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Series & Trilogias Literarias
Sentado no carro, o homem dava sinais de alguma preocupação. Ele sabia que tinha que se apressar. Naquela noite era importante que tudo corresse bem. A grande questão era saber se a mulher seguiria aquele percurso à hora habitual.
Eram onze horas da noite e o momento aproximava-se.
O homem recordou-se da voz que ouvira, uma voz que ecoara na sua cabeça antes de chegar àquele local. A voz do avô.
“Espero que tenhas razão quanto ao horário dela, Mafarrico.”
Mafarrico. O homem sentado no carro não gostava daquela forma de tratamento. Não era o seu nome. Era um dos nomes que se dava ao diabo com origem no folclore popular. Para o avô, ele não era mais do que uma “semente maligna”.
O avô chamara-o de Mafarrico desde sempre. Apesar de todas as outras pessoas o chamarem pelo seu nome, o nome que lhe ficara gravado de forma mais profunda fora Mafarrico. Ele odiava o avô, mas não o conseguia tirar da cabeça.
Mafarrico esbofeteou-se várias vezes numa tentativa de fazer desaparecer aquela voz.
Doera e, por alguns instantes, fora inundado por uma sensação de calma.
Apesar do riso monótono do avô ainda ecoar algures dentro de si, naquele momento parecia ter-se esbatido ligeiramente.
Olhou ansiosamente para o relógio. Passavam alguns minutos das onze. Será que ela se atrasaria? Iria para outro lugar? Não, não era o seu estilo. Ele vigiara os seus movimentos durante vários dias e constatara que era sempre pontual e mantinha sempre a mesma rotina.
Se ao menos ela soubesse tudo o que estava em jogo. O avô castigá-lo-ia se estragasse tudo. Mas era mais do que isso. O próprio mundo parecia ter os dias contados. A sua responsabilidade era enorme e Mafarrico sentia esse peso indelevelmente.
Entretanto, luzes de faróis trespassaram a escuridão da estrada e o homem suspirou de alívio. Só podia ser ela.
Aquela estrada rural fazia ligação a poucas casas. Estava quase sempre deserta àquela hora da noite, exceto no momento em que a mulher regressava do trabalho em direção à casa onde alugara um quarto.
Mafarrico dispusera o seu carro de forma a ficar de frente para o da mulher e parou-o bem no meio daquela pequena estrada de terra batida. O homem estava fora do carro com as mãos a tremer, manuseando uma lanterna sobre o capô, esperando que o estratagema resultasse.
O seu coração bateu com mais força quando o carro da mulher passou ao lado do seu.
Para! Pediu ele, silenciosamente. Para, por favor!
E logo de seguida o carro parou a pouca distância do seu.
O homem reprimiu um sorriso.
Mafarrico virou-se e olhou em direção às luzes. Sim, era o carrinho maltrapilho da mulher, tal como previra.
Agora, restava-lhe apenas atraí-la até ele.
Ela baixou o vidro, ele encarou-a e sorriu-lhe de forma agradável.
“Parece que fiquei apeado,” Disse ele.
Apontou de forma descontraída a lanterna na direção do seu rosto. Sim, não havia dúvida de que era ela.
Mafarrico reparou que ela tinha um rosto encantador e franco. Mais importante de tudo, ela era muito magra, algo que ia ao encontro do que pretendia.
Era uma pena o que teria que lhe fazer. Mas era como o avô sempre dissera: “É para o bem comum.”
Era verdade e Mafarrico sabia-o. Se a mulher ao menos compreendesse, talvez até estivesse disposta a sacrificar-se. Afinal de contas, o sacrifício era uma das mais nobres caraterísticas da natureza humana. Ela devia dar-se por contente por poder contribuir.
Mas ele sabia que isso seria esperar demais. As coisas iriam desenrolar-se de forma violenta e confusa, como aliás sempre acontecia.
“O que se passa?” Perguntou a mulher.
A forma como a mulher falava tinha algo de apelativo, mas ainda não percebera o quê.
“Não sei,” Respondeu. “Morreu.”
A mulher espreitou para fora da janela. Ele olhou diretamente para ela. O seu rosto sardento emoldurado por uma cabeleira ruiva e encaracolada, era aberto e sorridente. Não parecia estar minimamente incomodada com o inconveniente.
Mas confiaria o suficiente para sair do carro? Se as outras mulheres servissem como barómetro, provavelmente sim.
O avô dizia-lhe constantemente que era feio e ele não conseguia evitar pensar em si dessa forma. Mas também sabia que as outras pessoas – sobretudo as mulheres – consideravam-no bem-parecido.
O homem gesticulou na direção do capô aberto. “Não percebo nada de carros,” Disse-lhe.
“Nem eu,” Respondeu a mulher.
“Bem, talvez os dois consigamos descobrir o que se passa,” Disse ele. “Não se importa de tentar?”
“De maneira nenhuma, mas não pense que vou ser grande ajuda.”
Ela abriu a porta, saiu do carro e caminhou na direção do homem. Sim, tudo corria na perfeição. Conseguira atraí-la para fora do carro. Mas ainda corria contra o tempo.
“Vamos lá ver isto,” Disse ela, colocando-se ao seu lado e olhando para o motor.
E então o homem compreendeu o que lhe agradara na sua voz.
“Tem um sotaque interessante,” Disse ele. “É Escocesa?”
“Irlandesa,” Declarou agradavelmente. “Só cá estou há dois meses, tenho uma carta verde para trabalhar com uma família.”
Ele sorriu. “Bem-vinda à América,” Disse.
“Obrigada. Até agora estou a adorar.”
Ele apontou para o motor.
“Espere lá,” Disse o homem. “O que é aquilo?”
A mulher inclinou-se para ver melhor. E ele soltou o apoio e bateu o capô contra a sua cabeça com estrondo.
De seguida, abriu o capô, esperando que não tivesse que lhe bater novamente com ele. Felizmente, a mulher já estava inconsciente com o rosto e tronco estirados contra o motor.
Olhou à sua volta. Ninguém à vista. Ninguém vira o sucedido.
Estremeceu com prazer.
Pegou na mulher ao colo, reparando que o rosto e vestido estavam agora manchados com óleo. Era leve como uma pena. Contornou o carro e deitou-a no banco de trás.
E ao fazê-lo teve a certeza de que esta iria servir bem os seus propósitos.
Quando Meara começou a recuperar a consciência, ouviu um ruído ensurdecedor. Parecia uma mistura infindável de sons. Gongos, sinos, chilreares e diversas melodias que pareciam sair de dezenas de caixas de música. Todos os sons pareciam deliberadamente hostis.
Abriu os olhos, mas não conseguiu ver nada. A cabeça explodia de dor.
Onde estou? Pensou.
Algures em Dublin? Não, não perdera a noção de tempo. Viera de lá há dois meses e começara a trabalhar mal se instalara. Estava no Delaware. Com algum esforço lembrou-se de ter parado o carro para ajudar um homem. Depois algo acontecera. Algo mau.
Que lugar era aquele com todo aquele ruído horrível?
Apercebeu-se que estava a ser levada ao colo como uma criança. Ouviu a voz do homem que a transportava, uma voz que se sobrepunha ao barulho.
“Não te preocupes, chegámos a tempo.”
Os seus olhos começaram a distinguir o que a rodeava. A sua visão abarcava um inacreditável número de relógios de todos os tamanhos, formas e estilos. Viu gigantescos relógios de pé rodeados de relógios de menores dimensões, alguns relógios de cuco, outros exibindo pequenas paradas de pessoas mecânicas. Espalhados nas prateleiras, avistavam-se ainda relógios mais pequenos.
Estão todos a bater a hora certa, Pensou.
Mas no meio de todo aquele barulho, não conseguia distinguir o número de gongos e sinos.
Virou a cabeça para ver quem a levava. Ele olhou para ela. Sim, era ele – o homem que lhe pedira ajuda na estrada. Tinha sido uma idiota em parar. Caíra na sua armadilha. O que iria ele fazer-lhe?
Quando o ruído dos relógios se diluiu, Meara ficou impossibilitada de ver as coisas que a rodeavam. Não conseguia manter os olhos abertos. Sentiu-se a perder a consciência.
Tens que ficar acordada, Pensou para si.
Ouviu um barulho metálico, depois sentiu que o homem a pousava com cuidado numa superfície fria e dura. Outro barulho se seguiu, seguido de passos e, finalmente, ouviu uma porta a abrir e fechar. A imensidade de relógios continuava o seu persistente tique-taque.
Depois ouviu vozes femininas.
“Está viva.”
“Pior para ela.”
As vozes eram roucas e sussurradas. A custo, Meara conseguiu abrir os olhos. Percebeu que o chão era de cimento. Virou-se dolorosamente e viu três formas humanas sentadas no chão junto a si. Ou pelo menos pensou tratarem-se de seres humanos. Pareciam ser jovens, adolescentes, mas estavam descarnadas, pouco mais do que esqueletos, com os ossos a sobressaírem visivelmente debaixo da pele. Uma parecia quase inconsciente, a cabeça pendurada para a frente e os olhos fixos no chão cinzento. Aquelas figuras lembravam-lhe fotografias que vira de prisioneiros de campos de concentração.
Estariam realmente vivas? Sim, tinham que estar vivas. Acabara de as ouvir falar.
“Onde estamos?” Perguntou Meara.
Mal ouviu a resposta sussurrada.
“Bem-vinda,” Disse uma delas, “ao inferno.”
CAPÍTULO UM
Riley Paige não se apercebeu do primeiro soco. Ainda assim, os seus reflexos responderam bem. Sentiu o tempo a abrandar quando o primeiro golpe quase a atingiu no estômago. Desviou-se sem problemas. Depois um gancho esquerdo apontava à sua cabeça. Saltou para o lado e esquivou-se. Quando ele se aproximou para lhe acertar com um golpe final no rosto, defendeu-se e o soco atingiu-lhe as luvas.
Depois o tempo retomou o seu ritmo normal. Ela sabia que a combinação de golpes viera em menos de dois segundos.
“Ótimo,” Disse Rudy.
Riley sorriu. Agora Rudy estava mais do que preparado para o seu ataque. Riley sacudia-se, fingia, tentava fazê-lo adivinhar qual seria o seu próximo movimento.
“Não é preciso teres pressa,” Disse Rudy. “Pensa bem. Encara isto como um jogo de xadrez.”
Ela sentiu-se algo aborrecida ao manter o seu movimento lateral. Ele estava a facilitar. Porque é que ele tinha que facilitar?
Mas ela sabia que era indiferente. Esta era a sua primeira vez no ringue de boxe com um opositor real. Até à data, ela testara combinações num saco. Não se podia esquecer que era apenas uma principiante nesta forma de luta. O melhor era mesmo não se apressar.
A ideia de experimentar o boxe fora de Mike Nevins. O psiquiatra forense que colaborava com o FBI, também era um grande amigo de Riley. Tinha-a acompanhado em várias crises pessoais.
Queixara-se recentemente a Mike que tinha dificuldades em controlar os seus impulsos agressivos. Perdia as estribeiras com frequência. Sentia-se no limite.
“Tenta o boxe,” Aconselhara-a Mike. “É uma ótima forma de libertar tensões.”
Naquele momento, ela tinha a certeza absoluta de que Mike tinha razão. Sabia bem pensar com os pés bem assentes na terra, lidar com ameaças reais e não com ameaças imaginárias, e era relaxante lidar com ameaças que não colocavam a sua vida em risco.
Também fora uma boa ideia frequentar um ginásio que a afastasse da sede do FBI em Quantico. Passava demasiado tempo por lá. Era uma mudança bem-vinda.
Mas já perdera demasiado tempo. E conseguia ver no olhar de Rudy que ele se preparava para um novo ataque.
Escolheu mentalmente a sua próxima combinação. Saltou abruptamente na direção do adversário. O seu primeiro golpe foi uma esquerda da qual Rudy se desviou, ripostando com uma direita cuzada que atingiu o seu capacete. Ela respondeu em menos de um segundo com um golpe de direita que ele recebeu com a luva. Rapidamente Riley desferiu um gancho de esquerda do qual ele se desviou guinando para o lado.
“Ótimo,” Disse Rudy outra vez.
Mas a Riley não parecia ótimo. Não tinha conseguido acertar um único golpe, enquanto ele fora bem-sucedido mesmo quando se defendia. Começou a sentir invadir-se por uma onda de irritação. Mas recordou-se do que Rudy lhe dissera logo no início...
“Não esperes acertar muitos golpes. Ninguém acerta muitos. Pelo menos, não no pugilismo.”
Agora observava as suas luvas, adivinhando que desferiria outro ataque. E foi nesse momento que uma estranha transformação sucedeu na sua imaginação
As luvas transformaram-se numa chama única – a chama branca e sibilante de um maçarico. Ela estava novamente aprisionada nas trevas, cativa de um assassino sádico chamado Peterson. Ele brincava com ela, fazia-a desviar-se da chama para fugir ao seu calor abrasador.
Mas ela estava cansada de ser humilhada. Desta vez estava determinada a reagir. Quando a chama se aproximou do seu rosto, ela baixou-se e desferiu um golpe potente que não resultou. A chama voltou a aproximar-se e ela reagiu com um golpe cruzado que também não atingiu o alvo. Mas antes de Peterson encetar o próximo movimento, ela desferiu um uppercut em cheio no queixo...
“Ei!” Gritou Rudy.
A sua voz teve o efeito de fazer Riley regressar ao momento presente. Rudy estava deitado de costas no tapete.
Como é que ele foi ali parar? Interrogou-se Riley.
Depois compreendeu que o tinha atingido – e com muita força.
“Ó meu Deus!” Exclamou Riley. “Peço desculpa, Rudy!”
Rudy sorria enquanto se tentava levantar.
“Não peças desculpa,” Disse ele. “Isso foi bom.”
Retomaram o combate. O resto da sessão decorreu sem problemas e nenhum deles acertou qualquer golpe. Mas agora Riley sentia-se melhor. Mike Nevins tinha razão. Esta era precisamente a terapia de que ela precisava.
Ainda assim, não cansava de se perguntar quando é que seria capaz de afastar aquelas recordações.
Talvez nunca, Pensou.
*
Riley atacou o seu bife com entusiasmo. O Chef do Blaine’s Grill era fantástico na confeção de vários pratos menos convencionais, mas o exercício daquele dia no ginásio deixara Riley a salivar por um bom bife e uma salada. A sua filha April e a amiga Crystal pediram hambúrgueres. Blaine Hildreth, o pai de Crystal, estava na cozinha, mas estaria de volta a qualquer momento para terminar o seu mahi-mahi.
Riley relanceou o confortável restaurante com um profundo sentimento de satisfação. Tinha a noção que a sua vida não tinha suficientes noites calorosas como aquela na companhia de amigos, família e uma boa refeição. As cenas que o seu trabalho lhe oferecia eram, regra geral, bem mais desagradáveis e perturbadoras.
Dali a alguns dias, iria testemunhar numa audiência de liberdade condicional de um assassino de crianças que esperava sair da prisão sem cumprir a totalidade da pena. E ela tinha que se assegurar que ele não se safava.
Há várias semanas atrás, resolvera um caso perturbador em Phoenix. Ela e o parceiro, Bill Jeffreys, tinham apanhado um assassino que matava prostitutas. Riley ainda tinha alguma dificuldade em perceber se tinha dado um contributo positivo na resolução desse caso. A realidade era que agora sabia demasiado para o seu próprio bem a respeito de um doloroso mundo de mulheres e jovens exploradas.
Mas estava determinada em manter esses pensamentos à distância naquele momento. Sentia-se paulatinamente a descontrair. Comer num restaurante com um amigo e as filhas de ambos recordava-a do que era viver uma vida normal. Agora vivia numa casa agradável e estava cada vez mais próxima de um vizinho simpático.
Entretanto, Blaine regressou e sentou-se. Mais uma vez Riley pensou que ele era muito atraente. O cabelo que começava a rarear dava-lhe uma aparência agradavelmente madura.
“Desculpem,” Disse Blaine. “Isto funciona muito bem sem mim quando não estou cá, mas se me apanham à vista, toda a gente passa a querer a minha ajuda.”
“Sei o que é isso,” Disse Riley. “Da minha parte só espero que se me mantiver fora de vista, a UAC se esqueça de mim por uns tempos.”
April disse, “Nem penses. Não tarda nada ligam-te e enviam-te para algum lugar distante do país.”
Riley suspirou. “Bem que me habituava a estar incontactável.”
Blaine comeu um pedaço do mahi-mahi.
“Já pensaste em mudar de emprego?” Perguntou Blaine.
Riley encolheu os ombros. “E o que faria? Passei grande parte da minha vida adulta como agente.”
“Oh, tenho a certeza que há imensas coisas que uma mulher com o teu talento pode fazer,” Disse Blaine. “A maior parte delas bem mais segura do que ser agente do FBI.”
Ele pensou durante alguns instantes. “Imaginava-te como professora,” Declarou.
Riley riu. “E pensas que é mais seguro?” Perguntou.
“Depende do local onde lecionas,” Disse Blaine. “Que tal na universidade?”
“Isso é uma bela ideia, mãe,” Disse April. “Não tinhas que estar sempre a viajar. E conseguias continuar a ajudar as pessoas.”
Riley não disse nada enquanto refletia. Ensinar na universidade seria bastante semelhante à experiência de ensino que tivera na academia em Quantico. Ela gostara da experiência. Dera-lhe a oportunidade de recarregar baterias. Mas quereria ela ser uma professora a tempo inteiro? Conseguiria passar o dia inteiro dentro de um edifício, inativa?
Remexeu num cogumelo com o garfo.
Posso tornar-me numa coisa destas, Pensou.
“E que tal tornares-te numa investigadora privada?” Aventou Blaine.
“Não me parece,” Disse Riley. “Não me é muito apelativo andar a desenterrar segredos sobre casais divorciados.”
“Os investigadores privados não fazem só isso,” Disse Blaine. “Que tal investigar fraude ao nível dos seguros? Sabes, tenho um cozinheiro que anda a colecionar incapacidades, diz que tem problemas nas costas. Tenho a certeza que é uma tanga, mas não o posso provar. Podias começar com ele.”
Riley riu-se. É claro que Blaine estava a gozar.
“Ou podias procurar pessoas desaparecidas,” Disse Crystal. “Ou animais de estimação desaparecidos.”
Riley riu-se novamente. “Ora aí está uma coisa que me faria sentir útil!”
April desinteressara-se da conversa. Riley reparou que estava a enviar SMSs e a dar risadinhas. Crystal debruçou-se sobre a mesa para Riley.
“A April tem um novo namorado,” Disse Crystal. Depois, num sussurro, disse, “Não gosto dele.”
Riley ficou aborrecida pelo facto da filha não dar atenção a quem estava na mesa.
“Para de fazer isso,” Disse a April. “É má educação.”
“Má educação porquê?” Perguntou April.
“Já falámos sobre isto,” Disse Riley.
April ignorou-a e continuou a escrever a mensagem.
“Larga isso,” Disse Riley.
“Só um minuto, mãe.”
Riley reprimiu um esgar. Há muito que aprendera que “um minuto”, em linguagem adolescente, era o mesmo que “nunca”.
E naquele preciso momento o seu telefone tocou. Ficou aborrecida consigo própria por não o ter desligado antes de sair de casa. Olhou para o telefone e viu que se tratava de uma mensagem do seu parceiro Bill. Pensou em não lê-la, mas não foi capaz.
Quando abriu a mensagem, relanceou e viu April a sorrir. A filha estava a apreciar a ironia. A ferver em silêncio, Riley leu a mensagem de Bill
O Meredith tem um novo caso. Quer discuti-lo connosco o mais rapidamente possível.
O Agente Especial Responsável Brent Meredith era o chefe de Riley e de Bill. E Riley era-lhe extremamente leal. Não só era um chefe bom e justo, como já a defendera muitas vezes quando tivera problemas no trabalho. Ainda assim, Riley estava determinada a não se deixar arrastar para um novo caso, pelo menos para já.
Não posso viajar neste momento, Respondeu.
Bill respondeu, É mesmo aqui na zona.
Riley abanou a cabeça desanimada. Não ia ser fácil levar a sua vontade avante.
Enviou-lhe nova mensagem, Já te digo alguma coisa.
Bill não respondeu e Riley colocou o telemóvel na mala.
“Pensei que tinhas dito que era má educação, mãe,” Disse April num tom de voz caprichoso.
April continuava a escrever no telemóvel.
“Eu já terminei,” Disse, tentando não parecer tão aborrecida como estava.
April ignorou-a. O telefone de Riley vibrou outra vez e Riley praguejou em silêncio. Viu que a mensagem, desta feita, era do próprio Meredith.
Esteja na UAC para uma reunião amanhã às 09:00.
Riley estava a tentar pensar numa forma de se desculpar quando chegou outra mensagem.
Isto é uma ordem.
CAPÍTULO DOIS
Riley ficou logo abatida quando vislumbrou duas fotos visíveis nos ecrãs acima da mesa de reuniões da UAC. Uma delas era a foto de uma rapariga despreocupada com olhos claros e um sorriso cativante. A outra mostrava o seu cadáver, horrivelmente macilento, os braços apontando em direções estranhas. Tendo em consideração que lhe tinham ordenado participar naquela reunião, Riley partiu logo do princípio que deveria haver outras vítimas como aquela.
Sam Flores, um técnico laboratorial sagaz com óculos de aros escuros, operava o dispositivo multimédia na presença de quatro outros agentes sentados à volta da mesa.
“Estas fotos são de Metta Lunoe, dezassete anos,” Disse Flores. “A família vive em Collierville, New Jersey. Os pais participaram o seu desaparecimento em Março – uma fuga.”
Acrescentou à apresentação um mapa do Delaware, indicando um local em específico com um ponteiro.
Disse, “O corpo apareceu num campo à saída de Mowbray, Delaware, no dia 16 de Março. O pescoço foi partido.”
Flores mostrou outras duas imagens – numa era possível ver outra jovem de aspeto vigoroso e na outra a mesma rapariga, simplesmente irreconhecível com os braços esticados de uma forma semelhante à vítima anteriormente mostrada.
“Estas fotos são de Valerie Bruner, também com dezassete anos, também fugitiva de Norbury, Virginia. Desapareceu em Abril.”
E Flores indicou outro local no mapa.
“O corpo foi encontrado largado numa estrada de terra batida perto de Redditch, Delaware no dia 12 de Junho. Trata-se obviamente do mesmo MO. O Agente Jeffreys foi chamado para investigar.”
Riley ficou alarmada.Como é que o Bill trabalhara num caso em que ela não estava envolvida? Depois lembrou-se. Ela tinha estado hospitalizada em Junho devido às mazelas deixadas pelo cativeiro de Peterson. Mesmo assim, o Bill tinha-a visitado com frequência no hospital e nunca tinha feito qualquer referência àquele caso.
Voltou-se para Bill.
“Porque é que não me falaste nisto?” Perguntou.
O rosto de Bill estava sombrio.
“Não era o melhor momento,” Disse ele. “Tinhas os teus próprios problemas.”
“Quem foi o teu parceiro?” Questionou Riley.
“O Agente Remsen.”
Riley reconheceu o nome. Bruce Remsen tinha sido transferido para outro local antes dela ter regressado ao trabalho.
Então, depois de uma breve pausa, Bill acrescentou, “Não consegui resolver o caso.”
Riley compreendeu a sua expressão e tom. Após tantos anos de amizade e trabalho conjunto, ela conhecia Bill melhor do que ninguém. E percebeu o quão profundamente desapontado estava consigo próprio.
Flores exibiu as fotos tiradas pelo médico-legista das costas nuas das raparigas. Os cadáveres estavam de tal forma degradados que mal pareciam reais. As costas tinham cicatrizes antigas e vergões recentes.
Riley sentiu um desconforto agudo. E fora apanhada de surpresa por essa sensação. Desde quando é que ficava perturbada com fotos de cadáveres?
Flores prosseguiu, “Antes dos pescoços serem partidos, estavam praticamente mortas de fome. Também foram espancadas e o mais certo é que o tenham sido durante muito tempo. Os corpos foram levados para os locais onde foram encontrados post mortem. Não sabemos onde terão sido mortas.”
Tentando vencer o seu crescente desconforto, Rilley refletiu nas semelhanças com os casos que ela e Bill tinham resolvido nos últimos meses. O “assassino das bonecas” deixava os corpos nus das vítimas em lugares onde pudessem ser facilmente encontradas e em posições grotescas. O “assassino das correntes” pendurava os corpos das vítimas envoltas em correntes pesadas.
Agora Flores mostrava a foto de outra jovem mulher – uma ruiva de aspeto risonho. Ao lado da foto encontrava-se a imagem de um velho Toyota.
“Este carro pertencia a uma imigrante Irlandesa de vinte e quatro anos chamada Meara Keagan,” Declarou Flores. “O seu desaparecimento foi participado ontem de manhã. O seu carro foi encontrado abandonado junto a um prédio em Westree, Delaware. Trabalhava lá para uma família como criada e ama.”
Agora era a vez do Agente Especial Brent Meredith falar. Meredith era um Afro-Americano altivo, grande, com traços angulares e uma atitude racional.
“Saiu do turno às 23:00 na noite de anteontem,” Disse Meredith. “O carro foi encontrado cedo na manhã seguinte.”
O Agente Especial Responsável Carl Walder debruçou-se para a frente. Era o chefe de Brent Meredith – um homem sardento com rosto de menino e cabelo acobreado encaracolado. Riley não gostava dele. Não o considerava particularmente competente. E é claro que também não ajudava a este juízo o facto de ele já a ter despedido.
“Porque é que estamos a partir do princípio que este desaparecimento está relacionado com aqueles crimes?” Perguntou Walder. “A Meara Keagan é mais velha do que as outras vítimas.”
Chegara a vez de Lucy Vargas intervir. Lucy era uma novata jovem e inteligente com cabelo e olhos negros, e um tom de pele bronzeado.
“A resposta está no mapa. Keagan desapareceu na mesma área onde os dois corpos foram encontrados. Pode ser uma coincidência, mas parece-me altamente improvável. Não tratando-se de um período de cinco meses, todos tão próximos.”
Apesar do seu crescente desconforto, Riley gostou de ver Walder estremecer ligeiramente. Sem qualquer intenção, Lucy tinha-o remetido à sua insignificância. Riley só esperava que ele não encontrasse uma forma de se vingar de Lucy mais tarde. Walder podia ser mesquinho a esse ponto.
“Exatamente, Agente Vargas,” Disse Meredith. “Pensamos que as raparigas mais novas foram raptadas quando pediam boleia, provavelmente na autoestrada que atravessa esta área.” E apontou para uma linha específica no mapa.
Lucy perguntou, “Não é proibido pedir boleia no Delaware?” E acrescentou, “É claro que é uma situação difícil de aplicar.”
“Sem dúvida,” Disse Meredith. “E esta nem sequer é uma interestadual ou a maior autoestrada do estado, por isso o mais certo é usarem-na para esse fim. E parece que os assassinos também. Um corpo foi encontrado junto a esta estrada e os outros dois a menos de 16 quilómetros dela. Keagan foi levada a cerca de 96 quilómetros a norte dessa mesma estrada. Mas com ela o raptor usou um estratagema diferente. Se ele seguir o seu padrão habitual, vai mantê-la viva até estar perto de morrer à fome. Depois, parte-lhe o pescoço e livra-se do corpo da mesma forma.”
“Não vamos permitir que isso aconteça,” Disse Bill num tom de voz rígido.
Meredith disse, “Agentes Paige e Jeffreys, quero que comecem já a trabalhar nisto.” Empurrou uma pasta repleta de fotos e relatórios na direção de Riley. “Agente Paige, aqui tem toda a informação de que precisa para ficar a par de tudo.”
Riley fez um movimento para pegar na pasta, mas a mão retraiu-se num espasmo de horrível ansiedade.
O que é que se passa comigo?
A sua cabeça andava à roda e imagens desfocadas começaram a assumir forma no seu cérebro. Seria isto o SPT do caso Peterson? Não, era algo diferente, algo completamente diferente.
Riley levantou-se e saiu da sala de reuniões. Ao percorrer o corredor na direção do seu gabinete, as imagens na sua cabeça tornaram-se mais nítidas.
Havia rostos – rostos de mulheres e raparigas.
Riley viu Mitzi, Koreen e Tantra – jovens acompanhantes cujo vestuário respeitável escondia a sua degradação até delas próprias.
Viu Justine, uma prostituta envelhecida debruçada sobre uma bebida num bar, cansada e amarga, completamente preparada para morrer de uma morte horrível.
Viu Chrissy, virtualmente prisioneira do seu marido violento e proxeneta num bordel.
E pior que tudo, viu Trinda, uma menina de quinze anos que já tinha vivido um pesadelo de exploração sexual e que não se conseguia imaginar a ter outra vida.
Riley chegou ao seu gabinete e rapidamente se atirou para uma cadeira. Agora compreendia o seu ataque de repugnância. As imagens que acabara de ver haviam desencadeado aquelas memórias dolorosas. Tinham trazido à superfície as suas mais sombrias dúvidas sobre o caso de Phoenix. É verdade que tinha apanhado um assassino brutal, mas sentia que não fizera justiça às mulheres e raparigas que conhecera. Todo um mundo de exploração permanecia inalterado, impune. Riley não tinha sequer conseguido arranhar a superfície dos males que aquelas mulheres tinham que suportar.
E agora vivia assombrada e perturbada de uma forma que nunca antes lhe sucedera. E parecia-lhe algo bem pior que o SPT. No final de contas, ela podia libertar a sua raiva e horror num ginásio de pugilismo, mas não tinha forma de se livrar daqueles novos sentimentos.
E conseguiria ela trabalhar noutro caso como o de Phoenix?
Ouviu a voz de Bill à porta.
“Riley.”
Ergueu o olhar e viu o seu parceiro a observá-la com uma expressão triste. Segurava na pasta que Meredith lhe tentara dar.
“Preciso de ti neste caso,” Disse Bill. “É pessoal para mim. Não o ter conseguido resolver deixa-me louco. E não consigo deixar de pensar se terei falhado porque o meu casamento estava a desmoronar. Conheci a família da Valerie Bruner. São boas pessoas. Mas não mantive o contacto porque... Bem, porque os desiludi. Tenho que os compensar de alguma forma.”
Bill colocou a pasta em cima da secretária de Riley.
“Lê isto. Por favor.”
E saiu do gabinete de Riley. Ela ali permaneceu sentada, indecisa, a fitar o dossiê.
Nem parecia dela. Ela sabia que tinha que reagir.
Enquanto refletia, lembrou-se de algo relacionado com Phoenix. Tinha conseguido salvar uma rapariga chamada Jilly. Ou pelo menos tinha tentado.
Ligou para o número do abrigo para adolescentes em Phoenix, Arizona. Atendeu uma voz familiar.
“Fala Brenda Fitch.”
Riley ficou contente por Brenda ter atendido a chamada. Tinha estado em contacto com ela no caso de Phoenix.
“Olá Brenda,” Saudou. “Fala Riley. Lembrei-me de perguntar como está a Jilly.”
Jilly era uma menina que Riley tinha salvo do tráfico sexual – uma menina magricela de cabelo negro com treze anos. Jilly tinha como única família um pai violento. Riley ligava de vez em quando para saber como é que ela estava.
Riley ouviu um suspiro do outro lado da linha.
“Que bom ter ligado,” Disse Brenda. “Quem me dera que mais pessoas mostrassem alguma preocupação. A Jilly continua connosco.”
Riley ficou triste. Esperava que algum dia ligasse para o abrigo e lhe fosse dito que a Jilly tinha sido acolhida por uma família adotiva carinhosa. Mas o dia ainda não tinha chegado. Riley ficou preocupada.
Disse, “Da última vez que falámos, receava que tivesse que a mandar para junto do pai.”
“Oh, não, isso já está resolvido. Já temos uma ordem judicial para ele não se aproximar dela.”
Riley suspirou de alívio.
“A Jilly pergunta muitas vezes por si,” Disse Brenda. “Quer falar com ela?”
“Sim, por favor.”
Riley ficou à espera. E enquanto esperava pensou se seria boa ideia falar com Jilly. Sempre que falava com ela, acabava sentindo-se culpada. Não compreendia porque é que se sentia assim. Afinal, tinha salvo Jilly de uma vida de exploração e violência.
Mas tinha-a salvo para quê? Pensava. Com que tipo de vida podia Jilly sonhar?
Finalmente, ouviu a voz de Jilly.
“Olá, Agente Paige.”
“Quantas vezes é que tenho que te dizer para não me chamares isso?”
“Desculpe. Olá Riley.”
Riley deu uma risadinha.
“Olá Jilly. Como estás?”
“Acho que bem.”
O silêncio ocupou a distância entre ambas.
Uma típica adolescente, Pensou Riley. Era sempre difícil convencer Jilly a falar.
“Então, que fazes?” Perguntou Riley.
“Acabei de acordar,” Disse Jilly com uma voz ainda rouca. “Vou tomar o pequeno-almoço.”
Só então Riley se apercebeu que eram menos três horas em Phoenix.
“Desculpa ter ligado tão cedo,” Disse Riley. “Esqueço-me sempre da diferença horária.”
“Não faz mal. Gosto que ligue.”
Riley ouviu um bocejo.
“Então, hoje vais para a escola?” Perguntou Riley.
“Sim. Deixam-nos sair da prisa todos os dias para fazermos isso.”
Era uma piadinha de Jilly, chamar o abrigo de “prisa” como se estivesse numa prisão. Riley não achava piada nenhuma.
Por fim, Riley disse, “Bem, vou deixar-te tomar o pequeno-almoço e preparares-te para a escola.”
“Ei, espere,” Interpelou Jilly.
Outro momento de silêncio se instalou. Pareceu a Riley ouvir Jilly conter um soluço.
“Ninguém me quer, Riley,” Desabafou Jilly, chorando. “As famílias adotivas nunca me querem. Não gostam do meu passado.”
Riley ficou impressionada.
O seu “passado”? Pensou. Meu Deus, como é que uma menina de treze anos pode ter um “passado”? O que é que se passa com as pessoas?
“Lamento,” Disse Riley.
Jilly falava hesitantemente no meio das lágrimas.
“É que... Bem, sabe, é... Quero dizer, Riley, parece que você é a única pessoa que se preocupa.”
Riley sentiu um nó na garganta e os olhos a marejarem de lágrimas. Não conseguiu responder.
Jilly continuou, “Não podia viver consigo? Eu não dou muito trabalho. Tem uma filha, não é? Ela pode ser como uma irmã. Podemos cuidar uma da outra. Tenho saudades suas.”
Riley lutava para conseguir falar.
“Eu... Não me parece que isso seja possível, Jilly.”
“Porque não?”
Riley estava desfeita. A pergunta atingiu-a como uma bala.
“Simplesmente... Não é possível,” Disse Riley.
Ainda ouvia Jilly a chorar.
“Ok,” Respondeu Jilly. “Tenho que ir tomar o pequeno-almoço. Adeus.”
“Adeus,” Disse Riley. “Telefono em breve.”
Jilly desligou o telefone. Riley debruçou-se sobre a secretária com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. A pergunta de Jilly continuava a ecoar na sua cabeça...
“Porque não?”
Havia milhares de razões. April já lhe dava tanto que fazer. O seu trabalho consumia em demasia o seu tempo e energia. E estaria ela qualificada ou preparada para lidar com as cicatrizes psicológicas de Jilly? É claro que não.
Riley limpou os olhos e endireitou-se na cadeira. Deixar-se levar pela autocomiseração não a ajudaria. Chegara a altura de voltar ao trabalho. Havia raparigas a morrer e elas precisavam dela.
Pegou no dossiê e abriu-o. Chegara o momento, pensou, de regressar à arena?
CAPITULO TRÊS
Mafarrico estava sentado no seu baloiço no alpendre a observar as crianças a circular nos seus fatos de Halloween. Geralmente gostava que lhe viessem bater à porta, mas naquele ano parecia-lhe uma ocasião agridoce.
Quantos destes miúdos vão estar vivos daqui a algumas semanas? Pensou.
Suspirou. Provavelmente nenhum. O prazo limite aproximava-se e ninguém prestava atenção às suas mensagens.
As correias do baloiço do alpendre chiavam. Caía uma chuva leve e quente, e Mafarrico esperava que as crianças não se constipassem. Tinha um cesto com doces no colo e estava a ser muito generoso. Fazia-se tarde e, em breve, não haveria mais crianças.
Na mente de Mafarrico ainda conseguia ouvir o avô a reclamar, apesar do velho rabugento ter morrido há vários anos. E não importava que Mafarrico já fosse adulto, nunca se libertava das tiradas do velho.
“Olha só para aquele com a capa e máscara de plástico preta,” Dissera o avô. “É suposto aquilo ser um fato?”
Mafarrico só esperava que ele e o avô não fossem ter outra discussão.
“Está vestido de Darth Vader, avô,” Disse.
“Não quero saber de que é que está vestido. É um fato barato comprado numa loja. Quando tínhamos que te vestir, fazíamos sempre os teus fatos.”
Mafarrico lembrava-se bem desses fatos. Para o transformar numa múmia, o avô embrulhava-o em lençóis rasgados. Para o transformar num cavaleiro andante, o avô cobria-o com uma pesada tabuleta para cartazes de alumínio e carregava uma lança feita do cabo de uma vassoura. Os fatos do avô eram sempre criativos.
Ainda assim, Mafarrico não recordava esses Halloweens com saudade. O avô praguejava e queixava-se sempre enquanto lhe vestia os fatos. E quando Mafarrico regressava a casa da recolha de doces... Por um instante, Mafarrico sentiu-se novamente um rapazinho. Ele sabia que o avô tinha sempre razão. Mafarrico nem sempre entendia porquê, mas isso não importava. O avô tinha razão e ele não. Era assim que as coisas eram. Era assim que as coisas sempre tinham sido.
Mafarrico ficara aliviado quando já era demasiado velho para andar de porta em porta a pedir doces. Desde então, era livre de se sentar no alpendre para dar doces às crianças. Ficava feliz por elas. Ficava feliz por desfrutarem da infância, mesmo que ele não tivesse tido essa sorte.
Três crianças subiram até ao alpendre. Um rapaz estava vestido de Homem-Aranha, uma menina de Catwoman. Aparentavam ter cerca de nove anos. O fato da terceira criança arrancou um sorriso a Mafarrico. Uma menina com cerca de sete anos envergava um fato de abelhão.
“Doçura ou travessura!” Gritaram em uníssono em frente a Mafarrico.
Mafarrico riu-se e remexeu o cesto à procura de doces. Deu-lhes alguns, eles agradeceram e foram-se embora.
“Para de lhes dar doces!” Rosnou o avô. “Quando é que vais deixar de encorajar estas pestes?”
Mafarrico desafiava silenciosamente o avô há já algumas horas. Pagaria por isso mais tarde.
Entretanto, o avô ainda rabujava. “Não te esqueças, temos trabalho a fazer amanhã à noite.”
Mafarrico não respondeu, limitou-se a ouvir o baloiço a chiar. Não, ele não esqueceria o que tinha que ser feito amanhã à noite. Era um trabalho sujo, mas tinha que ser feito.
*
Libby Clark seguiu o irmão mais velho e a prima na direção do bosque escuro nas traseiras dos quintais do bairro. Ela não queria estar ali. Ela queria estar em casa aninhada no conforto da sua cama.
O irmão, Gary, iluminava o caminho com uma lanterna. Parecia estranho no seu fato de Homem-Aranha. A prima Denise seguia Gary no seu fato de Catwoman. Libby trotava desconfortavelmente atrás dos dois.
“Venham daí,” Instigou Gary, avançando destemidamente.
Ele e Denise passaram por entre dois arbustos sem problemas, mas o fato de Libby era tufado e ficou preso em alguns ramos. Agora tinha algo mais com que se preocupar. Se o fato de abelhão ficasse estragado, a mamã passava-se. Libby conseguiu libertar-se e apressou-se para os apanhar.
“Quero ir para casa,” Disse Libby.
“Força,” Disse Gary.
Mas é claro que Libby tinha demasiado medo para voltar para trás. Já tinham andado demais. Ela não se atreveria a regressar sozinha.
“Talvez devêssemos mesmo voltar,” Aventou Denise. “A Libby está com medo.”
Gary parou e voltou-se. Libby desejava poder ver o seu rosto atrás da máscara.
“Qual é o problema, Denise?” Perguntou. “Também tens medo?”
Denise riu nervosamente.
“Não,” Disse. Libby percebeu que ela estava a mentir.
“Então venham daí,” Desafiou Gary.
O pequeno grupo continuou a caminhar. O solo estava encharcado e escorregadio, e Libby estava quase imersa em erva molhada. Pelo menos tinha parado de chover. A lua começava a mostrar-se por entre as nuvens. Mas também estava a esfriar e Libby estava toda ensopada e a tremer, e cheia, cheia de medo.
Por fim, os arbustos e árvores abriram para uma ampla clareira. Vapor elevava-se do solo molhado. Gary parou mesmo na margem do espaço. Denise e Libby imitaram-no.
“Chegámos,” Sussurrou Gary, apontando. “Vejam só – é quadrada, como se aqui tivesse havido uma casa ou algo do género. Mas não há casa. Não há nada. As árvores e os arbustos não conseguem crescer aqui. Só ervas daninhas. É porque é solo amaldiçoado. Aqui vivem fantasmas.”
Libby lembrou-se do que o papá dissera.
“Não há fantasmas.”
Ainda assim, tinha os joelhos a tremer. Estava prestes a fazer chichi. A mamã não ia gostar nada disso.
“O que é aquilo?” Perguntou Denise.
A menina apontava na direção de duas formas que se erguiam do solo. A Libby pareciam dois grandes tubos dobrados na extremidade, quase completamente cobertos de hera.
“Não sei,” Disse Gary. “Parecem periscópios de submarinos. Talvez os fantasmas nos estejam a observar. Vai dar uma espreitadela, Denise.”
Denise libertou uma risada de medo.
“Vai tu!” Exclamou Denise.
“Ok, vou mesmo,” Disse Gary.
Gary entrou corajosamente na clareira e caminhou em direção a uma das formas. Parou a cerca de um metro de distância. Depois voltou-se e regressou para junto da prima e da irmã.
“Não sei o que é,” Disse.
Denise riu. “Isso é porque nem sequer olhaste!” Disse.
“Olhei sim senhora,” Ripostou Gary.
“Não olhaste nada! Nem te aproximaste!”
“Ai isso é que me aproximei. Se estás assim tão curiosa, vai lá ver por ti mesma.”
Durante uns instantes, Denise não disse nada. Depois, caminhou para o terreno ermo. Aproximou-se um pouco mais da forma do que Gary, mas regressou rapidamente sem parar.
“Também não sei o que é,” Informou Denise.
“É a tua vez de ir lá ver, Libby,” Disse Gary.
O medo de Libby trepava por si à semelhança daquela hera.
“Não a obrigues a ir, Gary,” Disse Denise. “É muito pequena.”
“Não é muito pequena. Está a crescer. Já é altura de o mostrar.”
Gary deu um encontrão a Libby. E, de repente, já se encontrava a curta distância do local. Virou-se e tentou voltar para trás, mas Gary estendeu a mão para a impedir.
“Nem penses,” Disse. “A Denise e eu fomos. Tu também tens que ir.”
Libby engloliu a saliva a custo, virou-se e enfrentou o espaço vazio com aquelas duas coisas dobradas. Tinha o sentimento assustador de que também a estavam a observar.
Lembrou-se novamente das palavras do papá...
“Os fantasmas não existem.”
O papá nunca mentiria sobre aquilo. Por isso, de que é que ela afinal tinha medo?
Além disso, já estava a ficar zangada com o Gary por estar a aborrecê-la. Estava quase tão zangada quanto assustada.
Eu já lhe mostro, Pensou.
As pernas tremiam-lhe e dava pequenos passos em direção ao grande espaço quadrado. Ao caminhar para a coisa metálica, Libby sentiu-se mais corajosa.
Quando se aproximou da coisa – estava mais perto do que Gary ou Denise haviam estado – sentiu-se bastante orgulhosa de si mesma. Mas ainda assim, não conseguia perceber de que se tratava.
Com mais coragem do que julgara possível, Libby estendeu a mão nessa direção. Empurrou os dedos pelas folhas de hera, esperando que a mão não fosse arrebatada ou comida ou algo pior. E os dedos encontraram finalmente o tubo metálico, frio e duro.
O que será? Pensou.
De repente, sentiu uma ligeira vibração no tubo. E ouviu algo. Parecia vir do tubo.
Ajoelhou-se muito próxima do tubo. O som era débil, mas ela sabia que não era fruto da sua imaginação. O som era real e parecia uma mulher a chorar e a lamentar-se.
Libby afastou a mão do tubo. Estava demasiado assustada para falar ou mexer-se ou gritar ou fazer o que quer que fosse. Nem conseguia respirar. Era como quando caíra de uma árvore de costas e o ar dos pulmões lhe parecia ter sido sugado.
Ela sabia que tinha que fugir. Mas ficou imóvel, incapaz de reagir. Era como se tivesse de explicar ao seu corpo como é que tinha que se mexer.
Vira-te e foge, Pensou.
Mas durantes alguns segundos intermináveis, não conseguiu obedecer à sua própria ordem.
De súbito, as suas pernas pareceram ganhar vida e deu por si a sair da clareira. Assustava-a a possibilidade de algo muito mau a alcançar e agarrá-la e levá-la de volta para aquele local.
Quando saiu da clareira, dobrou-se sobre si mesma, ofegante. Naquele momento compreendeu que todo aquele tempo sustivera a respiração.
“O que é que se passa?” Perguntou Denise.
“Um fantasma!” Gritou Libby. “Ouvi um fantasma!”
E nem sequer esperou por uma resposta. Desatou a correr o mais rápido que conseguia pelo caminho que tinham percorrido. Ouviu o irmão e a prima a correrem atrás de si.
“Ei, Libby, para!” Gritava o irmão. “Espera por nós!”
Mas não havia a mínima hipótese dela parar de correr antes de estar sã e salva em casa.
CAPÍTULO QUATRO
Riley bateu à porta do quarto de April. Era meio-dia e já era tempo da filha se levantar. Mas a resposta que ouviu não era bem aquela que desejava.
“O que é que queres?” Surgiu uma réplica abafada e rabugenta do interior do quarto.
“Vais ficar a dormir o dia todo?” Perguntou Riley.
“Já acordei e já desço.”
Riley desceu as escadas suspirando. Quem lhe dera que Gabriela ali estivesse, mas o domingo era o seu dia de folga.
Riley sentou-se no sofá. Durante todo o dia anterior April estivera rabugenta e distante. Riley não sabia como atenuar a não identificada tensão entre elas e ficara aliviada por ver que April tinha ido a uma festa de Halloween à noite. Como era na casa de uma amiga a apenas alguns quarteirões de distância, Riley não se preocupara. Pelo menos não se preocupara até à uma da manhã quando a filha ainda não tinha regressado a casa.
Felizmente, April aparecera quando Riley ainda estava indecisa quanto ao que deveria fazer de seguida. Mas April regressara e fora logo para a cama sem dirigir praticamente uma palavra à mãe. E pelo que Riley se pudera aperceber, naquela manhã April não parecia estar mais inclinada a comunicar.
Riley estava feliz por estar em casa para resolver o que quer que estivesse errado. Não se tinha comprometido em relação ao novo caso e ainda tinha sentimentos contraditórios quanto a isso. Bill não parava de a informar sobre todos os desenvolvimentos por isso, sabia que no dia anterior ele e Lucy Vargas tinham começado investigar o desaparecimento de Meara Keagan. Interrogaram a família para a qual Meara trabalhava e também os vizinhos no prédio onde vivia. Não tinham quaisquer pistas.
Naquele dia Lucy ia liderar uma busca geral, coordenando vários agentes que distribuíam panfletos com a foto de Meara. Entretanto, Bill demonstrava tudo menos paciência face à indecisão de Riley em se juntar ao caso.
Mas ela não tinha que decidir já. Toda a gente em Quantico sabia que Riley não estaria disponível no dia seguinte. Um dos primeiros assassinos que apanhara ia ser ouvido numa audiência de liberdade condicional em Maryland. Estava completamente fora de questão não testemunhar naquela audiência.
Enquanto Riley refletia sobre as suas escolhas, April descia as escadas já vestida. Dirigiu-se de imediato à cozinha sem sequer olhar para a mãe. Riley levantou-se e seguiu-a.
“O que há para comer?” Perguntou April, olhando para o interior do frigorífico.
“Posso preparar-te o pequeno-almoço,” Disse Riley.
“Não é preciso, eu encontro alguma coisa.”
April tirou um pedaço de queijo e fechou a porta do frigorífico. Na bancada cortou uma fatia de queijo e serviu-se de café. Acrescentou natas e açúcar ao café, sentou-se na mesa e começou a mordiscar o queijo.
Riley sentou-se junto à filha.
“Como foi a festa?” Perguntou Riley.
“Tudo bem.”
“Chegaste um bocado tarde a casa.”
“Não, não cheguei.”
Riley optou por não discutir. Talvez uma da manhã não fosse assim tão tarde para miúdas de quinze anos que iam a festas. Como é que ela poderia saber?
“A Crystal disse-me que tens um namorado,” Disse Riley.
“Sim,” Respondeu April, bebericando o seu café.
“Como se chama?”
“Joel.”
Depois de uns instantes de silêncio, Riley perguntou, “Quantos anos tem?”
“Não sei.”
Subitamente, Riley sentiu invadir-se por uma onda de ansiedade e raiva.
“Quantos anos tem?” Repetiu Riley.
“Quinze, ok? A mesma idade que eu.”
Riley tinha a certeza que April estava a mentir.
“Gostava de o conhecer,” Disse Riley.
April revirou os olhos. “Por amor de Deus, mãe. Cresceste em que época? Nos anos cinquenta?”
Riley sentiu-se picada.
“Não me parece que seja pouco razoável,” Disse Riley. “Trá-lo cá. Apresenta-mo.”
April pousou a caneca de café com tanta força que entornou um pouco do líquido na mesa.
“Porque é que me estás sempre a controlar?” Atirou April.
“Não te estou a tentar controlar. Só quero conhecer o teu namorado.”
Durante alguns instantes, April limitou-se a olhar silenciosa e soturnamente para o café. Depois levantou-se de rompante da mesa e saiu intempestivamente da cozinha.
“April!” Gritou Riley.
Riley seguiu April pela casa. April dirigiu-se à porta de entrada e pegou na mala, pendurada no bengaleiro.
“Onde vais?” Perguntou Riley.
April não respondeu. Abriu a porta e saiu, batendo-a atrás de si.
Riley permaneceu plantada num silêncio surpreendido durante alguns momentos. Pensou que com toda a certeza, April regressaria de imediato.
Riley esperou durante um minuto. Depois foi para a porta, abriu-a e olhou na direção da rua. Não havia sinal de April.
Riley sentiu-se abalada. Interrogou-se como é que as coisas tinham chegado àquele ponto. Já tinham passado por momentos difíceis no passado. Mas quando as três – Riley, April e Gabriela – se mudaram para aquela casa no verão, a April ficara muito feliz. Ficara amiga de Crystal e a escola corria bem.
Mas agora, apenas dois meses depois da mudança, April passara de adolescente feliz a adolescente rabugenta. Será que o SPT regressara? April sofrera um efeito retardado depois de Peterson a ter aprisionado e ter tentado matá-la. Mas estava a consultar uma boa terapeuta e parecia estar a ultrapassar o trauma.
Ainda na porta de entrada aberta, Riley pegou no telemóvel e enviou um SMS a April.
Volta aqui. Imediatamente.
A mensagem fora entregue. Riley aguardou. Nada aconteceu. Teria April deixado o telemóvel em casa? Não, não era possível. April agarrara na mala à saída e nunca ia a lado nenhum sem o telemóvel.
Riley não parava de olhar para o telemóvel. A mensagem ainda estava marcada como “entregue” e não como “lida”. Estaria April simplesmente a ignorá-la?
E naquele momento, Riley teve a certeza para onde April tinha ido. Pegou numa chave que se encontrava numa mesa junto à porta e dirigiu-se ao alpendre fronteiro. Desceu as escadas da sua casa na direção do relvado da casa vizinha onde Blaine e Crystal viviam. Olhando novamente para o telemóvel, tocou à campainha.
Quando Blaine abriu a porta e a viu, o rosto do homem inundou-se de um amplo sorriso.
“Então!” Disse. “Que bela surpresa. O que te traz por cá?”
Riley gaguejou de forma estranha.
“Será que... A April está por cá? Com a Crystal?”
“Não,” Disse Blaine. “A Crystal também não está. Disse que ia à cafetaria. Sabes, aquela mais próxima.”
Blaine franziu o sobrolho preocupado.
“O que é que se passa?” Perguntou. “Algum problema?”
“Tivemos uma discussão,” Disse Riley. “Ela saiu de rompante. Eu pensei que ela pudesse ter vindo para cá. Acho que está a ignorar a minha mensagem.”
“Entra,” Disse Blaine.
Riley seguiu-o até à sala de estar onde se sentaram no sofá.
“Não sei o que se passa com ela,” Disse Riley. “Não sei o que se passa connosco.”
Blaine sorriu tristemente.
“Sei bem o que estás a sentir,” Disse Blaine.
Riley ficou um pouco surpreendida.
“Sabes?” Perguntou. “Sempre me pareceu que tu e a Crystal se davam perfeitamente.”
“A maior parte do tempo, sim. Mas desde que é adolescente que as coisas às vezes não são fáceis.”
Blaine olhou para Riley com uma expressão de compreensão.
“Não me digas,” Disse. “Que tem a ver com um namorado.”
“Parece que sim,” Disse Riley. “Não me conta nada sobre ele. E recusa-se a apresentá-lo.”
Blaine abanou a cabeça.
“Elas estão nessa idade,” Disse ele. “Ter um namorado é um assunto de vida ou de morte. A Crystal ainda não tem um, o que para mim não tem mal nenhum, mas para ela tem. Está absolutamente desesperada a esse respeito.”
“Talvez eu também tenha sido assim com essa idade,” Disse Riley.
Blaine deu uma risadinha. “Acredita em mim quando te digo que quando tinha quinze anos, só pensava em raparigas. Queres café?”
“Quero, obrigada. Simples, se faz favor.”
Blaine foi para a cozinha. Riley olhou à sua volta, reparando mais uma vez como a casa estava bem decorada. Blaine tinha mesmo bom gosto.
E lá regressou ele com duas canecas de café. Riley tomou um gole. Estava delicioso.
“Eu juro que não sabia no que me estava a meter quando fui mãe,” Disse. “Talvez não tenha ajudado o facto de ser demasiado nova.”
“Quantos anos tinhas?”
“Vinte e quatro.”
“Eu era mais novo. Casei-me aos vinte e um. Para mim a Phoebe era a rapariga mais bonita que já vira. Sexy como o raio. De certa forma, descurei o facto de que ela também era bipolar e já bebia muito.”
Agora Riley estava cada vez mais interessada. Ela sabia que Blaine estava divorciado, mas pouco mais. Parecia que ela e Blaine tinham cometido erros comuns na juventude. Tinha sido demasiado fácil para eles ver a vida através do brilho dourado da atração física.
“Quanto tempo estiveste casado?” Perguntou Riley.
“Cerca de nove anos. Devíamos ter acabado muito antes. Eu deveria ter acabado. Não parava de acreditar que conseguiria salvar a Phoebe. Foi uma ideia estúpida. A Crystal nasceu quando a Phoebe tinha vinte e um e eu vinte e dois anos, um estudante de chef. Éramos demasiado pobres e imaturos. A Phoebe abortou e nunca conseguiu ultrapassar isso. Tornou-se completamente dependente do álcool. Tornou-se violenta.”
O olhar de Blaine era vago agora. Riley pressentiu que estaria a reviver memórias amargas de que não queria falar.
“Quando a April nasceu, eu estava a fazer formação para ser agente do FBI,” Disse Riley. “O Ryan queria que eu desistisse, mas não desisti. Ele estava morto por se tornar num advogado de sucesso. A verdade é que ambos tivemos as carreiras que queríamos. Mas não tínhamos nada em comum a longo curso. Não conseguimos criar as fundações sólidas necessárias a um casamento.”
Riley calou-se sob o olhar de compreensão de Blaine. Sentiu-se aliviada por poder falar com outro adulto sobre aquilo. Começava a perceber que era praticamente impossível sentir-se desconfortável na presença de Blaine. Sentia que conseguia falar com ele sobre quase tudo.
“Blaine, estou bastante dividida neste momento,” Disse Riley. “Sou necessária num caso importante, mas tudo está uma grande confusão em casa. Sinto que não estou a passar tempo suficiente com a April.”
Blaine sorriu.
“Ah, claro. O velho dilema entre trabalho e família. Também o conheço bem. Acredita em mim, ser dono de um restaurante requer muito tempo. Ter tempo para a Crystal é um desafio.”
Riley olhou para os carinhosos olhos azuis de Blaine.
“Como encontras o equilíbrio?” Perguntou Riley.
Blaine encolheu ligeiramente os ombros.
“Não encontro,” Disse. “Não há tempo suficiente para tudo. Mas também não vale a pena castigarmo-nos por não sermos capazes de conseguir o impossível. Acredita em mim, desistir da carreira não é solução. Quero dizer, a Phoebe tentou ficar em casa. E foi parte do que a enlouquecia. Tens que te contentar com o que tens.”
Riley sorriu. Parecia uma ideia fantástica – contentar-se com o que tinha. Talvez conseguisse. Parecia realmente possível.
Tocou na mão de Blaine. Ele pegou na mão dela e apertou-a na sua. Riley sentiu uma tensão deliciosa entre eles. Por um momento, pensou que talvez pudesse ficar mais um momento com Blaine, agora que ambas as filhas estavam noutro lugar. Talvez pudessem...
Mas no exato momento em que este pensamento se começava a forma na sua cabeça, sentiu afastar-se dele. Ainda não estava pronta a agir em concordância com aqueles novos sentimentos.
Retirou a mão suavemente.
“Obrigada,” Agradeceu. “É melhor ir para casa. A April já lá deve estar.”
Despediram-se. Ao sair, o telemóvel vibrou. Era uma mensagem de April.
Acabei de ler a tua mensagem. Desculpa ter agido assim. Estou na cafetaria. Volto num instante.
Riley suspirou. Não fazia a mínima ideia do que responder. Talvez fosse melhor não o fazer. Elas teriam que ter uma conversa séria mais logo.
Riley acabara de entrar em casa quando o telemóvel tocou novamente. Uma chamada de Ryan. O seu ex-marido era a última pessoa com quem queria falar naquele momento. Mas ela sabia que ele não ia parar de enviar mensagens se não falasse com ele agora. Atendeu a chamada.
“O que queres, Ryan?” Perguntou rispidamente.
“Estou a ligar em má altura?”
Riley queria dizer-lhe que no que lhe dizia respeito nenhuma altura era boa. Mas manteve o pensamento para si própria.
“Podemos falar agora,” Disse Riley.
“Estava a pensar em passar por aí para te ver a ti e à April,” Disse. “Gostava de falar com as duas.”
Riley reprimiu um grunhido. “Preferia que não viesses.”
“Pensava que tinhas dito que o momento era bom.”
Riley não respondeu. Era típico de Ryan, retorcer as suas palavras para tentar manipulá-la.
“Como está a April?” Perguntou Ryan.
Quase se engasgou com o riso. Ela sabia que ele estava apenas a tentar fazer conversa.
“Que simpático da tua parte perguntares,” Disse Riley sarcasticamente. “Está ótima.”
É claro que era mentira. Mas envolver Ryan naquela situação não era a melhor forma de a melhorar.
“Ouve Riley...” A voz de Ryan apagou-se. “Cometi muitos erros.”
Não me digas, Pensou Riley. Mas manteve o silêncio.
Depois de alguns instantes, Ryan disse, “As coisas não me têm corrido muito bem nos últimos tempos.”
Riley ainda assim permaneceu em silêncio.
“Bem, só me queria certificar de que tu e a April estão bem.”
Riley mal conseguia acreditar na lata de Ryan.
“Estamos bem. Porque é que perguntas? Uma namoradinha nova deixou-te, foi, Ryan? Ou as coisas estão a correr mal no escritório?”
“Estás a ser muito dura comigo, Riley.”
A ela parecia-lhe estar a ser tão meiga quanto possível. Ela percebeu a situação. Ryan devia estar sozinho. A socialite que se tinha mudado para casa dele depois do divórcio devia tê-lo abandonado ou algum caso novo devia ter dado para o torto.
Ela sabia que Ryan não suportava estar sozinho. Ia sempre para junto de Riley e April como último recurso. Se ela o deixasse voltar, seria só até ele se interessar por outra mulher.
Riley disse, “Acho que deves resolver as coisas com a tua última namorada. Ou a que tiveste antes dessa. Já nem sei quantas tiveste desde que estamos divorciados. Quantas, Ryan?”
Ouviu um ligeiro esgar do outro lado da linha. Riley tinha tocado num ponto fraco.
“Ryan, a verdade é que este não é o melhor momento.”
Era a mais pura verdade. Acabara de visitar um homem simpático de quem gostava. Porquê estragar tudo agora?
“Quando é um bom momento?” Perguntou Ryan.
“Não sei,” Respondeu Riley. “Depois digo-te. Adeus.”
E desligou a chamada. Desde que começara a falar com Ryan que andava de um lado para o outro. Sentou-se e respirou fundo para se acalmar.
Depois enviou um SMS a April.
Vem para casa imediatamente.
Alguns segundos depois recebeu uma resposta.
OK. Estou a caminho. Desculpa mãe.
Riley suspirou. Agora April já parecia bem. E estaria durante algum tempo. Mas algo não batia certo.
O que é que se estava a passar com ela?
CAPÍTULO CINCO
No seu covil parcamente iluminado, Mafarrico andava freneticamente no meio de milhares de relógios, tentando ter tudo preparado na hora certa. Faltavam apenas alguns minutos para a meia-noite.
“Concerta o que tem o cavalo!” Gritava o avô. “Está um minuto atrasado!”
“Já lá vou,” Dizia Mafarrico.
Mafarrico sabia que seria castigado de qualquer das formas, mas seria ainda pior se não tivesse tudo preparado a tempo. Naquele momento, estava demasiado ocupado com outros relógios.
Concertou o relógio com as flores retorcidas de metal que se atrasara cinco minutos. De seguida, abriu um relógio de pé e moveu o ponteiro dos minutos um pouco para a direita.
Verificou o grande relógio com um chifre de veado no topo. Atrasava-se com frequência, mas naquele momento parecia estar bem. Finalmente, conseguiu arranjar o que tinha um cavalo empinado e ainda bem porque estava atrasado sete minutos.
“Tem que bastar,” Resmungou o avô. “Sabes o que tens a fazer a seguir.”
Mafarrico dirigiu-se para a mesa obedientemente e pegou no chicote. Era do tipo “gato de nove caudas” e o avô tinha-lhe batido com ele quando ainda era demasiado jovem para se lembrar.
Caminhou para a extremidade do covil que se encontrava separada por uma vedação com elos de corrente. Atrás da vedação estavam quatro mulheres aprisionadas, num local sem qualquer mobiliário, a não ser uns beliches de madeira sem colchões. Havia um armário atrás deles onde faziam as suas necessidades fisiológicas. O fedor deixara de incomodar Mafarrico há já algum tempo.
A mulher Irlandesa que apanhara há algumas noites observava-o com atenção. Após a sua longa dieta de migalhas e água, as outras estavam devastadas e cansadas. Duas delas raramente faziam mais do que chorar e gemer. A quarta estava sentada no chão junto à vedação, encolhida e cadavérica. Não emitia qualquer som. Mal parecia estar viva.
Mafarrico abriu a porta da jaula. A mulher Irlandesa saltou para a frente, tentando fugir. Mafarrico atingiu-a na cara violentamente com o chicote. Ela recuou, virando-se de costas. Ele chicoteou-lhe as costas vezes sem conta. O homem sabia por experiência própria que doía bastante, mesmo tendo a blusa de permeio e sobretudo considerando os vergões e cortes que já ostentava.
Subitamente o ambiente foi preenchido pelo ruído ensurdecedor de todos os relógios a baterem a meia-noite. Mafarrico sabia bem o que devia fazer naquele momento.
Enquanto o barulho prosseguia impiedosamente, dirigiu-se à rapariga mais magra e fraca, aquela que nem parecia estar viva. Ela olhou para ele com uma expressão estranha. Era a única que estava ali há tempo suficiente para saber o que ele iria fazer de seguida. Ela aparentava estar como que preparada para aquilo, parecia quase desejar aquilo.
Mafarrico não tinha escolha.
Ajoelhou-se atrás dela e partiu-lhe o pescoço.
Quando a vida se esvaiu daquele corpo, Mafarrico olhou para um relógio ornamentado antigo que se encontrava do outro lado da vedação. Uma Morte esculpida à mão marchava de um lado para o outro no seu manto negro, com a sua caveira assustadora a espreitar através do capuz. Levava cavaleiros e reis e rainhas e pobres, sem distinção. Era o relógio preferido de Mafarrico.
O ruído circundante começou a desvanecer lentamente. E dali a pouco já nada se ouvia a não ser o coro dos relógios a trabalhar e o choro das mulheres que ainda estavam vivas.
Mafarrico colocou a rapariga morta num ombro. Era tão leve que não precisou de fazer qualquer esforço. Abriu a jaula, saiu e fechou-a novamente.
Ele sabia que o momento havia chegado.
CAPÍTULO SEIS
Que grande atuação, Pensou Riley.
A voz de Larry Mullins tremia ligeiramente. Quando terminou a declaração que havia preparado para o conselho da audiência de liberdade condicional e para as famílias das suas vítimas, parecia estar prestes a chorar.
“Tive quinze anos para pensar no que fiz,” Disse Mullins. “Não passa um dia em que não me arrependa. Não posso voltar atrás e mudar o que aconteceu. Não posso voltar a dar vida a Nathan Betts e a Ian Harter. Mas ainda me restam vários anos para poder pagar a minha dívida à sociedade de uma forma útil. Dêem-me, por favor, a oportunidade de o fazer.”
Mullins sentou-se. O seu advogado deu-lhe um lenço e ele limpou os olhos humedecidos nele – apesar de Riley não ter visto lágrimas reais.
O auditor e gestor do caso conferenciaram entre si sussurrando. Também os membros do conselho de liberdade condicional o fizeram.
Riley sabia que em breve chegaria o momento de dar o seu testemunho. Entretanto, estudava o rosto de Mullins.
Lembrava-se muito bem dele e pensou que não mudara muito. Mesmo no passado, ele mostrara-se bem-falante e preparado, nimbado por uma aura sincera de inocência. Se tinha endurecido, conseguia esconder essa característica atrás de expressões de pesar abjeto. No passado trabalhara como ama – ou a versão masculina, como o seu advogado preferia mencionar.
O que mais surpreendia Riley era o pouco que tinha envelhecido. Tinha vinte e cinco anos quando fora preso e ainda possuía a mesma expressão jovem e amigável daquele tempo.
O mesmo não se podia dizer dos pais das vítimas. Os dois casais apresentavam um aspeto prematuramente envelhecido e psicologicamente quebrado. Riley não podia deixar de se compadecer daquelas pessoas que haviam suportado anos de sofrimento e dor.
Só lhes desejava ter feito justiça no momento certo. E também o seu primeiro parceiro no FBI, Jake Crivaro. Tinha sido um dos primeiros casos de Riley enquanto agente e Jake fora um magnífico mentor.
Larry Mullins tinha sido preso sob a acusação de morte de uma criança num parque infantil. No decorrer da sua investigação, Riley e Jake descobriram que uma outra criança tinha morrido em circunstâncias praticamente idênticas quando ao cuidado de Mullins noutra cidade. Ambas as crianças tinham sido asfixiadas.
Quando Riley prendeu Mullins, lhe leu os direitos e o algemou, a sua expressão de júbilo matreiro fora o suficiente para saber que ele era culpado.
“Boa sorte,” Dissera-lhe de forma sarcástica.
De facto, logo de início, a sorte não acompanhou Riley e Jake. Ele negara firmemente ter assassinado as crianças. E apesar dos tremendos esforços de Riley e Jake, as provas contra ele eram perigosamente escassas. Fora impossível determinar o modo como os meninos tinham sido asfixiados e não fora encontrada a arma do crime. O próprio Mullins apenas admitira negligência e negara tê-los assassinado.
Riley recordara-se do que o Procurador lhe dissera a ela e a Jake.
“Temos que ter cuidado ou o filho da mãe sai impune. Se o tentarmos acusar de todas as acusações, perdemos tudo. Não podemos provar que o Mullins era a única pessoa com acesso às crianças quando foram mortas.”
Depois veio a tentativa de acordo. Riley detestava aquelas negociações judiciais. Aliás, a sua aversão por esse tipo de acordo surgira precisamente com aquele caso. O advogado de Mullins tentou fazer um acordo. Mullins declarava-se culpado de ambos os homicídios, mas enquanto homicídios não premeditados, e as penas seriam cumpridas em simultâneo.
Era uma porcaria de acordo. Nem sequer fazia sentido. Se o Mullins tinha morto as crianças, como é que também poderia ser ao mesmo tempo meramente negligente? As duas conclusões eram absolutamente contraditórias. Mas o Procurador chegou à conclusão de que não lhes restava alternativa que não fosse aceitar aquele acordo. Por fim, Mullins foi condenado a trinta anos de cadeia com a possibilidade de liberdade condicional ou libertação precoce por bom comportamento.
A reação das famílias fora de horror e incredulidade. Culparam Riley e Jake por não fazerem o seu trabalho de forma competente. Jake, amargurado e zangado, reformou-se mal o caso terminou.
Riley prometera às famílias dos meninos que faria tudo o que estivesse ao seu alcance para manter Mullins atrás das grades. Há alguns dias atrás, os pais de Nathan Bett haviam ligado a Riley para lhe dar conhecimento da audiência de liberdade condicional. Chegara o momento de fazer cumprir a sua promessa.
Os sussurros terminaram. A Oficial da Audiência Julie Simmons olhou para Riley.
“Creio que a Agente Especial Riley Paige deseja fazer uma declaração,” Disse Simmons.
Riley engoliu em seco. O momento por que aguardava há quinze anos tinha finalmente chegado. Ela sabia que o conselho da audiência já tinha conhecimento de todas as provas, por muito insuficientes que fossem. Não valia a pena repisar o assunto. Tinha que fazer um apelo mais pessoal.
Levantou-se e falou.
“Segundo creio, Larry Mullins está a ser ouvido nesta audiência de liberdade condicional por ser um ‘recluso exemplar’” Com uma nota de ironia, acrescentou, “Sr. Mullins, dou-lhe os parabéns pelo seu feito.”
Mullins acenou, o rosto vazio. Riley prosseguiu.
“’Comportamento exemplar’ – qual é o significado exato disto? Parece-me estar menos relacionado com o que fez do que com o que não fez. Não quebrou regras da prisão. Comportou-se. E é tudo.”
Riley lutava para manter a voz firme.
“Muito honestamente, não estou surpreendida. Não existem muitas crianças para matar na prisão.”
Ouviram-se sussurros e murmúrios na sala. O sorriso de Mullins transformou-se num olhar fixo.
“Peço desculpa,” Disse Riley. “Tenho consciência que Mullins nunca admitiu que os homicídios foram premeditados e a acusação nunca foi por esse caminho. Mas de qualquer das formas, declarou-se culpado. Matou duas crianças. Não há forma de o ter feito com boas intenções.”
Parou por um momento, escolhendo as palavras que proferiria de seguida cuidadosamente. Riley queria provocar Mullins, obrigá-lo a mostrar a sua raiva, a mostrar o seu verdadeiro Eu. Mas é claro que ele sabia que se o fizesse, arruinaria o seu registo de bom comportamento e nunca saíria da prisão. A melhor estratégia de Riley era obrigar os membros do conselho a encarar a realidade do que ele tinha perpetrado.
“Eu vi o corpo sem vida de Ian Harter, quatro anos, no dia seguinte a ser assassinado. Parecia estar a dormir com os olhos abertos. A morte tinha-lhe roubado toda a expressão e o seu rosto estava pacífico. Ainda assim, consegui discernir o terror nos seus olhos mortos. Os seus últimos momentos nesta terra foram momentos de um absoluto terror. Vi o mesmo no pequeno Nathan Betts.”
Riley ouviu as mães de ambas as crianças começarem a chorar. Ela odiava ter que trazer à tona aquelas memórias horríveis, mas não tinha outra hipótese.
“Não nos podemos esquecer do seu terror,” Disse Riley. “E não nos podemos esquecer que Mullins demonstrou pouca emoção durante o julgamento e nenhum sinal de arrependimento. O seu arrependimento veio muito, muito mais tarde – se é que é sincero.”
Riley respirou fundo.
“Quantos anos de vida foram retirados àqueles dois meninos se os juntarmos? Muitos, muito mais do que cem, parece-me. Ele foi sentenciado a trinta anos. Só cumpriu quinze. Não é suficiente. Nunca viverá o suficiente para compensar todos aqueles anos perdidos.”
Agora a voz de Riley tremia. Sabia que tinha que se controlar. Não podia desatar a chorar ou gritar de raiva.
“Será que chegou o momento de perdoar a Larry Mullins? Deixo isso ao critério das famílias das crianças. Esta audiência não tem nada a ver com perdão. Não é essa a questão essencial. A questão mais importante é o perigo que ele ainda constitui. Não podemos arriscar a probabilidade de mais crianças morrerem às suas mãos.”
Riley reparou que alguns membros do conselho olhavam para os seus relógios. Sentiu um ligeiro pânico. O conselho já tinha revisto dois outros casos naquela manhã e ainda tinham mais quatro até ao meio-dia. Estavam a ficar impacientes. Riley tinha que concluir imediatamente. Olhou-os diretamente nos olhos.
“Senhoras e senhores, imploro-vos que não concedam esta liberdade condicional.”
E ainda acrescentou, “Talvez mais alguém queira falar em nome do recluso.”
E sentou-se. As suas últimas palavras tinham uma dupla intenção. Ela sabia perfeitamente que ninguém falaria em defesa de Mullins. Apesar do seu “bom comportamento”, não tinha um único amigo ou pessoa que o defendesse no mundo. E Riley tinha a certeza de que não o merecia.
“Alguém deseja pronunciar-se?” Perguntou a Oficial.
“Só gostaria de acrescentar algumas palavras,” Disse uma voz vinda do fundo da sala.
Riley conhecia bem aquela voz.
Virou-se para trás e viu um homem baixo e entroncado em pé. Era Jake Crivaro – a última pessoa que esperava encontrar naquele dia. Riley estava simultaneamente surpreendida e deliciada.
Jake aproximou-se, disse o seu nome e dirigindo-se aos membros do conselho, disse, “Posso dizer-vos que este tipo é um grande manipulador. Não acreditem nele. Está a mentir. Não mostrou qualquer remorso quando o apanhámos. O que estão a ver é uma farsa.”
Jake dirigiu-se à mesa em que se encontrava Mullins.
“Aposto que não estavas à espera de me ver aqui hoje,” Disse com um tom de voz repleto de desprezo. “Não o perderia por nada deste mundo – seu grandessíssimo filho da puta assassino de crianças.”
A Oficial bateu com o martelo.
“Ordem!” Advertiu.
“Oh, peço desculpa,” Disse Jake de forma falsamente apologética. “Não era minha intenção insultar o nosso recluso modelo. Afinal de contas, ele agora está reabilitado. Ele é um filho da puta assassino de crianças arrependido.”
Jake limitou-se a ficar ali a olhar para Mullins. Riley estudou a expressão do homicida. Ela sabia perfeitamente que Jake estava a dar o seu máximo para provocar uma explosão da parte de Mullins. Mas o rosto do recluso permanecia impassível e calmo.
“Sr. Crivaro, sente-se, por favor,” Disse a Oficial. “O conselho já pode tomar uma decisão.”
Os membros do conselho, reuniram-se para partilhar as suas notas e pensamentos. Os seus sussurros eram animados e tensos. Entretanto, Riley nada mais podia fazer a não ser esperar.
Donald e Melanie Betts soluçavam. Darla Harter chorava e o marido Ross segurava-lhe a mão. Olhava de forma penetrante para Riley. O seu olhar era afiado como o gume de uma faca. O que pensaria ele do testemunho que ela acabara de dar? Consideraria ele que compensava o seu falhanço de há tantos anos atrás?
A sala estava quente e ela sentia a transpiração a escorrer-lhe no rosto. O seu coração batia ansiosamente.
Demorou apenas alguns minutos para os membros do conselho tomarem uma decisão. Um deles sussurrou qualquer coisa à Oficial. Ela voltou-se para todos os presentes.
“A liberdade condicional não é concedida,” Disse. “Vamos passar ao próximo caso.”
Riley ficou perplexa com a brusquidão da mulher, como se o caso não fosse mais do que uma multa de estacionamento. Mas de repente lembrou-se que o conselho estava com pressa de passar aos próximos casos que ainda tinham que analisar naquela manhã.
Riley levantou-se e ambos os casais se precipitaram na sua direção. Melanie Betts abraçou-se a Riley.
“Obrigada, obrigada, obrigada...” Não parava de dizer.
Os outros três juntaram-se à sua volta, sorrindo por entre as lágrimas e dizendo “obrigado” vezes sem conta.
Riley viu que Jake estava à parte no corredor. Logo que pode foi ao encontro dele.
“Jake!” Disse, dando-lhe um abraço. “Há quanto tempo!”
“Demasiado tempo,” Disse Jake com aquele sorriso de lado típico dele. “Vocês jovens nunca escrevem ou telefonam.”
Riley suspirou. Jake sempre a tratara como uma filha. E era bem verdade que ela não devia ter perdido o contacto com ele.
“Então, como tens passado?” Perguntou Riley.
“Tenho setenta e cinco anos,” Disse ele. “Tive que ser operado aos joelhos e à anca. Os meus olhos são fracos. Tenho um aparelho nos ouvidos e um pacemaker. E todos os meus amigos tirando tu já bateram a bota. Como achas que tenho passado?”
Riley sorriu. Tinha envelhecido muito desde a última vez que o vira. Mesmo assim, não parecia tão frágil como tentava aparentar. Tinha a certeza que era bem capaz de fazer o seu trabalho de antigamente caso fosse necessário.
“Bem, estou contente por teres conseguido dar o teu testemunho,” Disse Riley.
“Bem sabes que sou tão bem falante como aquele filho da mãe do Mullins.” Disse Jake.
“O teu depoimento ajudou imenso,” Disse Riley.
Jake encolheu os ombros. “Bem, gostava de o ter instigado mais. Adorava tê-lo visto perder as estribeiras à frente da comissão. Mas ele é frio e esperto. Talvez a prisão lhe tenha ensinado isso. De qualquer das formas, conseguimos uma boa decisão mesmo sem o fazer passar-se dos carretos. Talvez fique atrás das grades de vez.”
Durante alguns instantes Riley não disse nada. Jake olhou-a de forma curiosa.
“Há alguma coisa que eu não saiba?” Perguntou Jake.
“Temo que não seja assim tão simples,” Disse Riley. “Se o Mullins continuar a ter um bom comportamento na prisão, a libertação precoce poderá ser inevitável num outro ano. E nem eu, tu ou qualquer outra pessoa pode fazer o quer que seja para o impedir.”
“Meu Deus,” Disse Jake, parecendo tão zangado e amargo como no passado.
Riley sabia como é que ele se sentia. Era devastador imaginar Mullins em liberdade. A pequena vitória daquele dia parecia agora mais amarga do que doce.
“Bem, tenho que ir andando,” Disse Jake. “Foi bom voltar a ver-te.”
Foi com tristeza que Riley viu o seu antigo companheiro afastar-se. Ela compreendia porque é que ele não estava para alimentar sentimentos negativos. Não era a sua forma de estar. Riley fez questão de não se esquecer que tinha que entrar em contacto com ele em breve.
Riley também tentou ver o lado positivo do que tinha acabado de acontecer. Após quinze longos anos, os Bett e os Harter tinham-na finalmente perdoado. Mas Riley não ficou com a sensação de que merecia ser perdoada, não mais do que Larry Mullins.
Naquele preciso momento, Larry Mullins saía da sala algemado.
Ele virou-se para a enfrentar e sorriu abertamente, murmurando inaudivelmente as suas palavras malévolas.
“Até para o ano.”
CAPÍTULO SETE
Riley ia a caminho de casa no seu carro quando recebeu uma chamada de Bill. Colocou o telemóvel em alta voz.
“O que se passa?” Perguntou.
“Encontrámos outro corpo,” Disse Bill. “No Delaware.”
“Era Meara Keagan?” Perguntou Riley.
“Não. Ainda não identificámos a vítima. É uma situação muito semelhante à que aconteceu com as outras vítimas, mas muito pior.”
Riley anotou mentalmente uma série de factos relacionados com o caso. Meara Keagan ainda estava presa. O mais certo era o assassino manter cativas outras mulheres. Os homicídios continuariam, quantos é que ninguém podia saber.
A voz de Bill denotava muita agitação.
“Riley, este caso está a enlouquecer-me,” Disse. “Sei que não estou a pensar com clareza. A Lucy é fantástica, mas ainda está muito verde.”
Riley sabia bem demais como é que ele se estava a sentir. A ironia era evidente. Ali estava ela a dar o couro pelo caso Mullins. Entretanto, no Delaware, o Bill sentia como que se o seu fracasso passado tivesse custado a vida a uma terceira mulher.
Riley pensou de imediato em ir ter com Bill, apesar da viagem demorar pelo menos três horas.
“Já terminaste o que tinhas a fazer aí?” Perguntou Bill.
Riley tinha dito tanto a Bill como a Brent Meredith que naquele dia estaria no Maryland numa audiência de liberdade condicional.
“Sim,” Respondeu Riley.
“Ainda bem,” Disse Bill. “Mandei um helicóptero buscar-te.”
“Fizeste o quê?” Disse Riley exasperadamente.
“Há um aeroporto privado perto daí. Envio-te a localização. O helicóptero já deve lá estar. A bordo segue um cadete que te leva o carro.”
Sem dizer mais uma palavra, Bill desligou.
Riley conduziu silenciosamente durante alguns instantes. Ficara aliviada quando a audiência terminou. Queria estar em casa quando a filha regressasse da escola. Não houvera mais discussões no dia anterior, mas April não dissera grande coisa. Naquela manhã Riley tinha saído antes de April acordar.
Estivesse ou não pronta, já estava a trabalhar no novo caso. Teria que falar com April mais tarde.
Mas não teve que pensar muito mais para saber que estava certa. Deu meia volta e seguiu as indicações que Bill lhe enviara. A cura mais segura para o seu sentimento de fracasso, seria apanhar outro assassino e fazê-lo enfrentar a justiça – justiça verdadeira.
Chegara o momento.
*
Riley observou a rapariga morta no chão de madeira do coreto. A manhã estava luminosa e fresca. O coreto estava situado num mirante bem no centro da praça da cidade, cercado por árvores e relvados bem tratados.
A vítima era chocantemente semelhante às anteriores raparigas mortas nos meses precedentes. Estava deitada de barriga para cima e tão macilenta que parecia, sem exagero, estar mumificada. A roupa suja e rasgada que outrora lhe servira, apresentava-se agora grotescamente larga no seu corpo. Apresentava cicatrizes antigas e feridas mais recentes do que pareciam ser marcas de um chicote.
Parecia a Riley que teria cerca de dezassete anos, a idade das outras vítimas assassinadas.
Ou talvez não, Pensou.
Afinal, Meara Keagan tinha vinte e quatro. O assassino podia estar a alterar o seu Modus Operandi. Esta rapariga estava demasiado deteriorada para Riley conseguir determinar ao certo a sua idade.
Riley estava entre Bill e Lucy.
“Pareceu ter passado mais fome do que as outras duas,” Observou Bill. “Deve tê-la mantido cativa por muito mais tempo.”
As palavras de Bill denotavam uma profunda auto repreensão. Riley olhou para o parceiro. No seu rosto também era visível uma indizível amargura. Riley sabia em que é que Bill estava a pensar. Esta rapariga estaria de certeza viva e já prisioneira quando ele começara a investigar aquele caso e não descobrira nada. Bill sentia-se culpado pela sua morte.
Riley sabia que ele não se devia culpar. Mesmo assim, não sabia o que dizer para o fazer sentir-se melhor. Os seus próprios remorsos do caso Larry Mullins haviam-lhe deixado um sabor amargo na boca.
Riley virou-se para abarcar o lugar em que se encontravam. De onde estavam, a única estrutura completamente visível era o tribunal do outro lado da rua – um edifício de tijolo de grandes dimensões com uma torre de relógio. Redditch era uma encantadora e pequena cidade colonial. Riley não ficaria propriamente admirada se o corpo ali tivesse sido colocado a meio da noite sem que ninguém reparasse. A cidade já estaria a dormir há muito. A praça era delimitada por passeios pelo que, dessa forma, o assassino não deixara pegadas.
A polícia local tinha vedado a praça e mantinha os curiosos à distância. Mas Riley conseguia ver que alguns elementos da imprensa estavam reunidos junto às fitas amarelas que delimitavam o local onde o corpo havia sido encontrado.
Riley estava preocupada. Até àquele momento, a imprensa ainda não tinha feito a ligação entre os dois homicídios anteriores e o desaparecimento de Meara Keagan. Mas com este novo crime, o mais certo era alguém conseguir fazer essa ligação. O grande público saberia mais tarde ou mais cedo. E depois a investigação seria bem mais dificultosa.
Próximo deles estava o Chefe da polícia de Redditch, Aaron Pomeroy.
“Como e quando é que foi encontrado o corpo?” Perguntou-lhe Riley.
“Temos um varredor de rua que começa a trabalhar antes da alvorada. Foi ele que a encontrou.”
Pomeroy parecia estar muito abalado. Era um homem envelhecido e com excesso de peso. Riley pensou que mesmo numa pequena cidade como aquela, o mais provável era que um polícia da sua idade já tivesse lidado com um ou dois casos de homicídio. Mas talvez nunca tivesse lidado com nada tão perturbador.
A Agente Lucy Vargas ajoelhou-se junto ao cadáver e observou-o com atenção.
“O nosso assassino é alguém tremendamente confiante,” Disse Lucy.
“Como chegaste a essa conclusão?” Perguntou Riley.
“Bem, ele está a exibir os corpos,” Disse Lucy. “Metta Lunoe foi encontrada num campo aberto, Valerie Bruner ao lado de uma estrada. Apenas cerca de metade dos assassinos em série transportam as suas vítimas para fora dos locais onde o crime é perpetrado. Dos que o fazem, cerca de metade esconde-as. E a maior parte dos corpos que são deixados à vista são despejados. Este tipo de apresentação sugere que ele é bastante convencido.”
Riley ficou satisfeita pelo facto de Lucy ter estado atenta nas aulas. Mas sem saber bem porquê, julgava, por seu lado, que o objetivo deste assassino não estava minimamente relacionado com exibição de habilidades. Ele não estava a exibir-se ou a provocar as autoridades. O objetivo dele era outro e Riley ainda estava às cegas.
Contudo, tinha a certeza que estava relacionado com a forma como o corpo estava deitado. Era tão estranho como propositado. O braço esquerdo da rapariga estava esticado bem acima da cabeça. O braço direito também estava esticado mas colocado de um lado do corpo. Mesmo a cabeça, com o seu pescoço partido, tinha sido endireitada para ficar alinhada tão bem quanto possível com o resto do corpo.
Riley pensou nas fotos que vira das outras vítimas. Reparou que Lucy trazia consigo um tablet.
Pediu-lhe, “Lucy, podes mostrar-me as fotos dos outros cadáveres?”
Lucy demorou apenas alguns segundos a mostrá-las. Riley e Bill rodearam Lucy para ver as duas fotos.
Bill apontou e disse, “O corpo de Meta Lunoe estava exatamente como este. Braço esquerdo levantado, braço direito ao lado do corpo. O braço direito de Valerie Bruner estava levantado mas o braço esquerdo estava ao longo do corpo apontando para baixo.”
Riley abaixou-se, pegou no pulso do cadáver e tentou movê-lo. Todo o braço estava imóvel. O rigor mortis já se tinha instalado em pleno. Era necessário um médico-legista para determinar a hora exata da morte, embora Riley tivesse a certeza de que esta rapariga estava morta há pelo menos nove horas. E tal como as outras raparigas, tinha sido levada para aquele local pouco depois de ter sido morta.
Quanto mais Riley olhava, mais algo a incomodava. O assassino dera-se a tanto trabalho para dispor o corpo. Tinha carregado o corpo pela praça, subido seis degraus e tinha-o manipulado meticulosamente. Ainda assim, a sua posição final, parecia não fazer sentido.
O corpo não estava alinhado com nenhuma das paredes do mirante. Não estava alinhado com a abertura do mirante ou com o tribunal ou com o que quer que fosse que Riley estivesse a ver. Parecia estar colocado num ângulo casual.
Mas este tipo não faz nada de forma casual, Pensou.
Riley pressentiu que o assassino estava a tentar comunicar alguma coisa, mas não fazia a mínima ideia do que poderia ser.
“O que te parecem as poses?” Perguntou Riley a Lucy.
“Não sei,” Disse Lucy. “Não há muitos assassinos que disponham os corpos. É estranho.”
Ainda está mesmo muito verde, Fez questão de se recordar Riley.
Lucy parecia ainda não ter abarcado o facto de que eles eram precisamente chamados a resolver os casos mais estranhos. Era essa a sua rotina. Para agentes experientes como Riley e Bill, as coisas estranhas já se tinham há muito tornado parte da sua normalidade profissional.
Riley disse, “Lucy, vamos observar o mapa.”
Lucy mostrou o mapa onde era possível visionar os locais onde os outros dois corpos tinham sido encontrados.
“Os corpos foram colocados numa área bastante restrita,” Disse Lucy, apontando novamente. “Valerie Bruner foi encontrada a menos de dezasseis quilómetros do local onde Metta Lunoe foi descoberta. E esta está a menos de dezasseis quilómetros do local onde Valerie Bruner foi encontrada.”
Riley sabia que Lucy estava certa. No entanto, Meara Keagan tinha desaparecido a alguns quilómetros para norte em Westree.
“Alguém vê alguma ligação entre os locais?” Perguntou Riley a Bill e a Lucy.
“Nem por isso,” Disse Lucy. “O corpo de Metta Lunoe estava num campo à saída de Mowbray. O de Valerie Bruner na berma de uma autoestrada. E agora este está no meio de uma pequena cidade. Quase parece que o assassino está à procura de lugares que não têm nada em comum.”
Naquele preciso momento, Riley ouviu alguém a gritar no meio dos curiosos.
“Eu sei quem a matou! Eu sei quem a matou!”
Riley, Bill e Lucy viraram-se. Um homem jovem acenava e gritava para lá da fita amarela da área reservada às equipas de investigação.
“Eu sei quem a matou!” Gritou o homem novamente.
CAPÍTULO OITO
Riley olhou atentamente para o homem que gritava. Apercebeu-se que várias pessoas à sua volta faziam gestos de concordância com a cabeça.
“Eu sei quem a matou! Todos nós sabemos quem a matou!”
“O Josh tem razão,” Disse uma mulher que se encontrava ao seu lado. “Só pode ter sido o Dennis.”
“Ele é estranho,” Disse outro homem. “Aquele tipo foi sempre uma bomba relógio.”
Bill e Lucy apressaram-se para o local onde o homem gritava, mas Riley permaneceu imóvel. Chamou um dos polícias que se encontravam fora da zona restrita.
“Traga-mo cá,” Disse, apontando na direção do homem que gritava.
Riley sabia que era importante separá-lo do grupo. Se começassem a correr histórias, a verdade poderia tornar-se impossível de alcançar. Se é que havia alguma verdade no que aquelas pessoas diziam.
Para além disso, os jornalistas começavam a rodeá-lo. Não era plausível Riley interrogar o homem mesmo debaixo do nariz da imprensa.
O polícia ergueu a fita amarela e conduziu o homem para junto de Riley.
Não parava de gritar, “Todos sabemos quem a matou! Todos sabemos quem a matou!”
“Acalme-se,” Pediu-lhe Riley, levando-o pelo braço para um local onde pudessem falar tranquilamente sem serem ouvidos.
“Perguntem a qualquer pessoa sobe o Dennis,” Dizia o homem num grande estado de agitação. “É solitário. É estranho. Assusta as raparigas. Aborrece as mulheres.”
Riley pegou no seu bloco de notas. Bill fez o mesmo. Viu o intenso interesse no olhar de Bill. Mas também sabia que aquele depoimento devia ser encarado com muito cuidado. Mal sabiam o que quer que fosse. Para além disso, aquele homem estava tão agitado que Riley estava receosa do seu julgamento, Parecia ser tudo menos neutro.
“Qual é o seu nome completo?” Perguntou Riley.
“Dennis Vaughn,” Respondeu o homem.
“Continua a falar com ele,” Pediu Riley a Bill.
Bill acenou e continuou a tirar notas. Riley regressou ao mirante onde o chefe da polícia Aaron Pomeroy ainda se encontrava junto do corpo.
“Chefe Pomeroy, o que me pode dizer sobre Dennis Vaughn?”
Riley percebeu pela sua expressão que o nome lhe era mais do que familiar.
“O que quer saber a seu respeito?” Perguntou.
“Pensa que pode ser um provável suspeito?”
Pomeroy coçou a cabeça. “Agora que o refere, talvez. Pelo menos talvez seja alguém com quem valerá a pena falar.”
“Porquê?”
“Bem, temos tido imensos problemas com ele ao longo dos anos. Atentado ao pudor, comportamento obsceno, esse tipo de coisa. Há alguns anos atrás, espeitava pelas janelas e passou algum tempo no Centro Psiquiátrico de Delaware. No ano passado, ficou obcecado com uma cheerleader do secundário, escreveu-lhe cartas e perseguiu-a. A família da rapariga obteve uma ordem do tribunal, mas ele ignorou-a. Por esse motivo, esteve preso seis meses.”
“Quando é que foi libertado?” Perguntou Riley.
“Em Fevereiro.”
Riley estava a ficar cada vez mais interessada. Dennis Vaughn tinha saído da prisão pouco antes dos homicídios terem começado. Seria uma coincidência?
“As raparigas e mulheres da terra começam a queixar-se,” Disse Pomeroy. Os boatos dizem que anda a tirar-lhes fotos. Ainda não é o suficiente para o prendermos.”
“Que mais me pode dizer a seu respeito?” Perguntou Riley.
Pomeroy encolheu os ombros. “Bem, ele é uma espécie de vagabundo. Deve ter uns trinta anos e nunca se conseguiu aguentar num trabalho. Não liga nenhuma à família que tem na cidade – tias, tios, avós. Sei que ultimamente anda muito soturno. Culpa toda a cidade pelo facto de ter estado na prisão. Está sempre a dizer às pessoas, ‘um destes dias,’”
“Um destes dias o quê?” Perguntou Riley.
“Ninguém sabe. As pessoas começaram a chamar-lhe bomba relógio. Não sabem o que poderá fazer a seguir. Mas que saibamos, ele nunca foi verdadeiramente violento.”
A mente de Riley andava a mil, tentando chegar a alguma conclusão quanto àquela nova possível pista.
Entretanto, Bill e Lucy tinham terminado a conversa com o homem e caminhavam na direção de Riley e Pomeroy.
O rosto de Bill estava luminoso e confiante – uma súbita mudança face à sua recente disposição sombria.
“Dennis Vaughn só pode ser o nosso assassino,” Disse a Riley. “Tudo o que aquele homem nos contou se enquadra perfeitamente no perfil.”
Riley não disse nada. Parecia provável, mas não tiraria conclusões precipitadas.
Além disso, a certeza na voz de Bill deixou-a nervosa. Desde que ali chegara naquela manhã, sentia que Bill estava na corda bamba, prestes a resvalar nalgum tipo de comportamento errático. Era compreensível, dados os seus sentimentos pessoais quanto ao caso, sobretudo porque se considerava culpado de não o ter resolvido. Mas também se podia tornar num problema sério. Riley precisava do Bill sólido e equilibrado a que se habituara.
Virou-se para Pomeroy.
“Posso dizer-nos onde é que o podemos encontrar?”
“Claro,” Disse Pomeroy, apontando. “Vão sempre a direito na rua principal até chegarem a Brattleboro. Virem à esquerda e a casa dele é a terceira à direita.”
Riley pediu a Lucy, “Fica aqui à espera da equipa do médico-legista. Podem levar o corpo. Temos fotografias mais do que suficientes.”
Lucy assentiu.
Bill e Riley caminharam na direção da fita amarela onde os jornalistas esperavam por eles com câmaras e microfones apontados.
“O FBI tem algo a declarar?” Perguntou um deles.
“Ainda não,” Disse Riley.
Ela e Bill passaram debaixo da fita e abriram caminho entre os jornalistas e curiosos.
Outra jornalista gritou, “Este homicídio está de alguma forma relacionado com as mortes de Metta Lunoe e Valerie Bruner?”
“Ou com o desaparecimento de Meara Keagan?” Perguntou outra.
Riley irritou-se com aquelas perguntas. Não faltaria muito até que a notícia de que havia um assassino em série à solta no Delaware se espalhasse.
“Sem comentários,” Disse aos jornalistas. Depois acrescentou, “Se continuam a seguir-nos, prendo-vos por interferirem com uma investigação. Chamamos a isso, obstrução à justiça.”
Os jornalistas afastaram-se. Riley e Bill furaram a pequena multidão e continuaram o seu caminho. Riley sabia que não teriam muito tempo antes que outros jornalistas mais agressivos acorressem à cena. O mais certo era terem que lidar com muita atenção mediática.
A caminhada era curta até casa de Dennis Vaughn. Chegaram a Brattleboro depois de atravessarem três quarteirões e viraram à esquerda.
A casa de Vaughn era uma pequena ruína delapidada com um telhado de zinco muito degradado, tinta branca a descascar e com um alpendre fronteiro de aspeto desleixado. O relvado era um matagal de ervas daninhas e, estacionado na entrada, encontrava-se um Plymouth Valiant de aparência decrépita. Não havia dúvidas de que o veículo era suficientemente grande para transportar cadáveres.
Bill e Riley dirigiram-se ao alpendre e bateram à porta.
“Qué que querem?” Proferiu uma voz do interior da casa.
“Estamos a falar com Dennis Vaughn?” Perguntou Bill.
“Talvez. Porquê?”
Riley disse, “Somos do FBI e queremos falar consigo.”
A porta da frente abriu-se. Dennis Vaughn estava na soleira, renitente em deixá-los entrar. Vaughn era um jovem de aspeto desagradável, com excesso de peso e uma barba desgrenhada. A camisola interior rasgada e cheia de nódoas não conseguia esconder o excesso de pelos corporais.
“De que é que se trata?” Perguntou Vaughn com um tom de voz petulante e trémulo. “Estão aqui para me prender ou quê?”
“Só lhe queremos fazer algumas perguntas,” Disse Riley, mostrando o distintivo. “Podemos entrar?”
“Porque é que vos deixaria entrar?” Perguntou Vaughn.
“Porque é que nos deixaria entrar?” Perguntou Riley. “Não tem nada a esconder, pois não?”
“Também podemos regressar com um mandado,” Acrescentou Bill.
Vaughn abanou a cabeça e rosnou, deixando Bill e Riley entrar.
A casa era ainda mais decadente no seu interior. O papel de parede estava a descascar e havia tábuas de madeira partidas no soalho. Quase não havia mobília, só um par de cadeiras maltratadas e um sofá com o enchimento a saltar para fora. Pratos e tigelas estavam espalhados um pouco por todo o lado, alguns repletos de comida bolorenta. O ar estava repleto de odores desagradáveis.
O que mais chamou a atenção de Riley foram as inúmeras fotografias coladas ao acaso nas paredes. Todas elas de mulheres e raparigas em poses casuais insuspeitas.
Vaughn reparou no interesse de Riley pelas fotos.
“É o meu hobby,” Disse. “Tem algum mal?”
Riley não respondeu e Bill permaneceu calado. Riley duvidava de que houvesse algo ilegal nas fotos em si. Pareciam ter sido todas tiradas no exterior em locais públicos à luz do dia e nenhuma era propriamente indecente. Ainda assim, o mero ato de tirar fotografias a raparigas e mulheres sem o seu conhecimento ou consentimento, pareceu a Riley bastante assustador.
Vaughn sentou-se numa cadeira de madeira que chiava sob o seu peso.
“Estão aqui para me acusar de alguma coisa,” Disse. “Por isso, porque é que não se despacham?”
Riley sentou-se noutra cadeira raquítica à frente de Vaughn. Bill ficou ao lado de Riley.
“Pensa que estamos aqui para o acusar de quê?”
Tratava-se de uma técnica de interrogatório que lhe fora muito útil no passado. Por vezes, o melhor era não começar com perguntas diretas acerca de um caso. Por vezes, o melhor era deixar um potencial suspeito falar até se enterrar nas suas próprias palavras.
Vaughn encolheu os ombros.
“Uma coisa ou outra,” Disse. “Há sempre alguma coisa. As pessoas interpretam sempre tudo mal.”
“O que é que interpretam mal?” Perguntou Riley.
“Eu gosto de raparigas, ok?” Disse. “Que homem da minha idade não gosta? Porque é que as pessoas pensam que tudo o que faço é errado só porque sou eu a fazê-lo?”
Olhou à sua volta para as diferentes fotografias, como se à espera que dissessem algo para o defender. Riley esperou que ele continuasse a falar. Esperava que Bill fizesse o mesmo, mas a impaciência do seu parceiro era tensa e visível.
“Eu tento ser amigável com raparigas,” Disse. “Que culpa tenho eu se não me compreendem?”
A sua voz era lenta, talvez até um pouco fraca. E no entanto, Riley tinha a certeza de que ele não estava bêbado nem drogado. Talvez fosse mentalmente lento ou tivesse algum problema neurológico.
“Porque pensa que as pessoas o tratam de forma diferente?” Perguntou Riley, tentando soar compreensiva.
“Como posso saber?” Disse Vaughn, encolhendo novamente os ombros.
De repente, num tom de voz sombrio e quase inaudível, acrescentou...
“Um destes dias.”
“’Um destes dias’ o quê?” Perguntou Riley.
Mas Vaughn encolheu novamente os ombros. “Nada. Não quero dizer nada. Mas um destes dias. É só o que digo.”
Era um incentivo para Riley o facto da sua conversa se estar a tornar absurda. Tal geralmente ocorria antes de um suspeito se atraiçoar a si próprio.
Mas antes de Vaughn dizer mais uma palavra que fosse, Bill dirigiu-se a ele ameaçadoramente.
“O que é que sabe sobre os homicídios de Metta Lunoe e Valerie Bruner?”
“Não as conheço,” Respondeu Vaughn.
Bill debruçou-se ainda mais sobre Vaughn e trespassou-o com o seu olhar. Agora Riley estava a ficar preocupada. Queria poder dizer a Bill para parar com aquilo, mas interferir naquele momento, podia piorar tudo.
“E Meara Keagan?” Perguntou Bill.
“Também não a conheço.”
Agora Bill falava mais alto.
“Onde estava na última quinta-feira à noite?”
“Não sei.”
“Quer dizer que não estava em casa?”
Vaughn suava com o nervosismo. Os seus olhos estavam dilatados de medo.
“Talvez não estivesse. Não sei. Às vezes saio.”
“Onde vai?”
“Ando por aí. Gosto de sair da cidade. Odeio esta cidade. Gostava de poder viver noutro sítio.”
Bill cuspiu a sua próxima pergunta no rosto de Vaughn.
“E por onde é que andou na passada quinta-feira?”
“Não sei. Nem sei se andava por aí nessa noite.”
“Está a mentir,” Gritou Bill. “Estava a conduzir em Westree, não estava? Encontrou uma bela mulher por lá, não foi?”
Riley saltou do seu lugar. Bill estava claramente descontrolado. Tinha que o parar.
“Bill,” Disse calmamente, agarrando-o pelo ombro.
Bill afastou a sua mão. Empurrou Vaughn na cadeira. Já quase a partir, a cadeira acabou por se quebrar. Vaughn ficou caído no chão durante alguns instantes. Depois Bill agarrou-o pela camisola interior e empurrou-o contra uma parede.
“Bill, para com isso,” Gritou Riley.
Bill empurrava Vaughn contra a parede, Riley começou a temer que Bill sacasse a qualquer momento da arma.
“Prova-o!” Rosnou Bill.
Riley conseguiu, por fim, colocar-se entre Bill e Vaughn. Empurrou Bill com força.
“Chega!” Gritou. “Vamos embora!”
Bill olhava para ela com olhos cheios de raiva.
Riley virou-se para Vaughn e disse, “Peço desculpa. O meu parceiro pede desculpa. Vamos embora.”
Sem esperar que Vaughn proferisse uma palavra, Riley empurrou Bill na direção da porta e para o alpendre.
“Que raio se passa contigo?” Perguntou Riley.
“Que raio se passa contigo? Deixa-me voltar lá para dentro. Temo-lo na mão. Sei que sim. Vamos obrigá-lo a mostrar-nos a carta de condução, saber qual é o nome do meio.”
“Não,” Disse Riley. Não o vamos obrigar a fazer nada. Raios, Bill, podes perder o teu distintivo por agires dessa forma. Devias saber isso melhor do que ninguém.”
Bill parecia não acreditar no que estava a ouvir. “Porquê?” Exigiu saber. “Temo-lo na mão. Podemos obter uma confissão.”
Riley só tinha vontade de abanar Bill.
“Não sabemos isso. Talvez seja o nosso assassino, mas não me parece.”
“Porque não?”
“Em primeiro lugar, aquele carro que ele tem é facilmente reconhecido e lembrado.”
Bill pensou por um momento.
“Então usou um carro diferente.”
“Talvez, mas não me parece que seja suficientemente organizado para levar a cabo tantos homicídios sem ser descoberto.”
“Pode ser só fingimento.”
Riley começava a impacientar-se com a resistência de Bill.
“Bill, pensa na forma cuidadosa como estes corpos foram dispostos. Esticados de forma tão impecável. Braços colocados em posições tão exatas.”
“Ele podia ter feito isso.”
Riley já não aguentava mais. Bill estava a ser de uma teimosia atroz.
“Não me parece,” Disse Riley. “Pensa na casa dele. Nada está arrumado de forma impecável, nem as fotografias. Nada parece intencional. Absolutamente nada.”
“Exceto o facto de que pretende matar,” Disse Bill. Ainda estava zangado, mas Riley percebeu que se começava a acalmar.
“Bill,” Disse. “Algo move este assassino, alguma lógica que o leva a matar estas mulheres. Até agora não nos é possível discernir quais os seus motivos, mas é isso que quero descobrir.”
Nem Riley, nem Bill proferiram uma palavra durante o curto caminho de regresso. Quando avistaram a praça da cidade, Riley viu que o carro do médico-legista já havia chegado e o corpo estava a ser levado.
Riley ficou abalada. O interrogatório tinha sido um desastre e ela não fazia a mínima ideia se Dennis Vaughn era o seu suspeito ou não.
A preocupação de Riley agora roçava o pânico.
Se não posso contar com o Bill, com quem posso contar?
CAPITULO NOVE
Riley estava ansiosa em afastar Bill de Redditch sem que causasse mais problemas. Felizmente, não tivera dificuldade em encontrar uma boa desculpa para irem para outro local. Ela queria sempre visitar a cena dos crimes pessoalmente, mesmo muito tempo depois dos corpos das vítimas serem retirados. Muitos dos seus melhores palpites eram conseguidos nessas circunstâncias. Não raro, até conseguia penetrar na mente do assassino.
Dessa forma, apenas uma hora depois daquele interrogatório desastroso, Bill estava a levá-la a visitar os lugares onde os dois primeiros corpos tinham sido encontrados. Bill estava atento à estrada, limitando-se a conduzir silenciosamente.
Durante a viagem, Riley tentara algumas vezes falar sobre o que tinha acontecido, mas ele simplesmente não falava, obviamente zangado por Riley o ter afastado de Dennis Vaughn.
Riley não fazia ideia do que o parceiro julgava ter conseguido ao aterrorizar Vaughn.
Riley tinha a certeza de que Dennis Vaughn não se queixaria à polícia da agressão que sofrera. Era simplesmente demasiado desprezado em Redditch para alguém sequer acreditar nele. Mas isso não fazia com que Riley se sentisse melhor com o que tinha acabado de acontecer.
Saíam de Redditch para leste, percorrendo estradas rurais. Quando alcançaram um cruzamento de autoestrada, Bill finalmente abriu a boca.
Disse, “As gentes daqui chamam-lhe de ‘Autoestrada das Seis Horas,’ porque vai de norte a sul.”
Riley sentiu-se aliviada por ele finalmente ter dito alguma coisa.
Bill virou para a autoestrada. Rapidamente abrandou e encostou o carro na berma. Ele e Riley saíram do carro, e caminharam para um lugar específico.
Bill apontou para o chão e disse, “Foi aqui que o corpo de Valerie Bruner apareceu.”
Riley ficou impressionada com a sua precisão. Aquele trecho de autoestrada não tinha nada que o distinguisse de tantos outros. Bill devia ter memorizado cada arbusto ou árvore que ali se encontravam. Tinha observado cada detalhe de forma obsessiva.
E Riley não estava surpreendida. Bill já lá tinha estado quando o cadáver de Valerie Bruner fora encontrado em Junho. Riley sabia que a cena ainda estava muito nítida na sua mente.
Ao estudar o local, Riley lembrou-se da fotografia que Lucy lhe havia mostrado. O corpo de Valerie Bruner estava a uma distância de dois metros do asfalto, os membros dispostos na posição que sugeria um D em código de semáforo.
“O assassino estendeu-a de forma exatamente paralela ao asfalto,” Disse Riley. “O corpo que vimos em Redditch não estava assim. Não estava alinhado com nada em particular.”
“E depois?” Murmurou Bill quase inaudivelmente.
Riley caminhou de um lado para o outro, examinando o local com atenção. De repente, parou e fechou os olhos, tentando obter algum resquício da presença do assassino. Respirou fundo algumas vezes. Não serviu de nada. Ali, reinava apenas um imenso vazio.
“Vamos embora,” Disse a Bill.
Regressaram ao carro. Bill conduziu pelo local por onde tinham vindo, depois virou para leste na direção de uma estrada municipal. Continuou a reinar o silêncio entre ambos.
“Bill, se não podemos sequer falar sobre o caso, então temos um problema,” Atirou Riley.
“Quem disse que não podemos falar acerca do caso?” Perguntou Bill. “Não tenho nenhum problema em falar sobre o caso. Só me parece é que ainda não há muito para dizer.”
Riley suspirou. E pensou quanto tempo mais duraria a postura defensiva de Bill. Ela e Bill já tinham divergido no passado, mas era muito raro que a fricção entre eles interferisse no seu trabalho.
À medida que o carro se aproximava da Costa Atlântica, as coloridas cores das folhas de outono davam lugar a paisagens mais estéreis – arenosas com ilhas de ervas altas aqui e ali. Um pouco mais à frente, Riley viu umas estruturas altas estranhas que lhe pareceram gigantescos esqueletos de algum monstro há muito extinto. Não conseguiu evitar pensar se as dunas do Delaware esconderiam outros esqueletos, vestígios de crimes cometidos a apenas alguns quilómetros de distância do Oceano Atlântico.
Ela sabia que aquelas estruturas eram apenas uma roda-gigante e uma montanha russa, parte do parque de diversões da cidade turística de Mowbray.
Quando alcançaram as franjas da cidade, Bill encostou o carro e parou.
“É aqui,” Disse. “Aqui na areia.”
Ambos saíram do carro e caminharam ao longo de uma ampla extensão de areia. Uma sugestão de música derivava sinistramente do parque de diversões até eles. Seguiram por uma vedação perpendicular à autoestrada. Não muito longe, viam-se algumas casas do outro lado da vedação. Após cerca de noventa metros, pararam de caminhar. Bill apontou para um lenço esfarrapado atado a uma vedação.
“Isto marca o local,” Disse.
O olhar de Bill ensombreceu ao olhar para o local no chão. Riley podia imaginar o que estava a pensar e a sentir. Apesar de ainda não estar no caso quando o corpo de Metta Lunoe ali fora encontrado em Maio, estava lá desde então. Riley sabia que ele tinha analisado o local com o máximo cuidado. Aquele local devia assombrá-lo há meses.
Riley fechou os olhos e respirou longa e profundamente, tentando detetar a presença do assassino. O som da música que o vento trazia tornou tudo mais fácil desta vez. Não havia dúvida de que o assassino tinha ouvido os mesmos sons na noite em que trouxera o corpo para aquele local.
Ela conseguia imaginá-lo a estacionar o carro onde Bill parara o deles. Abriu a mala, pegou no corpo macilento de Metta Lunoe, carregou-o e depois percorreu o caminho até àquele local na areia.
Haveria luar naquela noite? Pensou Riley.
Deveria ter verificado antes. Mas mesmo que houvesse luar, de certeza que reria trazido uma lanterna. Riley imaginou as estranhas sombras que a vedação deve ter refletido. Tudo parecia muito nítido.
E a música – a canção era antiga e familiar, e o mais certo era ele conhecê-la. Será que a cantarolou ou assobiou enquanto levava a cabo a sua macabra tarefa? Não. Riley tinha a certeza que não. Ele não se regozijava nem brincava como outros assassinos que perseguira. Ele levava a sua missão tão a sério como Bill a sua.
Mas havia casas por perto, do outro lado da vedação. À noite, as luzes das casas estariam acesas. Alguém que estivesse sentado nas traseiras de uma dessas casas até poderia ter visto o que ele estava a fazer. Isso preocupava-o? Devia preocupá-lo, mas não o suficiente para o fazer procurar outro local onde estivesse menos exposto. Ele tinha as suas razões para estar ali. E não iria divergir do plano gizado.
E tinha a exata posição do corpo inscrita na sua cabeça – braço direito erguido, braço esquerdo do lado do corpo.
Mas quando Riley imaginou o assassino a deitar o corpo no chão, aconteceu algo estranho. Ele devia ter tido o impulso de a dispor em concordância com o que os rodeava – sobretudo a vedação. Só pareceria natural deitá-la paralela à vedação ou talvez perpendicular a ela.
Mas não o fizera. Riley lembrava-se das fotos. Os pés estavam quase ao lado da vedação. A cabeça estava ligeiramente desviada da vedação. Um tufo de ervas espreitava por detrás da cabeça, tornando a posição ainda mais estranha.
Porquê? Pensou Riley.
De forma instintiva, começou a sentir uma ideia tomar forma.
A ideia não foi dele, Pensou.
Não sabia porquê, mas tinha a certeza de que assim era. Nada daquilo era ideia dele. Nem as poses meticulosas, nem os ângulos estranhos, nem talvez os próprios homicídios.
Ele seguia ordens.
Os olhos de Riley abriram-se. Viu que Bill a observava.
“Conseguiste apanhar alguma coisa?” Perguntou Bill.
Riley sabia que Bill já há muito se tinha habituado às suas meditações nas cenas de crime. Ele compreendia o quão produtivas às vezes se podiam revelar.
Riley perguntou, “Tens a certeza de que só temos um assassino? Quero dizer, um homem a atuar sozinho?”
Bill pensou por um instante.
“Certeza absoluta,” Disse. “Só deixou pegadas aqui. A areia deslizou durante a noite e então não conseguimos chegar a nenhuma conclusão. Mesmo assim, havia apenas um par de pegadas, a vir e a regressar. Porquê?”
Riley não respondeu. Talvez estivesse errada. Era apenas um palpite no final de contas. Nada que pudesse provar. Mesmo assim, a sensação tinha sido muito poderosa.
“Riley, peço desculpa,” Disse Bill, de repente.
Riley sentiu-se aliviada. Já não era sem tempo de Bill reconhecer o seu lapso.
“Eu estava errado,” Continuou. “Não sei o que é que me deu.”
“Eu sei o que é que te deu,” Disse Riley. “Tu sentes uma enorme necessidade de resolver este caso. Tu sentes que deves isso às vítimas – tanto às que já estão mortas como às que ainda não estão. Tu sentes que as desiludiste. Eu compreendo. Já passei por isso.”
Bill anuiu.
Riley disse, “Mas Bill, se nos enganarmos, se apenas pensarmos que o resolvemos e apanhamos o homem errado, será pior do que não fazer nada. Mais mulheres poderão morrer. Sabemos que ele tem pelo menos mais uma presa. Temos que fazer as coisas bem feitas. E temos que as fazer segundo as regras.”
“Eu sei,” Concordou Bill. “Não volta a acontecer.”
Riley esperava que não. Nada mais havia a dizer sobre o assunto naquele momento.
“Vamos,” Disse Riley. “Já vi que chegue aqui. Vamos voltar a Redditch.”
Voltaram para o carro. Riley pegou no telemóvel e viu as mensagens que enviara para April durante todo o dia. Ainda estavam apenas marcadas como “entregues” e não como “lidas”.
Ficou preocupada. Ligou para casa e Gabriela atendeu.
“Olá Gabriela, só para saber como estão as coisas. Está tudo bem?”
Gabriela estava agitada.
“Señora Riley, ainda bem que ligou! Ia mesmo ligar-lhe. Recebi uma chamada da escola da April. Não foi às aulas e ainda não regressou. Estou a tentar ligar-lhe, mas não me atende. Não sei onde está ou o que é que está a fazer. E era suposto ter uma consulta com a terapeuta esta tarde depois das aulas.”
“Un momentito, Gabriela,” Disse Riley.
Tapou o telefone com a mão e virou-se para Bill.
“O helicóptero que me trouxe a Redditch ainda cá está?” Perguntou.
Bill anuiu. “Claro. Porquê?”
Riley não respondeu. Começou novamente a falar com Gabriela.
“Não se preocupe, Gabriela. Vou já para casa.”
Riley desesperou. Não sabia se devia estar furiosa ou amedrontada. Mas sabia que tinha que ir para casa para descobrir o que é que se passava com April.
Mas o melhor é não me demorar por lá, Pensou.
A sua mente estava repleta de terríveis imagens daquilo que o assassino poderia fazer durante a sua ausência.
CAPÍTULO DEZ
Quando Riley abriu a porta de casa, foi de imediato cumprimentada pelo rosto ansioso de Gabriela. E soube logo ali que a situação era preocupante. A mulher Guatemalteca já tinha passado por muitas dificuldades ao longo da vida e não se assustava facilmente. Riley estava satisfeita por ter regressado a Quantico no helicóptero do FBI e ido logo para casa.
“A April está cá?” Perguntou Riley.
“Sí,” Respondeu Gabriela. “Está lá em cima no quarto.”
Riley entrou e pousou as malas.
“Foi à consulta?” Perguntou Riley.
“Não,” Disse Gabriela. “Alguém do consultório da Dra. ligou a querer saber onde é que ela estava.” Subitamente, os olhos de Gabriela dilataram-se. “Señora Riley,” a April não fala comigo. Não sei o que é que se passa.”
Isso realmente preocupou Riley. April adorava Gabriela e raramente não lhe contava tudo. “Vou ver o que consigo descobrir,” Disse, dando uma palmadinha no ombro de Gabriela e dirigindo-se para as escadas.
Ao começar a subir as escadas, Riley ouviu música a vir do quarto de April. Bateu à porta.
Ouviu April dizer, “Entra.”
Riley entrou. April estava sentada na cama com o telemóvel na mão. Sorriu a Riley.
“Olá mãe!” Disse em voz mais alta que a música para se fazer ouvir. “Não te esperava tão cedo! Já resolveste o caso?”
Riley conhecia aquela tática adolescente bem demais. April estava a tentar agir como se tudo estivesse bem. Como se aquele fosse simplesmente mais um dia normal.
“Desliga a música,” Disse Riley.
April desligou e Riley sentou-se na cama junto dela.
“A Gabriela disse que saíste mais cedo da escola,” Principiou Riley.
Agora April tentava parecer surpreendida.
“Uau, é por causa disso que vieste mais cedo para casa?” Perguntou. “Ouve, foi apenas um mal-entendido. Fui até à biblioteca estudar. No consultório baralharam-se e ligaram à Gabriela. Eu expliquei-lhe tudo. Pensei que tivesse compreendido. Não fazia ideia de que te ia ligar. Em que é que ela estava a pensar, não é?”
April estava a mentir e Riley sabia-o. Mas já tinha aprendido com outros confrontos ocorridos no passado que não o deveria dizer diretamente. E ficou ali sentada.
“Não vais dizer nada?” Perguntou April, soando agora mais defensiva.
Riley continuava a não dizer nada.
“Meu Deus, não acreditas em mim, pois não?” Disse April, tentando parecer indignada. “O que posso fazer se não acreditas em nada do que digo? O que posso fazer se não confias em mim?”
Riley reconheceu de imediato um dos típicos truques de manipulação de April. Mas desta vez, Riley não ia cair no engodo.
“Devo acreditar em ti, April?” Perguntou Riley calmamente. “Devo confiar em ti? Posso confiar em ti?”
Riley apercebeu-se pela expressão de April que acabara de abrir uma brecha nas suas defesas. April saltou da cama, dirigiu-se para a porta e abriu-a.
“Se nem sequer confias em mim, não vale a pena falar,” Disse April com a voz tremente de raiva. “Sai. Sai e deixa-me em paz, ok?”
Riley não falou e não se mexeu. Manteve os olhos fixos nos de April. De repente, deu conta que estava a usar um dos métodos de interrogatório – a tática que tentara aplicar a Dennis Vaughn antes de Bill ter dado cabo de tudo.
Deixa-a falar, Pensou Riley. Deixa-a tropeçar em si própria.
Parecia-lhe estranho tratar a filha da mesma forma que tratara um suspeito de homicídio. Mas sentia que estava a resultar.
Ainda na porta, April desatou a chorar.
“Deixa-me em paz! Por favor!”
E ali continuou de pé junto à porta a soluçar. Riley compreendeu que April estava mais a chorar de culpa e vergonha do que de raiva.
Riley deu uma palmada no colchão e disse tranquilamente, “Anda cá e senta-te.”
April ficou um momento ainda imóvel, imersa nas lágrimas que lhe enevoavam o olhar. Depois sentou-se na cama com tanta força que toda ela estremeceu. Riley deu-lhe um lenço.
“Estou a trabalhar num caso no Delaware, April,” Disse Riley, soando mais calma do que se sentia. “Há mulheres a serem mortas. Mas quando soube pela Gabriela que não tinhas ido à escola, vim logo para casa. Vim de helicóptero. Preocupo-me muito contigo.”
April sufocou um soluço.
“Tudo correrá muito melhor se me contares a verdade,” Disse Riley. Assim que estas palavras lhe saíram da boca, apercebeu-se de que as proferira textualmente a inúmeros suspeitos. Seria possível que tivesse assimilado qualidades parentais dos muitos anos de experiência enquanto agente do FBI? Parecia amargamente irónico.
“Faltei à escola mãe,” Disse finalmente April. “Peço desculpa, não sei no que estava a pensar. Estava aborrecida.”
O coração de Riley derreteu-se um pouco. Lembrou-se de como era. Também ela tinha faltado à escola quando era adolescente. Vivia com uma tia e tio nesses anos. Tinha-os enlouquecido com o seu comportamento errático. Estaria a ser hipócrita ao esperar algo de diferente da sua própria filha?
Não, Disse a si própria. Estou a ser mãe, é tudo.
“Estavas com o Joel?” Perguntou Riley.
“Acho que sim,” Disse April.
Riley suspirou. April tinha utilizado aquela mesma frase evasiva que ela própria usava quando fora adolescente – “Acho que sim.” Riley não gostava que April tivesse um namorado que a incentivasse a ter um mau comportamento. Pelo menos, April admitia-o.
“Onde foram?” Perguntou Riley.
“Ao centro comercial,” Disse April.
Uma ligeira nuance na voz de April fez com que Riley pensasse se ela estaria realmente a dizer a verdade.
“E a tua consulta com a Dra. Sloat?” Perguntou Riley.
“O que é que tem?”
“A Gabriela diz que não foste.”
April esfregou os olhos e aclarou a garganta.
“Peço desculpa,” Disse. “Devia ter ligado e cancelado.”
“Eu não quero que canceles as consultas com a terapeuta.”
April abanou a cabeça.
“Mãe, a Dra. Sloat é ótima e eu gosto muito dela, mas já não preciso de ajuda. A sério que não.”
Riley deu uma palmadinha na mão da filha.
“Eu decido quando já não precisares dela. E vai tudo depender do que a Dra. Sloat disser. Promete-me que vais à próxima consulta.”
“Prometo,” Disse April.
“E promete-me que trazes cá o Joel para eu o conhecer,” Disse Riley.
“Prometo.”
Riley não estava certa se aquelas promessas teriam algum significado, mas parecia-lhe o máximo que podia fazer naquele momento. Levantou-se.
“Só mais umas coisinhas,” Disse Riley. “A Gabriela disse-me que não querias falar com ela. Não quero que isso volte a acontecer. A Gabriela talvez seja a melhor coisa que nos aconteceu em muito tempo. Ela está a fazer de tudo para encarreirarmos as nossas vidas. Sê sempre amável com ela.”
“Ok,” Disse April.
“Mais uma coisa, estás de castigo por uma semana.”
April soltou um grunhido de desespero.
“Mas mãe...”
“Não há mas, nem meio mas. A minha decisão é definitiva.”
Riley saiu do quarto antes que April começasse a fazer outra cena. Desceu as escadas e foi ter com Gabriela que estava à sua espera.
“Como está a chica?” Perguntou Gabriela preocupada.
“De castigo por uma semana,” Disse Riley. “Por favor assegure-se de que só vai para a escola.”
Gabriela anuiu.
“Vou preparar o jantar,” Disse e despareceu na cozinha.
Riley sentou-se no sofá, sentindo-se profundamente grata por Gabriela fazer parte das suas vidas. Também se sentia exausta e aturdida.
Pensou que lidara de forma bastante adequada com April. Mesmo assim, ela sabia que mal tinha as coisas sob controlo e o mais certo era descontrolarem-se na sua ausência. E como é que ela podia estar sempre a ir e voltar, interrompendo os casos em que estava a trabalhar, sempre que April tinha uma crise?
Lembrou-se do que Blaine lhe dissera uns dias antes.
“Acredita em mim, desistir da tua carreira não é a solução.”
É claro que ele tinha razão, mas isso não resolvia o problema de Riley. Ali estava ela embrenhada numa luta entre esta crise de April e um assassino que poderia matar outra mulher a qualquer momento.
Riley sentia o seu mundo duplamente abalado.
CAPÍTULO ONZE
O chicote de nove pontas atingiu as costas de Meara impiedosamente. Ela escondeu-se num canto e preparou-se para o próximo golpe. E o próximo golpe veio, e outro, e ainda outro. Os relógios tocavam, retumbavam e anunciavam a hora certa.
A dor era insuportável. Mas a garganta de Meara estava tão seca e ferida que já não era capaz de gritar. Nenhum som saía a não ser um ruído rouco e vazio. Mesmo ela não se conseguia ouvir no meio do chinfrim dos relógios. Não é que gritar tenha adiantado muito. Onde quer que ela e as outras duas prisioneiras estivessem presas, ninguém as conseguia ouvir gritar ali.
A turbulência sonora dos relógios silenciou-se lentamente. Meara tinha a certeza de que anunciavam as seis horas.
Depois os golpes cessaram. Ouviu o seu raptor dizer, “Peço desculpa, vou tentar fazer melhor.”
E virou-se a tempo de o ver flagelar-se a si próprio com o chicote nas costas
Libertou um uivo de dor e depois disse novamente, “Peço desculpa, vou fazer melhor. Vou.”
E mais uma vez lançou o demoníaco chicote sobre si próprio. Agora estava de costas para Meara e ela pôde ver as suas costas a sangrarem tanto quanto as suas, com manchas de sangue a disseminarem-se pela camisa rasgada.
Meara aproveitou a oportunidade para se deslocar para o canto mais distante do covil onde se aninhou junto às outras duas raparigas esfomeadas.
Já tinha visto o homem a fazer aquilo antes. Ainda ficava chocada e atónita com aquele ato. Que tipo de insanidade o movia para se punir a si próprio daquela forma?
O homem só parou de se autoflagelar quando já estava exausto e ofegante. Saiu da jaula e fechou-a atrás de si, pousando o chicote em cima de uma mesa. Depois voltou a sua atenção para os relógios. Parecia estar tão absorvido por eles que se esqueceu das suas prisioneiras.
Murmurando sons inaudíveis, moveu o ponteiro de um relógio com o rosto de um gato. Depois, tirou uma chave do seu bolso e moveu outro com a forma de uma borboleta. De seguida, parou e fitou arrebatadamente um relógio que parecia ter sido criado a partir de um verdadeiro crânio humano.
Finalmente, virou-se para as suas prisioneiras e falou numa voz estranha, quase amável.
“Gostava de vos fazer compreender,” Disse. “Mas não me é permitido falar sobre isso – nem a vocês. Se eu vos pudesse dizer, vocês compreenderiam. Aceitariam tudo.”
Naquele momento, trespassava Meara com o olhar.
“É que... É que... É que...”
Parou por um instante e depois desabafou, “Chegou a hora. Estamos a ficar sem tempo. Tu, eu, toda a gente, o mundo. O vosso sacrifício tem um significado, é importante, é a única esperança, deviam sentir-se honradas...”
De seguida, estremeceu, como se tivesse sido esbofeteado no rosto. Pegou no chicote e, mais uma vez, puniu-se a si próprio.
“Peço desculpa,” Disse. “Não devia ter dito nada.”
Por fim, colocou o chicote de nove pontas novamente em cima da mesa. Depois atravessou uma porta por onde tinha entrado. Meara conseguia ouvi-lo a subir escadas.
Meara permaneceu encolhida no canto com as outras mulheres durante alguns instantes. Nunca tinha visto ninguém verdadeiramente louco. Às vezes, o homem falava de forma estranha. Não como se estivesse a falar consigo próprio. Não. Parecia estar a encetar uma conversa com alguém invisível e inaudível. E tinha morto a Chelsea de forma tão descontraída, quase não reparando nos seus próprios atos.
Agora ela compreendia que não havia forma de chamar aquele monstro à razão. Matá-las-ia a todas de forma igualmente cruel e ela nunca mais veria a sua família.
Pensou na irmã que planeava ir ter consigo assim que tivesse dinheiro suficiente para lhe pagar a viagem. Cathleen devia estar à espera de notícias suas. Mas no estado em que as coisas estavam, nunca mais ninguém saberia notícias dela. Ninguém saberia o que lhe sucedera. Desapareceria da face da terra.
Desde que fora levada para aquele local que Meara prestava atenção aos relógios, tentando controlar a passagem do tempo. Pensava que já ali estaria há cinco dias e cinco noites, sem nada para comer ou beber, exceto umas ocasionais migalhas de pão e pouca água.
Afastou-se das outras mulheres e olhou para elas. Pareciam pouco mais do que esqueletos com pele a cobrir-lhes os ossos. Os seus olhos eram encovados e vagos. Imaginou quanto tempo levaria a ficar como elas estavam.
Estremeceu ao lembrar-se que o homem tinha morto a outra rapariga quando os relógios deram as doze badaladas. Pelo que se lembrava, a morte ocorrera há mais de um dia. Só precisou de alguma pressão no pescoço. Ela e as outras tinham a certeza de que o seu destino seria aquele, mais cedo ou mais tarde. Talvez estivessem mais próximas do que pensavam.
Sentia que a pouca energia que lhe restava se estava a desvanecer. Baixou a cabeça e chorou, os soluços a forçarem o caminho por entre a garganta seca.
E foi então que ouviu uma voz áspera dizer, “Para com isso.”
Meara ergueu o olhar. Uma das raparigas – a que se chamava Kimberly – fitava-a com uma determinação renovada no olhar.
“Para de chorar como um bebé,” Disse ela. “Estou farta de chorar. Estou farta de não fazer nada. Temos que sair daqui.”
Meara estava estupefacta. Não dava para compreender. Kimberly estava tão desgastada que quase não se conseguia mexer. A que se chamava Elise, estava ainda mais prostrada e muitas vezes mal parecia estar consciente.
“Mas como?” Perguntou Meara a Kimberly.
“Tu és a única que ainda tem alguma força,” Disse Kimberly, falando com esforço sobre-humano. “Ainda consegues procurar ajuda.”
Meara olhou para ela e nunca vira tamanha paixão no olhar de ninguém. Os olhos ardiam com intenção, exigiam.
“Podes salvar-nos a todas.”
CAPÍTULO DOZE
Meara lutava para discernir o que Kimberly estava a dizer. Seria possível? Haveria uma hipótese de escaparem daquele inferno?
As duas raparigas já lá se encontravam quando Meara para ali fora trazida. Pareciam completamente resignadas ao seu inevitável fim. E Meara já percorrera cada recanto daquele covil. As paredes eram sólidas e os postes que seguravam a forte vedação estavam bem assentes no chão e presos no teto.
“Como?” Perguntou Meara. “Não há janelas, não há portas, não há aberturas deste lado da vedação.”
Kimberly ergueu um dedo cadavérico e tremente, e apontou na direção do teto.
“Ali em cima,” Disse.
Meara olhou para cima. Não era a primeira vez que reparava no tubo de ventilação no teto, situado cerca de três metros acima das suas cabeças. Era difícil ver na constante luz fraca que provinha do outro lado da vedação. Às vezes, surgia uma luz desmaiada, mas não dava para perceber o que estava para lá dela.
“Tu disseste que a Chelsea tentou sair por ali,” Disse Meara.
“Ela disse que sim,” Disse Kimberly. “Mas ela perdeu o tino.”
“A Chelsea está morta,” Sussurrou Elise, fraca, como se o dissesse apenas para si própria. “A pequena Chelsea está morta.”
“Se não fizermos alguma coisa, vamos todas morrer,” Disse Kimberly.
Meara não sabia quase nada do local onde se encontravam. As paredes sem janelas de betão e o sólido teto de cimento diziam-lhe que deviam estar numa cave. Por isso, haveria toda uma casa – uma casa onde o homem vivia – em cima das suas cabeças ou muito próxima. Mesmo que conseguissem concretizar a improvável tarefa de passar o tubo de ventilação, ficariam encurraladas naquela casa ou noutro edifício. O simples ruído seria suficiente para ele as ouvir.
“É a nossa última esperança,” Disse Kimberly. “Da próxima vez que ele voltar, deve matar uma de nós.”
Será que Meara vira Elise acenar em concordância? Era difícil perceber. A pobre rapariga com o rosto marcado pelos golpes do chicote, mal parecia viva.
Meara olhou para o tubo de ventilação lá no alto. “Conseguimos chegar lá acima?” Perguntou. “Estamos todas fracas.”
“Eu estou demasiado fraca,” Articulou a custo Kimberly. “A Elise está demasiado fraca. Tu ainda tens alguma força. Vai tu lá acima. Pede ajuda. Liberta-nos.”
Meara quase receava ter esperanças. Mas agora sobre si estava um terrível fardo de responsabilidade para com aquelas duas raparigas. Parecia mais do que aquilo que conseguia suportar.
E, no entanto, não podia discordar de Kimberly. Como poderia ela ignorar a única possibilidade de fuga, por muito ténue que fosse? E fosse qual fosse o perigo que tivesse que enfrentar lá em cima, seria pior do que aquilo que já tivera que enfrentar – as sovas, a fome, a degradação total?
Olhou à sua volta. Viu apenas uma forma de chegar ao teto, ou seja, trepando a vedação de correntes. Ganhou coragem para o inimaginável esforço que tal empreendimento requeria. De seguida, agarrou nas correntes com os dedos, içando-se dolorosa e lentamente. Sentiu as mãos de Kimberly a tentarem ajudar, empurrando-a sem força. Rapidamente estava fora do chão, a colocar os pés nas aberturas da vedação, tentando subir lentamente. As frágeis mãos de Kimberly tentavam suster as suas pernas.
Finalmente Meara alcançou o topo da vedação. O tubo de ventilação estava a poucos metros de distância. Viu que o tubo estava colocado numa chapa metálica que parecia estar aparafusada no betão. Como poderia ela desaparafusá-la?
Agarrando nos elos das correntes com uma mão, estendeu a outra e prendeu as unhas entre a placa metálica e o teto. Puxou e pareceu-lhe sentir uma folga. A ideia de arrancar o tubo de ventilação parecia impossível. Mas tinha que tentar.
Puxou com toda a força que tinha e sentiu uma folga entre o metal e o betão.
Com um grito de desespero, Meara largou a cerca de arame e arranhou a placa metálica com ambas as mãos. Estava a cair, mas um horrível som de algo a rasgar, alertara-a para o facto de algo se estar mesmo a soltar. Meara sentiu o seu corpo embater contra Kimberly e depois atingir o chão. A toda a sua volta, destroços de metal caíam no chão de cimento.
Durante alguns instantes, tudo permaneceu em silêncio. Mas depois ouviu Kimberly queixar-se. Meara estava tonta e dorida, os braços estavam magoados da queda e as unhas quase desfeitas. Mas conseguia ver o que tinha solto espalhado à sua volta. O tubo de ventilação repousava partido no chão, semelhante a um periscópio esmagado. Estava rodeado de outros destroços metálicos, sujidade, pedras e pedaços de relva.
Que raio...? Pensou Meara.
Depois ouviu Kimberly dizer, “Olha!”
Kimberly estava deitada no chão no meio dos destroços apontando para cima. Elise estava sentada a alguns metros de distância, fitando o teto. Quando Meara olhou para cima, mal podia acreditar no que via.
Pelo buraco quadrado, conseguia ver um céu cinzento. Agora compreendia. O tubo de ventilação não se ligava à casa ou a qualquer outro edifício. Dava diretamente para o exterior. Estivera sempre enganada ao pensar que estavam presas numa cave. Em vez disso, pareciam estar numa espécie de bunker subterrâneo. E devia ser muito cedo.
Kimberly disse, “Podes sair! Vai!”
“Estás ferida?” Perguntou Meara.
“Não muito,” Respondeu Kimberly. “Consegues levantar-te?”
Meara levantou-se lentamente. Sim, conseguia levantar-se. Conseguia andar. Pela primeira vez desde que ali se encontrava, ousava ter esperança.
Com força renovada, voltou a trepar a vedação. Agarrada a ela com a mão esquerda, chegou à abertura com a direita, rastejando na erva e na sujidade do exterior.
Sentiu os dedos a agarrarem-se com força a raízes. Segurou-as com força e impulsionou a outra mão para cima, tateando e segurando sempre nas raízes. Com mais força do que aquela que julgava ter, içou-se através da abertura e saiu para o ar fresco e húmido da manhã.
Viu que se encontrava numa pequena clareira numa área florestal. Para além disso, não fazia a mínima ideia de onde poderia estar.
Olhou para o buraco e viu Kimberly a devolver-lhe um olhar pleno de esperança. Elise parecia ainda não compreender o que tinha acontecido.
“Sobe,” Disse Meara, aproximando-se da abertura.
“Não consigo,” Disse Kimberly.
“Eu ajudo-te.”
Kimberly ergueu o olhar desesperado para Meara.
“Nunca me vais conseguir puxar,” Disse. “E à Elise também não.” Depois esfregou um braço. “Não consigo subir a vedação.”
O coração de Meara batia descompassadamente.
“Não vos posso deixar aqui,” Disse.
“Tens que ir,” Instou-a Kimberly. “Vai buscar ajuda. A polícia. Eles podem salvar-nos. Vai rápido.”
Meara não queria deixar as duas companheiras, mas também sabia que não tinha alternativa. Levantou-se, quase desmaiando de fraqueza. Olhou em redor. De um lado viu um caminho batido que atravessava a área florestal. Conseguia ver janelas iluminadas de casas para além dela.
Caminhou nessa direção até ouvir, de repente, uma porta a bater à distância.
É ele? Pensou. Está a voltar?
Olhou para o caminho. Aquele podia muito bem ser o caminho que ele utilizava para ir e voltar. Se o seguisse, podia cair nas suas garras.
Deu meia volta e seguiu por um caminho menos utilizado que se espraiava por entre as árvores. Não via casas nem nada mais naquela direção. Mesmo assim, o caminho tinha que desembocar em algum lugar. Tinha que a levar até pessoas.
Seguiu apressadamente pelo caminho, a sentir-se cada vez mais fraca e tonta. Não sabia quanto mais tempo aguentaria de pé e sentia-se muito desorientada. A sua visão estava alterada e não conseguia ver com clareza. Ervas e ramos chocavam contra ela, arrebatando-lhe o cabelo e roupas rasgadas.
Depois, para seu grande alívio, desembocou numa outra clareira.
Onde estou? Pensou.
Avançou e sentiu a dureza do alcatrão debaixo dos pés. Tinha alcançado a berma de uma autoestrada. Olhou em todas as direções e não viu trânsito. Não sabia para onde ir. Escolheu uma direção e pôs-se a caminho.
A sua cabeça estava cada vez mais zonza. Era cada vez mais difícil ver com clareza ou até permanecer em pé. Estava demasiado fraca para continuar.
Não desistas, Disse a si própria. Não desistas!
CAPÍTULO TREZE
Mafarrico observou a ténue luz solar proveniente do teto abalroado. Vira o buraco do exterior, mas não quisera acreditar. Agora via que a toca estava coberta de sujidade e destroços. Uma rapariga – a que capturara mais recentemente, a Irlandesa – tinha desaparecido e as outras duas estavam aninhadas uma junto à outra a fitá-lo, amedrontadas.
O avô estava furioso. “Vê só como estragaste tudo desta vez!” Dizia. “Como podes ter permitido que uma coisa destas acontecesse?”
“Eu não sabia que precisava de ser concertado,” Desculpou-se Mafarrico.
“Raios, será que te tenho de dizer tudo aquilo que tens que fazer?”
Mafarrico não conseguia parar de olhar para o buraco no teto. Na sua mente, o avô continuava a resmungar.
“Tens que pôr mãos à obra. Tens que arranjar isto. Não há outra hipótese.”
“Eu vou arranjar tudo,” Disse Mafarrico.
“Podes crer que vais. Tens que tirar esta porcaria toda daqui. Depois vais ter que tapar o buraco com cimento. Estás a perceber o que te estou a dizer?”
“Sim, estou a perceber,” Murmurou.
“Não te consigo ouvir,” Disse o avô.
“Eu disse que percebi!” Gritou Mafarrico, quase zangado com o avô agora. Começou a afastar os pesados destroços.
“O que é que pensas que estás a fazer?” Perguntou o avô.
Mafarrico parou, os ombros descaídos de cansaço.
“Primeiro tens que encontrar a rapariga. Encontra-a antes que mais alguém o faça, antes dela falar.”
Naquele momento, os relógios começaram a bater as sete. Mafarrico pegou no chicote de nove pontas e entrou ameaçadoramente no covil onde estavam as duas raparigas.
“Onde é que ela está?” Perguntou. “Para onde foi?”
Uma das raparigas mal estava consciente. A outra tentava gritar, mas estava demasiado fraca para emitir qualquer som. O alvoroço dos relógios começou a desvanecer.
“Fiz-vos uma pergunta!” Gritou o homem.
Bateu-lhes selvaticamente com o chicote. Mas em vez de se encolher, a que parecia mais forte olhava para ele com um olhar desafiador.
“Foi buscar a polícia,” Disse ela.
Mafarrico puxou-a pelos cabelos e fitou-lhe os olhos cavos.
“O quê? Gritou ele.
“A polícia! Está a chegar! Acabou seu grandessíssimo filho da puta!”
Mafarrico chicoteou-a novamente. Depois voltou-se e apressou-se na direção do portão. Fechou-o cuidadosamente atrás de si. Depois Mafarrico lembrou-se do enorme buraco.
“Mas as outras raparigas...” Começou Mafarrico.
“Deixa-as por agora. Estão demasiado fracas para fugirem. Até para gritarem estão demasiado fracas. Agora mexe-te!”
Mafarrico subiu as escadas até à clareira acima do abrigo. Conseguiu ver pegadas que se afastavam do buraco e se dirigiam a um caminho próximo.
“Ela foi por ali,” Disse ao avô, apontando.
Mafarrico seguiu pelo caminho menos utilizado. Ramos e vegetação atingindo-o constantemente. O caminho terminava após alguns metros à beira de uma autoestrada. Olhou para cima e para baixo. Ainda não havia trânsito matinal e não via sinal da rapariga.
“Não sei por onde terá seguido,” Disse Mafarrico.
Mas não houve resposta. O avô só falava em casa ou no abrigo decrépito.
Mafarrico tentava combater o pânico que se apoderava de si.
Correu na direção da casa para ir buscar o carro. O avô tinha razão. Ele tinha que encontrar a rapariga que tinha fugido.
E quando a encontrasse, tinha que a matar de imediato.
CAPÍTULO CATORZE
Riley tomou um gole de chá e depois olhou para o relógio. Eram 09:30.
Já devia estar a caminho do Delaware, Pensou ansiosamente.
Mas em vez disso, estava no gabinete de Mike Nevins em Washington, DC. Mike era um psiquiatra forense frequentemente consultado pelo FBI e que Riley conhecia há mais de uma década.
Mike tinha-a ajudado muito ao longo dos anos e não apenas a resolver casos de homicídio. Ele tinha-a ajudado a ultrapassar o SPT depois da situação com Peterson.
Riley não podia deixar de pensar que o Bill não estava à espera dela naquela manhã. Tinha-lhe ligado na noite anterior e ele garantira-lhe que não havia novos desenvolvimentos no caso. Ambos concordaram que seria um intervalo entre homicídios.
Entretanto, Riley tinha muitas preocupações de natureza mais pessoal. Por isso mesmo, na noite anterior entrara em contacto com Mike que lhe dissera que podia ir ter com ele naquela manhã. April parecia bem quando Riley a deixara na escola naquela manhã. E Gabriela sabia que Riley planeava ir de Washington diretamente para o Delaware.
“Desculpa incomodar-te,” Disse Riley a Mike. “Quero dizer, o aconselhamento familiar está um pouco fora da tua área de especialização.”
“Não há problema,” Disse Mike, recostando-se na cadeira e rindo. “Dá-me a possibilidade de expandir as minhas habilidades.”
Mike era um pequeno homem elegante e charmoso que usava sempre uma camisa cara com um colete. Riley gostava muito dele e considerava-o um dos seus melhores amigos.
“Eu não devia estar aqui,” Disse Riley. “Tenho que apanhar um assassino no Delaware. Mas tenho medo de me ir embora agora. Sinto que a April está à beira de ter uma crise.”
“Compreendo,” Disse Mike. “Lembro-me do que aconteceu da última vez.”
Riley sabia que Mike se estava a referir à última crise de April. April estava numa viagem de estudo em Washington, DC quando sofrera um terrível ataque de SPT. O ex-marido de Riley não se dera ao trabalho de ir ter com a filha e Riley estava no Arizona a trabalhar num caso. Quase fora despedida por regressar a casa para auxiliar a filha. Iria tudo repetir-se?
“A Dra. Sloat não tem ajudado?” Perguntou Mike.
Mike recomendara April à Dra. Lesley Sloat, uma terapeuta corpulenta e de bom coração de que tanto April como Riley gostavam.
“Eu pensei que estivesse a ajudar,” Disse Riley. “Mas a April não foi à consulta de ontem – nem às aulas da tarde.”
Mike coçou o queixo pensativamente.
“Ter quinze anos não é fácil,” Disse. “Com essa idade o pior podia já ter sido ultrapassado, mas April passou por situações difíceis. Não são muitas as raparigas da idade dela que estiveram presas e foram ameaçadas por um psicopata. Juntando a isso algumas agressões fora do comum como o divórcio dos pais, podemos considerar que não é fora do normal o facto de ela ainda ter problemas.”
Riley suspirou com preocupação.
“Eu consigo entrar dentro das mentes de assassinos psicopatas, mas a minha própria filha é um mistério para mim.”
Mike riu-se novamente.
“Bem, a mente de uma adolescente é tão misteriosa como a de um psicopata,” Disse. “Passam por tantas mudanças de desenvolvimento que nem se compreendem a si próprias. Estão fisicamente maduras, mas têm um cérebro imaturo.”
“Isso não é muito encorajador,” Disse Riley.
“Gostava de te dar outras notícias.”
Riley e Mike ficaram calados durante alguns instantes.
“Que mais te preocupa?” Perguntou Mike.
“Para começar, o seu discernimento. Tem um novo namorado, mas eu não sei nada sobre ele e até agora ainda não o levou a casa para eu o conhecer.”
Mike inclinou-se para a frente na cadeira e olhou para Riley com preocupação.
“Parece-me que andas a evitar falar do verdadeiro problema,” Disse Mike.
“E que problema é esse?”
“Penso que sabes qual é.”
Riley engoliu em seco. É claro que sabia. E era difícil para ela dizê-lo em voz alta. Mas se não o dissesse, esta visita não serviria o seu propósito. Ela e Mike sabiam-no.
“Sinto-me indefesa, Mike,” Disse por fim Riley. “Indefesa e desadequada. Sinto que tudo o que faço está errado. Não o consigo fazer. Não consigo ser mãe e agente do FBI. São duas missões que consomem demasiado do meu tempo. Não há tempo que chegue para ambas. Não há suficiente eu.”
Mike anuiu.
“Pronto,” Disse ele. “Agora estamos a chegar ao cerne da questão. Bem, parece-me evidente que pensas que estás a fazer alguma coisa de errado. Isso significa que podia fazer algo melhor, diferente. O que poderá ser?”
Riley não respondeu. A pergunta apanhou-a completamente de surpresa.
“Não ouço a resposta,” Disse Mike numa voz calma. “E suspeito que há uma boa razão para isso. Não há nada que possas fazer melhor. Quero dizer, quais são as opções? Devolver o distintivo e demitires-te? Como é que isso resultaria?”
Riley sorriu ao pensar na conversa que tivera com Blaine sobre aquele mesmo assunto.
“Agora pareces o meu vizinho do lado a falar,” Disse Riley.
“A sério?”
“Chama-se Blaine. É um tipo simpático. Um pai. A filha é amiga de April.”
Mike expandiu o seu sorriso.
“Solteiro, presumo?”
Riley corou. “Como é que adivinhaste?”
“Sou bastante bom a adivinhar esse tipo de coisa,” Disse. “Bem, talvez devêssemos falar sobre esse tipo simpático chamado Blaine. Como é que as coisas estão, digamos que, a progredir com ele?”
Riley resmungou.
“Progredir? Estás a brincar? Não estão a progredir.”
“Porque não? Pensas que ele não está interessado em ti?”
Riley sentiu-se a enrubescer ainda mais.
“Penso que está interessado,” Disse.
“E é óbvio que tu estás interessada, por isso, qual é o problema?”
Riley estava confusa.
“Qual poderá não ser o problema? Ele é dono de um restaurante, eu apanho assassinos. Se ele soubesse metade do que se passa na minha vida, ficava apavorado. Quero dizer, a April foi raptada na casa do pai. Será que o podemos culpar de pensar que o mesmo pode acontecer na porta ao lado? Talvez se mudasse para outro bairro.”
“Tens a certeza?”
Riley não respondeu. Ela evitava falar com Blaine acerca do seu trabalho. Talvez tivesse chegado o momento de mudar isso.
“Não estamos a divergir um pouco daquilo que me trouxe cá?” Disse Riley. “Estávamos a falar da April.”
“Talvez ainda estejamos,” Disse Mike. “Achas que a tua relação com a tua filha pioraria se tivesses um homem simpático na tua vida? Tendo em consideração o quanto tu dizes que ela detesta o pai, até podia ficar grandemente aliviada.”
Riley calou-se novamente. Mike estava a fazê-la pensar muito.
E então o telefone tocou. Era Bill.
“Tenho que atender esta chamada,” Disse a Mike.
Mike assentiu. Riley atendeu a chamada e saiu para o corredor.
“O que é que se passa?” Perguntou.
“A Meara Keagan apareceu,” Disse Bill. “Fugiu ao cativeiro.”
O coração de Riley começou a bater com mais força.
“E então?” Instigou-o Riley. “Porquê esse tom de voz tão sombrio?”
Um prolongado silêncio foi a única resposta que Riley obteve.
Por fim, Bill falou.
“Foi atropelada.”
CAPÍTULO QUINZE
Riley entrou apressadamente no hospital de Ohlman. Bill já lá estava, a andar de um lado para o outro na sala de espera.
“Está viva?” Perguntou Riley. “Está consciente?”
“É o que me dizem,” Disse Bill. “Ainda não me deixaram entrar para a ver.”
“Como é que a encontraram?” Perguntou Riley.
Bill abanou a cabeça como se incrédulo.
“Isso é o mais estranho de tudo,” Disse. “Alguém a largou à porta do hospital – aquela por onde entraste. Mas quem a trouxe, foi-se logo embora.”
“Pensas que foi a pessoa que a atropelou?”
“Pensamos que possa ter sido. A Lucy está neste preciso instante a ver as filmagens de videovigilância. Anda, vamos ver se já podemos estar com ela.”
Bill conduziu Riley pelo corredor até um quarto com dois polícias à porta. Uma mulher de aspeto rígido envergando um casaco branco foi ao seu encontro. A chapa do nome tinha escrita a identificação da Dra. Leah Pressler.
“Já podemos falar com ela?” Perguntou Bill à médica.
“Se dependesse de mim, dizia que não,” Disse a Dra. Pressler. “Ela está fraca e extremamente frágil. Mas diz que quer falar, insiste muito em falar.”
A Dra. Pressler acompanhou Bill e Riley até ao quarto. Meara Keagan olhava para eles com um olhar desconsolado. Estava muito magra e pálida, o que fazia o cabelo ruivo claro e as sardas destacarem-se de forma bizarra, como se se tratasse de uma peruca ou de maquilhagem.
Uma perna estava engessada e tubos intravenosos devolviam ao corpo fluídos necessários ao seu bom funcionamento. Parecia ter regressado do inferno. Mas pelo menos ainda estava viva. E por muito magra e esfomeada que parecesse, não estava tão macilenta quanto os três cadáveres encontrados.
“São do FBI?” Perguntou numa voz áspera e cansada. Riley imediatamente reparou no seu sotaque irlandês. Lembrava-se de lhe terem dito que se tratava de uma imigrante Irlandesa.
Riley apresentou-se, “Sou a Agente Riley Paige e este é o Agente Bill Jeffreys.”
Riley sentou-se numa cadeira ao lado da paciente. Bill e a médica continuaram de pé.
“Posso tratá-la por Meara?” Perguntou Riley com uma voz carinhosa.
“Claro,” Disse a mulher, sorrindo com doçura.
“De que é que se lembra?”
O rosto de Meara Keagan ficou tenso com o esforço.
“Este homem – ele bateu-me quando o tentava ajudar com o carro. Não tenho a certeza há quanto tempo isto aconteceu.”
“Há cinco dias,” Disse Riley num tom de voz tranquilizador.
“Bem me parecia. Quando dei conta, estava numa cave. Numa jaula com três raparigas, todas elas esfomeadas. Ele mantinha-nos ali, mal comendo nem bebendo. Matou uma das raparigas. Partiu-lhe o pescoço.”
A sua voz começou a fraquejar. Riley sabia que ela estava a reviver o terror daquele momento e deu-lhe uma palmadinha tranquilizadora na mão.
“O que nos pode dizer sobre a cave?”
“Estava... cheia de relógios. Todo o tipo de relógios. Centenas de relógios. Mas estavam atrás de uma vedação.” Parou de falar por alguns instantes e depois acrescentou suavemente, “Não conseguíamos passar a vedação... não conseguíamos sair...” A voz esmoreceu.
Riley olhou para Bill e ele para ela. Ela sabia que ambos estavam a pensar em algo. Estaria a mulher a imaginar os relógios no seu delírio?
“Pode descrever o homem que a prendeu?” Perguntou Riley.
Meara começou a tremer intensamente.
“Ele era... ele era... não consigo...”
Riley compreendia. Estava a reprimir a memória do raptor. Talvez se lembrasse do seu aspeto mais tarde.
“Não faz mal,” Disse Riley. “Como fugiu?”
A sua expressão ficou repentinamente confusa.
“Não faço ideia. A última coisa de que me lembro é dos relógios a fazerem barulho e dele a bater-nos com um chicote, e a bater nele próprio. Ele fazia isso muitas vezes, batia nele próprio e em nós. E de repente, só me lembro de estar aqui. Não me recordo de como aqui cheguei.”
“Fugiu dele de que forma?”
Meara desviou o olhar. Os seus olhos ficaram enevoados e parecia estar com dificuldade em falar.
“Chega por agora,” Disse a médica que acompanhou Bill e Riley até ao corredor.
Disse, “Não sou neurologista, mas penso que consigo explicar a sua falha de memória. O cérebro demora algum tempo a converter uma memória recente numa memória a longo prazo. Chama-se ‘consolidação’. Mas um trauma no cérebro pode interferir nesse processo. Ela estava inconsciente quando a encontrámos. Penso que ficou inconsciente antes da memória recente da sua fuga se ter consolidado.”
“Então, pode nunca se lembrar,” Disse Riley.
“Não vejo como poderia,” Disse a Dra. Pressler, abanado a cabeça. “Essa informação já não se encontra no seu cérebro. Desapareceu. Mas poderá conseguir dar-nos mais informações sobre o cativeiro passado algum tempo. Neste momento, precisa de descansar.”
Riley estava prestes a agradecer à médica pela explicação quando Lucy apareceu.
“Detetámo-lo na filmagem da videovigilância,” Disse, excitada. “Venham ver.”
Levou Bill e Riley para uma sala onde um polícia local estava sentado em frente a um computador.
“Aqui está,” Disse o polícia.
Riley conseguia ver tudo com absoluta clareza. Um SUV de aspeto batido e de tamanho médio parou junto à entrada do hospital. Um homem saiu da viatura. Tinha cabelo escuro e estatura mediana.
Correu para as traseiras do veículo e retirou a mulher inconsciente para fora. O homem colocou-a no passeio e tocou-lhe na cabeça naquilo que parecia um gesto apologético. Depois voltou para o carro, entrou e arrancou.
“Pare aí,” Disse Riley.
O polícia sentado no computador parou o vídeo.
“A matrícula está completamente visível,” Disse Riley.
Ao seu lado, Lucy disse, “Já temos uma identificação. O carro pertence a um certo Jason Cahill, trinta anos. Vive aqui em Ohlman. Temos a morada.”
“O Agente Jeffreys e eu vamos até lá,” Disse Riley. “Lucy, mantém-nos a par do que se vai passando por aqui. Liga-nos de imediato se Meara se lembrar de mais alguma coisa.”
*
Riley e Bill estacionaram o carro em frente à casa de Jason Cahill. Lembrou a Riley o lugar onde Dennis Vaughn vivia em Redditch – uma pequena casa de madeira com um alpendre. A diferença é que estava em melhores condições do que a degradada casa de Vaughn e a relva tinha sido recentemente cortada.
A casa ficava nas franjas de Ohlman e a uma considerável distância das casas vizinhas. Ao caminharem na direção da casa, Riley reparou num SUV estacionado junto à casa – o mesmo veículo que aparecia na filmagem de videovigilância. Não havia dúvidas de que a frente do carro estava danificada e um farol estava partido.
Pode ser isto, Pensou Riley. Talvez o tenhamos apanhado.
Mas quando estavam prestes a subir ao alpendre, Bill apontou para as fundações da casa.
“Olha,” Disse. “Não tem cave.”
Bill tinha razão. A casa era aberta por baixo, construída sobre estacas de madeira. Meara insistira em dizer que estivera presa numa cave. Seria a cave numa outra morada?
De qualquer das formas, Riley sabia que Jason Cahill era pelo menos culpado de atropelamento e fuga. Talvez o resto surgisse naturalmente.
Bill bateu à porta. O homem que a abriu não era em nada semelhante ao gordo e desmazelado Dennis Vaughn. Este homem era magro e asseado, envergava calças de ganga e uma T-shirt. Parecia extenuado.
“São da polícia?” Perguntou.
Bill e Riley mostraram os seus distintivos. O homem pareceu apenas ligeiramente surpreendido.
“O FBI. Meu Deus. Eu estava à espera da polícia. Mas o FBI?”
“Chama-se Jason Cahill?” Perguntou Bill.
“Sim.”
“Riley disse, “Está preso pelo atropelamento e fuga de Meara Keagan. Vire-se.”
Jason Cahill colocou as mãos atrás das costas para que Bill o algemasse. Riley espreitou para dentro da pequena casa. Viu que estava decorada de forma simples com mobília usada mas em bom estado.
“Como é que ela está?” Perguntou Cahill. “Ela está bem?”
Em vez de responder, Riley começou a ler-lhe os direitos.
“Eu sei quais são os meus direitos,” Disse Cahill. “Sou advogado.”
O rosto de Bill ficou vermelho de raiva. Riley ficou preocupada. A última coisa de que precisava naquele momento, era de Bill ficar outra vez fora de controlo.
Brill rosnou, “O que é que sabe sobre as mortes de Metta Lunoe e Valerie Bruner?”
Riley observou o rosto de Cahill. Não detetou qualquer mudança de expressão.
“Não sei quem são,” Disse. “Não digo mais nada sem a presença de um advogado. Não posso pagar, por isso têm que me arranjar um.”
“Onde esteve no último domingo à noite?” Perguntou Bill.
“Não digo mais nada sem a presença de um advogado,” Repetiu Cahill.
Bill apertou mais as algemas para que doessem um pouco. Cahill estremeceu de dor. Riley caminhava atrás deles.
“Ei,” Disse Riley bruscamente.
Bill voltou-se e olhou para ela. Riley não disse nada, mas tentou transmitir-lhe pela sua expressão que não ia aturar mais exageros da parte dele. Bill abanou a cabeça zangado.
Riley estava preocupada – e não apenas com Bill. Cahill estava a encarar tudo de forma muito fria. Mover-lhe uma acusação não ia ser tarefa fácil.
E as raparigas nunca seriam encontradas.
CAPÍTULO DEZASSEIS
Riley sentia-se bloqueada. Ela e Bill estavam no exterior da sala de interrogatório na esquadra de polícia local. Estavam ali há cerca de meia hora enquanto Cahill se aconselhava com um advogado de defesa nessa mesma sala.
Desde então, Cahill não lhes dissera mais nada, mas o advogado tinha trocado algumas palavras com eles antes de conferenciar com o cliente. Era um advogado de defesa local – um homem robusto de meia-idade chamado Rudy Dunkelberg.
Riley percebeu de imediato que Dunkelberg não era um saloio qualquer com uma licenciatura em direito. Ele sabia exatamente o que estava a fazer. De imediato percebeu que Jason Cahill não estava apenas ali por causa de um delito de atropelamento e fuga. Na verdade, até adivinhou que Cahill era suspeito dos três homicídios que agora já eram do conhecimento público.
E agora Riley sabia o que se seguia. Dunkelberg ia assegurar-se de que Cahill nada diria sobre os homicídios – nem mesmo a ele. Riley estava furiosa, mas também sabia que Dunkelberg estava apenas a fazer o seu trabalho.
“Odeio quando isto acontece,” Murmurou Bill.
“Também eu,” Disse Riley. “Mas temos que lidar com a situação tal como é.”
Bill abanou a cabeça agastado.
“Riley, não sei se aguento muito mais,” Disse. “Tenho que fechar este caso. Tenho que parar este tipo.”
“Temos que fechar este caso,” Disse Riley, corrigindo-o. “E temos que o fazer segundo as regras.”
A porta da sala de interrogatório abriu. Dunkelberg saiu e disse, “Agora já podem entrar.”
Riley e Bill entraram na sala e sentaram-se na mesa com Cahill e o seu advogado. Cahill ainda parecia estranhamente amorfo. Riley já tinha visto ao longo da sua carreira suficientes assassinos psicopatas que apresentavam a mesma reação.
Uma carta escrita estava em cima da mesa à frente de Cahill.
“O meu cliente está pronto para confessar,” Disse Dunkelberg.
Assentiu na direção do cliente, cuja expressão não se alterara. Cahill começara a ler numa voz lenta e firme.
“A noite passada encontrava-me em Glenburn, a sessenta quilómetros de Ohlman,” Leu. “Estava a jogar póquer com alguns amigos dos tempos de faculdade.”
Dunkelberg interrompeu, “O meu cliente fornecerá sem problemas os seus nomes e contactos. Continue, Sr. Cahill.”
“O jogo prolongou-se pela noite dentro. Saí do local por volta das cinco e meia da manhã. Estava alcoolizado. Não devia ter conduzido, mas mesmo assim decidi ir para casa. Por volta das seis horas, uma mulher atravessou-se à frente do meu carro. Não consegui parar a tempo e atropelei-a.”
Cahill parou por alguns instantes.
“Depois entrei em pânico,” Continuou. “Não consegui pensar. Já tinha algumas advertências pelo mesmo motivo e tive medo de ter outra. Mas não queria deixar a mulher lá. Peguei nela e coloquei-a no meu carro. Fui com ela para o hospital e deixei-a lá.”
Cahill aclarou a garganta.
“Estava a começar a ficar sóbrio quando cheguei a casa. Já conseguia pensar melhor. Sabia que tinha cometido um tremendo erro. Não conseguia dormir. Tinha acabado de me decidir entregar quando os agentes do FBI chegaram.”
Silêncio.
“Lamento muito o que fiz,” Disse, concluindo a sua declaração.
Dunkelberg disse, “É tudo o que o meu cliente deseja dizer por agora. Como podem constatar, ele está a colocar-se à mercê da justiça.“ Entregou uma caneta a Cahill. “Agora só tem que assinar a confissão...”
“Esperem lá,” Disse Bill. “Ele não vai assinar isso.”
Riley compreendeu o protesto de Bill. Ao confessar uma ofensa menor, Cahill poderia ficar fora do seu alcance. Mas também sabia que nem Bill, nem ela podiam fazer o que quer que fosse para o impedir.
Mesmo assim, teve uma ideia.
“Só um momento,” Disse. Pegou no telemóvel e procurou as fotos das cenas de crime e das vítimas.
Mostrou uma foto do corpo macilento de Metta Lunoe a Cahill.
“Reconhece esta mulher?” Perguntou.
Finalmente vira uma alteração na expressão do homem. Era subtil, mas visível. Mostrou mais fotos de Metta Lunoe até surgirem as imagens do corpo de Valerie Bruner.
“Isto tem algum significado para si?” Perguntou Riley.
O rosto de Cahill ficou imóvel e os olhos vidrados.
Bill gritou, “Responda à pergunta!”
Riley deu-lhe uma cotovelada.
“Gostaria de conferenciar com o meu colega a sós por um momento,” Disse.
Dunkelberg anuiu e Riley dirigiu-se ao exterior com Bill.
“Ele não é o nosso homem,” Disse-lhe Riley.
“Como é que sabes isso?” Perguntou Bill.
“Pelo rosto dele. Ele nunca viu aquelas mulheres na vida.”
Bill mal conseguia acreditar no que ouvia.
“Não vi nada de revelador no rosto dele,” Disse. “Parecia tão frio quanto alguém pode ser. Ele parecia como milhares de assassinos que já vimos.”
Riley quase gritou, “Ele está de ressaca, Bill. Está dormente e sem reação. É por isso que tem aquela aparência. E ainda para mais está em estado de choque. Ainda está a processar o que fez a Meara Keagan.”
Bill fitou-a durante alguns instantes.
“Tens a certeza?” Perguntou.
Riley não respondeu. Não podia ter a certeza absoluta. Mas o seu instinto dizia-lhe que Jason Cahill não era o assassino.
“Então voltámos à estaca zero?” Disse Bill.
“Não,” Disse Riley. “Ainda o podemos usar. Só tem que nos mostrar onde é que ocorreu o acidente. Isso vai colocar-nos mais perto de local onde ela estava presa.”
*
Mafarrico acabara de aquecer um jantar congelado e sentava-se para o comer quando ouviu um carro no exterior. Dirigiu-se à janela e levantou a cortina. Ficou de imediato apreensivo com o que viu. Não havia dúvidas de que um homem com um colete que dizia POLÍCIA estava a falar no alpendre de um vizinho. Mafarrico olhou para o quarteirão e viu mais dois polícias em duas outras casas a fazer o mesmo.
“Devem estar à nossa procura,” Disse Mafarrico.
“Sim,” Respondeu o avô. “E a culpa é tua por teres deixado aquela mulher fugir.”
Mafarrico estava prestes a argumentar que a procurara em todo o lado, na autoestrada e nas ruas próximas. Não a conseguira encontrar.
Mas manteve-se calado. Não queria arreliar o avô agora.
Além disso, viu uma mulher jovem a caminhar no passeio e a dirigir-se ao seu alpendre, uma mulher com um colete do FBI. Bateu à porta.
“Devo fingir que não estou em casa?” Perguntou Mafarrico.
“É claro que não, idiota. Isso pode fazê-la suspeitar. Deixa-a entrar.”
Mafarrico começava a ficar alagado em suor.
“Mas o que é que vou dizer? O que é que vou fazer?”
“Mantém-te calmo, raios. Faz de conta que não sabes de nada do que ela te perguntar.”
Mafarrico abriu a porta. A agente era uma mulher bonita com uma tonalidade morena. Segurava uma série de papéis na mão. Sorriu-lhe.
“Peço desculpa por incomodá-lo,” Disse. “Sou a Agente Lucy Vargas do FBI. Estou a ajudar a polícia local a investigar esta área. Viu esta mulher?”
Segurava um panfleto na sua direção. Ele reconheceu a mulher de imediato pelas sardas e cabelo ruivo. Mas a não ser pouco antes de a raptar nunca a tinha visto sorrir assim.
“Está desaparecida?” Perguntou Mafarrico.
O avô sibilou, “Não lhe faças perguntas! Deixa isso com ela!”
Mas a cabeça de Mafarrico estava cheia de perguntas. A mulher que fugira ainda estava desaparecida? Se sim, onde estava? Para onde tinha ido? E o que tinha levado a polícia até àquela área para a procurar?
Em vez de responder à sua pergunta, a mulher do FBI disse, “Só queremos saber se alguém a viu por aqui a semana passada.”
Mafarrico abanou a cabeça.
“Tem a certeza?” Perguntou a mulher, segurando o panfleto. “Veja com atenção, por favor.”
O avô sussurrou. “Diz-lhe que tens a certeza.”
“Tenho a certeza,” Disse Mafarrico.
A mulher olhava para ele atentamente. Ele perguntava-se porquê. Seria pela forma como respirava? Pelo suor que se formava no seu rosto?
“Tem uma cave?” Perguntou a mulher.
Mafarrico estacou. Porque é que estaria à procura de uma cave? O que é que ela sabia?
“Sim, tenho,” Conseguiu Mafarrico articular calmamente.
A mulher estudava-o cuidadosamente.
“Posso vê-la?” Perguntou.
Mafarrico abriu a boca e nenhum som dela saiu. O avô estava furioso.
“Pelo amor de Deus, deixa-a entrar. Não temos nada a esconder aqui. Deixa-a satisfazer a sua curiosidade. E sorri! Para de agir como se fosses um raio de um criminoso!”
Mafarrico conseguiu forçar um sorriso.
“Claro,” Disse à agente. “Entre.”
A mulher entrou e olhou em seu redor. Mafarrico esperava que nada de suspeito estivesse à vista. Uma das salas havia sido a oficina de relojoeiro do avô. Mas Mafarrico tinha levado todos os relógios do avô para o abrigo há vários anos. Para além disso, a casa estava mobilada como na altura em que o avô morrera e lha deixara. E mantinha sempre a casa razoavelmente limpa.
“É por aqui,” Disse, acompanhando-a pela casa em direção à cave.
“Obrigada,” Disse a mulher. Ela parecia não ter pressa. Olhava para tudo.
Mafarrico disse, “Isto tem alguma coisa a ver com aquelas mortes de que se tem falado?”
“Shhhhhh!” Silvou o avô.
Mas Mafarrico agora estava desesperado. O que é que as autoridades pensavam daqueles homicídios? Alguém compreenderia o seu objetivo?
“Preferia não dizer nada,” Disse a mulher, voltando a sua atenção para outro lado.
Mafarrico não conseguia evitar voltar a abordar o assunto.
“É que parece que o assassino, seja ele quem for, quer passar uma mensagem.”
A mulher parou e olhou para ele com curiosidade.
“Não nos interessa se ele quer passar uma mensagem,” Disse ela. “Para nós, é apenas mais um psicopata. Posso ver a cave?”
“Claro,” Disse Mafarrico. Conduziu-a à porta da cave e abriu-a, ligando a luz. Ele quis que ela descesse primeiro mas, educadamente, Lucy disse, “Depois de si,”
Ele desceu os degraus à sua frente. Mafarrico desejava poder ver a sua expressão. Desejava saber em que estava a pensar. De qualquer das formas, sabia que ali não encontraria nada de suspeito. Era apenas uma cave perfeitamente normal com paredes de betão – nem mobília tinha.
Havia um grande forno a gás no meio. A mulher começou a caminhar à volta do forno. E foi então que Mafarrico avistou um tubo de aço enferrujado coberto de teias de aranha. Algum canalizador o tinha ali deixado há muitos anos. Os dedos de Mafarrico começaram a ganhar vida própria.
Apanhou o tubo.
CAPÍTULO DEZASSETE
Lucy surgiu por detrás do forno. Não havia nada de estranho naquela cave. Na verdade, não havia nada de fora do normal naquela casa... com exceção do homem que lá vivia. Agora o homem curvara-se, olhando para algo que estava no chão. Mas logo se endireitou e ficou parado a olhar para ela, parecendo algo rígido e estranho.
“Eu sei, eu sei,” Murmurou o homem distraidamente. “Não foi uma boa ideia.”
Lucy ficou intrigada com aquelas palavras. O homem parecia estar a falar com outra pessoa que não ela.
“O quê?” Perguntou Lucy.
Ele olhou para ela, mais alerta.
“A cave,” Disse rapidamente. “Não há nada na cave.”
“Tem razão, não há,” Disse Lucy, sorrindo afavelmente. “Obrigada pelo seu tempo. Não preciso de mais nada.”
“O tempo é importante,” Disse o homem.
Ela anuiu em concordância e começou a subir as escadas. O homem seguiu-a, murmurando palavras desconexas para si próprio.
Quando se encontravam novamente na parte superior da casa, Lucy olhou com mais atenção para o dono daquela casa.
“Vou andando,” Disse ela. E entregou-lhe o panfleto com a foto de Meara.
Por baixo da foto estava um número de telefone.
“Fique com isto,” Disse Lucy. “Se se lembrar de alguma coisa que possa ser útil, ligue-nos.”
Saiu da casa e continuou a sua busca do homem que raptara Meara Keagan.
CAPITULO DEZOITO
April sentia-se maravilhosamente bem. Ela sabia que Joel tinha acrescentado alguma coisa à erva no cachimbo e estava contente por ele o ter feito. Quando se sentia assim, não tinha que se preocupar com a escola ou com a mãe ou com o que quer que fosse. Não tinha que se lembrar de ter sido raptada e mantida cativa. Não tinha que pensar em ter ajudado a mãe a matar o tipo que a tinha torturado. Ela sabia que podia confiar em Joel para tomar conta de si.
Ele passou-lhe novamente o cachimbo.
Estavam no carro dele, estacionado nas profundezas da floresta, num lugar distante de tudo onde ninguém os incomodaria.
“Sabes, gosto mesmo de ti,” Disse Joel. As suas palavras pareciam reverberar quando ele falava.
“Na verdade,” Disse ele, virando-se para a olhar nos olhos, “April, estou apaixonado por ti.”
“Eu também te amo,” Sussurrou April. Era a primeira vez que dizia aquilo a um rapaz por isso, disse-o novamente, mais alto, “Eu também te amo Joel Lambert.”
Ele pareceu preocupado. “Eu sei que a tua mãe não gosta de mim.”
“Isso não importa. Ela é muito rígida porque lida com muita gente má.”
Ele riu. “Suponho que sim, sendo uma agente do FBI. Tenho pena que tenhas que viver com toda essa desconfiança.”
April sentiu a necessidade de proteger a mãe. “A verdade é que ela tem que enfrentar muita violência. Já te falei do homem que me levou.”
Joel sorriu. “Sim. Isso foi muito fixe. O que vocês fizeram juntas, quero dizer.” E beijou-a. “És uma miúda absolutamente fixe.”
Ele puxava-lhe a roupa e soube que iam fazer amor mais uma vez. April estava feliz por tomar um contracetivo há mais de um ano, apesar de anteriormente isso não parecer importante.
Ela suspirou de alegria e ajudou-o a despi-la.
CAPÍTULO DEZANOVE
Sherry Simpson não gostava da forma como o carro que seguia atrás da sua pickup estava tão próximo. O condutor estava atrás dela desde que virara na estrada rural que conduzia à quinta da família. Agora, estava mesmo encostado, a uma distância mínima das traseiras da sua viatura.
Isso fê-la sentir-se desconfortável. É claro que não era nada fora do comum. Desde que entrara na adolescência que os rapazes do campo faziam aquilo para chamar a sua atenção.
Na altura até que era divertido. Dava-lhe gozo arrancar velozmente e deixá-los a comer poeira. Ela conhecia aquelas estradas secundárias muito bem e não era difícil fugir-lhes. Mas agora que já estava quase nos trinta, já não era divertido – sobretudo à noite.
Estava a ir tarde para casa porque o seu clube de bridge tinha ficado na conversa mais tempo que o habitual depois do jogo terminar. Riram-se muito da forma como Gloria falava da nova empregada do Ohlman Diner. Era óbvio que Gloria tinha inveja dos atributos da nova rapariga.
Fora uma noite divertida com as amigas e Sherry esperava que não ficasse estragada graças àquele tipo que parecia estar a persegui-la. Conseguia ver a matrícula pelo espelho retrovisor. Uma matrícula do Delaware. Conseguia vê-la bastante bem.
Devia fazer queixa deste tipo à polícia, Pensou. Isto já é assédio.
Mas talvez apenas quisesse ultrapassá-la. Afinal de contas, ela estava a conduzir devagar graças ao vinho que tomara na companhia das amigas. Não o podia censurar por estar impaciente.
Entretanto, estavam numa reta por isso, Sherry abrandou ainda mais e encostou à direita, dando a quem vinha atrás muito espaço para a ultrapassar.
E assim foi. Ele ultrapassou-a sem sequer olhar na sua direção. O carro desapareceu numa curva mais à frente onde umas árvores bordejavam a estrada.
Espero que conheça estas estradas, Pensou. Caso contrário, pode muito bem acabar numa valeta.
Alguns segundos mais tarde, ela passou pela mesma curva mas, subitamente, travou a fundo. Um carro estava parado à sua frente, atravessado no meio da estrada.
Estaria o condutor bêbedo? Tinha-se estampado?
Sherry pegou no telemóvel para ligar para o 112. Mas então viu que o carro estava intacto. Um homem abria o capô e usando uma lanterna espreitava o motor.
“Parece que fiquei apeado,” Disse ele para ela.
O homem caminhou na direção do carro de Sherry. Ele ainda falava, mas ela não conseguia ouvir o que dizia. Por fim, ela baixou a janela do seu lado.
“Tem um telefone?” Perguntou o homem. “O meu não está a funcionar. Fui estúpido, Deixei-o ficar sem bateria e não tenho um carregador comigo.”
O homem apontou a lanterna para o rosto de Sherry e depois afastou-a. Sherry hesitou. Ela ainda segurava o telemóvel na mão.
O homem estava agora mesmo ao lado da janela. Tinha um rosto afável e o seu sorriso era, de alguma forma, reconfortante.
“Tenho sorte que tenha aparecido,” Disse o homem. “Só preciso de ligar ao meu irmão para me vir ajudar. Se puder utilizar o seu telemóvel, ajudo-a a passar pelo meu carro. Peço desculpa por estar a bloquear a estrada. Fiquei assustado quando o motor começou a fazer muito barulho e parei de imediato. Mas julgo que consigo ajudá-la a passar.”
Sherry estava prestes a entregar-lhe o telemóvel. Mas foi então que reparou que ele tinha uma mão na maçaneta da sua porta.
Lembrou-se de conversas que ouvira das amigas algumas horas atrás...
“Ouviram falar daquela mulher morta encontrada em Redditch?”
“Sim, e uma mulher foi raptada em Westree.”
“Acham que é coisa de assassino em série?”
Sherry estremeceu com medo. Mas sabia que não podia demonstrar o seu alarme. Sorriu ao homem. Mas em vez de lhe dar o telemóvel, começou a fazer marcha atrás e afastou-se dele. Ele segurou-se tanto quanto pode à maçaneta da porta, depois libertou a mão, desaparecendo.
Sherry lutou para manter a pickup sob controlo, abrandando para evitar divergir para a berma da estrada.
Ainda em marcha atrás, fez a curva na estrada, depois girou o volante para virar. Parando a pickup próximo da valeta, arrancou pela estrada fora.
Não conduzia com rapidez, esperando que ele não tentasse segui-la. Procurou o telemóvel para ligar o 112. Pensava que o tinha deixado ao lado dela, mas não estava lá.
Devo tê-lo deixado cair, Pensou.
Nem pensou em parar para o ir buscar.
E nesse momento, ouviu vidros a partirem-se atrás de si. A janela traseira tinha sido partida.
Ele está na mala do carro! Percebeu.
Um braço surgiu da janela estilhaçada e agarrou-a pelo pescoço.
CAPÍTULO VINTE
A curva do braço do atacante aninhou-se na garganta de Sherry. Atordoada e surpreendida, perdeu o controlo da carrinha. Resvalou para uma vala e parou. Com a violência do impacto, o homem perdera também ele o controlo da sua ação.
Sherry começou a avaliar a sua situação.
O motor ainda trabalhava. A carrinha era grande e potente, e com a sua tração às quatro rodas talvez não estivesse completamente atolada. Mas ela ouvia o homem a escalar a parte traseira da pickup, preparando-se para a atacar novamente.
Pensou rapidamente. O que poderia usar como arma? Sabia exatamente o quê. Debruçou-se e pegou naquilo que precisava por baixo do banco do passageiro – o seu taser. Ligou-o. Quando se preparava para se endireitar, a mão do homem atravessou novamente a janela estilhaçada.
Mas mesmo com a sua arma, estava indefesa na cabina da carrinha. Se tentasse utilizar o aparelho nele, ele podia inutilizá-lo, deixando-a em maior perigo do que anteriormente. Ainda acocorada, abriu a porta do condutor e rebolou para a vala, segurando a arma a uma distância de segurança.
De repente, o homem saltou das traseiras da carrinha e ficou à sua frente, exibindo uma pá que ela deixara nas traseiras da viatura. E nessa altura compreendeu que ele utilizara a pá para partir a janela. E agora ela estava em desvantagem. Estava deitada de bruços e ele estava de pé, erguendo a pá para a atingir.
Ela rebolou e tentou colocar-se de pé. Segurava o taser ao seu lado, procurando desesperadamente a oportunidade de o descarregar no homem. Mas não ia ser fácil. O taser era curto e a pá mais longa e, como tal, tinha maior alcance. A vantagem ainda estava do lado do homem.
Mas quão forte é ele? Pensou.
Da luz que provinha dos faróis, tentou avaliar a sua altura e peso. Era mais alto e mais pesado do que ela – a sua família sempre fizera pouco do quão magra ela era, chamando-a de “Pau de virar tripas”. Mas depois de uma vida dedicada às tarefas e atividades rurais, estava rija e mais forte do que parecia.
Ele tentou atingir-lhe a cabeça e ela conseguiu desviar-se desta investida. Ele preparava-se para tentar novamente e ela preparou-se. Quando o próximo golpe viesse, ela iria segurar na pá pelo cabo de madeira com a mão livre, impedindo-o de a atingir.
Depois, com o seu outro braço, Sherry encostou a arma à barriga do homem. O homem contorceu-se de dor e caiu ao chão.
Sherry entrou na sua carrinha. Acelerou para tentar libertá-la da vala. Em vez de tentar regressar à estrada, embateu diretamente na vedação de madeira que separava a estrada de um prado.
Ela conhecia aqueles campos como a palma da sua mão e sabia que a sua carrinha era suficientemente grande e potente para desbravar aquele terreno. Olhou para o luar. Sabia que outra estrada se encontrava no extremo oposto do prado, a cerca de quinhentos metros de distância.
Ela só esperava que ele não conseguisse seguir no seu veículo menos potente – ou melhor, que nem sequer tentasse. Mas não abrandaria enquanto não estivesse bem longe do seu alcance.
CAPÍTULO VINTE E UM
Riley e Bill estavam sentados na sala de conferências da esquadra de polícia local a ouvir Lucy informar a equipa acerca dos esforços empreendidos. Riley não conseguia esconder a sua desilusão por não terem conseguido encontrar qualquer suspeito.
“Procuraram em todo o lado?” Perguntou Riley.
“Mais de cem residentes no total,” Disse Lucy. “Tudo na área onde Jason Cahill diz ter atropelado Meara Keagan.”
“E não encontraram ninguém suspeito?” Perguntou Riley.
Lucy abanou a cabeça. “Não iria tão longe,” Disse Lucy. “Esta cidade tem umas quantas personagens estranhas.”
Depois, apercebendo-se da presença de cinco polícias locais à mesa, Lucy acrescentou, “Sem querer ofender.”
Os polícias riram-se.
“Não ofendeu,” Disse o polícia mais jovem.
“Bem-vindos a Ohlman, Delaware,” Disse o mais velho. “Os excêntricos são a indústria local.”
“E nem todos ficaram muito contentes por falar com uma agente do FBI,” Acrescentou Lucy.
O polícia mais velho riu novamente.
“O FBI não é muito popular aqui por estas bandas,” Disse. “Pensam que estão aqui para lhes tirarem as armas.”
Lucy disse, “Sempre que alguém me pareceu suspeito, pedia-lhes para me mostrarem a cave se tivessem uma. Algumas pessoas não gostaram, mas eu consigo ser muito persuasiva.”
“E encontraste alguma coisa?” Perguntou Bill.
“Oh, alguns modelos de vias férreas,” Disse Lucy. “Um tipo tinha uma enorme coleção de Carnival Glass. Outro tinha montes de armas de fogo antigas. É uma cidade estranha e as pessoas têm muita imaginação. Falei com alguns miúdos que me disseram que a floresta próxima é assombrada.”
Um polícia que ainda não tinha falado disse, “ Pois, os miúdos daqui adoram as suas histórias de fantasmas. Eu também era assim quando tinha a idade deles. Acho que todos éramos. Faz parte do entusiasmo de pertencer a uma comunidade pequena como Ohlman. De outra forma, as coisas tornam-se bastante aborrecidas.”
Riley percebeu que algo perturbava Lucy.
“No que é que estás a pensar?” Perguntou Riley.
“Temos mesmo a certeza de que ele mantém as vítimas numa cave?” Perguntou por sua vez Lucy.
Riley pensou por um momento.
“Não temos a certeza,” Disse ela. “Pelo que sabemos, Meara Keagan apenas imaginou o cenário dos relógios e da cave. Parece algo bastante bizarro. Talvez se recorde melhor mais tarde.”
Bill tamborilava os dedos na mesa, parecendo estar extremamente impaciente.
“Além disso,” Disse Bill, “ainda não excluímos Jason Cahill como suspeito.”
Riley não respondeu. O seu instinto já o tinha excluído. Mas na falta de pistas, o seu instinto não era suficiente para persuadir Bill do contrário. De qualquer das formas, Cahill ainda estava sob custódia. Se ele fosse realmente o assassino, prová-lo-iam mais tarde ou mais cedo.
Naquele preciso momento, a porta da sala abriu-se e um polícia jovem de aspeto entusiasmado espreitou lá para dentro.
“Atacou outra vez,” Disse. “Tentou raptar uma mulher numa estrada rural. Só que desta vez ela conseguiu fugir. Vamos trazê-la para aqui agora mesmo.”
Pela primeira vez em muito tempo, Riley atreveu-se a ter esperanças.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
Quando chegou a casa naquela noite, Mafarrico estava cheio de dores e nódoas negras. Mal entrou pela casa adentro, o avô começou a fazer perguntas.
“Onde está ela? Onde está a rapariga?”
“Não a consegui apanhar,” Disse Mafarrico sem fôlego.
“O que é que queres dizer com não conseguiste apanhá-la?”
Mafarrico não respondeu. Limitou-se a atravessar a casa até à porta das traseiras.
“Fiz-te uma pergunta!”
Sem uma palavra, Mafarrico saiu intempestivamente para o quintal. Depois apressou-se pelo caminho na floresta que se encontrava no fundo do quintal.
“Então o que é que vais fazer agora?” Perguntou o avô.
Mafarrico continuava a não dizer nada. A verdade era que não fazia a mínima ideia do que ia fazer. Estava furioso por não a ter conseguido raptar na estrada rural. Precisava de descarregar a sua raiva de alguma forma.
Quando chegou à clareira quadrada, viu de imediato que a tubagem vertical estava na mesma posição antes da fuga da mulher. Tinha feito um bom trabalho a repará-la. Até tinha colocado ervas à sua volta.
Mas não parou para admirar o trabalho que tinha feito. Abriu a porta lisa e horizontal para o abrigo de aço. Ao descer as escadas, ouviu os relógios a baterem ruidosamente a meia-noite.
“Calem-se!” Gritou aos relógios ao entrar dentro do abrigo. “Calem-se, todos vocês!”
Mas é claro que os relógios não obedeceram. Até pareciam estar a gozar com ele – sobretudo aquele que tinha a forma de um olho enorme que piscava a cada badalada. Uma coruja ululante também parecia escarnecer dele e soava mais odiosa e desdenhosa do que o habitual. Um que parecia o homem na lua parecia rir-se dele.
Pegou no chicote de nove pontas e autoflagelou-se. Mas desta vez não verbalizou os seus pedidos de desculpa habituais, a sua patética promessa de que da próxima vez faria melhor. Estava demasiado zangado para isso.
Após alguns golpes com o chicote, reparou em dois rostos – os rostos das raparigas que ainda estavam presas no outro extremo do compartimento. Uma olhava para ele com olhos cadavéricos e ocos. Parou de se chicotear.
“Estás a olhar para quê?” Gritou-lhe Mafarrico por cima do barulho ensurdecedor dos relógios.
Uma delas não parava de olhar para ele. A outra baixou a cabeça. Agia como se nem ali estivesse.
“Tu!” Gritou-lhe. “Fiz-te uma pergunta!”
Mas ela não olhou para cima. Ele foi até à jaula, destrancou-a e entrou. A que não parava de olhar para ele fez um movimento na direção da porta. Ele chicoteou-a na cara impiedosamente. Ela afastou-se e virou-lhe as costas. O homem fechou a porta atrás de si.
Depois aproximou-se da que tinha a cabeça baixa.
“Tu!” Disse outra vez. “O que é que se passa contigo?”
Ela não respondeu, nem olhou para ele. Por fim, o homem agarrou-a pelos cabelos e puxou-lhe o rosto para cima. Tinha a mesma expressão vazia e vaga da outra rapariga.
“Responde à minha pergunta,” Gritou Mafarrico.
“A Meara fugiu,” Disse a rapariga numa voz fraca. “Ela foi buscar ajuda. A polícia vai salvar-nos.”
Mafarrico sentiu-se ligeiramente alarmado ao ser recordado da fuga da outra rapariga.
“Idiota!” Disse Mafarrico à rapariga cujo cabelo continuava a puxar. “Ninguém virá. Ninguém vos vai salvar.”
Agora a rapariga murmurava numa voz determinada e áspera, “A Meara fugiu. Vão descobrir-nos não tarda nada.”
A fúria de Mafarrico estava agora no seu auge. Agarrou na cabeça da rapariga e partiu-lhe o pescoço.
*
Riley estava sentada ao lado de Bill na sala de interrogatórios da esquadra de polícia, olhando para Sherry Simpson sentada do outro lado da mesa. A morena de aspeto saudável estava estonteada, mas ilesa. Riley sabia que fora preciso muito mais do que sorte para escapar às garras do assassino.
“O que nos pode dizer sobre o carro?” Perguntou Riley.
“Um Subaru Outback, penso,” Disse Sherry Simpson. “Bastante velho.”
“Excelente,” Disse Riley ao mesmo tempo que tirava notas. “Está a ajudar-nos muito.”
“E a matrícula?” Perguntou Bill.
Sherry fechou os olhos.
“Era uma matrícula do Delaware,” Disse. “Eu vi o número. Deixem ver se me lembro.”
Enumerou lentamente quatro números.
“Foi tudo o que vi,” Disse. “Ou pelo menos é tudo de que me lembro.”
Riley olhou para Bill que lhe devolveu o olhar com um sorriso. Sabia que estavam a pensar no mesmo. Os primeiros quatro números de uma matrícula do Delaware podia muito bem ser a peça que faltava no puzzle.
“Vou pedir à equipa para averiguar isto,” Disse Bill.
Levantou-se da mesa e saiu da sala.
Riley disse a Sherry, “Viu-o bem?”
Sherry pensou por um momento.
“Peço desculpa, mas estava escuro. Vi-o através dos faróis durante alguns segundos por isso não consegui reparar em nenhum pormenor. Não vos consigo dizer de que cor era o cabelo. Depois, quando olhou para mim da janela, só consegui ver que tinha um sorriso simpático. Por um momento, fui enganada.”
Riley não parava de tirar notas.
“E quando estava a lutar com ele?” Perguntou Riley. “Em que é que reparou?”
Sherry fez uma pausa para pensar um pouco mais.
“Penso que era mais alto do que eu,” Disse. “Talvez tivesse cerca de um metro e setenta e cinco. Tinha uma constituição média, estava em boa forma. Deu-me muita luta.”
Depois Sherry abanou a cabeça.
“Peço desculpa,” Disse. “Gostava de vos poder dizer mais. Devia ter prestado mais atenção. Talvez se tivesse tirado uma foto...”
Riley deu uma palmadinha reconfortante na sua mão. “Não tem mal, Sherry.” Ela compreendia como é que a pobre mulher se estava a sentir. Geralmente eram as testemunhas mais observadoras e concretas as que esperavam mais de si próprias.
“Não, faz mal sim,” Disse Sherry, com a voz agora algo sufocada. “Devia ter feito alguma coisa quando lhe dei o choque, quando ele estava atordoado. Devia tê-lo posto inconsciente. Ou matá-lo. Mas estava com tanto medo e ansiosa para fugir. Agora, ainda anda à solta.”
“Ouça-me, Sherry,” Disse Riley com firmeza. “Foi muito corajosa e muito esperta. Três outras mulheres morreram até agora. Mas você conseguiu fugir. E com aquilo de que se lembra, iremos muito provavelmente conseguir apanhá-lo finalmente.”
Entretanto, Bill apareceu à porta.
“Os números da matrícula foram suficientes,” Disse. “É mesmo um Subaru Outback, um modelo de 2000. E o nome do dono é Travis Kesler. Vive aqui na cidade.”
“Vamos juntar a equipa para o apanharmos,” Disse Riley.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Uma pequena equipa de polícias locais acompanhou Riley e Bill na aproximação à grande casa. Lucy seguia na cauda do grupo. Todos tinham armas prontas a disparar.
Riley não via luz em nenhuma das janelas da casa, mas isso não era de surpreender tendo em consideração que eram quatro horas da manhã. A sua mente analisava a informação que tinham recolhido. Parecia que Travis Kesler era um cidadão bem-sucedido e conhecido de Ohlman. Com a pressa de preparar a sua detenção, Riley não tivera muito tempo para fazer perguntas a seu respeito.
A casa tinha três andares e de certeza que tinha uma cave. Riley não tinha qualquer razão para duvidar de que tinham encontrado o homem que procuravam. E no entanto, não conseguiu deixar de reparar na enorme garagem de três portas adjacente à casa. Que tipo de carros se encontrariam numa garagem de classe alta como aquela? Talvez um Mercedes, um BMW ou um Porsche.
Não parece o tipo de pessoa que tenha um velho Subaru, Pensou.
Contudo, os registos da DGV não deixavam qualquer dúvida de que Travis Kesler era o proprietário do carro que Sherry Simpson tinha visto naquela estrada rural. Era mais do que suficiente para uma detenção.
Riley e Bill subiram até ao alpendre. Ela olhou para Bill e ele olhou para ela. Ela assentiu e ambos sacaram das armas. Bill bateu à porta.
“FBI,” Gritou. “Estamos à procura de Travis Kesler.”
Seguiu-se um silêncio. Bill olhou para Riley. Ela compreendeu que ele queria saber se podia arrombar a porta. Ela abanou a cabeça indicando que não. Se Kesler estivesse em casa, o mais certo era estar a dormir. Havia polícias a cobrir toda a casa por isso não havia perigo de fuga por outra porta.
Alguns instantes depois, Bill voltou a bater à porta. Uma luz surgiu na janela. A porta abriu-se e um homem vestido de pijama apareceu, Trazia uma espingarda.
“Pouse a arma!” Gritou Bill.
O homem olhou para eles. Os três agentes tinham os seus coletes do FBI vestidos e Riley segurava o seu distintivo para ele ver.
“Ok, ok!” Disse o homem, pousando a espingarda no chão. “Agora percebo que são realmente do FBI. Não sabia, daí ter pegado na minha arma.”
“Chama-se Travis Kesler?” Perguntou Bill.
O homem anuiu.
“Está preso pelos homicídios de três mulheres. E pelo rapto de Meara Keagan. Vire-se.”
O homem afastou-se.
“Ei. Esperem lá. Isto só pode ser algum engano.”
“Vire-se,” Repetiu Bill.
Riley estudava-o, entretanto. Parecia ter a altura e constituição descritos por Sherry Simpson. Mas parecia de facto que acabara de lutar com uma mulher que se tinha defendido com um taser?
Ouviu-se uma voz de mulher vinda das escadas no interior da casa.
“O que é que se passa, Travis?”
Riley conseguiu ver que vestia uma camisa de noite e um robe. Descia as escadas.
“É o FBI, Abby,” Disse Travis Kesler. “Penso que me estão a confundir com outra pessoa.”
Depois ouviu-se uma voz de criança vinda do topo das escadas.
“Mamã, Papá, quem está aí?”
Outra criança ouvia-se a chorar. A cabeça de Riley encheu-se de perguntas. Teria Kesler mulheres aprisionadas numa casa onde habitava com a mulher e os filhos? Tudo parecia fazer cada vez menos sentido.
“Está tudo bem,” Disse a mulher às crianças. “Não se preocupem. Vão dormir.”
Há algo de errado neste cenário, Pensou Riley.
Com um gesto silencioso, Riley fez sinal a Bill para largar as algemas. Bill não parecia muito satisfeito por obedecer. Riley virou a sua atenção para Travis Kesler.
“Sr. Kesler, é proprietário de um Subaru Outback de 2000?” Perguntou.
“Sim,” Respondeu Kesler.
“Podemos vê-lo, por favor?”
“Não,” Disse. “Não está cá.”
“Onde está?” Perguntou Riley.
“Penso que a minha irmã o terá. Talvez.”
Bill parecia incrédulo. “Talvez?” Disse.
“Podemos entrar?” Perguntou Riley ao casal.
Kesler encolheu os ombros. “Penso que sim,” Disse. “Devo, no entanto, dizer que isto é muito esquisito.”
Lucy e os polícias ficaram alerta no exterior da casa.
Depois Kesler e a mulher acompanharam Riley e Bill até à sua sala de estar espaçosa e bem decorada.
Riley disse, “Sr. Kesler, o seu veículo foi identificado pela vítima de um quase rapto. O atacante conduzia-o. Tudo aconteceu há apenas algumas horas, A identificação foi sólida. A vítima lembrava-se de parte da matrícula.”
“Não sei como é que isso é possível,” Disse Kesler.
“Pensámos que a Blair o tivesse,” Acrescentou a mulher de Kesler.
“Blair?” Perguntou Bill.
“A irmã de Travis,” Disse a mulher. “Ela trabalha para ele.”
Travis Kesler e a mulher sentaram-se, aparentando cansaço, choque e incompreensão.
“Tenho um negócio – Kesler Services,” Disse. “Coordenamos atrações locais e a câmara do comércio em termos de turismo local. Lidamos com atividades promocionais de todo o tipo. É um negócio florescente aqui nesta parte do Delaware. A Blair ajuda-me no escritório.”
Bill e Riley permaneciam de pé.
“Porque é que pensa que ela tem o seu carro?” Perguntou Riley.
Kesler encolheu os ombros. “Não tem viatura própria. Nunca teve. Por isso, pode levá-lo emprestado sempre que quer. Tem as chaves. Não sei quando é que o tem. É uma lata velha – o primeiro carro que tive. Mas mantenho-o por razões sentimentais. Quando a Blair não o tem, está estacionado à porta de casa. Como não está aqui agora, pensei que...”
A sua voz silenciou-se.
“Onde está a sua irmã?” Perguntou Riley.
“Ela disse que ia visitar uns amigos a Long Island,” Disse Kesler.
“E pensou que tivesse levado o carro?” Perguntou Bill.
Kesler sentou-se e pensou por alguns instantes.
“Bem, depreendi que sim,” Disse. “Não sei em que outro lugar o carro poderá estar.”
A mulher de Kesler acrescentou, “Às vezes vai de comboio.”
Ao começar a compreender a situação, Riley começou a desanimar. O assassino era mais esperto do que ela pensava. O mais certo era ter perpetrado todos os raptos em carros roubados para evitar ser apanhado. Roubara o Subaru de Kesler e ele nem se tinha apercebido.
De volta à estaca zero, Pensou.
Naquele momento, algo se iluminou dentro de Kesler.
“Esperem lá. Isto tem alguma coisa a ver com aqueles homicídios? Aquelas mulheres encontradas na zona? Meu Deus, pensam que estou envolvido nisso?”
Ficara bastante agitado. Mas antes de Riley ter a oportunidade de explicar o que quer que fosse, Lucy apareceu à porta.
“Agentes Jeffreys e Paige, preciso de falar convosco,” Disse.
Bill e Riley foram ter com Lucy ao exterior. Lucy e um dos polícias locais estavam no alpendre à sua espera.
“Acabámos de receber uma chamada da esquadra,” Disse-lhes Lucy. “Foi encontrado outro corpo.”
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
O cadáver macilento da rapariga apresentava um peculiar brilho rosa alaranjado quando observado à luz virgem da manhã. O sol começava a nascer e o rio refletia magníficos nuances dourados.
Um destes dias vou desfrutar de um nascer do sol outra vez, Pensou Riley.
Mas não fazia ideia de quando seria. Entretanto, nuvens começavam a formar-se no céu e Riley ouviu trovoada à distância. Ia chover dali a nada. Ficara acordada a noite toda e estava extremamente cansada. Se não dormisse rapidamente, o mais certo era começar a cometer erros.
O corpo encontrava-se a poucos metros de distância de uma estrada onde fora facilmente detetado por um condutor madrugador. Estava disposto de forma muito semelhante aos outros – rosto para cima com ambos os braços colocados de forma rígida. Havia cicatrizes no rosto da rapariga e Riley tinha a certeza de que encontrariam golpes nas suas costas, tal como tinha acontecido com os outros três corpos.
Riley, Lucy e Bill estavam ao lado do Chefe da Polícia de Ohlman, Earl Franklin, que se encontrava ajoelhado junto ao corpo.
“Que raio,” Disse o Chefe Franklin. “Acho que sei quem esta é.”
Levantou-se.
“Uma rapariga da terra chamada Elise Davey fugiu no verão,” Disse. “Tinha dezassete anos. A mãe ligou-me, disse que tinha fugido num ataque de raiva. Já não era a primeira vez. Já tinha fugido duas ou três vezes antes disso, uma das vezes tinha estado desaparecida durante vários meses. Desta vez não fiquei surpreendido. A sua vida em casa é horrível. A mãe é alcoólica e o pai violento.”
O Chefe Franklin parecia ter ficado profundamente perturbado.
“Procurámo-la, mas não o suficiente,” Disse. “Pensei que tivesse fugido para outro estado. Das outras vezes que fugira pedira boleia. Eu devia ter previsto que desta vez era diferente.”
Este tipo de culpabilização era familiar a Riley. Tinha passado por isso inúmeras vezes. Pousou uma mão no ombro de Franklin.
“Como podia saber?” Disse. “Não se culpe por isto. Não vai ajudar.”
“Alguém tem que comunicar a sua morte aos pais,” Disse o Chefe.
Riley voltou-se para Lucy.
“Lucy, vai até à cidade. Junta-te a um polícia local e informem os pais. Tenta saber se podem ajudar de alguma forma. Duvido que possam ter alguma informação útil, mas vale a pena tentar.”
“Vou já tratar disso,” Disse Lucy, afastando-se logo de seguida.
Riley tentou apreender a cena do crime. Ela, Bill e Lucy eram chamados com frequência para investigar os casos atípicos – aqueles onde os assassinos tinham os seus distorcidos propósitos pessoais. E este era, sem dúvida, um desses casos.
Mas o que é que este tipo está a tentar fazer? Perguntou Riley a si própria.
Alguns dos assassinos atípicos que apanhara davam especial ênfase à forma como dispunham os cadáveres. Até àquele momento, não conseguia decifrar a motivação deste assassino na forma como dispunha os corpos.
Naquele momento, surgiu um jovem com uma câmara. Tirou uma foto.
“Ei!” Gritou Riley. “Isto é a cena de um crime!”
O homem ignorou-a e continuou a tirar fotografias.
“Vamos embora,” Disse o Chefe Franklin, tentando convencer o fotógrafo a afastar-se. “Andor daqui.”
“O caraças é que me vou embora!” Disse o homem. “Sou repórter e isto é uma história importante. Esta é a quarta vítima desde Maio – sem contar com a mulher que fugiu. E todas esfomeadas. O que é isto, afinal?”
Ele sabia muitos pormenores. Riley pressupôs que talvez polícias pagos lhe tivessem dado essas informações.
“Que tipo de declaração vão fazer a este respeito?” Perguntou o homem.
Não parava de se movimentar à volta do cadáver, sempre a tirar fotografias de diferentes ângulos. Riley odiava quando abutres como aquele tipo metiam na cabeça que uma história sensacionalista era mais importante do que uma investigação.
A sua súbita fúria apanhou-a de surpresa. Empurrou o homem violentamente com ambas as mãos.
“Ei!” Gritou o homem, quase perdendo o equilíbrio.
Riley empurrou-o novamente e ele caiu no chão, deixando cair a máquina fotográfica. Riley pisou-a, esmagando-a debaixo do calcanhar.
“Isso era uma Nikon de mil dólares!” Vociferou o homem, erguendo-se.
“Era?” Disse Riley, sarcasticamente. “Oh, peço desculpa.”
Ele apanhou a máquina destruída e afastou-se de Riley.
“Vou processá-la, sua cabra maluca!”
“Por causa de um pequeno incidente destes?” Perguntou Riley. “Não me parece.”
“Como se chama?”
Riley mostrou-lhe o distintivo. “Agente Especial Riley Paige, FBI. Soletra-se p-a-i-g-e. Não se esqueça de o soletrar como deve de ser.”
“Vou-lhe tirar esse distintivo!”
Riley estava prestes a investir novamente contra ele quando sentiu o braço forte de Bill no seu ombro.
“Deixa, Riley. Deixa.”
O Chefe Franklin conseguiu finalmente afastar definitivamente o conflituoso repórter fotográfico.
Riley chamou-o. “Isolem o perímetro com fita amarela! Não tarda nada, aparecem mais como aquele!”
O Chefe Franklin anuiu.
“Que raio foi aquilo?” Perguntou Bill a Riley.
“O que é que te parece que foi?” Perguntou Riley. “Bill, sabes bem como estes repórteres podem estragar tudo.”
“Sim, mas lembras-te do que me disseste sobre o Dennis Vaughn? Podia perder o meu distintivo, disseste. Bem, tu também podias. Sabes bem que o Carl Walder está em pulgas para te despedir outra vez.”
Riley teve a noção de que Bill tinha razão. Talvez o repórter não dissesse nada sobre o incidente, embora duvidasse. Era bem mais provável que ela passasse a fazer parte da história. E o Walder não a largaria.
Mas naquele momento, não havia nada a fazer. Respirou fundo algumas vezes para se acalmar.
“Peço desculpa,” Disse. “Estou cansada e não estou a pensar devidamente. Vamos voltar ao trabalho.”
Ela e Bill voltaram para junto do corpo.
“O que é isto da fome?” Perguntou ela a Bill. “Todas as vítimas encontradas até agora estavam num estado de fome extrema.”
Bill abanou a cabeça.
“Talvez ele próprio tenha passado fome,” Disse. “Talvez seja algum tipo de vingança. Ou talvez não se queira dar ao trabalho de as alimentar. Talvez não tenha qualquer significado.”
Riley tinha a certeza de que havia algum significado por trás daquilo – ou pelo menos a fome servia algum fim. Tal como fizera em Mowbray, fechou os olhos e tentou imaginar a cena a partir da perspetiva do assassino.
E novamente foi avassalada por uma estranha sensação de que o assassino não agia sozinho. Não, não estivera ali com um cúmplice. Ele estivera ali sozinho com o cadáver. Mas este assassino parecia-lhe como que incompleto – incapaz de criar estes estranhos cenários por sua conta.
Ele segue ordens, Pensou novamente.
Mas que ordens eram essas? O que lhe mandavam fazer?
Subitamente, sobreveio-lhe uma ideia e os olhos abriram-se. Olhou para o corpo macilento e para a posição peculiar em que se encontrava.
“Bill, sei de uma coisa,” Disse sem fôlego.
“O que é que sabes?”
“Sei o que é que estas imagens significam.”
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Riley pegou no telemóvel, ansiosa para mostrar a Bill aquilo a que se referia. Começou por uma foto do cadáver de Metta Lunoe como fora encontrado em Maio.
“Olha para os braços,” Disse a Bill, apontando. “O braço direito está erguido acima da cabeça com a mão apontada para cima e o esquerdo num ângulo.”
Depois analisou uma foto do corpo de Valerie Bruner.
“Depois em Junho, este cadáver foi disposto de forma ligeiramente diferente. O braço e mão direitos estavam da mesma forma, mas o esquerdo estava sobre o abdómen.”
Seguiu-se uma fotografia da vítima encontrada no coreto em Redditch. O FBI tinha-a identificado como uma adolescente que fugira de casa no Connecticut chamada Chelsea McClure.
“E na segunda-feira, Chelsea McClure foi encontrada com o braço e mão esquerdos levantados e os direitos mais abaixo num ângulo – uma imagem em tudo semelhante à de Metta Lunoe.”
Por fim, Riley apontou para o corpo que tinham a seus pés.
“E agora temos Elise Davey – na mesma posição que Chelsea McClure, com exceção do facto de que o seu braço direito se estende um pouco mais acima.”
Bill abanou a cabeça e encolheu os ombros.
“Já vimos isto antes,” Disse. “Continuo a não perceber.”
Riley suspirou com alguma impaciência.
“O que é que Meara disse sobre a cave onde esteve presa?”
Bill pensou por alguns instantes. Depois Riley viu o rosto dele iluminar-se.
“Ela disse que estava cheia de relógios.”
“Tem tudo a ver com relógios, Bill. O assassino está obcecado com eles. Até arranja os cadáveres para se parecerem com relógios.”
Riley percorreu novamente as fotografias, comentando cada uma delas.
“Pois é,” Disse. “Parece-me que Metta Lunoe representa as cinco horas, Valerie Bruner as seis horas, Chelsea McClure as sete horas e agora Elise Davey as oito horas.”
Bill coçou pensativamente o queixo.
“Então ele está a tentar dizer-nos algo acerca do tempo,” Disse. “Mas o quê?”
“Isso é o que ainda não sabemos,” Disse Riley. “Mas ele manteve a Meara Keagan prisioneira até ela fugir e tentou raptar a Sherry Simpson. Ou ainda tem mulheres presas ou vai capturar outra, ou ambas. E não acabou por aqui.”
De repente, Riley foi inundada por uma tremenda onda de cansaço. Sentiu algumas gotas de chuva a cair e a trovoada aproximava-se.
Riley disse, “O melhor é chamarmos o médico-legista para fazer o seu trabalho. Não tarda nada começa a chover a sério.”
*
Mafarrico conduzia à chuva na Autoestrada das Seis Horas a norte de Ohlman. Tinha dito ao avô que ia à procura de outra rapariga. Era verdade, mas também tinha outras razões para sair.
As queixas do avô acerca dos seus falhanços recentes estavam a tornar-se insuportáveis, e as suas costas estavam demasiado maltratadas para se chicotear novamente. Afastar-se da casa e do abrigo era a única forma de fugir à voz do avô.
Ouvia a rádio desde que saíra de casa. Os homicídios já eram notícia. Até o FBI já estava envolvido e havia alguma agitação em torno de uma agente que tinha partido a câmara fotográfica de um repórter naquela manhã.
Por fim, os meios de comunicação social tinham percebido que os homicídios estavam relacionados. Não iria tornar a sua vida mais fácil. As mulheres estavam a ser avisadas para não pedir boleia e todo o Delaware parecia estar em alerta máximo.
Mas não era isso o que incomodava Mafarrico naquele momento. Ninguém na rádio fazia qualquer referência à mensagem que o avô pretendia transmitir. Seriam todos tão estúpidos para não compreenderem? Até o FBI não conseguia perceber?
Há tanto em jogo, Pensou. Todo o mundo está em jogo.
Ainda assim, Mafarrico sentia-se bastante bem. Estava contente com o novo carro que tinha acabado de roubar. Este Ford tinha mais classe do que aquele velho Subaru que andava a conduzir ultimamente. Tinha sempre o cuidado de não utilizar o seu próprio carro quando estava à procura de uma nova rapariga. Era demasiado esperto, dessa forma nunca o identificariam.
De qualquer das formas, não era difícil roubar carros por ali. Muitas vezes as pessoas deixavam as chaves lá dentro, sempre em lugares óbvios.
E apesar da chuva, Mafarrico tinha esperança que encontraria a rapariga certa. A que ainda tinha na jaula ainda não estava suficientemente magra. Era forte quando a capturara e ainda não estava satisfatoriamente desgastada. Trataria dela mais tarde. Naquele momento, precisava de alguém mais apropriado e depois de todo o azar, a sua sorte devia estar prestes a mudar. Mas tinha que contar com mais do que apenas sorte. Sentia uma nova presença à sua volta – uma espécie de espírito protetor que o queria manter seguro, queria que fosse bem-sucedido. Nada diria ao avô. O avô nunca acreditaria. O avô nunca acreditaria que conseguisse fazer alguma coisa bem feita.
No meio de todo o azar, algo positivo era óbvio: a rapariga Irlandesa que fugira não contara nada às autoridades. De acordo com boatos que ouvira, estava no hospital local e o quarto estava bem guardado. Mas talvez não estivesse consciente. Talvez nem estivesse viva. Mafarrico tinha a certeza de que não tinha que se preocupar com ela.
Até já não se preocupava com a mulher da pickup que lhe tinha fugido na noite anterior. O que quer que tivesse transmitido às autoridades, nada os conduziria a ele. O mais certo era terem ido à procura do dono do Subaru.
Essa perspetiva fê-lo soltar uma risadinha.
É bem-feita para ter mais cuidado com as chaves, Pensou.
E precisamente nesse momento, viu um sedan de gama alta a parar na berma da autoestrada. Tinha matrícula de Washington, DC. Ao passar lentamente pelo carro, um rosto de mulher fitou-o da janela.
A minha sorte está mesmo a melhorar! Pensou.
Parou o seu carro em frente do sedan. Estava demasiado vento para abrir um guarda-chuva por isso colocou um boné na cabeça e saiu. Quando chegou ao outro carro, a mulher baixou a janela.
“Já não era sem tempo ter chegado,” Disse rispidamente. “Já liguei para a assistência há vinte minutos, é suposto serem eficientes.”
Mafarrico inclinou-se para ela e sorriu. “Peço desculpa.” Disse. “Hoje temos pouco pessoal.”
“Onde está a carrinha?”
“Desculpe mas atrasou-se,” Disse ele. “Posso levá-la onde quiser no meu carro.”
“Bem,” Disse ela. Pareceu estar a pensar no assunto. “De certeza que não vou ficar aqui mais tempo à espera.”
“Claro, não tem que estar. É por isso que queremos ajudá-la.”
“Qualquer dano que suceda com o meu carro vou imputar-vos os prejuízos,” Disse ela.
“Claro, minha senhora. O nosso pessoal tratará de tudo por si.”
A mulher saiu do seu sedan com um casaco sobre a cabeça. “Alguém vai pagar por este serviço de má qualidade.”
“É claro que alguém pagará,” Respondeu Mafarrico.
Ao deixá-la entrar no carro, reparou que a mulher era extremamente magra, como se mal comesse. A sua sorte estava realmente a mudar. Algum espírito benfazejo estava realmente a olhar por ele.
Está pronta para quando o avô quiser, Pensou.
Não tinha que fazer esta passar fome para a poder matar.
“Vai correr tudo bem, minha senhora,” Disse Mafarrico à mulher.
CAPÍTULO VINTE E SEIS
No seu quarto de hotel, Riley dormitou a espaços enquanto a chuva caía lá fora. Estava exausta de não ter dormido nada na noite anterior. Ainda assim, estava demasiado preocupada para dormir profundamente. Sempre que começava a cair nos braços do sono, via relógios com rostos e ponteiros...
Cinco horas... seis horas... sete horas... oito horas...
Mas no lugar de ponteiros de relógio normais, via braços macilentos apontados aos números nos rostos-relógios.
O que significará? Perguntava-se insistentemente. Que tipo de mensagem quer passar?
E quando é que outro corpo ia aparecer, apontando para outra hora? Chelsea McClure fora descoberta na segunda-feira e Elise Davey só naquela manhã, quarta-feira. O assassino estava a agir com maior rapidez e o mais certo era agora não abrandar.
O que poderá ser tão urgente para ele?
Quando estava prestes a adormecer, o telemóvel tocou. Era uma chamada de April. Quando Riley atendeu, notou de imediato que April estava agitada.
“O que é que se passa?” Perguntou Riley.
“Não vi o Joel hoje,” Disse April.
Por um momento, de tão ensonada que estava, Riley não se lembrava de quem era Joel. Depois lembrou-se. Joel era o namorado de April. Aquele de quem Crystal, a Filha de Blaine, não gostava. Aquele que Riley não conhecia.
“Bem, montes de miúdos faltam às vezes às aulas,” Disse Riley, contendo um bocejo.
Agora April parecia desesperada.
“Mas ele disse que vinha hoje,” Disse. “Ele disse, ‘Vemo-nos amanhã.’”
“Quando é que ele disse isso?” Perguntou Riley.
“Ontem depois das aulas. Estávamos... a lanchar juntos depois das aulas.”
Riley sentiu uma nota evasiva no tom de voz de April. De alguma forma, Riley teve a certeza de que não tinham apenas lanchado depois das aulas. O seu antigo pressentimento de que aquele rapaz constituía um problema, avolumou-se.
“Já tentaste entrar em contacto com ele?” Perguntou Riley.
“Sim, mas não responde aos meus SMS ou mensagens,” Disse April.
Riley não conseguiu conter uma nota de seca ironia.
“Sei o que isso é,” Disse. Talvez agora April percebesse melhor como era ser deliberadamente ignorado.
“Não tem graça, mãe,” Disse April. “Não é nada dele. O Joel está sempre a enviar-me SMSs. Quero dizer, do tipo, constantemente.”
Riley não gostou daquilo. Enviar SMSs “sempre” – mesmo durante as aulas na escola? Talvez a ausência de Joel quisesse dizer que estava a perder o interesse em April. Se fosse esse o caso, Riley ficaria contente. Mas ainda assim, a April parecia muito preocupada.
“Não passou ainda muito tempo,” Disse Riley. “Tenho a certeza de que vais ter notícias dele em breve.”
“E se alguma coisa lhe tiver acontecido?”
“O quê?” Perguntou Riley.
Agora April quase estava a chorar. “Não sei, Algo muito mau. Mãe, preciso da tua ajuda. Não é possível que alguém, algum agente veja se está tudo bem com ele?”
“Sabes bem que não posso fazer isso,” Disse Riley.
“Porque não?”
Antes que Riley pudesse responder, ouviu um toque na porta do seu quarto. Tinha a certeza de que era Bill e que tinha novidades.
“Não posso falar disso agora,” Disse Riley. “Estou a meio de um caso de homicídio.”
“Claro,” Disse April, amarga e zangada. “É apenas o meu amigo. Ninguém importante para ti. Talvez te interesses se aparecer morto.”
“April!” Disse Riley.
Mas April desligou. Agora Riley estava, para além de exausta, emocionalmente abalada. Levantou-se e abriu a porta a Bill.
“Acabámos de saber que desapareceu outra mulher,” Disse Bill. “Conduzia sozinha pela Autoestrada das Seis Horas. Ligou para o serviço de assistência quando o carro começou a fazer ruídos estranhos. Disseram-lhe para encostar e ficar dentro do carro até chegar alguém. Quando chegaram, o carro estava vazio.”
Riley tentou processar rapidamente aquela nova informação.
“Temos alguma razão para acreditar que foi apanhada pelo assassino?” Perguntou.
“Não, mas também não temos razão para crer no contrário,” Disse Bill. “E isto vai dar que falar. Já ouviste falar de Wyatt Ehrhardt?”
Demorou apenas um momento para Riley se lembrar.
“Não é o novo congressista do Minnesota?” Perguntou.
“Sim, uma estrela política em ascensão. Vai ser reeleito na próxima semana. E a mulher dele é Nicole DeRose, herdeira de uma grande fortuna e antiga supermodelo.”
Riley engoliu em seco ao perceber a gravidade da situação. “E agora, ela está desaparecida,” Disse ela.
Bill andava de um lado para o outro. “Pois é. A Lucy está a investigar diversos lugares com uma equipa pela autoestrada, caso ande por lá. Mas não espero que encontrem nada. Ehrhardt está a caminho de Washington neste preciso momento. Temos que ir à esquadra para o conhecer. Encontramo-nos na entrada do hotel.”
Bill saiu do quarto. Riley calçou os sapatos e lavou a cara. Perguntava-se agora quão mais difícil aquele caso se tornaria.
*
No preciso momento em que Riley e Bill saíam do carro e caminhavam na direção da esquadra, a limusina de Wyatt Ehrhardt chegou. Ehrhardt saiu do seu interior, seguido por uma mulher jovem com uma pasta na mão. Entraram rapidamente no edifício com Bill e Riley no seu encalço.
Um momento mais tarde, já estavam na sala de interrogatórios. Riley, Bill e o Chefe Franklin apresentaram-se a Ehrhardt e à mulher que o acompanhava.
Fria e muito diplomática, a mulher apertou as mãos de todos.
“Sou Rhonda Windhauser, a assistente pessoal do congressista Ehrhardt,” Apresentou-se.
Riley reparou que Ehrhardt olhava para a mulher de uma forma estranha. Rhonda Windhauser parecia alguém muito satisfeita com o seu estatuto. Era uma morena jovem e voluptuosa. O seu vestido era curto e apresentava um profundo decote. Algo dizia a Riley que Rhonda Windhauser era mais do que uma simples assistente.
Ehrhardt era um homem de aspeto jovem e enérgico com cerca de trinta e cinco anos. O seu bronzeado e cabelo excessivamente arranjado eram demasiado perfeitos para o gosto de Riley. Ficou surpreendida com a sua própria antipatia pelo homem.
Talvez fosse porque era um político. A sua última experiência com um político tinha sido tudo menos agradável.
Há alguns meses atrás, a filha do Senador do estado de Virginia, Mitch Newbrough, tinha sido assassinada. Newbrough, narcisista e paranoico, estava convencido que o crime tinha uma motivação política, não atentando à realidade – tinha sido cometido por um puro psicopata. Acabou por fazer o FBI perder tempo e recursos com a sua teoria descabida. Também tinha conseguido que Riley fosse despedida.
Riley esperava que Ehrhardt não lhe fosse dar problemas idênticos. Mas tinha um mau pressentimento a seu respeito.
Daquilo que se lembrava, Ehrhardt vinha de uma família de classe média e gostava de se gabar das suas raízes, da sua empatia pelos Americanos comuns. Parecia óbvio a Riley que o seu aspeto não estava em conformidade com a mensagem que pretendia transmitir. Não era difícil perceber que só aquele corte de cabelo lhe devia ter custado centenas de dólares.
Mas que sei eu sobre os políticos? Pensou Riley para si própria.
“Bem,” Disse Ehrhardt, “presumo que estejamos à espera de um pedido de resgate.”
Riley ficou alarmada com o seu tom prático e direto.
“Porque diz isso?” Perguntou.
“Bem, geralmente é assim que as coisas funcionam, não é?” Disse Ehrhardt. “Quero dizer, eu e a minha mulher somos famosos, temos dinheiro. Alguém vai exigir um resgate mais tarde ou mais cedo. Sou novo neste tipo de situação. Como vamos lidar com isto? Vamos pagar ou não?”
O Chefe Franklin tamborilou os dedos na mesa.
Disse, “Sr. Congressista, lamento mas o rapto da sua mulher poderá ser de uma natureza diferente. Ainda não temos a certeza.”
Os olhos de Ehrhardt ficaram subitamente inquietos. “O que é que quer dizer com isso?” Perguntou.
Riley, Bill e o chefe olharam desconfortavelmente uns para os outros.
Riley disse cautelosamente, “Sr. Congressista, tem conhecimento de uma série de homicídios que têm ocorrido ultimamente nesta parte do Delaware?”
Ehrhardt parecia completamente surpreendido.
“Não,” Disse. “Mas também tenho andado muito atarefado com a campanha.”
Rhonda Windhauser não parecia nada surpreendida.
“Eu li algo sobre isso,” Disse ela. “Mas estou certa que o desaparecimento de Nicole não tem qualquer ligação.”
Riley estava cada vez mais perplexa com a atitude despreocupada demonstrada por aqueles dois.
“E o que a faz pensar assim?” Perguntou Riley.
“Bem, essas raparigas não eram ninguém importante, não é?” Disse a mulher. “Só raparigas – que tinham fugido de casa. A Nicole deve ter sido levada por outra pessoa. O timing para este rapto é o ideal. Quem quer que o perpetrou sabe que o congressista Ehrhardt não quer fazer muitas ondas neste momento. Tem que voltar à campanha rapidamente. Não se importará de pagar um resgate para isto terminar tranquilamente.”
Depois, pela primeira vez, o rosto da mulher foi atravessado por uma ligeira angústia.
“Espere,” Disse Rhonda a Riley. “Como é que se chama?”
“Riley Paige.”
A mulher abanou a cabeça e não disse nada. Riley compreendeu de imediato. Rhonda Windhauser devia ter sabido da pequena aventura de Riley com o fotógrafo. As queixas do homem tinham aparecido nas notícias. Por isso, Windhauser não estaria satisfeita por ter Riley no caso.
Bill disse a Ehrhardt, “Dada a natureza destes raptos e homicídios recentes, não temos outra alternativa que não seja pensar que o desaparecimento da sua mulher está relacionado com este caso. Temos que proceder com base nesse pressuposto.”
Ehrhardt trocou olhares com todos.
“Bem, não vos posso ensinar a fazer o vosso trabalho,” Disse. “Mas tenho a certeza que isto não passa de um mal-entendido.”
Rhonda deu-lhe uma palmadinha na mão – Riley pensou que de forma demasiado familiar.
“Não se preocupe, Wyatt. Devemos receber um pedido de resgate a qualquer momento. Vamos resolver tudo.”
Parecia a Riley uma estranha garantia. Desde quando é que os entes queridos de pessoas raptadas ansiavam por um pedido de resgate?
Rhonda olhou para Riley, Bill e o Chefe Franklin e acrescentou, “Parto do princípio que tudo farão para que esta situação não chegue ao conhecimento da comunicação social.”
“Faremos o que estiver ao nosso alcance para que isso não suceda,” Disse o Chefe Franklin.
Riley sentiu invadir-se por uma nova onda de desconforto. Quanto tempo conseguiriam manter este novo desenvolvimento longe da imprensa? Até ao momento, não tinham tido muita sorte nesse campo.
Bill debruçou-se sobre a mesa na direção de Ehrhardt.
“Sr. Congressista, sabe para onde se dirigia a sua mulher na altura em que foi raptada?”
Ehrhardt encolheu ligeiramente os ombros.
“Claro,” Disse. “A Nicole estava a caminho da casa de praia de Dwayne Prentice.”
“Presumo que já tenham ouvido falar de Dwayne,” Intrometeu-se Rhonda.
Riley lembrava-se vagamente de ver alguém na TV com esse nome – algum analista político.
“Na verdade,” Continuou Ehrhardt, olhando para o relógio. “Eu e Rhonda também lá somos esperados. O Dwayne vai conduzir uma grande reunião estratégica amanhã. Estávamos a preparar-nos para deixar DC quando nos ligaram.”
Algo nesta explicação parecia não bater certo para Riley.
“Espere,” Disse. “Acabou de chegar de limusina. Porque é que a sua mulher estava a conduzir sozinha?”
Ehrhardt e a sua assistente trocaram olhares.
“Presumo que nada do que dissermos sai daqui,” Disse Rhonda.
Riley, Bill e o Chefe Franklin anuíram.
“Bem, o Wyatt e a Nicole têm os seus desentendimentos, como qualquer casal,” Disse Rhonda com um sorriso artificial.
“Tivemos uma pequena discussão esta manhã,” Disse Ehrhardt. “Ela zangou-se e arrancou sozinha sem nós – sem mim. É que...”
Rhonda interrompeu-o antes que pudesse acrescentar algo mais.
“Não é nada,” Disse. “Não vale a pena fazer disto um grande problema. É muito importante manter a aparência, sobretudo quando a eleição está tão renhida.”
Riley sentiu um arrepio na forma como Rhonda proferiu aquelas palavras.
“É muito importante manter a aparência.”
Até aquele momento, Ehrhardt e a sua assistente, pareciam muito mais preocupados com as aparências do que com a segurança de Nicole – ou até com a sua vida.
Um casamento político como nenhum outro, Pensou Riley.
Lembrou-se de algumas das coisas que tinha visto e ouvido nas notícias a respeito de Ehrhardt. Apesar de ser proveniente de uma família de classe média, tinha-se casado com alguém de uma classe muito alta. Para além de ser uma supermodelo famosa, Nicole DeRose era a herdeira da fortuna de Vincent DeRose.
Ehrhardt tinha encontrado em Nicole a perfeita mulher troféu. Era belíssima e tinha todo o dinheiro de que precisava para financiar as suas ambições políticas. E o que é que Nicole recebia em troca? Bem, tendo em consideração a ascensão política de Ehrhardt, talvez se tornasse Primeira-dama algum dia.
Ehrhardt e Rhonda Windhauser pareciam a Riley dos seres humanos mais superficiais que já conhecera. Entre eles, talvez não tivessem um princípio moral. Seria possível que o desaparecimento de Nicole estivesse relacionado com a tentativa de ter a simpatia dos eleitores nas próximas eleições?
Riley não conseguia evitar pensar nisso.
“Posso ver uma foto de Nicole?” Pediu Riley.
“Claro,” Disse Rhonda. E da sua pasta retirou um portfólio de fotos de Nicole, muitas delas tiradas quando estava no auge da sua carreira de modelo.
O que de imediato chamou a atenção de Riley foi a magreza pouco natural daquela mulher. Tinha a certeza que era anorética ou bulímica.
A mulher daquelas fotos não tivera uma vida feliz, independentemente dos confortos de que se vira rodeada. Riley não conseguiu evitar pensar se Nicole DeRose Ehrhardt não conheceria uma morte ainda mais infeliz.
CAPÍTULO VINTE E SETE
Nicole esfregou a nuca novamente. Ainda doía do golpe que recebera depois de entrar no carro daquele homem horrível. Quando recuperou a consciência, estava naquela cave horrível e de odor duvidoso na companhia de uma adolescente maltratada. Tudo o que conseguia ver para além da barreira de correntes eram inúmeros relógios.
Nicole só sabia que tinha sido raptada e que ia ser pedido um resgate para a sua libertação. Tais episódios não eram inéditos numa família tão rica como a dela. Durante uma viagem ao México, uma das suas primas tinha sido raptada por um gang. A família tinha pago algumas centenas de milhares de dólares para que fosse libertada. A comunicação social nunca soubera de nada.
Tal devia ser a situação naquele momento. Nicole não estava especialmente assustada, mas estava furiosa. Se o Wyatt a não tivesse aborrecido, ela não se teria ido embora sozinha. Tinham discutido por causa do caso que tinha com Rhonda, aquela ordinária da assistente dele.
Ela não se importava que ele andasse a traí-la. Eles tinham um acordo e ela também o traía. Mas tinham concordado de fazer as coisas de forma discreta. Porque é que ele tinha que se vangloriar do caso estúpido que tinha com Rhonda? Parecia que queria que todos soubessem. Será que queria um escândalo numa fase tão precoce da sua carreira?
Mas Nicole sabia que não era prático perder tempo a pensar naquilo agora. Tinha que se concentrar na sua situação imediata. Quem era aquela outra rapariga e porque é que estava ali? Parecia estar a dormir desde que Nicole recuperara a consciência. Nicole deu uma cotovelada à rapariga e ela começou a acordar. Levantou a cabeça sem forças.
“Quem és tu?” Perguntou a rapariga numa voz praticamente inaudível.
“Não importa quem sou eu,” Disse Nicole. “Quem és tu?”
“Chamo-me Kimberly,” Disse. “Não sou ninguém.”
A rapariga baixou a cabeça.
“Bem, não podes ser ninguém,” Disse Nicole. “Quero dizer, alguém te raptou. A tua família deve ter dinheiro. Que tipo de resgate é que ele está a exigir?”
A rapariga ergueu a cabeça e emitiu uma risadinha áspera e sinistra.
“Um resgate?” Disse ela. “O que é que pensas que se passa aqui? Ele não quer resgate nenhum. Ele vai matar-nos.”
Aquelas palavras apanharam Nicole de surpresa. Não que ela acreditasse naquilo. Não fazia qualquer sentido.
“Bem, de certeza que não planeia matar-me a mim,” Disse. “Valho demasiado dinheiro viva. Não me reconheces? Sou Nicole DeRose. Já me deves ter visto em revistas ou na televisão.”
A rapariga abanou a cabeça num gesto de cansaço. Não parecia minimamente interessada em quem era Nicole.
“Ele mata-nos a todas,” Disse Kimberly. “Já o vi matar duas de nós.”
Agora Nicole começava a preocupar-se. Mas não podia ser verdade.
“Ele não me vai matar,” Disse novamente, tentando convencer-se.
A rapariga olhou-a de alto a baixo.
“Oh, ele vai matar-te,” Disse. “Quase que aposto que te mata a ti antes de me matar a mim.”
Nicole sentiu o medo apoderar-se de si.
“Porquê?” Perguntou.
“Porque és ainda mais magra do que eu. Deixa-me passar fome desde que aqui cheguei mas está sempre a dizer que ainda não estou suficientemente magra. Tenho demasiada carne nos ossos. Mas tu... Bem, tu já és tão magra como as outras que ele matou.”
Nicole estremeceu. Olhou atentamente para a rapariga. Por muito faminta que Kimberly estivesse, Nicole era incontestavelmente mais magra. Fora anorética toda a vida. Contudo, nunca pensara no problema como uma doença. Devia a sua magreza pouco natural à sua carreira de modelo.
Tentava convencer-se que a rapariga estava doida e só dizia coisas sem sentido. Porque é que alguém mataria mulheres só por causa da sua magreza?
Naquele momento, todos os relógios começaram a tocar e a fazer um chinfrim ensurdecedor. E quando tal aconteceu, um homem surgiu atrás da vedação. E Nicole imediatamente o reconheceu como o homem que a tinha enganado e capturado na autoestrada.
Não parecia uma pessoa má, mas era estranho. Enquanto os relógios continuaram embrenhados no seu barulho selvagem, ele caminhou entre eles, ajustando-os. E falava calmamente consigo próprio.
Nicole gritou para ser ouvida acima daquele ruído, “Ei, quanto tempo me vai manter aqui?”
Ele não respondeu, continuou a murmurar e a brincar com os relógios. Logo de seguida, o ruído começou a desvanecer.
Talvez devesse tentar conversar com ele, Pensou.
Não parecia absurdo. E para além disso, crescera rodeada de antiguidades. Apesar de muitos daqueles relógios parecerem antiquados e vulgares, alguns pareciam verdadeiras peças de colecionador.
“Adoro esses seus relógios,” Disse. “Esses relógios de cuco são originais da Floresta Negra? E esse relógio de pé é um Jacob Godschalk genuíno? Uau, deve valer milhares de dólares.”
O homem virou-se e olhou para ela. Começou a falar novamente – mas não para Nicole. Parecia estar a falar com alguém invisível na sala.
“Tens razão,” Disse o homem. “Ela é perfeita.”
Para grande inquietação de Nicole, o homem pegou num chicote de várias pontas que estava em cima de uma mesa e caminhou na direção da jaula. Tinha um olhar ameaçador.
“Ouça, precisamos de falar,” Disse ela, temerosa. “Talvez não saiba quem sou. Sou Nicole DeRose. Fui capa de muitas revistas. A minha família é dona da Vincent DeRose, a empresa de vinhos. Sou casada com Wyatt Ehrhardt – sabe, o congressista do Minnesota.”
“Cala-te,” Disse o homem, agora dirigindo-se a ela.
“Espere um momento,” Disse Nicole. “Parece não entender que valho muito dinheiro. Não sou uma qualquer. E se alguma coisa de mau me acontecer, vai estar em maus lençóis. Mas não há necessidade disso. Pode obter um milhão ou até mais como resgate. Eu sou um jackpot. Posso dizer-lhe a quem pode ligar.”
O homem abriu a jaula e penetrou no seu interior.
“Cala-te,” Disse outra vez o homem.
Depois chicoteou-a no rosto. Ela afastou-se, gritando de dor. Tentou fugir, mas não havia para onde ir.
CAPÍTULO VINTE E OITO
Quando a reunião com Wyatt Ehrhardt e a sua assistente terminou, um polícia foi ter com Riley, Bill e o Chefe Franklin e comunicou-lhes com ar preocupado.
“Temos um problema – um grande problema,” Disse. “Temos jornalistas à espera lá fora.”
Riley ficou preocupada.
Vários polícias formaram uma unidade de guarda improvisada à volta de Ehrhardt e Rhonda, conduzindo-os por uma porta que conduzia às traseiras do edifício. Dali por alguns minutos, o polícia que os informara regressou.
“Conseguimos fazê-los sair sem problemas,” Disse. “Levámo-los para fora do edifício e a limusina estava à espera nas traseiras. Mas agora os jornalistas foram para a porta das traseiras.”
Lá se foi o manter isto longe da comunicação social, Pensou Riley.
Quem quer que estivesse a passar a informação, andava extremamente ocupado.
Riley olhou em redor da esquadra de polícia. Os polícias e pessoal de apoio pareciam estar a fazer o seu trabalho de uma forma perfeitamente normal. Estavam sentados ao computador, ao telefone, a beber café, a conversar. Nada parecia suspeito ou deslocado.
Mas então Riley percebeu que dar dicas à imprensa podia ser algo perfeitamente normal ali. Alguém podia estar a receber dinheiro ou apenas a fazer um favor a um amigo. No final de contas, agora que estava um congressista envolvido, receber dicas de uma esquadra pequena não era propriamente difícil.
O polícia que os informara disse, “Podem sair por onde quiserem.”
Bill encolheu os ombros e dirigiu-se à porta de entrada. Riley seguiu no seu encalço e observou que apesar da chuva persistente, um grupo de repórteres com câmaras e microfones estavam à espera logo à saída da esquadra. Assim que Riley e Bill saíram da porta, os jornalistas caíram-lhes em cima.
“O que é que nos podem dizer sobre o rapto de Nicole DeRose?” Gritou um.
“Foi levada pelo ‘assassino dos relógios’?” Perguntou outro.
O cenário era bem mais preocupante do que Riley esperara. Até parecia que alguém tinha revelado a sua teoria de que os corpos eram dispostos como relógios.
“Sem comentários,” Gritou Riley.
Riley e Bill forçaram o caminho pela multidão compacta de pessoas e câmaras.
“É Riley Paige, não é?” Gritou uma mulher.
“É verdade que no início deste ano foi despedida do FBI?” Gritou um homem.
“Vai partir mais máquinas fotográficas?” Gritou outro.
A situação parecia desesperante. Tinham o carro estacionado a meio quarteirão de distância. Riley sentia a fúria a avolumar-se dentro de si. Não conseguia perceber como é que ela e Bill iam conseguir fugir a estes abutres sem dizerem algo que não devesse ser dito.
De repente, ouviu a buzina de um carro. Virou-se e viu Lucy que parou o carro e abriu a porta.
“Entrem!” Gritou Lucy a Bill e Riley.
Bill e Riley entraram atabalhoadamente no carro e Lucy arrancou.
Mas Riley não se sentia aliviada com aquele salvamento. A atmosfera que rodeava o caso mudara. A pressão aumentava a cada minuto que passava. E Riley sabia que era o tipo de pressão que não conduzia a soluções, mas a terríveis enganos.
*
Nicole DeRose Ehrhardt tinha simplesmente desaparecido. Lucy tinha organizado as habituais equipas de busca para percorrer a área, mostrando a foto da desaparecida e solicitando pistas. Riley e Bill tinham acabado por conseguir ir buscar o seu carro e juntaram-se às buscas. Não encontraram rasto da mulher, nenhuma indicação se tinha sido capturada pelo assassino que procuravam ou por um raptor mercenário em busca de um resgate milionário. Já era tarde e ainda não sabiam que tipo de caso tinham em mãos.
Quando Riley e Bill se viram livres dos jornalistas, encontraram uma casa de hambúrgueres e pensaram no caso enquanto comiam hambúrgueres e bebiam cerveja. Mas sabiam que o assassino que tinha apanhado as outras raparigas as tinha mantido presas durante algum tempo. Se mantinha Nicole presa, ainda tinham a possibilidade de a encontrar antes que ele voltasse a matar.
“Não consigo deixar de pensar,” Disse Riley. “se a mulher do congressista encenou toda esta situação.”
“Queres dizer que encenou o rapto?” Perguntou Bill. “Não podia fazer isso para lhe extorquir dinheiro, porque o dinheiro é todo dela.”
“Talvez só quisesse fugir,” Disse Riley, apercebendo-se do tom melancólico na sua própria voz. “Talvez tivesse algum amigo encantador à sua espera para escaparem rumo a uma vida mais pacífica. Algures numa ilha deserta.”
Bill deu uma dentada no seu hambúrguer, considerando essa possibilidade.
“Segundo todos os relatos, ela participou na sua carreira política. Raios, ela pagou-lhe a carreira.”
“Eu sei. Talvez tenha pago de várias formas. E é claro que tens razão. Ela deve ser tão ambiciosa como ele. Penso que tinha que ser muito dedicada ou não o aturaria a ele e à sua importuna assistente.”
Antes de terminarem a refeição, o telefone de Bill tocou.
Bill disse, “Um e-mail de Rhonda Windhauser.” Vou lê-lo em voz alta. “O congressista Ehrhardt acabou de ter uma proveitosa conversa com o Agente Responsável pela UAC, Carl Walder. Se não houver novos desenvolvimentos esta noite, reunimo-nos novamente amanhã de manhã para discutir várias opções sobre esta situação. Estejam na seguinte morada...”
“Reencaminha-me,” Disse Riley.
“Já vai a caminho,” Disse Bill. “A reunião não é em Ohlman, é na praia. Talvez consigamos apreciar uma vista para o oceano.”
Quando regressaram para os seus quartos de hotel, Riley enviou um SMS a April mas não obteve resposta. Riley tinha a certeza que a filha ainda estava zangada com ela por não a ajudar a procurar o namorado.
Riley despiu-se e foi tomar um banho quente. Ao sentir a água quente descer-lhe pelo corpo, Riley teve a certeza de que o namorado de April apareceria no dia seguinte. Depois, April não a pressionaria tanto. Mas Riley também sabia que a pressão com o caso que investigava ia aumentar consideravelmente.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
April ficou aliviada quando viu Joel sentado no banco logo à saída da escola. Parecia estar bem. Mas onde estivera no dia anterior? O que acontecera?
“Joel,” Chamou-o April, correndo na sua direção.
Quando olhou para ela e a viu, sorriu como se nada tivesse acontecido. Agia como se não tivesse desaparecido durante um dia inteiro.
“Onde é que estiveste ontem?” Perguntou April. Sentia as lágrimas prestes a explodirem, mas conseguiu evitar que caíssem. “Estava preocupada.”
“Ausentei-me,” Disse.
“Não atendeste as minhas chamadas.”
Ele encolheu os ombros. “Como disse, ausentei-me.”
April não sabia o que dizer ou o que pensar. Porque é que ele estava a ser tão descontraído em relação àquilo? Sentou-se a seu lado.
“O que é que se passa, Joel? Fiz alguma coisa de errado?”
“Claro que não,” Disse ele, colocando a mão no joelho de April. “Tu és perfeita. Sempre. Mas tive que me encontrar com uma pessoa para fazer uma compra interessante. Queria experimentar umas coisas. Julguei que não quisesses lá estar.”
Agora Joel olhava diretamente para April, estudando o seu rosto e sorriso tranquilo. Ainda assim, parecia de alguma forma distante. E ela não suportava isso.
Até os seus elogios parecem estranhos hoje! Pensou April.
April sentiu as lágrimas a quererem aflorar novamente.
“Porque é que estás tão aborrecida?” Perguntou ele.
“Disseste que me amavas.”
Agora a sua voz soava descaradamente fria. “E amo-te, April. Quero estar contigo sempre. Mas há algumas coisas que tu não queres fazer, por isso tenho que as fazer sozinho.”
Ela sabia que ele estava a falar de drogas. Ela nem sabia os nomes de algumas delas, coisas novas e novos nomes.
“Então experimentaste alguma coisa nova?”
“Uma coisa que ainda não tinha conseguido experimentar. Foi uma ótima experiência. Gostava de partilhar esse tipo de coisa contigo. Só contigo. Mas tu pareces não estar interessada. Não há problema, não te obrigo a nada. Nunca o faria. Mas...”
April respirou fundo. Já antes enfrentara aquele muro entre eles. “Sabes que não gosto de experimentar nada além de erva. Não estou para lixar a minha vida. A minha mãe quer que eu siga os estudos. Já tem mais em que pensar.”
“Bem,” Disse ele. “É bom que a tua mãe confie em ti.”
April não sabia como interpretar aquelas palavras. Joel não disse mais nada durante alguns minutos e ela ficou ali à espera.
Depois olhou para ela e sorriu.
“Isto só se consegue com receita, de qualquer das formas. As pessoas doentes tomam isto constantemente. Sabes que os médicos não dão aos pacientes coisas que lhes façam mal. É um analgésico e pode fazer-te sentir muito bem.” Deu uma risada e acrescentou, “Acaba com todos os tipos de dor.”
“Como é que conseguiste?”
“Conheço um tipo que conhece um médico. Não é fácil de arranjar, mas assim sei que é seguro de tomar.”
“Se fosse realmente seguro...” E April não prosseguiu. Ela queria perguntar, Não seria legal? Mas pensou que passaria por estúpida.
“Pensava que compreendias. Só estou a tentar não me entediar. Gostava que experimentasses. Nunca te daria uma coisa que te magoasse.”
April sabia que Joel era muito inteligente e era tão querido com ela. E giro. E popular. Montes de raparigas dariam um braço para poderem sair com ele.
April ouviu a campainha e sabia que era o sinal para ir para a sua próxima aula.
“Vemo-nos depois das aulas?” Perguntou April.
Ele encolheu os ombros.
“Tenho coisas combinadas para hoje.”
April sentiu-se invadir por uma onda de pânico.
Ele virou-se e olhou para ela.
“Mas se deixares de ser tão rígida, talvez nos possamos encontrar.”
Chegara a altura de tomar uma decisão. April estava farta de resistir. De que é que lhe tinha valido ser uma “boa menina”?
Sorriu ao sentir a sua última réstia de relutância desaparecer. Não se podia arriscar a perder Joel.
“Eu experimento,” Disse. “Eu experimento o que quiseres.”
CAPÍTULO TRINTA
Riley estava apreensiva quando se dirigiram para o grande portão de ferro. Mesmo do exterior, não gostou do aspeto da pequena comunidade chamada “As Dunas”.
No decorrer de toda a sua carreira, nunca tivera uma única experiência positiva com estas comunidades fechadas. E tinha a certeza que aquela pequena excursão às vidas dos ricos e privilegiados não iria ser diferente.
Bill parou o carro e um guarda de uniforme saiu da guarita de segurança.
“O que desejam?” Perguntou.
Bill e Riley mostraram os distintivos.
“FBI,” Disse Bill. “Uma visita de rotina.”
O guarda parecia extremamente desconfiado. Riley não conseguia perceber porquê.
“Deixem-me ver isso,” Disse o homem, esticando a mão.
Com um olhar relutante, Bill entregou-lhe o distintivo. O guarda examinou-o à luz do sol.
Será que ele consegue mesmo saber se é verdadeiro ou falso? Pensou Riley.
“O que desejam?” Repetiu o guarda, entregando o distintivo a Bill.
“Estamos aqui para falar com o congressista Wyatt Ehrhardt,” Disse Bill. “Na casa de Dwayne Prentice.”
Agora o guarda parecia mais desconfiado do que nunca. Afastou-se para falar no rádio.
“O que é que se passa?” Perguntou Bill a Riley.
Riley encolheu os ombros. Não fazia a mínima ideia.
O guarda voltou para junto do carro.
“Ok, podem entrar,” Disse. “Virem à direita quando chegarem a Ocean Drive. É a última casa que encontrarem.”
O portão abriu-se. Bill atravessou-o desembocando numa rua larga, entre casas grandes que pareciam flutuar sobre relvados impecáveis. À medida que se aproximavam do oceano, as casas iam-se tornando maiores e mais espaçadas. Riley tinha a certeza de que tudo o que avistavam valia milhões.
Pararam em frente a uma grande casa moderna com muitas janelas. Um homem que estava no exterior da casa aproximou-se do carro e verificou as suas identificações. Também ele parecia desconfiado. Mas indicou-lhes um lugar de estacionamento. Vários outros carros já ali estavam.
Bill apontou. “Olha para aquilo,” Disse.
Sem dúvida que um dos carros era um veículo do FBI.
“O que é que se passa?” Perguntou Riley a Bill. “Eu, tu e a Lucy não éramos os únicos agentes a quem o caso estava entregue? Quero dizer, sem contar com a polícia local?”
“Parece que talvez não,” Disse Bill.
Pelo menos agora Riley já sabia porque é que o guarda estava tão desconfiado em relação a eles. Ele já tinha deixado passar pelo portão outros agentes do FBI. Fora uma sorte ele considerá-los verdadeiros agentes.
Riley e Bill saíram do carro e caminharam na direção da entrada da casa. Uma criada abriu-lhes a porta e conduziu-os até uma sala enorme com um teto altíssimo. A sala estava iluminada por luz solar que se derramava através das enormes janelas e pelo fogo que advinha de uma lareira acesa.
Quatro pessoas sentadas em amplos sofás de couro levantaram-se para os cumprimentar. Dois deles eram Ehrhardt e a assistente Rhonda que estava provocadoramente vestida como no dia anterior. Os outros dois apanharam Riley completamente de surpresa.
“Huang! Creighton!”
Os nomes saíram da boca de Riley antes que pudesse pensar e não conseguiu esconder uma nota de desânimo no tom de voz. Pelas suas expressões, Riley percebeu que tinham percebido a sua falta de entusiasmo pela sua presença.
Os Agentes Emily Creighton e Craig Huang eram relativamente novos em Quantico e também jovens. Tinham cometido erros de principiantes quando tiveram que lidar com o assassino das bonecas há alguns meses atrás. No entanto, parecia a Riley que Huang, o mais novo dos dois, tinha amadurecido desde então. Quanto a Creighton, não sabia.
Riley tinha consciência que eles eram os favoritos de Carl Walder. Estava contente por Walder não estar lá. Mesmo assim, a sua chegada significava que Walder estava diretamente interessado neste caso. E não era surpresa. Sempre oportunista, estaria naturalmente interessado em qualquer caso que envolvesse alguém com ascendente político.
Mas Riley sabia que aquilo não augurava nada de bom, pelo menos para ela. Walder estava indubitavelmente a pensar em retirá-la do caso – se é que ainda não o tinha feito.
Ambos os jovens agentes cumprimentaram Bill e Riley.
“Sentem-se, por favor,” Disse Rhonda.
Bill e Riley sentaram-se em confortáveis poltronas de cabedal. Riley olhou por uma janela ampla para um pátio e uma grande piscina. Não muito longe, viu uma duna de areia e para lá da duna, o oceano. A vista era quase assustadoramente perfeita. Pensou se alguém já tinha caminhado por aquela praia ou aventurado no oceano. Provavelmente não. A casa parecia um mundo virado para dentro de si mesmo.
Riley sentiu-se impelida a dizer algo agradável.
“Que casa magnífica,” Disse.
Mas a verdade era que não achava a casa nada magnífica. Apesar do odor a pinho, quase conseguia detetar o odor desagradável do dinheiro à sua volta. Lembrou-se que a casa era propriedade de um analista político. Mas que espécie de analista político podia ser tão rico era algo que a intrigava.
Rhonda perguntou a Bill e a Riley, “Querem beber alguma coisa? Chá? Whiskey?”
“Estão de serviço, Rhonda,” Disse Ehrhardt.
“Claro,” Retorquiu Rhonda.
Tanto Bill como Riley não quiseram nada para beber.
“Peço desculpa por fazê-los vir até cá,” Disse Ehrhardt a Riley e Bill. “Só queria uma atualização e não posso ir a lado nenhum sem ser incomodado por uma multidão de jornalistas. Os Agentes Creighton e Huang chegaram há pouco. Não estava à espera deles, Esperava que me pudessem colocar a par dos desenvolvimentos.”
“Bem que gostava de ter algo de novo para lhe dizer,” Disse Bill.
Riley acrescentou, “A verdade é que não temos nada a acrescentar desde que falámos consigo ontem.”
Ehrhardt parecia preocupado. Era o mesmo olhar de preocupação superficial que Riley havia observado no dia anterior – como se tivesse perdido um jogo de golfe.
“Tudo isto é muito perturbador,” Disse Ehrhardt. “Tínhamos uma importante sessão de estratégia agendada para hoje, mas todos se cancelaram a presença quando souberam das notícias sobre a Nicole. E estamos a poucos dias das eleições. Será que não teremos paz? Não percebo porque é que ainda não nos pediram um resgate.”
Riley mal conseguia acreditar no que ouvia.
“Sr. Congressista, já falámos sobre isto ontem,” Disse Riley. “Temo que haja grandes probabilidades de o rapto da sua mulher ser o ato de um assassino em série. Não devemos esperar um pedido de resgate.”
Creighton e Huang aclararam as gargantas e moveram-se desconfortavelmente no sofá.
“O que é que se passa?” Perguntou-lhes Riley.
Creighton disse, “Parece que o Agente Especial Responsável Carl Walder não partilha da sua opinião.”
Huang acrescentou, “Ele está convencido que se trata de um rapto vulgar que não está de forma nenhuma relacionado com os homicídios que têm ocorrido na região.”
Agora Riley estava perplexa.
“E como é que ele chegou a essa conclusão?” Perguntou.
Creighton encolheu os ombros. “Bem, quais são as probabilidades do vosso ‘assassino dos relógios’ ter tropeçado na mulher de um congressista? Não vos parece que é uma grande coincidência?”
“Sim!” Disse Riley quase a gritar. “É uma coincidência! E quando vocês tiverem suficiente experiência vão perceber que as coincidências realmente acontecem. E o Walder já o devia saber há muito tempo.”
Pelo canto do olho, Riley apercebeu-se da expressão ansiosa de Bill.
“Riley...” Começou Bill.
Mas Riley já não conseguia estar calada. Virou-se para Ehrhardt e disse, “Sr. Congressista, com todo o respeito, o Agente Walder é um verdadeiro imbecil. E nós não temos tempo para esta merda.”
“Riley!” Exlamou Bill de forma mais incisiva.
Mas Riley continuou. “É muito provável que a sua mulher esteja nas garras de um psicopata assassino. Ela precisa de ser encontrada e salva. Não nos podemos limitar a ficar à espera de um pedido de resgate.”
Riley ouviu Creighton dizer.
“Agente Paige, nós tratamos disto.”
Riley voltou-se para os dois agentes perplexa.
“De que é que estão a falar?” Perguntou.
Huang disse, “O Agente Especial Responsável Walder enviou-nos para tratar do rapto. Não quer que se distraia do seu caso.”
Riley ficou boquiaberta. “Distraída? Este é o meu caso.”
Bill pronunciou o nome de Riley mais energicamente. Ela virou-se e olhou para ele. A expressão de Bill dizia-lhe que chegara o momento de se calar. E obrigou-se a fazê-lo. Bill levantou-se da cadeira.
“A minha parceira e eu compreendemos,” Disse Bill a Creighton e Huang. “Vamos deixá-los trabalhar.”
Depois virando-se para Ehrhardt acrescentou, “Desejamos que tudo corra pelo melhor neste momento complicado.”
Ehrhardt limitou-se a assentir, obviamente chocado pelo rancor que transpirava na sala. Bill saiu da casa e Riley seguiu-o calada. Entraram no carro e Bill começou a conduzir.
“Que raio, Riley,” Disse. “Lembras-te quando foi aquela situação com o Dennis Vaughn há alguns dias? Bem. Agora é a minha vez de perguntar... o que é que se passa contigo?”
Riley resmungou.
“Bill, não me digas que acreditas que o desaparecimento de Nicole DeRose é um rapto normal.”
“Não, não acredito. Mas não é essa a questão.”
“Qual é a questão?”
Bill respirou profundamente.
“Pensa bem no que se está aqui a passar,” Disse. “Wyatt Ehrhardt pensa que a mulher foi raptada para pedirem um resgate. Como tal, o Walder também pensa dessa forma. Quero dizer, o Ehrhardt é um político famoso, como é que poderá estar enganado? O Walder é bajulador a esse ponto, para além de estúpido. Mas não podemos fazer nada para alterar isso.”
Riley olhou silenciosamente pela janela por onde desfilavam casas sumptuosas.
Bill continuou, “O Walder e os seus mínimos têm razão numa coisa. Vir até aqui foi uma distração – um desvio. Aqui não vamos encontrar pistas. Temos que voltar para Ohlman e resolver este caso.”
Agora o guarda na guarita acenava-lhes.
Riley suspirou. “Agora é que estou em sarilhos, não é?”
Bill deu uma risada amarga. “Um ‘imbecil’? Pois, se ele sabe disso – e podes ter a certeza que saberá – estás em sarilhos, sem dúvida. Já estavas por causa daquela cena com a máquina. De certeza que o Walder soube disso. E sabes bem que ele está sempre à procura de uma oportunidade para te tirar o distintivo.”
Agora estavam na autoestrada. Ohlman ficava a apenas quinze minutos de distância.
Bill acrescentou, “Se estiveres enganada a respeito da mulher do Ehrhardt, vai ser o diabo.”
Riley não respondeu. A verdade era que esperava estar enganada. Mesmo que significasse perder o emprego, ela esperava que Nicole DeRose tivesse sido vítima de um rapto comum e que um resgate resolvesse tudo. Riley não suportava a ideia de que outra mulher pudesse ter o mesmo destino das outras vítimas.
CAPÍTULO TRINTA E UM
O dia havia sido pouco produtivo, mas ainda assim Riley não voltou para o seu quarto antes das 22:00 dessa noite. Ainda não estavam mais próximos de encontrar o assassino ou as mulheres que mantinha presas. Para tornar tudo ainda pior, ela e Bill tinham que evitar os jornalistas para onde quer que fossem.
Riley sentou-se na cama e olhou para os SMSs que enviara a April durante todo o dia. O último ainda estava marcado como “entregue” e não como “lido”. April estava atarefada em continuar a ignorá-la.
Riley ligou para o telefone de casa e foi Gabriela quem atendeu.
“Como estão as coisas por aí?” Perguntou Riley. “O que é que se passa com a April?”
“Não sei, Señora Riley,” Respondeu Gabriela com uma voz que denotava desconforto. “Tem andado muito estranha, não fala muito. Foi para a cama cedo.”
Riley ficou preocupada com o relato de Gabriela.
“Ela não tem andado a faltar à escola, pois não?” Perguntou.
“Não. Chegou tarde a casa na terça-feira, disse que tinha estado na biblioteca.”
Riley sentia a incerteza na voz de Gabriela. E ela própria também sentia essa incerteza.
Gabriela prometeu ligar se houvesse algum problema e deram a chamada por terminada. Riley continuou sentada na cama, a pensar se conseguiria adormecer. Tinha tanto com que se preocupar. O caso não estava a correr bem e, de qualquer das formas, parecia que seria retirada dele a qualquer momento. Por outro lado, não sabia o que fazer com April.
Será que tudo pode ainda piorar?
Estava a preparar-se para se despir quando o seu telemóvel tocou.
“Estou a falar com Riley Paige?” Perguntou uma voz de mulher.
“Sim,” Disse Riley.
“Nesse caso, tenho a comunicar-lhe uma notícia grave,” Disse a mulher.
Riley sentou-se novamente. Pelo tom de voz da mulher, parecia que a chamada era desagradável.
“Chamo-me Gwen Bannister e trabalho num lar de idosos em Moline, Virginia.”
Riley conhecia aquela pequena cidade situada nas Montanhas Apalache. Passava sempre por lá quando ia visitar o pai que vivera durante muitos anos numa pequena cabana próxima da cidade. Riley recordava-se do quão doente ele lhe parecera quando o visitara da última vez.
“É por causa do meu pai, não é?” Perguntou Riley.
Gwen Bannister falou calmamente, como se não quisesse incomodar alguém. “Ele encontra-se num lar aqui em Moline.”
“Está a morrer de quê?” Perguntou Riley.
Mal as palavras lhe saíram da boca, Riley apercebeu-se que soavam abruptas e insensíveis. Por alguns instantes, reinou o silêncio.
Cancro do pulmão, Pensou Riley. Era previsível. Ela lembrava-se da tosse que ouvira naquela última visita. Também estava mais pálido e magro. Ela percebera que ele estava muito doente, mas sabia que ele nunca falaria sobre isso.
“Ele pediu para me ver?” Perguntou Riley.
“Não.”
De que é que eu estava à espera, Pensou Riley.
Da última vez que se viram, tinham-se agredido. Tinha jurado a si própria nunca mais o ver ou falar com ele.
E agora chegara o momento da decisão final. Mesmo que viajasse naquele momento, podia não chegar a Moline antes dele morrer. Será que iria visitar o pai pela última vez quando era tão precisa ali e em casa?
Lembrou-se das suas palavras cruéis durante a sua última visita.
“Devias era estar agradecida, sua rameira chorona.”
Ela não estava agradecida. Não tinha nada de que estar agradecida. Se chegasse junto dele a tempo, o que poderia esperar dele a não ser mais violência? Porque lhe daria a satisfação de a amaldiçoar nos seus últimos momentos?
“Não posso ir,” Disse Riley.
“Tem a certeza?” Perguntou a mulher.
A mulher não parecia surpreendida e Riley podia muito bem imaginar porquê. Cuidar do pai devia ser um trabalho ingrato.
“Sim, tenho a certeza,” Disse Riley.
“Gostaria que lhe dissesse alguma coisa em seu nome?”
“Não,” Disse Riley. “Obrigada por ligar. Obrigada pelo que está a fazer.”
“Bem, a sua irmã tem sido muito prestável.”
Riley hesitou. A Wendy estava lá? A ajudá-los no lar? Não falava com a irmã mais velha há anos. Nem sabia onde é que ela vivia. Por um instante, teve uma enorme vontade de falar com ela naquele momento. Mas já se passara tanto tempo... Riley percebeu que não saberia o que dizer.
“Isso é bom,” Disse finalmente.
“Deixe-me dar-lhe o meu número caso mude de ideias,” Disse a mulher.
Riley apontou o número e desligou a chamada.
Foi para a casa de banho e olhou para o seu rosto ao espelho. Não era um rosto agradável de observar, pelo menos não naquele momento. Havia ali uma forte semelhança com os traços do pai. Olhou para os seus próprios olhos, procurando algum sinal de culpa ou saudade, algum desejo de ver o pai uma última vez. Mas olhava para o vazio.
Ainda assim, não lhe parecia certo afastar-se.
Mais uma coisa com que me preocupar, Pensou quando se preparava para dormir.
*
Riley abriu a pasta do caso. A primeira foto que viu foi o horrivelmente macilento corpo de Metta Lunoe de dezassete anos. Colocou-a de parte. Debaixo dela, estava uma foto do corpo igualmente esquelético de Valerie Bruner.
Colocou também essa foto de parte e olhou para mais uma foto assustadora, a de Chelsea McClure. Quando Riley colocou também essa de lado, viu a terrível imagem de Elise Davey. Hesitou por um momento. E era tudo. Agora só tinha que ler os relatórios.
Mas em vez disso, encontrou outra foto de outra vítima de um caso anterior. Colocou essa de parte e seguiu-se outro cadáver, e mais outro e mais outro...
Rapidamente deu por si imersa em fotografias, todas mostrando vítimas de casos em que tinha trabalhado.
E depois, de repente, ouviu uma risada sombria seguida de uma voz grave familiar...
“Isso é muita gente morta.”
Olhou para cima e viu o pai. Também ele estava imerso num imenso mar de fotografias que se espraiava para lá do horizonte.
Não parecia doente. Apresentava-se forte e saudável, alto e desengonçado, e usava um boné de caça e um colete vermelho.
Havia um sorriso no seu rosto cansado e duro.
“Deves estar muito orgulhosa de ti própria. Fizeste justiça a todas essas pessoas. Todas. Mas isso não impede que estejam mortos. Mas é mesmo teu, não é? Não serves de nada aos vivos. Só és útil aos que já estão mortos.”
“O que é que sabes sobre isso?” Perguntou Riley amargamente. “Ainda estás vivo?”
O paizinho deu outra risada.
“Bem, isso seria interessante, não seria?” Disse ele. “Dar-te-ia a oportunidade de fazer alguma justiça aos vivos para variar. Mas tens que te apressar. Isto se já não for tarde demais.”
“Não te devo nada.”
“Oh, não. Nada de especial. Só tudo o que és e tudo o que alguma vez vais ser, tanto o lado bom como o lado mau. Devias agradecer-me agora. É agora ou nunca.”
Riley sentiu invadir-se por uma raiva familiar.
“Nunca me vais ouvir agradecer-te,” Disse.
O paizinho atirou a cabeça para trás e abriu a boca como se se fosse rir. Mas em vez de riso, um som áspero e audível preencheu o ar...
Riley acordou e pegou no telefone com o sonho ainda fresco e vívido no seu cérebro.
“Há outro corpo,” Disse Bill. “É a Nicole Ehrhardt.”
Riley ainda conseguia ouvir o eco do riso do pai.
“Vou já ter contigo,” Disse e desligou. Foi à casa de banho e lavou a cara com água fria. Todos tinham desiludido Nicole DeRose Ehrhardt e agora a sua imagem podia juntar-se às outras fotos dos mortos. E Riley sabia que o inferno ia soltar todas as almas danadas por causa daquela morte.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
Às vezes Riley detestava ter razão. Era nisso que pensava enquanto olhava para o corpo deitado num campo a cerca de dezasseis quilómetros de distância a oeste de Ohlman. E era sem dúvida o corpo de Nicole DeRose Ehrhardt.
Um ruído familiar sobrevoou o local e obrigou-a a desviar a sua atenção do corpo que se encontrava estendido no chão. Olhou para cima e viu um helicóptero a sobrevoar a área. Era um helicóptero claramente identificado como sendo do FBI e o piloto procurava um lugar para aterrar.
Riley olhou à sua volta para as outras pessoas que se haviam reunido na cena do crime. O Agente Huang estava ao telefone. Apesar do ruido crescente, ela via os seus lábios proferirem as palavras, “Sim, senhor; sim, senhor” vezes e vezes sem conta.
Depois Huang aproximou-se do grupo e disse suficientemente alto para todos ouvirem, “O Agente Especial Responsável Walder vai juntar-se a nós.”
Emily Creighton sorriu abertamente. Lucy parecia preocupada. Bill abanou a cabeça e murmurou algumas palavras que ninguém captou – um palavrão, Riley tinha a certeza.
O helicóptero balançou, aparentemente tendo encontrado um bom lugar para aterrar. Riley engoliu o seu desalento e voltou a sua atenção novamente para a mulher morta. A última coisa de que precisavam naquele momento era de um ego como o de Carl Walder ali à deriva. Talvez ainda tivesse alguns minutos para reunir alguma informação antes de Walder chegar.
Riley observou a cena. Um irresistível cheiro a erva fresca pairava no ar. O campo tinha sido aparado no dia anterior e fardos de palha frescos estavam empilhados num barracão aberto próximo da estrada. Durante a noite, o assassino havia escolhido aquele local para deixar o corpo.
O dono da propriedade tinha-a encontrado naquela manhã e chamara a polícia. A área estava agora isolada, mas apesar de ainda do sol ainda não ter nascido, alguns jornalistas já se apinhavam no exterior da zona restrita. No dia anterior, o Chefe Franklin dissera a Riley, Lucy e Bill que encontrara e suspendera o polícia responsável pelas fugas de informação para os meios de comunicação social.
Valeu de muito, Pensou Riley.
Já se sabia acerca dos homicídios e o mal já estava feito. Os jornalistas estavam atentos às movimentações do FBI na área e seguia-os para onde quer que fossem.
Riley ajoelhou-se para examinar a vítima. Ao contrário das outras, esta parecia-se bastante com as suas fotos em vida. Não tinha passado por várias semanas de fome. Mas já era doentiamente magra – sem dúvida, anorética. As suas clavículas destacavam-se sobre a pele pálida. A marca vermelha de uma chicotada era visível numa bochecha. A sua gabardina da moda estava rasgada e com sangue.
O corpo não estava colocado em óbvia relação com os limites do campo ou qualquer ponto de referência visível. Mas, tal como os outros, não tinha sido ali simplesmente despejado. Os braços e pernas da mulher haviam sido cuidadosamente dispostos. O braço esquerdo esticado para cima, as pernas direitas, os dedos dos pés direitos. O braço direito estendia-se para longe do ombro.
“Nove horas,” Disse Riley.
“A próxima hora na sequência,” Acrescentou Bill. “O que te parece que significa?”
Riley não disse nada. Não sabia. Mas ainda assim, tinha a sensação de que quem quer que ali tivesse estado e deixado o corpo, agia segundo ordens – não completamente só.
Mas Riley agora não tinha tempo para pensar nisso. O helicóptero acabara de aterrar e Carl Walder caminhava apressadamente na sua direção. Olhava diretamente para ela e a sua expressão era tudo menos amigável.
“Agente Paige, vejo que ainda está a querer pegar neste caso,” Disse ele.
Aquilo irritou Riley.
A querer pegar no caso? Pensou ela.
“Não foi um rapto para pedir resgate,” Declarou ela a Walder.
“Não, parece que não,” Replicou Walder.
Sem dizer mais uma palavra, ele ajoelhou-se ao lado do corpo. Era óbvio que não ia admitir que Riley tinha razão e que ele estava errado. Após uma breve observação do cadáver, Walder levantou-se.
“Chamem o médico-legista,” Disse a Huang. “Não podemos deixar esta mulher neste estado.”
Huang parecia alarmado com a ordem, mas fez a chamada sem fazer perguntas. Também Riley estava preocupada com o facto de Walder fechar a investigação no local tão rapidamente. Ainda nem tinham uma equipa de recolha de provas no lugar. Walder era habitualmente um investigador rigoroso, ainda que sem imaginação.
Mas Riley lembrou a si mesma que aquele homem demonstrava uma tendência para resvalar sempre que figuras políticas de relevo estavam envolvidas. No final de contas, era um homem vão com ambições pessoais. Riley não fazia a mínima ideia que ambições pudessem ser ou onde o poderiam conduzir.
Walder gritou, “E alguém afaste daqui aqueles jornalistas. Coloquem a fita mais para trás.”
Depois virou-se para Riley.
“Agente Paige, gostaria de falar consigo em privado no meu gabinete, mas dadas as circunstâncias, não posso adiar esta conversa.”
Levou Riley para um local mais privado. Bill seguiu-os, descaradamente ignorando a tentativa de Walder de ter uma conversa em privado.
“Recebemos uma reclamação de si,” Disse ele.
Riley respondeu. “”Pois, eu sei. O jornalista e a máquina fotográfica. Repare, o sacana estava a imiscuir-se numa cena de crime.”
“Isso não é desculpa para o que fez,” Disse Walder.
Riley respirou fundo.
“Tem toda a razão,” Disse ela, tentando não soar demasiado sarcástica. “Não volta a acontecer.”
“Pode ter a certeza de que não volta a acontecer neste caso,” Disse Walder. “Está afastada do caso com efeitos imediatos.”
Riley fitou-o, incrédula. Não é que não estivesse de certa forma à espera daquilo, mas mesmo assim estava surpreendida com o seu descaramento. Walder estava aborrecido com muito mais do que uma simples máquina fotográfica de um jornalista.
Riley tentou não ser cínica. “Isto tem a ver com o que disse sobre si ontem, não é?”
Walder enrubesceu.
“Eu não estava cá ontem. Não faço ideia daquilo que disse.”
Riley estava à beira de o chamar outra vez de imbecil. Bill impediu-a com uma cotovelada.
Riley olhou para os olhos hostis de Walder. Agora percebia tudo. Ele estava a castigá-la por duas coisas – por chamá-lo de imbecil e por ter razão acerca do rapto de Nicole Ehrhardt. Riley não conseguiu deixar de pensar qual das duas o teria ofendido mais.
“Não pode retirá-la do caso,” Disse Bill a Walder. “A Riley tem uma perspetiva melhor do que a de qualquer outra pessoa sobre este caso.”
Walder escarneceu.
“Deve estar a falar da sua ‘teoria dos relógios,’” Disse ele. “pois, já ouvi falar disso. Assim como toda a gente, cortesia dos meios de comunicação social. Devia ter mantido a sua boca fechada, Paige. De qualquer das formas, o mais provável é a sua teoria estar errada.”
“Espere lá um minuto...” Começou Bill. Mas Riley silenciou-o com um gesto. Não valia a pena explicar a Walder que Riley não era responsável pelas fugas de informação. O mais certo era já saber disso e não lhe dar a mínima importância.
Walder prosseguiu, “Irá voltar à Unidade de Análise Comportamental e trabalhar no seu gabinete até ordem em contrário. Depois iremos falar sobre as suas tarefas futuras. Regresso esta tarde de helicóptero. Poderá vir comigo nessa altura.”
A voz de Riley tremia de raiva quando respondeu, “Obrigada, mas trouxe o meu carro e vou nele para casa.”
Bill caminhava a seu lado.
“Riley, vamos convencê-lo a mudar de ideias,” Disse.
“Sabes que não podemos fazer isso,” Disse Riley. “Tu ficas, tenta que o Walder não estrague demasiado as coisas.”
“Vamos falando,” Disse Bill.
Bill ficou para trás e Riley foi devorada pela multidão de jornalistas gritando “Sem comentários” a cada pergunta que lhe era dirigida. Quando lhes conseguiu fugir, viu a carrinha do médico-legista a aproximar-se.
Ninguém ia conseguir tirar muita informação da cena do crime – não com a pressa com que Walder trabalhava. Felizmente, o Huang tinha tirado fotos e ela assegurar-se-ia de que Bill lhas enviava.
Quando entrou no carro e começou a conduzir, pensou no pai moribundo nas montanhas da Virginia. Talvez já tivesse morrido. Se assim fosse, Riley tinha a certeza que o seu espírito se estaria a regozijar com a sua humilhação.
“Força, regozija-te, seu sacana miserável,” Murmurou em voz alta. “Ainda não dei o meu trabalho por terminado.”
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
Quando Riley chegou a casa naquele dia, pressentiu que teria problemas. April não tinha respondido a uma única mensagem ou atendido uma única chamada desde que Riley tinha ido para o Delaware.
Era fim de tarde e April já devia ter vindo da escola. Gabriela veio ter com ela à porta e Riley percebeu logo pela sua expressão de que algo não estava bem.
“Señora Paige, não estava à sua espera,” Disse Gabriela.
“Pensei que me demorasse mais um pouco no Delaware,” Disse Riley.
Fora até à UAC para pegar em fotos e assegurar-se de que tinha todos os ficheiros sobre o caso. É claro que Walder não aprovaria, mas Riley estava determinada a manter-se a par dos acontecimentos.
“Ainda bem que cá está,” Disse Gabriela, torcendo as mãos. “A April está... estranha.”
Riley pousou a mala de viagem.
“Ela está em casa?” Perguntou Riley.
“Ainda não,” Disse Gabriela. “Disse que ia à biblioteca, tal como na terça-feira.”
Riley percebeu que Gabriela não acreditava naquela desculpa. E a verdade era que Riley também não.
Isto não é bom, Pensou Riley.
No fim de contas, April ainda estava de castigo por mais dois dias.
A campainha tocou. Por um instante, Riley pensou que pudesse ser April que se tivesse esquecido das chaves, mas quando abriu a porta viu a filha de Blaine, Crystal. Era desengonçada como April e praticamente da mesma altura, mas a sua compleição era mais pálida e sardenta. Trazia consigo alguns livros.
“Olá a ambas,” Disse Crystal. “A April está em casa? Pensei que talvez pudéssemos estudar juntas.”
Riley ficou feliz por ver Crystal. Parecia-lhe ser uma boa influência para April. Era bom ter a Crystal e o Blaine mesmo ali ao lado.
“Não, não está,” Disse Riley. “Na verdade, estávamos a questionar-nos quando é que ela regressaria. Queres entrar?”
Crystal sorriu e entrou. Gabriela ofereceu-lhe limonada.
“Obrigada,” Disse Crystal.
Riley e Crystal sentaram-se na sala de estar e Gabriela trouxe limonada para ambas. Riley notou que Crystal parecia preocupada.
“A April disse à Gabriela que foi à biblioteca,” Disse Riley.
Riley percebeu pela expressão de Crystal que também ela não acreditava naquela desculpa. Será que Crystal sabia algo de que ela não tinha conhecimento? Riley não podia intrometer-se demasiado. Lembrava-se da sensação de ter uma melhor amiga na escola. As coisas podiam correr muito mal se os pais tentassem jogar uma contra a outra.
“Já conhece o namorado da April?” Perguntou Crystal.
Riley não conseguiu evitar pensar que Crystal lhe estaria a dar uma dica sobre o paradeiro de April.
“Não e talvez já seja altura de conhecer,” Disse Riley. Após uma pausa acrescentou, “Há alguns dias atrás disseste que não gostavas dele.”
Crystal bebeu hesitantemente um gole de limonada.
“Bem, o que é que a April lhe contou a respeito dele?” Perguntou Crystal. Riley percebeu que Crystal estava a apalpar terreno.
Riley encolheu os ombros. “Quase nada. Exceto que tinha mais ou menos a idade dela.”
Os olhos de Crystal abriram-se muito. Riley pensou o que se passaria de errado.
“Ele anda com vocês na escola?”
Crystal limitou-se a fitá-la por um momento.
“Se eu disser alguma coisa, promete não dizer à April que fui eu que contei?”
Riley anuiu.
“Ele não tem a idade da April,” Disse Crystal. “Ele deve ter uns dezassete anos. E não anda na nossa escola. Ele era segundanista o ano passado, mas desistiu. Penso que não chumbou, embora talvez já tivesse chumbado anteriormente. Na verdade é muito inteligente. Só que...”
Calou-se novamente.
“Peço desculpa,” Disse Crystal. “Terá que perguntar à April sobre o resto.”
Riley reprimiu a vontade de lhe colocar uma tonelada de perguntas. A situação parecia preocupante. Mas ela compreendia. A Crystal acabara de quebrar a confiança de April. Tinha-o feito com as melhores intenções, porque estava preocupada com a April, mas Riley não podia esperar que ela dissesse muito mais.
Mas havia uma coisa que ela tinha mesmo de saber.
“Achas que a April está com ele neste momento?” Perguntou Riley.
“Não sei. A verdade é que a April não me conta o que faz com ele. Ficou mais fechada desde que andam juntos. Isso é parte do que eu não gosto.”
Crystal calou-se. Ainda parecia aborrecida com alguma coisa, pensou Riley. Estava preocupada com April, era evidente, mas Riley pressentiu que havia algo mais. Riley sentiu como que uma preocupação maternal face a Crystal. Pensou em perguntar-lhe o que é que a incomodava.
Não sou a mãe dela, Lembrou-se a si própria.
“Deves pensar que sou excessivamente protetora,” Disse Riley.
“Oh, nem pensar!” Disse Crystal a sorrir. “É uma mãe fantástica! Muito melhor do que a minha...”.
E a sua voz silenciou-se tristemente. Riley gostava que Crystal lhe contasse mais coisas sobre a mãe. Ela sabia que Blaine era divorciado e lembrava-se de lhe ter dito que ela bebia e era bipolar. Mas quão envolvida estaria na vida de Crystal?
Crystal conseguiu sorrir novamente.
“De qualquer das formas, eu e a April temos muita sorte. Temos um pai e uma mãe que realmente se importam connosco.”
Crystal levantou-se.
“É melhor ir para casa e fazer os trabalhos de casa,” Disse. “Por favor diga à April para me ligar quando chegar a casa.”
“Eu digo-lhe,” Disse Riley, escoltando Crystal até à porta.
Riley ficou à porta por um momento, observando a rapariga a dirigir-se para casa do lado. Pensou como poderia ser a sua relação no futuro. Riley envolver-se ia com Blaine? Iria tornar-se na madrasta de Crystal e Blaine no padrasto de April?
Riley suspirou. Não era um pensamento desagradável. Mas era demasiado cedo para poder saber. E talvez uma vida daquelas fosse demasiado boa para ela.
Entretanto, já passava das quatro e meia e April ainda não tinha chegado a casa. Aquilo não prometia nada de bom. Primeiro, fora retirada de um caso. Pelo menos sabia que Bill a manteria atualizada sobre o desenvolver dos acontecimentos. Mas agora era óbvio que algo de muito errado se passava com April. O que iria fazer?
Riley suspirou, pensando se seria boa em alguma coisa.
Levou a mala para o andar de cima e colocou-a no quarto. Depois foi até ao quarto de April. Estava uma desarrumação, claro, mas não pior do que o habitual.
Nada de preocupante, Disse a si própria, sentando-se na beira da cama de April.
Sabia que se preocupava facilmente quando se tratava da filha. Desde o rapto de April que tendia a entrar em pânico sempre que não sabia onde é que ela estava. Aquele era um desses momentos. Estaria a April em perigo naquele preciso momento por causa daquele novo “namorado”? Poderia tê-la raptado?
Riley respirou fundo algumas vezes, tentando convencer-se que estava a ser pouco racional. Mas não estava fácil.
Reparou que o portátil de April estava em cima da cama, o que não surpreendeu Riley. Para a escola April levava o tablet. Mas naquele momento, o portátil estava a tentar Riley. Sempre tinha respeitado a privacidade de April.
E é melhor que assim continue, Disse decidida a si própria.
Mas a tentação era cada vez maior e até parecia justificada. April estivera sempre a mentir sobre Joel. April já perdera o direito a ter privacidade. E para Riley, tratava-se de uma emergência.
Com dedos a tremer, Riley abriu o portátil e ligou-o. É claro que a primeira coisa solicitada foi a palavra-passe. Riley decidiu adivinhar.
“JOEL,” Escreveu.
O ambiente de trabalho apareceu. Parecia quase demasiado fácil e óbvio.
Clicou na página do Facebook de April. A página e perfil pareciam perfeitamente normais. Parecia tal e qual a página de Riley com uma selfie como fotografia de perfil e foto de fundo um ramalhete de flores.
Mas Riley sabia que a página agora estaria diferente. Quando estavam no seu computador, as configurações de April impediam-na de ver o que estava a ver naquele momento – por exemplo, uma foto de April e de um rapaz a darem um beijo. A tag mostrava que o nome do rapaz era Joel Lambert. Riley clicou no nome e a sua página surgiu.
Uma página com outra selfie de um rapaz bonito de cabelo negro. A foto de capa mostrava-o a fumar um cachimbo envolvido por nuvens de fumo.
Aquela foto preocupou Riley. Soube de imediato que chegara a altura de acabar com aquela relação. Riley viu os detalhes pessoais do rapaz. Notou que Joel tinha colocado o telefone e morada de casa na página. Parecia algo descuidado da sua parte. Mas aparentemente Joel parecia não se importar de partilhar essa informação com amigas íntimas como April.
Pegou no telemóvel e ligou o número. Mas mudou de ideias. Em vez disso, desceu as escadas e dirigiu-se para a porta.
“Vai sair, Señora?” Perguntou Gabriela, entrando na sala de estar.
“Só por alguns minutos,” Disse Riley. “Eu já volto.”
E também a April, Pensou enquanto se dirigia para a porta e entrava no carro.
*
Apesar de Joel Lambert não viver longe da escola de April, o bairro não era dos melhores. Quando Riley parou o carro em frente à sua casa, lembrou-se, de forma algo perturbadora, da casa de Dennis Vaughn em Redditch – um lugarzinho em ruínas com tinta a descascar e um alpendre decrépito.
A April está mesmo ali dentro? Pensou Riley enquanto saía do carro.
Caminhou na direção do alpendre e bateu à porta com decisão. Esperou vários segundos até bater novamente. Bateu uma terceira vez e então abriu-lhe a porta Joel Lambert de calças de ganga e T-shirt. Parecia surpreendido por ver Riley.
“O que é que quer?” Perguntou.
“Estou aqui à procura da minha filha,” Disse Riley, cruzando os braços.
Joel parecia intrigado.
“A sua filha?”
Depois sorriu. Era um encantador sorriso calculado que mal escondia um rasto de desdém crónico.
“Oh, é a mãe da April! E é do FBI, não é? Isso é tão fixe. Posso ver o seu distintivo?”
Riley não o mostrou. Pressentiu que o miúdo estava a tentar empatá-la. Através da rede, conseguia ver a mochila de April num sofá castanho gasto.
“Quero ver a April,” Disse Riley. “E nem tentes dizer-me que não está cá.”
E naquele momento, April apareceu. Forçou um sorriso tremendamente estranho.
“Olá mãe!” Disse. “O que é que estás aqui a fazer?”
Riley limitou-se a franzir o sobrolho.
“Posso falar com os teus pais?” Perguntou Riley a Joel.
“Lamento, não estão em casa,” Disse Joel. “Estão a trabalhar.”
Riley entrou pela casa adentro. Estava uma trapalhada lá dentro. Riley pensou se Joel teria pais. Este miúdo podia muito bem estar por sua conta. Riley fungou, tentando detetar cheiro a erva. Mas o ar estava tão repleto de outros odores desagradáveis que não conseguiu perceber.
“April, vai para o carro,” Disse Riley.
“Mas mãe...”
“Vai. Já lá vou ter contigo.”
April passou amuada por Riley.
Riley fitou o olhar em Joel.
“Quero que te afastes da minha filha. Compreendido?”
Joel respondeu com um ar de surpresa exagerada.
“O que é que se passa? Não estávamos a fazer nada ilegal. Gostava mesmo que me mostrasse o seu distintivo. Adorava vê-lo. Nunca vi um distintivo do FBI.”
Riley aproximou-se dele, agarrou-o pelo braço e torceu-o.
“Vais afastar-te dela,” Disse Riley com firmeza.
“Ou o quê?”
Riley torceu-lhe o braço até ele gritar de dor. Empurrou-o contra a parede.
“Faço da tua vida um inferno,” Disse. “E terás muita sorte se só te prender. Ouviste?”
“Sim,” Disse Joel, agora parecendo realmente assustado.
Riley libertou-o e saiu da casa. Entrou no carro e conduziu em direção a casa.
“O que foi aquilo?” Perguntou April.
“Talvez devas ser tu a dizer-me,” Disse Riley contendo a fúria.
April tentou parecer despreocupada. “Ah, já sei. É porque disse à Gabriela que ia à biblioteca. Eu posso explicar. A casa do Joel fica a caminho da paragem de autocarro. Encontrei-o no caminho e começámos a falar e esqueci-me da biblioteca. E o tempo passou sem que desse por isso.”
“Estás a mentir,” Disse Riley. “Mentiste sobre uma série de coisas. Aquele miúdo não tem a tua idade. E não anda na escola contigo. Aliás, ele nem sequer anda na escola.”
“E eu alguma vez disse que andava? E como é que sabes disso?”
Riley não respondeu. A sua cabeça estava repleta de perguntas. O que é que se estava a passar? Estavam a drogar-se, a beber, a fazer sexo? Fosse o que fosse, Riley sabia que não era nada de bom, possivelmente algo ilegal e até perigoso. A única coisa que sabia era que não valia a pena fazer perguntas naquele momento. A April só continuaria a mentir.
“O que é que disseste ao Joel quando eu fui para o carro?” Perguntou April apreensivamente.
Riley reprimiu a vontade de gritar com April.
“Esquece o que lhe disse,” Disse Riley. “Mas lembra-te, estás de castigo.”
“Sim, mas só por mais alguns dias, não é?”
“Nem por isso. No futuro próximo.”
April não aguentou.
“Isso não é justo! E se tiver que ir à biblioteca?”
Riley abanou a cabeça e reprimiu um riso sarcástico. Conduziu em silêncio durante alguns minutos, depois ouviu o telefone de April a vibrar. Uns instantes depois April falou.
“Mãe! Acabei de receber uma mensagem da Crystal. Temos que ir para lá! Temos que ir para casa dela!”
“Nem penses,” Disse Riley. Pensou que April estivesse apenas a distraí-la do assunto que tinham em mãos.
“Não estás a entender!” Disse April. “A mãe dela está lá! Ela está em perigo!”
De repente, Riley lembrou-se que a mãe de Crystal era bipolar e alcoólica. Talvez fosse por isso que Crystal parecesse tão desconfortável há pouco. Talvez soubesse que a mãe pudesse aparecer.
O que significava que a sua vida podia estar em perigo.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
Riley conseguia ouvir uma mulher a gritar dentro da casa de Blaine. Por um momento, ela e April ficaram à porta, no exterior, a pensar o que fazer a seguir.
“Não devia estar aqui?” Gritava a mulher. “Tens cá uma lata! Sou tão merecedora de aqui estar como tu, sua fedelha mimada!”
Depois seguiu-se um som ruidoso de algo a partir-se.
Riley agarrou na maçaneta e tentou abrir a porta. Não se mexia. Estava trancada.
“Abram a porta!” Gritou Riley.
Mas em vez disso, ouviu a mulher a gritar mais uma vez.
“Raios partam, sou a tua mãe! Posso muito bem mostrar-te o significado de pertença!”
April agarrou no braço de Riley.
“Mãe, temos que entrar!” Disse April.
“Eu sei. Dá-me um momento.”
Riley pensou rapidamente. Tinha um kit na mala, mas usá-lo poderia demorar demasiado tempo. Disparar na fechadura com a pistola podia ser perigoso tanto para quem estava dentro da casa como para ela e April. Acabou por decidir pegar num cartão de crédito que raramente usava e enfiou-o entre a porta e a armação junto à maçaneta.
Enquanto a discussão prosseguia dentro de casa, Riley empurrou o cartão contra o trinco. Agitou-o contra a superfície inclinada do trinco até o sentir mexer. Esperava que a tranca também não estivesse fechada. Não estava porque quando Riley dobrou o cartão para fora da maçaneta, a porta abriu-se sem dificuldade.
“Espera aqui,” Disse Riley a April.
Entrou na casa. Flores e cacos de um vaso partido estavam espalhado pelo chão. Riley viu uma mulher a empunhar um candeeiro de mesa contra Crystal que se encolhia contra uma parede.
Sem dizer uma palavra, Riley foi ao encontro da mulher e afastou-a de Crystal com um empurrão. O candeeiro estilhaçou-se no chão.
A mulher fitou Riley.
“O que é isto?” Rosnou a mulher. “Saia já do meu caminho!”
A mulher arremeteu contra Riley, tentando ir ao encontro de Crystal. Riley defendeu-se e empurrou-a violentamente para trás para uma poltrona. A mãe de Crystal começou a levantar-se da cadeira, mas Riley ergueu o punho.
E foi então que Riley ouviu Crystal gritar, “Não lhe bata, por favor!”
Ainda com o punho erguido, Riley avaliou a situação num relance. A mulher agora estava à sua mercê, à espera do golpe. Mais força física não era necessária e não havia necessidade de sacar a sua arma, só iria traumatizar Crystal ainda mais.
Além disso, Riley percebeu que Phoebe Hildreth já não era uma ameaça – pelo menos não para ela. Mas chegara mesmo a tempo de evitar que Crystal se magoasse a sério.
Phoebe gritou a Crystal, “Crystal, chama a polícia! Temos uma intrusa em casa!”
Riley mostrou o seu distintivo.
“Eu sou polícia. Sou do FBI.”
Phoebe dirigiu-lhe um olhar de desconcerto.
“FBI? Quem ligou para o FBI?”
“Eu vivo na casa ao lado,” Disse Riley, guardando o distintivo.
Phoebe olhou para Riley com olhos injetados de sangue.
“Não me diga?” Disse com um sorriso sarcástico. “E tem uma chave? Vejam como é boa vizinha.”
Riley estudou a mulher. Lembrava-se de Blaine ter dito que se casara muito jovem e pelas razões erradas.
Ele dissera, “Para mim a Phoebe era a rapariga mais bonita que já vira.”
Riley vislumbrou uma história triste no seu aspeto devastado. Só restavam indícios da antiga beleza de juventude. Os anos de alcoolismo tinham-lhe roubado quase toda a beleza do rosto. Tinha peso a mais e parecia muito mais velha do que deveria ser.
Riley ouviu April a chamá-la da porta. “Mãe, o pai da Crystal acabou de chegar.”
Riley pegou no telemóvel para chamar o 112. Naquele momento, ouviu a voz de Blaine.
“Riley, não. Por favor. Policia, não.”
Blaine entrou e April seguiu-o. Crystal atirou-se para os braços do pai a soluçar.
“Recebi a tua mensagem,” Disse Blaine a Crystal. “Estou aqui. Tudo vai correr bem.”
Agora Phoebe parecia simplesmente exausta e fraca. O que quer que fosse que tivesse alimentado a raiva de há pouco, acabava de se desvanecer. Era difícil para Riley acreditar que aquela mulher arruinada e patética pudesse ter constituído uma ameaça física.
April observava a cena num silêncio perplexo.
Ainda a segurar firmemente em Crystal, Blaine disse, “Riley, chama um táxi, ok? Vamos mandá-la para casa.”
Ainda na poltrona, Phoebe olhava para Blaine e Crystal. Riley conseguia perceber que a mera visão da sua proximidade a incomodava. E de repente, Phoebe começou a chorar como uma menina.
*
Pouco depois, Phoebe já estava dentro de um táxi a caminho da casa da irmã onde vivia. April e Crystal tinham ido para o quarto desta. Riley e Blaine sentaram-se à mesa da cozinha um em frente do outro.
“Graças a Deus que a Crystal me enviou uma mensagem,” Disse Blaine, olhando para as profundezas de uma chávena de chá quente. “Ainda bem que também enviou uma mensagem à April. Se não tivesses chegado naquela altura...”
A sua voz sumiu-se, horrorizado com o mero pensamento.
Riley bebeu um gole do seu chá e disse, “Blaine, não sei bem se mandá-la para casa daquela forma foi a melhor coisa a fazer. Talvez a polícia a devesse ter levado.”
Blaine abanou a cabeça, cansado.
“Ela geralmente não é violenta fisicamente,” Disse ele. “Ela sabe bem que não deve ser. Foi por isso que perdeu a custódia quando nos divorciámos. Não sabia que vinha cá hoje. Já se tinham passado seis meses desde que a tínhamos visto pela última vez. Pensava que estava bem com a irmã.”
Blaine calou-se.
“Vou ter que solicitar uma ordem de restrição judicial se algo do género voltar a acontecer,” Disse.
Riley pegou na mão de Blaine.
“Penso que este é o momento certo,” Disse ela.
Blaine anuiu. Os seus olhos estavam rasos de lágrimas e parecia não conseguir falar, mas Riley conseguia pressentir quais eram os seus sentimentos. Lembrou-se de mais uma coisa que ele lhe dissera.
“Não consigo parar de pensar que talvez consiga salvar a Phoebe.”
Riley sabia que agora Blaine se sentia culpado, tanto em relação a Phoebe como à filha. Para Riley ele não era culpado de nada daquilo que acontecera ou por aquilo em que Phoebe se transformara. Mas também sabia que não o podia convencer do contrário. Ela própria se sentira assim muitas vezes.
April desceu as escadas.
“A Crystal agora está bem,” Disse.
Riley apertou a mão de Blaine com mais força.
“Ficas bem?” Perguntou-lhe.
Blaine assentiu em silêncio.
“Liga-me se precisares de alguma coisa,” Disse Riley.
Riley e April saíram da casa e caminharam na direção da sua.
Riley sentia-se cansada, mas sabia que os problemas da sua família ainda não tinham terminado. Tinham muitas perguntas para colocar à filha.
*
Gabriela estava feliz por ver Riley e April a entrarem juntas em casa, embora tenha detetado a tensão silenciosa instalada entre as duas. Apenas perguntou, “O que querem para o jantar?”
“Fazemos umas sanduíches,” Disse Riley. “Obrigada, Gabriela.”
Gabriela dirigiu-se para o seu apartamento. Riley e April foram para a cozinha onde Riley começou a tirar coisas do frigorífico para preparar umas sanduíches. April permanecia de pé a observar a mãe silenciosamente durante alguns instantes.
Depois April disse calmamente, “Obrigada pelo que fizeste pela Crystal.”
Riley não respondeu. O que acabara de suceder na casa de Blaine não era a questão que deviam abordar naquele momento.
“Podes ajudar com as sanduíches,” Disse Riley.
“Acho que não vou querer,” Disse April.
Riley continuou e preparou a sua sanduíche de peru fatiado.
“Estás mesmo zangada comigo, não estás?” Perguntou April.
Riley suspirou profundamente.
“Não te preocupes se estou zangada contigo ou não,” Disse. “O melhor é responderes a algumas perguntas.”
April engoliu em seco.
“Que perguntas?” Questionou April.
Riley olhou a filha olhos nos olhos.
“Por exemplo, o que não me disseste sobre aquele rapaz. Estavas na casa dele que é uma autêntica pocilga. Quem são os pais dele? Onde estavam?”
April olhou para Riley. “Nunca conheci os pais dele,” Disse. “Porque deveria? Ele disse que ambos trabalhavam. E acho que não ganham o suficiente para contratar uma empregada para lhes limpar a casa.”
“Porque é que ele deixou a escola?”
“Tem trabalhado em part-time mas disse que precisava de ganhar mais dinheiro, Acho que está à procura de um emprego a tempo inteiro.”
“Onde é que ele trabalha em part-time?”
“Não sei. Ele não tem culpa de os pais não serem ricos e de ter que ajudar.”
“Como é que o conheceste?”
April cruzou os braços com os olhos a faiscar, inquietos.
“Ele apareceu pela escola no início do ano e começámos a falar,” April suspirou profundamente. “Não ias perceber, mas ele realmente interessa-se pelo que eu tenho a dizer. Gosta de estar comigo.”
“Droga-se?”
“Não,” Disse April.
“Estás a mentir,” Disse Riley. Não tinha a mínima dúvida a esse respeito. Não era à toa que era Agente do FBI há tantos anos. E conhecia a filha suficientemente bem para saber quando estava a mentir.
“Não estou a mentir,” Disse April e baixou a cabeça.
“Olha para mim,” Disse Riley.
April levantou lentamente a cabeça e olhou para Riley.
“E dizeres à Gabriela que ias à biblioteca? Estavas a mentir.”
April não respondeu.
“Ele disse-te para mentires a esse respeito?”
“É claro que não.”
Agora o rosto de April tremia. “Eu preciso de tempo... Preciso de ter a minha vida.” E afastou novamente o olhar. “Então, o que é que vais fazer? Pôr-me de castigo para sempre?”
“Vais ficar de castigo o tempo que for preciso. Vais ficar de castigo até eu ter a certeza absoluta de que te esqueceste desse Joel.”
Os olhos de April abriram-se muito e a boca ficou aberta de espanto.
“O quê?” Disse.
“Foi o que ouviste.”
“Isso é uma loucura! Quero dizer, quando é que isso vai acontecer? Pensas sempre que estou a mentir! Não acreditas em nada do que digo! Como é que vais ter a certeza que me esqueci do Joel?”
Riley lançou-lhe um olhar duro.
“É nisso que temos que trabalhar,” Disse ela.
April bateu com a mão na mesa com tanta força que a comida e os talheres saltaram.
“Deves ser a pior mãe do mundo,” Gritou April. “Ainda és pior que a mãe da Crystal.”
“April!”
“Não, a sério! Ela não consegue evitar ser como é. Mas tu podes. É o raio daquele teu trabalho. Acabou contigo. Já não sabes confiar em ninguém. Não sabes como ser mãe ou ser humano.”
Riley ficou boquiaberta. April subiu as escadas a correr na direção do seu quarto e bateu a porta com força atrás de si.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
Mafarrico ajoelhou-se fora da jaula, fitando a única rapariga que restava. Julgou lembrar-se que o seu nome era Kimberly. Era estranho tê-la ali há tanto tempo e ainda não saber ao certo o seu nome.
“Fá-lo,” Disse a rapariga num sussurro áspero. “Fá-lo agora.”
Mafarrico sabia que ela se referia a matá-la. Quem lhe dera poder fazê-lo. Mas é claro que não a podia matar até o avô o dizer. E naquele momento, o avô não dizia nada.
Mafarrico sabia, claro, que o avô estava zangado. Já estava zangado há vários dias, desde que a rapariga Irlandesa conseguira fugir. Mafarrico ainda se perguntava o que lhe acontecera. E o avô não estava nada satisfeito que a mais recente vítima de Mafarrico se revelasse ser a mulher de um político. Tinha colocado todo o projeto sob um risco ainda maior.
Quando o avô estava silencioso como naquele momento, Mafarrico sentia-se desesperadamente sozinho.
“Gostava que falasses comigo,” Disse Mafarrico à rapariga. “Queres passar o que te resta de vida a não falar?”
A rapariga não disse nada.
Mafarrico sentia-se tão triste que lhe apetecia chorar. Ele sabia que estava a falhar na grande missão que o avô lhe confiara.
Será que alguém iria compreender a mensagem? Todas estas raparigas iriam passar fome e morrer para nada?
Quando todos estivessem mortos, quem lhe restaria para falar com ele? O avô podia nessa altura estar suficientemente zangado para nunca mais falar com ele. Ou podia simplesmente desaparecer. Mafarrico estaria completamente sozinho, o único ser humano vivo no mundo.
A não ser que...
Surgiu-lhe uma vaga esperança. Talvez fosse parte do plano do avô que ainda existissem raparigas vivas naquela jaula, mesmo quando sobreviesse a destruição. Se fosse esse o caso, talvez ela pudesse ser sua companheira. Talvez pudessem criar um mundo novo de raiz. Talvez fosse essa a ideia do avô.
E talvez aquela rapariga – a que nunca parecia cumprir os requisitos para ser morta, a que nunca ficou suficientemente magra – fosse aquela que devia ficar com ele. Talvez se tornasse sua.
Se fosse esse o caso, Alguma vez lhe falaria, mesmo quando ele fosse o único homem vivo à face da terra?
Mas não se atrevia a ter esperanças. Só havia uma coisa de que tinha a certeza – mais três raparigas tinham que ser mortas.
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
Naquela tarde, Riley sentia-se absolutamente miserável. Olhava para a televisão, mas a única coisa que lhe ressoava nos ouvidos eram as palavras de April. Quando o telefone tocou e viu que a chamada era de Bill, atendeu sem fôlego.
“Bill! Dá-me novidades!”
Ouviu um suspiro pesado do outro lado da linha.
“Tenho novidades,” Disse Bill. “Mas não vais gostar de as ouvir.”
Riley recostou-se na cadeira, preparando-se para o que aí vinha.
“O Walder está convencido que a Meara Keagan consegue recuperar a memória,” Disse. “Enão chamou um psiquiatra para a hipnotizar.”
“Ele fez o quê?” Reagiu Riley.
“E ainda é pior,” Disse Bill. “O psiquiatra que chamaram é o Leonard Ralston.”
Riley mal podia acreditar no que ouvia.
“Isso é uma loucura,” Disse. “O Ralston é um charlatão. Da última vez que o Walder o chamou para um caso, fez com que uma confissão fosse assinada pelo homem errado.”
Bill soltou uma risada amarga.
“Pois, bem, nós sabemos que o Walder não deixa que pequenos detalhes como esse se atravessem no seu caminho. O Ralston escreveu bestsellers. Fez hipnotismo em programas de televisão. O Walder adora os famosos. Para ele, nunca se enganam.”
Riley estava preocupada.
“O que posso fazer Bill?” Perguntou.
“Nada. Eu vou fazer tudo o que puder para voltares ao caso. Entretanto, tens que manter alguma distância, senão pode tudo ser ainda pior.”
“Pois, eu sei,” Disse Riley. “Vou ficar sossegada.”
Um silêncio seguiu-se.
“Então, como estão as coisas aí por casa?” Perguntou Bill.
Riley percebeu pelo seu tom de voz que Bill queria falar de qualquer coisa que não fosse o caso. Ela percebia. E parecia uma oportunidade para ela se abrir com alguém em quem tantas vezes confiara a sua vida.
Por outro lado, quereria ela sobrecarregar Bill com a sua situação desagradável em casa? Ele já tinha que lidar com os seus próprios problemas domésticos, incluindo a separação e a luta pela custódia dos dois filhos. E no meio disso tudo, estava envolvido num caso que o fazia sentir-se um fracasso. Não, não era o momento certo.
“Está tudo bem,” Disse Riley.
“Ainda bem. Vou-te mantendo informada.”
Riley agradeceu-lhe e terminou a chamada. Sentou-se no sofá a fitar, mais uma vez, a televisão sem som. Nem sabia que programa estava a dar, mas parecia-lhe uma espécie de sitcom com o habitual diálogo engraçado entre pais e filhos. Os argumentos envolviam sempre querelas menores facilmente resolvíveis em meia hora entre anúncios.
Existirão famílias assim? Perguntou-se Riley.
Até àquele dia, ela pensara que Blaine e a filha tinham uma vida imaculada, mas essa ilusão estilhaçou-se completamente. Riley fechou os olhos e lembrou-se de ver o rosto desfeito de Phoebe. Agora que tudo tinha terminado, conseguia ter pena daquela pobre mulher. E agora, recordando o desespero presente naqueles olhos raiados de sangue, Riley teve a estranha sensação de se estar a ver ao espelho.
Lembrava-se do que April dissera antes de ir para o quarto.
“És ainda pior do que a mãe da Crystal.”
Não era verdade. Não podia ser verdade. Phoebe tinha há muito falhado ser tudo o que desejara ser na vida. Riley, pelo menos, ainda se ia aguentando. Mas bem no fundo sabia que tinha mais coisas em comum com Phoebe do que as que gostaria de admitir.
Ambas estamos desiludidas, Pensou. Desiludidas connosco próprias.
Riley quisera dar a April uma vida melhor da que lhe fora dada a si. Não queria que ninguém fizesse April sentir-se minúscula e inútil como o pai a fizera sentir. Ela queria que April tivesse uma infância feliz com uma família carinhosa – não uma infância emocionalmente vazia como a que passara quando criada pela tia e pelo tio.
Mas seria a vida que dera a April melhor do que a que ela tivera? A promessa de um lar com dois pais desaparecera e agora, uma emprega Guatemalteca era mais mãe de April do que a própria Riley. Pior ainda, Riley não conseguia manter April segura do risco e perigo que permeava a sua própria vida. Depois do seu cativeiro, April já sabia tanto de violência e crueldade quanto Riley. E April até a ajudara a matar o homem que as atacara. Porque é que uma adolescente tinha que viver com um peso desses na consciência?
Não admira que pense que sou uma má mãe, Pensou Riley.
Havia alguma coisa na vida que estivesse sob o seu controlo, algo de que tivesse conhecimento?
De repente, lembrou-se de Jilly e da última conversa telefónica que tinham tido. A pobre miúda sentia-se só e indesejada. Talvez se falassem novamente agora, se conseguissem consolar uma à outra.
Calculou rapidamente a diferença horária entre a Virginia e o Arizona. Passava pouco das cinco horas lá e pensou que não seria má altura para ligar.
Ligou o número do abrigo de adolescentes de Phoenix. Mais uma vez, quem atendeu o telefone foi Brenda Fitch.
“Olá Brenda, daqui é Riley Paige.”
“Em que a posso ajudar?”
Riley foi apanhada um pouco desprevenida. A voz de Brenda soava hesitante e cautelosa.
“Bem, estava a pensar se a Jilly estaria por aí,” Disse Riley.
Depois de uma breve pausa Brenda disse, “Sim.”
“Posso falar com ela?”
Um silêncio ainda mais prolongado se seguiu. O coração de Riley bateu com mais força. O que é que se estava a passar?
Por fim, Brenda disse hesitantemente, “Riley, eu... nós... todos nós agradecemos o que fez pela Jilly ao trazê-la para cá. Talvez tenha salvado a sua vida. É que...”
Silêncio novamente.
“O quê?” Perguntou Riley.
“Bem, da última vez que tiveram oportunidade de falar a Jilly ficou profundamente perturbada.”
Riley lembrava-se.
“Não posso ir viver consigo?” Perguntara-lhe nessa altura Jilly. “Não dou trabalho nenhum.”
Jilly chorara quando Riley respondera que não era possível. Riley sentiu uma necessidade desesperada de esclarecer tudo entre elas.
Brenda disse, “Ela disse-me que não queria voltar a falar consigo.”
Riley sentiu um nó na garganta.
“Pode perguntar-lhe?” Pediu Riley. “Talvez tenha mudado de ideias. Prometo não a perturbar desta vez.”
“Como pode fazer essa promessa?” Perguntou Brenda.
A pergunta gelou Riley. Brenda tinha razão. Porque é que desta vez tudo seria diferente? Ela ainda não podia dizer a Jilly que podia ir viver com ela. Falar com Riley iria magoá-la novamente.
“Ela está a passar por um mau bocado,” Disse Brenda. “Só não quero tornar tudo ainda pior.”
“Eu compreendo,” Disse Riley.
Quase pediu a Brenda para dar um abraço a Jilly. Mas não, não era boa ideia. Só de saber que Riley tinha ligado, Jilly podia alimentar esperanças de algo que nunca aconteceria.
“Talvez seja melhor não dizer que liguei,” Disse Riley.
“Concordo,” Disse Brenda.
“Mas posso ligar de vez em quando só para saber como ela tem passado?”
“Claro.”
Riley e Brenda despediram-se.
Riley abafou um soluço. Não se podia deixar ir abaixo. Quase lhe apetecia meter-se no carro e conduzir para o Delaware. Mas Bill tinha razão – só se meteria em mais sarilhos e não ajudaria nada.
Entretanto, só queria suavizar a dor.
Foi até à cozinha e tirou uma garrafa de whiskey de um armário. Abriu-a e despejou o conteúdo num copo. Pegou no copo e deu um pequeno gole. O ardor na garganta confortou-a de imediato. Bebeu o resto e serviu-se de outro copo.
CAPÍTULO TRINTA E SETE
Riley espalhou as fotos das vítimas na mesa, depois bebeu outro gole de whiskey. Pousara a garrafa e o copo à sua frente, e esperava beber durante algum tempo. Sabia bem. E naquele momento, estava a experimentar um sentido familiar de lucidez. Sabia que não duraria muito tempo. Porque não tirar vantagem daquela sensação para analisar o material que se apresentava à sua frente?
Espalhou as fotos de todas as vítimas em cima da mesa. Mais uma vez, parecia-lhe dolosamente óbvio que os corpos estavam dispostos de acordo com posições de relógio. Mas nem toda a gente concordava.
Lembrava-se do que Walder dissera.
“O mais certo é a sua teoria estar errada.”
Seria possível que estivesse a imaginar aquilo? Talvez agora fosse a altura para ter a certeza absoluta.
Mas antes que começasse a ordenar os materiais, o telefone tocou. Viu que era um número desconhecido. Estava tentada a não atender, mas por alguma razão decidiu atender a chamada.
A voz do outro lado da linha disse, “Riley, é a Wendy.”
Riley mal reconheceu a voz, mas reconhecia o nome. Mas a sua mente ainda se perguntava quem estava a falar com ela.
“A tua irmã,” Disse a voz do outro lado.
Riley engoliu em seco.
“Olá,” Disse. “Já lá vai algum tempo.”
“Sim.”
Riley foi invadida por emoções contraditórias. Uma das quais culpa. Wendy era dez anos mais velha e fora-se embora de casa quando Riley ainda era uma criança. Fizera uma tentativa para entrar em contacto com Riley há alguns anos e Riley nunca respondera à carta enviada. Não sabia porquê e arrependia-se amargamente. Desde essa altura que não sabia nada a respeito da vida de Wendy ou do seu paradeiro.
E agora lembrava-se que a funcionária do lar na Virginia lhe dissera que Wendy estava com o pai.
Wendy disse, “O lar deu-me o teu número. Já estou cá há alguns dias.”
“Eu sei,” Disse Riley. “Disseram que estavas a ser uma grande ajuda.”
Wendy não respondeu.
“Ele morreu, não foi?” Perguntou ela.
“Sim,” Disse Wendy. “Há cerca de uma hora.”
Riley não sabia o que dizer. Todas as perguntas que lhe vinham à cabeça lhe pareciam estúpidas. Morreu pacificamente? Sofreu no fim? Disse alguma coisa? Riley não queria saber e não conseguia fingir que se importava.
Por fim, só havia dentro de si um enorme vazio. Mas a sua cabeça estava zonza. Esperava que não desse a entender que estivera a beber.
“O funeral é daqui a dois dias,” Disse Wendy. “Uma coisa pequena.”
Mais uma vez, Riley não respondeu.
“Informei alguns dos seus amigos marines,” Acrescentou Wendy. “Alguns poderão aparecer, mas não tenho a certeza. Pareciam surpreendidos por ele ter morrido. Talvez pensassem que ele nunca fosse morrer. Ou talvez pensassem que já tivesse morrido há muito tempo. Quem sabe?”
Riley sabia que Wendy estava a rodear uma pergunta e parecia-lhe melhor dar a resposta de imediato e de forma direta.
“Não posso ir ao funeral,” Disse.
Wendy parecia ter sido apanhada desprevenida pela ousadia de Riley.
“Não há mais familiares. Toda a nossa família já morreu, mudou-se ou...”
A sua voz dissipou-se. Na sua mente, Riley terminou a frase.
“... ou simplesmente o odiava.”
Achou melhor guardar esse pensamento para si.
“Não posso estar presente,” Disse outra vez.
“Oh.”
Nem Riley nem Wendy disseram uma palavra durante alguns instantes intermináveis.
Wendy principiou a retomar a conversa, “Esperava...”
Riley interrompeu-a.
“Não, Wendy. Simplesmente não posso,” Disse. “Peço desculpa por as coisas serem assim, mas não posso. Obrigada por ligares. Desejo-te o melhor do mundo. E obrigada por estares aí com o paizinho. Adeus.”
“Espera, Riley,” Disse Wendy.
A voz de Wendy tinha um tal tom de urgência que Riley não desligou.
“Desculpa,” Disse Wendy.
Riley fora apanhada de surpresa.
“Desculpar porquê?” Perguntou.
Passaram alguns segundos antes de Wendy responder.
“Percebo que ainda me odeies,” Disse, a voz a conter um soluço.
Agora Riley estava completamente abalada.
“Odiar-te?” Disse. “Eu não te odeio. Nunca te odiei.”
“Não sei como podias não me odiar,” Disse Wendy. “Quero dizer, a forma como te deixei há tantos anos atrás...”
A voz de Wendy dissipou-se. Parecia estar tão avassalada pela emoção que até falar lhe custava.
Finalmente disse, “Eras tão pequena. Tinhas cinco anos e eu quinze. E disse-te que ia passar uma noite em casa de amigos. Eras demasiado pequena para compreenderes porque é que eu levava tanta coisa comigo. Não te disse adeus.”
Depois de outra pausa, acrescentou, “Sinto que te abandonei.”
Riley estava chocada com aquelas palavras da irmã. Não se lembrava de absolutamente nada do momento em que Wendy se fora embora, mas parecia errado verbalizá-lo.
“Tu não me abandonaste,” Disse Riley. “O paizinho batia-te.”
Riley ouviu a irmã soluçar uma única vez.
“A culpa não foi tua,” Disse Riley. “Nada foi culpa tua.”
Wendy respondeu com um riso desconfortável.
“Obrigada por dizeres isso,” Disse Wendy.
“Sou sincera.”
Mantiveram-se caladas durante alguns momentos.
“Bem, tenho que ir,” Disse Wendy por fim. “Tenho muito que fazer por aqui. E espero...”
Wendy parecia incapaz de terminar a frase.
“Cuida de ti Riley.”
Wendy desligou. Riley ficou a pensar no que Wendy não dissera. Talvez que se podiam encontrar um dia ou pelo menos manter o contacto? Mas como é que isso seria possível? Nunca tinham tido nenhum tipo de relação, nunca tinham sido verdadeiras irmãs. Seria possível alterar isso agora?
Riley apercebeu-se que estava a tremer. Uma força importante da sua vida acabara de morrer e ela não sabia o que sentir. A verdade era que não conseguia meter na cabeça que o pai estava realmente morto. Ainda conseguia ouvir perfeitamente a sua voz.
Lembrava-se dele dizer distintamente, “Será tarde demais para me agradeceres mais tarde. É agora ou nunca.”
Mas percebeu que ele nunca dissera aquilo na vida real, apenas num sonho que tivera recentemente.
Agora, repetia o que dissera nesse mesmo sonho.
“Nunca vais ouvir uma palavra de agradecimento minha.”
Engoliu o resto do whiskey e serviu-se mais uma vez. O telefone tocou. Riley tinha a certeza de que era Wendy outra vez e estava contente. Talvez quisesse terminar a conversa de uma forma mais positiva.
“Ainda bem que voltaste a ligar,” Disse Riley.
Ouviu o som de um riso áspero.
“É bom ouvir isso,” Disse a voz de um homem. “Ás vezes sinto-me sozinho a ouvir o som da minha própria voz.”
Reconheceu a voz de imediato. Era Shane Hatcher, um prisioneiro de Sing Sing. Estava preso há várias décadas a cumprir uma pena de prisão perpétua devido a vários crimes violentos que cometera na juventude. Na prisão tornara-se num perito em criminologia e já ajudara Riley em alguns casos. Mas também era um homem manipulador e perigoso, e Riley esperava não voltar a ouvir falar dele.
“Não quero falar consigo.” Disse Riley.
E esperava que ele não reparasse, ainda mais do que a irmã, que ela tinha bebido.
Hatcher riu-se novamente.
“Oh, então Riley. Não seja assim. Tive saudades suas. E a Riley teve saudades minhas. Admita-o.”
Riley queria dizer-lhe que não, que não sentira a sua falta. Mas seria verdade? Um lado dela sentia-se perversamente atraído por Shane, como uma traça pela luz. Não era uma atração física – nada disso. Ela nunca poderia amar um monstro como ele. Ele tinha uma mente maligna mas brilhante, fascinava-a e ela não conseguia evitar sentir compreensão e empatia. Era por isso que ele a assustava tanto.
“Soube que o seu pai não está bem,” Disse Shane.
Riley ficou toda arrepiada ao ouvir aquilo.
“Como é que soube disso?”
Hatcher deu mais uma risadinha. “Oh, aqui e ali.”
É claro que era uma piada, mas Riley não se riu. Ficou preocupada. Como é que ele soubera da doença do pai? Sem dúvida que utilizara a internet para o descobrir. Talvez conhecesse formas de obter essas informações dessa maneira. E agora parecia que estava a marcá-la de forma algo obsessiva.
Que tipo de outras coisas é que um homem astuto como Shane descobrira sobre ela online? A data de nascimento? O número de segurança socia? Onde vivia? O seu rendimento anual? Os termos do seu acordo de divórcio? Pior que tudo, o que poderia ele saber sobre April?
Riley sentiu a vertigem de todas as possibilidades que se apresentavam.
“Então, como está o seu paizinho?” Perguntou Shane. “Acha que se vai safar?”
Havia algo de sarcástico na pergunta. Era óbvio que Shane suspeitava do contrário. Riley permaneceu calada.
Shane deu uma risadinha sombria.
“Oh. Com que então morreu?”
Riley continuou sem dizer nada.
“Bem, tenho a certeza que conseguiram resolver as vossas diferenças antes dele partir para um lugar melhor,” Disse Shane com crescente sarcasmo. “Isso é importante. Fico feliz por ambos.”
As palavras queimavam e Riley sabia que o objetivo era esse. Shane sabia bem demais que a reconciliação entre pai e filha não era possível. Estava, de alguma forma, fascinado pela relação que ela tinha com o pai. Da última vez que estivera com ele, ele dissera-lhe, “Não respeita o seu pai o suficiente.”
E, “Devia ouvir o que o seu paizinho diz.”
Agora ia tentar jogar com o seu sentimento de culpa. Mas não ia resultar. Ela não tinha qualquer sentimento de culpa.
Quase desligou a chamada naquele momento, mas Shane parecia pressentir a sua intenção e não parava de falar.
“Espere. Vamos conversar um bocado. Vamos pôr a conversa em dia. Ouvi dizer que está a trabalhar num caso no Dealware. E ouvi dizer que tem uma teoria acerca de relógios. Conte-me mais. Nem sabe como gosto deste tipo de coisa”
“Não lhe vou contar nada,” Disse Riley.
Shane deu outra risada.
“Devia vir visitar-me em Sing Sing,” Disse ele. “Sabe que a posso ajudar.”
Riley lutava contra a fúria e a frustração. A verdade era que ele podia ter razão. As suas anteriores visitas haviam sido dolorosas mas produtivas. Ele tinha dado perspetivas fundamentais da mente dos dois assassinos. Os seus conselhos tinham-na ajudado muito.
Mas aquilo tinha que parar. Mesmo atrás das grades, Shane era um homem demasiado perigoso.
“Não me ligue novamente,” Disse Riley.
Com um tom de dor fingida, Shane disse, “Então não me vem ver?”
“Não.”
Riley terminou a chamada abruptamente. Por um momento, soube bem ter a última palavra – “não.” Depois olhou apreensivamente para o telefone. Iria ligar-lhe de seguida? Se tal fosse o caso, não ia ser suficiente ignorar a mensagem que deixasse.
Descontraiu à medida que os minutos passaram e a chamada não vinha. Ainda assim, duvidava que se tivesse visto livre dele por muito tempo. Apesar de dar a entender o contrário, Shane Hatcher não era homem para aceitar um não.
Sentou-se para ver as fotos novamente, mas a sua mente estava enevoada. Estava simplesmente alcoolizada. Sentia-se tonta, os olhos desfocavam e não conseguia formar ideias. Deitou-se no sofá, fechou os olhos e caiu num sono agitado. Imagens de corpos macilentos preencheram os seus sonhos.
*
Riley acordou com o cheiro a bacon vindo da cozinha. Era Gabriela a preparar o pequeno-almoço. A sua cabeça estava a mil. Sentou-se e olhou para a mesa onde ainda se encontravam as fotos que analisara na noite anterior, um copo e uma garrafa de whiskey quase vazia.
Levou o copo e a garrafa para a cozinha. Colocou a garrafa no armário e despejou o whiskey que o copo ainda continha no lava-loiças.
Gabriela estava a preparar o pequeno-almoço no fogão, cantarolando uma canção. Riley sentia-se envergonhada. Gabriela não podia ter deixado de reparar que Riley adormecera no sofá.
“Buenos dias, Gabriela,” Disse Riley timidamente.
Não havia o mais ligeiro traço de censura no sorriso de Gabriela. Estava pleno de empatia e compreensão silenciosa. Como sempre, Riley sentiu que era uma enorme bênção ter uma mulher tão bondosa na sua vida – e na vida de April também.
Riley foi até à sala de estar mesmo a tempo de ouvir um rugido de desespero vindo do quarto de April. Alguns segundos mais tarde, April surgiu a descer as escadas, soluçando incontrolavelmente.
“O que é que se passa, querida?” Perguntou Riley.
“O Joel acabou de me ligar. Acabou comigo. E é definitivo. Espero que estejas feliz. A culpa é toda tua. Ele diz que és maluca. Diz que não se quer relacionar com uma rapariga que tem uma mãe maluca como a minha.”
Riley tentou não sorrir. Lembrava-se de como tinha sido dura com ele e lhe tinha dirigido um ultimato para ficar longe de April.
“Faço da tua vida um inferno,” Prometera Riley. “E terás muita sorte se só te prender.”
Parecia que Joel tinha entendido a mensagem.
Riley abraçou April e sentou-se com ela no sofá. Deu a April uma caixa de lenços. Gabriela entrou silenciosamente com café para ambas, depois voltou para a cozinha.
“Porque é que fizeste aquilo?” Perguntou April. “Ir buscar-me como se eu fosse uma criança. Foi tão humilhante.”
Riley deu-lhe uma palmadinha nas costas, mas April afastou-se dela.
Disse, “Bem, se não queres que te trate como uma criança, tenta agir como uma adulta. Fui buscar-te porque estavas de castigo. Não era suposto estares na rua. Tinha o direito de o fazer. E quando o vi e àquele lugar onde ele vive...”
Riley parou de falar por um momento.
“Aquele rapaz não é para ti,” Disse Riley. “É demasiado velho para ti e... não é para ti.”
“Não é a ti que compete decidir,” Soluçou April.
Riley deu uma risadinha. “Na verdade, sou mesmo eu que decido. Só tens quinze anos.”
“Então, vou ficar de castigo quanto tempo?”
Riley refreou a tentação de dizer qualquer coisa do género, “Até teres trinta anos.”
Em vez disso, disse, “Só depende de ti. Prova-me que não tenho motivos para te pôr de castigo. Quando começares a agir com mais maturidade para tomares esse tipo de decisão, toma as tuas decisões. É bastante cansativo, na verdade.”
Riley abraçou April e April não se afastou.
“Estou errada?” Perguntou Riley calmamente.
“Huh-uh,” Murmurou April, a chorar nos braços de Riley.
“Então vem daí,” Disse Riley. “A Gabriela já tem o pequeno-almoço pronto.”
*
Pouco foi dito entre Riley e April ao pequeno-almoço, mas Riley tinha a sensação que as coisas começavam a encarreirar. Depois de terminarem a refeição, April foi para o quarto para tomar banho e vestir-se. Era domingo e planeara ir ter com Crystal para fazerem os trabalhos de casa.
Riley regressou para a sala de estar e reparou uma vez mais no material em cima da mesa de centro. Tinha a certeza a respeito da sua teoria da colocação dos cadáveres em posições que indicavam várias horas do dia. Observou mais uma vez as fotos.
Cinco... seis... sete... oito... nove.
A sua teoria estava certa. O assassino estava obcecado pelo tempo. E quanto tempo teriam até ele decidir registar as dez horas? A vida de outra mulher dependia disso.
Mais ninguém parecia acreditar na sua teoria, mas mais ninguém tinha pistas que os pudesse guiar até ao assassino. Não estavam nem perto de o apanhar.
Riley sentiu invadir-se por um renovado sentido de urgência. Não importava que Walder a tivesse retirado do caso. O seu trabalho era impedir que mais mulheres sofressem tão atrozmente e que morressem às mãos daquele assassino.
Sabia que tinha que regressar a Delaware.
CAPÍTULO TRINTA E OITO
Meara fechou os olhos e concentrou-se em seguir as indicações do Dr. Ralston. Já a tinha hipnotizado várias vezes. Ela nunca se recordava do que ele lhe dizia quando estava hipnotizada, mas depois parecia sempre lembrar-se de algo mais sobre o seu cativeiro que anteriormente não recordava.
Ela considerava aquelas sessões um pouco assustadoras, mas não lhe queria dizer isso. Ele estava a tentar ajudar. E era um homem simpático.
“Agora descontraia,” Dizia o médico. “Descontraia os seus dedos dos pés, os seus pés, as suas pernas.”
Enquanto a voz do médico a guiava, Meara começou a sentir-se flutuar sobre a sua cama de hospital. Todos os seus músculos relaxaram e já não sentia o peso do gesso na perna. Sabia bem fugir daquela coisa desconfortável.
“Agora quero que regresse àquele lugar de que falou,” Murmurou o médico. “A cave com os relógios.”
A cena começou a tomar forma à sua volta – uma cena que já descrevera ao Dr. Ralston. Estava numa área vedada numa sala cinzenta. Podia ver relógios por perto. Todo o tipo de relógios.
“Tenho medo,” Disse Meara.
“Não tenha. É como lhe disse antes, está sempre segura. Nada lhe vai fazer mal. Este lugar pode parecer real, mas agora só existe na sua mente. Está lá?”
O medo de Meara desapareceu e sentiu-se confortável novamente.
“Estou lá,” Disse.
“Ótimo,” Disse o Dr. Ralston. “Está sozinha?”
Parecia sempre estranho que Ralston lhe fizesse sempre a mesma pergunta quando a hipnotizava. Mas dava-lhe sempre a mesma resposta.
“Não,” Disse. “Estão aqui mais três raparigas. A Chelsea, a Elise e a Kimberly.”
Por um momento, nada foi dito. Meara sabia o que o Dr. Ralston lhe ia perguntar de seguida. Espera desta vez conseguir responder. Das outras vezes, tivera demasiado medo para se lembrar.
“Vê o homem que a manteve presa?”
A respiração de Meara acelerou-se. Pela primeira vez, conseguia vê-lo claramente. Estava de pé a olhar para as outras raparigas.
“Sim,” Sussurrou Meara. “Consigo vê-lo.”
“Como é que ele é?”
A imagem tornou-se clara e vívida. Meara lembrava a si própria para não ter medo.
“É branco. Trinta e tal anos. Não muito alto, mas muito forte. Constituição média. Cabelo preto. Olhos escuros com um toque selvagem, como uma pessoa louca. Parecem-me sempre escuros. Como os olhos do diabo. A minha avó dizia sempre que os olhos do diabo eram escuros.”
“Quer dizer que os olhos são castanhos?” Perguntou o Dr. Ralston.
“Sim.”
Depois algo de horrível lhe surgiu diante dos olhos.
“Está a matar uma de nós” Está a matar a Chelsea! Está a partir-lhe o pescoço!”
Quase começou a chorar.
“Não se preocupe Meara. É apenas uma memória. Não a pode magoar. Hoje vai conseguir dizer-me algo de novo. Vai dizer-me como é que fugiu desse local. Olhe à sua volta e diga-me como é que fugiu.”
No seu transe, Meara olhou em redor da sala cinzenta. Algo mantinha o seu olhar virado para cima. Já tinha acontecido anteriormente, mas nunca vira o que estava lá em cima. Hoje era um pouco diferente.
“Vejo um brilho de luz lá em cima,” Disse Meara.
“Lá em cima?” Perguntou o Dr. Ralston. “Quer dizer uma janela?”
Perante a sua sugestão, ela conseguiu ver claramente – uma janela retangular no topo com luz solar a infiltrar-se.
“Sim, é uma janela,” Disse Meara.
“Então trepou até essa janela e saiu da sala?”
“Sim, só pode ter sido isso,” Disse ela.
Ela tentou lembrar-se como o conseguira. Teria ela alcançado a base da janela a partir do chão e depois pendurar-se pelos braços? Seria suficientemente forte para o fazer? Caso contrário, como chegara lá acima? Mas o Dr. Ralston não parecia preocupado com esses pormenores. Ela decidiu que também não se devia preocupar com eles.
“Maravilhoso!” Disse o Dr. Ralston. “Agora imagine-se fora da janela. Fugiu da sala onde estava presa. É livre. Olhe à sua volta. Diga-me o que vê.”
Alguns instantes depois ainda Meara não se lembrava de nada.
“Está tudo cinzento, como um nevoeiro,” Disse.
O Dr. Ralston continuou a falar no seu tom de voz calmo e reconfortante.
“Não há problema. Respire profundamente. Descontraia. Nada a pode magoar. Continue a olhar à sua volta.”
Agora sentia-se mais feliz. Pensou se seria por se lembrar da sua fuga ou porque as memórias surgiam com maior facilidade e de forma mais clara? Talvez fosse um pouco de ambas, pensou. De qualquer das formas, era uma sensação boa. Era a melhor sensação que tivera em muito tempo.
“Está cansada?” Perguntou o Dr. Ralston. “Quer fazer um intervalo?”
Pensou por um momento, mas não queria desiludir ninguém, especialmente o Dr. Ralston. Sobretudo agora que se sentia cada vez mais confiante.
“Não,” Disse Meara. “Vamos continuar. Eu quero continuar.”
*
Depois da viagem desde Fredericksburg, Riley estacionou o carro em frente à esquadra de polícia de Ohlman. Interrogou-se do que lá encontraria. A única coisa de que tinha a certeza era que não seria recebida de braços abertos, bem pelo contrário.
Antes de sair do carro, enviou uma mensagem a Bill.
Estou em Ohlman. Onde te posso encontrar?
Bill respondeu, “????”.
Riley sorriu. É claro que ele estava surpreendido.
Precisas da minha ajuda, Disse Riley na mensagem seguinte.
A resposta de Bill foi rápida.
O Walder vai à balística.
Riley hesitou. O Walder estava lá? Ele dissera que partiria de helicóptero ontem. Devia ter decidido dar ao caso uma atenção pessoal agora que uma figura importante estava envolvida.
Ela sabia que Bill tinha razão. O Walder ia ter um ataque mas ela não queria saber.
Onde te posso encontrar? Escreveu-lhe novamente.
A imagem foi lida de imediato, mas Bill não respondeu. Qual o significado disso? Riley pensou que estaria numa situação em que não era oportuno enviar mensagens. O mais provável era ser uma reunião ali na esquadra.
Riley saiu do carro e dirigiu-se à esquadra, indo de seguida para a sala de reuniões. Bateu à porta. Uma voz disse, “Entre.”
Riley abriu a porta e era óbvio que estava a decorrer uma reunião, Sentados à mesa estavam Bill, Lucy Vargas, Emily Creighton, Craig Huang, Carl Walder e o Chefe da polícia local Earl Franklin. À cabeceira da mesa estava Leonard Ralston.
Walder levantou-se abruptamente da cadeira olhando nada satisfeito para Riley.
“Agente Paige, que parte do ‘está fora do caso’ não entendeu?” Perguntou bruscamente.
Riley dirigiu-lhe um sorriso trocista ao sentar-se ao lado de Bill.
“Continuem como se eu não estivesse aqui,” Disse Riley. “Eu vou apanhando os detalhes.”
Leonard Ralston fitou-a por um momento. Já o tinha encontrado algumas vezes e nunca lhe mostrara grande respeito. Ralston tinha o aspeto atraente de uma estrela de televisão. Na verdade, via-o em talk shows, fazendo propaganda aos seus muitos livros sobre casos criminais que resolvera com as suas proezas de hipnotista. Riley nunca considerara essas histórias muito convincentes.
Um gravador estava colocado na mesa à sua frente.
“Inicie a gravação onde parou,” Disse-lhe Walder, sentando-se novamente.
Bill sussurrou a Riley, “Ficámos no momento em que ela se recordava como tinha fugido. Trepou por uma janela para sair da cave.”
Ralston carregou no botão e a audição da gravação prosseguiu.
A primeira voz a ouvir-se foi a de Ralston.
“Está cansada? Quer fazer um intervalo?”
Depois Riley de imediato reconheceu a voz com sotaque Irlandês de Meara Keagan. Parecia sonolenta e hesitante, obviamente num transe hipnótico.
“Não. Vamos continuar. Eu quero continuar.”
Depois surgiu outra vez a voz de Ralston.
“Vê casas? Edifícios?”
Riley ficou de imediato cética em relação à forma como as perguntas estavam a ser formuladas.
“Sim,” Respondeu Meara. “Um edifício. Um grande edifício. Saí da janela do edifício. O edifício devia ter uma cave.”
Apesar da sua hesitação, Meara parecia ansiosa. Riley já percebera o que se estava a passar. Vira Ralston demonstrá-lo na televisão. Parecia sempre resultar melhor em mulheres jovens. Ralston era um homem charmoso e carismático, e parecia a Riley que as mulheres sentiam um desejo inconsciente de lhe agradar.
“De que altura é o edifício?” Perguntou Ralston.
A resposta de Meara foi pronta.
“Quatro andares, parece-me. Não, tenho a certeza de que são cinco. Na Autoestrada das Seis Horas.”
A voz de Meara prosseguiu.
“Tem um lugar para se comer. Sim, um restaurante no rés-do-chão, acima da cave. Tem uma loja de presentes. Penso que há relógios na loja, relógios de cuco... Todo o tipo de relógios. Alguns com bonecas que dançam.”
Ralston desligou a gravação e olhou à sua volta presunçosamente.
“Foi o máximo que consegui até agora,” Disse. “Mas com outra sessão...”
“Penso que não será necessário,” Disse Walder. “Esta informação é precisamente aquilo de que precisamos. Excelente trabalho Dr. Ralston.”
Ralston recostou-se na sua cadeira com aquele seu sorriso fotogénico.
“Devo dizer que tenho muito orgulho destes resultados,” Disse. “E saber que vai ajudar o vosso trabalho, bem, valida o meu trabalho.”
Walder tamborilou os dedos em cima da mesa.
“Agora sabemos que a mulher esteve presa num edifício de cinco andares com um restaurante e uma loja de presentes. Uma loja de presentes com relógios. E fica na Autoestrada das Seis Horas. Não deve ser difícil de encontrar.”
Emily Creighton anuiu entusiasticamente. Mas Riley detetou um certo nível de incerteza nos outros. Quanto a ela, parecia-lhe tudo bastante duvidoso.
“Há aqui qualquer coisa que não bate certo,” Disse Lucy “Corremos toda Ohlman à procura do lugar. Tenho a certeza de que não existem edifícios de cinco andares nesta pequena cidade.”
Walder pensou durante alguns instantes.
“Bem, então não é em Ohlman,” Disse ele, como se tivesse chegado a uma conclusão muito sábia. “Mostre-nos um mapa da área, Chefe Franklin.”
Franklin mostrou um mapa no monitor. Apontou para um trecho de autoestrada. Mal apareceu, Franklin falou.
“Esperem. Eu conheço o lugar de que ela está a falar. Chama-se Serenity Café and Gift Shop.”
Apontou para um ponto no mapa.
“É um lugar turístico a norte da autoestrada. Fica mais perto de Westree do que daqui. Já lá estive algumas vezes. A loja tem relógios. E o proprietário... bem, não sei como é que se chama, mas a sua descrição coincide com a que Meara fez do assassino. Constituição média, cabelo preto e olhos castanhos.”
Walder estalou os dedos triunfalmente. “Bingo. Encontrámo-lo. O assassino mantém as vítimas perto do local onde Meara foi raptada.”
Riley não acreditava no que ouvia.
“Esperem lá,” Disse ela. “Isto não faz sentido.”
“Ninguém pediu a sua opinião, Agente Paige,” Disse Walder. “Na verdade, penso que este é o momento ideal para se ir embora.”
Mas Riley ignorou-o e apontou para o mapa.
“O lugar de que estão a falar fica a vários quilómetros de distância a norte daqui. A Meara foi atropelada por um carro aqui. Como é que ele chegou tão a sul?”
Um silêncio inundou a sala.
Por fim, Emily Creighton falou, “Ela não se lembrava de nada depois de sair da cave. Talvez tenha pedido boleia. Não faz sentido? Ela queria afastar-se tanto quanto possível do local onde estivera presa. O condutor podia nunca ter sabido nada a seu respeito, aquilo por que passara. E agora ela não se recorda dessa parte.”
Ralston disse, “Bem, talvez com mais alguma insistência...”
“Já disse que não será necessário,” Reforçou Walder.
Craig Huang parecia tudo menos convencido.
“Talvez o melhor seja localizarmos esse condutor antes de tirarmos conclusões,” Disse.
Walder dirigiu-se a Huang em tom de reprimenda.
“Não temos tempo para isso, Agente Huang,” Disse. “O mais provável é ter outra mulher presa naquela cave. Pode estar a preparar-se para a matar neste preciso momento. Chefe Franklin, quanto tempo demora a conseguirmos um mandado de busca?”
Franklin nem teve que pensar.
“Eu ligo ao Juiz Weigand de imediato. Posso obtê-lo em poucos minutos.”
Walder anuiu entusiasticamente.
“Ótimo. Faça-o. Depois reúna uma equipa. Vamos prender este estupor de uma vez por todas.”
A reunião terminou e todos se começaram a preparar para dispersar.
Bill chamou Riley à parte.
“Riley, tens mesmo que sair daqui,” Disse. “Volta para casa. O Walder despede-te se não fores.”
Riley não respondeu.
“Ouviste o que acabei de te dizer?” Perguntou Bill.
Naquele momento, Walder chamou, “Agente Jeffreys, Venha cá! Ajude-nos a planear o ataque.”
Bill abanou a cabeça para Riley e afastou-se.
Riley já se decidira. Não ia para casa de certeza. Queria estar lá para ver em que resultaria aquele ataque. Talvez se fosse o desastre que ela esperava que fosse, alguém a pudesse ouvir sobre o que sabia sobre aquele assassino.
CAPÍTULO TRINTA E NOVE
Riley seguiu o grupo de veículos de polícia que se dirigiam para norte no seu carro. Não fazia a mínima ideia como terminaria aquele ataque, mas era demasiado importante para o perder. Ela não se importava do que Walder ou Bill pudessem dizer a esse respeito.
Que se lixem as ordens, Pensou.
Passado um bocado, os carros da polícia saíram da autoestrada e entraram numa pequena estrada povoada de algumas casas de comércio. E sem dúvida que entre elas estava um edifício de cinco andares. No rés-do-chão podia ler-se um sinal que anunciava o Serenity Café and Gift Shop.
Riley abrandou e os veículos à sua frente estacionaram à frente do edifício. Liderados por Walder e pelo Chefe Franklin, Bill e Lucy saíram do carro seguidos por Emily Creighton e Craig Huang e vários polícias de Ohlman, todos bem armados e usando coletes Kevlar. Riley também envergava o seu colete.
Quando saiu do carro, Walder topou-a imediatamente. Olhou de forma reprovadora para ela mas não disse nada. Ela sabia que ele não queria fazer uma cena com habitantes e turistas no local.
Tem tempo para me despedir mais tarde, Pensou ironicamente. Quem passava no local, ficou a olhar para a abordagem ameaçadora da polícia. Alguns afastaram-se, enquanto outros ficaram a observar a uma distância segura.
Enquanto os locais se posicionavam, Riley juntou-se a Bill, Franklin, Lucy, Creighton e Huang ao lado do edifício. Havia uma fila de janelas de cave ao nível do chão.
“Tem uma cave,” Anunciou Walder. “Pode ser o local.”
Mas os vidros estavam demasiado embaciados para se ver lá para dentro.
Riley começou a ficar com a cabeça repleta de perguntas. Nesta área relativamente movimentada, quão provável seria haver mulheres presas numa cave? A descrição de Meara do seu cativeiro não mencionava estarem algemadas ou amordaçadas, só presas. E outras mulheres tinham estado com ela. Os seus gritos não seriam ouvidos? Ainda assim, parecia que a cave era grande, ocupando toda a base do edifício. Num espaço tão amplo, Riley tinha que admitir que não era impossível que ali estivessem mulheres presas.
E por muito que não gostasse de Walder, esperava que desta vez tivesse razão. Com um ataque surpresa, quem quer que estivesse preso lá em baixo podia ser salvo. Ainda assim, Riley estava preocupada com a pressa com que a operação tinha sido montada. Mesmo que fosse o lugar que procuravam, as coisas podiam correr mal muito facilmente.
Walder começou a dar ordens.
“Jeffreys, Vargas, Creighton, Huang... vamos entrar pela frente.”
Olhou novamente para Riley. Pela sua expressão Riley compreendeu que mandá-la ficar, apenas atrasaria as coisas. E ele sabia que não valia a pena demovê-la de ir com eles.
Com as armas em punho, ainda que baixas, os sete agentes entraram no edifício. A loja de presentes era à esquerda do restaurante e havia objetos expostos na montra. Riley observou-os. No interrogatório gravado Meara descrevera “Relógios de cuco... todos os tipos de relógio. Alguns com bonecas que dançavam.”
Sem dúvida que havia relógios ali. Pareciam baratos, mas os relógios de cuco de plástico pareciam coincidir com a descrição de Meara. E havia algumas bonecas que dançavam em cima de caixas de música. Seria aquele, afinal, o lugar que procuravam?
Com as armas ainda baixas, o grupo seguiu Walder. A rececionista robusta ficou pálida quando os viu. O Pitoresco e turístico café estava quase cheio com clientes da hora de almoço, alguns dos quais reagiram à presença da polícia com alarme. Uma mulher até gritou e um homem idoso parecia prestes a ter um ataque cardíaco.
“Não há motivo para pânico,” Gritou Walder. Depois, virando-se para Craig Huang disse, “Tirem daqui os clientes ordeiramente.”
Huang deslocou-se pelas mesas, cumprindo a ordem de Walder.
Walder chamou, “Quem é o proprietário?”
Um homem assustado avançou. Riley reparou que coincidia com a descrição de Meara do seu raptor – branco, de altura média, constituição forte, cabelo preto, olhos castanhos. Por outro lado, vira pelo menos dois clientes que também se enquadravam nessa descrição. Era um aspeto bastante comum.
“Eu sou o proprietário,” Disse o homem.
“Como se chama?” Perguntou Walder.
“Ike Middleton,” Disse o homem.
Walder empurrou o homem contra a parede.
“Temos um mandado para revistar as instalações,” Disse Walder. “Como acedemos à cave?”
“A porta lá atrás, pela cozinha na sala mais atrás,” Disse Middleton. “Mas não estou a compreender. Podem dizer-me o que é que se passa?”
Walder não respondeu. Emily Creighton começou a revistá-lo.
“Creighton, Vargas, mantenham-no aqui,” Disse Walder. “Jeffreys, vamos os dois lá abaixo.”
Riley reparou que Walder limitava-se a ignorá-la, não fazendo qualquer tentativa de a afastar da ação. Tudo bem por ela, já que não tinha qualquer intenção de não ir à cave com eles.
Seguiu Bill e Walder pela cozinha onde dois cozinheiros e um ajudante olhavam pasmados para eles. Depois passaram umas portas deslizantes que davam acesso a uma sala traseira com uma máquina de lavar louça e onde estava a porta que dava acesso à cave.
“Guardem as armas,” Disse Walder, guardando a sua própria arma. “Não vamos precisar delas.”
Bill e Riley obedeceram. Apesar de concordar com Walder naquele momento, pareceu-lhe demasiado seguro de si. De facto, toda a operação lhe parecia uma grande exibição de excesso de confiança.
Walder abriu a porta da cave e ligou a luz. Depois seguiu à frente. Desceram umas escadas de madeira até uma cave grande, húmida e cinzenta. Artigos para venda, incluindo três relógios, estavam pendurados numa parede perto das escadas.
No fundo das escadas, encontraram um labirinto de caixas colocadas em cima de paletes.
“Vamos separar-nos,” Disse Walder, apontando em diferentes direções para Bill e Riley.
Riley seguiu na direção que lhe havia sido indicada, seguindo por um corredor estreito entre pilhas de caixas e depois ao longo de uma parede. Não encontrou nada além de mais caixas. Virou-se e juntou-se a Bill na base das escadas.
Depois ouviram a voz de Walder “Aqui!” A sua voz plena de entusiasmo.
Riley e Bill foram ao seu encontro.
Walder estava em frente a uma área separada por uma vedação alta. O portão tinha uma fechadura.
A área para lá da vedação parecia ter mais caixas.
“Parece apenas um armazém para produtos mais caros,” Sugeriu Bill.
“Deve estar alguma coisa escondida atrás daquelas caixas,” Disse Walder.
Sacou a arma e rebentou a fechadura do portão.
CAPÍTULO QUARENTA
Walder abriu o portão e entrou lá dentro. Ao seguirem-no, Bill e Riley ouviram-no gritar atrás de uma pilha de caixas.
“Raios!”
Riley foi ter com ele e olhou à sua volta. Não havia nada ali atrás – só um bocado de chão de cimento e um canto infestado de teias de aranha. Riley sabia que não havia mais onde procurar naquela cave. Olhou para Bill que se limitou a encolher os ombros.
Walder colocou a arma no coldre.
Passos rápidos desciam as escadas. Quando Riley e os outros saíam da área vedada, Emily Creighton veio ao seu encontro com a arma em riste. Craig Huang também lá vinha, preparado para o que desse e viesse. Riley percebeu que tinham ouvido o tiro disparado por Walder contra a fechadura.
“Está alguém ferido?” Perguntou Creighton.
Walder abanou a cabeça.
“Guardem as armas,” Disse. “Estamos bem.”
Mas ele não parecia estar bem. Olhava para o chão com raiva. Riley tinha a certeza de que se estava a recordar do que dissera na esquadra.
“Bingo. Encontrámo-lo.”
E também o que dissera quando ela expressara as suas dúvidas.
“Ninguém pediu a sua opinião, Agente Paige.”
Walder estava tão furioso e envergonhado que nem conseguia olhar para os outros, sobretudo para Riley.
“Vamos embora,” Disse Walder. “Vamos sair daqui.”
Subiram as escadas, atravessaram a cozinha até ao restaurante. Lucy Vargas ainda tinha Ike Middleton sob a mira da sua arma com as mãos contra a parede.
“Deixe-o ir,” Disse Walder a Vargas.
Lucy guardou a arma e Ike Middleton afastou-se da parede, parecendo verdadeiramente abalado.
Também Riley estava desiludida por não encontrarem nada. Ao mesmo tempo, algo diferente a incomodava. Meara não tinha simplesmente imaginado a existência daquele lugar. Tudo ali condizia perfeitamente com a descrição que fizera – o edifício de cinco andares, o restaurante, a loja de presentes com os relógios e as bonecas que dançavam. Será que ainda assim este lugar estaria relacionado com o seu cativeiro?
Enquanto Walder dava desculpas esfarrapadas a Ike Middleton, Riley dirigiu-se à entrada e olhou para as pessoas que observavam a cena no exterior. Todos olhavam para ela com expressões intrigadas e assustadas.
“Foi um infeliz mal-entendido,” Disse ela. “Pedimos desculpa. Dentro de momentos saímos do local.”
Um sussurro abafado perpassou entre os curiosos.
Riley viu a rececionista robusta próximo e foi ter com ela.
“Trabalha aqui, não trabalha?” Perguntou Riley.
A mulher assentiu.
“Como se chama?”
“Louise Bader.”
Riley pegou-lhe pelo braço.
“Entre,” Disse. “Talvez me possa ajudar numa coisa.”
Voltaram para o restaurante. Ike Middleton estava sentado sozinho numa mesa, ainda profundamente abalado. Walder estava a conversar com Bill, Lucy e os outros dois agentes. Riley levou a rececionista até eles e apresentou-a.
Depois virou-se para o proprietário.
“Sr. Middleton, se se puder juntar a nós, agradecia-lhe.”
O proprietário juntou-se ao grupo.
Riley pegou no telemóvel e mostrou-lhes uma foto de Meara Keagan.
“Este rosto é-vos familiar?” Perguntou Riley.
Middleton coçou a cabeça.
“Não sei,” Disse. “Peço desculpa mas tenho uma péssima memória visual.”
Mas o rosto de Louise Bader demonstrava um sinal de reconhecimento.
“Já vi esta foto,” Disse. “Quando é que foi? Ah, sim... foi na terça ou quarta-feira, uns polícias vieram cá à procura de uma mulher. Naquela altura não reconheci o rosto mas...”
Olhou mais atentamente para a foto.
“Oh meu Deus. Julgo que a reconheço agora. Há umas semanas atrás veio cá uma mulher com alguns amigos. O cabelo estava diferente e usava óculos, motivo pelo qual não reconheci a foto da outra vez. Tinha um sotaque. Ike, já te lembras agora? Era muito simpática. Ambos reparámos nela e falámos sobre ela.”
“Sim,” Disse o proprietário. “Acho que o sotaque dela era Irlandês.”
Os agentes olharam uns para os outros.
“Muito obrigada,” Disse Riley. Depois falou com os colegas.
“Isto explica tudo,” Disse Riley. “Meara Keagan veio cá pelo menos uma vez para almoçar. Depois veio o trauma do cativeiro. Quando Ralston a hipnotizou, as suas memórias misturaram-se. Julgou ter estado presa aqui.”
Walder olhou para o espaço durante alguns instantes.
“Ok,” Disse ele. “Vamos deixar o Ralston tentar mais uma vez.”
Riley estava estupefacta.
“Com o devido respeito...” Começou.
“Respeito parece ser precisamente aquilo que não tem, Agente Paige,” Disse Walder. “Ordenei que se retirasse do caso. Não devia estar aqui.”
Riley sabia que se devia calar, mas não conseguia.
“Está a cometer um erro grave.”
“Ninguém quer saber a sua opinião, Paige.”
Riley sentiu o seu rosto enrubescer de fúria.
Com as mãos nas ancas disparou, “Raios, o Ralston é um vigarista! Enviou-nos para este beco sem saída. Se ele hipnotizar a Meara novamente, só vai obter mais memórias misturadas. Não temos tempo para andar atrás de mais pistas falsas.”
Walder estava a ferver.
“Mas que raio está aqui a fazer? Eu ordenei-lhe para regressar à UAC. Mas aqui está, a interferir com esta investigação.”
“Interferir!” Exclamou Riley descrente.
Walder acrescentou, “Agente Paige, neste momento, o seu futuro no FBI está por um fio. Saia da minha vista imediatamente. Vá ou tiro-lhe o distintivo e a arma. E da próxima vez que ouvir falar de si, espero bem que não esteja sequer perto do Delaware.”
Riley tremia de raiva. Ela queria dizer muito mais, mas sabia que Walder era mais perigoso quando a sua vaidade era ferida. E a sua vaidade tinha acabado de sofrer um rude golpe. Para ele, o pior era saber que estava errado e que Riley estava certa, mas nunca o admitiria. E Riley sabia que não devia forçar ainda mais a situação.
Virou-se e saiu do restaurante. Passou pelos curiosos e entrou no carro. Sentou-se ao volante durante algum tempo, a tentar decidir para onde ir ou o que fazer.
Só sabia que não ia voltar para a Virginia. Não agora quando as vidas de mulheres estavam em jogo e Walder estava a baralhar tudo. Dependia dela localizar o assassino de uma vez por todas.
Deu à chave e meteu-se na autoestrada de regresso a Ohlman.
*
Riley passou o resto do dia a vaguear na pequenina cidade, à espera que o seu instinto lhe transmitisse algo. Mas só lhe advinha um vazio. Ohlman parecia tão inocente e inócua como qualquer outra cidade. Ela sabia que os polícias haviam percorrido a área sem descobrir rasto do assassino.
Porque é que eu poderei fazer melhor? Pensou.
A noite caiu e o desespero começou a tomar conta de si. O dia fora longo, desanimador e cansativo. Estava preocupada que a sua capacidade de discernimento a estivesse a abandonar. Mas não podia desistir. Não agora.
Já noite, Riley deu por si a caminhar junto à autoestrada fronteira à cidade. Não havia um carro à vista. Algures por ali, Meara tinha sido atropelada por um automobilista bêbedo. Fosse qual fosse a opinião de Walder, Riley tinha a certeza de que Meara fora mantida presa perto dali.
Se fosse esse o caso, o assassino estava por perto. Provavelmente naquele preciso momento. Mas o que estaria a fazer? Em que é que pensava?
Riley lembrou-se do que Meara lhe tinha dito no hospital antes de Ralston a hipnotizar. Ela recordava-se de estar numa jaula onde ela e as outras raparigas passavam fome e eram espancadas.
Fosse por que razão fosse, o assassino mantinha-as vivas durante algum tempo antes de as matar. Também parecia manter mais do que uma ao mesmo tempo.
Riley perguntou-se se ele estaria à procura de outra mulher naquele momento. Talvez precisasse de substituir Nicole que já matara e Meara que fugira.
Riley ruminou a possibilidade. Lembrava-se de Nicole DeRose Ehrhardt ter sido raptada precisamente naquela autoestrada. E pelo menos duas das vítimas mais jovens terem sido raptadas enquanto pediam boleia.
Uma ideia louca e desesperada começou a formar-se na sua mente.
E precisamente naquele momento, viu uns faróis a aproximarem-se na distância. Apertou o casaco na esperança de que parecesse uma mulher a pedir boleia.
É claro que Riley sabia que não podia passar por uma adolescente como aquelas que o assassino dos relógios tinha capturado no passado. E nunca fora tão magra como Nicole DeRose Ehrhardt. Mas tinha uma aparência descontraída e talvez a sua indumentária escondesse a sua robustez aos olhos do assassino.
O carro abrandou quando se aproximou, depois parou um pouco mais à frente. A respiração de Riley acelerou enquanto corria na direção do carro. Depois viu que o condutor era uma senhora idosa.
A mulher debruçou-se sobre a janela.
“Querida, não devias andar por aqui,” Disse preocupada. “É ilegal pedir boleia, sabes. Além disso, nesta altura é especialmente perigoso. Não ouviste falar de um assassino à solta por aqui? Entra, levo-te para um lugar seguro.”
“Não faz mal,” Disse Riley evasivamente. “Eu faço o resto do caminho a pé.”
A mulher nem queria acreditar.
“O resto do caminho onde? Cristo, rapariga, não ouviste o que eu disse? É perigoso andares por aqui.”
Riley mostrou o distintivo.
“Não se preocupe, minha senhora,” Disse. “Estou à procura do assassino.”
A mulher parecia um pouco confusa.
“Mas não devia estar alguém consigo? Um parceiro ou algo do género?”
Riley sorriu ironicamente. Sim, claro que devia estar alguém com ela – pelo menos a alguma distância. Mas agora nem se colocava essa hipótese.
“Eu fico bem,” Disse. “Continue a sua viagem.”
“Boa sorte,” Disse a mulher e prosseguiu o seu caminho.
Um momento mais tarde, já não se via nenhum carro. Riley sabia que ia precisar de muito mais do que sorte naquela noite.
*
Mafarrico conduzia pela autoestrada desanimado e sem quaisquer expetativas. Tinha apenas mais uma prisioneira no abrigo – aquela que ele pensava chamar-se Kimberly. O avô ainda não estava satisfeito com ela. Mesmo depois de semanas de fome, ela não estava suficientemente magra.
Para além disso, o avô não parava de dizer que precisavam de mais duas raparigas para além de Kimberly.
“Mais três horas, mais três raparigas,” Não parava de dizer a Mafarrico.
A pressão era insuportável. Mafarrico estava dolorosamente consciente da importância da missão. O futuro da humanidade dependia da mensagem que o avô queria passar. E parecia cada vez menos provável que tal fosse possível. E claro, a culpa era sempre de Mafarrico.
Mas o pior de tudo era a solidão. Quando tempo passara desde a última vez que alguém lhe dirigira uma palavra carinhosa? O avô era sempre cruel e sempre fora, aliás. Mas ultimamente, o avô falava cada vez menos, o que era ainda pior. Mafarrico sempre soubera que não valia nada. Mas o que faria se mesmo o avô decidisse que ele não valia sequer para insultar?
Em breve, a grande maioria da raça humana desapareceria. Talvez não restasse ninguém. O que seria a vida para ele, completamente sozinho naquele lugar cinzento, sozinho no mundo sem sequer o avô com quer falar?
Mafarrico ainda se agarrava à ideia desesperada de que talvez uma rapariga sobrasse e que ela conseguisse gostar dele quando a destruição sobreviesse.
Mas não parava de se lembrar das palavras do avô.
“Mais três horas, mais três raparigas.”
Tinham que morrer mais três raparigas. Se quisesse uma rapariga, uma rapariga para ele, tinha que apanhar mais três para além daquela que ele julgava chamar-se Kimberly. E não havia nenhuma à vista. Não era possível ligar a televisão ou a rádio ou a internet sem que visse avisos sobre o “Assassino dos Relógios” do Delaware. As raparigas da área não se expunham.
Não sabia quanto tempo lhe restava, mas sabia que não era muito.
E foi então que viu uma forma humana a caminhar na beira da estrada. A princípio não percebia quem podia ser. Com temperaturas tão frescas a pessoa estava bem agasalhada.
Mas depois a pessoa virou-se para ele. O coração de Mafarrico bateu com mais força e ficou animado. Era uma mulher. E pedia boleia.
Abrandou o carro, certificando-se que tinha tudo preparado nas traseiras do mesmo. Parecia uma pena ter que a colocar inconsciente. Ele bem que gostaria de falar com ela um pouco. Estava tão sozinho.
Mas agora não era o momento para correr riscos. Tinha uma terrível tarefa a cumprir.
CAPITULO QUARENTA E UM
Os faróis do carro encadearam Riley. Quem quer que estivesse a guiar não se dera ao trabalho de ligar os mínimos. Teve que proteger os olhos. Quando o carro abrandou parando a seu lado, Riley estava quase cega.
Riley ouviu a janela do lado do passageiro a descer. Depois ouviu a voz do condutor.
“Para onde vai?”
Riley não o conseguia ver, mas era uma voz de homem.
“Ohlman,” Disse Riley.
Riley ouviu-o a dar uma risada.
“Eu também vou para lá,” Disse o homem. “Estamos quase lá. Entre.”
Com a visão ainda repleta de pontos brancos, Riley entrou no carro. Gostava de ver bem o condutor, mas ainda demoraria alguns minutos até a sua visão se adaptar.
“De onde vem?” Perguntou o homem.
“De Westree,” Mentiu Riley.
O homem não disse nada. Os pontos brancos começaram a desparecer e a visão de Riley normalizou. E então lembrou-se da descrição de Meara – altura média, constituição forte, cabelo preto, olhos castanhos.
O homem no volante assentava perfeitamente nesta descrição. Mas também o dono do restaurante e tantos outros homens.
“Deve estar cheia de frio,” Disse o homem. “Tenho chá quente num termo.”
Com a mão esquerda no volante, remexeu com a direita entre os assentos. Riley lembrava-se de Meara ter dito que o raptor lhe tinha dado uma pancada.
Antes do condutor conseguir alcançar o que quer que estivesse à procura, Riley sacou da arma e apontou-a a ele.
“Ponha a mão no volante,” Disse ela.
O homem soltou um uivo assustado e obedeceu prontamente.
“Pronto, ok! Ok!”
Segurando na arma com firmeza, Riley olhou para o espaço entre os assentos, tentando ver o que o homem lá teria guardado, mas estava demasiado escuro para perceber de que se tratava.
“Tenho algum dinheiro comigo,” Disse o homem. “Não é muito, acabei de regressar de viagem, mas se me deixar pegar na minha carteira...”
“Isto não é um assalto,” Disse Riley.
Com a mão livre, Riley mostrou o distintivo ao homem. O homem parecia completamente perplexo.
“Conduza até à esquadra de polícia de Ohlman,” Disse Riley.
E o homem conduziu sem proferir uma palavra.
*
Dali a apenas alguns minutos, o homem estacionou o carro em frente à esquadra de polícia. Riley continuava a apontar-lhe a arma quando entraram na esquadra. Dois polícias estavam à porta. O mais robusto dos dois disse, “Ei, Rufus! O que é que se passa?”
Com as mãos ainda erguidas, o homem encolheu os ombros nervosamente.
“Parece que estou a ser detido pelo FBI;” Disse ele.
“Conhece este homem?” Perguntou Riley ao polícia que se tinha dirigido a ele.
O polícia deu uma risada.
“É claro que conheço. É o Rufus Crim.”
O polícia mais magro acrescentou, “Conhecemo-nos desde pequenos. O que é que se passa?”
Riley sentia-se cada vez mais insegura. Uma nova onda de exaustão arrebatou-a e mais uma vez pensou se o seu discernimento estaria afetado. Ainda assim, Riley tinha a certeza que o mais provável era o assassino ser alguém que toda a gente em Ohlman conhecia.
Bill saiu do interior da esquadra.
“Riley!” Gritou. “Que raio se passa aqui?”
“Este homem pode ser o nosso assassino,” Disse Riley.
O polícia mais robusto riu-se novamente.
“Nem pensar,” Disse. “O Rufus não está cá há três semanas ou mais.”
Riley virou-se para o homem e perguntou, “É verdade?”
“Sim,” Disse Rufus. “Estive em Miami a visitar familiares. Vim hoje de Filadélfia e depois vim para cá. Posso mostrar-lhe os bilhetes. Afinal, o que é que se passa?”
Bill soltou um rugido de frustração.
“Por amor de Deus deixa-o ir embora Riley,” Disse Bill. “Não é quem procuramos.”
Riley guardou a arma, sentindo-se esmagada e envergonhada.
“Peço desculpa,” Disse a Rufus. “Peço imensa desculpa.”
Bill levou Riley para o interior do edifício e disse-lhe calmamente, “O que é que se passa contigo? Perdeste o juízo?”
Riley não disse nada. De certa forma, dava razão a Bill.
“O Walder vai suspender-te sem sombra de dúvida,” Disse Bill.
“Ele está cá?” Perguntou Riley.
“Não, mas acabámos de lhe ligar e vem a caminho,” Disse Bill. “Temos outra rapariga cativa. Vem, a Lucy está a entrevistar o namorado.”
Bill e Riley apressaram-se na direção da sala de interrogatório onde já se encontrava Lucy a falar com um adolescente de aspeto abalado. Sentaram-se na mesa com Lucy e o rapaz.”
Lucy disse-lhes, “ Este é Russell Bingham. A namorada, Mallory Byrd foi raptada há pouco. Ele está a relatar-me o sucedido.”
Russell era um miúdo magricela de cabelo comprido com uma barbicha no queixo. Tremia como varas verdes.
“A Mallory e eu estávamos a pedir boleia,” Disse. “Eu sei que foi uma estupidez mas pensámos que podia ser divertido. Vivemos em Bowdon e uns amigos iam dar uma festa aqui em Ohlman. Por isso passámos o dia a pedir boleia na autoestrada. Pensámos que era mais provável que os condutores parassem se lhes parecesse que a Mallory estava sozinha. Eu escondia-me e depois quando alguém parasse eu também entrava.”
Parou de falar por um momento, a tremer mais do que nunca.
“Anoiteceu, já estávamos muito próximos de Ohlman e eu estava atrás de uns arbustos e a Mallory estava à beira da estrada quando um caro parou ao lado dela. Ouvi a voz do condutor a dizer à Mallory para entrar e até parecia simpático. Eu saí do meu esconderijo e a Mallory já tinha entrado. Ela estava a abrir a porta de trás para mim. Mas quando o homem olhou para mim...”
O rapaz tremeu dos pés à cabeça.
“Bem, arrancou. Eu ainda tentei saltar para a porta de trás que estava aberta, mas o carro derrubou-me e ainda ouvi a Mallory gritar. As portas estavam abertas, mas o carro ia a demasiada velocidade para a Mallory saltar.”
Uniu as mãos num gesto de ansiedade.
“De qualquer das formas, ali estava eu no chão e logo que consegui, liguei à polícia.”
Lucy perguntou, “Não tirou o número da matrícula? A marca do carro?”
Russell Bingham abanou a cabeça.
“Devia,” Disse. “Estava demasiado aturdido.”
“Nós percebemos,” Disse Lucy. “Dê-me alguns minutos para falar a sós com os meus colegas.”
O rapaz assentiu. Lucy foi com Bill e Riley para o corredor.
“A rapariga tinha um telemóvel?” Perguntou Riley. “Pode ser localizado?”
“Já tentámos isso,” Disse Lucy. “O telemóvel foi encontrado na berma da autoestrada. O condutor deve tê-lo atirado para fora do carro quando levou a rapariga.”
Antes que Riley conseguisse fazer mais perguntas a Lucy, ouviu um grito furioso ao fundo do corredor.
“Agente Especial Riley Paige!”
Carl Walder dirigia-se a ela, parecendo mais zangado do que nunca.
“Acabei de saber da sua proeza de trazer um homem inocente para a esquadra,” Disparou.
“Paço desculpa, mas...”
“Não quero ouvir mais nada,” Disse Walder. “Está suspensa. E se depender de mim, nunca mais trabalhará no FBI. Dê-me o seu distintivo e arma agora mesmo.”
“Riley ficou horrorizada, mas não surpreendida. Sem dizer uma palavra, deu-lhe o distintivo e a arma.
“Agora, quero que saia daqui,” Disse Walder. “E não quero saber para onde vai, desde que seja para longe daqui.”
“Assim farei,” Disse Riley.
Riley dirigiu-se rapidamente para a entrada da esquadra. Bill foi atrás dela.
“Riley, eu avisei-te...”
Riley não parou de caminhar.
“Eu sei, eu sei,” Disse Riley. “Fui uma idiota. O melhor é afastares-te de mim para não perderes o teu trabalho.”
“Mas o que é que vais fazer agora?”
Riley não respondeu. A verdade era que não fazia ideia. Saiu da esquadra, deixando Bill para trás e dirigindo-se ao seu carro. Sentou-se e ali ficou durante algum tempo, tentando ordenar os pensamentos. Andara de um lado para o outro o dia todo por isso não tinha reservado um quarto de hotel.
As palavras de Walder ainda ecoavam na sua cabeça.
“E se depender de mim, nunca mais trabalhará no FBI.”
Teve que reprimir as lágrimas que ameaçavam cair. A sua tentativa de servir como isco ao assassino falhara. Mas agora que pensava nisso, fora mais azar do estupidez. O assassino estava realmente à procura de uma vítima. Simplesmente acontecera apanhar Mallory Byrd em vez dela.
Azar o meu, Pensou Riley. Pior azar o de Mallory.
Agora perguntava-se se devia simplesmente ir para casa. Era muita precisa por lá. De qualquer das formas, era altura de saber como estavam as coisas. Ligou o número de casa e Gabriela atendeu.
“Buenas noches, Gabriela,” Disse. “Como está tudo por aí?”
A voz de Gabriela estava alegre.
“Está tudo bem,” Disse. “Muito melhor. A Crystal esteve cá e a April fez os trabalhos de casa com ela. A April viu um bocado de televisão e depois foi para a cama.”
Riley suspirou de alívio.
“Obrigada, Gabriela. Diga-me se houver algum problema.”
“Assim farei.”
Riley terminou a chamada e continuou sentada no carro a olhar para o vazio. Lembrou-se de algo que Walder tinha dito.
“Não quero saber para onde vai, desde que seja para longe daqui.”
Ocorreu-lhe uma ideia. Havia um lugar para onde deveria ir e um homem que a podia ajudar. Ela jurara nunca mais lá voltar ou vê-lo outra vez, mas estava suficientemente desesperada para mudar de ideias. Arrancou e conduziu rumo a norte pela noite dentro.
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS
Riley odiava as suas visitas a Sing Sing. O simples ato de passar por todos os protocolos de segurança era humilhante. Havia as habituais inspeções manuais, a retirada de joias e outro tipo de objetos de metal, incluindo cintos, e ainda os cães que detetavam drogas.
Pelo menos não foi ao limite da busca pessoal, Pensou Riley.
Chegara a Ossining, Nova Iorque antes do sol nascer. Dormira no carro, comera uns donuts ao pequeno-almoço e depois avisou Sing Sing de que queria ver o prisioneiro. Limpara-se e penteara o cabelo, mas ainda se sentia desalinhada.
Agora pensava se não seria um tremendo erro ir àquele local. Mas não valia a pena desistir – não agora.
Quando passou pela monitorização e foi escoltada à sala de visitas, quase tudo o que trazia lhe tinha sido retirado. Só tinha consigo um dossiê cheio de fotografias das vítimas assassinadas. Esperava que fosse suficiente.
O guarda conduziu-a até aquela pequena sala familiar com paredes creme e uma janela com grades. Shane Hatcher já estava sentado na mesa com uns óculos de leitura encavalitados no nariz.
Shane era um Afro-americano de cinquenta e cinco anos. À primeira vista não parecia particularmente ameaçador, mas Riley sabia quem ele era. Durante a sua juventude enquanto membro de um gang, ficara conhecido como “Shane the Chain”. Espancara as vítimas até à morte com correntes em homicídios tão brutais que o mais certo era nunca ser libertado.
Shane sorriu para Riley.
“Sente-se,” Disse ele com uma nota de ironia na voz. “Faça de conta que está em sua casa. Gostava de lhe poder oferecer alguma coisa, mas como já sabe, a minha vida é algo espartana. Estou certo que compreende.”
Riley sentou-se à sua frente. Olharam um para o outro desconfortavelmente durante alguns instantes.
“Lamento a sua perda,” Disse ele, por fim,
Riley demorou alguns segundos para perceber que falava da morte do pai.
“Não é nenhuma perda,” Disse Riley firmemente.
“Oh, é, é,” Disse Hatcher numa voz surpreendentemente doce. “Ele fez de si o que você é... tanto o bom, como o mau. Agora há um grande espaço vazio na sua vida. Talvez ainda não o tenha sentido, mas sentirá. Foi ao funeral? Não, suponho que não deva ter ido. Como é que se sente a esse respeito?”
Riley não respondeu. Mesmo assim, teve a estranha sensação de que Hatcher lhe fazia a pergunta por genuíno interesse. Ela esperava estar enganada. Não lhe agradava a ideia de qualquer ligação emocional entre eles.
“Vamos ao que interessa,” Disse ela.
“Sim, vamos a isso. Então porque é que chamam a este tipo o ‘assassino dos relógios’?”
Riley abriu a pasta e espalhou as fotos sobre a mesa.
“Bem, a teoria é minha e nem todos concordam com ela,” Disse, apontando para as fotos. “Mas veja as posições em que se encontram os corpos – a forma como os braços estão dispostos. A mim parece-me que os braços fazem as vezes de ponteiros de relógio. Vê? Cinco horas, seis horas, sete horas, oito horas, nove horas.”
Hatcher via as fotos com grande interesse.
“Ah, sim,” Disse ele. “Sim, Tem toda a razão e quem disser o contrário é um idiota. Mas há algo mais.”
Apontou para setas que estavam presentes em cada uma das fotos.
“O que é que isto quer dizer?”
“Indicam o norte,” Disse Riley.
E teve a nítida sensação de que algo de novo ia desabrochar.
“Bem, vire-as todas naquela direção,” Disse Shane.
Riley virou as fotos para que todas as setas estivessem diretamente apontadas para longe dela. Lembrava-se da estranha sensação que tivera nas cenas dos crimes – apesar dos corpos estarem posicionados de forma precisa, não estarem relacionados com o ambiente que os rodeava. Mas agora começava a perceber que estava enganada.
“Agora imagine que a mesa é um mapa da área com o norte apontado para longe de si,” Disse Hatcher.
Riley imaginou os locais na mesa e colocou cada fotografia no seu devido lugar. E agora via tudo perfeitamente.
As fotos formavam a parte inferior de um mostrador de relógio com cada um dos corpos posicionados exatamente como os ponteiros de um relógio nas direções esperadas – cinco horas, seis horas, sete horas, oito horas, nove horas.
Mas mais importante que tudo, agora percebia que Ohlman estava no centro do mostrador do relógio. Parecia que estivera sempre certa. O assassino estava em Ohlman.
“Está ainda mais obcecado com o tempo do que eu pensava,” Disse Riley.
“E está a tentar passar uma mensagem,” Acrescentou Hatcher.
“Sim, mas o que é que está a tentar dizer?”
Hatcher reclinou-se para trás e mostrou um sorriso sinistro.
“Diga-me Riley, que horas são?”
O relógio de Riley fora-lhe tirado por isso teve que pensar durante um momento.
“Bem, deixaram-me entrar às oito e quinze, e demorou uma boa meia hora a passar pela segurança por isso...”
“Não é desse tempo que estou a falar,” Disse Hatcher.
Riley não percebeu. Hatcher começou a falar num estranho tom despreocupado.
“Eu estou mesmo ansioso pelo fim do mundo. Quero dizer, o que é que o mundo fez por mim? E quero estar acordado quando isso acontecer. Quero apreciá-lo. Gostava de ver as expressões nos rostos das pessoas.”
Hatcher debruçou-se sobre a mesa com os olhos plenos de interesse.
“Este não é o seu típico psicopata,” Disse. “Trata-se de um louco, pura e simplesmente. Não há nada de sádico nele. Na verdade, está a tentar ajudar-nos a todos. Na sua mente retorcida, matar mulheres é apenas uma infeliz necessidade. É a única forma de transmitir a sua mensagem.”
Recostou-se novamente na cadeira.
“Mas você tem as suas próprias perspetivas,” Disse ele. “Diga-me o que pensa.”
Riley pensou por uns instantes.
“Tenho a sensação de que ele não age sozinho, mas sob as ordens de outra pessoa.”
Hatcher sorriu.
“Oh, tem toda a razão,” Disse ele. “Mas terá alguma dificuldade em capturar o seu cúmplice.”
“Porquê?” Perguntou Riley.
“Porque não existe.”
Riley compreendeu finalmente.
“É esquizofrénico,” Disse ela. “Ouve vozes – ou talvez só uma voz. A voz diz-lhe o que fazer. Seguir as ordens daquela voz é o único objetivo da sua vida.”
Hatcher disse, “Parabéns, está a avançar. Fazemos mesmo uma excelente equipa, não fazemos? O meu cérebro e o seu a trabalharem juntos são uma combinação formidável. Devíamos trabalhar juntos mais vezes. Talvez tornarmo-nos numa equipa de investigação oficial. Acha que o FBI concordaria? Pois, também não me parece. Neste momento a sua posição também não é muito confortável por aquelas bandas, pois não? Quero dizer, apareceu em Sing Sing sem o seu distintivo.”
Riley sentiu um súbito arrepio. Ele sabia que ela tinha sido suspensa. Mas como?
Obviamente detetando o alarme de Riley Hatcher disse, “Então Riley. Vi logo quando aqui entrou. Eu conheço-a. De algumas formas até a conheço melhor do que você própria.”
Mais uma vez, Riley sentiu uma nota de preocupação na sua voz e isso assustou-a. Que tipo de ligação era esta que aquele assassino formava com ela? Seria afetação, admiração ou ambos ou algo inteiramente diferente? Fosse o que fosse, ela não gostava. Não queria ter nada a ver com aquilo.
Colocou as fotos novamente no dossiê.
“Vou-me embora,” Disse ela.
“Espere,” Disse Hatcher. “Temos um acordo. Eu tenho sempre que obter alguma coisa em troca nestas nossas reuniões. Vamos conversar um bocadinho. Não é fácil ter conversas aqui dentro, acredite em mim. Como tem passado a sua filha? Tem quinze anos, não é? É uma idade difícil. Pode ser problemático.”
O arrepio que Riley sentira aprofundou-se. Ela tinha a estranha sensação de que não tinha segredos para homem útil mas terrível.
Ainda assim, ela sabia que Hatcher tinha um código próprio, o seu próprio sentido de jogo justo. E ela não o devia violar. Devia-lhe isso.
“O que é que quer?” Perguntou.
“O mesmo da primeira vez que nos encontrámos,” Disse Hatcher. “Conte-me coisas sobre si – algo que não quer que as pessoas saibam. Algo que não queria que mais ninguém soubesse.”
Riley foi acossada por um estranho sentimento – uma vontade inexplicável de confiar nele. Ela sabia que não seria sensato, mas não o conseguia evitar.
“Invejo a minha irmã,” Disse Riley. “Chama-se Wendy. Não a vejo há muitos anos e não sei que vida tem mas... invejo-a.”
Hatcher não disse nada, apenas sorriu.
“O paizinho batia-lhe muito, até que um dia fugiu,” Disse. “Tinha quinze anos, eu tinha cinco. Ela fugiu. Eu não. Mas não é tanto por ter fugido...”
Lembrava-se de algo que o pai lhe dissera não há muito tempo sobre a Wendy.
“Eu só lhe bati com as minhas mãos. Magoei-a fisicamente e foi tudo. Não a atingiu o suficiente.”
Depois acrescentara, “Eu nunca te bati. Eu marquei-te de forma muito mais profunda. E tu aprendeste. Aprendeste.”
Lutando para se manter calma Riley disse, “O paizinho não teve a oportunidade de a moldar.”
Hatcher anuiu com uma horrível compreensão do que Riley dizia.
“Mas ele fez de si tudo o que é hoje.”
Riley sentiu o ar faltar-lhe.
Isso não pode ser verdade, Pensou.
Mas não conseguia pensar nisso agora. Tinha que sair dali. Tinha que respirar.
“Tenho que me ir embora,” Disse. “Tenho que resolver este caso.”
Hatcher libertou um suspiro jocoso.
“Sim, parece-me bem que sim. E despache-se. Tire-o do seu caminho. Tem mais problemas em vista. E vai precisar de lhes dedicar toda a sua atenção.”
Riley resistiu à vontade de lhe perguntar de que problemas estava a falar. Talvez soubesse realmente algo ou talvez apenas estivesse a tentar atraí-la para a conversa.
“Para além disso,” Acrescentou com um piscar de olho, “Não é o fim do mundo. Ou talvez seja. Devia pensar nisso. Está a encará-la de frente mas não o vê.”
Riley levantou-se da mesa e começou a caminhar para a saída.
Hatcher chamou-a, “Tenha cuidado consigo, Riley Paige.”
Riley encarou-o. A sua expressão parecia genuinamente preocupada e ela não conseguia perceber porquê. Nem queria.
“Não voltarei a visitá-lo,” Disse.
Agora Hatcher lançou-lhe um sorriso indecifrável.
“Talvez não tenha que o fazer,” Respondeu.
Riley saiu da sala sem lhe perguntar o que queria dizer com aquilo. Quando se viu no exterior do edifício, hiperventilou. Visitar Hatcher era sempre irritante e daquela vez não tinha sido exceção.
Recordou-se das palavras:
“Talvez não tenha que o fazer.”
E tentou não pensar no seu significado.
*
O cansaço apoderou-se de Riley durante a viagem para sul. Não dormia há pelo menos vinte e quatro horas, tirando uma curta sesta no carro antes de ir a Sing Sing. E com novas ideias sobre o caso, parecia difícil a Riley concentrar-se na condução. Precisava de uma mudança de ritmo.
Lembrou-se que havia um ferry de New Jersey para o Delaware por isso, decidiu optar por essa via em vez de continuar a conduzir. A viagem de uma hora e vinte minutos na Baía de Delaware podia permitir-lhe pensar nas coisas com maior clareza. Ou pelo menos descansar um pouco.
Assinalou no GPS a localização de Cape May. Quando chegou ao terminal, ficou satisfeita por não haver muitos carros na fila para o próximo ferry. Não teria que esperar muito até o belo barco branco se afastar do cais. A maioria dos outros passageiros subiu as escadas para o convés dos passageiros mas Riley preferiu ir até à proa.
O ar estava fresco e claro. A água cinzento-azulada rodopiava em serpentinas brancas de ambos os lados. Ao afastar-se de terra, o barco passou por um farol branco. A ondulante água cinzento-azulada era repousante para Riley.
Virou-se e olhou para o que via à sua frente. Sabia que havia comida onde estavam os outros passageiros, talvez até houvesse um bar. Mas não tinha fome. Riley só queria silêncio. Voltou para o seu carro e entrou.
Fechou os olhos, mas sabia que não conseguiria dormir. Nem queria. Hatcher tinha dito algumas coisas que ela sabia serem importantes, mas que ainda não compreendia. Tinha falado por enigmas como era seu apanágio. Agora era altura de desvendar o seu significado.
Ela lembrava-se do que dissera mesmo antes de sair.
“Não é o fim do mundo. Ou talvez seja. Devia pensar nisso. Está a encará-la de frente mas não o vê.”
Agora chegara a altura de ver. Manteve os olhos fechados e respirou profundamente. E foi então que lhe surgiu uma imagem em que pensava raramente.
Era o chamado Relógio do Juízo Final – um símbolo utilizado pelo Boletim de Cientistas Atómicos para mostrar quão perto a humanidade estava da catástrofe global. Nos tempos da Guerra Fria, o relógio indicava o perigo de um holocausto nuclear mundial. Hoje em dia, também avisava para os perigos das mudanças climáticas.
Sempre que a situação parecia especialmente perigosa, os cientistas moviam o ponteiro dos minutos para mais próximo da meia-noite.
Agora Riley compreendia a pista de Hatcher. O assassino tinha a sua própria versão de um Relógio do Juízo Final. Usava corpos de mulheres para avisar o mundo de que o fim se aproximava. De acordo com a sua noção de tempo, a meia-noite era quando a catástrofe sucederia.
Riley percebeu que as implicações eram desastrosas. Se o assassino seguisse este padrão, teria que matar mais três mulheres – uma para as dez horas, uma para as onze e uma última para a meia-noite. Agora que Riley compreendia a imagem do relógio, devia conseguir localizar num mapa onde é que o assassino planeava deixar estas últimas vítimas.
Mas não o vou deixar chegar a esse ponto, Pensou.
Ela sabia que Shane Hatcher tinha razão numa coisa – este assassino era um louco com delírios. Mas de quem recebia ordens?
Lembrou-se do que Hatcher dissera.
“O seu cúmplice não existe.”
De alguma forma, não lhe parecia verdade. Era demasiado simples. Riley sabia que as teorias de Hatcher não eram infalíveis. Também ele tinha os seus limites. Havia uma falha nos seus consideráveis talentos enquanto criminologista. Era demasiado cínico, demasiado intelectual. Não conseguia sentir empatia, não se conseguia colocar na pele do assassino como ela.
E agora chegara o momento de o fazer.
Fechou novamente os olhos e penetrou nos recessos escusos da sua mente. Depois viu uma imagem dele – uma imagem que ele parecia ter dele próprio. Era uma imagem grotesca e surreal de um homem a construir um relógio gigantesco utilizando corpos de mulheres como ponteiros.
As mulheres faziam parte da mensagem – não pessoas mas items, partes de relógios. Não sentia animosidade pelas mulheres, mas a forma como as desumanizava era total.
À medida que o relógio tomava forma, começou a trabalhar, o ponteiro de cadáveres começou a movimentar-se e soou um alarme – um aviso de que estava a chegar uma meia-noite apocalíptica.
É assim que ele se vê a ele próprio, Pensou Riley. Mas como chegou a esse ponto?
Fez a pergunta ao lado negro da sua mente. Uma imagem surgiu rapidamente ante ela. Um rapaz pequeno a observar um homem mais velho a trabalhar numa oficina mal iluminada. O homem usava ferramentas delicadas para construir um relógio real a partir de milhares de peças de precisão. O rapaz observava ansiosamente. O homem não lhe queria bem mas tudo na vida do menino dependia dele. Era absolutamente crucial que ele compreendesse cada movimento encetado pelo homem.
As suas negras meditações foram interrompidas pelo ruído ensurdecedor da buzina do barco. Anunciava a chegada do ferry a Lewes, Delaware.
Num abrir e fechar de olhos a imagem desapareceu, mas Riley não estava desiludida. Obtivera exatamente aquilo de que precisava.
A sua próxima paragem seria Ohlman – o centro do relógio, o seu eixo. E ela sabia o que tinha que fazer.
CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS
Quando chegou a Ohlman, Riley sentiu que estava perto de apanhar o assassino. O site da loja denominava-se orgulhosamente como “O único serviço de reparação de relógios de Ohlman”. Riley também pensou que podia ser a toca de um louco.
O lugar que procurava era fácil de encontrar. Riley viu o sinal da Gorski Jewelers assim que virou para a Main Street e estacionou mesmo em frente da loja. Quando saiu e se aproximou do local, tentou perceber se o edifício tinha ou não uma cave, mas do exterior não era possível discernir.
Infelizmente, à porta estava pendurado uma placa de FECHADO.
O desânimo apoderou-se de Riley. Tinha-se esquecido completamente que era domingo. Numa pequena cidade como aquela, não deveria haver uma única loja aberta em toda a Main Street. Quase toda a gente tinha ido à igreja e passava agora a tarde com a família.
Era chocante pensar no horror que se insinuava no âmago daquela comunidade – talvez bem à sua frente naquele preciso momento.
Interrogou-se se o assassino seria uma pessoa religiosa. Era bem possível. Era frequente os esquizofrénicos sofrerem de ilusões religiosas. Se fosse esse o caso, evitaria torturar e matar aos domingos? Riley duvidava.
Havia um número de telefone na porta. Riley pegou no telemóvel e ligou. Recebeu uma mensagem com a voz de uma mulher idosa.
“Ligou para a Gorski Jewelers e está a falar com Irina Gorski. Deixe, por favor, uma mensagem após o sinal.”
Depois do sinal, Riley disse, “Se está aí, atenda o telefone. Isto é uma emergência.”
Ouviu-se um clique e a mesma voz da mensagem atendeu.
“Uma emergência? De que é que está a falar?”
Olhando através da porta de vidro, Riley viu uma mulher pequena de cabelo branco no fundo da loja. Segurava um telefone e olhava diretamente para Riley. Percebeu que era com aquela mulher que estava a falar.
Riley sentiu-se dececionada. Ela não estava à procura de uma mulher e muito menos de uma mulher idosa. Teria Irina Gorski alguma relação com os homicídios? Riley tinha que descobrir.
Riley bateu na janela e disse ao telefone, “Deixe-me entrar por favor senhora Gorski, Chamo-me Riley Paige e...”
Riley estava prestes a dizer que era uma agente do FBI. Mas se a mulher lhe solicitasse a identificação, ela nada teria para lhe mostrar.
Em vez disso, disse simplesmente, “Estou à procura do ‘assassino dos relógios’”
Os olhos da mulher dilataram-se com interesse. Abriu a porta e deixou Riley entrar.
“É alguma espécie de detetive?” Perguntou.
“Algo do género,” Disse Riley. “Tenho um, digamos que, especial interesse no caso.”
A mulher observou Riley com muita atenção. Depois com uma piscadela de olho disse, “O que posso fazer para a ajudar a excluir-me como suspeita?”
Riley tinha a certeza de aquela que minúscula mulher nada tinha a ver com os homicídios. Mesmo assim, tinha que fazer uma pergunta.
“Tem uma cave?” Perguntou.
“Não, apenas este piso,” Disse a mulher.
Riley olhou em redor. A loja era muito pequena e não viu portas que pudessem dar para uma cave. Ainda assim, tinha a sensação de que viera ter com a pessoa certa para obter informações.
“Podemos falar?” Perguntou Riley. “Tenho algumas perguntas a que poderá responder.”
“Claro,” Disse a mulher, conduzindo Riley para duas cadeiras atrás do balcão. “Sente-se.”
Riley sentou-se.
“Senhora Gorski, conhece alguém aqui na cidade que esteja obcecada com relógios e com o tempo?”
Irina Gorski franziu o cenho.
“Essa é uma pergunta interessante,” Disse. “Não, já não. Mas há muito tempo atrás...”
Fez uma pausa como se estivesse a tentar lembrar-se de algo.
“Havia um tipo estranho na cidade – chamava-se Tyrone Phipps. Tinha uma loja na sua casa, no piso principal. Foi o último verdadeiro relojoeiro da região. Um ‘horologista’, era assim que se autodenominava – que é uma pessoa que estuda e mede o tempo. Oh, ele era realmente alguém obcecado com o tempo.”
A atenção de Riley aguçou-se.
“Conte-me mais coisas sobre ele,” Pediu Riley.
Irinia Gorski esfregou o queixo.
“Bem, ele também tinha outras obsessões. Por exemplo, pela Guerra Fria. Tinha sempre a certeza que estava prestes a suceder um holocausto nuclear e que provocaria o fim do mundo. Ainda me lembro da Crise dos Misseis de Cuba em 1962 – bem, imagino que você ainda nem era nascida. Quase aconteceu. O fim de todos nós.”
Abanou a cabeça perante a memória.
“E o Tyrone andava de porta em porta a gritar, ‘Está preparado? Está preparado?’ Bem, quando veio a minha casa disse, ‘Está preparada?’ Quero dizer, que pergunta! O que poderia alguém fazer para se preparar para o fim da civilização?”
Suspirou tristemente.
“O que foi feito dele?” Perguntou Riley.
“Bem, ele morreu – penso que em 1989. Sim, foi no ano da queda do muro de Berlim e a Guerra Fria acabara. Mas as pessoas dizem que nunca mudou o discurso mesmo às portas da morte. Dizem que as suas últimas palavras foram, ‘Está preparado? Está preparado?’ Um sujeito muito estranho.
O coração de Riley batia descompassadamente. Ela tinha a certeza que estava muito próxima da verdade.
“Senhora Gorski, Tyrone Phipps tinha filhos?” Perguntou.
A mulher suspirou.
“Sim e é uma história triste. Ele e a mulher Megan tinham uma filha, Anita. A mulher morreu num acidente de viação quando a pequena Anita ainda não tinha um ano. A menina cresceu triste e perturbada. Meteu-se com hippies e viveu toda aquela coisa do sexo, drogas e rock and roll. Quando tinha dezoito anos, teve um bebé, o Casey. Nunca ninguém soube quem era o pai. Ela praticamente abandonou o Casey aos cuidados do pai e morreu de uma overdose uns anos mais tarde.”
Agora Riley mal conseguia conter o seu entusiasmo.
“O que aconteceu a Casey?” Perguntou.
“Vive por cá – na velha casa do avô onde tinha a oficina de relógios. A morada é One-Twenty Lynn Street. Um rapaz estranho – apesar de já ser adulto. Parece viver da herança do avô, não trabalha. Nunca incomoda ninguém.”
Depois o rosto da mulher foi atravessado por uma expressão de preocupação.
“Mas... Oh, valha-me Deus. Pensa que talvez o Casey... Quero dizer, os homicídios...”
“O que lhe parece, senhora Gorski?”
A mulher pensou durante alguns instantes.
“Não sei o que lhe dizer, ele é tão estranho. Simplesmente não sei.”
Riley levantou-se da cadeira.
“Muito obrigada senhora Gorski. Ajudou-me imenso.”
Irina Gorski olhou para Riley preocupada.
“Ainda bem,” Disse. “Mas tenha cuidado querida.”
“Terei.”
Quando Riley regressou ao carro, a primeira coisa que fez foi ligar a Bill que atendeu bruscamente.
“Riley, onde raio estás tu? Diz-me por favor que já estás na Virginia.”
Riley conteve uma risada.
“Conheces-me melhor do que isso, Bill. Ainda estou em Ohlman e descobri o nosso homem. O nosso assassino.”
Riley ouviu Bill a grunhir.
“Riley, eu não estou a ouvir isto. Estás a abusar. Vai para casa. Vais-te meter em mais sarilhos.”
O tom de Riley tornou-se mais insistente.
“Ouve Bill. Estou a falar a sério. Sei do que é que estou a falar. Ele chama-se Casey Phipps. O avô era relojoeiro. O tempo é uma obsessão da família.”
Bill ficou calado durante alguns instantes. Riley tinha a certeza que lhe tinha espicaçado o interesse.
“Vive em One-Tenty Lynn Street,” Disse Riley. “Só temos que ir lá apanhá-lo. Encontramo-nos lá?”
Outra pausa se seguiu.
“Se o Walder descobre isto, tem um ataque. Eu tenho que ficar aqui na esquadra para ele não perceber nada. Envio-te a Lucy.”
“Ok,” Disse Riley. “Encontro-me lá com ela.”
Riley foi diretamente para a One-Twenty Lynn Street e estacionou por perto. Era uma casa de madeira de tamanho médio com um baloiço no alpendre. Quando estacionou, viu dois rapazes a jogar com uma bola de beisebol. Tinham cerca de nove ou dez anos. Uma menina pequena de cerca de sete anos, estava no passeio a observá-los.
Mais uma vez Riley se sentiu abismada com a brincadeira inocente que decorria tão próxima de um mal terrível.
Quase imediatamente viu Lucy a aproximar-se do seu carro. Lucy estacionou, caminhou até ao carro de Riley e sentou-se no banco do passageiro.
Apontou para a casa.
“Estás a referir-te a esta casa?”
Riley anuiu.
“Oh Riley, detesto dizer isto mas é um engano. Nós percorremos todo este bairro. Eu própria verifiquei esta casa. O tipo que lá vive é um bocado estranho, mas tenho a certeza de que não é o nosso homem.”
“Ele deixou-te ver a cave?” Perguntou Riley.
“Sim, e sem problemas.”
Riley teve dúvidas durante um momento. Mas não, a história de Irina Gorski tinha-a convencido completamente. O homem que ali vivia, Casey Phipps, era o assassino. E no que dizia respeito à cave...
Bem, deve ter escapado alguma coisa à Lucy, Decidiu Riley.
Talvez não tivesse detetado uma porta que dava para outro compartimento. Riley tinha que ver por si própria.
“Vamos,” Disse a Lucy.
Sairam do carro e caminharam na direção da casa. A menina foi ter com elas.
“Não entrem lá,” Disse ela, apontando para a casa.
“Porque não?” Perguntou Riley.
Um dos rapazes que brincava com a bola de beisebol disse.
“O homem que lá vive é estranho,” Disse. “Nós não nos aproximamos dele.”
O outro rapaz disse. “Exceto no Halloween quando nos dá doces.”
“O que é que querem dizer com estranho?” Perguntou Riley aos rapazes.
“Fala com ele próprio,” Disse o primeiro rapaz.
A menina bateu os pés.
“Ele não fala sozinho! Ele fala com os fantasmas!”
O primeiro rapaz gritou, “Cala-te, Libby. As pessoas ainda pensam que és maluca.”
A menina que se chamava Libby falou com Lucy e Riley num tom de voz murmurado.
“O meu irmão diz que não há fantasmas, mas está errado. Eu ouvi-os. E o homem que vive nesta casa fala com eles.”
As palavras da menina reforçaram ainda mais a certeza de Riley. Casey Phipps parecia exatamente o homem que procuravam – um homem que falava com fantasmas. Riley agradeceu à menina e ela e Lucy caminharam no passeio em direção à casa.
CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO
“É ela outra vez!” Sussurrou Mafarrico ao avô enquanto espreitava pela janela. “Aquela mulher do FBI! E trouxe companhia.”
Bateram à porta.
“O que devo fazer?” Perguntou Mafarrico.
“O que é que te parece?” Disparou o avô. “Deixa-as entrar, por amor de Deus.”
Mafarrico abriu a porta, esperando não parecer tão assustado como se sentia.
A mulher que já lá estivera – aquela com um tom de pele mais bronzeado – mostrava o distintivo enquanto falava muito educadamente.
“Provavelmente lembra-se se mim,” Disse. “Agente Lucy Vargas.”
A boca de Mafarrico estava seca e a sua resposta pareceu algo áspera.
“Claro que me lembro,” Disse.
“Esta é a minha colega, Riley Paige.”
Mafarrico observou aquela outra mulher. Era a mais velha das duas, com fios de cabelo branco a despontarem na cabeleira negra. Estranhamente, ao contrário da outra mulher, aquela parecia não ter uma arma.
“Em que vos posso ajudar?” Perguntou às mulheres.
“Bem, temos apenas mais algumas perguntas a fazer, se não se importa,” Disse a mulher mais jovem a sorrir. “Podemos entrar?”
“Claro,” Disse Mafarrico.
As duas mulheres entraram. A mais velha observava tudo com muita atenção e interesse.
“Ouvi dizer que esta casa já aqui teve um negócio,” Disse. “O seu avô não era relojoeiro?”
A voz do avô surgiu indignada.
“Não um relojoeiro, raios. Um horologista.”
Mafarrico forçou um sorriso.
“Na verdade, o avô considerava-se um horologista. Porque é que perguntam?”
A mulher mais velha não respondeu. O seu olhar era incómodo, quase como se conseguisse ler-lhe os pensamentos.
“Posso ver a sua cave?” Perguntou.
“Porquê?” Perguntou Mafarrico. “A sua colega foi lá da última vez que cá esteve.”
“Só gostaria de dar mais uma olhadela,” Disse com um sorriso perturbador.
Mafarrico limitou-se a ficar ali a olhar para ela.
“Deixa-a ir!” Murmurou o avô. “Não temos nada a esconder. Não aqui.”
Mafarrico não estava nada a gostar daquilo.
“Claro, não há problema,” Disse. “É ali por trás depois da cozinha.”
A mulher desapareceu na cozinha. Mafarrico ouviu a porta da cave abrir-se e passos a descer as escadas.
Agora a mulher mais jovem estava a ver tudo, a bisbilhotar o seu quarto e a cozinha. Quando ela se virou, ele apanhou o chicote que repousava numa poltrona. Andava a utilizá-lo em si próprio muitas vezes ultimamente. Colocou-o fora da vista atrás das suas costas quando a mulher entrou novamente na sala.
“Então isto era uma loja de relógios?” Perguntou.
“Sim,” Disse Mafarrico.
“Onde estão agora todos os relógios?”
Mafarrico quase dissera que tinham sido todos levados para o abrigo, mas o avô impediu-o a tempo.
“Mente, seu idiota!”
Mafarrico suava agora abundantemente. A mulher estava a fazer demasiadas perguntas. E ele não se lembrava de nenhuma mentira.
“Não sei o que dizer,” Disse por fim Mafarrico.
“Idiota!” Disse o avô.
“Lamento,” Disse Mafarrico. “Não sei o que dizer.”
A mulher aproximou-se dele, olhando para ele de forma estranha.
“Está a falar comigo?” Perguntou.
Era demais para ele. A mulher estava apenas a alguns metros de si. Balançou o chicote e atingiu-a no rosto. Ela soltou um grito de dor e dobrou-se sobre si mesma, apalpando o rosto. Mafarrico atingiu-a com o cabo do chicote na nuca. Ela caiu no chão e permaneceu inerte.
“Agora vê bem o que fizeste!” Rugiu o avô. “Virão procurá-la.”
“Peço desculpa!” Disse Mafarrico.
A sua mente sobrecarregou-se, repleta de imagens de como a sala era quando ele era criança – cheia de relógios nas paredes. E começaram o seu ruído.
Chicoteou-se nas costas, tentando fazer com que a loucura desaparecesse.
“Não há tempo para isso,” Disse o avô. “Temos que tratar da outra. Sabes o que tens a fazer.”
Os sons e imagens fantasmagóricos desapareceram. Sim, Mafarrico sabia exatamente o que tinha a fazer Quando era pequeno, o avô costumava castigá-lo fechando-o na cave. As janelas eram esfumadas por isso quando as luzes se desligavam, ficava completamente escuro lá em baixo.
Dirigiu-se à porta da cave, desligou a luz e fechou a porta atrás de si. Na escuridão, ouviu um esgar de espanto da mulher.
De repente, tudo fazia sentido para ele. O avô fora muito sensato em fechá-lo ali. Mafarrico conhecia cada canto e recanto daquela cave com ou sem luz. Ele tinha o seu chicote e a mulher estava desarmada.
Nunca saíria daquela cave com vida.
CAPÍTULO QUARENTA E CINCO
Riley apalpava uma secção de painéis na parede da cave, tentando detetar se haveria um espaço escondido atrás dela. Mas a parede parecia sólida.
Também reparou nalgo vagamente perturbador. Demorou um momento até compreender. Depois percebeu – a completa ausência de luz natural. Apenas havia uma pequena lâmpada a iluminar toda a cave. Porque não havia alguma luz vinda das janelas? Mas agora via que aquelas janelas estavam pintadas e estavam assim há muito tempo.
Uma perceção florescia dentro de si, mas não conseguia perceber o quê. Alguém estivera ali preso. Alguém sofrera ali.
De repente, também ela foi mergulhada na escuridão total.
“Está alguém aí?” Gritou.
Não obteve resposta, mas conseguia ouvir passos a descerem as escadas.
E percebeu que era ele. Ele fora torturado ali e atormentava mulheres num local semelhante.
Riley foi arrebatada por um horror gelado e estranho – uma horrível sensação de déjà vu.
Eu já estive nesta situação, Pensou com um estremecimento.
Sentiu o corpo encostar-se à parede. Memórias que Riley pensava estarem distantes, regressaram.
Estava presa na escuridão total numa pequena jaula. Aninhou-se no espaço, esperando o regresso do monstro com o maçarico. Ela não conseguia ver o seu captor mas conseguia ouvir a sua respiração. Ela sabia que em breve aquela luz trespassaria a escuridão...
Riley tentou libertar-se daquela memória e regressar ao desesperado presente. Ela tinha sofrido ataques de SPT depois de estar presa por Peterson, mas haviam cessado nos últimos meses.
Controla-te, Pensou.
Mas estava paralisada por um medo irracional, aninhada num canto escuro. Já não ouvia passos. O homem alcançara o fundo das escadas e os seus pés apenas faziam pequenos ruídos no chão de cimento. Alguém estava ali no escuro com ela. Ela tinha a certeza que ele conseguia ouvir a sua respiração ofegante.
Sabia que tinha que se levantar, sair daquele canto. Mas não se conseguia mexer.
Depois surgiu um assobio. Ela não fazia ideia do que era até sentir uma dor aguda no rosto. Lembrava-se das cicatrizes nos corpos das mulheres, os seus rostos e as suas costas. Também Meara fora marcada pelos golpes daquele chicote com várias pontas.
O terror de Riley transformou-se de repente numa fúria imparável. Ela não ia permitir que a dor daquelas vítimas ficasse impune.
Quando o chicote arremeteu novamente, ela agarrou-o na escuridão. Empurrou o homem para a frente, ouviu o seu corpo ir de encontro à parede a seu lado. Depois o chicote ficou na sua mão.
Ela saiu do canto, percebendo que as posições se haviam invertido. Agora estava ele de costas para a parede e ela tinha o chicote na mão. Riley não parou para pensar no que faria de seguida. Atacou com o chicote, sem ver onde o atingia.
Ouviu um grito de dor. Sabia bem – demasiado bem – infligir-lhe a mesma dor que infligira às vítimas. Ela arremeteu outra vez e mais uma e ainda outra até os gritos se converterem num choro desesperado. Depois Riley parou. Pensou que já o tinha atingido o suficiente.
Avançou para o encontrar.
De repente, ele bateu-lhe com força, tentando manietá-la. Percebeu que ele era forte. Mas também não tinha jeito, não estava acostumado a que as vítimas oferecessem resistência. Com toda a sua força e a sua vontade indómita, ergueu-se e agarrou-lhe no braço. Sabendo que agora estaria desorientado, balançou o seu corpo com toda a força que tinha.
Riley ouviu e sentiu o tremendo impacto da sua cabeça a embater contra a parede.
Riley recuou, a respirar com dificuldade. Naquele momento, luz penetrou na cave e cegou Riley.
Ouviu a voz de Lucy a chamá-lo no cimo das escadas.
“Riley!”
“Estou aqui Lucy,” Gritou Riley. Enquanto os seus olhos se ajustavam à luz, Riley viu o corpo do homem a dar o último estremeção de vida. Sangrava dos golpes do chicote e na cabeça eram visíveis marcas sangrentas do impacto fatal.
Num momento, Lucy estava ao lado de Riley.
“O que é que fizeste?” Perguntou Lucy.
“Retribuí-lhe,” Disse Riley.
Olhou para Lucy que esfregava a nuca. Também o seu rosto estava ferido pelo chicote do homem.
“Deixou-me inconsciente durante alguns minutos,” Disse Lucy. “Deve ter pensado que estava morta. Mas sou mais dura do que ele pensava.”
“Nunca mais vai magoar ninguém,” Disse Riley.
“Chamei reforços – não que agora precisemos deles,” Disse Lucy com um sorriso onde transparecia dor.
Depois Lucy abanou a cabeça, parecendo envergonhada.
“Riley, como pude ser tão estúpida?” Perguntou. “Estive aqui. Falei com ele. Devia saber que era ele. Mas quando não encontrei mulheres por aqui...”
As palavras de Lucy desvaneceram-se e a sua expressão mostrou preocupação.
“Onde estão as mulheres?” Perguntou Lucy.
A pergunta despertou Riley como um choque elétrico. Casey Phipps estava morto mas as suas prisioneiras ainda podiam ser salvas. Agora tinha a certeza de que nunca as prendera na sua cave. Mas ainda tinham que estar presas em algum lugar e precisavam desesperadamente de ajuda.
“Tenho uma ideia,” Disse a Lucy.
CAPÍTULO QUARENTA E SEIS
Riley subiu as escadas com Lucy bem atrás de si. Dirigiu-se à porta de entrada e viu que as crianças ainda se encontravam no quintal do lado. A menina ainda observava os rapazes a atirar a bola.
Riley ajoelhou-se ao lado da menina que olhou para o seu rosto ferido assustada.
“O que é que aconteceu?” Perguntou.
“Não te preocupes connosco Libby,” Disse Riley. “Nós estamos bem. Mas preciso da tua ajuda. Disseste-me que ouvias fantasmas a falar.”
A menina assentiu, parecendo agora assustada.
“Podes dizer-me onde é que os ouviste?” Perguntou Riley.
“Tenho medo de dizer,” Disse Libby.
“Não tenhas,” Disse Riley. “És uma menina corajosa. E sabes que não são fantasmas. São mulheres que precisam da nossa ajuda.”
Naquele preciso momento, Riley viu carros de polícia a aproximarem-se na rua.
“Fica aqui e conta-lhes o que aconteceu,” Disse a Lucy.
E disse à menina, “Temos que nos despachar.”
*
A menina levou Riley para as traseiras da casa de Phipps. Apontou para um caminho que levava a uma área florestal.
“Mostra-me,” Disse Riley. “Estás a portar-te muito bem.”
A criança atravessou os bosques com Riley. O caminho estava rodeado de arbustos espessos e Riley afastava ramos do caminho à medida que avançavam. Depois de alguns metros o caminho abria-se para uma grande área relvada em forma de quadrado. Dois objetos semelhantes a periscópios despontavam do chão.
Agora Riley compreendia. Há muitos anos durante a Guerra Fria, Tyrone Phipps construíra um abrigo nuclear secreto, esperando sobreviver ao apocalipse nuclear que aguardava obsessivamente.
Riley olhou à volta até detetar um pequeno ponto retangular. Afastou o musgo que fora colocado para esconder uma porta horizontal.
“Fica aqui,” Disse a Libby. “Volto num instante.”
Libby anuiu. Riley abriu a porta e desceu um pequeno lanço de escadas.
“Está aqui alguém?”
Um grito agudo cortou o ar.
“Aqui! Ajude-nos! Estamos aqui em baixo!”
Riley quase sorriu. Aquele grito indicava que as mulheres ainda estavam vivas. Desceu os degraus até chegar a uma estranha sala repleta de relógios com uma jaula no extremo oposto. Uma mulher jovem gritava o máximo que conseguia.
“Socorro! Socorro! Tirem-nos daqui!”
Riley sabia que os gritos eram de Mallory Byrd que apenas havia sido raptada no dia anterior e ainda não estava enfraquecida pela fome. Mas golpes sangrentos mostravam que já havia experimentado a agudeza do chicote do raptor.
A outra mulher, aquela que Meara designava como Kimberly, estava deitada em posição fetal. Parecia mais morta do que viva. Riley viu uma chave em cima da mesa. Pegou nela, abriu a porta da jaula e entrou apressadamente lá dentro.
Mallory atirou-se para os braços de Riley, agradecida.
“Tudo bem,” Disse Riley. “Não vos fará mais mal.” Afastou gentilmente Mallory para ver como estava Kimberly. Levantou a cabeça da pobre mulher. Parecia um pequeno pássaro num ninho à espera da mãe.
A visão era tão terrível que Riley começou a chorar. Tinha uma ideia daquilo por que aquela mulher tinha passado e sentiu uma grande satisfação pelo facto de o homem estar morto. Abraçou Kimberly com cuidado para não a magoar.
“Está tudo bem agora,” Disse Riley. “Vai correr tudo bem.”
CAPÍTULO QUARENTA E SETE
Riley sentou-se com Lucy nos degraus do alpendre da casa de Phipps, recuperando da sua provação. Depois de uma ambulância ter levado as mulheres do abrigo nuclear, Riley fizera o trajeto de regresso pelo bosque para a casa. Logo depois, o médico-legista levou o corpo de Casey Phipps.
Lucy ainda se culpava por não ter percebido mais cedo que Casey Phipps era o assassino.
Riley colocou uma mão reconfortante no ombro de Lucy.
“Somos apenas humanos,” Disse. “Enganou a cidade toda. Ninguém sabia.”
Lucy olhou para Riley.
“Sim, mas se tu estivesses ali a fazer as buscas, terias percebido?”
Riley sorriu sombriamente.
“Provavelmente,” Disse. “Mas eu faço isto há mais tempo do que tu. Tens que dar tempo ao tempo. Talvez uns vinte anos.”
E nesse preciso momento, um carro parou em frente da casa. Bill e Carl Walder saíram do carro e Bill foi logo ter com Riley. Quase a abraçou, mas depois viu as suas feridas.
“Merda, Riley,” Disse. “Estás bem?” Perguntou.
Riley estava aliviada. Um abraço teria sido bastante doloroso naquele momento.
“Estou ótima,” Disse.
“Quem me dera ter estado cá. Quem me dera ter podido...”
Não terminou a frase. Riley percebeu em que é que Bill pensava. Há meses que este caso o corroía por dentro. E agora tudo terminara e ele nem sequer estivera presente.
Riley tocou docemente no seu rosto.
“Não há problema, Bill,” Disse Riley. “Fizemos tudo juntos. Já podes dormir descansado.”
E então ouviu uma voz a chamá-la.
“Agente Paige!”
Viu Walder a vir na sua direção com o rosto vermelha de fúria. Tinha os braços rígidos de lado e Riley conseguia ver que segurava alguma coisa em ambas as mãos. Dirigiu-se a ela e por um momento limitou-se a fitá-la.
Depois entregou-lhe a arma e o distintivo.
“Bom trabalho,” Disse Walder num tom de voz tenso e amargo.
Seria bom que nunca mais o visse, Pensou Riley. Mas sabia que não teria tanta sorte.
E que estaria sempre à procura de uma desculpa para a despedir.
CAPÍTULO QUARENTA E OITO
April caminhava sozinha na noite. As luzes dos candeeiros lançavam o seu brilho misterioso num mundo quase vazio. April sentia-se como uma miudinha assustada e odiava essa sensação. Sentia-se envergonhada.
Não me quero sentir mais assim, Pensou.
Mas estava resolvida a não voltar para casa – não agora e se calhar nunca mais. Por agora pelo menos tinha a certeza que não dariam pela sua falta. Gabriela estava no seu apartamento na cave e April tinha a certeza que saíra pela janela sem ser ouvida. E é claro que a mãe não estava em casa.
Repetia para si própria que odiava a mãe e não a queria voltar a ver. Fosse o que fosse que a mãe tivesse dito ao Joel, ele recusava-se desde então a vê-la. Que direito tinha a mãe de lhe estragar a vida daquela maneira?
De qualquer das formas, ela tinha a certeza de que o Joel ainda a amava tanto quanto ela o amava a ele. O que é que a mãe sabia sobre amor? Tanto quanto April sabia, a mãe nunca amara ninguém como ela amava o Joel. Era óbvio que a mãe e o pai nunca tinham sentido aquele tipo de amor.
Não conseguia afastar o medo. Já caminhara para tão longe de casa que até a ideia de fazer o caminho de regresso a assustava. Mas tinha que ir para algum lugar.
Viu alguns carros mais à frente, Talvez pedisse boleia para casa.
Ou talvez pedisse boleia para longe, Pensou.
Mas o pensamento de pedir boleia a um estranho também a assustava. O medo entranhava-se e as lágrimas estavam prestes a explodir.
Pegou no telemóvel e ligou o número de Joel. Esperava que ele atendesse depois de um dia inteiro a ignorar as suas chamadas.
Para seu alívio, ouviu uma voz a dizer, “April?”
Disse, tentando não soluçar, “Joel, estou na rua e preciso que me venhas buscar.”
“Onde é que estás?” Perguntou Joel.
April olhou à sua volta e disse-lhe.
“Vou já para aí,” Disse ele.
*
Quando Riley foi para casa naquela noite, a primeira coisa que fez foi ligar para Gabriela.
“Já estou em casa, Gabriela.”
Gabriela disse, ““¡Qué bueno! Resolveu o caso?”
“Sim. Está tudo bem por cá?”
“Está tudo bem.”
Riley agradeceu a Gabriela e sentou-se na sala de estar. Sentia-se muito satisfeita com o seu dia de trabalho. As duas mulheres que salvara estavam no hospital. Não tinham ferimentos que colocassem as suas vidas em risco, mas demoraria algum tempo até que Kimberly recuperasse a sua saúde. Iriam precisar de acompanhamento médico para lidar com a experiência traumática. Ainda assim, iam ficar bem.
Mais importante de tudo, Casey Phipps estava morto.
Acabou, Disse Riley a si própria.
Foi com especial prazer que apalpou o distintivo e arma.
Muitas pessoas lhe queriam dar os parabéns, incluindo o Presidente da Câmara de Ohlman. Mas não ficara à espera e viera diretamente para casa.
Agora olhou para o relógio e viu que era quase meia-noite. Estava contente por não estar num compartimento repleto de relógios a anunciarem o passar da hora.
Apenas pensava em arranjar uma bebida quando o telemóvel tocou. O número era do abrigo de adolescentes de Phoenix. Quando atendeu, ouviu a voz preocupada de Brenda Fitch.
“Riley, peço desculpa por incomodá-la a esta hora... mas não teve notícias da Jilly? Quero dizer. Ligou-lhe ou algo do género?”
Riley ficou de imediato apreensiva.
“Não. Porquê? O que é que se passa?”
Ouviu um suspiro ansioso.
“A Jilly foi-se embora a noite passada. Não sabemos para onde terá ido. Estamos muito preocupados.”
Riley estava demasiado atordoada para dizer fosse o que fosse.
Brenda disse, “Se souber alguma coisa dela, diga-nos de imediato, está bem?”
“Claro,” Disse Riley. “E por favor, mantenham-me informada.”
Terminaram a chamada e Riley passou de um estado de graça para um estado de total preocupação. O que acontecera a Jilly? Sem lugar para onde ir, sem família, onde poderia estar a não ser nas ruas à mercê de algum predador?
Mas nada podia fazer naquele momento. Absolutamente nada. Ainda assim, podia fazer uma coisa que a faria sentir-se melhor. Subiu as escadas para ver April que já estaria a dormir.
Mas quando Riley abriu a porta, a cama de April estava vazia.
Desceu as escadas em pânico, chamando Gabriela que se encontrava na cave.
“Gabriela! A April desapareceu!”
Gabriela subiu logo as escadas em camisa de noite.
“Mas eu pensei que ela estivesse na cama!” Disse Gabriela. “Foi para a cama à hora habitual.”
“Procure pela casa,” Disse Riley ligando as luzes do quintal. Nada de April.
Voltou para dentro para descobrir que Gabriela estava tão em pânico como ela. Ligou para o telemóvel de April. Não obteve resposta – nem a habitual mensagem de April.
“Talvez esteja na casa da Crystal,” Disse Gabriela.
Riley sentiu uma onda de esperança desesperada a invadi-la. Ligou para casa de Blaine. Crystal atendeu.
“Crystal, a April está aí?” Perguntou Riley.
“Ela não está em casa?” Disse Crystal.
“Não,” Respondeu Riley.
Crystal não tinha voz ensonada, como se ainda estivesse acordada. Parecia estar preocupada e aborrecida com algo.
“Tivemos uma discussão esta tarde,” Disse Crystal. “Por causa do Joel. Não lhe devia ter dito o que pensava dele. Disse que já não somos amigas.”
“Ok, Crystal,” Disse Riley. “liga-me se souberes alguma coisa dela.”
Ao terminar a chamada, Riley sabia que não devia estar à espera disso. Passava-se algo de muito errado. Interrogou-se se devia ligar para a polícia e despoletar o Alerta Amber. Mas isso não era uma opção – Pelo menos não para já. April devia ter saído de casa pelo seu próprio pé. Não fora raptada. E Riley só podia participar uma fuga passado algum tempo.
Tenho que ir procurá-la, Pensou.
E decidiu começar na casa de Joel.
*
April sentiu-se muito calma. O comprimido que Joel lhe dera tinha feito desaparecer todas as ansiedades. Estava tão contente por estar ali com ele. Desta vez não estavam na sua casa mas na casa de um amigo.
Ela e Joel estavam deitados numa cama. Outras pessoas entravam pela porta aberta.
April viu-o a mexer no seu telemóvel.
“Qual é a tua palavra-passe?” Perguntou Joel.
Ela sorriu. “O que é que achas?” Perguntou.
Ele sorriu. É claro que era fácil para ele adivinhar que era o seu próprio nome. Escreveu-a.
“O que é que estás a fazer?” Perguntou April.
“A desligar o GPS. Não queremos que a tua mãe nazi entre por aqui adentro.”
April riu.
April começou a dizer que devia voltar para casa porque a Gabriela entraria em pânico se visse que ela tinha desaparecido. Mas chegou à conclusão que não se importava. Além disso, não conseguia dizer nada de muito elaborado.
Dali a momentos, Joel pousou o telemóvel.
“Tudo seguro agora,” Disse.
E naquele momento, um homem que April não conhecia espreitou pela porta aberta. Tinha um ar inquiridor no rosto e ela viu que ele trazia dinheiro na mão. Olhou para April como se ela fosse um objeto e ela não gostou daquele olhar.
“Em breve,” Disse-lhe Joel.
O homem foi-se embora.
“Em breve o quê?” Perguntou April.
“Nada,” Disse Joel. “Nada com que te devas preocupar.”
April descontraiu e viu Joel a ligar uma vela que se encontrava numa pequena mesa ao lado da cama com um fósforo. O seu rosto era deslumbrante à luz vacilante da vela. April tentava concentrar-se naquilo que a preocupava, mas a sua mente já derivava para outras coisas.
April observava tudo como se ela própria fosse nada mais do que um sonho.
“Sinto-me como um ponto de luz,” Disse.
“Estás a brilhar,” Disse Joel a sorrir. “E em breve vais sentir-te como uma estrela no céu.”
April viu Joel a aquecer algo numa colher metálica por cima da chama da vela.
Ela sentia-se a observar tudo à distância enquanto ele enrolava o seu braço com algo – e depois deslizava uma agulha na sua carne.
Depois sentiu simplesmente o seu corpo desaparecer. Nunca se sentira assim na vida. Não queria nunca deixar de se sentir assim.
Nunca, Pensou.
Blake Pierce
O melhor da literatura para todos os gostos e idades