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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AUTO DOS DANADOS / António Lobo Antunes
AUTO DOS DANADOS / António Lobo Antunes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AUTO DOS DANADOS

 

                   Manhã

Na segunda quarta-feira de Setembro de mil novecentos e setenta e cinco comecei a trabalhar às nove e dez. Lembro-me não por ter uma memória por aí além ou escrever o que me acontece num diário (nunca me interessaram diários ou poemas ou patetices dessas) mas porque foi o meu último dia de consultório antes de fugirmos para Espanha. Logo a seguir à revolução, em Abril do ano anterior, civis barbudos e soldados de cabelo comprido e camuflado em tiras vigiavam as estradas, revistavam automóveis, ou desfilavam lá em baixo, em bando, nas pracetas, comandados por um desses microfones incompreensíveis de sorteio de cegos que o marxismo – leninismo - maoismo reciclara. Semelhantes aos cães das praias, que trotam rente ao mar a perseguir um cheiro imaginário, juntavam-se nos montes do Alentejo para ladrar o socialismo aos camponeses sob um projector poeirento; percorriam o país em camionetas escavacadas a ameaçar os lojistas com as pupilas vesgas das metralhadoras; arrombavam as casas à coronhada brandindo mandados de captura diante de narizes estupefactos. Quanto a nós, visitávamos aos domingos os tios que sobravam do naufrágio da família, presos no Forte de Caxias por sabotagem económica, a verem as marés do Tejo subirem e descerem na muralha entre grades de celas e sovacos de pára-quedistas. Só a avó, já doente do cancro, navegava ao acaso na poltrona de inválida, de radiozinho de pilhas encostado às farripas da orelha, contemplando a sorrir, sem entender, os democratas que de quando em quando rebolavam aos encontrões no corredor e vasculhavam o resto das pratas com o cano dos revólveres, repetindo os discursos estranhos dos altifalantes dos cegos.

Desde Abril do ano anterior que a tropa e os comunistas se aproximavam das fachadas dos prédios, erguiam o membro como animais para urinar, e abandonavam nas paredes um mijo de vivas e morras que se contradiziam e anulavam, logo coberto por cartazes de comícios e greves, fotografias de generais, propaganda de conjuntos rock, cruzes suásticas, ordens de boicote ao governo e convites de retrete, dedos de letras entrelaçadas num namoro que o Outono do tempo desbotava. Apesar dos jipes da polícia patrulhando as ruas, ciganos carregados de tachos e cadeiras assaltavam os apartamentos vagos do centro. Nasciam infantários nos prédios em ruína, com crianças sentadas no soalho a engordarem de sanduíches de caliça. Stalines a carvão antipatizavam connosco nas esquinas. E o rio desmaiava em Caxias, sufocado pelas asas dos pássaros, com penedos de petroleiros imóveis sob a ponte.

Na segunda quarta-feira de Setembro de mil novecentos e setenta e cinco, o despertador pescou-me às oito horas do meu sono, do mesmo modo que as gruas do cais trazem à superfície os automóveis peludos de limos que não sabem nadar. Subi nos lençóis pingando noite das mangas e dos pés, até o guindaste depositar na alcatifa, junto aos sapatos da véspera, o meu cadáver ferrugento de ramelas, ameigado de olheiras e reumático. Como os corpos na morgue, a Ana embrulhava-se na colcha na outra extremidade da cama, e o piaçaba dos cabelos emaranhados despontava da roupa. O pingo triste de cera de um calcanhar defunto tombava do colchão. Enquanto lavava os dentes, o espelho da casa de banho mostrou-me cruelmente os estragos, de capela abandonada, dos anos. Havia filas de frascos e bisnagas em prateleiras de vidro, o tubo de escape do secador e a claridade demasiado intensa que o vapor do chuveiro embaciava, atrás da cortina de plástico com peixinhos pintados. Como sempre, o sabonete escapou-se-me três ou quatro vezes da mão para se achatar nos azulejos ou patinar até ao lavatório num rastrozinho de espuma, e eu a deslizar-lhe, quase de gatas, no encalce, míope do champô, a pontapear as canelas no bidé, a girar os braços em busca do equilíbrio que me fugia, a suspender-me dos toalheiros cromados para evitar o ortopedista, até regressar, tiritando, com o meu besugo cor-de-rosa apertado na palma, de volta ao repuxo da água quente do chuveiro. A Ana fumava, de costas contra uma almofada, a olhar-me. As árvores da embaixada da Bolívia cresciam na janela ao nosso encontro. Os pardais penduravam-se de cabeça para baixo nos ramos. O dia e o odor das trevas confundiam-se nos cobertores. Abri a gaveta para escolher uma camisa, uma gravata, e lá estavam as meias e meias com os meus mil artelhos de centopeia dentro. A Ana continuava a fumar e ao crepúsculo tipos de sombrero, pistola à cinta e bigode circulavam pelas varandas iluminadas da Bolívia numa dignidade de Zapatas diplomáticos. Escondi-me nas peúgas, nas cuecas, e abotoava o colete quando a Ana me disse da fronha, a acender um segundo cigarro no primeiro. Com uma nódoa negra dessas na coxa, N uno, tem-se pelo menos a decência de fazer com que ninguém a note. Continuei a vestir-me: há duas semanas que não sabia da Mafalda.

- Bati com a perna em qualquer sítio, informei eu, preocupado com os atacadores. No guarda-lamas, numa cómoda, no raio. Dou dezenas de pancadas de que nem me lembro.

A Ana estendeu-se de lado no colchão, a sorrir, e apoiou a bochecha no braço: pelo menos desde o divórcio, há cinco anos, que não lhe suporto os sarcasmos.

- As manias esquisitas das tuas namoradas, disse ela num tonzinho ácido. Desculpa a opinião, é um problema de estética, mais nada.

- Bati em qualquer sítio, repeti eu a enganar-me na gravata: a Mafalda cortara comigo pela centésima vez, por eu não romper definitivamente com a Ana.

- Ficas tão nervoso, quando te falo nisso, que nem a porcaria do nó consegues fazer direito, disse a Ana numa espécie de relincho de triunfo, a alargar-se, líquida, nos lençóis.

Aranhiços de barcos corriam sobre o Tejo. Um bolero no rádio enxotou-me aos pulinhos dançados para a porta: agarrei-me ao armário para não ser levado numa enxurrada de bemóis.

- Nervoso o tanas, disse eu, são estas porcarias de seda que escorregam.

A criada aquecia o café na cozinha. O quarto dela, de mala sob a cama, era um cubículo na extremidade oposta do andar, junto ao arbusto de metal da escada de salvação, que no Inverno gemia e zunia, no escuro, as folhas dos degraus. A Ana comprou-lhe uma arca para a roupa e uma mesa de cabeceira de esmalte branco, decerto pescada pela minha sogra, íntima de médicos e leilões, num saldo de hospital. As dobradiças das solas novas acordavam ecos no prédio inteiro, do tecto às catacumbas de cimento da garagem, onde os automóveis pastavam as próprias sombras com os dentes das grelhas. A criada serviu-me o café e introduziu duas cartas de pão de forma na frincha de uma caixa de correio da torradeira.

- Não tenho fome, disse eu para me vingar da Ana. Bebo uma chávena na broa e vou-me embora.

Dos edredons dos miúdos vinha de tempos a tempos um reboliço de tosse. O pediatra tratava a pingos e xaropes essas guinadas de diesel, e espanta-me que hoje, em lugar de um par de crianças pálidas e magrinhas, abraçadas a fraldas, mastigando os charutos das chupetas, me apareçam aos domingos, no vestíbulo escuro do prédio de Campolide onde moravam os meus pais e eu moro agora, adolescentes de capacete marciano, com uma esperança de bigode entre o nariz e a boca, enfurecendo as motorizadas para me exigir dinheiro, no clima tenso dos assaltos aos bancos.

- Ao menos uma colherinha de compota, senhor doutor, disse .a criada a exibir um boião. Trabalhar em jejum dá-lhe cabo do estômago.

Usava um treçolho perpétuo e cheirava não a noite como toda a casa mas já a hora do jantar e a cansaço sob a bata de sarja. Cheirava a depois da sobremesa, quando levantava os pratos, ligava a máquina, e desaparecia no seu cubículo, sem se lavar, a espalhar em redor um odor melancólico de cabra. Cheirava ao que cheira hoje em dia, quase dez. anos depois, em que me trata por tu, se afoga em colares de pechisbeque, e se instala ao meu lado nos assentos forrados de pele de vitela do carro, segurando a mãos ambas o guiador de verniz da carteira. Mas no tempo de que falo, no tempo deste livro, afastei a compota, recusei a torrada, provei o café a que faltava açúcar. O relógio da cozinha marcava vinte e cinco para as nove. A criada ergueu o braço, para puxar a lata de bolachas de baunilha de uma prateleira alta, e os seus aromas aumentaram: Um biscoito para o caminho, senhor doutor. As árvores da embaixada da Bolívia despiam-se de sombras. Obrigado, disse eu enquanto os cotovelos se retraíam como os leques se fecham, ofendidos: se tiver fome há uma pastelaria mesmo em frente ao consultório, não vale a pena maçar-se.

Atravessei o corredor e fui ao quarto despedir-me da Ana. Continuava a fumar, rígida na almofada, interessadíssima nas espirais da consola. De quando em quando os dedos subiam-lhe à altura da boca, uma pontinha vermelha avivava-se, o fumo deslocava-lhe a cara, e a mão pousava de novo numa prega de lençóis, sobre o ninho do cinzeiro de vidro. As crisálidas dos meus filhos remexiam-se no compartimento a seguir, encerrados nos casulos do beliche. Permaneci de pé um momento, de polegares nos bolsos, indeciso: desde que lhe telefonaram, não sei quem, a contar da Mafalda, que a Ana se desinteressou por completo de mim.

- Até logo, disse ela a olhar de lado para o espelho, que reflectia os estores atrás dos quais ondulava um Tejo de brinquedo, semeado de paquetes fingidos. Apetecia sacar da algibeira uma dúzia de gaivotas de papel, e polvilhar o cais para que a água do espelho principiasse a tremer. Encontrei a cara inquieta da criada no vestíbulo, entre os chifres africanos do bengaleiro. E senti os olmos da quinta, no Verão, quando éramos pequenos, lá muito em cima, ao pé do muro.

- Se o senhor doutor quiser sobrou um bocado do pão-de-ló de ontem. O elevador transportou a minha negativa para o rés-do-chão. A porteira, que regava as plantas do vestíbulo, cheirava a noite também, e escutavam-se ralos e insectos das trevas trinando-lhe sob o avental. A terra dos vasos cheirava a noite igualmente, não à noite da infância mas a outra mais clara, mais porosa, húmida de fetos e de água. De minuto a minuto a porteira suspendia o regador e insultava os garotos que pedalavam de bicicleta ao comprido do prédio, nas arcadas.

- Olá, Dona Dulce, disse eu a descer as escadas para â rua, ainda a pensar no bolo, cuspindo pedaços de pão-de-ló com a língua.

- Mijaram-me nos gerânios, senhor doutor, respondeu ela lamentosamente a erguer a orelha da lebre de uma folha defunta. Se o meu marido não estivesse com a asma corria-os do bairro a tiro. Ora chegue-se aqui e fareje-me só este amoníaco. Eu a criá-los com adubo e os camelos a urinarem-lhes em cima.

Os rapazes cruzaram-se connosco a assobiar de escárnio, a porteira precipitou-se para eles de regador em punho, e os olmos e o aroma da noite desapareceram. Automóveis iluminados pelo sol acumulavam-se num talude: o que é que a Ana fez à casa, como será aquela parte do Restelo agora? Tão feia e poeirenta como nessa época, menos, mais, habitada pelos mesmos engenheiros, os mesmos doutores, as mesmas economistas divorciadas, de casaco de peles? E o bairro de lata de ciganos e de negros sob o janelão do quarto? Tirei o carro de uma extensa fila de focinhos sonâmbulos de capots, e vim a tropeçar nas pedras, em tubos de canalização, em pranchas de madeira, maldizendo a azinhaga, até à avenida dos bombeiros, a caminho de Monsanto, após a esquadra da polícia numa espécie de largo, onde, os plátanos se cobriam da areia cor de caqui dos construtores civis. Rolei ao longo dos taludes e dos arbustos do parque de campismo, ultrapassei um novo bairro de lata, com casinhas à beira da estrada, em que mulheres parecidas com a porteira despejavam alguidares no alcatrão, um campo de futebol, uma ponte, e depois o caminho habitual do consultório, não este de hoje, em Loures, com ovelhas a pastarem nos intervalos das gengivas dos doentes, mas o antigo, o majestoso, o da Braamcamp, num edifício com vestíbulo de templo grego, entre um pub e um pronto-a-vestir. Os clientes desfolhavam malmequeres de revistas na sala de espera. A cadeira postava-se ao centro do gabinete como uma forca, e os instrumentos e as próteses acenavam-me arestas e caninos. A enfermeira, herdada, com o autoclismo avariado, do colega anterior, alinhava as fichas por ordem, tresandando a eficiência e a desinfectante.

- Bom dia, disse eu a guardar o casaco no armário, num cabide de arame, e a puxar do interior a bata das torturas. A enfermeira preparava ganchos e bolinhas de algodão, e ligava o vídeo onde uma raposa perseguia um pássaro numa paisagem de dunas. Lá fora, as granadas do calor de Setembro destruíam a cidade fachada a fachada. O empregado da estação de serviço, reduzido a ossinhos calcinados, agonizava sobre um motor desfeito. Os morteiros do sol arrancavam plantas e pedaços de relva do Parque. No restaurante do lago as mesas morriam, deitadas de bruços, no chão de pedra, pingando o sangue da tinta.

- Chamo o primeiro?, perguntou a enfermeira sempre a mudar de lugar compressas e frasquinhos e tubinhos, enquanto eu calçava as luvas de borracha e experimentava as brocas como um piloto as suas hélices. Na parede encaixilhava-se a caricatura de uma médica idosa, de grande peito, a segurar triunfalmente um molar com uma chave-inglesa. A raposa, de muletas, coberta de cruzes, de adesivo, empenhava-se na fabricação de um camaroeiro gigante escorado por uma parelha de rochedos, e destinado a pescar o pássaro que galopava no deserto. O Verão rebentava os prédios como bolhas de acne.

- Comece, disse eu a espetar o umbigo numa atitude toureira. Os dois telefones desataram a tocar em simultâneo no recanto das fichas e do armário do casaco, e nisto uma mulher entrou, a tilintar pulseiras, comboiada pela enfermeira das compressas. O camaroeiro descreveu meia volta no ar, apanhou a raposa e arremessou-a contra um buxo de cactos. A enfermeira acalmava os aparelhos, que baliam como borregos com fome.

- Dia dezassete às onze horas, disse ela, é o único buraco que tenho. Desliguei a televisão (uma lâmpada foi diminuindo e morreu no centro do écran) no momento em que o pássaro se aproximava a galope, estacava de súbito, articulava bip bip, desaparecia. Introduzi outra cassette, o vídeo encheu-se de grãos que se agitavam e, depois de uma faixa vermelha e outra branca, rodei o botão do som e escutei as trompetes do costume a acompanharem o genérico do filme. A enfermeira pousava o primeiro telefone e ocupava-se agora do segundo. Como está, senhor almirante, muito obrigado, diga, e era Leslie Caron quem me esperava a sorrir, de bicos dos pés afastados, junto à cadeira dos dentes. Se lhe caiu o pivot, explicava a enfermeira, o senhor doutor com certeza que o recebe logo à tarde às seis horas, vou tomar nota na agenda para não ficar esquecido. O sol prosseguia na praça a sua carnificina de cinzas. A minha bata substituiu-se por uma camisola de riscas, o consultório transformou-se no cenário de papel de uma rua de Paris, com candeeiros, árvores e pontes desenhadas a carvão, e a torre Eiffel e o Moullin Rouge e o Vaticano e todos os monumentos possíveis da Europa por aqui e por ali. Avancei para ela, afastei-me numa pirueta, tornei a avançar, e era Gene Kelly quem dançava, ao ritmo da orquestra, na alcatifa do consultório, pulando caixas de pensos, evitando as gargalhadas das próteses, rodopiando degraus de contraplacado para um Sena de celofane, iluminado por holofotes coloridos, no qual ancoravam barcaças de ripas, oscilavam quiosques e insígnias de cafés, e ao fundo, perto da janela, um corpo de baile de empregados de mesa, de bandeja e avental, e de prostitutas a girarem as carteiras de verniz, desenhava uma coreografia complicada entre Versailles e o Museu do Prado.

- Esta senhora é doente do doutor Acácio, disse a enfermeira a descer por seu turno para o Sena, nos gestos decididos da americana rica que durante o último quarto de hora de filme insistia em presentear-me com um atelier de pintor semelhante a um boudoir de cocote.

- O doutor Acácio avisou-me que o procurasse se houvesse alguma espiga entretanto, disse a mulher aclarada pela fixidez de olho sem pálpebra do foco. Não é você quem o substitui nas férias dele?

As piorreias conversavam com periquitos na gaiola da sala de espera, por cima das revistas de cabeleireiros que a funcionária do PBX lhes oferecia todos os meses, na esperança de que a paixão do corredor de automóveis italiano pela filha do armador grego as distraísse da dor. Um colega martelava sem descanso no gabinete à direita, pulverizando um nervo aberto. A enfermeira espiralou de molde em molde e pendurou a corrente de um guardanapo de pano do pescoço da mulher. O calor fez ruir o prédio em frente do nosso num fragor silencioso. Gene Kelly, no vídeo, dirigia-se acabrunhado, de mãos nos bolsos, para a sua mansarda de artista. Leslie Caron, de cabeça sob uma latada de brocas, puxou a saia para baixo a fim de cobrir os joelhos ou o que sobrava das coxas: Vou amanhã de manhã para o Algarve com os pequenos, diga-me lá onde é que arranjo um dentista em Armação de Pêra?

E Gene Kelly desenhava mamarrachos hediondos, com o anúncio de Pigalle a entrar e a sair, à maneira dos corações expostos das rãs, pulsando pela janela aberta. Um amigo bêbedo e feio gabava-lhe a obra, de fato amarrotado e copo de uísque na mão. A enfermeira esterilizava ganchos no fervedor. A Leslie Caron cruzou as pernas, mirou-me, e os meus ossos floriram petalazinhas de cardo, e os pássaros do meu tronco ergueram voo da praia comprida da barriga. Ontem ao jantar cuspi uma coisinha dura no prato, disse ela, devia ser um bocado de chumbo do dente, claro que não, não pense nisso, estou farto de saber o que é uma pedra do arroz. A música do vídeo entristeceu: Gene Kelly segurou no pincel, caiu na manta de retalhos que usava como colcha, deu uma cambalhota, pulou, e dobrou o pescoço para trás a fim de iniciar o seu número de canto:

- Abra a boca, pediu ele.

Passeou-se nas gengivas que o espelhinho de metal aumentava, verificou as obturações, tropeçou na ausência de um siso, raspou o esmalte e sentia o tornozelo da mulher encostado ao meu através da fazenda das calças, e mais pássaros que se me soltavam da barriga, e mais ossos que floriam, e mais fundas e secretas marés que se me agitavam no ventre, sobre um crepúsculo de infindáveis areias: Se eu demorar o exame, pensou ele, se eu limpar a pedra com a broca, tenho o pretexto de observar melhor para me chegar ao seu peito. E no entanto endireitei-me, apaguei o foco, pousei o espelhinho, e garanti. Tudo óptimo, minha senhora, pode ir para o seu Algarve descansada. E a perna dela na minha perna até me dar conta de que o telefone retinia outra vez, até a enfermeira dizer Está?, escutar a bater um lápis na mesa, anunciar A menina Mafalda para o senhor doutor, e a coxa se afastar imediatamente de mim, Onde é que eu pago?

- A empregada passa-lhe o recibo lá fora, explicou a enfermeira, de costas, enquanto Gene Kelly dançava, sozinho no cais do Sena o sapateado da sua desilusão.

- Nuno?, perguntou a aguda voz de pintassilgo da Mafalda. Nuno? Tens que fazer daqui a unia ou duas horas? Preciso imenso de falar contigo, ando preocupadíssima, nem sonhas.

Pelo canto do olho viu a Leslie Caron cumprimentar a enfermeira e sumir-se, e a estátua do Marquês de Pombal dissolver-se na peanha como um sorriso podre. (Três contos e seiscentos, Olívia, berrava a enfermeira pelo intercomunicador, para uma badameca com pulseiras que vai encalhar por aí.) Sentia no tornozelo a ausência do tornozelo da mulher, do mesmo modo que as lajes de museu onde durante séculos permanece impressa a nervura esquisita de um insecto. Um braço do Marquês escorria devagar pelo passeio.

- Da última ocasião expulsaste-me da tua casa aos gritos, disse eu a lembrar-me do apartamentozito do Lumiar, dos ibiscos da tapeçaria do quarto, do vestíbulo com setas e um escudo de leopardo, e de mim empurrado pelos teus gritos, de compartimento em compartimento, na direcção da rua. Não quero um homem casado para nada, se não és capaz de te separar da Ana vai à fava.

- Nasceu-me um caroço no peito, Nuno, tenho médico marcado, e eu a traduzir Acabou-se-te a droga, e a vir-me à ideia que a cozinha dela cheirava sempre a fritos e àqueles queijos franceses com ervas que eu detesto. A roupa dava encontrões na janela de paquete da máquina de lavar. Tens meia hora para almoçar em sossego no intervalo dos dentes?

- Meia hora pode ser que consiga, disse eu a calcular com a vista a pilha de fichas sobre a mesa. Caíram-me em cima todas as cáries do mundo esta manhã. À uma em tua casa?

- É melhor na tasca do costume, disse o pintassilgo nos seus guinchozinhos minúsculos. Esqueceste a nossa última conversa, pelos vistos. Até largares a Ana, se largares a Ana algum dia, ficamos só amigos.

E nem amigos ficámos: que estupidez tudo aquilo, as discussões, os silêncios, os pequenos ódios roídos com fúria como ossos de borracha, as inúmeras pontas de cigarro e as nossas cabeças lado a lado no espaldar da cama, sérias, obstinadas, furibundas, irredutíveis, com a prega ao meio da testa formando a bissectriz do ângulo longínquo dos pés. Deves ter envelhecido nestes anos mais que os anos que foram, adquirido uma pele desagradável e seca e arenosa, permanecido solteira, deves continuar a guiar o teu automóvel minúsculo, num odor insuportável de tabaco, desprezando os sinais de trânsito pela cidade fora, oculta pelos óculos escuros e pelos balões das pastilhas elásticas, deves, como sempre, ganhar a vida à custa de expedientes complicados, ocupar-te vagamente de turistas, orientar vagamente discotecas, traduzir vagamente romances franceses, bebendo cafés frenéticos, desembrulhando rebuçados nauseabundos destinados a curar para sempre os vícios da nicotina, telefonando descalça, sentada no chão, a um rancho de amigas, a combinar compras em Badajoz, cinemas, jantares no Bairro Alto, jogos de cartas, passeios de jipe no Geres ou no Algarve, passagens de modelos, bailes de máscaras, negócios de boutique, deves emagrecer impetuosamente, ser impetuosamente infeliz, tornares-te impetuosamente mais feia, e desleixada, e pouco limpa, até a noite do meu esquecimento se fechar sobre ti num suspiro irrevogável de águas murchas.

- Tenho uma data de trabalho ainda, disse eu, vamos a ver se posso.

A Leslie Caron, na pastelaria em frente do consultório, bebia uma dessas coisas, com gosto de maçã ou de ananás, que outrora eu chupava por palhinhas, e pensei por instantes descer ao seu encontro aos pulos nos degraus, mas entrou logo a seguir uma dama de idade para ajustar a placa e depois um homem bem vestido que principiava a suar mal a broca zunia, de maneira que o fim do filme, no vídeo, me deixou um azedo de desesperança no estômago e a certeza de que a felicidade se nos escapa eternamente em consequência das alveolites que no derradeiro segundo se interpõem entre nós e um par de sapatilhas em fuga.

- Acabou a chamada, senhor doutor?, perguntou de súbito a menina do PBX no tom irritado do costume, a entrar na nossa conversa como um cisco no olho. É que tenho todas as linhas ocupadas e o doutor Saldanha pediu-me uma ligação a Santarém.

- Termino imediatamente, disse eu. E ao contrário do que esperava não houve nenhum dique no aparelho.

- Seria bom que pudesses, disse a Mafalda. E de caminho mete-me essa parva na ordem.

- Parva será a senhora, olha a gaiteira, respondeu a do PBX, muito pronta. Eu trabalho, faço o que me mandam, não levo o tempo à boa vida.

- Então, então, pedi eu, incomodado, que raio de coisa meterem-se para aí a discutir.

- Eu limito-me ao meu serviço, senhor doutor, mentiu a do PBX, furibunda. Quero lá saber das conversas particulares de cada um.

- Tu consentes que a criatura fale dessa maneira, Muno?, indignou-se a Mafalda, tu consentes que ela se te dirija assim?

- A quem é que julga que ladra às canelas, madame?, enraiveceu-se a outra. Criatura é a sua mãe, sua vaca.

- Ouves isto, Nuno?, lamentou-se a Mafalda. Reparaste bem nos insultos dessa puta?

- E não desencaminhe homens casados, berrou a do PBX, de cabeça perdida. Sossegue que se a ele lhe apetecer fêmea aposto que não a escolhe a si.

Pousei o aparelho enquanto as duas vozes rebolavam e se mordiam num descampado eléctrico de parafusos e de fios. Consertei o incisivo de um adolescente que, sempre que eu me aproximava apertava os arabescos da cadeira com os dedos brancos: na cara a arder de acne só os olhos exprimiam um terror de bicho, um medo incontrolado de garrano. A enfermeira levava ferros, trazia ferros e preparava amálgamas, flutuando no aquário ensolarado da sala. Borbulhas esverdeadas subiam e desciam ao longo dos caixilhos de alumínio das janelas. Tratei mais dois molares, escrevi a encarnado nas fichas, desenhei cruzes nos lugares das obturações. Limpei os canais de uma trintona com quatro crias sempre a mexer em tudo, a abrirem os armários, a infectarem as compressas, a picarem-se nas pinças, a atiçarem-se mutuamente com os ganchos sob o olhar risonho ou orgulhoso ou distraído da mãe, de goela escancarada e aspirador pendurado ao beiço, enquanto os meninos tentavam destruir-me o gabinete e pontapeavam a máquina de raios X: ainda bem que a Ana e eu não tivemos mais filhos, ainda bem que o meu esperma se tornou num licorzinho chilro sem sementes, numa clara de ovo estéril e chocha nos tubos de ensaio das análises, e ao cabo de oito ou nove vítimas uma primeira consulta, uma morada de Braga: será que a minha celebridade corre assim tão depressa pelo país inteiro, meu Deus, que até do norte chegam para que eu lhes imponha as minhas mãos miraculosas e os salve? Que dizes a isto, Nuno?, uivava a Mafalda, que dizes ao estafermo que aí tens? Saí para urinar no cubículo do corredor e a funcionária do PBX fitou-me numa opacidade absoluta, impermeável ao meu simpático, quase terno, sorriso de passagem. Na sala de espera uma forma indistinta tossia derrubando cinzeiros e revistas: deve ser o de Braga, pensei eu, e imaginei um monstro glaciar, repleto de cerdas, que o calor de Setembro descongelara. Puxei o cordão do autoclismo e escutei um clique no vazio, uma peça a entalar-se noutra peça, lavei as mãos com a derradeira lasca translúcida de sabonete que me morreu nas palmas, rodei o fechozito da porta, voltei a sorrir ao PBX e um bramido tenebroso respondeu-me. Ode Braga devia ter entrado já no gabinete porque a sala de espera se encontrava devastada e deserta. Dez para o meio-dia: endireitei a bata, empurrei a maçaneta, e fingi o aspecto de segurança peremptória que os doentes desejam. A enfermeira arrumava esquisitos objectos cirúrgicos na gaveta compartimentada como um cesto de costura. Edward G. Robinson fumava charuto no vídeo, a mirar-me com as órbitas mais melancólicas do mundo, e um ventre efusivo, de colete e mão estendida, esbarrou comigo como uma baleia noutra baleia: Ainda bem que consegui consulta, senhor doutor, é um sarilho arranjar dentistas nesta terra.

No lugar da estátua do Marquês de Pombal existia agora uma cratera que fumegava ainda, rodeada de um círculo de edifícios destruídos, e o céu amarelo aparentava-se a um disco gigantesco que rodasse: à uma da tarde, com o calor a crescer assim, devia ser difícil passear a pé no alcatrão das ruas, no meio dos semáforos fundidos.

- E logo eu, disse a baleia a apontar a bochecha, que trago aqui um problema do carago.

As costas da enfermeira, arrepiadas com o calão, encolheram-se e distenderam-se como a pele de um poço quando uma pedra cai, e eu pensei, de nariz no vídeo, a assistir a um episódio de tiros. Não são apenas os olhos de Edward G. Robinson que são os mais melancólicos do mundo, são aqueles lábios de borracha a desistirem na cara, são as rugas de defunto nas bochechas, são as mirabolantes pálpebras de lagarto, é a sua fragilidade tocantemente grave. Gosta?, disse o homem a espreitar-me do ombro, também comprei um brinquedo desses para os putos mas mandei-o vir de contrabando por Espanha, e eu a respirar-lhe o hálito de tal forma denso que as palavras pareciam entrar-me, sólidas ou gelatinosas, na orelha. Indiquei-lhe a cadeira com o dedo, instalei-me no meu banco sempre sem falar, procurei o espelhinho, e encontrei o pequeno-almoço dele nos interstícios das gengivas, restos de pão, de bolo, de fiambre, de queijo. Inquiri Onde é que dói?, e o tipo designou-me uma prótese de plástico com aspecto de ter sido negociada numa feira de ciganos, entre burros mancos, alguidares de louça e berraria e música e carrosséis e farturas e chiar de leitões, e esses cegos cujas palmas imperiosas surgem horizontais à nossa frente, de forma que lavei com o jacto de água a prótese demasiado grande prestes a rebentar-lhe a caveira, que se abria junto da língua em esquisitíssimos caninos. Não entendo porque é que este fulano não dá coices, pensei eu a observar-lhe siderado a dentadura de cavalo de carroça, porque é que não se curva num salto e galopa livremente na Avenida. Edward G. Robinson exumou o revólver do casaco assertoado, o grupo que o acompanhava estalou as culatras das metralhadoras, e os empregados do banco, de pala na testa, tremiam protegidos pela rede dos guichets. A enfermeira ordenava o material para as consultas da tarde, pescando-o do esterilizador com uma espécie de tenaz, e suspeitei que era a única qualidade de depilação a que ela se devia dedicar. Tire lá isso, disse eu ao de Braga, a procurar uma espátula na prateleira de vidro, vamos a ver o que você guarda por baixo dessa coisa.

Não era só o Marquês de Pombal que dera lugar a um círculo de cinzas, mas as restantes praças da cidade, e as alamedas, e as travessas, e as ruas. No largo da Estefânia, por exemplo, o repuxo consumia-se entre as casas torcidas. No vídeo, o bando de Edward G. Robinson saltava aos balcões e recolhia o dinheiro em sacolas de lona. O homem puxou a placa a mãos ambas como se desrolhasse uma garrafa renitente e o plástico nada. Puxou segunda vez, vermelho, puxou terceira, roxo, e sempre nada: Não sai, miou ele apavorado, se calhar ganhou raízes na carne, se calhar pegou-se-me aos ossos e agora? Calmaria, disse eu, se a placa se encravou desencrava-se num rufo: enfiei um alicate à mordidela por ali dentro, ajudado pela broca fininha, um pó cor-de-rosa esvoaçava, os dentes postiços, soltos, tombavam para um lado e para o outro como contas de colar, e por fim o arame que dava a volta àquilo tudo desfez-se e caiu. E aí vai o gajo comprar outra bodega destas noutra feira, pensei, há sacanas que as vendem às dúzias, em tabuleiros de cartão, de todos os tamanhos e para todos os preços, no meio de cabritos e procissões e barraquitas de tiro e famílias espantadas, sujeitos que curam incisivos, à porrada, sob toldos coloridos. Meio-dia e quarenta, espiei eu no relógio, estou lixado, onde é que consigo chegar ao Lumiar a tempo? Joguei os restos da placa no balde onde se acumulavam algodões sangrentos e céus da boca destroçados, e o de Braga contemplava desolado o seu tesouro em pedaços numa mágoa de órfão. Edward G. Robinson disparou um tiro para o ar e correu para a entrada do banco, na direcção de um automóvel com um gangster de nariz esborrachado ao volante. Limpei a cavidade que o plástico deixara, curei-lhe a mercurocromo os arranhões, os hálitos repulsivos de cozinha de campanha, as cáries que a baquelite e o metal apodreciam entre os dentes. A cara do homem, sem a prótese, diminuíra para cerca de metade, as bochechas, agora magras, amarrotavam-se de pregas, os olhos envelheceram, e eu pensei O que ele devia gostar daquela trampa postiça, o amor que devia ter àquela merda. E agora ainda lhe dói, disse eu, não sente a boca mais aliviada?, e o cretino a abanar o queixo, a acenar que sim, a dar-me razão, mas sempre a procurar no balde o motivo do seu sofrimento e do seu júbilo, a levantar-se a fim de perseguir a enfermeira que transportava o recipiente dos desperdícios para fora da sala, a caminho do depósito do lixo, e sumirem-se os dois», dessa maneira, para longe e para sempre de mim, uma vez que à tarde acabei por não voltar ao consultório, à noite me achava no Alentejo com a minha mulher e o meu cunhado de onze anos, e cinco dias depois atravessávamos a fronteira de Espanha numa das jangadas do pescador afogado, porque a tropa e os comunistas nos queriam matar a todos, quando acabasse a festa, nos becos da vila, matar-nos nos degraus da igreja de Santa Maria entre os pedintes e os gatos vadios, de costas para a fábrica de celulose ao longe, no sítio onde desde muito antes da revolução prometiam a barragem sem a construírem nunca, deixando que as oliveiras e as estevas crescessem livremente, até à margem do Guadiana, na cor amarela, de má fotografia ou de ácido estragado, de Setembro. A enfermeira evaporou-se com a dentadura e o de Braga trotava atrás dela a chamá-la, Ó senhora, ó senhora, aguente os potros que me leva aí o que é meu, enquanto eu despia a bata e recuperava o casaco do armário, alarmado: Meio-dia e quarenta e seis, se a Mafalda, com a mania das pontualidades, estiver à minha espera é uma sorte. Passei as mãos na torneira do lavatório como o padre nas galhetas da missa, vi a bata cair do cabide ao chão e não tornei atrás para apanhá-la, disse até logo à funcionária do PBX, entrincheirada no balcão como uma coruja com gripe num galho, danada com a Mafalda, danada comigo, danada com o mundo, pronta a telefonar à Ana, disfarçando a voz, a contar-lhe Imagine o que o seu marido anda aí a laurear por Lisboa, minha amiga, imagine só as poucas vergonhas desse malandreco, uma amante à vista da cidade, uma íntima sua ainda por cima. Desci as escadas a correr endireitando os punhos, empurrando a fralda da camisa para dentro, apertando a gravata. Um médico, explicava a minha mãe, não se pode vestir corno um cigano, já não és um estudantezinho qualquer, e afinal, cá fora, lá estava a estátua intacta do Marquês, e os prédios intactos, e as avenidas intactas, e com certeza que o Largo da Estefânia intacto também, com o repuxo novamente de água a escorrer pelo seu bronze novamente de bronze, e então perguntei-me, como de costume, Onde deixei eu o carro, porque nunca por nunca me lembro da porra do lugar onde o meti, se nesta esquina, se naquela, se naquela, e mesmo se tropeçar nele passo sem o reconhecer, uma lata de quatro rodas igual a todas as latas de quatro rodas que existem, devia possuir o meu nome completo e o estado civil e o número do bilhete de identidade em letras gordas no capot. O de Braga seguia ainda a enfermeira, aos uivos, nas escadas das traseiras do prédio, ansioso por recuperar os seus queixos. Comecei a folhear atarantadamente os automóveis e nisto vi uma velhota soterrada de embrulhos desembarcar de um táxi do lado oposto da rua, Táxi, ladrei eu, táxi, atravessei a roçar o pára-choques de uma camioneta que se dobrou no alcatrão e ficou a insultar-me numa energia proletária, alcancei a porta com meio comprimento de avanço sobre um cavalheiro grisalho que bufava É meu é meu, tombei no assento de napa, estalei o fecho interpondo entre mim e o outro uma trincheira de caixilhos, e mandei seguir para a Calçada de Carriche como um visconde a comandar um trem, fitando o condutor com os olhos e a boca mais melancólicos que imaginar se pode, pronto a extrair do casaco assertoado uma pistola gigantesca, e a disparar sobre o chofer as balas a fingir do carregador de cinema.

- Ia-me embora neste instante, Nuno, disse a Mafalda defronte de uma água mineral e de um café. Não esperava nem um segundinho mais.

A taberna situava-se num larguito com uma mercearia ou um minimercado à esquerda, e um cabeleireiro manhoso, de rés-do-chão com cortininhas púdicas na montra. O fumo da comida devorava a clientela de operários e mecânicos, de tal forma que só um braço ou um fragmento de nuca emergia de tempos a tempos da bruma do almoço. Um coxo movia-se de garrafa em garrafa, amparado à fórmica do balcão. Cegonhas de fato-macaco, empoleiradas em bancos altos, debicavam bagaços ou levantavam voo e saíam a porta, pesadas de álcool, trepando a custo os degraus azuis do ar. Através de um buraco de azulejos um cotovelo de mulher entregava travessas e sopas: Apanhei um engarrafamento no caminho, e a Mafalda, a mexer a colher na chávena vazia: Davam-me imenso jeito umas pastilhas, Nuno, o psiquiatra da minha irmã não me recebe esta semana.

Um tipo de avental surgiu planando, fosco na claridade fosca, defecou na mesa o livro da ementa, escrito a lápis numa letra de ardósia infantil, e engoliu-se como um peixe entre os limos das canjas.

- O farmacêutico ao pé da tua casa não tas vende, perguntei eu a decifrar as fanecas, e dás-lhe depois a receita na segunda-feira?

Mesmo ao lado, uma velhota de cabelo pintado de amarelo sugava espinhas com um cachorro pêlo de arame ao colo, sempre a entornar-lhe o focinho no arroz.

- São uns chatos, queixou-se a Mafalda, exigem receitas especiais, fazem interrogatórios de polícia, olham-te de lado. Mandei-o àquela parte de uma vez por todas.

Claro que o caroço desapareceu, a aflição desapareceu, o exame médico desapareceu: pedi um bife que talvez me desse tempo, se o comungasse depressa, de trepar ao andar dela para fazer amor, a troco dos comprimidos que trazia na algibeira. O empregado gritou o meu almoço para a cozinha e desvaneceu-se de novo como uma fada de avental, barba por fazer e unhas sujas. O quê?, disse a Mafalda, dares-me o remédio em casa?, palavra que acho incrível, Nuno, mas da tua parte já me habituei a tudo. A velha loira de garfo espetado ralhava com o cão cujas órbitas se assemelhavam a lentes de contacto grandes e molhadas. Puseram-me à frente uma faca, um garfo, um copo e um guardanapo na toalha de papel. Uma cerveja, disse eu, e o nevoeiro clareava agora: diante da de cabelo pintado distingui um senhor careca, de lacinho, a discutir futebol com um entusiasta que o escutava, inclinado sobre o tampo, numa atitude respeitosa. Eu avisei-te que enquanto não te separasses da Ana, recordou a Mafalda, ficávamos amigos e mais nada. E eu a pensar no teu corpo magrinho a remexer-se nos lençóis, na tua boca diligente, nos teus seios vazios. O coxo do balcão baloiçava na direcção do telefone. Uma criatura solitária, encostada à parede, lutava com o paio da omolete. Além disso, disse a Mafalda, se tens a minha casa na cabeça é melhor esquecê-la: a mulher-a-dias da minha mãe é capaz de andar por lá nas limpezas, calcula a bronca se entramos por ali dentro e a encontramos. O bife e a cerveja aterravam-me por baixo do nariz: a cerveja suava de frio e as batatas fritas brilhavam de gordura. Tirei as pílulas da algibeira e alinhei-as na mesa: seis cilindrozinhos embrulhados em papel de prata, com o nome impresso a azul, na embalagem: os dedos da Mafalda avançaram de imediato numa espécie estranha de sede, a cara modificou-se, as pupilas aumentaram, qualquer coisa de repugnante e ávido alastrou no rosto dela. Quietinha, aconselhei eu a cortar a carne, quietinha que por enquanto pertencem-me. A mão parou e ficou a tremer, de cigarro nas unhas, a dois palmos da droga. Um pedaço de cinza descolou-se e tombou no papel. A dama loira largou o cão no sobrado, com desmedidos cuidados, e o animal ergueu de imediato a pata traseira e urinou-lhe a perna. Podemos experimentar ir lá acima, Nuno, sugeriu a Mafalda, num timbre diferente, mas se ela está e faz queixa à minha mãe cortam-me logo a mesada. Seu mau, ralhou a velha na direcção do cachorro, isso é que é ser-se educado, por acaso? Enquanto mastigava voltei a guardar as pastilhas na algibeira: Se não as queres tanto melhor, disse eu a equilibrar as batatas no garfo, preciso imenso disso no consultório, para as dores. Não, não, vamos lá a casa, apressou-se a Mafalda, o meu único medo é a mulher-a-dias mas pronto. O lulu farejava com indolência os azulejos, e a velha principiou a limpar o tornozelo ao guardanapo, na mágoa das avós desiludidas. O que é que o sacana do bicho fez agora, Josélia?, perguntou o careca do outro lado da mesa. Ao menos podias-me dar uma para tomar com o café, implorou a Mafalda, tenho suores, ardem-me os rins, chocalha-me tudo por dentro. Vi na bruma o empregado, que duas mesas empalavam, a conversar com um cliente, e gritei-lhe, num uivo de farol, Um maço de cigarros e uma bica. No meu relógio eram uma e cinquenta e dois, o que significava, com os avanços do costume, uma e quarenta e oito ou uma e quarenta e nove. Nada, nada, disse a loira muito depressa, uns pinguitos de chichi que me caíram por acaso no sapato, é só. Deixei os talheres, abri o papel de prata e expulsei o interior, devagar como os ilusionistas, uma pevide azul. A Mafalda, de beiços torcidos, esticou a mão do cigarro para ela, espalhando mais cinza, deixou-a cair, apanhou-a da serradura do chão, obrigou-a a desaparecer garganta abaixo numa enxurrada de água mineral. Um tendão cresceu-lhe no pescoço. A mijar-te em cima?, indignou-se o careca, essa porcaria foi-te mijar em cima? O empregado somava-me a conta, com um pedacito de lápis, na mesma difícil letra de ardósia da ementa. A Mafalda desenrugava-se a pouco e pouco, os gestos soltaram-se, os olhos sorriram. Ofereço-te os outros comprimidos no teu quarto, disse eu, por mim é só pagar e estou pronto. O cachorro pressentiu uma ameaça qualquer e pulou de regresso para o colo da dona. Seu cabrão, disse o careca, a levantar-se, seu grandecissímo cabrão ordinário que me suja tudo em casa. Armindo, soluçou a velha a proteger o animal com os anéis, olha a tua tensão, Armindo; O careca rodeou a mesa, sacudiu-a, e o casaco de peles acrílicas da loira despenhou-se-lhe dos ombros e amontoou-se nos ladrilhos. O comparsa do futebol, interessadíssimo no pudim flan, barbeava-se de molho. Isso é uma chantagem horrorosa, Nuno, lamuriou a Mafalda, se me cortam a mesada diz-me lá de que é que eu vivo?- O balcão e os bancos altos encontravam-se agora vazios como uma praia abandonada, com cálices de bagaço e ossadas de cascas por aqui e por ali, planície de detritos iluminada pelo sol. Chantagem, sim, entristeceu-se Edward G. Robinson, compassivo, instalado no meu lugar a olear a pistola, mas arranja-me outra maneira de poder estar contigo. O careca alçou do joelho e aplicou um pontapé formidável no lulu, o qual desapareceu a ganir, de trela verde no ar, na tarde da praceta, com a dona a gemer Por amor de Deus, Armindo, por amor de Deus, que mania a tua de agredir logo o Benfica. Até o coxo se debruçou do balcão, de boca aberta, a observar o animal que se evaporava no horizonte. Vimos um rastrozmho de poeira, escutámos um estrondo e uma motorizada que guinchava de repente: Se você dormisse todas as noites em lençóis a cheirar a amoníaco, argumentava o careca para o comparsa da bola, ia a ver se não fazia o mesmo, nem calcula as vezes que pus a panela ao lume para o botar lá dentro, parece que cão de cebolada é óptimo. Ai credo, Armindo, arrepiou-se a loira. Os clientes discutiam admirativamente o pontapé. Nem sequer bateu numa cadeira, nem sequer numa mesa, nunca assisti a um chuto com uma pontaria assim. A Mafalda e eu saímos para a rua e os passos dela caminhavam, curtos, adiante dos meus: prédios feios, edifícios em construção, camionetas e pó, árvores magras a morrerem, pombos que voavam já assados junto à crista das telhas. A casa ficava uns cem metros à frente, onde se inicia a Calçada de Carriche e a cidade termina, e alastram uns campos secos e umas obras na estrada: bidões coloridos de branco e de vermelho, e cabo-verdianos que destroem o alcatrão à picareta no silêncio de província dos subúrbios. A casa: as plantas do vestíbulo, andares sem elevador, paredes riscadas de palavrões a giz, duas mulheres, uma de chinelos e outra de luto pesado, a cochicharem no patamar e a caiarem-se ao ver-nos: Já me tramei, Nuno, segredou a Mafalda, a viúva é comadre da mulher-a-dias, levam o tempo a visitar-se. Passámos por elas com um sorriso neutro, comigo a afirmar em voz alta Se a senhora me garante que a sua licença de televisão está conforme não há problema algum, a única questão é que o Estado me manda que eu a verifique, e o interesse das criaturas aumentou, e as feições pontudas e metálicas concentraram-se em mim num respeitoso terror. Atingimos o segundo patamar, fora da mira delas, e a Mafalda, baixinho, à cata da chave na bolsa de pano. Pede a todos os santos que a Conceição não esteja, pede a todos os santos que lhe tenha dado reumático. E eis o vestíbulo tal como eu o conhecia, apenas mais ocre de tabaco e a feder a guisado, a porta de vidro da cozinha, a da sala, o corredor para o quarto de banho, e na sombra o compartimento com a colecção de búzios e a estante dos livros. Lá estavam os odores do costume, as tapeçarias pretensiosas, o silêncio habitual: Entra para aí, disse a Mafalda a empurrar-me para o escritório minúsculo, com desenhos horríveis colados com adesivo à parede, e almofadas e jornais e revistas na alcatifa. Havia uma janela para a rua e permaneci de testa nos caixilhos a contemplar os cabo-verdianos de camisas miseráveis, protegidos por sinais de trânsito, que alargavam languidamente a calçada com a ajuda de uma espécie de locomotivazinhas primitivas, estalando como fogões de campanha. A Mafalda e a mulher-a-dias cumprimentavam-se do outro lado do tabique. Não a sabia cá, Conceição, alegrava-se a Mafalda, o cabelo assim torna-a mais nova. Os negros preenchiam os defeitos do alcatrão com pás cheias de pedrinhas escuras, uni ruído de latas amolgou-se na cozinha e logo a Mafalda Trouxe um colega meu para discutirmos a revista, espero que isso não empate o seu trabalho, e eu para mim mesmo, surpreendido, examinando um boneco indiano ou javanês, decorado de penas e de asas, Que discussão?, que revista? Um moinho girava numa encosta sob o mesmo céu ocre, sem nuvens, sem uma prega, sem um pássaro. Não sabia que a menina agora ganhava a vida num jornal, respondeu a voz desconhecida da Conceição, provinciana, humilde, no tom subalterno dos pobres. Oh, não é grande coisa, disse a Mafalda, uma dessas tretas de culinária e de modas, sabe como é, montes de fotografias, montes de receitas, montes de actrizes de cinema. Procurei inutilmente uma cadeira, um banco, um sofá onde pousar o rabo: Vou ficar o resto da tarde neste escritório idiota, pensei eu de pé, enquanto os pretos de blusas em tiras consertam as bermas, e acabei por me acocorar numa almofada, a sentir o peso de revólver no sovaco. O casaco assertoado apertava-me na cintura. E esse senhor que aí está colabora com a menina no jornal?, perguntou a Conceição. A jovialidade da Mafalda tornou-se íntima e secreta: É o director, um empreiteiro riquíssimo, ando a tentar convencê-lo a aumentar-me o ordenado, não convém nada de nada que ele nos oiça. A conversa diminuiu logo de tom e uma batedeira principiou a zunir, misturando gemas numa tigela de loiça. Se quiserem podem tratar do assunto no quarto, ofereceu a mulher-a-dias, só me faltam a cozinha e a sala, e a Mafalda, muito pronta, Conversas dessas não se têm nos quartos, o que é que o homenzinho ia logo imaginar, Conceição? E risos, e se calhar piscadelas de olhos, e se calhar gargalhadinhas sumidas no avental. Já tomou a outra pastilha, pensei, já está contente, e sem dores, e completamente parva. E daqui a nada chegas, imaginei eu a estender-me de costas na almofada como Edward G. Robinson, morto pela polícia, numa esquina, em Nova Iorque, daqui a nada posso abraçar-te como deve ser, de modo que tirei o casaco para respirar melhor e ocupei-me com os mil botões do colete. Acabou-se o detergente, disse a mulher-a-dias, se a menina quiser vou lá abaixo à mercearia num pulinho. Despi o coldre, os suspensórios, a camisa, e os sapatos de verniz, relutantes, acabaram por me saltar aos pés como rolhas de champanhe. Há outro pacote no armário do escritório, respondeu a Mafalda, qual ir à mercearia qual quê. E depois as calças, as peúgas, as cuecas de risquinhas, Era para não maçar o director, segredou a Conceição, as pessoas importantes não gostam que as incomodem, e mais sussurros, e mais piscadelas de olho, e mais cotoveladas, e mais gargalhadinhas. A época das cerimónias morreu, disse a Mafalda, entramos por ali dentro e pronto, e seguiu-se um atrito de pantufas, uma frigideira que tombava, e ao irromperem as duas no escritório, direitas ao armário, encontraram-me nu na almofada, de barriga para cima, agarrado à pistola, a mirá-las com os olhos mais tristes deste mundo.

 

                   Tarde

A mulher-a-dias, sem cor, recuava aos tropeços a debater-se com os móveis, eu aproveitei para me acomodar melhor na almofada à maneira de um cachorro velho a preparar a sesta. O sol iluminava-me o umbigo.

- Tens um minuto para te vestires e desapareceres daqui, Nuno, rangeu a Mafalda, como um degrau, agarrada às prateleiras, numa vertigem náutica de fúria, cercada pelo vento e pela espuma do seu ódio. Um minuto, segundo por segundo, nem mais.

Edward G. Robinson voltou-se na sumaúma e ergueu para ela os olhos sem âncora de pequinês. O pincel da pila minúsculo, pegado à barriga, badalava entre as cerdas molhadas. Nunca assisti a uma pouca vergonha destas, chiava a Conceição na cozinha, se calhar de mãos postas diante de um oratório de canecas e panelas, preparando um discurso tremendo para a mãe da Mafalda, cuja filha, de braço em ângulo recto, seguia implacavelmente o seu minuto nos ponteiros.

- Estava à tua espera, justifiquei-me a pensar nas costelas saídas nas maminhas planas, nos tornozelos agudos. Que culpa tenho eu que me entrem desta forma no escritório, ora essa?

- Trinta e nove segundos, respondeu a Mafalda, irredutível.

- Era uma brincadeira, um convite, uma surpresa, disse eu. Não sou bruxo, podia ia adivinhar que a criada ia aparecer sem mais nem menos.

- Vinte e cinco segundos, anunciou a Mafalda na feroz contagem decrescente das explosões atómicas. Daqui a vinte e cinco segundos telefono à Ana e vomito-lhe tudo.

Um objecto de barro tombou-me no ombro à medida que eu procurava na alcatifa, sem as encontrar, submersas por jornais velhos e rolos de papel de seda, a camisa, as meias, as cuecas, as calças. A Conceição gemia na cozinha, debatendo-se com a loiça, Eu nem quero acreditar, se eu falasse nisto à minha comadre ela desmaiava de certeza.

- Ainda me sobejam quatro pastilhas, negociou Edward G. Robinson, de gatas, em busca das ceroulas de atilho. Não há farmácia que te venda desta marca.

O fogo preso do sol rodopiava nos caixilhos. Um tipo de mãos atrás das costas, parecido com os que marcam o ritmo, no tambor, dos forçados das galés, observava com desprezo proprietário os cabo-verdianos das picaretas, fornecendo indicações, com o pau de fósforo entalado no espaço verde de dois dentes. Muito ao longe as quintas de Loures confundiam-se com as nuvens.

- Um homem, sem respeito nenhum, nestes preparos, pasmava a Conceição. O que é que os pais da menina vão pensar?

- Dez segundos, preveniu a Mafalda a aproximar-se do telefone. Estragaste-me a vida, não quero saber dos teus remédios para nada

- Igualzinho ao meu tio, a morrer no hospital da trombose, disse a Conceição, mudo e com um tubo e um saco pendurados das partes, esticado na cama como um bicho, esticado na cama como os defuntos antes de os cortarem. A mãe da menina falece de desgosto, coitadinha, o pai fica a resmungar horas e horas e a coçar-se como sempre que se enerva. Aquela puta, aquela puta. Edward G. Robinson encontrou uma peúga nas aparas de lápis do cesto de vime, foi abotoando a camisa ao mesmo tempo que vasculhava o chão buscando a outra, a Mafalda levantou o auscultador e estendeu o dedo para os números, indecisa, marcou o primeiro, o segundo, olhou-me aflita. Nunca mais me procures, nunca mais te quero ver. Atirou a porta de estalo e dali a nada explicava na cozinha É um doido, um tarado, um maluco, faz a mesma cena em toda a parte, já o internaram duas vezes, não se pode levar a sério, Conceição, descanse que o mandei embora, cá por mim há séculos que aprendi a não ligar. Ao acender o meu charuto de gangster descobri a outra peúga, junto à estante, e demorei-me nos sapatos de verniz que me escorregavam como lampreias entre os dedos, levando os fios dos atacadores atrás de si, idênticos aos animais estranhos que, em criança, me mostravam a nadarem, com antenas ou barbas compridas sob a boca, atrás de vigias muito grossas. Penteei-me, joguei a ponta do charuto pela janela, na direcção do calor de Setembro, e um dos negros de camisa em tiras apanhou-a do passeio, apagou-a contra a picareta e guardou-a no bolso, provavelmente para a fumar, à noite, num desses bairros de lata labirínticos, repletos de pleurisias, de pavios trémulos e de cadelas prenhas. Ai menina que se o seu paizinho sonha, disse a Conceição distorcida pelos azulejos, é capaz de matar o homem, sei lá. Os restantes pretos espiavam o do charuto com inveja, até o capataz cuspir o fósforo para os obrigar com um uivo a trabalhar de novo. Coitado, no fundo tenho pena dele, disse a Mafalda numa entoação cristã, não há médico que cure doenças deste género, nem com choques eléctricos lá vão. E se a gente chamasse a polícia para o meter na rua?, sugeriu a mulher-a-dias, eu sei cá se não nos aparece a espumar com uma faca na mão? O som das picaretas recomeçou a debicar zelosamente o asfalto. Uma camioneta descarregava tábuas. As betoneiras sopravam no ar nuvenzinhas redondas. Edward G. Robinson ajustou o coldre no sovaco, alinhou a aba do chapéu, puxou os punhos, verificou a gravata. Não há azar, disse a Mafalda, dentro de minutos some-se como veio, é o costume. Avancei dois passos, estendi a mão, e o trinco da porta do escritório pulou na artrite empenada habitual. Lá vem ele, lá vem ele, disse a Conceição, alcance-me o saca-rolhas da gaveta, menina, faz favor. E, pela janela, quintas espalhadas, o céu construído por sucessivas camadas de vidro transparente, grumos de prédios altos nos desníveis dos morros. Não há perigo, acalmou-a a Mafalda, juro-lhe que não há perigo, largue o saca-rolhas, não vá furar o dedo. Ao passar pela cozinha, onde um apavorado reboliço de capoeira se agitava, muitas asas de braços, muitas asas de saias, muitos soluços de medo, meti a mão ao bolso e lancei os comprimidos para a caverna de azulejos, Toma lá. A máquina de lavar pratos trambolhava deglutições mecânicas. A chamazinha votiva do esquentador adorava um deus de esmalte oxidado. Cautela, menina, aconselhou a Conceição, o melhor é não mexer aí que pode ser veneno, e eu reencontrei nas escadas a senhora de luto e a dama dos chinelos, cochichando, calando-se, tornando a cochichar, espiando-me em conjunto, de viés, como um casal de catatuas. Apertei melhor o casaco, no vestíbulo, para esconder o furúnculo da pistola, e as árvores anãs da praceta gingavam de cólicas ao sol. O cabo-verdiano do charuto urinava contra uma parede, e no segundo andar a Mafalda cozia o seu ódio a premeditar cartas anónimas à Ana, a pensar em deixar-me cairo aparador na cabeça, a procurar convencer a mulher-a-dias incrédula da existência da revista e do seu trabalho nela, e de que um doido varrido, sempre a despir-se onde calhava, a dirigia. Explicava os artigos a escrever (escândalos, casamentos reais, festas mundanas), o horário de galé, as noites intermináveis na redacção entre um compositor gago e uma telefonista óptima, competentíssima no crochet, por sinal, imagine a coincidência, parecida consigo, calcule, a primeira vez que lá cheguei disse para mim Olha a Conceição e afinal não era. Encostado a uma montra de brinquedos Edward G. Robinson viu as horas. Três e dez, que desculpa arranjo eu no consultório? Trotou até à paragem dos táxis e um autocarro cruzou-se comigo num redemoinho de pó: a esta hora já a sala de espera cheia, a esta hora já a enfermeira, de touca e baía engomada, em sentido junto à cadeira. Ao centro da praceta um horrível menino de bronze acariciava um cão de bronze horrível. Bancos de ripas amoleciam no calor. Se o doido toca a campainha, menina, jurava a mulher-a-dias, enfio-lhe um tacho na cabeça que o mato. Havia dois táxis livres, com os condutores, em mangas de camisa, a conversarem à sombra, empoleirados nas barricas de cerveja do estabelecimento vizinho, um gordo e um magro como nos filmes cómicos, que desembrulhavam o papel de seda de sanduíches enormes. Aproximei-me dos automóveis e o lingrinhas avisou intervalo para refeição, amigo, tente noutro lado. e o gordo, de boca cheia, mostrando o pão, a rir-se para o sócio. Ainda agora comecei a almoçar, vizinho. esse não suplicou a Mafalda à mulher-a-dias que ameaçava com uma frigideira um velhinho siderado, esse não que é o estofador que mandei cá estar às três, como vai o seu reumático, senhor Pais, não se aflija, isto hoje anda tudo nervoso aqui em casa, era aquele problema dos sofás da sala, então, Conceição, largue essa coisa, o senhor Pais é testemunha de Jeová e columbófilo, ia agora meter-se em doidices na idade dele, em quantos anos vai, senhor Pais, diga-me lá. Topa-me a cara do gajo, apontou-me o magro, parece um artista de cinema qualquer que não me lembra o nome. Ficaram um instante os dois a detalhar-me, à procura, até que o gordo, que possuía inclinações humorísticas, sugeriu Charlot com a língua entaramelada pelo pão, e eu ajeitei o casaco para sentir o revólver, abri a porta do táxi e sentei-me autoritariamente no banco. O que é isso?, perguntou o gordo de sanduíche em riste, salte daí antes que eu me zangue a sério. A indignação dele e do lingrinhas surgiram nas janelas, uma de cada lado, alguém accionou um puxador, uma manga aos quadrados estendeu-se-me para os joelhos a filar-me, as raras pessoas buscavam os toldos e a sombra dos prédios, a manga agarrou-me o tornozelo e desatou a fazer força ao mesmo tempo que uma voz irada repetia Sai daí cabrão, sai daí cabrão. Os olhos de Edward G. Robinson entristeceram de súbito: a pistola nasceu a meio do colete, disparou, e a maçã da sanduíche tombou do ramo do braço do magro, que se enrugou num som de harmónio no interior da camisa. O gordo contemplava-me de boca aberta, Tenho uma pressa dos diabos, disse eu numa vozita modesta, a pensar Com um calor assim o cadáver funde-se num instante no alcatrão, evapora-se do asfalto num nevoeirozinho de carne. Desviei a mira para o gordo, que deslizou no mesmo instante para o banco dianteiro: o carro principiou a trabalhar em sacudidelas de velha que pede esmola nas igrejas, e a alavanca das mudanças vibrava, os vidros vibravam, o tejadilho vibrava, o volante vibrava, toda aquela complicação de ventoinhas e de estofos vibrava, e eu vibrava, a acender um charuto, como um boneco sem préstimo. Descemos na direcção do centro da cidade, e só no jardim do Campo Grande, depois de dezenas de semáforos, e árvores, e camionetas, e cinemas, ele se atreveu a perguntar Para onde?, seguro de que o mandaria para um local isolado, num subúrbio, uma garagem, uma mata qualquer, a fim de levantar o revólver e carregar no gatilho outra vez, mas eu guardei a arma no coldre e respondi, sem saber porquê, esquecido do consultório, e da enfermeira, e dos doentes, no mais pequenino, mais melancólico, mais indefeso murmúrio deste mundo, Para o Beato, faz favor, e a nuca e os ombros do gordo distenderam-se de alívio, e o som do taxímetro cresceu de intensidade, e a sombra da aba do chapéu ocultava-me a doçura de agonia das pupilas.

Então rodámos para a esquerda, pela Avenida dos Estados Unidos da América, pela Avenida do Aeroporto, ao longo de prédios luxuosos com clínicas veterinárias porta sim porta não, nas quais sujeitos de bata examinavam amígdalas de canários, e durante o trajecto até ao Beato, ou seja, Areeiro, Rua Morais Soares, Alto de São João, Madre de Deus, correndo nas ruas e bairros mais feios e descoloridos de Lisboa, não pensei nas cáries que transbordavam a gemer na sala de espera, não pensei nas horas, não pensei para onde ia sequer, pensei na Mafalda a tentar angustiadamente convencer a Conceição da loucura inofensiva do director da revista, pensei na Conceição a contar escandalizada à patroa o episódio do homem nu na almofada, na mãe, cheia de cremes, a narrar por seu turno ao marido, no quarto de banho, depois dos dentes lavados, ambos de comprimido para dormir na palma, que a filha recebia tarados perigosos no Lumiar, pensei no pai a convocar a Mafalda, no dia seguinte, à empresa, e a perguntar-lhe, detrás da secretária, na absurda solenidade dos pais, A tua mãe veio-me ontem à noite com uma história dos diabos, o que se passa ao certo.

Mergulhámos por baixo da ponte de ferro, já junto ao rio, antes de iniciar a subida do Beato, entre edifícios antigos de fábricas, cujas operárias, de uniforme castanho, tagarelavam ao portão. Anúncios com música acotovelavam-se no rádio do táxi, Uma história dos diabos?, espantou-se a Mafalda, reclames de detergentes, máquinas de costura, tinta de pintar paredes, chocolates. O sinaleiro perto da igreja, distraído do trânsito, escutava fascinado a dona ruiva da retrosaria. Vire aqui, o gordo obedeceu a suar, uma rampa íngreme, palmeiras, À direita agora, Que se passam poucas vergonhas no sítio onde moras, disse o pai à procura do isqueiro nos papéis da mesa, que a Conceição deu com um homem de revólver despido na alcatifa, e a Mafalda, indignada, Poucas vergonhas?, poucas vergonhas?, o pai acha-me capaz de poucas vergonhas nesta idade? Lá estava a casa enorme do visconde de Não Sei Quê no meio dos plátanos, com janelas e janelinhas e postigos e varandas e escadarias e terraços, o chofer de farda a arear à entrada um automóvel enorme, e vivendazitas modestas em torno, a antiga carvoaria, o início enovelado de um bairro de barracas de madeira, com crianças timorenses, de polegar na boca, misteriosas e sujas, e logo após o portão azul dos cisnes de gesso Edward G. Robinson sacudiu a cinza, Pare-me a carruagem que é aqui.

- Três meses sem mesada, sentenciou o pai da Mafalda, no meio dos seus mognos, das suas gravuras inglesas e das suas enciclopédias encadernadas. Três meses a trabalhar a sério não te fazem mal nenhum, minha menina.

O gordo parou o taxímetro. No espelho retrovisor os olhos dele dissolviam-se de pânico. À medida que a tarde avançava o céu de Setembro, sem nuvens nem pássaros, tocava no rio e nos vagões de carga da margem, abandonados na erva e nas pedras dos carris. Pousei o charuto no cinzeiro cromado e vasculhei os dólares na carteira.

- Tendo o emprego na revista não te fará diferença, disse o pai da Mafalda no seu inexorável tom morno, em que as palavras pendiam à saída dos lábios como caules doentes.

- Não é nada, senhor, disse o gordo em cuja cara redonda nasciam a cada momento novas rugas de medo. Espero o que for preciso, se quiser, horas são coisas que não me falta, felizmente.

- O gancho no jornal é temporário, argumentou a Mafalda. De um momento para o outro, zuca, acaba.

Abri a porta, pequenino e lento, a abotoar o casaco e a alisar o chapéu, enquanto o gordo recuava, a esvoaçar no espaldar, para o mais longe que podia. Com a tua queda para arranjar empregos não te preocupes, disse o pai da Mafalda, dentro de dois ou três dias, é canja, nomeiam-te directora de uma multinacional qualquer. A seguir ao portão e aos cisnes de gesso sacudia-se um badalo sob uma lanterna de ferro forjado, a que se colavam dezenas de insectos miúdos e de borboletas mortas. Peguei no cordão do sino e um cabrito baliu nas profundas da casa. Não há empregos a nascerem do chão e o pai sabe isso lindamente, protestou a Mafalda, além de que depois da cena de anteontem sou despedida de certeza. O pai arrumou uns papéis na gaveta, saiu, e a Mafalda ficou sozinha a detestar-me, Eu já devia adivinhar que aquela besta de merda me pregava uma destas, que o sacana me lixava a vida para se vingar da minha tampa, a detestar-me numa fúria que aumentava, lembrando-se de mim a torcer-me nu na almofada, lembrando-se do pasmo da Conceição e dos seus persuasivos esforços de oratória inútil na cozinha, pensando que se telefonasse ou escrevesse à Ana perdia irremediavelmente a última pessoa que lhe emprestava vestidos, que lhe emprestava dinheiro, que conversava com ela, ia com ela ao cinema, lhe conferia apesar de tudo uma sombra de dignidade, um estatuto social de importância periférica mas autêntica. Voltei à corrente e o cabrito tornou a balir nas entranhas de móveis e de quadros da casa. O táxi descia no sentido de Cheias e das fileiras de armazéns do outro lado das calhas, e sumiu-se no muro da igreja com o gordo a olhar para trás num pressentimento de metralhadoras. O cabrito baliu uma terceira vez no corredor da casa dos meus pais, e escutei a costureira idosa perguntar Quem é?, enquanto eu mirava as petúnias e a relva maltratada dos canteiros, puída como os cabelos dos mendigos, os jarros e outras flores de que nunca na vida conheci o nome, igualmente puídas e secas, plantadas na terra seca como bocas com febre, e interroguei-me, admirado, Porque catano é que não regam isto?, porque catano não ligam nenhuma ao jardim?, e de repente a porta abriu-se e nada se alterara desde a minha última visita, só o espaço mais claro de uma salva ou de um prato que faltavam na parede. A costureira sorria. Boa tarde, senhor doutor, Boa tarde. Eugenia, a minha mãe está cá?, mas a pergunta era inútil porque se ouvia a voz dela, muito alto, na sala. A jogar as cartas com o senhor Assírio, disse a. Eugenia, e eu, para mim mesmo, Assírio? Assírio?, deve ser uma descoberta recente do meu pai para lhe pagar as dívidas, um cretino que caiu na armadilha dele como um anjinho. Todas as tardes são cartas até o seu pai chegar, e eu Ai sim?, E acontece cearem os três no gabinete pequeno, e eu Ai sim?, a avançar corredor fora na direcção da claridade à minha frente, a reconhecer os cheiros do costume e a saber exactamente onde as tábuas do soalho cediam sob a passadeira, até atingir o limiar com a consciência de a costureira me espiar, do cubículo da máquina de coser, onde a roupa se amontoava num tabuleiro de vime, e ver a minha mãe e um homem bem vestido, de pouco mais que a minha idade, instalados a uma mesa de jogo, cada um com o seu copo, e ver o decote, e os sapatos, e os modos, e o perfume dela, estranhar Isto não se assemelha a uma conquista como as outras, se calhar o velho errou no cálculo, se calhar a velha apaixonou-se, ver a maneira um pouco ridícula de esconder a idade debaixo de tantas pérolas falsas e do penteado idiota que em lugar de a rejuvenescer a apodrecia ainda mais, e a saia subida, e as pernas engelhadas ao léu, e a segurança do tipo, a certeza de que a tem nas unhas, submissa, estúpida, transformada por amor num palhaço colorido e imbecil, pronto às patetices que lhe ordenem, de forma que levei os dedos ao coldre da pistola; senti o frio da arma, desisti, palpei os charutos no bolso de fora do casaco, e ao riscar o fósforo na ombreira a minha mãe levantou a cabeça e deu comigo entre os sofás e as cantoneiras e os armários e os retratos, de chapéu até às sobrancelhas e fato assertoado às riscas, com a boca torcida num acento circunflexo de desgosto. As unhas vermelhas luziram num adeus e o Assírio, pulando bibelots e molduras, seguiu-lhe o gesto ao comprido da sala e encontrou-me. Cortava o cabelo num cabeleireiro de homens e o casaco era irritantemente novo e caro, comprado numa loja italiana. Onde pára o telefone?, perguntei eu, e a minha mãe, num sorriso de cocote, Nem ao menos se cumprimentam as pessoas, seu maroto, e inclinei a cabeça a um e a outro e ela pegou novamente nas cartas, Procuraste em cima da poltrona ou nesse tampo de vidro?, e eu a pensar Aposto que já mostrou a este cabrão o meu quarto de solteiro, com a fotografia da Ana adolescente, os meus brinquedos na arca, os livros do liceu e os dicionários com os palavrões sublinhados, aposto que o obrigou a gramar as minhas proezas palermas de garoto, as minhas espertezas patetas, a graça infinita das minhas respostas sem graça, e Repare nos soldados de chumbo do meu filho, e Este foi o mecano que lhe ofereci aos doze anos, e Nesta cómoda arrumava ele os automóveis de corda, remexendo assim, sem vergonha, na minha pobre intimidade, como se expusesse o meu sexo transido na inspecção da tropa.

- Consultório médico, disse a voz da enfermeira na eterna modulação de carrasco dos gabinetes de dentista.

Edward G. Robinson falava de pé, de charuto na boca, virado para a mãe, que, de óculos presos no pescoço por uma correntezinha de tartaruga, mudava em contraluz a posição das cartas, com os salgueiros do jardim pegados aos vidros da varanda, de perfil quase tão jovem como a primeira lembrança que guardava dela. A mão esquerda adormecia como que casualmente na mão do namorado, afagando-a numa lentidão distraída, a direita trocava valetes e ases numa hábil velocidade de arvéloa.

- Judite? Está? Judite?, berrei eu num chorrilho de estalos. Ou este PBX é uma trampa ou então a empregada põe-se a ouvir as conversas e mistura as linhas numa confusão do caraças. Ainda hoje de manhã me disseram isso, temos de a despedir um dia destes. (Os estalos volatilizaram-se.) Não posso ir aí à tarde, dói-me a cabeça, ando mal disposto. Veja se consegue entalar os doentes nos furos da próxima semana: explique-lhes que parti uma perna, a bacia, seis falanges, eles só se contentam com acidentes terríveis, invente uma catástrofe, uma desgraça, a morte de um filho, por exemplo.

- Jesus, disse a enfermeira, impressionada. Um desarranjo de intestinos não basta?

- Gostam de sofrer, gostam que lhes doa, Judite, por isso é que frequentam a gente, tem que ser uma tragédia que os regale. No seu juízo perfeito quem se sujeita a uma broca? São malucos completos, são suicidas em potência, acredite que são neuróticos masoquistas.

- E os de amanhã?, perguntou a Judite depois de um espaço de silêncio durante o qual deve ter contemplado com mágoa os seus ferros inúteis. O senhor doutor também faz tenções de partir as falanges amanhã?

- Não, não, respondi eu, amanhã fornecemos-lhes a alegria de os magoar a sério. Pagam-nos para aleijar, Judite, para martelar, para extrair, para brocar, e sem gritaria as cáries da sala de espera sentem-se traídas.

Olhei a minha mãe, que estudava as cartas espalhadas na mesa num risinho de abutre triunfal: envelhecera irremediavelmente vinte anos nesses segundos, e aparentava-se agora à senhora idosa que era, debruçada, de tisana ao lado, para o puzzle da reforma. O meu corpo sentia-se, não sei porquê, parte do seu corpo, e a juventude do homem, ali plantado na cadeira, de uísque na mão, atlético e saudável, insultava-nos a ambos.

- Ah é verdade, disse a enfermeira, a sua esposa telefonou a pedir que lhe ligasse com urgência.

Os estalos aumentaram de intensidade, entremeados de assobios, e ouviu-se nitidamente uma tosse escondida no lenço ou no punho fechado, que se afastava à pressa, como um rato, pelas pernas de móveis das palavras.

- Olívia, urrei eu como para um quarto onde me ameaçassem sombras. Olívia.

- Assustou-se e desligou com certeza, disse Judite.

Ou então algum dos outros senhores doutores a chamou. No fundo não é má pessoa, sabe, não merece a pena enfurecer-se com ela.

- Não a quero aí a trinta deste mês, o mais tardar, disse eu. Que vá escutar conversas para o raio que a parta.

- Tenho a sua esposa em linha, senhor doutor, participou a Olívia numa suavidade submissa. Deseja comunicar-me o número em que se encontra?

- Sempre quero ver como se desembaraça desta, Assírio, disse a minha mãe a tirar os óculos do nariz, reflexos de vidro logo perdidos no peito na confusão dos colares. Se resolver as copas dou-lhe um doce.

Edward G. Robinson cuspiu um fragmento de tabaco do beiço, marcou o telefone de casa e escutou de seguida a ansiedade sem pausas da Ana. Temos de ir imediatamente ao Alentejo, o avô está muito mal.

- O quê?, perguntei eu com o largo da igreja na memória e a nau de pedra da vila, encalhada no topo do seu monte, perto da fábrica de celulose a das cascatas irregulares do Guadiana. Esse velho há-de enterrar-nos a todos e durar mil anos. Já o vejo, atrás dos nossos caixões, de samarra e de botas de montar.

O Assírio acendeu um cigarro e a mão dele caiu no pano verde ao lado da mão da minha mãe. O dedos da velha tiveram de trepar pelo pulso do outro, como os caranguejos da praia subindo na vazante as suas rochas. As pinças das unhas vermelhas beliscavam pêlos, brincavam com as veias, demoravam-se em carícias compridas no côncavo da palma.

- Telefonaram-me há meia hora, disse a Ana, deu-lhe a trombose ontem à noite a seguir ao jantar. Entrou logo em coma e o médico de Reguengos avisou que se ele aguentar hoje é uma sorte.

Reparei que as pernas da minha mãe e do Assírio se entrelaçavam sob a mesa, que os sapatos dela se agitavam, que as meias de rede iam e vinham entre as coxas do homem.

- Passa pela António Augusto de Aguiar e traz o meu irmão de caminho, ordenou a Ana. Levamo-lo connosco para a vila. E de súbito o comboio eléctrico do meu sogro, que ocupava um compartimento inteiro lá em cima, com as gares de papelão e o celulóide das árvores, rodou-me na cabeça nas calhazinhas de lata.

- Estou em casa dos meus pais, demoro meia hora, vou já, disse eu à medida que tornozelos e joelhos dançavam, debaixo do baralho, o fox-trot da paixão. Não me senti bem no consultório, deu-me uma tontura, uma vertigem, meti-me num táxi e aterrei aqui. Logo que me achar melhor vou buscar o carro e o miúdo. Se ele estiver nas aulas ou no judo, claro.

- Você trocou as cartas, disse o Assírio, esta dama de espadas não pode ser aqui.

Depois dos ramos da acácia do jardim, para poente, as cores adquiriram, em lugar de tons cruéis das três da tarde, as manchas plausíveis dos desenhos das crianças, ou seja, o céu azul, o sol amarelo, o muro branco, tudo como deve ser, de acordo com uma ordem sensata. A partir da segunda semana de Agosto as rolas deixam de voar, depenadas e fritas, de telhado em telhado.

- Não tens que me dar justificação nenhuma, disse a Ana, há quinhentos séculos que não me preocupa nem um chavo o que tu fazes. Quanto ao meu irmão, telefonei para a António Augusto de Aguiar e claro que está lá à tua espera.

- Debaixo das cómodas como de costume, disse eu a pensar no meu cunhado, eternamente escondido sob as cadeiras, apesar dos dez ou onze anos que tinha, acocorado entre os tornozelos dos adultos, a revirar uma miniatura de furgoneta nos dedos.

- Enganei-me com a dama e agora?, perguntou a minha mãe a tentar reconstruir a jogada, a tropeçar nos naipes, a teimar. Que tal desistirmos e começar um crapaud novo, sem erros?

O telefone desligou-se no outro extremo como um ramo que se quebra, e o Assírio sorria perto de uma fotografia minha de criança que lhe sorria também. Uma série de objectos de bronze arrumava-se por cima da lareira, a minha mãe distribuía o baralho e o homem, de queixo na palma, observava as cartas com os olhos cegos dos animais das noras. Edward G. Robinson levantou o chapéu, desapertou o coldre e entornou-se numa poltrona de orelhas. Nem ao menos um beijo, nem ao menos olá?, chorou-se a mãe com a mão da aliança sobre a mão do sujeito, e eu pensei, Quando era pequeno encontrei-te uma tarde a beijar o sócio do meu pai no corredor, e lembrei-me como a velha se colocava em bicos de pés para chegar à boca dele, dos cotovelos em torno da calva do outro, das nádegas espetadas no vestido preto. Pensei Nesse tempo o meu pai passava noites sem voltar a casa, e no dia ou nos dias seguintes fechavam-se os dois no quarto a discutir (morávamos, na época, na Estrela, e porém conhecemos dezenas de apartamentos antes e depois, não só em Lisboa mas também em Sintra, Cascais, Loures, Fogueteiro, São Domingos de Rana, Alcoitão), e escutava o meu pai a convencê-la, Peço-te que sejas simpática com o administrador, Isabel, preciso desse contrato a todo o custo. De maneira que os negócios dele era a minha mãe quem os fazia, e ao regressar do colégio dava com cigarrilhas desconhecidas no cinzeiro, a minha mãe estendida no sofá a olhar o tecto, aborrecida, e as criadas a cochicharem na cozinha, a calarem-se à minha entrada, a interessarem-se demasiado por mim, a exagerarem no toddy do leite. O comandante gosta de ti, Isabel, trata de ser um bocadinho menos arisca, ciciava o meu pai, já imaginaste a sorte que nos bateu à porta? Sessenta helicópteros franceses para Angola, topa-me a comissão, a sala a transbordar de pratas, o armário da minha mãe a transbordar de casacos de peles, a garagem da casa a transbordar de automóveis, a minha semanada a crescer. Com a continuação da guerra é uma fortuna autêntica, argumentava o meu pai, o que te custa convidá-lo uma tarde destas para tomar chá: e não lhe custava a ele mas custava-lhe a ela, pelo menos de início, antes de compreender que podia escolher também os amantes que lhe apetecia sem se importar com os negócios do marido, e custava-me a mim, sentado com eles à mesa do jantar, depois de ter visto um secretário de Estado, ou um general, ou um ricaço importante atravessar nu, à pressa, o corredor para a retrete, fulanos idosos, de corpos feios, barrigudos, sem graça, com as farripas grisalhas em desordem. Custava-me estar ali no meio dos candeeiros e das loiças, vê-los servirem-se, comerem, falarem comigo, perguntarem pelos professores, pelas aulas, pelas notas, ter de encará-los, ter de ouvi-los, ter de responder-lhes, e sentir enjoo e dores de estômago, até que, com os anos, tudo isto se foi atenuando a pouco e pouco e acabei por não me importar, por me ser indiferente, por dialogar com eles sem angústia nem cólicas. Na altura dos acontecimentos deste livro, ou seja há sete ou oito anos, na época em que se fugia de avião para o Brasil, visitava-os sem sofrimento nem zanga nem afecto, assistindo à sua lenta decrepitude, à sua morna decadência, à sua mansa raiva sem palavras, esquecido da cama desfeita às três da tarde ou das tentativas dele, de sombras nas pálpebras e cremes nas bochechas, para seduzir os amigos adolescentes dos meus primos, os meus amigos, os marçanos, os choferes, seduzi-los com convites para passeios de automóvel ou fins-de-semana no Algarve, seduzi-los entre murmúrios, piadas, risadinhas, um pai de súbito insolitamente feminino, a requebrar-se como uma mulher, a soltar exclamaçõezinhas de mulher, a acender os cigarros como uma mulher, um pai que pintava o cabelo, envernizava as unhas, se perfumava de um modo exagerado, saía à noite para misteriosas excursões por Monsanto ou pelos jardins dos Jerónimos, de onde regressava de manhã, de maquilhagem a escorrer pelas bochechas, escalando os recifes dos degraus a caminho do quarto. E tudo isto alternado com as idas a Fátima de ambos, as penitências da semana santa, os jejuns, as missas, a intimidade com o prior, a virtude intransigente e a piedade cristã.

- Nunca nos visitas, nunca queres saber de nós, nunca te preocupas connosco, disse a mãe numa vozita ausente, aflita, onde encaixar um seis de ouros. O calor pegava fogo aos cortinados, a tesoura do jardineiro decepava ramos no quintal. O Assírio, na alternância de sombras e luzes da janela, regressava à mesa chocalhando o gelo.

- Vim vê-la hoje, disse eu. A meio da semana e tudo, repare.

Alguns dos móveis (os do vestíbulo, os do quarto, os do escritório, por exemplo) eram ainda os mesmos da minha infância, mas a maior parte havia mudado e melhorado, peça a peça, ao comprido dos anos, cómodas antigas, gravuras, aparadores, sofás, um luxo próspero, excessivo, exuberante, que a presença de um batalhão de criadas garantia.

- É a sua vez de jogar. Assírio, disse a minha mãe a introduzir um cigarro na boquilha, ao mesmo tempo que uma criatura de farda empurrava o arado do carrinho do chá de tapete em tapete, estremecendo óleos e molduras.

- Resolvi visitá-la, disse Edward G. Robinson, encolhido na poltrona, porque não fazia a mínima ideia que esse idiota cá estava.

O Assírio levantou uma carta e sorriu, a minha mãe agitou-se no assento numa angústia de libélula, pratinhos de biscoitos viajavam entornando migalhas, o avental e o colarinho da empregada afiguravam-se de gesso. O pai?, perguntei eu, e as minhas palavras escorregaram, perdidas, para o chão, desagradáveis e ácidas. O Assírio, debruçado para o crapaud, resolveu as espadas, depois as copas, e abria espaços empilhando naipes e figuras. Perdia cabelo e uma nódoa cor de cera alastrava-lhe sem piedade na moleirinha. Se calhar eu também pensei, os anos são uma gaita do camandro, daqui a pouco vou lá dentro estudar a cabeça com um par de espelhos, verificar as rugas, indignar-me com o inchaço do estômago, medir prega a prega, até à minúcia dos milímetros, o que me separa da morte.

- No escritório, como de costume, disse a minha mãe numa careta. A esse então é que não lhe ponho a vista em cima há milénios.

- No próximo mês abrimos os dois uma firma de representações, disse o Assírio, que ganhara a partida, estendendo vagamente o copo à saúde de nada. Agora, com todo o mundo no Brasil, pode ser que com um bocadinho de audácia se consigam resultados interessantes.

- Continua alguém preso da família da Ana?, disse a minha mãe a esticar as peles do pescoço com os dedos. Parece impossível o que os comunistas lhe estão a fazer, coitados.

A criada do tabuleiro do chá lavrava agora os tapetes em sentido contrário, levando os seus objectos tilintantes, arco após arco, para a goela escura do corredor.

O sol dissolvia-se nas cortinas em losangos de pó. Os quadros mais altos desapareciam na sombra. Cheirava a tinta de água e ao perfume agressivo e antiquado da velha.

- O seu pai garante que em seis meses, o máximo, recuperamos o capital investido, disse o Assírio numa expressão vazia, a calcular percentagens e números. Com sorte, a partir da Primavera é só entrar.

- O Assírio tem umas libras de parte, disse a minha mãe a acariciar-lhe a mão, a roçar-lhe o indicador na papada, a apertar-lhe o nariz. Daqui a um ano, vais ver, já cada um deles comprou um Cadillac de ouro.

Quando eu era pequeno não mudávamos de casa porque prosperávamos, porque enriquecíamos, porque os meus pais preferiam uma vivenda a um andar ou vice-versa, porque apareceu uma pechincha por tuta e meia na Lapa e é uma pena não comprar, porque o cardiologista recomendou praia à minha mãe, porque o pediatra me proibiu o mar: mudávamos por causa da incompreensão obtusa dos credores, das letras não pagas, do receio dos fiscais dos impostos, do escândalo, do tribunal, da cadeia. Mudávamos para ganhar tempo, para enganar os oficiais de diligências, para fugir, enquanto o meu pai, imperturbável, continuava a acenar-nos com operações miríficas, manobras na bolsa, o petróleo dos árabes., um tesouro perfeitamente ao nosso alcance escondido na algibeira de um comodoro na reserva (Tem paciência, Isabel, preciso da tua ajuda para isto), preocupado, aliviado, nervoso, satisfeito, enganando, pedinchando, argumentando, escapulindo-se, e isto dias e semanas e meses e anos a fio, desembarcar da camioneta do colégio e dar com a cozinheira no passeio, à minha espera, vestida com a roupa dos domingos. O chofer e os outros meninos espreitavam lá de cima, esborrachados nos vidros, intrigados. O negócio do futuro, gabou-se o Assírio, daqui a um trimestre a gente fala: a cozinheira e eu partíamos a pé, por avenidas desconhecidas, a caminho do endereço novo, ruas e ruas, alamedas, teatros, militares de bronze, tardes que principiavam lentamente a ser noite. Também não acho que o general seja assim tão velho, Isabel, insistia o meu pai, no fim de contas setenta e oito anos não são nada, até alcançarmos um andar, oculto por outros andares, em Alvalade, ou um apartamento ruinoso na Penha de França, ou uma vivenda decomposta em Benfica, malas pelo chão, jornais que embrulhavam castiçais e travessas, toalhas ao acaso, a claridade doente das lâmpadas sem quebra-luz. O meu pai, na ponte de navio da confusão e do lixo, dava ordens à minha mãe e às criadas, Isto aqui, aquilo ali, o caixote inteiro na copa, olá filho já vieste?, deixe ficar por enquanto os quartos como estão, Delfina. Os meus passos poeirentos reboavam pelos quartos desertos. Daqui a um mês levantamos a cabeça, Isabel, daqui a um mês tiro-te as jóias do prego, iates prometidos, limusinas com trintanário, cavernas de Ali Babá quando se dobrava a esquina, e afinal lavatórios que não funcionavam (o canalizador extraía com um gancho rolhões gotejantes de cabelos), o estuque a cair, os colchões de arame rebentados das camas. Que maravilha de casa, exclamava extasiado o meu pai, não me digam que não gostam pelo menos da vista, e pisava-se o estrume da varanda, e olhava-se, e tornava-se a olhar, até descobrir por acaso, entre esquinas aftosas e centenas de chaminés fumacentas, uma esborratada, improvável, duvidosa nesguinha de rio.

- Nunca o levei lá acima ao meu quarto, Assírio?, perguntou de repente a minha mãe num gesto amável de cicerone. Nunca viu os meus leques japoneses?

Sempre que tal acontecia e o meu pai chegava a casa entretanto, esticava a orelha na direcção do corredor, a ouvir os sons, a entender, a aprovar, a sorrir, verificava os cigarros na algibeira, esquecia os olhos no jornal. Lia as notícias surdo aos ruídos, folheava o desporto, alegrava-se com a necrologia, até apagar a beata e desviar-se, páginas adiante, para os crimes e os roubos, após observar complacentemente um isqueiro esquecido, retirava a lapiseira do casaco, e eu pequeno, diante do copo de cacau e do pão de leite do lanche, a repetir Não quero comer, não quero comer, não quero comer, para uma cozinheira muito mais nova, que me mirava, das bandas do frigorífico, numa careta desolada.

O meu pai, de perna cruzada, alheio às vibrações do quarto, completava os hieróglifos comprimidos e passava às sete diferenças de dois desenhos na aparência idênticos, representando um rapaz e uma rapariga a passear de mão dada no campo sob a órbita de sogra de uma vaca, até a velha, em roupão, se lhe sentar no braço da poltrona, apontar com o médio. Os sapatos da mulher não são iguais, marca uma cruz, beber-lhe o uísque, espreguiçar-se, bocejar (um tipo qualquer ressonava no quarto) e soltar as crinas do cabelo com as palmas. Mais um tropa e exijo o divórcio, Fernando.

- Não quero sair tarde por nada deste mundo, dissera a Ana antes de desligar. Faz-me impressão o avô a morrer e a estrada cheia de mochos nesta altura.

- Mochos?, perguntei eu, ausente, a pensar no problema do jornal.

- Há uma nuvem a menos no de cima, disse a minha mãe, muito pronta. Não tens jeito nenhum para estas coisas.

Verrugazinhas fosforescentes, marcos brancos e encarnados separando o alcatrão dos campos, e os mochos pequenos de Montemor e de Reguengos, mochos das oliveiras e dos chaparros do Guadiana, das casas abandonadas à beira-rio, uma parede e um pedaço de tecto comido peio vento das águas.

- E o sol, disse vitoriosamente a minha mãe a apoderar-se da página, tem mais três raios neste que naquele.

- Isso nota-se à légua que é defeito tipográfico, contrariou o velho. Estas bodegas andam cheias de defeitos tipográficos, desde a revolução, que é uma vergonha nos jornais.

Mochos nas chaminés, nos muros, nos buracos do castelo, nas cavidades amarelas dos meus dentes, mochos afogados a caminho da foz, e o comboio eléctrico do meu sogro a tropeçar nos pássaros mortos do sótão, a tombar de lado esperneando as rodas como baratas, mochos que o meu sogro afastava com uma vassoura das locomotivas minúsculas, pássaros que chamavam a febre, arrepiavam as ervas e os bêbedos, e acordavam o outono rente ao pano da muralha.

- Defeito tipográfico o tanas, disse a minha mãe. Ora vai ver lá adiante às soluções, fazes favor.

Pode ser defeito tipográfico e pode não ser, disse o Assírio, consultado. Eu deixava essa questão do sol para o fim.

- Dá-me imediatamente o jornal, Isabel, zangou-se o meu pai, a tentar roubar-lhe as. folhas que se torciam e rasgavam. Deixa-me descobrir sozinho, que gaita.

- Chatearem-me por uma ninharia, doeu-se o Assírio. Isso a mim até me aborrece, palavra.

- Cá está, disse a minha mãe pisando notícias com os saltos, a agitar as soluções. Quem tinha razão com a porcaria do sol era eu.

Porcaria, não: a brisa, a luz, as poupas, este rumor múltiplo da tarde, os insectos, o musgo do rio e a Espanha à distância de uma fisga. Descíamos de jipe para o Guadiana, a baloiçar nos desníveis dos calhaus, porcaria, não, a Ana encostada a um tronco, de máquina fotográfica ao pescoço, a sorrir, Ia jurar que era defeito tipográfico, tinha aspecto de defeito tipográfico ou não tinha, Assírio, seja franco, caramba, não se acanhe: porcaria não, os oleiros do Arrabalde, a minha sogra que dormia com o cunhado, a tia mongolóide da Ana a gritar na cozinha, a prima que parira do tio, porcaria, não, porcaria é este sol, sol de papel pendurado da trave do sótão e os mochos a apodrecerem entre gares postiças e o boné agaloado de chefe de estação de Vendas Novas, terra de soldados e poeira.

- Ó Assírio, por amor de Deus, disse a minha mãe a desrolhar o uísque, você não está a ser sincero, você não vai querer que eu acredite que nunca pegou num livro, pois não?, e o meu pai, com uma perversa luzinha de vingança na cara, Há pessoas assim, nem compreendo o teu espanto, e o amante, remexendo o gelo do copo com o indicador, Garanto-lhe que nem no Colégio Militar, já vê, copiava os pontos do da frente, compro as Selecções no princípio do mês e é um pau, deito uma olhadela e chega.

Há sete anos, mais coisa menos coisa, choviam mochos mortos no sótão, os comboios eléctricos emperravam nas calhas e caíam enquanto o meu sogro, de calva em batalha, endireitava as carruagens amolgadas.

Há sete anos Edward G. Robinson despediu-se da mãe surpreendida e não tornou a vê-la (Que horror, Assírio, você interessa-se por cada chumbada, Santo Deus), abandonou o Beato sem um único olhar aos prédios e ao Tejo, onde um paquete árabe ou australiano ou congolês descia, oblíquo, para a foz. Caminhou um pedaço de mãos nos bolsos, sem pensar em nada, sem sentir nada, sem ver nada, com o peso do revólver no casaco assertoado de listras, e há sete anos dirigiu-se ao parque de estacionamento, na rua paralela ao consultório, a fim de procurar o automóvel entre dezenas de automóveis idênticos, para conduzir a mulher e o cunhado criança às silenciosas e nocturnas octogenárias de luto do Alentejo, tão de pedra enrugada como as azinheiras do Verão.

 

                   Noite

Como sempre pendurou-se mais de meia hora da campainha da Avenida António Augusto de Aguiar, a escutar a ausência de vozes e de passos lá de dentro, enquanto os pardais me cobriam o carro da ferrugem de mil crostas, e o elevador antigo do prédio subia e descia em guinadas de cólica, transportando fornecedores de avental e velhotas de véu. A Gisela, surda, vivia no quarto dos armários como os vermes nas maçãs, o miúdo passava o tempo de gatas, acacorado sob as mesas, sem falar, de maneira que o apartamento dos pais da Ana, eternamente sem luz, com todos aqueles jarrões e aqueles samovares e aqueles quadros, se aparentava a um museu fechado numa terça-feira de Outubro.

Ao cabo de quarenta minutos, quando pensava Desta feita é que a Gisela e o garoto mararam (uma fuga de gás, a comida estragada, pesticidas tomados por engano com a sopa), ouvi uns sussurros conspiratórios e uns passos muito ao longe, estrangulados pelos reposteiros, uma respiração asmática que se aproximava e crescia, ritmada pelo atrito das pantufas nos tapetes, a ordem, aos gritos, Fique debaixo da cama, menino, que podem ser gatunos, o óculo da porta onde um olho deformado e míope me devassava, comigo a berrar, por meu turno, Sou eu, Gisela, o marido da menina Ana, pode abrir. A asma aumentou de intensidade e hesitação, Venha cá espreitar, menino Francisco, que eu sem as lentes não distingo nada: correrias de criança, uma pausa, a Gisela, impaciente, Se não chega ao óculo traga uma cadeira, que azelha, um móvel arrastado, nova pausa, a asma e a correria que diminuíam para conferenciar na cozinha, os passos que cochichavam à asma e esta, desconfiada, O menino está mesmo seguro que era ele?, o melhor é tirar-me daí a cadeira enquanto eu vou buscar as lentes à caixa da costura. A Gisela morreu na distância incomensurável, de caverna, do apartamento, mas devia precisar de umas segundas lentes para encontrar as primeiras porque nunca mais voltava: Francisco, disse eu, deixa-te de mariquices e abre a porta. A criada agitava objectos tilintantes nos antípodas, O menino viu o estojo dos óculos, por acaso, e eu sentia o meu cunhado, a centímetros de mim, dividido entre obedecer ao marido da irmã ou trotar a esconder-se de cócoras debaixo de uma camilha qualquer, abraçado a um carrito de brinquedo. A asma aproximava-se entretanto, a arrastar uma coisa pesada que embatia nos armários pela alcatifa adiante.

- Jura pela saúde dos seus filhos que é mesmo o senhor doutor?, uivou a Gisela.

Um pote estilhaçou-se no chão e a criada, para o Francisco, Tome cuidado que sem os óculos ainda me engano com a tranca. Várias chaves começaram simultaneamente a girar nas fechaduras, a corrente saltou, um gancho deslizou com ímpeto na sua manga como o metropolitano que atravessava as fundações do prédio enxotando à frente a cama e a mobília barata da porteira, e dei com uma centenária pequenina, de avental, beligerantemente armada de um oxidado varapau imenso, e dos olhos do meu cunhado que espreitavam de um vaso chinês, assustados como o-;- dos raios doentes. Havia tanto reposteiro nas janelas que se diria Dezembro, e o bolor alastrava no estuque do tecto numa proliferação outonal.

Não telefonaram a prevenir que eu vinha buscar o menino Francisco?, perguntei eu, do capacho, à Gisela. que piscava as pálpebras no vestíbulo a reconhecer-me os contornos. Não lhe disseram que o pai do meu sogro está de cama, que temos de ir ao Alentejo ainda hoje?

Os olhos que espiavam do vaso chinês desapareceram no corredor, o pote espalhava os cacos no mármore. A Gisela deixou cair a tranca e avançou, com um dos tornozelos de rojo, para se inteirar melhor. Cheirava ao que cheiram os lençóis antigos, isto é, a grelado, a cânfora e a rocas de alfazema, e também ao odor confuso da idade, remédios, poças de urina estagnada entre pregas da pele, cuecas de renda e Trás-os-Montes, mas as pupilas, inexoráveis, pesquisavam o meu rosto através do duplo nevoeiro da cegueira e da surdez, numa minúcia de castor.

- A mala do menino Francisco está pronta., disse eu. A menina Ana não falou consigo?

A Gisela chegou-se mais, a procurar entender. O meu cunhado devia gatinhar sob as secretárias, com um Super-homem de plástico, já sem um pé. no bolso.

- O quê?, bramiu a criada de cabeça ao nível do mármore do vestíbulo, apanhando os fragmentos de porcelana com as pinças de caranguejo, deformadas pela gota, das falanges, Talvez que os seus ouvidos se aparentassem a Um aquário onde nadavam, de quando em quando, imprecisos peixes de sons.

- A menina Ana. urrei eu, não a avisou que levávamos o garoto para Monsaraz esta noite?

A Gisela acabou de guardar os pedaços no bolso do avental, frágil e miúda e atarefada, sem me prestar atenção, sem me responder sequer. Dirigiu-se à copa a buscar uma pá e uma vassoura e varreu o lixo, as lascas e os bocadinhos minúsculos, para a algibeira também, e só depois se voltou para o corredor interminável, e miou, no sentido da funda tarde silenciosa do apartamento, Menino Francisco, traga a mala. Uma oitava acima e a sua voz, assim sulfúrica, assim pontuda, rasgaria de alto a baixo o tecido das cortinas.

Sete anos volvidos, em pijama, a seguir ao trabalho, à beira de adormecer, diante do filme da televisão, na poltrona onde o meu pai adormecia, continuo a escutá-la chamando o meu cunhado, esse idiota cheio de tiques, sempre a torcer a cara para a esquerda e a levantar o ombro, do qual me contaram que habita agora os restaurantes do Bairro Alto com uma actriz desempregada muito mais idosa do que ele, pinta quadros incompreensíveis, e se veste de colares e trapos marroquinos. Escuto-a, acordo estremunhado a pestanejar, a minha mulher atura-me de resignados olhos no tecto, e a Gisela grita de novo, exasperada. Menino Francisco, traga a mala, enquanto eu aguardo no vestíbulo, aborrecido pela sua presença de insecto esquelético, pela vassoura, pela pá, por um fio de ar que me gela o pescoço. Acordo e digo à centenária, na casa de Campolide onde ela nunca esteve, Se calhar não ouviu, escondeu-se no quarto de solteira da Ana e fechou-se à chave, e a Gisela, de mão na orelha, Ha?, e eu, quase num uivo, Escondeu-se e não quer vir, é o costume, e ela a ascender, em bicos de pés, para mim, O quê?, e eu inclinado para a criatura, a sentir-lhe os odores diversos e a buscar-lhe a orelha com a boca, gritando, tanto quanto podia, Escondeu-se, do mesmo modo que agora me recordo disto e grito Escondeu-se, e a minha mulher me fita espantada antes de regressar ao crochet, até que o garoto surgiu por fim, a quilómetros de nós, no extremo oposto do corredor, transportando um saco de escuteiro, com o boneco mutilado na mão livre e a expressão imbecil de sempre nas feições. Perguntei-lhe Não consegues mexer-te um bocadinho mais depressa que temos a tua irmã à espera?, enquanto os pardais da Avenida António Augusto de Aguiar me soterravam o automóvel sob as suas crostas duras, e as sombras das casas se alongavam à medida que a tarde esbatia as cores das fachadas e do céu. Perguntei-lhe, então como agora, Não consegues mexer essas perninhas, que caneco?, e a Gisela compreendeu pela minha expressão que eu me zangara porque trotou para a tranca, a ergueu a custo e se interpôs entre nós, eu e o irmão estúpido da Ana, que cambulhava, às voltas com o saco, nas franjas dos tapetes’. Não sabes que o teu avô está doente?, disse irritado àquele imbecil que não falava nunca, a quem nunca ouvi, em tanto tempo, uma só palavra que fosse, e que agora toca clarinete e vende borrões nas galerias de arte de Lisboa, e cujo nome descubro de quando em quando nos jornais, com elogios hiperbólicos assinados por compinchas do Bairro Alto que o elevam aos píncaros do génio, como se fosse capaz de melhor do que três ou quatro riscos ao acaso, perante os quais entendidos de barba se extasiam. Largue-me lá isso, berrei para a Gisela a designar a tranca, não tenha medo que ninguém faz mal à sua cria, e ela Ha?, até que desisti de lutar com a surdez e abri a porta, dado que os moucos nunca compreendem o que a gente lhes diz ou, se o compreendem, compreendem mal e ofendem-se, e a velha ainda podia mesmo sem querer magoar alguém com aquele monstro de metal ou esmagar uma cristaleira com uma só pancada. Carreguei no botão do elevador e apareceu-me a fava de bolo-rei de um cavalheiro desconhecido a chocalhar atrás das grades, de patilhas brancas, condecoração na botoeira e os cordéis de um embrulho de pastelaria nos dedos. Desculpe, disse eu delicadamente, vai para baixo ou para cima? O sujeito ia abrir a boca para responder-me quando principiou a desaparecer no tecto, dentro do elevador, como um anjo de flanela, primeiro a calva, depois os ombros e finalmente os sapatos de camurça, e eu pensei São estes os serafins octogenários de Lisboa, cujos corações batem ao ritmo dos relógios de parede com gravuras de esmalte. O meu cunhado postou-se ao meu lado, à espera, sob a vigilância maternal da Gisela que a surdez aguçava, tocou no botão, inverteu a marcha, e surgiu de novo o anjo trôpego do embrulho, exactamente na postura de há pouco, só que desta vez a afundar-se na direcção da rua. Ora que merda, protestei eu, e o velhote, hirto na gaiola trémula, bateu as asas das mangas antes de se evaporar rumo ao centro da terra. Se não esperamos que esta porra pare e o gajo saia ainda o temos aí com o embrulho na mão, de forma que aguardámos no patamar até ouvir o ruído duplo da porta metálica. Agora, disse eu, e os cabos desataram a mover-se e a chiar em balanços contraditórios. A Gisela aproximou-se, de tranca em riste, com os cacos de porcelana a chocalharem no avental, não fora eu agredir ou roubar ou aleijar ou fugir com o menino sem o seu consentimento e a sua ordem. O elevador imobilizou-se no nosso patamar com o serafim a lamentar-se, desolado, Ia abrir a grade quando esta geringonça começou a andar, e a Gisela, reconhecendo-o, Tenho a impressão de que já o encontrei hoje, senhor major. Confundia os meses, enganava-se nos nomes, misturava as coisas, morreu estávamos nós há três ou quatro meses em Madrid. Não sou major, sou coronel, disse o outro, ofendido, enquanto eu aproveitava para correr a porta, atirar o saco de escuteiro do miúdo para cima dos sapatos de camurça e entrar com ele filado pelo braço. O que é isso?, o que é isso?, disse a Gisela a empunhar a tranca e a desequilibrar-se sob o peso do ferro, onde é que julgam que vão?

Cabíamos os três ajusta na caixa hexagonal, com o tropa encolhido a um canto, e em lugar de aterrar no rés-do-chão desatámos a erguer-nos para os pisos de cima, habitados por mais velhos e velhas e siameses e contadores antigos e quartos sempre com uma pessoa a morrer, de braços escancarados, numa cama de casal. Apertei os botões todos, inclusive o do alarme, que soltou pelo prédio um gemido chocho e se calou numa espiral envergonhada: viscondessas de luto procuravam agarrar-se à grade ao passarmos por elas, o miúdo esmagava o embrulho do coronel com as costas e um sangue de chantilly e molho de morango escorria das frinchas do papel. A voz da Gisela, ora perto ora longe, ameaçava Menino Francisco, fique sabendo que faço queixa à sua mãe. Vamos correr para baixo e para cima o dia inteiro?, disse timidamente o militar à medida que uma multidão de senhoras nos observava dos patamares, e não só senhoras mas também crisálidas de várias idades, idênticas às que se encontram nos álbuns de fotografias do passado, sepultados nos jazigos das gavetas. Espero bem que não, disse eu que não lograva sequer mover um ombro, entalado como me achava contra um espelho de bisel, temos de chegar a Monsaraz antes das cerimónias do enterro. Enterro?, apaixonou-se o coronel a sangrar morangos do embrulho, ao menos que seja de um civil, as forças armadas não se podem permitir baixas nesta altura, e nisto furámos a clarabóia do tecto e ouvi o estilhaçar dos vidros e o rebentar dos caixilhos de metal, e a seguir a sensação de vazio das gaivotas, de manhã, sobrevoando uma praia. Resolve-me esta gaita, disse eu ao meu cunhado, antes que a tua irmã nos dê cabo do canastro aos dois, e o miúdo deslizou-me entre as pernas como uma lagarta e pendurou-se nos comandos daquele foguete interestelar em forma de caixão, que trepava cidade acima à procura das nuvens. O alarme badalou de novo o seu sininho triste, e deixei de sentir a exaltação das gaivotas: as roldanas jogavam-nos para o vestíbulo como quem afoga gatos pequenos num tanque. Ultrapassámos velozmente uma cara de homem que se queixava Mas que brincadeira é esta, vou participar ao senhorio, outras crisálidas, outros cavaleiros idosos com as guitas dos seus embrulhos enroladas nos dedos, a Gisela a ameaçar-nos com o indicador estendido, e cá em baixo aguardavam-nos, nos majestosos degraus de pedra que conduziam à rua, o marido da porteira, de chave-inglesa na mão, a torcer os parafusos do elevador, e uma feroz assembleia de viúvas que nos deixaram sair, ao meu cunhado e a mim, definitivamente terrestres, pingando chantilly e molho vermelho do casaco e das calças, como um par de feridos de guerra ou de albatrozes errados, e que rebolaram para o elevador atropelando o coronel, o qual, de braços no ar como os náufragos, pedia em vão Com licença com licença com licença, antes de falecer num redemoinho de saias. O caixão, com o guerreiro e a sua turba de luto, desapareceu rumo à clarabóia, enxotada pela chave-inglesa que girava pregos e ajustava alavancas, e pela sereia do alarme a gemer, nos diversos patamares da casa, a sua angústia dorida. A voz da Gisela despenhava-se pelas escadas como um berlinde, enumerando represálias e castigos, e já na rua escutámos a explosão do elevador contra o tecto, a caliça fracturada, o piar de frango dos ocupantes e os sigilosos assobiozinhos de cometa dos bolos com recheio. De modo que cerrei cuidadosamente a porta atrás de mim, como um bombista que acaba de incendiar o quarteirão.

O Francisco, de saco ao ombro, franzia-se, em caretas de coruja, na luz da tarde, para um sol desaparecido já por detrás dos telhados, embaciando o rio. As árvores destilavam o verde misterioso, leve, sem substância, que antecede a noite, as árvores não reflectiam absolutamente nada, e as empregadas da limpeza acendiam as lâmpadas dos stands de automóveis, em que hibernavam enormes tubarões coloridos.

- Por aqui, disse eu a designar a porção de estacionamento, no passeio central, reservada a uma embaixada ou um consulado, repleta de Mercedes de matrículas vermelhas e carros pretos com cortinas franzidas, por cujos intervalos se percebiam mãos pálidas e mangas agaloadas saudando, cardinalícias e brandas, nos desfiles. Os pardais manchavam-me o tejadilho do Volkswagen da última diarreia da tarde. Um cigano de gravata de pintas girava nas redondezas com uma caneta a imitar oiro na mão. Abri a porta do lado oposto ao volante e encerrei a criança na capoeira do carro.

- Dez mil escudos, ofereceu o cigano a aproximar a caneta, exibindo as falanges exemplificativas e sujas. Ten. Diez. Uma pechincha. Pessoal do consulado gostar muito.

Edward G. Robinson observou de esguelha o pechisbeque enquanto contornava o capot. A pistola debruçava-se do sovaco como uma lágrima de um olho.

- Caneta boa, insistia o cigano. Very good. Embaixador tem uma. Por ser para si faço-lhe sete e meio. Seven contos.

A roupa acompanhava-lhe os gestos na imponderabilidade quase transparente das escamas. Cheirava a mula morta e a ranho de filhos num descampado qualquer, junto de mulheres de cócoras e da sopa de cardos do jantar, que ardia numa lata enferrujada.

- Made in Hong Kong, dizia o cigano a mostrar-lhe orgulhosamente as palavras, enquanto me alisava, maternal, as bandas do casaco. Chineses fabricar produtos do caraças. É o seu dia de sorte, vizinho, mesmo na Alemanha não encontra disto nem pintado.

Um tipo saiu do café em frente, a limpar a boca ao lenço, e permaneceu no passeio a acender um cigarro e a mirar-nos, à espera. Umas varinhas esverdeadas consumiam-se por debaixo da lata enferrujada. Um paralítico aguardava a ração à entrada de uma tenda em farrapos, cercado de galinhas e de restos. Meti a chave à porta do meu lado, e experimentei para a esquerda e para a direita a alavanca das mudanças.

- Nós na Polónia, disse eu com um delicado sotaque de Varsóvia, só escrevemos com spray e nas paredes. Amarelo. A exaltar o Papa.

- Mas pode pôr-lhe tinta amarela, disse o cigano, e exaltar o Papa num caderno. Fica muito mais bonito, a sua família junta-se de certeza a bater palmas.

As mulheres distribuíam a sopa pelas latas. Um macho preso a um varal de carroça arredondava o pudim flan do olho. Fazendas secavam numa corrida, e um homem de botas, sentado numa pedra, desenhava elipses no chão com a biqueira.

- Cinco contos, disse o cigano a procurar introduzir-me à força a caneta na algibeira. Cinco contos e leva aí ouro a dar com um pau.

O tipo do café, encantado, avançou uns passos tortos de lavagante, desses de viveiro de cervejaria que se comem à martelada, espirrando limos de Cruz Quebrada da casca. Edward G. Robinson observava melancolicamente o charuto, a afagar o coldre com as pontas gordas dos dedos.

- Quatro contos, cedeu o cigano. Quatro insignificantes notazinhas de mil e fica despachado de mim. Ou prefere que chame a polícia por estacionar num lugar proibido?

O miúdo, atrás, dobrava e desdobrava os cotovelos e os joelhos articulados do boneco. O motor deu a sensação de se erguer nos bicos dos pés, de perder o equilíbrio, de o recuperar à custa de uma ginástica difícil da coluna, pegou, começou a inchar, a despir-se de gargarejes e de bolhas, e dissolvi com o esguicho e o limpa pára-brisas o continente cor de gesso de uma nódoa de fezes.

- Tenho conhecimentos na esquadra, disse o cigano, sou informador da Judiciária, não julgue que se safa assim. Três contos e esquecemos o assunto, quem perde sou eu mas acabou-se, o que é que você quer, é uma teima.

As mulheres mastigavam as folhas mal cozidas, as galinhas davam à manivela do pescoço para andar. Havia monturos de embalagens e desperdícios e garrafas por aqui e por ali.

- Uma palavrinha da minha parte ao inspector, disse o cigano a agarrar-me o pescoço, e lixo-o num segundo, vizinho, já enchi a cadeia de Monsanto de espertalhões assim. Dois contos. Passe para cá dois contos e camaradas como dantes. Seja cego se não ganha um irmão.

A lagosta, fascinada, encostava-se quase a nós, abanando as pinças, para escutar melhor. A cabine do elevador passou voando sobre as árvores, com o braço do coronel a pedir auxílio por entre os lenços negros das viúvas. A Ana, possessa, devia espiar pela janela que eu arrumasse o carro ao pé das tabacarias e das boutiques manhosas do rés-do-chão do prédio. As unhas do cigano, atravessando o volante, procuravam alcançar a chave e desligar o motor, e nisto os olhos de Edward G. Robinson tornaram-se compreensivos e meigos debaixo da aba de feltro do chapéu, um revólver surgiu das riscas do fato, o cigano arredondou a boca, recuou um passo e achatou-se contra um tronco, de caneta esquecida na palma como as moedas dos pedintes. O Volkswagen galgou o passeio e entrou na Avenida António Augusto de Aguiar a caminho do redondel do Marquês, no qual a barquinha do elevador, tossindo chantilly, flutuava agora. A última caganeira de pássaro do embrulho do militar esmagou-se-nos no capot, e então subimos a Alexandre Herculano, cruzámos o espaço oblíquo do Rato, seguimos pela Pedro Álvares Cabral até à Estrela, com o sangue do molho de morango a escorrer dos flancos do automóvel, e havia um lugar vago ao lado de uma boca de incêndio, mesmo em frente da porta de casa, entre uma livraria sem livros e a esplanada de uma loja de sorvetes, bufando hálitos polares de frigorífico. Ordenei ao garoto Traz o saco: sete e vinte, as escadas trepadas a correr e a Ana aos saltos de raiva lá em cima:

- Sabes que horas são?, gritou-me ela. Isto é, tens a noção das horas, se é que ainda tens a noção de alguma coisa?

O miúdo, sem falar à irmã, diminuiu no interior da casa em busca da mesa da sala de jantar para se aboborar sob a toalha, com o seu saco e o seu boneco mutilado. Já tinham acendido a luz de alguns dos quartos, e a claridade projectava na parede os losangos e trapézios de um quebra-cabeças sem solução possível.

- Não consegui arrancá-lo de lá mais cedo, disse eu, nem imaginas a cena. (As criadas discutiam como sempre uma com a outra, na cozinha, idênticas aos esquilos dos desenhos animados.) Um ano a tocar a campainha, a Gisela a ameaçar-me com uma tranca, um cigano vigarista a empatar-me.

Os meus filhos, de pijama e roupão, insultavam-se no corredor, aos gritos, sem me beijarem. Ponchos e chapéus de palha navegavam nas varandas da embaixada da Bolívia, saudosos de inças e de lamas. O relógio que nos ofereceram de prenda de casamento emitiu um pigarro propiciatório e desatou a badalar sons benevolentes e gordos de encarregado de educação.

- Um cigano, uma tranca, as mentiras do costume, disse a Ana. Telefono-te às três, apareces à noite, e eu armada em estúpida a acreditar em ti. Vou mandar a bagagem para baixo e jantamos no caminho se houver tempo.

Levantou o nariz e escancarou as mandíbulas, instalada nas patas de trás, semelhante a um coiote no alto de um penedo, a ladrar:

- Francisco!

As criadas, discutindo sempre, passaram por nós com malas e cestos a caminho da garagem. Uma delas, a mais alta, movia ao andar a crista do cabelo como as galinhas dos ciganos.

- Não tenho o carro na garagem, disse eu. Encontrei um lugarzinho mesmo diante da porta.

Os olhos minúsculos das empregadas, que formavam um contraste estranho com as raízes de eucalipto das mãos, miravam-nos à espera, obedientes e estúpidos. As colinas de Monsanto escureciam de encontro ao céu cor-de-rosa de setembro. Os esgotos babavam-se sob o lodo do rio.

- Nesse caso, disse a Ana, mete o Volkswagen na garagem que quero ir no jipe. Francisco!

Talvez que o encontrasse no quarto dos brinquedos dos meus filhos, sentado no chão, às voltas com o caranguejo de uma nave espacial eriçada de antenas, talvez que se tivesse fechado na retrete, diante do espelho, como em várias ocasiões o surpreendi, a palpar com os polegares a expressão parada da cara.

- A suspensão do jipe dá-me cabo da espinha, disse eu, não aguento mais de vinte quilómetros naqueles bancos.

As criadas cambaleavam como dromedários sob os cestos e as malas, empurrando os pacotes que sobravam com as solas. O miúdo enrolava-se afinal em torno do cesto dos papéis da secretária, com o Super-homem amputado no bolso.

- No jipe, disse a Ana. Pensas que tenho confiança nesse Volkswagen a cair?

Edward G. Robinson interpôs-se entre a bagagem e os degraus, a mamar a espécie de segunda dentadura do charuto, e nesse instante a lâmpada do patamar morreu, reduzindo as pessoas a uma duvidosa constelação fluida de contornos, onde as balas se perderiam, sem rumos, numa chachina de fantasmas.

- Acendam a luz, ordenei eu, de pistola, a apontar inutilmente a pastilhazinha alaranjada do interruptor, e sentindo a minha voz hesitar e quebrar-se no escuro. Não quero vítimas inocentes cá em casa.

- Francisco!, disse a Ana a meio de um concerto de tosses. Não te dou nem um minuto para chegares aqui.

A galinha maior acendeu o patamar e surgimos de súbito uns diante dos outros, quietos no marmorite à laia das estátuas de cera dos museus. Nenhuma aba de chapéu me sombreava a cara, nenhuma brasa de cigarrilha me continuava a língua.

- Ouviram o que eu disse?, perguntou a Ana. Enfiem a tralha no jipe e tu acaba com as fitas e sai da frente, Nuno, que ortopedista jura que tens uns ossos óptimos. O relatório das radiografias está no armário dos remédios se queres voltar a lê-lo. Por baixo do electrocardiograma e das análises que fazias quando te dava um enfarte por dia.

O Francisco, esquecido do Super-homem, veio vindo em diagonal, com uma metralhadora de esguichar água na mão. Monsanto e o céu confundiam-se na mesma tinta lilás, os pisca-piscas das antenas de televisão dilatavam-se e encolhiam-se. Os automóveis circulavam na Avenida com os médios ligados.

- Queixava-me de um problema de colite, disse eu, nunca liguei aos enfartes. Também lá há-de haver radiografias disso e a receita do especialista com a dieta que me mandou tomar.

- Dá imediatamente a metralhadora aos teus sobrinhos, disse a Ana ao irmão. Nem sonhes que te levo ao Alentejo com essa bodega a estalar-me o tempo inteiro nos ouvidos.

As criadas afastaram-me com uma cotovelada e desceram os degraus, em fila, esmagadas pelo peso dos embrulhos, avançando os beiços amuados de camelo. Vizinhos vestidos de beduínos iniciavam os croquetes do jantar em tendas decoradas de romances policiais e candeeiros Arte Nova. O meu cunhado pousou a maquineta de esguichar água numa cómoda, no meio de dois pratos emprestados pela minha sogra, que se apoiavam verticalmente em armações de madeira. O patamar apagou-se outra vez, e lá em baixo, no cimento, em cujas paredes paleolíticas eu sonhava sempre ver pinturas apagadas e castanhas de bisontes e gazelas e animais rupestres em lugar dos riscos de giz e das nódoas de óleo do costume, as empregadas atulhavam o jipe, essa porcaria que responsabilizo pelo meu reumático de agora, de alcofas e caixotes. Vamos levar o dobro do tempo a chegar, e a Ana Não me fales de tempo que me enervas. Havia poças de água nas gretas do chão, pneus, grelhas quebradas, baterias gastas, cadeiras de praia num canto. A Ana agarrou no Francisco, que recuperara o seu boneco, e prendeu-o ao banco com as correias de lona. As criadas, a grande e a pequena (Se apanhar uma hérnia da coluna a culpa é tua, avisei eu), afastaram-se para a marcha atrás, assustadas pelos vapores do escape, mirando-nos sempre com as pupilazinhas de pardal. Os exames são normalíssimos, disse a Ana, quem me dera metade da saúde que tu tens. Saí para erguer a porta da garagem num estrondo de latas onduladas, e as empregadas subiam decerto a toda a pressa para dormir na nossa cama, nos beber o vinho antigo, nos comer os aperitivos, telefonarem para a terra. Os candeeiros da rua, apesar dos morcegos, vestiam a senhora da capelista de um halo doirado. Na embaixada da Bolívia índias de tranças mastigavam, sob os lustres, jantares de milho e carne seca. Rolámos aos saltos para a ponte, ao longo do azul da noite, e entre as duas margens do rio barcos minúsculos poisavam numa lisa superfície sólida. Topas a suspensão?, disse eu com a boca do miúdo quase pegada ao meu pescoço, gatinhando no meio dos cestos e das malas, queres arranjar-nos bicos-de-papagaio a todos? A centopeia de um camião-cisterna desviou a barriga para a esquerda no momento em que o ultrapassava, travei, e qualquer coisa se inclinou e quebrou nas minhas costas. Vê-me lá isso, merda, disse a Ana, não tarda nada partimos a cara contra o vidro com as tuas desatenções idiotas, e pensei Casei com uma puta igualzinha à mãe, por vontade dela eu levava a vida de cócoras, fechado num sótão, a brincar, no odor dos mochos mortos, com locomotivas e carris. Na auto-estrada setas e nomes de vilas surgiam e sumiam-se, e daqui a pouco Setúbal, e daqui a pouco Vendas Novas, e. daqui a pouco Montemor e Évora e Reguengos, cachos de casas apertados nas trevas: Se te apetece guiar paro esta chiça na berma e é já, disse eu a evitar outro camião-cisterna, mas não me moas o juízo com ordens (e o charuto de Edward G. Robinson renasceu-me na boca), e principalmente se tens ideia de fazer de mim o que a tua mãe fez ao teu pai desengana-te. O ar quente que entrava pelas frinchas da carroçaria despenteava-me, alargava-me o colarinho, mexia-me nos pêlos do peito, ia-se embora: a auto-estrada acabou, os faróis puxaram da noite prédios encavalitados como os incisivos dos adolescentes, e cuspiram-nos de novo para o escuro num desprezo maçado, E o que é que a minha mãe fez ao meu pai?, perguntou a Ana numa voz descolorida, cautelinha com a resposta que trazemos o meu irmão lá atrás, e eu calei-me por prudência, absorvido no caminho, em lugar de dizer que se tratava de uma família nojenta de cabras e bois mansos a devorarem-se mutuamente no casarão do Guadiana, a sonegarem-se as heranças, a odiarem-se, a roubarem-se, a esmagarem-se, a destruírem-se, e tudo isto debaixo da boquilha e da pálpebra cáustica do avô, derramado na cadeira de baloiço da sala, a assistir, numa alegria formidável à agonia da sua matriz, como se não suportasse que nada de seu sobrevivesse ao seu fim, que nada de seu continuasse insolentemente vivo após a sua morte, como se quisesse arrastar consigo as terras e as pessoas para os desconhecidos pântanos subterrâneos aonde ia, como se quisesse matá-los com ele a gozar a sua lenta dissolução nas desmemoriadas névoas do passado, o velho estendido agora na cama, a observar-nos, com o único olho válido, sem lograr falar, sem lograr mover-se, e no entanto de lábios desconjuntados na risonha crueldade do costume. O que é que a minha mãe fez ao meu pai?, insistiu a Ana na lenta voz do avô, na irónica e terrível voz de mando do velho, O que é que a minha mãe fez ao meu pai, conta lá? Muros, corujas, árvores, povoações perdidas, O que é que a minha mãe fez ao meu pai?, e era exactamente de facto o tom dele, a maneira das sílabas subirem e descerem, espessarem-se, ganharem força e sarcasmo, o velho que dorme com a tua mãe enquanto o filho, rodeado de penas, muda agulhas e constrói estações, a tua mãe que dorme com o marido da irmã do teu pai, o qual marido, por seu turno, dorme com as mulheres todas da família, mesmo a anormal, mesmo a doente a quem fez uma filha de quem há cinco ou seis anos teve um filho, porque a vila inteira conhece de fonte firme quem engravidou a tua prima, quem de madrugada a visitava, quem a passeava em Lisboa não como pai e filha mas como amante e amante. A vila inteira conhece porque foi ela morar no Outeiro, no antigo edifício do padre, distanciado dos restantes, com o chaparro e a figueira a ocultarem a entrada, e se eu abrisse a boca e conversasse disto talvez que nem admirada ficasses dado que o sabias, dado que os murmúrios dos insectos e das pessoas da terra te são tão claros e perceptíveis como a mim, mas o teu avô que te habita, a corrosiva fracção do velho que há em ti odiar-me-ia ainda mais como provavelmente te odeio, opondo a minha fraqueza à tua força, a minha ingenuidade à tua sibilina ironia, o episódio da Mafalda à metálica, inatacável e sem arestas, virtude com que me castigas, a não ser que o teu tio se haja deitado também contigo num dos numerosos cubículos da casa que cheiram a falta de limpeza e a genebra, naquelas camas antigas onde o colchão ondula e sussurra e as tábuas do sobrado se soltam como ossos sem concerto, o marido da irmã do teu pai que o teu avô protege e favorece porque cumpre, ponto por ponto, o que o velho decidiu para a sua própria família, porque o ajuda a dilacerar-vos com a mesma tranquila e obstinada ferocidade até não restar senão um desfocado pozinho de retratos no tampo dos armários e das cómodas. O que é que a minha mãe fez ao meu pai, no fim de contas?, disse a Ana, e as luzes de Setúbal dobravam-se e redobravam-se e espalhavam-se como uma Cassiopeia de nódoas na noite. Queres jantar aqui?, propus eu. Tens fome, Francisco?, perguntou a Ana ao irmão, àquele pobre macaquinho minúsculo sempre a ocultar-se e a fugir. A respiração desapareceu da minha nuca e vi de esguelha o miúdo reptar no banco e debruçar-se para a Ana. Jantamos aqui, traduziu ela, o garoto precisa de ir à casa de banho e apetece-lhe um pastel de feijão. Pastel de feijão?, disse eu, pastel de feijão não é jantar. Contornei uma peanha de sinaleiro e arrumei o jipe numa praça que separava os restaurantes do Sado, um rectângulo nauseabundo de odor de peixe onde dormia uma frota de camionetas de carreira. Pastel de feijão que tem?, disse a Ana a apear-se, não dás o direito aos outros de não gostarem da mesma lavadura do que tu? O aroma de peixe subiu um momento e desceu a seguir, a água preta do Sado encaracolava-se na pedra num protesto de intestinos. Meti o ombro a um guarda-vento com cartazes colados nos caixilhos e letreiros de touradas no interior. Uma televisão urrava numa prateleira alta e os espectadores distraíram-se da publicidade para se preocuparem com as ancas da Ana, com as nádegas de uma mulher que eu não conseguia conceber como mulher há tanto tempo, que me secava o sangue nas veias há séculos e séculos. Sentámo-nos na parte menos porca do café, onde dois ou três fulanos de casaco branco levantavam pratos. Trata do teu chichi, disse a Ana ao irmão que a fixava implorativamente, de língua de fora, como um cachorro com sede, o qual deslizou cadeira abaixo e se sumiu a trote numa porta com a miniatura de um campino pregado à madeira e que anunciava Cavalheiros em letra de alfaiate. Um dos casacos brancos sacudiu as migalhas da toalha com um pano, lançando-nos a caspa de pedacinhos de pão para os ombros e o peito. Continuo na ignorância do que a minha mãe fez ao meu pai, disse a Ana, e nesse instante, não sei porquê, pela expressão, ou pelo som da voz, ou por uma dessas intuições absurdas que nos visitam, tive a certeza de que fornicara com o tio, de que continuava fornicando com ele nos verões do Alentejo ou na casa de Lisboa, defendidos dos mexericos pela surdez da Gisela, fornicando com o boi de cobrição que o avô lhes oferecera a todas, e surpreendeu-me não me surpreender com isso, não me enfurecer, não me zangar, não procurar descobrir ou imaginar pormenores, as posições, a frequência, as datas. E para beber?, perguntou o do casaco branco, e eu escolhi o vinho favorito dela e um sumo para o miúdo que regressava dos Cavalheiros de Super-homem em punho, e que devia ter aproveitado a urinadela para se masturbar a seguir, isto a calcular pelo aspecto regalado e inocente com que bebia a laranjada. Não havia mais ninguém a comer no café além de nós, salvo um mulato solitário a contas com uma travessa de lulas de caldeirada ao pé do lavatório e das sanitas. Vai mastigando pão torrado com manteiga, disse a Ana ao Francisco, o pastel de feijão fica para a sobremesa, e eu imaginei as mãos de bode idoso do tio, de pernas trançadas nas dela, a acariciarem-lhe o pescoço e o peito. Olhei para o Sado que se não via, se adivinhava não já pelo odor mas por uma suspeita ou invenção de aroma, confrontei-me com o meu reflexo difuso nos quadrados de vidro escuro e sorri. O que aconteceu de tão engraçado agora?, disse a Ana, qual foi a piada porca que te germinou nos miolos?, e eu, a sorrir sempre, Nada, lembrei-me de uma coisa, não ligues, a pensar E se os meus filhos forem filhos do outro? E nem tal hipótese me punha fora de mim, o não ter nada em comum com esse par de imbecis epilépticos que partiam candeeiros e jarras, me estragavam a agulha do pick-up, me fodiam os discos, se batiam constantemente, davam cabo do juízo aos padres do colégio, reprovavam ano após ano com a orgulhosa irresponsabilidade da tua família, de tal jeito que se um desconhecido me atirava Quantos filhos tem?, hesitava antes de extrair os retratos dos selvagens da carteira, franjas loiras, feições bolachudas, caretas perversas: Não se parecem comigo, explicava eu, saem muito mais às bandas da mãe, e guardava a carteira, e mudava de assunto, e conversava de outra coisa. Limpei a boca ao guardanapo e o sorriso desapareceu. Uma das camionetas moveu-se no largo como um feto no útero, os faróis acenderam-se e um cone de árvores mudou a cintilar de tonalidade e de mistério. Claro que não ligo, disse a Ana, se eu ligasse tinha-me suicidado no dia em que casei contigo. A camioneta foi embora e as árvores diluíram-se na sombra. Um fragmento de casa, minado pela podridão do peixe, nasceu à ilharga de uma barreira alta encimada de ameias, e só os candeeiros e as borboletas e os morcegos permaneceram, encerando os telhados com o ventre. Abri a porta do miúdo: O que é que a minha mãe fez ao meu pai?, disse a Ana, de saco de lona ao ombro, por cima do lombo do capot.

Só depois de Vendas Novas, terra de quartéis, feios e cinzentos, verrugosos na noite, e a ter-me apercebido que o irmão adormecera no banco, de pastel e Super-homem, quando recomeçaram os eucaliptos e a absoluta pretidão das trevas sem lâmpadas, lhe tornei a ouvir a voz nos abalos do jipe, agora num tom já não curioso, tranquilo, O que é que a minha mãe fez ao meu pai?, e vai daí, em pleno campo já, uma luz vermelha agitou-se na berma, cinquenta ou cem metros adiante de nós, o capacete de um guarda republicano entrou pela janela como um cuco, o Francisco mudou de posição no seu sono, uma palma militar abriu-se-me no peito, Documentos. Parados e sem qualquer ruído de motor escutavam-se os insectos a moerem devagarinho o silêncio, e a interminável e contraditória conversa sem sentido das ervas. Um segundo guarda, também de capacete, nasceu por seu turno do escuro, a compor os suspensórios fosforescentes. Um BMW da brigada de trânsito mostrava a ponta do focinho da orla de um bosque de azinheiras, que impediam a lua de subir além das copas.

O primeiro polícia examinava os papéis com a lanterna enquanto o colega dava a volta ao carro, de pau vermelho aceso, farejando, à maneira de um cachorro de focinhos trocados, qualquer osso esquecido. O dos documentos ia à frente, regressava, conferia a matrícula, palpava os pneus, pendurou um cigarro da boca e o isqueiro riscou-lhe a cara como um golpe de faca.

- A morada da carta não coincide com a do livrete, disse ele quase a apoiar o cachaço de bezerro ao meu ombro.

- Não coincide?, admirei-me eu, já fora do carro, a espreitar as palavras impressas, à cata de uma mentira irrespondível. É natural, a de cima pertence à casa e a de baixo ao consultório, não entendo a sua dúvida.

- O endereço tinha obrigação de ser o mesmo, disse o guarda a dirigir-se para o automóvel que as azinheiras escondiam. Ou alterava um ou alterava o outro, explicou ele a remexer numa maleta cheia de códigos e de blocos de multas. Um microfone enganchado no tablier zumbia baixinho avisos e ordens. Isto assim, disse o polícia a descapsular a esferográfica, dá-me direito a pregar-lhe uma contravenção das tesas.

- Ó Matos, disse o dos suspensórios a chamar o sócio, esta carroça anda cheiinha de irregularidades: faltam as palas, falta um espelho, falta um reflector, falta tudo. Não contando com a borracha nas lonas e o sobressalente sem ar.

O Matos emitiu um relincho de triunfo, sacudindo as crinas na paisagem lunar do Alentejo, com as luzes de Vendas Novas a vibrarem na distância e o halo de uma aldeia desconhecida à esquerda, um relincho de triunfo enquanto raspava os cascos das botas no chão e centenas ou milhares de mosquitos me dançaricavam nas orelhas. Um automóvel passou por nós sem se deter e morreu nas curvas pardas da estrada. E além disso, disse o outro guarda, os médios estão levantados de mais, carregue nos máximos para eu ver como é. O relincho afastou-se a soluçar de contentamento e por um assobio de água compreendi que urinava num ponto qualquer da noite, exultante por me poder multar por vinte ou trinta ou quinhentos pecados simultâneos. Vamos ficar encalhados aqui?, perguntou a voz sem paciência da Ana, e o do pau, num resfolegar de prazer, Até amanhã se for preciso, madame. Um comboio apitou mas não se notavam, fosse onde fosse, as janelas das carruagens, só o som das rodas nas calhas e a Ana Já explicaste a estes saloios que és médico?, já lhes contaste que o meu avô está a morrer? Caminhei dois passos, abri a braguilha e comecei a urinar também. Nuno?, disse a Ana, onde é que paras, Nuno?, e ouvia-se o meu cunhado do Super-homem a mastigar o folhado do pastel de feijão. Ó seu sacana, disse o Matos tão próximo de mim que lhe adivinhava os arrotos do almoço, você nem nota que me está a mijar a perna toda? Um concerto de ralos estendia-se pelas fazendas fora, e eu, a desviar o jacto, Sou médico, mandaram-me vir de urgência de Lisboa para assistir o avô daquela senhora em Monsaraz. Matos, dizia o dos suspensórios a descobrir desgraças, dá aqui um pulo, Matos. Um noitibó nadava no ar sem estrelas num ruído de almaço, patinhas insignificantes galopavam num valado. Aguenta aí, disse o primeiro polícia, deixa-me descalçar que este cabrão entornou-se-me na bota e alagou-me a peúga. Prende-se por agressão à autoridade, sugeriu o sócio, radiante, e o juiz na segunda-feira que decida, pode ser que lhe calhe aquele que tem pedras e condena toda a gente, é um consolo. Alguém acendeu a lampadazinha do interior do jipe: Esta funciona, que porra, desiludiu-se o guarda, e logo a Ana, ácida, O que é que vem cá cheirar, sua besta?, e o polícia, vagamente visível, Com que então agora uns insultozinhos, ah, ah. Sacudi-me e abotoei-me e caminhei para os faróis nos médios, indeciso, quando pisei uma coisa mole e a voz do Matos disse Foda-se, eu sentado a enxugar-me e o gajo trilha-me os dedos. Mais uma para o rol, deixa lá, disse o colega, até os seixos da vesícula do juiz se desvanecem. Nuno, gritava a Ana, ou me tiras este urso do jipe ou amando-lhe com um garrafão ao capacete, o Francisco está em pânico, coitado, mas eu já trotava, de mãos nos bolsos, sem ruído, no sentido da estrada para Évora, não ao longo da faixa de areia que bordeja o asfalto mas cinco ou seis metros para o interior do campo e dos arbustos, a tropeçar em covas, em troncos, em raízes, nos desníveis inesperados do chão, e as vozes deles conversavam ou discutiam cada vez mais longe até não as entender sequer, sons agudos e graves que se misturavam na noite. Um dos guardas berrou Largue a chave de parafusos e diga-me onde se meteu o seu marido, que caralho, e vinte minutos ou meia hora depois fui-me aproximando do alcatrão, a agitar o braço logo que os faróis de uma camioneta rolavam por mim na direcção de Montemor, até que uma delas parou num esforço de músculos, e do teleférico da cabine um homem pequenino disse Onde é o passeio, amigo?, e eu respondi Monsaraz mas despeje-me no sítio que lhe der mais jeito, e o pequenino Évora serve?, e eu Évora serve, apanho a carreira da manhã, e o pequenino arrancou e dali a nada o BM W da brigada de trânsito ultrapassou-nos colericamente numa rabanada de sereias, e, decorrido algum tempo atrás de uma furgoneta ronceira com a carga do tejadilho presa por um milhão de cordas, o jipe alcançou-nos a meio de uma aldeola moribunda, sem nome, uma dúzia de casinhotos com pavios de petróleo lá dentro e cães que nos ladravam de beiços arregaçados sobre as gengivas como mangas de camisa dobradas nos cotovelos, e vi as silhuetas da Ana e do miúdo e fiquei sem entender como se tinham salvo dos polícias. Se calhar, pensei eu, a Ana ameaçou-os com as sinistras represálias do avô ou com os amigos do tio, se calhar iam à pressa a Montemor participar de mim. Amanhã, pensei eu, compro um chapéu e uns óculos escuros em Évora, no trajecto entre a pensão e a carreira, amanhã entra a Judiciária no consultório a prender-me, e a enfermeira, zangada, Mas que invasão é esta, já não se pode tratar dentes em paz em Lisboa. Vai fugido de quem, amigo?, disse calmamente o pequenino, e eu respondi-lhe Daquele jipe e daqueles pasmas que passaram por nós há bocadinho, imagine. As feições do homem abriram-se ao riscar um fósforo, e a cara ardeu de perfil como um pedaço de papel que se enruga, esvoaça, diminui, desaparece, transformada numa brasinha de tabaco: Se ficar já na esquadra de Montemor poupa trabalho aos moços, sugeriu o pequenino, e mais casinhotos, mais cães, aquele cheiro abafado e sem humidade do Alentejo que as beatas do homem furavam como tecido ou celofane, a constante gripe do diesel, e a seguir a Montemor, cadáver estendido de costas, assassinado, sem o insecto de uma só pessoa na rua, desci o vidro da janela porque o odor de cave ou de estrume dos cigarros me enjoava, e encontrei nas vísceras podres, de azinheira, da noite, um aroma igualmente espesso de cave ou de estrume, e acabei por topar com um quarto numa pensão de Évora, tripulada por um indiano oleoso, de Moçambique, que dirigia, numa ruela secundária, o estabelecimento mais sujo que encontrei na vida. Preenchi a ficha com uma letra aguçada impossível de se reconhecer, segui-lhe os sapatos de lona pelo corredor imundo, tranquei a porta, dei com a cama escavacada, o penico roto, o bidé sem válvula num canto, cabides pendurados de pregos, uma janela para outra janela, semelhantes e desiguais como um par de olhos estrábicos, uma garrafa de vidro facetado e um copo ao contrário a enchapelar o gargalo. Não despi as cuecas nem as meias. Alinhei a roupa, apaguei a luz no interruptor da parede que ziguezagueou uma faísca azul, introduzi-me às apalpadelas nos lençóis com areia e engomados de suor, e permaneci uma eternidade a fitar a escuridão e a ouvir os gemidos dos móveis, à espera do sono que não vinha.

 

                   Ana à noite

A Ana e o Francisco chegaram entre as onze e a meia-noite, quase logo depois de o médico de Reguengos se ir embora, a abanar a cabeça, empurrando o portão sob a respiração lenta, de homem exausto, da figueira. Estávamos sentados na sala, diante do televisor apagado como em torno de uma lareira sem chamas, quando bateram à porta, aquele som de aldraba, a imitar uma mãozinha, vindo desde que me lembro de existir. Escutei a minha filha dizer Ponham-me a bagagem toda no quarto, no mesmo tom irrecusável em que o avô dela o faria, ouvi as unhas da perdigueira muda a girar de contentamento nas lajes do vestíbulo, ruídos em direcções contraditórias das criadas, do feitor, do Francisco, e até a maneira como os passos da Ana afundavam a pedra me recordava o doente a regressar da caça, chamando a cozinheira aos berros para os coelhos e as perdizes, e havia o odor de pólvora e de sangue que em miúda me atraía e assustava, e o de mato fresco de tripas de lebre das madrugadas de Junho. Como num bailado olhámos todos ao mesmo tempo na direcção do vestíbulo e a Ana mirava-nos do umbral, de cigarro na boca, com o sorriso sem ironia nem sarcasmo com que troçava de nós, enquanto lá em cima o comboio eléctrico do meu marido ia e vinha nas tábuas, puxando após si dezenas de carruagens de folha.

- Então o que se passa?, perguntou ela a cair no sofá, ao lado do meu cunhado, como se interrogasse O que é hoje o jantar?, como se tivesse abandonado os filhos e viajado duzentos quilómetros por curiosidade, para se distrair, inclinando-se sobre joelhos avulsos para apanhar um cinzeiro de casquinha que imitava uma folha de plátano, a equilibrar o cigarro, em gestos de circo, produzindo ruídos de tambor com a língua, a fim de não deixar cair o rolo da cinza no chão, como se manchar aqueles tapetes gastos se tornasse de repente a coisa mais importante do mundo, conferindo à gratuitidade do seu esforço, tal como o meu sogro, a pompa cómica de uma proeza vazia.

- O médico saiu há minutos daqui, disse a minha cunhada mais velha, esférica na poltrona, a aproximar-se do televisor apagado. Dá no máximo um ou dois dias ao avô.

A minha outra cunhada, de língua de fora, com o salgueiro dos cabelos grisalhos tombado para a cara, enrolava nos dedos minúsculos um pedaço de bibe. A tua mãe não te contou da trombose?, informou-se delicadamente o meu cunhado, e eu odiei-o como o continuo a odiar mesmo quando durmo com ele, mesmo quando me toca e me despe, como a cozinheira descascava para o alguidar as ervilhas da infância, no quarto por debaixo do comboio eléctrico que gira e me acusa e me impede os orgasmos, no momento em que as estevas do meu corpo se começam a inclinar para o prazer. O Francisco e o Nuno?, disse eu, e a Ana levantou-se e encaminhou-se para a porta sem falar. Espera aí que eu acompanho-te lá acima, disse o meu cunhado, e de costas para nós ela imobilizou-se junto a um armário como um pónei a obedecer ao tratador. O Francisco e o Nuno?, repeti eu a espetar as agulhas no novelo do tricot e a guardá-lo no cesto, o Francisco e o Nuno não vieram contigo por acaso? Mas o meu cunhado já estava junto dela, a anormal balouçava-se com um fio de cuspo dependurado do beiço, e a Ana para mim, antes de subir as escadas, Um deve andar por aí debaixo das mesas e o outro caguei nele, procure-os a mãe se tem pachorra. O comboio eléctrico interrompeu-se um segundo e recomeçou logo a seguir, e a minha cunhada gorda recostou-se na poltrona, à procura da caixa dos bombons na cómoda de ourives.

- Desculpa mas na minha opinião tu e o Gonçalo deviam ter mão na Ana, disse ela. Só falta cuspir-vos na cabeça.

A mongolóide ergueu-se, circulou ao acaso no compartimento, como um chimpanzé, arrastando uma boneca de pano, tornou a acocorar-se no seu banquito de palha. Pés rápidos trotavam no tecto, o comboio emudeceu, Olá pai, devia dizer a Ana e o meu marido a fitá-la de gatas, espantado, no meio das suas gares de brinquedo, a tirar o boné de chefe de estação e a coçar-se dobrado no soalho como um bicho, sem abrir a boca sequer, enquanto no quarto à esquerda o moribundo se achatava nos lençóis, a cada hora mais magro, reduzido aos ossos unidos por arames dos animais dos museus, com um letreiro a latim na cabeceira da cama, destinado a explicar uma espécie extinta aos colegiais que o visitavam.

- Queres que ela mude aos trinta anos?, disse eu atenta aos ruídos do andar superior, procurando adivinhar, pela localização dos sons, se se dirigiam ao cubículo do velho se ao colchão onde o meu cunhado se estendia com ela nas tardes em que o Nuno saía para pescar no Guadiana e regressava sem um só peixe como sempre, apenas com árvores e penhascos e rumor de água nos olhos, o colchão em que a Ana recebia carícias e palavras incompreensíveis idênticas às que me excitavam e humedeciam e impediam de me defender. A mulher gorda, naufragada na poltrona, permanecia provavelmente atenta aos mesmos gemidos do que eu, e no entanto, calcule-se, sorrindo e conversando e recebendo visitas, ou caminhando vila fora, na sua inesperada agilidade de almôndega, para a missa na igreja do largo, com uma ou duas nonagenárias espalhadas ao acaso pela nave deserta. E depois anda preocupadíssima, tu conheces a adoração que ela tem pelo avô, disse eu a pensar Gosta tanto do velho que aposto que nem o viu sequer, e lhe despem o soutien agora nos mesmos gestos com que mo despem a mim, e daqui a pouco o candeeiro do tecto principia a abanar num movimento de metrónomo, e nós ambas, a minha cunhada e eu, falando cá em baixo como se não entendêssemos, pairando sem cessar, ralhando com a anormal, assoando-nos, crispando-nos nas cadeiras à espera de que tudo, a noite, a casa, o comboio eléctrico, as agulhas de tricot, a cadela muda que nos lambia os joelhos, se imobilizassem em sucessivas sacudidelas de ganidos, e os objectos regressassem à quietude de dantes, cada qual no lugar onde desde criança me habituei a vê-los. Seja como seja, disse a minha cunhada Leonor a repelir o namoro pegajoso de um moscardo, um bocadinho de respeito, caramba, não lhe fazia mal, e o lustre cirandou com mais força, um boneco de barro sapateava numa prateleira, a cadela inquietava-se e o meu marido escutava-os de certeza, de boné na nuca e carris no sovaco, estupefacto, e eu pensei que a minha cunhada não gostava de mim não por ser mãe da Ana mas por ser filha do feitor e haver introduzido na família o sangue de ganhão, o sangue de pobre de que venho, o pouco sabonete e a língua dura de quem comeu pedras a vida inteira em toalhas de oleado. Sempre lhe deram muita importância, desculpei-a eu, sempre a trataram como uma baronesa. A mongolóide rasgava uma revista de modas com as unhas: Sempre lhe fizeram as vontadinhas todas e agora é isto, quando o que na realidade me enervava era imaginá-la nua, a espernear sob o meu cunhado nos mesmos desencontrados movimentos do que eu. Não há nada que justifique a má criação dela, disse a minha cunhada atenta às tosses, às guinadas, aos cochichos, calculando-lhes o gozo pelo frenesim do lustre, pela poeira de caliça que se deslocava do tecto, e falando cada vez mais alto à medida que se aproximavam do orgasmo, que até à mongolóide e às criadas na cozinha arrepiava como às mulas nos estábulos. Houve um crocito, uma espécie de berro, e o lustro e a caliça pararam. Ter mão nela, disse a minha cunhada Leonor, num soprozinho de alívio, trazê-la à rédea curta, se queres a minha opinião nem entendo como o marido a atura: e de facto pouco tempo depois estava sozinha com os filhos, esses dois antropófagos ordinários constantemente a correrem e a baterem-se e a partirem coisas, e de quem nem uma só fotografia quero em casa. Era preciso que tu ou o meu irmão, aconselhou a minha cunhada, lhe apertassem o freio. A anormal, que destruíra a revista amachucava agora os pedacinhos de papel numa aplicação concentrada: Conheces o Gonçalo, disse eu, fecha-se lá em cima com os comboios e não quer saber de ninguém nem de nada, e lembrei-me do dia em que chegou de Évora com um embrulho de cartolina sob o braço, desimpediu de mobília o quarto ao lado do meu sogro, e só veio agora no momento de me deitar, a desapertar os botões da farda no orgulho silencioso das crianças. Dorme com a corneta presa ao pescoço por uma fita de nastro, vagamente interessado na figueira brava da janela, a sonhar com passagens de nível e estações.

- A Ana ficou aflitíssima com o avô, coitada, disse o meu cunhado a sentar-se de novo junto de nós, no sofá, alisando com a palma da mão o peitilho amarrotado da camisa. Trancou-se à chave no quarto, não quer seja quem for lá dentro.

De tempos a tempos o vento, ao mudar de direcção, trazia consigo, das bandas do castelo, os mugidos das vacas e do boi que transportaram para a festa, presos nas cercas de madeira como nós nos compartimentos desta casa, adivinhando a frescura do rio no calor de setembro enquanto os lobisomens trotavam pelas oliveiras, e ouvi então o meu marido abandonar o esconso dos comboios e segui os passos dele no corredor, o punho que batia à porta da Ana, aguardava, batia de novo, desistia, as botas ferroviárias descendo o xilofone dos degraus, e a mongolóide, esquecida da revista, a trotar, como um mandril, para o irmão, derrubando de caminho uma mesa de laca, e lá estava o uniforme de agulheiro ou de chefe de estação, o boné imponente, a ponta do cigarro na orelha, o apito e a corneta e as bandeiras das partidas dependuradas da mão, como se o vento o houvesse trazido também, caprichosamente, para nós, de mistura com os protestos compridos das vacas. A mongolóide rondava-lhe em torno, à laia dos cães da vila as cercas do gado, num entusiasmo de pulinhos e risadas.

- Nenhum atraso hoje?, perguntou-lhe o cunhado numa preocupação franzida de administrador. Tudo bem com os horários, Gonçalo?

- Quieta, ordenou o meu marido à irmã a sacudir-lhe as garras com uma palmada, a puxar-lhe por uma prega a pele engelhada do pescoço. Pontualidade absoluta, senhor arquitecto, comportamento inexcedível dos empregados, satisfação geral dos passageiros.

- Há uma rapariga, barricada num camarote, que não quer sair, disse o cunhado, tão arquitecto como eu, que me fiquei pela instrução primária na escola do Puga. Filha de um administrador, entende, problemas conjugais, uma espiga, a direcção ocupa-se do assunto, não se preocupe.

O vento rodou e levou as vacas para longe. Os mugidos cessaram mas o perfil das muralhas, aumentado pela sombra, inclinava-se para nós, meio derruído, sobre os telhados baixos das casas.

- Às suas ordens, senhor arquitecto, disse o meu marido enquanto a doente se esparramava no chão, amuada, a enrolar um ângulo de bibe no polegar.

- Sente-se aí, Gonçalo, ordenou o meu cunhado a apontar uma cadeira. (Mesmo assim, continuava a minha cunhada, imperturbável, a Ana ainda está em muito boa idade para um tabefezito.) Tire o boné, homem, tome um licor connosco.

E eu pensei, intrigada, Será que eles não se vêem uns aos outros ou não se querem ver, não se ouvem uns aos outros ou não se querem ouvir, do mesmo modo que a vila se mantém surda aos mil ruídos da noite, ao pânico do gado e do boi que vai ser morto à navalhada no derradeiro dia da festa, aos aflitos estalos de móvel dos ramos da figueira, ao ressonar das criadas e ao silêncio de defunto antigo do castelo, de morto de ossos e de raízes e de veias de xisto que se dilui no caixão oco do escuro? O meu marido pousou o boné nos joelhos, aceitou um cálice, acenava respeitosamente que sim. Lá pelo facto de se ter casado, disse a minha cunhada, continua a ser a tua filha, sim ou não? Desculpa falar-te deste modo mas a insolência dela custa-me horrores. Beba, beba, não faça cerimónia connosco, disse o meu cunhado ao meu marido, e bateram à porta e era o médico outra vez a enfiar os olhos envergonhados na sala e trazendo consigo a quietude do verão: Estava quase em Reguengos quando me veio à ideia que deixei o estetoscópio lá em cima, não se levantem, não se incomodem, conheço perfeitamente o caminho. Solas nas escadas, solas no outro piso, objectos remexidos, um silêncio, mais passos, a voz zangada do doutor Saia debaixo da cama do seu avô e dê-me o meu estetoscópio já. E o irmão a seguir-lhe o exemplo, vês?, disse a minha cunhada, se agora até estetoscópios e instrumentos caros rouba adivinha o que acontecerá quando tiver trinta anos, Então que tal a aguardentezita, boa?, perguntou o meu cunhado ao meu marido, vai mais uma pinga pelo trabalho de hoje?, ao mesmo tempo que o Francisco, no primeiro andar, se escondia no mais distante das tábuas porque o médico, que a avaliar pelos sons circulava de gatas no sobrado, gritava Se não me entregas imediatamente o aparelho espeto-te uma vassourada na barriga. Eu não te disse que geraste uma gatuno?, confirmou a pitonisa. Muito obrigado, senhor arquitecto, agradeceu o meu marido. O meu estetoscópio, urrava o médico, desesperado, numa tempestade de vasculho, não me carregues nisso que me estragas o diafragma, e corpos ou o que pareciam corpos combatiam no soalho no meio de exclamações, cotoveladas, insultos. Toma cuidado porque senão, daqui por uns meses, tens uma segunda Ana pela frente, disse a minha cunhada a salvar no último instante uma revista de tricot das mãos da mongolóide que a confusão do piso de cima excitava, Não faças isso às borrachas, chorou o médico, que dessa marca nem sequer cá há, é importado, e por favor pede à cadela para me largar as calças. O senhor arquitecto tem um bagaço e pêras, apreciou o meu marido a apequenar o rabo na cadeira, sem me olhar nunca, aflito e tímido, recorda-me a aguardente que o meu velhote oferecia às visitas, em pior, claro, um licor assim nunca me caiu no bucho até hoje. Isso que tens na mão não é uma tesoura, gritou o médico, isso que estás a fazer não é cortar-me os tubos? Ouves?, disse a minha cunhada a mostrar o tecto com as sobrancelhas, como se não bastasse deste à luz um sádico. Então, então, diante de um subordinado meu, conciliou o meu cunhado a encher o copo pela terceira vez, que mal tem uma criança divertir-se um pouco? O vento trouxe de novo, de mistura com os resmungos das árvores e os latidos dos lobisomens, o som mate dos flancos das vacas contra a cerca de pau. As unhas da perdigueira raspavam o soalho, e se eu esticasse a orelha escutava a água do rio e o silêncio da noite, como em pequena, no meu quarto, quando apagavam a luz, os passos se afastavam e o silêncio principiava a zunir e ensurdecia-me. Se continuas a estragar-me o estetoscópio, disse o médico, meto-o na conta do teu avô que nem ginjas, e avisa o animal para não me morder o sapato que já me deu cabo dos atacadores do outro. Em que trabalhava o meu pai?, disse o meu marido ao cunhado, de olhos perdidos, à procura da resposta no vazio da cabeça, acho que fazia contrabando de tecidos na raia, senhor arquitecto, e eu levantei-me sem os ver e disse Vamos para o quarto, Gonçalo, que é tardíssimo. (Os fundilhos, miava o médico, pede a esse bicho para me deixar os fundilhos em paz.) O quarto?, ecoou o Gonçalo, perplexo, a sacudir a mongolóide que lhe abraçava a cintura, temos dinheiro que chegue para alugar um quarto nesta casa? O meu cunhado riu-se dispersando os resmungos das folhas e o silêncio da infância, carregado de ameaças imprecisas e do medo de ”dormir, agarrei no boné agaloado, pu-lo no cocoruto do meu marido e puxei-o, apesar dos ganidos da mongolóide, na direcção da escada, com pratos de loiça seguros por arame à parede, apliques de barro, e a minha cunhada Leonor a convencer-me, num timbre cada vez mais agudo, Se fosse a ti metia-os no asilo. O marido interveio Calma, calma, eles sabem lindamente educar os filhos, e a minha cunhada, num grito, Se sabem, tu conheces o assunto muito melhor do que eu porque és amante da Ana há anos ou tomas-me por parva?

E agora, que subíamos os degraus de prato em prato e de aplique em aplique, havia uma discussão em cima e uma discussão em baixo, ou seja o médico a chorar a sua ferramenta desfeita, e por outro lado o meu cunhado, lamurioso, Deixa-te disso, que parvoíce, que asneira, onde foste buscar uma maluqueira dessas, até que a minha filha apareceu em camisa de dormir no corredor, Não se consegue descansar com uma barulheira assim, já não bastavam as vacas para me moer o juízo, faltava o resto da família para me chatear ainda mais, e a tia, do poço do rés-do-chão. Tu julgas que eu ignoro, meu safado, tu julgas que não ando ao corrente das tuas porcarias todas? Escangalha o estetoscópio se quiseres mas pede ao teu cãozinho que me largue, solicitou o médico, ao menos que não me martirize a perna da variz. Onde é que já se viu patetice mais completa, disse o meu cunhado, o teu pai a morrer e tu com insinuações cretinas. O Gonçalo soprou a corneta e sacudiu a bandeira verde do expresso das duas da manhã. A mãe reparou por acaso as horas que são?, rosnou a minha filha, reparou no exemplo incrível que estão a dar ao Francisco? O vento trouxe de novo o boi e as folhas e o som distante da água, e percebia-se, além do rio, a noite de Espanha pela janela aberta, campos amarelos agora cinzentos, copas ralas e os dentes tortos dos penhascos do Guadiana. Qualquer altura é boa para falar de coisas importantes, disse a minha cunhada na sala, e fica sabendo que a vida que levas é uma vergonha para mim.

O meu sogro tossia debilmente ao mesmo tempo que o médico e a perdigueira, encarniçados, se devoravam entornando arrastadeiras, e pêlos de lombo e pêlos de cabelo cambulhavam em sapatos e chinelos. Isto é uma casa de malucos, disse a minha filha não se entendia ao certo para quem, acabem imediatamente com a bulha, que canseira. Por amor de Deus, Leonor, pediu o meu cunhado, não vamos destruir estupidamente trinta anos em comum por ninharias, e não era só o boi e a água e as árvores que o vento enrodilhava consigo, eram as conversas na taberna também, era a hora em que antigamente o meu pai chegava ao quintal, no extremo oposto da vila, lutava interminavelmente com a fechadura, derrubava móveis, jogava ao chão a pastorinha de vidro que o padrinho lhe ofereceu no casamento, se irritava com a teimosia da própria sombra, sempre pegada a ele, se irritava com a minha mãe, comigo, com o gato que se escapava num pulo de feltro pela janela fora. Se tivesse provas do que digo, jurou a minha cunhada na sala, podes ficar seguro de que me separava logo, Rodrigo, não vivia nem mais um minuto a aturar-te. Eu era uma garota na época e o meu pai, as sombras e os gritos apavoravam-me, como os insultos entremeados de vómitos e caretas. Francisco, disse a minha filha com a voz inapelável do avô, tens cinco segundos para chegar aqui, Francisco. O meu pai tombava cadeira após cadeira na direcção do quarto, enterrava os tornozelos nas travessas, pisava os tampos de palhinha, mas quem apareceu foi o médico de Reguengos, desgrenhado, com a cadela dependurada do casaco. O meu pai empurrou os gonzos da porta e por entre as pernas dele percebi a minha mãe entrincheirada nos lençóis a abrir a boca para gritar por socorro, a abrir a boca como no meu casamento, anos e anos mais tarde, chorosa de comoção e de orgulho, no vestido de cerimónia emprestado pela Leonor, por a família dos patrões lhe conceder o privilégio de receber a filha, por eu passar a habitar na casa grande da vila, a sentir-se também um pouco dona dos campos, do gado, dos olivais, dos prédios, a sentir-se uma dama de Évora, uma dama de Lisboa, uma dama esquecida do marido bêbedo, de gravata mal apertada, a puxar com a ponta dos dedos as mangas demasiado curtas do casaco, um homem de chapéu ridículo na mão e sapatos de camponês ou de palhaço, vingada de tantos anos de humilhações e fome e de pancada. Como se eu quisesse alguma coisa do que é teu, essa está boa, disse o meu cunhado em baixo, como se eu não conseguisse sobreviver por mim próprio. A minha mãe no altar, junto de nós, do padre e da música do órgão, embelezada com o seu único colar e o seu único anel, comprados em adolescente numa feira de Beja, feliz como nunca o terá sido na sua existência inteira, com o marido desfeito de espanto e de surpresa ao lado, a viajar de carro, pela primeira e última vez, para o copo de água na Pousada. A Ana deu um bofetão, com a palma aberta, no focinho da cadela que se refugiou no cubículo dos armários, e o Francisco veio vindo, colado à parede, obediente e secreto, com os fragmentos do estetoscópio na mão. O meu marido observava a lonjura sem limites do rectângulo preto da janela numa atenção ferroviária. Pede desculpa ao senhor doutor e entrega-lhe esses bocados antes que eu me zangue, disse a minha filha a interessar-se por dois pontos de interrogação de metal com uma azeitona no fim. O melhor que tens a fazer é calares-te disse a minha cunhada Leonor lá de baixo, ou nomeio outra pessoa para dirigir a fábrica e o monte. Eu só quero saber quem me paga estas calças, disse o médico ainda com um luar de pânico nos olhos, o estetoscópio é o menos, agora fazenda da Covilhã não arranjo outra tão depressa. A mongolóide trepava para nós como um pato, o Gonçalo, plantado ao meio do corredor, ergueu de súbito a bandeira, apitou, deu a partida a um comboio de mercadorias, e travões e rodas de metal fumegavam ao comprido do sobrado, e uma brisa de viagem desarrumou-nos as madeixas, e lanternazinhas pálidas sumiram-se na penumbra da retrete, e o meu marido, perfilado, de boné na cabeça, vigiava a composição que se desvanecia pelo quarto do Francisco fora, e as vacas regressavam e com elas um odor de ervas e de sangue gordo, e as oliveiras repetiam junto ao Guadiana as palavras que nem agora, na minha viuvez, na minha velhice, sozinha nesta casa enorme, inclinada, pelo reumático, para os pulmões da terra, consigo entender por completo. Descanse que à noite ninguém lhe nota os rasgões, despachou-o a Ana, amanhã, quando cá vier, traga-me o fato num saco para avaliarmos os estragos. A cadela assomava a examinar o médico., a mongolóide desequilibrou-se, abraçou uma mesa repleta de estanhes e de loiças, e despenharam-se ambas num temporal de objectos que se fracturavam e rolavam. O meu marido entalou a bandeira no sovaco, e sem o menor interesse pelo doutor, pela filha, pelo filho, pela irmã anormal que o seguia numa gemebunda fidelidade de saguim, anunciou-me Só temos o correio das seis da manhã, vamo-nos deitar um bocadinho, Lurdes. De modo que me estendi à sua ilharga como todas as noites o fiz durante trinta e três anos, verão e inverno, da tarde do casamento à manhã da sua morte, em outubro, ao encontrá-lo fardado, sobre os cobertores, com a corneta das partidas e chegadas no peito, tão completamente defunto que o cuidei vivo de início, mais chefe de estação do que nunca, à espera do comboio de passageiros ou de mercadoria que não vinha, que não viria, que se volatilizara para sempre, que não atravessava os pés da cama no desordenado roldão habitual, trinta e três anos deitada ao seu lado ainda ele não era chefe de estação mas agulheiro, a mudar a direcção dos carris, perto do Guadiana, com um gancho imaginário, o filho excêntrico do patrão do meu pai, que de quando em quando internavam em Lisboa numa clínica especial para agulheiros, de onde voltava quase sem se mover ou a mover-se como as Virgens dos andores, mirando as pessoas com órbitas de compota cujas meninas do olho não reflectiam ninguém, até recomeçar a preocupar-se aos poucos pelos comboios e se plantar junto ao moinho a alterar a trajectória das carruagens, o filho do patrão que eu observava pasmada tardes a fio, de joelhos num penedo, o rio a descer ali a três metros se tanto e ele, nas tintas para a água, azafamado com as composições que não havia, a imitar com as bochechas o ruído das máquinas, a girar os cotovelos na pressa das bielas, a erguer o queixo e a assustar os gansos com apitos de locomotiva, até reparar em mim, pensar uns minutos, de ferramenta suspensa, comigo a hesitar Fujo ou não fujo?, chamar-me, largar o pau inventado, me segurar o pulso, subir comigo para a vila a esmagar os tojos e as ervas apesar dos meus pedidos e dos meus protestos, pontapear os cães e as galinhas com as cardas das botas, entrar no vestíbulo da casa grande, de uma armadura logo à esquerda, semelhante a um espantalho de feira, atravessar o átrio sem responder aos cumprimentos dos criados, passar um guarda-vento, outra porta, uma sala com senhoras e um padre a beberem chá e a conversarem, rodeadas de mobília de museu, trepar as escadas gastas, cruzar um quarto, dois quartos, e ancorar no terceiro onde o patrão do meu pai, de óculos e gravata, escrevia sentado à secretária com pilhas de livros, e papéis, e pastas de arquivo no chão, enorme e calvo e distraído de nós, de anel de brasão no anelar e a sua irrefutável e indisputada autoridade no desdém da boca.

Um bando de cegonhas navegava na janela aberta, insólitas como peixes brancos numa água azul, muito acima dos barcos dos pescadores do rio, e se eu me colocasse em bicos de pés avistava o cemitério encostado à muralha, as cruzes, os idiotas, ingénuos monumentozinhos pomposos em memória dos mortos, e mais adiante, a seguir a uma grade marreca, a horta do coveiro que trabalhava na electricidade da Junta, e um homem a sachar a terra, minúsculo na distância, endireitando-se e curvando-se como se a espiral de uma mola o habitasse.

- Venho participar-lhe que me vou casar, disse o meu marido ao pai, sem me largar o pulso, na sua desagradável vozinha sem sabor.

Depois das cegonhas era Espanha, com as mesmas oliveiras e os mesmos sobreiros, separada de nós pelas cachoeiras do rio, por onde circulavam contrabandistas sigilosos que encontrava às vezes, na taberna, debruçados para o balcão a parlamentarem com o dono, de bocas cheias de queijo e de propostas de negócios. O velho acabou tranquilamente a página, secou-a com o mata-borrão, enroscou a caneta e fitou-nos, por detrás das lentes, na demorada, gigantesca indiferença habitual. Mesmo que eu lograsse escapar-me da mão que me prendia o pulso perdia-me seguramente no labirinto da casa, e esbarrava com mais padres e mais velhas, de chávena de chá em riste, reunidos em círculo noutro compartimento qualquer; ou nas criadas que grasnavam na cozinha; ou num desvão com desperdícios e baldes; ou na despensa vazia, unicamente ocupada por uma mulher idosa numa cadeira de inválida, com terríveis íris incomensuráveis de doente. O meu marido mudou uma agulha com a sua alavanca imaginária e repetiu com energia:

- Venho participar-lhe que me vou casar.

O meu sogro espirrou. Os cachorros ladravam no quintal, do modo como o fazem quando se aproxima a chuva, aquelas nuvens cinzentas e baixas escorregando das bandas de Mourão, e eu pensei Quando é que este maluco me larga, quando é que me vou embora, quando é que fico novamente sozinha no meu penedo da margem, a observar os pescadores, de cesta vazia à chegada e à saída, saltitando de pedra em pedra nos impulsos súbitos das rãs. O velho sacudiu uma campainha ou um badalo, bateram à porta e o ajudante do meu pai entrou, de boné na mão, sem sorrir, obediente e carrancudo, a rojar a perna deformada nos ladrilhos. Já não havia nenhuma cegonha na janela. Um pingo achatou-se na vidraça. Os cães galopavam lá em baixo, ao redor da nespereira, roçando os flancos pálidos na casca torta da árvore.

- Conheces esta, Albino?, perguntou o meu sogro a apontar-me vagamente com o lápis à medida que lia o que acabará de escrever, riscando emendas na margem. Mais gotas pegavam-se aos caixilhos, e com a chuva a cor dos sons mudava, tornava-se escura e grossa, de uma densidade de lágrimas, e os odores poeirentos como os de um alçapão antigo, há séculos e séculos cerrado. Assobiaram pelos cães, os latidos enrodilharam-se na direcção da casa, Calma, calma, ordenou o assobio, há ossos que sobram para todos. Quando é frango endoidecem por completo, disse outra voz, não tarda nada dou um pontapé na prenha, é à custa de porrada é que eles aprendem, e eu pensei Até as vozes se alteraram, impacientes e rombas, eriçadas de arestas. O meu marido desviou um carril no tapete sem me largar o pulso, e a sombra do rápido do meio-dia uivou entre duas cadeiras, sacudindo os quadros e as estantes dos livros, e afogando as palavras do ajudante do meu pai num vento de ruídos que nos dobrava a todos, como caniços, na direcção das calhas.

- O quê?, perguntou o meu sogro ao empregado que tapava as orelhas com os dedos. Pareces o cónego Mário nas novenas da Igreja.

O rápido extinguiu-se no esconso da banheira, acompanhado pelo olhar saudoso do Gonçalo.

- É a filha do Dionísio, disse o ajudante do meu pai, a detalhar-me. O senhor engenheiro quer que eu mande um dos sobrinhos buscá-lo?

- Traz-mo cá, disse o velho de nariz num livro imenso, código, enciclopédia ou dicionário. Se não estiver bêbedo há-de andar no terreiro ao pé das capoeiras, às voltas com o motor da ceifadeira.

E quando o empregado saiu permanecemos um quarto de hora ou meia hora, ou meio ano, diante do meu sogro que passeava de livro em livro esquecido de nós, detendo-se para acender os cigarros da boquilha com uma dessas caixas de fósforos de cozinha, perdida no tampo da mesa de mistura com lápis e canetas e borrachas e canivetes e potezinhos de loiça e um candeeiro apagado, com um rasgão semelhante a uma cicatriz no abajur. Permanecemos a olhar o céu agora pardo, e o rio de metal, e os sobreiros, e a paisagem lá de fora esbatida pela água, sem pormenores nem relevo, sem contar a ausência de pássaros e o homem que sachava abrigado numa cova da muralha, com o meu marido a alterar a direcção dos comboios na carpete apertando-me o pulso, com a mão livre, com toda a força dos seus dedos, enquanto eu farejava e media o espaço em volta, me habituava aos rumores estranhos e às invisíveis presenças desconhecidas da casa, aos estrondos das caldeiras, às fungadelas do fogão e à bronquite dos cachorros, até a chuva abrandar e se distinguirem de novo, com a nitidez habitual, o Guadiana e as árvores e a pedra esburacada da muralha, se perceber o cemitério e o adro da igreja de Santa Maria da Lagoa na varanda oposta à janela, e as octogenárias instaladas em banquinhos à entrada dos prédios microscópicos. O meu sogro iniciou outra página com a cinza a tombar no papel, sem que as locomotivas e as carruagens o distraíssem do que escrevia, só levantando a cabeça quando o meu pai, seguido do ajudante, surgiu na ombreira envolto numa auréola de aguardente e sujidade, a coçar os sovacos, de medo, com as largas mãos desajeitadas de toupeira: O senhor engenheiro chamou?, e o velho, impávido, a redigir como se não o ouvisse, como se não sentisse sequer a sua presença, de barriga inchada pelo álcool encostada à secretária, com a auréola do vinho a iluminar-lhe as palavras. A chuva era só um pólen de coisas leves e tristes, que as carruagens do meu marido desarranjavam e agitavam. Aqui tem o homem, senhor engenheiro, disse o Albino reduzido a uma voz humilde no corredor, e então a caneta parou, as órbitas sem rumo certo do velho boiaram, presas na armação dos óculos, à procura dos olhos do meu pai, do seu colete rasgado, da serradura e das nódoas da camisa, a caneta emendou uma frase, imobilizou-se de novo, e as pupilas do meu sogro solidificaram-se de súbito, a cara endureceu como no seu busto de benemérito na Casa do Povo, entre outros beneméritos igualmente calvos e severos. O meu pai roçava-se pela mesa, acanhado, fitava-me surpreendido, procurava entender soprando dentro da cabeça os nevoeiros do vinho, mirava o agulheiro que com a alavanca que não havia afastava as locomotivas da biblioteca, e o meu sogro enroscou a caneta, guardou os óculos, e anunciou a sorrir, de boquilha nos dentes, Parece que vai haver um casamento aqui em casa, Dionísio, e o meu pai, aliviado, É só dar-me as ordens na altura, senhor engenheiro, e o velho, cada vez mais divertido, Com a pressa com que os noivos andam dentro de um mês ou dois o máximo, e o meu pai Temos tempo de sobra para arranjar as coisas, estás a ouvir o senhor engenheiro, Albino?, e o meu sogro, de boquilha no ar, torcido de prazer, Não queres ao menos saber quem os pombinhos são?, não tens sequer uma curiosidadezinha?, à medida que com o cessar da chuva os cães recomeçavam a latir e a trotar no quintal, gemendo como as crianças, mordendo-se, encaracolando-se na terra, as cegonhas pairavam outra vez nos caixilhos, o meu marido afadigava-se com um vagão em manobras, o meu pai aguardava, opaco, de beiço caído, naquela sala luxuosa de mais para ele, onde se recebiam reprimendas e instruções. O ajudante aumentou as narinas de vitelo num júbilo estúpido: Não há nada para fazer, Albino?, disse o meu sogro, e o bezerro, amedrontado, evaporou-se. O velho ergueu-se, de polegares nos sovacos, ocupando o escritório, tocando as paredes com os flancos, roçando o tecto com o cocoruto ralo. As nádegas derrubaram o quadrúpede de couro da cadeira que tombou para trás, assassinada: Não te interessa saber quem são os noivos, Dionísio? As cegonhas escorregaram nos caixilhos e morreram. É o agulheiro, informou jocosamente o meu sogro a mostrar o Gonçalo com a boquilha, o doido dos comboios, não é verdade?, mais a miúda porca que aí está, um parolo e um raquítica que não vê água desde o baptizado dão-se bem de certeza um com o outro. O meu pai lambia a mortalha sem se dar conta dos gestos. Um rafeiro uivou no quintal, junto à capoeira dos perus, uma cadela ainda nova imitou-o, e os sons cheiravam às folhas molhadas, à casa húmida e à chuva recente. Quinze anos é uma linda idade, disse o velho, ficam a viver no quarto do agulheiro, apertados na mesma cama e é da maneira que tenho um neto depressa, só peço a Deus que não se assemelhe aos pais, podes acender o cigarro, compadre: ele próprio lhe estendeu os fósforos e pela primeira vez na sua vida o meu pai fumou naquele escritório, sepultado nas almofadas da poltrona de ramagens, de cálice de Madeira na mão, enquanto o Gonçalo expedia as locomotivas a caminho de Espanha ou de Lisboa, filando-me sempre o pulso com os dedos estreitinhos, na teimosia inabalável dos milhafres.

E a minha cunhada Leonor comprou-me vestidos em Évora, obrigou-me a tomar banho, a limpar as orelhas, a cortar as unhas, ensinou-me a lavar os dentes, a sentar-me sem mostrar as pernas, a conversar sem as palavras vulgares da minha mãe e do meu pai e da gente da minha família, que se encostava ao sol, nos socalcos de pedra, a observar os campos lá em baixo, e o rio, e a tarde, e impediu as criadas de me tratarem por tu e de se rirem de mim, ordenando-lhes que me chamassem por Menina, e os próprios habitantes da vila começaram a dizer Menina, os meus primos, que me seguiam num respeito medroso e não se atreviam já a aproximarem-se, Menina, o meu sogro espancou a filha mongolóide que uivava ao avistar-me, e a barriga cresceu-me misteriosamente a seguir a uma noite de sangue e comboios e dores, a ouvir grasnidos de corneta na estação dos lençóis, e meses depois os meus ossos quebraram-se no Hospital de Reguengos e trouxeram-me a Ana, vermelhíssima, e eu a olhá-la sem forças e a pensar Quem é, quem será, porque me trazem ao quarto esta larva horrorosa. Uma enfermeira de óculos disse Vamos experimentar o leite, desabotoou-me a camisa, girou o mecanismo aos pés da cama, colocou contra mim a repugnante criatura enrugada e empurrou-lhe a cabeça contra o bico do meu peito, e senti que me mordiam a carne com um par de ferozes pinças cartilagíneas de lagosta. Passados oito dias voltei com a Ana para a vila, e só decorridos anos e anos o meu marido, promovido a chefe de estação, de farda azul, corneta de lata e duas bandeiras, a verde e a vermelha, de pano enrolado no cabo, me tornou a segurar o pulso com a violência de outrora, a puxar-me desta feita para a beira do rio, onde pela primeira vez me notou, as cegonhas seguiam-nos dos ninhos nas chaminés desfeitas, e havia outros pássaros, pequenos, castanhos, confundidos com a lama, idênticos a crias de cisnes de lodo que saltitavam e voavam, e os arbustos magros e os barcos podres de sempre, o moinho repleto de ecos de sons e a faringite da água que ia e vinha numa monótona insistência de pulmão. O ferroviário disse Deita, de uma forma tão neutra que principiei a chorar e os sobreiros e a paisagem e o seu rosto se desfocaram pela lente das lágrimas, exactamente assim, Deita, após tantos anos de dormir ao meu lado sem me tocar sequer, nem num desses casuais e inexplicáveis movimentos do sono, arregaçou-me a roupa, Deita, quebrou-me o elástico das cuecas, Deita, acabou por crucificar-me os ombros contra os limos, Deita, à medida que remexia na braguilha das próprias calças, à procura, e três meses corridos abortei no hospital, um ano antes de o Francisco nascer, uma dolorosa pasta escura num balde, e acho que o meu marido nem sonhou, ocupado como andava com carruagens e furgões, a soprar a corneta a meio do almoço ou a saudar com a bandeira vermelha nos ofertórios das missas, uma pasta num balde e de novo a vila no alto do seu monte, com as três ruas paralelas e o pelourinho no largo. Cheguei no banco traseiro do automóvel do velho, com o chofer do Ministério a conduzir, um homem da idade do meu pai e parecido com ele, vindo de uma infância semelhante de miséria e de fome. Levou-me a mala até ao compartimento onde a minha cunhada e o marido discutiam, a Ana brincava agachada num canto, e a mongolóide, de rosto vazio, coçava os sovacos entre duas mesas. O meu marido passou por mim a trote, gesticulando para uma composição atrasada. O chofer depositou-me a bagagem no quarto como os falcões soltam um cagalhão em pleno voo, e eu arrumei as blusas na gaveta, mudei de vestido, penteei-me, o dia coloria-se dos amarelos, dos cor-de-rosa e dos lilases das cinco da tarde, a cozinheira tranquilizava os cães no quintal, a minha cunhada Leonor ameaçava o marido aos gritos por causa de uma empregada qualquer. Troquei de sapatos, desci ao andar de baixo e eles calaram-se no desprezo inquiridor do costume, os dois lado a lado no sofá, movendo-se de banda como catatuas num poleiro. A mongolóide apertava contra a barriga um trapo de boneca. Como é que te sentes?, perguntou a minha cunhada, e eu saí de casa pelas traseiras, sem lhe responder, de pernas vagarosas e pesadas como as mulheres de idade. Repouso absoluto, tinha comandado o médico de Évora, um camponês de bata verde sempre a conversar com quem calhava, preocupado com as codornizes da abertura da caça, Quietinha na cama, muitos caldos, muita fruta, estas cápsulas de ferro, estas vitaminas, estas ampolas de beber. As oliveiras chocalhavam pela encosta as lâminas das folhas, a vila afastava-se de mim, e após os prédios da vila, encostados à muralha como sinais o cemitério e o mesmo homem de antes da chuva que sachava, e um imenso nada côncavo por trás. Alcancei a vereda para o rio e segui ao acaso, com o peito a doer-me e os músculos rijos de cansaço, até sentir o aroma da água para além do monte dos enforcados e ver os pássaros de lama da margem a debicar nas ervas, e parei mais ou menos no local onde o meu marido mudava as agulhas dos comboios antes de me agarrar o pulso e me arrastar à força para casa a anunciar ao pai o seu casamento comigo, perante o absoluto e corno que surdo alheamento irónico do velho. Sentei-me num calhau e havia não um mas três pescadores junto ao moinho, inteiramente imóveis, cada qual com o seu cachorro e o seu cesto vazio, e o vento a assobiar nas árvores como sempre assobiava nessa época do ano, um som casual e quase alegre e infantil. Um dos pescadores enrolava o carreto sem nenhum peixe na ponta, os restantes dois permaneciam parados como os valados em torno, e eu lembrei-me de perguntar uma ocasião ao meu tio o que ia pescar ao Guadiana, e de ele me responder muito sério, sem sorrir, Principalmente nada. Sentei-me no calhau, no meio das ervas e do calor e das quedas de água a tropeçarem para a foz, e havia também um ou dois pescadores na margem de lá, com as suas alcofas vazias e a sua incompreensível e paralisada paciência. Lembrei-me das compressas de sangue que me extraíram das coxas e era como se me extraíssem de mim mesma, como se todas as minhas entranhas e recordações e pensamentos tombassem no balde com o embrião do meu filho ou da minha filha ou do que quer que fosse que existia em mim e cresceria com o tempo tal o escuro da noite. Um quarto homem, de botas de borracha, chegado da vila, instalou-se, num banquito de lona, a montante, também com a sua cana de pesca e o seu cesto e a sua irracional paciência sem esperança, mergulhado até aos joelhos nos arbustos, seis homens a pescarem principalmente nada na tarde que se transformava devagar, cor de vinho do Porto na direcção de Espanha, cor de vinho branco no sítio do castelo, e nesse instante um assobio de comboio cresceu das bandas do Ferragudo e aumentou nas calhas invisíveis, de início só o ruído metálico das rodas, e os borborinhos dos travões e o motor a lenha a inchar para mim, e depois o vapor do carvão, a fricção dos calços, o chiar dos carris, até a composição se imobilizar por completo, viajantes que não existiam entrarem e saírem, no apeadeiro irreal, junto dos pescadores absortos, uma corneta apitar, uma bandeira verde estremecer, um relógio redondo indicar horas aleatórias, o motor se tornar cada vez mais insistente e ritmado e poderoso, e as locomotivas desaparecerem no caminho de Lisboa, no caminho do Algarve, no caminho de nada, sem que ninguém as escutasse a não ser eu, atenta às silhuetas nas janelas, à velocidade dos eixos, ao aparelho eléctrico de distribuir chocolates e cigarros, e aos empregados gasosos empurrando os seus carrinhos empenados, até não restar mais que o Guadiana, o vento, as muralhas derruídas no topo do cabeço, e o meu marido muito direito, de boné agaloado na cabeça, farda azul e olhos de vidro, ao pé de mim, a acenar às azinheiras o seu pedaço de pano.

 

Só depois de fechar a porta do quarto, a seguir a desfazer as malas e alinhar os frascos de creme no tampo de pedra da cómoda, ao voltar da retrete ainda com a fita de retirar a maquilhagem no cabelo, quando já o meu marido se estendera na cama, de barriga para cima, de sapatos tombados no chão, a fumar, é que dei pelo odor de gado morto dos lençóis, e talvez não só dos lençóis, dos móveis também, e da noite no peitoril da janela como um gato que dorme, ressonando a música e os altifalantes de uma feira próxima.

Tínhamos chegado uma hora antes a Évora e principiado a apodrecer na primeira pensão que encontrámos, uma residencial com um televisor apagado, sofás de napa e bandeirinhas de diversos países cravadas numa rodela de madeira, ao lado de um velhote zarolho que recebia as inscrições e fornecia as chaves, provido de falanges mais compridas do que as batutas dos maestros ou as pupilas das lagostas. Arrastámos a bagagem dois andares seguidos, guiados pelo zarolho que trotava à nossa frente numa ligeireza de barata, entrámos, o xilofone dos pulinhos do velhote diminuiu no corredor a protestar contra a gorjeta, e passados minutos descobríamos que um dos candeeiros das mesas de cabeceira se fundira, que o trinco da janela emperrara, que se puxava a correntezinha metálica e o estômago vazio do autoclismo deglutia em vão a sua bóia, e que dezenas de insectos marchavam no rodapé, a tactearem as frinchas da madeira com as hastes.

Foi no Brasil, um ou dois anos depois da revolução, que percebi que Portugal, tal como os comboios do meu pai, não existia. Era uma ficção burlesca dos professores de Geografia e de História, que criaram rios e serras e cidades governadas por sucessivas dinastias de valetes de cartas, a que se sucederam, após meia dúzia de estampidos chochos de barraca de tiro, sujeitos de barbicha e lunetas aprisionados em retratos ovais, observando o Futuro na miopia severa dos eleitos, para tudo se diluir na branca paz sem relevo nem contornos do salazarismo, durante o qual a minha família prosperou como o caruncho no pau, devorando a serradura de fábricas e montes. Entendi no Brasil que as pessoas geralmente pobres, baixas e escuras, que se exprimiam da mesma forma que eu falo, não passavam afinal dos valetes dos professores de História despidos da sua colorida condição de baralho, transportando em São Paulo, sob o braço, atados com cordéis, os embrulhos das suas minúsculas esperanças. De modo que a infância e as recordações dela (jantares, carrosséis, bronquites de adultos, enormes medos) deram lugar à saudade imprecisa de uma orla de lodo e de água, na qual o Guadiana depositava delicadamente suicidas e barcos, sob a fúria pontiaguda dos pássaros. E agora, de novo no Alentejo tantos anos após, o odor de gado morto trouxe-me de súbito à ideia a minha absurda condição de dama de copas, sem ossos, sem tendões, sem carne, a estender o ouvido, sobre as pedras velhas da cidade, numa expectativa de ondas.

- Como é que você disse que isto se chamava?, perguntou o meu marido numa balida, esguia voz de cordeiro defunto, à medida que do seu corpo subia um relento insuportável de intestinos. Assim deitado na cama, naquela postura e com aqueles olhos baços e moles, aparentava-se ao cadáver de um novilho em que uma ocasião, a passear com a minha mãe e a minha prima de que ninguém fala nunca, por vergonha de que uma mongolóide a parisse, tropeçámos entre o rio e a colina do castelo, um novilho com os dentes de leite dos cornos despontando, coberto de moscas de asas cruzadas e desses repugnantes vermezinhos brancos que a terra segrega, a aparecerem, a retorcerem-se e a desaparecerem no interior da carcaça, um novilho desprezado pelos cães, de cigarro na boca, a coçar o umbigo e a conversar comigo. Qual é o nome desta cidade, Ana?, ao mesmo tempo que o fedor de cada sílaba me inchava, como os ventres incham de gases, nos ouvidos.

- Évora, disse eu, desiludida porque a água do rio não tremia nas paredes, porque o enfisema do zarolho afogava as ladainhas das oliveiras e dos choupos, porque, em lugar de um horizonte de Espanha, prédios cor-de-rosa me cercavam de varandas de cimento, e azulejos de retrete substituíam a igreja e as muralhas. Respondi Évora, e os carneiros finados ordenaram do colchão, cada vez mais putrefactos e líquidos:

- Quero voltar amanhã no máximo para Lisboa. Com sorte conseguem-se na agência dois lugares para São Paulo.

Arrumei o maço de algodão no necessaire, encaixei o frasco do leite de limpeza num buraco vazio, no meio de dezenas de garrafas e de potes, e olheio-o com inveja: levara anos e anos a ansiar fugir destes sobreiros e dos lobisomens destas noites, e apenas a revolução, sei lá quanto tempo depois, me empurrou aos baldões para Madrid, enxotada pelas espingardas dos comunistas.

- Vamos cedinho a Monsaraz, disse eu, assino a escritura à minha mãe, e aposto que às três ou quatro da tarde estamos no balcão do aeroporto a despachar as malas.

- Já ando cansado de antiguidades, Ana, protestaram as ovelhas mortas num tom que se dissolvia na fronha como os finados nos colchões. Cansado de mosteiros e de castelos em ruína, com rolas a chiarem nas ameias.

O meu marido despira-se, e encontrava-se, agora, nu sobre o lençol, como o novilho nas ervas junto ao rio. Lagartas e moscas entravam-lhe e saíam-lhe do corpo fedorento. O hálito do Guadiana assobiava nas gretas do moinho. A minha mãe, a minha prima e eu observávamos assustadas os arcos das costelas, recheados da lama dos pulmões. Um homem passou a vinte metros de nós, com uma cesta ao ombro.

- Porque é que ninguém abre uma cova e o enterra?, perguntou a minha prima a tapar o nariz enojado com a manga.

O meu marido, por sepultar, ergueu um pouco as clavículas desfeitas de que se penduravam os fios compridos dos tendões e pedaços de ramos e de musgo, a fim de observar a cidade da janela, ou seja, uma estátua, o silêncio da praça, um café, tudo irreal e velado como os cenários dos sonhos. Moscas de asas cruzadas voavam pelo quarto. Uma fila de formigas seguia militarmente uma racha sinuosa da parede. Monsaraz aplanava-se no topo do seu monte, por sobre a claridade do café de Évora, escondendo nas valvas das muralhas as ostras tenras das casas.

- Vou mandar um ganhão, disse a minha mãe a tocar com a ponta do pé no corpo estendido, e a enfurecer os insectos e as lagartas. Sumi-lo num instante, antes que os cães da vila o farejem.

- Nunca me torne a falar em Portugal, disse o meu marido a deitar-se de novo nos arbustos e plantas do colchão, à espera da apressada fome dos cachorros. Um primeiro animal, de focinho comprido, aproximou-se em hipotenusa. Outros latiam no corredor da pensão, no qual saltitavam de tempos a tempos, idênticos aos pássaros do rio, os pulinhos ágeis do velhote, e eu sentia-lhes a respiração molhada, o suor do pêlo sujo, os velozes movimentos das patas. Pensei Daqui a nada disputam o odor de ovelhas mortas do meu marido às moscas e às larvas e aos restantes bichos do campo, as algas das vísceras, a cara de que não reconheço o sorriso ou a expressão, e amanhã de manhã, quando baterem à porta com o tabuleiro do pequeno-almoço, encontro um resto de ossos espalhados, e logo a seguir a água do Guadiana, escapando de queda em queda a caminho da foz.

- Se eu não assinar a escritura a minha mãe perde a casa, disse eu. A gente em São Paulo num apartamento de seis divisões, e a velha por aí a pedir por favor um quarto de dormir.

Arrumei o último vestido e desabotoei a blusa, mas não o soutien porque depois dos partos me envergonham as estrias e a flacidez das mamas. Acertei o despertador para as sete, despi a saia, dobrei-a numa cadeira, e introduzi-me na cama o mais longe possível dele e do seu aroma de ovelhas defuntas, que excitava os bichos das leiras e murchava os chaparros e as flores estampadas da colcha. Nunca na minha vida dormira tão perto de um cadáver, tão apavorada pelos escaravelhos, pelas lombrigas e pela guitarra das ervas.

- Fica assim, em cuecas?, admirou-se o meu marido, a reptar na sua metade de lençóis para conseguir tocar-me o ventre com as cartilagens das falanges, abrindo e fechando a boca num ruído de algas.

- Apareceu-me a menstruação esta manhã, menti eu a apagar a luz e a transformar os objectos e os móveis em irreconhecíveis contornos sem cor, à deriva como sobras de naufrágio. Os solavancos do carro deram-me uma hemorragia dos diabos. Só a janela cintilava na noite de Évora, que desdobrava as asas, pontuadas de reflexos, para a estrada de Ferreira, para a estrada de Beja. O cão de focinho comprido rosnava sobre o meu marido, mergulhando-lhe as patas na barriga. Mais formas confusas latiam contra o rebordo do colchão ou roçavam-se pelos cantos, à espera. As falanges afastaram-se e o odor de cordeiro diminuiu um pouco.

- Você escusa de sair da pensão, ofereci eu do fundo dos lençóis. Vou a Monsaraz num pulo e à hora do almoço estou cá.

Sentia-o junto de mim, a avançar e a recuar como mesmo aos mortos, regidos por marés de sombras, acontece, sentia a sua contrariedade e a sua zanga muda, escutava os rafeiros que o despedaçavam, e quando o céu mudou nos caixilhos e se tornou indeciso e pesado como depois das insónias e da gripes, procurei a saia e a blusa por entre os navios negros das cómodas, calcei-me, fui buscar a carteira ao banco de ripas onde na véspera a deixara, e na recepção o zarolho dera lugar a um adolescente ruivo, com um emblema contra as armas nucleares ou qualquer dessas rodelas pacifistas pregada à camisola, a ler uma revista aos quadradinhos com os calcanhares no balcão, e que ergueu, por detrás do repuxo de bandeiras, a órbita sonolenta com que as pescadas cozidas adormecem de lado, sobre cenouras e grelos.

- A senhora vai sair às cinco e meia da manhã?, disse ele espantado, protegido pelo bíceps do Popeye do jornal. O televisor mostrava na penumbra a pele convexa do écran. Funcionários da Câmara regavam a praça em torno da estátua, puxando as jibóias das mangueiras como os pescadores na praia, ao termo do dia, os cabos dos botes.

- Gosto de me levantar cedo, disse eu subitamente consciente de que não me penteara, a arranjar à pressa com as palmas o cabelo de medusa lunar. Pousei a carteira no balcão, de onde os sapatos de ténis do ruivo se evaporaram de imediato, a fim de procurar as chaves do automóvel assoreadas por agendas, o passaporte, maços de cigarros e lenços de papel amarrotados, enquanto os pescadores municipais conversavam no largo, de vozes multiplicadas, divididas, estilhaçadas na geometria circular das fachadas.

- Se o meu marido perguntar por mim, disse eu a tentar decifrar sem sucesso os emblemas complicados do ruivo, avise-o de que chego à uma o mais tardar.

E pensei logo que provavelmente a essa hora já as criadas da pensão teriam varrido dos lençóis para o balde do lixo as cinzazinhas do cadáver, e davam caça, por debaixo da cama, às formigas e às lagartas. O ruivo guardou a revista e anotou o meu recado com um ar suficientemente pressuroso para que eu me esquecesse dos sapatos de ténis no balcão. Coloquei-me em bicos de pés e tive a certeza de que nenhum de nós compreendia um só dos seus gatafunhos complicados.

- Não sabia que em Évora se usavam letras egípcias, disse eu a tilintar as chaves e a esticar o pescoço para a frente, na direcção da camisola do ruivo e do seu emblema ecológico.

- Como?, disse o tipo a recuar na cadeira como um mexilhão se fecha, ocultando ciosamente com o cotovelo as suas opções antinucleares. Uma porta ou um guarda-vento batiam no corredor da pensão, sacudidos por um gume de brisa que me gelava as vértebras.

- Egípcio, disse eu. Os que regavam a praça dobravam na camioneta a lona das mangueiras, e partiam num alarido tremendo de motor. O riso de um deles flutuou por momentos e desvaneceu-se numa voluta gasosa. Não sabia que em Évora se escrevia em egípcio.

- Estenografia, informou o ruivo com a pompa a rolhar a caneta. (Faixas paralelas, lilases, aumentavam no céu.) Tirei um curso por correspondência há dois anos.

E a minha mãe e a minha prima de que ninguém fala e permaneceu no Alentejo com os comunistas à solta pelos montes, estavam comigo ali, no vestíbulo, a mirarem estarrecidas os móveis de napa da sala, que boiavam nas cachoeiras do Guadiana. Uma mesa sumiu-se, de jarra de flores no tampo, a caminho da foz. A banda de música para a procissão e para os bailes da festa desembarcava os clarinetes e os trombones de velhas furgonetas ferrugentas. A carroça do toiro gingava para a vila, passando o Outeiro onde a minha prima, de roupas estranhas, sandálias e unhas sempre pretas, morava com um mergulhador australiano, entre os detritos indescritíveis da sua fábrica de mantas.

- E por cada curso de estenografia que se acaba, disse eu ao ruivo a examinar a bandeira da Bulgária, oferecem de brinde um tubarão amestrado que se alimenta de testículos de conserva de engenheiros químicos albinos.

Tínhamos deixado o carro, na véspera, numa ladeira perpendicular ao largo, porque o meu marido desconfiava dos platinados, ou da bateria, ou das velas, ou de tudo junto, dessas inextricáveis tripas de bobinas e de fios que sempre produziram em mim uma horrível sensação de ignorância, de modo que tive de calcorrear vinte ou trinta metros no piso molhado que luzia, transformando a minha sombra numa serpente cintilante, e nisto os candeeiros apagaram-se e começaram a distinguir-se os pormenores das fachadas, a perceber ruídos mínimos até então inexistentes, e a sentir a opressiva respiração diurna do Alentejo, a aflição de gato com asma do calor, à medida que os telhados dos prédios se tornavam mais claros que as paredes, e o odor de ovelhas mortas continuava a perseguir-me até me instalar ao volante, fechar a porta, meter a chave na ranhura da ignição, e fazer deslizar o automóvel, ladeira abaixo, para longe do meu marido defunto, depositado na margem dos lençóis pelo refluxo de uma maré cheia qualquer. Engatei a segunda, carreguei no acelerador, o Ford espirrou como um bebé que acorda, levantei bruscamente o pé da embraiagem, guinei para a direita a fim de evitar a peanha da estátua, e distingui a cara do ruivo que me observava pela porta de vidro da pensão. Apanhei, fora das muralhas, a estrada de Reguengos e a manhã por entre uma fiada de árvores compridas e estreitas, escurecidas pela agonia da noite, e no meio das árvores aja nítida minúcia dos campos. Atravessei uma ou duas aldeias pequenas, com os seus cachos de motorizadas assinalando as tabernas e o pasmo alarve do costume no ar, liguei o rádio e desliguei-o de seguida dado que o som me trotava na cabeça à laia de um armário a fracturar-se numa escada, nos ecos de quando se não dorme e nos levantamos num vagar de fantasmas, à procura das aspirinas na gaveta. Em Reguengos, turistas alemães, solitários como choupos deslavados, assentes nas raízes dos chinelos gigantescos de gladiadores romanos, fotografavam a igreja, e ao parar no Outeiro, diante do atelier da minha prima, deviam ser sete horas pela temperatura do ar, se é que se pode chamar atelier a um barraco imundo, caquético, agonizante, de letreiro castanho pintado ao acaso, a subir e a descer, por cima da almofada da porta. Um silêncio de câmara de gás crescia para além das janelas poeirentas. Toquei trezentas e quarenta e sete vezes o botão da campainha até uma voz irritada rebentar lá dentro, a hesitar no próprio sono como em sapatos deslaçados, Está aí escrito num cartaz que só abrimos às nove, passe bem. Um cacarejar de galinhas fervia nos arbustos do pátio. Uma gansa, conduzindo um bando de gansinhos, sumiu-se num perfil de charrua. Lixo, fardos, tábuas e pedaços de pano e de lã acumulavam-se na eira. O céu principiava a azular de calor, e os contornos das coisas adquiriam brilhos oleosos e parados de alcatrão. O borbular, em inglês, do mergulhador australiano, vinha à tona e afundava-se por detrás da voz, e eu imaginei uma rã humana, de borracha, com um par de garrafas às costas, a mover as barbatanas ao redor da minha prima, dobrando a cintura como os pargos. Um objecto pesado tombou do lado oposto da parede, a voz protestou Vê o que fazes que me fodes o tear, houve um atrito de solas que recuam, Oh, oh, lamentou-se o mergulhador, e quase imediatamente novo estrondo cataclísmico, e quase imediatamente uma mudez de são-bernardo arrependido, e quase imediatamente a voz a guinchar, possessa, Some-te cabrão antes que me lixes tudo, e após um intervalo passos derrotados no sentido de um quarto nos antípodas, e a epiderme tensa do céu, a arder, prestes a rebentar numa espuma de nuvenzinhas microscópicas, rumando lentamente para sul sobre as dores de estômago dos eucaliptos. A voz resmungava, indignada, examinando decerto as avarias dos teares, carreguei na campainha e encostei a boca à porta, Sou eu, a Ana, abre. Uma brisa, esquisita porque a não sentia na cara, embaralhava o dominó das ervas. Mais objectos tombaram, e de repente ali estava ela a olhar-me, sem um sorriso, a apertar contra o peito um roupão de banho que devia servir de vasculho e de pano para enxugar a loiça, mais idosa não sete anos mas quinze, ou vinte, ou trinta, com rugas imprevistas nos ângulos da boca, nos ângulos das pálpebras, semelhante às velhas da vila e feita, como elas, da mesma pedra gasta e seca, e eu disse Olá, surpreendida, a amparar-me ao carro, e ela calada, a detalhar-me, com um suão de vinho branco em torno. Se calhar deixou de me conhecer, pensei eu, se calhar está a ficar a pouco e pouco como a mãe, amarrotada, cheia de vincos, farripas grisalhas pela testa, transpirando odor de merda seca e a arrastar-se pelo chão como um canguru doente, e veio-me à memória quando a internaram, em pequena, num reformatório em Beja, de vestidinho claro e tranças e sapatos de verniz, a filha da mongolóide que não queriam que se soubesse que existia, sempre presa na cozinha com os criados, veio-me à memória o automóvel com duas freiras que a levou e o chofer com um crucifixo e um coração eriçado de espinhos bordados na farda, a arrumar-lhe a mala no banco, veio-me à memória o meu avô a conversar cerimoniosamente, para o interior dos estofos, coçando a barriga, e nessa noite a mongolóide principiou a uivar logo que escureceu, a uivar e a rojar-se na cozinha afagando os azulejos, até o meu tio perder a paciência, tirar o cinto e lhe bater, e depois chamaram o farmacêutico que lhe deu uma tisana a beber, a deitou na cama, de polegar na boca, e a calou.

E agora, portanto, a minha prima quedava-se ali, descalça, de pés achatados, como os dos patos, na tijoleira da fábrica, na mesma passividade com que em criança entrou no carro e viajou para Beja, com o mesmo vestido, as mesmas tranças espetadas e a mesma boneca no sovaco, e eu, de hábito, aproximava-me dela a interrogar, num repelente tonzinho eucarístico, Esta é que é a menina?, e distinguia a silhueta obediente do mergulhador australiano (ou do meu avô?) a avançar, no adro da igreja de Santa Maria da Lagoa, para as religiosas encafuadas nos estofos, e distingui-me a mim mesma espreitando para baixo pelo postigo do compartimento dos comboios, a pensar Vão internar-me também, vão obrigar-me a comer sopa de nabos de segunda a domingo, numa sala de jantar atulhada de pagelas e de órfãos. O mergulhador usava barbatanas, óculos embaciados, calções de banho e incontáveis sardas e pêlos cor de laranja nos ombros e no peito: A Ana, elucidou a minha prima, sempre sem sorrir, no gesto amplo dos guias de museu diante de peças únicas. O chofer coxo cumprimentava a minha tia, o meu tio, os criados, a minha mãe que regressava da venda com uma garrafa de azeite, e só tornei a ver-te dez anos após, ao parares em Monsaraz a caminho de Lisboa, enfarpelada como se enfarpelavam as governantas nesse tempo. Fechaste-te com o avô no escritório a discutir com ele, a falar tão alto e tão feroz e tão autoritariamente como o velho, a conseguir calá-lo, a badalar a sineta para o meu tio e a insultá-lo também, a insultá-los a ambos sem que se atrevessem a responder-te, enquanto a tua mãe, que se mantivera quase sempre tranquila na tua ausência, guinchava, agarrada pela minha tia, na base das escadas, com a cadela perdigueira a lamber-lhe os joelhos e as pernas, e depois uma porta estalou com força, e depois outra, e depois outra, e depois outra, e só anos decorridos me revelaram que moravas no Outeiro, afogada em pulseiras e colares que os ciganos vendem nas feiras e as camponesas têm acanhamento e desejo de comprar, que moravas no Outeiro como uma desconhecida, uma estrangeira, uma ferida vergonhosa para nós, e a seguir veio o atelier das mantas e soubemos disso, à mesa, por uma empregada, e a conversa continuou como se não pertencesses à família, como se não fosses tu, como se estivesses tão morta como a tua mãe a cujo enterro não vieste e cuja herança nunca pediste ou exigiste, e apenas inesperadamente, na altura em que o avô adoeceu, te vi na vila a entrar para a taberna com o mergulhador australiano ao lado, os dois de tal forma pouco limpos que as pessoas se viravam para ver-vos, a neta do senhor engenheiro mascarada de Entrudo e com um anel em cada dedo para os funerais dele, e eu pensei que te vingavas dessa forma por todos os anos de humilhações e de miséria, pelos guinchos da tua mãe sustida à força pela irmã no patamar das escadas, pela sua angústia e os seus berros que só os chás do farmacêutico acalmavam, e de que apenas o meu pai parecia não dar fé, a levantar e a baixar as bandeiras de chefe de estação no topo do castelo.

- A Ana, elucidou a minha prima da soleira, sem alegria nem ódio, enquanto a gansa me roçava os sapatos a grasnar e o mergulhador fazia que sim com a cabeça ruiva povoada de uma barba de tritão, e eu compreendi que deixara completamente de existir para ela do mesmo modo que outras pessoas, defuntas ou vivas, cessaram de existir para mim, o idiota do meu primeiro marido, os meus filhos patetas, amigos antigos, perfis vagos da infância. Compreendi que nenhum de nós, na família, possuía a mínima importância para ela, que nos tornáramos tão transparentes que um movimento do seu braço nos atravessava o corpo, que nos desconhecia como eu vos desconheço agora a vocês, ao desembarcar do carro em Monsaraz, diante da igreja, perto da casa repleta de móveis monstruosos e de painéis de capela, onde a minha mãe se desloca ao meu encontro nas hirtas guinadas dos velhos, queixando-se do pescoço, das costas, dos braços, das pernas, a esbarrar em cómodas de sacristia como um besouro cego.

- A Ana, disse a minha prima para o ruivo antes de empurrar a porta e eu deixar de os ver, A Ana, soluçou a minha mãe, a apertar-me os rins e a suspender-se em mim, no exagero de ternura da idade, e o estuque das paredes caía, e faltavam quadros e loiças e pratas e retratos, e os apliques descolavam-se, e havia pregos espetados na caliça como as unhas dos cactos, os passos da minha prima afastaram-se de mim à medida que os da minha mãe se aproximavam, alcancei a estrada para Monsaraz, em primeira, pegada às rodas de um tractor, A Ana, disse a minha mãe a sentar-se à mesa do almoço para ver-me comer, e reparei então como a maré dos anos te tinha escavado e torcido e deformado os ossos de modo que só te faltavam pássaros brancos poisados na nuca e nos cabelos e o ruído da água no sifão dos brônquios, e a meio dos ovos estrelados, com a curiosidade da cozinheira nas costas, ouvi a marcha desigual do meu tio no piso de cima, as botas a arrastarem-se nas tábuas e as pancadas da bengala como antes dos actores aparecerem no palco, e pensei, a cortar o pão, que a decrepitude era talvez a última forma de comunicação que lhes restava, e pensei no meu avô, sete anos antes, no cubículo ao lado do compartimento dos comboios, a agonizar, de boca à banda, durante a festa e os foguetes e a tourada, até lhe cobrirem a cara com um lenço ocultando o riso de fauno com que apalpava as criadas na copa, e elas Largue-me, senhor engenheiro, que se o meu marido sabe rala-me o lombo de pauladas logo à noite. A Ana, disse a minha prima cada vez mais longe, lá em baixo, no Outeiro, envolta num pó de lã que dançava, virei-me de repente sem largar os talheres e dei com os olhos da costureira a devassarem-me e cachos de pupilas entaladas nas frinchas da porta, A brasileira, segredavam elas, a que veio ajudar a mãe a estragar a vida ao tio, a tirar-lhe a casa e a mobília e a terra e os prédios de Borba, de Vendas Novas, de Lisboa, a boquilha do meu avô movia-se-lhe diante das caras e elas Pare com isso, senhor engenheiro, ou queixo-me ao seu genro, o odor da figueira entrava pela janela aberta e gotejava como um cano roto, e acabei de comer e levei-a a Reguengos ao notário, um edifício de dois andares por cima de uma capelista, ou retrosaria, ou loja de modas com manequins em atitudes obsequiosas vestidos de roupa fora de moda e cagada das moscas na montra. Não havia nenhum cliente à espera, só uma rapariga a escrever à máquina cercada de dossiers e de pastas, até que nos conduziram a um gabinete com a fotografia do Presidente da República, ou do Cardeal-Patriarca, ou do camelo de um comunista importante, encafuada ao centro dos arquivos, e o notário, fulano de gestos circulares provido desse indefinível aspecto de perpétua indigestão de carapaus e guitarras dos antigos estudantes de Coimbra, alinhou um par de cadeiras defronte da secretária de alumínio. Façam favor minhas senhoras, e aceitou regiamente o caderno dactilografado que a da máquina de escrever lhe estendia na submissão desdenhosa de quem dorme com ele há muito tempo, leu-nos em voz alta umas prosas intermináveis e sem sentido e acabou por retirar uma caneta do casaco e oferecer-ma para eu assinar no fim, Aí nessa linha marcada com uma cruz a lápis, assinar que as casas e os prédios e as terras do velho pertenciam agora à minha mãe, que ao meu tio não cabia sequer o direito de habitar em Monsaraz, no edifício a desfazer-se, perto do largo da vila, e que a hipoteca iria roubar dentro em breve, se bem que ninguém quisesse para nada leiras safaras de cardos e caniços e ervas e mandíbulas de novilho, nem construções de que os insectos devoraram os barrotes e as osgas se passeavam livremente no tecto, e as raízes da figueira, insinuando os músculos por debaixo das traves, levantavam o soalho de tal sorte que se subia e descia ao caminhar no interior de uma sala e se olhava para a rua ora à altura do umbigo ora vinte palmos acima da cabeça, a herança de merda do meu avô, que cheirava à alfazema e à cânfora dos lençóis em que ninguém já dorme’. O notário apertou-nos a mão, com a palma molhada, depois de pagarmos, acompanhou-nos pelo gabinete fora até ao patamar das escadas, que um Camões idoso trepava a ofegar degrau a degrau com o rolo de papel selado dos Lusíadas em punho, Muito bom dia minha senhora, muito prazer minha senhora, e de novo a caminho de Monsaraz através de povoados raros e feios, pingando das colinas como se não houvessem acabado completamente de escorregar do topo, e eu pensei que só ao termo de todos esses anos acabarmos, caramba, de derrotar o meu avô, não directamente ele mas por intermédio do meu tio, que coxeava no sótão, perseguindo a bengala, e ao atingirmos a vila perguntei à minha mãe Quando é que o põe na rua?, e ela, para mim, admirada, Na rua?, e eu A mãe é a única dona da casa desde que eu assinei a gaita dos documentos em Reguengos, de que está à espera para se ver livre do seu hóspede?, e ela a dirigir-se calada para a porta e eu a sacudi-la com força Não me diga que me deu este trabalho todo para nada?, e a minha mãe, no sussurro humilde da filha de feitor que era e reaparecera de súbito na dentadura descolada, ’nos rasgões da camisola, nas sandálias camponesas, no antigo, congénito, eterno, vencido receio do patrão, Qual trabalho?, e eu, de cabeça perdida, Qual trabalho?, qual trabalho?, qual trabalho?, depois de tudo isto tem a lata de me perguntar qual trabalho? Os clientes da taberna fitavam-nos do aquário do tinto, um bando de frangos fugiu de nós a correr, e eu filada a ela, danada, a abanar-lhe os ossos estreitinhos que se me esfarelavam nos dedos, Qual trabalho, poça, qual trabalho?, venho do Brasil de propósito, meto cunhas em Lisboa, obrigo o meu marido a viajar para Évora, arranjo-lhe a escritura em dois tempos para evitar que seja ele a expulsá-la, torno-a proprietária desta cangalhada toda, faço de si a senhora da casa, e das criadas, e das porcelanas, e das casquinhas, e das restantes trampas que lá há, e a mãe, com cara de parva, Qual trabalho?, e a mãe, com esses horrorosos dentes de plástico a caírem das gengivas de tola, Qual trabalho?, nem sequer sabe zelar pelo que lhe pertence como a coitada da minha tia mongolóide?, e ela, aflita não por mim, não por si própria, mas pelo sacana do meu tio, por aquele farrapo invisível que cambulhava no sótão, Se o atirar à rua para onde é que ele vai?, e eu, sempre agarrada à velha, com a gola do vestido nos dedos, Nem que peça esmola por aí, nem que desmaie de frio, e se lhe aparecer por acaso largue-lhe os perdigueiros às calças, e a minha mãe, dissolvida de angústia, a repetir-me as palavras, Esmola?, perdigueiros?, frio?, e eu, cada vez mais possessa, a berrar no largo, na véspera da festa, o que todos sabiam, isto é, Não me vai contar que continua a gostar dele, pois não?, não me vai dizer que ao fim de cem anos não lhe saiu da cabeça esse pulha?, e ela calada, imóvel, indefesa, mole, erguendo para mim as pálpebras vermelhas de cão triste, de cão batido de sempre, até que lhe gritei Se não sabe resolver os seus assuntos sozinha resolvo-lhos eu num rufo, e a abandonei no meio dos outros rafeiros seus iguais, das galinhas e dos dejectos miúdos das cabras, a abandonei contra uma esquina, onde lhe pertencia ser abandonada como se faz às putas baratas e aos bichos tinhosos, e entrei em casa a afastar as sombras dos criados com os braços estendidos, e subi ao andar de cima, e parei no patamar por não ouvir os passos lentos do costume nos desenhos das carpetes, seguindo a custo o saltitar de ave da bengala, e escutei apenas os relógios de pêndulo a abanarem as nucas de latão e o tropel dos ratos no forro do tecto. O que é feito do tipo?, pensei eu a levantar reposteiros, a arrombar armários na claridade de pesadelo que habita os prédios antigos como um sorriso de viés, e a pontapear caixas de chapéus, cortinas comidas pela traça, sapatos de tacões quebrados, mesas de gamão, rendas que se evaporavam ao tocar-lhes, espiolhei os esconsos, enfiei-me por desvãos assustando as aranhas, rodei maçanetas de loiça que me ficavam no punho, Tio, chamei eu e nada, nem o menor som, nem o menor atrito, nem o menor gemido, nem um catarro, só o eco da minha voz nos compartimentos desertos, Tio, disse eu, preciso de falar consigo de um assunto importante, venha cá, porque o sabia escondido em qualquer ponto da casa, talvez nesta cantoneira, não, talvez naquela camilha e também não, fugia de mim como fogem os grilos dos chinelos que os pisam, vi, pela janela do escritório do meu avô, a minha mãe sentada nos degraus da igreja numa postura de pedinte e indignei-me comigo mesma por ser filha dela, filha de contrabandistas e ganhões e vagabundos como ela, Tio, berrei eu, plantada junto ao piano, apareça imediatamente, tio, esse gatuno que eu não via há sete anos, desde a morte do avô, e que nos mentiu a todas, e abusou de nós, e dormiu connosco, e nos aldrabou com promessas falsas, e gemidos falsos, e segredos falsos, à medida que nos afagava e despia e penetrava nas nossas coxas como um caule numa jarra, e que no próprio dia em que cheguei de Lisboa, com o meu irmão, para a agonia e o enterro do velho, me cavalgou, como se eu fosse uma mula, no quarto ao lado do doente, com as locomotivazinhas do meu pai a fazerem toc toc toc no sobrado, me cavalgou, como às restantes mulheres da família, na indiferente brutalidade do costume, Tio, berrei eu, vou enxotá-lo desta casa, tio, e a minha mãe, nos degraus da igreja, submersa por frangos e cadelas, abri gavetas, ergui a tampa de couro de um malão, levantei o assento de um banco, e encontrei desperdícios, restos, cadáveres de coisas, fragmentos de pratos e molduras, Venha cá seu cabrão, gritei eu, mostre a ponta dos cornos se é capaz, e já me faltava apenas a sala grande e o esconso, de forma que entrei com o lustre a tremer no alto lágrimas de vidro, preso por um único fio eléctrico a uma placa de estuque, e dei com os cadeirões de veludo roto, a harpa, depenada de cordas, encostada à parede, fotografias de meninas de olhos brancos contemplando nada, a colecção de espingardas antigas, seguras por grampos a uma espécie de esteira, e as estantes dos livros, espreitei um contador, bati com os nós dos dedos em arcos falsos que soavam a oco como urnas vazias, ajoelhei-me para espiar sob um móvel e nada, derrubei a porta do cubículo com o calcanhar, segurando a mãos ambas um dos bacamartes da esteira, acendi a luz, e encontrei-o aninhado num canto, entre dois cestos, a proteger a cara com a bengala muitíssimo mais idoso do que eu imaginava que lhe fosse possível envelhecer em sete anos, curvado, engelhado de rugas, de botas gastas, quase em farrapos, inerte, resignado, passivo, à espera da primeira pancada na aceitação ossuda e triste dos bois.

Ao entrar na pensão de Évora o relógio redondo, por cima da bandeira do Nepal e à esquerda do ruivo, marcava quatro e meia, o que portanto queria dizer que era mais tarde ou mais cedo que essa hora, por me haver habituado, ao cabo de tantos hotéis e estalagens, a não acreditar em ponteiros, e subi para o quarto fechado à chave a cuja porta tive de bater em vão uma eternidade arreliada, primeiro com as unhas, depois com a palma toda e finalmente aos socos, sentindo o odor de gado morto subir lentamente ao meu encontro e a olhar a minha prima debruçada para o meu marido podre na erva, sustida pela voz da minha mãe, e a escutar as quedas do Guadiana logo ao pé, o sifão do moinho abandonado, o sol nas pedras e o silêncio das árvores, e nisto, após um sussurro de molas de cama gritaram Um momento, e o cadáver surgiu à minha frente, de toalha à cintura, aureolado pelos insectos do campo, a minha prima furou a carcaça com um pau, Que é?, disse ele, ainda a dormir, num timbre translúcido que boiava, procurando calcular o tempo pela tonalidade da luz da janela. Quieta, disse a minha mãe à minha prima, olha que os bichos finados vingam-se de ti à noite, pegam-te doenças de pele, vêm uivar ao teu quarto, galopam às marradas pelos teus sonhos dentro. Atrasei-me um bocadinho, disse eu a lavar as mãos e os dentes, a arrumar as bisnagas no estojo, a guardar a roupa na mala, se seguirmos imediatamente para Lisboa aposto que o avião ainda lá está, telefona-se daqui, vão buscar o carro ao aeroporto e pronto, chegamos a São Paulo num instante. Mudei de ideias, disse o meu marido a acomodar-se nos arbustos do colchão, com um exército de formigas a trepar-lhe a coxa e as orelhas devoradas pelos cães, ficamos em Évora e amanhã decide-se, não há voos para o Brasil a esta hora. O primeiro mocho do crepúsculo cruzou as azinheiras, os ralos zuniam, ocultos nos buxos, com medo dos milhafres e das corujas. A sombra das muralhas avançava a levedar a caminho do rio. Uma ou duas luzes acendiam-se na vila lá no alto, a minha mãe batia as palmas para um lado e para o outro enfurecida com as meigas, Embora, comandou ela, o vosso avô já deve bufar à nossa espera na mesa, esse compartimento grande, cheio de quadros, que encontrei vazio e encolhido, sem a majestosa dignidade de outrora. Não se deita?, convidou o meu marido num mugido, aposto que anda cansadíssima desses notários todos, mas o odor de gado morto do seu corpo era de tal modo insuportável que me debrucei para a praça e o rectângulo de casas, em torno da estátua, deu lugar a uma encosta que trepava para o cemitério e do cemitério para a vila. Ouvi a minha prima choramingar e queixar-se, ouvi mais noitibós, ouvi a minha mãe ralhar-me e a minha respiração de miúda que se apressava e cansava. O meu avô ocupava a cabeceira a guardar a boquilha no bolso do colete. Não me apetece comer, disse o meu marido, inerte sob a teimosia dos mosquitos, não espere por mim para ir à sala de jantar, onde três ou quatro empregados rodopiavam de jaqueta branca e botões amarelos, um chefe de lacinho se abraçava como um diácono ao missal dos roses, e um homem nédio, a contas com uma sopa de tomate, lia o jornal na mesa mais próxima da minha. Pedi peixe e água sem gás e o cheiro de bezerros mortos graças a Deus que decrescia aos poucos: o gordo cheirava a loção barata para a barba, as bochechas derramadas no charco da toalha, mastigavam como as dos sapos, avistava-se o ruivo e as suas bandeiras a discutir com um cliente espanhol. Uma mulher de avental mudava as flores das jarras. O gordo inspeccionou-me as pernas e regressou à colher, mas momentos depois tornou a olhar-me, compôs a gravata, e fechou o jornal com uma palmada, esmagando um acidente de comboios. Os gestos dele adquiriram a cautelosa dignidade dos camaleões, movendo-se sobre os talheres como para engolir uma libélula, e serviu-se de menos carne assada do que o faria se eu não estivesse presente, a meia dúzia de palmos, tentando separar as espinhas com a ponta da faca. O chefe conversava com os súbditos de botões doirados, agrupados num canto como nos concílios.

- É a primeira vez que vem a Évora?, perguntou-me o gordo do charco de molho do seu prato.

O ruivo tocou a sineta do balcão, os criados rodaram a cabeça e o chefe acorreu, sempre agarrado à sua bíblia de gargalos, a fim de desfazer o nó da discussão com as unhas demasiado rentes de um castelhano para surdo-mudos, feito de torcicolos, de trejeitos e de passes toureiros, que o ruivo reforçava de Carambas a destempero.

- Passo por aqui todas as quartas-feiras, explicou o gordo a estender as ventosas dos dedos para o pão. Trabalho para uma fábrica de tecidos e a mim, que sou de Viseu, saíram-me na rifa os estabelecimentos do sul. Aquele Mercedes que está lá fora é meu.

Estiquei o pescoço mas não havia nenhum Mercedes na praça: só as lâmpadas que cavavam piorreias monstruosas nas fachadas, o esboço das árvores, a silhueta escura da estátua ao centro, e mais além um repuxo onde a água, invisível, tombava numa cortina de patilhas. A minha tia mongolóide balouçava-se na extremidade oposta da mesa, e o meu pai, de boné nos joelhos, fixava a natureza-morta, de maçãs e lebres, da parede, com a atenção preocupada de um horário de caminhos de ferro por cumprir. Que será feito da corneta?, pensei eu. O ruivo uivava No señor no vestíbulo, assustando a Costa Rica e o Luxemburgo.

- Quer ver o retrato dos meus filhos?, ofereceu o gordo, a estender-me a carteira em que se multiplicava um enxame de sorrisos, protegidos por uma placa de gelatina. A mais velha matriculou-se este ano em Agronomia, imagine.

E eu abismei-me na contemplação pasmada de uma rapariga de franja, também gorda, entalada, à laia de uma cunha de escorar, entre o pai e a mãe, a qual derramava num sofá, de boca aberta, a sua fome de meigas. O homem guardou orgulhosamente os batráquios no bolso do casaco, e avançou um pouco mais os cotovelos sobre os limos do jantar:

- A menina está sozinha na estalagem?

Depois das enchentes do Guadiana, no Inverno, quando o rio, de novo manso, se retirava para as pedras do costume, lançando azinheiras e arbustos contra o moinho abandonado, a minha prima e eu acocorávamo-nos nas poças de água em busca das rãs e dos miúdos animais gelatinosos de Dezembro, que se confundiam com a terra, escapando-se pela erva em pulozinhos rápidos de mola. E agora ali estava, por milagre, um desses bichos de dantes, paridos de ovos microscópicos, a piscar as pálpebras e a aproximar-se de mim com um pedaço de carne assada no garfo:

- Se aprecia panos orientais dá-me imenso gosto presenteá-la com um dos saris que tenho lá em cima no quarto.

Não cheirava a gado morto: cheirava a chuva, a lama, ao mês de Março, ao tabaco frio do meu avô, ao perfume que a minha mãe me espalhava no cabelo e no pescoço, a seguir ao banho, enquanto me enxugava e penteava. O gordo, que escalara os degraus a refolegar, remexia uma porção de sacos atulhados de roupa, exibia-me soutiens, espalhava cachecóis, desdobrava blusas e saias, redemoinhava lenços, Escolha, escolha, mergulhava em pilhas de casacos à cata do roupão ideal, enquanto a cadela perdigueira, enfurecida e medrosa, lhe ladrava de longe, e o meu pai soprava o apito de chefe de estação pelos compartimentos da casa, com uma cruz de guerra, desencantada num antiquário de Borba, pregada com um alfinete-de-ama ao peito da farda. Alcançámos o cemitério e os seus monumentozinhos de gesso, modestos e tristes, a horta do coveiro cujos legumes repolhudos cintilavam, corremos as três para o portão, e ao entrar na sala os meus tios olharam, reprovadores, para nós, a cozinheira servia o meu avô que sorria um riso oleoso de sapo, afagando na minha direcção uma camisa de dormir, e apenas a mongolóide, amarrada à sua cadeira de doente, se me afigurou em paz, atravessando as pessoas e as coisas com a misteriosa claridade das pupilas.

 

         Primeiro dia da festa:

         À Lídia, onde quer que se encontre

A primeira coisa que ouvi, mal entrei no vestíbulo, foi o comboio eléctrico do meu pai, a girar no sótão nas calhazinhas de brinquedo. Ainda hoje, meu amor, passados seis ou sete anos, acontece-me acordar no escuro do quarto, a meio da noite, junto ao teu corpo náufrago nos lençóis, que o copo de água da mesa de cabeceira ilumina de claridade de vazante, com o sabor de um sonho interrompido a evaporar-se-me na boca, e escuto, penso que escuto, julgo escutar, escuto vindo do ponto inlocalizável das trevas onde se acumulam o som do despertador e as nossas roupas misturadas, o arroto contínuo de uma locomotivazita de lata, ultrapassando árvores de plasticina, gares de celulóide, reis magos, pastores de presépio, soldados de chumbo e declives de papel pardo, até desaparecer no intervalo de duas cadeiras numa teimosia mecânica. Sentado nas trevas, palpando o maço de cigarros que não encontro nunca e me obriga a bater em vão, para baixo e para cima, a asa de listras do pijama, afigura-se-me que um senhor careca, de joelhos no tapete, comanda, por intermédio de uma alavanca cromada, a marcha da minha angústia e dos meus dias, obrigando-me a rodar devagarinho, de cómoda em cómoda, com o peso de dezanove verões em cima. Encosto então a minha perna à tua perna, o meu flanco ao teu flanco, o meu ombro ao teu ombro, buscando em ti a densidade de carne que me tranquilize. Mas toco-te sem querer no rosto e o nariz franze-se, protestas, fungas, agitas-te, afastas-te sacudindo as crinas platinadas do cabelo, e fico de novo só como nesse setembro antigo da minha infância, com a cadela a raspar as unhas no chão de pedra e a molhar-me o pescoço com o focinho, enquanto no andar de cima, alheio a mim, alheio a tudo, o insignificante comboio eléctrico do meu pai reaparece de sob um móvel de talha, navegando entre Meninos Jesus de barro e aldeias holandesas de cartão.

Acendo o isqueiro, os meus dedos tropeçam, um objecto tomba no sobrado e rebola, e distingo-te por segundos a nuca, a curva do nariz, a garganta que principia a adensar-se como as das rainhas das notas de banco, o lequezinho de pregas, como as da minha irmã, nos ângulos das pálpebras, nos ângulos dos lábios: gosto da tua expressão pesada e desdenhosa, dos grandes seios tombados que se ignoram um ao outro num estrabismo de amuo, da tua lenta voz rouca, dos teus quarenta anos que envelhecem no majestoso desespero dos petroleiros. Gosto de morar contigo neste quinto andar esconso, sem elevador, da rua das Praças, com a retrete colada ao fogão, o duche minúsculo, jornais e livros e folhas dactilografadas e cuecas sujas ao acaso no soalho, quase nenhum móvel, almofadões rasgados por aqui e por ali, e tu ensaiando ao gravador as falas de uma peça radiofónica imbecil, dobrando a cintura em atitudes de Fedra. Gosto que me tenhas escolhido, a mim a quem proíbem a entrada nos filmes para adultos, para me passeares nos restaurantes baratos do Bairro Alto, onde os artistas sem trabalho, vestidos das barbas grisalhas e dos trapos coloridos dá sua opulenta miséria, dobram as garras sujas não sobre garfos e facas mas sobre mortalhas de marijuana castanhas de saliva ou cigarros ameigados de haxixe, sorvendo lá de dentro as proteínas duvidosas de um jantar de fumo. Gosto das tuas carícias excessivamente exuberantes, das tuas bebedeiras de vendaval, da sincera mentira do teu amor por mim. Gosto quando me beijas e abraças e afagas e alargas as pernas a fim de me introduzires, com lentidão eucarística, na seda contráctil da vagina, de voltar a cabeça para o postigo da janela e ver para lá dos caixilhos lascados e do vidro poeirento, o rio nocturno semeado de lâmpadas de barcos e de sombras de guindastes, erguendo-se e baixando-se ao ritmo ansioso do meu peito, e por cima dele, incrustadas numa abóboda de ardósia, as órbitas interrogativas das estrelas.

Nesses minutos sem substância, nessa eternidade gasosa, nessa pura flutuação de prazer, quase te perdoo as malhas caídas das meias, o cambado dos sapatos, as torradas queimadas do pequeno-almoço, e os botões que me faltam na camisa à laia das teclas de um clarinete avariado. Apenas me dói muito ao de leve, se não estás, a ausência da minha mãe, da minha irmã, do meu avô, do meu pai, em torno dos quais, ao jantar, as criadas dançavam um sábio ballet de pratos e terrinas. E acode-me a certeza de que, se parar por instantes e apontar o tecto com o ouvido, consigo escutar, no meio dos estalos do colchão e das tuas queixas segredadas, um assobiozinho eléctrico de rodas devorando sem cessar, monotonamente, a sinuosa complicação dos carris.

Quando os primeiros automóveis descem a rua de São Domingos, ainda antes da manhã, e logro aperceber-me dos contornos do meu casaco de palhaço pobre, pendurado, entre vários casacos e camisas e carteiras e calças, nas costas de uma cadeira de palhinha, quando uma seara hirsuta de antenas de televisão emerge dos telhados da Lapa e as gruas do Tejo adquirem a pouco e pouco a falsa profundidade dos cenários de teatro, quando o teu corpo, amortalhado em desordem na colcha, me revela finalmente a solidão de um pé, as raízes grisalhas do cabelo, a pintura dissolvida dos malares, aclarado pelo frio cor de fundo de tacho, das seis horas, lembro-me, não sei porque sonânbula associação de ideias, da tarde em que o Nuno me chamou aos berros do vestívulo e me levou, de Volkswagen, ao Restelo, fumando, junto ao tejadilho, cigarros sem filtro que cheiravam a croquete e a palhota.

Os andares da família, meu amor, distinguiam-se logo dos outros por possuírem mais tremós, mais peniqueiras e mais cristais por hectare de alcatifa, balizada pela mudez de túmulo dos sideboards. Mesmo a minha irmã, que devia ter na época vinte e oito ou vinte e nove anos, tropeçava já em samovares e canapés, e presumia a cor do céu nos barómetros aneróides contraditórios, suspensos das paredes corno frutos de mogno. Os espelhos reflectiam sofás acumulados na penumbra na simetria sem vida dos museus, e o ar afigurava-se-me antiquíssimo e rarefeito como a atmosfera puída das grutas, de oxigénio bebido pela clorofila de enciclopédias e dicionários. E depois de tomar um ácido e te imaginar a conversar com o meu avô, estendo-me de novo, a rir, ao teu lado, agora que amanheceu por completo e o sótão da rua das Praças se assemelha a Portimão na vazante, atulhado de detritos inimagináveis, sob o céu branco que se povoa devagar de um edredão de pombos.

Perdoa-me. Perdoa os pianos verticais e os colégios de padres que me impedem de entender a tua coragem, a tua independência, o teu orgulho, as dívidas na mercearia, as contas atrasadas, as raspagens do útero, as manchas de vinho nas tuas calças gastas, o futuro eternamente problemático. Quando ficamos sem mais ninguém em casa, e distribuis velas pelos tampos, e acendes o radiozinho de pilhas, e me tocas, e me puxas pela camisa contra ti, e a tua boca me passeia nas clavículas, nas orelhas, na testa, uma paz vegetal sobe-me das pernas para o sexo, alastra-me no ventre, ocupa a gaiola do peito, e navega em mim como as penas sopradas das varandas boiando sem roçar nas cómodas a alegria das lamelas. Os membros libertam-se, o pénis cresce, a cabeça evade-se de angústias e presságios, uma felicidade de catecismo por perguntas e respostas desenrola à minha frente a sua auto-estrada de satisfação virtuosa. E agradeço-te não sentir a habitual gana invencível de me esconder sob as mesas, de dedo no nariz, enrolado em mim próprio como um búzio, como na tarde em que o Nuno me levou para o Restelo e me abandonou, da mesma forma que as ondas abandonam na praia uma lata de conservas antiga, junto à minha irmã que olhava o relógio de pulso no vestíbulo, na expressão furibunda dos prefeitos diante de um par de alunos atrasados.

Dezassete anos de diferença de idade conferiam-lhe sem discussão o direito de se interessar por mim num azedume inquiridor:

- Tens lavado as orelhas, Francisco?

Tu, ao menos, nunca me perguntas se lavo as orelhas, se lavo os dentes, se lavo o cabelo, se corto as unhas, se me porto bem: partilhamos um firme horror comum pela água, em virtude do qual a banheira foi transformada em arrecadação onde se acumula toda a casta de lixo, bonecos sem préstimo, álbuns de recortes, pincéis, roupas, tachos, cartas, o par de botas da tropa do amante anterior, fotógrafo numa revista desportiva que levantava halteres no Ateneu. Nunca dei com a menor lasca de sabão no lavatório, com um tubo de shampoo na prateleira, com talco para as manchas na cozinha: às vezes ocorre-me que nos alimentamos de merda como os malteses dos baldios. A minha irmã examinou-me os ouvidos, as mãos e o nariz, e separou-me os beiços com os polegares para observar melhor os incisivos. Uma careta de desgosto desorganizou-lhe as sobrancelhas:

- Porco como sempre. Trouxeste as tuas coisas nesse saco? A mãe quer que se vá imediatamente a Monsaraz, e entretanto proíbo-te de andar por aí de gatas sob os móveis.

Recordo-me de que era quase noite porque haviam aceso os candeeiros e ruídos de talheres tilintavam na copa. O corredor às escuras povoava-se dos lobisomens do Telheiro, que galopavam entre as oliveiras, rente ao Guadiana e aos barcos do pescador afogado, e eu agachava-me nos lençóis, apesar do calor, a fim de não escutar a figueira do quintal, que estalava no meu sono, a fim de não escutar as vozes dos adultos na sala, subitamente cruéis como grandes pássaros angulosos, procurando-me com o bico as cerejas dos olhos. Um dia peço emprestada a chave da casa e levo-te comigo, de camioneta, ao Alentejo, a visitar a nau de pedra da vila, encalhada no cume do seu monte, o castelo, o cemitério, o compartimento em que os carris do comboio eléctrico, agora inúteis, se oxidam e apodrecem, a cama onde o meu avô morreu nesse Verão de há sete anos, os meus segredos, os meus pânicos, os anjos de talha e o círculo de cobre do sol, cegando os rafeiros nos degraus da igreja. Levo-te comigo a essa terra defunta, sem tempo, na qual nenhum ponteiro se move, e não te admires se quando o cemitério se transformar num polígono indeciso, e as sombras das árvores se estenderem no chão como membros que dormem, eu me acocorar, de joelhos na boca, debaixo da mesa onde outrora comíamos, acossado pelos fantasmas dos retratos.

- Senta-te aí quietinho, ordenou a minha irmã. Ao menos enquanto te sentas não te sujas.

Tivesse eu uma fotografia dela na carteira e verias como fisicamente nos assemelhamos: a mesma penca comprida, os mesmos beiços circunflexos, o mesmo queixo que a garganta engoliu, a mesma pele encardida, quase mulata, herdada do meu pai, que ela amaciava de cremes e loções e eu disfarço com este bigode púbico e os raros pêlos de savana da barba. Nada sei da sua vida desde que se apaixonou, no Rio de Janeiro, por um monitor de natação da minha idade, abandonou o marido e os filhos e continuou com ele no Brasil, onde dizem que o atleta a sova com método, quebrando-lhe nas costas sucessivas pranchas de surf.

- Não és capaz de ficar um minuto sem escarafunchar os macacos do nariz?

E no entanto, por esquisito que te pareça, apesar da sua rispidez para comigo, das súbitas arestas dos gestos, e da voz de peru que me acossava, é das poucas pessoas da família de quem conservo uma lembrança nítida, uma sombra de saudade, uma recordação quase agradável: cheirava bem, dava-me às vezes vinte escudos para orgias de rebuçados de mentol e de pastilhas elásticas, saía da retrete a fungar, com os olhos inchados sob o rimmel, e ainda hoje me assalta a convicção de que, se pudesse, gatinharia ao meu encontro para debaixo das mesas, se encostaria a mim e permaneceria comigo, cercados pelas gigantescas pernas dos adultos, a mordermos as unhas numa aflição sem nome, como nos sucede a nós dois, tu e eu, nos meses em que o dinheiro se acaba, a Companhia dos Telefones corta o telefone, a Companhia das Águas corta a água, a Companhia da Electricidade corta a luz, o merceeiro deixou de fiar, a botija do gás terminou, e ficamos sentados na cama, no centro das nossas ruínas de naufrágio, a mastigar bolachas de araruta defronte dos guindastes do rio.

Lembro-me, meu amor, que devia ser noite porque as árvores dos quadros e a árvore do meu sangue se esbatiam numa bruma difusa, e o perfil da minha irmã, debruçada para a caixa dos cigarros junto ao candeeiro de loiça, brilhava como os rostos das senhoras nos óleos antigos, observando a chama de uma vela numa serenidade atenta e indecifrável.

Obedientemente instalado na cadeira onde me mandaram sentar, com os pés procurando alcançar em vão os losangos do tapete, costumava ver a criada abrir, à laia de coxas que se afastam para uma inspecção ginecológica, as duas portas de vidro da sala de jantar, e para além delas mais óleos, pratas, armários repletos de chávenas com dragões impressos, uma toalha, copos, talheres, plantas em vasos, lâmpadas ocultas subindo ou descendo numa doçura de vitrais, e a expectante solenidade dos altares antes dos sacrifícios humanos. O meu cunhado entrava habitualmente na sala com a pasta do consultório e o jornal na mão, estendia a boca desinteressada à bochecha desinteressada da minha irmã, acenava-me adeus de longe pousando a pasta e o jornal num tampo reluzente de verniz, fumegando em torno o seu odor de próteses, e eu pensava sempre, a mirar-lhe os gestos preciosos, Odeio-te, com tamanha intensidade que se ele folheava uma revista desviava os olhos das páginas e me considerava com espanto. A minha irmã enterrava cigarros no cinzeiro onde as suas beatas, avermelhadas de bâton, se aparentavam a cilindrozinhos de Tampax tingidos de sangue desbotado, e vinha-me a suspeita de que partilhava comigo o meu ódio ao marido: em certas alturas o pensamento dela e o meu rodopiavam em conjunto, milimetricamente certos, como nos concursos de danças de salão. A rumba do nosso desprezo pelo intruso mereceria, sem dúvida, a nota máxima dos cavalheiros do júri, de forma que me permitia a mim mesmo, à guisa de prémio, introduzir energicamente o indicador na narina, como se aparafusasse a falange à minha cara: mas o rosto da minha irmã fechava-se, o meu cunhado regressava à revista, e três pratos de sopa crepitavam, a alguns metros de nós, a sua lava de puré e hortaliça.

- Vai ensaboar as mãos para o jantar, exigia invariavelmente a minha irmã a dirigir-se, arrastando uma cauda suposta de princesa, para as espiras de fumo que morriam e ressuscitavam na toalha.

E eu continuava na cadeira, sem falar, de pés suspensos como um enforcado, olhando-a de baixo para cima com pupilas infelizes de dálmata. O Nuno abandonava a revista e aproximava das casquinhas a nuvem de desinfectante que o cercava, como uma aura emblemática de carrasco dentário:

- Se calhar o teu irmão ainda tem medo do escuro. Aos onze ou doze anos não era apenas o escuro, aliás, que me apavorava: receava da mesma forma o estrondo dos foguetes, as gincanas de bicicleta, os balões das festas de aniversário, os ratos dos esgotos, a brutalidade das aulas de ginástica, e os explicadores de geografia. Queria ser pintor e músico, estarrecer plateias com as minhas madeixas à Lizt, a minha caspa e a agilidade dos meus dedos e hesitava então entre o violino e os pincéis, sonhando com modelos de nu e meninas de clavículas salientes, que serravam contrabaixos, de vestidos compridos, numa etérea atmosfera de colcheias. Acabei no óleo abstracto (dois traços violeta sobre um fundo amarelo) e a tocar flauta num conjunto rock de segunda ordem, que um ou outro clube recreativo convida às vezes para os bailes de sábado à noite, e onde, de cabedal preto no meio dos meus colegas de cabedal preto, a tapar e a destapar os furinhos de um instrumento que nunca ninguém ouve, afogado pelo tropel das guitarras, vejo pares que se deslocam em saltos dignos, reflectidos ao contrário na pista encerada, e velhos e velhas a cabecearem em bancos encostados às paredes, segurando ao colo crianças sonolentas que os uivos do órgão eléctrico estremunhavam. Mas na época de que te falo o meu pânico do escuro era de tal forma intenso, muito mais intenso do que agora, que pedia entre lágrimas, à criada que me deitava, uma luz acesa no quarto, e acabava por adormecer ao lado de oscilações eclesiásticas de um pavio, viajando por pesadelos prolixos que a voz da minha mãe dissolvia. Se abria os olhos o espelho do quarto duplicava a insignificância do meu corpo nos lençóis, esmagado por armários que se inclinavam para mim em vénias rígidas de mogno. Os candeeiros da rua imprimiam no tecto as ripas de metal das persianas. As conversas e as gargalhadas dos adultos ecoavam num poço sem limites, engasgados de fetos e de musgo. Uniformizado de cabedal, de flauta na boca, esmagado por dois saxofones que me anulam, revejo-me na casa da António Augusto de Aguiar, na casa de Monsaraz, transido na cama, sem conseguir dormir, atento à ameaça das trevas sólidas das cómodas e do meu rosto nos vidros, cujo contorno lunar ondulava como sob uma película marinha. E apresso-me a afastar a flauta dos lábios enquanto o vocalista, de smocking prateado, se debruça para o microfone, meneando as ancas, com um sorriso cromado nas bochechas.

- Eu acendo-te a luz, disse a minha irmã jogando ao marido um soslaio de rancor ou de cansaço.

A casa dela possuía um corredor interminável, assinalado pelos marcos quilométricos dos interruptores, que mostravam dezenas de consolas, jarrões chineses, uma menina de mármore, quase de tamanho natural, imersa num desgosto inexplicável, arcas, portas cerradas, e por fim, ao cabo de meia hora de marcha, o quarto de banho idêntico ao laboratório de química do liceu, com o mesmo asseio, os mesmos azulejos, as mesmas dezenas de pós coloridos em prateleiras simétricas. Um pássaro transparente suspendia-se do tecto por uma fita verde. Um cesto de escovas de cabelo apontava em todas as direcções o arame ou a crina das farripas. Não me espantaria se no rolo de papel higiénico se encontrassem inscritos registos de experiências, gráficos de temperatura, esquemas de aparelhos e cálculos matemáticos. A minha irmã rodou uma torneira que imitava um peixe de mandíbulas escancaradas, e eu peguei no seixo do sabonete, estendido, como um faquir, numa almofadinha de pregos de borracha. Inclinado para a água, sem lhe tocar, observava fascinado o vómito contínuo, turbulento, imperturbável, do charroco.

- De que é que estás à espera?, perguntou a minha irmã numa entoação nasalada.

Estendi à pressa as pontas dos dedos para o líquido que girava no ralo (o sabonete escapou-se duas ou três vezes e saltou no lavatório), sequei-as numa toalha peluda como um são-bernardo, voltei-me para regressar à sala e notei então, surpreendido, nervoso, embaraçado, sem entender porquê, que a cara se desfazia e deslocava, à maneira de um puzzle, como se fosse chorar.

 

À noite, perto da madrugada, quando sentimos que a cor das persianas vai mudar sem ter mudado ainda, que as roupas e os móveis e as rachas das paredes emergirão do escuro nos estremeces dos navios afundados que regressam à tona, espetando o mastro do candeeiro da mesa de cabeceira coberto dos moluscos marinhos do sono, quando o meu corpo, pendurado do teu como os mandris pequenos da barriga das mães, principia a gatinhar em busca do amendoim de um cigarro, quando tudo, por fim, se alterou já sem que nada se alterasse, aguardando o limão de sol pousado na bandeja dos telhados, não te acontece escutar, aqui na Estrela, no espaço branco da manhã que se maquilha devagar de cores, não os ruídos domésticos do prédio, não os pombos e as árvores do jardim, não o chiar dos eléctricos nas calhas da rua, não as nossas bronquites onde o tabaco borbulha, mas, inlocalizável, para além das paredes, chegado da infinita distância de não sei quantos álbuns de retratos, um comboio de lata que circula por entre os sapatos sob a cama ou indo e vindo na sala entre o gira-discos avariado e o rádio de pilhas, com o meu pai, de corneta ao pescoço, a brandir da janela as bandeiras ridículas?

Assim que a minha irmã e eu entrámos em Monsaraz subi as escadas para o ver, perseguido pelas saltos desengonçados da cadela, e encontrei-o sentado num banco, a um canto do esconso, sorrindo, para as carruagens que se moviam de consola em consola, o incisivo de ouro de chefe de estação com que o dentista de Reguengos lhe calcetara a gengiva, anos antes, na pompa de uma medalha de bons serviços ferroviários zelosamente cumpridos entre o Guadiana e a casa, no meio de ralos, gafanhotos, grilos, formigas e viajantes imaginários, que atravessavam os muros, carregados de malas, numa pressa gasosa. Fiquei a olhá-lo como olho os teus gestos na cozinha, espantado por lograres extrair, de meio metro quadrado de gordura e azulejos, o prato de sopa ou o frango assado dos dias felizes, quando te pagaram no teatro, ou me compraram um óleo, ou o vocalista me entregou uma nota, e que comemos em silêncio, encostados às panelas, como os sobreviventes de um desastre aéreo devorando as conservas da hospedeira. Fiquei a olhá-lo à medida que fervia nas ruas, juntamente com o calor, a agitação da véspera da festa: as vacas mugiam no castelo, os músicos da banda de Mourão sobravam das tabernas, a oscilarem de esquina em esquina arrastando os instrumentos pelas pedras, homens e mulheres, mascarados de fantasmas, tropeçavam nas soleiras acuados pela raiva dos bichos, e, nas tendas de rifas do largo da igreja, gente de Serpa ou do Crato suspendia os bonecos dos brindes de pregos em anzol. Fiquei a olhá-lo como te olho a ti, a abrir, de roupão, as gavetas empenadas dos talheres e a deslizares na cozinha como as lagartas da seda nos casulos, até as facas e os garfos tortos que segregas aumentarem, o móvel dos pratos crescer, o fogão dilatar-se e ocupar a porta, eu deixar de distinguir-te e tu te aquietares contra a parede, transformando-te num crisálida primeiro e a seguir numa borboleta enorme, que declama réplicas de teatro, a vibrar as antenas peludas, na mesinha de verga do almoço.

A ampola do tecto fazia da calva do meu pai uma segunda lâmpada, grudada ao colarinho da farda, e cujo filamento de pestanas se alegrou ao encontrar-me, Olá rapaz, para imediatamente se concentrar de novo nos comboios que gingavam no sobrado, enquanto um dos trombones, solitário, arrotava sob os caixilhos as semifusas dos rojões. Alguém (um criado?, o feitor?, o meu tio?) saiu a cancela do quintal, cujos gonzos barafustaram na noite, e empurrou o músico, travessa acima, até as notas e os passos e as vozes se diluírem no odor de estábulo do castelo, e nos lençóis dos fantasmas que martelavam o estrado para o baile. Ouvi a minha irmã no compartimento vizinho, o cubículo das arrumações outrora atulhado de caixotes e de cestos e de malas e do meu antigo triciclo sem rodas, e do qual vinham agora uns suspiros irregulares de mula e o odor de salsaparrilha das farmácias, de mistura com o cheiro de rendas e de bafio de sempre, ouvi o criado, ou o feitor, ou o meu tio que regressavam, ouvi os frutos da figueira que rebentavam, como beiços, nas trevas, pessoas que discutiam em baixo, e o meu pai imobilizou as carruagens, chamou-me com a concha da mão, levantou-se do banco e avisou-me em segredo, a mostrar o estuque com os galões da manga, Amanhã inauguro um ramal até à cama onde o teu avô está a morrer, no mesmo instante em que a minha tia doente principiava aos gritos no vestíbulo.

Lembro-me de que anos e anos a fio, no início da minha vida, ela e eu éramos igualmente incómodos para os adultos porque nos urinávamos nas cuecas, quebrávamos os brinquedos, espalhávamos migalhas, entornávamos chávenas e exigíamos aos uivos a atenção que não nos davam, fechados ambos, no odor de guisado da cozinha, de guardanapo ao pescoço, batendo com colheres de pau no alumínio das panelas. E anos e anos a fio, querida, julguei da minha idade aquele bebé enorme, de vestido às riscas e pele estriada por uma confusão de rugas, que a caruma do cabelo grisalho, todo nascido no cocoruto e tombado para o nariz em desistências de salgueiro, piedosamente ocultava. Mesmo hoje, se penso nela, não a concebo mais velha do que eu, como não te julgo a ti, apesar da tua filha de dezasseis anos grávida de um cenógrafo de sessenta, uma mulher que me poderia ter parido no colchão em que de noite nos deitamos, enganchados um no outro à maneira das argolas dos quebra-cabeças japoneses, impossíveis de separar como as iniciais dos lençóis.

Portanto a minha tia começou a gritar, o cunhado aplicou-lhe um pontapé no rabo para que se calasse, o meu pai anunciou Um ramal de duas vias, menino, já encomendei as peças a Lisboa, a cadela ladrou e ganiu logo a seguir, a derrapar no chão de pedra, e, no cubículo ao lado, o meu avô, de gengivas abertas na larga cama alentejana que atravancava tudo, cuspia frases desconexas para a minha irmã que se encostava aos xaropes, às pastilhas e aos pingos da mesinha dos remédios, respondendo-lhe num mugido semelhante aos dos bois do castelo a cheirarem a sangue e a crueldade e aos guinchos dos espectadores, antes de haver sangue e crueldade e guinchos, e os primeiros mascarados se assustarem, reciprocamente, de casa em casa, nos imensos gestos dos fantasmas. E acontece-me pensar que vivo contigo porque me sinto em paz no teu sótão, engolido pelas coxas separadas que me protegem do sofrimento e do medo. E ao escutar-te, ao sentir a tua impávida, animal respiração tranquila, convenço-me de que durarei, intacto, sem fim, a bordo do teu corpo, respirando o suor da manhã nos teus sovacos barbeados.

O meu pai, de joelhos, desenhava com um pedaço de giz, em torno do colchão do velho, o ramal que evitava o estreito formado pelos chinelos do doente, acompanhava o rodapé, e se perdia nas bandas invisíveis da cabeceira, onde a lâmpada do tecto não chegava, sorvida por um novelo de sombras e pelo esmalte mal cheiroso do bacio. O marido da minha tia, que geria as terras e os prédios, segredou qualquer coisa à Ana apertando-lhe a cintura, e desapareceram os dois no corredor fora deixando-me sozinho com um moribundo e um chefe de estação a menear a bandeira vermelha pela janela aberta, como se uma locomotiva aguardasse, sob a figueira, a sua ordem de partir. E dali a nada, de facto, a enxerga no extremo oposto do andar rolou e aumentou de velocidade, dobrando os ramos da árvore com a força do seu vento, os faróis das pupilas da minha irmã iluminavam os carris adiante dela, o maquinista do meu tio afadigava-se a jogar carvão numa fornalha em chamas, e o meu pai enrolou os estandartes sob o braço e quedou-se a observar a filha nua, presa no cunhado, que galopavam aos arrancos, Monsaraz fora, escandalizando as vacas da tourada, aprisionadas num ângulo das muralhas, com as lanternas traseiras das nádegas que oscilavam, cada vez mais distantes, a aclarar a escuridão. Apressei-me para o patamar, de pescoço esticado, a fim de os ver passar na escada, mas a minha mãe surgiu de repente, sem uma palavra, a impedir-me o caminho e a conduzir-me ao meu quarto de criança cheio de soldadinhos inúteis, de cromos do Pato Donald nas paredes e de um Cristo gigantesco de lábios prestes às palavras de ternura e consolo que há tanto tempo aguardava, que continuo aguardando ainda se permaneço sozinho, sem dormir, imerso no estrepitoso zumbido das trevas, à espera de que chegues e te afundes na colcha, um pé calçado o outro descalço, no coma turbulento do vinho. A minha mãe despiu-me a roupa do colégio e vestiu-me o pijama com a agilidade das vendedoras das lojas embrulhando uma compra, enfeitou-me a barriga com o laço de nastro das calças, ordenou Deita-te, lambeu-me a testa com um beijo como quem sela um envelope, apagou o candeeiro e transformou-se num perfil sem feições, que se foi embora, quase em pontas, no trote levezinho das raposas. Percebi-a vagamente a conversar com o meu pai, procurando arrastá-lo para baixo com o argumento de uma greve nos caminhos de ferro, e logo a seguir a ele ter dito Se houvesse greve tinha recebido há que tempos uma comunicação pelo telégrafo, era dia e acordei.

E agora, meu amor, aos dezoito, quase dezanove anos, depois de noites intermináveis de discussões e seringas, com tantas gramas de comprimidos e de heroína a pesarem-me no sangue, regresso à tona às duas ou três horas da tarde, cercado pela tua colecção de chapéus antigos, de cinzeiros a transbordarem e dos trapos inumeráveis que cheiram ao mijo do siamês que se nos passeia nos cobertores durante o sono, regresso no cansaço de um homem-rã septuagenário, de rins fracturados de dores, barafustando num pântano de limos. Demoro uma infinidade a juntar cores, ideias e aromas, como os cegos as moedas do boné. Pergunto-me onde estou, como me chamo, porque ancorei aqui, e só ao terceiro cigarro começo a entender lentamente quem és, a aceitar que moro em Lisboa, meço um metro e sessenta e cinco, devo possuir alguns documentos de identidade naquele casaco acolá, a reconhecer os teus cabelos na fronha, o corpo magro, os espasmos de tosse do tabaco. Engulo uma cápsula que me ajude a chinelar até à pia, onde a erecção se dilui na espuma de cerveja da urina, a qual, por seu turno, empurra pelo cano as espinhas de peixe do jantar. Há sempre cinco ou seis rolas no telhado, únicos anjos possíveis numa cidade em que os painéis publicitários ocultam, como pensos, as chagas de uma decomposição sem remédio. Lisboa aparenta-se a um mendigo ao sol, com os piolhos dos pardais a escarafuncharem livremente as farripas das árvores. E, de regresso à cama, encontro-te sentada no colchão, de cartilagens agudas sob a blusa, fitando-me no espanto confuso, de ressuscitada, dos despertares de ressaca.

Ouve, merda, gosto de ti. Gosto da tonalidade dos teus olhos e das tuas mãos nos meus ombros quando fazemos amor, das pernas que se enrolam com força nas minhas e me atam, me prendem, me imobilizam, me impedem de sacudir as ancas, em avanços e recuos, à medida que me beliscas, e me mordes, e me insultas, e acabas por morrer como um bicho pequeno, de súbito inocente, indefeso, sem rugas, numa cascatazinha de gemidos magoados, de cara transtornada como se fosses chorar. Gosto de ser, por segundos, mais velho do que tu quando te dou prazer, quando obedeces, numa aceitação humilde, ao ritmo do meu púbis, quando os meus músculos inesperadamente se distendem e te deposito na vagina dois centímetros cúbicos de paixão. Gosto de me abraçar a ti, depois, de bochecha no teu peito (medes mais três centímetros do que eu, o que me leva sempre a procurar, nas ruas, o lado mais alto dos passeios), e saber que enquanto tomares conta de mim a minha vida caminhará, de acordo com imprevistos e caprichos que me escapam, de uma forma empenada mas segura. E aterra-me imaginar que uma noite qualquer, de volta de um concerto, com o estojo da flauta no sovaco, dou com o colchão vazio onde apenas a curva das tuas costas inscreve nos lençóis a impressão digital de uma ansiedade irreparável, como a da minha tia mongolóide, em Monsaraz, no ano em que o meu avô morreu, fechada na copa, aos uivos, entre frascos de doce e pacotes de arroz, ao mesmo tempo que, no adro, a música da banda, os foguetes, e as vozes dos vendedores de rifas e farturas apareciam e desapareciam, ondulando, conforme os aplausos dos turistas.

Era dia e acordei instantaneamente, sem culpabilidade, sem aflição, sem dores, e desci à sala de jantar sombria, de grandes móveis escuros, onde a cadeira, agora sem ninguém, do velho, presidia ao café com leite da família. De minuto a minuto o meu pai abandonava o boião da compota para agitar as bandeiras a um comboio que corria em vertigem paralelamente à mesa, deixando-nos no cais da toalha, com a nossa bagagem de açucareiros e de bules, como viajantes esquecidos. A minha outra tia fixava a Ana num ódio pontiagudo. A cadela perdigueira apontava o nariz à lata dos biscoitos. Uma empregada trouxe a papa da mongolóide e pendurou-lhe o guardanapo de uma camisa em tiras por cima da bata de riscado. A minha mãe estendeu-me o Ovomaltine, as vitaminas azedas e o cesto do pão, disse Come, e uma rapariga da idade da minha irmã entrou sem cumprimentar fosse quem fosse, seguida por um estrangeiro ruivo, de sandálias de gladiador, semelhante a um são-bernardo ou a um padre arménio, de pupilas transparentes submersas nos arbustos da barba.

Ela, amor, era o único membro da tribo que se aparentava a ti no modo de vestir: as mesmas túnicas de beduíno pobre, as mesmas pulseiras de arame, os mesmos anéis de vidro, a mesma óbvia ausência de água e os mesmos colares que sujeitos esqueléticos, de pernas cruzadas ao lado de panos repletos de bugigangas inúteis e de leitores de cassetes desafinando música indiana, oferecem nos túneis do metropolitano aos tornozelos dos bancários. Soube mais tarde que a mongolóide a parira e surpreendeu-me nunca a ter visto antes nem a rever depois dos três dias da festa, como se os morteiros a houvessem feito surgir fugazmente, com o seu odor desagradável e os seus pedaços de lã agarrados à roupa, acolitada pelo são-bernardo munido de um arpão de Neptuno, no estrondo celeste das aparições. Contornou a mesa como um bispo o altar, tilintando o turíbulo dos seus ferros e arrastando adiante de si chinelos complicados de profeta, sempre seguida do apóstolo arménio que aterrorizava a cadela, escondida às arrecuas, a rosnar, sob as franjas da toalha. A mongolóide, desastrada e indiferente, comia a papa com uma colher de baquelite cor-de-rosa, espalhando em redor, no próprio copo, nas nossas camisolas, na farda da criada, nos quadros das paredes, pingos grumosos de farinha. A minha prima instalou-se, sem pedir autorização, no lugar do avô, ofereceu uma fatia de queijo ao são-bernardo, e solicitou o açucareiro, de colherinha de café em riste, a sorrir-nos como o meu tio sorria, com metade da cara absolutamente quieta, parada como as dos loucos ou dos mortos, e a outra metade acesa de troça e de sarcasmo. A arménio acabou de engolir e apontou com o dedo enorme num gesto tosco de bicho, a tigela de doce de morango, em que engrossava uma menstruação escarlate. Foguetes rebentavam de minuto a minuto. A banda de Mourão passou, sem intervalo, das castanholas toureiras de um pasodoble à solenidade fúnebre das procissões, nas quais os morcegos dos anjinhos com asas se enrodilhavam nas opas desbotadas das irmandades, abrindo alas por entre fantasmas de lençóis em pedaços e ourives poeirentos chegados do Alandroal ou de Portel, que exibiam brincos barrocos, de mistura com os torrões de Alicante dos vendedores vizinhos, à maravilhada surpresa do povo.

- Brelebrelebrele, disse a minha prima, em turco, ao são-bernardo, que recolheu de imediato o indicador obediente.

A mongolóide acabou o prato num vendaval de gotas, e a criada, antes de a desamarrar da cadeira, limpou-lhe a boca, as mãos e os braços com a camisa que lhe deslaçou do pescoço. A procissão coxeava nas varizes das ruas tortas da vila, atacada por pandeiretas, clarinetes e trombones, numa pompa miserável e trágica. O fogo de artifício explodia no ar em flocozinhos claros, cujo som apenas escutávamos quando se desvaneciam já, em fiapos gasosos de pólvora.

- O que é que você veio farejar aqui?, perguntou a minha tia à minha prima, de pálpebras pesadas de fúria. Arranjámos-lhe a barraca e comprámos-lhe os teares na condição de não pôr os pés nesta casa.

- Brelebrelebrele, implorou o são-bernardo a namorar o queijo.

- O médico de Reguengos contou-me que o velho está por horas, disse a minha prima sem se enervar, a repetir o café. O atelier não dá nada, os clientes não me compram as mantas, necessito da minha parte da herança. Ando cá com a ideia de uma loja de artesanato, de um antiquário, de uma galeria de arte: paisagens, retratos a óleo, doces regionais, bonecos de barro, coisas assim. O Burt (e o são-bernardo dilatou-se de orgulho ao ouvir o próprio nome) tem um jeitão danado para esse tipo de lixo.

- Herança?, surpreendeu-se o meu tio. Você deve estar doida. Qual herança? A sua mãe e o seu tiozinho dos comboios comeram-nos tudo em clínicas, o avô tinha a mania de os internar em hospitais caríssimos em Espanha, e a menina com a lata de julgar que nos sobrou alguma coisa. Heranças? Até existe uma hipoteca em cima deste prédio, tome lá.

- Não a quero saber nas redondezas quando o meu pai morrer, disse a minha tia a sacudir a mongolóide que se lhe colava às saias. Há-de vir gente de Lisboa e não admito nem por um segundo que se sonhe que pertence à família, ouviu? Desgraças que bastam já nós temos. Repare só na figura triste da sua mãe a ganir para aí como um macaco.

- Sem contar o cretino do mano que aos domingos apita na igreja naquele uniforme inconcebível, ajudou o marido. Quer a herança, não é? Quer a herançazinha? Então arranje uma jaula, leve-os aos dois, domestique-os e mostre-os no circo que fica milionária num instante.

A música cresceu, inchou, ensurdeceu-nos e metamorfoseou-nos em raias que abriam e fechavam as mandíbulas sem ruído. Uma chávena estilhaçou-se no sobrado na mudez atroadora dos sonhos, e a procissão desfilou à nossa porta a centopeia das suas mil botas de trabalhar no campo, o seu cortejo de viúvas, o padre envolto num xaile dourado, os morteiros e os metais da banda. A pele de bombo do soalho vibrava, estriada pelas veias contraditórias da madeira, os cálices cabeceavam no aparador: É isto que você quer herdar, sua parva?, gritou a minha tia, uma ruína que se aguenta de pé por milagre cercada de uma miséria de limoeiros e figueiras, são estes móveis lascados, com cunhas de cartão a servirem de patas, que você pretende, que você nos quer roubar?, e ela, desgrenhada e impávida, a comer e a beber na cadeira do velho, a acenar ordens ao arménio, a sorrir-nos, É esta canalização avariada, este estuque nas últimas, esta porcaria de cómodas, esta fachada por pintar?, a campainha tocou, um fantasma uivou no vestíbulo e foi-se, São os papéis das letras e das hipotecas, gritava a minha tia, os papéis das dívidas, as contas por pagar?, e eu imaginei, como sucede connosco, gavetas e gavetas de facturas, maços presos com elásticos, credores a gesticularem nas escadas, fiscais de impostos avaliando o frigorífico, e vi-te no patamar, com um peito de fora, despedindo desdenhosamente o droguista, Não há dinheiro, senhor Carlos, estou à espera das massas do teatro, queixe-se aos tribunais se lhe vier à gana. Há as bodegas do sótão, há os mochos defuntos, há as arcas de coiro, há o cadáver do avô, ofereço-lhe, são seus, mande buscar uma camioneta, venda-os em Évora e monte um restaurante no Outeiro, e a música e a agitação das criadas diminuíam, e as cabeças dos foguetes lançavam os miolos brancos sobre as oliveiras do rio. As economias do avô, e as hortas, e os pomares, e os prédios de Beja, foram-se para pagar as visitas do doutor da sua mãe, disse o meu tio a mostrar a mongolóide com a mão aberta e a enxotá-la com o guardanapo, os mugidos das vacas regressavam, de tempos a tempos, com a mudança do vento, juntamente com um odor de bosta e de palha, Há quartos no primeiro andar tão estragados como as pedras do rio, é uma questão de subir os degraus e ver, até telhas, até tábuas, até vidraças faltam. Brelebrelebrele, ralhou a minha prima, impávida, sorrindo sempre, ao são-bernardo do arpão que avançava a faca cautelosa para o queijo. Já não me basta morar num sótão destes, senhor Carlos, lamentaste-te tu a espalhar cinza no roupão, para ainda me virem chatear com insignificâncias de caca. Quero ver os livros no escritório, disse a minha prima, quero ver as aldrabices que o avô e vocês têm feito estes anos, e era ela ou eras tu quem estava ali nesse tempo, inabalável, pétrea, risonha, era ela ou eras tu quem despedia o melro do droguista, e o da peixaria, e o do quiosque de tabaco, e o carvoeiro dos vinhos? Eu chamo a Guarda para a pôr na rua, avisou o meu tio, o que está para aí a insinuar é muito grave. Não estou a insinuar nada, disse ela no mesmo tom tranquilo, mesmo que estejam sem vintém por saloiada vossa tenho o direito de saber das roubalheiras que fizeram. Francisco, disse a minha mãe, alarmada, leva a tua tia doente a passear lá fora, e a procissão devia ter reentrado na igreja porque o som da música se extinguira e os lobisomens e os fantasmas uivavam livremente pelos quartos. Herdar a pobreza, indignava-se o meu tio, herdar um prédio em ruínas numa vila defunta, e eu agarrei a mongolóide e saímos as muralhas na direcção do rio, longe das filarmónicas e dos bêbedos e dos torrões de Alicante, e de caminho para a água via os cães escondidos nos arbustos, a chiarem de pavor, de focinho rente à terra, aguardando o assassínio do touro e a partida dos visitantes para tornarem à vila, a fim de pesquisarem, à hora do almoço, nas travessas desertas, os patos e os frangos que disputavam as sobras de comida na soleira da venda, e a meio da colina demos com o meu cunhado dentista, de barba crescida, encostado a um chaparro, com uma folha de erva na boca, e que mal levantou o nariz para nos olhar, com a rápida indiferença dos estranhos.

 

Às onze ou onze e meia, meu amor, no sótão da rua das Praças, enquanto espero o teu regresso do teatro e escuto, lá em baixo, as vozes dos homossexuais que entram e saem do sauna e o escuro torna agudas e nítidas, abolindo a distância dos andares (chego a pensar que conversam, de facto, na cozinha ou no quarto ao lado do nosso, onde a tua filha dorme entre dois namorados), estendido na cama de arabescos de latão que me aparafusa, traiçoeira, os tornozelos, quando me preparo para entrar em ti, olho constantemente o despertador, a calcular a hora do fim do ensaio e o tempo que o autocarro demora na Baixa até aqui, atento à porta, a escutar a chave na fechadura, a tua gripe, os sapatos que pisam sempre a tábua quebrada do soalho num horrível gemido de madeira, e apago a luz, e finjo que durmo antes de entrares, transformada num polvo difuso de gabardina, que ondula entre sombras e formas, tropeça num sapato, ampara-se ao colchão, se despe da roupa como uma túlipa se desfolha e reduz ao caule inclinado do corpo, lutando contra a resistência dos collants antes de se sumir, de roupão, na casa de banho, para gargarejar o desinfectante do dentista, que cheira a remédio das vinhas e a sabão de cavalo. A vontade de me esconder sob o armário desvanece-se, as conversas e os risos, agora longe, evaporam-se na rua, o autoclismo descarrega-se, os empregados do sauna correm os fechos, tornas descalça ao quarto e percebo a tua silhueta contra o quadrado da janela, a cabeça, os braços, o tronco, que aproximam de mim eflúvios antissépticos, que se tentam ajustar à sua cova no colchão, que me tocam, que se afastam, que voltam a tocar-me. Procuro-te com o indicador os pelinhos enrolados das coxas, a húmida ferida de musgo que me excita, à medida que desaperto o pijama, me encosto à maçã das tuas nádegas, tacteio as pregas do ânus, e eis-me em Monsaraz, no primeiro dia da festa, dobrado na minha cama de criança, a seguir ao almoço, com o avô a morrer lá em cima entre foguetes e gritos e música de baile, apertado contra o travesseiro de palha, crescendo para o orgasmo que não vinha.

A minha tia trotava-me nos calcanhares, pelas ruelazitas do cemitério e ao longo da colina para o rio como os machos dos ciganos a coxear atrás dos donos, gemendo protestos roucos de cansaço. Mesmo depois da sua morte continuou a visitar-me nos meus sonhos, a passear por eles na sua marcha quadrúpede, desequilibrada, sempre à beira da queda, e acontece-me descobrir o seu odor, no verão, nas botas de alpinista que comprei num ferro-velho de São Bento, entre armações de lavatório e cobertores esburacados, os quais me conferem, ao usá-las, a virilidade exótica dos exploradores. Mas aos onze anos, amor, a minha tia representava para mim uma surpresa de carnaval, um animal obediente que me procurava de contínuo nos bolsos à espera dos rebuçados que eu não tinha, e enchia às vezes a noite, sem motivo, acordando os morcegos e o vento na figueira, com os lamentos dos seus gritos. Os adultos mandavam-me, com frequência, passeá-la, no intuito de se massacrarem à vontade, longe de mim, a propósito de ciúmes, de invejas, de dinheiro, temas incompreensíveis que possuíam, no entanto, o condão de fazer subir neles a rodopiante temperatura do ódio. De modo que quase todos os dias, em Setembro, quando o sol torna as sombras verticais horas seguidas, arrastava pela porta das traseiras aquele gigantesco bebé de listras que me lambia amigavelmente as bochechas e a nuca, e sentávamo-nos na muralha, a suar, rodeados de vespas, balouçando as pernas como se pontapeássemos o Guadiana no sentido de Espanha.

Porém há sete anos, na parte deste relato que me mandaram contar, o estoiro dos morteiros, os lençóis dos fantasmas, os tangos da banda de Mourão, e os mugidos das vacas no curro do castelo, assustavam-me de tal forma que trotava ao acaso, a esbarrar nos arbustos e nos cardos, a picar-me nos espinhos, a desaparecer como uma toupeira nos desníveis da terra, a escalar montículos escorregadios, e a patinhar na lama da margem, na esperança de escapar às canas de foguete despenhadas do céu num aroma de pólvora morta, atadas com nozinhos de arame. O meu cunhado fitava as chamas que se sucediam, mudas, no céu, recordadas, uma eternidade depois, pelas salvas dos estrondos. Um gargalo de garrafa surdia-lhe da algibeira como uma antena. Assim despenteado, soprando um bafo de vinho, com tantas nódoas no casaco como os bêbedos da vila, aparentava-se aos vagabundos que ressonam sob as pontes ou nas escadas de salvação dos prédios, submersos de desperdícios e detritos, soprando e engolindo os beiços ao ritmo de cachoeira dos pulmões. Não me espantaria se trotasse, a mancar, para nós, aos ziguezagues, exigindo uns tostões para um copo, com pedaços de terra e de ervas colados às calças, e a descobrir, aos soluços, meia dúzia de dentes oxidados. Há semanas pareceu-me vê-lo na rua, em Campolide, gordo, calvo, de óculos, muitíssimo mais gasto, de sobretudo a escorrer pelas pregas do corpo. Examinava a vitrina de uma sapataria de segunda ordem, com uma sanduíche em punho, como outrora observava sem expressão os morteiros da festa, e, embora se não me afigurasse enodoado e barbudo, havia nele um clima de abandono interior, como se a terra e os detritos o forrassem por dentro, tornando-o, por assim dizer, um pedinte às avessas.

- Lá para cima, ordenou ele, sem nos olhar, contemplando a trajectória descendente de uma cana. O lobo d’alsácia da professora pirou-se da escola e anda por aí à solta.

A ideia de um pastor-alemão a galopar nas moitas, o mesmo animal desmesurado que me ladrava, alucinado de fúria, a amolgar o nariz, aos pinchos, contra as grades do recreio, levou-me a trotar em pânico de regresso à vila, perseguido pelo ganso de bibe da minha tia, que resvalava, a piar, nas pedras da encosta, e me procurava, fungando, nos serafins de gesso do cemitério, onde os defuntos habitam casinhas sem portas nem janelas, de paredes trabalhadas, como naperons, por coveiros pacientes.

- Espera por ela, berrou o meu cunhado lá de baixo, perto das enguias do rio e das varas dos morteiros, numa voz aguda que os altifalantes decepavam. Parei obedientemente nos degraus da muralha, como ele, calvo e gordo, na montra da sapataria, na esperança que o lobo d’alsácia monstruoso se atolasse como um barco no lodo do Guadiana, tentando morder a fluida transparência das rãs. E nesse instante recordei-me do meu avô no seu cubículo, sem boquilha, sem colete, sem brilhantina, sem o riso insolente do costume, despido de majestade e de sarcasmo, cada vez mais agonizante e fraco a cada colherada de xarope, como agora me recordo, meu amor, do meu cunhado em Campolide, nos tristes prédios Lilases de Campolide, a mirar prateleiras poeirentas de pantufas baratas, com a sanduíche na mão.

A minha tia alcançou-me finalmente, a arfar, badalando o corpo informe nas barbatanas dos chinelos, enquanto o admirador de pantufas permanecia imóvel ao fundo, reduzido a um pontinho escuro na paisagem ocre, de árvores que o calor obrigava a flutuar, a sumirem-se, a reaparecerem, ondulando como que ancoradas numa água invisível. Os serafins de gesso cheiravam às couves e aos espinafres da horta contígua, e ao açúcar das farturas que cozinhavam na vila e se enredava nos cabelos como as borboletas da noite, que qualquer luz excita e cega numa agitação de delírio. Quando a mongolóide e eu desembocámos no adro, comigo a puxar-lhe a manga como se conduz um vitelo pela argola das narinas, vindos das muralhas onde as vacas roncavam sem cessar a sua melancólica paixão, a filarmónica, apinhada num estrado, iniciava o Bolero de Ravel, criaturas idosas, de preto, descerravam as biqueiras de sapato abandonado das goelas em gargalhadas sem fim, um fulano de boné de xadrez apregoava cobertores e tecidos, e os fogueteiros incendiavam as mechas, nos degraus da igreja, numa tranquilidade de cigarros. As cegonhas e os falcões do Guadiana espreitavam-nos de Vila Nueva del Fresno, guarda-chuvas pontiagudos enterrados nas árvores. Um velho corria na praça atrás de um frango, procurando degolá-lo com a bengala. Cegos alinhados em bancos, de feições de pasta como as imagens da igrejas contemplavam-nos na mesma impiedosa seriedade de retrós. Os bêbedos empurravam-se a cantar à entrada da venda, e julguei distinguir o meu cunhado entre eles, abraçado a um pedinte de muletas, como quando te espero no café ao pé de casa, na ponta do balcão, junto aos lavabos, de onde distingo as mesas todas, e te confundo com cada mulher que chega, a mesma curva do dorso, os mesmos gestos, a mesma cor de cabelo, a mesma cara, levanto o pastel de nata a chamar-te e não és tu, nunca és tu, é uma senhora bojuda quê afunila o nariz na laranjada, uma escriturária erodida pelo emprego, uma adolescente do liceu ou a dona da retrosaria em frente, que respondem ao meu apelo e ao meu bolo num movimento incomodado de recuo. E escondo a vergonha do meu engano no jornal do vizinho, sob os destroços de um terramoto na Tunísia.

Esparvoado pela música, pelas pessoas, pelo barulho, queria enxotar a mongolóide para casa apesar das ordens e das discussões dos adultos: se contornássemos o quintal pelo lado dos tanques e da bomba da água, e entrássemos a porta da cozinha deserta, com mil pratos a chorarem detergente na armação do lava-loiças, podíamos esconder-nos na copa, sem que ninguém se apercebesse, entre garrafões vazios e Sopas instantâneas, vendo as baratas que galopavam no chão de cimento, gordas de migalhas, que os frascos de pickles intrigavam.

De forma que caminhámos ao longo das fachadas que nos protegiam das bichas de rabiar, dos caniços dos foguetes e dos pares que dançavam em pulos desencontrados, embatendo uns nos outros como os automóveis das feiras. Os seios das mulheres afiguravam-se-me maiores do que o costume, as línguas enormes, os incisivos da dimensão de chifres, os risos insuportáveis. Uma bomba de estrelinhas rebentou-me a um metro dos ténis e saltei para trás arrastando a minha tia para uma espécie de desvão, no interior do qual o vendedor do boné de xadrez bebia de uma garrafa de bagaço, refastelado, de pernas afastadas, num banquinho de lona.

- Quanto queres por ela?, disse o industrial a mostrar, com a rolha, a minha tia, cujo cabelo cinzento flutuava acima do meu como as línguas de fogo dos apóstolos.

O velho que perseguia o frango jogou-lhe uma bengalada que errou o alvo, uma pena solitária ergueu-se no ar, e o pássaro escapuliu-se numa cova da parede que o velho escarafunchava furiosamente com o cajado. Um sujeito de macaco no ombro e mala aberta ao lado procurava a atenção do povo através de um microfone embrulhado num lenço, e o homem do bagaço tocou-me no cotovelo, a chamar-me, oferecendo-me uma golada cúmplice:

- Duzentos escudos, trezentos escudos?, disse ele. Usava uma gravata extraordinária, prateada e azul, um anel imponente, cheio de signos do zodíaco e de baixos-relevos, no mínimo, um fato espinhado espampanante e um mau hálito sem réplica. O boné ocultava-lhe um dos olhos e metade da barba, e a cabeça ou a cauda de uma cobra, que lhe passeava nas costelas, aparecia de quando em quando nos intervalos da camisa. A filarmónica de Mourão calou-se por instantes, mas os foguetes prosseguiram, abrindo-se no céu líquido de calor como fistulazinhas de pus.

- Quinhentos escudos e a cobra, propôs o homem a remexer no casaco. É doida por ratos, miúdo, vais-te entreter imenso com a gaja.

A ideia daquele animalzinho escorregadio que patinava, deliciado, no suor do vendedor, a guitarrar o arame frenético da língua, horrorizou-me. Ser-nos-ia útil aqui, na rua das Praças, quando, a meio da noite, escutamos um galope minúsculo no forro do soalho. Ou nas tardes de segunda-feira, em que não tens ensaio e ficamos na cama horas e horas, entre revistas, livros, tabuleiros de comida e nódoas molhadas nos lençóis, e nos sucede avistar, de relance, pelo canto do olho, uma formazita veloz que se introduz, como um supositório, num intervalo de arcas. Tenho medo de adormecer e acordar na manhã seguinte com uma orelha a menos, acontece levantar-me em busca do pão-de-ló do mês anterior e encontrar um bolo desfeito na mesa da cozinha, caganitas ao acaso na pedra, e marcas de dentes na garrafa de plástico da água, que se esvazia lentamente como um corpo que sangra. E acabamos, penso eu, por sobreviver aos ratos, à falta de dinheiro, à falta de gás, e à falta de luz, por um milagre idêntico ao que leva os reformados dos asilos a ultrapassarem a pneumonia do último inverno, rasgando a passadeira a caminho das mesas de linóleo do almoço.

- Podes trazê-la tu e dividimos os lucros e a despesa da comida, disse o homem. Conheço um tipo em Alter que faz colecção de esquimós.

O frango, a quem a bengala exasperava, acabou por pular para a rua por um buraco logo acima do primeiro, sacudindo-se numa correria tremenda, e o velho recomeçou a insultá-lo e a tentar bater-lhe, falhando sempre, até se sumir no cacho dos bêbedos, dos pares que dançavam e da banda de Mourão, a atacar à paulada, por engano, os trombones ameigados. O maestro, ofendido, roubou o clarinete de uma boquinha em assobio e engalfinhou-se adro fora com o caçador de galinhas, enquanto a boquinha estendia respeitosamente a mão tímida a pedir o instrumento, avançando a medo para um vendaval de bengaladas e de notas falsas, a que os fantasmas e os lobisomens se associavam, na alegria querelante do vinho. O frango veio vindo, a salvo, até ao pé de nós, a sacudir a barriga aliviada, e nisto o intermediário de mongolóides alongou-se de súbito numa gana de camaleão, fisgou-o pelo pescoço e escondeu-o na aba do casaco, de onde surgia de tempos a tempos uma asa indignada.

- Não te preocupes, tranquilizou-me ele num sorriso cúmplice de sócio, que a cobra daqui a nada já o mata. Não pode com frangos nem à bala. Onde é que íamos no nosso negociozinho, rapaz?

Não são só os ratos, aliás, que moram connosco no sótão. Possuímos um jardim zoológico completo de formigas, meigas, traças, centopeias, aranhas, grilos, caruncho, que presumo alimentarem-se da mesma falta de comida do que nós, sem contar as borboletas que se esmagam contra as lâmpadas, no verão, e se reduzem de imediato a um pozinho escuro de verniz. E há os pombos. E as rolas. E os barcos, como lesmas, no Tejo. E os vizinhos em camisola interior, incapazes de voar, crucificados nos craveiros das varandas. E os cães míopes, de pêlo frisado, que lhes levantam a pata para as calças do pijama, confundindo-os com as amoreiras da rua. E tu e eu, cada vez mais transparentes e magros, a prepararmos o pequeno-almoço de meio grama de heroína da injecção da manhã. E a manteiga que arrefece nas torradas em caroços amarelos. E as nossas cartilagens que se abraçam. E qualquer coisa minha que penetra em qualquer coisa tua, e se dilata, e se engancha, e se contrai em ondazinhas curtas de prazer. Não são só ratos. Não eram só ratos. Nem só as aranhas, nem só as centopeias, nem só a heroína, nem só as torradas, e os barcos, e as formigas, e os pombos: existia também, ao tocar-te, a exaltante comichão do meu amor por ti, essa cretinice, essa idioteira, essa parvoiçada que continua ainda, principalmente à noite, na cama, quando não encontro as tuas pernas, o teu púbis, as tuas costelas, o bafo da tua respiração no meu ombro, a húmida claridade dos teus olhos. Obrigam-me a tomar banho de manhã num chuveiro limpo, e o enfermeiro, quase sempre o mesmo, traz-me num copinho de plástico os comprimidos contra a droga. E sinto então, no rumor dos outros colchões, nas camisas e nos rostos e nos membros que se erguem como se levitassem, como era, como continuo a ser feliz contigo. De forma que paro horas e horas a olhar os azulejos, deslumbrado, no pasmo sem fim das descobertas.

- Despesas a meias, receitas a meias, propôs o intermediário de esquimós. Ha, miúdo? Ou preferes oitocentos escudos a pronto e não se fala mais nisso?

A asa do frango tremeu-lhe no peito, escapuliu-se no interior da camisa, voltou a surgir, estremeceu com força. O homem curvou-se de surpresa, passeou a mão na barriga, surpreendeu-se mais, continuou à procura, torcendo-se no desvão, a desabotoar-se, como uma ténia. O velho da bengala soterrava-se num monte de bemóis de lata. O músico do bombo desfez o aro no crânio de um fantasma que tombou, de costas, na praça, aos pés de um lobisomem que desancava o sacristão. As beatas apedrejavam-se com velas de estearina. O sujeito dos foguetes ameaçava toda a gente com o canhão de um morteiro, até o dono da venda o derrubar num golpe de rose. O negociante, preocupado, despiu o casaco para revistar a espinha: o gorgolejo da ave arrotava-lhe nas nádegas. O grupo coral de Moura surgiu a trote da outra taberna para combater a filarmónica. O morteiro estilhaçou uma janela. O do boné de xadrez arregaçou a camisa num vendaval de penas e acabou por trazer à tona, estupefacto, o frango a espernear, vivo, com a cobra morta no bico: Como é que este cabrão conseguiu?, perguntava ele a olhar o bicho cujas patas vermelhas pedalavam no nada, como é que deu cabo de uma cobra venenosa que hipnotiza avestruzes?, e refastelou-se, siderado, contemplando o animal, até o velho da bengala se livrar dos saxofones e investir na sua direcção a sacudir o cajado incansável. Dou-te mil e duzentos pelo esquimó e é a minha última palavra, disse ainda o do boné antes da bengala lhe amachucar o nariz e ele escorregar lentamente, a rodopiar as pupilas, para o chão. O padre abençoava o massacre da porta da igreja, ameaçado por flautistas ferozes. O vogal e o presidente da Junta agrediam-se no cemitério, armados de placas de mármore. O velho apoderou-se finalmente do frango, aboborou-se contra uma carroça, acendeu uma beata, e principiou a depená-lo entre grunhidos de vitória e cacarejos de aflição. Ainda abanei o da cobra mas as órbitas, estrábicas, continuavam a girar sem descanso, e então disse à minha tia Aguente um instantinho que eu já venho, empurrei-a para o pé do velho que sacava da navalha para degolar o monstro, e primeiro que o sangue espichasse contornei o muro até à porta da cozinha e meti-me debaixo da mesa, de joelhos na boca, à medida que os morteiros rebentavam e as pernas das criadas se moviam nas lajes, a pensar em frangos decepados e em cobras mortas.

 

                   Segundo dia da festa:

                   A véspera da minha morte

Abri os olhos e o meu genro espiolhava-me a escrivaninha, rasgava os papéis das gavetas, afastava as acções atadas com elásticos em caixas de lata, pisava rolos de cartas, rebentava o fecho do diário onde nunca escrevo assuntos de negócios, separava documentos, forçava-me o cofre, agora sem as caretas de cerimoniosa obediência do costume, Sim senhor engenheiro, não senhor engenheiro, ora essa senhor engenheiro, como quiser senhor engenheiro, e eu pensei que se não me achasse tão fraco o educava à chibata como se educam as perdigueiras e os filhos, lhe gritava Senta e ele parado no tapete, a chiar, achatado de pavor, em vez de lançar o diário, com toda a força, contra a mesinha dos remédios trambulhando frascos, e me segurar as abas do pijama, nariz com nariz, Onde escondeste o testamento, velho de um cabrão, em que filho da puta de buraco o enfiaste?

E não só ele mas a minha filha também, a procurar na cómoda, no armário, por debaixo do colchão da cama, a revirar objectos, a entornar cuecas, a amarrotar gravatas, a dizer, na voz de túnel do Juízo Final, Ele engoli-lo de certeza que não o engoliu portanto em algum sítio há-de estar, e o meu filho, de corneta ao pescoço, a articular calhas no tapete e a imitar com as bochechas, Tchuc tchuc tchuc, as bielas dos comboios. E se ele fez o testamento a favor dos parvos da família?, disse a minha filha, e se não teve nenhuma consideração por nós os dois? Mesmo que o camelo o tenha metido no notário de Reguengos a coisa compõe-se, respondeu o meu genro, deixa o relógio antigo em paz que não é a atirar porcarias ao chão que se resolvem os assuntos, embora ele próprio coscuvilhasse por toda a parte derrubando bibelots, tombando retratos, escacando uma pomba de loiça, acabando por mergulhar o pé na arrastadeira e extrair de lá o peixe molhado, que pingava diarreia, do sapato. Só me faltava esta porra, queixou-se ele, palavra de honra que só esta porra me faltava, e o meu filho Tchuc tchuc tchuc, e a minha filha para mim, a sorrir-me numa vozinha açucarada. O pai lembra-se por acaso se deixou o testamento aqui ou no notário, o pai lembra-se por acaso onde é que o tem?, e o marido, sentado no colchão, a limpar com repugnância o sapato encharcado de merda, O sacana quer levar o dinheiro no eu para o jazigo, atira-lhe mas é um par de estalos que ele confessa-te tudo, Pffffffffff, cuspiu de súbito o meu filho, a travar. A cara da minha filha afastou-se, ondeou no ar, desapareceu, Hei-de descobri-lo, poça, garantiu ela, nem que passe a vida inteira nisto descubro-o, e vai daí bateram à porta, Com licença, e era o doutor. Entre, entre, convidou a minha filha a apanhar à pressa a papelada do soalho e a entorná-la no interior da escrivaninha, andávamos por aqui a pôr ordem nos arquivos, o senhor nem calcula a desarrumação do meu pai. O meu genro compunha-me o lençol com uma ternura postiça: Em todas as famílias há sempre uma pessoa mais desleixada do que as outras, lá em casa, por exemplo, a minha mulher garante que sou eu, afiançou o médico a aproximar-se de mim depois desta confissão magoada, ora como tem passado o nosso doentinho com a animação da festa? Eu até o acho melhor, disse o meu genro a entornar na arrastadeira um cagalhão achatado, não há-de haver cinco minutos que se queixou dos comunistas, e o doutor espetou-me o alfinete de uma luzinha aguda pelas pupilas dentro, e verificou-me o pulso a observar a fotografia da minha mulher na parede, orgulhosa, na sua moldura oval, dos pulhas que gerou. O meu filho recuava em marcha atrás no cuidado das locomotivas em manobra, embatendo num ângulo de armário como num furgão errado, e o médico picou-me com uma agulha os braços e as pernas e eu não sentia nada de nada, martelou-me os cotovelos, auscultou-me com um estetoscópio novo para se inteirar do meu vazio interior (O seu sobrinho e a cadela, disse ele à minha filha, deram-me cabo daquele que eu tinha num instante), enquanto o meu genro esmiuçava outra vez as caixas de lata das acções numa energia renovada, espreitava o interior da mesinha de cabeceira com os chinelos dentro, remexia a cómoda perante o espanto do doutor que me palpava a bexiga e experimentava o fígado, O livro de cheques, caramba, há-de haver um livro de cheques por aí. A minha filha, que assistia ao exame com esperanças de morte na cara, inspeccionava-me as peúgas, as camisolas, as boinas, os cartuchos de caça: Nada, disse ela, desanimada, a pisar-me as camisas de seda, e logo o marido, à cata de um cofre forte dissimulado no estuque, Nada o tanas, nem que seja a gaita dos talões é preciso dar com as contas do velho antes que a tua sobrinha nos trame a vida em Reguengos ou em Évora. O médico enfiou-me o termómetro na garganta, avaliou o nível do mercúrio, abanou-o, tornou a enfiá-lo, e eu sentia o estreitinho frio do vidro contra a língua e a respiração de macho de carroça dele na minha cara. Tens a certeza de que não te escapou nada no escritório?, perguntou a minha filha a entrar no armário das espingardas e a embaraçar-se nas bandoleiras de cabedal como uma múmia egípcia. Trinta e oito e nove, anunciou o médico numa voz de pregoeiro, há por aí algum antibiótico decente? Por ordem do Ministério dos Transportes, avisou o meu filho a apitar a corneta, proceder-se-á sem demora à construção de uma grande gare central, cheia de luzes, sob a cama do pai. Nada, disse o meu genro, só as cartas estúpidas, em papel cor-de-rosa, com passarinhos nos cantos, que a mulher lhe escrevia há um século, de Vendas Novas, quando se namoravam. Oficinas, salas de espera, nove linhas, um restaurante-bar, disse o meu filho a atropelar o doutor, encomendam-se os murais da entrada a um artista estrangeiro, coloca-se um repuxo de mármore no átrio, mas nesse momento eu já estava com o feitor, de dois canos nas unhas, agachado atrás das moitas do rio à espera que as codornizes levantassem voo, a rosnar-lhe baixinho A primeira é para mim, não dispares, e eram vinte ou trinta ou quarenta anos antes e eu conseguia mexer-me e fumar e dar ordens. A cadela perdigueira, tensa como uma harpa, tremia junto às minhas coxas a inclinar o pescoço para a frente. Um bando de patos, em forma de aspa, passou a nadar muito alto na direcção do sul, tão brancos que se confundiam com o céu branco de julho. Aí estão elas, disse o feitor, aí estão elas a sair da relva, e de facto uma agitação qualquer abanava os arbustos a vinte metros de nós, apontei, a cadela respirava como se não fosse caça, dependurando de mim as gotas de vidro implorativo dos olhos. Puxei o gatilho devagar, o feitor desviou-me o cotovelo com uma coronhada aflita, o estampido fez-me recuar o ombro, e os ramos de uma azinheira embrulharam-se uns nos outros e regressaram à ordem do costume. O feitor desatou a correr e extraiu dos arbustos, nu, com o meu genro ainda pegado ao ventre, o animal incompreensível da minha filha mongolóide, excrescência do meu corpo, certeza da minha miséria, vergonha do meu sangue, que se devia ter escapado, do quarto onde a fechavam, a fim de vaguear, suja de lama, entre as rãs e os sapos da margem, e que cobria o rosto com as mãos para se defender do primeiro, furioso, desesperado golpe de chibata.

Porque é à chibata que se educam os filhos. Porque foi à chibata que o meu pai me educou, não aqui, em Lisboa, numa casa cheia de portas e de sombras, de cavalo-marinho, corredor fora, diante do pânico dos criados e da cegueira das velhas muito velhas que se pareciam multiplicar por toda a parte, a irmã gémea da minha avó, a minha avó, parentes despenteadas, em roupão, apertando as rendas das camisas de dormir com os espargos dos dedos, de pálpebras sem cor encaixilhadas por crostas de ramelas, e eu a trotar para a sala tangido pelo silvo da vergasta, até desaguar no meio de um congresso de damas consternadas, um pouco mais jovens que as inválidas, que se sussurravam pelos véus confissões de sacristia. Chega aqui, malandro, chega aqui, gritava o meu pai, aos pulos, enquanto a vergasta cortava o ar em pedacinhos, a minha mãe procurava na manga o lenço dos desgostos, e eu me abrigava de lado entre dois contadores e deixava de existir na penumbra dos damascos, ao mesmo tempo que o meu pai zurzia as pratas e os jarrões a berrar Hás-de acabar por sair daí, gatuno, hei-de acabar por ensinar-te como deve ser, no meio de pedidos, choros, loiças quebradas, persignações e desmaios, para tombar exausto, de chicote na mão, no colo apavorado das senhoras, apontando ao lustre do tecto as guias moribundas do bigode.

Os filhos educam-se à chibata e o meu pai, cada vez mais pesado e escarlate, educou-me conscienciosamente à chibata colégio adiante e Alentejo adiante, nas férias, comigo a estatelar-me, todos os dias, no centro de um eterno, imutável círculo de luvas e cochichos, até que uma tarde, há sessenta ou setenta anos, antes de várias guerras e terramotos e depois de muitos outros, quando logrou, finalmente, jogar-me o gadanho à gola do casaco, empurrar-me contra um móvel de capela que conservava ainda odores remotos de cera, e erguer a vergasta num movimento heróico de estátua, as feições admiraram-se-lhe, distenderam-se, imobilizaram-se, e um pinguinho de sangue arredondou-se na boca e deslizou queixo abaixo num vagar cor-de-rosa. Tragam água, pediu a minha mãe na direcção da cozinha, tragam água que vai dar uma pataleta no senhor major. Alguém surgiu a correr com um copo mas a chibata caiu no sobrado, os sapatos tentaram firmar-se e desistiram, o fato, sem ossos, descaiu numa lentidão de pudim. A minha mãe, ajudada por várias solícitas luvas de renda, entornava-lhe a água nos beiços de plasticina, e ele sem olhar para ninguém, de pupilas perdidas, a segregar novas bolhas nos cantos dos beiços, sempre mais amarrotado e oco, escorregando no tapete com a cadela a lamber-lhe o peitilho da camisa. Mandaram-me embora, Vai para o escritório, pequeno, e encontrei-o nó dia seguinte , de casaca, apertado no caixão, com a zanga aborrecida das narinas tapadas com um lenço, velado por flores e por soluços.

Talvez que, como o meu pai, eu devesse ter educado os meus filhos e o meu genro à chibata, para não me balirem pelo dinheiro que não há na minha cama de doente, ou me atormentarem a vida com os seus miúdos comboios eléctricos que giram por toda a casa na pequenez dos carris, furtando a manteiga ou a compota do pequeno-almoço no preciso momento em que lhes vamos tocar, transportando-nos as peúgas para o quarto de banho e oferecendo-nos em troca o tubo de graxa ou a escova dos dentes, comboios que apitam, que fumegam, que tombam de lado a espernear as rodas, que nos perseguem, inalteráveis, de passageiros pintados nas janelas, a gesticularem quando aterramos a pingar embrulhados na toalha, no tapete de borracha, comboios contornando o bidé ou o cesto de plástico da roupa suja. Ou ter educado à chibata, isso sim, a minha mulher, que não morreu como as pessoas pensam, ou fingem que pensam, ou dizem que pensam, mas que se foi embora há tanto tempo que o não sei contar, três ou quatro anos depois de a mongolóide nascer e começar a grunhir de compartimento em compartimento o seu desconcerto de macaco triste, a minha mulher que encontrei a fazer as malas e a arrumar as chapeleiras ao voltar das perdizes em Montemor, ainda com a espingarda no sovaco e quatro ou cinco pássaros na cartucheira da cintura, os quais interromperam o voo, trazidos pelas goelas dos cachorros, para me abanarem, de cabeças destroçadas, das ancas. Cheguei à porta do quarto a cheirar a pólvora, e a terra, e a mato, e a sangue de lebres e de rolas, a deixar na carpete o pó das botas, e ela, sem me olhar, tirando os vestidos dos armários para os estender na colcha, a dobrar as blusas, ajuntar cuecas e sapatos, a saltitar sobre as correias dos baús abertos, sabendo que eu a observava, de arma na mão e umbigo coroado de perdizes, idêntico a uma pagela de Nossa Senhora rodeada pelos seus anjos assassinados por um pacote de balas, movendo-se nos espelhos, de trás, de frente, de lado, como se fosse dez ou doze em lugar de uma só com que eu casara, até eu lhe perguntar O que é isto?, e ela me responder, a guardar um jogo de escovas como se falasse de qualquer assunto sem importância alguma, Estou farta de te aturar, não me interrompas que tenho a camioneta daqui a duas horas e falta-me a tralha quase toda, e os corpos dela baixavam-se, levantavam-se e caminhavam nos espelhos, sempre com roupas, ou frascos ou molduras de retratos nos braços, a acomodar objectos, de joelhos no chão, nas prateleiras dos baús, estendendo rendas em cima de rendas tal como deitava os filhos pequenos nos berços de ferro, e eu apontei-lhe a mira e disse Quieta, e ela ou um dos reflexos dela riu-se divertida para mim antes de recomeçar a dobrar xailes e blusas, Deixa-te de cenas, Diogo, que há quinze anos que as suporto.

E eu sem saber com qual das minhas mulheres falar uma vez que eram várias, para cá e para lá, a moverem-se ao mesmo tempo nas paredes, eu em busca da verdadeira, com as aves a balouçarem-me nas pernas, junto à cómoda, ou à cadeira, ou aos tremós, e sem dar com ela nunca, inexistente e no entanto viva como a sombra líquida dos peixes, eu a ameaçar com a arma a imagem de uma imagem e a escutar o eco da sua respiração que troçava de mim num ponto inesperado e vago, mulheres exasperantes, repetidas e iguais, com os mesmos gestos, a mesma impaciência, o mesmo trejeito enervado da boca, de modo que tive de assobiar pela cadela, de ordenar-lhe Apanha, de vê-la galopar uns passos no quarto e imobilizar-se, na desordem de sacos e malas e arcas, de encontro a uma das centenas de reflexos que vibravam no celofane dos espelhos, de comandar Agarra, e assistir à hesitação do bicho, agora também ele por toda a parte no quarto, de mandíbulas abertas como quando fazemos jogos de sombras com os dedos, um lobo, um coelho, uma gaivota, uma casa, Agarra, disse eu como se lhe falasse de codornizes, de lebres e de patos, a procurar guiar-me, como os cegos, pelo odor da cadela, e o animal prendeu a perna da minha mulher que arranjava o estojo de toilete repleto de boiões e bisnagas e pincéis e aranhiços de pestanas falsas e carrapitos postiços, e ela olhou para mim, finalmente real, finalmente de carne, finalmente ao alcance da espingarda, a perguntar O que é isto?, o que é isto?, sem erguer a voz sequer, que espécie de brincadeira inventaste agora?, e eu, por fim, dono do que se passava, a introduzir um par de cartuchos na culatra, É exactamente isso, calcula, que me interessa saber, enquanto a perdigueira lhe triturava o tornozelo como aos pescoços dos gansos, lhe destruía os tendões, lhe sacudia a carne, Agarra, Qual é a leria de te ires embora assim sem mais nem menos, que merda de fantochada se passa neste quarto?, fito nela, sem mirar os espelhos para não a perder nem me perder, a puxar a culatra, a levantar a arma, a apontar, A camioneta daqui a duas horas, ha, e os filhos e o marido que se aguentem, ha, adeuzinho que estou farta de vocês, ha, a miúda anormal a rojar-se na cozinha e sua excelência a empacotar a tralha como se não fosse nada com ela, isso da brincadeira é uma boa pergunta, disse eu a rodar a mira na sua direcção, ora vamos a ver a resposta que dás.

A cadela afrouxou os dentes e logo eu, furioso, para a perdigueira, Agarra e traz-ma cá, como se me referisse a uma peça de caça abatida no restolho, a sacudir a espaços a barbatana de um membro. Traz-ma cá, ordenei eu esmagando, com o pó das botas, as fitas, as transparências e os bordados de uma pilha de blusas. A minha mulher levantou o queixo da roupa, Quinze anos de brutalidades não te chegaram, Diogo, só paras quando este bicho sarnoso me escavacar o corpo aos bocados? A perdigueira, de patas fincadas no sobrado, tentou puxá-la para mim com um sacão mais forte: Avisa-a que me largue imediatamente, disse a minha mulher a contorcer-se, de joelhos, soltando a correia de lona de um dos sacos para se defender do cão, que me largue imediatamente ou arreio-lhe com a fivela no focinho, e eu pensei, sempre de espingarda apontada, Já te conhecia a indiferença e agora aprendo-te o ódio, não só em ti mas neste espelho e naquele e naquele e naquele e naquele, aprendo-te a raiva acumulada destes anos todos em que me tens detestado em silêncio noite após noite, comigo à tua beira a coçar o umbigo e a transpirar o meu detestável suor de sangue de codornizes mortas, a tocar-te no peito, a tocar-te nas ancas, a beijar-te, a deitar-me sobre ti soprando como um boi minhoto, e, quando ela me quis golpear o braço com a correia, ergui um pouco a mira, disparei, o estrondo inundou o quarto e ensurdeceu-me, cacos de vidro tombaram nas figurinhas de porcelana e no relógio sobre a chaminé, e uma das imagens dela sumiu-se de súbito e deu lugar aos defeitos e aos riscos da pintura, a cadela recuou a latir, raspando a porta com as unhas para sair do quarto, mandei-a embora com um pontapé, fechei a porta à chave e guardei a chave na algibeira. Vamos conversar os dois, minha cabra, disse eu, explica a historiazinha da camioneta ao teu querido, e ao mesmo tempo que a empurrava com o calcanhar contra o tapete e lhe esmagava os rins com o peso da sola, atirei uma das malas já feitas pela janela do quintal, pulverizando caixilhos, a ver ligas e soutiens e cintas rodopiarem e suspenderem-se da figueira como frutos de puta, amadurecendo elásticos e rendas. As frangas engoliam caliça na capoeira do andar de baixo. As cegonhas do Guadiana pousavam nas oliveiras e nos penedos da margem, fragmentos de papel que o vento abandonou. Pela altura do sol faltava ainda imenso tempo para a noite.

- Querias abalar de casa sem dar satisfações a ninguém?, grunhi eu a carregar-lhe nas costas com o salto. Abalar de casa e o escravo que aturasse sozinho os filhos anormais que tu lhe deste?

Enxotei-a com a biqueira até à cama, e sentei-me a sorrir na cadeira de balouço a fim de lhe permitir sentar-se no chão, a alisar a saia, fitando-me com o mesmo ódio mas já sem medo nem surpresa.

- É assim que as promessas do casamento se pagam, lamentei-me eu, entristecido, de nariz no candeeiro do tecto e nas suas lâminas de mica esverdeada. É assim que se agradecem meia dúzia de bofetadas pedagógicas durante anos e anos de educação conjugal.

A minha mulher palpava entretanto as pernas, os braços, a cabeça, como para se assegurar de que existia. Encostada à cama, via-lhe um pedaço de coxa gorda, branca e redonda, e principiei a endurecer nas calças ao mesmo tempo que ela apanhava o relógio da chaminé e se perdia no mostrador quebrado, seguro por um par de anjinhos de bronze.

- A camioneta larga dentro de uma hora, o máximo, disse ela como se me não ouvisse, como se nunca, na sua vida inteira, me tivesse ouvido. Daqui a uma hora e eu sem nada pronto.

Olhei para a espingarda a hesitar se devia ou não furá-la com um tiro pela sua teimosia em partir, e acabei por resolver-me a ampliar o sorriso, como se me dirigisse a uma criança caprichosa ou aos ziguezagues de humor da minha filha mongolóide. Não havia vento e as placas de mica do lustre, seguras umas às outras por ganchozinhos de arame, acompanhavam-me os gestos com a sua cumplicidade cintilante. Os pedaços de vidro pelo chão devolviam, aqui e ali, bocados de coisas, num puzzle que eu não saberia nunca resolver. Não me entendo, aliás, com a tortuosidade escarninha dos espelhos, que me recordam os óculos dos gnomos que frequentavam a escola comigo, e para os quais os problemas de Matemática e os questionários de História possuíam em comum as sinistras características de uma simplicidade desarmante.

- Vais chamar a cadela para me morder outra vez?, disse a minha mulher a massajar a perna, a olhar em volta, a recomeçar a alinhar as blusas, e as saias, e as saias de baixo nas suas pilhas de há pouco. Vais disparar-me os canos nas tripas, Diogo?

O pedaço redondo de coxa aumentou, e eu, recostado na cadeira de balouço, continuava a endurecer no interior das calças. Um promontório de mim embaraçava-se na braguilha, procurando espaço, procurando sair, procurando atravessar com o bico a casca de ovo da fazenda, e ajudei-o desapertando o cinto e as ceroulas até a pressão diminuir, e ver, mesmo sem dobrar o queixo, o meu pénis tornar-se a chaminé do navio do meu corpo, de que se suspendia a fralda de camisa da bandeira. As criadas e o feitor cacarejavam no quintal, alarmados pelo tiro, e eu ali a crescer no meio da roupa espalhada e do lodo seco no tapete, a dilatar as veias roxas da minha vontade. Se não fossem os espelhos, que me troçavam e enervavam, sentir-me-ia de novo no campo, agachado num socalco, arrepiado de exaltação, à espera de um silvo de pássaro ou de um galope de coelho. Mas não há nada que os espelhos não destruam ao reenviarem-nos a nós mesmos, manchados de carimbos de estanho como encomendas postais sem endereço, de forma que me levantei, peguei no relógio dos anjinhos pela base, e assassinei todos aqueles sardónicos rectângulos de vidro nas suas grossas molduras de talha. A minha cara ia-se sumindo das paredes com a rapidez com que os objectos se somem quando se apaga a luz, substituída pelo grelado e pela fendas da tinta, estilhas doiradas voavam ao acaso pelo quarto, pedaços de tijolo e de pó amarelo choviam no sobrado, e eu pensei Foi a minha mãe que quis o quarto assim, foi ela que o enfeitou desta maneira a seguir à morte do meu pai a fim de se sentir, ao menos, acompanhada por si própria, ou nem sequer por si própria mas pelas suas onduladas e mentirosas miragens, sabendo perfeitamente que o que vemos de nós é tão diferente de nós como o somos de um estranho, outra testa, outros malares, outras orelhas, irreconhecíveis, sérios e postiços, e eu pensei que agora nem o fantasma da minha mãe se poderia rever, no meio dos móveis, nas suas nebulosas ilusões transparentes, uma velha a mirar e a mirar, para este lado e para aquele, numa alegria pueril, os vestidos fora de moda e os penteados esquisitos, e enquanto eu martelava as molduras a minha mulher fechava lenços e casacos nos baús, reunia as escovas, os cabides e as bisnagas dos cosméticos, e eu, sempre com aquele pedaço de coxa na ideia, olhava-a como um rafeiro com cio olha o traseiro de uma cadela na praça, via-lhe o cabelo sem ganchos, a saia em desordem, a canela mordida até ao osso, e então obriguei-a a estender-se no tapete, de ventre para cirna, e larguei o relógio dos anjinhos de bronze para lhe separar as pernas, rindo das suas exclamações, dos seus protestos e dos seus murros insignificantes de mulher, e no momento em que a penetrava, castigando-a com um tabefe pelos seus beliscões nas minhas costas e pela sua incansável resistência de enguia, recusando a minha língua, as minhas carícias e o meu ansioso peso de homem no seu peito, ela apanhou o relógio de mostrador quebrado e eu vi os dedos que seguravam a base de mármore aumentarem de tamanho, vi o braço no ar, vi a sua repentina careta de vingança, vi os ponteiros aproximarem-se na lenta rapidez das catástrofes, e logo a seguir um gosto diferente na boca, as pupilas perdidas, uma inércia inesperada, uma fraqueza de criança nos músculos, e ela que se livrava de mim, que me empurrava para o lado sobre os restos dos espelhos e das molduras dos caixilhos, que acabou as malas sem se preocupar em dobrar a roupa pelos vincos porque a camioneta devia estar a partir, que arrastou os baús para junto da porta, chamou uma ou duas empregadas que a ajudassem a carregar a bagagem até à entrada da vila, comigo sozinho, sem me lograr mexer mas a ouvir e a entender tudo e a odiá-la, desejando que a perdigueira lhe saltasse à nuca nas escadas ou lhe esmagasse a cintura nos joelhos trabalhados dos armários, e há cinco ou seis anos, senhores, contaram-me que continuava viva, no Porto, a morar com um casal de primos meio cegos, e chamei pelo telefone um carro de praça de Reguengos, caco pré-histórico que se avariou em Portalegre, a fumar borracha queimada das frestas do capot. O chofer e eu, cá fora, de mãos nas algibeiras, contemplávamos os estertores daquele dragão idoso, que bolsava água a ferver e líquidos escuros pelos flancos ferrugentos, de mistura com estalos de metal que se desarticulam e quebram, até que o homem disse, já a caminharmos a pé em direcção à cidade, Só para sucata é que esta merda serve, vendo-a por um tostão furado ao primeiro cigano que aparecer, e porém não havia cigano algum nas redondezas, apenas a estrada e árvores e cardos, um frio de abotoar a gabardina até cá cima e uma carroça de eixos a ganirem numa vereda de areia paralela ao alcatrão. O pior, disse o chofer numa voz tristíssima, a fazer-se às coroas, é não ter dinheiro para um novo, e agora? Os mendigos, os pedintes os que ejaculam lágrimas pela porcaria das notas irritam-me quase tanto como as mulheres, de modo que lhe perguntei amavelmente, na inocência de quem não percebe nada, Em que é que você se ocupava antes dos táxis?, e o tipo, a chorar-se, Trabalhava de cozinheiro num café, e eu, que alcançava as primeiras casas da cidade, Quem me dera a mim ser cozinheiro, amigo, nem imagina a data de sarilhos a que me poupava, e nesse instante escutámos uma explosão atrás de nós e o automóvel ardia no alcatrão. Dei uma palmadita de conforto na omoplata do chofer, que assistia, quieto como um bicho de loiça, ao carro a consumir-se numa sucessão de labaredas compridas e de metais que se torciam e achatavam, Descanse que o aceitam outra vez no café, quanto mais não seja para servir ao balcão ou varrer a serradura e limpar as retretes de manhã, e quando o táxi se transformou num torresmo onde cintilava uma ou outra aresta de carvão, acrescentei com doçura Como não me levou ao Porto acho que não lhe devo nada, um dia destes teremos o prazer de nos encontrar em Reguengos, passe bem, e fui-me afastando dele na direcção do centro porque as desgraças me metem o mesmo nojo que as menstruações das mulheres e me provocam uma sensação igual de impotência indignada, deixando o homenzinho a mirar os seus destroços nauseabundos, com o corpo encolhido dos gatos acabados de castrar.

E então, um dia mais tarde do que calculava, cheguei ao Porto de comboio, uma cidade maior do que Évora mas sem sol, castanha e preta como um dente estragado, onde chovia interminavelmente a água melancólica de um outono antigo, um desses novembros em segunda mão que se compram barato nos ferro-velho de Borba. Os primos cegos moravam numa rua de eléctricos depois de um jardim, numa cave na qual todas as torneiras pingavam em uníssono em pias de pedra ou esmaltes oxidados, dezenas de torneiras escondidas por tabiques e fotografias e terrinas, chovendo por seu turno os seus outonos minúsculos no odor abominável das almôndegas da véspera. O cego abriu a porta a farejar com os óculos, a cheirar o silêncio, a perguntar Quem é?, afastei-o com o cotovelo, tacteei na sombra e gritei Adelina, vem imediatamente aqui, Adelina, e à medida que me acostumava ao escuro vi que tudo à minha volta era feio e carunchoso e repelente e em ruína. Uma capa tombava do bengaleiro como um morcego enforcado.

No tapete no fio distinguiam-se desenhos violáceos de renas. Um armário sem uma perna coxeava no seu canto, junto a sombrinhas enterradas como bandarilhas num pote, enquanto as torneiras prosseguiam o ininterrupto massacre de gotas, tentando enlouquecer-me com a sua persistente monotonia vagarosa. O primo, do tamanho de um duende, com cerca de metade da minha altura e do meu peso, trepava-me o colete, de óculos pegados ao meu umbigo, a percorrer-me a um os botões a caminho da garganta.

- Adelina, chamei eu a enxotá-lo, que te disse eu, Adelina?

Uma mulher surgiu no corredor, de esfregão em punho, sem me ouvir, sem me olhar, e informou o duende Por este andar a água na cozinha vai em meio metro, há caçarolas a boiarem na marquise, telefona-se ao canalizador ou quê?

- Adelina, berrei eu, queres que te vá buscar por uma orelha, minha parva?

- Não vale a pena telefonares, disse o primo cego encarrapitado nos meus ombros, o aparelho passou agora mesmo à bolina por aqui, não ouves a campainha nos degraus?

O pote das sombrinhas, que imitava um vaso grego, estremeceu, ergueu-se uns palmos, e deslizou-me por entre as pernas na enxurrada, borbulhando no patamar os vagidos moribundos dos afogados das praias. Pela janela de um quarto percebia-se a chuva lá fora, edifícios antigos, uma estátua, a absoluta ausência de pássaros dos invernos perpétuos.

- Estive a medir na parede com uma fita métrica, disse a voz da mulher lá de dentro. Cinquenta e sete centímetros de maré já cá cantam.

O marido empoleirou-se na cabeça para me examinar a cara, de bafo no meu nariz e óculos a espiolharem-me as feições, É o Diogo, não é?, enquanto quadros e travessas me redemoinhavam na cintura, a voz triunfal anunciava Sessenta e três centímetros, Filipe, o sobrado cedia em rangidos sucessivos, um candeeiro redemoinhou no temporal, logo seguido por um gato de barro com uma pata quebrava, até o móvel sem perna começava a hesitar, É o Diogo, não é?, insistiu o cego a colar-me os óculos ao pescoço, às bochechas, aos olhos, a Adelina faleceu há um mês, um belo dia não apareceu para jantar, desconfiámos, fomos ver e pronto, parece que lhe rebentaram ao mesmo tempo as veias todas da barriga, Setenta e seis centímetros, rejubilava a outra, de apoteose amortecida pelas cambalhotas da água. Só uma ou duas torneiras, quase aparafusadas ao tecto, pingavam ainda, apagadas por cascatas de cómodas. Um metro e doze, anunciou a mulher, que se calou de imediato, decerto esmagada pelo recife de um tremo. Colheres de pau e garrafas de plástico seguiam na corrente, e ao sentar-me no comboio, de volta a Reguengos, passou por mim, à deriva no cais da estação, o primo dos óculos, estendido de barriga para cima, de gravata e sapatos de verniz, embatendo ao acaso na saudade dos lenços, nas máquinas de coca-cola e sanduíches e nas pessoas que se despediam do outro lado dos vidros, apagadas pelo pó de múltiplas viagens, até começarmos a mover-nos, chuva adiante, comprimidos por prédios e por muros, comigo a pensar, furioso, que nem me deste a oportunidade de me vingar de ti, que a maior parte das criaturas que odiamos se apressam a morrer quando estamos quase a tocar-lhes, que nem ao teu enterro pude ir para me alegrar um bocadinho, assistir à descida do caixão a torcer-me de cólicas de felicidade no interior de mim mesmo, e um empregado de casaco branco badalou ao longo do corredor a sineta que anunciava o jantar, seguido de uma fila de esfomeados cambaleantes. De tempos a tempos luzes de aldeias ou de fábricas sobrepunham-se ao meu reflexo no vidro, calvo, feio, de boquilha vazia nos dentes, com a cabeça pousada na gravata como uma lagarta numa folha, e adormeci, embalado pelo sino, projectando uma ou duas semanas comemorativas em Lisboa sem sair sequer de um bordel que eu cá sei, refeições na cama, migalhas na colcha, muitas rendas pretas, muito bâton, muita gasosa a imitar champanhe, muita ternura cara e eu sem dinheiro, muito garfo a aproximar da minha boca arroz de grelos e frango, muitas ancas peludas, muita gargalhada, muitas mamas sem força, e ao acordar no comboio quis levantar-me e não podia, quis encolher as falanges e nem isso lograva, tinham-me paralisado na cama, em Monsaraz, e o meu filho de gatas e lápis na orelha, contornava a mesa dos medicamentos com um anel de carris, a soprar Tchuc tchuc tchuc pelo bico ferroviário dos lábios, o meu genro, dizia Nem que eu me meta no carro e vá a Évora agora, hei-de dar com o extracto de conta do velho nem que seja no lixo, se a tua sobrinha desencanta a mongolóide na confusão da festa e se vai embora com ela estamos fritos, e a minha filha, a puxar-me pelo ombro para fora do colchão, Onde pára o testamento, onde pára o dinheiro, a quem é que o pai deixou as casas e as terras?, e eu, chegado do Porto, a olhá-la num espanto de estrangeiro, sem entender, sem conseguir falar, sentindo um resto de sangue a baloiçar nas veias, para cá e para lá, empurrado por uma bomba exausta.

- O miúdo e a anormal já voltaram da rua?, disse o meu genro procurando as chaves do automóvel no casaco. Quem foi o cretino que os deixou sair?

- Pergunta à estúpida da tua cunhada, disse a minha filha às pancadinhas aos móveis na esperança de um fundo falso qualquer.

Tal qual a mãe, pensei eu. Tal qual a mãe que fui buscar a Vendas Novas para me casar com ela, fiado na aparência do retrato que o meu irmão me mandou, A enteada de um médico, a herdeira de uma família rica, toca harpa, pinta, fala alemão, há-de receber mais terras sozinha do que nós todos juntos, e ainda por cima, repara, o melhor par de tetas do Alentejo inteiro, no teu lugar dava uma olhadela a ver, o que é que perdes?, e eu dei, não só porque o trabalho do campo escasseava nessa época do ano mas por me achar cansado de arrepiar saias de criadas entre portas, mais atento aos passos da sentinela da minha mãe do que ao corpo que apertava, e o meu irmão recebeu-me, fardado de tenente, a exaltar os méritos da fotografia no meio de encontrões e assobios, Topa-me só o cabelo, topa-se só o pescoço, topa-me só os ombros, sossega que no domingo, à saída da missa, já ta mostro, e eu admirado com tanta generosidade, tanta propaganda, tanta teimosia, até vir a saber, passados anos, que haviam fornicado, meses a fio, um com o outro, de pé, encostados ao piano, nos bailes e comemorações do regimento, cada qual com o seu bolo ou o seu copo na mão, a polvilharem-se de farinha, com as nádegas dela a tocarem uma sonata ofegante nas teclas, e que continuaram a fornicar, mesmo após o nosso casamento, até uma granada explodir durante a instrução e o meu mano e mais oito soldados subirem vinte metros num magnífico fogo de artifício de ossos, de dentes, de vísceras desfeitas e de botões doirados, e realmente no domingo, à saída da missa, lá estávamos os dois ancorados no café fronteiro à espera que o retrato abandonasse a igreja. O meu irmão sacudiu-me de repente, aos saltos na cadeira de metal pintado, Olha, e vinhas a descer os degraus, e a cumprimentar as pessoas, e a caminhar para casa, escoltada por uma velha que cuspia no lenço, e que tive de alimentar a papas, em Monsaraz, uma infinidade de tempo, suportando-lhe a má educação e a artrite. Encontrei-te pela primeira vez nessa horrível vila de tropas, onde o vento erguia o lixo do chão para o suspender das árvores, Aquela, a alta, a de azul, orientava-me o meu irmão a espetar-me os dedos nas costelas, E onde é que ela mora?, disse eu, sem nenhuma aparente curiosidade, a acender o cigarro, e ele, simpatiquíssimo, a pagar os cafés, Mesmo adiante da escola, anda daí que eu mostro-te, e demos com um portão, um quintal maltratado, desgrenhado de ervas, e uma vivenda ao fundo, Podes voltar para o regimento, disse eu, o que falta tratar faço sozinho, e empurrei o portão, atravessei o jardim hirsuto e dez minutos volvidos estava na sala a argumentar com o médico, um fulano que não parava de beber e de me dar murros compreensivos nos joelhos sem largar o cálice, e que à terceira garrafa se inclinou para trás no sofá e chamou aos berros Hortense. Uma mulher gigantesca, de avental, veio perguntar, indignada, O que sucedeu agora, acabou-se-te o branco?, e o doutor Apresento-te o marido da Adelina, ora repita lá o seu nome que nunca fui forte em pormenores. O mastodonte trotou incrédulo no tapete, a fixar-nos, a mim e ao bêbedo, com os olhinhos microscópicos de hipopótamo, Para que asneirada é que o vinho te deu agora, Ernesto?, e o médico, distraído, enrolado no sofá com a camisa de fora, contemplando o cálice contra a claridade da janela, Os genros são utilíssimos, Hortense, lavam-nos o carro, consertam os fusíveis avariados, riem-se cinquenta vezes com a mesma história, e a mulher, para mim, Ponha-se na rua para eu tratar da saúde a este parvo, enquanto o doutor desrolhava a garrafa a dissertar Já viste a sorte que é ter uma pessoa só para concordar connosco, Hortense. Se a senhora me permite, solicitei educadamente à medida que o médico se afundava num naufrágio de almofadas, explicando Este imbecil quer casar com a Adelina, Hortense, Se a senhora me conceder trinta segundos de atenção, pedi eu a mergulhar a cabeça do bêbedo nos estofos e a sentar-me sobre aquela pipa de álcool, que de quando em quando me levantava as abas do casaco no ar em refluxos de onda, insistindo O palerma quer casar com a tua filha, Hortense, de que é que estás à espera, Hortense, até que a voz se foi tornando mais sumida, mais longínqua, dando lugar a um sonzinho débil de pássaro na chuva, que falava, se calava, tornava a falar, emudecia de vez, Trinta segundos madame, disse eu ao hipopótamo a amarrotar com as coxas o cadáver do doutor, trinta segundos para lhe dar fé do que se passa. As cornetas do regimento chamavam os soldados para os seus serviços inúteis, o meu irmão cravava bandeirinhas num mapa, a mulher, indecisa, avaliava pela cor do meu nariz os decilitros matinais. Cheguei mesmo agora da missa, jurei eu para a tranquilizar, da minha missinha como todos os dias, e ao levantar-me, depois da comunhão, vi a filha de vocelência no banco ao lado e era como se acabasse de alcançar o Paraíso na companhia da Virgem ela própria. Uma criada entrou e saiu, o cadáver do médico começava a cheirar-me a cemitério sob as ancas, como se os meus sovacos tivessem trocado de lugar com as virilhas, a mulher exibiu de súbito a caverna musgosa da boca num urro formidável Desapareça, de forma que três meses depois, à hora da sesta, deitava-me com a fotografia na cama de Monsaraz, escutando os passos de faxina da ama para a frente e para trás no corredor, ajudando, como um metrónomo, os meus desconjuntados balanços de avestruz.

- Não merece a pena ires a Évora ou a Lisboa ou onde quer que seja, disse a minha filha ao meu genro, voltando para mim o desprezo e a raiva do nariz. Julgas que encontras o testamento deste estafermo nalgum sítio?

E eu pensei Os filhos educam-se à chibata, principalmente se temos quase a certeza de que não são nossos. À chibata, como as mulas, desde que nascem até que nós morremos, ou ficamos tão tolhidos dos braços e das pernas que não conseguimos mover-nos da cama onde nos deitam, vendo mal, ouvindo mal, entendendo mal o significado das palavras e estes estrondos de foguete na rua, esta agitação de gritos, esta alegria exagerada, a lembrar-me do desgosto da minha mulher quando o meu irmão morreu, do velório com muitos sujeitos fardados numa sala acanhada, da lentidão do enterro pelo Alentejo fora, de oliveira em oliveira e de taberna em taberna, enquanto o meu genro me exigia o que eu gastara anos a fio nos casinos e nos andares de pegas de Lisboa, me arremessava do colchão e eu ficava estendido, em pijama, no soalho, com o saco da algália a pingar entre as pernas, rente às baratas, às formigas, aos chinelos, e ao meu filho que colocava amorosamente uma locomotiva nas calhas, junto à estação da arrastadeira, fazendo, com as bochechas, Tchuc tchuc tchuc, num vendaval de cuspo.

 

                       Terceiro dia da festa:

                       A importância da máquina de influenciar

                       a génese da esquizofrenia

Tinha o atelier aberto para a clientela dos domingos e as mantas expostas nas paredes, nas mesas e no chão, e nisto o homem entrou. Eu estava sozinha a consertar um tapete. A claridade das janelas desbotava os objectos e atravessava os aquários das vitrinas, onde as peças de chifre flutuavam como peixes ou poupas ao longe, e as folhas de chá das asas dos milhafres se dissolviam no bule de estanho do céu, que reflectia, alongadas e torcidas, as casas e as árvores. O homem entrou e percebi, sem o olhar sequer, em consequência dessa espécie de instinto, próximo da inquietação dos animais antes dos tremores de terra, que não vinha comprar, que não vinha pelos bonecos de barro ou pelas mantas, percebi que as galinhas o obrigavam a saltos ridículos para as evitar, que o pó e os fios de lã suspensos como lombrigas marinhas o faziam tossir em silêncio, e que procurava sorrir-me a carnívora amabilidade do costume, à espera que eu erguesse a cabeça e o notasse, entre dois teares, em busca da cigarreira nos bolsos do casaco. Os foguetes e os morteiros do castelo estremeciam a casa. Os mugidos das vacas aproximavam-se e afastavam-se consoante as marés do suão, e com eles as vozes e os gritos das pessoas e os instrumentos da filarmónica na bancada da arena, soprando notas ao acaso, idênticas aos pedaços de papel que correm as ruas no inverno, para a morte do touro. Deviam ser sete ou oito horas da manhã porque o sol não iluminava ainda a parede dos ex-votos e das fotografias da minha filha em molduras de lata. Se eu chegasse à porta lá estava o guadiana em baixo, com os seus penedos e arbustos, descendo sucalcos ou encalhando na areia na direcção do mar. O homem acendeu um fósforo (a chamazinha brilhou e apagou-se), e raspou a garganta para que eu desse fé que estava ali. Dei: de tapete no colo, sentado no meu banco, mirei-o de agulha no ar numa serenidade de eucalipto.

- Onde está ela?, perguntou o homem.

Os últimos dias tinham-no enrugado como os poentes de outono, como se fosse ele o doente, como se fosse ele e não o meu avô a vítima das medicinas do doutor de Reguengos, e a dentadura postiça aumentava de tamanho na cara pregueada, à laia dos molares compridos das caveiras. Um cão vagabundo hesitou no capacho, farejou a poeira do ar, desapareceu, e o cheiro de tabaco do homem, o mesmo de sempre, veio-me como antigamente ao nariz, e imaginei-o de novo nu na minha cama, estendido de costas, a fumar, com os pés muito magros na outra ponta do colchão, idênticos aos tornozelos esqueléticos dos mártires dos painéis da igreja.

- A miúda só acorda às nove, disse eu como se não o entendesse, a cortar um fio com a tesoura e a emendar as franjas, cercada de pratos vidrados e de cintos de cabedal. (Os primeiros mosquitos começavam a zumbir.) A não ser que queira que eu lha traga agora: de tempos a tempos julgo que não lhe faz mal estar com o pai.

O homem procurou um cinzeiro sem o encontrar, e acabou por apagar cuidadosamente o cigarro no chão de terra como se todo o desordenado lixo sem valor que o rodeava (as mantas, os capotes, as figuras de madeira, os jarros) houvesse adquirido para ele uma importância misteriosa e escarninha. Foi à soleira jogar a beata na rua e eu pensei, admirada, a olhá-lo, Como é que eu fui capaz, caramba, que raio de coisa me atraía neste velho? Se os foguetes se calassem escutava-se a água do Guadiana no sifão das rochas.

- Não é da garota que se trata, disse o homem a deslocar um pedaço de tabaco do lábio. Preciso de saber onde pára a tua mãe agora.

A água do Guadiana no sifão das rochas, os pássaros perto do moinho e dos barcos do pescador afogado, o vento que alisava as oliveiras com os dedos e o silêncio da manhã por trás dele. Se os foguetes se calassem podia escutar melhor a irritação do homem, que examinava uma manta sem a ver, que continha a sua zanga a olhar as ruínas do tecto, com o sorriso de fúria, igual ao do meu avô, que ao comprido dos anos fui aprendendo, a pouco e pouco, a conhecer.

- Não estará lá em cima na festa?, espantei-me sempre a pensar Como é que eu pude? Costuma passear-se todos os anos no adro, fascinada à volta do oiro dos ourives.

Como é que eu pude e como é que a minha mãe poude, mesmo aparentando-se a um macaco, mesmo sem falar, mesmo mongolóide, como é que podemos ambas parir dele, como é que a mulher do meu tio poude, como é que a minha tia pode ainda? Uma azinheira encostava-se à fachada da casa e eu pensei Toda a vila conhece que sou filha dele e que tenho uma filha dele no meu quarto. Toda a vila conhece que me arranjaram esta barraca no outeiro para os não afligir com a acusação da minha simples presença que até ao meu avô incomodava, que até a mim me incomoda ao encontrar-me casualmente nos espelhos, tão semelhante a ambas como um rosto feito dos rostos sobrepostos de duas pessoas diferentes, o nariz, as sobrancelhas, a boca, o mudo sorriso sarcástico sem fim.

- Ninguém a viu na festa, disse o homem a brincar, como que distraído, com uma boneca de pano. Não a escondeste aqui por causa da parte dela na herança?

O atelier já cintilava de luz, uma tonalidade verde que os ramos coalhavam em grandes natas espessas, e, apesar de não haver muito calor ainda, as galinhas e os patos entravam para escapar ao sol, e acomodavam-se nos cantos num restolho de penas. A primeira vaca devia trotar na arena porque a orquestra de Mourão principiou a tocar e os gritos de entusiasmo dos bêbedos quase estrangulavam os estampidos dos foguetes. Imaginei em cima, fechados num círculo de degraus de pedra no interior do castelo, rapazes que fugiam, diante dos cornos dos bichos, agitando panos e casacos, e o dono da taberna, de ventre enorme, saído dos curros, a avançar para os animais com o lento orgulho desdenhoso do medronho.

- Ou então no castelo, a assistir à tourada, disse eu a arrumar o tapete junto aos outros, na esperança de que alguém lhe ofereça um pau de caramelo ou um torrão de Alicante. Mandaram o feitor a espreitar por lá?

Um pássaro piava na nespereira à esquerda da casa. Por mim nunca soube nomes de plantas nem de pássaros: é exactamente o género de coisas que se baralham na cabeça, palavras esquisitas, sem sentido, que se não parecem nem com raízes imóveis nem com olhos que voam. O homem, que continuava a brincar com a boneca, pendurando-a por uma perna como uma lebre morta, aumentou o sorriso amável e eu pensei Não acredito, é mentira, não tenho uma filha deste filho de um cabaz putas no quarto ao fundo da fábrica, voltado para os ramos dos chaparros que à noite me lembram os cabelos do avô na sua cama de doente, com o meu tio a cantar Tchuc tchuc tchuc sob o colchão, no meio de arrastadeiras e chinelos.

- No castelo o tanas, disse o homem aborrecido da boneca, soltando-a da extremidade do braço como um cavalo o seu cilindro de fezes. Um sorriso pintado no pano observava-me do soalho antes de uma bota o esmagar. Sei perfeitamente que a tens por aqui, o manco do grupo coral viu-a descer de Monsaraz contigo. Neste momento a tua tia anda a aguentar o notário na sala, à custa de licores, até que ela chegue e desenhe cruzes de macaco nos papéis das hipotecas.

A boneca de pano sangrava serradura do risco de carvão da boca. O pássaro da nespereira sumiu-se, substituído por uma revoada de pombos. Os mosquitos do tanque de lavar roupa zuniam a sua voracidade microscópica. Arbustos de que desconhecia o apelido e ervas sem apelido algum introduziam-se nas frinchas das janelas. O mergulhador australiano descia e regressava à tona no Guadiana, com a bola de pingue-pongue do tubo aos saltinhos na espuma, a cata das enguias do jantar. Um casal de estrangeiros, de mochila as costas, invadiu o atelier, examinando as loiças e as peles, como os navegadores antigos as estatuetas de pau-santo dos pretos. Um quadrado de papel na porta proclamava English spoken, e eu aproximei-me das mochilas na oleosidade amável dos guias: ao câmbio oficial uma terrina valia um par de costeletas na taberna, ou seja umas horas sem fome e um alguidar de enguias repelentes a apodrecerem na cozinha.

- Se procura a minha mãe, das duas uma: ou está no castelo ou está em casa a gritar, disse eu a demorar-me no chinfrim da banda, pensando Quero assistir à degola do touro logo à tarde. Para que havia eu de me preocupar com o dinheiro que o senhor já me provou que não existe?

Os estrangeiros remexiam no entulho, maravilhados, e eu, que girava em torno deles, como uma vespa a gabar-lhes o meu lixo, Look, look, senti pela primeira vez o odor de lodo do rio no interior da casa, o cheiro dos peixes limosos que comíamos sem falar nunca, na mesa de oleado encostada ao fogão, húmidos ainda das suas águas fetais. Senti o desagradável aroma de vazante, idêntico ao dos corpos dos homens à beira do sono a seguir ao amor, gordurosos de cansaço, senti o cheiro do Guadiana que atravessava o corredor e se me deitava aos pés como se deitam os bichos, e eu ausente, com o rio na ideia, a exibir uma travessa, um galheteiro, um cobertor, Look look achtung, para o casal das mochilas que me seguia a medo, como se seguem os pigmeus ao longo de uma complicada floresta de mantas. E ao dobrar o imbondeiro de uma cadeira de palhinha vi o homem levantar a bota, apoiá-la contra uma estante de objectos do Alandrual, e copos, tigelas, tachos, caçarolas, alguidares, ânforas, bilhas e animais pintalgados, inclinaram-se lentamente para um dos teares, deslizaram de viés das prateleiras e escacaram-se no chão, perante a surpresa agradada das mochilas, que julgavam de certo assistir a um ritual primitivo, executado em sua honra por um membro da tribo. A minha filha começou a choramingar de leve no quarto.

- Ou me dizes onde ela está, explicou o homem numa vozinha amável, a aplicar a sola a uma segunda estante, ou desfaço-te esta porra toda num minuto.

Sentia o cheiro do peixe e do lodo do rio e das rãs mortas, o odor do que se decompõe e putrefaz e dissolve sob a água, como o mergulhador que diminuía todos os dias de tamanho, reduzido às barbatanas, ao tubo de borracha com a bola de pingue-pongue na ponta e ao cesto de verga no qual as enguias se torciam, como lombrigas, no fundo lamacento. Cheirava aos cabritos inteiriçados que as cachoeiras empurram de queda em queda, na direcção da foz. Os estrangeiros aproximaram-se de um cone de peles no momento em que a segunda estante se dobrava numa vénia e se esmagava, por seu turno, no soalho, entornando um mostruário de tapetes pálidos como línguas doentes. Pensei em bater no homem, pensei em gritar, pensei em sair para chamar o Burt, mas como pedir ajuda a uma bolinha de plástico completamente surda, que ora aparece ora desaparece num remoinho de círculos? A minha filha chamou-me. O das mochilas seguiam interessadíssimos o curioso costume local de um tipo que quebrava teares martelando-os com um banco, a elucidar-me tranquilamente, pela milésima vez, A mongolóide não tem direito a nada, e se não me contas depressa onde a escondeste garanto-te que acabas a pedir esmola por aí. As galinhas e os patos tugiam a esvoaçar, largando penas sujas de edredão, que ascendiam sem peso no calor da manhã. A minha filha calou-se. O homem destruía as mantas com a tesoura, a mandar as mochilas embora com o braço, Allez allez, e os estrangeiros flutuavam girando a caminho da rua, a caminho cio mar. como os cadáveres das vacas nos dezembros das cheias. Nem calculas quanto detesto fazer isto mas ninguém a encontra no castelo, ninguém a encontra na vila, disse o homem, desgostoso, a cortar os cobertores à navalha, não me traz nenhum prazer arruinar a própria filha, coitada, só porque preciso da cruzinha da tua velha nos papéis do notário. O atelier assemelhava-se a um baldio de destroços em que eu tossia penas, pedaços de lã, e grumos pegajosos de pó. Nenhum prazer, palavra, em arruinar a própria filha, lamentava-se o homem, para mais quando não há nada a lucrar com a morte do engenheiro. Não passava ninguém, junto à porta aberta, a quem pedir auxílio, salvo um ou outro cachorro de pestanas baixas, e a bola de pingue-pongue prosseguia, muito ao longe, no rio, alheada de mim, numa perseverança maníaca. O homem avançou, sempre a sorrir, sobre uma maré alta de restos, Então em que ficamos, rapariga, não me vais obrigar a passar aqui a manhã toda até a tua mãe aparecer, pois não? Fechou a porta com um pontapé, abateu a única estante que sobrava (agora somos só nós dois, minha menina, em que arca guardaste a mongolóide?), e, de súbito, entendi que me tinha mentido no escritório do avô como me mentira o tempo inteiro que dormiu comigo a cochichar Amo-te ao meu ouvido para eu me mexer mais, para lhe dar mais gozo, mais prazer, mais orgasmos, para me empurrar a cabeça para as suas coxas, Engole, querida, engole, entendi que talvez nem tudo estivesse sem valor, vendido, hipotecado, e que sobrasse dinheiro no banco, ou em terras, ou em prédios, e que a mulher e ele o queriam antes que os comunistas roubassem, antes que uma multidão de ganhões em farrapos, armados de ancinhos, e facas e espingardas de caça lhes entrassem pela sala num turbilhão de imperativas e inapeláveis exigências. Dei um ou dois passos para o corredor e os quartos ainda sombrios do fundo, de onde a minha filha me chamava, e o homem Quietinha, minha linda, quietinha, vamos inspeccionar armário por armário. Agarrou-me o cotovelo (os dedos assemelhavam-se a gavinhas de pássaro, um pássaro tão sem nome como as plantas e os restantes pássaros), levou-me à cozinha em que comíamos e quebrou as vidraças e os cálices do aparador, e derrubou as cadeiras, e abriu o frigorífico e entornou a margarina, o requeijão, e o saco de plástico das enguias que se rompeu vazando cobras mal cheirosas que me trouxeram às narinas a surpresa do mar, derramou o detergente, o azeite e as garrafas de vinho, e eu como que adormecida, a assistir sem fúria nem revolta, a tentar imaginar onde guardavam eles o dinheiro, E agora, diga-me lá, como se remedeia isto tudo?, e o meu tio, muito calmo, a estilhaçar a pia de louça com um ferro, Preferes os comunistas, minha santa, queres que nos fuzilem amanhã contra a parede da igreja?, e eu a caminhar com ele, sem um protesto, enquanto o homem esvaziava baús, rasgava fotografias, espalhava papéis, eu com o mar na cabeça, longas praias desertas, aldeias de pescadores encarrapitadas nos penhascos, e a serenidade do poente a arrochear a água, Ainda não percebeste que necessitamos do arame para sairmos daqui?, perguntou o meu tio, não percebeste que nos dividem às rodelas se não passarmos a fronteira depressa?, e eu imaginei um cortejo de bandeiras vermelhas a correr para nós, sacudindo as alfaias, à medida que o meu tio se encafuava num cubículo repleto de garrafões que cirandaram para nós as nádegas obesas de palhinha, coxeando nas pernas defeituosas das asas. A minha filha, três quartos a seguir, chamava Mãe da cama, na voz aflita com que se acorda dos sonhos, a banda de Mourão interrompeu a música por momentos e recomeçou a tocar, festejando uma vaca nova a galopar no castelo, atrás de crianças, de sujeitos de boné que se abrigavam aos berros nas trincheiras e de bêbedos que gatinhavam, cegos, amachucando-se nas tábuas. Os comunistas encostavam uma pistola à orelha do meu avô e disparavam, uma velha sem boca, de olhos fechados como os padres, trágica e terrível, cruzava uma foice e um martelo no adro. O homem vasculhava o armário das fronhas, dos lençóis e das toalhas, onde o Guadiana se transformava em pano cobrindo o sobrado de turcos, derrubava uma comodazita com retratos e um porquinho-mealheiro no tampo. Não vês que querem matar as pessoas como nós, minha estúpida, argumentava ele, não se te mete nessa cabeça dura que quero salvar a tua mãe de ser violada dias a fio por uma bicha de ganhões?, e eu a imaginar camponeses de mão de xisto despedaçando-lhe o bibe de riscado, a imaginar as suas pernas peludas no colchão e um tipo de chapéu a desabotoar a braguilha e a rir-se, e pensei Não pode ser, é uma manobra porca para me extorquir o que pretende, e pensei Em todo o caso os trabalhadores não obedecem como dantes, exigem mais salários, resmungam, protestam, não cumprimentam, voltam a cara, e o meu tio ia de cubículo em cubículo como um furão, cheirando, devassando, contornando, quebrando, a perguntar Queres ver a tua mãe defunta, não é, queres ver-nos a todos defuntos por aqui?, e a enfurecer-se roxo, sem deixar de cheirar, de devassar, de contornar, de quebrar, Todos defuntos, num banho de sangue, com forquilhas espetadas na barriga, com os braços decepados, com as partes cortadas, minha parva?, e lá em baixo, indiferente ao homem, indiferente a mim, a bolinha de pingue-pongue trepava e descia a corrente numa diligência maníaca. Quando ele chegar cá acima, pensei eu, vestido de sapo, com a barba a pingar como um púbis enorme, traz sete ou oito quilos de enguias e encontra-nos, à minha filha e a mim, empaladas pelos comunistas ou acocoradas à sua espera num montão de tijolos. O meu tio reentrou na cozinha aos pontapés à criação que costumava habitar os azulejos, empoleirar-se nas torneiras e nos bicos de gás, depositar ovos e fezes nas frigideiras e nos tachos, debicar os pacotes do arroz, trotar para o quintal em cacarejes de contralto. Esta casa é um nojo pegado, disse o homem examinando as prateleiras cobertas de rede para se defenderem das moscas, sinceramente não compreendo como a tua filha não apanha uma hepatite nesta caca. As pessoas aplaudiam no castelo, a música ondulava como os ramos das árvores, Como fazes sopa nesta imundície, como escamas peixe numa bodega assim? Uma galinha apareceu a binocular-nos de um caixote. O homem introduziu a cabeça no buraco da copa, batalhando contra frascos de vinagre e conservas de sardinha. Mãe, continuava a chamar monotonamente a minha filha numa voz neutra como um vaivém de pêndulo, mãe mãe mãe mãe mãe mãe mãe. Os comunistas, de metralhadoras, a cheirar a vinho, violavam-na também a ela puxando-lhe os cabelos, arrastando-a pela nuca para as nabiças do quintal, assassinando os meus gansos, os meus perus e os meus frangos, e eu pensei, como em criança, quando o meu crânio era um céu oco só com a nuvenzinha de um desejo dentro, Gostava de assistir à tourada logo à tarde, e então vi, antecipadamente, as facas que se cravavam no lombo, e se soltavam, e se cravavam outra vez, vi imensa gente, o trote lento do bicho, o brilho das trompetes, as ameias desfeitas, Realmente só as pocilgas te servem, disse o homem a inspeccionar-me o quarto, e já não havia nenhuma bola de pingue-pongue no rio, e já o estrangeiro vinha de certo a caminho, a embaraçar as barbatanas no tojo, perdendo enguias que tombavam do cesto e reptavam desordenadamente, como intestinos, em qualquer direcção, afogadas nas ervas como bichos da terra, já o estrangeiro empurrava a porta com o cabo do arpão e olhava do capacho o atelier em pedaços. O meu tio afastou as cortinas e viu-se confrontado com a perfeita miniatura do seu rosto, a qual, sentada na cama, com uma expressão idêntica à sua, repetia sem paixão Mãe mãe mãe mãe mãe mãe mãe, como se uma mola se houvesse avariado no mecanismo da laringe obrigando-a constantemente às mesmas sílabas, e eu a pensar, esquecida deles, completamente sozinha, com a plateia do castelo na ideia, Apetece-me assistir à tourada logo à tarde, no meio dos odores, das gargalhadas, dos aplausos, das transpirações, dos incitamentos e dos hálitos do público, o homem caminhou direito a mim e agarrou-me pelos cotovelos, a tremer de ódio e de medo. Julgas que quero acabar às mãos dos comunistas como tu?, disse ele, quero é a mongolóide a assinar de cruz para o notário, conseguir algum dinheiro e safar-me. A filarmónica de Mourão iniciou o pasodoble da vaca seguinte, Diz-me só onde escondeste a palerma da doente e não te faço mal, propôs ele, até te mando uns dólares do Brasil, e pões isto de pé outra vez, recomeças a parvoíce das mantas se quiseres, os dedos mastigavam-me os ossos, uma coisa qualquer estalou-me na omoplata como um grãozinho de ar ou uma haste de madeira que se quebra. Não sejas cretina, os comunistas estão aí, não lhes sentes o cheiro?, se tens vontade que te matem é contigo, que me importa a mim, o melhor é trazeres a anormal e vires connosco, Mãe, disse a minha filha no tom de marioneta de sempre e eram duas as caras iguais que me fitavam, Já sugeri que procurasse na festa, disse eu, no castelo, nos ourives, nos torrões de Alicante, nas farturas, e eles, o pai e a filha, a mirarem-me em silêncio, desconfiados, incrédulos, imóveis de fúria, como que a meio de um gesto ou prestes a ele, a capoeira recuava sob a sombra das árvores, e ao lado da capoeira a casa da lenha, e ao lado da casa da lenha a construção de cimento onde se guardavam teares antigos, tesouras de podar nos seus pregos, pincéis e latas de cal, a foice de barbear o mato ao derredor da cabana. O pasodoble suspendeu-se, os tabefes dos fogueies e os dedos do homem nos meus cotovelos prosseguiam o seu vagaroso apavorado, inexorável massacre, destroçando cartilagens e tendões, um galo bicou a franga preta e aborreceu-se dela, Se o notário já seguiu para Reguengos e eu não dei com a tua mãe, disse o meu tio, garanto-te que o melhor para ti é nem sonhares o que te faço, e eu não sabia se era o homem se a minha filha quem falava, ambos severos, ameaçadores, agudos. Alguém (a bola de pingue-pongue? os violadores?, os assassinos?) bateu à porta do atelier no outro extremo da casa e o meu tio Amanhã o mais tardar cruzamos a fronteira de Espanha, se nos acompanhas ou não é lá contigo, mas se o notário não conversa com a tua mãe e se descose nem dinheiro para o almoço temos, e a minha filha parecia aprovar o que ele dizia ou dizê-lo ela própria numa monocórdica, desagradável voz de sininho de cabra, e nisto o homem olhou casualmente para a janela, para mim, para a janela outra vez, para mim de novo com as pupilas a mudarem de cor, pesadas de suspeitas, No castelo, não é?, disse ele devagar, no meio da festa, dos bêbedos, dos foguetes, não é?, continuavam a bater à porta, escutavam-se gritos, a bola de pingue-pongue emergiu do peitoril num nascer do sol de celulóide, e debaixo da bola uma cabeça de borracha e o oval enevoado dos óculos a perguntar Brele?, quando o meu tio galgou a janela, passou por ele como se o estrangeiro não existisse, nunca tivesse existido, não fosse senão a insólita e barbuda cristalização de uma personagem inventada, sem crédito ou valor, empurrou a cancela da casa da lenha a pisar pinhas e toros, sentei-me na borda da cama, a minha filha calou-se, e segundos depois o homem apareceu de novo, sacudindo-se de palhas e de teias de aranha, a puxar uma velha pequena, de cabelo grisalho e língua de fora, apertada num bibe de riscado, a qual gemia baixinho, como um leitão, encosta acima na direcção da vila, perante o espanto do australiano abraçado ao seu saco de enguias, que trazia o cheiro do mar, em bafordas sucessivas para o silêncio parado do quarto.

 

Não têm dinheiro. Não têm dinheiro. Já não têm dinheiro e até as roupas deles cheiram a roupa barata, comprada nas feiras, comprada nos saldos de Reguengos ou de Évora, apesar dos criados, apesar das pratas, apesar dos quadros, apesar da vivenda maior de Monsaraz e fábricas e terras, tudo hipotecado, anos a fio, pelo velho estendido lá em cima. Esse sim que foi rico, ou corre que foi rico, na época em que nenhum de nós era nascido, e manteve até adoecer uma aparência de abastança à custa de mil e uma cambalhotas legais e ilegais, prorrogando prazos, adiando letras, negociando compromissos com os credores, ao mesmo tempo que gastava em Lisboa o que não tinha, vendendo duas vezes o mesmo monte e três o mesmo prédio a habitar, e inventando, se necessário, outras terras e outros prédios, numa ginástica confusa, e eficaz que acabava por jogar pessoas contra pessoas, bancos contra bancos, porque todos se consideravam com direito a nada num país onde nada é o que geralmente se possui e coisa nenhuma o que os defuntos nos deixam ao deixa-nos, além de dívidas e uma saudade zangada em relação ao lugar vago na mesa e ao riso do retraio, o qual vai perdendo substância com a agonia da memória. De forma que estes, os que me mandaram chamar, não têm dinheiro. Não têm dinheiro. Já não têm dinheiro embora prolonguem, com menos perícia, as cambalhotas de circo do doente, e me obriguem a viajar dezasseis quilómetros, e me demorem com chás, e amabilidades, e bolinhos, que me empenam a placa, enquanto procuram uma mongolóide qualquer para esborrachar o polegar numa folha de papel selado, a fim de que eu lhes dê em troca meia dúzia de notas que os ajudarão, quanto muito, a comer três ou quatro dias até pastarem as couves do cemitério ou empenharem o recheio empenhado da casa para comer de novo. Foram-me buscar ao dominó do meu compadre, desdobrando-se num arménio de desculpas, sem nunca me lembrarem e sem que eu me lembrasse que eram as festas da vila. e o resultado foi arrastarmo-nos pela encosta, a de? à hora, atrás de não sei quantas camionetas de carreira e de uma fila interminável de automóveis, sem mencionar os homens e as mulheres que subiam e desciam a pé, suados e solenes, vestidos de domingo de missa sem missa, e à entrada das muralhas perdemo-nos num labirinto de música, de foguetes, de barracas de farturas, de mostruários de ourives, de sorrisos diagonais de ciganos, até esbarrar na fachada da casa, logo a seguir a um preto descalço que pisava cacos de vidro e engolia e arrotava fogo, um edifício quase tão imponente como uma igreja, com cinco varandas no primeiro andar, uma doença de pele nos caixilhos e uma criatura de luto, quando não havia ainda matéria para luto algum, a espreitar-nos da porta, a dizer para dentro palavras segredadas, a afastar-se delicadamente para me dar passagem. Faça o obséquio, senhor doutor, a sala é à esquerda, uma criatura parecida com o velho mas sem a sua boquilha de dandi e a sua força sardónica, e eu pensei Ora aqui temos por fim a esposa do procurador, a que ele engana todos os dias com todas as fêmeas que pode, mesmo com a sobrinha meia doida que mora no outeiro, vende colchas, e se murmura que pariu do tio a criança asmática que brinca na loja com as sobras da lã. Sentei-me num cadeirão de veludo, envergonhado das minhas botas de carneira e das minhas calças de trabalhar a terra, porque aos domingos sacho os legumes do quintal, e a criatura e o marido colocaram-me uma chávena nas mãos encheram-me a boca de biscoitos, e eu mastigava a olhar para eles com a expressão enfadada e deprimida dos animais nos estábulos, incomodado pelos foguetes, incomodado pela música, incomodado pela sua inquietação angustiada, verificando que faltavam quadros nas paredes em consequência de rectângulos mais claros na pintura, a certificar-me que sempre haviam principiado a impingir óleos e pratas nos antiquários de Évora para pagarem ao médico e ao talho, ambos por igual dispendiosos, sangrentos e inúteis, com tantas infusões de ervas para curar as pedras do rim que afinal mijamos e tanta lebre de apanhar à mão no campo para servir de almoço, que as despesas com carniceiros com ou sem diploma se tornam tão incompreensíveis como as fases da lua e o fluxo das marés.

- Desculpe termo-lo arrancado ao seu jogo, perdoou-se a criatura, remexendo-se no sofá como um hamster, a oferecer-me mais bolachas e pãezinhos, apostava em me entupir de vez todos os algerozes do corpo. Mas suponho que o meu marido lhe explicou a nossa pressa, temos uma viagem de negócios a Espanha logo à noite.

Do tecto chegava um zumbido que não entendi bem, afogado pelo estrondo dos morteiros, como se qualquer coisa eléctrica riscasse sem cessar as tábuas do soalho, e eu olhei-os de novo, ao par adiante de mim, que envelhecia de uma maneira tempestuosa e ácida, dormindo na mesma cama, mas com certeza sem se tocarem nunca e pensei Não têm dinheiro. Já não têm dinheiro. Aposto que salvo umas migalhitas de ocasião de um credor condescendente não voltarão a ter dinheiro nunca mais.

- Eu, pelo caminho, expliquei ao senhor doutor o que se passava, acalmou-a o marido. Que temos de resolver o problema da herança, que temos de resolver com a máxima urgência, antes que ele morra, a falta de testamento do homem. Simplesmente é necessário que todos assinem e a tua irmã mongolóide evaporou-se na festa. Mandei o feitor e dois criados à procura dela e até agora nada.

O zumbido aumentava, desenhava uma elipse de som, ia-se embora. Uivos de lobisomens cirandavam nas ruas assustando os gansos. A goela da criatura abria-se-lhe no ventre, povoada de barbas agudas como os tubarões:

- O meu irmão é fácil, disse ela, vai-se buscar lá acima, ordena-se Escreve aí o nome, e pronto. Custoso é encontrar a pateta a esta hora. Mas se o senhor doutor tiver a bondade de esperar um bocadinho a gente traz-lha num rufo.

O marido subiu as escadas, o zumbido calou-se, e momentos depois apareceu na saleta um homem mascarado de chefe de estação, com cruzes de guerra e medalhas de folha pregadas no casaco, uma corneta ao pescoço, e duas bandeiras, a primeira verde e a segunda encarnada, encaixadas no sovaco, que nos fitou, a nós e à bagagem do tabuleiro de chá, na reprovação com que se recebem os passageiros retardatários numa gare de província, perdida entre pinheiros, com uma balança de um lado e um urinol do outro. Soprou a corneta e aconselhou-nos a transportar os biscoitos e as chávenas para o interior das carruagens, apontando um relógio imaginário suspenso do estuque, atrás do lustre: Três minutos de atraso sobre o horário previsto, a que horas julgam os senhores que vão chegar a Lisboa? A sua convicção era tão forte, a certeza no que dizia tão irrevogável que por momentos me julguei num vagão verdadeiro, com uma locomotiva à frente, para as bandas da cozinha, a apitar e a mugir árvores fora, a atravessar povoados sem tabuleta de nome, a saudar crianças e mulheres que me saudavam de carroças, encalhadas nas grades vermelhas e brancas das passagens de nível. As máquinas estremeciam os móveis, uma pilha de jornais vibrava, as ruínas do castelo evaporavam-se no calor de papel de seda da distância. Cruzámos um apeadeiro com letras floreadas num quadrado de azulejos, Tem os papéis, senhor doutor?, perguntou a criatura, e eu, sem poder falar, de boca cheia de açúcar e farinha, abri a pasta e estendi-lhos esfarelando com a língua a rolha enorme de um biscoito. A criatura passeou-se nas páginas, para um lado e para o outro, em busca do lugar da assinatura. Aí onde está a data, farfalhei eu a cuspir migalhas e torrões pela dentadura postiça. Há-de haver um espaço em qualquer sítio, ajudou-a o marido a puxar o caderno. Estou farta de correr as páginas todas e espaço é coisa que não encontro nesta gaita, disse ela, aposto que o tipo fez isto de qualquer maneira e esqueceu-se. Bebi um gole de chá para engolir um pedaço de bolacha, mas a mesma massa doce e elástica permanecia-me agarrada ao céu da boca como um molusco teimoso, Esqueceu nada, deixa ver, disse o marido, a primeira coisa que os notários fazem com as folhas de papel selado é desenharem logo um rabisco no sítio onde a gente tem de confessar como se chama. O chefe de estação atravessava as cómodas com as pupilas, observando para além das gavetas a chegada de um rápido. Larga-me isso, guinchou a criatura, tira as mãozinhas de cima que o fulano estragou-me o processo a mim, e eu pensei, engasgado. Livro-me deste biscoito do catano e volto para Reguengos a correr, pensei Maldita a hora em que me enfiei no automóvel a cair de podre deste gajo. É ali, disse o marido, não vires mais nenhuma folha que o perdes, e eu quieto, a tentar desembaraçar-me da farinha, a procurar não sufocar com o bolo, a comungar pedaços enjoativos e duros, a temer que aquele casal de mendigos, disfarçados de ricos, a ocultar a miséria com a gravata e as jóias de vidro, me rasgasse uma semana inteira de trabalho, até que a criatura se apoderou da manga agaloada do chefe de estação, que comandava na parede as manobras de furgões invisíveis e que a olhou de muito longe como quem regressa de um pesadelo ou de um voo, e ela, a fixar a unha no papel, Assina o teu nome nesta linha, Gonçalo, e para o marido e para mim, Algum de vocês tem por acaso uma caneta que me empreste?

- Isso é o relatório do movimento do dia?, perguntou o ferroviário, desconfiado. É que se não for um documento oficial não escrevo nada.

- Claro que é o relatório, amigo, tranquilizou-o o cunhado a roubar-me a esferográfica do casaco. Julgas que há tempo para brincar, em serviço?

Os morteiros e a vozearia da festa abanavam os vidros, e apesar de tantos feitores, de tantas costureiras, e de tantas criadas, mesmo as flores das jarras pareciam poeirentas e tostadas de tabaco como as cortinas por lavar, e as portas dos armários, curvas de velhas, deixavam ver reflexos de louças e essa espécie de escuridão sem limites comum às grutas e às escrivaninhas. Uma cadela perdigueira urinava livremente contra uma coluna de talha, e o líquido, que alastrava, no sobrado, possuía a tonalidade doirada dos ornatos, imitando cachos de uvas e folhas de plátano. Pensei, pelas fissuras da caliça, Qualquer dia a merda desta casa cai e esmaga-os todos aqui dentro, qualquer dia achata-se sobre os alicerces e restará apenas um montinho de pó a feder a amoníaco, com um ou outro latido moribundo a flutuar à volta.

- E a estação central que quero construir aos pés da cama do pai?, disse o ferroviário a devolver os papéis. Tenho aqui os planos e um orçamento aproximado a enviar aos escritórios de Lisboa.

Não são só as fissuras, pensei eu, a podridão do mobiliário e das vigas do tecto, os quadros que se agitam quando andamos, este silêncio de ferrugem por detrás das palavras: são as fendas nos rostos das pessoas, o caruncho dos músculos da gente e nas raízes ossificadas da figueira, e eu a ver isto comendo biscoitos sucessivos, a apanhar as migalhas das calças com cuspo no indicador molhado, enquanto a criatura empurra os pratos das bolachas para mim, me enche a chávena, me serve de açúcar, me aconselha Beba, não só as fissuras e a podridão da mobília mas a quietude cadaverosa da saleta, a amarelidão do ar, os sons do exterior que furam a cartolina do cimento e dos tijolos, uma empregada trouxe outro bule da cozinha, a cadela amontoou-se, sobre o próprio mijo, no tapete, a mulher inclinou-se para mim a sorrir o esquinado, apavorante riso sarcástico do pai, Beba, beba. A merda da casa cai e esmagados a todos aqui dentro, Juro-te que é a estação central, disse o marido, toma a caneta, de que é que estás à espera? Não vejo nada de estações, respondeu o cunhado, só fala de terras e de prédios. Coma, beba, coma, convidava a criatura a aproximar-se da minha cadeira com um prato em cada palma. Realmente não percebes nada do funcionamento do Estado, repreendeu-o o homem, querias que se falasse à papo-seco destes assuntos antes de o Presidente da República os anunciar?, não se vê logo que isto é uma espécie de cifra? O ferroviário tornou a ler os papéis, movendo a boca como as beatas, agarrou na caneta a hesitar na linha, Esta, disse o cunhado, põe o nomezinho aí todo e para a semana recebes um cartão do primeiro-ministro a agradecer e uma proposta de medalha. A criatura sacudia-me os cristais de açúcar da camisa numa solicitude maternal, Olhe que se suja todo, senhor doutor, repreendeu ela, mas que maneira violenta de comer, até parece que traz uma fome de oito dias consigo, e mais pastéis, e sanduíches, e frutas cristalizadas, e amêndoas, e a saliva a escorrer-me do beiço, a manchar-me a camisa, a inundar-me, o chefe da estação deitou a língua de fora para escrever melhor e foi-se embora a fazer Tchuc tchuc tchuc pela escada acima até se dissolver depois do último degrau, no ruidozinho eléctrico das locomotivas que percorriam o forro do tecto como ratazanas exaustas. O palerma já cá canta, anunciou o cunhado a exibir a assinatura como um toureiro mostra o chapéu ao público, falta-nos a mongolóide da tua irmã e pronto. Não é a casa que me vai soterrar, pensei eu sem forças para mover o corpo, são as bolachas que me oferecem, que me metem na boca, que me obrigam a engolir. Traga o refresco de groselha para o senhor doutor, disse a criatura, e veio um jarro com uma colher de pau lá dentro: Para ajudar a digestão, esclareceu ela, quero isso tudo pelas amígdalas abaixo num minuto. Onde pára a tua irmã, perguntou o homem a brandir as folhas, alguém de vocês a deixou sair da despensa esta tarde?, e a empregada fitava-o amedrontada, e os foguetes rebentavam e silvavam, e as vacas mugiam por detrás das muralhas. Alguém a deixou sair da despensa esta tarde?, repetiu o homem aos gritos, Quem é que lhe abria a porta depois das tuas ordens?, disse a criatura a verter a groselha e os cubos de gelo cor-de-rosa numa taça comprida, ainda por cima com a filha à solta, pelo meio da festa, para nos roubar o que é nosso? Mas o homem levantou-se, de pupilas acesas, trotou quase a correr na direcção da cozinha, e após um reboliço de ordens e palavrões e desculpas e insultos, regressou, furibundo, a bater com o processo contra a perna. Aguenta-me esse aí com a groselha, ordenou ele, como se o refresco fosse uma espécie de prisão de muros altos, aguenta-me esse que a tua querida cunhada a deixou ir passear com o filho pelas ruas da vila, e tenho cá a minha ideia onde ela anda. A criatura imobilizou-se, de taça no ar, a escutá-lo, Essa cabra pelada, essa cagadela de feitor de merda, que o meu pai obrigou a casar com o meu irmão para nos troçar a todos, disse ele baixinho como se rezasse, num tão sereno asco que me surpreendeu. O marido atirou os papéis para cima dos pratos de biscoitos, Descansa que dentro de meia hora a tenho aqui, segura-me tu o notário, empazina-o de comida, aponta-lhe a espingarda, amarra-o com cordas, esmaga-lhe os testículos, desde que não consintas que te escape, e eu a bochechar a groselha e a pensar Vim enganado de Reguengos para acabar aqui, e eu a pensar no meu domingo na horta, nos meus legumes, no trabalho por fazer na secretária, nos decretos-leis, nos códigos, nos testamentos, nas escrituras, a pensar Vim acabar aqui, a rebentar de comida, como os leitões, o homem saiu para o vestíbulo a espumar, a cadela perdigueira mirou-o com moleza do seu sono, tentou erguer-se nas patas da frente e abateu-se de novo no tapete, se calhar cheia de bolachas e chá e bolos e groselha, enquanto a casa agonizava ao mesmo tempo que o velho agonizava como se não pudessem ou não fizesse sentido sobreviverem um ao outro, como se o mesmo moribundo e idoso e poeirento sangue os animasse. Continue a beber que eu venho já, disse-me a criatura a subir as escadas, não admito nem um pinguinho de refresco nesse jarro, e ao regressar transportava consigo uma dessas pistolas antigas, de pederneira, com que me ameaçava a cabeça a esticar os braços para mim. Coma depressa, coma até vomitar as tripas por baixo e por cima se quiser mas coma, apanhei uma sanduíche com a ponta dos dedos e a pistola seguia-me, às sacudidelas, os gestos, como se um fantoche a empunhasse, um fantoche vestido de mulher instalado no sofá à minha frente, e eu, para mim, Aposto que a vivenda desaba antes disto acabar, imaginando traves despenhando-se, placas de estuque, grãos de pó, ganidos de móveis esmagados, criadas, presas pelas asas do avental, a piarem em todas as direcções como galinhas, uma locomotiva que escapava, Tchuc tchuc tchuc, pelo quintal fora, demasiadas horas nos relógios das casas, e não sei quanto tempo depois o homem entrou gloriosamente na sala a arrastar um ser sem idade pelo bibe de listras, Fui dar com esta prenda num reservatório de lenha no Outeiro, a espertalhona das mantas nem sequer esconder as coisas sabe, a criatura baixou por um momento a pistola de pederneira e perguntei timidamente, entre dois goles de xarope de ananás, Posso urinar?

- Castigaste a das mantas, ao menos?, disse a mulher a enfiar-me uma tigela de pinhão nas goelas. Não há par de estalos que não ajude a educar um imbecil.

- Ficou com a porra da loja em fanicos, sossegou-a o marido a enxotar a mongolóide para longe da porta. Esta, desde que andou a laurear no largo, deu-lhe a mania das viagens, imagine-se,

- Faça nas calças como toda a gente, aconselhou-me a criatura, abanando-se com a arma como um leque, apontando-me o exemplo da cadela, sobressaltada por visões de perdizes. E acabe esse refresco que já não consigo nem vê-lo.

O homem extraiu um frasco de tinta-da-china de uma gaveta sem idade, riscada a canivete como as testas dos velhos, entornou o líquido negro, sem reflexos, opaco como o alcatrão de Setembro, num dos cálices de vinho do Porto do aparador, mergulhou o polegar da doente na tinta e aplicou-o por debaixo da assinatura de chefe de estação, de quem ouvia falar, há muitos anos. devido à sua estranha mania dos comboios, esbracejando bandeiras, mesmo em Évora, às tachadas das casas, que lhes retorquiam com caretas indignadas ou impassíveis de pedra. Ouvia falar desde há anos porque todos o conheciam nesta região do Alentejo, mesmo os cães, mesmo as galinhas e os outros animais que se passeiam, à hora do calor, nas ruas mortas das vilas, e assistiam ao apitar da corneta das partidas que obrigava os edifícios a rosnarem calços e bielas e ferros e a descerem, fungando, encosta abaixo, evitando as oliveiras, pilotados por inválidos estupefactos e crianças de narizes silenciosos que espreitavam das janelas das suas carruagens caiadas, até desembarcarem em Lisboa perto de um rio enorme no qual navegavam caravelas e guindastes, no meio de descobridores de gibão, de barbas iluminadas por tormentas, especiarias e coqueiros, morrendo de escorbuto nos bancos da Avenida, submersos pelas melenas e pelos caracóis loiros dos travestis. De tempos a tempos, à noite, uma furgoneta da polícia recolhia travestis e vice-reis a caminho dos calabouços do Governo Civil, onde os funcionários, atrás das secretárias de alumínio, recebiam, surpreendidos, ameaças de enforcamento ou de degredo, gritadas por almirantes, cujo hálito fedia a vinho tinto, num português medieval que encantava os homens-mulheres. dobrados como flores nas jarras dos bancos de madeira. catando-se pestanas postiças e sinais de lápis. E a manhã surgia como as auroras trágico-marítimas, afogando no pão de segunda e no café com leite as olheiras dos navegadores sobreviventes, estendidos no convés do soalho, de umbigo para cima, a ressonarem, como as focas envenenadas, a sua ração de ginjinha.

- Solta o notário, disse o marido a mostrar-me vitoriosamente os papéis, nos gestos espalhafatosos com que os ciganos desenrolam as suas sedas de cotim. Já somos os únicos donos do que o velho tem ou não?

Quis responder mas a groselha, e a placa dos dentes deslocada pelos bolos, e a cadela perdigueira que me rosnava aos tornozelos impediam-me a voz. A mongolóide coxeou de cantoneira em cantoneira e acabou por achatar os joelhos contra o peito junto às escadas para o primeiro andar. As órbitas aparentavam-se às esverdeadas bolhas de limos que o Guadiana carrega aos ombros a caminho da foz, numa turbulência de pedras, de areia, de cascatas.

- Os únicos donos de quê?, perguntou a criatura a extrair os óculos do avental e a estudar com desconfiança os meus cadernos. Pelo que está aqui os únicos donos de dívidas, palerma.

O zumbido do tecto aproximou-se e afastou-se de novo, no vaivém das conversas nos cafés. Um funcionário do Governo Civil dizia O quê?, o quê?, a um marinheiro de calções e espada, abraçado, na tempestade, ao mastro de um gargalo. A cadela, que se me afigurava prenha, de mamas peludas a roçarem as tábuas, lambia-me os atacadores dos sapatos. O marido espreitava as páginas dactilografadas, incrédulo, abanando a cabeça surpreendido rente ao pescoço da mulher.

- Dívidas. Dívidas. Dívidas. Dívidas e nós os dois responsáveis por elas, disse a criatura a mostrar parágrafos após parágrafos com a unha indignada do mínimo. Conseguiste tornar-nos a ambos milionários de hipotecas.

- Há-de haver aí qualquer coisa, caramba, assobiava o homem como se rezasse. Depois deste trabalhão todo com a anormal tem de haver aí qualquer coisa que nos safe.

- E há, respondeu a criatura a jogar com desprezo os papéis para cima da mesa. Os olhos da anormal, tranquilamente doces, pareciam mais ocos do que nunca. Letras, contas por pagar, cartas de clínicas a reclamarem dinheiro, cautelas de penhor, a hipoteca da casa. Mostra essa gaita aos comunistas, sempre pode acontecer que a nossa pobreza os comova. As vacas mugiam no castelo, nos intervalos dos foguetes e da música.

- Se já têm o que querem levem-me de volta a Reguengos, pedi eu a custo, de língua embaraçada numa lama de açúcar.

- Não acredito nisso, não posso acreditar nisso, disse o marido a percorrer os dossiers, afastando copos e pratos com as costas da mão, tombando um frasco de xarope de groselha que pingava o seu sangue grosso no sobrado. Tu conheces o velho, raios parta se não escondeu uma surpresa em qualquer sítio.

A cadela esqueceu-se de mim para sugar o xarope à espera de cada nova gota, de focinho no ar, numa ansiedade vibrátil de arame. O homem cavalgava furiosamente as páginas, como num picadeiro, soprando a cada volta a espuma aflita do nariz.

- Tudo gasto nos casinos, tudo gasto nas casas de passe, tudo gasto nos hospitais e nos médicos com os dois filhos imbecis, disse a criatura a encolher os ombros. Nem que chegue para o enterro deve haver. Por mim que apodreça lá em cima, no esconço: daqui a dois ou três dias há-de empestar a vila toda com as feridas das costas e das pernas, e as moscas e as lagartas da barriga. Como a minha avó empestou Monsaraz quando a vez dela chegou, de tal forma que o delegado mandou chumbar o caixão ia o velório a meio.

- Posso voltar a Reguengos?, insisti eu a pensar nos legumes do quintal. Suponho que não necessitam de mim para o que quer que seja.

A mongolóide, de cara tapada pelo cabelo grisalho, amontoava-se no seu canto como as rolas doentes. As mãos e a cara confundiam-se com as listas cinzentas da bata. Um foguete rebentou contra a varanda, assassinando os caniços, e logo um tropel de tachos e panelas rebolou na cozinha.

- Chega um fósforo a essa bodega desde que não me incendeies a toalha de linho, disse a criatura ao marido, sem me ouvir. Só me faltava receber um sarilho em testamento.

A chama ergueu-se da mesa e assustou a cadela, que recuou a ladrar, de pernas abertas, deixando uma bosta no tapete. Pelas vidraças da varanda, entre os vasos quebrados, nos campos até ao Guadiana, naus de pimenta e de canela aportavam de índias invisíveis. Os chaparros ondulavam quando me levantei, marujos empoleirados nas oliveiras dobravam e redobravam as velas, a gaivota de um milhafre passou sobre o telhado, e a mongolóide, que escalava o degrau, imobilizou-se para olhar as labaredas ou a multidão que corria para o cais do moinho abandonado, alisando as madeixas da testa com as falanges escuras de toupeira.

 

Às vezes, à noite, na sala, a minha mãe tocava harpa. Lembro-me dos dedos que pareciam dizer adeus às cordas e apetecia-me estar nua, encostada ao seu peito, de olhos fechados, a sentir aquelas mãos no meu dorso, com o som leve, frágil e triste da minha pele e dos meus ossos a evaporar-se de candeeiro em candeeiro e a morrer, por fim, na sombra das cortinas, como as borboletas nas pregas de damasco e nos ramo negros, muito quietos, da figueira. O meu pai lia o jornal ou tirava o relógio do colete para olhar as horas, um relógio redondo, de prata, com uma tampa que se fechava sobre os ponteiros, ocultando o tempo, do mesmo modo que as pálpebras das ostras se cerram sobre a secreta intimidade do seu mistério. Quando me levavam para cima, me despiam, me deitavam na cama, sopravam a luz, desciam as escadas e o silêncio começava a pouco e pouco a alargar-se em torno, à maneira de um informe corpo líquido que respira, o girassol da minha cabeça na almofada estendia o caule do pescoço num estalido vegetal, na direcção da sala, na esperança da aurora improvável de um acorde. Lograva distinguir as páginas do jornal, a bronquite dos cães. a porta de rede da cozinha, solta, a abanar nos gonzos, as asas das corujas sobre a vila e o jovem rumor ansioso do meu sangue, até principiar a deslizar, em voltas de folha, no fundo poço dos lençóis, as águas se cerrarem lá no alto sobre as minhas órbitas brancas de afogada, e a manhã, que pianolava no peitoril da janela os enérgicos sons desarmónicos do dia, me trazer de novo à superfície numa praia de móveis areados e de prateleiras de bonecas atónitas, as quais me fitavam, cercadas de saias, de rendas, de laços e de folhos, numa inocência perversa.

Aos domingos o meu tio vinha de Vendas Novas visitar-nos, Na véspera a minha mãe trancava-se a tarde inteira, na casa de banho, com a criada, enquanto o feitor transportava para o patamar sucessivas celhas de água quente, e dentro, no meio do nevoeiro do vapor, durante os segundos em que a porta se abria a fim de receber o balde cheio e devolver o vazio, uma perna, um cotovelo ou uma nuca emergiam, róseos, quase transparentes, da tina, oferecendo-se à esponja da empregada no vagar aborrecido das anémonas. Dois seios de vidro, em que as nódoas mais escuras dos mamilos se assemelhavam a uvas, sumiam-se na casula da toalha, mas o umbigo e o púbis permaneciam, descobertos, indefesos., suaves e tenros, e uma pequenina boca vertical, de lábios estreitos, surgia dos cabelos encaracolados do ventre, à medida que a criada lhe perfumava os ombros e os flancos e lhe enxugava os pés, dedo a dedo, com precauções de joalheiro. Os cães de caça do meu pai ladravam no quintal, galopando ao longo do muro os focinhos malhados, o estalido da tampa de prata do relógio navegava pelos degraus ao meu encontro uma coroa de perdizes mortas interpunha-se, a tossir, de boquilha nos queixos, entre nós, e logo depois estávamos sentados à mesa. eu. a minha irmã que não falava nunca, e o meu irmão a empurrar uma locomotiva já sem rodas entre facas e garfos, imitando com a língua o ruído do motor. O meu pai despia-me das perdizes na copa. chegava à sala, rebolando as pupilas, logo atrás das nádegas da cozinheira que chinelava, a fugir dele, com a travessa de arroz de lebre do jantar, e nesse instante uma escala de harpa dissolvia o barulho dos talheres e percebia-se, para além de uma constelação de lâmpadas que o crepúsculo de março amaciava, uma silhueta inclinada para cordas invisíveis, indiferentes às cadelas em caracol nos tapetes, aos gemidos da minha irmã e à obscena santola ávida da palma do meu pai, beliscando os joelhos das criadas, palpando-lhes os rins, desaparecendo-lhes por debaixo das saias numa revolução de risos e gritinhos, Olhe que me cai a travessa, senhor engenheiro, olhe que os meninos o vêem, senhor engenheiro, olhe que a patroa me despede, senhor engenheiro, e ele, surdo, a tocá-las, a puxá-las, a apertá-las, agarrando com a mão livre um pedaço de carne de que lhe pingava no colete o molho do sangue, ou vendo e revendo constantemente as horas no relógio de bolso, como se aguardasse uma visita que não vinha.

Em contrapartida encontrávamos sempre o meu tio no regresso da missa, instalado, de charuto aceso, nas almofadas do sofá, a sorrir-nos, por cirna dos botões da farda e das insígnias do colarinho, uma ternura militar sobre a qual descia de súbito, como no termo das comédias de teatro, o pano de boca de cena do bigode. A minha mãe, desajeitada e feliz, derrubava cinzeiros, entornava garrafas, tropeçava em colunas com vasos, as cachorras giravam, desconfianças, farejando o intruso que introduzia semanalmente uma desordem suplementar na desordem da casa, que perturbava a minha mãe, que exaltava as empregadas amontoadas nas portas para o verem, que corria a mão no cabelo da minha irmã que não falava nunca, obrigando-a a fugir como um bicho assustado, que oferecia ao meu irmão brinquedos com rodas que ele se apressava a martelar contra as paredes até os converter nos objectos amolgados, de lata, com os quais se entretinha a um canto numa seriedade feroz, que me oferecia doces que eu não comia nunca, abandonando-os às formigas e às baratas, falando sem cessar, conversando sem cessar, narrando sem cessar episódios da tropa e divertindo-se sozinho com as próprias histórias, efusivo e alegre. O meu pai, calado, escondia-se no jornal na cadeira do costume, a introduzir os dedos no bolso do colete, preocupado com o tempo, preocupado com tanto pássaro e tanto coelho à solta pelos campos, desde a margem do Guadiana até Reguengos e aqui, bancando de parvo, a ouvir anedotas de quartel, a assistir ao desagrado dos meus filhos, à inquietação da minha mulher e ao frenesim das criadas, como se este cretino usufruísse de mais poder do que eu na minha própria casa, como se este cretino me viesse roubar o que por direito me pertence, impedindo-me de bater as rolas nos matos do Redondo, de caminhar, de arma no ombro, com o feitor ao meu lado, a sentir o odor da terra e das ervas e a esquecer-me de que a minha mulher não era virgem quando conheci a intimidade da sua nudez e o túnel do seu corpo, estendida debaixo de mim, de olhos abertos, sem um único suspiro de prazer, desejando somente que eu a afagasse o menos possível, que a beijasse o menos possível, que a amasse o menos possível, que acabasse depressa, que me levantasse depressa do colchão para me lavar e urinar, que adormecesse depressa, fitando-me com nojo, e horror, e resignação, e piedade, de modo que me sobravam as companheiras dos ganhões e as criadas da casa para saciar a minha ânsia de ternura, derrubando-as na nossa cama de casal, sem me dar sequer ao trabalho de a abrir, a fim de me vingar de ti. a fim de abandonar na colcha as duas ou. três gotas do meu desejo frustrado, tão amargo e solitário e insatisfeito como antes de te conhecer, como me conheci sempre desde que me conheço, movendo a tampa do relógio na esperança de que os meus filhos cresçam e me deixem, que a minha mulher se resolva a habitar com o meu irmão numa caserna de regimento e me deixe, que os cães perdigueiros morram e me deixem, que as criadas se despeçam, que o feitor se despeça, que todos os que dependem do meu bolso se evaporem, e não apenas as pessoas mas também a vivenda, o adro, a vila, e eu agarre nas cartucheiras e na espingarda, saia do quintal que não existe pelo portão que não há, e siga para sul, Guadiana abaixo, na direcção das codornizes e do mar que há séculos não vejo. me sente num penedo a olhar os mochos transformados em gaivotas pela raiva ritmada das enchentes, decidindo-me, para que tudo se torne certo e conforme, a premir o gatilho e a assassinar os barcos ancorados, estendidos na areia como cachalotes de pau. Ao termo do dia o meu tio acenava-nos de longe, corria o polegar condescendente pela garupa dos cachorros, beijava a minha mãe na testa, apertava a mão do meu pai, contava, já de pé, uma anedota derradeira, escutávamos as suas gargalhadas e os seus passos marciais no vestíbulo, o protesto dos gonzos, um silêncio ao mesmo tempo ruidoso e vazio, habitado pelo fumo do charuto que se esquecia de apagar, e os mosquitos e as borboletas da noite esvoaçavam nos quartos e na sala, a figueira escurecia, e antes da harpa, antes de me apetecer encostar-me nua, de olhos fechados, à doçura triste da música, distinguia ainda, por um intervalo de reposteiros, as ameias do castelo que se fundiam, negras, nas trevas, e a lua. gorda, suspensa sobre as cascatas do rio, presa à água, ou à terra, ou a nós, pelo atilho de uma haste de buxo ou de um ramo de chaparro.

Na tarde, depois da sesta, em que todos os retratos da minha mãe desapareceram da casa e o meu pai, vestido de luto, nos chamou ao escritório, ao meu irmão e a mim, para nos anunciar a morte da mulher, enquanto a minha irmã que não falava nunca examinava, intrigada, as cordas sem adeuses de dedos, lembro-me melhor da secretária, dos móveis, dos livros arrecadados, como galinhas ao sol-pôr, nos paralelos e sucessivos poleiros das capoeiras de rede, do que da cara com que nos falava, compreensiva e séria como a dos padres, a abrir e a fechar o relógio, sem nunca olhar os ponteiros, como se o tempo tivesse perdido a sua razão de ser ou o meu pai houvesse compreendido que a não possuíra nunca. Lembro-me melhor da ausência de molduras do que daquilo que nos disse, do mesmo modo que à saída da igreja me recordava com muito mais nitidez do desenho das talhas do que dos discursos do prior, mas não me preocupei coisa alguma porque ela gostava das minhas duas irmãs e de mim, por ser filho homem, não, e acabei de explicar aos miúdos o falecimento da mãe, e chamei uma das empregadas para os levar e lhes servir o leite e a compota do pequeno-almoço, certo de que ninguém na cozinha lhes diria o que na realidade se passara, não por piedade mas por medo. Fechei a porta à chave e não comi nem bebi até à noite, parado no centro do escritório, incomodado pelo inchaço da nuca, a rever a bota do feitor junto à minha bochecha espalmada no chão, a senti-lo abanar-me pelos suspensórios. Senhor engenheiro, senhor engenheiro, o que lhe sucedeu, senhor engenheiro?, e eu a pensar, sem me conseguir mover, Como se não soubesses, meu sacana, como se não te tivessem relatado tudo, meu cabrão. O feitor voltou-me de barriga para cima como um fardo. Senhor engenheiro, sente-se mal, senhor engenheiro?, e havia outros passos de gente, e cochichos, e segredos e pasmos. A patroa bateu-lhe com o relógio dos serafins na cabeça até rachar a pedra da base, tem sangue aqui, repara, chama-se o enfermeiro ou quê? Para lhe agradar eu bebia o leite primeiro do que elas e a minha mãe népia, lavava as mãos antes de me sentar à mesa e mandavam-mas lavar outra vez, E deixa a porcaria dessa carruagem no quarto, Gonçalo, palavra que não sei o que fazes às coisas que as estragas sempre, repara no exemplo que dás às tuas irmãs, com nove anos, já crescido, daqui a nada alistam-te na Marinha, endireita-te na cadeira, esqueceste-te do guardanapo, não sabes como se pega na faca? A morrer uma porra, disse o feitor a meter-me a biqueira nas costelas, como se faz às mulas, para me estimular as reacções, não vês o peito do gajo para baixo e para cima? Não se mastiga com a boca aberta, ralhava a minha mãe, vê-se-te a comida toda lá dentro, francamente gostava que me dissessem onde foste buscar essas maneiras, até a tua irmã, que é doente, tem melhores modos do que tu. Pelo sim pelo não vou buscar água, disse a cozinheira, limpam-se-lhe aquelas crostas do pescoço, e eu começava a distingui-los um a um, os rostos, os cheiros, os troncos, as pernas, os sapatos, como se me achasse ao nível dos pedestais de várias estátuas disseminadas, quietas, no escritório. De castigo não repetes o doce, disse a minha mãe, vai para o quarto brincar com as tuas carruagens estragadas. A perdigueira lambia-me o queixo com a humidade da língua, agora que eu regressava, deitado, de um lugar distante, de um sonho turbulento e perturbado, o feitor levantou-me a cabeça e eu sentia a água nos cabelos e ao longo do canal das costas, Já pisca os olhos, disse uma criada para a cozinheira, já mexe um bocadinho as pernas, traz mais um balde e acorda-o de vez. Dobra o guardanapo antes de te ires embora, gritou-me a minha mãe, sinceramente que não entendo a tua benevolência com esta criança, Diogo, sinceramente que não entendo porque lhe consentes tudo, e o meu pai à cabeceira da mesa, calado, a fumar, a deixar cair a cinza do cigarro no prato em que se amontoavam as cascas e os caroços da fruta, não compreendo como não perdes a paciência com este malcriado, Diogo. Rodei devagarinho o nariz para um lado e para o outro, a experimentar, encolhi e distendi os ombros, fechei os dedos, e os músculos, os tendões, os nervos obedeciam-me de uma forma preguiçosa e vaga, como, a seguir às bebedeiras, o corpo, disperso nos lençóis, demora a reunir os seus vários elementos numa lentidão sonâmbula. A bota do feitor cessou de me atormentar as costelas à medida que as minhas pupilas principiavam a focá-lo como os parafusos demorados dos microscópios: Calem-se que ele ouve tudo, disse a cozinheira, calem-se antes que o senhor engenheiro vos despeça. Abri a boca e a saliva pareceu-me doce no palato e nos dentes, um visco de geleia que me deslizou na garganta, dobrei o guardanapo, enrolei-o na argola, e nisto o meu pai disse tranquilamente, sem mudar de posição, a apagar o cigarro, no rebordo de loiça, numa inesperada e repentina cautela, do lado oposto do candeeiro que lhe iluminava a gravata e lhe submergia a cara na sombra. Talvez por este ser o único dos filhos que me deste que tenho quase a certeza de ter feito. O rosto do feitor aproximou-se de mim, soprando-me na cara o bafo avinagrado do tinto. Sente-se bem, senhor engenheiro?, é capaz de se levantar, senhor engenheiro? o quê?, disse a minha mãe a arredondar as órbitas, o quê? Um cão que não nos pertencia ladrava na rua, excitando os perdigueiros que galopavam em tropel para o vestíbulo, a rosnar. Acho que ouviste lindamente, disse o meu pai, punha as mãos no fogo em como essas duas pertencem mais aos colhões do meu irmão do que aos meus, nasceram dos tomates daquele paneleiro fardado que vem cá aos domingos maçar toda a gente menos tu com idiotices de sargento. Capitão, disse a minha mãe indignada e eu a olhá-los, aflita, pressentindo qualquer coisa de horrível e desejando que eles se calassem, desejando um silêncio mais veemente do que o silêncio da noite, desejando que ela me ralhasse a mim também, se zangasse comigo e me mandasse, sem sobremesa, para o quarto onde as bonecas me aguardavam, hirtas, no seu enervante espanto rosado. Capitão de merda, tenente do caralho, disse com doçura o meu pai a limpar o interior da boquilha com um palito. Os cães, erguidos nas patas traseiras, raspavam a porta da rua com as unhas, as criadas iam e vinham numa pressa de catástrofe, um besouro preto e amarelo colou-se, cego, ao quebra-luz do candeeiro, e saí da sala de jantar nas tintas para o leite creme a fazer Tchuc tchuc tchuc como os comboios. O teu único filho?, disse a minha mãe devagar, com cada sílaba a pesar-lhe toneladas na boca, julgas que sou alguma prostituta, Diogo?, e ele, a sorrir, metendo a boquilha na algibeira, Claro que sim, meu coirão, por que motivo pensas que te fui desencantar a Vendas Novas, por que motivo pensas que casei contigo, puta e ainda por cima rica que mais se pode ambicionar, conta-me lá? Senhor engenheiro, disse o feitor a mandar embora as empregadas com a mão, sente-se fino, senhor engenheiro? O besouro, de asas encolhidas, aplanava-se contra o abajur, a minha irmã que não falava nunca raspava o cabo do garfo na toalha, a nuca ardia-me, a cozinheira desapareceu com o balde, o feitor segurava-me os braços a fim de me manter, sem tombar, na cadeira: Vai a tua casa buscar a espingarda, disse-lhe eu, logo à noite seguimos para Reguengos, às lebres.

O meu pai andou de luto um ano inteiro, e durante os primeiros tempos reservava uma hora, à tarde, quando a vila se decompunha de calor, os milhafres se multiplicavam na bacia cor de marfim do céu. e o Guadiana era uma corrente de areia em que luziam raras poças de água e a mica dos penedos, para receber os pêsames da vizinhança, acomodado ao pé da harpa, na sala, como junto do caixão da mulher, de braço esquerdo poisado no instrumento, compungido e grave, assoando-se apesar dos olhos secos, quase minerais, de caçador antigo, e, se chegavam visitas de maior importância, uma das criadas vestia-nos também de preto e conduzia-nos à penumbra das cortinas repleta de silhuetas consternadas, que cumprimentavam o presidente da Câmara de Évora, o governador civil, o representante do bispo ou os tristíssimos e solidários deputados do distrito, a quem três órfãos, pendurados uns nos outros numa pinha de espanto, comoviam. O meu pai ouvia os discursos de condolências e as frases de conforto, oferecia o licor de poejo do armário, e olhava a suspirar o adro deserto onde os gatos pousavam a medo patinhas delicadas, experimentando as pedras que ardiam. O adro, os montes ondulados, quase azuis, na face de Monsaraz oposta a Espanha, e as perdizes ocultas nos arbustos ou rasando com a barriga a barriga da terra, em busca de uma sombra mais fresca pelo tojo. As moscas procuravam-se nas cortinas. O meu pai debicava saudosamente as cordas da harpa numa escala dissonante, O santo amor da família e o amor angelical da música, ilustrava o prior enfarpelado de botões desde a cartilagem da garganta à bissectriz dos pés, e havia qualquer coisa de estranho naquela morte sem enterro, naquele desaparecimento súbito e nos sinais de desgosto do meu pai, que continuava a pular sobre as empregadas, a erguer-lhes as saias, a morder-lhes as cristas, como um galo, alheio aos protestos, às sacudidelas, às cotoveladas e às lamúrias delas, e a desprezá-las logo após num desinteresse completo, agitando as plumas gastas do casaco, consentindo-lhes que fugissem, alarmadas, para a cozinha, no receio da minha mãe ou agora, que não havia mãe, da ausência dela, como se a tocadora de harpa as pudesse recriminar ainda do alto do seu penteado de cachos, ela que se limitava a erguer uma única sobrancelha e a ordenar quando muito, se era véspera de domingo e do meu tio, Preparem-me o banho, e eu ia encontrá-la a pentear-se ao espelho, nem sequer ofendida, nem sequer zangada, com a boca cheia de ganchos, mirando-se por momentos no vidro antes de recomeçar a escovar-se, de rosto modificado pelos defeitos do estanho.

E um domingo, pode ser que em Setembro, pode ser que em Outubro, cinco ou seis semanas depois da morte da minha mãe, tocaram à porta de uma maneira diferente da habitual, autoritária, irrespondível e rápida. Os cães, que dormitavam pelos tapetes da casa, ergueram-se a bocejar, contrariados de sono, e os meus avós entraram de roldão, quer dizer a minha avó e o marido, o médico, de algibeiras inchadas de garrafinhas de vinho. A cozinheira abriu a porta e a minha avó afastou-a de imediato para o lado, Chame o senhor engenheiro que eu necessito urgentemente de falar com ele. O marido da minha avó ficou-se a observar as nádegas da empregada, que balouçavam alternadamente, como pratos de balança, na direcção do escritório, até a velha lhe demolir o fígado com um safanão, Para onde é que você está a olhar, seu porco? Os cachorros percorriam-lhe as saias, submissos, dê focinhos baixos. Para nada, respondeu o doutor, reparei num óleo ali que não é feio de todo, Hortense. A minha irmã examinava-os também, misturada com os perdigueiros, e eu pensei Qualquer dia começam a treiná-la para a caça, à noite, aos coelhos de Reguengos. Desde quando é que você se interessa por pintura, sua besta?, rosnou a minha avó, o médico desatou a encolher-se e a diminuir de tamanho, e o meu pai surgiu ao fim do corredor, a estalar a tampa do relógio, seguido pelos passos receosos da criada. A Adelina está em minha casa, gritou a velha apavorando os cães, que leria vem a ser essa de fazer constar por aí que ela morreu? O meu irmão passou a apitar como um comboio. A cozinheira trotou para a copa, admirada pelo médico cujas pupilas amarelas boiavam nas órbitas como os bichos gelatinosos do mar nos frascos de álcool. Se não acaba com essa cegada dos lutos e das visitas de pêsames, levo-a a Évora, a Montemor, a Reguengos, para mostrar a toda a gente que está viva, e o médico Vivinha da costa, e ela Cale-se, parvalhão, e carregue a harpa para o carro. O doutor tentou pegar no instrumento e entalou-se nas cordas, empurrou-o com os joelhos para livrar os dedos e ficou-lhe um pé enforcado nos bemóis, a perdigueira mais idosa, que ia perdendo o medo, desatou a latir, o médico, de chapéu na cabeça, combatia com a harpa em que se atolava como numa espécie de pântano ou numa flor carnívora. Um ré quebrou-se e ziguezagueou a vibrar como um chicote. Ajuda-me aqui, Hortense, implorava o doutor, segura na madeira desta trampa que me não livro dela, e o meu pai pescou-o como um afogado, colocou-o de pé, endireitou-lhe o casaco, guardou o relógio, enfiou um cigarro na boquilha e avisou docemente, como se não tivesse ouvido nada do que a sogra lhe dissera, ignorando as suas ameaças, as suas ordens, o seu volume, A harpa não sai, minha senhora, é uma das poucas recordações que me ficaram da defunta.

- E se a defunta vier buscá-la ela própria?, disse a minha avó, e se ela aparecer em Monsaraz, for à igreja, conversar com o padre, entrar na taberna, passear no largo, bater à sua porta para beijar os filhos?

O feitor fazia chiar a bomba de água no quintal, no som em que as camas se desajustam durante as nocturnas e carnívoras batalhas de dois corpos. A pele dos figos estalava como lábios redondos sob o bico dos pardais. O médico secava-se de claves, respirava como um peru molhado, procurava nas calças o frasquinho de bagaço. A minha irmã que não falava nunca, sentada no soalho, mirava-os com íris roubadas às bonecas de loiça do meu quarto.

- Não vem, disse o meu pai numa entoação amigável. Há quase dois mil anos, que eu sabia, que nenhum finado ressuscita. As pessoas, aqui, assustam-se tanto com fantasmas que não me surpreendia nada se lhe pregassem um tiro. Já temos na vila lobisomens que bastem.

- A tua mãe não morreu, percebes?, disse a velha à minha irmã, que a fitava sem compreender, com os olhos transparentes dos habitantes lunares. A tua mãe não aguentava os maus tratos do teu pai, as bofetadas, os insultos, os murros, o ele ter roído quanto pode na herança dela.

- Então, Hortense, apaziguava o médico a quem a aguardente remoçara o vigor e as qualidades diplomáticas. Não se lucra nada com discussões deste género.

- Um tiro?, gritou a minha avó a recuar, esmagando a cauda de um cachorro que se sumiu, ganindo, no quarto de vestir. Você era capaz de dar um tiro na mãe dos seus filhos, seu bandido?

- Gonçalo, disse o meu pai ao meu irmão. Corre lá dentro num instante e traz-me o revólver do escritório.

As empregadas, que ele despia aos arrancos nos recessos mais escuros do corredor, em frenéticos e instantâneos ataques de pássaro, espreitavam, em pinha, de todas as portas possíveis. Um ou outra tosse desmaiava, estrangulada, em aventais, ou nas pregas onduladas dos reposteiros. O meu irmão largou na carpete uma carruagem empenada e trotou pela passadeira fora. O revólver afigurou-se-me pequenino, cromado, inofensivo e bonito como uma prenda de Natal. A primeira bala chispou no cano uma labaredazinha súbita e furou o tapete vinte centímetros à frente dos tornozelos da velha.

- Podia processar a sua filha por tentativa de assassínio, disse o meu pai, por adultério, por incesto com o cunhado, por abandono do lar, do marido, das crianças, por desinteresse em relação a uma criança mongolóide que não sei se sobreviverá sem os cuidados e a presença da mãe. Poderia fazer tudo isso e muito mais e pode ter a certeza de que qualquer tribunal concordava comigo.

Levantou o braço, houve uma segunda labaredazita, um segundo estrondo, um segundo orifício no tapete, alguns dedos mais próximo da minha avó que o anterior. Eu vou-me embora, Hortense, disse o médico a guinar para o vestíbulo, aceito a cem por cento as explicações do teu genro. Perfis espavoridos escapavam-se cacarejando dos reposteiros e das portas, os cães, excitados, latiam com o odor da pólvora, encostando-se às pernas do meu pai, a perdigueira grávida tremia as mamas inchadas, com um dos membros dianteiros no ar, em posição de ataque. E o dinheiro dela?, perguntou a minha avó procurando defender-se do cano da pistola com a sombrinha, as terras que lhe deu para você administrar, as acções que empatou nos seus negócios? Gonçalo, disse o meu pai ao meu irmão, torna a guardar o revólver no escritório, e para a velha, a sorrir, Quando uma pessoa morre são os filhos e o marido que herdam, minha senhora, tenho o testamento dela no cofre, posso mostrar-lho quando quiser, é uma leitura tão instrutiva como um livro de Resistência de Materiais ou de Economia Política. A minha avó girou a maçaneta da porta e a boca dela vibrava, o véu do chapelinho vibrava, o corpo enorme vibrava, Pode ser que eu viva o bastante para o ver arder no inferno, seu gatuno. Os gonzos rodaram com força, o portão do quintal gemeu. O meu pai endireitou a harpa como quem ajuda um cavalheiro centenário a levantar-se: Lembra-me de telefonar para Évora amanhã, disse-me ele a contemplar as cordas quebradas, a madeira rachada, uma voluta partida. Tem de haver alguém por lá capaz de consertar esta merda.

 

O touro era maior e mais gordo do que nos outros anos e não um touro preto mas malhado, de chifres desiguais como uma pálpebra mais descida do que a outra. Relutante também: foi necessário picá-lo com varas e exibir um sem-número de panos coloridos para o obrigar a seguir, desconfiado e lento, pelos corredores de pedra das muralhas, e fazer entrar à força na arena do castelo, onde o animal permanecia quieto, encostado às trincheiras, entontecido pelos foguetes, pela música, pelos assobios, pelos aplausos, pelos gritos, atento aos vultos que passavam a correr à sua frente, provocando-o com os casacos e as camisas, que tropeçavam, caíam, se levantavam de novo, o desafiavam de longe, o insultavam, escarneciam dele, um touro grosso e maciço de músculos, com o piaçaba do pénis dependurado da barriga à maneira de uma inesperada barbicha de pintor, transportado sem comer, durante dois dias, desde Badajoz ou desde Eivas, numa jaula de troncos de madeira atados uns aos outros por intermédio de cordas e de cabos, recusando a ração e defecando na camioneta cones de bosta prateada que cones de varejeiras imediatamente cobriam, e quando ontem o presidente da Casa do Povo me convidou a visitar o bicho, no seu curro, achei-o deitado na palha, com as patas dianteiras dobradas sob o ventre, voltando para nós, antes de adormecer, a imensa cabeça desdenhosa. Um velho completamente bêbedo, de cobertor e garrafão ao lado, montava guarda ao touro urinando-lhe no lombo por uma frincha de tábuas.

- Que tal, senhor doutor?, perguntou o presidente da Casa do Povo, que trabalhava no escritório da fábrica de celulose lá em baixo, um diabético magrinho com um sinal peludo no nariz, cheirando à acetona da sua doença como as manicuras dos barbeiros. Valeu ou não valeu a pena gastar umas notas neste chouriço com cornos?

De tempos a tempos, se piorava do açúcar, a mulher telefonava-me para Reguengos, e esperava-me à porta, abraçada ao bebé de um penico de mijo, doce como o sumo dos malmequeres estragados, acompanhada pela inquietação solidária das vizinhas:

- Fartou-se de comer bolos nos anos do compadre, senhor doutor, e veja-me o chá que ele me deitou no bacio.

E antes que me estendesse aquele bule de barro com florinhas a dizer É servido?, eu apressava-me para o interior do prédio, no qual se acumulavam, por todos os cantos, pagelas e filhos, uns e outros de tal forma imóveis que não se distinguiam os de papel dos verdadeiros, e depois de ferir os joelhos em várias esquinas de caixote alcançava o quarto de cama, onde o sinal peludo do presidente da Casa do Povo me sorria a medo de um emaranhado de riscas de pijama e de almofadas, a exibir como um trofeu um fitinha avermelhada:

- Três cruzes, senhor doutor, logo três cruzes por um pastel de nata de caracacá.

- Vamos a ver como se porta na arena, disse eu a descobrir-lhe nos flancos cicatrizes de touradas anteriores, e uma chaga recente com uma coroa de moscas no rebordo purulento. Devem tê-lo corrido quinze ou vinte vezes, pelo menos.

No curro a seguir, as vacas, amontoadas, roçavam os ossos das ancas nas pedras gastas do castelo, pisadas pelos cascos bifurcadas dos novilhos, que calcavam a própria merda num fedor de latrina. O bêbedo velho, confundindo os botões da braguilha com os da camisa, aproximou as ramelas, muito digno:

- Por razões de segurança a organização não permite ninguém ao pé das feras. E reconheci nele um dos mendigos que costumavam pedir esmola nos degraus da igreja, propondo em troca santinhos sujos de metal.

- Melhor ainda, disse o da Casa do Povo. Se correu vinte vezes deve saber os truques todos que os bichos usam para lixar um homem. Quantos mais ele mandar ao hospital mais o público gosta. Se não houvesse sangue era uma porra, tínhamos a praça deserta. Quem não fica contente com as desgraças dos outros?

Dezenas de fantasmas uivavam pelas redondezas, bêbedos também, pulando ao ritmo confuso da banda de Mourão, cujos artistas, vermelhos de álcool, sopravam cada um por sua conta em trombones de museu. Por instantes pensei que era o único ente vivo mais ou menos sóbrio no concelho, e a solidão dos abstémios doeu-me, como de costume, a sua tristeza virtuosa e árida: na minha ideia o Paraíso é uma espécie de clínica para anjos deprimidos, e os bigodes dos apóstolos os mata-borrões das suas lágrimas. Os foguetes da festa estalavam, invisíveis, no escuro, após longos assobios oblíquos carregados da saliva da pólvora. Sentia-se a presença muda das octogenárias nas trevas, instaladas, de mármore, nas soleiras, como pássaros pré-históricos nos fios da electricidade ou do telefone.

- Eu, respondi. Quanto mais feridos mais trabalho me dão. Na última tourada, sem enfermeiro a ajudar-me, passei uma semana inteirinha a coser pernas e bochechas. E você trate de não me aumentar as chatices com os seus pastéis de nata de caracacá.

- Nem uma migalhita de torrão de Alicante?, negociou o diabético.

O animal, imerso no seu odor de bosta, descerrou uma órbita e tornou a fechá-la, aborrecido, como um passageiro de comboio obrigado a dividir o compartimento com um par de colegiais idiotas.

- Se falar com o padre a combinar o enterro qual é o problema?, disse eu. Já me canso um bocado de andar há dez anos a meter o nariz no seu penico.

O mendigo dos santinhos, que conseguia a proeza de cheirar pior do que as vacas, embrulhado no cobertor como um imperador romano, perguntou das trevas, curioso:

- O que há de especial no bacio dele?

O hálito de uma suspeita de vento misturava os aromas e dispersava a música. Era lua cheia e as escleróticas dos novilhos reflectiam um brilho húmido que parecia nadar à tona dos penedos escuros dos seus corpos. Nuvens idênticas a películas de nata enramelavam o céu. Os morteiros abanavam com força a piorreia das muralhas. A mulher do presidente da Casa do Povo, sempre abraçada ao penico, com um pé na rua e outro no degrau, oferecia o perfume da cafeteira de chichi a quem passava:

- Olhe esta miséria, dona Teresa.

- Rosas, nosso amigo, expliquei eu ao vagabundo. Rosas. Este senhor traz a Rainha Santa na bexiga.

E foi à espera dos feridos que na manhã seguinte disse à empregada do hospital, uma criatura achavascada, de bata aos quadradinhos, a discutir aos gritos, com uma perna partida, a barata que havia ou não havia no leite do pequeno-almoço, para esterilizar ferros e seringas e me colocar as luvas de borracha e as latas de compressas perto da marquesa pintada de branco, erguida como uma peça ao centro dos azulejos de uma antiga casa de banho, em cuja retrete quebrada nadava ainda, teimosamente, um cagalhão neolítico.

- Então se não é barata o que é isto?, argumentava a perna partida, com um insecto ensopado na palma.

O telefone principiou a tocar ao fundo da enfermaria, no gabinetezinho minúsculo das consultas, ao qual se iam pedir, às quintas e aos sábados, xaropes contra a tosse, injecções de beber e pomadas para as dores nas costas. Balões de soro suspendiam-se de grandes cromados num arraial macabro, pingando lágrimas turvas nas veias das cirroses. O chefe da secretaria abandonou a carruagem de comboio fantasma dos raios X, em que os ossos cintilavam numa atmosfera avermelhada, precedido pelo bafo curativo das pílulas de alho.

- Um crocodilo, respondeu a empregada. Com esse tamanhão todo que queria você que fosse? Uma lagartixa, não? E calminha com a muleta que lhe desfaço os cornos com ela.

Trotei pelo corredor na direcção da campainha: desde a história com a viúva da agência funerária que a minha mulher me telefona de hora a hora a conferir-me os azimutes. A viúva também, de resto, recostada, por detrás do balcão, numa uma de primeira, a desta dupla vigilância resulta que alguns dos defuntos de Reguengos seguem para o cemitério cobrindo com as costas o amarrotado e a clara de ovo da minha paixão. A segunda agência da vila, sem clientela, faliu, e a viúva, próspera, comprou a um emirado árabe um majestoso automóvel fúnebre com ar condicionado, crepes com estrelinhas, um frigorífico para a água mineral dos inconsoláveis e a marcha de Chopin no leitor de cassetes. Já passeei nele até ao Algarve, em Agosto, com a viúva a ronronar volúpias embalsamadas no meu ombro: à noite ancora-se num parque de campismo, correm-se os crepes, acendem-se as velazinhas eléctricas e dá uma caravana esplêndida. A marcha de Chopin é óptima para marcar a cadência, e os alemães das tendas vizinhas, amanteigados de cremes solares, interessam-se pelos orgasmos de carpideira da viúva numa seriedade estupefacta. À medida que me ia aproximando do telefone tentei adivinhar, pelo tinir da campainha, qual das duas seria, se a estridência querelante da minha mulher se a outonal melancolia cúpida, de abutre, da dona da rulote, reservando uma chance para o gato-pingado falido, que às vezes me chama, para me insultar, das cavernas foscas dos cafés, em que bebe as cautelas de penhor da sua decadência raivosa.

- É o que a senhora quiser, é o que a senhor quiser, apressava-se a perna partida, a implorar nas minhas costas. Só lhe peço, pela sua saúde, que não me dê com a muleta no gesso.

Abri a porta das dores no lombo e dos xaropes da tosse e contornei a secretária para alcançar o aparelho. A janela mostrou-me os prédios habituais, amarelos e baixos como anões com hepatite, e um papagaio que articulava obscenidades e me fitava de esguelha, no poleiro, com a persistência obtusa dos polícias. Um destes dias trago a espingarda de chumbinhos do meu filho, assesto-a para o lado oposto da rua, e fico a ver o pássaro badalar, de cabeça para baixo, da corrente que lhe prende a pata, transformado numa estalactite de penas, com um supremo e derradeiro palavrão a escorregar-lhe lentamente da língua.

- Ó meu cabrão, urrava a empregada, se me voltas a atirar com o aspirador do canceroso enfio-te uma seringa de ar na veia que te lixo.

- Está?, disse eu para os furinhos ao mesmo tempo que desenhava um manguito largo para o papagaio, que inchou o peito para me grasnar Caralho. Eram dez ou onze horas e eu já suava de calor: a minha mulher que me obriga, ao descalçar-me, a deixar os sapatos na varanda, confidenciou-me uma ocasião, há muitos anos, que se apaixonou por mim por eu ser a única pessoa que ela conhecia que suava no duche. Provavelmente que até no Pólo Norte os meus sovacos se molhariam. Uma das razões pelas quais gosto da viúva é porque o meu cheiro me excita: aberração sexual grave, presumo eu, da mesma forma que certos sujeitos doentios vibram com joanetes e calos infectados ou com mulheres de barba.

- Fala de Monsaraz, disse uma berraria desconhecida, esganiçando-se para vencer os tambores da filarmónica, os latidos dos cães e as explosões dos foguetes. Tenha paciência, senhor doutor, o coração do meu avô está a falhar.

Paciência é o género de palavra que irrita até às tripas qualquer infeliz com vinte e três anos de casado. Uma das poucas, julgo, porque às restantes nos fomos aclimatando a pouco e pouco, ao longo de infindáveis serões mudos em que o esgrimir das agulhas de tricot substitui o tiquetaque dos relógios, e introduz um inédito, maravilhoso e rentável modo de calcular o tempo: um casaco de malha equivale a uma semana, um carapuço de criança a um dia, um cachecol a dois domingos, as camisolas de gola alta a um mês, e o que demora a esfiá-las nos cotovelos a um ano. O matrimónio possui, pelo menos, a vantagem de tornar os despertadores e os calendários velharias supérfluas. Como os maridos. Que escarram de manhã no lavatório, chinelantes e despenteados, essa bronquite horrorosa, tens de tomar qualquer coisa, Alfredo, com que nos sobressaltaram, nem imaginas a chatice, toda a santa noite.

Preveni a empregada, entretida a perseguir, de agulha em riste, a perna partida que chiava de pavor, do meu passeio ao castelo em nome da paciência, do juramento de Hipócrates e de quanto a família do engenheiro me paga por consulta, e aconselhei-a a chamar, se eu me demorasse, o colega do Redondo, o imbecil com mais pontaria para a morte que conheço. Avisei a viúva, Olá bichana, deste segundo e esperançoso facto, a fim de que aprontasse um número suplementar de caixões, pedi as chaves da ambulância ao porteiro, Vou em serviço, para poupar a gasolina e os pneus do meu carro, ainda escutei o espanto inocente da empregada na enfermaria, O da perna partida marou agora mesmo, coitadinho, que raio de desgraça que lhe terá acontecido?, e pensei com tristeza A pobre ficou sem ninguém para embirrar, o canceroso anda nas últimas e as tromboses nem um dedo mexem, e pensei Que falta o ódio faz para nos sentirmos saudáveis, e pensei Acharmo-nos em harmonia com o mundo é uma infecção mortal.

Liguei a sereia e o farol do tejadilho no intuito de animar o espírito bisonho dos meus conterrâneos com um estimulante rastro de infelicidade barulhenta, atropelei um gato logo à saída da vila e assisti, no espelho retrovisor, à sua transformação num montinho ensanguentado que foi diminuindo no asfalto até me esquecer dele, e depois desapareceram as casas e encontrei-me rodeado do mato, do calor e das árvores ralas de Setembro, as torcidas e varejadas e secas oliveiras de Setembro, sem vísceras, sem linfa, sem carne de músculos, sem pulmão, reduzidas às ferrugentas pregas da casca e às medulas ocas onde os insectos copulam, se reproduzem e alojam os pingentes translúcidos dos ovos. Quantas vezes, Senhor, em pequeno, aproximei a orelha dos troncos à espera de perceber, através das raízes, o múltiplo gemido subterrâneo do mundo e dos animais invisíveis que nas covas se ocultam, escaravelhos, toupeiras, ratos, olhos velozes de coelhos, a dúctil seda das raposas, a lixa irada dos ginetes, os javalis de que o meu pai falava e dos quais nunca nem pegadas antigas entrevi, e apareceram as muralhas e dentro das muralhas a igreja e o touro, quieto, encostado às trincheiras, entontecido pelos foguetes, pela música, pelos assobios, pelos aplausos, pelos gritos, atento aos vultos que lhe acenavam casacos e camisas, que tropeçavam, caíam, se levantavam de novo, o desafiavam de longe, o insultavam, escarneciam dele, o touro com o piaçaba do pénis dependurado da barriga à maneira de uma inesperada barbicha de pintor, o touro não negro mas malhado, de grandes testículos escuros abrigados nas coxas, que acabou por trotar uns passos, imobilizar-se, hesitar de focinho rente ao saibro como se mergulhasse a cara nas mãos, galopar dez ou doze ou quinze ou dezassete ou dezanove ou vinte metros, derrubar um bêbedo que lhe mostrava o boné, um rapaz que baloiçava um pano na extremidade de uma vara, um cacho de homens do Arrabalde e de operários endomingados da fábrica de celulose, tombados uns por cima dos outros com um simples e nem sequer enérgico safanão dos seus chifres, o touro de súbito sozinho no centro da praça do castelo, com toda a gente, abrigada na muralha, a contemplá-lo a medo, o touro tão sozinho como o velho de boca aberta, sem bochechas, na sua cama enorme, a examinar o tecto sem de facto o ver, a examinar as paredes sem de facto as ver, a examinar os filhos e os netos ao redor do colchão, mesmo o miúdo, mesmo a das mantas do Outeiro, mesmo o austríaco gigantesco, sempre vestido de borracha e mergulhado no rio, com uma caricata bola de pingue-pongue na ponta de um tubo caricato, a caçar com um harpão os limos do jantar, o velho que estremecia apenas, de leve, se um das perdigueiras latia no andar de baixo, elas também quietas nos tapetes, defecando sem alargar as ancas, tensas como nas madrugadas de caça, inclinadas para diante, de dentes de fora, em atitude de começarem a correr, uma igreja, um velho e um touro, os três sozinhos na vila, apesar dos parentes que lhe ajeitavam os lençóis, apesar do Arrabalde que avançava de novo a tentar uma pega, e que caía, e que sangrava, e que se arrastava no chão, e que carregava, em braços, um ou dois ou três camponeses desmaiados sob as palmas da assistência ondulando, bêbeda, nos degraus de pedra bêbeda das bancadas, e para lá das bancadas as colinas bêbedas até Espanha, o Guadiana bêbedo, às curvetas, na direcção do mar, bêbedo come a filarmónica, os vendedores ambulantes, os ourives, os pedintes, os frangos, a família, os cães, e eu que tomava o pulso ao engenheiro em busca de um qualquer mínimo pestanejar de vida. O touro, bêbedo, rodopiou nas patas bêbedas e assustando uma segunda, ou terceira, ou quarta, ou quinta matilha de pegadores, do mesmo modo que as pupilas do velho ao demorarem-se no filho, no genro, nas netas, ou no marido dentista da neta menos feia das duas, faziam recuar a plateia amedrontada, como se pudesse ainda dominá-los, esmagá-los, dar-lhes ordens, escarnecê-los, pôr-lhes e tirar-lhes alcunhas consoante os seus caprichos de momento, os seus apetites, os seus humores, as suas cóleras, e nesse momento o presidente da Casa do Povo pousou-me o punho no ombro, e encontrei o sinal peludo do nariz e o perfume de acetona das manicuras dos barbeiros.

- Que tal, senhor doutor?, interrogou ele enquanto eu procurava no estojo uma ampola de tónico cardíaco, desabotoava o pijama do engenheiro e palpava, entre as costelas, um espaço para a agulha. Valeu ou não valeu a pena gastar dinheiro neste chouriço com cornos? E distingui o vagabundo do cobertor que urinava, num ângulo do quarto contra a mesinha dos remédios. Senti o coração do velho bater suavemente, como uma pequena membrana contráctil, na ponta dos meus dedos, e vi que até de lhe cortarem as unhas tinham medo, medo como de tocar no touro apesar do prémio que a vila oferecia a quem o agarrasse na arena, medo de um homem e de um animal que se preparavam para assassinar, de forma que quando extraí da maleta um tubo de borracha para lhe atar o braço e encontrar a veia, lhe laçaram, de fora da arena, um dos chifres, e o puxaram para as trincheiras a fim de lhe laçar o outro, um bicho corrido dez ou quinze vezes, pelos menos, de pijama aberto, a respirar, de tempos a tempos, resfôlegos irregulares e fundos como o vento, e a filha, não a mongolóide, claro, a casada com o procurador que procurava sobretudo as nádegas das mulheres dos ganhões, introduziu a manga sob a colcha e mostrou-me o saco transparente da algália: Veja-me só o chá que ele entornou no bacio, senhor doutor.

- Aos dez ou onze anos o meu pai trouxe-me à festa, disse eu ao presidente da Casa do Povo que observava com orgulho o penedo do animal, estendido defronte da ração que não comera, e a coisa que recordo com mais nitidez foi a de perguntar-lhe, de regresso a Reguengos, o motivo por que matavam o touro e de o meu pai me responder Por nada. Assim, palavra, o absurdo resumido por um caixeiro-viajante, o meu pai era caixeiro-viajante, com esta singeleza toda: Por nada. E a ideia que me deu, percebe, repentina, trucla, como um tiro nas trombas foi a de ter nascido nessa altura. Esquisito, ha? Não os tais dez ou onze anos antes da cédula e do retrato de bebé nu na almofada. Nessa altura.

- E o cheiro, disse a filha, reparou no cheiro? Pior que o dos cães não é?

O meu pai, que se enforcou por nada um mês depois de eu acabar o curso, levantou-se a aplaudir: uma multidão de gente trotava, na arena, para o animal aprisionado que procurava ainda um corpo qualquer que lhe fugia, um trapo vermelho que se lhe escapava, as botas que lhe pontapeavam os testículos, que lhe pontapeavam o pénis. Um primo da minha mulher, de chapéu na cabeça, esmurrava-lhe a testa, a garupa, os flancos, o lombo, abria a navalha, espetava a lâmina no corpo escuro do bicho, retirava-a, espetava outra vez num movimento ritmado de ferreiro. O genro agarrou numa faca e apunhalou o velho num dos ombros, o meu pai aplaudia, a filha tirou-me a seringa das mãos e cravou-a com toda a força no pescoço do doente, um dos perdigueiros uivou angustiado na sala, o chefe de estação enterrou-lhe a chave de parafusos no umbigo, o touro, vomitando sangue por dezenas de bocas, tentava escapar das cordas, das facas, das navalhas, das foices, submergia-se sob metais rápidos que luziam, sob gritos, sob berros, sob as gargalhadas, sob os arrotos e guinchos de triunfo, ajoelhou, tombou de lado e o neto pequeno decepou-lhe uma das orelhas com a tesoura da mãe e mostrou-a à praça que lhe acenava os lenços, os bonés, os chapeirões de palha. Está morto, disse eu à família a compor a gola do pijama do velho, a arrecadar os instrumentos, a preparar-me para abandonar o quarto, descer as escadas, enfrentar os perdigueiros, tornar a Reguengos na ambulância do hospital. Está morto, disse eu, arrastem-no da arena pelos cabos que lhe seguram os cornos, amarrem-lhe as patas e levem-no e dividam-lhe a carne e vendam-na no talho, podem embebedar-se dois ou três dias com o dinheiro do finado, esse bicho enteiriçado e grosso, sem majestade alguma, que sangrava e que sangrava ainda. Que tal, senhor doutor?, perguntou o presidente da Casa do Povo, valeu ou não valeu a pena gastar umas notas com este chouriço com chifres? Entra para a furgoneta, miúdo, de que é que estás à espera?, e eu parado, de mão no fecho da porta da ambulância, a olhar para a figueira e para a casa antes de me sentar nos estofos rebentados, que cheiravam às enjoativas embalagens de cartão do comércio do meu pai, vendidas de loja em loja entre a Covilhã e Aveiro, e ao alcançarmos Reguengos anunciei à minha mãe que não me apetecia jantar, subi ao quarto, deitei-me esquecido de descalçar os sapatos, e mal dei por me taparem com uma manta e colocarem uma caneca de chá de ervas na mesa, ou pelas silhuetas dos meus pais dançando à minha volta, em bicos de pés, cochichos preocupados que se sumiram, por fim, na distância incomensurável da cozinha.

 

Mandei-os ficar em casa a empacotar o mais depressa possível a bagagem, os quadros, as pratas, as porcelanas, as jóias, o que sobrava do serviço de casquinha, e tudo o resto que não empenháramos ainda no judeu de Évora, enfiado na sua lojeca estreita repleta de violoncelos e despertadores, fui ao armário do escritório buscar as cartucheiras e as duas espingardas do meu sogro, chamei o feitor e disse-lhe que trouxesse os cães do velho, que não me obedecem, que não me obedeceram nunca, para o moinho abandonado, porque os comunistas haviam com certeza de aproveitá-los para nos encontrar o rastro, haviam de atravessar o Guadiana e entrar Espanha adentro, se necessário fosse, pelo prazer de nos encostar a um pano de muro e dispararem, vociferando as blasfémias do costume contra a Família e contra Deus e as mentiras do costume contra nós, Viva o aborto, Viva a revolução, abaixo os ricos, e a gente, sem um escudo no bolso, pisados na agonia, pelas suas botas de ganhões. O feitor veio à sala estalar os dedos e assobiar aos perdigueiros encasulados sob as mesas ou estendidos a tossir nos tapetes de Arraiolos, e ao fim da tarde escapámo-nos pela porta da cozinha e descemos a encosta cujas árvores principiavam a empalidecer e a arroxear-se, tão nítidas no céu quase branco que antecede o outono e a noite, como as veias dos velhos sob a pele da mão. O feitor ia à frente, com a boina que sempre lhe conheci, e que nem para lavar o cabelo devia tirar, em diagonal na cabeça, conversando com os cachorros na ternura que os camponeses negam às mulheres para oferecer aos rafeiros, e pensei a seguir-lhe os passos, com uma caçadeira em cada braço, Provavelmente é informador dos comunistas, provavelmente quando voltarmos a Monsaraz manda avisá-los de que nos vamos escapar pela fronteira a caminho de Madrid, provavelmente o melhor é matá-lo depois de matar os cães, apontar a arma, disparar, e vê-lo abater-se, de punhos espalmados na barriga, finalmente sem boina, com os tufozinhos de pêlos grisalhos das têmporas dispersos entre as manchas de vitiligo ou de bolor do crânio.

Como em geral acontece ao crepúsculo a água deslizava sem rumor entre os penedos, mais lenta, clara e secreta do que ao sol da manhã ou do meio-dia, e enquanto o homem desaparecia com os cães no interior do moinho eu patinhava na lama da margem os meus desajeitados sapatos lisboetas comprados em Serpa, examinando os dois ou três barcos quase planos, em forma de folha, do pescador que se afogara anos antes no rio e de que ninguém se servia por medo dos fantasmas ou da ira do morto, dois ou três fósseis de barcos que o tempo, os peixes e os sucessivos invernos devoraram, reduzidos à espinha e às costelas magras, barbudas de algas, da armação, incapazes de nos transportarem para os chaparros do outro lado, e obrigando-nos a caminhar, encharcados até ao pescoço, num fundo de enguias e de visco, chamando-nos aos berros nas trevas, perseguidos, como no cinema, pelos holofotes e pelas metralhadoras de Moscovo.

E então aproximei-me do moinho e fiquei à entrada. Era uma construção em ruínas, do tamanho dos lazaretos abandonados, com janelas altas, de peitoril em bisel, para ambos os lados dos campos, e o Guadiana em cachoeira sob um postigo no chão. Do tecto existiam apenas vigas podres entrelaçadas no topo, com uma palha de nuvens, da cor do ventre dos lagartos, por cima, e uma ameaça de chuva a norte, losango cinzento que apagava os contornos dos montes, e avançava para nós no calor suado e opressivo da febre. O feitor, sentado na pedra de uma mó, coçava as farripas e os piolhos através da fazenda da boina. Os perdigueiros encontravam nas paredes a urina antiga de cães há muito tempo defuntos, ou miravam-me com as irritantes órbitas submissas e doces, castanhas debaixo das pestanas amarelas. Uma ratazana de pêlo molhado galopou ao longo da parede e evaporou-se numa fenda. Abri as culatras das espingardas e coloquei duas balas em cada arma. Nenhum dos cachorros, mesmo os mais novos, se interessou por mim.

- O senhor doutor a sério que vai assassinar estes animaizinhos?, perguntou o feitor sem levantaras nádegas da mó, à procura da mortalha do tabaco no colete. O patrão nunca consentiria uma coisa assim: estes bichos deram-lhe muito trabalho a ensinar.

- E dão muito trabalho a limpar-lhes o mijo do tapete todas as manhãs, respondi eu. Há quase trinta anos que vivo no meio do pivete e da merda dos cachorros. Até no meu próprio travesseiro, até no meu próprio prato me cagam.

- Eu compro-lhos, senhor doutor, disse o homem alargando os braços. O senhor doutor faz o seu preço e eu compro-lhos. Levo-lhos de casa e não lhes atura a urina e o cheiro a mijo nunca mais.

Poisei uma das armas no chão, e com a mira da outra procurei a cadela grávida que palpava com o nariz a fresta por onde a ratazana se escapara, raspando as unhas negras na terra e no cimento do chão. Apertei o gatilho direito, a perdigueira dobrou-se numa espécie de cambalhota, tentou aproximar-se, coxeando, de cauda baixa, do feitor, mas a segunda bala desfez-lhe os ossos do pescoço e o bicho aplanou-se, a meio da viagem, numa crista rachada a um ou dois metros da mó, sobre folhas e ramos e desperdícios diversos, abandonados por sucessivas enchentes. O homem levantou-se, a torcer a boina nas mãos como um lenço molhado:

- Compro-lhos todos, senhor doutor, compro-lhos todos. Diga quanto quer, não dispare mais, trago-lhe o dinheiro logo à noite.

Um dos cachorros lambia a nuca da cadela morta, os restantes gemiam em pânico atrás dos cubos de pedra que ladeavam as janelas. Puxei a culatra e alojei duas novas balas na espingarda.

- Trezentos contos, disse eu a procurar um segundo animal com o cano, um bicho que me fitava, de dentes ao léu, girando nas patas muito magras. Tens por acaso trezentos contos à mão?

- Trezentos contos?, repetiu o homem na voz cheia de ecos da pedra. Trezentos contos foi o que vossemecê pediu?

- Não pedi nada, respondi eu, tu, pelo contrário, é que pediste. E os trezentos contos não são só pelos teus rafeiros tinhosos, são também por ti, comunista da merda.

As paredes do moinho vibraram, um calhau soltou-se e dissolveu-se na terra, os dentes ao léu vestiram-se de beiços, os olhos, cegos, desviaram-se de mini, e o corpo afundou-se, sem ruído, no postigo para o Guadiana assoreado, arrastando consigo um pozinho escuro de areia. Engoli várias vezes para apagar a surdez dos ouvidos, até lograr perceber, por baixo dos meus pés, o som de folhas de amoreira da água, curvando-se e recurvando-se entre os dorsos dos penedos, e a respiração atónita dos cães, erguendo para o feitor as órbitas cor-de-rosa, à espera de uma protecção que não vinha. Os foguetes da festa tinham cessado, nenhumas nuvenzinhas redondas surgiam e se desvaneciam bruscamente no céu agora verde, as cegonhas regressavam a nadar de bruços de Vila Nueva del Fresno para os seus ninhos gigantescos no cume dos sobreiros, medindo com as antenas dos bicos esticados o sentido do vento. A essa hora os comunistas, agrupados em Beja, apinhavam-se em camionetas e tractores, e alastravam aos gritos para o Alandroal, para Arraiolos, para Monsaraz, lançando fogo às casas e ao mato e degolando o gado e as pessoas, comandados por agitadores checoslovacos.

- Trezentos contos que tem?, admirei-me eu a mudar de espingarda. As paredes devolviam-me o despeito em ondulações concêntricas, ao mesmo tempo próximas e distantes como as dos sinos. Deves ter recebido de Moscovo muito mais do que isso por nos espiares estes anos todos.

Tornei a disparar mas a bala ricocheteou numa esquina de pedra, numa segunda esquina, num poste ferrugento e perdeu-se janela fora na direcção da noite. Talvez que tenha morto uma cegonha, talvez que tenha tombado no termo do seu trajecto, sem força, inofensiva e inútil, aos pés de um comunista qualquer. Talvez que eu devesse matar vermelhos em lugar de cães, deitar-me de barriga para baixo, com uma azinheira a abrigar-me, e despejar os cartuchos todos num tractor. O homem pôs a boina na cabeça e voltou as mãos estendidas, de dedos afastados, para mim:

- Acabe com isso, acabe com isso, disse ele numa voz aguda mas sem ira nem receio. Tomara eu ter para comer a partir do meio do mês, senhor doutor.

A água do rio enegrecia, as árvores enegreciam, os primeiros ralos trinavam as pálpebras metálicas das asas, a terra elevava-se lentamente, no ronco contínuo de uma manivela de ervas, até tocar no céu escuro, aprisionando os pássaros: só os mochos e as corujas, de olhos amarelos, vogavam livremente sobre as copas, crocitando vagidos raivosos de bebé. Os faróis das camionetas bolcheviques alcançaram o Redondo e oscilavam já, no piso desigual das travessas, num concerto de ameaças e de hinos, a caminho de Monsaraz. Um dos checoslovacos consultava uma lista com os nossos nomes sublinhados.

- Andas fartinho de saber que daqui a uma ou duas horas, o máximo, os teus amigos ateus chegam à vila. Mostraste-lhes bem onde era a nossa casa ou vão empalar toda a gente com as foices e os ancinhos?

Civis e tropas misturados, recebendo directrizes da embaixada russa, da embaixada cubana, e desses nojentos oficiais barbudos da revolução, de pupilas a arder como as do lobo d’alsácia da professora, que jogava o focinho e as patas contra as grades do portão da escola.

- Eu compreendo lá de que é que o senhor doutor está a falar, disse o homem a coçar a boina, perplexo. Cubanos? Quem são esses cubanos? Não exagerou na aguardente durante a festa, por acaso?

Era já noite completa agora, se bem que a lua, redonda e turva, não subisse ainda do seu esconderijo no restolho. Haviam aceso os candeeiros de Monsaraz porque uma espécie de auréola coroava as muralhas, tornando-as de cartão sem espessura como os presépios, com lâmpadas dentro, das igrejas. As criadas amontoavam malas e caixotes no vestíbulo, a minha mulher despia o bibe da mongolóide, que a fitava no espanto inocente do costume, e procurava, ajudada pela sobrinha e pela cozinheira, vestir-lhe uma camisola, uma saia, uns sapatos que lhe não serviam nas barbatanas dos pés largos e planos, providos de grossos dedos encavalitados como os seixos do rio. Os últimos bêbedos ressonavam, no adro da igreja, esse som irregular, de gripe de cavalo, do vinho, cercados pelo arame farpado de hálitos e vómitos. Vagabundos descalços exploravam o lixo com as bengalas, disputavam aos gatos ossos, cascas, espinhas, restos gordurosos de pão. O feitor e os perdigueiros, engolidos pelas trevas do moinho, denunciavam-se por pequenos, quase imperceptíveis rumores, um atrito, uma folha pisada, um gemido ténue, um derrapar de patas, e eu sentia a irritação dos cegos para além de cujos óculos de mica moram os dias ensolarados que não conseguem ver.

- Vossemecê carregou no bagaço e tem mau álcool, disse o feitor que se afigurava surgir ao mesmo tempo de vários pontos do moinho. Já se considera satisfeito com as brutezas que fez?

Um morcego esvoaçou por segundos junto a mim, afilado e rápido, subiu em flecha no ar, desapareceu. Um dos checoslovacos esmagou a cabeça de uma criança com a coronha da arma, como um ovo podre. Os soldados metralhavam as vidraças do Outeiro, ou lançavam garrafas, com mechas de petróleo a arder, sobre os telhados das casas. As pessoas tentavam proteger-se do fogo com as mangas, troçados pelas gargalhadas dos cubanos: Tenho de voltar depressa para cima, tenho de tanger até Espanha a manada de anormais e de putas que o velho me legou.

- Anda cá, comunista, ordenei eu a tactear sombras com a espingarda, a descobrir um vulto, a disparar, a puxar a culatra, a introduzir mais balas, a disparar de novo. Anda cá, neto de uma cabra, para te ensinar como deve de ser a respeitares os donos.

E suponho que atingi um dos cachorros porque ouvi chiar e latir como os bichos chiam e latem se estão feridos, um reboliço de patas, animais que rosnavam. A construção de pedra cantava como um búzio, e os sons, em lugar de definharem, embatiam como borboletas nas paredes em ruína. Os olhos ardiam-me de pólvora, as orelhas, ávidas, seguiam teimosamente o feitor naquele cortiço de ecos que parecia, a todo o momento, ir despegar-se da margem para navegar à deriva, rio abaixo, a caminho da foz, transportando consigo os tentáculos limosos dos alicerces. Devia existir, existia com certeza, um leme oculto em qualquer sítio e uma vela na mezena do tecto, que nos permitissem manobrar por entre as rochas e as cascatas, e desembarcar em Espanha num cais de madeira repleto de pescadores intrigados. No meu entender todas as casas, todas as vilas são barcos: a nau de Monsaraz, por exemplo, ficou a apodrecer no seu monte quando as marés vivas do Guadiana se retiraram da encosta. Os legumes do cemitério possuem uma textura de corais e as aldeias da colina assemelham-se a destroços caiados que peixes mudos, de enxada ao ombro, habitam. Comunistas. Comunistas com fotografias de Lenine no quarto. Comunistas aguardando uma oportunidade para nos matarem: uma injecção na carótida, um revólver na nuca, uma faca no pulmão.

- Vossemecê não regula da cabeça, disse a voz inlocalizável, quase fluida, confundida com a do rio, do feitor. Para seu governo vossemecê nunca regulou da cabeça, era a si que o deviam ter metido à força no hospital de Lisboa. Até com as doentes se vai deitar no mato. Se eu não desviasse a mão ao seu sogro não estava agora aqui a assistir a isto.

E eu lembrei-me do corpo nu da mongolóide, das mamas gordas, pendentes, maiores do que as da professora da escola, do lobo d’alsácia a raspar com as garras furiosas os vidros da cozinha, do quarto dela cheio de véus, de reposteiros, de colares dependurados da armação de vime do espelho, Como é que eu saio com esse monstro aos pulos no quintal?, e a palma urgente da rapariga no meu lombo, nas minha nádegas, Eu seguro-lhe a coleira, descansa, não me faças esperar, não tenhas medo, vem cá, as coxas côncavas que me recebiam, o perfume barato, o locutor a dar as notícias no rádio enquanto eu me vinha, o sinal horário das duas da manhã, Se não volto depressa para casa a minha mulher faz-me uma cena. Não te deixo sair, não agarro o cão, olha os saltos que ele dá pelos canteiros, quero mais, preciso de mais, há tantos meses que, há tantos anos que não sentia o peso de um homem no meu corpo, aperta-me com força, lambe-me o pescoço, mete-me a língua nos ouvidos, semanas e semanas à espera disto, caramba, os meus brincos aleijam-te?, e o colchão a desconjuntar-se aos estalos como os esqueletos dos mortos, que diferente beijar uma boca com dentadura postiça, encontrar em vez de carne aquela placa lisa de plástico, aqueles ganchinhos de arame, Nem calculas como me sinto sozinha nesta terra, acabo as aulas, preparo o jantar, faço crochet, nem acendo a televisão, vou para a cama, não vejo ninguém, não me dou com ninguém, não converso com ninguém, tenho os meus pais em Faro, não tenhas medo do lobo d’alsácia, amor, anda cá Hitler, quieto, queres apanhar com a chibata ou quê, vês que não te faz mal nenhum, querido, vês que não faz mal a quem me faz bem, a mão dela a prender-lhe a coleira, o animal, de mandíbulas fosforescentes e orelhas espetadas para mim, a rosnar, Até amanhã, volta amanhã, voltas amanhã, não voltas?, subir a rua depressa, despir-me aos arrepelões enfiar-me na cama. Por onde é que andaste agora?, Quem, eu?, a luz de súbito acesa, No quarto da professora, aposto, aquela puta, Mal conheço a professora, jóia, é bom dia boa tarde, mas que ideia a tua, apago o candeeiro, dorme, Cheiras a água-de-colónia reles que tresandas, trazes bâton na cara, vens peganhento de cremes, que nojo, amanhã de manhã peço ao meu pai que me meta uma cunha para transferir essa vaca, Não sejas tolinha, jóia, qual bâton?. Qual bâton, ainda perguntas qual bâton, palavra de honra que é preciso lata, então se não é bâton o que é isto no meu dedo, diz-me lá?, Não sei, a sério que não vejo nada, jóia, Isto, Ah, isso aí, mal se percebe, devo ter roçado com a bochecha em qualquer sítio, uma coisa assim de nada como é que queres que me lembre, estás sempre a imaginar mulheres por toda a parte, anda cá, não sejas tonta, dá-me um beijinho, não chores. Chorar, eu?, ia agora chorar por um canalha como tu, estou é cansada de fingir de parva há vinte anos, só não te deitaste com a minha mãe porque não chegaste a conhecê-la. Essa é de mais, se não apagas a luz apago eu, és de ideias fixas, tu, meteu-se-te na cabeça que te engano e pronto, julgas que não tenho mais nada que fazer?, É uma boa pergunta, responde, vá, responde, o que é que fazes para além de, para além de fornicares com a primeira que aparece?, Onde é que guardas os lenços, deixa-me assoar-te estás toda fungueta, toda ranhosa, daqui a nada acordas o resto da família com os teus gritos ora a porra, detesto ver-te assim, detesto que te atormentes sem motivo, ainda se houvesse uma razão eu aceitava, garanto-te que aceitava, Exijo o divórcio, fica sabendo, exijo que saias amanhã de Monsaraz. Por amor de Deus, jóia, mas que coisa, tiveste um sonho mau, um pesadelo, acontece a qualquer um, diz-me onde é que encontras esse bâton agora, francamente podia pensar que imaginasses tudo, mas a professora e eu, desculpa a expressão, é idiota de mais para se tomar a sério, não achas, se me pretendes à força arranjar uma amante arranja uma rival que se veja, não te ridicularizes a perder tempo com ciúmes de uma criatura daquelas. Não sou eu que me ridicularizo, és tu, qualquer burra de saias te serve, até a minha irmã, até a minha cunhada, aposto que até as minhas sobrinhas, Ah, não, isto começa a passar das marcas, jóia, não estás boa da cabeça, cala-te, Sei muito bem o que digo e tu sabes muito bem o que fizeste porque é que há anos que não me procuras, porque é que há anos que não me queres, Depois de discutirmos assim achas que consigo, achas que tenho vontade?, O que é que a minha irmã mongolóide te deu que eu não te dou, não me levantes a mão que te arrependes, o que é que a minha irmã mongolóide tinha de especial para te rebolares no mato com ela?, Acaba, Leonor, eu disse acaba, são quase três horas, estou podre, fazes tenções de passar a noite inteira nisto?, Podes bater-me à vontade, a única intimidade que tens comigo é isso, vá, dá-me outra bofetada, continua, Não me apetece bater-te, apetece-me dormir, larga-me, larga-me, larga-me, Larga-me, o que é isso, larga-me, gritei eu para o feitor que não via, de quem apenas escutava a respiração e o ferver do suor e o cheiro da terra e pouca água e os assobios dos cães prontos a obedecer-lhe e a morder-me, larga a espingarda, comunista, vou furar-te as tripas com esta merda, e empurraram-me, e tropecei, e caí para trás, e espalmei a anca na pedra de um degrau, e não podia levantar-me, e os perdigueiros e os passos do homem afastaram-se sem pressa no restolho, escuros no espesso escuro da noite crepitante de asas, de insectos, de animais minúsculos que trilavam do voo de vampiros e de corujas, dos estalos dos arbustos e dos ramos das árvores e do ruído das camionetas e dos tractores dos comunistas ao longe, enquanto a lua subia finalmente por detrás de um morro, enodoada e manchada, um disco de papel amarrotado que acordava os braços quebrados das oliveiras, aumentava o contorno pálido do moinho contra o contorno cinzento das colinas, iluminava o cemitério, as muralhas, os legumes negros do coveiro, o feitor que aparecia e se afundava na cortina dos arbustos e nas ondulações da terra, e eu a gatinhar para um relevo de pedra, a procurar ajoelhar-me, a sentar-me no chão, a procurar outra vez, Pode ser que amparado à caçadeira, pode ser que enterrando a coronha, quero dizer, o cano, nas ervas, me equilibre, e não era só a anca que me doía, era o fio incandescente de um nervo a arder no músculo da coxa e a alargar-se em leque nas cartilagens do joelho, Não vou ser capaz de andar, pensei eu não vou ser capaz de me mexer daqui, os comunistas injectam-me atrás da orelha e pontapeiam o meu corpo morto para o rio, ou então os ratos, os gafanhotos, as moscas, as formigas e os grilos ir-me-ão comendo a carne até que alguém me encontre, espécie de raiz seca, sem rosto, com limos de farrapos de roupa a badalarem dos ossos, tão de madeira e lixo e pestilência como o velho estendido, sem velório, no cubículo do primeiro andar. Nuvens estiradas como bocejos deslizavam pela mó da lua e sumiam-se, e eu de gatas, com medo dos ginetes, a coxear metro a metro os três quilómetros que separavam o Guadiana da casa, a chamar por socorro, a gritar pela professora, a gritar pelo feitor, a gritar pelo meu sobrinho, Ajudem-me, e tudo parado lá em cima, tudo tão quieto e ameaçador e sossegado como a seguir às explosões ou aos desastres, quando o pó começa a assentar e se percebem, através do fumo, os ferros torcidos e os cadáveres. O checoslovaco tirou a pistola do coldre e apoiou-me no pescoço a pontinha gelada do cano. Coelhos ou perdizes estremunhadas fugiam de mim pelas ervas fora, um tropa agarrou-me péla camisa, Este é o latifundiário, mata, e agora, ao atingir a muralha, da banda do castelo eram as duas pernas que me doíam, e os ombros, e os rins, e as mãos, e no interior da vila, só os detritos da festa flutuavam por aqui e por ali, nem um bêbedo, nem um cão, nem um frango, nem uma luz acesa nas casas. A lua cromava os ramos da figueira do quintal, o menhir da bomba de água, a penugem das sardinheiras rente ao muro: sacudi a aldraba, sacudi a aldraba, sacudi a aldraba, as camionetas e os tractores de Moscovo largavam do Telheiro, sacudi a aldraba, escutei do outro lado um murmúrio de cachorros, qualquer coisa mole despenhou-se da figueira e rebentou, perfumada e aftosa, ao meu lado, sacudi a aldraba, a lanterna do vestíbulo acendeu-se e a filha do feitor, a que casou com o idiota do meu cunhado dos comboios, vestida de luto, a apertar o casaco na barriga, entreabriu a porta, e não havia nenhum quadro nas paredes, nenhuma prata nos armários, nenhuma porcelana no mármore das cómodas. Tinham arredado uma estante para esvaziar o cofre. Um cálice tombado na cristaleira sem copos estilhaçava em mil cores o candeeiro do tecto:

- Foram todos há que tempos para Espanha, disse a mulher baixinho, como que a desculpar-se, no tímido e hesitante murmúrio humilde do costume, a ajudar-me a subir para o sofá de couro, defronte da televisão apagada. E passou-me pela cabeça que podias precisar de mim.

 

                                                                                António Lobo Antunes  

 

                      

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