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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ASSISTENTE DE VAMPIRO / Darren Shan
ASSISTENTE DE VAMPIRO / Darren Shan

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Para abreviar uma longa história, Madame Octa picou Lucas e ele acabou no hospital. Lucas ia morrer, por isso fui procurar o Sr. Crepsley e pedi a ele que salvasse meu amigo. Ele concordou, mas em troca eu tive de me tornar um meio-vampiro e viajar com ele, como seu assistente!
Eu fugi depois que ele me transformou em meio-vampiro (passando parte do seu sangue horrível para mim) e salvei Lucas, mas então percebi que comecei a ter fome de sangue e fiquei com medo de lazer algo horrível (como morder minha irmã) se continuasse em casa.
Então o Sr. Crepsley me ajudou a forjar minha morte. Fui enterrado vivo e depois, no meio da noite, quando não havia mais ninguém por perto, ele me desenterrou e começamos nossa vida juntos. Meus dias como ser humano tinham acabado. Começavam minhas noites como assistente de vampiro.

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    Era uma noite seca e quente e George Collins resolveu voltar a pé para casa depois da reunião dos escoteiros. Não era uma longa caminhada — menos de dois quilômetros — e, embora a noite estivesse escura, ele conhecia cada centímetro do caminho tão bem quanto sabia dar um nó de marinheiro.
   
George era chefe de escoteiros. Fora escoteiro quando menino e manteve contato durante toda a vida. Fez dos três filhos escoteiros de primeira ordem e, quando eles cresceram e saíram de casa, passou a orientar os garotos do bairro.
   
Andava depressa para se manter aquecido. Vestia short e camiseta e, apesar da noite estar agradável, seus braços e pernas logo ficaram arrepiados. Não se importou. Sua mulher teria
uma bela xícara de chocolate quente e pãezinhos com passas quando chegasse em casa. O prazer seria maior depois de uma boa e rápida caminhada.
   
Árvores erguiam-se nos dois lados da rua, tornando-a muito escura e perigosa para quem não estava acostumado. Mas George não tinha medo. Ele amava a noite. Gostava de ouvir o som dos próprios pés na relva e no cascalho.
   
Crunch. Crunch. Crunch.
   
Sorriu. Quando os filhos eram pequenos, às vezes ele brincava, dizendo que havia monstros à espreita nas árvores. Fazia barulhos assustadores e sacudia as folhas dos galhos mais baixos quando os meninos não estavam olhando. Às vezes eles saíam correndo a toda velocidade, gritando, e George os acompanhava, rindo.
   
Crunch. Crunch. Crunch.
   
Quando George tinha dificuldade para dormir, imaginava o som de seus próprios passos a caminho de casa e isso sempre o ajudava a mergulhar em sonhos felizes. Era o mais belo som do mundo, na opinião dele, que acreditava ser melhor até que todas as músicas de Mozart e Beethoven.
   
Crunch. Crunch. Crunch.
   
Plac.
   
Parou, intrigado. Parecia um graveto quebrando — mas como podia ser? Ele teria sentido se pisasse em algo diferente. E não havia vacas ou carneiros nos campos próximos.
   
Ficou imóvel por meio minuto, ouvindo atentamente. O som não se repetiu e George balançou a cabeça, sorrindo. Talvez uma brincadeira da sua imaginação, nada mais. Contaria para a mulher quando chegasse em casa e os dois dariam boas risadas.
   
Começou a andar outra vez.
   
Crunch. Crunch. Crunch.
   
Pronto. De volta ao som familiar. Não havia ninguém por ali. Ele teria ouvido mais do que o estalo de um graveto, se houvesse. Ninguém ia atacar de surpresa George Collins. Ele era chefe de escoteiros treinado. Seus ouvidos eram tão aguçados quanto os de uma raposa.
   
Crunch. Crunch. Crunch. Crunch. Cru...
   
Plac.
   
George parou novamente e pela primeira vez os dedos do medo começaram a apertar seu coração.
   
Aquilo não era imaginação. Ouviu claramente, como o som de um sino. Um graveto estalando em algum lugar acima dele. E, antes do estalo, um pequeno farfalhar, como alguma coisa se movendo?
   
Olhou para as árvores, mas estava escuro demais para ver. Podia haver um monstro do tamanho de um carro lá em cima, que ele não teria visto. Dez monstros. Cem! Mil...
   
Ora, isso era bobagem. Não havia monstros nas árvores. Monstros não existiam. Todo mundo sabia disso. Monstros não eram reais. Devia ser um esquilo ou uma coruja, alguma coisa comum.
   
George levantou um pé e começou a abaixá-lo.
   
Plac.
   
Seu pé ficou suspenso no ar e o coração batia descompassadamente. Não era um esquilo! O som era muito forte. Alguma coisa grande estava lá em cima. Alguma coisa que não deveria estar ali. Alguma coisa que jamais havia estado lá. Alguma coisa que...
   
Plac!
   
O som estava mais perto dessa vez, mais baixo, e de repente ele não aguentou mais.
   
Começou a correr.
   
George era um homem grande, em boa forma para a idade. Porém, havia muito tempo não corria tão depressa e, depois de cem metros, estava sem fôlego e sentindo uma pontada no lado do corpo.
   
Parou e inclinou-se para a frente, ofegante.
   
Crunch.
   
Levantou a cabeça, rapidamente.
   
Crunch. Crunch. Crunch.
   
Passos vinham na sua direção. Passos lentos e pesados. Apavorado, sentiu que se aproximavam cada vez mais. O monstro teria passado à sua frente, no alto das árvores? Teria descido? Estava se aproximando para acabar com ele? Seria...
   
Crunch, Crunch.
   
Os passos pararam e George viu um vulto no escuro. Era menor do que ele esperava, do tamanho de um menino. Respirou fundo, endireitou o corpo, juntou toda sua coragem e deu um passo à frente para ver melhor.
   
Era apenas um menino! Um menino pequeno, com roupas sujas, que parecia assustado.
Sorriu e balançou a cabeça. Que tolice a sua. Sua mulher ia se divertir a valer quando contasse.
   
— Você está bem, garoto? — perguntou George.
   
O menino não respondeu.
   
Nunca o tinha visto antes, mas havia muitas famílias novas no bairro ultimamente. Não conhecia mais todos os garotos da vizinhança.
   
— Posso ajudá-lo? — perguntou. — Você está perdido?
   
O menino balançou a cabeça lentamente. Havia alguma coisa estranha nele. Algo que, de repente, deixou George inquieto. Podia ser o efeito do escuro e das sombras... mas mesmo assim o menino parecia muito pálido, muito magro, muito...faminto.
   
— Você está bem? — perguntou outra vez, chegando mais perto. — Posso...
   
PLAC!
   
O som veio diretamente de cima, alto e ameaçador.
   
O menino saltou para o lado, rapidamente, deixando o caminho livre.
   
George só teve tempo de olhar para cima e ver um enorme vulto vermelho, que podia ser uma espécie de morcego, caindo através dos galhos, quase tão depressa quanto os olhos podiam seguir.
   
Então a coisa vermelha estava em cima dele. George abriu a boca para gritar, mas as mãos do monstro — garras? — se fecharam sobre seus lábios. Houve uma luta breve e então George estava no chão, inconsciente, sendo arrastado.
   
Acima dele, as duas criaturas da noite se moveram para começar a refeição.
 
   
CAPÍTULO DOIS
   
 
   
 
    — Imagine um homem dessa idade com uniforme de escoteiro — zombou o Sr. Crepsley, virando a vítima de costas, no chão.
   
— Você foi escoteiro alguma vez? — perguntei.
   
— Não existia isso no meu tempo — respondeu ele.
   
Bateu com a mão na perna forte do homem e grunhiu.
   
— Bastante sangue neste aqui — disse ele.
   
Vi o Sr. Crepsley procurar uma veia na perna, depois cortar — um pequeno corte — com a unha afiada. Assim que o sangue começou a sair, ele pôs a boca no corte e sugou. Achava errado desperdiçar qualquer gota do “precioso mercúrio vermelho”, como às vezes chamava o sangue.
   
Fiquei parado a seu lado, hesitante, enquanto ele bebia. Era a terceira vez que eu tomava parte em um ataque, mas ainda não estava acostumado ao espetáculo do vampiro sugando sangue de um ser humano indefeso.
   
Quase dois meses haviam passado desde a minha “morte”, mas eu estava tendo muita dificuldade para me ajustar à mudança. Era difícil acreditar que meu antigo modo de vida estava acabado, que eu era um meio-vampiro e jamais poderia voltar. Eu sabia que, no fim, teria de abandonar meu lado humano. Mas era mais fácil falar do que fazer.
   
O Sr. Crepsley ergueu a cabeça e passou a língua nos lábios.
   
— Uma boa safra — zombou, afastando-se do corpo. — Sua vez — disse ele.
   
Dei um passo à frente, balancei a cabeça e disse:
   
— Eu não posso.
   
— Não seja burro — rosnou ele. — Você já se negou duas vezes. Está na hora de beber.
   
— Não posso! — gritei.
   
— Você tomou sangue de animal — disse ele.
   
— Mas este é diferente. Este é humano.
   
— E daí? — disse o Sr. Crepsley, irritado. — Nós não somos. Você precisa começar a tratar os seres humanos como animais, Darren. Os vampiros não podem viver apenas com sangue de animais. Se não começar a tomar sangue humano, vai ficar fraco. Se continuar a evitar esse sangue, vai morrer.
   
— Eu sei — disse, tristemente. — Você já me explicou isso. E sei que não fazemos sofrer as pessoas de quem tomamos o sangue, a não ser que tomemos demais. Mas... — dei de ombros, sentindo-me muito infeliz.
   
Ele suspirou.
   
— Muito bem. É difícil, especialmente quando você é apenas um meio-vampiro e a fome não é tão grande. Vou deixar que se abstenha esta vez. Mas precisa começar logo. Para o seu bem.
   
Ele voltou a atenção para o pequeno corte e limpou o sangue — que continuou a sair enquanto conversávamos — em volta da perna do homem. Então encheu a boca de saliva e cuspiu no corte. Esfregou com a ponta do dedo, depois sentou e esperou.
   
O ferimento fechou e cicatrizou. Em poucos minutos tudo tinha desaparecido, a não ser uma pequena cicatriz que o homem provavelmente não notaria quando acordasse.
   
É assim que os vampiros se protegem. Ao contrário do que mostram os filmes, eles não matam as pessoas quando tomam seu sangue, a não ser que estejam famintos ou se deixem levar longe demais pelo entusiasmo. Eles bebem em pequenas doses: um pouco aqui, um
pouco ali. Às vezes atacam as pessoas em lugares abertos, como nessa noite. Outras, entram sorrateiramente no quarto, tarde da noite, ou em enfermarias de hospitais, ou em cadeias.
   
As pessoas cujo sangue eles bebem dificilmente se dão conta de terem servido de alimento para um vampiro. Quando esse homem acordar, vai se lembrar apenas de um vulto vermelho caindo das árvores. Não vai poder explicar por que ficou inconsciente ou o que aconteceu quando estava nesse estado. Se encontrasse a cicatriz, provavelmente pensaria que era a marca de alienígenas e não de um vampiro!
   
Ah! Alienígenas! Pouca gente sabe que os vampiros foram os criadores das histórias de discos voadores. Era um disfarce perfeito. Em todo o mundo as pessoas estavam acordando, encontrando cicatrizes estranhas nos seus corpos, e culpando os imaginários alienígenas.
   
O chefe dos escoteiros havia ficado inconsciente com a força do bafo do Sr. Crepsley. Os vampiros podem emitir uma espécie de gás que provoca desmaio. Quando o Sr. Crepsley queria fazer alguém dormir, ele soprava seu bafo na mão em concha e cobria com ela o nariz e a boca da pessoa. Bastava alguns segundos para que ela ficasse inconsciente e só acordasse no mínimo de vinte ou trinta minutos depois.
   
O Sr. Crepsley examinou a cicatriz para ter certeza de que estava bem fechada. Ele tratava suas vítimas com todo o cuidado. Pelo que tinha visto, parecia um homem bom — exceto pelo fato de ser um vampiro!
   
— Venha — disse ele, levantando-se. — A noite apenas começou. Vamos procurar uma
lebre ou uma raposa para você.
   
— Não se importa que eu não tome o sangue dele? — perguntei.
   
O Sr. Crepsley balançou a cabeça.
   
— Com o tempo você vai tomar — disse ele. — Quando a fome apertar.
   
— Não — disse eu silenciosamente, atrás dele, quando se virou para seguir caminho. — Não vou. Não de seres humanos. Jamais tomarei o sangue de um ser humano. Nunca!
 
   
CAPÍTULO TRÊS
   
 
   
 
    Acordei no começo da tarde, como sempre. Fui me deitar um pouco antes do nascer do dia, na mesma hora que o Sr. Crepsley. Porém, enquanto ele tinha de dormir até a noite chegar outra vez, eu podia me movimentar à luz do dia. Era uma das vantagens de ser apenas um meiovampiro.
   
Preparei um desjejum de geléia e torrada — até mesmo os vampiros precisam de comida normal, apenas sangue não é suficiente — e me instalei na frente da televisão do hotel. O Sr. Crepsley não gostava de hotéis. Geralmente ele dormia ao ar livre, num celeiro velho, num prédio em ruínas ou em uma cripta espaçosa, mas eu não queria saber disso. Depois de dormir mal por uma semana, eu disse francamente que para mim bastava. Ele resmungou um pouco, mas no fim cedeu.
   
Os dois últimos meses tinham passado depressa porque eu estava muito ocupado, aprendendo a ser um assistente de vampiro. O Sr. Crepsley não era um grande professor, e não gostava de repetir as coisas, por isso eu tinha de prestar atenção e aprender rapidamente.
   
Eu agora estava muito forte. Podia erguer pesos enormes e esmagar bolas de gude entre os dedos. Se apertava a mão de um ser humano, precisava ter cuidado para não quebrar os ossos dos dedos. Eu podia fazer flexões a noite inteira e jogar uma bola de metal mais longe do que qualquer adulto comum. (Medi a distância do meu lançamento certo dia, verifiquei os dados em um livro e descobri que acabava de estabelecer um novo recorde mundial. No começo fiquei entusiasmado, mas então compreendi que não podia contar para ninguém meu feito. Mesmo assim, era bom saber que eu era um campeão mundial.)
   
Minhas unhas das mãos estavam muito grossas e eu só conseguia cortá-las com os dentes: tesouras e cortadores não adiantavam para as minhas novas e fortes unhas. Elas eram um problema: eu estava sempre rasgando a roupa quando me vestia ou me despia, e fazia buracos nos bolsos quando enfiava as mãos neles.
   
Tínhamos percorrido uma grande distância desde aquela noite no cemitério. Primeiro fugimos na velocidade máxima dos vampiros, eu nas costas do Sr. Crepsley, invisíveis aos olhos humanos, deslizando pela terra como um par de fantasmas velozes. Isso se chama deslizar. Mas deslizar é muito cansativo, por isso, depois de algumas noites, começamos a tomar ônibus e trens.
   
Eu não sei onde o Sr. Crepsley arranja dinheiro para nossas viagens, hotéis e comida. Nunca vi nenhuma carteira e nenhum cartão de crédito mas, sempre que tínhamos de pagar alguma coisa, o dinheiro aparecia.
   
Não adquiri presas afiadas. Esperava que elas brotassem e durante três semanas verifiquei meus dentes no espelho, todas as noites, até o Sr. Crepsley me surpreender.
   
— O que você está fazendo? — perguntou.
   
— Procurando as presas — respondi.
   
Ele olhou para mim por alguns segundos, depois deu uma gargalhada.
   
— Não temos presas, seu idiota! — disse ele, rindo.
   
— Mas... então como mordemos as pessoas? — perguntei, confuso.
   
— Não mordemos — disse, rindo ainda. — Nós as cortamos com nossas unhas e sugamos o sangue. Só usamos os dentes em emergências.
   
— Então não vou ter presas?
   
— Não. Seus dentes serão mais duros do que os de qualquer ser humano e vai poder morder através da pele e dos ossos, se quiser, mas faz muita bagunça. Só vampiros burros usam os dentes. E vampiros burros não vivem muito tempo. Acabam caçados e mortos.
   
Fiquei um pouco desapontado. Era uma das coisas que eu mais gostava nos filmes de vampiros: o vampiro parecia tão legal quando arreganhava as presas!
   
Mas, depois de pensar por algum tempo, resolvi que sem as presas era melhor. Bastava as unhas rasgando minha roupa. Eu teria um problema sério se meus dentes tivessem crescido e eu começasse a tirar pedaços das minhas bochechas também!
   
A maioria das histórias de vampiros é falsa. Não podemos mudar de forma nem voar. Crucifixos e água benta não nos prejudicam em nada. Tudo que o alho faz é nos dar mau hálito. O reflexo da nossa imagem pode ser visto em espelhos. Temos sombra.
   
Porém, alguns dos mitos são verdadeiros. Um vampiro não pode ser fotografado ou filmado com uma câmera de vídeo. Há alguma coisa diferente nos átomos dos vampiros, e tudo que aparece num filme é uma sombra vaga e escura. Eu ainda podia ser fotografado, mas a foto não sairia clara, por melhor que fosse a luz.
   
Vampiros são amigos de ratos e morcegos. Não podemos nos transformar nesses animais, como afirmam alguns livros e alguns filmes, mas eles gostam de nós — eles sabem, pelo cheiro do nosso sangue, que somos seres humanos diferentes — e geralmente se aconchegam a nós quando dormimos ou se aproximam à procura de restos de comida.
   
Cães e gatos, por algum motivo, nos detestam.
   
A luz do sol pode matar um vampiro, mas não rapidamente. Um vampiro pode andar durante o dia se estiver usando várias camadas de roupa. Ele se queima facilmente e começa a ficar vermelho dentro de quinze minutos. Quatro ou cinco horas de luz do sol é morte certa.
   
Uma estaca de madeira no coração nos mata, mas o mesmo acontece com um tiro, uma facada ou um choque elétrico. Podemos nos afogar ou ser dizimados por certas doenças. Somos mais difíceis de matar do que uma pessoa normal, mas não somos indestrutíveis.
   
Eu precisava aprender muitas coisas mais. Muito mais. O Sr. Crepsley disse que só depois de muitos anos eu saberia tudo e poderia me virar sozinho. Disse que um meiovampiro que não sabe o que está fazendo morre em poucos meses, por isso eu tinha de ficar grudado nele como cola, mesmo que não quisesse.
   
Quando terminei a torrada com geléia, aparei minhas unhas durante algumas horas. Não tinha nada de bom na TV , mas eu não queria sair, não sem o Sr. Crepsley. Estávamos em uma cidade pequena e as pessoas me deixavam nervoso. Eu estava sempre na expectativa de que fossem me descobrir, que soubessem o que eu era e me perseguissem com estacas afiadas.
   
O Sr. Crepsley apareceu ao anoitecer e passou a mão na barriga.
   
— Estou faminto — disse. — Sei que ainda é cedo, mas vamos sair agora. Eu devia ter sugado mais sangue daquele tolo chefe de escoteiros. Acho que vou procurar outro ser humano. — Ele olhou para mim com uma sobrancelha erguida. — Talvez você queira se juntar a mim desta vez.
   
— Pode ser — disse eu, sabendo que não ia acontecer. Era a única coisa que eu havia jurado nunca fazer. Eu podia ter de beber sangue de animais para ficar vivo, mas jamais me banquetearia com um ser humano igual a mim, independente do que o Sr. Crepsley dizia ou de quanto minha barriga roncava de fome. Eu era um meio-vampiro, sim, mas era também meiohomem e a ideia de atacar uma pessoa viva me enchia de horror e de nojo.
 
   
CAPÍTULO QUATRO
   
 
   
 
    Sangue...
   
O Sr. Crepsley passava grande parte do tempo me ensinando tudo sobre sangue. É vital para vampiros. Sem ele, ficamos fracos, velhos e morremos. O sangue nos mantém jovens. A idade de um vampiro é um décimo da razão da idade de um ser humano normal (para cada dez anos que passam, os vampiros envelhecem apenas um), mas sem sangue humano envelhecemos até mais depressa do que os seres humanos, talvez vinte ou trinta anos em um ou dois anos. Como um meio-vampiro, que envelhece a um quinto da razão da idade humana, eu não precisava tomar tanto sangue quanto o Sr. Crepsley — mas precisava tomar algum para viver.
   
O sangue dos animais — cães, bois, carneiros — mantém os vampiros vivos, mas o de
outros animais, eles — nós — não podem beber: gatos, por exemplo. Tomar sangue de gato, para um vampiro, é o mesmo que tomar veneno. Também não podemos tomar sangue de macacos, rãs, a maioria dos peixes e cobras.
   
O Sr. Crepsley me disse todos os nomes dos animais perigosos. São muitos e eu precisava de tempo para aprender quais eram seguros e quais não eram. Seu conselho era sempre perguntar antes de tentar algo novo.
   
Vampiros precisam tomar sangue humano pelo menos uma vez por mês. A maioria se regala uma vez por semana. Desse modo, não precisam tomar muito. Se você toma sangue humano apenas uma vez por mês, precisa tomar muito sangue de uma só vez.
   
O Sr. Crepsley explicou que era perigoso passar muito tempo sem tomar sangue. Disse que a sede pode fazer com que você tome mais do que pretende e pode acabar matando a vítima escolhida.
   
— Um vampiro que se alimenta frequentemente pode se controlar — acrescentou ele. — Um que só se alimenta quando deve pode acabar sugando descontroladamente. A fome dentro de nós deve ser alimentada para ser controlada.
   
O sangue fresco é o melhor. Se você bebe o sangue de um ser humano vivo, o alimento é perfeito e você não precisa tomar muito. Mas o sangue começa a azedar quando a pessoa morre. Se você suga de um corpo morto, precisa sugar muito mais.
   
— A regra geral é nunca se alimentar com o sangue de uma pessoa morta há mais de um dia — explicou o Sr. Crepsley.
   
— Como vou saber há quanto tempo a pessoa está morta? — perguntei.
   
— Pelo gosto do sangue — disse ele. — Você aprenderá a distinguir entre sangue bom e sangue ruim. O sangue ruim é como leite azedo, só que pior.
   
— Tomar sangue azedo é perigoso? — perguntei.
   
— É. Você fica doente, talvez louco, ou morre.
   
Brrr!
   
Podemos engarrafar sangue fresco e conservar pelo tempo que quisermos, para o caso de uma emergência. O Sr. Crepsley levava várias garrafas de sangue debaixo do seu manto. Às vezes tomava uma à refeição, como se fosse vinho.
   
— Pode-se sobreviver só com sangue engarrafado? — perguntei certa noite.
   
— Por algum tempo — disse ele. — Mas não a longo prazo.
   
— Como se engarrafa o sangue? — perguntei, curioso, examinando um dos frascos. Era como um tubo de ensaio, com o vidro um pouco mais escuro e espesso.
   
— É complicado — disse ele. — Mostrarei a você como se faz na próxima vez que engarrafar.
   
Sangue...
   
Era o que eu mais precisava e também o que mais temia. Se eu tomasse sangue humano, nunca mais poderia voltar atrás. Seria vampiro por toda a vida. Se eu o evitasse, poderia recuperar minha forma humana. Talvez o sangue do vampiro nas minhas veias acabasse. Talvez eu não morresse. Talvez apenas o vampiro que havia em mim viesse a morrer e então eu poderia voltar para casa, para minha família e meus amigos.
   
Eu não tinha grandes esperanças — o Sr. Crepsley havia dito que era impossível voltar a ser humano e eu acreditava nele —, mas era o único sonho que eu tinha.
 
   
CAPÍTULO CINCO
   
 
   
 
    Dias e noites se passaram e nós continuamos na estrada. Íamos a cidades pequenas, a povoados, a cidades grandes. Eu não estava me dando muito bem com o Sr. Crepsley. Por melhor que fosse, não podia me esquecer de que foi ele quem injetou sangue de vampiro nas minhas veias e tornou impossível para mim ficar com minha família.
   
Eu o odiava. Às vezes, durante o dia pensava em enfiar uma estaca afiada no seu coração, enquanto ele dormia, e fugir, para me virar sozinho. Poderia ter feito isso, se não fosse pelo fato de saber que não sobreviveria sem ele. Por enquanto, eu precisava de Larten Crepsley. Mas quando chegasse o dia em que pudesse cuidar de mim mesmo...
   
Eu era encarregado de tratar de Madame Octa. Tinha de providenciar comida para ela e
limpar a gaiola. Mas não queria fazer isso — odiava a aranha quase tanto quanto odiava o vampiro —, mas o Sr. Crepsley disse que eu a tinha roubado, portanto podia tomar conta dela.
   
Praticava alguns truques com ela uma vez ou outra, mas sem nenhum entusiasmo. A aranha não me interessava mais e, com o passar do tempo, eu brincava cada vez menos com ela.
   
A única coisa boa de estarmos sempre viajando era poder visitar uma porção de lugares que eu não conhecia, apreciar todo tipo de paisagem. Eu adorava viajar. Mas, como viajávamos à noite, não via grande coisa.
   
Certo dia, enquanto o Sr. Crepsley dormia, fiquei cansado de ficar dentro de casa. Deixei um bilhete sobre a TV , para o caso de não ter voltado quando ele acordasse, e saí. Tinha pouco dinheiro e nenhuma ideia de onde podia ir, mas isso não importava. Só o fato de sair do hotel e passar algum tempo sozinho era maravilhoso.
   
Era uma cidade grande, mas bastante silenciosa. Estive em algumas lojas de brinquedos e joguei alguns jogos nos computadores gratuitos. Eu nunca fui muito bom com computadores antes mas, com meus novos reflexos e habilidades, podia fazer praticamente o que quisesse.
   
Passei rapidamente todas as fases nos jogos de velocidade, venci todos os oponentes nas competições de artes marciais e eliminei todos os alienígenas do céu nas aventuras de ficção científica.
   
Depois disso, fui passear pela cidade. Havia uma porção de fontes e estátuas, parques e museus, e tudo isso examinei com interesse. Mas os museus me faziam lembrar minha mãe, que adorava me levar a museus — e isso me perturbou. Eu sempre me sentia abandonado e solitário quando pensava em mamãe, papai ou Joana.
   
Vi um grupo de garotos da minha idade jogando hóquei numa quadra de cimento. Eram oito jogadores de cada lado. A maior parte usava bastões de plástico, mas alguns tinham bastões de madeira. Estavam usando uma velha bola branca de tênis em lugar do disco.
   
Parei para olhar e, depois de alguns minutos, um dos garotos se aproximou de mim.
   
— De onde você é? — perguntou.
   
— De outra cidade — disse eu. — Estou em um hotel com meu pai. — Eu detestava chamar o Sr. Crepsley de pai, mas era a coisa mais segura.
   
— Ele é de outra cidade — o garoto gritou para seus amigos, que tinham parado de jogar.
   
— Ele faz parte da família Adams? — gritou um deles, e todos riram.
   
— O que ele quer dizer com isso? — perguntei, ofendido.
   
— Tem se olhado no espelho ultimamente? — perguntou o menino.
   
Olhei para minha roupa empoeirada e compreendi por que eles estavam rindo. Eu parecia um personagem saído de Oliver Twist.
   
— Perdi uma mala com minhas roupas — menti. — Isto é tudo que eu tenho. Logo vou comprar roupas novas.
   
— Precisa mesmo — sorriu o garoto, depois perguntou se eu sabia jogar hóquei. Disse que sabia e ele me convidou para jogar.
   
— Pode jogar no meu time — disse ele, me dando um bastão. — Estamos perdendo de seis a dois. Meu nome é Michel.
   
— Darren — disse eu, experimentando o bastão.
   
Enrolei as pernas da minha calça e verifiquei se os cordões dos sapatos estavam bem amarrados. Enquanto eu fazia isso, o time adversário marcou outro gol. Michel praguejou em voz alta e arrastou a bola outra vez para o centro.
   
— Quer ajudar a saída? — perguntou.
   
— Claro.
   
— Pois então, venha — disse ele, passou a bola para mim e seguiu em frente, esperando que eu a devolvesse.
   
Havia muito tempo que eu não jogava hóquei — na escola, em educação física, geralmente podíamos escolher entre hóquei e futebol e eu nunca perdia a oportunidade de um bom jogo de futebol —, mas com o taco nas mãos e a bola aos meus pés, parecia que tinha sido ontem.
   
Impulsionei a bola da esquerda para a direita algumas vezes, certificando-me de que ainda sabia controlá-la, depois ergui os olhos e focalizei o gol.
   
Havia sete jogadores entre mim e o goleiro. Nenhum deles correu para me tirar a bola. Acho que acharam que não era preciso, uma vez que tinham vantagem de cinco gols.
   
Comecei a jogar. Um garoto grande — o capitão do outro time — tentou impedir minha passagem, mas eu desviei dele facilmente. Passei por mais dois, antes que tivessem tempo de reagir, depois driblei um quarto. O quinto jogador deslizou para mim com o taco à altura do joelho, mas saltei sobre ele sem dificuldade, driblei o sexto e atirei a bola antes que o sétimo defensor final pudesse intervir.
   
Embora eu tivesse batido na bola de leve, ela partiu com maior velocidade do que o goleiro esperava e foi parar no lado esquerdo superior do gol. Ricocheteou na parede e eu a apanhei no ar.
   
Virei sorrindo e olhei para meus companheiros de time. Estavam ainda no próprio campo, olhando para mim, chocados. Levei a bola de volta para o centro e a posicionei sem uma palavra. Então, virei para Michel e disse:
   
— Sete a três.
   
Ele piscou os olhos lentamente e depois sorriu.
   
— Ah, é isso aí! — riu baixinho, depois piscou para seus companheiros de time. — Está começando a ficar bom!
   
Por algum tempo eu me diverti à beça, controlando o curso do jogo, correndo para trás para defender, tirando a bola com passes perfeitos. Marquei alguns gols e me preparei para marcar mais. Estávamos ganhando de nove a sete e deslizando no campo. O outro time estava detestando a situação, e nos fez dar dois dos nossos melhores jogadores, mas não fez nenhuma diferença. Eu podia ter dado todos, menos o goleiro, e ainda dar uma surra neles.
   
Então a coisa começou a ficar feia. O capitão do outro time — Dani — há séculos vinha tentando fazer falta em mim, mas eu era rápido demais para ele e dançava em volta do seu taco erguido e dos seus chutes. Mas então ele começou a socar minhas costelas, pisar nos meus pés e bater com o cotovelo nos meus braços. Nada disso me machucava, mas me irritava. Detesto maus perdedores.
   
Chegou ao máximo quando ele me atingiu em um lugar muito sensível! Mesmo os vampiros têm seu limite. Abaixei no campo, com um rugido, cheio de dor.
   
Dani riu e saiu correndo com a bola.
   
Depois de alguns segundos, me levantei, danado como o diabo. Dani estava na metade do
nosso campo. Corri atrás dele, empurrando os jogadores que estavam entre nós — tanto do meu time quanto do dele —, deslizei para perto e bati com o taco na sua perna. Teria sido um golpe perigoso se desferido por um ser humano. Vindo de um meio-vampiro...
   
Ouvi um estalo agudo. Dani gritou e caiu. O jogo parou imediatamente. Todos na quadra sabiam a diferença entre um grito de dor e um grito de verdadeira agonia.
   
Levantei, já arrependido do que acabara de fazer, desejando poder voltar atrás. Olhei para meu taco, esperando que estivesse quebrado, esperando que isso fosse a origem do estalo. Mas não era.
   
Eu havia quebrado os ossos das canelas dele.
   
A parte inferior das suas pernas estavam num ângulo estranho e a pele lacerada. Eu podia ver o osso branco entre o sangue vermelho.
   
Michel se inclinou para examinar as pernas de Dani. Quando ergueu o corpo, vi seu olhar horrorizado.
   
— Você quebrou as duas pernas dele, fratura exposta! — disse ele com voz entrecortada.
   
— Não tive intenção — exclamei. — Ele apertou meus... — apontei para o lugar, abaixo da cintura.
   
— Você quebrou as pernas dele! — gritou Michel, recuando para longe de mim. Todos os outros recuaram também.
   
Estavam com medo de mim.
   
Com um suspiro, deixei cair o taco e fui embora, sabendo que ia piorar as coisas se ficasse e esperasse a chegada dos adultos. Nenhum dos garotos tentou me deter. Estavam assustados demais. Apavorados... Darren Shan... um monstro.
 
   
 CAPÍTULO SEIS
   
 
   
 
    Estava escuro quando voltei. O Sr. Crepsley já tinha se levantado. Eu disse que precisávamos sair imediatamente da cidade, mas não expliquei por quê. Ele olhou para mim, fez que sim e começou a arrumar nossas coisas.
   
Falamos muito pouco naquela noite. Eu pensava na inutilidade de ser meio-vampiro. O Sr. Crepsley percebeu que havia alguma coisa errada comigo, mas não me atazanou com perguntas. Não era a primeira vez que eu ficava emburrado. Ele já estava acostumado com as oscilações do meu humor.
   
Encontramos uma igreja abandonada para passar a noite. O Sr. Crepsley deitou em um banco longo, e eu fiz uma cama para mim, no chão, com uma pilha de musgo e mato.
   
Acordei cedo e passei o dia explorando a igreja e o pequeno cemitério nos fundos. As lajes eram antigas e muitas delas estavam rachadas ou cobertas de mato. Passei várias horas limpando algumas delas, arrancando o mato e lavando as pedras com água que apanhei em um riacho próximo. Isso manteve minha mente longe do jogo de hóquei.
   
Uma família de coelhos morava numa toca perto do cemitério. Durante o dia, eles começaram a se aproximar para ver o que eu estava fazendo. Eram criaturinhas curiosas, especialmente os mais novos. Num certo momento, fingi que estava dormindo e alguns deles foram se chegando até ficarem a meio metro de mim. Quando ficaram tão perto quanto a coragem permitia, dei um pulo e gritei “Buu!” e eles correram para a entrada da toca.
   
Isso me deixou muito satisfeito.
   
De tarde, encontrei um pequeno mercado e comprei carne e legumes. Quando voltei para a igreja, acendi o fogo e apanhei a sacola com as panelas debaixo do banco onde o Sr. Crepsley dormia. Procurei até encontrar o que queria, um pequeno recipiente que parecia uma lata. Arrumei a panela de cabeça para baixo no chão e apertei com força a saliência de metal do fundo.
   
A lata se alargou quando as paredes se desdobraram. Em cinco segundos, transformou-se em uma panela de bom tamanho, que enchi com água e levei ao fogo.
   
Todas as panelas na sacola eram desse tipo. O Sr. Crepsley as comprou de uma mulher chamada Eva, há muito tempo. Pesavam tanto quanto panelas comuns mas, como podiam ser dobradas, eram mais fáceis de carregar.
   
Fiz um cozido, como o Sr. Crepsley tinha me ensinado. Ele achava que todo mundo devia saber cozinhar.
   
Apanhei os restos de cenoura e repolho e levei para a entrada da toca dos coelhos.
   
O Sr. Crepsley ficou surpreso quando encontrou o jantar — bem, para ele era o desjejum — à sua espera quando acordou. Sentiu o cheiro do que fervia na panela e lambeu os lábios.
   
— Vou acabar ficando mal acostumado — sorriu, depois bocejou, espreguiçou e passou a mão pelo curto topete de cabelo avermelhado. Então coçou a longa cicatriz no lado esquerdo do rosto. Tudo isso era rotina para ele.
   
Muitas vezes tive vontade de perguntar a origem daquela cicatriz, mas nunca fiz nada nesse sentido. Numa dessas noites, quando eu estiver cheio de coragem, vou perguntar.
   
Não tínhamos mesa, por isso comemos com os pratos no colo. Apanhei da sacola dois pratos dobrados, os abri e peguei as facas e os garfos. Servi a comida e comemos.
   
Quase no fim, o Sr. Crepsley limpou a boca com um guardanapo de seda e tossiu meio sem jeito.
   
— Está muito bom — elogiou.
   
— Obrigado — respondi.
   
— Bem... huum... quero dizer... — suspirou. — Nunca fui de muita sutileza — disse —, por isso vou direto ao assunto. O que deu errado ontem? Por que você ficou tão perturbado?
   
Olhei para meu prato quase vazio, sem saber ao certo se eu queria responder. Então, de repente, contei a história toda. Mal respirei do começo ao fim.
   
O Sr. Crepsley ouviu atentamente. Quando terminei, ele pensou no assunto por um ou dois minutos antes de falar.
   
— Você tem de se acostumar com isso — disse. — É um fato da vida que somos mais fortes do que os seres humanos, mais rápidos e mais resistentes. Se você brincar com eles, certamente os machucará.
   
— Eu não queria machucar. Foi um acidente.
   
O Sr. Crepsley deu de ombros.
   
— Escute, Darren, você não pode de jeito nenhum impedir que isso aconteça outra vez, se quiser se misturar com os seres humanos. Por mais que tente ser normal, você não é. Sempre vai haver acidentes.
   
— O que está dizendo é que não eu posso mais ter amigos, certo? — perguntei, com tristeza. — Eu acabei descobrindo isso por experiência própria. Daí a minha tristeza toda. Eu já estava me acostumando com a ideia de nunca mais poder voltar para casa e ver meus antigos amigos, mas só ontem percebi que nunca vou poder fazer novos amigos também. Estou amarrado a você. Não posso ter outros amigos, posso?
   
Ele passou a mão na cicatriz e franziu os lábios.
   
— Isso não é verdade. Você pode ter amigos. Só precisa ter cuidado. Você...
   
— Isso não é o bastante — exclamei. — Você mesmo disse. Sempre haverá um acidente à minha espera. Até apertar a mão de alguém é perigoso. Posso cortar seus pulsos com as unhas!
   
Balancei a cabeça lentamente.
   
— Não — disse eu com firmeza. — Não vou arriscar a vida de outras pessoas. Sou muito perigoso para ter amigos. Além disso, é pouco provável que eu possa ter um amigo de verdade.
   
— Por quê?
   
— Amigos de verdade não guardam segredos entre eles. Eu nunca poderia dizer a um ser humano que sou um vampiro. Sempre teria de mentir e fingir que sou quem não sou. Sempre teria medo que ele descobrisse e me odiasse.
   
— É um problema que todos os vampiros compartilham — disse o Sr. Crepsley.
   
— Mas nem todos os vampiros são crianças — gritei. — Que idade você tinha quando mudou? Você já era um homem? — Ele fez que sim. — Amigos não são tão importantes para os adultos. Meu pai me disse que os adultos se acostumam a não ter muitos amigos. Eles têm o trabalho, passatempos e outras coisas que os mantêm ocupados. Mas meus amigos eram a coisa mais importante da minha vida, depois da família. Pois você me tirou a família quando injetou seu sangue fedido em mim. Agora, arruinou as chances de eu ter um amigo de verdade outra vez.
   
— Muito obrigado — disse eu, zangado. — Obrigado por me transformar em um monstro e por destruir a minha vida.
   
Eu estava quase chorando, mas não queria, não na frente dele. Peguei com o garfo o último pedaço de carne do prato, enfiei na boca e comecei a mastigar furiosamente.
   
O Sr. Crepsley ficou calado depois do meu estouro. Eu não sabia se ele estava zangado ou arrependido. Durante algum tempo pensei que tinha falado demais. E se ele virasse e dissesse — “se é assim que se sente, vou deixá-lo”—, o que eu faria então?
   
Estava pensando em pedir desculpas quando ele me surpreendeu, dizendo com voz suave:
   
— Sinto muito. Eu não devia ter posto meu sangue em você. Foi um erro. Você é muito novo ainda. Há tanto tempo não sou mais um menino que esqueci como é. Nunca pensei nos seus amigos e no quanto você sentiria falta deles. Foi um erro ter passado meu sangue para
você. Um engano terrível. Eu...
   
Não continuou a falar. Parecia tão arrasado que quase tive pena dele. Então me lembrei do que tinha feito comigo e o odiei outra vez. Percebi gotas nos cantos dos olhos dele, que podiam ser lágrimas, e fiquei com pena outra vez.
   
Eu estava muito confuso.
   
— Bem, não adianta lamentar — disse eu finalmente. — Não podemos voltar atrás. O que está feito está feito, certo?
   
— Sim — suspirou. — Se eu pudesse retiraria meu terrível dom. Mas isso não é possível. Vampirismo é para sempre. Uma vez mudado, não se pode voltar a ser o que era, nunca mais.
   
— Ainda assim, não é tão horrível como você pensa — continuou. —Talvez... — Entrecerrou os olhos pensativamente.
   
— Talvez o quê? — perguntei.
   
— Nós podemos encontrar amigos para você. Não precisa ficar amarrado a mim o tempo todo.
   
— Não compreendo — franzi as sobrancelhas. — Não acabamos de concordar que não é seguro eu andar com seres humanos?
   
— Não estou falando de seres humanos — disse ele, começando a sorrir. — Estou falando de pessoas com poderes especiais. Pessoas como nós. Pessoas para quem você pode revelar segredos...
   
Ele se inclinou para a frente, segurou minhas mãos e perguntou:
   
— Darren, o que você acha de voltar e fazer parte do Circo dos Horrores?
 
   
CAPÍTULO SETE
   
 
   
 
    Quanto mais discutíamos a ideia, mais eu gostava. Disse o Sr. Crepsley que os artistas do circo saberiam quem eu era e me aceitariam como um deles. O programa do espetáculo era constantemente mudado e sempre havia alguém da minha idade entre os artistas. Eu podia fazer amizade com eles.
   
— E se eu não gostar do Circo? — perguntei.
   
— Então vamos embora — disse ele. — Gostei de viajar com o Circo, mas não sou fanático pela ideia. Se você gostar, ficamos. Se não gostar, pegamos a estrada outra vez.
   
— Eles não vão se importar com a minha presença? — perguntei.
   
— Você tem de mostrar o que vale — respondeu. — O Sr. Altão faz questão de que todos façam alguma coisa. Você terá de ajudar a arrumar as cadeiras e controlar as luzes, vender suvenires, fazer a limpeza depois do espetáculo, ou cozinhar. Vai estar sempre ocupado, mas não o sobrecarregarão de trabalho. Teremos muito tempo para nossas aulas.
   
Resolvemos experimentar. Pelo menos significava uma cama decente todas as noites. Minhas costas estavam horríveis de tanto dormir no chão.
   
O Sr. Crepsley precisava descobrir onde estava o Circo antes de iniciarmos a viagem. Perguntei como ia fazer isso e ele me disse que podia entrar em contato com os pensamentos do Sr. Altão.
   
— Quer dizer que ele é telepata? — perguntei, lembrando como se chamavam as pessoas que podiam ler a mente dos outros usando unicamente o cérebro.
   
— Mais ou menos — disse o Sr. Crepsley. — Não podemos conversar em pensamento, mas eu posso apanhar sua... aura, pode-se dizer. Uma vez localizada essa aura, descobrir o caminho não será problema.
   
— Eu posso localizar sua aura?
   
— Não. A maioria dos vampiros, como alguns seres humanos que têm o dom, podem. Mas um meio-vampiro não pode.
   
Ele sentou no meio da igreja, fechou os olhos e ficou quieto por alguns minutos. Então abriu as pálpebras e se levantou.
   
— Encontrei — disse.
   
— Tão depressa? Pensei que ia levar mais tempo.
   
— Procurei a aura dele muitas vezes — explicou o Sr. Crepsley. — Sei o que devo procurar. Encontrar o Sr. Altão é tão fácil quanto encontrar uma agulha num palheiro.
   
— Isso é considerado difícil, não é?
   
— Não para um vampiro — resmungou.
   
Enquanto fazíamos as malas, eu examinava a igreja. Alguma coisa me perturbava, mas eu não tinha certeza de que devia mencioná-la ao Sr. Crepsley.
   
— Vá em frente — disse ele, me surpreendendo. — Pergunte o que quer saber.
   
— Como sabia que eu queria perguntar alguma coisa? — disse eu, atônito.
   
Ele riu.
   
— Não é preciso ser vampiro para saber quando uma criança está curiosa. Você está para fazer a pergunta há séculos. Do que se trata?
   
Respirei fundo.
   
— Você acredita em Deus? — perguntei.
   
O Sr. Crepsley olhou para mim de modo estranho, depois assentiu lentamente.
   
— Acredito nos deuses dos vampiros.
   
Fiquei intrigado.
   
— Existem deuses vampiros?
   
— É claro. Cada raça tem seus deuses: os deuses egípcios, os deuses indianos, os deuses chineses. Os vampiros não são diferentes.
   
— E no céu? — perguntei.
   
— Acreditamos no paraíso. Fica além das estrelas. Quando morremos, se tivemos uma boa vida, nossos espíritos flutuam sobre a terra, atravessam as estrelas e as galáxias e chegam a um mundo maravilhoso, no outro lado do universo — o paraíso.
   
— E se não tiveram uma boa vida?
   
— Ficam aqui — disse ele. — Ficam presos à terra como fantasmas, condenados a vagar na face deste planeta para sempre.
   
Pensei no assunto.
   
— O que é uma boa vida para um vampiro? — perguntei. — Como chegam ao paraíso?
   
— Uma vida limpa — disse ele. — Não mate desnecessariamente. Não faça mal às pessoas. Não estrague o mundo.
   
— Beber sangue não é uma coisa maléfica? — perguntei.
   
— Não, a não ser que você mate a pessoa de quem bebe o sangue — disse o Sr. Crepsley. — E até isso pode ser, às vezes, uma coisa boa.
   
— Matar alguém pode ser uma coisa boa? — perguntei espantado.
   
O Sr. Crepsley confirmou, muito sério.
   
— As pessoas têm alma, Darren. Quando morrem, suas almas vão para o céu ou o paraíso. Mas é possível manter uma parte delas aqui. Quando sugamos pequenas quantidades de sangue, não tiramos nada da essência da pessoa. Mas, se sugarmos demais, nós mantemos parte delas viva em nós.
   
— Como? — perguntei, franzindo a testa.
   
— Sugando todo o sangue de uma pessoa, absorvemos algumas das suas lembranças e sentimentos. Elas se tornam parte de nós e podemos ver o mundo como elas viam e lembrar fatos que, sem isso, poderiam ser esquecidos.
   
— Como por exemplo...
   
Ele pensou por um momento.
   
— Um dos meus mais queridos amigos se chama Paris Skyle — disse. — É muito velho. Séculos atrás ele foi amigo de William Shakespeare.
   
— O tal William Shakespeare? O cara que escreveu peças de teatro?
   
O Sr. Crepsley fez que sim.
   
— Peças e poemas. Mas nem toda a poesia de Shakespeare foi registrada. Alguns de seus versos mais famosos se perderam. Quando Shakespeare estava morrendo, Paris sugou seu sangue — Shakespeare pediu a ele — e conseguiu absorver aqueles últimos poemas e os escreveu. O mundo seria um lugar mais pobre sem eles.
   
— Mas... — parei por um momento e depois continuei. — Vocês só fazem isso com pessoas que pedem e que estão morrendo?
   
— Sim. Seria maldade matar uma pessoa saudável. Mas sugar o sangue de um amigo que
está morrendo e manter vivas suas lembranças e experiências... — sorriu. — Isso é sem dúvida uma coisa muito boa.
   
— Vamos — disse ele então. — Pense no assunto no caminho. Precisamos ir.
   
 
   
* * *
   
 
    Quando estávamos prontos, subi nas costas do Sr. Crepsley e saímos, deslizando. Ele ainda não tinha explicado como podia se mover com tanta rapidez. Não era uma questão de correr velozmente. Era como se o mundo passasse por nós. Ele disse que todos os vampiros podiam fazer isso.
   
Era bom ver o campo desaparecer atrás de nós. Passamos por colinas e atravessamos vastas planícies, mais velozes do que o vento. O silêncio era completo quando deslizávamos e ninguém notava nossa passagem. Era como se estivéssemos dentro de uma bolha mágica.
   
Enquanto corríamos, eu pensava no que o Sr. Crepsley tinha dito sobre manter viva a memória das pessoas, sugando seu sangue. Eu não sabia como isso funcionava e resolvi perguntar mais detalhes depois.
   
Deslizar era trabalho exaustivo. O vampiro transpirava e percebi que ele começava a fazer um grande esforço. Para ajudar, apanhei uma garrafa de sangue humano, abri e a levei aos seus lábios.
   
Em silêncio ele fez um sinal de aprovação, enxugou o suor da testa e continuou.
   
Finalmente o céu começou a clarear e ele parou. Desci das suas costas e olhei em volta. Estávamos no meio de uma estrada rural, com campos e árvores, sem nenhuma casa visível.
   
— Onde está o Circo dos Horrores? — perguntei.
   
— A alguns quilômetros daqui — disse, apontando. O Sr. Crepsley estava ajoelhado, procurando respirar normalmente.
   
— Acabou seu combustível? — perguntei, sem poder evitar o tom jocoso.
   
— Não — olhou-me zangado. — Eu podia ter ido até lá, mas não quero chegar parecendo exausto.
   
— Acho bom não descansar por muito tempo — avisei. — Está amanhecendo.
   
— Eu sei exatamente que horas são — disse, irritado. — Sei mais sobre manhãs e madrugadas do que qualquer ser humano vivente. Temos ainda muito tempo. Quarenta e três minutos, ao todo.
   
— Se você diz...
   
— Sim, eu digo — endireitou o corpo, aborrecido, e começou a andar. Esperei até o vampiro estar um pouco à minha frente e passei correndo por ele.
   
— Depressa, velho — caçoei. — Você está ficando para trás.
   
— Continue — rosnou. — Vai ver o que acontece. Um piparote na orelha e um pontapé no traseiro.
   
Ele começou a correr depois de alguns minutos e caminhamos lado a lado. Eu estava de bom humor, não me sentia tão contente havia meses. Era bom poder desejar e esperar alguma coisa. Passamos por um acampamento. Os homens estavam acordando e começavam a se mover. Alguns deles acenaram para nós. Eram engraçados, com cabelos compridos, roupas estranhas e cheios de brincos e pulseiras.
   
Havia bandeiras e flâmulas por todo o acampamento. Tentei ler o que estava escrito nelas, mas era difícil focalizar a vista enquanto corria e eu não queria parar. Concluí que era um grupo de protesto contra a construção de um novo atalho na estrada.
   
A estrada era cheia de curvas. Depois da quinta curva, finalmente vimos o Circo dos Horrores, aninhado em uma clareira, na margem de um rio. Estava tudo quieto — todos dormindo, imaginei — e, se estivéssemos de carro, e não procurássemos as vans e as barracas, não o teríamos encontrado. Parecia um lugar estranho para o circo, sem um saguão de entrada e sem a grande lona para o espetáculo. Devia ser o lugar de descanso entre duas cidades.
   
O Sr. Crepsley caminhou confiantemente entre as vans e os carros. Ele sabia exatamente aonde estava indo. Eu o segui, não tão confiante, lembrando a noite em que passei sorrateiramente entre os artistas do circo para roubar Madame Octa.
   
O Sr. Crepsley parou ao lado de uma van longa e prateada e bateu na porta, que se abriu quase imediatamente, revelando a figura alta do Sr. Altão. Seus olhos pareciam mais escuros do que nunca, com a pouca luz. Se eu não tivesse certeza do contrário, pensaria que ele não tinha olhos, apenas dois espaços negros e vazios.
   
— Oh, é você — disse ele, com sua voz baixa, mal movendo os lábios. — Tive a impressão de que estava à minha procura. — Esticou o pescoço e olhou para mim, que tremia, atrás do Sr. Crepsley. — Vejo que trouxe o garoto.
   
— Podemos entrar? — perguntou o Sr. Crepsley.
   
— É claro. O que se deve dizer para vocês, vampiros? — sorriu. — Entre por sua própria vontade?
   
— Mais ou menos isso — respondeu o Sr. Crepsley, e vendo seu sorriso compreendi que era uma antiga brincadeira entre eles.
   
Entramos na van e sentamos. O carro estava quase vazio, só com algumas estantes com pôsteres e folhetos do Circo, a cartola vermelha e as luvas que eu tinha visto o Sr. Altão usar, algumas quinquilharias e uma cama de armar.
   
— Eu não o esperava de volta tão cedo, Larten — disse o Sr. Altão. Mesmo sentado ele parecia enorme.
   
— Essa volta não estava na agenda, Hibérnio.
   
Hibérnio? Um nome estranho. Mas, de algum modo, combinava com ele. Hibérnio Altão. Tinha um som diferente.
   
— Você teve problemas? — perguntou o Sr. Altão.
   
— Não — disse o Sr. Crepsley. — Darren não estava satisfeito. Resolvi que ele ficará melhor aqui, entre os seus iguais.
   
— Compreendo — o Sr. Altão olhou para mim com curiosidade. — Você percorreu um longo caminho desde que o vi pela última vez, Darren Shan.
   
— Eu preferia ter ficado onde estava antes — resmunguei.
   
— Então, por que não ficou? — perguntou ele.
   
Olhei furioso para ele.
   
— Você sabe por quê — respondi friamente.
   
Ele assentiu com a cabeça, lentamente.
   
— Podemos ficar? — perguntou o Sr. Crepsley.
   
— É claro — respondeu imediatamente o Sr. Altão. — Na verdade, fico muito feliz com sua volta. Estamos um pouco desfalcados no momento. Alexandre Costela, Thorso e Konthorso e Diana Dentada estão de férias ou tratando de negócios. Tuti Membros está vindo para cá, mas está atrasado. Larten Crepsley e sua incrível aranha serão um tremendo reforço ao programa.
   
— Obrigado — disse o Sr. Crepsley.
   
— E eu? — perguntei corajosamente.
   
O Sr. Altão sorriu.
   
— Você não é um reforço tão valioso — disse. — Mas é bem-vindo do mesmo modo.
   
Eu bufei mas não disse nada.
   
— Onde vamos dar o espetáculo? — perguntou o Sr. Crepsley.
   
— Aqui mesmo — disse o Sr. Altão.
   
— Aqui? — perguntei, surpreso.
   
— Isso o espanta? — quis saber o Sr. Altão.
   
— Estamos no meio do nada — disse eu. — Pensei que vocês atuassem em cidades, onde têm mais público.
   
— Nós sempre temos um grande público. Não importa onde, as pessoas vêm. Geralmente preferimos áreas mais populosas, mas estamos fora de temporada. Como eu disse, vários dos nossos melhores artistas estão ausentes... bem como certos outros membros da companhia.
   
Os dois homens trocaram um olhar secreto e estranho e senti que estava sendo deixado de fora de alguma coisa.
   
— Assim, estamos descansando por algum tempo — prosseguiu o Sr. Altão. — Não daremos espetáculo por alguns dias. Estamos procurando relaxar.
   
— Passamos por um acampamento quando vínhamos para cá — disse o Sr. Crepsley. — Eles estão criando problemas?
   
— Os soldados da infantaria do PN? — riu o Sr. Altão. — Estão ocupados demais defendendo árvores e rochas para se meter conosco.
   
— O que é PN? — perguntei.
   
— Protetores da Natureza — explicou o Sr. Altão. — São ecoguerreiros. Percorrem o país tentando evitar a construção de estradas e pontes. Estão aqui há alguns meses, mas devem partir logo.
   
— São guerreiros de verdade? — perguntei. — Têm canhões, granadas e tanques?
   
Os dois adultos quase morreram de tanto rir.
   
— Ele pode ser muito bobo, às vezes — disse o Sr. Crepsley, entre os acessos de riso —, mas não é tão tolo quanto parece.
   
Senti o sangue subir ao rosto, mas não disse nada. Por experiência eu sabia que não adianta se zangar com adultos quando riem da gente, porque isso os faz rir mais ainda.
   
— Eles se chamam de guerreiros — disse o Sr. Altão —, mas na verdade não são. Eles se prendem com correntes às árvores, põem areia nos motores das máquinas de construção e jogam pregos no caminho dos carros. Esse tipo de coisa.
   
— Por que... — comecei, mas o Sr. Crepsley me interrompeu.
   
— Não temos tempo para perguntas — disse. — Mais alguns minutos e o sol vai nascer — levantou-se e apertou a mão do Sr. Altão. — Obrigado por nos aceitar de volta, Hibérnio.
   
— O prazer é todo meu — respondeu o Sr. Altão.
   
— Espero que tenha tomado conta do meu caixão.
   
— É claro.
   
O Sr. Crepsley sorriu feliz e esfregou as mãos.
   
— É do que mais sinto falta quando não estou aqui. Vai ser bom dormir na minha cama outra vez.
   
— E o garoto? — perguntou o Sr. Altão. — Quer que a gente faça um caixão para ele?
   
— Nem pense nisso! — gritei. — Não vai me pôr numa dessas coisas outra vez. — Lembrei o que senti dentro de um caixão, quando fui enterrado vivo, e estremeci.
   
O Sr. Crepsley sorriu.
   
— Ponha Darren com um dos artistas — disse ele. — Alguém da idade dele, se possível.
   
O Sr. Altão pensou por um momento.
   
— O que acha de Ofídio?
   
O Sr. Crepsley deu um largo sorriso.
   
— Isso mesmo. Acho que é uma ideia esplêndida.
   
— Quem é Ofídio? — perguntei, nervoso.
   
— Vai descobrir — prometeu o Sr. Crepsley abrindo a porta da van. — Eu o deixo com o Sr. Altão. Ele tomará conta de você. Preciso ir.
   
E ele foi para seu adorado caixão.
   
Olhei para trás e vi o Sr. Altão de pé muito perto de mim. Não sei como ele atravessou a saleta tão depressa. Eu nem o ouvi levantar da cadeira.
   
— Então vamos? — disse ele.
   
Engoli em seco e concordei.
   
Ele foi na minha frente e atravessamos o acampamento. O dia estava clareando e vi luzes
em algumas carroças e barracas. O Sr. Altão me levou para uma barraca velha e cinzenta, com espaço para cinco ou seis pessoas.
   
— Aqui estão alguns cobertores — disse, entregando-me uma pilha de cobertores de lã. — E um travesseiro. — Não sei onde ele os arranjou, pois não tinha nada nas mãos quando saímos da van, mas estava cansado demais para perguntar. — Pode dormir o quanto quiser. Eu o vejo quando acordar e explico seus deveres. Até lá, Ofídio tomará conta de você.
   
Levantei a abertura da barraca e olhei para dentro. Estava escuro demais para ver alguma coisa.
   
— Quem é Ofídio? — perguntei, virando para trás. Mas o Sr. Altão já tinha ido embora, desaparecendo com sua velocidade silenciosa.
   
Com um suspiro entrei, apertando os cobertores contra o peito. Fechei a abertura da barraca e fiquei parado, quieto, esperando que meus olhos se acostumassem ao escuro. Ouvia alguém respirando e via uma forma indistinta numa rede, além do centro da barraca. Procurei um lugar para fazer minha cama. Não queria que meu companheiro de quarto tropeçasse em mim quando acordasse.
   
Dei alguns passos às cegas. De repente, uma coisa rastejou para mim, no escuro. Parei olhando para a frente, desejando desesperadamente poder enxergar alguma coisa (sem a luz das estrelas ou da lua, até um vampiro tem dificuldade para se locomover).
   
— Olá — murmurei. — Você é Ofídio? Sou Darren Shan. Sou seu novo...
   
Não concluí a frase. O ruído rastejante chegou a meus pés. Paralisado, senti algo sólido e pegajoso se enrolando nas minhas pernas. Reconheci imediatamente, mas não tive coragem de olhar para baixo até a coisa ter chegado quase na minha cintura. Finalmente, quando ela se enrolou no meu peito, juntei coragem para abaixar os olhos e cruzar meu olhar com o da longa, grossa e sibilante... cobra!
 
   
 CAPÍTULO OITO
   
 
   
 
    Fiquei parado, paralisado de medo, por mais de uma hora, olhando para os olhos frios e mortais da cobra, esperando seu ataque.
   
Finalmente, quando a luz forte do sol atravessou a lona da barraca, o vulto que dormia se mexeu, sentou e olhou em volta.
   
Era o menino-cobra e ele levou um susto quando me viu. Balançou a rede e levantou a coberta, como para se proteger. Então, viu a cobra enrolada em mim e respirou.
   
— Quem é você? — perguntou asperamente. — O que está fazendo aqui?
   
Balancei a cabeça devagar. Eu não ousava falar com medo de que o movimento dos meus pulmões provocasse o ataque da cobra.
   
— Acho melhor responder ou mando a cobra arrancar seus olhos — avisou ele.
   
— Eu... eu sou Dar...Darren Sha...Shan — gaguejei. — O Sr. Al... Altão me disse para vir para cá. Ele disse que vou ser seu novo companheiro de quarto.
   
— Darren Shan? — o menino franziu a testa, depois apontou para mim, lembrando. — Você é o assistente do Sr. Crepsley, não é?
   
— Sou — disse eu, em voz baixa.
   
O menino-cobra sorriu.
   
— Ele sabe que o Sr. Altão mandou você ficar comigo?
   
Respondi que sim com a cabeça e ele riu.
   
— Ainda não conheci um vampiro sem um senso de humor negro.
   
Desceu da rede, atravessou a barraca, segurou a cabeça da cobra e começou a desenrolar o animal do meu corpo.
   
— Você está bem — garantiu ele. — Na verdade, nem por um momento correu perigo. A cobra estava dormindo o tempo todo. Podia ter puxado para se desembaraçar que ela nem ia se mexer. Ela tem um sono muito profundo.
   
— Ela está dormindo? — falei, com voz esganiçada. — Mas como ela se enrolou no meu corpo?
   
Ele sorriu.
   
— Ela é sonâmbula.
   
— Sonâmbula! — Olhei para ele, depois para a cobra, que não se moveu enquanto ele a desenrolava. Quando ele acabou, afastei-me para um lado. Minhas pernas estavam rígidas e formigando.
   
— Uma cobra sonâmbula — eu ri, embaraçado. — Ainda bem que não é cobra faminta enquanto dorme!
   
O menino-cobra ajeitou seu bicho de estimação num canto e afagou a cabeça dela carinhosamente.
   
— Ela não o teria devorado, mesmo que acordasse — informou. — Comeu um bode ontem. Cobras desse tamanho não precisam comer muitas vezes.
   
Deixando a cobra, levantou a abertura da barraca e saiu. Saí atrás rapidamente. Não queria ficar sozinho com aquele réptil.
   
Lá fora, à luz do sol, o examinei atentamente. Ele era exatamente como eu lembrava. Alguns anos mais velho que eu, muito magro, cabelo comprido amarelo-esverdeado, olhos estreitos, estranhas membranas entre os dedos das mãos e dos pés. Seu corpo era coberto de escamas verdes, douradas, amarelas e azuis. Estava só de short, nada mais.
   
— Por falar nisso, meu nome é Ofídio — estendeu a mão, que eu apertei. Sua palma era escorregadia, mas seca. Algumas escamas se desprenderam e grudaram na minha mão. Eram como raspas de pele colorida.
   
— Ofídio de quê? — perguntei.
   
— Só Ofídio — disse ele, passando a mão na barriga. — Está com fome?
   
— Estou — respondi, e fomos procurar alguma coisa para comer.
   
O acampamento fervia de atividade. Como não houve espetáculo na véspera, a maioria dos participantes tinha se deitado cedo e levantado mais cedo que de costume.
   
O movimento intenso me fascinou. Nunca imaginei que tanta gente trabalhasse no Circo. Pensei que fossem apenas os artistas e assistentes que vi na noite em que fui com Lucas, mas via agora que eles eram apenas a ponta do iceberg. Havia pelo menos duas dúzias de pessoas
que eu nunca havia visto, andando ou conversando, lavando ou cozinhando.
   
— Quem é toda essa gente? — perguntei.
   
— A espinha dorsal do Circo dos Horrores — disse Ofídio. — Eles dirigem os carros, armam as barracas, lavam a roupa, cozinham, costuram nosso guarda-roupa, fazem a limpeza depois dos espetáculos. É uma grande operação.
   
— São seres humanos normais?
   
— A maior parte — disse ele.
   
— Como vieram trabalhar aqui?
   
— Alguns são parentes dos artistas. Alguns são amigos do Sr. Altão. Alguns simplesmente apareceram por aqui, gostaram do que viram e ficaram.
   
— E podem fazer isso? — perguntei.
   
— Se o Sr. Altão for com a cara deles — disse Ofídio. — Sempre há vagas no Circo dos Horrores.
   
Ofídio parou ao lado de uma grande fogueira e eu parei atrás dele. Mano Mão — um homem que podia andar com as mãos no chão e correr mais depressa desse modo do que o mais veloz atleta de corrida — descansava em um tronco caído, enquanto Truska (a Mulher Barbada, que fazia crescer a barba quando queria) cozinhava salsichas, enfiadas numa vareta. Vários seres humanos normais estavam sentados ou deitados.
   
— Saudações matinais, Ofídio — disse Mano Mão.
   
— Como vai, Mano? — respondeu Ofídio.
   
— Quem é seu jovem amigo? — perguntou Mano, olhando desconfiado para mim.
   
— Este é Darren Shan — disse Ofídio.
   
— O tal Darren Shan? — perguntou Mano, erguendo as sobrancelhas.
   
— Isso mesmo — disse Ofídio com um largo sorriso.
   
— O que quer dizer com o tal Darren Shan? — quis saber.
   
— Você é famoso por aqui — disse Mano.
   
— Por quê? Porque sou um — abaixei a voz — meio-vampiro?
   
Mano riu bem-humorado.
   
— Meios-vampiros não são novidade. Se eu tivesse ganhado uma moeda de ouro cada vez que vi um meio-vampiro, eu teria... — Franziu o rosto para calcular. — Vinte e nove moedas de ouro. Mas meios-vampiros jovens são outra coisa. Nunca vi nem ouvi falar de um garoto da sua idade que fizesse parte das fileiras dos mortos-vivos. Diga uma coisa: os Generais Vampiros já apareceram para a inspeção?
   
— Quem são os Generais Vampiros? — perguntei.
   
— São...
   
— Mano! — gritou uma senhora que lavava roupas. Ele parou de falar e olhou em volta como se sentisse culpado. — Você acha que Larten gostaria de saber que você está espalhando histórias? — repreendeu ela.
   
Mano fez uma cara triste.
   
— Desculpe — disse ele. — É o ar fresco da manhã. Não estou acostumado. Me faz dizer coisas que não devo.
   
Eu queria que ele explicasse sobre os Generais Vampiros, mas seria indelicado pedir.
   
Truska examinou as salsichas, tirou algumas da vareta e as ofereceu. Sorriu quando se aproximou de mim e disse alguma coisa numa língua estranha.
   
Ofídio riu.
   
— Ela quer saber se você gosta de salsichas ou se é vegetariano.
   
— Essa é muito boa! — riu Mano. — Um vampiro vegetariano!
   
— Você fala a língua dela? — perguntei a Ofídio.
   
— Falo — disse, com orgulho. — Ainda estou aprendendo; é a língua mais difícil que já tentei aprender, mas sou a única pessoa por aqui que sabe o que ela diz. Sou muito bom em línguas — gabou-se.
   
— Que língua é? — perguntei.
   
— Eu não sei — ele franziu a testa. — Ela não quer me dizer.
   
Isso me pareceu estranho, mas eu não queria dizer nada que o ofendesse. Aceitei uma das salsichas e agradeci. Dei uma mordida e larguei imediatamente: estava quente demais! Ofídio riu e me deu uma caneca com água. Bebi até minha boca voltar ao normal, depois assoprei a salsicha para esfriar.
   
Sentamos com Mano, Truska e os outros por algum tempo, conversando, comendo e nos aquecendo ao sol da manhã. A relva estava úmida de orvalho, mas ninguém se importava. Ofídio me apresentou a todo o grupo. Eram muitos para guardar os nomes, por isso apenas sorri, troquei apertos de mão e memorizei as feições de cada um.
   
O Sr. Altão apareceu depois de algum tempo. Num minuto ele não estava ali, no minuto seguinte estava de pé atrás de Ofídio, aquecendo as mãos no fogo.
   
— Você levantou cedo, Mestre Shan — observou o Sr. Altão.
   
— Não consegui dormir. Eu estava muito... — olhei para Ofídio e sorri — enrolado.
   
— Espero que isso não afete sua capacidade de trabalho — disse o Sr. Altão.
   
— Estou bem — disse. — Estou pronto e disposto.
   
— Tem certeza?
   
— Tenho certeza.
   
— É isso que gosto de ouvir — tirou do bolso um grande livro de notas e virou algumas páginas. — Vamos ver o que temos para você, hoje — disse ele pensativo. — Diga-me, você cozinha bem?
   
— Sei fazer cozido. O Sr. Crepsley me ensinou.
   
— Alguma vez cozinhou para um grupo de trinta ou quarenta pessoas?
   
— Não.
   
— É pena. Talvez possa aprender — folheou mais algumas páginas. — Sabe costurar e remendar?
   
— Não.
   
— Já lavou roupas antes?
   
— A mão?
   
— Sim.
   
— Não.
   
— Huumm — folheou um pouco mais o livro e então o fechou com um estalo. — Certo — disse —, até encontrarmos uma posição mais permanente para você, fique com Ofídio e o ajude nas tarefas. Tudo bem para você?
   
— Maravilha — disse eu.
   
— Você não se importa, Ofídio? — perguntou ao menino-cobra.
   
— Nem um pouco — respondeu Ofídio.
   
— Muito bem. Então está resolvido. Ofídio ficará encarregado de você até segunda ordem. Faça o que ele mandar. Quando seu companheiro de sangue se levantar — ele queria dizer o Sr. Crepsley —, podem passar a noite juntos, se ele quiser. Veremos como você se sai e depois tomaremos uma decisão sobre como usar seus talentos.
   
— Muito obrigado — disse eu.
   
— De nada — respondeu.
   
Eu esperava que ele desaparecesse em um piscar de olhar mas, em vez disso, ele se virou e andou devagar, assobiando, aproveitando o sol da manhã.
   
— Muito bem, Darren — disse Ofídio, passando um braço escamoso nos meus ombros —, parece que somos parceiros agora. O que acha disso?
   
— Acho bom... parceiro.
   
— Excelente! — bateu com a mão aberta no meu ombro e engoliu o último pedaço de salsicha. — Então vamos ao trabalho.
   
— O que fazemos primeiro? — perguntei.
   
— O que sempre fazemos primeiro todas as manhãs — disse Ofídio, começando a andar — é ordenhar o veneno das presas da minha cobra.
   
— Oh — disse eu, parando. — É perigoso?
   
— Só se ela morder antes de terminarmos — disse Ofídio, depois riu da minha cara e me empurrou na sua frente para dentro da barraca.
 
   
CAPÍTULO NOVE
   
 
   
 
    Ofídio fez a ordenha sozinho — para meu grande alívio —, depois arrastamos a cobra para fora e a deitamos na relva. Enchemos baldes com água e a esfregamos com esponjas muito macias.
   
Depois disso, fomos alimentar o Homem Lobo. A jaula ficava nos fundos do acampamento. Ele rugiu quando nos aproximamos. Parecia tão zangado e perigoso quanto naquela noite em que fui ao Circo com Lucas. Sacudiu as barras de ferro e tentava nos apanhar se chegássemos mais perto — o que não fizemos.
   
— Por que ele é tão zangado? — perguntei, atirando um grande pedaço de carne crua, que o Homem Lobo agarrou no ar e começou a comer.
   
— Porque é um verdadeiro Homem Lobo — disse Ofídio. — Não é apenas uma pessoa muito peluda. Ele é meio-humano e meio-lobo.
   
— Não é crueldade mantê-lo acorrentado? — perguntei, jogando outro pedaço de carne.
   
— Se não o acorrentarmos ele sai por aí matando gente. A mistura de sangue humano com sangue de lobo o enlouqueceu. Ele não mata somente quando está com fome. Se estivesse livre, mataria pessoas o tempo todo.
   
— Não existe tratamento? — perguntei, penalizado.
   
— Não existe tratamento porque não é uma doença — explicou Ofídio. — Não é uma coisa que ele pegou, ele nasceu assim. É o que ele é.
   
— Como aconteceu? — quis saber.
   
Ofídio olhou para mim muito sério.
   
— Quer mesmo saber?
   
Olhei para o animal peludo na jaula, estraçalhando a carne como se fosse algodão doce, então engoli em seco e disse:
   
— Não, acho que não quero.
   
Fizemos uma porção de outros trabalhos depois. Descascamos batatas para o jantar, ajudamos a consertar o pneu de um dos carros, passamos uma hora pintando o teto de uma van e levamos um cachorro para passear. Ofídio explicou que a maior parte dos dias era assim, apenas andar pelo acampamento, vendo o que precisava ser feito, ajudando quem precisava.
   
À noitinha ele levou uma porção de latas e pedaços de vidro para a barraca de Sancho Duas Panças, um homem enorme que podia comer qualquer coisa. Eu queria ficar e vê-lo comer, mas Ofídio me fez sair depressa. Sancho não gostava que o vissem comer quando estava sozinho.
   
Tínhamos muito tempo para nós mesmos e nos momentos mais calmos falamos das nossas vidas, de onde viemos e como fomos criados.
   
Ofídio nasceu de pais comuns. Ficaram horrorizados quando o viram e o abandonaram em um orfanato, onde ele ficou até ser comprado por um dono malvado de circo, quando tinha quatro anos.
   
— Foram maus dias aqueles — disse, em voz baixa. — Ele me batia e me tratava como se eu fosse uma cobra de verdade. Eu ficava preso em uma jaula de vidro e as pessoas pagavam para me ver e rir de mim.
   
Ficou com o circo durante sete longos e tristes anos, percorrendo pequenas cidades, como uma coisa feia, monstruosa e inútil.
   
Finalmente o Sr. Altão o libertou.
   
— Ele surgiu certa noite — disse Ofídio. — Surgiu de repente do escuro e ficou na frente da minha jaula por um longo tempo, me observando. Não disse uma palavra. Eu também não.
   
— O dono do circo chegou. Não sabia quem era o Sr. Altão, mas pensou que fosse um homem rico, interessado em me comprar. Ele disse o preço e recuou, esperando uma resposta.
   
O Sr. Altão ficou calado por alguns minutos. Então agarrou o pescoço do dono do circo com a mão esquerda e apertou até acabar com ele. O homem caiu no chão, morto. O Sr. Altão abriu a porta da minha jaula e disse:
   
“Vamos embora, Ofídio.” Acho que o Sr. Altão pode ler mente das pessoas, por isso sabia meu nome.
   
Ofídio ficou calado, com um olhar distante.
   
— Você quer ver uma coisa incrível? — disse ele, então, abandonando sua atitude pensativa.
   
— Claro — disse eu.
   
Ficou de frente para mim, pôs a língua de fora e a puxou para cima do lábio superior, até o nariz!
   
— Minha nossa! Legal! — gritei, encantado.
   
Ele recolheu a língua e sorriu.
   
— Tenho a língua mais comprida do mundo — disse. — Se meu nariz fosse bastante grande, eu podia enfiar a língua até em cima, trazer para baixo pela garganta e de volta para a boca.
   
— Não é possível — disse eu, rindo.
   
— Provavelmente não — riu, divertido. — Mas mesmo assim é impressionante. — Pôs a língua para fora outra vez e lambeu as narinas, uma depois da outra. Era nojento mas hilariante.
   
— É a coisa mais nojenta que já vi — ri.
   
— Aposto que gostaria de poder fazer isso — disse Ofídio.
   
— Eu não faria, mesmo que pudesse — menti. — Não fica com a língua cheia de meleca?
   
— Eu não tenho meleca — disse Ofídio.
   
— O que? Não tem meleca?
   
— É verdade. Meu nariz é diferente do seu. Não tenho meleca, muco ou pelinhos no nariz. As narinas são a parte mais limpa de todo o meu corpo.
   
— Que gosto tem? — perguntei.
   
— Lamba a barriga da minha cobra que vai saber — respondeu. — O gosto é igual.
   
Eu ri e disse que não estava tão interessado. Mais tarde, quando o Sr. Crepsley me perguntou o que eu tinha feito o dia inteiro, respondi simplesmente:
   
— Fiz um amigo.
 
   
CAPÍTULO DEZ
   
 
   
 
    Estávamos com o Circo havia dois dias e duas noites. Eu passava os dias com Ofídio, ajudando-o, e as noites com o Sr. Crepsley, aprendendo sobre vampiros. Estava me deitando mais cedo, embora raramente fosse para a cama antes de uma ou duas horas da manhã.
   
Fiz uma grande amizade com Ofídio. Ele era mais velho do que eu, mas tímido — provavelmente por causa dos problemas do seu passado —, por isso combinávamos bem.
   
No terceiro dia, olhei para o pequeno grupo de vans, carros e tendas e me senti como se fosse parte daquele cenário havia anos.
   
Eu começava a sofrer os efeitos de ficar tanto tempo sem tomar sangue humano. Não estava tão forte quanto antes e não podia me mover com a mesma rapidez. Minha visão diminuiu, bem como minha audição e olfato. Estava muito mais forte e mais rápido do que quando era humano, mas sentia meus poderes se esvaindo um pouco a cada dia.
   
Não me importei. Preferia perder um pouco da força a tomar sangue humano.
   
Estava descansando com Ofídio na periferia do acampamento, naquela tarde, quando notei um vulto atrás de uma moita.
   
— Quem é aquele? — perguntei.
   
— Um garoto de uma cidade próxima — disse Ofídio. — Já o vi por aqui outras vezes.
   
Observei o garoto na moita. Ele estava tentando não ser visto, mas para uma pessoa com meus poderes — mesmo enfraquecidos — era óbvio como um elefante. Curioso para saber o que ele estava fazendo, disse eu para Ofídio:
   
— Vamos nos divertir.
   
— O que pretende fazer? — perguntou ele.
   
— Chegue mais perto que eu digo. — Murmurei meu plano no ouvido dele. Com um largo sorriso, Ofídio concordou, levantou-se e fingiu que estava bocejando.
   
— Eu já vou, Darren — disse. — Vejo você mais tarde.
   
— A gente se vê, Ofídio — retruquei em voz alta. Esperei que ele se fosse, levantei e comecei a andar para o acampamento.
   
Quando o menino na moita não podia mais me ver, voltei, usando as carroças e as barracas para disfarçar meus movimentos. Andei uns cem metros para a esquerda, depois fui cautelosamente para a frente, até ficar na direção do garoto, e espiei.
   
Parei a dez metros, um pouco atrás dele, para que não pudesse me ver. Seus olhos continuavam grudados no acampamento. Olhei por cima da sua cabeça e vi Ofídio, que estava mais perto do que eu e ergueu a mão, fazendo um sinal de “tudo bem”.
   
Abaixei-me e gemi.
   
— Ahhh — rosnei. — Ahhhhh.
   
O garoto ficou rígido e olhou para trás, nervoso. Não podia me ver.
   
— Quem está aí? — perguntou.
   
— Ahhhh — Ofídio rosnou no outro lado dele.
   
O menino virou a cabeça rapidamente para onde Ofídio estava.
   
— Quem está aí? — gritou.
   
— Aha-aha-aha — rosnei, como um gorila.
   
— Eu não tenho medo — disse o garoto, recuando devagar. — É só alguém querendo me pregar uma peça de mau gosto.
   
— Iiii, iiii, iiii — guinchou Ofídio.
   
Sacudi um galho, Ofídio balançou um arbusto, então joguei uma pedra bem na frente do garoto. A cabeça dele girava de um lado para o outro como a de um fantoche, olhando em volta. Ele não sabia se era mais seguro correr ou ficar parado.
   
— Ouçam, não sei quem vocês são — começou — mas eu ... — Ofídio estava bem atrás dele e, quando o menino começou a falar, pôs a língua para fora e lambeu o pescoço dele, sibilando como uma cobra.
   
Isso foi demais para o garoto. Ele gritou e correu como se fosse para salvar a vida.
   
Ofídio e eu corremos atrás dele, rindo até não poder mais, fazendo barulhos esquisitos o tempo todo. Ele voou por entre os arbustos de espinhos como se não existissem, gritando por socorro.
   
Depois de alguns minutos, cansamos da brincadeira e o teríamos deixado ir embora, mas então ele tropeçou e se estatelou em cima de uma moita de arbustos muito altos.
   
Ficamos procurando o garoto no meio do mato, mas não vimos nem sinal dele.
   
— Onde ele está? — perguntei.
   
— Não estou vendo — disse Ofídio.
   
— Acha que ele está bem?
   
— Não sei — Ofídio parecia preocupado. — Pode ter caído em algum buraco ou coisa assim.
   
— Ei, garoto — gritei. — Você está bem? — Nenhuma resposta. — Não precisa ter medo. Não vamos machucar você. Estávamos só brincando. Não queríamos...
   
Ouvimos um farfalhar abaixo de nós, então senti a mão nas minhas costas, me empurrando para o chão. Ofídio caiu comigo e, quando sentei, praguejando e chocado, ouvimos uma risada atrás de nós.
   
Viramos devagar e lá estava o garoto, com o corpo dobrado para a frente, rindo a mais não poder.
   
— Enganei vocês! Enganei vocês! — cantarolou, dançando em volta de nós. — Eu vi vocês desde o começo. Eu estava só fingindo que estava com medo. Eu peguei vocês. Ha, ha, ha. Oh, oh, oh. Iii, iii.
   
Ele estava caçoando de nós e, embora nos sentindo uns idiotas, quando nos levantamos e olhamos um para o outro, caímos na risada. Ele nos tinha levado para uma moita alta cheia de sementes verdes que nos cobriam da cabeça aos pés.
   
— Você parece uma planta ambulante — disse eu, brincando.
   
— Você parece uma alface gigante — respondeu Ofídio.
   
— Vocês dois parecem uns idiotas — disse o garoto. Olhamos para ele e seu sorriso perdeu um pouco o brilho. — Muito bem, pois parecem mesmo — murmurou.
   
— Suponho que você ache isso engraçado — rosnei. Ele assentiu, sem dizer nada. — Muito bem, tenho novidades para você, garoto — disse eu, aproximando-me e fazendo a cara mais feia possível. Parei ameaçadoramente, depois abri um sorriso. — Pois é mesmo!
   
Ele riu, feliz, aliviado porque podíamos ver o lado bom das coisas, depois estendeu as mãos para nós dois.
   
— Oi — disse. — Meu nome é Sam Crespo. Prazer em conhecê-los.
   
— Oi, Sam — respondi e, enquanto apertava sua mão, pensei: “Parece que este é o amigo número dois.”
   
E ele ficou mesmo meu amigo. Mas, quando o Circo dos Horrores foi embora, desejei de todo coração nunca ter ouvido seu nome.
 
   
CAPÍTULO ONZE
   
 
   
 
    Sam morava a cerca de um quilômetro do acampamento, com os pais, dois irmãos mais novos e uma irmã ainda bebê, três cachorros, cinco gatos, dois passarinhos, uma tartaruga e um tanque cheio de peixes tropicais.
   
— É como morar na arca de Noé — disse ele, rindo. — Tento ficar fora de casa o maior tempo possível. Mamãe e papai não se importam. Eles acham que as crianças devem ter liberdade de expressar sua individualidade. Desde que eu apareça na hora de dormir, estão satisfeitos. Nem se importam se eu mato a aula uma vez ou outra. Acham a escola um sistema despótico de ensino, destinado a oprimir o espírito e amortecer a criatividade.
   
Sam falava assim o tempo todo. Era mais moço do que eu, mas ninguém diria se o ouvisse
falar.
   
— Então, vocês dois fazem parte do espetáculo? — perguntou, rolando um pedaço de picles de cebola na boca (ele adorava cebolas em picles e as levava em um plástico para todo lugar). Tínhamos voltado para perto do acampamento. Ofídio estava deitado na grama, eu sentado em um galho muito baixo, Sam subindo na árvore, acima de mim.
   
— Que tipo de espetáculo é? — perguntou, antes que tivéssemos tempo de responder a primeira pergunta. — Há pouca coisa escrita nas vans. Primeiro pensei que fossem viajantes. Mas, depois de observar por algum tempo, deduzi que deviam ser um tipo de artistas.
   
— Somos mestres do macabro — disse Ofídio. — Agentes de mutação. Senhores do irreal. — Estava falando assim para mostrar que podia estar à altura da linguagem rebuscada de Sam. Eu gostaria de poder inventar algumas frases grandiosas, mas nunca fui bom com palavras.
   
— É um espetáculo mágico? — perguntou Sam, interessado.
   
— É um espetáculo de monstros — disse eu.
   
— Um espetáculo de monstros? — Seu queixo caiu e a cebola rolou para fora. Tive de me
mover rapidamente para evitar que caísse em mim. — Homens com duas cabeças e anomalias desse tipo?
   
— Mais ou menos isso — disse eu —, mas nossos artistas são mágicos, maravilhosos, não apenas pessoas que parecem diferentes.
   
— Legal — olhou para Ofídio —, é claro que vi, desde o começo, que você é um desafio dermatológico — estava falando da pele de Ofídio (olhei no dicionário depois) — mas não tinha ideia da existência de outros integrantes como você no seu grupo.
   
Olhou para o acampamento com olhos ávidos e curiosos.
   
— É extremamente fascinante — suspirou. — Quais outros exemplos bizarros da forma humana há entre os integrantes de seu grupo?
   
— Se quer dizer “que outro tipo de artistas há no circo”, a resposta é uma porção — disse eu. — Temos a Mulher Barbada, é claro.
   
— O Homem Lobo — disse Ofídio.
   
— Um homem com duas barrigas — acrescentei.
   
Citamos toda a lista. Ofídio mencionou alguns que eu nunca tinha visto. O pessoal do Circo mudava com frequência. Os artistas iam e vinham, dependendo do local em que estavam realizando o espetáculo.
   
Sam ficou muito impressionado pela primeira vez desde que nos conhecíamos e não disse nada. Ouviu em silêncio, olhos arregalados, chupando uma cebola, balançando a cabeça muitas vezes, como se não pudesse acreditar no que ouvia.
   
— É incrível — disse ele, em voz baixa, quando terminamos. — Vocês devem ser os garotos de mais sorte do mundo. Vivendo com um verdadeiro circo de horrores, viajando pelo mundo, conhecendo solenes e magníficos segredos. O que eu não daria para trocar de lugar com vocês...
   
Sorri mentalmente. Não acho que ele teria gostado de trocar de lugar comigo, não se soubesse da minha história.
   
— Ei! — disse ele, tendo uma ideia. — Será que não podiam dar um jeito de me encaixar no Circo? Sou trabalhador, esperto, acostumado a assumir responsabilidades. Eu seria um achado. Posso entrar para o Circo? Como assistente. Por favor.
   
Ofídio e eu trocamos um sorriso.
   
— Acho que não, Sam — disse Ofídio. — Não aceitamos muitos garotos. Se você fosse mais velho, ou se seus pais quisessem também entrar para o Circo, seria diferente.
   
— Mas eles não vão se incomodar — insistiu Sam. — Ficariam encantados. Estão sempre dizendo que as viagens ampliam a mente. Adorariam a ideia de eu viajar pelo mundo, tendo aventuras, vendo coisas maravilhosas e místicas.
   
Ofídio balançou a cabeça.
   
— Sinto muito. Talvez quando você for mais velho.
   
Sam franziu os lábios e chutou algumas folhas de um galho próximo, que voaram para cima de mim e algumas se prenderam no meu cabelo.
   
— Não é justo — resmungou Sam. — Todo mundo sempre diz “quando você for mais
velho”. Onde estaria o mundo se Alexandre, o Grande tivesse esperado ficar mais velho? E o que me dizem de Joana D’Arc? Se ela esperasse até ficar mais velha, os ingleses teriam conquistado e colonizado a França? Quem decide quando a pessoa tem idade suficiente para tomar decisões por si mesma? Devia depender do indivíduo.
   
Ele esbravejou por mais alguns momentos, queixando-se dos adultos e do “maldito sistema corrupto” e de “quando chegaria a hora da revolução das crianças”. Era como ouvir um político maluco na televisão.
   
— Se uma criança quiser abrir uma fábrica de chocolate, deixem que abra — disse Sam, furioso —, se quiser ser um jóquei, ótimo. Se quiser ser um explorador e ir para ilhas estranhas cheias de canibais, tudo bem! Somos escravos da geração moderna. Somos...
   
— Sam — interrompeu Ofídio. — Quer ver a minha serpente?
   
Sam sorriu.
   
— Se quero? — gritou. — Pensei que nunca ia perguntar. Vamos embora. — Saltando da árvore, ele correu velozmente para o acampamento, esquecendo o discurso. Nós o seguimos devagar, rindo, sentindo-nos muito mais velhos e sábios do que éramos.
 
   
CAPÍTULO DOZE
   
 
   
 
    Sam achou a cobra a coisa mais legal que já tinha visto. Não teve nenhum medo e não hesitou em enrolá-la no pescoço, como uma echarpe. Fez todo tipo de perguntas: qual o comprimento dela, o que ela comia, de quanto em quanto tempo trocava a pele, de onde ela era, que tipo de serpente era, com que rapidez podia se mover.
   
Ofídio respondeu a todas as perguntas. Ele entendia de cobras. Não havia nada que não soubesse sobre o reino das serpentes. Até deu uma estimativa do número de escamas que a serpente tinha!
   
Depois disso demos um passeio para mostrar o acampamento. Nós o levamos para ver o Homem Lobo (Sam ficou muito quieto, na sombra da van do peludo Homem Lobo, assustado
com os rosnados da criatura). Nós o apresentamos a Mano Mão. Depois o levamos para ver Sancho Duas Panças, ensaiando seu número. Ofídio perguntou se podíamos assistir e ele deixou. Os olhos de Sam quase saltaram das órbitas quando ele viu Sancho mastigar uma xícara, engolir, juntar os pedaços dentro da barriga e trazê-los de volta, pela garganta, até a boca.
   
Eu ia apanhar Madame Octa para mostrar alguns dos truques que sabia fazer com ela, mas não estava muito entusiasmado. O sangue humano começava a fazer falta à minha dieta. Meu estômago roncava de fome, por mais que eu comesse, e às vezes ficava enjoado ou tinha de me sentar depressa. Eu não queria desmaiar com a aranha fora da gaiola. Sabia, por experiência, o quanto ela podia ser letal se eu perdesse o controle, nem que fosse por alguns segundos.
   
Sam teria ficado a vida toda, mas começava a escurecer e eu sabia que o Sr. Crepsley logo ia acordar. Ofídio e eu tínhamos de trabalhar, por isso dissemos a ele que estava na hora de voltar para casa.
   
— Não posso ficar um pouco mais? — implorou.
   
— Seu jantar deve estar na mesa — disse Ofídio.
   
— Posso jantar com vocês — disse Sam.
   
— Não temos comida suficiente — menti.
   
— Bem, de qualquer modo, não estou com muita fome — disse Sam. — É incrível como cebolas em picles podem alimentar uma pessoa.
   
— Talvez ele possa ficar — disse Ofídio, pensativo. Olhei para ele, surpreso, mas ele piscou o olho, mostrando que estava só brincando.
   
— Posso? — perguntou Sam, encantado.
   
— Claro — disse Ofídio. — Mas tem de nos ajudar nas nossas tarefas.
   
— Faço qualquer coisa — disse Sam. — Não me importo. O que tenho de fazer?
   
— Está na hora de alimentar, lavar e escovar o Homem Lobo — disse Ofídio.
   
O sorriso de Sam desapareceu.
   
— O... bem... o Homem Lobo, é? — perguntou, nervoso.
   
— Não tem problema — disse Ofídio. — Normalmente ele fica quieto depois de comer. Raramente morde os que o ajudam. Se atacar, procure manter a cabeça afastada da sua boca e enfie o braço na garganta dele. É melhor perder um braço do que a...
   
— Sabe de uma coisa — disse Sam, rapidamente —, acho que tenho de ir para casa. Mamãe falou alguma coisa sobre convidar amigos para o jantar.
   
— Ah. É uma pena — disse Ofídio, com um largo sorriso.
   
Sam recuou alguns passos, olhando para a jaula do Homem Lobo. Parecia triste por ter de ir, por isso o chamei.
   
— O que você vai fazer amanhã? — perguntei.
   
— Nada — disse.
   
— Quer voltar de tarde e passar um tempo conosco?
   
— Pode estar certo! — exclamou Sam, depois fez uma pausa. — Não vou ter de ajudar a limpar a... — engoliu em seco.
   
— Não — disse Ofídio, ainda sorrindo.
   
— Então eu volto. Vejo vocês amanhã, caras.
   
— A gente se vê, Sam — dissemos juntos.
   
Ele acenou, virou e partiu.
   
— Sam é legal, não é? — perguntei para Ofídio.
   
— Um bom garoto — concordou Ofídio. — Ele podia desistir de tentar parecer tão inteligente o tempo todo e é um pouco medroso, mas fora isso, não há nada de errado com ele.
   
— Você acha que ele ia se adaptar se fizesse parte do Circo? — perguntei.
   
— Como um rato numa gaiola cheia de gatos! — disse Ofídio sorrindo.
   
— Como assim? — perguntei.
   
— Esta vida não é para todo mundo. Algumas semanas longe da família, tendo de limpar banheiros e cozinhar para trinta ou quarenta pessoas... Ele ia sair correndo e gritando.
   
— Nós conseguimos — disse eu.
   
— Nós somos diferentes — disse Ofídio. — Não somos como outras pessoas. Fomos feitos para isto. Todos pertencem a algum lugar. Este é o nosso. Fomos feitos para...
   
Ele parou de falar e franziu a testa. Estava olhando por cima da minha cabeça para alguma coisa distante. Virei para ver o que o intrigava. Por alguns segundos não vi nada, mas então, ao longe, vindo do leste, entre as árvores, vi a luz bruxuleante de um archote.
   
— Quem pode ser? — perguntei.
   
— Não tenho certeza — respondeu Ofídio.
   
Observamos por alguns minutos o archote que se aproximava. Vi vultos que se moviam escondidos pelas árvores. Não podia dizer quantos eram, mas deviam ser pelo menos seis ou sete. Então, quando deixaram o abrigo das árvores, vi quem eram e senti um arrepio nos braços e no pescoço.
   
Eram os pequenos homens de capuzes azuis que Lucas e eu tínhamos visto na noite do espetáculo, os que ajudavam a vender doces e também brinquedos entre os vários atos. Eu tinha esquecido aqueles estranhos ajudantes de capuz. Durante os meses entre aquela noite e esta, tive muito o que pensar.
   
Saíram do bosque aos pares, um atrás do outro. Contei doze ao todo, mas havia um décimo terceiro elemento, uma pessoa mais alta, andando atrás da fila. Era ele que carregava
o archote.
   
— De onde vieram? — perguntei em voz baixa para Ofídio.
   
— Não sei. Deixaram o Circo há algumas semanas. Não tenho ideia de para onde foram. De um modo geral, não falam com ninguém.
   
— Quem são eles? — perguntei.
   
— São... — começou a responder, mas parou de repente, com os olhos arregalados de pavor.
   
Foi o homem que vinha atrás, o décimo terceiro, o mais alto do grupo — visível agora que estavam mais perto —, que assustou Ofídio.
   
Os homenzinhos de capuzes azuis passaram silenciosamente. Quando a misteriosa décima terceira pessoa se aproximou, vi que se vestia de maneira diferente dos outros. Não era muito alto, só parecia grande em comparação com os capuzes azuis. Seu cabelo era curto e branco, usava óculos de lentes espessas, vestia um terno amarelo e galochas verdes, de cano alto. Era gordo e andava com um gingado.
   
Ele sorriu amavelmente para nós quando passou. Eu retribuí o sorriso, mas Ofídio parecia pregado no chão, incapaz de mover os músculos do rosto.
   
Os capuzes azuis e o homem com o archote entraram no acampamento, e foram até o outro lado, onde encontraram uma grande área vazia. Os capuzes azuis começaram a armar uma barraca — deviam carregar o material debaixo dos mantos — enquanto o homem mais alto se dirigia para a van do Sr. Altão.
   
Olhei para Ofídio. Todo seu corpo tremia e, embora seu rosto jamais pudesse ficar branco — por causa da sua cor natural —, estava mais descorado do que antes.
   
— Qual o problema? — perguntei.
   
Ele balançou a cabeça em silêncio, incapaz de falar.
   
— O que é? Por que você está tão assustado? Quem é aquele homem?
   
— Ele... é... — Ofídio pigarreou e respirou fundo. Quando falou foi com voz baixa e trêmula, cheia de puro terror de gelar o sangue.
   
— Aquele é o Sr. Tino — disse ele, e não consegui mais nenhuma explicação durante muito tempo.
 
   
 CAPÍTULO TREZE
   
 
   
 
    O medo de Ofídio diminuiu à medida que anoitecia, mas ele demorou muito tempo para voltar ao normal e passou a noite toda estranhamente irritado. Tive de tirar a faca da sua mão e fazer sua parte quando descascávamos batatas para o jantar. Tive medo de que cortasse um dedo.
   
Depois que jantamos e ajudamos a lavar os pratos, perguntei a Ofídio sobre o misterioso Sr. Tino. Estávamos na barraca e Ofídio brincava com a cobra. Ele não respondeu imediatamente e pensei que não ia responder, mas finalmente suspirou e começou a falar.
   
— O Sr. Tino é o líder dos Pequeninos — disse ele.
   
— Dos homenzinhos de mantos e capuzes azuis? — perguntei.
   
— Sim. Ele os chama de Pequeninos. É o chefe deles. Não vem muito aqui; a última vez que o vi foi há dois anos, mas me deixa arrepiado. É o homem mais fantasmagórico que conheço.
   
— Ele me pareceu amável — disse.
   
— Foi o que pensei na primeira vez que o vi — concordou Ofídio. — Mas espere até falar com ele. É difícil explicar mas, cada vez que olha para mim, sinto como se estivesse se preparando para me matar, tirar minha pele e me assar.
   
— Ele come gente? — perguntei, enojado.
   
— Não sei — disse Ofídio. — Talvez sim, talvez não. Mas dá a impressão de que ele quer devorar você. E não é só bobagem minha. Conversei a respeito com outras pessoas do Circo e todos sentem a mesma coisa. Ninguém gosta dele. Até o Sr. Altão fica nervoso quando ele está por perto.
   
— Mas os Pequeninos devem gostar dele, não acha? — perguntei. — Eles o seguem e o obedecem, certo?
   
— Talvez tenham medo — disse Ofídio. — Talvez ele os obrigue a obedecer. Talvez sejam seus escravos.
   
— Já perguntou para eles?
   
— Eles não falam — disse Ofídio. — Não sei se é porque não podem ou porque preferem ficar em silêncio, mas ninguém aqui no Circo jamais conseguiu tirar uma palavra deles. São muito serviçais e sempre prontos para fazer o que pedimos, mas sempre em silêncio como bonecos ambulantes.
   
— Alguma vez viu os rostos deles? — perguntei.
   
— Uma vez — disse Ofídio. — Normalmente eles não tiram os capuzes, mas um dia eu estava ajudando alguns deles a empurrar uma máquina pesada. Ela caiu em cima de um dos Pequeninos e o esmagou. Ele não fez nenhum som, embora certamente estivesse sentindo muita dor. Seu capuz caiu para o lado e vi de relance seu rosto.
   
— Era horrível — disse Ofídio, em voz baixa, acariciando sua serpente. — Cheio de cicatrizes e pontos e enrugado como se um gigante o tivesse apertado com suas garras. Não tinha orelhas nem nariz e havia uma espécie de máscara sobre a boca. A pele era cinzenta e parecia morta e os olhos eram como duas tigelas verdes perto da parte superior do rosto. Não tinha cabelo.
   
Ofídio estremeceu, lembrando. Eu senti um arrepio, pensando no que acabava de descrever.
   
— O que aconteceu com ele? — perguntei. — Morreu?
   
— Não sei — disse Ofídio. — Alguns dos seus irmãos — sempre penso neles como irmãos, embora provavelmente não sejam — o levaram embora.
   
— Você nunca mais o viu?
   
— Todos parecem iguais — disse Ofídio. — Alguns são um pouco menores ou mais altos do que o resto, mas não se pode distinguir um do outro. Já tentei.
   
Cada vez mais estranho. Eu estava realmente interessado no Sr. Tino e nos seus Pequeninos. Sempre gostei de mistérios. Talvez eu pudesse resolver este. Quem sabe, com
meus poderes de vampiro... Podia arrumar um jeito de falar com uma das criaturas de capuz.
   
— De onde eles vêm? — eu quis saber.
   
— Ninguém sabe — disse Ofídio. — Sempre há quatro ou seis deles com o Circo. Às vezes outros aparecem. Às vezes o Sr. Tino traz alguns novos. É estranho que nenhum estivesse aqui quando você chegou.
   
— Acha que isso teve alguma coisa a ver com a minha chegada e a do Sr. Crepsley?
   
— Duvido — disse Ofídio. — O mais provável é que tenha sido coincidência. Ou o destino. — Fez uma pausa e depois disse: — Há outra coisa. O primeiro nome do Sr. Tino é Desmond.
   
— E daí?
   
— Ele diz para todo mundo chamá-lo de Des.
   
— E daí? — perguntei outra vez.
   
— Junte ao sobrenome — disse Ofídio.
   
Eu juntei. Sr. Des Tino. Sr. Des-Tino. Sr...
   
— Sr. Destino — murmurei e Ofídio balançou a cabeça afirmativamente, muito sério.
   
Eu estava explodindo de curiosidade e fiz muitas outras perguntas, mas o conhecimento de Ofídio sobre o assunto era limitado. Ele não sabia quase nada sobre o Sr. Tino e pouco mais sobre seus Pequeninos. Eles comiam carne. Tinham um cheiro esquisito. Moviam-se devagar a maior parte do tempo. Não sentiam dor ou não podiam demonstrar. E não tinham senso de humor.
   
— Como você sabe disso?
   
— Bruno Estica — respondeu Ofídio, sombrio. — Ele era integrante do Circo. Tinha ossos como borracha e podia fazer as pernas e os braços ficarem muito compridos. Não era muito agradável. Estava sempre fazendo brincadeiras de mau gosto e tinha uma risada maldosa. Não só fazia com que a pessoa parecesse idiota, como a fazia se sentir idiota também. Demos um espetáculo num palácio árabe. Era um espetáculo particular para um xeque
árabe. Ele gostou de todos os números, mas especialmente o de Bruno. Os dois tiveram uma conversa e Bruno disse ao xeque que não podia usar jóias porque sempre escorregavam ou quebravam quando ele mudava a forma do corpo.
   
O xeque saiu muito depressa e voltou logo com um bracelete. Deu a Bruno e mandou que ele o usasse no pulso. Bruno obedeceu. Então o xeque disse para Bruno tirar o bracelete, mudando a forma do braço.
   
Bruno fez o braço ficar pequeno, grande, curto e comprido mas não conseguiu tirar o bracelete. O xeque disse que era mágico e só podia ser retirado se a pessoa que estava usando quisesse. Era muito valioso, sem preço, mas o xeque o deu a Bruno como prova do seu apreço.
   
— Voltando aos Pequeninos — disse Ofídio —, Bruno adorava infernizá-los. Estava sempre inventando novos meios de enganar os homenzinhos. Fazia armadilhas que os erguiam do chão pelos pés. Ateava fogo às suas roupas. Borrifava sabão líquido nas cordas que eles usavam, para fazer suas mãos escorregarem, ou cola, para grudar seus dedos. Punha tachinhas na comida deles, fazia suas barracas despencarem, trancava-os na van.
   
— Por que ele era tão malvado? — perguntei.
   
— Acho que porque eles nunca reagiam — disse Ofídio. — Ele gostava de ver as pessoas irritadas, mas os Pequeninos jamais choravam, gritavam ou saíam correndo. Pareciam não notar suas brincadeiras. Pelo menos, todos pensavam que eles não notavam...
   
Ofídio fez um ruído engraçado, um misto de riso e de gemido.
   
— Uma manhã, quando acordamos, Bruno tinha desaparecido. Não estava em lugar algum. Procuramos por toda parte mas, como não o encontramos, seguimos viagem. Não estávamos preocupados. Os artistas vêm e vão quando querem. Não era a primeira vez que um fugia no meio da noite.
   
— Não pensei mais nele até mais ou menos uma semana depois. O Sr. Tino viera nos visitar na véspera e levara todos os Pequeninos, menos dois, com ele. O Sr. Altão me disse que eu tinha de ajudar os dois nas suas tarefas. Limpei em volta da sua barraca e enrolei as redes — todos dormem em redes. Foi onde consegui a minha. Já tinha contado isso?
   
Não tinha, mas eu não queria desviar o assunto, por isso não disse nada.
   
— Depois disso — continuou —, lavei o caldeirão deles. Era grande, dependurado sobre o fogo, no meio da barraca. A barraca devia ficar cheia de fumaça quando eles cozinhavam e o caldeirão estava sujo de fuligem.
   
“Eu o levei para fora, joguei no mato os restos das últimas poucas refeições — pedaços de carne e de ossos — esfreguei bem e o levei para dentro outra vez. Então, resolvi juntar os
pedaços de carne jogados no mato e dar para o Homem Lobo. Não desperdice que não vai faltar, como o Sr. Altão está sempre dizendo.
   
“Quando eu estava apanhando a carne e os ossos, vi uma coisa brilhante.
   
Ofídio virou de lado e procurou numa sacola debaixo da sua rede. Quando virou para mim, tinha nas mãos um pequeno bracelete de ouro. Deixou que eu olhasse demoradamente para a jóia e depois a pôs no pulso esquerdo. Sacudiu o braço com toda a força mas o bracelete nem se mexeu.
   
Quando ele parou de sacudir o braço, tirou o bracelete com a mão direita e o atirou para mim. Eu o apanhei, examinei, mas não o experimentei.
   
— O bracelete que o xeque deu para Bruno Estica? — adivinhei.
   
— Isso mesmo — disse Ofídio.
   
Eu o devolvi.
   
— Não sei se foi por causa de alguma coisa especialmente desagradável que ele fez — disse Ofídio, segurando o bracelete — ou se eles se cansaram de tanta provocação. O que eu sei é que, desde esse dia, me esforço para ser ultradelicado com os pequeninos silenciosos com seus mantos azul-escuros.
   
— O que você fez com os restos do... quero dizer, com os pedaços de carne? — perguntei. — Enterrou?
   
— De jeito nenhum — disse Ofídio. — Dei para o Homem Lobo, como pretendia. — Então, em resposta ao meu olhar horrorizado, ele disse: — Não desperdice que não vai faltar, lembra?
   
Olhei para ele em silêncio, depois comecei a rir. Ofídio riu também. Logo estávamos rolando no chão, segurando a barriga.
   
— Não devíamos rir — disse eu, ofegante. — Pobre Bruno Estica. Devíamos estar chorando.
   
— Estou chorando de tanto rir — disse Ofídio.
   
— Qual seria o gosto dele?
   
— Não sei — disse Ofídio. — Mas aposto que era como borracha.
   
Isso nos fez rir tanto que as lágrimas escorriam dos nossos olhos. Era horrível rir daquilo, mas não podíamos fazer nada.
   
No meio do nosso acesso de riso, apareceu uma cabeça na abertura da tenda e Mano Mão entrou.
   
— Qual é a piada? — perguntou, mas não conseguíamos falar. Tentei, mas cada vez que dizia a primeira palavra, começava a rir outra vez.
   
— Tenho um recado para vocês dois — disse ele. — O Sr. Altão quer que se apresentem na sua van o mais depressa possível.
   
— O que aconteceu, Mano? — perguntou Ofídio. Ele ainda estava rindo. — Por que ele nos quer ver?
   
— Ele não quer — disse Mano. — O Sr. Tino está lá. É ele que quer ver vocês.
   
Paramos de rir imediatamente. Mano saiu da tenda sem dizer mais nada.
   
— O Sr. Ti-ti-tino quer nos ver — gaguejou Ofídio.
   
— Eu ouvi — disse. — O que acha que ele quer?
   
— Eu não se-se-sei — Ofídio continuou a gaguejar e eu podia ver o que ele estava pensando. A mesma coisa que me passou pela mente. Pensávamos nos Pequeninos, em Bruno Estica e num grande caldeirão cheio de pedaços de carne e ossos humanos.
 
   
Capítulo quatorze
   
 
   
 
    O Sr. Altão, o Sr. Crepsley e o Sr. Tino estavam na van quando entramos. Ofídio tremia como vara verde mas eu não estava especialmente nervoso. É verdade que, quando vi as caras preocupadas do Sr. Altão e do Sr. Crepsley, e percebi o quanto pareciam pouco à vontade, fiquei um pouco preocupado também.
   
— Entrem, meninos — o Sr. Tino nos convidou, como se a van fosse dele e não do Sr. Altão. — Sentem-se, fiquem à vontade.
   
— Se não se importa, prefiro ficar de pé — disse Ofídio, tentando evitar que ouvissem seus dentes batendo uns nos outros.
   
— Eu fico de pé — disse eu, acompanhando Ofídio.
   
— Como quiserem — disse o Sr. Tino. Ele era o único sentado.
   
— Tenho ouvido muita coisa sobre você, Darren Shan — disse ele. Ele girava alguma coisa entre as mãos, um relógio de pulso em forma de coração. Eu podia ouvir o tiquetaque sempre que ele fazia uma pausa.
   
— Você é um garoto e tanto, pelo que tenho ouvido — continuou o Sr. Tino. — Um jovem realmente notável. Sacrificou tudo para salvar um amigo. Poucas pessoas fariam o mesmo. Todo mundo é tão egocêntrico nestes dias. É bom ver que o mundo ainda pode produzir heróis.
   
— Não sou herói — disse eu, corando com o elogio.
   
— Claro que é — insistiu ele. — O que é um herói se não uma pessoa que dá tudo para o bem de outra pessoa?
   
Sorri orgulhoso. Não podia compreender por que Ofídio tinha tanto medo daquele homem estranho e bondoso. Não havia nada de terrível no Sr. Tino. Gostei muito dele.
   
— Larten me disse que você reluta em tomar sangue humano — disse o Sr. Tino. — Eu não o culpo. Uma coisa repulsiva, nojenta. Eu não suporto. A não ser o sangue de crianças, é claro. Seu sangue é para lá de maravilhoso.
   
Franzi a testa.
   
— Não se pode beber sangue de crianças — disse eu. — São muito pequenas. Se tomar o sangue de uma criança pequena, ela morre.
   
Seus olhos se arregalaram e o sorriso se alargou.
   
— É mesmo? — perguntou com suavidade.
   
Senti um arrepio na espinha. Se ele estava brincando, era uma brincadeira de muito mau gosto, mas poderia ter deixado passar (eu não acabara de morrer de rir do pobre Bruno Estica?) Mas vi, pela cara dele, que ele falava sério.
   
De repente fiquei sabendo por que aquele homem era tão temido. Ele era malévolo. Não apenas mau e desagradável, mas era o próprio mal demoníaco. Era um homem que eu podia imaginar matando milhares de pessoas, só para ouvir os gritos.
   
— Você sabe — disse o Sr. Tino —, seu rosto me parece familiar. Já nos encontramos antes, Darren Shan?
   
Balancei a cabeça.
   
— Tem certeza? — perguntou. — Você me parece muito familiar.
   
— Eu... me lembraria — murmurei.
   
— Nem sempre podemos confiar na memória — sorriu o Sr. Tino. — Ela pode ser um monstro enganador. Mas não tem importância. Talvez eu o esteja confundindo com outra pessoa.
   
Pelo modo como seus lábios se ergueram num sorriso (como pude achar que ele tinha um sorriso bondoso?), tive certeza de que ele não estava convencido. Mas tinha certeza de que ele estava errado. De jeito nenhum eu teria esquecido um encontro com uma criatura daquelas.
   
— Vamos aos negócios — disse ele. Seus dedos apertaram o relógio em forma de coração e por um momento suas mãos pareceram cintilar e derreter em volta do relógio. Pisquei e esfreguei os olhos. Quando olhei outra vez, a ilusão — pois devia ter sido isso — tinha passado.
   
— Vocês me viram chegar com meus Pequeninos — disse o Sr. Tino. — Eles são novos convertidos à minha causa e não conhecem muito bem o trabalho. Normalmente eu ficaria com eles para ensinar, mas tenho de tratar de negócios em outro lugar. Mas eles são inteligentes, e tenho certeza de que aprenderão depressa.
   
— Porém, enquanto estiverem aprendendo, eu gostaria que vocês dois os orientassem. Não terão de fazer muita coisa. Quero especialmente que providenciem comida para eles. Eles têm um apetite enorme.
   
— O que me dizem, meninos? Tenho permissão dos seus guardiões. — Inclinou a cabeça para o Sr. Altão e para o Sr. Crepsley, que não pareciam muito satisfeitos com esse arranjo, apenas resignados.
   
— Vão ajudar o pobre velho Sr. Tino e seus Pequeninos?
   
Olhei para Ofídio. Podia ver que ele não queria atender ao pedido, mas mesmo assim concordou. Fiz a mesma coisa.
   
— Excelente! — disse o Sr. Tino em voz alta. — O jovem Ofídio sabe do que meus queridinhos gostam, tenho certeza. Se tiverem algum problema, falem com Hibérnio que ele resolve.
   
O Sr. Tino balançou a mão indicando que podíamos sair. Ofídio começou a andar de costas imediatamente, mas eu fiquei parado.
   
— Com licença — disse eu, juntando toda a minha coragem —, mas por que os chama de Pequeninos?
   
O Sr. Tino olhou em volta lentamente. Se ficou surpreso com minha pergunta, não demonstrou, mas vi que o Sr. Altão e o Sr. Crepsley estavam boquiabertos.
   
— Porque eles são pequenos — explicou alegremente.
   
— Eu sei disso — insisti. — Mas eles não têm outro nome? Um nome próprio? Se alguém mencionasse “pequeninos” para mim, eu pensaria que se tratava de gnomos ou duendes.
   
O Sr. Tino sorriu.
   
— Eles são gnomos ou duendes — disse ele. — No mundo inteiro você encontra lendas e histórias de pessoas pequenas e mágicas. As lendas têm de começar em algum lugar. Essas lendas começaram com meus pequenos e leais amigos.
   
— Está dizendo que aqueles anões de manto azul são duendes? — perguntei, incrédulo.
   
— Não — disse ele. — Duendes não existem. Esses anões — como você diz com tanta rudeza — foram vistos há muito tempo, por pessoas ignorantes, que inventaram nomes para eles — duendes, fadas ou espíritos. Inventaram histórias sobre o que eles são e sobre o que podem fazer.
   
— O que eles podem fazer? — perguntei, curioso.
   
O sorriso do Sr. Tino desapareceu.
   
— Ouvi dizer que você é especialista em fazer perguntas — resmungou —, mas ninguém me disse que era tão curioso. Lembre, Darren Shan, a curiosidade matou o gato.
   
— Não sou um gato — disse eu, com atrevimento.
   
O Sr. Tino se inclinou para a frente com o rosto crispado de raiva.
   
— Se fizer mais perguntas — sibilou —, pode se transformar em um gato. Nada na vida é para sempre, nem mesmo a forma humana.
   
O relógio nas suas mãos cintilou outra vez, vermelho como um verdadeiro coração, e resolvi que estava na hora de ir embora.
   
— Vá para a cama agora e tenha uma boa noite de sono — disse-me o Sr. Crepsley. — Não teremos aula esta noite.
   
— E levantem-se cedo, meninos — acrescentou o Sr. Tino, acenando sua despedida. — Meus Pequeninos estão sempre com fome de manhã. Não é prudente deixá-los muito tempo
com fome. A gente nunca sabe no que eles podem fixar o pensamento, e os dentes, se ficarem sem comer por muitas horas.
   
Saímos apressadamente e corremos para nossa barraca, onde caímos no chão, ouvindo nossos corações baterem loucamente.
   
— Você ficou louco? — perguntou Ofídio, quando conseguiu falar. — Falar com o Sr. Tino daquele jeito, fazendo perguntas! Você deve ser doido.
   
— Sim — disse eu, lembrando o encontro, imaginando onde arranjei coragem. — Devo
ser.
   
Ofídio balançou a cabeça, aborrecido. Era cedo, mas fomos para a cama assim mesmo, e ficamos séculos acordados, olhando para o teto. Quando finalmente dormi, sonhei com o Sr. Tino e com seu relógio em forma de coração. Só que no meu sonho não era um relógio. Era um coração humano de verdade. O meu. E quando ele o apertou...
   
Agonia.
 
   
 CAPÍTULO QUINZE
   
 
   
 
    Levantamos cedo e fomos procurar comida para os Pequeninos. Estávamos cansados, de mau humor e demoramos para acordar realmente.
   
Depois de algum tempo, perguntei a Ofídio o que os Pequeninos gostavam de comer.
   
— Carne — disse ele. — Qualquer tipo de animal, tanto faz.
   
— Quantos animais precisamos pegar? — perguntei.
   
— Bem, eles são doze, mas não comem muito. Acho que um coelho ou um porco-espinho para dois deles. Um animal maior — uma raposa ou um cachorro — deve dar para três ou quatro.
   
— Você consegue comer porco-espinho? — perguntei.
   
— Os Pequeninos comem — disse Ofídio. — Não são exigentes. Comem ratos e camundongos também, mas teríamos de pegar toneladas deles para alimentar tantos, por isso não vale a pena.
   
Saímos cada um para um lado, com um saco na mão. Ofídio me disse que a carne não precisava ser fresca, por isso, se eu encontrasse um texugo ou um esquilo morto, podia pôr no saco para ganhar tempo.
   
Vi uma raposa depois de alguns minutos de procura. Ela voltava para casa com uma galinha na boca. Eu a segui até o momento certo, e então ataquei e a arrastei para uma moita.
   
A galinha morta voou da boca da raposa e ela virou para me morder. Antes que ela pudesse atacar, segurei rapidamente seu pescoço e o torci para a esquerda. Um estalo longo e
foi o fim da raposa.
   
Enfiei a galinha no saco — um bônus bem-vindo —, mas segurei a raposa por alguns minutos. Eu precisava de sangue. Encontrei uma veia, fiz um pequeno corte e comecei a sugar.
   
Uma parte de mim odiava fazer isso — não parecia humano — mas lembrei que não era mais humano. Eu era um meio-vampiro. Era assim que os meios-vampiros agiam. No começo me sentia mal matando raposas, coelhos, porcos e ovelhas. Mas me acostumei. Eu precisava.
   
Será que me acostumaria também a beber sangue humano? Essa era a questão. Eu esperava poder evitar, mas minha energia estava diminuindo de tal modo que eu sabia que no fim ia ter de beber... ou morrer!
   
Joguei o corpo da raposa no saco e continuei a caçar. Encontrei uma família de coelhos lavando as orelhas num pequeno lago. Cheguei o mais perto possível e ataquei de surpresa. Eles se espalharam apavorados, mas não antes de eu agarrar três, novos ainda.
   
Foram para o saco e resolvi que era o bastante para aquela caçada. A raposa, a galinha e os coelhos deviam alimentar facilmente seis ou sete capuzes azuis.
   
Encontrei Ofídio no acampamento. Ele tinha encontrado um cachorro morto e um porco
espinho e estava muito satisfeito com sua proeza.
   
— O dia de caça mais fácil da minha vida — disse. — Além disso, encontrei um campo cheio de vacas. Esta noite vamos roubar uma. Vai dar para alimentar os Pequeninos por um ou dois dias, pelo menos.
   
— O fazendeiro, dono das vacas, não vai notar? — perguntei.
   
— Há dezenas delas — disse Ofídio. — Quando ele resolver contar, estaremos longe.
   
— Mas vacas valem dinheiro — disse eu. — Não me importo de matar animais selvagens, mas roubar de um fazendeiro é diferente.
   
— Deixaremos dinheiro para ele — suspirou Ofídio.
   
— Onde vamos arranjar dinheiro?
   
Ofídio sorriu.
   
— Uma coisa que nunca falta no Circo dos Horrores é dinheiro — garantiu.
   
Mais tarde, nossas tarefas cumpridas, nos encontramos com Sam outra vez. Ele estava esperando na moita havia muito tempo.
   
— Por que não entrou no acampamento? — perguntei.
   
— Eu não quis ser importuno — disse ele. — Além disso, pensei que alguém podia ter soltado o Homem Lobo. Ele não pareceu gostar muito de mim, ontem.
   
— Ele é assim com todo mundo — disse Ofídio.
   
— Talvez — concordou Sam —, mas achei que era melhor não me arriscar.
   
Sam estava cheio de perguntas. Evidentemente tinha pensado muito em nós desde a
véspera.
   
— Você nunca usa sapatos? — perguntou a Ofídio.
   
— Nunca. As solas dos meus pés são duras demais.
   
— O que acontece se pisar em um prego? — perguntou Sam.
   
Ofídio sorriu, sentou e mostrou seu pé para ele.
   
— Tente arranhar com um graveto — disse.
   
Sam quebrou a ponta de um galho e esfregou na sola do pé de Ofídio. Eu olhei com interesse. Era como tentar fazer um buraco num pedaço de couro duro.
   
— Um caco de vidro pode me cortar — disse Ofídio —, mas não acontece frequentemente, e minha pele está ficando cada vez mais dura.
   
— Eu queria ter uma pele assim — disse Sam, com inveja. Então, virou para mim: — Como é que você usa sempre a mesma roupa?
   
Olhei para o terno com que tinham me enterrado vivo. Tinha pensado em pedir outra roupa mas me esqueci.
   
— Eu gosto.
   
— Nunca vi um garoto usando um terno como esse — disse Sam. — A não ser num casamento ou num enterro. É obrigado a usar isso?
   
— Não — respondi.
   
— Você pediu aos seus pais para se juntar ao Circo? — perguntou Ofídio então, para distrair a atenção de Sam da minha roupa.
   
— Não — suspirou ele. — Falei sobre o Circo, é claro, mas achei melhor ir aos poucos.
Só vou dizer a eles um pouco antes de sair, ou talvez só depois de já ter saído.
   
— Ainda pretende se juntar a nós? — perguntei.
   
— Claro que sim! Sei que vocês tentaram me fazer desistir, mas vou conseguir de algum jeito. Esperem para ver. Vou continuar a vir aqui, vou ler livros, aprender tudo que é possível sobre espetáculos de horrores, de criaturas anormais, depois vou ao seu patrão e exponho meu caso. Ele não vai poder recusar.
   
Ofídio e eu trocamos um sorriso. Sabíamos que o sonho de Sam não o levaria a lugar algum, mas não tínhamos coragem de dizer isso a ele.
   
Mais tarde, saímos para ir a uma velha estação de trem abandonada, a uns dois quilômetros do acampamento, sobre a qual Sam tinha falado.
   
— É formidável — disse ele. — Antigamente lá havia pessoas trabalhando em trens, conserto e pintura e coisas assim. Era uma estação movimentada no passado. Então uma nova firma se instalou mais perto da cidade e este lugar morreu. É um ótimo lugar para brincar. Tem trilhos de trem enferrujados, galpões vazios, uma casa do guarda e alguns vagões antigos.
   
— É seguro? — perguntou Ofídio.
   
— Minha mãe diz que não — disse Sam. — É um dos poucos lugares dos quais ela me diz para ficar longe. Ela diz que posso cair do telhado de um dos vagões ou tropeçar num trilho, ou coisa assim. Mas já estive lá uma porção de vezes e nada aconteceu.
   
Era outro dia ensolarado e andávamos devagar, aproveitando a sombra das árvores, quando senti um cheiro estranho, parei e farejei o ar. Ofídio sentiu também.
   
— Que cheiro é esse? — perguntei.
   
— Não sei — disse ele, farejando o ar ao meu lado. — De onde vem?
   
— Não sei dizer — respondi. Era um cheiro espesso, pesado, azedo.
   
Sam não sentiu nenhum cheiro e continuou a andar. Quando percebeu que não estávamos a seu lado, parou e virou para ver o que tinha acontecido.
   
— Qual o problema? — perguntou. — Por que vocês não...
   
— Peguei! — uma voz gritou atrás de mim e, antes que eu tivesse tempo de fazer um movimento, senti que agarravam meu ombro com firmeza e me faziam virar. Vi vagamente um rosto grande e barbudo e então eu estava caindo para trás, desequilibrado pela força da mão.
 
   
CAPÍTULO DEZESSEIS
   
 
   
 
    Caí no chão de mau jeito e torci o braço. Com um grito de dor, tentei rolar para longe do vulto cabeludo, de pé ao meu lado. Antes que tivesse tempo, ele agachou perto de mim, com os olhos arregalados.
   
— Ora, ei, cara, eu não o machuquei, não é? — disse com voz leve e jovial e compreendi que não corria perigo, sua expressão era preocupada, não ameaçadora.
   
— Não queria assustar você dessa forma — disse o homem. — Só estava tentando pregar um pequeno susto, cara, de brincadeira.
   
Sentei e esfreguei o cotovelo.
   
— Estou legal — disse eu.
   
— Tem certeza? Não quebrou o braço, não é? Se quebrou, tenho ervas que podem ajudar.
   
— Ervas não podem soldar ossos quebrados — disse Sam. Tinha voltado e estava de pé, ao lado de Ofídio.
   
— Certamente que não — concordou o estranho — mas podem levar você a planos de consciência em que as preocupações mundanas, como ossos quebrados, não passam de pequenos piques no mapa cósmico. — Fez uma pausa e passou a mão na barba. — É claro, elas também queimam os neurônios...
   
A cara de Sam mostrava que nem ele tinha entendido aquela frase longa.
   
— Estou legal — repeti. Levantei e girei o braço. — Foi só uma distensão. Em alguns minutos vai passar.
   
— Cara, é bom ouvir isso — suspirou o estranho. — Eu detestaria ser a causa de dano físico. A dor é uma péssima viagem, cara.
   
Eu o observei mais detalhadamente. Ele era grande, gorducho, com cabelo longo e despenteado. Sua roupa era suja e não devia ter tomado banho recentemente, porque fedia mesmo de longe. Era esse o cheiro estranho. Ele parecia tão amistoso que me senti um idiota por ter tido medo.
   
— Vocês são garotos da cidade? — perguntou o homem.
   
— Eu sou — disse Sam. — Eles dois estão com o circo.
   
— Circo? — O homem sorriu. — Tem um circo por aqui? Ora, ora, como fui perder isso? Onde fica? Adoro circo. Nunca perco oportunidade de ver os palhaços.
   
— Não é esse tipo de circo — disse Sam. — É um espetáculo de horrores.
   
— Espetáculo de horrores? — O homem olhou para Sam, depois para Ofídio, cujas escamas e a cor da pele indicavam que ele era um dos artistas. — Você faz parte do espetáculo de horrores, cara? — perguntou.
   
Ofídio confirmou, timidamente.
   
— Eles não o maltratam, não é? — perguntou o homem. — Não batem em você, nem o deixam sem comer ou o obrigam a fazer coisas que não quer?
   
— Não — sorriu Ofídio.
   
— Está no circo porque quer?
   
— Estou — disse Ofídio. — Nós todos estamos. É o nosso lar.
   
— Tudo bem. Então está bom — disse o homem, sorrindo outra vez. — A gente ouve histórias sobre esses pequenos espetáculos ambulantes. A gente... — bateu com a mão na testa. — Oh, cara, não me apresentei, certo? Às vezes sou tão bobo. O meu nome é C.C.
   
— C. C? É um nome engraçado — observei.
   
Ele tossiu, embaraçado.
   
— Bem — murmurou —, é abreviatura de Chico Chicória.
   
— Chico Chicória? — eu ri.
   
— Isso aí — fez uma careta. — Chico é meu verdadeiro nome. Chico Chicória é como me chamavam na escola, porque sou vegetariano. Jamais gostei, por isso pedi para me chamarem de C.C. Alguns concordaram, mas não muitos — via-se que a lembrança o fazia sofrer. — Vocês podem me chamar de Chico Chicória, se quiserem.
   
— C.C. está ótimo para mim — garanti.
   
— Para mim também — disse Ofídio.
   
— E para mim — aderiu Sam.
   
— Legal! — animou-se C.C. — Então, já resolvemos sobre meu nome. E vocês três?
   
— Darren Shan — disse eu, e trocamos um aperto de mãos.
   
— Sam Crespo.
   
— Ofídio.
   
— De quê? — perguntou C.C., tal como eu havia feito.
   
— Só Ofídio.
   
— Ah! — sorriu C.C. — Legal!
   
C.C. era um guerreiro ecológico, que estava ali para evitar a construção de uma estrada. Era membro dos PNs — Protetores da Natureza — e tinha viajado por todo o país salvando florestas, lagos, animais e marcos famosos.
   
Ofereceu-se para nos mostrar seu acampamento e aceitamos entusiasmados. A estação de trens podia esperar. Essa era uma oportunidade que não aparecia todos os dias.
   
Ele falou sem parar sobre meio ambiente enquanto andávamos. Contou todas as coisas horríveis que fazemos contra a natureza, as florestas que destruímos, os rios que poluímos, o ar que envenenamos, os animais que levamos à extinção.
   
— E isso tudo no nosso país! — disse ele. — Não estou falando do que acontece nos outros lugares. Falo do que estamos fazendo à nossa própria terra!
   
Os PNs lutavam para salvas a terra de seres humanos cobiçosos, perigosos, que não se importavam com o que faziam a ela. Eles viajavam por todo o país tentando avisar dos perigos. Distribuíam folhetos e livros sobre proteção ambiental.
   
— Mas avisar não é suficiente. É um começo, mas precisamos fazer mais. Temos de parar com a poluição e a destruição do campo. Vejam este lugar. Iam construir uma estrada em cima
de um antigo cemitério, um lugar onde os druidas enterravam seus mortos havia milhares de anos. Podem imaginar isso, caras? Destruir uma parte da história, só para que os motoristas economizem vinte minutos de viagem!
   
C.C. balançou a cabeça tristemente.
   
— É uma loucura, cara — disse ele. — As agressões que estamos fazendo contra este planeta... No futuro — se houver um futuro — as pessoas vão olhar para trás, para o que fizemos, e nos chamarão de bárbaros idiotas.
   
Ele falava com muita paixão sobre o meio ambiente e, depois de ouvir por algum tempo, Ofídio, Sam e eu também começamos a falar com o mesmo entusiasmo. Eu nunca tinha pensado muito no assunto, mas depois de algumas horas com C.C. compreendi que deveria ter pensado. Como C.C. disse, os que não pensam e agem agora, não poderão se queixar quando o mundo desabar em volta deles mais tarde.
   
O acampamento era um lugar interessante. As pessoas — cerca de vinte — dormiam em cabanas feitas à mão com galhos, folhas e arbustos. A maioria era tão suja e fedorenta quanto C.C., mas eram também joviais, bons e generosos.
   
— Como impediram que a estrada fosse construída? — quis saber Sam.
   
— Cavamos túneis — disse C.C. — Sabotamos as máquinas que mandaram. E alertamos a mídia. Os ricaços detestam quando a mídia aponta as câmeras para eles. Uma equipe de noticiário da TV vale tanto quanto vinte guerreiros ativos.
   
Ofídio perguntou se alguma vez eles lutaram de verdade. C.C. disse que os PNs não acreditavam no confronto violento, mas sua expressão dizia que ele não concordava com isso.
   
— Se pudesse fazer as coisas ao meu modo — disse ele, em voz baixa —, nós daríamos o troco ao que nos fazem. Às vezes somos bons demais. Cara, se eu fosse o chefe, daríamos a esses destruidores uma amostra do que estão fazendo!
   
C.C. nos convidou para o almoço. A comida não era muito boa — não tinham carne, só uma porção de legumes, arroz e frutas —, mas comemos bastante por delicadeza.
   
Tinham muitos cogumelos também — grandes e com uma cor estranha —, mas C.C. não nos deixou comer nenhum deles.
   
— Quando forem mais velhos, caras — disse ele, rindo.
   
Saímos logo depois do almoço. Os PNs tinham trabalho para fazer e não queríamos atrapalhar.
   
C.C. disse que podíamos voltar a qualquer hora, mas que provavelmente iriam embora dentro de poucos dias.
   
— Estamos quase vencendo a luta aqui — disse ele. — Mais alguns dias e chega a hora de atacar outras pastagens. As batalhas vêm e vão, cara, mas a guerra nunca acaba.
   
Despedimo-nos e fomos para casa.
   
— Esse C.C. é estranho — disse Sam, depois de algum tempo. — Imagine desistir de tudo para sair lutando por animais e pela terra.
   
— Ele está fazendo aquilo em que acredita — disse Ofídio.
   
— Eu sei — concordou Sam. — E fico feliz por ele estar fazendo. Precisamos de gente como C.C. É uma pena que não existam muitos mais. Mesmo assim é um modo estranho de viver, não acham? É preciso muita dedicação. Acho que eu não poderia ser um guerreiro ambiental.
   
— Nem eu — concordei.
   
— Eu poderia — disse Ofídio.
   
— Não, não poderia — disse.eu, com pouco-caso.
   
— Por que não? — ofendeu-se. — Podia pegar a minha serpente, viver com eles e lutar com eles.
   
— Não poderia — insisti.
   
— Por que não?
   
— Porque você não é fedorento o bastante! — ri.
   
Ofídio fez uma cara triste, depois abriu um largo sorriso.
   
— Eles são da turma do Cascão, não é? — admitiu.
   
— Fedem mais do que meus pés quando passo uma semana sem trocar as meias — disse Sam, rindo.
   
— Mesmo assim — disse Ofídio —, posso pensar em um monte de maneiras piores de passar o tempo quando eu crescer. Eu gostaria de ser como C.C.
   
— Eu também — disse Sam.
   
Dei de ombros.
   
— Acho que eu poderia me acostumar — concedi.
   
Estávamos animados e falamos sobre PNs e sobre C.C. durante toda a caminhada de volta ao acampamento. Nenhum de nós tinha ideia do problema que o bondoso guerreiro ambiental logo criaria... ou da tragédia que sem querer iria provocar.
 
   
CAPÍTULO DEZESSETE
   
 
   
 
    Os dias seguintes foram tranquilos. Ofídio e eu nos ocupávamos com nossas tarefas e com a alimentação dos Pequeninos. Tentei falar com algumas das criaturas silenciosas de capuz azul, mas nenhuma disse grande coisa ou olhou para mim.
   
Era impossível distinguir um do outro. Um — ele, ela ou a coisa — se destacava por ser mais alto e outro era mais baixo, outro ainda mancava da perna esquerda. Mas todo o resto parecia igual.
   
Sam estava me ajudando cada vez mais no acampamento. Não o levávamos conosco quando saíamos para caçar, mas permitíamos que ajudasse com a maioria das outras tarefas. Ele trabalhava com afinco, resolvido a nos impressionar e conquistar uma posição permanente
no Circo.
   
Eu não via muito o Sr. Crepsley. Ele sabia que eu precisava levantar cedo e caçar a comida dos Pequeninos, por isso não me procurava a maior parte do tempo. Estava feliz com isso. Não queria que ele ficasse insistindo para que eu tomasse sangue humano.
   
Então Tuti Membros chegou de manhã cedo, provocando grande alvoroço.
   
— Você tem de ver esse homem — disse Ofídio, me arrastando pela mão. — É o artista mais incrível que já houve no mundo.
   
Já havia muita gente em volta de Tuti quando chegamos à van do Sr. Altão (onde ele fora se apresentar). Batiam nas costas dele, perguntavam o que tinha feito, por onde tinha andado. Ele sorria para todos, trocava apertos de mão e respondia às perguntas. Podia ser um astro, mas não era convencido.
   
— Ofídio! — gritou quando viu o menino-cobra e deu-lhe um abraço apertado. — Como vai meu réptil favorito de duas pernas?
   
— Muito bem — disse Ofídio.
   
— Trocou de pele ultimamente? — perguntou Tuti.
   
— Não recentemente — disse Ofídio.
   
— Lembre-se, quero sua pele quando trocar — disse Tuti. — É valiosa. Pele de cobra humana vale mais do que ouro em alguns países.
   
— Pode ficar com toda ela — garantiu Ofídio. Então, empurrou-me para a frente de Tuti. — Tuti, este é Darren Shan, meu amigo. Ele é novo no Circo e nunca viu você.
   
— Nunca viu Tuti Membros?!!? — Tuti tingiu que estava zangado. — Como pode ser? Pensei que todos no mundo tinham visto o magnífico Tuti Membros em ação.
   
— Nunca ouvi falar de você — disse eu.
   
Ele levou a mão ao peito, como se fosse ter um ataque cardíaco.
   
— O que você faz? — perguntei.
   
Tuti olhou em volta.
   
— Devo lazer uma demonstração?
   
— Sim, faça — gritaram todos, entusiasmados.
   
Tuti olhou para o Sr. Altão, que estava de pé, atrás do pessoal. O Sr. Altão suspirou e balançou a cabeça afirmativamente.
   
— Acho melhor — disse ele. — Do contrário não o deixarão em paz.
   
— Muito bem — disse Tuti. — Recuem, abram espaço para mim.
   
Todos recuaram imediatamente. Comecei a recuar também. Tuti pôs a mão no meu ombro e me mandou ficar.
   
— Estive viajando durante longo tempo e estou muito cansado para fazer todo o meu número, por isso vai ser curto e suave — disse ele para o público. Fechou a mão direita e levantou o dedo indicador.
   
— Darren, quer pôr este dedo na sua boca? — pediu.
   
Olhei para Ofídio, que me fez sinal para obedecer.
   
— Agora — disse Tuti —, morda, por favor.
   
Mordi de leve.
   
— Com mais força — disse Tuti.
   
Mordi com um pouco mais de força.
   
— Ora, vamos, menino — gritou Tuti. — Ponha algum vigor nisso. Faça suas mandíbulas trabalharem. Você é um tubarão ou um camundongo?
   
Muito bem. Ele queria que eu mordesse com força. Pois lá vai. Abri a boca e mordi rapidamente, tentando chocar Tuti. Mas quem ficou chocado fui eu, porque mordi o dedo e o arranquei!
   
Recuei apavorado e cuspi o dedo morto. Olhei para Tuti Membros. Esperava ouvir seus gritos, mas ele apenas riu e levantou a mão.
   
Não vi nenhum sangue no lugar em que o dedo fora arrancado, apenas um toco branco e amassado. Então a coisa mais incrível aconteceu, o dedo começou a crescer de novo!
   
Pensei que estivesse imaginando coisas mas, depois de alguns segundos, o dedo continuou a crescer e logo chegou ao tamanho normal. Tuti o segurou com força por mais alguns segundos, para fixar, depois o dobrou e desdobrou para mostrar que estava tão bom quanto podia estar.
   
Todos aplaudiram e meu coração se acalmou no peito.
   
Olhei para o chão, para onde tinha cuspido o dedo, e vi que ele começava a deteriorar. Em um minuto não passava de um montinho acinzentado de terra.
   
— Desculpe se o assustei — disse Tuti, dando uma pancadinha na minha cabeça.
   
— Tudo bem — disse eu. — A esta altura eu devia esperar o inesperado por aqui. Posso tocar o novo dedo? — Ele deixou. Não parecia diferente de qualquer outro. — Como faz isso? — perguntei, estarrecido. — É uma ilusão?
   
— Nada de ilusão — disse ele. — Por isso me chamam de Tuti Membros. Posso fazer crescer novos membros — dedos da mão, do pé, braços, pernas — desde criança. Meus pais descobriram meu talento quando sofri um acidente com uma faca de cozinha e cortei parte do nariz. Posso fazer crescer de novo praticamente todas as partes do meu corpo. Exceto a cabeça. Nunca tentei me decapitar. É melhor não tentar a sorte.
   
— Não dói? — perguntei.
   
— Um pouco, mas não muito. Quando um dos meus membros é cortado, outro começa a crescer quase imediatamente, portanto, só há um ou dois segundos de dor. É um pouco como...
   
— Vamos, vamos — interrompeu-o o Sr. Altão. — Não temos tempo para uma descrição detalhada. Este espetáculo está parado há muito tempo. Está na hora de entreter o público outra vez, antes que se esqueça de nós ou pense que nos aposentamos.
   
— Pessoal — gritou ele, batendo as mãos. — Avisem a todos. Acabou a calmaria. Esta noite tem espetáculo!
 
   
CAPÍTULO DEZOITO
   
 
   
 
    O acampamento vibrou de atividade a tarde toda. O pessoal se movia incessantemente como formigas. Muitos se encarregavam de levantar a lona do circo. Eu não a tinha visto antes. Era impressionante quando estendida, alta, redonda e vermelha, decorada com fotos dos artistas.
   
Ofídio e eu trabalhamos duro, pregando estacas no chão para segurar a lona, arranjando as cadeiras, arrumando o palco para o espetáculo, preparando os acessórios de contra-regra para os artistas (tínhamos de procurar latas e parafusos e porcas para Sancho Duas Panças comer, ajudar a levar a jaula do Homem Lobo para dentro do Circo e assim por diante).
   
Era uma operação enorme, mas que avançava com incrível velocidade. Todos no acampamento sabiam onde deviam estar e o que deviam fazer e nunca houve nenhum caso de
pânico, o dia inteiro. Todos trabalhavam como parte de uma equipe e as coisas iam se ajeitando suavemente.
   
Sam apareceu mais cedo, no começo da tarde. Eu o teria feito ficar comigo ajudando no trabalho, mas Ofídio disse que ele iria atrapalhar, por isso o mandamos embora. Ele ficou aborrecido e saiu emburrado, chutando uma lata vazia. Fiquei com pena dele e então descobri como poderia alegrá-lo.
   
— Sam! Espere um pouco — gritei. — Volto em um minuto — disse para Ofídio e corri para a van do Sr. Altão.
   
Bati na porta, que se abriu instantaneamente. O Sr. Altão apareceu e, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, me deu duas entradas para o Circo dos Horrores.
   
Olhei atônito para as entradas, depois para o Sr. Altão.
   
— Como sabia que...?
   
— Tenho meus métodos — respondeu, com um sorriso.
   
— Não tenho dinheiro — avisei.
   
— Desconto do seu ordenado — disse ele.
   
— Mas o senhor não me paga nada.
   
O sorriso ficou mais largo.
   
— Esperteza minha. — Entregou as entradas e fechou a porta na minha cara antes que eu pudesse agradecer.
   
Voltei correndo para Sam e dei as entradas para ele.
   
— O que é isso? — perguntou ele.
   
— Entradas para o espetáculo desta noite. Uma para você e uma para C.C.
   
— Nossa! — Sam guardou as entradas no bolso rapidamente, como se tivesse medo que pudessem desaparecer no ar. — Obrigado, Darren.
   
— Sem problema — disse eu. — A única coisa é que o espetáculo é tarde da noite. Começamos às onze e só acabamos depois de uma hora da manhã. Vai poder vir?
   
— Claro — disse Sam. — Eu fujo. Mamãe e papai deitam às nove e meia todas as noites. Dormem cedo.
   
— Se for apanhado — avisei —, não diga para onde está indo.
   
— Meus lábios estão selados — prometeu, e saiu correndo para procurar C.C.
   
A não ser por um jantar rápido, não houve nenhum intervalo entre aquele momento e o início do espetáculo. Enquanto Ofídio preparava sua serpente, arrumei as velas no circo. Havia também cinco lustres enormes para serem pendurados, quatro em cima do público, um sobre o palco, mas os Pequeninos se encarregaram disso.
   
Magda — uma bela mulher que vendia brinquedos e doces nos intervalos, pediu-me para ajudar a arrumar as bandejas e passei uma hora empilhando teias de aranha de açúcar, estátuas de “vidro” comestível e mechas do pêlo do Homem Lobo. Uma coisa era novidade para mim: um pequeno modelo de Tuti Membros. Quando se cortava uma parte, um novo pedaço crescia no lugar. Perguntei a Magda como funcionava, mas ela não sabia.
   
— É uma das invenções do Sr. Altão — disse ela. — Ele faz pessoalmente uma porção destas coisas.
   
Tirei a cabeça do modelo e tentei espiar para ver o que havia lá dentro, mas outra cabeça cresceu antes que eu tivesse tempo de olhar.
   
— Essas cópias não duram para sempre — disse Magda. — Estragam em alguns meses.
   
— Você diz isso para as pessoas que compram? — perguntei.
   
— É claro. O Sr. Altão faz questão de que o consumidor saiba exatamente o que está comprando. Ele é contra enganar as pessoas.
   
O Sr. Crepsley mandou me chamar uma hora antes do começo do espetáculo. Ele estava vestindo sua fantasia quando entrei.
   
— Dê um polimento na gaiola de Madame Octa — me pediu —, depois escove seu terno e procure se limpar.
   
— Por quê? — perguntei.
   
— Você vai entrar no palco comigo.
   
Meus olhos se iluminaram.
   
— Quer dizer, vou fazer parte do número? — perguntei, atônito.
   
— De uma pequena parte — disse ele. — Pode levar a gaiola para o palco e tocar a flauta quando for a hora de Madame Octa fazer a teia na minha boca.
   
— Normalmente é o Sr. Altão quem faz isso, não é?
   
— Normalmente — concordou o Sr. Crepsley —, mas estamos com poucos artistas, por isso ele também vai fazer um número. Além disso, você está mais preparado para me ajudar do que ele.
   
— Como assim? — perguntei.
   
— Você é mais arrepiante do que ele. Com sua palidez e esse terno medonho, parece que saiu de um filme de terror.
   
Isso me deixou um pouco chocado. Nunca pensei que minha aparência provocasse arrepios! Olhei num espelho e vi que eu parecia um pouco assustador. Por não ter tomado sangue humano, estava muito mais pálido do que devia estar. O terno sujo me fazia parecer mais fantasmagórico. Resolvi encontrar outra coisa para vestir na manhã seguinte.
   
O espetáculo começou às onze horas em ponto. Eu não esperava um grande público — estávamos no meio de lugar nenhum e não tivemos muito tempo para avisar as pessoas sobre o espetáculo —, mas o circo estava lotado!
   
— De onde vem toda essa gente? — murmurei para Ofídio, enquanto víamos o Sr. Altão apresentar o Homem Lobo.
   
— De toda parte — respondeu em voz baixa. — As pessoas sempre sabem quando vai haver um espetáculo. Além disso, embora só nos tenha dito hoje, o Sr. Altão provavelmente sabia que íamos trabalhar esta noite desde que chegamos aqui.
   
Assisti ao espetáculo dos bastidores, gostando mais do que da primeira vez, porque agora conhecia as pessoas e me sentia parte da família.
   
Mano Mão apresentou-se depois do Homem Lobo, seguido por Sancho Duas Panças. Tivemos o primeiro intervalo, então o Sr. Altão entrou no palco e, embora parecesse estar imóvel, ia de um lugar para o outro, desaparecendo de um lugar e aparecendo em outro. Em seguida veio Truska e então chegou a minha vez de entrar com o Sr. Crepsley e Madame Octa.
   
A luz era pouca, mas minha visão de vampiro me ajudou a ver os rostos de Sam e de C.C. na platéia. Ficaram perplexos quando me viram, mas aplaudiram com mais força do que todos os outros. Tive de disfarçar meu sorriso de satisfação. O Sr. Crepsley tinha me mandado parecer infeliz e abatido para impressionar o público.
   
Fiquei de um lado, enquanto o Sr. Crepsley fazia um discurso sobre o quanto Madame Octa era letal, depois abri a porta da gaiola e um assistente entrou com uma cabra.
   
Houve uma exclamação abafada de revolta quando Madame Octa matou a cabra... de C.C. Compreendi então que não devia ter convidado C.C. — esqueci o quanto ele gostava de animais —, mas era tarde demais para retirar o convite.
   
Eu estava um pouco nervoso quando chegou a hora de tocar a flauta e controlar Madame Octa, sentindo todos os olhos em mim. Nunca tinha me apresentado a uma platéia antes e por alguns segundos tive medo de que meus lábios não funcionassem ou de esquecer a música. Mas, quando comecei a soprar e a enviar meus pensamentos para Madame Octa, eu me acalmei e acertei o passo.
   
Enquanto ela tecia a teia sobre os lábios do Sr. Crepsley, ocorreu-me que poderia me livrar dele naquele momento, se quisesse.
   
Posso fazer com que ela ataque o Sr. Crepsley.
   
A ideia me deixou chocado. Já tinha pensado em matá-lo antes, mas nunca seriamente e não desde que entrei para o Circo. Agora, ali estava ele, sua vida em minhas mãos. Tudo de que eu precisava era um pequeno “deslize”. Podia dizer que fora acidente. Ninguém poderia provar o contrário.
   
Observei a aranha indo de um lado para o outro, para cima e para baixo, as presas
venenosas brilhando à luz do lustre. O calor das velas parecia imenso. Eu transpirava profusamente. Pensei que eu podia dizer que meus dedos suados tinham escorregado.
   
Sobre a boca do Sr. Crepsley, a aranha tecia a teia. As mãos dele estavam ao lado do corpo. Não teria tempo de evitar o ataque. Uma nota errada na flauta era tudo de que eu precisava. Uma nota para cortar a linha de pensamento entre nós e...
   
Mas não fiz. Toquei perfeitamente, com segurança. Não sei ao certo por que poupei o vampiro. Talvez porque o Sr. Altão podia saber o que eu tinha feito. Talvez porque eu precise do Sr. Crepsley para me ensinar a ser um vampiro. Talvez porque eu não queira me tornar um assassino.
   
Ou talvez, apenas talvez, porque eu começava a gostar do vampiro. Afinal, ele me levou para o Circo e me fez parte do seu número. Eu não teria conhecido Ofídio e Sam, se não fosse por ele. Ele tinha sido bom para mim, na medida do possível.
   
Fosse qual fosse a razão, não deixei Madame Octa matar seu dono e, no fim do ato, agradecemos e saímos juntos.
   
— Você pensou em me matar — disse o Sr. Crepsley, em voz baixa, quando saímos do palco.
   
— O que está dizendo? — me fiz de bobo.
   
— Sabe o que estou dizendo — depois de uma pausa, ele disse: — Não teria funcionado. Eu retirei a maior parte do veneno das presas dela antes de entrarmos no palco. Para matar a cabra, ela usou o que restava.
   
— Foi um teste? — Olhei para ele e meu ódio cresceu outra vez. — Pensei que estava sendo bom para mim! — exclamei. — E o tempo todo era apenas uma droga de teste!
   
Muito sério, ele disse:
   
— Eu precisava saber. Tinha de saber se podia confiar em você.
   
— Pois vou dizer uma coisa — rosnei, ficando na ponta dos pés para olhar nos olhos dele. — Seu teste foi inútil. Eu não o matei desta vez mas, se tiver outra oportunidade, não vou deixar passar!
   
Saí furioso, sem dizer mais nada, transtornado demais para assistir ao número de Tuti Membros e o fim do espetáculo, sentindo-me traído, embora, bem no fundo, soubesse que o Sr.
Crepsley tinha razão.
 
   
CAPÍTULO DEZENOVE
   
 
   
 
    Eu ainda estava zangado na manhã seguinte. Ofídio perguntava insistentemente qual era o problema mas eu não queria dizer. Não queria que ele soubesse que eu tinha pensado em matar o Sr. Crepsley.
   
Ofídio me disse que tinha se encontrado com Sam e C.C. depois do espetáculo.
   
— Sam adorou — disse ele —, especialmente Tuti Membros. Você devia ter ficado para ver o número de Tuti. Quando ele serrou as pernas...
   
— Verei na próxima vez — disse eu. — E C.C., também gostou?
   
Ofídio franziu a testa.
   
— Ele não parecia muito satisfeito.
   
— Zangado por causa da cabra?
   
— Sim. Mas não só isso. Disse que tínhamos comprado a cabra de um açougueiro, portanto ela teria sido morta de qualquer jeito. Foram o Homem Lobo, a serpente e a aranha do Sr. Crepsley que o perturbaram mais.
   
— Qual o problema com eles? — perguntei.
   
— Ele teme que não sejam tratados adequadamente. Não gostou da ideia de ficarem presos em gaiolas e jaulas. Expliquei que não ficam, a não ser a aranha. Acrescentei que o Homem Lobo era tranquilo como um cordeiro fora do palco. E mostrei a ele minha serpente e como ela dorme comigo.
   
— Ele acreditou na sua história do Homem Lobo? — perguntei.
   
— Acho que sim — disse Ofídio —, mas ainda parecia desconfiado quando foi embora. E estava muito interessado nos hábitos alimentares dos três. Quis saber o que damos a eles, quantas vezes e onde conseguimos a comida. Precisamos ter muito cuidado com C.C. Ele pode criar problemas. Felizmente vamos partir dentro de um ou dois dias, mas, até lá, cuidado!
   
Passamos o dia sossegadamente. Sam só apareceu no fim da tarde e nenhum de nós estava com vontade de brincar. O dia permaneceu encoberto e ninguém parecia muito bem-disposto. Depois de meia hora, Sam voltou para casa.
   
O Sr. Crepsley me chamou à sua tenda logo depois do pôr-do-sol. Pensei em não ir, mas resolvi que era melhor não provocá-lo demais. Ele era o meu guardião, afinal, e podia me tirar do Circo dos Horrores.
   
— O que você quer? — disse eu asperamente, assim que cheguei.
   
— Venha cá, para que eu possa vê-lo melhor — disse o vampiro.
   
Ele inclinou minha cabeça para trás, com seus dedos ossudos, e ergueu minhas pálpebras para examinar o branco dos meus olhos. Mandou que eu abrisse a boca e examinou minha garganta. Depois, verificou meu pulso e meus reflexos.
   
— Como se sente? — perguntou.
   
— Cansado — disse eu.
   
— Fraco? Enjoado?
   
— Um pouco.
   
Ele resmungou.
   
— Tem tomado muito sangue ultimamente? — perguntou.
   
— Tanto quanto preciso — disse eu.
   
— Mas não sangue humano?
   
— Não — disse eu, em voz baixa.
   
— Muito bem — disse ele. — Arrume-se. Vamos sair.
   
— Caçar? — perguntei.
   
Ele balançou a cabeça.
   
— Visitar um amigo.
   
Subi nas costas dele fora da tenda e começamos a correr. Quando saímos do
acampamento, ele começou a deslizar e o mundo obscureceu à nossa volta.
   
Não dei muita atenção para onde estávamos indo. Estava mais preocupado com meu terno. Eu havia me esquecido de arranjar novas roupas e agora, quanto mais examinava o terno, pior ele parecia.
   
Tinha dezenas de pequenos buracos e rasgões e era agora de um cinza mais escuro, por causa da terra e da poeira. Muitos fios e fibras tinham se soltado e, sempre que eu erguia um braço ou uma perna, era como se fossem fios de cabelo caindo.
   
Nunca me preocupei muito com roupa, mas não queria parecer um mendigo. No dia seguinte sem falta eu ia procurar alguma coisa para vestir.
   
Depois de algum tempo chegamos a uma cidade e o Sr. Crepsley diminuiu a marcha. Parou no lado de fora dos fundos de um prédio alto. Eu queria perguntar onde estávamos, mas ele levou um dedo aos lábios, pedindo silêncio.
   
A porta dos fundos estava trancada, mas o Sr. Crepsley pôs a mão nela e estalou os dedos da outra mão. A porta abriu instantaneamente. Ele seguiu na frente por um corredor comprido e escuro, subimos um lance de escadas e chegamos a um corredor muito bem iluminado.
   
Depois de alguns minutos, aproximamo-nos de uma mesa branca. O Sr. Crepsley olhou em volta, para se certificar de que estávamos sozinhos, e então tocou o sino que pendia de uma das paredes.
   
Um vulto apareceu atrás da parede de vidro, no outro lado da mesa. A porta de vidro se abriu e surgiu um homem ruivo, de uniforme e com uma máscara verde. Parecia um médico.
   
— Em que posso aju... — começou, e parou. — Larten Crepsley! Que diabo está fazendo aqui, seu diabo velho!
   
O homem tirou a máscara e vi que estava sorrindo.
   
— Olá, Jimmy — disse o Sr. Crepsley. Sorridentes, trocaram um aperto de mãos. — Há quanto tempo!
   
— Não tanto quanto pensei que seria — disse o homem chamado Jimmy. — Ouvi dizer que você fora morto. Um velho inimigo finalmente enfiou uma estaca no seu coração malvado, pelo menos essa era a história.
   
— Não deve acreditar em tudo o que ouve — disse o Sr. Crepsley. Pôs a mão no meu ombro e me empurrou para a frente. — Jimmy, este é Darren Shan, meu companheiro de
viagem. Darren, este é Jimmy Ovo, um velho amigo e o melhor patologista do mundo.
   
— Como vai? — disse eu.
   
— Prazer em conhecê-lo — disse Jimmy, apertando a minha mão. — Você não é um... quero dizer, você é membro do clube?
   
— Ele é um vampiro — disse o Sr. Crepsley.
   
— Só metade de mim — disse eu asperamente. — Não sou todo vampiro.
   
— Por favor — Jimmy fez uma careta. — Não use essa palavra. Sei o que vocês são e aceito, mas só a palavra me deixa arrepiado — fingiu que estremecia. — Acho que é por causa de todos os filmes de terror a que assisti quando era criança. Sei que não são como aqueles monstros do cinema, mas é difícil me livrar da imagem.
   
— O que faz um patologista? — perguntei.
   
— Corto cadáveres para ver do que morreram — explicou Jimmy. — Não faço isso com todos os cadáveres, só os que morreram em circunstâncias suspeitas.
   
— Isto é o necrotério da prefeitura — disse o Sr. Crepsley. — Eles guardam os corpos dos que chegam mortos ao hospital, ou que morrem enquanto estão hospitalizados.
   
— É ali que os guarda? — perguntei, apontando para a sala atrás da parede de vidro.
   
— Exatamente — disse ele, em tom jovial. Girou uma parte da mesa e nos convidou a entrar.
   
Eu estava nervoso. Esperava ver dezenas de mesas, cheias de corpos abertos. Mas não vi nada disso. Havia um cadáver, coberto da cabeça aos pés com um longo lençol, mas era o único visível. Era uma sala enorme com grandes arquivos de aço encostados nas paredes e equipamento médico por toda parte.
   
— Como vão os negócios? — perguntou o Sr. Crepsley quando sentamos perto do corpo na mesa. Jimmy e o Sr. Crepsley ignoravam o cadáver e, como eu não queria parecer deslocado, ignorei também.
   
— Bem devagar — respondeu Jimmy. — O tempo tem estado bom e não tem havido
muitos acidentes na estrada. Nada de doenças estranhas, nenhuma epidemia alimentar, nenhum desmoronamento de prédios. A propósito — acrescentou — há alguns anos tive aqui um velho amigo seu.
   
— É mesmo? Quem? — perguntou delicadamente o Sr. Crepsley.
   
Jimmy respirou pesadamente pelo nariz depois pigarreou.
   
— Torvelinho? — riu feliz o Sr. Crepsley. — Como vai o velho Torvelinho — desajeitado como sempre?
   
Começaram a falar sobre o amigo, Torvelinho. Eu olhei em volta com curiosidade enquanto eles falavam, imaginando onde estariam os cadáveres. Finalmente, quando fizeram uma pausa para respirar, perguntei a Jimmy. Ele se levantou e me disse para segui-lo. Foi até os grandes arquivos e abriu uma das gavetas.
   
Ouvi um som que parecia o silvo de uma cobra e uma nuvem de ar gelado subiu no ar. Quando a nuvem se desfez, vi uma forma coberta com um lençol e compreendi que não eram arquivos grandes. Eram caixões refrigerados.
   
— Guardamos os corpos aqui até estarem prontos — disse Jimmy — ou até serem
reclamados por algum parente.
   
Olhei em volta, contando rapidamente as filas de gavetas.
   
— Tem um corpo dentro de cada uma delas? — perguntei.
   
Jimmy balançou a cabeça.
   
— No momento temos somente seis hóspedes, sem contar o que está na mesa. Como eu disse, está bem calmo. Mesmo nas ocasiões de maior movimento, grande parte da nossa área de armazenagem fica vazia. É raro estarmos com metade das gavetas ocupadas. Gostamos de estar preparados para o pior.
   
— Algum corpo fresco guardado? — perguntou o Sr. Crepsley.
   
— Espere um minuto, vou verificar — disse Jimmy. Consultou uma agenda grande. — Tem um homem de trinta e poucos anos. Morreu em acidente de carro, há pouco mais de oito horas.
   
— Nada mais fresco? — perguntou o Sr. Crepsley.
   
— Infelizmente não — respondeu Jimmy.
   
O Sr. Crepsley suspirou.
   
— Então, tem de servir.
   
— Espere um pouco — disse eu. — Não vai tomar sangue de um morto, não é?
   
— Não — respondeu o Sr. Crepsley. Tirou do bolso interno do manto vários frascos nos quais guardava seu suprimento de sangue humano. — Vim para reabastecer.
   
— Não pode — disse eu com voz entrecortada.
   
— Por que não?
   
— Não é direito. Não é justo tomar sangue dos mortos. Além disso, o sangue já deve ter azedado.
   
— Não estará no melhor estado possível — concordou o Sr. Crepsley —, mas serve para engarrafar. E eu discordo, um cadáver é o ideal para tirar sangue, uma vez que não precisa mais dele. Preciso de muito sangue para encher todos estes frascos. É muito para tirar de uma pessoa viva.
   
— Não se tirar um pouco de várias pessoas — protestei.
   
— Certo — disse ele. — Mas isso exige muito tempo, esforço e é arriscado. É mais fácil deste modo.
   
— Darren não fala como um vampiro — observou Jimmy.
   
— Ele ainda está aprendendo — rosnou o Sr. Crepsley. — Agora, leve-me ao cadáver, por favor. Não temos a noite toda.
   
Eu sabia que não adiantava discutir mais, por isso calei a boca e o acompanhei em silêncio.
   
Jimmy abriu a gaveta de um homem alto, louro e retirou o lençol. O homem tinha um ferimento feio na cabeça e seu corpo era muito branco. Fora isso, ele podia estar dormindo.
   
O Sr. Crepsley fez um corte longo e profundo no peito do homem, desnudando seu coração. Arrumou os frascos ao lado do cadáver, depois tirou do bolso um tubo e enfiou uma ponta em um dos frascos. A outra ponta enfiou no coração do morto e apertou o órgão com a mão, como se fosse uma bomba.
   
Lentamente o sangue passou pelo tubo e caiu no frasco. Quando estava quase cheio, o Sr. Crepsley tirou o tubo e pôs uma rolha no frasco. Enfiou o tubo no segundo frasco e começou a encher.
   
Erguendo o primeiro frasco, ele tomou um longo gole e girou o sangue na boca, como se estivesse experimentando vinho.
   
— Bom — resmungou, lambendo os lábios. — É puro. Podemos usá-lo.
   
Ele encheu oito frascos, depois virou para mim e disse muito sério:
   
— Darren, sei que você reluta em tomar sangue humano, mas está na hora de se livrar desse medo.
   
— Não — disse eu, imediatamente.
   
— Ora, vamos, Darren — rosnou o Sr. Crepsley. — Esta pessoa está morta. O sangue não serve mais para ele.
   
— Não posso. Não de um cadáver.
   
— Mas você não quer tomar de uma pessoa viva! — explodiu o Sr. Crepsley. — Vai ter de tomar sangue humano em algum momento. Este é o melhor modo de começar.
   
— Bem, escutem — disse Jimmy. — Se vocês vão se alimentar, acho melhor eu sair...
   
— Silêncio! — o Sr. Crepsley exclamou asperamente. Seus olhos pareciam me queimar. — Você tem de beber — disse ele com firmeza. — Você é assistente de vampiro. Está na hora de se comportar como deve.
   
— Não esta noite — implorei. — Outro dia. Quando sairmos para caçar, de uma pessoa viva. Não posso tomar sangue de um cadáver. É nojento.
   
O Sr. Crepsley suspirou e balançou a cabeça.
   
— Uma noite dessas vai compreender como está sendo tolo — disse. — Só espero que, quando esse momento chegar, não seja tarde demais.
   
O Sr. Crepsley agradeceu a Jimmy Ovo pela ajuda e os dois começaram a falar sobre o passado e seus antigos amigos. Sentei, calado, enquanto eles falavam, sentindo-me péssimo, imaginando por quanto tempo ainda eu podia viver sem sangue humano.
   
Quando terminaram, descemos a escada. Jimmy acompanhou-nos e se despediu de nós. Era um homem amável e eu lamentei que tivéssemos nos conhecido naquelas circunstâncias sombrias.
   
O Sr. Crepsley não falou durante toda a viagem de volta e, quando chegamos ao Circo, zangado, me jogou para o lado e apontou um dedo para mim.
   
— Se você morrer, a culpa não é minha — avisou ele.
   
— Tudo bem — respondi.
   
— Garoto burro — resmungou, e saiu furioso, dirigindo-se para seu caixão.
   
Fiquei acordado um pouco mais e vi o sol nascer. Pensei muito sobre minha situação e no que aconteceria quando minhas forças diminuíssem e eu começasse a morrer. Um meiovampiro que não tomava sangue: seria engraçado, se não fosse tão mortal.
   
O que eu ia fazer? Essa pergunta me manteve acordado até muito depois de o sol nascer. O que ia fazer? Abandonar meus princípios e tomar sangue humano? Ou ser fiel à minha humanidade e... morrer?
 
   
 CAPÍTULO VINTE
   
 
   
 
    Passei a maior parte do dia na minha barraca e nem fui falar com Sam quando ele apareceu. Eu estava no pior estado de espírito. Sentia que não pertencia mais a lugar algum. Não podia ser humano e não queria ser um vampiro. Estava dividido entre os dois.
   
Dormi bastante naquela noite e no dia seguinte me senti melhor. O sol estava brilhando e, embora meus problemas não tivessem sido resolvidos, eu podia deixá-los de lado, por enquanto.
   
A serpente de Ofídio não estava bem. Estava com uma virose e Ofídio precisava cuidar dela.
   
Quando Sam apareceu, resolvemos visitar a velha estação de trens deserta. Ofídio não se importou de ficar no acampamento. Iria conosco outro dia.
   
A estação de trens era legal. Havia um grande pátio circular, calçado com pedras quebradas, uma casa de três andares, que antigamente era a casa do guarda, alguns galpões velhos e vários vagões abandonados. Tinha também trilhos por toda parte, cobertos de mato e de relva.
   
Sam e eu andamos em alguns trilhos fingindo que estávamos em cordas bambas, muito acima do chão. Cada vez que um de nós escorregava, tinha de gritar e fingir que caía pesadamente no chão. Eu era muito melhor nesse jogo do que Sam, porque os poderes de vampiro faziam com que meu equilíbrio fosse melhor que o de qualquer ser humano.
   
Exploramos alguns vagões. Dois pareciam muito depredados, mas a maior parte estava em boas condições. Eu não podia entender por que foram deixados ali para apodrecer.
   
Subimos no telhado de um deles e nos deitamos para aproveitar o sol.
   
— Sabe o que devíamos fazer? — disse Sam, depois de algum tempo.
   
— O quê?
   
— Nos tornar irmãos de sangue.
   
Ergui o corpo apoiado em um cotovelo e olhei para ele.
   
— Irmãos de sangue? — perguntei. — Para quê? E como se faz?
   
— Vai ser divertido — disse ele. — Cada um faz um pequeno corte na própria mão, depois juntamos as mãos e juramos que seremos os melhores amigos a vida inteira.
   
— Parece legal — concordei. — Você tem uma faca?
   
— Podemos usar um pedaço de vidro — disse Sam. Escorregou para a beirada do teto do vagão e tirou um pedaço de vidro de uma das janelas. Fez um pequeno corte na parte mais grossa da sua palma e me entregou o vidro.
   
Eu já ia cortar a palma da mão quando me lembrei do sangue de vampiro em minhas veias. Não acreditava que só um pouco pudesse fazer mal a Sam, mas assim mesmo...
   
Abaixei o pedaço de vidro e balancei a cabeça.
   
— Não — disse eu. — Não quero mais fazer isso.
   
— Ora, vamos — insistiu Sam. — Não precisa ter medo. É só um pequeno corte.
   
— Não — disse eu outra vez.
   
— Covarde! — caçoou ele. — Você está com medo. Medroso! Covarde! Galinha-morta! — começou a cantar. — Covarde, covarde, galinha-morta.
   
— Está bem, sou covarde — disse eu, rindo. Era mais fácil mentir do que dizer a verdade. — Todo mundo tem medo de alguma coisa. Não vi você sair correndo para lavar o Homem Lobo naquele dia.
   
— Isso é diferente — disse Sam, desapontado.
   
— Cada um sabe onde lhe dói o sapato — disse eu, como quem sabe das coisas.
   
— O que quer dizer com isso? — perguntou ele.
   
— Não tenho certeza — admiti. — É uma coisa que meu pai costumava dizer.
   
Fizemos mais brincadeiras com o assunto, depois descemos e atravessamos o pátio para a casa do guarda. As portas tinham apodrecido havia muitos anos e a maior parte dos vidros das janelas estava em pedaços, no chão. Passamos por algumas salas pequenas e chegamos a uma maior, que fora a sala de estar.
   
Evitamos cuidadosamente um enorme buraco no centro da sala.
   
— Olhe para cima — disse Sam.
   
Olhei e vi o telhado. Os andares do meio tinham caído e tudo que sobrou deles eram os cantos com arestas afiadas. Eu podia ver o sol atravessando vários buracos no telhado.
   
— Venha comigo — disse Sam, e me levou até uma escada, num canto da sala. Começou a subir. Acompanhei-o devagar, achando que aquilo não era prudente — os degraus rangiam e pareciam prestes a desmoronar —, mas não queria ser chamado de covarde duas vezes no mesmo dia.
   
Paramos no terceiro andar, onde a escada acabava. Era possível tocar o telhado com a mão e foi o que fizemos.
   
— Podemos subir no telhado? — perguntei.
   
— Podemos — disse Sam — mas é muito perigoso. As telhas estão soltas. A gente pode escorregar. Mas tem uma coisa melhor do que o telhado.
   
Ele começou a andar no lado do quarto mais alto da casa, numa saliência com mais ou menos meio metro em toda a extensão, e eu o segui, andando encostado na parede, para não correr nenhum risco.
   
— Este pedaço de chão não vai desmoronar, não é? — perguntei, nervoso.
   
— Nunca desmoronou antes — respondeu Sam. — Mas para tudo há uma primeira vez.
   
— Obrigado por me tranquilizar — resmunguei.
   
Sam parou um pouco adiante. Estiquei o pescoço para ver além dele e notei que tínhamos chegado a um conjunto de vigas. Eram seis ou sete longos pedaços de madeira que iam de um lado ao outro da sala.
   
— Aqui era o sótão — explicou Sam.
   
— Imaginei isso — disse eu.
   
Ele olhou para mim com um largo sorriso.
   
— Mas pode adivinhar o que vamos fazer agora?
   
Olhei para ele, depois para as vigas.
   
— Não vai me dizer que... Você vai andar nelas, certo?
   
— Certo — disse ele, e pôs o pé esquerdo na viga.
   
— Sam, não é uma boa ideia — disse eu. — Você me pareceu pouco firme nos trilhos. Se tropeçar aqui...
   
— Não vou tropeçar — disse ele. — Lá embaixo eu estava só fingindo.
   
Pôs o outro pé na viga de madeira e começou a andar. Ia devagar, com os braços abertos. Eu estava com o coração na boca, certo de que Sam ia cair. Olhei para baixo e tive certeza de que ele não sobreviveria, se caísse. Eram quatro andares, incluindo o porão. Uma longa queda. Uma queda mortal.
   
Mas Sam chegou a salvo no outro lado, voltou-se e fez uma mesura.
   
— Você é doido! — gritei.
   
— Não — disse ele —, apenas corajoso. E você? Não quer arriscar? Vai ser mais fácil do que para mim.
   
— Por que diz isso? — perguntei.
   
— Mesmo as galinhas-mortas têm asas! — gritou ele.
   
Isso foi o bastante! Eu mostraria a ele!
   
Respirei fundo, e comecei a andar, movimentando-me mais depressa do que Sam, fazendo uso completo das minhas habilidades de vampiro. Não olhei para baixo e tentei não pensar no que estava fazendo, e em poucos segundos eu estava ao lado de Sam.
   
— Nossa! — ele estava impressionado. — Não pensei que fosse capaz. Pelo menos não tão depressa.
   
— Você não viaja com o Circo sem aprender alguns truques — disse eu, vaidoso.
   
— Acha que eu posso atravessar assim depressa?
   
— Se eu fosse você, não tentaria — aconselhei.
   
— Aposto que você não é capaz de fazer outra vez — desafiou-me.
   
— Pois então, veja — disse eu, e voltei pela viga, mais depressa ainda.
   
Divertimo-nos durante um minuto, atravessando de um lado para o outro, um de cada vez. Depois, fomos juntos, cada um em uma viga, gritando e rindo.
   
Sam parou no meio da viga e virou para olhar para mim.
   
— Ei! — gritou. — Vamos brincar de espelho.
   
— Como é isso? — perguntei.
   
— Eu faço uma coisa e você tem de imitar — balançou a mão esquerda acima da cabeça. — Como isto.
   
— Ah! — disse eu, e sacudi a mão. — Tudo bem. Desde que você não salte para a morte. Isso não vou imitar.
   
Ele riu e fez uma careta. Fiz também. Então, bem devagar, ele ficou em uma perna só. Imitei. Em seguida se inclinou e tocou os dedos dos pés. Segui o exemplo. Mal podia esperar a minha vez de dar as ordens. Faria certas coisas — como pular de uma viga para a outra — que ele não podia fazer. Pela primeira vez fiquei contente por ter sangue de vampiro.
   
Naturalmente, foi nesse momento que o sangue se foi e me deixou na mão.
   
Não houve nenhum aviso. Num momento eu estava começando a erguer o corpo, depois de tocar os pés com as pontas dos dedos. No outro, minha cabeça estava girando, meus braços batendo como asas e minhas pernas tremendo.
   
Não foi a primeira vez. Eu vinha tendo tonturas havia algum tempo, mas não dei atenção, apenas me sentava e esperava passar. Dessa vez foi diferente. Eu estava no alto de quatro andares. Não tinha onde sentar.
   
Tentei me abaixar, pensando que podia segurar na viga e me arrastar para um lugar seguro. Mas, antes que tivesse tempo, meus pés escorregaram e... caí!
 
   
 CAPÍTULO VINTE E UM
   
 
   
 
    Embora meu sangue de vampiro fosse responsável pelo acidente nas vigas, foi também o que salvou minha vida.
   
Quando caí, estendi o braço — mais com esperança do que qualquer outra coisa — e consegui segurar a viga. Se eu fosse um ser humano comum, não teria força para firmar a mão. Mas eu não era comum. Eu era um meio-vampiro. E, mesmo ainda atordoado, consegui segurar e ficar dependurado.
   
Balancei acima da queda de quatro andares, olhos fechados, segurando a viga com os dedos finos.
   
— Darren! Segura firme! — gritou Sam. Ele não precisava me dizer isso — eu nem pensava em largar! — Estou indo — disse Sam. — Chego aí o mais depressa possível. Não largue. E não entre em pânico.
   
Ele continuou a falar, enquanto passava de uma viga para outra, indo na minha direção, me acalmando, dizendo que tudo ia ficar bem, que ele ia me salvar, que eu devia relaxar, que tudo estava bem.
   
Suas palavras ajudaram. Deram-me algo para pensar além da queda. Se não fosse por Sam, eu teria morrido.
   
Senti quando ele chegou à minha viga. A madeira rangeu e, por um terrível momento, pensei que fosse quebrar com o peso dele e mandar nós dois voando para a morte. Mas a viga aguentou e ele chegou onde eu estava, deitou de bruços rápida e cuidadosamente.
   
Sam parou quando me alcançou.
   
— Agora — disse ele. — Vou segurar seu pulso com minha mão direita. Vou fazer isso devagar. Não se mexa, enquanto eu estiver segurando, e não procure me agarrar com a outra mão. Certo?
   
— Certo — disse eu.
   
Senti sua mão se fechar em volta do meu pulso.
   
— Não solte a viga — disse ele.
   
— Não vou soltar — prometi.
   
— Não tenho força para puxar você para cima — disse ele —, por isso vou balançar seu corpo de um lado para o outro. Estenda o braço livre. Quando puder, tente agarrar a viga. Se não conseguir, não entre em pânico. Ainda estarei segurando você. Se conseguir, pare por alguns segundos para dar ao seu corpo a chance de relaxar. Então, podemos puxar você para cima. Entendeu?
   
— Entendi, capitão — disse eu, com um sorriso nervoso.
   
— Muito bem. Lá vamos nós. E lembre, tudo vai dar certo. Vai funcionar. Você
sobreviverá.
   
Ele começou a me balançar, de leve, no começo, depois com um pouco mais de força. Minha vontade era agarrar a viga depois dos primeiros movimentos, mas me obriguei a esperar. Quando senti que o movimento me levava a uma boa altura, estendi os dedos, concentrei a atenção na estreita viga de madeira e agarrei.
   
Consegui!
   
Então relaxei um pouco e descansei os músculos do braço direito.
   
— Acha que está pronto para ser puxado para cima? — perguntou Sam.
   
— Estou.
   
— Eu o ajudo a erguer a parte superior do corpo — disse ele. — Quando sua barriga estiver a salvo em cima da viga, eu me afasto e dou espaço para você suspender as pernas.
   
Sam segurou com a mão direita as golas da minha camisa e do paletó — para o caso de eu escorregar — e me ajudou a subir na viga.
   
Esfolei o peito e a barriga na viga mas ignorei a dor. Na verdade, até gostei. Era sinal de que estava vivo.
   
Quando eu estava a salvo, Sam recuou e suspendi as pernas. Eu me arrastei atrás dele, mais devagar do que precisava. Quando cheguei à plataforma lateral, fiquei agachado e só me levantei quando chegamos à escada. Então, encostei na parede e dei um longo e trêmulo suspiro de alívio.
   
— Nossa — disse Sam, à minha esquerda. — Foi divertido! Quer fazer outra vez?
   
Acho que ele estava brincando.
 
   
CAPÍTULO VINTE E DOIS
   
 
   
 
    Mais tarde, depois que subi cambaleante a escada — minha noção de equilíbrio era ainda precária, mas estava melhor —, voltamos para os vagões e descansamos na sombra de um deles.
   
— Você salvou minha vida — disse eu, em voz baixa.
   
— Não foi nada — disse Sam. — Você teria feito o mesmo por mim.
   
— Provavelmente — disse eu. — Mas não fui chamado para ajudar. Não fui eu que tive de usar a cabeça e agir friamente. Você me salvou, Sam. Devo minha vida a você.
   
— Fique com ela — riu. — O que eu ia fazer com sua vida?
   
— Falo sério, Sam. Devo a você. Qualquer coisa que você queira ou precise, é só pedir que moverei o céu e a terra para conseguir.
   
— Sério mesmo?
   
— Eu juro.
   
— Tem uma coisa — disse ele.
   
— Diga.
   
— Quero entrar para o Circo dos Horrores.
   
— Saaaammmm... — gemi.
   
— Você perguntou o que eu queria e estou dizendo — respondeu.
   
— Não é tão fácil assim — protestei.
   
— Sim, é — disse ele. — Você pode falar com o dono e me recomendar. Ora, vamos, Darren, você estava falando sério ou não?
   
— Tudo bem — suspirei. — Vou falar com o Sr. Altão.
   
— Quando?
   
— Hoje — prometi. — Assim que chegarmos ao acampamento.
   
— Ótimo — Sam deu um soco no ar, feliz.
   
— Mas se ele disser não, é fim de papo, certo? Vou fazer o possível, mas se o Sr. Altão disser não, isso significa não.
   
— Claro — disse Sam. — Para mim está ótimo.
   
— Talvez haja um emprego para mim também — disse uma voz atrás de mim.
   
Virei rapidamente e lá estava C.C. sorrindo de modo estranho.
   
— Não devia assustar as pessoas desse jeito — disse eu, secamente. — Quase me matou de susto.
   
— Desculpe, cara — disse C.C., mas não parecia muito arrependido.
   
— O que está fazendo aqui? — perguntou Sam.
   
— Estava procurando Darren — disse C.C. — Não tive oportunidade de agradecer a ele a entrada para o espetáculo.
   
— Tudo bem — disse eu. — Sinto não ter falado com você quando terminou, mas tive de tratar de outras coisas.
   
— Claro — disse C.C., sentando no trilho, ao meu lado. — Compreendo isso. Um espetáculo daquele deve dar muito trabalho, certo? Aposto que o mantém muito ocupado, certo, cara?
   
— Certo — disse.
   
C.C. sorriu radiantemente para nós dois. Alguma coisa no seu sorriso me pareceu estranha. Não era um sorriso agradável.
   
— Diga-me — perguntou C.C. —, como vai o Homem Lobo?
   
— Vai bem — disse eu.
   
— Ele fica acorrentado o tempo todo, não é? — perguntou C.C.
   
— Não — lembrei-me do aviso de Ofídio.
   
— Não? — C.C. fingiu surpresa. — Um animal selvagem como aquele, e perigoso, não fica preso?
   
— Na verdade, ele não é perigoso — disse eu. — É só uma representação. O Homem Lobo é muito manso — C.C. olhava atentamente para mim. Ele sabia como o Homem Lobo era selvagem e não podia compreender por que eu estava mentindo.
   
— Diga-me, cara, o que uma criatura como aquela come? — perguntou C.C.
   
— Carne de vaca. Costeletas de porco. Salsichas — continuei com um riso forçado. — Comida comum. Tudo comprado nos mercados.
   
— É mesmo? E a cabra que a aranha matou? Quem come a cabra?
   
— Eu não sei.
   
— Ofídio disse que vocês dois compraram a cabra de um fazendeiro local. Foi muito cara?
   
— Na verdade, não — disse eu. — Ela estava muito doente, por isso...
   
Parei de falar. Ofídio tinha dito a C.C. que compramos a cabra de um açougueiro, não de um fazendeiro.
   
— Estive fazendo umas investigações, cara — disse C.C., suavemente. — Todos no campo estavam ocupados com as preparações da viagem, mas andei um pouco por lá, contando ovelhas e vacas, fazendo perguntas, desenterrando ossos.
   
— Animais têm desaparecido — continuou C.C. — Os fazendeiros não estão dando muita importância — eles não se preocupam se uma ou duas cabeças desaparecem — mas o fato me
atraiu. Quem você acha que está roubando os animais, cara?
   
Não respondi.
   
— Outra coisa — disse ele. — Eu estava andando na margem do rio, perto do qual vocês estão acampados, e sabe o que encontrei rio abaixo? Uma porção de pedaços de ossos, de pele e de carne. De onde acha que podem ter vindo, Darren?
   
— Eu não sei — disse e me levantei. — Preciso ir agora. O pessoal está me esperando no Circo. Há trabalho para ser feito.
   
— Não deixe que eu o prenda — sorriu C.C.
   
— Quando vocês vão levantar acampamento? — perguntei. — Posso aparecer para me despedir.
   
— Muita bondade sua — disse C.C. —, mas não se preocupe, cara. Eu não vou a lugar nenhum tão cedo.
   
Perguntei, intrigado:
   
— Pensei que tinha dito que estavam de partida.
   
— Os PNs estão de partida — disse ele. — Na verdade, já partiram ontem à noitinha — sorriu friamente. — Mas eu vou ficar um pouco mais. Preciso verificar algumas coisas.
   
— Ah. — Praguejando mentalmente, fingi satisfação. — Boa notícia. A gente se vê.
   
— Oh, sim — disse C.C. — Vamos nos ver por aí, cara. Pode estar certo disso. Você vai me ver muito ainda.
   
Com um sorriso forçado, eu disse:
   
— Até logo, por enquanto.
   
— Até logo — respondeu C.C.
   
— Espere — exclamou Sam. — Vou com você.
   
— Não — disse eu. — Apareça amanhã que terei a resposta do Sr. Altão. Tchau.
   
Saí antes que um dos dois tivesse tempo de dizer mais alguma coisa.
   
O interesse de C.C. no desaparecimento dos animais me preocupou a princípio mas, andando de volta para o acampamento, comecei a relaxar. No fim das contas, ele não passava de um ser humano cabeludo e inofensivo, ao passo que nós, do Circo dos Horrores, éramos seres estranhos e poderosos. O que ele podia fazer para nos prejudicar?
 
   
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
   
 
   
 
    Eu pretendia ir direto à van do Sr. Altão, avisar sobre C.C., mas assim que cheguei, Truska — a incrível mulher capaz de fazer crescer a barba quando queria — segurou meu braço e fez sinal para que eu a seguisse.
   
Truska me levou até sua barraca. Era mais rebuscada do que a maioria das outras barracas e vans. As paredes eram cobertas com espelhos e quadros. Havia enormes guardaroupas e penteadeiras e uma imensa cama com dossel.
   
Truska disse alguma coisa com sua voz estranha de foca, depois me pôs no centro da barraca e, com sinais, me mandou ficar imóvel. Apanhou uma fita métrica e mediu meu corpo.
   
Quando terminou, ela franziu os lábios, pensou por alguns segundos, então estalou os dedos e foi apressadamente até um dos guarda-roupas. Procurou e apareceu com uma calça. Encontrou uma camisa em outro guarda-roupa, um paletó em outro e um par de sapatos numa arca grande. Deixou que eu escolhesse um colete, cuecas e meias em uma das gavetas da penteadeira.
   
Fui para trás de um biombo de seda para me vestir. Ofídio devia ter dito a ela que eu pretendia arranjar roupas novas. Ainda bem, pois provavelmente eu continuaria a me esquecer.
   
Truska bateu palmas quando saí de trás do biombo e me empurrou para a frente do espelho. A roupa servia perfeitamente e, para minha surpresa, eu estava superlegal! A camisa era verde-clara, a calça púrpura, o paletó dourado e azul. Truska encontrou uma longa tira de cetim vermelho, enrolou na minha cintura, e isso completou o quadro. Eu parecia um pirata!
   
— Isso é formidável! — exclamei. — O único problema — apontei para meus pés — é que os sapatos são um pouco apertados.
   
Truska levou de volta os sapatos e encontrou um novo par. Era mais macio do que o primeiro, com as pontas viradas para cima, como os de Simbad, o Marujo. Eu adorei.
   
— Obrigado, Truska — disse eu ao sair da barraca. Ela levantou a mão e eu parei. Truska levou uma cadeira para perto de um dos guarda-roupas mais altos, subiu e apanhou uma caixa grande, redonda. Pôs a caixa no chão, abriu e tirou um pequeno chapéu marrom com uma pena, como o que Robin Hood devia usar.
   
Antes que eu pusesse o chapéu na cabeça, ela me fez sentar, apanhou uma tesoura e cortou meu cabelo, que precisava ser cortado urgentemente.
   
O corte de cabelo e o chapéu foram a cobertura do bolo. Quase não me reconheci no espelho, dessa vez.
   
— Oh, Truska — disse eu. — Eu... eu. — Não conseguia encontrar as palavras, por isso abracei-a com força e dei-lhe um beijo molhado. Soltei-a, embaraçado, satisfeito por nenhum dos meus amigos estar por perto para ver, mas Truska ficou radiante.
   
Saí correndo para mostrar a Ofídio minha nova aparência. Ele achou a roupa bonita, mas jurou que não tinha pedido a Truska para me ajudar. Disse que ela devia ter ficado farta de me ver tão malvestido, ou então o Sr. Crepsley pediu a ela para me arranjar novas roupas, ou então, ainda, porque estava apaixonada por mim.
   
— Ela não está apaixonada por mim! — gritei.
   
— Truska ama Darren — cantou. — Truska ama Darren.
   
— Ora, cale essa boca, seu réptil pegajoso — rosnei.
   
Ofídio riu, nem um pouco ofendido.
   
— Darren e Truska sentados em uma árvore — cantou —, b-e-ij-a-n-d-o-s-e. Primeiro vem o amor, depois vem o casamento, depois vem Darren com a carruagem de vampiro.
   
Com um rugido, pulei em cima dele, derrubei-o e só soltei quando ele pediu arrego.
   
Quando terminamos, Ofídio voltou a cuidar da serpente, e eu saí para fazer as tarefas do dia. Estava muito sobrecarregado porque precisava substituir Ofídio e fazer o trabalho de dois. Com todo aquele vaivém e o entusiasmo com a nova roupa, esqueci completamente de C.C. e de contar ao Sr. Altão sobre os guerreiros ecológicos que ameaçavam investigar o desaparecimento dos animais.
   
Se eu não fosse tão esquecido, talvez as coisas tomassem outro rumo e nossa estada não teria acabado em sangue e lágrimas.
 
   
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
   
 
   
 
    Quando chegou a noite, eu estava caindo de cansaço. A atividade me deixara esgotado. Ofídio tinha me avisado para não dormir na barraca naquela noite. Sua serpente estava irritada por causa do vírus e podia me atacar. Fui para a barraca do Sr. Crepsley e arrumei minha cama no chão, ao lado da gaiola de Madame Octa.
   
Poucos minutos depois de me deitar, o sono chegou.
   
Um pouco mais tarde, quando eu estava sonhando, alguma coisa apertou minha garganta. Engasguei, tossi e acordei.
   
Vi um vulto acima de mim levantando um pequeno frasco à minha boca, tentando me obrigar a beber. Meu primeiro pensamento apavorado foi: “É o Sr. Tino!”
   
Mordi o frasco, cortei os lábios e derramei a maior parte do líquido em cima de mim. O homem praguejou, agarrou meu queixo e abriu minhas gengivas à força. Tentou derramar o que restava na minha boca aberta, mas eu cuspi.
   
O homem praguejou outra vez, me soltou e recuou. Quando as batidas do meu coração lentamente voltaram ao normal, vi que não era o Sr. Tino.
   
Era o Sr. Crepsley.
   
— Que diabo está querendo lazer? — gritei, furioso. Estava zangado demais para sentir a dor nos lábios feridos.
   
Ele me mostrou o resto do pequeno frasco... um dos que ele usava para guardar sangue humano.
   
— Você estava tentando me fazer beber! — disse eu, incrédulo.
   
— Você tem de beber — disse o Sr. Crepsley. — Está enfraquecendo, Darren. Se continuar assim, estará morto em uma semana. Se não tem coragem para tomar, vai ter de ser à força.
   
Olhei para ele, tremendo de raiva. Embaraçado, ele desviou os olhos.
   
— Eu estava tentando ajudar — disse ele.
   
— Se fizer isso outra vez — disse eu, devagar —, eu o mato. Espero até o dia nascer e corto sua cabeça.
   
Ele viu que eu falava sério, e assentiu tristemente.
   
— Nunca mais — concordou. — Eu sabia que não ia funcionar, mas tinha de tentar. Se você tivesse engolido nem que fosse um pouco, ia ajudar a se manter por mais algum tempo e, quando sentisse o gosto, podia não ter tanto medo de tomar outra vez.
   
— Nunca vou experimentar! — rugi. — Não vou tomar sangue humano. Não me importo de morrer. Não vou tomar.
   
— Muito bem — suspirou ele. — Fiz o que pude. Se você insiste em ser burro, a culpa é toda sua.
   
— Não estou sendo burro... Estou sendo humano — resmunguei.
   
— Mas você não é humano — disse ele, suavemente.
   
— Eu sei. Mas quero ser. Quero ser como Sam. Quero uma família e amigos normais. Quero envelhecer como os seres humanos. Não quero passar a vida tomando sangue e me alimentando de seres humanos, me preocupando com a luz do sol e com os caçadores de vampiros.
   
— É uma pena — disse o Sr. Crepsley. — Foram as cartas que você recebeu.
   
— Eu o odeio — rosnei.
   
— É pena — disse ele outra vez. — Está preso a mim. Se serve de consolo — acrescentou —, eu também não gosto muito de você. Transformá-lo em um meio-vampiro foi o pior erro da minha vida.
   
— Então, por que não me liberta? — choraminguei.
   
— Não posso — disse ele. — Libertaria se pudesse. É claro que tem liberdade para ir embora quando quiser.
   
Olhei para ele, desconfiado.
   
— De verdade? — perguntei.
   
— De verdade. Eu não me importo. Para ser franco, eu preferia que você fosse. Assim não seria mais minha responsabilidade. Eu não precisaria ver você morrer.
   
Balancei a cabeça devagar.
   
— Eu não compreendo você — disse eu.
   
Ele sorriu, quase com ternura.
   
— Também não compreendo você.
   
Rimos um pouco e as coisas voltaram ao normal. Não gostei do que o Sr. Crepsley tentou fazer, mas compreendi por que ele tinha feito. Não se pode odiar de verdade alguém que age sinceramente no nosso interesse.
   
Contei a ele o que eu tinha feito nesse dia, da visita à velha estação e como Sam salvou a minha vida. Contei também que quase tinha me tornado irmão de sangue de Sam.
   
— Ainda bem que você desistiu a tempo — disse o Sr. Crepsley.
   
— O que aconteceria se eu não desistisse?
   
— Seu sangue teria manchado o dele. Ele ia adquirir um gosto por carne crua. Ficaria rondando os açougues, olhando pelas janelas. Envelheceria um pouco mais devagar do que o normal. Não seria uma grande diferença, mas o suficiente.
   
— Suficiente para quê? — perguntei.
   
— Para enlouquecer — disse o Sr. Crepsley. — Ele não ia entender o que estava acontecendo. Ia pensar que era maligno. Não ia saber por que sua vida mudou. Dentro de dez anos ele seria uma completa ruína.
   
Estremeci, pensando em como estive perto de destruir a vida de Sam. Era exatamente por causa de coisas como essa que eu tinha de ficar com o Sr. Crepsley, até aprender tudo sobre ser um meio-vampiro.
   
— O que você acha de Sam? — perguntei.
   
— Não tenho estado muito com ele — disse o Sr. Crepsley. — Ele geralmente vem de dia. Mas parece um bom menino. Muito inteligente.
   
— Ele tem ajudado Ofídio e eu nas nossas tarefas.
   
— Eu sei.
   
— Ele sabe trabalhar.
   
— Foi o que ouvi dizer.
   
Molhei os lábios nervosamente.
   
— Ele quer se juntar ao Circo — disse eu. O Sr. Crepsley fechou a cara. — Eu ia pedir ao Sr. Altão, mas esqueci. Peço amanhã. O que acha que ele vai dizer?
   
— Vai dizer que você tem de pedir a mim. Crianças não podem entrar para o Circo dos Horrores a não ser que alguém do grupo concorde em ser seu guardião.
   
— Eu posso ser o guardião de Sam.
   
— Você não tem idade suficiente. Teria de ser eu. Eu teria de dar permissão. Mas não darei.
   
— Por quê?
   
— Por que é uma ideia maluca — disse ele. — Para mim, basta uma criança. De jeito nenhum vou me encarregar de outra. Além disso, ele é humano. Estou preso a você por causa do sangue de vampiro nas suas veias. Por que vou me enrolar mais por causa de um humano?
   
— Ele é meu amigo — disse eu. — Seria companhia para mim.
   
O Sr. Crepsley bufou com desdém.
   
— A companhia de Madame Octa é suficiente.
   
— Não é a mesma coisa — disse eu em tom lamentoso.
   
— Diga-me uma coisa — disse o Sr. Crepsley, pensativo. — O que acontecerá quando ele descobrir que você é um vampiro? Acha que vai compreender? Acha que vai dormir sossegado, sabendo que a coisa que seu melhor amigo deseja é abrir sua garganta e beber todo seu sangue?
   
— Eu não faria isso! — gritei.
   
— Eu sei — admitiu o Sr. Crepsley. — Mas eu sou um vampiro. Sei o que você é realmente. Como sabem o Sr. Altão, Ofídio e os outros. Mas como acha que um ser humano normal verá você?
   
Suspirei tristemente.
   
— Não vai permitir que ele se junte ao Circo?
   
O Sr. Crepsley começou a balançar a cabeça, então parou de repente e fez um gesto de assentimento.
   
— Muito bem — disse ele. — Sam pode entrar para o Circo.
   
— Pode? — Olhei para ele, chocado. Eu estava intercedendo por Sam, mas mesmo assim não acreditava que eles iam aceitar.
   
— Sim — disse o Sr. Crepsley. — Ele pode entrar para o Circo, viajar conosco e ajudar Ofídio e você nas suas tarefas. Mas com uma condição. — O Sr. Crepsley se aproximou de mim, com seu sorriso mais malvado. — Ele tem de se tornar um vampiro também! — sibilou.
 
   
CAPÍTULO VINTE E CINCO
   
 
   
 
    Com o coração pesado, vi Sam entrar no acampamento muito cedo na manhã seguinte. Eu detestei ter que desapontá-lo, mas sabia que precisava. De jeito nenhum eu deixaria o Sr. Crepsley transformar Sam em um vampiro.
   
Pensei muito durante a noite, e o que me assustava era saber que Sam aceitaria se tornar um meio-vampiro se eu apresentasse a ele essa opção. Por mais inteligente que fosse, eu acreditava que ele não ia pensar nem por um momento na solidão e no horror de ser um vampiro.
   
Correu para mim quando me viu, excitado demais para notar a mudança do meu vestuário e do corte de cabelo.
   
— Você pediu para ele? Pediu? — Seu rosto estava iluminado, cheio de esperança.
   
— Pedi — disse eu, com um sorriso tristonho.
   
— E então?
   
Sacudi a cabeça.
   
— Sinto muito, Sam. Ele disse não.
   
O rosto de Sam despencou alguns metros.
   
— Por quê?
   
— Você é muito novo — disse eu.
   
— Você não é muito mais velho — respondeu ele, agressivamente.
   
— Mas eu não tenho pais — menti. — Eu não tinha um lar quando entrei para o Circo.
   
— Eu não me importo com meus pais — fungou.
   
— Isso não é verdade — disse eu. — Você ia sentir saudade deles.
   
— Eu podia visitá-los nos feriados.
   
— Não ia funcionar. Você não foi feito para a vida do Circo dos Horrores. Talvez mais tarde, quando for mais velho.
   
— Não quero saber de mais tarde — gritou. — Quero entrar para o Circo agora. Eu trabalhei bastante. Provei o que posso fazer. Fiquei calado quando você mentiu para C.C.
sobre o Homem Lobo, ontem. Você contou isso para o Sr. Altão?
   
— Eu contei tudo para ele — suspirei.
   
— Não acredito em você — disse Sam. — Acho que nem falou com ele. Eu quero falar pessoalmente com o Sr. Altão.
   
Dei de ombros e apontei para a van do Sr. Altão.
   
— É lá que ele está — disse eu.
   
Sam começou a andar apressadamente, mas depois diminuiu o passo e parou. Escavou o chão com as pontas dos pés, furioso, depois voltou e sentou ao meu lado.
   
— Não é justo — resmungou. Eu via as lágrimas descendo no seu rosto. — Eu estava resolvido a entrar para o Circo. Ia ser ótimo. Tinha tudo planejado.
   
— Terá outras oportunidades — disse eu.
   
— Quando? Nunca ouvi falar de um show de horrores por aqui, antes. Quando vou encontrar vocês outra vez?
   
Não respondi.
   
— De qualquer modo, você não ia gostar — disse eu. — Não é tão divertido quanto pensa. Imagine levantar às cinco da manhã, em pleno inverno, se lavar com água gelada e trabalhar debaixo de tempestades de neve.
   
— Isso não me incomoda — insistiu Sam. Então as lágrimas secaram e, com um olhar astucioso, ele disse: — Quem sabe eu possa me juntar ao Circo. Quem sabe eu me esconda em uma das vans e me acomode com você. O Sr. Altão terá de me aceitar então.
   
— Não pode fazer isso! — disse eu, irritado. — Não deve!
   
— Faço se quiser — sorriu. — Não pode me impedir.
   
— Sim, eu posso — rosnei.
   
— Como? — disse ele, com desdém.
   
Respirei fundo. Estava na hora de assustar Sam Crespo para sempre. Não podia contar a verdade a meu respeito, mas podia inventar uma história quase tão assustadora, que certamente o faria fugir correndo.
   
— Eu nunca contei o que aconteceu com meus pais, não é, Sam? Ou como passei a fazer parte do espetáculo de horrores — mantive a voz baixa e firme.
   
— Não — disse Sam em voz baixa. — Eu sempre quis saber, mas não queria perguntar.
   
— Eu os matei, Sam.
   
— O quê? — ele ficou pálido de horror.
   
— As vezes eu enlouqueço. Como o Homem Lobo. Ninguém sabe quando vai acontecer, ou por que acontece. Estive no hospital quando era mais novo, mas parecia que eu estava melhorando. Meus pais me levaram para casa, no Natal. Depois do jantar, quando estava abrindo uma caixinha de surpresas com meu pai, eu surtei.
   
— Eu o fiz em pedaços. Mamãe tentou me arrancar de cima dele e eu a matei também. Minha irmã mais nova correu para ajudar e eu a apanhei. Eu a cortei pelo meio, como tinha cortado a caixinha de surpresas.
   
— Então, depois que os matei... — olhei nos olhos de Sam. Tinha de ser uma boa representação para que ele acreditasse: — Eu os comi.
   
Ele olhou para mim, apavorado.
   
— Isso não é verdade — disse ele. — Não pode ser.
   
— Eu os matei, os comi e fugi — menti. — Fui descoberto pelo Sr. Altão, que concordou em me esconder. Eles têm uma jaula especial feita para mim, quando enlouqueço. O problema é que ninguém sabe quando vai acontecer, por isso a maior parte deles me evita. Ofídio não tem problema, porque ele é forte. Assim como alguns outros artistas. Mas seres humanos comuns... posso matar num piscar de olhos.
   
— Está mentindo — disse Sam.
   
Apanhei um longo pedaço de pau, girei entre os dedos, depois o levei à boca e mordi como se fosse uma cenoura grande.
   
— Posso mastigar seus ossos e cuspir como farinha — disse eu para Sam. Cortei os lábios no graveto e o sangue me fazia parecer feroz. — Você não poderia me deter. Caso se juntasse a nós e fosse dormir na minha barraca, seria minha primeira vítima. Você não pode entrar para o Circo dos Horrores — continuei. — Eu gostaria que pudesse — eu queria ter um amigo —, mas não é possível. Eu acabaria matando você.
   
Sam tentou dizer alguma coisa mas não conseguiu mover os lábios. Ele acreditou na minha história fantástica. Tinha visto bastante do espetáculo para saber que aquilo podia acontecer.
   
— Vá embora, Sam — disse eu, tristemente. — Vá embora e nunca mais volte. É mais seguro assim. É melhor. Para nós dois.
   
— Darren, eu... eu... — balançou a cabeça, hesitante.
   
— Vá! — rugi e bati com as mãos no chão. Arreganhei os dentes e rosnei. Eu podia fazer com que minha voz soasse muito mais grossa do que a de um ser humano, como a de um animal selvagem.
   
Com um berro, Sam levantou-se de um salto e correu para o abrigo das árvores, sem olhar para trás nem uma vez.
   
Eu o vi partir, com o coração pesado, certo de que meu truque tinha funcionado. Ele jamais voltaria. Eu nunca mais o veria. Nossos caminhos separaram-se e jamais nos encontraríamos.
   
Se soubesse como estava errado — se tivesse ideia da noite terrível que nos esperava —, eu teria corrido com ele, para nunca mais voltar àquele abominável circo de sangue, aquele horrível circo da morte.
 
   
CAPÍTULO VINTE E SEIS
   
 
   
 
    Eu estava vagando, desanimado, pelo acampamento quando um dos Pequeninos bateu de leve nas minhas costas. Era o Pequenino manco.
   
— O que você quer? — perguntei.
   
O homenzinho — se é que era um homem — com o manto e o capuz azuis passou a mão na barriga. Era o sinal de que ele e seus irmãos estavam com fome.
   
— Vocês acabaram de tomar o café da manhã — disse eu.
   
Ele esfregou a barriga outra vez.
   
— É cedo demais para o almoço.
   
Ele tornou a passar a mão na barriga.
   
Eu sabia que aquilo podia continuar por horas, se eu deixasse. Ele me seguiria pacientemente, esfregando a barriga, até que eu concordasse em ir caçar para eles.
   
— Está bem — disse eu, irritado. — Vou ver o que posso encontrar. Mas hoje estou sozinho, por isso não vou voltar com um saco cheio.
   
Ele esfregou a barriga outra vez.
   
Eu bufei e saí para caçar.
   
Eu não devia ter ido. Sentia-me muito fraco. Podia ainda ser mais rápido do que um ser humano e mais forte do que a maioria dos garotos da minha idade, mas não tinha mais meus superpoderes nem minha força extra. O Sr. Crepsley tinha dito que eu estaria morto dentro de uma semana se não tomasse sangue humano e eu sabia que era verdade. Estava enfraquecendo rapidamente. Mais alguns dias e não seria capaz de levantar da cama.
   
Tentei apanhar um coelho mas não fui bastante rápido. O esforço de correr atrás dele me fez suar e tive de sentar por alguns minutos. Então saí à procura de animais mortos na estrada, mas não achei nenhum. Finalmente, porque eu estava cansado e com um pouco de medo do que aconteceria se voltasse ao acampamento com as mãos vazias (os Pequeninos podiam resolver me comer), fui para um campo cheio de ovelhas.
   
As ovelhas pastavam pacificamente quando cheguei. Estavam acostumadas com seres humanos e mal ergueram as cabeças quando entrei no campo e andei entre elas.
   
Eu procurava uma ovelha velha ou que parecesse doente. Assim não me sentiria tão mal por ter de matá-la. Por fim encontrei uma com pernas finas e trêmulas, que parecia atordoada, e resolvi que servia. De qualquer modo, não parecia ter muito tempo de vida.
   
Se tivesse todos os meus poderes, eu a teria matado imediatamente, sem dor, torcendo seu pescoço. Mas estava fraco e desajeitado, e não torci com força suficiente na primeira vez.
   
A ovelha começou a balir em agonia.
   
Tentou fugir, mas não tinha força nas pernas. Caiu no chão e ficou ali, balindo dolorosamente.
   
Tentei quebrar seu pescoço outra vez mas não consegui. No fim, apanhei uma pedra e acabei o trabalho. Era um modo horrível e descontrolado de matar um animal. Envergonhado, agarrei suas pernas traseiras e a arrastei para fora do campo.
   
Tinha quase chegado à cerca quando vi um homem sentado nela, à minha espera. Deixei cair a ovelha e olhei para cima, esperando ver um fazendeiro furioso.
   
Mas não era um fazendeiro.
   
Era C.C.
   
E ele estava danado como o diabo.
   
— Como pode fazer uma coisa dessas? — gritou. — Como pode matar um pobre animal inocente de modo tão cruel?
   
— Tentei matar rapidamente — disse eu. — Tentei quebrar seu pescoço, mas não consegui. Eu a teria deixado quando falhei, mas ela estava sentindo muita dor. Pensei que era melhor acabar com ela do que deixar que sofresse mais.
   
— Muito misericordioso da sua parte, cara — disse ele sarcasticamente. — Acha que vai ganhar o Prêmio Nobel da Paz por isso?
   
— Por favor, C.C. — disse eu. — Não fique zangado. Ela estava doente. O fazendeiro a teria matado, de qualquer modo. De qualquer modo acabaria sendo mandada para um açougue.
   
— Isso não quer dizer que o que você fez é certo — disse ele, aborrecido. — Só porque outras pessoas são malvadas não significa que você tem de ser malvado também.
   
— Matar animais não é ser malvado — disse eu. — Não quando é para comer.
   
— O que há de errado com os legumes? — perguntou. — Não precisamos comer carne, cara. Não precisamos matar.
   
— Alguns precisam de carne — discordei. — Alguns não podem viver sem ela.
   
— Pois então, devem morrer! — rugiu C.C. — Essas ovelhas nunca fizeram mal a ninguém. Na minha opinião, matar uma delas é pior do que matar um ser humano. Você é um assassino, Darren Shan.
   
Sacudi a cabeça tristemente. Não adiantava discutir com alguém tão teimoso. C.C. tinha seu modo de ver o mundo, e eu tinha o meu.
   
— Escute, C.C. — disse eu. — Eu não gosto de matar. Eu ficaria muito feliz se todo mundo fosse vegetariano. Mas não é assim. É um fato da vida que as pessoas comem carne. Só estou fazendo o que tenho de fazer.
   
— Muito bem, veremos o que a polícia tem a dizer sobre isso — disse C.C.
   
— A polícia? — perguntei, franzindo a testa. — O que a polícia tem a ver com isto?
   
— Você matou a ovelha de outra pessoa — riu implacavelmente. — Pensa que eles vão deixar você escapar dessa? Não vão prendê-lo por assassinar coelhos e raposas — o que é uma pena —, mas vão acusar você de matar uma ovelha. Vou fazer com que a polícia e os inspetores sanitários caiam em cima de você como uma tonelada de tijolos — disse ele, com um largo sorriso.
   
— Não vai fazer isso — disse eu, atônito. — Você não gosta da polícia. Está sempre lutando contra ela.
   
— Quando preciso — concordou. — Mas quando posso ter a polícia do meu lado... — riu outra vez. — Eles vão prender você primeiro, depois destruir seu acampamento. Estive observando o movimento. Vi como vocês tratam o pobre homem peludo.
   
— O Homem Lobo?
   
— Isso mesmo. Vocês o mantêm enjaulado como um animal.
   
— Ele é um animal — disse eu.
   
— Não — discordou C.C. — Você é o animal, cara.
   
— C.C., escute — disse eu. — Não precisamos ser inimigos. Volte ao acampamento comigo. Fale com o Sr. Altão e os outros. Veja como vivemos. Procure nos conhecer e compreender. Não há necessidade de...
   
— Guarde seu fôlego — disse ele, bruscamente. — Vou à polícia. Nada que você diga pode me deter.
   
Respirei fundo. Eu gostava de C.C., mas não podia permitir que ele destruísse o Circo dos Horrores.
   
— Muito bem — disse eu. — Se nada do que eu digo pode deter você, talvez responda a alguma coisa que eu faça.
   
Reunindo todas as forças que me restavam, joguei a ovelha morta em cima de C.C. O corpo do animal atingiu-o no peito e fez com que voasse de cima da cerca. Ele gritou de surpresa, depois de dor, quando aterrissou pesadamente no chão.
   
Pulei a cerca e estava em cima dele antes que C.C. tivesse tempo de se mover.
   
— Como fez isso, cara? — resfolegou.
   
— Não importa — disse eu, zangado.
   
— Garotos não podem atirar ovelhas — disse ele. — Como você...
   
— Cale a boca! — gritei, esbofeteando sua cara barbuda. C.C. olhou para mim, chocado. — Escute aqui, Chico Chicória — rosnei, usando o nome que ele detestava —, e escute com atenção. Você não vai à polícia nem ao pessoal da saúde. Porque, se for, a ovelha não será o único cadáver que vou arrastar para o Circo dos Horrores hoje.
   
— O que você é? — perguntou. Sua voz tremia e seus olhos estavam cheios de terror.
   
— Sou o seu fim se me trair — jurei, depois enfiei minhas unhas no chão, nos dois lados do rosto dele e apertei sua cabeça entre as mãos, o suficiente para que sentisse minha força.
   
— Saia daqui, Chico — disse eu. — Vá procurar seus amigos PNs. Limite-se a protestar contra novas estradas e novas pontes. Você está fora do seu território aqui. Eu e meus amigos do Circo somos diferentes e não obedecemos às mesmas leis que regem as outras pessoas. Compreendeu?
   
— Você é louco — disse ele, em voz baixa.
   
— Sim — disse eu. — Mas não tão louco como ficarei se você continuar por aqui e interferir.
   
Levantei e ajeitei a ovelha sobre os ombros.
   
— De qualquer modo, não adianta ir à polícia — disse eu. — Quando eles chegarem ao acampamento, esta ovelha terá desaparecido há muito tempo, com ossos e tudo.
   
“Você pode fazer o que quiser, C.C., ficar ou ir embora. Pode me denunciar à polícia ou ficar de boca fechada. Você escolhe. Tudo que tenho a dizer é isto. Para mim e para meus iguais, você não é diferente desta ovelha.”
   
Dei uma sacudidela no animal e disse:
   
— Para nós, matar você é o mesmo que matar um animal do campo.
   
— Você é um monstro — disse C.C., com voz entrecortada.
   
— Sim — concordei. — Mas sou apenas um bebê monstro. Devia ver como são os outros. — Sorri malevolamente para ele, detestando a mim mesmo por agir de modo tão cruel, mas sabendo que era como tinha de ser. — Até logo, Chico Chicória — disse eu, e fui embora.
   
Não olhei para trás. Não precisava. Podia ouvir os dentes apavorados dele batendo uns nos outros, até chegar ao acampamento.
 
   
CAPÍTULO VINTE E SETE
   
 
   
 
    Dessa vez fui direto ao Sr. Altão e contei tudo sobre C.C. Ele ouviu atentamente e disse:
   
— Você agiu bem.
   
— Fiz o que tinha de fazer — disse eu. — Não me orgulho disso. Não gosto de intimidar ou assustar as pessoas, mas não havia outro jeito.
   
— O certo teria sido matá-lo — disse o Sr. Altão. — Assim ele não poderia nos fazer nenhum mal nunca mais.
   
— Não sou assassino — disse eu.
   
— Eu sei — suspirou. — Eu também não sou. É pena que um dos Pequeninos não estivesse com você. Ele o teria decapitado sem pensar duas vezes.
   
— O que acha que devemos fazer? — perguntei.
   
— Não acredito que ele nos cause muitos problemas — disse o Sr. Altão, pensativo. — Pelo jeito está muito assustado para ir à polícia imediatamente. Mesmo que ele vá, não há nenhuma prova contra você. Seria uma complicação inoportuna, mas já tivemos muitos casos com a polícia no passado. Podemos lidar com isso.
   
“As autoridades sanitárias me preocupam mais. Podemos pegar a estrada e ficar fora do alcance, mas as pessoas do departamento da saúde costumam perseguir os outros como cães de caça, quando pegam o faro.”
   
— Partimos amanhã — resolveu ele. — Temos um espetáculo marcado para esta noite e detesto cancelar em cima da hora. Um inspetor sanitário não poderá chegar aqui antes da
madrugada, portanto levantaremos acampamento antes disso.
   
— Não está zangado comigo? — perguntei.
   
— Não. Não é a primeira vez que temos problemas com o público. Você não tem culpa.
   
Ajudei o Sr. Altão a avisar sobre nossa partida. Todos aceitaram bem. A maioria parecia satisfeita por ter sido avisada com tanta antecedência. Geralmente, tinham de levantar acampamento com uma ou duas horas de aviso.
   
Foi outro dia muito atarefado para mim. Além de me preparar para o espetáculo, tive de ajudar muitos a se preparar para partir. Ofereci-me para ajudar Truska a arrumar seus pertences, mas a barraca dela já estava vazia quando cheguei. Ela apenas deu uma piscadela quando perguntei como tinha arrumado tudo tão rapidamente.
   
Avisei o Sr. Crepsley da nossa partida ao nascer do dia, quando ele acordou. Ele não pareceu surpreso.
   
— Estamos há bastante tempo aqui — disse;
   
Pedi para ser dispensado do espetáculo daquela noite porque não me sentia bem.
   
— Vou me deitar cedo — disse eu — e dormir bastante.
   
— Não vai adiantar nada — avisou o Sr. Crepsley. — Só uma coisa vai fazer com que se sinta melhor e você sabe o que é.
   
O tempo passou e logo chegou a hora do espetáculo. Outra vez o Circo estava lotado. As estradas ficaram repletas de carros nas duas direções. Todos no Circo pareciam ocupados, preparando-se para entrar no palco, acomodando o público nas cadeiras, ou vendendo lembranças.
   
Os únicos dois que pareciam não ter nada para fazer éramos Ofídio e eu. Ele não ia atuar porque a serpente estava doente. Ofídio a deixou por alguns minutos para assistir ao começo do espetáculo. Ficamos de um lado do palco quando o Sr. Altão começou e apresentou o Homem Lobo.
   
Ficamos até o primeiro intervalo, depois saímos para olhar as estrelas.
   
— Vou sentir falta deste lugar quando partirmos — disse Ofídio. — Eu gosto do campo. Não se pode ver tão bem as estrelas na cidade.
   
— Eu não sabia que você se interessava por astronomia — disse eu.
   
— Não me interesso. Mas gosto de olhar as estrelas.
   
Fiquei tonto depois de algum tempo e tive de me sentar.
   
— Você não está se sentindo muito bem, não é? — perguntou Ofídio.
   
Com um esboço de sorriso respondi.
   
— Já estive melhor.
   
— Ainda não está tomando sangue humano? — Fiz que não com a cabeça. Ele sentou ao meu lado. — Você nunca me disse exatamente por que não quer — disse Ofídio. — Com certeza não pode ser muito diferente do sangue de animais.
   
— Eu não sei. E não quero descobrir — fiz uma pausa e continuei. — Infelizmente, se eu tomar sangue humano, estarei sendo malvado. O Sr. Crepsley diz que os vampiros não são malvados, mas eu acho que são. Acho que quem vê os seres humanos como animais tem de ser malvado.
   
— Mas se é para poder ficar vivo... — disse Ofídio.
   
— É assim que começa — disse eu. — Digo a mim mesmo que é para me manter vivo. Juro que nunca vou tomar mais do que preciso. Mas se eu não puder parar? Se não puder controlar a minha sede? E se eu matar alguém?
   
— Não acredito que possa — disse Ofídio. — Você não é malvado, Darren. Não acredito que uma boa pessoa possa fazer coisas más. Desde que trate o sangue humano como remédio, tudo estará bem.
   
— Talvez — disse eu, mas não acreditava. — De qualquer modo, por enquanto estou bem. Não preciso tomar uma decisão definitiva por mais alguns dias.
   
— Você prefere morrer a tomar sangue humano? — perguntou Ofídio.
   
— Não sei — respondi sinceramente.
   
— Eu ia sentir sua falta se você morresse — disse ele, tristemente.
   
— Bem — disse eu, um pouco embaraçado —, talvez não chegue a isso. Talvez haja outro modo de sobreviver, um modo que o Sr. Crepsley não quer me contar até não ter mais escolha.
   
Ofídio apenas resmungou. Ele sabia tão bem quanto eu que não havia outro modo.
   
— Vou ver a minha serpente — disse ele. — Quer vir e ficar um pouco comigo?
   
— Não. Acho melhor eu dormir um pouco. Temos de levantar cedo e estou exausto.
   
Dissemos boa noite e nos separamos. Não fui diretamente para a barraca do Sr. Crepsley, mas andei pelo acampamento, pensando na minha conversa com Ofídio, imaginando como seria morrer. Eu já estivera “morto” uma vez e enterrado, mas não era a mesma coisa. Se eu morresse de verdade, estaria morto para sempre. A vida acabaria, meu corpo ia se decompor e então...
   
Olhei para as estrelas. Será que era para lá que eu iria? Para o outro lado do universo? Para o Paraíso dos Vampiros?
   
Era um momento difícil. Quando eu morava em casa, quase não pensava na morte. Era uma coisa que só acontecia aos velhos. Agora ali estava eu, quase face a face com ela.
   
Se pelo menos alguém pudesse decidir por mim. Eu estaria me preocupando com a escola e jogando no time de futebol local, não pensando se devia ou não tomar sangue humano ou morrer. Não era justo! Eu era muito novo para isso. Eu não devia...
   
Vi um vulto passando na frente de uma barraca mas não dei muita importância. Só quando ouvi um estalo agudo tentei imaginar quem poderia ser. Ninguém devia estar ali fora. Todos os que estavam envolvidos com o espetáculo estavam sob a grande lona. Seria alguém da platéia?
   
Resolvi investigar.
   
Segui na direção do vulto. A noite estava escura e, depois de algumas voltas, não consegui mais saber para onde a sombra tinha ido. Estava para abandonar a busca quando ouvi outro estalo, mais perto dessa vez.
   
Olhei rapidamente em volta para ver onde eu estava e tive certeza. O som vinha da jaula do Homem Lobo!
   
Respirei fundo para acalmar os nervos e, juntando toda a coragem, corri para ver o que estava acontecendo.
 
   
 CAPÍTULO VINTE E OITO
   
 
   
 
    A relva úmida se dobrava sob meus pés, abafando o som dos passos. Quando cheguei à última carroça, antes da jaula do Homem Lobo, parei e escutei com atenção.
   
Ouvi um som leve e metálico, como se alguém estivesse sacudindo correntes pesadas.
   
Saí da proteção das sombras.
   
Havia luzes fracas nos dois lados da jaula, de modo que eu podia ver tudo detalhadamente. O Homem Lobo fora levado para a jaula depois do seu número, como todas as noites. Vi um pedaço de carne na jaula, que, normalmente, ele estaria comendo. Mas não nessa noite. Nessa noite ele prestava atenção a algo diferente.
   
Vi um homem grande na frente da jaula. Com um enorme alicate, ele havia cortado algumas das correntes que fechavam a porta.
   
O homem estava tentando desenrolar as correntes, mas sem muito sucesso. Ele praguejou em voz baixa e ergueu o alicate para cortar outro elo da corrente.
   
— O que está fazendo? — gritei.
   
O homem saltou para trás, assustado, deixou cair o alicate e virou rapidamente para mim.
   
Era C.C., como eu tinha imaginado.
   
A princípio, ele parecia culpado e assustado mas, quando viu que eu estava sozinho, criou coragem.
   
— Afaste-se! — avisou.
   
— O que está fazendo? — perguntei outra vez.
   
— Libertando esta pobre criatura maltratada — disse ele. — Eu não manteria o animal mais selvagem em uma jaula como esta. É desumano. Eu o estou libertando. Telefonei para a polícia — estarão aqui de manhã —, mas resolvi fazer alguma coisa sozinho antes disso.
   
— Não pode fazer isso! — disse eu. — Está louco. Esse cara é selvagem. Vai matar tudo num raio de cinco quilômetros, se o soltar.
   
— É o que você diz — zombou C.C. — Não acredito. Por experiência sei que os animais reagem de acordo com o modo como são tratados. Se você os trata como monstros, eles agirão como monstros. Se, por outro lado, o trata com respeito, amor e humanidade...
   
— Você não sabe o que está fazendo — disse eu. — O Homem Lobo não é como os outros animais. Saia daí antes de provocar uma verdadeira catástrofe. Podemos conversar a respeito. Podemos...
   
— Não! — gritou. — Eu já disse tudo que tinha para dizer!
   
Virou outra vez para as correntes e recomeçou a lutar com elas. Enfiou a mão na jaula e puxou as correntes mais fortes por entre as barras de ferro. O Homem Lobo o observava em silêncio.
   
— Pare, C.C.! — gritei e corri para evitar que ele abrisse a porta. Agarrei seus ombros e tentei puxá-lo para longe da jaula, mas não tive força. Dei alguns socos nas suas costelas, mas ele só rosnou e continuou a tentar abrir a porta.
   
Tentei segurar suas mãos, tirá-las da corrente, mas as barras de ferro não permitiram.
   
— Deixe-me em paz! — gritou C.C. Virou a cabeça para falar comigo. Seu olhar era selvagem. — Não vai me impedir — berrou. — Não vai impedir que eu cumpra meu dever. Vou libertar esta vítima. Vou fazer justiça. Vou...
   
Parou de esbravejar de repente. Ficou mortalmente pálido, todo seu corpo estremeceu, depois ficou rígido.
   
Ouvi um som de alguma coisa sendo amassada, mastigada, rasgada e, quando olhei para dentro da jaula, vi que o Homem Lobo tinha atacado.
   
Saltou para a frente da jaula, enquanto falávamos, agarrou os dois braços de C.C., enfiou na boca e os arrancou até abaixo dos cotovelos!
   
C.C. afastou-se da jaula, chocado. Ergueu os braços amputados e olhou para o sangue que jorrava dos buracos abaixo dos cotovelos.
   
Tentei arrancar as partes inferiores dos braços da boca do Homem Lobo — se eu conseguisse, podiam ser recolocados no lugar — mas ele se moveu rápido demais, saltou para trás, fora de alcance e começou a mastigar. Em poucos segundos, os braços eram uma pasta e eu sabia que nunca mais serviriam para nada.
   
— Onde estão minhas mãos? — perguntou C.C.
   
Voltei minha atenção para o homem barbado. Ele olhava de modo estranho para os cotos dos braços, ainda não sentindo a dor que certamente sentiria.
   
— Onde estão minhas mãos? — perguntou C.C. — Elas desapareceram. Estavam aqui há um minuto. De onde vem todo este sangue? Por que posso ver o osso debaixo da minha pele?
   
— Onde estão minhas mãos? — gritou, a plenos pulmões.
   
— Você tem de vir comigo — disse eu, aproximando-me. — Temos de tratar dos seus braços antes que sangre até morrer.
   
— Fique longe de mim! — gritou C.C. Tentou levantar a mão para me empurrar, então lembrou que não tinha mais mãos.
   
— Você é responsável por isto! — gritou ele. — Você fez isto!
   
— Não, C.C. Foi o Homem Lobo — disse eu, mas ele não ouvia.
   
— Tudo culpa sua — insistiu C.C. — Você tirou as minhas mãos. Você é um monstrinho malvado e roubou minhas mãos. Minhas mãos! Minhas mãos!
   
Ele começou a gritar outra vez. Estendi a mão para ele, mas dessa vez ele me empurrou, virou e correu. Atravessou o acampamento gritando, os cotos ensanguentados dos braços
levantados acima da cabeça, berrando o mais alto possível, e desapareceu na noite.
   
— Minhas mãos! Minhas mãos! Minhas mãos!
   
Pensei em correr atrás dele, mas tive medo de que me atacasse. Fui procurar o Sr. Crepsley e o Sr. Altão — eles saberiam o que fazer —, mas parei de repente quando ouvi um rosnado atrás de mim.
   
Virei para trás devagar. O Homem Lobo estava na porta da jaula, que balançava, escancarada! Ele tinha conseguido retirar as últimas correntes.
   
Fiquei completamente imóvel vendo o esgar malévolo com as presas longas e agudas brilhando na luz fraca. Ele olhou para um lado e para o outro, estendeu as mãos e segurou as barras de ferro dos dois lados. Então agachou e dobrou as pernas.
   
O Homem Lobo saltou na minha direção.
   
Fechei os olhos e esperei o fim.
   
Eu o ouvi e senti a um metro na minha frente. Comecei a fazer minhas últimas preces.
   
Mas então eu o ouvi saltar por cima da minha cabeça. Por alguns segundos de terror, esperei sentir seus dentes na minha nuca e minha cabeça sendo arrancada.
   
Mas não aconteceu.
   
Confuso, virei, piscando os olhos. Ele corria para longe de mim! Vi de relance um vulto na frente dele, correndo entre as carroças, e compreendi que o Homem Lobo perseguia outra pessoa. Ele me deixou passar, preferindo uma refeição melhor.
   
Dei alguns passos vacilantes na direção seguida pelo Homem Lobo. Eu corria e, em silêncio, agradecia aos deuses. Não podia acreditar que havia estado tão perto da morte. Quando ele saltou no ar, tive certeza...
   
Meus pés bateram em alguma coisa e eu parei.
   
Olhei para o chão e vi uma sacola, certamente deixada cair pela pessoa que o Homem Lobo perseguia. Estava cheia de roupas, como eu podia sentir ao apalpar. Um pequeno vidro
caiu quando virei a sacola. Apanhei, abri a tampa e senti o aroma de... picles de cebolas!
   
Meu coração quase parou. Comecei a procurar furiosamente algum nome da sacola, rezando para que as cebolas não significassem o que eu temia.
   
Minhas preces não foram atendidas.
   
As letras, escritas à mão, quando encontrei, eram claras, mas separadas. A escrita de uma criança.
   
“Esta sacola é propriedade de Sam Crespo”, estava escrito, com o endereço logo abaixo. “Tire suas mãos daí!”, avisava no fim, o que era irônico dado o que acontecera havia pouco com C.C.
   
Mas eu não tinha tempo para rir com o humor negro.
   
Sam! Por algum motivo ele tinha entrado sorrateiramente no acampamento nessa noite, provavelmente para se juntar ao Circo — me viu e me seguiu. Foi Sam que os olhos pequenos do Homem Lobo viram, atrás de mim. Era Sam correndo pelo acampamento, para salvar a vida.
   
O Homem Lobo estava atrás de Sam!
 
   
CAPÍTULO VINTE E NOVE
   
 
   
 
    Eu não devia ter ido atrás deles sozinho. Devia ter procurado ajuda. Era loucura correr no escuro daquele jeito.
   
Mas ele estava atrás de Sam, que queria se juntar ao Circo. Sam, que quis ser meu irmão de sangue. O inofensivo, amistoso, tagarela Sam. O garoto que salvou a minha vida.
   
Não pensei na minha segurança. Sam estava sendo perseguido e não havia tempo para procurar ajuda. Eu podia morrer, mas tinha de ir atrás deles, tentar salvá-lo. Devia isso a ele.
   
Atravessei o acampamento rapidamente. As nuvens se abriram e vi o Homem Lobo desaparecer entre as árvores. Corri atrás dele com todas as minhas forças.
   
Eu o ouvi uivar pouco depois, o que era um bom sinal. Queria dizer que ainda estava correndo atrás de Sam. Se o tivesse alcançado, estaria muito ocupado, comendo, para perder tempo uivando.
   
Perguntei a mim mesmo porque ele ainda não o tinha pego. Isso já devia ter acontecido. Embora eu nunca o tivesse visto correr livre, estava certo de que devia ser rápido. Talvez estivesse brincando com Sam, antes do golpe final.
   
As pegadas dos dois estavam bem visíveis na terra úmida, mas, de qualquer modo, eu os teria seguido pelos sons. É difícil correr em silêncio numa floresta, especialmente à noite.
   
Corremos assim, por vários minutos, Sam e o Homem Lobo, na frente, onde eu não os via, e eu atrás. Minhas pernas começavam a cansar, mas eu me obriguei a prosseguir.
   
Pensei no que faria quando os alcançasse. De jeito nenhum eu poderia vencer o Homem Lobo numa luta. Talvez pudesse bater na cabeça dele com alguma coisa, mas era pouco provável. Ele era forte e gostava de sangue humano. Nada o faria parar.
   
O máximo que eu podia esperar era passar à frente e tomar o lugar dele. Se eu me oferecesse em lugar de Sam, talvez ele me pegasse e Sam poderia escapar.
   
Não me importava de morrer por Sam. Eu troquei minha condição de ser humano pela vida de um amigo, não era muito pedir que desse a vida por outro.
   
Além disso, se eu morresse, teria sido por uma boa causa. Não precisaria mais me preocupar em tomar sangue humano ou morrer de fome. Podia cair lutando.
   
Depois de mais alguns minutos, cheguei a uma clareira e compreendi para onde ele estava nos levando. Para a velha e abandonada estação de trens.
   
Isso mostrava que ele ainda pensava com clareza. Era o melhor lugar para ir, com muitos esconderijos e uma porção de coisas — pedaços de metal e de vidro — para serem usadas em uma luta. Talvez nenhum de nós tivesse de morrer. Talvez houvesse uma chance de vencermos essa batalha.
   
Vi o Homem Lobo parar por um instante no meio do pátio da estação e farejar o ar. Ele uivou outra vez, um uivo alto de provocar arrepios, depois foi para um dos vagões.
   
Dei a volta por trás do vagão, o mais silenciosamente possível. Prestei atenção aos sons, mas não ouvi nada. Espiei pela janela de um dos vagões. Nada.
   
Abaixei e olhei pela terceira janela. Outra vez, não vi nada lá dentro. Estava me levantando para espiar pela outra janela quando vi uma barra de metal se movendo na direção do meu rosto, a toda velocidade.
   
Desviei para o lado a tempo de evitar o impacto. A barra passou zunindo pelo lado do meu rosto, arranhando um pouco, mas nada sério.
   
— Pare, sou eu! — sussurrei, atirando-me no chão. Depois de um momento de silêncio, o rosto dele apareceu na janela redonda.
   
— Darren? — perguntou. — O que está fazendo aqui?
   
— Eu segui você.
   
— Pensei que fosse o Homem Lobo. Eu estava tentando matar você.
   
— Quase conseguiu.
   
— Desculpe.
   
— Pelo amor de Deus, não perca tempo pedindo desculpas — disse eu, irritado. — Estamos ferrados. Temos de pôr para funcionar a massa cinzenta. Venha para fora, imediatamente.
   
Ele se afastou da janela. Ouvi o som dos seus passos e ele apareceu na porta do vagão. Olhou em volta, para se certificar de que o Homem Lobo não estava por perto, saltou para o chão e chegou perto de mim.
   
— Onde ele está? — perguntou.
   
— Não sei — murmurei. — Está por aí, em algum lugar. Eu vi quando ele tomou esta direção.
   
— Talvez tenha encontrado outra coisa para atacar — sugeriu, esperançosamente. — Uma ovelha ou uma vaca.
   
— Eu não apostaria nisso — resmunguei. — Ele não teria corrido até aqui, só para abandonar a perseguição quase no fim.
   
Ficamos muito juntos, Sam controlando o lado direito, e eu, o esquerdo. Podia sentir seu corpo tremendo e tenho certeza de que ele sentia o meu também.
   
— O que vamos fazer?
   
— Não sei. Alguma ideia?
   
— Algumas. — Podemos levá-lo para a casa do guarda. Ele pode despencar pelo assoalho podre. Podemos atraí-lo para lá.
   
— Talvez. Mas e se nós cairmos também? Estaríamos numa armadilha, sem dúvida. Ele poderia pular para baixo e nos comer quando quisesse.
   
— E o que acha das vigas? — perguntou. — Podemos chegar ao meio de uma delas e
esperar, um de costas para o outro. Podemos pegar pedaços de pau e bater nele, se atacar. Só há um jeito de ele ir atrás de nós lá em cima.
   
— E com certeza alguém do Circo dos Horrores vai chegar, mais cedo ou mais tarde — disse eu, pensando alto. — Mas e se ele resolver soltar uma ponta da viga?
   
— Estão bem presas no tijolo — respondeu. — Não acredito que ele possa fazer isso só com as mãos.
   
— Será que uma viga aguenta o peso de nós três? — perguntei.
   
— Não tenho certeza — admitiu —, mas pelo menos se cairmos daquela altura tudo acaba rapidamente. Quem sabe, podemos ter sorte e cair em cima do Homem Lobo. Ele pode amortecer nossa queda e ser morto no processo.
   
Dei um sorriso resignado.
   
— Você tem assistido a muitos desenhos animados. Mas é uma boa ideia. Melhor do que qualquer uma que eu possa ter. Não vai ser fácil afastá-lo, mesmo numa viga, mas é mais difícil para ele nos alcançar.
   
— Em quanto tempo você acha que o pessoal do Circo chega aqui? — perguntou Sam.
   
— Depende de quando perceberem o que está acontecendo — respondi. — Se tivermos sorte, eles o ouvirão uivando e estarão aqui dentro de alguns minutos. Do contrário, podemos ter de esperar até o fim do espetáculo, o que pode demorar uma hora, talvez mais.
   
— Você tem uma arma?
   
— Não. Não tive tempo de pegar nada.
   
Ele me deu uma barra de ferro curta.
   
— Tome. Eu tinha isto de reserva. Não é grande coisa, mas é melhor do que nada.
   
— Algum sinal do Homem Lobo?
   
— Não. Ainda não.
   
— Acho melhor a gente ir, antes que ele chegue. — Depois de uma pausa, continuei: — Como vamos chegar à casa da estação? É uma boa distância e o Homem Lobo pode estar escondido em qualquer lugar no meio do caminho.
   
— Temos de correr e esperar o melhor.
   
— Vamos nos separar?
   
— Acho melhor não — disse ele. — Acho que estaremos melhor juntos.
   
— Também acho. Está pronto para a corrida?
   
— Dê-me alguns segundos.
   
Virei e o vi respirar vagarosamente. Ele estava muito pálido, com a roupa rasgada e suja da corrida na floresta, mas parecia pronto para a batalha. Sam era um garoto duro e valente.
   
— Por que você voltou esta noite? — perguntei em voz baixa.
   
— Para me juntar ao Circo dos Horrores — respondeu.
   
— Mesmo depois de tudo que eu contei?
   
— Resolvi arriscar. Quero dizer, você é um amigo. Temos de ficar ao lado dos nossos amigos, não é? Sua história me fez ficar mais decidido, depois de me refazer do medo. Poderia ajudar você. Li livros sobre distúrbios da personalidade. Talvez eu pudesse curar.
   
Não pude evitar um sorriso.
   
— Você é um idiota, Sam Crespo — disse eu.
   
— Eu sei — sorriu ele. — Você também. Por isso formamos um bom par.
   
— Se sairmos desta — disse —, sinta-se à vontade para se juntar ao Circo. E não precisa se preocupar, que não vou devorar você. Foi só uma história para fazer com que desistisse.
   
— De verdade?
   
— De verdade.
   
— Que alívio — passou a mão na testa. — Posso ficar descansado agora.
   
— Pode, se o Homem Lobo não nos pegar — concordei. — Já está pronto?
   
— Estou. — Suspendeu a cintura da calça e preparou-se para correr. — Quando eu contar até três — disse ele.
   
— Tudo bem — respondi.
   
— Um — começou.
   
Olhamos na direção da casa do guarda.
   
— Dois.
   
Ficamos em posição de largada.
   
— Tr...
   
Antes que ele tivesse tempo de acabar, duas mãos cabeludas apareceram debaixo do vagão onde — percebi tarde demais — o Homem Lobo estava escondido. Os dedos agarraram os tornozelos de Sam e o puxaram para baixo, para o chão!
 
   
CAPÍTULO TRINTA
   
 
   
 
    Sam começou a gritar assim que as mãos se apertaram nos seus tornozelos. A queda o fez perder o fôlego, silenciando-o por um momento, mas, depois de um ou dois segundos, começou a gritar outra vez.
   
Ajoelhei, agarrei os braços de Sam e puxei para cima.
   
Eu via o Homem Lobo debaixo do vagão, deitado sobre a barriga peluda, com um esgar de louco. A baba escorria da sua boca.
   
Puxei com força e ele deslizou na minha direção, mas o Homem Lobo veio junto, saindo com dificuldade de baixo do vagão, mas sem largar os tornozelos dele.
   
Parei de puxar e soltei Sam. Peguei a longa barra de ferro que ele deixara cair, fiquei de pé e comecei a bater nos braços estendidos do Homem Lobo, que uivava furioso.
   
O Homem Lobo soltou uma das patas cabeludas e tentou bater em mim. Desviei e bati na mão que segurava ainda a perna de Sam. O Homem Lobo gritou de dor e soltou os dedos.
   
— Corra! — gritei para Sam, ajudando-o a ficar de pé.
   
Começamos a correr para a casa do guarda, lado a lado. Eu ouvia o Homem Lobo arrastando-se debaixo do vagão. Estava brincando conosco antes, mas agora parecia furioso. Eu sabia que ele viria atrás de nós com tudo o que tinha. A brincadeira tinha acabado. De jeito nenhum chegaríamos ao abrigo da casa do guarda. Ele nos pegaria no meio do pátio.
   
— Continue... a correr — disse eu, ofegante, então parei e virei para enfrentar a investida do Homem Lobo.
   
Isso o tomou de surpresa e ele se chocou comigo. Seu corpo cabeludo estava molhado de suor e pesado. A colisão derrubou a nós dois. Nossos braços e pernas se entrelaçaram, mas me livrei rapidamente e bati nele com a barra de ferro.
   
O Homem Lobo rugiu feroz e estendeu a mão para meu braço. Dessa vez a conexão foi feita, logo abaixo do meu ombro. A força da pancada transformou meu braço em um pedaço inútil de carne e ossos. Deixei cair a barra, depois tentei apanhá-la com a outra mão.
   
Mas o Homem Lobo foi mais rápido. Pegou a barra e a jogou longe, onde ela caiu com estrondo, perdida no escuro da noite.
   
Ele se levantou devagar, com um esgar malévolo. Eu podia ler a expressão dos seus olhos e sabia que, se ele pudesse falar, estaria dizendo mais ou menos isto: “Agora, Darren Shan, você é meu! Você se divertiu e brincou, mas agora está na hora de matar!”
   
Ele agarrou meu corpo nos dois lados, escancarou a boca e inclinou-se para arrancar meu rosto. Eu senti o fedor do seu hálito e vi pedaços de carne e da camisa de C.C. entre os dentes amarelos.
   
Antes que ele tivesse tempo de fechar a mandíbula, alguma coisa o atingiu na cabeça, fazendo-o perder o equilíbrio.
   
Vi Sam atrás dele, com um pesado pedaço de pau nas mãos. Ele tornou a bater no Homem Lobo, dessa vez fazendo com que ele abrisse as mãos.
   
— Uma boa ação merece outra — gritou Sam, batendo no Homem Lobo pela terceira vez com o pedaço de pau. — Vamos! Precisamos...
   
Não ouvi as palavras seguintes de Sam. Porque, quando comecei a andar em direção a ele, o Homem Lobo me atacou com o punho fechado. Foi um golpe às cegas, mas teve sorte e acertou meu rosto, me fazendo cair para trás.
   
Minha cabeça quase explodiu. Vi luzes brilhantes e estrelas enormes, depois fiquei deitado no chão, desmaiado.
   
 
   
 
    Quando voltei a mim, alguns segundos ou minutos depois — não tenho certeza de quanto tempo passou — a estação de trens estava fantasmagoricamente silenciosa. Eu não ouvia
ninguém correndo, gritando ou lutando. Tudo que ouvia era um som contínuo de mastigação, um pouco afastado de mim.
   
Nhoc, nhoc, nhoc.
   
Sentei-me devagar, ignorando a dor que martelava a minha cabeça.
   
Levei alguns segundos para readaptar os olhos à escuridão. Quando consegui enxergar outra vez, estava olhando para as costas do Homem Lobo. Ele estava de quatro, com a cabeça inclinada sobre alguma coisa. Era ele que fazia aquele ruído de mastigação.
   
O atordoamento do golpe me fez levar algum tempo para compreender que ele não estava comendo alguma coisa... mas alguém.
   
SAM!!!!!
   
Levantei de um salto, a dor esquecida, e corri para ele, mas bastou um olhar para a massa sangrenta que estava debaixo do Homem Lobo para saber que era tarde demais.
   
— NÃO! — gritei, e, com a mão boa, comecei a atacar o Homem Lobo desordenadamente.
   
Ele rosnou e me empurrou para longe. Voltei e dessa vez, além dos socos, dei pontapés. Ele rosnou e tentou me empurrar outra vez, mas resisti e puxei seu cabelo e suas orelhas.
   
Então ele uivou e finalmente levantou a boca. Estava vermelha, de um vermelho escuro, cheia de entranhas e sangue e pedaços de carne e de ossos.
   
Ele se atirou sobre mim e me prendeu contra o solo com um braço peludo. Levou a cabeça para trás e uivou para o céu noturno. Então, com um rosnado demoníaco, arreganhou os dentes para minha garganta, para acabar comigo com uma dentada rápida.
 
   
CAPÍTULO TRINTA E UM
   
 
   
 
    Quase no último momento possível, duas mãos apareceram do escuro e agarraram a mandíbula do Homem Lobo, interrompendo seu bote.
   
As mãos torceram a cabeça dele para um lado e o Homem Lobo gritou e saiu de cima de mim.
   
O atacante subiu nas costas do Homem Lobo e o manteve preso sob o peso do seu corpo. Vi os punhos voando no ar mais depressa do que meus olhos podiam seguir e então o Homem Lobo estava no chão, inconsciente.
   
O atacante levantou e me ajudou a ficar de pé. Olhei então para o rosto vermelho e cheio de cicatrizes do Sr. Crepsley.
   
— Vim assim que foi possível — disse o vampiro, ofegante, virando minha cabeça gentilmente para a esquerda e para a direita, examinando os danos. — Ofídio ouviu os uivos do Homem Lobo. Ele não sabia nada sobre você e o outro menino. Só pensou que a criatura tinha fugido da jaula.
   
— Ofídio chamou o Sr. Altão, que cancelou o resto do espetáculo e organizou um grupo de busca. Então, eu pensei em você. Quando vi que sua cama estava vazia, procurei e encontrei suas pegadas.
   
— Eu pensei... que... ia morrer — gemi, falando com dificuldade. Estava todo cheio de contusões e em estado de choque. — Eu estava certo. Pensei... que ninguém viria. Eu...
   
Abracei o Sr. Crepsley com força, com meu braço bom.
   
— Muito obrigado — solucei. — Obrigado. Obrigado. Muito... — parei, lembrando-me do meu amigo.
   
— Sam! — gritei. Larguei o Sr. Crepsley e corri para onde estavam seus restos.
   
O Homem Lobo tinha aberto a barriga de Sam e comido uma porção das suas entranhas. Incrivelmente, Sam ainda estava vivo quando me aproximei. Suas pálpebras estremeciam e ele respirava levemente.
   
— Sam, você está bem? — Era uma pergunta idiota, mas a única que meus lábios feridos puderam formar. — Sam? — Passei a mão na testa dele, mas Sam não deu nenhum sinal de me ouvir ou sentir. Parecia em paz, pelo menos da cintura para cima.
   
O Sr. Crepsley ajoelhou ao meu lado e examinou o corpo.
   
— Pode salvá-lo? — perguntei. Ele balançou a cabeça devagar. — Mas precisa! — gritei. — Pode fechar os ferimentos. Podemos chamar um médico. Pode dar a ele uma poção. Deve haver algum meio de...
   
— Darren — disse ele em voz baixa. — Não há nada que possamos fazer. Ele está morrendo. O dano foi muito grande. Mais alguns minutos e... — suspirou. — Pelo menos ele está além de toda sensação. Não vai sentir dor.
   
— Não! — exclamei, atirando-me sobre Sam. Eu chorava amargamente, com soluços doloridos.
   
— Você não pode morrer, Sam! Fique vivo! Você pode se juntar ao Circo e viajar conosco pelo mundo todo. Você pode... você...
   
Não pude dizer mais nada, apenas abaixei a cabeça, abraçado a Sam e chorei.
   
No pátio deserto da velha estação, o Homem Lobo estava inconsciente, atrás de mim. O Sr. Crepsley sentou ao meu lado em silêncio. Debaixo de mim, Sam Crespo — que era meu amigo e salvou a minha vida — completamente imóvel, mergulhava cada vez mais fundo no último sono de uma morte prematura e horrenda.
 
   
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
   
 
   
 
    Depois de algum tempo, senti que alguém puxava meu braço esquerdo. Ergui os olhos e vi o Sr. Crepsley de pé, ao meu lado, parecendo muito infeliz.
   
— Darren — disse ele —, pode parecer que não é o momento certo, mas há uma coisa que você precisa fazer. Por Sam. E por você.
   
— Do que está falando? — enxuguei as lágrimas do rosto e olhei para ele — Podemos salvá-lo? Diga se podemos. Eu faço qualquer coisa.
   
— Não há nada que possamos fazer para salvar seu corpo — disse o Sr. Crepsley. — Ele está morrendo e nada pode mudar isso. Mas há uma coisa que podemos fazer por seu espírito.
   
— Darren, você deve tomar o sangue de Sam.
   
Continuei a olhar para ele, mas agora incrédulo, não mais esperançoso.
   
— Como pode? — perguntei em voz baixa. — Um dos meus melhores amigos está morrendo e você só pensa em... Você é doente! Você é um monstro doente e anormal. Você devia estar morrendo, não Sam. Eu o odeio. Saia daqui.
   
— Você não compreende — disse ele.
   
— Sim, eu compreendo! — gritei. — Sam está morrendo, mas você só se preocupa em me fazer tomar sangue humano. Sabe o que você é? Você é um miserável...
   
— Lembra da nossa conversa sobre os vampiros serem capazes de absorver o espírito de outra pessoa? — perguntou.
   
Eu ia dizer um palavrão, mas a pergunta me deixou confuso.
   
— O que tem a ver com isto? — perguntei.
   
— Darren, isso é importante. Você lembra?
   
— Sim — falei devagar. — E daí?
   
— Sam está morrendo — disse o Sr. Crepsley. — Mais alguns minutos e ele estará morto. Para sempre. Mas você pode guardar uma parte dele viva em você se tomar o sangue dele agora e apossar-se de sua vida, antes que seja tomada pelos ferimentos provocados pelo Homem Lobo.
   
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo.
   
— Você quer que eu mate Sam? — gritei.
   
— Não — suspirou —, Sam já está morto. Mas, se você terminar sua vida antes que ela termine pelas mordidas do Homem Lobo, estará salvando algumas das suas lembranças e alguns dos seus sentimentos. Em você, ele pode continuar vivo.
   
Balancei a cabeça.
   
— Não posso tomar seu sangue — murmurei. — Não o de Sam. — Olhei para o corpo pequeno e destruído. — Não posso.
   
O Sr. Crepsley suspirou.
   
— Não vou obrigar você a fazer isso — disse ele. — Mas pense bem. O que aconteceu esta noite é uma tragédia que vai perseguir você durante longo tempo, mas, se tomar o sangue de Sam e absorver parte da sua essência, será mais fácil aceitar sua morte. É duro perder uma pessoa amada. Desse modo, não precisa perder tudo dele.
   
— Não posso tomar o sangue dele — solucei. — Ele era meu amigo.
   
— Justamente porque ele era seu amigo é que você deve lazer isso — disse o Sr. Crepsley, e se afastou, deixando-me sozinho para decidir.
   
Olhei para Sam. Ele parecia tão sem vida, como se já tivesse perdido o que o fazia humano, vivo, único. Pensei nas suas brincadeiras, nas palavras longas e nos seus sonhos, e como seria horrível se tudo isso simplesmente desaparecesse com sua morte.
   
Ajoelhei e encostei os dedos da minha mão esquerda no pescoço vermelho de Sam.
   
— Sinto muito — gemi. Enfiei minhas unhas afiadas na carne macia e, inclinando-me para a frente, cobri com a boca os furos que elas haviam feito.
   
O sangue jorrou e eu engasguei. Quase caí, mas com esforço fiquei firme e engoli. Seu sangue era quente, salgado e desceu por minha garganta como manteiga espessa e cremosa.
   
O pulso de Sam ficava mais lento à medida que eu bebia, depois parou. Mas eu continuei, engolindo cada gota, absorvendo.
   
Quando finalmente tomei todo seu sangue, ergui a cabeça e uivei para a lua como o
Homem Lobo. Por um longo tempo, foi tudo que pude fazer — uivar e gritar como o animal selvagem da noite, que eu era agora.
 
   
 CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
   
 
   
 
    O Sr. Altão e alguns integrantes do Circo dos Horrores — incluindo quatro Pequeninos — chegaram pouco depois. Eu estava sentado ao lado de Sam, cansado demais para continuar uivando, com o olhar vazio perdido no espaço, sentindo o sangue se acomodar no meu estômago.
   
— Qual é a história? — perguntou o Sr. Altão para o Sr. Crepsley. — Como o Homem Lobo se libertou?
   
— Não sei, Hibérnio — respondeu o Sr. Crepsley. — Eu apenas tratei de fazê-lo dormir.
   
— Graças a Deus por pequenas dádivas — suspirou o Sr. Altão. Estalou os dedos e os Pequeninos acorrentaram o Homem Lobo. Uma van do circo abriu a porta e eles o puseram dentro.
   
Pensei em exigir a morte do Homem Lobo, mas de que ia adiantar? Ele não era mau, apenas naturalmente louco. Matá-lo teria sido inútil e cruel.
   
Quando terminaram com o Homem Lobo, os Pequeninos voltaram a atenção para os restos mortais de Sam.
   
— Esperem um pouco — disse eu, quando se inclinaram para apanhar o corpo e levá-lo embora. — O que vão fazer com Sam?
   
O Sr. Altão tossiu, embaraçado.
   
— Bem, eu imagino que eles pretendem se desfazer dele — disse ele.
   
Levei um momento para compreender o que ele estava dizendo.
   
— Eles vão comer Sam — gritei, estridentemente.
   
— Não podemos simplesmente deixá-lo aqui — disse o Sr. Altão — e não temos tempo para enterrar. Esse é o modo mais fácil...
   
— Não — disse eu, com firmeza.
   
— Darren — disse o Sr. Crepsley —, não devemos nos intrometer...
   
— Não! — gritei, levantando-me para afastar os Pequeninos. — Se eles querem comer Sam, terão de me comer primeiro!
   
Os Pequeninos olharam para mim em silêncio, com olhos verdes e famintos.
   
— Acho que ficaram muito contentes por fazer o que você quer — disse o Sr. Altão, secamente.
   
— Falo sério — rosnei. — Não vou deixar que comam Sam. Ele merece um enterro adequado.
   
— Para ser devorado pelos vermes? — perguntou o Sr. Altão. Depois suspirou quando lancei um olhar furioso para ele e balançou a cabeça, irritado.
   
— Faça a vontade do garoto, Hibérnio — disse o Sr. Crepsley suavemente. — Você pode voltar para o Circo com os outros. Eu fico e ajudo a abrir a cova.
   
— Muito bem — o Sr. Altão deu de ombros. Assobiou e curvou o dedo, chamando os Pequeninos. Eles hesitaram, depois se afastaram e se agruparam em volta do dono do Circo dos Horrores, deixando-me sozinho com Sam Crespo.
   
O Sr. Altão e seus assistentes foram embora. O Sr. Crepsley sentou-se ao meu lado.
   
— Como você está? — perguntou.
   
Balancei a cabeça. Não havia uma resposta simples para essa pergunta.
   
— Sente-se mais forte?
   
— Sim — disse eu, em voz baixa. Embora eu houvesse tomado o sangue de Sam havia pouco tempo, notei uma diferença. Minha visão melhorou, bem como minha audição, e meu corpo machucado não doía tanto quanto antes.
   
— Agora, você não precisa tomar sangue humano por muito tempo — disse ele.
   
— Não importa. Não fiz por mim. Fiz por Sam.
   
— Está zangado comigo? — perguntou.
   
— Não — suspirei.
   
— Darren — disse ele —, espero...
   
— Não quero falar no assunto! — disse, irritado. — Estou com frio, dolorido, triste e solitário. Quero pensar em Sam, não desperdiçar palavras com você.
   
— Como queira — disse ele, e começou a cavar a terra com os dedos. Cavei ao seu lado em silêncio por alguns minutos, depois parei e olhei em volta.
   
— Agora sou um verdadeiro assistente de vampiro, não é? — perguntei.
   
Ele assentiu tristemente.
   
— Sim. Você é.
   
— Isso o deixa contente?
   
— Não — disse ele. — Deixa-me envergonhado.
   
Quando ergui os olhos para ele, confuso, alguém se aproximou de nós. Era o Pequenino que mancava.
   
— Se pensa que vai levar Sam... — avisei, erguendo minha mão suja de terra. Antes que eu tivesse tempo de terminar a frase, ele saltou para dentro da cova ainda rasa, enfiou os dedos largos e cinzentos no solo e começou a retirar grandes torrões de terra.
   
— Ele está nos ajudando? — perguntei, intrigado.
   
— É o que parece — disse o Sr. Crepsley, pondo a mão nas minhas costas. — Descanse — aconselhou. — Nós dois podemos cavar mais depressa. Chamo você quando chegar a hora de enterrar seu amigo.
   
Achei que ele tinha razão e me deitei na beirada da escavação. Depois de algum tempo, me afastei e sentei, esperando nas sombras da estação de trens. Só eu e meus pensamentos. E o sangue vermelho-escuro de Sam nos meus lábios e entre meus dentes.
 
   
 CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
   
 
   
 
    Enterramos Sam sem muita cerimônia — eu não podia pensar em nada adequado para dizer — e enchemos a cova. Não a disfarçamos, assim logo seria descoberta pela polícia e ele receberia um funeral de verdade. Eu queria que seus pais pudessem se despedir dele apropriadamente, mas por enquanto aquilo evitaria o ataque de animais carniceiros (e dos Pequeninos).
   
Levantamos acampamento antes do nascer do dia. Disse o Sr. Altão a todos que tínhamos uma longa viagem pela frente. O desaparecimento de Sam ia criar problemas, por isso precisávamos estar longe dali o mais depressa possível.
   
Quando partimos, imaginei o que teria acontecido com C.C. Teria sangrado até morrer, na
floresta? Teria chegado ao médico a tempo? Ou estava ainda correndo e gritando: “Minhas mãos! Minhas mãos!”
   
Eu não me importava. Embora C.C. estivesse tentando fazer o que julgava certo, tudo aquilo era culpa dele. Se ele não tivesse tentado abrir a porta da jaula do Homem Lobo, Sam estaria vivo. Eu não queria que C.C. estivesse morto, mas também não rezei por ele. Eu o deixei nas mãos do destino e de tudo o que merecia.
   
Ofídio sentou ao meu lado em uma van quando o Circo partiu. Ele começou a dizer alguma coisa. Parou. Pigarreou. Então pôs uma sacola no meu colo.
   
— Encontrei isso — murmurou. — Achei que você ia querer
   
Com olhos ardendo como fogo, li o nome — “Sam Crespo” — e comecei a chorar. Ofídio me abraçou com força e chorou comigo
   
— O Sr. Crepsley me contou o que aconteceu — disse Ofídio depois de algum tempo, parando de chorar e enxugando as lágrimas do rosto. — Ele disse que você tomou o sangue de Sam para manter vivo seu espírito.
   
— Aparentemente — disse eu, sem muita convicção.
   
— Escute — disse Ofídio. — Eu sei o quanto você era contrário a tomar sangue humano, mas fez isso por Sam. Foi um ato de bondade, não de maldade. Não deve se sentir mal por ter tomado o sangue dele.
   
— Acho que tem razão — disse eu. Então, com um gemido, lembrei-me de tudo e chorei mais um pouco.
   
O dia estava quase no fim, o Circo dos Horrores continuava a jornada, mas as lembranças de Sam não podiam ser deixadas para trás. Quando a noite se fechou sobre nós, paramos ao lado da estrada para um pequeno descanso. Ofídio se levantou para procurar uma refeição ligeira.
   
— Quer que eu traga alguma coisa? — perguntou.
   
— Não — disse eu, com o rosto encostado no vidro da janela da van. — Não estou com fome.
   
Ele deu um passo para sair.
   
— Espere um pouco — chamei.
   
Sentia um gosto estranho na boca. O sangue de Sam ainda estava quente nos meus lábios, salgado e terrível, mas não foi isso que estimulou as papilas na parte de trás da minha língua. Eu queria uma coisa que nunca desejei antes. Por alguns confusos momentos eu não sabia o que era. Então identifiquei o desejo estranho e consegui dar um leve sorriso. Procurei na sacola de Sam, mas o vidro devia ter sido deixado para trás quando levantamos acampamento.
   
Ergui os olhos para Ofídio, enxuguei as lágrimas, passei a língua nos lábios e pedi com uma voz estranha, a voz de um garoto curioso e muito esperto que conheci um dia:
   
— Será que temos picles de cebola?

 

 

                                                                                                    Darren Shan

 

 

 

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