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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ATERRAGEM EM DAKOVER / Marion Zimmer Bradley
ATERRAGEM EM DAKOVER / Marion Zimmer Bradley

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ATERRAGEM EM DAKOVER

 

Talvez lhes fosse possível reparara nave estelar e prosseguir para o seu destino original.

Até que o Vento Fantasma soprou. Talvez lhes fosse possível construir uma sociedade semelhante à da Terra, isenta de riscos, ali mesmo no planeta alienígena onde se tinham despenhado. Até que o Vento Fantasma soprou... Talvez fosse possível serem eles a espécie inteligente mais evoluída naquele mundo, podendo por isso transformar-se nos seus senhores e amos.

Até que o Vento Fantasma soprou... contudo, até à chegada daquela estranha corrente de ar, nunca seriam bem-vindos a Darkover.

Era assim em Darkover...

 

*                    *                    *

 

O trem de aterragem era para eles praticamente a menor das suas preocupações; mesmo assim, constituía um problema sério para chegar ou partir. A enorme nave estelar jazia inclinada a um ângulo de quarenta e cinco graus, com as escadas e as portinholas de saída a uma grande distância do solo e as portas abrindo-se para parte nenhuma. Os danos não tinham ainda sido totalmente estabelecidos - nem nada que se parecesse -, mas calculava-se que os alojamentos da tripulação e três quartas partes do habitáculo dos passageiros tinham ficado inabitáveis.

 

Meia dúzia de pequenos abrigos rudimentares tinham já sido levantados apressadamente na grande clareira, assim como um vasto hospital de campanha. Tinham sido montados usando-se principalmente folhas de plástico e troncos das árvores resinosas abundantes no local, cortados com a ajuda das serras circulares e de outros apetrechos madeireiros recolhidos de entre os suprimentos destinados aos colonos. Tudo isto ocorrera apesar dos protestos veementes do capitão Leicester, os quais apenas tinham sido superados graças a um pormenor de carácter técnico: as suas ordens eram intocáveis enquanto a nave se encontrava no espaço; num planeta, quem mandava era a Força Expedicionária da Colónia.

 

O facto de não se encontrarem no planeta certo era outro pormenor técnico que ninguém se sentira preparado para enfrentar... por enquanto.
Era um planeta de grande beleza, reflectiu Rafael MacAran, parado numa pequena colina que se erguia sobre a nave espacial despenhada. Pelo menos aquilo que lhe era dado observar, que não era assim muito. A gravidade era um pouco inferior à da Terra, e o teor de oxigénio um pouco mais alto, o que só por si provocaria uma certa sensação de bem-estar e euforia em qualquer pessoa nascida e crescida na Terra. Como sucedia com Rafael MacAran, ninguém que tivesse nascido na Terra no século XXI     teria jamais respirado um ar tão doce e resinoso ou observado longínquas colinas através de uma manhã assim tão límpida e resplandecente.

 

As colinas e as montanhas distantes elevavam-se à volta deles num panorama aparentemente sem fim numa sucessão de pregas, perdendo gradualmente a cor com a distÂncia, tornando-se primeiro de um verde esbatido, depois de um azul mais indistinto, e por fim de um tom violeta quase imperceptível. O enorme Sol era de um vermelho profundo, da cor de sangue derramado; e naquela manhã eles tinham visto as quatro luas, como grandes jóias multicores, pendentes nos cumes das montanhas distantes.

 

MacAran descansou a mochila no chão, retirou dela o teodolito e começou a armar o tripé. Dobrou-se para ajustar o instrumento, limpando o suor do rosto. Santo Deus, como estava calor, depois do frio gélido e da neve inesperada da noite anterior, vindos tão impetuosamente da cordilheira que eles mal tinham tido tempo para procurar refúgio! E agora a neve derretia-se em arroios enquanto ele despia o blusão de nylon e enxugava a testa com o lenço.

 

Endireitou-se, olhando em volta à procura de horizontes apropriados. já sabia, graças ao novo modelo de altímetro capaz de compensar as variações da força da gravidade, que estavam situados cerca de trezentos metros acima do nível do mar... ou do que seria o nível do mar se por acaso houvesse algum neste planeta, pormenor de que ainda não tinham a certeza. Devido às tensões e perigos da aterragem forçada, ninguém - excepto a Terceira Oficial - tinha conseguido obter uma visão clara do planeta a partir do espaço, e ela morrera vinte minutos após o impacto, enquanto eles estavam ainda a remover corpos dos destroços da ponte de comando.

 

Sabiam que havia três planetas neste sistema: o primeiro era um gigante de metano congelado, um outro era uma pequena rocha estéril - mais uma lua do que um planeta, excepto quanto à sua órbita solitária - e o terceiro era este. Sabiam que este era aquilo que as Forças Expedicionárias da Terra classificavam como um planeta da Classe M: de um tamanho aproximado ao da Terra, e provavelmente habitável. E agora sabiam que se encontravam nele. Era isto, mais ou menos, tudo o que sabiam deste planeta, descontando-se o que tinham descoberto ao longo das últimas setenta e duas horas. O Sol vermelho, as quatro luas, os extremos de temperatura, as montanhas, tudo tinha sido descoberto nos frenéticos intervalos entre recuperar e identificar os mortos, montar o hospital de campanha e recrutar todas as pessoas válidas para cuidarem dos feridos, enterrarem os mortos, e erguerem improvisados abrigos enquanto a nave ainda permanecesse habitável.

 

Rafael MacAran retirou da mochila os seus instrumentos topográficos, mas não começou logo a utilizá-los. Mais intensamente do que até agora imaginara, tinha sentido a falta deste breve intervalo de solidão, um curto espaço de tempo para se recompor dos choques repetidos e terríveis daquelas últimas horas

- a queda, e uma concussão que, numa Terra superlotada e medicamente hipersensível, tê-lo-ia atirado para um hospital. Aqui o oficial médico, assolado por casos de maior gravidade, limitou-se a ensaiar-lhe sucintamente os reflexos e a dar-lhe alguns comprimidos para as dores de cabeça, e passou a dedicar-se aos feridos graves e aos moribundos. A cabeça de MacAran ainda lhe parecia uma monumental dor de dentes, mas a desfocagem visual dissipara-se após o sono da primeira noite. Na manhã seguinte tinha sido recrutado, juntamente com todos os homens válidos não adstritos ao corpo médico ou à tripulação da nave, para escavar sepulturas para as vítimas mortais. E depois sofrera o entorpecente choque de se lhe deparar Jenny entre essas vítimas.
jenny. Convencera-se de que ela se encontrava bem e em segurança, demasiado ocupada com o seu próprio trabalho para vir procurá-lo para o tranquilizar. Depois, entre os mortos retalhados, o inequívoco cabelo prateado da sua única irmã. Não tinha sequer havido tempo para lágrimas. Os mortos eram demasiado numerosos. MacAran fez a única coisa que poderia ter feito: participou a Camilla Del Rey, que agia em representação do capitão Leicester para as tarefas de identificação, que o nome de jenny MacAran devia ser transferido das listas de sobreviventes com paradeiro desconhecido para as dos mortos definitivamente identificados.

 

O único comentário de Camilla foi um conciso e sóbrio ”Obrigada, MacAran”. Não havia tempo para compaixão, não havia tempo para amargura nem sequer para expressões de pesar. E todavia jenny tinha sido a melhor amiga de Camilla, gostando desta como se ela fosse sua irmã. Rafael nunca chegara a saber porquê, mas jenny deveria ter tido as suas razões. Algures no seu íntimo, Rafael tinha acalentado a esperança de que Camilla soltaria por jenny as lágrimas que ele não conseguia prantear. Alguém devia chorar por jenny, e ele era incapaz de fazê-lo. Por enquanto não era.

 

Fixou finalmente o seu olhar nos instrumentos. Seria mais fácil se eles conhecessem a latitude exacta em que se encontravam no planeta, mas a altitude do Sol acima da linha do horizonte dar-lhes-ia uma ideia aproximada.

 

Lá em baixo, numa vasta concha de terra com pelo menos uns oito quilómetros de largura, cheia de silvados e árvores atrofiadas, estava a nave espacial acidentada. Rafael, observando-a a esta distância, experimentou uma estranha sensação de abatimento. O capitão Leicester devia estar a trabalhar com a tripulação avaliando os danos e calculando o tempo necessário para efectuar as reparações. Rafaiel nada sabia sobre a operação de naves estelares; a sua especialidade era a geologia. Contudo, tinha a impressão de que aquela nave nunca mais iria a parte nenhuma.

 

Mas logo abandonou essa linha de pensamento. Isto era matéria da competência das equipas técnicas, que eram especializadas, e ele nada sabia do assunto, e ultimamente tinha testemunhado alguns pequenos milagres conseguidos por essas equipas. Na pior das hipóteses, a presente situação poderia significar um atraso inevitável de alguns dias, ou mesmo de uma ou duas semanas, e depois estariam outra vez a caminho, e um novo planeta habitável ficaria registado nos mapas das Forças Expedicionárias, pronto a ser colonizado. Aquele onde agora se encontravam, apesar do frio brutal que se sentia durante a noite, parecia-lhe extremamente habitável. Talvez eles conseguissem até partilhar alguns dos prémios oferecidos a quem descobrisse novos planetas, e esses prémios não deixariam de ser proveitosos para a Colónia de Coronis, onde deveriam ter chegado entretanto, e todos teriam mais um motivo para conversa quando fossem Velhos Colonos em Coronis, daqui a uns cinquenta ou sessenta anos.

 

Mas se a nave nunca mais pudesse levantar voo... Impossível. Este não era um planeta já identificado, aprovado para ser colonizado. A Colónia de Coronis - Phi Coronis Delta - dispunha já de uma florescente indústria de mineração. Tinha um espaçoporto em funcionamento, e uma equipa de engenheiros e técnicos trabalhava lá desde há dez anos, preparando o planeta para ser colonizado e estudando a sua ecologia. Não poderiam fixar-se num mundo completamente desconhecido sem prévia preparação e sem o apoio da tecnologia. Seria uma tarefa impossível.

 

De qualquer modo, isso era tarefa de outra pessoa, e era melhor que se dedicasse já ao que tinha de fazer. Realizou todas as observações que podia, registou-as no livro de notas, desarmou o tripé e começou a descer a colina. Movia-se com facilidade através da encosta coberta de pedregulhos e de vegetação rasteira, transportando a mochila sem esforço graças à fraca gravidade. Era mais limpo e mais fácil do que uma caminhada na Terra. Lançou um olhar de anseio às montanhas distantes; se a estadia se prolongasse por mais de alguns dias, talvez pudesse ser dispensado para fazer nelas uma breve escalada. Amostras de pedras e algumas anotações geológicas deveriam ter alguma validade para a Força
Expedicionária, e seria certamente uma experiência mais agradável do que uma escalada na Terra, onde todos os parques nacionais, do Yellowstone ao Himalaia, estavam superlotados durante trezentos dias por ano com turistas trazidos em avião a jacto.

 

Seria provavelmente louvável dar a toda a gente a oportunidade de visitar as montanhas, e era verdade que os passeios rolantes e as cadeiras mecânicas instaladas até ao topo do monte Ramier e do Evereste e do monte Whitney tornavam mais fácil às mulheres mais idosas e às crianças irem até lá acima para apreciar as vistas. Mesmo assim, pensou MacAran com ansiedade, escalar uma montanha em estado selvagem, sem passeios rolantes e nem uma única cadeira mecânica! Tinha feito escaladas na Terra, mas sentira-se pateta ao trepar um penhasco enquanto grupos de adolescentes o ultrapassavam sem qualquer esforço conduzidos até ao topo em cadeiras mecânicas, provavelmente a rir-se do caturra anacrónico que desejava fazê-lo da maneira mais árdua!

 

Algumas das encostas mais próximas estavam enegrecidas com as cicatrizes de antigos fogos florestais, e MacAran pensava que a vegetação na clareira onde a nave se encontrava tinha voltado a desenvolver-se após algum fogo ocorrido uns tempos antes. Felizmente os sistemas de prevenção de incêndios existentes a bordo tinham evitado a eclosão de algum fogo no momento do impacto, pois de outro modo se alguém tivesse escapado com vida seria literalmente como saltar de uma frigideira para dentro do lume. Teriam de ter bastante cuidado nos bosques. Os habitantes da Terra tinham perdido os seus velhos hábitos de trabalhar a madeira, e podiam não estar já cientes das consequências de um fogo florestal. MacAran tomou mentalmente uma nota para incluir isto no seu relatório.

 

Ao regressar ao local onde a nave se despenhara, a sua breve euforia desvaneceu-se. No interior do hospital de campanha podia ver, através do plástico semitransparente do abrigo, filas e filas de corpos inconscientes ou semiconscientes. Diversos homens estavam a desbastar ramadas dos troncos de árvore, e um outro pequeno grupo dedicava-se a erigir uma cúpula dymaxion, que podia ser concluída em meio dia de trabalho por usar suportes triangulares especiais. MacAran começou a tentar imaginar o que iria constar do relatório dos especialistas de Engenharia. Podia observar uma equipa de mecânicos rastejando em volta dos apoios semidesfeitos da nave estelar, mas não lhe parecia que já se tivesse conseguido muitas melhorias. Na realidade, a situação não se lhe apresentava como podendo dar esperanças de uma partida breve.

 

Quando passava pelo hospital foi interpelado por um homem novo, vestindo um uniforme manchado e amarrotado de médico, que vinha a sair.

 

- Rafe! O capitão disse para te apresentares na Primeira Cúpula logo que regressasses; vai haver lá uma reunião, e querem que participes. Vou também para lá agora, para apresentar um relatório clínico. Sou o elemento mais graduado que eles podem dispensar. - Começou a caminhar sem pressas ao lado de MacAran. Era franzino e de baixa estatura, com cabelo castanho-claro e uma pequena barbicha castanha encaracolada, e parecia fatigado, como se não tivesse dormido. Hesitante, MacAran perguntou-lhe:

- Como vão as coisas no hospital?

 

- Bem, não houve novas mortes desde a meia-noite, e retirámos mais quatro pessoas da lista dos pacientes em estado crítico. Afinal, não se chegou a registar nenhuma fuga nos reactores nucleares: aquela moça das Comunicações não apresentava queimaduras de radiação, e os vómitos de que se queixava eram evidentemente resultantes de um golpe forte no plexo solar. Graças a Deus que foi assim, porque se os reactores tivessem sofrido alguma fuga estaríamos provavelmente todos mortos, e era mais um planeta que ficava contaminado.

 

Nota: Dymaxion: Relativo ao conceito desenvolvido por BuckminsterFuller na década de 1920, sobre o uso de tecnologia e recursos de forma a extrair deles as máximas vantagens com o mínimo desperdício de energia e materiais. (N. do T.)
- Pois é, a propulsão M-AM tem poupado muitas vidas comentou MacAran. - Estás com um ar muito fatigado, Ewen. Tens conseguido dormir alguma coisa?

 

Ewen Ross abanou a cabeça.

 

- Não, mas o Velho tem sido generoso com os estimulantes, e os meus motores continuam a acelerar. Lá mais para o meio da tarde sou capaz de cair na cama e só acordar passados três dias, mas até lá vou aguentando. - Hesitou, olhou com timidez para o amigo e disse: - Ouvi falar a respeito da Jenny, Rafe. Foi azar. Tantas moças daquele sector conseguiram safar-se, estava convencido de que ela se encontrava bem.

 

- Também eu. - MacAran respirou fundo e sentiu o ar limpo como um grande peso no seu peito. - Ainda não vi a Heather: estará ...?

 

- A Heather está bem; foi destacada para serviço na enfermaria. Não apanhou sequer um arranhão. Constou-me que depois desta reunião irão afixar listas completas das vítimas mortais, dos feridos e dos ilesos. O que estiveste a fazer, já agora? A Del Rey disse-me que tinhas sido enviado para o exterior, mas não sei com que objectivo.

 

- Medições topográficas preliminares - respondeu MacAran. - Não temos qualquer ideia da nossa latitude, qualquer ideia do tamanho ou da massa do planeta, qualquer ideia ou qualquer noção a respeito do clima ou das estações do ano e por aí fora. Mas já verifiquei que não devemos estar muito afastados do equador, e... bem, irei apresentar um relatório lá dentro. Podemos entrar já?

 

- Podemos; a Primeira Cúpula é aqui mesmo. - Semi-inconscientemente, Ewen tinha pronunciado as palavras como se tivessem maiúscula inicial, e MacAran pensou em como era tão humano este hábito para se estabelecer simultaneamente a localização e a orientação. Estavam aqui há três dias apenas, e este primeiro abrigo era já a Primeira Cúpula, e o abrigo para as vítimas era o Hospital.
Não havia cadeiras no interior da cúpula de plástico, mas tinham sido distribuídos pelo recinto alguns impermeáveis de lona e caixotes vazios de acessórios, e alguém trouxera uma cadeira de dobrar para o capitão Leicester. Ao lado deste, Camilla Del Rey estava sentada numa caixa, com uma tábua e um bloco de apontamentos apoiados nos joelhos; era uma rapariga alta e esbelta, de cabelos escuros, e exibia na face um longo golpe irregular, reparado com agrafos plásticos. Envergava o uniforme de trabalho dos membros da tripulação, mas entreabrira o pesado casacão tipo parca, e usava apenas uma fina e justa camisa de algodão por baixo daquele. MacAran afastou prontamente dela o seu olhar

- raios, qual seria a ideia da rapariga, ali sentada vestida com o que era praticamente uma peça de roupa interior, diante de metade da tripulação!! Numa ocasião destas não parecia decente... -, mas a seguir, observando o rosto golpeado e contraído da moça, absolveu-a. Ela estava acalorada - a temperatura no recinto estava realmente bastante elevada - e encontrava-se a trabalhar, e tinha portanto o direito de se sentir confortável.

 

Se há alguém que está fora dos eixos devo ser eu, a mirar uma rapariga numa ocasião como esta...

 

Tensão. Deve ser isso mesmo. Há muita coisa a correr mal e que não é conveniente estar agora a repisar ou a trazer à memória... O capitão Leicester ergueu a cabeça grisalha. Está com um aspecto horrível, pensou MacAran, talvez não tenha também dormido nada desde que a nave se despenhou.

 

- Estão todos presentes? - perguntou Leicester a moça Del Rey.

 

- Creio que sim.

 

- Senhoras e senhores - prosseguiu o capitão. - Não vamos perder tempo com formalidades, e enquanto durar esta emergência ficam suspensos os protocolos de etiqueta. Visto que o meu oficial dos registos está hospitalizado, a oficial Del Rey teve a amabilidade de concordar em actuar como relatora de comunicações para esta reunião. Antes de mais nada: convoquei-vos para
aqui estarem, um representante de cada grupo, para que possam explicar com a necessária autoridade ao vosso pessoal o que está a acontecer, para desta forma se combater a propagação de boatos e mexericos injustificados sobre a nossa situação. Sempre que há uma reunião de mais de umas vinte e cinco pessoas, aprendi-o nos meus tempos de passagem por Pensacola, os boatos e os mexericos não param de difundir-se. Por isso, tratem de recolher aqui as vossas informações, e não liguem ao que alguém terá dito ao amigo de alguém umas horas atrás, ou ao que alguém poderá ter escutado no refeitório. Estamos de acordo? Engenharia: comecemos por vocês. Qual é a situação no que se refere aos propulsores?

 

O engenheiro-chefe - chamava-se Patrick, mas MacAran não o conhecia pessoalmente - levantou-se. Era um homem alto e macilento que trazia à memória o aspecto de Lincoln, um herói popular.

 

- Estamos mal - disse laconicamente. - Não afirmo que não poderão ser reparados, mas toda a sala de propulsão está de pernas para o ar. Dêem-nos uma semana para pormos tudo em ordem, e depois poderei calcular quanto tempo demoraremos a reparar os propulsores. Logo que os destroços estiverem removidos, acho que vamos precisar, sei lá, de umas três ou quatro semanas. Mas não havia de gostar de ver o meu salário anual depender do rigor desta previsão.

 

- Mas poderão ser reparados? - insistiu Leicester. - Não estarão definitivamente danificados?

 

- Acho que não - respondeu Patrick. - Raios, faço votos para que não estejam! Talvez precisemos de ir à procura de combustíveis, mas graças ao grande conversor que temos isso não será problema, pois qualquer tipo de hidrocarboneto servirá, até celulose. Isto refere-se à conversão de energia no sistema de

 

Nota: Pensacola: Cidade do estado de Florida, Estados Unidos da América, onde está localizada a Academia Aeronaval das Forças Armadas dos EUA. (N. do T.]

 

Nota: Lincoln: Abraham Lincoln, 16. Presidente dos E.U.A. (N. do T.)

Suporte Vital, claro; a propulsão em si trabalha com as implosões antimatéria. - A seguir tornou-se mais técnico na sua exposição, mas, antes que MacAran se achasse desesperadamente perdido, Patrick foi interrompido por Leicester.

 

- Poupe-se, chefe. O importante é que poderá ser reparado, conforme diz, num prazo provisoriamente estimado em três a seis semanas. Oficial Del Rey, qual é o estado da ponte de comando?

 

- Os mecânicos estão lá agora, Capitão, usando os maçaricos de corte para remover o metal que não resistiu ao embate. A consola do computador está destruída, mas os bancos de memória encontram-se em bom estado, bem como a biblioteca.

 

- Quais são os danos mais graves nesse sector?

 

- Vamos precisar de assentos e de cintos de segurança novos em toda a cabina da ponte: os mecânicos podem tratar disso. E, como é evidente, teremos de reprogramar o nosso destino a partir da localização actual, mas, assim que descobrirmos exactamente onde nos encontramos, isso não deverá ser difícil para os sistemas de navegação.

 

- Nesse caso, também desse lado não há nada de desesperado?

- Se me permite a franqueza, Capitão, acho que ainda é demasiado cedo para termos uma certeza, mas parece-me que não. Talvez seja uma ilusão, mas ainda não me dei por vencida.

 

- Bem - ripostou o Capitão Leicester -, ainda agora as coisas pareciam bastante negras; é possível que seja por causa do nosso hábito de olharmos tudo pelo lado pior. Talvez isso até seja bom: qualquer coisa que se apresente ligeiramente melhor do que o pior cenário será sempre uma surpresa agradável. Onde está o Doutor Di Asturien? Quem representa os cuidados médicos? Ewen Ross pôs-se em pé.

 

- O chefe achou que não podia ausentar-se, senhor; tem uma equipa a trabalhar para recuperar todos os acessórios clínicos que restam. Enviou-me em sua representação. Não foram registadas mais mortes, e todas as vítimas fatais estão já sepultadas.
Até agora não se encontraram indícios de quaisquer doenças invulgares de origem desconhecida, mas estamos ainda a ensaiar amostras do ar e do solo, e continuaremos a fazê-lo, com o objectivo de classificar bactérias conhecidas ou desconhecidas. Por outro lado...

 

- Prossiga.

 

- O chefe pretende que sejam emitidas ordens no sentido de se usarem apenas as áreas de latrina designadas, Capitão. Chamou a nossa atenção para o facto de andarmos a transportar todos os géneros de bactérias no nosso corpo que poderão provocar danos na flora e fauna locais, e ser-nos-á possível desinfectar com razoável sucesso as zonas de latrina, mas devemos tomar precauções para não infectarmos as áreas exteriores.

 

- Um ponto a tomar em conta - comentou Leicester. Peça a alguém para emitir as necessárias ordens, Del Rey. E nomeie um elemento da segurança para se certificar de que toda a gente sabe onde estão localizadas as latrinas e passa a usá-las. Que ninguém se ponha a verter águas no bosque só porque está mais à mão e porque não existem leis contra tal prática.

 

- Uma sugestão, Capitão - propôs Camilla Del Rey. Peça aos cozinheiros para fazerem o mesmo com o lixo, ao menos durante algum tempo.

 

- Desinfectá-lo? Boa ideia. Lovat, qual é o estado do sintetizador de alimentos?

 

- Está acessível e em funcionamento, Capitão, pelo menos temporariamente. Contudo, talvez não seja má ideia estudar os possíveis alimentos locais para nos certificarmos de que poderemos comer os frutos e as raízes aqui disponíveis, se isso se tornar necessário. Se o sintetizador se avariar... não foi concebido para funcionar por longos períodos em gravidades planetárias... será demasiado tarde começarmos só então a ensaiar a vegetação local. - Judith Lovat, uma mulher baixa e de aspecto robusto aparentando trinta e tantos anos de idade, exibindo na sua bata o emblema verde dos serviços de Suporte Vital, lançou um olhar para a porta da cúpula. - O planeta parece ser fortemente florestado; deve haver lá fora qualquer coisa que poderemos comer, a avaliar pela mistura oxigénio-nitrogénio desta atmosfera. A clorofila e a fotossíntese parecem não variar muito em todos os planetas do Tipo M, e o produto final é usualmente alguma forma de carbo-hidrato com aminoácidos.

 

- Vou nomear imediatamente um botânico para estudar isso

- declarou o capitão Leicester -, o que me leva até si, Macaran. Conseguiu deduzir alguma informação útil no topo da colina?

 

Macaran pôs-se em pé, dizendo:

 

- Teria conseguido saber mais se tivéssemos aterrado numa planície, se é que existe alguma neste planeta, mas sempre deduzi algumas coisas. Em primeiro lugar, estamos cerca de trezentos metros acima do nível do mar, e seguramente no hemisfério Norte, mas não a muitos graus de latitude sobre o equador, dado que o Sol corre a grande altura no céu. Aparentemente, encontramo-nos no sopé de uma enorme cordilheira, e as montanhas são suficientemente antigas para se apresentarem arborizadas, sem vulcões à vista; também não se observa a existência de montanhas que pareçam resultar de actividade vulcânica nos últimos milénios. Não se trata de um planeta novo.

 

- Há sinais de vida? - inquiriu Leicester.

 

- As aves abundam. Animais pequenos, talvez mamíferos, mas não tenho a certeza. Uma variedade maior de árvores do que eu seria capaz de identificar. Muitas delas são uma espécie de coníferas, mas aparentemente também há madeiras duras, de espécie desconhecida, e alguns arbustos com várias sementes e coisas. Um especialista em botânica poderá dizer-lhe muito mais. Contudo, não encontrei sinais da existência de quaisquer artefactos, nenhuns sinais de que alguma coisa tenha sido cultivada ou tocada. Tanto quanto posso deduzir, o planeta não foi tocado por mãos humanas ou outras. Mas evidentemente poderemos estar situados no meio do equivalente às estepes siberiana ou ao deserto de Gobi: muito, muito afastados de rotas exploradas.

 

Fez uma pausa, e depois prosseguiu:

 

- A cerca de trinta quilómetros para leste daqui existe um proeminente cume montanhoso... é fácil vê-lo deste local... a partir do qual poderíamos fazer observações e obter uma estimativa aproximada da massa do planeta, mesmo sem instrumentos complicados. Podíamos também tentar localizar rios, planícies, cursos de água, ou quaisquer sinais de civilização.

 

- Do espaço não se detectava qualquer sinal da existência de vida - comentou Camilla Del Rey.

 

Moray, o corpulento e moreno representante da Força Expedicionária da Terra e responsável pelos Colonos, comentou calmamente:

 

- Não pretenderá antes dizer quaisquer sinais duma civilização tecnológica, Tenente? Lembre-se, até há uns escassos quatro séculos uma nave estelar que se aproximasse da Terra também não poderia ter detectado ali nenhum sinal de vida inteligente.

 

O capitão Leicester disse secamente:

 

- Mesmo se existir alguma forma de civilização pré-tecnológica, isso seria equivalente à inexistência de qualquer civilização, e qualquer que seja a forma de vida que possa existir aqui, sapiente ou não, é inconsequente para os nossos objectivos. Não poderíamos contar com qualquer ajuda para a reparação da nossa nave, e desde que tivéssemos o cuidado de não contaminar os seus ecossistemas não haveria razão para os abordarmos, provocando um choque de culturas.

 

- Concordo com esse último ponto - disse Moray com lentidão -, mas gostaria de levantar uma questão que ainda não foi abordada, Capitão. Permite-me?

 

Leicester soltou um grunhido.

 

- A primeira coisa que eu disse foi que estão suspensos os protocolos enquanto durar esta situação. Pode falar.

 

- O que é que está a ser feito para se conhecer o nível de habitabilidade deste planeta, para o caso de os propulsores não poderem ser reparados, forçando-nos a ficar retidos aqui?

 

MacAran experimentou um momento de choque que o paralisou, e logo a seguir uma pequena chicotada de alívio. Alguém expusera os receios que ele próprio sentia. Havia mais alguém a pensar nessa hipótese. Não precisaria de ser ele a levantar o problema.

 

Mas o choque ainda não se dissipara do rosto do capitão Leicester, tendo-se congelado ali numa máscara de cólera intensa.

- São muito reduzidas as probabilidades de isso acontecer. Moray levantou-se pesadamente.

 

- Pois. Escutei o que a sua tripulação tem dito, mas não estou inteiramente convencido. Parece-me que devíamos começar imediatamente a inventariar aquilo de que dispomos, e o que existe aqui, para o caso de ficarmos permanentemente retidos neste planeta.

 

- Impossível! - retorquiu o capitão Leicester com aspereza.

- Estará por acaso a dizer que sabe mais do que a minha tripulação sobre o estado da nossa nave, Mister Moray?

 

- Não. Não sei absolutamente nada a respeito de naves estelares, e acho que nem tenho aspirações a isso. Mas sei identificar destroços quando os vejo. Sei que mais de um terço da sua tripulação está morta, incluindo alguns técnicos importantes. Ouvi a oficial Del Rey dizer que pensava... ela apenas pensava... que o computador da Navegação poderia ser reparado, e sei que ninguém poderá navegar uma propulsão M-AM no espaço interstelar sem um computador. Temos de tomar em consideração que esta nave poderá não ir a parte nenhuma. E, nesse caso, também nós não iremos a parte nenhuma. A não ser que haja entre nós algum génio capaz de construir um satélite de comunicações interstelares durante os próximos cinco anos com as matérias-primas e a mão-cheia de gente que temos aqui, para enviar uma mensagem para a Terra, ou para as colónias em Coronis ou em Alpha Centauri, pedindo para virem buscar o rebanho extraviado.
- O que está a tentar fazer, Mister Moray? - perguntou Camilla Del Rey com uma voz sumida. - Desmoralizar-nos ainda mais? Assustar-nos?

 

- Não, estou a tentar ser realista.

 

Esforçando-se por controlar a fúria que lhe congestionava o rosto, Leicester interveio:

 

- Parece-me que está a ignorar o objectivo desta reunião, Mister Moray. A nossa prioridade é reparar a nave, e para esse fim poderá ser necessário recrutar toda a gente, incluindo os passageiros do seu grupo de Colonos. Não podemos dispensar grandes grupos de pessoal para contingências remotas - acrescentou com ênfase -, pelo que, se isso foi um pedido, considere-o recusado. Mais alguma coisa?

 

Moray não se sentou.

 

- O que acontecerá se daqui a seis semanas chegarmos à conclusão de que não será possível reparar a nave? Ou daqui a seis meses?

 

Leicester respirou fundo. MacAran podia distinguir o cansaço desesperado no seu rosto, e o esforço que ele fazia para tentar disfarçá-lo.

 

- Sugiro que atravessemos essa ponte se, e quando, a virmos à distância, Mister Moray. Há um velho provérbio que diz, ”O que for, soará”. Não acho que um atraso de seis semanas possa fazer muita diferença para nos resignarmos à desesperança e à morte. Quanto a mim, tenciono viver e levar esta nave de regresso a casa, e quem começar a difundir conversas derrotistas terá de se haver comigo. Estamos entendidos?

 

Moray não estava evidentemente satisfeito; contudo alguma coisa, talvez apenas a força de vontade do capitão, fê-lo conterse. Deixou-se cair no assento, ainda com uma expressão carrancuda.

 

Leicester puxou para si o bloco de apontamentos de Camilla.

- Haverá mais alguma coisa? Muito bem. Creio que estamos terminados, senhoras e senhores. Logo à noite serão publicadas listas dos sobreviventes e dos feridos, com indicação do estado em que se encontram. Diga, padre Valentine?

 

- Senhor Capitão, foi-me solicitado que dissesse uma missa de réquiem por intenção dos defuntos. Atendendo ao facto de o capelão protestante ter sido vitimado pelo acidente, gostaria de oferecer os meus serviços a qualquer pessoa, qualquer que seja a sua fé, que possa usá-los conforme necessitar.

 

O rosto do capitão Leicester desanuviou-se ao olhar para o jovem padre, que tinha um braço ao peito e um lado do rosto coberto por ligaduras.

 

- Certamente, Padre, diga a sua missa. Sugiro que o faça amanhã de manhã, bem cedo. Procure alguém que possa erigir aqui um monumento apropriado; algum dia, talvez daqui a umas centenas de anos, este planeta será colonizado, e eles saberão que estivemos cá. Parece-me que vamos ter tempo de sobra para isso.

 

- Agradeço-lhe, Capitão. Agora dá-me licença? Tenho de regressar ao hospital.

 

- Claro, Padre, prossiga. Se houver mais alguém que tenha de sair, está dispensado... a não ser que tenha perguntas? Muito bem. - Leicester reclinou-se na cadeira e cerrou os olhos por uns momentos. - MacAran e Doutora Lovat, podem ficar por mais uns momentos, por favor?

 

MacAran avançou lentamente, surpreendido; nunca tinha falado com o capitão, nem suspeitava de que ele o conhecesse, mesmo de vista. O que poderia ele querer? Os outros iam saindo da cúpula, um por um: Ewen tocou-lhe levemente no ombro

 

e sussurrou:

 

- A Heather e eu vamos assistir à missa de réquiem, Rafe. Tenho de assistir. Passa pelo hospital para que eu dê uma olhada a essa concussão. Paz, Rafe; vemo-nos depois. - E afastou-se.

 

O capitão Leicester estava enterrado na sua cadeira, e parecia exausto e envelhecido, mas endireitou-se ligeiramente quando Judith Lovat e MacAran se aproximaram.

 

- MacAran - disse -, o seu perfil refere que tem experiência de montanhismo. Qual é a sua especialidade profissional?
- Geologia. Mas é verdade que tenho passado muito tempo nas montanhas.

 

- Nesse caso, vou encarregá-lo de uma breve expedição topográfica. Suba àquela montanha, se for capaz, e faça as suas observações a partir do cume, calcule a massa do planeta, e por aí fora. Haverá algum meteorologista ou algum especialista climatérico no grupo de Colonos?

 

- Presumo que sim, senhor. Mister Moray saberá ao certo.

- Sim, ele deve saber, e talvez não seja má ideia ser eu próprio a perguntar-lho - comentou Leicester. Estava tão exausto que parecia falar entre dentes. - Se conseguirmos prever como estará o tempo durante as próximas semanas, poderemos decidir como garantir o abrigo e tudo o mais para as pessoas. Do mesmo modo, qualquer informação sobre o período de rotação, e por aí fora, talvez seja proveitosa para a Força Expedicionária da Terra. Quanto a si, Doutora Lovat, tente encontrar um zoólogo e um botânico, de preferência entre os Colonos, para acompanharem MacAran. Só para o caso de os sintetiZadores de alimentos se avariarem. Poderão fazer ensaios e recolher amostras.

 

- Posso sugerir a presença dum bacteriologista também, se estiver disponível? - inquiriu Judith.

 

- Boa ideia. Não deixe que as equipas de reparação se queixem de falta de pessoal, mas leve todos aqueles de que possa precisar, MacAran. Há mais alguém que ache por bem levar consigo?

 

- Um paramédico, ou então uma enfermeira clínica solicitou MacAran -, para o caso de alguém cair nalguma fenda no terreno ou ser mastigado pelo equivalente local do Tyrannosaurus Rex.

 

- Ou então deixar-se picar por um qualquer bicharoco indígena - acrescentou Judith. - Eu mesma devia ter pensado nisso.

 

- Acho bem, se o Chefe de Medicina puder dispensar alguém - concordou Leicester. - Uma outra coisa: a primeira-oficial Del Rey vai consigo.

- Posso saber porquê? - perguntou MacAran, algo intrigado. - Não que ela não seja bem-vinda, claro, se bem que esta viagem talvez venha a ser uma excursão demasiado árdua para uma senhora. Não estamos na Terra, e estas montanhas não têm cadeiras mecânicas!

 

A voz de Camilla parecia débil e ligeiramente rouca ao responder, e MacAran tentou decidir se seria por pesar ou choque, ou se aquele era o seu tom de voz natural.

 

- Capitão - disse ela -, MacAran não se encontra obviamente informado dos aspectos piores desta situação. O que sabe então a respeito da queda da nave e das suas causas?

 

MacAran encolheu os ombros. - Os boatos e as mexeriquices do costume. Tudo o que sei é que, quando as sinetas de alarme começaram a soar, fui para uma suposta zona de segurança... mas só no nome - acrescentou com amargura, ao vir-lhe à memória o corpo lacerado de Jenny -, e só dei por mim quando era arrastado para fora da cabina e carregado por uma escada abaixo. Nada mais.

 

- Bem, ora aí está. Não sabemos onde nos encontramos. Não sabemos que Sol é este. Não sabemos nem aproximadamente em que grupo de estrelas estamos. Fomos arrastados para fora da nossa rota por uma tempestade gravitacional... este é um termo dos leigos, e não vou dar-me ao trabalho de explicar o que a provoca. Perdemos o nosso equipamento de orientação com o primeiro choque, e tivemos de localizar com urgência o mais próximo sistema estelar com um Planeta potencialmente habitável, e partir para lá a toda a pressa. Portanto, preciso agora de efectuar algumas observações astronómicas, se for possível, e localizar algumas estrelas conhecidas; poderei fazê-lo através de leituras espectroscópicas. A partir de então, talvez me seja possível fazer a triangulação da nossa posição no Braço Galáctico, e efectuar

 

Nota: Braço Galáctico: Uma estrutura encontrada em galáxias espiraladas, incluindo a nossa Via Láctea. Estas galáxias possuem tipicamente dois braços opostos, além de inúmeras estruturas menores. (N. do T.)
pelo menos uma parte da reprogramação do computador a partir da superfície do planeta. É mais fácil realizar observações astronómicas a uma altitude onde o ar se torna mais ténue. Mesmo se não conseguir alcançar o cume da montanha, cada centena de metros de altitude dar-me-á uma possibilidade maior de obter leituras de precisão. - A moça exibia um ar sério e grave, e MacAran imaginava que ela estaria a reagir contra o medo, com aquele modo deliberadamente didáctico e profissional. - Assim, se lhe for possível levar-me na sua expedição, sou forte e estou em boa forma, e não receio uma marcha forçada. Mandaria o meu assistente, mas ele sofreu queimaduras em mais de trinta por cento da superfície do corpo, e mesmo, se recuperar - e não se sabe se isso irá acontecer - passará muito tempo antes que possa ir a qualquer parte. Não existe mais ninguém a bordo que saiba tanto como eu sobre Navegação e Geografia Galáctica, e por isso eu confiaria mais nas minhas observações do que nas de qualquer outra pessoa.

 

MacAran encolheu os ombros. Ele não era nenhum machão chauvinista, e, se a rapariga achava que poderia aguentar as longas marchas da expedição, então talvez pudesse.

 

- Está bem - disse -, depende de si. Precisaremos de rações para um mínimo de quatro dias, e se o seu equipamento for pesado talvez seja melhor arranjar alguém que o carregue por si; todos os restantes elementos terão de transportar a sua própria parafernália. - Olhou para a ténue camisa que se ajustava humidamente ao torso da rapariga e acrescentou, um pouco rudemente: - Vista roupas quentes, raios; ou acabará por apanhar uma pneumonia.

 

Ela mostrou-se surpreendida, confusa, e finalmente zangada. Olhou-o fixamente, mas MacAran já se esquecera dela, dirigindo-se ao capitão:

 

- Quando quer que partamos? Amanhã?

 

- Não. Muitos de nós temos necessidade de dormir - disse Leicester, fazendo um esforço para permanecer acordado. - Olhem quem fala... E metade da minha tripulação está na mesma situação. Vou dar ordens para que todos, excepto meia dúzia de vigilantes, tratem de descansar esta noite. Amanhã, tirando algumas equipas de trabalho básico, dispensaremos todos para assistirem aos serviços religiosos de homenagem às vítimas; além disso, há muita inventariação a fazer, bem como trabalhos de recuperação. Organize a partida para daqui a dois ou três dias. Tem preferência por algum elemento dos serviços médicos?

 

- Poderei contar com Ewen Ross, se o chefe da Medicina puder dispensá-lo?

 

- Cá por mim está bem - disse Leicester, e descaiu no assento, aparentemente deixando-se dormir. MacAran disse ”Obrigado, senhor” em voz baixa, e afastou-se. Camilla Del Rey tocou-lhe ligeiramente num braço.

 

- Não se atreva a julgá-lo - disse, num tom de voz baixo mas furioso. - Ele tem estado acordado desde há dois dias antes da queda, com uma dieta constante de estimulantes, e já está demasiado velho para isso! Vou fazer com que ele durma vinte e quatro horas a seguir, nem que seja preciso encerrar o acampamento inteiro!

 

Leicester endireitou-se novamente. - Não estava a dormir... - disse com firmeza. - Mais alguma coisa? MacAran? Lovat?

 

- Não, senhor - respondeu MacAran, num tom respeitoso, e afastou-se em silêncio, deixando o capitão descansar, com a primeira-oficial debruçada sobre ele, como... - a imagem comoveu-o - como uma tigresa intensamente maternal debruçada sobre o seu filhote. Ou sobre o velho leão? E o que tinha ele a ver com isso?

 

Uma extensa parte da secção dos passageiros estava quer inundada com espuma antl-incêndio quer recoberta de óleo escorregadio e perigoso; por esta razão, o capitão Leicester dera ordens para que todos os membros da expedição às montanhas fossem equipados com o uniforme de superfície, as roupagens quentes e impermeáveis destinadas a ser usadas pela tripulação da nave espacial nas visitas à superfície de qualquer planeta alienígena. Tinham sido avisados de que deveriam estar prontos logo após o nascer do Sol, e estavam prontos, colocando aos ombros as suas mochilas de rações, equipamento científico, material improvisado para acampar. MacAran estava à espera de Camilla Del Rey, que dava instruções finais a um membro da tripulação na ponte de comando.

 

- Estas horas do nascer e do pôr do Sol são as mais exactas que conseguimos obter, e tem aqui leituras azimutais exactas para a direcção do nascer do Sol. Talvez seja necessário estimar o ponto do meio-dia. Mas todas as noites, ao pôr do Sol, faça incidir nesta direcção a luz mais intensa que exista na nave, e mantenha-a acesa durante exactamente dez minutos. Desta forma poderemos traçar uma linha de direcção para onde nos dirigimos e estabelecer os lados leste e oeste. Já sabe como efectuar as leituras de ângulo do meio-dia.

 

Voltou-se e deu com MacAran parado atrás de si. Calmamente, disse:
- Estou a deixá-lo pendurado? Desculpe, mas deve compreender a necessidade de obtermos leituras exactas.

 

- Concordo plenamente - replicou MacAran -, e aliás não precisa de me perguntar. A sua patente é mais elevada que a de qualquer outro participante nesta expedição, não é assim?

 

Ela arqueou os seus delicados sobrolhos.

 

- Ah, então é isso que o preocupa? Na realidade, não é assim, a não ser na ponte. O capitão Leicester conferiu-lhe o comando desta expedição, e, creia-me, estou Muito satisfeita com isso. Provavelmente sei tanto sobre montanhismo como você sabe sobre navegação celestial, ou talvez ainda menos. Cresci na colónia AIpha, e sabe como são os desertos lá.

 

MacAran sentiu-se consideravelmente aliviado... e perversamente irritado. Esta mulher era perceptiva como um raio! Claro, as tensões iriam diminuir se ele não precisasse de lhe solicitar, como oficial de patente superior, que transmitisse aos outros elementos quaisquer ordens ou sugestões sobre a viagem. Mas o caso era que ela conseguira, de algum modo, fazê-lo sentir-se inferiorizado, hesitante, um simplório!

 

- Bem - disse ele -, informe-me logo que estiver despachada. Temos muito caminho a percorrer, por terrenos bastante difíceis. Tratemos portanto de nos pôr em marcha.

 

Afastou-se para onde o resto do grupo estava reunido, avaliando mentalmente os membros da expedição. Ewen Ross carregava consigo uma boa parte do equipamento astronómico de Camilla Del Rey, uma vez que, como ele próprio admitira, o seu estojo de material médico não pesava muito. Heather Stuart, trajando como os outros um uniforme de superfície, estava a falar com Ross num tom sumido, e MacAran pensou obliquamente que aquilo devia ser amor, quando a namorada se levantava a uma hora tão madrugadora para se despedir dele. A Dra. Judith Lovat, baixa e robusta, tinha afivelado às costas um sortimento de pequenas caixas para amostras. MacAran não conhecia os outros dois que aguardavam, igualmente uniformizados, e, antes que todos se pusessem em marcha, aproximou-se deles - já nos vimos nas salas de recreio, mas não creio que vos conheça. Querem apresentar-se?

 

O primeiro deles, um homem alto, de tez escura e nariz adunco, aparentando uns trinta e tantos anos, disse:

 

- Chamo-me Marco Zabal. Sou xenobotânico. Venho por indicação da Doutora Lovat. Estou habituado às montanhas, cresci na região basca, e participei em expedições aos Himalaias.

 

- Estou contente por poder contar consigo. - MacAran deu-lhe um aperto de mão. - Vai ser útil poder contar com mais alguém que se sinta à vontade nas montanhas. E você?

 

- Lewis MacLeod. Zoólogo, especializado em veterinária.

- Membro da tripulação ou colono?

 

- Colono. - MacLeod mostrou um sorriso cortês. Era um homem baixo, gordo e de cor clara. - E, antes que mo pergunte, não tenho experiência formal de montanhismo, mas cresci nas Terras Altas da Escócia, onde ainda hoje é preciso andar bastante a pé para se chegar a qualquer parte, e o terreno é mais vertical do que horizontal.

 

- Bem, isso é um factor positivo - comentou MacAran. Pronto, agora que já estamos todos juntos... Ewen, dá um beijo de despedida à tua moça, e toca a marchar.

 

Heather soltou um riso suave, voltou-se e ajustou o capuz do uniforme: era uma rapariga baixa, franzina e de ar delicado, e parecia ainda mais pequena envolta num uniforme apropriado para uma mulher corpulenta.

 

- Deixa-te disso, Rafe. Vou convosco. Sou diplomada em Microbiologia, e estou aqui para reunir amostras para o chefe de Medicina.

 

- Mas... - MacAran franziu a testa, confuso. Podia compreender a presença de Camilla, que era mais qualificada do que

 

Nota: Xenobotânico: Especialista em botânica alienígena. Deriva de ”xeno”, expressão derivada do grego que designa ”estrangeiro”. Ex.: ”xenofobia”. (N. do T.)
qualquer homem para o seu trabalho. E da Doutora Lovat, talvez. - Pedi que fossem recrutados homens para esta expedição

- disse. - O caminho vai ser bastante difícil. - Olhou para Ewen à espera de apoio, mas o jovem limitou-se a rir.

 

- Será preciso recordar-te dos termos da Carta dos Direitos dos Terráqueos? Não será permitido propor ou formular leis que limitem os direitos de qualquer ser humano a aceder a uma dada actividade, qualquer que seja a sua origem racial, religião ou sexo...

 

- Raios, não me venhas cá atirar à cara o Artigo Quarto resmungou MacAran. - Se a Heather quer estragar as botas e tu não te importas, quem sou eu para criar obstáculos? - Ainda suspeitava de que Ewen tinha arranjado tudo. Raio de modo de se iniciar uma expedição! E ele que, apesar do objectivo sério da missão, se sentira excitado sobre a possibilidade que lhe era oferecida de escalar uma montanha inexplorada... só para descobrir que tinha de puxar atrás de si não apenas um elemento feminino da equipa - a qual ao menos parecia suficientemente intrépida, e fisicamente apta -, mas também a Doutora Lovat, que talvez não fosse velha mas que certamente não era tão jovem e vigorosa como seria de desejar, e ainda a frágil e delicada Heather. - Bem, toca a andar - disse, com a esperança de não parecer tão deprimido como realmente se sentia

 

Dispôs os elementos da expedição em fila, ocupando o lugar da frente com a Dra. Lovat e Heather imediatamente atrás, seguidas por Ewen para poder determinar se o ritmo de andamento que impunha seria excessivo para elas; Camilla vinha a seguir, com MacLeod, e Zabal, devido ao seu treino de montanhista, fechava a fileira. Enquanto se afastavam da nave, passando por entre o pequeno agrupamento de construções e abrigos provisórios, o grande Sol vermelho começou a elevar-se sobre a linha das longínquas montanhas, como um enorme olho inflamado e raiado de sangue. A névoa pairava espessa na concha de terreno onde a nave jazia, mas à medida que subiam para sair do vale a neblina foi-se tornando mais rala e esfarrapada, e o estado de espírito de MacAran começou a melhorar. Não era realmente uma tarefa de somenos importância chefiar um grupo de exploração, talvez o único grupo de exploração durante centenas de anos, num planeta completamente novo.

 

Caminhavam em silêncio; havia muito para ver. Ao alcançarem a orla do vale, MacAran parou e esperou que os outros se aproximassem...

 

- Tenho muito pouca experiência de planetas alienígenas disse. - Mas não se deixem perder por entre qualquer vegetação rasteira de aspecto estranho, vejam onde colocam os pés, e espero não precisar de vos recomendar que não bebam a água nem comam seja o que for sem que a Doutora Lovat tenha dado a sua aprovação. Vocês dois são os especialistas...  disse, apontando para Zabal e MacLeod. - Querem acrescentar alguma coisa?

 

- Apenas recomendar cautela - disse MacLeod. - Tanto quanto sabemos, este planeta pode estar carregado de serpentes e répteis venenosos, mas os nossos uniformes de superfície proteger-nos-ão da maioria dos perigos que não pudermos ver. Trago uma arma para usar em emergências extremas... se algum dinossauro ou um grande carnívoro surgir e carregar sobre nós... mas de um modo geral será melhor fugirmos do que dispararmos. Lembrem-se de que esta é uma observação preliminar, e não se entusiasmem demasiado a classificar e recolher amostras, pois a próxima equipa de exploração poderá encarregar-se disso.

 

- Se houver uma próxima equipa... - comentou Camilla. Ela tinha falado num sussurro, mas Rafael ouviu-a e lançou-lhe um olhar cortante, mas limitou-se a dizer:

 

- Façam todos uma leitura da bússola na direcção do cume da montanha, e anotem qualquer desvio que tivermos de fazer devido às irregularidades do terreno. Daqui podemos ver o cume, mas logo que penetrarmos nas colinas talvez não possamos ver mais do que a colina seguinte ou as copas das árvores.
Ao princípio foi uma caminhada fácil, agradável, subindo vertentes suaves por entre alterosos troncos coníferos com raízes profundas, surpreendentemente finos para a altura, com longas agulhas azul-esverdeadas nas estreitas ramadas. Se não fosse a obscuridade do Sol vermelho, poderiam estar a caminhar numa reserva florestal na Terra. Uma vez por outra Marco Zabal afastava-se da fileira por uns instantes para inspeccionar uma árvore, uma raiz ou uma folha; e de uma vez um pequeno animal esquivou-se pelo bosque. Lewis MacLeod viu-o fugir com mágoa e disse para a Dra. Lovat:

 

- Uma coisa é certa: há aqui animais de pelame. Talvez marsupiais, mas não tenho a certeza.

 

- julgava que ia recolher espécimes - disse a mulher.

 

- Tenciono fazê-lo, no regresso. Não tenho meios para conservar os espécimes vivos durante a expedição, pois não saberia como alimentá-los. Mas se está preocupada a respeito da reserva de provisões, posso afirmar que até à data todos os mamíferos de qualquer planeta, sem excepção, têm-se mostrado comestíveis e salutares. Alguns não são muito agradáveis ao paladar, mas os animais que produzem leite são todos evidentemente similares na sua química corporal.

 

Judith Lovat notou que o diminuto zoólogo estava a arquejar com o cansaço, mas não disse nada. Podia compreender perfeitamente o fascínio de ser a primeira pessoa a ver e a classificar a fauna de um planeta completamente desconhecido, uma tarefa usualmente deixada para equipas altamente especializadas, e supunha que MacAran não o teria aceite para a viagem se ele não estivesse fisicamente apto.

 

O mesmo pensamento ocupava a mente de Ewen Ross ao caminhar ao lado de Heather; nenhum dos dois perdia fôlego a conversar. Achava que Rafe não estava a impor um ritmo de andamento muito duro, mas mesmo assim não estava certo de como as mulheres iriam resistir. Quando MacAran fez uma paragem, um pouco mais de uma hora após a partida, deixou a rapariga e aproximou-se dele.
- Diz-me, Rafe, qual é a altura máxima daquela montanha?

- Não tenho possibilidade de saber ao certo, por estar tão distante, mas estimo-a em cerca de 5500 ou 6000 metros.

 

- Achas que as mulheres poderão subi-la até ao topo? perguntou Ewen.

 

- Camilla vai ter de conseguir, pois precisa de efectuar observações astronómicas, e Zabal e eu poderemos ajudá-la se for necessário, mas os restantes elementos poderão ir ficando pelas vertentes se não forem capazes de ir mais longe.

 

- Eu vou ser capaz - disse Ewen. - Lembra-te, o teor de oxigénio nesta atmosfera é mais elevado que o da Terra, e a anoxemia não se declarará ainda a essa altitude. - Olhou para o grupo de homens e mulheres, sentados a descansar, excepto Heather Stuart, que estava a colher uma amostra de solo e a guardá-la num dos seus tubos. Lewis MacLeod deitara-se no chão e estava a respirar com dificuldade, de olhos fechados. Ewen olhou para ele com alguma preocupação; os seus olhos treinados detectavam o que até Judith Lovat não tinha notado, mas não se pronunciou. Não poderia mandar o homem regressar a esta distância do local de partida, pelo menos sem ir acompanhado.

 

Pareceu ao jovem médico que MacAran estava a ler-lhe os pensamentos quando este comentou, de forma inesperada:

 

- Não te parece que isto está a decorrer bem de mais, fácil de mais? Tem que haver qualquer coisa neste planeta que não correrá bem. Isto parece-se demasiado com um piquenique numa reserva florestal.

 

”Rico piquenique”, pensou Ewen, ”com cinquenta e tantos mortos e mais de cem feridos na queda da nave”, mas não vocalizou o seu pensamento, lembrando-se de que Rafe tinha perdido a irmã.

 

- Porquê, Rafe? Haverá alguma lei a dizer que um planeta inexplorado tem de ser perigoso? Talvez apenas estejamos de tal modo condicionados a uma vida sem riscos na Terra que receamos afastar-nos um centímetro que seja da nossa tecnologia
confortável, segura. - Esboçou um sorriso. - Não te tenho ouvido reclamar que na Terra todas as montanhas, e até as pistas de esqui, estão de tal forma civilizadas que já não há qualquer sensação de conquista pessoal? Mas quem sou eu para falar... Nunca me senti atraído por desportos arriscados.

 

- Talvez tenhas alguma razão - concordou MacAran, mas continuava a sentir-se deprimido. - Mas, se é assim, por que razão eles fazem tanto espalhafato a respeito de enviarem equipas de exploração especializadas sempre que se descobre um novo planeta?

 

- Não faço a menor ideia. Mas não achas possível que, num planeta onde o homem nunca se desenvolveu, também não se tenham desenvolvido ali os seus inimigos naturais?

 

A hipótese podia ter dado algum conforto a MacAran, mas em vez disso fê-lo sentir um arrepio gelado. Se o homem não pertencia aqui, poderia sobreviver aqui? Mas não o disse.

 

- É melhor pormo-nos em marcha. Temos muito caminho a percorrer, e gostaria de chegar às vertentes antes de escurecer. Parou junto de MacLeod quando este se esforçava por levantar-se.

 

- Sente-se bem, Doutor MacLeod?

 

- Pode tratar-me por Mac - disse o outro com um sorriso ténue. - Não estamos agora sujeitos à disciplina de bordo. Estou bem, estou.

 

- O senhor é especialista em animais. Tem alguma teoria sobre o facto de ainda não termos encontrado nenhum ser maior do que um esquilo?

 

- Duas, até - respondeu MacLeod, sorrindo abertamente. A primeira, claro, é de que talvez não exista nenhum. A segunda, que acho mais válida, é de que com seis, não, com sete pessoas caminhando desta forma através da vegetação, qualquer bicho que tenha um cérebro maior do que o dum esquilo fará o possível para conservar-se à distância!

 

MacAran riu-se com gosto, ao mesmo tempo que corrigia para melhor a opinião que tinha a respeito do homenzinho.
- Acha que precisamos de fazer menos barulho?

 

- Duvido de que seja possível. Esta noite será um teste melhor. Se existir alguma analogia com a Terra, irão então surgir os carnívoros maiores, esperançados em surpreender as suas presas naturais durante o sono.

 

- Nesse caso será melhor certificarmo-nos de que não iremos ser apanhados por engano - comentou MacAran, mas, enquanto observava os outros carregando aos ombros as suas mochilas e formando uma fila, cogitou alarmado que este era um pormenor que lhe tinha falhado. Era verdade: a opressiva atenção dedicada à segurança na Terra tinha virtualmente eliminado todos os perigos, à excepção daqueles provocados pelo homem. Até mesmo as expedições de caça na selva eram efectuadas a bordo de camiões protegidos por painéis laterais em vidro inquebrável, e não lhe ocorrera que esta missão poderia ser perigosa sob esse aspecto.

 

Tinham prosseguido a caminhada durante mais cerca de quarenta minutos, através de bosques cada vez mais espessos e de vegetação rasteira mais abundante, em que era necessário forçar caminho por entre a rama, quando judith parou repentinamente, esfregando os olhos com uma expressão de dor. Quase simultaneamente, Heather levantou as mãos e ficou a observá-las, horrorizada. Ewen, que caminhava ao lado dela, alarmou-se.

- O que se passa?

 

- As minhas mãos... - Heather mostrou-lhas, com o rosto sem cor. Ewen chamou: - Rafe! Pára por um momento! - e a desgarrada fileira imobilizou-se. Tomou cuidadosamente os delicados dedos de Heather entre os seus, examinando com minúcia os picos esverdeados em erupção. Atrás dele Camilla soltou um grito:

 

- Judy! Meu Deus, olhem para a cara dela!

 

Ewen voltou-se para a Doutora Lovat. Esta apresentava o rosto e as pálpebras cobertas por pontos esverdeados, que pareciam a Ewen multiplicar-se e inchar a olhos vistos. Judith fechou
os olhos com força. Camilla segurou-lhe suavemente as mãos quando ela as levava para o rosto.

 

- Não toques na cara, Judy! Doutor Ross, o que será isto?

- Como raio poderei saber? - Ewen olhou à sua volta enquanto os outros se aproximavam. - Há mais alguém a ficar verde? - Depois acrescentou: - Pois bem. É para isto que estou aqui, e toda a gente deve manter-se à distância até sabermos aquilo com que lidamos. Heather! - Sacudiu-lhe bruscamente os ombros. - Acaba com isso! Não vais morrer desta, pois acho que todos os teus sinais vitais estão em ordem.

 

Com um esforço, a rapariga controlou-se.

- Desculpa.

 

- Ora bem. Diz-me exactamente o que sentes. Estas manchas doem-te?

 

- Não, bolas: comichão! - Estava congestionada, com o rosto vermelho, o cabelo acobreado caindo solto em volta dos ombros; levantou a mão para afastá-los, mas Ewen segurou-lhe o pulso, tendo o cuidado de tocar apenas na manga do uniforme. - Não, não toques na cara - dísse-lhe. - Foi isso que a Doutora Lovat fez. Doutora Lovat, como se sente?

 

- Não muito bem - respondeu ela com algum esforço. A cara arde-me, e os olhos... bem, é melhor que veja por si.

 

- Bem vejo, realmente. - Ewen reparou que as pálpebras estavam a inchar, tornando-se esverdeadas, dando-lhe um aspecto grotesco.

 

Intimamente, Ewen receava estar a dar sinais do pavor que sentia. Como todos os presentes, tinha crescido a escutar histórias das exóticas pragas que podiam ser encontradas em mundos desconhecidos. Mas ele era médico, e este era o seu trabalho. Esforçando-se para que a sua voz tivesse um tom firme, disse:

 

- Muito bem, todos os outros conservem-se afastados, mas não entrem em pânico. Se se tratasse duma praga transmitida aereamente já todos tínhamos sido contagiados, e provavelmente logo na noite em que aterramos aqui. Doutora Lovat, há outros sintomas?

 

Tentando sorrir, Judy disse:

 

- Nada mais... a não ser estar cheia de medo.

 

- Não vamos considerar isso... por agora. - Calçando luvas de borracha retiradas de um pacote esterilizado incluído no seu estojo, tomou-lhe prontamente o pulso. - Não há taquicardia, nem respiração ofegante. E tu, Heather?

 

- Estou bem, a não ser esta comichão infernal.

 

Ewen examinou com minúcia as pequenas erupções cutâneas. Eram ao princípio minúsculas, mas cada pápula transformava-se prontamente numa vesícula. - Bem, comecemos a eliminar. O que terão feito a Doutora Lovat e tu que mais ninguém tivesse feito?

 

- Recolhi amostras do solo - disse Heather -, à procura de bactérias e de diatornáceas.

 

- Eu estive a estudar algumas folhas - disse Judy -, tentando verificar se teriam um teor adequado de clorofila.

 

Marco Zabal revirou os punhos das suas mangas.

 

- Vou fazer de Sherlock Holmes - disse. - A solução encontra-se aqui. - Mostrou os pulsos, que tinham um ou dois diminutos pontos verdes. - Miss Stuart: foi-lhe preciso afastar algumas folhas para recolher as suas amostras?

 

- Sim, com efeito: algumas folhas encarniçadas e lisas disse ela, e Zabal acenou com a cabeça.

 

- Aí está a explicação. Como qualquer xenobotânico que se preze, só mexo em qualquer planta com luvas calçadas até ter a certeza do que se encontra nela ou sobre ela, e notei nessas folhas a presença de óleo volátil, mas não considerei o caso como tendo grande importância. É provavelmente algum parente afastado do urushiol - rbus toxicodendron -, ou seja, do sumagre venenoso, para os menos versados nestas coisas. E parece-me que, como se manifesta tão apressadamente, não passa duma simples dermatite de contacto, sem qualquer efeito secundário
grave. - Esboçou um sorriso, e o seu longo e estreito rosto tinha uma expressão divertida. - Experimente aplicar uma pomada anti-histamínica, se tiver, ou dê uma injecção à Doutora Lovat, dado que os seus olhos estão de tal forma inchados que ela terá dificuldade em saber para onde vai. E que ninguém, a partir de agora, se ponha a admirar as bonitas folhas até que eu as inspeccione, está bem?

 

Ewen seguiu as instruções de Marco Zabal, com um alívio tão intenso que era quase doloroso. Sentia-se totalmente incapaz de enfrentar uma praga alienígena, fosse ela qual fosse. Uma maciça injecção de anti-histamínicos fez prontamente diminuir o inchaço dos olhos de Judith Lovat até estes atingirem um tamanho normal, se bem que o tom esverdeado se mantivesse. O basco mostrou a todos a sua folha espécime, guardada num estojo de plástico transparente. - É esta a ameaça vermelha que nos torna a todos esverdeados - disse secamente. - Tratem de afastar-se das plantas alienígenas, se conseguirem.

 

- Se toda a gente já estiver bem, retomemos a marcha disse MacAran, mas, enquanto todos reuniam o equipamento, ele sentia-se tonto com o alívio, e também com novos receios. Que outros perigos poderiam aguardá-los ocultamente numa árvore ou numa flor de aspecto inocente? Num discreto tom de voz, disse para Ewen: - Estava mesmo a ver que este sítio era bom de mais para ser verdade.

 

Zabal ouviu-o e soltou uma gargalhada.

 

- Um irmão meu participou na equipa de exploração que chegou à colónia de Coronis. Foi essa a única razão que me levou a participar nesta. A Força Expedicionária não tem conveniência em tornar públicas as dificuldades que os novos planetas podem esconder, porque então ninguém na nossa cómoda e segura Terra se arriscaria a visitá-los. Evidentemente, quando os principais grupos colonizadores, como o nosso, partem para lá, as equipas especializadas já removeram os perigos mais óbvios e, por assim dizer, suavizaram as coisas.
- Partamos - ordenou MacAran, sem responder. Este era um planeta selvagem, mas o que poderia ele fazer? Tinha dito que estava disposto a correr riscos, e agora surgia a sua oportunidade.

 

Prosseguiram sem incidentes, suspendendo a marcha a meio do dia para almoçarem com o que transportavam nas mochilas e para que Camilla Del Rey pudesse acertar o cronómetro. Ao aproximar-se dela, MacAran viu-a a observar atentamente uma pequena vara que tinha espetado no chão.

 

- Qual é a ideia?

 

- O momento em que a sombra da vara atinge a sua menor dimensão marca o meio-dia exacto, Por isso, marco o comprimento da sombra a intervalos de dois minutos, e, quando ele começa a alongar-se novamente, com o Sol exactamente no meridiano, o meio-dia situa-se dentro desse período de dois minutos. Para os nossos propósitos, isto corresponde com a necessária aproximação ao verdadeiro meio-dia local. - Camilla voltou-se para ele e perguntou em voz baixa: - A Heather e a judy estão realmente bem?

 

- Estão, claro. O Ewen tem estado a controlá-los em cada paragem. Não sabemos quanto tempo vai demorar até que o verde desapareça, mas encontram-se bem de saúde.

 

- Quase me deixei tomar pelo pânico - murmurou ela. judy Lovat faz com que eu tenha vergonha de mim mesma. Ela parecia tão calma...

 

MacAran notou que, aos poucos e poucos, os termos ”Tenente Del Rey”, ”Dra. Lovat”, ”Dr. MacLeod”, usados a bordo

- onde, aliás, todos se relacionavam apenas com os seus colegas mais próximos, excepto formalmente - estavam a transformar-se em Camilla, judy, Mac. Ele achava bem. Talvez tivessem de ficar aqui durante muito tempo, Disse qualquer coisa a esse respeito, e depois perguntou abruptamente:

 

- Tem alguma ideia de quanto tempo ficaremos aqui para as reparações?
- Nenhuma - respondeu ela -, mas o capitão Leicester fala em seis semanas... se conseguirmos reparar a nave.

 

- Se?

 

- Claro que poderemos repará-la - disse Camilla, repentinamente e de modo incisivo, e depois voltou-lhe as costas. - Vamos ter de conseguir. Não podemos ficar aqui.

 

MacAran não sabia se isto era realidade ou optimismo, mas não perguntou. Quando voltou a falar foi para fazer um comentário banal a respeito da qualidade das rações que traziam consigo e para manifestar a esperança de que Judy localizasse aqui alguma fonte de alimentos frescos.

 

Quando o Sol começou a descer sobre as distantes cordilheiras o frio regressou, e um vento forte pôs-se a soprar subitamente. Camilla olhou apreensiva para as nuvens que se acumulavam.

 

- já basta de observações astronómicas - murmurou. Será que chove todas as noites neste malfadado planeta?

 

- Assim parece - concordou MacAran, lacónico. - Talvez seja próprio da estação. Mas todas as noites, até agora, pelo menos na presente estação: calor ao meio-dia, um arrefecimento rápido, nuvens durante a tarde, neve próximo da meia-noite. E névoa de manhã.

 

Franzindo a testa, Camilla comentou:

 

- Segundo posso depreender das alterações climáticas - ainda que um período de cinco dias não nos possa dizer muito - estamos na Primavera; pelo menos os dias estão a ficar mais longos, cerca de três minutos por dia. O planeta parece ter uma inclinação do seu eixo mais acentuada do que a da Terra, o que poderia provocar estas violentas mudanças do clima. Mas talvez que, depois de a neve desaparecer e antes que o nevoeiro apareça, o céu fique um pouco limpo... - e calou-se, pensativa. MacAran não quis perturbá-la, e quando uma chuva miúda começou a cair pôs-se a procurar um sítio para acamparem. Seria melhor estarem debaixo de lona quando a chuva se transformasse numa torrente de água.
Encontravam-se num declive; abaixo deles estendia-se um vale amplo e quase liberto de árvores, não situado directamente no seu trajecto mas agradável e verdejante, estendendo-se por três ou quatro quilómetros para o sul. MacAran observou-o, pesando os perto de dois quilómetros que iriam perder contra os problemas de acamparem debaixo das árvores. Estas faldas eram entrecruzadas por outros vales minúsculos, e através deste corria algo que parecia um estreito curso de água. Seria um rio? Um arroio? Poderia ser usado para reabastecer as reservas de água da expedição? Levantou a questão, e MacLeod disse:

 

- Podemos ensaiar a água, claro. Mas estaremos mais seguros acampando aqui no meio da floresta.

 

- Porquê?

 

Como resposta MacLeod apontou e MacAran distinguiu a distância algo que se assemelhava a uma manada de animais a pastar. Era difícil discernir quaisquer detalhes, mas pareciam ser do tamanho de pequenos póneis.

 

- É aquela a razão - disse MacLeod. - Poderão ser animais pacíficos, ou até domáveis. E se andam a pastar não são carnívoros. Mas eu não gostaria de me encontrar no caminho deles se se resolvessem a correr em debandada durante a noite. No meio das árvores podemos estar precavidos contra o que possa chegar.

 

Judy aproximou-se e parou junto deles.

 

- Talvez sejam bons para comer. Talvez sejam até domesticáveis, se alguém chegar algum dia a colonizar este planeta, evitando o trabalho de trazer da Terra animais para pecuária ou para bestas de carga.

 

Observando o lento deambular da manada sobre o relvado cinzento-verde, MacAran cogitou sobre como era trágico o ser humano apenas considerar os animais segundo as suas próprias necessidades. Mas a verdade é que aprecio um bom bife tanto como qualquer outra pessoa, e por isso quem sou eu para me queixar? E talvez dentro de algumas semanas eles tivessem já
partido dali, e os animais que agora pastavam, fossem eles o que fossem, ficariam sossegados para todo o sempre.

 

Armaram o acampamento na encosta, sob uma chuva miúda, e Zabal tratou de acender uma fogueira.

 

- Preciso de chegar ao cimo da colina ao pôr do Sol para tentar estabelecer uma linha de mira com a nave - disse Camilla. - Eles vão acender luzes para servirem de ponto de mira.

 

- Não lhe seria possível ver nada com esta chuva - proclamou MacAran, de maneira cortante. - A visibilidade é já de menos de um quilómetro. Nem uma luz forte seria visível daqui. Recolha-se debaixo da tenda, pois está encharcada!

 

Camilla voltou-se de repente para ele.

 

- Mister MacAran, será necessário lembrar-lhe que não tenho de aceitar ordens suas? O senhor tem a seu cargo o grupo de exploração, mas eu estou aqui ao serviço da nave e tenho deveres a cumprir! - Deu meia volta e afastou-se da tenda de plástico em forma de cúpula, começando a subir a encosta. MacAran, amaldiçoando em silêncio todas as oficiais teimosas, correu atrás dela.

 

- Volte para trás! - disse-lhe ela com rispidez. - Tenho os meus instrumentos, e não preciso de ajuda.

 

- Conforme disse agora mesmo, tenho a meu cargo o grupo de exploração. Pois bem, raios, uma das minhas ordens é que ninguém que pertença a este grupo poderá afastar-se sem ser acompanhado! Ninguém... e isso inclui a primeira-oficial da nave!

 

Ela deu meia volta sem ripostar, avançando encosta acima ajustando ao rosto o capuz do casacão para se defender da chuva gelada que começou a cair com maior intensidade enquanto ambos subiam. MacAran ouviu-a escorregar e tropeçar na vegetação rasteira, apesar da lanterna forte que transportava. Ao alcançá-la, colocou-lhe a mão num cotovelo. Ela tentou sacudi-la, mas MacAran disse com rispidez:

 

- Não seja idiota, Tenente! Se fracturar um tornozelo todos nós teremos de transportá-la ao colo... ou voltar para trás! Duas pessoas talvez consigam equilibrar-se, quando uma pessoa só não consegue. Vá... apoie-se no meu braço - Ela permaneceu rígida, e ele rosnou: - Raios, se você fosse homem não lhe pediria delicadamente para me deixar ajudá-la: obrigá-la-ia!

 

Camilla soltou um riso curto.

 

- Pronto, está bem! - disse, e apoiou-se no braço dele, com as lanternas de ambos pesquisando o terreno à procura de um carreiro seguro. MacAran ouviu-a batendo os dentes com o frio, mas ela não disse uma palavra de lamento. A vertente tornou-se mais íngreme, e ao longo dos derradeiros metros MacAran teve de se adiantar à rapariga e puxá-la para cima. Ela olhou em volta, à procura da direcção, e apontou para o local onde um sumido reflexo se mostrava através da ofuscante chuva.

 

- Será aquilo? - perguntou ela, incerta. - A direcção indicada pela bússola parece confirmar.

 

- Se eles estiverem a usar um laser, acho que talvez se veja a esta distância, mesmo através da chuva. - A luz desapareceu, voltou a cintilar debilmente, e desapareceu de novo, e MacAran soltou uma praga. - A chuva está a transformar-se em granizo... Vamo-nos embora, comecemos a descer antes que tenhamos de escorregar pela encosta abaixo sobre uma pista de gelo!

 

A descida foi difícil e escorregadia, e de uma vez Camilla perdeu o pé no piso gelado e escorregou, volteou e foi imobilizar-se contra um tronco de árvore, ficando ali meio estonteada até que MacAran, agitando a lanterna e clamando por ela, captou-a no foco luminoso. Camilla estava arquejando e soluçando com o frio, mas, quando ele lhe ofereceu a mão para ajudá-la a levantar-se, ela abanou a cabeça e guindou-se com esforço.

 

- Dispenso ajuda. Mas agradeço-lhe - acrescentou, quase por obrigação.

 

Sentia-se exausta e completamente humilhada. Tinha-lhe sido ensinado que o seu dever era trabalhar com os homens como parceiros iguais, e, no mundo costumeiro que conhecia, um mundo cheio de botões para premir e de máquinas para controlar,
a força

física não era um factor que precisasse de ser tomado em consideração. Sempre estivera ciente de que, durante toda a sua vida, jamais precisara de executar qualquer esforço físico mais intenso do que a ginástica na sala de exercícios da nave ou de uma estação espacial; sentia agora que, de algum modo, não conseguira impor-se por si, que de algum modo atraiçoara a sua exaltada posição na hierarquia. O oficial de uma nave espacial tinha a obrigação de ser mais competente do que qualquer elemento civil! Foi caminhando penosamente pela encosta abaixo, cuidando de onde punha os pés, e sentiu as lágrimas de exaustão e lassitude congelarem nas faces frígidas.

 

MacAran, seguindo-a lentamente, ignorava a porfia interior de Camilla, mas sentia o seu desespero ao observar-lhe os ombros descaídos. Passado um momento, pôs-lhe um braço em redor da cintura, dizendo com suavidade:

 

- Como disse anteriormente, se voltar a cair e ficar maltratada teremos de transportá-la em braços. Não nos faça uma coisa dessas, Camilla. - Depois acrescentou, hesitante: - Deixaria que Jenny a ajudasse, não é verdade?

 

Ela não respondeu, mas deixou-se apoiar nele. MacAran guiou-lhe os passos hesitantes na direcção na luz bruxuleante que se via através da parede da tenda. Algures acima deles, nas espessas árvores, o irritante chamamento de uma ave nocturna fez-se ouvir acima do tamborilar do granizo, mas não havia outro som. Até os passos de ambos tinham uma ressonância estranha.

 

No interior da tenda MacAran fraquejou, aceitando com gratidão a chávena de plástico com chá bem quente que MacLeod lhe oferecia, e avançou cuidadosamente para onde o seu saco-cama tinha sido estendido, ao lado do de Ewen. Sorveu pequenos goles do líquido escaldante e sacudiu o gelo que lhe cobria as pálpebras, enquanto escutava Heather e Judy arrulhando sobre o rosto gelado de Camilla, trazendo-lhe chá quente e um cobertor seco, e ajudando-a a despir o casacão rígido com o gelo. Ewen perguntou:
O que é que está a acontecer lá fora? Chuva? Granizo? Saraiva?

 

- Uma mistura dos três, diria eu... Parece que viemos ao encontro de uma espécie de tempestade equinocial. É impossível que o tempo esteja assim durante todo o ano.

 

- Conseguiram fazer as medições? - Quando MacAran confirmou com um aceno, Ewen prosseguiu: - Um de nós devia ter-se encarregado disso, a tenente não está apta a fazer esse tipo de escalada com um tempo destes. O que a teria levado a fazer um esforço tão grande?

 

MacAran lançou um olhar na direcção de Camilla, encolhida debaixo de um cobertor e bebendo o chá enquanto Judy lhe secava o cabelo molhado e revolto. - Noblesse oblige - respondeu, surpreendendo-se a si próprio.

 

Ewen fez um aceno com a cabeça.

 

- Percebo o que queres dizer. Deixa-me ir buscar-te um pouco de sopa. A Judy fez maravilhas com a ração. É bom termos a companhia duma especialista em alimentação.

 

Estavam todos exaustos e falaram pouco do que tinham visto; de qualquer forma, o uivar do vento e o barulho da saraivada tornava difícil a conversação. Passada meia hora tinham já engolido a refeição, enfiando-se a seguir nos sacos-cama. Heather aproximou-se mais de Ewen, descansando a cabeça no ombro dele, e MacAran, perto deles, olhou para os seus corpos reunidos com uma inveja lenta e indefinida. Era uma proximidade que parecia ter pouco a ver com a sexualidade, realçada pelo modo como ajustavam as suas posições, quase inconscientemente, cada um deles tentando dar mais conforto ao parceiro. Contra a sua vontade, MacAran pensou no momento em que Camilla se deixara apoiar no corpo dele, e sorriu estranhamente na escuridão. De todas as mulheres que vinham a bordo, ela era a que menos poderia interessar-se por ele, e provavelmente aquela com quem ele menos simpatizava. Mas, com um raio, não podia deixar de admirá-la!
Ficou acordado durante algum tempo, escutando o barulho do vento nas pesadas árvores, o som de um tronco partindo-se e caindo algures na tempestade - Santo Deus! Se um deles caísse em cima da tenda, morreríamos todos! -, os estranhos barulhos que talvez fossem provocados por animais correndo através da vegetação rasteira. Passado algum tempo caiu num sono irregular, mas com um ouvido meio aberto, escutando MacLeod a arquejar e gemer enquanto dormia, de uma vez ouvindo um grito de Camilla, um grito de pesadelo, para a seguir cair de novo num sono exausto. Ao aproximar-se a manhã a tempestade acalmou e a chuva parou, e ele adormeceu como se tivesse morrido, ouvindo apenas através do sono os sons de estranhos animais e aves deslocando-se pela floresta inóspita e colinas desconhecidas.

 

MacAran acordou um pouco antes do alvorecer, ouvindo Camilla a mexer-se, e viu através da penumbra da tenda que ela estava a pôr o uniforme. Saiu silenciosamente do saco-cama e perguntou em voz baixa:

 

- O que se passa?

 

- A chuva já parou e o céu está limpo; quero fazer algumas observações do céu e medições espectrográficas antes que o nevoeiro chegue.

 

- Está bem. Precisa de ajuda?

 

- Não, Marco pode ajudar-me a transportar os instrumentos.

 

Ele esteve quase a protestar, mas depois encolheu os ombros e meteu-se de novo no saco-cama. O assunto não lhe dizia respeito Camilla devia saber o que fazia e não precisava de ser vigiada. Tinha-o demonstrado amplamente.

 

Contudo, uma apreensão indefinida não o deixou adormecer de novo. Ficou deitado num dormitar inquieto, escutando à sua volta os ruídos da floresta a acordar. Pássaros lançavam chamamentos de árvore em árvore, alguns ásperos e roufenhos, outros suaves e melodiosos. Ouviam-se crocitos e ligeiros reboliços na vegetação rasteira, e algures na distância um som não muito diferente do ladrar de um cão.

 

Até que o silêncio foi despedaçado por um berro horrível, um guincho de agonia inquestionavelmente humana, um chocante
grito de angústia, repetido por duas vezes e desfazendo-se num queixume balbuciante, e depois silêncio.

 

MacAran saltou do saco-cama e correu para fora da tenda, meio vestido, com Ewen um passo atrás dele, e todos os outros a imitá-los, apáticos, espantados, amedrontados. MacAran subiu a encosta correndo na direcção do som, ouvindo Camilla a gritar por socorro.

 

Ela tinha montado o seu equipamento numa clareira próximo no alto da colina, mas estava agora deitado por terra; a pouca distância Marco Zabal jazia no chão, contorcendo-se e gemendo incoerentemente. Estava inchado e o seu rosto tinha um ar medonhamente congestionado. Camilla agitava freneticamente o ar com as mãos enluvadas. Ewen ajoelhou-se junto do homem, perguntando urgentemente a Camilla:

 

- Depressa, o que se passa?

 

- Coisas... parecidas com insectos - disse ela, estremecendo e estendendo as mãos. Na palma enluvada jazia uma pequena coisa esmagada, com menos de cinco centímetros de comprimento, com uma cauda curva como a de um escorpião e um colmilho retorcido no outro extremo; tinha uma brilhante cor laranja e verde. - Marco pisou aquele montículo ali, e ouvi-o gritar, e depois caiu...

 

Ewen já tinha consigo o estojo de primeiros socorros, e estava a massajar o coração de Zabal. Deu rápidas instruções a Heather, que se tinha agachado ao lado do homem, para lhe cortar a roupa; o rosto do ferido estava congestionado e a escurecer, e o braço tinha inchado imensamente. Zabal estava agora inconsciente, gemendo delirantemente.

 

Um veneno nervino poderoso, pensou Ewen; o coração dele está a bater cada vez mais devagar e o ritmo da respiração diminui. Tudo o que ele poderia agora fazer era dar ao homem um estimulante bastante forte e observá-lo com atenção, para o caso de necessitar de respiração artificial. Não se atrevia a dar-lhe nada para aliviar a agonia; quase todos os narcóticos tornavam mais lenta a respiração. Aguardou, também ele a respirar com dificuldade, com o estetoscópio encostado ao peito de Zabal, enquanto o coração deste começava a bater um pouco mais regularmente. Ewen levantou a cabeça para lançar um olhar ao montículo de terra e para perguntar a Camilla se também teria sido mordida - não tinha, se bem que dois dos horripilantes insectos tivessem tentado rastejar-lhe pelo braço acima - e para exigir que toda a gente se mantivesse afastada do montículo, ou formigueiro, ou lá o que era. Sorte a nossa não termos montado a tenda em cima daquilo na escuridão! MacAran e Camilla também podiam tê-lo pisado... ou talvez os bichos fiquem entorpecidos debaixo da neve!

 

O tempo foi-se arrastando. Zabal começou a respirar de novo com regularidade, gemendo ligeiramente, mas continuava inconsciente. O grande Sol vermelho, envolto em névoa, elevou-se lentamente sobre as colinas que os cercavam.

 

Ewen enviou Heather à tenda para trazer o resto do seu equipamento clínico; Judy e MacLeod começaram a preparar um pequeno-almoço sumário. Estoicamente, Camilla fez os cálculos das poucas leituras astronómicas que tinha conseguido realizar antes do ataque dos escorpiões-formigas, termo com que MacLeod, depois de examinar o insecto morto, tinha baptizado provisoriamente os bichos. MacAran aproximou-se e parou junto do homem inconsciente e do jovem médico que continuava ajoelhado ao lado dele.

 

- Achas que ele vai viver?

 

- Não sei. É possível. Nunca vi nada parecido com isto desde que tratei o meu único caso de mordedura de cobra cascavel. Mas uma coisa é certa: ele não irá hoje a parte nenhuma, nem provavelmente amanhã.

 

- Não será melhor levarmos Zabal em braços para dentro da tenda? - perguntou MacAran. - Não é possível que outros bichos destes andem por aí à solta?

 

- Prefiro não o fazer deslocar, para já. Talvez dentro de algumas horas.
MacAran endireitou-se, olhando para Zabal com uma expressão de desânimo. Não podiam atrasar-se, mas o tamanho do grupo tinha sido calculado com rigor e não havia ninguém que pudesse ser dispensado para regressar à nave e trazer ajuda. Por fim disse:

 

- Temos de seguir em frente. Supõe que removemos Marco para dentro da tenda, quando for seguro, e que tu ficas a tomar conta dele? Os outros poderão executar os seus trabalhos de exploração tão bem aqui como em qualquer outra parte, estudar o solo, recolher amostras das plantas e dos animais. Mas eu preciso de fazer um levantamento topográfico o mais exacto que for possível, a partir do cume da montanha, e a tenente Del Rey tem de executar as suas medições no local mais alto a que conseguir aceder. Nós prosseguiremos, até onde nos for possível. Se o cume for inacessível, não nos esforçaremos, contentando-nos com os exames que nos for possível realizar, e regressaremos aqui.

 

- Não seria melhor esperarem para ver se poderemos seguir convosco? Não sabemos que espécie de perigos nos esperam aqui nas florestas.

 

- É um problema de tempo - disse Camilla, tensa. - Quanto mais cedo soubermos onde nos encontramos, mais cedo teremos uma possibilidade... - E ficou-se por ali.

 

- Não podemos ter certezas - disse MacAran. - Os perigos talvez sejam menores para um grupo muito reduzido, mesmo para uma pessoa só. Tanto pode dar para um lado como para o outro. Parece-me que vamos ter de fazer conforme já disse.

 

Fizeram-se os preparativos apropriados e, como duas horas depois Zabal não exibia indícios de recuperar a consciência, MacAran e os outros dois homens carregaram-no numa maca improvisada para dentro da tenda. Houve alguns protestos sobre a separação do grupo, mas ninguém discordou seriamente com o plano, e MacAran percebeu que já se tornara o seu líder, cuja palavra era a lei. Quando o Sol vermelho atingiu a sua máxima altura sobre eles, já tinham dividido as provisões e estavam prontos para a partida, levando apenas uma pequena tenda-abrigo, alimentos para alguns dias, e os instrumentos de Camilla.

 

No interior da tenda observaram Zabal, que continuava inconsciente. Tinha começado a mover-se mas não mostrava outros sinais de recuperar o conhecimento. MacAran sentia-se desesperadamente preocupado a seu respeito, mas tudo o que podia fazer era deixá-lo entregue aos cuidados de Ewen. Na realidade, o essencial era a análise preliminar deste planeta, bem como as observações registadas por Camilla sobre em que ponto da galáxia se encontrariam agora.

 

Havia qualquer coisa que lhe roía a mente. Ter-se-ia esquecido de alguma coisa? Subitamente Heather Stuart despiu o casacão do seu uniforme e removeu a jaqueta de lã tricotada que usava debaixo daquele.

 

- Toma, Camilla, é mais aconchegada do que a tua - disse em voz baixa. - Vá lá, veste-a. Cai muita neve aqui. E tu vais partir tendo apenas aquela pequena tenda-abrigo!

 

Camilla riu-se, abanando a cabeça.

- Também aqui vai fazer frio.

 

- Mas... - O rosto de Heather estava tenso e distorcido. Mordeu o lábio inferior e suplicou: - Por favor, Camilla. Diz-me que sou tonta, se quiseres. Diz-me que tenho pressentimentos idiotas, mas por favor leva-a contigo!

 

- Também tu? - inquiriu MacLeod com secura. - É melhor levar a jaqueta, Tenente. Eu julgava que era o único com premonições, e nunca liguei muito a percepções extra-sensoriais, mas, quem sabe: num planeta desconhecido, talvez as pessoas transformem a PES numa arma pela sobrevivência. Seja como for, o que poderá perder se levar consigo algum agasalho adicional?

 

MacAran percebeu que o enervamento que sentia no íntimo era de alguma forma relacionado com o tempo.

 

Nota: PES: Percepção extra-sensorial. (N. do T.)
- Leve-a, pois claro - disse para Camilla. - Sempre é mais uma defesa contra o frio. Vou também levar a parca montanhesa de Zabal, que é mais quente do que o meu casacão, deixando este aqui para ele usar. Levamos também uns camisolões sobresselentes, se puderem cedê-los. Não quero que se privem seja do que for, mas a verdade é que, se nevar, ficarão aqui mais abrigados do que nós estaremos, e lá nas alturas deve estar mesmo frio.

- Estava a olhar com curiosidade para Heather e para MacLeod; de um modo geral não tinha qualquer fé no que ouvira dizer a respeito da PES, mas, se havia duas pessoas no grupo que a experimentavam, e se ele próprio sentira alguns vestígios daquilo... bem, talvez se tratasse de alguma pista sensorial inconsciente, algo que ninguém poderia perceber plenamente. De qualquer modo, não precisava de usar a PEs para prever mau tempo nas eminências da montanha de um planeta estranho que possuía um clima caprichosamente agreste! - Levaremos todas as roupas que nos puderem dispensar, além de um cobertor adicional, pois temos sobresselentes - decretou -, e depois partiremos.

 

Enquanto Heather e Judy estavam a arrumar as suas coisas, MacAran arranjou tempo para falar a sós com Ewen.

 

- Esperem aqui por nós durante pelo menos oito dias - disse -, e nós lançaremos um sinal todas as noites ao pôr do Sol, se pudermos. Se não houver notícias nossas ou sinais depois desse período, regressem à nave. Se voltarmos, não terás necessidade de preocupar mais ninguém com isto, mas se nos acontecer alguma coisa ficas no comando.

 

Ewen sentia relutância em vê-lo partir.

- O que hei-de fazer se Zabal morrer?

 

- Sepulta-o - ripostou MacAran com aspereza. - Que mais poderás tu fazer? - Deu meia volta e fez um sinal a Camilla. Vamo-nos embora, Tenente.

 

Conforme iam atingindo maior altitude o panorama modificava-se, com o chão a ficar menos carregado de vegetação e com mais rochas e árvores mais escassas. A inclinação das colinas não era muito acentuada, mas, ao chegarem ao cume da encosta onde tinham acampado, MacAran decidiu fazer uma paragem para descansarem e para engolirem algumas rações. Do local onde agora se encontravam podiam observar o pequeno quadrado alaranjado da tenda-abrigo, apenas um ponto por entre as pesadas árvores na paisagem longínqua.

 

- Que distância teremos já percorrido, MacAran? - inquiriu a rapariga, afastando para trás o capuz forrado de peles da sua parca.

 

- Não sei ao certo. Talvez uns dez a doze quilómetros - respondeu. - Dói-lhe a cabeça?

 

Só um pouco - mentiu a rapariga.

 

É por causa da mudança na pressão atmosférica; acabará por habituar-se - explicou ele. - Ainda bem que o aumento de altitude é gradual.

 

- É difícil acreditar que tenhamos passado a noite lá em baixo, tão longe - disse Camilla, um pouco hesitante.

 

- Assim que ultrapassarmos esta cumeeira ficará fora da nossa vista. Se quiser desistir, é esta a sua última oportunidade. Poderia voltar para lá numa hora, duas no máximo.

 

Ela encolheu os ombros.

- Não me tente.

 

- Está com receio?

 

- Claro que estou, não sou estúpida. Mas não estou em pânico, se é isso que quer dizer.

 

MacAran pôs-se em pé, engolindo o resto da sua ração.

 

- Vamos embora, então. Caminhe com cautela, pois há pedregulhos aqui.

 

Para sua surpresa verificou que ela caminhava com passos seguros sobre as pilhas de pedras próximo da cumeeira, e não precisou de auxiliá-la, nem de procurar um trajecto mais fácil. Do topo da colina podiam observar um longo panorama abaixo deles, o vale onde tinham acampado, com a sua longa planície, o vale mais distante onde jazia a nave espacial, se bem que mesmo
com o seu binóculo de longo alcance MacAran apenas pudesse discernir uma diminuta mancha escura que poderia ser a nave. Mais fácil de ver era a clareira onde tinham derrubado árvores para construir os abrigos. Passando o binóculo a Camilla, disse:

- A primeira marca do homem num mundo novo.

 

- E também a última, espero - disse ela. MacAran tinha vontade de lhe perguntar, sem rodeios, poderia a nave ser reparada? Mas esta não era a melhor ocasião para se pensar nisso. Há ribeiros correndo entre as rochas - comentou -, e a Judy ensaiou a água há alguns dias. Poderemos provavelmente encontrar toda a água de que precisarmos para reatestar os cantis, portanto não precisamos de racioná-la demasiado.

 

- Sinto a garganta muito seca. Será da altitude?

 

- É provável. Na Terra não poderíamos subir muito mais do que isto sem oxigénio, mas este planeta possui um teor mais elevado de oxigénio. - MacAran lançou um derradeiro olhar à tenda cor de laranja muito abaixo deles, guardou o binóculo no estojo e pô-lo a tiracolo. - Bem, o próximo pico será mais alto. Prossigamos, então. - Camilla estava a admirar algumas pequenas flores alaranjadas que cresciam nas gretas das rochas. É melhor não tocar nelas. Quem sabe o que há por aqui que nos pode morder?

 

Camilla deu meia volta, com uma pequena flor nos dedos.

- Tarde de mais - disse ela com um sorriso oblíquo. - Se vou cair morta por colher uma flor, é melhor sabê-lo já do que mais tarde. Não sei bem se quero continuar a viver num planeta em que não posso tocar em nada. - Depois acrescentou, num tom mais sério: - Temos de correr alguns riscos, Rafe... e além disso somos capazes de morrer por causa de qualquer coisa em que nunca pensámos. Parece-me que tudo o que podemos fazer é tornar as precauções óbvias... e arriscar.

 

Era a primeira vez desde a queda da nave que ela o tratava pelo nome próprio, e ele enterneceu-se involuntariamente. Depois disse: - Tem toda a razão, claro; mesmo se andássemos sempre com fatos espaciais nunca teríamos nenhuma protecção garantida, e por isso não vale a pena ficarmos paranóicos. Se pertencêssemos a uma Equipa de Primeiro Desembarque saberíamos quais os riscos que não devemos correr, mas, tal como as coisas se apresentam, acho que tudo o que podemos fazer é arriscar. Estava a ficar encalorado, e despiu a camada exterior do uniforme, - Será que devemos acreditar nos prenúncios da Heather a respeito do mau tempo?

 

Começaram a descer o lado oposto da cumeeira. A meio da descida, depois de andarem duas ou três horas à procura de um caminho, descobriram uma pequena nascente de água cristalina jorrando de uma rocha fendida, e encheram os cantis; a água tinha um gosto doce e puro, e por sugestão de MacAran seguiram o trajecto do arroio; a água seguiria certamente o caminho mais curto.

 

Ao entardecer, nuvens pesadas começaram a correr diante do Sol que já estava a pôr-se. Encontravam-se num vale, sem possibilidade de lançar sinais à nave ou ao outro campo do grupo de exploração. Enquanto montavam a minúscula tenda-abrigo e MacAran preparava um fogareiro para aquecerem as rações, começou a cair uma chuva fina. Praguejando, ele transferiu o fogareiro para debaixo da aba da tenda, tentando protegê-lo da chuva. Tinha conseguido começar a aquecer a água quando o granizo empurrado pelo vento apagou de novo o lume, e MacAran deu-se por vencido e verteu as rações secas na agua tépida.

 

- Tome. Não é saborosa, mas parece comestível... e nutritiva, espero.

 

Camilla fez uma careta ao provar, mas, para alívio dele, não se manifestou. O granizo caía em torvelinho à volta deles. Arrastaram-se para dentro da tenda e fecharam a aba. No interior mal havia espaço para um deles se deitar ao comprido, ficando o outro sentado: as tendas de emergência eram individuais. MacAran preparava-se para fazer um comentário jocoso sobre aquele
confortável alojamento, mas olhou para o rosto crispado de Camilla e logo desistiu. Disse apenas, enquanto se esforçava por libertar-se do casacão e da mochila e começava a desenrolar o saco-cama:

 

- Espero que não sofra de claustrofobia.

 

- Desde os meus dezassete anos sou oficial de naves espaciais. Como poderia sofrer de claustrofobia? - MacAran imaginou o sorriso dela no escuro. - Bem pelo contrário.

 

Nenhum deles tinha muito que dizer depois disso. A certa altura ela perguntou, na escuridão:

 

- Como estará Marco agora? - Mas MacAran não tinha resposta que pudesse dar-lhe, e não valia a pena pensar em como esta viagem decorreria muito melhor com os conhecimentos que Marco Zabal possuía sobre o alto Himalaia. Apenas falou para lhe perguntar, pouco antes de adormecer:

 

- Quer fazer algumas observações das estrelas antes do alvorecer?

 

- Não, acho melhor aguardar até alcançarmos o cume, se por acaso conseguirmos chegar lá.

 

A respiração de Camilla cedeu lugar a uma série de suaves suspiros de exaustão, e ele soube que ela tinha adormecido. Manteve-se acordado por algum tempo, tentando imaginar o que os aguardaria. Lá fora, o granizo açoitava os ramos das árvores, e MacAran escutou um som prolongado que poderia ser o vento ou algum animal correndo através da vegetação. Adormeceu com um sono leve, sempre à espera de sons indefinidos. Por uma ou duas vezes Camilla soltou um grito a dormir, e ele acordou, de sobreaviso e à escuta. Teria ela um pouco de enjoo da altitude? Qualquer que fosse o teor de oxigénio, as cumeeiras eram bastante altas, e uma por uma iam alcançando uma altitude um pouco maior. Bem, ela acabaria por aclimatar-se, ou então não serviria para aquela função. Sumariamente, prestes a adormecer de novo, MacAran reflectiu que a presente situação constituía a matéria-prima ideal da indústria do entretenimento: um homem só com uma mulher bela num planeta desconhecido repleto de perigos. Estava consciente de desejá-la - raios, ele era humano e macho! -, contudo, nas presentes circunstâncias, nada estaria mais longe do seu pensamento do que o sexo. Talvez eu esteja civilizado de mais. Envolto neste pensamento, exausto pela escalada do dia, adormeceu.

 

Os três dias seguintes foram uma repetição daquele, excepto que na terceira noite alcançaram um desfiladeiro ao crepúsculo, quando a chuva da noite não tinha ainda chegado. Camilla armou o telescópio e fez diversas observações. MacAran não conseguiu abster-se de lhe perguntar, ao montar a tenda na penumbra:

 

- Então, teve sorte? já sabe onde nos encontramos?

 

- Não estou bem certa. já sabia que este Sol não é nenhum dos que já se encontram identificados, e as únicas constelações que consegui detectar estão todas desviadas para a esquerda, a partir das coordenadas centrais. Tenho a impressão de que saímos do Braço Central da Galáxia; repare como são raras as estrelas que existem aqui, comparadas mesmo com as da Terra, quanto mais com as de qualquer planeta-colónia localizado centralmente! Não há dúvida, devemos estar bem afastados do nosso destino original! - A voz dela estava tensa e distorcida, e quando ele se aproximou viu na escuridão que havia lágrimas nas faces dela.

 

Sentiu um impulso doloroso para confortá-la.

 

- Bem, quando eventualmente sairmos daqui sabemos ao menos que descobrimos um novo planeta habitável. Talvez venha até a receber uma parte do prémio da descoberta.

 

- Mas estamos tão longe... - interrompeu ela repentinamente. - Poderemos lançar um sinal à nave?

 

- Podemos experimentar. Encontramo-nos a uma altitude de pelo menos uns 2400 metros superior à eles; talvez estejamos numa linha de mira. Tome, pegue no binóculo, veja se consegue detectar qualquer centelha ou relampejo. Claro, eles poderiam estar atrás de alguma dobra nas colinas.

 

Pôs um braço à volta dela, a estabilizar o binóculo. Camilla não se afastou.
- Sabe qual é a orientação da nave? - perguntou ela. MacAran deu-lhe a informação solicitada; ela deslocou ligeiramente o binóculo, com a bússola na mão.

 

- Vejo uma luz... não, deve ter sido um relâmpago. Ora, que diferença poderá fazer? - Impaciente, baixou o binóculo. MacAran podia senti-la a tremer. - Você gosta destes espaços abertos, não gosta? - perguntou ela.

 

- Gosto, realmente - respondeu ele com lentidão. - Sempre me senti bem nas montanhas. Você não?

 

Na meia-luz Camilla abanou a cabeça. Por cima deles a pálida luz violeta de uma das quatro luas dava à escuridão uma débil luminosidade trémula. Sumidamente, respondeu:

 

- Não. Tenho medo delas.

- Tem medo?

 

- Tenho estado sempre dentro dum satélite ou duma nave espacial desde que fui escolhida para esta actividade aos quinze anos. Acabei por... - A voz dela fraquejou. - Acabei por ficar como que... agoráfoba.

 

- E ofereceu-se para esta viagem! - disse MacAran, mas ela pensou que esta manifestação de surpresa e admiração era uma crítica.

 

- Havia mais alguém disponível? - perguntou com aspereza, deu meia volta e regressou à minúscula tenda.

 

Uma vez mais, depois de terem ingerido as rações - hoje bem quentes, pois não havia chuva que lhes apagasse o lume - MacAran ficou acordado por muito tempo depois de Camilla adormecer. já se tinha habituado a ouvir durante a noite apenas o som da chuva empurrada pelo vento e o chiar das ramagens em turbilhão; hoje a floresta parecia cheia de actividade com estranhos sons e ruídos, como se, nesta noite sem tempestade, ressurgisse finalmente toda a sua vida ainda ignorada. De uma vez ouviu um uivo longínquo que lhe soou como uma gravação que escutara em tempos, na Terra, do extinto lobo-cinzento da América do Norte; de outra vez foi um rosnar quase felino, baixo e rouco, e o choro aterrorizado de algum animal pequeno, e a seguir silêncio. E mais tarde, próximo da meia-noite, ouviu um grito agudo e arrepiante, um longo clamor lamentoso que parecia congelar-lhe a medula dos ossos. Parecia-se tão estranhamente com o grito que Marco soltara ao ser atacado pelos escorpiões-formigas que por um momento MacAran, subitamente desperto, levantou-se de um salto; depois, quando Camilla, acordada pelo seu movimento, se sentou assustada, o grito ouviu-se de novo, e ele compreendeu que nada de humano poderia tê-lo produzido. Era um clamor estrídulo e ululante que se prolongava no espaço, cada vez mais forte, até parecer tornar-se ultra-sónico; afigurava-se-lhe que continuava a escutá-lo depois de se ter extinguido.

 

- O que será? - perguntou Camilla, trémula.

 

- Só Deus saberá. Talvez alguma espécie de ave ou animal, acho eu.

 

Uma vez mais escutaram em silêncio o ensurdecedor grito. Ela chegou-se mais a MacAran, e murmurou:

 

- Soa como se estivesse no estertor da morte.

 

- Não se deixe levar pela imaginação. Que nós saibamos, talvez até seja a voz normal do animal.

 

- Não há nada que possa ter uma voz normal como esta disse ela, convicta.

 

- Como poderemos nós ter a certeza disso?

 

- Como pode mostrar-se tão objectivo? Oooh... - Camilla encolheu-se quando o longo e estridente som se fez ouvir uma vez mais. - Parece congelar a medula dos meus ossos!

 

- Talvez o animal utilize aquele som para paralisar a sua presa - sugeriu MacAran. - Também me apavora, bolas! Se estivesse na Terra... bem, a minha família era irlandesa, e eu seria capaz de imaginar que a antiga banshee dos Arans tinha vindo raptar-me!

 

Nota:

Banshee: No folclore irlandês, um espírito sob a forma de uma carpideira que é ouvida ou vista pelos membros de uma família como sinal de que um deles está prestes a morrer. (N. do T.)
- Podemos dar-lhe o nome de banshee quando descobrirmos de que realmente se trata - disse Camilla, e não estava a fazer humor. O horrendo som ouviu-se de novo, e ela tapou os ouvidos com as mãos, gritando: - Acabe com aquilo! Acabe com aquilo!

 

MacAran deu-lhe uma ligeira bofetada.

 

- Controle-se, raios! Sabemos lá se o animal, ou lá o que é, está a vaguear ali fora e é suficientemente grande para nos comer aos dois e à tenda também! É melhor ficarmos em silêncio e muito quietos, até que aquilo se vá embora daqui!

 

- Isso é mais fácil de dizer do que de fazer - murmurou Camilla, e voltou estremecer quando o fantasmal grito de banshee se fez ouvir novamente. Ela chegou-se mais para ele no espaço acanhado da tenda e disse, numa voz muito frágil: - Importa-se de... de me dar a mão?

 

MacAran procurou os dedos de Camilla na escuridão. Estavam frios e hirtos, e começou a massajá-los suavemente entre os seus. Ela encostou-se a ele, e ele inclinou- se e beijou-a ternamente na fonte.

 

- Não tenhas medo. A tenda é de plástico, e duvido que tenhamos cheiro de comestíveis. Tenho a esperança de que aquilo, a banshee se achares bem, vá arranjar uma boa refeição algures e se cale de vez.

 

O grito vociferante soou de novo, agora mais afastado e sem aquele sinistro tom de gelar ossos. MacAran sentiu a moça descair contra ele e deixou-a deslizar até ao chão, com a cabeça apoiada no seu colo.

 

- É melhor que durmas um pouco - disse com suavidade. O sussurro dela era quase inaudível.

 

- Obrigada, Rafe.

 

Depois de se certificar, pelo som da sua respiração regular, que ela estava novamente a dormir, MacAran inclinou-se e beijou-a com suavidade. Era uma ocasião terrível para dar início a uma coisa destas, disse de si para si, zangado com as suas próprias reacções. Havia uma tarefa a cumprir que nada tinha de pessoal, ou que pelo menos não devia ter. Mas ainda assim ele levou muito tempo a adormecer.

 

Saíram da tenda quando amanheceu, deparando-se-lhes um mundo transformado. O céu estava limpo de nuvens ou de névoa, e no chão debaixo dos seus pés a relva rija e incolor surgia repentinamente atapetada com flores coloridas que se propagavam com rapidez. Apesar de não ser biólogo, MacAran tinha visto algo parecido com isto em desertos e outras regiões áridas, e sabia que os locais com climas violentos desenvolvem frequentemente formas de vida capazes de aproveitar pequenas variações favoráveis na temperatura ou na humidade, por mais breves que sejam. Camilla estava encantada com as flores multicores e com as minúsculas criaturas, parecidas com abelhas, que zumbiam entre elas, e teve o cuidado de não as perturbar.

 

MacAran estava a observar o terreno à sua frente. Do outro lado de um estreito vale, atravessado por um pequeno curso de água, erguiam-se as derradeiras encostas do alto cume que era o destino deles.

 

- Com um pouco de sorte devemos alcançar esta noite as proximidades do cume, e amanhã, precisamente ao meio-dia, poderemos efectuar as nossas medições topográficas. Conheces a teoria: triangulando-se a distância entre este local e a nave, e calculando-se o ângulo da sombra, poderemos estimar o tamanho do planeta. Arquimedes ou outro como ele fê-lo na Terra, milhares de anos antes de alguém ter inventado as altas matemáticas. E, se não chover esta noite, poderás efectuar algumas observações mais exactas a partir das novas alturas.

 

Ela estava a sorrir.

 

- Não é maravilhoso o que uma pequena variação no clima pode fazer? Irá ser difícil a escalada?

 

- Acho que não. Visto daqui parece que poderíamos caminhar a direito pela vertente acima. É evidente que a linha extrema das florestas atinge neste planeta uma altitude superior à da maioria dos mundos. Nas proximidades do cume não existem árvores, só rocha despida, mas umas centenas de metros mais
abaixo ainda existe vegetação. Não atingimos ainda a linha das neves eternas.

 

Apesar de tudo, nas vertentes mais altas MacAran recuperou o seu velho entusiasmo. Um mundo estranho, talvez, mas de qualquer forma ele tinha uma montanha debaixo dos seus pés, o desafio da escalada. Era uma subida fácil, na realidade, sem penhascos nem bancos de gelo, mas isso dava-lhe a liberdade de apreciar o panorama da montanha, o ar puro e transparente. Apenas a presença de Camilla, o conhecimento de que ela temia as alturas, o mantinha ligado à realidade. Tinha receado ressentir-se disto, da necessidade de ajudar uma amadora a passar por troços fáceis que ele poderia escalar com uma perna engessada, da espera de que ela escolhesse onde pôr os pés em declives de seixos soltos, mas sentia-se curiosamente em consonância com os receios de Camilla, com a sua lenta conquista de cada nova cota na escalada. Poucos metros abaixo do cume da montanha MacAran parou.

 

- Pronto. Poderás estabelecer uma adequada linha de mira a partir daqui, e há até um trecho suficientemente plano para a instalação do equipamento. Vamos esperar pelo meio-dia aqui Mesmo.

 

Tinha pensado que ela iria manifestar sinais de se sentir aliviada; em vez disso olhou para ele, com uma certa timidez, e disse:

- julgava que ias querer subir até ao cume, Rafe. Se quiseres podemos continuar, pois não me custa.

 

MacAran estava quase a ripostar que não teria nenhum prazer em continuar a subir com uma amadora assustada, mas repentinamente verificou que já não pensava assim. Sacou a mochila dos ombros e sorriu-lhe, apoiando a mão no braço dela.

 

- Isso pode esperar - disse com suavidade -, pois não andamos a passear, Camilla. Acho que este é o melhor local para aquilo que precisas de fazer. já acertaste o cronómetro para podermos apanhar o meio-dia?

 

Ficaram a descansar recostados lado a lado na vertente, apreciando o panorama de florestas e colinas que se estendia abaixo deles. Tão belo, pensou ele, um mundo de amor, um mundo onde apetecia viver.

 

Ociosamente, MacAran perguntou-lhe:

 

- Achas que a colónia de Coronis será assim tão bela?

 

- Como poderia saber? Nunca lá estive. Na verdade até conheço pouco a respeito de planetas. Mas este é realmente belo. Nunca vi um Sol desta cor, e as sombras... - Calou-se, observando o padrão de verdes e de sombras violetas nos vales.

 

- Seria fácil acostumar-me a um céu desta tonalidade... comentou MacAran, e ficou em silêncio.

 

Não se passou muito tempo até que o encurtamento das sombras assinalou a aproximação do meridiano. Depois de tantos preparativos, parecia um curioso anticlímax: desdobrar a haste de alumínio com 30 metros de altura, e medir as sombras com exactidão, até ao milímetro. Quando a tarefa estava concluída MacAran comentou de modo oblíquo, enquanto dobrava de novo a haste:

 

- Uma excursão de sessenta e cinco quilómetros e uma escalada de mais de cinco mil metros para cento e vinte segundos de medições.

 

Camilla encolheu os ombros.

 

- E só Deus sabe quantos anos-luz antes que alguém volte aqui. A ciência é toda assim, Rafe.

 

- Nada mais temos para fazer até a noite chegar para que possas efectuar as tuas observações. - Rafe arrumou a haste e sentou-se nas pedras, apreciando o invulgar calor da luz do Sol. Passado alguns momentos ela veio também sentar-se, e MacAran perguntou: - Achas realmente que poderás definir a posição deste planeta?

 

- Assim espero. Vou tentar observar algumas variáveis de Cefeu, fazer observações num dado período de tempo, e, se

 

Nota: variáves de Cefeu: Cefeu é uma estrela variável na qual as alterações no brilho são devidas a contracções e expansões alternadas no seu volume. (N. do T.]
conseguir encontrar um mínimo de três em que possa absolutamente confiar, poderei fazer uma estimativa de onde nos encontramos relativamente ao desvio central da Galáxia.

 

- Nesse caso, faço votos para que haja mais algumas noites límpidas - disse Rafe, e depois remeteu-se ao silêncio. Passado algum tempo, vendo-o a estudar as rochas a menos de trinta metros acima deles, Camilla disse:

 

- Vá lá, Rafe. Sei que estás ansioso por completares a escalada. Avança, que eu não me importo.

 

- Não te importas? Não te importas de esperar aqui?

 

- Quem disse que eu ficava aqui à espera? Parece-me que também serei capaz de completar a escalada. Além disso - e sorriu ligeiramente para ele -, acho que estou com tanta curiosidade como tu de ver o que está para lá do cume!

 

MacAran pôs-se rapidamente em pé.

 

- Podemos deixar aqui todo o equipamento, excepto os cantis - disse. - Acho que a escalada não será difícil, nem será mesmo uma escalada, mas apenas um passeio por terrenos muito inclinados. - Sentia-se eufórico, feliz por vê-la inesperadamente compartilhar dos seus gostos. Partiu à frente dela, procurando o trajecto mais fácil, mostrando-lhe onde deveria colocar os pés. O bom senso dizia-lhe que esta escalada, baseada apenas na curiosidade de verem o que existiria mais além e não nas necessidades da missão, era um pouco temerária - quem poderia sujeitar-se a um tornozelo fracturado? -, mas estava incapaz de se conter. Finalmente ultrapassaram os derradeiros metros e ficaram imóveis, observando o panorama para lá do cume. Camilla soltou um grito de surpresa e também de desalento. A cumeada da montanha onde agora se encontravam tinha encoberto a cordilheira que se elevava mais para além: uma espantosa série de montanhas, aparentemente interminável, que se estendia até aos confins do panorama que o olhar deles podia captar, envoltas em neves eternas, enormes e dentiCuladas e encabeçadas por cristas cobertas de gelo e por cumeadas abaixo das quais nuvens pálidas pairavam preguiçosamente.
Rafe soltou um assobio.

 

- Santo Deus, isto faz com que os Himalaias se assemelhem a montículos de terra! - comentou num sussurro.

 

- Parecem nunca mais acabar! Acho que não o tínhamos visto porque o ar não estava límpido, por causa das nuvens e do nevoeiro e da chuva, mas... - Camilla abanou a cabeça, surpreendida. - É como um muro à volta do mundo!

 

- Isto explica uma outra coisa - disse Rafe lentamente. As variações bruscas do tempo. Fluindo sobre uma série de glaciares deste tamanho, não admira que haja chuvadas, nevoeiros, nevões quase perpétuos. E se as montanhas forem realmente tão alterosas como parecem - não posso saber a que distância se encontram, mas podem estar a mais de cem quilómetros daqui, num dia tão límpido como este - esse facto poderia justificar a inclinação deste mundo no seu eixo. Há quem chame aos Himalaias, na Terra, um terceiro pólo. Este é realmente um terceiro pólo!

 

- Prefiro olhar para o lado oposto - disse Camilla, e voltou-se para as dobras e dobras de vales e florestas verde-violeta.

- Gosto mais dos planetas com árvores e flores... e cheios de sol, mesmo se este for da cor de sangue.

 

- Esperemos que esta noite nos mostre algumas estrelas... e algumas luas.

 

- Nem posso acreditar neste tempo - comentou Heather Stuart, e Ewen, chegando-se à porta da tenda, ironizou:

 

- Que me dizes das tuas previsões de tempestades de neve?

- Ainda bem que me enganei - ripostou Heather com firmeza. - Rafe e Camilla precisam dum tempo assim lá na montanha. - Uma expressão de intranquilidade passou-lhe pelo rosto. - Contudo, não sei bem se estaria mesmo errada, pois há qualquer coisa nestas condições atmosféricas que me assusta um pouco. Parecem-me completamente erradas para este planeta. Ewen soltou um riso abafado.

 

- Continuas a querer defender a honra da tua velha avozinha das Terras Altas da Escócia com a sua visão profética? Heather não achou graça.

 

- Nunca acreditei em visões proféticas, nem mesmo nas Terras Altas. Mas agora já não me sinto tão segura. Como está o Marco?

 

- Não apresenta grandes alterações, se bem que a Judy tenha conseguido convencê-lo a engolir um pouco de caldo de carne. Parece melhor, se bem que a pulsação esteja ainda muito irregular. Onde está a Judy, a propósito?

 

- Foi ao bosque com o MacLeod. Mas fi-la prometer que não sairá da nossa linha de visão. - Um som no interior da tenda chamou-os para lá; pela primeira vez em três dias, Zabal emitia algo mais do que gemidos indistintos. Estava a mover-se, tentando
sentar-se.

Numa voz rouca e surpreendida, murmurou: ”Que pasó? O Dio, mi duele... duele tanto ...”

 

Ewen inclinou-se sobre ele, dizendo com suavidade:

 

- Está tudo bem, Marco, está aqui, estamos consigo. Tem dores?

 

Marco murmurejou algo em espanhol. Ewen olhou inexpressivo para Heather, e esta abanou a cabeça.

 

- Não falo espanhol. Camilla fala, mas eu só conheço algumas palavras. - Mas, antes que pudesse pronunciá-las, Zabal murmurou:

 

- Dores? Claro que tenho dores! Que raio eram aquelas coisas! Há quanto tempo... Onde está Rafe?

 

Ewen auscultou o ritmo cardíaco do homem antes de falar. Depois disse:

 

- Não tente sentar-se; eu ponho-lhe uma almofada debaixo da cabeça. Você esteve muito doente. julgávamos até que não ia resistir. - E continuo a não ter nenhuma certeza, pensou preocupado, enquanto dobrava o seu casaco sobresselente para o colocar debaixo da cabeça do ferido e Heather tentava convencê-lo a ingerir um pouco de sopa. Não, por favor, já houve mortes demasiadas. Mas ele sabia que isto não iria fazer diferença nenhuma. Na Terra apenas os idosos faleciam, por via de regra. Aqui... bem, aqui era diferente. Diferente de mais.

 

- Não se canse a falar. Poupe as forças, e nós contamos-lhe tudo - disse.

 

A noite chegou, ainda miraculosamente límpida e livre de nevoeiro ou chuva. Mesmo lá no alto não se via nevoeiro, e Rafe, armando o telescópio e os outros instrumentos de Camilla no terreno plano do acampamento, viu pela primeira vez as estrelas elevando-se sobre as cumeadas, nítidas e brilhantes mas muito distantes. Não sabia diferençar uma variável de Cefeu de uma constelação, pelo que muito do que ela estava a tentar fazer era-lhe incompreensível; contudo, utilizando uma luz cuidadosamente filtrada para não prejudicar a visão nocturna de Camilla, foi anotando com cautela as fiadas de números e coordenadas que ela lhe transmitia. Passado algum tempo, que a ele pareceu serem horas, Camilla suspirou e espreguiçou-se.

 

- É tudo o que poderei fazer por agora; talvez consiga realizar mais leituras um pouco antes do alvorecer. Ainda não há sinais de chuva?

 

- Não, felizmente.

 

Em redor deles o aroma vindo das flores nas vertentes mais abaixo era doce e intoxicante, com os arbustos florescendo rapidamente, vivificados por dois dias de calor e secura. Os seus estranhos perfumes eram um pouco entontecedores. Sobre a montanha flutuava uma enorme lua rebrilhante, com um tom pálido iridescente, seguida alguns momentos depois por uma outra, esta com uma clara refulgência violeta.

 

- Olha para a Lua - sussurrou ela.

 

- Qual delas? - Rafe sorriu no escuro. - As pessoas na Terra habituam-se a dizer a Lua; é provável que algum dia alguém lhes dará nomes...

 

Sentaram-se na relva macia e seca, a observar as luas afastando-se das montanhas e elevando-se no céu. ”Se as estrelas brilhassem apenas uma noite em dez mil anos, como os homens as olhariam maravilhados e as adorariam”, citou Rafe com voz branda.

 

Ela concordou com um sorriso.

 

- Mesmo passados apenas dez dias, acho que já sinto a falta delas.

 

Racionalmente, Rafe sabia que era uma loucura estarem aqui sentados na escuridão. Se não houvesse outra razão, algum animal feroz - talvez aquele dos gritos de banshee que tinham escutado na noite anterior - poderia estar a vaguear no escuro. Disse-o por fim, e Camilla estremeceu, como se tivesse sido arrancada de um devaneio, e disse:
- Tens razão. Preciso de acordar antes do alvorecer.

 

Rafe estava um pouco relutante em mergulhar nas abafadas trevas da tenda-abrigo.

 

- Nos tempos de outrora - disse -, acreditava-se que era perigoso dormir ao luar: foi daí que derivou o termo ”Lunático”. Será quatro vezes mais perigoso dormir à luz de quatro luas?

 

- É possível que não, mas será talvez... lunático - respondeu Camilla, rindo-se com gosto. Ele segurou-a pelos ombros num aperto Suave, e por um momento a rapariga, preparando-se para ripostar, pensou com um misto de receio e antecipação que ele estava prestes a beijá-la; mas em seguida Rafe afastou-a e disse: - Mas quem deseja ser sensato? Boa-noite, Camilla. Vernos-emos uma hora antes do nascer do Sol - e distanciou-se, vendo-a entrar no abrigo.

 

Uma noite límpida no planeta das quatro luas. Banshees deambulavam pelas alturas, congelando com os seus gritos as suas presas de sangue quente, atraídos pelo calor que delas emanava, mas nunca se aventurando abaixo da linha das neves eternas. Sobre os vales pairavam grandes aves de rapina; feras ainda desconhecidas do Homem vagueavam nas profundezas da floresta, vivendo e morrendo, e árvores caíam fragorosamente sem que ninguém as ouvisse. À luz das luas, na desacostumada tepidez e secura de um vento morno que soprava das cristas glaciadas, flores resplandeciam e abriam-se, difundindo perfume e pólen. Flores nocturnas e estranhas, com uma fragrância intensa e intoxicante...

 

O Sol vermelho nasceu límpido e sem nuvens, um brilhante nascer do Sol com o astro a aparentar um rubi gigantesco num céu granadino. Rafe e Camilla, que tinham estado ao telescópio durante duas horas, sentaram-se e observaram-no com a agradável fadiga de uma tarefa ligeira finalmente concluída.

 

- Não será melhor começarmos a descida? O tempo está demasiado bom para durar muito tempo - disse Camilla -, e, agora que já me habituei à montanha com sol, não me agradaria muito atravessá-la com gelo.

 

- Tens razão. Embala os instrumentos, pois sabes melhor como devem ser acondicionados, enquanto eu preparo as rações e desmonto a tenda. Começaremos a descida enquanto o tempo está favorável... se bem que o dia se apresente esplendoroso. Se logo à noite ainda estiver ameno, poderemos descansar no topo duma colina e acampar lá, para tu executares mais algumas observações.

 

Passados quarenta minutos estavam já a caminho. Rafe lançou um olhar melancólico para a vasta cordilheira desconhecida antes de lhe voltar as costas. A sua própria cordilheira por descobrir, e provavelmente não voltaria a vê-la.

 

Não te convenças disso, dizia uma voz no seu pensamento, mas ele fez por ignorá-la. Não acreditava em pressentimentos. Aspirou a leve fragrância das flores, apreciando-a, mas também perturbado pela sua doçura ligeiramente corrosiva. Aquela que mais se notava era a das minúsculas flores alaranjadas que Camilla tinha colhido no dia anterior, mas havia também uma encantadora flor branca, em forma de estrela e com uma corola dourada, e uma outra, semelhante a uma campainha azul, com caules internos recobertos por uma tremeluzente poeira dourada. Camilla inclinou-se, cheirando a condimentada fragrância. Rafe avisou-a, passado um momento:

 

- Lembras-te de a Heather e a Judy terem ficado esverdeadas? Seria bem feito se te acontecesse o mesmo...

 

Ela olhou para ele, a rir-se. Tinha o rosto ligeiramente salpicado do ouro da poeira da flor.

 

- Se fosse fazer-me mal já tinha feito... o ar está carregado de perfumes, ou será que não deste por isso? Oh, é tudo tão belo, tão belo, que também me sinto como uma flor. Sinto-me como se pudesse ficar embriagada com flores...

 

Ficou imóvel, como que extasiada, olhando para a maravilhosa flor parecida com um sininho que parecia reluzir com a
poeira dourada. Embriagada, pensou Rafe, embriagada com flores. Deixou a mochila escorregar-lhe dos ombros e rolar no chão.

 

- Tu és mesmo uma flor - declarou com voz rouca. Abraçou-a e beijou-a; ela ofereceu-lhe os lábios, timidamente primeiro, depois com paixão crescente. Ficaram agarrados um ao outro no meio das flores ondulantes; ela libertou-se primeiro, e correu para o arroio que escorria vertente abaixo, rindo-se, dobrando-se para meter as mãos na água.

 

Com espanto, Rafe pensou: o que será isto? Mas o pensamento escorregou-lhe pela mente e logo se desvaneceu. O corpo esbelto de Camilla parecia-lhe tremeluzir, ora focado ora desfocado. Ela descalçou as botas de montanhismo e as espessas peúgas e meteu os pés na água.

 

Rafe dobrou-se sobre ela e puxou-a para a comprida relva.

 

No acampamento situado mais abaixo, Heather Stuart acordou lentamente, sentindo o sol quente penetrar na seda alaranjada da tenda. Marco Zabal ainda dormitava no seu recanto, com o cobertor puxado sobre a cabeça; mas enquanto ela o olhava ele começou a mexer-se, e depois sorriu-lhe.

 

- Portanto ainda estava a dormir, também?

 

- Creio que os outros andam lá por fora - disse Heather, espreguiçando-se. - A Judy disse que queria testar alguns dos frutos das árvores para saber se contêm hidratos de carbono assimiláveis; não vejo os instrumentos de ensaio cá dentro. Como se sente, Marco?

 

- Melhor - disse ele, espreguiçando-se. - Acho que serei capaz de me levantar um pouco ainda hoje. Há alguma coisa neste ar e no sol que me faz sentir bem.

 

- Está um dia maravilhoso - concordou Heather. Também ela estava ciente de uma estranha sensação de bem-estar e euforia presente no ar perfumado. Deve ser do maior teor de oxigénio.

 

Saiu da tenda, esticando os músculos como um gato ao sol.
Uma imagem nítida surgiu-lhe na mente, brilhante e importuna e estranhamente excitante: Rafe, puxando Camilla para os seus braços...

 

- Que maravilha - disse em voz alta, e respirou fundo, cheirando a fragrância curiosamente dourada que parecia encher o vento ameno e tépido.

 

- Qual maravilha? Tu é que és uma maravilha - disse Ewen, surgindo a rir-se por detrás da tenda. - Anda, vamos até à floresta...

 

- O Marco...

 

- O Marco está melhor. já reparaste que, com toda esta gente perto de nós, mal tenho conseguido falar contigo a sós desde antes da queda?

 

De mãos dadas, correram para as árvores. MacLeod, regressando da orla da floresta com as mãos carregadas de maduros frutos redondos com um tom esverdeado, deu-lhes alguns. Os lábios dele gotejavam com o suco dos frutos.

 

- Tomem. São esplêndidos.

 

Sorrindo, Heather mordiscou o macio globo, repleto de um sumo doce e fragrante; comeu-o todo, vorazmente, e pegou logo noutro. Ewen tentou tirar-lho.

 

- Heather, estás louca? Ainda não foram testados...

 

- Testei-os eu - replicou MacLeod, rindo-se. - Comi meia dúzia ao pequeno-almoço e sinto-me óptimo! Chamem-me psíquico, se quiserem. Não nos fazem mal e estão carregados de todas as vitaminas que conhecemos na Terra e mais algumas que desconhecemos! Podem crer!

 

Viu que Ewen estava a olhar para ele, e o jovem médico, com uma estranha sensação a crescer nele, disse com lentidão:

- Claro, evidentemente que são bons. Tal como aqueles cogumelos... - apontou para um fungo acinzentado que crescia na árvore - também são nutritivos e cheios de proteínas, enquanto aqueles... - e apontou para uma castanha requintadamente colorida - são mortíferos, duas dentadas provocam
uma dor de estômago e meia dúzia provocam a morte... mas como é que sei tudo isto? - esfregou a testa, sentindo uma estranha comichão por todo o corpo, e aceitou um fruto de Heather.

 

- Pronto, perdidos por um perdidos por cem... Maravilhoso! É melhor do que qualquer ração... Onde está a Judy?

 

- Ela está bem - disse MacLeod, rindo-se. - Vou ver se encontro mais frutos!

 

Marco Zabal estava deitado na tenda-abrigo, sozinho, de olhos fechados, devaneando através das pálpebras cerradas a respeito do sol nos montes bascos da sua infância. Ao longe na floresta parecia-lhe ouvir alguém a cantar, um cântico aparentemente interminável, intenso e límpido e doce. Pôs-se em pé, sem se dar ao trabalho de vestir qualquer peça de roupa, ignorando o aviso que lhe batia no coração. Sentia-se perpassado por uma intensa vaga de bem-estar e beleza. O sol incidia brilhante na clareira inclinada, as árvores pareciam cercá-lo protectoramente como um telhado acolhedor, as flores pareciam cintilar e reluzir com um brilho que era como ouro, laranja, azul; cores que ele nunca vira dançavam e chispavam diante dos seus olhos.

 

Das profundezas da floresta chegava o som de cânticos, fortes, estrídulos, incrivelmente doces; a flauta pastoril de Pá, a lira de Orfeu, o apelo das sereias. Sentiu a fraqueza dissipar-se, a juventude renovar-se.

 

Do outro lado da clareira viu três dos seus companheiros deitados na relva rindo perdidamente, a rapariga arremessando flores para o ar com os pés descalços. Ficou imóvel, arrebatado, a observá-la, enredado por momentos nas teias da sua fantasia... Sou uma mulher feita de flores... mas o cantar distante atraía-o; os companheiros chamavam-no para se juntar a eles, mas Marco sorriu, lançou um beijo à rapariga, e entrou na floresta correndo como um rapazinho.

 

Muito mais para diante viu uma cintilação de branco - uma ave? Um corpo nu? - nunca soube quanto tinha corrido, mal sentindo o rápido bater do coração, envolto na gloriosa euforia de estar liberto da dor, seguindo o alvo cintilar da distante figura - seria uma ave? - e chamou, num misto de arrebatamento e angústia: ”Espera... espera...”

 

A canção tornou-se mais estrídula e parecia encher-lhe a cabeça e o coração. Suavemente, sem dor, caiu na longa relva perfumada. O cântico prosseguiu, interminável, e ele viu, curvado sobre si, um rosto belo, longos cabelos incolores rodopiando em volta dos olhos dela, uma voz doce, demasiado doce para ser humana, e o cabelo foi transformado em prata pelo sol que obliquava através das árvores, e ele partiu cheio de felicidade e alegria para a escuridão, com o rosto da mulher, doce e louco, gravado nos seus olhos moribundos.

 

Rafe correu através da floresta, com o coração a bater-lhe no peito, escorregando e caindo no íngreme carreiro, gritando enquanto corria: ”Camilla! Camilla!”

 

O que se teria passado? Num momento ela encontrava-se pacificamente nos seus braços, mas de repente o terror invadiu-lhe o rosto e ela gritou, começando a balbuciar qualquer coisa sobre rostos nas alturas, rostos nas nuvens, espaços abertos prestes a caírem sobre ela e a esmagá-la, e no momento seguinte tinha-se libertado bruscamente dos seus braços para começar a correr por entre as árvores, gritando descontrolada.

 

As árvores pareciam agitar-se e mergulhar diante dos olhos dele, formando longas e negras garras de bruxa para o enredarem, rasteirando-o, arremessando-o contra sarças que lhe arranhavam os braços e que ardiam como fogo. Relâmpagos dardejaram com a cor da dor nos seus braços; sentiu um terror bárbaro e repentino quando um animal desconhecido abriu à força um carreiro na floresta, uma debandada, cascos, batendo, batendo, esmagando-o... atirou os braços em volta do tronco de uma árvore e deixou-se ficar ali agarrado, com o bater desordenado do coração a expulsar qualquer outro pensamento. A casca do tronco era
macia e lisa, como o pêlo de algum animal; encostou a ela o seu rosto febril. Rostos estavam a observá-lo das árvores, rostos, rostos, rostos...

 

- Camilla - murmurou, confuso; escorregou para o chão e ali deixou-se ficar, Insensível.

 

Nas alturas juntaram-se nuvens; o nevoeiro começou a subir. O vento morreu, e uma chuva fina principiou a cair, transformando-se lentamente em granizo; primeiro nas alturas, depois no vale. As flores fecharam os seus sinos; as abelhas e os insectos procuraram abrigo nos troncos das árvores e na vegetação rasteira; e o pólen, cumprida a sua tarefa, caiu para o chão...

 

Camilla acordou, desorientada, numa escuridão indistinta. Não se recordava de nada depois de ter corrido, aos gritos, apavorada perante uma imensidade tão vasta como o espaço interstelar, nada existindo entre ela e as estrelas disseminadas... não. Isso tinha sido uma alucinação. Teria tudo aquilo sido uma alucinação? Explorou lentamente a escuridão, foi premiada com uma claridade frouxa: a boca de uma caverna. Arrastou-se até à porta da caverna e sentiu um arrepio ao ser atingida por um frio gélido. Estava vestida apenas com uma fina camisa de algodão e calças compridas, rasgadas e desordenadas... não. Graças a Deus tinha o casacão atado pelas mangas à volta do pescoço. Rafe tinha-o disposto assim quando estavam ambos deitados junto à margem do arroio.

 

Rafe. Onde estaria? Pensando melhor, onde estaria ela? Que parte daquele sonho desenfreado era verdade, e que parte era apenas uma fantasia de loucura? Tinha evidentemente apanhado alguma febre, alguma doença que aqui aguardava os incautos. Este horrível planeta! Este horrível lugar! Quanto tempo teria decorrido? Por que motivo estava ela sozinha? Onde estavam os seus instrumentos científicos, a sua mochila? Onde - esta era a pergunta mais candente - onde estava Rafe?

 

Vestiu o casacão e puxou o fecho de correr, e sentiu que os arrepios mais fortes abrandavam, mas continuava com frio e esfomeada e enjoada, e o seu corpo estava dorido e latejava com uma centena de arranhões e equimoses. Teria Rafe decidido deixá-la aqui na caverna enquanto ia buscar auxílio? Teria ela permanecido febril e a delirar durante muito tempo? Não, ele deixaria alguma mensagem, para o caso de ela recuperar a consciência.

 

Olhou através da neve que caía, tentando imaginar que local era aquele. Acima dela elevava-se uma vertente escura. Devia ter-se atirado para a caverna levada por um terror louco pelos espaços abertos que a cercavam, procurando qualquer abrigo escuro contra o pavor que a assoberbava. Talvez MacAran andasse agora debaixo da tempestade à sua procura, e ambos poderiam vaguear perdidos durante horas a procura um do outro, incapazes de se encontrarem no meio da neve impelida pelo vento.

 

A lógica disse-lhe para se sentar e examinar a situação. Estava agora agasalhada, e podia abrigar-se na caverna até ao romper do dia. Mas suponha-se que também MacAran se encontrava perdido na encosta? Teria aquilo atacado ambos, aquele pavor súbito, aquele pânico? E de onde teria vindo, aquela exuberância, o abandono... Não, isso tinha de ficar para depois, agora ela não podia pensar naquilo.

 

Onde poderia MacAran procurá-la? O melhor seria ela subir a encosta, na direcção do cume. Pois. Tinham deixado ali as mochilas. Era o único local de onde poderiam orientar-se quando o Sol nascesse e a neve amainasse. Ela deveria escalar a encosta, confiando em que a lógica levaria MacAran a fazer o mesmo. Se assim não fosse, e se ela se visse sozinha ao romper o dia, poderia encaminhar-se para o acampamento, onde os outros a socorreriam, ou mesmo para a nave.

 

Subiu a encosta envolta em neve empurrada pelo vento, procurando cuidadosamente onde colocar cada passo. Algum tempo depois pareceu-lhe que estava a repetir o trajecto que ambos tinham percorrido durante a escalada.
SIM.

Assim é que está bem. Era uma convicção interior, e por isso começou a deslocar-se rapidamente na escuridão, e algum tempo depois viu, sem surpresa, uma pequena luz bruxuleante produzindo faíscas alaranjadas contra os flocos de neve; e MacAran veio direito a ela e afagou-lhe as mãos.

 

- Como soubeste onde devias procurar-me? - perguntou ela.

- Foi um pressentimento... ou qualquer coisa - respondeu Rafe. Na luz fraca da lanterna ela podia ver os flocos de neve que se lhe agarravam às sobrancelhas e às pestanas. - Sabia, e pronto. Camilla... não percamos mais fôlego a tentar agora entender tudo. Ainda temos muito que subir até onde deixámos as mochilas e o resto do equipamento.

 

Premindo os lábios com amargura, recordando o desespero com que atirara para longe a sua mochila, ela perguntou:

 

- Achas que ainda estará tudo onde ficou? A mão de MacAran apertou-se sobre a dela.

 

- Não te preocupes com isso. Vem - acrescentou com doçura -, estás precisada de descanso. Poderemos falar sobre o que aconteceu numa outra ocasião.

 

Ela descontraiu-se, deixando-o guiar os seus passos na escuridão. MacAran caminhou ao lado dela, explorando esta nova certeza e tentando imaginar de onde teria vindo. Nem por um momento duvidara de que caminhava direito a Camilla na escuridão, tinha sido capaz de senti-la à sua frente, mas agora não sabia como dizer isso sem dar a impressão de estar louco.

 

Encontraram a pequena tenda montada ao abrigo das rochas. Camilla entrou nela com alívio, contente por MacAran lhe ter poupado o esforço de avançar na escuridão. MacAran sentia-se confundido: quando teriam armado a tenda? Tinha uma vaga memória de tê-la desmontado e guardado nas mochilas antes de descerem naquela manhã. Teria sido antes ou depois de se deitarem na margem do arroio? A incerteza importunou-o mas ele repeliu-a: estávamos ambos bastante excitados, e poderíamos ter feito qualquer coisa sem darmos por isso. Sentiu-se consideravelmente aliviado quando verificou que as suas mochilas estavam cuidadosamente arrumadas no interior da tenda

- Deus, fomos realmente afortunados: podíamos ter perdido todo os nossos cálculos...

 

- Queres que prepare alguma coisa para comermos antes que durmas?

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Não seria capaz de comer. Sinto-me como se tivesse tomado alguma droga para sonhar! O que nos terá acontecido, Rafe?

- Não faço a menor ideia. - Sentia-se inesperadamente tímido diante dela. - Comeste alguma coisa na floresta, algum fruto, qualquer coisa?

 

- Não. Lembro-me de ter tido vontade de fazê-lo, pois parecia tão apetitoso, mas no último momento... Mas bebi a água, disso tenho a certeza.

 

- Não te preocupes. Água é só água, e além disso judy testou-a, e por isso podemos pô-la de parte.

 

- Está bem, mas deve ter sido alguma coisa... - insistiu Camilla.

 

- Isso não discuto. Mas esta noite não, por favor. Podíamos remexer o assunto durante horas sem chegarmos a uma solução.

- Extinguiu a luz da lanterna. - Tenta dormir. já perdemos um dia.

 

No escuro, Camilla disse:

 

- Nesse caso, esperemos que a Heather se tenha enganado a respeito da tempestade de neve.

 

MacAran não comentou, pensando: teria a Heather falado em tempestade de neve, ou só em mau tempo? Poderiam estas condições climatéricas anormais ter tido alguma coisa a ver com o que acontecera? Sentiu, uma vez mais, uma estranha sensação de estar prestes a conhecer a resposta sem ser capaz de captá-la, mas sentia-se desesperadamente exausto, e a resposta escapou-se-lhe, e, ainda a tentar entender, adormeceu.

 Encontraram Marco Zabal depois de uma infrutífera hora de buscas e de chamamentos nos bosques, cuidadosamente deitado e já rígido, ao abrigo do tronco acinzentado de uma árvore desconhecida. Um ligeiro nevão tinha-o embrulhado numa mortalha com alguns milímetros de espessura, e ao lado dele Judith Lovat estava ajoelhada, tão pálida e imóvel que ao princípio pensaram que também ela estava morta.

 

Mas depois ela mexeu-se e voltou-se para eles com olhos confusos, e Heather ajoelhou-se ao seu lado, envolvendo-lhe os ombros com um cobertor e tentando reanimá-la com palavras suaves. Ela não falou enquanto MacLeod e Ewen transportavam Marco de regresso à tenda, e Heather teve de lhe orientar os passos, como se ela estivesse drogada ou em transe.

 

Enquanto a tenebrosa procissão progredia através da neve, Heather sentia - ou imaginava - que ainda era capaz de registar os pensamentos de todos passando-lhe pela mente. O negro desespero de Ewen... que raio de médico sou eu, ali na brincadeira na relva enquanto o meu paciente corre de cabeça perdida e acaba por morrer... A curiosa confusão de MacLeod misturada com a sua própria confusão, uma velha lenda que ela ouvira na infância, o herói nunca deveria ter mulher ou esposa quer de carne e sangue quer de parentesco fádico, e assim prepararam para ele uma mulher de flores feita... e eu era essa mulher feita de flores...
Na tenda Ewen deixou-se cair no chão, olhando fixamente para diante, e não se moveu. Mas Heather, desesperada e ansiosa devido à prolongada desorientação de Judy, aproximou-se dele e sacudiu-o.

 

- Ewen! O Marco está morto, não há nada que possas fazer por ele, mas a Judy está viva! Anda ver se consegues despertá-la daquele aturdimento.

 

Penosamente, Ewen arrastou-se até junto de Judy. Heather pensou: os pensamentos dele parecem uma nuvem negra a envolvê-lo, e estremeceu. Ewen inclinou-se sobre Judith Lovat, tomando-lhe o pulso. Fez incidir sobre os olhos dela o foco de uma pequena lanterna, e depois perguntou-lhe com voz calma:

- Judy, foste tu quem dispôs o corpo de Marco conforme o encontrámos?

 

- Não - sussurrou ela -, não fui eu. Foi o ente belo, o ente belo. Pensei ao princípio que era uma mulher, como um pássaro a cantar, e os olhos dele... os olhos dele...

 

Ewen voltou-se desesperado.

 

- Continua a delirar - disse. - Arranja-lhe qualquer coisa de comer, Heather, e tenta fazer com que ela se alimente. Todos nós precisamos de comer, e bastante; o baixo teor de açúcar no sangue é uma das causas do mal que nos aflige, tenho a certeza. MacLeod mostrou um sorriso amargo.

 

- Uma vez tomei uma dose de suco feliz contrabandeado de Alfa - disse -, e senti-me quase como agora. O que nos terá acontecido, Ewen? Tu és o médico, diz-nos tu.

 

- Não faço a menor ideia - respondeu Ewen. - Cheguei a pensar que tinha sido por causa dos frutos, mas só começámos a comê-los depois. E todos nós bebemos desta água há já três dias e não nos fez mal nenhum. Além disso, nem a Judy nem o Marco tocaram nos frutos.

 

Heather colocou-lhe na mão uma tigela de sopa quente, e depois foi ajoelhar-se junto de Judith, alternadamente metendo-lhe colheradas de sopa entre os lábios e comendo a dela.

- Não tenho qualquer ideia do que aconteceu primeiro disse MacLeod. - Parecia... nem sei o quê. De repente foi como se um vento frio soprasse através dos meus ossos, sacudindo-me... como se estivesse a abrir-me... Foi então que senti que os frutos eram bons para comer, e comi um...

 

- Foi um disparate - comentou Ewen, mas MacLeod, aínda com aquela abertura, sabia que o jovem médico estava apenas a referir-se ao seu próprio erro.

 

- Porquê? - perguntou. - Os frutos eram bons, ou estaríamos agora doentes.

 

Heather disse, hesitante:

 

- Não consigo deixar de pensar que foi qualquer coisa relacionada com as condições meteorológicas. Alguma coisa diferente...

 

- Um vento psicadélico - disse Ewen, em tom de mofa um vento fantasma que nos pôs a todos temporariamente loucos!

- Têm acontecido coisas mais estranhas - disse Heather,

 

e com habilidade introduziu mais uma colher de sopa entre os lábios frouxos de Judy. Esta pestanejou confusa e perguntou:

 

- Heather? Como foi que vim parar aqui?

 

- Fomos nós que te trouxemos, querida. Agora já estás em segurança

 

- O Marco... vi o Marco...

 

- Morreu - disse Ewen suavemente. - Foi a correr para a floresta quando todos nós ficámos loucos; não voltei a vê-lo. Deve ter esforçado o coração; tinha-lhe dito para nem sequer se sentar.

- Foi então o coração? Tem a certeza?

 

- Tanta quanto posso ter, sem uma autópsia - disse Ewen. Engoliu o que restava da sua sopa. A cabeça começava a ficar mais clara, mas o sentimento de culpa continuava a pesar-lhe; sabia que nunca mais iria ver-se livre dele. - Escutem, temos de comparar notas, e quando ainda tudo está fresco na nossa memória. Deve existir algum factor comum, algo que todos nós fizemos, que comemos ou bebemos...
- ou respirámos - interrompeu Heather. - Tem que ser qualquer coisa que estava presente no ar, Ewen. Só nós os três provámos os frutos. Tu não comeste nada, pois não, judy?

 

- Comi, sim, uma coisa acinzentada no tronco de uma árvore...

 

- Mas nós não tocámos nisso - disse Ewen -, apenas o MacLeod. Nós os três comemos os frutos, mas nem o Marco nem a judy os provaram. O MacLeod comeu um pouco desse fungo cinzento mas nenhum de nós o fez. A judy cheirou as flores e o MacLeod mexeu nelas, mas nem a Heather nem eu próprio lhes tocámos, a não ser depois. Nós os três estivemos deitados na relva... - viu Heather ficar corada, mas prosseguiu. - E nós estávamos ambos a fazer amor com ela, e todos os três estávamos com alucinações. Se o Marco se levantou e correu para a floresta só posso supor que também ele estava a ficar alucinado. Quanto a si, judy, como se passou tudo?

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Não sei - disse, - Apenas sei que as flores eram mais brilhantes, o céu parecia... parecia abrir-se em arcos-íris. Arcos-íris e prismas. Depois ouvi um cântico, deviam ser pássaros, mas não tenho a certeza. Dirigi-me para onde havia sombras, e estas eram todas arroxeadas, lilases e azuis. Depois apareceu ele...

- O Marco?

 

judy abanou a cabeça.

 

- Não. Ele era muito alto, com cabelos prateados... Ewen disse, num tom compassivo:

 

- judy, estava com alucinações. Eu, por exemplo, pensei que a Heather era feita de flores.

 

- As quatro luas... podia vê-las apesar de o céu estar claro

- disse judy. - Ele não disse nada, mas eu podia ouvi-lo pensar.

- Parece que todos nós experimentamos essa ilusão - disse MacLeod. - Se foi de facto uma ilusão.

 

- Certamente que foi - disse Ewen. - Nenhum de nós encontrou qualquer vestígio de outra forma de vida inteligente.

Esqueça, judy - acrescentou com suavidade -, e faça por adormecer. Quando todos nós regressarmos à nave, far-se-á um inquérito ou coisa do género.

 

Incúria, negligência será o mínimo de que me acusarão. Poderei alegar loucura temporária?

 

Viu Heather acomodar judy no seu saco-cama. Quando ela finalmente adormeceu, disse, penosamente:

 

- Temos de sepultar o Marco. Detesto ter de fazê-lo sem uma autópsia, mas a única alternativa seria transportá-lo até à nave.

- Vamos parecer bastante idiotas quando regressarmos a

 

relatar que todos nós enlouquecemos ao mesmo tempo - comentou MacLeod. Não olhou para Heather nem para Ewen ao acrescentar: - Sinto-me um tolo chapado... o sexo em grupo nunca me despertou qualquer interesse...

 

Com firmeza, Heather disse:

 

- Vamos todos ter de perdoar uns aos outros, e esquecer o que se passou. Aconteceu, nada mais. E além disso pode também ter acontecido a todos os outros... - Calou-se, surpreendida por um pensamento assustador. - Imaginem se esta coisa aconteceu igualmente a duzentas pessoas...

 

- É melhor nem pensarmos nisso - disse MacLeod com um arrepio.

 

Ewen disse que a loucura colectiva não era novidade nenhuma.

 

- Vilas inteiras. A loucura dançarina na Idade Média. E ataques de ergotismo, provocados pelo uso de centeio em mau estado no fabrico de pão.

 

- Não me parece que aquilo que aconteceu tenha descido até ao sopé da montanha - disse Heather.

 

- Outro dos teus pressentimentos, provavelmente - disse Ewen, mas não com rudeza. - De momento parece-me que

 

Nota: loucura dançarina: Uma epidemia caracterizada por contorções, convulsões e danças. Também chamada Dança de São Vito, ou coreia. (N. do T.)
estamos ainda demasiado próximos do acontecimento. Talvez seja melhor deixarmos as teorias até termos alguns factos.

 

- Será que isto pode ser considerado um facto? - disse Judy, sentando-se repentinamente. Todos tinham julgado que ela estava a dormir; meteu a mão na gola rasgada da blusa e tirou algo embrulhado em folhas. - Isto... ou isto. - Entregou a Ewen uma pequena pedra azul, como uma safira.

 

- É bela - comentou ele -, mas encontrou-a nos bosques...

 

- Isso mesmo - disse ela. - Também encontrei isto. Estendeu-o a Ewen, e por um momento os outros, aproximando-se mais, não queriam crer no que viam.

 

Tinha menos de quinze centímetros de comprimento. O punho era feito de algo parecido com osso torneado, delicado mas sem qualquer ornamento. Quanto ao resto, não havia qualquer dúvida do que seria.

 

Era uma pequena faca de sílex.

Nos dez dias que o grupo de exploração estivera ausente da nave, a clareira parecia ter crescido. Dois ou três outros edifícios pequenos tinham surgido à volta da nave, e num dos extremos da clareira uma zona delimitada tinha sido lavrada e uma pequena tabuleta anunciava ÁREA DE ENSAIOS AGRÍCOLAS.

 

- Isto deve ser bastante útil para o problema das reservas alimentares - comentou MacLeod, mas judith não deu resposta, e Ewen olhou intrigado para ela. judy tinha permanecido curiosamente apática desde Aquele Dia - era assim que todos pensavam sobre o acontecimento - e Ewen sentia-se preocupado com ela. Não era psicólogo, mas sabia que se passava com judy algo de muito errado. Raios, não consigo fazer nada em condições. Deixei o Marco morrer, e não sou capaz de trazer a judy de regresso à realidade.

 

Quase ninguém deu por eles quando entraram no acampamento, e por um instante MacAran sentiu uma fina estocada de apreensão. Onde estaria toda a gente? Teriam todos endoidecido naquele dia, teria a loucura tomado conta de todos eles também aqui? Ao regressarem, ele e Camilla, ao acampamento inferior, tinham encontrado Heather e Ewen e MacLeod ainda a falar excitadamente tentando encontrar alguma explicação; o momento tinha sido doloroso. Se a loucura reinava neste planeta, pronto a reclamá-los a todos, como poderiam eles sobreviver? Que coisas piores os aguardariam? Agora, olhando em volta da clareira
vazia, MacAran sentiu de novo a fina estocada de receio, até que viu um pequeno grupo de pessoas, envergando o uniforme dos paramédicos, saindo da tenda-hospital, e mais ao longe uma parte da tripulação subindo para a nave. Descontraiu-se: tudo parecia normal.

 

Contudo, também nós parecemos normais...

 

- Qual será a primeira coisa a fazer? - perguntou. - Deveremos apresentar-nos de imediato ao capitão?

 

- Eu, pelo menos, devo fazê-lo - disse Camilla. Parecia mais magra, quase macilenta. MacAran sentiu vontade de lhe tomar a mão para confortá-la, se bem que não estivesse bem certo do motivo. Desde que tinham estado nos braços um do outro na montanha sentia uma intensa e dilacerante fome dela, um quase feroz desejo de protegê-la; contudo ela estava sempre pronta a repeli-lo, regressando à sua antiga auto-suficiência. MacAran sentia-se magoado e ofendido, e por assim dizer perdido. Não se atrevia a tocar-lhe, e isso tornava-o irritadiço.

 

- Acho que ele há-de querer ver-nos a todos - disse. - Temos de participar a morte do Marco, e informá-lo do local onde o sepultámos. E temos muitas informações para lhe transmitir. Para não falarmos já da faca de sílex.

 

- Claro. Se o planeta é habitado, isso cria-nos outro problema - disse MacLeod, mas não quis explicar-se.

 

O capitão Leicester estava no interior da nave com vários elementos da tripulação, mas um oficial que se encontrava no exterior disse ao grupo que o capitão tinha dado ordens para ser avisado assim que eles regressassem. Ficaram a aguardar na cúpula pequena, sem nenhum deles saber o que iriam dizer.

 

O capitão Leicester entrou na cúpula. Parecia envelhecido, apresentando rugas novas no rosto. Camilla levantou-se ao vêlo entrar, mas ele fez-lhe sinal para tornar a sentar-se.

 

- Esqueçamos o protocolo, Tenente - disse com suavidade. - Todos vocês parecem exaustos; foi árdua a viagem? Vejo que o Doutor Zabal não está convosco.

- Zabal morreu, senhor - disse Ewen em voz baixa -, foi vitimado por picadas de insectos venenosos. Farei mais tarde um relatório circunstanciado.

 

- Apresente-o ao médico-chefe - disse o capitão. - De qualquer modo não estou qualificado para o avaliar. Os outros poderão apresentar os seus relatórios na nossa próxima reunião, que será provavelmente logo à noite. Mister MacAran, conseguiu obter os cálculos que esperava efectuar?

 

MacAran confirmou com um aceno.

 

- Com efeito, e baseado nas nossas observações creio que o planeta é um pouco maior do que a Terra, o que significa que, em face da sua menor gravidade, a massa deve ser um pouco inferior. Poderei discutir tudo isto mais tarde; neste momento tenho de lhe fazer uma pergunta. Registou-se aqui alguma coisa de anormal durante a nossa ausência?

 

O rosto enrugado do capitão crispou-se, com desagrado.

 

- O que quer dizer, anormal? Todo este planeta é anormal, e nada do que acontece aqui pode considerar-se rotineiro.

 

- Queria referir-me a algo como uma doença, ou um ataque colectivo de loucura, senhor - disse Ewen.

 

Leicester franziu a testa.

 

- Não consigo imaginar a que poderá estar a referir-se - disse. - Não, não recebi relatórios de qualquer espécie relativos a doenças.

 

- O que o Doutor Ross pretende dizer é que todos nós sofremos um ataque de qualquer coisa semelhante a alucinações explicou MacAran. - Foi no dia a seguir a segunda noite sem chuva. Era suficientemente difundido para atingir Camilla a tenente Del Rey - e a mim próprio, nas cumeadas, e também o outro grupo, localizado quase dois mil metros mais abaixo. Todos nos comportámos... bem, de uma forma irresponsável, senhor.

 

- Irresponsável? - O capitão carregou o sobrolho, olhando-os fixamente.
- Irresponsável. - Os olhos de Ewen fixaram-se nos do capitão, de punhos cerrados. - O Doutor Zabal estava em recuperação, e nós corremos para os bosques deixando-o só, pelo que ele levantou-se da cama, alucinado, correu para a floresta e esforçou o coração... e foi essa a causa da sua morte. A nossa capacidade de avaliação ficou debilitada; comemos frutos e fungos que não tinham sido testados. Registaram-se... diversos procedimentos alucinatórios.

 

- Nem todos eram alucinatórios - declarou Judith, com firmeza.

 

Ewen olhou para ela e abanou a cabeça.

 

- Não creio que a Doutora Lovat esteja apta a emitir considerações, senhor. Parece-nos que todos nós tivemos alucinações a respeito de sermos capazes de interpretar os pensamentos dos outros.

 

O capitão respirou profundamente.

 

- Isto tem de ser levado ao conhecimento do corpo clínico. Não, não tivemos aqui nada desse género. Sugiro que todos façam os vossos relatórios aos respectivos superiores hierárquicos, ou então que os reduzam a escrito para serem submetidos à reunião desta noite. Tenente Del Rey, eu mesmo quero receber o seu relatório.

 

- Só mais um pormenor, senhor - disse MacAran. - Este planeta é habitado. - Retirou da sua mochila a faca de sílex, e apresentou-lha. Mas o capitão mal olhou para ela, dizendo: Levem-na ao major Frazer, que é o antropólogo oficial. Digam-lhe que quero receber o seu relatório esta noite. Agora, se me derem licença...

 

MacAran sentiu uma curiosa lassidão ao deixarem Camilla e o capitão reunidos. Enquanto percorria o acampamento a procura do antropólogo Frazer, chegou lentamente à conclusão de que o que ele sentia era ciúme. Como poderia ele competir com o capitão Leicester? Ora, isto era um disparate, pois o capitão tinha idade para ser pai de Camilla. Estaria ele verdadeiramente convencido de que Camilla estava apaixonada pelo capitão?

Não, mas acha-se emocionalmente ligada a ele, e isso é ainda pior.

 

Se ele se sentira decepcionado com a falta de interesse que o capitão tinha manifestado pela faca de sílex, a reacção do major Frazer compensou-o plenamente.

 

- Desde que aterrámos neste mundo não tenho parado de afirmar que ele é habitável - disse, fazendo girar a faca nas mãos

- e aqui está a prova de que é mesmo habitado... pelo menos por algum ser inteligente.

 

- Humanóide? - inquiriu MacAran, e Frazer encolheu os ombros.

 

- Como poderemos saber? Têm havido relatos de seres inteligentes em três ou quatro outros planetas; até agora foram reportados um simiesco, um felino, e três inclassificáveis... a xenobiologia não é a minha especialidade. Um só artefacto não nos diz nada; com quantos formatos poderia uma faca ser fabricada? Mas esta adapta-se bem a uma mão humana, se bem que seja um tanto pequena.

 

As refeições para a tripulação e para os passageiros eram servidas numa única área ampla, e quando MacAran foi tomar a sua refeição do meio-dia tinha a esperança de ir encontrar Camilla; mas esta chegou atrasada, e dirigiu-se logo a um grupo formado por outros elementos da tripulação. MacAran não conseguiu chamar-lhe a atenção, e ficou com a impressão de que ela estava a evitá-lo. Enquanto ia despachando, taciturno, a sua ração, Ewen aproximou-se dele.

 

- Rafe, querem-nos a todos numa reunião de carácter clínico, se não tiveres nada mais que fazer. Vão tentar analisar o que nos terá acontecido.

 

- Achas francamente que isso irá produzir algum resultado, Ewen? Temos estado a discutir o caso...

 

Ewen encolheu os ombros.

 

- Não me compete julgar - disse. - Tu não estás sob a alçada da equipa clínica, claro, mas se quiseres...
- Foram severos contigo a respeito do que aconteceu com a morte do Zabal?

 

- Não, realmente. Tanto a Heather como a Judith declararam que estávamos todos desfasados. Mas vão querer o teu relatório, e tudo o que possas dizer-lhes a respeito da Camilla.

 

MacAran encolheu os ombros e saiu com ele.

 

A reunião dos serviços clínicos foi realizada num recanto da tenda-hospital, agora semivazia - as vítimas mais graves tinham já falecido, e os feridos de menor gravidade tinham voltado a prestar serviço. Estavam presentes quatro médicos, meia dúzia de enfermeiras e alguns elementos do pessoal científico para escutarem os relatórios.

 

Depois de ter ouvido os relatos de todos, um de cada vez, o oficial médico-chefe, um homem de cabelos brancos chamado Di Asturien, disse com lentidão:

 

- Parece ter sido alguma forma de infecção propagada através do ar. Talvez algum vírus.

 

- Mas nada desse género foi detectado nas nossas amostras de ar - redarguiu MacLeod -, e o efeito foi mais parecido com o de alguma droga.

 

- Uma droga propagada pelo ar? Não me parece provável

- disse Di Asturien -, se bem que o efeito afrodisíaco pareça ter sido também considerável. Posso assumir que houve algum efeito de estimulação sexual em todos vós?

 

- Já me referi a isso, senhor. Parece ter afectado três de nós: Miss Stuart, o Doutor MacLeod e eu próprio. Que eu saiba, não teve o mesmo efeito no Doutor Zabal, mas esse encontrava-se num estado moribundo.

 

- E quanto a Mister MacAran?

 

Sentia-se embaraçado, sem saber porquê, mas, perante o olhar frio e clínico de Di Asturien, disse:

 

- Também, senhor. Poderá confirmar junto da tenente Del Rey, se o desejar.

 

- Hum... Segundo depreendo, o Doutor Ross e Miss Stuart estão presentemente emparelhados, por assim dizer, pelo que talvez possamos ignorar o que se passou entre eles... Mas, Mister MacAran, o senhor e a tenente...

 

- Estou interessado nela - disse ele, imperturbável -, mas, que eu saiba, ela não sente nada por mim. Talvez me seja até hostil. Excepto sob a influência do... daquilo que nos aconteceu.

- Pronto, já tinha enfrentado o problema. Camilla não se virara para ele como uma mulher se vira para um homem por quem sente afeição. Tinha simplesmente sido influenciada pelo vírus, ou pela droga, ou lá o que fosse aquela coisa estranha que os afectara a todos. O que para ele tinha sido amor, para ela não passara de loucura... e agora sentia-se arrependida.

 

Para seu grande alívio, o médico-chefe não quis fazer-lhe mais perguntas.

 

- Doutora Lovat?

 

Judy não levantou o olhar quando disse com voz sumida:

- Não sei o que dizer. Não consigo lembrar-me. Aquilo que sou capaz de recordar é muito provavelmente uma ilusão.

 

- Gostaria que cooperasse connosco, Doutora Lovat - disse Di Asturien.

 

- Prefiro não o fazer. - Judith continuou a dedilhar qualquer coisa que escondia no colo, e nenhuma persuasão conseguiu levá-la a dizer mais alguma coisa.

 

Di Asturien disse:

 

- Dentro de cerca de uma semana, teremos de submeter as três a um teste de gravidez.

 

- Para que será isso necessário? - perguntou Heather. Eu, pelo que me diz respeito, ando a tomar injecções anticoncepcionais periódicas. Quanto à Camilla, não sei, mas creio que os regulamentos da tripulação exigem esse tratamento para qualquer tripulante do sexo feminino entre os vinte e os quarenta e cinco anos de idade.

 

Di Asturien parecia perturbado.

 

- Isso é verdade - disse -, mas existe algo muito estranho que descobrimos ontem numa reunião dos serviços de saúde. Conte-lhes, enfermeira Raimondi.
Margaret Raimondi disse:

 

- Estou encarregue de manter registos e de fornecer contraceptivos e acessórios sanitários para todas as mulheres de idade menstrual, tanto elementos da tripulação como passageiras. Todos conhecem as normas: a intervalos de duas semanas, durante a menstruação e a meio caminho entre esses períodos, todas as mulheres têm de se apresentar para receberem uma dose única de hormonas ou, em certos casos, um emplastro que liberta pequenas doses de hormonas directamente para o sangue, suprimindo assim a ovulação. Existe um total de cento e dezanove mulheres sobreviventes dentro daquela escala de idades, o que significa que, num ciclo arbitrário de trinta dias, aproximadamente quatro mulheres deveriam apresentar-se diariamente, quer para receberem suprimentos menstruais quer para receberem a injecção ou o emplastro que são distribuídos quatro dias após o início da menstruação. já se passaram dez dias após a aterragem forçada da nave, o que significa que cerca de um terço das mulheres deveriam ter-se apresentado para receberem uma coisa ou a outra. Digamos, cerca de quarenta.

 

- O que não sucedeu - interrompeu o Dr. Di Asturien. Quantas mulheres se apresentaram desde a queda da nave?

 

- Nove - disse a enfermeira Raimondi com uma expressão carregada. - Nove. Quer isto dizer que dois terços das mulheres em questão viram os seus ciclos biológicos alterados neste planeta, talvez pela mudança na gravidade, talvez por alguma perturbação hormonal. E, como o contraceptivo normal que usamos está inteiramente dependente do ciclo interno, não temos maneira de saber se é eficaz ou não.

 

Não era preciso que explicassem a MacAran como isto era sério. Uma vaga de gravidezes seria certamente perturbadora. Os recém-nascidos, ou mesmo as crianças ainda novas, eram incapazes de suportar a propulsão FTL interstelar, e desde a aceitação universal de contraceptivos de total confiança - e apesar das leis populacionais existentes no superpovoado planeta Terra – uma onda de sentimentos tinha tornado completamente impensáveis os abortos provocados. As crianças não desejadas não eram simplesmente concebidas. Mas haveria agora alguma alternativa? O Dr. Di Asturien comentou:

 

- Claro, em planetas novos as mulheres ficam usualmente estéreis durante alguns meses, devido sobretudo às modificações no ar e na força da gravidade. Mas não podemos contar com isso.

 

MacAran estava a pensar: se Camilla está grávida, irá odiar-me? Era avassaladora a ideia de que um filho de ambos talvez tivesse de ser destruído. Ewen perguntou ponderadamente:

 

- Que vamos fazer, doutor? Não podemos exigir que duzentas pessoas adultas, homens e mulheres, façam um voto de castidade!

 

- Claro que não. Isso seria pior para a saúde mental do que os outros perigos - respondeu Di Asturien -, mas precisamos de avisar toda a gente de que já não estamos seguros da eficácia do programa de contraceptivos.

 

- Também acho que sim. E logo que for possível.

 

- O capitão convocou uma reunião geral para esta noite, tripulação e colonos - informou Di Asturien. - Talvez eu possa fazer ali a participação. - Fez uma cara de desagrado. - Não tenho vontade nenhuma de fazê-lo. Vai ser uma informação bastante impopular. Como se não tivéssemos já problemas de sobra!

 

A reunião geral foi efectuada na tenda-hospital, o único local suficientemente vasto para receber simultaneamente a tripulação e os passageiros. A meio da tarde o céu tinha começado a cobrir-se de nuvens, e quando foi dado início à reunião já caía uma chuva fina, e ao longe podiam ver-se relâmpagos sobre os cumes dos montes. Os membros do grupo de exploração sentaram-se na primeira fila, para o caso de serem chamados a fazer o seu relato, mas Camilla não se encontrava entre eles. Chegou acompanhada pelo capitão Leicester e pelos restantes oficiais da tripulação, e MacAran notou que todos eles tinham vestido o uniforme formal, o que por algum motivo julgou ser um mau
presságio. Para que haviam eles de tentar realçar daquele modo a sua solidariedade e autoridade?

 

Os electricistas tinham montado uma tribuna com um sistema rudimentar de altifalantes, para que a voz do capitão, baixa e bastante rouca, pudesse ser ouvida em toda a sala.

 

- Pedi-vos a todos para nos reunirmos aqui - começou ele em vez de apresentarmos relatórios apenas aos vossos superiores directos, porque num grupo deste tamanho, e apesar de todas as precauções, os boatos tendem a nascer rapidamente e a ser de pronto propagados. Em primeiro lugar vou dar-vos as boas notícias que é possível apresentar. Que saibamos, o ar e a água neste planeta suportarão a vida indefinidamente sem fazer perigar a saúde, e o solo poderá provavelmente ser cultivado para produzir colheitas para reforçar a nossa reserva de alimentos durante o período de tempo que formos forçados a permanecer aqui. Agora tenho de vos participar as notícias que não são tão boas. Os danos sofridos pelas unidades propulsoras da nave e pelos computadores são muito mais extensos do que se pensava originalmente, e não há possibilidade de reparações imediatas ou rápidas. Ainda que eventualmente talvez venha a ser possível regressarmos ao espaço, com o pessoal e os materiais de que agora dispomos não será possível fazermos as necessárias reparações.

 

Fez uma pausa, e um coro de vozes, consternadas, apreensivas, elevou-se na sala. O capitão Leicester levantou a mão.

 

- Não estou a afirmar que devemos perder a esperança disse -, mas no nosso estado actual não poderemos efectuar as reparações. Para conseguirmos levantar a nave da superfície deste planeta vamos precisar de introduzir profundas modificações na presente configuração, o que será um projecto muito demorado e que exige a total cooperação de todos os homens e mulheres que aqui se encontram.

 

Fez-se silêncio, e MacAran tentou decifrar o que ele pretendia dizer com aquilo. O que estaria o capitão a insinuar? Poderiam fazer as reparações, ou não?

- Isto poderá

parecer uma afirmação contraditória - prosseguiu o capitão. - Não dispomos do material necessário para as reparações. Contudo, O que temos, entre todos nós, são os conhecimentos necessários para fazermos essas reparações; e temos igualmente um planeta inexplorado ao nosso dispor, no qual poderemos certamente encontrar as matérias-primas necessárias e produzir os materiais para efectuarmos as reparações.

 

MacAran franziu a testa, continuando sem saber o que ele queria dizer. O capitão Leicester passou a explicar.

 

- Muitos de vocês que partiram com destino às colónias possuem conhecimentos que vos serão proveitosos, mas que não têm utilidade para nós aqui - disse. - Dentro de um ou dois dias instalaremos um departamento de pessoal para inventariar todas as especialidades com que podemos contar. Alguns de vós que se inscreveram como agricultores ou artífices serão colocados sob a orientação dos nossos cientistas ou engenheiros para receberem treino especializado. Exijo uma dedicação total.

 

No fundo da sala, Moray levantou-se, e disse:

- Posso formular uma pergunta, Capitão?

- Pode.

 

- Está a dizer que as duzentas pessoas aqui reunidas podem, dentro de cinco ou dez anos, desenvolver uma cultura tecnológica capaz de construir... ou reconstruir... uma nave estelar? Que podemos descobrir os metais, extraí-los do chão, refiná-los, transformá-los e construir a maquinaria necessária?

 

Calmamente, o capitão respondeu:

 

- Com a total cooperação de todos os presentes, isso será possível. Calculo que demorará entre três e cinco anos.

 

- O senhor está louco - ripostou Moray, com firmeza. - Está a pedir-nos para desenvolvermos uma tecnologia inteira!

- O que o homem já fez, o homem pode fazer de novo -

 

entoou o capitão Leicester, imperturbavelmente. - Além disso, Mister Moray, permita que lhe recorde que não temos qualquer alternativa.
- Não temos, uma ova!

 

- O senhor já usou da palavra - disse o capitão, a repreendê-lo. - Queira reocupar o seu lugar.

 

- Não, com um raio! Se por acaso acredita que tudo isto poderá ser realizado - prosseguiu Moray -, só posso assumir que está totalmente doido. Ou então, a mente de um engenheiro ou de um astronauta funciona de um modo tão diferente da dos comuns mortais que não existe maneira de comunicarmos. Disse que isto demorará entre três e cinco anos. Permita-me recordar-lhe respeitosamente que as nossas reservas de alimentos e medicamentos apenas durarão entre um ano e dezoito meses. Permita-me igualmente recordar-lhe que mesmo agora, quando estamos a aproximar-nos do Verão, o clima é rigoroso e agreste e que os nossos abrigos são deficientes. O Inverno neste mundo, com a exagerada inclinação do seu eixo, é muito provavelmente mais brutal do que os experimentados por qualquer habitante da Terra.

 

- Não será isso suficiente para provar a necessidade de deixarmos este mundo o mais rapidamente possível?

 

- Não, prova antes a necessidade de procurarmos fontes de alimentos e abrigos que mereçam confiança - disse Moray.

- É nessa direcção que devemos aplicar todos os nossos esforços! Esqueça a sua nave, Capitão! Não irá para parte nenhuma. Encare a realidade. Somos colonos, não cientistas. Temos tudo aquilo de que necessitamos para sobrevivermos aqui, para nos fixarmos aqui. Mas não conseguiremos ter sucesso se metade das nossas energias forem canalizadas para um insensato plano que exige o investimento de todos os nossos recursos para reparar uma nave irremediavelmente destroçada!

 

Criou-se um reboliço no salão, um dilúvio de gritos, perguntas, injúrias. O capitão pediu repetidamente um regresso à calma, e por fim os gritos foram esmorecendo até se transformarem em surdos sussurros. Moray exigiu:

 

- Vamos a votos! - e a balbúrdia estalou de novo.

- Recuso-me a considerar a sua proposta, Mister Moray disse o capitão. - O assunto não será posto à votação. Lembre-se de que estou presentemente no comando supremo desta nave. Será necessário ordenar a sua prisão?

 

- Qual prisão, qual raio! - ripostou Moray, com uma expressão de desprezo. - Não estamos agora no espaço, Capitão. Não se encontra na ponte de comando da sua nave. Não tem qualquer autoridade sobre nós todos, excepto talvez sobre a sua tripulação, se essa quiser obedecer às suas ordens.

 

Leicester pôs-se em pé na tribuna, com o rosto tão branco como a camisa que envergava e os olhos faiscando de fúria.

 

- Quero lembrar a todos - disse -, que o grupo de MacAran, enviado em exploração, encontrou indícios da existência de vida inteligente neste planeta. A Força Expedicionária da Terra tem por norma não estabelecer colónias em planetas habitados. Se nos fixarmos aqui, iremos possivelmente provocar um choque cultural numa civilização no estágio da Idade da Pedra. Nova balbúrdia. Moray gritou com irritação:

 

- Pensa que a sua tentativa para desenvolver aqui uma tecnologia adequada para as reparações não teria precisamente esse resultado? Pelo amor de Deus, senhor, dispomos de tudo o que é preciso para estabelecermos aqui uma colónia. Se reencaminharmos todos os nossos recursos para o seu louco esforço de reparar a nave, é duvidoso que possamos sobreviver!

 

O capitão Leicester fez um visível esforço para se controlar, mas a sua fúria era óbvia. Disse com aspereza:

 

- Está a sugerir que abandonemos esse esforço, e caiamos na barbárie?

 

Moray assumiu repentinamente uma expressão de gravidade. Dirigiu-se à tribuna e parou diante do capitão. A sua voz estava calma e controlada.

 

- Espero que não, Capitão. É a mente do homem que faz dele um bárbaro, não a sua tecnologia. Poderemos ter de passar sem tecnologia do nível máximo, pelo menos durante algumas
gerações, mas isso não significa que não poderemos estabelecer aqui um mundo bom para nós e para os nossos descendentes, um mundo civilizado. Têm existido civilizações que duram séculos quase sem tecnologia. A ilusão de que a cultura dum homem é apenas a história das suas tecnostruturas é propaganda difundida pelos engenheiros, senhor Capitão. Não tem qualquer base na sociologia... nem na filosofia.

 

- Não estou interessado nas suas teorias sociais, Mister Moray - declarou o capitão com aspereza.

 

O Dr. Di Asturien levantou-se do seu lugar para dizer:

 

- Capitão, há uma coisa que tem de ser levada em consideração. Fizemos hoje uma descoberta muito perturbadora... Nesse momento um violento trovão fez estremecer a tenda-hospital. O sistema de iluminação instalado à pressa foi-se abaixo, e junto da entrada um homem da segurança gritou:

 

- Capitão! Capitão! Os bosques estão a arder!

Todos permaneceram calmos; o capitão Leicester gritou da plataforma:

- Tragam luzes para cá; seguranças, tragam algumas luzes!

 

- Um dos homens da equipa médica encontrou uma lanterna e foi entregá-la ao capitão, e um dos oficiais da ponte de comando gritou:

 

- Atenção! Fiquem onde estão e aguardem instruções, aqui dentro não há qualquer perigo! Preparem essas luzes assim que puderem!

 

MacAran encontrava-se suficientemente perto da entrada para poder ver o clarão distante contra a obscuridade. Dentro de alguns minutos as lanternas começaram a ser distribuídas, e Moray, que continuava na plataforma, disse com urgência:

 

- Capitão, dispomos de equipamento de abate de árvores e de remoção de terras. Permita que forme uma equipa para levantar corta-fogos à volta do acampamento.

 

- Certo, Mister Moray. Trate disso - disse Leicester com aspereza. - Todos os oficiais da ponte, reúnam-se aqui: sigam para a nave e ponham em segurança qualquer material inflamável ou explosivo. - Dirigiu-se apressadamente para os fundos da tenda. Moray chamou todos os homens válidos para a clareira, e requisitou todas as lanternas que não estivessem a ser usadas na ponte.

 

- Formem-se em equipas como fizeram para abrir sepulturas - ordenou. MacAran viu-se incluído numa equipa com o
padre Valentine e oito desconhecidos, derrubando árvores numa faixa de três metros em redor da clareira. O fogo era ainda um rugido afastado numa vertente a quilómetros de distância, um brilho avermelhado contra o céu, mas o ar cheirava a fumo, com um estranho toque corrosivo.

 

Ao lado de MacAran alguém comentou:

 

- Como poderão os bosques pegar fogo depois de tanta chuva?

 

Isso trouxe-lhe à memória algo que Marco Zabal tinha dito naquela primeira noite. ”As árvores são fortemente resinosas; são praticamente lenha para a lareira. Algumas são até capazes de arder quando molhadas; conseguimos fazer uma fogueira com madeira verde. Creio que um relâmpago poderá provocar fogos florestais de um momento para o outro. -Tivemos sorte, pensou; acampámos no meio dos bosques e nunca pensámos em fogos ou em corta-fogos.

 

- Acho que vamos precisar de um corta-fogo permanente em volta de qualquer acampamento ou área de trabalho.

 

- Fala como se estivesse convencido de que iremos ficar aqui durante muito tempo - comentou o padre Valentine. MacAran apoiou-se na sua serra, e disse, sem levantar os olhos:

 

- Qualquer que seja o campo em que estejamos... o do capitão ou o de Moray... parece-me bem que iremos ficar por cá durante anos. - Sentia-se neste momento demasiado exausto, demasiado inseguro para decidir de que lado estaria, e de qualquer modo estava certo de que ninguém iria consultá-lo sobre a sua escolha, mas bem no seu íntimo sabia que, se alguma vez partissem deste mundo, ele iria lamentá-lo.

 

O padre Valentine tocou-lhe no ombro.

 

- Parece-me que a tenente anda à sua procura.

 

MacAran endireitou-se ao ver Camilla Del Rey caminhando na sua direcção. Parecia exausta e macilenta, com o cabelo revolto e o uniforme sujo. Apetecia-lhe tomá-la nos braços, mas

em vez disso ficou imóvel e reparou que ela se esforçava por não o olhar nos olhos ao dizer-lhe:

 

- Rafe, o capitão precisa de falar contigo. Conheces o terreno melhor do que ninguém. Achas que o fogo poderá ser combatido ou contido?

 

- Na escuridão, não... e não sem equipamento pesado disse MacAran, mas acompanhou-a até ao alojamento do capitão. Tinha de admirar a eficiência com que a construção dos corta-fogos tinha sido organizada, a reduzida quantidade de equipamento de combate aos incêndios adistrito à nave que fora necessário deslocar para o hospital. O capitão teve o necessário bom senso para utilizar aqui os bons serviços de Moray. Ambos são realmente elementos preciosos, se ao menos pudessem trabalhar em conjunto com um objectivo comum. Mas por agora eles são a força irresistível e o objecto imutável.

 

O aguaceiro estava a transformar-se numa chuvada intensa ao ingressarem na cúpula. O pequeno e apinhado recinto estava fracamente iluminado por uma única lanterna, e a pilha parecia estar quase a esgotar-se.

 

Moray estava a dizer:

 

- As nossas reservas de energia estão prestes a acabar. Antes de podermos fazer mais alguma coisa, senhor Capitão, tanto no seu plano como no meu, precisamos de encontrar algumas fontes de calor e de luz. Dispomos de equipamento de energia eólica e solar entre os materiais de colonização, ainda que não esteja certo de que este Sol tenha a luz e a radiação suficientes para podermos dispor de energia solar. MacAran virou-se para ele -, presumo que existam cursos de água nas montanhas. Será algum deles suficientemente abundante para se levantar uma barragem?

 

- Nenhum daqueles que encontrámos durante os poucos dias em que percorremos as montanhas - disse MacAran -, mas o vento não escasseia.

 

- Isso talvez sirva para uma solução de emergência - comentou o capitão Leicester. - MacAran, sabe exactamente onde se localiza o incêndio?
- Está suficientemente afastado para não constituir de imediato um perigo para nós - respondeu MacAran -, mas creio que iremos passar a precisar de corta-fogos, onde quer que estejamos. Mas este incêndio não é perigoso para nós, segundo me parece. A chuva está a transformar-se em neve, e esta acabará por extingui-lo.

 

- Se as árvores são capazes de arder mesmo molhadas...

- A neve é mais húmida e mais pesada - disse MacAran, e foi interrompido por um ruído que se assemelhava a uma rajada de tiros. - O que foi aquilo?

 

- Animais em debandada - disse Moray -, talvez fugindo do fogo. Capitão, os seus oficiais andam a caçar animais com armas de fogo. Uma vez mais, recomendo que se poupem as munições para qualquer emergência. Até na Terra se fazem caçadas com arco e flecha. Temos protótipos na secção recreativa, e precisaremos deles para reforçar a nossa reserva de alimentos.

 

- Cheio de ideias, como de costume - resmungou Leicester, e Moray replicou, sisudo:

 

- Capitão, o comando da nave espacial é a sua especialidade. A minha é o estabelecimento duma sociedade viável com o mais económico uso dos recursos disponíveis.

 

Por um momento os dois homens olharam um para o outro debaixo da luz mortiça, já esquecidos da presença de outras pessoas na cúpula. Camilla tinha-se postado atrás do capitão, e parecia a MacAran que ela estava a apoiá-lo mentalmente bem como a dar-lhe suporte físico. Lá de fora chegavam os ruídos habituais do acampamento, e por detrás de tudo o ligeiro sibilo da neve a atingir o topo da cúpula. Depois um golpe de vento forte atingiu a cúpula, e uma rajada de ar gelado entrou no recinto; Camilla correu a fechar a porta, esforçando-se contra a força do vento, e foi empurrada para trás. A porta bateu desordenada, soltou-se das dobradiças improvisadas e derrubou a rapariga. MacAran correu para lhe prestar auxílio. O capitão Leicester soltou uma imprecação em voz baixa e começou a chamar um dos seus subalternos.

Moray levantou a mão, dizendo calmamente:

 

- Precisamos de abrigos mais fortes e mais permanentes, Capitão. Estes foram levantados para durar seis semanas. Poderei então tratar de mandar construí-los para durarem alguns anos?

 

O capitão Leicester ficou em silêncio. Com aquela sua nova e intensa sensibilidade, quase parecia a MacAran que podia escutar o que o capitão estava a pensar. Seria esta uma vantagem para ele? Poderia ele usar os inegáveis talentos de Moray sem lhe conceder demasiados poderes sobre os colonos, em detrimento dos seus? Quando Leicester falou a sua voz era amarga, mas indulgente.

 

- O senhor sabe bastante a respeito de sobrevivência, Mister Moray. Eu sou sobretudo um cientista, e também um astronauta. Vou nomeá-lo temporariamente chefe do acampamento. Estabeleça as suas prioridades e requisite o que for preciso. Dirigiu-se à porta e ficou por um momento a observar o turbilhão da neve. - Nenhum fogo poderá aguentar-se por muito tempo. Chame os seus homens e dê-lhes de comer antes de voltarem a levantar corta-fogos. Quem manda é você, Moray... por agora. - Mostrava uma postura desempenada e indómita, mas a sua voz parecia cansada. Moray fez-lhe uma ligeira vénia, sem qualquer sinal de subserviência.

 

- Não pense que estou a ceder terreno - avisou Leicester. Aquela nave irá mesmo ser reparada.

 

Moray encolheu os ombros.

 

- Talvez. Mas não poderá ser reparada se nós não sobrevivermos durante o tempo necessário. Por agora, é só com isso que me preocupo.

 

Virou-se para Camilla e MacAran, ignorando o capitão.

 

- MacAran, o seu grupo conhece pelo menos uma parte do território. Preciso dum inventário de todos os recursos disponíveis, incluindo alimentos; a Doutora Lovat poderá encarregar-se dessa parte. Tenente Del Rey, você é especializada em navegação, e tem acesso a instrumentos. Poderá encarregar-se de fazer uma
análise climática que possamos usar para previsões atmosféricas?

- Fez uma pausa. - Estamos a meio da noite, o que não é boa altura para isto. Começaremos em actividade amanhã. - Encaminhou-se para a entrada e, vendo o caminho bloqueado pelo capitão Leicester, parado a observar os flocos de neve em turbilhão, tentou passar por ele uma ou duas vezes, e por fim tocou-lhe num ombro. O capitão sobressaltou-se, e cedeu passagem. Moray disse:

 

- A primeira coisa a fazer é retirar aqueles desgraçados do meio da tempestade. Quer dar as suas ordens, Capitão, ou prefere que eu o faça?

 

O capitão Leicester olhou-o nos olhos e com hostilidade controlada.

 

- Tanto faz - disse calmamente. - Não me preocupa saber qual de nós dá as ordens, e Deus o ajude se está só a desejar o poder necessário para dar ordens. Camilla, vai dizer ao major Layton para interromper as operações de combate ao fogo e para se certificar de que todos os que estiveram na linha de combate tomem uma refeição quente antes de recolherem. - A rapariga puxou o capuz sobre a cabeça e apressou-se a atravessar o nevão.

- O senhor terá os seus talentos, Moray - disse o capitão -, e pelo que me diz respeito esteja à vontade para usar os meus. Mas há um velho ditado no Serviço Espacial. Qualquer pessoa que urda intrigas para obter poderio, merece alcançá-lo!

 

Abandonou a cúpula com passos decididos, deixando o vento invadir o recinto, e MacAran, observando Moray, sentiu que, de algum modo obscuro, o capitão saíra a ganhar.

Os dias estavam a ficar mais longos, mas mesmo assim parecia que nunca havia luz nem tempo suficientes para o trabalho que tinha de ser feito na comunidade. Três dias depois do eclodir do incêndio florestal, longas valas corta-fogos com nove metros de largura tinham sido abertas em volta do acampamento, tendo-se organizado brigadas de combate a incêndios para resolverem fogos esporádicos. Foi mais ou menos por essa altura que MacAran partiu, com um grupo de colonos, para fazer o inventário pedido por Moray. Os únicos elementos da equipa anterior que agora os acompanhavam eram judith Lovat e MacLeod. judy continuava ensimesmada, quase sempre calada; MacAran preocupava-se com ela, mas judy desempenhava eficientemente as suas funções e parecia ter uma consciência quase psíquica de onde poderiam encontrar aquilo de que andavam a procura.

 

De um modo geral, a viagem de exploração pelos bosques decorreu sem incidentes. Marcaram carreiros para possíveis rotas na direcção do vale onde originalmente tinham observado manadas de animais a pastar, avaliaram a extensão das áreas ardidas

- que na realidade não era preocupante -, assinalaram os cursos de água e os rios, e MacAran reuniu amostras de pedras das cumeadas para se avaliar o seu potencial teor de minério.

 

Apenas um evento importante quebrou a agradável monotonia da viagem. Numa tarde, perto do pôr do Sol, estavam a desbravar caminho através de um troço de floresta fortemente
arborizado, quando MacLeod, ligeiramente adiantado em relação ao resto do grupo, estacou subitamente, voltou-se para trás, levou um dedo aos lábios a pedir silêncio, e fez sinal a MacAran para se adiantar.

 

MacAran avançou, com judy caminhando em bicos de pés ao seu lado. Ela parecia estranhamente excitada.

 

MacLeod apontou para o alto através das espessas árvores. Dois enormes troncos elevavam-se vertiginosamente, sem ramagens auxiliares até uma altura de pelo menos uns vinte metros; e lá em cima oscilava uma ponte ligando uma árvore à outra. Não se poderia chamar-lhe outra coisa: uma ponte construída com o que parecia ser verga entrançada, de linhas elegantes e provida de corrimãos.

 

- Ora aí está a prova dos teus aborígenes - disse MacLeod num sussurro. - Poderão viver nas árvores? Será por isso que ainda não os vimos?

 

- Caluda! - disse judy com urgência. À distância ouviu-se um pequeno som estrídulo, um chilreio; depois, por cima deles na ponte, surgiu uma criatura.

 

Todos puderam observá-la bem naquele momento: com cerca de metro e meio de altura, pele clara ou forrada de pêlo claro, segurando-se à balaustrada com o que era sem dúvida um par de mãos - nenhum deles teve a presença de espírito necessária para lhe contar os dedos - e um rosto plano mas estranhamente humanóide, com nariz achatado e olhos vermelhos. Durante quase dez segundos ficou agarrada à ponte, olhando para eles, aparentemente tão estupefacta como eles próprios se sentiam; depois, com um grito estrídulo de pássaro, atravessou a ponte, saltou para as árvores e desapareceu.

 

MacAran soltou um prolongado suspiro. Então este mundo era habitado, e não livre e aberto para a humanidade. Num tom calmo, MacLeod perguntou:

 

- judy, eram estes os seres que viste naquele dia? Aquele a quem chamaste o ente belo?

O rosto de Judy adquiriu aquele estranho ar de obstinação que qualquer referência àquele dia provocava sempre.

 

- Não - respondeu ela, calma mas num tom de muita convicção. - Estes são os irmãozinhos, os pequeninos que não são sábios.

 

E nada podia levá-la a explicar-se, até que resolveram desistir de interrogá-la. Mas MacLeod e o major Frazer sentiam-se no sétimo céu.

 

- Humanóides arbóreos. Nocturnos, a avaliar pelos olhos, provavelmente simianos, se bem que mais semelhantes a társios do que a macacos. Obviamente sapientes: usam ferramentas e fabricam artefactos. Homo arborens. Homens vivendo em árvores

- disse MacLeod.

 

MacAran comentou, hesitante:

 

- Se tivermos de ficar aqui... como poderão duas espécies sapientes sobreviver num mesmo planeta? Não é inevitável que isso conduza a uma guerra fatal pelo predomínio?

 

- Deus querendo, não - disse Frazer. - Na realidade existiram na Terra durante muito tempo quatro espécies sapientes: a raça humana, os golfinhos, as baleias, e provavelmente os elefantes também. Calhou, contudo, sermos a única espécie tecnológica. Eles habitam nas árvores; nós habitamos no solo. Não existe conflito, que eu veja... pelo menos nenhum conflito inescapáveL

 

MacAran não se sentia tão seguro, mas não quis partilhar as suas preocupações.

 

A viagem, apesar de pacífica, envolveu alguns perigos inesperados. No vale onde tinham encontrado os animais a pastar, e a que deram, por uma questão de facilidade, o nome de Planície de Zabal, os animais eram perseguidos por predadores felinos, e só as fogueiras nocturnas conseguiam conservá-los à distância. E foi lá nas alturas que MacAran captou a sua primeira visão das aves com vozes de banshee: enormes pássaros sem asas e com afiadas garras, movendo-se tão rapidamente que só um desesperado recurso aos feixes de laser, que levavam consigo para casos de  emergência, evitou que o Dr. Frazer fosse eviscerado durante um ataque terrível: MacLeod, ao dissecar a ave executada, verificou que ela era totalmente cega.

 

- Será que se encaminham para a presa guiando-se pela audição? Ou será por outra coisa?

 

- É possível que se guiem pelo calor corporal - disse MacAran -, pois aparentemente vivem nas neves eternas. - Deram às terríveis aves o nome de banshees, e a partir de então evitaram atravessar os desfiladeiros excepto em pleno dia. Encontraram também os montículos construídos pelas formigas parecidas com escorpiões que tinham provocado a morte do Dr. Zabal, e debateram sobre se deveriam pôr-lhes veneno; MacLeod manifestou-se contrário a isso, considerando que aquelas formigas poderiam fazer parte de alguma importante corrente ecológica que assim poderia ser perturbada. Concordaram finalmente em destruir apenas os montículos que se localizassem numa área de oito quilómetros quadrados em redor da nave, e avisar toda a gente sobre os perigos das picadas dos bichos. Era uma medida provisória, mas na realidade tudo o que faziam neste planeta tinha o carácter de uma medida provisória.

 

- Se conseguirmos escapar deste malfadado sítio - disse o Dr. Frazer com aspereza -, teremos de deixá-lo mais ou menos conforme o encontrámos.

 

Regressados ao acampamento, após uma viagem de exploração de três semanas, verificaram que duas construções permanentes de madeira e pedra tinham entretanto sido edificadas: um recinto comum para actividades de lazer e para uso como refeitório, e um edifício para ser utilizado como laboratório. Foi a última vez que MacAran mediu fosse o que fosse em termos de semanas; continuava a ser desconhecida a duração do ano planetário, mas, por uma questão de conveniência e para facilitar a atribuição de deveres e de turnos de trabalho, estabelecera-se um ciclo arbitrário de dez dias, sendo um dia em cada dez considerado um período de descanso para todos. Tinham sido plantadas amplas hortas onde as sementes estavam já a deitar rebentos, e procedía-se igualmente a uma criteriosa plantação de alguns frutos locais previamente ensaiados.

 

Fora instalado um pequeno gerador accionado pelo vento, mas o uso da energia eléctrica estava rigidamente racionado, tendo sido distribuídas velas, fabricadas com resina extraída das árvores, para a iluminação nocturna. As cúpulas temporárias continuavam a abrigar a maioria dos elementos do pessoal, excepto os que estavam instalados no hospital; MacAran compartilhava a sua com uma dúzia de outros homens solteiros. No dia seguinte ao do regresso, Ewen Ross chamou-o e a Judy ao hospital.

 

- Não chegaram a assistir à comunicação feita pelo Dr. Di Asturien - explicou. - Resumidamente, os nossos contraceptivos de hormonas são inúteis; até agora não houve gravidezes excepto uma que abortou espontaneamente de forma um tanto duvidosa, mas temos estado a depender das hormonas desde há tanto tempo que já ninguém sabe muito a respeito dos abortos. Não dispomos de equipamento de ensaio da gravidez, dado que ninguém necessita disso a bordo duma nave espacial. Quer isto dizer que, se por acaso detectarmos alguma gravidez, esta poderá encontrar-se, ainda antes de ter sido diagnosticada, demasiado adiantada para se provocar um aborto seguro!

 

MacAran sorriu com amargura.

 

- Podes poupar fôlego no que me diz respeito - disse pois a única rapariga em que presentemente estou interessado nem sabe que existo, ou pelo menos desejaria que eu não existisse. - Não tinha chegado a ver Camilla depois do regresso.

 

- Judy, e quanto a si? - perguntou Ewen. - Estive a ver o seu cadastro clínico; encontra-se num escalão etário em que a contracepção é voluntária, e não obrigatória...

 

Ela sorriu sem vontade.

 

- Porque na minha idade já ninguém se deixa tomar pelas emoções. Não estive sexualmente activa desde o início da viagem;
não há ninguém em quem esteja interessada, e por isso tenho dispensado as injecções.

 

- Bem, de qualquer forma fale com Margaret Raimondi. Ela está a distribuir informações de emergência, em caso de dúvida. O sexo pode ser voluntário, mas as informações são obrigatórias. Poderá escolher a abstenção, mas precisa de ser livre para escolher não se abster, e por isso fale com Margaret e obtenha as informações.

 

Ela começou a rir-se, e MacAran constatou que não a tinha visto rir-se desde o dia da estranha loucura que os atacara a todos. Mas o riso dela parecia ter uma nota de histerismo que o deixava preocupado, e sentiu-se aliviado quando por fim ela disse:

 

- Bem, está bem. Que mal poderá fazer? - e saiu. Ewen olhou para ela também com inquietação.

 

- Não estou satisfeito com ela. Parece ter sido a única pessoa a ficar permanentemente afectada por aquilo que nos atingiu, mas não dispomos de psiquiatras em número suficiente, e de qualquer modo ela está apta a fazer o seu trabalho, e isto constitui uma definição legal da sanidade mental. Mesmo assim, faço votos para que se recomponha depressa. Ela esteve sempre bem durante a viagem?

 

MacAran acenou a confirmar, e depois disse, pensativo:

 

- Talvez tenha passado por alguma experiência que não nos relatou. Agora parece estar bem aqui. Talvez alguma coisa do género do que me contaste a respeito de MacLeod saber que os frutos eram bons para comer. Achas que um choque emocional pode desenvolver poderes latentes de percepção extra-sensorial?

 

Ewen abanou a cabeça.

 

- Sabe-se lá, e estamos demasiadamente ocupados para investigarmos essa hipótese. Aliás, como seria possível investigar uma coisa dessas? Enquanto ela se mostrar suficientemente normal para desempenhar o trabalho que lhe compete não poderei intrometer-me na sua vida. Depois de sair do hospital, MacAran deu uma volta pelo acampamento. Tudo parecia pacífico, desde a pequena oficina onde se fabricavam alfaias agrícolas até à alterosa nave, da qual estava a ser retirada maquinaria que depois era armazenada. Foi encontrar Camilla na cúpula danificada pelo vento na noite do incêndio florestal; tinha sido reparada e reforçada, e os comandos do computador estavam instalados no seu interior. Camilla olhou para ele com um ar que lhe pareceu hostil.

 

- O que pretendes? Vens aqui a mando de Moray para transformares isto numa estação meteorológica ou coisa parecida?

- Não, mas talvez não fosse má ideia - respondeu Macaran. - Outro temporal como o que nos atingiu na noite do fogo poderia destruir-nos se não estivéssemos precavidos.

 

Ela aproximou-se e olhou para ele. Tinha os braços rigidamente paralelos ao corpo, com os punhos fechados e o rosto tenso de raiva.

 

- Parece-me que todos vocês estão completamente loucos disse. - Dos colonos não seria de esperar outra coisa, pois são civis e apenas se preocupam com a instalação da sua preciosa colónia. Mas tu, Rafe! Tu tens um currículo de cientista, e devias ver o que aquilo significa! Tudo o que nos resta é a esperança de repararmos a nave, e se desperdiçarmos os nossos recursos em qualquer outra coisa as possibilidades tornam-se cada vez mais diminutas! - Parecia de cabeça perdida. - E ficaremos aqui para sempre!

 

MacAran respondeu com calma:

 

- Lembra-te, Camilla, de que eu também era um dos colonos. Deixei a Terra para me integrar na colónia de Coronis...

- Mas essa é uma colónia normal, com tudo o que é necessário para funcionar... para fazer parte da civilização - disse Camilla. - Isso posso eu compreender. A tua experiência, a tua educação, teriam ali algum valor!

 

MacAran estendeu os braços e apoiou as mãos nos ombros dela.
- Camilla... - disse, aplicando toda a sua ânsia no som do nome dela. Camilla não reagiu, mas ficou sossegada entre as mãos dele, a olhá-lo. O seu rosto parecia tenso e infeliz. - Camilla, podes escutar-me por um minuto? Estou inteiramente do lado do capitão, em tudo o que se refira às medidas a tomar. Estou disposto a fazer qualquer coisa para ter a certeza de que a nave voltará ao espaço. Mas não posso pôr de parte a probabilidade de nada ser possível fazer, e quero certificar-me de que poderemos sobreviver se isso acontecer.

 

- Sobreviver para quê? - perguntou Camilla, quase descontrolada. - Para regressarmos à selvajaria, para vivermos como agricultores, bárbaros, sem nada que possa dar sentido à vida? Melhor seria morrermos num último esforço!

 

- Não sei por que motivo dizes uma coisa dessas, meu amor. Lembra-te de que os primeiros humanos começaram com menos do que nós temos. Talvez o seu mundo tivesse um clima mais agradável, mas por outro lado possuímos mais de dez ou doze mil anos de conhecimentos humanos. Um grupo de pessoas que o capitão Leicester considera capazes de reparar uma nave estelar possuem certamente os conhecimentos necessários para construírem uma vida bastante boa para si mesmas e para os seus filhos... e para as gerações vindouras. - Tentou puxá-la para si mas ela repeliu-o, pálida e furiosa.

 

- Prefiro morrer - disse com aspereza -, como qualquer humano civilizado preferiria! Tu és pior do que o grupo das Novas Hébridas que está lá fora... a gente de Moray... aquela malta danada por regressar à Natureza, fazendo exactamente o que ele quer...

 

- Não tenho nada a ver com eles... Camilla, minha querida, não te zangues comigo. Só estou a tentar compreender ambos os lados...

 

- Mas só existe um lado - ripostou ela, encolerizada e implacável -, e se não vês assim o caso então nem mereces que fale contigo! Sinto-me envergonhada... tenho vergonha de mim mesma por alguma vez ter chegado a pensar que tu poderias ser diferente! - As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, e ela repeliu com força as mãos dele. - Vai-te embora e não voltes! Vai-te embora, maldito!

 

O temperamento de MacAran era o que usualmente se associa à cor ruiva do seu cabelo. Baixou as mãos como se as tivesse queimado, e rodou sobre os calcanhares.

 

- Será um grande prazer - ripostou entre dentes, e abandonou a cúpula, batendo com a porta reforçada fazendo-a trepidar nas suas dobradiças. Lá dentro Camilla deixou-se cair num banco com o rosto coberto pelas mãos, e chorou até se sentir mal, soluçando intensamente até que uma náusea violenta a trespassou, forçando-a a correr aos tropeços na direcção dos lavabos femininos. Por fim arrastou-se para fora dali, com a cabeça a martelar e o rosto encarniçado e dorido.

 

Ao regressar à cúpula do computador veio-lhe à memória um pensamento. já era a terceira vez que isto acontecia, e com um ímpeto de rejeição e de pavor violento levou as mãos à boca e roeu os nós dos dedos.

 

- Oh, não - sussurrou. - Oh, não, não... - e a sua voz foi esmorecendo em preces e imprecações murmuradas. Os seus olhos cinzentos estavam desvairados com o terror.

 

MacAran tinha entrado no recinto do refeitório e da sala de lazer, que se transformara rapidamente num centro de convívio para a vasta e desorganizada comunidade, quando encontrou, num improvisado painel informativo, um aviso sobre uma reunião da Comuna das Novas Hébridas. já tinha dado por isto anteriormente: os colonos aceites pela Força Expedicionária da Terra incluíam não apenas participantes individuais, como ele próprio e a sua irmã Jenny, mas também pequenos grupos ou comunas, famílias numerosas, além de duas ou três empresas comerciais desejosas de ampliar as suas actividades ou abrir filiais. Eram todos cuidadosamente investigados para se determinar como se ajustariam ao desenvolvimento equilibrado da colónia,
mas à parte isto todos constituíam uma equipa bastante heterogénea. Supunha que a Comuna das Novas Hébridas seria uma das muitas comunas semi-rurais que, durante os últimos tempos na Terra, se tinham distanciado da sociedade dominante, decepcionadas com a sua industrialização e arregimentação. Muitas dessas comunidades tinham partido para as colónias estelares; toda a gente concordava que, apesar de terem sido uns inadaptados na Terra, constituíam excelentes colonos. Até agora não lhes dedicara a menor atenção; mas, depois de ter escutado as palavras de Camilla, sentía-se curioso. Seria aquela reunião aberta a elementos externos?

 

Recordou-se vagamente de que este grupo tinha ocasionalmente reservado áreas de recreio na nave para as suas reuniões, pois pareciam ter uma vida comunitária bastante intensa. Bem, na pior das hipóteses mandá-lo-iam embora.

 

Foi encontrá-los na área destinada ao refeitório, que àquela hora se encontrava desocupada. Estavam quase todos sentados em círculo, tocando instrumentos musicais; um deles, um jovem alto com longos cabelos entrançados, levantou a cabeça e disse:

 

- Só para membros, amigo - mas outro elemento, uma rapariga com cabelos ruivos pendendo soltos até a cintura, insistiu: - Não, Alastair. Chama-se MacAran, e estava na equipa de exploração; tem muitas das respostas de que precisamos. Venha, homem, faça-se bem-vindo.

 

Alastair riu-se.

 

- Tens razão, Fiona; com um nome como MacAran, ele tem, de qualquer modo, o direito de ser nomeado membro honorário.

 

MacAran aproximou-se. Para sua surpresa viu, algures no círculo, a figura rotunda, atarracada e arruivada de LewIs MacLeod.

 

- Não conheci nenhum de vós a bordo da nave - disse -, e receio desconhecer aquilo que o vosso grupo pretende representar.

Calmamente, Alastair explicou:

 

- Somos neo-ruralistas, claro; construtores de mundos. Alguns membros do Sistema chamam-nos antitecnocratas, mas não somos nós os destruidores. Andamos simplesmente à procura de uma alternativa honrosa para a sociedade da Terra, e habitualmente somos bem-vindos nas colónias, tal como eles ficam satisfeitos por nos verem longe. Portanto... diga-nos, MacAran: como estão as coisas? Com que brevidade poderemos construir a nossa própria colónia?

 

MacAran disse:

 

- Vocês sabem tanto como eu. O clima é bastante agreste, como sabem; se é assim durante o Verão, vai ser muito mais rigoroso no Inverno.

 

Fiona riu-se, e disse:

 

- Quase todos nós crescemos nas Hébridas, ou então nas órcades, onde há provavelmente o pior clima da Terra. O frio não nos assusta, MacAran. Mas pretendemos organizar-nos em vida comunitária, para que possamos impor os nossos hábitos e costumes, antes da chegada do Inverno.

 

Lentamente, MacAran disse:

 

- Não me parece que o capitão Leicester vá permitir que alguém saia do acampamento. A prioridade continua a ser a reparação da nave, e acho que ele nos considera a todos como uma só comunidade. Se começarmos a separar-nos...

 

- Deixe-se disso - exclamou Alastair -, pois nenhum de nós é um cientista. Não podemos desperdiçar cinco anos a trabalhar numa nave estelar; isso é totalmente contrário à nossa filosofia!

 

- A sobrevivência...

 

- A sobrevivência! - MacAran só entendia um pouco do gaélico dos seus antepassados, mas percebeu que Alastair estava a ser rude. - A sobrevivência, para nós, significa instalar aqui uma colónia o mais cedo possível. Inscrevemo-nos para irmos para Coronis. O capitão Leicester cometeu um erro e fez-nos
pousar aqui, mas para nós tudo vai dar no mesmo. Para os nossos propósitos, isto aqui ainda é melhor.

 

MacAran levantou os sobrolhos para MacLeod, dizendo:

- Não sabia que pertencias a este grupo.

 

- Não pertencia - explicou MacLeod. - Sou um sócio sem cartão, mas concordo com eles... e estou disposto a permanecer aqui.

 

- julgava que eles não simpatizassem com cientistas. Fiona explicou:

 

- Admiramo-los quando usam os seus conhecimentos para servir e auxiliar a humanidade... e não para manipulá-la, ou para destruir a sua força espiritual. Estamos contentes por podermos contar com o Doutor MacLeod... com Lewis, pois não usamos títulos... e com os seus conhecimentos de zoologia.

 

Com uma expressão de espanto, MacAran perguntou a MacLeod:

 

- Tencionam amotinar-se contra o capitão Leicester?

 

- Amotinar-nos? - interveio um rapaz que MacAran não conhecia. - Não pertencemos à tripulação dele e não somos seus vassalos, homem! Apenas tencionamos viver tal como faríamos no novo mundo. Não podemos esperar três anos até que ele desista daquela louca ideia de reconstruir a nave. Nessa altura já poderíamos ter uma comunidade funcional.

 

- E se ele conseguir mesmo reparar a nave, prosseguindo viagem para Coronis? Vocês ficarão aqui?

 

- Este é o nosso mundo - declarou Fiona, colocando-se ao lado de Alastair. Os seus olhos eram suaves mas implacáveis. Os nossos filhos nascerão aqui.

 

MacAran inquiriu, chocado:

- Quer dizer com isso que...

 

- Não sabemos - respondeu Alastair -, mas algumas das mulheres do nosso grupo poderão jà estar grávidas. É o sinal do nosso compromisso para com este mundo, o nosso sinal de rejeição da Terra e do mundo que o capitão LeiCester quer forçar-nos a abraçar. E o senhor poderá transmitir-lhe esse recado.

Quando MacAran começou a afastar-se, os instrumentos musicais recomeçaram a soar, acompanhando o lamentoso som de uma voz de rapariga na eterna melancolia de uma velha canção das Ilhas, um lamento pelos mortos, saído de um passado mais dilacerado por guerras e exílios do que o de qualquer outro povo da Terra:

 

Oh gaivota branca, diz-me Diz-me, peço-te:

 

Onde repousam os nossos airosos jovens?

 

Vaga após vaga eles jazem.

 

Nem hálito nem suspiro Sai dos seus lábios gelados;

 

A sua mortalha são os destroços do naufrágio, Harpa e endecha o triste trauteio do mar.

 

O cântico constringiu a garganta de MacAran, e contra a sua vontade as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Lamentam-se, pensou, mas sabem que a vida continua. Os escoceses têm sido exilados desde há séculos, desde há milénios. Este é apenas um novo exílio, para um pouco mais longe do que os outros, mas eles continuarão a cantar as velhas canções debaixo de novas estrelas e encontrarão novas montanhas e novos mares...

 

Ao sair do recinto puxou o capuz sobre a cabeça; possivelmente estaria já a chover. Mas não estava.

Macaran já tinha visto o que uma ou duas noites sem chuva e sem neve poderiam fazer neste planeta. As zonas cultivadas encheram-se de vegetação, e por toda a parte apareciam flores, sobretudo aquelas pequenas flores alaranjadas. As quatro luas surgiam em toda a sua glória desde antes do pôr do Sol até este voltar a nascer, transformando o céu num charco de brilho lilás.

 

Os bosques secaram, e todos começaram a preocupar-se com a organização de uma vigia contra fogos. Moray teve a ideia de mandar instalar pára-raios nos topos das colinas num espaço de alguns quilómetros em redor do acampamento, cada um deles fixado a uma árvore de grande altura. Talvez não evitasse a eclosão de incêndios no caso de rebentar uma forte tempestade, mas poderia minimizar os seus perigos.

 

E acima deles, nas alturas, as grandes flores douradas com a forma de campainhas abriram-se todas, espalhando o seu pólen de aroma adocicado que começava a difundir-se pelas vertentes mais altas. Não tinha alcançado os vales.

 

Por enquanto...

 

Depois de uma semana de entardeceres sem neve, de noites inundadas de luar e dias tépidos - tépidos em comparação com o que era habitual neste planeta, que teria feito com que a Noruega parecesse uma estância de veraneio - MacAran foi pedir a aprovação de Moray para mais uma viagem de exploração
às colinas. Achava que deveria aproveitar o clima invulgarmente ameno para reunir mais espécimes geológicos, e talvez para localizar cavernas que pudessem ser aproveitadas como abrigos de recurso em explorações posteriores. Moray tinha tomado conta de uma pequena sala num recanto do edifício de lazer, montando aí o seu escritório, e MacAran, enquanto aguardava cá fora, viu Heather Stuart entrar no edifício.

 

- O que achas deste tempo? - perguntou-lhe, lançando mão do velho hábito vigente na Terra: Quando não souberes o que dizer, fala do tempo. Bem, há neste planeta muito que dizer a respeito do tempo, e nem tudo é desagradável.

 

- Não estou a gostar nada - replicou Heather com uma expressão séria. - Ainda não me esqueci do que aconteceu na montanha, quando tivemos alguns dias amenos.

 

Também tu? Pensou MacAran, mas não reagiu.

 

- Como poderia um clima destes ser responsável pelo que aconteceu, Heather?

 

- Vírus transportados pelo ar. Pólen transportado pelo ar. Elementos químicos transportados pelo ar. A minha especialidade é a microbiologia, Rafe, e ficarias surpreendido se soubesses o que alguns centímetros cúbicos de ar ou água ou solo podem conter. Na sessão de informações, a Camilla disse que a última coisa de que se lembrava antes de ter ficado descontrolada era a fragrância das flores, e eu mesma recordo-me de que o ar estava saturado com aromas. - Esboçou um sorriso. - Claro, aquilo de que me recordo talvez não tenha qualquer validade, e espero não ter de me certificar disso através de novas experiências pessoais. Acabo de ter a certeza de que não estou grávida, e não quero passar novamente por aquilo. Quando penso naquilo por que as mulheres passavam antes de existirem contraceptivos realmente eficazes, de mês para mês sempre sem terem a certeza...

- Estremeceu. - Rafe, sabes se a Camilla já tem a certeza? Ela já deixou de confidenciar comigo.

 

- Não faço qualquer ideia - respondeu MacAran com ar sombrio. - É que comigo nem sequer fala.

O rosto sensível de Heather assumiu uma expressão de desânimo.

 

- Oh, lamento muito, Rafe. Estava tão contente com o que se passava convosco... O Ewen e eu própria tínhamos a esperança de que... olha, parece-me que o Moray está pronto para receber-te. - A porta tinha-se aberto, e o alto e arruivado Alastair chocou contra eles ao sair apressado; deu meia volta e quase gritou: - A resposta continua a ser negativa, Moray! Estamos decididos a partir... todos nós, toda a nossa comunidade! Agora mesmo, esta noite!

 

Moray seguiu-o até à porta, clamando:

 

- Vocês são mesmo egoístas, não são? Falam da comunidade, mas na realidade tudo o que conta para vós é o vosso pequeno grupinho, e não a comunidade humana presente neste planeta. Pensaram alguma vez que todos nós, todos os duzentos e tantos seres aqui presentes, constituímos forçosamente uma comuna? Nós somos a humanidade, nós somos a sociedade. Onde está esse grande sentido de responsabilidade para com o vosso semelhante, rapazinho?

 

Alastair baixou a cabeça, murmurando:

 

- Vocês todos não defendem aquilo que nós defendemos...

- Todos nós defendemos o bem comum e a sobrevivência

- disse Moray, calmamente. - O capitão acabará por ver as coisas como nós as vemos. Dêem-me ao menos uma oportunidade para falar com os outros.

 

- Fui nomeado para falar por eles...

 

- Alastair - interrompeu Moray com gravidade. - Estás a violar os teus próprios padrões, como sabes. Se és um verdadeiro anarquista filosófico, terás de lhes dar uma hipótese de ouvirem o que tenho para lhes dizer.

 

- Está só a tentar manipular-nos a todos...

 

- Estarás com receio do que eu lhes possa dizer? Estarás com receio de que eles possam acabar por se desinteressarem daquilo que tu pretendes?
Alastair, empurrado para um canto, acabou por ceder.

 

- Pronto! Fale com eles até se fartar, pronto! Não lhe servirá de nada!

 

Moray saiu com eles, dizendo de passagem a MacAran:

 

- Vai ter de ficar para outra oportunidade, rapaz. Tenho de ir falar com aqueles jovens lunáticos para que tentem ver-nos a todos como uma grande família... sem pensarem apenas na pequena família deles!

 

No exterior estavam reunidos os trinta e tantos membros da comunidade das Novas Hébridas. MacAran reparou que eles tinham posto de parte o uniforme distribuído pela nave, trajando roupas à civil e transportando mochilas. Moray avançou e começou a falar-lhes. De onde ele se encontrava junto da porta, MacAran não conseguia distinguir as palavras, mas havia muita gritaria e discussões. MacAran ficou a observar os pequenos turbilhões de poeira soprada através do terreno lavrado, o ricochete do vento contra as árvores no extremo da clareira soando como um marulhar que nunca acalmava. Parecia-lhe que havia um cântico no vento, Olhou para Heather ao seu lado, e o rosto dela parecia refulgir na luz escura do sol, quase uma canção visível. Ela disse, roucamente:

 

- Música... música no vento... Entre dentes, MacAran comentou:

 

- Que raio estarão eles a fazer ali? A organizar um bailarico? Afastou-se de Heather, ao mesmo tempo que alguns guardas uniformizados do Corpo de Segurança se encaminhavam para os membros da comuna, vindos da nave. Um deles enfrentou Alastair e Moray e começou a falar; MacAran, aproximando-se, ouviu: ”... pousem as mochilas no chão. Tenho ordens do capitão para vos deter, por deserção durante uma emergência.”

 

- O vosso capitão não exerce qualquer poder sobre nós, emergência ou não, seu chui duma figa - ripostou o gigante de cabelo ruivo, e uma das raparigas tomou uma mão-cheia de terra e atirou-a ao guarda, suscitando o riso tumultuoso dos outros.

Moray disse insistentemente aos homens da Segurança:

 

- Não! Não há necessidade disto! Deixem-me falar com eles!

 

O guarda atingido pela terra arremessada soltou do ombro a sua arma. MacAran, sentindo o súbito apertar de medo que lhe era bem familiar, disse em voz baixa:

 

- Está tudo estragado - e correu em frente ao mesmo tempo que os homens e as mulheres das comunas deitavam para o chão as suas mochilas e carregaram sobre os guardas, rugindo e gritando como demónios.

 

Um dos guardas largou a espingarda e começou a rir-se como um louco. Atirou-se para o chão e ficou ali a rolar, aos gritos. MacAran, reconhecendo prontamente o que estava a suceder, avançou célere. Agarrou na arma que tinha sido largada, arrancou outra das mãos do segundo guarda, e correu na direcção da nave ao mesmo tempo que um terceiro guarda, que tinha apenas uma pistola, disparava um tiro. No cérebro conturbado de MacAran o estampido parecia uma galeria infindável de ecos. Com um grito intenso uma das raparigas caiu para o chão, contorcendo-se em agonia.

 

Arrastando consigo as duas espingardas, MacAran precipitou-se para diante do capitão na cúpula do computador; Leicester levantou os sobrolhos, a pedir explicações, e MacAran viu aquelas sobrancelhas arrastando-se como lagartas, criando asas e esvoaçando à solta na cúpula... não. NÃO! Tentando resistir ao estonteante ataque de irrealidade, exclamou ofegante: - Capitão, está a acontecer outra vez! Aquilo que nos aconteceu nas vertentes! Pelo amor de Deus, tranque as armas e as munições antes que alguém morra! Uma rapariga já levou um tiro...

 

- O quê? - Leicester olhou para ele com descrença. Deve estar certamente a exagerar...

 

- Capitão, eu já passei por isto - disse MacAran, resistindo desesperadamente ao desejo de se atirar para o chão, de agarrar o capitão pelo pescoço e sacudi-lo até morrer... - É verdade!
É... O senhor conhece o Ewen Ross, e sabe que ele fez um exigente e complexo curso de Medicina... e mesmo assim deitou-se no bosque à brincadeira com a Heather e o MacLeod, ao mesmo tempo que um seu doente moribundo passava por ele a correr e até sucumbir com a aorta rebentada. A Camilla - a tenente Del Rey - largou o seu telescópio e pôs-se a perseguir borboletas.

- E pensa que esta... esta epidemia vai atacar aqui?

 

- Capitão, sei que vai mesmo - suplicou MacAran. - Eu próprio estou a tentar resistir-lhe...

 

Leicester não tinha chegado a capitão de uma astronave por ter pouca imaginação ou por se recusar a enfrentar emergências. Ao ouvir-se uma segunda detonação no espaço diante da clareira, correu para a porta ao mesmo tempo que accionava um botão de alarme. Quando ninguém acorreu soltou um grito e atravessou a clareira em corrida.

 

MacAran, logo atrás dele, avaliou a situação sem pestanejar. A rapariga atingida pelo tiro do guarda continuava no chão, contorcendo-se de dor; ao alcançarem o local da contenda viram os homens da Segurança e os jovens da Comuna envolvidos numa luta corpo-a-corpo, gritando obscenidades. Ouviu-se um terceiro tiro; um dos guardas da Segurança soltou um brado de dor e caiu, agarrado à rótula.

 

- Danforth! - berrou o capitão.

 

Danforth deu meia volta, de arma aperrada, e por um instante MacAran julgou que ele iria premir novamente o gatilho, mas o hábito de muitos anos a obedecer ao capitão fê-lo hesitar. Só por uns momentos, mas entretanto o corpo de MacAran atingiu-o em voo, numa tosca placagem; o homem caiu desamparado e a arma rolou para longe. Leicester apanhou-a prontamente, abriu-a e guardou as balas no bolso.

 

Danforth debateu-se como um danado, desunhando-se ao tentar agarrar MacAran pelo pescoço; este sentiu uma raiva descontrolada a crescer também nele, com cores vermelhas rodopiando diante dos olhos. Sentia ganas de arranhar, de morder, de arrancar os olhos do homem... mas, com um esforço

brutal, recordando o que acontecera antes, conseguiu regressar à realidade, e deixou que o guarda se pusesse de pé. Danforth olhou para o capitão e começou a balbuciar, limpando os olhos lacrimosos com os punhos cerrados e resmoneando incoerentemente.

 

- Hei-de tratar-lhe da saúde, Danforth! - rosnou o capitão Leicester. - Regresse imediatamente ao seu alojamento! Danforth engoliu em seco. Relaxou-se e sorriu preguiçosamente para o seu superior.

 

- Capitão - murmurou ternamente -, já alguém lhe disse que tem uns lindos olhos azuis? Escute, porque é que nós não...

- sorrindo, com um ar compenetrado, fez uma sugestão obscena que levou Leicester a engasgar-se, com o rosto arroxeado pela raiva, e aspirar um trago de ar para logo soltar uma nova imprecação. MacAran segurou rapidamente o capitão por um braço.

 

- Capitão, não faça nada de que depois poderá arrepender-se. Não vê que ele não sabe o que está a fazer ou a dizer? Danforth já se desinteressara, afastando-se a pontapear distraído as pedras soltas no chão. À volta deles o núcleo da contenda tinha perdido o seu ímpeto inicial; uma parte dos combatentes estavam sentados no chão, entoando cânticos; os outros tinham-se afastado em pequenos grupos de dois ou três elementos. Outros estavam a afagar-se com uma total absorção animal e uma completa ausência de inibições, espojando-se na relva áspera; outros ainda tinham já partido, numa total indiscriminação homem com mulher, mulher com mulher, homem com homem

- procurando uma satisfação mais directa e mais activa. O capitão Leicester observou consternado a orgia diurna e começou a soluçar.

 

Um surto de aversão despertou em MacAran, absorvendo a preocupação e a compaixão que antes sentira. Ao mesmo tempo sentia-se dilacerado entre emoções opostas, um crescente ímpeto de luxúria, fazendo-o desejar misturar-se com os corpos entrelaçados cobrindo o chão, uma derradeira comiseração pelo
capitão... ele não sabe o que está a fazer, menos ainda do que eu... é um crescendo de náusea. Pôs-se abruptamente em fuga, aos tropeções, com uma sensação de pânico que obscurecia tudo o mais.

 

Por detrás dele uma rapariga de longos cabelos, pouco mais do que uma criança, aproximou-se do capitão, instou com ele para repousar a cabeça no seu colo, e embalou-o como a um bebé, trauteando suavemente em gaélíco...

 

Ewen Ross viu e sentiu a primeira onda da paranoia crescente que o atingiu como um ataque de pânico... ao mesmo tempo que, no edifício hospitalar, via um paciente ainda envolto em ligaduras e comatoso desde há dias saltar do leito arrancando as ligaduras e, enquanto Ewen e uma enfermeira o olhavam com espanto, reabrir as suas feridas e, rindo às gargalhadas, sangrar até morrer. A enfermeira atirou ao moribundo um enorme garrafão de óleo de linhaça; a seguir Ewen, tentando desesperadamente controlar as vagas de loucura que ameaçavam apossar-se dele (o solo oscilava como num terramoto, uma intensa vertigem encrespava-lhe as vísceras e a cabeça com a náusea, cores de loucura rodopiavam diante dos seus olhos. Saltou sobre a enfermeira e, após um momento de porfia, tirou-lhe o bisturi com que ela tentava dilacerar os pulsos. Resistiu aos braços enleantes da mulher (atira-a agora para cima da cama, arranca-lhe o uniforme...) e correu para o Dr. Di Asturien, fazendo-lhe um aterrorizado apelo para trancar todos os venenos, narcóticos e instrumentos cirúrgicos. Recrutando às pressas a ajuda de Heather (pois essa ao menos tinha algumas recordações do seu próprio primeiro ataque) conseguiram ambos aferrolhar quase todos os artigos perigosos e esconder a chave antes que todo o hospital enlouquecesse.

 

Nas profundezas da floresta, a inacostumada claridade do Sol enchia de flores os relvados das clareiras e carregava o ar com pólen trazido das alturas pelo vento.

Insectos apressavam-se de flor para flor, de folha para folha; as aves acasalavam, construíam ninhos de tépidas penas com os seus ovos resguardados por paredes isolantes de lama e palha para aí chocarem, alimentando-se de néctares e resinas até surgir a próxima vaga de calor. Ervas e grãos espalhavam as suas sementes, que as próximas neves iriam fertilizar e humedecer até deitarem rebentos.

 

Nas planícies, animais semelhantes a veados corriam em desordem, provocando debandadas, combatendo, acasalando em pleno dia, enquanto os ventos carregados de pólen lhes introduziam no cérebro as suas curiosas fragrâncias. E nas árvores das zonas mais baixas das vertentes os pequenos humanóides peludos corriam excitados, atrevendo-se a descer até ao chão - alguns deles pela única vez na vida - banqueteando-se com os frutos em acelerado amadurecimento, cruzando as clareiras numa louca indiferença pelos animais de grande porte. Gerações e milénios de recordações, gravadas nos seus genes e no cérebro, tinham-lhes ensinado que nesta ocasião nem os seus inimigos naturais eram capazes de aguentar por muito tempo o esforço da perseguição.

 

A noite desceu sobre o mundo das quatro luas; o Sol escuro afundou-se num estranho crepúsculo transparente, e as raras estrelas surgiram no firmamento. Uma após outra, as luas subiram no céu: a grande lua de um brilhante tom violeta, os dois discos como jóias verdes e azuis mais pálidas, e a mais pequena, que parecia uma pérola branca. Na clareira em que a grande astronave, vinda de outro mundo, jazia enorme e estranha e ameaçadora, os homens vindos da Terra respiraram o estranho vento e o estranho pólen trazido por ele, e curiosos impulsos debateram-se e irromperam nos seus cérebros.

 

O padre Valentine e meia dúzia de membros da tripulação jaziam estatelados num matagal, exaustos e saciados.

 

No hospital, pacientes febris gemiam queixumes sem alguém que cuidasse deles, ou partiam descontrolados correndo pela
clareira ou pela floresta, à procura nem sabiam de quê. Um homem com uma perna fracturada correu um quilómetro pelo meio das árvores até que a perna cedeu debaixo do seu peso, ficando caído no chão a rir-se à luz das luas, enquanto uma fera semelhante a um tigre lhe lambia o rosto, cortejando-o.

 

Judith Lovat estava tranquilamente reclinada no seu alojamento, fazendo oscilar a grande jóia azul que pendia num colar à volta do pescoço; tinha-a conservado, durante todo este tempo, escondida debaixo da roupa. Agora puxara-a para fora, como se os estranhos padrões estriados no seu interior exercessem uma influência hipnótica sobre ela. Recordações turbilhonavam-lhe na mente, da estranha loucura sorridente que anteriormente tomara posse dela. Passado algum tempo, como se acorresse a um chamamento invisível, levantou-se, agasalhou-se apropriando-se das roupas mais quentes da sua colega de quarto (esta, uma rapariga chamada Eloise, que tinha sido a bordo uma das oficiais das Comunicações, estava sentada debaixo de uma árvore de longas folhas escutando os estranhos sons que o vento produzia nelas e cantando sem palavras). Judy atravessou calmamente a clareira, penetrando na floresta. Não tinha a certeza de qual seria o seu destino, mas sabia que seria guiada quando chegasse a altura, e por isso seguiu o carreiro que subia a encosta, sem nunca se desviar, ouvindo a música no vento.

 

Frases escutadas noutro planeta ecoavam debilmente no seu cérebro, por mulher chorando o seu demoníaco amante... Não, demoníaco não, pensou, mas demasiado subtil, demasiado estranho e belo para ser humano... ouviu-se a si mesma dizer num soluço ao caminhar, recordando a música, os ventos e as flores tremeluzentes, e os estranhos olhos brilhantes do ente semi-recordado, o aperto de pavor que prontamente se tinha transformado em encantamento e depois em felicidade, uma sensação de proximidade mais intensa do que qualquer outra que alguma vez experimentara.

Teriam sido então parecidas com isto, aquelas velhas lendas terrenas de um vagabundo atraído por gente fádica, aquele poeta que cantara, em pleno encantamento:

 

Encontrei uma Senhora no bosque Uma filha de fadas

 

Os seus cabelos eram longos, os seus pés ligeiros E os seus olhos eram bravios...

 

Seria assim? Ou seria antes: E o filho de Deus contemplou as filhas dos homens, e viu que eram belas...

 

Judy era uma cientista suficientemente disciplinada para estar consciente de que havia um elemento de loucura nas curiosas acções a que agora assistia. Estava certa de que algumas das suas recordações eram coloridas e modificadas pelo estranho estado de consciência psicológica em que estivera imersa. Contudo, a experiência adquirida e o conhecimento da realidade deviam também contar para alguma coisa. Se havia naquilo um toque de loucura, por detrás desta existia algo de real, e era tão real como o toque agora tangível na sua mente, que lhe dizia: ”Vem. Serás guiada, e não te acontecerá mal nenhum.”

 

Ouviu um curioso roçagar nas folhas por cima da cabeça e parou, olhando para o alto, com a respiração suspensa pela emoção. Tão profunda era a sua esperança e o seu desejo de rever aquele estranho e inesquecível rosto que sentiu vontade de chorar quando verificou que era apenas um dos pequeninos, os diminutos alienígenas de olhos vermelhos, que a espreitava com timidez através das folhas, para a seguir deslizar tronco abaixo e parar diante dela, estremecendo mas confiante, a estender-lhe as mãos.

 

Ela não conseguiu penetrar-lhe por completo na mente. Sabia que os pequeninos eram muito menos desenvolvidos do que ela, e a barreira da linguagem era enorme. Contudo, e sem saber como, estavam a comunicar entre si. O pequeno homem das
árvores sabia que era ela quem ele procurava, e a razão para tal, e Judy sabia que ele tinha sido enviado à procura dela, e que lhe trazia uma mensagem que Judy desejava desesperadamente conhecer. Viu nas árvores outros rostos tímidos e estranhos, e passado um momento, quando eles já se encontravam cônscios da boa vontade dela, desceram também e puseram-se à sua volta. Um deles introduziu-lhe entre os dedos uma mão fria e pequena; um outro colocou-lhe ao pescoço uma grinalda de folhas e flores brilhantes. Com modos quase reverentes foram-lhe guiando o caminho, e ela seguiu-os sem protesto, sabendo que isto era apenas um prólogo do verdadeiro encontro pelo qual ansiava.

 

No alto da nave acidentada ribombou uma explosão. O chão tremeu, e os ecos rolaram através da floresta, fazendo as aves fugir das árvores voando numa nuvem que por um momento obscureceu o Sol, mas ninguém na clareira escutou...

 

Moray estava estendido na macia terra lavrada da horta, ouvindo com um íntimo conhecimento o crescer suave das plantas enterradas no solo. Parecia-lhe, naqueles momentos de sensações dilatadas, que lhe era possível escutar a relva e as folhas a crescer, que algumas das plantas terrestres e aqui estrangeiras estavam a queixar-se, a soluçar, a morrer, enquanto que outras, neste solo estranho, vicejavam e transformavam-se, com as células a alterar-se e a modificar-se conforme necessário para que pudessem adaptar-se e sobreviver. Seria incapaz de traduzir isto em palavras, e, por ser um homem prático e materialista, nunca poderia acreditar racionalmente em PES. Contudo, com os centros não usados do seu cérebro estimulados pela estranha loucura deste tempo, não fazia qualquer esforço para racionalizar ou para acreditar. Sabia, apenas, e aceitava esse saber, e sabia que ele nunca o abandonaria.

 

O padre Valentine foi despertado pelo Sol que nascia sobre a clareira. Ao princípio, confundido, e ainda inundado por estranhas sensações, ficou sentado olhando espantado para o Sol e para as quatro luas que, por algum truque da luz ou dos seus sentidos curiosamente reforçados, conseguia distinguir com nitidez na claridade violeta do nascer do Sol. Depois a memória regressou em catadupas, e reparou horrorizado nos tripulantes espalhados à sua volta, ainda embrenhados no sono, exaustos. O pleno pavor hediondo do que fizera, naquelas últimas horas de escuridão e de apetites animalescos, penetrou numa mente demasiado confundida e estimulada para tomar consciência da sua própria loucura.

 

Um dos tripulantes tinha uma faca no cinto. O frágil padre, com o rosto coberto de lágrimas, arrancou-lha e começou com todo o empenho a eliminar uma por uma todas as testemunhas do seu pecado, sussurrando entre dentes as frases dos ritos fúnebres enquanto observava o sangue a derramar-se...

 

Era o vento, pensou MacAran. Heather tivera razão: era qualquer coisa no vento. Alguma substância, transportada através do ar, poeira ou pólen, que transmitia esta loucura. já o soubera antes, e desta vez tinha tido alguma noção do que estava a acontecer, o suficiente para continuar a funcionar durante os primeiros estágios, atingido apenas por ataques recorrentes de pânico súbito ou de euforia, trancando armas, munições, venenos provenientes do hospital ou do laboratório químico. Sabia que Heather e Ewen estavam a fazer o mesmo, na medida do possível, no hospital. Mas mesmo assim sentia-se horrorizado pelos acontecimentos do último dia, e quando a noite caiu, sabendo racionalmente que um homem semi-são de espírito pouco poderia fazer contra duzentos homens e mulheres completamente enlouquecidos, tinha simplesmente procurado refúgio na floresta, agarrando-se desperadamente à sanidade para se defender das revoadas de loucura que o assaltavam. Maldito planeta! Maldito mundo este, com os ventos da loucura que se arrastavam como fantasmas vindos das alterosas colinas, rapace loucura que
tocava indistintamente homens e animais. Um vento fantasma de terror e loucura, envolvente e devorador.

 

O capitão tinha razão. Temos de ir-nos embora deste mundo. Ninguém poderá sobreviver aqui, nenhum ser humano. Somos demasiado vulneráveis...

 

Sentia uma desesperada ansiedade por Camilla. Nesta louca noite de estupro, de assassínio, de terror descontrolado, de conflitos e destruição selvátiCa, para onde teria ela ido? As suas buscas tinham-se revelado infrutíferas, se bem que, cônscio dos seus sentidos reforçados, tivesse tentado ”escutar” aquilo que, na montanha, lhe permitira localizá-la em plena tempestade de neve batida pelo vento. Mas os seus receios agiam como a estática que esborrata um receptor sensível; podia senti-la, mas aonde? Ter-se-ia escondido, tal como ele fizera ao verificar a inutilidade da procura, tentando simplesmente escapar à loucura dos outros? Teria também ela sido apanhada pela luxúria e pela feroz euforia sensual de alguns dos outros, ou estaria simplesmente incluída num daqueles grupos, procurando loucamente satisfazer as suas sensações e mantendo-se indiferente a tudo o mais? Esse pensamento era para MacAran uma perfeita agonia, mas era a alternativa mais segura, a única alternativa aceitável, pois de outro modo a possibilidade de Camilla ter enfrentado algum tripulante dementado antes de terem sido guardadas as armas, ou de ter corrido para os bosques numa acometida de pânico para ali ser atacada ou assolada por algum animal, seria suficiente para o conduzir a uma total desesperança.

 

Com a cabeça a zunir, MacAran atravessou a clareira em passos trôpegos. Num matagal próximo do arroio deparou com vários corpos imóveis; não sabia se estariam mortos ou feridos ou saciados, e uma rápida inspecção disse-lhe que Camilla não se encontrava entre eles, pelo que prosseguiu a sua jornada. O chão parecia oscilar debaixo dos pés, e teve de aplicar todo o seu poder de concentração para não correr descontrolado por entre as árvores à procura de... à procura de... e só com muito esforço conseguiu relembrar-se do propósito da sua busca, continuando então a caminhar.

 

Não a encontrou no refeitório, onde os membros da Comuna das Novas Hébridas se espalhavam pelo chão num sono exausto ou dedilhavam absortos os seus instrumentos musicais. Nem no hospital, em cujo pavimento uma tempestade de papéis assinalava o local onde alguém tinha perdido a paciência com os registos clínicos... baixa-te para apanhares uma mão-cheia de pedaços de papel, sacode-os entre os dedos como flocos de neve, deixa-os esvoaçar levados pelo vento... MacAran nunca soube durante quanto tempo ali ficara a escutar o vento e a observar a corrida das nuvens, até que mais uma vaga de loucura começou a esbater-se, como o refluxo da maré que arrasta as areias para longe da costa. Mas as nuvens em corrida tinham obscurecido o Sol, e o vento soprava gelado quando ele conseguiu recuperar o domínio sobre si mesmo, recomeçando, numa vaga de pânico, a procurar Camilla por todos os recantos.

 

Finalmente ingressou na cúpula do computador, encontrando-a às escuras (o que teria acontecido às luzes? Teria aquela explosão danificado todos os comandos de energia da nave?), e por um momento MacAran convenceu-se de que o recinto estaria abandonado. Depois, quando os seus olhos se acostumaram à débil iluminação, deu pela presença de algumas figuras indistintas a um canto do edifício: o capitão Leicester e... Sim, era verdade... Camilla, ajoelhada ao lado daquele e agarrando-lhe a mão.

 

Convencido agora de estar realmente a ouvir os pensamentos do capitão, porque foi que nunca olhei verdadeiramente para ti, Camilla?..., MacAran sentia-se estupefacto e, num pequeno recanto sadio da sua mente, envergonhado perante a onda de emoções primitivas que sentia a perpassá-lo, um atroador rugido que rosnava dentro de si, clamando, esta mulher é minha!

 

Avançou então, apoiado nas pontas dos pés, sentindo a garganta a arrepanhar-se e os lábios a entreabrir-se para exporem
os dentes, emitindo um rosnido sem palavras. O capitão Leicester levantou-se num salto e fez-lhe frente, desafiante, e uma vez mais, com aquela sua sensibilidade acrescida, MacAran ficou ciente do erro que o capitão estava a cometer...

 

Outro louco. Tenho de proteger a Camilla, ao menos poderei fazer isso em defesa da minha equipa... e uma reflexão coerente explodiu numa vaga de cólera e desejo que fez MacAran perder a cabeça; Leicester agachou-se e saltou sobre ele, e os dois homens caíram no chão, engalfinhados, com as gargantas rugindo num confronto primitivo. MacAran ficou por cima e, numa partícula de tempo, viu Camilla recostar-se tranquilamente à parede; mas os olhos dela estavam dilatados e inquietos, e ele percebeu que a rapariga estava excitada ao ver os dois homens à disputa, e que ela aceitaria - passivamente, sem se importar aquele que agora triunfasse na compita.

 

Mas depois um fluxo de sanidade mental envolveu MacAran. Libertou-se do amplexo do capitão, levantando-se com esforço. Depois disse, numa voz débil mas premente:

 

- Senhor, isto é uma idiotice. Se resistir conseguirá ver-se livre desta loucura.. Tente combatê-la, tente permanecer na posse das suas faculdades...

 

Mas Leicester, vendo-se liberto, pôs-se prontamente de pé, com os lábios orlados de espuma e os olhos desfocados e bastante furiosos. Baixando a cabeça atirou-se contra MacAran, mas este, agora controlado, deu um passo atrás e disse, compungido: ”Lamento muito, Capitão”, e um soco bem apontado à ponta do queixo fez contacto e atirou com o pobre homem para o chão, inconsciente.

 

Rafe ficou a olhar para ele, sentindo a raiva escapar-se dele como água corrente. Depois aproximou-se de Camilla e ajoelhou ao seu lado. Ela olhou para ele e sorriu, e subitamente, de um modo que MacAran não podia duvidar, estavam novamente em consonância.

 

- Porque não me disseste que estavas grávida, Camilla? - perguntou. - Ficaria preocupado, mas também intensamente feliz.

Não sei. Ao princípio tinha receio. Não podia encarar a ideia; teria modificado em demasia a minha vida.

 

Mas agora já não te importas? Em voz alta ela respondeu-lhe:

 

- Neste momento não me importo, mas as coisas estão agora tão diferentes... Talvez volte a mudar de ideias.

 

- Então não é uma ilusão - disse MacAran, em voz baixa.

- Estamos realmente a ler o pensamento um do outro.

 

- Claro - retorquiu Camilla, ainda com aquele sorriso tranquilo -, não sabias?

 

Evidentemente, pensou então MacAran; é por isso que os ventos trazem a loucura.

 

O homem primitivo na Terra devia ter tido percepção extra-sensorial, a colecção completa de poderes mentais, como uma reserva de forças para a sobrevivência. Isso não apenas justificaria a tenaz crença nesses poderes com a mais ténue das provas, como também poderia explicar a sobrevivência quando a simples sapiência não conseguia fazê-lo. Um ser frágil, o homem primitivo não poderia ter sobrevivido sem a faculdade de saber possuindo uma visão mais débil do que a das aves, uma audição menos de um décimo da de qualquer cão ou carnívoro - onde poderia encontrar comida, água, abrigo, e como evitar os seus inimigos naturais. Contudo, ao desenvolver-se a civilização e a tecnologia, esses poderes não usados foram perdidos. O homem que caminha pouco perde a faculdade de correr e de trepar; contudo os músculos estão lá, e podem ser desenvolvidos, como é do conhecimento de qualquer atleta ou artista de circo. O homem que depende de apontamentos perde a faculdade, que era atributo dos antigos bardos, de decorar longos poemas épicos ou genealogias. Contudo, durante todos aqueles milénios os velhos poderes da PES permaneceram adormecidos nos seus genes e cromossomas... e algum elemento químico transportado pelo estranho vento (pólen? poeira? vírus?) tê-los-ia reavivado.

 

Loucura, pois. O homem, habituado a usar apenas cinco dos seus sentidos, ao ser bombardeado com dados novos pelos outros
sentidos não usados, e com o seu cérebro primitivo também estimulado ao máximo, ficava incapaz de enfrentá-los, e reagia: alguns com uma total e terrível perda de inibições, outros com êxtase, outros ainda com uma recusa cega de encarar a verdade.

 

Portanto, para que possamos sobreviver neste mundo temos de aprender a escutá-lo, a aceitá-lo, a usá-lo, e a não combatê-lo. Camilla pegou-lhe na mão e disse em voz alta, num tom suave:

- Escuta, Rafe. O vento está a enfraquecer; dentro em breve

 

começará a chover, e tudo terá passado. Talvez nos modifiquemos... eu poderei modificar-me de novo com o vento, Rafe. Apreciemos esta possibilidade de estarmos unidos agora, enquanto pudermos. - A voz dela tinha um som tão triste que também ele sentiu vontade de chorar. Em vez disso pegou-lhe na mão e saíram ambos calmamente da cúpula. Ao chegarem à porta Camilla parou, libertou a sua mão da de Rafe e voltou para dentro. Dobrou-se sobre o capitão, colocou cuidadosamente o seu casacão enrolado debaixo da cabeça dele, ajoelhou ao seu lado por um momento e beijou-lhe a face. Depois levantou-se e regressou para junto de Rafe, abraçando-o e estremecendo ligeiramente com as lágrimas mal contidas, e ele conduziu-a para fora da cúpula.

 

No alto das encostas a neblina acumulou-se e uma chuva fina e leve começou a cair. As pequenas criaturas de olhos vermelhos, como se acordassem de um longo sonho, olharam inquietas à sua volta e debandaram para a segurança das árvores e dos abrigos de madeira e vime entrelaçado. Os animais que cabriolavam nos vales bramiram suavemente com a confusão e a fome, abandonaram as suas correrias e começaram a pastar calmamente ao longo dos arroios. E os estranhos homens da Terra, como se acordassem de uma centena de longos pesadelos ao sentirem a chuva no rosto, verificaram que em muitos casos o pesadelo fora terrivelmente real.

 

O capitão Leicester recuperou lentamente a consciência na cúpula deserta do computador, escutando o tamborilar da chuva na clareira. O maxilar estava dorido; pôs-se em pé com dificuldade massajando penosamente a cara, tentando recordar-se dos estranhos e confusos pensamentos das últimas trinta e seis horas. Tinha as faces ásperas com a barba crescida, e o uniforme estava imundo e amarrotado. Recordações? Sacudiu a cabeça, perplexo; a cabeça doía-lhe, e levou as mãos às fontes que pareciam latejar.

 

Fragmentos rodopiavam-lhe na mente, semi-reais como um sono prolongado. Tiros, e uma luta indefinida; o doce rosto de uma rapariga de cabelos ruivos, e uma recordação nítida do corpo dela, nu e acolhedor; teria sido real, ou apenas uma fantasia? Uma explosão que fizera tremer a clareira... seria na nave? A sua mente estava ainda demasiado enevoada com sonho e pesadelo para ele saber o que teria feito ou onde teria estado depois disso, mas lembrava-se de ter regressado para encontrar Camilla sozinha, claro que ela teria de proteger o computador, como uma galinha-mãe a defender o seu único pinto, e uma vaga recordação de um longo tempo passado com Camilla, segurando-lhe a mão enquanto uma curiosa comunhão prosseguia, intensa e completa, dolorosamente íntima, e todavia não sexual, ainda que também isso tivesse estado presente - ou seria apenas uma ilusão, uma memória confusa da rapariga de cabelos ruivos cujo nome não conhecia - as estranhas canções que ela tinha cantado - e depois uma nova vaga de medo, uma explosão na sua mente, e por fim a escuridão e o sono.

 

A sanidade mental regressou, uma lenta melhoria, um recuo do pesadelo. O que teria estado a acontecer à nave, à tripulação, aos outros, durante este tempo de loucura? Não sabia, mas era melhor que tratasse de saber. Recordava-se vagamente de que alguém teria sido atingido com um tiro antes de ele perder o juízo... ou seria isso também uma parte da longa loucura? Premiu o botão que servia para convocar os guardas da Segurança da astronave mas ninguém reagiu à chamada, e depois compreendeu que também as luzes não estavam a funcionar. Portanto alguém
teria atacado as fontes de energia sob o efeito da loucura. Haveria mais danos? Seria melhor ir verificar. Entretanto, onde estava Camilla?

 

(Neste momento ela afastou-se relutantemente de Rafe, dizendo com suavidade: ”Tenho de ir ver os danos provocados na nave, querido. O capitão, também; lembra-te de que ainda faço parte da tripulação. O nosso tempo já chegou ao fim, pelo menos por agora. Todos nós vamos ter muito que fazer. Tenho de ir ter com ele... sim, eu sei, mas também o amo, não como a ti, mas estou a aprender muito a respeito do amor, meu querido, e ele talvez tenha ficado ferido.”)

 

Camilla atravessou a clareira, enfrentando a chuva soprada que começava a misturar-se com pesados flocos de neve. Espero bem que encontrem alguns animais com pelame espesso, pensou ela, pois a roupa feita para uso na Terra não vai servir para o Inverno daqui. Era um pensamento bastante rotineiro que ela arrecadou no fundo da sua mente ao ingressar na cúpula às escuras.

 

- Onde estiveste, Tenente? - inquiriu o Capitão com aspereza. - Tenho uma estranha sensação de que deveria pedir-te desculpa por alguma coisa, mas não consigo recordar-me de quê.

 

Ela olhou em volta da cúpula, avaliando rapidamente os danos provocados.

 

- É uma parvoíce tratar-me por tenente aqui, pois já me tratou por Camilla antes disto... antes de termos aterrado aqui.

 

- Onde estará toda a gente, Camilla? Suponho que o que se passou foi semelhante ao que já te tinha atacado nas montanhas?

- Acho que sim. Receio que dentro de pouco tempo iremos

 

ficar enterrados até às orelhas nas consequências do que se passou - comentou com um estremecimento bem visível. - Estou assustada, Capitão... - fez uma pausa com um ligeiro sorriso.

- Nem sequer sei o seu nome próprio.

 

- Chamo-me Harry - disse o capitão Leicester, com ar distraído, mas os seus olhos estavam fixados no computador, e com uma súbita exclamação Camilla encaminhou-se para a consola.

Localizou uma das velas de resina que tinham sido distribuídas para iluminação e acendeu-a, levantando-a de forma a poder examinar o computador.

 

Os principais bancos de armazenagem de dados estavam protegidos por placas contra quaisquer danos provocados por poeiras, apagamento acidental ou violação. Camilla pegou numa ferramenta e começou a desmontar as placas, trabalhando com pressa febril. O capitão aproximou-se também, notando o seu ar de preocupação, e disse:

 

- Eu seguro a luz. - Logo que ele pegou na vela, Camilla passou a trabalhar ainda mais depressa, dizendo entre dentes:

- Alguém esteve a forçar as placas, Capitão. Não estou a gostar disto...

 

A primeira placa protectora soltou-se nas mãos dela e Camilla ficou a olhar fixamente para o computador, com o rosto a perder a cor e as mãos descaídas para os lados com horror e consternação.

 

- já deve calcular o que aconteceu - disse, com a voz presa na garganta. - Pelo menos metade dos programas, ou talvez mais, foram apagados. Limpos. E sem o computador...

 

- Sem o computador - disse lentamente o capitão Leicester

- a nave não passa de alguns milhares de toneladas de sucata. Estamos tramados, Camilla. Como náufragos.

Muito acima na floresta, num abrigo de vime entrançado e folhas, a chuva batia suavemente lá fora, e Judy descansava numa espécie de dossel coberto por um fino tecido macio, escutando - não inteiramente por palavras - o que o belo ente alienígena com olhos da cor de prata estava a tentar dizer-lhe.

 

”A loucura também nos ataca, e lamento terrivelmente termo-nos intrometido desta forma na vida do teu povo. Tempo houve - não agora, mas perdido na nossa história - em que a nossa gente viajava, como vós agora, por entre as estrelas. Pode até acontecer que todos os homens sejam do mesmo sangue, lá nos primórdios do tempo, e que também o teu povo seja nosso irmão, como acontece com a gente peluda das árvores. Assim parece, com efeito, visto que tu e eu sujeitámo-nos juntos à loucura dos ventos e agora carregas esta criança dentro de ti. Não é que eu o lamente, inteiramente...”

 

Um toque leve como uma pena na mão dela, nada mais, mas Judy sentiu que nunca conhecera nada tão terno como os olhos tristes daquele ser. ”Agora, sem qualquer loucura no meu sangue, apenas sinto um profundo pesar por ti, pequenita. A nenhum dos nossos seria permitido carregar um filho no ventre na solidão, e contudo terás de regressar ao teu povo, pois nós não poderíamos cuidar de ti. Não suportarias o frio das nossas habitações em pleno Verão, criança, e no Inverno morrerias certamente.”
Todo o ser de Judy era um vasto grito de angústia, nunca mais poderei ver-te?

 

Apenas posso alcançar-te com clareza nestas ocasiões, fluiu a resposta, se bem que a tua mente esteja agora mais aberta para mim do que anteriormente; noutras ocasiões as mentes do teu povo são como portas semiCerradas. Seria melhor para mim deixar-te partir agora, para que não tivesses de recordar o tempo da loucura, e contudo - um longo silêncio, e um grande suspiro. Mas não consigo, não sou capaz, como poderia eu permitir que te afastasses de mim sem saberes...

 

O estranho ser estendeu a mão, tocou na jóia que pendia numa fina corrente em redor do pescoço dela e puxou-a para ele. Usamos estas, por vezes, para treino dos nossos filhos. Em adultos já não precisamos delas. Foi uma prenda de amor para ti, um acto de loucura, talvez, possivelmente insensato, como os meus anciãos insistiriam. Contudo, se a tua mente se abrir o suficiente para controlá-la, talvez eu possa entrar em contacto contigo, uma vez por outra, para saber se tudo está bem contigo e com a criança.

 

Ela olhou para a jóia - que era azul como uma safira, com pequenas faúlhas de fogo no seu interior - durante um momento apenas; depois elevou os olhos para contemplar de novo com uma expressão de pesar o ente alienígena. Mais alto do que qualquer mortal, com enormes olhos cinzentos pálidos, quase prata, pele clara e feições delicadas, longos dedos esbeltos e pés descalços mesmo com o frio agreste, e com cabelos longos quase incolores flutuando como seda muito leve em redor dos ombros; estranho e bizarro, e ao mesmo tempo belo, com uma beleza que a surpreendia dolorosamente. Com infinita ternura e tristeza, o alienígena estendeu os braços para ela e abraçou-a por uns instantes contra o seu delicado corpo, e ela sentiu que isto era uma coisa rara, uma coisa estranha, uma concessão ao seu desespero e à sua solidão. Claro: uma raça telepática não teria muito uso para demonstrações de emoção.

E agora tens de partir, minha pobre criança. Levar-te-ei até à orla da floresta, e a partir daí os pequeninos guiar-te-ão. (Tenho receio do teu povo, são tão violentos e selvagens, e as vossas mentes... as vossas mentes estão fechadas.)

 

Judy levantou o olhar para o estranho, sentindo a sua dor de partir esmorecendo-se na percepção do medo e da angústia dele.

- Compreendo - sussurrou ela, e o rosto contraído do outro afrouxou um pouco.

 

Ver-te-ei de novo?

 

Há tantas oportunidades, criança, tanto para o bem como para o mal. Só o tempo o dirá. Não me atrevo a prometer-te nada. Com um toque suave envolveu-a na capa forrada de peles em que anteriormente a embrulhara. Ela fez um aceno, tentando conter as lágrimas, e foi só quando ele tinha já desaparecido na floresta que Judy sucumbiu, passando a acompanhar, soluçante, os pequenos seres peludos que tinham vindo para guiá-la pelos estranhos caminhos.

 

- O senhor é o suspeito lógico - disse o capitão Leicester com aspereza. - Nunca manteve segredo sobre o facto de não pretender abandonar este planeta, e a sabotagem do computador significa que irá satisfazer a sua vontade, e que nunca poderemos sair daqui.

 

- Não, Capitão, está totalmente enganado - protestou Moray, olhando-o nos olhos sem vacilar. - Eu sempre soube que nunca iríamos deixar este planeta. Ocorreu-me, durante o... como poderei chamar-lhe? Durante a pedrada colectiva? Sim: Ocorreu-me durante a pedrada colectiva que talvez fosse uma coisa boa se o computador deixasse de funcionar, pois iria obrigá-lo a deixar de simular que poderíamos reparar a nave...

 

- Eu nunca simulei nada! - disse friamente o capitão. Moray encolheu os ombros.

 

- As palavras não interessam muito. Está bem: iria obrigá-lo a deixar de iludir-se a respeito disso, passando a dedicar-se à
séria tarefa da sobrevivência, Mas não fui eu, Para ser honesto, talvez o tivesse feito se isso me ocorresse, mas sou incapaz de diferençar entre uma ponta do computador e a outra; nunca saberia pô-lo fora de acção. Talvez pudesse tê-lo feito explodir... sei que ouvi uma explosão... mas acontece que, quando escutei a explosão, estava na horta distraindo-me - subitamente ríu-se, embaraçado -, distraindo-me a conversar com uma couve ou algo do género.

 

Leicester franziu o sobrolho, e disse:

 

- Ninguém fez explodir o computador, e ninguém o pôs fora de acção. Só os programas foram simplesmente apagados. Qualquer pessoa com alguma cultura poderia tê-lo feito.

 

- Talvez qualquer pessoa com alguma cultura e familiarizada com uma astronave - contrapôs Moray. - Capitão, não sei como posso convencê-lo, mas sou um ecólogo, não um técnico. Nem sequer posso conceber o que sera um programa de computador. Mas, se não está inutilizado, qual é o problema? Não poderá voltar a programá-lo, se é esse o termo? Será que as fitas, ou lá o que é, são completamente insubstituíveis?

 

Leicester ficou prontamente convencido: Moray não sabia, realmente. Explicou com secura:

 

- Para sua informação, o computador continha cerca de metade de todo o conhecimento humano sobre física e astronomia. Mesmo se a minha tripulação incluísse quatro dúzias de membros do Real Colégio de Astronomia de Edimburgo, eles levariam trinta anos a reprogramar apenas os dados de navegação. Isso sem contar já com os programas clínicos - ainda não os examinámos - ou com o material contido na biblioteca da nave. Tudo considerado, a sabotagem do computador é um exemplo mais grave de vandalismo humano do que o incêndio da Biblioteca de Alexandria.

 

- Bem, só posso insistir que não fui eu e que não faço ideia de quem poderá ter sido - disse Moray. - Procure alguém da sua tripulação que disponha dos conhecimentos necessários.
Soltou um riso seco e sem humor. - E alguém capaz de conservar-se senhor das suas acções. Os vossos serviços clínicos já decifraram o que poderá ter-nos acontecido?

 

Leicester encolheu os ombros.

 

- A melhor hipótese que ouvi até agora aponta para uma poeira transportada pelo ar contendo algum alucinogénio violento. Ainda está por identificar, e provavelmente assim ficará até que as coisas no hospital estejam mais calmas.

 

Moray abanou a cabeça. Sabia que o capitão já acreditava nele, e para ser franco não se sentia muito satisfeito com a destruição do computador. Enquanto todos os esforços de Leicester tinham estado dedicados à reparação da nave, ele não interferira muito no que Moray fazia para assegurar a sobrevivência da Colónia. Agora, um capitão sem navio, iria talvez dificultar-lhes o assalto a um mundo novo. Pela primeira vez Moray entendeu a velha piada a respeito da Esquadra Espacial: ”Não é possível reformar-se um capitão de astronave. Só a tiro.”

 

A ideia despertou nele receios perigosos. Moray não era um homem violento, mas durante as trinta e seis horas do estranho vento tinha descoberto profundezas dolorosas e insuspeitas no seu íntimo. Talvez alguma outra pessoa pense nisso, da próxima vez... mas o que me dará esta certeza de haver uma próxima vez? Ou talvez até eu próprio pense nisso, como poderei ter a certeza do contrário?

 

Afastando de si esse incómodo pensamento, perguntou:

- já recebeu algum relatório dos danos sofridos?

 

- Dezanove mortos; ainda não há relatórios clínicos, mas pelo menos quatro pacientes do hospital morreram por negligência - resumiu Leicester. - Dois suicidas. Uma rapariga cortou-se num vidro e sangrou até à morte, mas mais provavelmente por acidente do que por suicídio. E... talvez já lhe tenha constado a respeito do padre Valentine?

 

Moray fechou os olhos com força.

 

- já ouvi falar dos assassínios. Não conheço todos os pormenores.
- Duvido de que alguém os conheça - comentou Leicester.

- Nem ele próprio saberá o que se passou, nem provavelmente se recordará a não ser que o Doutor Di Asturien se resolva a fazer-lhe narcossíntese ou qualquer coisa. Tudo o que sei é que ele se viu misturado com um bando de tripulantes que andavam envolvidos em actividades sexuais junto à margem do rio. As coisas foram ficando mais dissolutas, e quando a primeira vaga da loucura amainou ele deu-se conta do que tinha andado a fazer, e creio que não foi capaz de enfrentar a situação e começou a degolar os seus parceiros.

 

- Presumo, então, que ele foi um dos suicidas? Leicester abanou a cabeça.

 

- Não. Deve ter recuperado o conhecimento a tempo de reconhecer que também o suicídio é um pecado mortal. Tem a sua graça: estou a ficar tão endurecido com os horrores deste vosso maravilhoso planeta que só sou capaz de me lembrar das complicações que ele me teria poupado se tivesse mesmo resolvido matar-se. Agora vou ser forçado a julgá-lo por homicídio, e depois decidir, ou esperar que as pessoas decidam, se deveremos ou não Instituir aqui a pena capital.

 

Moray sorriu com tristeza.

 

- Para quê ralar-se? - disse. - Que outro veredicto poderá encontrar excepto insanidade temporária?

 

- Por Deus! Tem razão! - exclamou Leicester, passando a mão pela testa.

 

- Mas seriamente, Capitão. Provavelmente vamos ter de enfrentar esta situação mais uma vez, e mais outra, e mais outra. Sugiro que desarme imediatamente a sua força de Segurança; o primeiro indício de perigo foi quando um homem da Segurança disparou contra uma rapariga, e a seguir contra outro guarda. Sugiro também que, se voltarmos a ter uma noite sem chuva, todas as armas mortíferas, facas de cozinha, instrumentos cirúrgicos e semelhantes, sejam fechados à chave. Talvez não se evitem todos os problemas, pois não poderemos trancar todos os pedregulhos ou todos os pedaços de lenha existentes no planeta, e agora que vejo o seu rosto reparo que evidentemente alguém se esqueceu da sua posição e aplicou-lhe um soco no queixo.

 

Leicester esfregou o queixo.

 

- Acredita que foi num confronto provocado por uma rapariga, na minha idade?

 

Pela primeira vez os dois homens sorriram um para o outro com os primórdios de uma breve amizade humana, mas o momento passou.

 

- Vou pensar nas suas sugestões - disse Leicester. - Não será fácil.

 

Moray replicou com ar severo:

 

- Nada vai ser fácil aqui, Capitão. Mas tenho a sensação de que, se não dermos início a uma séria campanha por uma ética de não-violência... uma ética que se aguente mesmo sob a tensão duma pedrada colectiva... nenhum de nós irá resistir até ao final do Verão.

Os dias do Vento tinham poupado a horta, pensou MacAran. Talvez algum instinto de sobrevivência tivesse convencido os colonos enlouquecidos de que esta era a sua salvação. O hospital estava a ser reparado, e equipas de trabalho iam recuperando o que fosse possível na astronave: Moray tinha convencido toda a gente de que, durante muitos anos, esta iria ser a única reserva de metal para a produção de ferramentas e maquinaria. A pouco e pouco, o interior da enorme nave ia sendo canibalizado; o mobiliário dos alojamentos e das zonas de distracção era retirado e adaptado para uso nos dormitórios e edifícios comunitários; as ferramentas das oficinas de reparação, das zonas de cozinha e até da ponte de comando estavam a ser inventariadas por grupos de funcionários. MacAran sabia que Camilla andava ocupada com o computador, tentando descobrir quais os programas que poderiam ser recuperados. Até ao mais pequeno utensílio, das canetas aos cosméticos femininos na cantina, tudo estava a ser inventariado e racionado. Quando se esgotassem as provisões de uma cultura terrena orientada tecnologicamente, nada mais restaria, e Moray começava já a anunciar que estavam a ser estudados substitutos para que a transição se fizesse de modo ordeiro.

 

A clareira exibia uma mistura curiosa, pensou MacAran: as pequenas cúpulas construídas com plásticos e fibras, danificadas pela tempestade de neve e reparadas com madeiras locais, mais resistentes; as confusas pilhas de maquinaria complexa, cuidadas
e guardadas por tripulantes uniformizados sob as ordens do engenheiro-chefe Patrick; as gentes da Colónia das Novas Hébridas a trabalhar - por sua própria vontade, sabia MacAran - na horta e nos bosques.

 

Rafe tinha na mão dois pedaços de papel - o velho hábito de anotar mensagens ainda resistia, mas ele admitia que acabaria por desaparecer quando se esgotassem as reservas de papel. O que viria substituir as mensagens escritas? Sistemas de sinais acústicos codificados para cada indivíduo, como se usava nos grandes armazéns para chamar a atenção de uma determinada pessoa? Recados verbais? Ou iria descobrir-se algum modo de produzir papel a partir dos produtos locais, dando seguimento à velha dependência nas mensagens escritas? Um dos apontamentos que tinha na mão dizia-lhe que deveria apresentar-se no hospital para fazer aquilo a que chamavam um exame de rotina; o outro mandava-o apresentar-se no gabinete de Moray, para análise e distribuição de tarefas.

 

De um modo geral, a participação de que o computador estava inutilizado, com o consequente abandono da nave, não tinha provocado grande controvérsia. Um ou dois membros da tripulação tinham sido escutados a comentar que o autor da proeza devia ser linchado, mas não havia de momento qualquer possibilidade de descobrir quer quem apagara do computador os programas de navegação quer quem fizera explodir uma das câmaras internas de propulsão com uma bomba de fabrico rudimentar. As suspeitas quanto a este último caso apontavam para um elemento da tripulação que tinha recentemente pedido para ser aceite na Comuna das Novas Hébridas e cujo corpo retalhado fora encontrado na nave, próximo do local da explosão; e toda a gente tinha deixado ficar o assunto por aí.

 

MacAran suspeitava de que a calma era temporária, consequência do trauma, e que mais tarde ou mais cedo surgiriam novos conflitos, mas por agora toda a gente tinha simplesmente acatado a urgente necessidade de se conjugarem esforços para reparar os danos e para assegurar a sobrevivência de todos em antecipação da desconhecida dureza do desconhecido Inverno. O próprio MacAran não estava certo do que pensaria a respeito de tudo aquilo, mas de qualquer forma tinha estado pronto para seguir para uma colónia, e intimamente pensava que talvez fosse mais interessante colonizar um planeta ”selvagem” do que algum outro já explorado pela Força Expedicionária da Terra. Contudo, não se sentia mentalmente pronto para perder definitivamente as vantagens da Terra: sem naves estelares, sem contacto ou comunicação com o resto da Galáxia, talvez durante gerações, talvez para toda a eternidade. Isso era doloroso. Não o aceitara ainda; sabia que talvez nunca o aceitasse.

 

Entrou no edifício onde se localizava o gabinete de Moray, leu a tabuleta na porta (NÃO BATA; ENTRE LOGO) e entrou, indo encontrar Moray a falar com uma rapariga desconhecida que, pelo seu vestuário, seria um dos elementos das Novas Hébridas.

 

- Sim, sim, minha cara, sei que pretendes uma tarefa na horta, mas o teu historial indica que trabalhaste em arte e cerâmica, e vamos precisar de ti aqui. Tens conhecimento de que a primeira arte desenvolvida em praticamente todas as civilizações é a olaria? Seja como for, não recebi já um relatório de que estás grávida?

 

- Pois foi, para mim a Cerimônia da Anunciação foi ontem. Mas o meu género de pessoa nunca deixa de trabalhar até à hora do parto.

 

Moray sorriu debilmente.

 

- Estou contente por saber que te sentes suficientemente bem para continuares a trabalhar. Mas nas colónias as mulheres nunca são autorizadas a executar tarefas pesadas.

 

- O Artigo Quarto...

 

- O Artigo Quarto - disse Moray, e o seu rosto tinha uma expressão severa - foi legislado para a Terra, para as condições na Terra. Informa-te melhor sobre os factos da vida em planetas com gravidade, luz e teor de oxigénio fora do normal, Alanna. Este planeta é um dos mais favorecidos: oxigénio a pender para
o alto, uma gravidade ligeira, nada de bebés anóxicos, nada de síndrome de esmagamento. Mas mesmo nos melhores planetas a simples mudança basta para dificultar tudo, e as estatísticas podem ser sinistras para uma população tão escassa como a nossa. Metade das mulheres são estéreis durante cinco a dez anos, metade das mulheres férteis abortam espontaneamente durante cinco a dez anos. E metade dos nado-vivos morrem antes do primeiro ano de idade durante cinco a dez anos. As mulheres nas colónias têm de ser apaparicadas, Alanna. Coopera, ou terás de ser tranquilizada à força e hospitalizada. Se quiseres ser uma das felizardas com um bebé vivo em vez dum bebé morto, coopera, e começa já a fazê-lo.

 

Quando a rapariga tinha já sido despachada com uma senha para o hospital, parecendo confusa e abalada, MacAran foi ocupar o lugar dela diante da secretária desarrumada, e Moray mostrou-lhe um sorriso forçado.

 

- Presumo que tenha escutado aquilo. Acha que gostaria de ter o meu trabalho, pregar sustos às jovens grávidas?

 

- Nem por isso. - MacAran estava a pensar em Camilla, que também estava grávida. Portanto ela não era estéril. Mas havia uma possibilidade em duas de abortar... e depois uma possibilidade de meio por meio de que a criança morreria cedo. Severas estatísticas essas, que lhe fizeram sentir um aperto no coração. Teria ela sido avisada disto? Sabê-lo-ia? Estaria a cooperar? Ele não fazia a menor ideia; ela tinha permanecido fechada com o capitão, pairando em redor do computador, durante metade dos últimos dez dias.

 

Franzindo ligeiramente a testa, Moray disse:

 

- Saia das nuvens. Você é um dos felizardos, MacAran: não se encontra tecnologicamente desempregado.

 

- Como disse?

 

- Como é geólogo, precisamos de que faça aquilo para que foi treinado. Ouviu-me dizer a Alanna que uma das primeiras indústrias de que precisamos, e urgentemente, é a olaria. Para a olaria necessitamos de caulino, ou então de algum bom substituto. Também precisamos de pedra resistente para as construções, precisamos de betão ou de cimento ou equivalente, precisamos de cal ou algo com as mesmas propriedades; e precisamos de silicatos para produzir vidro, de minerais... na realidade, do que precisamos é de uma avaliação geológica desta parte do planeta, e precisamos disso antes que o Inverno chegue. Você não pertence à prioridade um, Mac; mas está na categoria dois ou três. Pode preparar-me um plano para a avaliação e exploração dentro de um dia ou dois, e dizer-me mais ou menos de quantos homens vai precisar para a recolha de amostras e para os ensaios?

 

- Claro, isso não vai ser difícil. Mas pareceu-me tê-lo ouvir dizer que não podemos ter como objectivo uma civilização tecnológica...

 

- Não podemos, efectivamente - disse Moray -, pelo menos pela maneira como o engenheiro Patrick interpreta o termo. Nada de indústria pesada. Nada de transportes mecanizados. Mas uma civilização não tecnológica é uma coisa que não existe. Até os homens das cavernas tinham tecnologia: produziam pederneiras, ou nunca viu nenhum dos locais que eles usavam como oficinas? O homem é um utilizador de ferramentas, um tecnocrata. Nunca fiz qualquer intenção de começarmos como selvagens. A questão é saber quais são as tecnologias que estarão ao nosso alcance, especialmente durante as primeiras três ou quatro gerações?

 

- Os seus planos apontam assim para tão longe?

- Tem que ser.

 

- Disse que o meu trabalho não pertence à prioridade um. O que é a prioridade um?

 

- A alimentação - disse Moray com realismo. - Também sob este aspecto temos sorte. O solo daqui é arável... ainda que pareça não ser muito forte, pelo que vamos ter de usar adubos e fertilizantes. Mas a agricultura é viável. Sei de alguns planetas onde a prioridade da obtenção de alimentos ocuparia tanto
tempo que até as artes mais primitivas teriam de ser adiadas por duas ou três gerações. A Terra não coloniza esses planetas, mas podíamos ter caído num deles. Talvez até existam aqui animais domesticáveis; MacLeod está a investigar isso. A prioridade dois é o abrigo - a propósito: quando estiver a fazer a sua investigação, tente encontrar cavernas nas vertentes mais baixas. Talvez sejam mais acolhedoras do que qualquer coisa que conseguirmos construir, pelo menos durante o Inverno. A seguir à alimentação e ao abrigo vêm as artes mais simples, as amenidades da vida: tecelagem, olaria, combustíveis e iluminação, vestuário, música, ferramentas de jardinagem, mobiliário. já percebe. Vá preparar a sua investigação, MacAran, e eu recruto os elementos de que precisar para o ajudarem. - Mostrou outro dos seus sorrisos tristes. - Como já disse, você é um dos felizardos. Esta manhã tive de dizer a um especialista em comunicações espaciais, sem qualquer outra capacidade, que a sua profissão estará totalmente obsoleta durante pelo menos dez gerações, e dei-lhe a escolher entre agricultura, carpintaria ou serralharia!

 

Quando MacAran saiu do gabinete os seus pensamentos viajaram de novo, compulsivamente, até Camilla. Seria isto o que a aguardava? Não, certamente que não, pois qualquer grupo de pessoas civilizadas havia de ter alguma aplicação para uma biblioteca de informações em computador! Mas iria Moray ver o caso por este prisma, com a sua severa lista de prioridades?

 

Caminhou através do sol do meio-dia, sombras de um tom violeta-pálido, o Sol bem alto e vermelho como um olho injectado de sangue, na direcção do hospital. Na distância distinguiu um vulto eremítico labutando com pedras a construir um pequeno muro: era o padre Valentine, cumprindo a sua pena solitária. MacAran concordava, em princípio, com a teoria de que a colónia não podia dispensar um único par de mãos, de que o padre Valentine poderia expiar os seus crimes de forma mais proveitosa produzindo trabalho útil do que sendo pendurado pelo pescoço até morrer; e, recordando a sua própria loucura (com que facilidade poderia ter assassinado o capitão, na sua raiva de ciúmes!), não albergava em si o desejo de desterrar o padre ou de sentir aversão por ele. A sentença do capitão Leicester teria satisfeito o próprio rei Salomão: o padre Valentine tinha sido condenado a sepultar os mortos, não só as suas próprias vítimas mas os outros também, a construir um cemitério cercando-o com uma vedação para o defender dos animais selvagens ou da profanação, e ainda a erigir um memorial apropriado junto da vala comum onde tinham sido sepultadas as vítimas da queda da astronave. MacAran não compreendia bem qual seria o propósito de se construir um cemitério, a não ser talvez recordar aos homens da Terra que a morte estava próxima da vida e que a loucura estava próxima da sanidade mental. Mas este trabalho conservaria o padre afastado dos outros tripulantes e dos colonos

- que talvez não sentissem, tão intensamente como MacAran, que tinham estado bem próximos de repetir o crime do padre Valentine - até que a memória comum tivesse esmorecido um pouco; e dar-lhe-ia trabalho duro e penitência suficientes para satisfazer até a necessidade de castigo que ele próprio sentia.

 

A visão da solitária figura anulou-lhe a vontade de cumprir o seu outro encargo de se apresentar no hospital. Afastou-se na direcção dos bosques, passando pela área cultivada onde alguns elementos da colónia das Novas Hébridas estavam a cuidar de fileiras de plantas em germinação. Alastair, ajoelhado na terra, estava a transplantar pequenos rebentos verdes retirados de uma bandeja plana; correspondeu com um sorriso ao aceno de MacAran. Estão satisfeitos com o modo como aquilo se resolveu, esta vida poderá adaptar-se-lhes perfeitamente. Alastair disse qualquer coisa ao rapaz que segurava a bandeja, pôs-se em pé e aproximou-se de MacAran em passos rápidos.

 

- O padrón - Moray - disse-me que o senhor vai fazer trabalhos geológicos. Que possibilidades haverá de ir encontrar materiais para o fabrico de vidro?

 

- Não posso prever. Porquê?

 

- Com um clima destes vamos precisar de estufas - respondeu Alastair -, luz solar concentrada. Alguma coisa para proteger do mau tempo as plantas jovens. Estou a fazer o que posso com folhas de plástico, reflectores e luz ultravioleta, mas isto é apenas uma medida de emergência. Veja também se encontra fertilizantes naturais. E nitratos, também. O solo aqui não é muito rico.

 

- Terei isso em mente - prometeu MacAran. - Lá na Terra era agricultor de profissão?

 

- Não. Era mecânico auto, especialista em transportes respondeu Alastair com uma careta. - O capitão falou em transformar-me num maquinista. Vou ficar acordado de noite a rezar por quem resolveu dar cabo do raio da nave.

 

- Bem, farei o possível por encontrar os vossos silicatos prometeu MacAran, tentando imaginar em que posição, na austera lista de prioridades de Moray, se situaria a arte do fabrico de vidro. E quanto a instrumentos musicais? Num lugar razoavelmente elevado, pensava ele. Até os selvagens tinham música, e ele não podia imaginar a vida sem instrumentos de música, e certamente aqueles membros de um grupo de música popular pensariam do mesmo modo.

 

Se o Inverno for tão mau como provavelmente vai ser, talvez a música seja a única coisa capaz de evitar que percamos o juízo, e estou pronto a apostar que Moray, esperto como é, já terá pensado nisso mesmo.

 

Como que em resposta ao seu pensamento, uma das raparigas que trabalhava no campo elevou a voz num cântico em tom baixo e lamentoso. A sua voz, profunda e rude, fazia recordar a de Camilla, e as palavras da canção soaram, nítidas e tristes, revivendo uma antiga melodia das Hébridas:

 

Minha Caristiona, Respondes ao meu apelo? Não respondes esta noite? Pobre de mim, que amargura... Minha Caristiona...
Camilla, por que motivo não vens ter comigo, por que motivo não me respondes? Responde ao meu apelo..., pobre de mim, que amargura...

 

O meu coração está desolado, desolado,

 

E os meus olhos estão chorando, chorando... Minha Caristiona, não respondes ao meu apelo?

 

Sei que estás infeliz, Camilla, mas porquê? Por que motivo não vens ter comigo...?

 

Camilla chegou ao hospital sem pressas e com ar rebelde, segurando a ficha para a inspecção. Era um agradável interlúdio na rotina da nave, mas quando, em vez do conhecido rosto do médico-chefe Di Asturien (ao menos ele fala espanhol, se viu confrontada com o jovem Ewen Ross, ela franziu o sobrolho, irritada:

 

- Onde está o chefe? Tu não tens autoridade para fazer inspecções ao pessoal da Nave!

 

- O chefe está a operar aquele homem que levou um tiro na rótula durante o Vento Fantasma; de qualquer modo, estou encarregado das inspecções de rotina. Qual é o problema? - O rosto do jovem médico parecia obsequioso. - Achas que não estou habilitado para isto? Garanto-te que as minhas credenciais são excelentes. Seja como for, julgava que éramos amigos, ambos vitimados pelo primeiro dos Ventos! Não estragues a minha autoestima!

 

Contra a sua vontade, Camilla riu-se.

 

- Ewen, meu malandro, és impossível! Bem, acho que isto é uma inspecção de rotina. O chefe anunciou há uns dois meses o fracasso dos contraceptivos, e parece que sou uma das vítimas. Venho só inscrever-me para um aborto.
Ewen soltou um longo assobio.

 

- Lamento, Camilla - disse suavemente -, mas não será possível.

 

- Mas eu estou grávida!

 

- Portanto, parabéns e etc. - ripostou ele -, e talvez seja teu o primeiro bebé a nascer aqui e etc., a não ser que uma das moças da Comuna te passe à frente.

 

Ela escutou-o, de sobrolho carregado, sem entender bem. Depois disse com aspereza:

 

- Acho que vou ter de levar o assunto ao chefe; evidentemente não estás a par das regras do Serviço Espacial.

 

Os olhos dele reflectiam o pesar que sentia por Camilla; compreendia-a perfeitamente.

 

- Di Asturien dir-te-á precisamente o mesmo - disse com suavidade. - Sabes com certeza que, nas Colónias, os abortos só são executados para salvar uma vida ou para impedir o nascimento duma criança com graves deficiências, e além disso parece-me que não dispomos aqui do equipamento necessário para

isso. Uma alta taxa de nascimentos é absolutamente essencial durante pelo menos as três primeiras gerações, e deves saber que as mulheres voluntárias apenas são aceites na Força Expedicionária da Terra se estiverem na idade fértil e assinarem um compromisso de ter filhos.

 

- De qualquer forma eu estaria isenta - ripostou Camilla pois não me ofereci como voluntária para a colónia; eu fazia parte da tripulação. E tu sabes, tão bem como eu, que as mulheres com educação científica superior estão isentas, pois se assim não fosse nenhuma mulher com uma carreira profissional estaria disposta a ir para as colónias! Vou combater isto, Ewen! Raios, não estou disposta a aceitar um parto forçado!

 

Ewen sorriu pesaroso, e disse:

 

- Acalma-te, Camilla; sê sensata. Em primeiro lugar, minha querida, o facto de teres uma educação científica faz de ti um elemento extremamente valioso para nós, Precisamos dos teus genes muito mais do que precisamos das tuas capacidades tecnológicas. Só iremos necessitar dessas capacidades daqui a meia dúzia de gerações, se tanto. Mas os genes da inteligência superior e da alta faculdade matemática terão de ser preservados num banco de genes, pois não podemos arriscar-nos a deixá-los acabar.

 

- Queres tu dizer que vou ser forçada a ter filhos? Como uma qualquer selvagem, um útero ambulante dos planetas pré-históricos? - O rosto dela tinha perdido a cor com a cólera. - Isto é completamente inadmissível! Todas as mulheres da tripulação vão entrar em greve assim que souberem disto!

 

Ewen encolheu os ombros.

 

- Duvido muito - disse. - Em primeiro lugar, não estás a interpretar correctamente a lei. As mulheres não são autorizadas a apresentar-se como voluntárias para as Colónias se não tiverem genes intactos, se não estiverem na idade de procriar e não assinarem o compromisso de ter filhos... mas as mulheres com idade superior à da procriação são ocasionalmente aceites se possuirem educação médica ou científica. Por outras palavras, o termo dos anos de fertilidade significa o final da hipótese de uma mulher ser aceite para uma Colónia... e sabes como são extensas as listas de espera para as Colónias? Eu tive de esperar quatro anos; os pais de Heather inscreveram-na quando ela tinha dez anos, e agora tem vinte e três. As leis sobre o excesso da população na Terra significam que algumas mulheres têm de ficar nas listas de espera durante doze anos para poderem ter um segundo filho.

 

- Não posso imaginar a razão para elas se preocuparem comentou Camilla com desdém. - Um filho devia ser suficiente para qualquer mulher que tenha alguma coisa acima do pescoço, a não ser que se trate de alguma neurotica sem qualquer sentido de auto-estima.

 

- Camilla... - disse Ewen com suavidade. - É um problema biológico. Ainda durante o século xx foram feitas experiências com ratazanas e populações dos guetos e coisas do género, e verificou-se que um dos primeiros resultados dum excesso
populacional era a falência do comportamento materno. É uma patologia. O homem é um animal racionalizante, e os sociólogos chamaram ao problema ”a Libertação da Mulher” e coisas do género, quando na realidade isso não passava duma reacção patológica ao excesso populacional. As mulheres que não eram autorizadas a ter filhos tinham de ser responsabilizadas por várias tarefas, em benefício da sua sanidade mental. Quando partem para as Colónias, as mulheres assinam um compromisso para terem um mínimo de dois filhos; contudo a maioria delas, uma vez libertadas das condições de excesso de população na Terra, recuperam a sua saúde mental e emocional, e a família média nas Colónias tem um mínimo de quatro filhos, o que é uma conta aceitável, do ponto de vista psicológico. Quando chegar o tempo de o teu bebé nascer, já terás provavelmente uma contagem normal de hormonas, e serás uma boa mãe. Se não for assim, bem, ao menos ele terá os teus genes, e poderemos entregá-lo a uma mulher estéril que se encarregará de criá-lo. Confia em mim, Camilla.

 

- Estás a querer dizer-me que vou mesmo ter esta criança?

- Bem podes crer - insistiu Ewen, e de repente a sua voz tornou-se áspera -, essa e outras mais, se fores capaz de aguentá-las até ao momento do parto. Há uma possibilidade em duas de abortares espontaneamente. - Imperturbavelmente, Ewen desfiou as mesmas estatísticas que MacAran ouvira de Moray um pouco mais cedo nesse mesmo dia. - Se tivermos sorte, Camilla, teremos agora connosco cinquenta e nove mulheres férteis. Mesmo se todas elas engravidarem este ano, só com muita sorte poderemos contar com mais doze crianças saudáveis... e para atingirmos um nível viável para que esta colónia sobreviva teremos de elevar o nosso censo para cerca de quatrocentos colonos antes que as mulheres menos jovens comecem a perder a sua fertilidade. Vai ser uma manobra difícil, e tenho a impressão de que qualquer mulher que se recuse a dar à luz tantos filhos quantos lhe for fisicamente possível arrisca-se a tornar-se tremendamente impopular. Não terás conveniência nenhuma em te tornares a Inimiga Pública Número Um.

 

A voz de Ewen tinha um tom duro, mas, com a sensibilidade reforçada que experimentava desde que o primeiro Vento o tornara receptivo às emoções dos outros, imaginou as medonhas imagens que rodopiavam na mente de Camilla:

 

não uma pessoa, apenas uma coisa, um útero ambulante, uma coisa usada para reprodução, sem intelecto, a minha proficiência tornada inútil... apenas uma égua de cobrição...

 

- Não será tão mau como isso - disse com profunda compreensão. - Terás muito que fazer. Mas é assim que terá de ser, Camilla. Sei que será pior para ti do que para algumas outras, mas isto aplica-se a todas. A nossa sobrevivência depende disso.

- Afastou o olhar; não podia testemunhar a intensidade da agonia da rapariga.

 

Premindo os lábios numa linha dura, Camilla disse:

 

- Talvez fosse melhor não sobrevivermos, sujeitos a condições como essa.

 

- Não poderei discutir isso contigo até que te sintas melhor

- disse Ewen calmamente. - Não serviria de nada. Vou marcar um exame pré-natal para ti com a Margaret...

 

- Recuso-me!

 

Ewen levantou-se prontamente. Fez sinal a uma enfermeira atrás dela e segurou-lhe o pulso com força, imobilizando-a. Uma agulha penetrou no braço de Camilla; ela olhou para Ewen com raivosa suspeição, com os olhos já ligeiramente vidrados.

 

- O que é...

 

- Um sedativo inócuo. Não dispomos de muita quantidade, mas podemos dispensar o suficiente para te manteres calma disse Ewen. - Quem é o pai, Camilla? O MacAran?

 

- Não tens nada com isso!

 

- Concordo, mas preciso de saber, para os registos genéticos. O capitão Leicester?

 

- É o MacAran - disse ela, com um novo ímpeto de raiva surda, e repentinamente, com uma profunda e torturante dor, recordou-se... como se tinham sentido felizes durante os Ventos...

 

Ewen olhou com profundo pesar para a figura inconsciente de Camilla.

 

- Fale com o Rafael MacAran - disse ele à enfermeira -, e peça-lhe que converse com ela quando despertar. Talvez ele consiga fazê-la recuperar o juízo.

 

- Como pode ela ser tão egoísta? - inquiriu a enfermeira, com espanto.

 

- Ela cresceu num satélite espacial - explicou Ewen

 

e também na colónia Alpha. Alistou-se no serviço espacial aos quinze anos, e durante toda a sua vida foi ensinada a pensar que a função maternal era algo que não devia interessar-lhe. Mas há-de aprender. É apenas uma questão de tempo.

 

Mas intimamente Ewen receava que muitas mulheres da tripulação sentiriam o mesmo - a esterilidade podia também ser determinada psicologicamente - e que talvez decorresse algum tempo até que esta aversão condicionada fosse por fim ultrapassada.

 

Seria possível consegui-lo, a tempo de se ampliar o número de colonos até um nível viável, neste mundo severo, brutal e inóspito?

MacAran estava sentado ao lado de Camilla adormecida, pensando na entrevista dele com Ewen Ross, há pouco terminada no hospital. Ewen havia-lhe feito apenas uma pergunta adicional:

 

- Lembras-te de teres tido sexo com mais alguém durante o Vento? Não estou a ser futilmente curioso, acredita. Algumas mulheres, e alguns homens, não conseguem recordar-se, ou então nomeiam pelo menos uma meia-dúzia. Pondo por ordem tudo o que toda a gente realmente recorda, podemos eliminar certas pessoas, quer dizer, para um futuro registo genético. Dou-te um exemplo: se uma determinada mulher nomeia três homens como possíVelmente responsáveis pela sua gravidez, apenas precisamos de testar o sangue desses três homens para determinar... com alguma certeza apenas, claro... qual é o verdadeiro pai.

 

- Só com a Camilla - disse MacAran, e Ewen sorriu.

 

- Ao menos tu és consistente. Espero que consigas meter algum juízo na cabeça daquela rapariga.

 

- Custa-me imaginar a Camilla no papel de mãe - disse lentamente MacAran, sentindo-se desleal para com ela, e Ewen encolheu os ombros.

 

- E isso interessará? Vamos ter bastantes mulheres desejosas de filhos e incapazes de os terem, quer por causa de abortos espontâneos durante a gravidez quer por os perderem à nascença. Se ela não quiser a criança quando nascer, podes ter a certeza de que não haverá escassez de mães adoptivas.
Agora aquele pensamento despertava em Rafael MacAran um lento ressentimento ao olhar para a rapariga que dormia sob o efeito do sedativo. O amor entre ambos, mesmo na melhor das hipóteses, tinha surgido da hostilidade, sendo um sobe-e-desce de despeito e desejo, e agora a raiva estava a ficar descontrolada. Miúda malcriada, pensou, durante toda a vida encontrou tudo tal como pretendia, e agora, ao primeiro sinal de que talvez tenha de ceder perante algum considerando que não lhe é conveniente, começa a rebelar-se. Que vá para o raio!

 

Como se a violência dos seus irritados pensamentos tivesse penetrado nos frágeis véus do sedativo, os olhos azuis de Camilla, orlados por espessas pestanas negras, abriram-se incertamente, e ela olhou à sua volta, numa confusão momentânea, observando as paredes translúcidas da cúpula do hospital, e fixando-se por fim em MacAran, sentado junto do leito.

 

- Rafe? - Uma expressão de dor perpassou-lhe pelo rosto, e MacAran pensou, ao menos já não me está a tratar por MacAran. Falou-lhe com toda a delicadeza.

 

- Lamento que não estejas a sentir-te bem, amor. Pediram-me para vir fazer-te companhia por alguns momentos.

 

O rosto dela endureceu ao recordar-se; ele podia sentir a raiva e a angústia de Camilla, que eram como uma dor dentro de si, e prontamente desligou o seu ressentimento como se tivesse accionado um interruptor.

 

- Lamento realmente, Camilla. Sei que não querias isto. Odeia-me, se precisas de odiar alguém. A culpa é minha; não agi de forma muito responsável, bem sei.

 

A brandura dele, a sua prontidão ao aceitar todas as culpas, desarmaram-na.

 

- Não, Rafe - disse Camilla, laboriosamente -, não estás a ser justo contigo mesmo. Na altura em que aquilo aconteceu eu desejei-o tanto como tu; não adianta arcares com todas as culpas. O mal está em nos termos habituado a não relacionar a gravidez com o sexo, e agora temos todos uma atitude desprendida em relação a isso. E além disso nem um nem o outro podíamos adivinhar que os contraceptivos habituais não estavam a resultar. Rafe tocou-lhe na mão.

 

- Bem, nesse caso partilhemos as culpas. Mas serás capaz de te recordar do que sentiste a esse respeito durante o Vento? Estávamos tão felizes então...

 

- Eu estava louca então. E tu também. - A profunda amargura na voz dela fez Rafe estremecer de dor, não apenas por si mas também por ela. Camilla tentou libertar a mão, mas ele continuou a segurar-lhe os finos dedos.

 

- Agora estou são de espírito... pelo menos acho que estou... e continuo a amar-te, Camilla. Não tenho palavras para te descrever até que ponto.

 

- Pensava que me odiarias...

 

- Nunca poderia odiar-te. Não me sinto feliz com a tua decisão de não quereres esta criança - acrescentou -, e se estivéssemos na Terra iria provavelmente admitir que tinhas o direito de escolher não a teres, se não a quisesses. Mas também não ficaria feliz com isso, e não podes esperar que eu lamente que a criança irá ter uma possibilidade de viver.

 

- Estás então contente por eu ser forçada a gerar esta criança?

- inquiriu ela, furiosa.

 

- Como poderia eu estar contente com qualquer coisa que te faz sentir tão mal? - perguntou MacAran em desespero. Achas que eu poderia ter alguma satisfação por ver-te infeliz? Sinto-me desfeito, isto dá cabo de mim! Mas tu estás grávida, e estás doente, e se te sentires melhor dizendo essas coisas... Amo-te, e o que poderei eu fazer excepto ouvir-te e desejar ser capaz de te dizer alguma coisa de útil? Só queria que estivesses mais feliz com a situação, e que eu não me sentisse tão desamparado.

 

Camilla podia avaliar a confusão e o desânimo de MacAran como se fossem seus, e esta persistência de um efeito que ela apenas associara ao tempo dos ventos fê-la esquecer a sua raiva e autocomiseração. Lentamente, sentou-se no leito e pegou-lhe na mão.
- A culpa não é tua, Rafe - disse com suavidade -, e se o meu comportamento te faz tão infeliz tentarei controlar-me melhor. Não posso fazer de conta que quero ter um filho, mas, se tiver que ser - como bem parece - é melhor que seja teu do que de qualquer outro. - Sorriu debilmente, e acrescentou: - Parece-me que... como as coisas estavam a passar-se... poderia ter sido qualquer um, e ainda bem que foste tu.

 

Rafe MacAran viu-se incapaz de falar, e a seguir compreendeu que não seria preciso. Inclinou-se para diante e beijou-lhe a mão.

- Farei o que estiver ao meu alcance para que tudo seja mais fácil para ti - prometeu -, e só lamento que não possa fazer muito mais.

 

Moray tinha concluído a atribuição de tarefas para a maioria dos colonos e dos tripulantes quando o engenheiro-chefe Laurence Patrick, acompanhado pelo capitão Leicester, foi consultar o Representante da Colónia.

 

- Como sabe, Moray - disse Patrick -, antes de me tornar perito em propulsores M-AM era especialista em pequenos transportadores para todos os terrenos. Existem na nave quantidades suficientes de metal para criar diversos desses transportadores, que poderiam ser propulsionados por pequenas unidades de energia transformadas. Seriam extremamente valiosos para o ajudarem a localizar e estruturar os recursos do planeta, e estou na disposição de me encarregar da construção. Quando poderei dedicar-me a isso?

 

- Lamento, Patrick - respondeu Moray. - Nunca durante a sua vida ou a minha.

 

- Não estou a entender. Não seria uma grande ajuda para a exploração e para o máximo aproveitamento dos recursos existentes? Estará você a tentar criar um ambiente o mais selvagem e bárbaro que seja possível? - inquiriu Patrick com expressão severa. - Que Deus nos ajude! Será que a Força Expedicionária da Terra se transformou numa corja de antitecnocratas e neo-ruralistas?

Moray abanou a cabeça, imperturbável.

 

- Nada disso - respondeu. - A minha primeira missão de colonização foi num planeta em que concebi uma civilização altamente técnica baseada no máximo uso da energia eléctrica, e tenho muito orgulho na minha obra; na realidade, tenciono... ou, dada a nossa mútua catástrofe, talvez deva dizer tencionava... voltar para lá no final dos meus dias. A minha missão na colónia Coronis era conceber culturas tecnológicas. Contudo, perante aquilo que nos sucedeu...

 

- Ainda será possível - disse o capitão Leicester. - Poderemos transmitir a nossa herança tecnológica aos nossos filhos e netos, Moray. Mesmo se ficarmos aqui aprisionados por toda a vida, os nossos netos poderão regressar. Não conhece a nossa história, Moray? Desde a invenção do barco a vapor até que o homem pisou a Lua pela primeira vez decorreram apenas duzentos anos. Daí até aos propulsores M-AM que nos levaram até Alpha Centauri, menos de cem. É provável que morramos todos nós neste calhau esquecido por Deus, é até mais do que certo, mas se conseguirmos manter intacta a nossa tecnologia, o suficiente para permitir que os nossos netos regressem à civilização humana, os nossos esforços não terão sido em vão.

 

Moray olhou para ele com profundo pesar.

 

- Será possível que ainda não compreenda? Deixe-me explicar melhor, Capitão, e a si também, Patrick. Este planeta não suportará qualquer tecnologia avançada. Em vez de possuir um núcleo de níquel-ferro, os seus principais metais são não-condutores de baixa densidade, o que explica a reduzida gravidade. A pedra, segundo podemos averiguar sem equipamento sofisticado de que não dispomos e que não podemos fabricar, tem muitos silicatos mas pouco minério metálico. Os metais irão ser sempre raros aqui, terrivelmente raros. O planeta de que falei, com um uso intensivo de energia eléctrica, dispunha de extensos depósitos de combustíveis fósseis e enormes quantidades de cursos de água para a conversão de energia... e um sistema
ecológico muito robusto. Este planeta parece ter apenas algum solo agrícola, pelo menos aqui. A cobertura de florestas é a única coisa que evita uma erosão maciça, pelo que, para a conservação das florestas, teremos de ter a máxima cautela na utilização de madeiras. Acresce que não podemos dispensar a mão-de-obra necessária para construir os veículos que pretende, para lhes dar assistência e manutenção, ou para construir as estradas de que iriam precisar. Posso fornecer-vos factos e números exactos, se quiserem; mas, resumidamente, se insistem numa tecnologia mecanizada estarão a ditar uma sentença de morte, senão para todos nós pelo menos para os nossos netos. Poderíamos talvez aguentar três gerações, porque devido ao nosso reduzido número de pessoas podíamos transferir-nos para outra parte do planeta depois de termos esgotado uma área. Mas nada mais do que isso. Com uma profunda amargura, Patrick exclamou:

 

- Valerá a pena sobrevivermos, ou até termos netos, se eles irão viver desse modo?

 

Moray encolheu os ombros.

 

- Não posso obrigar-vos a terem netos - disse -, mas tenho uma responsabilidade para com os que já vêm a caminho, e existem colónias sem uma tecnologia avançada que têm uma lista de espera tão longa como a daquela colónia organizada com base num emprego maciço da electricidade. A nossa sobrevivência não depende de vocês, lamento ter de dizê-lo; vocês são... para falar com toda a franqueza... apenas um peso morto. As pessoas de que precisamos neste mundo são as da Comuna das Novas Hébridas, e tenho a sensação de que, se conseguirmos sobreviver, ficaremos a devê-lo a elas.

 

- Bem - disse o capitão Leicester -, acho que já ficámos a conhecer a nossa posição. - Pensou por uns momentos, e depois perguntou: - O que nos espera então, Moray?

 

Moray estudou os seus registos, e depois disse:

 

- Vejo na vossa lista de pessoal que o seu passatempo na academia era construir instrumentos musicais. Ainda que isto não seja de alta prioridade, neste Inverno iremos precisar de muita gente que conheça algo a esse respeito. Entretanto, sabe alguma coisa de fabrico de vidro, enfermagem prática, dietética, ou ensino elementar?

 

- Quando me alistei fui para cadete médico - disse Patrick, para surpresa de Moray -, antes de ser transferido para o Curso de Oficiais.

 

- Nesse caso, fale com o Di Asturien no hospital. Por agora vou classificá-lo como ordenança, com o encargo de recrutar todos os homens válidos para o programa de construções. Um engenheiro deve ser capaz de fazer trabalhos de arquitectura e projectos. Quando ao senhor, Capitão...

 

- É uma idiotice chamar-me Capitão - exclamou Leícester, irritado. - Capitão de quê, pelo amor de Deus!

 

- Harry, nesse caso - disse Moray, com um pequeno sorriso oblíquo. - Acho que os títulos e outras ninharias acabarão por desaparecer dentro de três ou quatro anos, mas não vou tirá-los a ninguém, se pretenderem usá-los.

 

- Bem, pode considerar o meu como desfasado - disse Leicester. - Vai encarregar-me de sachar a horta? Uma vez que já deixei de ser capitão duma astronave, é só para isso que poderei servir.

 

- Não - respondeu Moray sem rodeios. - Vou precisar daquilo que o senhor tinha quando o nomearam capitão: capacidade de liderança, talvez.

 

- Há alguma lei contra a recuperação dos poucos conhecimentos tecnológicos que possuímos? Talvez programá-los no computador, para benefício dos tais nossos hipotéticos netos?

 

- Não muito hipotéticos no seu caso - disse Moray. Fiona MacMorair, que está no hospital como ”possível grávida incipiente”, deu-nos o seu nome como provável pai.

 

- Mas quem raio - se me perdoa a expressão - é essa Fiona MacMorair? - clamou Leicester com ar carrancudo. Nunca ouvi falar no raio da rapariga.
Moray soltou uma gargalhada.

 

- Isso não interessará. Passei a maior parte deste Vento a declarar-me a rebentos de couve e a feijoeiros, ou pelo menos a escutar as suas reclamações, mas a maioria de nós passou esse tempo em actividades menos educatívas, por assim dizer. O Doutor Di Asturien irá pedir-lhe os nomes de alguns possíveis contactos femininos.

 

- A única de que me lembro tive de lutar por ela, e acabei por perder a refrega. - Esfregou o que restava do hematoma no queixo. - Mas espere! Será uma rapariga de cabelos ruivos, pertencente ao grupo da Comuna?

 

- Não a conheço de vista - respondeu Moray. - Mas quase todos os membros das Novas Hébridas são ruivos... são principalmente escoceses, com alguns irlandeses também. Eu diria que tem boas probabilidades, se a rapariga não tiver um aborto espontâneo, de ter um filho ou uma filha de cabelos ruivos daqui a nove ou dez meses. Como vê, Leicester, tem um interesse pessoal na sobrevivência neste mundo.

 

Leicester corou, um enrubescimento lento e enraivecido, e disse:

- Não quero que os meus descendentes vivam em cavernas e tenham de arranhar a terra para subsistir, Quero que eles conheçam o tipo de mundo de onde viemos.

 

Moray não lhe respondeu durante alguns momentos. Por fim, disse:

 

- Pergunto-lhe com toda a seriedade - não me responda, não sou o guardião da sua consciência, mas pense bem... não seria melhor deixar os nossos descendentes desenvolverem uma tecnologia específica para este mundo, em vez de os atormentar com o conhecimento de um outro mundo capaz de destruir este planeta?

 

- Tenho a certeza de que os meus descendentes serão providos de bom senso - replicou Leicester.

 

- Nesse caso siga em frente e meta essas coisas no seu computador, se quiser - disse Moray com outro pequeno encolher de ombros. - Talvez eles tenham demasiado bom senso para lhes darem aplicação.

 

Leicester preparou-se para sair.

 

- Poderei continuar a contar com a minha assistente? Ou será que a Camilla Del Rey foi destinada para alguma tarefa importante, como cozinhar ou fazer cortinas para o hospital? Moray abanou a cabeça.

 

- Pode contar com ela quando sair do hospital - disse

 

se bem que esteja incluída na lista das grávidas, para se encarregar apenas de tarefas leves, e pensei em pedir-lhe para escrever alguns textos de matemática básica. Mas o computador não é muito cansativo; se ela pretender voltar, não me oponho.

 

Olhou atentamente para os papéis espalhados sobre a secretária, e Harry Leicester, ex-capitão da nave estelar, percebeu que, para todos os efeitos práticos, tinha sido dispensado.

Ewen Ross hesitou, observando os mapas genéticos, e olhou para Judith Lovat.

 

- Acredita, Judy, não estou a tentar causar-te problemas, mas isto irá tornar os nossos registos muito mais simples. Quem é o pai?

 

- Não acreditaste em mim quando já to disse - declarou Judith de forma terminante -, e portanto, se conheces a resposta melhor do que eu, pensa o que quiseres.

 

- Nem sei como poderei responder-te - disse Ewen. Não me lembro de ter estado contigo, mas se disseres que eu... Ela abanou a cabeça, teimosamente, e ele soltou um suspiro.

- Outra vez a história do alienígena. Não vês como isso não tem pés nem cabeça? Como isso é perfeitamente inacreditável? Estás a tentar afirmar que os aborígenes deste mundo são suficientemente humanos para se cruzarem com as nossas mulheres? - Hesitou. - Não estarás apenas a gracejar, Judy?

 

- Não estou a querer afirmar nada, Ewen. Não sou especialista em genética, sou apenas dietista. Estou só a contar-te o que aconteceu.

 

- Durante o tempo em que estiveste insana. Por duas vezes. Heather tocou-lhe ligeiramente no braço.

 

- Ewen - disse -, a Judith não está a mentir. Está a contar a verdade... ou aquilo que ela julga ser a verdade. Acalma-te.
- Mas, com um raio, o que ela julga não pode ser aceite como verdadeiro. - Ewen suspirou e encolheu os ombros. Pronto, Judy, como queiras. Mas deve ter sido o MacLeod... ou o Zabal. Ou eu. Independentemente do que possas recordar-te, deve ter sido assim.

 

- Se tu o dizes, deve ter sido assim - disse Judy, levantando-se e começando a afastar-se, sabendo sem necessidade de olhar que Ewen tinha escrito pai desconhecido; possíveis: MacLeod, Lewis; Zabal, Marco; Ross, Ewen.

 

Ao ver a porta fechar-se, Heather disse calmamente:

- Querido, foste um pouco brusco com ela.

 

- Segundo me parece, não há espaço para fantasias num mundo tão agreste como este - disse o jovem médico, descontrolado, - Raios, Heather, fui treinado para salvar vidas a todo custo... a todo o custo. E já tive de ver pessoas a morrer... pessoas que deixei morrer... Quando recuperamos o bom senso, temos de ser supersensatos para compensar!

 

Heather pensou naquilo durante alguns momentos, e finalmente disse:

 

- Ewen, como podes tu emitir juízos? Talvez o que passa por sanidade mental na Terra seja uma idiotice aqui. Por exemplo, sabes que o Chefe está a preparar grupos de mulheres para trabalhos de cuidados pré-natal e de parto, para o caso, diz ele, de no próximo Inverno perdermos demasiadas pessoas, ficando a equipa clínica impossibilitada de responder a todas as solicitações? Disse-nos também que não tinha voltado a assistir a um parto desde os seus tempos de internato, o que aliás não era necessário no Serviço Espacial. Pois bem, uma das primeiras coisas que nos ensinou foi que, se uma mulher está prestes a abortar, não se devem tomar medidas extraordinárias para o impedir. Se o bebé não for salvo mantendo-se a mãe descansada e quente, nada mais o salvará, nem hormonas, nem drogas de apoio fetal, nem nada.

 

- Isso é fantástico - comentou Ewen -, é quase criminoso!

- Foi isso mesmo que o Doutor Di Asturien afirmou - disse Heather. - Na Terra, seria mesmo criminoso. Mas aqui, segundo ele disse, em primeiro lugar um possível aborto espontâneo pode ser o modo que a natureza tem de se descartar dum embrião incapaz de se adaptar ao ambiente: a gravidade, e por aí fora. Será melhor a mulher abortar ainda cedo e recomeçar do princípio, em vez de desperdiçar seis meses trazendo no ventre uma criança que acabará por morrer, ou que nascerá defeituosa. Por outro lado, na Terra podíamos proteger as crianças deficientes: genes mortíferos, atrasados mentais, deformidades congénitas, insultos fetais e etc. Dispúnhamos de maquinaria avançada e de uma estrutura clínica que tornava possíveis coisas como transfusões completas, transplantes de hormonas de crescimento, reabilitação e fisioterapia, se a criança nascesse defeituosa. Mas aqui, excepto se algum dia quisermos dar o arriscado passo de escolher entre criar as crianças deficientes ou ter de abatê-las, será melhor reduzir o seu número a um mínimo absoluto, e perto de metade das crianças defeituosas nascidas agora na Terra - talvez até mesmo noventa por cento, ninguém sabe, pois é já lá tão comum evitar-se a qualquer preço um aborto espontâneo - são o resultado de se impedir a selecção natural das crianças que não deveriam nascer devido a erros da natureza. Num mundo como este a sobrevivência da nossa raça está em causa; não podemos permitir que os genes e os defeitos mortíferos invadam a nossa reserva de genes. Estás a perceber? Loucura na Terra, mas aqui simples factos de sobrevivência. A selecção natural tem de funcionar livremente, e isto elimina qualquer método heróico de combate aos abortos espontâneos ou qualquer medida extrema para salvar bebés moribundos ou danificados durante o parto.

 

- E o que terá tudo isso a ver com a fantasiosa história da Judy a respeito de um alienígena ser o pai do seu bebé? - quis saber Ewen.

 

- Apenas isto - explicou Heather. - Temos de aprender a seguir novas vias de pensamento, sem rejeitarmos seja o que for apenas por nos parecer fantasioso.
- Acreditas mesmo que algum allenígena não humano... ora, Heather! Pelo amor de Deus!

 

- Qual Deus? - perguntou Heather. - Todos os deuses de que já ouvi falar pertencem a Terra. Não sei quem é o pai do bebé da Judy. Eu não estava lá. Mas ela estava, e na ausência de provas em contrário acredito na palavra dela. Não se trata de uma mulher de fantasias, e se ela diz que um alienígena apareceu e fez amor com ela, e que verificou depois que estava grávida, então bolas, acredito nela até que alguém prove que não foi assim. Pelo menos até ver o bebé. Se este for a imagem chapada de ti, ou do Zabal, ou do MacLeod, talvez acredite que a Judy teve um episódio. Mas durante este segundo Vento tu comportaste-te racionalmente, em certa medida. O MacAran comportou-se racionalmente, em certa medida. Evidentemente, depois do primeiro episódio já existia um pouco de controlo para as novas exposições à droga, ou ao pólen. Ela apresentou um relato racional do que fez desta segunda vez, e é consistente com o que tinha acontecido da primeira vez. Por isso, por que motivo não lhe concedes o benefício da dúvida?

 

Lentamente, Ewen riscou os nomes no registo, deixando apenas ”Pai desconhecido.”

 

- Por agora não posso ter a certeza de mais nada - disse por fim. - Vou deixar ficar assim.

 

No amplo edifício que ainda servia de refeitório, cozinha e zona de lazer - se bem que uma outra cozinha comunitária estivesse também a ser construída, com robusta pedra translúcida de tom pálido - um grupo de mulheres da Comuna das Novas Hébridas, com as suas saias de lã axadrezada e os quentes casacos do uniforme que agora usavam, afadigava-se a preparar o jantar. Uma delas, uma moça com longos cabelos ruivos, cantava com uma bela voz de soprano:

Quando o dia chega ao fim, Caminho triste junto da água, Onde um homem, nascido do Sol, Cortejou a filha da fada.

 

Porque tenho de esperar suspirando Puxando os fetos, puxando os fetos Tão sozinha e abatida?

 

Interrompeu a canção quando Judy entrou:

 

- Doutora Lovat, está tudo pronto. Eu disse-lhes que a senhora tinha ido ao hospital, por isso começámos sem si.

 

- Obrigada, Fiona. Diz-me: o que estavas a cantar ainda agora?

 

- Ora, era uma das canções das nossas ilhas - disse Fiona.

- Não fala gaélico? Bem me pareceu... Pois, chama-se Canção de Amor da Fada, e conta a história de uma fada que se apaixonou por um mortal, e vagueia para sempre pelas colinas de Skye, ainda à procura dele, do seu amante fádico, sem saber por que razão ele nunca regressou. É mais bonita em gaélico.

 

- Canta-a então em gaélico - pediu Judy -, pois seria muito monótono se aqui sobrevivesse apenas uma língua. Diz-me, Fiona: o padre Valentine não vem tomar as suas refeições no refeitório comum, pois não?

 

- Não, há sempre alguém que lhas leva.

 

- Poderei ser eu a levar-lhe hoje o almoço? Preciso de falar com ele - disse Judy, e Fiona foi consultar a lista de tarefas afixada na parede.

 

- Gostaria de saber se iremos algum dia ter uma distribuição permanente de tarefas, antes que se decida ao certo quem está grávida e quem não está. Pronto, eu direi à Elsie que a doutora lhe levou hoje a comida. É um daqueles pacotes que estão ali.

 

Judy foi encontrar o padre Valentine a trabalhar no cemitério, cercado pelas pedras volumosas com que estava a montar o
monumento. Recebeu dela a refeição e desembrulhou-a, colocando-a numa pedra lisa. Ela sentou-se ao seu lado e disse-lhe com voz serena:

 

- Padre, preciso da sua ajuda. Será possível ouvir-me em confissão?

 

Ele abanou lentamente a cabeça.

 

- já não sou padre, Doutora Lovat. Como poderia eu ter a insolência de julgar em nome de Deus os pecados de outra pessoa? - Sorriu debilmente. Era um homem baixo e franzino, e não teria mais de trinta anos, mas agora parecia macilento e velho. De qualquer modo, tenho tido muito tempo para pensar, enquanto arrasto as pedras de um lado para o outro. Como poderia eu ensinar o Evangelho de Cristo num mundo onde ele nunca pôs o pé? Se Deus quiser que este mundo seja salvo, terá de enviar alguém capaz de salvá-lo... qualquer que seja o significado disso. - Meteu uma colher na tigela de carne e legumes. Trouxe também o seu almoço? Ainda bem. Em teoria aceito o isolamento, mas na prática sinto a falta da companhia de um ser humano, muito mais intensamente do que teria imaginado.

 

As palavras dele evitavam a questão da religião, mas Judy, com a sua perturbação íntima, não queria deixá-la escapar-se tão depressa.

 

- Então vai deixar-nos sem apoio pastoral de qualquer género, Padre?

 

- Não me parece que tenha tido muita actividade nesse domínio - disse o padre Valentine. - Será que qualquer padre alguma vez o fez? Não precisarei de prometer que estarei sempre pronto a ajudar qualquer um como amígo; é o mínimo que poderia fazer, e, mesmo se passasse o resto da minha vida a dedicar-me a essa actividade, ficaria muito longe de compensar aquilo que fiz, mas será melhor do que ficar sentado, vestido de serapilheira e cinzas, a declamar orações de penitência.

 

- Creio que posso compreender isso - disse a mulher mas quererá mesmo dizer, Padre, que não há espaço para a fé, ou para a religião?

Valentine fez um gesto de rejeição.

 

- Preferia que não me tratasse por Padre. Trate-me por Irmão, se achar bem. Aqui todos nós temos de ser irmãos e irmãs na desventura. Não, não foi isso o que eu disse, Doutora Lovat... não conheço o seu nome de baptismo... Judith? Não foi isso o que eu disse, Judith. Todos os seres humanos precisam de acreditar na bondade de algum poder que os criou, chamem-lhe eles o que quiserem chamar, e em alguma estrutura ética ou religiosa. Mas não me parece que necessitemos de sacramentos ou de sacerdócios importados de um mundo que já é apenas uma recordação, e que nem será isso sequer para os nossos filhos e para os filhos dos nossos filhos. Ética, sim. Arte, sim. Música, artes, erudição, humanidade: sim. Mas nada de rituais que poderão transformar-se prontamente em superstições. E certamente nada de códigos sociais ou de conjuntos de regras de comportamento puramente arbitrárias que não tenham nada a ver com a sociedade que agora formamos.

 

- Mas estaria disposto a trabalhar dentro da estrutura da Igreja na colónia de Coronis?

 

- É possível que sim. Não tinha ainda pensado nisso. Pertenço à Ordem de São Cristóvão de Centaurus, que foi organizada para levar a Igreja Católica Reformada até às estrelas, e limitei-me a aceitá-la como uma causa meritória. Nunca pensei muito no assunto, nunca lhe dediquei pensamentos muito profundos. Mas aqui, no meu monte de pedras, tenho tido muito tempo para pensar. - Esboçou um breve sorriso. - Não admira que lá na Terra costumassem pôr os criminosos a partir pedras. Conserva-lhes as mãos ocupadas, e dá-lhes muito tempo para pensarem.

 

Lentamente, Judy disse:

 

- Não acha portanto que as éticas do comportamento são absolutas? Não existe aqui nada de definitivo ou de divinamente ordenado a respeito delas?

 

- Como poderia existir? Judith, você sabe o que eu fiz. Se não tivesse sido criado com a convicção de que certas coisas seriam,
só por si e pela sua própria natureza, suficientes para me enviarem directamente para o inferno, ao acordar depois do Vento poderia ter suportado o que se tinha passado. Poderia ter-me sentido envergonhado ou transtornado, ou mesmo nauseado, mas não teria tido a certeza, bem no meu âmago, de que nenhum de nós merecia continuar a viver depois daquilo. No seminário não havia tonalidades de certo e errado, unicamente ”virtude” e ”pecado”, sem nada entre ambos. Os homicídios não me perturbaram, na minha loucura, porque tinha sido ensinado no seminário que a lascívia era um pecado mortal pelo qual eu iria para o inferno, e por isso como poderia o homicídio ser ainda pior? Só se pode ir parar ao inferno uma única vez, e eu já estava perdido. Uma ética racional ter-me-ia dito que, independentemente do que eu e aqueles pobres membros da tripulação - Deus os guarde no seu eterno descanso - pudéssemos ter feito durante aquela noite de loucura, aquilo apenas tinha danificado a nossa dignidade e o nosso sentido de decência, como se isso tivesse alguma importância. Era uma coisa que se situava a quilómetros de distância, a galáxias de distância, do homicídio.

 

- Não sei nada de teologia, Pa... eh... Valentine - disse Judith -, mas será possível alguém cometer um pecado mortal num estado de completa insanidade?

 

- Creia-me, tenho meditado muito sobre esse ponto. Não me dá consolo saber que, se me tivesse sido possível ir a correr falar com o meu confessor e pedir-lhe perdão por todas as coisas que fiz na minha loucura - coisas terríveis de acordo com certos padrões, mas essencialmente inofensivas - poderia ter evitado matar aqueles pobres homens. Tem de haver qualquer coisa de errado num sistema que permite que se vista ou dispa a culpa como se fosse um sobretudo. Quanto à loucura: nada pode surgir no momento da loucura que não exista já no nosso íntimo. O que eu realmente não conseguia enfrentar, comecei então a perceber, não era apenas a certeza de que, durante a loucura, tinha feito com outros homens algumas coisas proibidas, mas sim o reconhecimento de que as tinha feito com gosto e vontade, e que já não acreditava que fossem muito erradas, e que a partir de então, sempre que me cruzasse com esses homens, recordaria o tempo em que as nossas mentes tinham estado completamente abertas e em que tínhamos partilhado mentes e corpos e corações num momento do mais completo amor que qualquer ser humano alguma vez conhecera. Sabia que não poderia voltar a escondê-lo, e por isso peguei na minha faquinha e comecei a tentar escondê-lo de mim mesmo. - Sorriu debilmente, um terrível sorriso de máscara fúnebre. - Judith, Judith, perdoe-me: veio pedir o meu auxílio, pediu-me que a ouvisse em confissão, e acabou por escutar a minha.

 

Com muita suavidade, ela respondeu:

 

- Se tiver razão, todos nós teremos de ser padres uns dos outros, pelo menos no que se refere a escutar-nos uns aos outros e a auxiliarmo-nos no que pudermos. - Uma frase que ele tinha dito ficara gravado na mente de Judy, e ela repetiu-a em voz alta: ”as nossas mentes tinham estado completamente abertas... num momento do mais completo amor que qualquer ser humano alguma vez conhecera... Isso parece ser o que este mundo fez a todos nós. Em diferentes graus, é certo, mas a todos nós de um modo ou outro. Foi isso o que ele disse”... e lentamente, procurando as palavras justas, ela contou-lhe a respeito do alienígena, do primeiro encontro nos bosques, de como ele a tinha convocado durante o Vento, e das estranhas coisas que lhe dissera sem falar.

 

- Ele comentou que as mentes do nosso povo eram como portas semicerradas - disse ela. - Contudo nós entendíamo-nos, talvez sobretudo por aquilo ter acontecido... aquela partilha total. Mas ninguém acredita em mim! - concluiu, com um grito de desespero. - Todos pensam que estou louca, ou a mentir!

 

- Interessará muito que acreditem ou não? - perguntou lentamente o padre. - Com a descrença deles talvez esteja até a protegê-lo. Disse-me que ele tem medo de nós - da sua gente - e, se
os dele são seres amáveis, isso não me surpreende. Uma raça telepática sintonizada em nós durante o Vento Fantasma teria certamente decidido que somos um povo assustador e terrivelmente violento, e não estaria totalmente errada, ainda que nós tenhamos um outro lado diferente. Mas, se começarem a acreditar no seu - como é a frase de Fiona? - no seu amante fádico, poderão partir à procura da gente dele, e os resultados talvez não sejam muito bons. - Sorriu levemente. - A nossa raça tem má reputação quando encontramos outras culturas que consideramos inferiores. Se se preocupa com o pai do seu bebé, Judy, é preferível que eles continuem a não acreditar.

 

- Para sempre?

 

- Enquanto for necessário. Este planeta já está a modificar-nos - disse Valentine -, e talvez algum dia as nossas crianças e as dele achem algum modo de se encontrarem sem provocar uma catástrofe, mas teremos de esperar para ver.

 

Judy tocou na corrente que trazia ao Pescoço, e Valentine perguntou:

 

- Não costumava usar uma cruz nessa corrente?

- Sim, mas tirei-a. Perdoe-me.

 

- Porquê? Não tem qualquer significado aqui. E isto, o que é? Era uma jóia azul, esplendorosa, com pequenos padrões prateados tremeluzindo no seu interior.

 

- Disse-me ele... que usam estas coisas para ensinar as suas crianças, e que se eu conseguir compreender a jóia poderei entrar em contacto com ele, para lhe dizer que tudo está bem comigo e com a criança.

 

- Deixe-me observá-la - pediu Valentine, e estendeu a mão, mas ela esquivou-se.

 

- O que foi?...

 

- Não sei explicar, porque não entendo, mas quando alguém lhe toca sinto uma dor, como se ela fosse parte de mim... - respondeu ela, hesitante. - Acha que estarei louca?

 

O homem abanou a cabeça.

- O que será a loucura? - perguntou. - Uma jóia para realçar a telepatia... talvez possua algumas propriedades peculiares que façam ressonância com os impulsos eléctricos emitidos pelo cérebro. A telepatia não existe só por si, tem de ter algum fenomenismo natural. Talvez essa jóia se encontre aferida com aquilo que na sua mente constitui a sua própria individualidade. Seja como for, ela existe... já conseguiu contactá-lo com ela?

 

- Por vezes assim parece - disse Judy, procurando hesitante as palavras certas. - É como escutar a voz de alguém e saber a quem pertence só pelo tom... não, não é bem isso, mas na verdade acontece. Sinto-me... é instantâneo, mas bastante real... como se ele estivesse a meu lado, tocando-me, e a seguir desvanece-se. Um momento de conforto, um momento de amor, e depois desaparece. E tenho a estranha sensação de que isto é apenas um começo, de que virá o dia em que saberei outras coisas a seu respeito...

 

Ele viu-a esconder de novo a jóia sob o vestido. Por fim, disse:

- Se eu fosse a si, manteria segredo sobre isso por algum tempo. Disse que este planeta está a transformar-nos a todos, mas talvez não esteja a fazê-lo com a rapidez necessária. Alguns dos cientistas haviam de querer ensaiar a jóia, trabalhar com ela, talvez mesmo ficar com ela, experimentá-la, destruí-la para saberem como funciona. Talvez até interrogá-la, Judy, e submetê-la a experiências repetidas, tentando decidir se está a mentir ou a alucinar. Guarde-a em segredo, Judith. Use-a como ele lhe disse. Poderá surgir um dia em que será Importante saber como funciona... como deverá funcionar, e não como os cientistas talvez quisessem que funcionasse.

 

Levantou-se, sacudindo do colo as migalhas da sua refeição.

- Tenho de regressar ao monte de pedras.

 

Ela ergueu-se nas pontas dos pés e beijou-o na face.

 

- Obrigada - disse com suavidade -, ajudou-me imenso. O homem tocou-lhe no rosto.
- Ainda bem - disse. - Talvez seja um recomeço, uma longa jornada de regresso, mas sempre é um recomeço. Deus a abençoe, Judith.

 

Ficou a vê-la a afastar-se, e um curioso pensamento quase blasfemo tocou-lhe na mente, como poderei ter a certeza de que Deus não está a enviar uma Criança... uma estranha criança, não exactamente um homem... para este estranho mundo? Repeliu a ideia, pensando estou louco, mas outro pensamento fê-lo encolher-se com uma mistura de lembrança e desalento, como poderemos saber se a Criança que venerei durante todos estes anos não seria resultante duma aliança similar?

 

- Ridículo! - disse em voz alta, e dobrou-se de novo sobre a sua auto-imposta penitência.

Nunca pensei que algum dia havia de fazer preces pelo mau tempo disse Camilla. Fechou atrás de si a porta da pequena cúpula reparada onde se abrigava o computador, e foi ter com Harry Leicester, que a aguardava lá dentro. - Tenho andado a pensar. Com os elementos de que dispomos sobre o comprimento dos dias, a inclinação do Sol, etc., não será possível determinar a duração exacta do ano neste planeta?

 

- Isso é suficientemente elementar - respondeu Leicester. Escreve o teu programa, e mete-o na máquina. Talvez nos diga por quanto tempo poderemos ter Verão, e qual será a duração do Inverno.

 

Ela dirigiu-se à consola. A sua gravidez estava já a tornar-se notada, se bem que ela continuasse a mover-se com leveza e graciosidade.

 

- Consegui recuperar quase todas as informações sobre os propulsores matéria - antima téria - disse Leicester. - Algum dia... O Moray disse-me no outro dia que desde o motor a vapor até à conquista das estrelas só decorreram trezentos anos. Algum dia os nossos descendentes poderão regressar à Terra, Camilla.

 

- Se quiserem fazê-lo... - replicou Camilla, e sentou-se à secretária. Leicester olhou para ela, confuso.

 

- Tens dúvidas?

 

- Não tenho dúvidas de nada. Só não quero ter a presunção de saber o que os meus netos da nona geração irão fazer. Bem
vistas as coisas, os habitantes da Terra viveram durante gerações sem desejarem inventar qualquer coisa que poderia facilmente ter sido inventada em qualquer altura depois de se ter conseguido fundir minério pela primeira vez. Acaso pensa, com toda a franqueza, que a Terra teria ido para o espaço se não fosse a pressão populacional e a poluição? Existem igualmente tantos factores sociais a considerar...

 

- E se o Moray tiver razão no que diz, todos os nossos descendentes serão bárbaros - comentou Leicester -, mas, desde que conservemos protegido o computador, todos os nossos conhecimentos ficarão ali guardados, para que eles os utilizem quando sentirem necessidade disso.

 

- Se continuarem ali protegidos - disse ela com um encolher de ombros. - Depois do que passou nestes últimos meses, não tenho a certeza de que o que trouxemos para aqui irá resistir por mais de uma geração.

 

Conscientemente, e com algum esforço, Leicester recordou-se de que ela está grávida, e é por isso que desde há muitos anos se pensava que as mulheres não estavam aptas para ser cientistas; as mulheres grávidas começam logo a ter ideias esquisitas. Ficou a vê-la fazer rápidas anotações na complicada estenografia do computador.

 

- Porque é que queres saber a duração do ano?

 

Que pergunta mais estúpida, pensou a rapariga, e depois lembrou-se de que ele tinha crescido numa estação espacial, em que o tempo atmosférico nada importava para ele. Duvidava até de que ele alguma vez tivesse pensado na relação existente entre o tempo e o clima com as colheitas e a sobrevivência. Por isso explicou-lhe, com toda a calma:

 

- Em primeiro lugar, precisamos de calcular quando decorre a época do crescimento, para se determinar a altura ideal para se fazer a colheita do que plantamos. Será mais simples assim do que se formos por tentativas, e, se colonizássemos pelo método tradicional, já alguém teria observado este planeta durante diversos ciclos anuais. Por outro lado, a Fiona e a Judy e... e todos nós gostaríamos de saber quando nascerão os nossos filhos e como será provavelmente o clima nessa altura. Não vou costurar as roupas para o meu filho, mas alguém o fará, e vai precisar de saber se nessa altura fará muito ou pouco frio.

 

- já estás a fazer planos? - inquiriu ele, curioso. - As probabilidades são apenas de duas para uma de que não abortarás antes do parto, e as mesmas também de que o bebé não morrerá pouco depois.

 

- Não sei. Por alguma razão nunca duvidei de que o meu vai ser um dos que resistirão. Premonição, talvez, ou percepção extra-sensorial - disse ela. - Eu tinha a sensação de que a Ruth Fontana iria abortar espontaneamente, e foi o que aconteceu.

 

Ele estremeceu.

 

- Não deve ser um dom muito agradável de ter.

 

- Pois não, mas acho que tenho de me habituar a ele - disse Camilla, com toda a naturalidade -, e parece-me que está a ajudar o Moray e os outros com as colheitas. Para não mencionar o poço que a Heather os ajudou a escavar. Evidentemente, trata-se apenas de uma renovação do potencial humano latente, e nada tem de esquisito. Seja como for, creio que teremos de aprender a viver com esse dom.

 

- Quando eu era estudante - disse Leicester -, todos os factos de que se possuía conhecimento concreto a respeito da PES foram introduzidos num computador, e a resposta foi que as probabilidades eram de mil para uma de que aquilo era coisa que não existia... e que os raros casos que não podiam ser totalmente explicados se deviam a erros dos investigadores, e não a uma percepção extra-sensorial humana.

 

Camilla sorriu e disse:

 

- Ora aí está uma prova de que um computador não é Deus...

 

O capitão Leicester viu a jovem espreguiçar-se para aliviar o cansaço do corpo.
- Estes assentos vindos da ponte de comando nunca foram concebidos para ser usados nesta gravidade. Espero que o fabrico de móveis confortáveis mereça uma prioridade alta, porque aqui o meu Júnior não está a gostar de que me sente nestas cadeiras tão duras.

 

Meu Deus, como adoro esta rapariga; quem haveria de acreditar, na minha idade! Para se forçar a pensar na diferença de idades, Leicester perguntou:

 

- Tencionas casar-te com MacAran, Camilla?

 

- Não me parece - respondeu ela com uma amostra de sorriso. - Não temos pensado nesses termos. Amo-o, claro; estivemos tão chegados durante o primeiro Vento, compartilhámos tanto, que faremos sempre parte um do outro. Vivemos juntos quando ele se encontra cá... o que não sucede com muita frequência... se é isso que pretende realmente saber. Principalmente é por ele me querer tanto, e quando estive tão próximo de outra pessoa, quando posso... - hesitou, procurando as palavras certas -, quando posso sentir quanto ele me quer, não sou capaz de lhe voltar as costas, não posso abandoná-lo... esfomeado e infeliz. Mas quanto a pensarmos em ter um lar próprio, quanto a desejarmos viver juntos para o resto da vida... com toda a franqueza não sei. Acho que não. Somos demasiado diferentes. - Mostrou-lhe um sorriso franco que fez o coração de Leicester dar um salto, e depois disse: - Parece-me que ficaria mais feliz consigo, numa base duradoura. Somos muito mais parecidos, Rafe é muito gentil, muito amável, mas você compreende-me melhor.

 

- Tens o filho dele dentro de ti, e és capaz de me dizer isso, Camilla?

 

- Ficou chocado? - perguntou ela, inquieta. - Lamento imenso, não quereria perturbá-lo por razão nenhuma. Sim, é o bebé de Rafe, e de certo modo estou contente. Ele quere-o, e ao menos um dos pais deve sempre desejar um filho. Quanto a mim (não posso evitá-lo; fizeram-me uma lavagem ao cérebro) não passa de um acidente de biologia. Se fosse seu, por exemplo e poderia ser, com o mesmo tipo de acidente, exactamente como engravidou Fiona a quem mal conhece - você não havia de gostar nada da situação, e iria querer que eu resistisse a tê-lo.

 

- Não estou tão certo disso. Talvez não. Pelo menos agora

- disse Harry Leicester em voz baixa. - Dizer estas coisas ainda me aflige, contudo. Choca-me. Talvez esteja demasiado velho. Ela abanou a cabeça.

 

- Temos de aprender a não nos escondermos uns dos outros. Numa sociedade em que os nossos filhos crescerão sabendo que aquilo que eles sentem é um livro aberto, para que servirá usarmos jogos de máscaras para nos ocultarmos uns dos outros?

- É assustador.

 

- Bastante. Mas talvez eles aceitem tudo de bom grado. Encostou-se ligeiramente a ele, apoiando as costas no peito de Leicester. Depois estendeu a mão e tomou os dedos dele entre os seus, dizendo lentamente: - Não se choque com isto. Mas, se eu viver, se ambos vivermos, gostaria de que o meu próximo filho fosse seu.

 

Ele inclinou-se para diante e beijou-a na testa. Estava quase demasiado comovido para falar. Ela apertou a sua mão na dele, e depois retirou-a.

 

- já disse isto mesmo a MacAran - explicou ela com toda a naturalidade. - Por razões genéticas, vai ser uma coisa boa que as mulheres tenham filhos de pais diferentes. Contudo, conforme já disse, as minhas razões não são tão frias e fleumáticas como isso.

 

O rosto dela assumiu uma expressão distante - por um momento pareceu a Leicester que ela estava a olhar para algo invisível através de um véu - e por um instante contraiu-se num sofrimento; mas quando ele a interrogou, ansioso, ela trouxe um sorriso aos lábios.

 

- Não, sinto-me bem. Vejamos o que poderemos fazer com esta história da duração do ano. Quem sabe, talvez consigamos fabricar o nosso primeiro Feriado Nacional!
os moinhos de vento eram agora visíveis a diversos quilómetros de distância do acampamento-base, grandes construções com velas de madeira que forneciam energia para moer farinha e cereais (as castanhas colhidas na floresta produziam uma farinha fina e ligeiramente adocicada que seria adequada até se fazerem as primeiras colheitas de centeio e cevada), e também levavam pequenas quantidades de energia eléctrica até ao acampamento. Mas essa energia seria sempre escassa neste mundo, e era cuidadosamente racionada, na iluminação do hospital, no accionamento de maquinaria essencial nas pequenas oficinas metalúrgicas, e na nova estufa. Para lá do acampamento, com o seu próprio guarda-fogo, situava-se aquilo que tinham começado a designar por Acampamento Novo, se bem que os elementos da Comuna das Hébridas que lá trabalhavam preferissem chamar-lhe Nova Skye: uma quinta experimental onde Lewis MacLeod e um grupo de auxiliares ensaiavam animais possivelmente domesticáveis.

 

Rafe MacAran, com a sua pequena equipa de assistentes, fez uma pausa no topo da colina mais próxima para olhar para trás, antes de se embrenharem na floresta. Dali, os dois acampamentos eram perfeitamente visíveis, e a volta de ambos havia uma actividade febril, mas havia neles uma indefinível diferença em relação a qualquer acampamento que MacAran tinha visto na Terra, e por um momento não foi capaz de Identificá-la, até que por fim soube o que era: a ausência de barulho. Ou não seria? Havia na realidade bastante ruído. Os grandes moinhos de vento rangiam e palpitavam no vento forte. Podia ouvir nítidos sons distantes de martelos e serras onde as equipas de construção levantavam edifícios para o Inverno. Também a quinta emitia os seus ruídos, incluindo os sons dos animais, os urros de mamíferos com chifres, os curiosos grunhidos, chilreios, guinchos de formas de vida desconhecidas. Mas finalmente descobriu a razão:
não havia sons que não fossem de origem natural. Nem tráfego, nem maquinaria, excepto o suave zumbido das rodas de oleiro e o tilintar das ferramentas. Cada um daqueles sons tinha atrás de si alguma deliberação humana imediata. Quase não se ouviam sons impessoais. Cada som parecia ter um objectivo, e isso parecia estranho e solitário a Rafe. Toda a sua vida residira nas grandes cidades da Terra, onde mesmo nas montanhas o barulho dos veículos todo-o-terreno, do tráfego motorizado, dos cabos de alta tensão e dos aviões a jacto produziam um reconfortante fundo sonoro. Aqui havia calmaria, uma calmaria assustadora porque, sempre que um ruído quebrava o silêncio do vento, havia algum significado imediato para esse ruído. Não seria possível ignorálo. Sempre que havia um ruído, tinha de ser ouvido. Não havia barulho que pudesse ser descuidadamente ignorado, ao passo que no caso dos jactos passando nas alturas ou da propulsão da astronave, sabia-se que esses ruídos não tinham nada a ver connosco. Contrariamente, cada som na paisagem tinha alguma aplicação imediata para o ouvinte, e Rafe sentia-se tenso ao escutá-los. Bem, talvez acabasse por habituar-se.

 

Começou a dar instruções ao seu grupo:

 

- Hoje trabalharemos ao longo das formações rochosas mais baixas, e especialmente nos leitos dos cursos de água. Precisamos de amostras de todos os tipos de terra - ou melhor, de solo com aspecto invulgar. Cada vez que a cor do barro ou da greda mudar, colham uma amostra, e localizem o local no mapa... Janice, estás a cuidar do mapa? - perguntou à rapariga, e ela confirmou com um aceno.

 

- Estou a trabalhar com quadrículas. Abrimos uma nova localização para cada mudança de terreno.

 

O trabalho da manhã decorreu relativamente sem novidades, excepto quanto a uma descoberta nas proximidades do leito de um curso de água, à qual Rafe se referiu quando se reuniram para acender uma fogueira e preparar a refeição do meio-dia pãozinhos de farinha de castanha para serem tostados e ”chá”
feito com uma folha nativa que tinha um gosto agradável e adocicado semelhante ao de sassafrás. A fogueira foi acesa dentro de um guarda-fogo de pedras rapidamente empilhadas; a lei mais forte da colónia dizia que nunca se devia acender uma fogueira no chão sem guarda-fogos ou cortinas de pedras. Quando a lenha resinosa começava a transformar-se em brasas viram um segundo grupo pequeno a descer a colina na direcção deles: três homens e duas mulheres.

 

- Olá, podemos fazer-vos companhia para o almoço? Evitaremos acender uma outra fogueira - disse Judy Lovat a cumprimentá-los.

 

- Com muito prazer - concordou MacAran -, mas o que andas a fazer pelos bosques, Judy? Pensei que já estavas isenta de trabalhos pesados.

 

A mulher fez um gesto complacente.

 

- Para falar com franqueza, estou a ser tratada como excesso de bagagem - disse. - Não me deixam mexer um dedo, nem fazer nenhuma escalada a sério, mas sempre se reduz a necessidade de levar amostras para o acampamento se puder fazer ensaios preliminares de várias plantas. Foi assim que descobrimos a erva de corda. Todos dizem que o exercício faz-me bem, se tiver o cuidado de não me cansar nem de apanhar um resfriado. - Pegou no seu chá e veio sentar-se ao lado dele. - Tiveram sorte hoje?

 

Ele confirmou com um aceno.

 

-já não era sem tempo. Durante as últimas três semanas, sem falhar um dia, tudo o que eu apanhava era só mais uma versão de quartzito ou de calcite - explicou ele. - A nossa última descoberta foi a grafite.

 

- Grafite? Para que serve isso?

 

- Bem, entre outras coisas serve para fabricar lápis - disse MacAran -, e para estes a madeira não nos falta, o que vai ser uma ajuda quando os nossos instrumentos de escrita escassearem. Pode também ser usada para lubrificar maquinaria, permitindo assim poupar as nossas reservas de gorduras animais e vegetais para aplicações alimentares.

 

- É curioso, nunca pensamos nessas coisas - disse Judy. Os milhões de coisinhas que nos fazem falta e em que nunca nos damos ao trabalho de pensar...

 

- É assim mesmo - disse um dos membros da equipa de MacAran. - Sempre considerei os cosméticos como alguma coisa que não iria fazer grande falta numa situação de emergência. Mas a Márcia Cameron disse-me no outro dia que está a trabalhar num programa de alta prioridade para a produção de creme facial, e, quando lhe perguntei a razão, recordou-me que, num planeta com toda esta neve e gelo, era uma necessidade urgente para conservar a pele macia e impedir a formação de gretas e infecções.

 

Judy riu-se.

 

- Pois, e agora mesmo andamos desesperados a tentar encontrar um substituto para a fécula de milho, para o fabrico de pó para bebé. Os adultos podem usar talco, e isso existe em abundância, mas se os bebés o respirarem podem sofrer complicações pulmonares. Nenhum dos cereais conhecidos poderá ser moído com a necessária finura, e a farinha de castanha é boa para comer, mas não é bastante absorvente para a pele delicada dos rabos de bebé.

 

- Qual é o grau de urgência disso, Judy? - inquiriu MacAran.

 

Judy encolheu os ombros.

 

- Se estivéssemos na Terra, disporíamos de perto de dois meses e meio. Camilla e eu, e a moça de Alastair, Alanna, estamos mais ou menos empatadas; a série seguinte deverá surgir um mês depois. Mas aqui não há certezas, claro. - A seguir acrescentou, calmamente: - Prevemos que o Inverno irá chegar antes disso. Mas ias dizer-me o que vocês encontraram hoje.

 

- Terra de pisoeiro - disse MacAran -, ou algo tão parecido com isso que não consigo descobrir qualquer diferença. -
Perante o olhar inexpressivo de Judy, Rafe explicou-se melhor:

- É usada na produção de pano. Temos algumas reservas de fibra animal parecida com lã, fornecida pelos coelhos-cornudos, e estes são abundantes e podem ser criados na quinta, mas a terra de pisoeiro tornará o pano mais fácil de processar.

 

- Quem teria a ideia de pedir a um geólogo para descobrir qualquer coisa para produzir panos? - comentou Janice.

 

- Se pensarmos bem - disse Judy -, todas as ciências estão relacionadas entre si, mas na Terra estava tudo tão especializado que acabámos por esquecer-nos disso. - Bebeu o que restava do seu chá. - Vão regressar ao acampamento-base, Rafe?

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Não. Vamos embrenhar-nos nos bosques, indo possivelmente até às colinas onde estivemos daquela outra vez. Talvez existam cursos de água nascidos nas colinas mais distantes, e vamos ver o que descobrimos. É por isso que o Doutor Frazer vem connosco; ele quer reunir mais indícios do povo que encontrámos da outra vez, obter mais informações sobre o seu nível de cultura. Sabemos que constroem pontes entre as árvores; não tentámos escalá-las, pois eles são evidentemente mais leves do que nós e não desejamos quebrar os seus artefactos nem assustá-los.

 

Judy concordou.

 

- Quem me dera poder ir também - disse, pesarosa mas tenho ordens para, até ao parto, não me afastar do acampamento-base por mais de algumas horas. - MacAran viu no rosto dela uma expressão de profundo anseio e, com aquela sua nova faculdade para captar emoções, abraçou-a e disse-lhe com suavidade:

 

- Não te preocupes, Judy. Não vamos perturbar quem encontrarmos, quer seja o povo dos pequenínos que constroem as pontes quer... seja quem for. Se alguns dos seres daqui nos fossem hostis já o saberíamos. Não tencionamos perturbá-los. Uma das razões para a nossa incursão é assegurar-nos de que não iremos invadir inadvertidamente o seu espaço vital nem transtornar aquilo de que necessitem para a sua sobrevivência. Logo que soubermos onde eles estão fixados, saberemos onde nós não poderemos fixar-nos.

 

Ela sorriu.

 

- Obrigada, Rafe - disse com gratidão. - É bom saber isso. Se pensarmos dessa forma, acho que não irei precisar de me preocupar.

 

Pouco depois os dois grupos separaram-se, prosseguindo a equipa de ensaio de alimentos para o acampamento- base, enquanto o grupo de MacAran penetrava nas colinas arborizadas.

 

Por duas vezes nos dez dias seguintes encontraram ligeiros indícios da presença dos pequenos alienígenas peludos; de uma vez, sobre um curso de água na montanha, viram uma ponte construída com longas alças de juncos, cuidadosamente entrelaçadas e fixadas, com escadas de corda ligando-a à base das árvores. Sem lhes tocar, o Dr. Frazer examinou os juncos com que a ponte fora construída, dizendo que a necessidade de fibras, cordas e barbantes fortes talvez fosse superior ao que lhe parecia poder ser satisfeito pelas pequenas quantidades que tinham sido encontradas daquilo a que eles chamavam erva de corda. Percorridos quase cento e cinquenta quilómetros para o interior das colinas foram encontrar o que lhes parecia ser um arco de árvores plantadas num círculo perfeito, com uma série de escadas de corda conduzindo ao topo das árvores. Contudo o local parecia deserto, e uma plataforma que aparentemente fora construída para ligar as árvores, feita com algo semelhante a vime, parecia deteriorada, e podia ver-se o céu através do seu fundo.

 

Frazer olhou cobiçosamente para cima.

 

- Era capaz de dar cinco anos da minha vida para poder examinar aquilo de perto. Será que usam mobiliário? Será uma casa, ou um templo, ou sabe-se lá o quê? Mas não sou capaz de trepar por aquelas árvores, e as escadas de corda talvez nem suportassem o peso da Janice, quanto mais o meu. Se bem me
recordo, nenhum deles era mais corpulento do que uma criança de dez anos.

 

- Teremos muito tempo - disse MacAran. - Este sítio parece ter sido abandonado, e poderemos voltar aqui num destes dias, trazendo algumas escadas, e nessa altura poderá então examinar tudo o que lhe apetecer. Quanto a mim, acho que se trata de uma quinta.

 

- Uma quinta?

 

MacAran apontou. Nos troncos espaçados a intervalos regulares viam-se invulgares linhas rectas: o delicioso fungo cinzento que MacLeod tinha descoberto, antes de se ter sentido o primeiro dos Ventos, crescia aqui em fileiras cuidadosamente espaçadas, como se tivessem sido riscadas com uma regua.

 

- Díficilmente teriam crescido com tanta regularidade como aqui se vê - comentou MacAran -, se não tivessem sido plantados. Talvez eles voltem cá de tantos em tantos meses para fazerem as colheitas, e a plataforma lá em cima pode ser qualquer coisa: um abrigo, um celeiro para armazenagem, um acampamento provisório. Ou pode evidentemente ser uma quinta que eles tenham abandonado há anos.

 

- É interessante saber-se que aquilo pode ser cultivado disse Frazer, começando a tomar cuidadosas notas no seu livro de apontamentos acerca do tipo exacto de árvore em que o fungo crescia, o espaçamento e a altura das fileiras. - Olhem para aquilo! Parece ser um sistema simples de irrigação, para afastar a água de onde o fungo cresce, encaminhando-a directamente para as raízes da árvore!

 

Enquanto prosseguiam o caminho pelas colinas, com a localização da ”quinta” alienígena bem assinalada no mapa de janice, MacAran deu por si a pensar nos pequenos seres. Primitivos, sim, mas que outro tipo de sociedade seria talvez possível encontrar neste mundo? O seu nível de inteligência devia ser comparável ao de muitos homens, a avaliar pela sofisticação do seu equipamento.

O capitão teme um regresso à barbárie. Mas eu acho que não poderíamos regressar, mesmo se tentássemos. Em primeiro lugar, somos um grupo seleccionado, com metade dos seus elementos com um nível superior de educação, enquanto os restantes foram submetidos a um processo de selecção por se destinarem às Colónias. Dispomos dos conhecimentos adquiridos ao longo de milhões de anos de evolução e de algumas centenas mais de tecnologia forçada, imposta por um mundo poluído e excessivamente povoado. Talvez não consigamos transplantar a nossa cultura na sua totalidade, pois este planeta não sobreviveria a isso, e talvez fosse até um suicídio tentá-lo. Mas acho que Leicester não terá que se preocupar com a nossa regressão para um nível primitivo. Independentemente do que fizermos neste mundo, o resultado final, creio bem, não ficará na pior das hipóteses abaixo do que tínhamos na Terra, porque o espírito humano saberá dar o melhor uso àquilo que encontrar. Será diferente; talvez dentro de algumas gerações até ja não exista aqui qualquer semelhança com a cultura na Terra. Mas os seres humanos não podem ser menos do que humanos, e a inteligência não pode funcionar abaixo do seu próprio nível.

 

Estes pequenos alienígenas tinham-se desenvolvido de acordo com as necessidades deste mundo; um povo da floresta, coberto de pêlos (MacAran, arrepiando-se debaixo da chuva gelada de uma noite de Verão, desejou que também ele os tivesse) e vivendo em simbiose com as florestas. Contudo, na opinião de MacAran, as suas construções davam indicação de um gosto apurado e de grande capacidade de adaptação.

 

Como lhes tinha chamado Judy? Os irmãozinhos que não são sábios. E quanto aos outros alienígenas? Este planeta tinha evidentemente produzido duas raças sapientes, que terão de coexistir de algum modo. Isto era um bom sinal para a humanidade e para os outros. Mas o alienígena de Judy - era o único nome que MacAran tinha, e ainda agora sentia-se a duvidar da própria existência dos outros - devia ser bastante próximo de
humano para conceber um filho numa mulher da Terra, e essa ideia era estranhamente perturbadora.

 

No décimo quarto dia da viagem alcançaram as vertentes inferiores do grande glaciar a que Camilla dera o nome de O Muro em Redor do Mundo. Alcandorava-se acima deles encobrindo metade do céu, e MacAran soube que mesmo com este nível de oxigénio era impossível de escalar. Nada havia para além destas vertentes excepto gelo e rochas açoitadas pelos eternos ventos gelados, e nada ganhariam se prosseguissem viagem. Mas assim que o seu grupo virou as costas à enorme massa montanhosa a mente de MacAran rejeitou aquele impossível de escalar, pensando: não, nada é impossível. Não podemos escalá-la agora. Talvez nem durante o resto da minha vida, e certamente não nos próximos dez ou vinte anos. Mas não é próprio da natureza humana aceitar limitações como essa. Algum dia poderei regressar e escalá-la, ou então os meus filhos. Ou os filhos deles.

 

- Portanto não iremos mais longe nesta direcção - disse o Dr. Frazer. - Na próxima expedição será melhor seguir na direcção oposta. Isto foi só floresta e mais floresta.

 

- Bem, as florestas poderão ser-nos úteis - disse MacAran.

- Talvez na outra direcção haja um deserto. Ou um oceano. Ou até vales férteis e mesmo cidades. Só o tempo dirá.

 

Inspeccionou os mapas que tinham andado a fazer, observando com satisfação as partes já preenchidas, mas compreendendo que levariam uma vida inteira a completá-los. Naquela noite acamparam no sopé do glaciar, e MacAran acordou antes da alvorada, talvez despertado por ter deixado de cair a neve macia e espessa de todas as noites. Saiu da tenda e olhou para o céu escuro e para as estranhas estrelas, e para três das quatro luas que pairavam como berloques ornamentados com jóias sobre o alto cume da montanha, e em seguida os seus olhos e os seus pensamentos regressaram ao vale. A sua gente encontrava-se lá, e Camilla, grávida do filho dele. Muito ao longe, para leste, havia um ténue brilho onde o grande Sol vermelho iria nascer.

MacAran sentiu-se repentinamente tomado por um grande e indizível contentamento.

 

Nunca se sentira feliz na Terra. A Colónia teria sido melhor, mas mesmo lá ele teria sido forçado a adaptar-se a um mundo concebido por outros homens, nem todos do seu género. Aqui, poderia participar na concepção original das coisas e criar aquilo que desejava para si e para os filhos que viessem, e também para os filhos destes. Tragédia e catástrofe tinham-nos trazido para aqui, loucura e morte tinham-nos assolado, e mesmo assim sabia que era um dos afortunados. Tinha encontrado o seu lugar, e sentia-se bem.

 

Levaram o resto desse dia e o seguinte a retraçar os seus passos a partir do sopé do glaciar, através de um tempo acinzentado e soturno, com pesadas nuvens acumulando-se no céu, e MacAran, que tinha começado a desconfiar do tempo ameno neste planeta, sentia mesmo assim o já familiar ferrão de intranquilidade. Próximo do anoitecer do segundo dia a neve começou a cair, mais pesada e dura do que tudo o que ele já vira neste mundo. Mesmo com as suas roupas quentes os terrestres estavam gelados, e o seu sentido de orientação desapareceu rapidamente num mundo transformado numa loucura branca e turbilhonante sem cor, forma ou lugar. Não se atreviam a parar, mas cedo se tornou óbvio que não podiam prosseguir viagem por muito mais tempo através das profundas camadas de neve nas quais se debatiam, agarrados uns aos outros. Apenas conseguiam continuar a descer; as outras direcções já não tinham qualquer significado. Debaixo das árvores estavam um pouco melhor, mas o vento uivador vindo das alturas e o ranger e o agitar constante das ramadas, como vento açoitando o gigantesco cordame de algum veleiro imenso, enchiam o crepúsculo com vozes sinistras. Desejosos de aproveitar o abrigo das árvores tentaram armar a tenda, mas as rajadas fizeram-na agitar-se loucamente e por duas vezes soltou-se-lhes das mãos, obrigando-os a persegui-la através da neve até ficar presa em volta de uma árvore, podendo eles finalmente reavê-la.
Mas a tenda revelou-se inútil como abrigo, e eles sentiam-se cada vez mais gelados; os casacos conservavam-nos secos, mas de nada serviam para combater o frio.

 

Enquanto se mantinham agarrados uns aos outros, recolhidos atrás de uma árvore mais grossa, Frazer disse entre dentes que se entrechocavam:

 

- Se é assim no Verão, que raio de tempestades iremos ter no Inverno?

 

- Estou convencido - replicou MacAran, sinistramente

 

de que quando chegar o Inverno será melhor nenhum de nós pôr um pé fora do acampamento-base. - Recordou-se do temporal a seguir ao primeiro dos Ventos, quando tinha andado à procura de Camilla através do ligeiro nevão que nessa altura lhe parecera uma verdadeira tempestade de neve e vento. Como ele desconhecia então este mundo! Sentiu-se tomado por um medo pungente e uma sensação de mágoa. Camilla. Ela está em segurança no acampamento, mas conseguiremos nós voltar para lá, alguns de nós? Imaginou com uma dolorosa pontada de autocomiseração que nunca iria chegar a ver o rosto do seu filho, e a seguir repeliu zangado tal pensamento. Eles não precisavam ainda de desistir e de se deixarem morrer, mas tinham de obter refúgio em qualquer lugar. De outro modo não sobreviveriam àquela noite. A tenda não os protegia mais do que um pedaço de papel, mas tinha de haver alguma solução.

 

Pensa! Estavas ainda agora a gabar-te de que fazias parte dum grupo selecto e inteligente. Usa a inteligência, ou bem poderias ser um colono no mato australiano.

 

Antes fosses. A sobrevivência é uma coisa em que eles são peritos, enquanto tu foste sempre mimado durante toda a vida. Sobrevive, raios!

 

Segurou Janice por um braço, o Dr. Frazer por outro; puxou também para si o jovem Domenick, o rapaz da Comuna que andava a estudar Geologia para trabalhar na Colónia. Reuniu-os todos apertados contra si, e falou-lhes por cima do uivar da tempestade.
- Pode alguém ver onde as árvores estão mais juntas? Como não será provável haver aqui alguma caverna ou outro abrigo, temos de servir-nos o melhor que podemos da vegetação rasteira, ou de qualquer coisa que nos proteja do vento e nos mantenha secos.

 

Janice disse, numa voz quase inaudível:

 

- É difícil ver, mas tive a impressão de que há qualquer coisa escura naquela direcção. Se não é algo sólido, então as árvores devem estar tão juntas que não consigo ver pelo meio delas. É isso que procura?

 

O próprio MacAran tinha tido essa mesma impressão; agora que recebia confirmação, decidiu confiar. Da outra vez ele fora guiado directamente até junto de Camilla.

 

Psíquico? Talvez. O que tinha ele a perder?

 

- Dêem as mãos uns aos outros - sugeriu, mais por gestos do que por palavras. - Se nos separarmos, nunca conseguiremos reencontrar-nos. - Agarrando-se mutuamente, começaram a avançar aos tropeços na direcção do lugar que era apenas uma escuridão mais escura em contraste com as árvores.

 

Sentiu o Dr. Frazer apertar-lhe o braço com mais força, aproximando o rosto do de MacAran e gritando:

 

- Talvez esteja a endoidecer, mas pareceu-me ver uma luz! MacAran tinha pensado que era alguma ilusão latente o que vira a rodopiar diante dos seus olhos batidos pelo vento. O que imaginou ter visto a seguir era ainda mais improvável: a figura de um homem? Alto e reluzindo palidamente e totalmente nu, mesmo em plena tempestade... não, já desaparecera, tinha sido apenas uma visão, mas parecera-lhe que a criatura lhes fazia sinal para se aproximarem... e avançaram naquela direcção. Janice balbuciou:

 

- Também o viram?

- Penso que vi.

 

Mais tarde, encontrando-se já abrigados pelas árvores fortemente entrelaçadas, compararam impressões. Todos tinham visto
coisas diferentes. O Dr. Frazer vira apenas a luz. MacAran tinha visto um homem sem roupas chamando-os com um aceno. Janice vira apenas um rosto cercado por uma estranha luz, como se aquele rosto - segundo ela disse - estivesse na verdade dentro da sua cabeça, desaparecendo quando semicerrou os olhos tentando ver melhor; e para Domenick tinha sido um vulto, alto e reluzente ”como um anjo”, disse ele, ”ou como uma mulher... uma mulher com longos cabelos lustrosos”. Mas, correndo aos tropeços atrás da visão, tinham alcançado um grupo de árvores de tal forma desenvolvidas que mal conseguiam passar por entre elas; foi preciso MacAran deixar-se cair no chão e passar serpenteando através do matagal, arrastando os outros consigo.

 

No interior do maciço formado pelo desenvolvimento das árvores a neve era apenas um ligeiro borrifo, e o vento sibilante não conseguia alcançá-los. Deixaram-se ficar num magote, envoltos em cobertores retirados das mochilas e compartilhando o calor corporal, mordiscando as suas frias rações. Mais tarde, MacAran acendeu uma luz, e viu, contra o tronco da árvore, uma série de pedaços de madeira cuidadosamente fixados ao tronco. Uma escada, convidando-os a subirem à árvore...

 

Mesmo antes de iniciarem a escalada MacAran pensou que esta não era uma das casas dos pequenos seres peludos. Os degraus encontravam-se muito espaçados, dificultando até a subida, enquanto Janice, por ser de baixa estatura, teria de ser puxada para cima. O Dr. Frazer pôs algumas objecções, mas MacAran nunca hesitou.

 

- Se cada um de nós viu uma coisa diferente - disse ele então algo nos conduziu até aqui. Alguma coisa entrou em contacto directo com as nossas mentes. Foi como se tivéssemos sido convidados. Se a criatura não tinha roupas, como dois de nós vimos, então o mau tempo não os afecta, sejam eles quem forem, mas sabem que estamos em perigo por causa do temporal. Sugiro que aceitemos o convite, com o respeito que é devido.

 

Ultrapassaram com dificuldade um alçapão pouco firme até alcançarem uma plataforma, vendo-se então no interior de uma casa de madeira. MacAran ia acender novamente a sua luz, mas verificou que esta era desnecessária, pois havia uma débil iluminação dentro da casa, proveniente de algum material fosforescente nas paredes. Lá fora o vento uivava e as ramadas das grandes árvores rangiam e oscilavam, pelo que o macio pavimento da habitação tinha um ligeiro movimento, não desagradável mas desconcertante. Havia apenas uma divisão ampla; o chão estava forrado com um material macio e esponjoso, como se algum musgo ou relva tivesse ali crescido espontaneamente. Os viajantes, exaustos e enregelados, estenderam-se no chão, repousando naquele abrigo comparativamente confortável e seco, e por fim adormeceram.

 

Antes de cair no sono, pareceu a MacAran que ouvia na distância um som suave mas nítido, como se alguém estivesse a cantar em pleno temporal. Cantar? Nada poderia resistir lá fora, com esta tempestade! Todavia a impressão perdurou e, já a adormecer, palavras e imagens persistiam na sua mente.

 

Lá em baixo nas colinas, perdida e enlouquecida após a primeira exposição ao Vento Fantasma, regressando à sanidade mental para encontrar a tenda cuidadosamente armada e as mochilas e o equipamento científico bem arrumados lá dentro, Camilla pensara que ele tinha feito tudo. E ele tinha pensado que ela tinha feito tudo.

 

Alguém tem andado a observar-nos. A proteger-nos. Judy dizia a verdade.

 

Por um instante um rosto calmo e belo, nem de homem nem de mulher, pairou-lhe na mente. ”Sim, sabemos que estão aqui. Não vos queremos mal, mas os nossos caminhos são divergentes. Contudo iremos ajudar-vos no que pudermos, se bem que só possamos contactar-vos com dificuldade, através das portas fechadas das vossas mentes. É melhor que não nos aproximemos demasiado; mas durmam hoje em segurança e depois partam em paz...”

 

MacAran tinha visto mentalmente uma luz em volta daquelas feições de grande beleza e dos olhos cor de prata, mas nunca chegou a saber se teria realmente visto os olhos e o rosto fluminado do alíenígena ou se a sua imaginação tinha apenas formado uma imagem construída com os seus sonhos infantis a respeito de anjos, de fadas, de santos com halo. E, ao som do longínquo cantar e do ruído embalador do vento, acabou por adormecer.

- E foi tudo o que se passou. ficámos lá dentro durante cerca de trinta e seis horas, até que parou de nevar e o vento amainou, e depois pusemo-nos de novo a caminho. Nunca chegámos a saber quem moraria ali; acho que permaneceram cuidadosamente escondidos até nos virmos embora. Teria sido Para lá que ele te levou, Judy?

 

- Não, não foi tão longe. Nem por sombras. E não foi para nenhuma casa do seu próprio povo. Foi, segundo me parece, para uma das cidades dos pequeninos, dos homens das estradas nas árvores, como ele lhes chamava. Mas não consegui encontrar de novo o local, nem mesmo iria desejar - respondeu ela.

 

- Mas eles demonstram ter boa vontade em relação a nós, disso tenho a certeza - disse MacAran. - Não terá sido o mesmo que conheceste?

 

- Como poderia eu saber? Mas pertencem evidentemente a uma raça telepática; estou certa de que aquilo que um deles sabe todos sabê-lo-ão, pelo menos entre os seus íntimos, a família... se é que têm família.

 

- Talvez um dia saibam que não pretendemos fazer-lhes mal

- comentou MacAran.

 

Judy mostrou um sorriso débil e disse:

 

- Devem certamente saber que tu... e eu... não queremos fazer-lhes mal; mas há alguns de nós que eles não conhecem, e tenho a sensação de que o tempo não é tão importante para eles como é para nós. Acho que isso até não é estranho, a não ser para nós, europeus do Ocidente. Mesmo na Terra os orientais frequentemente faziam planos e pensavam em termos de gerações, e não de meses ou mesmo de anos. Talvez ele pense que daqui a alguns séculos será altura de nos conhecer..

 

MacAran riu-se.

 

- Bem, nós não vamos a parte nenhuma. Decerto haverá tempo de sobra. O Doutor Frazer está feliz da vida, pois tem uma quantidade suficiente de notas antropológicas para lhe ocupar as horas livres durante os próximos três anos. Deve ter anotado tudo o que viu na casa; só espero que eles não se tenham ofendido por Frazer ter observado tudo com tanta atenção. E, evidentemente, também tomou nota de tudo o que é utilizado como alimento; se nós pertencemos mais ou menos à mesma espécie, tudo o que eles comem poderá também ser adequado para nós

- acrescentou MacAran. - Não tocámos nas provisões dele, claro, mas Frazer anotou tudo o que ele tinha. Digo ele por conveniência, pois Domenick está convencido de que foi uma mulher que nos guiou até lá. Além disso, a única peça de mobiliário que lá estava - mobiliário principal - parecia ser um tear, com uma trama instalada nele. Havia casulos de uma espécie de fibra vegetal - parecia a alfavaca-do-rio que cresce na Terra postos a demolhar, evidentemente sendo preparados para irem à fiadeira; no regresso encontrámos alguns desses casulos e entregámo-los ao MacLeod na quinta, pois talvez se possa fazer um bom pano com eles.

 

Ao levantar-se para sair, Judy comentou:

 

- Como devem calcular, ainda há muita gente no acampamento que nem sequer acredita na existência de alienígenas neste planeta.

 

MacAran olhou-a nos olhos tristes e disse-lhe, com muita suavidade:

 

- Isso será importante, Judy? Nós acreditamos. Talvez tenhamos de aguardar, começando também nós a pensar em termos de gerações. Talvez os nossos filhos já acreditem todos.

No mundo do Sol vermelho o Verão foi decorrendo. De dia para dia o Sol subia um pouco mais alto no céu; atingiu um solstício, e depois começou a descair aos poucos. Camilla, que impusera a si mesma a tarefa de compor mapas do calendário, notou que as modificações diárias no Sol e no céu indicavam que os dias, alongando-se nos seus quatro primeiros meses neste mundo, começavam a encurtar-se, à medida que o inimaginável Inverno se ia aproximando. O computador, analisando toda a informação de que eles dispunham, tinha previsto dias de escuridão, temperaturas médias na escala dos zero graus centígrados, e tempestades glaciais praticamente constantes. Contudo, Camilla dizia a si mesma que isto era apenas uma projecção matemática das probabilidades, que nada tinha a ver com a realidade.

 

Havia ocasiões, durante aquele segundo terço da sua gravidez, em que chegava a duvidar de si mesma. Nunca até então tinha ousado imaginar que as severas disciplinas da Matemática e da Ciência, que constituíam o seu mundo desde a infância, poderiam ter alguma lacuna, ou que ela pudesse vir a encontrar-se perante algum problema, excepto aqueles estritamente pessoais, que estas disciplinas não conseguissem solucionar. Que ela soubesse, as antigas disciplinas continuavam válidas para os seus colegas da tripulação. Mesmo os crescentes indícios de ser capaz de ler o pensamento dos outros, de adivinhar estranhamente o futuro e fazer previsões inquietantemente precisas, baseada apenas em relampejos daquilo a que ela chamava ”pressentimentos ”, mesmo isso era acolhido com risos, e menosprezado. Contudo, ela sabia que alguns dos outros também experimentavam fenómenos bastante parecidos.

 

Foi Harry Leicester - que ela continuava intimamente a imaginar como ”capitão Leicester” - quem conseguiu explicar-lho com a maior claridade; quando estava com ele Camilla
podia compreendê-lo quase com a mesma certeza que ele demonstrava.

 

- Agarra-te àquilo que sabes, Camilla. Não podes fazer mais do que isso; e o que se chama integridade intelectual. Se uma coisa é impossível, é mesmo impossível.

 

- E se o impossível acontece, como no caso da percepção extra-sensorial?

 

- Nesse caso - disse ele, empenhadamente -, é porque não soubeste interpretar os teus factos, ou porque estás a fazer suposições baseadas em indícios subliminares. Não te deixes levar pelo teu desejo de acreditares. Espera pelos factos.

 

Sem perder a calma, ela perguntou:

- E o que será que considera factos? Ele abanou a cabeça.

 

- Com toda a franqueza, não existe nada que eu possa considerar factos. Se acontecesse comigo algo do género, limitar-me-ia a dar-me por insano e a considerar consequentemente inválida a experiência dos meus sentidos.

 

Nesse caso, pensou ela, o que acontece à decisão de não se acreditar? E como se poderá ter integridade intelectual se se deita para o lixo um conjunto completo de factos, considerados impossíveis antes de serem ensaiados? Ela gostava muito do capitão, e os velhos hábitos perduravam. Algum dia, possivelmente, haveria uma confrontação final, mas ela tinha a esperança, temperada por um certo desespero, de que isso não aconteceria num futuro próximo.

 

A chuva nocturna continuou a cair, e não se registaram novos ventos de loucura, mas as trágicas estatísticas que Ewen Ross previra foram confirmadas com uma terrível inevitabilidade. Das cento e catorze mulheres, cerca de oitenta ou noventa deveriam ter ficado grávidas num prazo de cinco meses; contudo, isso apenas aconteceu a quarenta e oito delas, e, de entre estas, vinte e duas abortaram espontaneamente em menos de dois meses. Camilla sabia que seria uma das afortunadas, e era, com efeito; a sua gravidez prosseguia de forma tão normal que por vezes a esquecia por completo. Também Judy teve uma gravidez isenta de problemas; mas a rapariga da Comuna das Novas Hébridas chamada Alanna entrou em trabalho de parto no seu sexto mês e deu à luz gémeos prematuros que faleceram segundos após o parto. Camilla tinha poucos contactos com as moças da Comuna - a maioria das quais estava a trabalhar em Nova Skye, excepto quanto às grávidas que se encontravam hospitalizadas -, mas quando teve conhecimento do que acontecera sentiu-se perpassada por algo que era como uma dor, e naquela noite foi procurar MacAran e permaneceu com ele durante muito tempo, abraçando-o numa agonia sem palavras que ela não conseguia explicar nem mesmo perceber. Finalmente, perguntou-lhe:

 

- Rafe, conheces uma rapariga chamada Fiona?

 

- Sim, conheço mais ou menos; uma bonita ruiva em Nova Skye. Mas não precisas de ter ciúmes, querida. Aliás, parece-me que ela agora vive com o Lewis MacLeod. Porquê?

 

- Conheces uma quantidade de gente em Nova Skye, não conheces?

 

- Sim, tenho passado lá bastante tempo ultimamente, porquê? Pensava que os tinhas por selvagens - respondeu Rafe, um tanto na defensiva -, mas são pessoas simpáticas, e gosto do seu modo de vida. Não estou a pedir-te que te juntes a eles. Sei que não o farias, e eles não me deixam inscrever sem uma companheira; tentam conservar equilibrados os sexos, apesar de não acreditarem no casamento. Mas tratam-me como se fosse um deles.

 

Ela respondeu-lhe com uma gentileza invulgar:

 

- Ainda bem que assim é, e podes crer que não tenho ciúmes. Mas gostava de conversar com a Fiona, e não sei explicar a razão. Poderias levar-me a uma das reuniões deles?

 

- Não precisas de te explicares - respondeu ele. - Vão fazer um concerto... nada de formal, mas é isso o que é... esta mesma noite, e está aberto a toda a gente. Podias até participar, se estivesses na disposição de cantar. É o que eu faço, uma vez por outra. Tu conheces algumas antigas canções espanholas, não conheces? Trata-se de uma espécie de projecto informal para preservar os trechos de música que temos na memória.

 

Numa outra ocasião terei muito gosto, mas agora sinto-me demasiado cansada para me por a cantarolar - respondeu ela. - Talvez depois de o bebé nascer. - Camilla apertou com força a mão dele, e MacAran sentiu uma ânsia de ciúme. Ela sabe que a Fiona anda grávida com o filho do capitão, e mesmo assim deseja conversar com ela. É por isso que não sente ciumes; não Poderia ralar-se menos...

 

Mas eu tenho ciúmes. Desejarei que ela se deite comigo? Ela ama-me, ela vai ter o meu filho, que mais poderei eu querer? Ouviram os primeiros acordes musicais antes de chegarem ao pavilhão comunitário na quinta de Nova Skye, e Camilla olhou para MacAran com uma expressão de desânimo.

 

- Santo Deus! Que barulheira é aquela?

 

- Esquecia-me de que não és escocesa, querida. Não gostas de gaitas-de-foles? O Moray e o Domenick e alguns outros são bons intérpretes, mas não precisamos de entrar antes de acabarem, a não ser que queiras. - Riu-se com gosto.

 

- Parece pior do que uma banshee à solta - comentou Camilla com firmeza. - A música não irá ser toda assim, espero?

- Não, há harpas, guitarras, alaúdes; aquilo que preferires,

 

eles também têm. E estão a fabricar mais. - Apertou-lhe os dedos quando as gaitas-de-foles se calaram, e encaminharam-se para o pavilhão, - É uma tradição, sabes. As gaitas-de-foles, e os trajes das Terras Altas, os saiotes e as espadas. - Camilla surpreendeu-se ao sentir um breve assomo quase de inveja ao entrarem no pavilhão, iluminado com velas e archotes: as raparigas nas suas coloridas saias e mantas de fazenda axadrezada, os homens resplandecentes nos saiotes, espadas, mantas afiveladas pendendo dos ombros. Quase todos tinham cabelo ruivo. Uma tradição colorida. Transmitem-na de pais para filhos, enquanto as nossas tradições morrem. Ora, deixa-te disso: quais tradições? A parada anual da Academia do Espaço? As deles, ao menos, adaptam-se a este mundo estranho.

 

Dois homens, Moray e o alto e ruivo Alastair, estavam a interpretar uma dança das espadas, saltitando agilmente sobre as reluzentes lâminas ao som do gaiteiro. Por um instante Camilla teve uma estranha visão de espadas reluzentes, não usadas em jogos mas com mortífera seriedade, mas desvaneceu-se, e ela imitou os outros espectadores que aplaudiam os dançarinos.

 

Houve outras danças e cantares, quase todos desconhecidos de Camilla, com uma estranha melodia e um ritmo que a fazia pensar no mar. E o mar também estava reflectido em multas das palavras cantadas. O pavilhão estava semiescuro, apesar dos archotes, e Camilla não via em parte nenhuma a rapariga de cabelos acobreados que ela procurava, e passado algum tempo esqueceu a missão urgente que a trouxera aqui, ao escutar as lamentosas canções sobre um mundo desaparecido de ilhas e mares:

 

Oh Mhari! Oh Mahri minha moça

 

Os teus olhos de azul do mar com bruxaria Atraem-me a ti, ao largo da costa bravia de Mull E o meu coração está enfermo, por amor a ti...

 

O braço de MacAran apertou-a contra si e ela deixou-se encostar a ele, dizendo num murmúrio:

 

- Como parece estranho, manter vivas tantas cantigas do mar num mundo sem mares...

 

- Dá-nos algum tempo - respondeu ele. - Iremos encontrar alguns mares para podermos cantá-los... - e calou-se, porque a canção tinha chegado ao fim, e agora alguém chamava: - Fiona! Fiona! Canta para nós! - Outros repetiram o chamado, e passados uns instantes a esbelta moça de cabelos vermelhos, usando uma ampla saia verde e azul que realçava, quase pavoneava, a sua gravidez, surgiu atravessando a multidão. Com uma voz doce e leve disse:

 

- Não posso cantar muito, ando agora com pouco fôlego. O que gostariam de ouvir?

 

Alguém disse qualquer coisa em gaélico; ela sorriu e abanou a cabeça, e a seguir pegou numa pequena harpa que outra rapariga lhe passava e sentou-se num banco de madeira. Os seus dedos agitaram-se por momentos em suaves arpejos, e depois começou a cantar: vento que sopra das ilhas traz canções das nossas mágoas grito das gaivotas e o suspiro dos ribeiros;

 

Em todos os meus sonhos escuto o ruído das águas Que escorrem das colinas na terra dos nossos anseios.

 

A sua voz era baixa e suave, e ao escutá-la Camilla captou uma imagem de verdes colinas, íntimos contornos da infância, recordações de uma Terra que poucos poderiam lembrar, mantidas vivas através de canções como esta; memórias de uma época em que as colinas da Terra eram verdes sob um Sol dourado e um céu azul-marinho...

 

Sopra para oeste, oh vento do mar, e traz-nos algum murmúrio À deriva desde a nossa pátria de honra e verdade;

 

Acordada ou dormindo não paro de ouvir as aguas Que escorrem das colinas na terra da nossa juventude.

 

Camilla sentiu a garganta contrair-se num meio soluço. A terra perdida, os esquecidos... pela primeira vez esforçou-se para abrir os olhos da mente à sensação consciente que sentia desde o primeiro vento. Fixou o olhar e o pensamento, quase com ferocidade, com um ímpeto quase de amor apaixonado, na rapariga que cantava; e depois viu, e descontraiu-se.

 

Ela não vai morrer. O bebé dele viverá.

Eu não poderia tê-lo trazido dentro de mim para depois ele morrer como se nunca tivesse...

 

O que se passa comigo? Ele tem apenas mais uns anos do que o Moray, e não há razão para que não viva por mais tempo do que muitos de nós... mas a angústia continuava presente, e o intenso alívio, enquanto a canção de Fiona subia de tom ao aproximar-se do fim;

 

Cantamos nesta terra longínqua as canções do nosso exílio. As gaitas-de-foles e as harpas são harmoniosas como dantes; Mas nunca a música correrá tão doce como as águas

 

Que escorrem naquela terra que não voltaremos a ver.

 

Camilla descobriu que estava a chorar; mas não era só ela. À sua volta, no pavilhão em penumbra, os exilados choravam o seu mundo perdido; incapaz de aguentar mais, Camilla levantou-se e correu cegamente para a porta, empurrando as pessoas que, quando viam que ela estava grávida, lhe franqueavam cortesmente a passagem. MacAran seguiu-a, mas ela nem reparou; apenas quando chegaram cá fora Camilla voltou-se e ficou imóvel, apoiada nele, soluçando descontrolada. Mas, quando por fim começou a ouvir as perguntas ansiosas de MacAran, esquivou-se a dar-lhes respostas. Não sabia como responder,

 

Rafe tentou confortá-la, mas percebeu a inquietação dela, e ao princípio não conhecia a razão, até que abruptamente compreendeu.

 

O céu nocturno estava limpo, sem nuvens nem sinais de chuva. Duas grandes luas, uma verde-lima e a outra azul-pavão, estavam suspensas no céu violeta. E os ventos estavam a aumentar de intensidade.

 

No pavilhão da Comuna das Novas Hébridas a música passou imperceptivelmente para uma quase estática dança de grupo, e uma crescente sensação de companheirismo, de amor e
comunhão unia os presentes com laços de proximidade que nunca seriam esquecidos ou quebrados. Mais tarde, quando os archotes começavam a fraquejar, dois homens levantaram-se de um salto, enfrentando-se numa explosão de raiva violenta, soltando as espadas da sua esplendorosa vestimenta das Terras Altas e cruzando-as num ressoar de metais. Moray, Alastair e Lewís MacLeod, como dedos de uma só mão, atiraram-se aos dois homens em ira e derrubaram-nos, sacando as espadas das suas mãos, e sentaram-se em cima deles - literalmente - até que o fulgor de cólera lupina se esbateu nos dois. Depois, libertando-os cautelosamente, deitaram-lhes uísque pelas gargantas abaixo (os escoceses conseguirão sempre fabricar uísque nas profundezas do Universo, pensou Moray, mesmo tendo de passar sem qualquer outra coisa) até que ambos se abraçaram já embriagados, jurando amizade eterna, e o festival de amor prosseguiu até que o Sol nasceu num céu sem nuvens.

 

Judy acordou, sentindo o distúrbio do vento como um hálito de frio através dos seus ossos, experimentando no cérebro e nos ossos a estranheza do despertar. Apalpou-se rapidamente, como se procurasse tranquilizar-se, e sentiu a criança mover-se com uma estranha força. Sim. Tudo está bem com ela, mas também sente os ventos da loucura.

 

Estava escuro no quarto onde se encontrava, e escutou os sons de um cântico distante. Está a começar, mas desta vez... desta vez saberão o que é, mas poderão enfrentá-lo sem receio nem estranheza? Ela sentia-se perfeitamente calma, um silêncio no centro do seu ser. Sem surpresa, sabia exactamente o que provocara a primeira loucura, e sabia igualmente que, pelo menos para ela, a loucura não regressaria. Na época dos ventos existiria para sempre uma estranheza, e também uma maior abertura e consciencialização; os poderes latentes há tanto tempo adormecidos ficariam sempre mais fortes sob a influência do potente elemento psicadélico transportado pelo vento. Mas agora ela sabia como lhe resistir, e haveria apenas a pequena loucura que alivia a mente e liberta da tensão o cérebro irrequieto, deixando-o preparado para enfrentar novas tensões noutras alturas. Judy deixou-se levar agora pela pequena loucura, procurando com os seus pensamentos um toque semi-sentido que era como uma recordação. Parecia-lhe estar a rodopiar, flutuando nos ventos que lhe impeliam os pensamentos; finalmente estes estabeleceram contacto com o alienígena (mesmo agora não sabia o que chamar-lhe, e nem precisava de saber, pois conheciam-se um ao outro do mesmo modo como a mãe conhece o rosto do filho ou como um gémeo reconhece o outro, e estariam para sempre juntos mesmo se os seus olhos nunca mais voltassem a contemplar o rosto dele) numa junção breve e quase extática. Apesar de o toque ter sido breve, ela não desejava nem precisava de mais.

 

Tirou para fora da roupa a jóia azul, a prenda do amor dele. Pareceu-lhe que a jóia rebrilhava na penumbra com o seu próprio fogo interior, tal como tinha rebrilhado na mão dele ao colocá-la na sua, na floresta, copiando a estranha incandescência azul-prata dos olhos dele. Tenta dominar a jóia. Judy fixou nela os seus olhos e pensamentos, esforçando-se por saber, com aquela curiosa visão interna, o que a jóia significaria.

 

Estava escuro no quarto, porque à medida que a noite avançava as luas escondiam-se por detrás da janela entaipada, e a luz das estrelas era débil. Com a jóia ainda fechada na mão, Judy pegou numa vela de resina, pois o sono andava longe. Procurou o acendedor às apalpadelas mas não o segurou bem e ouviu cair no chão a pequena estilha com ponta química. Soltou uma leve imprecação, irritada, pois agora teria de sair da cama para procurá-lo. Olhou enraivecida para a vela de resina, vendo-a por acaso através da jóia que conservava na mão.

 

Acende-te, maldita.

 

A vela de resina, no seu suporte esculpido, criou subitamente uma chama brilhante, sem que tivesse sido tocada. Judy, sentindo o coração a bater desordenadamente, extinguiu de pronto a chama e afastou a mão; depois centrou de novo todos os seus pensamentos na jóia e na chama e viu entre os seus dedos a luz flamejar de novo.

 

Então era isto que eles estavam...

 

Isto pode ser perigoso. Vou escondê-lo até chegar a ocasião adequada. Naquele momento ela soube que tinha feito uma descoberta que poderia, algum dia, preencher a lacuna entre os conhecimentos transplantados da Terra e os antigos conhecimentos deste estranho mundo, mas também soube que não iria mencioná-la a ninguém durante muito tempo, se alguma vez o fizesse. Quando chegar a altura e as mentes deles estiverem fortes e preparadas, então... então talvez possam tomar conhecimento dela. Se lhos contasse agora, metade deles não iriam acreditar, e os restantes começariam a planear como poderiam usá-la. Tão cedo, não.

 

Desde a destruição da nave estelar e a sua aceitação da certeza de estarem abandonados à sua sorte neste mundo (Uma vida inteira? Para sempre? Para sempre para mim, pelo menos) o capitão Leicester ficara com uma única esperança, um objectivo, capaz de justificar a sua existência e de dar algum alento ao seu desespero. Moray bem poderia estruturar uma sociedade que os atasse ao solo deste mundo, fossando como suínos para obterem o seu pão quotidiano. Isso era lá com ele; talvez fosse até necessário por agora, para estabelecer uma sociedade estável susceptível de assegurar a sobrevivência. Mas a sobrevivência não interessaria se fosse apenas sobrevivência, e agora percebia que poderia ser mais do que isso, algo que um dia poderia levar os filhos deles de regresso às estrelas. Ele dispunha de um computador, e dispunha também de uma equipa tecnicamente treinada; e dispunha ainda de uma vida inteira de conhecimentos. Ao longo dos últimos três meses tinha sistematicamente removido da nave, peça a peça, todos os pedaços de equipamento, todos os pedaços da sua própria experiência adquirida ao longo de uma vida inteira, e introduzira no computador, com o auxílio de Camilla e de três outros técnicos, todos os seus conhecimentos, todo o conteúdo dos livros técnicos que tinham sobrevivido à queda, abrangendo tudo da astronomia à zoologia, da medicina à engenharia electrónica; trouxera para junto de si todos os membros sobreviventes da tripulação, um por um, ajudando-os a transferirem para o computador tudo aquilo que sabiam. Nada era demasiado simples para ser alimentado ao computador, desde a construção e manutenção de sintetizadores de alimentos até ao fabrico e reparação de fechos de correr para os uniformes.

 

Triunfalmente, pensou: temos aqui uma tecnologia completa, um património inteiro, preservado para os nossos descendentes. Não será durante o resto da minha vida, nem da de Moray, ou talvez nem na dos meus filhos. Mas quando forem ultrapassados os pequenos desafios da sobrevivência do dia-a-dia os conhecimentos estarão ali, o património. Estará também tudo ali para o imediato, tanto o conhecimento para o hospital poder curar um tumor cerebral como o necessário para vidrar um tacho para uso na cozinha, e quando se depararem a Moray problemas na sua sociedade estruturada, como inevitavelmente acontecerá, as soluções estarão aqui. A história completa do mundo de onde viemos; poderemos pôr de lado todos os becos sem saída da sociedade, dirigindo-nos directamente para uma tecnologia que um dia nos conduzirá de regresso às estrelas, para nos reunirmos à vasta comunidade do homem civilizado, não nos limitando a arrastar-nos num único planeta, mas difundindo-nos como uma vasta árvore a ramificar-se, de estrela a estrela, de universo a universo.

 

Poderemos morrer todos, mas aquilo que nos fez humanos sobreviverá, intacto, e algum dia poderemos regressar. Algum dia poderemos reclamá-lo.

 

Sob a cúpula que se tinha transformado na sua vida inteira, Leicester reclinou-se escutando o som distante das canções no pavilhão de Nova Skye. Ocorreu-lhe vagamente que deveria levantar-se e vestir-se, ir ter com eles. Também eles têm algo a preservar.
Pensou na encantadora rapariga de cabelo acobreado que conhecera tão apressadamente e que, de forma prodigiosa, estava grávida do seu filho.

 

Ela teria prazer em vê-lo, e sem dúvida ele tinha alguma responsabilidade no caso, se bem que tivesse concebido a criança quase sem saber, enlouquecido como um animal com o cio. Este pensamento fê-lo vacilar. Contudo ela tinha-se mostrado afável e compreensiva, e ele sentia que lhe devia algo, alguma amabilidade por tê-la usado e logo esquecido. Como era o seu estranho e encantador nome próprio? Fiona? Gaélico, certamente. Levantou-se da cama, Procurando rapidamente alguma roupa, e depois hesitou, parado à porta da cúpula a admirar o céu luminoso e limpo. As luas já se tinham ocultado e a falsa alvorada começava a mostrar uma incandescência lá para leste, uma luz de arco-íris como uma aurora, a qual possivelmente estaria a ser reflectida pelo longínquo glaciar que ele nunca tinha visto, que nunca veria e que não tinha qualquer interesse em ver.

 

Cheirou o vento e, aspirando-o para os pulmões, sentiu uma estranha e irritante suspeita. Da última vez tinham-lhe destruído a nave; desta vez destruí-lo-iam e à sua obra. Bateu com a porta da cúpula e trancou-a, e aplicou-lhe o cadeado que obrigara Moray a ceder-lhe. Desta vez ninguém iria aproximar-se do computador, nem mesmo aqueles em quem mais confiava. Nem mesmo Patrick. Nem sequer Camilla.

 

- Recosta-te e descansa, querida. Olha, as luas já se ocultaram, e depressa chegará a manhã - murmurou Rafe. - O tempo está quente, debaixo da estrelas e ao vento. Porque choras, Camilla?

 

Ela sorriu na penumbra.

 

- Não estou a chorar - respondeu com voz suave -, estou a pensar que algum dia descobriremos um oceano, com ilhas, para as canções que hoje escutámos, e que mais tarde os nossos filhos também as cantarão lá.

- Já começaste a amar este mundo como eu amo, Camilla?

- A amar? Não sei - respondeu ela tranquilamente. - É o nosso mundo, e por isso não somos obrigados a amá-lo. Só precisamos de aprender a viver com ele, de algum modo. Não de acordo com as nossas condições, mas com as dele.

 

Por todo o Acampamento-Base as mentes dos seres da Terra entraram em rotas de loucura, de alegrias ou pavores inexplicados; as mulheres choravam sem saber porquê, ou riam-se num inesperado júbilo que não conseguiam explicar. O padre Valentine, adormecido no seu abrigo isolado, acordou e desceu silenciosamente a montanha, e, sem que dessem por ele, penetrou no pavilhão da Nova Skye, misturando-se com os seus ocupantes, numa completa aceitação. Quando os ventos amainaram regressou à solidão, sabendo que não voltaria a sentir-se totalmente só.

 

Heather e Ewen, compartilhando o turno da noite no hospital, viram o Sol vermelho elevar-se no céu sem nuvens. De braços enlaçados, foram arrancados da sua silenciosa vigilância extática do céu (um milhar de refulgências de rubi, o brilhante progresso da luz expulsando a escuridão) por um grito vindo de trás deles; um lamento estrídulo e gemebundo repleto de sofrimento e terror.

 

Saltando do seu leito, uma rapariga correu para eles, aterrorizada pela dor súbita, pelo afluxo do sangue; Ewen pegou nela e depositou-a numa maca, fazendo apelo a toda a sua resistência, tentando controlar a sanidade (tu és capaz de dominá-la! Luta! Resiste!) mas logo desistiu, assoberbado pelo que via nos olhos da rapariga. Heather tocou nele, compassivamente.

 

- Pronto - disse ela. - Não adianta esforçares-te.

 

- Meu Deus, Heather! Não posso desistir assim tão prontamente, não seria capaz de suportar...

 

Os olhos da rapariga estavam arregalados e repletos de pavor.
- Não podem ajudar-me? - suplicou. - Ajudem-me! Ajudem-me!

 

Heather ajoelhou-se no chão e tomou-a nos braços.

 

- Não, minha querida - disse compassivamente. - Não poderemos ajudar-te, pois irás morrer. Nada receies, Laura querida, tudo vai acontecer num instante, e estaremos aqui contigo. Não chores, querida, não chores, nada tens que recear. Olha, as luas já se ocultaram; depressa a manhã vai chegar. Não tens nada a recear. - Continuou a apertá-la nos braços, falando-lhe em murmúrios, confortando-a, pressentindo todos os receios que perpassavam a jovem, até que esta repousou, apoiada no ombro de Camilla. Continuaram a apoiá-la assim, chorando com ela, até que a rapariga parou de respirar; depois depositaram-na no leito, cobríram-na com um lençol, e penosamente, de mãos dadas, foram ver nascer o Sol e choraram por ela.

 

O capitão Harry Leicester assistiu ao nascer do Sol, esfregando os olhos doloridos. Não os tinha levantado da consola do computador, guardando a sua única esperança de proteger este mundo da barbárie. Por um instante, um pouco antes do alvorecer, tínha-lhe parecido escutar Camilla a chamá-lo de junto da porta, mas deveria ter sido uma ilusão. Uma vez ela tinha compartilhado o sonho dele. O que teria acontecido?)

 

Agora, num estranho e desconfortável semidormitar e semitranse, viu passar pela sua mente uma procissão de esquisitas criaturas, não exactamente homens, elevando estranhas naves estelares até ao céu vermelho deste mundo, que, passados séculos, regressavam. (O que teriam elas estado a procurar, no mundo para lá das estrelas? E porque não teriam encontrado o que procuravam?) Poderia, afinal, aquela busca ser interminável, concluindo um círculo completo ao regressar ao ponto de partida?

 

Mas temos algo para servir de base ao que construirmos, a história de um mundo.

 

Um outro mundo. Este não.
E poderão as respostas de outro mundo adaptar-se a este?
Furioso, disse a si mesmo que conhecimento era conhecimento, que conhecimento era poder, que poderia salvá-los a todos... ou destruí-los. Após uma longa luta pela sobrevivência, não irão eles aceitar velhas soluções, vindas do passado, tentando recriar a história desesperada da Terra aqui num mundo com uma corrente de vida muito mais frágil? Suponha-se que algum dia eles chegam a acreditar - como eu próprio aparentemente acreditei - que na realidade o computador pode ter soluções para tudo?

 

Bem, e não é verdade?

 

Levantou-se e foi até ao limiar da cúpula. A janela entaipada, pequena e alta em atenção ao frio intenso, abriu-se ao tocar-lhe, e Leicester espreitou por ela o nascer do estranho Sol. Não é o meu. Mas é o deles. Algum dia acabarão por desvendar os seus segredos.

 

Com a minha ajuda. A minha solitária luta para lhes reservar uma herança de verdadeiro conhecimento, uma tecnologia completa capaz de levá-los de regresso às estrelas.

 

Respirou fundo, e começou a escutar em silêncio os sons deste mundo: os ventos chocando com as árvores e com as florestas, o fluir dos cursos de água, os animais e os pássaros que viviam as suas existências estranhas e secretas nas profundezas dos bosques, os desconhecidos alienígenas que os seus descendentes iriam eventualmente conhecer.

 

E não seriam seres bárbaros: saberiam. Se se sentissem tentados a explorar algum impasse de conhecimento, a solução estaria ao seu alcance, pronta a elucidá-los.

 

(Porque estaria a voz de Camilla a ecoar na sua mente? ”Isso é apenas uma prova de que um computador não é Deus. ”)

 

Não será a verdade apenas uma representação de Deus?, perguntou ele, desesperado, a si mesmo e ao universo. Todos conhecerão a verdade, e a verdade libertar-vos-á.

 

(Ou escravizar-vos-á? Poderá uma verdade esconder outra?)
Subitamente surgiu-lhe na mente uma visão horrível, enquanto os seus pensamentos se evadiam do presente e ingressavam no futuro, que se estendia palpitante à sua frente, Uma raça ensinada a procurar aqui todas as suas soluções, no relicário onde se guardavam todas as respostas adequadas, um mundo em que nenhuma pergunta permaneceria em aberto, pois dispunham de todas as respostas, e era impossível explorar tudo o que ficava de fora.

 

Um mundo barbárico em que o computador era idolatrado como um Deus.

 

Um Deus. Um Deus. Um Deus. E ele estava a criar esse Deus. Deus! Estarei louco?

 

E a resposta surgiu, límpida e fria. Não. Tenho estado louco desde que a nave se despenhou, mas agora estou são. Moray teve sempre razão. As soluções de outro mundo não podem ser aplicadas aqui. A tecnologia, a ciência, são apenas uma tecnologia e uma ciência para a Terra, e, se procurarmos transferi-las para cá, tal como estão, destruiremos este planeta. Algum dia, não tão cedo como desejaríamos, mas quando for oportuno, irão desenvolver uma tecnologia enraizada no solo, nas pedras, no Sol, nos recursos deste mundo. Talvez os conduza até às estrelas, se quiserem ir lá. Talvez os conduza aos espaços interiores dos seus próprios corações. Mas será uma tecnologia deles, e não minha. Eu não sou um Deus. Não posso construir um mundo à minha própria imagem.

 

Trouxera para aqui todos os suprimentos existentes na ponte de comando da nave. Agora, calmamente, começou a construír aquilo que pretendia, enquanto antigas palavras de um outro mundo lhe soavam no pensamento:

 

Interminável a rotação do mundo, Interminável o passeio do Sol. Interminável a procura;

 

Regresso de novo, ao meu próprio começo E aqui encontro o repouso.

Com mãos firmes acendeu uma vela de resina e, deliberadamente, pegou lume ao longo rastilho.

 

Camilla e MacAran ouviram a explosão e correram para a cúpula, a tempo de a verem irromper para o alto num aguaceiro de detritos e em alterosas chamas.

 

Atrapalhado com o cadeado, Harry Leicester começou a compreender que não iria sair. Desta vez não ia conseguir. Cambaleando por causa do sopro e do abalo da explosão, mas friamente, alegremente são de espírito, olhou para os destroços. Dei-vos um novo começo, pensou confusamente, talvez eu seja Deus, afinal, aquele que expulsou Adão e Eva do Paraíso e deixou de lhes fornecer todas as respostas, deixando-os encontrarem o caminho por si mesmos, e crescer... nada de amarras, nada de almofadas, eles que encontrem o caminho por si mesmos, viver ou morrer...

 

Mal deu por isso quando eles conseguiram forçar a porta e o ampararam com todo o cuidado, mas sentiu na sua mente moribunda o toque suave de Camilla, e abriu os olhos para os fixar com uma expressão compassiva, murmurando confusamente, ”Sou um velho muito tonto...”

 

As lágrimas de Camilla salpicaram-lhe o rosto.

 

- Não tente falar. Sei porque fez o que fez. Começámos a fazê-lo juntos, da outra vez, e depois... oh, Capitão, Capitão... Ele fechou os olhos. -

 

Capitão de quê? - sussurrou. E depois, com o seu derradeiro alento, disse: - Não é possível reformar um capitão. Só a tiro... e eu disparei o tiro...

 

E então o Sol vermelho extinguiu-se, para sempre, e ardeu em luminosas galáxias de luz.

Até os esteios de reforço da estrutura da nave tinham desaparecido, levados para os armazéns de metais; neste mundo a exploração mineira iria sempre processar-se com lentidão, e os metais seriam escassos durante muitas e muitas gerações. Com o hábito, Camilla deu ao local um rápido olhar e prosseguiu através do vale. Caminhava com leveza, uma mulher alta, com o cabelo ligeiramente tocado pela geada, seguindo um instinto semiescutado. Para além do seu campo de visão distinguia o alto monumento de pedra dedicado às vítimas do despenhamento da nave, e o cemitério onde estavam sepultadas todas as vítimas do primeiro terrível Inverno, ao lado dos mortos do primeiro Verão e dos ventos de loucura. Embrulhou-se melhor na sua capa de peles, olhando para uma das sepulturas verdes com uma mágoa situada tão no passado que já não era sequer tristeza.

 

MacAran, que descia o vale vindo da estrada da montanha, viu-a, envolta nas suas peles e na saia de tecido de xadrez, e levantou a mão para lhe acenar. O seu coração ainda ficava acelerado quando a via, apesar de tantos anos já terem passado. Quando a alcançou, tomou-lhe ambas as mãos por um momento e reteve-as sem falar.

 

- As crianças encontram-se bem - disse ela -, e visitei Mhari esta manhã. E tu? Pelo teu aspecto posso ver que fizeste uma boa viagem. - Deixando a sua mão descansar na dele, regressaram juntos através das ruas de Nova Skye. A casa de ambos
situava-se no final da rua, de onde podiam ver o alto Pico Leste, atrás do qual o Sol vermelho nascia todas as manhãs envolto em nuvens. Num recanto, o pequeno edifício onde estava instalada a estação meteorológica: era essa a principal responsabilidade de Camilla.

 

Ao entrarem na sala principal da casa que compartilhavam com meia-dúzia de outras famílias, MacAran despiu o casacão de peles e chegou-se à lareira. Como a maioria dos homens da colónia que não usavam saiote, MacAran trajava calças de cabedal e uma túnica de fazenda axadrezada.

 

- Está toda a gente fora?

 

- O Ewen está no hospital; a Judy encontra-se na escola; o Mac saiu com o rebanho de gado - disse ela -, e se estás ansioso por dar uma olhadela às crianças acho que estão todas no recreio da escola à excepção do Alastair. Ele vai passar a manhã com a Heather.

 

MacAran aproximou-se da janela, olhando para o telhado inclinado da escola. Como eles crescem depressa, pensou, e como catorze anos de partos pesam tão pouco nos ombros da sua mãe. Os sete que tinham sobrevivido ao terrível Inverno de fome de há cinco anos estavam a crescer. juntos tinham enfrentado as primeiras tempestades deste mundo; e, ainda que ela tivesse tido filhos do Ewen, do Lewis MacLeod e de um outro cujo nome ele nunca soubera e que, parecia-lhe, também Camílla desconhecia, os dois mais velhos e os dois mais novos eram dele. A mais jovem, Mhari, não vivia com eles. Heather tinha perdido um bebé três dias antes do nascimento de Mhari, e Camilla, que detestava o trabalho de amamentar os filhos se havia uma ama-de-leite disponível, confiara-a a Heather para ser criada por esta. Quando Heather se mostrara renitente em largar a criança depois de ter sido desmamada, Camilla tinha concordado em deixar Heather continuar a cuidar dela, se bem que a visitasse quase todos os dias. Heather era uma das desafortunadas: tinha dado à luz sete crianças, mas apenas uma delas conseguira sobreviver durante mais de um mês após o nascimento. Na comunidade, os laços da lactação eram mais fortes do que os do sangue; a mãe de uma criança era apenas a mulher que cuidava dela, e o pai aquele que a ensinava. MacAran tinha filhos de três outras mulheres, e interessava-se por todos de igual modo, mas a sua preferida era Lori, a estranha filha de Judy, aos catorze anos de idade mais alta do que a mãe e todavia infantil e diferente; metade da comunidade acreditava que alguma fada tê-la-ia permutado por outra ao nascer. A verdadeira identidade do pai continuava a ser um segredo partilhado apenas por alguns.

 

- Agora que estás de volta - disse Camilla -, quando terás de partir de novo?

 

Ele envolveu-lhe a cintura com um braço.

 

- Primeiro vou passar alguns dias em casa, e depois... vamos partir à procura de um mar. Deve existir algum, algures neste mundo. Mas primeiro... tenho uma coisa para ti. Explorámos uma caverna, há alguns dias, e encontrámos estas, embutidas na pedra. Não temos muita utilidade para jóias, bem sei, e é realmente um desperdício de tempo extraí-las, mas o Alastair e eu gostámos do aspecto destas, e por isso trouxemos algumas para ti e para as raparigas. Tive uma espécie de sensação a respeito delas.

 

Extraiu do bolso uma mão-cheia de pedras azuis, vertendo-as para as mãos de Camilla, apreciando a surpresa e o prazer reflectidos nos olhos dela. Depois as crianças entraram a correr, e MacAran viu-se mergulhado em beijos infantis, abraços, perguntas, pedidos.

 

- Papá, posso ir para as montanhas contigo da próxima vez? Harry vai e tem só catorze anos!

 

- Papá, Alanna tirou-me os bolos, obriga-a a devolver-mos!

- Papá, papá, olha para mim! Estou a dar saltos!

 

Camilla, como sempre, ignorou a algazarra, mandando-os acalmar com um gesto.

 

- Uma pergunta de cada vez... o que é, Lori?
A criança de cabelos de prata e olhos cinzentos pegou numa das pedras azuis, olhando para os padrões em estrela embebidos nela.

 

- A minha mãe tem uma parecida com esta. Posso ficar também com uma? Acho que talvez consiga controlá-la como ela faz.

 

- Podes ficar com essa - disse MacAran, e olhou para Camilla por cima da cabeça da criança. Algum dia, quando Lori o decidisse, eles saberiam exactamente o que ela quereria exprimir, pois a estranha filha permutada nunca dizia nada sem motivo.

 

- Queres saber uma coisa? - perguntou Camilla. - Tenho a impressão de que algum dia estas jóias vão ser muito muito importantes para todos nós.

 

MacAran concordou com um aceno. A intuição de Camilla tinha já sido comprovada tantas vezes que não era novidade para ele; mas podia aguardar. Aproximou-se da janela e olhou para o perfil familiar das altas montanhas, imaginando as planícies, as colinas e os mares desconhecidos situados mais para além. Uma pálida lua azul, da cor da pedra que Lori continuava a contemplar fascinada, flutuava calmamente sobre a orla de nuvens acumuladas em redor da montanha; depois, muito suavemente, a chuva começou a cair.

 

- Algum dia - disse ele, inesperadamente -, acho eu, alguém irá dar nomes a estas luas... e a este mundo.

 

- Talvez, algum dia - disse Camilla -, mas nunca os conheceremos.

 

Passado um século, deram ao planeta o nome de DARKOVER. Mas a Terra nada soube deles durante dois mil anos.

 

                                                                                            Marion Zimmer Bradley

 

                      

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