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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ATRAÇÃO PERIGOSA / Yvonne Whittal
ATRAÇÃO PERIGOSA / Yvonne Whittal

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ATRAÇÃO PERIGOSA

 

Um carro parou diante do enorme edifício cinza e branco, no centro de Joanesburgo, e uma garota desceu, seguida por um cão que não desgrudava de suas pernas. A garota acenou para o homem que ficara no carro, esperou até que ele se afastasse e dirigiu-se para a entrada do edifício. Seus cabelos eram de um lindo tom castanho profundo e caíam, lisos, até os ombros, refletindo os tons dourados dos últimos raios do sol da tarde. Os óculos escuros escondiam os seus olhos, mas o nariz era pequeno e reto, o queixo redondo e firme e os lábios cheios e suaves, como se estivessem sempre sorrindo.

Rose Cunningham era linda, mas não parecia saber disso. Também não sabia que seu corpo se movimentava com uma graça natural, atraindo os olhares masculinos quando ela passava. Naquele momento ela caminhava impassível, mergulhada em seus pensamentos e confiante no cão guia ao seu lado, que a conduziu, sem hesitação, até a mesa da recepcionista.

- Eu tomarei conta de Sheba para você, srta. Cunningham - a garota disse e Rose sorriu, curvando-se para acariciar o animal antes de largá-lo e caminhar até o elevador.

Apertou o botão na parede e as portas de aço se abriram rapidamente. Rose entrou naquele compartimento gelado por causa do ar condicionado e tateou os botões até achar o que queria. Pressionou-o e as portas se fecharam. Ela esperou o "click" familiar e subiu para o quarto andar.

Conhecia aquele edifício como conhecia sua própria casa. Tinha ido tantas vezes lá nos últimos anos, encontrar o pai, que já conseguia achar o caminho lá dentro sem precisar do auxílio de Sheba. Mas hoje era um dia diferente.

Sentia-se um pouco perturbada e infeliz depois da conversa com Noreen Butler naquela tarde e, quando saiu do elevador, não estava muito animada. Virou para a esquerda pelo corredor acarpetado, andando depressa por causa de sua agitação interior, e deu um encontrão com um homem alto e forte. Quase perdeu o fôlego.

- Desculpe-me, por favor - ela pediu, sentindo-se sem muito equilíbrio. Só então percebeu que o homem a segurava com mãos fortes, ajudando-a a se manter sobre as pernas trêmulas. Em um instante, Rose tomou consciência de que o estranho vestia uma roupa de tweed áspero, sentiu o leve perfume da colônia máscula que ele usava e sentiu algo mais, que não conseguia definir... a sensação de uma emoção nova transmitida aos seus nervos... uma espécie de corrente elétrica.

- Eu não tenho por hábito dar encontrões com as pessoas. - Ela tentou se desculpar novamente, percebendo o aborrecimento dele e sentindo que as mãos fortes a empurravam para o lado com uma certa impaciência.

- Talvez, se você tirasse esses óculos infernais, pudesse ver melhor por onde anda - disse uma voz profunda e máscula.

- Isso não iria fazer a menor diferença - ela replicou, divertida e sorrindo. - Veja, eu sou cega.

- Nesse caso, não devia estar andando por aqui sem ajuda - respondeu ele, sem parecer nem um pouco desapontado com a revelação.

Contra a sua própria vontade, Rose sentiu-se curiosa.

- Meu ajudante está esperando lá embaixo, na entrada. Ele tem quatro patas e é de muita confiança, mas conhece o seu lugar.

- Com quem você quer falar? - Ele fez a pergunta de um modo rápido, sem hesitação nem embaraço e Rose começou a ficar mais interessada ainda naquele estranho.

- Estou procurando Theodore Cunningham. O escritório dele fica a quatro portas daqui, eu acho.

- Isso mesmo. - A voz dele soou rápida, impaciente. - Acha que conseguirá chegar até lá sem dar trombadas com outros pobres passantes?

- Vou fazer o melhor possível.

Rose percebeu que ele se afastava e esperou ouvir as portas do elevador se fecharem. Depois, estranhamente perturbada pelo encontro, caminhou com cuidado pelo corredor até o escritório dos advogados Cunningham & Fraser.

- Olá, minha querida - cumprimentou seu pai quando ela entrou na sala. - Como chegou aqui?

- Basil me deu uma carona, de modo que posso voltar para casa com você. - Ela tez uma pausa e tentou se esquecer dos próprios problemas perguntando: - Teve um dia muito ocupado?

- Razoável - disse Theodore e ela ouviu a cadeira estalar, como sempre, quando ele se recostava. - Você me parece um pouco agitada. O que aconteceu?

- Oh... - ela suspirou, deu de ombros e respondeu calmamente. - Eu tive uma tarde especialmente terrível e quase derrubei alguém no corredor, agora há pouco.

- Você foi ver algum paciente de Basil Vaughn esta tarde?

Ela fez que sim e então sentiu que não podia mais agüentar.

Uma jovem mãe de duas criancinhas, que ficou cega por causa de ácido. Ela está recebendo uma ajuda financeira da firma onde trabalhava, mas...

- Não, Rose - interrompeu o pai e a cadeira estalou de novo, pois ele tinha se levantado e agora estava ao lado dela, colocando o braço em seus ombros. - Não se torture desse jeito.

Rose afundou o rosto no tecido caro do paletó do pai e sentiu seu perfume familiar.

- Eu só queria poder fazer alguma coisa por ela.

- Você está fazendo alguma coisa - insistiu Theodore rapidamente.

- Você está ajudando essa pobre mulher a se adaptar a uma nova situação, e isso é muito importante.

- A aceitação não é algo que alguém possa lhe dar e sim algo que ela tem de achar por si mesma.

- Você sabe disso e eu também sei. Com coragem, determinação e confiança isso poderá ser conseguido. Ajude-a, Rose, mas só se sua coragem, confiança e determinação permanecerem intactas. Se você perder a fé em si mesma, os outros perderão a fé naquilo que você está tentando fazer.

Aquela frase era maravilhosa e cheia de raciocínio, mas em momentos como aquele, quando ela se sentia impotente e desajustada, Rose ficava cheia de uma amargura inútil.

- Não se desespere, Rose, continue tentando e o bom senso a conduzirá até o final.

Ela o abraçou pela cintura e disse:

- O que eu faria sem você, papai?

- Encontraria outra pessoa para lhe passar um sermão.

Ele disse aquilo com tanta naturalidade que ela riu. Minutos depois saíram juntos do escritório, descendo até o vestíbulo para pegarem Sheba.

 

Quando Theodore saiu, depois do jantar naquela noite, Rose levou Sheba para o passeio costumeiro pelo jardim, mas era uma noite fria de outono e quinze minutos depois já estavam voltando para casa.

Tudo ali era silêncio, a não ser os sons dos criados se movimentando na cozinha. Rose sentou-se em sua poltrona favorita na sala, alisando a cabeça macia do cachorro, até que o animal se esticou aos seus pés e ficou ali cochilando, mas mesmo assim atento a qualquer coisa ou pessoa que pudesse ameaçar a sua dona.

Rose geralmente passava as noites ouvindo música, mas naquele momento seus pensamentos estavam agitados demais para isso. Pensou em Noreen Butler deitada na clínica e em como o desespero da mulher a contagiara. Tinha passado quase três horas com ela, conversando, encorajando-a e ouvindo-a contar suas amarguras e temores. Nada do que Rose dissera tinha causado a menor impressão e ela se sentiu até aliviada quando Basil entrou na enfermaria, avisando que era hora de sair.

O ruído do abajur sendo ligado interrompeu seus pensamentos e uma voz irritada indagou:

- Srta. Rose por que está sentada aí, sozinha, na escuridão.

Ela deu de ombros:

- Com luz ou sem é tudo a mesma coisa.

- Quem a aborreceu de novo? - indagou a mulher negra que servia Rose como criada pessoal e motorista nos últimos dez anos e agora colocava os pés da moça sobre um banquinho.

- Será que algum dia casarei com alguém... - perguntou Rose, sem prestar atenção à pergunta da criada.

- Claro que vai casar, srta. Rose.

- Se devo casar e ter filhos... nunca vou saber como eles são - continuou Rose, ignorando a interrupção. - Como deve ser terrível para alguém que era capaz de ver seus filhos de repente descobrir que nunca mais poderá vê-los novamente.

- Do que está falando, srta. Rose?

- Oh, não tem importância, Maggie. - Rose suspirou, apalpando seu relógio em relevo e descobrindo, surpresa, que já passava das dez horas.

- Está na hora de ir para a cama. - Levantou-se e o cão a imitou, enfiando o focinho molhado na palma de sua mão. Ela o acariciou amorosamente durante alguns momentos antes de se espreguiçar, depois pediu: - Você cuida de Sheba para mim, Maggie?

- Sim, srta. Rose. Vamos, Sheba, é hora de dormir.

A moça deu um tapinha gentil no cachorro, que seguiu Maggie, fazendo um leve ruído com suas patas enormes sobre o tapete.

Luz e escuridão. A passagem de uma para a outra tinha sido rápida e dolorosa. Rose acordara num hospital e ficara sabendo que jamais veria a luz novamente. Tinha doze anos. Agora, aos vinte e dois, ficava imaginando se podia confiar em suas lembranças. Como poderia ter certeza, agora que vivia no mundo da escuridão, das sensações de deitar sobre a grama e ficar olhando o céu azul, as nuvens mudando de forma segundo a segundo? Será que conseguia se recordar de tudo com precisão?

 

Rose fez visitas a Noreen Butler todas as tardes durante o resto daquela semana e também na semana seguinte. O dr. Basil Vaughn estava mais do que satisfeito com os resultados que ela vinha obtendo.

Quando entrou na enfermaria onde estava Noreen na tarde de sexta-feira, encontrou-a sentada ao lado da janela aberta e procurou a cadeira que Basil deixara lá perto, antes de sair. Conversaram durante longo tempo sobre os filhos de Noreen, sobre o marido dela e sobre o fato de ele ter encontrado um emprego perto da casa onde moravam. Depois de alguns momentos de silêncio, Noreen disse:

- Acho que já sabe que o dr. Vaughn pensa que estou recuperada o suficiente para ser transferida para a Clínica Lockhart amanhã.

- Não. Eu não sabia - respondeu Rose, escondendo sua satisfação diante daquela notícia inesperada. - Como está se sentindo diante disso?

- Nervosa.

- Na Clínica Lockhart eles irão ajudá-la a recuperar grande parte da sua autoconfiança e independência. Você aprenderá a ler e a escrever em braile e a desenvolver melhor seus outros sentidos.

- Eu sei. - Noreen pareceu animada. - O dr. Vaughn me contou que é como fazer um curso agradável numa escola.

- De certa forma, é mesmo. - Rose riu, lembrando-se de suas próprias experiências na infância, numa clínica semelhante àquela.

Depois ficaram em silêncio, ouvindo o ruído que vinha das enfermarias próximas. Então Noreen disse, num tom hesitante:

- Srta. Cunningham... Rose... acho que não vamos nos encontrar mais, mas eu... eu queria que soubesse que agradeço muito o que fez por mim. Sei que vou ser colocada nas mãos de pessoas que se especializaram nesse tipo de coisa, mas ninguém poderá me ajudar mais do que você nestas últimas semanas. Agora acho que já posso encarar o futuro e tenho de agradecer isso a você.

- Noreen - Rose esticou a mão e segurou a da mulher estou feliz por tê-la ajudado. É bom se sentir útil.

- Útil e necessária - respondeu Noreen, segurando firmemente a mão de Rose. - Sim, é muito importante. Saber que se é útil aos que estão ao seu redor. E saber que necessitam de você, como eu necessitei. Agora sei que minha família também precisa de mim.

Quando Basil chamou Rose, alguns minutos depois, perguntou:

- Pode me conceder alguns minutos, antes que eu a leve para casa?

- Sim, claro - disse ela depressa.

Ele a conduziu pelo corredor, enquanto explicava.

- Há um garoto de oito anos na ala das crianças. Ele se recusa a falar e a comer. Está sendo muito difícil tentar convencê-lo de que a cegueira não é o fim do mundo.

- Como aconteceu?

- Ele estava brincando com o rifle do pai. Houve um disparo. Mas teve sorte, conseguiu ficar com visão parcial em um dos olhos, apesar de que, por enquanto, nada pode ser garantido.

- Por Deus, como ele conseguiu pegara arma?

- Negligência do pai, eu acho... e depois esperam que eu faça milagres aqui - respondeu Basil com voz ríspida. - Coloquei o jovenzinho num quarto particular até que ele seja capaz de conviver com outras crianças - Basil completou e abriu a porta, conduzindo-a para perto de uma cama hospitalar alta.

A enfermeira murmurou algo e deixou-os rapidamente, fazendo um leve ruído com suas saias engomadas. Então Basil cumprimentou alegremente:

- Olá, Chris. Trouxe uma visita para você.

- Oi, Chris - começou Rose, mas sua tentativa só encontrou como resposta o silêncio; seus ouvidos sensíveis perceberam que a criança respirava fundo. Se não fosse isso, podia até pensar que estivesse falando com as paredes.

- Meu nome é Rose - tentou ela novamente e mais uma fez foi recebida com silêncio. - Sei que não sente vontade de conversar muito, mas se não falar alguma coisa eu não poderei reconhecê-lo novamente. Sabe, sou cega, mas aprendi a identificar as pessoas pelos sons de suas vozes.

O silêncio foi profundo durante alguns momentos, depois uma voz infantil e muito clara disse:

- Eu gostaria de estar morto!

- Não deve pensar assim, Chris - disse Rose depressa, mas não conseguia deixar de lembrar sua própria amargura, há dez anos atrás. - Chris?

Silêncio novamente e dessa vez Basil interveio com um tom de impaciência na voz:

- Vamos, Rose. O jovem Chris nos dispensou aos dois.

Basil a levou até a casa do pai, em Houghtom. Dirigia em silêncio e já passava das sete quando freou diante da residência.

- Droga! - ele exclamou, dando um murro na direção. - O jovem Chris não está respondendo ao tratamento e eu me sinto de mãos atadas.

- Ele precisa de alguma motivação. Algo que o faça perceber que há muita alegria na vida.

- Concordo com você. Mas o que poderia interessá-lo?

- Eu imagino... - ela começou, como se tivesse pensado em algo, depois pareceu afastar a idéia. Entretanto, decidiu arriscar-se a fazer uma sugestão: - Acha que poderia convencer a diretoria que esquecessem as regras e deixassem Sheba entrar comigo da próxima vez em que eu for visitar Chris.

Sheba, ao ouvir o seu nome, sentou-se na parte de trás do carro e bufou no pescoço de Rose.

- Acha que ele vai responder melhor a um cachorro? - Basil tinha as suas dúvidas.

- Ainda não conheci uma criança que não responda a um animal. - Ela riu, procurando se afastar do focinho frio de Sheba que fungava perto de seu pescoço.

- Acho que vale a pena tentar - Basil admitiu, mais entusiasmado.

- Vale, sim.

Ele ainda demorou um momento para tomar a decisão, depois disse com firmeza:

- Vou ter uma conversa com a enfermeira chefe, amanhã, logo cedo, depois telefono para você.

- Estarei esperando ansiosa - Rose disse e saiu do carro, abrindo a porta de trás para Sheba descer. - Obrigada pela carona, Basil.

Ele se afastou depressa e, antes que Rose desse instruções para Sheba ficar ao seu lado, Maggie aproximou-se rapidamente para encontrá-la.

- Está atrasada, srta. Rose - disse ela um tanto ofegante. - Esqueceu que seu pai tem convidados para o jantar desta noite?

- Oh, céus! - Rose suspirou com ar de culpa. - Esqueci completamente e ele deve estar bem zangado.

- Está preocupado.

- Sim, deve estar - ela concordou, cheia de remorso. - Vamos entrar pelos fundos e depois você me ajuda a vestir qualquer coisa mais apropriada.

Quando chegou em seus aposentos. Rose tomou um banho rápido e colocou um vestido de noite, de mangas compridas, que Maggie tinha escolhido. A criada ajudou-a a fechar o colar de pérolas e penteou-lhe os cabelos. Depois parou ao seu lado e a observou com ar de aprovação, enquanto Rose passava um batom nos lábios. Isso lhe custara longas horas de treino mas lhe dava muita satisfação agora.

- Como estou? - perguntou, num tom um pouco preocupado.

- Linda, srta. Rose. O verde do vestido combina com seus olhos, mas ninguém vai notar isso se estiverem sempre escondidos atrás desses óculos escuros.

Rose sorriu com tolerância e virou-se para a porta. Seus movimentos eram confiantes e seguros.

- Acho melhor ir descendo. Papai deve estar prestes e desmaiar!

Caminhou lentamente, virou à esquerda e seguiu pela escada, segurando levemente o corrimão e descendo até o vestíbulo.

A julgar pelo volume de vozes, seu pai estava recebendo uma multidão naquela noite. Ela não gostava de aglomerações. Sentia-se nervosa, mas, por causa do pai, sempre comparecia. Geralmente pedia licença para se retirar bem antes de que o primeiro convidado saísse.

Ouviu passos rápidos que cruzavam o vestíbulo e vinham ao seu encontro.

- Pelo amor de Deus, Rose, onde você andou?

- Desculpe, papai. Havia aquele garotinho e... - Ela mordeu os lábios e fez um gesto vago com as mãos. - Eu explico depois.

- Você chegou atrasada para o jantar, já estamos tomando café na sala de visitas - Theodore explicou, tomando-a pelo braço e caminhando com ela em direção ao burburinho.

Várias vozes familiares a cumprimentaram e ela conversou um pouco, enquanto Theodore lhe servia uma xícara de café. Então, Rose notou a presença de alguém próximo. Seu pai fez as apresentações.

- Rose, quero que conheça um cliente meu, Marcus Fleming. Ele é diretor da Fênix Engenharia. Marcus, minha filha Rose.

Uma mão forte segurou a de Rose.

- Muito prazer srta. Cunningham.

Aquela voz! Aquele tom profundo, modulado, com um timbre confiante, tocou em um ponto da memória dela.

- Mas já nos encontramos - ela disse um pouco espantada - e de um modo até violento, se é que me recordo corretamente.

- No corredor que vai para o escritório de Theodore... sim - concordou Marcus Fleming com um tom divertido na voz.

- Céus, Rose, foi em Marcus que você bateu naquele dia? - perguntou o pai.

- Lamento, mas foi, sim - ela admitiu, sentindo que enrubescia.

- Bem, vou deixar vocês dois conversando para fazerem as pazes. - O pai riu e saiu de perto.

Rose ficou a sós com Marcus Fleming, desejando por algum motivo misterioso sair correndo dali e se esconder em algum lugar.

- Você me surpreendeu, srta. Cunningham. - A voz dele era divertida.

- Por quê? - Ela tentava controlar o tremor que percorria o seu corpo. - Ficou surpreso por eu ter reconhecido a sua voz?

- Nosso encontro foi tão rápido e ocorreu já há algum tempo.

- Você foi rude. Eu me lembro.

- Fui?

Novamente havia aquela sugestão de riso na voz dele e ela sorriu em resposta.

- Bem, não muito. Mas teve lá suas razões, considerando que só me faltou chutá-lo no chão.

- Gentileza sua, dizer isso! - respondeu ele.

Ela inclinou levemente a cabeça na direção da voz dele.

- Acho que está fazendo pouco caso de mim, sr. Fleming, e isso não é gentil.

- Não tenho reputação de ser gentil - ele disse abruptamente. - O melhor que posso lhe oferecer é piedade.

Rose sentiu que se encolhia por dentro.

- Não faço objeções à gentileza, mas recuso a piedade.

- Então, você se considera auto-suficiente?

- Dizendo isso assim, você me.faz sentir terrivelmente arrogante. - Ela riu, nervosa. - Tento apenas não ser um peso para a minha família e meus amigos.

- Seu orgulho fica ferido por precisar depender dos outros?

- Sim... e não. - Ela fez uma pausa, pensando se aquele homem estaria apenas lhe atirando uma isca ou se estaria sinceramente interessado. Depois continuou: - Eu prefiro me ajeitar sozinha, mas houve época em que precisei da ajuda dos outros. Esta é a parte mais difícil da cegueira. Sou muito independente por natureza e gosto de cuidar de mim mesma. - Ela não pretendia dizer tanto, mas as palavras, simplesmente, foram saindo. - Não sei por que estou lhe dizendo tudo isto. Deve aborrecê-lo demais, mas lhe asseguro que, normalmente, não discuto sobre a minha pessoa com estranhos.

- Está sugerindo que deveríamos conversar sobre o clima?

Ela sorriu um tanto insegura.

- Isso não parece ser do seu estilo.

- O que a faz ter tanta certeza disso?

- Você não é um homem de falar sobre amenidades - Rose hesitou, imaginando que tinha ido longe demais, mas ele permaneceu em silêncio, como que esperando e ela continuou: - Há um tom de impaciência em sua voz e isso indica que é um homem de ação e não gosta das frivolidades que parecem atrair tanta gente. - Ela hesitou novamente, depois perguntou curiosa: - Acertei?

- Em cheio. - Ele riu. - Reuniões como esta em que as pessoas têm de ser polidas em demasia e exigem atenção exagerada geralmente são muito aborrecidas.

- Você acha que tem de ser atencioso comigo porque é um convidado de meu pai?

- Está pedindo elogios?

- Não... a verdade.

Rose ouviu as vozes a distância, durante o breve momento de silêncio dele. Depois veio a resposta, quase ríspida:

- Eu não estava sendo atencioso. Estava morto de curiosidade.

Rose não conseguiu explicar por que se sentiu aliviada. E não resistiu à tentação de perguntar:

- E o que vai acontecer agora, que já satisfez a sua curiosidade?

- Vou lhe servir outro café. O seu já ficou frio - disse ele, tirando a xícara das mãos dela e colocando-a numa mesinha ao lado.

- Eu realmente não quero beber nada.

Marcus Fleming estava de pé atrás dela. Perto demais, Rose pensou, notando que seu olfato era sensível à colônia dele. A mão forte lhe tocou o braço e novamente ela tomou consciência daquela mesma sensação que a percorrera no dia em que o encontrou, no corredor do escritório de seu pai.

- Acha que seu pai ficaria aborrecido se saíssemos um pouquinho? - ele perguntou bem perto do seu ouvido.

Rose sentiu um momento de incerteza, depois disse:

- Ele está ocupado demais, duvido que sinta a nossa falta.

- Então vamos procurar a paz do jardim?

Ela concordou em silêncio e deixou que ele a guiasse para fora do aposento, até o terraço. A firmeza daquela mão em seu braço lhe dava segurança. Logo chegaram aos degraus que levavam ao jardim perfumado. Ele a conduziu até ali com tanta naturalidade que, pela primeira vez, ela sentiu-se relaxada na companhia dele.

Seguiram um caminho que ia até o lago, mas, antes de chegarem lá, Rose ouviu Sheba rosnando e chamou o cachorro.

- Sr. Fleming, conheça o meu mais valioso ajudante - ela disse alegremente. - Sheba, diga alô para o sr. Fleming.

- Bem, muito... - interrompeu ele e momentos depois perguntou, espantado: - Ele geralmente dá a pata às pessoas?

- Só se as acha simpáticas. - Rose sorriu. - Sheba tomou o lugar dos meus olhos e, instintivamente, pode perceber quando alguém me ameaça de algum modo.

- Então, posso concluir que ele gostou de mim?

- Ele lhe deu a honra de lhe estender a pata. Poucas pessoas têm esse privilégio.

- Há quanto tempo você o tem?

- Há quatro anos.

- É lindo.

- É o que me dizem - Rose respondeu sem amargura nem rancor. - Há um banco logo ali. Vamos nos sentar?

- Você é cega de nascença? - ele perguntou de modo direto, logo depois que se sentaram.

- Não. - Ela acariciou Sheba distraidamente, sentindo que a cabeça do cão repousava em seu colo. - Perdi a visão há dez anos, quando tinha doze anos.

- Por que usa aqueles óculos escuros?

Ela enrijeceu, um tanto ressentida.

- Por que você faz tantas perguntas?

- Prefere que eu evite o assunto da sua cegueira?

Havia realmente um tom forte como o aço naquela bonita voz e ela refletiu cuidadosamente sobre a indagação dele, antes de dizer com toda a sinceridade:

- Você é o primeiro homem que conheço, além do meu pai e do dr. Vaughn, que não se sente pouco à vontade na minha companhia.

- Não vejo por que deveria estar pouco à vontade. Sinto-me seguro em saber que você não pode ver o terceiro olho que tenho no meio da testa, o meu nariz quebrado e os meus dentes tortos.

- Não seja ridículo! - Ela riu.

- Vê - ele brincou -, você já imaginou um rosto, baseado na minha voz. Posso ser feio como o diabo que você não vai saber.

Ela nunca tinha encontrado um homem, como Marcus Fleming, que a deixasse tão à vontade. Disse, pensativa:

- Você me parece interessante.

- Tirou essa frase da minha boca.

- Tirei?

- O homem geralmente diz à mulher que a acha interessante, quando na verdade quer dizer que a acha bonita.

Rose sentiu uma sensação estranha no peito. Será que era bonita? Seu pai e Maggie sempre diziam que sim. Mas seria verdadeiramente bonita ou eles só diziam isso porque a amavam?

- Está brincando comigo novamente - disse, em tom incerto.

- E você não respondeu à minha pergunta - ele falou, o braço roçando no dela, fazendo com que Rose sentisse aquelas fagulhas elétricas novamente. - Por que se esconde atrás daqueles óculos escuros?

- As pessoas geralmente ficam desconcertadas quando percebem que olho atrás delas ou pareço fixá-las no nariz - ela respondeu sorrindo.

- A não ser que tenham verrugas no nariz, não sei porque isso deveria incomodá-las. Ou a você.

O riso suave e claro dela ecoou pelo silêncio do jardim enluarado.

- Eu nunca tinha pensado nisso desse modo.

- O que você faz o dia todo? - Marcus continuava a questioná-la e, de repente, Rose percebeu que não se importava com aquelas perguntas.

- De manhã eu trabalho em casa, transcrevendo livros em braile, à tarde visito os pacientes da clínica de olhos, que perderam a visão.

- Então você é uma espécie de assistente social em meio período?

- Eu não me atreveria a descrever-me assim - corrigiu ela modestamente. - Procuro ajudá-los a se adaptarem à cegueira. Pelo menos tento.

- Tem tido sucesso?

- Basil acha que sim.

- Basil?

- O dr. Vaughn - ela explicou, imaginando por que Marcus Fleming, de repente, ficara tenso ao seu lado. - Ele é um especialista em olhos. Acontece que é também o meu médico, meu patrão e também um amigo.

- Você vai à clínica todos os dias da semana?

- Vou sempre que necessitam de mim ou quando acho necessário passar mais tempo com um paciente.

- E o que faz para distrair-se?

Ele mais parecia um jornalista super curioso, ela pensou, achando a situação engraçada e respondeu, sorrindo:

- Jogo xadrez e ouço música.

- O que acha de ir a Hartebeespoort Dam comigo no domingo? Podemos passear de barco no lago e fazer um piquenique na hora do almoço, em alguma sombra.

O convite foi tão inesperado e repentino que, durante um momento, não encontrou palavras para responder.

- Não gostou da idéia?

- Eu nunca estive num barco antes - explicou hesitante. - Bem... não desde criança e eu...

- Estará em segurança comigo - assegurou ele, como se tivesse adivinhado os seus temores. - Aceita?

Rose tinha a sensação de que havia chegado um momento importante em sua vida. Se recusasse aquele convite, podia ser que nunca mais se encontrassem. Se aceitasse, isso poderia conduzi-la a algo que vinha tentando evitar até aquele momento. Havia algo em Marcus Fleming que o tornava diferente de todos os homens que conhecia. Era algo indefinido, que a sentir-se atraída como que por um ímã. E, apesar do seu bom senso lhe aconselhar que recusasse, havia outra parte que a mandava fazer exatamente o oposto.

- Acho que aceito o seu convite - Rose falou depressa, antes que pudesse mudar de idéia.

- Então, está combinado. Venho buscá-la domingo, às dez da manhã.

Ficaram no jardim mais um pouquinho, mas a noite estava fria e ele resolveu conduzi-la para dentro. Sheba, sentindo-se negligenciada, procurou sua casinha, nos fundos do jardim.

Marcus Fleming não ficou muito tempo mais na casa de Rose. Quando a procurou para se despedir, ela sorriu.

- Estou ansiosa, esperando pelo domingo, sr. Fleming.

- Meu nome é Marcus - disse ele alegremente, apertando a mão dela e desejando: - Boa noite, Rose.

E Rose enrubesceu.

 

Rose estava tomando café, na manhã seguinte, quando Basil Vaughn telefonou, dizendo que tinha conseguido a permissão para que ela levasse Sheba ao interior da clínica.

- Teve alguma dificuldade? - ela indagou, curiosa.

- Não me faça perguntas. - Ele riu. - Traga o animal esta tarde e reze para que a sua idéia dê certo.

Rose segurou o telefone com mais força:

- Você parece ansioso.

- O jovem Chris está sendo alimentado com soro no momento e não estou gostando do jeito dele - respondeu Basil, com voz angustiada. - Para aumentar ainda mais os meus problemas, tive de impedir a entrada da mãe dele, pois ela estava muito nervosa e poderia prejudicar ainda mais a criança.

- E o pai?

- Está se sentindo o culpado de tudo, naturalmente, mas é autoritário como o diabo.

A frustração e angústia de Basil chegaram até ela através da linha telefônica. Rose franziu as sobrancelhas.

- Vou fazer o melhor que puder, Basil.

- Sei que fará. - Ele se despediu e momentos depois Rose desligava o aparelho.

Depois daquilo ela não conseguiu comer mais nada. Tomou apenas uma xícara de café e decidiu planejar o seu modo de agir, pois nunca havia lidado com crianças.antes e se sentia um tanto confusa.

Passou o resto da manhã se preparando para a visita da tarde. Sheba também recebeu atenções: Rose e Maggie lhe deram um bom banho. Depois do almoço, Rose saiu para o gramado dos fundos e deu uma boa escovada no cão. Foi lá que Maggie a encontrou, quando chegou a hora de sair.

- Meu Deus, vai ser uma ocasião muito especial para Sheba?

- Vou levá-lo à clínica esta tarde, para conhecer um garotinho - ela explicou nervosa.

- Mas, srta. Rose, se continuar a escová-lo assim, seu pelo vai cair - brincou Maggie.

A moça parou com a escova e passou as mãos sobre as costas de Sheba.

- Está bonito?

- Ele sempre está muito bonito. - Maggie riu. - Posso colocar a coleira, enquanto você se apronta?

- Sim, por favor, Maggie. - Rose sorriu, ficando de joelhos. - Cuide para que ele não se suje, enquanto vou lá dentro lavar as mãos e tirar este avental.

Menos de meia hora mais tarde, já na clínica, Rose se sentia muito ansiosa, ao descer do carro com Sheba.

- Acho que vou demorar - ela avisou Maggie, que estava dirigindo.

- Eu esperarei - Maggie garantiu. - Sempre trago comigo um bordado, para me distrair.

Rose sorriu levemente e segundos depois se encontrava na escada, com a enfermeira encarregada da recepção.

- O dr. Vaughn me pediu que a levasse até a criança assim que chegasse, srta. Cunningham.

- Obrigada. Pode ir na frente que Sheba a seguirá.

Ela estava trêmula quando parou ao lado dá cama de Chris. Era muito importante que tivesse sucesso e procurou controlar os seus nervos.

- Chris? - ela murmurou, mas não ouviu nada, a não ser a respiração dele; seu coração começou a bater com mais força. - É Rose. Lembra de mim? Já estive aqui e hoje trouxe um visitante especial. - Nenhuma resposta. Arriscando a sua cartada final, ela disse suavemente: - Sheba, dê um grande alô para Chris.

Sheba não precisou de outro incentivo. Sabia o que significava um "grande" alô. Latiu duas vezes e o som ecoou pela enfermaria.

A respiração da criança logo se alterou, tornando-se um pouco agitada. Então para seu alívio, Rose ouviu uma vozinha fraca e incrédula murmurando:

- É um cachorro!

- Sim. Sheba é um cachorro - explicou ela, fazendo figa e rezando para que tudo desse certo. - É um cão guia e todos dizem que é lindo, mas eu só sei que tem um pêlo muito macio - hesitou um pouquinho, esperando a reação da criança e depois prosseguiu: - Gostaria de passar a mão nele?

- Houve um momento de silêncio e depois Chris perguntou, surpreso:

- Posso?

- Claro que pode - Rose respondeu logo. - Em pé, Sheba!

Sheba obedeceu, ficando em pé e colocando as patas dianteiras sobre a cama. Rose pegou a mão de Chris e a guiou até a cabeça do cão.

- O nariz dele está molhado - ele comentou.

- Veja como as orelhas são macias. - Rose riu, conduzindo a mão do garotinho e Sheba deixou que suas orelhas fossem acariciadas.

- É o seu cachorro? - ele perguntou depois de algum tempo.

- Sim. - Ela ainda não acreditava no sucesso que estava tendo. - Sheba é um cachorro muito especial.

- Por quê?

- Porque é um cão guia.

- E o que é um cão guia?

- Ele me leva onde eu quero ir e cuida para que eu não esbarre nas coisas, não caia das escadas e coisas assim. Sabe, Sheba assumiu o lugar dos meus olhos.

- Uma vez eu vi um filme de um cachorro que ajudava um homem a atravessar a rua - Chris disse. - Sheba sabe fazer isso?

- Oh, sim. Ele observa os sinais de trânsito para mim e, quando está verde, me ajuda a atravessar a rua com toda a segurança.

- Ele usa uma daquelas coleiras especiais para você segurar?

- Sim, usa sempre. - Houve um pequeno silêncio e ela ouviu Chris suspirar. Então indagou: - Você está cansado?

- Sim - ele disse baixinho.

- Então, vou sair - Rose murmurou, ordenando a Sheba que tirasse as patas da cama.

- Rose?

- Sim, Chris?

Seguiu-se um silêncio desagradável e então ele perguntou:

- Você vai voltar?

- Voltarei amanhã - respondeu Rose, com o coração pulando de alegria.

- E Sheba?

- Tive de conseguir uma permissão especial para trazê-lo hoje, mas, se melhorar depressa, o dr. Vaughn deixará que você vá ao jardim e eu trarei Sheba todos os dias. - Ela segurou a mãozinha dele e apertou com força. - Está bem?

- Está bem.

Rose caminhou alegremente pelos corredores e, ao chegar no carro, Maggie disse em tom acusador:

- Você está chorando!

- Oh! - ela exclamou surpresa e com a voz embargada. - Acho que sou uma boba.

- O garotinho está muito mal? - Maggie indagou, enquanto dava partida no carro.

- Não está doente, apenas amargurado e com muito medo, eu acho.

- Quando aconteceu com você, também ficou com muito medo?

- Muito medo - Rose admitiu, mordendo o lábio. - Eu parecia uma morta e viva no começo, mas depois, aos poucos, ficou mais fácil de suportar.

- Então é como comer abóbora, quando se é criança. No começo o gosto é horrível, mas, à medida que a gente fica mais velha, já não parece tão ruim.

- Isso mesmo. - Rose riu, recostando-se no assento e procurando relaxar os músculos.

 

Ela ainda estava em dúvida quanto ao seu sucesso, ao receber o telefonema de Basil naquela noite.

- Achei que gostaria de saber que o jovem Chris jantou muito bem - ele disse. - E quando eu o vi, há poucos minutos, ele me perguntou quando poderia se levantar e ir ao jardim para brincar com Sheba.

- Oh, Basil... - Rose estava engasgada de tanta emoção e durante um momento não conseguiu falar. Depois, mais calma, anunciou: - Estou tão contente!

- Algumas vezes eu penso no que faria sem você. - Basil riu e Rose percebeu que ele também estava satisfeitíssimo.

- Você encontraria outra pessoa.

- Estou tão contente que vou até lhe dar uma gratificação no fim do mês.

- Oh, não. Por favor, não se preocupe com isso!

- Então vou guardá-la para o Natal. - Ele riu e se despediu: - Boa noite, Rose.

Ela desligou o aparelho e voltou para a sala. Sentia-se tão contente com o resultado da visita ao jovem Chris que, quando Sheba se aproximou, deu-lhe um grande abraço.

- Nós conseguimos, Sheba! Nós conseguimos! - falou suavemente e o animal ganiu baixinho, como se soubesse exatamente do que ela estava falando.

 

- Você não está prestando atenção - acusou o pai, mais tarde, quando os dois jogavam xadrez no tabuleiro que tinha sido feito especialmente para ela. - Eu acabei de comer o seu peão e meu bispo está colocando o seu rei em xeque.

- Eu já esperava que fosse fazer isso. - Ela sorriu. - Agora vou mover a minha torre de modo a proteger o rei e acho que lhe dou um xeque-mate.

- Céus... - Theodore caiu na gargalhada. - Droga, Rose, você pelo menos podia me deixar ganhar algumas vezes.

Ela afastou a cadeira e, com os olhos tão claros quanto duas esmeraldas, pareceu observar o teto com ar distraído. Tinha sido um dia cheio e sentia-se cansada, mas satisfeita. Ouviu o pai se movimentando e o ruído de copos. Quase sempre terminavam a noite daquele jeito: com um gole de porto e uma conversinha, antes de irem para a cama. Era um ritual agradável, que nunca perdiam.

- O seu vinho - Theodore disse e ela sentiu que o cálice era colocado em sua mão.

- Obrigada, papai. - Levantou o cálice e cheirou levemente o líquido. Depois tomou um gole. - Hum... um vinho muito bom.

- Está ficando esperta demais. - O pai brincou, enquanto se sentava diante dela.

- Fale-me sobre Marcus Fleming - pediu ela, casualmente. - Há quanto tempo o conhece?

Se Theodore ficou surpreso com aquele pedido, não demonstrou nada, comentando apenas:

- Conheço Marcus há dois meses, mas conheci bem o tio dele, William Fleming, muito bem mesmo. Estou cuidando dos problemas legais da Fênix Engenharia há oito anos. William morreu há dois meses e Marcus assumiu a diretoria. William sempre falou muito bem do sobrinho.

- Só isso? - Rose indagou um pouco desapontada quando o pai ficou em silêncio.

- O que mais quer saber? - Theodore disse, rindo.

- Tudo o que der para saber sobre ele.

- Bem, deixe-me ver. Marcus tem trinta e cinco anos e já visitou quase todos os países do mundo. Fala sete línguas e já foi piloto de carros de corrida, mas desistiu desse esporte quando um dos seus amigos morreu na pista. Joga squash muito bem, gosta de iatismo e de escalar montanhas. Acredito que é muito bom também em caratê. Sei que agrada as mulheres, porque minha secretária fica muito animada quando ele está por perto e tenho certeza de que nunca lhe falta companhia feminina. - Rose sentiu que ficava confusa e o pai indagou de repente: - Por que está tão interessada?

Ela tomou o resto do vinho e balançou o cálice entre os dedos.

- Ele me convidou para irmos até Hartebeespoort Dam, amanhã.

- Compreendo. - O relógio bateu sobre a lareira. - E você aceitou?

- Aceitei, mas agora que você me falou sobre ele, penso que não fiz a coisa mais certa.

- Pode levar Sheba para protegê-la - Theodore sugeriu, rindo.

- O problema é que Sheba gosta dele - ela respondeu, rindo também.

- Oh, céus!

- Não ria, papai - ela disse em tom ameaçador. - O assunto é sério.

- Sério?

- Por que um homem como Marcus Fleming iria se importar comigo quando deve haver um montão de garotas brigando pela companhia dele?

- Pelo amor de Deus, Rose - o pai explodiu. - E por que ele não iria se importar com você? É muito atraente e posso lhe garantir que tem tudo nos lugares certos. - Ele ficou em silêncio durante algum tempo, depois disse ríspido: - Esperava que você desse uma risada.

Mas ela continuava séria.

- Para um homem com uma vida tão ativa, a companhia de uma garota cega pode ser muito aborrecida.

- Rose - o pai interrompeu, impaciente -, Marcus convidou você só para sair com ele... mais nada. Deixe-o decidir se sua companhia é aborrecida ou não.

- Depois, poderá ser tarde demais.

- Tarde demais para quê?

- Como vou saber? - ela respondeu, meio irritada, colocando o cálice vazio sobre uma mesa ao lado da poltrona e levantando-se. Caminhou até a janela e abriu-a recebendo um sopro de ar fresco. - Estive conversando lá fora com ele ontem. Os meus encontros não sobrevivem a mais do que um primeiro passeio. Todos se sentem pouco à vontade comigo e sei disso, mas Marcus Fleming é diferente.

- Está com medo de se apaixonar por ele? - disse o pai, indo para junto dela, na janela.

Rose sentiu um pequeno susto. Ainda não tinha passado pela sua cabeça a idéia de se apaixonar por Marcus Fleming, mas, sim, de se envolver profundamente com ele. Será que era tudo a mesma coisa? Ela se sentia confusa e respondeu depressa:

- Eu seria muito tola se me apaixonasse por ele.

- Gostaria de vê-la casada, Rose - o pai comentou calmamente, passando o braço pelos ombros dela. - Gostaria de saber que, quando eu não estiver mais aqui, haverá alguém para cuidar de você.

- Posso cuidar de mim mesma.

- Sim, você é muito independente, mas eu gostaria de vê-la casada do mesmo jeito. Assim, teria alguém para controlá-la.

- Não preciso ser controlada!

- Não vou discutir com você, querida. - O pai riu e a beijou rosto. - Vamos dormir.

 

Rose fez uma rápida visita à clínica, na manhã de domingo, e encontrou Chris mais alegre. Ele parecia bem mais forte e a enfermeira disse que, se o menino continuasse a se recuperar daquele jeito, poderia sair da cama nos próximos dias.

- Você não vai esquecer a sua promessa de vir me visitar todos os dias? - indagou ele, quando ela estava prestes a sair.

- Não vou, não - garantiu Rose e murmurou: - Até amanhã, Chris.

Foi para casa sentindo-se muito contente com a recuperação dele. Mal tinha chegado quando Maggie subiu para avisá-la de que Marcus FIeming estava esperando lá embaixo.

Desceu um tanto nervosa. Ao chegar ao vestíbulo, ele se aproximou e lhe segurou as mãos.

- Cheguei um pouco cedo.

- Não tem importância - ela disse depressa, percebendo que se sentia perturbada por ele tocá-la de um modo tão informal.

- Está pronta para sairmos?

Ela fez que sim e, momentos depois, estava sentada em seu carro. Tocou o banco e sentiu que era de uma forração macia, cara e luxuosa. Ele deu a partida.

- Está guiando muito depressa - ela disse minutos depois.

- Sim. Isso a preocupa?

- Não quando sinto que o motorista sabe o que está fazendo. O que, obviamente, é o seu caso.

- O dia está perfeito para um piquenique. Não há nenhuma nuvem no céu.

- Eu nem perguntei... - ela disse, em tom de desculpa. - Devia ter trazido algo para comermos no almoço?

- Hoje você é minha convidada e Carlo sempre prepara um almoço perfeito.

- Carlo?

- Carlo Vicente é o dono de um restaurante em Hillbrow é também um velho amigo meu - Marcus explicou.

Rose ficou em silêncio e pouco conversaram durante a viagem de quase uma hora até o lago. Mas não foi um silêncio desagradável, apesar de ela sentir-se o tempo todo perturbada pela presença dele ao seu lado.

- Não estamos longe do local onde o barco está ancorado - disse ele ao estacionar e descendo para ajudá-la.

- O barco é seu ou você o alugou? - Rose deixou que ele lhe tomasse o braço e a orientasse pelo caminho que beirava a água.

- É de um amigo.

- Você tem muitos amigos? - perguntou ela, em tom de brincadeira.

- Muitos - ele respondeu rápido, apertando-lhe o braço com firmeza. - Há três degraus - avisou.num tom de voz sério.

Rose desceu sem dificuldades e caminhou por uma plataforma de madeira, ouvindo o som da água debaixo de seus pés.

- Espere aqui - Marcus disse, colocando-lhe as mãos sobre um corrimão de madeira que ela apertou nervosamente.

Ele se afastou e ela ouviu que jogava alguma coisa na água. Devia estar levantando a âncora e sentiu respingos de água nos pés.

- Marcus? - chamou, nervosa, sentindo que seu corpo ficava tenso, sem saber o que aquele homem esperava dela.

- Já vou - ele disse e momentos depois ela sentiu suas mãos tomadas e afastadas um pouco do corrimão. Percebeu que ele estava de pé sobre algo mais baixo do que a plataforma de madeira e segurava a sua cintura, avisando: - Ponha as mãos nos meus ombros para se apoiar. Vou levantá-la e colocá-la no barco.

Rose engoliu em seco, nervosa, e sentiu-se gelada, apesar do sol. Escorregou as mãos sobre os braços musculosos dele, chegando até os ombros e viu-se levantada no ar, como se não pesasse nada. Depois foi colocada sobre algo que balançava suavemente.

- Se der um passo para trás, encontrará um banco - ele disse e ela, com o coração batendo fortemente, ainda agarrada aos seus ombros, sentiu a beirada do banco junto às pernas. Então, trêmula e agradecida, sentou-se.

O barco pareceu balançar perigosamente quando ele foi para o lado dela, mas Rose permaneceu rígida, resolvida a não demonstrar seu nervosismo e ansiedade. Então, ouviu-o dizendo alegremente:

- Não foi tão ruim, foi?

- Não... não foi - respondeu, sentindo que estava com o coração na garganta.

- Certo, então vamos embora.

O motor roncou e Marcus começou a dirigir o barco sobre o lago. No começo, os movimentos e o ruído a deixaram arrepiada, mas tentou relaxar e afastou-se um pouquinho dele. Imediatamente uma mão lhe tocou no braço: - Está tudo bem?

- Acho que sim.

- Devo ir mais depressa?

- Se quiser. - Ela cerrou os dentes com força e sentiu que o ruído do motor aumentava. Forçou-se a ficar sentada, calma, e, de repente, esqueceu-se de tudo, percebendo apenas o sol e o vento sobre a pele e os respingos de água no rosto. Sentia-se livre, solta e curiosamente viva. - Isto é fantástico! - gritou. - Lembro-me de uma vez, no lago Kariba, quando...

- Quando o quê? - ele indagou, quando ela parou de repente.

- Não tem importância - ela gritou, procurando afastar da lembrança a última ocasião em que a família tinha estado reunida: o pai, a mãe e ela, num barco no lago Kariba, rindo, felizes, sem saberem que a tragédia os aguardava dali a alguns dias.

- Sei de um lugar sombreado aqui perto - Marcus interrompeu suas recordações daquele dia quente, sem nuvens, há anos atrás. Minutos depois o barco parava suavemente.

O silêncio era total. Ele amarrou o barco, erguendo-a e colocando-a numa plataforma de madeira semelhante à primeira. Depois, sentados sobre uma esteira debaixo da sombra de uma árvore, ela sentiu que a lembrança daquele dia, no seu passado, voltava novamente. Um dia em que o mundo pareceu explodir ao seu redor.

- Como aconteceu? - Marcus indagou, quase como que se lesse os seus pensamentos.

- Minha mãe e eu estávamos voltando para Bulawayo depois de passarmos alguns dias com uns amigos numa fazenda. Uma granada foi atirada no carro e mamãe morreu no mesmo instante. Eu estava deitada no banco de trás, lendo um livro, e só me lembro de ter acordado num hospital com uma dor de cabeça que me deixava cega.

- Uma granada de mão - Marcus disse, entendendo imediatamente a situação.

- Papai não pôde mais ficar na Rodésia depois daquilo e viemos para a África do Sul, para Joanesburgo, e eu comecei a freqüentar a escola para cegos, em Worcester. - Ela não sabia por que estava lhe contando tudo aquilo, mas sentia um estranho alívio, agora que dividia com ele as suas lembranças. Sorriu, preocupada, e disse: - Agora já sabe tudo a meu respeito.

- Não tudo - ele respondeu e, de repente, ela o sentiu muito próximo, sobre a esteira. - Tire os óculos.

A princípio, Rose ficou espantada; depois, lentamente, tirou os óculos escuros e colocou-os no colo. Ela não pensava neles como seu esconderijo, mas, naquele momento, sentiu-se estranhamente exposta.

- Eu tinha uma intuição de que seus olhos eram verdes - ele disse, finalmente.

- Tinha? - ela procurou falar tranqüilamente, afastando o rosto dos dedos dele que lhe tocavam a leve cicatriz sobre a têmpora esquerda.

- Não faça isso! - ordenou ele, rispidamente, segurando a mão dela, que tentava recolocar os óculos. - Nunca mais use estes óculos quando estiver comigo.

- Nunca mais? - Ela sorriu. - Você parece estar com intenções de passar uma porção de tempo comigo, no futuro.

- E faz alguma objeção a isso?

- Poderia fazer - disse ela, sentindo dedos fortes sobre o seu pulso e uma onda de aborrecimento transparecer na voz dele.

- Por quê? - Marcus indagou, ríspido.

- Tenho minhas razões.

- Não fale assim, Rose. Vamos logo com isso e diga quais são as suas razões.

Ela se sentiu apanhada numa armadilha. Mas, se ele queria a verdade, teria a verdade:

- Não quero me envolver seriamente.

Houve um momento de silêncio e depois ele perguntou sério:

- Comigo, em particular, ou com qualquer um, no geral?

- Estava me referindo aos homens em geral. - Ela puxou a mão, que ele largou imediatamente.

- Sente repulsa pelos homens?

- Pelo amor de Deus!

- Deduzo que sua resposta é não. Não sente repulsa pelos homens. Então só posso chegar à conclusão de que você tem a idéia maluca de que aborrece os homens.

Marcus tinha atingido o ponto certo antes que ela pudesse falar qualquer coisa.

- Acha essa idéia assim tão maluca?

- Deixe que eu decida isso sozinho, sim? - ele repetiu as mesmas palavras que o pai lhe dissera, na noite anterior.

- Acho que não posso deixar você fazer isso.

Um silêncio tenso e desagradável pairou entre eles e Rose o ouviu suspirar, quando ele disse:

- Não estou pedindo muito. Vamos apenas viver um dia de cada vez e o tempo dirá o que vai acontecer. - As mãos dele estavam em seus cabelos e ela sentiu um arrepio nas costas. - Não quero magoá-la, Rose. Antes que isso aconteça eu sairei de sua vida... se é o que quer.

Ela continuou sentada, parecendo perfeitamente calma, tentando analisar os sentimentos tumultuados que a dominavam. Então disse, com voz levemente rouca:

- Que tipo de homem é você?

- Um homem comum. No momento, um homem muito faminto. - Ele riu e se afastou um pouquinho, deixando-a respirar mais livremente. -Vamos almoçar?

- Sim, por favor.

- O que será que temos aqui? - ele perguntou, alegre, e ela ouviu-o remexer numa cesta. - Galinha, tomates, pãezinhos, queijos e biscoitos... duas taças e - ele riu - ...champanhe.

- Champanhe? - ela perguntou, incrédula. - Eu não acredito!

- Escute - ele disse e Rose ouviu ruído de papel, seguido pelo som de uma rolha que estourava.

- É champanhe, mesmo - ela exclamou, rindo. - O que é que estamos comemorando?

- Quem se incomoda com isso? - E colocou um cálice na mão dela. - Vamos brindar ao futuro.

- Ao futuro - repetiu ela e as bolhas fizeram-lhe cócegas no nariz quando ela levou a taça aos lábios.

Rose já tinha superado, há muito tempo, o embaraço de comer diante de estranhos, mas, com Marcus Fleming, sentia-se muito mais à vontade do que com qualquer outra pessoa. Almoçaram em silêncio e ela aceitou uma segunda taça de champanhe.

- Em que está pensando? - ele perguntou de repente, ao vê-la distraída.

- Estava pensando que lhe contei tanto sobre mim mesma, mas não sei nada sobre você.

- O que gostaria de saber?

- Conte-me como você é.

- Eu já contei. Tenho três olhos e um...

- Oh, Marcus, estou falando sério. - Ela riu. - Qual é a cor dos seus cabelos?

- Castanhos bem escuros, quase pretos.

- E os seus olhos?

- Azuis.

- E você é alto... já notei isso - disse ela, tentando visualizá-lo, mas sem conseguir.

- Um metro e oitenta.

Ficaram novamente em silêncio e, de repente, parecia não haver mais nada a ser dito. Ela apalpou o relógio. Três horas. Mais tarde do que havia imaginado.

- Não é hora de voltarmos? - sugeriu, hesitante, pensando na viagem de volta a Joannesburgo.

- Você está chateada? - Ele disse em tom acusador.

- Não - ela protestou, depressa. - Oh, não, por favor, não pense nisso.

- Então, por que está com pressa?

- Eu... pensei que talvez você estivesse aborrecido.

- Está mentindo. De repente você parece ter ficado com medo de mim, por algum motivo.

- Não seja presunçoso - afirmou, mas não podia negar a si mesma que ele parecia estar lhe enviando vibrações muito perturbadoras.

- Não minta para mim, Rose - ordenou ele, aproximando-se perigosamente dela. - Diga a verdade.

- Eu... nunca conheci ninguém como você - ela se viu dizendo, indecisa, e sentiu vontade de se dar uns tapas por estar admitindo aquilo.

- O que há de tão diferente em mim?

- Eu não sei. Gostaria de poder explicar.

- É algo indefinido, igual a fagulhas de luz que surgem quando duas pessoas se encontram - ele não a tocava, mas sua voz era como uma carícia lenta, passando por ela como um sopro macio, fazendo-a estremecer. - Você também sentiu isso, não foi?

- Marcus... - Ela estava confusa e encantada e, de repente, sentiu um desejo desesperado de vê-lo mentalmente. - Você me deixaria vê-lo... isto é, do meu jeito?

- Achei que você nunca ia pedir. - Ele riu baixinho e, segurando as mãos dela, levou-as até o seu rosto.

Os dedos sensíveis de Rose tocaram a princípio levemente os cabelos dele, depois exploraram a testa larga, as sobrancelhas retas e grossas e pararam por um momento sobre as suas pálpebras fechadas. Depois desceram para a face. O rosto era fino, a pele áspera, as maçãs salientes, um queixo cheio de determinação. Os dedos dela tremiam quando chegaram aos lábios. O inferior era um pouco mais cheio que o superior e se movimentaram sobre a mão dela como que num beijo, fazendo-a afastar-se depressa.

- Bem? - ele indagou alegremente e ela sentiu que enrubescia.

- Você... você tem traços firmes - ela respondeu, um tanto encabulada.

- Diria que é um rosto agradável? - ele perguntou, rindo.

- Muito agradável, eu acho. Mas o seu espelho pode lhe dizer isso melhor do que eu.

Ele respirou fundo e de repente ela sentiu as mãos de Marcus segurando o seu pescoço, enquanto ele avisava, brincalhão:

- Rose, vou beijá-la.

Espantada e em silêncio, ela sentiu que uma fraqueza estranha lhe invadia o corpo ao mesmo tempo em que ele a empurrava para trás, sobre a esteira macia. Seus lábios se abriram sob a pressão dos dele. Ela já tinha sido beijada antes, mas nunca daquele jeito, com aquela intimidade que fazia todos os nervos do seu corpo corresponderem e se tornarem mais vivos. Os braços de Marcus a seguravam com força, tornando inúteis seus esforços para tentar afastar-se. E quando, finalmente, ele a soltou, o coração de Rose batia com tanta força que ela mal conseguia respirar.

- Não faça isso de novo - disse ela, sentando-se e afastando os cabelos do rosto .

Naquele instante estava zangada. Mas zangada consigo mesma e não com Marcus. Assim, não era de se espantar que ele entendesse tudo errado; foi com uma voz fria e controlada que respondeu:

- Você estava certa. É hora de irmos embora.

 

Rose não conseguia explicar por que se sentia gelada, apesar do sol forte que batia em seu rosto. Permaneceu sentada, quieta, no barco, ao lado de Marcus, enquanto voltavam. Ele estava zangado e ela desejava dar-lhe uma explicação razoável a respeito das suas emoções, mas não conseguia encontrar as palavras certas.

- Rose! - Uma voz levemente arrogante interrompeu seus pensamentos, quando ela desembarcou sobre a plataforma de madeira. - Que coincidência encontrar você aqui!

Aquele encontro deixou Rose ainda mais irritada.

- Alô, Vera.

- Não vai me apresentar o seu amigo? - a moça exigiu num tom petulante e Rose suspirou, cansada. Ela já tinha problemas suficientes mesmo sem aquele encontro com Vera.

- Marcus, esta é Vera Sinclair. Vera... Marcus Fleming.

- Como tem passado, srta. Sinclair - Marcus disse, calmamente.

- Oh, por favor, não seja tão formal, Marcus - Vera pediu com uma risada sedutora. - Rose e eu somos amigas e vizinhas há anos, portanto, é claro que nos veremos novamente.

- Sem dúvida - Marcus respondeu e parecia estar sorrindo também.

Algumas vozes impacientes chamaram Vera do outro lado do estacionamento e ela disse, relutante:

- Oh, bem... espero vê-los em breve.

Ainda ouviu vozes e risos, antes que Marcus desse a partida no carro com toda a violência e saísse cantando os pneus.

- Ela é sua amiga? - perguntou Marcus alguns minutos depois, já no caminho para Joanesburgo.

- Eu não diria exatamente que é uma amiga. Nós nos conhecemos desde que mudamos para a casa vizinha à dela, mas não temos nada em comum, a não ser o fato de a mãe dela trabalhar com obras de caridade a favor dos cegos.

- Então não pode, simplesmente, desejar que Vera suma da sua vida - ele comentou secamente, já percebendo que ela não apreciava muito a outra.

- Não devo nenhuma obrigação a ela - Rose respondeu, cansada, e novamente caíram em um profundo silêncio até chegarem em casa.

Mas ela se sentia culpada pelo seu comportamento e, agora que estavam chegando, desejava desesperadamente aliviar a tensão que surgiu entre ambos.

- Marcus, você...

- Eu não vou entrar, se você não se importa - ele interrompeu o começo hesitante do convite de Rose, ao mesmo tempo em que lhe largava o braço, já no portão da casa. - Telefono para você qualquer hora.

Ela tentou dizer alguma coisa, mas não conseguiu. Ouviu então a porta do carro dele bater. Marcus deu a partida e foi embora.

"Telefono para você qualquer hora", ele tinha dito, mas Rose intuía que aquilo não ia acontecer nunca. Suspirou e entrou, decidida a fazer de Marcus Fleming um capítulo encerrado de sua vida e esquecê-lo como mais uma experiência desagradável.

 

Rose não ficou surpresa quando Vera apareceu na manhã seguinte, bem cedo. O interesse dela por Marcus tinha sido muito óbvio e ela sorriu para si mesma com um leve cinismo quando ouviu a outra entrando em sua sala de trabalho.

- Alô, Rose, sou eu... Vera. Vim ver como você está passando esta manhã.

- Verdade? - exclamou, fingindo surpresa e se recostando na cadeira, alisando as costas de Sheba.

O cão nunca tinha simpatizado com Vera e sempre dava um rosnado baixo quando a moça se aproximava, antes que Rose reconhecesse os passos da outra.

- Onde diabos você encontrou aquele lindo pedaço de homem com quem estava ontem? - disse, sentando-se.

Ela é assim mesmo, vai direto ao ponto, Rose pensou.

- Ele é bonito? - indagou, cheia de curiosidade.

- Oh, Rose, se ao menos você pudesse vê-lo! - Vera exclamou com um suspiro de êxtase. Depois desculpou-se. - Lamento... foi indelicado da minha parte.

- Pelo amor de Deus, Vera, já passei há muito tempo da fase de me importar com esses comentários e você sabe disso.

- Sim, claro. - A cadeira fez um ruído e ela percebeu que Vera tinha se levantado. - Bem, eu só passei aqui para avisar... se algum dia ficar cansada de Marcus Fleming, querida, jogue-o para mim.

Vera saiu rindo e fechou a porta do corredor.

Rose respirou fundo e, de repente, sem saber por quê, estava rindo. E ainda ria quando Maggie lhe trouxe o café.

- O que a srta. Vera queria? - Maggie indagou, cheia de suspeitas.

- Queria saber mais sobre Marcus Fleming.

- Aquele sr. Fleming...

- Eu sei, Maggie, ele é um belo pedaço de homem.

- Quem lhe disse isso? - Maggie perguntou, ríspida.

- Vera. - Rose riu. - Ela ficou em êxtase diante dele.

- Vai vê-lo novamente?

Rose, de repente, ficou séria e mexeu na xícara.

- Acho que não.

- Que pena!

Maggie saiu da sala sem mais comentários e Rose sentiu-se inexplicavelmente desanimada.

 

Naquela semana e na seguinte, Rose teve pouco tempo para pensar em si mesma ou em Marcus Fleming. Chris Thompson estava se recuperando rapidamente e ela teve de dividir o seu tempo com ele e vários outros pacientes da clínica, fazendo refeições leves e permanecendo lá até que Basil pudesse levá-la para casa.

Felizmente a pressão diminuiu no fim dessa semana. Estava em sua sala de trabalho quando Sheba entrou, todo animado. Desligou o gravador e tirou os fones do ouvido.

- Sheba? - indagou, imaginando por que o cão desejaria dar um passeio àquela hora da manhã. Então, percebeu que havia outra pessoa na sala e perguntou, preocupada: - Quem está aí?

- Marcus - veio a resposta rápida. - Sou bem-vindo?

- Sim, claro - ela disse, depressa, seu coração pulando violentamente ao ouvir que ele cruzava a sala e puxava uma cadeira próxima.

- Parece que nos separamos um tanto aborrecidos um com o outro, naquele dia.

- Foi minha culpa - ela disse em tom de desculpas.

- Penso que foi minha, porque tomei certas liberdades – corrigiu ele, num tom de voz suave e alegre.

- Marcus... - Ela estendeu as mãos na direção dele, num gesto silencioso de apelo e sentiu um calor invadir o seu coração quando os dedos dele seguraram os seus.

- Eu exagerei um pouco - ele disse baixinho. - Será que permite que eu recomece, se prometer ir com calma?

Ela sorriu mais e em resposta indagou:

- Aceita tomar um chá comigo?

- Se aceitar jantar comigo esta noite.

- Lamento, mas não posso. - Era verdade, lamentava mesmo. - Prometi a um garotinho lá da clínica ir visitá-lo esta noite e não posso desapontá-lo.

- Então, eu a levarei e depois jantaremos - ele ofereceu, sem hesitação, mas Rose ainda se sentia insegura com relação a ele, por causa do modo como Marcus a havia tratado antes.

- Não posso abusar de você desse jeito - disse simplesmente e sentiu que ele retirava as mãos que seguravam as suas.

- Por que não diz, simplesmente, que não quer jantar comigo e esquece as desculpas?

- Não foi isso o que... eu...

- Alô gente! - Uma voz alegre interrompeu a explicação de Rose. - Tem alguém em casa?

- Aqui, Vera. - Rose chamou, desconsolada, alisando depressa as costas de Sheba, que tinha começado a rosnar.

- Eu só passei por um momento para... - Ela parou na porta e deu a risada familiar. - Meu Deus, eu nem imaginava que aquela Lamborghini estacionada lá fora fosse sua, Marcus.

- Bom dia, Vera. - Marcus levantou-se.

Houve um silêncio rápido durante o qual Rose deduziu que os dois se olhavam e então ouviu os passos de Maggie entrando.

- Chá, srta. Rose?

- Obrigada, Maggie.

- Pode deixar que eu sirvo, Maggie - Vera se ofereceu.

Vera se sentia muito à vontade brincando de anfitriã e conversou sem parar na meia hora seguinte, dirigindo-se sempre a Marcus e quase esquecendo de Rose. Então, depois de uma leve pausa, indagou casualmente:

- Por que vocês dois estavam tão sérios quando entrei aqui?

Houve um silêncio desagradável e Marcus respondeu, pouco à vontade:

- Eu estava tentando convencer Rose a ir jantar comigo esta noite.

- Oh, Rose tem esse problema, quando se trata de jantar fora... ela nunca se sente muito à vontade - Vera disse, mentindo, e antes que a outra pudesse protestar começou a rir. - Mas se você precisa de companhia, lembre-se de que moro na casa ao lado.

- Então, aceita jantar comigo esta noite? - Marcus indagou, surpreendendo Rose e fazendo-a cair num silêncio depressivo.

- Que ninguém tente me impedir! - Vera riu sem hesitar.

- Muito bem, então passo para apanhá-la às sete... e agora vou seguir o meu caminho. - Marcus levantou-se e cruzou a sala. - Obrigado pelo chá, Rose.

- Eu também já vou, portanto, acompanho-o até a porta - Vera disse depressa. - Tchau, Rose, vejo você qualquer hora.

A moça continuou sentada em sua mesa de trabalho, como se estivesse petrificada. Lá no fundo de sua alma sentia uma dor incrível e uma profunda raiva. Quem se importava com Marcus Fleming? Ele podia fazer o que quisesse e ela não tinha nada a ver com o comportamento dele. Levantou-se, agitada, e tropeçou na cadeira que Marcus, descuidado, deixara no caminho. Então, de um modo descontrolado, ajoelhou-se no chão e chorou como se fosse uma criancinha de quem alguém tomara um brinquedo.

 

Naquela tarde ela foi à clínica e à noite ficou com Chris, mas não conseguiu se concentrar na conversa, pois só pensava em Marcus e Vera juntos, jantando em algum lugar. Um convite que inicialmente tinha sido feito a ela.

- Oh, droga! - murmurou para si mesma ao sair da enfermaria onde estava Chris. Fique fria, Rose Cunningham. Você está obcecada por Marcus Fleming e isso é a pior coisa que podia acontecer.

- O que está acontecendo? - Basil perguntou, rindo e segurando o braço dela enquanto desciam a escada. - Eu nunca soube que você falava sozinha.

- Acho que estou ficando velha. - Ela sorriu.

- Bobagem. O que precisa é de uma xícara de chá bem forte, antes de irmos para casa.

A caminho de sua sala ele pediu um chá que logo foi servido. Na companhia encantadora de Basil e com aquele chá forte, Rose sentiu-se mais relaxada. Conseguiu até esquecer Marcus e Vera, enquanto o amigo lhe contava algumas passagens engraçadas acontecidas com os pacientes dele.

O pai ainda estava acordado quando ela chegou em casa uma hora depois e, pela primeira vez em muitos anos, Rose recusou o cálice de vinho que ele lhe oferecia, indo direto para o quarto e deixando Theodore espantado na sala de visitas.

- Você parece bonita - Chris disse na tarde seguinte, quando ela se sentou ao lado dele no gramado. - Eu gostaria de poder vê-Ia.

- Você pode me ver com as mãos - Rose respondeu, sorrindo.

- Como?

- Assim - ela disse, e segurando as mãos dele guiou-as até o seu rosto. - Toque a minha face com as pontas dos dedos. Vamos, não seja envergonhado.

Os dedinhos frios passaram, hesitantes, sobre os traços dela e pararam sobre os lábios.

- Você está sorrindo? - ele perguntou, indeciso.

- Sim, estou - ela disse e seu sorriso aumentou.

- Sua pele é macia - ele anunciou, passando novamente as mãos sobre o rosto dela e Rose sentiu que o garotinho se inclinava para cheirá-la - e sempre tem um perfume tão bom.

- Você já está ficando esperto, apesar de cego. - Ela riu baixinho.

- É engraçado, mas... - Chris fez uma pausa e tirou as mãos do rosto dela.

- O que é engraçado?

A criança suspirou e sorriu, um pouco envergonhada:

- Quando estou com você já não sinto mais medo.

- Não precisa nunca ter medo, Chris, não importa com quem você esteja.

- Vou tirar as ataduras amanhã - ele disse casualmente e ela sentiu uma certa ansiedade. - Acho que já não me importo se nunca mais enxergar... Você estará aqui quando o dr. Vaughn for tirá-las?

- Se você quiser, eu estarei.

Ouviram um farfalhar de roupa engomada e a voz autoritária da enfermeira chegou até eles:

- Está ficando frio aqui.fora, Chris, é hora do dr. Vaughn vê-lo.

Chris suspirou e se despediu de Sheba, levantando-se obedientemente.

- Venha amanhã, Rose. Você prometeu.

- Estarei aqui Chris, cumprindo a minha promessa - ela respondeu calmamente. - Agora, vá com a enfermeira.

Os dois se afastaram e Rose colocou o braço no pescoço de Sheba, dizendo amorosamente:

- Também está na hora de irmos para casa, Sheba.

- Quer uma carona? - Uma voz familiar e profunda perguntou logo atrás dela. Rose sentiu que seus nervos davam um nó e o coração disparava. Levantou-se lentamente e virou-se.

- Marcus?

- Às suas ordens.

De repente, ela se sentiu incrivelmente nervosa.

- Maggie estará aqui em minutos, para me apanhar.

- Não. Ela não virá. Eu telefonei avisando que viria buscá-la.

Ela sentiu-se confusa, mas aquele silêncio não ajudava em nada e nem acalmava a sua tensão.

- Por que você veio aqui?

- Fui convidado para jantar e seu pai me contou que você joga xadrez muito bem - ele disse, confundindo-a ainda mais e segurando-a pelo braço. - Meu carro está deste lado.

Atravessaram juntos o gramado e Rose entrou no carro, enquanto Sheba se acomodava no banco de trás.

- Bem? - ele disse, depois de dar a volta e sentar-se. - Por que não me conta em que está pensando?

Havia várias coisas que ela poderia ter dito, mas, de repente, todas pareciam infantis.e desnecessárias.

- Não tenho nada para contar - respondeu, tensa.

- Bem, mas eu tenho muito para lhe dizer - explodiu ele, com uma violência que a fez se encolher junto à porta. - Primeiro... quando a convidei para sair comigo ontem, era porque desejava a sua companhia. E não teria me oferecido para trazê-la até a clínica, se isso fosse inconveniente. Segundo... eu... convidei Vera por sugestão dela e porque estava zangado demais com você e desejava feri-la de algum modo. Terceiro... alguém tem que dizer àquela garota que, mesmo nesta época de liberdades, os homens ainda preferem tomar a iniciativa. E, por último... - ele respirou bem fundo - tire esses malditos óculos escuros quando estiver comigo, assim poderei ver os seus olhos!

Os óculos foram arrancados rudemente do seu rosto enquanto ele falava; de repente, Rose sentiu-se vulnerável, o que a fez ficar zangada.

- Você não tem nenhum direito de falar assim comigo. Você me entendeu mal ontem, mas isso não tem importância. Com quem você deseja passar o seu tempo não é da minha conta e eu preferia que, depois desta tarde, nós não nos encontrássemos mais.

- Certo! - Marcus disse, ríspido, colocando os óculos no rosto dela novamente. - Então, finalmente estamos nos entendendo!

Sheba ganiu baixinho, percebendo que algo não estava indo bem. Marcus deu partida e se afastou da clínica.

Durante o percurso até Houghton o antagonismo entre ambos foi ficando cada vez mais palpável e a atmosfera parecia explosiva. Rose sentia-se ridícula e prestes a chorar quando, finalmente, ele estacionou o carro diante de sua casa. Ela não podia passar o resto da noite na companhia dele, com aquela tensão que tinha se estabelecido; por isso, quando o rapaz desligou o motor, virou-se para ele.

Os dois começaram a falar ao mesmo tempo, pararam e tentaram novamente, depois começaram a rir.

- Posso pedir uma trégua? - ele perguntou, finalmente.

- Sim... por favor - Rose murmurou, tão aliviada que quase engasgava.

Ele lhe tirou os óculos, respirando fundo quando viu as lágrimas nos olhos dela, e Rose se viu em seus braços, afundando a cabeça no ombro dele. Sua colônia máscula já lhe era familiar e seu hálito quente chegou até a face dela. De repente, parecia mais do que certo estar ali, apertada junto a ele.

- Eu sou desajeitado! Sei disso! - ele murmurou, alisando os cabelos dela e afastando-os do rosto. - Vamos tentar outra vez?

Ela fez que sim, sem conseguir encontrar palavras para responder, e os dois ficaram abraçados durante algum tempo, até que Sheba ganiu, impaciente, e tentou enfiar o focinho entre eles.

Riram e se separaram, enquanto Marcus comentava, fingindo tristeza:

- Ah, Sheba, você arruinou um momento maravilhoso.

O cão ganiu em resposta, como se tivesse entendido e Rose o acariciou na cabeça.

- Não se preocupe, Sheba. - Ela riu. - Marcus estava só brincando com você.

 

Afinal, a noite foi muito agradável e relaxante. Depois do jantar o pai trouxe o tabuleiro de xadrez e colocou-o na mesa entre Rose e Marcus. Em seguida, sentou-se ali perto, esfregando as mãos satisfeito e rindo diante da aposta do rapaz de que iria ganhar a partida.

Quando finalmente Marcus anunciou xeque-mate, Theodore bateu palmas e Rose, em lugar de se sentir embaraçada, estava completamente satisfeita com a vitória dele.

Depois, Theodore serviu o tradicional vinho e conversaram durante algum tempo, até que ele foi chamado ao telefone por um cliente inesperado. Rose ficou a sós com Marcus e, por algum motivo inexplicável, sentiu-se nervosa.

Percebeu que ele se aproximou da cadeira, depois lhe tomou as mãos e a fez levantar.

- Eu a observei durante o jantar desta noite - ele disse, conduzindo-a para o sofá e sentando ao seu lado. - Vera disse a verdade? Sente-se mesmo embaraçada de comer em público?

- Estou cega há dez anos. - Ela sorriu. - Marcus, acho que já aprendi a arte de comer sem envergonhar as pessoas que estão comigo, não?

- Concordo inteiramente com você. Mas Vera disse...

- Ela estava se divertindo às minhas custas - Rose interrompeu um tanto amargurada e sentiu que a mão dele apertava a sua.

- Então, posso convidá-la para jantarmos juntos brevemente?

- Se quiser, sim.

- Amanhã à noite?

- Não é um pouco cedo? - ela brincou, mas vendo que ele permanecia em silêncio, apressou-se em dizer: - Por favor, não estou tentando dar nenhuma desculpa.

- Se amanhã à noite é muito cedo, então o que acha da noite de sábado? - ele sugeriu e Rose não encontrou motivos para recusar.

- Vou gostar disso - respondeu e novamente sentiu que a mão dele apertava a sua.

- Sete horas?

- Sim.

Depois disso conversaram mais um pouco sobre a firma que ele herdara do tio e, apesar das preocupações dela terem desaparecido, ainda se sentia um pouco nervosa. Ficou triste quando ele lhe deu boa-noite e foi embora.

Naquela noite, durante um longo tempo, Rose permaneceu deitada, pensando nele. Tinha vontade de não se envolver seriamente e lutava contra a estranha atração que ele lhe despertava. Era uma atração perigosa e ela sabia, instintivamente, que poderia magoar-se. Mas, será que não valia a pena? Será que valia a pena perder a paz de espírito e se envolver com um homem como Marcus Fleming, que jamais se ligaria a alguém como ela? Tantas perguntas passaram pela sua mente... e Rose não encontrou respostas. Talvez a única solução fosse esperar e deixar que as circunstâncias lhe mostrassem algum caminho.

 

Na tarde seguinte, Rose foi para a enfermaria das crianças e encontrou lá Basil e a enfermeira. Logo que entrou o jovem Chris reconheceu seus passos.

- Rose? - ele murmurou, ansioso.

- Estou aqui, Chris - ela respondeu, depressa.

- Segure a minha mão.

Ela apertou a mãozinha entre as suas e Basil começou atirar as ataduras.

- Relaxe, garoto - o médico pediu, quando Chris começou a estremecer -, logo as ataduras sairão.

- E papai e mamãe? - Chris perguntou, inesperadamente.

- Estão esperando lá fora. Você quer que eles entrem?

- Não. - Chris disse, ansioso. - Ainda não.

- Certo. - Basil pegou a tesoura e começou a cortar, depois pediu: - Abra os olhos, Chris. Vá com calma. Não espere muito no começo.

- Já não está tão escuro - Chris anunciou, animado, apertando a mão de Rose. - Vejo que está ficando tudo mais claro.

- Isso é maravilhoso. - Basil riu, suavemente.

- Rose, estou vendo! - Chris riu, cheio de animação. - Vejo só um pouquinho, mas vejo... Você é linda!

- Oh, Chris... - ela engoliu em seco. - Estou tão feliz.

A enfermeira chamou o sr. e a sra. Thompson e Rose afastou-se, avisando Basil:

- Vou esperar no corredor.

Lá fora, ela encostou na parede e enxugou as lágrimas. Era uma tola em chorar, mas estava tão feliz pelo jovem Chris... Sim, tinha de admitir que sentia inveja também. Seria uma covardia esconder essa verdade... Seu pai tinha lhe ensinado e sempre dizia: "Seja honesta para consigo mesma. Quando você reconhecer os seus sentimentos, só terá de encará-los e dominá-los". Com isso ela deixara de sentir tanta revolta por ser cega.

Agora, ela estava sendo honesta para consigo mesma. A velha revolta surgiu novamente, mas ela procurou dominá-la depressa. Tinha inveja de Chris, mas estava feliz por ele e sentia que a sua felicidade era superior à inveja, naquele momento. A criança não teria que desperdiçar anos, lutando para superar as dificuldades físicas e mentais causadas pela cegueira. A independência era algo difícil de obter e, mesmo depois de tantos anos, ela não se sentia completamente independente.

Passos se aproximaram e interromperam os seus pensamentos. Ela reconheceu a voz da enfermeira chamando-a para ir até a sala de Basil, para tomar um chá.

- Os pais de Chris queriam conhecê-la, mas você desapareceu - ele contou, enquanto aceitava o chá que a enfermeira oferecia.

- Achei que seria melhor deixá-los a sós.

- Chris ficou chamando por você. Ele vai ter alta amanhã.

- Sentirei falta dele - ela disse, triste.

- Eu também... acredite ou não. - Basil riu.

Rose terminou o chá e voltou para a enfermaria a fim de ver Chris pela última vez. Agora que Basil já não estava lá, a criança se mostrava barulhenta e cheia de alegria.

- Rose - Chris disse, quando ela se aproximou da cama -, vou para casa amanhã.

- Eu sei.

- O dr. Vaughn falou que vou ter de usar óculos, mas ele acha que meus olhos vão ficar mais fortes.

- Tenho certeza que sim.

Durante um momento ele ficou em silêncio, depois segurou a mão dela.

- Vou sentir a sua falta, Rose.

- Não, não vai - ela disse, engolindo em seco. - Você logo recomeçará a escola e estará sempre com seus amiguinhos.

- Não vou esquecer de você, nem de Sheba - ele insistiu, teimoso.

 

Naquela tarde, quando Maggie levou Rose para casa, não fez nenhuma pergunta sobre as lágrimas da moça. Limitou-se apenas a lhe oferecer um lenço.

- Nunca é fácil dizer adeus - o pai lhe disse quando a encontrou chorando depois do jantar -, mas amanhã você terá outros pacientes com quem se preocupar e tudo será esquecido dentro de algum tempo.

São palavras sábias, Rose pensou. Mas Chris tinha ido direto para o seu coração e ela achava que ia demorar um longo tempo para tirá-lo de lá.

 

O conjunto tocava bem alto no restaurante e Rose sentiu que sua cabeça estava prestes a estourar. Tinha esperado ansiosamente por aquele jantar com Marcus e jamais pensou que ia ser daquele modo. Era impossível conversar. Sentia que tinha caído numa armadilha, numa casa de loucos, e estava desesperada de vontade de fugir dali.

- Vamos dançar - Marcus sugeriu depois do jantar e levou-a para a pista, antes que ela pudesse protestar.

- Lamento, mas não sou uma boa dançarina - ela avisou, nervosa.

- Nem eu - ele riu próximo do ouvido dela. - Vamos só dar uma volta pela pista.

Seu braço estava firme na cintura dela, puxando-a para perto de si e foi fácil para ela acompanhar os passos dele. O barulho era ensurdecedor e os ouvidos de Rose protestavam a cada batida da bateria. Marcus apertou-a com mais força e ela sentiu que o queixo dele estava tocando a sua testa. Mas, nem mesmo a proximidade dele pôde diminuir o sofrimento daquele momento.

- Você está muito quieta esta noite, Rose - ele comentou, quando finalmente voltaram para a mesa.

- Desculpe. - Que mais eu poderia dizer?, pensou, infeliz. Se tentasse explicar, será que Marcus ia entender ou acharia apenas que estou procurando uma desculpa para terminar logo a noite?

- Há algo errado? - Ele segurava a mão dela com, força. - Você me parece nervosa, tensa.

- Não... não há nada...

- Rose! -A voz dele soou ríspida e autoritária. - A verdade.

A verdade! Oh, Deus, ela queria gritar a verdade para ele, mas não se atrevia a tanto.

- Desculpe, Marcus. O jantar estava excelente, mas...

- Mas?

O que quer que acontecesse, ela já não podia esconder.

- É o barulho - disse, finalmente. - Você pode não perceber, mas, para mim, parece que há trilhões de vozes tentando conversar mais alto que a música e... - engoliu em seco, nervosa – desculpe.

- Vamos - ele disse logo. - Vou tirá-la daqui.

- Marcus... - ela começou, hesitante, alguns minutos depois, sentada no carro ao lado dele, enquanto se dirigiam para algum lugar. - Estraguei a sua noite.

- Não. Não estragou - ele disse logo, segurando a mão dela. - Vou levar você até o Carlo. Lá é mais calmo e ele faz um café delicioso.

Rose não disse nada, embora nunca tivesse se sentido tão infeliz na vida. Agora tinha certeza de que Marcus a considerava uma companhia aborrecida.

Em menos de dez minutos, entravam em outro restaurante, onde as vozes eram apenas murmúrios e a música, suave e relaxante.

- Oi, Carlo - Marcus exclamou e começaram a conversar em italiano, o que a deixou admirada. Pouco depois ele a puxou para o seu lado e disse: - Carlo, quero lhe apresentar a srta. Rose Cunningham. Rose, este é o meu bom amigo Carlo.

- Muito prazer, Carlo - ela forçou um sorriso e estendeu a mão.

Para sua surpresa, sentiu que o homem beijava seus dedos.

- É uma honra conhecê-la - ele disse, com um sotaque forte.

- Eu contei a Rose que você faz um café delicioso, Carlo.

- O melhor de todos - Carlo concordou, satisfeito, soltando a mão dela. - Sentem-se, que logo trarei o café, signore Marcus.

Marcus colocou a mão no ombro dela e conduziu-a para uma mesa.

- Aqui está melhor?

- Muito melhor! - ela respondeu, sorrindo. - Marcus, me desculpe.

- Não diga isso de novo. Foi falta de consideração minha não perceber que o barulho a afetaria... e, para dizer a verdade, prefiro a paz e a calma do restaurante de Carlo.

- Você está dizendo isso só para me fazer sentir melhor.

- Rose, não me enfureça.

- Enfurecer você? De que modo?

- Você não confia em mim?

- E deveria?

- Esta é uma boa pergunta. - Ele riu e ela sentiu que enrubescia diante de sua própria audácia.

- O café, signore, signorina - Carlo interrompeu a conversa.

- Obrigado, Carlo.

- Hum, está ótimo - Rose disse, depois de colocar açúcar e experimentar o café.

- Conte-me sobre o seu trabalho na clínica - Marcus pediu. - No outro dia, você estava conversando com um garotinho no gramado.

- Aquele era Chris Thompson. Ele podia ter ficado totalmente cego, mas, felizmente, terá visão parcial - havia um tom de tristeza na voz dela. - Ele teve alta ontem.

- E quanto a você? Não há esperanças de...

- Nenhuma esperança - ela interrompeu, sentindo-se desanimada com aquele assunto.

- Há um cirurgião em Viena que, nos últimos anos, tem realizado verdadeiros milagres.

- Marcus, os meus nervos ópticos foram feridos e nenhuma operação do mundo poderá restaurá-los. Além do mais... - ela respirou fundo - Basil Vaughn é o melhor especialista do país e também o melhor cirurgião. Ele já pediu a mais de uma dúzia de cirurgiões que fizessem uma revisão no meu caso e todos disseram que não há esperanças. Eu já aceitei o fato de que ficarei cega para o resto da vida e não quero ter ilusões novamente.

Marcus ficou em silêncio por um momento e ela já começava a suspeitar de que o havia desagradado, quando ele disse:

- Quem a vê, jamais diria que é cega.

- Sou normal, só que não enxergo. Tenho o meu lugar na sociedade como qualquer outra pessoa. Não quero ser mimada nem tratada de modo diferente - ela sorriu. - Meu pai e eu nos entendemos muito bem. Sempre dizemos a verdade um ao outro, não importa quanto ela possa magoar. Desse modo, sei que não estou sendo enganada.

- As pessoas tentam enganar você?

- Geralmente tentam me vender algo ridículo quando vou fazer compras.

- E você percebe ?

- Quase sempre, sim. Mas dificilmente compro alguma roupa sem levar Maggie comigo. - Tomaram o café em silêncio e quando ela, finalmente, empurrou a xícara para o lado, pediu: - Vamos conversar um pouquinho sobre você? Onde mora? Numa casa ou num apartamento?

- Num apartamento - ele respondeu de modo abrupto e ela suspeitou de que ele não gostava de que lhe fizessem perguntas.

- Quem faz a sua comida e limpa tudo?

- O apartamento tem serviço de hotelaria. Às vezes eu mesmo cozinho alguma coisa, mas geralmente faço as refeições fora.

- Cada noite na companhia de uma mulher diferente?

- Sim - ele concordou, rindo. - Eu tenho um livrinho preto, sabe, cheio de nomes e endereços e, dependendo do meu estado de espírito, seleciono uma delas...

- E com que estado de espírito está esta noite? Sentindo-se caridoso, simpático, cheio de pena de mim?

- Eu não tenho pena de você, Rose. - Ele já não estava mais sorrindo. - Você é atraente e diferente.

- Você quer dizer cega, não diferente.

- Diferente, sua cabeça-dura - ele segurou a mão dela novamente, fazendo-a sentir outra vez aquela corrente elétrica que sempre se estabelecia entre ambos. - Há outros motivos pelos quais gosto da sua companhia, mas só contarei numa outra vez.

A atmosfera entre ambos de repente tinha se tornado íntima e extremamente perigosa.

- Você me deixa nervosa - ela disse, baixinho.

- Eu?

Ela balançou a cabeça de leve, como se tentasse refletir melhor sobre alguma coisa, depois disse, em tom acusador:

- Você está rindo de mim.

- Não de você - corrigiu ele, acariciando sensualmente as costas das suas mãos. - Estou rindo de mim mesmo.

- De você mesmo?

- Se você fosse outra mulher, Rose, talvez tivesse motivos para ficar nervosa. Nosso relacionamento chegou a um ponto onde eu sempre faço o possível para convencer minha companheira a ir para a cama.

- Oh! - Ela enrubesceu. Não sabia bem o que tinha esperado que ele dissesse, mas aquela explicação apagava uma luzinha que tinha se acendido em sua mente quando o conhecera.

- Isso a deixa chocada? - Marcus indagou, suavemente.

- Na verdade, não.

- Então não está surpresa de que eu não tenha tentado seduzir você? - ele insistiu, sem saber da dor que aquela pergunta provocava na alma de Rose.

- Não - ela disse, retirando as mãos das dele. - Minha cegueira geralmente parece acabar com os desejos naturais dos homens.

- Meus Deus, Rose! Você não é menos mulher só porque é cega! - A voz dele vibrava de raiva. Rose não respondeu e ele disse, rude: - Vamos, está na hora de levá-la para casa.

Rose ficou tensa ao lado dele, no carro, enquanto voltavam. A noite tinha sido um fracasso. “Ela” era um fracasso. Talvez tivesse sido tola .em pensar que um dia seria como as outras mulheres. Nenhum homem poderia, sinceramente, estar interessado numa garota cega. Então por que se sentir magoada com as coisas que Marcus tinha dito?

O carro parou, Marcus desligou o motor e, em silêncio, Rose procurou abrir a porta.

- Espere! - Ele se aproximou e segurou a mão dela. O coração de Rose acelerou quando o hálito quente dele lhe atingiu o rosto. - Não me entenda mal, Rose. - Sua voz era profunda e suave como uma carícia. - Você é muito desejável, mas a sua inocência é óbvia, principalmente depois do modo como reagiu quando a beijei. Você ficou com medo e agora sei que não quero amedrontá-la de novo.

Marcus parecia convincente e ela tinha uma vontade enorme de acreditar naquilo, por isso murmurou, atrevida:

- Agora não estou com medo.

Ele ficou em silêncio durante um momento terrível, depois perguntou, rindo:

- Está me pedindo para seduzi-Ia?

- Estou pedindo que me trate como mulher - respondeu ela.

- E eu não a tratei assim desde o primeiro momento?

- Tratou, sim, mas eu não estava preparada para o que viria a seguir.

- E agora está?

Rose sentiu que pisava num terreno perigoso. A sua resposta iria determinar o futuro do relacionamento deles, sem dúvida alguma. Será que ela estava preparada para o que viria a seguir ou estaria se atirando em algo que mais tarde se tornaria insuportável? Percebeu que Marcus estava tenso, esperando a resposta e disse, nervosa:

- Sim... acho que estou.

- Então, vamos testar? - ele riu, puxando-a para si.

No primeiro instante, ela ficou passiva e pouco à vontade nos braços dele, mas quando seus lábios se encontraram, derreteu-se de encontro a ele com mais calor do que pretendia. O beijo foi gentil dessa vez, mas despertou uma sensualidade que ela nem imaginava possuir. Quando a mão dele lhe tocou os seios ela estremeceu e se aproximou instintivamente.

Marcus a soltou de repente e, sentindo-se desamparada, Rose estremeceu, perguntando, ansiosa:

- Fiz alguma coisa errada?

- Não pretendo apressá-la, Rose - ele disse, num tom estranho, levando a mão dela aos lábios. - Agora vou acompanhá-la até lá dentro.

Rose sentia-se desapontada ao subir os degraus da porta da frente. O que eu esperava?, perguntou, confusa, a si mesma, enquanto fechava o casaco para se proteger do ar frio da noite.

- Devo acender a luz? - ele perguntou, quando entraram no vestíbulo.

Ela murmurou um "não" baixinho e não pôde falar mais nada, pois sentiu as mãos dele, por baixo do casaco, que a abraçavam pela cintura, puxando-a para perto dele.

Novamente sentiu aquela corrente elétrica passando entre ambos, beijou-o apaixonadamente, com uma intensidade que também não imaginava possuir. Mas, dessa vez, ele não a afastou. Rose colocou os braços ao redor do pescoço de Marcus e se rendeu as emoções poderosas que lhe dominavam o corpo.

As mãos de Marcus lhe acariciavam as costas, os seios estavam esmagados de encontro ao peito dele. Rose queria que aquele momento durasse para sempre, mas ele retirou os braços dela que lhe prendiam o pescoço e afastou-a para o lado:

- Devo ir - disse, estranhamente rouco -, mas verei você amanhã.

Seus lábios tocaram os dela levemente e ele partiu, deixando-a em silêncio, no vestíbulo escuro e com o coração batendo descontroladamente.

Ela nunca tinha se sentido assim antes: tão enlevada, tão mulher. Suspeitava vagamente do que estava acontecendo, mas, não sabia... nem ousava colocar um nome naquele sentimento... não até ter certeza de si mesma, e de Marcus.

- Marcus - murmurou o nome dele, alto, ao ir para o quarto. Era uma bobagem, talvez, mas naquela noite ela se permitiu sonhar com muitas coisas que antes procurava afastar de sua vida.

 

As duas semanas seguintes foram de uma felicidade total para Rose. Marcus ocupou todos os seus momentos livres e ela não fez nenhuma objeção a isso. Levou-a várias vezes para jantar no restaurante de Carlo e acompanhou-a a um festival de música. Mas também passou noites calmas com ela e o pai, em casa, onde a venceu em mais algumas partidas de xadrez.

Um dia, ele a levou a uma festa em casa de amigos e ela, de repente, ouviu a seguinte conversa entre Marcus e o anfitrião:

- Que garota bonita você trouxe - David Whitby disse - Pena que seja cega.

- Rose não precisa que tenham pena dela - Marcus respondeu.

- Você a está levando a sério?

- Você me conhece, Dave. - Marcus riu. - Gosto de variar.

Ela sentiu que tremia por dentro. Será que era apenas mais uma na coleção variada dele, alguém para temperar a vida dele? Era uma idéia desagradável e procurou não pensar naquilo. Em seguida ouviu David Whitby falando:

- É hora de casar e sossegar, Marcus. Você já está ficando velho e sabe disso.

- Se algum dia eu decidir mergulhar no casamento, tem de ser com alguém que participe dos meus interesses - Marcus respondeu, rápido.

- Tem alguém em vista?

Se Marcus respondeu, Rose não escutou, porque as mulheres ao seu lado começaram a rir. Mas ela tinha ouvido o suficiente para perceber que havia vivido num paraíso falso nas últimas semanas.

O resto da noite pareceu se arrastar e quando, finalmente, saíram da festa, ela estava tão tensa que mal podia falar. Só conseguia pensar naquele comentário sobre a "variar" e sobre o casamento com alguém que participasse dos mesmos interesses que os dele. Seria aquela lista enorme de interesses sobre os quais seu pai havia lhe falado? Caratê, squash, escalar montanhas, viagens, iatismo? Ela lembrava de tudo com o coração partido. Um casamento com Marcus ainda não fazia parte de seus pensamentos, mas agora sabia que não tinha a menor chance de planejar nada. Jamais poderia se interessar por aquelas atividades, mesmo que quisesse, e o relacionamento entre ambos, mais cedo ou mais tarde, se tornaria insustentável.

- Será que vai me convidar para um drinque? - Marcus perguntou alegremente, quando abriu a porta da frente para ela.

- Não. É tarde e eu... estou um pouco cansada - ela se desculpou, sabendo que não conseguiria agüentar a proximidade dele, agora que já não tinha mais ilusões.

- Então eu a vejo amanhã à noite.

- Acho que não. Marcus, estou com meu trabalho atrasado.

- Eu telefono, de qualquer modo. - Deu-lhe um abraço rápido e um beijo leve nos lábios. - Boa noite, Rose.

Momentos depois, ela ouviu o carro se afastar e só então trancou a porta e subiu para o quarto. Não é tarde demais para esquecer, disse a si mesma, enquanto se despia e ia para a cama. Ficou deitada ali, pensando, sabendo que se enganava, que já era tarde demais para esquecer. Marcus tinha derrubado suas defesas desde o primeiro encontro e, aos poucos, fora tirando todas as suas proteções, inclusive a resolução de excluir os homens de sua vida. Agora ela estava ali, sozinha com o seu desespero, sabendo que tinha se apaixonado por um homem que, aparentemente, se importava tão pouco com ela quanto com as outras mulheres que já tivera.

Não houve lágrimas nem recriminações silenciosas. Somente uma aceitação calma e a decisão firme de, no futuro, ter mais cuidado depois, é claro, de procurar esquecer aquele sonho de felicidade.

 

Quando o telefone tocou depois do jantar, na noite seguinte, Rose sabia que era Marcus. Mesmo assim, estremeceu quando o pai a chamou para atender. Estava com as mãos úmidas ao segurar o aparelho e o som da voz dele a deixou ainda mais nervosa. Desesperada, sabia que era uma futilidade esticar ainda mais aquele relacionamento.

- Vamos jantar juntos, amanhã - ele sugeriu com seu modo autoritário e, apesar de ela desejar violentamente dizer que sim, uma voz interior lhe dizia que aquilo seria um erro.

- Lamento, mas não posso - disse, agarrando a primeira desculpa que encontrou. - Vou sair com meu pai para jantarmos com alguns amigos.

- E depois de amanhã?

- O dr. Vaughn vai me levar a uma festa no seu clube de golfe.

Houve um silêncio do outro lado da linha e ela ficou com medo de que ele ouvisse as batidas do seu coração. Em seguida, Marcus perguntou, num tom divertido:

- Está me dando o fora, Rose?

Oh, Deus, dê-me forças, ela pensou, desesperada, fincando as unhas na palma da mão e mentiu:

- Não... claro que não.

Ficaram em silêncio por mais alguns momentos e, de repente, Marcus disse com certa rispidez:

- Então vejo você a qualquer hora.

Desligou imediatamente e ela não pôde responder. Ficou ali, de pé, sentindo-se uma estúpida, lutando contra um sentimento de culpa e uma enorme vontade de chorar.

- Acho que ouvi você dizendo que vai sair comigo amanhã - comentou Theodore, quando ela voltou para a sala de estar.

- É verdade - ela disse, segurando a xícara de café. - Você se importa?

- Fico satisfeitíssimo, mas... - ele parou por um momento e Rose ouviu claramente as batidas do relógio - Rose, não brinque de gato e rato com Marcus.

Ela tomou um gole, fazendo um esforço para ganhar tempo e controlar a própria voz.

- Papai, não pretendo mais me encontrar com ele. Isso, se conseguir.

- Mas por quê? - indagou Theodore, incrédulo, sacudindo com força o jornal e atirando-o ao chão. - Pensei que gostasse dele.

- Gosto dele. Talvez goste demais - ela disse, com cuidado. – É por isso que acho que está na hora de terminar com essa amizade.

Houve um longo silêncio e então Theodore suspirou:

- Lamento, mas não entendo você.

- Acho que nem eu me entendo. Mas está decidido - ela suspirou.

O pai não fez mais nenhuma pergunta. Simplesmente pegou o jornal e continuou a lê-lo antes de ela sair para a sua sala de trabalho, onde ia terminar algumas transcrições.

 

A noite seguinte, na casa dos amigos do pai, os Duncan, deixou-a aborrecida e cansada. E a festa no clube de golfe de Basil não foi melhor. Todos os pensamentos de Rose estavam com Marcus e sentia vontade de correr para o telefone mais próximo, só para ouvir a voz dele.

Rose tentava disfarçar, sorrir quando era preciso, mas, por dentro, só desejava a presença daquele homem que a fazia sentir-se tão viva.

Oh, Deus, ela pensou em determinado momento, por que não fico satisfeita com as migalhas que ele tem para me oferecer? As migalhas eram muito melhores do que este vazio que agora existe dentro de mim.

A festa terminou pouco depois da meia-noite e ela se sentia exausta, quando Basil a levou para casa. Ele parecia muito mais quieto naquela noite do que normalmente, mas ela não sabia o motivo. Basil abriu a porta e colocou a chave na mão dela. Depois, passou o braço sobre os seus ombros.

- Nós nos conhecemos há muito tempo, Rose - ele disse -, e você deve saber o que sinto...

Se o chão tivesse afundado naquele momento, ela não teria ficado mais surpresa.

- Basil, por favor, não...

- Eu a amo, Rose, e quero que case comigo - ele prosseguiu, apressado.

Ela jamais esperara aquilo de Basil Vaughn. Ele era um homem de mais ou menos quarenta anos. Não que a idade importasse, mas era o seu médico desde que tinha doze anos, mais tarde se tornara um grande amigo e chefe de trabalho. Basil jamais dera indicação do que sentia por ela e nem ela nunca pensara nele como namorado, marido ou amante. Não sabia por que Basil estava falando aquilo, e, apesar de achar a idéia estranha, sentia-se profundamente tocada.

- Lamento, mas eu... eu não posso casar com você, Basil - ela disse finalmente, depois de ficar em silêncio algum tempo.

- Prometa que vai, pelo menos, pensar no assunto. - Ele apertou os ombros dela com mais força.

- Prometo, mas... - ela não terminou porque não queria magoá-lo, mas sabia que precisava falar a verdade. - Não espere muito, Basil. Gosto de você, mas eu... não o amo. - Eu nunca me senti tão detestável em toda a minha vida, pensou, continuando: - Lamento muito, desculpe.

- No momento, só estou pedindo que pense no assunto - Basil insistiu, beijando-a no rosto como sempre fizera. - Boa noite, minha querida.

Naquela noite, Rose não conseguiu dormir. A declaração de Basil a deixara assustada e durante horas permaneceu tentando organizar a própria mente. Não houvera nenhuma demonstração de paixão, nenhuma tentativa embaraçosa, apenas a afirmação calma de que ele a amava e queria casar com ela. Sentia-se agradecida por aquela discrição, pois, pelo menos, não teria problemas quando se encontrassem novamente. Mas estava perturbada por saber dos sentimentos dele. Se há um mês atrás Basil tivesse feito aquela declaração, Rose poderia considerar a proposta, mas agora, não. Não depois de ter conhecido Marcus Fleming.

Devia estar satisfeita. Tinha recebido sua primeira proposta de casamento. Ela, que nunca esperara nenhuma. No entanto sentia-se deprimida, imaginando que destino cruel colocara um homem como Marcus em sua vida.

 

Quando amanheceu, Rose ainda não tinha conseguido dormir. Saiu da cama, cansada, e chamou Maggie para lhe preparar o banho.

- Levantou cedo hoje, srta. Rose - comentou Maggie ao entrar no quarto, minutos depois.

- Eu não consegui dormir. Como está o dia?

- Frio. O gramado está branco da geada. Vai ter de usar algo quente.

- Calças compridas e um suéter - ela decidiu, deixando Maggie escolher a roupa. Depois foi para o banheiro e procurou relaxar no banho, esquecendo as horas de insônia da noite anterior.

 

- Você parece não ter pregado o olho - comentou Theodore, quando ela desceu para o café. - A festa com Basil não foi agradável?

- Na verdade, superou todas as minhas expectativas - ela explicou, cansada. - Ele me pediu em casamento.

- Ele o quê? - Theodore explodiu, deixando o garfo cair dentro do prato. - Espero que você não tenha aceito.

- Oh, papai, como pode dizer isso? - Ela franziu as sobrancelhas, reprimindo o impulso de contar logo tudo ao pai. - Basil é um homem maravilhoso, um ótimo médico e...

- Você não o ama - Theodore interrompeu, bruscamente.

- Não. Não amo. Mas prometi pensar na proposta dele.

- Acho que nem devia ter prometido isso - o pai disse, agitado. – O homem tem uns quarenta anos .

- Papai, se eu o amasse, a idade dele não teria importância nenhuma. Mas só sinto amizade por ele.

- Espero que sim! - comentou Theodore, ríspido.

- Não seja rude! - ela protestou.

- Desculpe, Rose. - Theodore suspirou. - Agora, se fosse Marcus...

- Nunca será Marcus - ela exclamou, nervosa, torcendo o guardanapo. - Nunca.

- Minha querida, foi apenas uma suposição.

- Bem, não suponha nada! - Houve um silêncio longo e desagradável, depois ela suspirou e sorriu, cansada, dizendo: - Desculpe, papai. Estou nervosa esta manhã e sei que não devo ficar descarregando em você.

- É para isso que servem os pais. - Theodore riu e a tensão diminuiu. Ele, então, se levantou e deu um beijo na testa dela. - Vejo você à noite.

Rose ainda ficou ali, sentada mais algum tempo, brincando com uma torrada e tomando outra xícara de café. Não tinha esperado que o pai reagisse tão violentamente ao pedido de Basil. Talvez devesse ter tentado acalmá-lo, mas, em consideração a tudo o que o médico havia feito por ela no passado, sentia-se na obrigação de defendê-lo.

Oh, por que sua vida, de repente, tinha ficado tão confusa? Levantou-se e decidiu dar um passeio pelo jardim.

Estava frio, mas Rose mal percebia. Só conseguia pensar no que desejava esquecer, nos momentos mágicos em companhia de Marcus, quando nada mais importava a não ser o toque dos lábios e das mãos dele. Quando, finalmente, estremeceu de frio, entrou e se fechou na sala de trabalho durante duas horas, transcrevendo sem parar. Ali o trabalho ocupava a sua mente e ela conseguia afastar os pensamentos de tudo. Mas, de repente, a porta se abriu e alguém entrou.

Ninguém, nem mesmo Maggie, entrava naquela sala desse jeito sem bater nem pedir licença. Ficou tensa e procurou ouvir melhor. De repente, desejou estar com Sheba em sua companhia, pois assim teria uma idéia de quem entrara.

- Quem... - ela começou, nervosa, mas quando os passos avançaram sobre o carpete, ela experimentou aquelas vibrações tão perturbadoras que sempre a atingiam quando ele estava por perto. Então murmurou, hesitante: - Marcus?

O perfume másculo dele novamente confirmou as suas suspeitas e aquela voz profunda e familiar soou perto de sua orelha:

- Adivinhou, Rose.

 

- Adivinhou - Marcus repetiu, mas Rose sabia que não havia nenhuma adivinhação naquela descoberta. A presença de nenhum outro homem a afetava daquele jeito. Marcus e ela poderiam estar em extremidades opostas de uma sala lotada e, mesmo assim, Rose saberia que ele estava ali.

- O que está fazendo aqui? - perguntou, nervosa, quando o ouviu rir de um modo desagradável.

- É assim que você me recebe depois de ficarmos longe um do outro tantos dias?

- Não, Marcus! - ela gritou, ansiosa, levantando-se e saindo do alcance dele, ao perceber instintivamente que ia ser beijada.

- Qual é o problema com você, hein, Rose? - ele indagou, tenso. - Está agindo de modo estranho desde que fomos à festa na casa de Dave Whitby.

- Você está imaginando coisas - mentiu, desesperada.

- Estou? - O tom de voz dele era cínico. - O que aconteceu naquela noite? Alguém disse algo que provocasse essa mudança repentina em você?

Sim, você!, ela queria gritar, mas não poderia fazer isso sem revelar os seus sentimentos. Preferiu se esconder atrás das mentiras que detestava tanto.

- Não, ninguém disse nada e eu não mudei.

Sentiu que ele a olhava e enrubesceu.

- Almoce comigo hoje, para provar isso.

- Não posso. Vou à clínica daqui a uma hora e acho que só terminarei o trabalho lá no começo da noite.

- Então vai ficar muito tarde - ele respondeu, apressado. - Vou tomar o avião para Cape Town esta noite e só volto no começo da próxima semana.

- Então, isso resolve tudo.

- Resolve? - Ele nem procurou disfarçar o cinismo. Então algo, talvez o punho de Marcus, bateu na mesa, fazendo com que ela desse um pulo de susto.

- Que droga, Rose! Qual é o problema? Você esfriou comigo e, diabos, nem sei por quê!

- Se quer mesmo saber, eu lhe direi: - ela gritou em resposta, refugiando-se na raiva para fugir ao momento de tensão - acho que é hora deste nosso relacionamento acabar. Eu lhe disse desde o início que não quero me envolver.

- Então é aquela velha história de não querer ser um peso para as pessoas, por causa da sua cegueira, não? - indagou ele, em tom de pouco caso. - Bem, eu não aceito isso, Rose, e não vou deixar que continue com esta conversa.

O que ele quer dizer?, ela se perguntou, confusa, ao ouvi-lo se afastando e passando a chave na porta. Estavam trancados! Ficou gelada de medo e seu coração bateu mais depressa.

- Marcus? - indagou, rouca, sentindo que o perigo se aproximava. Afastou-se, tropeçando na mesinha baixa, perdeu o equilíbrio. Quando caía para a frente dois braços fortes a seguraram antes que chegasse ao chão. Agarrou-se com força nos ombros dele, que a colocou no sofá.

- Marcus, não... eu estou pedindo!

Mas não adiantou nada. Marcus não a largou e Rose sentiu-se amassada contra o sofá. O hálito dele era quente e se aproximou dos seus lábios. Ela virou o rosto, mas foi segura pelos cabelos. Isso a fez dar um gemido de dor e forçou-a a ficar quieta. Então os lábios dele forçaram os dela à submissão. Rose sabia que tinha que resistir, mas ele era forte demais. Aqueles braços poderosos formavam uma barreira onde suas emoções esbarravam e não venciam. Sentia-se vítima de um furacão e, de repente, sentiu as mãos dele por baixo do suéter, acariciando-lhe os seios. Rose gemeu e seus lábios se renderam aos dele. Admitiu que fora derrotada e uma onda de desejo a sacudiu, quando percebeu que ele lhe desabotoara o sutiã e segurava completamente seus seios pequenos.

Marcus beijou-lhe então o pescoço, e ela gemeu em êxtase, sentindo os lábios incharem. Um delicioso fogo lhe percorreu as veias, chegando até o cérebro e fazendo com que o coração de ambos batessem no mesmo ritmo. Aquela enorme necessidade que sentia dele a levava para longe de qualquer raciocínio.

- Então, você não quer se envolver, não é, Rose? Conte-me como vai conseguir isso, se já se envolveu tão profundamente.

A vergonha agiu como uma ducha de água fria, seguida da humilhação. Ele se afastou e ela pôde arrumar as roupas e se compor.

Se isto prova alguma coisa, é a facilidade com que Marcus despertava as minhas emoções, ela pensou. E Deus que a ajudasse para que ele não descobrisse quanto o amava.

- Não quero ser tratada como um brinquedo que você põe de lado no momento em que bem entender - disse, numa voz que lhe pareceu fria demais. Alisou os cabelos com as mãos trêmulas e prosseguiu: - Eu posso ser cega, mas tenho sentimentos e, neste momento, nem imagina como o desprezo, Marcus Fleming!

Um longo e profundo silêncio seguiu-se ao comentário dela. Depois, foi indagada em tom rude:

- Sabe o que está dizendo?

- Sim - respondeu, quase engasgada de raiva. - Vá embora e deixe-me sozinha.

Sentiu que ele hesitava, mas continuou teimosa, em silêncio durante alguns momentos, até que ouviu a chave na fechadura, a porta sendo aberta e fechada. Depois ouviu os passos dele se afastando no corredor e, minutos depois, o carro indo embora. Então, deixou se cair sobre o sofá, as lágrimas correndo silenciosamente dos olhos.

Rose sabia muito bem que ali havia terminado um lindo capítulo da sua vida. Acreditava que tinha sido melhor assim, enquanto teve coragem de fazer o que devia ser feito. Não havia lugar para ela na vida de Marcus Fleming e fora uma tola em pensar o contrário. A cegueira formava uma parede intransponível entre ambos e havia também o fato de que ele preferia variar de mulheres.

Sentiu-se desesperadamente cansada ao subir para lavar o rosto e escovar os cabelos, antes de pedir a Maggie que a levasse à clínica. O futuro lhe parecia completamente vazio e precisava ser preenchido. Iria preenchê-lo do único jeito que podia.

 

Foi uma sorte Rose ficar bastante ocupada em casa e na clínica durante os dias que se seguiram, sem um minuto sequer para pensar muito no que havia acontecido. O tempo, ela esperava, iria transformar aquilo em uma simples recordação.

Mas, na terça-feira da semana seguinte, algo aconteceu que lhe trouxe de volta todo o episódio com Marcus. No meio da manhã, Maggie entrou na sala de trabalho de Rose e anunciou que tinha chegado uma carta para ela.

- Uma carta? - ela indagou, curiosa. - Mas as cartas nunca são entregues em nossa casa.

- Ela foi trazida por um mensageiro especial - Maggie explicou. - Quer que eu a leia, srta. Rose?

- Sim, por favor.

- É do sr. Fleming.

Marcus! O pensamento a fez sofrer. O que ele teria para lhe dizer em uma carta enviada por um mensageiro especial?

- Acho que não há nada pessoal na carta - Rose anunciou, nervosa. - Leia para mim, Maggie.

Maggie hesitou durante um breve instante, depois desdobrou a carta.

- "Rose - ela começou a ler -, voltei de Cape Town ontem, mas estarei mergulhado em trabalho o resto da semana. Tenho reservado um vôo para o Rio de Janeiro na sexta-feira e ficarei fora aproximadamente três semanas. Preciso discutir assuntos importantes com você antes de partir. Venha almoçar comigo no Carlo, na sexta-feira, à uma hora em ponto. Se não estiver lá, vou deduzir que falou mesmo a sério no nosso último e infeliz encontro e não a importunarei mais futuramente. Marcus."

- Pode ler outra vez, Maggie? - Rose murmurou, inclinando-se na cadeira, curiosa e sentindo que, de repente, precisava respirar fundo.

Maggie leu cuidadosamente mais uma vez e, quando terminou, Rose estendeu a mão para pegar a carta e agradeceu.

- Vai almoçar com ele, srta. Rose?

- Eu não sei.

- Mas, srta. Rose...

- Alô! - A voz familiar de Vera interrompeu a conversa e Rose logo colocou a mão sobre Sheba, que começava a rosnar. - Mamãe me pediu para passar aqui e lhe dar estes dois ingressos para o concerto de caridade da próxima sexta-feira.

- Por favor, agradeça à sua mãe, Vera - respondeu Rose, colocando de lado a carta de Marcus. - Aceita uma xícara de chá?

- Não, obrigada. Devo ir logo - ela recusou, mas por algum motivo foi ficando na sala, até que Maggie pediu desculpas e se retirou. - Como vai o caso? - perguntou, inesperadamente.

- Caso? - Rose indagou, espantada.

- Entre você e Marcus, naturalmente - Vera falou, distraída, e Rose respirou fundo.

- Não estamos tendo nenhum caso, Vera.

- Ora, vamos! - Vera riu, irônica. - Marcus Fleming não é do tipo de homem que tem romances platônicos com as mulheres.

- Eu lhe garanto que não estou tendo nenhum caso com Marcus. - Rose sentia dificuldade em disfarçar a raiva.

- Então, você é uma boba - anunciou Vera, no tom distraído de sempre. Houve um silêncio estranho e ela sentiu que a outra disfarçava. - Bem, é problema seu.

- Sim, é problema meu.

- Está bem, senhorita Antiquada. Já entendi. Vejo você qualquer hora.

Saiu da sala batendo os saltos altos com força e Sheba rosnou novamente, como se estivesse aliviado. Mas o seu perfume permaneceu no ambiente.

Rose estendeu a mão para onde havia deixado a carta. Será que fui descuidada a ponto de deixar à mostra?, pensou distraída, mas ao segurar o papel, não conseguiu pensar em mais nada, a não ser no convite de Marcus.

Devia ir ao encontro dele, ou permanecer afastada? Seu raciocínio lhe dizia que estava só adiando algo inevitável, mas o coração pensava diferente. Seria possível que ela tivesse entendido mal? Será que tinha mesmo feito alguma coisa que magoou Marcus? Por que ele queria encontrá-la e discutir algo tão importante antes de partir para o Rio de Janeiro? Será que poderia se arriscar a ignorar o conteúdo daquela carta e perder a única felicidade que tinha conhecido? Não, não ia se arriscar a ficar longe dos avisos do seu coração. Entretanto, o raciocínio lhe avisava que poderia sair muito ferida de tudo aquilo. Finalmente decidiu-se: Ia almoçar com ele, mesmo que fosse pela última vez.

Sentiu novas esperanças e o coração mais leve, diante da perspectiva de encontrar Marcus novamente. Deus sabia como ela estava com saudade dele.

Estava ansiosa ao tomar chá com Basil naquela tarde.

- Tenho duas entradas para o concerto que a sra. Sinclair organizou para a próxima sexta-feira - ela contou.

- Isso é um convite? - ele indagou, sorrindo.

- É.

Houve um momento de silêncio no pequeno escritório, onde o cheiro de desinfetante se misturava ao das rosas do jardim, Então Basil perguntou baixinho.

- Pensou na minha proposta?

- Sim e não - Rose respondeu, séria.

- O que quer dizer com isso?

- Sim, pensei e não... não posso casar com você. - Ela colocou a xícara cuidadosamente sobre a mesa e cruzou as mãos no colo. O que mais a aborrecia quanto àquela proposta era que a situação entre ambos jamais seria a mesma. Havia perdido um amigo, alguém em quem confiava e que jamais complicaria a sua vida. Foi com isso em mente que disse, suavemente. - Lamento, Basil.

- Eu também - ele admitiu com um tom surpreendentemente amistoso, colocando a mão no ombro dela mas -, não vou perder as esperanças. Se um dia mudar de idéia, avise-me.

Rose sentia-se horrivelmente pouco à vontade, mas suspirou, aliviada, quando mudaram de assunto e começaram a discutir a situação de um dos pacientes. Sabia que ele não ia mencionar mais o casamento, a não ser que Rose puxasse o assunto. Mas não farei isso, decidiu, não importa nem o que vai acontecer no almoço com Marcus na próxima semana.

 

Na sexta-feira de manhã, estava no quarto se preparando para o almoço .quando Maggie entrou e disse:

- Srta. Rose, chegou outra carta.

- Do sr. Fleming? - Rose indagou, sentindo uma tensão inexplicável.

- Sim. Desta vez veio datilografada e sem envelope.

- Leia para mim.

Maggie pigarreou e leu:

- "Rose, preciso cancelar o nosso almoço. Vou partir num vôo mais cedo e entrarei em contato .com você quando voltar. Marcus.“

Ela sentiu um desapontamento enorme e a intuição de que nunca mais o veria novamente. Era bobagem, claro. Ele não tinha dito que ia procurá-la quando voltasse?

De repente, percebeu que Maggie esperava que dissesse alguma coisa, mas limitou-se a segurar a mão dela e agradecer.

Minutos depois, sozinha no quarto e muito tensa, Rose picou a carta em pedacinhos minúsculos. Depois de toda a ansiedade com que tinha esperado aquele encontro, o cancelamento era uma frustração quase insuportável. Engasgada com as lágrimas, pensou que não podia fazer mais nada, a não ser esperar pacientemente pela volta dele.

 

As três semanas passaram com uma lentidão dolorosa. Era começo de inverno, quando Rose soube que Marcus tinha voltado da viagem. Mais duas semanas ainda se passaram sem que ele a procurasse. Parece que o assunto que desejava discutir comigo já não é tão importante, ela pensou. Como entre tantas outras coisas em sua vida, agora só lhe restava resignação e esperar que tudo aquilo fosse para o seu bem.

Mas não conseguiu impedir que o coração disparasse quando, numa tarde, entrou no escritório do pai e deu com Marcus lá. Precisou de algum tempo até conseguir falar calmamente.

- Marcus... - ela começou, hesitante, estendendo a mão para ele.

- Como vai? - ele respondeu, abruptamente, mal tocando os seus dedos.

Está tudo terrivelmente errado, ela pensou, sentindo a animosidade dele. E, como se o frio do inverno tivesse atingido o seu coração, tentou novamente:

- Marcus, acho que...

- Avise-me assim que esse contrato estiver pronto, Theodore - Marcus interrompeu rudemente e ela enrubesceu.

- Sim, farei isso, Marcus - o pai respondeu, depois de um momento de silêncio desagradável.

- Então, com licença, tenho outra reunião dentro de alguns minutos.

Sem mais nem uma palavra, Marcus saiu do escritório, mas a força da presença dele ainda permaneceu, confundindo-a e fazendo com que seu coração sofresse.

- O que aconteceu entre vocês? - Theodore finalmente perguntou, embaraçado com o silêncio que se prolongava indefinidamente. Rose saiu de sua perplexidade, sentindo-se humilhada.

- Acho que podemos dizer que temos opiniões diferentes - explicou ela vagamente, tentando afastar os efeitos da presença de Marcus. - Íamos conversar a respeito, mas ele teve que ir para o Rio de Janeiro e não tivemos mais oportunidade de nos encontrar, depois da sua volta.

- Ele já voltou há duas semanas.

- Eu sei.

- Sabe que ele está pensando seriamente em mudar para a América do Sul?

Rose sentiu como se tivesse levado um soco na boca do estômago.

- Não. Não sabia.

- Se ele decidir mesmo partir, acho que irá no fim de julho, daqui a pouco mais de um mês.

- Compreendo... - Ela engoliu em seco. Será que ia conseguir conviver com aquela dor desesperada que a estava destruindo por dentro?

- Vamos para casa, papai.

Rose nunca soube como conseguiu sobreviver aos dias que se passaram. Só lembrava que o tempo estava se esgotando e que dentro de poucas semanas o oceano Atlântico a estaria separando de Marcus.

Ia ficando mais agitada à medida em que seus pensamentos a inquietavam. Certo dia, caminhava pela rua Eloff, com pacotes numa das .mãos e Sheba na outra, em direção da rua Jeppe, onde Maggie a esperava com o carro. Estava nervosa e ignorou os avisos urgentes de Sheba para que subisse na calçada. Então, o ruído de uma freada violenta trouxe-a de volta a realidade. Por um momento só pensou no animal ao seu lado. Com um enorme esforço puxou Sheba para trás, mas algo bateu em seu quadril; um segundo mais tarde, tudo rodopiou. Sentiu uma dor forte na cabeça, gritou e não soube de mais nada.

As vozes aumentavam e diminuíam, num murmúrio ininteligível, mãos rápidas a tocavam de tempos em tempos, mas Rose não parecia consciente de nada, até que a voz do pai penetrou naquela neblina que parecia cercar a sua mente.

- Rose? - A mão dele segurou a sua. - Como se sente agora?

- Sinto... uma terrível dor de cabeça - reclamou ela, fraca, confusa ao perceber que estava deitada numa cama com a cabeça doendo terrivelmente quando tentava levantar. - O que aconteceu?

- Você foi atropelada na esquina da rua Jeppe com Eloff.

- Oh, sim... agora me lembro. - A recordação da freada lhe voltou ao cérebro como um pesadelo. Depois, outro pensamento surgiu, fazendo com que segurasse fortemente a mão do pai. - Sheba? - ela indagou, com um tom de desespero na voz. - O que aconteceu com Sheba?

- Está em casa e não precisa se preocupar com ele. Parece que você o puxou para trás no momento em que o carro a atingiu.

- Graças a Deus - ela disse, incapaz de controlar as lágrimas. Chorou algum tempo em silêncio, depois pediu: - Papai, por favor, telefone para Basil e avise-o de que não poderei ir à clínica esta tarde, sim?

- Rose... minha querida, já é de manhã.

- De manhã? - ela repetiu, tentando compreender.

- Você estava inconsciente desde a tarde de ontem. - Theodore tinha as mãos trêmulas.

- Oh, Deus! Foi assim tão grave?

- Você teve muita sorte - Theodore explicou, aliviado. - Bateu a parte lateral da cabeça quando caiu, mas não teve mais nenhum ferimento, a não ser alguns arranhões.

- Estou num hospital? - ela perguntou, alisando os lençóis.

- Sim. - O pai admitiu e momentos depois uma enfermeira entrou, anunciando que a visita dele devia terminar. O pai levantou-se e beijou-a no rosto. - Virei ver você amanhã à tarde - ele murmurou e saiu.

 

Alguns dias depois, Rose teve permissão de voltar para casa. Mas, na semana seguinte, começou a sentir dores e procurou Basil Vaughn.

Ele a examinou cuidadosamente e pediu algumas radiografias..

- O que há de errado, Basil? - ela quis saber, depois de sair da sala de Raios X.

- Ainda não posso dizer, por isso pedi as radiografias.

- Não tem nenhuma idéia?

Ele ficou em silêncio, depois tomou-a pelo braço e acompanhou-a até o carro.

- Tenho idéia do que pode ser, mas prefiro não discutir nada até ter certeza.

- Você está me deixando com medo.

- Não precisa ter medo de nada. Oh, segure aqui... - ele enfiou um vidro na mão dela quando Maggie se aproximou. - Tome duas dessas cápsulas se tiver dor de cabeça, a cada seis horas, se necessário. São um pouco fortes.

 

Três dias depois, Rose e o pai foram chamados ao consultório de Basil. Rose percebeu que discutiriam algo sério, por ter sido requisitada a companhia do pai. Aquilo a deixou ansiosa e com medo, começando a suar frio antes de entrar na sala.

- Estou satisfeito que tenha vindo, sr. Cunningham - Basil disse, ajudando Rose a sentar. - Separei as radiografias para que pudesse olhá-las.

Theodore acompanhou Basil até a outra extremidade da sala e Rose sentiu-se mais nervosa ainda.

- Mas, essas são as radiografias que tirou há alguns anos - Theodore logo protestou.

- Sei disso - Basil respondeu calmamente. - Gostaria que desse uma olhada nelas antes de eu lhe mostrar o resultado do acidente de Rose há duas semanas.

Houve um momento de silêncio, cheio de tensão, e Rose disse impaciente:

- Não faça mais suspense, Basil.

- Muito bem. - Ele riu, mas ela o conhecia muito bem, para saber que aquele era um riso nervoso. - Vê aqui este pequeno fragmento de aço, menor do que a ponta de um lápis? - Ele apontou. - Isto entrou pela têmpora e cortou uma veia grande, indo se alojar nos olhos, mas, milagrosamente, não os feriu. Entretanto, feriu o quiasma óptico e se alojou no osso esponjoso bem ali atrás. - Rose ouviu que substituíam as radiografias por outras. - Agora, gostaria que olhasse as que foram tiradas há poucos dias - Basil prosseguiu. - O golpe que ela levou na cabeça alterou a posição dos fragmentos de ossos e do fragmento da granada. Agora podemos ver que os nervos ópticos tinham sido apenas parcialmente feridos e que a perda da visão estava sendo causada pela pressão dos fragmentos de ossos e de metal sobre os nervos.

Houve um longo silêncio, durante o qual até os móveis pareciam estar prendendo a respiração. Então, Theodore fez a pergunta que tinha ficado no ar.

- O que tudo isto significa?

- Agora que a pressão foi ligeiramente aliviada, parece que os nervos ópticos ainda estão mandando impulsos para o cérebro. Veja, vou mostrar isso. - Ele se aproximou de Rose e ajustou a posição dela levemente, depois pediu: - Fique nesta posição, Rose. - Em seguida, apagou e acendeu uma luz e ela sentiu um leve desconforto antes que Basil voltasse a falar com Theodore. - Viu como as pupilas reagiram à luz?

- Sim - respondeu o pai.

Novamente ele apagou e acendeu a luz e novamente ela sentiu o desconforto. Então disse, irritada:

- Pare de fazer suspense, Basil, e vamos aos fatos. Há ou não há possibilidade de que eu seja operada, agora?

Basil pigarreou pouco à vontade e explicou:

- Sim... e não.

- Explique-se - ordenou ela, friamente, cruzando as mão com tanta força que os dedos lhe doeram.

- Há uma possibilidade de que eu possa operá-la, agora que a pressão foi aliviada e os nervos ópticos parecem não estar seriamente feridos, mas...

- Mas? - ela interrompeu, impaciente. - Vamos, Basil, já vivi muito sabendo que vou ser cega para sempre, portanto, vamos ter uma conversa direta. Prometo que não terei nenhum ataque de histeria.

- É uma operação perigosa - Basil disse, sem hesitar mais. - Os fragmentos de ossos aliviaram a pressão, mas se moveram perigosamente para perto do cérebro. Se eu a operar, há possibilidades de que recupere a visão parcial... ou até inteiramente, mas podem também acontecer sérios danos cerebrais.

Naquele momento, Rose não conseguiria explicar os próprios sentimentos. Tinha vivido tanto tempo sem esperanças, que naquele momento nem fazia muita diferença se veria novamente ou não. Mas alguns segundos depois, começou a pensar de modo diferente.

- Quais são as chances? - o pai perguntou, finalmente.

- Cinqüenta por cento - Basil respondeu com toda a sinceridade. - O risco é sério.

- O que sugere? - Rose perguntou.

- Eu não aconselho a operação... ainda não - Basil disse com firmeza. - Gostaria de estudar mais tempo as radiografias e consultar alguns colegas daqui da África do Sul e do exterior. Depois que souber da opinião deles, avisarei você. Portanto, não fique muito esperançosa.

Rose e o pai foram para casa em silêncio, cada um preocupado com seus próprios pensamentos. Mas, quando chegaram, Theodore a abraçou com força.

- Eu daria tudo o que possuo para que a sua visão fosse restaurada - ele disse -, mas se houver algum risco, então terá de me perdoar, mas não darei consentimento.

Rose não disse nada, apenas abraçou-o com mais força. Sentia os mesmos temores que ele e não adiantava ter muitas esperanças. Nos primeiros cinco anos de cegueira, ela rezara por um milagre, mas depois fora forçada a resignar-se. Agora, depois de todos aqueles anos, o destino decidira presenteá-la com um possível milagre. Mas, ao que parecia, o presente era um escorpião, com seu terrível e mortal ferrão.

 

A possibilidade da futura operação nunca era discutida por Rose e o pai, mas estava sempre presente entre eles, mesmo nos momentos de silêncio.

- Hoje encontrei um velho conhecido - Theodore disse depois do jantar, certa noite, após um daqueles silêncios desagradáveis. - Você deve se lembrar, é Jim McGregor. Fiz um trabalho para a companhia dele em Zimbabwe. Ele está morando aqui em Joanesburgo desde o ano passado.

- Jim McGregor? - Rose franziu as sobrancelhas. - Acho que a filha dele, Constance, estava na minha classe, na escola.

- Isso mesmo. Ela casou e mora na Austrália.

Constance McGregor era uma loura de aparência frágil e ar esnobe, não muito estimada pelas colegas de classe, Rose lembrou, mas disse interessada:

- Vocês dois devem ter tido muito sobre o que conversar, depois de todos esses anos.

- Sim - Theodore admitiu, entusiasmado. - Almoçamos juntos e ele me contou que, por acaso, foi Marcus quem lhe disse como entrar em contato comigo.

- Marcus? - ela indagou, sentindo que seu interesse aumentava e procurando ignorar a dor que aquele nome lhe causava.

- Os dois se encontraram no vôo para o Rio de Janeiro, no mês passado. Na verdade, encontraram-se antes de o avião levantar vôo, naquela noite, quando tomaram uns drinques e...

- Noite? - ela interrompeu rapidamente, com todos os nervos à flor da pele e segurando com força o braço da cadeira. - Você disse naquela noite?

- Pelo que sei, só existe um vôo para o Rio de Janeiro e esse sai na noite de sexta-feira. Porque está perguntando?

- Oh, Deus! - ela gemeu, sentindo-se confusa diante daquela descoberta.

O que aquilo significava? O que poderia significar? Será que algo, em algum momento, dera errado? Um mal-entendido, talvez? Por que Marcus tinha mandado um bilhete dizendo que ia partir antes, quando não havia nenhum vôo antes? E por que deixara de entrar em contato com ela, como dissera que faria, quando voltasse? E por que a tratara com tanto desinteresse quando se encontraram no escritório do pai, fazendo com que ela se sentisse culpada? Nada daquilo fazia sentido! Tinha pensado muito no assunto, mas agora percebia que não era próprio de Marcus se comportar daquele jeito.

- Rose, o que foi? - o pai indagou e, sem hesitar, ela contou tudo a ele.

- Eu tinha um encontro para almoçar com Marcus no dia em que ele partiu para o Rio de Janeiro. Era muito importante, mas recebi um bilhete dele, naquela sexta-feira, explicando que não poderia se encontrar comigo porque ia partir mais cedo. - Ela mordeu os lábios procurando se controlar. - Acha que ele resolveu não se encontrar comigo e deu como desculpa a antecipação da hora da partida?

- Não parece próprio de Marcus. Se ele não quisesse encontrá-la, diria a verdade.

- Foi o que pensei - ela murmurou. Seria possível que ele tivesse esperado por ela, naquele dia, no restaurante de Carlo? Mas, por que lhe mandara o bilhete cancelando o encontro? Quanto mais pensava naquilo, mais confusa se sentia. De uma coisa tinha certeza... ia descobrir exatamente o que havia acontecido. Levantou-se e tocou a campainha chamando Maggie. Depois avisou:

- Papai, preciso sair, é muito importante.

- Não pode sair sozinha a esta hora da noite - protestou o pai, indo atrás dela.

- Papai, "preciso"! - ela gritou desesperada e, quando Maggie chegou, avisou depressa: - Maggie, pegue o carro, enquanto vou buscar um casaco.

- Onde quer iria esta hora da noite, srta. Rose? - Maggie perguntou, espantada.

- Explico no caminho.

- Pode ir, desde que leve Sheba - o pai avisou, segurando-a pelo braço. - Espero que saiba o que está fazendo, Rose.

- Eu também espero. - Ela apertou levemente a mão dele.

Sentia-se excitada e com medo, à medida que Maggie dirigia em direção à cidade. Estava agindo intuitivamente e aquilo podia dar em nada, mas valia a pena tentar. Podia passar por tola mais uma vez, mas não ia descansar enquanto não resolvesse aquele mistério. Talvez até não existisse nenhum mistério ali, mas precisava ter certeza.

Carlo estava muito ocupado naquela noite, a julgar pelos sons que chegaram até Rose. Maggie a deixou na entrada do restaurante, mas ele logo se aproximou e lhe beijou a mão, como de costume.

- Signorina Cunningham - disse, calorosamente -, quanta honra!

- Carlo, preciso de uma informação.

- E uma boa xícara de café - ele insistiu, levando-a para uma mesa e sentando-se com ela. Logo o café chegou e ele indagou: - Que tipo de informação, signorina?

Tinha chegado a hora e Rose se sentia tola e nervosa. Cruzou as mãos para que não tremessem.

- Lembra se Marcus veio almoçar aqui numa sexta-feira, no mês passado? No dia 12, para ser exata.

Aquela era uma pergunta difícil para Carlo.

- Ele almoça aqui algumas vezes, mas não tenho certeza desse dia que você mencionou.

- Nessa sexta-feira ele devia estar esperando alguém - Rose tentou. - Isso ajuda?

- Si, si - Carlo disse, depois de pensar alguns momentos. - Ele entrou e sentou na mesa de sempre, mas não pediu o almoço. Si, isso mesmo. Estava esperando alguém... e esperou quase uma hora, mas a pessoa não veio... e ele foi embora.

Ela respirou fundo e sentiu-se enjoada só de pensar em Marcus ali, esperando, enquanto ela tinha ficado em casa, desapontada com o bilhete que cancelava o encontro.

- Ele... parecia aborrecido? - indagou, hesitante.

- Parecia muito zangado - Carlo contou. - Sabe quem ele estava esperando, naquele dia?

- Sim - ela contou, com ar infeliz. - Esperava por mim.

- Ah! Tiveram uma briga de namorados?

- Não exatamente, mas era importante que tivéssemos nos encontrado naquele dia. Eu tinha intenção de vir, mas... recebi um bilhete.

- Um bilhete, signorina?

- Um bilhete cancelando o encontro.

- Mas, por que ele lhe mandaria um bilhete cancelando o encontro se estava aqui, à sua espera? - Carlo indagou, confuso.

- É isso o que eu queria entender, Carlo.

- Talvez alguém tenha feito uma brincadeira.

- Uma brincadeira? - Ela mordeu os lábios. - Quem faria uma brincadeira dessas? E quem ia saber que íamos nos encontrar?

- Uma mulher - Carlo sugeriu depois de algum tempo. - Uma mulher com ciúme é capaz de coisas terríveis, signorina.

- Sim, mas "quem"?

No momento em que fez a pergunta, Rose compreendeu melhor as coisas. Lembrou daquela manhã, quando recebeu a primeira carta de Marcus, pedindo que fosse almoçar com ele na sexta-feira, Maggie levou a carta e a entregou a ela. Então, Vera chegou com as entradas do concerto. Rose lembrou que tinha dobrado a carta e colocado sobre a mesa. Sim, mas quando Vera saiu, a carta estava aberta. Naquele momento achou estranho, mas estava tão preocupada com Marcus que o incidente não a perturbou.

- Suspeita de alguém? - Carlo interrompeu

- Sim, mas... - ela parou com ar de culpa. - Oh, eu não sei. Ela podia... ela não teria feito, mas...

- É possível?

- Sim, é possível. - Foi forçada a admitir. Vera parecia muito interessada em Marcus naquela manhã e devia ter planejado algum modo de causar problemas. Rose levantou-se, desanimada, e estendeu a mão, dizendo:

- Carlo... muito obrigada. Você ajudou muito.

- Estou sempre às suas ordens, signorina - ele disse, levando a mão dela aos lábios. - Arrivederci, signorina.

- Arrivederci, Carlo. - Quando se aproximou do carro, Maggie perguntou:

- Descobriu alguma coisa?

- Sim, descobri - respondeu, depressa, acariciando o focinho de Sheba. - Tenho quase certeza de que o segundo bilhete não era do sr. Fleming.

- O que quer dizer, srta. Rose?

- Não tem importância. Você tem o endereço dele, portanto, leve-me até o seu apartamento.

- Mas, srta. Rose, não pode ir ao apartamento de um homem a esta hora da noite. - Maggie exclamou, espantada. - Não parece correto.

- Eu não me importo, Maggie. E muito importante para mim que este mal-entendido seja logo esclarecido, por isso, preciso falar com ele. "Preciso" explicar...

- Mas, srta. Rose...

- Por favor, Maggie, não discuta. Leve-me até lá.

Maggie resmungou alguma coisa, mas sabia que, quando Rose tomava uma decisão, nada a fazia mudar de idéia. Portanto, dirigiu até o endereço pedido.

O edifício em que entraram momentos depois tinha um aspecto luxuoso e Maggie o descreveu, mas Rose não estava interessada em nada.

- Qual o andar dele?

- Sexto - Maggie respondeu -, número 603.

- Vamos - Rose disse impaciente e, quando estavam no elevador, perguntou qual era o botão do térreo.

- O último, embaixo, à esquerda. - Rose tocou os botões, procurando se familiarizar com eles.

Quando o elevador parou e abriu as portas sem ruído, elas desceram e Rose pediu, nervosa:

- Descreva o lugar para mim, por favor.

- Há três apartamentos neste andar. Um à sua esquerda, outro em frente e outro à direita.

- Qual é o do sr. Fleming?

- O da sua direita - Maggie disse, relutante. - Está a dez passos daqui e a campainha fica do lado direito da porta.

- Obrigada.

- Devo esperar, srta. Rose?

- Lá embaixo, na entrada, por favor. E leve Sheba com você.

- Mas...

- Pare de se preocupar - ela sorriu, nervosa, entregando o cão. - Desça e espere, conseguirei me arranjar sozinha.

Maggie resmungou alguma coisa, mas desceu, e Rose ficou sozinha. Caminhou dez passos e se encontrou diante de uma porta. Procurou a campainha, mas, naquele momento, parecia ter perdido a coragem. Sentia os nervos à flor da pele; sua respiração se acelerou e o coração começou a bater mais forte. De repente, achou que ia desmaiar. Será que era mesmo aconselhável procurar Marcus daquele jeito? Como ele iria recebê-la? E se já nem se importasse mais com ela? Apertou a campainha, tremendo, mas sabia que precisava fazer um esforço para esclarecer aquele mal-entendido que havia criado uma barreira tão grande entre ambos. A campainha soou e depois de momentos que pareceram uma eternidade, a porta se abriu.

- Rose! - A voz profunda dele demonstrava surpresa, mas estava completamente fria. - O que é que está fazendo aqui a esta hora da noite?

Ela sentiu a garganta seca, mas logo reagiu:

- Eu... quero falar com você... se for possível.

- Acho que não temos nada para dizer um ao outro.

- Marcus, por favor - ela pediu, rouca, umedecendo os lábios com a ponta da língua -, é muito importante.

- Então diga o que tem a dizer e vá logo embora.

Era como ter levado um tapa no rosto. Ela se sentiu humilhada e enrubesceu, nervosa.

- Não foi fácil vir até aqui esta noite.

- Então, meus parabéns... - ele respondeu, irônico.

- Por favor... - lá dentro a Sonata Apassionata de Beethoven tocava baixinho, o que lhe deu uma certa coragem. - Deixe-me explicar, Marcus.

- Explicar o quê?

- Àquele dia em que eu devia ter-me encontrado com você, no Carlo - ela começou, mas ele logo interrompeu.

- Não precisa explicar nada - disse, friamente, atingindo em cheio o coração dela. - Minha carta era muito clara e você agiu do modo que achou mais certo. Já entendi. Pronto, acabou.

- Mas, eu não... - Rose respirou fundo.

- Quem está na porta, Marcus? - uma voz feminina muito suave indagou e Rose sentiu que seu sangue gelava.

- Nada importante, Gail - respondeu Marcus, dando o golpe final em Rose que se segurou na porta, procurando se manter firme. - O que estava dizendo, Rose?

Vários segundos se passaram antes que ela conseguisse falar. Sua voz soava estranha, distante:

- Não tem importância. Desculpe. Foi um erro ter vindo aqui.

Virou-se, sabendo que ele a estaria olhando dar seus passos incertos até o elevador. Marcus não lhe ofereceu nenhuma ajuda e ela também não teria aceito. Encontrou o botão do térreo e, assim que o elevador começou a descer, procurou se apoiar nas paredes e não tremer com aquele terrível frio que havia invadido o seu corpo.

Como fui tola, pensou, amargurada. Que boba! Que idiota por imaginar que o incidente o deixara tão perturbado e infeliz quanto a ela. Para Marcus, Rose tinha sido algo do passado, enquanto que a garota do presente, e talvez do futuro, estava lá no apartamento, esperando impaciente que ele voltasse aos seus braços assim que se livrasse daquela importuna.

Oh, Deus, ela pensou, apertando as têmporas, se ao menos esta dor passasse e eu pudesse raciocinar com clareza.

Maggie estava na entrada. Tomou Rose pela mão e lhe ofereceu Sheba. Caminharam até o carro em silêncio e, a caminho de casa, a mulher perguntou, curiosa:

- Falou com o sr. Fleming?

- Sim, falei com ele.

Maggie esperou em silêncio alguma explicação, mas como o silêncio continuasse, perguntou baixinho:

- Está tudo acertado?

- Está tudo acertado - Rose respondeu, aborrecida, sentindo que a dor martelava em sua cabeça com mais força.

- Fico contente com isso.

- Eu também, Maggie - ela disse, cansada, recostando a cabeça no banco. - Eu também.

Quando chegaram em casa, foi direto para o quarto e engoliu uma das pílulas que Basil lhe havia dado. Depois tomou um banho, vestiu a camisola, um robe, mas não foi para a cama. Ficou sentada perto da janela parcialmente aberta, ouvindo os sons da noite. Estava frio, mas ela nem pareceu perceber, pois seus pensamentos a ocupavam completamente.

Devia ter sabido desde o começo que só acabaria sofrendo ao se envolver com Marcus, porém, fora atraída para ele como que por um ímã, como uma mariposa pela luz. Era inevitável que ficasse ferida naquela chama que parecia devorá-la. Como tinha sido tola. Era inocente demais para aquele jogo. Era preciso ser uma mulher experiente, que nem pensasse na palavra amor. Céus! Rose não queria amá-lo, mas agora não podia mais evitar isso. Tinha tentado terminar com o relacionamento de ambos, quando ele lhe mandou aquela carta e ela mudou de idéia, passando a desejá-lo novamente. Agora, com o resultado da interferência de Vera, estava tudo terminado. Amava demais Marcus. Amava-o profundamente, mas o destino tinha determinado que ficasse sozinha, enquanto ele continuava o jogo com alguém que conhecia as regras.

- Oh, Marcus, Marcus... - ela murmurou, agoniada, sentindo um desespero enorme só em pensar naquele nome. Chorou muito, deixando que as lágrimas descessem pelo rosto, sem fazer nenhum esforço para controlá-las. Algum tempo depois, quando já estava mais calma, ouviu uma leve batida na porta. Era o pai dela.

- Rose? - ele perguntou, baixinho. - Onde você esteve esta noite?

Nem lhe ocorreu mentir para o pai.

- Fui ver Marcus, depois de fazer algumas perguntas ao Carlo no restaurante.

- Descobriu a causa do mal-entendido?

- Sim.

- Gostaria de conversar sobre o assunto? - Theodore insistiu.

- Não, não há nada para falar.

- Então, vou deixá-la a sós.

- Papai, sente-se um minuto.

- O que é, minha querida?

- Papai, sei que isso vai ser difícil para você, mas... quero aceitar a chance que Basil me ofereceu. Quero ser operada. Não vou esperar mais.

- Rose, não! - Theodore exclamou, angustiado, segurando com força as mãos dela.

- Por favor, papai. “Por favor!” Tenho de agarrar esta chance. Não entende?

- Vamos conversar sobre isso amanhã. - O pai tentou mudar de assunto, mas ela estava resolvida.

- Vamos conversar agora. Já decidi. É agora... ou nunca.

- Sabe o que está me pedindo, Rose?

- Sei o que estou pedindo. - Sabia dos temores dele. Mas, naquele momento, só pensava em aliviar a dor e ter novamente a visão. Era isso o que mais desejava no mundo. - Sei que estou sendo egoísta, mas não importa o que aconteça, não posso continuar deste jeito.

O pai a tomou nos braços e ela afundou a cabeça em seus ombros. Sentia-se profundamente cansada, após ter tomado aquela decisão. Encostou-se nele lembrando do seu primeiro ano de cegueira, quando sempre adormecia em seu braços porque tinha medo da escuridão e das horas silenciosas da norte.

 

Rose acordou na manhã seguinte com a sensação de que tinha tido um pesadelo, mas isso não mudou a sua decisão. E quando Basil Vaughn entrou no consultório, às dez e meia da manhã, ela já estava lá esperando por ele.

- O que os seus colegas disseram?

- Nada de concreto ainda.

- E o que você acha?

- A mesma coisa. Estou preocupado. - Ele suspirou. - É um grande risco e eu ainda não a aconselho a operar.

- Vou correr o risco, Basil.

- Está brincando, naturalmente. .

- Pelo contrário, estou falando muito a sério.

- Deve ter ficado louca, Rose! - ele exclamou, ansioso. - Sabe o que pode acontecer se a operação não for bem-sucedida?

- Sim. - Ela deu de ombros. - Eu acabo ficando uma debilóide, o que é pior do que a morte.

- Não brinque com isso!

- Não estou brincando. Estou apenas lhe pedindo que marque a operação.

- Eu me recuso! - ele gritou.

- Pois eu insisto!

Houve um momento de silêncio e então Basil disse, tenso:

- Você está esquecendo algo. Preciso do consentimento de seu pai e ele jamais o dará.

- Meu pai já deu o consentimento verbalmente e assinará o papel oficial quando chegar a hora.

- Você deve ter ficado louca! - Basil explodiu, segurando com força as mãos dela. - Rose, pelo amor de Deus, está arriscando a sua vida inutilmente.

- Faça a operação, por mim, Basil - ela insistiu. - Se estou disposta a aceitar os riscos, por que você não está?

- Não pode esperar mais um pouquinho, até que...

- Não! - ela interrompeu, rispidamente, depois procurou se controlar e disse num tom mais suave: - Cheguei ao limite, Basil. De um jeito ou de outro... já não me importo mais.

- O que aconteceu com você? Eu nunca a vi assim - ele disse, levantando-a da cadeira e sacudindo-a levemente. - Você sempre seguiu os meus conselhos no passado. Por que não os aceita agora?

- Faça a operação, Basil, senão vou conseguir que outro médico a faça, certo? - Ela procurava se controlar e demonstrar uma certa paciência.

- Acha que eu deixaria alguém pôr as mãos em você? - ele indagou, rudemente, apertando com força os ombros dela.

- Então, fará a operação?

Houve um longo silêncio durante o qual Basil lutava contra os seus sentimentos conflitantes. Ela sabia que seria difícil fazê-lo concordar com a operação, do mesmo jeito que tinha sido difícil para que o pai desse o consentimento .

- Farei, se é isso o que você quer. - Basil suspirou e ela percebeu, pelo seu tom de voz, que ele não estava contente com aquela decisão.

- Quando?

- No mês que vem?

- Nesta semana - ela disse, decidida. - Amanhã, se possível.

- Meu Deus! - Ele alargou de repente. - Farei os acertos necessários e avisarei você quando chegar a hora.

De repente, Basil começou a falar como um frio profissional, mas Rose o conhecia muito bem e percebeu que ele apenas lutava para vencer seus temores pessoais. Sabia que a amava, por isso havia lhe proposto casamento, sabia que Basil lutaria para que a operação desse certo, com todas as suas forças.

Por que estou sendo tão egoísta?, pensou, enquanto agradecia a Basil e saía do consultório. Seria egoísmo pensar em si mesma e não naqueles que a amavam? Seria egoísmo pensar só em si e não nos que a ajudavam a agüentar seus dias de solidão... aquela espécie de purgatório antes da morte?

As dúvidas explodiam dentro de sua mente, enquanto Maggie a levava para casa. Dúvidas e perguntas sem resposta. Mas Rose já não se importava com mais nada. Agora só havia um caminho e estava decidida a segui-lo. Só Deus sabia onde ele a levaria, mas nada mais tinha importância.

 

Na tarde seguinte, Rose foi internada na clínica para os preparativos pré-operatórios. A cirurgia seria realizada dali a dois dias. Foi submetida a exames radiográficos, testes e assistiu a infindáveis discussões entre os cirurgiões, junto com o pai que permanecia sempre ao lado dela.

Rose não tinha coragem de pedir a ele que se retirasse e Theodore passou a noite ao lado de sua cama, segurando-lhe a mão, mesmo depois que os sedativos começaram a fazer efeito.

 

Os medicamentos pré-operatórios deixaram Rose sonolenta e foi assim que a levaram pelos corredores, já a caminho da sala de cirurgia. Não estava com medo e nem perturbada com o que poderia acontecer. Mas ao ver a figura do pai percebeu a ansiedade dele.

Basil curvou-se sobre ela e cochichou:

- Ainda há tempo de mudar de idéia, Rose.

- Não vou mudar de idéia - ela respondeu, sonolenta, mas com firmeza. - Não importa o que aconteça, sei que você fará o melhor que puder.

- Não a machuque muito - ouviu o pai dizendo. - Ela já sofreu bastante durante todos estes anos.

- Vou fazer o corte acima da linha dos cabelos, sr. Cunningham - Basil respondeu, num tom profissional. - Quando crescerem novamente nem aparecerá a cicatriz.

- Quanto tempo vai durar a operação?

- É difícil dizer. Talvez, umas três ou quatro horas - Basil respondeu distraído, procurando não comprometer-se.

- Papai - Rose apertou a mão de Theodore com mais força - não se preocupe muito e... obrigada por tudo.

Na sala de operações a atmosfera parecia tensa quando o anestesista anunciou que estava tudo pronto. Basil ordenou que ele fizesse a aplicação e Rose mergulhou numa explosão de cores brilhantes.

Será que estou no paraíso ou no inferno, imaginou, ouvindo uma voz repetindo:

- Rose, pode me ouvir?

- Sim, estou ouvindo - disse, irritada. - Por que não me opera logo, Basil?

- Basil a operou esta manhã, minha querida - o pai contou. - Você logo estará boa.

- Oh Deus - ela gemeu, sentindo-se desapontada ao voltar à consciência. - Por quê?

- Por quê? O que quer dizer, Rose?

- Eu queria morrer - ela gemeu baixinho.

- Você queria...

- Fique calmo, sr. Cunningham. Talvez seja melhor sair agora. Procure descansar um pouco.

Rose reconheceu aquela outra voz, virou-se e gritou, desesperada:

- Basil, por quê, por quê?

- Descanse, minha querida - ele procurou acalmá-la. - Você precisa de muito descanso.

Ela sentiu uma picada no braço e mergulhou novamente no sono.

 

Entretanto, na manhã seguinte, quando Basil entrou e perguntou como se sentia, ela já estava acordada:

- Pensei que fosse ficar louca - ela reclamou. - Eu estava num mundo muito colorido e... indescritível.

- Isso vai passar logo - ele disse, tomando-lhe o pulso. - O que está acontecendo agora é que seus nervos estão voltando ao normal, depois do choque da anestesia.

- A operação deu certo?

- Você está viva, não está? - Ele riu, mas ela não se sentiu satisfeita e procurou levar as mãos aos olhos. - Por que não estou vendo nada?

- Vai levar algum tempo - Basil avisou, calmamente -, os nervos ficaram oprimidos durante um longo tempo e o processo de cura será gradual.

- Quanto tempo?

- Duas semanas... um mês... talvez mais.

- Talvez nunca - ela disse, cínica, o desapontamento inicial sendo substituído por uma enorme vontade de ver.

- Tenho confiança de que você "vai" enxergar, Rose - Basil disse firmemente. - Seja paciente e me dê tempo.

Antes dele sair deu uma porção de instruções à enfermeira e logo depois Rose adormeceu novamente, notando apenas que o pai tinha entrado no quarto e se aproximava da cama.

- Rose?

Ela abriu os olhos e virou-se para ele:

- Alô, papai.

- Como está se sentindo? - indagou, ansioso, e ela ouviu que ele puxava uma cadeira, depois lhe segurava a mão.

- Sinto-me como se tivesse um buraco na cabeça. - Ela sorriu levemente. - Como está tudo lá em casa?

- Estamos sentindo muito a sua falta. Principalmente Sheba.

- Pobre Sheba. Tome conta dele para mim, papai.

- Sabe que tomarei.

- Desculpe se o deixei aborrecido ontem. Você desculpa?

- Claro que sim. Foi o efeito pós-operatório que a fez se sentir daquele jeito.

Rose não o contradisse. Não havia motivos para não aborrecer nem ao pai nem Basil, que acabara de entrar, com explicações sobre o seu ridículo desejo de morte. Conversaram calmamente durante algum tempo e nenhum dos dois mencionou os perigos da operação, que ela havia superado.

- Rose, vou sair - o pai disse depois de algum tempo. - Há alguém esperando para vê-Ia desde ontem de manhã.

- Quem é?

- Marcus.

- Marcus? - ela repetiu angustiada e, de repente, pareceu perder o controle - Não! Oh, não, não! Mande-o embora! Não o quero aqui. Mande-o embora!

- Por favor, espere lá fora, sr. Cunningham - disse uma voz autoritária e Rose procurou se libertar dos braços que a seguravam.

- Mande-o embora, Basil! Não o deixe entrar aqui! Não, por favor, eu não quero...

- Enfermeira, depressa! - ela ouviu Basil dizendo e logo sentiu uma picada no braço, mergulhando em seguida no esquecimento.

Tinha a sensação curiosa de que estava flutuando no espaço, depois pareceu passar por um túnel e chegar a um ponto de luz. Ao atingi-lo achou que ele se desintegrava e uma voz lhe ordenou que abrisse os olhos.

- Como se sente agora? - Basil estava perguntando.

- Bem, eu acho. O que aconteceu? - indagou, curiosa.

- Você ficou nervosa demais.

- Por quê? - Ela franziu as sobrancelhas e, como Basil não respondesse logo, agitou as mãos debaixo do lençol. Ao sentir que estava deitada, indagou: - Onde estou?

- Na clínica - Basil disse baixinho.

- Fui acidentada? - ela indagou vagamente, sem entender.

- Não. Não houve nenhum acidente. - Ele ficou em silêncio e com a fisionomia perturbada. - Sabe quem eu sou?

- Claro que sei quem você é. - Ela riu. - Você é Basil Vaughn e eu sou Rose Cunningham. Não estou com amnésia, se é o que está pensando.

- Então, lembra da operação. - Ele suspirou, aliviado.

- Operação? - ela indagou logo, deixando-o nervoso. - Que operação?

- A sua operação.

- Mas não fiz nenhuma operação - ela argumentou, tentando desesperadamente entender a situação. - Do que você está falando?

- Operei você ontem, Rose - Basil disse e explicou rapidamente o que tinha acontecido. - Não se lembra?

- Não... E uma novidade fantástica, mas... por que não lembro?

- Não se aborreça com isso. Logo a lembrança voltará.

- Mas sinto que há um buraco vazio na minha cabeça. - Ela segurou com força as mãos dele. - Basil, estou com medo!

- Vou pedir para o dr. Gordon dar uma olhada em você. Tenho certeza de que ele dirá que não há nada de errado com sua memória, que ela vai voltar com o tempo - Basil garantiu. - Afinal, é só um lapso parcial.

- A última coisa de que me lembro claramente foi quando você me deixou no escritório do meu pai. Eu estava preocupada com Noreen Butler e lembro que tomei o elevador... e mais nada.

- Noreen Butler já teve alta há mais de dois meses - Basil murmurou, deixando-a com a sensação de que se encontrava numa situação de pesadelo. - Hoje é sete de julho.

- Oh, Deus! - ela exclamou, assustada. - Não me lembro do que aconteceu nos últimos dois meses.

- Relaxe e descanse. - Basil ajeitou os travesseiros para Rose. - Aos poucos irá recordar-se de tudo.

- Mas, quando?

- Não sei, mas não tente forçar que a memória voltará naturalmente.

 

O dr. Gordon foi ver Rose e confirmou o diagnóstico de Basil: amnésia parcial. Ele também disse que seria temporária, mas não sabia por quanto tempo.

- O mais importante é não forçar. Certos acontecimentos, nomes e lugares, de repente despertam a memória e todas as peças do quebra-cabeça se encaixam. O cérebro é a parte mais sensível do corpo e, de vez em quando, certas perturbações fazem com que ele feche as suas portas a determinados incidentes que o chocaram. Considere este momento como uma época de cura; quando a sua consciência aceitar os fatos que agora acha desagradáveis, o seu cérebro fará a memória funcionar normalmente.

Rose nem fingiu que entendia, mas aceitou a opinião dele e esperou, ansiosa, que viesse visitá-la novamente.

Vai ser um processo lento, Basil tinha avisado, mas ela agora sentia-se contente em esperar. O pai a visitava duas vezes por dia até que teve alta. Quando ela desceu do carro, em casa, foi recebida por Sheba, que quase a derrubou.

- Seja bem-vinda - o pai disse contente, amparando-a, e Rose riu feliz, acariciando o cachorro.

Alisando aquele pêlo sedoso, ela pensou em seus próprios cabelos, que já tinham começado a crescer, mas ainda demoraria até ficarem compridos novamente.

 

Os dias passaram e se transformaram em semanas. Rose começou a distinguir entre a luz e a escuridão, mas ainda precisava de Sheba. Seu momento mais alegre era de manhã, quando acordava e percebia que podia reconhecer certos objetos do quarto, apesar da neblina que ainda turvava a sua visão. Uma visita de Basil confirmou que não demoraria muito para que a recuperasse totalmente.

Haveria um difícil período de ajustamento durante a sua espera, Basil avisou, mas ela não esperava que fosse tão difícil, até começar a experimentá-lo. Durante os meses seguintes havia momentos em que ela se sentia como uma criança, aprendendo a se equilibrar naquele novo mundo. Agora, tinha de aprender que os seus olhos, além dos outros sentidos, poderiam ajudá-la a viver. Em vez de sentir satisfação com a recuperação da vista, ela, às vezes, ficava frustrada e precisou de tempo para se adaptar a situações com que estava familiarizada há anos.

Não sentiu alegria em poder escolher suas próprias roupas e, no início, sentia-se inclinada por cores vivas demais, até que, finalmente, optou pelos tons que lhe ficavam melhor. Quando aprendeu a se maquilar, divertiu-se muito, junto com Maggie; por brincadeira passava batom no queixo e outros erros. Agora era apenas uma rotina.

Mas o que Rose odiava mais era ter de usar lenços ou peruca, até que os cabelos crescessem. Passaram-se seis meses e passou também o Natal, antes que ela pudesse se livrar daquele cabelo falso. Agora mostrava seus próprios cabelos curtos. Como Basil garantiu, a cicatriz não ficava visível.

Rose se olhou no espelho certa noite, enquanto se vestia para ir jantar em companhia do pai, lá embaixo. Seu rosto era o de uma mulher adulta. Tinha perdido os traços infantis completamente. Os olhos eram verdes, profundos e misteriosos e ela imaginou o que estaria escondendo de si mesma. Os lábios, macios e cheios, sugeriam uma certa sensualidade, como se tivessem conhecido a paixão dos beijos de um homem. Houvera algum homem em sua vida, durante aqueles meses? A princípio ela rejeitou a idéia e olhou seu corpo com ar crítico. Tinha sido magra desde os doze anos, mas agora seu corpo estava cheio de curvas, que acentuavam a harmonia das linhas.

Sou atraente, pensou, continuando com aquela auto-avaliação. Na verdade, era mais atraente do que tinha imaginado, mas ainda se sentia uma estranha para si mesma. Quando fechava os olhos, mergulhava num mundo conhecido, mas quando os abria via sua figura no espelho, que parecia levemente familiar, mas que lhe era um tanto estranha.

Desceu, segurando o corrimão como sempre fazia, apenas para ter uma ligação entre o seu antigo e o seu novo mundo. Ainda não confiava muito nos outros sentidos, mas Basil tinha garantido que logo estaria agindo normalmente.

Theodore, na sala de jantar, veio ao encontro dela.

- Parece cansado - ela comentou. - Teve um dia duro?

- Um dia terrível - ele confirmou, levando-a até o seu lugar costumeiro na mesa. - E você, esteve fazendo compras? - Ele reparava em seu vestido.

- O que acha?

- Muito sofisticado. Deixa você com um jeito confiante, bastante elegante.

- Como aquela estátua de alabastro da entrada? - ela brincou divertida, mas ele não respondeu, pois o jantar começou a ser servido.

A perda da memória nunca era discutida por eles, nem os incidentes ocorridos durante o período que Rose tinha esquecido. De vez em quando ela tentava descobrir por que sua mente rejeitava aquilo, mas só o fato de ver de novo já era um grande milagre e tentava não se sobrecarregar com outras preocupações .

- O que você precisa é de umas férias no campo - o pai disse depois do jantar. - Conheço um lugar nas montanhas onde o ar é puro e o cenário magnífico.

- Não quero sair daqui - Rose protestou, distraída, acariciando Sheba.

Pobre Sheba, ela pensou. Aquele cão lindo ainda estava perturbado com as mudanças ocorridas na vida de sua dona. Parecia espantado e ofendido com o fato de não ser mais tão necessário.

- Rose... minha querida... Talvez nesse local, nas montanhas, você consiga recuperar a memória.

O sorriso dela desapareceu ao lembrar daquele vazio.

- Algo estranho aconteceu na época em que perdi a memória?

- Por que acha que algo estranho aconteceu? - O pai riu, mas tinha ficado tenso e o riso saíra forçado.

- Todos evitam discutir comigo esse período da minha vida.

- A razão é simples. O dr. Gordon sugeriu que não tocássemos nele durante a sua convalescença. Ele disse para esperarmos até que você mostrasse uma curiosidade natural por essa fase de sua vida.

- Estou curiosa. Algo aconteceu, que eu deva saber?

Theodore mexeu-se, nervoso, na cadeira e pigarreou:

- Havia alguém a quem você estava muito ligada.

- Um homem?

- Sim.

- Eu estava apaixonada?

- Acho que sim.

- Qual o nome dele?

- Marcus Fleming.

O nome mergulhou na mente de Rose como uma pedra. Mas perturbou apenas a superfície e logo deixou de causar agitação.

- Este nome lhe traz alguma lembrança?

- Não... nada mesmo - ela sacudiu a cabeça, infeliz -, mas se eu estava apaixonada por esse homem, como poderia tê-lo esquecido tão completamente?

- Vai lembrar qualquer hora - ele assegurou.

Então, Rose tinha se apaixonado por alguém chamado Marcus Fleming. E agora não lembrava nada sobre ele. Sentia-se de certa forma enganada e um pensamento lhe ocorreu.

- Por que ele nunca veio me visitar?

- Porque, quando a visitou na clínica, você se recusou a vê-lo. Agora não pode culpá-lo de ficar fora do seu caminho.

- Acho que não. - Ela apertou as têmporas. - Mas, se eu o amava, por que me recusei a vê-lo?

- Lamento, mas não sei o motivo - ele disse, olhando-a, pensativo, durante um momento. Depois voltou ao assunto que tinha mencionado antes. - Que tal umas férias nas montanhas? Irá se eu fizer as reservas?

Rose se espreguiçou e achou que talvez o pai tivesse razão. Quem sabe fosse bom tirar férias e deixar de lado os problemas daquele momento?

- Acho que será bom ir para as montanhas, mas só por duas semanas.

- Ótimo! - ele esfregou as mãos, animado. - Poucas semanas no ar puro do campo vão colocar uma boa cor no seu rosto.

Assim que as reservas foram feitas, Rose foi comprar roupas mais quentes. Já estavam no fim do verão e o ar de Drakensberg costumava ser frio.

- Não exagere - Basil avisou quando Rose apareceu para fazer o exame final. - E não exponha os seus olhos à claridade excessiva. Use sempre óculos escuros durante o dia, até que seus olhos fiquem mais fortes.

Rose observou-o de perto, procurando não rir. Basil estava se comportando como uma mãe. De vez em quando ela tinha a sensação de que significava mais para ele do que apenas uma amiga e paciente. Basil era mais velho, cabelos grisalhos nas têmporas, mas era elegante, atraente e distinto.

- Devo admitir, Rose - ele interrompeu seus pensamentos -, que fiquei apavorado quando você insistiu para que eu realizasse a operação.

Ela sorriu.

- Não estou arrependida. Nem você, tenho certeza.

- Não, não estou arrependido. Foi um milagre e estou grato por ter sido usado para realizá-lo. - Ele a acariciou no rosto e ela se levantou. - Venha, o seu pai a espera. Faço votos de que se divirta nas montanhas.

Rose teria visto um certo ar de sofrimento no rosto de Basil ou seria imaginação dela? Enquanto o pai a levava para casa, perguntou:

- Por que Basil estava com um jeito infeliz quando me despedi dele? Será que pensa que no futuro não o ajudarei mais na clínica?

O pai a encarou por um momento, depois desviou os olhos:

- Ele é apaixonado por você.

Oh, Deus. Então, é isso, ela pensou, desanimada. Basil está apaixonado por mim. E eu estava apaixonada por alguém de quem nem me lembro. Oh, droga! Por que não consigo lembrar?

 

Em Drakensberg, tinham reservado acomodações numa suíte com terraço que dava para o vale, no melhor hotel.

Passaram um fim de semana relaxante antes que Theodore voltasse sozinho para Joanesburgo.

Certa manhã Rose abriu a porta da suíte e saiu no terraço banhado pela luz do sol. Sentia-se sozinha, agora que o pai tinha partido, e ficou observando o vale lá embaixo. À esquerda ficavam as quadras de tênis onde vários casais se divertiam antes do almoço e, na piscina, alguns jovens faziam suas brincadeiras.

De repente, um movimento chamou a sua atenção para o caminho da montanha. Um homem caminhava pelo atalho próximo ao hotel. Tinha ombros largos e suas calças desbotadas acentuavam as pernas musculosas. Ela já havia visto antes aquele sujeito alto e de traços firmes, cujos cabelos escuros brilhavam sob os raios do sol. Ele havia sentado a duas mesas de distância dela e do pai, no jantar do fim de semana, e seus olhos azuis a tinham perturbado profundamente.

Suas botas pesadas faziam um leve ruído no caminho e ele, de repente, parou e olhou para cima. Espantada, ela ficou imóvel, olhando fixamente e sentindo-se hipnotizada. Percebeu também que enrubescia quando ele lhe sorriu e caminhou em direção ao hotel.

Rose levou um susto ao perceber que estava trêmula ao entrar no quarto. Havia algo naquele homem que a deixava amedrontada e começou a se arrepender de ter aceito a proposta daquelas férias.

No almoço ela o viu de novo. Percebeu que ele escolhia uma posição, na mesa, em que pudesse ficar de frente. Droga de homem! A julgar pelo seu sorriso brincalhão, ele sabia muito bem o efeito que provocava nela. E, obviamente, estava se divertindo. Droga!

No jantar daquela noite Rose se sentou de costas para ele, mas a situação piorou. Sentia aqueles olhos fixos em suas costas e, finalmente, foi forçada a voltar para o quarto sem terminar a refeição.

Mais tarde, naquela mesma noite, vestiu um casaco e saiu para um passeio nos arredores do hotel, que era muito bem iluminado. E lá estava ele. Tinha se encostado a uma árvore, com as mãos nos bolsos, como se a esperasse. Ela parou, de repente, e viu-o inclinar levemente a cabeça, com um ar divertido. Rose virou-se e caminhou na direção oposta.

Para seu desânimo, ele a seguiu, mas não fez nenhum esforço para lhe falar. Contentou-se em ficar à distância, um pouco atrás. Esse, sem dúvida, é um homem que me enfurece, ela pensou e estremeceu. Entretanto, procurou parecer calma e, ao voltar para o hotel, subiu rapidamente e trancou-se no quarto.

Logo depois, foi para a cama, mas não conseguiu dormir. Já passava da meia-noite quando um barulho no terraço a fez levantar e espiar através da cortina. Descobriu que era o homem de novo, recostado na beira do terraço, olhando o vale. Rose observou-o, muito curiosa. Por que ele estava ali? E por que a presença dele a deixava tão nervosa? De repente o homem virou-se, como se tivesse notado que o observavam. Ela se escondeu rapidamente. Mas claro que ele não poderia vê-la, atrás daquela cortina pesada, no quarto escuro.

O homem olhou diretamente para a janela durante longos segundos e Rose teve certeza de que, mesmo não podendo vê-la, ele poderia ouvir as batidas do seu coração. Então viu-o passar a mão nos cabelos, como se algo o perturbasse. O homem olhou a escuridão por mais um momento. Depois, virou-se e entrou. Para sua surpresa, Rose descobriu que ele estava na suíte vizinha. Fechou as cortinas e voltou para a cama, mas demorou muito a dormir.

 

Depois do café da manhã, no dia seguinte, ela vestiu calças compridas quentes, um agasalho e perguntou qual o caminho mais interessante para passear nas montanhas.

O recepcionista a informou e ela saiu.

A subida era íngreme e Rose parou várias vezes para descansar. O cenário parecia tão bonito que aquele cansaço valia a pena. Nunca antes tinha visto montanhas tão majestosas.

Em uma das suas paradas notou que, pouco mais abaixo, alguém percorria aquele mesmo caminho. Não precisava ser adivinha para saber que era aquele homem e seu coração disparou. Estava resolvida a ficar longe dele e caminhou depressa, subindo cada vez mais alto, até que suas pernas cansadas a forçaram a parar embaixo de uma árvore. Ele já a estava alcançando, e dentro de poucos minutos sabia que o veria. Não teria jeito de evitar aquele encontro.

Sentou-se junto a uma árvore, procurando parecer invisível e, como estivesse na sombra, tirou os óculos escuros, colocando-os no alto da cabeça. Esperou a chegada dele, percebendo que a sensação de perigo aumentava.

Na verdade, queria sair correndo ao ouvir os passos se aproximando. Fechou os olhos e esperou. Quando os abriu ele estava ali, de pé, muito próximo, observando-a com um ar de curiosidade e triunfo. Usava uma jaqueta de couro e calças cáqui. Seus profundos olhos azuis a examinavam com insistência e ela se sentiu despida. Baixou os óculos, levantou-se e preparou-se para voltar.

- Se você subir um pouquinho mais, terá uma vista maravilhosa do vale - ele comentou. Sua voz era grave e parecia um pouco familiar. Ela o encarou com os olhos arregalados, escondidos atrás dos óculos e uma leve lembrança se mexeu em sua mente.

- Siga-me - ele disse e Rose obedeceu, como se não, tivesse mais vontade própria.

Ele se manteve no atalho durante algum tempo, depois desviou para outro caminho. E, antes que ela se sentisse cansada ou nervosa, viu-se olhando, de uma plataforma natural, os picos agrestes das montanhas e o delicado vale que se estendia aos seus pés.

Ali, Rose sentiu-se pequenina e sentou-se. Durante minutos sem fim, ambos se deliciaram com aquela vista. Então, pouco a pouco, ela tomou consciência da presença perturbadora daquele homem que também admirava a paisagem, a pouca distância.

 

A brisa fria tocou o rosto de Rose e ela estremeceu, cruzando os braços para se proteger. Estava com as mãos geladas e nem sentia mais os dedos dos pés, quando seu companheiro tirou o casaco de couro e colocou-o sobre os seus ombros, sentando-se na pedra ao lado dela.

- Isto aqui dá uma sensação de liberdade tão grande! - ele comentou, mas ela continuou com ar preocupado e não disse nada. - Você já viu algo tão bonito?

- Não - ela respondeu com os dentes cerrados de frio.

- Quer um gole de conhaque? - ele perguntou, tirando uma pequena garrafa do bolso da jaqueta que estava nos ombros dela. Como Rose parecesse não querer, ele insistiu: - Vamos, aceite.

Ela apanhou a garrafa e tomou um gole. O estranho tinha mãos fortes e as unhas curtas e quadradas. Qualquer que seja o seu trabalho, não é do tipo manual, ela pensou. Seus olhos se encontraram. Rose enrubesceu, mas não desviou os olhos, escondidos sob os óculos, perguntando simplesmente:

- Quem é você?

- James Allen - ele sorriu - e você é Rose Cunningham.

- Quem lhe disse isso?

- Eu perguntei na recepção. Tome outro gole. Ele a esquentará um pouquinho antes de começarmos a voltar para o hotel.

Rose obedeceu em silêncio, mas sua mente estava tumultuada. "James Allen." Ele não parecia nenhum James Allen. Era marcante demais para ter um nome comum como aquele. Em sua voz havia a aspereza do aço e o jeito com que mantinha a cabeça erguida provocava nela uma estranha vontade de tocá-lo. Mas procurou se controlar e devolveu-lhe a garrafinha.

O caminho de volta também não foi fácil. Sentia que suas pernas estavam cansadas e fracas. De repente, escorregou numa pedra e perdeu o equilíbrio, mas James Allen virou-se e segurou-a rapidamente, antes que ela se machucasse.

No momento em que seu corpo tocou o dele foi como que se uma corrente elétrica tivesse sido ligada. Os nervos de Rose vibraram com uma energia misteriosa e ele, em vez de soltá-la, abraçou-a com mais força, pela cintura. Depois, com a outra mão, tirou-lhe os óculos escuros e olhou-a diretamente nos olhos.

- Tem olhos lindos, Rose Cunningham - disse numa voz baixa e perturbadora. - Eles são verdes Como os vales lá embaixo e profundos demais.

- Solte-me - ela murmurou rouca, tentando se libertar, mas ele a abraçou com mais força e Rose sentiu que suas coxas eram pressionadas contra as dele.

- Está com medo de mim.

Aquilo era uma afirmação e não uma pergunta, e ela procurou afastar os temores que a invadiam. Depois disse, tensa:

- Eu não conheço você.

- Conhecerá - ele garantiu, com uma confiança que a assustou ainda mais. Depois, colocou os óculos escuros de volta e soltou-a. - Vamos - ele disse repentinamente, segurando-a firme pela mão -, ainda temos um bom caminho pela frente.

Rose sentia que estava vivendo um pesadelo. Quando finalmente entrou no quarto, estava exausta. Resolveu tomar um banho quente para relaxar os músculos, mas não conseguiu parar de pensar naquele momento em que ele a tinha abraçado. O pior de tudo aquilo era a sensação de pertencer a ele. Ficava nervosa só de pensar nisso. Mas não havia nenhuma explicação lógica para o que sentia, decidiu, saindo da banheira e se enxugando. O passeio pelas montanhas foi um esforço grande demais, disse a si mesma, estava fraca e por isso começava a imaginar coisas que nem existiam.

Não desceu para o almoço, pedindo a refeição no quarto. Não queria encontrar James Allen de novo. Pelo menos, não tão rápido. Permaneceu no quarto toda a tarde. Sabia que ia ser diferente quando o encontrasse outra vez, mas para a sua própria segurança preteria ficar longe dele, no futuro.

Estava tensa quando desceu para o jantar e notou que seu coração pulava como louco quando o viu sentado numa mesa próxima à sua. Cumprimentaram-se levemente e ela fez a sua escolha, sendo servida logo em seguida. Podia estar comendo areia, disse a si mesma, ao ter de forçar a comida garganta abaixo. James Allen estava sentado a duas mesas de distância, tomando café, e ela percebia perfeitamente todos os seus movimentos. Ele também a observava intensamente. Rose estava trêmula, achando extremamente difícil manter uma atitude natural.

James Allen se levantou e Rose se sentiu aliviada, mas isso durou apenas um momento, pois ele se aproximou e parou na cadeira à sua frente.

- Posso sentar com você? - perguntou, brincalhão.

- Acho que não posso impedi-lo - ela disse, irônica, observando-o sentar-se.

- Por que está resolvida a ser tão pouco amigável?

- Prefiro ficar sozinha.

- Ah! Como Greta Garbo?

Nervosa, ela empurrou a cadeira, levantou-se e disse:

- Com licença.

- Você não terminou o seu jantar - ele comentou, levantando-se também e seguindo-a para fora do restaurante.

- Não estou com fome. Por que não me deixa sozinha?

Ele a olhou da cabeça aos pés e sorriu. Rose estava começando a odiá-lo intensamente.

- Há luar lá fora e você está com um vestido quente, portanto, vamos dar um passeio.

Ele literalmente a arrastou para fora do hotel antes que ela conseguisse protestar. Rose quase tinha de correr para acompanhar os passos largos dele.

- Você está sendo inconveniente tratando-me assim - ela acusou, ao chegarem num local isolado no gramado.

- O ar fresco vai acalmá-la - James riu, diminuindo os passos para que ela o acompanhasse. O riso dele tocou em algum ponto do cérebro dela, fazendo com que ficasse furiosa, trêmula de tanto ódio.

- Você é arrogante, pomposo...

As palavras foram interrompidas quando ela se viu envolvida pelos braços dele e forçada a encará-lo. Aquele perfume másculo despertou novamente a sensação de que pertencia àquele homem. Queria se libertar, mas sua mente e seu corpo não a obedeciam e ela ficou ali, como uma boba, sem vontade.

- O que estava dizendo, Rose? - ele brincou, mas ela continuou em silêncio. Então ele baixou a cabeça, procurando encontrar os lábios dela.

A pressão era leve, mas persistente. Rose se sentia como que paralisada por uma força que jamais havia conhecido e não ofereceu resistência. Vendo-a quieta, os beijos dele se tornaram mais insistentes, sensuais e ela começou a responder com um abandono que a deixava envergonhada. Nada podia fazer naquele momento. Sentia-se fraca e queria abraçá-lo.

Ele a beijou no pescoço e ela tremeu de emoção. Mas voltou à razão e sentiu-se humilhada quando as mãos dele subiram da cintura para os seus seios.

Não posso dar essas liberdades a um completo estranho, pensou e gritou furiosa:

- Isto é loucura! Eu mal conheço você!

- Mas parece que nos conhecemos há muito tempo.

Ele disse aquilo como se tivesse lido os seus pensamentos e ela se afastou, amedrontada.

- Quem é você?

- Já perguntou isso antes e eu já lhe disse. - Ele se inclinou levemente na direção dela. - James Allen é o meu nome, às suas ordens.

Ela o encarou, mas a escuridão não a deixava vê-lo muito bem. Tenho de me afastar daqui, pensou. Afastar daquele homem que tinha o poder de transtorná-la tanto, de transformá-la em alguém que ela mal reconhecia. Tinha que sair da escuridão daquele jardim.

- Quero ir para o meu quarto - ela disse, tensa, procurando se afastar dele.

- Eu a levarei.

- Não! - ela gritou, quando ele deu um passo ao seu lado. - Sou perfeitamente capaz de ir sozinha.

- Não passarei da porta do quarto - ele garantiu, brincalhão. - Tem a minha palavra de honra.

Rose ficou em silêncio e não fez mais nenhum esforço para impedi-lo de acompanhá-la. Nenhum dos dois falou quando entraram no hotel e subiram as escadas. Mas o coração de Rose estava batendo com força enquanto caminhavam pelo corredor em direção ao quarto. Na porta, ele parou e estendeu a mão, pedindo a chave. Abriu a porta e acendeu a luz. Então colocou novamente a chave na mão dela e saiu.

- Boa noite, srta. Cunningham - disse, tenso, e voltou-lhe as costas, continuando a caminhar pelo corredor em direção ao seu próprio quarto.

Rose ficou olhando aquelas costas largas. Sentia-se confusa e, por um instante de loucura, teve desejo de sair correndo atrás dele. Em vez disso, entrou no quarto e fechou a porta depressa.

Será que estou ficando louca?, falou consigo mesma. O que ele iria pensar? Mal o conhecia e ela já o tinha deixado beijá-la com aquela intimidade apaixonada. E correspondera completamente aos beijos dele.

Espantada, sabia que tudo aquilo já tinha acontecido antes. Mas, quando... e mais especificamente... com quem? Marcus Fleming? Lembrou do nome que seu pai tinha mencionado, mas procurou afastar aquela idéia. Não, não podia ter sido com ele.

Outros braços já a haviam abraçado antes daquela maneira, outros lábios já a haviam beijado. Teriam sido os de Marcus Fleming? Não, não podia ser. Se fosse, o nome dele faria com que algo revivesse em sua memória.

Foi para a cama, mas demorou a dormir. Quando conseguiu, seus sonhos foram perturbadores. Estava deitada na grama verde e ainda era cega. James Allen tinha se curvado sobre ela, que lhe apalpava o rosto fino enquanto ele murmurava algo. Depois, ele a beijava apaixonado, e era correspondido. Então, algo apavorante aconteceu: ela foi arrancada dos seus braços por uma forte ventania e gritou desesperada. Acordou com o coração aos saltos e viu que já tinha amanhecido. Estava suando e olhou ao redor, com medo, pensando que James Allen poderia estar ali no quarto. Depois tirou as cobertas e foi para o banheiro.

Quando desceu para o café da manhã, uma hora depois, sentia-se nervosa diante da perspectiva de encontrar aquele homem novamente. Mas ele não estava ali. Sentindo um misto de alivio e desapontamento, tomou o café e voltou ao quarto para buscar uma jaqueta.

Estava frio apesar do sol e ela saiu para um passeio no vale, caminhando pelas margens de um riacho. De vez em quando parava e admirava a paisagem ao seu redor. A água era clara como cristal e refrescante. Curvou-se e bebeu um pouquinho, depois sentou-se e fechou os olhos. O ar estava fresco e Rose respirou fundo. A natureza tinha sido pródiga naquelas montanhas, onde as árvores e plantas cresciam livremente, sem o toque da mão humana.

- Quanta paz, não? - ela ouviu e abriu os olhos, nervosa. Era James Allen, de pé, a pouca distância.

- Sim, até este momento - ela concordou, zangada e irônica, levantando-se para ir embora e observando que ele continuava com aquele ar arrogante.

- Então acha a minha presença perturbadora?

- Porque não me deixa a sós?

- Será que tenho uma aparência tão desagradável que nem posso ficar perto de você? Não tenho nenhum terceiro olho na testa, não é?

- Não. - Ela riu, antes de conseguir se controlar. - E não tem nariz quebrado, nem dentes tortos, mas...

Respirou profundamente e empalideceu. Sentia que tinha estado num terreno familiar, mas agora as lembranças lhe fugiam.

- Sente-se - James disse, segurando-a pelos ombros e forçando-a a obedecer. Depois olhou-a intensamente e continuou: - Você está muito pálida.

- Eu... lamento - ela disse, fraca, pressionando os dedos nas têmporas e fazendo um esforço para se lembrar de alguma coisa. - Foi algo que você disse e o jeito como respondi. De repente, me pareceu familiar... como se eu já tivesse ouvido isso antes, mas...

Ela mordeu os lábios. Como não conseguiu recordar nada, cruzou as mãos no colo, fechando os olhos e se recostando no tronco de uma arvore.

- Acontece de vez em quando - James disse. - Certos incidentes se tornam vagos na mente.

De repente, ela abriu os olhos e o encarou. Ele deve me achar louca, pensou, observando-lhe os lábios sensuais e o queixo másculo. Sentiu um desejo intenso de tocá-lo.

- Acho que é melhor voltar para o hotel - ela tentou se levantar, mas as mãos dele a forçaram a ficar sentada.

- Não vá ainda, descanse um pouco mais.

Ela procurou se afastar daquelas mãos. Ele as retirou, mas continuou ali, sentado perto. Aquela proximidade a atingia de um modo familiar. Olhou-o, pensativa, como se procurasse algo em sua mente. Mas não teve sucesso.

- Por que tenho a sensação de que conheço você?

- Talvez tenhamos nos conhecido em uma outra vida. -

- Isso é bobagem. - Ela riu. - Eu não acredito em reencarnação.

Ele deu de ombros e caminhou para o riacho, dando a ela a oportunidade de vê-lo de perfil. Não era um homem para brincadeiras, ela sabia disso, era daquele tipo que sempre conseguia o que queria. Ele virou a cabeça e, quando seus olhos se encontraram, Rose estremeceu, mas continuou a encará-lo, fascinada.

- O que você vê quando me olha assim, Rose Cunningham? - ele indagou suavemente e o ímã de sua masculinidade parecia mantê-la imóvel.

- Sei que é hora de voltar para o hotel - disse, rouca e com voz fraca, por causa do seu tumulto interior.

- Não tenha medo de mim. - Ele colocou uma das mãos no seu ombro novamente. - Não quero magoá-la.

Não quero magoá-la. Aquelas palavras ecoaram em sua mente como um fantasma do passado e ela estremeceu involuntariamente.

- Alguém já me disse isso, e...

- Você foi magoada?

- Acho que sim... não consigo lembrar.

- Há muitas coisas que você não recorda.

- Por que diz isso?

- Eu disse algo há poucos minutos que fez você pensar em coisas que não conseguia lembrar - ele explicou, imperturbável.

- Eu tive uma perda parcial da memória - ela contou, sem saber se devia confiar nele. - Há uma parte da minha vida que esqueci; um vazio de dez semanas que não consigo preencher.

- É importante que lembre?

- Sinto que sim. Meu pai me disse que havia alguém... alguém que eu...

- Alguém de quem você gostava? - James terminou a frase.

- Sim - ela admitiu, sentindo que enrubescia.

- E não consegue lembrar dele?

- Não. Lamento, mas não consigo.

- Quer mesmo lembrar?

- Eu... não sei. - Ela sentiu os nervos tensos e respondeu com toda a honestidade. - Se eu me analisar bem, acho que vou descobrir que estou com um pouco de medo de lembrar.

- Então, decidiu manter essa parte da sua vida fora de sua mente, porque tem medo de encarar o que quer que tenha acontecido durante esse tempo que você esqueceu.

Aquela acusação a deixou chocada. Levantou-se furiosa:

- Não diga isso! Eu não tranquei a minha mente de propósito; portanto, que direito tem você de ficar aí fazendo julgamentos?

Ele a sacudiu pelos ombros, levemente:

- Eu não estava julgando você, sua esquentadinha.

- Não sei por que falei sobre isso com você. Você é um completo estranho e eu preferia que continuasse assim.

- Bem, eu não concordo! - E, antes que ela pudesse evitar, ele a beijou com força, deixando-a trêmula: - Isso é algo que você não vai esquecer tão depressa.

Então ele se afastou, deixando-a ali sozinha, ofegante e sentindo os lábios feridos. Observou-o indo embora e sentiu um enorme arrependimento, uma vontade irresistível de chamá-lo. James Allen não tinha culpa de ter despertado nela aqueles sentimentos. Estava começando a temer que mental e fisicamente pudesse se tomar escrava de um homem que encontrara há poucos dias. Se tivesse acontecido com outra pessoa, ela teria rido. Não acreditava em atrações instantâneas, mas aquilo estava acontecendo com ela. E era perigosamente real.

- Oh, Deus! - gemeu, mergulhando o rosto pálido nas mãos. - O que está acontecendo comigo?

 

Novamente decidiu almoçar no quarto e depois dormiu quase duas horas. Acordou descansada e livre da tensão. Tomou um banho e vestiu um lindo vestido cor-de-abricó. Era um vestido que tinha comprado pensando em usar numa ocasião especial, mas como nada de especial ia acontecer, poderia usá-lo naquela noite. Fez a maquilagem e escovou os cabelos. Ainda demoraria um pouco para que seus cabelos chegassem ao comprimento que tinham antes da operação, mas não estavam nada mal daquela maneira.

Ainda tinha algum tempo antes de descer para o jantar e resolveu sair no terraço para tomar ar. O sol havia se posto e tudo parecia em paz, iluminado suavemente pela luz do ocaso. Encostou-se na balaustrada e olhou o céu, pensativa.

Era um milagre estar vendo. Agora podia enxergar as estrelas piscando e os insetos agitados. Mergulhou em seus próprios pensamentos e não percebeu que já não estava mais sozinha. Virou-se e deu com James Allen a observá-la da porta do seu próprio quarto. Seu pulso se acelerou e mais uma vez os dois se encararam em silêncio. Ela queria expulsá-lo dali, mas durante algum tempo nada se moveu, apenas a brisa que brincava com as dobras do seu vestido.

- Venha aqui, Rose.

Era uma ordem dita em voz baixa, mas cheia de decisão. As pernas dela caminharam como se não tivessem vontade própria. Um brilho no olhar dele mostrou que sorria. Então seus lábios roçaram suavemente os dela, que se separaram imediatamente, ansiosos pelo beijo.

Perdida na intimidade daquele momento, ela percebeu apenas vagamente que estava sendo conduzida para dentro do quarto. Ouviu a porta do terraço se fechar e então a mãos dele a seguraram com força. Seu corpo reagiu apaixonadamente às carícias e Rose abraçou-o. Sentia que se tornava mais viva ao contato das mãos dele e gemeu baixinho quando foi beijada nos olhos, no rosto, no pescoço, e nos lábios mais uma vez. Tudo aquilo parecia dolorosamente familiar e uma lembrança dançou ligeiramente em seu cérebro.

- Espere... por favor! - ela pediu, rouca, procurando afastá-lo e sentindo a pele quente dele através do tecido da camisa. - Há... há algo que preciso lembrar. Preciso!

- Não force, Rose - ele disse, soltando-a e acendendo a luz.

- Quero um tempo para me lembrar - ela gritou, agitada, tentando agarrar aquela vaga lembrança que se afastava depressa.

- Por que você nunca me chama de James? - ele interrompeu.

- James - ela repetiu com cuidado, inclinando a cabeça, como se fizesse um esforço para lembrar. - Não combina com você.

- Meu nome não importa. - Ele fez um gesto vago. - O que importa é que quero ajudá-la.

- Ajudar-me? - Ela o encarou, incrédula, respirando fundo. - Disse que quer ajudar-me?

- Quero ajudá-la a lembrar a parte da sua vida que você trancou fora da mente.

- Como se propõe a fazer isso?

- Não interessa o método que vou usar. - Ele a segurou pela mão. - Confie em mim.

Confiar nele? Será que podia confiar nele? Será que podia confiar em si mesma? A vergonha a fez enrubescer ao lembrar de como tinha se atirado nos braços dele há poucos minutos em troca de alguns beijos, e de como a paixão fora de uma intensidade apavorante.

- Eu não conheço você - ela disse, baixando os olhos e se afastando um pouquinho.

- Então, permita a si mesma me conhecer - ele hesitou, depois aproximou-se dela por trás. - Não vai ser difícil, a julgar pelo modo como reage aos meus beijos.

Ela enrubesceu ainda mais e os dedos dele lhe apertaram o pulso com força.

- Por que quer me ajudar? - Rose estava preocupada.

- Gosto da cor dos seus olhos.

- Não seja bobo. - Ela riu nervosa, afastando-se dele e indo para o terraço.

Ele não se esforçou para segurá-la, mas quando a viu tocar na maçaneta da porta para voltar ao terraço, avisou:

- Pedi que o jantar fosse servido no meu quarto.

Ela tremeu e segurou a maçaneta com mais força. Depois, lentamente, indagou:

- Isso é um convite?

Ele sacudiu a cabeça, sorrindo divertido.

- É uma ordem.

- E se eu me recusar a obedecer?

- Então, uma ótima refeição será jogada fora. - Os dois se encararam e ela tentou decidir o que fazer. Ele se aproximou e pousou as mãos em seus ombros. - Relaxe - disse, conduzindo-a para a suíte dele. - Eu na verdade não sou perigoso.

É tão perigoso quanto um leopardo feroz, ela pensou, cinicamente, mas sentou-se na poltrona que ele lhe indicava. Sentia-se pouco à vontade e nervosa, totalmente incapaz de conversar sobre qualquer coisa. Só tinha consciência daquele homem alto e musculoso, sentado na poltrona oposta, daqueles olhos azuis penetrantes que nunca a deixavam em paz. Tinha consciência também de como ele a perturbava fisicamente, como acelerava a sua pulsação, fazendo-a enrubescer. Aquele homem na verdade era um estranho, mas exercia uma atração tão fatal... E ela estava ali, sozinha na suíte dele para jantar. Seus sentidos estavam desejando aquela intimidade, mas a mente a avisava para sair logo dali, antes que sua vontade não a obedecesse mais.

Seus pensamentos foram perturbados por uma batida na porta. James levantou-se e deixou entrar o garçom com o carrinho do jantar. A mesa perto da lareira foi posta e ficaram a sós mais uma vez.

Rose sentiu que seus nervos estavam tensos e arregalou os olhos ao ver James remover a garrafa de champanhe do balde de gelo e começar atirar a rolha.

Momentos depois, assustou-se ao ouvir o estouro da garrafa. A rolha saltou no chão e uma taça cheia lhe foi estendida.

- Ao futuro - ele brindou, tocando a taça dela com a sua.

- Ao futuro - ela repetiu, incerta, imaginando que tipo de futuro estaria à sua espera e desejando mais uma vez, ansiosamente, estar na segurança da sua própria casa, em Joanesburgo.

 

Rose procurou manter a conversa, enquanto comiam o excelente jantar. Começaram por coquetéis de camarão, depois sopa de legumes e escalopes de frango com creme e tomates recheados de arroz, acompanhados de batatas assadas. Depois foi a vez da sobremesa de frutas e café. O garçom voltou para tirar o carrinho, e Rose ficou novamente sozinha com James. Ele indicou de novo o pequeno sofá, Rose se acomodou e, com o coração aos pulos, observou-o tirar o paletó.

- Pelo amor de Deus, Rose, gostaria que ficasse mais relaxada! - ele exclamou, observando-a. - Não tive a intenção de trazê-la para o meu quarto a fim de violentá-la.

- Nem pensei nisso.

- Não?

- Está bem, pensei. Como posso saber o que tem em mente a meu respeito?

- Eu poderia tentar seduzi-la, mas a violência não é do meu estilo.

Havia um toque de sensualidade no sorriso dele e Rose sentiu-se estremecer. Levantou-se, apressada.

- Acho que é melhor eu ir embora.

- Sente-se! - A voz dele teve o efeito de um banho de água fria, fazendo-a obedecer logo. Momentos depois recebia outra taça de champanhe. - Beba isso - ele ordenou.

- Está tentando me embebedar?

- Estou tentando ajudá-la a relaxar.

O sofá parecia pequeno demais e quando ele sentou ao lado dela suas coxas se tocaram. Rose mudou de posição rapidamente.

- Como espera que eu relaxe, se fica falando de violência e sedução?

- Já lhe disse que à violência não é do meu estilo. - Ele sorriu. - E já resolvi que não tento seduzir mulher nenhuma a não ser que ela esteja setenta por cento de acordo.

Rose engasgou com um gole do champanhe.

- Essa confissão é para me fazer relaxar?

- Por que não? - Ele lhe passou o braço pelos ombros e ela ficou mais tensa e assustada. - Neste momento, você está morrendo de medo, o que significa que não passa de um zero na minha escala de porcentagens.

Ela sabia que era brincadeira dele, mas estava perturbada demais procurando controlar as suas emoções para se importar. Tomou outro gole, tentando se acalmar e não prestar atenção naqueles dedos acariciantes.

- Você seduz todas as mulheres que encontra?

- Sim. Sou um maníaco sexual.

- Não seja ridículo!

- Uma pergunta ridícula merece uma resposta ridícula - ele disse de repente, tomando toda a taça e colocando-a vazia sobre a mesinha ao lado.

Houve um silêncio desagradável e Rose tentou beber o que restava em sua taça. Ao ver que ele continuava quieto, disse em tom de culpa:

- Desculpe. Lamento muito.

- Eu também. - James tirou a taça vazia da mão dela. - Acho que gostaria de seduzir você.

Esta conversa já foi longe demais, Rose pensou, tentando levantar-se; mas o braço dele a prendeu, roçando em seus seios e ela foi forçada a ficar no sofá. Seu coração batia cada vez mais depressa e o ar preocupado dele a deixava cada vez mais apavorada.

- Por favor, deixe-me ir embora.

- Não, até que tenhamos nos entendido - ele falou decidido, segurando-a com força pelos ombros enquanto ela se sentia encolher por dentro. - Pretendo ajudá-la a recuperar a memória e, quando tiver feito isso, então poderá me pedir para ficar ou sair para sempre da sua vida.

Ela arregalou os olhos, surpresa e cheia de suspeitas.

- E o que espera ganhar com isso?

- Isso, Rose, só depende de você.

- Quer dizer, depende de eu decidir ir para a cama com você ou não.

- Você s pensa nisso?

- E de quem é a culpa?

- Não é só minha, eu garanto. Eu não nego que a acho desejável, mas não vou forçá-la a fazer nada que não queira.

Os olhos dele a desafiavam. Desceram até os seus lábios rosados e macios. Rose estremeceu como um animal amedrontado.

- Por favor... preciso ir. Obrigada por este delicioso jantar, mas...

Os lábios dele silenciaram os dela, gentilmente, forçando-os a se abrirem. Ela lutou violentamente para fugir, mas ele a fez deitar no sofá, pressionando-a fortemente com o corpo. Finalmente a resistência dela deu lugar às emoções da sensualidade. Aquelas carícias fizeram com que, lá no fundo, uma recordação revivesse, deixando-a com a nítida impressão de que tudo aquilo já tinha acontecido antes. E que, mesmo naquele tempo, assim como agora, todos os desejos dela já haviam sido despertados.

De repente James levantou a cabeça e havia um brilho brincalhão em seus olhos. Afastou-se ligeiramente.

- Você está subindo rapidamente naquela escala de porcentagem de atração.

A princípio ela não entendeu a que ele se referia, mas logo enrubesceu. Empurrou-o e levantou-se.

- Você é detestável! - gritou, engasgando. Então correu para a porta.

- Boa noite, Rose Cunningham - ele disse, rindo. - Sonhe comigo.

- Não sonharei! - ela respondeu furiosa, abrindo a porta. - Boa noite!

O ar frio do corredor a acalmou um pouco antes de entrar em sua própria suíte. Que loucura a tinha feito se submeter às carícias dele? Recordou-se daquela lembrança de que já estivera nos braços dele e imaginou por que estaria sentindo aquilo. Esse pensamento a perturbou, mas quando a dor de cabeça de sempre começou a atacar, ela teve de desistir do esforço de tentar lembrar do passado. Era sempre a mesma coisa. Aquela barreira de dor a fazia sempre desistir de entrar nos recessos de sua mente.

James tinha dito que queria ajudá-la, mas não conseguia entender os motivos dele. Por que um completo estranho ia querer ajudá-la? Quais as suas razões? Tentou conseguir uma explicação e ficou com as dúvidas de que os motivos dele talvez não fossem tão honestos quanto ele queria fazer crer.

Estou sendo uma tola, disse a si mesma, ao ir para a cama. Tantas coisas a estavam deixando confusa, ultimamente. Durante os longos anos em que fora cega, sua memória servira como um guia fiel, uma luz cheia de percepção. Mas a restauração da visão tinha causado aquela amnésia e parecia que sua luz interior estava apagada para sempre.

 

Na manhã seguinte, Rose desceu para o café e depois decidiu dar um passeio. Estava um dia mais quente, com o céu azul e as flores se abrindo. Ela queria ver tudo aquilo e começou a subir as montanhas. De vez em quando parava para observar os picos mais baixos e respirar fundo o ar puro. Naquele momento, não tinha nenhuma preocupação e sorria. Como tinha tido sorte. Então, pela primeira vez, agradeceu a Deus por ter lhe dado a oportunidade de ver de novo.

- Bom dia, olhos verdes. - Uma voz profunda e familiar veio de algum ponto ali atrás. Ela virou-se e deu com James, sorrindo. - Sonhou comigo?

O jeito dele a deixava zangada; fechou os punhos ao responder.

- Pelo amor de Deus, deixe-me a sós.

- É assim que se fala com alguém que só quer ajudá-la?

- Grande ajuda você tem oferecido... - Ela respondeu em tom de pouco caso, afastando-se, mas a grama estava úmida e ela escorregou.

James fez uma tentativa para impedi-la de cair, mas seu esforço foi desastroso. Ele também escorregou e os dois caíram, com Rose se esborrachando por cima dele. Por alguns momentos, ela ficou assustada demais para fazer qualquer coisa. Apenas encarou-o espantada e, de repente, sentiu uma mão lhe segurando a cabeça. Seus lábios se encontraram. Em vez de resistir, correspondeu aos beijos com um calor intenso.

- Este é um novo jeito de nos conhecermos.

- Isto é loucura.

- Concordo com você. É loucura. - Ele riu. - Claro que você devia ter pensado num jeito mais digno de cair nos meus braços, não acha?

Imediatamente a raiva dela voltou. Bateu no peito dele com os punhos fechados.

- Oh, seu animal. Você...

Ele levou a mão novamente à cabeça dela, forçando-a de volta aos seus lábios. Depois rolou sobre ela, que ficou sob o seu corpo, deitada entre as flores silvestres da grama.

O beijo durou uma eternidade, fazendo com que ondas de calor se espalhassem sobre o corpo dela, deixando-a trêmula à medida que os dois pareciam se unir cada vez mais numa chama de paixão. Os pensamentos fugiram todos quando ele começou a acariciá-la por baixo da jaqueta e ela o abraçou pelo pescoço, num gesto de rendição.

- O que estava dizendo? - ele perguntou, momentos depois, rindo, mordendo-lhe a orelha, enquanto a tempestade interior de Rose se acalmava.

- Não consigo lembrar - ela respondeu, sorrindo confusa e estremecendo.

- Nem eu - ele garantiu, divertido, antes de começar a beijá-la de novo. Ela se sentia vagamente preocupada com o que estava acontecendo, mas emoções mais fortes logo a invadiram.

- Vamos - ele disse. momentos depois, ajudando-a a se levantar -, vamos pegar dois cavalos e dar um longo passeio.

- Oh, não posso. Eu não ando a cavalo desde...

- Desde?

- Desde que eu tinha doze anos.

Lembrava daqueles dias despreocupados, quando saía cavalgando com os pais. Os cavalos lhe davam uma sensação de liberdade.

De repente, percebeu que James a olhava curioso e enrubesceu ligeiramente, pois não tinha prestado atenção em nada do que ele dissera.

- Desculpe... lamento, mas... o que estava dizendo?

- Perguntei se você cavalgava bem, quando era criança.

- Sim, razoavelmente.

- Então, logo estará cavalgando bem outra vez.

Rose estava de calças compridas, portanto não precisaria trocar de roupa. Antes que pudesse pensar melhor viu-se instalada sobre um lindo cavalo marrom. Suas lembranças começaram a voltar e ela logo se descontraiu, galopando instintivamente atrás de James, que havia escolhido um garanhão preto. O cheiro dos cavalos a fazia sentir-se satisfeita como se voltasse no tempo e conseguisse novamente sentir os prazeres da infância.

- Está se divertindo? - James perguntou, dirigindo seu cavalo para perto do dela.

- Eu tinha esquecido como isto é maravilhoso.

Mais adiante o caminho se estreitava. Entraram num atalho coberto árvores, que conduzia ao vale. James deixou-a ir na frente.

- Vamos descansar um pouco? - ele sugeriu ao passarem ao longo de um rio.

Rose desmontou e esticou as pernas, depois recostou-se junto a uma árvore e fechou os olhos. À pouca distância os cavalos pastavam calmamente e ela quase conseguiu esquecer as preocupações. Espreguiçou-se, abriu os olhos e deu com James deitado ao seu lado. Observou-o demoradamente ao sentar-se e sentiu um enorme desejo de acariciar-lhe os cabelos. Reprimiu o gesto, ele abriu os olhos e ela se viu encarando aqueles profundos lagos azuis. Depois, desviou o olhar e brincou nervosa com a grama.

Seus sentimentos por aquele homem a deixavam perturbada. Tinha certa familiaridade com relação a ele, mas não conseguia explicar por quê. Isso desde o primeiro momento em que o encontrou naquelas montanhas, desde o dia em que tinham tomado conhaque juntos, apreciando a paisagem.

- Já tínhamos nos encontrado antes?

- Pode ser que sim - ele respondeu, com calma. - Essa possibilidade a perturba?

- Não consigo evitar a sensação de que já o conheço. Estou errada?

Ele ficou em silêncio durante um longo tempo e ela começou a achar que não teria resposta. Então, quando estava prestes a repetir a pergunta, ele suspirou e sentou-se.

- Não, você não está enganada - respondeu e Rose se sentia toda animada ao saber daquilo.

- Então, nós nos encontramos antes?

- Sim.

- Muitas vezes?

- Muitas.

Ela ficou esperando, observando-o, curiosa e disse:

- Para quem quer me ajudar a recuperar a memória, você não está colaborando muito, não é?

- Disseram-me para tomar cuidado. - Ele sorriu.

- É mesmo? - Ela franziu as sobrancelhas. - Quem?

- Seu pai.

- Então meu pai sabia quem você era desde a primeira noite em que jantamos no hotel?

- Sim, o seu pai sabia.

- Devo dizer que nunca pensei que meu pai fosse um ator tão, bom!

- Não fique zangada com ele. Nós dois estávamos agindo como atores, aconselhados pelo dr. Gordon e pelo dr. Vaughn.

Ela sentiu uma certa suspeita misturada com amargura ao ver que um outro aspecto da personalidade do pai se revelava.

- Então, vocês dois planejaram estas férias para mim?

- Pode dizer que sim - James admitiu, mas quando viu a expressão dela, continuou rapidamente: - Nós só tínhamos interesse em fazê-la recuperar a memória, acredite.

- Então, você estava realizando algum tipo de terapia a noite passada, por exemplo... Tudo era parte da terapia para que eu recuperasse a memória dos últimos meses?

Ele se ajoelhou ao lado dela, olhando-a intensamente e agarrou-a pelos ombros.

- Droga, Rose, acho que vou sacudir você!

No entanto ele a abraçou, deixando-a sem fôlego e mais confusa.

- Aquilo não foi feito por instrução de ninguém. Eu a beijei porque tive vontade e por nenhuma outra razão. Se tivesse tido chance, teria feito muito mais do que aquilo.

- Oh! Estamos de volta ao assunto da sedução novamente.

- Sim, por escolha sua. - Ele riu e, de repente, Rose se viu beijada de um modo que a fez corresponder completamente.

Sem tirar os lábios dos dela, ele a abaixou sobre a grama e seus corpos pareceram derreter juntos. As mãos dele começaram a acariciá-la por baixo do suéter. Eram quentes e insistentes e tentavam tirar-lhe o sutiã.

- Não... por favor! - ela pediu e ele a largou depressa. Rose sentou-se e passou as mãos pelos cabelos - Nós... eu, isto é... nós éramos...

- Amantes? Não - ele respondeu, rouco. - Você sempre conseguiu estragar os melhores momentos.

Rose engoliu aquela informação com uma certa sensação de alívio e baixou os olhos.

- Você sabia que eu fiz uma operação, não?

- Sim, eu sabia. - Ele ficou sério.

- Por que não me lembro de você? - ela indagou, franzindo as sobrancelhas e procurando se concentrar.

- Com o tempo, você vai se lembrar.

- É o que todos dizem, mas estou começando a ficar desesperada. - Suspirou irritada e caminhou até a beira do riacho, onde um ramo da árvore quase tocava as águas claras.

- Há meses que fiz aquela operação e ainda não me lembro de nada das semanas anteriores.

- Não se preocupe com isso e não tente nada.

- Por que não me contou desde o começo que nos conhecíamos?

- Seu pai me aconselhou a não fazer isso. Ele estava com medo de que você se aborrecesse e eu concordei, até encontrar esta oportunidade para contar-lhe.

De repente, Rose começou a imaginar quanto estariam escondendo dela. Queria saber se James conhecia algo sobre o misterioso Marcus Fleming. Um frio intenso pareceu penetrar em suas veias. Que tipo de mulher sou eu, que esqueço alguém a quem amo, pensou, estremecendo involuntariamente. E que estranha atração física era aquela que sentia pelo homem que tinham encontrado há poucos dias e que agora lhe dizia que já se conheciam antes da operação? Será que tinha jogado Marcus contra James? Será que amava um, enquanto sentia apenas atração física pelo outro? Será que tinha se tornado desprezível durante aqueles dias que não conseguia lembrar? Empalideceu e começou a sentir de novo aquela violenta dor de cabeça.

James a segurou, firme e disse com inesperada gentileza:

- Fique calma, Rose. Não será bom saber tudo tão cedo. Seja paciente mais um pouquinho e tente não pensar em mais nada a não ser em aproveitar bem estas férias.

Rose aceitou o conselho.

Quando James a levou de volta para Joanesburgo em sua Lamborghini, no fim daquela semana memorável, ela se sentia relaxada e calma, sem nenhum sentimento de culpa em relação ao modo como reagia a ele. Observou seu perfil forte e os traços bem definidos. De repente, percebeu que ele parecia saber muito sobre ela, enquanto ela não sabia nada sobre ele. Seu ar autoritário indicava que era um homem com uma posição de liderança, mas talvez estivesse enganada. Afinal, não sabia de nada.

Observou as mãos dele pousadas na direção. Eram fortes e decididas, limpas, indicando que não pertenciam a um trabalhador braçal.

James se virou rapidamente e ela enrubesceu ao vê-lo. A mão dele pousou em seu joelho, fazendo-a enrubescer ainda mais.

- Está se sentindo confortável?

- Como alguém pode não se sentir confortável num carro tão luxuoso?

A mão dele moveu-se até a coxa, com uma sensualidade proposital e depois voltou à direção. O coração dela bateu mais forte e demorou algum tempo para que conseguisse controlar a própria respiração.

Pararam para o almoço no caminho e, quando voltaram para o carro, ele a ajudou a colocar o cinto de segurança. Beijou-a então longamente diante de várias pessoas que passavam pelo local.

A facilidade com que Rose enrubescia parecia diverti-lo. Ao dar a partida, ele sorriu longamente ao dizer:

- Acho que o que me deixa mais intrigado em você é o seu jeito de enrubescer. Não são muitas as mulheres que, nos dias de hoje, conseguem isso. A maioria está casada, e muitas da sua idade têm casos, o que acaba com as qualidades virginais que os homens ainda esperam encontrar nas mulheres.

Rose colocou as mãos no rosto e o carro ganhou velocidade na estrada principal. Nenhum homem, pelo que ela sabia, lhe havia falado assim, tão francamente. Aquele assunto ela jamais se atreveria mencionar ao pai. Entretanto, James falava de sedução e de virgindade como alguém que discute o café da manhã. Tudo nele indicava uma sensualidade que a excitava e a deixava alarmada.

- Eu a choquei? - James interrompeu seus pensamentos e baixou as mãos para o colo.

- Eu já descobri, há muito tempo, que você gosta de me deixar chocada - respondeu, evitando o olhar dele.

- E eu descobri que você é inocente como um bebê, no que diz respeito a relações físicas entre homens e mulheres.

- E isso é tão terrível?

- É muito raro, atualmente. Só isso.

- Eu cresci acreditando em certos princípios e você deve me achar inibida, mas não posso mudar isso... nem mesmo para estar na moda.

- Que pena! - O sorriso dele era brincalhão. - Eu gostaria de ser o seu instrutor, se mudar de idéia.

- Se está me propondo um caso, será que devo aceitar?

- Preferiria uma proposta de casamento?

- Não. Você não é do tipo que casa. Além do mais, gosta de variedade.

Aquelas últimas palavras ecoaram em sua mente com um toque familiar e ela recostou-se no assento, pálida e trêmula. James a observou por um momento e parou logo o carro no acostamento da estrada.

- O que foi, Rose? - disse, tirando o cinto de segurança e aproximando-se dela com um olhar ansioso.

- Alguém já disse isso, mas quem e onde? - ela murmurou, rouca, pressionando os dedos contra as têmporas. - Oh, se ao menos eu conseguisse lembrar.

- Relaxe - ele ordenou, segurando as mãos dela e colocando-as em seus próprios ombros. - Deixe que as lembranças venham naturalmente.

Ela ficou imóvel durante alguns momentos, depois afundou o rosto no ombro largo dele.

- James... eu... estou com medo.

- Com medo de quê? - ele indagou, acariciando-lhe os cabelos, procurando acalmá-la.

- Eu... queria saber... Pode ser algo que aconteceu, algo perturbador, que eu tenho medo de lembrar... algo que pode ser doloroso...

- É possível - ele admitiu, sério. - Conscientemente, talvez você tenha medo de encarar a verdade e esse medo está evitando que recorde o período anterior à operação.

- Sabe de algo que possa ter acontecido?

Durante um breve momento ele pareceu pouco à vontade, depois disse de modo ríspido:

- Houve um mal-entendido.

- Entre você e eu?

- Sim.

- E nós o esclarecemos?

- Sim, de certo modo foi esclarecido.

- E onde. Marcus Fleming se encaixa em tudo isso? - ela indagou querendo saber mais, mas James pareceu empalidecer. Soltou-a e deu a partida no carro.

- Isso você terá de perguntar a ele - James respondeu, acelerando o automóvel.

- Você conhece Marcus Fleming? - ela insistiu, procurando ignorar a relutância dele em discutir aquele assunto.

- Sim, eu o conheço.

- Como ele é?

- Pelo amor de Deus, Rose! - James explodiu furioso, fazendo-a ficar mais pálida.

- Desculpe. Então não gosta dele?

Viu que o maxilar dele ficava tenso, como se o rapaz tivesse dificuldade em controlar a sua fúria.

- No momento não gosto de mim mesmo, portanto cale a boca e deixe-me concentrar na estrada.

Rose não fez mais nenhuma pergunta. O resto da viagem foi realizado em silêncio. Ele estava tenso, parecendo saber muito mais do que queria lhe dizer. Aquilo era totalmente confuso e quanto mais Rose pensava, mais perdida ficava.

Chegaram a Joanesburgo no fim da tarde e quando ela viu a casa não pôde controlar um estremecimento de alegria. O pai desceu correndo as escadas para vir ao seu encontro e o cão correu ao lado dele.

- Papai! Sheba! - Rose gritou ao sair do carro. Sheba ganiu animado, sacudindo o rabo. Para sua surpresa, Rose viu que James recebia do animal o mesmo tipo de boas-vindas. A moça beijou e abraçou o pai, depois virou-se para observar o cão.

- Que estranho, Sheba não costuma aceitar estranhos com tanto entusiasmo, mas acho que você não é nenhum estranho para ele.

- Não sou. Mas ele gostou de mim desde o começo, talvez porque tenha percebido que gosto de animais. - James comentou casualmente e aproximou-se do pai dela:

- Boa tarde, Theodore...

- Alô... hum... James. - O pai pigarreou, como se algo o tivesse deixado embaraçado. - Obrigado por ter tomado conta de Rose e tê-la trazido para casa em segurança.

- Foi um prazer - James sorriu.

- Ei! - Rose exclamou, indignada. - Você parece ter empregado James como minha babá.

- Não fui empregado para fazer nada disso - James interrompeu. - Portanto pare de ser implicante.

- Vamos entrar e tomar algo - Theodore convidou.

- Desculpe, mas devo ir embora - James recusou o convite e caminhou para o carro. - Vejo vocês depois.

- James! - ela gritou, ansiosa, segurando o braço dele pouco antes que entrasse no carro. - O que quer dizer com isso? Virá aqui me ver de novo?

- Eu a verei de novo - ele repetiu, sorrindo brincalhão. - O meu tratamento ainda não teve sucesso, não é?

Rose observou a Lamborghini saindo da casa e sentiu-se infeliz. Será que ele iria vê-Ia apenas por aquele motivo? Porque não tinha conseguido fazê-la recuperar a memória?

Sentiu que alguém lhe tocava o ombro.

- Vamos entrar, querida. Quero saber tudo sobre as suas férias.

Ela fez que sim, distraída, e Theodore pegou sua mala em silêncio, conduzindo-a para casa, com Sheba atrás deles.

 

Fiel à sua palavra, apesar das interpretações duvidosas de Rose, James começou a passar muitas horas com ela nas semanas que se seguiram. Levou-a a passear de barco no lago duas vezes e sempre jantavam num restaurante de um italiano chamado Carlo. As lembranças dela às vezes pareciam se agitar, mas algo vital continuava perdido, o elo mais importante que ligaria todas as recordações, fazendo com que formassem um todo. Era frustrante, mas depois de uma visita ao dr. Gordon ela se sentiu menos ansiosa e mais confiante no futuro.

No entanto, foi quando estava no consultório de Basil Vaughn, para outro exame, que lembrou de algo muito perturbador. Ele lhe tomou as mãos e as levou aos lábios, dizendo palavras que levantaram um leve véu em sua mente.

- Você sabe como me sinto a seu respeito - ele disse, observando-a intensamente com seus olhos cinza-pálidos. A expressão de Rose primeiro demonstrou choque, depois desânimo.

- Sim, eu sei - ela murmurou, lembrando da proposta de casamento dele, com todos os detalhes, depois de terem ido a uma festa no clube de golfe.

- Lembra-se de que lhe pedi que casasse comigo?

- Lembrei agora.

- Devo esperar uma resposta dentro em breve? - Ele apertou as mãos dela com mais força.

Rose baixou os olhos e mexeu-se pouco à vontade na cadeira. Não queria magoá-lo, mas sabia que não podia deixá-lo esperando por algo que não iria lhe conceder.

- Gosto de você, Basil, mas não posso casar com você - disse finalmente, após alguns momentos de silêncio. - Eu não o amo... não do jeito que quer... desculpe.

Ele balançou a cabeça lentamente.

- Agradeço a sua honestidade. Fui um louco, mantendo minhas esperanças mesmo quando suspeitava, durante todo este tempo, de que havia outra pessoa.

- Desculpe.

- Não há nada para desculpar. - Ele sorriu, envergonhado. - Ainda somos amigos, não somos?

- Oh, sim - ela disse, apertando-lhe a mão -, você sempre será o meu melhor amigo.

Ele virou-se e enfiou as mãos no bolso do avental.

- O que está conseguindo lembrar, Rose?

- Alguns pedaços aqui e ali, pequenos incidentes que parecem não ter relação com nada, como se eu estivesse armando um quebra-cabeças e a cada minuto perdesse uma peça.

- Lembra de ter vindo aqui e insistido na operação?

Outro pedacinho do quebra-cabeça entrou no lugar.

- Sim, lembrei agora, mas não sei por que fui tão insistente.

- Você disse que tinha chegado a tal ponto que não se importava com o resultado.

- Você sabe por que eu estava me sentindo assim?

- Não, você se recusou a dar qualquer explicação, quando eu pedi.

Rose sentiu-se perturbada. Não ia tentar forçar os pensamentos, pois tinha certeza de que isso só lhe traria novamente aquela dor de cabeça. Deu de ombros e suspirou.

- Acho que lembrarei de tudo qualquer hora - ela repetiu o que todos lhe diziam. Pegou a bolsa e se preparou para sair. - Quando terei de vê-lo novamente?

- Dentro de um mês faremos o último exame. É importante, não falte.

Rose dirigiu até em casa, no seu pequeno carro, enquanto Maggie lhe fazia companhia. Estava melhorando rapidamente desde que tirara a licença. Maggie era uma ótima companhia e ela logo poderia sair sozinha. O carro lhe dava liberdade, podia ir onde queria com ele.

 

Depois do almoço, sentou-se no terraço, para tomar sol, mas a paz foi perturbada quando Sheba rosnou ao seu lado. Rose acariciou o animal e viu uma garota bonita, de cabelos escuros, caminhando em sua direção. Entretanto, não conseguiu saber quem era, até que esta falou:

- Bem, bem, bem - Vera disse com sua petulância característica. - Então, finalmente consigo ver você.

- Olá, Vera. - Rose sorriu, fazendo um gesto em direção à cadeira próxima, enquanto analisava sua visitante, procurando saber se estava desapontada ou não. - O que quer dizer com... finalmente?

- Bem, o seu pai e Maggie a estão guardando como uma peça de porcelana preciosa - Vera explicou num tom sarcástico, enquanto sentava. - Nenhuma visita, eles disseram.

- Eu não sabia - Rose murmurou, apreensiva.

Vera olhou o animal que se mantinha em guarda ao lado da cadeira de Rose.

- O seu cachorro também nunca chegou a gostar de mim.

- Sheba não lhe fará mal - ela respondeu na defensiva, acariciando a cabeça do animal. - Ele só rosna, mas não morde.

Vera estudou o rosto de Rose cuidadosamente e depois perguntou com ar inocente:

- Pode mesmo ver?

- Posso vê-Ia claramente.

- Sinto-me esquisita, sabendo isso. - Vera estremeceu.

- Porquê? Você é quase exatamente como eu achei que era.

Vera olhou-a com ar de suspeita, mas o rosto calmo da outra não dava nenhuma indicação de quais eram os seus pensamentos no momento.

- O que esteve fazendo, desde a operação?

- Nada importante. - Rose deu de ombros. - Viajei duas semanas, depois que voltei comecei a aprender a dirigir e estou pensando em voltar a estudar e me formar em Direito.

- Não acha que está muito velha para isso?

- Não acho. Estou com vinte e dois anos e ninguém é velho demais para recomeçar a estudar.

- Eu também estive viajando. Só voltei há poucos dias das férias na Suíça - Vera explicou, brincando com as pregas da saia, depois olhou diretamente para Rose e disse: - Eu vi Marcus na noite passada:

- Marcus? - Rose indagou, pouco à vontade.

- Esqueci. Bem que me avisaram que você perdeu a memória. - Vera sorriu, irônica. - Ainda bem, porque ele estava jantando com uma loura divina e pareciam muito apaixonados.

- Não faz nenhuma diferença que... esse homem, seja lá quem for, jante com quem quiser. - Rose explicou. - Eu não lembro dele.

- Como eu disse... ainda bem. - Vera sorriu de novo com um certo ar de satisfação. - Há rumores sobre o casamento dele nas colunas sociais. Parece que ninguém sabe quem é a garota, mas aposto que é a loura que estava com ele na noite passada.

Rose sentiu que sofria, mas não sabia por que e ficou sem dizer nada, procurando se concentrar para lembrar de alguma coisa.

- Telefone, srta. Rose - Maggie interrompeu. Vera levantou-se com toda a elegância, antes que Rose se mexesse.

- Oh, bem, desculpe. - Ela sorriu, continuando em tom mais baixo. - Eu tenho um encontro esta noite e estou a caminho do cabeleireiro.

Rose olhou-a por alguns momentos, antes de entrar e atender ao telefone. Imaginou animada se seria James, mas era o pai, explicando que não iria jantar naquela noite, que ela não precisava esperá-lo. Rose garantiu que estava tudo bem, mas passou grande parte da tarde pensando na conversa que tinha tido com Vera Sinclair. James não telefonou e aquela noite solitária não a atraía.

Queria ligar para James e convidá-lo para jantar com ela, mas nunca tinha pensado em lhe pedir o número do telefone. Agora que pensava naquilo, isso lhe parecia um pouco estranho. Foi para o estúdio do pai, sozinha, depois do jantar em busca de uma lista telefônica onde encontraria o número. Sabia que ele morava num apartamento na cidade. Mas, só havia um J. Allen na lista e morava em Parktown.

Droga!, murmurou para si mesma e, num impulso inesperado, começou a procurar na letra "F" até encontrar o sobrenome Fleming. Havia vários, mas um deles a fez estremecer violentamente. Suas iniciais eram M. J. A. e o apartamento 603.

Algo dentro dela lutou para se libertar. Rose sentiu que começava a suar. Mesmo assim pegou o telefone e discou o número. Não sabia por que estava fazendo aquilo. Simplesmente, tinha que fazer.

Durante vários segundos aterrorizantes, não ouviu nada, a não ser a campainha insistente do telefone. Seu coração batia disparado e então uma voz feminina perguntou quem era.

Era uma voz bem modulada, musical, que atingiu em cheio a mente de Rose. Sentiu que a sala rodopiava e as lembranças explodiam como um furacão. Alguém tirou o aparelho da mão da mulher e uma voz de homem perguntou:

- Quem é?

Rose desligou lentamente, sentindo as mãos trêmulas e o rosto gelado. Então, viu que ia cair no carpete. Segurou-se à escrivaninha do pai e curvou a cabeça, esperando que as pulsações do seu coração voltassem ao normal.

As comportas da sua memória tinham se aberto completamente e as peças perdidas do quebra-cabeça começaram a se encaixar no lugar. Mais uma vez tinha sido humilhada por um homem que não sentia nada por ela, que tinha mulheres que entravam e saíam da sua vida. O pior de tudo era o fato de seu pai, a pessoa em quem mais confiava, ter desempenhado um papel tão significativo naquela decepção.

Sempre fomos tão unidos, ela pensou, amargurada, indo para o quarto.

Mas a cena final é sua e pode desempenhá-la como quiser, dizia uma vozinha interior.

Não era um grande conforto, mas durante as longas horas em que não conseguiu dormir, começou a pensar no que iria fazer. Ia continuar no jogo deles mais um pouquinho, e então, no momento apropriado, teria a sua vingança.

 

James telefonou no começo da manhã e convidou-a para jantar. Naturalmente que ela logo aceitou. Havia algo importante que ele queria discutir, tinha dito, mas Rose sabia muito bem que o peso do papel duplo que estava desempenhando devia estar se tornando insuportável.

Vestiu-se com cuidado, naquela noite. Escolheu um vestido cor-de-esmeralda, bordado com seda. O decote era um tanto atrevido, mas acentuava bem a beleza do colo e dos ombros.

Seus cabelos castanhos haviam crescido consideravelmente e brilhavam, depois de várias escovadelas. Deixou-os soltos, no estilo recomendado pelo cabeleireiro. Ao se olhar no espelho, viu que estava calma, como se fosse outra pessoa, nem de longe relacionada com a moça nervosa da noite anterior.

 

A noite estava correndo melhor do que ela tinha imaginado.

- Algo a está perturbando, Rose? - ele indagou, franzindo as sobrancelhas.

- Por que algo deveria estar me perturbando? - Rose disse num tom casual.

- Você está muito quieta esta noite... parece preocupada. - Ele lhe segurou a mão e ela sentiu a corrente elétrica de sempre. - Você está se sentindo mal?

- Não. - Ela sacudiu a cabeça, tentando descobrir se a preocupação dele era sincera. - Eu nunca me senti melhor.

Ele soltou a mão dela e recostou-se na cadeira, observando-a profundamente, analisando-a desde o penteado até o decote.

- De certa forma, você está diferente - ele admitiu finalmente e ela sentiu que sorria por dentro.

- Eu me sinto diferente - admitiu, calma.

- Aconteceu algo para que se sinta assim? - Ele a olhou mais intensamente.

- Pode-se dizer que sim.

- Quer me contar o que é?

- Mais tarde, talvez. Acho que queria discutir algo comigo, não?

- Isso também pode esperar. Quer outro café?

- Não, obrigada.

- Então, vamos embora?

- Sim.

Ele a seguiu para fora do restaurante de Carlo e dirigiram-se ao Lamborghini. Ela se acomodou, agradecida, sentindo que estava com as pernas trêmulas. O motor roncou e o carro entrou no tráfego. Rose tinha de fazer o que havia planejado! Sentia-se cada vez mais resolvida a agir, mas seu coração era traiçoeiro e pedia pelo calor daqueles lábios. Queria sentir aqueles braços musculosos abraçando-a antes que ele saísse para sempre de sua vida.

Ele virou à esquerda e pararam em um sinal de trânsito.

- Esse não é o caminho para a minha casa - ela disse em tom de acusação.

- Eu não a estou levando para casa.

Ele tinha falado calmamente, mas havia algo na sua voz que a deixava com medo. Olhou-o preocupada, observando os traços rígidos de seu rosto.

- Posso saber onde está me levando?

- Ao meu apartamento - ele respondeu, deixando-a por alguns momentos sem fala, depois virou-se para olhá-la com ar brincalhão. - Sem comentários?

- Estou surpresa por ter esperado tanto tempo para me levar lá - ela respondeu, com uma coragem que estava longe de sentir.

- Se eu soubesse que você não faria objeções, já a teria levado há muito. Ficar sozinha comigo no meu apartamento a amedronta ou a excita?

- Ainda não cheguei a nenhuma conclusão.

- Você está ótima esta noite.

O elevador os levou até o sexto andar. Rose daria tudo para não estar ali, sozinha, com aquele homem que amava e temia. Ele a havia magoado mais do que ela imaginava que seria possível e iria magoá-la novamente, se não tomasse cuidado e ficasse de guarda.

Os dedos dele a tocaram no braço quando a porta se abriu. Se Rose tinha pensado em fugir, acabou desistindo e saiu do elevador ao lado dele. Dez passos, Maggie tinha dito naquele dia detestável que parecia ter ocorrido há uma eternidade. Ele girou a chave em silêncio e, segundos depois, ela se encontrava num apartamento moderno, de estilo bem masculino. Era todo decorado em madeira e couro, em cores que iam do tabaco escuro ao creme. Não havia a mais leve impressão de que alguma mulher morasse ali.

Rose foi conduzida a uma ampla poltrona e ele tirou duas taças e uma garrafa de champanhe de uma geladeira embutida. Ela o observava, fascinada.

- O que estamos comemorando? - ela indagou curiosa, ao receber a sua taça.

- Quem sabe? - ele deu de ombros e sorriu, brincalhão. - Antes que a noite termine talvez tenhamos encontrado algo para comemorar.

Ela enrubesceu e a sua mão ficou tão trêmula que teve de segurar com força a taça, com medo de derrubar o champanhe.

- Você me trouxe até aqui para seduzir-me?

- É para isso que, geralmente, eu trago as mulheres aqui. - Ele sorriu cinicamente, colocando a taça na mesinha baixa e virando-se para o aparelho de som. - O que acha de um disco? Algo talvez capaz de acalmá-la e tornar tudo mais fácil para mim?

- O que acha da Apassionata de Beethoven? - ela sugeriu, tensa, lembrando da agonia da música ao chegar ao apartamento naquela noite, quando o visitou sem avisar.

- Ótima escolha - ele comentou, colocando o disco no aparelho.

- O que vamos brindar? - ela perguntou nervosa, quando ele pegou a taça e a olhou de modo curioso e intenso.

- A nós - ele disse logo, mas ela o interrompeu antes que levasse a taça aos lábios.

- Eu gostaria de brindar a algo mais específico.

- O quê? - Ele sorriu.

Aquele era o momento que ela tinha esperado, mas agora que tudo estava preparado, Rose sentia medo. Tinha de agarrar os últimos vestígios de coragem, antes que eles desaparecessem. Ela se levantou e, com um sorriso cínico, levantou a taça, num brinde:

- Vamos beber ao fim de uma soberba palhaçada, Marcus Fleming - falou friamente, satisfeita, ao ver a expressão dele ficar tensa e seu rosto pálido.

Ele apertou um botão e a música parou abruptamente. Então explodiu em voz rouca:

- Você sabia?

- Sim.

- Tudo?

- Tudo.

- Quando aconteceu?

- Na noite passada. - A garganta dela estava dolorida de tanto procurar controlar as lágrimas que ameaçavam jorrar de seus olhos. - Por que não disse quem era?

- Acredite ou não - ele colocou a taça na mesa, ao lado da dela e um músculo pulou em seu maxilar -, eu estava com medo também. Depois do modo como você reagiu na clínica, eu tive medo de que a minha identidade lhe causasse piores danos.

- Então se transformou em James Allen. - Ela riu nervosa, sentindo-se amargurada e desiludida. - Foi muito esperto e deve ter dado boas risadas de mim!

- Rose...

- Diga-me uma coisa; como explicou a minha presença à sua amiguinha?

- A que amiga está se referindo?

- Oh, sim. - Ela riu cínica, afastando-se dele para que não visse a angústia dos seus olhos. - Eu esqueci que deve haver várias mulheres em sua vida. Mas estou me referindo à que estava aqui na noite em que vim vê-lo, com esperanças de lhe explicar o mal-entendido que havia ocorrido entre nós. Ela estava aqui novamente na noite passada e acho que é a mulher com quem jantou há duas noites.

- Você acertou - ele disse friamente. - Como descobriu isso?

- Vera Sinclair viu vocês juntos. - Ela engoliu em seco. - Fui eu quem telefonou na noite passada.

- Entendo - ele comentou, frio e distante. - Por que discou o meu número?

- Eu não sei. Estava sozinha em casa e procurava pelo endereço de James Allen. Como não consegui encontrar, de repente resolvi procurar por Marcus Fleming e duas coisas me atingiram ao mesmo tempo... o número do apartamento e as suas iniciais. Fiquei curiosa e cheia de suspeitas. Quando ouvi aquela... aquela voz de mulher, lembrei de tudo. E então, você tirou o telefone dela e falou. Foi como se minha mente se abrisse como uma noz... pela decepção de saber que você e meu pai tinham planejado tudo com tanto cuidado... Soube de tudo, todos os piores detalhes do incidente e acho... que desprezo vocês dois por me humilharam desse jeito.

- Não tivemos a intenção de humilhar você.

- Oh, não. Claro que não - ela exclamou, virando-se para encará-lo e sorrindo, irônica. - Vocês só estavam preocupados que eu restaurasse a minha memória. Pode ser que "meu pai" só tivesse isso em mente, mas você pretendia ir mais longe. Queria tirar os seus prazeres pessoais desta situação e conseguiu isso sem se importar com os meus sentimentos.

- Rose, escute.

- Não. Você vai escutar! Eu já agüentei muito das pessoas em quem confiava. Mas agora sei que o odeio e desprezo e espero nunca mais vê-lo na vida!

Ela pegou a bolsa e caminhou para a porta com intenção de sair antes de cair em prantos. Mas as mãos fortes dele a seguraram pelos ombros e ela foi violentamente atirada sobre uma cadeira.

- Sente-se! - ele gritou, empurrando-a de novo quando ela tentou escapar.

- Como se atreve a me tratar assim?

- Eu a tratarei do modo que quiser, Rose Cunningham - ele disse, rouco, inclinando-se sobre ela e impedindo-a de sair da cadeira. - Se pensa que é a única que esteve vivendo sob pressão nestes últimos meses, está completamente enganada. Primeiro, eu tive de lidar com a sua sensibilidade excessiva porque era cega e tinha levantado uma barreira entre nós, acreditando ser um peso para qualquer homem. Então, houve aquele ridículo mal-entendido que me atirou num inferno. Acho que por algum tempo fiquei um pouco louco e pensei até em mudar para a América do Sul. Mas depois descobri a verdade e descobri também que era tarde demais para impedi-la de dar um passo que poderia tê-la matado. Por Deus, Rose - ele gemeu, pálido, e afastou-se dela, passando as mãos pelos cabelos. - Acho que nunca saberá como me senti quando corri para a clínica e descobri que a operação já tinha começado há meia hora. Envelheci anos enquanto fiquei lá sentado, esperando com o seu pai. E então, quando lhe disseram que eu queria vê-la, você caiu na histeria e me varreu da sua memória junto com uma porção de outras coisas.

Ela o olhou, completamente espantada. Nunca antes o vira tão perturbado, tão atormentado.

- Você certamente não esperava que eu lhe desse as boas-vindas depois daquela experiência humilhante que sofri nas suas mãos, não é? - ela indagou friamente. - Eu engoli o meu orgulho e fui procurá-lo para explicar... mas você me mandou embora. Estava com uma mulher e eu não tinha nenhuma importância.

- Acha que não sofri pelo modo como a tratei naquela noite? - ele respondeu tão furioso que ela se encolheu. - Durante meses curti o meu sentimento de culpa, enquanto só me permitiam observá-la à distância não sei como sobrevivi a estas últimas semanas como James Allen. Rose, tenho vontade de sacudi-la! - Ele aproximou-se encarando-a ferozmente e a ergueu da cadeira com tanta força que ela bateu contra o seu peito. - Não sabe que eu a amo, que amo todos os fios de cabelos da sua cabeça, todos os ossos do seu corpo, a sua voz, seus olhos, suas mãos? Oh, Deus, sou um homem que perdeu o interesse pela vida, a não ser que você me dê nova motivação.

Ele estava dizendo coisas maravilhosas, incríveis, mas será que devia acreditar? Será que podia se atrever? Ela evitou seus lábios, que se aproximavam.

- E quanto à mulher que estava aqui com você, na noite passada? Onde ela se encaixa nos seus planos? Espera que eu acredite nas coisas que está me dizendo?

Ele sorriu e a abraçou pela cintura:

- A mulher que atendeu o telefone na noite passada é Gail Rivers, minha irmã.

- Sua irmã! - ela repetiu, incrédula.

- O marido dela, Nigel, tem uma fazenda no norte e Gail tem o hábito de ficar aqui quando vem a Joanesburgo fazer compras.

- Oh, Marcus! - Ela gemeu, encostando-se a ele e deixando as lágrimas escorrerem livremente.

- Ao contrário do que você pode ter pensado, este apartamento é de domínio exclusivamente masculino desde o dia em que nos encontramos. Só houve duas exceções... minha irmã e você.

- O que posso dizer? - ela falou arrependida, furiosa consigo mesma por não ter tido confiança nele e por toda a infelicidade desnecessária que causara a Marcus e a si mesma.

- Pode dizer que eu não devia ter esperado que me amasse um dia - ele sugeriu, levantando o rosto dela e beijando-lhe as lágrimas.

- Mas você sabe que eu o amo - ela respondeu sem hesitação, encarando-o com os olhos marejados de lágrimas. - Eu o amo desesperadamente, há muito tempo. Por isso fiquei tão magoada, por pensar que estava simplesmente se divertindo às minhas custas.

- Devo puni-Ia por isso - ele falou, e de repente ela se viu beijada como nunca tinha sido beijada antes. Havia naquele beijo ternura e paixão. - Querida - ele disse rouco, beijando-a no pescoço e fazendo com que seu coração disparasse -, diga novamente que me ama.

- Eu o amo... muito. Tanto... que farei qualquer coisa que me pedir e serei o que quiser que eu seja.

Durante um momento ele não reagiu, mas depois afastou-se ligeiramente dela e a olhou, intrigado:

- Está me oferecendo o seu corpo, Rose?

Ela enrubesceu fortemente, mas sorriu de modo brincalhão ao responder:

- Se é isso o que você quer, sim.

Durante o silêncio que se seguiu, ela lembrou que ele tinha dito que preferia uma boa variedade de mulheres ao casamento. Bem, se o casamento estava excluído do que ele podia lhe oferecer, então ela o amava o suficiente para aceitar qualquer outra coisa.

- A tentação é grande, mas eu quero muito mais do que isso - ele disse com toda ternura e ela se sentiu enfraquecer. - Eu quero mais do que algumas horas na cama com você. Eu a quero aqui, à noite, quando eu for dormir e também quando acordar, de manhã, mas o principal é que a quero como minha esposa.

- Marcus... - a voz dela demonstrava a felicidade que a invadira. Enlaçou os braços no pescoço dele e beijou-o, murmurando: - Oh, Marcus, eu quero ser sua esposa, mais do que qualquer outra coisa.

- Então, tem de ser logo - ele avisou, quando a soltou de um abraço. - Eu não gosto da vida de solteiro e me sinto assim desde o dia em que você tropeçou em mim a caminho do escritório de seu pai.

- Devo acreditar em você?

- É melhor que acredite. Quando quer casar comigo?

- Assim que você quiser.

- Que tal esta noite? - ele sugeriu, surpreendendo-a. Seus dedos agora a acariciavam por baixo da seda do vestido e o corpo de Rose respondia a todas as carícias.

- Isso é loucura - ela protestou, apesar de todas as fibras do seu ser estarem concordando.

- Talvez seja loucura - ele admitiu, beijando-a nos ombros e afastando as alças. - Os documentos necessários estão na minha gaveta há muitos dias e há um juiz que mora no andar de cima. Por que devemos esperar mais?

- Não sei o que meu pai vai dizer se eu concordar com isso.

- Telefone para ele e convide-o para vir assistir, mas não fique surpresa em saber que ele já deu o consentimento há várias semanas.

- Está falando sério? - ela indagou incrédula, procurando se livrar dos lábios e das mãos dele para pensar claramente.

- Completamente sério - Marcus estendeu a mão para o telefone e passou-o para ela. - Quer ligar para ele?

Rose sacudiu a cabeça.

- Faça primeiro os acertos necessários. O tal juiz pode não querer realizar um casamento a esta hora da noite.

Ele sorriu triunfante e lhe beijou a mão.

- Eu pagarei em dobro.

Minutos mais tarde, ele colocava o telefone no gancho e a encarava, satisfeito.

- Está tudo combinado para as onze e meia.

Será que ela estaria louca por concordar em casar tão apressadamente?

Marcus inclinou-se em sua direção, ansioso, quase como se estivesse lendo os seus pensamentos.

- Por que perder tempo? Nós já nos conhecemos e sabemos que não agüentaríamos um noivado.

Ela enrubesceu e fez que sim. Seus olhos brilhavam muito ao apanhar o telefone e ligar para casa.

- Papai, acho que precisa saber que estou passando a noite com Marcus, no apartamento dele - ela começou, rindo maliciosamente, piscando para Marcus e quando, depois da explosão, o pai lhe deu a chance de falar, ela disse calmamente: - Se quiser assistir ao nosso casamento, é melhor se apressar. Tem só uma hora.

Desligou o aparelho e riu.

- Vamos deixá-lo se acostumar com a idéia! - Depois deu uma gargalhada quando olhou Marcus e viu que ele procurava reprimir o riso. No minuto seguinte estava em seus braços, sendo beijada com uma intensidade que a deixou enrubescida e trêmula.

- Acho que esqueceu alguma coisa - ela disse e, quando ele a olhou, curioso, explicou: - As alianças de casamento.

- Pode apostar que não - ele riu brincalhão e a afastou um pouquinho. Saiu da sala e voltou segundos depois com duas alianças de ouro que entregou para ela. - Alianças de casamento, como pediu.

- Parece que pensou em tudo. Estou começando a suspeitar que esta noite foi toda planejada.

Marcus ficou sério, guardou as alianças no bolso e sentou-se ao lado dela, no sofá.

- Aconselhado por Gail, eu pretendia lhe contar qual a minha verdadeira identidade, esta noite. Não precisei, você se adiantou.

- Quem lhe contou sobre o bilhete que recebi, cancelando o nosso encontro?

- Carlo - ele disse sério. - Depois fiz algumas perguntas a Maggie e chegamos à conclusão de que Vera Sinclair era a única que poderia ter feito aquilo. Não precisou muito para que ela confessasse.

- Ia ser engraçado se eu mudasse de idéia neste momento e não casasse mais com você, não acha? - Ela brincou.

- Sua maluquinha - ele falou e a abraçou com tanta força, como se quisesse lhe quebrar as costelas. Depois beijaram-se novamente e aos poucos ele a fez se reclinar no sofá.

Então ouviram uma campainha e Rose estremeceu sob o corpo dele. Quando o som se repetiu ele ainda lhe acariciava os seios e seus olhos refletiam toda a força do desejo. Sorriu, aquele sorriso que podia deixá-la tão feliz e ao mesmo tempo magoá-la tanto, e ajudou-a a vestir-se novamente.

- Salva pelo gongo - ele disse brincando, levantando-se e indo até a porta.

- Será que alguém pode me dizer o que está acontecendo? - Theodore indagou momentos depois, olhando furioso para a filha que se levantou, insegura. - Rose?

Apesar de todas as emoções pelas quais passara, ela deu a explicação calmamente, num tom de brincadeira.

- Eu lembrei de tudo e, junto com Marcus, discuti o assunto. Decidimos não desperdiçar mais tempo em legalizar o nosso caso, que certamente vai durar até o fim de nossas vidas.

Ela enrubesceu e sentiu-se um pouco tola, durante o silêncio que se seguiu. Marcus a abraçou pelos ombros e comentou alegremente.

- Só uma mulher, Theodore, tem a capacidade de juntar todas estas afirmações numa frase sem parar para respirar.

- E só uma mulher pode esperar ser compreendida. - Theodore sacudiu a cabeça, exasperado.

- Só uma mulher, feliz como eu estou neste momento, pode se controlar e não bater em vocês dois - Rose corrigiu rapidamente, procurando controlar o riso.

- Rose, minha querida - o pai sorriu, estendendo os braços -, este não é, de modo algum, o casamento que imaginei para você. Mas estou feliz com a sua escolha.

Minutos depois, chegava o juiz. Era baixo e gordinho e tinha um olhar agitado. Quinze minutos depois estavam casados.

Tudo tinha acontecido tão depressa... mas naquele momento ela estava feliz, abraçada àquele corpo musculoso e forte, sozinha novamente com ele no apartamento.

- Eu o amo muito, Marcus James Allen Fleming - ela murmurou de encontro ao pescoço dele, procurando-lhe os lábios.

Conversaram durante um longo tempo, aos cochichos, dispersando completamente as dúvidas que haviam lançado sombras sobre o relacionamento de ambos, antes da operação. Depois, fizeram amor e ela conheceu as delícias da sensualidade, que jamais pensou existirem. Correspondeu com ansiedade e calor e seu amante a levou aos pontos mais altos do desejo, além dos quais ela entrou num mundo de sensações que afizeram abraçá-lo no auge da paixão.

- Oh, Deus, Rose - ele gemeu, beijando-a no pescoço e nos seios -, se eu vivesse mil anos não seria o suficiente para lhe contar quanto a amo.

E quem precisa de palavras, quando as atitudes falam muito mais claramente, ela pensou, acariciando-o ternamente nos ombros e nas costas. Ele era dela e de mais ninguém. E com esse pensamento, aquelas semanas de agonia sumiram no esquecimento quando Rose finalmente adormeceu, envolvida naquele abraço protetor.

 

                                                                                Yvonne Whittal  

 

                      

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