Gil Vicente
FIGURAS: DUARTE GONÇALVES UM VILÃO DOIS ESCRIVÃES UM NEGRO UMA VELHA ATAFONEIRO UM RATINHO UM PARVO
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(Entra Duarte, patife, e diz)
DUARTE O diabo me tomou, ir eu viver com ninguém, não sei quem me enganou, que vivia muito bem... O demo me cativou!
Vivia à minha vontade, tinha vida muito boa, que, só por minha maldade, era dos velhacos coroa da Ribeira desta cidade.
Andar ali homem com feira, esse é todo o folgar e dizer: quem quer levar? E se vê bolsa ou algibeira, ver se a pode cortar.
Vive homem mui contente
dois patifes
à perinha e à maçã, que esta vida é glória vã, e também comeis pão quente com manteiga, pela manhã.
Viveis assi descansado, sem ter nenhuma opressão, ali, no mal cozinhado, há aí peixe cozido e assado, que comeis com vinho e pão.
Muitas cousas de folgar acha homem para bargantes, há i uns dados de jogar, e também um apanhar de finos melões de Abrantes.
E outra cousa nos quadra e nos é mui prazenteira, esta é a nobre Feira que há sobrenome Ladra... com que muitos tem cenreira.
Duas vezes me tomaram por mandado do meirinho. A primeira me açoutaram, e a outra, me ficaram as orelhas no pelourinho.
Ora quero-me calar com toda minha paixão... E a mesa consertar a meu amo, o escrivão, por que não venha bradar.
(Estando consertando entra Gonçalo e diz)
GONÇALO Ah, Duarte, companheiro! Que alvíssaras, me hás de dar finas, de muito dinheiro... porque te trago, parceiro, novas para bem folgar.
DUARTE Que demo pode isso ser, que tu vens mui prazenteiro!? Isso deve ser comer... ou cousa de grão dinheiro segundo meu parecer.
GONÇALO Cousa é, de grande avio, que a nós muito nos quadra, de que eu me maravilho e que é, a Feira da Ladra, que se muda ao Rossio.
Acordámos em conselho de se esta feira mudar, sequer para nos deixar aqueste alcaide velho que a todos faz açoutar.
DUARTE Parece-me a mi mal tal conselho se acordar, porque nos há de caçar aí Francisco do Casal e fará de nós mau pesar.
GONÇALO Esse, está mui bom dizer bem, Francisco do Casal que nos pode aí fazer... ele pode-nos prender nas escadas do Hospital?
DUARTE Ora, muito embora seja, singular é teu dizer, não nos pode aí prender, porque isso é igreja... Viveremos a prazer!
Em tudo és avisado, e eu certo, assi to chamo... Mas deixando isto apartado, donde fica o malvado do velhaco de teu amo?
GONÇALO Mandou-me hoje trazer a mesa a este lugar. Eu bofe, fui-lha vender e meti-me a jogar... e o dinheiro fui perder.
DUARTE Ora estás bem aviado não hás vergonha de fugir? Que tinhas amo honrado... Foste mal aconselhado de tal amo te sair.
GONÇALO Minha ama é desesperada, não tem nenhuma razão, e, mais mal-aventurada, pespegava-me punhada que dava comigo no chão.
DUARTE A minha é arrazoada, uma cara de estorninho, seu beber é biscainho... A cada comer, uma canada, há de beber de bom vinho.
GONÇALO Olhai, com que me acode, tudo isso não é nada, falas-me numa canada? Pois a minha, um almude bebe de cada assentada.
DUARTE O mundo vai-se perdendo, porque já não há mulher moça, velha, e qualquer, já todas o vão bebendo... E o chupam no pichel.
Então, se lho vem beber, dizem que é por amor da madre... Sabem já tanta maldade... que não se podem escrever cousas desta qualidade.
Doutra cousa me espanto... e é para espantar! Velhas mortas por casar... que não podem com o manto e querem-se desposar.
GONÇALO Isso é por que eu cramo, já todas querem casar... Mas deixando esse falar, ementes não vem teu amo? Queres tu aqui jogar?
DUARTE E que jogo jogaremos? Primeirinha a descartar?
GONÇALO Jurei de não jogar, mas aos dados rifaremos que é jogo singular.
DUARTE E eu que os fui perder!
GONÇALO Aqui trago eu, alguns três, muito bons de receber. Vê tu, se o queres fazer, e mais, logo há de ser!
DUARTE Sou contente, não me pesa... bem podes logo deitar, se tua mercê mandar... Aqui, sobre esta mesa.
GONÇALO Quanto havemos de jogar?
DUARTE Cada rifa, um vintém, ponde aí o tostão, que eu conheço-vos mui bem.
GONÇALO Ponde vós outro, cabrão!
DUARTE Vedes o meu, como vem?
GONÇALO Jogo pois, que assi quereis, eis ali, tenho catorze... e sete, são vinte e três... eis ali, tenho mais doze... e fazem trinta e seis.
DUARTE Eis ali, tenho eu dez... dez e quatro, são catorze... e onze, são trinta e três!
GONÇALO Olhai, que esto já perder, pouco te aproveitam os onze.
DUARTE Mas tornemos a jogar que esto foi balcarriada, se não, não te hei de pagar.
GONÇALO Se quisesses ora zombar!? Paga-me, não cures de nada!
DUARTE Que dizes, que te hei de pagar? Dar-te-ei infinita punhada!...
GONÇALO Si vós quereis pelejar por me não pagardes nada, esse está mui bom falar.
Sus, paga-me o dinheiro, se não hei-te de matar!... Ora hás-me de pagar...
DUARTE Também trazemos faqueiro... com faca para arrancar.
GONÇALO Que é isso? Já vós suais? Que é agora o que dizeis? Já vós vos acovardais?
DUARTE Ainda vós, vilão, falais? Já vos acolheis?
(Vão-se ambos e entra o Escrivão Primeiro, e diz o Escrivão)
PRIMEIRO ESCRIVÃO Digo que isto está bem. O meu moço não é aqui, e foi-se por i além... Que me mate por ruim se não prova o rebém.
Confiai lá em rapazes, e vereis onde ireis ter... Para nada são capazes! E nunca tendes prazer com eles, nem menos pazes...
(Entra o Escrivão Segundo e diz)
SEGUNDO ESCRIVÃO Ora bem, Deus vos ajude! Há cá muito que fazer?
PRIMEIRO ESCRIVÃO Deus vos dê muita saúde! Inda agora aqui vim ter e sempre ele me acode.
SEGUNDO ESCRIVÃO De que estais apaixonado?
PRIMEIRO ESCRIVÃO Estou! Eu que fui mandar hoje mesa aqui pousar por aquele meu deslavado, e foi-me aqui só deixar...
SEGUNDO ESCRIVÃO Eu também estou espantado que dês hoje, este dia, é cá o meu malvado. É certo que se iria... e levou-me o meu furtado.
PRIMEIRO ESCRIVÃO A que o mandastes cá? Que esse vosso, é má peça!
SEGUNDO ESCRIVÃO Nunca vi cousa tão má! Mandei-o trazer a mesa e ele inda não é cá.
É certo que foi vender a mesa para jogar...
PRIMEIRO ESCRIVÃO Dive-lo de ir catar antes de se acolher, ou o dinheiro jogar.
SEGUNDO ESCRIVÃO Mas dá-me ora na vontade que é essa a minha mesa... E também a minha tripeça!
PRIMEIRO ESCRIVÃO Pardeus, que dizeis verdade! Do que, ora bem me pesa.
SEGUNDO ESCRIVÃO Assi é, por vida minha, que, eis ali, o sinal tem.
PRIMEIRO ESCRIVÃO Ora, eu estava bem... A minha mesa é vendida, pois ela aqui não vem.
Nunca mais me hei de fiar em moço que eu tiver... Sempre eu ouvi dizer, que é melhor, só estar, que mal acompanhado viver.
Eu o vou logo buscar per i, por esta Ribeira, e hei-o bem de fustigar...
SEGUNDO ESCRIVÃO Havei-lo de achar na Feira da Ladra... ou a jogar!
PRIMEIRO ESCRIVÃO Lá o quero ir buscar! Se ele aqui vier ter, fazei vós polo tomar.
SEGUNDO ESCRIVÃO Se ele aqui vier eu o farei aqui estar!
(Vai-se o Escrivão Primeiro e entra o Negro cantando)
NEGRO (canta) “Siora por que matai Fronando deso beição pois tener mi coração?”
Ah cotado malo-banturado, cotado mi coração como vioer tão penado... Sempre doente, nunca são, sempre mai martorizado.
Ai cotado, que barei, nunca ter em mi prazer, por isso nunca bom ter mujer que anda com rei... Porque nunca poder ber.
E por força, dezer, burnudo masso que pego, por que nunca falecer outro perro de cão negro, que para ela querer.
Contudo, mi sacreber, ua carta a embora em que manda rei dizer alembrai mina siora desse bodo que querer. Ou sioro, belo mão!
SEGUNDO ESCRIVÃO Venhas muito embora.
NEGRO Nunca mi fugido, não.
SEGUNDO ESCRIVÃO Pois, que queres agora?
NEGRO Não sentai bós, o scrivão?
SEGUNDO ESCRIVÃO Sião para quê, ou que queres tu fazer?
NEGRO Querer sacreber! Secutar boso mercê e deixar a mi fazer.
SEGUNDO ESCRIVÃO Ora bem, podes falar... Assenta-te nesse banco! Quanto me hás de dar?
NEGRO Mi, darei um bintém branco, se boso querer, começar.
SEGUNDO ESCRIVÃO Sam contente. Nessa hora o dinheiro me hás de dar, e hei-ta logo de acabar...
NEGRO Si, eis aqui, tomar. E pôr logo : siora.
(Carta do Negro)
Siora, se bós querer, matai, matai porquê já? Porquê? Falai por que nunca mio agora? Quer mi lebar à coba, a enterrar?
Nunca querê sacreber... Não querê mandar recado! Parece que há de morrer e assi, desoporado, para nunca más a ber.
Não querê malo falar, senão que mandar dezer que outro negro não tomar para coso defender senão mi há de raivar...
Pôr: de boso sobridor, e amigo, Fernão Capado... Muito grão boso morado... Ora ser, ora sior.
(Lê a carta o Escrivão ao Negro, e acabada diz o Negro)
NEGRO Jesu, Santo Perito, cumo sentar bem notada... Ora, fazê bem cerrado... Ora faz o sobrequito, pera bai bem sacritada.
SEGUNDO ESCRIVÃO Que sobrescrito há de levar?
NEGRO À siora, siora... Mi siora Caterina Rabular... Em casa de Dom Gasopar... Na cidade de Évora.
SEGUNDO ESCRIVÃO Ei-la, aí tens acabada, vê tu que queres agora...
NEGRO Sentar bem sacritada?
SEGUNDO ESCRIVÃO Toda está bem concertada! Vai-te muito na boa hora.
(Vai-se o Negro e entra um Moço de escudeiro)
MOÇO Não pode maior mal ser, que ser moço de escudeiro!... Que nunca tendes dinheiro, nem menos bem de comer. Enfim, que é vida de marteiro.
Mui mal aconselhado fui, pôr-me com escudeiro... E mais ainda, com um pelado! Que dous vinténs em dinheiro não tem o triste coitado.
E então... vê-lo ir para o serão... Que vai feito um caracol, e vai-se à Porta do Sol furtar capas, para pão.
Então, ver a simulação com que vai a casa ter. Faz: moço tens de comer!?... Porque eu venho do serão, bofé, com grande prazer.
Porque lá, não me escapa um bailar de tordião... Bailei eu de tal feição que me deram esta capa, que trouxesse para pão.
E ele, trá-la furtada ao triste pecador, que ganhou com seu suor... Não falo nisto mais nada lá se avenha com o senhor.
Que ele há o de pagar, em Inverno ou Verão!... Ora, enfim, quero falar ao senhor escrivão... Deus o queira ajudar!
SEGUNDO ESCRIVÃO E a vós, senhor, também vos queira sempre guardar!
MOÇO Queria com ele falar...
SEGUNDO ESCRIVÃO Ora, diga ao que vem, servi-lo-ei, se mandar.
MOÇO Quero que seja informado do caso a que venho aqui: Eu estou com um pelado de um escudeiro, assi, muito grande namorado.
E tem-me ele prometido, se lhe eu arrecadar isto, que quero contar, um muito fino vestido, diz, que mo há logo de dar.
E, é que anda de amores com uma filha da sardinheira... que agora é tripeira! Ela, não lhe dá favores, do que ele tem canseira.
E mandou-me um recado agora, a sua casa, e eu não sei o que faça sequer! Por ir aviado, faça-me uma carta falsa.
Como que vem de sua mão... Ganharei eu o vestido! E mostre ter-lhe afeição, dizendo, que o coração só por ele tem perdido.
SEGUNDO ESCRIVÃO Eu farei isso, mui bem, se me for mui bem pagado!
MOÇO Aqui trago eu diputado para isso, um vintém.
SEGUNDO ESCRIVÃO Como dizia o recado?
MOÇO Dizia, senhor, assi: Eu sou mui pouco alembrado senhora do meu cuidado, mas, alembrai-vos de mim, que por vós vivo penado.
(Escreve o Escrivão a carta entre si desta maneira)
CARTA Senhor, Cá me mandou um recado, em que dá a entender que eu lhe dou cuidado, e, que de mi não é lembrado, e que o deixo morrer...
Por certo que tudo isso se encerra em mim, senhor, que sou presa de seu amor... Por vê-lo, em seu serviço, não lhe escrevo mais senhor.
SEGUNDO ESCRIVÃO A moça, como se diz?
MOÇO À moça chamam Maria, segundo a mãe dizia...
SEGUNDO ESCRIVÃO Sua servidora, Maria... Ora escutai o que fiz! Vereis cousa à maravilha!
(Lê o Escrivão a carta acima escrita e acaba diz o Moço)
MOÇO Está, meu senhor, tão bem, que não pode mais estar!... Há-me a logo de cerrar... Tome aí este vintém, escrito não há de levar.
SEGUNDO ESCRIVÃO Ei-la, aqui tendes cerrada. Isto para homens vãos não é senão marmelada, porque vai mui bem notada...
MOÇO Senhor, beijo-lhe as mãos!
(Vai-se e entra um Vilão e diz)
VILÃO Este é um cajo forte, para mim, de grão cuidar... Não sei em que há de parar, ou ela a tomou, a morte, ou a quer, nego, tomar!
Como é não me mandar, a boa de minha mulher, uma carta de escrever... Pois que, nego, quer passar de três meses que vim cá ter.
Não me parece a mim isto bem, a bem falar... Ela carta não mandar... amorio novo anda por i, não posso menos cuidar.
Mas se ela assi o faz não o fará por maldade, fá-lo-á por amor da madre de que é doente assaz...
Enfim, hei-lhe de escrever, porque certo é razão... Verei que manda dizer!... Deus vos dê muito prazer! Sois vós, nego, o escrivão?
SEGUNDO ESCRIVÃO Que quereis, homem de bem?
VILÃO Queria senhor, fazer, digo, nego, escrever uma carta ou item, para minha mulher...
SEGUNDO ESCRIVÃO Ora, assentai-vos aí... Quem na há de notar?
VILÃO Eu lhe hei bem de pagar... Escute-me a mi o que lhe quero contar.
Eu sou, senhor, casado, na vila de Alfundão... Vai, veio um meu cunhado, faze-me vir com apelação lá sobre um meu serrado.
Ando cá desde agosto, sem a boa de minha mulher sem nunca me escrever... Ela tem mui bom rosto, hei medo, que se há de esquecer.
SEGUNDO ESCRIVÃO Quem há de notar?
VILÃO Vós, hei-la de escrever, e eu, a hei de notar. Um vintém vos hei de dar... Começai logo a fazer...
Ponde logo: Senhora mulher...
(Carta que escreve o Vilão)
CARTA Senhora mulher. Sempre eu vim no batel até que aqui vim ter... Não me quisestes escrever, quiçais, não tereis papel, ou, o não sabereis fazer.
Eu fico nesta cidade de vós muito agravado, por me dizer João de Arado que andais cheia de vaidade, e que, é tudo emburrilhado.
Se assi é, ou não, vós mesma o sabereis!... Vós, olhai o que fazeis, não durmais o sono em vão porque certo mal fazeis.
E mais, vos faço saber, que cá não faço mal alguém... Não quero mais escrever senão, que Deus vos dê bem, e vos livre de bem querer.
De vosso marido, João Lourenço.
VILÃO Escreva o sobrescrito para, Maria amada, mulher de bem, e casada, moradora em Santo Espírito na vila já nomeada. Tendes tudo acabado?
SEGUNDO ESCRIVÃO Já estais bem aviado...
VILÃO Pois, tomai este vintém, e Deus vos dê sempre bem porque sois homem honrado.
(Vai-se o Vilão e entra uma Velha e diz)
VELHA Eu tenho bom parecer e tenho boas feições... Me desejam todos ver... E, não posso tão velha ser como foram as paixões.
Estas paixões me enterrarão, e secarão até aos tutanos...
Paixões me envelhecerão, que agora não me chegarão moçazinhas de quinze anos.
Uma carta quero mandar a um homem de prazer, hei-lha mui bem de notar que se há de espantar!... Verei que me manda dizer.
Eu, triste, não vejo nada... Onde está o escrivão?
SEGUNDO ESCRIVÃO Que mandais, dona honrada?
VELHA Deus vos dê consolação!
SEGUNDO ESCRIVÃO E a vós, faça bem casada!
VELHA Amem!...
SEGUNDO ESCRIVÃO Que mandais? Assentai-vos para aí.
VELHA Quero fazer assi: quero que me escrevais uma carta logo aqui...
Tomai logo esse vintém. Haveis-ma de escrever a um padre, que me quer bem, ponde tudo por item, como vo-lo eu disser.
Carta que manda escrever a Velha:
CARTA A vós, Gonçalo da Cortiçada... Eu vos mando encomendar, que vos queirais alembrar como por vós sou prenhada, e quero-me convosco casar.
Por isso, vede o que fazeis, tirai-vos desse marteiro... Que melhor vos casareis que andardes por varredeiro de quem, mais que eles valeis.
Disto, tende vós cuidado, não vos cure de esquecer... sereis mal aconselhado... Não quero mais escrever, senão, que sejais bem casado.
De vossa esperdiçada, Ana Afonso.
Isto abasta, por agora, não lhe quero mais pousar. Sobrescrito não há de levar... Ora sus, naquessa hora ma tornai a declarar.
Lê o Escrivão a carta e diz a Velha:
Está senhor muito bem não há i mais que falar... Deus vos queira bem guardar!
SEGUNDO ESCRIVÃO E a vós, dê sempre bem, e vos queira bem casar.
(Vai-se a Velha e entra um Atafoneiro e diz)
ATAFONEIRO Esta ida del-rei para Évora me deu mui grande canseira, porque, se ele não fora, estivera aqui agora minha senhora padeira.
Que agora vivo penado, penado com afeição...
pois o amor tão chegado se foi, por me dar paixão.
Eu hei-lhe de escrever uma carta excelente... que se espante a gente que a ler, ou ouvir ler, como homem mui prudente.
Este, deve ele de ser, o decho do escrivão... Ora Deus vos dê prazer!... Se quiserdes... senão, não... Assi se há de entender.
SEGUNDO ESCRIVÃO Que diz lá o atafoneiro? Pareceis-me namorado!
ATAFONEIRO Bofé, bem atribulado, que passo tanto marteiro quanto sabe meu cuidado.
SEGUNDO ESCRIVÃO Pois, que é o que quereis, que vindes arrecadar?
ATAFONEIRO Vós não me escrevereis uma carta para mandar?
SEGUNDO ESCRIVÃO Escrever-vos-ei eu, três.
ATAFONEIRO Pois, tomai este vintém, fazei como vos disser, que, se for a meu prazer, um melom de Santarém vos darei para comer.
E ponde logo: Senhora.
(Carta do Atafoneiro)
CARTA Depois de me encomendar em vosso chapado amor para vos contar minha dor... não vo-la posso contar porque me falta favor.
Digo, que mouro vivendo por vos ver, minha senhora... Não sejais vós causadora de me eu estar cá morrendo. Vinde vós já dessa Évora.
Assi, senhora, que me não dê com esses tiros tão mortais, porque o que passo não vê... E por agora, nô mais, encomendo-me em vossa mercê.
De seu amado, Afonso Gil Lea-me ora...
(Lê o Escrivão a carta acima escrita)
ATAFONEIRO Muito boa está assaz... Ora, çarre-ma agora. O sobrescrito diga: à senhora... Senhora Lianor Vaz, minha grande matadora.
SEGUNDO ESCRIVÃO Ei-la, tendes acabada, bem vos podeis ir embora... Ei-la aí, mui bem cerrada.
ATAFONEIRO Ficai com Nossa Senhora, que o tenha em sua guarda.
(Vai-se o Atafoneiro e entra o Ratinho e diz)
RATINHO Ai!... Se com este suspirar se me fosse a paixão, para me desabraçar este triste coração que de dor, me quer saltar.
Ai!... Hei por força de sentir a dor daquesta ferida... pois me veio a ferir a esperança perdida, para me nunca mais vir.
Ah, cartinha quem te fez? Por que não queres falar? Ai!... Ajuda-me a suspirar, porque é certo, que tu vens da causa do meu penar.
Como vai a Catalina? Não me queres responder? Por quem te mandou escrever? Nam quer a minha mofina que o tu saibas dizer.
Em que cabo pôs a mão aquele rosto pintado, mais luzente que carvão, para que o meu coração nela seja pranteado?
Quero-te ir dar a ler... Tu serás o meu perigo, nisso, não há que fazer... Deus vos ponha mais prazer do que eu tenho comigo!
SEGUNDO ESCRIVÃO Tu sejas mui bem chegado! De que é tua paixão?
RATINHO É um mal de coração que o tenho asseteado, sem cura, nem guarnição.
SEGUNDO ESCRIVÃO Tenho grande dor e pesar certo, deste vosso mal... Por que dais a demonstrar, não se pode já curar. Foste já ao esprital?
RATINHO De ninguém é conhecido meu mal, nem minhas dores... Curaram-me os curadores do esprital dos perdidos, que mas fazem inda maiores!
SEGUNDO ESCRIVÃO Muito bons mestres há i!... Não sei como não sois curado, assentai-vos para aqui.
RATINHO Sempre este mal em mim está mui encurralado.
SEGUNDO ESCRIVÃO Não vos posso entender, não falais por via direita. Fostes ao esprital ter? Como pode isso ser? Não vos deram alguma receita?
RATINHO Receita, senhor, si, hoje ma meteram na mão! Ai!... Para o meu coração sem chegar mais ao fim e eu ter maior paixão.
SEGUNDO ESCRIVÃO Isso é carta de amores, e vós sois-me namorado?
RATINHO Essas são as minhas dores!
SEGUNDO ESCRIVÃO Aqui tendes mil favores...
(Lê o Escrivão a carta que traz o Ratinho, e é a seguinte)
Gonçalo amado e de mim mui querido: Sois meu namorado, porque já é devido vos é ordenado!
Cá me querem casar, muito em que me pés. Vinde-vos apresentar, olhai que fazeis! Deus vos queira guardar... Vossa amiga, Catalina.
RATINHO Ai! E não mandas mais dizer? Diz que a querem casar, hei-me de pôr a chorar... Quer-me ele escrever a resposta, se mandar?
SEGUNDO ESCRIVÃO Eu a farei muito bem, mas haveis-me de pagar.
RATINHO Tomai lá esse vintém, começai de assentar.
(Carta que nota o Ratinho para mandar à sua dama)
CARTA Vós me tendes já matado ainda que vivo ando... Por ser vosso namorado, sempre cá ando chorando sem me ter aproveitado.
Eu vos mando encomendar que não caseis lá com ninguém, e assi vo-lo mando rogar, porque, vós sois o meu bem, que Deus me queira guardar.
De vosso esposo, Gonçalo. Ora leia-ma, senhor.
(Lê o Escrivão a carta acima escrita e diz o Ratinho)
RATINHO Ora, está muito boa, a todo meu contentar! No sobrescrito há de levar: À muito nobre pessoa, Catalina de Olivar.
SEGUNDO ESCRIVÃO Esta carta seja dada a Catalina de Olivar... Ei-la aí, vai bem notada.
RATINHO Ora, Deus vos queira guardar.
SEGUNDO ESCRIVÃO Ele seja em vossa guarda.
(Vai-se o Ratinho e entra um Parvo cantando)
PARVO Ai damalo, ai damalo... (Cantando) Quem me dera um condado... Noutro dia fui ao mato catar um feixe de lenha, e passei pela azenha, e pareceu meu sapato.
SEGUNDO ESCRIVÃO Moço, és muito avisado, segundo meu parecer... Queres tu ser meu criado?
PARVO Mas vós sereis o pelado!... Que eu, não no hei de ser.
SEGUNDO ESCRIVÃO Queres tu morar comigo? Dar-te-ei bem de comer.
PARVO Se vós me derdes, um figo, serei eu vosso amigo, e mais, vinho a beber...
E cama, para dormir, e lume, para me aquentar, botas para eu calçar e pano para vestir.
SEGUNDO ESCRIVÃO Tudo isto te darei se comigo quês viver.
PARVO Não me heis de ensinar a ler, porque logo chorarei... E se não, não quero ser!
SEGUNDO ESCRIVÃO Sam disto muito contente! Não te quero ensinar se comigo quês morar!
PARVO Eu também sou mui contente! Dai-me logo de almoçar.
SEGUNDO ESCRIVÃO Ora, toma na cabeça essa mesa, e este banco.
PARVO Ai! Eramá, como pesa! Oh, dou ó demo a mesa, que me tem já um pé manco.
Eu botei-a ali no chão, pois não na quereis tomar?
SEGUNDO ESCRIVÃO Dou ó demo o parvoeirão! Tomai-a logo, sem tardar, e tende-a mui bem na mão.
PARVO Se ela pesa, como lazeira!
Vós não na quereis tomar?
SEGUNDO ESCRIVÃO Eu levarei a cadeira...
PARVO Pois eu hei de ir a cantar.
(Cantiga)
Olhai mãe, não vos morrais, esperai assi, eramá, um pouco, até que eu vá.
Gil Vicente
O melhor da literatura para todos os gostos e idades