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AUTO DA HISTÓRIA DE DEUS / Gil Vicente
AUTO DA HISTÓRIA DE DEUS / Gil Vicente

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Gil Vicente

 

 

 

 

O auto que se segue é intitulado “Breve Sumário da história de Deus”. Foi representado ao muito alto e mui poderoso Rei Dom João, o terceiro deste nome em Portugal, e à Sereníssima e muito esclarecida Rainha Dona Catharina, em Almeirim, na era do Senhor de 1527.
FIGURAS: ANJO LÚCIFER (Maioral do Inferno) BELIAL (Meirinho da sua corte) SATANÁS (Fidalgo do seu Conselho) ANJO MUNDO TEMPO (Seu Veador) EVA ADÃO MORTE ABEL JÓ ABRAÃO MOISÉS DAVI ISAÍAS BELZEBU SÃO JOÃO JESUS CRISTO
(Entra um Anjo, e a modo de argumento diz o seguinte introito)


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ANJO Ainda que todalas cousas passadas sejam notórias a vossas altezas, a história de Deus tem tais profundezas, que nunca se perdem serem recontadas. E porque o tenor  da ressurreição de nosso senhor tem as raízes naquele pomar, ao pé daquela árvore que ouvistes contar, onde Adão se fez pecador, convém se lembrar. 
 
Por tanto o exórdio do auto presente começa tratando desde a criação, e como Lúcifer tomou grã paixão de Deus criar mundo tão resplandecente. E assi a inveja e a sua malícia de inveja sobeja por ver vossos padres assi nobrecidos feitos gloriosos, tão esclarecidos, que não pelos olhos lhe armaram peleja, mas pelos ouvidos. 
 
Entrará primeiro o muito soberbo Lúcifer, anjo que foi dos maiores, e Belial e Satanás, senhores de muita maldade de verbo a verbo. Agora vereis o que per diversos doutores lereis d’ab initio mundi até a ressurreição, à qual se enderença a final tenção.  Dos versos seguintes não vos enfadeis, que breves serão. 
 
(Entra Lúcifer, o maioral do inferno, e com ele Belial, meirinho de sua corte, e Satanás, fidalgo de seu conselho, e depois de assentado diz)
 
LÚCIFER  Venho herege do mundo que fez o Deus lá de cima tão longo e tão passo, feito de nada por tanto compasso, tal que pasmado fico eu desta vez.
 
BELIAL  Mais é de espantar  do homem e mulher que fez no pomar.
 
LÚCIFER  Isso queria eu agora dizer, porque daqueles podem proceder tantos espíritos que possam ganhar o que fomos perder. 
 
Hajamos conselho sobre esta façanha, que Deus não nos há de leixar acuar: todo seu feito é fazer-nos pesar, além de deitar-nos de sua companha.
 
BELIAL Assi me parece. 
 
SATANÁS  De Adão e Eva que mal nos recresce?
 
BELIAL  Dar Deus a eles o que nos tomou.
 
SATANÁS  Dar Deus a eles o que nos tomou?
 
BELIAL  Não cuides tu al, que este é o alicerce em que se fundou. 
 
SATANÁS  Pois que remédio que este mal é muito?
 
LÚCIFER  Deus lhe mandou mandado mui forte, sob pena de dores, trabalhos e morte, que não lhe tocassem em um certo fruto, fruto da ciência, porque perderão sua inocência, angélica em parte subtil e imortal, e a posição do paraíso terreal. Isto em pecando a primeira audiência sentença final. 
 
Vai tu, Satanás, por embaixador, eu te dou meu comprido poder, e vai-te a Eva porque é mulher, e dize que coma não haja temor. E como avisado, lhe fala cortês e mui repousado, mostrando-te alegre com todo seu bem, e seu muito amigo maior que ninguém: mente-lhe largo e dá-lhe o cuidado que agora não tem. 
 
Vem tomar graça pois hás de pregar à mais avisada senhora do mundo: eu te outorgo meu poder facundo. Não hajas dó dela faze-a fiar. Destruí-la asinha,  nem por formosa nem por ser rainha, não olhes por nada aperta com ela: que como a venceres sem ti mesma ela fará ao marido cobrir-se de tinha, e muito mais que ela. 
 
SATANÁS Em que figura lhe falarei bem?
 
LÚCIFER Faze-te cobra, por dissimular, por que pareças do mesmo pomar, que sabes das frutas as graças que tem. Porque hás de dizer:  senhora formosa deveis de saber que aquela fruta que vos foi vedada oh quanta ciência em si tem cerrada. 
 
SATANÁS Já vos entendo, não faleis mais nada, leixai-me fazer. 
 
(Partido o tentador Satanás, Belial, anojado de inveja porque Lúcifer o não mandou a ele, diz)
 
BELIAL Crede uma cousa, senhor Lúcifer, que não há i pena que seja igual àquela que sente o grande oficial, quando ninguém lhe dá que fazer. Eu sou dos primeiros  o vosso leal entre os cavaleiros, e mais sou meirinho desta vossa corte. Vós não fazeis guerra em que eu faça sorte, e sendo meirinho sem prisioneiros me pesa de morte. 
 
E fostes mandar Satanás agora com todo poder de vosso vigor, acrescentado por embaixador, ao novo senhor e nova senhora, porém a mim não.  Se lá me mandáreis me houvera por cão, se não os fizera por força pecar: logo per força os fizera tragar quantas maçãs naquela árvore estão, sem as mastigar. 
 
LÚCIFER Onde força há perdemos direito, que o fino pecado há de ser de vontade, formando desprezo contra a majestade, e não serão nossos se for doutro jeito. E porque é errar  mandar o soberbo a negociar cousas que hão de ser feitas per manha, não te mandei que a fúria não ganha , mas doces palavras e dissimular faz toda façanha. 
 
Satanás sei que os fará pecar per suas vontades segundo é manhoso e mui lisonjeiro e fala mimoso, e sabe mentir com graça e com ar. E se ele acabasse, convém a saber, que me derribasse aqueles monarcas do mundo primeiros, tu terias soma de prisioneiros, meu fogo também em que se ocupasse e meus cozinheiros. 
 
(Vem o tentador Satanás com muita alegria porque deixa acabado seu negócio e diz)
 
SATANÁS Senhor Lúcifer, prazer i não há que dê pelos pés ao vencimento: alegrai-vos muito e o nosso convento, que vosso desejo comprido está.  Já são derrubados Adão e Eva os primeiros casados, voltas as vodas em pranto mui forte, o gozo em lágrimas, a alegria em morte, a vida em suspiros, prazer em cuidados, ventura sem sorte. 
 
É já convertida esperança em temores, em pena também a seguridade, repouso em suor e a liberdade deixo-a cativa em vivas dolores. E o paraíso  lhes fica bem longe de seu pouco siso, e é pera rir de seu desatino: porque o fruito era pequenino, e pera fazerem tal reino diviso não era tão fino. 
 
Porém crede vós que são destruídas duas criaturas mui maravilhosas, muito acabadas e tão graciosas, que tarde verão outras tais nascidas. Enfim que, senhor,  comerão seu pão com grande suor, seu mal tem já certo, o bem duvidoso. Oh como andava Adão tão mimoso, e Eva coberta de grande resplendor! Mas eu fui ditoso. 
 
LÚCIFER Faço-te duque e meu capitão dos reinos do mundo até sua fim. Pois os pais venceste, os filhos assi trabalha e procura que venham à mão. Que poderá ser  que alguns farão tão grande prazer ao Deus ofendido com tanta vontade, que da sua ira farão piedade, e sua justiça farão converter em benignidade. 
 
SATANÁS Bofá, meu amigos, já eu estou cevado: nenhum que nascer não me há de escapar oh quantas manhas que sei de lutar , e quantos enganos que tenho estudado. Venha embora  o rico ou pobre senhor ou senhora, ou será vilão ou frade ou freira, de todas as sortes lhe sei a maneira. Não falemos nisto já mais por agora, que feita é a pesqueira. 
 
(Entra um Anjo com um relógio na mão e traz consigo o Mundo vestido como rei e o Tempo diante como seu veador, e diz o Anjo) 
 
ANJO Deus, cui proprium est miserere, porque o seu próprio é perdoar, de toda a sanha não quer executar, e a sũma bondade assi lho requere. Ca Deus é grandeza  e é poderio e é fortaleza, e sabedoria virtude e verdade, glória: tudo isto tem de propriedade, e estas dignidades tem por natureza usar piedade. 
 
E porque o pecado é em si temporal, e a bondade de Deus é infinda, procede em grandeza a toda cousa finda, e ser poderoso é seu natural. A justiça porém  quando executa não cuida ninguém que é com mil partes o que merecia. Adão é deitado de sua alegria, porque por seu mal não pode com o bem que Deus lhe queria. 
 
E porém com tudo piedoso tornado, manda-te Mundo agasalhar a Adão e todos aqueles que procederão de sua semente de qualquer estado. E lhes dês folgança , e todalas cousas em muita abastança: os peixes que vão per carreiras do mar, as aves que andam as vias do ar , ovelhas e bois e toda abondança os leixa lograr. 
 
Porque, ainda que são pecadores, não tem outro padre senão o Senhor, que não quer a morte ao pecador, mas antes que viva e lhe dê louvores. E a ti porém  manda-te, Tempo, que temperes bem este relógio, que te dou, das vidas, e como as horas forem compridas de que fez mercê a vida de alguém, serão despedidas. 
 
Assi que tu, Mundo, os agasalharás, e Satanás os aconselhará, o Tempo e relógio os despedirá, a Morte fará o que tu verás. Eis aqui vem  o padre Adão e Eva também, e como saudosos do seu paraíso, com dor dolorosa de tal improviso, assi desterrados de todo seu bem, vem falando nisso. 
 
EVA Oh como os ramos do nosso pomar ficam cobertos de celestes rosas! Ó doces verduras, ó fontes graciosas, quem nunca vos vira pera se lembrar.
 
ADÃO Lembremo-nos ora  de nosso remédio mulher e senhora porque isto é o que havemos mister.
 
EVA Oh senhor, quem pode cobrar tal perder, que possa perder lembrança meia hora de tanto prazer?
 
ADÃO Poderoso é o padre na glória dos céus, poderoso é o padre no nosso paraíso, poderoso é o padre neste triste abiso, em todo lugar poderoso é Deus, e não vos mateis. 
 
EVA Segundo o que sinto, vós, senhor, quereis que queira sofrer, e meu mal não quer, minha dor é grande e eu sou mulher tão desconfiada, como vós sabeis que devo de ser. 
 
A dor e tristeza é no meu coração, no meu coração está minha vida, e na minha vida está minha ferida, de que meus cuidados feridos estão.
 
ADÃO Leixai-me dizer, eu vos direi que haveis de fazer: ajuntai-me a soma de vossos cuidados aos meus tristes apassionados, e dai-mos a mim porque eu hei d’ir ter cuidados dobrados. 
 
EVA Senhor, bem o creio, mas vós bem ouvistes o que me disse o senhor dos senhores: que eu pariria com mortais Dolores, a mais desterrada na terra dos tristes. Oh triste de mi! cada um de nós penará por si, vós tereis cuidados e eu muitos cuidados, os nossos prazeres serão trabalhados: oh quantos trabalhos teremos aqui por nossos pecados. 
 
ADÃO Dai ora lugar, senhora querida, que passe esse pranto, e nós descansemos, catemos abrigo em que nos abriguemos pois nos obrigamos a mísera vida. Façamos pendença, cumpramos os termos de nossa sentença, pois não cumprimos o que nos cumpria paciência senhora que o nojo em porfia remédio não causa nem tira doença, mas antes a cria. 
 
MUNDO De vosso desastre me pesou assaz e como o Anjo aqui o contasse, nunca tive cousa que mais me pesasse, Porém por engano tudo se faz. O diabo é demo, porque é o rapaz tão sutil em extremo, que não há bugio tão mal inclinado.
 
ADÃO Quem sois vós que assi estais ornado?
 
MUNDO Eu sou o Mundo, que remo meu remo em vosso cuidado.  Se vós não houvésseis pesar em dizê-lo, desejo saber por que via entrou aquele galante que vos enleou, não pera usá-lo mas pera sabê-lo.
 
EVA Senhor, sabereis, dizendo em soma o que me requereis, que eu concebi neste meu espírito aqueles enganos do anjo maldito, e assi concebida agora vereis o meu aperto.  Digo que prenhe minha alma e vida assi concebida do verbo corrupto, desejei de prenhe fartar-me do fruto da árvore santa per Deus defendida. E como comi.
 
(Aparece a Morte) 
 
Vedes ali, senhor, que pari. Vedes a minha triste paridura essa é a filha da mãe sem ventura, isto nasceu da triste de mi, por nossa tristura. 
 
ADÃO Vedes aqui, senhor Mundo, a nossa parteira da terra, herdeira das vidas, senhora dos vermes guia das partidas, rainha dos prantos a nunca ociosa, adela das dores,  a emboladeira dos grandes senhores, cruel regateira que a todas enleia.
 
MUNDO Não vos espanteis de pessoa tão feia, porque cada um desses lavradores colhe o que semeia.  Ou que dizes, Tempo?
 
TEMPO Eu não digo nada: eu lhes falarei lá na derradeira, agasalha-os tu, que é gente estrangeira.
 
MUNDO Cortai dessa rama, fazei a pousada, e vá Adão cavar: semeai das favas, que haveis de suar: comei dessa fruta amargosa montesa, e fie da lã a primeira princesa, até que essa Morte vos venha chamar, e muito depressa. 
 
(Apartam-se do auto Adão e Eva e a Morte, e diz o Mundo)
 
MUNDO Ora venha ABEL seu filho carnal, e não façais conta aqui de Caim, que como o homem é homem ruim, pera que é dele fazer cabedal? Abel é pastor  amigo de Deus e bom servidor, por isso lhe crescem a olho seus gados.
 
TEMPO Pois por que tem dias tão abreviados? 
 
MUNDO São fundos segredos que tem o senhor pera si guardados. 
 
(Entra Abel pastor cantando o vilancete seguinte)
 
ABEL Adorai, montanhas, o Deus das alturas, também as verduras.
 
Adorai, desertos, e serras floridas, o Deus dos secretos, o senhor das vidas. Ribeiras crescidas, louvai nas alturas Deus das criaturas. 
 
Louvai, arvoredos de fruto prezado, digam os penedos, Deus seja louvado. E louve meu gado  nestas verduras o Deus das alturas.
 
SATANÁS Oh como cantas tão doce, pastor! quanta doçura que nasceu contigo! conselho-te, irmão, senhor e amigo, que te estimes muito: pois és tal cantor. Bem é que te prezes tu és mais formoso que teu pai mil vezes: e se eu a ti fosse leixaria o gado, que andas nos matos mui mal empregado, mancebo desposto: e não te desprezes de ser namorado.
 
ABEL Queria ora mais fartar o meu gado,  sem fazer nojo nem perda a ninguém.
 
SATANÁS Queres que engorde o teu gado bem?  Sempre apascenta em pasto vedado.
 
ABEL Quem te mete a ti aconselhares outrem, nem menos a mi, sem te pedirem conselho nem nada?
 
SATANÁS É tanta a virtude que tenho sobrada, que sempre isto faço e fiz até aqui a cada passada.
 
ABEL Oh! e tu gabas-te e fazes-te santo? Juro-te, amigo, que hipócrita és, torna-te monge, descalça esses pés,  e serás fino nessa arte dez tanto: a isto te espero.
 
SATANÁS Este é o homem que eu busco e quero. Muito desejo tua companhia, e sem mais soldada com grande alegria, prometo servir-te como escravo mero de noite e de dia.
 
TEMPO Despachai, Abel, parti pela fria, que já vossas horas estão consumidas.
 
ABEL Oh Tempo! tão curtas são aqui as vidas? Senhor, agravais-me, que ainda crescia. Não há aqui justiça? Leixai-me, Morte.
 
MORTE  O Tempo me atiça.
 
ABEL Onde me levas?
 
MORTE Lá to dirão.
 
ABEL Mundo, não me vales?
 
MUNDO Está bem à mão. 
 
TEMPO Pois não se te escusa, não hajas preguiça: nem tomes paixão.
 
(Entra Abel na escuridade do limbo, e diz)
 
ABEL Despois de viver vida trabalhada, despois de passada tão mísera morte, este é o descanso e este é o deporte! Este é o abrigo esta é a pousada.
 
BELIAL E esse é o siso, despois que vos vedes neste santo abiso, despois que estais fora de guardardes gado, despois que cobrastes tal vale abrigado, despois de vizinho no nosso paraíso, nos dais esse grado. Sus, sus, à corrente.
 
LÚCIFER Aperta-o mui bem que nunca Satã o pôde enganar, porque ele fora pousar no lugar  onde pera sempre não virá ninguém, senão outros tais.
 
BELIAL Hás tu saudade de ir ver a teus pais, ou porventura das tuas ovelhas?
 
ABEL Oh senhor Deus! pois tal me aparelhas,  recebe meus gritos, prantos e ais, nas tuas orelhas.
 
TEMPO Vós, padre Adão, e vossa parceira cheguemos à vara já sabeis meu mando mil anos há que estou esperando  esta é a vossa hora derradeira.
 
ADÃO Ó Tempo, espera!
 
TEMPO Este relógio não se destempera, é muito certo e muito facundo. 
 
ADÃO Queria falar um pouco com o Mundo:
 
não aparelharei eu o pano e a cera? Ora é caso profundo!
 
TEMPO Alto despachai. E vós aguardais? Fazei o alforje à hora da ida.
 
ADÃO Dá-me sequer um dia de vida. 
 
TEMPO Diz cá o relógio que não tendes mais, não há i maneira.
 
MORTE não sabeis vós que sou vossa herdeira e a vossa filha a primeira gerada?
 
ADÃO Ó triste Morte, como és apertada! como és espantosa em tanta maneira desaventurada!
 
(Entrando na casa de sua prisão e achando Abel, seu filho, preso naquela infernal estância, fizeram todos um pranto cantando a três vozes, e acabando diz o Mundo)
 
MUNDO Eis Jó vem falando há grande pedaço, triste com causa de ter grã tristeza.
 
TEMPO Oh quantos haveres e quanta riqueza  perdeu aquele homem em tão pouco espaço.
 
MUNDO Infinitos gados e muitos haveres lhe tenho já dados, e todo lhe foi a través brevemente, porque Satanás o achou excelente,  todos seus bens lhe tem assolados, e Jó  paciente.
 
JÓ Se os bens do mundo nos dá a ventura, também em ventura está quem os tem o bem que é mudável não pode ser bem,  mas mal, pois é causa de tanta tristura. E se Deus os dá, como eu creio mui bem que será, e a fortuna tem tanto poder, que os tira logo cada vez que quer,  o segredo disto, oh quem mo dirá, pera o eu saber?
 
SATANÁS Falemos um pouco, Jó a departe sobre esse segredo verás que te digo: eu quero-te bem e sou teu amigo,  sem usar contigo cautela nem arte. Tu saberás, e não me descubras nem hoje nem crás, Deus é aquele que trata assi, quer-te gran mal e diz mal de ti:  não cures dele e logo tornarás a como te vi.
 
Tu dás com teus males louvores a Deus, e ele pesa-lhe por tu nomeá-lo: renega renega de ser seu vassalo, e logo verás tecer outros véus.
 
JÓ Se o eu leixar, qual é o senhor que me há de amparar? Qual é o Deus que me pode valer? Nos bens desta vida não está o perder,  que assi como assi cá hão de ficar, pois hei de morrer. 
 
Eu creio, Mundo, que o meu redentor vive e no dia mais derradeiro eu o verei redentor verdadeiro,  meu Deus meu senhor e meu salvador. Eu o verei, eu, não outrem por mim, nem com olho seu, mas o meu olho, assi como está, porque minha carne se levantará, e em carne meia verei o Deus meu, que me salvará. 
 
SATANÁS Prossegue tu embora tua mania, que Deus bem de chapa te assenta ele a mão: derribou-te agora as casas no chão  e matou-te os filhos morte supitania.
 
JÓ Verdade é isso?
 
SATANÁS Assi me veja eu rei do paraíso.
 
JÓ Bento e louvado seja o Deus dos céus.
 
SATANÁS Se o tu renegasses, temer-te-ia Deus,  e correr-se-ia muito de te fazer isso.
 
JÓ Lá, lá aos incréus.
 
SATANÁS Assi ora espera farei que renegues, quero fazer o que Deus me manda.
 
(Toca Satanás a Jó e este fica coberto de lepra)
 
JÓ Oh chagado de mi, que esta é outra demanda!  Oh meu Deus! e por que me persegues? Contra mim porfias, sabendo que nada são os meus dias! Minha alma se enoja já de minha vida, e como a seta é minha partida.  Senhor, meu senhor! Por que me desvias de tua guarida?
 
Responde-me quantas maldades te fiz? Ou quantas traições obrei contra ti? Por que assi escondes a face de mi,  como meu contrário, sendo meu juiz? Contra a folha prove, que ligeiramente o vento a revolve, mostras as forças que tu tens contigo? Por que te puseste contrário comigo? Que a tua bondade me escusa e absolve  de ser teu inimigo?
 
Senhor, homem de mulher nascido muito breve tempo vive miserando, e como flor se vai acabando,  e como a sombra será consumido. Pois por que, senhor, estimas tu cousa de baixo valor pera trazê-lo a juízo contigo? E quem me darás que seja comigo  em o inferno por meu guardador e por meu abrigo?
 
Que a minha pele, as carnes gastadas, logo a meu osso se achegará, e também solamente o que ficará  os beiços acerca de minhas queixadas. Ó meus amigos, ao menos vós outros amigos antigos, amerceai-vos de mim que me vou, porque a mão do senhor me tocou: e vós perseguis-me como inimigos, assi como estou.
 
TEMPO Queixai-vos vós bem, que ainda estais pior, pois não tendes mais momento de vida: alto despejai fundai na partida. 
 
JÓ Oh! bento e louvado seja o meu senhor! O que ele mandar: a vida é sua pode-a tirar, a morte é nossa de juro e herdade, e pois que ele é o juiz da verdade  faça-se logo sem mais dilatar a sua vontade.
 
MORTE Vinde cá bom homem, que esta é dor maior. 
 
JÓ Memento mei, Deus Senhor, porque vento é a minha vida,  apressa-te muito asinha, favorece meu temor, e a minha alma encaminha.
 
Peccante me quotidie et non me penitentem, meus espíritos já não sentem timor mortis, conturbas me.
 
Ubi fugiam, que farei? Circundederunt me dolores: ajuda-me rei dos senhores, não te alembre que pequei, esqueçam-te meus errores. Manus tue fecerunt me, oh! não me desfaças ora, acorre-me, senhor, agora,  que a minha vida ida é, e a morte é de mi senhora.
 
BELIAL Ora andai que tudo é nada quanto vós podeis dizer.
 
JÓ Que me queres tu fazer? 
 
BELIAL Servir-te e dar-te pousada, onde estês a teu prazer.
 
(Diz Jó depois de preso)
 
JÓ Quare de vulva me eduxiste? Antes ali fora consumido. Ó minha esperança, faze-me sofrido, pois vida, morte e prisão tão triste me fazem pesar-me porque fui nascido.
 
MUNDO Agora estes quatro bem abastarão, quanto aos padres de lei de natura. Logo virão de lei da Escritura, Moisém, Isaías, Davi, Abraão. Falará primeiro Abraão, patriarca justo, verdadeiro, reprendendo os ídolos da gentilidade, porque no seu tempo era a vaidade, e pela verdade se fez pregoeiro da santa trindade.
 
ABRAÃO Ó Deus mui alto, ignoto, escondido, demostra-te às gentes, que já tempo é, que daquele tempo do justo Noé  está o teu nome na terra perdido. E está sonegado o tributo do mundo que é teu de morgado e adoram as gentes deuses de palmeira,  deuses de metal e de pederneira, deuses sem vida, deuses de pecado, feitos de madeira.
 
Tem pés e não andam, mãos e não apalpam, olhos e não vem, orelhas e não ouvem, corpo e não sustém, cabeça e não entendem.  Et tu, qui solus es, que tens todo mundo debaixo dos pés, e teu ouvir e ver é infinito, criador dos espíritos, eternal espírito, e sendo seu Deus não sabe quem és,  sequer por escrito.
 
MOISÉS Eu Moisés direi como ele formou no princípio o céu, terra e paraíso a terra era vácua e sobre abiso eram as trevas quando a luz criou.  E assentarei mistérios profundos no livro da lei, tudo figuras da santa trindade, tudo mistérios da eternidade, que Deus me dirá e eu escreverei  à sua vontade.
 
E ele estará em pessoa comigo aos cinco livros quando os escrever, porque as cerimônias que mandar fazer, outras maiores trazerá consigo.  Tu, homem, penetra, e dos sacrifícios não tomes a letra, que outro sacrifício figuram em si, que matar bezerros nem aves ali. Outra mais alta oferta soletra, e outro Gênese.
 
DAVI O sacrifício a Deus mais aceito é o espírito mui atribulado, e o coração contrito humilhado. Esta é a oferta e serviço direito.  E assi Isaías.
 
ISAÍAS O sacrifício é o Messias, que será nascido em Belém de Judá, porque do tribo de Judá será da parte da virgem, e eis virão dias  em que parirá.
 
MOISÉS Virgem prenhada?
 
ISAÍAS E virgem parida. Bem viste a sarça que não se queimava; pois este mistério nos prefigurava a madre de Deus, do mundo e da vida,  e amado cordeiro que tira os pecados.
 
DAVI Eu no meu salteiro digo por este mui alto primor: cantai cantar novo a nosso senhor  que fez maravilhas, o Deus verdadeiro  o duque maior.
 
ABRAÃO Oh Isaías, que novas tão belas, de tanta alegria que trazes contigo!
 
ISAÍAS Outras tão tristes trago eu comigo, que já Jeremias fez pranto com elas.  Oh triste mazela! que o fruto do ventre daquela donzela, em pagamento do fruto vedado, à justiça divina será ofertado, coberto de sangue, com muita querela, e crucificado!
 
DAVI Eu também o sei mui certo sabido, serão suas mãos e pés mui furados, e todos seus ossos lhe serão contados, e deitarão sortes sobre seu vestido. 
 
TEMPO Tendes já dito, leixai tudo isso posto por escrito, e despejai logo, pagai a pousada, compri com a terra, que quer ser pagada, e os elementos dai o espírito: não faleis mais nada.
 
MUNDO Morte, despeja-os, não fique ninguém.
 
ISAÍAS Oh quem me tevera mais vida alongada pera profetar da virgem sagrada cem mil maravilhas que sei muito bem!
 
MORTE Profetas, nô mais, manda o Tempo que logo partais,  parti-vos comigo e não mais demoras.
 
ABRAÃO Ó Morte, quão cruas são tuas esporas! Quão lastimeiras!
 
MORTE Não vos detenhais, andai, que são horas. 
 
MOISÉS Senhor rei Davi, não tendes na corte Cirurgiães e físicos mores, astrólogos grandes e muitos doutores, que vos deem saúde e livrem da morte? 
 
MORTE Olhai, não vai nisso, o mal que se cura não é mal de siso. Andam deitando remendos à vida, mas quanto ao despejo, pois não tens guarida, lembre-te, homem, com muito aviso  que és terra podrida.
 
BELZEBU Ó Morte, ó Morte! Sejas bem casada, que tão limpa gente nos dás em poder. Chegai-vos aqui, senhor Lúcifer, pois que rei vem à vossa pousada.  Que não é razão, pois que é rei, que eu lhe ponha a mão, senão vossa alteza, e ponha-o aqui.
 
LÚCIFER Perdoai-me vós, senhor rei Davi.
 
DAVI De profundis clamavi, Senhor, redenção!
 
BELZEBU Bem estais assi.
 
MUNDO De lei da Escritura e lei natural já temos passados os mais principais, venha a lei de graça, por que os mortais alcancem a glória de sempre eternal.  Venha o primeiro glorioso Joanes, santo pregoeiro, santo sem mágoa, de Deus enviado, santo nascido e santificado, mostrando às gentes o alto cordeiro,  com muito cuidado.
 
SÃO JOÃO Ó bravas serpentes que em serras andais, ó dragos ferozes que estais nos desertos,  ouvi os secretos que estão encobertos, e vós dormedários também não durmais.  E tu, mui serena formosa ave fénix que tanto sem pena a ti mesma matas por tua vontade, vai ver o fénix da Santa Trindade, filho da fénix gratia plena  que está na cidade.
 
E tu, mui soberbo lobo poderoso, que trazes as unhas cruéis e tingidas no sangue de ovelhas de pouco paridas, aprende de Cristo cordeiro amoroso.  E vós, pomba brava, que voais isenta, soberba, alterada, em essas montanhas viveis branda vida, tomai por espelho a pomba escolhida, a pomba mui mansa a pomba calçada,  de sol é vestida.
 
E tu vil raposa, que vives de engano, e matas quem amas sem nenhum temor, aprende de Cristo que só por amor oferece à morte seu corpo humano.  Tu, águia real, que vences os raios do sol natural com tua vista per graça divina, guarda não te cegue o sol da rapina, pois te alumia a luz divinal  com sua doutrina.
 
SATANÁS Eu fui ontem à cidade, e estavam os fariseus falando nos feitos teus e na tua santidade,  de que pasmam os judeus.  Dizem que tu és Elias, ou profeta enviado, ou anjo dissimulado, mas eu digo que és mexias,  e assi o tenho apostado.
 
SÃO JOÃO Eu te conheço mui bem, e quem és há muitos dias. Satã, eu não sou Elias, nem desejo de ninguém   nenhumas lisonjarias, Nem sou santo nem profeta nem menos anjo encoberto: vox clamantis in deserto esta é a minha vida certa,  pois queres saber o certo.
 
Nem mexias não sou eu, nem pera lhe desatar a correia que levar no santo sapato seu.  Antre os judeus acharás o bem que eles não conhecem, nem tu o conhecerás porque eles não no merecem, nem tu o merecerás.  (Aparta-se Satanás, e diz) Ó mortais, de terra em terra tornados, pois são vossas almas de tão fina lei, abri vossos olhos que ecce agnus Dei, que veio ao mundo tirar os pecados. Ele é por certo, crede esta voz clamante em deserto, e levantai-vos do pó desta vida,  pegai-vos com Cristo que é certa guarida, que de sua mão está o céu aberto, e a glória vencida. 
 
TEMPO Este relógio é muito forte, vós perdoai-me, senhor sou João, que vossas horas compridas estão segundo buscastes tão cedo a morte. E por vossa vontade, vós não quereis senão pregar verdade, e ela vos leva da vida presente.
 
SÃO JOÃO Que sou muito ledo e muito contente, porque a verdade é a mesma trindade verdadeiramente.  E pois eu sou voz de nosso senhor, se eu a calar quem na há de dizer? As ofensas de Deus quem as há de sofrer? Mas clame em deserto qualquer pregador, e seu tema seja  verdade, verdade. Mas o que deseja ser bispo, e portanto prega mui modesto, calando e cobrindo o mal manifesto, não é pregador da santa igreja, mas ladrão honesto. 
 
Leva-me, Morte, quero-me ir daqui, que já mostrei Cristo a todolos vivos, irei dar a nova àqueles cativos, cujo cativeiro terá cedo fim.
 
(Entrando sou João naquela prisão, com admiração de grande alegria cantaram os presos o romance seguinte, que fez o mesmo autor ao mesmo propósito, e dizem)
 
(Romance)
 
Voces daban prisioneros, luengo tiempo están llorando, en triste cárcel escuro padeciendo y sospirando, con palabras dolorosas sus prisiones quebrantando:  qué es de ti, Virgen y Madre, que a ti estamos esperando? Despierta el señor del mundo, no estemos más penando. Oyendo sus voces tristes  la virgen estaba orando cuando vino la embaxada por el ángel saludando: “Ave rosa gracia plena”, su preñiez le anunciando.  Suelta los encarcelados, que por ti están sospirando. Por la muerte de tu hijo a su padre están rogando. Creza el niño glorioso,  que la cruz está esperando. Su muerte será cuchillo,  tu ánima traspasando. Sufre su muerte, Señora, nuestra vida deseando. 
 
LÚCIFER Que fazes?
 
SATANÁS Eu não faço nada e suo como cão sem achar bonança.
 
LÚCIFER Todos aqueles que a morte cá lança alcançam per força segura pousada pois hás-me de encher  de almas humanas, convém a saber: a furna das trevas, ponte de navalhas, o lago dos prantos, a horta dos dragos, os tanques da ira, os lagos da neve, os rios ardentes, sala dos tormentos,  varandas das dores, cozinha de gritos o açougue das pragas, a torre dos pingos, o vale das forcas: tudo isto arreio.
 
SATANÁS Bem certo é que tudo há de ser cheio. Mas França e Roma não se fez num dia. 
 
LÚCIFER Temo, Satã, que esta mercadoria, que temos aqui é brasa no seio.
 
(Entra a figura de nosso Redentor, e o Mundo, o Tempo e a Morte assentam-se de joelhos, e diz o Mundo)
 
MUNDO Também vós passais, Deus meu, por esta vida mesquinha? Muita dita é a minha! mas onde agasalharei eu a quem tanta glória tinha? Oh eternal Criador, oh temporal criatura, que encobres com terra escura  o divino resplendor e imensa formosura!
 
E portanto eu não sou digno que entreis na minha morada, porque é baixa pousada,  e pera ti verbo divino,  quanto tenho não é nada.
 
CRISTO Não te agastes tu comigo, nem me dês pousada a mi, que o meu reino não é aqui,  nem quero nada contigo: mas quatro cousas quero de ti:
 
PRIMEIRA  Quando me vires levar pela rua d’amargura, que olhes minha figura,  e o sangue que eu derramar tome tua alma por cura
 
SEGUNDA  E quando os saiões da cidade me pregarem no madeiro com fortes pregos de aceiro, que olhes com que vontade me entreguei ao carniceiro
 
TERCEIRA  E quando vires espirar o meu espírito cansado o meu coração finado,  que tu te queiras lembrar que mouro por teu pecado
 
QUARTA  quando enterrado me vires sem companha nem emparo, que do teu coração tires  suspiros com que suspires minha morte e desemparo
 
E não quero de ti mais.
 
Lá reparte teus cruzados, teus impérios e reinados,  e tuas pompas mortais, que eu não quero teus morgados. Seja papa quem quiser, seja rei quem tu quiseres, que os impérios e poderes  a morte os há de prover e tirar a quem os deres.
 
TEMPO Meu senhor, eu que farei? No relógio que me destes Digo que inda que nascestes  não se entende em vós a lei, pois que vós mesmo a fizestes.
 
CRISTO  Modicum videbitis me eu a cumprirei, que a fiz, porque o rei que é bom juiz  como a lei feita é, faz aquilo que ela diz. Cedo me despejarás, tem tu o relógio certo: em tanto vou-me ao deserto,  e veremos Satanás se me fala descoberto.
 
LÚCIFER Digo que este homem nascido em Belém parece perigosa cousa pera nós.
 
BELZEBU Senhor Lúcifer, isso vede vós,  porque todo o mal é de quem o tem.
 
SATANÁS Dá ó demo a cantiga: crede que temos com ele fadiga, que passa de santo.
 
BELZEBU Parece-o ele.
 
LÚCIFER Vai, Satanás, e salta com ele:  enfim ele é homem por mais que te diga, mais podes tu que ele.
 
Agora que anda assi só no deserto, viste este fato e faze-te monge, porque sem isto andarás de longe , e assi simulado falarás de perto.  Ora vai asinha, e se tu este trazes à nossa cozinha, eu te farei mui gran cavaleiro.
 
(Vai Satanás tentar a Cristo e diz)
 
SATANÁS Que faz o senhor neste ermo estrangeiro  tão só, e tão fraco, que por vida minha que é grande marteiro?
 
CRISTO  E tu que cousa és, ou que vens buscar? ’
 
SATANÁS Bem vês tu, Senhor, que sou ermitão, logo meu trajo demonstra quem sou,  e é escusado o mais perguntar, sou monge senhor.
 
CRISTO  Nem porque o sagais e bom caçador se veste no boi por caçar perdizes, não é ele boi como tu me dizes.  (Diz ao povo) Julgai pelas obras, e não pela cor, sereis bons juízes.
 
SATANÁS Senhor, já de fraco e debilitado deitas a fala cansada com pena, e eu ouvi dizer já que se condena  quem mata a si mesmo de próprio grado. Pois por que te matas, e a tua vida assi a maltratas, sendo seu preço ao dobro de Elias? Come senhor que há quarenta dias  que te desbaratas.
 
E mais se tu és o filho de Deus, (como eu sinto ainda que me calo) farás destas pedras todas pão de calo, segundo a virtude trouxeste dos céus. 
 
CRISTO  Escrito acharão que não vive o homem somente do pão, mas da palavra de Deus procedida esta é a que farta, cria e dá vida.
 
SATANÁS Oh como falas! dá-me outra lição, que já essa é sabida.
 
E se tu, como digo, filho de Deus és, segundo a nova por esta terra anda, deita-te abaixo daquela varanda, e não hajas medo que quebres os pés,  porque escrito é que nenhuma pedra em perna nem pé, te pode fazer ofensa nem nada.
 
CRISTO  E se eu posso subir e descer pela escada, pera que é tentar a Deus sem porquê,  que é cousa escusada? 
 
SATANÁS Quant’a pela escada um manco fará isso. Vem-me à vontade fazer-te um partido. Todo homem prove é aborrecido: tu de meu conselho acolhe-te ao siso.  E que um homem faça muitos pecados e erros de praça por enriquecer tudo é muito bem, que bem sabe Deus que quem nada tem, que tenha mil graças, per divina graça,  não no quer ninguém.
 
Sabes Rio Frio, e toda aquela terra, Aldeia Galega, a Landeira, e Ranginha, e de Lavr’a Coruche? tudo é terra minha e desde Samora até Salvaterra,  e desde Almeirim bem até à Herra, e tudo per ali, e a terra que tenho de cardos e de pedras, que vai desde Sintra até Torres Vedras, tudo é meu, olha pera mim,  verás como medras.
 
Isto e muito mais te darei, que não quero mais senão senta-te aí, posto em giolhos, e adora em mim. Olha em quão pouco virás a ser rei,  e muito acatado.
 
CRISTO  Retro, retro, mal aventurado falso, enorme, cível Satanás. Escrito é: não adorarás se não um só Deus, com grande cuidado  a ele servirás.
 
LÚCIFER Que é isso, Satã?
 
SATANÁS Venho embarbascado, e estou mais mofino que um alfeloeiro. Dá-me a vontade que aquele escudeiro é o pastor daquele nosso gado. 
 
CRISTO  Eis aqui subimos a Hierusalém pera tirar o vestido em que ando, porque os açoutes me estão esperando cumpra-se todo meu mal e meu bem.  Quero ir levar  minha breve vida a quem me há de matar, e assi entregar a minha cabeça à cruel coroa por que ela padeça com tanto de sangue, que quem me olhar que não me conheça. 
 
Quero ir levar estes meus cabelos onde sejam feitos duzentos pedaços, quero ir pregar estes pés e meus braços onde os sinta, e não possa vê-los. E o delicado  triste meu peito, que seja pisado com couces irosos, e minhas queixadas e dentes, quebrados com mil bofetadas, e eu virei logo ser sepultado em breves passadas. 
 
BELIAL Senhor Lúcifer, eu ando doente, treme-me a cara, e a barba também, e dói-me a cabeça, que tal febre tem, que soma sou hétigo ordenadamente. E doem-me as canelas: sai-me quentura per entre as arnelas, e segundo me acho, muito mal me sinto, e algum gran desastre me pinta o distinto, Até as minhas unhas estão amarelas, que é grão labirinto. 
 
(Em este passo vem os cantores e trazem uma tumba, onde vem uma devota imagem de Cristo morto, e despois de acabada sua procissão diz Belial)
 
BELIAL Ergue-te, senhor, que segundo creio, pois que assi tremo e estou amarelo, que será tomado este nosso castelo, e o gado que temos há de ser alheio.
 
SATANÁS Isso é o que eu digo. 
 
BELIAL Rugem-me as tripas, arde-me o embigo, e a boca empolada, assi como de figos. Crede vós, Rei, que tendes inimigos, porque estas doenças que trago comigo, denotam perigos. 
 
(Aqui tocam as trombetas e charamelas e aparece uma figura de Cristo na ressurreição e entra no limbo e soltará aqueles presos bem-aventurados. E assim acaba o presente auto)

 

 

                                                                  Gil Vicente

 

 

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