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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AUTO DE SÃO LOURENÇO / José de Anchieta
AUTO DE SÃO LOURENÇO / José de Anchieta

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

José de Anchieta

 

 

 

 

PERSONAGENS: GUAIXARÁ (rei dos diabos) AIMBIRÊ  SARAVAIA (criados de Guaixará) TATAURANA  URUBU  JAGUARUÇU (companheiros dos diabos) VALERIANO  DÉCIO (imperadores romanos) SÃO SEBASTIÃO (padroeiro do Rio de Janeiro) SÃO LOURENÇO (padroeiro da aldeia de São Lourenço) VELHA  ANJO  TEMOR DE DEUS  AMOR DE DEUS  Cativos e acompanhantes.
TEMA Após a cena do martírio de São Lourenço, Guaixará chama Aimbirê e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia. São Lourenço a defende, São Sebastião prende os demônios. Um anjo manda-os sufocarem Décio e Valeriano. Quatro companheiros acorrem para auxiliar os demônios. Os imperadores recordam façanhas, quando Aimbirê se aproxima. O calor que se desprende dele abrasa os imperadores, que suplicam a morte. O Anjo, o Temor de Deus, e o Amor de Deus aconselham a caridade, contrição e confiança em São Lourenço. Faz-se o enterro do santo. Meninos índios dançam.  
 
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ATO I Cena do martírio de São Lourenço.
 
(Cantam)
 
Por Jesus, meu salvador,  Que morre por meus pecados,  Nestas brasas morro assado  Com fogo do meu amor  Bom Jesus, quando te vejo  Na cruz, por mim flagelado,  Eu por ti vivo e queimado  Mil vezes morrer desejo  Pois teu sangue redentor  Lavou minha culpa humana,  Arda eu pois nesta chama  Com fogo do teu amor.  O fogo do forte amor,  Ah, meu Deus! com que me amas  Mais me consome que as chamas  E brasas, com seu calor.  Pois teu amor, pelo meu  Tais prodígios consumou,  Que eu, nas brasas onde estou,  Morro de amor pelo teu. 
 
 
 
ATO II Eram três diabos que querem destruir a aldeia com pecados, aos quais resistem São Lourenço, São Sebastião e o Anjo da Guarda, livrando a aldeia e prendendo os tentadores cujos nomes são: Guaixará, que é o rei; Aimbirê e Saravaia, seus criados.
 
GUAIXARÁ  Esta virtude estrangeira  Me irrita sobremaneira.  Quem a teria trazido,  com seus hábitos polidos  estragando a terra inteira? 
 
Só eu  permaneço nesta aldeia  como chefe guardião.  Minha lei é a inspiração  que lhe dou, daqui vou longe  visitar outro torrão.  Quem é forte como eu?  Como eu, conceituado?  Sou diabo bem assado.  A fama me precedeu;  Guaixará sou chamado.  Meu sistema é o bem viver.  Que não seja constrangido  o prazer, nem abolido.  Quero as tabas acender  com meu fogo preferido  Boa medida é beber  cauim até vomitar.  Isto é jeito de gozar  a vida, e se recomenda  a quem queira aproveitar.  A moçada beberrona  trago bem conceituada.  Valente é quem se embriaga  e todo o cauim entorna,  e à luta então se consagra.  Quem bom costume é bailar!  Adornar-se, andar pintado,  tingir pernas, empenado  fumar e curandeirar,  andar de negro pintado. 
 
Andar matando de fúria,  amancebar-se, comer  um ao outro, e ainda ser  espião, prender Tapuia,  desonesto a honra perder.  Para isso  com os índios convivi.  Vêm os tais padres agora  com regras fora de hora  prá que duvidem de mim.  Lei de Deus que não vigora.  Pois aqui  tem meu ajudante-mor,  diabo bem requeimado,  meu bom colaborador:  grande Aimberê, perversor  dos homens, regimentado. 
 
(Senta-se numa cadeira e vem uma velha chorar junto dele. E ele a ajuda, como fazem os índios. Depois de chorar, achando-se enganada, diz a velha) 
 
VELHA  O diabo mal cheiroso,  teu mau cheiro me enfastia.  Se vivesse o meu esposo,  meu pobre Piracaê,  isso agora eu lhe diria.  Não prestas, és mau diabo.  Que bebas, não deixarei  do cauim que eu mastiguei.  Beberei tudo sozinha,  até cair beberei. 
 
(A velha foge) 
 
GUAIXARÁ  (chama Aimberê e diz)  Ei, por onde andavas tu? 
 
Dormias noutro lugar? 
 
AIMBIRÊ  Fui as Tabas vigiar,  nas serras de norte a sul  nosso povo visitar.  Ao me ver regozijaram,  bebemos dias inteiros.  Adornaram-se festeiros.  Me abraçaram, me hospedaram,  das leis de deus estrangeiros. 
 
Enfim, confraternizamos.  Ao ver seu comportamento,  tranquilizei-me. Ó portento!  Vícios de todos os ramos  tem seus corações por dentro. 
 
GUAIXARÁ  Por isso  no teu grande reboliço  eu confio, que me baste  os novos que cativaste,  os que corrompeste ao vício.  Diz os nomes que agregaste. 
 
AIMBIRÊ  Gente de maratuauã  no que eu disse acreditaram;  os das ilhas, nestas mãos  deram alma e coração;  mais os paraibiguaras.  É certo que algum perdi,  que os missionários levaram  a Mangueá. Me irritaram.  Raivo de ver os tupis  que do meu laço escaparam. 
 
Depois  dos muitos que nos ficaram  os padres sonsos quiseram  com mentiras seduzir.  Não vê que os deixei seguir —  ao meu apelo atenderam. 
 
GUAIXARÁ  De que recurso usaste  para que não nos fugissem? 
 
AIMBIRÊ  Trouxe aos tapuias os trastes  das velhas que tu instruíste  em Mangueá. Que isto baste. 
 
Que elas são de fato más,  fazem feitiço e mandinga,  e esta lei de Deus não vinga.  Conosco é que buscam a paz,  no ensino de nossa língua.  E os tapuias por folgarem,  nem quiseram vir aqui.  De dança os enlouqueci  para a passagem comprarem  para o inferno que acendi. 
 
GUAIXARÁ  Já chega.  Que tua fala me alegra,  teu relatório me encanta. 
 
AIMBIRÊ  Usarei de igual destreza  para arrastar outras presas  nesta guerra pouco santa.  O povo Tupinambá  que em Paraguaçu morava,  e que de Deus se afastava,  deles hoje um só não há,  todos a nós se entregaram.  Tomamos Moçupiroca,  Jequei, Gualapitiba,  Niterói e Paraíba,  Guajajó, Carijó-oca,  Pacucaia, Araçatiba  Todos os tamoios foram  Jazer queimando no inferno.  Mas há alguns que ao Padre Eterno  fiéis, nesta aldeia moram,  livres do nosso caderno.  Estes maus Temiminós  nosso trabalho destroem. 
 
GUAIXARÁ  Vem tentá-los que se moem  a blasfemar contra nós.  Que bebam, roubem e esfolem.  Que provoquem muitas lutas,  muitos pecados cometam,  por outro lados se metam  longe desta aldeia, à escuta  dos que as nossas leis prometam. 
 
AIMBIRÊ  É bem difícil tentá-los.  Seu valente guardião  me amedronta. 
 
GUAIXARÁ  E quais são? 
 
AIMBIRÊ  É São Lourenço a guiá-los,  de Deus fiel Capitão. 
 
GUAIXARÁ  Qual? Lourenço o consumado  nas chamas qual somos nós? 
 
AIMBIRÊ  Esse. 
 
GUAIXARÁ  Fica descansado.  Não sou assim tão covarde,  será logo afugentado.  Aqui está quem o queimou  e ainda vivo o cozeu. 
 
AIMBIRÊ  Por isso o que era teu  ele agora libertou  e na morte te venceu.  Há também o seu amigo  Bastião, de flechas crivado. 
 
GUAIXARÁ  O que eu deixei transpassado?  Não faças broma comigo  que sou bem desaforado.  Ambos fugirão logo  aqui me virem chegar. 
 
AIMBIRÊ  Olha que vais te enganar! 
 
GUAIXARÁ  Tem confiança, te rogo,  que horror lhes vou inspirar.  Quem como eu nas terras existe  que até Deus desafiou? 
 
AIMBIRÊ  Por isso Deus te expulsou,  e do inferno o fogo triste  para sempre te abrasou.  Eu lembro de outra batalha  em que Guaixará entrou.  Muito povo te apoiou,  e, inda que lhes desses forças,  na fuga se debandou.  Não eram muitos cristãos.  Contudo nada ficou  da força que te inspirou,  pois veio Sebastião,  na força fogo ateou. 
 
GUAIXARÁ  Por certo aqueles cristãos  tão rebeldes não seriam.  Mas esses que aqui estão  desprezam a devoção  e a Deus não reverenciam.  Vais ver como em nossos laços  caem, logo estes malvados!  De nossos dons confiados,  as almas cederam passo  para andar do nosso lado. 
 
AIMBIRÊ  Assim mesmo tentarei.  Um dia obedecerão. 
 
GUAIXARÁ  Ao sinal de minha mão  os índios te entregarei.  E à força sucumbirão. 
 
AIMBIRÊ  Preparemos a emboscada.  Não te afobes. Nosso espia  verá em cada morada  que armas nos são preparadas  na luta que se inicia. 
 
GUAIXARÁ  Muito bem  és capaz disso  Saravaia meu vigia?   SARAVAIA  Sou demônio da alegria  e assumi tal compromisso.  Vou longe nesta porfia.  Saravaiaçu me chamo.  Com que tarefa me aprazas? 
 
GUAIXARÁ  Ouve as ordens de teu amo,  quero que espies as casas  e voltes quando te chame.  Hoje vou deixar que leves  os índios aprisionados. 
 
SARAVAIA  Irei onde me carregues.  E agradeço que me entregues  encargo tão desejado.  Como Saravaia sou,  aos índios que me aliei  enfim aprisionarei.  E neste barco me vou.  De cauim me embriagarei.  
 
GUAIXARÁ  Anda logo! vai ligeiro! 
 
SARAVAIA  Como um raio correrei!  (Sai) 
 
GUAIXARÁ (passeia com Aimbirê e diz)  Demos um curto passeio  Quando volte o mensageiro  a aldeia destroçarei. 
 
(Volta Saravaia e Aimberê diz) 
 
AIMBIRÊ  Danado! Voltou voando! 
 
GUAIXARÁ  Demorou menos que um raio!  Foste mesmo, Saravaia? 
 
SARAVAIA  Fui. Já estão comemorando  os índios nossa vitória.  Alegra-te!  Transbordava o cauim,  o prazer regurgitava.  E a beber, as igaçabas  esgotam até o fim. 
 
GUAIXARÁ  E era forte? 
 
SARAVAIA  Forte estava.  E os rapazes beberrões  que pervertem esta aldeia,  caiam de cara cheia. 
 
Velhos, velhas, mocetões  que o cauim desnorteia. 
 
GUAIXARÁ  Já basta. Vamos mansinho  tomá-los todos de assalto.  Nosso fogo arda bem alto. 
 
(Vem São Lourenço com dois companheiros. Diz Aimbirê) 
 
AIMBIRÊ  Há um sujeito no caminho  que me ameaça de assalto.  Será Lourenço, o queimado? 
 
SARAVAIA  Ele mesmo, e Sebastião. 
 
AIMBIRÊ  E o outro, dos três que são? 
 
SARAVAIA  Talvez seja o anjo mandado,  desta aldeia o guardião. 
 
AIMBIRÊ  Ai! Eles me esmagarão!  Não posso sequer olhá-los. 
 
GUAIXARÁ  Não te entregues assim não,  ao ataque, meu irmão!  Teremos que amedrontá-los,  As flechas evitaremos,  fingiremos de atingidos. 
 
AIMBIRÊ  Olha, eles vêm decididos  a açoitar-nos. Que faremos?  Penso que estamos perdidos. 
 
(São Lourenço fala a Guaixará) 
 
SÃO LOURENÇO  Quem és tu? 
 
GUAIXARÁ  Sou Guaixará embriagado,  sou boicininga, jaguar,  antropófago, agressor,  andirá-guaçu alado,  sou demônio matador. 
 
SÃO LOURENÇO  E este aqui? 
 
AIMBIRÊ  Sou jiboia, sou socó,  o grande Aimbirê tamoio.  Sucuri, gavião malhado,  sou tamanduá desgrenhado,  sou luminosos demônio. 
 
SÃO LOURENÇO  Dizei-me o que quereis desta  minha terra em que nos vemos. 
 
GUAIXARÁ  Amando os índios queremos  que obediência nos prestem  por tanto que lhes fazemos.  Pois se as coisas são da gente,  ama-se sinceramente. 
 
SÃO SEBASTIÃO  Quem foi que insensatamente,  um dia ou presentemente?  os índios vos entregou?  Se o próprio Deus tão potente  deste povo em santo ofício  corpo e alma modelou! 
 
GUAIXARÁ  Deus? Talvez remotamente  pois é nada edificante  a vida que resultou.  São pecadores perfeitos,  repelem o amor de Deus,  e orgulham-se dos defeitos. 
 
AIMBIRÊ  Bebem cuim a seu jeito,  como completos sandeus  ao cauim rendem seu preito.  Esse cauim é que tolhe  sua graça espiritual.  Perdidos no bacanal  seus espíritos se encolhem  em nosso laço fatal. 
 
SÃO LOURENÇO  Não se esforçam por orar  na luta do dia a dia.  Isto é fraqueza, de certo. 
 
AIMBIRÊ  Sua boca respira perto  do pouco que Deus confia. 
 
SARAVAIA  É verdade, intimamente  resmungam desafiando  ao Deus que os está guiando.  Dizem: “Será realmente  capaz de me ver passando?” 
 
SÃO SEBASTIÃO (para Saravaia)  Serás tu um pobre rato?  Ou és um gambá nojento?  Ou és a noite de fato  que as galinhas afugenta  e assusta os índios no mato? 
 
SARAVAIA  No anseio de devorar  as almas, sequer dormi. 
 
GUAIXARÁ  Cala-te! Fale eu por ti. 
 
SARAVAIA  Não vás me denominar,  pra que não me mate aqui.  Esconda-me, antes, dele.  Eu por ti vigiarei. 
 
GUAIXARÁ  Cala-te! Te guardarei!  Que a língua não te revele,  depois te libertarei. 
 
SARAVAIA  Se não me viu, safarei.  Inda posso me esconder. 
 
SÃO SEBASTIÃO  Cuidado que lançarei  o dardo em que o flecharei. 
 
GUAIXARÁ  Deixa-o. Vem de adormecer. 
 
SÃO SEBASTIÃO  A noite ele não dormiu  para os índios perturbar 
 
SARAVAIA  Isso não se há de negar. 
 
(Açoita-o Guaixará e diz) 
 
GUAIXARÁ  Cala-te! Nem mais um pio,  que ele quer te devorar. 
 
SARAVAIA  Ai de mim!  Por que me bates assim,  pois estou bem escondido? 
 
(Aimbirê com São Sebastião) 
 
AIMBIRÊ  Vamos! Deixa-nos a sós,  e retirai-vos que a nós  meu povo espera afligido. 
 
SÃO SEBASTIÃO  Que povo? 
 
AIMBIRÊ  Todos os que aqui habitam  desde épocas mais antigas,  velhos, moças, raparigas,  submissos aos que lhes ditam  nossas palavras amigas.  Vou contar todos seus vícios,  Em mim acreditarás? 
 
SÃO SEBASTIÃO  Tu não me convencerás. 
 
AIMBIRÊ  Têm bebida aos desperdícios,  cauim não lhes faltará.  De ébrios dão-se ao malefício,  ferem-se, brigam, sei lá! 
 
SÃO SEBASTIÃO  Ouvem do morubixaba  censuras em cada taba,  disso não os livrarás. 
 
AIMBIRÊ  Censura aos índios? Conversa!  Vem logo o dono da farra,  convida todos à festa,  velhos, jovens, moçocaras  com morubixaba à testa.  Os jovens que censuravam  com morubixaba dançam,  e de comer não se cansam,  e no cauim se lavam,  e sobre as moças avançam. 
 
SÃO SEBASTIÃO  Por isso aos aracajás  vivem vocês frequentando,  e a todos aprisionando.  AIMBIRÊ  Conosco vivem em paz,  pois se entregam aos desmandos.
 
  SÃO SEBASTIÃO  Uns aos outros se pervertem  convosco colaborando. 
 
AIMBIRÊ  Não sei. Vamos trabalhando,  e ao vícios bem se convertem  à força do nosso mando. 
 
GUAIXARÁ  Eu que te ajude a explicar.  As velhas, como serpentes,  injuriam-se entre dentes,  maldizendo sem cessar.  As que mais calam consentem.  Pecam as inconsequentes  com intrigas bem tecidas,  preparam negras bebidas  pra serem belas e ardentes  no amor na cama e na vida. 
 
AIMBIRÊ  E os rapazes cobiçosos,  perseguindo o mulherio  para escravas do gentio...  Assim invadem fogosos...  dos brancos o casario. 
 
GUAIXARÁ  Esta história não termina  antes que desponte a lua,  e a taba se contamina. 
 
AIMBIRÊ  E nem sequer raciocinam  que é o inferno que cultuam. 
 
SÃO LOURENÇO  Mas existe a confissão,  bem remédio para a cura.  Na comunhão se depura  da mais funda perdição  a alma que o bem procura.  Se depois de arrependidos  os índios vão confessar  dizendo: “Quero trilhar  o caminho dos remidos”.  — o padre os vai abençoar. 
 
GUAIXARÁ  Como se nenhum pecado  tivessem, fazem a falsa  confissão, e se disfarçam  dos vícios abençoados,  e assim viciados passam. 
 
AIMBIRÊ  Absolvidos  dizem: “na hora da morte  meus vícios renegarei”.  E entregam-se à sua sorte. 
 
GUAIXARÁ  Ouviste que enumerei  os males são seu forte. 
 
SÃO LOURENÇO  Se com ódio procurais  tanto assim prejudicá-los,  não vou eu abandoná-los.  E a Deus erguerei meus ais  para no transe ampará-los.  Tanto confiaram em mim  construindo esta capela,  plantando o bem sobre ela.  Não os deixarei assim  sucumbir sem mais aquela. 
 
GUAIXARÁ  É inútil, desista disso!  Por mais força que lhes dês,  com o vento, num dois três  daqui lhes darei sumiço.  Deles nem sombra vereis.  Aimbirê  vamos conservar a terra  com chifres, unhas, tridentes,  e alegrar as nossas gentes. 
 
AIMBIRÊ  Aqui vou com minhas garras,  meus longos dedos, meus dentes. 
 
ANJO  Não julgueis, tolos dementes,  por no fogo esta legião,  Aqui estou com Sebastião  e São Lourenço, não tentem  levá-los à danação.  Pobres de vós que irritastes  de tal forma o bom Jesus  Juro que em nome da cruz  ao fogo vos condenastes.   (Aos santos)  Prendei-os donos da luz! 
 
(Os santos prendem os dois diabos) 
 
GUAIXARÁ  Basta! 
 
SÃO LOURENÇO  Não! Teu cinismo me agasta.  Destes provas que sobejam  de querer destruir a igreja. 
 
SÃO SEBASTIÃO (a Aimberê)  Grita! Lamenta! Te arrasta!  Te prendi! 
 
AIMBIRÊ  Maldito Seja! 
 
(Preso os dois fala o Anjo a Saravaia que ficou escondido) 
 
ANJO  E tu que está escondido  será acaso um morcego?  Sapo cururu minguá,  ou filhote de gambá,  ou bruxa pedindo arrego?  Sai daí seu fedorento,  abelha de asa de vento,  zorrilho, maritaca,  seu lesma, tamarutaca. 
 
SARAVAIA  Ai vida, que me aprisionam!  Não vês que morro de sono?   ANJO  Quem és tu? 
 
SARAVAIA  Sou Saravaia  Inimigo dos franceses. 
 
ANJO  Teus títulos são só estes? 
 
SARAVAIA  Sou também mestre em tocaia,  porco entre todas as reses. 
 
ANJO  Por isso és sujo e enlameias  tudo com teu negro rabo.  Veremos como pateias  no fogo que a gente ateia. 
 
SARAVAIA  Não! Por todos os diabos!  Eu te dou ovas de peixe,  farinha de mandioca,  desde que agora me deixas,  te dou dinheiro aos feixes. 
 
ANJO  Não te entendo, maçaroca.  As coisas que me prometes  em troca, de onde roubaste?  Que morada assaltaste  antes que aqui te escondeste?  Muito coisa tu furtaste? 
 
SARAVAIA  Não, somente o que falei.  Da casa dos bons cristãos  foi bem pouco o que apanhei;  Tenho o que trago nas mãos,  por muito que trabalhei.  Aqueles outros têm mais.  Para comprar cauim  aos índios, em boa paz,  dei o que tinha, e demais,  pois pobre acabei assim. 
 
ANJO  Vamos! Restitui-lhes tudo  o que tiveres roubado. 
 
SARAVAIA  Não faças isto, estou bêbedo,  mais do que o demo rabudo  da sogra do meu cunhado.  Tem paciência, me perdoa,  meu irmão, estou doente.  Das minhas almas presente  farei a ti, prá que em boa  hora as cucas lhes rebentes,  Leva o nome destes monstros  e famoso ficarás. 
 
ANJO  E onde lhes foste ao encontro? 
 
SARAVAIA  Fui pelo sertão a dentro,  lacei as almas, rapaz. 
 
ANJO  De que famílias descendem? 
 
SARAVAIA  Desse assunto pouco sei.  Filhos de índios talvez.  Na corda os enfileirei  presos todos de uma vez.  Passei noites sem dormir,  nos seus lares espreitei,  fiz suas casas explodir,  suas mulheres lacei,  pra que não possam fugir. 
 
(Amarra-o o anjo e diz) 
 
ANJO  Quantas maldades fizeste!  Por isso o fogo te espera.  Viverás do que tramaste  nesta abrasada tapera  em que pro fim te pilhaste. 
 
SARAVAIA  Aimberê! 
 
AIMBIRÊ  Oi! 
 
SARAVAIA  Vem logo dar-me a mão!  Este louco me prendeu. 
 
AIMBIRÊ  A mim também me venceu  o flechado Sebastião.  Meu orgulho arrefeceu. 
 
SARAVAIA  Ai de mim!  Guaixará, dormes assim,  sem pensar em me salvar? 
 
GUAIXARÁ  Estás louco, Saravaia  Não vês que Lourenço ensaia  maneira de me queimar? 
 
ANJO  Bem junto, pois sois comparsas,  ardereis eternamente.  Enquanto nós, Deo Gratias! sob a luz da minha guarda  viveremos santamente.  (Faz uma prática aos ouvintes)  Alegrai-vos, filhos meus,  na santa graça de Deus,  pois que dos céus eu desci,  para junto a vós estar  e sempre vos amparar  dos males que há por aqui.  Iluminado esta aldeia  junto de vós estarei,  por nada me afastarei —  pois a isto me nomeia  Deus, Nosso Senhor e Rei!  Ele que a cada um de vós  um anjo seu destinou.  Que não vos deixe mais sós,  e ao mando de sua voz  os demônios expulsou.  Também  São Lourenço o virtuoso,  Servo de Nosso Senhor,  vos livra com muito amor  terras e almas, extremoso,  do demônio enganador.  Também São Sebastião  valente santo soldado,  que aos tamoios rebelados  deu outrora uma lição  hoje está do vosso lado  E mais — Paranapucu,  Jacutinga, Morói,  Sariguéia, Guiriri,  Pindoba, Pariguaçu,  Curuça, Miapei  E a tapera do pecado,  a de Jabebiracica,  não existe. E lado a lado  a nação dos derrotados  no fundo do rio fica.  Os franceses seus amigos,  inutilmente trouxeram  armas. Por nós combateram  Lourenço, jamais vencido,  e São Sebastião flecheiro.  Estes santos, em verdade,  das almas se compadecem  aparando-as, desvanecem  (Ó armas da caridade!)  Do vício que as envilece.  Quando o demônio ameaçar  vossas almas, vós vereis  com que força hão de zelar.  Santos e índios sereis  pessoas de um mesmo lar.  Tentai  velhos vícios extirpar,  e as maldades cá da terra  evitai, bebida e guerra,  adultério, repudiai  tudo o que o instinto encerra.  Amai vosso Criador  cuja lei pura e isenta  São Lourenço representa.  Engrandecei ao Senhor  que de bens vos acrescenta.  Este mesmo São Lourenço  que aqui foi queimado vivo  pelos maus, feito cativo,  e ao martírio foi infenso,  sendo o feliz redivivo.  Fazei-vos amar por ele,  e amai-o quanto puderdes,  que em sua lei nada se perde.  E confiando mais nele,  mais o céu se vos concede.  Vinde  à direita celestial  de Deus Pai, ireis gozar  junto aos que bem vão guardar  no coração que é leal,  e aos pés de Deus repousar.  (Fala com os santos convidando-os a cantar e se despede)  Cantemos todos, cantemos!  Que foi derrotado o mal!  Esta história celebremos,  nosso reino inauguremos  nessa alegria campal! 
 
(Os santos levam presos os diabos os quais, na última repetição da cantiga choram) 
 
(Cantiga)
 
Alegrem-se os nossos filhos  por Deus os ter libertado.  Guaixará seja queimado,  Aimbirê vá para o exílio,  Saravaia condenado!  Guaixará seja queimado,  Aimbirê vá para o exílio,  Saravaia condenado!  (Voltam os santos)  Alegrai-vos, vivei bem,  vitoriosos do vício,  aceitai o sacrifício  que ao amor de Deus convém. 
 
Daí fuga ao Demo-ninguém!  Guaixará seja queimado,  Aimbirê vá para o exílio,  Saravaia condenado! 
 
 
ATO III Depois de São Lourenço morto na grelha o Anjo fica em sua guarda, e chama os dois diabos, Aimbirê e Saravaia, que venham sufocar os imperadores Décio e Valeriano que estão sentados em seus tronos. 
 
ANJO  Aimbirê!  Estou chamando você.  Apressa-te! Corre! Já! 
 
AIMBIRÊ  Aqui estou! Pronto! O que há!  Será que vai me pender  de novo este passarão? 
 
ANJO  Reservei-te uma surpresa:  tenho dois imperadores  para dar-te como presa.  De Lourenço, em chama acesa,  foram ele os matadores. 
 
AIMBIRÊ  Boa! Me fazes contente!  À força os castigarei,  e no fogo os queimarei  como diabo eficiente.  Meu ódio satisfarei. 
 
ANJO  Eia, depressa a afogá-los.  Que para o sol sejam cegos!  Ide ao fogo cozinhá-los.  Castiga com teus vassalos  estes dois sujos morcegos. 
 
AIMBIRÊ  Pronto! Pronto!  Sejam tais ordens cumpridas!  Reunirei meus demônios.  Saravaia, deixa os sonhos,  traz-me de boa bebida  que temos planos medonhos! 
 
SARAVAIA  Já de nego me pintei,  ó meu avô jaguaruna,  e o cauim preparei,  verás como beberei  nesta festa da fortuna.  Que vejo? Um temiminó?  Ou filho de guaianá?  Será esse um guaitacá  que à mesa do jacaré  sozinho vou devorar?  (Vê o Anjo e espanta-se)  E este pássaro azulão,  quem será que assim me encara?  Algum parente de arara? 
 
AIMBIRÊ  É o anjo que em nossa mão  põe duas presas bem raras. 
 
SARAVAIA  Meus capangas, atenção!  Tataurana, Tamanduá,  vamos com calma por lá,  que esses monstros quererão  por certo me afogar. 
 
AIMBIRÊ  Vamos! 
 
SARAVAIA  Ai, os mosquitos me mordem!  Espera, ou me comerão!  Tenho medo, quem me acode.  Sou pequenino e eles podem  tragar-me de supetão. 
 
AIMBIRÊ  Os índios que não se fiam  nesta conversa e se escondem  se os mandam executar. 
 
SARAVAIA  Têm razão se desconfiam,  vivem sempre a se lograr. 
 
AIMBIRÊ  Cala a boca, beberrão,  só por isso és tão valente,  moleirão impertinente! 
 
SARAVAIA  Ai de mim, me prenderão,  mas vou por te ver contente.  E a quem vamos devorar? 
 
AIMBIRÊ  A algozes de São Lourenço. 
 
SARAVAIA  Aqueles cheios de ranço?  Com isto eu vou mudar  meu nome, de que me canso.  Muito bem! Suas entranhas  sejam hoje o meu quinhão. 
 
AIMBIRÊ  Vou morder seu coração. 
 
SARAVAIA  E os que não nos acompanham  sua parte comerão.  (Chama quatro companheiros para que os ajudem)   Tataurana,  traze a tua muçurana.  Urubu, jaguaruçu,  traz a ingapema. Sús  Caborê, vê se te inflama  pra comer estes perus. 
 
(Acodem todos os quatro com suas armas) 
 
TATAURANA  Aqui estou com a muçurana  e os braços lhe comerei;  A Jaguaraçu darei  o lombo, a Urubu o crânio,  e as pernas a Caborê 
 
URUBU  Aqui cheguei!  As tripas recolherei,  e com os bofes terei  a panela a derramar.  E esta panela verei  minha sogra cozinhar. 
 
JAGUARUÇU  Com esta ingapema dura  as cabeças quebrarei,  e os miolos comerei.  Sou guará, onça, criatura,  e antropófago serei. 
 
CABORÊ  E eu que em demandas andei  aos franceses derrotando,  para um bom nome ir logrando,  agora contigo irei  estes chefes devorando. 
 
SARAVAIA  Agora quietos! De rastros,  não nos viram. Vou à frente.  Que não escapem da gente.  Vigiarei. No tempo exato  ataquemos de repente. 
 
(Vão todos agachados em direção a Décio e Valeriano que conversam) 
 
DÉCIO  Amigo Valeriano  minha vontade venceu.  Não houve arte no céu  que livrasse do meu plano  o servo do Galileu.  Nem Pompeu e nem Catão  nem César, nem o Africano,  nenhum grego nem troiano  puderam dar conclusão  a um feito tão soberano. 
 
VALERIANO  O remate, grão-Senhor  desta tão grande façanha  foi mais que vencer Espanha.  Jamais rei ou imperador  logrou coisa tão estranha.  Mas, Senhor, esse quem é  que vejo ali, tão armado  com espadas e cordel,  e com gente de tropel  vindo tão acompanhado? 
 
DÉCIO  É o grande deus nosso amigo,  Júpiter, sumo senhor,  que provou grande sabor  com o tremendo castigo  da morte deste traidor.  E quer, para reforçar  as penas deste rufião,  nosso império acrescentar  com sua potente mão,  pela terra e pelo mar. 
 
VALERIANO  Mais me parece é que vem  a seus tormentos vingar,  e a nós ambos enforcar.  Oh! que cara feia tem!  Começo a me apavorar. 
 
DÉCIO  Enforcar?  Quem a mim pode matar,  ou mover meus fundamentos?  Nem a exaltação dos ventos,  Nem a braveza do mar,  nem todos os elementos!  Não temas, que meu poder,  o que os deuses imortais  me quiseram conceder,  não se poderá vencer  pois não há forças iguais.  De meu cetro imperial  pendem reis, tremem tiranos.  Venço a todos os humanos,  e posso ser quase igual  a esses deuses soberanos. 
 
VALERIANO  Oh, que terrível figura!  Não posso mais aguardar,  que já me sinto queimar!  Vamos, que é grande loucura  tal encontro aqui esperar.  Ai! ai! que grandes calores!  Não tenho nenhum sossego.  Ai, que poderosas dores!  Ai, que férvidos ardores,  que me abrasam como fogo! 
 
DÉCIO  Oh, paixão!  Ai de mim, que é o Plutão  chegando pelo Aqueronte,  ardendo como tição  a levar-nos de roldão  ao fogo do Flegetonte.  Oh, coitado  que me queimo! Esse queimado  me queima com grande dor!  Oh, infeliz imperador!  Todo me vejo cercado  de penas e de pavor,  pois armado  o diabo com seu dardo  mais as fúrias infernais,  vêm castigar-nos demais.  Já nem sei o que hei falado  com angústias tão mortais. 
 
VALERIANO  O Décio, cruel tirano!  Já pagas, e pagará  Contigo Valeriano,  porque Lourenço cristão  assado, nos assará. 
 
AIMBERÊ  Ô Castelhano!  Bom Castelhano parece!  Estou bem alegre mano,  que Espanhol seja o profano  que no meu fogo padece.  Vou fingir-me castelhano  e usar de diplomacia  com Décio e Valeriano,  porque o espanhol ufano  sempre guarda a cortesia.  Oh, mais alta majestade!  Beijo-vos a mão mil vezes,  por vossa grã-crueldade  pois justiça nem verdade  guardastes, sendo juízes.  Sou mandado  por São Lourenço queimado,  levá-los à minha casa,  onde seja confirmado  vosso imperial estado  em fogo, que sempre abrasa.  Oh, que tronos e que camas  eu vos tenho preparadas,  nessas escuras moradas  de vivas e eternas chamas  de nunca ser apagadas! 
 
VALERIANO  Ai de mim! 
 
AIMBIRÊ  Vieste do Paraguai?  Que falais, em Carijó.  Sei todas línguas de cor.  Avança aqui, Saravaia!  Usa tu golpe maior! 
 
VALERIANO  Basta! Que assim me assassinas,  não tenho pecado nada!  Meu chefe é a presa acertada. 
 
SARAVAIA  Não, és tu que me fascinas,  ó presa bem cobiçada. 
 
DÉCIO  Ó miserável de mim,  que nem basta ser tirano,  nem falar em castelhano!  Que é do mando em que me vi,  e o meu poder soberano? 
 
AIMBIRÊ  Jesus, Deus grande e potente,  que tu, traidor, perseguiste,  te dará sorte mais triste  entregando-te em meu dente,  a que, malvado, serviste.  Pois me honraste,  e sempre me contentaste  ofendendo ao Deus eterno.  É justo pois que no inferno,  palácio que tanto amaste,  não sintas o mal do inverno.  Porque o ódio inveterado  do teu duro coração  não pode ser abrandado,  se não for já martelado  com a água do Flegeton. 
 
DÉCIO  Olha que consolação  para quem se está queimando!  Sumos deuses, para quando  adiais minha salvação,  que vivo estou me abrasando?  Ai, ai! Que mortal desmaio!  Esculápio, não me acodes?  Oh, Júpiter, porque dormes?  Que é do vosso raio?  Por que é que não me socorres? 
 
AIMBIRÊ  Que dizeis?  De que mal vós padeceis?  Que pulso mais alterado.  É grande dor de costado  este mal, que morreis!  Haveis de ser bem sangrado!  Há dias que esta sangria  se guardava para vós  que sangráveis, noite e dia,  com dedicada porfia  aos santos servos de Deus.  Muito desejo eu beber  vosso sangue imperial.  Oh, não me leveis a mal  que com isso quero ser  homem de sangue real. 
 
DÉCIO  Que dizeis? Que disparate,  e elegante desvario!  Joguem-me dentro de um rio  antes que o fogo me mate,  ó deuses em que confio!  Não quereis  socorrer-me, ou não podeis?  Ó malditos fementidos,  ingratos desconhecidos,  que pouco vos condoeis  de quem fostes tão servidos!  Se agora voar pudesse,  vos iria derrocar  dos vossos tronos celestes,  feliz, se a mim me coubesse  no fogo vos projetar. 
 
AIMBIRÊ  Parece-me que é chegada  a hora do frenesi,  e com chama redobrada,  a qual será descuidada  dos deuses a quem servis.  São armas  dos audazes cavaleiros  que usam palavrório humano.  E por isso, tão ufano,  hoje vindes acolhê-los  no romance castelhano. 
 
SARAVAIA  Assim é.  Pensava dar, de revés,  golpes de afiados aços  mas enfim, nossos balaços  se chocaram através  com bem poucos canhonaços. 
 
Mas que boas bofetadas  lhes reservo para dar!  Os tristes, sem descansar,  à força de tais pauladas  com cães hão de ladrar. 
 
VALERIANO  Que ferida!  Tira-me logo esta vida  pois, minha alta condição,  contra justiça e razão  veio a ser tão abatida  que morro como ladrão! 
 
SARAVAIA  Não é outro o galardão  que concedo aos meus criados,  senão morrer enforcados,  e depois, sem remissão,  ao fogo ser condenados! 
 
DÉCIO  Essa é a pena redobrada  que me causa maior dor:  que eu, universal senhor,  morra morte desonrada  na forca como traidor.  Ainda se fosse lutando,  dando golpes e reveses,  pernas e braços cortando,  como fiz com os franceses,  acabaria triunfando. 
 
AIMBIRÊ  Parece que estais lembrando,  poderoso imperador,  quando, com bravo furor,  matastes, traição armando,  Felipe, vosso senhor.  Por certo que me alegrais  e se cumpre meus anseios  ante desabafos tais,  porque o fogo em que queimais  provoca tais devaneios. 
 
DÉCIO  Bem entendo  que este fogo em que me acendo  merece-me a tirania,  pois com tão feroz porfia  aos cristãos martirizando  pelo fogo os consumia.  Mas que em minha monarquia  acabe com tal pregão  pois morrer como ladrão  é muito triste agonia  e dobrada confusão. 
 
AIMBIRÊ  Como? Pedis confissão?  Sem asas quereis voar?  Ide, se quereis achar  aos vossos atos perdão,  à deusa Pala rogar.  Ou a Nero,  esse cruel carniceiro  do fiel povo cristão.  Aqui está Valeriano,  vosso leal companheiro,  buscai-o por sua mão! 
 
DÉCIO  Esses amargos chistes  e agressões  me acrescentam em paixões  e mais dores,  com tão profundos ardores  como de ardentes tições  E com isto crescem mais  os fogos em que padeço.  Acaba, que me ofereço  em tuas mãos, Satanás,  ao tormento que mereço. 
 
AIMBIRÊ  Oh, quanto vos agradeço  por esta boa vontade!  Eu, com liberalidade  quero dar-lhe bom refresco  para vossa enfermidade.  Na cova  onde o fogo se renova  com ardores perenais,  os vossos males fatais  aí terão grande prova  das agruras imortais. 
 
DÉCIO  Que fazer, Valeriano,  bom amigo!  Testemunharás comigo  desta pena  envolvido na cadeia  de fogo, deste castigo. 
 
VALERIANO  Em má hora! Já são horas...  Vamos logo  deste fogo ao outro fogo eternal,  lá onde a chama imortal  nunca nos dará sossego.  Sus, asinha!  Vamos à nossa cozinha,  Saravaia! 
 
AIMBIRÊ  Aqui deles não me afasto.  Nas brasas serão bom pasto,  maldito quem nelas caia. 
 
DÉCIO  Aqui abrasado estou!  Assa-me Lourenço assado!  De soberano que sou  vejo que Deus me marcou  por ver seu santo vingado! 
 
AIMBIRÊ  Com efeito  quiseste abrasar a jeito  o virtuosos São Lourenço.  Hoje te castigo e venço  e sobre as brasas te deito  para morrer, segundo penso.  (Sufocam-nos e entregam aos quatro beleguins, e cada dois levam o seu)  Vinde aqui  e aos malditos conduzi  para em bom queimarem,  seus corpos sujos tostarem,  na festa em que os seduzi  para cozidos bailarem 
 
(Ficam ambos os demônios no terreiro com as coroas dos imperadores na cabeça) 
 
SARAVAIA  Sou o grande vencedor,  o que as más cabeças quebra,  sou um chefe de valor  e hoje me decido por  me chamar Cururupeba.  Como eles,  mato os que estão em pecado,  e os arrasto em minhas chamas.  Velhos, moços, jovens, damas,  tenho sempre devorado.  De bom algoz tenho fama. 
 
 
 
ATO IV Tendo o corpo de São Lourenço amortalhado e posto na tumba, entra o Anjo com o Temor e o Amor de Deus, a encerrar a obra, e no fim acompanham o santo à sepultura. 
 
ANJO  Vendo nosso Deus benigno  vossa grande devoção  que tendes, e com razão,  a Lourenço, o mártir digno  de toda a veneração,  determinam, por seus rogos  e martírio singular,  a todos sempre ajudar,  para que escapeis dos fogos  em que os maus se hão de queimar.  Dois fogos trazia n’alma,  com que as brasas resfriou,  a no fogo em que se assou,  com tão gloriosa palma,  dos tiranos triunfou.  Um fogo foi o temor  do bravo fogo infernal,  e, como servo leal,  por honrar a seu Senhor,  fugiu da culpa mortal.  Outro foi o Amor fervente  de Jesus, que tanto amava,  que muito mais se abrasava  com esse fervor ardente  que com o fogo, em que se assava,  Estes o fizeram forte.  Com estes purificado  como ouro refinado,  padeceu tão crua morte  por Jesus, seu doce amado.  Estes vos manda o Senhor  a ganhar vossa frieza,  para que vossa alma acesa  de seu fogo gastador,  fique cheio de pureza.  Deixai-vos deles queimar  como o mártir São Lourenço,  e sereis um vivo incenso  que sempre haveis de cheirar  na corte de Deus imenso. 
 
TEMOR DE DEUS (dá seu recado)  Pecador,  sorves com grande sabor  o pecado,  e não ficas afogado  com teus males!  E tuas chagas mortais  não sentes, desventurado! 
 
O inferno  como seu fogo sempiterno,  Já te espera,  se não segues a bandeira  da cruz,  sobre a qual morreu Jesus  para que tua morte morra.  Deus te envia esta mensagem  com amor,  a mim que sou seu Temor  me convém  declarar o que contém  para que temas ao Senhor.  (Glosa e declaração do recado)  Espantado estou de ver,  pecador, teu vão sossego.  Com tais males a fazer,  como vives sem temer,  aquele espantoso fogo?  Fogo que nunca descansa,  mas sempre provoca a dor,  e com seu bravo furor  dissipa toda a esperança  ao maldito pecador.  Pecador, como te entregas  tão sem freio ao vício extremo?  Dos vícios de que estás cheios  engolindo tão às cegas  a culpa, com seu veneno.  Veneno de maldição  tragas sem nenhum temor,  e sem sentir sua dor,  deleites da carnação  sorves com grande sabor.  Será o sabor do pecado  muito mais doce que o mel,  mas o inferno cruel  depois te dará um bocado  bem mais amargo que o fel  Fel beberás sem medida,  pecador desatinado,  tua alma em chamas ardida.  Esta será a saída  do deleite do pecado.  Do pecado que tu amas  Lourenço tanto escapou  que mil penas suportou,  e queimado pelas chamas,  por não pecar, expirou.  Ele a morte não temeu.  Tu não temes o pecado  no qual te tem enforcado  Lúcifer, que te afogou,  e não ficas afogado.  Afogado pela mão  do Diabo pereceu  Décio com Valeriano,  infiel, cruel tirano,  no fogo que mereceu.  Tua fé merece a vida,  mas com pecados mortais  quase a tiveste perdida,  e teu Deus, bem sem medida,  ofendeste, com teus males.  Com teus males e pecados,  tua alma de Deus alheia,  da danação na cadeia  há de pagar com os danados  a culpa que a incendeia.  Pena sem fim te darão  dentre os fogos infernais  teus deleites sensuais.  Teus tormentos dobrarão,  e tuas chagas mortais. 
 
Que mortais são tuas feridas  pecador. Porque não choras?  Não vês que nestas demoras,  estão todas corrompidas,  a cada dia pioras?  Pioras e te confinas,  mas teu perigoso estado,  na pressa e grande cuidado  com que ao fogo te destinas,  não sentes, desventurado?  Oh, descuido intolerável  de tua vida!  Tua alma está confundida  no lodo,  e tu vais rindo de tudo,  não sentes tua caída!  Oh, traidor!  Que negas teu Criador,  Deus eterno,  que se fez menino terno  por salvar-te.  E tu queres condenar-te  e não temes ao inferno!  Ah, insensível!  Não calculas o terrível  espanto, que causará  o juiz, quando virá  com carranca muito horrível,  e à morte te entregará.  E tua alma será  sepultada em pleno inferno,  onde morte não terá  mas viva se queimará  com seu fogo sempiterno!  Oh, perdido!  Ali serás consumido  sem nunca te consumir. 
 
Terás vida sem viver,  com choro e grande gemido,  terás morte sem morrer.  Pranto será teu sorrir,  sede sem fim te abeberra,  fome que em comer se gera,  teu sono, nunca dormir,  tudo isto já te espera.  Oh, morfio!  Pois tu veras de continuo  ao horrendo Lúcifer,  sem nunca chegar a ver  aquele molde divino  de quem tiras todo o ser.  Acaba já de temer  a Deus, que sempre te espera,  correndo por sua esteira,  pois não lhes vai pertencer  se não lhe segues a bandeira.  Homem louco!  Se teu coração já toco,  mudar-se-ão alegrias  em tristezas e agonias.  Olha que te falta pouco  para fenecer teus dias.  Não peques mais contra Aquele  que te ganhou vida e luz  com seu martírio cruel  bebendo vinagre e fel  no extremo lenho a cruz.  Oh, malvado!  Ele foi crucificado,  sendo Deus, por te salvar.  Pois, que podes esperar,  se foste tu o culpado  e não cessas de pecar?  Tu o ofendes, ele te ama. 
 
Cegou-se por dar-te a luz.  Tu és mau, pisas a cruz  sobre a qual morreu Jesus.  Homem cego,  por que não começas logo  a chorar por teu pecado?  E tomar por advogado  a Lourenço que, no fogo,  por Jesus morreu queimado?  Teme a Deus, juiz tremendo,  que em má hora te socorra,  em Jesus tão só vivendo,  pois deu sua vida morrendo  para que tua morte morra. 
 
AMOR DE DEUS (dá seu recado)  Ama a Deus, que te criou,  homem, de Deus muito amado!  Ama com todo cuidado,  a quem primeiro te amou.  Seu próprio Filho entregou  à morte, por te salvar.  Que mais te podia dar,  se tudo o que tem te dou?  Por mandado do Senhor,  te disse o que tens ouvido.  Abre todo teu sentido,  porque eu, que sou seu Amor,  seja em ti bem imprimido  (Glosa e declaração do recado)  Todas as coisas criadas  conhecem seu Criador.  Todas lhe guardam amor,  pois nele são conservadas,  cada qual em seu vigor.  Pois com tanta perfeição  sua ciência te formou  homem capaz de razão,  de todo o teu coração  ama a Deus, que te criou!  Se amas a criatura  por se parecer formosa,  ama a visão graciosa  desta mesma formosura  por sobre todas as coisas.  Dessa divina lindeza  deves ser enamorado.  Seja tua alma presa  daquela suma beleza  homem, de Deus muito amado!  Aborrece todo o mal,  com despeito e com desdém,  E pois, que é racional,  abraça a Deus imortal,  todo, sumo e único bem.  Este abismo de fartura,  que nunca será esgotado;  esta fonte viva e pura,  este rio de doçura,  ama com todo cuidado.  Antes que criasse nada  já a alma majestade  te havia a vida gerado.  e tua alma, abrasada  com eterna caridade.  Por fazer-te todo seu  com amor te cativou  e, pois que tudo te deu,  dá tu todo o maior que é teu  a quem primeiro te amou.  E deu-te alma imortal  e digna de um Deus imenso,  para que fosses suspenso  nele, esse bem eternal,  que é sem fim e sem começo.  Depois, que em morte caíste  com vida te levantou.  Porque sair não conseguiste  da culpa em que te fundiste,  seu próprio filho entregou.  Entregou-o por escravo,  deixou que fosse vendido,  para que tu, redimido  do poder do leão bravo  fosses sempre agradecido.  Para que não morras, morre  com amor bem singular.  Pois, quanto deves amar  a Deus que entregar-se quer  à morte, por te salvar.  O Filho, que o Padre deu,  a seu Pai te dá por pai,  e sua graça te infundiu,  e quando na cruz morreu,  deu-te por mãe sua Mãe.  Deu-te fé com esperança,  e a si mesmo por manjar,  para em si te transformar  pela bem aventurança.  Que mais te podia dar?  Em paga de tudo isto,  oh, ditoso pecador,  pede apenas teu amor.  Despreza pois todo o resto  por ganhar a tal Senhor.  Dá tua vida pelos bens  que Sua morte te ganhou.  És seu, nada tens de teu,  Dá-lhe tudo quanto tens,  pois tudo o que tem te deu! 
 
DESPEDIDA  Levantai os olhos ao céu, meus irmãos.  Vereis a Lourenço reinando com Deus,  por vós implorando junto ao rei dos céus,  que louvais seu nome aqui neste chão!  Daqui por diante tende grande zelo,  que Deus seja sempre temido e amado,  e, mártir tão santo, de todos honrado.  Terei seus favores e doce desvelo.  Pois que celebrai com tal devoção  seu claro martírio, tomai meu conselho:  sua vida e virtudes tende por espelho,  chamando-o sempre com grande afeição.  Tereis, por seus rogos, o santo perdão,  e sobre o inimigo perfeita vitória.  E depois da morte vós vereis na glória  a cara divina, com clara visão. 
 
(LAUS DEO) 
 
 
 
ATO V Dança de doze meninos, que se fez na procissão de São Lourenço. 
 
I Aqui estamos jubilosos  tua festa celebrando.  Por teus rogos desejando  Deus nos faça venturosos  nosso coração guardando. 
 
II Nós confiamos em ti  Lourenço santificado,  que nos guardes preservados  dos inimigos aqui  Dos vícios já desligados  nos pajés não crendo mais,  em suas danças rituais,  nem seus mágicos cuidados. 
 
III Como tu, que a confiança  em Deus tão bem resguardaste,  que o dom de Jesus nos baste,  pai da suprema esperança. 
 
IV Pleno do divino amor  foi teu coração outrora.  Zela pois por nós agora!  Amemos nosso Criador,  pai nosso de cada hora! 
 
V Obedeceste ao Senhor,  cumprindo sua palavra.  Vem que nossa alma escrava  de teu amor, neste dia  te imita em sabedoria. 
 
VI Milagroso, tu curaste  teus filhos tão santamente.  Suas almas estão doentes  deste mal que abominaste,  Vem curá-los novamente! 
 
VII Fiel a Nosso Senhor  a morte tu suportaste. 
 
Que a força disto nos baste  para suportar a dor  pelo mesmo Deus que amaste. 
 
VIII Pelo terrível que és,  Já que os demônios te temem,  nas ocas onde se escondem  vem calcá-los sob os pés,  pra que as almas não nos queimem. 
 
IX Hereges que este indefeso  corpo no teu assaram,  e a carne toda queimaram  em grelhas de ferro aceso.  Choremos, do alto desejo  de Deus Padre contemplar.  Venha Ele neste ensejo  nossas almas inflamar. 
 
X Os teus verdugos extremos  treme, algozes de Deus.  Vem, leva-nos como teus,  que ao teu lado ficaremos  assustando estes ateus. 
 
XI Estes que te deram morte  ardem no fogo infernal.  Tu, na glória celestial  gozarás, divina sorte.  E contigo aprenderemos  a amar a Deus no mais fundo  do nosso ser, e no mundo  longa vida gozaremos. 
 
XII Em tuas mãos depositamos  nosso destino também.  Em teu amor confiamos  e uns aos outros nos amamos  para todo o sempre. Amém. 

 

 

                                                                  José de Anchieta

 

 

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