Gil Vicente
FIGURAS: ANJO (Arrais do Céu) DIABO (Arrais do Inferno) COMPANHEIRO DO DIABO LAVRADOR MARTA GIL (regateira) PASTOR MOÇA PASTORA MENINO TAFUL TRÊS ANJOS
Esta segunda cena é atribuída à embarcação do Purgatório. Trata-se por lavradores. Foi representada à muito devota e católica Rainha D. Lianor no Hospital de Todos os Santos, da cidade de Lisboa, nas matinas do Natal, na Era do Senhor de 1518.
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(Primeiramente entram três Anjos, cantando o romance seguinte, com seus remos)
ANJOS Remando vão remadores barca de grande alegria; o patrão que a guiava filho de deus se dizia; anjos eram os remeiros, que remavam à porfia. Estandarte de esperança: ó quão bem que parecia í o masto de fortaleza como cristal reluzia; a vela, com fé cosida, todo mundo esclarecia; a ribeira mui serena, que nenhum vento bulia.
(Entra o Arrais do Inferno e diz)
DIABO Ah santo corpo de mi, corpo de mi consagrado! Como está isso assi sem ninguém estar aqui neste meu porto dourado, agora que está breado de novo o caravelão, espalmado e aparelhado, mais largo bô quinhão que o passado?!
Quanto mais se chega a fim do mundo, a todo andar, tanto a gente é mais ruim; e juro ó corpo de mim que já canso de remar. Cumpre-me de aparelhar um valente barinel. Ou uma nau singular, em que possa mais levar que num batel.
E não remar senão tal via; e depois haver carraca, que cobiça e simonia, inveja e tirania, nenhuma delas afraca. Ala, ala! Saca, saca! À terra, à terra, mortais! Cerrar o leme esta banda e não curar de outro cais; porque a lei dos mundanais isto manda.
ANJO Quem quer ir ó Paraíso? À Glória, à Glória, senhores! Ó que noite para isso! Quão prestes, quão improviso Sois celestes moradores! Aviai-vos, e partir, que, vossa vida é sonhar, e a morte é despertar para nunca mais dormir nem acordar.
Este rio é mui escuro, não tendes vau nem maneira; entrai em barco seguro, havei conselho maduro, não entreis em má bateira; que na viagem primeira quantos vistes embarcados todos foram alagados: no mais fundo da ribeira são penados.
Pois não se pode escusar a passada deste rio, nem a morte se estorvar que é outro braço de mar sem remédio nem desvio; e o batel dos danados, porque nasceu hoje Cristo, está c'os remos quebrados, em seco. Ó descuidados, cuidai nisto.
Agora que a madre pia, frol de toda perfeição, está com tanta alegria. Pedi a sua senhoria gloriosa embarcação. Que sua é a barcagem. pedi-lhe como avogada, per lacrimosa linguagem, que nos procure viagem descansada.
Fala-lhe com alegria, canta-lhe como souberes, visita a Virgem Maria, nossa via, nossa guia, frol de todalas mulheres. Quando aqui lhe apareceres roga-lhe que te apareça com piedosos poderes, porque a alma que tiveres não pereça.
DIABO Quero ora meter lá vela e deitar a prancha fora e arrumar a caravela E deitar do junco dela. Se vier qualquer senhora. E que é isto na má ora? E o batel está em seco! Ó renego de Samora!
O rio se encaremelou! Nunca tal me aconteceu. Hôu bota, hôu bota, hôu! Ó renego de San grou e de San pata do céu!
Arrenego eu do dinheiro que ganho nesta viagem; arrenego da barcagem e do cornudo barqueiro!
(Vem um companheiro do Arrais do Inferno, e diz)
COMPANHEIRO Parceiro gurgurgarao.
DIABO Por quê?
COMPANHEIRO Porque é assi.
DIABO Ora bota, hôu bota, hao!
COMPANHEIRO Eu só botara uma nau com este dedo sem ti; mas sabe que este serão é para nós grande praga e trabalhamos em vão, porque a promessa de Abraão hoje é a paga.
(Vem um lavrador com seu arado às costas, e diz)
LAVRADOR Que é isto? Cá chega o mar? Ora é forte cagião.
DIABO Alto, sus, quereis passar? Ponde aí o chapeirão e ajudareis a botar.
LAVRADOR Da morte venho eu cansado e cheio de refrigério, e não posso mal pecado.
Diabo Põe eramá i o arado.
LAVRADOR Porém esse é gran mistério. Se eu trouguera mais vagar sorrira-me eu tamalavez.
DIABO E vós, vilão, quereis zombar? Se vos eu arrebatar?
LAVRADOR Dou-te eu muito de mau mês. Como eu a morte passei, logo o medo ficou finto. Minha cédula amanhei, e meus negócios deixei como homem de bom retinto. Nem fico a dever duas fanas, nem um preto por pagar.
DIABO E os marcos que mudavas, dize, porque os não tornavas outra vez a seu lugar?
LAVRADOR E quem tirava do meu os meus marcos quantos sou e os chentava no seu, dize, pulga de judeu, que lhe dizias tu er então?
DIABO Foste o mais ruim vilão!...
Bofá, salvanor salvado. Vós mentis coma cabrão. Quer me queirais mal, quer não. Não dou por isso um cornado.
DIABO Pois por que vens carregado?
LAVRADOR Porque seja conhecido por lavrador muito honrado. E tenho a glória merecido; que sempre fui perseguido e vivi mui trabalhado. Há i, pesar não de São, Aficio mais fortunado?
DIABO Pois para que é o vilão?
LAVRADOR Todos nós vimos de Adão.
DIABO Pousa, pousa aí o arado.
LAVRADOR Juro a San Junco sagrado que te chante um par de quedas.
DIABO Aqui hás de ir embarcado.
LAVRADOR Vai beijar o meu bragado entre as sedas.
DIABO Que vilão tão descortês!
LAVRADOR E vós sois mui deneguil! Dou eu já ora ó Decho o freguês.
DIABO Dom vilão, comigo ireis onde estão de vós dez mil.
LAVRADOR E vós, dum rosto de funil. Cuidareis que sois alguém?
ANJO Vinde cá, homem de bem; para onde quereis ir?
LAVRADOR Queria passar além, para a glória do Senhor. Samicas de lá seres?
ANJO E vens tu merecedor?
LAVRADOR E que fez lá o lavrador para andar cá ó través?
ANJO Pode ser mui austinado e não querer-se arrepender.
LAVRADOR Bofá, Senhor, mal pecado; sempre é morto quem do arado há de viver.
Nós somos vida das gentes e morte de nossas vidas. A tiranos, pacientes, que a unhas e a dentes nos tem as almas roídas. Para que é parouvelar? Que queira ser pecador o lavrador, não tem tempo nem lugar nem somente de alimpar as gotas do seu suor.
Na igreja bradam com ele porque assoviou a um cão, e logo a excomunhão na pele. O fidalgo maçar nele, atá o mais triste rascão. Se não levam torta a mão Não lhe acham nenhum direito. Muito atribulados são! Cada um pela o vilão per seu jeito.
Trago a propósito isto porque veio a bem de fala, manifesto está e visto que o bento Jesu Cristo deve ser homem de gala; e é razão que nos valha neste serão glorioso que é gran refúgio sem falha. Isto me faz forçoso e não estou temeroso nem migalha.
ANJO Que bens fizeste na vida que te sejam cá guiantes?
LAVRADOR Ia ao bodo da ermida cada Santa Margarida e dava esmola aos andantes; benzia-me pela manhã levava o credo ate ó cabo.
DIABO Depois tomavas a lã da melhor e a mais sã e davas ó dízimo a do rabo. Temporã. E o mais fraco cabrito e o frangão ofegoso, com repetenado espírito.
LAVRADOR Ó fideputa maldito, triste avezimão tinhoso, lano pecador e errado! Não, vai, não me dezimei? Dize, sabujo pelado.
DIABO Tornaste tu o mal evado?
LAVRADOR Sim, tornei. E de tudo fiz aquesta.
Como homem diz, avantairo: leixei ó cura a enha besta; abonda que nem aresta terá comigo o cossairo. Um anal e um trintairo. Com raponsos, ladainhas; a Gil fiz todo repairo com missas de aniversário trinta dias.
Perol que dizeis vós lá? Sejo eu como deve ser, ou que modo se terá?
ANJO É mui caro de haver cá aquele eternal prazer.
LAVRADOR Já o eu lá ouvi dizer. perol o evangelho diz: quem for batizado e crer salvos es: ora dizer. sede juiz.
Pois quia infernus es nula redencia há i, vede vos o que dizeis; que a mim já me pruem os pés para me passar de aqui.
ANJO Digo que andes assi purgando nessa ribeira até que o senhor deus queira que te levem para si nesta bateira.
LAVRADOR Bofá: logo quisera eu, que me atromenta este arado; e dera muito do meu, pois que já hei de ser seu, tirar-me deste cuidado. Ó mundo, mundo enganado. vida de tão poucos dias, tão breve tempo passado, tu me trouveste enganado e me mentias.
DIABO Inda esta barca não nada? Que festa esta para mi! Nunca tal balcarriada. Nem maré tão desestrada nesta ribeira não vi.
(Vem uma regateira, por nome Marta Gil, e diz)
MARTA GIL Ui! que ribeiros são estes?
DIABO Venhais embora, Marta Gil.
MARTA GIL E donde me conhecestes?
DIABO Folgo eu bem porque viestes oufana e dando ó quadril.
MARTA GIL Vedes outro perrexil! E marinheiro sois vós? Ora assi me salve Deus e me livre do Brasil, que estais sutil. Em que eu seja lavradora bem vos hei de responder.
DIABO Não vos agasteis vós ora, que, ou lavradora ou pastora, aqui vos hei de meter.
MARTA GIL Ui, mana! E quem no deu? Ide beber... Que vem vos conheço eu.
DIABO E eu também vos sei nascer, e vi fataxas fazer; que o que trazeis é meu e há de ser.
MARTA GIL E que coisas são fateixas? Fateixado te veja eu!
DIABO Os feitos que feitos leixas, e o povo cheio de queixas.
MARTA GIL Cala-te, almareu de Judeu.
DIABO Não sabes tu que viveste lavradora e regateira?
MARTA GIL Ora comede-la, que vos preste. Ui! e que gaio é ora este de ribeira?
Sabedes vós, João Corujo? Todos fazem seu proveito. Olhade o Frei Caramujo, bargante que não tem cujo! Quanta agora é o feito feito. Não sabes tu que o respeito do mundo é em ganhar? E sobre isso é seu proveito ou a torto ou a direito apanhar.
Fui em tempo de cobiça cada tempo sua usança se eu morrera de preguiça, tiveras muita justiça e eu pequena esperança. Vendia minha lavrança, um ovo por dous reais; um cabrito, se se alcança, até quatro vinténs, não mais: tendes vós isto em lembrança?
Um frangão por um vintém, e uma galinha sessenta; e acerta-se também
que às vezes vem alguém que as leva por setenta.
DIABO E para que era água no leite, que deitavas ieramá?
MARTA GIL Mas azeite, Inda hoje o ele dirá! Vistes ora o diabreite!
Ó diabo, visses tu. Bofé asinha o eu direi. Como é palreiro, Jesu! fora este cucurucu, Bom secretário de el-Rei. Amanhade-lhe o atafal. Nadar, patas, patarrinhas, corregede-lhe o enxoval; onças de raiva mortal. nas badarrinhas.
DIABO Valha-te a ti Marta amiga? Que estamos enfeitiçados.
MARTA GIL Embarcade lá esta figa.
DIABO Passará esta fadiga, seremos desembargados.
MARTA GIL Anjos bem-aventurados, meterei o canistrel,
Que trago os testos britados? Carregam estes pecados que fazem lançar o fel a bocados!
ANJO E para que eram eles cá?
MARTA GIL Para o Demo, e que sei eu?
ANJO Ora pois, embarca lá.
MARTA GIL Melhor creio eu que será. Jesu! Jesu! Benzo-me eu. Ó Bento Bartolomeu! E vós, virgem do rosário, pelo filho que deus vos deu esta noite vosso e seu, haja repairo.
Bem sabedes vós, Senhora, que venho eu manifestada, e fui vossa lavradora; em que pecasse alguma hora. Venha a piedosa alçada. Esta é a noite que paristes: benta a hora em que nascestes; esqueçam meus males tristes pelo menino que vestistes e envolvestes.
Anjos, ajudade-me ora, que vos veja eu bem casados; não me deixedes de fora, por aquela santa hora em que todos fostes criados.
ANJO Não é tempo cá de orar, Canta para merecer.
MARTA GIL Manos, eu quero provar que em todo tempo há lugar o que deus quer.
E este serão glorioso não é de justiça, não. Mas todo mui piedoso. Em que nasceu o esposo da humanal geração; e a barca de Satã não passa hoje ninguém, e por força hei de ir além, só pena de excomunhão que posta tem.
ANJO Grande cousa é oração: purga ao longo da ribeira, segura de danação. Terás angústia e paixão E tormento em gran maneira. Isto até que o Senhor queira que te passemos o rio. Será tua dor lastimeira. como ardendo em gran brasio de fogueira.
MARTA GILÓ esperança, esperança, a mais certa pena minha com toda esta segurança! Tu és a mesma tardança em figura de mezinha. Ó quem tal arrepender, tal maneira de penar lá soubesse no viver! Ó quem tornasse a nascer por não pecar!
(Vem um pastor, e diz olhando para a barca do inimigo)
PASTOR Isto é cancelo ou picota, ou senefica algorrém? Não lhe marra ela aqui gota de ser isto terremota para enforcar alguém.
DIABO Queres embarcar, pastor?
DIABO Entra neste batel.
PASTOR Irra! pulha é isso, salvanor: se eu não fora pulhador, já ela passava o burel.
Digo senhor pesadelo, (vós sabereis isto bem) estando em Val de Cobelo deu-me dor de cotovelo, emperol morri porém. E fui-me por esse chão a deus douche alma dizer, com meu cacheiro na mão, sem sóis motrete de pão, nem fome para o comer se vem à mão.
E vinha ora bem descuidado de topar mar nem marinha. Avonda espantalho honrado, ao morrer deixei o gado, e ó amo e quanto tinha. Se não anda que te vás, enha mãe nega gritar, e chorar que chorarás. Agora quero passar, porém não me levarás.
DIABO Por quê?
PASTOR Sois busaranha. E mais fede-vo-lo bafo, e jogatais de gadanha, e tendes modão de aranha, e samicas sereis gafo.
DIABO Gafo eu?
PASTOR A bem. Não hei de ir para acajuso, em que me custe algorrém, chinfrão ou meio vintém, ir direito como o fuso para além.
DIABO Dize rústico perdido, fizeste tu por saber o pater noster comprido?
PASTOR E para que era ele sabido?
DIABO Por que o havias de dizer.
PASTOR A quem?
DIABO A quem te criou.
PASTOR Al tem ele que comer.
DIABO Não fizeste o que mandou.
PASTOR Calai-vos, senhor João Grou: já sei quem me há de levar, sei quem sou.
Esta noite é dos pastores, e tu Decho estás em seco, e salvam-se os pecadores, criados de lavradores, e tu estás coma peco.
DIABO Digo-te, Pastor amigo, que foste gran pecador.
PASTOR Senhor tartarugo, digo que mentis como bestigo, salvanor.
fala em tua merencória, e não fales em passar e conta lá outra história, porque em festa de tal glória, não hás ninguém de levar. Ronca, qués tu pôr comego, algorrém para beber, que vens de casta de pego, e neto dalgum morcego? Pardicas não pode al ser.
DIABO Não estou em meu poder para me vingar de ti.
PASTOR Não podes nada fazer na noite que quis nascer Cristo filho de Davi.
DIABO Quem te pôs no coração falares cousa tão boa, que tu não tens descrição?
PASTOR E quem te deu a ti lição de ser tão ruim pessoa?
ANJO Pastor, tu queres passar?
PASTOR Este é melhor artesão.
ANJO Folgarei de te levar se te ajuda o bem obrar, que as obras remos são.
PASTOR Enha mãe mo bradará que fica no saimento, e o responso do mamento e tudo Sá Gil fará com bom tento.
ANJO Morreste tu bom cristão?
PASTOR Que sei eu que vós dizeis.
ANJO Dize ora o krieleison, Kirieleison, Cristeleison.
PASTOR O Pater Noster quereis? Já eu soube bom quinhão dele: no santo faceto andei já, e nunca me dei por ele , e a Ave Maria a par dele soube eu lá já tempos há.
E fui assi por ela andando nos intes vitus cajuso, ali andava eu sandejando esvaecendo e cansando: então dei à treva o uso. Assaz avonda ao pastor crer em Deus e não furtar, e fazer bem seu lavor , e dar graças ao senhor, e fugir de não pecar.
E crer na Igreja assi junta com paredes e telhados, aliceres e furados, e não curar de pregunta, e dar ó demo os pecados. Eu nunca matei nem furtei nega uvas alguma hora nem nunca mexeriquei, nem mexericos falei como lá se usa agora.
DIABO Vai, vai cantar à gamela não andavas tu namorado perdido por Madanela?
PASTOR E pois que lhe fiz a ela para dizer que é pecado? Uma vez armei-lhe o pé na chacota em Vilarinho e ainda pola abofé Costança Anes, que viva é, me meteu naquele alinho.
DIABO Não na foste tu esperar para a danares vilão? E começou de bradar que a querias forçar.
PASTOR Ó fideputa cabrão! Quisera eu e ela não, porque a tredora fugiu. E se isto assi foi ladrão, que pecado se seguiu, pois não houve conclusão?
Juro ao corpo verdadeiro que tu te podes gabar que casado nem solteiro não anda tão vil barqueiro sobolas águas do mar. Soma, Anjo, eu me enfestei: Abarrúncio Satanás.
ANJO Faze o que te eu direi, e depois embarcarás e eu mesmo te passarei. Purga ao longo do rio em grão fogo merecendo.
PASTOR E quando parte o navio? Senhor, se eu não tenho frio, para que hei de estar ardendo?
(Vem uma Pastora menina, e temendo a visão do inimigo que lhe apareceu na morte, diz)
Jesu! Jesu! que é ora isto? Ave Maria! Ave Maria! Que é do meu cão que eu trazia? Ó chagas de Jesu Cristo vão em minha companhia! Eu sonho! triste de mi! Ó coitada, como tremo! Minha mãe, valei-me aqui, Que, quando de vós parti, não cuidei de achar o demo.
Mais angústia é o temor do inimigo que o da morte: tomo a Deus por valedor pois me cortas e dás dor, má mazela que te corte.
DIABO Muchacha, venhas embora.
MOÇA Mas na negra, pois te vejo ó desaparece-me ora, que faleci inda agora em mui perigoso ensejo.
Porque era moça e cuidei que da velhice gouvira, e com tal dor acabei que de mi parte não sei nem tenho ponta de sira. Não sei quem me há de ajudar, não sei quem me há de valer, não sei quem me há de passar, não sei se me hão de matar
outra vez ou que há de ser. Tira-te diante de mi, verei os anjos de Deus.
DIABO Entrai vós filhinha aqui.
MOÇA Oh cala-te triste de mi.
DIABO Eu vos levarei aos céus: entrai minha Policena, não temais nada, senhora.
MOÇA Arre lá! uxte morena!
DIABO Ó minha Rainha Helena, entrai e vamo-nos ora.
MOÇA Cala-te cala-te na má-hora! cuidas que me hás de enganar por que assi me vês pastora?
DIABO Entrai, minha matadora, pois que Deus vos quis matar.
MOÇA Não vedes vós o quebranto que se quer pôr em feição?
DIABO Olhai, flores, não me espanto que me digais sete tanto: padeça meu coração.
O porvir e o presente. Senhora, por conclusão, não quero de vós somente senão dardes-me essa mão se disso fordes contente. E, se me eu gabar de vós, má pesar veja eu de mi e iremos ambos sós onde estão vossos avós ora entrai ireis aqui.
MOÇA Jesu! Jesu! raiva na casta! Comendo ó Decho a amargura! Mãe de Deus como me agasta! Má rabugem na tarasca, espezinhada, triste, escura!
ANJO Leixo pastora: vem cá.
DIABO Como estou hoje mofino e sem dita ieramá! mas algum dia virá que eu estarei mais fino.
MOÇA Ó anjos, minha alegria, vista de consolação! Por virtude e cortesia ensinai-me porque via passarei à salvação.
ANJO Conhecias tu a Deus?
MOÇA Muito bem. Era redondo.
ANJO Esse era o mesmo dos céus.
MOÇA Mais alvinho que estes véus: o vi eu vezes avondo. Como o sino começava, logo deitava a correr.
ANJO Que lhe dizias?
MOÇA Folgava e toda me gloriava em ouvir missa e o ver.
ANJO Pastora, bom era isso.
DIABO Era a mor mexeriqueira Gulosa, que de improviso , se não andavam sobre aviso, lá ia a cepa e a cepeira.
E mais quereis que vos diga? é refalsada e mentirosa.
MOÇA Era ainda rapariga.
DIABO Se tu foras minha amiga eu me calara tinhosa.
MOÇA Ó anjos, levai-me já, tirai-me deste ladrão.
ANJO Não podes ainda ir lá.
MOÇA Tão moça hei de ficar cá? Não parece isso razão.
ANJO Vai ao longo desse mar, que é praia purgatória, e quando a Deus ordenar nós te viremos passar da pena à eterna glória.
(Vem um Menino de tenra idade, e diz)
MENINO Mãe, e o coco está ali! quereis vós estar quedo com ele?
DIABO Passa, passa tu por aí.
MENINO E vós quereis dar em mi? Ó demo, que o trouxe ele!
DIABO Bé, mé, filho da puta, vos estais muito garrido! Tirar-vos-ão dom perdido dos olhos a marmeluta.
MENINO Eu vos tomarei a vós à porta de minha tia, entonces veremos nós os cães de vossos avós que estavam na mancebia.
DIABO Bé.
MENINO Mãe, se ele quer-me comer! E meu pai não vos dará.
DIABO Bé.
MENINO Dona, se lho eu disser... e ela matar-vos-á: então ireis a morrer.
DIABO Bé.
MENINO Aquele, se eu chamar o nosso Joane!
DIABO Bé.
MENINO Não queres senão berrar?
DIABO Onde hás de ir ou para quê?
MENINO Fica minha mãe chorando, só porque me eu vim de lá.
ANJO Mas fica desvariando, que tu és do nosso bando, e para sempre será.
Fez-te Deus secretamente a mais profunda mercê em idade de inocente: eu não sei se sabe a gente a causa por que isto é.
(Cantando, metem os Anjos o Menino no batel e entra um Taful, e diz o Diabo)
DIABO Ó meu sócio e meu amigo, meu bem e meu cabedal: vós irmão ireis comigo, que não temestes o perigo da viagem infernal.
TAFUL Eis aqui flux dum metal.
DIABO Pois sabe que eu te ganhei.
TAFUL Mostra se tens jogo tal.
DIABO Tu perdes o enxoval.
TAFUL Não é isto flux com rei.
DIABO Baralha o jogo e partamos.
TAFUL Paga que eu não jogo em vão.
DIABO Lá no frete descontamos: quer ganhemos quer percamos tudo nos fica na mão.
TAFUL Muito m’agasto eu aqui, que tu tens mui mau sembrante, e pareces-me enfim por da ré muito ruim, e maligno por de avante.
DIABO Mas tornemos a jogar, porque tenho saudade de te ouvir arrenegar e descrer e blasfemar do mistério da trindade.
TAFUL Aramá como tu falas tão senhor desta alma minha.
DIABO Não sei como agora calas renegando a soltas alas de Deus e da ladainha.
Este dia e as oitavas, por paços salas e cantos, oh quanta glória me davas, quando à hóstia blasfemavas e desonravas os santos!
TAFUL Quanto eu sempre ouvi dizer: “quem bem renega bem crê.” Isto vos faço eu saber, e quando isto não valer, entraremos por mercê. (Vai-se à Barca do Paraíso, e diz) Haverá cá piedade dum homem tão carregado?
ANJO Mas infinda crueldade, que ofendeste a majestade, renegando seu estado.
TAFUL Vedes que estava ocupado na grã perda que perdia.
ANJO E Deus que culpa te havia, Taful mal-aventurado, sem valia?
Renegar tão feramente da imperatriz dos céus! ó pranta de má semente, arderás no fogo ardente com toda a ira de Deus.
TAFUL Má nova é essa para mi. Se assi for como dizes, digo que eramá cá vim. Porém esperai-me assi, falarei tamalavez.
Deus não quis hoje nascer por remir os pecadores?
ANJO E pois que queres dizer? Que só com o seu padecer se salvam renegadores?
TAFUL A perneta me forçou, que era senhora de mi.
DIABO Mente, que ele se incrinou: nunca estrela renegou, nem tal há i. Sempre jogava o fidalgo, bispo escudeiro ou que é.
COMPANHEIRO DO DIABO Mestiço de cão e galgo.
ANJO Tomai-o dai-lhe de pé.
DIABO Nosso é.
TAFUL Estai, inimigos! Senhores, deste santo nascimento não terei alguns favores?
ANJO Tafules e renegadores não tem nenhum salvamento.
(Saem-se os diabos do batel, e, com uma cantiga muito desacordada, levam o Taful. E os Anjos cantando levam o Menino, e fenece esta segunda cena)
Gil Vicente
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