Gil Vicente
A obra seguinte foi representada ao excelente príncipe e muito poderoso rei dom João III, endereçada às matinas do Natal, na era do Senhor, 1534.
FIGURAS: UM FRADE A VIRGEM PRUDÊNCIA POBREZA HUMILDADE FÉ O ANJO GABRIEL SÃO JOSÉ ANDRÉ PAIO VAZ PESSIVAL MOFINA MENDES BRAZ CARRASCO BARBA TRISTE TIBALDINHO ANJOS
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(Entra primeiramente um Frade e a modo de pregação diz o que se segue)
FRADE Três cousas acho que fazem ao doudo ser sandeu: a uma, ter pouco siso de seu... a outra, que esse, que tem, não lhe presta mal nem bem...
E a terceira, que endoudece em grã maneira..., é o favor, livre-nos Deus..., que faz do vento cimeira e do toutiço moleira e das ondas faz ilhéus.
Diz Francisco de Mairões Ricardo e Bonaventura não me lembra em que escretura nem sei em quais distinções nem a cópia das razões.
Mas o latim, creio que dizia assi: nolite vanitatis debemus considere de his que capita sua posuerunt in manibus ventorum et coetera. Quer dizer este matiz entre os primores que traz: não é sisudo o juiz que tem jeito no que diz e não acerta o que faz.
Diz Boécio: De Consolacionis, Orígenes: Marci Aureli, Salustius: Catelinarum, Josepho: Espelum Beli, Glosa interliniarum, Vicencius: Scala celi, Magister sententiarum, Demóstenes: Calistrato... todos estes concertaram com Scoto livro quarto.
Dizem: não vos enganeis letrados de Rio Torto que o porvir não no sabeis e quem nisso quer pôr peis tem cabeça de minhoto.
Ó bruto animal da serra ó terra filha do barro como sabes tu, bebarro, quando há de tremer a terra, que espantas os bois e o carro?
Polos quais dixit Anselmus, e Seneca: Vandaliarum, e Plinius: Caronicarum, et tamen Glosa ordinaria, e Alexander: de Aliis, Aristotiles: De Secreta Secretorum,
Albertus Magnus, Tullius Ciceronis , Ricardus, Ilarius, Remigius, dizem convém a saber: Se tens prenhe tua mulher e per ti o compuseste, queria de ti entender em que hora há de nascer, ou que feições há de ter esse filho que fizeste.
Não no sabes quanto mais cometerdes falsa guerra, presumindo que alcançais os secretos divinais que estão debaixo da terra.
Polo qual diz: Quintus Curcius, Beda: De Religioni Christiana, Thomas: Super Trinitas Alternati, Agustinus: De Angelorum Coris, Hieronimus: De Alfabetus Hebraice, Bernardus: De Virgo Assumptionis, Remigius: De Dignitate Sacerdotum.
Estes dizem juntamente nos livros aqui alegados: Se filhos haver não podes nem filhas por teus pecados cria desses enjeitados filhos de clérigos pobres, pois tens saco de cruzados!
Lembre-te o rico avarento que nesta vida gozava e no inferno cantava: água Deus água que lhe arde a pousada.
Mandaram-me aqui subir neste santo anfiteatro pera aqui introduzir as figuras que hão de vir com todo seu aparato.
É de notar, que haveis de considerar isto ser contemplação fora da história geral, mas fundada em devoção.
A qual obra é chamada os Mistérios da Virgem, que entrará acompanhada de quatro damas, com quem de menina foi criada.
A uma chamam Pobreza, outra chamam Humildade, damas de tanta nobreza, que toda alma que as preza é morada da trindade.
A outra, terceira delas, chamam Fé, per excelência, à outra chamam Prudência... e virá a Virgem com elas, com mui formosa aparência.
Será logo o fundamento tratar da saudação e depois deste sermão um pouco do nascimento tudo per nova invenção.
Antes disto que dissemos, virá com música orfea Domine labia mea e Venite adoremus vestido com capa alheia.
Trará Te Deum laudamus de escarlata um libré: Jam lucis orto sidere cantará o Benedicamus, pola grã festa que é.
Quem terra, pontus, etera virá muito assossegado num sendeiro mal pensado, e um gibão de tafetá, e uma gorra de orilhado.
(Em este passo entra Nossa Senhora vestida como rainha com as ditas donzelas, e diante quatro Anjos com música, e depois de assentadas começam cada uma de estudar por seu livro, e diz a Virgem)
VIRGEM Que ledes minhas criadas que achais escrito i?
PRUDÊNCIA Senhora eu acho aqui grandes cousas inovadas, e mui altas pera mi.
Aqui a Sibila Ciméria diz que Deus será humanado de uma virgem sem pecado, que é profunda matéria pera meu fraco cuidado.
POBREZA Eruteia profetiza diz aqui também o que sente: que nascerá pobremente, sem cueiro nem camisa, nem cousa com que se aquente.
HUMILDADE E o profeta Isaías fala nisso também cá: ex a virgem conceberá, e parirá o Messias, e frol virgem ficará.
FÉ Cassandra del-rei Priamo mostrou essa rosa frol com um menino a par do sol a césar Octaviano, que o adorou por senhor.
PRUDÊNCIA Rubrum quem viderat Moisém: sarça que no ermo estava, sem lhe pôr lume ninguém, o fogo ardia mui bem, e a sarça não se queimava.
FÉ Significa a madre de Deus esta sarça é ela só. E a escada que viu Jacob, que sobia aos altos céus, também era de seu voo.
PRUDÊNCIA Deve de ser por razão de todas perfeições cheia toda quem quer que ela é.
HUMILDADE Aqui a chama Salomão tota pulchra amica mee, et macula non est in te.
E diz mais: que é porta coeli electa ut sol bálsamo mui oloroso pulchra ut lilium gracioso das flores mais linda flor dos campos o mais formoso.
Chama-lhe plantacio rosae, nova oliva speciosa, mansa columba Noé, estrela a mais lumiosa.
PRUDÊNCIA Et acies ordinata formosa filha del-rei de Jacob ex tabernacula speculum sine macula ornata civitas Dei.
FÉ Mais diz ainda Salomão: hortus conclusus, flos hortorum, medecina peccatorum, direita vara de Arão, alva sobre quantas foram, santa sobre quantas são.
E seus cabelos polidos são formosos em seu grado, como manadas de gado e mais que os campos floridos, em que anda apascentado.
PRUDÊNCIA É tão zeloso o senhor, que quererá o seu estado dar ao mundo per favor, por uma Eva pecador, uma virgem sem pecado.
VIRGEM Oh se eu fosse tão ditosa que com estes olhos visse senhora tão preciosa, tesouro da vida nossa, e por escrava a servisse.
Que onde tanto bem se encerra vendo-a cá entre nós, nela se verão os céus, e as virtudes da terra, e as moradas de Deus.
(Neste passo entra o anjo Gabriel dizendo)
GABRIEL Oh Deus te salve, Maria, cheia de graça graciosa, dos pecadores abrigo! goza-te com alegria, humana e divina rosa, porque o senhor é contigo.
VIRGEM Prudência, que dizeis vós? Que eu muito turbada sou, porque tal saudação não se costuma entre nós.
PRUDÊNCIA Pois que é auto do Senhor, senhora não esteis turbada, tornai em vossa color, que segundo o embaixador, tal se espera a embaixada.
GABRIEL Ó Virgem, se ouvir me queres, mais te quero inda dizer: benta és tu em mereceres mais que todas as mulheres, nascidas e por nascer.
VIRGEM Que dizeis vós, Humildade, que este verso vai mui fundo, porque eu tenho por verdade ser em minha qualidade a menos cousa do mundo.
HUMILDADE O anjo que dá o recado, sabe bem disso a certeza, diz David no seu tratado, que esse espírito assi humilhado é cousa que Deus mais preza.
GABRIEL Alta senhora saberás, que tua santa humildade te deu tanta dignidade, que um filho conceberás da divina eternidade.
Seu nome será chamado Jesu e filho de Deus, e o teu ventre sagrado ficará horto cerrado, e tu princesa dos céus.
VIRGEM Que direi Prudência minha? A vós quero por espelho.
PRUDÊNCIA Segundo o caso caminha, deveis senhora rainha, tomar com o anjo conselho.
VIRGEM Quomodo fiet istud quoniam virum non cognosco? Porque eu dei minha pureza ao senhor e meu poder, com toda minha firmeza.
GABRIEL Spiritus sanctus superveniet in te. E a virtude do Altíssimo, senhora te cobrirá, porque seu filho será, e teu ventre sacratíssimo per graça conceberá.
VIRGEM Fé, dizei-me vosso intento, que este passo a vós convém. Cuidemos nisto mui bem, porque a meu consentimento grandes dúvidas lhe vem. Justo é que imagine eu, e que estê muito turbada. Querer quem o mundo é seu, sem merecimento meu, entrar em minha morada.
E uma suma perfeição de resplendor guarnecido tomar pera seu vestido sangue do meu coração indigno de ser nascido.
E aquele que ocupa o mar, enche os céus e as profundezas, os orbes e redondezas, em tão pequeno lugar como poderá estar a grandeza das grandezas?
GABRIEL Por que tanto isto não peses, nem duvides de querer, tua prima Elisabeth é prenhe e de seis meses.
E tu senhora hás de crer, que tudo a Deus é possível, e o que é mais impossível, lhe é o menos de fazer.
VIRGEM Anjo perdoai-me vós, que com a Fé quero falar. Pedirei sinal dos céus.
FÉ Senhora, o poder de Deus não se há de examinar... Nem deveis de duvidar, pois sois dele tão querida.
ANJO GABRIEL E d'abinício escolhida: e manda-vos convidar, pera madre vos convida.
VIRGEM Ecce ancila domini, faça-se sua vontade no que sua divindade mandar que seja de mi, e de minha liberdade.
(Em este passo se vai o anjo Gabriel, e os anjos à sua partida tocam seus instrumentos, e cerra-se a cortina e ajuntam-se os pastores pera o tempo do nascimento. Entra primeiro André e diz)
ANDRÉ Eu perdi se se acontece, a asna ruça de meu pai. O rasto per aqui vai, mas a burra não parece, nem sei em que vale cai.
Leva os tarros e apeiros, e o surrão com os chocalhos, os samarros dos vaqueiros, dous sacos de pães inteiros, porros cebolas e alhos.
Leva as apeias da boiada, as carrancas dos rafeiros, e foi-se a pascer folhada, porque besta despeada não pasce nos sovereiros.
E se ela não parecer atás per noite fechada, não temos hoje prazer, que na festa sem comer não há i gaita temperada.
(Entra Paio Vaz e diz)
PAIO VAZ Mofina Mendes é cá c'um fato de gado meu?
ANDRÉ Mofina Mendes ouvi eu assoviar, pouco há no vale de João Viseu.
PAIO VAZ Nunca esta moça sossega, nem samica quer fortuna:
anda em saltos como pega, tanto faz tanto trasfega, que a muitos importuna.
ANDRÉ Mofina Mendes quanto há, que vos serve de pastora?
PAIO VAZ Bem trinta anos haverá, ou creio que os faz agora...
Mas sossego não alcança, não sei que maleita a toma. Ela deu o saco em Roma, e prendeu el-rei de França: agora andou com Mafoma, e pôs o Turco em balança.
Quando cuidei que ela andava c'o meu gado onde soía, pardeos e ela era em Turquia, e os Turcos amofinava, e a Calros césar servia.
Diz que assi resplandecia neste capitão do céu a vontade que trazia, que o Turco esmoreceu, e a gente que o seguia.
Receou a guerra crua que o césar lhe prometia, entances per aliam via reverte sunt in patria sua com quanta gente trazia.
PESSIVAL Achaste a tua burra André?
ANDRÉ Bofá não.
PESSIVAL Não pode ser. Busca bem leixa o fardel, que a burra não era mel, que haviam de comer.
ANDRÉ Saltariam pegas nela, por caso da matadura.
PESSIVAL Pardeus! essa seria ela! e que pega será aquela, que lhe tire a albardadura.
PAIO VAZ Mas crê que andou per i Mofina Mendes rapaz, que segundo as cousas faz, se isto não for assi, que não seja eu Paio Vaz.
Ora chama tu por ela, e aposto-te a carapuça, que a negra burra ruça Mofina Mendes deu nela.
ANDRÉ Mofina Mendes! ah Mofina Mem!
MOFINA Que queres André? Que hás?
ANDRÉ Vem tu cá, e vê-lo-ás, e se hás de vir, logo vem, e acharás aqui também a teu amo Paio Vaz.
(Entra Mofina Mendes e diz Paio Vaz seu amo)
PAIO VAZ Onde deixas a boiada, e as vacas Mofina Mendes? Mofina Mas que cuidado vós tendes de me pagar a soldada, que há tanto que me retendes?
PAIO VAZ Mofina dá-me conta tu onde fica o gado meu.
MOFINA A boiada, não vi eu, andam lá não sei per u..., nem sei que pascigo é o seu...
Nem as cabras, não nas vi, samicas c'os arvoredos, mas não sei a quem ouvi que andavam elas per i, saltando pelos penedos.
PAIO VAZ Dá-me conta rês a rês, pois pedes todo teu frete.
MOFINA Das vacas morreram sete, e dos bois morreram três.
PAIO VAZ Que conta de negregura! Que tais andam os meus porcos?
MOFINA Dos porcos os mais são mortos de magreira e má ventura.
PAIO VAZ E as minhas trinta vitelas das vacas que te entregaram?
MOFINA Creio que i ficaram delas, porque os lobos dizimaram, e deu olho mau por elas, que mui poucas escaparam.
PAIO VAZ Dize-me, e dos cabritinhos que recado me dás tu?
MOFINA Eram tenros e gordinhos, e a zorra tinha filhinhos, e levou-os um a um.
PAIO VAZ Essa zorra essa malina, se lhe correras trigosa, não fizera essa chacina, porque mais corre a Mofina vinte vezes que a raposa.
MOFINA Meu amo, já tenho dada a conta do vosso gado muito bem com bom recado, pagai-me minha soldada, como temos concertado.
PAIO VAZ Os carneiros que ficaram, e as cabras que se fizeram?
MOFINA As ovelhas reganharam, as cabras engafeceram, os carneiros se afogaram, e os rafeiros morreram.
PESSIVAL Paio Vaz, se queres gado, dá ó demo essa pastora: paga-lho seu vá-se embora... Ou má-hora! E põe o teu em recado.
PAIO VAZ Pois Deus quer que pague e peite a tão daninha pegureira, em pago desta canseira toma este pote de azeite, e vai-o vender à feira...
E quiçais, medrarás tu, o que eu contigo não posso.
MOFINA Vou-me à feira de Trancoso logo, nome de Jesu, e farei dinheiro grosso. Do que este azeite render comprarei ovos de pata, que é a cousa mais barata que eu de lá posso trazer. E estes ovos chocarão, cada ovo dará um pato, e cada pato um tostão, que passará de um milhão e meio a vender barato.
Casarei rica e honrada per estes ovos de pata e o dia que for casada sairei ataviada com um brial de escarlata.
E diante o desposado, que me estará namorando: virei de dentro bailando assi desta arte bailado, esta cantiga cantando.
(Estas cousas diz Mofina Mendes com o pote de azeite à cabeça, e andando enlevada no bailo cai-lhe, e diz)
PAIO VAZ Agora posso eu dizer e jurar e apostar, que és Mofina Mendes toda.
PESSIVAL E se ela bailava na voda que está inda por sonhar...
E os patos por nascer, e o azeite por vender, e o noivo por achar, e a Mofina a bailar, que menos podia ser?
(Vai-se Mofina Mendes cantando)
MOFINA "Por mais que a dita me enjeite, pastores não me deis guerra , que todo o humano deleite, como o meu pote de azeite, há de dar consigo em terra."
(Entram outros pastores cujos nomes são: Braz Carrasco, Barba Triste e Tibaldinho, e diz Braz Carrasco)
BRAZ CARRASCO Ó Pessival meu vezinho!
PESSIVAL Braz Carrasco, dize, viste a burra desse outeirinho?
CARRASCO Pergunta tu a Tibaldinho, ou pergunta a Barba Triste, ou pergunta a João Calveiro.
TIBALDINHO O fato trago eu aqui e a burra eu a meti na corte do Rabileiro nós deitemo-nos per i.
Andamos todos cansados o gado seguro está e nós aqui abrigados durmamos senhos bocados, que a meia noite vem já.
(Em este passo se deitam a dormir os pastores, e logo se segue a segunda parte que é uma breve contemplação sobre o nascimento)
VIRGEM Ó cordeiro divinal, precioso verbo profundo, vem-se a hora em que teu corpo humanal quer caminhar pelo mundo, desde agora.
Sairás ao campo mundano a dar crua e nova guerra aos imigos, e glória a Deus soberano in excelsis et in terra pax hominibus.
Sairá o nobre leão, rei do tribu de Judá, radix David,m o duque da promissão como esposo sairá do seu jardim.
E o Deus dos anjos servido, sanctus, sanctus sem cessar lhe cantando, vereis em palhas nascido, sem candeia e sem luar, suspirando.
E porque a noite é quase meia, e são horas que esperemos seu nascer, ide Fé por essa aldeia acender esta candeia, pois outras tochas não temos que acender.
E sem serdes perguntada, nem lhes vir pola memória, direis em cada pousada que esta é a vela da glória.
(Em este passo José e a Fé vão acender a cande,a, e a Virgem com as Virtudes de giolhos, a versos, rezam este Salmo)
VIRGEM Ó devotas almas felis, pera sempre sem cessar laudate dominum de celis, laudate eum in excelsis, quanto se puder louvar.
PRUDÊNCIA Louvai anjos do senhor, ao senhor das altezas, e todalas profundezas, louvai vosso criador, com todas suas grandezas.
HUMILDADE Laudate eum sol et luna, laudate eum stellas et lumen, et lauda Hierusalem, ao senhor que te enfuna neste portal de Belém.
VIRGEM Louvai o senhor dos céus, louvai-o água das águas, que sobre os céus sois firmadas, e louvai o senhor Deus, relâmpagos e trovoadas.
PRUDÊNCIA Laudate dominum de terra, dracones et omnes abyssi, e todas adversidades de névoas e serra ventos nuvens et eclipsi, e louvai-o tempestades.
HUMILDADE Bestie et universa pecora, volucres, serpentes, louvai-o, todalas gentes, e toda a cousa diversa, que no mundo sois presentes.
(Vem José e a Fé com a vela sem lume, e diz José)
JOSÉ Não vos anojeis senhora, pois estais em terra alheia, ser o parto sem candeia, porque as gentes de agora são de mui perversa veia.
Todos dormem a prazer, sem lhes vir pela memória que per força hão de morrer, e não querem acender a santa vela da glória.
HUMILDADE Deviam ter piedade da senhora peregrina, romeira da cristandade, que está nesta escuridade, sendo princesa divina.
Pera exemplo dos senhores, pera lição dos tiranos, pera espelho dos mundanos, pera lei aos pecadores, e memória dos enganos.
FÉ Não fica por lho pregar, não fica por lho dizer, não fica por lho rogar, mas não querem acordar, com pressa de adormecer.
Deles fazem que não ouvem, e eles ouvem muito bem, deles fazem que não vem, e deles que não entendem o que vai nem o que vem.
Sem memória nem cuidado dormem em cama de flores, feita de prazer sonhado: seu fogo tão apagado como em choça de pastores.
E vossa divina vela, vossa eternal candeia, feita de cera mais bela, em cidade nem aldeia não há i lume para ela.
Todo o mundo está mortal, posto em tão escuro porto de uma cegueira geral, que nem fogo nem sinal, nem vontade tudo é morto.
VIRGEM Prudência i-vos com ela, que nas horas há i mudança: e acendei essa outra vela, que se chama da esperança, e lhes convém acendê-la.
E dizei-lhe que o pavio desta vela é a salvação, e a cera o poderio que tem o livre alvedrio, e o lume a perfeição.
JOSÉ Senhora, não monta mais semear milho nos rios, que querermos por sinais meter cousas divinais nas cabeças dos bugios.
Mandai-lhe acender candeias, que chamem ouro e fazenda, e vereis bailar baleias, porque irão tirar das veias o lume com que se acenda.
E a gente religiosa manda-lhes velas bispais, a cera de renda grossa, os pavios de casais, e logo não porão grosa.
PRUDÊNCIA Senhora a meu parecer, pera esta escuridade candeia não há mister, que o senhor que há de nascer é a mesma claridade.
Lumen ad revelationem gentium.
É profetizado a nós, e agora se há de cumprir: pois pera que é ir e vir, buscar lume pera vós, pois lume haveis de parir.
Nem deveis de estar aflita, pera lhe guisar manjar, porque é fartura infinita, é chamado Panis vita, não tendes que desejar.
E se pera seu nascer tão pobre casa escolheu, não vos deveis de doer, porque onde ele estiver está a corte do céu.
Se cueiros vos dão guerra, que os não tendes por ventura, não faltará cobertura a quem os céus e a terra vestiu de tal formosura.
(Em este passo chora o menino posto em um berço, as Virtudes cantando o embalam, e o Anjo vai aos Pastores e diz cantando)
ANJO Recordai pastores.
ANDRÉ Ou de lá que nos quereis?
ANJO Que vos levanteis.
ANDRÉ Pera quê ou que vai lá?
ANJO Nasceu em terra de Judá, um Deus só que vos salvará.
ANDRÉ E dou-lhe que fossem três!... Eu não sei que nos quereis!?
ANJO Que vos levanteis.
ANDRÉ Quero-me eu erguer em tanto, veremos que isto quer ser. Sempre me esquece o benzer, cada vez que me alevanto.
(Os Anjos cantando)
ANJOS Ah pastor! ah pastor!
ANDRÉ Que nos quereis escudeiros?
ANJO Chama todos teus parceiros, vereis vosso redentor.
ANDRÉ Não dormais mais, Paio Vaz, ouvireis cantar aquilo.
PAIO VAZ Ora tu não vês que é grilo! vai-te di aramá vás, que eu não hei mister ouvi-lo.
ANDRÉ Pessival, acorda já!
PESSIVAL Acorda tu a João Carrasco.
CARRASCO Não creio eu em são Vasco, se me tu acolhes lá.
ANDRÉ Levanta-te, Barba Triste!
BARBA Tu que hás ou que me queres?
ANDRÉ Que vamos ver os prazeres, que eu nem tu nunca viste.
BARBA Pardeus, vai tu se quiseres!
Salvo se na refestela me dessem bem de comer, senão leixa-me jazer, que eu não hei de bailar nela, vai tu lá embora ter.
Acorda a Tibaldinho, e o Calveiro e outros três, e a mim cobre-me os pés, então vai-te teu caminho, que eu hei de dormir um mês.
(Anjo falando)
ANJO Pastores, ide a Belém.
ANDRÉ Tibaldinho, não te digo que nos chama não sei quem?
TIBALDINHO Bem no ouço eu. Porém, que tem Deus de ver comigo?
ANDRÉ Isso é parvoejar, levantai-vos, companheiros, que por vales e outeiros, não fazem nego chamar por pastores e vaqueiros.
ANJO Pera a festa do senhor, poucos pastores estais.
PAIO VAZ Vós bacelo quereis pôr ou fazer algum lavor que tanta gente ajuntais?
ANJO Vós não sois oficiais, senão de guardardes gado.
BRAZ CARRASCO Dizei, senhor, sois casado ou quando embora casais?
ANDRÉ Oh como és desentoado.
ANJO Quisera que fôreis vós vinte ou trinta pegureiros.
PAIO VAZ Antes que vós deis três voos, bem ajuntaremos nós nesta serra cem vaqueiros.
ANJO Ora, trazei-os aqui e esperai naquela estrada, que logo a virgem sagrada, a Ierusalém vai per i ao templo endereçada.
(Tocam os Anjos seus instrumentos, e as Virtudes cantando e os Pastores bailando se vão)
Gil Vicente
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