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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ATHENAGORAS / C. Virgil Gheorghiu
ATHENAGORAS / C. Virgil Gheorghiu

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Este livro é de dificílima classificação. Não é um romance, porque não conta uma história propriamente dita. O título original francês significa, literalmente, A vida do patriarca Athenagoras. Mas também não é uma biografia, porque o autor interfere na história, dá opiniões ao biografado, interage com ele. Por outro lado, há diversos traços biográficos, porque o autor procura, com parcialidade total (ele tem uma fé muito sólida, que transparece a toda hora), situar o patriarca na geografia, na Igreja ortodoxa e na história.
Então, na falta absoluta de classificação melhor, escrevi, no campo gênero da ficha, relato biográfico. É o que me parece ser.

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CRISTO, O PAPA PAULO VI E O PATRIARCA ATHENAGORAS
ESCREVER um livro sobre a minha vida, porquê? Responda-me, porquê? Já não é uma simples pergunta: é um estribilho. Sua Santidade Athenagoras, patriarca ecuménico, faz-me esta pergunta todas as vezes que me encontra. Sempre da mesma forma. com a mesma entoação. E, ao interrogar-me, fita-me com olhos impiedosos, como os polícias que, de noite, cercam o fugitivo, à luz dos projectores, depois de o terem descoberto. E, lançando sobre mim a luz do seu olhar, que me queima a carne como um lança-chamas, o patriarca espera a minha resposta. A dificuldade está em que não pretende uma resposta qualquer. Não. Uma resposta lisonjeira, uma resposta válida para pessoas da sociedade, está fora da questão. Quer uma resposta intrinsecamente válida, agora e sempre e pelos séculos dos séculos.
Nas notas em fim de página aparecem as abreviaturas P. G., P. L. e G. C. S., que correspondem, respectivamente, aos títulos das obras de que foram extraídos os textos assinalados:
Patrologice Cursus Completus, Série Grega, de J. P. Migne. Paris (1857-1886), 161 volumes.
Patrologice Cursus Completus, Série Latina, de J. P. Migne. Paris (1844-1855), 221 volumes.
Die Griechischen Christlichen Schriftsteller. Editado pela Academia de Berlim a partir de 1897, 43 volumes.
Exige-me uma resposta que não seja válida no tempo, mas na eternidade. Ora, para dizer a verdade, é impossível dar respostas dessas.
Responda-me, padre, porque pretende escrever a minha vida? Porque me quer fazer isso?
Pronuncia a palavra isso como se se tratasse de
uma má acção, de um delito, de um crime.
O patriarca ecuménico é um realista. Um homem rigoroso. Aquilo que realmente não é essencial não lhe interessa. O que interessa aos monges é o absoluto. Por isso, os monges estão quase sempre em silêncio. Se um monge abre a boca para falar é porque realmente tem qualquer coisa grave, importante e essencial a perguntar ou a declarar. Os monges estão sempre calados, mesmo que se trate de problemas de uma verdade grave. Sabem que as palavras são embalagens pequenas de mais para conter a verdade autêntica, que é sempre excessivamente grande, mesmo que se utilizem as maiores palavras. A verdade é imensa. Impossível de encaixar em palavras e em frases. Mal pode ser contida no silêncio. Porque a verdade, para os monges, não é uma verdade mundana, social, histórica. Frequentemente chega a ser o oposto da verdade das pessoas. A verdade absoluta, a dos monges, paira acima das pessoas, acima das coisas e do tempo. A verdade autêntica é como as chamas que devoram tudo e se lançam para as alturas. A verdade é como o fogo. Queima. Faz doer. Cauteriza. Como o ferro em brasa. Os monges da categoria de Athenagoras sabem que pretender exprimir a verdade é como decidir guardar o fogo em cascos de madeira. Não é possível. A verdade queima as embalagens onde a queremos guardar. A verdade provoca incêndios.
É por estas razões, para não se afastarem do absoluto e para não provocarem incêndios que os monges estão normalmente calados. E se o patriarca ecuménico me faz a mesma pergunta, como um estribilho, é porque a pergunta é na realidade fundamental. De contrário, não me interrogava.
Espera que lhe responda. E quer uma resposta que seja inteiramente válida.
Embora o patriarca me interrogue constantemente, sou sempre apanhado de surpresa. Não encontro resposta. Há coisas e actos que não têm definição nem resposta. Serei sempre apanhado de surpresa se me perguntarem porque tenho calor quando estou numa sala sobreaquecida. Ou porque queimo os dedos se pegar em brasas. São perguntas a que não posso responder. Atrapalham-me. A primeira vez, respondi-lhe:
- É o meu dever, Vossa Santidade. Tenho de cumprir a missão que me foi dada na Terra.
Teve um amplo sorriso. Luminoso. Mas severo. Um sorriso mordaz. Como a luz dos trópicos. Queria mostrar-me que não caía no logro. Que não se lhe podia dar uma desculpa qualquer:
- Porque me há-de expor aos olhos de todos?
- inquiriu. - Porque me quer fazer isso? É assim tão pouco meu amigo para me fazer uma coisa dessas?
Escrever a sua biografia é, portanto, uma espécie de golpe que lhe vibro. Uma ferida que lhe abro. Cometo um acto contra ele. E, sob este ponto de vista, tem razão. Expô-lo aos olhos de todos
- é um delito, é mesmo um crime. Porque um monge é um homem que abandona tudo quanto possui na Terra para se esconder. Foge do Pindo e de tudo quanto este encerra de bom e de mau. Leva uma existência o mais secreta possível. Vive solitário. Longe de tudo e de todos. Abandona mesmo os seus pensamentos e os seus sonhos. Neste caso, descobrir o seu esconderijo e expô-lo aos olhos de todos é, realmente, um acto de crueldade. Um monge é como um homem nu. Para quê expô-lo aos olhos de todos?
- Porque me quer expor, padre? Porquê?
Desta vez implora-me. Como se implora a alguém que nos ameaça de morte. Que não o fira. Que não faça fogo com a arma que aponto contra ele. Implora que lhe poupe a vida. Porque a vida de um monge é a sua solidão, a sua fuga, a reserva e a humildade secreta. "Nada do que é visível é bom." (1)
É verdade. Conhecia estas coisas teoricamente. Todas. Mas estava espantado. Era a primeira vez que encontrava um homem que realmente, sinceramente, me pedia para não falar de si. Qualquer homem, por mais humilde que seja, pensa sempre que a sua vida terrestre é o mais apaixonante dos romances. Homens e mulheres, que se aproximam de mim, dizem-me, mesmo sem darem por isso: "Você escreve romances, Virgil Gheorghiu... Mas, se tivesse tempo de ouvir a história da minha vida, ficava pasmado. A minha vida é o romance mais apaixonante."
Todos os homens e todas as mulheres pensam que a sua vida, os seus amores, as suas dores e as suas alegrias são únicos. Palpitantes. Mais sensacionais que todos os romances. E é normal que assim seja. Porque cada homem vive com a sua própria carne, o seu próprio espírito, o seu amor, as suas mágoas e as suas alegrias. E isso é incomparavelmente mais real que se os tivesse lido. Sendo lida, a maior dor faz-nos sofrer menos que uma pequenina dor sentida na nossa própria carne. É por isso que todos os homens pensam que a sua vida, por mais banal que seja, é um romance sensacional. Porque o foi realmente para si. Como romancista estou habituado a ouvir isto. É a primeira vez que encontro um homem a implorar-me que não escreva a sua vida. Porque isso será para si um golpe mais duro que um golpe vibrado na sua própria carne.
* (1) Santo Inácio de Antioquia: Epístola aos Romanos, iII, 3. *
Olho para o patriarca Athenagoras. Está na minha frente. A menos de um passo de distância. Meço um metro e oitenta e dois. Mas, a seu lado, pareço um anão. É alto. Muito alto. Permanece direito. Como os pinheiros. Fixa os olhos em mim como se fossem projectores. O patriarca Athenagoras tem uma barba branca que lhe chega abaixo da cintura. Uma barba mais branca que o mármore das estátuas. Mais branca que a neve. A barba escorre-lhe da cabeça exactamente como os glaciares escorrem dos picos das montanhas cobertos de neves eternas. Certamente não tem mais de dois metros de altura. Mas dá a impressão de ser incomparavelmente mais alto. Parece sair directamente dos livros ilustrados do Antigo Testamento. Tem a estatura de Moisés. Exactamente como o Moisés esculpido em mármore por Miguel Angelo. É alto como Abraão e Melquisedech. Não se pode medir a sua estatura com as escalas do mundo e do tempo. Está acima das medidas e do tempo. É por isso que, a seu lado, sinto-o maior que um pinheiro com vinte metros de altura. Possui a altura moral que anula todas as grandezas no espaço. Torna ridícula qualquer unidade de medida terrestre. .
Perante ele, o homem mais hábil não consegue mentir. "Tudo está nu e descoberto diante dos seus olhos." (2) É impossível trapacear, Esconder-lhe qualquer coisa. O patriarca Athenagoras é como Deus. Lê nos nossos pensamentos como num livro aberto. Verifico de súbito que não precisa da minha resposta. Conhece o móbil que me leva a contar a sua vida. Mas continua com os olhos fixos em mim. Assim, obriga-me a falar. A dizer-lhe a verdade. com a minha própria boca. com os meus lábios. Apesar de a conhecer perfeitamente.
Se não escrever a sua biografia, vou para o
* (2) São Paulo: Epístola aos Hebreus, IV, 13. *
Inferno - disse-lhe. - Tenho de o fazer. Senão,
perco a minha vida eterna.
Porquê? Porquê? Como é isso?
Bem o sabe, Vossa Santidade - retorqui.
Não precisa da minha resposta.
- Responda-me, porque tem de fazer isso? Porquê e por quem?
Não sou um bom padre, Vossa Santidade bem
o sabe. Deus privou-me do dom musical. Não posso cantar. Que haverá de mais abominável que um padre privado de voz musical? O padre, que tem de cantar sempre e em nome de todos, em coro com os anjos, em louvor de Deus! E sou um padre que não pode cantar. Nada. Até os burros têm cordas vocais mais melodiosas que as minhas. Sou um mau padre. E além da falta do dom musical, tenho todos os defeitos que um padre não deve ter. Por exemplo: sou um mau pastor porque não tenho paciência nenhuma para ouvir falar o próximo. Não sei ouvir, horas inteiras, as velhas senhoras, minhas filhas em Cristo, que vêm contar-me sempre a mesma história. Depois, sou completamente desprovido do sentido de organização. Não sei organizar a vida terrestre da paróquia. Nem reuniões de cristãos. Nem dar festas de caridade... Vivi demasiado na solidão, como poeta, fazendo sempre um trabalho artesanal, no silêncio e no recolhimento. E logo que me encontro no meio da multidão, em vez de a dirigir, como um pastor deve conduzir o seu rebanho, sinto-me afogado nessa multidão, como um homem caído à água que não sabe nadar. Sou um mau padre de Cristo. E sei-o. E sofro. Deus deu-me uma única capacidade - a de contar histórias e escrever poesias. Como padre, é só como poeta e como romancista que posso servir a Cristo. É muito pouco. Mas se não utilizar este único talento que me foi concedido, estou perdido. Aqui em baixo e na eternidade. Porque não tenho mais nada a não ser este talento de poeta. Nada. Mas até mesmo o meu talento não me pertence como coisa própria. Pertence a Deus. Porque foi Ele que mo deu. (3) O dom poético e o sacerdócio são dons do Alto.
- Ninguém vos impede, padre Virgil, de escrever romances e livros de toda a espécie - diz o patriarca. - A nossa Santa Igreja Ortodoxa nunca impediu os poetas, os pintores, os compositores, os filósofos, os arquitectos de exercer as suas actividades. Há dezenas de poetas inscritos no calendário entre os santos. Até o senhor, padre Virgil Gheorghiu, recebeu da parte de Sua Santidade Justiniano, patriarca da Roménia, o título de Ecónomo Stavrophore, a mais alta dignidade que pode ser concedida a um padre secular. E foi pelo vosso talento. No Céu, Deus também vos leva em conta as vossas obras poéticas. Também terá a sua recompensa na outra vida. Mesmo São Paulo considerava os poetas pagãos entre os profetas. (4) Pode escrever tudo quanto lhe apetecer. A Santa Igreja Ortodoxa não impõe nenhuma censura aos padres poetas.
- E no Juízo Final, que hei-de responder? - inquiri. - Deus perguntar-me-á, a mim, que recebi um único dom, se escrevi a vida do patriarca Athenagoras. E se responder negativamente, há-de gritar-me como no Evangelho: "Servo indigno, dei-vos o talento de narrador e poeta e fiz-vos encontrar na Terra um santo em carne e osso! Escrevestes a sua vida?" E Deus, apesar da sua infinita bondade, não me perdoará. Porque ser romancista e viver ao lado de um santo na Terra sem escrever a sua biografia não tem perdão.
* (3) São Mateus, XXV, 14.
(4) São Paulo, I, 12. *
Qual é o santo? - perguntou o patriarca ecuménico.
Perde a calma. Ensombra-se o seu rosto de luz como o Sol escondido pelas nuvens.
Quem é o santo? - pergunta furioso.
É Vossa Santidade - respondi.
- Eu, santo? - exclamou o patriarca. Trespassou-me com o olhar transformado em
relâmpago, cortante como o sabre. Sentia na minha carne o golpe do seu olhar, exactamente como o caule do trigo deve sentir o golpe da gadanha que o ceifa. Estava realmente furioso. E a cólera de Athenagoras é tão violenta como a de Deus. São trovões. Raios. Trevas do céu desvendadas pelos relâmpagos. E fora eu, com as minhas palavras desastradas, que desencadeara esta cólera e agora sofria os seus efeitos. E a saraivada de granito que cairia sobre mim.
- Eu sou um santo? Eu, Athenagoras, um santo? - perguntou de novo.
Estava especado na minha frente. À mesma distância. Mas a sua cólera queimava-me como labaredas. Sentia-me muito perto. Olhei para as suas largas mangas. "Se abre os braços como asa negra de gigante, perco-me na noite eterna." Continuou a ralhar, bradando na sua voz de baixo, de raio, de trovão. É como as torrentes da montanha que durante a tempestade fazem rolar, espumando, rochedos grandes como casas.
- Como sabe que sou um santo? Como pode saber que sou santo? Por quem e como pode saber o que ninguém nunca poderá saber?
- Vossa Santidade é um santo - respondi-lhe.
- E o nome do Santo Patriarca Athenagoras será inscrito no calendário ao lado do de Santo André, do de São Pedro e do nome de todos os outros santos.
- Sabe isso, sabe? - bradou no auge da sua cólera.
- Sei, Vossa Santidade, sei.
Acalmou-se. A minha afirmação pareceu-lhe tão aberrativa e tão herética que me fitou com desprezo. Trocista. Impiedoso. Mas, ao mesmo tempo, continuou intrigado. Escandalizado. Porque foi dito: "O Senhor não faz nada sem primeiro o revelar aos seus servos, os profetas." (5) Portanto, aos seus poetas.
- Conte-me, como sabe? Diga! Como? E quem lho disse?
Não queria repetir as minhas palavras para não blasfemar. Sob certos aspectos, tinha razão. É que, ao afirmar ser o patriarca Athenagoras um santo e haver de ser inscrito no calendário, entre os santos, eu estava em plena e flagrante heresia. Nenhum cristão pode fazer semelhante afirmação. Porque nunca nenhum homem sobre a Terra saberá - nem ele próprio, nem os outros - se depois da morte irá para o meio dos santos ou para as labaredas do Inferno. Só Deus conhece os seus santos. Nenhum cristão autêntico pode afirmar, nem naquilo que lhe diz respeito pessoalmente, nem no que se refere aos outros, o que eu acabava de afirmar. Estava, portanto, em total heresia. Isto quer dizer que me expulsara a mim próprio do caminho recto. Banido da Igreja por afirmar coisas que nunca se poderão afirmar. Em vida, enquanto está sobre a Terra, um homem fica sujeito ao pecado. Mesmo que tenha chegado ao cume da perfeição. Porque não há perfeição sem o degrau seguinte. A virtude só tem um limite: é o ilimitado. (6)
Pode-se cair a todo o instante. Nem os santos estão isentos de pecado. Se o santo não pecasse não estaria escrito: "Tomareis os pecados dos santos." (7)
* (5) São Mateus, XXVII, 24.
(6) São Gregório de Nissa, P. G. 44, col. 300.
(7) Números, XVIII, 1. *
Se o santo estivesse isento de pecado, o Senhor não diria pela boca do profeta Ezequiel aos anjos enviados para castigar os pecadores: "E começareis pelos santos." (8) E a queda dos santos é terrível. Como a dos anjos. Quanto mais alto se está mais grave é a queda. Portanto, até ao último sopro de vida, o homem é capaz de praticar o bem e o mal. Um homem pode ser santo durante toda a sua vida e depois de ter subido todos os degraus da escada que leva ao Paraíso cometer um erro e cair. Para subir a escada são precisos os esforços contínuos de uma vida inteira. Para cair basta um abrir e fechar de olhos. É por isso que São João Clímaco diz: "A perfeita nunca perfeita perfeição dos perfeitos." (9) Só os heréticos afirmam que a perfeição é um estado inamissível, que não se pode perder.
O contrário é que é verdade. O perfeito pode cair, descer a cada instante. E é um espectáculo lamentável, depois do jejum, depois das austeridades, depois das longas orações, depois das lágrimas abundantes, depois de uma vida virtuosa durante vinte ou trinta anos, aparecer nu e desprovido de tudo, por descuido e negligência... "Como um comerciante rico que perde toda a sua fortuna naufragando no porto." (10) Mas pode-se cair sem cometer nenhum erro, parando simplesmente. Porque "deixar de correr pelos caminhos da virtude é começar pelos caminhos do vício". (11)
Para atingir a plenitude da vida perfeita, a santidade, o homem precisa da colaboração de Deus. E da sua graça. Porque a santidade é a sinergia
- a colaboração entre o homem e Deus. E nenhum homem sabe se Deus lhe confiará a sua
* (8) Santo Ezequiel, IX, S; Orígenes: Homilias sobre os Números, X, 1.
(9) São João Clímaco, P. G., 88, col. 1148.
(10) São Basílio, o Grande, P. G., 31, col. 421-A.
(11) São Gregório de Nissa, P. G., 44, col. 300-D. *
graça. Um santo vive no receio e no temor até ao Juízo Final, porque só nesse momento é que saberá se recebeu ou não a graça de Deus, sem a qual todos os seus esforços são nulos.
A afirmação que eu acabava de fazer perante o patriarca ecuménico - o pai de todos os patriarcas-, eu, padre, era inadmissível. Intolerável. Afirmava uma coisa que só Deus pode afirmar. E o patriarca Athenagoras tinha razão, não para estar zangado, mas para me desprezar.
- Eu sei, Vossa Santidade - afirmei. - Sei, de certeza, que há-de ser inscrito entre os santos, no calendário. É verdade que só Deus os conhece a todos. Mas Deus é misericordioso. Faz-nos conhecer os santos cá em baixo, na Terra, pelo poder que lhes confere de fazer milagres. E prodígios. E é pelos milagres que fazem na Terra que nós conhecemos os santos que vivem a nosso lado e entre nós. É pelos vossos milagres que digo que sois um santo.
- Eu, Athenagoras, fiz milagres?
Estava em Constantinopla, na residência do patriarca. Era um convidado. E estou certo de que, nesse momento, se arrependia de me ter convidado. Caía de heresia em heresia. Acabava de lhe afirmar que era taumaturgo. Que fazia milagres. Ora, ninguém se encontrava em melhor posição que o próprio patriarca para saber que durante os seus oitenta e quatro anos nunca fizera o mais pequeno milagre. Portanto eu estava em plena aberração. Mas persistia. Isso confirmava o provérbio que diz: errar humano é, mas perseverar é diabólico. Ora, eu persistia.
- Não só sei, de certeza, que Vossa Santidade será inscrito no calendário entre os outros grandes santos graças aos milagres que fez na Terra como até vi o seu ícone. Vi-o e acendi-lhe um círio!...
-Viu o meu ícone, o meu? O ícone de Athenagoras?
Vi, Vossa Santidade. E o vosso ícone é composto por três figuras. Ao centro, Cristo aureolado, Cristo Pantocrator, num trono de luz. Uma das mãos de Cristo está pousada na vossa cabeça. E a outra mão de Cristo Pantocrator está pousada na cabeça do papa Paulo VI. Este é o ícone que vi. Cristo, Paulo VI, Athenagoras. Os três. Juntos. Até possuo uma reprodução. Recortei-a de um jornal oficial da Igreja Ortodoxa Grega. Sob o ponto de vista artístico, o ícone é bastante mau. É francamente mau. Mas é um ícone verdadeiro. E existe. É o vosso ícone...
- Não viu isso numa igreja ortodoxa! Eu, o patriarca ecuménico, devia ser o primeiro a vê-lo, se existisse. Mas esse ícone só existe na vossa imaginação!
Procurava a reprodução do ícone. Tinha-a comigo, recortada de um jornal. Mas não a encontrava. E o patriarca pensava que mentia. Eu tinha a certeza do que afirmava. Tinha esta firmeza por ser padre. E poeta. E embora haja recebido o sacerdócio aos quarenta e sete anos, posso dizer que sou padre há mais de cinco séculos. Até mais, porque todos os meus antepassados, do lado materno e do lado paterno, foram padres de aldeia. De pai para filho. Desde sempre. Na vertente oriental dos Cárpatos. Na verdade, recebi o sacerdócio individualmente, pela imposição das mãos, pela chéirotonia. O sacerdócio cristão não é hereditário como no Antigo Testamento. Mas, embora não tenha recebido o sacerdócio por via hereditária, visto ela não existir, também estou na via sacerdotal por hereditariedade. A graça do sacerdócio que recebi também foi concedida a todos os meus antepassados e a meu pai e aos meus avós. Possuo ainda o lado presbiteriano que me foi comunicado por via hereditária, por direito natural, como diz Santo Ambrósio ao falar do presbiterado de São João Baptista. (12) Quem nasce num presbitério, de uma família que durante séculos e séculos forneceu servos a Deus, está marcado. O sagrado é para mim a coisa mais importante que existe na vida de um homem sobre a Terra. E com medo ao sacrilégio, sou como as crianças que depois de se terem escaldado com a sopa muito quente sopram nos sorvetes. Prefiro não me aproximar muito das coisas sagradas com medo de cometer o sacrilégio. A heresia. Evito-a e contorno-a instintivamente sem necessidade de analisar, teologicamente, sem raciocinar. Sigo a linha recta, a da Igreja, instintivamente. Não é apenas pela fé, nem pelo temor, nem só pela consciência e o discernimento, mas por qualquer coisa de mais profundo, qualquer coisa enraizada há séculos, qualquer coisa que está em mim, como o instinto dos animais, mas que, no domínio do espírito e da fé, se chama hegémonikon. (13) Conheço de olhos fechados o caminho da verdadeira fé e da ortodoxia. Instintivamente. Porque foi percorrido por todas as gerações que me precederam. E porque nasci lá. É este instinto, no domínio do espírito, este hegémonikon, que me leva a falar de coisas tão graves com a maior certeza. E sem hesitação. Para mim, a fé ortodoxa é como a respiração e como a circulação nas minhas veias. Não preciso de me preocupar para respirar. Nem para fazer bater o coração. Não. Isso acontece por si. Mesmo durante o sono. Sou padre, mesmo que me vista civilmente. Mesmo que não use o uniforme, vê-se de longe que sou padre. "Porque, assim como o homem, em toda a parte onde aparece, se distingue facilmente dos animais, também o padre, graças ao Espírito Santo que recebeu, quer fale ou se cale, quer esteja a comer ou faça seja o que for,
* (12) Santo Ambrósio, P. L., 15, col. 1540.
(13) São Basílio, P. G., 31, col. 200-B. *
revelará aquilo que é pelo seu rosto, pelo seu gesto, em suma, por todo o seu ser." (14) Este instinto na fé é para mim uma stérygma - um apoio firme, como lhe chama São Basílio. (15) E estando firmemente apoiado na minha fé e no ensinamento da Igreja, tenho a coragem da certeza da plerophoria. Mesmo que esteja na minha frente o próprio patriarca ecuménico.
E subitamente, Sua Santidade Athenagoras repara na minha plerophoria, na minha certeza. Sabe que sou não só padre, mas também poeta. Isso quer dizer profeta. E ouve-me. Mas fica muito pálido. Já não se mostra trocista. Nem desdenhoso.
- Sabe tudo isso? - pergunta-me.
Não encontrei a reprodução do ícone de que falara. Mas a minha firmeza permanece inabalável. É a vez de o patriarca estar perturbado.
- Como pode saber tudo isso? Diga-me. Como?
Faz a pergunta, mas prefere não ouvir a resposta. O que lhe digo é muito grave. É a primeira vez que o vejo perturbado. Sua Santidade o patriarca ecuménico Athenagoras é sempre, em toda a parte e seja diante de que perigo for, de uma imobilidade, de uma estabilidade e de uma solidez tão firmes como o monte Branco. É a célebre apatheia - dos grandes monges e dos santos. Nada jamais os pode dobrar ou perturbar. Ele está acima das coisas humanas e acima dos acontecimentos do mundo. Está acima como estão acima da Terra os picos das neves eternas. E aí permanece. Sempre imóvel. É o grande monge. É o santo. É o cume. É aquele que vive acima da chuva e das nuvens. Acima do vento e de qualquer tempestade terrestre. Mas neste momento está a tornar-se um simples mortal. Está perturbado. No entanto,
* (14) São João Crisóstomo, P. G., 58, col. 670.
(15) São Basílio, P. G., 29, col. 213-A. *
reage subitamente. Retoma a sua estabilidade sublime. Fixa os olhos em mim. E o seu silêncio é uma intimação. O seu silêncio é a ordem que me dá para falar. Para me explicar.
- Mesmo que Vossa Santidade e Sua Santidade o papa Paulo VI fossem desprovidos de todo o mérito como homens, passariam ambos directamente daqui para o Céu, e iriam sentar-se, como no ícone de que lhe falei, ao lado do Senhor. Passariam da Terra para o Céu. Como o ladrão que foi crucificado ao lado de Cristo. Vós como patriarca ecuménico e Paulo VI como papa. Sereis santos. Inscritos no calendário. Venerados na Terra e no Céu. No Oriente como no Ocidente. Até ao fim dos séculos.
- Hei-de ser santo? - perguntou. - E o senhor sabe isso? O senhor?
- Sei-o de certeza absoluta.
- Só Deus conhece os seus santos!
- É verdade, mas Deus dá-nos a conhecer os santos, a nós, homens, pelos seus milagres. Já lho disse.
- Nunca fiz milagres - replicou. - Nenhum. Aonde foi buscar essas histórias, padre? Responda-me, como pode falar assim? Falar dos meus milagres! Onde descobriu que fiz milagres? Eu, Athenagoras!
- É ou não é milagre dar vista a um cego? perguntei.
- Claro que é um milagre. Mas não dei vista a nenhum cego. Nunca!
- É ou não é milagre levantar um paralítico do leito e fazê-lo caminhar?
- Eu não fiz levantar nenhum paralítico - disse o patriarca.
E fez o sinal-da-cruz, dizendo que a sua indignidade nunca lhe permitiu sequer sonhar fazer milagres.
É milagre fazer ouvir os surdos, fazer falar os mudos, ressuscitar os mortos?
Claro, padre, isso são milagres - disse o
patriarca. - Mas nem eu nem o papa Paulo VI fizemos milagres. Nem um nem outro demos vista aos cegos, nem palavra aos mudos, nem ouvidos aos surdos, nem vida aos mortos... Não. Proíbo-o de continuar a falar assim.
Obedeço-lhe, Vossa Santidade. Não digo mais
nada. Mas peço-lhe, com toda a humildade, que responda a uma última pergunta: se ninguém contesta a santidade daqueles que curam milagrosamente as enfermidades, as doenças e os sofrimentos dos homens, quanto maiores em santidade devem ser aqueles que curam e salvam do sofrimento o próprio corpo de Deus?... Reconhece que é maior milagre curar o corpo vivo de Deus que o dos homens? Não pode negar isso. Ora, há nove séculos que o corpo vivo de Cristo, que é a Igreja, está cortado em dois, como se fosse serrado. E o corpo de Cristo, o corpo de Deus, sangra, cortado em pedaços. Aqueles que cortaram o corpo de Deus, serrando-o em dois pedaços como outrora o corpo do profeta Isaías, são carrascos mais sangrentos que os que martirizaram o corpo de Cristo na Cruz, pregando-o com pregos no madeiro. Os que esquartejaram o corpo de Cristo, dividindo-o na Terra, realizaram uma nova e mais sangrenta crucificação. Porque a Igreja é a carne viva de Cristo. A Igreja que separaram em dois pedaços é a mesma carne de Cristo que pregaram na Cruz. A Igreja e o corpo de Cristo são idênticos. Iguais. E aqueles que desmembraram a Igreja são tão culpados como aqueles que efectuaram a crucificação no Gólgota. E Cristo não sofre menos quando lhe cortam o corpo em duas partes, uma ocidental e outra oriental, do que quando, na Cruz, lhe enterravam os pregos na carne. É exactamente a mesma coisa, é pior ainda. Porque é o mesmo corpo. E está submetido à mesma tortura. E esta nova crucificação de Cristo dura há mais de nove séculos. A nova paixão de Deus, o esquartejamento da Igreja, é mais atroz. Ora, Vossa Santidade e o papa Paulo VI puseram fim à nova paixão de Cristo. Fizeram cessar, na Terra, o esquartejamento do corpo de Deus. E por terem feito cessar os sofrimentos de Deus, serrado em dois, são santos superiores aos que fizeram cessar os sofrimentos na carne dos homens... Os santos taumaturgos são os que operaram milagres nos corpos dos homens. Vós sois santos taumaturgos curando o corpo de Deus... Fizeram a união do corpo vivo de Deus... Que sangra na Terra há novecentos anos... "Porque o corpo de Deus é a Igreja de Cristo." (16) A Igreja é outra forma da encarnação de Cristo. E fazer sofrer a Igreja, cortando-a, esquartejando-a, significa realmente fazer sofrer Deus na sua carne. "Cristo sofre o que sofre o seu corpo, a Igreja." (17) Fizeram "cessar a fractura". (18) Curam não o corpo de um homem, o que já é um milagre formidável, mas curam o corpo de Deus, a carne de Cristo. Vós e o papa Paulo VI... sois os santos.
- Não fiz a união - disse o patriarca. - Nem eu nem o papa...
- Afastaram todos os obstáculos que se lhes opunham. Agora, a união da Igreja é um facto virtualmente adquirido. Falta apenas a legalização dos actos que concluíram. Fizeram cessar a paixão milenária, a nova paixão de Cristo. Falta apenas redigir as escrituras públicas. Rubricar os factos.
Anteriormente nunca ninguém falara assim ao patriarca.
- Acredita nisso, padre? - perguntou.
* (16) Orígenes, P. G., 17, col. 265-C.
(17) Id., P. G., 12, col. 1259-C.
(18) Id.: Homilias sobre os Números, IX, 6; G. C. S., 7,
- Acredita realmente no que acaba de dizer? Realmente? Do fundo do coração?
Acredito, Vossa Santidade!
Fechou os olhos. Para rezar? Acredito. Para dar graças a Deus? Para chorar sem que se pudessem ver as suas lágrimas? Ou para verificar que tudo quanto acabava de ouvir era uma realidade e não um sonho?
Saí em pontas de pés, deixando-o no seu gabinete. Enorme. Imóvel. Branco. É sempre muito difícil falar com os monges. Adivinhar as suas reacções. Um monge também se chama néptico, da palavra nepsis, que significa atenção permanente, estado de vigilância. "Eles estão sempre cingidos como Elias e prontos para o combate." (19) Todo o monge é néptico, um vigilante que desconfia daquilo que vê, daquilo em que toca e daquilo que ouve. Até desconfiam da sua própria voz. É que a sua vida é extremamente perigosa. Não têm descanso para fechar os olhos. Nunca. São permanentemente atacados pelo Diabo, que toma toda a espécie de formas para os enganar. A cada palavra que ouvem, a cada coisa que se lhes apresenta aos sentidos, têm de se interrogar para saber se aquilo que vêem, ouvem e tocam vem do Diabo ou do anjo. E para os monges é extremamente difícil discernir os espíritos. Tenho imensa pena deles - dos monges-, que velam e ficam alerta dia e noite. Porque os monges estão incomparavelmente mais expostos às tentações do Diabo que nós, cléricos e laicos, que vivemos no mundo. O Diabo é como os piratas que só atacam ricos carregamentos. O Diabo faz guerra sobretudo aos monges e aos santos. (20)
O patriarca teve realmente medo de me ouvir. Sabia que eu dizia a verdade. Mas dizia bem dele.
* (19) II Reis, I, 8; São Gregório de Nissa, P. G., 44, 357-B.
(20) São João Crisóstomo, P. G., 63, col. 127. *
Bem de mais. E isso assustava o monge. Porque o Evangelho diz: "Ai de vós, quando os homens disserem bem de vós." (21)
Os monges desconfiam da lisonja. "A lisonja provoca o orgulho e a vaidade. Quando a alma se ergue, então, apodera-se dela o orgulho, eleva-a até ao Céu e fá-la descer ao abismo." (22)
Fiz sofrer muito o patriarca. Certamente, fi-lo chorar. Porque havemos de fazer sempre sofrer aqueles que amamos? Porque havemos de fazer sempre chorar aqueles que amamos? Porque amo o meu belo e Santo Patriarca. E faço-o sofrer...
* (21) São Lucas, VI, 26.
(22) São João Clímaco, P. G., col. 955. *
PORQUE ESCOLHEU DEUS ATHENAGORAS E NÃO OUTRO HOMEM?
DESDE Santo André - o apóstolo de Cristo que fundou a Igreja nas margens do Bósforo - até ao patriarca Athenagoras, sucederam-se duzentos e sessenta e oito bispos na sé de Constantinopla. Entre estes bispos, arcebispos, patriarcas ecuménicos, houve grandes santos - como São João Crisóstomo, São Gregório de Nazianzo e dezenas de outros. Durante estes dois milénios de vida cristã, outros bispos de Constantinopla foram menos santos. Mas nenhum deles desde o apóstolo Santo André até Athenagoras- entrou para o calendário como arcebispo de Constantinopla e por ter sarado o corpo de Cristo. Unificando o corpo retalhado.
Porquê Athenagoras e não qualquer outro bispo ou outro patriarca ecuménico entre os duzentos e sessenta e oito bispos que se sucederam na cátedra de Constantinopla, a nova Roma?
Estou diante do patriarca ecuménico. Observo-o. Tento adivinhar porque recaiu a escolha de Deus sobre ele. Mas é inútil. Ninguém pode entender os desígnios de Deus. Está acima do nosso entendimento. Todos os padres da Igreja o afirmaram. São João Crisóstomo escreveu até um grande tratado que se intitula Sobre a Incompreensibilidade de Deus. (1)
Uma coisa é certa: foi o próprio Deus que escolheu Athenagoras entre os duzentos e sessenta e oito arcebispos e patriarcas. Sim, foi Deus. Foi Deus que lhe concedeu o privilégio extraordinário de curar e pôr fim à nova paixão de Cristo na Terra. Não foi Athenagoras que escolheu essa missão. Foi Deus... Porque foi dito: "Não fostes vós que me escolhestes, fui eu que vos escolhi." (2) A escolha é feita pelo próprio Cristo. É sempre Deus que faz a escolha dos seus padres, dos seus bispos e dos seus patriarcas. Assim como foi Ele que escolheu os doze apóstolos. E, por isso, quando os doze apóstolos tiveram de escolher um outro para o lugar de Judas, não foram eles que o escolheram, foi Deus. Porque foi dito: "... .o chefe dos discípulos reuniu à sua volta os dez apóstolos e, prudentemente, entregou a Deus o encargo da eleição dizendo: "Senhor, revelai-nos aqueles que elegeste." (3) E foi aquele divinamente designado por um destino divino que mandou entrar como apóstolo para o colégio dos doze." (4)
"Mas que significa esse destino que caiu divinamente sobre Matias?... As Escrituras consideram destino qualquer dom teárquico (5) que vem manifestar ao colégio dos apóstolos aquele que fora designado pela eleição divina, porque não é de moto próprio que o divino sumo sacerdote deve proceder às consagrações sacerdotais, mas é sob a moção divina que se tem de cumprir os ritos sagrados da facção hierárquica e celeste." (6)
* (1) São João Crisóstomo, P. G., 48, col. 699-748.
(2) São João, XV, 16.
(3) Acto dos Apóstolos, I, 24.
(4) São Dinis, o Areopagita, P. G., 3, col. 512-D - 51Ó-A.
(5) Tearquia: o princípio da Divindade (latim: deisprincipatus).
(6) São Dinis, o Areopagita, P. G., 31, col. 513-A. *
Portanto, é claro que foi Deus que escolheu os seus apóstolos, e depois os bispos, os padres e os diáconos, por um dom teárquico. Não é o homem que escolhe o sacerdócio. Mesmo que um homem estude em todos os seminários do mundo, mesmo que receba todos os diplomas e títulos de formado em Teologia, nunca será padre se Deus não o tiver escolhido. Porque um padre é, exclusivamente, um homem que Deus escolheu entre outros homens para ser padre, segundo critérios exclusivamente conhecidos por Deus, e que nós, homens, nunca chegaremos a compreender.
É certo que, depois da escolha de Deus, é a vez de o homem dar o seu consentimento. Porque o homem foi criado livre e soberano. É por causa da sua liberdade e da sua soberania que foi dito que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. É pela sua liberdade que o homem é à imagem de Deus. E o homem tem uma palavra a dizer acerca de tudo quanto se lhe refere. Deus escolhe um homem para ser padre, mas o homem tem o direito de recusar ou aceitar a escolha que Deus fez dele. O homem não é um objecto. Deus, escolhendo-o, transmite-lhe simplesmente um convite. Não uma ordem. Porque não se dão ordens a pessoas livres e soberanas. É aos escravos que se ordena. Não aos seres soberanos. E cabe ao homem recusar ou aceitar o convite de Deus para ser padre.
De todos os seres que existem no Cosmo, só os homens e os anjos têm o condão divino de dispor livremente de si próprios. Adão era completamente livre para comer ou não comer a maçã da árvore proibida. A Virgem Maria era livre para aceitar ou recusar trazer Deus nas suas entranhas. Athenagoras era livre para recusar ou aceitar tornar-se padre, bispo e patriarca ecuménico. O destino de todos os homens está nas suas mãos. É o homem que tem de decidir, de aceitar, de colaborar com Deus, seu criador, e praticar o bem, ou recusar o convite de Deus. "Deus, na sua infinita consideração pelo homem, permitiu que nós também tivéssemos o nosso reino, do qual cada indivíduo seria senhor absoluto. Reside nisso a vontade, faculdade isenta de servidão, livre, fundada na independência da nossa inteligência." (7)
"Se quisesse, Deus podia obrigar à força os próprios recalcitrantes a aceitarem o bem... Mas, então, onde estaria a liberdade? Onde estaria a virtude e a glória de uma conduta recta?... Cabe apenas aos seres inanimados e privados de raciocínio deixar-se conduzir ao sabor de uma vontade estranha... Pelo contrário, a natureza racional e pensante, pondo de lado a liberdade, perde ao mesmo tempo o privilégio do pensamento. Que uso faria ela do raciocínio, se o poder de escolher a seu gosto dependesse de outro?" (8)
Se o homem escolhe colaborar com Deus, e praticar o bem, deixa-se guiar pelo Criador. "Se Deus nos acha dóceis, conduz-nos para onde quer, e conduzirá, como cavalos, as nossas vontades submissas de bom grado às suas leis e às suas ordens. É assim que Deus reina sobre aqueles em quem nunca reinou, quando estão purificados pelas lágrimas e a penitência e aperfeiçoados pela sabedoria e o conhecimento do Espírito. É assim também que os homens se tornam querubins, (9) trazendo aos ombros das suas almas, neste mundo, o Deus que está acima de tudo." (10)
Como é que isto se passou no caso de Athenagoras? Onde é que Deus o encontrou? Em que
* (7) São Gregório de Nissa, P. G., 45, col 77-A
(8) Id., P. G., 45, col. 77-C.
(9) I, São Samuel, IV, 4.
(10) São Simeão, o Novo Teólogo: Ética, iII, 650. *
circunstâncias e em que ponto da Terra é que Ele o escolheu? Como é que tomou conhecimento da escolha que Deus fizera de si? Como é que deu o seu consentimento a Deus? A que povo pertence? É isso o que pretendo contar da vida de Athenagoras.
O BELO ANCIÃO
SUA Santidade Athenagoras tem oitenta e três anos. Quando estamos na sua frente, a primeira coisa que nos impressiona é a sua beleza. É extremamente belo. Muito belo. Pode-se ficar diante de Sua Santidade Athenagoras horas inteiras sem dizer uma palavra, como diante do oceano ou do monte Branco. Para o contemplar. Basta isso. A sua pessoa é uma obra-prima da Natureza. Athenagoras é um verdadeiro monge. De resto, é monge pela sua beleza, porque monge em grego é kalos geron, que significa o belo ancião ou, em resumo, kaloyeros. A designação de monge, de belo ancião, não assenta melhor a ninguém que no patriarca Athenagoras.
Mas ele não é belo ancião - quer dizer, monge
- desde ontem ou anteontem. Não. Athenagoras usa o hábito e o título de belo ancião há mais de sessenta anos. Porque se chama belo ancião a todos os monges, independentemente da idade. Pode-se ter vinte anos e ser belo ancião. O termo ancião não é função do número de anos. É o contrário. É monge, é belo ancião aquele que já não vive com o tempo, mas fora do tempo e do mundo. Por isso se chama a todos os monges o belo ancião tanto aos vinte anos como aos noventa. Porque, abandonando o mundo, abandona-se a Terra para viver no Céu e abandona-se o tempo para viver na eternidade. Viver, não segundo as leis do mundo, mas segundo as leis da eternidade.
É a vida pura que lhes dá o direito de usar, aos vinte anos, o belo nome de ancião, porque foi dito: "A idade da velhice é uma vida pura." (1)
Os monges - os belos anciãos - possuem um corpo de carne e osso e estão sujeitos às mesmas leis da gravidade que outros homens. Apesar disso, conduzem-se como se fossem anjos. Sem corpo. É como se vivessem no Céu. Vivem conforme a sabedoria. O seu primeiro cuidado é vencer o palhas, as paixões, e viver na Terra, libertos de qualquer paixão, apatheia. É por isso que lhes chamam belos anciãos, mesmo que, pelo número de anos, não passem de adolescentes. De Athenagoras pode-se dizer: "Quem foi como ele, cabeça branca pela razão, mesmo antes de ter encanecido? Já que até Salomão reconhecia a velhice por este sinal." (2)
Apatheia é o sonho que todo o monge deseja realizar. É a Terra Prometida que todos os santos querem alcançar. E não se pouparão a nenhum esforço para lá chegar. "A alma tornou-se semelhante aos anjos pela apatheia." (3) "Há que imitar pela apatheia a pureza dos anjos." (4)
Porque foi que os santos - para atingir o Céu - procuraram primeiramente a apatheia? É porque não se pode nadar de botas calçadas. Não se pode chegar à altura dos anjos e entrar no Céu estando preso às coisas materiais e cheio de toda a espécie de paixões. Atingir a apatheia é libertar-se das paixões, ficar livre.
* (1) Livro da Sabedoria, IV, 9.
(2) São Gregório de Nazianzo: Discurso Fúnebre em Honra de São Basílio de Cesareia, XXIII, 1.
(3) São Gregório de Nissa, P. G., 44, col. 776-A.
(4) Id., P. G., 44, col. 857-A. *
São João Clímaco diz: "Para mim, penso que a apalheia não é outra coisa senão o Céu do espírito, que considera a astúcia dos demónios como coisa ridícula. Verdadeiramente impassível e reconhecido como tal, é aquele que tornou a sua carne incorruptível e elevou o espírito acima da criação, que submeteu ao espírito todas as sensações, que pôs a alma diante do Senhor e a estendeu para Ele, para além das forças naturais. Houve quem afirmasse que a apatheia é a ressurreição da alma do corpo. Outros disseram que era um perfeito conhecimento de Deus, semelhante ao dos anjos. É a perfeição sem limites dos perfeitos, como me disse alguém que a atingiu. Santifica de tal maneira o espírito, afasta-o tanto das coisas materiais, que o eleva à contemplação e o faz manter-se no Céu." (5) É certo que, como seres terrenos, apesar do seu desapego - apesar da sua apatheia-, os santos monges, com a idade, vão perdendo os dentes e os cabelos e ficam com as barbas brancas. Exactamente como os outros anciãos. Os seus corpos curvam-se ao peso dos anos. A sua carne é atacada pelas doenças, pela fraqueza. Os seus rostos cobrem-se de rugas. Mas isto não acontece exactamente como nos velhos vulgares. Porque os santos recebem ao mesmo tempo que a degradação do corpo a beleza do espírito. È quanto mais avançam na idade mais belos se tornam. Porque é a sua alma que é bela: e a alma embeleza toda a matéria feia que a cobre. A velhice dos santos não é feia. Não é aviltamento. Nem impotência. Nem miséria. Aquele que vive no espírito é exactamente como o ferro lançado ao fogo e aquecido ao rubro: torna-se brilhante. O ferro - matéria rígida por excelência - mergulhado no fogo torna-se luminoso. Tal como o próprio fogo, cuja aparência imaterial adquire.
* (5) São João Clímaco, P. G., 88, col. 1147. *
Um monge é um homem que vive na Terra a pequena ressurreição. Ao terceiro dia, Cristo ressuscitou, branco e luminoso, deslumbrando os soldados com a sua luz ofuscante. Em certa medida, todo o monge é um homem que morre e ressuscita. "A pequena ressurreição do corpo é a sua transposição da queda da luxúria à ressurreição da santificação. A pequena ressurreição da alma é a transposição do império das paixões (empatheia) ao estado de apatheia." (6)
Outro padre diz: "Se, nesta vida, alguém pudesse morrer no meio de trabalhos, transformar-se-ia todo inteiro na casa do Espírito Santo. Porque, antes de morrer, um homem assim já tinha ressuscitado como o bem-aventurado Paulo e todos quantos pela perfeição lutaram e lutam contra o pecado." (7)
Vivendo em espírito com os seus corpos materiais, os monges são tão luminosos como o ferro mergulhado no fogo. É por isso que os santos monges se tornam cada vez mais belos, cada vez mais luminosos ao envelhecer, e a degradação dos seus corpos materiais passa despercebida. Porque está escondida sob a luz do espírito.
O vestuário que cobre Athenagoras não é a sotaina de mangas largas, mas o seu manto de luz. E não há nada mais belo do que a luz. E ela veste completamente Athenagoras, da cabeça aos pés, por dentro e por fora.
Enquanto os seus corpos carnais se arruinam, em vez de se tornarem feios, os monges ganham em beleza. Afastando-se da vida terrestre, aproximam-se ao mesmo tempo do Céu e ficam cada vez
* (6) Evágrio, o Pôntico: Centúria, V, 19 e 22.
(7) Diálogo de Photice, P. G., 65, col. 1167-1212; Cem Capítulos sobre a Perfeição Espiritual, cap. 82. *
mais belos. E no dia em que o monge morre, cortando todas as amarras com a vida terrena, pertence inteiramente ao Céu. Não morre aqui, tristemente, como uma chama que se apaga. Nunca. Pelo contrário, ao morrer, o monge transforma-se completamente em luz, porque os santos são filhos da luz. Morrendo, libertam-se da matéria, que é opaca. Transformam-se em luz pura. Resplandecente. Exactamente como brilham os pirilampos ao fim do dia, depois do pôr do Sol, na erva dos prados, à beira das estradas, como se fossem exclusivamente centelhas, estrelas, sem nenhum grão de matéria. É como os monges. Como os belos anciãos. Quanto mais envelhecem mais se aproximam do Céu e mais se transfiguram em luz e beleza. Quanto mais um monge envelhece menos matéria opaca tem. E mais luz possui. E é justo que os homens lhes chamem belos anciãos. Porque são realmente belos. Não há nada mais belo que a luz. Porque a luz de Deus contém em si todas as cores da beleza. Acima de qualquer paixão. Na esplendorosa apatheia. É como o monte Branco, das neves eternas, ao meio-dia, quando lhe bate o sol.
Para Athenagoras, como para todos os belos anciãos, todos os dias da semana são domingos. Porque vivem acima do tempo. E o domingo é a imagem da eternidade. Assim como o domingo está fora dos dias da semana - porque é o sétimo dia, aquele que foi glorificado com a ressurreição de Cristo - também os monges estão fora do mundo e do tempo. A sua vida é um domingo sem fim. "Isto quer dizer um dia sem noite, sem dia seguinte e sem fim." (8)
conservou do número de anos apenas o que era belo: a brancura dos cabelos e da barba. É quase a única marca do tempo. Porque
* (8) Salmos VI, I e XI, 1; São Basílio, P. G., 39, col. 52-B. *
o seu corpo é direito como um pinheiro de alta montanha. Mantém-se direito como os jovens serranos de vinte anos. Os seus olhos cintilam como carvões ardentes e não se pode fitá-lo fixamente, de olhos nos olhos, como não se pode fixar o Sol. O seu rosto não tem uma única ruga. A pele, branca, tem uma ligeira gradação rosada como a pele dos recém-nascidos. As suas faces são cor de flor de cerejeira. Muito pura. Quase transparente. com uma patina de palidez, a marca dos jejuns, o rosto de inúmeras horas de oração. Porque os seus sessenta anos de vida monacal foram passados, na sua maior parte, em oração. Em frente de Deus. E aquele que conserva os olhos fixos em Deus durante toda a vida acaba por ficar com "o rosto transformado na imagem de Deus". (9)
Athenagoras possui uma memória que não falha. Trata os fiéis pelo seu nome, mesmo que não os tenha encontrado há trinta ou quarenta anos. Como aconteceu recentemente em Corfo, onde voltou após uma ausência de quarenta anos. Tratava pelo seu nome todos os cristãos da ilha onde fora metropolita. Porque um pastor deve seguir o exemplo de Deus e conhecer as suas ovelhas, cada uma pelo seu próprio nome. (10)
Além da beleza e da memória, a sua força é impressionante. Athenagoras tem a estatura e a força dos patriarcas do Antigo Testamento, que viviam séculos sem sofrer a acção dos anos. Athenagoras é um patriarca de granito. Como a rocha sobre a qual foi construída a sua aldeia natal. Toda a terra da sua região natal é rocha. E no nosso tempo terrível e sublime, como o dos primeiros cristãos, a Igreja precisa de um patriarca ecuménico inteiramente talhado na rocha. Um patriarca ecuménico de granito. Como Athenagoras.
* (9) São Gregório de Nissa, P. G., 44, col. 857-B.
(10) São João, X, 3. *
DEUS ESCOLHEU O SEU PATRIARCA ECUMÉNICO DO SÉCULO XX ENTRE O POVO DOS PASTOrES
HÁ dois mil anos, Cristo escolheu os seus doze apóstolos para fazer deles pescadores de homens entre autênticos pescadores, nas margens do lago Genezaré. (1) Os pescadores estavam a lançar as redes à água quando Cristo lhes disse: "Segui-me e farei de vós pescadores de homens." Os primeiros apóstolos, e entre eles Pedro e seu irmão André, eram não só pescadores autênticos como viviam também numa aldeia que se chamava Betsaida - o que significa aldeia dos pescadores. (2)
Para a escolha do patriarca ecuménico Athenagoras, na nossa época, Cristo procedeu quase do mesmo modo. O patriarca é o pastor a quem Deus confia o seu rebanho dizendo-lhe: "Apascentai o rebanho de Deus." (3)
E Deus escolheu o pastor do seu rebanho no século xx entre os verdadeiros pastores, no Épiro. Os habitantes do Pindo, no Épiro, e os da Macedónia são pastores desde sempre. Píndaro, um dos primeiros grandes poetas da Grécia antiga, referindo-se ao Pindo, terra natal de Athenagoras,
* (1) São Mateus, IV, 19.
(2) São João, I, 44.
(3) I, São Pedro, V, 2. *
chama aos seus habitantes povo de pastores. Não tinham outro nome. Bastava-lhes o nome da sua profissão terrestre. Chamavam-se a si próprios os skypclars, quer dizer os serranos. Mas vem tudo a dar no mesmo: porque pastor e serrano são geralmente quase sinónimos. Albânia significa região das montanhas em língua celta.
Apascentar o rebanho de Cristo na Terra no sublime e terrível século xx é um encargo sobre-humano. Escolhendo para primeiro pastor um verdadeiro pastor, Deus realizou um acto de sabedoria divina, carregado de símbolos.
O sinal exterior do pastor e do bispo é o bastão: o báculo ou o cajado. A vida do pastor como a do bispo são inteiramente dedicadas ao seu rebanho. Ò patriarca ecuménico não é só o pastor e o pai de todos os fiéis ortodoxos, é também o pai de todos os outros patriarcas e pastores de Cristo na
Terra.
A própria palavra patriarca é um título venerável, mais belo que todos os outros. Porque a palavra patriarca tem a mesma raiz que a palavra pátria. Ò patriarca é realmente a pátria dos homens, porque é o primeiro pai dos homens e o pai dos nossos pais. Patriarca significa etimologicamente o primeiro pai. E é ele o pai de todas as nações que existem na Terra habitada, na O'ikou-mène.
No Antigo Testamento, os patriarcas eram não só em sentido figurado, mas também no sentido da própria palavra - padres e pastores. Abraão, Isaac, Jacob e os seus doze filhos eram pastores e tinham rebanhos de ovelhas, camelos, burros e bois.
Patriarca e pastor, outrora, também eram palavras sinónimas. Segundo o Antigo Testamento, a missão dos patriarcas, na Terra, era anunciar a palavra de Deus aos seus contemporâneos e à posteridade. (4) Desde o início da vida dos homens na Terra, os patriarcas foram os depositários da tradição divina, os arautos e os pregadores da fé. Os pastores do Antigo Testamento, tal como os de hoje e de todos os tempos, nunca usaram armas. Em geral, permanecem em sítios elevados para terem permanentemente os seus rebanhos sob os olhos. Têm de velar para que certas ovelhas se não percam. Para que o lobo, o ladrão e outros perigos se não aproximem do rebanho. A primeira missão do pastor é ser vigilante. Dia e noite. A segunda virtude do verdadeiro pastor é a coragem. Porque é ele que deve enfrentar o perigo e lançar-se contra os lobos ou os ladrões, arriscando a vida, para salvar a vida das suas ovelhas. (5) A lei pede ao pastor não só que seja vigilante e dê a vida pelas suas ovelhas, mas também que seja caridoso: se uma ovelha está doente, fraca ou fatigada, é o pastor que a deve levar aos ombros. Se nasce um cordeirinho, é o pastor que o deve aquecer nos seus braços.
Os pastores usavam, como ainda hoje, uma grande capa que os cobria completamente, que lhes servia de tenda e de manta para a noite. A alimentação dos pastores era, e continua a ser, sempre frugal. Vivem afastados dos homens com os seus rebanhos. (6) Os verdadeiros pastores nunca são pagos a dinheiro, mas com produtos agrícolas, recebendo uma parte do lucro do rebanho pelos seus serviços. (7)
Esta profissão é tão bela, tão admirável, que os reis, os profetas e o próprio Deus quiseram dar a si mesmos o nome de padres e de pastores. (8)
* (4) Génese, IV, 26.
(5) Santo Ezequiel, 34, 42; São Lucas, XV, 16.
(6) São Jeremias, 48, 13; Santo Amos, 7, 14; São Lucas, XV, 16.
(7) Génese, 30, 32; São Paulo, I, cor. 9, 7.
(8) Salmo 23, 1; São João, 10, 1; São Paulo, Hebreus, 13, 20. *
Athenagoras, sob este ponto de vista, foi cumulado por Deus: porque pertence, pela carne, ao povo que é desde sempre o povo dos pastores, e recebeu de Cristo, além disso, a missão de pastorear o rebanho de Deus. É duplamente pastor. Como patriarca ecuménico é ainda o pastor dos pastores de toda a O'ikoumène, de toda a Terra habitada pelos ortodoxos, no fim deste século xx.
Reconhecendo como é belo o nome de pastor, nome que Deus, os reis e os profetas usam com orgulho, não surpreende verificar que o nascimento de Cristo foi anunciado, na Terra, primeiramente aos pastores. Os anjos, descendo do Céu à Terra, na noite de Natal, não foram anunciar a grande nova aos imperadores, nem aos sábios, nem aos ricos, mas aos pastores. (9) Os anjos misturaram-se com os pastores e cantaram com eles: "Glória a Deus e paz aos homens de boa vontade."
Porque foi a descida de Deus à Terra - que é o maior acontecimento desde que existe a humanidade - primeiramente anunciada aos pastores? Porquê e em que estão eles aptos a receber tal graça?
São Dinis, o Areopagita, ensina-nos que as revelações divinas são sempre efectuadas por via hierárquica, de cima para baixo, do superior para o inferior. Sendo os pastores os primeiros a ser prevenidos do nascimento de Cristo, isto significa que ocupam o mais alto posto na hierarquia, que são superiores aos outros homens. E São Dinis confirma que os pastores estão, com efeito, no cume da hierarquia, porque estão purificados pela Anachorèse e pela Hésychia. (10) Por outras palavras, os pastores são superiores aos outros homens por estarem purificados pelo recolhimento (Anachorice)
* (9) São Lucas, I, 18-20.
(10) São Dinis, o Areopagita, P. G., 3, col. 181-B. *
e por viverem longe das multidões, na quietude e no silêncio (Hésychià).
Aí está como, no domínio moral e espiritual, todas as hierarquias históricas são derrubadas. As crianças e os pastores passam à frente pela sua pureza. Isto foi demonstrado sem ambiguidade no nascimento de Cristo. A Hésychià e a Anachorèse estão na base de toda a vida perfeita e de todo o progresso espiritual. A Hésychià e a Anachorèse são indispensáveis nas actividades filosóficas." (11) Não há santidade na Terra, nem vida intelectual, nem criação artística, ou outra actividade no domínio do espírito, sem Hésychià e sem Anachorèse, sem recolhimento, sem silêncio e sem quietude. Os Salmos ensinaram-nos isto há muito, porque foi dito: "Deus vive em casa do solitário." (12) Ou: "Minha alma está na calma e no silêncio." (13) "Deus não está no ruído." (14) "O Reino de Deus não vem com o fragor." (15) Soube-se desde sempre que o homem só pode encontrar Deus na Anachorèse e na Hésychià. "Deus só habita realmente em nós se lá O instalarmos... Só seremos realmente o templo de Deus se emigrarmos para Ele, depois de ter cortado com as ocupações terrestres." (16) "Só se pode alcançar Deus nno silêncio." (17)
Claro que os pastores ignoram que são os primeiros na verdadeira hierarquia. E isto graças à sua maneira de viver tão pura.
Pode-se ousar dizer que Deus anunciou o seu nascimento primeiramente aos pastores por serem os maiores teólogos. "Porque é a pureza que faz
* (11) Platão: Política, 37-E.
(12) Salmo 67, 7.
(13) Ibid. 131, 2.
(14) I Reis, 19, 11.
(15) São Lucas, 17, 21.
(16) São Basílio: Cartas, 2, 4.
(17) São Jeremias: Lamentações, 3, 26. *
os teólogos." (18) Não são os diplomas, nem os títulos que fazem os teólogos, ao contrário do que se pensa geralmente. Mas os pastores chegaram à teologia pela pureza da sua vida, pela Anachorèse e pela Hésychia, sem darem por isso. Os pastores atingiram a pureza sem o saberem como os "grous que voam em forma de letras sem saberem o alfabeto." (19)
Apesar de sabermos agora todas estas coisas, a escolha do patriarca ecuménico, no século xx, entre os pastores, é ainda mais espantosa e paradoxal que o nascimento de Deus, no Natal, anunciado em primeira mão aos pastores. O século xx tem bispos que devoram bibliotecas inteiras antes de serem entronizados como papas, patriarcas, metropolitas e cardeais nas igrejas iluminadas a néon e automaticamente aquecidas. Os cristãos do século xx aprendem o catecismo na imprensa social. A sua Bíblia é a Enciclopédia. As primeiras noções de Deus e do Céu que o homem do século xx recebe são tiradas das obras de Freud e de Karl Marx. Os sermões dos padres são feitos hoje, e mesmo nas aldeias, segundo dados estatísticos- ciência positiva - e com citações da imprensa e dos acontecimentos políticos e sociais. A Igreja do século xx é uma instituição histórica. As suas relações com Deus, o Céu e os anjos são tão vagas como as relações que a História mantém com a Pré-História. A vida dos anjos, dos querubins e dos arcanjos faz-nos sorrir com a mesma indulgência com que se ouvem as historietas referentes à vida dos homens das eras do bronze e da pedra. Quando inventaram a roda e descobriram o fogo. E aqui está como neste século, iluminado até ao paroxismo, Deus escolheu um pastor, descendente da mais pura raça de pastores, para lhe confiar a direcção da Santa Igreja Ortodoxa com
* (18) São João Clímaco, P. G., 88, col. 1157.
(19) Evágrio, o Pôntico: Centúrias, VI, 37. *
os seus duzentos milhões de fiéis, que vivem quase todos nas repúblicas penitenciárias anticristãs.
Porque escolheu Deus Athenagoras? Porque elevou Deus novamente a uma dignidade tão inesperada e paradoxal um pastor, como fizera na noite de Natal, em Belém?
Às vezes, penso que Deus glorificou de novo os pastores por a sua raça estar actualmente em vias de desaparição. Seria um acto sentimental de Deus? com certeza, a profissão de pastor já não existe em nenhum país civilizado. Mas esta corporação não é a única a desaparecer. Há milhares de profissões que já desapareceram, que estão em vias de desaparição ou que vão desaparecer amanhã: a profissão de carpinteiro, a de José, de ferrador, de moleiro, de cocheiro, de sapateiro remendão... Graças ao soberbo progresso técnico e às maravilhosas invenções dos homens, as profissões de outrora, por mais poéticas que sejam, são substituídas pelas fábricas e pela produção em série, à escala industrial. É a lei do progresso. Já não há cocheiros, nem diligências, nem rendilheiras e bordadeiras. São perdas estritamente sentimentais. A sua desaparição pode-nos provocar a nostalgia e uma lágrima de saudade. Quando muito.
com os pastores é totalmente diferente. A sua desaparição é o sinal precursor de um drama não menos catastrófico que a queda de Adão e Eva e a expulsão do Paraíso. A desaparição dos pastores é um sintoma extremamente grave para a humanidade inteira e para o destino do homem na Terra. com a desaparição dos pastores, é o próprio homem que está condenado a desaparecer. É uma afirmação precisa. Não uma figura de retórica. Não é uma alegoria. Nem uma linguagem simbólica.
Temos de esclarecer que não se trata da profissão de pastor no sentido utilitário. Não. Podem-se criar ovelhas em parques cercados electricamente e sem pastores. Podem-se ordenhar os mamíferos mecanicamente. Podem-se tosquiar com tesouras eléctricas, por tosquiadores diplomados, qualificados, que desempenharão melhor as suas funções que os pastores. Podem-se mandar tratar os rebanhos por um veterinário, melhor do que fazem os pastores. Podem-se assegurar às ovelhas, às vacas, aos bois condições sanitárias de higiene, alojamento, alimentação e cuidados físicos como, antigamente, os homens nem para si próprios tinham. Os rebanhos de ovelhas, de vacas, de bois, os porcos, os cavalos têm hoje - nos países de civilização atlântica - condições de vida superiores às dos homens que se encontram fora do Ocidente. E isto sem pastores.
Um facto é certo: faltam pastores no Ocidente. Foi nos Estados Unidos da América que o facto se deu pela primeira vez. Os Americanos, que possuem tudo, que são ricos, que não têm falta de nada e têm tudo em excesso, há meio século começaram a ter falta de pastores. Já não se encontravam. Tinham ovelhas nos Estados Unidos e da melhor raça. Tinham pastagens sem fim. com uma erva rica e linda como veludo. Mas os Americanos não encontravam, entre os seus, pessoas que aceitassem ser pastores. Até os negros se esquivavam.
Sei, desde criança, que os engajadores americanos vinham aos Cárpatos, como iam às montanhas do Pindo - onde nasceu o patriarca Athenagoras-, às montanhas da Eslováquia, aos Pirenéus e à região basca, em busca de pastores. Transportavam-nos de avião para os Estados Unidos e pagavam-lhes salários mais elevados que os dos professores de Matemática ou de Latim. Já só havia pastores em certas localidades do mundo, como acontece com todas as castas em vias de desaparição.
Porque desaparecem eles dos países civilizados?
Toda a civilização possui em si, além do bom e do bem, alguns germes do mal. Uma obra terrestre nunca é ilimitada. Contém, na sua própria composição, o germe da destruição e da morte. A realização de uma obra perfeita, por mais perfeita que seja, nunca é perfeita na Terra. O homem não tem o direito de apreciar, cá em baixo, a pureza absoluta e a perfeição. Até a água que bebemos, se for quimicamente pura, é nociva para o homem. Para que a água seja bebível, sem perigo e com proveito para os homens, deve conter uma dose de impurezas, de sais e elementos que a tornam quimicamente impura.
A civilização atlântica é a maior maravilha da Terra. À força de inteligência, de labor, de perseverança, o homem ocidental criou uma civilização que ultrapassa as coisas imagináveis. Falava-se outrora das sete maravilhas do mundo. Hoje, pode-se falar de uma única maravilha do mundo que anula todas as outras: é a civilização do homem ocidental.
As florestas, as montanhas, as árvores, os lagos, os regatos e os prados - todas as belezas da Natureza- são eclipsados pela beleza do universo técnico que o homem criou à sua volta. As casas são mais altas e belas que as montanhas de cumes cobertos de neves eternas. As auto-estradas são mais bonitas que os rios e os seus afluentes. Nas grandes cidades - como em Nova Iorque-, o dia e a noite foram abolidos. Em vez da lua e do sol, temos a luz contínua do néon, como girândolas de estrelas suspensas sobre as ruas e as casas. Também foram abolidas as quatro estações e, graças às máquinas, obtém-se a temperatura que se pretende, fazendo do Verão Inverno e do Inverno Verão, como se pode transformar a noite em dia e o dia em noite. Não se aquece e condiciona apenas as casas, as fábricas e os escritórios, as ruas também são aquecidas, como salas de baile.
As distâncias no espaço foram abolidas. Os aviões, os helicópteros, as naves interplanetárias ultrapassaram há muito a beleza e a maestria das aves do céu, que deslumbraram os homens durante milénios.
O universo técnico construído pelo homem para lá viver, à medida do homem, substitui completamente o rude universo da Natureza, que não foi criado só para o homem, mas também para a vida dos animais, das plantas e dos minerais.
O Ocidente vive na Terra num paraíso construído pelo homem para o homem. Tudo é belo. Confortável. Engenhoso. Inesperado. Maravilhoso.
Se descermos para o metro, as paredes são verdadeiras tapeçarias de contos de fadas, com os seus cartazes, as suas luzes e as suas montras. Os bulevares são como sonhos materializados. Os comboios, os autocarros, os metros, os aviões, os barcos e todos os meios de transporte são iluminados, confortáveis e belos como outrora só eram as salas de festas. Vive-se agora numa sala de baile. Quotidianamente. O carro mais barato tem almofadas mais macias que as das sultanas e dos paxás de outrora. Os vestuários que brilham como o ouro, a prata e as pedras preciosas, e eram reservados outrora às imperatrizes e às grandes vedetas, estão, no Ocidente, ao alcance de qualquer mulher, mesmo que seja pobre.
A habitação, o escritório e a fábrica parecem quermesses. Qualquer ambiente onde entre o trabalho e viva o homem ocidental é uma atmosfera de feira. De grande arraial. E como tudo é feira e tudo é espectáculo suprimiram as cortinas. A civilização americano-europeia é uma civilização sem cortinas. Pois não se quer estar separado do exterior, mesmo quando em nossa casa. Não se suprimiram unicamente as lindas cortinas de renda que escondiam a nossa vida íntima, mas também as portas, substituindo-as por painéis de vidro. Por fim, construíram-se casas de paredes inteiras de vidro, para que o homem esteja sempre cá fora, para que não perca o espectáculo. E quando entra em casa, tem revistas, magazines ilustrados em que o texto é substituído por fotografias e histórias de banda desenhada. Porque a escrita é fatigante. Há a telefonia, a televisão, o telefone, o intercomunicador, o gravador, o gira-discos... Não se pode entrar num teatro e sair antes do fim do espectáculo. A não ser em caso de morte. No mundo ocidental, a vida do homem é um espectáculo permanente. É espectador. E quando se é espectador, vive-se com o que está em cena, não a nossa vida, mas a vida das personagens que estão no palco ou no écran diante de nós. Nós próprios somos actores e espectadores de um mesmo espectáculo.
O homem ocidental habituou-se a estar sempre cá fora. Sempre em pleno espectáculo. A sua vida resume-se à vida do exterior. E como as pessoas que estão sempre ausentes fecham as portadas das janelas de suas casas, assim o homem ocidental, abandonando o seu ser interior, vive cá fora. Perdido na massa. O lar, a vida íntima, foram abolidos. O homem nunca está consigo. Se o forçam a isso, é como se o obrigassem a viver no vazio e no aniquilamento. Não pode aceitar. Não tem vida interior. Dentro, tem o vazio, o aniquilamento. O interior da alma humana, a que Santa Teresa de Ávila chamava os castelos interiores, foi abandonado há muito, está em ruínas. Os castelos interiores de todos os homens estão mais arruinados que os castelos dos senhores feudais da Idade Média. Mas se o homem quisesse voltar, de quando em quando, a esses castelos interiores e viver lá consigo próprio - mesmo que fosse só por alguns dias-, já não o conseguia. Ninguém pode viver no vazio. Nem no aniquilamento. Nem no deserto. E o homem permanece na rua. No exterior. Na massa. É uma parte da massa. Amputou a sua parte interior. Está mutilado. Enfermo. Estropiado. Privado do seu ser invisível, espiritual, interior.
E aqui reside o drama. O mais terrível dos dramas. Porque desertando de si próprio, fugindo de si mesmo, anula-se de um só golpe. Completamente. O homem é criado à imagem de Deus e, se o circunscrevemos, vê-se que o corpo perecível, a sua carne e os seus ossos, são dele, mas o seu corpo não é ele próprio. Por isso, pode-se eliminar ou trocar certas partes do corpo humano, até o coração, e o homem continuar a viver. Porque o homem não é ele próprio no seu corpo. Nem nos seus ossos. O homem não é unicamente um ser visível. É a alma com os seus castelos interiores que é igual a nós mesmos. O homem não é ele próprio em parte nenhuma no exterior. Mas na sua vida interior. Por isso, foi dito: "Escava no interior, é no interior que está a fonte de todo o bem e ela pode brotar sem cessar se tu escavares sempre." (20)"Verás que em ti se encontra tudo quanto há no mundo." (21) É pela nossa alma que somos idênticos a nós mesmos, a Deus, aos anjos. É pelo espírito que somos soberanos e livres para escolher o nosso destino. Soberanos absolutos. E o espírito não é uma coisa visível. Nem exterior. Desertando de nós mesmos, dos nossos castelos interiores e pondo as nossas esperanças e a nossa vida lá fora, tornando-nos homens-massa, não nos podemos conduzir pelo nosso livre arbítrio. Perdemos a nossa liberdade e perdemo-nos a nós próprios. Definitivamente. Conduzimo-nos segundo as leis da massa, que são as leis mecânicas, como as leis que regem os reinos animal, vegetal e mineral. Já não dispomos de nós próprios. Caímos na pior das escravaturas: uma escravatura que nada tem a ver
* (20) Marco Aurélio: Pensamentos, 7, 59.
(21) Orígenes, P. G., 13, col. 1081. *
com a de outrora. É pior. Renunciamos simplesmente a ser homens e tornamo-nos coisas. Unidades. Um corpo híbrido chamado massa humana. Que se desenvolve segundo leis estritamente mecânicas. Como os autómatos. Porque participamos nela com o nosso corpo. com aquilo que temos de exterior. De visível. Entramos na massa amputando a melhor parte de nós próprios, o nosso espírito, o nosso nós mesmos, o nosso livre arbítrio, a nossa identidade. E, assim, estropiados, gozamos a nossa civilização. À custa da monstruosa automutilação.
São Gregório de Nissa dizia: "Deus fez com que nós, homens, tivéssemos cada um o nosso reino, do qual cada indivíduo seria senhor absoluto. Reside nisso a vontade, faculdade isenta de servidão, livre, fundada na independência da nossa inteligência." (22)
A inteligência de que nos vangloriamos, porque foi pela nossa inteligência que criámos a civilização inaudita em que vivemos. Perdemos esta inteligência abandonando-nos a nós próprios, os nossos castelos interiores, os nossos reinos, onde éramos senhores e soberanos. Porque quando nos tornarmos massa, conduzimo-nos - mesmo utilizando a nossa razão - segundo as leis da massa. Esta é a terrível abdicação. Abdicamos da realeza para sermos integrados num rebanho como animais, como formigas, como abelhas, e nós, filhos de Deus, seres livres e soberanos, deixamo-nos conduzir, como os animais, as plantas e os minerais, pelas leis mecânicas e sociais, exteriores ao nosso eu, amputados de nós mesmos. "Cabe somente aos seres inanimados e privados de razão deixar-se conduzir por uma vontade estranha. A natureza racional e pensante, pelo contrário, quando põe de lado a liberdade, perde ao mesmo tempo o privilégio do pensamento.
* (22) São Gregório de Nissa, P. G., 45, col. 77-A. *
Que uso poderia fazer da razão se o poder de escolha a seu bel-prazer depende de um outro?" (23) Esse outro, nosso soberano, de quem somos escravos, é o mundo exterior. Visível. Maravilhoso. Criado por nós.
Portanto, é normal que os países civilizados já não tenham mais pastores. Um pastor é um homem que pode estar sozinho consigo próprio. Porque tem um eu próprio. É uma criatura livre. Não é uma entidade-massa. Sendo um homem, não se aborrece nos seus castelos interiores. O espectáculo de fora, a feira, a rua, o arraial do mundo, também nos agrada a nós, homens não amputados de nós próprios. Mas sentimo-nos melhor quando entramos em nós, nos nossos castelos interiores e quando nos encontramos connosco. É quando encontramos o nosso eu eterno e a nossa identidade com Deus. Os anjos. O nosso reino está em nós.
A casta de pessoas não mutiladas, não expropriadas do seu interior, está em vias de extinção. É normal que já não haja pastores, homens que podem estar sós.
Um corpo, por mais belo que seja, nunca passa de um saco de carne, de gordura e de ossos - se estiver amputado da sua alma. Tal homem não pode ser ordenado padre, diácono ou bispo. O homem-massa é um escravo. É dirigido pelas leis da matéria e da massa. O cânone apostólico oitenta e dois proíbe a ordenação de escravos. E São Paulo recusa-se a ordenar um tal Onésimo antes de o libertar da sua escravidão. (24)
Um homem-massa dirigido não por si próprio, mas vivendo apenas no exterior segundo as leis mecânicas da massa e do corpo, é um homem amputado. O cânone apostólico setenta e sete proíbe a ordenação dos zarolhos e dos mancos. O cânone
* (23) São Gregório de Nissa, P. G., 45, col. 77-C.
(24) São Paulo: Epístola a Filémon, 15, 18, 19. *
apostólico setenta e oito proíbe a ordenação dos cegos e dos surdos. E acontece o mesmo com os enfermos, os estropiados, os mutilados. Mas é muito maior a estropiação, a mutilação, a enfermidade daqueles que foram amputados da sua vida interior, da sua alma, do seu espírito, da sua liberdade de escolha, e só conhecem na Terra a vida material, exterior, visível.
Escolhendo Athenagoras seu patriarca ecuménico no final deste deslumbrante século xx, em que toda a vida humana tem o centro de gravitação no exterior, escolhendo Athenagoras entre os pastores do mundo, convida-nos a procurar a verdadeira beleza que está em nós próprios. A não ser como a maioria dos homens que vivem neste século da vigésima quinta hora. E que nem sequer podem estar cinco minutos a sós consigo mesmos, na solidão. Porque o seu eu próprio é o vazio. E o nada. Deus convida-nos a ser como os pastores do Épiro, da Macedónia, dos Cárpatos, dos Pirenéus, da Eslováquia e de Belém, que nunca se aborrecem consigo mesmos. Nós somos convidados a tornar-nos homens completos como os pastores. A ter uma alma e um corpo. Porque "bastar-se a si próprio é possuir o mais perfeito dos bens. É estar numa disposição que permite comandar-se a si mesmo". (25) "Deus vive em casa do solitário." (26) O homem verdadeiro, o homem integral, não está na carne. Está na sua alma. E no seu espírito. Porque a carne tem acesso ao Céu e à ressurreição, como a alma, graças ao espírito do homem que deseja a matéria. É o espírito que desafia a carne e os ossos e os torna imortais. "O homem foi criado corpo e alma para que em si o mundo material tenha acesso aos bens do espírito." (27)" Foi dito:
* (25) Platão: Definições, 42-B.
(26) Salmo 67, 7. *
(27) São Gregório de Nissa. P. G., 44, col. 1166-C. *
"Ultrapassa o corpo e alegra-te em espírito." "Ultrapassa o espírito e alegra-te em Deus." (28)
Sem espírito e sem liberdade, não há futuro. Nenhum futuro. Só a morte. Como a morte dos animais. Como a das plantas. Das coisas. A morte total. Sem ressurreição. Portanto, não é na carne que o homem se encontra. Mas na sua alma. E no seu espírito. E nós somos à semelhança de Deus não por semelhança carnal, nem pela matéria do nosso corpo, nem pela cor da nossa pele ou dos nossos cabelos, nem pela cor dos nossos olhos, nem pela nossa estatura. Somos realmente à imagem e semelhança de Deus pelo nosso espírito e pela nossa liberdade. "A liberdade é a identidade com a sua própria natureza." (29) Aquele que abandona a sua liberdade é destituído das prerrogativas divinas e humanas. Aquele que abandona a liberdade é relegado para o reino das criaturas inferiores, que são dirigidas do exterior, pelas leis mecânicas, como as plantas, os animais e os minerais. E isto já aconteceu ao homem-massa. O homem do século da vigésima quinta hora.
* (28) Santo Agostinho, P. L., 35, col. 1562.
(29) São Gregório de Nissa, P, G., 46, col. 101-D. *
O NASCIMENTO DOS ANIMAIS E DAS CRIANÇAS CRISTÃS NÃO CONSTA DOS ARQUIVOS dO REGISTO CIVIL...
É por isso que Deus escolheu o seu pastor ecuménico entre os pastores. Athenagoras nasceu a 27 de Março de 1886, numa aldeia chamada Terra Plana, no Épiro, no território do antigo Império Otomano. Nasceu proletário. Mas não proletário no sentido adocicado que aparece na sociologia moderna, nos livros de Karl Marx, Lenine e outros. Nascer proletário no Império Turco era chegar à Terra com a mesma categoria dos animais e dos objectos. Quem faria hoje a tolice de se apresentar na repartição para pedir a inscrição no Registo Civil dos gatinhos ou dos cachorros que as gatas ou as cadelas pariram?
O nascimento das crianças cristãs no território do antigo Império Turco, aos olhos da lei, era análogo ao nascimento dos animaizinhos.
Assim nasceu Athenagoras. Para não manchar o papel, para não profanar a caneta do funcionário turco, para não sujar a tinta e não cometer sacrilégio, nunca se inscrevia, mesmo nunca, no Registo Civil do Império o nome e a data de nascimento das crianças cristãs. Como não se inscreve nos registos civis o nascimento dos animais. Uma criança cristã era tão impura como os ratos, os cães, os porcos. Era filho de pais infiéis. Dos cristãos.
Não se podia cometer o sacrilégio, contra as crianças muçulmanas, de registar os nomes dos cachorros e dos cristãos.
Sendo esta a lei, o nome e a data do nascimento de Athenagoras nunca foram inscritos nas repartições do Registo Civil do grande Império Otomano, em cujo território nasceu na Primavera de
1886. Isto porque nasceu de mãe e de pai cristãos. Nasceu, portanto, fora da comunidade dos homens que viviam no Império: nasceu cristão. O nome dos recém-nascidos cristãos era inscrito unicamente no Céu pelos anjos, nunca na Terra pelos Turcos.
- O seu nascimento, Vossa Santidade - disse ao patriarca-, foi registado pelos anjos no Céu, mas em parte alguma da Terra. Sois, desde o nascimento, um cidadão do Céu...
- Que mais quer inventar, padre Virgil? - pergunta o patriarca.
É severo. Não gosta que brinque com as coisas sagradas. Por dizer que nasceu cidadão do Céu e não da Terra. Como os anjos.
- Não invento nada, Vossa Santidade - repliquei. - Concluo que o seu nascimento não está registado em parte alguma da Terra. unicamente no Céu. Não é exacto?
- Fui inscrito nos registos da igreja... Pelo pároco da freguesia.
- Quer dizer no Céu - emendei.
O patriarca defende-se. Afirma que o seu nome e data do seu nascimento foram marcados na Terra, na igreja. No dia do seu baptismo. Mas uma paróquia cristã é exactamente como uma colónia -em território estrangeiro. Uma paróquia cristã é uma comunidade de cidadãos do Céu que vivem na Terra. O padre desempenha o papel de cônsul de Deus ao registar o nome do recém-nascido baptizado entre os cidadãos do Reino do Alto. Uma paróquia é extraterritorial na Terra. Uma paróquia pertence ao Céu. É uma assembleia de cidadãos do Alto que se encontram temporariamente cá em baixo. Não. Nenhuma paróquia é uma unidade da Terra. A palavra paroikein designa na Bíblia (1) o estrangeiro que reside num país onde não tem direito de cidadania - ou direitos civis, como se diz hoje.
"A igreja de Deus e a paróquia, que é a assembleia dos fiéis na igreja, é como uma estrangeira neste mundo em que vive." (2) São Clemente de Roma é ainda mais claro e mais explícito. Quando escreve cartas a uma igreja, envia-as para o Céu, que está temporária e provisoriamente em qualquer local da Terra, porque foi dito: "A igreja de Deus que reside em Roma, a igreja de Deus que reside em Corinto." (3) A igreja está no Céu. A sua presença na Terra é como a caixa do correio que temos numa ou noutra cidade para receber as cartas posta restante durante a viagem. Porque "os cristãos residem cada um em pátrias particulares, mas como pessoas que estão apenas domiciliadas... Vivem no mundo sem serem do mundo". (4)
"Para o cristão, toda a terra estrangeira é uma pátria e toda a pátria é uma terra estrangeira." (5)
- Isso é válido para todos os cristãos - diz o patriarca. - Não sou diferente em nada.
- Não, Vossa Santidade é diferente. Porque todo o cristão que nasce na Alemanha, em França, em Inglaterra, possui uma dupla cidadania. Primeiramente é cidadão do império, da república e do reino terrestre, no território em que nasceu, e, depois, é cidadão do Céu pela inscrição nos registos da paróquia quando é baptizado... Mesmo que nasça num avião ou num barco, tem uma
* (1) Génese, 12, 10 e 17, 10.
(2) São Lucas, 24, 28; São Paulo: Epístola aos Hebreus, 11, 9; São Pedro, 2, 11; São Paulo: Epístola aos Efésios, 2, 19.
(3) São Clemente de Roma: Epístola aos Coríntios.
(4) Epístola a Diogneto, 5, 6.
(5) Id., IV, 5. *
dupla cidadania: a da nação a que pertence o navio ou o avião e a do Céu...
"Mas Vossa Santidade, que nasceu no Império Turco, estava privado da cidadania terrestre... Não se podia ser súbdito do grande Império Otomano e da Porta Sublime sendo filho de pais cristãos... Nascera na Terra, mas não tinha nenhuns direitos na Terra... Nascendo cristão no Império Turco, possuía exclusivamente o direito de cidadão do Céu... O padre desempenha na Terra o papel de cônsul do Rei do Céu. E foi apenas em casa do padre que o vosso nome foi inscrito, a 27 de Março de 1886, em Terra Plana.
O patriarca olha para mim. Fixamente. Desde que nasceu, qualquer pertença a uma pátria terrestre está-lhe interdita. Como diz São Basílio: "A tua verdadeira pátria é a Jerusalém do Alto. Os teus concidadãos e os teus compatriotas são os primogénitos, aqueles cujo nome está inscrito no Céu." (6)
- Onde quer chegar? - pergunta o patriarca.
- Sinto-me orgulhoso, Vossa Santidade - respondo-lhe. - Todos os patriarcas, todos os bispos e todos os padres têm uma dupla cidadania: a do Império da Terra e a do Reino do Céu...
"Mas vós, nosso patriarca ecuménico, Vossa Santidade, nascestes sem nenhuma cidadania terrestre, sois somente cidadão do Céu. Vossa Santidade não pertence a nenhum reino da Terra... Praticamente, isso não altera nada. Mas, simbolicamente, isto é um motivo de orgulho para mim. Pelo vosso nascimento, pertenceis exclusivamente ao Céu e a nenhum dos reinos da Terra. A Terra não vos pode reivindicar.
--Não tenho nenhum mérito pessoal nisso...
* (6) São Basílio, P. G., 39, col. 192-B; São Paulo: Epístola aos Hebreus, I, 33. *
Todas as crianças cristãs nascidas no meu tempo estavam na mesma situação. Todas.
- É certo... - replico. - Mas é sublime que Deus nos tenha dado, neste século, um patriarca ecuménico que está na Terra sem ser súbdito de nenhum império da Terra. Vossa Santidade é exactamente o patriarca, tal como foi definido nas Escrituras Sagradas: "Vós estais no mundo, mas não pertenceis ao mundo." (7) Pode afirmar esta verdade em sentido próprio e em sentido figurado. com os documentos na mão. Só vós. Porque os outros bispos, patriarcas ou arcebispos são cidadãos de duas pátrias. Vós, desde o nascimento, já não éreis cidadão da Terra. De nenhum império da Terra. Mas exclusivamente do Céu. Como os anjos, os arcanjos e os querubins...
O patriarca Athenagoras sorriu. Exactamente como sorri ao ver brincar as crianças. Porque as crianças também têm uma lógica estrita nas suas brincadeiras. E o patriarca quer dizer que os poetas são como as crianças. Mostra-me a página onde São Gregório de Nazianzo escreveu sobre São Basílio: "Foi tal a força da sua dialéctica que seria mais fácil sair do labirinto que das redes do seu raciocínio." (8) Mas o patriarca bem sabe que o que acabo de lhe dizer não é dialéctica. É um facto. Rude. Autêntico. Como nos processos verbais de verificação autenticada. Ele nasceu no Céu.
* (7) São João, 15, 19.
(8) São Gregório de Nazianzo, P. G., 36, col. 528. *
ATHENAGORAS NASCEU NO CÉU COMO ADÃO, O PRIMEIRO HOMEM
MAS se esta afirmação se presta ao sorriso, é preciso assinalar os factos. Como num processo verbal. Mas a posse do Céu sobre o patriarca Athenagoras é ao mesmo tempo uma posse geográfica. A sua aldeia natal chama-se Terra Plana. Os romenos da região pronunciam Tzara Plana. Mas é a mesma coisa. São palavras puramente latinas que têm o mesmo significado.
É uma pequena terreola situada no Norte da Grécia, no Épiro. A poucos quilómetros da Albânia, a região das montanhas. Terra Plana é um lugarejo tão desconhecido como o era Nazaré antes do nascimento de Cristo. O facto de Deus ter nascido na aldeia de Nazaré provocou, desde logo, os sarcasmos dos escribas, dos fariseus e da alta sociedade, que dizia: "Poderá sair qualquer coisa de Nazaré?" (1)
Como é que Deus escolheu o seu patriarca ecuménico numa aldeia tão pequena, tão isolada, tão desconhecida como Terra Plana, cujo nome não aparece em nenhum mapa turístico? Logicamente é um paradoxo. Os grandes homens devem nascer nas grandes cidades. Deus devia ter nascido em Jerusalém ou em Roma. Athenagoras em
* (1) São João, I, 46. *
Constantinopla ou Atenas. Mas a escolha de Deus é sempre diferente da escolha dos homens. Assim, Deus quis que o patriarca ecuménico, o primeiro pastor da Santa Igreja Ortodoxa e o pai de duzentos milhões de fiéis, no fim deste século xx, nascesse na aldeia desconhecida de Terra Plana.
Fui a esse lugarejo. Não há comboios, nem estradas asfaltadas para lá chegar. É preciso utilizar as pistas das montanhas. Mesmo que lhes chamem estradas, são pistas.
Em Terra Plana, como em todas as aldeias e lugarejos da região, não há nenhuma superfície plana. A terra - se se pode chamar terra aos rochedos e à pedra destas montanhas - é toda ela e por toda a parte, a perder de vista, o contrário de uma planície. Não há nenhuma superfície horizontal. Por todo o lado a terra rochosa é escarpada, abrupta, inclinada, sinuosa, mesmo vertical. Por toda a parte só há abismos e cumes. Altos e precipícios. Picos e ravinas. Nada plano. Nada horizontal.
Para chegar a Terra Plana, que é no alto das montanhas, é preciso subir sem parar. Subir sempre. O pé nunca encontra uma superfície plana para pousar. Nesta região do Épiro, andar significa subir ou descer. Nunca se apoia o pé esquerdo no mesmo plano do pé direito. Pousa-se sempre mais acima ou mais abaixo. Os dois pés nunca estão à mesma altura. Penso que só por ironia se pode chamar Terra Plana à terra natal do patriarca. Por contraste. Porque aqui nada, absolutamente nada, é plano. Sobretudo a terra. É exactamente o contrário.
As casas também são construídas em planos inclinados. Assim, o quarto que, à frente, é no primeiro andar situa-se no mesmo plano do quarto que, no lado oposto, está na cave.
Quando cheguei ao centro da aldeia de Terra Plana, no alto da serra, parei para tomar alento.
Respirava olhando em redor. E tinha a impressão de estar na ponte de um navio, no meio do oceano: tudo à minha volta era plano como a superfície do mar. Só então compreendi porque chamavam plana àquela aldeia. Mas a planície que se estendia à minha volta não era a Terra, era o Céu. Quem chega à aldeia fica como os aviadores, acima das nuvens. A norte ou a sul, a leste ou a oeste, a perder de vista não se vê senão a planície azul do Céu. Estamos no meio do Céu. Que é plano como uma estepe. As raras nuvens passam como brancos rebanhos de carneiros, abaixo dos nossos pés, abaixo das casas, abaixo da aldeia. As nuvens ocultam-nos a vista da terra, do vale. Não se vê a Terra. Vê-se apenas a planície azul do Céu. Visível de todos os lados. O Céu, aqui, é como uma estepe azul, e os habitantes de Terra Plana vivem realmente nas suas rochas escarpadas, no meio de uma espécie de estepe azul. Vive-se no Céu. A Terra - Terra que fica em baixo, sob os nossos pés - nem sequer se vê. Entre nós e ela, há as nuvens. Estamos verdadeiramente no Céu. Desligados da Terra. Visualmente. E materialmente. Porque as pistas são difíceis. E no Inverno, por causa da neve, a aldeia é completamente relegada para o Céu. Deixa de haver qualquer ligação, qualquer contacto com a Terra. Estamos como num balão ao qual se cortou a amarra que o prendia à Terra. Durante todo o Inverno, a aldeia de Terra Plana faz parte integrante da planície celeste. A questão é saber porque se chama a aldeia Terra Plana, e não Planície do Céu. Porque é do Céu que se trata. É ele a planície. Porque se há-de chamar Terra ao Céu?
Penso que a explicação é a seguinte: em Terra Plana, as casas são construídas na grande planície do Céu. É um facto. Mas os alicerces destas casas apoiam-se nos rochedos terrestres. As gentes de Terra Plana são realmente plantas celestes, como Platão chamava aos homens. (2) Os habitantes de Terra Plana só têm os pés na Terra - ou antes, na pedra , o resto dos seus corpos está no Céu. As
suas casas são construídas no Céu. Os animais vivem com eles, na planície do Céu. Cavam os seus túmulos na rocha, mas sempre na planície azul do Céu. A sua vida inteira decorre longe da Terra. Separada da Terra. No Céu. Mas porque chamar Céu à Terra? Porque a planície de que se trata no nome da aldeia não é uma planície terrestre, mas sim a planície azul do Céu onde eles moram. Penso que esta denominação se deve ao facto de, na aldeia natal do patriarca Athenagoras, ser impossível traçar a fronteira que separa o Céu e a Terra. Às vezes - nas noites claras e estreladas - o Céu fica muito alto. Fica por cima da aldeia. Exactamente como uma cúpula de basílica. Azul. Nessas noites claras, a aldeia está a uma enorme distância do Céu. Está sobre os rochedos da Terra.
Outras vezes, pelo contrário, o Céu está tão baixo que a fronteira que o separa da Terra aparece em baixo, num plano inferior à aldeia. Então Terra Plana está situada bem no Céu. E todas as nuvens passam por baixo das casas, por baixo dos pés dos homens e dos animais. Às vezes, a fronteira entre o Céu e a Terra atravessa a aldeia, e então os homens, os animais, as árvores já não sabem se se encontram no Céu ou na Terra. Porque o Céu e a Terra estão misturados em Terra Plana, como as águas doces de um rio se misturam com as águas salgadas do mar, nos estuários...
O facto de se atreverem a chamar Terra ao Céu é ao mesmo tempo o sinal de intimidade que se deve à vizinhança. Os habitantes de Terra Plana estão tão perto do Céu que se podem permitir intimidades normais entre vizinhos muito próximos.
* (2) Platão: Temeu, 90-A; Clemente de Alexandria, G. C. S., tomos 12, 72 c 28. *
Não só tratam por tu os habitantes do Céu, não só nascem, vivem e morrem no Céu, como ainda um grupo de epirotas, imigrados na Sicília, há cinco séculos atrás, por causa dos Turcos, continua a chamar à Mãe de Deus e Rainha do Céu, a Santa Virgem Maria, Nostra Condottiera. Dirigem-se à Mãe de Deus - ainda hoje-, na sua aldeia perto de Palermo, com a intimidade com que se fala a uma pessoa de família. Aqui trata-se por tu Deus, a Mãe de Deus, os anjos e todos os vizinhos das Alturas...
Depois de ter visitado Terra Plana, aldeia natal de Sua Santidade Athenagoras, o patriarca ecuménico, cujo nascimento foi efectivamente registado apenas no Céu, pelos anjos, e não em nenhuma pátria terrestre, posso dizer - com o laconismo de uma testemunha que tem a certeza daquilo que viu - que Athenagoras nasceu numa aldeia geogràficamente mais situada no Céu do que na Terra.
Athenagoras nasceu como Adão, o primeiro homem, na planura do Céu. E só muito mais tarde desceu à Terra.
Esta afirmação corre o risco de ser interpretada como uma figura de retórica. Seria um erro grave. Porque, teologicamente, o Céu e a Terra, após a ressurreição de Cristo, já não são duas partes diferentes, intransponíveis, do Cosmo. Graças a Cristo, "o Cosmo já não está partido em diferentes domínios, mas sim reunido por ele, que não tolera que uma única das suas partes seja inacessível à outra". (3)
Na fé cristã, como em Terra Plana, o Céu e a Terra confundem-se. Porque "a Terra inteira foi santificada pelo regresso de Cristo - através da morte - ao Paraíso... Como, para Cristo, a nossa Terra já não era diferente do Paraíso, Ele
* (3) São Máximo, o Confessor, P. G., 91, col. 1305-D. *
reapareceu aqui aos seus discípulos e conversou com eles depois da Ressurreição, demonstrando que doravante a Terra era só uma e unida a si própria". (4)
Saberiam esses montanheses de Terra Plana que o Céu e a Terra se tornaram uma só e a mesma planura do Cosmo, depois da Ressurreição? Talvez. Nesse caso, a planície do Céu e a planície da Terra eram uma e a mesma coisa. Tinham a liberdade de lhe chamar Terra ou Céu. À sua vontade.
Em todo o caso, antes da adolescência, o patriarca Athenagoras não desceu da planície azul, do Céu, de Terra Plana. Como Adão, o primeiro homem que passa, também, a primeira parte da sua vida no Céu.
* (4) São Máximo, o Confessor, P. G., 91, col. 1309-A e B. *
OPOSIÇÃO ESTÉRIL ENTRE GREGOS E LATINOS NO CÉU NATAL DE ATHENAGORAS
Após o desmoronar do imenso Império Turco, que se estendia por três continentes - Ásia, Europa e África-, o Épiro, onde se encontra a aldeia natal do patriarca Athenagoras, foi incorporado no reino da Grécia. Isto passou-se há meio século. Uma das primeiras medidas tomadas pelos Gregos foi grecizar os nomes das cidades, das aldeias e dos habitantes. É o que acontece em toda a parte e do mesmo modo, desde sempre. E é perfeitamente natural que um povo queira ter, na sua pátria, desde que seja independente e soberano, nomes que se possam pronunciar na língua nacional sem dificuldade. Os Americanos também alteram os nomes dos emigrantes que chegam à sua pátria vindos de todos os pontos da Terra, americanizando-os. Para os poder pronunciar. Não é só uma questão de chauvinismo. Não. Mas o chauvinismo também tem um grande papel nos assuntos de mudança de nome.
A aldeia do patriarca tinha um nome o mais latino que é possível. Os Gregos e os Latinos sempre se defrontaram quando se encontravam. Sem falhar uma única oportunidade. Era natural que se defrontassem também no Céu, aqui, na aldeia natal do patriarca Athenagoras.
E como os Gregos estavam aqui, na sua própria pátria, livres e soberanos, nada os impedia de riscar do mapa geográfico o nome latino de Terra Plana e dar à aldeia um nome grego. Puramente grego. E assim se fez. Os Gregos chamaram à aldeia: Basilikon. Hoje, portanto, se se quiser ir a Terra Plana, temos de perguntar pela estrada de Basilikon. Entre Terra Plana e Basilikon, como consonância, não há nada de comum. São dois nomes completamente diferentes. O primeiro tem uma ressonância puramente latina. O segundo é um nome puramente grego. Mas se a consonância e as origens dos dois nomes são completamente diferentes, o sentido do nome é estritamente o mesmo. Terra Plana significa: a Planície do Céu, a Terra no Céu. Basilikon significa, entre outras coisas, catedral, basílica, grande igreja... Ora toda a gente sabe que uma igreja é o Céu reconstruído na Terra, conforme as revelações feitas por Deus aos profetas, a Moisés e sobretudo a São João, no Apocalipse. "A igreja é o Céu, onde reside e se move Deus, descido à Terra." (1) A igreja é realmente o Céu e, por isso, foi dito àqueles que entram numa igreja: "Hoje serás comigo no Paraíso porque aquilo que a Terra é para nós em nada difere do que o Paraíso é para Ele. E surgiu de novo na Terra e falou aos seus discípulos." (2) Deus está presente com o Céu inteiro nas nossas igrejas terrestres, durante a liturgia e "é no próprio Cristo, como num altar, que se realiza a consagração". (3) Outrora, a igreja era unicamente no Céu, e era lá que Deus vinha conversar com o homem na "frescura da tarde". (4) Mas agora a igreja também é na Terra, onde Deus aparece, se deixa
* (1) São Germano de Constantinopla, P. G., 98, col. 384.
(2) São Máximo, o Confessor, P. G., 91, col. 1309.
(3) São Dinis, o Areopagita, P. G., 3, col. 484-D.
(4) Génese, iII, 8. *
imolar em cada liturgia e, depois, se deixa comer e beber pelos cristãos, na comunhão.
Em todas as reuniões litúrgicas, Deus desce do Céu para, na Terra, se associar aos mortais, com todos os santos e com todos os mártires. (5)
A igreja do Céu associa-se à igreja da Terra com os seus anjos, os seus poderes celestes, porque a igreja é una no Céu e na Terra. (6) Nós somos os companheiros dos santos e dos anjos, e eles são nossos colaboradores ansiosos pela nossa salvação. (7) É normal que o Céu esteja na Terra - durante a liturgia - e que nós, os vivos, nos misturemos com os santos, os defuntos e os anjos, porque estamos na companhia da Santíssima Trindade: "Nec mirum. Si enim cum Patre et Filium dicitur nobis esse societas, quomodo non est cum sanctis, non solum qui in terra sunt, sed et qui in coelis? Quia et Christus per sanguinem suum pactficavit caelestia et tcrrestria, ut caelestibus terrena sociaret. (8)
Geogràficamente, Terra Plana, aldeia natal do patriarca, situada em altura, nunca teve fronteiras precisas com o Céu. Terra Plana é como a igreja, que está ao mesmo tempo no Céu e na Terra. Geralmente, em Terra Plana, o Céu estava confundido com a Terra e não se conseguia distinguir o que pertencia ao Céu e o que pertencia à Terra. No plano teológico é a mesma coisa, em todas as igrejas, durante o ofício da santa e divina liturgia, quando o próprio Cristo desce ao altar, rodeado por todos os habitantes do Céu, os santos, os anjos, os mártires, os querubins e os serafins. Todos estes habitantes do Céu se misturam com os habitantes da Terra, e o padre, tirando o turíbulo do santuário, incensa igualmente
* (5) Orígenes, P. G., 11, col. 448 e 553.
(6) Id., P. G., 14, col. 878.
(7) Id., P. G., 12, col. 909; P. G., 13, col. 134; P. G., 12, col.
437.
(8) Id.: Homilia IV in Levitic, P. G., 12, col. 437. *
Cristo, os santos e os fiéis. Todos formam um só. E todos são, por momentos, habitantes do Paraíso. E, na igreja, ninguém pode diferenciar os fiéis dos anjos e dos santos, nem os vivos dos mortos, nem os habitantes do Alto dos habitantes cá de baixo.
A igreja, ou o Basilikon - como lhe chamam os Gregos-, durante a liturgia, transforma-se no Céu que desce à Terra. Exactamente como a aldeia
- Terra Plana-está situada no Céu quando as nuvens a envolvem e a separam da Terra, relegando-a pura e simplesmente para o território celeste.
No fundo, Terra Plana e Basilikon são uma e a mesma coisa. É uma localidade semi-Céu, semi-Terra que, de tempos a tempos, é completamente Céu e outras vezes é completamente Terra. Como os homens também - que são teândricos, semideuses, semianimais, semicelestes, semiterrestres. Há momentos em que o mesmo homem é completamente espiritual e até a sua carne é divina, e outros em que o seu espírito está materializado e carnal. (9) Porque o espírito, ao reencontrar o corpo, adapta-se à queda na espessura da matéria. (10)
Deste desafio entre Gregos e Latinos, na planície do Céu, os Gregos ganharam formalmente substituindo o nome latino de Terra Plana pelo nome grego de Basilikon. Mas, no fundo, a aldeia natal do patriarca tem sempre o mesmo nome: antes chamava-se em latim a Terra no Céu e agora chama-se Basilikon, que é o Céu na Terra. Isto é a mesma coisa. Em Terra Plana ou em Basilikon, a fronteira entre o Céu e a Terra é tão móvel como se não existisse fronteira alguma. A Terra e o Céu são o mesmo domínio.
E foi nesta aldeia que viu a luz do dia o patriarca, o meu belo patriarca ecuménico. Na Terra
* (9) São Máximo, o Confessor, P. G., 90, col. 277-C.
(10) Orígenes, G. C. S. IV, 245. *
inteira, não há lugar mais bonito para nascer. E para morrer. Nem para ser enterrado. Porque os mortos em Terra Plana, de certo modo, são enterrados no próprio Céu. O cemitério que os acolhe também está no Céu. E os corpos dos mortos ali repousam...
A CRUZ DA MACEDÓNIA
VIU-SE: ninguém pode estabelecer exactamente a fronteira entre o Céu e a Terra, no Êpiro e nas montanhas da Macedónia. Mas acontece o mesmo com as fronteiras terrestres. Se tentarmos fixar as do Épiro - e as da Macedónia a norte, a sul, a leste e a oeste, a dificuldade é insuperável. O Épiro e a Macedónia são dos países mais antigos da Terra. Vinte séculos antes de Cristo já o Épiro era habitado pelos Pelasgos. À volta de 1200 antes da era cristã, foi o próprio filho de Aquiles que fundou no Épiro o reino dos Molossos. Pelo menos é o que diz a lenda. O reino da Macedónia foi fundado quinze séculos antes da nossa era, por uma tribo de Pelasgos, os
Macedónios.
O Épiro e a Macedónia são vizinhos. Podia dizer-se- sobretudo no cimo das montanhas - que são o mesmo país. E o mesmo povo. Mas o certo é que em nenhum momento da História as fronteiras terrestres destes países foram fixadas. Houve uma época antes da nossa era que a Macedónia, na altura um império gigantesco, sob o mando de Alexandre, o Grande, o Macedónico, englobava nas suas fronteiras quase toda a Terra habitada. Toda a Oikoumène. As fronteiras orientais da Macedónia passavam algures pela China e a índia dos nossos dias. Nessa época, a Pérsia, o Egipto, a Turquia actual, toda a Grécia, a Arábia e as estepes mongólicas faziam parte do império da Macedónia. No reinado de Pirro, do Épiro, estiveram quase a anexar o Império Romano.
As fronteiras terrestres, as fronteiras políticas horizontais da Macedónia, mudaram mais no curso da História que as fronteiras verticais que a separam do Céu e que mudam a toda a hora do dia e da noite. Actualmente, em 1969, a Macedónia é um país retalhado em quatro pedaços. Exactamente como o corpo de Cristo, esquartejado nos quatro braços da Cruz. Geogràficamente falando, a Macedónia de hoje tem a forma de uma cruz. Um braço da cruz macedónica encontra-se na Albânia. Outro braço da cruz está na Jugoslávia. Um terceiro braço está na Bulgária. O quarto braço da cruz macedónica está na Grécia. A Macedónia é um país com o corpo crucificado em quatro fronteiras. Repartida em quatro países.
Se repararmos no planisfério, vê-se que cada país tem uma forma especial: a Itália tem a forma de uma bota, a França, a forma de um hexágono, a Roménia é redonda como a Lua. A Macedónia, essa, já não figura no planisfério, mas tem a forma de uma cruz. De uma verdadeira cruz. A Macedónia é uma cruz.
Terra Plana, ou Basilikon, a aldeia natal do patriarca, está situada no Épiro, colocada mesmo ao lado da Cruz da Macedónia.
- Vossa Santidade nasceu sobre a cruz - observei ao patriarca. - Terra Plana está situada ao lado da Cruz da Macedónia...
Sorriu. Para mim, este pormenor tem importância. Porque o novo nome da aldeia, Basilikon, significa real, igreja, catedral, mas também significa basílico. Basílico é uma planta da família das labiadas, segundo está escrito nos livros de botânica.
As folhas verdes e a flor do basílico têm um aroma suave. Na Igreja Ortodoxa, o ramo de basílico serve para aspergir, porque o hissope metálico da Igreja ocidental é desconhecido entre nós. Toda a aspersão com água benta se efectua, entre nós, com um ramo de basílico. O basílico é sinónimo de aroma da igreja e das coisas sagradas. Todos os presbitérios e todas as igrejas ortodoxas cheiram a basílico. A estola sacerdotal, a sacola do padre, o seu Hagiasmatarion - o breviário-, a sua sotaina e as suas vestes cheiram de longe a basílico. Porque o padre e o basílico são inseparáveis. Todos os padres trazem consigo, a estola, o Hagiasmatarion e o ramo de basílico.
Para nós, ortodoxos, não se assemelha a nenhuma outra planta ou flor do reino vegetal. Porque a história do basílico está ligada à história do madeiro da cruz onde Cristo foi crucificado.
O basílico faz parte integrante da igreja. Não só porque o aspersório é um objecto de culto
- para as bênçãos com Hagiasma, ou água benta-, mas porque foi graças às suas folhas que se descobriu o madeiro da Santa Cruz da paixão de Cristo.
Eis a história: a 11 de Maio de 330, foi inaugurada na margem do Bósforo a cidade de Constantinopla, a nova Roma e a segunda capital do Império Romano. Foi a primeira cidade da Terra onde foi hasteada a bandeira imperial com a Cruz. Constantinopla foi construída pelo Santo Imperador Constantino e por sua mãe, Santa Helena, segundo um plano estabelecido pelos anjos. Até ao fim dos seus dias, Santa Helena procurou
- por toda a parte - as relíquias da paixão de Cristo, as relíquias dos santos e dos apóstolos. Trouxe-as todas para Constantinopla, à medida que as ia descobrindo. Apesar da sua idade avançada, Santa Imperatriz Helena foi à Palestina. E lá descobriu a coluna da flagelação, o Maphorion da Santa Virgem, o túmulo de Cristo e as relíquias de vários mártires. Mandou-os depositar na Igreja dos Santos Apóstolos, em Constantinopla. (1) Trouxeram e depositaram na Igreja dos Santos Apóstolos as relíquias e a cabeça de Santo André, de São Lucas, de São Timóteo, de quase todos os apóstolos. (2) Só uma coisa desgostava a Santa Imperatriz: não encontrava o madeiro da cruz onde Cristo fora crucificado. O túmulo fora descoberto, debaixo de um templo pagão. Ali edificou duas igrejas, no Gólgota e no local da Ressurreição. (3) Como não conseguia encontrar o madeiro da cruz, decidiu regressar a Constantinopla. Mas o milagre aconteceu. Um dia, muito cedo, antes de o calor incendiar a terra da Palestina, a Santa Imperatriz Helena foi passear, sozinha, para o Gólgota, a rezar. Viu a seus pés uma planta de folhas verdes e debruçou-se para as colher. Eram folhas de um verde diferente do das outras plantas. E, aproximando-as do rosto, a Santa Imperatriz sentiu um forte e divino odor. Era uma haste de basílico. A imperatriz exclamou: "Uma planta com tão divino aroma só pode crescer sobre o madeiro da Cruz de Cristo." Porque o aroma do basílico não é um aroma da Terra, é do Céu. Mandou vir operários a toda a pressa e mal começaram a cavar, ali, onde fora colhido o basílico, apareceu a Cruz. Depressa se identificou, graças à inscrição que continha. Era realmente a Cruz de Cristo. E o basílico recebia o seu aroma
* (1) Eusébio de Cesareia, P. G., 20, col. 1209 e 1209-B.
Sócrates, P. G., 63, col. 117-A.
(2) Chronicon Pascale, P. G., 92, col. 733-A e B.
(3) Santo Ambrósio, P. L., 46, col. 1399; São Paulino de Nole. P. L., 61, col. 325.
São Severo, P. L., 20, col. 148; Rufino, P. L., 21, col. 474.
Sócrates, 67, col. 117; Sozomeno, P. G., 67, col. 929.
Teodoreto, P. G., 82, col, 959; São Cirilo de Jerusalém, P. G., 33. *
suave, não da Terra, mas da Cruz de Cristo, sobre a qual nascera.
Santa Helena perguntou o nome desta planta divina que obtinha a seiva e o perfume do madeiro da Santa Cruz. Disseram-lhe o nome do basílico em hebreu, em grego, em latim, em aramaico. Mas Santa Helena recusou todos os nomes. Não diziam bem com uma planta cujas raízes haviam tocado o madeiro da Santa Cruz. Era uma planta diferente das outras da Terra, uma planta real, senhorial, dizia Santa Helena. Doravante seria preciso chamar-lhe planta real. Porque cresceu sobre a cruz onde foi torturado o Rei dos Reis. E como, em grego, real se diz basileos chamou-se à planta basílico. E o nome dado por Santa Helena permaneceu. Os botânicos aceitaram-no e, desde esse dia, o basílico só tem o nome que lhe foi dado pela Santa Imperatriz.
Agora, Basilikon também é o nome da aldeia natal do patriarca Athenagoras. Os habitantes de Basilikon nascem, vivem e morrem junto da Cruz da Macedónia, como o basílico cresce sobre a Cruz da Paixão. Exactamente como ele.
- É uma coincidência? Talvez. O patriarca diz-me:
- Fala como poeta, padre Virgil. Sempre como poeta!
- Deus é que é poeta, Vossa Santidade - respondi-lhe. - Limito-me a verificar as coisas tal como na realidade são. Como foram feitas por Deus. E se são cheias de poesia, foi Deus que as fez assim. Porque foi Deus que inspirou os Gregos para darem à sua aldeia o nome de Basilikon. Nenhum nome se adaptava melhor a uma aldeia situada junto de um país que tem a forma de uma cruz. É uma aldeia sobre a cruz. E é a aldeia natal de um patriarca ecuménico escolhido por Deus para curar o corpo de Cristo, esquartejado de novo na Terra.
MACEDÓNIA ECUMÉNICA
É preciso ser um barra em geografia para descobrir o nome da Macedónia no planisfério. É usado apenas por uma província da Grécia. Unicamente. Porque depois da crucificação do país apagou-se o nome do seu corpo esquartejado em quatro pedaços. Mas, se a Macedónia já não figura, entre os outros países, no planisfério, o seu nome está inscrito em todas as ementas de todos os restaurantes. Nos cinco continentes. Tanto nos hotéis de luxo como nas estalagens. A Macedónia aparece em todas as ementas. Podemos encomendá-la em todas as estações, em todas as latitudes e longitudes. É uma vingança inesperada, virulenta, contra aqueles que retalharam o país da Macedónia em quatro pedaços e depois o apagaram dos mapas geográficos e dos planisférios.
O nome da Macedónia está presente em toda a Terra. Esta macedónia que se pode encomendar em todos os restaurantes é uma sobremesa. É uma mistura de frutos cortados aos pedacinhos. Todos os frutos da Terra são bons para fazer uma macedónia. A macedónia varia, como a hora, conforme as longitudes. Varia em composição, segundo a latitude e as estações. A macedónia varia em função da riqueza ou da pobreza do solo e em função da categoria do restaurante. Mas é sempre e em toda a parte feita com frutos cortados aos pedaços, com a diferença de que os frutos nunca são os mesmos. Nenhuma imagem da Macedónia é mais exacta que esta salada assim chamada na Terra inteira.
Neste país crucificado em quatro estados, os habitantes conservam o carácter original, o sabor nacional. Tem uma multidão de raças, de nações e de povos. Actualmente, há na Macedónia, nas terras altas, aldeias cujos habitantes descendem directamente da Pré-História. Desapareceram de todas as outras localidades. Só se encontram nos museus de ciências naturais. Mas aqui, na Macedónia, vivem em pleno século xx, com a língua, os costumes, a alimentação e os hábitos que conservam intactos há milhares de anos. Encontram-se aldeias cujos habitantes descendem dos Pelasgos, dos Romanos, dos Celtas, dos Molossos, dos Godos, dos Fenícios... A Macedónia e o Épiro são um museu vivo. Ao lado dos povos que lá viveram antes dos Gregos e dos Romanos, encontram-se aldeias de eslavos, de turcos, de mongóis. Há de tudo. A Macedónia é como o planeta Terra. Permite que todos ali vivam. Cada um a seu modo. com os seus caracteres próprios. E, exactamente como na salada de frutas que tem o seu nome se distinguem os bocados de laranja, de banana ou de pêra, na terra da Macedónia, quem tiver paciência e sabedoria encontra em cada pico das montanhas os descendentes de um outro povo. Em geral, é um povo completamente desaparecido de toda a parte. E que só existe aqui. A Macedónia é formada por uma multidão de povos, de raças, de nacionalidades e de tribos provenientes de toda a parte, de todos os sítios da Terra. Chegaram ali como conquistadores, como refugiados, como escravos, ou então subsistem como povos que lá estavam, em sua casa, na sua pátria, desde a criação do mundo. O passado e o presente vivem lado a lado. Sem serem perturbados um pelo outro. Os conquistadores de outrora vivem ao lado dos povos conquistados por eles. Os refugiados ao lado daqueles que os obrigaram a fugir e que, por sua vez, fugiram também, expulsos por outros mais fortes.
A Macedónia é um espelho do nosso planeta. É, no sentido exacto da palavra, a Macedónia ecuménica. Porque todas as tribos da Terra - ou quase - estão lá representadas ou presentes. Deslocando-nos de uma aldeia para outra e de uma montanha para outra, ouvimos todas as línguas. Muitas delas estão há longo tempo arquivadas nas gavetas das línguas mortas. A Macedónia é ecuménica como a Igreja, porque, alimentando-as e protegendo-as, aceita todas as raças, todas as classes, todas as nações dos vencidos e dos vencedores. Cada uma delas conserva aquilo que tem de característico, de bom ou mau. E, exactamente como na igreja, nas horas da santa e divina liturgia, o tempo foi abolido na Macedónia. Na liturgia, os mortos e os vivos, os anjos e os homens formam uma só comunidade, uma só sociedade, abolindo o tempo e o espaço. Também na terra crucificada da Macedónia, vivem lado a lado todos os povos de todos os tempos, tanto os de outrora como os estrangeiros que apenas chegaram ontem. A Macedónia é por excelência o país ecuménico. O espelho do planeta. A terra dos homens. Não só dos homens contemporâneos. Mas também dos homens do passado. A Macedónia não tem fronteiras fixas, nem em altura, com o Céu, nem na Terra, com os outros países. A Macedónia também não tem fronteiras interiores, entre as nações que ali vivem. Nem entre o passado e o presente. O Império do Norte, nas montanhas, é como a Macedónia. A pátria de Athenagoras é um país ecuménico. No verdadeiro sentido da palavra. Athenagoras é um homem ecuménico pelo seu nascimento. Antes de ser patriarca ecuménico.
ÊXODO DOS HOMENS PARA OS ARRABALDES DO CÉU....
EM parte alguma da Terra, a História foi tão cruel como nos Balcãs. E sobretudo na Macedónia. No Épiro. Esta parte do mundo sofreu desde sempre, e continua a sofrer, as catástrofes, as invasões, as guerras, as revoluções, os massacres, que se abateram, e ainda se abatem, de todos os lados, sem cessar, como as águas do Dilúvio se abateram sobre a Terra quando Deus se zangou e pronunciou as palavras terríveis: "vou apagar da face da Terra os homens que criei - os animais e as aves do céu - porque me arrependo de os ter criado." (1) Os homens que nasceram nos grandes arrabaldes orientais da Europa, nos Balcãs, no Píndaro, nos Cárpatos, ao longo do Danúbio e nas margens do mar Negro ouviram com os seus ouvidos, várias vezes durante a sua existência terrestre, as terríveis palavras da cólera de Deus. Viram chegar o perigo sob todas as formas. Sabiam-se votados à exterminação. Durante a minha vida vi com os meus olhos exterminações - quase totais - como as do Dilúvio. Ficou apenas a terra queimada. Nenhum sopro. Exactamente como diz o Evangelho: "Tudo quanto tinha um sopro de vida nas narinas, quer dizer, tudo quanto estava
* (1) Génese, VI, 7. *
na terra firme morreu." (2) E isto continua - sem descanso - há milénios. Isto acontece ainda hoje. O Dilúvio é um estado permanente nos Balcãs.
É endémico.
Como explicar então a sobrevivência do Épiro e da Macedónia?
Não só sobreviveram aos dilúvios que se sucederam permanentemente há milénios, como a Macedónia e o Épiro são como a arca de Noé. Porque, exactamente como na arca de Noé, encontraram-se ali todas as raças desaparecidas há muito tempo, de toda a parte da Terra. A Macedónia e o Épiro serão realmente uma nova arca de Noé? A Macedónia seria um país privilegiado? Terá um contrato com Deus, como Noé? E o Épiro também?
Não. Entre Deus e os povos da Macedónia e do Épiro, não há arco-íris - esse tratado de aliança entre Deus e os homens. É por outras razões que a Macedónia e o Épiro sobreviveram, como a arca, aos dilúvios sucessivos, ininterruptos que duraram desde a Pré-História e jamais cessaram no decorrer da História. Razões muito simples. É que os habitantes da nova arca de Noé - a Macedónia- têm um costume: mal chega o perigo, refugiam-se-transportando tudo quanto possuem, animais, crianças, cereais-, nos arrabaldes do Céu. Nos picos das montanhas. Trepam até o mais alto possível. O mais longe da Terra. E o mais perto do Céu.
Nas outras partes da Terra, os conquistadores, os invasores, os tiranos constróem os seus castelos nas alturas. Nos picos das montanhas. Exercem a sua tirania nas fortalezas do alto, de onde vigiam os povos cá de baixo, reduzidos à escravidão. Exactamente como as sentinelas das prisões, nas suas torres de vigia, sempre situadas por cima
* (2) Génese, VII, 21. *
dos muros. Os escravos, os prisioneiros, os vencidos estão a seus pés. Em baixo. Na planície.
Na Macedónia e no Épiro, e unicamente ali, as coisas passam-se ao contrário. Os habitantes já sabem: sempre que o invasor se aproxima para os exterminar, como as águas do Dilúvio, só há uma maneira de escapar. È aproximar-se do Céu. O mais perto possível. No sentido próprio e figurado. Entregando-se a Deus, as populações do Épiro e da Macedónia sempre se refugiaram no cimo das montanhas para escapar ao perigo. Subindo o mais alto possível. Mais alto que as águias. Perceberam que a única estratégia possível para resistir ao inimigo e vencê-lo é subir. Subir para os picos. Subir para o Céu. Pôr toda a esperança nas alturas. Unicamente lá em cima. Porque todo o dom verdadeiro da espécie - o dom da vida salva - vem do Alto. (3)
E é por isso que nos cumes das montanhas, nas alturas dos picos abruptos da Macedónia não existem fortalezas construídas pelos tiranos. Como há por toda a parte do mundo. Não. Os cumes, geogràficamente, não pertencem à Terra, mas ao Céu. Os cumes são os grandes arrabaldes do Céu. Não são os topos da Terra. Por isso, os cimos nunca foram um local onde os conquistadores e os tiranos pudessem construir cidadelas, fortalezas ou castelos. Não. Todas as cumeadas das montanhas são habitadas exclusivamente pelos refugiados. Por aqueles que sofrem a invasão. Pelos perseguidos. Pelos oprimidos. Pelos vencidos. Por aqueles que foram expulsos da sua terra. Por estrangeiros e por exilados. Os altos da Macedónia são o domicílio das vítimas. E isto é uma prova irrefutável de que as alturas, aqui, não pertencem à Terra e, geogràficamente, estão situadas nos arredores do Céu. E o Céu, com todos os seus domínios, está
* (3) São Tiago, I, 17. *
reservado desde sempre aos desgraçados, -aos que sofrem, aos que choram, às vítimas da injustiça. O Céu pertence-lhes. E os seus arrabaldes também. São sempre lá muito bem recebidos. O Céu é o local do seu refúgio. Como foi dito: "Salva-te nesta montanha." (4) As verdadeiras alturas, os arrabaldes terrestres do Céu repelem sempre os tiranos, os conquistadores, os opressores. Porque todos os tiranos, todos os invasores e todos os conquistadores pertencem à Terra. E não têm acesso ao Céu. O Céu é o território dos puros e dos vencidos. Dos humilhados. O Céu e os seus arrabaldes macedónicos repeliram sempre os conquistadores lançando-os para a Terra, lá em baixo, onde se encontra o seu domínio. As portas do Céu estão fechadas aos tiranos desde a criação do Cosmo. Não entram lá. E não entrarão nunca. Os desgraçados da Terra e as vítimas dos tiranos e dos invasores estão na sua pátria. Aqui. Na fronteira do Céu. Estão perto do Céu, e tão longe da Terra que não estão sujeitos aos golpes da História, como os homens da Terra. E povos mortos há milénios na Terra continuam a viver, aqui, porque no Céu não há morte. Nem mutação. E aqueles que buscaram protecção nos arrabaldes celestes receberam um dom autêntico, "que não pode sofrer alterações, nem sombras, por causa de nenhuma revolução". (5)
Em Terra Plana, ou Basilikon, na aldeia natal do patriarca, como em todos os lugarejos situados nos cumes das montanhas, no Épiro e na Cruz da Macedónia, Deus estendeu sobre os desgraçados o seu próprio manto para os proteger. Os homens expulsos da Terra vivem ali sob a tenda do Céu. Todos os exilados vivem em tendas. Mas aqui vivem sob a tenda azul com estrelas de ouro feitas
* (4) Génese, 16, 17.
(5) Epístola de São Tiago, 1, 17. *
do próprio manto de Deus. Os exilados receberam aqui o que lhes foi prometido. "O poder de Deus te cobrirá." (6) É por estas razões que os povos condenados a uma morte certa ainda estão vivos na Macedónia e no Épiro. Aqui, estão em segurança. Uma segurança absoluta. Porque os tiranos e os opressores nunca poderão chegar ao Céu. Aqui, os refugiados estão fora do alcance de todos os conquistadores da Terra.
Foi aqui, nestes grandes arrabaldes do Céu, que Deus escolheu Athenagoras. Entre os expulsos da Terra. Entre os oprimidos. Entre os desgraçados. Entre os vencidos. Toda a família de Athenagoras ali viveu desde sempre. As gerações sucessivas dos seus antepassados viveram em Terra Plana em casas feitas de granito. A dois metros de distância do Céu. Muito longe da Terra.
Se, um dia, se fizesse a prova de que a aldeia natal do patriarca, geogràficamente, não se encontra nos grandes arrabaldes do Céu, mas simplesmente nas alturas escarpadas da Terra, mesmo assim, teríamos de admitir, pelo menos, que Sua Santidade nasceu no nobody's land (7) que se encontra entre o Céu e a Terra... E é sempre um belo local de nascimento.
* (6) São Lucas, 1, 35.
(7) Terra-de-ninguém. Em inglês no texto original. (N. da T.) *
JERUSALÉM E TERRA PLANA ESTÃO CONSTRUÍDAS SOBRE AS ROCHAS DA MONTANHA
JERUSALÉM está construída sobre uma rocha. Na montanha. A oitocentos metros acima do mar. A montanha de Sião, onde se encontra a cidade, simboliza a altitude, não só no sentido próprio do termo, mas também em sentido figurado. A montanha de Sião significa elevação, e o vale do Hinnom, que fica abaixo de Jerusalém, significa a vida dissoluta e desprovida de elevação. É uma satisfação poder mencionar que a aldeia natal do patriarca Athenagoras também foi erguida sobre um rochedo, na montanha. Como Jerusalém. De resto, sempre que Deus queria dirigir-se especialmente a um homem, convidava-o para o alto de uma montanha. Assim convidou Moisés. Jesus subia também à montanha sempre que tinha algo de excepcional a dizer. Foi nas alturas que Ele fez o discurso teológico. A Transfiguração também se realizou na montanha do Tabor. Foi numa montanha que os homens receberam as primeiras leis das mãos de Moisés. Deus "prometeu a Moisés estabelecê-lo no rochedo". (1) São Paulo chama a Cristo o Rochedo. (2) Igreja e montanha são muitas
* (1) São Gregório de Nissa, P. G., 44, col. 408-A.
(2) São Paulo, I, cor. 10. *
vezes palavras sinónimas nas Escrituras Sagradas: "Os cristãos que vão à igreja vão ao mesmo tempo à montanha de Sião, na Jerusalém celeste, em companhia dos anjos, vão à assembleia triunfante, à igreja dos primeiros crentes." (3)
Foi numa manjedoura cavada na rocha que Deus nasceu. Foi numa montanha que o crucificaram. Foi num rochedo que lhe abriram o túmulo onde foi enterrado: "Numa sepultura de rocha foi realmente deposto, mas os rochedos quebraram-se de pavor por sua causa. (4) (A) pedra está presente no primeiro milagre realizado por Cristo, porque os vasos cheios de água que transformou em vinho, em Canaã, na Galileia, eram vasos de pedra. (5) Porque a pedra e o rochedo são sempre escolhidos como alicerces. Tudo o que não é edificado sobre rocha não é duradouro. A Igreja terrestre foi também edificada sobre o apóstolo a quem Cristo chamou Pedro.
A casa natal do patriarca Athenagoras não só foi construída sobre a rocha como é inteiramente feita de pedra. Todas as casas da aldeia são de pedra. Os túmulos do cemitério também são cavados no granito. As lajes que cobrem os túmulos são de pedra como a laje que cobria o túmulo de Cristo. As cruzes colocadas em todas as sepulturas são cruzes de granito. Na verdade, o granito não é a eternidade por fora do tempo. Mas o granito é uma das raras coisas da Terra que pode resistir ao tempo. Mais tempo que as outras. O granito e o diamante resistem obstinadamente no combate contra o tempo. Assim, as cruzes dos antepassados do patriarca Athenagoras não estão mais danificadas pelas intempéries que as cruzes de granito colocadas nos túmulos, mais recentes, de seu pai e de
* (3) São Paulo, Epístola aos Hebreus, 12, 22.
(4) São Cirilo de Jerusalém, P. G., 33, col. 469.
(5) São João, II, 6. *
sua mãe. Os séculos deixam poucas marcas no granito. As cruzes recentes são idênticas às cruzes seculares. O granito é forte. E os homens que vivem sobre a rocha parecem resistir também ao tempo com a energia e a força do granito. É claro que as pessoas de Terra Plana não vivem sete, oito ou nove séculos como os patriarcas do Antigo Testamento. Athenagoras é mais novo que Noé, que, com a idade de seiscentos anos, construiu a arca enorme e, um ano mais tarde, depois de ter navegado valorosamente nas águas do Dilúvio, desembarcou com a idade de seiscentos e um anos e começou a lavrar e a cavar a terra para plantar a vinha e ter vinho para as suas refeições. Mas, aos oitenta e quatro anos, Athenagoras é mais forte que as pessoas de quarenta. Tem a memória de um rapaz. Há no seu corpo e no seu espírito a força do granito sobre o qual nasceu. A sua casa paterna, no centro da aldeia, foi construída com grossas paredes de pedra como as de uma fortaleza. Para resistir às intempéries e aos séculos. O quarto natal do patriarca é como as celas dos monges de outrora. É todo de pedra. com o tecto baixo. com um único postigo que mais parece a seteira de uma fortaleza, pela qual se vê um quadrado azul na planície infinita do Céu. Nada mudou na cela de pedra onde nasceu Athenagoras, na Primavera de 1886. Retiraram todos os móveis. Apesar disso, o quarto é pequeníssimo. Uma autêntica cela. Um frade ocidental escreveu: "As palavras Céu e cela parecem ter origem no verbo selar." (6) Nascendo numa cela, Athenagoras nasceu- mais uma vez de maneira figurada - no Céu. Porque cela e Céu têm a mesma raiz. E mais: foi um futuro monge que nasceu aqui. "E a vida
* (6) Guilherme de Saint-Thierri: Cartas aos Irmãos do Monte Deus, 18, P. L., 184. *
de um monge é extremamente elevada. Ultrapassa os céus. É igual aos anjos." (7)
Os habitantes de Terra Plana têm o Céu mais perto das suas cabeças que os tectos das suas casas. Portanto, não admira que haja desde sempre uma familiaridade e intimidade maiores entre os habitantes do Céu do que entre eles e os das terras baixas. Tornar-se monge, para um homem como Athenagoras, que nasceu numa cela de pedra, a dois passos do Céu, mesmo nos arrabaldes do Céu, é uma pequena mudança. É como quem muda de uma casa para outra, sem mudar de bairro nem de rua. Lá em cima, nas suas aldeias e nas suas casas, nunca estão sós. Têm a companhia dos seus vizinhos mais próximos, os que moram no Céu.
Há uma única coisa que separa - mas radicalmente- os habitantes de Terra Plana dos seus vizinhos e amigos íntimos, os anjos e os querubins que vivem no Céu: é o problema da alimentação. Como os cidadãos do Céu - os que têm a sua morada poucos metros acima de Terra Plana-, os anjos, os querubins e os serafins, não têm corpo de carne e osso, não precisam de alimentos. Os anjos passam o tempo a cantar. Por isso, se diz que são "animais hinológicos". (8) Os vizinhos dos anjos, os homens de Terra Plana, precisam de comer. E não podem semear nada no granito em que vivem. Até o Evangelho confirma que a rocha é muito boa para construir sobre ela, mas não para semear. Por isso, para ganhar a vida, todos os homens que nascem em Terra Plana têm de descer à Terra-terra, ao vale, para trabalhar e ganhar com o suor do seu rosto o pão de cada dia, para eles e para os filhos. A rocha não pode
* (7) Guilherme de Saint-Thierri: Epistola ad Fratres de Monte Dei, 11, 5, P. L., 184, col. 392.
(8) Santo Atanásio, P. G., 28, col. 616. *
fornecer alimento aos homens. Os rochedos e os picos das montanhas fornecem alimentação para os herbívoros e carnívoros. Mas não para o homem. Porque o alimento do homem é o pão. E o trigo não cresce nos rochedos. Nem na pedra. (9) "Não se pode dar uma pedra à criança que nos pede pão." (10) E, lá em cima, nos picos das montanhas, só há pedras. E não se pode transformar a pedra em pão." (11)
Assim, a queda do Paraíso, aqui, em Terra Plana, não é uma historieta piedosa, lida nos livros, mas uma realidade vivida pessoalmente por cada homem e por cada geração.
Cada adolescente de Terra Plana é expulso do seu Céu natal e enviado para a Terra - exactamente como Adão. Para trabalhar e para sofrer. Nenhum varão permanece na aldeia. A sua vida no Paraíso acaba no fim da infância. Mal começam a ser homens, os habitantes de Terra Plana tomam a estrada que desce para a Terra, exactamente como o nosso protopai Adão. Todos os antepassados do patriarca Athenagoras vieram trabalhar no vale, logo que deixaram de ser crianças. Espalharam-se por toda a parte onde a terra lhes parecia propícia. Foram para a Roménia, para a América, para a Bulgária, para o Egipto. Para toda a parte... Os que não morriam cá em baixo, regressavam lá acima, a Terra Plana, após longos anos de trabalho efectuado na Terra. Regressavam a casa como quem regressa ao Paraíso. Construíam na sua aldeia, nos arrabaldes do Céu, a sua casa de pedra. E criavam os filhos. Que por sua vez tinham de descer à Terra e voltar a subir aos arrabaldes natais do Céu. Exactamente como os seus
* (9) São Lucas, 8, 6.
(10) São Mateus, 7, 8.
(11) Id., 4, 2. *
pais. É o ciclo de Adão e de todos os homens da terra natal de Athenagoras.
O pai do patriarca Athenagoras também seguiu a regra dos homens que vivem nos cumes do Pindo. Mateus Spyru, pai do patriarca, desceu logo que deixou de ser criança. Mas, ao contrário dos outros habitantes de Terra Plana, não se fez comerciante, nem carpinteiro, nem ferrador, nem lavrador, nem padeiro... Não. Foi para a escola para estudar Medicina. Queria ser médico. E no regresso às alturas, esperava ser o médico da serra. Conseguiu-o plenamente, após longos, muito longos e duros anos de trabalho em todas as grandes cidades do Império Otomano, nas quais um jovem, nesse tempo, podia aprender a arte e a ciência medicinal.
Mateus Spyru ganhou o salário do seu labor na Terra. Regressou a Terra Plana com os diplomas e os conhecimentos de doutor em Medicina. Sobre os antigos alicerces construiu uma nova casa, no centro da aldeia. Uma casa muito bonita. Inteiramente de pedra. Depois, casou com uma das raparigas mais bonitas da Macedónia. Chamava-se Helena. Era de Konitza. Tiveram três filhos: Arístocles, Jorge e Ágata. O primeiro filho do doutor Spyrus foi Arístocles. É o actual patriarca ecuménico, Sua Santidade Athenagoras.
AS DOENÇAS CONTRAÍDAS NO PARAÍSO
PORTANTO, o doutor Mateus Spyru - pai do patriarca ecuménico - era médico. Em Terra Plana. No Império Otomano. No século passado. Era a pré-história da medicina. Nada tem de comum com a medicina de hoje. Absolutamente nada. Ser médico no Épiro, na Turquia, há mais de um século, era taumaturgia. Era uma actividade reservada a alguns eleitos. Tal como ser campeão de boxe, corredor olímpico ou herói nos campos de batalha, que só um muito reduzido número de homens pode conseguir. Há sectores onde a democracia não é aplicável. É o domínio do heroísmo. Dos mártires. Dos génios. Nem a democracia - quer dizer, a igualdade dos homens-, nem os privilégios de classe contam. É uma questão de indivíduos. De uma elite. São actos reservados à nata da humanidade. À autêntica nobreza: a dos santos, dos mártires e dos heróis. O doutor Mateus Spyru fazia parte desta elite. A primeira qualidade para ser médico, no tempo do doutor Mateus Spyru, era ter a resistência física dos grandes campeões. Uma resistência física igual à dos javalis, dos touros, dos búfalos. Cada visita médica que o doutor fazia durava pelo menos três dias. Tinha de ir sempre de uma serra para a outra. Ou atravessar vários desfiladeiros e ravinas. Se era no Inverno - e o Inverno é a estação mais longa e aquela em que o médico é mais solicitado-, o doutor tinha de saber procurar o melhor caminho, com o cavalo, sobre a neve mais alta que os pinheiros. Tinha de correr para chegar antes da morte do doente. Estava sempre apressado. Porque os doentes pobres só chamam o médico nos últimos instantes. Quando a esperança está perdida. Por motivos económicos. Para evitar despesas que ultrapassem as suas posses. Porque chamar o médico era um luxo. E o luxo está reservado aos ricos. E aos conquistadores. Aqui, eram todos cristãos. Portanto, subproletários. Vencidos. Refugiados.
Mas não era tudo. A caminho da casa do moribundo, o doutor encontrava quase sempre lobos esfomeados. Animais da floresta em busca da sua presa. Fazia parte da profissão de médico enfrentar os lobos em quase todas as visitas. Enfrentá-los. Combatê-los. Vencê-los, para abrir caminho. Nesta região, no Inverno, não há sinais de caminho em parte alguma. O médico deve conhecer a montanha e possuir um sentido de orientação que tenha qualquer coisa de divinatório. Portanto, um médico tem de ser mais forte que os lobos. Mais corajoso que os bichos esfomeados. Tem sobretudo de ser um santo. Porque pelo seu esforço, pela sua coragem, pelos riscos que corria, desafiando a morte, e pela sua experiência, quase nunca lhe pagavam. E quando lhe pagavam, os seus honorários eram tão diminutos que nem chegavam para as despesas da viagem. Os honorários nem sequer cobriam o custo da alimentação do médico e do seu cavalo.
Ao escolher ser médico em Terra Plana, Mateus Spyru, pai do patriarca ecuménico, sabia o que o esperava. Porque, aqui, todos os doentes são pobres. A região é pobre. O doutor Mateus Spyru escolhera ser o médico do proletariado cristão.
Na Cruz da Macedónia e no Épiro. Era o médico dos mendigos da Terra. Dos deserdados. Dos exilados. De todos quantos habitam na terra-de-ninguém, entre o Céu e a Terra.
Ao chegar à cabeceira do doente, extenuado pela fadiga da viagem, como um corredor que chega ao fim da corrida, começava então o verdadeiro combate para o doutor Spyru, como para todos os médicos das serras do Império Turco de há um século. Tinha de examinar o doente. Fazer o diagnóstico. com exactidão. E depressa. Era isso, só tinha como instrumentos os ouvidos, os olhos, os dedos, e, sobretudo, o seu talento. A sua intuição. Nenhum aparelho. Absolutamente nenhum. Nem um relógio para contar as pulsações. Depois de estabelecer o diagnóstico, tinha de curar. Antecipar-se à morte. Vencer a doença. O médico era, ele próprio, o boticário. Era quem colhia as plantas e preparava os remédios. E era sempre ele quem os aplicava. Às vezes tinha de operar. Sem instrumentos cirúrgicos. Tinha de cortar os ossos com a mesma serra com que cortavam a madeira. Para cortar a carne do doente, servia-se da mesma faca que utilizavam na cozinha. Era o médico que fabricava os seus próprios instrumentos. Ou utilizava os que encontrava. Não havia anestésicos, nem desinfectantes. Os pensos eram confeccionados com as próprias camisas dos doentes ou com os seus lençóis. O único desinfectante disponível era a água fervida e o ferro aquecido ao rubro. A operação durava muito tempo. Muito. Um dia inteiro. Uma noite. Dois dias. Se se tratava de órgãos delicados, como a vista, tinha de cortar, com o canivete ou com a navalha, a membrana que crescera sobre o olho do doente: a catarata. Tinha de raspar a conjuntivite da pálpebra com uma faca de cortar maçãs. Eram operações que ultrapassavam a medicina. Era virtuosidade. Arte. Os dedos tinham de ser mais hábeis que os de um violinista. A precisão com que utilizava a faca sobre o cristalino tinha de ser a dos relojoeiros. E o milagre é que o doutor Spyru e os médicos da sua época efectuavam tantas curas como os médicos do nosso tempo, que possuem aparelhos e medicamentos. No fim do trabalho - que tem muito do prodígio, da arte, da ciência e da formação desportiva - o médico Mateus Spiru, em vez de descansar, tinha de voltar a partir. Porque, no alto de uma montanha próxima, havia um outro doente à sua espera. E ele era o médico de todo este arrabalde do Céu que se chama Épiro e Macedónia e que tem no planisfério a forma da cruz.
Foi este homem extraordinário o pai carnal do patriarca ecuménico. Era o médico, aquele que curava as doenças e os sofrimentos físicos dos que viviam na terra - de ninguém - entre Céu e Terra-, na Cruz da Macedónia.
O pai terrestre de Athenagoras curava os cegos, os febris, aqueles que estavam pregados ao leito, tão milagrosamente como Cristo quando andou na Terra e dava vida aos mortos, vista aos cegos e a palavra aos mudos.
A primeira coisa que Athenagoras aprendeu na Terra foi que o dever do homem é curar os sofrimentos e as dores dos outros. Como fazia seu pai. Quando abriu os olhos para o mundo, viu primeiro os doentes. E o homem que era seu pai e tentava, com a fronte em suor, curar os sofrimentos dos outros. Fazer cessar a dor. O sofrimento foi, portanto, a primeira coisa que o filho do médico viu na Terra. Doentes. Gente que sofre. E via o pai, que tinha a profissão de curar o sofrimento dos homens. Sabia que para sarar a dor dos homens é preciso ciência, coragem, heroísmo, sacrifício, espírito de competição e martírio. Querendo conseguir diminuir ou suprimir a dor de seus irmãos, os homens, é preciso sacrificar tudo e não poupar nada.
Sabia que o doente e o médico não devem ter medo. Para curar é preciso ter coragem. Suportar que se cauterize uma ferida com um ferro em brasa. Porque não havia outros recursos. E nem o doente nem o médico se podem mexer, quando o ferro em brasa queima a carne. Quando a faca corta a carne viva. Quando o sangue corre... Nem os filhos, nem as mulheres do doente e do médico podem gritar. Têm de aguentar. Ser fortes como o granito.
Ainda pequeno, já tinha de ajudar o pai. Como todos os que rodeavam o doente e o médico, grandes ou pequenos, faziam.
Desde os primeiros anos, estava tomada a primeira decisão de Athenagoras: seria médico. Como seu pai. Para lutar contra o sofrimento, a doença, a dor e o mal. É a profissão mais nobre que pode existir na Terra. A de curar. Mas, mesmo antes de Athenagoras sair da infância, aprendeu, não nos livros, mas pela sua experiência, que por mais nobre que seja a arte de ser médico, é inferior à actividade do padre. Todos os males inerentes à condição humana, a morte, a doença, a velhice, a decomposição física, são doenças contraídas pelo homem no Paraíso. Antes do pecado de Adão, entre os homens não havia morte, nem doença, nem velhice, nem dor, nem fadiga, nem sono, nem fome, nem sexo, nem parto... Todos estes males foram contraídos no Paraíso no momento em que Adão e Eva comeram a maçã. Expulsos para a Terra, trouxeram para o exílio, no planeta, os germes da dor. O mal inventado pelos homens. Porque foi o homem que criou o mal. Não foi Deus. Foi o homem. O homem - que foi criado livre - podia comer ou não comer a maçã. Comeu-a e introduziu o mal na condição humana. O vírus do sofrimento foi inoculado no homem por ele próprio. Livremente. Por sua própria vontade. Athenagoras, o filho do médico, admirava tanto o pai que desejava ser médico como ele, quando fosse crescido, para lutar contra a dor e o sofrimento, mas percebeu que a nobre profissão, a sublime actividade dos médicos, era efémera. Muito efémera. Como todas as obras humanas na Terra. Os milagres do melhor médico da Terra são milagres de curta duração. Milagres provisórios. Sem futuro. Até os enxertos do coração, do fígado e de outros órgãos, por mais milagrosos que sejam, duram apenas alguns dias, alguns meses ou alguns anos. No máximo. São milagres efémeros. Maravilhosos. Sim, mas como os fogos de artifício. Que não duram. O trabalho do médico é um trabalho de Sísifo. Tudo quanto constrói, tudo o que realiza hoje com tanto esforço, sacrifício, arte e ciência, será destruído amanhã. O doente, a cuja cabeceira o médico vela dias e noites sem dormir e sem comer para o pôr de pé, para o curar, no dia seguinte ou dois dias depois, morrerá. Um dia ou outro. Indubitavelmente. E a obra magnífica, o milagre do médico, não terá valor durável. Desaparecerá. Pulverizado. Como se nunca se tivesse realizado.
São Gregório explica-nos: "Efectivamente, o médico, com a sua arte, esforça-se para curar o corpo, esse princípio mortal que um dia se há-de decompor completamente e sofrer todas as dores que a sua condição lhe impõe, mesmo que por agora, graças à medicina, consiga vencer o germe da dissolução que traz em si. Porque ou a doença ou o tempo vencem o corpo. Ele tem de ceder perante a lei da natureza. Ela impõe-lhe limites." (1)
A raiz do mal está na rebelião do nosso protopai Adão. É por causa dele que o germe da morte, da doença e da dissolução penetra em nós, homens.
* (1) São Gregório de Nazianzo, P. G., 35, Oratio, XVI. *
A doença da corrupção foi contraída no Paraíso. (2) Pela ciência humana, a dos médicos, só se pode conseguir uma cura provisória. A medicina é um paliativo. Um remédio efémero. Para atacar a raiz do mal, é preciso procurar a sua causa. A origem. E isso não pertence ao domínio dos médicos cá de baixo, por mais hábeis que sejam. A doença que introduziu os germes da morte, do sofrimento e da dissolução no corpo é uma doença que tem as raízes na alma. E é ao médico das almas que cabe curá-la radicalmente. Curar quer dizer regressar ao estado de saúde, ao estado normal. "Não continuemos como somos - mas regressemos ao que éramos." (3) Regressemos à saúde. Regressemos à condição inicial do homem. "Não se pede para sermos transformados naquilo que não éramos, mas renovados, gloriosamente, pela transformação, naquilo que fomos na origem." (4)
O médico preocupa-se unicamente com a saúde da carne. Mas o homem é corpo e espírito. Não é só matéria. E restituir integralmente a saúde ultrapassa a medicina. A Igreja só promete aquilo que os médicos não podem realizar. Promete apenas "a restauração dos caídos (ou dos doentes) no seu antigo estado, pela graça esperada e desejada, ou seja o regresso à primeira vida daquele que foi expulso do Paraíso e que lá foi reconduzido".
A medicina integral, aquela que não se ocupa unicamente da carne dos homens, propõe arrancar o homem ao mundo da dor e do exílio e restituir-lhe a sua imagem divina. (6) "Numa palavra, divinizar o homem e torná-lo apto a participar na beatitude celeste." (7)
* (2) São Sofrónio de Jerusalém, P. G., 87, col. 335-B.
(3) São Gregório de Nazianzo, Oratio, XXXIX, 2.
(4) Diálogo de Photice, P. G., 65, col. 1148-A.
(5) São Gregório de Nissa, P. G., 44, col. 1223 e 188.
(6) Génese, 1, 26.
(7) São Gregório de Nazianzo, Oratio, 22. *
O doutor Mateus Spyru, ao curar os corpos dos homens nos grandes arrabaldes do Céu, nos cimos das montanhas, no Épiro e na Macedónia, sabia que estava a fazer um trabalho de Sísifo. Como todos os médicos da Terra, curava unicamente a carne. Alguns dias ou semanas ou anos após o milagre da cura medicinal, tudo é varrido pela morte. A carne curada é entregue à putrefacção. E o doutor Mateus Spyru sabia que havia na Cruz da Macedónia médicos maiores do que ele. Eram os padres. Porque esses curavam o homem arrancando a própria raiz da dor, do sofrimento, da doença e da morte. Aquele que é curado, santificado, deificado pelo padre, fica completamente divinizado. Semelhante a Deus. Para toda a eternidade. Corpo e alma. Porque, "permanecendo homem pela sua natureza, transforma-se inteiramente em Deus na sua alma e no seu corpo, pela graça e pelo esplendor divino da glória beatificante que se lhe ajusta totalmente". (8) A doença e o vício são sinónimos. "Na verdade, todo o vício é uma doença da alma e a virtude é a sua saúde, visto que esta última foi definida como o bom estado das tendências naturais." (9)
Para Athenagoras, era um ensinamento extremamente importante. Um ensinamento desconhecido pela maioria dos homens. Sabia o valor temporal de uma coisa, como uma cura efectuada pelo seu próprio médico e que só tem uma duração efémera, e conheceu o valor da cura duradoura. O mal, como tudo, tem uma origem. Uma raiz. Querendo curar totalmente, é preciso atacar a raiz do mal. E para atacar a raiz da doença e da dor, com todo o seu cortejo de lágrimas e de sofrimentos, temos de ir mais longe que os médicos do corpo carnal. O médico da carne queima os micróbios,
* (8) São Máximo, o Confessor, P. G., 91, col. 1088-C.
(9) São Basílio, P. G., 29, col. 196-B. *
esteriliza e fecha as chagas para que os doentes se levantem da cama e caminhem. O médico das almas queima o pecado. A própria raiz do mal. Torna o homem puro de qualquer sofrimento, à imagem de Deus. Cura a carne da corrupção e restitui-lhe não só a boa saúde, mas a imortalidade. Sim, torna a carne não apenas sadia, mas imortal. Cura o homem de todas as doenças contraídas por Adão no Paraíso, que transformam a vida do homem na Terra num verdadeiro inferno.
Portanto, ser médico foi o primeiro, o grande e o primeiro sonho de Athenagoras. Porque nada lhe parecia mais belo que diminuir e suprimir o sofrimento dos homens, na sua terra natal, no Épiro, na Cruz da Macedónia. O sofrimento era grande, muito grande. Não é sem fundamento que se diz: "Ele arrasta a sua cruz." "Sofre-se como na Cruz." (10)
No Épiro e na Macedónia, os homens eram crucificados, em sentido próprio e figurado. A Cruz era o local onde viviam. A Cruz era o local onde estavam enterrados. Sempre sobre a Cruz. Porque o Épiro e a Macedónia são isso mesmo. Uma autêntica Cruz.
* (10) São João, 19, 17. *
A CRIAÇÃO DA NAÇÃO CRISTÃ SOBRE A TERRA É OBRA DOS TURCOS
PORTANTO, o doutor Mateus Spyru - pai de Athenagoras - era médico na nação cristã. Da nação cristã que habitava sobre a Cruz da Macedónia e no Épiro. Não que se recusasse a tratar os pagãos. Não. Todos os seus doentes viviam nas alturas do Pindo e de outras montanhas- na terra-de-ninguém-, entre o Céu e a Terra, nos arrabaldes terrestres do Céu. Os não cristãos não viviam nas alturas. Nunca. A Terra pertencia-lhes. Que necessidade tinham de trepar para os arrabaldes do Céu, nos cumes das montanhas, para lá viver, já que a Terra inteira, com todas as suas riquezas, era deles?
Nessa época, a Macedónia e o Épiro eram ocupadas pelos Turcos. Estavam anexados ao Império Otomano. Os vencedores viviam, com os seus haréns, os seus conselhos de estado e as suas riquezas, cá em baixo. Na Terra-terra. Os vencidos, a nação cristã, viviam refugiados nas alturas. Só ela, a nação cristã, expulsa da Terra, vivia lá em cima, como as águias. A partir de mil metros de altitude, na profundidade das montanhas, em todos os Balcãs, praticamente só havia cristãos. Nas alturas, não se estava precisamente em terra conquistada, mas antes na orla do Céu. E os conquistadores da Terra, os tiranos, mesmo que quisessem, nunca subiriam ao Céu. O Céu pertence aos desgraçados, aos vencidos, aos oprimidos, aos que choram e sofrem neste mundo. Como as beatitudes o prometem. A nação cristã sofria tanto que Deus lhe deu, cá em baixo, no tempo dos Turcos, um lugar, não exactamente no Paraíso, mas na orla terrestre do Céu. E, neste território acima da Terra, nas alturas do Épiro e da Macedónia, a nação cristã tinha como médico o pai de Athenagoras.
Era a primeira vez - desde que o mundo existe - que se podia falar juridicamente de uma nação cristã. Isto nunca existiu noutro lado. Isto não existe em qualquer outro local da Terra. Só existiu no Império Turco.
È certo que nos Evangelhos Cristo fala de uma nação santa, de um povo real, de um povo santo, um povo de padres constituído pelas pedras vivas dos cristãos. Mas, juridicamente, esta nação nunca existiu na Terra. Em qualquer momento da História. A não ser nos Balcãs. Aqui, no tempo do doutor Spyru e do nascimento do patriarca Athenagoras, havia uma nação cristã. No verdadeiro sentido da palavra. Existia sociologicamente, historicamente, juridicamente. Antes nunca existiu nada parecido. Nem depois. Mas esta existia quando nasceu o patriarca Athenagoras, em 1886. Sob o domínio turco. E esta nação era obra dos Turcos. Faziam parte dela todos quantos acreditavam em Cristo. Na Terra, tinham um único chefe, a quem chamavam o etnarca - palavra que significa, textualmente, chefe étnico. O chefe de todos aqueles que recorriam a Cristo. O etnarca da nação cristã era o patriarca ecuménico. Era ele o chefe terrestre de todos os que tinham sido baptizados. Que eram etnicamente filhos de Deus. É certo que houve, há e haverá sempre cristãos em toda a parte. Há povos cristãos, como os Franceses, os Espanhóis, os Italianos. Mas esses cristãos primeiramente fazem parte das nações francesa, espanhola e italiana. Têm uma dupla nacionalidade. E como nação da Terra pertencem à comunidade étnica de que são originários. Cá em baixo, pertencem a uma nação distinta das outras pelo território que ocupa, pela língua, a história, a origem, as leis, a forma de governo. Secundariamente, pertencem ao Céu como cristãos. Porque são filhos de Deus e comem e bebem o corpo e o sangue de Cristo. Mas na Macedónia e no Épiro do patriarca ecuménico, os cristãos possuíam uma única nacionalidade. A de Cristo. Isso bastava-lhes. Era válida tanto na Terra como no Céu. Não havia outro passaporte senão o de cristão. E isto é uma realidade histórica. Social. Jurídica. Política. O meu patriarca ecuménico, Athenagoras, enquanto durou o Império Otomano, circulou com o único passaporte que um cristão podia ter: o passaporte de cidadão do Céu. Era o seu certificado de baptismo. Nenhum cristão tinha direito a uma segunda nacionalidade, a uma cidadania terrestre.
- Exagera, padre Virgil - observou-me o patriarca. - No meu tempo e no tempo do meu pai, não havia passaportes... O passaporte é uma invenção recente.
- Mas se lhe pedissem no caminho um documento de identificação, mostraria ao guarda-fiscal ou ao polícia turco o único a que tinha direito e no qual estava mencionado, preto no branco: nacionalidade cristã. É ou não verdade?
- É certo - responde o patriarca... - Mas não havia passaportes nesse tempo.
Sorri. É luminoso. Todo de branco. com belos dentes. Regulares como pérolas. Aos oitenta e quatro anos tem os dentes intactos.
Por fim, o patriarca tem de concordar que
- como documento de identificação, como título de viagem, como passaporte - o cristão só tinha direito a uma certidão de baptismo. O certificado da sua dependência, nacional, étnica, histórica, a Cristo. Cristo era tudo. A certidão de baptismo é uma cópia feita pelo padre, no dia do baptismo, segundo a verdadeira acta, a que é estabelecida no Céu pelos anjos. Porque o baptismo é isso: a inscrição no Céu e para a eternidade dos novos cidadãos do Reino Celeste. O facto de a cópia dessa acta, estabelecida pelos anjos no Céu e na Terra pelo padre, ser um documento válido perante os polícias, os soldados e as autoridades turcas é algo que sempre me fez pasmar. Santo Agostinho escreveu um livro muito bom que se chama A Cidade de Deus. (1) Todos os santos sonharam criar uma cidade divina na Terra. Os jesuítas tentaram fazê-lo na América do Sul. A Idade Média também. É o grande sonho de todos os cristãos e de todos os tempos estabelecer na Terra uma sociedade cristã, segundo o Evangelho. Falharam sempre e por todas as razões. Mas o que os cristãos não conseguiram foi praticamente realizado pelos Turcos, pelos pagãos! Porque os Turcos fundaram na Terra, juridicamente, a nação cristã. A cidadania cristã. Reservada àqueles que etnicamente pertencem a Cristo. Esta cidadania cristã - esta coisa maravilhosa que nem os maiores santos conseguiram realizar - existiu na Terra durante mais de cinco séculos. Durante todo o tempo da ocupação turca. Depois da queda do Império Otomano, as certidões de baptismo deixaram de ter validade como bilhete de identidade. E como passaporte. Assim que os povos cristãos conquistaram a sua independência e a sua soberania, libertando-se do jugo turco, substituíram a certidão de baptismo pela banalidade dos bilhetes de identidade nacionais e pelos vulgares passaportes. Era uma decadência. Uma queda. Porque os cristãos sob a ocupação turca eram cidadãos de Cristo. Mais tarde, sob os governos cristãos, retiram-lhes
* (1) Santo Agostinho, P. L., 41. *
os passaportes estabelecidos em nome de Cristo, o Rei dos Reis, e dão-lhes em troca passaportes de súbditos do rei da Grécia, da Bulgária ou da Albânia. É realmente triste. Antes, possuíam o passaporte estabelecido em nome do Rei do Céu e depois, graças à independência, eram súbditos dos reis dos Romenos, dos Búlgaros, dos Sérvios. Nos nossos documentos de identificação substituíam o nome do maior de todos os reis e faziam-nos cidadãos dos pequeninos e efémeros reinos terrestres...
- Vossa Santidade teve sorte de ter vivido no princípio da sua vida terrena como cidadão do Céu. De ter tido a nacionalidade exclusiva de cristão. De mostrar aos soldados e polícias pagãos o passaporte de filho de Deus. Hoje, somos pequenos cidadãos, súbditos de pequenos reis e de presidentes mortais... Nesta época miserável, somos cidadãos de reinos e de repúblicas terrestres...
- Transforma em poesia tudo quanto o impressiona - censura-me o patriarca. - Exactamente como o rei Midas da mitologia transformava em ouro tudo em que tocava... Ou pretende que estávamos melhor sob a ocupação turca?
- Melhor não, Vossa Santidade... Mas era belo, como cristão, só ter direito ao título de cidadão de Cristo... Mesmo que fosse extremamente duro. Atroz. Dramático. Porque, na verdade, pagámos muito caro o direito de ser membros da nação cristã, sob o domínio turco. Mas realizou-se na Terra o que parecia irrealizável: a unidade do povo de Cristo. Sabemos que, na comunhão, comemos e bebemos o corpo e o sangue de Cristo. Somos, portanto, não só pelo espírito, mas também pela carne e pelo sangue - etnicamente-, filhos de Deus e irmãos entre nós. Mas, na prática, foi unicamente graças aos Turcos que aceitámos - sob a ameaça do iatagã - esta realidade fundada em bases jurídicas e terrestres. Os factos passaram-se da seguinte maneira: Na sua origem, os Turcos eram nómadas. Sempre que vinham conquistar uma nova nação organizavam-se como os rebanhos nas suas estepes natais. Todo o povo vencido era dividido em rayas, quer dizer - textualmente em rebanhos. Tratavam os desgraçados povos submetidos como se tratam as manadas de vacas ou os rebanhos de carneiros. Ou como se tratam as bestas de carga. Tirando-lhes o leite, a lã, os filhos. Batiam-lhes. Matavam-nos. A única diferença entre os rebanhos de animais e os rebanhos de homens consistia no facto de os animais mortos serem comidos em seguida pelos Turcos e os homens mortos serem lançados aos corvos e aos cães. Era um cunho de superioridade que os Turcos concediam aos carneiros em relação aos homens. Porque a carne das ovelhas e dos bois era comestível e a dos homens era impura para o consumo dos vencedores...
O resto passava-se quase do mesmo modo tanto para os animais como para os homens. No dia em que os Turcos conquistaram Constantinopla, a nova Roma e capital do Império Romano do Oriente, agiram como de costume. A conquista de Constantinopla deu-se às três horas da noite de Pentecostes, terça-feira, 29 de Maio de 1453... O último imperador dos Romanos, Constantino, caiu nas barricadas, em defesa da cidade. O povo de Constantinopla foi reunido, as pessoas amarradas como os animais e depois vendidas como escravos... Houve massacres... Dia e noite. Houve pilhagem. A nossos olhos, nunca um acontecimento histórico foi mais terrível, nem mesmo a queda de Jerusalém.
Maomé II, o Conquistador, era muito novo. Tinha apenas vinte e um anos. Percebeu que a cidade que acabava de conquistar não era como as outras. Tratava-se realmente da capital do Império Romano do Oriente. Do Império por excelência.
Constantinopla era a nova Roma. Porque este Império Romano era tão grande que, em dado momento, precisou de duas capitais. De duas Romas. Uma só capital não chegava. Vê-se a mesma coisa nas estradas: camiões enormes, muito pesados, que não podem rolar apenas com quatro rodas, como as viaturas pesadas vulgares. Precisam de mais de quatro rodas. O Império Romano também necessitava de uma secunda capital. De uma segunda Roma. E foi assim que se fundou Constantinopla. E, na queda da velha Roma sob os bárbaros germânicos, a nova Roma, Constantinopla, ficou a ser a capital única do Império Romano. Quase durante um milénio. Na noite de Pentecostes, nesse 29 de Maio de 1453, caiu também a capital do mundo nas mãos dos bárbaros. Antes, havia duas Romas. Porque "a natureza não nos deu dois Sóis, mas duas Romas que iluminam o Universo. Uma é poderosa há muito tempo, a outra há pouco. Diferem porque uma brilha no Ocidente e a outra no Oriente". (2)
Agora, não havia mais nada. A um milénio de distância, as duas Romas caíram nas mãos dos bárbaros. Maomé não se atreveu a alterar o nome da capital. Constantinopla era a cidade por excelência. Diz-se Is Tin Polis, que significa está-se na cidade. E este Is Tin Polis transforma-se em Estambul. Que não é um nome, mas uma certificação. Assim como não mudaram o nome da cidade, também não se atreveram a chamar à nação romana - o povo por excelência, os senhores do mundo - o rebanho e a dividi-lo em raças... Chamaram aos cidadãos do Império Romano rum millet, que quer dizer nação romana. Ainda hoje, os cristãos do Oriente continuam a ser, em língua turca, a nação romana. Porque é sinónimo de cristão. O Império Romano do Oriente era
* (2) São Gregório de Nazianzo, P. G., 37; Carmina, II, I. *
cristão desde São Constantino. Até Sua Santidade Athenagoras, o patriarca ecuménico e chefe dos duzentos milhões de cristãos do Oriente, ainda hoje é conhecido entre os Turcos como o patriarca dos Romanos. Se procurarmos a sua morada na lista telefónica de Constantinopla ou no roteiro da cidade, encontramos Rum Patrikhanesi, que significa patriarca dos Romanos. E é justo, pois os habitantes de Constantinopla nunca se atribuíram outro nome antes da conquista dos Turcos senão romanos. Eles eram romanos e cristãos. Constantinopla, a capital do Império Romano, foi a primeira cidade onde flutuou o labarium, a bandeira imperial com a Cruz. Maomé, o Conquistador, informou-se acerca da religião dos Romanos. Ainda existe o texto redigido pelo Santo Patriarca Scholarios sobre a doutrina cristã para o conquistador. É um pequeno catecismo. Um processo verbal sobre a doutrina de Cristo. Maomé II, o Conquistador, com lógica infalível - que é próprio do Diabo e dos conquistadores da Terra-, tirou os ensinamentos dialécticos que se impunham. Maomé aprendeu, primeiramente, que os cristãos são todos irmãos entre si. É o Evangelho que o afirma. Não têm reis na Terra, mas sim um Pai comum no Céu.
Na Terra, os cristãos têm pastores, bispos, padres, diáconos. O primeiro pastor desta nação de irmãos é o patriarca de Constantinopla. Maomé ordenou que os cristãos escolhessem, segundo as suas leis e tradições, um novo pastor. Porque o antigo patriarca tinha desaparecido. O lugar estava vago. Os cristãos que ainda viviam não precisaram de reflectir muito. Havia um bispo que se elevava acima de todos os outros pela sua santidade, pelo seu saber, pela sua coragem e que brilhava na Igreja do Oriente ao lado dos outros bispos como a Lua brilha no Firmamento ao lado dos outros astros. Era o monge Ghenadios Scholarios. Nasceu em Constantinopla por volta de
1405. Foi um grande sábio. Foi o tradutor de São Tomás de Aquino em língua grega, funcionário imperial - com o título de secretário íntimo do imperador-e director da Academia... Mas abandonou as honras do mundo e retirou-se, para um mosteiro, como simples monge, tomando o nome de Ghenadios Monachos, ou Gennade Scholarios... Foi num mosteiro de Constantinopla que o capturaram, amarraram e venderam em praça pública, quando os Turcos conquistaram a cidade. Foi comprado como escravo por um rico cidadão de Andrinopla. (3)
Voltaram a comprar o escravo, trouxeram-no para Constantinopla. Gennade foi escolhido pelos bispos para patriarca ecuménico. Foi entronizado com a pompa tradicional. O sultão Maomé II, o Conquistador, recebeu o novo patriarca ecuménico, cumulou-o de presentes e, na despedida, acompanhou-o pessoalmente até à porta. Doravante o patriarca ecuménico não era simplesmente o primeiro pastor dos cristãos do Oriente, mas também o chefe da nação cristã, o etnarca do povo cristão, o millet-bachi. Recebia o título de Todo-Poderoso - Panagyotatos. Possuía selo próprio com uma águia bicéfala. A nação cristã estava fundada na Terra. Tornava-se una.
Na Macedónia e no Épiro, viu-se, de repente, que era preciso abolir completamente qualquer diferença de classe, de língua, de origem, de nacionalidade. Todos os cristãos eram irmãos, iguais nos direitos, e sobretudo nos deveres, e formavam uma só nação. Não havia diferenças de raça, de origem étnica, de cor, de classe. A nação cristã que
* (3) Christoboulos: Monumento Hungarorum Histórica, tomo XXI, b. *
Cristo chama povo santo é una e indivisível como o corpo de Cristo é uno e indivisível. Era a ordem do Conquistador. É certo que Cristo nos convidou a ser irmãos e a formar um só povo, como é próprio de irmãos que têm um único pai. Mas Cristo convidou-nos sempre a viver na Terra amando-nos uns aos outros como verdadeiros irmãos. Cristo convidou-nos simplesmente. Não nos ordenou. Porque nós somos homens criados à imagem e semelhança de Deus. E é pela sua liberdade que o homem é semelhante a Deus. (4) Ora, não se ordena a criaturas livres. Convida-se. O sultão Maomé II, o Conquistador, ordenava-nos que aplicássemos a doutrina de Cristo. Sob pena de ficar sem cabeça. Não queria ouvir falar senão do rum millet. Todos os problemas deviam ser apresentados ao nosso pai na Terra, ao patriarca, o primeiro pastor e chefe da nação cristã, a quem o sultão deu também o título de soberano e chefe da nação. (5)
Há uma coisa perturbante: os Turcos chamavam aos cristãos rum millet. Em turco, millet quer dizer nação. Mas em francês é uma espécie de pequeno cereal. É uma semente. Como o trigo candial. Mas mais pequeno, que também serve para fazer farinha. Este pequenino cereal - millium ou millet - faz pensar nas sementes de que fala Cristo, com as quais se faz o pão. E a hóstia. Em Cristo, todas as sementes reunidas formam o pão, que é o corpo de Deus, a Igreja. "Como esse pão, que primeiro foi espalhado nas montanhas, foi recolhido para se tornar uno, assim a Tua Igreja seja reunida desde as extremidades da Terra no Teu reino..." (6) Ser cristão significa ser a semente, o trigo candial, o millet. Santo Inácio de Antioquia escrevia aos cristãos de Roma, antes de ser
* (4) São Gregório de Missa, P. G., 46, col. 524-A.
(5) Chronicon Pascale, Bona, 1829, p. 177.
(6) La Didakhe, IX, 4. *
lançado às feras, no circo: "Sou o trigo candial de Deus e sou moído pelos dentes das feras para me transformar em puro pão de Cristo." (7) Os cristãos do Império Romano do Oriente, após a conquista dos Turcos, foram todos transformados em millet em sementes - e moídos para se tornarem um só corpo, uma só nação. Um só pão. A narrativa do martírio de São Vítor de Marselha conta-nos que "o santo foi condenado a ser triturado pela mó de um moinho como o trigo candial de Deus". (8) Na história do martírio de São Policarpo de Esmirna diz-se que o corpo do santo está nas labaredas da fogueira "não como carne a queimar-se mas como pão a cozer". (9)
Aconteceu a mesma coisa aos cristãos do Oriente. A todos se chamou millet, trigo candial. E foram reunidos numa só nação, como os grãos se reúnem num só pão. Depois de moídos. E passados pelo fogo do forno.
Na Macedónia e no Épiro, os Romanos, os Gregos, os Sérvios, os Búlgaros, os Albaneses, os Montenegrinos, os Croatas e todas as outras nações cristãs tiveram de abolir, de um dia para o outro, após a conquista, toda a diferença de raça, de cor, de origem e tornar-se realmente irmãos. Eram todos um só grão de millet: O rum millet. Era a ordem do Conquistador. Por serem cristãos, eram todos uma só nação. com uma única origem: o Pai Celeste. E com um único chefe na Terra, o primeiro bispo de Constantinopla, Sua Santidade o patriarca ecuménico.
Isto é o grande milagre efectuado pelos Turcos: a fundação da nação cristã. Una. Indivisível. Como um só corpo. com um só Pastor. com um só Pai: no Céu. Uma única Igreja. Uma única cidadania.
* (7) Santo Inácio de Antioquia: Epístola aos Romanos, V, I.
(8) D. Ruinart: Acta Martyrium, 1689, p. 307.
(9) Martírio de Policarpo, XV, 1. *
Foi preciso ser vencido, vendido como escravo, posto a ferros para realizar a unidade cristã entre os irmãos, entre os filhos de Deus. Mas isso foi feito.
Só agora se compreendem as palavras de São
Cosme de Etólia, que viveu há um século, na Macedónia, e escreveu: "Trezentos anos depois da ressurreição de Cristo, Deus enviou São Constantino, que fundou um reino cristão. Esse reino conservou-se nas mãos dos cristãos mil e cinquenta anos. Depois, Deus tirou-o aos cristãos e confiou-o aos Turcos, para nosso bem..." (10)
A expressão "Deus tirou o reino aos cristãos e confiou-o aos Turcos para nosso bem" parece um terrível paradoxo. Mas não é. Porque os Turcos fundaram - moendo-a, amassando-a em sangue e lágrimas - a nação cristã. Una. Indivisível. Apesar da diferença de raça, de origem, de língua e de cor.
É neste acontecimento que temos de procurar o
rosto actual da Igreja Ortodoxa.
Sempre que me encontro em frente do patriarca Athenagoras, vejo nele o pastor proveniente da nação cristã. Nada mais. Muitas vezes, como toda a gente que se aproxima dele, pergunto a mim mesmo qual é a sua verdadeira origem étnica. Dizem que é romeno. De facto, fala muito bem o romeno. Dizem que é grego. Fala muito bem o grego. Dizem que é albanês. Fala muito bem o albanês. Mas seria inútil procurar a origem étnica, a raiz nacional, a ascendência genealógica do patriarca Athenagoras fora da nação cristã. Exclusivamente cristã. Não possui qualquer outra nacionalidade terrestre. É na Terra como no Céu membro da nação de Cristo. Mais nada. E os Albaneses, os Búlgaros, os Gregos, os Romenos, os Sérvios
* (10) São Cosme de Etólia: Sermões, edição Aug. Kantiotis, p. 128. *
nunca poderão dizer que o patriarca Athenagoras não pertence ao seu povo. Não. Mas também não podem reivindicá-lo inteiramente. Porque Athenagoras é ao mesmo tempo romeno e grego e albanês e búlgaro e sérvio... Mas não lhe basta qualquer nacionalidade terrestre. É o cidadão cristão. Como todos os seus antepassados. Sem direito de cidadania na Terra.
Deste modo, o patriarca Athenagoras é ecuménico por excelência. Foi eleito patriarca ecuménico pelo Espírito Santo que se manifestou no voto dos bispos do Santo e Sagrado Sínodo. Todos os bispos votantes eram gregos. E os bispos sufragantes gregos do Santo e Sagrado Sínodo de Constantinopla não votariam nele se não estivessem convencidos de que era grego. Os santos bispos gregos que votaram em Athenagoras não se enganaram. É grego. Mas se fossem todos albaneses, votariam da mesma maneira pela eleição de Athenagoras. Porque o teriam julgado albanês. E também não se enganariam. Como os gregos não se enganaram considerando-o grego. E se os bispos fossem romenos, teriam, sem perigo de errar, votado também por ele, considerando-o romeno. Pois Athenagoras pertence a todos os povos, sem pertencer exclusivamente a uma nação. Como se diz dos cristãos: "Toda a terra estrangeira lhes serve de pátria e toda a pátria é para eles terra estrangeira."" Athenagoras é'grego com os Gregos, romeno com os Romenos, sérvio com os Sérvios, búlgaro com os Búlgaros, albanês com os Albaneses. Até é americano com os Americanos. Os últimos presidentes dos Estados Unidos, começando por Roosevelt, eram seus amigos pessoais "e apelavam regularmente para os seus conselhos. Athenagoras é turco com os Turcos. E ninguém se alegrou mais que os Turcos por o ver eleito patriarca ecuménico.
Turcos.
* (11) Epístola a Diogneto, VI. *
A imprensa turca recebeu Athenagoras como se recebe um dos seus. Ataturk, o pai dos Turcos e o fundador da República turca, era um dos seus amigos... Antes de o conhecer, eu sentia um enorme orgulho ao pensar que Athenagoras era romeno. Todos os romenos que o visitaram antes de mim me afirmaram isso mesmo. Sem dúvida que é romeno. Um puro romeno. Agora, devo dizê-lo: não é romeno. Só possui uma nacionalidade: a de cristão. Como no dia do seu nascimento em Terra Plana. Nesta nacionalidade estão incluídas todas as do Ecumenado. É uma nacionalidade superior a todas as outras da Terra: porque é do Céu. E contém em si todas as nacionalidades da Terra.
É mais alto e maior do que imaginava. É literalmente um patriarca ecuménico.
Eis as origens étnicas, nacionais, sociais e tudo quanto se refere à genealogia do patriarca Athenagoras. Eis tudo quanto se refere ao seu povo. À sua família, à sua pátria. Eis tudo quanto se refere ao sangue que lhe corre nas veias: é o sangue da nação cristã. E esse sangue não é o de um povo da Terra, mas o sangue do próprio Deus. É o sangue de Cristo. O mesmo que nós bebemos - depois da santa e divina liturgia - na comunhão. É este o sangue de Athenagoras. E do seu povo. É o sangue de Deus.
O PECADO DA BELA HELENA, MÃE DO PATRIARCA ECUMÉNICO
A bela Helena, a mulher do médico, arranjou a sua casa de pedra em Terra Plana, ampliou-a e embelezou-a. O jardim, em terraço, concebido pela linda mãe do patriarca ainda existe. Observando este terraço do jardim apercebemo-nos de que a bela Helena além de ser a mais linda filha da Macedónia e do Épiro também tinha bom gosto.
O doutor Mateus Spyru não podia criar os filhos apenas com os seus honorários de médico da nação cristã. Porque a nação cristã era pobre. Na Turquia, para ter o direito de ser cristão, paga-se um imposto cinco vezes mais pesado que o dos outros habitantes do Império. O médico fazia também criação de gado para sustentar a família.
- Tinha quarenta e duas ovelhas - diz-me o patriarca Athenagoras...
Sorri. Luminoso. Tem muito orgulho nos carneiros do pai. Setenta anos depois, voltando a Terra Plana, pois a sua memória é como a memória de Deus - infalível-, foi ver o terreno onde eram apascentadas as quarenta e duas ovelhas de seu pai. Lembra-se de tudo. De todos os detalhes. Sua mãe, a bela Helena, apesar da sua qualidade de mulher de médico, tinha de tecer, lavar, jardinar, cozinhar, trazer a água, dar de comer aos animais.
A vida na serra era muito dura. Foi-o, sobretudo, enquanto a nação cristã estava sob o jugo dos Turcos. Mas as gentes da região são homens e mulheres que não temem o esforço. Se o cavalo está cansado, o homem toma o lugar do cavalo e o trabalho continua. Todos os habitantes daqui sabem fazer de tudo. Cada um constrói com as suas próprias mãos a casa, os móveis, os utensílios. Numa parede da casa de Terra Plana há uma fotografia do doutor Mateus Spyru. É muito parecido com o filho, o actual patriarca. Mais forte ainda. É como o Sansão da Bíblia. Tem os mesmos olhos do patriarca. O mesmo ar. Na família de Spyru todos têm a estatura e o ar das personagens do Antigo Testamento. Mas, além da força de seu pai, Athenagoras herdou também a beleza suave de sua mãe, a bela Helena.
Todavia, é preciso desconfiar sempre das coisas visíveis. Estes gigantes montanheses como o doutor Mateus Spyru, capaz de lutar sozinho, na floresta, com o maior urso da Macedónia e do Épiro e vencê-lo, estes gigantes altos como pinheiros e duros como rochedos, escondem no peito de granito corações ternos, frágeis e vulneráveis como flores de mimosas. Descobri várias vezes, com espanto e deslumbramento, ternura e poesia no patriarca que não eram de prever. Quando está com crianças, é também uma criança, porque sabe falar a linguagem das crianças. Tem o coração delas. Por isso se diz que só as crianças podem ver Deus frente a frente.
E é justamente por causa da ternura das suas almas, por causa dos seus sentimentos puros e meigos como as flores das campainhas-brancas que as vidas do doutor Mateus Spyru, da sua mulher e dos filhos tomaram um aspecto trágico.
Eis os factos. A Primavera é a maior calamidade para os montanheses. Por causa das neves, todas as provisões do Inverno estão esgotadas. Homens e animais não têm nada de comer. Isto acontece apesar de todas as precauções. Regularmente. Entre o derreter das neves e o princípio da Primavera não se pode sair de casa. Os homens por não haver trabalho antes do Verão; os animais porque não há qualquer rebento de erva para pastar. Homens e animais ficam fechados nos seus abrigos de pedra e sofrem a fome, enquanto esperam que a natureza faça crescer a erva. Degelar a terra, começar os trabalhos. A própria terra, em alta montanha, assemelha-se à Primavera, à doente carcomida de chagas. A cor da terra é cinzenta. Toda a montanha é como um corpo ferido. Até as fragas mais duras têm as marcas das avalanchas, das nevadas que fazem rebentar a terra. As marcas das queimadas do frio.
E como uma calamidade é sempre seguida de outra calamidade, é na Primavera que morrem os tísicos, os fracos, os velhos e as crianças. Todas as casas ficam de luto. Porque em cada casa há um fraco, um doente, alguém muito jovem ou muito velho. E esses morrem sempre com o derreter das neves. Há enterros todos os dias. Em todos os lugarejos. A fome dos homens e dos animais, no cenário dos rochedos enfermos, com os préstitos fúnebres quotidianos e os cantos de enterro, tornam a serra desoladora. Mas, ao mesmo tempo que se cavam os túmulos na rocha gelada dos cemitérios, sem parar, desabam as epidemias sobre a montanha. A peste, o tifo, a escarlatina, a difteria, a disenteria, a cólera... O vento quente que derrete as neves traz o germe da morte. Todas as montanhas são contaminadas na Primavera. O médico da nação cristã da Macedónia e do Épiro anda sempre lá por fora. É chamado para quase todas as casas. Assim como não há casa sem luto e sem fome na Primavera, também não há casa onde não haja um doente. São as doenças contagiosas. Mortais.
Sobem lá de baixo até aqui. E fazem uma razia.
Um dia, ao regressar a casa para fazer umas horas de repouso, antes de voltar a partir, o doutor Mateus Spyru trouxe consigo o germe invisível da terrível doença que devastava a montanha. Era a cólera? A peste? Ou o tifo? O nome pouco importa. O facto é que todo o que fosse tocado pela doença nunca sobrevivia. Os franceses que combateram durante a Primeira Guerra Mundial nos Balcãs falam com terror dessas doenças que se espalham mais depressa que o fogo e matam os homens, deixando as aldeias desertas...
O doutor Mateus Spyru, apesar da sua ciência, da sua prudência, apesar das suas precauções, trouxe de fora o germe da morte para a sua própria casa. Contaminou, sem o saber, o filho mais velho, Arístocles, que tinha dez anos de idade. E o filho mais velho do médico caiu como fulminado pela epidemia que devastava a montanha nessa Primavera.
O pai sabia que era o culpado. Ele é que trouxera a doença e contaminara o primogénito. Decidiu remir o seu crime. Salvar o filho da morte. Mas salvar uma criança contaminada não pertencia à medicina. Todos os doentes estavam de antemão condenados à morte. O que se podia fazer, sendo médico, era isolar os moribundos. Circunscrever a doença. Até os médicos do Ocidente, durante a Primeira Guerra Mundial, depois de muitas tentativas inúteis, deixaram de tentar curar os militares contaminados. Limitavam-se também a isolá-los. E deixavam-nos morrer. O doutor Mateus Spyru recusou-se a aceitar de antemão a morte do filho. Por três razões: porque fora ele quem trouxera a doença, porque era o pai do doente e porque era médico. Arístocles, o actual patriarca, foi isolado do resto da família. E durante vinte e cinco dias e noites o pai ficou junto dele. Arístocles estava em coma. Sem conhecimento. Mas o pai, o médico, não o queria deixar morrer, mesmo sabendo que era impossível curá-lo. Porque salvar o filho era de facto ressuscitar um morto. A luta era desigual, mas o médico combateu. E após vinte e cinco dias e vinte e cinco noites, Arístocles voltou a abrir os olhos. A doença estava vencida. O pai continuou a velar. E uma semana depois, quando a febre desceu, apesar de o menino continuar de cama, o médico partiu para socorrer os filhos dos outros pais, que o chamavam de toda a parte. Agora tinha mais coragem. Sabia que havia de curar as outras crianças para agradecer ao Céu por o ter ajudado a curar o seu próprio filho. Mas antes de abandonar a casa de pedra, a casa de Terra Plana, disse à mulher, à bela Helena:
- Arístocles está salvo... Voltarei dentro de dois ou três dias. Durante a minha ausência não lhe dês nada, absolutamente nada de comer, nem de beber, a não ser as tisanas que lhe preparei...
Dito isto, o médico foi ao encontro dos doentes que o esperavam. Ninguém reconhecia o médico na aldeia. Estava tão magro, tão pálido e tão cansado que parecia a sua própria sombra. E era natural. Porque o combate fora terrível.
À medida que a criança regressava à vida, o pai médico perdia a sua. Nenhum outro homem no mundo - excepto os pastores de granito do Épiro, a cuja raça pertencia o doutor Spyru- teria aguentado velar vinte e cinco dias e vinte e cinco noites para salvar um filho, que estava irremediavelmente condenado à morte.
Durante a ausência do pai - cuja visita mais curta durava três dias-, a doença de Arístocles cedia o lugar à saúde. E à medida que regressava à vida, tinha cada vez mais fome e cada vez mais sede. A bela mãe Helena respeitou as instruções do marido médico, que fizera o milagre - único destes tempos. Porque não havia memória de um doente atingido pelo flagelo se ter restabelecido. Mas um dia, feliz por ver o filho salvo, a pedir-lhe de comer e de beber, deu-lhe um pedacito - uma autêntica migalha -, não de comida, porque não se pode chamar comida a isso, mas um bocadinho de pão do Paraíso. É o único bolo que se faz na região, com farinha amassada com mel. Por ser o único bolo que conheciam, chamavam-lhe pão do Paraíso. Na nossa terra, nos Cárpatos, chamam-lhe assim por ser o pão mais doce do mundo. E o que é bom, doce e delicioso só pode vir do Paraíso. Talvez a bela e jovem mãe Helena, mulher do doutor Spyru, com o seu instinto de mulher, quisesse verificar se o filho ainda vivia. E ninguém se pode convencer que um homem está realmente vivo se não comer. Ela queria convencer-se do milagre. Ver o filho comer. Os apóstolos de Cristo eram homens de fé. Não se pode duvidar. Senão, temos de duvidar de tudo. Mas não se pode exigir à bela Helena, mãe do patriarca Athenagoras, uma fé maior que a dos apóstolos de Cristo. Porque o seu pecado é o mesmo que o cometido pelos apóstolos. É certo que viu com os seus olhos o filho mais velho, Arístocles, mexer-se. Tinha os olhos abertos. Ela tocou-lhe. Verificou que estava vivo. Mas não podia acreditar. O milagre era grande de mais para acreditar. Mesmo que lhe tocasse, mesmo vendo-o vivo. Também os apóstolos, quando encontraram Cristo, depois da Ressurreição, não creram no que Cristo lhes disse: ""Vede as minhas mãos e os meus pés, sou eu. Tocai e vede. Um espírito não tem carne nem ossos como vedes que eu tenho." E depois de dizer isto, mostrou-lhes as mãos e os pés. Mas como ainda não acreditassem e pasmassem, enlevados de alegria, Cristo disse-lhes: "Tendes aí qualquer coisa para comer?" Eles apresentaram-lhe um pedaço de peixe assado e um favo de mel. E depois de Ele ter comido diante deles... acreditaram." (1)
Podia-se tolerar à bela e jovem mãe Helena, mulher do doutor Spyru, aquilo que foi permitido aos apóstolos. O filho voltava de entre os mortos. Por milagre. Mas para crer que estava realmente vivo, precisava de o ver comer. Comer pão é sinónimo de estar vivo. E deu-lhe o pedacito de bolo, feito por ela, de farinha amassada com mel. O pão do Paraíso. Vendo-o comer, podia agora acreditar, realmente, que estava vivo. E ficou feliz. Seu filho primogénito - o fruto das suas entranhas - comia. Portanto, estava vivo. Porque têm os humanos de ver uma pessoa comer e beber para a considerar viva? Não sei. Mas é um facto. Mas depois de ter comido a migalha de pão do Paraíso, Arístocles pediu mais. Mais um bocadinho. Ela deu-lho. Contemplando-o, feliz. Viver. Quer dizer, comer.
Além do acto da bela mãe que foge às instruções do pai, do médico e do marido, dando pedaços de bolo - dizendo: o que é bom não pode fazer mal, o que é doce não pode ser veneno-, há ainda a insistência do pequeno doente, que se comporta como todos os doentes. O teólogo diz-nos: "O mundo é como os doentes: geralmente os doentes desejam mais a sua perda que o seu proveito, aquilo que é contrário à saúde e não o que os pode curar. Neles, a saúde transformou-se em doença e a força do instinto está deslocada da ordem da natureza, porque perderam a ordem da natureza, porque perderam o equilíbrio do temperamento e da saúde do corpo que preserva a saúde do desejo. Estando perturbado o temperamento do corpo, estão igualmente perturbados todos os desejos corporais. Quem está abrasado em febre deseja beber água fria, embora lhe seja prejudicial,
* (1) São Lucas, 24, 39-44. *
e fica furioso com quem lha recusa. Mas um médico prudente não lhe responde, pois sabe que é um desejo cego que está a pedir, o que é contrário à saúde." (2)
Umas horas após ter comido o bolo proibido, Arístocles voltou a ter febre. Começou a escaldar. Como o carvão em brasa. Perdeu o conhecimento. Ficou em coma. As recaídas são sempre fatais. A bela Helena caiu de joelhos. E implorou à Mãe de Deus. Porque a Mãe de Deus sabe muito bem o que significa ter um filho e a dor de o ver morrer. Mas o mal piorou. Arístocles não voltava a si. O pai regressou no dia seguinte. A criança jazia quase morta. A mãe, de joelhos, ao lado do leito, chorava arrancando os cabelos.
- Que fizeste? - perguntou o pai médico à sua bela mulher.
Sabia que a doença não podia ter voltado sem uma causa exterior.
- Dei-lhe um pedacinho, mas um pedacinho muito pequenino, de pão do Paraíso... Uma migalha. E ele recaiu...
- Mataste o teu filho! - disse o pai, o médico, o marido. Repetiu-lhe: - Mataste o teu próprio filho...!
Foi tudo quanto disse. Tirou a túnica. Arregaçou as mangas. E apesar de saber que os milagres só acontecem uma vez e nunca se repetem, tentou de novo curar o filho. Agora não tanto com a sua ciência, mas com o seu amor de pai e com a sua fé em Deus. O combate foi muito demorado. A criança não retomou consciência durante toda a noite. Estava como morto. já não se mexia. O pai já não ouvia as pancadas do pequeno coração. Já não sentia o sangue pulsar nas pequenas veias. O hálito de Arístocles já não embaciava o espelho que lhe punham junto à boca. Portanto, já não
* (2) Filóxeno de Mabbug: Homilias, VIII, 239-240. *
respirava. Vendo isto, e pensando que seu filho Arístocles já estava morto, Helena Spyru saiu nas pontas dos pés da cela do enfermo. Foi pedir perdão à Mãe de Deus por ter morto o filho por suas próprias mãos, com um pedaço de pão feito com mel. Era a matadora de seu filho. Era mãe infanticida. E a dor foi tão grande que o coração da bela Helena cessou de bater. A mulher do doutor Spyru, a mãe de Arístocles, do actual patriarca, morreu de joelhos, diante do ícone da Mãe de Deus, Morreu subitamente. Morreu de desgosto. Por ter morto o filho. com uma migalha de doce. Uma coisa cem vezes mais pequena que a maçã que outra mulher deu a comer a Adão, no Paraíso. E que matou a felicidade do homem no Paraíso.
Foi só no dia seguinte, ao nascer do Sol, que Arístocles recomeçou a respirar. O médico abandonou a criança doente e foi buscar uma xícara de chá e uma côdea de pão, pois estava exausto. E, ao passar pelo quarto de cama, viu a mulher, a sua querida mulher, a bela Helena, morta. Completamente fria. Pois estava morta há horas. Pedindo perdão ao Céu por ter morto o filho, que se encontrava vivo.
"Foram as minhas palavras de censura que a mataram", pensou o médico.
Levantou-se. Estendeu-a sobre a mesa. Porque nunca se pousam os mortos na cama, como os doentes. Estendeu-a na grande mesa rectangular que se encontra no meio da sala. Fechou-lhe os olhos. Acendeu as velas. Colocou-lhe no peito o ícone dos santos imperadores Constantino e Helena, que tirou da parede. Era o ícone de sua casa, que lhes tinham dado quando casaram. Foi a chorar chamar as mulheres da vizinhança para cuidarem e velarem a morta. Depois, foi prevenir o padre. E voltou para o quarto do fundo, onde jazia o filho doente, Arístocles. Agora, o médico tinha, na sua casa de pedra, um doente - entre a vida e a morte - e uma morta. E afastados, noutros quartos, com ordem para não sair, para não apanharem também a doença, estavam Jorge e Ágata, a dormir. Sem saberem que a mãe jazia morta, na sala, estendida sobre a grande mesa de carvalho. A dor do doutor Spyru foi extrema. Terrível. A sua bem-amada estava morta. A sua mulher, a mãe de seus filhos, aquela que mais amava no mundo. E tinham sido as suas palavras de cólera que a haviam matado. Mas aqui, estamos tão perto do Céu que sabemos que o mal, o autêntico mal, não existe. A natureza do corpo está necessariamente sujeita aos acidentes, às enfermidades, à velhice, à morte... Foi pelas bocas de Adão e Eva que esses acidentes vieram ao mundo. O único mal possível é o pecado. Os outros, o sexo, a doença, a velhice, a morte, são as consequências do pecado.
A maçã que Adão mordeu, o pedaço de pão amassado com mel e as palavras duras que pronunciara são o verdadeiro mal. Está na vontade do homem cometê-lo ou não. Não foi Deus que criou o mal, nem a doença, nem a viuvez. Nem a morte. Mas o homem, por sua vontade. Não era uma consolação. E o doutor Mateus Spyru nunca se consolou da morte da sua bela e bem-amada Helena. Sucumbiu pouco depois! Porque o amor verdadeiro é inconsolável. Só os santos conseguem ultrapassá-lo. Só eles. O doutor Spyru morreu também de amor. Como sua mulher morreu de amor pelo filho. O coração destes gigantes de granito do Épiro é terno e frágil como a mimosa.
MARIA, MÃE DE DEUS, SUBSTITUI HELENA, MÃE DE ATHENAGORAS
A bela Helena, mãe de Athenagoras, morrera há meses. Depois morreu o doutor Mateus Spyru. Enquanto viveu escondeu sempre a Athenagoras a terrível notícia. O menino continuava em convalescença. O doutor Mateus Spyru quis poupar-lhe o desgosto. Dizia a Athenagoras que a mãe fora tratar uma pessoa de família. Que em breve voltaria para casa. Sempre que dizia ao filho esta mentira ficava com os olhos cheios de lágrimas.
- Estou com um princípio de conjuntivite - explicava ele ao filho. - É por isso que tenho os olhos vermelhos.
Depois, abandonava a cabeceira do filho para chorar às escondidas. Sozinho. À vontade.
Athenagoras nunca suspeitou que seu pai, um gigante, homem com a estatura dos carvalhos e todo de granito, era capaz de chorar às escondidas como um adolescente apaixonado. No dia em que o doutor Mateus Spyru morreu, caiu como uma árvore fulminada. Subitamente. Como morrem as árvores e os homens da montanha. Subitamente. Não se curvam para cair mortos. Da posição vertical dos vivos, caem no solo horizontalmente. Sem se dobrarem. Sem se curvarem. Sempre direitos. E é direitos - como viveram - que os depõem nos túmulos de granito, abertos na rocha. Igualmente caxados na montanha como o túmulo de Cristo. É nestes vestiários de granito que os habitantes da Macedónia deixam os seus corpos inanimados, seus despojos mortais, suas túnicas de pele, exactamente como se deixa o casaco no vestiário, e adormecem à espera da ressurreição da carne.
O que mais me impressionou no cemitério de Terra Plana - onde estão enterrados os pais do patriarca - é que este cemitério - e a palavra significa literalmente dormitório - também está situado mais no Céu que na Terra. Como a aldeia. Os habitantes de Terra Plana, ao morrer, ficam com os corpos enterrados, de certa maneira, não debaixo da terra, mas no Céu. Só Elias, o profeta, Henoch, Cristo e Maria, Mãe de Deus, subiram ao Céu com os seus corpos de carne e osso. Aqui, todos - até os grandes pecadores - são enterrados no Céu. Sem excepção. com os seus corpos terrestres. Porque o cemitério está situado na aldeia, na fronteira do Céu. É o cemitério onde mais gostava de ser enterrado no fim dos meus dias. Porque, aqui, é nos túmulos de granito e no Céu que os corpos dos mortos esperam a trombeta dos anjos que há-de anunciar a ressurreição da carne. Mas para mim é um sonho vão. Porque nenhum homem pode escolher a hora nem o local onde há-de morrer e ser enterrado.
Há um costume que consiste em distribuir, depois da cerimónia do enterro, as roupas e os objectos dos mortos. A túnica de Cristo também foi repartida.
As roupas do doutor Spyru foram distribuídas pelos parentes e vizinhos. Os filhos - Arístocles (actual patriarca Athenagoras), seu irmão Jorge e a irmã Ágata - assistiram a chorar à partilha das roupas do pai, que se desenrolou diante dos seus olhos, na casa de pedra, no regresso do cemitério.
Deram como esmola - "para que se lembrem da sua alma" - aos vizinhos e parentes o chapéu do doutor Spyru, o casaco, as camisas, as calças e as botas grossas. Foi tudo dado "para que se lembrem da sua alma", que se diz em grego psychikon. Não é uma esmola vulgar. É uma maneira de perpetuar a memória dos desaparecidos, graças aos objectos que lhes pertenceram. Porque aquele que recebeu as botas do doutor Mateus Spyru pensará nele e rezará uma pequena oração sempre que as calçar. O que recebeu o chapéu pensará no médico, dizendo "Deus tenha a sua alma", sempre que puser o chapéu.
Após a distribuição das roupas do defunto, da tabaqueira do médico, dos seus lenços, do canivete, dos lápis, dos livros e de outros objectos de uso pessoal, voltaram-se para os três filhos banhados em lágrimas, abraçados uns aos outros, gritando a sua dor. Porque, depois das roupas, era a vez de as crianças serem distribuídas. Porque as crianças, mais que as roupas, fazem parte dos bens dos desaparecidos. E também se repartem os órfãos. Dão-se a quem tem a possibilidade e a bondade de os recolher sob o seu tecto, alimentar e tratar. A distribuição das crianças órfãs efectua-se exactamente como a partilha das roupas e objectos dos mortos. Dão-se como esmola - como psychikon-, para recordação e repouso das almas dos pais. Os três filhos do doutor Mateus Spyru e da bela Helena, ficando órfãos, foram distribuídos, depois do enterro. Cada um ia ser instalado numa casa diferente. Para uma aldeia diferente. Pois não havia pessoas suficientemente ricas para abrigarem os três. As três crianças órfãs tiveram de ser separadas.
Athenagoras foi dado - psychikon, em memória e para repouso da alma de seus pais - ao metropolita Constantino de Konitza. Era um parente da bela Helena, sua mãe. Como sempre, era de rasgar o coração esta partilha das crianças e das roupas do morto. Cada um dos três pequenos teve de abandonar, no próprio dia do enterro, a sua casa natal, a casa de pedra de Terra Plana, onde tinham nascido. Cada qual seria instalado numa outra casa. E nesse mesmo dia, cada um dos três órfãos tinha de aceitar parentes estranhos, uma casa estranha, mãe estranha, pai estranho.
O metropolita Constantino de Konitza recebeu Athenagoras e, desde esse dia, foi seu pai. Mas um metropolita não tem mulher. E foi Maria, Mãe de Deus, que tomou o lugar de Helena, a bela mãe de Athenagoras. Após o dia do enterro do pai, o patriarca Athenagoras não teve, na Terra, outra mãe senão Maria, a Théotokos, a Mãe de Deus. É uma mãe que pode estar ao mesmo tempo no Céu e na Terra. Está sempre em toda a parte a mãe de todas as crianças que não têm mãe na Terra. E até hoje Maria, a Mãe de Deus, é, e será por toda a eternidade, a mãe do patriarca Athenagoras, que perdeu a mãe, a bela Helena, no fim da sua infância.
Portanto, Athenagoras tinha uma casa paterna na Terra, a catedral de Konitza. Seu pai era o metropolita arcebispo da cidade. E sua mãe era a própria Mãe de Cristo.
com uma casa destas e com pais destes, Athenagoras tornou-se uma criança privilegiada. Nenhum palácio é tão belo como uma catedral, porque uma catedral é a casa do maior rei do Céu e da Terra. E nenhum príncipe tem pais mais ilustres. Que rainha será superior a Maria, a Théotokos? Nenhuma.
Pode-se afirmar, sem receio de errar, que nenhum bispo da Terra veio de casa mais santa nem teve pais mais nobres que o patriarca Athenagoras. A partir dos dez anos, a sua casa era a catedral e a sua educação era feita pelo metropolita Constantino e pela Mãe de Deus.
O infortúnio de ter perdido os pais redundou em favor de Athenagoras, porque para quem é verdadeiramente crente todas as desgraças se podem transformar em felicidade. Como o que aconteceu a Job.
Numa casa destas e com pais destes, Athenagoras recebeu uma autêntica educação para futuro patriarca ecuménico.
Mas no Épiro e na Macedónia há uma lei de ferro, que não admite excepções. Nenhuma. Todos os adolescentes que chegam à idade de trabalhar têm de abandonar o Céu natal e descer à Terra, lá em baixo. Exactamente como Adão teve de deixar o Céu. Todos os rapazes válidos tinham de deixar a sua aldeia, lá em cima, e descer à Terra-terra para trabalhar. Para ganhar a sua vida com o suor do seu rosto, como foi ordenado a Adão.
Athenagoras, por causa da sua doença, estava muito fraco. Porque não era unicamente uma criança salva de uma doença terrível. Era antes uma criança morta e ressuscitada. Antes dele ninguém atingido pelo tremendo flagelo escapara à morte. Só ele escapou. Graças a seu pai e a Deus.
Mas é sabido que quem esteve no reino dos mortos, quase sepultado com os mortos e depois regressado à vida, ficará marcado com as cicatrizes da morte e os vestígios da vida eterna. Athenagoras estava marcado como a ferro em brasa. Era um regressado do reino dos mortos. Não podemos esquecer isto. A sua convalescença prolongou-se durante anos. A idade de trabalhar também tardou. Para ele, a descida do Céu natal efectuou-se muito mais tarde. Seu irmão Jorge, dois anos mais novo, desceu primeiro do Céu. Antes de Athenagoras, que continuava convalescente.
Jorge Spyru, irmão de Athenagoras, foi trabalhar para uma mercearia de Constantinopla. Foi a pé de Terra Plana para Constantinopla com a trouxa às costas. Porque o filho do doutor Mateus Spyru, irmão de Athenagoras, era um órfão. E aos órfãos não se poupa nenhuma dureza, em parte alguma. Jorge Spyru trabalhou como moço de fretes. Como carrejão. Para as crianças que trabalhavam numa mercearia como caixeiros, no século passado e no Império Turco, nenhuma tarefa era demasiado dura. Tinham de aguentar tudo, de trabalhar dia e noite, em condições penosas. Dolorosas. Mas Jorge Spyru sabia que era a sorte reservada aos órfãos, aos proletários cristãos e aos vencidos da Terra. Nunca perdeu a coragem. O trabalho em Constantinopla não tinha perspectivas de futuro.
Jorge Spyru decidiu ir ganhar a vida para outro ido. Partiu para o Egipto com a trouxa ao ombro. Foi para o Cairo, depois para Alexandria. Foi nesta cidade que arranjou trabalho numa padaria. Trabalho de aprendiz de padeiro, que nesse tempo era um dos mais penosos e duros ofícios que podem existir.
Era um trabalho que durava dia e noite. Um trabalho contínuo. Tinham de trabalhar nas caves, de suportar o calor dos fornos das padarias, além do calor do Egipto. Amassar o pão era uma operação superior às forças físicas de um adolescente e que, nesse tempo, em certas padarias, era feito por mulas e cavalos, como na Antiguidade. Mas aqui, na padaria de Alexandria, encontrou terreno para se ultrapassar, ultrapassar as forças dos homens. E meteu mãos à obra. Trabalhou a massa, fez o pão, aqueceu os fornos, carregou com os sacos. Não trabalhou como um homem, mas como um cavalo. Não como um cavalo, mas como vários cavalos. Não tinha descanso nem de dia nem de noite. Assim, conseguiu ganhar dinheiro. Porque era para isso que saíam do Céu natal, da aldeia de Terra Plana, para todos os países da Terra: para ganhar dinheiro. E depois de longos anos e longas noites de trabalho desumano, contou as suas economias. Estava feliz. Podia deixar o Egipto e regressar com a bolsa cheia à orla do Céu, sua aldeia.
E regressou. A pé, para não gastar o dinheiro ganho com tanto sacrifício no Egipto, na padaria com fornos subterrâneos.
Jorge Spyru instalou-se na casa natal, que estava vazia desde a morte dos pais. Casou com Polyxenia, uma rapariga que nunca temera o trabalho. Era infatigável como Jorge e sempre pronta a recomeçar. Nunca ninguém a viu descansar durante toda a vida. Jorge e Polyxenia construíram um moinho por suas próprias mãos, pode-se dizer. Nunca se tinha visto um moinho na alta montanha. Um moinho no Céu. Mas via-se agora. Existia. Jorge e Polyxenia Spyru desviaram ribeiros, construíram barragens e, um dia, a roda do moinho começou a girar. No Céu de Terra Plana, a farinha fluía, branca como leite. Deslumbrante. Agora, de baixo, não se trazia farinha, mas fermento, trigo ou centeio. Porque em Terra Plana havia um moinho. O moinho de Jorge Spyru. E toda a montanha se sentia orgulhosa.
Mas para construir o moinho, o filho órfão do doutor Spyru teve de trabalhar como uma besta de carga. Primeiro no Egipto. Depois na sua aldeia. E pouco depois de ter terminado o moinho e ter baptizado o seu filho -Mateus-, Jorge Spyru morreu por causa dos esforços excessivos que fizera durante a sua breve vida terrestre. Sabia-se membro da nação cristã - uma nação mártir, uma nação de subproletários - e órfão. E sabia que nestas condições tinha de trabalhar mais do que permitem as forças de um homem. E morreu.
Agora, na Primavera de 1968, na casa de pedra do doutor Spyru, em Terra Plana, só vive Kyria Polyxenia - a senhora Polyxenia-, a boa e infatigável viúva de Jorge Spyru. Recebe-nos de braços abertos. A casa de pedra é uma espécie de museu dedicado ao patriarca Athenagoras. O moinho construído pela senhora Polyxenia e por seu marido, irmão do patriarca, já não existe.
Porque é difícil alimentar um moinho no Céu, onde o único cereal que cresce, como um girassol sobre a planície azul, é a Lua...
É verdade que a Lua aparece todas as noites. Exactamente como uma flor de girassol. Na planície azul de Terra Plana. Mas a Lua não é uma gramínea. E nos países onde não há gramíneas não há cereais, os moinhos morrem...
Foi este o itinerário de Jorge Spyru, irmão do patriarca. Como todos os homens daqui, Jorge nasceu no Céu, desceu à Terra, como Adão. E depois voltou a subir ao Céu. Construiu um moinho. Morreu fulminado pelos seus próprios esforços. Deixou uma viúva e um órfão. O seu corpo repousa no vestiário de granito, no cemitério de Terra Plana, à espera da ressurreição da carne e do Juízo Final.
Uns anos mais tarde que seu irmão Jorge, Athenagoras desceu também. Mas com a diferença de Athenagoras não ter a intenção de ganhar dinheiro na Terra para construir um moinho em Terra Plana. Nem para ser médico como o pai. Athenagoras desceu à Terra como todos os seus e como Adão, mas o seu sonho não era voltar para Terra Plana, mas uns metros mais acima. Queria regressar ao Céu. Não à aldeia natal como os outros. Queria viver a sua vida no Céu. Não no Céu de Terra Plana, mas no dos anjos. Viver como os anjos. Queria ser como os anjos - isangélico-? quer dizer, monge.
A posição dos anjos é superior à posição dos homens, por mais ricos que estes sejam. A posição dos anjos não pode ser alcançada na Terra pelos milionários, nem pelos reis, mas unicamente pelos monges...
O ITINERÁRIO COMPLETO DO CÉU À TERRA E DA TERRA AO CÉU
E is a estrada que tomou o patriarca Athenagoras. Quando se sentiu em estado de trabalhar, em 1903, deixou o Céu natal e desceu à Terra. Foi para Constantinopla, a pé. com a trouxa às costas. Era um adolescente. Nem visitou a cidade. Atravessou-a rapidamente e dirigiu-se directamente ao porto. Embarcou no primeiro barco. Era um tipo de barco que ainda hoje se chama em turco uma haraba. É uma embarcação pútrida, suja e lenta, que serve para transportar de um lado para o outro do Bósforo, da Europa para a Ásia e da Ásia para a Europa, mercadorias, gado e passageiros. Athenagoras tomou lugar, de pé, no meio das gaiolas de galinhas, carneiros, passageiros e fardos de mercadorias. A primeira escala foi na margem asiática do Bósforo, na Calcedónia, onde chegaram após uma hora de viagem. Quase todas as mercadorias e o gado foram desembarcados na Calcedónia. A maior parte dos passageiros também desembarcou. A haraba ficou quase vazia. Athenagoras não saiu. Ia mais longe que os outros passageiros. Ia para o Céu.
Interroguei-me muitas vezes o que pensaria Athenagoras ao fazer esta viagem, mas nunca me atrevi a perguntar-lhe. Estou certo de que nem ele sabe. Há viagens - como aquela que nos traz à Terra, quando nascemos, ou aquela que nos arranca da Terra, quando morremos - que não podem ser narradas, como quem conta uma viagem à Argentina, à China ou a qualquer outro lado. O itinerário de Athenagoras não se pode descrever como as viagens terrestres. Por isso, é preferível limitarmo-nos aos factos. O filho do doutor Spyru embarcou na haraba com um objectivo preciso: queria ir ao Céu. Mas como se pode ir ao Céu sendo homem na Terra? Isto, que parece impossível, é muito simples. Parte-se para o Céu morrendo na Terra. é preciso abandonar a estrada de Adão, aquela que vai do Céu à Terra, e tomar o caminho de Cristo, que leva da Terra ao Céu. Então, faz-se a viagem completa, circular. Nós, os cristãos, estamos todos destinados a fazer esta viagem, tanto os laicos como os padres. Pelo baptismo, morremos, libertamo-nos de Adão e ressuscitaremos com Cristo. Ao sair das águas baptismais, depois das três imersões, que simbolizam os três dias que Cristo passou no túmulo, ressuscitamos com Ele. Ressuscitamos lavados do pecado. Estamos libertos da condição terrestre de Adão. Estamos despojados das túnicas de pele da condição animal do homem. Ao sair das águas do baptistério, todos temos o certificado pelo qual voltamos a ser realmente filhos de Deus, herdeiros do Paraíso. Todos os homens baptizados possuem este documento.
Um monge não tem mais nada que qualquer outro cristão. Não é padre, nem bispo. Não tem nenhum sacramento. Mas um monge é diferente dos outros cristãos pelo facto de ser um cristão sério. Toma à letra a sua qualidade de cristão. Para um monge, ser baptizado e lavado do pecado não são apenas palavras, como para a maior parte das pessoas. O monge faz questão de usar os direitos que lhe foram concedidos pelo baptismo. É, na realidade, filho de Deus. Herdeiro do Paraíso.
O monge sabe que ao sair das águas do baptistério tem no bolso o bilhete de regresso ao Céu. E quer fazer a viagem, quer utilizar o seu bilhete. Portanto, empreende a viagem de regresso ao Céu. A estrada está claramente marcada. O viajante para o Céu, o monge, não tem mais que seguir Cristo, passo a passo. E o monge chegará ao Céu, como Cristo, apesar do seu corpo terrestre. É isso que o jovem Athenagoras está a fazer ao embarcar na haraba. "O cristianismo é uma imitação de Cristo... O monge é a ordem, a condição dos incorpóreos, realizada num corpo material e sórdido. Monge é aquele que se entrega somente às leis e às palavras de Deus, em toda a parte e por todos os motivos. O monge é a perpétua violência contra a natureza e o guarda indefectível dos sentidos... O monge é um corpo que se tornou casto, uma boca que se tornou pura, uma inteligência que se tornou luminosa." (1) "O monge é como os anjos." (2) "O homem que atinge a perfeição eleva-se à dignidade dos anjos." (3) O Apocalipse fala-nos dos anjos como "companheiros ao serviço dos homens". (4) O salmista afirma que o homem é pouco inferior ao anjo. (5) Mas o homem pode ultrapassar o anjo. "O Espírito Santo é Deus e faz-me ser Deus cá em baixo." (6) A verdade é que a fronteira entre os homens e os anjos é tão variável como a fronteira entre o Céu e a Terra na Macedónia. Depende só da vontade que o homem tenha de ultrapassar os anjos. Ou, pelo menos, ser igual a eles. É isso o que fazem os monges. Porque a vida de um monge é uma ressurreição da alma antes da ressurreição geral. O monge entra no Céu, apesar de ser um
* (1) São João Clímaco, P. G., 88, Logos 1.
(2) Evágrio, o Pôntico, Tratado de Oração, 113.
(3) São Basílio, o Grande, P. G., 39, col. 205.
(4) São João, Apocalipse, 22, 9.
(5) Salmo, 8, 6.
(6) São Gregório de Nazianzo, P. G., 37, col. 408 *
homem de carne e osso na Terra. "Aqueles que morreram por perseguição e aqueles que alcançam a vida angélica têm a mesma dignidade." (7) A designação de homem já não serve para o contemplativo que chegou ao estado angélico. "É anjo pela sua ocupação neste mundo. Há-de sê-lo no outro pela glória dos anjos." (8)
O caminho do monge é o oposto àquele que seguiu Adão. Porque Adão fez o percurso do Céu à Terra: era a queda. O monge faz o percurso contrário, o do regresso da Terra ao Céu. "O que temos de fazer agora para voltar à beatitude primitiva é percorrer em sentido inverso as etapas pelas quais abandonámos o Paraíso." (9)
Todos os passageiros que se encontravam a bordo da sua haraba voltavam a cabeça para admirar a beleza do mancebo, filho do doutor Spyru. Porque era um adolescente de uma beleza excepcional. Athenagoras tinha dezassete anos. A beleza é admirada em toda a parte, mas no país dos Gregos foi e será sempre um adjectivo da divindade. O filho do doutor Mateus Spyru, de Terra Plana, nem reparava que o admiravam. Estava pálido. Grave. Esperava impacientemente que a haraba abandonasse o porto da Calcedónia e prosseguisse a sua rota. Porque Athenagoras queria iniciar a sua vida angélica o mais depressa possível. A sua viagem da Terra ao Céu. Desembarcou na ilha de Halki para ser anjo. Para ser monge. O que é a mesma coisa.
Halki faz parte de um arquipélago. Em frente de Constantinopla, a sudeste, no mar de Mármara, ou a Propôntida, como lhe chamavam os antigos Gregos, encontram-se nove pequenas ilhas, que formam no azul mar de Mármara um semicírculo
* (7) São João Damasceno, P. L., 73, col. 445.
(8) Evágrio, o Pôntico, Centúrias, II, 17.
(9) São Gregório de Nissa, P. G., 46, col. 374-C.
voltado para a terra. As primeiras quatro ilhas chamam-se: Proti, Antigoni, Halki e Prinkipo. As outras cinco, muito pequenas, são: Plati, Oxeia, Pita, Niandros e Therebondos. Os Turcos chamam-lhes Kiziladar, as ilhas Vermelhas. Porque estas ilhas possuem minerais, sobretudo cobre, que tornam a terra cor de ferrugem e de folhas mortas... Os Gregos chamam-lhes simplesmente Ta Nesia, que significa as Ilhas. Em certos mapas são designadas pelo nome genérico de arquipélago de Prinkipo.
Estas minúsculas ilhas vermelhas, perdidas no esmalte azul do mar de Mármara, em frente de Constantinopla, eram conhecidas dos mareantes gregos da Antiguidade que navegavam para o misterioso mar Negro, para capturar o carneiro de Tosão de Ouro. Era numa destas minúsculas ilhas vermelhas que vivia a deusa Hera. Os perseguidores do Tosão de Ouro, quer dizer, os perseguidores da Fortuna, da Ventura e da Felicidade, antes de arriscarem a vida no mar inóspito e no desconhecido, paravam aqui, numa destas ilhas, e pediam a Hera uma taça de certo elixir. E Hera, generosa, dava-lhes a beber o elixir, que despertava em quem o bebia o desejo de renunciar a uma vida sem riscos, nunca temer a morte e estar permanentemente ébrio de coragem. (10) Os navegadores que partem em busca do Tosão de Ouro, a Felicidade, têm sempre necessidade de desprezar a morte. Têm de viver perigosamente, sempre prontos para a luta e sempre ébrios de coragem. Como os monges.
Agora já não se fala de navegadores que partem para o desconhecido para capturar o carneiro de Tosão de Ouro. Mas foram estes navegadores que procuravam a felicidade absoluta que fundaram aqui, na margem do Bósforo, a cidade de Bizas,
* (10) Mitologia grega: A Lenda do Tosão de Ouro. *
sobre cujas ruínas o imperador Constantino, o Grande, construiu Constantinopla, a nova Roma. Nas ilhas já não há deusas que dêem de beber aos valentes navegadores o elixir que confere a imunidade contra o medo e a vida confortável. Nas ilhas Vermelhas estabeleceram-se outros corajosos navegadores, que partem para o Céu com um corpo terreno. Os navegadores que não procuram o Tosão de Ouro na Táurida e nos mares desconhecidos, mas que aspiram à identidade e à condição dos anjos: à felicidade eterna. Na verdade, as ilhas minúsculas de terra vermelha estão cheias de mosteiros, de eremitérios e de retiros de solitários. Em Halki existe, há mais de um século, a mais célebre academia de Teologia. É o mosteiro da Santíssima Trindade, situado no topo da ilha, como um ninho de águia. Athenagoras viu de longe a igreja no alto de Halki. Mal desembarcou, pôs a trouxa ao ombro e começou a subir, a pé. A toda a pressa. Trepava com prazer. Todos os serranos se sentem felizes quando os seus passos reencontram a montanha. Na ilha de Halki estamos numa igreja. Como em Basilikon. Para onde quer que se olhe, só se avista a planície azul. Aqui não é a planície azul do Céu, como na sua aldeia natal, mas a planície azul, como esmalte, do mar de Mármara. E estamos de novo como na igreja. Porque uma igreja é como um navio, com água por todos os lados. E, sob este ponto de vista, a ilha é como os navios e como as igrejas.
A ascensão leva algumas horas, mesmo para quem está habituado às escaladas.
Athenagoras permaneceu vários anos no topo da ilha de Halki, no Instituto de Teologia da Igreja Ortodoxa. Estudou ali tudo quanto lhe podiam ensinar acerca de Deus, da fé, do Céu e da maneira de lá chegar. Todos os patriarcas ecuménicos, salvo raras excepções, todos os metropolitas, todos os bispos da nação cristã, quer fossem gregos, sérvios, búlgaros, albaneses, romenos ou outros, faziam os seus estudos em Halki.
Foi nesta ilha que Athenagoras obteve os seus diplomas. Mas o ensino não se fazia unicamente pelos livros. No Instituto de Teologia de Halki há uma biblioteca imensa. Os estudantes têm de aprender uma infinidade de coisas nos livros, antes de obterem os seus diplomas. Mas tão importante como o ensino obtido através dos livros é o ensino obtido por via oral. E mais importante que os dois é a prática da vida cristã. Porque, dos dogmas e das afirmações guardadas na Igreja, uma parte provém do ensino escrito e outra parte é-nos confiada misteriosamente por uma tradição que remonta aos apóstolos, e ambas têm o mesmo valor sob o ponto de vista da piedade: "Ninguém pode afirmar o contrário, mesmo que a sua iniciação nas leis eclesiásticas seja rudimentar." (11)
O ensino através dos livros, por via oral e a prática da vida cristã têm o mesmo valor. Porque não se pode conhecer Deus teoricamente, como não se pode conhecer o sabor do mel lendo livros sobre a composição química do mel. "Se alguém não fizer ideia alguma da natureza do mel, será mais difícil dar-lha a conhecer pela palavra que pelo saborear. É igualmente impossível adquirir pelo ensino um conhecimento vivo da doçura do verbo celeste se não tivermos compreendido toda a sua suavidade por experiência directa." (12)
Na verdade, o cristianismo não se ensina. É por isso que Cristo disse que a sua doutrina é alimento. (13) Sendo a fé alimento, é preciso prová-la para a conhecer.
Portanto, no mosteiro da ilha de Halki, não se estudava apenas nos livros como em qualquer universidade.
* (11) São Basílio, o Grande, P. G., 32, col. 189-A.
(12) Id., P. G., 29, col. 364-D.
(13) São João, 4, 32. *
Dava-se Deus a provar aos teólogos como se prova o mel. Isto pela prática. E foi lá no alto, acima das ondas, no topo da ilha, que Athenagoras provou o sabor de Deus, à boca cheia.
Athenagoras permaneceu no topo da ilha, no instituto, durante sete anos. Tinha vinte e quatro quando obteve os seus diplomas. Terminara a sua estada no instituto. Desceu. com as lágrimas nos olhos. Embarcou de novo numa haraba. Os passageiros observavam-no. Homens e mulheres tinham os olhos fixos em Athenagoras. A sua beleza física atraía os olhares. Mas ele não reparava em nada. Tinha um ar grave. Preocupado. Os diplomas de doutor em Teologia, ganhos com um duro trabalho de sete anos, não lhe davam alegria alguma. Um dia, o patriarca disse-me a rir:
- Os diplomas de teólogo perdi-os à partida de Halki. Mal acabei de os receber...
Não sei se era realmente verdade, mas para Athenagoras os diplomas e os títulos de doutor em Teologia, de pedagogo e outros não tinham a mínima importância. Porque não é com diplomas que se entra no Céu. È o seu alvo era o Céu. Quando desembarcou em Constantinopla, atravessou a cidade sem parar. Partiu directamente para Elasson. É um burgo situado na Cruz da Macedónia. Na ramificação grega da Cruz da Macedónia. Foi à metrópole de Elasson.
No mês de Março de 1910, com vinte e quatro anos de idade, Athenagoras fez-se monge. Foi o dia mais importante da sua vida.
No dia em que um homem é sagrado monge, ele vive a sua ressurreição pessoal. A pequena ressurreição. Athenagoras oferecia em holocausto a sua própria pessoa a Deus. Inteiramente. Como um cordeiro que se deixa imolar no altar do sacrifício. Como Cristo na Cruz. Foi o metropolita Policarpo de Elasson que consagrou Athenagoras como monge. Nesse dia, abandonou definitivamente o mundo, a condição terrestre, entrando na vida angélica. Para viver como os anjos. Apesar de continuar na Terra e possuir um corpo de carne e osso.
Vós crucificastes a vossa pessoa e a vossa vida
no mundo, como Cristo, em Elasson, cidade que se encontra na Cruz da Macedónia... - observei ao patriarca.
Não respondeu. Há coisas de que só podemos falar com o silêncio. Não com palavras.
A passagem de Arístocles Spyru da Terra para o Céu efectuou-se na Primavera de 1910-no mês de Março, em Elasson, na Cruz da Macedónia. Era um domingo. Desde sábado à noite, no ofício das Vésperas, o hábito daquele que seria o monge Athenagoras estava depositado à porta do santuário. O hábito do novo monge ficou toda a noite na igreja.
Domingo, ao nascer do Sol, Arístocles Spyru foi o primeiro a chegar à igreja. Mas não entrou. Passou a soleira da porta da igreja e ficou imóvel junto da entrada. Estava descalço. Vestia uma alva de cânhamo. Tinha a cabeça descoberta.
Na santa e divina liturgia, na entrada solene, quando os padres, os diáconos e todos os oficiantes transportam em cortejo, passando pelo meio da igreja, as santas ofertas - as oblatas - para as depor na mesa sagrada, no santuário, os monges aproximam-se de Athenagoras, que continua à porta da igreja. Pegam-lhe nos dois braços, amparando-o como se ampara um doente. Para o ajudar a caminhar. Logo depois de ter pousado as santas ofertas na santa mesa do sacrifício, o metropolita surgiu em frente das portas sagradas. Neste momento, os monges ajudaram Athenagoras a encaminhar-se para o altar. Mas mal tinha dado um passo, Arístocles Spyru caiu por terra, tocando com a fronte no chão. Os monges, seus irmãos, levantaram-no. Deu mais um passo no solo, prosternando-se. E assim, de prosternação em prosternação, tocando todas as vezes a terra com a testa, Arístocles Spyru chegou às portas sagradas, perante o metropolita que lá estava, exactamente como Deus estará, no seu trono de glória, no dia do seu segundo advento, para julgar os vivos e os mortos.
Ao chegar em frente da iconóstase, que simboliza a fronteira entre o Céu e a Terra, e em frente das portas sagradas, que simbolizam as portas do Céu, Athenagoras prostrou-se de novo perante o metropolita, como perante Deus no Juízo Final. Os monges ergueram-no. E Athenagoras disse, então, em voz alta, a oração: "Pai Celeste, estende para mim as tuas mãos protectoras porque eu desperdicei a minha vida até agora. Salvador, não Te afastes de mim e aceita o meu coração perturbado, o meu coração que busca avidamente, sequioso, as indiscritíveis riquezas da tua misericórdia. Eu pequei, Pai Celeste, perante o Céu e perante Ti."
Repetiu três vezes a oração. A chorar. E os irmãos choravam também. E o coro cantava o belo troparion Meu Túmulo...
- Levanta-te - ordenou-lhe o metropolita. Levanta-te e escuta a palavra do Senhor, que diz: "Vinde a mim, vós que estais perturbados, e eu vos darei a paz. Tomai o meu jugo... Em mim, encontrareis a resposta a todas as vossas perguntas... Filho, hei-de fazer-te perguntas. E pensa que não sou só eu a ouvir as tuas respostas, mas Deus do Céu. E a Mãe de Deus. E os anjos. E todos os santos... Deus, que há-de vir julgar os vivos e os mortos, a todos recompensará pelos seus actos..."
Arístocles, olhando para o Céu, via Cristo Pantocrator, os anjos, os apóstolos, a Mãe de Deus e sabia que, entre eles, estava também seu pai, o doutor Mateus Spyru, e sua mãe, Helena. Mesmo ao lado de Maria, Mãe de Deus, e de todos os homens.
- Responde-me, porque vieste prostrar-te aqui perante o altar e perante toda a gente?
- Quero ser monge! -responde o filho do doutor Spyru, de Terra Plana.
- Queres sacrificar a tua vida e ser monge?
- Quero, padre. com a ajuda de Cristo.
O metropolita disse, levantando os olhos para o Céu:
- É certo que escolheste uma coisa admirável se fores capaz de cumprir a missão que a ti próprio impuseste. Porque só se pode alcançar a santidade à custa de trabalho, esforço e sacrifício. Vens aqui pedir isso por tua livre vontade?
-Venho, padre. Por minha livre vontade!
- Não vens forçado por qualquer coisa ou por alguém?
Durante um segundo, Arístocles reflecte. Vem certamente por sua livre vontade. Mas tem a vaga impressão de que não é ele próprio quem decide. Foi Deus que o escolheu. E também foi a História que o impeliu. Claro que foi por seu livre arbítrio que resolveu fazer-se monge, mas responde a um apelo que vem do Alto. Donde vivem as suas mães, Helena, sua mãe terrestre, que está no Céu, e Maria, a Mãe de Deus, que substituiu a sua mãe Helena quando ela morreu. E o próprio Cristo. São seus pais e suas mães do Céu que o chamam. Também é a História, que lhe ensinou- em Terra Plana - que não há nada tão válido como oferecer-se a si mesmo, em holocausto, a Deus. Completamente. Ele nasceu num país crucificado. Num país onde Cristo foi perseguido. E "é bom fugir com Cristo quando Ele é perseguido". (14) Vem por sua livre vontade, claro. Pois poderia proceder como todos os outros rapazes nascidos no Épiro e na Cruz da Macedónia. Podia ter ido trabalhar para o Egipto, como seu irmão Jorge. Podia ter ido estudar Medicina para Atenas ou para o Cairo, como seu pai. Podia ter ido para o comércio para a Roménia, a Bulgária, a América. Mas foi para a ilha de Halki. Depois veio para a Cruz da Macedónia, Elasson. Para se fazer monge. Para viver na Terra exactamente como os anjos vivem no Céu. Foi ele que escolheu, por sua livre vontade.
- Sim, padre. Estou por minha livre vontade...
- Suplica para ser aceite como monge.
Tem as lágrimas nos olhos. E, no Céu, os anjos, os santos, os mártires, o doutor Mateus Spyru e a sua bela mulher Helena, todos se alegram.
- Queres ser monge até ao fim dos teus dias?
- Quero, padre - responde Athenagoras sem hesitação.
-Queres ser puro e casto?
- Quero, com a ajuda de Deus.
- Renuncias à tua própria vontade, submetes-te a teu Pai e aos conselhos dos teus irmãos?
-Submeto-me, padre.
- Queres carregar com todas as dores desta vida dura que é a vida dos monges?
- Quero, com a ajuda de Deus.
O metropolita Policarpo leu então a bela oração em que se afirma que as declarações e as promessas de Arístocles Spyru, feitas aqui, em frente das portas sagradas do santuário, no meio da igreja, são todas inscritas pelos anjos, no livro do Céu. E que nunca, absolutamente nunca, ele poderá regressar à vida terrena, depois de ter oferecido a sua vida a Deus. Quem se faz monge nunca mais pode regressar à vida anterior. Permanecerá
* (14) São Gregório de Nazianzo, Oratio, 38, 18. *
monge até à morte. E aquele que, tendo sido admitido na fraternidade, viola depois a sua promessa, tem de ser considerado como tendo pecado contra Deus, a quem se dirigia a sua promessa e o seu contrato. Ora, "se alguém peca contra Deus, quem rezará por ele? Aquele que se consagra a Deus e depois regressa a um outro género de vida torna-se sacrílego, porque, se rouba a Deus, subtrai a oferenda consagrada ao Senhor". (15) O seu corpo e a sua vida já não lhe pertencem.
Arístocles ouve a descrição sobre a dureza da vida monacal e as promessas que lhe são feitas no Céu.
- Uma vez no caminho que conduz a Deus, não podes voltar para trás. Já não podes amar a tua mãe nem o teu pai mais que a Deus. Nem a ti mesmo. Queres ser monge até à morte?
- Quero, padre, com a ajuda de Deus. Arístocles Spyru pega, em seguida, com mãos
trémulas, na tesoura que está pousada no evangeliário. Beija a tesoura. Depois, estende-a ao metropolita e baixa a cabeça. O metropolita corta-lhe o cabelo, por três vezes, em sinal-da-cruz. Entregou a tesoura a Arístocles, que a pousou no evangeliário. O metropolita entrou no santuário. Depôs os cabelos de Arístocles Spyru na sagrada mesa, na mesa do sacrifício, ao lado do cálice e da patena onde se encontravam as santas oferendas. E voltou. Arístocles voltou a pegar na tesoura. Beijou-a de novo piedosamente e deu-a ao metropolita, estendendo-lhe também a cabeça. E mais uma vez, o metropolita lhe cortou os cabelos em sinal-da-cruz e os depôs na mesa do sacrifício. Isto repetiu-se três vezes. Agora, os cabelos de Arístocles Spyru estão na mesa do sacrifício. Ao lado do pão e do vinho. Porque, assim como o pão
* (15) São Basílio, o Grande: A Grande Regra, 14, P. G., 31, col. 949. *
e o vinho que acabam de oferecer a Deus para serem consagrados e transformados em sangue e carne de Cristo, também Arístocles Spyru oferece a vida a Deus, para ser divinizada. Oferece-se a Deus completamente. Para sempre. Em holocausto. No verdadeiro sentido da palavra. Porque holocausto deriva das palavras holos - inteiro + haustos = queimar. É isto o holocausto: dar-se inteiramente. Sem guardar nada. Dar a Deus a sua vida, o seu corpo, os seus sonhos, a sua alma. Tudo. Para sempre. A partir deste momento, Arístocles Spyru não possui nada na Terra. Até abandona o seu nome de Spyru. Abandona também o nome que lhe deram no dia do baptismo, o nome de Arístocles. Fica apenas com a inicial A. Doravante, será o monge Athenagoras. E assim permanecerá, até à morte.
Neste momento culminante da cerimónia, acendem-se todos os círios e todas as lâmpadas. A igreja é inundada de luz. O metropolita beija o novo monge, o monge Athenagoras. Arístocles Spyru não existe e nunca mais existirá. É o monge que vive. Athenagoras nasceu.
Depois disto começa a cerimónia das vestes. Diz-se que o hábito não faz o monge. Talvez. Mas o que é certo é que um monge não pode usar o vestuário mundano. Pois já não pertence ao mundo. Não se pode vestir como a gente do mundo. Um monge usa o hábito da penitência. O seu rason é talhado em forma de cruz e também simboliza o caixão. Doravante, Athenagoras viverá dentro da sotaina exactamente como dentro de um caixão. No seu rason, na sua sotaina preta de monge, que também tem a forma da Cruz. Porque não está apenas num caixão, também está na Cruz. Em todos os instantes da sua vida futura. Ele torna a vestir a Cruz, em Elasson, na Cruz da Macedónia.
Mas a dignidade da renúncia monacal, o hábito da crucificação e do sacrifício, é o analabon. É um quadrado de tecido preto, de sessenta centímetros, do tamanho do sanguinho com que se cobre o cálice na mesa do sacrifício, durante a liturgia. No analabon estão bordados a fio branco ou vermelho os instrumentos da paixão de Cristo, os pregos, a esponja, a lança. Por baixo dos instrumentos da paixão de Cristo está escrito: "A paixão de Cristo sou eu próprio que a sofro no meu corpo." Este quadrado preto, este emblema da renúncia, este símbolo da nobreza monacal está preso com dois cordões, que passam por baixo dos braços, às costas do novo monge, entre as omoplatas. Vai usar o analabon noite e dia, directamente sobre a pele, por baixo da camisa, durante toda a vida. Dormirá e acordará, comerá e rezará, viajará e falará tendo sempre, em toda a parte, toda a vida, os instrumentos da paixão de Cristo entre as omoplatas, nas costas. E nunca poderá esquecer que está dentro da sotaina, num caixão. E na Cruz. É isto o hábito do monge. é a vida do monge. Usará este hábito até ao último sopro de vida, na Terra. E será depositado no túmulo, outra vez, quando morrer, com o mesmo hábito que acaba de receber aqui, no meio da igreja, perante os habitantes do Céu, perante Deus e perante os homens.
O hábito há-de ajudá-lo a progredir, a subir. Cada vez mais perto do Céu e cada vez mais longe da Terra. Há-de subir toda a vida, sem parar. Porque parar, em matéria de santidade, significa cair.
Sempre que me encontro na presença de Sua Santidade Athenagoras, meu patriarca ecuménico, vejo o analabon oculto nas suas costas. Claro que ninguém o pode ver. Está por baixo da camisa. Mas sei que está lá, no meio das omoplatas, escondido nas suas costas. com todos os instrumentos da paixão de Cristo. E com a inscrição a dizer que carrega com esta paixão. E, para mim, Athenagoras é isso mesmo: o monge que traz às costas a paixão de Cristo. O resto é secundário. Sua Santidade é o homem que, há sessenta anos, ofereceu a sua vida a Deus. E que, há sessenta anos, está ao serviço de Deus, vestido com um caixão e na Cruz. Porque a sotaina é a Cruz, e abandonando a sotaina, abandona-se a Cruz.
Mas as vestes do monge não se resumem ao rason - um caixão - e ao analabon. Não. Ele recebe do metropolita meias e calçado para caminhar sempre na senda dos passos de Cristo. Porque é seguindo as pisadas de Cristo que se pode chegar ao Céu. Não há outro caminho. O monge Athenagoras recebe depois a calimakva, o chapéu de monge, que lhe deve recordar toda a vida que Cristo é o seu chefe. E que toda a vida deve ser orientada pela Cabeça, que é Cristo. Recebe em seguida o cinto de couro, que significa a sobriedade e o estado de vigilância. Um monge deve estar sempre cintado. Quer dizer, em estado de alerta. E pronto para a luta. Todos os soldados usam cinto. E o monge é o soldado de Cristo. São João Baptista, o pai dos monges, usava cinto. E o profeta também. Sempre. Todos os monges devem trazer sempre cinto. Portanto, Athenagoras recebeu também o cinto, que lhe aperta os rins e o mantém pronto para o combate. Será enterrado com o cinto de monge em torno dos rins.
A partir desse dia, Athenagoras encontrava-se no caminho de Cristo. Já não estava na Terra. Porque fez o holocausto da sua própria pessoa. Ofereceu-a a Deus como foi recomendado: "Façamos de nós mesmos uma oferenda." (16) Mas, fazendo o holocausto, imitava Cristo. E, "na verdade,
* (16) São Gregório de Nazianzo, P. G., 35, col. 396. *
o holocausto da carne de Cristo, oferecida no madeiro da Cruz, uniu as coisas terrenas às coisas celestes, as humanas às divinas". (17) Desde Março de 1910, Athenagoras está ao mesmo tempo no Céu e na Terra. Porque o hábito do monge simboliza também o manto que o pai ofereceu ao Filho Pródigo, no dia em que este voltou à casa paterna. (18)
O hábito do monge é o manto de Adão e Eva antes da queda, manto de que foram despojados no dia da expulsão do Paraíso. Este vestuário paradisíaco, o primeiro do homem e do qual todos sentimos a nostalgia, simboliza a justiça, a inocência, a incorruptibilidade, a imortalidade. É tudo isto que compõe o hábito do monge. E Athenagoras renunciou a todos os vestuários multicolores da Terra, que nos podem dar a honorabilidade mas não a inocência, a honestidade mas não a justiça, o brilho mas não a glória e a imortalidade... O vestuário do monge é o contrário da túnica de pele com que nos vestiram depois da queda do Paraíso. (19)
Um monge que abandona o seu uniforme celeste, angélico, é pior que todos os soldados que desonram os seus uniformes, que desertam e se passam para outros exércitos, porque trai o Rei dos Reis. Do mesmo modo, nenhum monge, nenhum padre, nenhum bispo ou patriarca se pode alistar num exército estrangeiro nem numa acção terrestre, por mais bela que seja. Porque nenhum soldado pode usar dois uniformes. E o monge tem o uniforme paradisíaco do soldado de Cristo. Já não se pode alistar na Terra. Nem entrar ao serviço dos reis, dos presidentes das repúblicas ou dos
* (17) Orígenes: G. C. S., VI, 287.
(18) São Mateus, XXII, 11.
(19) Génese, iII, 21. *
partidos da Terra. Pertencemos de uma vez para sempre ao exército em que nos alistamos, e do qual trazemos as insígnias e as cores. E o monge está exclusivamente ao serviço do Céu. Ao serviço de Deus, seu Rei. A aberração dos tempos presentes, deste século xx, trágico e sublime, é que os monges e os padres querem servir sob vários uniformes, com o pretexto de fazer obra na história ou obra social. E isto não é possível. Isto é um pecado e uma falta mais grave que a falta de Adão e a dos anjos que se tornaram diabos. Quem serve Deus serve tudo. Quem serve Deus serve a humanidade e todos os seus irmãos da maneira mais perfeita. E nenhum compromisso terrestre pode prestar maior serviço aos homens, à sociedade e ao progresso que o prestado pelos soldados de Deus. Como diz Santa Doroteia de Gaza: "Quanto mais se está ligado ao próximo mais se está ligado a Deus..." Para que possam compreender o sentido desta frase vou dar-vos uma imagem tirada dos padres: "Suponham um círculo traçado no solo, quer dizer uma linha traçada em redondo com um centro. Chama-se precisamente centro ao meio do círculo. Prestai atenção ao que vos estou a dizer. Imaginai que este círculo é o mundo. O centro é Deus. E os raios as diferentes vias ou maneiras de viver dos homens. Quando os santos se querem aproximar de Deus encaminham-se para o meio do círculo. À medida que o penetram aproximam-se uns dos outros e de Deus ao mesmo tempo. Quanto mais se aproximam de Deus mais se aproximam uns dos outros. E quanto mais se aproximam uns dos outros mais se aproximam de Deus. Compreendem que acontece o mesmo em sentido inverso, quando nos afastamos de Deus para nos retirarmos para o exterior. Então, é evidente que quanto mais nos afastamos de Deus mais nos afastamos uns dos outros e quanto mais nos afastamos uns dos outros também mais nos afastamos de Deus." (20)
Desertar do exército de Deus, com o pretexto de melhor servir a sociedade dos homens, é uma aberração, uma traição, uma heresia e um acto de estupidez indigno de uma criatura dotada de raciocínio como o homem. Depois, desertar de Deus para se colocar ao serviço de um chefe, de um reino, de uma república ou de um partido é uma queda terrível e idiota. "Voltar para o Egipto - quer dizer, para o mundo - é nunca mais ver Jerusalém, a cidade da paz e da felicidade." (21)
Na Terra, um soldado que se passa para uma bandeira estrangeira é fuzilado no local. Por traição. Como desertor. Porque é um acto extremamente grave. Por isso, aquele que abandona o serviço de Deus para servir nos exércitos terrestres é expulso para todo o sempre da Cidade do Alto. Por isso, o profeta clama: "Livrai-nos de tocar na impureza do século." (22)
Abandonando todas as coisas terrenas, até o seu nome, para servir Deus, Athenagoras escolheu o melhor caminho que um homem pode escolher na Terra. E isto aconteceu - por sua livre escolha - na Cruz da Macedónia, em Elasson, quando tinha vinte e quatro anos de idade.
Nesse dia começou o mais rude combate que jamais existiu no planeta. Porque foi dito que, "de todos os combates travados pelos cristãos, os mais rudes são aqueles por meio dos quais se conserva a pureza". (23) Foi esse combate que Athenagoras venceu. Nos seus sessenta anos de vida monacal. E por causa disso, aos oitenta e quatro anos, não é um homem, mas inteiramente luz.
* (20) Santa Doroteia de Gaza, P. G., 88, col. 1696-B e C.
(21) São João Clímaco, P. G., 88, col. 665.
(22) Isaías, 52, 11.
(23) Smaragdus, P. L., 102, col. 688.
É igual aos anjos. É anjo. E por isso, Deus permitiu-lhe realizar com o papa Paulo VI o maior milagre jamais realizado por um santo na Terra: curar o próprio corpo de Cristo, que é a Igreja. O corpo de Deus esquartejado, serrado em dois, na Terra, há nove séculos...
O HOMEM DO PENTECOSTES ESTÁ ENCERRADO NA TORRE DE BABEL
EM Julho de 1910, o hierodiácono Athenagoras foi mandado para o mosteiro de Monastir, na Macedónia sérvia. Começou o terrível combate. "O monge chama-se monge por causa disto: conversa com Deus, noite e dia, e só pensa nas coisas de Deus, sem possuir nada na Terra." (1)Para ter direito a conversar com Deus, dia e noite, o monge tem de ser puro. A sua vida compõe-se de nepsis, vigilância permanente e sobriedade espiritual, de ponos, quer dizer, toda a espécie de dores, de kopos, ou labor contínuo, de encrateia, continência, de sophrosyné, ou temperança perfeita, de ágapes, ou caridade, amor igual por todos e por todas, de praotès, ou doçura, de catastasis, que consiste num estado tranquilo. E tudo isto para chegar à apatheia, à ausência total de paixões.
A vida de um monge é um combate perpétuo e um ultrapassar-se sem fim. A vida do monge é a história do mais renhido combate jamais travado pelo homem na Terra. Tem de agradar a. Deus. Nos apotegmas dos padres do deserto encontra-se a seguinte história: "Atanásio, arcebispo de Alexandria,
* (1) Paulo Evergetinos, Sinagoga, Rematon, Constantinopla,
1861, p. 75. *
suplicou a Abba Pambo que abandonasse o deserto e viesse para Alexandria. Ele veio. Ao ver uma prostituta começou a chorar. Os que estavam presentes perguntaram-lhe a razão das suas lágrimas e ele disse: "Duas coisas me impelem a isso: uma é a perda desta mulher e a outra é eu não ter tanta preocupação em agradar a Deus como ela aos homens maus."" (2)
O jovem monge Athenagoras também desejava uma única coisa: agradar a Deus! E não se poupava a nada para merecer o amor de Deus. Foi escolhido pelos monges para chefe do seu mosteiro, hiégoumènc. Em seguida, foi ordenado padre e recebeu o cargo de arquimandrita. Agora, não era apenas monge, era também padre. Isto significa que estava cheio do Espírito Santo. Era o homem do Pentecostes. Porque ser padre é isso mesmo: ter recebido do Céu o Espírito Santo exactamente como os apóstolos o receberam no Pentecostes. Foi dito: "Os amigos do Senhor encheram-se de alegria e de coragem, eles anteriormente tão timoratos, quando, nesse dia, o Espírito Santo desceu do Céu sobre a casa dos discípulos. Cada um começou a falar aos povos noutra língua, porque as línguas se tinham espalhado sobre os discípulos como chamas e, longe de os devorar, cobriam-nos de orvalho." (3) O Espírito Santo, que não teme nada e não despreza ninguém, é a força do padre. Faz do padre um homem excepcional. Porque com a força do Espírito Santo podem-se realizar na Terra coisas que a lógica e os cálculos nem sequer deixam entrever. Graças ao Espírito Santo podem-se realizar todas as coisas apesar das leis da natureza e apesar da lógica. Podem-se realizar mesmo contra as leis da natureza. Porque foi Deus que fez as leis e a lógica e também as pode desfazer. Quando quiser.
* (2) Apotegmas dos Padres, P. G., 65, Alfabético: Pambo.
(3) Ofício de Matinas, Domingo de Pentecostes, Cathisme 4, Ton Pias. 8. *
Como quiser. O poder concedido no Pentecostes é um poder ilimitado. Por isso, foi dito: "Inundais-me com a torrente que brota do vosso peito imaculado e trespassado por uma lança, Verbo de Deus, marcando-me com o Selo do fervor do Espírito." (4)
O arquimandrita Athenagoras possuía agora o fogo do Pentecostes. Era-lhe possível realizar tudo, tanto na Terra como no Céu, com a condição de ser amado por Deus. Nesta época, dava-se na Terra um acontecimento terrível: rebentava a Primeira Guerra Mundial. Rebentou aqui, nos Balcãs, onde se encontrava o mosteiro de Athenagoras. Na Sérvia. Todas as guerras são a imitação da torre de Babel. Todas as guerras são o contrário do Pentecostes. Porque, na torre de Babel, cada um fala a sua língua, só cuida dos seus interesses e só conhece as leis da philautie, do amor-próprio, do egoísmo. Falando exclusivamente a nossa própria língua, não se pode dialogar. Não se pode compreender. E por não se entender com palavras, fala-se com espingardas, com punhais, com canhões e metralhadoras. É isto a torre de Babel. A guerra. O Pentecostes é o contrário da torre de Babel, porque no Pentecostes recebeu-se o dom de sair do egoísmo e de falar não só a nossa língua, mas sobretudo a do próximo. E o nosso próximo entende-nos se lhe falarmos no seu idioma. Mais que isso: responde-nos por sua vez na nossa língua. E a concórdia, o Pentecostes, a harmonia, está realizada na Terra.
Agora, é a guerra. E daqui, dos Balcãs, estende-se a toda a Terra. A harmonia, o Pentecostes, já não existe. Por toda a parte é a torre de Babel, cacofonia, o reino da incompreensão, da violência, do massacre, do sofrimento, das lágrimas e da morte.
* (4) Ofício de Matinas, Domingo de Pentecostes, Troparion. *
Athenagoras, o homem do Pentecostes, o monge, o padre e o hiégoumène, estava prisioneiro na torre de Babel, em Monastir, na Cruz da Macedónia.
A sua primeira reacção foi a estupefacção. Porque durante toda a sua infância, em Terra Plana, Athenagoras conheceu uma única nação cristã, o rum millet, o povo sagrado. Que nunca esteve dividida pela diferença de línguas, de raças, de classes, de cor. Os cristãos eram uma nação. Indivisível. Eram todos irmãos e filhos de Cristo. E agora, em redor do mosteiro, os cristãos matam-se uns aos outros. Dividiram-se em nações, a nação dos irmãos, que durava há cinco séculos, estava dividida numa infinidade de pedaços. Os irmãos de sangue, os filhos do mesmo Pai Celeste, matavam-se entre si por falarem línguas diferentes, por viverem em sítios diferentes, por terem interesses terrestres diferentes. Era pior que a torre de Babel. Athenagoras vira sempre na sua terra natal os cristãos comportarem-se como irmãos. Comendo e bebendo o mesmo sangue e a mesma carne de Cristo. Pelo mesmo cálice. Mesmo que falassem línguas diferentes. E mesmo que vivessem de maneiras diferentes, que comessem alimentos diferentes e se vestissem diferentemente. Agora, os Búlgaros, os Sérvios, os Gregos, os Romenos, os Croatas, os Russos tinham-se esquecido que eram realmente irmãos. E matavam-se. Vieram depois os cristãos do Sol-Poente, do Ocidente, e embrenharam-se na matança. Eram os Franceses, os Ingleses, os Alemães, os Italianos. Em vez de virem para aumentar a nação cristã, introduziram novas desuniões na torre de Babel. Na guerra. Na carnificina.
É certo que se falava por toda a parte na libertação da nação cristã do jugo turco. Mas essa coisa também era estranha a Athenagoras. Ele era um cristão. Portanto, um santo. E "os santos têm um único sentimento perante qualquer género humano: a Caridade". (5) E isto não é uma atitude utópica ou livresca. Os habitantes da Macedónia e do Épiro sabiam todos, por experiência, que o inimigo praticamente não existia. Todos aqueles a quem chamamos na Terra "os nossos inimigos", e que nos massacram, nos matam, nos oprimem, são na realidade nossos filhos e nossos irmãos. Realmente irmãos. Verificou-se isso durante cinco séculos, sob o jugo turco. Praticamente. Historicamente. Porque os janízaros, os soldados turcos da ocupação, aqueles que oprimiam e massacravam a nação vencida dos cristãos, eram cristãos na realidade, eram nossos filhos e nossos irmãos. No sentido exacto da palavra. Segundo a carne. Portanto, praticamente, não havia inimigo. Porque o inimigo era um irmão. Era assim que as coisas se passavam. Para ter o direito de ser cristão no Império Otomano era preciso pagar taxas e impostos especiais. A nação cristã do Império pagava cinco vezes mais impostos que as outras. Mas não se tratava unicamente das taxas e dos impostos em dinheiro, em gado, em grão, em frutos ou em mel. Também se pagava em crianças. O recebedor e os soldados turcos colectavam crianças de tenra idade nas casas e nas aldeias dos cristãos. Como quem colecta cereais, frutos, animais. Arrancavam as crianças ao seio das mães, empilhavam-nas em vagões especiais e transportavam-nas para Constantinopla. Aqui, faziam dos filhos varões soldados, eunucos ou escravos. Mas sobretudo soldados. Janízaros. Desde a mais tenra idade, ensinava-se a estas crianças a bater e a matar. Os janízaros, vestidos com o uniforme turco, eram lançados na luta para massacrar a nação cristã, sufocar as revoltas, para conquistar novos territórios ou para estacionar com forças de ocupação. Os habitantes cristãos
* (5) São Máximo, o Confessor, p. G., 91, col. 1205-A. *
do Império sabiam que todos os janízaros eram seus filhos na origem. Colectados em pequeninos na operação chamada a pédomazôma, ou, em turco, devshirmé. Quando o exército de ocupação aparecia, os cristãos, sabendo que sob cada uniforme de janízaro se escondia uma criança cristã, não tinham coragem de a matar. Porque seria matar, de certeza, o filho de um cristão, que fora entregue aos Turcos, na pédomazôma. Talvez se matasse o seu próprio filho ou o seu próprio irmão ou o filho do seu irmão. E os cristãos - para não matarem os seus próprios filhos ou os seus próprios irmãos - deixavam-se matar pelos janízaros sem combater. Porque foi dito: "A vida do cristão deve estar cheia de sangue, não derramando o dos outros, mas estando pronto a derramar o seu." (6)
Os membros da nação cristã preferiam morrer a matar os seus filhos ou os seus irmãos que usavam uniformes inimigos.
Como foi dito: "Tenho por hábito sofrer a perseguição e não exercê-la, ser maltratado e não maltratar ninguém"; (7) porque no exército inimigo, no exército de ocupação, os carrascos eram na realidade os filhos e os irmãos das vítimas, a fronteira entre a noção de inimigo e irmão e amigo fora anulada. Ou não estava definida como a fronteira que separa o Céu da Terra na aldeia natal do patriarca. A marca essencial da ortodoxia é que um ortodoxo sabe que matando o inimigo mata o seu próprio irmão. Como Caim. Ou mata o seu próprio filho matando o seu carrasco. Este imposto de sangue apertava ao mesmo tempo os laços entre os cristãos, porque uma mulher sérvia ou grega ou romena tinha de entregar o seu filho da mesma maneira. Eram irmãs. E viram-se as mulheres
* (6) São João Crisóstomo, P. G., 63, col. 52.
(7) W., P. G., 50, col. 700. *
cristãs alimentar, às escondidas, e a tratar, de noite, os soldados inimigos por saberem que tratavam e alimentavam os seus próprios filhos ocultos no uniforme inimigo.
Até Maomé, o Conquistador, aquele que conquistara, aos vinte e um anos, Constantinopla, a nova Roma, tinha mãe cristã, arrancada - em pequenina- à sua mãe cristã, durante uma pédomazôma. E todas as mulheres cristãs com filhas da idade da mãe do Conquistador observavam Maomé II com atenção, na ânsia de adivinhar se não seria, por acaso, o filho da sua própria filha. Nestas condições, os preceitos do Evangelho que nos mandam amar os nossos inimigos e rezar por aqueles que nos perseguem (8) eram fáceis de realizar. Porque se rezava efectivamente pelo filho e pelo irmão vindos como inimigos.
Athenagoras nasceu, cresceu e viveu com esta mentalidade. A nação cristã corria o risco de matar o seu próprio filho ou o seu irmão se matasse o inimigo. Ela amava o inimigo. Na verdade. A guerra, a torre de Babel, é uma aberração que um ortodoxo não pode aceitar. E isto, de facto, não teoricamente. A cruzada contra os países é uma coisa inconcebível aos nossos olhos: o pagão é um irmão. Fomos obrigados pela História a aceitar isso. Não só queremos seguir Cristo, como somos obrigados a segui-lo sob pena de matar os nossos irmãos matando os inimigos.
Athenagoras transforma o seu mosteiro em hospital, em abrigo para os refugiados, em cantina para os famintos. Em Monastir, onde ele era o hiégoumène, os soldados feridos, despojados dos seus uniformes, eram todos irmãos que sofrem. E quando morriam eram ainda mais iguais. No mosteiro não havia aliados e inimigos. O sofrimento tornava-os todos iguais. Como a morte.
* (8) São Mateus, 5, 43. *
Porque, sem uniforme, não se pode saber se um ferido ou um morto é um amigo ou um inimigo. São todos semelhantes.
Para conseguir realizar este Pentecostes, esta fraternidade, esta igualdade, Athenagoras não se limita aos actos. Aprende a falar a cada ferido, a cada homem, na sua própria língua. com palavras suas. As palavras de encorajamento e consolação são mais eficazes pronunciadas na língua materna de cada um. Deste modo, Athenagoras, o homem do Pentecostes, durante os oito anos em que esteve prisioneiro na torre de Babel da guerra - na Cruz da Macedónia, em Monastir - aprendeu o francês. Que ainda hoje fala quase sem sotaque. Isto para consolar os soldados e os oficiais franceses. Aprendeu alemão, para consolar os alemães. Aprendeu o sérvio para falar aos desgraçados da Sérvia. Já falava o romeno, o turco, o grego e o albanês. E quando chegaram os soldados ingleses, para os poder consolar com eficácia, aprendeu inglês... Falava a cada um na sua própria língua. Exactamente como os apóstolos falaram a cada povo no seu próprio idioma, depois do Pentecostes. Após a descida do Espírito Santo... E antes de ser patriarca ecuménico, ele, o arquimandrita Athenagoras, já era um padre ecuménico que podia falar a uma multidão de povos, nas suas próprias línguas...
Em 1918, a guerra terminou. O homem do Pentecostes foi também libertado da torre de Babel. Da guerra. Athenagoras permanecera na torre oito anos. Em 1918, pediu licença para ir para a solidão, para o anacorismo e para a hésychia - para monte Atos.
Deus preparava-o para grandes tarefas. Antes de os submeter aos trabalhos difíceis, Deus envia sempre os seus eleitos para a solidão, para o deserto. Até o Filho de Deus, antes da grande provação, foi para o deserto, sozinho, com os animais selvagens, os diabos e os anjos. E assim, Athenagoras, ao sair da torre de Babel, no fim da guerra mundial, foi para o monte Atos. Como monge solitário. Para estar a sós com o Senhor. E passou um ano inteiro na Montanha Sagrada, até 1919, em isolamento, em orações e meditação.
Athenagoras sabia o ensinamento dos padres: "O monge deve fugir das mulheres e dos bispos." (9)
Porque deve o monge fugir das mulheres? Os apotegmas explicam-nos: "Assim como uma mecha a arder lançada contra uma matéria sulfurosa a faz flamejar, acontece o mesmo quando a conversa põe em contacto um homem e uma mulher: produz o pecado." (10)
Fugir das mulheres sabia Athenagoras. Tinham-lhe ensinado isso em Halki. Mas os bispos, porque havia de lhes fugir? Porque os bispos, logo que encontram, num mosteiro, um monge perfeito, transferem-no para o bispado para fazer dele um prelado. Isto é uma desgraça a evitar. Obrigar um monge a sair da sua cela, do seu silêncio, da sua solidão, é causar-lhe um mal mortal.
"Pretendo viver como solitário... Surpreende-me que me obrigues a abandonar a minha cela e a cair nas ondas do mar..." (11) Noutro local, Evágrio escreve: "Exorto a tua santidade a impedir aqueles que abandonaram o mundo de ir de viagem..." (12)
não soube evitar os bispos. Foi descoberto na sua solidão pelo metropolita primaz da Grécia, Meletios Metaxakis. O arquimandrita
* (9) São João Cossian: As Instituições Cenobíticas, Livro XI, cap. 18.
(10) Diálogo dos Velhos, nº 4, Revue d'Ascétique et de Mystique, nº 33, 1957, p. 178.
(11) Evágrio, o Pôntico, Carta, 13.
(12) U., Carta, 4 i, Berlim, 1912.
Athenagoras foi transferido para Atenas e nomeado secretário do Santo Sínodo com a dignidade de arquidiácono do metropolita. Não podia escolher. Era monge. Tinha de se submeter e desempenhar os cargos que lhe eram designados pelos seus superiores. Porque um monge autêntico não pode ter vontade própria. Nem se deve aperceber se o seu calçado está esburacado ou gasto. É o superior que tem de reparar nisso. "Para que os monges praticassem a virtude da pobreza e abandono de si próprios, não lhes era permitido pedir um hábito ou outros objectos. Mas o ecónomo estava encarregado de velar por todas as necessidades e de as remediar, mesmo antes de eles darem por isso. O superior dessa época considerava como principal objecto do seu dever e da sua atenção tirar todos os pretextos aos seus inferiores para tratarem dos cuidados da Terra e até dos seus corpos, tanto em questões de vestuário como de alimentação, para que, libertos de todas as solicitações, cuidassem apenas das suas almas e dos seus progressos no aperfeiçoamento do seu estado." (13)
A partir de 1919, Athenagoras nunca mais voltou à solidão e ao anacorismo. Deus quis fazer dele um patriarca ecuménico. Tinha portanto de aprender a arte de conduzir o rebanho de Cristo na Terra.
Em 1919, ano em que Athenagoras chegou a Atenas, o trono do patriarca ecuménico de Constantinopla estava novamente vago. Sua Santidade Germano V fora deposto pelos Turcos a 28 de Outubro de 1918. A Igreja Ortodoxa não voltara a ter patriarca ecuménico. Athenagoras sabia que este cargo era um dos mais perigosos que podem existir. Desde a ocupação de Constantinopla, em
1453, até 1920, cento e sessenta e quatro patriarcas
* (13) Disciplina Monástica de Nitria e das Celas, cap. 12. *
ecuménicos foram-se sucedendo no trono de Santo André. Destes cento e sessenta e quatro patriarcas só trinta e um morreram no seu posto. Os outros foram todos exilados, envenenados, decapitados, enforcados. No ano de 1921, o metropolita Meletios Metaxakis, o metropolita de Athenagoras, foi eleito patriarca ecuménico. Mas dois anos depois teve de abdicar. O seu sucessor, o patriarca ecuménico Constantino VII, foi expulso de Constantinopla pelos Turcos, a 30 de Janeiro de 1925.
Athenagoras, na sua qualidade de arquidiácono de Atenas, entrou em contacto com os cristãos do mundo inteiro. Participou nas reuniões ecuménicas de Helsínquia e do monte Atos. Em Dezembro de 1922, foi sagrado bispo e nomeado metropolita de Corfo.
Tinha trinta e seis anos. A ilha de Corfo é geogràficamente a mais ocidental de todas as metrópoles ortodoxas. Sem ninguém se aperceber, Deus colocou Athenagoras como metropolita numa ilha onde o mundo ocidental e o mundo oriental estão igualmente em sua casa. Na ilha de Corfo não se pode estabelecer uma fronteira precisa entre o Ocidente e o Oriente. Em Corfo, os dois mundos estão misturados como o Céu e Terra Plana e como as águas salgadas do mar e as águas doces de um rio se misturam no estuário.
Na ilha de Corfo, sob o ponto de vista arquitectural, todas as igrejas são em parte ocidentais, em parte orientais. O catolicismo e a ortodoxia estão presentes arquitectonicamente e cimentados nas próprias construções das igrejas.
A primeira catedral de Athenagoras, o novo metropolita, era igualmente uma construção tanto ocidental como oriental; Igualmente romana e bizantina.
Era uma autêntica igreja de Cristo, onde os fiéis do Ocidente e do Oriente estavam unidos.
UM HOMEM BELO PODE SER SANTO?
ATHENAGORAS foi entronizado como metropolita na ilha de Corfo no mês de Dezembro de 1922. Ele, que nascera nos píncaros do país chamado Épiro - o continente-, na fronteira da Terra e do Céu, aqui está agora pastor de uma ilha.
Corfo é conhecida por Polis Tôn Kryphôn
- ilha dos Picos. À sua diocese pertencem cinco ilhas. Pequenas ilhas. Uma delas não é habitada por nenhum ser humano, mas é uma ilha muito povoada. A gente do Épiro, situado em frente de Corfo, traz para aqui, de barco, os seus rebanhos de ovelhas e deixam-nas em liberdade. Sem pastor. Nesta ilha só há carneiros, que vivem em liberdade, sem a vigilância de ninguém.
As outras ilhas são povoadas por pobres pescadores, como os discípulos de Cristo em Betsaida. A cidade dos Santos Pedro e André.
Toda a população da ilha de Corfo veio ao porto saudar o novo metropolita. E logo que Athenagoras pôs pé em terra - alto como os profetas do Antigo Testamento, direito como um pinheiro, com um olhar que não se podia sustentar, como não se pode olhar para o Sol-, fez-se um silêncio absoluto. Os habitantes ficaram com a respiração cortada. Fixaram-no, petrificados de espanto. É que o novo metropolita, o seu metropolita, Athenagoras, que só tinha trinta e seis anos, era de uma beleza nunca vista. Olhavam-no com deslumbramento. De boca aberta. Nem as estátuas pagãs da Grécia antiga, nem os artistas de cinema eram tão belos. Tão altos. com tanta nobreza. com tanto garbo. Os cabelos negros caíam-lhe sobre os ombros à maneira monacal. A barba tinha a cor da noite. Quando Athenagoras abriu a boca, foi como se se ouvisse Malquisedech, Elias, São João Baptista ou Moisés: tinha uma voz de baixo, um misto de música e de trovão. Era a voz dos profetas. Dos enviados especiais de Deus. E caíram de joelhos, murmurando:
- É Deus que fala pela boca de Athenagoras, o nosso metropolita...
Era belo. Como só Deus é belo. E como os homens em quem Deus quis encarnar. Porque o salmista preveniu-nos: "Deus é soberbo nos seus santos." (1) E eis que Deus revela a sua beleza no seu arcebispo Athenagoras. E Deus faz ouvir a sua voz aos homens, pela boca do metropolita Athenagoras de Corfo.
Os olhos de Athenagoras brilhavam como carvões ardentes. A sua cabeleira, a sua barba pareciam metal de tanto que brilhavam. As mulheres baixavam os olhos. Nunca tinham visto um homem tão belo como o novo metropolita. Só o facto de se deixar observar era como se todos fossem abraçados, apertados nas tenazes de fogo do seu olhar. E as mulheres tremiam de medo. Athenagoras era um pinheiro. A sua voz era o trovão do Céu. O seu andar era como o dos leões. Sim. Era uma montanha. Um pinheiro. Um trovão. Um deus. Bastava a sua presença no porto de Corfo para encher não apenas a cidade, mas a ilha inteira. Estava acima de todos, e tudo se tornava
* (1) Salmo 67-36. *
pequeno a seu lado. A sua presença enchia a terra toda. Não se podia olhar para mais nada a não ser para ele. Eis que este dom do Céu - reservado a raros eleitos, aos quais os produtores de cinema pagam sempre várias vezes o seu peso em ouro, porque enchem os écrans e fazem resplandecer as câmaras dos fotógrafos-, este dom era um handicap. Quando se é monge abandona-se o mundo definitivamente, radicalmente. Não se conserva nem família, nem fortuna, nem casa, nem mesmo nome. Extirpam-se do pensamento todas as preocupações e todos os sentimentos mundanos. Mas como se pode fugir do mundo, sendo tão belo e se esse mundo se agarra a nós por causa dessa beleza?
São Bernardo até à beleza das igrejas infligia uma severa censura. "Mas nós já não pertencemos ao mundo, abandonámos por Cristo a própria beleza do mundo. Tudo que agrada aos sentidos, a alegria da luz, a doçura da harmonia, o próprio aroma do incenso e a suavidade daquilo que se saboreia, que se toca, tudo isso, para nós, já não vale mais que o lixo, quando a nossa única preocupação é alcançar Cristo." (2)
Sim, os fiéis - os cristãos da ilha, mas sobretudo as mulheres - não se cansavam de admirar a beleza do metropolita Athenagoras. Aquando da minha viagem de 1968, a mulher do director do Instituto Francês de Corfo - que era menina quando Athenagoras era metropolita na ilha, há quarenta e seis anos - sempre que lhe pedia qualquer recordação do patriarca ecuménico fechava os olhos e exclamava, em êxtase: "Era belo, belo, extremamente belo!" Todas as mulheres que o conheceram em Corfo só conseguem dizer isto: "Athenagoras era belo!"
* (2) São Bernardo: Carta a Guilherme de Saint-Thierri a propósito de uma catedral romana. *
O problema não é novo. Numerosos santos que Deus dotou com a beleza física encontraram na sua beleza o maior obstáculo para atingir a santidade. Não se trata dos fracos nem daqueles que possuem ainda uma vida carnal. Não. Dos mártires, dos ascetas, dos grandes espirituais, dos verdadeiros santos, que foram prejudicados pela sua beleza física. E tentaram desfazer-se dela. Tornar-se feios. Para não atrair a atenção dos fiéis e, sobretudo, a atenção das mulheres para a sua beleza física, em vez de dirigirem a sua atenção para Deus.
Assim, Orígenes, um dos padres da teologia cristã, que morreu mártir, via as mulheres andarem constantemente à sua volta. Era em Alexandria. Onde o sol auxilia a paixão. Notando que as mulheres o viam com os olhos da carne, Orígenes fez-se eunuco, por suas próprias mãos. A Igreja condenou-o. E ele permanece condenado!
São Jerónimo, em Roma, e São João Crisóstomo, em Constantinopla, foram amados, adorados pelos seus talentos. Por se tratar de uma beleza espiritual, foi mais fácil desviar a adoração das mulheres das suas pessoas e dirigi-la para Cristo. E assim, conduziram pelo caminho da santidade Santa Paulina e Santa Olímpia. Mas quando se trata de uma beleza física, como a de Athenagoras, só há uma solução para não excitar a cobiça das mulheres: tornar-se um homem feio.
Há na história da Igreja um caso típico: é o de São Cristóvão Cinocéfalo. Este santo era tão belo como Athenagoras. E como as mulheres o perseguiam dia e noite e já não podia desembaraçar-se delas, porque a sua beleza as punha loucas de amor, pediu, a Deus, dia e noite, que lhe mudasse a cabeça. "Senhor, dai-me uma cabeça de cão para que as mulheres não olhem mais para mim." Era a sua oração quotidiana. E Deus deu-lhe uma cabeça de cão em vez da cabeça de Adónis que tinha. E agora todas as mulheres desviavam os olhos dele. E o santo ficou contente. Mas o seu ícone com a cabeça de cão - cinocéfalo - foi proibido nas nossas igrejas. Portanto, a solução de pedir a Deus uma repugnante cabeça de cão é tão condenável como a de Órígenes, que se fez eunuco.
Athenagoras sabia que Deus é belo. E que a beleza não impede a santidade. Pelo contrário: Athenagoras era vizinho de Deus, porque em Terra Plana, sua aldeia natal, está-se mais vezes no Céu do que na Terra. Os homens da sua região tratam-se por tu com Deus. Como autênticos vizinhos. Não são tímidos. Possuem a plerophoria, a certeza da sua fé, e possuem também a parrhesia, a franqueza com Deus, com os anjos e com os santos, seus vizinhos do Céu. E sendo tão íntimos de Deus, como poderiam ser tímidos com os homens? Sendo vizinho e tratando-se por tu com o Criador, não se pode ser tímido diante da criatura. É certo que o metropolita Athenagoras de Corfo teve um choque, no primeiro domingo, ao ver que todo o fundo da igreja estava cheio de prostitutas vindas do porto. Estavam lá todas. Não pela liturgia. Elas sabiam-se danadas, condenadas ao fogo eterno. Estavam ali para admirar o belo metropolita, o belo homem. E devoravam-no com os olhos, com pecado.
Athenagoras não fez um sermão contra o vício, contra o pecado e contra a prostituição, como teriam feito outros padres ou bispos nestas circunstâncias. Não. Agradeceu a Deus por as pecadoras de Corfo o amarem e por terem vindo vê-lo. De perto. Ali, no lugar onde mais se podiam aproximar dele, na igreja. Na catedral. Além disso, Athenagoras agradeceu a Deus por lhe ter dado um físico que atraía mesmo os olhares cansados das prostitutas. E por poder ser amado por aquelas que já não sabem o que é o amor e a beleza.
E uns dias mais tarde, o metropolita de Corfo, com a sua kalimakva - o seu chapéu-, com a capa monacal, com as cruzes peitorais de ouro e de brilhantes e com a panaghia de ouro e de pedras preciosas, com a sua bengala de bispo, com a sua bela estatura, saiu do palácio metropolitano e foi ao porto. Toda a gente veio para as portas e janelas para o ver caminhar a pé, belo como um rei de um conto de fadas. Aproximavam-se dele para lhe beijar a mão e lhe pedir a bênção, mas sobretudo para o ver de mais perto e lhe tocar. E tinham curiosidade em saber para onde ia o novo metropolita, o belo metropolita. Dirigiu-se ao porto, caminhando pelo meio da rua. E ali, subiu à primeira casa de prostitutas. Ao bordel dos marinheiros. Em poucos minutos, a notícia - a terrível e inacreditável notícia - espalhava-se por todos os habitantes. "O metropolita foi a casa das prostitutas. Sozinho. E entrou. Já está lá dentro há um quarto de hora." Agrupavam-se à porta do bordel. Ó metropolita continuava lá dentro. Passou meia hora. Depois uma hora. E o metropolita continuava lá dentro. E não saía. Estavam tomados de terror. A consternação dos primeiros momentos, a surpresa, o espanto passaram. Agora era o receio. O medo. Porque pensavam que o Céu não podia perdoar tal coisa. Ó pecado do metropolita, do belo metropolita, seria castigado. E a cidade de Corfo e toda a ilha seriam tragadas pelo mar. Como Sodoma e Gomorra. O Céu ia-se abrir para deixar cair enxofre, as chamas e a cólera de Deus sobre a ilha. Nunca se imaginou maior pecado. Tão horrível sacrilégio. Cometido à luz do dia. Em público. Em seguida, viu-se sair o metropolita Athenagoras. E dirigir-se para o seu palácio. Já ninguém se atrevia a aproximar-se dele. Para não atrair a cólera do Céu. E para não ver abrir-se o Inferno.
As pessoas entraram no bordel. Interrogaram as prostitutas e as patroas. O metropolita visitara as meretrizes. Deixou-as beijar-lhe a mão. Abençoou-as, uma por uma, perguntando-lhes o nome. Não lhes pregou moral. Apenas quando aquelas que se sabiam destinadas a arder no Inferno por toda a eternidade começaram a chorar o metropolita as consolou dizendo-lhes que não iriam para o Inferno. Porque eram muito novas e tinham tempo de se redimirem, de começar uma vida nova. E sair do pecado.
- Sair do bordel para ir para onde, Vossa Eminência? - perguntaram as prostitutas. - Nenhuma casa nos aceita como criadas. Nem como operárias, em nenhuma loja ou fábrica, ou oficina... Para nós, que estamos no bordel, não há processo de regressar ao mundo. Toda a gente nos conhece e sabe quem nós somos. Só podemos sair daqui para ir para a cadeia, para o hospital ou para o cemitério.
- Já foram ao bispado e puseram-vos na rua?
- Que iríamos fazer ao bispado? - perguntaram as prostitutas.
- Pedir o auxílio que o mundo vos recusa... "O santo tem o poder de fornecer aquilo que faz falta." (3)
- Arranjava-nos trabalho, se saíssemos daqui?
- com certeza que vos arranjava trabalho! Não sois minhas filhas também? Não devo abandonar todas as minhas outras filhas da ilha para cuidar de vós, que sois mais infelizes que as outras? Cristo não abandonou as noventa e nove ovelhas por aquela que se tinha perdido?
- E se não arranjarmos trabalho, rebentamos na rua! Porque aqui, se sairmos, nunca mais nos aceitam. É a lei dos bordéis!
* (3) João, o Eucaíta, P. G., 120, col. 1073.
Se não vos arranjar trabalho, pago-vos do meu bolso a alimentação e o alojamento até aprenderem um ofício e arranjarem colocação...
- E Deus passará uma esponja sobre o nosso passado? Pensa que poderemos um dia ser como as outras?
- O pecador arrependido é melhor que os outros que nunca pecaram... Perante Deus, vós sereis as primeiras...
E em vinte e quatro horas os bordéis da cidade ficaram vazios de prostitutas. O metropolita ajudou-as, com dinheiro seu. Mandou-as aprender um ofício e arranjar trabalho. E as Marias Madalenas estão agora todas no Céu - graças ao belo metropolita Athenagoras de Corfo.
Foi o primeiro combate e a primeira vitória de Athenagoras, na sua qualidade de bispo e de metropolita. Libertou as mulheres das correntes que as mantinham prisioneiras do pecado nos bordéis do porto da ilha de Corfo. Obrigou-as a aprender a não comerem o pão ganho pelo pecado.
O mundo começou a confiar no belo metropolita. A audácia com que entrou no fosso dos leões
- pior que no fosso dos leões - provocou respeito. Este acto de audácia do metropolita jovem e belo que entra nos bordéis para conversar com as mulheres perdidas, sem se preocupar com o que se poderá dizer, caracteriza toda a obra pastoral de Athenagoras. E isto é algo que aprendeu no seu lindo país do Épiro. Só o homem que não tem medo quando os lobos o cercam está salvo.
Apesar da fome, os lobos nunca se atrevem a atacar um homem que não tem medo e não treme. E Athenagoras sabe que, para vencer, é preciso estar acima do medo e do receio, como a sua aldeia natal está acima da Terra e das nuvens. A este estado de a-paixão os monges chamam apatheia.
Um padre e um bispo são homens que receberam a labareda do Espírito Santo. Um padre não pode ter medo. Nunca. Nem desprezar ninguém. Porque possui o Espírito Santo e o Espírito Santo não tem medo de nada e não despreza ninguém.
DEPOIS DE TER LIBERTADO AS PROSTITUTAS, ATHENAGORAS LIBERTA ESPIRIDIÃO DO SEU CATIVEIRO
DEPOIS de ter libertado as prostitutas dos seus bordéis, o metropolita Athenagoras de Corfo entregou-se à missão de libertar São Espiridião, o Taumaturgo, do seu cativeiro secular. É impossível ter-se compaixão pelas prostitutas e não sofrer quando os santos estão na escuridão e no cativeiro. Não é normal libertar as prostitutas e deixar os santos acorrentados. Sobretudo sendo o santo cativo o patrono da ilha de Corfo.
Depois de Santo André, nenhum outro santo ilustrou melhor o rosto e a maneira de ser do ortodoxo que São Espiridião. Conhecê-lo é conhecer o ortodoxo de ontem, de hoje e de sempre.
São Espiridião nasceu em Chipre em 270, no tempo das grandes perseguições aos cristãos. (1) Era um pastor que não sabia ler nem escrever, ou sabia muito pouco. Casou e teve filhos. A sua devoção, a sua bondade tornaram-no célebre em toda a ilha. Vinham pedir-lhe auxílio material, conselhos e até milagres. E fê-los. Depois da morte da mulher, o povo pediu-lhe para ser o seu bispo. Recusou invocando o facto de ser iletrado. Um bispo deve ser doutor. Mas cedeu face às insistências. Foi ordenado padre e depois sagrado bispo.
* (1) Menes, tomo XII, 12 de Dezembro. *
Isto não alterou nada a sua maneira de viver. Continuou a ser pastor e a cultivar a terra como antes. Nunca teve outra bengala episcopal - outro báculo episcopal - que não fosse o seu cajado de pastor. Apesar disso, foi convidado a tomar parte no Primeiro Concílio Ecuménico de Niceia, no ano de 325, com os trezentos e dezoito bispos de todo o mundo. Era bispo de Timitonita e representou a ilha de Chipre em Niceia em companhia de outros bispos cipriotas, Gelásio de Salamina e Cirilo de Pafos. (2) Apesar de analfabeto e de o sínodo de Niceia discutir problemas de alta teologia, em especial a definição da Santíssima Trindade, e da reputação da heresia de Ario, que contestava a consubstancialidade do Pai e do Filho, São Espiridião foi um dos oradores mais escutados. Perante os trezentos e dezoito bispos reunidos sob a presidência do próprio imperador de Bizâncio, São Constantino, o Grande, pegou num tijolo que trouxera da sua ilha. Mostrou-o aos padres conciliares, dizendo-lhes que a Santíssima Trindade era como aquele tijolo, que, apesar de ser um, era composto por três elementos. Invocando o auxílio de Deus, São Espiridião fez com que o tijolo que tinha nas mãos se decompusesse em água, que correu, em fogo, que se desvaneceu em forma de labaredas, e nas suas mãos ficou apenas a terra negra. Atribuem-lhe curas, milagres, como ter ajudado os pobres transformando as serpentes em moedas de ouro. Ressuscitou mortos. Acabou com as secas e a fome na ilha. Viveu nos reinados de Diocleciano, Galério e Maximiano e sofreu toda a espécie de perseguições. Arrancaram-lhe um olho e retalharam-lhe até ao osso a barriga da perna esquerda. Sobreviveu às torturas e viu chegar o reinado de São Constantino, o Grande. Recebeu na sua ilha a mãe de São Constantino, Santa Helena,
* (2) H. Gelzer: Patrum Nicaenorum Nomina, 1898, p. 66. *
que lá construiu duas igrejas, em Vassilopotami e em Togni, dotando-as com relíquias da Santa Cruz. (3) São Espiridião aprendeu toda a sua teologia com os condenados cristãos enviados pelos romanos para as minas de Chipre. Eram principalmente cristãos oriundos da Palestina. (4)
São Espiridião morreu a 12 de Dezembro do ano de 347. Na Igreja do Oriente é festejado nesse mesmo dia. A Igreja do Ocidente festeja o seu nome a 14 de Dezembro.
O santo bispo e pastor Espiridião continuou a ajudar os pobres, os desgraçados, e nem depois da morte os abandonou, porque os santos nunca deixam de fazer bem. As suas ossadas eram uma fonte de milagres. No dia em que a ilha de Chipre foi conquistada pelos Muçulmanos, os padres e os bispos foram buscar as relíquias de São Espiridião para as levar consigo, para o exílio, e não caírem nas mãos dos infiéis e dos invasores. Mas aqueles que transportavam as preciosas relíquias de São Espiridião foram mortos e foi um pobre camponês quem conseguiu levá-las, num saco de couro, para o outro lado do mar, para as montanhas do Épiro. Transportou-as às costas, piedosamente, abandonando as suas coisas. Assim, São Espiridião estava no exílio, mil anos após a sua morte, às costas dum camponês. O transportador e salvador de São Espiridião morreu e as relíquias ficaram à guarda de sua filha. O santo continuou a fazer milagres. Até porque os pobres exilados de Chipre precisavam mais que nunca de milagres. São sempre os exilados que mais precisam de milagres, porque dos homens nada podem esperar. e um dia, um nobre de Corfo veio pedir a mão da rapariga. Ela ficou lisonjeada. Não se apercebeu
* (3) Rufino, História Eclesiástica, 5, P. L., 21, col. 471.
(4) Eusébio, De Martyribus Palaestinae, XIII, P. G.. 20, col. 1513. *
que era só para entrar na posse das relíquias que o belo e rico nobre de Corfo a pedia em casamento. A rapariga aceitou. E entrou na ilha de Corfo com o saco de couro onde se encontravam as relíquias de São Espiridião. Depois da sua chegada à ilha, o santo foi utilizado como se utilizam as minas de ouro. Quem quisesse pedir um milagre ao santo tinha de pagar uma taxa ao seu proprietário. Pois o santo era como um escravo, era propriedade daquele que casara com a rapariga. Os desgraçados pagaram durante séculos. Porque a ilha de Corfo, tal como a de Chipre, só conheceu invasões, desgraças e ocupações estrangeiras. As pessoas precisavam de auxílio. E o auxílio só podia vir do Céu e dos santos. Claro que o santo podia ter deixado de fazer milagres para castigar aqueles que o tinham cativo e exigiam dinheiro pelos milagres que fazia. Mas, deixando de fazer milagres, São Espiridião castigaria ao mesmo tempo os que punham toda a sua esperança em Deus. E continuou a prodigalizar graças à espera daquele que viria libertá-lo - a ele, São Espiridião - da cupidez e da escravatura. No dia em que Athenagoras chegou como metropolita à ilha de Corfo anunciou que ia libertar o santo do seu cativeiro. Os homens devem ser livres. E os santos também. Ninguém tem direito de propriedade sobre outro homem. Nem sobre um santo. Foi uma revolução. Mas Athenagoras conseguiu que fosse votada no Parlamento grego e publicada no Diário do Governo de Atenas uma lei que proibia os cidadãos de serem proprietários de santos. Porque se, desde o momento que a escravatura foi abolida, ninguém pode ser proprietário de um homem, como se poderia ser proprietário de um santo?
Assim se quebraram os grilhões da escravatura de São Espiridião. São Espiridião foi libertado. Agora está livre em Corfo. E os seus milagres aumentaram. Porque cada moeda deixada na Igreja de São Espiridião, em Corfo, serve para adoçar a vida dos desgraçados. Pagam-se os hospitais, os orfanatos, as cantinas, as escolas. E todos os dias se celebra na linda igreja da ilha os ofícios com liturgia quotidiana, como nos conventos. E foram chamados para celebrar na igreja onde se encontra o santo bispo e pastor Espiridião os padres mais devotos e com as melhores vozes... São Espiridião tem lugar no próprio altar da igreja de Corfo. Suprimiu-se a porta sul da iconóstase, e é aí que se encontram as relíquias do pastor-bispo de Chipre. E comungando com o jovem metropolita Policarpo, o padre músico Atanásio Tsitsas e o proto-sincelo Atanásio Politis, eu sabia que o santo bispo Espiridião, que estava no diacónico, participava com todos nós na comunhão...
Foi uma das grandes obras de Athenagoras. Porque se luta pela liberdade dos homens, mas esquece-se muitas vezes que é preciso libertar também os santos. E há-de vir um dia em que a Mãe de Deus, a Rainha dos Céus, cujo ícone miraculoso está encerrado no mosteiro de Neamtz, no meu país, desde 23 de Agosto de 1944 - dia da ocupação soviética-, será também libertada. Porque a Mãe de Deus é obrigada, por determinação da polícia, a não sair do seu nicho no mosteiro. E os homens precisam dela. Mas, um dia, a Mãe de Deus encontrará também um metropolita como Athenagoras para a libertar da sua prisão... (5)
* (5) V. Gheorghiu: A Infelicidade de Me Chamar Virgílio, editado pela Livraria Bertrand.
ATHENAGORAS PERDOA O PECADO MUSICAL DOS CRISTÃOS DE CORFO
O ofício litúrgico celebrado nas igrejas é celebrado simultaneamente pelos anjos no Céu. Ora, como o culto que é prestado a Deus, no Céu, tem como único órgão a voz dos anjos, com excepção de qualquer instrumento mecânico, é impossível que o canto dos fiéis, reunidos na Terra, tenha um acompanhamento instrumental. A Igreja de Cristo, baniu, desde o princípio, os instrumentos de música do culto litúrgico. O sínodo de Laodiceia proíbe formalmente os instrumentos musicais. Santo Epifânio declara que a flauta, a tíbia, é esculpida em forma de serpente. Quem a toca parece o antigo dragão que enganou Eva. (1) São Clemente de Alexandria diz: "Será preciso reflectir muito tempo para compreender que qualquer instrumento material só serve para inflamar a coragem belicosa ou acender nos corações loucos amores, ódios, paixões? Na verdade, o homem é um instrumento pacífico. Portanto, nós, cristãos, só podemos utilizar o verbo pacífico nos nossos louvores a Deus, renunciando ao antigo saltério, às trombetas, às tíbias e aos címbalos, apanágio de guerreiros e dançarinos." (2)
* (1) Santo Epifânio, De Haeresibus, XXV, P. G., 41, col. 325.
(2) Clemente de Alexandria, P. G., 8, col, 441. *
Ao abandonar a Jerusalém terrestre, depois de terem recebido o Espírito Santo, no Pentecostes, os cristãos abandonaram o templo e a sua música instrumental, dirigindo-se para a Jerusalém do Alto. Nunca mais houve música instrumental como antes. A música dos cristãos é exclusivamente vocal. "Os apóstolos separaram-se do templo de Jerusalém e da sua música para se voltarem para a Jerusalém celeste, onde só há o canto dos anjos." (3) Porque utilizavam os profetas, como David, os instrumentos musicais e os cristãos renunciaram a eles?
São João Crisóstomo explica-nos: "Atendendo à moleza dos seus costumes e à imperfeição dos seus instrumentos, Deus permitiu aos Israelitas o emprego de instrumentos de música. Quis assim socorrer a sua fraqueza e desviá-los dos ídolos. Mas, nos nossos dias, desdenhando todos os instrumentos puramente materiais, Ele quer ser louvado pela boca dos homens. Nos nossos dias, qualquer instrumento musical é rigorosamente banido da Igreja Ortodoxa." (4)
Santo Agostinho é ainda mais categórico: "Vós é que sois a trombeta, o saltério, a cítara, o tamboril, o coro e o órgão e os címbalos sonantes. Vós é que sois tudo isso. Não se deve representar ali nada de vil nem de teatral." (5)
O papa Pio X, no Motu Próprio de 22 de Novembro de 1903, escreveu: "Apesar de a música própria para a igreja ser a puramente vocal, o acompanhamento de órgão para a música vocal é tolerado." Portanto, desde o princípio, a Igreja de Cristo na Terra, no Oriente ou no Ocidente, baniu os instrumentos musicais. Apesar de o Ocidente tolerar, em tempos relativamente recentes,
* (3) Zonoras, P. G., 135, col. 425.
(4) Pidalion, Atenas, 1886, 2." edição, p. 235.
(5) Santo Agostinho, Comentário do Salmo, 150.
o acompanhamento da música vocal com instrumentos, a voz humana é sempre considerada como o instrumento privilegiado dos louvores a Deus. A igreja primacial de Lião só aceitou o acompanhamento dos instrumentos musicais no século xix, com o cardeal Bonald. A Igreja Ortodoxa mantém-se fiel à tradição e não tolera qualquer instrumento musical no culto. Nada agrada tanto a Deus como a voz do homem. Cristo cantou com os apóstolos antes de subir ao monte das Oliveiras. (6)
São Bernardo, o grande doutor da Igreja do Ocidente, fez o maior elogio à música vocal: "O canto dos salmos e dos hinos repousa-nos das austeridades da penitência pela sua doçura... Enquanto, de joelhos nas lajes da igreja, batendo no peito, os vossos votos e as vossas orações sobem para o altar, as lágrimas de arrependimento deslizam-vos pelo rosto... A abóbada ressoa com os vossos cânticos. Que espectáculo pode ser mais doce à Igreja do Céu, ao Rei da glória que vos contempla...? Oh! Se um de vós, um profeta, abrisse os olhos como a criança que sabeis em oração, (7) veria sem dúvida os Príncipes do Céu misturados com os cantores de salmos no meio dos concertos das virgens músicas. (8) Veria com que entusiasmo se unem às nossas orações e aos nossos hinos..." (9)
São Tomás de Aquino, (10) São João Crisóstomo, (11) São Jerónimo, Santo Agostinho, Santo Ambrósio de Milão e todos os santos padres estão de acordo quanto à não utilização da música vocal nos ofícios litúrgicos. Uma das mais belas defesas da música da voz humana, que se integra na música cósmica
* (6) São Mateus, 26, 30; São Marcos, 14, 26.
(7) IV Reis, VI, 17.
(8) Salmo 67, 26.
(9) São Bernardo, Carta, 78.
(10) Súmula Teológica, II; II; 2 XCI, a 2.
(11 ) São João Crisóstomo, P. G., 55, col. 494 e 497. *
harmonizada pelo Espírito Santo, foi feita por Clemente de Alexandria.
"Vede a força do canto novo: de pedras fez homens. De animais selvagens fez homens também. Aqueles que por outros caminhos estavam mortos, que não tomavam parte na vida real, só de ouvirem esse canto, voltaram a viver... E esse canto puro que sustém o Universo e concilia todos os seres, depois de ter sido distribuído do centro até às extremidades e das extremidades até ao centro, estabeleceu esta harmonia não segundo a música da Trácia, análoga à de Jubal, mas segundo esta vontade paternal de Deus, que David procurou com tanto ardor. E este descendente de David, que existia antes de David, o Logos de Deus, desprezando a lira e a cítara, instrumentos sem alma, estabeleceu pelo Espírito Santo o nosso mundo e muito especialmente este microcosmo, homem, alma e corpo: serve-se deste instrumento de mil vozes para glorificar Deus, e ele próprio canta em uníssono com este instrumento humano. Porque tu és, para mim, uma cítara, uma flauta e um templo. Uma cítara pela tua harmonia, uma flauta pelo teu sopro, um templo pelo teu raciocínio, de modo que uma vibra, outra respira e este abriga Deus... O Senhor, enviando o seu sopro a este belo instrumento que é o homem, fê-lo à sua imagem. Ele é também um instrumento de Deus, todo harmonia, afinado e santo, sabedoria supraterrestre, Logos Celeste." (12)
A participação na liturgia pelo canto é uma participação na liturgia cósmica e na música celeste, no coro dos anjos.
Ao desembarcar em Corfo, o metropolita Athenagoras descobre, com pasmo, que na Igreja de São Espiridião se utiliza, na liturgia, um instrumento musical - uma espécie de órgão - que se
* (12) Clemente de Alexandria: O Protréptico, I, 4 e 1. *
chama harmónio. Um bispo é um guardião da fé e da tradição. O que havia a fazer era ordenar a eliminação do instrumento de música para que a tradição fosse respeitada e a fé permanecesse pura como nos foi confiada pelos santos padres.
Mas o metropolita Athenagoras não se revolta. Gosta mesmo de ouvir este instrumento instalado na igreja. Nunca se lhe oferecera tal ocasião. Porque tal não existe, nem nunca existiu, em toda a superfície da Terra num local de culto ortodoxo. O novo e jovem metropolita conhece as leis da Igreja. Sabe qual é o seu dever. Mas é o padre da ilha. E a bela ilha de Corfo - a ilha dos Picos está há milénios sob a ocupação estrangeira. A mais prolongada foi a dominação dos Italianos. com as desgraças que toda a ocupação arrasta, a par das pilhagens, das lágrimas, das violações, das destruições, esses invasores italianos trouxeram para a ilha de Corfo o seu amor nato pela música. Toda a ilha foi contaminada. Ainda hoje há, em cada rua, uma escola de música. Os ocupantes partiram, mas a paixão pela música ficou na ilha dos Picos. A música é o pecado dos Corfiotas. Um lindo pecado. Como poderia a alma imensa de Athenagoras privar os seus fiéis de uma das suas maiores alegrias, a de ouvir um instrumento musical a acompanhar os seus cantos?
O Senhor respeitou sempre o espírito da lei, não a letra. E fora por piedade e por fé que os fiéis de Corfo - imitando o Ocidente - utilizavam este instrumento musical nas igrejas.
O coração do metropolita não é um coração de pedra. E quanto às leis estabelecidas, Athenagoras é um homem de coragem.
- Eu é que hei-de responder diante do Senhor pelo vosso pecado de terem infringido os cânones da nossa Santa Igreja e terem introduzido um instrumento na Casa de Deus. Como os pagãos. Continuem a tocar! Se Deus achar que este harmónio - como vocês lhe chamam - é um crime, serei
eu a ir para as chamas do Inferno. Porque doravante, quando vocês tocarem harmónio na igreja, já não cometereis nenhum pecado. É com o meu consentimento, com o consentimento do vosso metropolita. E se for pecado, é o metropolita Athenagoras que há-de prestar contas ao Senhor, no Juízo Final. E será ele a arder nas labaredas do Inferno, se Deus assim decidir. Por causa do vosso harmónio.
Ficaram pasmados com a coragem de Athenagoras. É evidente que não gostava do instrumento. Era muito monge, muito ortodoxo para o tolerar nos ofícios. Interrogavam-se sem saber porque procedia ele assim. Porque os seus fiéis gostavam de música. Ele, o pastor, que os ama mais do que a si próprio, não os quer privar dela. Não. Um pastor dá a vida terrestre e a eterna pelas suas ovelhas. E o harmónio continua a existir na Igreja de São Espiridião, em Corfo!
ATHENAGORAS É NOMEADO METROPOLITA DAS TRÊS AMÉRICAS E A SUA DIOCESE ESTENDE-SE DO PÓLO NORTE AO PÓLO SUL
DESDE o dia de Pentecostes, quando a Igreja foi criada na Terra como uma nova encarnação de Cristo, nunca ela viveu uma época mais sombria que a actual. O martírio de duzentos milhões de ortodoxos - separados dos seus irmãos do Ocidente - e a sua existência nas repúblicas penitenciárias do Leste-ultrapassa as perseguições de que os cristãos foram vítimas nos três primeiros séculos, nos reinados de Nero, Diocleciano, Maximiano e outros tiranos. E como os tempos eram terríveis, Deus escolheu para patriarca ecuménico homens de granito. Como Athenagoras, que é bispo de granito, nascido num país de granito. E foi o próprio Cristo que tratou da sua educação. Desde o princípio. Nestes tempos de ferro, de fogo, de sangue, de violência e de lágrimas em que vivem os cristãos ortodoxos, já não bastavam os seminários. Nem as faculdades de Teologia. O primeiro bispo da Santa Igreja Ortodoxa na Terra, o patriarca ecuménico, foi educado, instruído, treinado desde a mais tenra idade directamente pelo Mestre do Céu e da Terra: por Cristo. Os doutores em Teologia, os pastores forjados à prova da História são bons para épocas mais clementes. Athenagoras é um patriarca teodidacta: que aprendeu o seu ofício de pastor directamente com Cristo. Como os doze apóstolos. Por isso, Deus fê-lo nascer na fronteira da Terra e do Céu, nos cumes do Píndaro. Obrigaram-no a amar os seus irmãos sem distinção de língua e de origem étnica. Obrigaram-no a amar os seus inimigos mostrando-lhe que o inimigo é um filho e um irmão. E, mesmo que nos mate, continua a ser nosso irmão. Deus ensinou a caridade a Athenagoras durante oito anos de guerra, mostrando-lhe que na lama das trincheiras, nos hospitais e nos cemitérios os homens, seja qual for a nacionalidade, o uniforme e os galões que usem, são todos iguais. Irmãos. Tão dignos de piedade e de caridade uns como os outros. Deus tirou a mãe e o pai a Athenagoras logo em pequeno, para que fosse monge desde a mais tenra idade, quer dizer, liberto de qualquer laço carnal. Cresceu sob a protecção da Mãe de Deus e da do metropolita Constantino de Konitza. Passou a adolescência num mosteiro-seminário. Numa ilha. O Espírito Santo, que concedeu aos apóstolos o dom das línguas, colocou-o na obrigação de aprender uma dezena de línguas, antes de chegar à maturidade. Foi secretário do patriarca ecuménico Meletios. Foi metropolita de uma ilha para ficar a saber que qualquer diocese autêntica está despegada da Terra e que a igreja é como um navio cujo verdadeiro porto de matrícula é o Céu e não a Terra. E quando Athenagoras chegou à idade de quarenta e quatro anos, Deus mandou-o para o Novo Mundo e - antes de lhe confiar o cargo de patriarca ecuménico - deu-lhe a maior diocese que existe na Terra: em 1930, Athenagoras foi nomeado metropolita primaz da América do Norte, da América Central e da América do Sul. A sua diocese estende-se do pólo norte ao pólo sul. É metropolita de uma diocese que começa no Alasca e termina na Terra do Fogo. Foi pastor do continente americano durante dezoito anos.
No Novo Mundo, Athenagoras tem por fiéis homens e mulheres de todas as raças e de todas as nações da Terra. Teve lapões e peles-vermelhas, negros e amarelos, escandinavos e povos tropicais. O seu conhecimento das línguas e o seu conhecimento da alma humana dilatou-se de tal maneira que foi realmente - e à letra - um pastor ecuménico, antes de receber do Céu o cargo temível de patriarca ecuménico. Viajava de um a outro pólo com a sua bengala de pastor. Parava em toda a parte, como Cristo. com caridade. E aprofundava aquilo que aprendera em Terra Plana, na sua aldeia do Céu. Os seus filhos não eram apenas os cristãos ortodoxos, mas todos os cristãos. E como na aldeia de Terra Plana, no Épiro e na Macedónia ninguém se atrevia a levantar a mão contra o inimigo turco, por saberem que debaixo do uniforme do soldado turco que os vinha matar se escondia um seu filho ou um seu irmão, dado como imposto vivo aos ocupantes, assim nas Américas Athenagoras nunca conseguiu ver os católicos, os protestantes, os budistas, os pagãos, senão como irmãos. Estava na escola da Macedónia. Não podia acreditar que um homem pudesse ser outra coisa senão um irmão. Apesar da diferença de uniforme, de língua. Apesar da amizade ou da inimizade.
É claro que, como todos os outros arcebispos e metropolitas, santificou os homens, pregou-lhes, mostrou-lhes o caminho que conduz ao Paraíso. Construiu hospitais, escolas, orfanatos, obras de caridade. Fundou jornais, seminários, novas paróquias... Mas o que fez de mais diferente de todos os seus antecessores e de todos os bispos foi espantar os crentes e os descrentes com a sua santidade e a sua compreensão ilimitada de todos os homens. Gregos, turcos, irlandeses, japoneses, negros ou brancos, todos eram recebidos por Athenagoras, de braços abertos. E em casa dele. Junto dele todos se sentiam na sua pátria. Em casa do pai. Isto não se conservou em segredo por muito tempo. Toda a gente o soube. Todos o conheciam. E o presidente dos Estados Unidos, quando queria um conselho sobre os acontecimentos dos Balcãs, sobre a Europa Oriental, o Médio Oriente ou a Ásia Menor, não podia encontrar melhor guia que o primaz ortodoxo das Américas. E assim como os imperadores de outrora recorriam ao saber dos profetas, também os presidentes sucessivos dos Estados Unidos apelavam para o metropolita-profeta Athenagoras. Nunca abriu a boca senão para defender a verdade e a paz. Não a paz política. Mas a paz do Alto. A verdadeira paz. Até mesmo os Turcos, quando tinham um problema delicado na América, se dirigiam ao metropolita do povo romano, Athenagoras, para os ajudar e defender a sua causa nos Estados Unidos.
E Deus quis recompensar o apostolado de Athenagoras na América, dando-lhe um presente que ele nunca ousaria esperar. Para nós, ortodoxos, o patriarca ecuménico é o nosso pai na Terra como Deus é o nosso pai no Céu. A igreja do patriarca ecuménico é-para nós - a Grande Igreja de Cristo, a Santa Sofia de Constantinopla. A palavra ortodoxia está ligada indissoluvelmente a Santa Sofia. Ela é (palavras em grego).
Para nós, Constantinopla é a cidade cristã por excelência. A capital. Até a fundação desta cidade foi ordenada por Deus a São Constantino. E foram Deus e os anjos que traçaram os planos. Constantinopla é antes de tudo a Grande Igreja de Santa Sofia. Tem o nome de Sofia, que é o Logos encarnado. De Deus feito homem. Dezenas de milhares de operários trabalharam dia e noite, sob as ordens de centenas de contramestres para que a igreja pudesse ser consagrada a 11 de Maio de 330. (1)
* (1) Cronicão Pascal, Bona, p. 529. *
Vieram depois os incêndios, os tremores de terra. Santa Sofia foi reconstruída quatro vezes. A mais esplendorosa de todas as igrejas, única na Terra, a que ainda hoje existe é obra do imperador Justiniano. Os trabalhos de reconstrução começaram a 23 de Fevereiro de 532. (2) Segundo Teofânio, os trabalhos duraram cinco anos, dez meses e dez dias. Construiu-se "uma igreja como nunca houve desde Adão, e nunca mais haverá". Dois arquitectos de génio fizeram a planta: Antémio de Trales e Isidoro de Mileto. O cronista escreve: "Uma prova da benevolência divina para com o imperador Justiniano é ter arranjado homens capazes de realizar os seus desígnios." (3) Como a construção era extremamente cara, de tempos a tempos a Providência manifestava-se concretamente. Uma noite, os anjos desceram do Céu e carregaram os vagões com oitenta quintais de ouro. O Céu - conforme a crença de todos - colabora constantemente com os arquitectos de génio, com os imperadores e os operários. Sabe-se que Santa Sofia ardeu a 15 de Janeiro de 532 e que a reconstrução começou a 23 de Fevereiro. Cientificamente não se pode conceber que os arquitectos tenham conseguido fazer a planta em tão curto espaço de tempo. A tradição afirma que foram os anjos que elaboraram os planos com todos os pormenores, e, à noite, os revelaram aos arquitectos e ao imperador. A consagração foi em 27 de Dezembro de 537. Durante todo o tempo em que decorreram os trabalhos, o patriarca Menas, os padres e os diáconos rezaram orações sem interrupção. Dia e noite. Depois tiveram o zimbório sonhado. Um zimbório que parecia o Céu. E Procópio afirma que o zimbório de Santa Sofia, "obra admirável e ao mesmo tempo aterradora, parece mais suspenso por uma cadeia
* (2) Cronicão Pascal, Bona, p. 622.
(3) Procópio, De Aedificiis (Bona), I, 1. *
de ouro do alto do Céu que assente em alvenaria". (4) A 27 de Dezembro, Justiniano entrou na igreja e ficou tão deslumbrado que subiu ao púlpito- à tribuna - e, levantando as mãos, exclamou: "Glória a Deus, que me considerou digno de realizar tal obra. ó Salomão, venci-te." (5) Dotou Santa Sofia com trezentos e sessenta e cinco domínios, um para cada dia do ano. A liturgia e os sete ofícios eram celebrados, todos os dias, por um milhar de padres, diáconos e clérigos de todas as dignidades.
Depois de atravessar dois pórticos apoiados em colunas de mármore, os fiéis chegavam às nove portas, que davam acesso ao templo, ornamentadas com marfim, âmbar, cedro e metais preciosos, assim como painéis feitos de antigos destroços da arca de Noé. O próprio templo, com duzentos e quarenta pés de comprimento e duzentos e treze de largura (setenta e cinco metros de norte a sul e oitenta e cinco metros de leste a oeste), oferecia aos olhos surpresos tesouros de toda a espécie de mármore, pórfiro e granito. Havia mosaicos por toda a parte, tanto nas paredes como nas abóbadas. As colunas pareciam torres enormes, sustentando a cúpula, à altura de cento e oitenta pés, com as suas vinte e quatro janelas, por onde penetrava, até à profundidade do templo, a maravilhosa luz do Oriente.
Cristo é Rei. O seu verdadeiro lugar é num trono resplandecente de ouro e pedras preciosas, no meio de uma corte de arcanjos, de santos e de apóstolos. Tudo isto sobre um fundo de ouro que atapetava as absides e as cúpulas.
* (4) Procópio, De Aedificiis, 1, 1, 173-181, Evágrio, o Pôntico, P. G., 86, col. 2757-C e 2761-A; Theophane, I, 217.
(5) Anónimo, P. G., 122; Paulo, o Silenciário, P. G., 86, col.
2221 e seguintes; Malalas, P. G., 97.
No lajedo da igreja, na parte inferior das paredes, o mármore de todas as cores, os jaspes, os alabastros, os cipolinos, as serpentinas, os pórfiros dispostos e entrelaçados em combinações que pareciam matizadas pela mão do mais engenhoso pintor. Segundo a expressão de um contemporâneo, parecia um tapete ou um jardim juncado de flores de púrpura semeadas na espessura da relva.
Deste chão de mármore erguiam-se árvores de prata e, em torno delas, chamas multicolores, lâmpadas de prata flutuavam, lembrando ondas suspensas da abóbada. Entre as arcadas, brilhavam lustres. Candelabros em forma de cruz recordavam aos olhos deslumbrados o sinal da salvação que ilumina as trevas deste mundo. As paredes, as colunas, os pilares suportavam milhares de círios. E, em dias de festa, a sua claridade inundava como um oceano o recinto sagrado.
O ambão, no centro da igreja, pela sua sumptuosidade, ultrapassava toda a fantasia. O marfim, a prata, as pedras preciosas alternavam com o mármore, o ouro e as mais raras gemas. Desta tribuna, que simboliza a laje de pedra que cobre o túmulo de Cristo, o diácono anunciava ao povo a palavra do Evangelho, sob um dossel revestido de placas de ouro, cravejado de pedras preciosas. O santuário fechava por meio de uma grade de prata cinzelada, que servia de iconóstase. Para o altar parece que procuraram esgotar todas as maravilhas. A mesa sagrada era de ouro puro, coberta de pedras finas e de esmaltes. Assentava em colunas de ouro maciço, e em quatro colunas de prata dourada apoiava-se um dossel encimado por uma cruz de ouro. O Silenciário escreve: "Quem não ficaria pasmado com os esplendores da santa mesa? Quem poderia compreender a sua execução vendo-a cintilizar sob várias cores e a reflectir ora o brilho do ouro e da prata ora o da safira, lançando múltiplos raios, conforme a coloração das pedrarias, das pérolas, dos metais de todas as espécies?" (6)
O trono do patriarca e o assento dos sete padres eram revestidos de prata dourada. O tesouro encerrava enorme quantidade de cálices, vasos, patenas, galhetas e tabuleiros. Quarenta e dois mil sanguinhos para cálices, tecidos a pérolas e pedras preciosas, vinte e quatro Evangelhos, com fechos e guarnições de ouro, com o peso de dois quintais cada um. Seis mil candelabros de ouro puro, sete cruzes de ouro com o peso de cem libras cada uma...
Segundo Procópio, a colecção de alfaias litúrgicas - de prata - do santuário de Santa Sofia atingia quarenta mil libras de peso... (7) Mil cento e vinte anos depois da sua fundação, a cidade de Constantinopla caiu nas mãos dos osmanlis, e com ela Santa Sofia. Os seus tesouros já tinham sido saqueados pelos cruzados. Portanto, não caíram nas mãos dos Muçulmanos.
Maomé II, o Conquistador, o sétimo dos osmanlis, transformou Santa Sofia numa mesquita, logo no primeiro dia da conquista.
Quando Athenagoras chegou à América como pastor dos ortodoxos do pólo norte ao pólo sul, Santa Sofia continuava a ser uma mesquita.
A nossa mais bela igreja do mundo transformada em mesquita. A nossa grande igreja. Uma obra poderosa, incomparável, como a História nunca tinha mencionado, uma igreja maravilhosa, única, que as palavras não conseguem descrever. Como disse Procópio no De Aedificiis: "Quando se entra nesta igreja para rezar, sentimos imediatamente que não é obra do poder e do engenho humano, mas sim da própria divindade. E o Espírito,
* (6) Paulo, o Silenciado, P. G., 86, col. 1303-2211; Anónimo, P. G., 122, col. 1310 e seguintes.
(7) Procópio: De Aedificiis, P. G., 87, I, 1.
elevando-se para o Céu, sente que, lá, Deus está muito próximo e que lhe agrada estar nesta morada que ele próprio escolheu." (8)
Nós, os ortodoxos, temos muito orgulho por Deus, os anjos e todos os poderes celestes terem colaborado com os engenheiros, os operários e os artífices na construção deste monumento, deste templo, desta igreja que, de todas as igrejas da Terra, era a cópia que mais se aproximava da igreja do Céu. Mas já que as nossas igrejas cá de baixo não passam de cópias da igreja do Alto, não ficámos desesperados quando os cruzados e os Muçulmanos no-la tiraram e profanaram. Como discípulos de Santo André, o apóstolo, fazíamos templos como o de Santa Sofia, todo de ouro, e nenhuma beleza nos parecia demasiado cara ou sumptuosa. Mas também é verdade que na igreja de bolso, na antimensa, apenas com sessenta centímetros de tecido, sabemos e podemos celebrar a santa e divina liturgia com a mesma validade que no altar de ouro maciço e diamantes de Santa Sofia. Eu próprio, que sou padre exilado e não possuo nenhuma igreja, nem de pedra nem de madeira, celebro a santa e divina liturgia num altar de bolso, numa antimensa, num lenço que nem sequer é de seda, que me foi oferecido pelo patriarca Justiniano da Roménia e que levo comigo para toda a parte. É a minha igreja de bolso. E se um dia celebrasse a santa e divina liturgia em Santa Sofia, não seria diferente daquela que celebro no meu quadrado de algodão, do tamanho de um lenço, consagrado pelo meu patriarca e assinado pelo seu punho com uma esferográfica de dois vinténs. É a minha Santa Sofia. E em vez da estola de ouro, qualquer corda, até uma corda de prender o gado, me serve como ornamento eclesiástico. Nós, ortodoxos, sabemos seguir Cristo
* (8) Procópio: De Aedificiis, P. G., 87, I, 1. *
dando-lhe todo o ouro do mundo. Mas também sabemos segui-lo descalços e esfarrapados. E agora estamos esfarrapados. E quando o metropolita Athenagoras foi interrogado pelos presidentes dos Estados Unidos acerca de Santa Sofia, respondeu com certeza, como São Cosme de Etólia, que Deus nos tirou Santa Sofia, o império e a cidade, a nós, cristãos, para nosso bem. Mas Deus queria oferecer um presente a Athenagoras antes de ser entronizado como patriarca ecuménico em Constantinopla.
Deus restituiu a Athenagoras a Grande Igreja, Santa Sofia de Constantinopla. Eis o milagre dos milagres: foram os próprios Turcos que vieram oferecê-la ao futuro patriarca ecuménico. Foram os próprios Turcos que pediram ao metropolita que tomasse de novo conta da igreja.
Eram enviados por Deus para oferecer a Athenagoras a Grande Igreja.
Eis como as coisas se passaram:
Logo que chegou às três Américas como metropolita primaz da maior diocese do mundo - a única que se estendia do pólo norte ao pólo sul -, Athenagoras conquistou todos os corações. Os Turcos sabiam que Athenagoras era muito ouvido na Casa Branca. Por todos os governadores americanos. E os Turcos vieram procurar Athenagoras, dizendo-lhe que Santa Sofia - a Grande Igreja - corria o risco de se desmoronar. O governo de Ataturk (9) não tinha dinheiro para a restaurar. A cúpula divina e o templo sublime estavam em perigo de derrocada. Como medida de segurança, fechou-se a mesquita. Na realidade, a Grande Igreja que fora transformada em mesquita, a 29 de Maio de 1453, corria o risco de se desmoronar sobre os muçulmanos que lá iam rezar.
Athenagoras ouviu o relatório verbal do enviado
* (8) Kemal-Paxá. (N. da T.) *
turco. Depois, fez-se silêncio. O enviado turco calara-se. Já dissera tudo quanto tinha a dizer. Anunciou a Athenagoras que Santa Sofia, a Grande Igreja, já não era uma mesquita. Pela força das circunstâncias. A igreja era uma ruína. Esperava que o primaz do continente americano se oferecesse imediatamente para tomar conta dela, para a transformar naquilo que fora na sua origem. Mas Athenagoras não disse que sim. Constantinopla continuava sob a ocupação turca. Voltar a tomar conta da Grande Igreja e restituí-la ao culto cristão seria uma provocação. Esta igreja fora uma mesquita durante cinco séculos. Os Muçulmanos tinham rezado ali, com fervor e piedade.
Athenagoras prometeu aos Turcos falar aos milionários da América, ao presidente dos Estados Unidos e às fundações culturais. Também se comprometeu a restaurar a Grande Igreja, a salvá-la da ruína, apesar de isso exigir somas fabulosas. Prometeu aos Turcos arranjar esses milhões. com a ajuda de Deus e dos anjos.
- Vai transformá-la em igreja cristã, não é verdade?
- Não - respondeu Athenagoras.
E explicou aos enviados turcos que a verdadeira igreja cristã se encontra no Céu. Que todas as igrejas da Terra são cópias da igreja do Alto. Prometeu transformar Santa Sofia num estaleiro, numa igreja em reconstrução.
- E no dia em que terminar a reconstrução?
- Uma igreja nunca se acaba na Terra. Está sempre em construção. A igreja nunca se pode acabar teologicamente na Terra, mas sim no Céu. Porque a plenitude, a plérôma, a perfeição, não é da Terra.
- Na prática, como se passarão as coisas?
- Santa Sofia será restaurada. Reparada. Mas isso vai levar muito tempo, imenso tempo.
Quanto tempo? Quando pensa que estará
pronta?
Quanto à data - dia e hora - ninguém o
sabe, nem os anjos do Céu, nem o Filho, nem ninguém. Só o Pai. (10)
Santa Sofia, que foi transformada em mesquita no mês de Maio de 1453, cessou de ser mesquita, graças a Athenagoras, no mês de Maio de 1934. Os Turcos e os cristãos estavam muito contentes, tanto uns como os outros. A Grande Igreja transformou-se num estaleiro, numa igreja em curso de restauração. E assim continuará até à plenitude do tempo. Como é próprio de uma igreja. Estar em construção e nunca terminar. Porque uma coisa que não é da Terra não conhece os seus limites. A sua perfeição é ilimitada. E a igreja não é da Terra.
Desde o mês de Maio de 1935, operários, arquitectos, sábios encontram-se no local a trabalhar no restauro da Grande Igreja. O estaleiro está aberto ao público. Toda a gente lá pode entrar. Ver como se trabalha na reconstrução da Grande Igreja. Cristo disse: "Hei-de vir reunir todas as nações, raças e línguas." (11) E eis que na reconstrução da Grande Igreja trabalham, lado a lado, equipas de operários, artistas, arquitectos de todas as raças, de todas as línguas e de todas as nações. Todos reforçam as fundações da Grande Igreja de Cristo. Todos retiram as camadas sobrepostas de estuque para descobrir os santos ícones, o altar, os mosaicos que representam os querubins e os mártires.
É um trabalho que prossegue dia e noite. Pago pelos Americanos. E para o qual contribuem homens da Terra inteira. Isto é o mais belo culto que se presta a Deus: as nações unidas na construção
* (10) Actos dos Apóstolos, 1, 7; São Mateus, 24, 36; São Marcos, 13, 32.
(11) São Clemente de Roma, II, cor. 17, 4. *
da Grande Igreja de Cristo. E todos quantos lá trabalham e todos quantos lá entram para ver como se trabalha, e os que pagam os trabalhos, todos estão satisfeitos. Porque é uma obra que acabará no Céu, na plenitude eterna.
A obra da restauração inicial - onde todos os homens falam a mesma língua - é realizada em Santa Sofia, na Grande Igreja, transformada em estaleiro. E isto é obra de Athenagoras.
Em 1948, Athenagoras recebeu a cidadania honorária da Turquia. Depois, foi escolhido para patriarca ecuménico. Chegou a Constantinopla no avião branco, o avião do presidente dos Estados Unidos da América. Realmente, desce do Céu em Constantinopla. Alegram-se os pagãos e os cristãos. Porque todos receberam, delirantes de alegria, como um dos seus, o novo patriarca ecuménico Athenagoras, que é de facto ecuménico. Todos os jornais turcos saúdam a sua chegada nas primeiras páginas, com grandes fotografias.
A entronização do patriarca Athenagoras realizou-se a 27 de Janeiro de 1949. É o ducentésimo sexagésimo oitavo bispo de Constantinopla, desde que Santo André fundou a Igreja, aqui, nas margens do Bósforo, no local da antiga cidade de Bizas, construída por aqueles que procuravam o Tosão de Ouro... Há mil novecentos e trinta anos...
PORQUE EXISTEM CRISTÃOS QUE SE CHAMAM ORTODOXOS E OUTROS QUE SE CHAMAM CATÓLICOS?
A Igreja na Terra foi criada no dia de Pentecostes. "O Espírito Santo foi espalhado por toda a carne. Porque começou pelos apóstolos e, depois, por participação, levou a graça aos crentes, confirmando a realidade da sua vinda." (1) Naturalmente havia uma só Igreja, apostólica, católica e ortodoxa. Isto durou até 15 de Julho de
1054. Então, a Igreja, que é uma nova encarnação de Cristo, foi cortada em duas, como se fosse serrada. Os cristãos que viviam no Ocidente, desde esse dia, passaram a chamar-se católicos. Os cristãos que viviam no Oriente passaram a chamar-se ortodoxos. Os cristãos católicos tinham como primeiro pastor o papa, em Roma. Os ortodoxos tinham como primeiro pastor na Terra o patriarca ecuménico e o arcebispo de Constantinopla, a nova Roma.
Há nove séculos, o Corpo de Cristo - a Igreja - sangra, cortado ao meio. Os católicos e os ortodoxos, não contentes por terem cortado a carne de Cristo em duas, comportaram-se uns para com os outros como se fossem os piores inimigos. Guerras, blasfémias, anátemas, massacres, assassínios,
* (1) Ofício Ortodoxo: Domingo de Pentecostes. Ofício de Genuflexão, 3-e - ton Apostiche X. *
nada foi poupado durante estes nove séculos de lutas fratricidas entre os cristãos separados. Porque não há pior ódio que o ódio entre irmãos que se separam. E isto aconteceu entre os cristãos. Os filhos de Cristo. É o mais terrível acontecimento da História. Para todo o homem que invoca o nome de Cristo. E ninguém percebe como se pôde chegar a isto. Como conseguiram os cristãos ultrapassar as nações pagãs em ódio, em falsidades, em crimes, em carnificinas, em pilhagens, eles que invocam o nome de Cristo, que pregam a doçura, a tolerância e o amor?
Quem começou? Quem tem a culpa e quem tem razão? Quem está no verdadeiro caminho? Os católicos ou os ortodoxos? Porque se matam eles uns aos outros há nove séculos, pretendendo cada um ter razão e afirmando que o outro não é verdadeiramente cristão?
Escreveram-se milhares de livros muito eruditos para demonstrar que a verdade está de um lado e não do outro. Humanamente falando, uma das partes tem de ter razão e a outra a culpa. Mesmo que ambas sejam culpadas, uma tem de ter mais culpa que a outra. Eu, sendo um ortodoxo que vive no exílio, no meio dos católicos, sofro a dilaceração do corpo de Cristo, da Igreja, na minha própria carne. A todo o instante da minha vida. Porque se quiser entrar numa igreja de Paris, tenho de ficar à porta. Não possuo o direito de comungar. De celebrar. Sou ou não sou cristão? Se não sou cristão por ser ortodoxo, quer dizer que toda a ortodoxia está fora da cristandade. Sei que sou plenamente cristão. Mas se sou verdadeiramente cristão, então o papa e os católicos, todos os católicos, não são verdadeiramente cristãos. Sei, à força de os ver e de viver no meio deles, que também são cristãos autênticos. Isto não impede que a ruptura, a quebra, a separação existam. É impossível haver duas Igrejas. Há só uma. Uma única.
Qual é a verdadeira? Porque, presentemente, são duas? E Cristo tem um só corpo!
Para mim, cristão, só há verdade em Cristo. E para compreender a verdade, liguei-me - mais do que isso-, colei-me, soldei-me a Cristo. Para compreender - directamente, através de Cristo se são os ortodoxos ou os católicos que estão no verdadeiro caminho do Evangelho. E subindo assim à fonte de todas as verdades, a Cristo, percebi a razão desta nova paixão do corpo de Deus na Terra, a razão pela qual o corpo de Cristo está cortado em dois pedaços vivos, a sangrar. compreendi porque há cristãos que se chamam ortodoxos e outros que se chamam católicos. E julgo ter percebido porque Deus sofreu no seu próprio corpo esta nova e terrível paixão, que dura há novecentos anos. Há muito que Ele espalha o seu precioso sangue sobre o planeta. Porque, se a primeira paixão de Cristo, a da Crucificação, durou umas horas, a nova, a que Ele sofre no seu corpo, que é a Igreja, dura há muito. E estou certo de que, do mesmo modo que a primeira paixão de Cristo - a que teve lugar no Gólgota e na Cruz
- foi voluntariamente aceite por Ele, a segunda paixão, a do esquartejamento do seu corpo entre o Ocidente e o Oriente, também é uma paixão voluntariamente escolhida por Cristo. Como a primeira. Esta não foi para nos libertar do pecado, fazer de nós filhos de Deus. Mas unicamente para nos ensinar a viver com espírito de tolerância uns para com os outros, como cristãos, na Terra, à espera do único acontecimento que há-de vir, a ressurreição dos mortos e o Juízo Final. Ele imolou-se uma segunda vez para nos dar uma lição de filantropia, de vida cristã e de amor.
É possível que me engane. Nesse caso, desde já peço perdão a Deus. Mas tenho a certeza de que a separação do seu corpo em duas partes é um acto voluntário de Cristo. Exactamente como a primeira paixão. E desta vez para nos ensinar a amar e a viver como irmãos, enquanto estivermos na Terra. A viver na Terra em harmonia.
Eis porque creio nisto: Cristo começou o seu ensinamento escolhendo primeiro os doze apóstolos. Foi depois do baptismo no Jordão. São João Baptista estava na margem do rio "assim como dois dos seus discípulos, João e André". (2)
"Fixando os olhos em Jesus, que ia a passar, João Baptista disse aos seus discípulos: "Eis o Cordeiro de Deus." Os dois discípulos ouviram estas palavras e seguiram Jesus. Voltou-se e, vendo que o seguiam, disse-lhes: "Que procurais?" Eles responderam: "Mestre, onde é a vossa casa?" Jesus respondeu: "Vinde e vereis." Foram e viram onde Ele morava e ficaram junto d'Ele nesse dia. Era aproximadamente a décima hora." (3)
"Depois de terem passado um dia na companhia de Cristo, André foi a casa de seu irmão Simão Pedro e disse-lhe: "Nós encontrámos o Messias."" (4) "Pedro acompanhou seu irmão André. E, depois de ter olhado para Cristo, Pedro também reconheceu n'Ele o Messias." (5)
Talvez fosse a primeira vez na vida que os dois irmãos, André e Simão Pedro, estavam de acordo. Ambos reconheceram o Messias. Aquele que foi anunciado pelos profetas e que toda a gente esperava. Reconheceram-no, tanto André como Pedro. Na pessoa de Cristo. Ambos tinham a certeza que Cristo era o Filho de Deus, porque, embora André e Pedro fossem irmãos verdadeiros, com o mesmo pai e a mesma mãe, eram totalmente diferentes um do outro. Não só diferentes: opostos um ao outro. Porque nada pode ser mais diferente que dois irmãos não parecidos.
* (2) São João, 1, 35.
(3) Id., 1, 39.
(4) Id., 1, 41.
(5) Id., 1, 42; São Mateus, 16, 18. *
André e Pedro eram filhos de João. Tinham nascido em Betsaida, que significa aldeia de pescadores. Ambos eram pescadores. Mas não da mesma maneira, porque Pedro era um homem reflectido. Um homem a quem hoje chamamos um cidadão pacato. Reflectido. com os pés na terra. Tinha uma casa. Pedro tinha uma barca. Pedro era casado. (6) Pedro até sustentava a mãe da mulher. É verdade que Pedro "não tinha cultura". (7) Como é próprio de um pescador. Mas actualmente na sua terra poderia ser eleito conselheiro municipal pelos seus concidadãos. Ou mesmo para presidente da Câmara de Betsaida. Porque era sério e sabia fazer as coisas. Talvez fosse por isso que, logo ao primeiro contacto, Cristo o cognominou: "Tu te chamarás Céphasn, que se traduz por Pedro. (8) Era constante. Podia-se confiar nele. Era um cidadão muito digno. Sobretudo em contraste com seu irmão André, a quem chamamos Protokletos, o primeiro chamado. Porque André foi o primeiro a reconhecer Cristo.
Este André era, portanto, o contrário de Pedro. Porque, assim como Pedro era um homem ordenado, reflectido, organizado, André era boémio, poeta e sonhador.
Primeiramente, André não tinha casa, nem barca, nem mulher, nem sogra. Nada. Vivia a maior parte do tempo fora da aldeia e da sociedade. Vivia no deserto, porque era discípulo de São João Baptista. Sabe-se que género de homem era São João Baptista, o Prodomos, o precursor de Cristo, e o último dos profetas. João andava vestido de pele de camelo, com um cinto de couro em volta dos rins. Alimentava-se de gafanhotos e de mel selvagem. (9)
* (6) São Marcos, 1, 29; São Paulo, I, cor. 9.
(7) São Clemente de Alexandria - Stromates, iII, 6, 52.
(8) São João, 1, 42.
(9) São Marcos, 1, 6. *
João Baptista era seis meses mais velho que Cristo. (10) Sua mãe era amiga e parente da Virgem Maria. (11) João Baptista vivia no deserto desde que nascera. "E ficou no deserto até ao dia em que teve de aparecer diante do povo de Israel." (12) É provável que João Baptista fosse escondido no deserto por seus pais, enquanto José e Maria iam esconder Jesus no Egipto, por causa da ordem de Herodes para matar todos os recém-nascidos.
João Baptista era o último profeta e mais que um profeta. (13) "Vivia no deserto, em busca de Cristo, e não se interessava por mais nada." (14) Nenhum homem foi mais digno do que ele. "O Céu estremece, a Terra fica atordoada, o Jordão alegra-se, mas os anjos espantam-se por o Senhor dos Exércitos estar nas mãos daquele quê o baptiza. Quem é João? Aquele que os querubins e os serafins mal se atrevem a fitar, pretendes tu tê-lo, nu, nas tuas mãos?! Aquele que os anjos desejam contemplar... e tu, tu não tens medo?" (15) ao baptizar Cristo, São João encontra-se no centro da Santíssima Trindade: "O Pai é escutado na sua voz, o Filho é baptizado por ele no rio, o Espírito Santo manifesta-se sob a aparência de uma pomba. João permanece de pé, no meio da Santíssima Trindade." (16)
Quem era João? "Na verdade vos digo: entre os filhos das mulheres não apareceu nenhum maior que João Baptista." (17) Flávio José, na versão em eslavo arcaico da guerra judia, (18) retrata São
* (10) São Lucas, I, 36, 57.
(11) Id. I, 36.
(12) Id. I, 80.
(13) São Mateus, 11, 9; São Lucas, 16, 16.
(14) São Jerónimo, P. L., 22, col. 1076.
(15) São Bernardo, P. L., 184, col. 998.
(16) Id., P. L., 184, col. 1000.
(17) São Mateus, XI, 11.
(18) Edição Thackeray, Londres, 1926. *
João Baptista: "O seu carácter era estranho e a sua vida não era humana. Vivia como um espírito sem carne. Os seus lábios não conheciam o pão. Mesmo na Páscoa não comia ázimos, dizendo que esse pão fora dado a comer em memória de Deus, que libertara o seu povo da servidão, como consolação por o caminho ser triste. Quanto ao vinho e às bebidas inebriantes, não as suportava, nem queria vê-las junto de si. Tinha horror a toda a carne animal. Reprovava todas as infracções. Para si, utilizava raízes." (19) João Baptista é, como Elias, o fundador da vida monacal ou angélica. Possuía três coroas: a virgindade, o desprezo do mundo e o martírio. Pois aquele que baptizou Cristo nas águas do Jordão também recebeu o baptismo no seu próprio sangue.
André era o discípulo de São João Baptista. Todos os discípulos imitam o mestre. E imitando João Baptista, vivendo junto dele, no deserto, vestindo-se como ele, podemos ver um retrato fiel de André. Os pescadores de Betsaida, como toda a gente que se preza, não aceitam os boémios, os pesquisadores do absoluto. Nem aqueles que vivem fora da sociedade, no deserto, que nunca cortam o cabelo, se vestem com peles de animais e andam descalços. Apesar disso, é André o primeiro a reconhecer Cristo. Seguiu-o, conversou com Ele. Foi o primeiro a reconhecer em Cristo o Messias. E foi anunciar a grande nova a seu digno irmão, a Pedro. Pedro também vê o mesmo que André: Deus. Na pessoa de Cristo. E Cristo, ao escolher os seus doze apóstolos, escolhe os dois irmãos. Tanto André como Pedro. Eles estão entre os doze primeiros apóstolos. Os Evangelhos citam os seus nomes, dizendo que ambos, não só reconheceram Cristo, como foram escolhidos para apóstolos. Abandonaram tudo para seguir Cristo. Tornaram-se
* (19) Honório, P. L.. 172, col. 968. *
-seus discípulos, com o mesmo título. (20) Pedro e seu irmão André, que foram os primeiros a reconhecer Cristo, a tornar-se seus discípulos, seguiram-no sempre. Juntos. Participaram em todos os milagres de Cristo. Ouviram todos os seus ensinamentos. Foram as testemunhas de Cristo. Da sua vida, da sua paixão, da sua ressurreição. No Pentecostes, Pedro e André, na companhia dos outros dez apóstolos, receberam o Espírito Santo, que desceu do Céu sob a forma de línguas de fogo. O Espírito Santo é Deus. É igual a si mesmo. A labareda que desceu sobre a cabeça de Pedro era igual à que desceu sobre a cabeça de André.
André e Pedro sofreram as primeiras perseguições em Jerusalém. Abandonaram a Jerusalém terrestre, dirigindo-se para a Jerusalém celeste, evangelizando o mundo. Mas há uma coisa. Desde que receberam o Espírito Santo, a diferença total que existia entre os dois irmãos tornou-se mais visível que nunca. Pedro, que era, como se viu, um homem de ordem, com todas as qualidades e todos os defeitos de um digno cidadão, que tinha os pés na terra, que sabia conduzir bem, até ao fim, tudo quanto empreendia, partiu, com a labareda do Espírito Santo que o guiava, para o Ocidente.
André, seu irmão, voltou-lhe as costas e encaminhou-se na direcção oposta: partiu para o Oriente.
Voltaram as costas um ao outro desde logo. Partiram para a Jerusalém do Alto, abandonando a Jerusalém terrestre. Mas desde o ponto de partida tomaram rumos opostos. Pedro, como se sabe, foi para o Ocidente e estabeleceu-se em Roma. Era um homem realista. Pragmático. Um homem que sabia lidar com as coisas da Terra. Um homem que entendia a História. E Pedro fez bem. Muito bem. Como todas as coisas que fazia na sua
* (20) São Marcos, 10, 12-4, 3, 16-19; São Lucas, 6, 14-16; São Lucas, 5, 11; São Mateus, 4, 19. *
aldeia, no seu trabalho de pescador, na sua vida de família. Porque, se não tivesse feito bem as coisas, não teria uma casa onde seu irmão André vinha de quando em quando descansar e comer. Porque André não tinha casa. E até o Senhor, que era homem sem eira nem beira, foi muitas vezes a casa de Pedro para comer e descansar. E o Senhor, faminto, chegou um dia a casa de Pedro. Mas a sogra de Pedro estava doente. "Logo que saíram da sinagoga, foram com Tiago e João a casa de Simão e de André. Ora a sogra de Simão Pedro estava na cama, com febre. Falaram-lhe nela e Cristo, aproximando-se, pegou-lhe na mão e mandou-a levantar-se. No mesmo instante, a febre abandonou-a e já foi ela que os serviu." (21) Isto era Pedro. O bom Pedro. O admirável Pedro. Tinha em sua casa a sogra e o irmão e a mesa posta para Cristo e os outros apóstolos. Porque Cristo também não tinha casa. "As raposas têm covis e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde descansar a cabeça." (22) Sob este aspecto Cristo é tão poeta e boémio como João Baptista e André. A sua sorte foi terem Pedro com eles. Aquele que entendia as coisas da Terra, que trabalhava e sabia organizar a sua vida terrestre.
Organizou a Igreja que criou com o mesmo sentido pragmático. Pregou. Não no deserto, nem nas pequenas aldeias, nem à beira dos caminhos. Peuro foi pregar o Evangelho na capital do mundo, na capital da Terra, em Roma. Instalou-se lá. Rodeou-se de pessoas de categoria. Mandou escrever e registar tudo, porque a ordem era o seu domínio, assim como o trabalho bem acabado. Ligou-se a São Paulo, o mais culto de todos os apóstolos. Aquele que mandou escrever o Evangelho e os actos dos apóstolos. Falava de Roma ao mundo
* (21) São Marcos, 1, 29-30.
(22) São Mateus, 1, 20.
inteiro. Entretanto, seu irmão de sangue e de apostolado, e seu irmão pelo Espírito Santo - Santo André - caminhava para o Oriente. Em direcção oposta, voltando as costas decididamente ao irmão. Fisicamente falando. Não só se dirigia para os grandes arrabaldes do mundo não civilizado, mas também para o deserto. Mas André nunca seguia pela estrada real. Preferia caminhar através de campos e desertos. Falava aos selvagens, aos antropófagos, aos iletrados...
É raro encontrar irmãos tão diferentes, que tomem na vida rumos tão opostos. E com destinos tão opostos. Como Pedro e André, filhos de João
de Betsaida.
Eusébio de Cesareia diz que Santo André foi o primeiro a levar o Evangelho aos Citas. (23) Encontra-se a mesma afirmação em Orígenes. São Gregório de Nazianzo diz que Santo André evangelizou o Épiro, terra natal de Sua Santidade Athenagoras. (24) São jerónimo diz que levou o Evangelho a Acaia. (25) Teodoreto de Tiro diz que Santo André evangelizou a Hélade. (26) O patriarca Nicéforo diz que Santo André evangelizou a Capadócia, a Galácia e a Bitínia. E depois se dirigiu aos antropófagos e à Cítia e, em seguida, a Bizâncio. Aí instalou Stakys como bispo. (27) Nicéforo afirma que, depois de Bizâncio, Santo André foi à Macedónia, à Tessália e a Acaia. (28)
Santo André foi crucificado em Patras por ordem do governador Aegeas de Acaia. O martírio de Santo André deu-se a 30 de Novembro do ano 60, no reinado de Nero. Foi crucificado numa cruz em forma de X, que se chama crux decussata, e
* (23) Eusébio de Cesareia, P. G., 20, .:ol. 216
(24) São Gregório de Nazianzo, P. G., 36, col. WB.
(25) São Jerónimo, P. L., 22, col. 589
(26) Teodoreto de Tiro, P. G., 80, col. 18.
(27) São Paulo, Rom. 16, 9.
(28) Nicéforo, P. G., 145, col. 860. *
vulgarmente cruz de Santo André. Diz-se que foi Santo André que escolheu e pediu para ser crucificado com as mãos atadas e não pregadas, para que o seu suplício fosse mais prolongado.
No ano 357, as relíquias de Santo André foram levadas de Patras para Constantinopla e veneradas ao lado das relíquias de São Lucas e de outros apóstolos na igreja dos Santos Apóstolos, a segunda depois de Santa Sofia. (29)
Aquando da conquista de Constantinopla pelos cruzados, as relíquias de Santo André foram transportadas, em 1202, pelo cardeal Pedro de Cápua para Amalfi, na Itália. (30)
Sobre a vida, o apostolado e o martírio do Santo Apóstolo André, só temos documentos apócrifos. (31) A tradição oral reza que Santo André foi pregar o Evangelho até à Polónia, à Ucrânia e à Rússia, a todos os arredores orientais da Europa. A Escócia também possui relíquias de Santo André, que é o padroeiro da nação, como também o é da Rússia. (32)
A tradição diz que Santo André consagrou Stakys, bispo de Constantinopla, que, nesse tempo, se chamava Bizâncio. Numa igreja construída no bairro de Argiropolis, hoje chamado Findiki, é que teria sido consagrado o primeiro bispo de Constantinopla pelo próprio Santo André, cerca dos anos 35 e 38. (33)
* (29) Cronicão Pascal, Bona, 1829, 1, 542, P. G., 92, col. A. B. Iditius, P. 1., 51, col. 909. De Aedificiis, 1, 4, Bona, iII,
187; Evágrio, P. G., 86, col. 2761-A; Justiniani rés gestae, P. G., 75, col. 1820-1821; Theophane, P. G., 97, col. 701; Cedrcnius, P. G., 121, col. 720-A.
(30) Riant: Exuviae Sacras Constantinopolitanae - Genebra,
1877. Ughelli: Itália Sacra, VII.
(31) Epistola de Martyrio Sancti Andreae, P. G., 11, col.
1218-1248. Líber Miraculorum S. Andreae Apostoli, P. L., 71, col. 1261-1264.
(32) R. A. Lipsius, M. Bonnet: Acta Apostolorum Apokrifa, II, 1, Leipzig, 1898.
(33) Doroteia de Tiro, P. G., 92, col. 1059-1074. *
As igrejas mais antigas de Constantinopla seriam Elaia, no Gaiata, construída pelo bispo primaz, e a de Santo Eutímio de Petrion, construída pelo bispo Castinias. Dezenas de igrejas de Constantinopla são consagradas a Santo André. A maior parte foi fundada no primeiro século por Santo André e pelos seus discípulos. Porque foi Santo André cristianizar precisamente esta parte do mundo e não outra qualquer?
Porque o discípulo de São João Baptista, que com Melquisedech e o profeta Elias foi o pai dos monges, portanto, dos poetas, só podia escolher um itinerário poético. E aquele que Santo André escolheu para levar o Evangelho de Cristo era justamente o caminho clássico da poesia, daqueles que procuravam o absoluto e a felicidade: o itinerário de Santo André é o itinerário dos que buscam o Tosão de Ouro. Porque foram aqueles que buscavam o carneiro de Tosão de Ouro que fundaram a cidade de Bizâncio, a actual Constantinopla.
A única coisa que falta são os pormenores da evangelização da cidade e da região pelo Santo Apóstolo André. Porque existem apenas as suas relíquias e as igrejas que fundou. Mais nada. Santo André não escreveu nada. E não encorajou ninguém a fazê-lo. Sobre ele só há lendas, tradições orais e documentos apócrifos. Nada oficial. Por que razão o Santo Apóstolo André não escreveu nada e não legou nada aos seus sucessores a não ser o crânio e as ossadas? Os seus actos, os seus gestos e as suas prédicas deviam ser carregadas de poesia. Mas só se escreve para quem sabe ler. E Santo André anunciava o Evangelho a populações selvagens, iletradas e analfabetas. Não valia a pena escrever porque não havia ninguém para ler. No Oriente deu-se o contrário daquilo que se passou com as igrejas fundadas em Roma pelo Santo Apóstolo Pedro, irmão de Santo André.
Pedro pregava na capital do Império Romano. Pregava aos citadinos, aos príncipes da Terra, aos intelectuais. Pedro e os seus sucessores passavam tudo a escrito. Nas suas igrejas do Ocidente, desde o princípio, tudo foi inventariado, registado, anotado. Nós, os cristãos das igrejas fundadas pelo Santo Apóstolo André nos arredores orientais da Europa, nas costas da Ásia, do mar Negro, nos Balcãs, não possuímos nada disso. Todavia, temos a certeza que todos os actos de Santo André e dos seus sucessores são autênticos, porque foi a tradição que os fez chegar até nós. É certo que nos expomos ao ridículo, porque nos acusam - e com razão - de acreditar em lendas. Acreditar em lendas. Julgam-nos infantis. Ignorantes. Mas, da parte dos Ocidentais, isso espanta-nos, surpreende-nos. É a nossa vez de ficar ainda mais espantados com os seus raciocínios. Porque é uma estupidez pedir documentos e provas escritas, legalizadas, de coisas e verdades que são evidentes. Mostram-se papéis e documentos quando se está na dúvida sobre qualquer coisa. Quando se é estrangeiro, se está no estrangeiro. Não são precisos documentos nem provas científicas para amar a mãe. Sabemos que ela é nossa mãe. Desde o nascimento. De olhos fechados. E isso basta. A mãe é um facto que se aceita sem documentos. Para nós, a tradição é como o leite sugado no seio materno. É a mãe que nos ensina o que é verdadeiro. Ela é como o calor: transmite-se pelo tacto. Pelo contacto. De homem para homem. Acontece o mesmo com a fé. Santo André, quando o mestre lhe disse: "Eis o Cordeiro de Deus", mostrando-lhe Cristo que passava no caminho, seguiu-o. Acreditou. E André não pediu a Cristo documentos nem provas para acreditar que era realmente o Filho de Deus. Pedro também não. Apesar do seu realismo. E porque havia Santo André de escrever sobre as verdades do Evangelho? Cristo também não escreveu. Nem João Baptista.
João Baptista deixou se degolar. Pela sua fé. Fé clamada no deserto. Uma degolação será um documento de menor importância que um papel escrito?
Os documentos sobre Santo André são a crux decussata, a cruz em forma de X, a cruz de Santo André, em que foi martirizado. Uma crucificação será uma prova de menor valor que um documento notarial?
De resto, três séculos após o martírio de Santo André, São Constantino construiu Constantinopla, a nova Roma. As relíquias de Santo André foram trazidas e depositadas num dos mais belos sarcófagos que existem na Terra. E numa igreja toda de ouro, prata e pedras preciosas, que subia até ao Céu. Durante um milénio, foi nestes territórios selvagens, bárbaros, deserdados onde Santo André evangelizou que se reuniram os sete sínodos ecuménicos. Toda a fé cristã foi aqui elaborada, na diocese fundada por Santo André. Foi destas terras incultas que saíram os mais divinos doutores da Igreja, os padres capadócios São Basílio, São Gregório de Nazianzo, São Gregório de Nissa. Foi em Constantinopla que pregou São João Crisóstomo, na mais bela igreja do mundo, em Santa Sofia. Os ignorantes e os boémios tinham-se tornado os mais requintados do mundo e os maiores teólogos em cristianismo.
Apesar disso, a Igreja fundada por Santo André guarda e guardará para sempre a marca do seu fundador, que se exprime em três palavras: Pureza, Fé, Martírio. E além disso um desprezo total pelo mundo. Se há ouro, fazem-se igrejas de ouro maciço. Se não há ouro, clama-se de viva voz no deserto, no meio da rua e de pés descalços, como fazemos hoje. No século xx. Porque presentemente nós estamos como no tempo de Santo André - expulsos de toda a parte, aprisionados, oprimidos e pobres como os animais da floresta e como Cristo.
A Igreja fundada por São Pedro em Roma, no Ocidente, também tinha a marca do seu fundador, o admirável organizador e trabalhador.
Em cada geração foram-se acentuando as diferenças entre os dois irmãos. Porque, além do facto de serem diferentes em tudo, todos os dias se afastavam mais um do outro porque caminhavam em direcções opostas. Costas com costas. Os sucessores de Pedro avançavam cada vez mais para oeste. E os sucessores de Santo André cada vez mais para leste. E após mil anos de caminho, exactamente a
15 de Julho de 1054, virando-se uns para os outros, os sucessores de Pedro de Roma e os sucessores de André de Constantinopla não se reconheceram. Estavam demasiado diferentes para serem irmãos. Separaram-se com pragas, renegando-se reciprocamente. E anatematizando-se. Consumava-se a ruptura. Pedro já não queria reconhecer André como irmão, e André já não queria reconhecer Pedro como seu irmão.
E cada um continuou o seu caminho, guiado pelo Espírito Santo. Em linha recta. Porque um bispo é como um timoneiro que conduz a nave da Igreja para o Céu. Mas Pedro navegava para o Ocidente para chegar ao Céu. E André para o Oriente, com o mesmo fim.
Certos sucessores de André e de Pedro abandonaram muitas vezes a linha recta que lhes fora traçada e apontada pelo Espírito Santo. Mas aqueles que vieram depois deles corrigiram sempre o itinerário, regressando ao caminho recto. Em dois mil anos de marcha em direcção oposta, o ducentésimo sexagésimo oitavo sucessor de Santo André, Sua Santidade o patriarca ecuménico, chegou ao ponto de partida. Ao monte das Oliveiras. A Jerusalém. Ao local de onde tinha partido Santo André, depois do Pentecostes.
Porque a Terra é redonda, e aquele que caminha a direito volta - com certeza - ao ponto de partida.
E o ducentésimo sexagésimo quarto sucessor de São Pedro, Sua Santidade o papa Paulo VI, também voltou ao local de onde partira São Pedro, há dois mil anos, a Jerusalém. Ao monte das Oliveiras. Ao ponto de partida.
Precisaram de dois mil anos para dar a volta à Terra.
Mas ao chegar ao monte das Oliveiras, em Jerusalém, o ducentésimo sexagésimo oitavo sucessor de Santo André, Sua Santidade Athenagoras, o patriarca ecuménico, caiu nos braços do ducentésimo sexagésimo quarto sucessor de São Pedro, que chegou ali ao mesmo tempo. E abraçaram-se como irmãos. Irmãos pela carne. Irmãos no martírio. Irmãos no Espírito Santo. Irmãos como fundadores da Igreja. Ambos caminharam a direito, no caminho recto. Porque se Pedro e os seus sucessores não tivessem seguido a direito, nunca teriam chegado ao ponto de partida.
André e os seus sucessores também seguiram o caminho recto. Porque se se tivessem afastado um dedo, não teriam chegado ao ponto de partida, após dois mil anos de caminhada.
O papa, o sucessor de Pedro, e Athenagoras, o sucessor de André, choraram como choram os irmãos no momento do reencontro, após dois milénios de caminhada em direcções opostas.
O principal é que nem André nem Pedro se tenham enganado no rumo e tenham seguido o Espírito Santo.
Deus, que faz tudo com perfeição - e fez a Terra redonda-, sabia que os dois irmãos, que viajavam de costas um para o outro, se reencontrariam, desde que andassem a direito, sem desvios para a esquerda ou para a direita. E foi o que se passou, conforme os desígnios de Deus.
Viu-se nos écrans de televisão, na Terra inteira, o reencontro dos dois irmãos. Após dois mil anos de viagens em direcções opostas. Cada um trazia as marcas do trajecto, os vestígios e os sinais dos países que tinham atravessado. A poeira dos caminhos percorridos. Cada um trazia os sinais, as marcas dos meios de locomoção que haviam utilizado. Traziam nos sapatos, nos rostos, nos vestuários o pó dos países atravessados. Porque a História é como o pó. Deixa marcas. Agora, no momento do seu reencontro, André e Pedro eram ainda mais diferentes que à partida. O papa Paulo VI é civilizado, delicado, culto. A sua caminhada foi dura. A sua viagem amarga. Mas venceu a História. Fez a História. Dominou a História. Porque o Ocidente- a mais bela civilização que o homem sonhou na Terra - é obra dos sucessores de São Pedro. A seu lado, o patriarca Athenagoras, sucessor de Santo André, chegou também, sublime como os grandes profetas pela boca dos quais Deus fala aos homens. Deus fala pela boca de Elias, de São João Baptista, pela boca de Moisés. E Athenagoras é o seu sucessor. Manteve a tradição daqueles que clamam no deserto. Daqueles que caminham acima da História, como os anjos. Que veredas percorreu Athenagoras antes de chegar a Jerusalém? Todos os desertos do mundo. O encontro com todos os infortúnios. E ainda parece sangrar. Mas a sua cabeça está manchada de azul, estrelas e espaços celestes. Como por uma poeira caída do Céu. Do Céu que ele toca com a cabeça a cada movimento.
Os dois irmãos choraram a olhar um para o outro. Estavam tão diferentes... Mas ser diferente, vivendo noutro sítio, percorrendo outros caminhos, vestindo-se de outra maneira - à moda dos países onde se vive - não priva ninguém da qualidade de irmão. O papa Paulo VI fora ao monte das Oliveiras ao encontro do irmão, com o seu hábito imaculado, a inteligência de doutor, de homem de biblioteca, de frade que medita e constrói. Em Sua Santidade o papa tudo era marcado pela mais alta civilização e a mais alta cultura do mundo, por aquela que a Igreja Católica criou na Terra: a civilização ocidental. A seu lado, com a barba branca, alto como o monte Branco, o patriarca Athenagoras, pai dos ortodoxos, parecia Moisés quando desceu da montanha. Parecia João Baptista, Elias, Melquisedech... com as suas grandes mangas, os seus gestos de um outro mundo, com a sua voz de trovão, a voz dos profetas e dos solitários do deserto...
Apesar disso, são várias vezes irmãos. E cada um trilhou o caminho recto. De outro modo não se teriam encontrado no ponto de partida. Isto significa que os caminhos de Deus são válidos seja qual for a direcção tomada. com a condição de avançarem em frente e não se afastarem nem um dedo do seu caminho: do caminho que Deus traçou a cada um. E que é conforme a natureza de cada um: idiorítmico. E mesmo caminhando em direcções opostas e vivendo de maneiras diferentes, mesmo contrárias, sendo fiéis a Deus e avançando a direito, estão sempre no bom caminho e acabam por se encontrar. São irmãos, mesmo sendo diferentes. Mesmo vivendo noutro sítio. Mesmo percorrendo outros caminhos. Foi para nos demonstrar isto mesmo que Cristo deixou o seu corpo esquartejado, serrado, na Terra, durante nove séculos.
E vendo como o ducentésimo sexagésimo quarto sucessor de Pedro e o ducentésimo sexagésimo oitavo sucessor de André se abraçavam no monte das Oliveiras, no dia da Epifania, a 6 de Janeiro de 1964, chorei. Como choraram os dois santos irmãos. E como chorava toda a gente que os observava...
A Epifania é a manifestação de Deus na Terra. E Deus manifestava-se de novo aos homens precisamente neste encontro. É verdade que as câmaras dos fotógrafos, dos cineastas, dos operadores da televisão não podem registar a imagem de Deus, presente neste encontro dos dois irmãos. E os olhos dos homens não podem ver Deus. Mas o pintor de ícones viu realmente Cristo presente. Cristo estava entre o papa e o patriarca. Os outros não viram nada. Exactamente como os apóstolos viram Cristo no monte Tabor. Mas só eles. Os vizinhos e os que passavam por aquelas paragens não viram nada. "Porque os olhos do homem só podem ver Deus quando não vêem como os olhos vulgares, mas como os olhos abertos para o poder do Espírito." (34)
Mesmo na sua vida terrestre Cristo resplendia a luz divina. Mas esta luz continuava invisível para a maior parte dos homens. "A luz da transfiguração do Senhor não começou e não teve fim. Continuou gravada no espaço e imperceptível a todos os sentidos apesar de ser contemplada por olhos corpóreos... Mas, por uma transmutação dos sentidos, os discípulos do Senhor passaram da carne ao espírito." (35)
O pintor de ícones e outros eleitos viram, no dia da Epifania de 1964, Cristo por cima, entre o papa Paulo VI e o patriarca Athenagoras, no monte das Oliveiras. Na Palestina. Pousando uma das mãos na cabeça do papa Paulo VI e a outra na cabeça do patriarca Athenagoras, Cristo parecia dizer-lhes numa censura paternal:
- Porque duvidaram durante quase um milénio que eram irmãos? Vós sois realmente irmãos!
Na verdade, as diferenças de cor da pele e de cor dos olhos, as diferenças de cultura, de civilização, de origens sociais e étnicas, não anulam a fraternidade. Nunca. Permanecem irmãos. Apesar
* (34) São Gregório de Palamas: Tríade, iII, 1, 35.
(35) Id.: Tomo Hagioritico, P. G., 150, col. 1252-C. *
das oposições, apesar das diferenças. E mesmo quando se matam uns aos outros, continuam irmãos. A qualidade de irmãos nunca pode ser abolida. E foi para nos revelar isto que Cristo aceitou voluntariamente que o seu corpo - a Igreja - fosse submetido na Terra mais uma vez à Paixão e cortado em dois. Deus sangrou nove séculos na Terra, com o corpo cortado em dois, para nos mostrar que apesar do facto de vivermos no Oriente ou no Ocidente, de sermos pobres ou ricos, doutos ou ignorantes somos irmãos.
O ícone de Cristo, de pé, entre o patriarca Athenagoras e o papa Paulo VI, que o pintor das coisas sagradas pintou - apesar da sua má qualidade artística - é já um objecto de culto. O que é justo.
A 6 de Janeiro de 1964, a festa da Epifania foi uma nova e real Epifania. Uma nova visão de Deus na Terra. Exactamente como na Epifania de há dois mil anos, quando os dois irmãos, apóstolos e discípulos, Pedro e André, viram Cristo ressuscitado. Eles e aqueles que eram dignos disso. E nesse dia da Epifania de 1964 houve de novo um só Cristo e uma só Igreja católica e ortodoxa, na Terra como no Céu.
O QUE É UM PATRIARCA ECUMÉNICO?
EM toda a Terra se conhece agora a imagem do belo, do grande patriarca Athenagoras - amigo do santo padre, o papa-, com a sua barba branca, a sua estatura de gigante, enorme como a estátua de Moisés esculpida por Miguel Angelo. Mas poucas pessoas sabem exactatamente o que significa o título de patriarca ecuménico. E por não se saber - porque este título só aparece nos ortodoxos - simplificaram-se as coisas dizendo: pois bem, o patriarca ecuménico é o chefe de duzentos milhões de ortodoxos! Como o papa é o chefe de quatrocentos milhões de católicos. E como está na moda viver de raciocínios dialécticos, de silogismos, concluiu-se logicamente que o patriarca ecuménico é o papa dos ortodoxos. É falso. Completamente falso. Como falsa é a maioria das versões encontradas exclusivamente pela via do raciocínio humano, pela dialéctica e a lógica. Primeiro, tanto para os ortodoxos como para os católicos, há um único papa, que é o primeiro bispo da cristandade e o sucessor de São Pedro no trono arquiepiscopal de Roma. Athenagoras não é o sucessor de São Pedro em Roma. Nem papa. Nem o primeiro bispo da cristandade. Nós, os ortodoxos, estamos completamente de acordo com os católicos sobre estes pontos, até aqui.
Sua Santidade Athenagoras não é chefe de um Estado, como o papa. O patriarca ecuménico também não é o chefe dos duzentos milhões de cristãos ortodoxos da Terra. Os ortodoxos estão eclesiàsticamente organizados numa vintena de Igrejas, tendo cada uma a sua própria hierarquia e o seu próprio chefe. Athenagoras é apenas o primeiro pai dos ortodoxos. É a proeminência dignitária, exactamente como os nossos avós têm a proeminência sempre que os filhos, os netos e os bisnetos se reúnem em família. Mas, apesar desta hegemonia, o patriarca ecuménico não tem direito nem poder sobre as outras Igrejas ortodoxas, como o papa tem direito sobre todas as Igrejas católicas da Terra. Ele é simplesmente o pai de todos os outros patriarcas que receberam a autocefalia, a autonomia, a independência das mãos do patriarca ecuménico. A proeminência do patriarca ecuménico é incontestada e incontestável, mas é uma primazia na caridade e estritamente honorífica. Porque o patriarca ecuménico não possui Estado, nem poder de comandar ou de legislar e é - de facto - o mais pobre e o menos poderoso - no plano terrestre-de todos os outros patriarcas ortodoxos do mundo. Tem menos riquezas e menos autoridade. Sua Santidade o patriarca ecuménico é literalmente o que se chama um pobre. Um verdadeiro pobre. Que não possui nada na Terra. Apesar da sua penúria material, apesar da sua fraqueza, da sua indigência total de poder nos domínios eclesiásticos, legislativos, cívicos, políticos, o patriarca ecuménico será sempre, até ao fim dos séculos, o nosso primeiro pai, a fonte inicial da nossa vida, a fonte da nossa santificação na Terra. Porque só ele - o patriarca ecuménico pode consagrar e distribuir o Santo e Grande Myron, que é o Espírito Santo. É verdade que no nosso tempo todos os outros patriarcas o fazem, mas só têm o poder de o fazer por terem recebido procuração do patriarca ecuménico. Exactamente como com os filhos, que, se crescem, se tornam adultos e têm filhos, é por terem sido gerados por seus pais. Não se pode dar a vida, gerar, sem ter recebido a vida. Ora, a origem primitiva da nossa vida e da nossa santificação na Terra é o patriarca ecuménico. De todos nós. É claro que isso não significa nada aos olhos dos outros. Mas para nós, ortodoxos, é tudo. Porque para nós não há vida cristã possível na Terra sem o selo do Espírito Santo, que é o Santo e Grande Myron.
Ora, o consagrante e o distribuidor do Espírito Santo é o patriarca ecuménico. Directamente ou por delegação do seu poder concedido aos outros patriarcas, poder habitualmente concedido ao mesmo tempo que a autonomia, a autocefalia e a independência das Igrejas nacionais.
O SANTO E GRANDE MYRON OU O SELO DO ESPÍRITO SANTO
No sentido exacto do termo, o patriarca ecuménico é o Sol da nossa vida terrestre. Porque assim como o Sol é a fonte da vida e a luz cá de baixo, também o patriarca ecuménico é o consagrante e o distribuidor do Santo e Grande Myron ou do Santíssimo Crisma, a fonte da nossa deificação terrestre, sem a qual não pode existir nem baptismo, nem altar, nem igreja, nem qualquer forma de vida cristã. Porque o Santo e Grande Myron é o Espírito Santo. Assim como o pão e o vinho depois da consagração já não são pão e vinho mas carne e sangue de Cristo, também os óleos e os aromas, depois da consagração, já não são óleos e aromas mas o próprio Espírito Santo. Graças ao selo do Espírito Santo que recebemos no baptismo que é o nosso Pentecostes pessoal, individual - tornamo-nos cidadãos do Reino do Céu. Antes da encarnação de Cristo só alguns eleitos eram ungidos: os imperadores, os reis, os profetas e os padres. Depois do Pentecostes todos os cristãos são ungidos. Todos os cristãos são ungidos como eram dantes unicamente os reis, os profetas e os padres. Agora todo o cristão é rei, profeta e padre. Por isso, o povo cristão é um povo santo, um povo de reis e um povo de padres. Até no nosso nome se vê isso: porque cristão significa ungido.
Para receber a comunhão - quer dizer, para beber e comer o corpo de Cristo - é preciso antes de tudo ser cristão. É preciso ser ungido. É preciso, previamente, o selo do Espírito Santo, o sphragis, com o Grande e Santo Myron, com que o padre nos marca após o baptismo da água. O Santo e Grande Myron é o início da vida cristã. Não pode existir na eucaristia nem igreja sem o Santo e Grande Myron. Porque cada igreja e cada altar - para poderem servir para a celebração do culto - têm de ser primeiro marcados pelo selo do Espírito Santo.
Eis a importância do Santo e Grande Myron, que só o patriarca ecuménico pode consagrar directamente ou por procuração do poder que concede aos outros chefes de Igrejas, ao mesmo tempo que lhes dá a independência, a autonomia e a autocefalia.
São Francisco de Assis dizia que se encontrasse no caminho um padre e um anjo saudaria primeiro o padre. Porque o padre possui o poder de transformar o pão e o vinho em corpo e sangue de Cristo, poder que os anjos não têm. O bispo tem ainda mais isto: pode ordenar padres pela imposição das mãos.
E, além de tudo isto, tem o poder de consagrar o Santo e Grande Myron. Só ele pode transformar os óleos e os aromas em Espírito Santo. Assim, nenhum pão, mesmo caído do Céu, pode substituir o pão que é transformado em corpo de Cristo, no cálice, depois da consagração - assim como nenhum bálsamo e nenhum óleo, por mais miraculoso que sejam, podem substituir o Santo e Grande Myron, que é o Espírito Santo.
Os Búlgaros, em certa época da sua história, não podiam entrar em Constantinopla para procurar o Santo e Grande Myron porque a cidade imperial estava cercada pelos pagãos. E como sem o Santo Crisma não há vida cristã possível, porque nada é possível sem o Espírito Santo, os Búlgaros utilizavam, no seu desespero, em vez do Santo e Grande Myron, o óleo aromatizado que escorre miraculosamente das relíquias de São Demétrio de Tessalonica. Mas era um erro grave. Porque apesar da sua origem miraculosa e santa este óleo perfumado não pode substituir o Santo e Grande Myron. Nada o pode substituir. (1)
Os Búlgaros procuraram o Santo e Grande Myron em Bucareste entre 1921 e o dia 23 de Fevereiro de 1945, data em que receberam do patriarca ecuménico o direito de consagrar o Santo e Grande Myron em Sofia. Em 1953, a Igreja Ortodoxa búlgara transformou-se num patriarcado.
Deste modo, o patriarca ecuménico é para nós - realmente - a fonte distribuidora de divindade e santificação na Terra. É o nosso Sol. Mas até este poder, que outrora pertencia exclusivamente ao patriarca ecuménico, já hoje não lhe pertence. Os Búlgaros, os Russos, os Sérvios e outros povos cristãos possuem, hoje, cada um o seu patriarca que consagra o Santo e Grande Myron em Bucareste, em Sofia, em Belgrado ou em Moscovo. Os ortodoxos já não precisam de ir procurar os Santos Óleos a Constantinopla. Podia-se dizer que o patriarca ecuménico já não é preciso, mas o contrário é que é verdade. Porque é justamente o Santo e Grande Myron que, inegavelmente, nos une uns aos outros, tornando-nos na Terra irmãos e filhos do patriarca ecuménico, o pai dos nossos patriarcas. O Espírito Santo não só nos une uns aos outros e todos a Deus como santifica cada parte do nosso corpo, assim como santifica cada membro da comunidade eclesiástica. Na verdade, depois do
* (1) Miklosich e Mueller: Acta et Diplomata Graeci Medii Aevi, 1, 440-445. *
baptismo na água e das três imersões - que significam as três pessoas da Santíssima Trindade e, ao mesmo tempo, os três dias que Cristo passou no túmulo, porque nós morremos no baptismo com Cristo, somos sepultados com Ele e ressuscitamos com Ele - recebemos em seguida da mão do padre o selo do Espírito Santo em cada parte do nosso corpo. Primeiro na fronte, para que a nossa inteligência e os nossos pensamentos sejam santificados. E marcando a nossa fronte com o Santo e Grande Myron, o padre diz: "O selo do Espírito Santo. Amém." Depois, marca-nos os olhos, as narinas e os ouvidos, para que todos os nossos sentidos sejam santificados. Marca-nos com o selo do Espírito Santo o peito e as costas, para santificar os nossos corações e os nossos desejos. Por fim, recebemos o selo do Espírito Santo nas mãos e nos pés, para que as obras das nossas mãos e os caminhos que os nossos pés hão-de percorrer sejam santificados. Pelo baptismo e pela confirmação com os Santos Óleos, somos lavados de todos os pecados. Ficamos completamente santificados de corpo e alma. Somos inscritos pelos anjos no livro do Céu como filhos de Deus e herdeiros do seu Reino. Somos realmente cristãos.
Tratando-se na verdade de união, porque não é o patriarca ecuménico o único a consagrar o Santo e Grande Myron como outrora? Porque há uma vintena de Igrejas independentes - cada uma em seu país - a consagrar o Santo e Grande Myron? Isto parece antes uma desunião. Mas não passa de uma falsa impressão. A Igreja desenvolve-se, cá em baixo, conforme as leis humanas. Os apóstolos previram tudo isso. Sabiam que o número de cristãos havia de aumentar. A comunidade cristã há-de seguir as mesmas leis que segue cada membro da Igreja na sua vida terrestre. Quando as crianças crescem e se fazem homens e mulheres deixam os pais e fundam o seu próprio lar, onde dão vida aos seus filhos. As crianças tornam-se independentes e livres, em suas casas, como os pais em casa deles. Dão vida aos filhos como os pais lhes deram vida. A Igreja segue a mesma evolução da família. Desde que uma nação chegue à maturidade pede ao patriarca ecuménico para se tornar autónoma, autocéfala e independente. Autocefalia significa o direito de um povo cristão escolher os seus pastores no seio da sua própria nação. O patriarca ecuménico deve conceder a independência se as condições forem cumpridas. É certo que, como em todas as coisas da Terra, isto acontece sempre com redemoinhos. Descontentamentos. Exactamente como nas famílias, quando um rapaz ou uma rapariga quer deixar os pais para casar. Os pais dizem sempre que os filhos ainda não estão suficientemente amadurecidos para o casamento. Que ainda podem esperar. E os filhos dizem o contrário. Isto acaba sempre segundo as leis da natureza, quer dizer: aqueles que atingem a maturidade fundam os seus lares. E os pais já não têm o direito de intervir. Acontece a mesma coisa sempre que uma Igreja pede a autocefalia. Mas acaba por a receber. Porque são os cânones dos santos apóstolos que nos dizem que todos os povos têm o direito de escolher, no seu seio, os seus próprios pastores. (2)
Na Santa Igreja Ortodoxa, como na vida de família, uma rapariga nunca deixa de ser filha de seus pais por ter casado e fundado o seu lar. Também não deixa de ser irmã de seus irmãos e irmãs. Pelo contrário. No dia em que abandona o lar paterno todos são convidados e se alegram em comum. O patriarca ecuménico nunca deixa de ser o nosso primeiro pai, apesar da separação natural,
* (2) Cânone Apostólico, 34 e 37. Sínodo de Niceia, Cânone
4 e 6. Sínodo Ecuménico iII, Cânone 8, Sínodo Ecuménico IV, Cânone 12 e 28, Sínodo Ecuménico VIII, Cânone 11. *
da autonomia de cada Igreja e apesar da sua autocefalia. Em cada encontro entre as Igrejas ortodoxas, o patriarca ecuménico - que conserva o direito de convocação - toma o lugar de honra. O lugar que é sempre reservado aos primeiros pais. Aos patriarcas. Em casa do patriarca ecuménico cada ortodoxo está na sua pátria inicial, em casa do primeiro pai da família, em casa do chefe da nação. Acontece, por vezes, os filhos e os netos virem a ser mais ricos, mais poderosos, mais importantes que os pais e os avós. Na vida da Igreja acontece a mesma coisa. O nosso primeiro pai, o patriarca ecuménico, o fundador da nossa pátria cristã na Terra, da nossa família, é hoje o mais pobre de todos. É, ao mesmo tempo, o mais preocupado. Apesar disso, permanece e permanecerá sempre, até ao fim dos tempos, o nosso primeiro pai, o nosso santo patriarca, a nossa fonte inicial de santificação, de onde recebemos a nossa própria vida e o nosso poder. Não podemos esquecer o tempo em que era preciso ir a Constantinopla procurar o Santo e Grande Myron. Agora, todos possuem a sua própria fonte de santificação. Mas conservamos piedosamente a recordação dos tempos em que vivíamos ainda na casa de nossos pais, os tempos da nossa juventude. E sentimos a sua nostalgia. Todos os homens têm a nostalgia da sua mocidade. Pensam nela com melancolia.
Para um não ortodoxo, o nome do Santo e Grande Myron tem uma ressonância exótica. Mesmo estranha. Mas é uma falsa impressão. Não tem nada de exótico nem de especial. A Santa Igreja Católica Romana também possui - com outro nome - o Santo e Grande Myron, que se utiliza na confirmação. A Igreja Ortodoxa e a Igreja Católica foram, durante um milénio, uma e a mesma Igreja. A separação que se produziu há novecentos anos foi uma separação política. Porque a Igreja Ortodoxa não possui nada a mais nem a menos - em matéria de sacramentos - que a Igreja Católica. O Santo e Grande Myron, de que nós falamos, são os Santos Óleos da confirmação. Exactamente o mesmo. Salvo que para nós estes Santos óleos tem maior valor simbólico, o que é perfeitamente natural nos povos do Oriente. Aqui, os Santos Óleos são consagrados com muito mais fausto que no Ocidente. A cerimónia da consagração tem mais poesia. Porque a poesia faz parte integrante da nossa vida. E como a preparação e a consagração dos Santos óleos - graças ao valor simbólico que nós lhe atribuímos - está exclusivamente reservada ao patriarca - descrevendo a vida de Sua Santidade o patriarca ecuménico -, é impossível omitir a descrição da cerimónia sublime que se realiza na Quinta-Feira Santa. Como deixar de falar da consagração dos Santos óleos, falando daquele que é o consagrante por excelência, o patriarca ecuménico?
Em geral, a consagração do Santo e Grande Myron celebra-se de dez em dez anos, porque os acontecimentos excepcionais não se produzem frequentemente. Nesta ocasião, o patriarca ecuménico está rodeado pelo maior número possível de metropolitas e bispos. É um verdadeiro sínodo. Porque a consagração dos Santos Óleos simboliza o primeiro concílio ecuménico realizado em Jerusalém, que reuniu todos os apóstolos e durante o qual o Espírito Santo desceu sob a forma de línguas de fogo sobre a cabeça de todos os apóstolos. Na consagração do Santo e Grande Myron, os aromas, o óleo e o vinho são transformados em Espírito Santo. É uma das cerimónias mais comoventes. "Os Santos Óleos são compostos por uma mistura de substâncias odoríferas e, por conseguinte, possuem uma quantidade de propriedades aromáticas para perfumar aqueles que os aspiram conforme a qualidade do aroma que conseguiu chegar até à sua participação no incensamento... A composição simbólica do Santo e Grande Myron dá-nos, de certo modo, a imagem do que não tem imagem, mostra-nos figurativamente que Jesus é a fonte fecunda dos divinos perfumes... recebendo todos as odoríferas efusões conforme a parte que tomam nos mistérios divinos." (3)
Os santos padres da Igreja dizem-nos da grandeza dessa cerimónia: "Fostes ungidos com um bálsamo que vos tornou participantes e associados de Cristo... Mas não penseis que este bálsamo é apenas isto. Na verdade, assim como o pão eucarístico, após a invocação do Espírito Santo, deixa de ser um pão banal, para ser o corpo do próprio Cristo, assim este bálsamo, após a invocação, deixou de ser apenas ele." (4)
Os preparativos para a consagração do Santo e Grande Myron começam habitualmente um ano antes da cerimónia. Forma-se junto do patriarca uma comissão de epítropes - ou conselheiros encarregada de reunir as essências aromáticas. Porque se trata de substâncias vindas de toda a superfície terrestre. Quantas essências são precisas? Os dons do Espírito Santo e os aromas perfumados da divindade são infinitos. Há eucológios que falam de trinta e oito essências. (5) Outros eucológios revelam que foram utilizadas cinquenta e sete essências. (6)
Os aromas mais raros e mais requintados são reunidos e doseados por um Mestre Myrephos. A mistura do óleo, do vinho e das essências, antes da consagração, tem o nome de nardo e São * (3) São Dinis, o Areopagita, P. G., 3, col. 477-D, 480-A.
(4) São Cirilo de Jerusalém, P. G., 33, col. 1089-A e 1089-B.
(5) Euchologium graecum, Roma, 1873, p. 327. Euchologue de Venise, 1851, p. 159. Rânduiala Ia firberea si Sfintirea Mirului, Bucareste, 1906.
(6) Diataxis... Constantinopla, 1890, 16 páginas. *
Gregório de Nissa fez a seguinte descrição: "É uma sábia e harmoniosa fusão de numerosos e diversos aromas. Cada um tem o seu odor especial, constituindo uma essência perfumada cuja composição se chama nardo, nome de umas ervas odoríferas que entram na sua preparação. O odor exalado pela junção de todos estes aromas especiais é perceptível à sensibilidade purificada, como o próprio bom cheiro." (7)
Na Igreja, sabe-se desde sempre que... "o pecado cheira mal: a virtude exala um dos tipos de perfumes que se encontram no Êxodo". (8)
Deus ordenou a Moisés: "Toma estes aromas, resina, gálbano e incenso puro, em partes iguais. com eles farás um composto segundo a arte do perfumista..." (9)
Na preparação do Santo e Grande Myron procede-se conforme as ordens dadas por Deus a Moisés. Porque o nome de Deus "é um perfume espargido" (10) e "nós somos o belo aroma de Cristo". (11)
Os aromas e as essências são espalhados no território sagrado - no períbolo - sob um dossel especialmente preparado, junto da igreja. Além dos cestos com as essências, colocam-se ali as caldeiras de cobre destinadas ao cozimento. No meio da tenda está uma mesa com quatro candelabros, um a cada canto. De um e outro lado da mesa estão duas ânforas sem asas - chamadas alabastros. Uma das ânforas está cheia de vinho tinto e a outra de azeite puro. Estes dois alabastros simbolizam a ânfora que foi utilizada por Maria Madalena para espargir a cabeça de Cristo com óleo perfumado. (12)
Há duas espécies de essências: as que são cozidas
* (7) São Gregório de Nissa, P. G., 44, col. 824 e seguintes.
(8) Orígenes: Homilias sobre o Cântico dos Cânticos, 1, 2.
(9) Id.: Ibid., 1, 3.
(10) Id.: Ibid.
(11) São Paulo, II, cor. 2.
(12) São Marcos, 14, 3. *
e as que são fervidas. Nas primeiras, as que vão a cozer; há: 1) Azeite puro, na quantidade prescrita pela tradição e controlada pelo Mestre Myrephos. 2) Vinho adstringente. 3) Agua de flor de laranjeira. 4) Água de rosas. 5) Mastique, uma riqueza de Quios, proveniente de uma incisão no tronco e nos ramos do lentisco (Pistacia lentisticus). 6) Benjoinou balsamum bcnevivum, um bálsamo natural obtido por meio de uma incisão no estoraque, conhecido pelo nome de benjoeiro. 7) Cissus vitiginea, a que os Turcos chamam yeni behâr, ou nova-primavera. 8) Madeira de aloés, que tem um aroma forte como o da mirra. 9) Pimentão. 10) Noz-moscada, cuja fragrância se deve ao óleo volátil que contém (Myristica officinalis). 11) Malabathrum. 12) Angélica da Boémia.
13) Estoraque líquido. 14) Esmírnio. 15) Pimenta-negra. 16) Junco odorífero (Schaenanthe). 17) Madeira de balsamciro (Amyris gileadensis). 18) Mirto de Azof (Calamus aromaticus}. 19) Lírio de Florença. 20) Açafrão. 21) Aristolóquia. 22) Fruto do balsameiro. 23) Junca odorífera (Cyperus rotundus). 24) Baga de mirto. 25) Nardo céltico. 26) Casca de cascarrilha. 27) Bálsamo mirífico (Glans unguentaria). 28) Cardamomo. 29) Cravo-da-índia.
30) Cinamomo. 31) Nardo silvestre. 32) Macis. 33) Terebintina de Veneza. 34) Resina branca. 35) Microbolan. 36) Manjerona. 37) Láudano, um arbusto cujas folhas segregam um odor resinoso.
38) Nardo da índia. 39) Incenso do Líbano. 40) Gengibre. 41) Zernebas, que é uma planta esguia e odorífera. 42) Funcho. 43) Helénio (Inula campana).
Estas são as essências que sofrem cozimento. Nenhuma é escolhida ao acaso, mas conforme a tradição herdada dos padres. Porque cada aroma e cada planta tem o seu significado especial.
Além destas essências há os elementos da segunda categoria, que não são cozidos, mas sim 239
deitados na caldeira, mais tarde, para ferver juntamente com os primeiros. Estas essências são as seguintes: 44) óleo de canela de Ceilão. 45) Óleo de goivo da índia. 46) óleo de noz-moscada. 47) Bálsamo de Meca. 48) Óleo de rosas (Rosa-damascena). 49) Óleo de Macis. 50) Óleo de limão.
51) Fruto do balsameiro (Carpobal samon). 52) Sampsichon, que é uma variedade da manjerona.
53) Óleo de palma (Laurus communis). 54) Óleo de rosmaninho (Dentrolibanon). 55) Óleo de alfazema. 56) Almíscar indiano. 57) Âmbar branco, o rei dos perfumes.
A grande cerimónia começa na segunda-feira anterior à Páscoa. As caldeiras são aquecidas com madeira de velhos ícones. Para realizar coisas sagradas, utilizam-se, na medida do possível, exclusivamente materiais sagrados. Por isso, os ícones que foram perdendo o colorido e os contornos pintados, em vez de se deitarem fora, o que seria um sacrilégio, porque a madeira continha a imagem santa, são enviados para Constantinopla para aquecer as caldeiras dos aromas para o Santo e Grande Myron. Os ícones que estiveram nas igrejas e em nossas casas, diante dos quais rezamos, consomem-se nas chamas aquecendo o óleo e as essências que vão conter o Espírito Santo.
Antes de chegar à tenda do Santo e Grande Myron, o patriarca celebra a liturgia dos pré-santificados. Depois da liturgia, o cortejo sai da igreja. O patriarca vai à frente com o épitrakhélion e o omophorion. O épitrakhélion, que é por excelência o sinal do serviço divino, simboliza o jugo de Cristo e a graça de Deus derramada sobre os padres no exercício das funções sagradas. Segundo São Germano, patriarca de Constantinopla, o épitrakhélion também simboliza a corda que puseram ao pescoço de Cristo no caminho da Paixão. A faixa direita do épitrakhélion representa a cana que meteram na mão direita de Cristo e a esquerda a Cruz que Ele arrastou. (13) O omophorion, a que os católicos chamam pálio - como chamam estola ao épitrakhélion-, simboliza a natureza humana de Cristo. Porque, pondo aos ombros o omophorion, os bispos dizem: "Tomastes sobre os vossos ombros, ó Cristo, a nossa natureza transviada, levantaste-la e ofereceste-la a Deus Pai." O Omophorion, que é um ornamento exclusivo dos bispos, também simboliza a ovelha perdida que o bom pastor leva aos ombros para o redil. Por isso, o omophorion só pode ser tecido com a lã de um cordeiro branco... Ao encarnar a natureza humana, Cristo também se deixou conduzir ao suplício e imolar como um cordeiro.
Portanto, o patriarca, com o épitrakhélion e o omophorion, sai da igreja, à frente do cortejo, e dirige-se para a tenda onde se vai iniciar a cerimónia da consagração do Santo e Grande Myron. No cortejo vão todos os metropolitas, arcebispos e bispos de Constantinopla e arredores. Deve estar presente o maior múmero possível de bispos. Porque todos os apóstolos estavam presentes no cenáculo de Jerusalém no dia em que o Espírito Santo desceu sobre eles, sob a forma de línguas de fogo. E a cerimónia que se inicia é realmente a descida renovada do Espírito Santo sobre todas as espécies de aromas que vão ser consagrados.
Ao entrar na tenda, onde brilham as lamparinas, os círios acesos e as paredes ornamentadas com flores, o patriarca ecuménico procede primeiramente à bênção da água, à Hagiasma. Depois de ter benzido a água, o patriarca purifica, com água benta, as caldeiras, as essências, a madeira que vai alimentar o fogo, as paredes e o pavimento. Porque tudo tem de estar purificado neste local onde, dentro de instantes, se vai começar a preparar o nardo.
* (13) São Simão de Tessalonica, P. G., 155, col. 864. *
Em seguida, é o próprio patriarca quem diz a primeira oração: "Neste dia, Senhor, nós começamos a consagrar o Santo e Grande Myron. É com alegria e fé que Te dirigimos as nossas orações, a Ti, fonte inesgotável de santificação. Fazei-nos dignos, pela Tua graça, Deus de Misericórdia, de levar a bom termo esta santa empresa. Ao preparar este Santo e Grande Myron, rogamos-te, Senhor, que o santifiques com a Tua graça. Que todos que receberem esta unção sejam cumulados com os dons do teu Espírito Santo. Que partilhem a sabedoria, a prudência, o temor de Deus, a fé, a caridade, a alegria, a paz, a paciência, a benignidade e a bondade, a castidade e a doçura. Que vivam do Espírito e procedam segundo a Tua Santa Vontade."
Enquanto o coro entoa o tropário, essas estrofes poéticas, base da hinografia, o patriarca pega no turíbulo e incensa as caldeiras, os alabastros (ou ânforas sem asas), cheios de óleo e de vinho, o altar, os cestos com as essências e os aromas, os objectos que vão ser queimados, as paredes, os fiéis... Depois do incensamento, o patriarca pega no alabastro com o óleo e despeja-o na caldeira, descrevendo três vezes uma cruz. Em seguida deita o vinho. Sempre em forma de cruz e por três vezes. Enquanto o primeiro padre enche as caldeiras com o óleo e o vinho, conforme as instruções do Mestre Myrephos, o patriarca lança na caldeira as essências e os aromas que vão ser cozidos. O padre continua a operação lançando o resto das quantidades necessárias.
O patriarca recebe das mãos do arquidiácono o dikêrion e o trikérion, esses dois candelabros de duas e três velas que representam, o primeiro, as duas naturezas de Cristo e, o segundo, as três pessoas da Santíssima Trindade. com estes dois candelabros, insígnias do episcopado, o patriarca acende o lume por baixo das caldeiras, depois de ter benzido a lenha.
Após este acto solene, começa a leitura e o ofício, que se prolongarão, dia e noite, sem parar, até Quinta-Feira Santa, no momento da consagração do Santo e Grande Myron.
É o patriarca quem começa a cerimónia lendo o Primeiro Evangelho de São Mateus. Os capítulos seguintes são lidos pelos metropolitas, os bispos e os padres. Um após outro. Sem interrupção. Em seguida, o patriarca canta a doxologia final, assim como o apolysis. E sai. Na tenda, enquanto os aromas cozem sob a vigilância do Mestre Myrephos, os bispos e os padres continuam o ofício e a leitura dos Evangelhos e das epístolas. Sem interrupção. No dia seguinte, terça-feira, o patriarca celebra cedo a liturgia dos pré-santificados. Em seguida, vem em cortejo solene e deita óleo, vinho e aromas nas caldeiras. Depois lê o primeiro capítulo do Evangelho de São Marcos e, no fim, canta a doxologia e o apolysis. Os hierarcas prosseguem a leitura.
Quarta-feira de manhã, depois de ter celebrado a liturgia dos pré-santificados, o patriarca volta para a tenda. Como nos dias anteriores, deita as essências, o vinho e o óleo nas caldeiras. Como a quarta-feira é um dia da paixão de Cristo, a cerimónia reveste-se de um aspecto mais emocionante. Mais grandioso. Ao lançar as essências, pensa-se na pecadora que deitou óleo perfumado sobre o corpo de Cristo. "Ora, estando Jesus em Betânia, aldeia dos Santos Apóstolos Pedro e de seu irmão André, em casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele uma mulher com um vaso de alabastro cheio de perfume caro e espalhou-o sobre a sua cabeça..." (14) Mexendo com as suas santas mãos o nardo nos
* (14) São Mateus, 26, 6. *
vasos de alabastro, o patriarca roga a Deus: "Tu, que sob a forma de língua de fogo..."
Depois desta última cerimónia apaga-se o fogo. Deixa-se arrefecer o nardo. A grande cerimónia da consagração realiza-se na Quinta-Feira Santa. Os bispos, os metropolitas, os padres e os diáconos rodeiam o patriarca para que todos recebam o sacerdócio das suas mãos porque ele é a fonte da santificação na Terra. Transportam-se em solene procissão os dois vasos de alabastro cheios de nardo, do local onde foi preparado para a igreja. Os vasos de alabastro são colocados no altar da prótese - no santuário. Tapam-se com os sanguinhos que cobrem geralmente o cálice e a patena. Na porta principal, quando se transportam, em procissão, as oblatas da prótese para a mesa sagrada, ao passar pelo meio da igreja, trazem-se também as ânforas de alabastro. A procissão abre com os subdiáconos que trazem os candelabros. Os diáconos, em número de seis, trazem doze rhipidias, que simbolizam os doze apóstolos e ainda os querubins, os serafins e os anjos, porque a cerimónia desenrola-se, duplamente, no Céu e na Terra. E cá em baixo participam, invisivelmente, na procissão as hierarquias celestes.
Os alabastros são trazidos antes do cálice e da patena onde se encontram o pão e o vinho que vão ser consagrados. Diante das portas do altar, o patriarca recebe das mãos do padre os vasos com o santo nardo e, depois de os ter benzido, pousa-os na mesa sagrada. É depois de ter depositado os alabastros que o patriarca recebe os santos dons, o cálice e a patena. Porque, primeiro, é preciso ter o selo do Espírito Santo, o selo do Santo e Grande Myron, para poder comungar com o corpo e o sangue de Cristo.
Ao pousar os vasos de alabastro no altar, o patriarca inclina-se profundamente e reza: "Deus, Senhor da Misericórdia e Pai da Claridade..."
O símbolo da misericórdia é o óleo, e os outros aromas são o símbolo dos dons preciosos do Espírito Santo. A oração da consagração é uma das mais belas orações da Igreja. É dita pelo patriarca. "Faz descer o teu Espírito Santo sobre este óleo e faz com que ele resulte uma unção real, unção espiritual para preservar a vida, para santificar as almas e os corpos. Que seja um óleo de alegria... Sim, Mestre, Soberano Supremo, agi assim na descida do Teu adorável Espírito Santo. Que seja o vestuário da imortalidade, o selo da execução, imprimindo naqueles que recebem o Teu banho sagrado, o Teu divino nome, o de Teu único filho e do Espírito Santo, para que sejam considerados Teus, como Teus parentes e amigos, como cidadãos da cidade, como Teus servidores e Teus servos, e que, assim, santificados de corpo e alma, desviados de todo o mal, livres de toda a injustiça, vestidos com o manto da glória, reconhecidos pelos santos anjos e arcanjos, por todos os poderes celestes, temidos por todos os espíritos maus e impuros, sejam um povo eleito, um real sacerdócio, uma raça santa. E que, selados com este óleo imaculado, tragam o Teu nome no coração, casa de Deus e Pai no Espírito Santo, por toda a eternidade."
Depois da consagração, os alabastros - os vasos com o Santo e Grande Myron - são conduzidos à myrothèque e colocados sob a guarda do myrodotes, oficial eclesiástico. E assim, da catedral patriarcal, os vasos, os alabastros do tamanho das gaIhetas, partem com as gotas do Santo e Grande Myron, exactamente como os raios de luz e de calor partem do Sol, espalhando-se por toda a Terra e santificando os novos baptizados, santificando os altares e as novas igrejas.
Neste ano da graça de 1969, em que escrevo a vida do patriarca ecuménico Athenagoras, o significado do Santo e Grande Myron é para nós, cristãos ortodoxos, incomparavelmente maior e mais santo que nunca. Porque os duzentos milhões de ortodoxos, todos - salvo talvez uma única excepção-, são forçados a viver no exílio ou sob o domínio de ditaduras anticristãs ou sob o domínio dos não cristãos. E vivemos hoje a vida dos escravos, dos proletários destituídos dos seus direitos, por causa de Cristo. É só na Igreja que os duzentos milhões de cristãos ortodoxos - escravos e privados dos plenos direitos de cidadãos na Terra são considerados como filhos de Deus, povo real, ungidos como os reis e os imperadores... É só na Igreja, ao receber o selo do Espírito Santo, que os homens e as mulheres ortodoxas encontram a plenitude da grandeza humana, a liberdade e a realeza iniciais do homem. O selo do Santo e Grande Myron é para nós, mais do que nunca, o selo da liberdade, da dignidade e da condição de homem estabelecido nas suas prerrogativas iniciais e próprias.
Porque, nas nossas pátrias terrestres, nas nossas repúblicas penitenciárias do Leste da Europa ou no exílio, nós somos escravos e sub-homens, privados da livre escolha e do direito de dispor de nós próprios.
A nossa única marca de grandeza na Terra é hoje, mais do que nunca, a que Deus nos confere, a do selo do Espírito Santo, o selo do Santo e Grande Myron. É só por ele que nós somos verdadeiramente homens, livres, soberanos, à imagem de Deus, como fomos criados.
A ESTRADA DE SANGUE QUE CONDUZ A CONSTANTINOPLA
PASSARAM mil novecentos e nove anos sobre o martírio de Santo André em Patras. Desde Santo André ao patriarca Athenagoras sucederam-se duzentos e sessenta e oito bispos e patriarcas na Sé da nova Roma, nas margens do Bósforo. Hoje, em 1969, como no tempo do Santo Apóstolo André, a estrada que conduz a Constantinopla é uma estrada de sangue, de lágrimas e de sofrimento. Para todos os cristãos. Os ortodoxos - o rum millet, o povo romano, como nos chamam os Turcos, ou o povo santo, como nos chama o Evangelho - são forçados, hoje como ontem, a pagar o tributo de sangue para ter o direito de subsistir como povo santo, nação cristã ou rum millet. Continuamos a ter mártires entre nós. Isto não pára desde Santo André. Se é verdade que a paz e a prosperidade da Igreja terrestre é obra do Diabo, então estamos em plena glória. (1) Porque nós pagamos o tributo de sangue. Orígenes afirma que "o Diabo sabe que os pecados são remidos pelos mártires e é o Diabo que não quer levantar contra nós as perseguições oficiais dos pagãos". As épocas de paz e de prosperidade da Igreja serão obra do Diabo? Orígenes está convencido disso.
* (1) Orígenes: Homilias sobre os Números, X, 2. *
Diz: "Temo que a desaparição dos mártires e a supressão do sacrifício dos santos oferecidos como vítimas para a redenção dos nossos pecados nos impeça de obter a remissão dos nossos pecados." Não se oferecendo mais vítimas, os nossos pecados ficam em nós. E o perdão não nos será concedido... Como os mártires já não se oferecem como vítimas por nós, os nossos pecados ficam connosco... "Nós não merecemos ser perseguidos por causa de Cristo, nem morrer em nome do Filho de Deus." (2)
Parece que sem mártires não há glória. "Por mais que Moisés e Aarão se elevassem pelos méritos das suas vidas, por mais eminentes que fossem as suas virtudes, não poderiam alcançar a glória de Deus se não se tivessem encontrado em luta com as perseguições, as atribulações, os perigos que os punham quase às portas da morte... Quanto mais se multiplicassem os sofrimentos maior glória de Deus seria concedida a quem os enfrentasse corajosamente." (3) "Graças à morte dos santos mártires opera-se sempre uma libertação, apesar dos poderes malignos..." (4)
Neste aspecto, os ortodoxos podem estar satisfeitos. Estão em plena glória.
Hoje, toda a gente está ao corrente de tudo quanto se passa em todo o planeta. Mas toda a gente ignora que os ortodoxos têm de pagar - e pagam - com o seu próprio sangue, como durante as perseguições de Nero, de Diocleciano e de Juliano, o direito de ser cristãos. Apercebi-me disto - mais do que nunca - durante a minha viagem a Constantinopla, nos meses de Maio, Junho e Julho de 1968. É muito recente. Não se trata de velhas histórias.
* (2) Orígenes: Homilias sobre os Números, X, 2.
(3) Id.: Ibid., IX, 2. -
(4) Id.: Comentários sobre São João, vi, oo. *
Fui convidado, assim como a presbítera Ecaterina, pelo patriarca ecuménico para ir a Constantinopla, sendo recebido em sua casa. Tínhamos percorrido quinhentos quilómetros, na rota de Paris a Constantinopla, quando vimos com os nossos olhos as primeiras manchas de sangue cristão, ao chegar a Genebra.
O representante de Sua Santidade Athenagoras em Genebra, junto do Conselho Ecuménico das Igrejas, era monsenhor Emilianos Timiadis, metropolita da Calábria. De todos os bispos ortodoxos é aquele de quem mais gosto. De todo o meu coração. É formado e diplomado por várias universidades de Inglaterra, de outros países da Europa Ocidental e da Grécia. Escreveu diversos livros profundos sobre a fé ortodoxa. Há anos que secunda o patriarca ecuménico na sua luta pela unidade da Igreja. Foi pastor de várias comunidades cristãs na Turquia, no Luxemburgo, em Amesterdão, em Bruxelas, em Londres e na Suíça. É um monge. Um espiritual. A ascese, o saber e a bondade misturam-se em proporções harmoniosas na sua pessoa.
O metropolita da Calábria convidou-me para sua casa, para a sua mesa. É uma casa nova, num imóvel colectivo, como se constróem actualmente. Está situada entre o seu gabinete no Conselho Ecuménico, o Centro Ortodoxo da Chambéry e o aeroporto de Genebra. É num andar superior. Da sua varanda vê-se o monte Branco. Na parede do lado do Oriente há ícones. E ao lado dos ícones está a fotografia de um bispo. Uma fotografia como se fazia outrora, quando os fotógrafos nos entregavam o retrato com um caixilho dourado. Apresentava-se a fotografia aos clientes como um quadro. com moldura dourada.
- É o meu irmão - explica-me a mãe do metropolita da Calábria.
A mãe de monsenhor Emilianos é pequenina, muito branca e suave. É uma senhora de idade, muito fina. Os seus gestos, as suas palavras, os traços do seu rosto e da sua boca são tecidos em seda e mel.
- Seu irmão era bispo? - perguntei.
- Metropolita - responde a senhora. - Chamava-se Emilianos Lazaridis. Era o metropolita de Grevenon, na Macedónia...
Aqui, a voz doce, tranquila, pálida, perde-se. Como um favo de mel que deixa de escorrer. Vejo uma lágrima nos seus olhos, do tamanho de um diamante. Uma lágrima brilhante, a escaldar.
- Foi em memória de meu irmão, em memória do metropolita Emilianos de Grevenon, que meu filho tomou o seu nome de monge. É por isso que se chama Emilianos como o tio.
O brilhante da lágrima aumenta. Outras lhe iluminam os olhos.
- Meu irmão, o metropolita Emilianos de Grevenon, morreu mártir. Foi morto no meio dos seus diáconos, em 1912, pelos Turcos. Se passar por Grevenon a caminho de Constantinopla, pode ver a estátua de meu irmão... O Santo Mártir Emilianos.
Os golpes de iatagã que mataram o metropolita Emilianos de Grevenon atingiram também a carne de sua irmã, que está na minha frente, com os cabelos brancos e as lágrimas nos olhos. As armas do suplício, os instrumentos da tortura e da morte são suportados, não só pelos mártires, mas, ao mesmo tempo e com maior sofrimento, pelas mães, as irmãs, as mulheres, os pais e os filhos. Observando o corpo imaterial, branco da pequenina senhora, mãe do metropolita Emilianos da Calábria de Genebra, compreendi que a Mãe de Cristo também sofreu a crucificação com o Filho. Porque era a mesma carne a ser crucificada. A carne dos supliciados também é a carne das mães, das irmãs, das mulheres. Nas mães e nas irmãs dos mártires e dos supliciados, os golpes de iatagã provocam feridas de onde jorram sem cessar as lágrimas e a luz. Porque durante toda a sua vida, as mulheres, as mães e as irmãs dos mártires têm os corpos como que banhados de luz.
- Dez anos depois tive outro mártir na família- disse a mãe do metropolita. - Foi o meu marido, morto pelos Turcos em 1922, algures na Turquia. Nós fomos expulsos.
A senhora Timiadis partiu para o exílio, rumo ao Ocidente, com quatro filhos nos braços. O actual metropolita da Calábria tinha cinco anos quando foi exilado. Fez-se monge. E agora é metropolita. Filho de mártir. Usando o nome monacal de seu tio mártir. Era o metropolita que mais estimava sem saber que era filho de um mártir.
É certo que todos nós lemos as vidas dos mártires dos primeiros séculos do cristianismo.
Estremecemos ao ler como os cristãos eram lançados às feras nas arenas, queimados vivos para iluminar Roma ou cortados aos pedaços. Foram canonizados. Vemo-los nos ícones com olhos cheios de espanto, sem percebermos como conseguiram suportar tudo aquilo. Nós, cristãos do Leste, não conhecemos apenas pelos livros as hagiografias e as lendas douradas. Esses feitos extraordinários vivemo-los. Porque para nós as perseguições e os morticínios dos cristãos não cessaram com o édito de Milão e a paz de São Constantino, no século iv. Para nós, as mais sangrentas e as maiores perseguições, que ultrapassam em amplitude as dos primeiros séculos, são as perseguições da actualidade. Do século xx. O martírio contemporâneo. De que nunca se fala, para não irritar os perseguidores. Que são os senhores do mundo na hora actual. Mas Deus conhece-os. Deus sabe tudo quanto nós sofremos - nós, ortodoxos - na nossa carne, na carne dos nossos pais, dos nossos irmãos, dos nossos filhos. E se nós vemos os santos é porque eles são nossos pais, nossos vizinhos.
Ao partir de Genebra para Constantinopla, parei em Corfo. Sua Santidade Athenagoras foi ali metropolita durante dez anos. Em seguida, parei em Janina, no Épiro, onde nasceu o patriarca Athenagoras.
De Paris a Janina, a caminho de Constantinopla conheci três metropolitas ortodoxos. O de Genebra, o de Corfo e o de Janina. Destes três metropolitas ortodoxos, dois são filhos de mártires. De três metropolitas, dois viram o pai morto, supliciado por causa da fé cristã. Pela força.
- O pai do metropolita Serafim de Janina morreu assassinado - dizem-me.
E não foi martirizado em 1912 como o metropolita de Grevenon. Nem em 1922 como o pai do metropolita Emilianos da Calábria. O pai do metropolita Serafim de Janina foi martirizado em
1947, pelos comunistas gregos. Por ser pai de um bispo!.., O que é um crime punido com a morte. a estrada de Constantinopla é uma estrada manchada pelo sangue fresco dos mártires. À medida que avanço para Constantinopla, vou sabendo coisas cada vez mais horrorosas acerca do rebanho do patriarca ecuménico. Não coisas passadas sob a ocupação turca, na noite da História, mas coisas que se passam hoje, diante dos nossos olhos.
Toda a gente sabe que o rum millet - o povo da nação cristã -, durante a ocupação turca, tinha de pagar, periodicamente, ao sultão um tributo suplementar, um tributo em crianças. Os colectores de crianças iam à Roménia, à Grécia, à Sérvia, à Macedónia, ao Épiro - a toda a parte - a casa dos cristãos e levavam as crianças. Mandavam-nas para Constantinopla. Dos rapazes faziam eunucos ou soldados, e das raparigas escravas, prostitutas ou mulheres de harém. Era a célebre pedomazoma o recrutamento de crianças. Para se permanecer cristão era preciso que as mães arrancassem os filhos do peito e as entregassem ao sultão à guisa de tributo. Isto durou cinco séculos. Todas as mães cristãs ortodoxas pagaram com os filhos o direito de fazer o sinal-da-cruz e de ser cristãs.
Mas depois da partida dos Turcos, o drama não terminou. Em 1947 os comunistas conquistaram o Poder na Grécia com as armas soviéticas, sob as ordens dos instrutores vindos da Rússia soviética e com dinheiro soviético. Ao tomar o Poder, os comunistas quiseram fazer um gesto de regozijo, de vassalagem e de reconhecimento para com os soviéticos, que os tinham ajudado a alcançar o Poder. O que é absolutamente normal. Os Gregos interrogaram-se sobre o que seria mais grato ao ditador do Kremlin, a Estaline. E como eram gregos sabiam que nada dava maior prazer ao sultão que o tributo em crianças. Colectaram a toda a pressa vinte e oito mil crianças de ambos os sexos. Em geral, matavam os pais e carregavam as crianças em vagões selados, enviando-as ao sultão vermelho, a Estaline. Ao receber, à guisa de presente, vinte e oito mil crianças, Estaline ficou pasmado. Ele, que não se espantava com nada. Até então, nunca ninguém lhe mandara semelhante presente. Tinham-lhe enviado toda a espécie de guloseimas. Caviar. Os Americanos mandaram-lhe armas para conquistar a Europa. Mas crianças, bebés, à guisa de presente? Não. Nunca. Disseram-lhe que ofenderia os marxistas gregos se recusasse os vagões cheios de crianças. E não as recusou. Vi algumas dessas crianças que os Gregos enviaram a Estaline como quem manda fruta, ovelhas, frascos de compota, bombons, caixas de caviar. Têm agora cerca de trinta anos. Muitas evadiram-se. Há-as em todos os países da Europa. Estão marcadas. Porque sabem que já foram uma mercadoria. Isso tornou-as duras. Impenetráveis. Nem sequer foram vendidas como os escravos de outrora. Foram oferecidas graciosamente. A um tirano. À guisa de presente. Pelos seus. Depois de lhes terem matado os pais e as mães. E essas crianças, mesmo que tenham sido doutrinadas na U. R. S. S. para virem a ser terroristas, matadores, propagandistas, não podem esquecê-lo. Os seus pais cristãos foram mortos no momento da colecta. Os cristãos gregos foram assassinados aos milhares. Os padres, envergando as vestes sacerdotais, foram crucificados na praça pública. Isto nos nossos dias. E então, foi possível escrever-se, como o patriarca Nectário de Jerusalém, em 1682: "...A Igreja Ortodoxa está enriquecida não com um, dois ou três novos mártires, mas com uma multidão. E não são inferiores aos seus antecessores, nem pela coragem perante os tiranos, nem pela confissão da sua fé, nem pelos seus sofrimentos, nem pelos sinais e os milagres que fizeram. Pelo contrário, são todos iguais..." Para muitos cristãos de hoje, os neomártires eram amigos seus. Tinham comido e bebido muitas vezes à sua mesa. E assistiram ao seu martírio. Assim, puderam recolher o sangue sacrificado, enterrá-los por suas próprias mãos e partilhar entre si as suas roupas, que ainda hoje conservam para a sua santificação. "Não há cidade nem região que não tenha recebido sangue ortodoxo derramado pela fé." (5)
"Estes mártires são novos quanto à época, mas antigos quanto ao martírio. São os últimos quanto ao seu lugar na História, mas os primeiros quanto à coroa dos sofrimentos", escreve São Nicodemo, o Hagiorita.
É certo que nós amamos e veneramos São Basílio. Santo André, São Pedro e outros grandes santos do calendário. Mas os santos que são ao mesmo tempo nossos pais, nossos tios, nossos filhos ou que
* (5) Nectário de Jerusalém, Refutação. lassy, 1682, p. 209. *
foram nossos vizinhos e nossos condiscípulos são-nos mais caros. Dos pais de cada três metropolitas, dois caíram como mártires de Cristo. E a liturgia celebrada por esses metropolitas - seus filhos - é infinitamente mais comovente, para nós, que as outras liturgias.
E ainda não passei da Grécia. Ora, dos duzentos milhões de cristãos ortodoxos, os mais privilegiados, na hora actual, são os oito milhões de gregos. Os gregos são os únicos que não vivem no exílio nem sob o domínio de uma ditadura estrangeira e anticristã. Por toda a parte onde vivem os ortodoxos, corre sangue por Cristo todos os dias e todas as noites. Ninguém fala nisso. Só Cristo o sabe. Cristo é o nosso pai na Terra. Sua Santidade o patriarca ecuménico é o chefe deste rum millet - desta nação santa de duzentos milhões de cristãos a sangrar. Dia e noite. O patriarca Athenagoras sabe-o. Como Cristo. Porque é o pastor de todos nós. E um pastor conhece as suas ovelhas pelos seus nomes. Sabe que todas as noites e a toda a hora, da Sibéria a Berlim e do pólo norte ao Mediterrâneo, entre as suas ovelhas, algumas morrem às mãos do inimigo. E o patriarca, cujas ovelhas são imoladas, ergue-se e sofre em cada agonia. O seu rebanho é um rebanho em extermínio. Nas repúblicas penitenciárias, onde vivem todos os ortodoxos que não estão no exílio.
Por isso, a minha viagem a Constantinopla, com que tanto sonhara, fez-me sofrer. Para não ouvir mais histórias sangrentas, renuncio a visitar os metropolitas das outras cidades que se encontram no meu caminho. Em cada três metropolitas, neste ano da graça de 1968, dois são filhos de mártires... Sim, a estrada para Constantinopla é-me muito dolorosa. Penso no patriarca Athenagoras. Conhece o fim dos patriarcas ecuménicos, seus antecessores.
No próprio ano em que nasceu Athenagoras, em 1886, exilaram o patriarca ecuménico Joaquim IV.
Foi no mesmo ano em que nasceu o patriarca ecuménico Athenagoras que a Roménia se tornou uma Igreja autocéfala, autónoma, independente e soberana. Athenagoras tinha cinco anos quando se soube em Terra Plana que o chefe da nação cristã - o patriarca ecuménico Dinis V - fora envenenado. Escolheram o patriarca Neiphyte VIII para o substituir. Foi exilado três anos mais tarde. Sua Santidade Anthyme VII esteve muito pouco tempo na sé patriarcal e, em 1896, foi exilado. Em 1897, chegou Constantino V, mas foi exilado em 1901. Desde a data do nascimento do patriarca ecuménico Athenagoras, ocuparam a cúria de Constantinopla catorze patriarcas ecuménicos. Todos exilados. Todos depostos. Um assassinado. Isto no decurso de uma existência. Em sessenta e dois anos. com excepção de um pequeno número, há um milénio, todos os patriarcas ecuménicos foram assassinados, exilados, deportados, depostos. No intervalo de cento e sessenta e sete anos, de 1453 a 1620, houve quarenta e três patriarcas ecuménicos. Só treze morreram no desempenho das suas funções, na sua cúria. Em cento e vinte e três anos, de 1778 a 1901, houve trinta e cinco patriarcas. Apenas sete morreram no seu posto. Dos setenta e oito patriarcas, em duzentos e noventa anos, só vinte morreram investidos no seu cargo.
A mais dramática foi a morte do velho e santo patriarca Gregório V, com oitenta e quatro anos de idade, enforcado por cima da porta do actual patriarcado, no Fanar, na noite de Páscoa de 1821, depois da liturgia e do ofício da Ressurreição. Foi enforcado com as vestes sacerdotais, com mais doze bispos, padres e diáconos. Todos celebrantes da noite da Ressurreição. Foi enforcado com o seu omophorion. E o seu corpo, paramentado, balouçava, suspenso, à porta do patriarcado. Ninguém tinha o direito de o descer da corda, como José desceu da Cruz o corpo de Cristo para o enterrar. O novo patriarca, Eugênio II, teve de passar por baixo do cadáver enforcado do mártir- seu antecessor - para ser empossado. Passou por baixo do corpo paramentado do seu antecessor para assumir o perigoso cargo de patriarca ecuménico. Passou por baixo do corpo enforcado do patriarca ecuménico Gregório V e dos doze celebrantes, bispos, padres e diáconos. Sem estremecer. Porque para um cristão e, sobretudo, para um padre, um bispo e um patriarca, morrer mártir é a maior honra. E Eugênio II passou muito direito por baixo dos enforcados. Sem se desviar do seu caminho. Como todos os duzentos e sessenta e oito patriarcas e arcebispos que se sucederam, desde Santo André a Athenagoras, na sé episcopal de Constantinopla. Avançaram a direito. Todos. No seu próprio sangue. Sobre o sangue dos seus antecessores. Por baixo dos seus corpos enforcados. Sempre a direito. Guiados pelo Espírito Santo. Porque se não tivessem caminhado sempre em linha recta, todos, desde Santo André a Athenagoras, durante dois milénios, não se teriam encontrado no ponto de partida, em Jerusalém, em 1964, no dia da Epifania, quando Athenagoras encontrou o papa Paulo VI, o ducentésimo sexagésimo quarto sucessor de São Pedro.
DE SANTO ANDRÉ AO PATRIARCA ATHENAGORAS
DE Santo André ao patriarca Athenagoras decorreram mil novecentos e trinta anos. E parece que o santo apóstolo passou ontem por aqui. Que mal acabou de partir. Nas margens do Bósforo surge de novo o cenário da desolação e da pobreza que existia há dois mil anos. É como o deserto onde clamava São João Baptista. E não ficaria nada espantado se o encontrasse aqui, no Fanar, vestido de peles, descalço, com o cinto de couro e o rosto agreste, macerado pelos jejuns e a santidade. Na Constantinopla de 1968, São João Baptista e o seu discípulo Santo André passariam despercebidos. Não seriam uma nota discordante, aqui no Fanar, onde se encontra a residência de Sua Santidade Athenagoras, o patriarca dos duzentos milhões de proletários cristãos do Oriente.
Chego ao Fanar no fim da Primavera de 1968. Olho para o Chifre de Ouro. Nunca vi água mais pura. Há milénios, dia e noite, para ali se lança toda a espécie de imundícies. Todos os canais, todos os esgotos, toda a sujidade do porto, das casas, dos mercados, são atirados para as águas do Chifre de Ouro. Os barcos, as harabas, ali afogam as suas imundícies, esvaziam as suas latrinas. E a água continua sempre pura. Aqui, no Chifre de Ouro, é impossível poluir as águas. O mar é sempre puro. Como uma lágrima. Tentei encontrar uma explicação para isso. Porque todas as águas de todos os portos do mundo são muito sujas. Até ao largo. As águas dos mares e dos oceanos estão hoje sujas. Não há muito tempo, um navio despejou a sua nafta na Mancha, e todo o mar maculado ficou preto. Todas as praias de França e de Inglaterra ficaram manchadas, enegrecidas pela toalha de nafta e de alcatrão. Aqui, no Chifre de Ouro, lançam-se toneladas de lixo ao mar todos os dias. E a água continua pura. Apetece beber desta água, de tal modo é limpa. Vê-se o fundo do mar como se vê o fundo das fontes na água pura das montanhas. É um milagre. É o mesmo milagre que se passa com o patriarcado ecuménico. Está situado num dos locais mais sujos da Terra. Mas continua como que acima do espaço. Puro. Preso a um mundo que está acima das coisas. Um mundo que não se pode sujar. O patriarca ecuménico conserva-se puro, apesar dos dois milénios de História que despejaram sobre ele inúmeras cargas de impurezas. O patriarcado ecuménico está situado no Fanar e no século, mas está acima do Fanar e acima dos séculos. Como a cúpula de Santa Sofia, que não parece apoiada em colunas, mas suspensa do Céu por cadeias invisíveis.
A estrada que vai para a residência patriarcal do Fanar segue ao longo da margem do Chifre de Ouro. Não é uma estrada. Ainda menos uma rua citadina. É uma pista. com grandes buracos cheios de imundícies e de lama. Uma pista não pavimentada. Estreita. Encontram-se ali peões, cavalos que puxam carroças, burros, carneiros, galinhas, porcos... Também há automóveis porque não há outras vias de circulação - e esta pista serve de rua. Há cães e gatos. De um lado e de outro, há casas antigas em ruínas. Mas são ruínas habitadas, apesar de não se verem portas, nem janelas.
Mesmo assim, nelas moram pessoas vindas da Anatólia e dos confins da Ásia... Vivem aqui, debaixo de ruínas. As paredes milenárias de pedra, de madeira, de tijolo são como cadáveres em decomposição. O bairro está todo podre, em decomposição. Estão à espera que se transforme em poeira. As filas de casas em ruínas que ladeiam as ruas parecem múmias em farrapos, enforcadas ao longo do caminho. As pessoas que encontramos parecem mendigos. Enfermos. Doentes. Homens, mulheres e crianças que sofrem da mesma lepra, da mesma doença das paredes em ruínas. Têm a mesma cor. O mesmo aspecto. É o Fanar. Quem entrasse numa leprosaria da Idade Média não teria espectáculo mais triste nem mais desolador. Porque a pedra, a madeira, a estrada, a própria terra parecem roídas pela lepra. Pela decomposição. Pela podridão.
Ataturk, o pai dos Turcos, o fundador da Turquia moderna, construiu uma capital no deserto: Angora. Não quis viver aqui. Aqui, nesta cidade de Santo André, dos Santos Constantino e Helena. Constantinopla é a capital do Império Romano Cristão. Apesar dos milhares de mesquitas que florescem no céu, a cidade de Santo André, dos Santos Constantino e Helena permaneceu cristã. Até as torres das mesquitas e os minaretes parecem cristãos. A marca cristã é indelével na cidade. Não bastou transformar as igrejas em mesquitas e os campanários em minaretes. Nem arrancar as cruzes. Nem destruir as igrejas. Só havia uma solução para fazer desaparecer a marca cristã: deixar apodrecer a cidade. E mudaram-se para Angora. Era uma ideia genial. Porque durante quinhentos anos, apesar de tudo quanto se conseguiu fazer, tudo permaneceu cristão. Até a terra é cristã. A poeira é cristã. O ar e a água são cristãos. E depois, há os anjos, os arcanjos, a Mãe de Deus.
Todos continuam ali. Invisivelmente. Omnipotentes.
Agora, os Turcos esperam que o tempo destrua Constantinopla. Que se transforme em ruína e pó. Mas os anjos da cidade não estão sujeitos ao tempo. O anjo nunca se transforma em poeira. O tempo nunca poderá nada contra Constantinopla. É aqui, neste montão de velhas casas, muros, ruas, pedras que agonizam, que apodrecem, que se decompõem, que se encontra a residência do patriarca ecuménico, a residência de Athenagoras. Não cheira mal. Assim como as correntes no golfo do Chifre de Ouro tiram e fazem desaparecer todos os papéis, toda a imundície que se atira para a água, aqui, as correntes de ar - melhor que qualquer instalação de ar condicionado - afastam todo o mau cheiro. E trazem ar fresco de toda a parte. Este imenso cemitério mineral, vegetal, animal, arquitectural - este cemitério não cheira mal. É o único jazigo mortuário que cheira bem. Aspiro pelas narinas um aroma puro, tonificante que anda no ar. Descubro a resina, o cheiro da água do mar misturado com o do pinheiro e o da floresta. E compreendo a razão: nas ruínas das casas, ao longo da rua que conduz ao patriarcado, de um e de outro lado, estão instalados armazéns de madeiras. Dia e noite trazem pinheiros, castanheiros, todas as essências da floresta. São serrados em tábuas, ripas, fazem-se móveis. E a madeira perfuma o bairro e traz para aqui o aroma das montanhas de Terra Plana, da terra natal do patriarca.
O que é inexplicável é que de metro a metro haja enormes buracos, fossas cheias de imundícies, de lama. As quatro rodas do carro enterram-se constantemente até ao eixo. Como continuam estes buracos, apesar das camadas de imundícies, sempre escancarados? Será uma maldição? Não se explica de outro modo.
Evitando as galinhas, os carneiros, os gatos, os cães e as crianças, o automóvel vai de buraco em buraco, avançando a menos de dez quilómetros à hora, sob o olhar das pessoas que nos observam de braços cruzados, em mangas de camisa. Chega a um cruzamento onde a estrada é muito estreita. Passa. Mas uma velha, vestida de preto, faz-me sinal para parar. As pessoas que estão junto dela fazem o mesmo.
- Volte para trás! - dizem-me todos por gestos. Paro. Olho. Tento compreender. Porque terei de voltar para trás?
- A estrada está cortada? - pergunto.
- Não - dizem eles sempre por gestos. - A estrada não está cortada, mas volte para trás.
- É sentido proibido?
- Não, mas volte para trás. Vire à direita. Todos me apontam uma viela, um beco, uma espécie de caminho de jumento, em rampa.
- Não posso meter o carro por aí - respondo.
- Pode, pode - dizem eles. - Volte para trás e siga por essa viela.
Estão com ar grave. Sérios. Mas receio que estejam a brincar comigo e hesito.
- O Rum Patrikhanesi? - perguntam eles. - Vai ao patriarcado dos Romanos, não é?
Há mais de meio milénio que se deu a conquista turca de Constantinopla. O Império Romano do Ocidente desapareceu há catorze séculos. O Império Romano do Oriente desapareceu há seis séculos. Mas, aqui, ainda se fala do patriarca dos Romanos. Aqui, para toda a gente, Athenagoras é o patriarca dos Romanos. É que os cristãos de Constantinopla nunca se intitularam gregos, nem bizantinos, mas sim romanos. E o patriarca ecuménico era e continua a ser o patriarca dos Romanos.
- Vai para o Rum Patrikhanesi, não é? Volte para trás e siga pela viela que sobe.
Não estou nada sossegado. Primeiro, a viela que sobe não me parece transitável. As pessoas que estão no meio da rua mostram-se ofendidas com a minha desconfiança.
- Italiano? - perguntam-me. - Latino? Hesito na resposta. Sou latino, mas não sou italiano. Antes que responda, dizem-me:
- Nós vimos o vosso papa Paulo VI, o ano passado, quando cá veio, a casa do patriarca dos Romanos. Volte para trás. Siga pela viela em rampa!
Subitamente, fico estupefacto. Na verdade foi por aqui que o papa passou há um ano apenas. Menos de um ano: a 25 de Julho de 1967, o papa Paulo VI visitou Sua Santidade Athenagoras. Aqui, no Fanar. Ora, não há outras ruas para lá chegar. Logicamente, o papa passou por aqui. Por esta rua mais estreita que a Rue de la Huchette em Paris. Foi por esta rua suja que passou! Por uma rua que nem sequer parece transitável! E, apesar dos meus esforços de imaginação, não consigo ver o santo padre de Roma, o papa, aqui, neste sítio da Terra. Mas volto para trás. Meto pela viela que sobe em rampa. Atrás de mim esperam em fila serrada, entre duas alas de casas, os camiões carregados de pinheiros, de tábuas e de cavacos. Entre eles há carroças puxadas por jumentos e cavalos. "O papa passou por aqui?", interrogo-me com espanto. "Por aqui?"
Neste momento vejo um uniforme em frente de uma guarita. Um uniforme de aviador ou marinheiro. Conheço-o. É o uniforme que usava na Suíça o arquidiácono dos patriarcas, Dimítrio Orphanopoulos. Não é ele. Mas o mesmo uniforme.
"Pobre patriarca Athenagoras", penso ao ver o edifício.
A sua residência é uma construção que parece um dispensário, uma enfermaria de fábrica, numa aldeia perdida no interior duma província. Uma enorme porta de madeira, um largo portão de cor sombria.
É a porta em questão. Nunca se abre. Foi sob a sua abóbada que foram enforcados com as vestes sacerdotais, com o seu omophorion, no dia de Páscoa de 1821, o patriarca ecuménico Gregório V e os seus bispos, padres e diáconos concelebrantes. Doze enforcados. A porta está fechada desde então. Ao lado há uma pequena porta, junto da guarita.
Aproximo-me. O guarda tira o barrete militar, inclina-se e beija-me a mão direita. Neste instante, surge junto dele o polícia turco de sentinela. Está fardado, tem uma pistola e fita-me. Também gostaria de me beijar a mão, de receber a bênção. Os seus olhos são de uma tristeza sem fim, por não ter o direito de o fazer. Tem de se contentar em me apertar a mão. E é tão pouco um aperto de mão! A única coisa que pode fazer é inclinar-se profundamente. Será a tristeza que lhe vem do fundo dos séculos, dos antepassados cristãos? Em todo o caso não posso esquecer a sua frustração. A sua melancolia. A proibição de receber a minha bênção de padre. Desejava tanto receber a minha bênção como o funcionário do patriarcado!
Durante toda a minha estada em Constantinopla, o polícia turco foi sempre o primeiro a vir ao meu encontro para me cumprimentar. E como não podia beijar a mão do padre, punha toda a sua piedade ancestral na maneira de me saudar. Só cumprimentava com tanta dignidade o comandante da polícia. Seria um descendente das crianças pagas como tributo ao sultão? Os rostos de quase todos os turcos daqui são rostos, um pouco bronzeados, da Roménia, da Bulgária, da Sérvia, da Albânia e da Grécia... As mães dos turcos eram quase todas cristãs. Pertenciam quase todas ao rum millet, ao povo romano, como lhes chamavam os Turcos, ao povo sagrado, como nos chama o Evangelho. Todas as mulheres dos haréns eram filhas de cristãos. E a piedade acorda do fundo dos tempos. Como neste polícia. Os seus antepassados foram as lindas mulheres moldávias da minha aldeia, da minha família. Que foram arrancadas do seio de suas mães e mandadas de presente - como frutos - ao sultão...
Entro no pátio do patriarcado. À esquerda é a igreja. Triste. Mais triste que as igrejas que vi na minha viagem pela Grécia. À direita é o paço do patriarca ecuménico, do arcebispo de Constantinopla. O sucessor de Santo André. O sucessor de São Gregório de Nazianzo. De São João Crisóstomo. A cúria de Sua Santidade Athenagoras, o patriarca dos duzentos milhões de ortodoxos e o pai dos outros patriarcas da Roménia, da Rússia, da Bulgária, da Sérvia, da Geórgia...
É uma construção moderna. O patriarcado foi destruído por um incêndio, durante a Segunda Guerra Mundial. Uma construção que é o contrário de um paço. Parece uma das escolas maternais dos arredores distantes das grandes cidades. Um dispensário médico de um bairro de lata. É o mesmo estilo. Entre a igreja e o paço há um jardim com flores. Só flores campestres como nos presbitérios de aldeia. Como no jardim de meu pai, de meu avô, como no cemitério da minha terra, nos Cárpatos. Atrás da porta onde foi enforcado o santo patriarca Gregório V há esse jardim de flores silvestres. Outrora a sé patriarcal era em Santa Sofia.
A residência do patriarca ecuménico em Constantinopla era um dos paços mais belos que havia na Terra. Porque fazia corpo com o palácio imperial e com a igreja matriz. Do palácio patriarcal, que se compunha de duas construções concebidas pelos maiores arquitectos da época, havia acesso directo tanto para o palácio real como para a Igreja de Santa Sofia. (1)
Depois da ocupação da cidade, a residência do patriarca mudou para a Igreja dos Santos Apóstolos. Era a segunda igreja, depois de Santa Sofia. Construída com os mesmos materiais da igreja matriz. Pelos mesmos arquitectos. Também é o Panteão da Cristandade. Porque é nos Santos Apóstolos que se encontram os túmulos de Santo André, São Lucas e outros. Os conquistadores também ocuparam a residência que se encontrava na Igreja dos Santos Apóstolos, assim como a de Santa Sofia. O patriarca ecuménico teve uma terceira, no Pannacharistos. Mas também o desalojaram do Pannacharistos. Durante alguns anos, a sé do patriarca ecuménico foi em São Jorge Kanabu e, a partir de 1621, fixou-se aqui, em São Jorge do Fanar. As construções que protegiam o patriarcado arderam várias vezes. E agora só temos esta casa, igual a todas as casas de bairro que hoje se constróem nos arredores, para os pobres. A casa natal do patriarca, em Terra Plana, era muito mais bonita. Mais nobre que a sé patriarcal. Aqui, é a pobreza, o cimento armado, a tristeza.
Para chegar ao patriarca é preciso subir a pé (porque não há ascensor) o equivalente a dois e meio ou três andares, se contarmos os degraus desde a porta de entrada. Subo os degraus de madeira da escada. A sala de espera é o próprio gabinete do diácono secretário. É uma cela, com as dimensões de todas as celas da Terra, quer sejam monásticas ou prisionais. Só há espaço para uma secretária de madeira, em branco, e três cadeiras, também em branco. Se houver mais de três visitantes têm de esperar no corredor, de pé.
- Sua Santidade sobe esta escada, na sua idade? ?- perguntei.
* (1) Nicétoro Gregoras, P. G., 148, col. 776-C. *
- Claro que sobe - responde monsenhor Orphanopoulos. - Sua Santidade é forte. Sobe com gosto.
Sente-se orgulhoso com a força do seu patriarca.
Segue-o e serve-o há quarenta anos. Também ele sobe a pé os longos e feios degraus da escadaria.
Penso em São João Crisóstomo, antecessor de Sua Santidade Athenagoras, na Sé de Constantinopla. Nesse tempo, tudo era de ouro e prata. E havia colunas de mármore, toneladas de prata, ouro e metais preciosos no paço arquiepiscopal. São João Crisóstomo vendeu as colunas, os vasos de ouro e prata, toda a baixela, as toalhas bordadas a ouro, os móveis de luxo "que fazem os bispos desperdiçar os bens dos pobres em edifícios sumptuosos, ornamentados com colunas, varandas, fontanários, salas de banho escandalosas, dignas de homens efeminados". (2) Um santo não pode suportar o luxo. São João Crisóstomo vendeu o supérfluo. Comia sozinho. Não podia ver o altar-mor de Santa Sofia, todo de ouro, sem receio e sem um estremecimento. Gritava que uma igreja não é uma ourivesaria, mas um conjunto de almas angélicas. Perguntava a si mesmo se não seria uma ironia deslocada cobrir de ouro a mesa de Cristo e deixá-lo, a Ele, morrer à fome. Nunca ninguém foi ameaçado de ser castigado por não enfeitar a igreja, mas sim por ter recusado a esmola.
São João Crisóstomo tem razão. Todos os padres têm razão. Mas aqui a pobreza faz-me doer. Todos os presbitérios e todas as igrejas das aldeias ortodoxas da Grécia por onde passei eram mais elegantes, mais belas, que a sé do nosso pai na Terra, o patriarca ecuménico. Além da pequena cela do diácono, havia mais duas salas naquele andar. Uma, a cela do patriarca. Onde ele dorme, onde ele trabalha. E a segunda, a sala de recepção, com cadeiras e uma secretária de madeira em
* (2) Paládio, P. G., 47, col. 47. *
branco. Chão de madeira. Um mosteiro pobre. Ao lado da cela do patriarca é a sua igreja pessoal. O seu paraclis. A sua capela, muito pequenina, muito pobre... Toda desnuda. Há círios acesos pelas mãos do patriarca.
É tal a pobreza, tão terrível a nudez que só agora percebo o santo padre. O papa, ao subir até aqui - e não creio que o façam subir muitas vezes três andares a pé-, vendo o soalho de tábuas nuas, as paredes caiadas e as duas salinhas com as cadeiras e a escrivaninha de madeira em branco, o santo padre, o papa de Roma, o ducentésimo sexagésimo quarto sucessor de São Pedro, perguntou a si mesmo se estaria realmente na cúria do patriarca ecuménico. Do sucessor do irmão Santo André. É aqui que vive o seu irmão Athenagoras. O segundo bispo da cristandade.
- É aqui que reside? - pergunta o papa à chegada.
Porque é inacreditável. Qualquer câmara de província no Ocidente, qualquer comando de polícia ou tesouraria, qualquer enfermaria ou dispensário ou escola primária estão mais bem mobilados. Na pergunta do papa havia espanto. Piedade. Voltou-se para um dos prelados que o acompanhavam:
- É realmente aqui a sede do patriarcado ecuménico? É aqui que ele vive? É aqui que ele trabalha?
É. O papa interrogava como Pedro, o realista, o homem ponderado. Interrogava como Pedro a seu irmão André: "Meu pobre, meu paupérrimo André, é aqui que tu moras? É aqui que tu trabalhas? Que te aconteceu, meu pobre André?" É certo que Pedro sabia que seu irmão André era o discípulo de São João Baptista, que se vestia com peles de animais. Que se alimentava de saltões. Que vivia no deserto, a jejuar e a rezar. Mas não supunha que, após dois milénios de separação, Athenagoras, o ducentésimo sexagésimo oitavo sucessor de André, continuasse na mesma. Na mesma pobreza e na mesma nudez de Betsaida. Porque o planeta mudou.
- Pobre André! Pobre André! - exclamou São
Pedro pela boca do papa.
Não encontrava palavras de consolação!
- Então é aqui que Vossa Santidade vive? disse o papa Paulo VI...
- Há vinte anos... - respondeu Athenagoras.
- Não saí daqui.
Abraçaram-se. E o papa chorou. Todos viram lágrimas nos olhos do papa. E o que é terrivelmente estranho é que nem Athenagoras, nem os bispos seus colaboradores adivinharam que o papa chorava e tinha as lágrimas nos olhos por ver o seu irmão aqui, neste pombal, instalado em duas salas miseráveis. Não. Athenagoras não sabe que vive na pobreza. Eu disse a um dos seus metropolitas que sofria com a sua pobreza. Ele olhou para mim espantado.
- Onde viu a pobreza em nossa casa? Os verdadeiros pobres, os totalmente pobres, nem sequer sabem que são pobres. Athenagoras tem muito orgulho no seu patriarcado. Acha-o muito bom. Acha tudo muito bem. Isto faz-me lembrar o meu encontro com o metropolita ortodoxo Palladius da Polónia no campo de concentração americano de Darmstadt, depois da Segunda Guerra Mundial. Éramos mais de trinta mil prisioneiros. Os boys, os G. L, fuzilavam-nos todas as noites. Por desporto. Batiam-nos. Impunham-nos fome. Humilhavam-nos. com requinte. Sem brutalidade. A sangue-frio. Cientificamente. Era de desesperar. Todas as noites havia homens que iam para o arame farpado para serem fuzilados... por não aguentarem mais. Era de mais para seres humanos. E no meio destes trinta mil prisioneiros, havia um sempre sereno. Luminoso. Belo. E eu passava horas inteiras a olhar para este velho iluminado. Não sabia quem era. Falava polaco. Estava rodeado de polacos. Algum tempo depois, antes de ser transferido para outro campo, quis saber o segredo da felicidade deste homem belo, sereno e luminoso. O único entre nós. Porque nós estávamos todos desesperados. Às portas do suicídio. E então disseram-me:
- É o arcebispo e metropolita Palladius. Fui-lhe beijar a mão.
- Como podeis suportar isto, metropolita? Melhor que os soldados que vêm da frente e viveram nas trincheiras, na linha de fogo?
- Não tenho aqui nada a menos que lá fora. E se sair daqui, terei menos que aqui.
- Mas a fome, a prisão, as pancadas, a humilhação, nada disto o faz sofrer?
- Sou monge - disse. - Vivi sempre e sempre viverei numa cela. Não me tiraram a liberdade porque não saio da minha cela. Nem de mim próprio. A alimentação? Faço jejum. As humilhações? Fui eu que as escolhi, porque sou monge e a minha vida é a imitação de Cristo.
Sim, Athenagoras é monge. E santo. Não precisa de mais nada. E aquilo que tem ainda é de mais para ele.
Quando foi à Suíça quiseram instalá-lo no hotel. Num hotel para onde iam todos os bispos do mundo quando vinham ao Conselho Ecuménico das Igrejas.
- Para um hotel? - perguntou ele. Estava espantado!
Os ortodoxos possuem uma casita numa aldeia perto de Genebra. E foi para lá que quis ir. Para um quarto pequenino, no campo, como um monge, numa casa de aldeia. E não se pode dizer que ele só conhece isso! Viveu vinte anos na América. Sabe o que é a riqueza e o conforto. E acabava de chegar de Roma, onde o papa o instalara como irmão. No mais belo palácio de Roma, arranjado para o receber. Mas, aqui, Athenagoras sente-se bem.
Sei que se sente bem aqui, na sua nudez, na sua pobreza. Mas faz-me tanta pena! A sua pobreza! Como ao papa Paulo VI. Mais que ao papa. Porque o papa é seu irmão, mas eu sou filho, E um filho ama mais o pai do que o irmão. Irmãos, podemos ter vários, mas pai só temos um na Terra. Como no Céu. E Athenagoras é meu pai. Desde que o santo padre chorou por ver como vivia, como poderia impedir as minhas lágrimas de correr?
Monsenhor Orphanopoulos, o sacristão-mor, manda-nos entrar. Vai à nossa frente, em passo lento, solene. Como nas procissões, para quem vem de longe poder ver o pai dos nossos pais, o patriarca ecuménico. O primeiro pai da nação cristã do Oriente.
Extremamente confuso, entrei no seu gabinete. E quando me apertou nos braços - grandes abraços que podem abraçar não só a Terra mas todo o Cosmo - enxuguei as lágrimas sem que ele as visse. E pensei: "Meu pobre santo pai, em que miséria e em que nudez tu vives e como eu te lastimo!"
Ele percebeu tudo, porque não se lhe pode esconder nada. Tocou a campainha. Mandou chamar o senhor Harisiadis, chefe dos seus secretários.
Todos os filhos que amam o pai querem sofrer
no lugar dele, daquele que amam.
E desejei estar aqui, no terceiro andar, sem ascensor. Nas duas salinhas com móveis de madeira em branco. Mais precisamente: sem móveis nenhuns, porque só há a mesa e as cadeiras.
O patriarca viu que eu vinha do mundo. Que pensava como se pensa no mundo. E então falou-me na linguagem do mundo. Os homens do Pentecostes falam a linguagem dos outros. Nunca pedem aos outros que falem a sua linguagem. Ele é pobre, mas foi ele que escolheu a pobreza. Despreza a riqueza. Athenagoras nunca tem uma moeda no bolso. Não tem nada. Nem os tostões que as crianças de todo o mundo trazem nos bolsos. Não tem dinheiro algum. Nunca teve. Mas, sendo pobre, quer que todos os outros, os filhos da Terra inteira, sejam ricos.
É a segunda vez que o vejo com os meus olhos de carne. É enorme. Como o monte Branco. Mas hoje, aqui, não traz as vestes novas que mandou fazer para visitar o papa, um ano antes. Está de sotaina. Está aqui como qualquer monge na sua cela. Usa botas de montanhês, com solas grossas, sólidas, para resistirem. Botas de confiança, como as querem todos os pobres. Abre os dois braços, as duas asas. Está na nossa frente como uma imensa cruz viva. Está mais pálido. É de uma suavidade como nunca vi. A presbítera Ecaterina chora e ele aperta-a contra o peito. com o braço direito cinge-me também contra si.
- Padre Virgil! Presbítera Ecaterina! Minha neta!
Recebe-nos com estas palavras. De pé. Aperta-nos contra si como se fôssemos crianças. E gostaria de nos conservar assim.
- Minha neta!
Chama minha neta a todas as mulheres, porque é idoso, como convém aos patriarcas. Ao vê-lo, ninguém pensa que teve mãe, pai e uma genealogia. É como Melquisedech, sem genealogia. Desde sempre, desde toda a eternidade... E como tem a idade da eternidade, como poderia chamar minha filha a uma mulher? Não. Chama-lhe minha neta! É falar através das flores, como o Evangelho. Poeticamente. Cristo foi um poeta sobre a Terra: todos os monges são poetas porque imitam Cristo. "Tinha a imunidade assegurada de antemão pela pobreza." (3) É isso que o torna ainda maior. Mais forte. A pobreza. O isolamento.
Primeiro... precisam de ir descansar... - diz ele.
E continua a apertar-nos contra o peito. Sua Santidade pensa sempre nos outros, no próximo, naquele que está na sua frente. Nada lhe escapa quando se trata do próximo. Quer que todos se sintam bem, que estejam à vontade.
Embora continue encostado ao seu peito, olho para as cadeiras em redor da parede, para a escrivaninha de pau. É terrivelmente pobre, mais pobre que um presbitério de aldeia.
Quando vi o patriarca em Burgenstock, ele trazia vestes novas. Feitas especialmente para o encontro com o papa. Agora traz uma sotaina velha. Um cordão, uma espécie de fio preto. Olho para o seu calçado. É pelo calçado que me apercebo sempre do estado do homem. Calça botas grossas, com uma sola espessa. Quase como as de meu pai, que percorria as montanhas. Como um cavalo. Está calçado como todos os pobres. Porque um pobre quer calçado que dure, que resista à chuva, ao frio, às grandes caminhadas. E a sua sotaina está presa ao lado, em baixo, com um alfinete preto.
"Pobre patriarca, como é pobre!"
- Minha filha, minha filhinha, desculpe-me!
- Desculpar o quê? - perguntei eu.
- O senhor Harisiadis, que é o chefe do secretariado, vai-vos conduzir ao hotel para que possam repousar. Mas não vos pode levar no meu carro. Desculpem por os levar de táxi.
- Não é preciso - respondi.
- Gostaria que fossem no meu carro.
Mas uma mulher não pode entrar no automóvel do patriarca. É a lei dos monges. Na verdade, uma
* (3) São Basílio: Carta, 309. *
mulher não tem o direito de se sentar à mesa do patriarca. Ele gostaria tanto de nos oferecer o seu carro! E pede desculpa.
Há nele o desejo de dar tudo. Penso no versículo de Mateus em que a mulher deita óleo na cabeça de Cristo. (4) Judas está contrariado - ele, que guarda a bolsa - por o Senhor não protestar contra a dissipação. Mas há uma dissipação que depende da pobreza. E a do patriarca Athenagoras é desse género. Porque dissipa em nome de Cristo. com os outros.
Conversa demoradamente com Harisiadis, o primeiro-secretário. Também é um homem do Pindo. Mas um homem do Pindo que sabe manejar o dinheiro, penso, porque o vejo entristecer. Assustado. Mais tarde percebi porque estava tristonho Haralambe Harisiadis.
- É para a presbítera Ecaterina, minha querida filha em Cristo, que se cansou a viajar durante duas semanas, que veio de Paris até aqui para me visitar, aceitando o meu convite. Quero que se sinta bem... Vão descansar. No mais belo apartamento do mais belo hotel de Constantinopla...
- Não - retorqui, olhando para as cadeiras de pau, o pavimento de madeira em branco, a secretária feita por um carpinteiro, nem sequer por um marceneiro. Não.
- Não - insisti.
- Não terei o direito de oferecer à minha filha, a presbítera, uma estada agradável? - perguntou o patriarca.
Queria recusar mais uma vez. "Não, porque Vossa Santidade é muito pobre." Mas calei-me.
Chegamos com o chefe dos secretários ao hotel em questão, construído pelos Americanos, aqui, nas margens do Bósforo. com todos os milagres da sua técnica. com ar condicionado. Superconforto.
* (4) São Mateus, 26, 14-16. *
O senhor Harisiadis fala turco na recepção. Entendo o nome de Rum Patrikhanesi. O gerente pega em várias chaves e sobe com Harisiadis. Demoram-se bastante tempo. Nós ficamos no átrio. Por fim voltam a aparecer.
- O patriarca ordenou-me que lhe desse o melhor apartamento do maior hotel. Este é o maior. Verifiquei pessoalmente todos os apartamentos. Escolhi o melhor...
- Mas não é preciso! - disse eu.
- É a vontade do patriarca. Venha ver. A presbítera tem de vir ver.
Subo também. O apartamento é mais bonito que os do Rockefeller Center, de Nova Iorque, da mesma cadeia de hotéis. Fiquei deslumbrado. E, ainda por cima, aqui, temos o Bósforo e a cidade a nossos pés. A Ásia do outro lado do Mármara. Um enorme terraço de onde se vê toda a cidade. A Europa, a Ásia e o mar como do alto de uma montanha, como do Céu.
Entretanto o senhor Harisiadis eclipsou-se. Posso ver a Calcedónia. Foi aqui que assentaram as bases da Fé. Por aqui, a toda a volta, realizaram-se os sete sínodos ecuménicos. E, sob o patrocínio do Espírito Santo, fundou-se a Igreja de Cristo nesta terra. Tanto a Igreja Ocidental como a Igreja Oriental foram fundadas aqui. De um lado e do outro do Bósforo.
Fiquei terrivelmente embaraçado com o acolhimento do patriarca. Por um lado a sua pobreza que me fez chorar e por outro esta despesa. "Um monge considera todos os homens como Deus, depois de Deus." (5) Não posso explicar. Lembro-me de um grande teólogo russo, Vladimir Soloviev. Um dia, recebeu um amigo que foi ao seu quarto sem casaco. Foi durante um duro e terrível Inverno,
* (5) Evágrio, o Pôntico, Tratado da Oração, 123. *
em Moscovo. Soloviev ofereceu-lhe o seu casaco. Ficou sem casaco. Apanhou frio e morreu.
Resolvemos não nos demorar mais de dois ou três dias. A diária custava uma fortuna. Mas eu penso humanamente. O patriarca pensa como Deus. E os meus raciocínios não são os dele.
Preparo um plano de trabalho para estudar em poucos dias o que devia fazer em semanas. Visitarei tudo. Consultarei os arquivos do patriarcado. A biblioteca. Travarei relações com os doze metropolitas que formam o Sínodo Endemusa. Verei como funciona o patriarcado ecuménico. Porque a hierarquia eclesiástica é a cópia fiel da hierarquia celeste, onde Cristo é o grande bispo. Cá em baixo há o patriarca ecuménico. E os metropolitas. E os seus bispos, padres e diáconos. Como em volta de Cristo, o Grande Bispo, há na Igreja do Céu as hierarquias dos tronos, das soberanias, dos arcanjos, dos anjos. Dormi mal durante toda a noite por saber que o meu pai na Terra, que me mandou dormir num hotel, está deitado na sua cela monacal. Numa cama de madeira em branco.
ATHENAGORAS ENTRE A MÃE DE DEUS E O PAI DOS TURCOS
PARA mim, uma coisa impressionante é ver na nossa frente, mal se entra no gabinete do patriarca - que serve de sala de audiências, de escritório, de salão e de sala de conferências-, ocupando toda a parede, a fotografia gigantesca de Ataturk, o fundador da Turquia moderna. Não há mais nada nas quatro paredes brancas, a não ser o retrato de Ataturk - o pai dos Turcos - e, na parede oposta, um ícone da Théotokos, a Mãe de Deus.
Sempre que entro no gabinete do patriarca,
abro a boca para dizer o que tenho no coração.
Mas corta-me sempre a palavra apertando-me nos
braços como um carvalho gigantesco cobrindo tudo
quanto existe em redor.
E então a minha pergunta perde-se porque ele sabe de antemão o que quero dizer. Aqui, como em todos os gabinetes do mundo, é obrigatório pendurar na parede a fotografia do rei do país, do presidente da república ou do imperador. a fotografia do grande chefe-do presidente ou do rei - aparece nos correios, nos comissariados, nas tesourarias de finanças, nos ministérios, nas alfândegas. Em todos os gabinetes. É normal que a fotografia de Ataturk figure na repartição do patriarcado, do Rum Patrikhanesi, da patriarcal dos Romanos. Mas as repartições são lá em baixo, nos andares inferiores. Aqui é a habitação do patriarca. É a segunda sala. O seu aposento particular. Além deste tem o quarto de dormir, ao lado. E às vezes tenho vontade de lhe perguntar: "Vossa Santidade também tem o retrato do pai dos Turcos no quarto, por cima da sua cama?" Não. Não lhe posso fazer essa pergunta. Mas a minha irritação é grande. Cada vez maior. Porque em parte alguma, em nenhuma repartição pública de Constantinopla, nem na polícia, nem na alfândega, nem nos postos de turismo, nem nos bancos - em nenhum serviço turco onde entrei vi um retrato de Ataturk maior que aquele que está no gabinete do patriarca ecuménico. É um retrato em tamanho natural, colocado mesmo em frente da sua secretária. Para onde quer que olhe, tem de ver o rosto de Ataturk. Dia e noite. Há vinte anos. Sua Santidade Athenagoras vive frente a frente com Ataturk. com o pai dos Turcos. Ele não sai da sala, do seu gabinete, a não ser para ir comer, dormir ou rezar. Todo o resto do tempo está sozinho, aqui, no seu gabinete, frente a frente com Ataturk, o pai dos Turcos.
Se para os outros homens da Terra os Turcos são uma nação como qualquer outra, para os Gregos, sobretudo para os gregos de Constantinopla, eles significam outra coisa. A 30 de Maio de 1453, às três horas da manhã, Maomé, o Conquistador, entrou na cidade e entregou-a à pilhagem, ao morticínio, ao sacrilégio. "Nunca alguma tragédia poderá igualar os horrores desta carnificina. Espectáculo pungente e terrível. Massacraram os desgraçados que saíam das casas e corriam pelas ruas, atraídos pelos gritos, e que tombavam sob o gládio antes de se terem apercebido da realidade. Massacraram-nos dentro das casas onde se defendiam e nas igrejas onde se refugiavam. Os soldados turcos, enraivecidos com os sofrimentos do cerco, com a troça que os sitiados lhes tinham prodigalizado durante tantos dias, do alto das muralhas, não davam quartel. Quando se fartaram de massacrar, quando já não havia nenhuma resistência, só pensaram na pilhagem. Espalharam-se, roubando, derrubando, pilhando, matando, violando, fazendo prisioneiros homens, mulheres, crianças, velhos, jovens, padres, monges, homens de todas as idades, de todas as condições. Espectáculo terrível e pungente. Mulheres novas e castas, pertencentes a grandes famílias, habituadas à vida mais recatada e que nunca haviam transposto a porta de suas casas, virgens encantadoras, lindas e brilhantes, oriundas de famílias ilustres, que nunca até aqui os olhos dos homens haviam contemplado, eram violentamente arrancadas das suas castas moradas e arrastadas com a mais brutal violência. Houve as que foram surpreendidas no sono agitado por maus sonhos, por bandidos de mãos sangrentas e feições que respiravam o mais abjecto furor. Esta multidão tumultuosa de todas as nações, estes brutos desenfreados assaltavam as casas, arrancavam as raparigas dos seus lares, arrastavam-nas, rasgavam-nas, forçavam-nas, desonravam-nas, violavam-nas nas encruzilhadas, infligiam-lhes os mais terríveis ultrajes. Velhos com um aspecto que impunha o respeito, arrastados pelos cabelos brancos, foram espancados impiedosamente. E lindas crianças nobres foram raptadas. Houve padres levados para o cativeiro como rebanhos, virgens veneráveis, solitárias e reclusas, inteiramente dedicadas a Deus, vivendo só para Ele, a quem tudo sacrificavam, foram arrancadas das suas celas, outras das igrejas, onde tinham procurado refugiar-se, e depois arrastadas apesar das lágrimas, dos soluços e das faces laceradas, para se transformarem num objecto de desprezo, barbaramente espancadas. Meigas crianças de berço brutalmente arrancadas do seio das mães, raparigas impiedosamente entregues a estranhas e terríveis núpcias, numa palavra, mil outras coisas horrorosas." (1)
Mais adiante, fala-se das igrejas, dos milhares de igrejas de Constantinopla: "Os templos foram profanados, saqueados, pilhados. Como narrar tais horrores? Os objectos sagrados atirados ao chão com desprezo, os santos ícones e os vasos sagrados profanados. Arrancavam as vestes sacerdotais, queimavam-nas, rasgavam-nas em farrapos ou atiravam-nas simplesmente para a rua. Violavam brutalmente os relicários dos santos para lhes tirar as relíquias e lançá-las ao vento. Os cálices, as taças do Santo Sacrifício, eram reservados para as suas orgias ou quebrados, fundidos. As vestes dos padres bordadas a ouro, as pérolas ou pedras preciosas eram cedidas a quem mais dava ou lançadas ao fogo para aproveitarem o ouro derretido." (2)
Conta-se que toda a população foi reunida, os velhos massacrados, os jovens e as crianças vendidas como escravos. Amarravam os homens uns aos outros, como animais, e arrastavam-nos assim atados.
Santa Sofia foi transformada em lupanar. Levaram as prostitutas para lá.
O superior dos franciscanos disse que o sultão Maomé, o Conquistador, depois da tomada de Constantinopla, enviou ao califa da Babilónia, ao rei de Tunes, ao da Barbaria e ao de Granada quatrocentas crianças gregas de presente a cada um. Os soldados que entravam em Constantinopla ficavam ricos para toda a vida. Os presentes de
* (1) Kvitoboulos e C. Mueller. Fragmenta Historicorum Graecorum. Paris, 1853-1868 -vol. 5, p. 140-161.
(2) Georges Frantza, P. G., 156 - Ducas, P. G., 157 - Nicholas Chalcocondyle, P. G., 159 - Cennade Scholarios, P. G., 160 - Georgios Sphrantzes: Chronicon - C. S. H. B., Bona, 1838, p. 304-307. Historia Política et patriarchica Constantinopoleos - C. S. H. B., Bona, 1849, p. 79-81 (Edição Bekker). *
centenas e milhares de crianças perpetuaram-se. Ofereciam-se crianças aos turcos como quem dava frutos.
Ducas escreveu:
"Ó cidade, cidade capital de todas as cidades. Ó cidade, centro de todas as partes do mundo. Ó cidade, glória dos cristãos e confusão dos bárbaros. Ó cidade, segundo Paraíso plantado no Ocidente com todas as espécies de árvores férteis em frutos espirituais. Paraíso, que é feito da tua beleza?
"Estado, povo, exército, dos quais outrora nem se sabia a totalidade, desapareceste como um navio afundado no mar. Casas esplêndidas, palácios magníficos, templos sagrados, chamo hoje por vós como se estivésseis animados, como se pudésseis ouvir-me e, seguindo o exemplo de Jeremias, tomo-vos por testemunhas da minha dor e dos meus queixumes... Que eloquência seria capaz de exprimir a amplitude das misérias e desgraças sofridas pelos habitantes quando foram deportados, não de Jerusalém para a Babilónia e a Síria, mas de Constantinopla para a Síria, o Egipto, a Arménia, a Pérsia, a Arábia, a África e para muitos outros países onde não se falava a sua língua, onde a sua religião e as divinas escrituras eram ignoradas. Sol, também vós, Terra, tremei e chorai a ruína completa da nação que, num juízo justo, Deus ordenou como punição dos nossos pecados." (3)
Desde esse dia 30 de Maio de 1453, às três horas da manhã, as humilhações impostas pelos ocupantes contra aqueles que construíram Constantinopla não cessaram. Exactamente como as ondas do mar não cessam de bater nos rochedos das ilhas inundadas...
Ataturk, vendo que apesar dos milhares de mesquitas construídas em Constantinopla no lugar
* (3) Ducas, P. G., 157, cap. 41. *
das igrejas, que apesar de cinco séculos de ocupação e de massacres incessantes, Constantinopla continuava a ser uma cidade cristã, fiel àqueles que a edificaram, a Constantinopla, a Santo André e àqueles que procuravam o Tosão de Ouro, Ataturk, desesperado por não conseguir turquizar a cidade, edificou uma nova capital. Inteiramente turca. E desde então, os Turcos fazem o possível para que Constantinopla apodreça, caia sob os golpes do tempo. Para que a cidade se afunde. Foi abandonada. Tornou-se uma ruína. Os gregos são expulsos quotidianamente. Aqueles que ainda restam - umas dezenas de milhares - esperam todos os dias o firmão de expulsão... ou quaisquer outras desgraças.
Nestas condições, para um grego, um cristão de Constantinopla, é muito difícil passar vinte anos, dia e noite, frente a frente com a fotografia de Ataturk em tamanho natural. Pendurada por si próprio na sua frente. Sem ninguém o obrigar a tal. Ataturk é o inimigo. É o pai dos Turcos. E por mais que se faça ou não se faça, o Grego e o Turco são inimigos.
- Vossa Santidade - disse eu -, porque está sempre de costas para a Mãe de Deus e com os olhos postos em Ataturk?
Volta-se. Olha para o ícone pós-bizantino da Mãe de Deus, que está na parede, atrás da sua escrivaninha.
- Desculpe - disse eu. - A Mãe de Deus, e vossa Mãe, porque foi ela que vos criou, quando morreu a vossa mãe terrestre, está por cima da cabeça de Vossa Santidade. Não. Não lhe volta as costas. Depois, Ela tem de estar aqui por ser a parede do lado do Oriente. Em todo o caso, mesmo estando por cima da sua cabeça, tem na sua frente o pai dos Turcos e não a Mãe de Deus. Isso não o incomoda?
Desde 1453, os cristãos são um millet, um rebanho, organizado pelos Turcos em pequenos rebanhos, literalmente banidos. Não têm o direito de montar a cavalo, de ter guizos, de falar em Cristo, de se vestir como os outros. Têm de pagar tributo em ouro, em grão, em dinheiro, em crianças. Têm de viver num bairro à parte. Tudo isto é escravatura, humilhação. Todas as noites é expulso mais um clérigo da patriarcal. Foram expulsos todos os professores da Escola de Teologia de Halki. Foram proibidas todas as publicações de qualquer género do patriarcado...
"Como ficar de costas voltadas para a Mãe de Deus, a nossa Mãe, e frente a frente com o pai dos Turcos, o pai dos nossos inimigos?"
Os seus olhos trespassam-me. Não responde. Tem razão. É monge. Não tem inimigos.
""Bem-aventurado o homem capaz de amar igualmente todos os homens." (4) "Só poderá possuir este bem supremo que é a caridade perfeita quem tiver por princípio amar igualmente todos os homens." (5) Amar os amigos é coisa que até os pagãos fazem. Mas amar os nossos carrascos, aqueles que nos fazem mal, os nossos matadores, isso é que é ser cristão. O resto não é nada. "Deus, por ser bom e sem paixão por natureza, tem por todos os homens, obra das suas mãos, um amor igual. Também o homem bom e sem paixão por livre escolha tem para com todos os homens igual caridade."" (6)
"Cristo, na Cruz, rezou pelos seus carrascos." (7) "Perdoai-lhes, Senhor, que eles não sabem o que fazem." Excepto em Cristo, nunca vi amor pelos seus inimigos, verdadeiro, profundo, autêntico, como o de Athenagoras, que pôs na sua frente o retrato do pai dos Turcos, dos exterminadores da
* (4) São Máximo, o Confessor: Centúrias de Caridade, 1, 17.
(5) Centúrias, 11, 10.
(6) São Máximo, o Confessor: Centúrias, 1, 25.
(7) São Lucas, XXIV, 34 *.
nação cristã, e que o fita com o mesmo amor com que olha para os seus filhos... O cristão não divide a natureza única dos homens separando-os em amigos e inimigos. Tem a mesma caridade e o mesmo . amor por todos. Certamente, nem dá por isso. E é por essa razão que Athenagoras é santo. Ele, que há vinte anos vive entre a Mãe de Deus e o pai dos Turcos e que não olha para a Mãe de Deus, mas sim para o pai dos Turcos, sabendo que, se não o amar, não é um verdadeiro cristão. Depois da refeição, vieram convidados. Uns vinte. Vêm em peregrinação. O patriarca mandou-me sentar junto dele e falou às pessoas que se encontravam na sua frente:
- Nós, aqui, temos a sorte de viver num país civilizado, realmente democrático. Olha para mim. Não acredito? Não é civilizado este país onde já não se caçam homens como há um século apenas? Onde não se cortam cabeças como quem corta melancias? Carregando-as em carrinhos de mão, exactamente como se carregam os melões para oferecer ao sultão? Não é um progresso? Uma verdadeira democracia em comparação com o que era? Os Turcos expulsam os cristãos? Mas que é uma expulsão, mesmo no meio da noite, comparada com a degolação de toda a família? Sem haver um processo.
- Ah! Sim - afirmo-lhe. - Nós temos sorte... Muita sorte por estarmos neste país civilizado que é a Turquia. E isto é obra desse grande homem que é Ataturk. O pai dos Turcos.
Reparei que todos se voltavam para observar atrás de si a fotografia em tamanho natural e a cores de Ataturk, o pai dos Turcos.
Como os visitantes estavam de costas para o pai dos Turcos, como toda a gente que vem a casa do patriarca, viam na sua frente o ícone da Mãe de Deus, colocado por cima do patriarca. Atrás dele. E olhavam para ele. E o pai dos Turcos está atrás dos visitantes. Para que todos tenham os olhos voltados para a Mãe de Deus, o patriarca prefere tê-lo a ele na sua frente. E continua de costas para a Mãe de Deus. Porque ele ama os seus inimigos. Mas os que chegam até aqui devem ver a Mãe de Deus. E é por isso que Ela está colocada atrás do patriarca. E, entretanto, olha amigavelmente para o seu inimigo. O pai dos nossos inimigos. com ternura. Pode fazê-lo, porque é um santo. Sem paixão. Mas poupa os visitantes. Que não são santos. A não ser Athenagoras, nunca encontrei algum homem que amasse os seus carrascos.
- Olha para ele com prazer? Sempre?
-Vire-se, padre, e contemple a Mãe de Deus. Está colocada exactamente na mesma posição que eu. Sofreu as mesmas afrontas. E está colocada defronte de Ataturk. Face a face. Acha que a Mãe de Deus olha com hostilidade para Ataturk?
-A Mãe de Deus sorri a Ataturk - respondi.
- Faço como a Mãe de Deus, padre.
- Mas volta as costas à Rainha do Céu.
- Se não estiver de costas para a Mãe de Deus, toda a gente que vier ao patriarcado ficará a olhar para Ataturk. Ora, eles podem olhar para Ataturk em toda a parte. Em todos os edifícios. Mas quando vêm aqui, sentam-se na minha frente e da Mãe de Deus. E todos olham para a Mãe de Deus. Que só raramente, muito raramente, se encontra em Constantinopla. Não é bom que os meus filhos olhem para a Mãe de Deus? Para a colocar em frente dos meus visitantes, não me perdoará Ela que lhe volte as costas, a mim, que sou o seu patriarca e que a trago gravada no meu peito?
A sabedoria dos santos é inesgotável. A sabedoria dos santos é superior à sabedoria dos homens mais sábios. Porque a sabedoria é oferecida por Deus.
Orgulho-me de ter um patriarca santo. Sinto um grande orgulho. Mas estou triste por ele ser tão pobre. Pobre entre os pobres. No entanto, o meu patriarca, que é prisioneiro, é o homem mais livre do Cosmo. Como só os santos podem ser livres. "Aquele que, chegando ao topo da liberdade interior, possui a caridade perfeita deixa de distinguir, entre si e o próximo, escravo e homem livre, homem ou mulher. Transposta a zona onde reinam as paixões, só vê nos homens a sua única natureza: todos ao mesmo nível. Sente o mesmo amor por todos." (8) É a célebre apatheia. "Realizar a apatheia - a vitória sobre as paixões - pelo amor a Deus e ao próximo." (9)
* (8) São Máximo, o Confessor: Da caridade, 11, 30.
(9) Icl., P. G., 91, col. 1273-D. *
O RETRATO DE ATHENAGORAS E O MISTÉRIO DO ÍCONE ORTODOXO
ESTOU sozinho com Sua Santidade Athenagoras. No seu gabinete -do tamanho de uma sala de aula de aldeia-, com cadeiras de pau ao longo da parede. Estou sentado a seu lado. Entre a Mãe de Deus - o ícone da Théotokos - e o pai dos Turcos - Ataturk. Do patriarca Athenagoras sei apenas uma coisa com certeza absoluta. É que ele é santo. Isto quer dizer que é um verdadeiro cristão. Um homem celeste e um anjo terrestre. Como todo o autêntico monge. Escrevendo a vida de Athenagoras, descrevo portanto Deus, o Céu, os anjos e a Igreja, que é a cópia do Céu na Terra. Posso gritar como o salmista: "A tua ciência foi para mim motivo de admiração..." (1) "Abençoo-te por seres admirado com temor." (2) Mas porquê com temor? São numerosas as coisas que hoje admiramos. Mas não com receio. Por exemplo, a beleza das colunatas ou as obras-primas da pintura ou corpos em flor. Admiramos também a imensidade e o abismo infinito do mar, mas este com receio, quando nos debruçamos sobre os abismos. Também o escritor sagrado, debruçado sobre o oceano infinito e medonho da sabedoria de Deus, teve
* (1) Salmo 138, 6.
(2) Ibíd. 138, 14. *
vertigens e, depois de o admirar com grande pavor, recuou gritando estas palavras: "Eu te abençoo por seres admirado com temor. Admiráveis são as tuas obras." E também a tua ciência foi para mim motivo de admiração. Ela consolidou-me. É-me impossível alcançá-la." (3) "Dou-vos graças por seres um mestre incompreensível." (4) "Se me elevo ao Céu, tu estás lá. Se desço ao Inferno, tu estás presente." (5)
Sou como um gato a brincar com uma bola de cristal. O gato nunca sabe de que lado a há-de agarrar para a imobilizar. Sempre que lhe toca, perde-a.
Quando entrei aqui, nesta pobre morada do meu santo patriarca, ele levantou-se do assento de madeira em branco e saiu de trás da secretária. Avançou em direcção a mim. com os braços como as asas de uma águia-real desdobradas no ar, imensas, como se pudessem abraçar não só todos os homens da Terra, mas toda a Terra e o Céu e as estrelas e tudo quanto existe no Cosmo... Aperta-me contra si. E perco-me nos seus braços como numa floresta. Meço um metro e oitenta e dois. E eu estou perdido nos seus braços. Aqui, no peito do patriarca Athenagoras, há lugar para todos os metropolitas, todos os padres, todos os diácones e para os duzentos milhões de fiéis ortodoxos...
Recebo o beijo do patriarca na testa: "O beijo
da paz significa identidade de pensamentos, de desejos e de caridade de todos para com todos, e primeiramente de cada um consigo próprio e com
Deus." (6)
É tão belo o meu patriarca! É enorme. É tão
* (3) P r 48 col. 705-C.
(4) São João Crisóstomo, P. - 40.
(5) Salmo 50, 8.
(6) São Máximo, o Confessor, P. G.. 91, col. 704-C. *
grande que pode tocar no Céu. E é direito. Uma verdadeira montanha. E de granito.
É um dia de trabalho que começa. Sabe-o. Sabe que lhe vou fazer perguntas. Mas depois de me ter dado o beijo da paz, já não preciso de lhe fazer a pergunta. Nenhuma. Qualquer pergunta seria ridícula. O beijo da paz significa identidade de pensamento, de pensamento e de caridade. E tenho com ele este desejo e esta identidade. É exactamente como dizia o nosso santo e divino Máximo: "Creio, como me ensinou a tradição, que Deus é caridade. Que, como ele próprio é Um e nunca deixa de ser Um, faz ser Um aqueles que vivem segundo a caridade e lhes dá um só coração e uma só alma, de modo que, tendo a mesma alma, conhecem os corações uns dos outros e já não se cansam, por ignorância, a interrogar cada um acerca dos sentimentos do próximo a seu respeito." (7)
Não só conheço os pensamentos do patriarca sobre tudo quanto nos interessa - a nós, cristãos sobre a Terra - como sei que ele, na sua qualidade de pai de todos os patriarcas, não me deve dizer tudo. Porque há uma hierarquia. E as coisas que Deus dá a conhecer a um bispo não são reveladas a um padre e as que são reveladas aos padres continuam a ser mistério para as outras hierarquias inferiores.
- Deus concedeu-vos o dom de sondar os corações e as almas - disse o patriarca. - O senhor não precisa de respostas. Das minhas respostas. Sabe o que penso sobre uma coisa e outra.
É verdade, mas reparo que a minha situação é muito difícil. Se olho para o patriarca verifico que ocupa todo o espaço e não se mostra para baixo da cintura. Vejo os seus olhos, oiço a sua voz, mas assim como nenhum homem pode ver
* (7) São Máximo, o Confessor, P. G., 91, col. 613-A e B.
Deus nem fazer o seu retrato - o que, de resto, é proibido - também ninguém pode olhar para o patriarca. Isto deve-se, em parte, penso eu, ao facto de ser preciso ser santo para se fazer um ícone, quer dizer, o retrato de um santo. O sétimo cânone do IV Sínodo de Constantinopla proíbe pintar ícones sem se pertencer à Igreja. (8) Mas os que são fiéis devem esperar por um certo potencial de santidade para fazer um ícone, o retrato de um santo.
A fotografia de um santo não é o seu ícone. Porque numa fotografia só se vêem os contornos mortais do ser visível. A verdadeira pessoa do santo é feita de luz. Até a sua carne é luminosa como o corpo de Cristo, no monte Tabor. Ora as máquinas fotográficas e os olhos carnais não podem registar a luz celeste. "A luz só pode ser vista na luz. Como havíamos de ver o Sol sem estar nos seus raios?" (9)
Tenho na minha frente o próprio santo, o patriarca Athenagoras. E a minha situação é como a de quem vai ver o ícone de Cristo Pantocrator, em Delfos, em Santa Sofia, em Quefalu, em Monte Real. Logo que ficamos em frente de um ícone bizantino, já não somos nós que o fitamos. É o Cristo pintado no ícone que nos fita. A perspectiva é inversa. Já não é a pintura que é objecto de estudo, mas sim o espectador. Aquele que a vê. É impossível penetrar em redor e dentro do ícone, como é impossível penetrar no Céu com o corpo. Por isso, todos os raios visuais são, não convergentes para o ícone, mas divergentes. E encontramo-nos sob o ícone. Tornamo-nos objecto e não espectador. É o ícone que olha, que nos fita, que vê em nós, para dentro de nós. E tudo, em toda a parte.
* (8) Mansi, XVI, 397-406. , 1.
(9) São Gregório de Nissa, P. G., 46, col. iII.
É o que me acontece todos os dias, a toda a hora, com Sua Santidade Athenagoras. Não posso analisá-lo, observá-lo, porque é ele que me observa. Na sua vida de monge - homem de acção e de caridade-, na sua actividade de pastor e de grande hierarca, que dura há sessenta anos, conseguiu tornar-se, em vida, apesar da sua carne e dos seus ossos, apesar da vida que existe no seu corpo, num ícone. E desde que se pretenda observá-lo para o retratar numa tela ou num livro, que é o meu caso, é ele que nos observa, nos estuda, nos vê. E nós transformamo-nos num simples objecto.
O que consigo ver é a luz do santo patriarca, uma luz de Deus, pertença do próprio Deus. E exclamo com fervor: "Como Deus é soberbo e belo nos seus santos!"
Quem poderá narrar a sua vida? "Tu foste para mim um motivo de admiração." (10) "Mas não consigo circunscrever-te, ver-te a fundo, conhecer-te, e ainda menos pintar-te, descrever-te." (11) "Nós conhecemos em parte e profetizamos em parte." (12)
Uma coisa é certa. Toda a pessoa do patriarca Athenagoras é um ícone. Isto é o mistério do ícone ortodoxo: um ícone não é para ser observado, porque é ele que nos observa. Nunca se consegue penetrar num ícone nem em torno dele, porque os olhos não têm a possibilidade de penetrar no Céu. O ícone é o Céu e tudo está a seus pés, onde quer que nos encontremos, sustentando o seu olhar.
Sua Santidade Athenagoras é como todos os santos, que, "embora suportando o fardo da carne, possuem a certeza da esperança, graças aos sinais do Espírito Santo. Não duvidam de maneira alguma que hão-de reinar com Cristo e viver
* (10) Isaías, 53, 8.
(11) Salmo 138, 6.
(12) São Paulo, I, cor. 13, 9. *
na plenitude e na superabundância do Espírito. A partir de hoje, na verdade, eles são penhor do século futuro e vêem as suas belezas e os seus milagres. De facto, assim como os olhos corporais, não estando doentes e sendo saudáveis, fixam confiadamente o brilho do Sol, também esses homens se servem da sua inteligência iluminada e purificada para contemplar constantemente os raios impenetráveis do Senhor". (13)
Sim. Os santos estão ao mesmo tempo aqui e no Céu. Exactamente como a Igreja. A liturgia. E se descrevo o que vejo com os olhos da carne - o visível-, a sua sotaina, a sua barba, os seus sapatos, o seu gabinete, limito-me ao efémero. Ao que não tem importância alguma. Absolutamente nenhuma. O meu mestre é santo. "Tenho um mestre incompreensível." (14) Quem poderá narrar a sua genealogia?
A genealogia dos santos está no Céu. Embora vivam na Terra.
Após sessenta anos de vida santa, ininterrupta, de orações e de mortificações, Athenagoras atingiu o estado de Melquisedech, acerca de quem se escreveu: "Este Melquisedech... cujo nome significa, antes de tudo, rei da justiça e, em seguida, rei de Salem, quer dizer, rei da paz, que não tem pai nem mãe, nem genealogia, cuja vida não tem princípio nem fim: verdadeira face do filho de Deus. Melquisedech é padre para toda a eternidade... Vede a grandeza daquela a quem o patriarca Abraão ofereceu a dízima..." (15)
Athenagoras é como Melquisedech. Até fisicamente. Como descrever então a vida daquele que
* (13) São Macário, o Grande, P. G., 34, col. 916-BC e P. G., 34, col. 901-A e B.
(14) Salmo 138, 8.
(15) Isaías, 58, 3. *
não tem genealogia, nem princípio, nem fim...? "Quem poderá narrar a sua genealogia?" (16)
Mas com a colaboração de Deus, o homem pode pintar os santos. É certo que fazer o retrato de um santo é fazer o retrato de Deus. Ora "nunca ninguém viu Deus". (17)
Se a glória do Pai e do Filho fossem acessíveis à natureza e ao poder humano esta palavra seria enganadora... "Só amalgamado (anacratheis) com a graça do Espírito è que Santo Estêvão viu Deus." (18)
Tentando ver, estudar, compreender, admirar e descrever Athenagoras, é, na realidade, Deus que eu tento ver, compreender, admirar e descrever... Porque Deus é visível nos seus santos como num espelho. E o ícone de qualquer santo é uma imagem de Deus. Será uma falta de humildade da minha parte? Não. Porque os padres ensinaram-nos: "Mais vale morrer pelo caminho em busca da vida perfeita do que não partir." (19)
* (16) São Paulo - Epístola aos Hebreus, VII, 1, 4.
(17) Primeira Epístola de São João, 4, 12.
(18) São Gregório. de Nissa, P. G., 46, col. 717.
(19) Orígenes, G. C. S., VI, 189.
O SANTO PRISIONEIRO DE CONSTANTINOPLA
JÁ estou há uns dias com o patriarca. Ainda não sei a cor dos seus olhos. Tentei completar a lacuna, imperdoável para um biógrafo. Inacreditável mas autêntico. Os olhos do patriarca Athenagoras não têm cor alguma. São como a luz. E a luz não é uma cor. Ele é santo. Porque São Gregório de Palamas diz: "O preço da virtude é tornar-se Deus, ser iluminado pela luz mais pura, tornando-se filho desse dia que nenhuma escuridão interrompe. Porque esse dia nasce de um outro Sol, de um Sol que brilha de verdadeira luz. Desde que nos ilumine nunca mais se esconde no ocidente, mas envolve todas as coisas com o seu poder luminoso, dá uma luz eterna e contínua àqueles que são dignos dela, e transforma em outros sóis aqueles que comungam nesta luz. Então os justos resplandecerão como o Sol. Que Sol? Sem dúvida aquele que aparece então como hoje àqueles que são dignos dele." (1)
O mesmo santo diz-nos: "O espírito humano que abandona esta vida lamacenta e suja, quando se torna luminoso pela força do espírito e se alia à pureza verdadeira e sublime, brilha ele próprio nesta pureza, torna-se radioso e transforma-se em
* (1) São Gregório de Palamas: Tríade, iII, 34. *
luz conforme a promessa do Senhor, que proclamou: "Os justos hão-de resplandecer como o Sol"." Vemos produzir-se na Terra o mesmo fenómeno com um espelho e a água: recebendo um raio de sol produzem eles próprios um outro raio. Também nós, se nos elevarmos, abandonando as trevas terrestres, nos tornamos luminosos, com a condição de nos aproximarmos da verdadeira luz de Cristo. E se a verdadeira luz, aquela que brilha nas trevas, (2) descer até nós, seremos luz também, como o Senhor disse em qualquer parte aos seus discípulos. (3) Assim, o dom dignificante do Espírito Santo é uma misteriosa luz e transforma em luz aqueles que recebem a sua riqueza. Ele não só os enche de luz eterna como também lhes concede um conhecimento e uma vida que agradam a Deus. Também Paulo, segundo o divino Máximo, já não vivia uma vida criada, mas sim uma vida eterna que pertencia Àquele que viera habitar nele. (4) Do mesmo modo, os profetas contemplaram o futuro como presente." (5)
Sua Santidade Athenagoras contempla no presente o futuro. O Céu. Vive no Céu. E na Terra. Simultaneamente. Não é um erro da minha parte o facto de não ver a cor dos seus olhos. Não, os seus olhos ultrapassaram o estado da cor. Porque a cor pertence à Terra. Exclusivamente. No Céu há luz. Unicamente. De resto, sempre que lhe digo uma coisa que não lhe agrada, a luz dos seus olhos transforma-se em sombra. O olhar do patriarca ecuménico é um jogo de luz e sombra. Na vida de Cristo e nos Santos Evangelhos, como nos olhos do patriarca, do meu pai na Terra, nunca
- salvo uma excepção - se trata de cor. Aqueles
* (2) São João, 1, 5.
(3) Matth, 5, 14.
(4) São Máximo, o Confessor, P. G., 91, col. 1144-C e P. G.,
90, col. 1384-D.
(5) São Gregório de Palamas: Tríade, iII, 1-35. *
que lêem atentamente os Santos Evangelhos verificam a ausência total das cores. Até Cristo o afirmou: "Sou a luz do mundo." (6) Ele, que anteriormente era apenas pó. (7) Athenagoras é hoje inteiramente luz. "Aquele que me segue não caminhará nas trevas, mas terá a luz da vida." (8) Athenagoras é isso. Aquele que caminha na luz através de Cristo e se tornou luz. E a sua vida é um jogo de luz e sombra como a vida de Cristo. "A pequena porção de terra e pó" (9) transformou-se em luz cá em baixo como nos foi prometido para depois da nossa morte. Como os pirilampos. Porque esses vermes insignificantes, cor de terra, migalhas de pó que esmagamos debaixo dos nossos pés durante o dia, mesmo sem dar por isso, quando vem a noite tornam-se brilhantes como estrelas espalhadas pela Terra. Porque "Deus, que previa a incredulidade do homem, deu a todos os pequeninos vermes a faculdade de emitir raios luminosos dos seus corpos." (10)
com os santos dá-se a mesma antecipação. Estão no Céu, mesmo estando ainda cá em baixo, nesta vida.
No Reino Celeste não há cor, nem Lua, nem Sol, mas somente a Luz de Deus - que substitui a Lua, o Sol, o arco-íris. Por isso, Cristo, na sua vida terrena, deu um valor especial à luz. Uma das obras-primas do Evangelho é a descrição do milagre de Cristo dando vista aos cegos. É a passagem das trevas para a luz. É a passagem - simbólica- da Terra para o Céu.
Como afirma São Máximo, o Confessor, Deus gosta de encarnar nos homens que são dignos d'Ele. E por isso abstive-me de fazer perguntas
* (6) São João, 8, 12.
(7) São Basílio, P. G., 29, col. 769-B.
(8) São João, 8, 12.
(9) São Basílio, P. G., 29, col. 769-B.
(10) São Cirilo de Jerusalém, P. G., 33, col. 1040-A. *
estúpidas a Athenagoras sobre a vida terrestre, sobre os problemas que, mesmo sendo graves na hora actual, hão-de passar como passará a Lua, o Sol e o tempo. Só ficará a Luz de Deus.
Portanto, prefiro calar-me e ver a luz que há nos olhos de Athenagoras em vez de um tagarelar caduco. É por ser santo que os seus olhos não têm cor, mas exclusivamente luz. Não sei o que escreveram no seu passaporte na rubrica referente à cor dos olhos. Porque não estou a ver um polícia turco escrever no passaporte do patriarca ecuménico, o patriarca dos Romanos - na rubrica cor dos olhos-, luz celeste. A polícia não conhece esta cor. Vi fotografias coloridas do patriarca. As câmaras, as objectivas, as máquinas fotográficas são como os polícias: não respeitam a luz celeste. E vendo a luz de Deus que contém o olhar do patriarca, o pai de todos os patriarcas da Terra, recordo as palavras de Cristo: "Acreditai na luz para serdes filhos da luz." (11) Para Cristo, o mundo divide-se em luz e trevas. Quando Judas executa a sua traição faz uma obra das trevas. Actua contra a luz. E era noite quando Judas vendeu o Senhor. "Judas saiu. E era noite." (12) A traição e o pecado têm a cor da noite e das trevas. O mundo inteiro é luz. Como o Paraíso. Como Deus. Lá fora, na História, no social e no político, é noite. E trevas. Elas estão sempre no exterior. Porque o Senhor, para castigar alguém, ordena que o lancem nas trevas exteriores. "Quanto a esse servo inútil, lançai-o nas trevas exteriores." (13)
Na boca de Cristo, nenhuma desgraça foi descrita como mais terrível que a do homem que perde a luz. Desgraçado é aquele que não possui a luz. "Porque não há luz em si." (14) Pecador é
* (11) São João, 12, 36.
(12) Id., 13, 30.
(13) São Mateus, 25, 30.
(14) São João, 11, 10. *
aquele que ama as trevas em vez de amar a luz. (15) Como as trevas são grandes, (16) exclama Cristo. "A candeia do teu corpo são os olhos. Se os teus olhos forem puros, todo o teu corpo será luminoso. (17) Mas se os teus olhos forem impuros, todo o teu corpo será tenebroso." A desgraça suprema é a de um cego guiado por outro cego. (18)
E os olhos do meu patriarca estão acima da cor. De qualquer cor. São luz. Os olhos de Athenagoras são candeias. Projectores. E é tudo quanto se vê dele. É sobretudo com os olhos que fala.
Olha para mim com uma sombra muito pequenina no olhar, como que uma suspeita de pesar. Sabendo que quero escrever sobre ele, receia que me afaste da luz. Para nós, ortodoxos, os acontecimentos e a História existem realmente. Não negamos a sua existência. Mas os principais acontecimentos, a biografia de todos os ortodoxos, é a criação do homem, a sua estada no Paraíso, a queda, a Encarnação. São os maiores acontecimentos da biografia de todos nós: a Paixão e a Crucificação. A página triste e a mais dolorosa da nossa vida terrestre. A Ressurreição, o Pentecostes e a criação da Igreja, que é a vida de Cristo, do Espírito Santo e da Santíssima Trindade connosco, cá em baixo, são a nossa alegria. O único acontecimento que nós esperamos é a parúsia, a ressurreição de todos os homens e a vida eterna. A nossa pequena biografia pessoal tem a data do nosso Pentecostes individual, do nosso baptismo. Um dia teremos também a data da nossa dormição, do nosso torpor, a que se chama morte. Mas a morte não passa de uma espera passiva da parúsia. Entre a Mãe de Deus e o pai dos Turcos, no seu gabinete, onde há tanto silêncio como no campo,
* (15) São João, 11, 19.
(16) São Mateus, 6, 25.
(17) Id. 6, 23.
(18) São Lucas, 6, 39. *
existe uma sombra nos seus olhos. Porque receia que lhe fale de acontecimentos sem importância como dezenas de milhares de pessoas que vêm aqui, a sua casa. De coisas que nem merecem ser mencionadas. Como, por exemplo, se descrevesse no meu diário a maneira como atravessei a rua, quantas vezes bebi água e outros pormenores insignificantes. Ao patriarca, sobretudo a ele, seria um sacrilégio perguntar coisas a que responderia, com certeza, mas que desagradariam a Cristo. Como Nosso Senhor ficava triste quando lhe faziam perguntas sobre os Romanos, sobre os impostos, sobre a duração da vida e outras coisas cá de baixo. É certo que há guerras na Terra. Também havia guerras enquanto Cristo andou na Terra. Há fome. Há injustiça. Há a desigualdade racial, a desigualdade de classes. A violência. Os ricos e os pobres. Mas Cristo respondeu de uma vez para sempre a todas essas coisas.
A resposta de Cristo é também a nossa única resposta. A qualquer desafio do exterior, aos desafios das trevas da História, responderemos com as palavras de Cristo: "Não se aflijam dizendo: "Que teremos nós para comer e para beber? Que teremos nós para vestir?" Os pagãos procuram todas essas coisas com solicitude. Mas o vosso Pai Celeste sabe muito bem que vós tendes necessidade dessas coisas. Portanto, procurai primeiramente o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o resto vos será dado por acréscimo." (19)
O patriarca ecuménico sabe que os presbitérios e as igrejas se transformaram numa espécie de gabinetes ministeriais, de companhias de seguros, que tratam especialmente das "coisas que os pagãos procuram com solicitude". Esta moda do nosso tempo devasta a Igreja de Cristo que está na Terra. Mas todas as modas passarão. Não. O pecado
* (19) São Mateus, VI, 31 - 34. *
terrível de considerar o reino da Terra mais importante que o reino do Céu está longe de mim. Em todas as repúblicas penitenciárias populares, onde os ortodoxos vivem cativos, ordena-se, sob pena de prisão ou sob pena de morte, que se afirme que o Paraíso é cá em baixo. É um sacrilégio. Mas é imposto aos cristãos ortodoxos cativos nas suas pátrias terrestres. Eu, não. Não arrastarei o meu santo patriarca para as trevas. Lá fora. Quero falar-lhe da luz e ouvi-lo falar como Deus falava aos primeiros homens, no Paraíso, na frescura da tarde. (20)
Não falarei com o patriarca do resto, como o Evangelho chama àquilo que não é do Céu e é muito efémero. Daquilo que nos será automaticamente oferecido se nós procurarmos o reino dos Céus. Limitar-me-ei à sua biografia. Ao que é verdadeiramente a sua biografia. Porque o amo e porque amo Cristo. E sei que, tendo a sorte de estar com o patriarca, de dialogar com ele, temos de nos limitar ao essencial. Às suas preocupações. Que são de permanecer na luz. E só uma luz, que é Deus. Aqueles que o seguem são filhos da luz. E há o perigo de confundir a luz - a autêntica -, a de Deus, com a luz da Lua, do Sol, ou, ainda pior, com a luz eléctrica e a luz da sabedoria humana.
Como perguntar ao patriarca pormenores acerca do seu nascimento carnal?
Não. Se lhe perguntar, os seus olhos de luz tornam-se sombra. Porque, apesar de ter nascido da carne, teve um outro nascimento. Que foi de longe o mais importante. Posso interrogá-lo sobre os seus estudos? Não.
É certo que há uma luz proveniente dos estudos. Mas isso é secundário.
Assim como, no casamento legítimo, o prazer
* (20) Génese, 11, 15. *
que visa a procriação não pode absolutamente chamar-se dom divino de Deus porque é carnal e constitui um dom da natureza, e não da graça, apesar de a natureza ter sido criada por Deus, também o conhecimento proveniente da educação profana, mesmo que se utilize, é um dom da natureza e não da graça que Deus concede a todos, sem excepção, e que se pode desenvolver pelo exercício. Este último ponto - o facto de não pertencer a ninguém sem esforço e sem treino - é uma prova evidente de que se trata de um dom natural e não espiritual. (21) As faculdades naturais opõem-se deste modo à gratuidade absoluta da graça.
Como poderia falar das faculdades naturais, das coisas perecíveis, com o patriarca? Falarei antes das suas primeiras armas ao serviço de Deus, do seu afastamento, por Deus, da sua terra natal. Falarei da fronteira da Terra e do Céu, em Terra Plana. Do seu amor pelos outros na amálgama macedónica. Do amor aos inimigos que são irmãos com uniformes estrangeiros. Do seu afastamento, por Deus, da sua família carnal, da sua mãe Helena e do seu pai Mateus, para ser confiado à guarda da Mãe de Deus e do metropolita de Konitza. Primeiro quero falar da passagem da sua vida terrestre para a vida angélica. Do seu noviciado e da sua entrada no mosteiro.
- Gostava de visitar Halki - disse ao patriarca.
- Quer ir a Halki? - pergunta-me.
Os seus olhos irradiavam a mais pura luz.
- Quero! -respondi.
- E quer ir sem mim a Halki?
- Como poderia atrever-me a pedir-lhe que me acompanhasse? - retorqui.
- Como? Pensa que o deixava ir sozinho a Halki? Iremos juntos.
* (21) São Gregório de Palamas: Tríade, II, 3, cap. 44. *
Compreendi que era lá que iria abordar a verdadeira biografia do patriarca. É em Halki que vou entrar a fundo no assunto da sua verdadeira biografia. Porque o patriarca é um monge. E foi em Halki que abandonou o seu nome, os seus trajos, o mundo, para se transformar num anjo com corpo, num anjo terrestre, num monge, num kaloyen, num belo ancião, num imitador de Cristo.
Para ser patriarca, metropolita, bispo, primeiro é preciso ser monge. A verdadeira biografia do patriarca começa efectivamente não em Terra Plana mas em Halki, onde se preparou durante sete anos para ser monge. Imagino Athenagoras aos vinte e quatro anos, belo como um deus antigo, como uma estátua, à porta da igreja, descalço, em camisa branca de cânhamo, de cabeça descoberta, à espera. Abandonou oficialmente o mundo. Não possui nada na Terra. Mudou-se da Terra para o Céu antes de morrer. Ser padre é isso mesmo.
O patriarca chamou o secretário. Mandou-o fazer os preparativos
- Amanhã, parto com o padre Virgil para Halki - disse.
Sonhei toda a noite com esta viagem. É certo que, visitando a Macedónia e o Épiro, Terra Plana, onde nasceu o patriarca, visitando a sua família, a ilha de Corfo, onde foi metropolita, encontrei pedaços da sua biografia. Mas a verdadeira biografia de Athenagoras começa em Halki. A sua vida começa no dia em que cessa de se chamar Arístocles Spyru e recebe o nome de Athenagoras.
Foi desta escola de Halki que saíram os metropolitas, os patriarcas e os bispos ortodoxos. Havia outrora em Halki centenas de estudantes vindos de todos os continentes. Havia ali professores célebres. Hoje é proibido aos alunos estrangeiros estudarem ali. Os professores que não são turcos são expulsos. Tem uma biblioteca admirável. Mas não pude visitá-la. Porque o bibliotecário foi mobilizado e mandado defender a Turquia contra os Gregos. Na fronteira grega. Quase todos os empregados do patriarca estão mobilizados no Exército turco. Mas isso não estraga a minha alegria de ir a Halki com o patriarca. É uma viagem de uma hora. Ao passar pela Calcedónia, um dos altos locais da ortodoxia, faz-se a viagem num barco onde se encontram animais, madeira, fruta, gaiolas de galinhas, homens. Tudo. Tenho dó do meu pobre patriarca, que terá de ir numa haraba, nesse furgão de homens, de mercadorias e de animais.
O patriarca é um homem que atingiu pessoalmente a santidade. É uma grande sorte estar junto dele. Porque é bem-aventurado. Como foi dito: "Bem-aventurados aqueles que todos os dias se alimentam de Cristo como o profeta Isaías de carvões em brasa, porque serão purificados de toda a mácula da alma e do corpo." (22)
"Bem-aventurados aqueles que, a todo o instante, provam esta luz inefável..."
Pensei toda a noite no patriarca ecuménico. Ele também estava tão contente com esta viagem! com certeza, sonhou esta noite que regressava a Halki. Ao seu seminário. Ao seu mosteiro. Onde abandonou a sua infância. Onde abandonou a sua adolescência. A sua mocidade. E a Terra inteira. Halki é o primeiro degrau para o Céu, numa escada que sobe há sessenta anos. Porque já é monge há sessenta anos. Desde então traz aos ombros, entre as omoplatas, a Cruz e os instrumentos da paixão de Cristo. Há sessenta anos que renunciou ao dinheiro, à glória, a tudo quanto a Terra possui de bom e de mau... Ao chegar lá acima, ao alto da colina, pensará que já foi outro homem chamado Arístocles?
* (22) São Isaías 6, 6, São Paulo, II, cor. 7, 1; São Simão, o Novo Teólogo, Ética, X, 790. *
Em Halki não há automóveis. Depois de termos viajado - eu e o meu patriarca - no miserável furgão flutuante - como os discípulos navegaram com Cristo - chegaremos à ilha. Tomaremos um carro de cavalos que nos levará ao mosteiro. Uma viagem de uma hora. E quando atingirmos o ponto mais alto, pararemos em frente do Instituto de Teologia de Halki.
Sei que, desde há vinte anos, as únicas férias que o patriarca goza é ir a Halki. Fica a duas horas de distância da sua residência. São as suas férias grandes. As suas únicas férias. Lá em cima, no seminário de Halki, estamos como em Terra Plana, na Macedónia e no Épiro, na fronteira do Céu e da Terra. Acima da Turquia. Acima de tudo.
Claro que a presbítera Ecaterina não subirá a meu lado e do patriarca. No carro de cavalos. Vai seguir-nos noutro carro. Mas também fará a viagem. Como as mulheres do Evangelho, que seguiram Cristo por toda a parte e foram as primeiras a ver os milagres. E a Ressurreição. Mas que caminharam, anónimas, atrás. Não se pode ter tudo. Uma mulher foi mãe de Cristo. Trouxe Deus no seu ventre. É mais do que ser discípulo de Cristo. E padre. E bispo. Elas são mães dos patriarcas e dos bispos. Elas são, de um outro modo, ainda maiores que os homens na Igreja de Cristo. Apesar de caminharem, anónimas, atrás.
No dia seguinte, acordei cedo. O mar estava azul. Puro. Esperei que me viessem buscar. Às nove horas em ponto, chegou um diácono, com um táxi que nos esperava à porta do hotel.
- Hoje vamos visitar o Mosteiro de Zoodochos Pighi - disse o diácono.
Fiquei confuso.
- O patriarca disse-me que íamos hoje ambos a Halki - respondi.
- Ah, sim! Esqueci-me de lhe dizer. O patriarca pede desculpa. Está muito ocupado. Irá consigo a Halki outro dia. Hoje vamos a Zoodochos Pighi... É um dos santuários mais sagrados da nossa Igreja.
O diácono Zósimo escreveu: "Junto das portas de Studios, fora da cidade, encontra-se um poço chamado Pighi. Contém água da Virgem Puríssima e cura muitas doenças." (23) "A igreja de outrora já não existe. Mas os peregrinos e os doentes continuam a vir beber como faziam quando já só havia ruínas." (24)
Estava contente por ir a Pighi, é claro. Pensava que iria no dia seguinte, com o patriarca, a Halki. Mas no dia seguinte aconteceu a mesma coisa. E no terceiro dia, o mesmo... E nunca pude ir com o patriarca ecuménico de barco, pelo Mármara, à ilha onde chegou a criança Arístocles Spyru e donde saiu o monge Athenagoras. O patriarca nunca mais me falou de Halki.
Compreendi. Não fiz pergunta alguma. A ninguém. Para que serviria uma resposta? Ele disse-me no primeiro dia: para que serve interrogar-me? Vós recebestes de Deus o poder de sondar os corações. A verdade toda a gente a conhece. O patriarca ecuménico - o meu santo patriarca - está prisioneiro na sua residência do Fanar, na margem do Chifre de Ouro. Dirá sempre que é livre. E ninguém tem alguma prova de que está prisioneiro. A verdade - a que se pode verificar - é que o patriarca - por ser o chefe do rum millet, o chefe da nação cristã, e por causa da alta estima e do respeito que inspira, por causa do prémio que oferecem pela sua segurança e bem-estar-, o patriarca, como todos os reis, como todos os imperadores, como todos os que têm residência fixa,
* (23) Diácono Zósimo em: B. de Khitrowo: Itinerários Russos no Oriente, Genebra, 1889, p. 206.
(24) P. Gilles: De Topographia Constantinopolos et de illius antiquitatibus..., Lião, 1561, p. 4, 7. *
como todos os malfeitores, como todos os presos, como todos os chefes de Estado e como todas as grandes personalidades, tem de prevenir a polícia antes de se deslocar, para ela organizar o serviço de segurança durante a viagem. As coisas passam-se sempre assim quando o patriarca sai dos seus dois aposentos e vai a uma igreja de Constantinopla. Ou quando vai rezar por um doente. O regime é idêntico para os imperadores, os presidentes de Estados e para os infractores. Todos são seguidos e guardados pela polícia. Em todas as deslocações. É certo que, como ortodoxos, como cristãos, nos podemos orgulhar por a República Turca tratar o chefe da nossa Santa Igreja como um rei e um imperador. Mas é a mesma polícia que escolta os reis e os prisioneiros. Athenagoras é escoltado pela polícia por ser igual a um rei ou por ser prisioneiro? A verdade é que o patriarca não pôde ir comigo, no furgão flutuante, no cargueiro de gado, mercadorias e passageiros, na haraba, a Halki. A resposta ao seu aviso de deslocação não chegou a tempo? Perdeu-se pelo caminho? A polícia pensava e sabia que o patriarca seria assassinado, que correria perigo se fosse a Halki? O patriarca não pôde ir a Halki. Os pormenores não interessam. O patriarca ecuménico está prisioneiro. Pobre chefe do maior proletariado do mundo, do povo cristão ortodoxo! Mas partilhar a sorte dos seus fiéis é o destino de todos os chefes. Os duzentos milhões de ortodoxos encontram-se, certamente para seu bem, igualmente encerrados entre as fronteiras de arame farpado das repúblicas penitenciárias populares do Leste, na Rússia, na Roménia, na Bulgária, na Hungria, na Checoslováquia, na Polónia, na Jugoslávia, na Finlândia, na China, na Albânia, na Lituânia, na Estónia, na Letónia, na Geórgia, na Ucrânia... E até os ícones da Mãe de Deus estão proibidos de sair das igrejas. É lógico que o patriarca também não possa sair.
Que seja também prisioneiro. Como todos os cristãos ortodoxos da Terra, que, se não estão prisioneiros, estão no exílio. Ele é um pastor. E o pastor sofre as mesmas intempéries, ao vento, à chuva, à neve, nas tempestades, ao lado do seu rebanho... Ao chegar ao Santo Mosteiro da Virgem das Fontes, a Zoodochos Pighi, deixei tombar uma lágrima na água benta e miraculosa da fonte. Uma lágrima pelo meu patriarca. Por Athenagoras, o patriarca do maior proletariado mundial do século xx: os ortodoxos. Que estão privados dos seus direitos civis por acreditarem em Cristo.
JEJUAR com O PATRIARCA ECUMÉNICO EM CONSTANTINOPLA
O meu primeiro encontro com o patriarca ecuménico foi no dia 1º de Novembro de 1967, na Suíça. Na Festa de Todos os Santos. O segundo encontro deu-se a 16 de Junho de 1968, Festa de Todos os Santos no calendário ortodoxo. Dois encontros. Ambos no Dia de Todos os Santos. É de facto a nossa festa, dos duzentos milhões de ortodoxos, suportando todos o cativeiro e as cadeias do exílio neste século. Porque nós estamos privados dos nossos direitos por causa da nossa fé. É a nossa festa, santos ou não santos, nós, todos os ortodoxos da Terra, suportamos as cadeias, o cativeiro e o exílio por Cristo. Portanto, é a nossa festa. Todos os Santos. Aos quais se juntam os duzentos milhões de ortodoxos. Que vivem em carne e osso e que sofrem. Sobre o planeta. O Dia de Todos os Santos também é o início do jejum dos santos apóstolos. E a minha estada em Constantinopla, em casa do patriarca ecuménico, coincidiu com a duração do jejum. Para nós, o jejum dos santos apóstolos começa no Dia de Todos os Santos, no primeiro domingo depois do Pentecostes. É um jejum de duração variável. Depende da data da Páscoa. Porque a festa dos santos apóstolos, portanto o fim do jejum, é sempre a 29 de Junho. Jejuando para a festa dos apóstolos, nós pensamos em André, o Protokletos, o primeiro chamado.
Aquele que fundou o primeiro bispado de Constantinopla. Três séculos antes de Constantino. Quando a cidade se chamava Bizâncio. André, esse, jejuava antes de conhecer Cristo. Porque era discípulo de São João Baptista, aquele a quem chamaram o Prodomos. O Precursor. Aquele que se alimentava de saltões. São João Baptista é, como Melquisedech e o profeta Elias, o fundador da vida monacal. Monge e jejum são quase sinónimos. Os monges jejuam durante toda a vida. Porque procuram viver na Terra como os anjos. E os anjos não precisam de alimento. (1) Os grandes ermitas nunca comem carne. Porque a regra monástica corresponde à vida do Paraíso, onde o homem, antes da queda, não comia carne. Foi depois do Dilúvio, por causa da fraqueza dos homens, que Deus permitiu a Noé comer carne pela primeira vez. Mas como os monges são os imitadores dos anjos, nunca comem carne. (2)
Todos os actos importantes na vida de um cristão começam pelo jejum. Jejua-se antes da comunhão, antes do baptismo, antes da ordenação. Jejua-se à quarta-feira, dia em que Judas vendeu Cristo, e à sexta-feira, dia da Paixão de Cristo. Jejua-se antes das grandes festas, Páscoa, Natal, Epifania, Anunciação da Virgem Santíssima e antes da festa dos santos apóstolos. O jejum é a imitação da vida de Cristo e dos anjos. Moisés jejuou quarenta dias no Sinai. (3) O profeta Elias jejuou também. (4) Cristo igualmente jejuou antes de começar as suas prédicas. (5)
* (1) São Simeão de Tessalonica, P. G., 155 - Resposta à pergunta, 54.
(2) Si.aretz Paissy do Mosteiro Neamlz, na Moldávia: Cartas aos monges que estudam na Universidade de Bucareste em: Serge TchetverikoC: A vida de Staretz Paissy, Neamtz, 1943, p. 302.
(3) Êxodo, 24, 18.
(4) Reis, XIX, 8.
(5) São Lucas, IV, 1, 2. *
Jejuarei com o patriarca ecuménico. Isso enche-me de alegria. Porque aquele que jejua eleva-se acima das coisas da Terra e, em certa medida, torna-se semelhante ao homem antes do pecado. A primeira vez que encontrei o patriarca foi em Biirgenstock, na Suíça, no alto de uma montanha. Em baixo era o lago dos Quatro Cantões. O céu, reflectido no lago, parecia dois céus: o do Alto e o que se reflectia no lago com todas as estrelas. Era um belo local de encontro. Entre dois céus, no alto de uma montanha. Agora, encontro Athenagoras durante o jejum dos santos apóstolos. Portanto, é um encontro ainda mais alto do que aquele que se deu no alto da montanha. Porque quando jejuamos somos elevados a uma altura que ultrapassa todas as montanhas da Terra. O jejum coloca o homem à altura dos anjos. E apesar das imperfeições, graças ao jejum, podia aproximar-me do patriarca. Tinha mais probabilidades de penetrar no Céu dele, na sua vida de monge, na sua existência angélica. Durante os dias de jejum, qualquer homem, por menos espiritual que seja, afasta-se da Terra. Aproxima-se dos anjos. Como se as leis da gravitação terrestre fossem abolidas. A vida é vivida em altura. Mais intensamente. Mais quente. Mais humanamente, porque o destino do homem é em altura.
É com emoção que começo a jejuar com o patriarca. E o jejum começa no mesmo dia da minha chegada ao patriarcado, em Constantinopla.
Além da escada interior, com degraus de madeira, que conduz às celas do patriarca, também há uma escada exterior, de cimento. Começa no jardim de flores campestres. É uma escada muito feia. Como as escadas de serviço de alguns imóveis modernos dos arredores. O patriarca toma a escada exterior. Sobe mais depressa que todos nós. Quando se esquece de apertar a mão e dar a bênção a alguém, volta a descer. com um passo muito jovem. E volta a subir a escada. Sem ficar ofegante. Nunca. A ascensão é o seu prazer. E vendo-o subir a escada de cimento que vai do jardim às suas celas, não podemos deixar de pensar na escada que conduz ao Céu. Seguimo-lo a uns degraus de distância, atrás dele. É segunda-feira, 17 de Junho de 1968. Primeiro dia de jejum. Primeiro da minha estada junto do patriarca.
Dimítrio Orphanopoulos, que desempenha as funções de camareiro e sacristão-mor, vai à nossa frente. Introduz-nos solenemente no gabinete do patriarca. Estamos de novo entre a Mãe de Deus e o pai dos Turcos, Ataturk. Sentamo-nos nas cadeiras de pau. O patriarca chega. Senta-se em frente de Ataturk. E em frente dos seus visitantes. Trazem-nos copos de água fresca. E compota de açúcar branco como o leite. É o célebre serbet. Imaculado como a neve. Branco como a barba e os cabelos do patriarca.
O patriarca conversa com alguns dos doze convidados que estão em sua casa. Chama-os pelos seus nomes. Todos chegaram hoje, pela primeira vez, de visita. E o patriarca reteve-os à sua mesa. Porque todos os dias, das centenas de visitantes que chegam ao patriarcado, retém uma dúzia à sua mesa. E agora conversa com eles. Pede-lhes notícias das suas cidades, dos seus países, das suas famílias. É uma conversa estritamente familiar. Nós, os filhos, falamos com o patriarca, com o pai dos nossos pais. Athenagoras dirige-se a cada um na sua própria língua. Isso é maravilhoso. Porque para o patriarca ecuménico todas as pátrias são a sua e todas as línguas da Terra são a sua língua. Em redor do patriarca, entre os convidados deste dia, há dois ingleses - um clérigo e um leigo-, comerciantes e industriais americanos, dois italianos, dois jovens padres do Vaticano, sul-americanos, um húngaro...
Aqui todos nos sentimos em casa, na nossa pátria, em casa do nosso primeiro pai, em casa do pai dos nossos pais e das nossas pátrias, o patriarca. O facto de Athenagoras ser muito idoso e ser muito jovem de espírito e de corpo, apesar da sua idade, ajuda-nos a aproximar-nos dele com mais confiança. Porque um patriarca deve ser ao mesmo tempo muito velho e muito jovem. Todos os patriarcas viveram séculos. Matusalém atingiu quase o milénio. Outrora, aos cem anos, um patriarca estava no começo da sua vida. Athenagoras, quando nos fala, dá a impressão de estar no princípio da sua vida. Como Noé, que aos seiscentos e um anos de idade, ao sair da arca que o transportou sobre as águas do Dilúvio, começou a cavar a terra e a plantar vinha para ter vinho à sua mesa. Athenagoras dá a mesma impressão. Está pronto a plantar macieiras para ter, mais tarde, bons frutos, como se faz na mocidade.
De súbito, ergue-se. Agora temos a impressão de que vai bater com a cabeça, não no tecto caiado, mas no Céu... Pega-me no braço e abre o cortejo encostado a mim. Tenho de me chegar bem para ele, porque o corredor que vai do seu gabinete à trapeza, à sala de jantar, é muito estreito. É um corredor com chão de madeira encerada, por onde só pode passar uma pessoa. Reparo que, apesar da sua grande estatura e da sua força, o patriarca é muito magro. Não é mais gordo do que eu. Porque, pegando-me na mão, percorremos, lado a lado, a estreita passagem. Os outros convidados seguem-nos, um a um. À nossa frente, muito solene, como é próprio das grandes cerimónias herdadas da corte imperial e patriarcal de Bizâncio, caminha o camareiro-mor, Dimítrio Orphanopoulos.
Entramos na trapeza. A sala de jantar do patriarcado. Parece uma grande sala de aula, no meio da qual se colocou uma mesa com doze talheres sobre a toalha branca. Pratos baratos. Muito limpos. Um milionário americano, um industrial europeu, um prelado católico ali vão comer sem constrangimento. Porque se tudo é extremamente modesto, muito modesto, tudo é perfeito. E muito limpo. Os garfos, as colheres não são de prata maciça. Mas são de um metal neutro. Os pratos não são de porcelana. Os pobres também não ficam chocados com o luxo. com as pratas. É quase como em suas casas. E os ricos também não se sentem deslocados. Porque os secretários, os aprodes, os funcionários puseram casacos brancos e servem com a mestria dos grandes chefes de mesa. É que o patriarca possui ao todo umas cinquenta pessoas. Todos os que não são turcos de pai para filho são expulsos da Turquia. Por isso há muito pouco pessoal. E as mesmas pessoas têm de desempenhar várias funções. Durante a manhã o mesmo homem é funcionário e escreve à máquina ou redige cartas. Ao meio-dia sai do escritório e veste o casaco branco para servir à mesa. À tarde, veste a sotaina e celebra o ofício das Vésperas como diácono. Ou vai à cidade fazer compras como criado de recados. Ou dá aulas como professor numa escola cristã.
Nunca vi tanta humildade como no pessoal do patriarcado. Em parte alguma. Aqui fazem-se todos os trabalhos, desde os mais humildes aos mais sagrados, com a mesma alegria no coração. Porque sabem que estão num recinto sagrado. E são cristãos. Portanto, em estado de sítio. E todo o trabalho é pelo Rei dos Reis, por Cristo.
O ecónomo-mor canta o Pai Nosso. Estamos todos de pé. O patriarca abençoa a mesa. Sentamo-nos em silêncio. É um silêncio como o do campo. Como no cimo das montanhas. Depois, o patriarca fala com todos os convidados, um por um. Retoma com cada um a conversa interrompida no seu gabinete. Está senhor do nome de cada um. A sua memória é espantosa. Conhece pormenores pasmosos das cidades, dos países e dos problemas que interessam a cada convidado. Chega a citar os nomes das ruas das suas cidades, quer sejam do Norte da América, do Equador ou da Ásia. Sabe todos os dias tudo quanto se escreve nos jornais turcos, gregos, ingleses, alemães, americanos e franceses. A leitura ocupa um grande lugar na sua vida. Lê os livros logo que saem do prelo. Os livros de toda a parte.
Todos os seus convidados esperam com impaciência, com curiosidade, para saber a opinião do patriarca ecuménico sobre os grandes problemas que perturbam a História e a vida dos homens nos diversos países do planeta. Porque ele conhece-os. Todos. Em pormenor. Mas a espera é vã. A atitude do patriarca ecuménico sobre as guerras, as revoluções, o comunismo, o capitalismo é a atitude do Evangelho. A sua opinião é a de Cristo. Não tem uma vida que lhe pertença exclusivamente, uma vida sua. É o auge da perfeição cristã poder dizer: "Não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim..." E Athenagoras pode dizer isto, com certeza.
Ao mesmo tempo ouve com enorme interesse, com atenção infantil, a opinião de cada um sobre cada coisa. O patriarca sabe que o homem é uma criatura livre. E todos os homens têm, como os anjos, a faculdade de raciocinar e de escolher. Todas as opiniões dos homens sobre todas as coisas o interessam. Mas ele está acima das opiniões e das coisas. É certo que até os santos têm opiniões diferentes sobre as coisas da Terra. Pode-se ser santo, verdadeiramente santo, e ter uma opinião política, económica, sociológica, diferente da opinião de outro santo. Mas isso não é importante. Não são as opiniões políticas, sociológicas, científicas dos santos que fazem a sua santidade. Tudo quanto é do mundo está sujeito a mudar. E as opiniões sobre as coisas do mundo também mudam.
Só há uma coisa que não está sujeita a qualquer alteração: é Deus. É estável e eterno. Por isso, a Igreja Ortodoxa aceita, escuta, interessa-se e não condena nenhuma opinião sobre coisa alguma do mundo. A Igreja não proclama opiniões e dogmas, leis e directrizes imutáveis sobre as coisas que mudam. Todo o cristão é livre de ter a opinião que quiser sobre as coisas mutáveis. Quer sejam do domínio da física, da sociologia, da política. As opiniões do mundo sobre o mundo nunca são proclamadas, transformadas em dogmas da Igreja pela Igreja. Porque a Igreja não pertence ao mundo. Não se guia pelas leis do mundo, mas pelas leis de Deus. Que é eterno. Imutável. E as suas leis não mudam. Acima do mundo e do tempo. Todos os cristãos, no mundo, podem ter a opinião que quiserem sobre o mundo. Tudo o que é mortal, mutável não é das atribuições da Igreja. Porque a Igreja não está sujeita às leis do tempo, do mundo, da História, do progresso. A Igreja é a secretaria extraterrestre de Deus na Terra, da Igreja que não é deste mundo. Não se orienta pelas leis do mundo, mas do Céu. Orienta-se pelas leis de Deus, que se aplicam às coisas de Deus. Eternas. Que continuarão a existir quando a Lua já não existir, nem o Sol. A opinião da Igreja sobre a Lua e o Sol? A Igreja não tem de se preocupar com a Lua e o Sol porque está na Terra para tratar daquilo que não muda. E mesmo as opiniões dos santos sobre a Lua e o Sol, a vida e tudo o que é criado, não passam de opiniões que pertencem à Terra, ao mundo, ao mutável. Não à Igreja. Como disse São Gregório de Palamas: "Em tais matérias todos podem ter a sua opinião... Acontece o mesmo com todos os problemas deste género sobre os quais o Espírito Santo não nos concedeu revelações claras. Porque o Espírito Santo só ensina a conhecer a verdade que penetra todas as coisas. Assim, mesmo que tenhas descoberto que, em determinados pontos, estamos em contradição com o divino e sábio São Gregório de Nissa (ou outros santos), não devemos ser atacados por isso." (6)
Portanto, é prudente que, quando se vai visitar e ouvir um patriarca, ele se limite a falar de coisas essenciais. Das que não mudam. Para não causar confusão no espírito daqueles que o escutam. Porque, sobre as coisas do mundo e da História, os bispos, os santos só podem ter opiniões diferentes, mutáveis. Como todos os homens. Mas, na Igreja, devem limitar-se às verdades que não mudam. Quando falam em nome da Igreja. Deus fez as leis da natureza. E, se a Terra gira, Deus pode fazer com que não gire. Portanto, não devemos dizer verdades que julgamos imutáveis sobre coisas mutáveis.
A Igreja é a casa do Criador e não a casa das criaturas. Tudo o que é da criatura muda. Evolui. Só o Criador e aquilo que é estabelecido pelo Criador é eterno.
Uma coisa que não muda, porque foi revelada pelo Espírito Santo, é o jejum. Cristo jejuou. Os apóstolos jejuaram. E eu estou agora à mesa com o patriarca. No primeiro dia de jejum.
No meu presbitério natal, na vertente oriental dos Cárpatos, todos os dias durante o jejum via a mãe presbítera, minha mãe, desesperada. Nós éramos terrivelmente pobres. Nunca tínhamos comida suficiente para toda a família. Passávamos fome. Continuamente. Mas em dia de jejum era pior ainda. Porque jejuar, na expressão rude da mãe presbítera, é um luxo. O jejum é fácil para os ricos. Mas é quase interdito para as famílias pobres. No campo arranjam-se uns ovos, queijo, leite e um pouco de carne. Durante o jejum temos de suprimir tudo isso. Não resta quase nada para
* (6) São Gregório de Palamas: Tríade, II, 2, cap. 30. *
meter à boca. É certo que nós respeitámos sempre todos os jejuns. Mas eram jejuns muito duros. Mesmo quando eram leves no calendário. Só podíamos comer legumes, frutos e sementes secas. Era o regime de xerofagia, que só os grandes ascetas do deserto praticavam. E São João Baptista. E Santo André. Por isso, comecei a jejuar com o patriarca com grande emoção. Porque ele também é pobre. Apesar de ser patriarca ecuménico. Ainda por cima tem convidados à sua mesa. Uma dúzia quase todos os dias. Como Cristo. Perguntava a mim mesmo como faria ele para conseguir oferecer esta alimentação de luxo - a alimentação do jejum, sem ovos, queijo, carne, leite, gordura e azeite - aos seus convidados.
Encontrei a pessoa encarregada da mesa do patriarca ecuménico. Era um problema que me atormentava. Nós somos os discípulos de Santo André. Nós, os ortodoxos, trazemos a marca de Santo André e do seu mestre São João Baptista na nossa vida espiritual. Mesmo que seja pueril, ao saber que o patriarca Athenagoras tinha convidados à sua mesa todos os dias, perguntei, como Santo André: "Senhor, há aqui um rapaz que tem cinco pães de cevada e dois peixes, mas como poderemos alimentar com isso uma multidão?" (7)
com os seus pobres pães de cevada, os seus magros meios, como pode o patriarca alimentar convenientemente os seus convidados? E sobretudo como pode dar-lhes de comer convenientemente em dias de jejum?
Fiz esta pergunta ao homem encarregado da sua mesa.
- Sim. Sou eu que faço a ementa da mesa do patriarca - disse-me o padre Panaiyotis Tzinaras.
Julgo que tenha cerca de cinquenta anos. Faz parte desses trezentos mil gregos que se encontram
* (7) São João, 6, 9. *
ainda em Constantinopla. Por ter nascido cidadão turco. Seu pai era cidadão turco. Todos os seus antepassados fizeram parte do rum millet
- do povo cristão-, do fermento cristão, do milho santo. É padre. Adido ao patriarcado ecuménico. Fala francês com timidez. Para não dar erros. E cora depois de cada frase. Pergunta-me se pronunciou bem ou mal.
Vi-o em frente do patriarca. É padre há muito tempo. Tenho a certeza. Vê-se. Porque, ainda que saia vestido à civil, reconhece-se nele um padre. Aquele que tem o Espírito Santo está marcado. Caminha de outra maneira. Come de outra maneira. Anda no mundo como toda a gente, mas é diferente de toda a gente. Porque rege a sua vida segundo as leis imutáveis, segundo as leis de Deus, do Céu e da Igreja. Depois, tem um dom que todos os padres possuem verdadeiramente e que o faz sabedor, bom e caridoso. Assim como se distingue um operário manual de um professor ou de um sábio, também se reconhece um padre entre os outros homens. E Panaiyotis Tzinaras é padre.
- Sou padre há muito pouco tempo... Há uns meses... Mas fui diácono durante dezoito anos.
Sabia que expulsavam os padres da patriarcal. E que não havia nenhum padre para celebrar, todos os dias, a santa e divina liturgia na catedral de São Jorge. Aqui, desde Santo André, há mil novecentos e cinquenta anos, celebra-se todos os dias a liturgia. Na igreja episcopal, fundada por volta do ano 30. E desde que os Gregos e os Turcos se preparam para a luta, desde que se massacram os Turcos em Chipre, em Constantinopla, os Turcos tomam medidas de represália contra o patriarca e os seus padres. Expulsam-nos da Turquia. Assim, um dia, deixou de haver um único padre para celebrar a liturgia. Porque os padres tinham sido expulsos durante a noite.
- O patriarca pediu-me para receber o sacerdócio... Imediatamente. Ordenou-me padre umas horas depois. E celebrei a liturgia.
Corou como uma menina. E acrescentou:
- Aceitei, é claro, porque era o Panaghiotos
- Todos os Santos - que mo pedia. Mas não sou nada. Absolutamente nada. Não sou teólogo nem pastor. Nem nada. Sou músico...
Ao dizer a palavra músico ilumina-se. Os seus olhos, as janelas da sua alma, as lanternas do seu corpo, acendem-se e brilham como estrelas. Está deslumbrante.
- Isso, sim. Sou músico...
Informa-me de que estudou música religiosa e música laica, música clássica e música turca... Toda a música oriental e ocidental. Frequentou os conservatórios turcos e os conservatórios europeus de Istambul. Durante dezoito anos... Apenas música. A sua vida é a música.
E como estava na igreja, ficou como diácono. Porque os diáconos são os cantores da igreja. Os diáconos são sempre escolhidos entre as mais lindas vozes que existem no país. E o padre Tzinaras era um bom diácono. Servia Deus a cantar.
- Padre, sois vós que fazeis as ementas do patriarca?
- Sou - responde com orgulho.
Estava muito satisfeito com o meu patriarca. Porque é uma audácia sublime escolher um músico para fazer ementas. Um músico. Aquele que estuda música durante dezoito anos pensa e realiza tudo segundo as leis da harmonia e da música. E nada pode ser mais harmonioso que as coisas feitas segundo as leis musicais. Nunca algum rei do mundo se lembrou de encarregar um músico de fazer as suas ementas. É uma ideia genial.
- Devem ser formidáveis, harmoniosas, as suas ementas, não é verdade, padre? Pratos harmonizados como as notas na pauta...
Baixa os olhos. Cora. Quer-me contradizer. Depois diz:
- Tenho alguma experiência em matéria de ementas. Mesmo uma grande experiência. Durante dezoito anos, durante todo o tempo em que fui diácono, tive a meu cargo a cantina dos pobres em Constantinopla. Oh! Foi uma dura experiência!... Muito, muito dura!
E quando o padre Tzinaras diz isto, oiço, do fundo dos tempos, o queixume do nosso apóstolo Santo André apresentando-se a Cristo para dizer: "Há aqui um rapaz com cinco pães de cevada e dois peixes." Mas que é isso para tanta gente? (8)
O pobre diácono Panaiyotis Tzinaras durante dezoito anos disse ao Senhor, exactamente como André, o primeiro apóstolo de Constantinopla: "Senhor, aqui há tão pouca comida e tanta gente com fome..." Porque o número de pobres, de famintos, era enorme. E os recursos do diácono músico que alimentava os pobres, todos os dias, eram muito, muito pequenos. Tinha de mendigar. Para comprar alimentos para os pobres. Tinha de os ouvir, de os consolar, com palavras. Porque o pão e a sopa eram sempre insuficientes. E só lhes podia dar boas palavras. Para os fazer esquecer a fome.
Olho para a sotaina do padre Tzinaras. Meu pai é padre. E, em casa de meu pai, vi uma sotaina que foi usada durante vinte anos, todos os dias. Pensava que não havia na Terra uma sotaina mais gasta que a de meu pai. Usou-a, sem interrupção, desde a sua ordenação, tanto no Verão como no Inverno. Nos trabalhos do campo, mesmo quando andava descalço. Como lenhador, na floresta. A tratar dos animais no estábulo... Sempre a mesma sotaina. Estava azul, preta e verde, de todas as cores e de todas as tonalidades da pobreza.
* (8) São João, 6, 9. *
Em 1942, vi meu pai pela última vez. A sotaina aguentava-se realmente por milagre no seu corpo. Estava toda remendada. Era um farrapo, uma infinidade de farrapos.
Desde 1942 nunca mais ouvi falar dele, de meu pai. Durante vinte e três anos foi um silêncio mortal. Estava entre os vinte milhões de romenos cativos na sua pátria, transformada em república penitenciária. De onde não se pode escrever. Nem receber cartas. Pensava que tinha morrido. Enterrado com a sotaina em farrapos.
Mas Deus faz bem todas as coisas. A Roménia estava ocupada desde 23 de Agosto de 1944 pelas tropas soviéticas. E um dos soldados comunistas da ocupação vendeu o capote a meu pai. Meu pai tirou-lhe as platinas e os botões e, com casca de carvalho, tingiu de preto o capote do soldado da ocupação. Transformou-o numa sotaina. É a mais bela sotaina jamais usada por um padre na Terra. E é o melhor destino que se pode dar a um capote de soldado soviético de ocupação.
Tenho uma fotografia de meu pai com esta santa sotaina.
Mas pensava que a sotaina de meu pai era a mais miserável da Terra. Uma sotaina de padre proletário. E eis que o padre Panaiyotis, o padre da catedral de Constantinopla, o padre da sé do patriarca ecuménico, traz uma sotaina ainda mais usada que a de meu pai.
É uma coisa inimaginável. Primeiro, não pensava que houvesse uma sotaina mais miserável que a de meu pai. Depois, é inimaginável que esta sotaina seja a do padre da primeira igreja dos ortodoxos. Já não temos Santa Sofia como catedral. Onde havia um milhar de padres e de clérigos. Mas a igreja do patriarca ecuménico, mesmo estando situada no Fanar e mesmo tendo um único padre, ordenado ad hoc, continua a ser a Grande Igreja de Cristo na Terra. e o padre que oficia na Grande Igreja de Cristo na Terra tem uma sotaina mais miserável que a de meu pai, que é um padre de proletários, um presbítero de prisioneiros e escravos...
O facto é ainda mais inacreditável por outra razão. Em Constantinopla, os padres não têm o direito de sair de sotaina e andar com ela um metro sequer. São presos. Não estragam as sotainas porque não as podem usar na rua. Além disso, em Constantinopla, estamos numa cidade. Um padre não trata de animais, não faz trabalhos campestres, não vai para os bosques cortar árvores com a sotaina vestida. Numa cidade, um padre não pode estragar a sotaina como um padre proletário e trabalhador manual de uma aldeia serrana, como meu pai. Então, como é possível que a sotaina do padre Panaiyotis Tzinaras seja ainda mais miserável, mais gasta, mais rota que a de meu pai?
Mesmo que o padre Tzinaras a tenha usado, como diácono, na cozinha e nas cantinas populares onde preparava e servia a comida aos pobres, não podia pô-la neste estado. Não. E subitamente apercebo-me de que foi usada por gerações de padres. É uma sotaina que vestiu várias gerações de padres da Grande Igreja. E o último, aquele que foi expulso durante a noite, deixou-a na sé patriarcal, na Grande Igreja. E no dia da ordenação, o padre Tzinaras vestiu-a. Para ele era nova. Mas na realidade a sotaina vestiu durante toda a vida vários padres que morreram uns atrás dos outros. Há muito tempo. Excepto o último, que está no exílio. Expulso. E que a deixou ao padre Tzinaras, assim como a recebera, deixada por aqueles que o precederam. E que estão no Céu.
Ao ver a sotaina do padre Panaiyotis Tzinaras, reparei que não há ilustração mais eloquente da vida dos ortodoxos na Terra, em 1968, que a vida deste padre.
Para descrever o patriarcado e a ortodoxia, não há ilustração mais eloquente que a pessoa do reverendo padre Panaiyotis, cura da Santa e Grande Igreja de Cristo, a igreja do patriarca ecuménico de Constantinopla. Aproximei-me dele. Porque nele posso ver tudo quanto o patriarca me diz.
- O patriarca tem convidados todos os dias, não é verdade? - perguntei.
- Todos os dias. Chegam às centenas. E todos os dias o patriarca escolhe, de entre eles, doze pessoas para partilharem da sua mesa.
- Sois vós quem faz as ementas? Sozinho ou consultando o patriarca?
- com certeza. Todas as manhãs pergunto ao patriarca se a ementa que arranjei lhe agrada
- disse o padre Tzinaras. - E o patriarca altera sempre qualquer coisa. Sempre. Não sou muito bom compositor de ementas... Sou melhor a compor música...
Claro, estava habituado a fazer o prato único, na cantina dos pobres, para o distribuir gratuitamente. Como fez durante dezoito anos. Aqui, tem de fazer a ementa para uma mesa onde há ricos e pobres, nórdicos e gente dos trópicos, os mais civilizados ao lado dos africanos, dos asiáticos e dos sul-americanos. À mesa do patriarca todos se devem sentir como em sua casa. É por isso mesmo que se chama patriarca. O pai e o primeiro. E todos os dias o patriarca realiza este milagre. Porque, à sua mesa, o rico e o pobre, o civilizado e o selvagem, o sábio e o ignorante, o guloso e o asceta, o padre e o laico, o príncipe da Igreja, o protestante e o muçulmano, todos estão à vontade. Como a uma mesa de família. Comendo os pratos que habitualmente se comem em família. Aqui estamos em volta do patriarca como irmãos e iguais. Cada um fala a língua do vizinho. Como no Pentecostes. E é o patriarca que dirige tudo isto. Claro que o patriarca não podia arranjar melhor compositor de ementas para refeições de harmonia do que um compositor musical. E eis como a expulsão do padre ecónomo encarregado da mesa foi reparada. Ela era a favor da Igreja.
A composição das ementas é muito difícil durante os dias de jejum. E durante a Quaresma. Claro, o jejum dos santos apóstolos, aquele que começa este ano na segunda-feira, 17 de Junho, e termina a 29 de Junho, é um dos jejuns menos severos do calendário. Mas apesar da sua clemência em relação às outras Quaresmas é proibido comer carne, ovos e queijo. Segunda, quarta e sexta-feira, além da carne de boi, dos ovos e do queijo, também são proibidos o azeite e o vinho. O peixe é igualmente proibido, com excepção dos dias de festa. Mas se a festa for numa quarta ou sexta-feira, até o peixe é proibido.
O jejum é um dos actos mais sagrados da Igreja. Tão sagrado que o sexagésimo nono cânone dos apóstolos excomunga e interdita um padre, um diácono ou um clérigo que tenha comido carne, ovos, queijo ou leite durante os dias de jejum. A tradição recomenda aos monges nunca comer carne. E os monges ortodoxos não comem carne. Nunca na sua vida.
O patriarca ecuménico e o seu padre músico, compositor de música, têm de compor as ementas de modo a que, tanto os pobres como aqueles que comem nos hotéis, os homens dos países quentes como os das regiões geladas, achem a comida boa, mesmo durante o jejum. E que partam em paz e reconfortados. E aqueles que são ascetas e se sentam ao lado dos pobres sempre famintos não se sintam chocados uns com os outros. O patriarca observa e faz com que tudo seja conforme o gosto de cada um. Que ele adivinha. Porque ele trata de todos. Não lhe disse que não bebia vinho. Mas vi, várias vezes, que detinha o funcionário de casaco branco com um olhar, convidando-o a deitar-me água. E aqueles que têm sede encontram sempre o copo cheio.
Deve ser difícil a composição das ementas...
Os hotéis conhecem a sua clientela e os albergues dos pobres conhecem o paladar dos pobres... Todos os restaurantes possuem uma clientela especial. Aqui estão todos misturados. Iguais uns aos outros. E, pelo menos enquanto as pessoas estão à mesa do patriarca ecuménico, ninguém deve aperceber-se das diferenças de classe, de raça, de religião, de confissão, de idade. Aqui, devemos estar como no Céu, despojados de todo o supérfluo e todos iguais.
O patriarca é um monge. A sala de jantar é uma trapeza. Uma sala de jantar monástica, onde não entra nenhuma mulher. Mas como as mulheres também precisam de comer, há sempre uma sala de jantar no gabinete do diácono. Põe-se uma toalha branca e os pratos em cima da secretária e ali comem as mulheres, as filhas e as irmãs dos que estão à mesa do patriarca. E para não estarem sozinhas é o padre Tzinaras que preside à mesa e dá a bênção nas refeições das mulheres. E é ele que tem de conversar com todas as mulheres. De as pôr à vontade, em casa do patriarca, seu pai.
- Isso é o mais difícil de tudo - diz-me o padre Panaiyotis.
- Porquê?
- O patriarca fala todas as línguas - diz o padre Panaiyotis. - Mas eu não sou ninguém... e tenho de falar também. Tenho a ordem e a missão de falar com todas as mulheres. E há italianas que só falam italiano, ao lado de francesas que só falam francês, gregas, alemãs, espanholas. De todas as nacionalidades...
E o pobre padre Tzinaras tem de conversar com todas elas. É difícil. Mas ele esforça-se. E espera conseguir.
- Como faz para o conseguir? - perguntei-lhe.
- Oh! Não sou capaz, como o patriarca, de falar com todos os povos na sua língua. Mas faço esforços para conseguir mais e melhor cada dia...
E contou-me o seu dia... É o dia do padre da catedral patriarcal, do patriarcado ecuménico de Constantinopla, que é a primeira igreja da Terra.
O padre Panaiyotis Tzinaras levanta-se às quatro horas da manhã.
- Porquê às quatro horas?
- Porque vivo num bairro onde só há água corrente durante duas ou três horas. De manhã. Se não me levantar às quatro horas, não posso tomar um banho de chuveiro...
Na verdade, reparei na sua limpeza. Como o patriarca ecuménico, que resplandece de limpeza. Nesta cidade, onde tudo é sujo, em ruínas e apodrecimento. Para andar limpo, o padre Panaiyotis tem de se levantar às quatro horas. Porque, depois disso, já não tem água suficiente para se lavar. Para estar limpo como convém a um padre que tem de se apresentar perante Deus, no altar, e perante o patriarca ecuménico. Perante os dois pais: o do Céu e o da Terra.
Em seguida, anda cerca de hora e meia de barco, entre outros meios de comunicação colectivos, para chegar à patriarcal, fazer as compras e as ementas. Depois, vai à igreja celebrar as Matinas- o orthros - e a divina liturgia. O ofício divino dura toda a manhã. Em seguida, tem de presidir à mesa das mulheres. Depois, tem a oração da tarde, as Vésperas. Em seguida, ou entretanto, tem de acompanhar os visitantes pela cidade, É sempre o padre Tzinaras que tem de ir a Santa Sofia, à Igreja dos Santos Apóstolos, à Zoodochos Pighi. É ele que tem de me vir buscar. Porque não há mais padres. Depois, como o dia acaba, vai para o curso de línguas estrangeiras. Estuda alemão, italiano, espanhol e aperfeiçoa o inglês e o francês. Porque já fala turco e greco... Em seguida, chega a casa. Mas é já muito tarde.
Nunca vi um homem tão cansado e tão feliz como ele. Porque dá todas as suas forças, até à última gota, pelo seu Pai do Céu e pelo da Terra, por Cristo e pelo patriarca ecuménico. E à noite, quando chega à cama, já esgotou todas as forças. Extenua-se ao serviço de Cristo. Isso fá-lo feliz. Porque não guarda uma única ponta de energia que não seja para Deus e para a sua Igreja.
É sempre o padre Panaiyotis Tzinaras que Sua Santidade o patriarca Athenagoras encarrega de nos vir buscar ao hotel e de nos mostrar Santa Sofia.
Foi o imperador São Constantino que mandou construir a grande igreja que se chama Santa Sofia. (9)
A igreja não é consagrada a Santa Sofia, a santa mártir de 126. É a igreja da Divina Sabedoria - Theia Sofia -, a igreja do Verbo, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Por isso, a festa patronal realizava-se no Natal, a festa do nascimento terrestre do Verbo encarnado. O nome de Grande Igreja conserva-se paralelamente ao de Santa Sofia. Hoje, a Grande Igreja de Cristo é a igreja do patriarcado ecuménico, no Fanar, a igreja onde celebram Sua Santidade Athenagoras e o padre Tzinaras.
- Bem queria explicar lhe tudo sobre a história de Santa Sofia, sobre a sua construção, os seus esplendores de outrora... Mas eu não sou nada
- diz-nos o bom e admirável padre Panaiyotis, desculpando-se. - Sou ignorante. Não sou nada. Não lhe posso apresentar Santa Sofia. Não. Não passo de um músico. Como poderia descrever-vos
* (9) Sócrates, História Eclesiástica, II, 16, P. G., 67, col. 217-B. *
-Santa Sofia? - E dizendo isto, entramos juntos na Grande Igreja de outrora, na Hagia Sofia.
Aqueles que a visitaram antigamente afirmam que Santa Sofia era o Céu na Terra. Era o segundo Firmamento. Hagia Sofia era o ponto de reunião dos anjos, dos querubins e dos arcanjos na Terra. Santa Sofia era o trono da glória de Deus...
Todos estes epítetos e outros ainda foram dados a Santa Sofia. a sua cúpula, maravilha única da arquitectura, parece presa ao Céu e não suspensa em colunas. No interior, tem-se a impressão de entrar no Céu. O interior é valorizado pela imensa luz das quarenta janelas abertas na base da cúpula e outras abertas na espessura das absides e das grandes paredes laterais. Assim ornamentada com o seu rico vestuário de mosaico e de mármore, Santa Sofia surgia resplandecente, segundo as palavras de Procópio "em vez de receber a luz do Sol, parecia ser ela a fonte dessa luz." "Sabe-se que as paredes e o solo eram completamente cobertos de ouro, de mármore e de materiais preciosos." (10) "É uma construção formidável, incomparável, como a História jamais mencionou, uma igreja maravilhosa, única, que não se pode descrever com palavras."
No dia 29 de Maio de 1453, quando os Turcos arrombaram as portas de prata e de bronze e entraram na Grande Igreja, aqui, onde nos encontramos agora, estavam os seis mil candelabros acesos, os polycandela de prata e ouro, as lamparinas em forma de navios, os candelabros em forma de árvores, de onde a luz brotava como flores, as lanternas aéreas suspensas na base circular da cúpula. Todos estes milhares e milhares de luzes davam a impressão de que a igreja estava a
* (10) Paulo, o Silenciário, Procópio: De Aedificiis, Leipzig, 1913. *
arder. Como afirma Paulo, o Silenciário, era como um incêndio esplendoroso anunciando de longe aos navegantes a aproximação da capital e a glória de Jerusalém.
Milhares e milhares de pessoas estavam apinhadas na igreja, com as portas aferrolhadas por dentro. Sabia-se que os Turcos tinham transposto as muralhas e os fiéis refugiaram-se na igreja.
Centenas de padres, de monges, de religiosos e religiosas, de bispos, de metropolitas, com os seus paramentos, celebraram a liturgia e imploraram o socorro e a protecção da Mãe de Deus, que sempre protegera a cidade de São Constantino. E todos tinham a certeza de que a Mãe de Deus viria mais uma vez salvar as pessoas apinhadas na Grande Igreja de Santa Sofia e imploravam o único socorro que podiam esperar, o do Céu. E da Mãe de Deus.
Os Turcos arrombaram as portas. Entraram no Céu construído na Terra, no segundo Céu, em Santa Sofia. Massacraram muita gente. Amarraram e arrastaram para a rua os fiéis - para serem vendidos. Amarrados uns aos outros. Havia milhares e milhares. Afirma-se que desde a tomada de Jerusalém não houve nada de mais horroroso na História. Afirma-se que os Turcos instalaram prostitutas e cavalariças em Santa Sofia e que atiraram para o lixo as relíquias mais sagradas."
Gritava-se e lamentava-se:
"A România desapareceu. A România foi conquistada. A România já não existe." 12
Na verdade, os habitantes de Constantinopla, até ao último sopro, nunca se consideraram nem gregos nem bizantinos, mas romanos. E a sua
11 Christoforo Richeiro: La Presa di Constantinopoli, em Sansovino, História Universal, iII.
12 E. Legrand: Recueil dês chansons populaires grecques, Paris, 1874, p, 76.
pátria era a România, o Império Romano do Oriente,
A Théotokos, a Mãe de Deus, não desceu do Céu para salvar os cristãos do massacre. Não.
Mas se a Mãe de Deus não veio salvar os homens e as mulheres que se encontravam em Santa Sofia, fez um milagre: a parede da igreja, por trás do altar, abriu-se de repente. E os bispos e os padres que celebravam a santa e divina liturgia desapareceram com os vasos sagrados. Depois, a parede voltou a fechar-se com a mesma rapidez. No dia em que Santa Sofia for restituída à fé ortodoxa, a parede por trás do altar voltará a abrir-se e os mesmos bispos e os mesmos padres, com os seus paramentos sacerdotais, hão-de sair em procissão, como na entrada solene, em cortejo, com os vasos sagrados, e continuarão a celebrar a liturgia, no ponto em que foi interrompida pelo massacre e o sacrilégio de 29 de Maio de 1453...
Graças aos rogos e às diligências do patriarca Athenagoras, que era ao mesmo tempo respeitado e admirado pelos Turcos e Americanos, sobretudo por Ataturk, o pai dos Turcos, a Grande Igreja de Cristo, Santa Sofia de Constantinopla, transformada em mesquita no mês de Maio de
1453, deixou de ser mesquita, também no mês de Maio, em 1934. Foi Deus que fez este milagre. Por intermédio de Athenagoras, que era, nesse tempo, metropolita primaz da maior diocese da Terra. Diocese que se estendia do pólo norte ao pólo sul e que abrangia as três Américas, desde o Alasca à Terra do Fogo.
Ataturk aceitou libertar a Grande Igreja com a condição de Athenagoras arranjar dinheiro para a restaurar. E Athenagoras convenceu os Americanos a investir milhares de dólares no santo edifício para a restauração do segundo Firmamento.
As negociações começaram com a chegada de Athenagoras à América, em 1931. Agora Santa Sofia já não é uma mesquita. Oficialmente também não é uma igreja ortodoxa. A Grande Igreja. O Céu reconstruído na Terra. Oficialmente, é um museu. Mas, na verdade, é um imenso estaleiro, onde sábios, técnicos e especialistas do mundo inteiro restauram a santa igreja com dinheiro americano. Retiram as pinturas ulteriores para fazer ressurgir os mosaicos, para fazer aparecer os ícones. Restitui-se a igreja à sua traça primitiva. Tenta-se refazê-la tal como era no dia em que o patriarca de Constantinopla e os padres celebravam os ofícios enquanto os operários trabalhavam na sua construção. Porque Santa Sofia não é uma obra puramente humana. É como todas as igrejas: metade humana e metade divina.
Quando entrei, sabia que a igreja estava em reconstrução. Os trabalhos durarão enquanto Deus quiser. Mas, um dia, a igreja será terminada. Como foi terminada após cada restauro. E foram numerosos. Repetidos. Porque uma igreja só está definitivamente terminada no Céu. Cá em baixo está sempre em construção.
Olho para a parede ao fundo da Grande Igreja, para trás do altar, lá onde se encontram os padres, os bispos, os metropolitas com os vasos sagrados. À espera de voltarem a entrar no santuário e continuar a santa e divina liturgia, interrompida em Maio de 1453. Sei que eles estão ali. Cientificamente não é possível, não é possível que ainda estejam vivos. com o cálice e a patena.
Passaram séculos desde o dia 29 de Maio de
1453. Estamos em Junho de 1968. Mas as leis da natureza são obra de Deus. E Deus, que fez a natureza e as suas leis, também pode desfazê-las. Quando quiser e como quiser.
Portanto, não me parece impossível Deus querer que os padres e os bispos concelebrantes da última liturgia celebrada na Grande Igreja tenham desaparecido miraculosamente pelas paredes.
E que ainda lá estejam. É perfeitamente possível. Porque, logicamente, para Deus, tudo é possível.
Olho com terror para a parede atrás do santuário. Segundo as leis sagradas um padre que tenha começado a celebração da liturgia tem de a terminar. Enquanto estiver vivo não pode interromper a celebração. É claro que os padres que se encontravam na Grande Igreja durante essa noite de Maio de 1453 não teriam interrompido a concelebração. Deixavam-se imolar no altar. Como os fiéis se deixaram degolar. Mas Deus quis poupá-los. E ao mesmo tempo evitar o sacrilégio. Por isso, Deus abriu miraculosamente a parede. Deus quis mostrar-nos também que a divina liturgia não pode ser interrompida. E que, se for interrompida, pode prosseguir a todo o instante. Mesmo séculos depois. E nós esperamos que prossiga. No mesmo tropário, no mesmo versículo e no mesmo cântico em que foi interrompida... A nossa espera é firme. E não temos a menor dúvida sobre isso. Sabemos que os padres estão presentes. Na parede. Invisivelmente. Como os anjos. Como os querubins. Como tantas forças que existem e não se vêem.
Enquanto fixo a. parede do santuário de Santa Sofia, o padre Tzinaras aproxima-se e fala-me em voz baixa:
- Padre Virgil - confidencia-me -, disse-lhe que sou ignorante. Não sou historiador nem teólogo. Nada. Mas sou músico. Dá-me licença de lhe mostrar como é admirável, divina, celeste a acústica da Grande Igreja? Quer? Posso cantar?
- com certeza - respondi-lhe.
É uma hora matinal. Na igreja há equipas de técnicos. Na maioria estrangeiros. São todos muito jovens. Medem, executam planos, calculam. Também há grupos de turistas. com os seus guias.
- Só tenho a minha voz - disse o padre Tzinaras. - E quero mostrar-lhe como é bela, sublime a acústica da nossa Santa Sofia... Não há outra igual na Terra. Vai ver...
E mal acabou de falar, desapareceu. Dirigiu-se apressado para onde foi outrora o púlpito de Santa Sofia, construído de ouro maciço com pedras preciosas e diamantes. Ficámos sozinhos por instantes, na semiobscuridade da catedral. Depois, ouvi, vindo do outro lado da igreja, do outro lado do púlpito:
- Kyrie...
Nada mais. Uma única palavra, que significa Senhor. Mas esta palavra, este Kyrie, este Senhor, era cantada numa melodia tão dilacerante que nos trespassava como um sabre espetado no coração. Não era música. Era mais do que isso. Era um grito. Terrível. Era como uma espada que nos penetrasse na carne. Era como uma espada, mas como uma espada de fogo que nos trespassasse o coração. É com certeza o mesmo Kyrie, com a mesma música, o mesmo grito que soltaram os fiéis, aqui, na Igreja de Santa Sofia, antes de darem o último suspiro, degolados pelos conquistadores... Morreram gritando e implorando Kyrie, imolados aqui, onde nós estamos, sobre estas mesmas lajes...
Os gritos, a imploração, o apelo dilacerante do Kyrie cantado pelo padre Tzinaras ficou no ar. Materializado como um balão de fogo, de luz e de dor. Um balão de fogo a baloiçar de uma a outra parede. Batendo nas paredes. O Kyrie continuava suspenso no meio de Santa Sofia como um imenso candelabro de fogo.
- Ouviu? - pergunta o padre Tzinaras.
Tinha voltado. Estava junto de mim. Apertava-me a mão. Mas o Kyrie que entoara com toda a sua força, com toda a sua fé, com toda a sua arte, permanecia no ar. A voar por cima das nossas cabeças. Como um pássaro de fogo. E esse Kyrie, depois de ter atingido a cúpula, desceu. Ampliou-se. Agora não é só um Kyrie. Havia sob a cúpula de Santa Sofia imensos Kyrie. E os gritos de Kyrie multiplicavam-se sempre que tocavam nas paredes, como pássaros de fogo cativos que se transformassem em chamas...
É uma acústica formidável, não é verdade? pergunta o padre Tzinaras.
Não ouvi o que dizia. Porque, por cima de mim, havia anjos de fogo, pássaros a voar de uma para outra parede, da cúpula para o chão, centenas e milhares de Kyrie. Como fogo. Como luz. As paredes de Santa Sofia multiplicavam cada eco em milhares de ecos...
Agora dava a impressão que os anjos e todas as forças invisíveis do Céu haviam descido a Santa Sofia e gritavam: Kyrie, Kyrie, Kyrie...
E depois de terem enchido o espaço da igreja, os gritos de Kyrie batiam como martelos musicais nas paredes do santuário, ali onde estão encerrados os padres e os bispos que celebraram a última santa e divina liturgia na noite de 29 de Maio de 1453...
Esperava que a parede se abrisse. Porque os Kyrie batiam na pedra como inúmeros martelos. Mas a parede resistiu. Não se abriu. A pedra aguentou-se. Os padres emparedados, os padres cativos dentro da parede, não saíram. Miraculosamente, como para lá entraram. Apesar de ter a certeza de que sairão. Mas responderam ao Kyrie do padre Tzinaras. Também gritaram, como no momento em que foram emparedados, com a mesma fé, com a mesma dilaceração, por trás da parede: Kyrie, Kyrie...
Estão ali, vivos. Desde que cantem, com os anjos, por trás da parede, o Kyrie Eleison é uma prova da sua presença ali. Sempre. E hão-de sair um dia. Por agora, ouvi um Kyrie Eleison solene, sublime, em Santa Sofia. E os turistas, os guias, os arquitectos, os bizantinófilos, os especialistas ingleses, americanos, alemães, italianos, de todas as nacionalidades, guardaram profundo silêncio. E olhavam para a parede que respondia: Kyrie, Kyrie...
Havia muitos turistas deslumbrados, pasmados por ouvirem as paredes a cantar. Sabiam que as paredes não cantam. Não sabiam que eram dezenas de padres a responderem em concelebração, por trás das paredes... Não sabiam. Porque nas suas escolas não se aprende nada sobre milagres. Não sabem que a igreja não morre. Não muda. Não envelhece. A igreja é imutável. Como Deus. Os técnicos e os turistas só se preocupam com os materiais da igreja. com o que é visível e mortal. Não sabem que os padres nunca morrem... Mesmo que estejam emparedados. Por isso estão espantados. Ninguém lhes ensinou nada disto... (13)
Os padres que respondem cantando o Kyrie atrás das paredes estão emparedados há apenas uns séculos. Estão em plena juventude. Porque um século ou dez séculos não é nada em comparação com a vida eterna que possuem! Faz-me pena a ignorância dos técnicos que restauram Santa Sofia. E a dos turistas. Gostaria de lhes explicar que a igreja nunca envelhece. É eterna. Os santos são sempre jovens. Os padres nunca morrem. Mas eles só têm olhos carnais. "E é impossível ver com olhos mortais um corpo imortal." (14)
Sei que é impossível explicar-lhes estas coisas. Continuarão ignorantes para sempre, apesar da aptidão e do seu saber laico. Porque a fé não é uma doutrina: é um alimento. (15) E como se pode
* (13) São Paulo, Hebreus, V, 5.
(14) Orígenes, G. C. S., 9, 24.
(15) São João, 4, 52. *
ensinar um alimento, como dá-lo a conhecer? Tem de ser provado... É preciso comê-lo. Como nós o comemos na comunhão.
Tenho a certeza que Deus nos permitiu ouvir o mais belo Kyrie Eleison cantado pelos padres e pelos bispos emparedados há cinco séculos na Grande Igreja de Constantinopla por estarmos num período de jejum. E "como nós perdemos o Paraíso por não ter jejuado, jejuamos para conseguir voltar para lá". (16) No caminho do regresso contamos com os maiores milagres. "Porque se nós fôssemos como manda a palavra divina, como Elias, suplicaríamos a Deus que nos desse chuva e Ele dava-a... Ele quer-nos perfeitos para Lhe falarmos como deuses... Quer que sejamos filhos de Deus para nos tornarmos participantes no destino da herança do Filho de Deus..." (17)
E para estarmos edificados, aptos a receber milagres, abstemo-nos de coisas efémeras e perecíveis, das preocupações terrenas, sociológicas, políticas e nacionais durante o período de jejum, abstemo-nos precisamente de comer carne, leite ovos, manteiga e azeite... E esperamos o fim do jejum. Que é a comunhão, a plenitude e o Céu.
É isso que nós esperamos! Observando o jejum dos santos apóstolos, em Constantinopla. com o patriarca ecuménico. com o único padre da Grande Igreja, que, outrora, possuía mil. com os padres emparedados por trás do santuário de Santa Sofia. com os duzentos milhões de ortodoxos cativos nas repúblicas penitenciárias ou no exílio. E no fim do jejum vai-se celebrar a santa e divina liturgia. Na verdadeira igreja do Céu, que teve a mais bela cópia terrestre em Santa Sofia de Constantinopla.
* (16) São Basílio, o Grande, P. G., 31, col. 163.
(17) Orígenes, P. G., 12, col.. 1384. *
Irão dizer que somos demasiado pobres e demasiado ignorantes para fazer tal viagem? É claro que somos. Mas "a nossa vida é bastante rica para acorrer por si própria a todas as necessidades da viagem". (18)
* (18) Orígenes, G. C. S., 4, 34.
ARÍSTOCLES, O SANTO, E ATHENAGORAS, O PATRIARCA ECUMÉNICO
SUA Santidade o patriarca ecuménico nunca me falou de si próprio. Nem da sua actividade. Sabe que preciso dum mínimo de pormenores, de datas, para escrever a sua biografia. Na verdade, não quer que escreva a sua vida. Mas tem de me contar qualquer coisa, nem que seja por caridade. Até ama os Turcos como se fossem seus filhos. Então... porquê este silêncio? É por ser monge. Para um monge, viver significa guardar silêncio. Sobretudo sobre si próprio. A vida monástica não é só uma ideia. Não é uma teoria. Nem uma doutrina. Não se pode expor. Ser monge é viver a vida monacal. Não é explicá-la. Nem contá-la. "O fim do nosso objectivo consiste no Reino de Deus e o nosso objectivo é a pureza do coração, sem a qual é impossível um monge atingir este fim." (1) São Paulo é ainda mais explícito. "Tendes por fruto a santidade e por fim a vida eterna." (2)
Ora justamente para obter este fruto, que é a santidade, e para atingir este objectivo, que é a vida eterna, o monge tem de viver em silêncio. "Esquecendo o que está atrás de mim, lanço-me
* (1) São João Cassiano: Conferências, 1, 4.
(2) São Paulo: Epístola aos Romanos, VI, 22. *
todo para a frente e corro direito ao fim para o qual o Senhor me chamou do Alto." (3)
Para um monge a primeira lei é esquecer o passado. Esquecer a sua própria vida. com tudo que comporta de bem e de mal. Como um navio abandona a terra com tudo quanto ela possui de bom e de mau. Um monge é um homem sem recordações. Está em viagem para o Céu. Não tem direito a levar consigo qualquer bagagem. Nem sequer recordações. Nada. O monge é o viajante sem bagagem por excelência. Uma vez que ele não tem recordações, como poderia contar-mas?
Os Apotegmas dos Padres (4) dizem-nos que um advogado chegou ao deserto para anunciar a um monge que tinha morrido um dos seus parentes e lhe deixara em testamento uma herança, uma grande fortuna.
- Quando morreu ele? - perguntou o monge.
- Foi enterrado há dias...
- Nesse caso é engano - disse o monge. - Não me podia deixar a sua fortuna porque morri antes dele.
E o monge recusou a fortuna. Porque morrera ao entrar para a vida monástica. E os testamentos feitos pelos vivos a favor dos mortos não são válidos...
Um monge abandona a família, a pátria, os hábitos do mundo e o seu próprio nome. Abandona tudo como os mortos. É neste contexto que tenho de ver Athenagoras. Doutro modo, a sua vida não seria autêntica. Seria mesmo um sacrilégio. Como poderia ele continuar preso a coisas que abandonou? A coisas da Terra? Se toma uma atitude, se se integra num partido, numa revolução, numa ideia qualquer, por mais nobre que ela seja, mas que é da Terra, anula automaticamente o seu
* (3) São Paulo: Phil, iII, 13.
(4) Apotegmas dos Padres: Arsénio, 27. *
estado de monge. Deixa de ser monge. Porque regressa à Terra. E o voto do monge é abandonar a Terra e esquecer o que está atrás de si. É de facto a primeira coisa que faz. Morrer para a Terra. É um facto irrevogável. Gravado no Céu. Como foi dito: "Deus tem as nossas profissões escritas com o testemunho dos anjos." (5) "Os anjos lá estão invisíveis, assinando a profissão de monge." (6) Se um monge se compromete com uma coisa da Terra, mesmo que seja com a coisa mais nobre da Terra, e faz dela o objectivo e o fim da sua vida, deixa de ser um monge. Todas as coisas terrenas são esquecidas. Deixadas para trás. Ora assim como é difícil um pintor fazer o retrato de um modelo em marcha, também é difícil fazer o retrato de um homem que partiu para o Céu, quebrando todas as amarras com as coisas visíveis da Terra e viajando para o Céu, que é invisível. Auxiliado pelos anjos, que são invisíveis. Tendo como arma a pureza do coração e a virtude, coisas que são invisíveis. Porque Deus pode ver quem é santo e o que se passa no coração dos homens.
O que me consola, na minha missão, é o facto de o patriarca me dizer sempre:
- Porque quer que fale? Deus concedeu-lhe a graça de sondar os corações das coisas e dos homens... Deus fê-lo poeta, filósofo e contista. E é padre... Não precisa das minhas palavras para nada. Encontra-as por si. É o seu privilégio. Deus doou-o bem.
O silêncio é uma venerável e antiquíssima tradição dos monges. Um deles dizia: "Arrependi-me muitas vezes de ter falado, mas nunca me arrependi de me ter calado." (7) Um outro conta: "Teófilo, arcebispo de Alexandria, foi um dia ao
* (5) São Teodoro Studite: Grandes Catequeses, II, 9.
(6) Eucológico.
(7) Apotegmas dos Padres, Alfabético, Arsénio, 40. *
deserto de Sceté. Os irmãos que se tinham reunido disseram ao monge Pambo: "Diz uma palavra ao arcebispo para que fique edificado." O velho respondeu: "Se não ficar edificado com o meu silêncio, não terá de se edificar com a minha palavra."" (8)
De acordo com a tradição, Athenagoras guarda silêncio. Sobre tudo quanto lhe diz respeito. Sobre tudo o que pensa. Deixa-me descobrir tudo sozinho.
E Deus ajudou-me a descobrir. Sempre. Tudo. Sem precisar de palavras. Em silêncio.
No sábado, 22 de Junho de 1968, o patriarca disse-me:
- Amanhã celebraremos juntos a santa e divina liturgia. E vamos comungar juntos...
Sei que, sendo padre, depois da morte, hei-de subir ao Céu e hei-de concelebrar a santa e divina liturgia com o meu bispo do Céu, com Cristo, na Igreja Cósmica. Mas nunca sonhei concelebrar na Terra e comungar com o patriarca ecuménico, em Constantinopla. com o pai de todos os patriarcas.
Preparei-me como para a ordenação. É o segundo domingo depois do Pentecostes. Acordei muito cedo. Li o Evangelho do domingo passado, do domingo em que cheguei a Constantinopla. "Todo aquele que se declarar por mim perante os homens pode contar que também eu, por minha vez, me declararei por ele diante de meu Pai, que está nos Céus. Mas aquele que me renegar perante os homens também eu o renegarei, por minha vez, diante de meu Pai, que está nos Céus. Quem amar o pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim. Quem não pegar na sua cruz e não me seguir não é digno de mim. Quem tiver salvado a sua vida (terrena) perdê-la-á. E quem
* (8) Apotegmas dos Padres, Alfabético, Teófilo, 2. *
tiver perdido a vida por causa de mim encontrá-la-á." (9)
Tenho a impressão de estar a ler não o Evangelho, mas a biografia de Athenagoras. Abandonou tudo por Cristo. Tudo. Perante os homens e perante os anjos. Fazendo-se monge perdeu a sua vida. Para a ganhar na eternidade.
O patriarca disse-me para estar na igreja às dez horas. Mandara um carro buscar-me. Mas não tive paciência de esperar. Celebrar com Sua Santidade o patriarca ecuménico, em Constantinopla, na Grande Igreja de Cristo era a coisa mais formidável que me podia acontecer. Fui para a igreja com duas horas de antecedência.
Sou padre, descendente de uma família em que, há muitos séculos, todos os homens, quase sem excepção, foram curas de aldeia. Todos os meus antepassados, tanto do lado materno como do lado paterno, foram padres em aldeias de servos e de escravos. Todos foram padres proletários. Padres dos proletários. Bem sei que em cada liturgia Cristo descia às igrejas mais pobres. Cristo estava realmente presente na igreja de madeira de meu pai, do tamanho de uma cabana serrana. Durante a liturgia. Porque Cristo aceita que as mãos pesadas de um padre proletário como as de meu pai toquem no seu corpo divino. Os anjos, os arcanjos, estavam todos em volta de meu pai. Como estão em redor de qualquer padre, por mais pobre, mais proletário, mais camponês que seja. Os anjos, Cristo, os arcanjos não desprezam nem evitam um padre rústico, camponês, pobre, mal penteado e mal vestido.
Mas com os bispos já não é a mesma coisa. Nem com os metropolitas. Nem com os arcebispos. Nem com os patriarcas. Os santos príncipes da Igreja terrestre, os patriarcas, os arcebispos, os bispos,
* (9) São Mateus, 10, 32. *
têm o nariz mais apurado que Cristo. E por isso, por causa do seu requinte, os santos bispos, reunidos sob a presidência do Espírito Santo, no Santo Sínodo de Neocesareia, no ano de 315, estabeleceram quinze cânones, entre os quais há o famoso cânone treze, que proíbe a todos os padres de aldeia celebrarem numa catedral episcopal ou numa igreja de cidade. Isto porque os padres de aldeia são broncos, mal penteados, mal vestidos, mal lavados e nada civilizados.
E eu pertenço a esta categoria de padres proletários, aos quais o Santo Sínodo de Neocesareia proíbe celebrar nas belas igrejas e nas catedrais. Como poeta, vivo não só a minha própria vida como vivo na minha carne as dores, as alegrias, as esperanças e as ofensas de todo o meu povo e de todos os homens. Portanto, é compreensível que sofra, amplificadas ao máximo, as humilhações infligidas aos padres de Cristo das aldeias, dos lugarejos - a proibição de celebrar nas catedrais e nas belas igrejas das cidades.
Desde há cerca de cinco séculos, os meus antepassados padres nunca puderam entrar nas catedrais e nas belas igrejas das cidades, a não ser no dia da sua ordenação. E nesse dia não viram grande coisa. Por causa da emoção. Os meus antepassados padres camponeses não viram um bispo, na realidade. Nunca. Porque na ordenação, única ocasião em que se poderiam aproximar de um bispo e vê-lo de perto, estavam de joelhos. E só viam os lindos sapatos dos bispos. E nunca os seus rostos.
Agora, ao sair do grande Hotel do Bósforo para me dirigir à Grande Igreja e celebrar com o patriarca ecuménico, não estava só. Havia em mim, ao meu lado, os milhões de padres proletários, todos os meus antepassados, que me acompanhavam. Iam tirar desforra da proibição de celebrar nas igrejas das cidades. Em mim e comigo, todos os padres proletários dos Cárpatos estavam presentes, nessa manhã, em Constantinopla. Todos iam celebrar comigo. Na Grande Igreja. Apesar da proibição quase bimilenária que lhes foi feita. Estou extremamente grato ao patriarca ecuménico por ter recebido, no domingo, 23 de Junho de 1968, em mim e comigo, os milhares de padres proletários a quem os santos bispos proibiram o acesso às igrejas das cidades. Athenagoras recebia comigo todos os meus antepassados, uma fila infinita de milhares de padres de sotaina e pés descalços, padres indigentes que, pela primeira vez, eram convidados a entrar, não só numa catedral, mas na primeira catedral do mundo, na Grande Igreja de Cristo, em Constantinopla; a celebrar em mim, a meu lado, com o patriarca ecuménico, o pai da nação cristã e o pai de todos os patriarcas... É uma alegria enorme. Para eles. Para mim. Para todos os padres humilhados e pobres. Mas havia outra dificuldade a vencer. No átrio do hotel, o gerente aproxima-se de mim e comunica-me uma coisa grave: a lei da República Turca proíbe que os padres andem de sotaina nas ruas de Constantinopla.
- Arrisca-se a ser preso pelo primeiro agente da polícia e a ser conduzido perante o juiz. E será condenado. Tire a sotaina. Arrisca-se à prisão.
- O patriarca ecuménico também se despe quando sai para ir à igreja?
- Não - disse-me o gerente do hotel. - Sua Santidade o patriarca dos Romanos comprou um carro. Como os seus antecessores. E o carro serve-lhe unicamente para isso: para não andar na rua de sotaina. Porque no carro está como entre quatro paredes... Como vê... Somos tolerantes com ele...
A sotaina é um vestuário em forma de cruz. É uma cruz. A sotaina é um caixão. A sotaina é o uniforme dos cidadãos do Céu. Tirar a sotaina é recusar a Cruz. com a qual todos os padres devem estar vestidos. Porque vestir-se com uma cruz, com a sotaina, é um grande, um imenso favor, uma honra de que o homem não é digno.
Tive um gesto brusco. Decidi arriscar-me a ser preso, a ser condenado por estar vestido com a Cruz. Mas ouvi gritar em mim, nos meus ossos, na minha carne, em todo o meu ser os milhares de padres proletários a quem proibiram celebrar nas catedrais. Imploram-me que não perca a ocasião que lhes é oferecida, miraculosamente, para celebrar, em mim, com o patriarca ecuménico. E no átrio do hotel, despi a minha sotaina. Metia-a debaixo do braço. E dirigi-me para a sé patriarcal. Para o Fanar.
Paro à porta da sé patriarcal, porta que está sempre fechada em sinal de luto pelo patriarca Gregório V, enforcado paramentado e com o seu omophorion, no meio dos seus bispos, dos seus padres e dos seus diáconos. O polícia turco avança para mim. Como sempre. O primeiro. É quem me ajuda a vestir-me de novo com a Cruz. O guarda de uniforme tira o barrete e, baixando a cabeça para receber a minha bênção, pede licença para beijar a minha Cruz peitoral. Toma-a nas mãos piedosamente e leva-a aos lábios. Oiço-o beijar a Cruz, porque a piedade leva-o a dar um beijo na Cruz como os das crianças, um beijo sonoro. O polícia turco está hirto, triste. Porque não pode beijar a Cruz. Mas saúda-me em sentido. Entro na igreja. São Jorge é o patrono da igreja patriarcal. Os Gregos pronunciam São Georgiou. Entro portanto na Igreja de São Georgiou, a Grande Igreja do patriarcado. É pequenina, extremamente pobre. Como uma igreja de aldeia. É a Igreja de São Jorge, que substitui Santa Sofia desde 1612. Do passado não existe quase nada. As poucas relíquias e os poucos ícones que restavam desapareceram nas chamas durante os incêndios. Ao transpor a soleira da porta oiço a voz do padre Panaiyotis Tzinaras. Estaco, imóvel, petrificado. À minha direita, no estrado patriarcal, com a mitra e a mandyas, de pé, está o patriarca Athenagoras. Já lá está. Chego depois dele. É imperdoável.
Não me atrevo a avançar. Nem a olhar para o relógio. Tenho a certeza de chegar pelo menos com uma hora de antecedência. E o patriarca já lá está. Lívido, pergunto ao ouvido do sacristão-mor:
- Disseram-me que a santa liturgia começava às dez horas...
- É exacto. A divina liturgia começa às dez horas...
- Mas o patriarca já aqui está - digo. - Não me podiam dizer que viesse para a igreja depois do patriarca...
- Pois não! - responde o sacristão-mor.
Isso é contra o protocolo, contra os cânones. Não sei o que pensar. Mas o sacristão-mor tranquiliza-me:
- Foi por atenção para com a presbítera Ecaterina que Sua Santidade lhe disse que viesse às dez horas... Mas Sua Santidade está na igreja desde as sete horas da manhã.
Athenagoras é um homem de oração. Isto significa tudo quanto o género humano pode dar de mais nobre, de mais elevado. E ninguém é mais caridoso, mais cavalheiresco, mais nobre e mais dedicado do que os santos e os homens de oração. O patriarca convocou-me para a igreja para as dez horas. Para a presbítera, que é uma mulher, não se cansar muito permanecendo várias horas de pé. Porque as mulheres são frágeis. E os santos sabem isso. Tratam-nas com mais atenções que os cavaleiros de outrora.
Compreendo que se trata de um acto de caridade e de cavalheirismo da parte do patriarca para com a mulher. Entro. Athenagoras está de pé, junto da sua cadeira. Já não é o trono de ouro maciço com pedras preciosas, brilhantes e diamantes, tão esplendoroso como o trono dos imperadores de Bizâncio. É uma cadeira de madeira. E o patriarca está de pé. Nunca o tinha visto tão belo. Está incomparavelmente mais alto que de costume. É ele quem canta as doxologias. A sua voz é idêntica à sua imagem. Tem uma voz viril, ampla, fluente. É a própria natureza do homem a cantar. Como depois da criação. Uma voz maciça, inalterável, profunda.
O patriarca mantém-se hirto, como uma montanha cujo pico chegasse ao Céu. É sublime. Agora pertence inteiramente ao Céu. Não à Terra. com a sua barba branca, a mitra na cabeça, o adorno patriarcal em forma de coroa encimada por uma cruz. É verdade que a sua mitra está muito gasta. Todos os patriarcas da Terra têm mitras mais belas que a do pai dos patriarcas, que a de Athenagoras. Porque ele é o mais pobre e o mais desprovido de tudo entre todos. A sua mandyas - equivalente à capa magna dos ocidentais - também está muito gasta. Muito velha. Apesar disso, Athenagoras está resplandecente, belo, e mais alto que todas as coisas da Terra. Mais alto que as montanhas. E a sua cabeça é mais branca que os picos das neves eternas... Os seus olhos de luz descobrem-se sem ele se voltar. E há uma sombra nos seus olhos. Porque as suas ordens não foram cumpridas. Mas continua. O hagiológio fala do santo do dia. Hoje, segundo domingo depois do Pentecostes, o domingo 23 de Junho, é a festa de Santo Arístocles. É o nome de baptismo de Sua Santidade Athenagoras. Isso aperta-me o coração.
Santo Arístocles era um padre de aldeia. De Chipre. Do país de São Espiridião, o santo pastor que veio a ser bispo e continuou a usar o mesmo cajado de pastor como báculo episcopal. Santo Arístocles nasceu na cidade de Tâmaso. Quando era padre deu-se a terrível perseguição de Maximiano. E, para salvar a vida, o padre Arístocles de Chipre refugiou-se nas montanhas. E lá ficou escondido. Para não ser torturado e morto. Na solidão lembrou-se que Cristo tinha dito que o pastor deve dar a vida pelas suas ovelhas. E regressou, envergonhado da sua fuga. Encontrou o seu diácono Dimitrião e o seu leitor Atanásio e confessou-lhes a sua vergonha. Foi com eles para o meio dos cristãos. Em seguida, foi a Salamisa com o seu diácono e o seu leitor. Portou-se como um verdadeiro padre e um verdadeiro pastor confessando a sua fé em Cristo e pregando abertamente nas praças públicas. Foi preso. E depois de muitas torturas, Santo Arístocles e o santo diácono Dimitrião e o santo leitor Atanásio foram decapitados. Publicamente. com o gládio. Exactamente como São João Baptista. As suas cabeças caíram como as melancias vermelhas que nesta altura do ano os Turcos vendem e expõem nas ruas...
O martírio de Santo Arístocles e dos seus companheiros deu-se no ano de 306. É uma linda festa. E durante a liturgia, olhava atentamente para o patriarca Athenagoras. Estava imóvel. Direito. Cantava com voz de baixo. Mais bela que a voz dos patriarcas de outrora, Melquisedech, Abraão, Noé. Parecia sair dos frescos e cantar na festa do padre morto, Arístocles. Todos pronunciam o nome de Arístocles. Foi o primeiro nome que o patriarca Athenagoras ouviu na Terra da boca de sua mãe, a bela Helena, debruçada sobre o seu berço. Da boca de seu pai. Em Terra Plana todos lhe chamavam Arístocles com ternura. E na escola era Arístocles. E não há nada tão doce como o mel e a infância. E a infância de Athenagoras não estremeceu um só instante ao ouvir o seu nome cantado, pronunciado! Quando se dizia Arístocles, para ele, era como se se dissesse Nicolau ou João ou Basílio... Era um nome como outro qualquer. Ele, que tem uma memória formidável, que se recorda de tudo, do nome dos seus companheiros de brincadeira, dos seus vizinhos, esqueceu completamente, apagou completamente da memória o nome da sua infância. Abandonou-o ao abandonar o mundo. E estou espantado. Porque há coisas que não se podem esquecer. Perante as quais não se pode deixar de estremecer. Quando se cantava, a plenos pulmões, "Santo Arístocles, intercedei por nós", o patriarca parecia uma colossal estátua de mármore branco. Imóvel. Sem sequer olhar. O nome com que a sua mãe o acarinhava, o nome das suas brincadeiras, da sua infância, da sua terra e da sua adolescência, era, de facto, um nome abandonado. E, para ele, esquecido. Ele era o monge Athenagoras. Como se nunca tivesse sido outra coisa. Como se ele nunca tivesse conhecido alguém com o nome de Arístocles.
Na apólise, no final, quando o padre Tzinaras apareceu diante das portas do santuário, dizendo: "Para as orações a Santo Arístocles, cujo nome festejamos hoje...", eu tinha os olhos fixos em Athenagoras. Era impossível que ele não se recordasse. Que não estivesse comovido. Era o seu nome. Mas não. Como toda a gente, fez o sinal-da-cruz. Ele é Athenagoras, para a eternidade...
Arístocles foi abandonado. Apagado. com tudo o que existe sobre a Terra. No mundo. Ele é habitante do Céu. E, no Céu, chama-se Athenagoras. Era a Terra que conhecia o nome Arístocles. Pois Arístocles era um habitante da Terra. Athenagoras possui um corpo - um belo corpo, uma estátua, uma obra de Deus-, mas pertence já ao Céu. Tal como os santos, os mártires e os anjos.
E durante aquela liturgia da festa de Santo Arístocles vi com os meus olhos que nem as coisas mais puras da Terra - o seu nome de criança, o seu nome terreno - o retiveram. Foi então que eu tive a certeza da sua santidade individual. Porque até então eu sabia que ele era santo na sua qualidade de patriarca ecuménico que realizou, praticamente, a união com o papa Paulo VI e com Cristo. Mas agora descubro não o santo taumaturgo que curou o corpo de Cristo cortado em dois - após um milénio - mas também o santo monge. É uma dupla santidade. E quando o patriarca ecuménico desceu do seu trono patriarcal e quando me pegou na mão para entrarmos juntos no santuário para comungar do mesmo cálice, tive a certeza absoluta de que os meus pés já não estavam assentes na terra. Pois quando se é transportado pelos poderes celestes - os anjos e os santos - avança-se sem tocar na terra. E foi assim que comunguei na Grande Pequena Igreja de Cristo em Constantinopla. Na catedral do patriarca ecuménico, no dia de Santo Arístocles, no ano de 1968. com os milhares dos meus antepassados, sacerdotes de aldeia, padres camponeses, que penetravam, pela primeira vez - por meu intermédio-, numa catedral. E tal como as águas doces dos rios e as águas salgadas do mar se misturam num estuário, formando uma única água, da mesma forma, na igreja, durante o ofício divino, o Céu e a Terra, os anjos e os fiéis, os mártires e os mortos e os vivos se misturam acima do tempo e do espaço. É a igreja durante a liturgia, cá em baixo e no Céu. Uma só igreja.
Estamos no mesmo plano, sendo vivo ou morto, santo ou pecador, anjo ou homem. É o mistério da igreja em sinaxe. No dia de Santo Arístocles, no momento em que comunguei, ao lado do patriarca ecuménico, com ele, a Terra quase já não existia. Em parte alguma sob os nossos pés. Apesar de vivos e carnais, estávamos no Céu. Como Elias, que subiu ao Céu com o seu corpo. Como a Mãe de Deus e Cristo, que subiram ao Céu com os seus corpos de carne. E não era êxtase. Mas a realidade. Estávamos aqui todos, os filhos da luz, os filhos de Deus. E Cristo estava a nosso lado. Como no tempo dos apóstolos. Fala-se a Deus e Ele responde. Tratamos Cristo por tu. Como os filhos com o pai. Homens e Deus, estamos em família...
QUANDO E COMO SE PRODUZIRÁ O MILAGRE DA UNIÃO DA IGREJA?
Vi, como toda a gente, nos écrans da televisão, em fotografias e no cinema, o encontro do papa Paulo VI e do patriarca Athenagoras no monte das Oliveiras, no dia da Epifania de
1964. Os sucessores de Santo André, que partiu de Jerusalém, caminharam a direito, rumo ao Oriente, durante dois milénios e chegaram a Jerusalém, ao ponto de partida.
Os sucessores de São Pedro, que partiu de Jerusalém para o Ocidente, caminharam a direito durante dois milénios e chegaram ao ponto de partida. Porque a Terra é redonda. E quem segue a direito, sempre a direito, na Terra chega ao mesmo ponto da partida. Matematicamente. Era normal que o ducentésimo sexagésimo oitavo sucessor de André encontrasse o ducentésimo sexagésimo quarto sucessor de Pedro, seu irmão. No dia do seu encontro, os dois irmãos ficaram convencidos de que cada um tinha caminhado a direito. No bom caminho. Sob a orientação do Espírito Santo. E que a união estava realizada. Pelo próprio facto do seu encontro. No próprio local onde se tinham virado as costas, partindo em direcções opostas. Mostrando assim que os dois irmãos, André e Pedro, caminharam segundo o Evangelho. Nenhum deles se enganou no caminho. A Igreja de André é a verdadeira Igreja de Cristo. Para mim, como verdadeiro filho da Igreja fundada por Santo André, a união da Igreja de Cristo do Ocidente e a do Oriente já se realizou, no dia da Epifania de 1964. Não preciso de documentos suplementares. Nem de actas jurídicas que ratifiquem e legalizem a união da Igreja.
Apesar da minha certeza, encontro-me na situação dos apóstolos. Os doze discípulos de Cristo abandonaram tudo para seguir o Filho de Deus. Por toda a parte. Eles estavam convictos da sua fé. Tinham a certeza que Cristo era o Filho de Deus. Que herdariam o Reino do Céu. Mas os apóstolos, apesar da sua fé e apesar de caminharem lado a lado com Cristo, de comerem com Ele, de andarem com Ele, de cantarem com Ele, de sofrerem e alegrarem-se com Ele, tinham sempre - na cabeça - perguntas a fazer. E bem gostariam de saber a resposta. E eram justamente as coisas mais importantes. Assistiram aos milagres de Cristo. Exactamente como nós, cristãos, assistimos a tantos milagres da Igreja. Eles tocaram em Cristo. Como Tomás. Nós também comemos Cristo, em cada liturgia, bebemo-lo. E apesar disso há perguntas-das mais importantes - para as quais gostaríamos de ter resposta. Exactamente como os apóstolos. Sobre o futuro.
João e André suplicaram ao Senhor: "Dizei-nos quando isso acontecerá e qual será o sinal, quando todas essas coisas começarem a acontecer." (1)
Também comecei este livro pela fé. Daria a minha vida a todo o instante - sem hesitação por tudo o que afirmei. A união do corpo de Cristo na Terra está realizada. Em Jerusalém, no dia da Epifania de 1964, Deus deixou de estar cortado em dois, como que serrado. A união do
* (1) São Marcos, 13, 4. *
corpo de Cristo está realizada. A nova crucificação cessou nesse dia. Não há sombra de dúvida. Paulo VI e Athenagoras serão santificados e inscritos no calendário por terem realizado a cura miraculosa do corpo de Deus. Da Igreja. Por terem feito com que o corpo de Deus deixasse de sangrar na Terra. Cortado aos pedaços. A minha fé não é menor que a dos apóstolos. Apesar disso, sou tentado, exactamente como os apóstolos, a fazer perguntas sobre as coisas do futuro. O jejum aproxima-se do fim. A minha estada junto do patriarca ecuménico também. Portanto, apesar da minha fé absoluta nas coisas do futuro, sucumbo à tentação a que sucumbiram os discípulos e pergunto ao patriarca ecuménico quando, como e de que maneira se cumprirá, se tornará definitiva a união do corpo de Cristo, da Igreja.
- Esse milagre vai concluir-se em breve? Será concluído mais tarde? Muito tarde? Ou, então, será para muito breve?
Os olhos do patriarca fixam-se em mim. Iluminam-me. Mais fortes que os projectores de cinema e de teatro. Era todo luz. Como o corpo de Cristo no monte Tabor quando deu aos apóstolos um exemplo do que nós seremos todos, no dia da Ressurreição. Porque, então, nós seremos todos luz. Como Cristo no monte Tabor.
- Que pergunta, padre! - diz o patriarca. Era uma censura. Muito paternal. Mas uma censura.
- Até os apóstolos, Vossa Santidade, perguntaram a Cristo como e de que maneira se produzirão as coisas em que acreditam. É natural que pergunte a Vossa Santidade: "Quando e como se fará a união da Igreja?"
- Os apóstolos perguntaram isso a Cristo?
- Perguntaram - disse eu. - Está escrito no Evangelho. Sabe isto melhor do que eu.
Mas eu não sou Cristo. E o papa também não.
Mas Vossa Santidade dialogou com o papa, sabe alguma coisa... Dê-me ao menos um pormenor. Um pequeno pormenor...
- No Evangelho de São Marcos está escrito que os apóstolos perguntaram isso a Cristo, não é, padre?
- É. E Cristo respondeu-lhes: "Tende cuidado para que ninguém vos seduza. Porque muitos virão em meu nome, dizendo: "Sou eu." E seduzirão muita gente." (2)
O patriarca calou-se.
- Vossa Santidade não responde? - inquiri.
- Não lhe basta a resposta de Cristo? - perguntou o patriarca.
Na verdade, basta o Evangelho, a palavra de Cristo. Deve bastar. A união está muito próxima. O grande milagre está muito perto. De facto já se deu. A nova e terrível crucificação de Cristo está quase a acabar. Temos as linhas precursoras. Porque, desde que se começou a obra divina da união, a Terra encheu-se de falsos profetas. Nunca se viu mais abundante pululação de seitas do que nestes últimos tempos. São as seitas ecuménicas que constróem casas maiores que as fábricas para receber todos os homens. Em nome da união. Vêem-se homens que nem sequer são da Igreja e que usam sotainas como os monges. Imprimem missais. Celebram missa. Sem serem padres. Vestidos como os padres. Dão a si próprios títulos eclesiásticos. Uma seita é o contrário da união. Uma seita é mais uma desunião.
Já havia no planeta milhares de seitas. Agora criaram-se outras. E lançam-nas a golpes de cartazes publicitários - como o lançamento das marcas de roupa interior, de produtos alimentares e
* (2) São Marcos, 13, 5. *
aparelhos domésticos. São as seitas ecuménicas. Aparecem por toda a parte. Reúnem milhões de pessoas. As suas casas são anunciadas nos guias de turismo. Para atrair gente constróem estações e aeroportos. Abrem estalagens. Fazem reuniões, dia e noite, e os seus acólitos percorrem o planeta, como os agentes comerciais das grandes firmas, para chamar gente. E os pobres cristãos - apesar de Cristo os ter prevenido, apesar de o Evangelho os ter prevenido - deixam-se seduzir. E assim, antes da realização da união, novos pregos são enterrados no corpo de Cristo. Na carne de Deus. com a aparição das seitas ecuménicas, essa miscelânia publicitária para seduzir o mundo. Um sincretismo abominável. Têm escritórios em toda a parte. Vi cartazes nas agências de viagens dos Estados Unidos, do Canadá e da América do Sul propondo mostrar aos turistas, na Europa, o túmulo de Napoleão, o Moulin Rouge, a Torre Eiffel, as Folies Bergère... e os ecuménicos...
Apesar do poderio publicitário destas seitas que trabalham à escala universal, nós sabemos que constituem apenas um sinal precursor. A sua aparição foi prevista pelo Evangelho. (3) Sofro terrivelmente com os sacrilégios que cometem em nome da união, em nome de Cristo. Porque não recuam diante de qualquer sacrilégio. Profanam o nome de monge. Entre eles, qualquer pessoa, em qualquer altura, pode intitular-se monge, durante uma ou duas semanas, dois meses ou dois anos. Como nos hotéis, à beira do mar ou na montanha, que se abandonam depois. Ser monge é uma espécie de férias. E esses falsos monges são precisamente uma das principais atracções para os turistas. Mostram-nos aos turistas exactamente como se mostram animais exóticos no jardim zoológico. E os curiosos chegam às centenas, aos milhares, às
* (3) São Marcos, 13, 5. *
dezenas de milhares, de autocarro, de comboio, de avião... É o circo ecuménico. E entretanto Cristo sofre. Sangra. Por isso, o Evangelho dá-nos coragem, a nós, que vemos estas coisas terríveis, pensando: "Aqueles que perseverarem até ao fim serão salvos." (4) É claro que nós sabemos que a desunião só pode ser dominada pela fidelidade a Cristo. Porque "isto só se pode curar com a oração, o jejum e a santidade". (5)
Enquanto digo ao patriarca Athenagoras o que sofro por causa dos falsos profetas que seduzem o mundo, (6) Sua Santidade levanta-se. Sem responder. Sai do gabinete. Athenagoras está furioso comigo. Por falar dos heréticos. Dos falsos profetas. Falo exactamente como falaram os escritores sagrados antes de mim. Como Santo Agostinho, Santo Ireneu. São Basílio, São Gregório... Porque todos falaram contra os heréticos. E contra as heresias. Mas Athenagoras não pode ouvir esta palavra. Não me quer ver irritado com os falsos profetas. com aqueles que fazem comércio à custa de Cristo. E que transformam a santa união numa indústria publicitária.
Quer que os heréticos sejam poupados. E que se reze por eles. Como foi dito: "Não se deve matar os heréticos. Seria acender no Universo uma guerra interminável. É preciso tratar os heréticos com deferência." (7) "A Igreja, mãe de seus filhos, também é mãe daqueles que não são dela." "E se entra na Igreja uma raposa herética é preciso fazer dela uma ovelha." (8)
Sua Santidade o patriarca ecuménico Athenagoras quer que os falsos profetas e os heréticos
* (4) São Marcos, 13, 11.
(5) Id. 9, 9.
(6) Id. 13, 15.
(7) São João Crisóstomo, P. G., 55; P. G., 61, col. 360-362;
P. G., 55, col. 280.
(8) Id., P. G., 49, col. 70, 71, 75. *
sejam "tratados com cuidado, sem sentirem a mão do médico". (9) "É preciso passar uma esponja embebida em água refrescante sobre as suas feridas em chaga evitando o contacto brutal dos dedos." (10)
Claro. É o patriarca que tem razão. E eu não. Mas é preciso saber uma coisa: a união da Igreja, una, santa, apostólica, católica e ortodoxa, não está nas seitas unionistas, ecuménicas e sincretistas que pululam no planeta nestes tempos. A união só se pode realizar em Cristo, no seu corpo, que é a Igreja. A união do corpo de Cristo só se pode realizar ao nível da santidade. Tudo o resto não passa de novas desuniões. Novos pregos enterrados na carne de Cristo.
O patriarca sabe que fiz exactamente o mesmo gesto de São Pedro, que se exaltou para defender Deus: "Então, Simão Pedro, que tinha uma espada, puxou dela e atingiu o servo do sumo sacerdote e cortou-lhe a orelha direita." (11) Cristo disse: "Tem-te, basta." "E, tocando-lhe na orelha, curou-o." (12)
Na verdade, Athenagoras voltou. No seu rosto, havia a palavra: "Basta." "Mete a espada na bainha." (13)
Mas por Athenagoras ser o patriarca, o pai dos nossos padres e por ser santo e bom, não quis deixar a minha pergunta sem resposta. É caridoso. E revelou-me como será efectuada a união da Igreja. Porque imita Cristo. Como todos os monges. E Cristo também mostrou aos apóstolos, no monte Tabor, no dia da Transfiguração, como serão as coisas do futuro, em que nós acreditamos e pomos toda a nossa esperança, toda a nossa vida e pelas quais estamos prontos a morrer.
* (9) São João Crisóstomo, P. G., 56, col. 298.
(10) Id., P. G., 56, col. 299.
(11) São João, 18, 10.
(12) São Lucas, 22, 51.
(13) São João, 18, 11. *
No mesmo dia em que fiz esta pergunta a Athenagoras sobre o futuro, reli as belas páginas de Santo Agostinho em que diz: "Quando falo dos cristãos no plural, penso no singular, num único ser em Cristo. Um. Vós sois, portanto, vários e no entanto sois um." (14)
"Nosso Senhor não está só em si mesmo, mas também está em nós, que somos a sua Igreja, o seu corpo, os seus membros. Dominus enim Jesus non solum in se sed et in nobis." (15)
"Cristo e o povo cristão formam um só homem até ao fim dos séculos. Unus homo usque ad finem saeculi extenditur." (16)
"Nós não só nos tornamos cristãos, mas tornamo-nos Cristo, visto que Ele é a cabeça e nós somos os membros. O homem integral é Ele e nós. Non solos nos christianios factos esse, sed Christus. Totus homo, ille et nos, Christos et Ecclesia." (17)
É certo que Cristo está presente no corpo inteiro. Não só na cabeça. Está em todos os membros. E esses membros devem estar unidos. Como num corpo vivo. Se um membro está doente, todo o corpo sofre. E em primeiro lugar é a cabeça, é Cristo, é Deus que sofre. Qualquer amputação no corpo da Igreja é uma amputação no corpo de Deus. E em nós próprios. No nosso corpo.
Portanto, tenho a certeza absoluta que a união da Igreja se realizará. Como tenho a certeza absoluta da realização das coisas do futuro, da ressurreição da carne, do Juízo Final e da existência do Paraíso e do Inferno. Mas assim como os apóstolos,
* (14) Santo Agostinho, P. L., 37, col. 1679.
(15) Id., P. L., 37, col. 1157.
(16) Id., P. L., 37, col. 1083.
(17) Id., P. L., 35, col. 1568. *
apesar da sua fé, fizeram perguntas a Cristo, também continuo a interrogar o patriarca ecuménico acerca do dia abençoado em que a Igreja de Cristo na Terra será una, santa, apostólica, católica e ortodoxa.
E o patriarca ecuménico revelou-mo. Ao vivo. Exactamente como Cristo expunha a sua doutrina, não com discursos académicos, mas com palavras poéticas, como nós as empregamos no Oriente. E com exemplos. E o patriarca mostrou-me, com um exemplo, o que será a união. Eis como procedeu:
Sentia-me extremamente embaraçado, porque, tanto da primeira vez, na Suíça, como em Constantinopla, o patriarca ecuménico não me permitiu que lhe beijasse a mão, como é costume quando um padre encontra o patriarca. É certo que, na liturgia, beijo-lhe a mão. O beijo da liturgia. Mas fora da liturgia, não. Foge sempre com a mão. Aperta-me nos braços dizendo:
- Vós não! Não.
Não compreendo porque todos os outros padres tinham o direito de beijar a mão do patriarca ecuménico e eu não. A frase "Vós não!" intrigava-me.
Pouco tempo depois da minha pergunta sobre a maneira como seria efectuada a união e o momento em que se realizaria, o patriarca chamou-me. com urgência. Mandou o carro buscar-me
À minha chegada, recebe-me de braços abertos.
Oh! É assim que espero ser recebido no Céu. Porque, exactamente, Deus tem os braços abertos, estendidos para nós, exactamente como os de Athenagoras. Braços como asas de águia. Que abraçam o Cosmo. Sentei-me à sua direita. Na cadeira que me reservava todos os dias, desde que estava em sua casa. Mesmo a seu lado. Em frente de Ataturk. com a Mãe de Deus atrás de nós. Por cima das nossas cabeças. Esperava que me dissesse porque me tinha mandado chamar com urgência. Mas falava-me de outras coisas. E eu continuava sem perceber a razão desta chamada a sua casa se não tinha nada para me dizer. Mais do que isso. Uns minutos depois, chega ao patriarcado um santo e velhíssimo bispo eslavo que conheço há muito. Como o velho bispo está muito fraco, entra no gabinete do patriarca amparado por um diácono. Sozinho não pode andar. Nem manter-se de pé. Precisa permanentemente de alguém que o ampare.
Levanto-me para sair. Mas primeiro deixo o santo bispo eslavo saudar o patriarca. Depois disso, despeço-me. É um protocolo elementar.
E foi então que assisti a uma cena que me perturbou. Que nunca tinha visto. Celebrei em centenas de igrejas. Vi centenas de metropolitas e de bispos. Mas o santo e velho bispo eslavo, ao chegar junto do patriarca ecuménico, que o recebeu de pé e de braços abertos, não se deixou abraçar. Primeiro curvou-se apoiando-se nos joelhos em frente de Athenagoras. Depois tocou o soalho com a fronte. Mesmo junto dos pés do patriarca ecuménico. A seguir levantou-se. E só então se deixou abraçar. E trocou o beijo da paz com o patriarca. Como todos os metropolitas e todos os bispos da Terra. Pousei a mão direita no coração e, inclinando-me, fiz uma reverência e beijei a mão do velho bispo. Depois saí. E, à saída, o patriarca ecuménico estendeu-me a mão. E, mais uma vez, não permitiu que lha beijasse.
Desta vez, eu estava furioso. Ofendido. Depois da partida do bispo eslavo, Athenagoras chamou-me de novo ao seu gabinete. Entrei. Sombrio. Contristado. Ele, em contrapartida, estava sorridente. Vitorioso. Zombeteiro, mesmo.
Não podia calar-me mais e disse-lhe:
- Vossa Santidade, ainda agora, permitiu que esse santo bispo, que é velho e doente, que não pode aguentar-se de pé nem andar sem ser amparado por alguém, se curvasse perante vós. Se prostrasse a seus pés. Como se faz diante de Cristo. Permitiu-lhe que tocasse as suas botas com a testa... E a mim, que sou um simples padre, não me permite sequer beijar-lhe a mão direita, como é costume na nossa Santa Igreja. Porquê, Vossa Santidade? Porquê?
Athenagoras olhava para mim. Sorria e calava-se.
A minha cólera era cada vez maior. Nós, ortodoxos, somos uma só Igreja, com a mesma liturgia, os mesmos sacramentos, a mesma origem, a mesma tradição. Somos iguais em tudo. Nada nos diferencia uns dos outros, excepto a língua. Romenos, russos, finlandeses, lituanos, estónios, polacos, búlgaros, sérvios, georgianos, gregos, albaneses, ucranianos, somos todos ortodoxos da mesma maneira. Somos uma só nação. A nação cristã. O rum millet.
- Viu um bispo romeno prostrar-se diante do patriarca e tocar nas botas do patriarca com a fronte? - perguntou Athenagoras.
- Não - respondi. - Na Roménia, não vi isso.
- Pois bem, os russos fazem isso. Porque quer fazer o que fazem os outros? Cada um deve seguir a sua própria tradição. Nós somos todos ortodoxos. Mas os russos têm os seus costumes. Que lhes pertencem como coisa particular. Os romenos têm outros. Esses costumes não nos separam uns dos outros. São característicos de cada um. E cada um deve conservar os seus.
Lembrei-me bruscamente de uma pergunta que Santa Mónica, mãe de Santo Agostinho, fez ao filho, que era estudante em Milão. Santa Mónica acabava de chegar de África, da sua pátria, para viver junto do filho, em Milão. Em África, nesse tempo, os cristãos jejuavam ao sábado. E Santa Mónica ficou chocada por ver que os cristãos de Milão não jejuavam ao sábado. Perguntou ao filho, que era nessa época catecúmeno, quem estava na razão ou quem não a tinha. Quais eram os verdadeiros cristãos: os de África, que jejuavam ao sábado, ou os de Milão, que não jejuavam ao sábado? Porque uns deviam estar dentro da razão e os outros estar errados. Santo Agostinho não soube responder à pergunta de sua mãe. Foi pedir esclarecimentos a Santo Ambrósio, bispo de Milão. E Santo Ambrósio disse-lhe que não só os cristãos de África, mas também os de Roma, jejuavam ao sábado.
- Então, é preciso que nós, cristãos de Milão, jejuemos também ao sábado? - perguntou Santo Agostinho.
- Nada disso - respondeu Santo Ambrósio.
- Nós não jejuaremos ao sábado.
- Então, nós somos diferentes. Que devemos fazer para estar na verdade? A Igreja é una.
- Respeitar a tradição dos nossos antepassados - respondeu Santo Ambrósio. - E não só observar a tradição dos antepassados, mas respeitar também a tradição dos outros cristãos. Mesmo que seja diferente da nossa.
E Santo Ambrósio deu um exemplo que Santo Agostinho descreveu mais tarde.
- Eu - diz Santo Ambrósio - respeito o jejum do sábado quando estou em. Roma e não jejuo ao sábado quando estou em Milão. (18)
São Gregório de Nazianzo também varreu da sua santa mão todas as particularidades inerentes a cada homem e a cada povo, mostrando que elas não podem, em caso algum, ser elementos de discórdia, de separação, de desunião. Até os quatro Evangelhos são diferentes uns dos outros e são obra do mesmo Espírito Santo: "Na verdade, nós não vamos sustentar que os evangelistas se contradisseram
* (18) Santo Agostinho, P. L., 33, col. 136, 199, 204, 137 e 138. *
mutuamente só porque uns se aplicaram mais na humanidade de Cristo e outros abordaram a sua divindade, porque uns começaram por aquilo que está ao nosso alcance e outros por aquilo que nos ultrapassa: Assim partilhavam, penso eu, a exortação do interesse daqueles que os acolhiam. Assim os formava o Espírito Santo que habitava neles." (19)
- Responda-me, padre Virgil, porque quer fazer o que fazem os eslavos quando encontram o patriarca ecuménico? Deve fazer aquilo que fazem os romenos. Porque cada um deve respeitar a tradição de seus pais. E depois a tradição de seus irmãos. É assim que se permanece fiel a Cristo, que é o nosso único Pai.
Corei, porque estava de novo a errar.
Lembro-me que em Paris, quando ia celebrar na linda catedral russa da Rue Daru, na cripta, onde se celebra a santa liturgia em língua francesa, vi o presbítero, o saudoso padre Pierre Struve, a fazer a metania - a prosternação-, ao entrar no santuário, tocando com a fronte no chão, em frente da mesa sagrada, em frente do altar. Não só tocava três vezes com a fronte no pavimento como beijava o chão em frente da mesa sagrada. Beijava-o com os seus lábios. Tocando o soalho com os seus lábios. E eu ouvia o ruído do seu beijo. Três vezes. E o padre Struve não era apenas padre. Era também médico francês. E era mais francês que eslavo. Mas respeitava a tradição eslava. Porque era padre numa igreja russa.
Vendo-o fazer este acto de piedade, sentia-me humilhado. Porque eu, como todos os ortodoxos da Roménia, da Grécia, da Sérvia, da Bulgária e de outros lados, inclinamo-nos, prostrando-nos três vezes, em frente da mesa sagrada. Mal tocando,
* (19) São Gregório de Nazianzo: Elogio de Basílio, 69, 5. *
ou nem sequer tocando, com o braço direito, o soalho em frente do altar.
É claro que o padre-médico Struve e os monges russos têm razão em beijar o pavimento do santuário com os seus lábios e de o tocar com a fronte. Porque o pavimento do santuário representa o Céu. Verdadeiramente. E se não se venera o Céu beijando-o com os lábios e tocando-lhe com a fronte, que nos resta de sagrado para tocar com os lábios e com a fronte?
Mas esta tradição, por mais bela que seja, não é a tradição dos gregos nem dos romenos. E eu respeito a minha tradição. E a tradição de meus pais. Mas quando estou na pátria russa, respeito a tradição deles, que são meus irmãos. E faço como eles. Porque é isso a unidade da Igreja, do corpo de Cristo. Não só respeitar a sua própria tradição, mas também a tradição dos outros. Como Santo Ambrósio, Santo Agostinho e Santa Mónica, que jejuavam ao sábado quando estavam em Roma e não jejuavam ao sábado quando estavam em Milão. É assim com todas as coisas. Os padres russos apertam as sotainas no ombro. Como é usual apertar a camisa camponesa na Rússia. Os gregos e os romenos abotoam a sotaina como os ocidentais, no peito. Será um motivo de separação? Serão mais ortodoxos aqueles que abotoam a sotaina no ombro, ou no peito? É estúpido começar tais discussões. E são justamente essas discussões que cortam em dois o corpo de Cristo, a Igreja. Transformando-a em Igreja do Oriente e do Ocidente.
A união é ao mesmo tempo o respeito de todas as personalidades. Porque é permitido ter santos regionais e nacionais. E um modo de santidade local. Assim como se permitem todos os costumes locais. Há festas locais e de santos nacionais. Há dias de jejum próprios de uma região. O vestuário também sofre a influência local. Na Grécia, não há padres sem barba e cabeça descoberta. Nunca ninguém me censurou por andar de cabeça descoberta ou com um chapéu laico.
Compreendi então que a união que o patriarca ecuménico me descrevia era a verdadeira união. Que não significa nivelamento. Nem uniformização. Nem a estandardização. Os cristãos não são como os produtos industriais. Os homens não são criados em série. Como as plantas, os animais e os minerais. Cada homem é um exemplar vivo. Mas todos nós, com as nossas particularidades, formamos um só povo, um só corpo de Cristo. Como, na Trindade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um em três pessoas. A união entre os católicos e ortodoxos não significa nivelamento, uniformização. A união significa pelo contrário enriquecimento pela diferença. "A Igreja é o corpo de Cristo, a plenitude daquele que se completa em tudo, de todas as maneiras." (20) A Igreja é a plenitude e a extensão da Encarnação. É um corpo vivo composto de células com a forma de órgãos diferentes apesar de serem os mesmos. Se se tentar fazer da união uma força política, um facto histórico, uma coisa social, é falso. A Igreja é viva. Como um organismo. Composto de diversidades.
Tenho agora uma amostra do que será a união de amanhã. A unidade da Igreja de Cristo. Que nós esperamos. com impaciência. com certeza. com absoluta confiança.
A unidade da Igreja não abolirá a diversidade. Os doze apóstolos foram todos homens diferentes uns dos outros. Sobretudo os dois irmãos André e Pedro eram tudo quanto pode haver de mais diferente, em todos os domínios: maneira de viver, de pensar, de sentir e de organizar a sua existência terrestre. E, apesar das suas diferenças, André
* (20) São Paulo: Efesianos, 1, 23. *
e Pedro receberam o Espírito Santo. Da mesma maneira. E a mesma missão.
Se Deus quisesse que a sua Igreja fosse uniforme como os produtos manufacturados, Cristo só teria escolhido Pedro. E toda a Igreja seria conforme a maneira de viver de Pedro. Ou Cristo teria escolhido apenas André, sem Pedro, e a Igreja, por toda a Terra, seria conforme a maneira de viver e de esperar de André.
André e Pedro eram irmãos pela carne. Irmãos pelo espírito. Irmãos pelo martírio. E nada era tão diferente como o comportamento destes dois irmãos.
A união feita por Paulo VI e por Athenagoras não será uma violência feita à maneira de viver, de esperar e de rezar dos seus antecessores e dos seus fiéis.
Cristo não obrigou Pedro a viver como André, nem André a viver como Pedro. Pedro não foi forçado, nem por Cristo nem pelo Espírito Santo, a mudar a sua maneira de viver e a seguir o caminho de seu irmão André, que estava habituado
- desde que era discípulo de São João Baptista a passar o tempo no deserto, em meditação, a jejuar, em busca do absoluto, alimentando-se de raízes e de saltões...
André também não foi obrigado a viver como Pedro, que era um digno cidadão, um homem ponderado, organizado, reflectido, com os pés pousados na terra. Os sucessores de São Pedro criaram a civilização ocidental, que é a maravilha do mundo. Quando a união se concluir, os sucessores de São Pedro continuarão a viver como o santo fundador da Igreja de Cristo no Ocidente.
André e os seus sucessores criaram a Igreja de Cristo no Oriente, sobre a fé vivida, incandescente, total. Os discípulos de Santo André dirigiram-se com toda a sua atenção, toda a sua vida, todas as suas preocupações sobre as coisas do futuro e sobre o Além. Os seus olhos estão continuamente fixos nos fins últimos e as suas preocupações na Terra e a deificação do homem desde cá de baixo, por abdicação, por ascese, pela oração e pela fé na Igreja e nos seus sacramentos. A Igreja de Santo André é uma Igreja escatológica.
Apesar da diferença entre os dois irmãos André e Pedro, Cristo escolheu-os a ambos. Isto quer dizer que Cristo é verdadeiro, tanto em Pedro como em André. André e Pedro foram, são e continuarão a ser irmãos, e a Igreja fundada por eles é una e a mesma. Pela carne, têm a mesma mãe e o mesmo pai. Têm pelo Espírito o mesmo Pai, que está no Céu, e a mesma Mãe, que é a Igreja. Porque foi dito que ninguém pode ver Deus como Pai se não tiver a Igreja por Mãe.
Ao ouvir todas estas coisas da boca do patriarca ecuménico, apesar de já as saber, corei de felicidade. Não compreendo como os cristãos esperaram tanto tempo para perceber coisas tão simples, tão claras e tão evidentes. E porque se separaram e porque fizeram uma guerra fratricida, impiedosa, durante nove séculos...
Cristo sofreu uma segunda crucificação, que durou nove séculos, para que nós compreendêssemos que as diferenças não abolem a fraternidade e que, apesar das nossas diversidades, somos irmãos e temos um único Pai e uma única Mãe: Deus e a Igreja.
DEUS FALA PELA BOCA DE ATHENAGORAS
FORAM os católicos que pronunciaram esta frase ao ouvir em Roma, em 1967, o patriarca Athenagoras e vendo-o ao lado do papa Paulo VI, na basílica de São Pedro. Os Romanos disseram: "Deus fala pela boca de Athenagoras."
Nós, os ortodoxos, nunca duvidamos que "o Espírito Santo falava pela boca do padre". (1)
Ao ver o patriarca, nós vemos realmente Deus. Porque, onde estiver um bispo, é lá a Igreja. E a Igreja é o corpo de Deus. Nós também sabemos, com certeza, que o Espírito Santo é Deus e "Ele faz-me Deus cá em baixo, apesar de eu ser homem". (2)
Por isso não me surpreendeu muito ouvir a bela frase repetida pelos Romanos: "Deus fala pela boca de Athenagoras." Claro que isto nos deu uma enorme alegria. Estávamos orgulhosos por ouvir estas belas palavras, após nove séculos de guerra fratricida. Mas Deus não fala apenas pela boca de Athenagoras. Deus fala pela boca de todos os padres, de todos os bispos e de todos os patriarcas. "Em cada Igreja local, desde que seja propriamente uma Igreja e composta por membros
* (1) São João Crisóstomo, P. G., 55, col. 311.
(2) São Gregório de Nazianzo, P. G., 37, col, 408. *
no sentido próprio do termo, o Espírito Santo estabeleceu cabeças e pastores. Não é um abuso chamar assim aos bispos porque eles são propriamente chefes, cabeças... Cada bispo é na Igreja local o mesmo que Deus é no Céu para a Igreja dos primogénitos e o que o Sol é na Terra." (3)
Sabia desde sempre que Deus era Athenagoras. E isto não era uma coisa excepcional. Mas corrente. Porque "Deus quer sempre fazer-se homem naqueles que são dignos disso". (4)
Estava na ordem natural das coisas que Deus falasse pela boca de Athenagoras. Ele é o patriarca, a pátria, o primeiro pai de todos nós. E foi pela boca dos patriarcas que Deus se dirigiu sempre a seus filhos. Portanto, parece-nos normal que Deus fale pela boca de Athenagoras. O contrário é que seria anormal.
Que ele seja santo apesar de ser homem também é uma coisa que todos nós esperamos, porque o destino normal do homem é vir a ser santo. Athenagoras é como os seus inúmeros antecessores que estão no calendário. Como São Basílio, que, "tendo-se elevado acima do mundo inteiro e encontrando-se em dificuldades no mundo visível dos elementos, nem sequer suportava ter o Céu por cima de si. Mas elevava-se pela alma para o Além... e movia-se com as forças celestes sem que algum peso carnal impedisse a viagem do seu espírito". (5)
Que Athenagoras seja um homem com olhos já sem cor, porque todo o seu rosto se transformou em luz, como acontece com todos os santos, também nos parece uma coisa normal. Porque:
* (3) Confissão de Dosithee, patriarca de Jerusalém. Sínodo de Jerusalém, 1672, e Dogmática, de J. Karmiris, Atenas, 1953, 11, 752.
(4) São Máximo, o Confessor, P. G., 90, col. 321.
(5) São Gregório de Nissa, P. G., 46, col. 813. *
"Tal como o ar que envolve a Terra se torna luminoso, em altura, também o espírito, quando abandona esta vida lodosa e se mistura com a verdadeira pureza, se abrasa nela e se torna também luminoso." (6)
tem o destino normal porque "os primeiros homens viviam misturados com os coros angélicos". (7)
Também é normal que eu veja Deus ao olhar para Athenagoras: "Porque a pureza da alma tem o poder de reflectir Deus em si." (8)
"A beatitude não consiste em saber alguma coisa de Deus, mas em ter Deus em nós." (9)
É por ter Deus em si que Athenagoras permanece jovem. "Porque o Espírito Santo conserva jovem quem o possui, como um arbusto de grande qualidade conserva jovem o vaso onde se abriga." (10)
O facto de Athenagoras comer à mesma mesa que Judas e isso não o escandalizar, de amar os heréticos, de nunca dizer mal daqueles que merecem castigo também é a atitude de todos os santos. E pode-se dizer dele o que se dizia de São Macário, o Grande, que ele é um Deus terrestre, porque, assim como Deus protege o mundo, Athenagoras esconde os erros que vê como se não visse e ouve-os como se não os ouvisse." (11)
Ele, que é pobre e vive em duas celas num terceiro andar, sem elevador, com móveis de madeira em branco, convidou-me para sua casa e alojou-me no mais caro dos hotéis. E nisso é como todos os santos que o precederam. Como esse
* (6) São Gregório de Nissa, P. G., 46, col. 366-C.
(7) Id., P. G., 44, col. 508-B.
(8) Santo Atanásio, P. G., 26, Contra Gentes, 2, 5.
(9) São Gregório de Nissa - II e Homilia sobre as Beatitudes.
(10) Santa Irene - Contra Haer, in, 24, 1.
(11) Apotegmas dos Padres, Alfabético, Macário, 32. *
monge de que falam os Apotegmas dos Padres: "Um irmão não possuía mais nada senão um Evangelho. Vendeu-o e gastou o dinheiro em comida para os famintos, acrescentando esta frase memorável: "O que fiz foi o próprio livro que me ensinou: Vende o que tens e dá-o aos pobres."" (12)
é como todos os santos.
Mesmo assim há nele algo que me perturba. Eis do que se trata: sempre que Sua Santidade Athenagoras me recebia em sua casa mandava-me sentar junto dele. E, enquanto falava comigo, conservava nas suas a minha mão direita.
Sinto-me como na orientação, na quirotonia, quando me apercebi das mãos do bispo pousadas na minha cabeça, em sinal de consagração. Nesse momento, quase desmaiei sob o peso incandescente do Espírito Santo, que acabava de receber. Porque o Espírito Santo descia sobre a minha cabeça através das mãos do bispo. Descia em mim. E sempre que toco nas mãos de Sua Santidade Athenagoras tenho a mesma sensação. As mãos do patriarca ecuménico têm um calor completamente diferente do calor que se nos depara na Terra. Nenhum se lhe compara. Tentei, com obstinação, perceber a que se assemelhava o calor das mãos de Athenagoras. O calor das mãos de meu pai era diferente. O de minha mãe também. O calor das mãos dos homens que encontrei não se lhe assemelha em nada. Athenagoras não tem o calor das pessoas de idade, nem das crianças, nem dos jovens... É um calor que nunca senti em parte alguma. Portanto, procurava um calor parecido.
E um dia, tendo de baptizar um recém-nascido, que só tinha um dia de vida, peguei nele, totalmente nu, para o mergulhar três vezes na água
* (12) Evágrio, o Pôntico - Práticos, 11, 97. *
do baptistério. Então as minhas mãos descobriram o segredo do calor das do patriarca Athenagoras. Era o mesmo calor. Claro que o calor de Athenagoras é diferente do calor do bebé recém-nascido, que só tinha um dia de vida. Mas havia uma semelhança flagrante entre o calor do pequenino corpo do bebé com um dia de vida e o calor das mãos do patriarca ecuménico.
As mães e todos quantos tocam num recém-nascido, como toquei para o baptizar, apercebem-se facilmente de que os recém-nascidos não têm calor próprio. O calor dos seus corpos não é um calor proveniente da sua carne e do seu sangue. São novos de mais para isso. Nas primeiras horas da sua existência, o calor dos seus corpos é o calor do corpo de suas mães. Enquanto esperam para ter o seu próprio calor, vivem do calor que lhes foi comunicado por suas mães... Portanto, não é um calor próprio dos seus corpos. É emprestado. Tem a sua origem noutro lado. Naquelas que os trouxeram nas suas entranhas e lhes deram a vida.
Acontece a mesma coisa com o calor das mãos de Athenagoras. Ele desprendeu-se tanto da Terra e aproximou-se tanto de Deus e vive tanto em Deus que o calor do seu corpo já não lhe pertence: é o calor de Deus. Do seu Pai Celeste. As suas mãos são quentes. Mas não é o calor próprio. É o calor do Criador. Porque ele está tão desprendido da sua carne e tão perto de Deus no fim da sua vida como o recém-nascido está preso à mãe nas primeiras horas da sua existência. A luz dos seus olhos também é a luz do Alto. Reflectida nos seus olhos. Como o calor do seu corpo.
Não só ao ouvir o patriarca ouço Deus falar pela boca de Athenagoras, não só ao ver o seu rosto vejo Deus reflectido nele, mas também, ao tocar as suas mãos, toco Deus, que está nele. E sinto Deus. Como foi dito: "Da minha carne, verei Deus... Aquele que os meus olhos virem não será um estranho." (13)
No Juízo Final, ao apresentar-me diante do meu Rei do Céu, hei-de reconhecê-lo em tudo. Porque desde cá de baixo, na Terra, comecei a ver a Sua luz. Ouvi a Sua voz e senti o calor das Suas mãos vendo Athenagoras, ouvindo Athenagoras e tocando as mãos de Athenagoras. Mas Deus fala sobretudo pelos silêncios de Athenagoras. Nos seus silêncios, ouve-se Deus. Athenagoras está prisioneiro. Os seus duzentos milhões de fiéis vivem todos em redis estrangeiros. Cativos. Prisioneiros. Exilados. Por isso, Athenagoras fala sobretudo com silêncios...
E é Deus que grita com a sua voz de trovão, nos silêncios de Athenagoras...
* (13) Livro de Job, 19, 27. *

 

 

                                                                  Virgil Gheorghiu

 

 

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