindo consigo ao cavalo, ao mesmo tempo que Wolff os adiantava dando saltos.

            Uma vez que percorrem sem êxito a metade do círculo, a inquietação da jovem se intensificou. Começou então a considerar a possibilidade de atravessar a entrada dos guardas. Tinha que apressar-se. Se não se apresentava na mansão depois de umas poucas horas, Rowland seria informado de sua fuga e sairia em sua busca. Necessitava de cada instante da noite para afastar-se da casa tanto como o fosse possível e evitar assim que o normando pudesse seguir lhe o rastro.

            Wolff ladrou, e Brigitte conteve a respiração, temendo que os outros cachorros começassem a uivar e despertasse a toda a mansão. A moça correu nervosa para seu mascote e, então, respirou com alívio quando viu a porta. Esta se achava trancada, mas depois de várias sacudidas, a barra se levantou e a entrada se abriu facilmente.

            Foi então quando as esperanças de Brigitte voltaram a frustrar-se. No outro lado da porta, estendia-se um muro de pedra com pelo menos um metro de altura. Embora não fosse isso o pior: na base dessa parede rochosa, havia uma estreita passagem de terra, seguida de por uma íngreme ravina de uns cinco ou seis metros de comprimento, coberto com um grosso manto de neve. Como o cavalo conseguiria descer por esse declive sem romper o pescoço? Entretanto, teria que tentá-lo. Maldição! Não tinha mais saída!

            Sem soltar as rédeas do cavalo, a moça descendeu até o estreito caminho e logo, voltou-se para chamar Wolff. O cão olhou alternativamente a sua proprietária e à vasta saliência de terra, mas permaneceu imóvel.

            - Se eu pude fazê-lo, você também poderá - asseguro-lhe com um tom severo. - Só o cavalo terá dificuldades para conseguir.

            Wolff avançou com cautela até o precipício da entrada e, depois de vacilar apenas um instante, saltou. Aterrissou na metade da ravina, deslizou uns quantos metros e até recuperar novamente o equilíbrio, correu até a base do declive.

            Ao ver os repetidos tombos do cão, Brigitte se sentiu desolada. Que oportunidade de descender teria o cavalo? O salto poderia quebrar uma pata. Entretanto, necessitava do cavalo. Sem ele, jamais poderia chegar ao Ile de France.

            - Vamos, meu lindo cavalo - insistiu a jovem com doçura, ao mesmo tempo em que atirava das rédeas. Conseguiu arrastá-lo até o bordo da entrada, mas o animal soltou um bufo e retrocedeu. Vamos, te anime. Deslizará-te durante a maior parte do caminho. Mostre-nos o valor que os normandos infundem a um cavalo de guerra tão esplêndido como você.

            Porém, o animal recusou a mover-se, e ela não era o suficientemente forte para forçá-lo. Brigitte se deixou cair sobre a terra, desesperada. O que poderia fazer agora? Se partia a pé, Rowland não demoraria a encontrá-la.

            Então Wolff voltou a subir pela ravina para parar ao seu lado. O cão se via excitado, preparado para partir.

            Ela deixou escapar um suspiro.

            - É inútil, meu rei. O cavalo não se moverá. Talvez, ele é mais inteligente que eu e sabe que não conseguirá saltar. - Ficou de pé, mas afundou os ombros, desalentada. - Trataremos de enganar aos guardas. Não prevejo muito êxito ali, mas enfim, retornemos à fortaleza. Devia tentá-lo - concluiu com um suspiro.

            Wolff saltou pela entrada com facilidade. Um segundo mais tarde começou a mordiscar as patas traseiras do cavalo, e Brigitte soltou as rédeas e se afastou bem a tempo para permitir o avanço do cavalo. A moça observou sobressaltada ao animal deslizar-se pela ravina, seguido por Wolff. Ao chegar à base do declive, o cavalo se ergueu e, simplesmente, dispôs-se a aguardar.

            Brigitte não podia acreditar no que tinha visto. Em seguida, deslizou os dedos por debaixo da porta para fechá-la e se deixou cair na ravina. Ao chegar à base, rodeou a Wolff com os braços e o estreitou com todas suas forças.

            - É magnífico - sussurrou. - Absolutamente magnífico! Ah, meu rei, salvaste-me. Agora, nos afastemos deste lugar!

            Examinou brevemente ao cavalo e parou um instante para tranqüilizá-lo e adulá-lo antes de montá-lo e iniciar sua jornada. O cavalo era incrível, ela se sentia voar com o vento, alvoroçada, e uma vez longe da mansão, riu alegremente com alívio.

            Tinha conseguido! Rowland jamais poderia alcançá-la. Não importaria se a seguia durante todo o caminho até o Ile do France, visto que, uma vez ali, Brigitte contaria com o amparo do rei. Lothair a recordaria, ou se não a ela, então a seu pai. E se Rowland ousava impor seus direitos frente ao rei, se veria forçado a explicar suas razões. Não, nada poderia detê-la.

            O resto da noite pareceu voar e, antes que Brigitte o percebesse, o céu claro dando boas vindas ao amanhecer. O sol não saiu para derreter a neve, mas sim permaneceu oculto depois de uma espessa cortina de nuvens. Rodeou-a com cautela, sabendo que não podia confiar em nenhum normando.

            Seria mais fácil dirigir-se para o sul, dado que essa rota lhe era familiar. Porém, Paris e a corte do rei se encontravam para o este e chegaria ali muito antes se viajava sem desviar-se nessa direção, mesmo que não conhecesse o caminho.

            O sol já se elevou quando Brigitte parou em um denso bosque para permitir o descanso dos animais. Entretanto, a pausa foi muito breve. Tentou acender uma pequena fogueira para esquentar-se durante uns minutos, mas tudo os ramos que encontrou se achavam úmidos. Pegou algumas lenhas para levar-se consigo, esperando que o vento as secasse durante o caminho, e continuou a viagem.

            Deixaram o bosque e atravessaram uma extensa pradaria. Brigitte conseguiu evitar uma vasta zona pantanosa que diminuiria sua marcha, mas não teve sorte quando se topou com um imenso arvoredo que se estendia em ambos os lados da terra e para não contorná-lo teve que passar por dentro. Ao cair da noite, ainda não tinha chegado no outro extremo do bosque e a escuridão lhe impossibilitou de continuar a viagem, por isso se viu forçada a acampar.

            Desta vez, conseguiu acender uma pequena fogueira com os ramos que tinha carregado consigo. Uma vez que o fogo esteve preparado, enviou Wolff em busca de alimento e, depois de retirar os arreios do cavalo e cobri-lo com uma manta, sentou-se frente às chamas a descansar.

            Seus pensamentos se centraram ao redor da uma vívida imagem de Rowland. Era um homem de esplêndida figura, robusto e arrumado. Tudo poderia ter sido diferente se tivesse acreditado nela e a tivesse levado até o conde Arnulf. Então, Brigitte teria formado uma melhor opinião do normando, até poderia ter se sentida atraída por ele.

            Porém, as circunstâncias a tinham conduzido por um caminho diferente. O ódio era um sentimento novo para a moça e não lhe agradava experimentá-lo. Nunca antes tinha se sentido assim, nem sequer frente a Druoda. Detestava o que essa dama tinha lhe feito, mas não odiava à mulher. Por que Rowland despertava um sentimento tão intenso em seu interior?

            De repente, ouviu o som de algo que se aproximava e conteve a respiração, até que viu Wolff. O cão tinha apanhado uma excelente presa e Brigitte se apressou a preparar a comida, para logo recostar-se junto ao fogo. Dormiu quase instantaneamente, com Wolff deitado a seus pés. Entretanto, não demorou muito tempo antes que o rouco grunhido de seu mascote a despertasse. De repente, o animal se perdeu na escuridão do bosque e ela o perdeu de vista.

            Brigitte ordenou que retornasse, mas Wolff não a obedeceu. As baixas chamas do fogo lhe indicaram que tinha dormido aproximadamente uma hora. Permaneceu sentada com os braços ao redor dos joelhos e o olhar fixo na direção em que tinha desaparecia Wolff, perguntando-se que classe de besta poderia ter atraído a seu mascote.

            Havia ursos selvagens nesses bosques? Conforme acreditava, Wolff jamais enfrentou a um inimigo tão temível. Sua inquietação aumentou quando já não pôde ouvir os movimentos do cão na distância. Chamou-o uma e outra vez, mais e mais forte. Ficou de pé e começou a passear-se por todo o acampamento, até que parou abruptamente e se conscientizou. Sem dúvida, Wolff retornaria.

            Uma vez mais, sentou-se junto ao fogo e, para demonstrar quão ridículos tinham sido seus temores, o cão retornou saltando ao acampamento. Brigitte deixou escapar um suspiro de alívio, mas seus medos se reanimaram quando percebeu que Wolff não estava sozinho. Outro cachorro o seguia e, mais atrás, um cavalo.

            A moça reconheceu ao cavalo antes de identificar ao cavaleiro. Ali estava Rowland, sentado com o corpo rígido sobre seu prezado Huno, sem armadura, com uma grossa capa de pele que lhe cobria a túnica.

            Brigitte se sentiu muito surpreendida para falar, muito aturdida para mover-se, mesmo quando o homem desmontou com uma pesada corrente firmemente sujeitada na mão. A jovem observou imóvel ao normando, quem chamou Wolff a seu lado e esse crédulo besta obedeceu. O cão nem sequer tentou afastar-se Quando Rowland o acorrentou ao pescoço e, logo, prendeu a uma árvore longínqua. Tudo estava acontecendo ante seus olhos, mas Brigitte quase não podia acreditá-lo.

            O cachorro que tinha chegado com o normando encontrou os restos de carne e começou a devorá-los. A moça observou ao cão durante vários segundos e, de repente, todo se esclareceu. Foi assim que Rowland conseguiu encontrá-los! O cachorro os tinha rastreado!

            A jovem voltou o olhar para Rowland, que acabava de prender seu cão junto à árvore. Era evidente a razão pela qual ele tinha amarrado seu animal antes de pronunciar uma palavra; seus planos eram tão maléficos, que não podia permitir a liberdade de Wolff. Ante semelhante idéia, Brigitte correu para seu cavalo como se disso dependesse sua vida.

            Mas já era muito tarde. Seu manto foi sujeito com firmeza e, depois de deter-se, a moça se voltou novamente para o fogo. Caiu ao chão com força e se raspou as mãos. Wolff começou a grunhir, e Brigitte tratou de conter as lágrimas que já começavam a aparecer em seus olhos. Viu então as botas de Rowland a seu lado. Elevou o olhar e percebeu que as mãos do homem começavam a desabotoar seu cinturão. Elevou ainda mais o olhar e, ao observar a severa expressão no rosto do normando, empalideceu.

            Antes que Brigitte pudesse encontrar uma palavra de súplica, o cinturão de Rowland desceu sobre suas costas. A moça chorou e gritou. Então, ele repetiu o golpe, e ela voltou a gritar. Ao longe, ouviam-se os furiosos grunhidos de Wolff e suas terríveis resistências para liberar-se da corrente que o mantinha sujeito à árvore.

            Ela se encontrava preza em um novelo, aguardando por uma terceira chicotada. O açoite não chegou, mas ela se sentiu muito aterrorizada para elevar o olhar e não percebeu que Rowland já tinha jogado de lado o cinturão, para afastar-se com passo irado, irritado consigo mesmo e profundamente perturbado.

            Ele respirou profundamente várias vezes, tentando acalmar-se, e logo retornou, para ajoelhar-se junto à jovem.

            Tomou com ternura entre seus braços, e ela não resistiu: necessitava de consolo, embora proviesse desse homem. As lágrimas de Brigitte se secaram, mas Rowland continuou abraçando-a, acariciando lhe o cabelo com doçura. Ambos permaneceram em silencio durante um longo tempo. Por fim, a jovem se afastou e ele percebeu uma expressão acusadora nesses claros olhos azuis.

            - Maldição! - grunhiu ele, ao mesmo tempo em que se erguia para adotar uma pose ameaçadora - Acaso não se sente arrependida?

            - Arrependida? - repetiu ela com rudeza. - Depois do que acaba de me fazer?

            - Obrigou-me a um longo dia de caçada, mulher. Mereceria muito mais do que recebeu!

            - Que tenhas me encontrado é meu castigo, muito mais do que posso tolerar - afirmou Brigitte, e ficou de pé para olhá-lo com uma faísca de ira nos olhos - Mas isso não significa nada para ti. Seu desejo é me fazer sofrer!

            - Nunca quis te machucar! - exclamou ele com fúria - Você me forçou a fazê-lo!

            - Claro, milord - assentiu a jovem com idêntica fúria. - Eu sou a causa de todas minhas penas. Eu mesma me machuco. - Rowland se adiantou de modo ameaçador, mas ela permaneceu imóvel. - O que? Acaso vai me bater de novo, milord?

            - Atua com muita insolência para ser uma mulher que acabam de apanhar - afirmou ele com o cenho franzido.

            Os olhos de Brigitte se dilataram.

            - Bastardo normando! Se eu fosse um homem, mataria-te!

            Ele soltou uma repentina gargalhada.

            - Se fosse um homem, cherie, o rumo de meus pensamentos seria muito pecaminoso.

            A jovem afogou uma exclamação e se separou dele.

            - Sou mulher e, mesmo assim, seus pensamentos seguem sendo pecaminosos.

            Rowland esboçou um sorriso.

            - Não precisa se afastar de mim, Brigitte. Tive uma viagem muita longa e só o descanso me atrai neste momento.

            A moça o observou com cautela, enquanto ele caminhava para seu cavalo para procurar comida e algumas mantas. Logo retornou até o fogo e, depois de adicionar algumas lenhas, recostou-se junto ao calor das chamas.

            - Tem fome? - perguntou.

            Brigitte ficou pasma. Esse homem atuava como se nada tivesse acontecido.

            - Não - respondeu com tensão. - Já comi.

            - Ah, seu mascote te conseguiu o alimento. - Rowland se voltou para Wolff e franziu o cenho com ar pensativo.

            - Acho que se me desfizer dessa besta não tentaria escapar novamente? O que faria se não tivesse ao cão para te prover a comida?

            - Não! - exclamou Brigitte, deixando cair de joelhos junto ao homem - Wolff é tudo o que tenho.

            - Tem a mim - recordou-lhe com doçura.

            A moça sacudiu a cabeça.

            - Você só me causa dores e angústias. Só Wolff me brinda consolo. Amo a esse cão.

            - E me odeia?

            - Você me obriga a te odiar com seu comportamento. - Rowland deixou escapar um rouco grunhido.

            - Me prometa que não voltará a escapar.

            - Aceitaria a palavra de uma servente, milord? - perguntou ela com tom sarcástico.

            - Aceitaria sua palavra.

            Brigitte elevou o queixo com arrogância.

            - Poderia prometer, mas te mentiria. Jamais formulo promessas que não posso cumprir.

            - Droga! - exclamou o homem com a voz áspera, jogando um ramo ao fogo. - Então, não posso prometer que não voltarei a te bater, e pode ser que na próxima vez não conte com tanta roupa para te proteger.

            - Não poderia esperar menos de ti! - bramou Brigitte.

            Rowland observou o rosto irado da jovem e suspirou.

            - Durma Brigitte. Vejo que não há forma de ganhar contigo, nem de raciocinar tampouco.

            O homem se deitou junto ao fogo, mas a moça permaneceu ajoelhada, com o corpo tenso. Depois de vários instantes de silêncio, ela decidiu falar com voz suave.

            - Há algo que pode fazer, Rowland, para te assegurar de que permanecerei contigo.

            - Sei muito bem a que te refere - comentou ele com raiva - Mas não posso me manter afastado de ti.

            - Não é isso, Rowland.

            O homem se levantou imediatamente, visto que a moça tinha conseguido despertar sua curiosidade.

            - O que é então?

            - Envia uma mensagem ao conde Arnulf exigindo a prova de minhas afirmações, e eu me sentirei satisfeita de aguardar em Montville a resposta.

            - E quando chegar essa bendita resposta e prove que é uma mentirosa... então, o que acontecerá?

            - Ainda está tão seguro de que minto, Rowland? - perguntou a jovem com tom solene.

            Ele deixou escapar um grunhido.

            - Muito bem. Enviarei o mensageiro só para acabar com todos estes problemas. Mas não posso entender o que pretende ganhar com isso.

            Brigitte sorriu, decidida a fingir. Até que fosse enviada a mensagem, só precisava fazer que Rowland continuasse acreditando ser o dono da verdade.

            - É muito singelo. Se envias a mensagem, estará admitindo a possibilidade de que poderia te haver equivocado. Posso viver com tal aceitação.

            - Esta bem! - replicou o jovem, voltando-se para deitar. - Semelhante raciocínio só podia ser de uma mulher.

            A moça sentiu desejos de rir. Com que facilidade tinha aceito, ela o tinha pego! Satisfeita, deitou-se a uns quantos metros do homem e se dispôs a dormir.

 

            Rowland despertou com o amanhecer. Permaneceu estendido no chão, observando com ar pensativo o pálido céu que aparecia por entre as taças das árvores. Brigitte dormia pacificamente, sem perceber a tremenda confusão que tinha provocado na mente do homem. Quanta fúria tinha sentido no dia anterior, nem tanto porque o tivesse abandonado, mas sim pelo risco que tinha se exposto ao partir sozinha. A infeliz poderia ter sido vítima de ladrões ou assassinos. Também o enfurecia que Brigitte tivesse tentado escapar dele, e muito mais o irritava o fato de que toda Montville se inteirou. Que estranho malefício tinha lhe jogado essa mulher? De repente, só queria dominá-la e, em seguida, sentia desejos de protegê-la. Não conseguia compreender os sentimentos que essa jovem tinha despertado em seu interior e pela primeira vez em sua vida, sentia-se aturdido. Inclusive, tinha chegado a aceitar o ridículo pedido da moça.

            Rowland franziu o cenho, pensando na mensagem que tinha aceito enviar. Ou a jovem pertencia à nobreza, ou esse conde Arnulf guardava um profundo carinho e ela estava segura de contar com a ajuda do homem. De todos os modos, Rowland supunha que ia perde-la, e isso o fazia sentir-se desolado. Mesmo tendo-a conhecido a pouco, sabia que não desejava perder a essa moça.

            - Diabo! Maldição! - murmurou, e se voltou para enfrentar um novo dia.

            Não era muito tarde Quando Rowland e Brigitte atravessaram o portão da entrada para o pátio de Montville. A moça se sentiu confusa ao perceber a fortaleza pouco depois do crepúsculo, mesmo depois de ter cavalgado todo um dia e a metade de uma noite para afastar-se, o caminho de volta pareceu tão curto. Decerto, se desviara de algum modo, perdendo assim um tempo valioso. A jovem exalou um profundo suspiro. Já era muito tarde para lamentar-se.

            Ambos acabavam de desmontar e se encontravam conduzindo os cavalos para o estábulo, quando Brigitte perguntou:

            - Não terá esquecido a mensagem que aceitou enviar, verdade?

            - Não o esqueci - murmurou Rowland. Então, parou e, depois de retirar lhe o capuz da cabeça, tirou ambas as tranças e a atraiu para si.

            - Tampouco esqueci que podia me haver pedido que jamais voltasse a te tocar, mas não o fez.

            - Você já me tinha advertido que nunca aceitaria tal pedido - recordou-o com aspereza.

            - Mas nem sequer tentou negociar, cherie - A fez notar um brilho pícaro em seus olhos.

            - Obtive o que desejava, Rowland, e agora só me resta te tolerar durante umas poucas semanas. Sinto-me aliviada ao saber que logo acabará meus sofrimentos.

            - Seus sofrimentos, mulher?

            Os lábios do homem roçaram apenas na boca da jovem; logo, acariciaram sua bochecha e, por último, deslizaram-se para a vulnerável zona de seu delicado pescoço. Ao sentir que um calafrio percorria sua coluna, Brigitte gemeu. Então, ele se afastou e esboçou um diabólico sorriso.

            - Apenas umas poucas semanas a mais? Então, terei que me aproveitar, não acha?

            Sem aguardar uma resposta, Rowland se afastou pela passagem do estábulo que conduzia à sala principal da mansão. Brigitte o seguiu com o olhar, aturdida, perguntando-se por que tinha permitido que a beijasse. Que diabos estava acontecendo com ela? Esfregou-se as mãos energicamente e se apressou a seguir a Rowland, sacudindo a cabeça. Era a doçura no normando, disse-se, essa doçura que a tomava por surpresa.

            Já tinha passado a hora do jantar, mas a imensa sala ainda não se achava vazia. Vários homens se encontravam bebendo nas mesas mais baixas. Junto à fogueira mais pequena, Luthor jogava jogo de dados com sir Robert e outro cavalheiro, enquanto que, a seu lado, Hedda, Ilse e suas donzelas pareciam muito atarefadas com seus bordados. Hedda era uma mulher alta, ossuda, cujo cabelo castanho se tornou cinza com o passado do tempo; Ilse era idêntica a sua mãe, só que com uns trinta anos menos. Os serventes continuavam ocupados na área da cozinha. Um moço se encarregava de manter os cães afastados da carne assada, enquanto outro se dedicava a abanar a fumaça para um buraco situado sobre o fosso do fogo.

            Rowland aguardou Brigitte antes de entrar na sala.

            - Consegue um pouco de comida para ambos e te reúna comigo na mesa. - Elevou um dedo antes que a moça pudesse protestar.

            - Insisto. Resistiremos juntos a tormenta.

            A mulher parou abruptamente.

            - Que tormenta?

            Rowland sorriu ante a repentina expressão de alarme que atravessou o rosto da jovem.

            - Cometeu um grave crime e minha madrasta estava muito alterada. Estava furiosa quando saí em sua busca e, sem dúvida, deve ter surtado todo o dia sobre o terrível exemplo que é frente aos outros serventes. Nunca antes um servo tinha tentado escapar de Montville.

            Brigitte empalideceu.

            - O que... o que fará ela comigo?

            - Hedda? Absolutamente nada. Não esqueça que eu sou seu amo, o que significa que só a mim deverá responder. Desta vez, agradecerá estar sob meu amparo. - sem lhe dar oportunidade de responder, colocou uma mão sobre as costas da moça e a empurrou para o fogo. - Vamos, estou esfomeado.

            A jovem se apressou a procurar a comida. A cozinheira protestou pela tardança, visto que já tinha começado a cortar os restos de carne para preparar bolos. Mesmo assim, serviu dois grandes pratos de comida, enquanto os outros serventes observavam atentamente a Brigitte.

            A moça se sentiu cada vez mais inquieta. Tinha acreditado superar a pior parte, mas, pelo visto, não era assim. Começou a caminhar para a mesa do lorde, carregando com cuidado os dois pratos e uma jarra de cerveja, e percebeu que Hedda e Luthor se uniram a Rowland. A moça diminuiu o passo, mas não pôde evitar ouvir a maior parte da conversação.

            - E bem? - perguntou Hedda. - Fará que se dispa e a açoitará no pátio? O horrível exemplo que deu essa prostituta deve ser corrigido.

            - Isso não te concerne, mulher - interpôs Luthor.

            - Claro que me concerne - bramou a dama, indignada - Seu filho trouxe essa prostituta francesa, e a arrogância dessa jovenzinha já começou a afetar a meus serventes. Agora, ela escapa e, em cima, rouba para fazê-lo! Exijo...

            Brigitte, aturdida, deixou cair os pratos sobre a mesa derramando a cerveja sobre a larga mesa de madeira. Imediatamente, a moça voltou seus atemorizados alhos azuis para Rowland.

            - Eu não roubei.

            - Dificilmente poderá afirmar que o cavalo era teu, mulher - disse com tom alegre, ao parecer, divertido.

            A jovem sentiu que lhe tremiam os joelhos e Rowland se apressou para tomar um dos seus braços fazendo-a sentar se na cadeira ao lado da sua. Do que estava sendo acusada? Já poderia ser merecedora de um severo castigo só por roubar comida. Mas a um cavalo? Um cavalo era o elemento vital de um cavalheiro, o mais prezado dos animais, muito mais valioso que um servente, mais valioso inclusive que a terra. Todo servo livre estaria encantado de vender sua granja em troca de um cavalo, porque o cavalo era sinal de riqueza, capaz de colocar a um homem por cima da classe camponesa. Roubar um cavalo era um crime tão grave como o assassinato, e que um servente ousasse cometer semelhante delito era decididamente inconcebível.

            A expressão divertida de Rowland se desvaneceu ante o absoluto terror refletido no rosto da jovem.

            - Vamos, o que parece feito está - tranqüilizou-a.

           - Não... não foi minha intenção roubar - murmurou Brigitte com voz trêmula. - Jamais acreditei... quero dizer... não pensei que estava roubando quando tomei o cavalo... Nunca antes tinha tido que pedir permissão para montar um cavalo e... Rowland, me ajude!

            Brigitte começou a chorar, e ele se enfureceu consigo mesmo por permitir que seus temores aumentassem sem necessidade.

            - Brigitte, se acalme. Não tem por que temer. Roubou um cavalo, mas pertencia a sir Gui e ele não te causará problemas.

            - Mas...

            - Não - disse Rowland com doçura. - Falei com o Gui antes de sair em sua busca. Parecia mais preocupado por ti que por seu cavalo. Ele não exigirá o castigo.

            - Sério?

            - Sim, sério.

            - Isto foi que o mais o entreve - interpôs Hedda com seus pálidos olhos cinzas fixos no Brigitte. - Mas, sem dúvida, carente de sentido. Pode que Gui não exija o castigo, mas eu certamente o pedirei.

            - Quem é você para exigir algo de mim? - perguntou Rowland com tom ameaçador.

            O rosto cor oliva da Hedda adquiriu um intenso tom arroxeado.

            - Você apóia essa rameira! - acusou-lhe. - Por que razão? Acaso te enfeitiçou?

            - Eu não a apóio - respondeu o homem. - Já a castiguei.

            - Se for isso verdade, então, não foi suficiente! - exclamou a dama com rudeza. - A moça caminha facilmente, sem amostras de dor!

            Rowland ficou de pé com um amedrontador brilho nos olhos.

            - Acaso duvida de minha palavra, milady? Deseja sentir o mesmo que Brigitte? - levou as mãos para o cinturão, e Hedda, pálida, voltou o olhar para o Luthor. O lorde não olhou a sua esposa, continuou observando a seu filho.

            - Luthor!

            - Não, recorra a mim, mulher. Você o provocou, mesmo advertindo-te que não era teu assunto. Nunca sabe quando deve deixar em paz às pessoas.

            Assim que Rowland avançou um passo para Hedda, a mulher se levantou de um salto e saiu correndo da sala. Luthor deixou escapar um breve risinho.

            - Ah, agrada-me ver a cobra da minha mulher se acovardar. - levantou-se para aplaudir as costas de seu filho e depois de tomar o assento novamente, ordenou outra jarra de cerveja. - passaram muitos anos da última vez que essa dama sentiu meus punhos... muitos.

            - Talvez, com minha ausência, Hedda se tornou menos amarga - sugeriu Rowland.

            Luthor se encolheu os ombros.

            - Ou eu simplesmente a ignorei.

            O jovem evitou formular um comentário e se dispôs a devorar a comida. Com uma nova jarra de cerveja na mão, Luthor se reclinou sobre o respaldo para observar atentamente a Brigitte.

            - Vejo que quase não provaste a comida, mulher - comentou. - Acaso não te agrada a comida?

            - Temo-me que perdi o apetite, milord - respondeu a jovem com tom submisso.

            - Isso não está bem - disse o lorde com um sorriso - uma moça tão frágil como você necessitará muita comida, para suportar a meu filho.

            - Nisso tem razão, milord.

            Rowland lançou um olhar reprovador a seu pai, e isso deleitou ao ancião. Depois de beber um abundante gole, o lorde se inclinou para a mesa e perguntou com tom sério.

            - Sabe meu galante vassalo que retornaste, Rowland?

            O homem não afastou o olhar do prato.

            - Deixarei que você o informe.

            Luthor franziu o cenho.

            - A moça atrasou o encontro com sua fuga. Tiveste tempo de reconsiderar o assunto?

            - Isso não me corresponde. Acaso ele o reconsiderou?

            - Não - admitiu o ancião com relutância - Não compreendo a teima desse jovem.

            - É muito firme em suas crenças, isso é tudo - explicou Rowland - Não esperaria menos dele.

            - Mas ele sempre te idolatrou. Jamais poderia acreditar que chegariam a isto.

            - O que pretende que eu fizesse? - perguntou o jovem com tom irritado?. Ignorar um desafio?

            - Não, claro que não. Mas se conversando pudessem resolver o assunto...

            - Não acredito possível, Luthor.

            - Embora só seja para evitar um derramamento de sangue?

            - Deixa-o como está! - bramou Rowland - Não me agrada isto mais que a ti, mas já tentei raciocinar e ele não está disposto a mudar sua posição.

            - E você?

            - Tampouco. - Luthor sacudiu a cabeça.

            - Ela poderia pôr fim a tudo isto, e sabe.

            - Eu não pedirei.

            Brigitte já não pôde conter-se.

            - Quem é "ela"?

            - Você, mulher - respondeu o lorde.

            Rowland deixou cair ambos os punhos sobre a mesa.

            - Tinha que discutir este assunto em sua presença, não é assim? - acusou a seu pai com tom severo, lhe jogando um olhar fulminante.

            - Quer dizer que ela não sabe nada disto? - perguntou Luthor, surpreso.

            - Não.

            - Pois então, acredito que deveria sabê-lo - prosseguiu o ancião com chateio.

            - Saber o que? - perguntou a jovem, mas ambos os homens a ignoraram.

            - Não insista, Luthor, porque esta moça é mais obstinada que nós dois juntos.

            O lorde depositou a jarra sobre a mesa, levantando-se repentinamente e partiu. Era óbvio que se sentia muito irritado.

            Uma vez a sós com o Rowland, Brigitte esperou uma explicação, mas ele permaneceu calado, sem sequer olhá-la. Finalmente, ela decidiu lhe incitar.

            - E bem?

            - Termina já sua comida, Brigitte, e logo te acompanharei até seu quarto - ordenou com aborrecimento.

            - Rowland! Quem te desafiou?

            Imediatamente, afundou-se em sua cadeira ante o furioso olhar que lhe lançou o homem.

            - Se já terminaste que comer, partiremos agora.

 

            Rowland tomou Brigitte pelo braço e a arrastou para fora da sala e através do pátio. Ao chegar ao alojamento, abriu a porta com violência e empurrou à moça para o interior. Ele a seguiu e, ao entrar, percebeu a presença do braseiro e notou que os pertences da jovem tinham sido levados do estábulo. A habitação estava iluminada. Os abajures de azeite encostadas ao muro se achavam acessas.

            - Alguém se ocupou de suas necessidades - notou o homem com aborrecimento. - Não fará bem a alma desolada de Hedda se inteira de que um de seus serventes está atendendo a minha serva.

            - Eu não pedi que me servissem.

            - Não precisa fazê-lo - comentou ele com frieza - Suas maneiras intimidam aos criados menos afortunados.

            - Afortunada, eu?

            - Sim, é óbvio - afirmou Rowland com tom severo - Não lhe doem os pés nem as costas ao final do dia, e suas mãos não sangram, ao menos, uma vez por semana. Não serve a muitos, só a um. Leva a vida de uma lady.

            Voltou-se, disposto a partir, mas Brigitte se adiantou e fechou a porta com violência antes que ele pudesse alcançá-la.

            - Espera, Rowland. - Olhou-o, com as mãos apoiadas sobre a porta para impedir a saída. - Ainda não me disse quem te desafiou. Tenho que saber! Preciso saber!

            - Para que? - perguntou ele com o cenho franzido - Para poder se culpar?

            - Por favor, Rowland! - suplicou-lhe a moça - Foi sir Gui?

            - Claro que foi sir Gui! - bramou ele. - Mas você sabia dos problemas que me causaria.

            - Juro que jamais quis causar nenhum problema - afirmou ela com veemência. - Só lhe contei a verdade. E não fui eu quem procurou sir Gui. Ele veio a mim, pensando que eu era uma convidada, e me chamou lady, Rowland, sem sequer me conhecer.

            - E, certamente, você se aproveitou desse engano. Os olhos dele cintilaram. - E teve que dizer que te trouxe aqui contra sua vontade. Fez-me ficar como um malvado, Brigitte!

            - Você é um malvado!

            Ele se aproximou da porta, mas a moça o sujeitou o braço com ambas as mãos.

            - Rowland! Se me houvesse dito isso antes poderia tê-lo tranqüilizado.

            - O que quer dizer sobre isso? - perguntou ele, cerrando os olhos.

            - Só sei que não haverá briga - declarou a jovem, elevando o queixo com atitude altiva.

            Rowland não pôde evitar sorrir ante sua arrogância.

            - E por que não, se me permite perguntar?

            - Porque eu não o permitirei.

            - Você... - Ele a observou fixamente com expressão incrédula.

            - O que te resulta tão surpreendente? - perguntou Brigitte.

            - Você não o permitirá?

            - Falo sério, Rowland. Eu não serei a causa de um derramamento de sangue!

            Rowland esboçou um leve sorriso.

            - Que pena que não o pensasse antes - disse com voz suave.

            - Ainda não é muito tarde.

           - Oh, sim, claro que sim, joiazinha. - Roçou-lhe a bochecha. - Queria um protetor e o encontraste em sir Gui. Acredita em ti e se sente moralmente obrigado a lutar par sua causa.

            Brigitte se alarmou.

            - Mas eu não quero que lute! Direi que não o faça!

            - Ah se fosse tão singelo, Brigitte. Mas Gui se sentiu afrontado pelo que acredita que fiz a uma legítima dama. Ele é um cavalheiro de coração gentil, o homem mais galante que jamais conheci. Não ficará satisfeito até não brigar por sua honra.

            - Mas me escutará.

            - Ah, Brigitte, é tão ingênua como formosa. - Rowland deixou escapar um suspiro.

            - Mas seu pai disse que só eu poderia deter a batalha - recordou-lhe. - Me diga o que devo fazer.

            - Por acaso não adivinha? - murmurou Rowland calmamente.

            Levou-lhe um instante para compreender, e então os claros olhos azuis de Brigitte se dilataram.

            - Isso não! - exclamou, voltando-se abruptamente.

            - É a única forma, Brigitte. Se não admitir que mentiu, Gui lutará por sua honra, e talvez eu me veja obrigado a matar a meu melhor amigo.

            - Mas eu não menti!

            - Não pode engolir seu orgulho só por uma vez?

            - Fará diferença por acaso?

            - Já o tenho feito. Estou-te suplicando este favor, ainda quando tinha decidido te manter à margem de tudo isto. Criei-me com o Gui e me habituei a lhe proteger contra todos aqueles que se aproveitavam dele devido a sua escassa altura. Aprendi a amá-lo como o irmão que nunca tive, e não desejo lutar contra ele.

            Brigitte se ergueu e voltou a olhar ao homem. Sentia-se desolada, mas não tinha alternativa.

            - Muito bem - aceitou, resignada. - Farei o que me pede.

            - Não bastará com que só admita que mentiu - advertiu Rowland. - Deverá convencê-lo.

            - Eu o convencerei. Agora, me leve a ele - disse desconsoladamente.

            - Trarei-o aqui.

            A jovem se deixou cair sobre a cama, disposta a aguardar. Sentia-se aturdida, angustiada. Não ficava mais alternativa que mentir. Não podia permitir que se Rowland ferisse ou, menos ainda, matasse a seu melhor amigo.

            Apressou-se a tirar o manto e duas de suas túnicas, já que não tinha retornado a sua habitação depois de sua malograda fuga. Só um instante depois, a porta se abriu para dar passo a Rowland, seguido por um confundido sir Gui. Brigitte se voltou, entrelaçando as mãos para dissimular seu tremor.

            Gui lhe aproximou e realizou uma reverência com uma expressão solene em seus olhos cinzas.

            - Rowland disse que desejava vê-me.

            - Urgentemente - assentiu ela em voz baixa, e logo se voltou para Rowland. - Poderia nos deixar? Desejo falar a sós com sir Gui.

            - Não - respondeu Rowland, ao mesmo tempo em que fechava a porta. - Ficarei.

            Brigitte o lançou um olhar fulminante, mas não se arriscou a iniciar uma disputa. Os serventes jamais ousavam contradizer a seus amos e, por esta vez, tinha que ser devidamente servil.

            Voltou-se uma vez mais para o Gui e esboçou um tímido sorriso.

            - Deseja tomar assento? - convidou-lhe, ao mesmo tempo em que se sentava na cama. - Infelizmente não posso te oferecer uma cadeira.

            Gui se sentou e jogou um olhar para a habitação.

            - Você dorme neste chiqueiro? - perguntou e imediatamente, lançou um olhar severo a Rowland antes que a moça pudesse responder.

            - É um quarto bastante confortável - apressou-se a explicar Brigitte. - Não... não estou habituada a nada mais.

            - Com segurança...

            - Sir Gui, me escute - interrompeu-lhe ela e se parou junto ao jovem cavalheiro, embora sem atrever-se a enfrentar seu olhar. - Temo que cometi uma grave injustiça ao representar minhas infantis fantasias.

            - Que fantasias?

            - O outro dia, na sala, quando falamos... tudo o que disse foi mentira. Freqüentemente, finjo ser uma dama, em especial, com homens que não me conhecem. Sinto que tenha tomado a sério minhas palavras. Meu jogo sempre teve resultado inofensivo.

            Gui franziu o cenho.

            - Vejo que Rowland te obrigou a fazer isto, lady Brigitte.

            - Sou simplesmente Brigitte, e está equivocado, sir Gui - assegurou com firmeza. - Por favor, perdoa meu descaramento, mas agora não posso permitir que continue este mal entendido. Sempre fui uma serva. Senti-me muito perturbada quando soube que tinha desafiado a meu lorde devido a minha estúpida farsa. Supliquei-lhe que te trouxesse aqui para poder te revelar a verdade antes que fosse muito tarde. Não devem lutar por minha causa. Não fui sincera contigo.

            Uma expressão de dúvida se refletiu nos olhos do Gui.

            - Agrada-me que se preocupe tanto por mim. É realmente muito amável, milady.

            - Acaso não acredita em mim - perguntou a jovem, surpreendida.

            - Absolutamente - respondeu ele calmamente.

            - Então, é um besta!

            - Vê! - Gui esboçou um sorriso triunfal. - Uma mera servente jamais ousaria me falar desse modo.

            Brigitte se levantou rapidamente e se voltou para Rowland, mas ele a observou sem lhe oferecer ajuda. A moça respirou fundo. Devia encontrar uma forma de convencer ao jovem cavalheiro; do contrário, a batalha culminaria, sem dúvida, com sua morte. De repente, percebeu que Rowland a devorava com os olhos e teve um instante de inspiração.

            Voltou-se uma vez mais para o Gui com as mãos sobre os quadris e com uma expressão altiva nos olhos.

            - Nunca disse que era uma mera servente! Me olhe - ordenou-lhe com arrogância. - Acredita que um homem poderia me ignorar por muito tempo, fosse ou não lorde?

            - P... perdão? - balbuciou Gui.

           - Eu sou atrevida às vezes, é porque meu último amo me tratava como uma igual. Eu era a amante do barão, sir Gui. - Sorriu com desenvoltura. - Era um homem ancião e solitário, e me mimou estupendamente.

            - Mas disse que o barão de Louroux era seu pai - exclamou o cavalheiro.

            Brigitte titubeou. Sentia-se muito ferida, mas, o que outra alternativa ficava?

            - Ele foi como um pai para mim... exceto na cama. Pergunte a sir Rowland se não é verdade. Ele te dirá que eu não era virgem quando veio para mim na primeira vez. - O comentário implicava que ela era agora amante de Rowland, mas o normando não falou, por isso Brigitte decidiu prosseguir. - Vê, ele não o nega. Retirará agora seu ridículo desafio?

            Gui se sentiu ferido em seu orgulho.

            - Isso soa tão ridículo.

            "Santo Deus!", pensou Brigitte,"acaso ela não tinha falado suficiente?

            - Então, me permita adicionar algo. O homem que é agora meu lorde reúne todas as qualidades que eu poderia desejar em um amo. É forte, um excelente amante e estou muito satisfeita com ele.

            Gui ficou de pé subitamente.

            - Então, por que tentou escapar?

            Perguntou a jovem despreparada. Vacilou um instante, para logo responder.

            - Por favor, sir Gui, não me obrigue a dizê-lo em sua presença.

            - Insisto.

            Brigitte espremeu as mãos e baixou o olhar para o chão, fingindo uma grande confusão. Logo, inclinou-se para o jovem cavalheiro e lhe falou com tom de sussurro, de modo que Rowland não pudesse ouvi-la.

            - Não sabia da existência de Amélia quando ele me trouxe aqui. Ao me inteirar de que ela tinha sido seu amante e ainda o desejava, temi que me deixasse de lado. Não pude tolerá-lo e parti.

            - E por que não quer que ele saiba? - pergunto Gui com cepticismo.

            - Acaso não percebe que o amo? Já admiti mais do que devia. Onde está o desafio de averiguar meus sentimentos? Cansará de mim e sairá em busca de outra.

            Gui a observou com olhar inquisidor durante um longo instante. Sua falta de crença já começava a ferver os nervos da jovem. Estava exausta e sentia desejos de gritar que tudo o que disse eram mentiras. Tinha cometido uma terrível injustiça consigo mesma ao representar essa espantosa farsa. Seria isso suficiente para salvar a sir Gui da morte?

            O cavalheiro, por fim, afastou-se, e a moça se voltou aliviada. Ao parecer, ele não a forçaria a continuar. Mas, o que pensaria agora dela? Tinha tentado de tudo exceto desatar-se em lágrimas. Pelo visto, a constante humilhação se converteu em parte de sua vida.

            - Já não teria sentido nos enfrentar no campo de honra, Rowland. Visto que me trouxe aqui para escutar esta história, presumo que aceitará minhas desculpas.

            Brigitte não se voltou para ver Rowland assentir. Sentia-se muito mortificada para olhar esses dois homens. Só desejava estar sozinha e conteve a respiração, aguardando que a porta se abrisse para logo voltar, a fechar-se.

            Então, jogou-se sobre a cama e começou a chorar suas tristezas. Que mentiras horríveis! Jamais poderia perdoar se por ter caluniado tão cruelmente a seu pai, mesmo que, dessa forma, tivesse salvado a vida de um jovem cavalheiro. E todas essas desatinadas palavras que havia dito a respeito de Rowland! De onde tinha tirado tantas mentiras? Por que lhe tinham surto tão espontaneamente?

            - Foi muito doloroso, Brigitte?

            A jovem se sobressaltou e se voltou para encontrar Rowland de pé, junto a sua cama.

            - Por que não te partiste ainda? - perguntou. - Sai daqui!

            Voltou a afundar o rosto no travesseiro, e seu pranto se tornou ainda mais intenso. O homem não pôde tolerá-lo. Nunca antes tinha se com perturbado as lágrimas de uma mulher, mas agora... Virou-se para partir, mas subitamente trocou de opinião e se sentou no bordo da cama, para logo tomar à moça entre seus braços.

            Brigitte lutou para liberar-se. Não queria o consolo desse homem. Só desejava estar sozinha com sua infelicidade. Rowland a estreitou com doçura, mas não lhe permitiu soltar-se. Por fim, a jovem deixou de resistir e apoiou uma bochecha sobre o peito, molhando sua túnica com as lágrimas. Então, ele começou a balançá-la brandamente, ao mesmo tempo em que lhe acariciava as costas, o cabelo. Porém, ela não cessava de chorar e os soluços rasgavam o coração do jovem.

            - Ah, Brigitte, te acalme - suplicou-lhe com ternura, inclinando-se para lhe beijar as bochechas. - Não suporto te ouvir chorar desse modo.

            Seus lábios acariciaram os da jovem, e ela não encontrou forças para resistir. A boca de Rowland continha toda uma sutileza e o sabor salgado de suas próprias lágrimas. Quando ele começou a despi-la, Brigitte soube que era muito tarde para detê-lo e se entregou. Essa noite, pertencia a ele, e ambos sabiam.

            A moça entrou em um estado de selvagem desenfreio. Ele se ajoelhou junto à cama e suas mãos e lábios a acariciaram magicamente, despertando uma paixão que ela jamais tinha acreditado possuir. Ele explorou cada porção de sua delicada figura com movimentos suaves, enlouquecedores. Então, a jovem sentiu desejos de receber todo o peso desse corpo masculino sobre o seu, receber uma parte de Rowland nas profundidades de sua feminilidade.

            Quando, por fim, ambos os corpos se uniram, ele se moveu lenta, cuidadosamente, e Brigitte já não pôde tolerá-lo. Arqueou os quadris para lhe forçar a entregar toda a potência de sua masculinidade. Então, veio um instante de êxtase. Um nó se formou no interior da jovem, que se tornava mais e mais tenso, até desatar-se com uma vibrante sensação que se estendeu por cada centímetro de seu corpo e continuou durante toda a eternidade.

            Um momento mais tarde, Rowland se afastou apenas para aliviar seu peso da delicada figura feminina. Mas a moça não o deixou partir, e ele se sentiu imensamente agradado. Ambos caíram em um profundo sonho, com os corpos entrelaçados e os rostos iluminados por um brilhante sorriso de satisfação.

 

            - O tamanho é perfeito, não acha?

            Brigitte retrocedeu um passo para admirar Rowland com a túnica azul que ela acabava de finalizar. A roupa se ajustava aos largos ombros do jovem, destacando assim sua esplêndida figura, e o intenso tom azul da lã fazia ressaltar até mais a cor de seus olhos. Ela se sentia orgulhosa com sua obra e esperava com ansiedade o comentário do normando, mas ele estava tão ocupado em examinar as costuras, que parecia não ouvi-la.

            - E?

            - É bastante cômoda.

            - É isso tudo o que pode dizer? - protestou ela. - E o que opina dos meus pontos? Nunca se abrirão nem desfiarão, sabe?

            - Já vi melhores.

            - Oh! - Brigitte lhe jogou um fio de linho e lhe jogaria as tesouras se as tivessem à mão. - Verá o cuidado que terei na próxima roupa!

            Rowland esboçou um amplo sorriso.

            - Terá que aprender a interpretar minhas brincadeiras, Brigitte. Estou mais que satisfeito com seu trabalho. Todas minhas outras túnicas parecem farrapos comparadas com esta. Seus pontos são perfeitos.

            A moça pareceu transbordar de alegria. Tinha passado os últimos seis dias costurando na habitação de Rowland para confeccionar a túnica e um curto manto de lã da mesma cor. Uma trégua tinha estado em vigência a partir daquela noite de amor. Nenhum dos dois se atrevia a mencioná-lo, mas cada dia tinha sido diferente após.

            Mais que nunca Brigitte percebia o quão atrativo ele era: as suaves ondas de seu claro cabelo loiro sobre a nuca; as pequenas rugas nas comissuras de seus escuros olhos azuis quando sorria. E, ultimamente, o jovem ria com mais freqüência.

            Rowland continuava chateando-a, mas ela já não se ofendia. Ele já tinha tratado de reprimir sua rudeza, realizando tremendos esforços para suavizar suas maneiras. Antes Brigitte tinha percebido a boa vontade de Rowland em tentar mudar, mas só agora começava a lhe importar. E cada vez com mais freqüência, encontrava-se observando Rowland, apenas para admirá-lo, sem nenhuma razão em particular.

            O normando não tinha tentado forçá-la, presenteando-a só com um casto beijo quando a escoltava cada noite até a habitação. E esse fato agradava a Brigitte. Não estava segura de como poderia reagir se Rowland tentasse possuí-la uma vez mais. Por um lado, encontrava-se o prazer, por outro, o pecado. Não desejava ter que decidir entre um ou outro, e lhe agradava o fato de que ele não a forçasse. Ao deixá-la em paz, lhe estava dando tempo.

            Porém, esse tempo já começava a atuar contra a jovem, mesmo que ela não o percebesse. Esse mesmo dia, tinha experiente uma incrível ansiedade ao entregar a nova túnica ao normando. Brigitte não desejava deter-se analisar por que, de repente, a aprovação de Rowland lhe parecia tão importante. Tampouco desejava se perguntar porquê se tinha apressado a arrumar o cabelo e ajeitar as roupas antes que ele entrasse na habitação.

            - Merece um dia de descanso, Brigitte - sugeriu Rowland, enquanto colocava o manto sobre os ombros. - Te agradaria ir dar um passeio pela manhã? Há umas quantas éguas mansas no estábulo de meu pai, e poderá escolher a que mais te convenha.

            A oferta surpreendeu a jovem.

            - Está seguro de que seu pai não se incomodará?

            - Absolutamente.

            - Mas não será perigoso?

            Os olhos de Rowland refletiram confusão durante um breve instante.

            - Ah, de maneira que ouviu a conversação, né? Thurston tinha estado treinando seus homens durante várias semanas, mas ninguém é tão besta para iniciar uma guerra no inverno. Ele aguardará o clima quente, ou ao menos, até assegurar-se de que pode levar alguma vantagem. Neste momento, não tem nenhuma. Nós sempre estamos bem providos de alimento no inverno, de modo que um sítio não beneficiaria a nenhum oponente. Além disso, Luthor jamais enviaria a seus homens a lutar na neve e Thurston sabe.

            Brigitte franziu o cenho.

            - Não há forma de resolver este assunto sem uma guerra?

            - Não. Lorde Thurston é um homem ambicioso. A cobiça o levou a casar-se com minha meia irmã Brenda, por quem não sente nenhum afeto. O homem espera receber mais terras das que obteve, e agora não se deterá até satisfazer suas expectativas. Deverá morrer. É essa a única forma de finalizar esta disputa.

            A expressão da jovem se tornou ainda mais sombria.

            - Nunca antes estive em meio de uma guerra. Meu pai lutou por seu patrimônio, mas todas as batalhas de Louroux foram liberadas antes que eu nascesse. Tanto ele como meu irmão brigaram em outras guerras, certamente, mas sempre longe de Louroux.

            - Nunca menciona seu irmão - Notou Rowland.

            - Porque está morto - explicou-lhe ela com voz suave. - Não me agrada falar dele.

            Ele não soube o que dizer, e decidiu trocar de tema.

            - Mesmo que te encontre em meio de nossa guerra, Brigitte, estará segura aqui.

            - E se Montville for derrotado?

            - Isso não é provável, cheérie.

            - Mas tampouco impossível - Observou a jovem. Logo, aspirou profundamente e deixou escapar um suspiro? De todos os modos, é possível que eu já não me encontre aqui quando começar a batalha. - O severo olhar dele a fez gaguejar: - Quero dizer, eu...Oh, você sabe a que me referia.

            - Não, Brigitte, não sei. Se não te encontrará aqui então, onde estará?

            - Você enviou um mensageiro para o conde Arnulf. Acaso preciso explicar isso? Rowland não respondeu, e então lançou um olhar severo. - Você enviou ao mensageiro, não é verdade?

            Ele vacilou, mas o temor que subitamente se refletiu nos olhos da jovem o forçou a assentir com relutância.

            - Sim, assim foi.

            - Pois então, sabe a que me refiro.

            - Seriamente acha que o conde Arnulf poderá te afastar de meu lado?

            - O... ele te fará ver por fim a verdade - murmurou Brigitte com vacilação.

            Rowland a aproximou para lhe acariciar o queixo altivamente erguido. Seus olhos azuis revelaram uma marcada nota de pesar.

            - Teremos que passar por tudo isto de novo, joiazinha? Preferiria desfrutar do prazer de sua companhia sem que uma disputa arruine seu doce caráter.

            A moça não pôde evitar sorrir. Rowland tinha visto tão pouco de seu doce caráter, que a afirmação lhe resultava verdadeiramente ridícula. Entretanto, ele estava certo. Não tinha sentido seguir discutindo. Logo, tudo teria terminado. A idéia fez desvanecer seu sorriso, embora ela não conseguisse compreender a razão.

            Quando entraram na sala uns minutos mais tarde, Brigitte lançou um olhar avaliador por toda a habitação, conforme era seu costume. Devia atuar com cautela frente a Hedda e Ilse, essas imensas e desagradáveis mulheres que nunca cessavam de persegui-la. Em geral, não estava acostumada a jantar em companhia dessas damas, visto que ela não era mais que alguém serva. Mas Amélia era só uma donzela, de modo que, com freqüência, Brigitte devia sentar-se a seu lado e tolerar suas maliciosas olhadas.

            Essa noite, porém, Amélia não se achava ocupando seu lugar habitual na mesa, mas sim se encontrava servindo a um estranho, localizado-se junto à Hedda, à direita de Luthor.

            - Seu pai tem um convidado - anunciou Brigitte a Rowland em voz baixa.

            Ele seguiu o olhar da moça com os olhos, e então se paralisou. Em seguida adotou uma expressão assassina e se levou uma mão à espada. No instante seguinte, Brigitte se sobressaltou, quando o normando se equilibrou imediatamente para a mesa do lorde. A jovem afogou uma exclamação ao ver o Rowland levantar o estranho de sua cadeira e lhe jogar para o outro lado da habitação. Todos os pressente se levantaram e Luthor tomou a seu filho pelo braço para lhe deter.

            - O que significa isto, Rowland? - perguntou o ancião com fúria. Era inconcebível que seu filho ousasse atacar a um convidado!

            Rowland lutou para soltar-se e se voltou para seu pai com expressão irada.

            - Acaso Gui não te contou o que aconteceu em Arles? Luthor então compreendeu e tratou de tranqüilizar a ele.

            - Sim, disse-me que você e Roger brigaram, mas essa disputa já terminou.

            - Terminou? - bramou Rowland. - Como poderia estar terminada se esse cão infame ainda segue com vida?

            - Rowland!

            - Obviamente Gui não te contou que Roger tentou me assassinar. Atacou-me pelas costas, Luthor. O francês o deteve e por essa razão, tentou matá-lo também.

            - Mentiras!

            Pai e filho se voltaram para o homem de cabelos dourados.

            - Quem pode afirmar que te ataquei pelas costas? - perguntou Roger de Mezidon, indignado. - Sua acusação é falsa, Rowland.

            - Está-me chamando mentiroso, Roger? - inquiriu Rowland, desejando encontrar uma imediata razão para lutar contra seu eterno oponente.

            - Eu não disse isso - apressou-se a negar Roger - Só acredito que pode estar... mal informado. Avancei contra ti, mas jamais teria te golpeado sem antes te advertir. Estava a ponto de te chamar quando um francês tolo me atacou e tive que me encarregar dele primeiro.

            - Atacou-te, diz? - gritou o outro jovem com cepticismo - Impediu que me matasse e quase morre por isso.

            - Está equivocado - afirmou Roger com tom sereno. - Não houve intenção assassina.

            Luthor se interpôs entre ambos.

            - Temos uma disputa muito difícil de resolver. Não permitirei que se desate uma briga quando a causa é claramente duvidosa.

            - Não há nenhuma dúvida - declarou Rowland com obstinação.

            - Digamos, então, que eu tenho dúvidas - insistiu o lorde com aspereza. - Aqui fica terminada a disputa, Rowland.

            O jovem se sentiu indignado, mas seu pai já tinha pronunciado sua sentença e ele não podia opor-se sem envergonhá-lo. Porém, tampouco podia permanecer calado.

            - Por que ele está aqui? Acaso agora nos dedicamos a alimentar a nosso inimigo?

            - Rowland! - exclamou Luthor com exasperação - Roger não será considerado inimigo de Montville até que se declare como tal. Jamais farei responsável a um homem pelas ações de seu irmão.

            - Mas ele tomara partido a favor de Thurston! - grunhiu Rowland.

            Roger sacudiu a cabeça.

            - Eu não tomarei partido entre o Luthor e meu irmão. Luthor foi como um pai para mim. Mesmo que Thurston seja meu irmão, não me unirei a ele.

            - Ele diz isso! - Repreendeu Rowland.

            - Eu acredito - afirmou Luthor - De modo que não quero ouvir uma só palavra mais disto. Durante muitos anos, este foi o lar de Roger. Será bem-vindo aqui até que haja uma verdadeira razão para lhe rechaçar. Agora vamos, nos sentemos juntos a comer.

            Rowland deixou escapar um rouco grunhido.

            - Ao menos, tenta melhorar seu ânimo, Rowland - observou seu pai - Deixou sua encantada Brigitte confusa com essa terrível atitude.

            O homem se voltou para a jovem, que o observava aturdida e temerosa. Tentou aproximar-se, mas ela retrocedeu, intimidada pela sombria expressão no rosto do normando. Ele tratou de tranqüilizá-la, mas não conseguiu. Então, a moça se voltou, para afastar-se correndo da sala.

            - Brigitte!

            A moça parou, mas o coração não cessou de pulsar com violência.

            - O que te ocorre, Brigitte? Não é minha intenção te machucar - murmurou Rowland, ao mesmo tempo em que se aproximava. - Me perdoe por te atemorizar.

            - Não compreendo, Rowland - começou a dizer ela com vacilação - Alterou-te de repente... como um enlouquecido. Por que atacou a esse homem sem razão?

            - Tinha uma razão, uma muito boa razão. Mas se falar disso, temo perder os estribos e lhe atacar novamente. Roger é um velho adversário.

            Brigitte se voltou com curiosidade para ele, que se encontrava sentado junto à Hedda à mesa do lorde. Era um jovem arrumado, de pele bronzeada e extremamente bem vestido. Era alto, robusto e de aspecto temível.

            Rowland seguiu com os olhos o olhar da jovem e franziu o cenho.

            - Roger é imponente. Possivelmente, está pensando em colocá-lo contra mim, tal como fez com o Gui.

            Brigitte lhe lançou um olhar penetrante.

            - Já te disse que não foi essa minha intenção! - exclamou com rudeza, mas ele ignorou o comentário.

            - Roger atrai às mulheres, te afaste dele - advertiu-lhe com severidade - Esse homem não é de confiar.

            - Não tenho razões para lhe buscar - afirmou a jovem com aborrecimento.

            Os olhos de Rowland percorreram lentamente sua figura.

            - Mas ele teria razões sem fim para te buscar a ti, mulher.

            Brigitte se ergueu, um pouco chateada.

            - Não me agrada esta discussão, Rowland. E já perdemos muito tempo. Irei procurar sua comida.

            - E a tua.

            - Não esta noite - disse ela com firmeza. - Jantarei com os serventes.

            Ele a tomou pelos pulsos: - Por que?

            - Me solte, Rowland. Há muita gente nos observando.

            Ele a liberou e permaneceu imóvel, contemplando com ar pensativo à moça, que se afastou apressada. Sacudiu a cabeça, confundido ante seu humor. Freqüentemente, perguntou-se se em realidade podiam existir dois aspectos tão diferentes em Brigitte. E quanto mais o pensava, mais percebia que a mulher colérica e rabugenta que tinha conhecido, poderia simplesmente ser uma doce dama aturdida e ofendida pelas atuais circunstâncias. Isso explicaria muito... muito, na verdade.

            Rowland rogou estar equivocado e que as qualidades gentis, doces e modestas que Brigitte tinha revelado nessa última semana fossem completamente falsas. Do contrário, teria que enfrentar a possibilidade de que ela em realidade era uma dama. E ele não desejava sequer considerá-lo.

 

            A grande sala de Louroux se encontrava quase deserta, sombria. O barão, inclinado em sua majestosa cadeira, afogava suas tristezas em um forte vinho. Não havia ninguém mais na habitação. Quintin de Louroux se achava novamente em casa, mas ao seu redor sentia um infinito pesar. A razão de seu retorno não se encontrava ali para lhe receber, e ele ainda não conseguia compreender a causa dessa ausência. Sua formosa, irmã se confinou em um convento!

            Não era próprio de Brigitte afastar do mundo para encerrar-se em um sombrio monastério. Quintin poderia ter compreendido se a moça achasse que estava morto, mas Druoda tinha lhe contado que ele seguia com vida e, mesmo assim, sua irmã tinha escolhido a vida austera. A jovem partiu sem sequer esperar vê-lo, por quê?

            Segundo Druoda, Brigitte se tinha tornado veementemente religiosa pouco depois da partida de seu irmão ao sul da França e tinha começado a preparar-se para a vida austera mudando-se às estabelecimentos dos serventes e trabalhando sem cessar nas árduas tarefas da mansão.

            O fato mais penoso era que a jovem não tinha comentado a ninguém qual monastério planejava ingressar.

            Poderia levar anos para Quintin encontrá-la e a moça estaria tão firmemente dedicada à vida monacal que lhe seria impossível convencer a de retornar a casa.

            - Pediu-me que te dissesse que não a buscasse, Quintin - afirmou Druoda com uma expressão triste em seus olhos pardos. - Inclusive chegou a me comentar que adotaria um novo nome, de modo que jamais conseguisse encontrá-la.

            - Acaso não tentou dissuadi-la desta idéia? - inquiriu Quintin. A notícia lhe tinha perturbado até o ponto de irritar.

            - Claro que sim, mas você sabe quão obstinada pode ser sua irmã. Inclusive lhe ofereci lhe buscar um bom marido, mas se negou. Em minha opinião, a idéia do matrimônio teve algo que ver com sua decisão. Acredito que sente certo temor pelos homens.

            Acaso Druoda tinha estado no certo? Temia Brigitte o matrimônio?

            - Jamais deveria haver lhe permitido a eleição de um marido, Quintin - tinha acrescentado Druoda. - Devia tê-la insistido que se casasse muito tempo atrás.

            Agora ele se sentia afligido pelos remorsos. Se tivesse procurado um bom marido para sua irmã antes de partir, a moça se encontraria em casa, desposada e esperando um filho provavelmente. Como estavam as coisas, Brigitte nunca experimentaria a sorte da maternidade, jamais conheceria o amor de um homem devoto.

            Quintin voltou a beber da garrafa, ignorando já as taças. Os outros dois garrafões de vinho se encontravam vazios sobre a mesa. Ali também se achava o copioso banquete preparado especialmente por sua tia, mas ele não sentia desejos de comer e, de tanto em tanto, jogava partes de carne aos três cachorros que jaziam a seus pés. Ao retornar a casa, o jovem tinha encontrado encerrados aos cães, um costume totalmente inédito em Louroux. Porém, não era esse a única mudança. Os serventes se viram agradados ao vê-lo, mas já não pareciam tão alegres como sempre. Muitos tinham tentado lhe falar em privado, mas Druoda se encarregou de lhes afugentar, alegando que não desejava ver perturbar a seu sobrinho.

            Quintin não tinha visto mais sua tia desde sua chegada ao Louroux nessa mesma tarde. Ao inteirar-se da ausência de sua irmã, ele se encerrou na sala, para brigar com qualquer que tentasse entrar. Já era tarde e se sentia exausto, embora totalmente acordado. Nem sequer o vinho parecia ajudar, e começou a perguntar-se quantas garrafas deveria beber para conciliar o sonho.

            Haveria muito que fazer pela manhã e necessitava um descanso. Imediatamente, iniciaria a busca de Brigitte. Poderia ter começado esse mesmo dia se seus homens não tivessem estado tão atarefados com a caçada a uns malfeitores na região. Dois de seus soldados tinham sido feridos, mas não havia tempo de pensar nisso. Tinha que decidir quais de seus homens levaria consigo na expedição e que direção tomaria. Havia, entretanto, um elo perdido; algo que poderia lhe facilitar a busca, mas não conseguia descobri-lo. Talvez, não se encontrava tão acordado como acreditava.

            E então, um súbito pensamento o assaltou. Certamente! Brigitte não podia ter abandonado sozinha Louroux. Alguém teria que havê-la escoltado. E, com segurança, esse homem conheceria seu paradeiro. Druoda, sem dúvida, sabia a identidade da escolta! Ante a idéia, Quintin ficou de pé. Mas cambaleou e voltou a cair sobre sua cadeira, deixando escapar um grunhido, visto que sua cabeça parecia a ponto de estalar.

            - Milord, permitiria-me falar umas palavras com você?

            Quintin cerrou os olhos, tentando olhar entre as sombras, mas não conseguiu ver ninguém.

            - Quem esta aí?

            - Eudora, milord? respondeu a jovem com acanhamento.

            - Ah, a filha da Althea. - Ele se reclinou sobre as sombras. - E bem, onde está? te aproxime.

            Uma forma pequena surgiu da escada, vacilante, e pareceu se deter um instante, começou a avançar. As diminutas velas da mesa titilaram sobre o corpo da moça, fazendo que Quintin distinguisse duas, ou melhor, três figuras dançando diante de si.

            - Fica quieta, moça! - ordenou com rudeza.

            - Mas...Mas eu o estou, milord.

            - O que é isto? - O franziu o cenho. - Parece atemorizada. Maltratei-te alguma vez, Eudora? Não tem razão para me temer.

            A moça se retorceu nervosamente as mãos.

           - Tratei de lhes falar antes, milord, mas você... você me jogou uma parte do queijo e me ordenou que saísse. - Quintin soltou um breve risinho.

            - Sério? Temo que não o recordo.

            - Estava muito perturbado, e é natural, considerando o que aconteceu em sua ausência.

            O homem deixou escapar um profundo suspiro.

            - Me diga, Eudora, por que o fez?

            - Não me corresponde falar mal de sua tia - respondeu a jovem com inquietação.

            - Minha tia? Eu referia a minha irmã. Mas suponho que você desconhece a razão. Onde está Mavis? Ela era íntima amiga de Brigitte. Sem dúvida, sabe por que minha irmã tomou esta decisão.

            - Acaso não foi informado? - perguntou Eudora, surpreendida. - Mavis morreu.

            Os olhos de Quintin se entrecerraram.

            - Mavis? Como aconteceu?

            - Sua tia a expulsou daqui e, esse mesmo dia, foi assassinada na rota... por uns ladrões. Embora, às vezes, pergunto-me se foram realmente ladrões quem a matou.

            O homem observou fixamente à moça, e sua embriaguez pareceu desvanecer-se de repente.

            - Com que direito diz que minha tia teve semelhante atitude?

            - A mulher se proclamou ama de Louroux logo que recebeu a notícia de sua morte.

            O jovem pareceu perturbado pelo comentário.

            - Quer dizer que foi nomeada tutora de Brigitte. Não é assim?

            A inquietação de Eudora aumentou.

            - Oh, não, milord, não sua tutora. O conde de Berry não foi informado de sua morte.

            Quintin se endireitou subitamente em seu assento.

            - Como é possível?

            - Druoda ocultou a notícia. E não permitiu que Brigitte abandonasse Louroux para lhe levar a mensagem. Inclusive os vassalos se negaram a ajudar a sua irmã, visto que todos supunham que Druoda e seu marido se converteriam em tutores de milady. Todos seguiram cinicamente as ordens de Druoda. Nem sequer Walafrid ousou discutir as ações de sua esposa.

            - Dá-te conta do que está dizendo? - perguntou Quintin com voz grave e ofuscada.

            Eudora retrocedeu com nervosismo.

            - É a verdade, milord, juro. Acreditei que, sem dúvida, Druoda já tinha confessado tudo, de outro modo, jamais me atreveria a me apresentar ante você. Todos aqui sabem como essa mulher tratou a sua irmã... é absurdo que ela esperasse manter o segredo frente a você.

            - Minha tia não me disse nada disso.

            - Então, sinto muito. Não vim aqui para difamar Druoda. Só me aproximei para averiguar se sabia o que aconteceu com lady Brigitte. Estive muito preocupada. A moça já deveria ter retornado.

            - Retornado? O que está dizendo, Eudora? - perguntou Quintin com lentidão. - Talvez, será melhor que me conte tudo o que sabe a respeito de minha irmã.

            Isso fez a jovem; primeiro, com tom vacilante e logo, com incrível pressa.

            - Brigitte tratou de escapar e teria conseguido se o normando não a tivesse encontrado.

            - Que normando?

            - Que veio aqui procurando a ama de Louroux - explicou a moça.

            - Rowland de Montville?

            - Sim... acredito que esse era seu nome. Brigitte partiu com esse cavalheiro normando.

            - Então, isso o explica tudo - assentiu Quintin. - Já vê, Rowland de Montville devia anunciar que eu estava vivo.

            - Mas nós não fomos informados até uma semana mais tarde - apressou-se a explicar Eudora - e lady Brigitte jamais se inteirou. Estou segura disso. - Fez uma pausa, para logo adicionar com veemência: - O que não entendo é como Druoda podia pretender lhes ocultar tudo isto... - de repente, deteve-se para olhar com olhos sobressaltados aos três cães que se encontravam aos pés do barão. - O que acontece com seus cachorros, milord? - inquiriu com um sussurro.

            Quintin se voltou para os cães, que, deitados no chão, tentavam em vão levantar-se. Ele observou os primeiro animais e logo, as partes de carne que ele mesmo lhes tinha jogado. Pouco a pouco, tudo se esclareceu, e Quintin jogou um olhar ao copioso banquete preparado especialmente por sua tia.

            - O cachorro negro parece muito quieto, milord - comentou Eudora com voz trêmula.

            - Temo que envenenei meus próprios cães - disse Quintin com tom calmo.

            - Você?

            - Alimentei-os com a comida especialmente preparada para mim - explicou ele de modo tétrico? Ao parecer, o propósito era que eu cessasse de respirar.

            - Você provou desta comida? - inquiriu Eudora, horrorizada.

            - Nada. Só o vinho. - Ela... ela tratou... de me matar - concluiu Quintin com veemência. - A irmã de minha mãe. De meu próprio sangue. É óbvio agora por que razão não confessou suas maldades e suplicou minha indulgência. Se não morresse com este jantar, iria tentar me envenenar amanhã. E teria chegado a obtê-lo, visto que eu jamais suspeitaria seus negros propósitos. Eudora, salvaste a minha vida ao vir a mim. Maldição! O que esperava ganhar minha tia com tanta maldade?

            - Com sua irmã ausente e você morto, não poderia ela haver-se proclamado ama de Louroux? - sugeriu a moça.

            Quintin exalou um suspiro.

            - Suponho que Arnulf não duvidaria em lhe conceder tal privilégio, visto que a mulher leva meu sangue. Aquela cadela!

            - Meu Deus... onde está Brigitte? Se Druoda for capaz de me matar, poderia também tratar de assassinar a minha irmã!

            - Não acredito milord. Lady Brigitte partiu com o normando. Parecia bastante segura.

            - Mas, onde a levou Rowland? - gemeu ele. - Juro que se Druoda não me dizer onde encontrar a Brigitte, a matarei com minhas próprias mãos!

            Quintin se afastou com passo irado da sala, já completamente sóbrio, sentindo que uma onda de ira invadia todo seu ser.

 

            - Me devolva!

            O angustiado grito fez que Brigitte abrisse subitamente os olhos e se voltasse na gigantesca cama para observar Rowland. Ele estava dormindo, mas falava... de fato, suplicava.

            - Me devolva!

            Rowland girou a cabeça de um lado para outro e se sacudiu violentamente sob as mantas. Com uma mão, golpeou o peito de Brigitte e a moça afogou uma exclamação e se sentou para acotovelá-lo no ombro.

            - Acorda!

            Os olhos do homem se abriram para olhá-la, e ela prosseguiu com irritação: - Já sou assolada por suas más maneiras quando está acordado. Não necessito que me maltrate enquanto durmo.

            - Maldição, mulher - disse ele com um suspiro de indignação. - O que fiz agora?

            - Primeiro, despertou-me com gritos e depois, golpeou-me, Acaso era seu sonho tão perturbador?

            - Esse sonho é sempre perturbador. Nunca consegui compreendê-lo. - O homem franziu o cenho em meio das penumbras.

            - Já tiveste antes este sonho? - perguntou a jovem surpreendida.

            - Sim. Persegue-me desde que tenho memória. - Sacudiu a cabeça. - Disse que tinha gritado. Quais foram minhas palavras?

            - Me devolva. Disse com tom desesperado, Rowland.

            Ele voltou a suspirar.

            - No sonho, só há rostos, o de um jovem e uma mulher, a quem não consigo reconhecer. Vejo-os por um tempo, e quando já não posso distingui-los, experimento uma terrível sensação de perda, como se me estivessem arrebatando de tudo aquilo que mais quero.

            - Mas não sabe o que é?

            - Não. Jamais estimei nada até o ponto de temer perdê-lo. - Lançou a jovem um olhar estranhamente terno - até agora.

            Brigitte se ruborizou e afastou o olhar.

            - Pode esquecer seu sonho se não falarmos mais do tema.

            - Já o esqueci - assegurou ele com um sorriso, ao mesmo tempo em que deslizava um dedo pelo braço nu da moça.

            Ela se afastou.

            - Rowland...

            - Não! - Ele lhe rodeou a cintura com um braço para mantê-la ao seu lado, e os olhos da jovem se dilataram de terror. Ele, então, suspirou.

            - Ah, Brigitte, te deixe levar por seus sentimentos.

            - Eu faço isso! - exclamou ela.

            Rowland pressionou o delicado corpo da jovem sobre a cama e se aproximou para lhe falar com um sussurro.

            - Lembre, joiazinha. Meu galanteio não te chateia absolutamente. Se fosse honesta, admitiria que te agrada. - Acariciou-lhe docemente um peito através do fino linho do lençol. - E isto. - inclinou-se para acariciar os lábios da moça em um terno beijo. - E...

            - Não! - Brigitte lhe sujeitou a mão antes que esta subisse por entre suas coxas - Pare!

            Os olhos de Rowland arderam de desejo ao observar a jovem, e tomou o rosto entre as mãos.

            - Por favor, Rowland. Não arruine tudo.

            - Arruinar?

            Face aos esforços da jovem para detê-lo, ele voltou a beijá-la, desta vez, com paixão. Mas de repente se endireitou.

           - A única coisa que me agradaria arruinar é sua decisão de permanecer impassível frente a minhas carícias, mas sei que deseja continuar com essa farsa de indiferença.

            Brigitte permaneceu em silêncio, visto que algo despertou em seu interior ao receber o apaixonado beijo do jovem. Acaso ele tinha chegado a percebê-lo? Era Rowland consciente de que, se tivesse continuado beijando-a, ela já não teria protestado? De fato, sentia-se um pouco desiludida ante a pronta rendição do normando. O que lhe estava acontecendo? Teria se tornado vitima da luxúria sem perceber?

            - Está zangado comigo? - perguntou com tom vacilante, rogando uma resposta negativa.

            - Zangado, não. Decepcionado, talvez, e bastante frustrado, mas não zangado. Suponho que necessita tempo para te acostumar a mim.

            - É muito generoso, milord - afirmou a moça com sarcasmo, já tão frustrada como ele. - Continua me dando tempo, e terei partido antes de acabar com sua paciência.

            Muito tarde a jovem percebeu a implicação de suas palavras e, então, ruborizou-se e começou a gaguejar, mas as gargalhadas de Rowland sufocaram seus murmúrios.

            - De maneira que assim é! Então parece que chateio a ambos com minha paciência, né?

            - Não, Rowland - apressou-se a negar Brigitte. - Interpretaste-me mal.

            - Não acredito. - Ele esboçou um amplo sorriso.

            Imediatamente, ele se aproximou, mas ela se levantou da cama e correu para suas roupas para vestir-se com incrível rapidez. Depois de colocar a túnica amarela, jogou um olhar vacilante a Rowland, quem continuava sentado sobre o leito, sacudindo a cabeça.

            - Muito bem? concluiu ele, ao mesmo tempo em que tomava suas roupas. - Mas algum dia, aprenderá que as relações entre um homem e sua esposa devem ser íntimas e freqüentes, não só de vez em quando. - Fez uma pausa, para logo adicionar com doçura: - Nós poderíamos alcançar tal intimidade.

            - Está-me propondo matrimônio?

            O olhar do homem foi tão intenso e prolongado que a jovem começou a sentir-se inquieta.

            - Acaso aceitaria?

            - Eu...

            Brigitte franziu o cenho, consternada. O impulso de esquecer a cautela e responder afirmativamente era quase irresistível, mas conseguiu controlar-se.

            - Claro que não aceitaria - respondeu com teima. Rowland se encolheu os ombros.

            - Então, seria muito besta em lhe propor isso não acha?

            Ela se virou, profundamente ferida. Em realidade, o tema não interessava a Rowland. O matrimônio não significava nada para ele. Talvez ela não significasse nada para ele.

            Caminhou com passo firme para a porta e, depois de chamar Wolff com um estalo, partiu sem esperar o normando. Oh, por que se tinha deixado convencer de passar a noite nesse quarto?

            Maldição! Não havia meio termo para esse homem. Ou mantinha ocultas suas emoções ou as atiravas de forma cortante. Quais eram os verdadeiros sentimentos de Rowland? Ela sentiria falta dele quando partisse? Mas Brigitte nem sequer ousava formulá-la esta pergunta.

 

            Cavalgar na fria amanhã com Rowland era revigorante. O vento frio açoitava as bochechas rosadas de Brigitte, mas a moça desfrutava do passeio e se sentia reanimada.

            Já se aproximava do meio-dia quando retornaram à mansão. Rowland parou uns minutos no estábulo e Brigitte se dirigiu sozinha para habitação do homem, para costurar... e a meditar.

           Quando a porta se abriu, a jovem sentiu alívio ao interromper seus perturbadores pensamentos. Mas, então, percebeu que não era Rowland a não ser Roger de Mezidon quem tinha entrado no quarto como se lhe pertencesse. Depois de fechar a porta, ele atravessou a habitação para deter-se uns poucos passos de Brigitte, quem, surpreendida, tentou descobrir a razão dessa visita, mas só a advertência de Rowland foi a sua mente. Ao perceber o ardente olhar dos azuis olhos de Roger, a moça se precaveu de quanta verdade tinham encerrado aquele as palavras.

            - É tão encantada como recordava - comentou ele com tom gracioso.

            A adulação inquietou a jovem.

            - Não deveria estar aqui, sir Roger.

            - Ah, isso já sei.

            - Então, por que...?

            - Seu nome é Brigitte - interrompeu-a dando um passo adiante. - Um antigo nome francês... sinta-te bem. Falaram-me muito de ti.

            A segura atitude e a familiaridade desse homem desgostaram à moça.

            - Não me interessa o que lhe disseram sobre mim - assegurou-lhe com tom severo, feliz de que Wolff se encontrasse estendido sob a cama de Rowland.

            - Seu tom me ofende, mulher. Suponho que Rowland te advertiu contra mim, não é verdade?

            - Acredita que está interessando em mim e agora pensa em me estuprar.

            - Ah, mulher, por que diz semelhante coisa? Não há necessidade de dizê-lo.

            Brigitte se levantou instantaneamente, alarmada.

            - Quer dizer que Rowland tem razão?

            Roger se aproximou o suficiente para lhe acariciar a bochecha.

            - Estou aqui, não? - disse como resposta, e soltou um breve risinho quando a moça deu um passo atrás. - Busquei-te muito ontem à noite, até que por fim me dava conta de que Rowland não seria capaz de deixar tão valioso prêmio fora de seu alcance. O homem é na verdade um afortunado, mas já é hora de que compartilhe comigo algo de sua sorte.

            - Jamais permitirei que me toque! - exclamou a jovem com rudeza.

            Entretanto, Roger não se daria por vencido tão facilmente. Estendeu os braços para estreitá-la, mas ela afastou a mão com uma bofetada. Imediatamente, o homem a estreitou e, antes que a moça pudesse protestar, cobriu-lhe a boca com um beijo.

           Brigitte, aturdida, atrasou-se em reagir. O beijo não lhe resultou desagradável, mas não chegou a comovê-la. Se tivesse percebido um tremor nos joelhos, uma rápida agitação no estômago ou apenas uma vibrante sensação, provavelmente teria permitido que ele continuasse beijando-a, agradecida ante o descobrimento de que Rowland era o único que podia perturbá-la. Mas não era esse o caso, e por fim a moça tratou de afastar ao Roger. Ele, entretanto, só a estreitou com mais força, lhe sujeitando a cara com ambas as mãos para seguir apoderando-se de seus delicados lábios.

            Brigitte não perdeu a calma. A larga agulha que ainda sujeitava na mão era justo o que necessitava. Imediatamente, cravou o afiado extremo no braço do homem, sem imaginar que provocaria tão surpreendente reação, ele retrocedeu de um salto, e a agulha rasgou a larga manga de sua túnica, desenhando na pele uma marcada linha cor carmesim.

            Durante um instante, ambos pareceram hipnotizados pelo fluxo de sangue. Então, os olhos de Roger se voltaram para a jovem, e ela se estremeceu ante tão furioso olhar. Nesse momento, Brigitte pôde imaginar a esse homem valendo-se de desonrosos meios para assassinar a um homem. Havia nele algo perverso e atemorizada a moça retrocedeu rapidamente para colocar uma cadeira entre ambos.

            - Não tem que fugir de mim, mulher. - A sombria expressão no rosto de Roger contradisse seu suave tom de voz. - Só me arranhaste. Suas unhas poderiam causar muito mais malefício... e juro que te darei oportunidade de usá-las.

            - Comete um engano, sir Roger. Rowland te matará por isso.

            Ele arqueou uma sobrancelha.

            - Acaso você lhe contaria? Ousará lhe confessar que eu a possuí? Acha que te seguirá querendo depois disso?

            - E pensa acaso que seguirá com vida para averiguá-lo? - replicou ela com outra pergunta. - Rowland se valerá da mais insignificante razão para te desafiar. Não percebeu que ele estava desesperado hoje de manhã para te matar? Não sei exatamente por que, mas agora estou segura de que é merecedor de todo seu ódio.

            - Puta safada! - resmungou Roger.

           Assim que ele começou a aproximar-se, Brigitte, sem pensar um instante, soltou um grito para chamar Wolff. A imensa besta saiu de seu esconderijo sob a cama e saltou no ar, jogando Roger de costas contra o chão. O animal se lançou para o pescoço do homem.

            - Tire este monstro de cima! Pelo amor de Deus, mulher! Tire-o de cima de mim! Santo Deus. És tão sanguinária quanto Rowland!

            A jovem vacilou o suficiente para aterrorizar Roger e logo, chamou Wolff com relutância. O cão obedeceu, e ela se ajoelhou para acariciá-lo, sem afastar um olho cauteloso do homem, que já começava a levantar-se lentamente. Ele lhe lançou um olhar de assombro.

            - Está louca ao me atirar esse horrível monstro em cima. Poderia me haver matado!

            - Oh, sim, sem dúvida, teria o feito facilmente - assentiu Brigitte com um sotaque de malícia. - Talvez, deveria tê-lo mandado fazer. Já antes matou a outros homens que tentaram me atacar. E, com segurança, também tivesse desfrutado desta vez. É totalmente selvagem, sabe?

            - Santo Deus! És tão sanguinária quanto Rowland!

            - E o que você é, nobre lorde? - replicou ela com desdém. - Acaso não veio aqui para me atacar? Suponho que não vê nada de mal em te aproveitar de uma mera servente, né? Porco! - exclamou com fúria.

            - É muito ousada, sua prostituta safada! - grunhiu o homem com um ameaçador brilho nos olhos.

            - Acha mesmo? - Brigitte soltou uma áspera gargalhada, já não estava mais temerosa desse homem. - Sou ousada porque assim o exige minha estirpe. Disse que ouviu falar sobre mim? Pois bem, com segurança, foi mal informado, visto que ninguém aqui conhece minha verdadeira identidade. Eu sou Brigitte de Louroux de Berry, filha do falecido barão de Louroux, agora pupila do conde de Berry e herdeira de Louroux e todos seus domínios.

            - Não pôde resistir em dizê-lo, né?

            Roger e Brigitte se voltaram surpreendidos para encontrar Rowland junto à porta com uma indescritível expressão no rosto.

            - Se tivesse ai o suficiente, Rowland, saberia que só estava explicando a sir Roger a razão de minha ousadia de chamá-lo de "porco".

            A moça falou com tanta calma e simplicidade, que Rowland não pôde evitar e soltou uma gargalhada.

            - É verdade o que esta jovem afirma, Rowland? Perguntou Roger. - Pertence seriamente à nobreza? A resposta de Rowland assombrou a jovem. - Ela é tudo que afirma ser.

            - Então, por que finge ser uma serviçal? Isto é ultrajante!

            - Sente-se ultrajado, Roger? - inquiriu o outro jovem calmamente, enquanto caminhava lentamente pela habitação. - Desejas, talvez, me desafiar pela honra da dama?

            Roger titubeou, tratando de evitar o olhar do outro homem. Brigitte acreditou vê-lo empalidecer. Rowland não se encontrava tão sereno como aparentava. De fato, parecia uma besta enjaulada. Não havia temor nele, só espera. Desejava que o outro o desafiasse... desejava-o com desespero.

            - E bem, Roger?

            - Não te desafiarei, Rowland, não aqui em sua casa. Sei que acha possuir o direito moral de me matar e a ira aumentaria suas forças. Mas está equivocado comigo, Rowland.

            - Não acredito.

            - Mesmo assim, não sou tão besta para brigar contra você agora. Só senti curiosidade de saber por que a dama se encontra aqui com uma identidade falsa.

            Brigitte falou impulsivamente.

            - Isso não é da sua conta, sir Roger.

            - Bem dito, Brigitte - assentiu Rowland com tom gelado. - Mas, não acha que deveríamos esclarecer dúvidas deste bom amigo? Depois de tudo, merece-se algo mais por seus esforços que esse leve arranhão no braço. - Jogou um penetrante olhar ao jovem. - Como foi que recebeu esse arranhão, Roger? Acaso milady se viu forçada a defender-se? É por isso que te chamou porco?

            A moça se interpôs imediatamente entre ambos jovens.

            - Suficiente, Rowland. Sei aonde quer chegar, mas não permitirei que me use dessa forma.

            - Estava muito perturbada quando cheguei - recordou ele com tom severo. - por que razão?

            - Senti-me ofendida pela atitude de sir Roger... muito semelhante à tua - respondeu a jovem com mordacidade, e sentiu prazer ao ver ele estremecer.

            Então, Roger atraiu sua atenção com uma eloqüente reverencia.

            - Se tivesse sabido que era uma dama, mulher, jamais me teria atrevido a te ofender.

            - Essa não é desculpa, sir Roger - disse Brigitte com frieza.

            - Fora daqui, Roger! - bramou Rowland com uma violenta expressão nos olhos. - Encarregarei-me de ti mais tarde se milady não tiver uma inocente justificação para explicar por que te feriu. No momento, só te advertirei que jamais volte a te aproximar dela.

            Roger abandonou imediatamente a habitação. Brigitte se sentia furiosa com Rowland, visto que tinha tentado utilizá-la como desculpa para assassinar a um homem.

            - Milady, né? E desde quando o sou para ti? - inquiriu logo que Roger fechou a porta. - Acredita por fim em mim ou foi só uma farsa frente a ele?

            - Primeiro responderá a minha pergunta, Brigitte!

            - Não! - exclamou ela com obstinação.

            Rowland desviou o olhar.

            - Muito bem. Sim, foi só uma farsa. Preferia que te chamasse mentirosa na frente de Roger?

            - Preferia que seus motivos não fossem tão detestáveis - respondeu a jovem, decepcionada. - Desejava que te desafiasse para poder matá-lo.

            - Isso não o nego! - grunhiu ele, olhando-a fixamente com expressão sombria. - Quando o vi contigo, sentia desejos de trucidá-lo. Entretanto, não queria que se sentisse culpada pela morte dele. Se Roger me desafiasse, só ele seria o responsável.

            - Está exagerando, Rowland - afirmou Brigitte, cada vez mais irritada. - Roger só me beijou e, por isso, recebeu o que merecia.

            O homem se voltou e começou em sua direção.

            - Alegra-me que o tenha feito!

            - Acaso o provocou? - perguntou com voz baixa.

            - Não.

            - Mas o beijo te agradou.

            - Acha que o teria parado se me tivesse agradado? - inquiriu ela com irritação. - Só disse que me tinha alegrado de que isso acontecesse. Esse beijo me demonstrou algo.

            - O que?

            Ela baixou os olhos e sussurrou com uma voz apenas audível.

            - Não me comoveu.

            Esse breve comentário revelou a Rowland, muito mais que mil palavras. Ele compreendeu. Só ele era capaz de excitá-la. Não Roger. Nem, talvez, nenhum outro homem. E que ela tivesse chegado a admiti-lo...

            Aproximou-se lentamente à moça, tomou o rosto entre as mãos e a beijou com doçura. Brigitte sentiu um tremor nos joelhos, uma agitação na boca do estômago; todo seu corpo vibrou. E quando Rowland a elevou entre seus braços para levá-la até a cama, ela não protestou. Essa noite, um mesmo desejo os unia.

            Ela desejava a esse homem. E só esse irresistível desejo ocupou seus pensamentos enquanto ele tirava o vestido com impaciência para tocar sua pele nua. Um homem forte, esplêndido; um homem doce e violento e vingativo; o único homem que desejava abraçar, acariciar, saborear. E quando ele a elevou lentamente até o glorioso momento de êxtase, ela, por um instante, perguntou-se se tinha apaixonado pelo Rowland de Montville.

            O dia amanheceu com um sol brilhante, um motivo de alegria nessas geladas manhãs. Assim que Rowland abandonou a sala para realizar seus exercícios matutinos no pátio, Brigitte saiu em busca de Goda, quem se encontrava na despensa, esfolando um coelho para a comida.

            - Preciso de sua ajuda se estiver disposta, Goda - pediu-lhe Brigitte, ao mesmo tempo que se sentava sobre o banco junto à moça. - Rowland insiste em que deixe de costurar para ele por um tempo e faça um vestido para mim. Mas necessito de ajuda para cortar o gênero.

            - Te ajudarei com agrado, ama, logo que termine aqui. Lady Hedda me impôs esta tarefa e não me atrevo a abandoná-la até ter finalizado.

            A menção da madrasta de Rowland despertou reprimida curiosidade de Brigitte.

            - Seriamente Hedda odeia Rowland? Ele assim afirma, mas acho difícil de acreditar.

            - Oh, certamente. Sempre foi que esse modo. Sir Rowland levou uma vida muito dura aqui. Entristece-me pensar tudo o que sofreu quando era menino.

            - Me fale de sua infância, você já estava aqui?

            - Sim, mas eu era muito pequena para servir na mansão, mas minha mãe sim trabalhava aqui. Oh, quantas histórias trazia ela a minha casa na aldeia. Nessa época, eu acreditava que mamãe só inventava esses contos para me atemorizar e me obrigar a ser boa. Senti-me horrorizada mais tarde quando me inteirei de que todas eram verdadeiras.

            - Que histórias?

            - Histórias de como tratava lady Hedda ao pequeno menino - respondeu Goda e em seguida, calou-se, ao mesmo tempo em que retirava o pele do coelho e a colocava num pote.

            - E bem? - perguntou Brigitte com impaciência. - Não te detenha agora.

            Goda olhou em redor com nervosismo antes de responder.

            - Lady Hedda aproveitava qualquer oportunidade para bater e nem sequer procurava uma razão quando lorde Luthor não se encontrava perto. Ilse e lady Brenda eram como sua mãe, se não pior. Um dia, encontraram lady Brenda açoitando ao menino com um chicote. Ele estava sangrando e inconsciente, mas, ainda assim, ela continuava golpeando-o.

            - Por que? - inquiriu Brigitte, horrorizada.

            - Ele tinha ousado chamar "irmã" a lady Brenda.

            - Santo Deus!

            Goda esboçou um fraco sorriso.

            - O homem levou uma vida muito dura aqui. Uma vez que cresceu com suficiente força para defender-se das damas, teve que lutar com seu pai. E meu lorde Luthor é o professor mais exigente e rigoroso que existe. Se Rowland não era capaz de aprender com rapidez as habilidades que seu pai lhe ensinava, recebia severos golpes por seu fracasso. E também estavam aqui os outros moços maiores, a quem tinha que enfrentar-se.

            Brigitte guardou silêncio, enquanto observava Goda trabalhar. Uma imensa tristeza a embargou ao pensar na terrível vida de Rowland. Sentiu compaixão pelo pequeno menino que tinha sido tão maltratado. Mais que nunca, apreciava agora o aspecto doce de Rowland que ela tinha chegado a conhecer. Era incrível que o homem tivesse conseguido demonstrar um pouco de ternura.

            Uns instantes mais tarde, Brigitte e Goda se encontraram atravessando a sala, ansiosas por empreender a tarefa de cortar o tecido para os novos vestidos. Brigitte se achava concentrada em suas meditações, que quase não percebeu quando chegaram às escadas que conduziam ao piso superior. Mas então, deteve-se quando uma estridente voz interrompeu seus pensamentos.

            - Aonde acha que vai?

            Uma expressão de terror se refletiu no rosto de Goda. Brigitte se voltou para encontrar Hedda caminhando com passo firme para a escada. Ilse a seguia e mais atrás, aproximavam-se sua donzela e Amélia.

            - E bem? - perguntou Hedda, ao mesmo tempo que se aproximava com as mãos em seus ossudos quadris e uma expressão severo nos olhos. - Responde!

            Goda empalideceu, consciente das conseqüências que a seguiriam.

            - Eu...eu...

            A moça não conseguiu terminar sua frase, e Brigitte se enfureceu ao ver sua amiga tão atemorizada.

            - Goda estava me acompanhando para o quarto do meu amo. Informou com tom brusco, sem ocultar seu desagrado pela madrasta de Rowland.

            - Por que razão? Ele não necessita de uma serva.

            O menosprezo da dama irritou a jovem e o risinho afogado das outras três mulheres a enfureceram, mas conseguiu controlar seu arrebatamento de ira.

            - Não foi sir Rowland, fui eu que requeri a ajuda de Goda? explicou calmamente.

            A súbita reação da Hedda a surpreendeu.

            - Você! - bramou a mulher? Por todos os céus! Por amor de Deus...

            - Senhora, não tem razão para te comportar como se cometeu um crime - interrompeu-a Brigitte com tom severo. - Só pedi a Goda que dispensasse um minuto de seu tempo. A moça já tinha terminado sua tarefa. Não estava interferindo em suas obrigações.

            - Silêncio! - gritou Hedda com fúria. - As obrigações de Goda nunca terminam. Seu tempo não lhe pertence. Ela me serve e a todos os que eu lhe ordene servir... mas, certamente, não à prostituta de um bastardo!

            Brigitte soltou uma exclamação. Não se surpreenderia se a dama a tivesse esbofeteado. Os tolos risinhos das outras três mulheres retumbaram com mais e mais intensidade no interior de sua cabeça, e notou que todas se estavam divertindo com a cena.

            - Goda! - exclamou Hedda. - Volta para seu lugar de trabalho. Encarregarei-me de ti mais tarde.

            A moça partiu correndo da sala com lágrimas nos olhos. Brigitte a observou partir, sabendo que se sentiria responsável se castigavam a sua amiga. Entretanto, ela faria algo com ela? Hedda tinha estado esperando uma oportunidade para infligir sua crueldade.

            - E você! - A dama se voltou uma vez mais para Brigitte. - Saia daqui. Estou obrigada a tolerar sua presença quando te encontra perto do bastardo, mas não de outro modo.

            A jovem se ergueu com arrogância, sentindo um irresistível desejo de bater na velha bruxa. Ainda assim, manteve a calma quando falou.

            - Você, senhora, tem os maneiras de uma vaca. - Hedda corou e começou a balbuciar, mas Brigitte prosseguiu. - E qualquer que te chame dama o faz só para burlar-se!

            A moça se voltou, mas antes que alcançasse o primeiro degrau da escada, a mão curva da Hedda a tocou no ombro e a forçou a girar. A mulher a esbofeteou com tanta violência, que a cabeça de Brigitte se sacudiu. As delicadas bochechas da jovem arderam com a marca de tão selvagem castigo, mas ela não se alterou. Permaneceu imóvel, indignada e desafiou à dama com uma expressão depreciativa nos olhos.

            O desdém de Brigitte provocou um alarido em Hedda, habituada a serventes que se jogavam temerosos a seus pés ante o menor arrebatamento de cólera. Com o rosto arroxeado, a mulher voltou a elevar a mão, mas desta foi subitamente sujeita por trás. Em seguida, Hedda foi lançada para o grupo de damas que a secundavam. As quatro mulheres caíram sobre os tapetes ao receber o impacto de seu corpo.

            Ajeitada sobre o chão, sobressaltada, Amélia foi primeira a levantar-se e fugiu, Ilse e sua donzela ficaram então de pé e correram fora da sala sem sequer olhar atrás. Hedda se levantou com dificuldade e se voltou para enfrentar Rowland, que a olhava com expressão furiosa.

            - Se alguma vez voltar a pôr as mãos em cima de Brigitte, matarei-te, velha bruxa! - advertiu-lhe com uma voz capaz de gelar o sangue da dama. - Acabarei com sua depravada vida com minhas próprias mãos! Está claro?

            Em resposta, Hedda soltou um violento grito. Em poucos instantes, os cavalheiros, escudeiros e pajens se aproximaram correndo do pátio, e um vários serventes apareceram de todos as direções na sala. Brigitte subiu nervosa as escadas e se escondeu entre as sombras, aterrorizada. Isto estava acontecendo por sua culpa?

            Ninguém se aproximou dos dois combatentes uma vez que perceberam quem se encontrada enfrentando à ama. Se fosse outro adversário, todos teriam entregado a vida para proteger à esposa do lorde. Mas ninguém ousava levantar-se em contra do filho de Luthor. Todos conheciam a predileção do ancião.

            - Que diabos está acontecendo? - Luthor avançou, abrindo-se passo entre a multidão e franziu o cenho ao ver Hedda e Rowland jogando um ao outro olhadas fulminantes.

            - Luthor! - gemeu Hedda. - Tentou me matar! O lorde se voltou para seu filho para topar-se com a expressão furiosa do jovem.

            - Se tivesse tentado matá-la, a bruxa já estaria morta - grunhiu Rowland. - Adverti-lhe que a mataria se alguma vez voltava a bater a Brigitte. Ninguém toca no que é meu, ninguém! Nem sequer você - concluiu com firmeza. Um silêncio absoluto invadiu a grande sala. Todos aguardavam nervosos a reação do lorde. Não muitos anos atrás, o comentário de Rowland tivesse provocado um severo castigo de seu pai.

            - Ele não é o lorde daqui - apressou-se a dizer Hedda. - Com que direito diz o que pode ou não pode fazer?

            - Cale-se, mulher! - ordenou-lhe Luthor com uma expressão gelada nos olhos e logo, grunhiu: - Fora! Fora todo mundo!

            Imediatamente, suscitou-se uma precipitada carreira para as portas, e Hedda também se preparou para fugir, até que o lorde bramou:

            - Você não, mulher!

            Em um instante, a cavernosa sala ficou completamente vazia, exceto pela presença de Luthor, sua esposa, Rowland e Brigitte, quem se encontrava esquecida nas escadas, muito aterrorizada para mover-se. A moça conteve a respiração. Seria Rowland expulso da mansão? Como ousava falar com seu pai desse modo frente a tão público?

            Entretanto, a fúria de Luthor não estava dirigida para seu filho. O homem lançou sua esposa um golpe tão violento, que a voltou a jogar sobre os tapetes, e logo se aproximou para deter-se aos pés da dama com o rosto avermelhado pela ira.

            - Você obrigou Rowland a formular semelhante ameaça, mulher. Ele está em seu direito, visto que eu não tenho nada haver com essa moça. Só pertence a ele! - O ancião se afastou, aborrecido, para logo prosseguir com tom gelado. - Já te adverti, Hedda, que essa jovem não é teu assunto. Está ligada a Rowland, e ele está obrigado a protegê-la. Acaso supõe que porque é minha esposa não tem que escutar as advertências de Rowland? Mulher, se te matar por causa da moça, juro que não farei nada a respeito. Estará-me tirando de cima uma gangrenosa chaga da que faz anos devia haver liberado. - Ante a sobressaltada exclamação da mulher, o ancião adicionou - deveria me agradecer por não te haver envergonhado diante dos outros com estas palavras, mas este será o último gesto de consideração que receberá de minha parte, Hedda.

            Depois de semelhante advertência, Luthor abandonou a sala.

            Dois dias tinham transcorrido da disputa com Hedda. Dias mais calmos, visto que tanto a dama como sua donzela não se arriscavam a entrar na sala em presença de Brigitte. A moça, não as tinha visto após, e se sentia muito agradada.

            Uma nova tempestade estava se gerando. A última neve ainda não se derreteu e outra tormenta logo engrossaria o imenso manto branco que cobria as terras até o horizonte. Ainda, assim, a escuridão dos dias não conseguia escurecer o ânimo de Brigitte. A moça se sentia feliz. Não entendia a razão, nem tentava compreendê-la. Só se sentia imensamente ditosa. Todos notaram a mudança. Com freqüência, podia ouvir-se sua suave risada. Seus sorrisos provocavam comentários, em ocasiões eles eram tímidos, dissimulados, como a expressão de seus olhos ao topar-se com o olhar de Rowland.

            O velho lorde também o tinha percebido e se sentia agradado. Os jovens marotos estavam apaixonados, pensava o ancião com saudade, rememorando seu primeiro amor, ao que tinha perdido antes de conhecer e desposar a cobra de sua esposa. Luthor jamais tinha esquecido sua Gerda. Tampouco tinha amado a outra mulher. Se tivesse continuado com vida, Gerda o teria brindado com filhos varões.

            Filhos. Um véu de lágrimas sempre surgia nos olhos de Luthor ante essa idéia. Um homem de seu valor, um homem com sua fortaleza devia ter filhos varões. Mas ele só tinha filhas, filhas idênticas condenadamente idênticas a sua condenada mãe. Hedda não havia tornado a conceber depois do nascimento de Ilse; tampouco tinham dado a luz suas outras companheiras de cama.

            Porém, Luthor tinha Rowland, um homem de que podia orgulhar-se, a resposta a todos seus rogos. O que o jovem desconhecia de seu nascimento jamais o machucaria. Não, o segredo morreria com o Luthor, e Montville contaria com um forte, poderoso lorde uma vez que o ancião morresse. Ele mesmo se ocupara disso.

            Rowland roçou apenas a bochecha de Brigitte com um ligeiro beijo. Acabavam de finalizar a comida matutina, e ele riu ante o súbito rubor no rosto da jovem, para logo abandonar a sala. Ela o observou partir com um sorriso, envergonhada embora agradada por essa repentina demonstração de afeto.

            Rowland caminhou apressado para o estábulo, onde Huno aguardava já selado seu exercício matutino, que o jovem rara vez negava a seu prezado cavalo. As escuras nuvens do norte ainda sobrevoavam o horizonte, movendo-se para o este, logo ao oeste e, uma vez mais, para o este, como se não pudessem decidir em que direção desatar a tormenta. A tempestade prometia ser violenta e Rowland rogou que demorasse para chegar, visto que não desejava ver-se apanhado em uma espessa cortina de neve.

            Huno recebeu com um potente bufo ao seu dono, que lhe falou com tom alegre, ao mesmo tempo em que o conduzia fora do estábulo. O cavalo parecia nervoso.

            Sir Gui encontrou Rowland na entrada, enquanto levava seu próprio cavalo às cavalariças. Ambos os jovens se detiveram para falar, mas um incômodo silêncio se produziu entre os dois velhos amigos.

            - Saíste cedo, né? - comentou Rowland a modo de conversação, desejando que Gui, por uma vez, respondesse com tom amigável.

            O conciso "sim" de seu amigo o decepcionou e observou as costas dele; encolheu-se, com irritação, dispôs-se a montar em seu cavalo. Mas imediatamente trocou de opinião e seguiu Gui para o estábulo.

            - O que aconteceu, amigo? - perguntou. - Acaso não acreditou nas palavras de Brigitte aquela noite?

            Gui não desejava responder, mas ao ver a dor e confusão refletidas no rosto de Rowland, enterneceu-se.

            - Se a relação entre vocês tivesse sido então melhor agora, poderia lhe haver acreditado. Mas não me enganaram, Rowland. Foi um gesto muito louvável seu ao mentir para impedir a morte de um de nós... minha morte - admitiu. - Sou consciente de que minhas habilidades não podem ser comparadas com as tuas.

            - Maldição! - exclamou Rowland com exasperação? Por que, então, não voltou a me desafiar?

            - E ignorar assim os esforços da dama? - perguntou Gui, sobressaltado.

            A nota de amargura no tom de seu amigo perturbou Rowland.

            - Eu não a maltrato, Gui. Você mesmo pode ver que a jovem é feliz. Acaso não compreende que me condenaria e a nosso amor se admitisse que ela é o que afirma ser? Mas você desconhece as circunstâncias. Levei-a de Louroux e ninguém me impediu isso. Brigitte foi entregue pela força. Se na verdade fosse a filha de um barão, acha que tudo tivesse acontecido desse modo? Maldição, Berry inteiro se encontraria aqui agora exigindo a liberação da jovem!

            Gui cerrou os olhos com fúria.

            - E quem diz que isso não ocorrerá? Como sabe, ela tem a errônea idéia de que enviou um mensageiro ao Berry. Mas eu sei que não foi assim!

            Rowland afogou uma exclamação.

            - E como sabe?

            Gui encolheu os ombros, feliz ante a perturbação de seu amigo.

            - Considerando a fofoca dos serventes, é surpreendente que a mesma dama ainda não se inteirou de seu engano. Pergunto-me como reagirá quando o descobrir. Acredita que continuará vendo-se tão feliz?

            - Brigitte já não tem desejos de me abandonar - afirmou Rowland, tenso.

            - Está seguro?

            Por um instante, o filho de Luthor desejou depositar seu poderoso punho sobre o sorriso zombador de seu amigo. O impulso foi intenso, mas conseguiu controlá-lo e só deixou escapar um rouco grunhido de fúria, para logo jogar-se sobre a sela de Huno, desejoso de pôr a maior distancia possível entre ele e o homem que tinha expressado suas próprias dúvidas.

            Cavalgou velozmente para o pátio, interrompendo os exercícios de um cavalheiro e seu escudeiro. Rowland insistiu cruelmente seu cavalo para avançar para o campo aberto.

            Porém, pela primeira vez em sua vida, o homem perdeu o controle de seu cavalo. O potro girou em uma pronunciada curva, passou frente às estabelecimentos da servidão atirando lodo a cada passo, voltou a galopar para o pátio, perturbando as práticas dos guerreiros que lutaram por se esquivar da gigantesca besta e, finalmente, lançou-se em louca carreira sem rumo determinado.

            Rowland se sentiu alienado. Não conseguia controlar ao animal, e o cavalo parecia cego em seu desenfreado avanço para o muro de pedras que circundava a mansão. Só no último instante, girou Huno para galopar enlouquecido para a parte posterior da casa. Assim que chegou ao imenso pátio traseiro, o cavalo começou a corcovear violentamente em um desesperado tento de jogar cavaleiro. E, por fim, conseguiu. Rowland saiu voando por cima de Huno para aterrissar no lodo. Então, rodou com incrível velocidade para esquivar das pernas do animal, cujas patas dianteiras estiveram a ponto de lhe destroçar o ombro.

            O jovem se sentou com lentidão, dolorido, para observar seu prezado cavalo, que continuou corcoveando de modo selvagem durante vários minutos até que, finalmente, se acalmou. Rowland não se sentiu irritado pela vergonha de ter sido jogado de seus arreios. Só experimentou uma terrível sensação de perda, ao perceber que Huno tinha enlouquecido e deveria ser sacrificado. A só idéia esmagou seu coração. Esse cavalo era objeto de seu orgulho, o mais fino cavalo de toda Montville. Jamais voltaria a possuir outro como ele.

            Vários homens correram dos distintos pátios para rodear Rowland, quem, lentamente, ficou de pé. Uns criados se aproximaram com cautela ao cavalo, mas ele os ordenou deter-se. Huno deveria ser sacrificado, mas só ele, nenhum outro, cravaria a faca no pescoço.

            Sir Gui se aproximou e lhe ofereceu um lenço para limpar o lodo das mãos e rosto.

            - Está ferido?

            Rowland sacudiu a cabeça.

            - Só um pequeno arranhão, é tudo.

            - Meu Deus, o que pôde ter causado isto? Jamais vi um cavalo tão possuído. Cães e lobos, talvez, mas nunca um cavalo e menos ainda, este!

            - Está possuído - confirmou Rowland com idêntico assombro.

            A dor nos olhos de seu amigo revelou ao Gui a tarefa que devia executar-se.

            - Rowland, sinto muito. Preferiria que eu...?

            - Não - interrompeu o jovem e, depois de extrair a adaga de seu cinturão, começou a caminhar com passo lento para o cavalo.

            Gui se apressou a segui-lo.

            - Ao menos, me permita te ajudar. Pode ser que não consiga mantê-lo quieto.

            Rowland assentiu e juntos se aproximaram do espantadiço animal. Huno se afastou inquieto, agitou as patas no lodo e fez girar os olhos de modo selvagem, mas finalmente a voz serena de seu dono o acalmou o suficiente para que o jovem pudesse sujeitar as rédeas.

            - Tirarei os arreios - ofereceu-se Gui. - Será difícil retirar os arreios... depois.

            Rowland lhe lançou um olhar penetrante.

            - Ao diabo com os arreios! O cavalo... ah? gemeu, afundando os ombros, derrotado.

            - Faz-o, então. Eu o sujeitarei.

            Seu amigo retirou com cuidado a sela para entregar a um criado. Um profundo silêncio invadiu o pátio quando todos observaram tensos a preparação de Rowland para cortar o pescoço de seu adorado cavalo. E, em meio desse silêncio, o agudo chiado de sir Gui soou como um trovão.

            Ao ver o sangue e as puas afundadas no lombo de Huno, Rowland sentiu um imenso alívio. Porém, essa reconfortável sensação logo se dissipou e uma terrível ira parou em seu coração, já que tinha estado a ponto de sacrificar injustamente a seu prezado cavalo. Se Gui não tivesse retirado os arreios, ele tivesse descoberto as puas muito tarde.

            - Roger - resmungou ele.

            Gui que se encontrava a seu lado conseguiu perceber o arrepio que percorreu o corpo de seu amigo ao pronunciar o nome de seu adversário.

            - Rowland, não pode afirmar isso.

            Mas ele não pareceu ter ouvido. Voltou-se sobre os calcanhares e começou a caminhar para a mansão.

            - Rowland, me escute - suplicou-lhe Gui com ansiedade, movendo-se depressa para alcançar os largos passos de seu amigo. - Não tem nenhuma prova!

            Rowland parou e se voltou, obtendo logo que controlar-se. Tinha muito ódio para descarregar, mas não sobre sir Gui.

            - Tampouco tenho dúvidas.

            - E se está equivocado?

            - Já trataste duas vezes de defender a esse patife. Não esbanje seus esforços, Gui - advertiu-lhe. - Sua intenção era me romper o pescoço, ou matar a meu cavalo. Toda minha vida fui culpado por algo que não era responsável e estou cansado.

            - Mas, se está seriamente equivocado? - insistiu seu fiel amigo.

            - Francamente, não me importa. Já faz muito tempo que deveria ter liquidado Roger.

            Rowland continuou seu caminho para a sala com a firme determinação. Desta vez, sir Gui decidiu não lhe seguir. Apenas deixou escapar um suspiro. Mesmo que Roger não fosse o responsável por essa espantosa ação, era, sem dúvida, culpado de muitas outras faltas igualmente terríveis.

 

            Com os braços carregados de roupa, Brigitte abandonou o quarto de Rowland, fechou a porta com o pé e começou a caminhar pelo corredor. De repente, deteve-se quando viu Roger de Mezidon sentado na janela arqueada que dava a grande sala. Ele não olhava para o piso inferior, a não ser diretamente para a moça, como se tivesse estado aguardando-a.

            Imediatamente, a jovem se voltou e deixou escapar um grunhido ao perceber que Wolff não a tinha seguido, mas tinha ficado encerrado na habitação. Brigitte sentiu desejos de jogar a carga de seus braços e correr, mas Roger se levantou e foi ao seu ao encontro. Ela, entretanto, não perdeu a calma: sem dúvida, o homem não seria tão besta para ignorar as severas advertências de Rowland.

            - Caramba, lady Brigitte - começou a dizer Roger com desdém. - Vejo que não só finge ser uma servente, mas também além disso representa à perfeição seu papel. Pergunto-me por que.

            - Me deixe passar.

            - Não me ignore, milady, quando te estive aguardando com tanta paciência. Já tinha começado a abandonar a esperança de te encontrar alguma vez sem a escolta de alguma de suas bestas. O lobo e o leão sabem vigiar muito bem.

            - Estou segura de que Rowland se divertirá com sua descrição - afirmou a jovem. - Já inclusive posso ouvir suas estrondosas gargalhadas.

            - Joga comigo, milady - disse Roger com irritação. - Acaso acha que temo a esse caipira?

            Ela arqueou uma sobrancelha.

           - Mesmo? É, vejo que não, visto que não atendeste as advertências de Rowland. Vive se arriscando, milord. Algum dia, sua sorte não o acompanhará.

            - Não esbanje seus sarcasmos, mulher. - O homem não tentou dissimular seu aborrecimento - Reserva-os para o Rowland que é capaz de enternecer-se com suas palavras.

            Ele estendeu os braços para tomá-la, mas Brigitte retrocedeu imediatamente com uma expressão ameaçadora nos olhos.

            - Se me tocar, gritarei. É desprezível!

            - Pode ser, mas, ao menos, eu estaria disposto a te converter em minha esposa.

            - Sua esposa?

            - Parece surpreendida. Acaso Rowland não te valoriza o suficiente para te propor matrimônio?

            - Ele não sabe...

            A moça parou de repente, sobressaltada ante seus próprios esforços por defender a atitude de Rowland. Acaso ele não a respeitava? Ela se entregou por completo e, talvez, por essa razão ele a considerava vulgar, desdenhável. Jogou a Roger um intenso olhar de ódio por haver despertado a dúvida e falou com firmeza.

            - Já disse tudo...

            Uma voz que ambos reconheceram bramou o nome de Roger da sala, sufocando as palavras de Brigitte. A moça observou seu acompanhante e pôde perceber seu temor. Uma vez mais, Rowland tinha ido em seu resgate. Entretanto, ele não podia saber que Roger a tinha interceptado. Haveria acaso alguma outra razão que pudesse provocar o tom sinistro na voz de seu amigo?

            Rowland apareceu no final do corredor, logo depois, voltou-se para os jovens, proferindo um grito de ira.

            Brigitte se paralisou e conteve a respiração quando as imensas mãos de Rowland se fecharam ao redor do pescoço de seu antigo inimigo. As resistências de Roger fizeram cambalear a jovem, que caiu no chão, esparramando toda a carga no chão. Quando voltou a olhar aos dois homens, Roger estava a ponto de ser asfixiado, já que não conseguia liberar-se dos poderosos dedos de seu agressor. A moça sentiu náuseas ao perceber que se estava presenciando um assassinato. Não podia tolerar a só idéia de que Rowland fosse seriamente capaz de matar seu adversário.

            - Pare! - exclamou Brigitte, quando já não pôde suportar o horrendo espetáculo.

            Rowland elevou então os olhos, permitindo ao Roger a oportunidade de levantar ambos os braços e, depois de liberar-se, atirando um violento murro na mandíbula de seu oponente. Entretanto, Rowland não se moveu, nem sequer um centímetro. Aterrorizado, Roger encurvou as pernas para lançar um feroz chute, que aterrissou no peito de seu adversário, jogando o jovem para a janela arqueada. Brigitte soltou um potente grito ao ver o Rowland desaparecer atrás da abertura.

            A moça fechou os olhos, recusando-se a aceitar que Rowland tinha sido derrotado. Quantas vezes ela parou em frente a janela para olhar para a sala, antes de descender pelas escadas? A arcada se achava a uma altura mortal do duro piso de pedra do gigantesco salão. E Roger o tinha empurrado! Roger!

            Brigitte voltou a abrir os olhos, mas Roger já não se encontrava a seu lado, mas se achava de pé, junto à janela, olhando para baixo com perversa satisfação. Ao observar ao jovem contemplando a seu inimigo através da arcada, a moça se sentiu dominada por um repentino desejo até então desconhecido: o terrível desejo de matar. O impulso assassino continuou enquanto se levantava e avançar lenta e cautelosamente. Enquanto se aproximava, teve tempo de considerar que estava a ponto de cometer um crime. Entretanto, não parou, mas sim estendeu ambos os braços para sua possível vítima.

            Roger, ainda de pé frente à janela, continuava imóvel, observando com malícia. Brigitte tratou de infundir-se coragem. Suas mãos se encontravam a escassos centímetros das costas de seu inimigo e só precisava inclinar-se. Mas nesse instante, Roger se agachou e começou a bater a saliente da janela com os punhos. Foi então quando a moça percebeu os dedos obstinados no bordo. Eram os dedos de Rowland! Ele tinha conseguido segurar-se na borda da janela e agora Roger estava tratando de lhe soltar.

            Brigitte, mais tarde, perguntaria de onde tinha extraído forças para afastar Roger da janela e jogá-lo para as escadas, permitindo a Rowland a oportunidade que necessitava para subir para a salvação. Depois de vários tombos sobre os degraus de pedra, Roger se levantou ileso e se lançou à fuga, seguido por toda a velocidade seu adversário.

            Rowland conseguiu alcançá-lo no estábulo e, imediatamente, Roger saiu voando através das portas abertas para deslizar-se vários metros no pátio enlodado e receber, um segundo mais tarde, o peso de seu adversário, que se equilibrou de um salto. Logo se congregou uma multidão ao redor de ambos os combatentes e, um instante depois, Brigitte chegou também ao lugar da cena. Ali se encontrava Luthor, observando a seu filho matar a seu inimigo só com as mãos, e a seu lado, achava-se sir Gui, também presenciando a luta. A moça correu para eles e afundou os dedos no braço do lorde, quem se voltou com uma expressão inescrutável nos olhos.

            - Não vais detê-los? - suplicou-lhe ela com veemência.

            - Não, mulher - respondeu o ancião brevemente, antes de voltar-se uma vez mais para o sangrento espetáculo.

            - Por favor, Luthor!

            Se a ouviu, ele soube dissimulá-lo. A moça voltou a olhar aos dois combatentes. Roger já não se movia, mas os punhos de Rowland continuavam esmurrando-o sem compaixão.

            Brigitte se voltou e, com lágrimas nos olhos, começou a correr para a sala. Não conseguiu ver Rowland deter o ataque; tampouco lhe viu abandonar o pátio.

            Roger se encontrava seriamente ferido, mas ainda continuava com vida.

 

            Brigitte passou o resto do dia trancafiada no quarto de Rowland, meditando, chorando e amaldiçoando ao jovem. De noite quando se inteirou de que ele não tinha matado Roger depois de tudo.

            Goda lhe comunicou a notícia. Rowland a tinha enviado para chamar Brigitte a grande sala. Em geral, ele mesmo estava acostumado a escoltá-la até a mesa na hora do jantar, mas essa noite tinha enviado à criada. A jovem não demorou para averiguar o porquê.

            - Sir Rowland está bêbado, ama - informou-lhe Goda com relutância. - Entregou-se à cerveja logo que lorde Roger foi conduzido através da entrada por seu escudeiro. Em boa hora nos liberamos desse!

            - Mas estava bem?

            - Está muito mal-humorado e não faz mais que amaldiçoar a todos - respondeu a criada. - Mas se encontra bêbado. Não acredito que saiba o que diz.

            - Referia ao Roger. Encontrava-se bem quando se foi?

            - Considerando os fatos, sim - respondeu Goda. - Tem o rosto terrivelmente inchado e alguns ossos quebrados... um dedo e umas costelas, conforme acredito. Mas logo sanará... é uma lástima.

            - Isso é cruel, Goda - repreendeu-a Brigitte e, logo deixou escapar um suspiro de pesar. - Me perdoe, não sou eu a mais indicada para julgar, quando quase estive a ponto de matar ao Roger.

            - Quando foi isso? - inquiriu a criada com os olhos dilatados pela surpresa.

            - Esta manhã - reconheceu Brigitte. - Quando se iniciou a luta.

            - Mas sir Rowland não morreu. Por que está então tão perturbada?

            - Por quê? - perguntou a jovem, elevando a voz. Como pode me perguntar por que? Roger é um homem mau, mas mesmo assim, sentiu-se apavorado frente a Rowland. Não foi uma briga justa e isso é o que me adoece. Rowland estava muito encolerizado para que fosse justa. Desejava ver sangue e o conseguiu. Tentou matar ao Roger com suas próprias mãos.

            Goda lhe colocou brandamente uma mão no ombro.

            - Acaso você não tentou o mesmo?

            - Isso foi diferente - afirmou Brigitte com tom gelado. - Acreditei que Rowland tinha morrido.

            A criada partiu um instante mais tarde, e Brigitte se deixou cair sobre uma cadeira. Não, não desejava reunir-se com o Rowland na sala, não quando se encontrava embriagado.

            O homem, entretanto, não se achava tão bêbado como para não perceber que algo mau estava acontecendo. Goda retornou sozinha à sala. Por que Brigitte não tinha respondido a suas chamadas? Franziu o cenho com expressão sombria. A resposta não demorou para chegar. Tratava-se da mesma razão que lhe tinha mantido enchendo uma e outra vez seu copo de cerveja, a mesma razão pela que tinha permanecido na sala, temeroso de ficar frente à jovem. Brigitte já conhecia seu engano. Com segurança, alguém o tinha contado. Talvez, o mesmo Roger. Por que outra razão poderia o patife ter procurado à moça quando tinha advertido que se mantivesse afastado? Sim, isso era. Brigitte sabia que Rowland não tinha completo com o trato, que jamais tinha enviado ao mensageiro para o castelo de Arnulf.

            Ele afundou a cabeça entre os braços e exalou um profundo suspiro. Por que tinha que acontecer isso quando tudo parecia estar tão bem? Ao diabo com esse maldito dia! Entretanto, já nada podia fazer mais que apresentar-se ante a jovem. Ela o consideraria um mentiroso e se sentiria furiosa, mas tinha que vê-la. Rowland abandonou a sala. Uns segundos mais tarde, entrou em seu quarto para encontrar a Brigitte arrumando seus pertences, os poucos artigos que tinha levado consigo ao mudar-se à habitação do homem.

            Ao ver a jovem empacotar, Rowland se sentiu desolado. Percebeu que a perdia. Soube que voltaria a separar-se e a só idéia lhe resultou intolerável.

            Brigitte se dignou a olhar lhe brevemente, para logo retirar os olhos imediatamente.

            - Claro que sim. Roger se foi. Já não há razão para que continue dormindo neste quarto. Por ele quis que me mudasse aqui, não foi assim?

            - E se te suplicasse que ficasse? Sei que veio aqui pelo Roger, mas...

            - Embora insista, não desejo permanecer nesta habitação, não depois de hoje.

            A moça falou com voz de gelo e isso lhe desalentou ainda mais.

            - Brigitte compreendo que esteja zangada...

            - O que sinto é muito mais que simples aborrecimento. - Corrigiu a jovem com rudeza.

            - Então, me amaldiçoe. Mas acaba com isto de uma vez. Se pudesse retirar a mentira, juro-te que o faria.

            - Mentira? - perguntou ela, confundida.

            Ao advertir a surpresa da moça, Rowland tivesse desejado morder a língua. Mas se não era o engano o que lhe tinha irritado, então...

            - Por que está zangada? - Brigitte ignorou a pergunta.

            - Que mentira, Rowland?

            Ele se fingiu inocente. - Do que está falando?

            - Você...Oh! - exclamou a jovem - Nego-me a falar contigo quando está bêbado!

            Brigitte começou a caminhar para a porta, esquecendo seus pertences, mas ele lhe adiantou para interpor-se em seu caminho.

            - Por que está tão zangada? - inquiriu, tratando de produzir um tom gracioso. - Porque bebi muito?

            - No que a mim respeita, pode te afogar em cerveja se assim o desejar - resmungou ela com um brilho nos olhos. - Sua brutalidade é o que me consterna. Foi selvagem hoje em sua sede de sangue. Quase assassinas ao Roger!

            - Mas não o matei, Brigitte - observou o jovem com suavidade. Ainda quando o tentava, não conseguia compreender a fúria da jovem.

            Rowland elevou uma mão para acariciar a bochecha, mas ela se afastou.

            - Não posso tolerar que me toque depois de presenciar semelhante crueldade.

            Ele finalmente perdeu a compostura.

            - Atreve-te a apoiar a esse canalha em meu contrário! Minhas carícias te repugnam, né? Droga, mulher, não faço mais que te proteger. É uma servente e, ainda assim, trato-te como a uma rainha. Sou seu senhor, e, entretanto, condena-me!

            - Eu não pedi seu amparo - apressou-se a esclarecer Brigitte.

            - Santo Deus! Então, eu o retiro, e já veremos como vai sem minha defesa!

            - Rowland!

            - Sua deslealdade me aborrece. Droga! - bramou ele. - Sofri os piores castigos nas mãos de Roger quando era mais jovem. Agora que, finalmente, posso lhe devolver seu castigo, condena-me e diz que não pode tolerar minhas carícias.

            - Rowland, por favor - gemeu Brigitte. - Não foi minha intenção parecer desleal.

            - Troca de tom agora porque tem medo, mas conheço seus verdadeiros sentimentos! - A ira do jovem era infinita - Sai daqui, Brigitte. Darei-te o que desejas. Já és livre, livre de mim!

            A moça sentiu um nó entupido na garganta e não pôde articular nenhuma palavra. Imediatamente, tomou seu maço de pertences e correu fosse da habitação.

            Uma vez que teve fechado a porta, desatou-se em lágrimas. O que tinha feito? Por todos os céus, o que tinha feito?

 

            - De modo que Rowland quebrou seu vínculo contigo?

            Brigitte se encontrava agitando distraidamente a tigela do café da manhã, nervosa sob o olhar inquisidor de Luthor. A moça não se atrevia a olhar ao ancião. Achava-se sentada no banco onde comiam os serventes, o qual indicava a todos que algo mau acontecia entre ela e o filho do lorde. E a aparente indiferença de Rowland para a jovem o confirmava. Luthor conhecia toda a história, visto que seu filho lhe confiara.

            - Não foi dura com ele? - perguntou o ancião, de pé junto ao banco da servidão, com o olhar fixo nela.

            Brigitte manteve a cabeça encurvada, incapaz de lhe olhar.

            - Sim, fui muito dura.

            - Por que, mulher? - inquiriu Luthor com doçura. - Ele não tinha feito nada do que tivesse que envergonhar-se.

            - Agora me dou conta - confessou Brigitte. - Muitas coisas perturbadoras aconteceram com muita rapidez ontem e me senti confundida e zangada.

            - E agora é meu filho quem se encontra de um péssimo humor. Talvez, se lhe dissesse o que acaba de me confessar, ele compreenderia.

            Brigitte olhou por fim ao ancião.

            - Você não acha isso mais que eu. Machuquei-o, e agora deseja ver-me sofrer por isso.

            - Rowland finalmente cederá - afirmou Luthor com voz áspera.

            - Talvez - assentiu ela com saudade e seus claros olhos azuis ficaram marejados. - Mas eu não estarei aqui quando isso aconteça.

            - E onde estará, mulher?

            - Já não posso permanecer aqui por mais tempo. Hoje mesmo partirei.

            - A pé?

            - Não possuo um cavalo, milord.

            Luthor sacudiu a cabeça com determinação.

            - Não permitirei que abandone Montville a pé.

            - Todos aqui aceitaram os direitos que Rowland, afirmou possuir sobre minha pessoa, e agora devem admitir que já não tenho senhor porque ele me conferiu a liberdade. Ninguém aqui pode me impedir que vá aonde me agrade.

            - Eu sim - afirmou o ancião, irritado. - Como amo deste lugar, não posso permitir que tente algo tão imprudente como caminhar daqui até o próximo feudo.

            - Uma vez solicitei sua ajuda, milord, e me negou isso. Agora me oferece isso, quando não a desejo.

            - Mas aquela vez me pediu para me opor ao meu filho - recordou-lhe o lorde.

            - Ah! Não é minha segurança o que se preocupa, a não ser Rowland. Quer me reter aqui porque acha que ele trocará de opinião.

            - Estou seguro disso.

            - Devo interpretar, então, que me está oferecendo seu amparo?

            - Sim.

            - Sua intromissão desgostará a Rowland , milord. Ele espera que eu parta.

            - Tolices - resmungou o ancião. - Meu filho logo voltará para seus cabais.

            Brigitte se encolheu os ombros.

            - Muito bem. Ficarei por um tempo. De todos os modos meu senhor logo enviará alguém para me buscar. Então, terá que me deixar partir ou te arriscar a iniciar uma guerra com o conde Berry.

            - Que demônios quer dizer? - perguntou Luthor.

            A moça sorriu.

            - Rowland enviou um mensageiro para o Berry para indagar a respeito de minhas afirmações. Ele se inteiraráe então de que sou na verdade a filha do falecido lorde de Louroux. Quando o conde Arnulf envie por mim, seu filho saberá por fim que não lhe menti e que tudo isto não foi mais que um lamentável engano.

            - Um mensageiro, é? - pensou o ancião em voz alta. - Rowland te disse que tinha enviado a alguém?

            - Sim - respondeu a jovem - Essa foi sua parte do trato, se eu prometesse não tentar escapar outra vez.

            - Já vejo. - Luthor adotou um ar pensativo - Se dá conta de que a prova de suas afirmações poderia prejudicar Rowland. Ele é um homem de honra e aceitará qualquer punição que imponha Arnulf. Se o conde exigir um combate mortal contra um cavaleiro de Berry, meu filho aceitará. Ele poderia morrer.

            - Não! - exclamou Brigitte com veemência. - Não permitirei que isso aconteça. Seu filho não é absolutamente responsável por tudo isto. Alguém mais é o culpado. E eu... Eu não desejo que nada mau ocorra a Rowland.

            - Bom, só nos resta aguardar e ver o que nos proporciona o futuro. - O lorde soltou um breve risinho. - Talvez, você nos abandone, ou possivelmente, permaneça aqui para que suas relações com meu filho voltem a ser como antes.

            - Minha relação com Rowland nunca voltará a ser como antes.

            - Isso nós veremos. O certo é que não passarão muitos dias antes que Rowland ceda. - Vaticinou Luthor, agitando um dedo frente ao rosto da jovem - Recorda minhas palavras, mulher.

            Brigitte franziu o cenho. Apenas um instante atrás, o lorde se viu preocupado pelas possíveis conseqüências que poderia conduzir a ira do conde Arnulf e, agora, parecia incrivelmente sereno. Sem lugar a dúvidas, esse era um homem muito estranho.

            Ao mesmo tempo em que o ancião começou a afastar-se, ela decidiu falar subitamente.

            - Aceitarei seu amparo, milord, mas não estou disposta a te servir.

            Luthor se voltou, observou à moça por um instante e logo, deixou escapar uma estrondosa gargalhada.

            - Não pretendo que me sirvas, mulher. É livre de fazer o que te agrade. Só peço que não tente abandonar Montville sem escolta.

            - E lady Hedda? Manterá afastada de mim?

            - A dama não te incomodará. - Depois de inclinar a cabeça a modo de zombadora reverência, Luthor se retirou. Brigitte se sentiu imensamente aliviada. Não tinha desejado abandonar Montville sem um cavalo. Agora poderia esperar ao conde Arnulf ou a seu emissário para retornar a casa. Pouco depois, abandonou a sala para dirigir-se para seu quarto. Ali tinha passado uma miserável noite, em solidão. Rowland se encontrava no pátio quando ela apareceu. Ele a viu e ela parou, mas ele em seguida se virou. Brigitte lhe lançou um breve olhar e continuou apressada seu caminho.

            Com infinito pesar, fechou a porta de seu pequeno quarto. Sentia-se completamente infeliz. Sentou-se sobre a cama e gemeu.

            Não deveria me importar. Mas sim... sim me importo! Chorou durante o resto da manhã, deitada sobre a cama. Perto do meio-dia, arrastou-se até o velho armário, onde tinha jogado seu maço de pertences a noite anterior. Examinou seus vestidos e decidiu lavá-los, inclusive o de linho azul, que não tinha usado desde que tinha visto o Rowland pela primeira vez. Acariciou as brilhantes safiras e se perguntou como reagiria ele se a via entrar essa noite na sala vestindo esse mesmo traje. Deixou escapar um suspiro. Só ocasionaria dificuldades.

            Inclusive, poderiam acusá-la de havê-lo roubado. Mas, mesmo assim, o lavaria.

            Empilhou os vestidos sobre um braço e caminhou para a porta, mas quando a abriu, encontrou a Amélia do outro lado, que a observava com um brilho perverso nos olhos.

            - O que quer?

            Amélia riu intensamente, sacudiu sua acobreada cabeça, depois de cruzar-se de braços, apoiou-se contra o marco da porta para lhe impedir o passo.

            - Ainda segue sendo uma prostituta arrogante, né? Suponho que acha que ele voltará a te levar a sua cama, não é assim?

            Brigitte se ruborizou, mas tratou de ocultar sua perturbação. Jamais conseguiria habituar-se ao desatino de Amélia. Entretanto, não permitiria que essa jovem percebesse quanto a perturbava com sua vulgaridade.

            - Como quer que te responda? - perguntou calmamente. - Certamente, poderia faze-lor retornar para mim se assim o desejasse, mas não é esse meu desejo.

            Os olhos da outra moça se dilataram, para logo cerraram-se.

            - Mentirosa! Ele terminou contigo. E não levou muito tempo para cansar-se de ti. - Soltou uma gargalhada irônica?. Eu tive muito mais que você, e ele voltará a ser meu. Rowland me desposará, não com uma frígida prostituta francesa que não sabe como lhe agradar. Vê que logo ele se cansou.

            Brigitte sentiu um intenso ardor nas bochechas. Em contrapartida de seus impetuosos esforços por manter-se indiferente, Amélia tinha conseguido machucá-la.

            - Eu conheci a um só homem, Amélia - apressou-se a afirmar, incapaz de controlar-se. - Talvez, agradará-te acreditar que não consegui lhe agradar, mas eu sei que não é assim. Era virgem quando me topei com Rowland, e ele sabe. Você não poderia dizer o mesmo, ou pode?

            - Cadela!

            Brigitte riu com sarcasmo.

            - Bom, talvez eu seja uma cadela, mas das duas, você é a prostituta. Ouvi o que se comenta sobre ti e com segurança, as mesmas intrigas chegaram também para ouvidos de Rowland.

            - Mentiras! Todos eles mentem! - exclamou Amélia com seus olhos pardos cheio de ira.

            - Oh, acredito que Rowland sabe muito a respeito de ti, Amélia - afirmou Brigitte com voz grave.

            - Pois há algo que você não sabe - chiou a outra jovem com fúria. - Ele te enganou, e nunca me mentiu! - Esboçou um amplo sorriso de satisfação ao advertir a evidente confusão da outra moça. - É uma anta! Todo mundo aqui conhece o trato que vocês fizeram. A pequena Goda não faz nada melhor que fofocar. Todos sabem que Rowland não cumpriu com sua parte do trato. Tão pouco lhe importa, que simplesmente não se incomodou em cumpri-lo.

            Brigitte fechou as mãos em um punho com tal violência que machucou as palmas com as unhas.

            - Quer dizer que não enviou um mensageiro para Berry?

            - Claro que não. Por que teria que fazê-lo? - Amélia esboçou um presunçoso sorriso. - Que ingênua é.

            - Isso não é verdade! - exclamou Brigitte e, depois de jogar os vestidos sobre a cama, esquivou à outra jovem e correu para o pátio em busca de Rowland.

            Ele se encontrava perto do estábulo, montado sobre um cavalo. Não era Huno, visto que o animal ainda não se recuperou de suas feridas.

            A moça correu para Rowland e gritou sem mais preâmbulo:

            - Cumpriu sua parte do trato? Enviou o mensageiro ao conde Arnulf?

            - Não - respondeu ele de modo categórico e um leve brilho nos olhos.

            Fez-se um breve silêncio e, logo, a jovem deixou escapar um lastimoso chiado.

            - Por que não?

            - Pareceu-me uma petição absurda - respondeu o homem sem rodeios, tratando de dissimular sua vergonha.

            - Tanto que me menospreza, que não te importou em mentir, não é?

            Rowland se inclinou para a jovem com seus olhos azuis escuros como a noite, mas antes que pudesse responder, ela prosseguiu.

            - É um canalha! Nunca te perdoarei!

            O homem fez girar seu cavalo e se afastou sem formular comentário. Essa aparente indiferença irritou imensamente à moça.

            - Odeio-te, Rowland! - gritou-lhe à figura que se afastava mais e mais. - Que seu castigo venha com força! Cretino, cretino, cretino!

            Uma das mãos a conduziram de retorno para seu quarto, mas ela não as sentiu. Durante um longo tempo, não sentiu nada, nada absolutamente.

            Essa noite, Rowland passeou pelo pátio como um leão enjaulado. Aproximou-se uma, dois, três vezes ao quarto de Brigitte para logo, afastar-se abruptamente. Em cada ocasião, ouviu seu pranto e retrocedeu. Não era o momento de lhe suplicar o perdão. Ela necessitava tempo.

            E, essa mesma noite, o homem teve o velho perturbador sonho de sua infância. Mas, desta vez, ao despertar, sentiu que já começava a compreendê-lo. Esta vez, realmente tinha perdido o que mais amava no mundo.

 

            Já tinham transcorrido três dias, e Brigitte se sentia exausta quando chegou por fim ao seu destino. Tinha cavalgado sem cessar durante os dois primeiros dias e chegaria a Angers essa manhã se não tivesse desatado uma tormenta. Por fortuna, tinha deixado atrás o mau tempo ao cair da tarde. A partir de ali, a marcha se tornou mais lenta e penosa: era duro cavalgar sobre o espesso manto de neve, perdendo de vista a Wolff uma e outra vez. Porém, a pior parte da viagem tinha finalizado.

            Encontrou uma cama morna no monastério, embora, ao ser tomada por uma pobre camponesa, não obteve uma habitação privada, mas sim teve que compartilhar um imenso dormitório. Ainda assim, era uma cama, e se sentia muito cansada para protestar. Não contava com dinheiro para pagar algo melhor e, depois de tudo, não era mais que uma mendiga. Entretanto, pela manhã, solicitaria uma audiência com o conde de Anjou. Não o conhecia, mas, sem dúvida, o homem lhe ofereceria ajuda uma vez que lhe tivesse contado a história. Assim, a jovem dormiu, segura de que, pela manhã, encontraria por fim sua salvação.

            Lamentava ter enganado ao amável sir Gui mediante uma suja artimanha, mas, de ter conhecido seus planos de fuga, jamais teria permitido levar um cavalo.

            Logo chegou a manhã. Brigitte solicitou um quarto privado e água para lavar-se, ante o que, o jovem clérigo franziu o cenho, mas mesmo assim, satisfez suas demandas. A moça passou duas horas no banheiro, arrumando-se com especial cuidado e, logo, vestiu-se o traje azul. Envolta em tão deliciosos ornamentos, com os olhos de um tom azul mais intenso pelo reflexo das safiras e suas largas tranças douradas aparecendo sob o capuz do manto, Brigitte parecia uma rainha. Depois de evitar o jovem clérigo para não alarmá-lo com a transformação, a moça abandonou o monastério em direção ao palácio do conde.

            Não teve dificuldade em atravessar a entrada, até sem escolta. Um encarregado do estábulo lhe saiu ao encontro para tomar as rédeas do cavalo e lhe indicou o caminho para a grande sala da corte. Brigitte se sentiu inquieta ao ver o sem fim de nobres que corriam pressurosos pelos numerosos corredores do castelo. O conde de Anjou era um homem poderoso. Dispensaria-lhe um pouco de seu tempo para atender suas súplicas? A jovem só necessitava uma escolta, uns poucos homens que a levassem até o Berry. Poderia pagar o favor com suas safiras se era necessário.

            A habitação era cavernosa e tão gigantesca como a grande sala de Montville. Centenas de pessoas rondavam por ali: todos nobres elegantemente vestidos em companhia de suas deliciosas damas. Era o espetáculo mais impressionante que Brigitte já presenciou, e não pôde evitar sentir admiração, de uma vez que temor. Qual de todos esses homens extremamente bem vestidos era o conde do Anjou? A corte era informal e não havia plataforma, por isso não havia modo de averiguar qual de todos eles era o conde.

            - Está aqui para ver o conde, milady?

            A moça se voltou para o corpulento cavalheiro calvo e esboçou um nervoso sorriso.

            - Encontra-se ele aqui?

            O homem sorriu com presunção, e seus pequenos olhos cinzas cintilaram.

            - Sua alteza está presente, milady.

            Brigitte sentiu um pouco incômoda ante o evidente desdém do cavalheiro. Seria acaso um inimigo do conde? Algum ciumento lorde? Por fortuna, ela jamais se viu envolta nas intrigas cortesãs. Com segurança Druoda se sentiria feliz ali, mas não a moça.

            - Jamais vi ao conde, milord - admitiu Brigitte, esperando que o homem não lhe formulasse muitas perguntas.

            - Pois não te custará reconhecê-lo com todo seu esplendor. Ali. - O cavalheiro assinalou para o centro da habitação. - O de veludo vermelho, com uma esmeralda tão grande como seu nariz no pescoço. A jóia era minha; a entreguei em pagamento por um favor que jamais recebi.

            A jovem se sentiu desalentada. O conde a trataria com a mesma dureza? Aceitaria ele ajudá-la para só tomar as safiras e logo, esquecê-la?

            Ao mesmo tempo que examinava ao homem de veludo vermelho, seus olhos se posaram sobre o alto e robusto cavalheiro que se encontrava a seu lado. Então, paralisou-se.

            Rowland! Não era possível! Mas ali estava ele, tremendamente bem vestido com uma túnica negra de cetim e uma capa de veludo da mesma cor. Brigitte nem sequer sabia que ele possuísse tão elegantes ornamentos. Obviamente, tinha mentido ao afirmar que não conhecia ninguém em Angers, visto que o conde lhe falava como se tratasse de um velho amigo. Sentiu-se ainda mais aturdida quando viu a formosa jovem que se achava grudada pelo braço de Rowland. Acaso alguém mais que o homem juraria não conhecer?

            Oh, Deus! Brigitte se ocultou detrás de uma imensa coluna. Do que estaria falando o jovem com o conde? Estaria-lhe advertindo a respeito de uma servente que afirmava ser dama e a quem deveriam enviar diretamente para ele? Maldição! Sem dúvida, lhe diria isso! Ele era muito canalha. Como teria conseguido chegar primeiro a corte?

            A moça se virou e abandonou sigilosamente a sala, tratando de ocultar o rosto sob o capuz de seu manto. Mas, assim que chegou ao corredor, começou a correr sem parar até chegar ao estábulo, onde esteve a ponto de enrolar ao jovem encarregado.

            - Onde está minha égua? Onde? Depressa!

            - A...ali... milady - gaguejou o homem, ao mesmo tempo que assinalava uma das cavalariças.

            Brigitte correu até o cavalo e o conduziu fora do estábulo. Subiu à arreios sem ajuda e se forçou a manter um passo sereno até atravessar o portão do castelo. Enquanto cruzava o pátio, não pôde evitar olhar uma e outra vez para trás, temerosa de que Rowland saísse para persegui-la.

            Por fim, encontrou-se além dos muros que circundavam o palácio. Ninguém a seguia; ao menos, não no momento. Começou a galopar para o sul, mas parou abruptamente. Wolff! Tinha abandonado seu mascote no monastério! Girou imediatamente e cavalgou de retorno ao convento, cuidando agora de não acelerar muito a marcha e atrair assim a atenção da gente. Enquanto avançava, preocupada com seu novo dilema, não cessou de olhar uma e outra vez por cima do ombro. Ante o mais ligeiro som, não podia evitar sobressaltar-se, já que imaginava a Rowland galopando por trás.

            E, então, de repente, viu-o se aproximando pela rota. A moça se ergueu, muito sobressaltada para perguntar-se como tinha conseguido avançar do norte, em lugar de segui-la no castelo. Sacudiu a cabeça, terrivelmente confundida. Ele se aproximava mais e mais, com sua capa negra voando no vento. Presa pelo pânico, Brigitte girou e sapateou com força as costelas de seu cavalo. Mas Rowland não demorou para alcançá-la. Não conseguiu sujeitar as rédeas da égua e, em seu lugar, apanhou o corpo da moça para colocá-la sobre seus braços. A jovem lutou, fazendo a ambos cambalear sobre o cavalo.

            - Para, Brigitte, ou ambos cairemos - advertiu-lhe.

            - Pois, caiamos, então! - exclamou ela.

            Ele conseguiu sujeitá-la com um braço e deter o cavalo com o outro.

            - Pronto. Agora, se não parar de queixar-se, porei-te de barriga para baixo sobre meu colo e te darei uma surra que atrairá a toda uma multidão.

            Rowland falou com um sussurro junto ao seu ouvido, e a moça se tranqüilizou imediatamente.

            - Claro que o faria, como bruto que é - disse com mais calma.

            Ele homem soltou um breve risinho.

            - Uma vez mais, me forçaste a uma longa caçada, joiazinha.

            - Não tinha direito de me perseguir - espetou-lhe. - Esqueceu que já me liberaste?

            - Ah, bom, mudei minha opinião a respeito - informou Rowland com um tom pausado.

            A jovem se sentiu furiosa.

            - Caipira insensível! Isso não é certo. Não sou seu brinquedo para me pegar e largar ao seu bel prazer! Em primeiro lugar, nunca foi meu senhor. Jamais te jurei fidelidade.

            - Eu o jurei e com isso é suficiente. Agora vêem, não deveríamos estar discutindo isto aqui. Termina já com seus protestos. Tenho-te e sabe que é inútil resistir.

            A moça guardou silêncio, e ele avançou para recuperar as rédeas da égua. Uma vez mais, tinha Brigitte em seu poder. Ela se sentia indignada e, por outro lado, imensamente feliz. Rowland tinha saído em sua busca, tinha-a seguido durante todo o caminho até Angers.

            - Aonde me leva? - perguntou calmamente.

            - Para casa.

            - Para Berry? - apressou-se a inquirir a jovem.

            - Para Montville. Esse é seu lar agora, e sempre o será. Jurei que nunca retornaria a Berry, e essa foi uma promessa que tinha esquecido quando te liberei.

            Brigitte ficou tensa.

            - De modo que foi essa a razão pela que me seguiu? Só pela promessa! Odeio-te!

            - Brigitte - grunhiu Rowland, sujeitando-a ainda com mais força. - Que desejas ouvir de meus lábios? Que não posso tolerar a idéia de ver-te partir? Que quando te afasta sinto que perdi uma parte de mim? Sou um guerreiro, Brigitte. Não sei nada de palavras ternas. De modo que não espere que as diga.

            - Já as disse, Rowland - sussurrou ela com doçura.

            Ambos guardaram silêncio, Brigitte se relaxou entre os fortes braços dele, sentindo que uma intensa corrente de felicidade fluía em todo seu corpo. E não tentou resistir, mas sim permitiu que essa cálida sensação a embargasse. Então, de repente, recordou seu mascote.

            - Espera! - endireitou-se subitamente, golpeando o queixo de Rowland com a cabeça, e o ouviu amaldiçoar. A moça o explicou a causa de sua abrupta reação, e ele seguiu suas indicações.

            Não encontraram Wolff no monastério. O cão partiu com um grupo de cachorros pouco depois da partida de Brigitte, informou-lhes o clérigo, e ainda não tinha retornado. Só restava aguardar sua volta.

            Ao solicitar um quarto privado, Rowland afirmou ao sacerdote que Brigitte era sua esposa. Frente a semelhante descaramento, ela se sentiu indignada.

            - Disse a todo mundo que sou sua servente - repreendeu-o assim que se encontraram a sós. - por que não disse para o clérigo?

            Ele estendeu os braços para estreitá-la, mas ela se afastou.

            - O que se supõe que está fazendo?

            - Vamos, cheérie, você sabe exatamente quais são meus planos. Já transcorreram sete dias desde que te tive em meus braços por última vez e isso é muito tempo.

            - Estive em seus braços quando vínhamos para aqui - recordou-lhe a moça com aspereza.

            - Droga, bem sabe a que me refiro.

            - Droga, não estou segura de querer estar contigo.

            - Mentirosa. Não poderia te amoldar a outros braços melhor que a meus. Vamos, te aproxime.

            - Rowland, é um lugar sagrado. Não tem vergonha?

            - Não, quanto estou com você.

            Atraiu a para si então a delicada forma da jovem se amoldou à forma masculina. Depois de uns instantes, Brigitte teve a sensação de que seu corpo formava parte de Rowland. Pôde perceber o fogo nos olhos do jovem quando ele se inclinou a beijá-la. A moça entreabriu os lábios ante esse doce toque sensual, e essa aura masculina pareceu embriagá-la, até tal ponto, que se Rowland não a segurasse com firmeza, ela se tivesse desabado. Amoldar-se? Brigitte nasceu exclusivamente para esses braços.

            O jovem separou por fim os lábios e a elevou. A moça se sentiu inundada em um sonho, um sonho de olhos que se amavam, olhos que ardiam com o desejo de possui-la. Mas quando caiu sobre a cama e as mãos de Rowland começaram a explorá-la, soube que tudo era realidade. O homem a despiu lentamente e logo, soltou-lhe as largas tranças para enredar os dedos na dourada cabeleira. Brigitte se deleitou com cada roce: uma mão, um braço, a bochecha... não cessava de vibrar nem ante a mais ligeira carícia.

            Quando finalmente ambos se encontraram nus, a jovem se inclinou para acariciar o musculoso peito do homem e lhe deixar cair uma chuva de beijos sobre os largos ombros. Desejava fazer o amor com esse homem; desejava demonstrar o quão feliz se sentia ao lhe ter uma vez mais a seu lado.

            Voltou a inclinar-se sobre Rowland e seus largos cabelos dourados caíram sobre o peito dele como uma carícia de seda. Então, beijou-lhe os lábios masculinos com ternura, para logo deslizar-se para a orelha e descender pelo pescoço até o musculoso peito. Desejava lhe explorar integralmente, tal como ele tantas vezes o tinha feito com seu corpo. Mas quando começou a descer, Rowland a sujeitou dos ombros e a atraiu para si.

            - Bruxa - sussurrou com voz rouca. - Já acendeste o fogo em meu interior. Jamais te desejei tanto como agora. Se continua descendo, derramarei rapidamente minha semente.

            - Então, me possua, meu amante. - Brigitte esboçou um sorriso de satisfação. - Me possua.

            Rowland girou para apoiar-se sobre o delicado corpo da jovem e possuir a de maneira selvagem, apaixonada. Juntos subiram até as enlevadas alturas, para logo descender rapidamente da gigantesca, magnífica onda de paixão.

            Depois de um instante, o homem se afastou para estreitá-la a seu lado. Brigitte se aconchego junto ao largo ombro e apoiou uma mão sobre o imponente peito de maneira possessiva. Jamais havia sentido se tão feliz e, assim, inundou-se em um profundo sonho, já livre de temores, sem mais inquietações pelo distante e remoto futuro.

 

            - Brigitte.

            Uma mão agitou docemente o quadril da moça e ela se sacudiu com um sorriso antes de abrir os olhos. Rowland se apoiou sobre a cama e lhe deixou cair um tenro beijo sobre a bochecha. O homem já se encontrava vestido e a observava com expressão satisfeita.

            - Dormiu durante quase uma hora, joiazinha. Agora, vamos. Devemos estar longe daqui antes do crepúsculo. Brigitte sorriu e se despertou languidamente.

            - Está seguro de que já deseja partir - - perguntou com um significativo brilho nos olhos.

            - Ah, mulher, não me tente - grunhiu ele e, ante ao risinho da jovem, recolhendo suas roupas e as jogou na cara como castigo. - Esta noite, pagará por isso, juro-lhe isso - assegurou com voz rouca.

            - Esperarei ansiosa por meu castigo - brincou a moça, sentindo-se imensamente feliz. - Wolff retornou então? - perguntou, ao mesmo tempo em que colocava o vestido.

            - Sim.

            Rowland se sentou sobre a cama e se dispôs a observá-la. Então, pegou a pela cintura e a atraiu para si. Brigitte acariciou seu braço, surpreendida, ao mesmo tempo que apoiava a cabeça entre os arredondados seios. Assim permaneceu o homem, imóvel, durante vários segundos. Ela se sentiu profundamente comovida e o estreitou com força, visto que compreendia o que ele tentava lhe dizer.

            - Ama-me, Brigitte?

            Ante essa pergunta, a jovem sentiu irresistíveis desejos de chorar, já que, em realidade, ignorava a resposta. - conheci muitas formas de amor em minha vida. O amor de minha mãe e meu pai, o amor de meu irmão, de meus serventes e amigos. Mas o que sinto por ti é diferente. Não estou segura de que isto seja amor, Rowland. Nunca antes amei a um homem, de modo que não posso afirmá-lo.

            - Nem sequer a... - O homem não pôde culminar a frase. Não desejava lhe recordar a Brigitte a figura daquele lorde de Louroux, aquele que a tinha amado e mimado, aquele que, provavelmente, tinha presenteado com a túnica bordada com safiras. A moça tomou o rosto entre as mãos e lhe forçou a olhá-la.

            - Nem sequer a quem?

            - Só me ocorreu que poderia ter havido alguém no Berry - disse ele evasivamente. - Alguém com quem, talvez, tivesse-te desejado desposar ou alguém com quem passou muito tempo.

            Brigitte sorriu.

            - Não houve ninguém. E te direi algo mais, Rowland. Sou muito feliz contigo. Senti-me desolada quando me afastou do seu lado. E me devastou a só idéia de pensar que seu interesse em mim era tão ínfimo, que nem sequer tinha sido capaz de cumprir com nosso trato. Poderia me dizer agora por que razão me enganou?

            - Temi que alguém pudesse vir e te arrebatar de meu lado - respondeu ele com franqueza, e a jovem o abraçou com mais força. - Ainda deseja que envie a alguém ao Berry? - sussurrou o jovem.

            - Não - murmurou a moça. - Não mais. Nem sequer desejava pensar nessa possibilidade.

            Rowland a estreitou com força uma vez mais, para logo liberá-la e lhe dar um tapinha brandamente no traseiro.

            - Vista-se, mulher.

            Ele recuperou sua acostumada rudeza. Sentia-se muito bem com a infinita ternura que essa moça despertava em seu interior. Necessitava de Brigitte, era algo muito alem do que a união de seus corpos. Acaso a amava? Ele podia responder a essa pergunta com maior certeza que a jovem? Rowland jamais tinha conhecido o amor, nenhuma forma de amor. Ainda assim, estava seguro de desejar o carinho de Brigitte Talvez, algum dia, ela chegaria a conhecer a resposta, e a revelaria. No momento, bastava-lhe saber que ela era feliz, que já não haveria mais ameaças de Berry, que jamais voltaria a perdê-la.

            - Esse vestido é muito fino para viajar - comentou Brigitte, interrompendo os pensamentos do jovem - Vejo que trocou de roupa - adicionou, ao notar que ele levava uma túnica de lã parda sob a capa negra. Rowland olhou o vestido.

            - Não me troquei, cheérie. Não trouxe mais roupa comigo. Não havia tempo de empacotar.

            - Rowland, isso é uma descarada mentira - afirmou a jovem surpreendida.

            - Mentira?

            - Sei que trouxe outra roupa contigo. Vi-te esta manhã no palácio e levava posta uma luxuosa túnica. Rowland soltou uma estrondosa gargalhada. - Está equivocada. Acabava de chegar ao Angers quando encontrei na rua.

            - Mas te digo que te vi falando com o conde - insistiu ela.

            - Não, não pode ser - negou ele com firmeza. - Deve ter sido alguém parecido a mim.

            - Posso te reconhecer quando te vejo, Rowland - afirmou a moça com tom brusco. - Surpreendeu-me te encontrar ali, com uma mulher pendurada de seu braço, falando com o conde como se fossem velhos amigos. Havia-me dito que não conhecia ninguém em Angers.

            - E não te menti, Brigitte. Eu não estive no palácio esta manhã. Jamais vi ao conde de Anjou. Juro-lhe isso.

            Brigitte franziu o cenho e observou a ele, confundida. Que razão teria Rowland para mentir? Rememorou em seguida aquele momento em que lhe tinha visto cavalgando na rua. Então, ficou surpresa ao encontrá-lo ali, quando acabava de deixar o palácio. Não pôde recordar que ele levasse posta a luxuosa túnica negra nesse instante, e não tinha reparado em suas roupas ao entrar na habitação do convento.

            - Não compreendo, Rowland - disse lentamente, desconcertada. - O homem que vi no palácio foi você. Tinha seu mesmo rosto... e seu tamanho. Era de sua mesma altura. Quantos homens conhece tão altos como você? Até tinha a mesma cor de cabelo. - Então, deteve-se de repente, e seus olhos azuis se dilataram. - Talvez, seu peito não era tão largo. Não, acredito que não o era.

            Rowland se sentiu tão aturdido como a jovem.

            - Quem era esse homem tão semelhante a mim em qualquer outro aspecto?

            - Parecia um aristocrático lorde. E a mulher que tinha a seu lado se encontrava elegantemente vestida com veludo e jóias. O conde lhe falava de maneira amigável. Rowland, não posso entendê-lo. Não era só um simples parecido. O homem que vi parecia ser sua imagem refletida em um espelho. Poderia ter sido seu irmão gêmeo.

            Ele deixou escapar um rouco grunhido.

            - De maneira que se fossemos gêmeos. Pode apostar a vida que Luthor teria levado a ambos a casa. Agradaria-me ver esse homem por mim mesmo - disse Rowland de repente. - Vista-te com seus elegantes ornamentos, Brigitte. Iremos a corte do conde.

 

            - Evarard de Martel. Deveria te sentir envergonhado.

            Rowland se voltou para a roliça mulher que após o observar com fúria, lançou um olhar fulminante a Brigitte e se afastou abruptamente. Os jovens acabavam de entrar no palácio, em um dos quartos privados se encontrava o conde atendendo às visitas. Dezenas de homens e mulheres aguardavam na sala para lhe ver. Já se aproximava a hora do crepúsculo e, com segurança, muitos teriam que retornar ao dia seguinte.

            - Falava-me essa mulher? - sussurrou Rowland a jovem, que não deixava de lhe sujeitar o braço com firmeza.

            - Dirigia-se a ti, sem dúvida, e acredito que eu não a agradei muito.

            - Chamou-me Evarard de Martel. - Brigitte assentiu.

            - Obviamente, cometeu o mesmo engano que eu, só que à inversa. Evarard deve ser o nome do sujeito.

            - Como o conseguiremos encontrar? - perguntou ele com inquietação.

            A vida cortesã sempre o tinha desagradado. Durante todos seus anos de serviço ao rei da França, tinha cuidado de manter-se afastado da corte real.

            - Pode o ver? - inquiriu Rowland.

            Brigitte já tinha examinado duas vezes a gigantesca sala.

            - Ele não se encontra aqui.

            - Ah, lorde Evarard, vejo que retornaste. Anda fazendo travessuras desta vez, né? - O corpulento homem que Brigitte tinha conhecido pela manhã se aproximou do casal. - Já se cansaste da sua alma gêmea? - adicionou, piscando os olhos um olho com picardia antes de dirigir-se a jovem. - Milady, conseguiu sua audiência com o conde?

            - Não, temo ter partido com muita pressa - respondeu Brigitte com ar gracioso.

            - Suficiente - disse Rowland com rudeza, para logo arrastar à moça para o outro lado da habitação, longe do loquaz cavalheiro. - Sei que esteve aqui esta manhã, mas com que propósito? Viu ao conde. Para que? - perguntou com tom brusco.

            - Não tem razão para te zangar, Rowland - tranqüilizou-lhe Brigitte - Vim aqui a solicitar uma escolta para viajar ao Berry. Não acreditará que planejava atravessar sozinha todo esse longo caminho, ou sim?

            - Me perdoe - murmurou ele com um suspiro, enredando os dedos na dourada cabeleira da moça. - Este assunto de Evarard de Martel me perturbou. - Esboçou então um amplo sorriso. - Suponho que terei que agradecer ao homem. Por ele, não conseguiu solicitar o amparo do conde, mas sim escapou do palácio para te jogar diretamente a meus braços. Não acha assim?

            - Suponho que sim.

            - Pois então, vamos o buscar para que possa apresentar meu agradecimento. Aguarda aqui, enquanto eu averiguo onde vive.

            O homem começou a afastar-se, mas Brigitte o puxou pelo braço para lhe deter.

           - Você não pode fazê-lo, Rowland. Todos acreditarão que está louco, visto que supõem que é lorde Evarard. Permite que eu interrogue a alguém. Averiguarei onde vive o homem e todo o referente a ele.

            Rowland assentiu com relutância. A jovem falou com duas damas antes de encontrar a alguém que conhecia lorde Evarard. A mulher, prima do conde do Anjou, parecia uma excelente informante.

            - Espero que não tenha posto seus olhos no querido Evarard, visto que acaba de casar-se e lhe vê muito apaixonado por sua esposa - advertiu-lhe lady Anne em tom confidencial - Temo que poderá te decepcionar.

            - Oh, não, milady - tranqüilizou-a Brigitte. - É só curiosidade. O jovem lorde é um homem muito arrumado. Sua esposa é seriamente afortunada.

            - Sim, e formam um bonito casal - assegurou-lhe lady Mine - O próprio conde arrumou as bodas, como favor para o barão Goddard de Cernay.

            - Barão Goddard?

            - O pai de Evarard. O barão e meu primo são íntimos amigos, sabe?

            - Cernay se encontra muito longe daqui, não é assim? -Inquiriu a jovem com tom vacilante, visto que jamais tinha ouvido falar de Cernay.

            - Oh, não, não tão longe. No outro lado do Loira e logo, para o oeste. Cernay fica no Poitou.

            Brigitte conhecia uma velha rota romana que conduzia diretamente de Berry até o Poitou sobre a costa oeste.

            - Mas lorde Evarard vive aqui, no Anjou, não é verdade? - perguntou a moça.

            - Ele vive no Poitou, perto de seu pai, minha querida - esclareceu-lhe a dama - Ele e sua família são convidados do palácio. Aqui se celebraram as bodas; logo, o clima frio se adiantou e, então, meu primo insistiu em que toda a família permanecesse no castelo durante o inverno.

            - É uma família numerosa? Tem lorde Evarard algum irmão ou irmã?

            - Você é inquisidora, pequena. Ele é filho único. Conforme tenho entendido, lady Eleonore teve dificuldades na gravidez. Jamais voltou a conceber, a pobre mulher. Eu tenho sete filhos e trinta e quatro netos. E cada um deles é uma fonte de sorte para mim.

            - É muito afortunada, milady. E foste muito paciente comigo. Minha querida mãe sempre dizia que eu tinha nascido com mais curiosidade que a necessária. Seriamente te agradeço, e desculpe o incomodo.

            Brigitte se afastou rapidamente, antes que a mulher pudesse interrogá-la. Imediatamente, abandonou a habitação, sabendo que Rowland a estava observando. Ele a seguiu, para reunir-se com ela no corredor da grande sala.

            - E bem?

            - Ele está vivendo no palácio com sua família. Todos são convidados do conde.

            - Sua família?

            - Sua esposa, pai e mãe. Seu pai é o barão de Cernay e íntimo amigo do conde.

            - Jamais ouvi falar dele.

            - Tampouco eu - afirmou a jovem.

            - E bem? - perguntou Rowland com impaciência. - Sei que o averiguaste, Brigitte, de modo que acaba já com isso.

            - É filho único - admitiu a jovem, esboçando um sorriso culpado. O jovem a conhecia bem e sabia o que ela tinha suspeitado.

            - Ainda sinto desejos de conhecer homem - confessou Rowland.

            - Também eu. - Brigitte sorriu. - É uma pena que esteja casado. Poderia me resultar muito mais agradável que você.

            - Acha mesmo? - disse ele, estendendo os braços para tomá-la.

           - Rowland - repreendeu-o, se afastando. Soltou uma breve risada e, logo, adotou uma expressão mais séria. - Procurarei um escudeiro para que conduza a seus quartos. Você nos siga a uma distância prudente. E te assegure de que o escudeiro não te veja. - advertiu-lhe com tom severo - Acreditará que é De Martel.

            As habitações do barão de Cernay se encontravam situadas na asa do palácio. O escudeiro não questionou a solicitude de Brigitte e logo a deixou no corredor, frente a uma porta fechada. Depois de uns instantes, Rowland se aproximou.

            A moça aguardou que ele a chamasse, mas ele só permaneceu imóvel, com o cenho franzido e os olhos fixos na porta, como se temesse descobrir o que encontraria do outro lado.

            Então, Brigitte compreendeu que Rowland, em realidade, não desejava bater, mas sim preferia partir sem conhecer homem.

            - Isto é ridículo - protestou ele com voz áspera. Não temos direito de chatear a esta gente.

            Fez um movimento para partir, mas ela sussurrou:

            - Não há razão pela que não possamos conhecê-los, Rowland.

            - E o que lhes diríamos? - perguntou ele. - Que só sentimos curiosidade?

            - Suspeito que não haverá necessidade de lhes dizer nada - sugeriu Brigitte com o olhar fixo na porta, como se pudesse ver através da madeira.

            A jovem bateu a porta antes que Rowland conseguisse detê-la e logo, teve que lhe segurar, enquanto aguardavam a que se abrisse a porta. Subitamente, o jovem se liberou e começou a afastar-se com passo firme pelo corredor.

            - Rowland, retorna. - Sussurrou Brigitte com ansiedade. - Terá que retornar, visto que não partirei daqui se não o fizer.

            Ele se voltou e começou a caminhar com o cenho franzido para a jovem. Nesse instante, a porta se abriu e, então, ele parou abruptamente. Uma esbelta mulher se encontrou de pé frente a Brigitte, que parecia estar sozinha no corredor. Era uma dama de ao redor de quarenta anos, muito bela e elegante, de claro cabelo loiro e olhos de cor azul intensa, olhos de safira como os de Rowland.

            - Sim? O que posso fazer por ti? - perguntou a mulher com voz melódica.

            - Vim a ver o Evarard de Martel, milady. Poderia falar umas palavras com ele?

            - Meu filho estará encantado de te atender - respondeu a dama com tom amável?. Posso te perguntar por que quer lhe ver?

            - É você a baronesa de Cernay?

            - Sim.

            - Baronesa, meu lorde, Rowland de Montville, desejaria conhecer seu filho. - Brigitte se voltou para o jovem - Por favor, Rowland - suplicou.

           Ele emergiu com relutância das sombras, arrastando os pés como um homem que parte para sua execução. Por fim, deteve-se junto à jovem, que tomou fortemente da mão para lhe reter a seu lado.

            A mulher franziu o cenho.

            - Evarard, que truque é este? - perguntou com tom severo.

            Rowland não respondeu. Encontrava-se absorto, observando o rosto de seu sonho, um pouco mais envelhecido pelo passo dos anos, mas, sem dúvida, o mesmo rosto que tinha perseguido durante a infância. O jovem não conseguiu encontrar as palavras para expressar seu atordoamento.

            De repente, uma estrondosa gargalhada retumbou no interior da habitação e, logo, ouviu-se a voz de um homem brincando com sua companheira. A baronesa empalideceu. Deu um passo atrás e cambaleou, como se estivesse a ponto de desvanecer-se. Rowland se adiantou para sujeitá-la, mas ela afogou uma exclamação e se ergueu com os olhos dilatados, de modo que ele não se atreveu a tocá-la. O homem não podia afastar o olhar desse rosto; tampouco a dama podia deixar de observar a esse jovem. Então, ela estendeu uma mão tremente para lhe acariciar o rosto com incrível ternura.

            - Raoul - sussurrou com um soluço, e logo retrocedeu outro passo para exclamar? Goddard! Goddard, vêem, depressa! - Um homem acudiu velozmente a suas chamadas e, então, insistiu com voz entrecortada.

            - Me diga... me diga que não estou sonhando, me diga que é real, Goddard! O cavalheiro empalideceu ao observar atônito o rosto de Rowland. Ele retrocedeu para o corredor, para colocar-se junto a Brigitte. Era esse o homem de seu sonho. Ao parecer, ele tinha penetrado em seu próprio pesadelo.

            - Raoul? - perguntou Goddard.

            Rowland olhou alternativamente a Brigitte e ao cavalheiro e sua confusão se transformou em fúria.

            - Eu sou Rowland de Montville - afirmou com veemência. - Meu nome não é Raoul!

            A jovem Brigitte que tinha visto essa manhã com o Evarard de Martel apareceu então no quarto e sufocou uma exclamação ao ver Rowland. Em seguida, seu marido entrou na habitação.

            - Emma? - perguntou Evarard, e logo seguiu a horrorizada expressão da moça até que seus olhos caíram sobre o jovem.

            - Santo Deus! - Rowland logo que conseguiu pronunciar essas palavras. Então, abriu-se passo entre o barão e a baronesa para caminhar lentamente para o outro jovem. Pareciam estar olhando sua imagem em um espelho, cada um de seus traços se achavam refletido nesse rosto.

            Por um instante, ambos permaneceram em silêncio, observando-se. Evarard elevou uma mão para roçar apenas a bochecha de Rowland em um gesto terno, de incredulidade. Rowland, em troca, permaneceu completamente imóvel, com os olhos fixos no outro homem.

            - Irmão! - exclamou Evarard.

            Uma intensa dor se refletiu no olhar de Rowland, percebeu a sinceridade em sua palavra. O horror de sua vida, sua penosa vida, atravessou-lhe a mente em um instante, e se voltou para o barão e a baronesa.

            - Por que tinham que me dar de presente? - sussurrou com angústia. - Acaso dois filhos eram muito? Tiveram alguma razão para me detestar?

            - Meu Deus, Raoul, está equivocado! - exclamou Goodard, horrorizado. - Foi tirado de nós... roubaram-no!

            Rowland o lançou um penetrante olhar suspicaz e começou a caminhar para a entrada.

            Brigitte, sabendo que ele partiria sem escutar os argumentos dessa gente, correu para fechar a porta para lhe impedir o caminho. Mas Rowland largou seu braço novamente abriu a porta com violência, jogou-a para o corredor. A moça tentou lhe deter a gritos.

            - Não pode partir agora, Rowland!

            Os olhos dele expressaram uma incrível angustia uma tortura infinita, quando observaram a jovem. Então, ele a estreito com força, o sentiu tremer.

            - Não posso acreditar Brigitte. Ou teria que matar ao Luthor!

            - Não, Rowland! Não. Deve ter em conta as razões de Luthor. Um homem tão desesperado por um filho, que teve que roubar...

            - Minha vida foi um inferno com ele!

            Evarard tinha deslocado atrás do casal, mas parou ao vê-los abraçados e escutou o que diziam.

            - Deve retornar a esse quarto, Rowland - disse Brigitte com firmeza. - Não pode lhes rechaçar. É seu irmão, Rowland, não sente curiosidade por saber dele? Acaso não deseja lhe conhecer?

            A moça secou as lágrimas do homem com seu manto, sobressaltada ao perceber que ele era capaz de chorar.

            - Ah, cheérie. - Rowland a beijou com ternura. - O que faria eu se não estivesse aqui para me falar com prudência?

            - Teria que lutar comigo - interrompeu-os por fim Evarard. - Porque jamais te deixaria partir. Rowland se voltou para olhar a seu irmão. Sorriu subitamente ao observar sua magra textura e suas roupas finas.

            - Teria encontrado dificuldades... irmão. Vejo que não é um homem de guerra.

            - E eu vejo que você o é. - respondeu Evarard com um amplo sorriso.

            Produziu-se um profundo silêncio, enquanto ambos os jovens se examinavam mutuamente. Brigitte sacudiu a cabeça. Rowland necessitava um impulso.

            - Adiante, droga, - insistiu-lhe com um ligeiro empurrão. - Saúda seu irmão corretamente. Ele está muito intimidado por sua malvada expressão para atrever-se a fazê-lo.

            Rowland avançou lentamente, para logo puxar pelo braço a seu irmão e lhe abraçar com incrível força.

            Evarard riu e Brigitte se desatou em lágrimas. Quando os três jovens voltaram para a habitação. Eleonore se encontrava chorando nos braços de seu marido. Goddard a sacudiu brandamente para lhe fazer notar que Rowland tinha retornado e, ante a presença do jovem, o pranto da dama se tornou ainda mais intenso. Logo, Eleonore se voltou para abraçar ao filho que todos esses anos lhe tinham negado. Tomou o rosto do jovem entre as mãos e seus olhos brilharam através das lágrimas. Rowland sentiu um repentino calafrio. Apenas podia respirar, mas nem por um instante afastou o olhar da dama. Ela era sua mãe, sua própria mãe. Deixou escapar um rouco gemido e a estreitou com força entre seus braços, para afundar o rosto junto ao pescoço da mulher e lhe murmurar algo ao ouvido.

            - Meu Raoul - sussurrou ela, sem deixar de lhe abraçar acreditei que te tinha perdido pela segunda vez quando te partiu por essa porta. Não podia tolerá-lo. Mas retornou meu filho, retornou para mim.

            Rowland caiu em prantos. Sua mãe. Quanto tinha necessitado da sua mãe durante sua infância. Quanto tinha desejado tê-la a seu lado em todos esses anos. E, agora, ela estava ali, lhe brindando todo o amor que ele sempre tinha desejado com desespero.

            Goddard se adiantou para abraçar seu filho em silêncio. O jovem vacilou por um instante. Jamais tinha conhecido a um irmão, nem a uma mãe, mas sempre tinha conhecido a um pai. Entretanto, Luthor não era seu verdadeiro pai e, em realidade, nunca tinha parecido sê-lo. Finalmente, Rowland correspondeu ao afetuoso abraço do barão. Então soltou uma repentina gargalhada e tirou da mão a Brigitte para atraí-la para si.

            - Dá-te conta, cherie, de que já não sou um bastardo?

            Ela sorriu ante a brilhante expressão do jovem.

            - Oh, Raoul. - Eleonore deixou escapar uma breve exclamação. - É isso o que acreditava?

            - Isso me disse, milady, o cavalheiro que afirma ser meu pai.

            - Quem é o homem que te arrebatou de nosso lado? - perguntou Goddard.

            - Luthor de Montville.

            - Pagará com acréscimo! - exclamou Evarard com fúria.

            - Eu me encarregarei dele, irmão - assegurou-lhe Rowland com frieza, para logo adicionar em tom mais alegre. - Mas não desejo falar de Luthor. São vocês franceses? - Goddard assentiu com a cabeça e ele soltou então um risinho maroto. - Portanto, eu também sou francês. Bem! - Girou os olhos em direção a Brigitte - Nunca mais ninguém poderá me chamar de normando como se fosse um insulto.

            - Rowland! - exclamou a moça, morta de calor.

            - Foi criado na Normandia? - inquiriu Goddard - Foi ali onde te levou esse homem?

            - Sim.

            - Não me surpreende que não pudéssemos te encontrar. Buscamo-lo por todo Anjou e as regiões vizinhas, mas jamais nos ocorreu nos estender até um lugar tão longínquo como a Normandia.

            - Mas, o que te trouxe até Angers? - perguntou Evarard.

            - A caça desta mulher - respondeu Rowland ao mesmo tempo em que abraçava a Brigitte e soltava um breve risinho. - Tenho que te agradecer por havê-la encontrado e a ela, por haver achado a ti. Viu-te está amanhã quando veio ver ao conde. Supôs que fosse eu e saiu correndo do palácio. Se não tivesse escapado então, jamais a teria encontrado. - Ante as aturdidos olhares de todos, o jovem adicionou. - É uma longa história; será melhor reservá-la para outro momento. - Voltou-se para seus pais. - Agora, me contem o que aconteceu então. Como conseguiu Luthor me arrebatar de seu lado?

            Eleonore se apressou a responder.

            - Nos encontrávamos em Angers para a celebração do dia de São Remi. O conde tinha obtido uma excelente colheita esse ano e quis festejá-lo organizando um enorme banquete com nobres de todas as partes do reino. Nós tínhamos levado a nossos filhos, você e Evarard, a grande sala... para mostrá-los. Sentíamo-nos muito orgulhosos de nossos gêmeos. Eram muito pequenos então, e realmente encantadores. - Rowland se ruborizou, mas Evarard soltou uma gargalhada, habituado aos mímicos de sua mãe. - Mais tarde, minha donzela trouxe-os de volta a esta mesma habitação. E essa foi a última vez que o vimos, Raoul.

            - Rowland, meu amor - corrigiu Goddard com doçura. Ele se chamou Rowland durante a maior parte de sua vida. Teremos que esquecer o nome que lhe demos quando nasceu.

            - Para mim, sempre será Raoul. - Eleonor sacudiu a cabeça com obstinação.

            - Sua mãe é uma dama muito sentimental, Rowland. - Explicou o barão. - Ambos nos sentimos desolados quando retornamos à habitação e encontramos à donzela inconsciente e só o Evarard em sua cama. Você já não estava. Eu tinha inimigos. Que homem não os tem? Temi que um deles te tivesse levado, e supus que teria morrido. Mas sua mãe jamais perdeu a esperança. Durante todos estes anos, nunca as perdeu.

            - Foi este homem, Luthor, bom contigo? - pergunto Eleonore com suavidade - Bom? - Rowland franziu o cenho com ar pensativo.

            Havia coisas que jamais poderia contar a essa gente. Quem seria realmente capaz de compreender a dureza de sua vida? Como poderia explicar tanta crueldade a sua família?

            - Luthor é um rude guerreiro - começou a dizer o jovem. - É muito respeitado na Normandia. Os nobres aguardam durante anos até lhe enviar a seus filhos para o treinamento, em lugar de recorrer a qualquer outro lorde. Minha própria capacitação começou logo que fui capaz de sujeitar uma espada. Luthor se dedicou em mim com especial cuidado. Sempre foi um... um rigoroso professor. Não só me ensinou as habilidades de um soldado, mas também as estratégias da guerra. Obrigou-me a me esforçar para alcançar a perfeição. - Esboçou um irônico sorriso. - Desde a terna idade, fui preparado para assumir a autoridade de Montville e conservá-la contra qualquer desavença, dado que, embora Luthor tem duas filhas de seu matrimônio, eu serei o herdeiro de seu patrimônio. Embora agora que sei que não sou de seu sangue, suponho que Montville já não me pertence.

            - Isso é indiscutível, certamente, visto que há filhas - observou Goddard. - Mas você...

            Rowland o interrompeu com um marcado tom severo. - Eu poderia dar procuração de Montville ainda quando não tivesse o mínimo direito. Não cabe dúvida a respeito. O comentário revelou à família muito mais sobre a natureza do homem que qualquer outro relato. Rowland era um guerreiro, um homem rude, poderoso, preparado para obter o que desejasse. Seria difícil para essas gentis pessoas compreender tanta rudeza.

            - Rowland é um pouco besta - apressou-se a comentar Brigitte, a fim de quebrar o silêncio. - Não quis dizer que tenta se apoderar de Montville pela força, mas sim poderia fazê-lo se assim o desejasse.

            Ele olhou a jovem com o cenho franzido, já que não considerava que suas palavras necessitassem explicação. Lhe respondeu com um beliscão, e recebeu em troca uma expressão até mais sombria.

            - Não deveria sentir que perdeste algo porque não é filho verdadeiro desse homem - assegurou-lhe o barão. - Não conheço Montville, mas você possui uma imensa propriedade no Poitou, que foi entregue ao nascer por meu senhor, o conde do Poitou. Evarard administrou suas terras com o mesmo cuidado que as próprias. Igual a sua mãe, seu irmão jamais perdeu a esperança de que retornasse algum dia.

            - Bem, irmão. - Rowland sorriu. - Sou um homem rico então?

            - É bastante mais rico que eu - assentiu Evarard, encantado - já que suas rendas se acumularam durante estes anos, enquanto que eu tive que as usar para viver. E devo reconhecer que jamais me privei de luxos.

            Rowland riu.

            - Pois então, dada o transtorno que te ocasionei, insisto em que aceite minhas rendas acumuladas como se lhe pertencessem.

            - Oh, não posso as aceitar! - exclamou Evarard, surpreso.

            - Claro que sim - insistiu Rowland - Não quero nada que não tenha ganhado por mim mesmo. E estaria agradecido se continuasse te ocupando de minhas terras até que eu as reclame.

            - Não vais reclamar as agora?

            - Agora, - começou a dizer Rowland com expressão sombria - , devo retornar ao Montville.

            - Acompanharei a Normandia - ofereceu-lhe seu irmão.

            Mas Rowland sacudiu a cabeça com obstinação.

            - Deverei enfrentar só ao Luthor. O homem te detestará, irmão, já que, se não fosse pelo seu rosto, jamais me teria informado da existência de minha família, nem teria descoberto seu engano. Sua vida correrá um sério perigo em Montville.

            - E que me diz da tua?

            - Luthor e eu somos igualmente fortes. Eu não o temo. É ele quem deverá cuidar-se de mim.

            - Rowland - começou a dizer o outro jovem com vacilação, franzindo o cenho. - Talvez, seria mais sensato que não voltasse a ver esse homem. Acha que poderia viver com sua consciência se lhe matasse?

            - Não poderia seguir vivendo sem escutar suas razões para ter feito o que fez - assegurou-lhe Rowland com voz acalmada, mas uma expressão severa nos olhos.

            Transladaram-se a uma confortável habitação, onde conversaram durante toda a noite e comeram como uma verdadeira família pela primeira vez em vinte e três anos. Rowland escutou em silêncio as histórias familiares, e Brigitte se perguntou se as lembranças de tantas vivencias não aumentaria a pena do homem, que jamais as tinha compartilhado. Ele parecia enfeitiçado e não podia afastar os olhos de seus recentemente adquiridos parentes.

 

            - Dá-te conta, Brigitte, de que se não tivesse fugido para Angers, provavelmente eu jamais teria conhecido a minha família? Durante anos, Luthor me impediu de chegar até ali, por temor ao que eu pudesse encontrar. Nunca me perguntei o que tinha ele contra essa cidade. Mas, esta vez, não conseguiu me manter afastado de Angers, e tudo graças a ti.

            Os jovens se achavam contemplando os domínios de Montville da colina do sul. Brigitte se sentia um pouco inquieta devido a batalha que se anunciava, visto que um muito silencioso Rowland tinha cavalgado ao seu lado durante três dias.

            Ele sorriu.

            - Cada vez que fugiu de mim, algo de bom me aconteceu.

            - O que aconteceu de bom a primeira vez?

            - Acaso não foi minha a partir de então?

            A moça se ruborizou.

            - Enfrentará Luthor em privado? - perguntou, voltando para seus imediatos temores.

            - Isso não tem importância.

            - Claro que tem importância, Rowland. Por favor, deve lhe falar a sós. Ninguém mais aqui precisa inteirar-se do acontecido. Luthor te considerou seu filho durante todos estes anos. Compartilha um estreito vínculo com ele, um vínculo de anos que pesa tanto como um parentesco. Recorda-o quando chegar o momento de o enfrentar.

            Rowland começou a descer lentamente pela colina, em silêncio, sem aplacar os temores da jovem. Luthor se encontrava na grande sala quando eles entraram. Ao vê-los aproximar-se, o ancião adotou uma expressão cautelosa, como se já soubesse o acontecido. - De modo que a trouxe novamente de volta? - comentou o lorde com tom jovial, ao mesmo tempo que se levantava de seu assento frente ao fogo.

            - Em efeito.

            Luthor se voltou para Brigitte.

            - Não te disse que logo cederia, mulher?

            - Disse, milord - respondeu ela com voz suave.

            - Esteve ausente durante uma semana - comentou o ancião, dirigindo-se a seu filho uma vez mais. - Suponho que a moça conseguiu chegar a Angers, não é assim?

            - De fato.

            Produziu-se um prolongado silêncio e logo, Luthor exalou o suspiro de um homem angustiado.

            - Sabe?

            Rowland não respondeu. Não havia necessidade.

            - Desejaria falar contigo a sós, Luthor - disse. - Poderia cavalgar comigo um momento?

            O lorde assentiu e lhe seguiu fora da sala. Ao observá-los partir, Brigitte experimentou uma imensa compaixão pelo ancião. Tinha visto os ombros cansados de Luthor e a abatida resignação de seu rosto.

            Rowland desmontou no topo da colina onde ele e Brigitte se detiveram para apenas uns instantes. Recordou a advertência da jovem. Porém, havia em seu interior uma ira sem limites lutava por explodir; a ira de um pequeno menino golpeado, desprezado, cruelmente humilhado. Tanta perversidade, recordou-lhe essa mesma ira, não tinha sido mais que uma tremenda injustiça.

            Luthor desembarcou do cavalo e, ao olhar a seu filho, Rowland lhe perguntou com um tom entre furioso e angustiado:

            - Maldito seja, Luthor! Porquê?

            - Explicar-lhe-ei isso, Rowland - respondeu o ancião calmamente. - Explicar-te-ei a vergonha de um homem que não tem filhos varões.

            - Isso não é motivo de vergonha! - disse o jovem.

            - Você não pode sabê-lo, Rowland - assegurou-lhe o lorde com veemência. - Não pode saber quanto desejava eu um filho até que você mesmo não deseje um de seu sangue. Filhas tive... dúzias de filhas por toda Normandia. Mas nenhum varão, nenhum! Já sou um ancião de quase sessenta anos. Comecei a me desesperar por ter um filho que pudesse administrar minhas terras. Quase mato Hedda quando me deu outra mulher. É por isso que ela jamais voltou a conceber e por essa razão sempre te odiou.

            - Mas, por que a mim, Luthor? Por que não o filho de algum camponês... um menino o que, estaria agradecido por tudo o que pudesse lhe brindar?

            - Acaso você não está agradecido? Converti-te em um homem temível, um excelente guerreiro.

            - Trouxe-me aqui para ser criado por essa bruxa, para sofrer em suas mãos. Arrebatou-me do amor de minha mãe... para me entregar a Hedda!

            - Converti-te em um homem forte, Rowland.

            - Meu irmão é um homem forte e, entretanto, foi criado por pais afetuosos. Você me negou isso tudo.

            - Eu sempre te amei.

            - Você não conhece o amor!

            - Está equivocado - assegurou-lhe Luthor depois de uma pausa, e seus olhos refletiram uma infinita dor. - É só que não sei como demonstrá-lo. Mas eu te amo, Rowland. Sempre te amei como se fosse meu verdadeiro filho. Eu te converti em meu filho.

            O jovem resistiu frente a um súbito impulso compassivo e perguntou com voz áspera:

            - Mas, por que a mim?

            - Eles tinham dois filhos, dois filhos de um mesmo nascimento, quando eu com tanto desespero não pedia mais que um. Encontrava-me em Angers com o duque Richard. Quando vi o barão e a sua esposa com os pequenos gêmeos, senti-me afligido por tanta injustiça. Não tinha planejado te levar. Uma idéia me acossou subitamente, e o impulso me venceu. Não senti remorsos, Rowland. Não direi que o senti. Eles tinham gêmeos. Perderiam a um, mas ainda ficaria o outro. Conservariam a um filho, e eu poderia ter o meu. Cavalguei durante dois dias sem cessar, esgotando ao cavalo, para te trazer diretamente até aqui. Você já foi meu.

            - Santo Deus! - exclamou Rowland em direção ao céu. - Não tinha direito, Luthor!

            - Eu sei. Alterei toda sua vida. Mas te direi algo. Não suplicarei seu perdão, porque se voltasse a apresentá-la oportunidade, faria exatamente o que fiz. Montville te necessita - concluiu o ancião com um tom um pouco mais firme.

            - Montville terá outro lorde depois de ti, mas não serei eu - afirmou o jovem com amargura.

            - Não, Rowland, não sabe o que diz. Dediquei quase a metade de minha vida a te preparar para assumir a autoridade de lorde aqui. Não é de meu mesmo sangue, mas a ninguém mais poderia confiar os domínios de Montville, só ti.

            - Não os quero.

            - E permitirá que Thurston os tenha, então? - perguntou Luthor com fúria. - Ele não se interessa por essa gente, nem pela terra, nem pelos cavalos que ambos amamos. Abaterá a ira do duque Richard com suas mesquinhas guerras para conseguir mais terras e Montville, então ficará destruído. É isso o que quer que aconteça aqui?

            - Já basta!

            - Rowland...

            - Eu disse que basta! - bramou ele, equilibrando-se para o cavalo. - Devo pensar Luthor. Não estou seguro de poder te tolerar agora, sabendo o que sei. Devo pensar.

            Uns instantes mais tarde, Rowland entrou em sua habitação. A sutileza do quarto foi como um bálsamo para apaziguar sua cólera. Seu quarto jamais lhe tinha parecido um lugar acolhedor, mas com a presença de Brigitte...

            A moça o observou com ansiedade. Ele exalou um suspiro, deixou cair os ombros e se jogou sobre uma cadeira, evitando os olhos curiosos da jovem.

            - Não sei, Brigitte - disse calmamente. - Não posso perdoar, mas não sei o que fazer.

            - Brigastes?

            - Só com palavras.

            - E sua razão?

            - Tal como disse, desejava um filho com desespero. - Apoiou a cabeça nas mãos da moça e lhe lançou um breve olhar. - Eu queria que não tivesse sido eu!

            Rasgada por essa angustiosa queixa, Brigitte se ajoelhou frente ao jovem e o rodeou com os braços, em silêncio. Rowland acariciou seu cabelo com ternura, comovido.

            - Ah, meu joiazinha. O que faria eu sem ti?

 

            A primeira luz do amanhecer já penetrava através das peles que cobriam as janelas, quando os passos ansiosos de Rowland despertaram a Brigitte. A diminuta chama de um abajur criava sombras ao redor da habitação.

            A jovem se apoiou sobre um cotovelo e sua larga cabeleira caiu sobre os ombros como uma cascata dourada.

            - Não pôde dormir?

            Ele se sobressaltou.

            - Não. - continuou caminhando pelo quarto.

            - É muito difícil, Rowland? Posso te ajudar?

            Ele se aproximou da cama e se sentou sobre o bordo, de costas à moça.

            - Devo decidi-lo por mim mesmo. É Montville o que está em discussão, não Luthor. Ele ainda me quer como seu herdeiro.

            - E por que isso te desagrada? Acaso não soube sempre que algum dia seria o lorde aqui?

            - Quando parti faz seis anos, renunciei a este patrimônio. Propus-me não retornar jamais. E agora, tornei a rechaçá-lo.

            - Retornou a casa porque lhe necessitavam. Ainda lhe necessitam. Montville segue sob ameaça. Isso é o que te perturba. Não pode partir sabendo que este lugar ainda te necessita.

            - Juro que é uma bruxa? afirmou Rowland, olhando à moça por cima do ombro.

            - Não pode separar Montville de Luthor, Rowland, esse é o problema. Mas deve distinguir um de outro. E Montville sempre necessitará um forte lorde.

            Ele se recostou sobre a cama junto a ela.

            - Mas Luthor ainda vive aqui. Se partir agora e Montville entra em guerra, não terei direito a reclamá-lo mais tarde. Entretanto, se ficar, terei de conviver com o Luthor. E não estou seguro de poder obtê-lo. O quis matar, Brigitte. Quis lhe desafiar à máxima prova de poder... uma batalha a morte. Não sei o que me deteve... você, talvez, e suas palavras. Mas, se permanecer aqui, pode que chegue a lhe desafiar.

            - Quem pode predizer o futuro? - perguntou Brigitte com suavidade, ao mesmo tempo que apoiava a cabeça sobre o peito do jovem. - Pode deixar que o tempo resolva seu problema, Rowland. Pode ficar e ver o que acontece. Se sua amargura se tornar muito intensa e alcança o limite onde deve matar ao Luthor ou partir... então, parte. No momento, deixa em paz o assunto. Controla seu rancor e permanece em Montville. Não é isso acaso o que em realidade deseja fazer?

            Rowland elevou apenas o rosto para beijá-la docemente nos lábios.

            - Como disse, és uma bruxa.

            Várias horas mais tarde, quando Rowland e Brigitte se encontravam na sala, um cavalheiro irrompeu subitamente para dirigir-se ao Luthor com a notícia do avanço de um exército.

            - Thurston de Mezidon não aguardou até o fim do inverno. Já se está aproximando!

            Rowland e Luthor ficaram de pé e intercambiaram rápidos olhares.

            - O que poderá estar planejando? - perguntou ele - Sabe que podemos resistir a um sítio. Seu exército morrerá de frio.

            - Estará seguro de que pode nos forçar a sair? - sugeriu Gui.

            - Talvez, planejou alguma forma de entrar - disse Luthor com voz áspera, olhando a sua filha Ilse, quem cravou os olhos sobre na sua pessoa. - Aonde foi realmente seu marido, Geoffrey, quando partiu daqui faz três dias? Procurar Thurston?

            - Não! - lady Ilse empalideceu ante a severa acusação de seu pai. - Geoffrey viajou para Rouen a visitar sua família tal como te disse!

            - Se o vir o outro lado destes muros com o Thurton, juro que te matarei, mulher. Filha ou não, ninguém que se atreva a trair ao Montville continua com vida.

            Ilse se desatou em lágrimas ante as desumanas palavras do ancião e saiu correndo da sala. Fora, os aldeãos começavam a congregar-se no pátio, depois de ter recebido a advertência. Os portões foram fechados e os muros, guarnecidos de efetivos.

            Rowland se voltou para o Luthor.

            - Saberemos a verdade sobre Geoffrey quando virmos os movimentos de Thurston. A que distância se encontra o exercito? - perguntou ao cavalheiro informante.

            - Alguns, talvez a metade, foram vistos sobre a colina do sul. O resto ainda não apareceu.

            - Já chegarão - advertiu Rowland - Sem dúvida, Thurston planeja nos encurralar. Aos muros, então.

            Todos correram fora da sala. Rowland ordenou a Brigitte permanecer ali e não abandonar esse quarto por nenhuma razão.

            - Trarei notícias assim que tenha uma oportunidade. A jovem observou nervosa a partida dele. Com que prontidão se resolveu o problema. Ele e Luthor não se falaram essa manhã. O silencio entre ambos tinha suscitado numerosos comentários. Porém, logo que começava a vislumbrar uma ameaça sobre Montville e os dois voltavam a converter-se em aliados. Desde sua posição sobre o elevado muro, Rowland olhou através das colinas nevadas. Luthor, sir Gui e sir Robert se encontravam a seu lado. Não se via nem uma alma movendo-se em redor, em nenhuma direção.

            - Tornou-se louco - afirmou Rowland com convicção - Olhem toda essa neve. A última tormenta deixou vários metros de espessura. Deve estar louco.

            - Sim - assentiu Luthor - Ou é muito inteligente. Entretanto, não posso imaginar seu plano. Não entendo como pensa obter agora a vitória.

            Rowland franziu o cenho.

            - Quantos homens se aproximavam?

            Sir Robert chamou o cavalheiro que tinha divisado o exército durante seu patrulha.

            - Contei mais de uma centena de cavaleiros e ao menos, a metade deles eram cavalheiros - respondeu o homem - Levavam também dois carros.

            Rowland se sentiu sobressaltado.

            - Onde diabos terá conseguido tantos cavalheiros?

            - Roubou-os, sem dúvida - sugeriu Gui. - Aos bretões que assaltou.

            - E, entretanto, essa é só a metade de seu exército, ou inclusive menos, segundo o que sabemos até o momento - fez-lhes notar sir Robert.

            - Quantos vêm a pé? - inquiriu Rowland.

            - Nenhum.

            - Nenhum homem a pé?

            - Exatamente - confirmou o cavalheiro calmamente.

            - Mas tantos cavaleiros! Nem a metade de nossos homens estão treinados para cavalgar - bramou Luthor. - E Thurston sabe. Possivelmente seja essa a vantagem que acha contar.

            - Olhem aí! - Gui cravou o olhar sobre o topo da colina.

            Um solitário cavaleiro apareceu e parou para observar os domínios de Montville. Era um cavalheiro vestido com armadura, mas resultava difícil lhe identificar a distância.

            - É Thurston? - perguntou Gui.

            - Não poderia assegurá-lo - respondeu Luthor.

            - Rowland?

            O homem se cobriu os olhos contra o reflexo da neve e sacudiu a cabeça.

            - Está muito longe.

            Finalmente, ao cavaleiro da colina se somou outro e logo muitos mais, até que uma larga fila de cavalheiros se estendeu ao longo do topo. Não eram esses todos os homens de Thurston e, ainda assim, esse único grupo de cavaleiros tinha um aspecto temível. Quase todos eles eram cavalheiros, um cavalheiro valia mais que dez soldados a pé.

            - Agora saberemos o que tem esse louco em mente - disse Luthor sinceramente quando o primeiro cavalheiro começou a descender pela colina para o Montville.

            Avançava sem escolta, e Rowland o observou, sobressaltado ante a audácia de Thurston. Ele esperava esse homem se aproximasse sem companhia? Uma simples flecha poderia pôr fim a esse conflito.

            Rowland começou a franzir o cenho à medida que o cavalheiro se aproximava mais e mais. Sem dúvida, não se tratava de Thurston.

            O cavaleiro, por fim, encontrou-se junto ao limite e elevou o olhar para os gigantescos muros de Montville , de modo que Rowland pôde lhe ver o rosto com claridade. O homem afogou uma exclamação. Era difícil acreditá-lo, mas ali estava ele.

            - Maldição! - grunhiu Rowland com o corpo tenso.

            - O que ocorre, Rowland? - perguntou Luthor.

            - O mesmo diabo o enviou aqui para me perseguir! - exclamou ele com voz áspera.

            - Poderia falar com mais prudência!

            - Esse não é o exército de Thurston, Luthor. Montville terá que enfrentar ao Thurston em outra oportunidade. Esse exército de cavalheiros provém de Berry!

            - Rowland de Montville ! Sai daí e te enfrente a mim! - exclamou o cavalheiro de abaixo.

            Rowland respirou fundo antes de gritar do parapeito.

            - Já vou!

            Luthor o sujeitou do braço.

            - Quem demônios é esse?

            - O barão de Louroux, o homem que me salvou a vida em Arles, o mesmo que me enviou a Louroux com a mensagem que demorou minha volta a casa.

            - Louroux? A moça é de Louroux! - Agora o compreendo. Por essa razão ele se encontra aqui. - Rowland poderia ter rido se não se houvesse sentido furioso. - Pode acreditá-lo? O homem tem feito partir um exército através da França em pleno inverno por uma mera serva. Tudo por uma servente!

            - Então, ela pode que não seja uma serviçal. - murmurou o ancião.

            - Não me importa o que essa moça seja! - bramou Rowland - Ele jamais a terá.

            - Lutará contra o homem que te salvou a vida?

            - Se for necessário, lutarei contra todo seu exército.

            - Rowland, então não tem necessidade de sair? apressou-se a sugerir Luthor. - Eles não podem levar-se a jovem se não abrirmos os portões.

            Então, Rowland compreendeu que o ancião estava disposto a lhe ajudar, ainda quando essa não fosse sua luta.

            - Ainda assim, sairei - afirmou ele com um tom mais acalmado?. Devo-lhe, ao menos, essa cortesia.

            - Muito bem - assentiu Luthor. - Mas ante o primeiro sinal de perigo, uma flecha lhe atravessará o coração. Rowland cavalgou através da entrada a um ligeiro galope. Quintin tinha retrocedido até uma distância medeia entre o Montville e seu exército. Adeus à flecha Luthor, pensou ele com irritação. Sentia-se zangado. De outro modo, Quintin jamais tivesse conseguido adivinhar o paradeiro de Brigitte. Entretanto, sua ira não se devia tanto ao engano, como a um forte sentimento de ciúmes. Outro homem desejava a sua Brigitte o suficiente para mobilizar a todo um exército em seu resgate. Acaso Quintin de Louroux seguia apaixonado pela moça?

            Com olhos entrecerrados Quintin observou o avanço de Rowland de Montville. Em seu interior ardia uma violenta, amarga sensação de ira, que o tinha acossado desde sua partida de Louroux duas semanas atrás. Após, sua cólera se intensificou, envenenado.

            Druoda tinha confessado tudo; suas intrigas para apoderar-se de Louroux, suas intenções de desposar a Brigitte com o Wilhelm do Arsnay, seus esforços por manter a sua irmã afastada de Arnulf, os castigos impostos à moça.

            Rowland de Montville tinha violado Brigitte. Ainda sabendo quem era a jovem, havia-lhe dito sua tia, o homem a tinha violado. E, ao fazê-lo, tinha arruinado os planos a Druoda. Então, a mulher, presa do pânico ante a volta do Quintin, tinha tentado lhe envenenar. A dama tinha suplicado clemência a seu sobrinho. E ele tinha sido clemente, visto que, ainda quando tivesse desejado assassiná-la, só a tinha expulso de Louroux.

            Mas era a Rowland a quem desejava agora matar. Rowland, a quem tinha enviado de boa fé até Louroux e quem lhe tinha pago a dívida violando a sua irmã e a arrebatando de seu lar.

            Os dois cavalos de guerra se enfrentaram em campo aberto. Huno transbordava as costelas do animal francês em quase meio metro. E, ao igual aos corcéis, seus cavaleiros também eram díspares. Rowland tinha desdenhado seu escudo e seu elmo para carregar apenas uma espada sujeita no quadril, enquanto que Quintin levava sua armadura completa. Ainda assim, Rowland era o mais robusto, o mais forte e, talvez; o mais destro.

            - Encontra-se ela aqui, normando? - perguntou Quintin.

            - Sim.

            - Então, devo te matar.

           - Se desejas vê-me morto, barão, terá que enviar a uma dúzia de seus homens mais fortes para me desafiar.

            - Sua arrogância não me intimida - afirmou o lorde de Louroux. - E jamais envio a outros para lutar em meu lugar, sir Rowland. Serei eu quem acaba contigo. E, logo lady Brigitte retornará a casa.

            Rowland assimilou essas palavras sem demonstrar que seus piores temores finalmente tinham sido confirmados. Lady Brigitte. Lady! Então, era verdade.

            - Este é agora o lar de Brigitte - afirmou calmamente. - E logo ela será minha esposa.

            Quintin riu com desprezo.

            - Supõe acaso que lhe permitirei desposar-se com um sujeito como você?

            - Se morrer duvido que possa te opor - advertiu-lhe Rowland com tom sereno.

            - Meu lorde Arnulf conhece meus desejos a respeito. Se morrer, ele passará a ser lorde de Brigitte. O conde se encontra aqui agora para encarregar-se de afastar a jovem de seu lado.

            - De modo que trouxe para toda Berry para resgatá-la, né? Necessitará um exército muito mais capitalista que esse para atravessar os muros de Montville.

            - Assim será, se for necessário. Mas se seriamente sente algo por Brigitte, permitirá-lhe partir. Mesmo assim, nós lutaremos, mas ela não deve sentir que provocou alguma morte. E, sem dúvida haverá muitas mortes aqui.

            - Nunca a renunciarei - afirmou Rowland calmamente.

            - Então, te defenda - desafiou-lhe Quintin com voz áspera, ao mesmo tempo em que extraía sua espada.

            O som das armas atraiu a vários homens para os parapeitos de Montville.

            Brigitte, já impaciente de tanto aguardar na sala, seguiu aos outros até os muros.

            Imediatamente, reconheceu a Rowland e a seu cavalo de guerra, e então conteve a respiração. Ele estava liberando um sangrento combate contra seu oponente, mesmo que não levava posta sua armadura. Ele era muito tolo! Com que facilidade poderia morrer!

            A moça distinguiu ao Luthor a uns metros de distância e correu para o ancião.

            - Por que estão lutando? - perguntou com aspereza. - Acaso não haverá guerra... só esta batalha?

            O lorde se voltou para a jovem com expressão sombria. - Você não deveria estar aqui, mulher.

            - Me diga! - exigiu-lhe Brigitte, elevando a voz - porquê Thurston se enfrenta só a Rowland - - Não é Thurston. Mas se sua preocupação é Rowland, já pode estar tranqüila - afirmou Luthor com orgulho - O francês é presa fácil.

            - O francês? É um exército francês?

            A jovem olhou por cima do muro em direção à larga fila de soldados que se encontravam apostados sobre o topo da colina. Conseguiu ver vários estandartes, alguns dos quais conseguiu identificar. Então, avistou a figura de Arnulf e afogou uma exclamação. Ele finalmente tinha ido a seu resgate! E junto a seu estandarte estava... Oh, Deus! Instantaneamente, a moça cravou os olhos no cavalheiro que se enfrentava a Rowland no campo e, então gritou.

            Quintin ouviu os alaridos de Brigitte proferindo seu nome, e acreditou perceber um rogo de liberação. Rowland, em troca, percebeu alegria nessa voz. Entretanto, o efeito em ambos os homens foi idêntico. Cada um deles sentiu, mais que nunca, o desejo de acabar com seu adversário.

            Quintin foi jogado de seus arreios e a luta continuou sobre a grama. Repetidos ataques o assaltaram. Soube então com certeza que sua hora tinha chegado. Porém, não estava disposto a morrer sem antes opor resistência e tratou de reunir todas suas forças.

            Tudo foi inútil, entretanto. Rowland era muito mais forte que ele e muito hábil. Depois de manter-se à defensiva durante vários minutos, Quintin sentiu a espada do inimigo quebrar os suspensórios de sua manta e penetrar em seu ombro.

            A dor foi intolerável. Mesmo que tivesse desejado resistir, as pernas o traíram, e se deixou cair sobre os joelhos. Tratou de sujeitar a arma, mas perdeu também o controle das mãos. E, em um instante, a espada de seu adversário se encontrou junto a seu pescoço.

            - Seria muito fácil. Sabe? - disse Rowland com frieza, pressionando apenas a arma de modo que um fino fio de sangue correu pelo pescoço de sua vítima.

            Quintin se negou a responder. A dor do ombro era irresistível. Tinha fracassado. Oh, Brigitte!

            A espada hostil caiu subitamente de lado.

            - Perdoarei-te a vida, Quintin de Louroux - afirmou Rowland. - Perdoarei-lhe isso porque te devo o favor. Agora, minha dívida fica saldada.

            Depois de pronunciar essas palavras, voltou a montar seu cavalo e empreendeu a volta ao Montville, ao mesmo tempo que quatro cavalheiros franceses começaram a descender pela colina para recolher a seu derrotado lorde. Brigitte. A moça sabia... sabia! Tinha visto Quintin. E na verdade era lady Brigitte. Uma dama, não uma serva. Druoda o tinha enganado! Entretanto, não lhe tinha mentido sobre o amor que existia entre o Quintin e a jovem. Isso era evidente. E era também óbvio o fato de que Brigitte jamais permaneceria voluntariamente a seu lado. Rowland tinha percebido alegria em sua voz ao pronunciar o nome de Quintin, seu amado.

 

            - Que demônios estava fazendo Brigitte no muro? - perguntou Rowland quando Luthor foi recebê-lo no estábulo.

            - Aproximou-se com os outros para presenciar um esplêndido combate - respondeu o ancião com satisfação. - Demonstrou a esses franceses quem é seu adversário.

            - Onde está ela agora? - inquiriu ele com irritação.

            - Ah, pois a jovem não é tão forte como supus. Desmaiou quando feriu o cavalheiro francês. Ordenei que a levassem a sua habitação.

            Rowland correu do estábulo para a sala, subiu velozmente as escadas e abriu com violência a porta de sua quarto.

            Brigitte se encontrava deitada na cama inconsciente. O ruído a perturbou e começou a gemer. Porém, não conseguiu despertar, mas sim continuou perdida em algum profundo tortura.

            O homem se sentou a seu lado e lhe afastou o cabelo do rosto.

            - Brigitte?... Brigitte! - chamou-a com mais firmeza ao mesmo tempo que batia suas bochechas.

            Os olhos da moça se abriram e, logo, dilataram-se ao posar-se sobre o Rowland. Caiu aos prantos, em soluços começou a bater o peito do homem com os punhos até que ele a sujeitou.

            - Matou-o! - chiou Brigitte - Matou-o! Ele cerrou os olhos com fúria.

            - Não está morto - anunciou - apenas ferido.

            Por um instante, ele observou o jogo de emoções que atravessaram o rosto da jovem. Ela se levantou.

            - Devo ir com ele.

            Porém, Rowland a sujeitou com firmeza contra a cama.

            - Não, não irá, Brigitte.

            - Devo fazê-lo!

            - Não! - exclamou o jovem com aspereza, e logo adicionou: - Sei quem é ele, Brigitte.

            A jovem se sentiu sobressaltada ante semelhante revelação.

            - Sabe? Sabe e, mesmo assim, lutou em seu contrário! Oh, Deus, odeio-te! - gemeu entre soluços. - Acreditei que sentia algo por mim. Mas você não tem coração. É feito de pedra!

            Rowland se surpreendeu ante a profundidade de sua própria dor.

            - Não pude fazer nada mais que lutar! - bramou com fúria. - Jamais permitirei que ele te tenha! Só se eu morrer que poderá te desposar com esse homem. Juro, Brigitte!

            - Me casar? - perguntou ela com voz entrecortada. - Me casar com meu próprio irmão?

            Ele a observou com olhar atônito.

            - Irmão?

            - E ousa te fingir inocente? Você sabe que Quintin é meu irmão! Acaba de afirmá-lo!

            Rowland sacudiu a cabeça, sobressaltado.

            - Acreditei que era seu senhor. Quintin de Louroux é seu irmão? Por que não me disse isso?

            Brigitte não podia cessar de soluçar.

            - Pensei que tinha morrido e me resultava muito doloroso falar dele.

            - Então, quem é Druoda se não é sua irmã? Disse-me que Quintin desejava casar-se contigo, mas que ela o impediria. Jurou-me que te mataria antes que ele retornasse a Louroux, a menos que eu aceitasse te levar comigo.

            - Mentiras, tudo mentiras! - bradou a jovem - Ela é a tia de Quintin. Disse-te que tinha mentido sobre mim. Por que não pôde acreditar... - Brigitte deixou escapar uma exclamação. - antes que Quintin retornasse ao Louroux? Sabia que ele retornaria? Sabia que meu irmão vivia e não me disse isso?

            Rowland não se atreveu a manter o olhar da moça.

            - Acreditei que o amava, que tentaria retornar a ele - começou a explicar.

            Mas Brigitte se sentia muito irritada para escutar.

           - Acreditava que o amava? Claro que lhe amo! Quintin é meu irmão. Ele é toda minha família. E irei com ele... agora!

            Ficou de pé abruptamente, mas Rowland a segurou pela cintura antes que pudesse chegar até a porta.

            - Brigitte, não posso permiti-lo. Se te deixo partir, ele te impedirá de retornar para mim.

            Ela o olhou horrorizada.

            - Acaso supõe que desejo retornar? Não quero voltar a ver-te jamais! Lutou contra meu irmão, e esteve a ponto de lhe matar!

            - Você não partirá daqui, Brigitte - afirmou ele de modo categórico.

            - Odeio-te, Rowland! - resmungou a jovem. - Pode me reter aqui, mas nunca voltará a me possuir. Matarei-me se o faz!

            Desabou-se sobre o chão em muito entrecortados soluços. Rowland a observou por um instante e logo, abandonou a habitação.

            Chegou a noite. O exército francês se retirou durante o dia, embora sem afastar-se muito. As espirais de fumaça provenientes do acampamento revelavam que os cavalheiros franceses se encontravam no outro lado da colina. Sua intenção era permanecer ali.

            Em todo o dia, Rowland não tinha retornado a sua habitação. Não sabia como comportar-se ante a Brigitte. Cada vez que pensava em alguma desculpa, imaginava a resposta da jovem e se precavia de que não podia enfrentar-se a ela. Com obstinação, negou-se a acreditar na moça, mesmo que ela não tinha feito mais que dizer a verdade. Tinha desonrado a uma dama de alta linhagem. Tinha-a forçado a lhe servir e tratado com rudeza. E ela tinha tolerado tudo. Milagrosamente, Brigitte tinha tolerado. Mas nunca perdoaria por ter lutado contra Quintin. Nem perdoaria por ter ocultado o fato de que seu irmão continuava com vida. Rowland não tinha direito de retê-la, mas não podia suportar a só idéia de perdê-la. E Quintin jamais permitiria se casar com a jovem.

            Talvez, quando percebesse que nunca voltaria a ver sua irmã a menos que aceitasse as bodas, então, o francês provavelmente cederia. Brigitte com segurança se oporia, mas uma mulher podia ser desposada sem seu consentimento. Só a aprovação do tutor era necessária. Talvez, se demonstrasse o quanto lamentava o mal-entendido, ela cessaria de lhe detestar. Tinha que enfrentar ela. Já não podia tolerar sentir-se odiado pela jovem.

            Rowland abriu a porta de seu quarto com uma leve esperança. Porém, a habitação se encontrava vazia. Os pertences de Brigitte continuavam ali, mas ela tinha desaparecido. Uma busca por toda a mansão não foi mais que uma perda de tempo. Nem a moça nem seu cão puderam ser encontrados. Finalmente, tirou o chapéu que a porta do muro traseiro tinha sido destravada do interior.

            O homem correu para o estábulo para selar a Huno. Com segurança, Brigitte tinha partido depois do anoitecer; de outro modo, alguém a teria visto atravessando os campos. Possivelmente, a moça ainda não tinha conseguido chegar ao acampamento francês. Talvez, só talvez, ele ainda tinha oportunidade de alcançá-la, pensou Rowland, esperançado.

            Por fim, cavalgou até o topo da colina. O coração começou a pulsar com violência. Já não podia distinguir nenhum exército no outro lado do monte, nada exceto uma pradaria desértica e os restos de várias fogueiras já extintas.

            - Brigitte! Brigitte! - Foram gritos apaixonados, desesperançados, que ninguém ouviu, exceto o poderoso vento.

 

            Brigitte se aconchegou na carreta junto a seu irmão. Não tinham pressa, já que os cavalheiros franceses teriam recebido com agrado uma perseguição de seus inimigos normandos. Era uma viagem lenta, mas cada minuto, cada dia os afastava mais e mais dos domínios de Montville.

            A jovem reclinou cansadamente a cabeça para observar o escuro céu da noite. Quintin dormia. Ardia de febre e de dor, gemia entre sonhos, mas ela não podia lhe ajudar. Inclusive tinha piorado o estado dele ao sustentar uma violenta discussão, tão violenta como a que tinha mantido frente a Rowland.

            Quintin se havia oposto à partida. Desejava atacar Montville, reduzir a pó os gigantescos muros do feudo. Porém, seu maior desejo era conseguir a cabeça de Rowland. A moça tinha empalidecido para ouvir essas palavras. Sem saber como tinha acontecido, encontrou-se subitamente defendendo a Rowland.

            - Ele te perdoou a vida! Permitiu-te viver quando poderia te haver matado! - tinha exclamado ela.

            Mas a temível cólera de Quintin não se apaziguou.

            - O homem deve morrer pelo que te tem feito!

            - Mas Rowland não é responsável pelo que aconteceu - insistiu Brigitte. - Druoda é a única culpado.

            - Não, Brigitte. O normando convenceu a Druoda de te entregar.

            A moça refletiu por um instante e logo, soltou uma amarga gargalhada ante tão absurda afirmação.

            - Disse-te ela isso? Ah, Quintin, acaso ainda não notaste a habilidade dessa mulher para mentir? Rowland não me queria consigo. Enfureceu-se quando lhe forçaram a me levar. Agora me quer, mas antes não. Druoda jurou que me mataria se ele não me levava consigo. E, devido ao que me tinha feito, ele aceitou.

            - Essa é outra razão pelo que deve morrer!

            - Isso nem sequer aconteceu em Louroux! - replicou Brigitte.

            - Que...quer dizer que não te violou?

            - Não. Estava bêbado, e muito apavorado para falar. Ambos achamos que tinha acontecido, mas a verdade é que eu desmaiei e ele logo dormiu. Pela manhã, acreditamos que tinha ocorrido o estupro, e o mesmo pensou Druoda. Mas foi tudo um equívoco.

            - Mesmo assim, ele te tirou de casa, sabendo que foi minha irmã e que Druoda não tinha direito a te entregar!

            - É essa outra mentira da dama. Rowland acreditava que eu era uma serva. Recusou-se a acreditar em mim quando afirmei o contrário porque Druoda o convenceu de que eu era uma serva. Inclusive hoje, quando você chegou, ele supôs que você fosse meu senhor. Não sabia que era meu irmão. Pensou que Druoda era sua irmã.

            - Por que teria que me mentir minha tia, depois de ter confessado todos seus outros pecados?

            - Acaso não adivinha? - perguntou Brigitte. - Não me resulta difícil imaginá-lo, visto que a conheço depois de ter convivido com ela tanto tempo. Ao te mentir a respeito das ações de Rowland fez que seus próprios pecados não parecessem tão atrozes. Matou-a?

            - Não, expulsei-a.

            - Viu só. Deixou-a partir sem mais castigo e entretanto, veio aqui para matar a Rowland. E ainda deseja matar, e assim mesmo te perdoou a vida. - Fez uma pausa e logo, refletiu em voz alta. - Embora Rowland sabia que você vivia e nunca me disse isso. Achava que estavas morto até hoje.

            - Pode parar de defende-lo, Brigitte, visto que o enviei ao Louroux a te informar de que eu seguia vivo.

            - Ele comunicou a Druoda, acreditando que ela era sua irmã. Fez o que ordenou, Quintin.

            - Não faz mais que o desculpar - acusou-lhe seu irmão. - por que insiste em defende-lo?

            Brigitte baixou o olhar antes de admitir em voz baixa:

            - Fui feliz aqui, Quintin. Sofri no começo, mas logo me converti em uma mulher feliz. Não desejo que mate Rowland, como tampouco desejo que ele o mate. E, sem dúvida, algum dos dois morrerá se não partimos daqui. Quero retornar para casa agora. Não preciso ser vingada, visto que minha honra não foi prejudicada.

            - Quer dizer que ele jamais te tocou em todo este tempo? - perguntou Quintin com insistência.

            - Jamais - respondeu a jovem com firmeza, esperando que a mentira conseguisse pôr fim a esse conflito. E assim foi. Finalmente, Quintin consentiu em partir. Tudo estava terminado.

            Brigitte jamais voltaria a ver o Rowland. Enterraria seus sentimentos por ele. De algum modo, conseguiria esquecer tudo que tinha acontecido entre ela e Rowland de Montville.

 

            A cálida brisa da primavera enfraqueceu a terra e atraiu Thurston de Mezidon para Montville. O exército normando não parecia temível, não depois da terrível ameaça que tinha inquietado ao feudo apenas uns meses atrás. Havia, ao menos, duzentos soldados com o Thurston, mas não mais de uma dúzia de capacitados cavalheiros.

            Rowland observou com desdém a congregação de homens que pretendiam arrebatar os domínios de Montville. Mercenários em sua maioria, talvez alguns bons soldados, mas a maior parte do exército estava formada por camponeses que só tentavam aumentar seu patrimônio. Não existia lealdade ali. Nenhum homem contratado estaria disposto a lutar até o amargo final.

            Quatro cavalheiros cavalgaram para a entrada de Montville precedidos por Thurston. Rowland conseguiu reconhecer a outro dos homens e esboçou um sorriso depreciativo. Roger. O canalha se uniu a seu irmão, talvez, com a intenção de utilizar a batalha como desculpa para matar a seu antigo adversário. Sem dúvida, o caipira tinha informado a seu irmão sobre o poderio de Montville, entretanto, Thurston era tão besta para iniciar a guerra. Rowland estava seguro de que logo encontraria também ao Geoffrey entre o exército hostil.

            - Luthor! - bramou Thurston de abaixo. - Desafio a você a lutar pelo domínio de Montville!

            - Com que direito? - perguntou o lorde.

            - Com o sagrado direito que me outorga o matrimônio com sua filha maior. Montville será minha depois de sua morte. E não desejo aguardar.

            - Cão infame. - Luthor soltou uma desdenhosa gargalhada. - Você não tem direito aqui. Meu filho, Rowland, será quem herda a autoridade em Montville. Você? Jamais!

            - Ele é um bastardo! Não pode favorecê-lo em frente a sua legítima filha.

            - Claro que posso, e já o tenho feito! - exclamou o ancião. - Criei-lhe para ocupar meu lugar, e assim será.

            - Então, desafio seu bastardo!

            Rowland tinha escutado com impaciência esse intercâmbio de palavras. Todo seu ser ardia com o desejo de luta. O desespero que o inundou depois da partida de Brigitte tinha chegado a converter-se em uma fúria incontrolável. Era essa a oportunidade que necessitava para descarregar sua ira.

            Porém, os planos de Luthor eram diferentes. O ancião sujeitou o braço dele, lhe ordenando silencio.

            - Lorde de mercenários! - bramou Luthor. - Meu filho não se rebaixará lutando com um canalha como você. Ele não esbanja suas habilidades com canalhas como vocês.

            - Covardes! - proferiu Thurston com cólera - Oculte-se entre os muros, então. Mesmo assim, terão que enfrentar a mim!

            Os cavalheiros retrocederam para unir-se a seu exercito no campo. Rowland os observou partir e logo se voltou para o Luthor com aborrecimento.

            - Por que? Poderíamos ter terminado este conflito me enfrentando a esse caipira.

            - Oh, sim - assentiu o ancião com perspicácia. - Você o teria enfrentado... em uma luta limpa. Mas usa a cabeça, Rowland. Thurston recorreu para mim em sua juventude, mas foi sempre um incapaz, depreciativo frente a todos meus ensinos. Jamais um cavalheiro ultrapassou estes muros. Sabe que nunca poderia ganhar e, ainda assim nos desafiou. Por que? Jamais se tivesse atrevido se não contassem com algum sujo plano para assegurá-la vitória.

            - Pensa em te ocultar detrás destes muros, então?

            - Claro que não - grunhiu o ancião. - Pode que sua intenção tenha sido me matar para evitar a guerra, mas não o conseguirá. Livrará-se da batalha no campo, mas só quando eu o dita.

            - E, enquanto isso, permitirá-lhe assolar as terras de Montville - perguntou Rowland, enquanto observava a vários homens de Thurston que, com tochas acesas, dirigiam-se para a aldeia.

            Os olhos de Luthor cintilaram ao ver o espetáculo que o jovem estava contemplando.

            - Que canalha ele é! - grunhiu. - Pois, muito bem, sairemos agora e terminaremos já mesmo com este chato conflito.

            Rowland tratou de impedir qualquer ação precipitada do ancião, mas foi muito tarde. Luthor já não estava disposto a escutar. Tinha deixado de pensar com claridade, para permitir que a ira começasse a o governar, e esse era um luxo que nenhum guerreiro podia jamais confrontar. Ainda assim, o homem não teve mais alternativa que o seguir. Imediatamente, quarenta dos melhores cavalos de guerra dessas terras foram montados e Luthor começou a repartir as ordens. Um instante depois, os cavalheiros e soldados de Montville atravessaram os portões ao galope para enfrentar-se ao lorde de Mezidon e seus homens.

            Rowland conduzia a metade das defesas, atrás da linha de arqueiros. A aldeia se encontrava já em chamas: cada quarto, cada refúgio caía depois de uma nuvem de fumaça em uma ardente bola alaranjada. Depois de acender as fogueiras em círculo ao redor da mansão, os homens de Thurston voltaram a reunir-se com seu exército. Rowland redobrou a marcha para segui-los.

            Assim que chegou ao campo de batalha, congelou o sangue ante o horrendo espetáculo que ali presenciou. E, então, a pena lhe rasgou quando viu cair Luthor. Tudo aconteceu antes que ele pudesse unir-se ao ancião, e não demorou a compreender que tinham sido enganados. Outros trinta cavaleiros tinham descendido da colina para atacar Luthor e seus homens. Uma tática muito antiga, mas tinha resultado. Luthor tinha sido derrubado e a metade dos homens tinha caído com ele.

            Rowland deixou de pensar com claridade. Igual ao ancião uns momentos atrás, deixou-se governar por seus impulsos. Como um enlouquecido, equilibrou-se para o lugar do combate, seguido por vários guerreiros armados. Com repetidos golpes de sua espada, derrotou o exército inimigo, até chegar ao centro da luta. Então, viu Luthor. O sabre de Thurston o tinha atravessado.

            Lorde Thurston de Mezidon se estremeceu ao ver a expressão nos olhos de seu adversário. Neles, a mesma morte parecia refletida. Rowland elevou sua espada ensangüentada para apanhar a seu oponente e proferiu um horripilante alarido de ira. Thurston se paralisou, pressentindo que o fim tinha chegado.

            O lorde de Mezidon lutou de modo selvagem, imprudente, e logo foi derrotado. Mas, ao mesmo tempo em que Rowland extraiu sua espada do corpo de Thurston, outro sabre lhe penetrou nas costas. Ele abriu os olhos com surpresa, mas reagiu imediatamente girando para trás seu braço armado. Conseguiu bater algo com a espada, mas sua dor era muito intensa para voltar-se para olhar. Sua sede de sangue ainda continuava o consumindo; ainda retumbava em sua cabeça o ensurdecedor clamor de batalha; entretanto, encontrava-se quase cego, e também muito aturdido, já que só podia ver a queda do capitalista Luthor, o forte, invencível Luthor derrubado por uma espada inimiga.

            Um cavalo se estreitou com Huno e Rowland caiu. O impacto intensificou sua dor até torná-lo irresistível. A partir desse instante, ele não ouviu mais nada.

            - Está morto! - exclamou Hedda, ao mesmo tempo em que dois cavalheiros entraram na sala carregando o corpo inerte de Rowland.

            - Oh, por fim!

            Gui lhe lançou um olhar fulminante e, com um gesto, indicou aos dois cavalheiros que colocassem ao homem inconsciente junto aos outros feridos, para logo lhes ordenar que partissem. Então, voltou-se para a dama e lhe informou com frieza:

            - Não está morto, lady Hedda, ainda não.

            Os olhos pardos da mulher se dilataram decepcionados.

            - Mas morrerá?

            O tom esperançoso na voz da Hedda repugnou ao jovem, quem, por uma vez, permitiu-se esquecer a hierarquia da dama de Montville.

            - Saia daqui! - exclamou. - Acaba de perder a seu marido. Acaso não tem lágrimas?

            Os olhos da Hedda cintilaram.

            - Derramarei lágrimas por meu lorde quando tiver morrido seu bastardo! - resmungou. - E isso deveria ter acontecido muito tempo atrás. Seu cavalo devia tê-lo matado. Estava tão segura! Tudo teria terminado!

            - Lady? - inquiriu Gui, sem atrever-se a expressar a pergunta.

            Ela retrocedeu, sacudindo a cabeça.

            - Não disse nada. Não fui eu! Não fui eu!

            Hedda correu para Luthor. O corpo do ancião tinha sido colocado sobre os tapetes. A dama se jogou sobre o cadáver e seus pesarosos gemidos alagaram a gigantesca sala. Mas Gui sabia que eram falsas lágrimas.

            - Então me equivoquei ao suspeitar de Roger. Gui baixou o olhar para encontrar os olhos de Rowland abertos.

            - Ouviu-a? - perguntou.

            - Sim, ouvi-a. - Respondeu o ferido.

            Gui se ajoelhou junto ao corpo jogado de seu amigo e falou com uma nota de amargura.

            - Foi injusto com o Roger nessa ocasião, mas só nessa. Por ele, está estendido aqui agora.

            Rowland tratou de levantar-se, mas voltou a cair com uma marcada careta de dor.

            - É muito grave a ferida?

            - É grave - admitiu seu amigo. - Mas você é forte.

            - Luthor também era forte - afirmou o ferido, e então a sangrenta cena voltou a lhe cruzar pela mente. - Luthor?

            - Sinto muito, Rowland. Está morto.

            O jovem fechou os olhos. Certamente. Tinha sabido no momento em que tinha visto Luthor cair. Luthor. Não seu verdadeiro pai e, mesmo assim, seu pai. O vínculo de anos assim o tinha querido, tal como tinha afirmado Brigitte. E esse vínculo era muito mais forte do que Rowland sempre tinha suposto. Ele começou a sentir uma profunda dor, uma dor muito mais intensa do que jamais poderia ter imaginado.

            - Ele descansará em paz - disse finalmente. - Foi vingado.

            - Vi que também vingou a ti mesmo - afirmou Gui com tom acalmado.

            Rowland franziu o cenho.

            - O que quer dizer?

            - Acaso não sabe quem te feriu nas costas? - perguntou seu amigo? Foi Roger. Mas sua própria espada o atravessou fatalmente, e caiu inclusive antes que você. Roger está morto.

            - Tem certeza?

            - Sim, e os homens de Thurston fugiram. Mas a traição de Roger foi evidente. Sinto ter duvidado de ti na anterior ocasião. Não acreditei que ninguém, inclusive Roger, fosse capaz de atacar pelas costas. Mas você o conhecia melhor que eu.

            Rowland não conseguiu ouvir as últimas palavras de seu amigo já que, uma vez mais, o escuro mundo do inconsciente se deu procuração dele. O jovem já não pôde sentir a dor da perda, nem a dor da ferida.

            Ao mesmo tempo que Rowland lutava pela vida, Brigitte recebia os primeiros brotos da primavera com infinita tristeza. Já não podia continuar ocultando seu segredo. Quintin se tornou lívido quando ela decidiu abandonar as desculpas para justificar seu peso e admitiu, por fim, a verdade.

            - Um filho? - perguntou seu irmão com irritação. - Dará a luz um filho desse normando?

            - Meu filho.

            - Mentiu-me, Brigitte! - bramou Quintin.

            Era essa a principal causa de sua ira: sua irmã tinha mentido pela primeira vez na vida. A moça tinha ocultado a notícia de seu estado desde sua volta ao Louroux, ainda quando já o tinha sabido então, visto que levava quatro meses de embaraço.

            - Por quê? por que me mentiu? - inquiriu o jovem.

            Brigitte tratou de manter-se insensível frente ao angustiado tom da voz de seu irmão.

            - Acaso teria abandonado Montville se te tivesse revelado a verdade?

            - Claro que não. - Quintin se sentia realmente perturbado.

            - Então tem a resposta, Quintin - explicou a jovem com frieza. - Não ia permitir que lutassem por minha honra quando fui eu quem entreguei essa honra. Não havia razão para decretar uma batalha.

            - Mas, em que outra coisa me mentiu?

            A moça sob os olhos, incapaz de enfrentar o olhar acusador de seu irmão.

            - Ocultei-te meus verdadeiros sentimentos - admitiu finalmente. - Estava furiosa nesse dia. Odiava Rowland por haver-se enfrentado a ti. Sentia-me tão ferida, que desejava morrer.

            - E, mesmo assim, defendeu-o ante mim.

            - Sim - murmurou ela com suavidade.

            Quintin partiu, deixando sozinha a Brigitte com suas lágrimas. Tinha decepcionado seu irmão, e isso rasgava o coração da jovem. Só ela sabia quanto tinha saudades da presença de Rowland. Orava todos os dias, implorando que ele retornasse a seu lado. Mas, como poderia explicar isso a Quintin?

 

            Rowland acordou e se estirou, instantaneamente, deixou escapar um rouco grunhido. Pelo visto, a moléstia da ferida ainda não estava disposta a lhe abandonar. Jogou um olhar de soslaio a seu irmão e o encontrou sorridente.

            - Aposto que não tens nenhum cicatriz, ou meu aroma não te agrada tanto, irmão - grunhiu Rowland.

            - Vontades essa aposta - assegurou Evarard com um breve risinho. - Jamais adotei a guerra como uma forma de vida. Não sinto compaixão por aqueles que o fazem, e depois ficam bêbados quando os afligem as feridas.

            - De maneira que falam os bêbados? - resmungou Rowland com mau humor. - Jamais fique bêbado por causa de uma simples dor!

            - Oh, não, só por ela.

            Rowland franziu o cenho.

            - Não desejo falar dela. Revelei-te mais do que devia ontem à noite.

            - Quando estava falando bêbado - replicou Evarard com uma gargalhada.

            Rowland se levantou abruptamente e, imediatamente deu um pulo ante a intensa pontada de dor. Fazia apenas dois meses que tinha recebido a ferida e esta ainda não tinha cicatrizado.

            - Posso ver seu bom humor - afirmou com tom brusco.

            Evarard permaneceu impassível em frente ao mau gênio de seu irmão.

            - Onde está seu senso de humor, homem? Fugiu com a sua bela dama?

            - Evarard, juro-te que se não fosse meu irmão, te trucidaria! - grunhiu Rowland, fechando os punhos. - Não volte a mencioná-la.

            - Precisamente porque sou seu irmão posso te falar com sinceridade - afirmou o outro jovem com tom sério. Com segurança, pensaria duas vezes antes de me socar, porque seria como bater a ti mesmo.

            - Não esteja tão seguro, irmão.

            - Vê? - A expressão do Evarard se tornou muito solene. - Reage com irritação quando eu só estou brincando. Abriga uma intensa ira em seu interior, Rowland, e a deixa viver em lugar de combatê-la.

            - Sua imaginação é muito ativa, Evarard.

            - Acha mesmo? - arriscou-se a perguntar o gêmeo - Ela te abandonou. Preferiu partir com seu irmão em lugar de permanecer a seu lado. Dirá-me que isso não te afetou?

            - Já basta, Evarard!

            - Nunca voltará a ver a dama. Isso não significa nada para ti, né?

            - Basta! - bramou Rowland.

            - Não chama isso de ira? - continuou Evarard, expondo-se a um violento golpe, já que o rosto de seu irmão começava a transformar-se em uma verdadeira máscara de cólera. - Te olhe, irmão. Está a ponto de me derrubar só porque te fiz notar que a fúria te está consumindo por dentro. Por que não acaba de uma vez com sua vida? É óbvio que não deseja viver sem essa mulher e entretanto, não faz nenhum esforço por recuperá-la.

            - Droga, Evarard. Diga-me como poderia recuperá-la se me despreza. Como poderia sequer me aproximar dela quando seu irmão está disposto a me matar apenas me veja?

            - Ah, Rowland, esses são só obstáculos que sua própria imaginação exagera. Nem sequer o tentaste. Teme fracassar. O fracasso seria seriamente o final. Mas você não sabe se fracassaria, e nunca saberá se não tentar.

            Ante o completo silêncio de seu irmão, Evarard prosseguiu.

            - E se a dama se sente tão desolada como você? E se a ira de seu irmão já começou a apaziguar-se? Sim, cometeu enganos, deve te desculpar ante a jovem. Ela pode te entender muito mais do que supões. Mas, como saberá se não for vê-la? Vá a Berry, Rowland. Fala com o irmão e, logo, expresse à moça seus sentimentos. Não tem nada que perder, pois se não fôr, então tudo estará perdido.

           À medida que se aproximava mais e mais a Louroux, Rowland refletia sobre sua conversação com Evarard. A sensatez de seu irmão o tinha feito compreender quão obstinado e tolo era seu comportamento.

            Já tinha começado o verão. Durante muito tempo, tinha aceitado seu infortúnio sem tentar modificá-lo. Durante muito tempo, tinha estado separado de Brigitte, permitindo que a ira o consumisse.

 

            - Lorde Rowland de Montville, milord - anunciou Leandor com inquietação.

            Rowland seguiu ao homem até a sala e, ao lhe ver, Quintin se levantou abruptamente, ao mesmo tempo em que levava uma mão à espada.

            - Não aceitarei a provocação se me desafiar, barão - apressou-se a advertir Rowland.

            Quintin ficou sem fala, incrédulo ante a aparição desse jovem. Jamais imaginou que o normando pudesse ser tão imprudente ao apresentar-se em Louroux. Depois de tudo, ele era o lorde dali e se o desejava, podia encerrar a esse homem para não o liberar jamais.

            - Ou já não tem desejos de viver ou é o besta maior de toda a cristandade - afirmou Quintin quando por fim conseguiu recuperar a fala. - Não acho que era uma besta, Rowland. Claro que me equivoquei contigo desde o começo. Confiei em ti, e me ensinou uma valiosa lição.

            - Não vim aqui para brigar contigo, milord - assegurou-lhe Rowland, - a não ser para fazer as pazes.

            - As pazes? - bramou Quintin, irritado ante a calma de seu inoportuno visitante. Sem titubear, atirou um violento golpe no rosto do homem. Mas Rowland permaneceu sem alterar-se, tratando de controlar seu mau gênio.

            - Droga! - grunhiu o anfitrião. - Como te atreve a te apresentar em minha casa?

            - Vim porque a amo - confessou Rowland com firmeza. Surpreendeu-lhe a facilidade com que podia pronunciar essas palavras, e decidiu as repetir. - Amo Brigitte. Quero-a como esposa.

            Quintin esteve a ponto de engasgar-se ante semelhante revelação.

            - Também a quis para satisfazer seu apetite carnal, e não duvidou em violá-la! Tomou pela força!

            - Disse-te ela isso?

            - A possuíste, e isso fala por si só!

            - Jamais fui violento com Brigitte - afirmou Rowland. - Não fui gentil no princípio, reconheço-o, porque era eu um homem muito rude então. Mas, em pouco tempo, sua irmã conseguiu me mudar, até que só comecei a me sentir desesperado para agradá-la.

            - Isso já não é importante.

            Rowland perdeu a paciência.

            - Maldição! Ponha em meu lugar. Druoda entregou a Brigitte e acreditei que essa mulher era sua irmã. A moça se converteu então em minha serva. Viajar sozinho com ela até Montville foi um verdadeiro tortura, tal como teria sido para qualquer homem forçado a enfrentar semelhante beleza. Igual à jovem, acreditei que já a tinha desvirginado aqui, em Louroux. Talvez, se tivesse sabido que era virgem, não a houvesse possuído... não sei, não posso afirmá-lo. Mas não foi esse o caso. Acaso alguma vez já levaste a uma mulher a sua cama sem lhe pedir consentimento?

            - Estamos falando de minha irmã, não de uma mera servente, obrigada do nascimento a servir a seu amo. Brigitte é uma dama de alta linhagem, e nenhuma dama deve sofrer a tortura a que você a tem exposto.

            - Ela me perdoou - afirmou Rowland.

            - Sério? Não poderia assegurá-lo, visto que jamais te menciona.

            - Minha briga contigo foi o que a fez voltar-se contra mim. - Explicou o lorde de Montville.

            - Tanto faz, visto que não voltará a vê-la jamais.

            - Seja razoável. Ofereço matrimônio. Sou o lorde de Montville agora e possuo além disso um imenso patrimônio em Cernay. Como minha esposa, Brigitte teria tudo, especialmente amor. Estou disposto a dedicar toda minha vida em compensar o dano que ocasionei. O passado já não pode modificar-se. Mas posso, entretanto, te jurar que jamais voltarei a lhe causar penas.

            - Já não há forma de remediar o que tem feito com Brigitte - afirmou Quintin com frieza.

            - O que opina ela?

            - Isso não tem importância.

            Rowland voltou a perder a paciência.

            - Ao menos, permitirá-me vê-la?

            - Já te disse que não voltaria a vê-la jamais! Agora, sai daqui, normando, quando ainda estou disposto a te deixar partir livremente. Não esqueça onde te encontra.

            - Não o esqueço, barão - afirmou Rowland calmamente, olhando no outro homem fixamente. - Brigitte significa para mim muito mais que minha própria vida.

            Depois desse comentário, voltou-se e se retirou imediatamente da sala. Quintin o observou em silêncio, mas não teve tempo de meditar as sentidas palavras do normando, já que sua irmã irrompeu de repente na sala.

            Maldição! O que menos necessitava Brigitte era enfrentar esse canalha. A moça parecia muito infeliz, sem paciência ultimamente.

            - Diz Leandor que temos uma visita - comentou a jovem, ao mesmo tempo em que se aproximava de seu irmão.

            - Leandor está equivocado - afirmou Quintin com mais brutalidade do que tivesse desejado.

            - Equivocado?

            - Era só um mensageiro - explicou o homem. - Um jovem se apresentou essa manhã para avisar que Arnulf organizará um festejo no mês entrante. Celebrará-se as bodas de uma sobrinha. Convidou-me à festa.

            - Então, talvez não esteja aqui quando...

            - Não - interrompeu-a ele com rudeza. - Provavelmente não.

            Quintin abandonou a sala imediatamente. Incomodava-lhe falar do nascimento. Envergonhava-lhe o estado de sua irmã; morria de vergonha ao saber o que foi feito à moça, mas acima de tudo, chateava-lhe que o homem que a havia possuído ainda continuasse com vida. Cada dia que passava, resultava-lhe mais e mais difícil ficar frente a Brigitte. A jovem era consciente de seu fracasso em seus intentos de vingá-la. Ela tinha fingido não se importar com o assunto, mas Quintin conhecia sua irmã e sabia quais deviam ser seus sentimentos. Entretanto, não podia culpá-la por ter perdido a fé nele.

 

            Brigitte caminhava lentamente pela horta. Uma e outra vez, tentava apanhar as folhas secas do outono que revoavam para o chão. Logo, levava-se as mãos ao ventre, agora novamente plano. Durante um longo tempo tinha levado sua carga, mas já tudo tinha terminado. Não tinha sido uma gravidez difícil, segundo as palavras de Eudora. A opinião de Brigitte tinha sido diferente no momento, Oh, sim! muito diferente.

            Entretanto, a moça já não recordava essa dor e se sentia muito feliz como mãe. Porém, quando se encontrava sozinha, uma imensa sensação de infelicidade a afligia. Detestava pensar em Rowland, mas, mesmo assim, não conseguia esquecer. Odiava a pena que esse homem lhe tinha causado, odiava sentir o desejo de lhe ter a seu lado, mas não podia a não ser pensar nele constantemente.

            Brigitte acreditou estar imaginando quando viu um cavaleiro aproximar-se da entrada de Louroux. A moça caminhou por entre as árvores até os limites da horta, com a certeza de que a visão não demorasse em desaparecer. Algo no cavalo a recordava do gigantesco Huno. Recriminou-se a si mesmo por permitir tanto vôo a sua imaginação.

            Recolheu as saias para dirigir-se para a mansão. Acelerou o passo gradualmente, até atravessar correndo os imensos portões. Ao chegar ao pátio, deteve-se de repente, já que reconheceu ao enorme cavalo que um encarregado conduzia para o estábulo. O cavaleiro já tinha desaparecido. O coração da jovem começou a pulsar com violência. Correu então até a sala e, ao atravessar as portas, voltou a deter-se abruptamente.

            - Rowland! - exclamou.

            Entretanto, ninguém pôde ouvi-la frente aos ferozes gritos de seu irmão. Ambos os jovens se encontravam enfrentados a uns escassos metros de distância: Quintin, enfurecido e Rowland, preparado para extrair sua espada.

            - Pare! - exclamou Brigitte, ao mesmo tempo em que corria para os homens - Ordeno-te que pare! - Empurrou a Rowland, quem retrocedeu sem lhe afastar o olhar. Logo, ela se voltou para seu irmão.

            - O que significa tudo isto?

            - Ele não é bem-vindo aqui.

            - Seria capaz de expulsa-lo - perguntou a jovem com irritação - sem saber por que veio?

            - Sei muito bem por que veio!

            - Por que?

            - Por ti.

            Rowland tinha respondido. Brigitte se voltou para lhe olhar e continuou o observando durante um longo instante incapaz de afastar o olhar, ao mesmo tempo em que o homem a devorava com seus escuros olhos azuis.

            - Nos deixe sozinhos. Quintin - murmurou a moça, sem olhar a seu irmão.

            Quintin a pegou pelo braço e a forçou a lhe olhar.

            - Não te deixarei sozinha com ele.

            - Agradaria-me falar com o Rowland em privado, Quintin.

            - Não.

            - Tenho esse direito. Agora, nos deixe sozinhos. Por favor.

            Quintin se sentiu furioso, mas, ainda assim, aceitou partir.

            - Estarei perto se precisar de mim, Brigitte.

            - Droga - grunhiu Rowland, logo que estiveram a sós. - Seu irmão é um agressivo e obstinado...

            - Cuidado, Rowland - interrompeu Brigitte com uma expressão gelada em seus olhos azuis.

            - Começou a gritar assim que entrei. Se você não tivesse chegado nesse instante, eu teria...

            Ele avermelhou com um intenso sentimento de culpa e a hostilidade nos olhos da jovem conseguiu lhe silenciar.

            - Sei exatamente o que teria feito, Rowland - afirmou ela calmamente. - Conheço-te muito bem. Teria desafiado a meu irmão.

            - Não, - assegurou-lhe ele imediatamente. - Só tentava deter seus gritos.

            - Só me diga por que vieste - ordenou a moça com brutalidade.

            Rowland exalou um profundo suspiro. O começo tinha sido lamentável. Mas Brigitte se encontrava por fim ante seus olhos e, Oh, Deus!, que formosa se via, inclusive mais formosa do que ele acreditava recordar.

            - Não sabe quanto senti saudades, chérie - confessou ele impulsivamente, surpreendendo a jovem com tão súbita revelação.

            Rowland não tinha planejado começar desse modo. As palavras tinham fluido por própria vontade, e tinham tomado despreparada à moça.

            - Estivemos separados durante muitos meses, Brigitte - prosseguiu ele com doçura. - Em realidade, pareceram-me anos... o tempo se tornou irresistivelmente longo sem sua companhia.

            Brigitte cerrou os olhos.

            - Acaso espera que sentisse de fato minha falta?

            - Tudo isso é verdade, e muito mais - assegurou ele com ternura. - Desejo que retorne a casa comigo. Luthor morreu e agora Montville me pertence.

            Os olhos da moça se dilataram.

            - Luthor está morto? Você não...

            - Não, não fui eu. Thurston apareceu na primavera, e se desatou uma batalha. Ocupei-me de vingar ao Luthor. Descobri que... amava ao ancião mais do que acreditava.

            - Seriamente sinto por Luthor - murmurou a moça com franqueza. - Morreram muitos?

            - Não, houve mais feridos que mortos. Mas Thurston e Roger, ambos caíram sob minha espada. Já não voltarão a nos chatear.

            - Roger está morto?

            - Apunhalou-me e lhe ataquei em ação reflexae. Nem sequer cheguei a vê-lo antes de cair.

            - Você caiu? Feriram-lhe então? - Os olhos de Brigitte examinaram temerosos ao homem.

            - Nas costas - respondeu Rowland pausadamente.

            - De modo que voltou a atacar pelas costas, tal como aconteceu em Arles?

            - Você sabe disso?

            Ela lançou um olhar fulminante.

            - Um pequeno detalhe que jamais mencionou... meu irmão te salvou a vida! E você lhe correspondeu com grande amabilidade, não é assim? - adicionou a jovem com amargura.

            - Brigitte...

            - Admito que não sabia que eu era sua irmã, mas supunha que ele era meu senhor. Acreditava que ele desejava desposar-se comigo e, ainda assim, arrebatou-me de Louroux! Traiu-lhe, Rowland.

            - O fiz sem saber, Brigitte, quando pensei que lhe tinha violado aqui, tudo parecia tão diferente. Acha que me sentia orgulhoso? Estava furioso comigo mesmo não só por isso, mas também por trair a seu irmão ao te afastar daqui. Mas, o que outra coisa podia fazer? Druoda te ameaçou matar se te deixava em Louroux. O que tivesse feito você em meu lugar?

            - Há algo que sim poderia ter feito, Rowland, poderia ter renunciado a mim quando Quintin foi me buscar em lugar começar um combate?

            - Não era tão singelo, cherie - murmurou Rowland com doçura. - Não podia te entregar, não quando acreditava que ele desejava desposar-te. Eu te queria por esposa.

            Brigitte se virou, e as palavras continuaram retumbando em seus ouvidos. "Eu te queria por esposa".

            Rowland confundiu a reação da moça com um arrebatamento de ira.

            - Nunca me atreveria a desafiar novamente Quintin, Brigitte, sabendo agora que é seu irmão. Tratei de fazer as pazes com ele, mas se recusou a me escutar. Pedi sua mão e ele me negou. Não posso lutar por ti, e Quintin nunca aceitará te entregar a mim. Brigitte, quero te converter em minha dama. Jamais desejei nada tanto como desejo a ti.

            Os olhos da jovem se encheram de lágrimas. Quantas vezes tinha implorado ouvir essas palavras? Mas já havia passado muito tempo e ela tinha parado suas orações. Sentia-se ferida em seu orgulho. Agora seu coração só abrigava amargura, porque Rowland a tinha abandonado. Durante toda a gravidez, durante esses largos meses em que tanto o tinha necessitado, ele tinha estado ausente.

            - Já é muito tarde, Rowland - sussurrou finalmente.

            O coração dele parou.

            - Casaste-te?

            - Não.

            - Então, não é muito tarde - afirmou ele, aliviado.

            Imediatamente, estendeu os braços para tomar à moça, mas ela ficou rígida e afastando o rosto para um lado, suplicou-lhe:

            - Não me toque, Rowland. Não tem direito de vim aqui e me propor matrimônio. Onde estava todos esses meses quando... quando... - Um nó lhe entupiu na garganta e ameaçou sufocá-la. Sentiu desejos de chorar e resistiu com desespero. - Não me casarei contigo, Rowland. Deveria ter chegado antes quando... quando ainda sentia algo por ti. Agora já... já não sinto nada.

            Rowland a tirou dos ombros com fúria e a forçou a lhe olhar.

            - Eu vim antes, meses atrás, mas seu irmão me expulsou daqui! Estive vagando após. Não pude retornar a casa. Meu lar já não significa nada para mim se você não estiver ali.

            A jovem sacudiu a cabeça com violência.

            - Não te acredito. Quintin me haveria isso dito se seriamente tivesse vindo aqui antes.

            - Droga, Brigitte! - bramou ele - Eu te amo!

            - Se na verdade me amasse - gritou ela, - teria me procurado antes!

            Desesperado, Rowland a atraiu bruscamente para se apoderar dos delicados lábios da jovem em um selvagem beijo. Ele tinha aberto o coração e ela tentava lhe destroçar. Essa moça o estava matando. Brigitte lutou com violência, até que ele se viu forçado a soltá-la. Ela lhe condenou com o olhar quando falou.

            - Não devia ter fazer isso. Eu já não te amo, Rowland.

            Ele reuniu os últimos restos de seu orgulho e se voltou, para afastar-se da jovem sem sequer olhar atrás.

            - Oh, Deus, não me importa! - gritou ela para a sala vazia.

            - Que não te importa?

            Brigitte se voltou, para encontrar a seu irmão de pé junto à porta, e fechou com força os punhos para controlar seus impulsos de chorar.

            - Não me importa que Rowland partiu - repetiu com firmeza.

            - Alegra-me ouvir isso - afirmou Quintin, embora sua voz revelou uma marcada nota de incerteza.

            O homem se sentia tão afligido pelo remorso, que não soube como reagir frente a sua irmã. Tinha ouvido toda a conversação, e desejaria não fazê-lo. Conhecia a moça muito bem. Brigitte, em realidade, não havia sentido tudo que havia dito a Rowland. Por que seu próprio irmão não tinha sido capaz de compreender quanto amava ela a esse homem? por que tinha sido tão egoísta de permitir que a ira o cegasse?

            Entretanto, ainda não fosse muito tarde para emendar os enganos. Mas, como poderia confessar à moça seu terrível pecado? Acaso a revelação a voltaria em seu contrário? Finalmente, Quintin se armou de coragem e decidiu enfrentar seus receios.

            - Jamais conheci a um homem com tanto valor como seu Rowland - começou a dizer. - Nem com tanto amor.

            - O que significa isso?

            - Ele já veio aqui uma vez, Brigitte, faz vários meses. Não lhe disse isso porque acreditei que te perturbaria, especialmente em seu estado. Tratou de fazer as pazes comigo, mas eu me neguei. Adverti-lhe que não retornasse nunca, mas, como vê, ele não escutou minha advertência. E agora só posso te suplicar perdão por não haver lhe contado isso. Ele é um bruto bárbaro, mas se quiser, farei que retorne.

            - Oh, Deus, Quintin! - Brigitte liberou por fim suas lágrimas. - Não acreditas que será muito tarde?

            - Deterei-o.

            - Não! - exclamou a moça. - Eu que devo detê-lo.

            Brigitte saiu correndo da sala. Quintin a seguiu até a porta e a observou atravessar velozmente o pátio até o portão, para logo perder a de vista. O jovem se forçou a permanecer em seu lugar. Não desejava voltar a interferir no destino de sua irmã.

            Rowland se afastava mais e mais, cavalgando pelo caminho, mas ainda se encontrava o suficientemente perto para ouvir os frenéticos alaridos da jovem. Entretanto, ele não parou. Nem sequer se permitiu olhar atrás.

            Brigitte o seguiu, gritando seu nome uma e outra vez. Seu condenado orgulho tinha causado a partida do homem. Ao diabo com esse orgulho! A moça começou a soluçar, temerosa de que fosse muito tarde, temerosa de tê-lo ferido irremediavelmente.

            - Rowland, por favor!

            De repente, tropeçou com as saias e caiu, soluçando com desespero. Levantou-se, mas ele tinha continuado afastando-se e, então, duvidou de que pudesse ouvi-la.

            - Rowland... volte!

            Esse foi seu último lastimoso grito, e ele o ignorou. Então, Brigitte desabou sobre os joelhos no meio da estrada, com a cabeça encurvada, derrotada e o corpo tremendo com angustiados soluços.

            Não percebeu que Rowland retornou, para encontrá-la arremessada no caminho. Ele parou, vacilou durante uns instantes e retornou velozmente para ela. Brigitte ouviu o galope do cavalo e ficou de pé, mas a ira refletida no rosto de Rowland o impediu de falar.

            - Que loucura é esta? - perguntou ele com fúria. - Tem acaso mais palavras hostis para rasgar meu coração?

            Brigitte não pôde culpá-lo. Tinha sido desumana. - Rowland... - aproximou-se com vacilação e colocou uma mão sobre a perna, olhou-o com expressão suplicante.

            - Rowland, amo-te.

            Os olhos do homem arderam mais intensamente.

            - Então - começou a dizer ele com tom gelado. - O que se supõe que devo fazer eu agora? te pedir que seja minha uma vez mais, de modo que possa voltar a me rechaçar? Acaso não te bastou uma me partir meu coração uma só vez?

            - Rowland, senti-me ferida porque passou muito tempo para vir me buscar. Orei muito por sua volta e finalmente abandonei as suplicas. Sentia-me infeliz e comecei a abrigar um intenso rancor porque acreditei que já não me queria. Tratei com desespero de te esquecer, mas não consegui.

            - Se me amasse, Brigitte, não teria me rechaçado.

            - Era a voz de meu orgulho ferido a que falava. Sentia que se seriamente me amava, teria vindo antes por mim.

            - Eu vim.

            - Agora sei. Quintin acaba de confessá-lo. Não me disse isso antes porque não sabia que eu te amava. Nunca me atrevi a lhe revelar meus verdadeiros sentimentos porque ele se negava a te perdoar.

            - Quer dizer que você me perdoou pelo que aconteceu com seu irmão?

            - Amo-te, Rowland. Seria capaz de te perdoar tudo... Por favor, não permita que seu orgulho se interponha entre nós, tal como eu o fiz... Do contrário, morrerei!

            Rowland desembarcou do cavalo para estreitá-la em um forte abraço.

            - Minha joiazinha - sussurrou com voz rouca. - Nenhum homem desta terra poderia amar a uma mulher tanto como eu te amo. Será minha para sempre. Nada no mundo pode impedi-lo, agora que sei que você também me ama. - Olhou-a fixamente nos olhos. - Está segura? Não tem dúvidas?

            - Sinto-me segura, muito, muito segura - afirmou ela com um sorriso.

            Rowland riu com deleite.

            - Agora podemos retornar a casa.

 

            Quintin não se surpreendeu ao ver sua irmã e ao jovem entrar na sala intimamente abraçados, mas a expressão de enlevo no rosto de Brigitte o deixou sem fala.

            O casal parou no centro do salão, e Rowland olhou o jovem com cautela. Então, Quintin se levantou abruptamente.

            - Pelo amor de Deus, Rowland. Não sou um perverso ogro. - Sorriu com afabilidade. - E tampouco sou tão egoísta para não admitir que estava equivocado. Desejo a felicidade de Brigitte, e posso ver que só contigo será feliz.

            - Contamos com sua bênção, então?

            - Minha bênção e meus mais sinceros desejos para uma vida longa e feliz juntos - afirmou o homem calmamente.

            - Vê por que amo tanto ao Quintin. - Brigitte sorriu e se aproximou de seu irmão para abraçá-lo com força - Obrigado Quintin.

            - Não me agradeça isso, pequena. Só sinto que tenha estado tanto tempo separada do homem que amas. Espero que possa me perdoar por toda a pena que te causei.

            - Claro que te perdôo. Agora tenho Rowland e nada voltará a nos separar.

            Quintin sorriu com carinho.

            - E já lhe falou a respeito de...?

            Brigitte se voltou para o Rowland e lhe tirou da mão.

            - Venha. Tenho uma agradável surpresa para ti. Conduziu ao homem pelas escadas e logo, pelo corredor, até deter-se frente a uma porta fechada. No chão, achava-se estendida numa gigantesca besta peluda. - Espero que não me tenha arrastado até aqui só para me mostrar o Wolff - brincou Rowland com fingida severidade.

            A moça sorriu e seu olhar se topou com os escuros alhos azuis de seu amado.

            - Não, não se trata dele.

            - Então, com segurança, isso pode esperar - murmurou ele com voz rouca para logo beijá-la apaixonadamente.

            Porém, Brigitte se apressou em se separar do abraço.

            - Rowland, por favor... - Esboçou um doce sorriso, sacudindo a cabeça, e logo abriu a porta com supremo cuidado. Conduziu-o para o interior do quarto e o arrastou até o centro da habitação, onde se encontrava um berço totalmente revestido com delicados encaixes brancos.

            Rowland franziu o cenho, confundido.

            - Bebês? Trouxe-me até aqui para ver uns bebês?

            - Não são formosos?

            - Suponho que sim - grunhiu ele.

            Brigitte se inclinou sobre o berço para tomar uma das diminutas criancinhas.

            - Parecem-se, não é verdade?

            - Estou vendo.

            - Não os vê, são idênticos?

            Rowland olhou alternativamente cada um dos pequenos rostos e, então, notou que os cabelos loiros, os diminutos olhos escuros, todos os traços eram na verdade idênticos. De repente, compreendeu e soltou uma gargalhada.

            - Claro! São gêmeos! Quis me mostrar dois bebês gêmeos, como Evarard e eu.

            A moça se sentiu decepcionada. Ele não tinha compreendido.

            - Estes gêmeos são muito especiais. - Levantou um dos bebês para entregar a Rowland. - Esta é Judith. Toma, segura.

            - Não! - Ele retrocedeu, alarmado.

            - Não te machucará, Rowland - assegurou-lhe Brigitte com um sorriso.

            O franziu o cenho.

            - É um bebê muito pequeno. Sou eu quem poderia machucá-la.

            - Tolices.

            Mesmo assim, a jovem decidiu não o pressionar. Era óbvio que Rowland jamais tinha elevado antes um bebê, mas deveria aprender. Voltou a colocar ao Judith no berço e levantou o outro pequeno.

            - E este é Arland.

            - Um menino? - perguntou, aturdido.

            - Um menino - assentiu ela, divertida.

            - Mas disse que eram gêmeos.

            - E são.

            Rowland voltou a observar aos bebês com mais detalhe, e perguntou vacilante:

            - Como soube qual era qual?

            Brigitte voltou a colocar Arland em seu berço e fez cócegas festivamente na diminuta barriginha.

            - Sei, Rowland. E, muito em breve, você também aprenderá a reconhecê-los. - Olhou ao jovem com expressão espectador, mas percebeu que ele ainda não tinha adivinhado. Então, adicionou significativamente: - Acredito que ambos se parecem contigo.

            Nesse instante, tudo se esclareceu para Rowland e, imediatamente, seu rosto empalideceu.

            - São seus... e meus?

            - Nossos filhos, meu amor.

            Ele a atraiu para si, para observar aos meninos por cima do ombro da jovem.

            - E pensar que conseguiu fazer isto tudo sem mim... Jamais imaginei que... - de repente, afastou à moça bruscamente. - E teria permitido que partisse daqui sem sequer saber o dos meninos?

            - Sim, teria. - admitiu ela, elevando o queixo com sua acostumada atitude desafiante.

            Rowland sacudiu a cabeça.

            - É uma bruxa obstinada - afirmou, deixando escapar um suspiro de resignação.

            - Em efeito - reconheceu Brigitte, curvando os lábios.

            O homem voltou a tomá-la entre seus braços para lhe falar com infinita ternura.

            - Mas é minha bruxa obstinada. Só minha! - Abraçou-a com mais força. - E eles são meus, um filho e uma filha, duas jóias de minha joiazinha. É maravilhosa, Brigitte! E quanto te amo, milady. Oh, Deus, quanto te amo! Nunca me separarei de ti.

            Imediatamente, Rowland selou essa promessa com um apaixonado beijo e Brigitte não teve oportunidade de expressar quanto o amava também. Mas o diria mais tarde, e uma e outra vez, durante o resto de suas vidas.

 

                                                                                Johanna Lindsey 

 

                      

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