Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AVENTURA NO CAMPO / Enid Blyton
AVENTURA NO CAMPO / Enid Blyton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AVENTURA NO CAMPO

 

O "Abrigo Verde" a grande e velha casa da avó foi-se transformando. Num jardim zoológico, num orfanato para animais desamparados ou doentes. Primeiro um cão, depois um gato, mais um pónei, e Francisco, Clara e Alexandre, lá estavam para os acolher. Mas nem tudo eram facilidades: o pai, ferido na guerra, amarrado a uma cadeira de rodas; a mãe, sempre animosa, mas cheia de trabalho; como superar as dificuldades que sempre surgiam. E a avó que não queria vender a velha casa.

Porém, os acontecimentos sucedem-se:

Meio a rir, meio a chorar, a pequena família entrou em casa. Como era acolhedor esse lar! Como estava transformado o Sr. Marshall! Alexandre nunca o vira naquele aspecto, e fitava-o como a uma aparição.

- Quem diria! - murmurou a mãe das crianças. - Oh, pensar em todos os acontecimentos que se desenrolaram este ano!

E a nova casa era agora a "Campainha Branca".

 

 

                     O ABRIGO VERDE

- Mãe! Minha mãe! Onde está? - bradou Francisco. - Venha depressa, por favor. Descobri, no jardim, a primeira campainha branca.

A enxugar as mãos numa toalha, a mãe surgiu à porta das traseiras:

- Oh, Francisco! Era preciso chamares-me no momento em que eu estava tão atarefada a lavar a louça?

- Pois claro, minha mãe - disse o rapaz. - Além disso estaria sempre igualmente ocupada em qualquer ocasião em que a chamasse. Quem me dera que não tivesse tanto trabalho! É espantoso não ter sequer tempo para contemplar uma campainha branca! Olhe, ali está ela!

A mãe olhou para o chão e viu a pequenina flor com sua gentil cabecinha inclinada, meio oculta em emaranhado tufo de ervas, num recanto do jardim. Baixou-se e acariciou-a suavemente.

- Eu tinha a certeza!-exclamou Francisco.-Eu sabia que a mãe faria isso. Traz sorte tocar a primeira campainha branca que se vê no ano novo, não é verdade?

- É o que diz a voz do povo, Francisco - disse a mãe a sorrir. - E Deus sabe quanto necessitaríamos de um pouco de sorte!

Com o filho enlaçado, olhou em redor, para o extenso jardim. - Não estou ocupada em demasia para privar-me de dar um passeio, a ver se há mais novidades - afirmou. - É o dia de São Valentim. Não ouves o cantar das aves? Até o estorninho se treina, lá no cimo da chaminé; nunca lhe disseram que não sabe cantar!

Francisco estava radiante por ter consigo a mãe por alguns minutos e lembrou-se do tempo em que ela estava sempre disposta a passear pelo jardim, a distrair-se, a semear, a podar... Quando ela ria amiúde e parecia jovem e feliz. Agora a situação era muito diferente e só excepcionalmente conseguia a companhia da mãe durante alguns minutos.

- O açafrão está a despontar - observou ela.- E repara: acolá espreita uma violeta, além naquele recanto, na base do muro. Vamos ver se há já primaveras no declive do começo do jardim.

Não havia. Era demasiado cedo. A mãe de Francisco sentou-se no valado e, à sombra dos prateados vidoeiros, ficou silenciosa. O filho olhou-a e tocou-lhe suavemente.

- Em que está a pensar?

- Estou a recordar-me do que era, há anos, este mesmo jardim - declarou a mãe. - Como era belo, Francisco! Tu tinhas uns seis anos... deves lembrar-te também.

- Sim. A relva aparada, os canteiros mondados e com muitas flores - murmurou o rapaz. - A casa era também diferente, minha mãe. E metade das salas não estavam fechadas, como agora. A mãe não andava sempre tão afadigada e...

Deteve-se ao ver lágrimas assomarem aos olhos da mãe.

- Porque estamos agora tão pobres? - perguntou.- Porque não contratamos um jardineiro? Qual o motivo por que não temos uma empregada? É por causa do pai?

- Sim em parte - respondeu a mãe. - O teu pai foi gravemente ferido, na guerra, como sabes, e, como já não pode trabalhar, nós temos muito pouco dinheiro para nos podermos manter. A tua avó cedeu-nos esta moradia quando nos casámos. Eu fiquei contente porque vivi aqui em rapariga. Conheço todos os recantos desta casa.

- Bem, mas porque não a devolvemos à avozinha e não vamos viver para outra mais pequena? - interrogou Francisco.

Então olhou em redor, para o velho jardim, tão seu conhecido, e de súbito mudou de ideias:

- Não, Não; retiro o que disse. Eu não era capaz de abandonar o Abrigo Verde! É o nosso lar.

- Sinto o mesmo - confirmou a mãe. - Mas as circunstâncias agravam-se tanto que suponho que teremos de partir em breve, Francisco, a menos que conseguíssemos vender a casa! Está porém em tão mau estado que ninguém a pretenderá.

E é demasiado grande. Além disso a avó não quer ouvir falar em vendê-la. Na verdade, não encontro solução.

Ladeando o velho muro, percorreram todo o jardim. Não muito distante erguia-se enorme construção

- um grande bloco, com muitos andares. Perto, um outro estava quase concluído.

- Não há muitos anos, tudo isto era campo

- continuou a mãe de Francisco. - Eis porque a esta casa se chamou «Abrigo Verde». Quando foi edificada tudo quanto dela se avistava eram campos verdes, que se estendiam até àquelas distantes colinas. Actualmente os campos transformaram-se em habitações - repara naqueles blocos, por andares!

- Bem; isso significa que mais crianças virão viver para a vila - deduziu Francisco. - Será para nós uma distracção. Suponho que, mais tarde, ela será uma cidade. Haverá mais lojas e um novo edifício dos correios.

A mãe apressou o passo, de súbito recordada dos seus afazeres. Afagou o filho e tranquilizou-o:

- Não te preocupes. Estes problemas são para serem resolvidos pelos adultos. Nem sei porque te disse tanto. Sinto-me confusa. Desejo continuar a viver aqui no Abrigo Verde, que tanto amo, mas não nesta azáfama e inquietude, com tanto trabalho que mal tenho tempo para te dar atenção e aos teus irmãos.

- Além disso a avòzinha não consente na venda da casa. E nós teremos de conformar-nos! - concluiu Francisco. - Eu gostaria de cuidar do jardim! Mas ele é tão grande... Sou um escoteiro, bem sabe; pretendo ajudar em tudo quanto me seja possível. E a Clara e o Alexandre também querem!

- Meus queridos! - murmurou a mãe. - Mas não sobrecarreguei com pesadas cargas frágeis ombros. Vai perguntar ao pai se precisa de alguma coisa. Vês? Já te pedi ajuda!

A mãe afastou-se lentamente. Francisco observava-a. Parecia triste e agora era raro ver o seu alegre sorriso. «Se eu fosse mais velho», pensou... «Leva-se tanto tempo a crescer! Não sei ganhar dinheiro... Tudo quanto sei é engraxar sapatos, fazer recados e coisas semelhantes. Qualquer escoteiro é capaz do mesmo. Eu realmente quereria poder ajudar.»

Mas sabia que não podia. Os adultos teriam de resolver sozinhos os seus próprios problemas.

Foi em busca do pai. Fácil tarefa, porque ele permanecia sempre na sua cadeira de rodas e nunca se distanciava muito.

- Deseja alguma coisa, meu pai? - perguntou Francisco. - Como vão as suas costas?

- Na mesma - respondeu o pai. - Podes ir ajudar a tua mãe, Francisco? É horrível ter de estar aqui sentado a ouvi-la labutar todo o dia! Sinto-me um inútil! Vai ajudá-la.

- Ela mandou-me perguntar se o pai desejava alguma coisa - informou o rapaz, a sorrir. - Quando volta cá o médico? Parece-lhe que o novo tratamento dará resultado?

- Nenhum. Estou convencido de que nada mais há a fazer - respondeu o pai. - Oh, se fosses mais velho!

A tua mãe tem demasiada carga sobre os ombros.

- Há pouco pensei precisamente o mesmo - afirmou o rapaz. - A mãe esteve a conversar comigo e disse-me algumas coisas. Eu não quereria deixar o Abrigo Verde, mas penso que devemos fazê-lo, por causa da mãe. Tanto trabalho mata-a! É demasiado! De facto, é verdade que a avozinha não quer vender a casa?

- Não; não quer - retorquiu o pai em voz breve. - E agora, que veio viver connosco, parece que, mais que nunca, ama esta velha e quase desmoronada casa. Mas não falemos mais deste assunto, que me é desagradável.

Nesse momento a mãe de Francisco chamou-o e o rapaz acorreu. Que dilema! Não descortinava uma solução! A avó não era fácil de convencer. Pessoa muito susceptível, autoritária e severa, os seus três netos receavam-na, e, no entanto, quantas vezes ela sabia ser inesperadamente afável!

No átrio, lá fora, soou o ruído de pés em corrida. Abriu-se a porta das traseiras e entraram Clara e Alexandre. A rapariga, de nove anos, estava alta para a idade. Tinha olhos sorridentes e cabelo encaracolado. Alexandre, de sete, pequeno e sisudo, raramente ria, mas quando o fazia era sempre surpreendente, porque o seu riso, sonoro e repentino, fazia toda a gente rir também.

- Já estamos de volta, minha mãe! - gritou Clara.-Estivemos numa bonita festa, com as Brownies.

- E eu estive numa reunião - afirmou Alexandre. - Eu era o mais pequeno, mas não o mais fraco. Não lhes digo quem se portou pior.

- Estás morto por dizê-lo - volveu a irmã. - Não sejas linguareiro, Alexandre, e além disso nós já sabemos. Mãe, há alguma coisa para comer? Não consigo aguentar-me até à hora do almoço. Há séculos que tomei o pequeno almoço!

Uma senhora idosa entrou na cozinha. Tilintava, ao andar, devido às várias correntes que usava: a dourada, que lhe rodeava a cintura, onde se prendia um relógio de ouro, junto do cinto; um cordão de prata, com medalhão, pendente do pescoço, e em cada pulso pulseiras ornadas de pequenos berloques!

- Ouço-a sempre antes de ver a avozinha - disse Clara. - Faz lembrar o cavalo do carvoeiro.

- A Clara acha muito bonito o som do chocalho do cavalo do carvoeiro - explicou Alexandre. - Eu também acho. E gostaria também de chocalhar quando ando. Penso que...

- Basta - cortou a avó e virou-se para a filha, a mãe das crianças:

- Não me admiro que não estejas ainda despachada! Vi-te a passear no jardim com o Francisco. Porque não acabas primeiramente o que tens para fazer? Então, à tarde, poderias ter tempo para descansar.

Em seguida agarrou num pano e numa lata de cera e pôs-se a encerar, com vigor, a mobília. Era mesmo próprio da avó: primeiro ralhava e, logo depois, procurava auxiliar no que podia.

As três crianças apressaram-se a sair. Estavam certas de que se ali ficassem a avó encontraria algo de censurável para lhes dizer!

Francisco, no patamar superior, abriu a porta que dava acesso a uma sala, quase vazia, mas com um recesso na janela.

- Venham! - convidou o rapaz. - Vamos sentar-nos aqui, a comer biscoitos, a fingir que estamos de novo no nosso grande quarto de brincar.

Aquela fora outrora uma sala de jogos, mas, como muitas outras, a mobília havia sido retirada e vendida e o quarto ficara vazio e desabitado. Todavia, as crianças iam frequentemente para lá e sentavam-se no recesso da janela.

- A gente sente-se aqui tão bem, nesta sala! - observou Clara, mordiscando o biscoito. - É um quarto alegre, apesar de agora não ter móveis. Por vezes penso que se lembra ainda de todas as velhas bonecas, ursinhos e comboios da avozinha e dos irmãos.

- E os da nossa mãe e os dos tios e tias...

- E os nossos brinquedos também, quando esta era a nossa sala - recordou Francisco. - Tu já não te lembras, Alexandre. Eras ainda muito pequeno.

- Olhem aquele enorme prédio - apontou Clara chegando à janela. - Está acabado e tem já inquilinos, porque avisto duas crianças num dos andares. É estranho vermos agora aqueles grandes prédios onde dantes só existiam campos. Oh, bem, agora não creio que isso tenha muito a ver connosco.

 

Mas Clara enganava-se...

As três crianças do Abrigo Verde tinham muito em que se ocupar. Após as aulas, na escola, executavam uma infinidade de tarefas. Até Alexandre colaborava.

A mãe nunca, por mais cansada que se sentisse, importunava os filhos. Mas a avó, sim! Interrogava-os constantemente, para saber se haviam feito o que lhes incumbia, quando o faziam e porque não estava feito.

Francisco e Alexandre eram pacientes, mas Clara irritava-se e, exaltada, interpelava com frequência sua mãe:

- Mãezinha! A avó disse que eu não penso na mãe só porque ontem me esqueci de dar corda aos relógios!

Mas eu sou muito sua amiga e a avó não devia dizer aquilo!

- Oh, minha querida, não tiveste menos atenção para com a avozinha, não é verdade? - costumava a mãe dizer. - Sua linguagem é talvez rude, mas tem excelente coração. Eu sei que és minha amiga e isso é que interessa, não é?

- Com certeza - respondia Clara, a sorrir, abraçada à mãe.

Porém, no dia seguinte, contrariada por bruscas palavras da avó, de novo se impacientava.

- Não acredito que a avó goste de algum de nós - declarou um dia Alexandre, peremptoriamente. - Ralha com todos, incluindo os nossos pais. Há unicamente alguém a quem ela ama demasiado para lhe ralhar.

- Quem é? - quis saber Clara, surpreendida.- Será o Dr. Miles? A avó gosta dele porque tem esperança em que cure o nosso pai.

- Não. Refiro-me ao Sr. Negrão - explicou o rapaz, e todos irromperam em gargalhadas.

O Sr. Negrão era um gato da avó, um enorme bichano, com grandes olhos dourados, cauda magnífica e pêlo espesso, suave como seda. Tinha a cor negra do carvão. Em pequenino chamavam-lhe Negrito, mas ao crescer ficara tão imponente e solene que a avó entendeu que não mais poderia designá-lo por nome tão vulgar.

E assim, devido ao majestoso porte, decidiu chamá-lo Monarca. Mas ele não respondia porquê, em absoluto, ignorava tal nome. Então alguém da família gritou-lhe: «Sr. Negrão!» e tudo se recompôs. Talvez ao bichano ecoasse quase parecido a Negrito.

Era o gato da avó, que o amava extremosamente. E Negrito adorava-a. Dormia sempre num cesto, no quarto da avó. Gato muito acarinhado, as três crianças brincavam bastante com ele, porque todas eram amigas de animais. Às vezes tinham saudades do Tambor, um belo grand danois que em tempos havia pertencido à avó. Ao longo do dia, durante anos, ouvia-se o som das grandes patas no chão. No dizer de Clara «sabia-se sempre onde estava o Tambor». Um barulhento!

- Era tão bonito! - proferiu Clara, recordando.- Era do meu tamanho, mas tinha a mansidão de um gatinho.

- Os gatinhos nem sempre são mansos - objectou Alexandre, que gostava de ser exacto. - O Sr. Negrão arranhou-me quando era pequeno.

- Lembras-te de uma vez o Tambor acenar com o rabo para cumprimentar uma visita, o que fez cair um prato com bolos que estava numa mesinha? - perguntou Francisco.

Alexandre teve uma das suas súbitas explosões de riso.

- Quem me dera ter visto isso! - exclamou. - Para onde foi o Tambor? Não me recordo. E porque não nos deixam falar nele diante da avozinha?

- Bem... custava muito dinheiro sustentar um cão daqueles - explicou Francisco. - Muitas centenas de escudos por ano.

Portanto, um dia a avó decidiu que não podíamos mantê-lo connosco por mais tempo.

- Oh!-fez Alexandre, gravemente. - Que aconteceu ao Tambor?

- Vendeu-se - informou Francisco. - Era um cão muito valioso e rendeu bastante dinheiro, além do que se economizava com a sua alimentação. Mas a avó gostava muito do Tambor, mais ainda do que do Sr. Negrão.

- Ela chorou? - perguntou Alexandre, com aspecto muito sério.

- Durante dois dias-confirmou Francisco.-Não conseguia deixar de o fazer. E disse-nos que não a aborrecêssemos, senão iria para junto do Tambor. Tu já não te lembras, Alexandre.

- A avozinha ama muito os animais - lembrou Clara. - Contou-nos uma vez que tinha dúzias deles quando era pequena. Era feliz. O Sr. Negrão não é realmente nosso.

- Não; é da avozinha - afirmou Alexandre. - Eu queria ter animais que fossem completamente nossos. Gostaria de ter um coelho. E alguns ratos brancos. E muitas galinhas. Um macaco também e, talvez, um ursozinho.

- Eu quereria cães - acrescentou Francisco. - Muitos cães! E cachorros e gatos.

- Eu gosto de aves - observou Clara, por seu turno. - Pombos que voassem pelo jardim... Ainda existe um velho pombal meio desmantelado num canto do jardim, não é verdade? Oxalá a avó volte um dia a alojar pombos ali.

Ela teve também um cavalo chamado Trevo.

- Se nós fôssemos ricos poderíamos possuir centos de animais - interrompeu Alexandre. - Prefiro-os aos brinquedos. Têm vida e dão-nos amizade. Gosto muito dos meus brinquedos, mas nunca tenho verdadeira certeza de eles me estimarem...

- Às vezes - observou Clara, de súbito, olhando pelo canto do olho para Francisco -, às vezes penso que devias ter um cão só teu, Francisco!

- Mas não tenho - cortou o irmão, em voz breve, e, com enorme surpresa de Alexandre, pôs-se muito vermelho e baixou o rosto.

- Tu coraste! -declarou o mais novo. - Estás a esconder-nos qualquer coisa! Fazes-te sempre encarnado nessas ocasiões. E eu. também.

- Vamo-nos embora - propôs Francisco e ergueu-se. - Já comi o meu bolo.

Saiu. Os irmãos ouviram-no descer os degraus da escada.

Alexandre fitou a irmã:

- Que querias dizer quando afirmaste que o Francisco deveria ter um cão? Não o tem, não é verdade?

- É - concordou Clara. - Mas escuta, Alexandre, esta coisa estranha: quando o Francisco julga que está sozinho e que ninguém o observa, ergue a mão e diz: «Vem cá, Sáltão. Busca.» Exactamente assim. Como se um cão estivesse presente.

Alexandre pôs-se a pensar.

- Ele finge que tem um cão - disse por fim. - Sei que tem tremendos desejos de possuí-lo. E eu também. Quando o viste fazer isso?

- Oh, muitas vezes - foi a resposta da irmã. - Por exemplo, quando estou escondida na sebe do jardim e o Francisco por ali passa a conversar com o seu cão. Há dias arremessou para longe uma bola e depois disse: «Busca, Saltão! Muito bem! Excelente cão.» Depois baixou-se e acariciou o ar!

- Não vou contar a alguém o que sei acerca desse cão-decidiu Alexandre.-Se o Francisco não quisesse guardar segredo tinha-nos falado nele. Parece-te que leva o cão para o quarto, para que durma a seus pés?

- Não sei - respondeu Clara. - Tu dormes no mesmo quarto. Podes ficar alerta para saberes.

- Estou sempre a dormir quando o Francisco se deita - respondeu o irmão. - Sempre. Mesmo que me esforce por ficar acordado, não consigo. E, além disso, não quero devassar o segredo do Francisco. Nem tu, Clara, compreendes?

- Hás-de perder o costume de me indicares o que devo ou não fazer! - repontou a rapariga. - Um fedelho do teu tamanho! Estou arrependida de te ter falado neste assunto. Claro que não falarei nele ao Francisco, a menos que ele me mace por qualquer motivo e, nesse caso, maçá-lo-ei também com o Saltão!

- Isso seria mesquinho da tua parte! - censurou Alexandre enquanto a irmã se encaminhava para a porta.

Clara fechou-a com ruído. Alexandre encolheu os ombros. Estava acostumado àqueles ligeiros arrebatamentos. Logo que se encontrassem, a irmã teria esquecido e mostrar-se-ia sorridente como de costume.

Ficou Alexandre a pensar no hipotético cão. Pobre Francisco! Quanto desejaria ter um cão para que inventasse o imaginário! Como a avó, amava fervorosamente os animais. Quando via algum cão, acariciava-o e falava-lhe com carinho. Atirava migalhas aos pássaros que debicavam no jardim. Se um gato o avistava, para ele corria. O cavalo do carro do leiteiro apressava o passo ao ouvir a voz do Francisco! «E, quando fomos ao Jardim Zoológico e o Francisco chamou os macacos, eles suspenderam o que estavam a fazer e foram encostar-se à grade», recordou Alexandre. Puseram os braços de fora e estenderam-lhe as mãos, apesar de ele não ter comida para lhes dar. E guincharam baixinho, como a dizer que eram seus amigos.

A porta abriu-se e a avó entrou.

- Alexandre! Que estás aqui a fazer sozinho?

- Estou a pensar - proferiu o rapaz.

- Pensas demasiado! - replicou a avó. - Estás sempre com ar excessivamente sério. Não é conveniente meteres-te aqui, com aspecto de lunático.

- Não sou lunático - discordou Alexandre. - Que é ser lunático?

- Oh, não sejas tolo, Alexandre! - retorquiu a avó. - Desce e vê se podes deitar mão seja ao que for.

- Pois aqui a tem! - exclamou o neto imediatamente, pondo a mão direita na da avó. - Posso ajudá-la nalguma coisa? Talvez deixe de estar tão irritada!

A avó olhou para a pequenina mão que tinha entre a sua e repentinamente começou a rir. Estreitou-a.

- És uma calamidade!-disse. - Não, por favor não me perguntes o que é ser calamidade. É uma coisa muito agradável quando me refiro a ti. Agora vamos apanhar batatas, sim? A cesta está quase vazia.

- Eu vou sozinho. Não se preocupe, minha avó - ofereceu-se Alexandre. - Levarei a pá.

Dirigiu-se aos velhos estábulos anexos ao Abrigo Verde. Ainda lá se encontravam as dependências dos cavalos, a casa dos arreios, agora destinada a arrecadação. Era sempre excitante, para o rapaz, passar por entre as velharias empilhadas aos cantos ou em prateleiras.

Então olhava em redor, como se ouvisse o patear de cascos. Julgaria Francisco possuir também um cavalo invisível que se encontrasse na estrebaria?

Por cima das manjedouras pequenas chapas de latão, esverdeadas pelo tempo, tinham ainda gravados os nomes dos seus hóspedes de outrora.

«Malhado». «Lindo nome para um cavalo», pensava Alexandre. «Galope», «Benjamim», «Capitão». Nomes que lhe soavam bem. Havia de falar neles à avó. Talvez ela os tivesse conhecido.

- Alexandre! Eu julgava que estavas a apanhar batatas!

Por Deus! Era a voz da avó. Alexandre agarrou no sacho e precipitou-se para o jardim. Inclinou-se para o canteiro das batatas e pôs-se a recolhê-las ardorosamente. Gostava desse trabalho. Os pássaros cantavam loucamente em redor e o sol, quente, bafejava-lhe a nuca. Alexandre arredondou a boca e tentou um assobio, proeza, que, por sua vergonha, não tivera ainda sucesso.

Por entre os lábios o desejado som veio, de súbito, com grande espanto do rapaz. Tentou de novo. Silvou imediatamente mais um assobio, sonoro, como que de um melro. Alexandre corou de prazer. Conseguira finalmente!

«É o meu dia de sorte», pensou. «De repente consegui assobiar! Agora já não sou o único do grupo que o não sabe fazer!»

E, a assobiar em tom alto e desafinado, Alexandre desenterrou, em grande velocidade, meia fileira de batatas. Quem podia adivinhar que um assobio era de tanta ajuda em trabalho árduo?

 

                   DUAS BRIGAS IMPREVISTAS.

O mês de Fevereiro cedeu a vez ao de Março. Vieram os ventos, que faziam estremecer as árvores nos terrenos do Abrigo Verde e varriam do céu as aves.

Os dias decorriam muito calmamente e nada de extraordinário havia acontecido, além da muito inesperada briga em que Sr. Negrão se envolvera com dois outros gatos.

Aconteceu em certa noite. Todos - excepto Alexandre - haviam sido despertados por grande alarido de guinchos e reboliço, mesmo junto das janelas. Toda a gente saltara da cama, com o coração aos pulos. Oh, que se passaria? Apenas dois gatos, que, no jardim, lutavam como se quisessem despedaçar-se mutuamente.

O pai das crianças lamentou-se:

- Oh, se eu pudesse correr até à janela, atirava-lhes um balde de água! Fazerem escarcéu tamanho a meio da noite. Se é o Sr. Negrão, amanhã lhe direi o que penso a seu respeito.

Mas o Sr. Negrão estava inocente. Como de costume, dormia em seu cesto, no quarto da avó. Quando ouviu o barulho acordou imediatamente. Saltara, parecendo duplicar de estatura, cauda avolumada até às proporções da melhor gola de peles...

Sr. Negrão sentia-se furioso. Que fariam, no jardim, gatos intrusos?

Saltou do cesto, transpôs o parapeito da janela, que ficara aberta, para uma árvore próxima e logo se atirou para cima dos dois belicosos inimigos. Devia ter-se-lhes assemelhado a tiro de canhão!

A avó não tardou a surgir à janela, gritando: Sr. Negrão! Sr. Negrão! Pára com isso! Oh, vão matá-lo! Tenho de acabar com aquela briga!» e eis a avó, de roupão, em descida acelerada pelas escadas, disposta a salvar o seu precioso gato. Mas antes que ela, ou Francisco, pudessem atingir o local.

- Francisco acorrera simultaneamente - os gatos encolheram-se de encontro à parede, perseguidos por um extremamente irritado Sr. Negrão, que esbracejava e agitava como furiosa manivela, estendidas as perigosas garras. O barulho diminuiu à distância e a avó sentou-se, de repente, no poial da porta.

- Oh, meu Deus! Que susto! Oh, Francisco, para onde foram eles? Que acontecerá ao Sr. Negrão? Vai ficar feito em pedaços!

- Não se preocupe, minha avó. Ele há-de vir, todo inchado de prosápia, contar-lhe a maneira como afugentou dois gatos intrometidos! - disse o rapaz, esforçando-se por tranquilizar a avó, que não pôde deixar de sorrir.

- Ajuda-me a subir a escada, meu filho. Um ligeiro susto faz-me lembrar como estou velha!

Nessa noite o Sr. Negrão não regressou e na manhã seguinte a avó estava muito fatigada.

- Não consegui dormir em toda a noite - confessou.- Onde estará o Sr. Negrão?!

Clara acotovelou Alexandre.

- Não recomeces agora com o teu assobio - preveniu. - A avozinha deve estar muito mal humorada.

Alexandre retribuiu a cotovelada, mas com muito mais energia.

- Não te preocupes com o meu assobio - replicou. - É muito novo e, portanto, tenho de praticá-lo. Avozinha, posso ir procurar o Sr. Negrão?

Mas o Sr. Negrão, com grande alívio para toda a gente, apareceu à hora do almoço. A avó estivera, de facto, muito mal humorada e a filha previa que Clara não tardaria a impacientar-se. O Sr. Negrão, a saracotear-se, viera pela relva até junto da família, que acabara a refeição. Quem primeiro o avistou foi o pai das crianças.

- Aí temos o nosso Negrão - anunciou. - Parece que todo o mundo é seu. Vem muito satisfeito consigo próprio. Eis o regresso do herói!

A avó soltou uma pequena gargalhada e ergueu-se imediatamente. Correu para a janela e abriu-a.

«Sr. Negrão! Estás bem?»

O felino nem se dignou olhá-la. Sentou-se na relva, alçou uma das pernas e começou a lambê-la conscienciosamente.

- Está a exibir-se! - observou Clara. - Vou buscar-lho, minha avó.

Mas, tal como se tivesse ouvido as palavras da rapariguinha, o sr. Negrão ergueu-se e correu para a janela. Em menos de um minuto estava nos braços da avó, que exclamava:

«Sr. Negrão! Tens uma orelha ferida! Oh, meu querido!»- Reparem: traz uma grande esfoladela na cauda! - «Oh, porque te intrometeste naquele combate, sr. Negrão?» - Onde está a tintura de iodo?

O pai das crianças começou a protestar, como sempre fazia quando a avó cometia qualquer exagero a respeito do gato:

- A animá-lo como se ele fosse um bebé! Sinceramente, desagrada-me ver a maneira como trata esse bicho!

É de esperar que se tenha ferido, dado que andou à bulha! Ele não se importa, pois não? A avó ripostou imediatamente.

- Tu não tens amor aos animais. Creio até que não gostas deles.

- Engana-se - replicou o genro. - Mas não concordo com exageros, eis tudo. Bem sabe quanto eu estimava o Tambor.

Seguiu-se um silêncio. Tambor, o antigo grand danois da avó, nunca era mencionado por alguém.

- Sim - concordou ela. - Bem o sei. No entanto, insisto em afirmar que não tens a...

- Tem, sim senhora! - interrompeu Clara, que acorria sempre em apoio do pai quando a avó o atacava. A avó embirrava, por vezes, com toda a gente... - Sim, sim, sim, o pai...

- Clara! - interveio a mãe. - Vai buscar a tintura, por favor. Imediatamente!

Sr. Negrão apreciava que lhe dedicassem afagos e atenção. Pôs-se a resfolegar. Parecia uma máquina.

- É um manhoso! - segredou o pai a Clara, que concordou:

- Sim, mas um manhoso simpático.

A aventura do Sr. Negrão foi o acontecimento mais sensacional ocorrido naquelas semanas tranquilas, em que os narcisos precoces substituíram o açafrão e as primaveras começaram a despontar na ravina. Francisco prosseguia com sua cisma e Saltão, o cão invisível, acompanhava-o a todo o momento.

Clara, ensinada pela avó, iniciara a aprendizagem de fazer malha, mas a avó era uma professora exigente, a aluna excessivamente impaciente e deste modo nada de concreto resultava.

A grande distracção de Alexandre era o seu assobio, que treinava com assiduidade quase entontecendo toda a gente. O rapaz, decepcionado por pensar que a família não partilhava idêntico regozijo por tão sensacional proeza, decidiu ir ensaiar para os estábulos. Ali assobiava a seu contento, tentando modelar alguma melodia - mas não era bem sucedido.

Depois, um dia, algo extraordinário aconteceu. Passou-se com Francisco ao regressar de uma reunião de escoteiros. Saltão acompanhava-o, como sempre. Ninguém passava na estrada e o rapaz resolveu adestrar o companheiro, para que lhe obedecesse quando lhe assobiasse.

Trazia consigo o apito de escoteiro e soprou-o. Depois acenou para Saltão, que supunha a um quilómetro de distância. O cão obedeceu imediatamente ao ouvir o assobio.

«Excelente Saltão!», louvou Francisco. «Muito bem! Experimentemos outra vez. Mas agora vais parar quando eu levantar a mão. Assim!»

Era-lhe tão real esse cão que, no momento, Francisco supunha ver-lhe a cauda oscilante e a língua pendida. Quase o ouvia caminhar! As suposições podem às vezes tornar-se muito, muito verdadeiras.

«Vai para onde estavas, Saltão!», ordenou o rapaz. «E quando eu assobiar tens de vir a correr, mas vais parar quando eu levantar a mão. E conservar-te-ás imóvel. Agora!»

Assobiou com força e, passados dois segundos, ergueu o braço.

«Óptimo!», elogiou. «Excelente cão! Agora vem para junto de mim. Deves caminhar com a cabeça rente aos meus calcanhares.

Francisco podia quase sentir-lhe o húmido focinho quando se dispôs a atravessar novamente a estrada. De súbito ouviu algo que o sobressaltou: uma sonora gargalhada trocista.

- Ah! Ah! És maluco! A falar com um cão que não existe!

Francisco olhou em redor, mas não viu quem quer que fosse. Depois ouviu um ruído muito próximo. Uma pessoa escorregava por uma árvore até saltar, do ramo mais baixo, para o chão. Era um rapaz sujo e desmazelado, de treze anos de idade, um pouco mais alto que Francisco. Tinha o cabelo emaranhado, ondeado, castanho-escuro. A boca franzia-se-lhe num sorriso de escárnio.

Francisco não sabia que dizer. Acerca de Saltão, o cão que inventara, não podia fazer confidência, sobretudo àquele moço. Calou-se, portanto, e afastou-se.

O rapaz meteu os dedos por entre os lábios e emitiu tão estridente e penetrante assobio que Francisco se assustou.

«Saltão! Eh! Sáltão!», chamava o rapaz, tentando imitar a voz de Francisco. «Excelente cão! Vem cá! Muito bem! Põe a cabeça rente aos meus calcanhares!»

Francisco ficou mudo. Entretanto, o outro inclinou-se e fingiu acariciar um cão. Depois avançou na direcção de Francisco, olhando para o chão, como se um cão o acompanhasse.

«Óptimo!», disse. «Perfeito!»

- Cala-te!-ordenou Francisco que, repentina e insistentemente começava a impacientar-se.

- Ah! Ah! - troçou o intruso. - Ele agora é o meu cão! Nunca mais irá para ti! Vou levá-lo para a minha casa, para junto do meu outro cão, que precisa de companhia!

-Eu disse que te calasses - repetiu Francisco, sentindo que os punhos se lhe cerravam instintivamente.

- Tu és um escoteiro. Os escoteiros não devem lutar. Que pena, mas que pena! - prosseguiu o exasperante rapaz.

- Porque não arranjas um cão verdadeiro, em vez de um idiota cão a fingir? És parvo!

Francisco permanecia calado. Estava agora tão irritado que não conseguia articular palavra.

- Tenho um cão que é uma maravilha - acrescentou o outro rapaz. - Havias de vê-lo. É... bem, é uma espécie de spaniel, mas é um cão de verdade, não é como o teu estúpido Saltão. Pff! «Vem cá, Saltão! Saltão, deixa-me pôr-te uma coleira. Vou levar-te para junto do Rex.»

E o rapaz baixou-se e fingiu colocar uma coleira. Francisco nunca soube exactamente o que aconteceu. Sentiu que o seu punho esmurrava o rosto do outro. Trás! Mas, imediatamente, qualquer coisa atingia a sua própria face: era o punho do outro rapaz. A luta prosseguiu: Zás! Trás! Toma! Toma!

Só poderia terminar duma maneira: o desconhecido era mais alto e mais forte. Em menos de um minuto, Francisco, estendido no chão, via as estrelas em redor!

O outro afastava-se, a rir escandalosamente. E, como agravante, chamava por Saltão:

«Saltão! Porque esperas! Nunca mais vás para aquele. Não te merece. Vem comigo!»

Francisco sentou-se, ainda estonteado. Parecia que via tudo andar à roda. Subitamente envergonhado, fechou os olhos. Ele era um escoteiro e, não obstante, havia iniciado uma luta. Nem sequer tinha a atenuante de justificar que fora para defender-se. Mas como poderia evitá-la? O rapaz penetrara no seu segredo e troçara dele.

Dissera que havia posto uma coleira no Saltão. E tinha-o levado para casa!

Francisco ergueu-se e dirigiu-se para o portão. Estava perplexo. Tentava criar ânimo, mas não conseguia. Sabia que não poderia ter agido de outra forma e, todavia, não procedera inteiramente bem.

Entrou em casa, esperançado em que não se lhe notassem vestígios da luta. Seu olho esquerdo pesava-lhe um tanto e tinha uma sensação esquisita na face direita, porque dantes não conseguia ver as bochechas com o olho direito e agora via-as, muito próximas...

Esgueirou-se pela porta do jardim, esperançoso em que pudesse alcançar despercebido o quarto. Mas a avó ouviu-o e chamou-o:

- És tu, Francisco? Podes vir aqui?

- Vou primeiro lá acima lavar-me, avozinha-respondeu.

Correu para a escada antes que a avó pudesse vê-lo. Entrou no quarto e aproximou-se do espelho. Meu Deus! Que aspecto tinha! Que horrível aspecto! O olho esquerdo estava agora quase fechado e um círculo arroxeado começava a rodeá-lo. Tinha a bochecha direita vermelha e entumescida.

Precipitou-se para a casa de banho e começou a chapejar, com água fria, o rosto. Mas de súbito sentiu um aperto no coração. A avó decidira segui-lo, agastada por não ter sido prontamente obedecida.

- Francisco! Porque não...-principiou ela, mas deteve-se. - Que aconteceu à tua cara? Estás ferido?

- Estou perfeitamente, avozinha, muito obrigado - disse Francisco, desesperadamente. - Acabo de chegar.

A avó ergueu-lhe a cabeça.

- Estás ferido! Tiveste um acidente! Que aconteceu?

- Nada. Repito que não foi nada - afirmou Francisco. - Um pequeno inchaço apenas.

- Estiveste a lutar! - exclamou a avó, horrorizada.- Não o negues. Tu, um escoteiro! Devias ter vergonha.

E desceu a escada.

Francisco sentia-se muito desditoso. Apertou o nariz e mergulhou toda a cabeça na bacia, com água, esperançado em poder aliviar dessa forma o olho e o rosto. Sentiu uma pancadinha no ombro e levantou a cabeça.

Era Clara.

- Francisco! Que aconteceu? A avó contou a todos que estiveste a lutar. Ficaste magoado?

- Não!-negou ferozmente o rapaz.-Tanta complicação! Parece que nunca viram uma luta!

- Mas tu, Francisco, tu és tão sossegado - insistiu a irmã.-Francisco, conta-me tudo, sim? Quero saber. É a primeira luta em que entra alguém da família.

Francisco, muito delicadamente, na verdade, enxugou o rosto e escovou e penteou o cabelo.

- Estás medonho! - admirou-se Clara. - Não te sentes importante por teres esse aspecto devido a uma luta?

- Porque serão tão estúpidas as raparigas? - explodiu Francisco, ansioso por se ver sozinho e em paz, para recapitular o que tão subitamente ocorrera. Empurrou a irmã e encaminhou-se para o quarto.

- A mãe mandou-me dizer-te que descesses imediatamente-observou Clara. - E não me empurres dessa maneira.

- Se não te vais embora, verás o que é um bom empurrão - ameaçou o pobre Francisco.

Clara desapareceu.

Francisco analisou-se ao espelho. Que aspecto! Bem, de nada servia continuar no quarto. A família não tardaria a subir, para investigar.

Desceu, portanto. Mal abriu a porta da sala toda a gente ergueu os olhos e logo soaram incontidas exclamações.

- Francisco, meu querido! A tua pobre cara!

- Que lhes disse eu? Esteve a lutar!

- Não me quiseste contar! - censurou Clara.

Alexandre fitava sisudamente o irmão. Como estava esquisito o Francisco! Não parecia o mesmo.

- Como aconteceu isso, meu filho? - perguntou a mãe, em voz meiga, atraindo-o a si.

Graças a Deus! Não estava então muito zangada? E quanto ao pai? Irritado como a avó?

A avó era quem ralhava, em altas palavras de censura. Ninguém mais proferia palavra. O pai de Francisco interveio finalmente:

- Basta! Deixem-no em paz. Ele não é dos que lutam sem motivo - e a maioria dos rapazes entra em contendas, mais cedo ou mais tarde. Os próprios escoteiros têm de saber defender-se! Alguém te atacou, Francisco?

Francisco bem desejaria poder dizer: «Sim e tive de defender-me.» Mas essa seria uma atitude de cobarde, e mentiroso, o que ele não era. Negou com a cabeça.

- Que sucedeu então? - perguntou o pai, atónito. - Não fiques mudo, por favor. Nós apenas pretendemos saber.

- Eu... bem... eu só esmurrei alguém e eis tudo - confessou o rapaz. - Ele... ele disse e... e fez certa coisa de que não gostei - e esmurrei-o.

Seguiu-se um silêncio.

- Então foste tu quem iniciou a luta - observou o pai. - Compreendo. Que disse e fez o rapaz? Podes certamente dizer-no-lo?

- Não, não posso - escusou-se Francisco, ocultando no mais recôndito recanto do coração o seu fictício Saltão.

Sentia um estranho mal-estar, pois de momento só conseguia ver com um olho, o direito. O esquerdo entumescera gradualmente e permanecia cerrado.

A avó recomeçou:

- Na minha opinião entendo que...

- Nada mais há a acrescentar ao que já foi dito por mim - observou o genro em voz tão decisiva que todos estremeceram.

A avó deteve-se melindrada.

- Muito bem, se eu não posso dizer o que penso na minha própria casa, retiro-me!

E saiu, rígida e firme como um pau. A mãe das crianças suspirou.

- Valha-me Deus! Que contrariedade! Francisco, vou tratar-te desse olho.

- Quem ganhou na luta? - perguntou, de súbito, Alexandre.

- Eu não - respondeu Francisco.

- Aposto que o rapaz era mais corpulento e mais velho do que tu-- declarou o irmão. - De contrário terias vencido. Havias de atirá-lo ao chão e fazê-lo em bocados!

- Cala-te, Alexandre - interveio a mãe. - Vem comigo, Francisco.

A mãe foi bondosa. Tratou-lhe do rosto, afagou-lhe o ombro e não fez quaisquer perguntas. Francisco abraçou-a.

- Se eu pudesse, contar-lhe-ia tudo, minha mãe, mas não posso - lamentou. - Pelo menos por enquanto.

- Não te preocupes, meu filho. Toda a gente tem um ou outro segredo, e porque não? - animou-o a mãe. - Não devias ter iniciado a briga, bem o sabes, mas se o fizeste, estou convencida de que não tinhas outra solução. Não te preocupes.

Mas Francisco estava preocupado, evidentemente. Supondo que o assunto chegava aos ouvidos do chefe dos escoteiros?... Supondo que o tal rapaz espalhava o que sabia acerca do cão invisível... Toda a gente riria... Supondo... Supondo... Supondo! Tinha de desabafar com alguém.

Foi Clara a escolhida. Afinal ela quase sabia tudo a respeito do cão imaginário e não faria troça se ele, o irmão, lho pedisse.

- Clara, podes vir cá acima ao velho quarto das brincadeiras? - rogou Francisco, dois dias após a briga.

O rosto apresentava-se ainda desfigurado e causava-lhe grandes aborrecimentos com os rapazes da aula, porque a bochecha não estava ainda normal, o que o obrigava a falar com dificuldade.

- Está bem - acedeu Clara. - É só o tempo de arrumar a mesa.

E foi depois reunir-se ao irmão. Sentados no recesso da janela, Francisco principiou imediatamente:

- É por causa da luta. Estou imensamente preocupado, Clara, e não tenho outro remédio senão desabafar com alguém. Mas não troçarás?

Clara sacudiu vigorosamente a cabeça:

- Não, evidentemente que não. Conta-me tudo. Então Francisco confidenciou o que ocorrera: como

o rapaz, do alto da árvore, o surpreendera a treinar Saltão, o cão imaginário. Como fora escarnecido e imitado e, finalmente, a maneira como o rapaz intentara pôr no cão uma coleira, para o levar para casa.

- Oh! Que horrível rapaz!-horrorizou-se Clara. - E tu disseste que ele tem um cão, mesmo dele? É espantoso ter-te tirado o Saltão! Não admira que lhe tivesses batido. Eu faria o mesmo.

- Foi tudo tão repentino - prosseguiu Francisco. - O que mais me irrita é ter iniciado a luta e, como compreendes, se eu confessasse a verdade ao pai, à mãe ou à avó, eles poderiam pensar que eu sou maluco por lutar por causa de um cão que não existe. Portanto não posso falar no Saltão. Excepto contigo.

- Não te preocupes - disse Clara de modo reconfortante. - Que importância tem? Ainda te pertence o Saltão e podes ensiná-lo a seguir esse rapaz.

- Não posso - lastimou Francisco. - Nunca mais será meu.

- Porquê? - perguntou Clara, admirada.

- Bem, tu sabes o que são as coisas imaginárias: às vezes desaparecem de repente - explicou o irmão. - Tal como sucedeu connosco, quando supúnhamos que havia um urso nos velhos estábulos e não queríamos lá entrar. De súbito essa ideia desapareceu e nós soubemos que não estava lá qualquer urso.

- Sim. Foi porque quisemos ir para a casa dos arreios brincar às escondidas-esclareceu Clara.-Mas tens razão. As coisas imaginárias desaparecem de repente. Nesse caso o Saltão desapareceu? Porque não arranjas outro cão?

Francisco fitou a irmã.

- Já tentei - confessou. - Mas não surge mais algum. Quero dizer, é só a fingir e nada mais. O Saltão parecia verdadeiro. Oh, Clara como eu desejava ter um animal qualquer! Um cavalo. Ou um cão. Ou pombos, talvez.

- Prometo-te não me esquecer de pedir para ti um cão nas minhas orações todas as noites - prometeu a irmã. - Coragem, Francisco. É horrível ver-te tão entristecido. Fazes a mãe preocupar-se.

- Bem; já me sinto melhor depois de ter falado contigo - concluiu Francisco, com aspecto mais animado.-Não contes isto seja a quem for, compreendes?

- Por quem me tomas? - proferiu a irmã, com desdém. - Tens de ter confiança em mim. Sabes que cumpro sempre o que prometo.

A correr, desceu a escada, orgulhosa por Francisco a ter escolhido para confidente.

«Que horrível, esse tal rapaz! Gostaria de poder esbofeteá-lo», pensava, veementemente. «É o que farei se algum dia o vir. Mas não é provável que o veja.»

Mas enganava-se...

 

                   AINDA O MESMO RAPAZ.

No dia seguinte Francisco regressou muito contente da escola. Ia ser chefe da turma!

- Adivinha-se quando um escoteiro é o chefe durante a semana-dissera-lhe o professor.-Nem preciso de certificar-me de que as minhas ordens são cumpridas. Só desejaria que todos os meus alunos fossem escoteiros!

Francisco ficou contente. Demorara-se mais tempo na escola para verificar se tudo estava em ordem e chegou a casa com meia hora de atraso.

Clara e Alexandre aguardavam-no, encavalitados no muro. Queriam participar que a avó estivera muito bem disposta durante todo o dia e comprara biscoitos de chocolate para o lanche.

- Aí vem! - avisou Clara. - Não digas uma palavra até ele chegar ao portão. Depois gritamos: «Biscoitos de chocolate», e ele assusta-se.

Mas antes que aquela ideia fosse posta em prática, alguém bradou primeiro:

«Eh! Vem cá, Saltão! Ele já não é o teu dono! Vem cá, rapaz! Muito bem, muito bem!»

Francisco deu meia volta. O rapaz de há dias estava ali, a rir no meio do caminho. Acabava de inclinar-se e fingia acariciar um cão. Atravessando a estrada, a olhar para o chão, como se um cão estivesse colado aos seus calcanhares, deteve-se junto do muro, precisamente onde se encontravam Clara e Alexandre. Não os viu. Estava a observar Francisco.

- Perdeste o teu cão? - perguntou. Francisco acelerou o passo, alcançou o portão,

fechou-o com força e, fremente, avançou pelo pátio! Odioso, odioso rapaz!

O outro gargalhou de prazer, mas eis que de súbito se interrompeu. Algo lhe caía em cima, qualquer coisa o sovava valentemente e lhe arrancava os cabelos, gritando :

- Toma! E toma! Toma lá mais! Oh, maldoso e horrível rapaz!

O rapaz libertou-se e ergueu o punho, disposto à luta. Mas baixou-o imediatamente.

- Raios! - exclamou. - É , uma rapariga! Que julgas que estás a fazer, minha minhoca?

- Isto! - ripostou Clara e investiu impetuosamente.

O rapaz esquivou-se e Clara caiu estrondosamente no chão.

- Eu não luto com raparigas! - observou o outro. - Nem com crianças sequer - acrescentou ao ver surgir Alexandre. - Vocês dois quem são? Porque tomam essa atitude?

- Deixa em paz o Saltão! - invectivou Clara, erguendo-se, irritada. - O meu irmão gosta muito de cães e nem sei o que ele daria para ter um! Tu tens a sorte de já ter um! Acautela-te, não se dê o caso de o teu cão vir para o Francisco, agora que lhe levaste o Saltão!

- Não sejas parva! - replicou o rapaz. - O Saltão não passa de um estúpido cão a fingir. O meu Rex nunca me deixará.

- Bem-acrescentou Clara em voz tremente.-As pessoas que procedem mal são sempre castigadas. Não te admires, portanto, se alguma coisa suceder ao teu cão. Mas podes ter a certeza de que se ele viesse para o Francisco seria bastante estimado.

-Não digas disparates - respondeu o rapaz, a rir. - O meu cão é muito meu, já o tenho há cinco anos e nunca me separei dele. Nós acabámos de mudar-nos para um dos andares daquele prédio, e, apesar de a casa ser pequena e não termos um quintal, como tínhamos, o Rex é feliz, porque está comigo. E quanto ao parvo cão invisível, aqui o tens. Não o quero!

Baixou-se, simulou afagar um cão e retirar-lhe a coleira.

«Podes ir!», ordenou. «Já não te quero, Saltão.»

Imitou depois tão perfeito latido que Clara e Alexandre deram um pulo.

O rapaz sorriu-lhes.

- Adeus E deixa-te de saltares daquela maneira para cima das pessoas, minha menina! Se me tornares a fazer o mesmo, desmancho-te os caracóis!

- Experimenta!- ameaçou Alexandre, severamente, falando pela primeira vez.

- E faço-te o mesmo a ti, miúdo! - troçou o rapaz e afastou-se, sempre a rir.

As duas crianças seguiram-no com os olhos.

- Horrível, horrível, odioso rapaz!-exclamou Clara, batendo com o pé no chão.

Os dois irmãos correram para a porta principal e entraram, à procura do Francisco para o informarem do sucedido. O irmão ficou alarmado.

- Clara! Não devias ter feito isso! És uma rapariga! As raparigas não devem comportar-se dessa maneira!

- Conheço dúzias de raparigas que teriam feito o mesmo - ripostou a irmã, em tom de desafio.

- Ela é corajosa - elogiou Alexandre, na sua lenta voz pausada. - E muito corajosa. Não teve medo daquele rapaz tão alto.

- Libertou o Sáltão, por isso é teu novamente

- insinuou Clara a tentear que Francisco sorrisse.!

Mas ele meneou a cabeça.

- Não. Já te disse que essa ideia tinha desaparecido. Era uma idiotice. Já estou demasiado crescido para essas tolices. Esqueçamos o assunto.

- Onde dormia o Saltão? - quis, de súbito, Alexandre saber. - Nunca te ouvi falares com ele no quarto.

- Limpei a velha casota - explicou Francisco. - Venham ver. Até pus lá palha, para ele dormir!

Conduziu os irmãos até um local, no jardim, onde permanecia ainda o velho canil, no qual durante muitos anos os cães da avó haviam dormido.

Lá dentro estava tudo limpo e confortável. Um monte de palha calcado no centro parecia demonstrar que ali dormira recentemente um cão. Fora da casota, uma vasilha com água.

- Não tinha reparado que o canil estava limpo

- confessou Clara. - Alexandre! Aonde vais? Repara, Francisco, ele entrou na casota! Alexandre!

Alexandre rastejou para dentro do canil e depois voltou-se para trás a rir:

- Ão! ão! - fez. - Ão! Estou esfomeado. Quero um biscoito, de chocolate. Ão! ão! ão!

Os irmãos torciam-se de riso. Clara puxou Alexandre e sacudiu-lhe as palhas.

- És um pateta! - disse Francisco subitamente, com parecer mais animoso. - Esqueçamos para sempre o Sáltão. Nunca mais se fala nele. Fui muito palerma.

Nesse momento Clara lembrou-se das novidades:

- A avó esteve muito bem disposta todo o dia. E comprou biscoitos de chocolate para a merenda. Muitos! É preferível apressarmo-nos, de contrário ela perde a boa disposição e guarda os bolos. Vamos!

Ao entrarem em casa, Francisco justificou o atraso, dizendo que era, naquela semana, o chefe da turma. A avó assentiu com a cabeça, em aprovação.

- E sabemos que te desempenhas muito bem desse cargo - elogiou. - O teu olho está hoje com melhor aspecto, Francisco. Voltaste a ver o tal rapaz?

O genro tossiu, como advertência, e disse:

- Esse assunto está encerrado.

Por baixo da mesa Clara beliscou Alexandre e endereçou-lhe um sorriso cúmplice. Bela ideia o pai dizer aquilo, ou, de contrário, o pobre Francisco seria forçado a revelar o que ocorrera junto do muro.

À avó não agradava que lhe cortassem a palavra. Franziu as sobrancelhas.

Clara olhou-a ansiosamente, desejosa de que nenhum acidente surgisse antes de serem comidos todos os biscoitos...

A mãe mudou habilmente de assunto, como só ela sabia.

- Já alguém contou os narcisos que apareceram na ravina? Eu ontem contei vinte e nove. Não se esqueçam de que, quando excederem o número de trinta, poderemos colher alguns, para enfeitar a casa. Encarregas-te desse trabalho, Clara?

- Oh, sim - alegrou-se a rapariga. Gostava de colher flores e dispô-las nas jarras.

Felizmente a mãe havia mudado de assunto...

- Primeiramente enfeitarei o quarto da avozinha, depois o seu e, por fim, o nosso.

- Não; primeiramente pô-las-ás na mesa - rectificou a avó, satisfeita. - Só então dividiremos os restantes. Queres mais biscoitos de chocolate, Alexandre?

- Quero, sim - respondeu o rapaz.

- Queres o quê? - proferiu a avó afastando o prato.

- Quero biscoitos - respondeu o neto, surpreendido. - Oh, isto é, quero, se faz favor. Obrigado, minha avó!

- Que maneiras!-censurou ela.-Quando eu era rapariguinha e me esquecia de ter maneiras, a minha preceptora desenhava uma lista de palavras, todas elas: «Se faz favor e obrigada». E pregava-as com alfinetes no meu vestido. De cada vez que eu as lembrava, ela retirava uma palavra; quando eu as esquecia a preceptora colocava-a de novo.

- Oh, que excitante! - observou Clara. - Avozinha, faça-me o mesmo, por favor!

- Era um castigo - retorquiu a avó. - Não um jogo. De que te ris, João?

Voltou-se para o genro, que soltava sonoras gargalhadas, o que nele não era frequente. A esposa imitou-o.

- Estamos a rir por sabermos que a Clara não ignora que lhe seria impossível conservar as palavras por mais de cinco minutos. Ela desejou-as porque está convencida de ter boas maneiras.

- E a avozinha conservava as suas palavras durante horas e horas? - interrogou Alexandre, muito interessado.

A avó começou a rir também.

- Já me recordo - proferiu. - Agora vamos acabar os biscoitos, sim?

Após a merenda, Clara saiu para colher os narcisos. Eram lindos.

«Vocês estão a dançar!», disse a rapariga. «Gostam do vento, narcisos. Sim, gostam porque estão a afirmar com a cabeça.»

Contou-os. Eram cinquenta e três.

«Vinte e nove ontem; hoje cinquenta e três», murmurou Clara. «Posso colher todos menos trinta. Quantos vêm a ser?»

Era uma bela porção.

Clara colheu também algumas longas folhas verdes. No momento em que se preparava para se retirar ouviu uma voz:

- Escuta!

Clara estacou, perplexa. Donde proviria a voz? Olhou em redor mas nada viu.

- Escuta!

- Quem está aí? - perguntou a rapariga. - Não te vejo. Estás no quintal?

- Sim, estou aqui - disse a voz.

E, de um espesso maciço de arbustos, um rapaz avançou, aquele que lutara com Francisco e que fora sovado pela rapariga havia umas duas horas.

- Que fazes tu no meu quintal? - inquiriu imediatamente Clara. - Que atrevimento! Vai-te embora senão vou já chamar minha mãe!

- Não vás; ouve. Desejo falar com o teu irmão. Como se chama ele? Francisco, não é verdade? Trata-se de um assunto muito urgente - explicou o rapaz.

- Para que queres falar com ele? - interrogou Clara. - Eu não gosto de ti. És detestável. Vai-te daqui ou então grito pela minha mãe.

- Não, por favor, não faças isso - pediu o outro, e acercou-se mais. - Vai chamar o teu irmão, peço-te. Por favor!

Clara olhou-o. O rapaz tinha os olhos avermelhados. Estava a chorar! Um rapaz tão crescido! Que se passaria?

- Vou procurar o Francisco - acedeu. - Espera-me aqui.

De narcisos ainda nas mãos, quase voou em demanda do irmão. Porque choraria o rapaz desconhecido? Ela nunca antes tinha presenciado lágrimas em rapazes daquela idade. Era impressionante! Até Alexandre já raramente chorava.

- Francisco! - gritou. - Francisco! Onde estás?

- Está lá em cima, no quarto - informou a avó. - Não berres dessa maneira, Clara Sobressaltaste-me!

Clara passou pela avó e também pelo pai, sentado, como sempre, na sua cadeira de rodas. Correu para o quarto do irmão. Francisco escovava o uniforme de escoteiro, que tencionava vestir no dia seguinte, para assistir a uma reunião. Clara entrou e parou, ofegante.

- Que te aconteceu? - admirou-se o rapaz.

- Francisco. Sabes? Aquele rapaz com quem lutaste... Aquele em quem hoje bati. O que te tirou o Saltão. Bem... está lá fora, junto do valado, e quer falar contigo.

- Para quê? - disse Francisco, carrancudo.- Quer brigar mais?

- Não. Está a chorar - relatou a irmã, martelando as palavras.

Surpreso, o rapaz encarou-a.

- A chorar? Porquê? Não acredito. É muito crescido!

- É verdade, repito. Mandei-o sair do quintal, mas ele insistiu em pedir-me que te chamasse. Penso que está em apuros.

- Pois bem. Que não conte com a minha colaboração - declarou Francisco, inflexível. - Não me é nada simpático. Vou saber o que deseja.

- Posso acompanhar-te? - perguntou Clara.

- Não. Chamar-te-ei, se assim o entender. E avisa o Alexandre, para que não se aproxime. Vou com ele para os estábulos - disse Francisco.

Desceu a escada. Clara escolheu uma jarra e dispôs-se a ornamentar a mesa com os narcisos colhidos. Não deixava de interrogar-se acerca do estranho rapaz e dos motivos da sua vinda. Alexandre não conseguia também adivinhá-los.

Francisco procurou o desconhecido, que não arredava do maciço de arbustos, do lado oposto ao valado. Não chorava, mas tinha ainda os olhos congestionados. Ao avistar Francisco sorriu-lhe dèbilmente.

- Que me queres? - perguntou este. - É descaramento da tua parte vires aqui e mandares a minha irmã chamar-me.

- Não é tal - justificou-se o rapaz. - Aconteceu-me uma coisa horrível e pensei que podias ajudar-me.

- Vamos para o estábulo - propôs Francisco. - Estaremos mais à vontade. Não sei como poderei ajudar-te, nem tenho intenção de fazê-lo.

O rapaz seguiu Francisco, que, fechada a porta, proferiu:

- Diz-me então o que pretendes.

- É por causa do meu cão - explicou o outro, e engoliu em seco. - Do meu cão, o Rex. Deteve-se, incapaz de prosseguir.

- Bem; diz o que sucedeu ao cão. Não compreendo o que tenho a ver com o assunto. Depois do teu comportamento para comigo não estou interessado no teu cão.

- Bem sei. Sinto-me agora arrependido - lamentou o outro rapaz. - Fui mesquinho, mas já recebi o castigo, porque me vão tirar o cão.

- Não por causa da nossa briga, com certeza? - acentuou Francisco.

- Oh, não. Ninguém sabe coisa alguma a tal respeito - elucidou o outro. - Escuta: chamo-me Daniel Oldham e moro num dos novos andares daquele grande prédio próximo. Ora acabam de informar-nos que não é permitido ter lá cães. Compreendes?

- Oh! Nesse caso vais separar-te do Rex? Que pouca sorte!

- Pouca sorte! - repetiu Daniel, de olhos novamente humedecidos. - É pior do que isso. Vai ser entregue ao meu tio Tomás, que não gosta de cães. O pobre Rex levará pontapés, nunca irá passear e... e oxalá não se esqueçam de lhe dar água nem...

Não pôde prosseguir. Com as mãos esfregou os olhos. Depois baixou a cabeça.

- Sou idiota, bem sei - admitiu. - Mas tenho-o há cinco anos, e é meu. Nunca mais o ver nem senti-lo lamber-me ou saltar-me em cima, para me dar as boas-vindas! Nunca tiveste um cão; não podes imaginar.

- Mas compreendo - observou Francisco. - Que pena, Daniel! Não tens esperança de ficar com ele?

- Não tenho. O meu pai disse que correríamos o risco de nos porem fora do andar. Não nos haviam informado. Além disso minha mãe não quererá sair da sua linda casa nova, por que há tantos anos suspirava.

Portanto temos de separar-nos do Rex. Só o soube hoje depois de ter estado com a tua irmã e o teu irmão.

Daniel sentou-se num caixote e enfiou os dedos pelos abundantes cabelos.

- Para que vieste falar comigo? - perguntou Francisco, após uma pausa.

- Para te perguntar uma coisa. Para pedir, na verdade - confessou o outro rapaz. - Estimas os cães, não é? Tenho a certeza, por causa do tal cão imaginário. Estou terrivelmente arrependido agora por ter troçado de ti: parece que estou a ser castigado pelo meu mau procedimento. Bem... eu gostava de saber uma coisa: queres o meu cão? Tens um grande quintal, há muito espaço! Eu traria comida e levaria o Rex a passear...

Francisco conservava-se calado. Daniel, suplicante, olhava-o. Ergueu uma das mãos e tocou no braço de Francisco.

- És um escoteiro. Já hoje praticaste uma boa acção? Esta seria a melhor de todas.

Francisco olhou-o.

- Já hoje fiz duas boas acções - disse. - Mas não há razão para que não faça terceira se...

O outro saltou, radiante, de olhos a brilhar.

- Queres dizer que aceitas o Rex - quase gritou.

- Senta-te e escuta - disse Francisco. - E não te entusiasmes antecipadamente porque não vejo possibilidade de o alojarmos aqui. Não creio que meu pai consinta. Minha mãe poderia dizer que um cão sujaria, com as patas, o chão que ela acabara de limpar.

- Mas então a tua mãe não tem quem a ajude nesta grande casa? - admirou-se Daniel.

- Nós ajudamos, evidentemente-esclareceu Francisco. - Mas estamos pobres, porque o meu pai foi ferido na guerra e não pode trabalhar. Quanto à minha avó - ora vejamos... Não sei o que pensaria. Adora os animais, mas tivemos de vender o seu Tambor, porque era um grande danois e comia demasiado. Ela ficou desesperada. Pode não querer outro cão.

- Compreendo - disse Daniel. - Bem... é obrigatório participar este assunto? O Rex é um cão tremendamente bom. Só ladra se vierem ladrões, e nesse caso não te importarias, não é verdade? Eu dar-lhe-ia comida e tudo se me permitisses entrar no teu quintal. Sinceramente, o Rex não incomodaria. Havias de gostar dele.

- Não duvido - concordou Francisco, inundado por uma onda de excitação ao pensamento de vir a ter um cão no quintal. - Se eu viesse a gostar dele, poderia querer levá-lo eu próprio a dar um passeio, Daniel - lembrou.

Seguiu-se silêncio.

- Bem - concordou Daniel finalmente. - Poderíamos ambos levá-lo a passear. Eu... eu desejo pagar o seu alojamento. Só recebo por semana um escudo, para pôr no mealheiro, mas minha mãe pagaria a alimentação do Rex. Dar-te-ei todo o dinheiro que tenho.

- Não quero - recusou Francisco, que corara. - Sou um escoteiro. As boas acções pratico-as desinteressadamente. Se o fosses também, compreender-me-ias.

- Apre! - exclamou Daniel. - Vale qualquer coisa ser escoteiro se faz pessoas como tu. Francisco, vais fazer o possível para ficares com o meu Rex? Hei-de recompensar-te de qualquer maneira, podes estar certo, mesmo que não queiras receber dinheiro. Vamos!

- Devo aconselhar-me com a Clara e o Alexandre - volveu Francisco. - Verei se eles concordam.

Saiu do estábulo e chamou os irmãos. Estes, que nas proximidades aguardavam, muito excitados, surgiram prontamente. Em breve o assunto era debatido. Mal Clara e Alexandre souberam do problema de Daniel, apoiaram o rapaz. Lutas e ressentimentos tinham desaparecido. Agora apenas o Rex estava em causa:

- Evidentemente que ficamos com o Rex - declarou Clara. - Já não te lembras, Francisco, que limpaste o velho canil e puseste lá palha?

- Não, não esqueci-confirmou o irmão. - É como se estivesse a postos para este acontecimento. Ninguém costuma ir àquele ponto do quintal. Está um pouco afastado. Poderíamos arranjar uma espécie de cerca para que o Rex não se alongasse, denunciando-nos.

- Sim, devemos guardar segredo - concordou Clara. - Não creio que os pais ou a avó queiram o Rex. Por várias razões. Temos de manter o assunto secreto. Um segredo! Que grande segredo! Um cão só nosso!

-Não - discordou de pronto, Daniel. - Ele não deixa de ser meu, todo meu. Que isto fique bem esclarecido.

- Mas podes partilhá-lo connosco, não podes?

- observou Clara. - Sinto que deve ser um lindo cão, Daniel. Não te importas, decerto, que me faça sua amiga!

- Bem... veremos!-admitiu Daniel, um tanto ciumento. - Aliás não posso deixar de consentir no que vocês quiserem. São a minha única esperança. É bastante louvável da vossa parte ajudarem-me atendendo ao que fiz aqui ao Francisco.

- Tudo foi esquecido - tranquilizou-o o rapaz. - Está encerrado o assunto.

- Lamento agora ter-te batido com tanta força

- acrescentou Daniel. - O teu olho deve ter ficado medonho.

- Eu disse que o assunto estava encerrado - repetiu Francisco, impaciente. - Vamos decidir quando e como virá o Rex.

- Pode ser no próximo sábado? - pediu Daniel. - É o fim do prazo para todos os animais saírem dos andares. Nessa altura posso trazê-lo e ao seu cesto e gamelas. Vai sentir-se infeliz, mas dir-lhe-ei que volto no dia seguinte e preveni-lo-ei para que não ladre. Vai portar-se bem, tenho a certeza.

- Meu Deus, então o Rex compreende tudo o que lhe dizes? - exclamou Clara.

- Perfeitamente - elucidou Daniel. - Palavra de honra que sinto o coração desfeito, acreditem. Mas vocês são estupendos. Gostava de um dia poder também ser-lhes útil.

Discutido meticulosamente o caso do Rex, as três crianças sentiam que o cão já lhes era familiar.

- Sabem? - disse, finalmente, Daniel. - Impressionou-me o que a Clara me disse esta tarde. «Acautela-te, não se dê o caso de o teu cão vir para o Francisco». E eu ri. Mas o certo é que isso aconteceu.

- Sim. Foi estranho que eu tivesse dito isso - observou Clara, admirada.

Daniel ergueu-se para se retirar. Estendeu solenemente a mão a Francisco.

- Muito obrigado - disse, e as mãos estreitaram-se com vigor. Então Clara estendeu também a sua e Alexandre imitou-a.

Este acto, um tanto solene, foi de repente interrompido pela voz da avó:

- Francisco! Clara! Alexandre! Onde estão vocês metidos? Francisco!

- Temos de ir - observou Francisco. - Tu ficas aqui até entrarmos em casa. Nessa altura podes sair. Até sábado... e felicidades, Daniel!

 

                   UM SEGREDO EMOCIONANTE.

A decisão tomada a respeito de Rex excitou de tal modo as crianças que não conseguiam falar noutro assunto.

- Não é maravilhoso? - proferiu Clara. - Bem sei que o cão continua a pertencer ao Daniel, mas é como se fosse também um pouco nosso.

- Penso que não há inconveniente em guardarmos este segredo - declarou Francisco. - Não vejo vantagem em criarmos complicações às pessoas crescidas... Que raça será a do Rex? O Daniel disse que é uma espécie de spaniel.

- Hei-de gostar dele, seja de que raça for - afirmou Alexandre.

A avó assomou a cabeça à porta do quarto de Clara, onde os três irmãos se haviam reunido para conversar.

- Que estão vocês aqui a segredar? - perguntou. - Clara: a tua mãe está a passar a ferro. Vai ajudá-la. É teu dever, bem sabes.

Clara franziu o cenho. Ela ajudava no serviço da casa. Auxiliava em várias tarefas, quando, na verdade, muitas vezes teria preferido ler ou brincar.

- Vou já, avó - disse um tanto secamente.

- Bem, não é necessário responderes nesse tom - retorquiu a avó, parecendo um tanto irritada. - Eu não devia ter vindo chamar-te.

- Podia ter-me pedido - resmungava Clara, ao sair. Oh, mas porque teria a avó aquele feitio, se possuía bom coração?

Lentamente, a rapariga, carrancuda ainda, descia a escada. Mas antes de chegar ao fim começou a pensar de novo no Rex, e, já radiante, galgou os três últimos degraus.

Grandes planos estavam a ser elaborados pelos três irmãos.

- Há na estrebaria uns troços de arame farpado - lembrou Francisco. - Penso que são suficientes para construirmos uma espécie de cerca para o cão com a superfície necessária para que ele possa movimentar-se à vontade.

- Precisaremos de algumas estacas para apoiar o arame - acrescentou Clara. - Haverá algumas?

- Há sim - esclareceu Alexandre. - Eu sei onde estão.

Alexandre sabia o lugar de tudo. Conhecia todos os recantos da casa e do quintal. Quando alguém precisava de qualquer coisa pedia informação a Alexandre.

- Óptimo! Então podes ir buscá-las - acrescentou. - Que sorte termos ainda o canil em boas condições!

- Sim. E tudo está a postos, sem faltar palha para a cama - regozijou-se Clara. - Eu me encarregarei de, todas as manhãs, dar a água ao Rex. Gosto desse trabalho.

- Não. Isso é comigo - objectou Francisco, imediatamente.- Lembrem-se: o Daniel pediu-me que cuidasse do cão. Sou o responsável.

- Bem... creio que o Daniel quererá vir ele próprio mudar a água ao Rex. - Não lhe agrada sinceramente que nós fiquemos com o cão e tem ciúmes, mas não há outra maneira de resolver o assunto. De outro modo, ficaria sem o Rex - disse Clara.

- O Daniel não pode dar-lhe a água - elucidou Alexandre. - A torneira fica longe e ele seria visto.

- Sim. Tens razão - concordou Francisco. Ficaram em silêncio, imaginando tudo o que poderiam fazer pelo cão. Alexandre começou a assobiar.

- Pára com isso! - protestou Clara. - Assobias horrivelmente. Para que insistes?

- Eu estava a assobiar porque me sinto feliz - disse o irmão parecendo magoado. - Estava a assobiar a música da Noite de Natal.

- Bem, ninguém o diria - observou Clara. - Tanto parecia a Noite de Natal como, por exemplo, o hino nacional. Foi pena que tivesses aprendido a assobiar, Alexandre. És muito desafinado.

- Pois bem. Vou tentar esquecer-me - foi a resposta do pobre Alexandre. - Mas sai-me sem querer quando me sinto particularmente feliz.

- Nesse caso, assobia! - interveio Francisco, e deu-lhe uma palmada amigável. - Conheço essa sensação.

- Devemos ir conversar com o Rex sempre que pudermos - sugeriu Clara. - Ele há-de sentir-se desamparado sem o dono.

Todos concordaram calorosamente.

- Eu encarrego-me de limpar a casota - afirmou Alexandre, peremptório.

- Tu não! - contrariou Francisco, igualmente categórico. - Esse trabalho compete-me.

- Não sejam idiotas. Façam-no por turnos-disse a irmã. - Como mulher, entendo que é a solução mais atilada.

- E eu, como homem, concordo - apoiou solenemente Alexandre, e todos riram.

- Este cão pode vir a ser uma terrível herança - lembrou-se de dizer Francisco. - Não seria lamentável se ele não gostasse de nós?

Fez-se silêncio opressivo. Clara mudou de tema:

- Esperemos que ninguém descubra o Rex. É triste que o ocultemos dos adultos, mas seria pavoroso que o pobre cão tivesse de ser enviado ao horrível tio do Daniel.

- Vou buscar o arame - disse Francisco e ergueu-se. - A mãe e a avó saíram. Apenas o pai está em casa. A ocasião é propícia.

- Pobre paizinho! - suspirou Clara. - Havia de gostar de associar-se e de nos ajudar a colocar o arame, tenho a certeza. Deus queira que a sua doença tenha cura. Quem me dera que ele fosse como os outros pais e pudesse trabalhar e distrair-se. É tão doloroso ver-se ali, sempre sentado onde está, vendo as outras pessoas correrem e mexerem-se.

- Sim. E todas as vezes que o médico experimenta novo tratamento, o pai fica tão excitado como nós estamos agora por causa do Rex. Mas logo que o tratamento não produz resultados o pai volta a desanimar.

- Quando eu for mais velho - prometeu, seriamente Alexandre - hei-de ser médico. Um médico muito competente. E o que primeiro farei será curar o paizinho.

- Já disseste isso mais de cem vezes - observou Clara. - Mas acredito em ti. Tu não és dos que mudam de ideias. És como eu. Vamos. A mãe não deve tardar.

Obtido o arame, as ripas encontrou-as Alexandre na casa dos arreios. Eram mesmo à medida. Francisco, munido de um alicate, colocou os materiais no distante recanto do grande quintal situado tão longe da casa. Local excelente para esconder um cão... Árvores e arbustos ocultá-lo-iam de olhos indiscretos. Estava ali o canil, grande e limpo, com palhas a espreitarem à porta. Alexandre esfregou as mãos e assobiou com força. Clara riu:

- Feliz, novamente? Dá uma ajuda, Alexandre. O Francisco vai colocar as ripas.

Durante cerca de uma hora as três crianças estiveram muito ocupadas na tarefa. O arame teve de ser desenrolado e endireitado. Francisco, com o alicate,; cortava à medida, mas, esquecido de que as lâminas estavam afiadas, feriu-se profundamente na mão direita.

- Está a deitar sangue! - exclamou Alexandre. - Vou buscar tintura.

E correu quanto lho permitiam as curtas pernas.

- Não exageres! - gritou Francisco.

- Não é exagero! - observou a irmã. - Ferimentos desses devem ser desinfectados. Se o Rex tivesse uma ferida numa pata, não lha limpavas e desinfectavas?

Pois bem: tu és mais importante que um cão. Aguarda um minuto.

Alexandre, já de regresso, vinha mais devagar. Nenhuma das crianças corria quando transportava objectos de vidro. A avó havia-as advertido muito seriamente, mostrando-lhes a enorme cicatriz patente na sua mão direita e que fora originada por um fragmento de vidro.

- Eu vinha a correr com uma vasilha de vidro - explicara-lhes. - Caí e quase fiquei sem mão. Portanto, não sejam desastrados, como eu fui!

Francisco fez uma ligadura, com adesivo. Prosseguiu o interrompido trabalho. Alexandre colocava as estacas, regularmente intervaladas, e a vedação surgia, bonita e rectilínea, mesmo à medida desejada.

Tinha bom aspecto a tarefa, após concluída. Não havia cancela, mas o arame não tinha altura excessiva e permitia que as crianças o transpusessem, apesar de Alexandre o fazer com um pouco de dificuldade. Era suficiente para deter um cão, a menos que esse cão fosse excelente saltador de obstáculos...

Francisco retirou a palha da casota e voltou a repô-la.

- Tu amachucaste-a terrivelmente, Alexandre, quando entraste na casota - notou Francisco. - Os cães gostam de palha fofa, onde se enrosquem.

- Ele há-de amachucá-la mais do que eu! - replicou Alexandre.

- Poderemos fazer-lhe a cama diariamente - sugeriu Clara. - Quem me dera que já fosse sábado!

Chegou finalmente o desejado dia e veio Daniel, acompanhado pelo Rex. Entraram pela porta traseira, onde aguardavam os três excitados irmãos.

- Olá! - saudou Daniel, que parecia extremamente grave. Era uma circunstância solene ceder um cão em tais circunstâncias. «Rex. Cumprimenta!»

O Rex alongou a pata direita, e, obediente, trocou apertos de mão com Francisco, em seguida com Clara, depois, Alexandre. Este cumprimentou e tornou a cumprimentar. Rex parecia não se importar.

- Já chega - interveio Daniel. - Não lha arranques. Bem, que tal lhes parece?

As crianças apreciavam o cão. Parecia, de facto, uma espécie de spaniel, mas não puro.

Era demasiado grande e tinha a cauda muito comprida, mas possuía magníficos olhos meigos e dourados, de verdadeiro spaniel, e longas e sedosas orelhas pendentes. Com o olhar fito nas crianças, acenava vigorosamente com a cauda.

- É lindo!-manifestou-se Clara, ajoelhando-se para o acariciar.

- É um verdadeiro cão! - elogiou Francisco, e deu uma palmadinha no pêlo de seda. - Um autêntico cão!

- Gosto muito dele - disse, por seu turno, Alexandre.- Muito, muito, muito.

Daniel parecia transbordar de orgulho e satisfação.

- Estou contente - disse simplesmente ao acariciar Rex.- Eu... eu penso que vocês três são formidáveis. Digo-o com sinceridade.

Ninguém respondeu. O animal prendia-lhes toda a atenção.

Feliz ao ver-se tão acarinhado, deitara-se de costas e, de patas no ar, parecia pedalar. Como se montasse uma bicicleta de quatro pedais!

- Olhem para ele!-gritou Clara fazendo-lhe cócegas.

Daniel volveu-se para Francisco, a contar-lhe as diligências efectuadas.

- Falei com minha mãe - disse. - A princípio não lhe agradou muito que o Rex fosse para casa de pessoas desconhecidas. Mas tanto lhe pedi que ela consentiu. Acha que é muito gentil da vossa parte.

- Vamos gostar de tê-lo connosco - garantiu Francisco. - E quanto à comida, vens tu trazê-la diariamente?

- Sim. Virei todos os dias com a comida e, sempre que possível, levá-lo-ei a passear. Mas vocês terão de mudar-lhe a água. Importam-se?

- Temos muito prazer - retorquiu Francisco. - Escuta: tu tens cuidado muito bem do Rex, não é verdade? O pêlo parece de seda e até as orelhas estão penteadas.

- Sim, e também as penas - elucidou, com orgulho, Daniel.

- Oh, onde estão as penas? - admirou-se Alexandre, mirando o Rex de alto a baixo. - Eu julgava que ele só tinha pêlos.

- O pêlo felpudo da parte posterior das pernas tem o nome de «penas» - explicou Daniel, a rir. - Bem. Tenho de ir-me embora. Adeus, Rex, meu velho. Porta-te bem. À tarde virei visitar-te.

Cerrou-se a porta das traseiras. Daniel partira. Rex imobilizou-se, à escuta, e soltou um pequeno ganido. Onde estaria o seu dono muito amado?

«Não te preocupes», dirigiu-se-lhe Francisco, acarinhando-o.

Mas Rex não era dessa opinião. Correu para a vedação e, ao verificar que não conseguia transpô-la, andou apressadamente em redor, mas viu que não podia sair. Sentou-se e ganiu novamente. As crianças rodearam-no, temerosas de que ladrasse. Mas Rex não o fez. Ergueu-se, de repente, e percorreu o canil, observando-o com interesse. Entrou e farejou. As crianças ouviam-no respirar. Soava como se o cão estivesse satisfeito.

Houve um pequeno baque e Rex espreitou à porta, deitado na palha, a observar a entrada, dono da sua pequena casa.

- Gostou dela! Sabe que lhe pertence! - exclamou Alexandre, delicado. - Olhem para ele.

Todos fitaram Rex, que, com seus meigos olhos castanhos, lhes devolvia o olhar. Então, de súbito, Rex ergueu-se, saiu da casota e lambeu primeiramente Francisco, depois Alexandre, e Clara por fim. A seguir foi até junto da vasilha da água e pôs-se a beber ruidosamente.

- Devia ter qualquer coisa de comida - observou Clara. - Nada tem para roer se sentir fome. Que dizes de um biscoito de chocolate, Francisco? Tenho um, guardado no meu quarto.

- Não, de modo algum - recusou, de pronto, Francisco. - O chocolate pode engordá-lo. Deverá ser alimentado convenientemente. Além disso penso que devemos deixar esse assunto a cargo de Daniel, sem lhe oferecermos pitéus. Não seria leal.

- Gostaria de comprar-lhe um osso, para ele roer - disse Alexandre. - Hei-de perguntar ao Daniel se o posso fazer.

- Bem, suponho que são horas de deixarmos o Rex e irmos para casa - lembrou Clara. - Tu tens uma reunião hoje de manhã, não é assim, Francisco?

E eu vou ajudar a mãe. Alexandre, creio que tens de ir fazer uns recados.

- Bem sei - replicou Alexandre. - Mas a mãe disse-me que o fizesse pelas dez e meia. Ainda é cedo. Vocês dois podem ir. Eu ficarei com o Rex até às dez e meia, para o caso de ele se sentir muito só.

Os dois irmãos não ficaram muito entusiasmados com a ideia de deixarem Alexandre na posse exclusiva do spaniel. Este podia dedicar-lhe mais amizade do que a eles! Todavia era generoso para Rex oferecerem-lhe companhia por mais uns momentos. Nesta conformidade, os dois mais velhos retiraram-se. Ouviram Alexandre começar a assobiar escandalosamente.

- O Alexandre sente-se feliz - observou Clara. - Repara no seu assobio! O Rex é lindo, não é, Francisco? Não achas excitante termos um segredo destes?

Cheios de felicidade, dedicaram-se às suas tarefas, saboreando o segredo, ansiosos por um momento livre para correrem para junto do spaniel.

A mãe quis saber onde tinham estado.

- Chamei e tornei a chamar! - observou. - Onde estavam?

- No jardim - respondeu Francisco. - Peço desculpa, minha mãe.

- Que estiveram a fazer? - perguntou a avó.- Não os encontrei em parte alguma.

Francisco e Clara não encontraram resposta. Ficaram silenciosos. Temiam que a avó pesquisasse e lhes descobrisse o segredo.

A mãe nunca bisbilhotava, mas a avózinha parecia não se sentir sossegada sem conhecer os pensamentos e acções de toda a gente.

A avó ficou, evidentemente, muito intrigada naquele dia, em que Clara foi a primeira a desaparecer após a conclusão das tarefas que lhe cabiam. Depois do desempenho dos recados Alexandre desapareceu igualmente. E Francisco, regressando da sua reunião de escoteiros, um pouco antes do almoço, desapareceu também!

- Onde estarão eles?-perguntou a avó.-Agora foram-se todos!

- Não importa - disse o genro. - Está um lindo dia. Desconfio que têm qualquer assunto secreto no quintal: a construção de alguma casinha ou a escalada de alguma árvore. Todos executaram os seus trabalhos e cumpriram bem. Deixe-os em paz, avózinha.

- Bem! Quem te ouvisse diria que eu ando sempre atrás deles!-replicou a avó. - São meus netos, não são? E vivem na minha casa, não vivem? Não posso perguntar onde estão?

- Eu preferiria que vendesse a casa e nos permitisse irmos para outra mais pequena - disse João, fatigado. - É demasiado trabalho para a minha pobre mulher e para as crianças. Uma casa mais pequena facilitar-nos-ia a vida. Bem sei que sou um peso morto, incapaz de trabalhar e de ganhar dinheiro. É horrível estar aqui sentado e ver-vos a todos matarem-se a trabalhar como mouros!

Lágrimas escorregaram pela face da avó. Aproximou-se do genro e afagou-lhe as mãos.

- Pobre rapaz! - disse. - Bem sei como é duro para ti, mas talvez um dia os médicos consigam curar-te e então sentir-te-ás feliz por não nos termos privado desta linda casa. Foi o meu lar de criança, cedi-to quando casaste com a minha filha. Despedaçar-me-ia a alma vendê-lo e abandoná-lo.

- Sim, compreendo - admitiu João. - Faz por nós tudo quanto pode, bem sei. Mas é-me insuportável presenciar a azáfama de todos vós, quando toda a minha colaboração consiste em descascar batatas, ervilhas e tarefas semelhantes. Isso enerva-me e faz-nos implicar com os outros. Uma família deve viver em unidade, paz e harmonia. Por vezes isso não acontece connosco.

A avó enxugou os olhos e decidiu que nessa mesma tarde iria comprar guloseimas para os netos, umas meias para a filha e cigarros para o genro.

- Sou uma velha inútil - afirmou. - Rabugenta, maçadora e impertinente. Não é verdade, Sr. Negrão?

De olhos a cintilar, o enorme gato preto deslizou pela sala. Saltou agilmente para os braços amigos da idosa senhora e ronronou.

- O seu gato! - disse João, a sorrir. - Eis o único ser que nunca a importuna, avózinha.

A avó, de encontro ao peito, estreitou o sr. Negrão. Ele miou levemente e debateu-se para se libertar.

A mãe das crianças entrou na sala e olhou em redor.

- Onde estarão os pequenos?-perguntou.-Não me digam que voltaram a desaparecer.

Efectivamente, durante a semana seguinte, ausentavam-se a todo o momento! Haviam estabelecido que, após as aulas, alguém ficasse com Rex, se fosse possível. O cão nunca ladrava, mas tinha tendência para ganir se pressentia as crianças em casa. E elas receavam que fosse ouvido.

Regular e diariamente, Daniel vinha dar um passeio ao Rex. Quando o avistava, o cão quase enlouquecia de alegria. Mas nem uma só vez ladrou. O dono prevenira-o e o inteligente animal compreendera. Todos os dias, Daniel trazia carne e biscoitos. Inspeccionava a vasilha da água, para certificar-se de que a haviam substituído. Francisco fazia desse trabalho uma das suas primeiras ocupações matinais.

Daniel verificou um dia que a casota fora rodada e estava orientada para outra direcção.

- Porque mudaram a situação da casota? - perguntou. - É esquisito vê-la virada para aquele lado.

- Bem...-explicou Francisco. - Nos dois últimos dias houve vento frio vindo de leste. A casa do Rex estava virada a leste e o vento encanava-se para lá. Eu não conseguia deixar de pensar que ele havia de sentir frio quando estivesse deitado. Por isso mudei a situação da casota. Agora deve dormir confortável e aconchegado à noite.

- És verdadeiramente seu amigo - observou Daniel, cheio de gratidão. - Não achas que tem bom aspecto?

Sente-se feliz, não é verdade? Apesar de eu saber que tem imensas saudades minhas.

- Oh, evidentemente - concordou Francisco. - Sempre que alguém entra pela porta das traseiras, o Rex põe-se de pé, à escuta, esperançoso em que sejas tu. Mas é feliz aqui. Todos gostamos muito dele.

- Poderias levá-lo amanhã a passear? - perguntou Daniel. - Tenho de ir, com minha mãe, visitar a minha avó e por isso não me será possível vir. Mas ele necessita do seu passeio.

Brilharam mais os olhos de Francisco.

- Oh, sim! Com muito prazer. Nunca pensei que consentisses. É tão diferente tudo, agora que temos um cão. Não sei como poderíamos passar sem ele, um amigo sempre pronto a escutar-nos, para brincar e para o acarinharmos. E, sabes?, há dias, quando eu estava triste por ter feito mal o meu trabalho, o Rex pareceu adivinhar e lambeu-me insistentemente quando fui vê-lo.

- Bem... todos os cães são assim - declarou Daniel.- Estão sempre do nosso lado, compreendes?, como as nossas mães. Fica então combinado. Amanhã virei trazer-lhe o comer, mas tu levá-lo-ás a passear. Muito obrigado!

Para as crianças era um verdadeiro prazer saírem com Rex. A avó esteve mais inquisitorial que nunca quando os netos lhe participaram que iam sair juntos para um passeio. Chegou até a propor-lhes acompanhá-los e ficou extremamente contrariada quando os pequenos objectaram dizendo «porque vamos demasiado longe para a avozinha».

Partiram quando verificaram que ninguém da casa os poderia surpreender. Então puseram uma coleira no Rex até chegarem ao campo. Só aí o libertaram. Ele: correu loucamente e, por momentos de ansiedade, as crianças temeram que não regressasse.

- Não irá tentar fugir para junto do Daniel? - perguntou Clara.

«Rex! Aqui!», ordenou Francisco.

O obediente animal regressou imediatamente, deteve-se junto do rapaz, com o focinho quase a tocar-lhe os calcanhares, lembrando-lhe Saltão, o cão imaginário de outrora.

Francisco troçou de si próprio:

«Como fui pateta! Era todavia melhor que nada, ainda que não passasse de um cão invisível.» «Aqui, Rex! Busca aquele pau!»

Passaram momentos maravilhosos na companhia do Rex. Ao regressarem para a merenda, todos se sentiam fatigados. Rex, com fundo suspiro, deixou-se cair pesadamente na palha e acomodou junto dos pés a sedosa cabeça, distendidas as longas orelhas.

«Sinto-me também como tu, Rex: estafado!», confessou Alexandre. «Estou terrivelmente esfomeado. Oxalá a avó não faça demasiadas perguntas a respeito do nosso passeio. Tenho medo de descair-me e confessar alguma coisa a teu respeito!»

- Não caias nessa! - ameaçou Clara, horrorizada. - Apanharias por debaixo da mesa o maior pontapé que recebeste em toda a tua vida!

 

Daniel surgiu, radiante, no dia seguinte :

- Então, ele gostou do passeio? Está a dizer que sim! Olhem, eu trouxe-lhes uma coisa, comprada com dinheiro do meu mealheiro. Não querem receber pagamento por cuidarem do Rex, mas eu tenho de retribuir de qualquer forma!

Mostrou uma caixa de rebuçados.

- Oh, que amabilidade! - exclamou Clara. - Mas nós queremos cuidar do Rex por estima, não por pagamento.

- Vá, aceitem - insistiu o rapaz. - A minha mãe afirmou que eu devo trazer-lhes rebuçados todas as semanas se insistirem em que não devo pagar.

- Nesse caso, concordamos em aceitar esta semana, muito agradecidos - disse Francisco. - Mas só por esta vez, combinado? Nós queremos alojá-lo desinteressadamente não só para praticarmos uma boa acção, mas também porque todos gostamos do Rex.

- Nunca vi amigos como vocês - louvou Daniel. - Fazerem qualquer coisa sem esperarem recompensa! A maioria das pessoas aceita tudo. Bem, estou contente por terem aceitado os rebuçados. São os melhores que pude comprar. Não dêem nenhuns ao Rex, por favor. Tem uns lindos dentes e não desejo que se lhes estraguem.

- As coisas caminham lindamente - alegrou-se Francisco. - Muito bem, na verdade. A avó deixou de fazer-nos perguntas quando desaparecemos e creio que o nosso segredo nunca virá a ser desvendado.

Palavras um tanto prematuras... Porque na semana imediata o segredo foi descoberto.

 

                   UM POUCO DE SORTE.

Foi a avó quem primeiro soube da existência do Rex. Aconteceu por causa do sr. Negrão, que, como era seu hábito, fora naquele dia tentar caçar pássaros. Como sempre, mal ele se aproximava um pouco mais, o cobiçado pássaro voava imediatamente, pousava em qualquer ramo e dali troçava-o impiedosamente.

O Sr. Negrão não gostava disso, mas, por fatalidade, não era bom caçador e a corpulência e o peso, que lhe dificultavam a corrida, tornavam-no alvo excelente para olhos vigilantes. Os pássaros, ao vê-lo surgir no jardim, irrompiam em coro clamoroso:

«Cuidado, ó incauto! Aí vem o gato!», cantava o tordo.

«Cautela, cautela! Lá vem a fera!», esganiçava-se o melro.

«Fugi, fugi! Ele está ali!», avisava do ninho o melharuco azul.

Certo dia - estavam as crianças na escola - o Sr. Negrão dispôs-se mais uma vez a ir caçar pássaros. Ao lobrigar gordo melro ocultou-se prudentemente atrás de uns arbustos, procurando não pisar ramo ou folha caída. Silencioso como um pele-vermelha!

O melro fê-lo executar estranha dança e atraiu-o até às cercanias de Rex. De súbito voou para uma árvore, donde se pôs a chamar tão feios nomes ao Sr. Negrão que o gato não pôde suportar mais. Saltou para a árvore, o mais alto que pôde, em perseguição da descarada ave.

O melro esquivou-se. Voou para longe. O Sr. Negrão sentou-se num ramo e começou a lavar-se. Fazia-o sempre que pássaro ou rato lhe levavam a melhor, para demonstrar, simplesmente, que não se importava.

Ouviu um ruído em baixo e olhou para averiguar a causa. O que descobriu fê-lo duplicar de volume e a pelica da sua cauda avolumou também. Adquiriu a aparência de terrífica visão.

O que viu foi Rex, o spaniel, deitado, meio adormecido, ao sol. Um cão! Um cão nos domínios privados do Sr. Negrão! Que ousadia!

O Sr. Negrão agitou-se e pateou. Rex acordou em sobressalto. Canções e vozes de pássaros nunca o perturbavam, mas o insólito rumor despertara-o imediatamente.

Ergueu-se e olhou em redor a rosnar. O Sr. Negrão pateou novamente e Rex levantou os olhos. Ficou estupefacto ao ver tão enorme e negra criatura na árvore mesmo por cima do seu canil. Aquilo era um gato? Nunca antes vira um tão grande.

Rosnou outra vez. O Sr. Negrão soprou. Não se atrevia a descer, porque não podia prever as intenções do spaniel. Temia que aquele cão o despedaçasse.

Assim, o gato permaneceu onde estava, a bufar e a silvar. E Rex mais e mais se enervava, correndo em volta da sua prisão a tentar descobrir saída, donde pudesse alçar-se para o tronco próximo.

Esqueceu-se de que não devia ladrar. Soltou pequeno latido e depois um mais sonoro. Então ficou tão excitado que prosseguiu. O Sr. Negrão decidiu que, se fosse necessário, preferiria passar três semanas no local a enfrentar aquele feroz cão.

A avó estava sozinha em casa. De início não se apercebeu dos latidos. Mas, quando eles prosseguiram, cada vez mais fortes, mais excitados, ergueu-se e franziu o cenho.

«Que ladrar será este»?, perguntou para si. «Que horrível barulho! Quem será o dono do cão que ladra desta maneira? Sinceramente, devo fazer queixa. E onde estará o Sr. Negrão? Em geral, vem de tropel ao ouvir um cão ladrar. Sr. Negrão! Sr. Negrão, onde estás?»

Mas o gato estava no alto do velho carvalho e de lá não descia. A avó chamou e tornou a chamar e entretanto continuava a ouvir Rex ladrar loucamente.

«Oh! Espero que não seja ao Sr. Negrão que ele está a ladrar», receou, de súbito. «Tenho de ir ver.»

Saiu, portanto, para o jardim, na direcção do local donde provinha o barulho, onde, evidentemente, se lhe deparou a casota e Rex a ladrar ferozmente. A princípio não viu o gato. Ficara tão atónita ao descobrir um cão, numa pequena cerca com uma casota, que só tinha olhos para aquele espectáculo.

«Um cão!», murmurou. «Um cão alojado aqui! Eis porque os pequenos desapareciam nos últimos tempos. Que extraordinário! Onde o teriam adquirido? E porque guardaram segredo?»

Rex viu a avó. Deixou de ladrar e olhou-a. Correu para a vedação, onde se encostou, de patas a empurrar o arame. Ganiu. Sentiu que aquela idosa senhora amava os animais.

Ela ergueu a mão por sobre a cerca e acariciou-lhe a sedosa cabeça.

«Que lindos olhos tens!», disse. «Olhos de autêntico spaniel, meigos e suplicantes! Que fazes... aqui?»

«Ão, ão!», respondeu Rex e abanou a cauda.

«Como poderei entrar na cerca?», cismou a avó. «Não há porta. Suponho que as crianças pulam para dentro. Pois bem, tentarei transpô-la de qualquer maneira.»

Nesse preciso momento avistou o Sr. Negrão, e ouviu-o também, porque ele miou lamentosamente, assustando-a.

«Oh, estás então aí!», disse, olhando para a árvore. «Andaste a perseguir pássaros e vieste até junto deste cão. Podes descer. Não te molesta.»

A avó encontrou processo de transpor o arame e de entrar. Rex estreitou-se de encontro a ela como se fosse uma velha e saudosa amiga. Lambia-a e saltava-lhe em redor a ganir.

Quem tal visse diria ser aquele o cão da avó!

«És um belo cão», elogiou ela, afagando-o. «Já há muito tempo que não tenho um cão. Bem, bem, bem, custa-me a acreditar. Pertences às crianças?»

«Ão, ão!», fez Rex e deitou-se de costas, para ser acariciado.

No preciso momento em que a avó se inclinava para ele e amimá-lo, fazendo-o revolver-se de satisfação, os pequenos regressavam a casa. Fizeram como sempre: correram a certificar-se de que Rex estava bem.

E, por Deus! ali estava a avó, dentro da pequena cerca, debruçada sobre o Rex, a fazer-lhe festas e a falar-lhe. A avó! Estacaram surpreendidos. Rex ouviu-os e saltou, correu para a vedação, a saudá-los.

- Avozinha! - exclamou Clara! - Oh, minha avó! Descobriu o Rex!

- Descobri - confessou ela, parecendo um tanto culpada. - Ele ladrou ao Sr. Negrão, que está ali em cima, na árvore, e eu vim ver o que havia. De quem é este cão? Vosso?

- Avozinha, ficou aborrecida? - perguntou Alexandre, pulando por cima da cerca. - Era um segredo nosso. Não lho contámos porque julgámos que não queria mais cães depois de se ter separado do seu Tambor; não dissemos à mãe porque pensámos que ela não gostaria de um cão a incomodá-la e a sujar com as patas enlameadas o soalho. E não quisemos contar ao pai porque poderia aborrecer-se.

- Compreendo - retorquiu a avó. - Compreendo perfeitamente. Mas donde veio este cão? Ainda não mo explicaram. É vosso?

Então tudo foi esclarecido. Clara e Francisco contaram o sucedido, enquanto Rex e Alexandre brincavam um com o outro e escutavam.

- Avozinha, querida avozinha, por favor, guarde o nosso segredo - suplicou Clara calorosamente, após ter concluído o relato. - Compreende como isso é importante para o Daniel? Ele ama o Rex, como a avó amava o Tambor.

- Mas a vossa mãe talvez não se importe - principiou a avó. Nesse momento, olhando as crianças, baixou a cabeça. - Muito bem. Não façam essa cara. Sei que é somente para evitar preocupá-la e aborrecê-la que guardam segredo.

Estejam descansados. Não os denunciarei.

Quase perdeu o equilíbrio assaltada pelas três agradecidas crianças e por Rex, entusiasmado com a repentina excitação dos amigos.

A avó começou a rir.

- Oh, larguem-me! Esmagam-me! Prometo-lhes o seguinte: desde que o Rex seja feliz e não faça barulho, guardarei o vosso segredo. Mas suponham que a vossa mãe desce, um dia, até este recanto do jardim e o descobre por si própria?

- A mãe nunca aqui vem - observou Alexandre. - Diz que não gosta deste lugar, que está muito descuidado.

Tanto como os netos, a avó estava entusiasmada com Rex. Ia visitá-lo quando eles estavam na escola. Comprou-lhe um grande osso, que ele roeu, nas profundezas da casota, às ocultas do Sr. Negrão, que o enervava tanto que se ele, Rex, não fosse um cão bem ensinado havia de despedaçá-lo!

A Daniel não agradou muito que a avó tivesse tomado conhecimento do assunto nem gostou que ela oferecesse ossos!

- Quero eu alimentá-lo! - protestou. - A sua palha vai ficar cheia de ossos! E quem o escovou? Eu faço isso, bem sabem.

- Bem, todos nós o penteamos agora - confessou Clara. - É tão agradável penteá-lo e o Rex gosta tanto... A avó comprou-lhe ontem uma escova, uma bela escova rija, que ele adora.

- Havias de ouvir o Alexandre enquanto o escova - interveio Francisco, com uma repentina risada. - Assobia todo o tempo, como se estivesse a tratar de um cavalo! Assobia e assobia, mas não se percebe o quê.

- Não é verdade - replicou Alexandre. - Vocês são maldosos quando se trata do meu assobio.

- Vocês acreditam que o Rex está a salvo, agora que a vossa avó o descobriu? - inquietou-se Daniel. - As pessoas crescidas às vezes são pouco discretas, sabem?

- Oh, sim, está bastante seguro. A mãe nunca suspeitará - afirmou Clara. - Repito que nunca aqui vem. A avó prometeu não contar e ela cumpre sempre a sua palavra, sempre.

A mãe das crianças cogitava, todavia, nas constantes ausências da avó. Já se acostumara a que as crianças desaparecessem de vez em quando, e deixara de preocupar-se. Mas agora, sempre que precisava da avó, não a encontrava. Não estava em casa!

«Meu Deus, o jardim deve ter-lhe despertado um interesse súbito», pensou. Mas não tentou investigar as razões. Jamais interferia com alguém e sentia-se satisfeita por verificar que a avó parecia ultimamente mais feliz.

Seria certamente muito improvável que a esposa do João viesse a descobrir a existência de Rex se não tivesse havido naquela manhã uma ocorrência extraordinária. Estava na cozinha a bater um pudim quando ouviu bater à porta.

- Se é da lavandaria, pode entrar - disse. - As minhas mãos estão enfarinhadas.

Abriu-se a porta e não entrou alguém da lavandaria. Surgiu uma mulher desconhecida, baixinha, de rosto simpático.

- Desculpe - disse à guisa de saudação. - Sou a mãe do Daniel e vim para agradecer-lhe ter consentido que os seus filhos cuidem do cão.

A mãe, atónita, fitou-a.

- Que disse? - perguntou. - Um cão? Nunca ouvi falar em tal! Deve estar equivocada!

À porta, a mulher parecia igualmente surpresa.

- Mas... É aqui o Abrigo Verde, não é verdade? - insistiu. - E a senhora não é a Sr.a Marshall, mãe do Francisco, da Clara e do Alexandre?

- Sou - assentiu a mãe das crianças, cada vez mais estupefacta. - Mas como o sabe? E que me disse a respeito de um cão? Aqui não temos cão, de contrário eu sabê-lo-ia!

- Oh! - exclamou a outra mulher. - Bem... eu sou a Sr.a Oldham, mãe do Daniel, que é o dono do cão. Ele falou-me dos seus três filhos, minha senhora. Creio que em tempos brigou com o Francisco, mas depois fizeram-se amigos, por causa do Rex. Quando o meu Daniel foi avisado de que não poderíamos ter o Rex na nossa nova residência, ficou desolado e veio pedir ao Francisco que lhe alojasse o cão no vosso grande quintal.

- E o Francisco acedeu? - disse a mãe, mais e mais surpreendida. - Nunca ouvi uma só palavra a respeito desse assunto. Mas, valha-me Deus, talvez seja essa a razão dos constantes desaparecimentos... Vão provavelmente tratar do cão. Mas porque não mo confessaram? Não é seu hábito procederem às minhas ocultas!

- Bem... vou contar-lhe o que me disse o meu filho - arriscou a Sr.a Oldham, avançando pela cozinha. - Ele disse-me que os seus três filhos, minha senhora, não queriam que ficasse aborrecida, com um cão em casa, a correr por todo o lado e a sujar-lhe o chão. Contou-me que a Sr.a Marshall não tem quem a ajude nas limpezas, ou na cozinha e que os seus filhos não querem causar-lhe mais aborrecimentos; e um cão é muitas vezes uma fonte de preocupações. Puseram-no, portanto, num canto do jardim. Mas o Daniel nunca me disse que a senhora não sabia.

A Sr.a Marshall ouvia, ainda extremamente admirada.

- Desçamos até ao jardim, a ver se conseguimos descobrir esse cão - propôs.

Deste modo, mãos ainda enfarinhadas, tomou o caminho do jardim, seguida pela mãe de Daniel.

Ali, na pequena cerca, deparou-se-lhe Rex e... ó céus! com ele estava a avó, a escová-lo vigorosamente com a nova escova recentemente comprada. Rex parecia deliciado.

- Minha mãe! - exclamou a Sr.a Marshall, perplexa. - Então sabia da existência deste cão! E ocultou-me também! Sinceramente, não sei que dizer!

Rex quase enlouqueceu quando viu a mãe de Daniel. Supôs que ela viera para o levar de regresso e esforçou-se quanto pôde para saltar a vedação. A Sr.a Oldham inclinou-se e afagou-o.

- Tem bom aspecto - louvou. - Todo a reluzir de asseio! Palavra: encontraste excelentes amigos!

As três mulheres começaram a conversar e a mãe de Francisco não tardou a ficar ciente dos factos.

- Um cão no quintal e eu sem o saber!-protestou. - Estes meus filhos!

- Não os repreenda - suplicou a Sr.a Oldham. - Eles fizeram-no movidos pela bondade dos seus corações, para ajudarem o meu Daniel. E além disso não querem aceitar um tostão pelo trabalho que têm em cuidar do Rex, dando-lhe uma casa. O Daniel disse que nem sequer consentem em receber guloseimas.

- Espero que não, efectivamente - observou a mãe. - Foram ensinadas a não aceitar pagamento por qualquer boa acção que pratiquem.

- Bem, agora escute - propôs a Sr.a Oldham, em voz subitamente firme. - Há mais quem pense de maneira idêntica! Não querem paga pela vossa generosidade? Pois bem, eu não quero aceitar generosidade sem poder retribuí-la. O que é justo é justo, não é verdade?

- Sim, tem razão - e a mãe das crianças sorriu:- Compreendo-a. Eu também gosto de retribuir as gentilezas.

- Óptimo! - exclamou a Sr.a Oldham. - Nesse caso vai então consentir que lhe retribua a amabilidade?

Somente para saldarmos as dívidas entre nós?

- Que espécie de amabilidade? - quis saber, prudentemente, a mãe de Francisco.

- Eu explico - prosseguiu a mãe de Daniel, radiante. - Eu não tenho muito que fazer na minha pequena casa. Por esse motivo trabalho a dias, em casa de outras pessoas. Recebo dinheiro, evidentemente, porque trabalho é trabalho. E gostaria de vir uma manhã por semana a esta casa, para fazer o que me fosse destinado - gratuitamente, porque isso seria para mim um prazer e eu sentiria que estava a retribuir a vossa bondade.

- Oh, não! - recusou a Sr.a Marshall. Mas a avó interrompeu-a:

- Oh, sim! - disse, sentindo enorme simpatia por aquela mulher baixinha, de rosto prazenteiro. - Oh, sim! Que coisa maravilhosa teres uma manhã inteira livre para ti, uma vez por semana, tu que trabalhas sem parar todo o ano. Sim, Sr.a Oldham, aceitamos a sua ajuda com prazer.

E, antes que a Sr.a Marshall pudesse acrescentar palavra, as duas outras mulheres discutiram os pormenores. A mãe de Daniel podia vir às quartas-feiras, faria a limpeza da cozinha e, com certeza, podia dar uma ajuda a cozinhar - e, evidentemente, ajudaria também na limpeza das salas!

Agradavelmente emocionadas, as três mulheres regressaram a casa. Rex ganiu lamentosamente quando verificou que se retiravam, mas os pequenos não tardaram a surgir e ele saudou-os, com prazer, tentando informá-los de todas as visitas que nesse dia recebera. À hora do almoço os três irmãos dirigiram-se para casa. A mãe concluía os preparativos, porque se havia atrazado um pouco. Ergueu os olhos e sorriu:

- Olá, meus queridos! Gostariam de dar este osso ao Rex?

As três crianças imobilizaram-se, mudas de surpresa.

Que dizia a mãe?

- Pois bem, já conheço o vosso segredo - riu a mãe. - A Sr.a Oldham veio visitar-me hoje de manhã e eu depressa fiquei a par de tudo. Foi delicado da vossa parte não quererem causar-me aborrecimentos, mas o Rex não me incomoda. Sempre que desejem podem deixá-lo entrar em casa. É um lindo cão, que apetece acariciar.

Que tremenda surpresa! Alexandre lançou-se nos braços da mãe.

- Oh, minha mãe! Adoro-a! Sabe sempre dizer as palavras adequadas. Posso ir buscar o Rex agora, neste momento, imediatamente?

- Sim, agora, neste momento, imediatamente, ou ainda antes - acedeu a Sr.a Marshall e todos riram ao ver como os pés de Alexandre pareciam ter asas ao dirigir-se para o jardim.

Em casa, Rex alcançou enorme sucesso. Gostou imediatamente do Sr. Marshall e logo aprendeu a não se lhe encostar muito pesadamente de encontro às pernas. A avó andava radiante por tê-lo perto. Quanto à mãe dos pequenos parecia não se aborrecer, mesmo quando o chão aparecia sujo de lama!

Alexandre esforçava-se por ensinar Rex a limpar as patas e gastou horas a esfregar-lhe no tapete um pé, após outro, cuidadosamente. Mas Rex não conseguia aprender! Clara ficara radiante ao saber que a Sr.a Oldham tencionava vir uma manhã, em cada semana, para ajudar. Melhor que os rapazes, Clara sabia o que isso significava para sua mãe. E a Sr.a Oldham demonstrou constituir um auxílio extremamente valioso. Não desdenhava trabalhar no que quer que fosse e além disso aparecia frequentemente para dizer que ia a compras e perguntava se a Sr.a Marshall precisava de alguma coisa. A única personagem que não suportava que Rex entrasse em casa era o Sr. Negrão. Inchava, a fingir-se importante, mas gostava de dar uma boa sapatada no cão se este se acercava demasiado; além disso detestava ver a avó dedicar demasiada atenção àquele spaniel!

- O Sr. Negrão está outra vez irritado - costumava Clara dizer. - Repare, minha avó, ele voltou-lhe novamente as costas. Vem cá, Sr. Negrão.

Mas o gato não obedecia. Sentado desdenhosamente, de costas viradas para toda a gente, só mudava de posição quando alguém anunciava: «Almoço». Então virava depressa a cabeça.

Na semana seguinte Daniel foi convidado a tomar chá com os amigos. Vinha arranjado, bem penteado e limpo.

- Estás impecável-Comentou Alexandre.-Nunca te vi assim.

- Bem... a minha mãe está sempre a censurar-me por eu ser tão diferente de vocês! - explicou Daniel.- Ela diz que esta família é única no mundo! Pensa que a vossa mãe é formidável.

Chamar formidável era o maior elogio que Daniel sabia atribuir a alguém. As outras crianças sentiram-se lisonjeadas. Sabiam que sua mãe era de facto formidável, mas agradava-lhes ouvir alguém pronunciá-lo.

Daniel, que apreciara devidamente a merenda, ficou desapontado quando Francisco participou que era forçado a retirar-se dentro de instantes, a fim de comparecer a uma reunião de escoteiros. O amigo olhou-o com certa inveja.

- Estás magnífico, fardado desse modo, cheio de insígnias. Dás-me licença que ponha o teu chapéu?

Colocou-o na cabeça, analisou-se ao espelho e devolveu-o a Francisco.

- Gostaria de poder ir também - confessou.

- Bem, porque não hás-de vir? - exclamou Francisco, surpreso. - Porque não te fazes escoteiro? Precisamos de mais alguns no meu grupo. Faz-nos falta alguém como tu.

- Bolas! - exclamou Daniel. - Nunca pensei ser escoteiro! Vou contigo. Talvez não se importem que eu vá à reunião.

E para lá se dirigiram os dois amigos. Fizeram-se acompanhar por Rex, que exultava. Mostrava-se sempre delirantemente feliz quando via o dono e jamais se consideraria propriedade de mais alguém, ainda que as três outras crianças se esforçassem para que ele fosse igualmente delas.

Rex gostava de sentir-se liberto do Abrigo Verde. Por duas ou três vezes fugira e desaparecera. Corria simplesmente para a residência de Daniel, mas quando o dono ou a Sr.a Oldham o mandavam embora, acedia, obediente.

- Ele tem, na realidade, dois lares. - comentou Alexandre para Daniel, e este concordou.

Uma vez Daniel fez-se acompanhar por uma rapariga, aproximadamente da mesma idade.

- Esta é a Rita - apresentou. - Mora no meu andar. Tem um gatinho, e, evidentemente, não é permitido haver gatos nas residências. Poderiam vocês guardar-lhe o gatinho até que ela arranje alguém que o queira? A mãe da Rita pagaria o leite e a comida.

- Mas que dirá o Sr. Negrão? - lembrou Clara.- Ele poderia atacá-lo.

- Eu tinha-me lembrado de que vocês o poderiam alojar no estábulo - observou Daniel. - Vocês disseram-me que em tempos, quando o pai da vossa avó ali instalava os cavalos, havia lá gatos sem conta. Deve portanto ser um bom abrigo para este gatinho.

Francisco soltou uma gargalhada. Chamou sua mãe:

- Minha mãe! Há aqui outro refugiado que procura lar. Trata-se de um gato. Podemos instalá-lo na estrebaria?

Rita ainda não proferira palavra. Pálida e magra, tinha olhos demasiado grandes no pequenino rosto. A Sr.a Marshall olhava-a, pensando que aquela criança necessitava de sol e ar puro!

- Se nós concordarmos com a vinda do gato, quererás tu vir uma ou duas vezes por dia dar-lhe comida e carinho? - convidou. - E levá-lo a passear pelo quintal?

- Adoraria - disse Rita, quase num suspiro. - É... é o primeiro animalzinho que possuo.

- Está decidido. Acomodá-lo-emos até que consigas encontrar-lhe abrigo - declarou a Sr.a Marshall. - Fica descansada porque será estimado e bem tratado.

- Muito obrigada - agradeceu Rita. - Amanhã virei trazê-lo.

Juntou-se, pois, um gatinho à família do Abrigo Verde. Rex deu-lhe as boas-vindas e logo fizeram amizade, passado que foi o primeiro receio ao ver tão grande cão. Mas o Sr. Negrão não contraía amizades com idêntica facilidade.

A mãe das crianças aconselhou-as a não levarem para casa o gatinho antes que crescesse mais.

Assim, ele vivia muito tranquilo no estábulo. Chamavam-lhe Listado, nome bastante adequado, porque era todo às listas: castanho, preto e branco.

- Estamos quase a formar um jardim zoológico - comentou Clara, com agrado. - Que mais virá depois disto?

 

                   RELÂMPAGO, O PÓNEI.

Listado crescia a olhos vistos. Uma vez saiu do estábulo e encaminhou-se para casa, miando por leite. Rita ainda não viera trazer-lhe a comida e já começava a sentir fome. Ninguém ali estava. Ao deparar-se-lhe o resplendor do fogão aproximou-se. Enroscou-se numa pequena manta que estava perto. Nesse preciso momento o Sr. Negrão entrou na cozinha. Aquela manta era propriedade sua! Imobilizou-se e fitou o montinho de pêlo que estava ali muito quieto. Farejou delicadamente. Era incrível! Cheirava a gato! Avançou uma pata e tocou a pequena bola macia. O gatinho acordou e deu um salto; o Sr. Negrão pensou que aquele gato pretendia brincar. Pulou-lhe em roda, alegremente, meneando a cauda movediça a ensaiar pequenas corridas.

O Sr. Negrão sentia-se extremamente atónito. Há muito que não via um bichano daqueles e não estava bem certo do género a que pertencia tão pequenino azougue. Aventurou-se a tentar uma patada e o outro furtou-se-lhe de pronto. Sr. Negrão insistiu. Nele despertavam recordações da sua própria infância. Agradava-lhe brincar com aquela engraçada criaturazinha!

A avó ficou altamente surpreendida quando, ao entrar, vislumbrou o Sr. Negrão, que comprimia o corpo roliço por baixo duma cadeira de braços e tentava alcançar o gatinho.

«Muito bem, Sr. Negrão! Desde pequenino que não brincavas assim!», aprovou ela, satisfeitíssima. «Quem diria que havias de fazer-te amigo de tão insignificante bicharoco?»

Após este acontecimento, não se tornava, evidentemente, necessário que Listado continuasse na estrebaria. Rita continuava a comparecer fielmente todos os dias. Trazia peixe e leite, e às vezes pequena bola ou tira de fita. Levava Listado para o ar livre, a fim de brincarem - e o sol era tão benéfico a um quanto a outra!

O Sr. Marshall afeiçoara-se a Listado. Afirmava que lhe dava prazer observá-lo. Listado movia incessantemente a cauda quando comparecia todas as tardes após a hora do chá e, de rabo no ar, corria em volta da sala. Era mestre na arte de driblar a bola.

- Far-se-ia de ti um bom futebolista - observou o pai das crianças.

Certa noite algo curioso aconteceu. Francisco acordara e apercebeu-se de um estranho clarão no céu. Que poderia ser? Ergueu-se da cama, para investigar. Espreitou à ja'nela e verificou que havia fogo em qualquer parte.

«Vou vestir-me», pensou. «Sou escoteiro e é meu dever comparecer porque talvez necessitem de auxílio.

Posso perfeitamente encher baldes até que cheguem os bombeiros.»

Não se demorou a vestir. Decidira não acordar a família: a avó e a mãe impressionar-se-iam por causa do fogo; quanto ao pai não tinha possibilidade de ajudar. Rex ganiu, a querer acompanhá-lo, mas Francisco não cedeu daquela vez aos seus rogos quando passou por diante do canil.

O incêndio tivera início nas traseiras da habitação do hortaliceiro. Pessoas aglomeravam-se nas imediações, comentando o acontecimento e tentando ajudar. Os bombeiros ainda não haviam comparecido.

- Ficaram destruídos os alpendres que o proprietário utilizava como armazém - comentou alguém. - Qual terá sido a causa deste fogo? O hortaliceiro foi hoje para o hospital e está tão doente que a esposa ficou a acompanhá-lo durante a noite.

- Ninguém está portanto na parte da loja-observou uma mulher. - Bem; devemos tentar salvá-la do fogo. Já é bastante mau que, além de o pobre Miller se encontrar doente, também os seus telheiros tenham ardido.

Surgiu um homem, que arrastava uma mangueira. Francisco correu a ajudá-lo. Baldes de água eram passados por uma cadeia de voluntários e o impacte da água nas chamas produzia som impressionante. Em volta de Francisco adensava horrível cheiro a fumo, que o sufocava.

A tossir libertou-se da zona irrespirável. Ouviu então algo que o fez estremecer: o relincho de um cavalo aterrorizado! Um cavalo! Onde estaria? Não nos telheiros, certamente!

Francisco correu para o grupo de voluntários:

- Ouvi um cavalo. Há algum aqui? Respondam depressa!

- Oh, deve ser o Relâmpago, o poneizito - afirmou alguém. - Esquecemo-lo completamente. Recordo-me de que o velho Miller o instalava num dos telheiros. Pobre animal!

De coração apertado, Francisco quase voou. Distinguira de novo o lamentoso apelo. Parecia provir do armazém mais afastado, onde chamas famintas já lambiam o telhado, provenientes do telheiro mais próximo. Correu nessa direcção. Sim, o pónei devia estar ali dentro. Ouvia-lhe o som frenético dos cascos quando o animal corria para cá e para lá, no recinto fechado, batendo nas paredes. Relinchava, apavorado.

O rapaz trouxera consigo o pau de escoteiro. Quando verificou que a velha porta de madeira estava fechada à chave, principiou a dar-lhe fortes pancadas. Cederam algumas das tábuas. Francisco arrancou-as. As chamas aumentavam de violência e o rapaz atacava mais e mais a porta.

Um homem correu em auxílio. Era alto e robusto. A porta não tardou a desmantelar-se. Francisco arrastou-se para o interior, enquanto o homem prosseguia na tentativa de arrancar a porta.

Não tardou a descobrir o pónei; o aterrorizado animal esbarrara no rapaz e quase o derrubara.

Francisco chamou-o pelo nome e deteve-o com autoridade. Falou-lhe docemente: «Já tudo acabou. Estás salvo. Acompanha-me.»

Sem saber como, encaminhou o pónei até à porta, agarrando-lhe firmemente a cabeça, porque o animal estava aterrorizado e só o receio de se separar daquele rapaz o impedia de fugir.

Francisco levou-o para bem longe do fogo e fê-lo deter-se. O pónei tremia dos pés à cabeça.

Na obscuridade o rapaz não conseguia vê-lo bem; apenas se apercebera de que era pequeno e com longa e espessa cauda.

Afagou-lhe o nariz aveludado. Falou-lhe baixo, na sua voz calma e pausada, dizendo coisas sem sentido, mas, com ou sem nexo, o pónei parecia compreendê-las e aquietou-se. De súbito apoiou a cabeça no ombro do rapaz e ali a conservou.

Francisco sentia-se demasiado comovido para falar. Era como se o pequeno cavalo tivesse dito: «Muito bem. És meu amigo. Confio em ti, farei o que quiseres!»

O homem que ajudara a derrubar a porta veio ao encontro de Francisco.

- Bravo, escoteiro! - saudou. - Fizeste uma bela acção salvando a vida a esse pobre animal. Como está ele?

- Penso que está bem - respondeu o rapaz.- Para onde o levarão agora?

- Não sei - respondeu o homem. - Todos os telheiros ruíram, inclusivamente aquele onde estava abrigado o pónei. No entanto conseguimos salvar a loja e as casas de habitação. Pouca sorte a do pobre Miller, doente e agora com o prejuízo do fogo...

- Sim. Horrível pouca sorte - confirmou Francisco. - Mas, e quanto ao pónei? Temo que fuja, se eu o largar.

- Onde poderíamos alojá-lo a estas horas? - respondeu o homem. - É tão tarde!

Uma ideia luminosa brotou repentinamente no cérebro de Francisco: as velhas cavalariças do Abrigo Verde! Evidentemente, pois claro! Podia para ali conduzir o poneizito!

- Creio que encontrei uma solução - disse ao homem. - Eu moro no Abrigo Verde, aquela grande casa antiga, sabe?, próxima dos novos prédios de andares. Pois bem: existem lá velhas cavalariças; o cavalo poderia passar ali a noite.

- Bela ideia! Esplêndido! - alegrou-se o homem. - Informarei a polícia, que há-de querer saber do pónei.

Assim, à luz débil do luar, Francisco levou Relâmpago a caminho do Abrigo Verde. O pónei seguia-o de bom grado, porque sentia que aquele rapaz o salvara. Os pequenos cascos trotavam ao longo da estrada. Entraram na estrebaria.

«Entra, Relâmpago», ordenou Francisco. «Muito bem. És um amor! Agora fica quieto, enquanto te amarro ao poste. Bem sabes que não podes ficar a vaguear por aí. Vou buscar uma corda. E gostarias de um pouco de água?»

Relâmpago gostou! Estava verdadeiramente sedento. Francisco desejava dar-lhe também de comer. Lembrou-se então de um monte de maçãs armazenadas no sótão do estábulo a tornarem-se então um tanto moles e inaproveitáveis. Mas não pareciam desagradar a Relâmpago. Tragava-as, com agrado, emitindo pequenos relinchos de prazer. Não estava propriamente esfomeado, mas as maçãs constituíam inesperado pitéu a meio da noite.

Fazia frio na estrebaria, porquanto as portas ficavam sempre abertas. Francisco procurou uma manta e com ela cobriu o animal.

«Aqui tens!», disse. «Podes ficar de pé, ou deitares-te se preferires. Não percebo suficientemente de cavalos para saber o que vais decidir! Boa noite, Relâmpago, dorme tranquilo!»

Fechou a porta da estrebaria e, pé ante pé, regressou a casa.

Ninguém acordara, absolutamente ninguém! Mas no momento em que Francisco acabava de despir-se, ouviu-se sonoro apelo vindo dos estábulos distantes. Era Relâmpago, que não gostava de sentir-se sozinho. Recordava as chamas, o barulho do incêndio. Sentia-se sufocar naquele estábulo desconhecido. Queria o amigo.

«Que contratempo! É preciso impedir que ele passe a noite a chamar, acordando toda a gente», pensou Francisco. «Tenho de ir fazer-lhe companhia. Necessito porém de bastantes cobertores e do meu velho edredão.»

Como já se havia despido, envergou um par de calças, duas camisolas e por fim o comprido roupão. Da cama retirou o edredão e foi depois buscar dois cobertores ao armário do átrio. Não teria frio, seguramente...

Na casota, Rex ouviu-lhe os passos furtivos e principiou a ladrar. Apre! Agora mais um a tentar alertar a casa! Francisco disse baixinho:

«Cala-te, palerma! Sou eu apenas. Queres vir comigo? De acordo, mas não assustes o Relâmpago!»

Alçou o cão por cima da rede e Rex colou-se-lhe alegremente aos calcanhares. Mas que aventura! Onde iria o Francisco com todas aquelas mantas?

Chegaram ao estábulo. Relâmpago estava deitado na palha, completamente desperto. Quando pressentiu o amigo, cheirou-o e relinchou suavemente.

O rapaz moldou então um leito de palha junto do pónei, cobrindo-a depois com um dos cobertores, envolveu-se no edredão, sobre o qual colocou a outra manta. Rex instalou-se-lhe aos pés e constituía uma bela fonte de calor! Do outro lado Relâmpago imitava-o! Na verdade o pónei era tão quentinho que Francisco não tardou a afastar o segundo cobertor.

Que feliz e tranquilo, o pónei! Sentia-se em segurança com o seu salvador. Havia também um cão, mas, se era amigo do rapaZ tudo estava bem.

Os três companheiros dormiram pacificamente durante o resto da noite. Crescia o sol e eles a dormir.

A mãe de Francisco levantou-se cedo, como sempre. À hora habitual, Alexandre acordou. Sentou-se na cama. Bocejou. De repente notou que a do irmão estava vazia: o roupão desaparecera e também o edredão. Que teria acontecido durante a noite?

Correu a chamar a mãe:

- Minha mãe! Onde está o Francisco? Desapareceu! A cama dele está vazia!

E então seguiu-se um coro:

- Francisco! Francisco! Onde estás?

A avó vestia-se quando ouviu os gritos. Enfiou o roupão e associou-se às pesquisas. Ainda deitado, porque só costumava erguer-se após a hora dos pequenos almoços, quando a esposa tinha mais tempo livre para o ajudar a vestir-se, o Sr. Marshall sentia-se preocupado.

As buscas resultaram infrutíferas. Na mãe de Francisco aumentava a inquietação. Não era hábito do filho ausentar-se assim! E qual a significação do pijama desdobrado no leito, demonstrando que fora utilizado?

- Deve estar com o Rex - lembrou Clara de repente. - Se o ouviu ladrar, durante a noite, talvez tivesse ido vê-lo. Vou ao canil verificar.

A rapariguinha assim fez, mas não tardou a regressar alarmada:

- Minha mãe, o Rex desapareceu também! Que poderia ter acontecido?

Alexandre, à porta da cozinha, gritou:

«Rex! Rex!»

Rex continuava deitado ao lado de Francisco, na estrebaria. Os estábulos ficavam distantes, a porta estava fechada, mas os apurados ouvidos do spaniel captaram a voz do Alexandre.

O cão ergueu-se, silencioso, foi até à entrada; empurrou a porta, que cedeu um pouco. A madeira era velha e a porta não fechava convenientemente.. Rex saiu e correu para casa.

- Mãezinha, aqui está o Rex! - bradou Alexandre. «.Rex, onde está o Francisco? Queremos saber.»

«Ão, ão!», fez o animal, que deu meia volta e se pôs a correr, como se dissesse: «Venham! Sigam-me!»

- Ele sabe! - exclamou Clara. - Mãezinha, ele vai guiar-nos!

- Meu Deus, oxalá não esteja ferido - disse a mãe, com ansiedade, e correu atrás do Rex, seguida pela avó. Clara e Alexandre, excitados, precediam-nas.

- Está a levar-nos para os estábulos - notou o rapaz. - Aonde não pensámos ir procurá-lo.

Junto da estrebaria, Rex empurrou a porta, que obedeceu. Entrou de cauda a oscilar. Todos o seguiram. Era espantoso o que se lhes deparou! Francisco estava ali, semiadormecido, enrolado no cobertor, sobre a palha, ao lado dum pequeno pónei castanho!

Relâmpago parecia dizer: «Desculpem, mas não posso levantar-me, porque não quero acordar o meu amigo!»

- Francisco - bradou Alexandre, estupefacto, e Francisco acordou bruscamente. Dormia com tanto conforto! Tão quente! Julgara estar na cama. Abriu os olhos e pestanejou.

- Francisco, meu querido! - dizia a voz ansiosa da mãe.

O rapaz sentou-se imediatamente. Atónito, olhou em redor. Onde estaria?

Então recordou-se quando Relâmpago arriscou um movimento. O fogo! O armazém em chamas, o pónei, sim, de tudo se lembrava! Por Deus, que horas seriam?

- Já estarei atrasado para as aulas?-perguntou, tentando pôr-se de pé. Mas o edredão, que o envolvia, fê-lo cair. Alexandre não conteve uma gargalhada e correu a ajudá-lo.

- Francisco, vais explicar-nos o que significa isto - ordenou a avó, com voz fria de desaprovação. - Donde veio este pónei?

- Eu tencionava levantar-me cedo e ir para casa explicar tudo - justificou-se Francisco ao vestir finalmente o amarrotado roupão. - Não se aflija, minha avó, vou contar-lhe tudo.

- Vamos então para casa - foi a resposta da mãe. - É incrível! Que acontecerá a seguir! Escondendo cães e agora um pónei! Entra, meu filho.

Todos se reuniram no quarto do pai, que estava impaciente para saber o que ocorria. Rex avançou também e, atrás dele, o Listado. O Sr. Negrão, que se lhes antecipara, estava majestosamente estirado no leito.

- Paizinho! O Francisco tem um pónei nos estábulos! - gritou Alexandre. - Um pónei!

Francisco começou a narrar os acontecimentos. Todos o ouviram sofregamente.

Que história! Os olhos de Alexandre esbugalhavam-se à descrição do incêndio.

A mãe estremeceu de orgulho quando soube da actuação de Francisco e como tinha salvo o pequeno pónei.

- Muito bem! - aprovou o Sr. Marshall, quando finalmente o rapaz concluiu a espantosa narrativa. - Sinto-me orgulhoso de ti, Francisco. És um escoteiro e é teu dever fazeres quanto puderes, quando puderes e sempre que puderes, mas tem foros de bravura o teu acto! Parabéns.

Francisco corou de prazer. O pai era também um bravo, um valente. Ganhara muitas medalhas, e uma delas, a de Bravura. E agora chamava bravo ao filho!

Alexandre abraçou o irmão.

- Meu velho Francisco! - elogiou.

- Que decidem a respeito do pónei? - quis saber a avó.

- A polícia não deve tardar e depois decidirá - disse Francisco. - Oh, oxalá hoje fosse sábado... Está a fazer-se tarde! Reparem nas horas. Vamos chegar atrasados à escola.

- Então não percas mais tempo - aconselhou a avó. - Eu escovarei o Rex e mudarei a sua água, cuidarei do gatinho e olharei pelo Relâmpago. Bem... é agradável tornar a ver um pónei nos nossos velhos estábulos.

- Percebe muito de cavalos, não é verdade, avozinha? - perguntou Alexandre. - É mais entendida que o Francisco. Já alguma vez passou uma noite junto dum cavalo?

- Uma vez - afirmou a avó. - Aconteceu quando eu era da tua idade aproximadamente. Contar-te-ei noutra ocasião. Não me peças que conte histórias, agora que todos estamos atarefados e apressados.

Após o pequeno almoço, Francisco mal teve tempo para ir despedir-se do pónei, segredando-lhe algumas palavras.

Foi-lhe necessário correr durante todo o percurso até à escola. Mas isso que importância tinha? Vivera uma aventura e no estábulo ficara um cavalo. Como o rapaz ansiava por reencontrá-lo no regresso!

- Vou levar este pónei até ao pomar - declarou a avó. - Está um lindo dia e há lá boa erva.

Parecia feliz e emocionada. Não proferiu qualquer frase que impacientasse o genro. E, por incrível que pareça, nem sequer se ofereceu para ajudar a lavar a louça!

- A nossa velhinha sente-se feliz - observou o Sr. Marshall a sorrir. - Quanta falta lhe devem ter feito todos os animais de que costumava rodear-se: os seus cães, gatos, cavalos, pombos! Agora apenas possui o Sr. Negrão, os pássaros em liberdade e um cão e o gato de empréstimo!

- Tem verdadeira afeição aos animais - confirmou a esposa. - Sempre a teve. E o seu exemplo influenciou-me, ainda que nestes últimos tempos as minhas ocupações não me deixem um minuto livre para pensar em pássaros e noutros animais.

- Não. A tua família é o teu pensamento constante e tiveste de privar-te de tudo o mais que te habituaras a amar - lembrou o marido, tomando-lhe as mãos. - Deixaste de ler, já não dás belos passeios por bosques e colinas, não dispões de tempo para pensares em ti.

- Mas sou feliz - replicou a esposa e beijou-o na nuca, como ele sempre gostara. - Tenho-te a ti e aos nossos filhos. Tenho a minha mãe e somos uma verdadeira família, não é verdade? Todos por um e um por todos!

Correu para a cozinha, a fim de prosseguir o interrompido trabalho.

O marido pegou no jornal, mas não o leu. Oh, se pudesse, se pudesse voltar a andar! Quando viria o médico novamente visitá-lo? - no dia seguinte? Talvez ele pretendesse ensaiar novo tratamento; talvez um dia pudesse arrancá-lo àquela cadeira de rodas. Então ensinaria jogos aos rapazes, sairia a passear com Clara e providenciaria para que a esposa não trabalhasse tanto. Talvez! Sempre talvez...

A avó entrou, alvoraçada, com todas as suas argolas a chocalharem alegremente.

- Que excelente pónei! - disse entusiasmada. - E lindo também!-Dei-lhe uma boa escovadela e deixei-o no pomar. Parece uma criança feliz. Recorda-me um que possuí quando eu era da idade da Clara. Como galopávamos!

O genro olhou pela janela.

- Palavra de honra! - disse. - Parece estranho ver um pónei a pastar no quintal. Que simpático animal! O fogo deve tê-lo amedrontado muito ontem à noite.

- Sim, tem uma perna ferida - afirmou a avó. - Deve ter-se magoado quando corria apavorado no telheiro. - Já a tratei o melhor que pude. Não é de gravidade. Agora tenho de ir à cozinha ajudar a minha pobre filha, que deve ter pensado que desertei!

O genro seguiu-a com os olhos. Como ela parecia diferente!

Olhou depois o pequeno cavalo, que deambulava, feliz, por entre as árvores, seguido por Rex, este radiante pelo inesperado companheiro de quatro pernas. Listado saltou para o colo do Sr. Marshall que o afagou. O gato estendeu-lhe uma das patas, retraiu as garras, enrolou-se como uma bola e, rodeado pela cauda, adormeceu.

Duma cadeira próxima o Sr. Negrão espiava. Então desceu calmamente, caminhou até ao dono e trepou-lhe com suavidade para as pernas. Sempre fora muito cioso delas! Deitou-se em seguida quase em cima do outro gato, que se debateu, meio sufocado. O homem riu. Que par!...

Nessa manhã a polícia não apareceu, mas quando a família concluía a refeição da tarde, um homem jovem surgiu, perscrutando o pátio, à procura da porta traseira.

- Que pouca sorte! Receio que venha para levar-nos o Relâmpago - disse Clara, tristemente. - Pressinto-o! Oh, era tão agradável chegarmos da escola apressados e encontrarmos o pónei à nossa espera. Gostaria de poder cavalgá-lo antes de ele partir. É precisamente à nossa medida!

- Relinchou de alegria quando cheguei a casa - elucidou Francisco. - Esfregou a cabeça no meu ombro. A avozinha teve muita sorte em possuir um pónei quando era pequena.

- Tens razão - confirmou a avó. - E desejaria que os meus netos os tivessem também. Mas a vida modifica-se tanto... Eu possuí demasiado... vocês pouquíssimo!

- Não estou de acordo - protestou Alexandre, peremptório.- Gosto do meu lar. Gosto de tudo aqui. Não desejaria modificações.

- Sim? Tu disseste que querias dormir na minha cama porque a tua era dura - insinuou o irmão.

- Não me refiro a coisas desse género - replicou Alexandre. - Refiro-me...

Mas a que se referia ninguém soube, pois que nesse mesmo momento o homem de há pouco bateu na porta da cozinha.

Toda a gente - excepto o pai - acorreu, convicta de que o desconhecido viera por causa do Relâmpago. Pois bem: o pónei não partiria sem grandes saudações, à despedida.

- Boa tarde! - cumprimentou o homem. - Eu... eu vim por causa do pónei do meu tio... Disseram-me que estava aqui. Pode conceder-me uns minutos, Sr.a Marshall?

- Entre - convidou ela e ele subiu os degraus. As três crianças aguardavam, ansiosas. Que iria o rapaz dizer?

O jovem tinha maneiras polidas. Mal entrou tirou o chapéu e só se sentou quando lho propuseram. Demonstrava nervosismo, rodando o chapéu nas mãos.

- Lastimo profundamente o que ontem à noite aconteceu aos armazéns do seu tio - disse a Sr.a Marshall com amabilidade.-Consta-me ainda que o senhor seu tio recolheu ontem, muito doente, ao hospital. Que pouca sorte!

- Sim, minha senhora-confirmou o visitante. - Estou muito preocupado. O meu tio está demasiado doente para que eu me decida a informá-lo do sucedido. Não há alguém que o substitua no negócio, porque a esposa tem de fazer-lhe companhia. Consequentemente cabe-me a responsabilidade de decidir por eles.

- Podemos ser-lhes úteis - observou o Sr. Marshall.- Em que consiste a sua principal preocupação?

- Bem; compreende: o meu irmão e eu temos negócio de hortaliças na cidade próxima - explicou o jovem. - Chamo-me Miller, como o meu tio - Simão Miller, - e ele é que nos iniciou no negócio. Foi muito bondoso para connosco, muito generoso. E agora tenho de decidir entre vender-lhe os bens, ou encerrar-lhe a loja, no caso de ele não se restabelecer - ou, na melhor das hipóteses, vir eu próprio gerir os seus negócios, aguardando que meu tio crie novas forças para trabalhar sozinho. A minha mãe poderá substituir-me por pouco tempo.

- Compreendo - assentiu o Sr. Marshall. - Vai assumir enorme responsabilidade. No meu entender, considero preferível que substitua o seu tio, aguardando que ele melhore. Seria terrível choque para o pobre homem deparar-se-lhe a loja fechada quando saísse do hospital. Qual é a opinião de sua tia?

- Diz que eu resolverei da melhor maneira - respondeu Simão.-Mas estes acontecimentos abalaram-na tanto que não posso, realmente, aconselhar-me com ela, pobrezita!

- Que resolução tomou quanto ao pónei? - indagou a avó, a chocalhar as correntes quando se inclinou para a frente.

- Eis o motivo que realmente aqui me trouxe - explicou Simão. - Não desejo maçá-los com os meus problemas! Apenas quis que ficassem um pouco a par do assunto. Supondo que sigo o conselho do Sr. Marshall, que deixo o meu irmão a substituir-me e venho para cá gerir o negócio do meu tio, não posso utilizar o pónei.

- Porque não? - perguntou o dono da casa.

- Por dois motivos - respondeu vivamente Simão. - Em primeiro lugar porque a carroça ficou queimada; além disso, estou habituado a utilizar uma furgoneta. O meu tio, um tanto antiquado e como não sabe guiar, adquiriu o pónei e o carro para venda de hortaliças e frutas ao domicílio. Os empregados utilizavam bicicletas.

- Compreendo - repetiu o Sr. Marshall. - Bem; continue!

- Portanto, se não preciso do pónei, devia vendê-lo - concluiu o rapaz. - Preciso de uma soma considerável de dinheiro para pagar os prejuízos: o meu tio não tinha seguro para os armazéns. No entanto, o meu tio Frederico é tão amigo desse pónei que terá profundo desgosto se não o encontrar quando sair do hospital.

Fez-se silêncio. Então o Sr. Marshall falou novamente:

- Não podemos comprar-lho, se é a isso que se refere. Nós também não temos dinheiro.

- Está enganado. Eu não tencionava propor-lhe isso - redarguiu Simão. - Estimo muito o meu tio e gostaria de conservar-lhe o pónei. Mas onde alojá-lo? Eis, por conseguinte, para que vim e, por favor, não se ofenda, Sr. Marshall. Contaram-me que todos aqui amam os animais e... bem... poderiam alojar aqui o pónei?

As últimas seis palavras saíram-lhe em tropel e em voz tão desesperada que ninguém as entendeu. Simão repetiu-as:

- Poderiam alojar aqui o pónei? Eu pagaria o que estipulassem.

Por inesperada, a proposta do rapaz desconcertou toda a gente. De repente Francisco pulou, soltando um brado:

- Ele quer entregar-nos o Relâmpago! Ele quer entregar-nos o Relâmpago! Sim! concordamos, concordamos!

Resplandecia o rosto de Clara. Alexandre parecia simultaneamente calmo e excitado. Pôs-se a assobiar baixinho.

Mas o pai desiludiu todos:

- Não - cortou com firmeza. - Não. Um cavalo requer muita assistência. Vocês passam o dia na escola e a vossa mãe seria forçada a encarregar-se do pónei. E ela tem já excessivo trabalho.

- Meu pai! - gritaram, em coro, os filhos, consternados.

Mas o pai manteve-se firme:

- Eu disse que não e está dito. Gostaria de ajudar Simão, mas não sobrecarregando a vossa mãe. De nada serve dizerem que podem fazer tudo. Não podem. Eu disse que não, portanto não insistam.

Clara rompeu em lágrimas. Alexandre cessou o assobio e saiu da sala. Nesse momento uma coisa inesperada aconteceu: a avó tomou a palavra:

- Concordo inteiramente contigo, João. Não pretendo sobrecarregar mais a minha filha e, como disseste, as crianças têm as ocupações escolares. Isso não impede, porém, que aceitemos o pónei, visto que me ocuparei dele. Conheço tudo o que respeita a cavalos, dado que nasci nesta casa numa época em que tínhamos o estábulo completamente cheio. Responsabilizo-me pelo Relâmpago e ele ficará no meu estábulo e comerá a minha erva nos meus terrenos. Eu digo «Sim» e está tudo dito!

A chocalhar os adornos metálicos, a idosa senhora sentou-se muito erecta, com ar tão furioso que o Sr. Marshall irrompeu às gargalhadas. Ria sem poder conter-se. Clara voou para a porta e gritou por Alexandre:

- Alexandre! Alexandre! Está tudo resolvido. Vem cá, depressa!

Alexandre acorreu imediatamente, esperançoso, olhando em roda, para toda a gente. Porque se ria o pai!

- Muito bem, muito bem! - disse João por fim. - Confesso-me derrotado. Esquecera-me de que a avozinha percebe tanto de cavalos e, como ela muito bem disse, a cavalariça pertence-lhe, bem como a erva e os terrenos! Se tomar o pónei a seu cargo, pois bem, nada tenho a objectar. Estou convicto de que ambos se sentirão felizes.

A avó exibiu um ar vitorioso. Levara a melhor, o que sempre a fizera exultar. Volveu-se graciosamente para Simão:

- Está, pois, combinado. Nós acedemos a ficar com o pónei. Você está disposto a fornecer as rações alimentares, suponho?

- Oh, sim, sim! Tudo! - exclamou o rapaz com um suspiro de alívio. - E, por favor, permitam que os meninos e a menina o montem. Ele está habituado. O meu irmão e eu fazíamo-lo, há doze anos, quando éramos crianças. O pónei tem actualmente uns catorze anos e é manso e trabalhador. Seria para mim um grande desgosto se tivesse de vender o meu velho Relâmpago.

Alexandre pôs-se a assobiar estridentemente, mas ninguém o deteve, nem sequer a avó. Simão ergueu-se, disposto a sair, fazendo rodar tão velozmente o chapéu, nas mãos, que Clara parecia fascinada ao olhá-lo. Aclarou a garganta, disposto talvez a fazer um pequeno discurso. O dono da casa impediu-o:

- Não nos agradeça, sentimo-nos felizes por podermos ajudá-lo. Não se esqueça disto, Simão: o trabalho não mata, portanto não o receie.

- Obrigado, Sr. Marshall. O trabalho não me assusta - foi a resposta de Simão. - Agradeço muito a vossa bondade. Eu... eu gostaria de pagar... Preferem dinheiro ou que lhe pague, semanalmente, em produtos vegetais?

- Nada, em absoluto, meu rapaz - interveio a avó, empertigando-se novamente. - Acedi porque gosto de cavalos e me apraz ajudar um jovem que pratica, ele próprio, uma boa acção, e é o que está a fazer pelo seu tio! Não tente voltar a mencionar qualquer espécie de pagamento! A minha erva é gratuita e também a minha terra!

A este discurso, Simão corou e pareceu intimidado. A mãe das crianças levantou-se e, a sorrir, acompanhou-o até à porta.

- A minha mãe parece severa - explicou-lhe. - Mas é muito bondosa.

- Muito obrigado, minha senhora - sussurrou o jovem. - Hei-de pagar-lhe um dia, apesar do que disse a avozinha.

Cheio de felicidade, Simão afastou-se. Transposto o átrio, lançou um olhar observador ao vasto e negligenciado jardim. «Apre!», pensou. «Devem ser muito pobres, para que tão encantador local tenha chegado a tal estado de incúria! Nem tão-pouco contrataram um jardineiro eventual!»

Avistou, então, Relâmpago, que pastava alegremente no pomar. Aproximou-se do pónei e disse-lhe:

«Tiveste sorte, meu velho! Goza as tuas férias! Bem mereces: sempre trabalhaste tanto! Tudo se resolveu pelo melhor, até que a situação se normalize, amiguinho!»

Relâmpago reconheceu Simão. Pousou a cabeça no ombro do rapaz, um velho costume seu. Não compreendia bem o que estava a acontecer, mas não era caso para preocupações, tinha a certeza.

Após a partida do jovem seguiu-se grande excitação. Alexandre atirou-se para cima da avó e quase a fez cair da cadeira.

- É um amor, um amor, minha avó! - não cessava de dizer. - Sempre o pensei, mas agora muito mais!

Clara, de olhos a brilhar, continuava sentada. Um pónei no quintal todos os dias! Quase seu, e que poderia montar!

Francisco esfregava as mãos, radiante. Havia de limpar uma mangedoura e alindá-la, para o Relâmpago. Havia de procurar na casa dos arreios e ver se lá encontrava uma sela e um freio. A avó ensiná-lo-ia a colocá-los no pónei. A sela havia de engraxá-la até brilhar!

A avó erguera-se a chocalhar ruidosamente. Sentia-se orgulhosa de si própria.

- Bem, acabou-se - disse. - Alexandre, pára de me agarrares pela cintura, não me deixas fazer a digestão. E, por favor, prestem atenção. Eu comprometi-me a tratar do pónei. Vocês, as crianças, apenas podem brincar com ele quando tiverem tempo e montá-lo, mas o trabalho será todo feito por mim. Não recuso, todavia, a vossa ajuda nos fins-de-semana.

- Eu vou ajudar durante todo o dia - afirmou Alexandre com solenidade. - Todo o dia!

- Não vais tal - objectou sua mãe. - Irás à escola. Não sejas pateta.

- Não irei à escola - insistiu Alexandre, com súbita risada. - Na próxima semana estarei de férias quatro semanas! Ah, ah! minha mãe! Esqueceu-se!

- É verdade! - exclamou Clara. - Oh, avozinha! Então, nós podemos ajudar! Férias, férias, férias! - vieram exactamente na melhor ocasião!

- Reparem nas horas! - observou, de súbito, a mãe. - Girem para a escola! Todos! Mas... Esperem! Penteiem-se por favor, e...

Mas as crianças não esperaram para ouvir o resto. Já o sabiam de cor:

«Penteiem-se, lavem as mãos e escovem o fato, por favor!», cantarolou Clara, de coração inebriado.

E, decorridos dois minutos, os três irmãos atravessavam, em tropel, o pátio.

Como se sentiam felizes!

 

                   AS FÉRIAS DA PÁSCOA

A grande sensação era o Relâmpago. A avó estimava-o profundamente e dedicava-lhe grande parte do seu tempo. Continuava a ajudar a filha, como anteriormente, mas agora privava-se do repouso após o almoço a fim de poder tratar do pónei.

De princípio a mãe das crianças ficou descontente por verificar que a idosa senhora desistira das sestas habituais, mas o marido aconselhou-a a não lhe fazer quaisquer reparos.

- Não a impeças de sair para cuidar do pónei. O ar fresco, o exercício e a satisfação pela companhia do Relâmpago são-lhe salutares. Já não está tão quezilenta, agora que tem algo mais com que ocupar-se além da casa e da família!

- Tens razão, como sempre - concordou a esposa. - Também gostas de ir na tua cadeira de rodas até ao pomar e de te entreteres com o Relâmpago e o Rex, não é verdade? Fazem um bom par, tu e a minha mãe! Há agora um recanto encantador junto da pereira florida, com o chão à volta atapetado de narcisos.

- E o cuco a jogar às escondidas, a chamar constantemente: cu-cu! - acrescentou João. - Bem desejaria que tivesses mais tempo disponível para nos acompanhares mais vezes, minha querida. Os dias estão agora lindos. Deixa o trabalho e passa algum tempo mais lá fora, ao sol!

- Não posso - respondeu a Sr.a Marshall. - Talvez um dia, quem sabe? As crianças estão quase em férias e isso significa excesso de trabalho, conquanto eu goste de fazê-lo.

Chegadas as férias, as crianças andavam radiantes. Persuadiram a mãe a permitir que tomassem as refeições no jardim. Francisco encarregava-se do transporte dos tabuleiros e das bandejas. Era, de facto, agradável estar lá fora, sob o sol de Abril, e também, no dizer do pai, um meio de forçar a mãe a sair de casa!

A avó andava muito, muito ocupada naquele começo de férias. De colaboração com os netos, revolveu a casa dos arreios, onde por fim desencantou uma sela e um freio. Os estribos, esses, apresentavam-se partidos e foi necessário consertá-los. Os couros foram tão bem limpos que Clara quase podia ver neles o rosto como num espelho.

Lavada uma das mangedouras, encheram-na de feno, ainda que o Relâmpago preferisse a tenra erva do quintal, longa suculenta e viçosa.

As crianças não aguardaram, no entanto, que sela e estribos fossem consertados. Montaram sem selim!

Relâmpago era um robusto pónei, manso e dócil, ainda que talvez um tanto gordo. Quando Alexandre o montou, as suas pernas curtas sobressaíam comicamente nos flancos roliços do animal e o rapazito tinha dificuldade em manter o equilíbrio. Rebolou muitas vezes, mas Alexandre era tão sólido como o Relâmpago...

- Caio sobre a zona mais gorda do meu corpo - observou para a avó. - Não me magoo, por consequência, apenas perco um pouco o fôlego. Porque não

experimenta montar, minha avó? É pequenina... Não deve pesar muito!

- Se pensas ver uma velha desta idade a galopar por entre as árvores, enganas-te - cortou a avó. - Não te intrometas comigo! Nunca sei quando falas a sério.

- Oh, estou a falar seriamente - protestou, surpreendido, o neto. - Eu julgava que a avozinha gostaria de montar o Relâmpago ao menos uma vez. Fá-lo provavelmente quando não estamos presentes?

-Alexandre! Não sejas absurdo - proferiu a avó. - Vai buscar-me um pouco de palha, se fazes favor. O Simão trouxe ontem bastante.

Simão tornara-se um amigo quase desde o primeiro momento. Para o Relâmpago trazia palha, feno, cevada e cenouras. Acamaradava com as crianças, com Rex e também com o Listado, o gatinho.

- Vivem aqui num belo local - elogiou, certo dia, olhando em redor. - Mas está tudo tão abandonado! Confrange-me ver tantas ervas daninhas.

- Não temos tempo para tratar do quintal-explicou Francisco. - Apenas cuidamos um pouco do terreno em frente da casa, mantendo-o mondado e plantado, para a minha mãe. E é tudo. Somos forçados a negligenciar o restante. A mãe tentou ocupar-se disso, mas meu pai não lho consentiu. Ela fatigava-se muito.

Por momentos Simão conservou-se em silêncio, mas depois falou, um tanto atrapalhado:

- Eu... eu tenho hoje algum tempo livre. Suponho que não se importariam que eu me entretivesse um pouco com o jardim? Gosto das flores; tinha a intenção de vir a ser jardineiro, mas o meu tio desejava ver-me no negócio de hortaliças...

- Faça o que quiser - acedeu Francisco. - Nos estábulos há ferramentas. Eh, Daniel, ensinas ao Simão onde estão as ferramentas?

 

Daniel comparecia quase diariamente no Abrigo Verde, em parte para estar com Rex e em parte porque lhe agradava brincar e trabalhar com Francisco e os irmãos. Copiava os gestos de Francisco, a quem admirava muito. Decidira fazer-se escoteiro, porque a reunião a que assistira o havia impressionado. Considerava que ser escoteiro era uma autêntica actividade própria de rapazes. Secretamente praticava boas acções, fingindo-se já escoteiro. E, assim, estava sempre pronto para ajudar toda a gente, em especial a família Marshall. Acorreu imediatamente e foi mostrar os utensílios a Simão.

- Queres ajudar-me a tratar do jardim? - perguntou, de repente, Simão. - És um rapaz forte e alto e estou certo de que tu e eu, juntos, poderíamos fazer aqui bom trabalho.

- Estou de acordo - acedeu Daniel, surpreso. - Mas, nesse caso, tenciona continuar?

- Tenciono. Preocupava-me não saber como retribuir a bondade da velhinha para com o Relâmpago - confidenciou Simão. - De repente, hoje de tarde, ocorreu-me esta ideia. Disse para comigo: «Simão, grande burro! Olha para o quintal que tens diante dos olhos. Avança com ele, Simão! É a maneira de pagares a amabilidade dos Marshall!»

- Ajudarei também - concordou Daniel. - Compreende, eles não aceitam dinheiro nem consentem que eu compre guloseimas, eis porque a minha mãe vem todas as quartas-feiras auxiliar no serviço da casa... de graça evidentemente. Eu, pela minha parte, concordo com o que me pede. É uma boa acção, não lhe parece?

- Nesse caso és escoteiro? - perguntou Simão. - Não? Bem, não é necessário ser-se escoteiro para que se pratiquem actos generosos. Vamos. Pega na pá. Eu levarei a forquilha, o carrinho de mão e a colher de trolha.

A Sr.a Marshall ficou muito surpreendida quando mais tarde desceu ao quintal, à procura de hortelã. Deparou-se-lhe Simão, que cavava afincadamente no roseiral. Daniel afadigava-se a mondar as ervas, tentando pôr a descoberto as orlas do canteiro!

- Que estão vocês a fazer? - inquiriu, admirada. Alexandre, que estava presente, aguardando que o

carro ficasse cheio, para vazar na estrumeira, respondeu:

- Estão a retribuir. Não os proíba, minha mãe. Eles não lhe retribuem a si, estão a pagar à avozinha. E a avó já os viu e acedeu, não é verdade?

Simão parecia envergonhado. Endireitou-se, rubro o rosto, pelo árduo trabalho, que tanto lhe agradava fazer.

- Gosto disto, minha senhora - afirmou. - Em tempo pensei ser jardineiro. Sentir-me-ei feliz se conseguir embelezar um pouco este jardim. É uma vergonha para mim deixá-lo como estava.

Sensibilizada, a Sr.a Marshall agradeceu.

- É muito gentil da vossa parte - disse e, a sorrir, entrou em casa, para dar a novidade ao marido. Nas mãos levava a hortelã, com seu cheiro sadio e intenso.

- Excelente Simão! - comentou o Sr. Marshall. - Não teme o trabalho, esse rapaz. Irá longe. Apenas os ociosos estacionam. Gosto do Simão.

Francisco era feliz. Tinha Rex, tinha o irrequieto e malicioso Listado, e agora coubera-lhe também o Relâmpago. Mas um facto o preocupava e igualmente a avó: a perna ferida do pónei. A lesão, que de início parecera não ser de gravidade, agravara-se ultimamente e o Relâmpago começara a coxear. A avó fazia quanto podia, mas receava que a ferida estivesse infectada. Com Francisco discutiu o assunto.

- Há um veterinário em Langham, que dista daqui seis quilómetros - disse ela. - Mas o Relâmpago não está em condições de poder fazer todo esse percurso e nós não temos posses para chamar cá o médico, para que o inspeccione.

- Eu tenho quase quinze escudos no mealheiro

- elucidou Francisco.

- A despesa deve ser muito maior que cem escudos, receio-o bem - objectou a avó. - Principalmente se o Relâmpago necessitar de tratamento. Não podemos pedir dinheiro ao Simão, que está a despender bastante com o negócio do tio. É ainda muito novo e não tem economias. Devemos resolver sozinhos este problema, Francisco.

- A perna parece hoje um pouco melhor - comentou o rapaz, olhando o local magoado.

A avó não tinha idêntica opinião. Que haviam de fazer? Dinheiro, dinheiro, dinheiro! Gastara muito ultimamente e o restante mal chegava até ao fim do mês.

Foi Rita quem solucionou o assunto. Viera visitar o Listado e trouxera-lhe uma nova bola. Quando avistou a avó correu para ela.

- O gatinho está a crescer, não é verdade?

- disse. - Não tem um belo aspecto?

- Sim, é verdade. E tu própria tens muito melhor parecer - afirmou a avó de Francisco. - A brincadeira aqui, ao ar livre, é para ti mais saudável que estares encerrada numa casa sem jardim, nem espaço, onde brinques. Estamos muito preocupados por causa da perna do Relâmpago. Ora repara. Tem mau aspecto, não é verdade?

Rita prestou atenção. Nada sabia a respeito de cavalos, excepto que o pónei era excelente para ser montado. Era evidente, porém, que a perna estava magoada e o pobre Relâmpago dorido.

- Porque não o levam à Camioneta dos Animais?

- indagou, afagando suavemente o longo e aveludado focinho do cavalo, pelo qual tinha grande estima. - Ela está hoje em Dene, mas parte amanhã. Fica no caminho para Langham.

- Que é a Camioneta dos Animais? - perguntou, admirado, Francisco. - Nunca ouvi falar em tal!

- Bem, eu não estou muito bem informada a esse respeito - esclareceu Rita, brincando com o gato. - Apenas ouvi alguém dizer à minha mãe que tinha um gato doente e que o levara à Camioneta dos Animais, onde lá um médico o curara. Pensei portanto que ele podia curar também a perna do Relâmpago.

- Que poderá significar o que ela disse? - cismava a avó, depois de Rita se afastar, em corrida, atrás de Listado, que fugira para uma sebe. - Perguntarei ao Simão. Talvez ele me esclareça. Simão! Venha cá, por favor. Sabe alguma coisa a respeito de uma Camioneta dos Animais, com um médico lá dentro? Ou será equívoco da Rita?

- A Camioneta dos Animais? - repetiu Simão. - Ah, sim, é um dos carros da D. A. D. Levei lá uma vez o meu cão.

- D. A. D.! Que significa isso? - perguntou a avó.

- Dispensário para Animais Doentes - elucidou prontamente o rapaz. - É uma sociedade criada para tratar de animais doentes. Dispõe de camionetas, dispersas por todo o país. As pessoas designam-nas por Camionetas dos Animais. Quem o necessite pode levar um animal doente, para ser visto pelo médico da Camioneta.

- Médico da Camioneta! Nunca ouvi falar em tal! - observou a avó.

- É quase uma festa o dia em que surge o carro, com o doutor sempre pronto a ajudar-nos - prosseguiu Simão.

- É muito dispendioso? - quis saber a avó.

- É tudo gratuito - informou o rapaz. - Não se paga um tostão. Nem um tostão! Trata-se de auxílio às pessoas necessitadas, compreende? É subsidiado por uma liga de amigos de animais. Portanto o médico não exige honorários. Evidentemente, se alguém desejar oferecer uma pequena retribuição, não será rejeitada. Há uma caixa destinada a esse fim. Mas, porque se interessa tanto por este assunto?

- Bem; repare na perna do Relâmpago - explicou a avó. - Eu julguei que ela estava melhor, mas agravou-se novamente. Parece-lhe que poderemos levá-lo à Camioneta dos Animais?

- Palavra de honra. Tem mau aspecto, de verdade! - exclamou Simão, alarmado. - A Camioneta está hoje em Dene, mas pode partir. E se levássemos lá imediatamente o velho Relâmpago antes que o ferimento se agrave mais? Pobre amigo, estás doente!

- Levá-lo-emos! - afirmou a avó, na sua voz mais determinante. - Ele fará o possível por aguentar a caminhada. «Vem connosco, Relâmpago.»

E, assim, amparado por Simão, Daniel, Rita, os três irmãos Marshall e a avó - quase uma procissão- o Relâmpago caminhou lentamente até Dene.

Na ânsia de chegar à Camioneta antes que fosse demasiado tarde, a avó esquecera-se de o participar à filha. Esta ficou portanto extremamente perplexa quando, ao chegar ao jardim, o encontrou completamente deserto. Que teria acontecido?!

O Relâmpago avançava devagar, coxeando. Ao vê-lo tão paciente e dócil, Clara disse de lágrimas nos olhos:

- Oh, se eu pudesse levá-lo ao colo! Ele deve perguntar para si qual o motivo por que o obrigamos a andar precisamente quando a perna mais lhe dói. Não devíamos proceder deste modo!

- Não te preocupes, minha querida - tranquilizou-a a avó. - A distância não é muito longa. Ele sabe que só queremos o seu bem-estar.

Rex corria à frente, deliciado pelo inesperado passeio naquela magnífica tarde de Abril. Nas bermas resplandeciam celidónias. Brancas violetas perfumavam o ar. Uma aprazível caminhada até Dene... se o Relâmpago estivesse em condições de fazê-la adequadamente!

Já avistavam a tranquila aldeia. A camioneta ainda lá permanecia, à porta da pequena pensão, gerida pela irmã do médico. O carro estava aberto. Toda a gente podia comparecer com seus animais doentes que necessitassem de ser examinados. Circulava a notícia de que o médico passaria a noite na pensão da aldeia.

Quando o Relâmpago e seus acompanhantes atravessaram a rua principal, viram uma pequena multidão que aguardava, junto de uma grande camioneta de cor amarela, com as letras D. A. D. de cada lado em caracteres azuis.

Um homem baixo, de rosto de expressão firme e afável, que permanecia de pé, junto da porta, entregava um gato a uma rapariguita e dizia-lhe, piscando um olho, por detrás dos óculos:

- Ei-lo, o Tibério! Aqui o tens. Nada tinha de grave. Amanhã ou depois estará curado.

- Muito obrigada! - exclamou a rapariguinha, estreitamente abraçada ao seu gato. - Muito obrigada! «Tibério, sentes-te melhor?»

Contente, afastou-se.

O médico perscrutou o grupo de gente.

- Quem segue? Tu e o teu cão?

Avançou um rapaz, com um pequeno cão ao colo. O cão, imóvel, parecia queixoso.

- Trouxe o meu cão, Sr. Doutor - explicou o rapaz. - Ele andou a brigar. Está muito ferido no pescoço. Oh, Sr. Doutor, ele não vai morrer, pois não? É um cão tão bom!

- Não morre! Que ideia! Vou examiná-lo imediatamente - afirmou o médico após rápida olhadela ao ferimento. - Acompanha-me. Ele há-de sentir-se melhor se estiveres presente. Podes ajudar-me. Limparemos a ferida e eu dar-te-ei uma pomada para lhe aplicares. Felizmente a lesão é na parte posterior do pescoço, onde o cão não pode lamber!

O rapaz entrou na camioneta e a porta fechou-se. Toda a gente desejou que o cão se curasse depressa. Em tempo surpreendentemente curto a porta voltou a abrir e para a rua saiu, com seu cão, o rapaz. Sorria-lhe todo o rosto.

- Segurei-o enquanto o doutor o tratava - anunciou, com orgulho. - O Képi é bom como um anjo, «Vais ficar fino, não é verdade, companheiro? Já cá tenho a pomada, no bolso, e agora vais ao meu colo até casa!»

Havia um outro gato para tratamento. Apresentava o focinho esfolado. E, numa gaiola, via-se um canário com uma das asas feridas. Havia também um coelho com uma perna fracturada. E até um rato branco, de rabo partido!

A possuidora do gato entrou no carro para segurar o animal enquanto o médico o inspeccionava. Não tardou a sair, ainda agarrada ao gato, que parecia dormente.

- Arrancou-lhe um dente - informou a pequenita. - Estava muito, muito mal. Agora o focinho do Peludo vai ficar outra vez bonito. O doutor disse que não inchará sequer. Pô-lo a dormir em menos de um minuto e depois arrancou-o. O Peludo nem chegou a sentir.

Não tardou a vez do Relâmpago.

- Ora observemo-lo - disse o médico. - Ah, é a perna. Como aconteceu isto?

Francisco esclareceu. O doutor fitou-o.

- Então és o rapaz que salvou um pónei de morrer queimado num telheiro? - inquiriu. - Ouvi falar no caso. A minha irmã contou-me. Parabéns.

Voltou-se para o pónei, acariciou-lhe o focinho e falou-lhe com suavidade, ainda antes de lhe examinar a perna. O Relâmpago arrebitou as orelhas. Agradava-lhe a voz daquele homem. De súbito pôs a cabeça no ombro do médico e, então, Francisco soube que fosse o que fosse que o homem lhe fizesse, o pónei permitir-lho-ia.

- Prefiro levá-lo para a estrebaria que fica no quintal da pensão - declarou o doutor. - Ali poderei examinar melhor esta perna. Necessito apenas de alguns instrumentos que tenho no carro. Vão andando, que vou já lá ter. É preferível que ele e eu fiquemos sozinhos - disse o doutor.

Fechou a porta. Ninguém proferiu palavra. O silêncio era espesso, apenas cortado por um súbito e débil gemido do Relâmpago no interior do estábulo.

Pobre Relâmpago! Clara começou a chorar e formulou uma pequena prece: «Meu Deus, por favor, acode ao Relâmpago, ajuda-o, que ele é tão bom e bem vês como a sua perna está doente!»

Alexandre viu o mal perceptível mover dos lábios de Clara e adivinhou o que ela estava a fazer. Então fechou com força os olhos e disse fervorosamente:

«Meu Deus, olha pelo Relâmpagozinho, compadece-te dele!»

Abriu os olhos e nesse exacto momento abriu-se também a porta do estábulo, por onde saíram o médico e o Relâmpago, este um tanto desnorteado, mas não contrariado.

- Ei-lo - disse o homem, sorridente. - Trouxeram-no na altura própria. A perna estava em muito mau estado. Mas já a desinfectei e liguei-a bem.

Simão, Francisco e a avó avançaram para o pónei. Ainda coxeava, mas parecia animoso.

- Os nossos agradecimentos, doutor - disse a avó. - Devemos pagar-lhe.

- Nunca cobramos dinheiro - objectou o médico. Francisco notara uma caixa de colecta na mesa

situada no interior da camioneta.

- Tenho aqui quinze escudos - disse. - Alegro-me por tê-los poupado. Metê-los-ei naquela caixa.

A avó ofereceu também algum dinheiro e, em seguida, Simão.

- Eu tenho um escudo - informou Clara e dirigiu-se para a caixa.

O médico sorriu.

- Eu nada tenho - disse Alexandre tristemente. - Que poderei fazer?

- Bem, queres inscrever-te nos Obreiros? - perguntou o médico. - São crianças que amam os animais e cuidam deles, colaborando connosco no nosso trabalho. Aqui tens este impresso, que contém todos os esclarecimentos. Da próxima vez que nos encontremos, meu rapaz, espero ver-te usar a nossa pequena insígnia amarela, que representa uma abelha.

Alexandre ficou radiante. Aceitou a folha de papel, dobrou-a cuidadosamente e guardou-a na algibeira. Obreiro! Soava bem! Alexandre amava a azáfama e as lindas abelhas trabalhadoras, buliçosas, que lhe proporcionavam o mel, que tanto apreciava. Sim, agradava-lhe vir a ser um obreiro e ajudar aquele simpático senhor a prosseguir no seu trabalho.

- Dá-me licença que eu leve também um destes impressos? - pediu Rita, timidamente. - Tenho um gatinho, vê?, e também amo os animais. Que fazem os obreiros?

- Ah! Inscreve-te e verás! - foi a resposta do doutor. - Há muitas tarefas, todas elas agradáveis. Aqui tens mais impressos. Podem interessar aos teus amigos.

Orgulhosamente, Rita aceitou o pequeno maço de papéis. Estava excitada ao pensar em como fora corajosa ao ponto de ter falado de modo a conseguir os impressos. Era sempre tão tímida! Apertou Listado de encontro ao peito e afastou-se, rubra de satisfação.

- Quem segue? - perguntou o médico e olhou em redor.

Apenas uma pessoa surgira após a chegada das crianças: um homem, com um cachorrinho. Transportara no cesto da sua bicicleta a pequena criatura, que se queixava dèbilmente.

- Tem tempo para ver este cachorro? - perguntou o homem. - Aconteceu-lhe qualquer coisa à perna. Suponho que está partida. Se é muito tarde para o doutor, eu irei amanhã a Langham na minha bicicleta.

- Oh, de forma nenhuma! Examiná-lo-ei imediatamente- disse o médico.

O homem tirou do cesto o cão, ao qual pendia, inválida, uma das pernas.

- Cuidado! Então? Cuidado! - avisou o veterinário.- Não o agarre desta maneira. É seu, o cão?

- Não. Pertence à minha filha - respondeu o homem.

Tinha aspecto desagradável. Um lenço branco, sujo, rodeava-lhe o pescoço. O cabelo estava muito comprido.

- Eu não tenho paciência para animais, mas ela adora este cachorro e não pára de chorar por causa dele - acrescentou.

- Como aconteceu isto? - quis saber o médico, que apalpava com suavidade o pequenino cão.

- Bem... meteu-se-me debaixo dos pés e eu dei-lhe um pontapé, que o fez voar - disse o homem. - Está sempre a atravessar-se-me no caminho. Não suporto animais dentro de casa.

- Deu-lhe então um pontapé e partiu-lhe a perna - censurou o médico, em voz fria. - Compreendo. Bem, esperemos que você nunca se atravesse no caminho de alguém que lhe parta uma perna. Venha comigo. Quero que veja o trabalho que vou fazer. Talvez não volte a reincidir.

Clara olhou para a avó e disse-lhe:

- Horrível homem! Detesto-o! Desejaria roubar-lhe aquele lindo cachorrinho e levá-lo para o Abrigo Verde!

Alexandre estava pálido. Nunca lhe ocorrera que existisse alguém tão cruel para os animais. Com ar sisudo, enfiou o braço no da avó declarando:

- Vou ser Obreiro! Avozinha, há-de explicar-me o que diz o impresso, sim? Quero ser Obreiro! Imediatamente. Para sempre!

- Decerto, decerto - anuiu a avó. - Agora, corações ao alto! Olhem o Relâmpago: já parece muito melhor. Vamos para casa, e, valha-me Deus, nenhum de nós se lembrou de avisar que vínhamos a Dene com o Relâmpago!

Era já tarde quando regressaram. Simão despediu-se. Rita e Daniel partiram também.

A Sr.a Marshall, que vigiava o caminho, avistou de repente o trio, com a avó e o Relâmpago. Rex corria ao lado de Francisco; Clara transportava o Listado.

Donde viriam?

- Minha mãe, vimos da Camioneta dos Animais! - gritou Alexandre e correu para a mãe. - Do D. D. A. sabe? Não; do A. D. D. Não, não é ainda isto. Ó Clara, como se deve dizer?

- Deve dizer-se D. A. D., palerma! - retorquiu a irmã.

Então desenrolou-se à mãe toda a história acerca da perna do Relâmpago, do veterinário, dos animais que tinham visto; de como fora ligada a perna do Relâmpago. Todos queriam contar, falando ao mesmo tempo.

- Agora devem vir jantar - afirmou. - Estão atrasados uma hora. Mas não os censuro, agora que conheço os motivos. Mãezinha, mãezinha, que não me avisou! É tão culpada como os seus netos!

- Sim, bem sei - disse a avó, parecendo um tanto envergonhada. - Não percebo como pude esquecer-me. Porém, tudo está bem quando acaba bem... e o nosso Relâmpago não tardará a curar-se.

 

                    O SEGREDO DA AVÓ

Cedo, na manhã seguinte, Francisco foi ver o Relâmpago.

Não tardou a voltar para casa a correr.

- Avozinha! Mãe! O Relâmpago já quase não coxeia. Não é maravilhoso?

- Óptimo! - alegrou-se a mãe.

- Está muito satisfeito a passear no pomar e, em dada altura, até se esqueceu de coxear! - acrescentou Francisco. - Minha mãe, sabe o que vou ser quando for mais velho?

- Ora vejamos: motorista de pesados..., vaqueiro ou maquinista? - respondeu ela. - Já não me recordo...

- Nada disso. Cresci e deixei-me dessas ideias - observou o rapaz. - Vou ser veterinário, hei-de ter uma grande camioneta e percorrerei o país, levando auxílio a pessoas que tenham animais doentes. Não é uma boa ideia?

- É sempre boa ideia a de ajudar o próximo - foi a resposta da mãe. - Agora importas-te de ir engraxar os sapatos, Francisco? Se não iniciares já as tuas tarefas, chegarás atrasado ao pequeno almoço.

- Oh! Valha-me Deus! A vida tem sido tão agitada nestes últimos dias que o tempo mal chega para tudo o que quero fazer - observou o filho. - Mas gosto de ter muitas tarefas entre mãos. Não lhe acontece o mesmo, minha mãe?

A mãe não respondeu.

«Sinceramente, agradar-me-ia muito mais um belo repouso, sem nada para fazer, por uma semana, pelo menos!», pensou, enquanto prosseguia na preparação do pequeno almoço. Felizmente era quarta-feira e a simpática Sr.a Oldham não tardaria.

- Em breve poderemos montar novamente o Relâmpago- lembrou Clara quando já todos estavam reunidos à mesa. - A avozinha disse que a perna dele se curará depressa, agora que foi convenientemente tratada. Mãezinha, tive uma ideia.

- Sim? Que extraordinário! - ironizou imediatamente Francisco, que foi recompensado com um feroz olhar da irmã.

- Cala-te! Não estou a falar contigo! Escute, minha mãe. Minha mãe! Não está a ouvir! - bradou Clara.

- Sim, estou - disse a Sr.a Marshall. - Qual é a tua ideia?

- Bem... é esta - principiou a rapariguinha. - E o Alexandre é da mesma opinião. Ambos pensamos que o Relâmpago havia de gostar de retribuir o bem que lhe fizeram curando-lhe a perna. Portanto, minha mãe, quando ele estiver melhor, podíamos deixá-lo ser montado por crianças - e cada um pagaria um escudo!

- Elas pagariam - acrescentou Alexandre. - Já o disseram. Não param de nos pedir que consintamos, mas, como o pónei é do Simão, nós não acedemos.

- Bem, eu penso que devem perguntar ao Simão

- aconselhou a mãe. - Estou convicta de que não se importa, mas peçam-lhe primeiro. Parece-me, de facto, uma boa ideia, desde que não deixem que o Relâmpago seja montado por alguma pessoa muito pesada e que o não fatiguem demasiado. O Relâmpago até há-de gostar.

- Oh minha mãe! Estou tão contente por a ideia lhe ter parecido boa! - exclamou Clara, radiante. - Poderemos pedir um escudo pelo passeio desde o portão até ao fim da entrada, ida e volta?

- Sim - anuiu a mãe, a sorrir. - Isso vale um escudo. Mas não consintam que monte o Relâmpago quem lhe magoe a boca ou os flancos, para o fazer andar mais depressa.

- Claro que não! - declarou Alexandre. - Se alguém proceder dessa maneira, empurro-o do pónei e atiro-o ao chão!

- Não deixamos o Jorge montá-lo - avisou Clara.

- Escondeu o osso do Rex para que ele ladrasse.

- Nem tão-pouco a Joana - acrescentou Francisco. - Ela...

- Vocês estão a mentir! - gritou Alexandre. - Estão, sim! E não hão-de deixar-me...

- Caluda, Alexandre!-ordenou o irmão.-A guinchares dessa maneira! Eu não estava a dizer mentiras!

- Quem vai levar mais torradas ao pai? - cortou a mãe, a mudar de assunto. - Tu, Alexandre? Leva com cuidado o tabuleiro e não as deixes cair nos degraus.

- Isso só aconteceu o ano passado, quando eu era mais novo - observou Alexandre sisudamente. - Agora já não deixo cair coisas. Posso contar ao pai o assunto dos passeios a um escudo?

- Evidentemente, ele gosta de saber novidades - retorquiu a mãe.

Alexandre obedeceu com prazer. Tantos acontecimentos! Relâmpago; corridas a um escudo; caixas de colectas cheias de dinheiro; obreiros - tudo era tão emocionante!

As férias da Páscoa foram, na verdade, muito divertidas.

O pónei sarara rapidamente, e, passados dois dias, deixando de coxear, ensaiou um pequeno galope pelo pomar utilizando as quatro pernas!

A avó retirou a ligadura.

- Olhem! - anunciou. - Completamente cicatrizada! «Querido Relâmpago, estás óptimo agora. Apenas te aplicarei este adesivo que me foi dado pelo médico e far-te-ei tratamento durante mais um dia ou dois.»

Quando o pónei foi considerado perfeitamente curado iniciaram-se os «Passeios por um Escudo». A novidade espalhou-se pela aldeia e pelo aglomerado populacional adjacente, onde grandes blocos de habitações por andares albergavam numerosas famílias.

De olhos a brilhar, as crianças, com as suas moedas de escudo, surgiam no Abrigo Verde. Um passeio num pónei! Poucas de entre elas tinham montado anteriormente, e nunca um pónei.

Todas gostavam do Relâmpago, de grandes olhos castanhos e expressivo nome.

O pónei sentia-se extremamente importante ao percorrer a estrada com uma criança diferente em cada passeio. Francisco, Clara ou Alexandre corriam a seu lado. Alexandre estava convencido de que o pónei sabia que aquelas viagens representavam em parte «uma retribuição» e irritou-se com Daniel quando este riu da ideia.

- Bem, apesar de tudo é o género de pónei que gostaria de «retribuir» não te parece? - perguntou Alexandre quase com ferocidade. - Atreve-te a negar, Daniel!

- Oh, não me atreverei! - exclamou o rapaz com uma risada. - Receio que me deites ao chão e me esmurres, Alexandre!

Eu ficaria com um olho negro, um dente partido, e...

Estas palavras fizeram rir Alexandre. Simpatizava com Daniel. O amigo era agora escoteiro, e muito orgulhoso por sê-lo. Prestara juramento na última reunião. Alexandre interessava-se pelas boas acções do rapaz.

- É verdade que praticas uma diariamente?- quis saber. - Que fizeste hoje? Diz-me! O Francisco nunca, nunca me diz. Que fizeste hoje, Daniel?

Mas Daniel também não queria dizer. Sorriu e deu ao pequenino amigo um amigável murro nas costas.

Achava graça a Alexandre, rapazinho sempre muito sisudo, mas observador, interessado por tudo e por todos. Daniel lamentava não ter irmãos ou irmãs. Possuía, no entanto, o Rex. Já era alguma coisa.

Os «Passeios por Um Escudo» não foram o único facto emocionante ocorrido nas férias. À medida que os novos andares albergavam mais e mais habitantes

e as pessoas eram informadas de que ali não podiam alojar ,os seus animais, mas estes seriam aceites no Abrigo Verde, muita gente afluía à casa dos Marshall, a perguntar à mãe de Francisco se o rapazinho podia cuidar de um coelho, de um porquinho-da-índia ou de um cachorro...

- Compreendem, nós pensávamos que nos era permitido colocar uma gaiola na nossa pequenina varanda - explicou um dos novos locatários. - Não seria efectivamente dentro de casa, não é verdade? Mas não, nem isso é consentido! E o meu filho estima muito este coelho. Não tenho coragem para me desfazer dele. Poderiam fazer a fineza de no-lo alojarem aqui em qualquer lugar? O meu Reinaldo viria todos os dias tratar dele.

Foi aceite o coelho grande, chamado Novelo. A coelheira veio também, mas tão pequena que Simão construiu uma nova, grande, espaçosa, com área para comer e acomodações para dormir.

- Não devias meter um coelho em casa tão pequenina- disse Francisco a Reinaldo. - Não está certo. E repara, não lhe dês erva tão seca. Valha-te Deus, que esquisito possuir um animal sem se saber tratá-lo de maneira conveniente. Agora presta atenção: se não estiveres disposto a cuidar dele, como deve ser, isto é, como eu te indicar, não o admito aqui.

- Está bem - acedeu Reinaldo docilmente.

Era um pouco mais velho que Alexandre, muito atrevido e descarado. Mas, ansioso pela sorte do seu coelho, não se atrevia a exibir mau comportamento no Abrigo Verde. Havia além disso reparado na nova insígnia de Francisco.

As três crianças Marshall, Daniel e ainda Rita tinham aderido aos Obreiros e ostentavam agora as pequenas divisas amarelas com a respectiva abelha.

O dinheiro ganho pelo Relâmpago transformou-se num grande frasco de mel, que foi enviado ao director dos Obreiros cheio de moedas - a «retribuição» do Relâmpago.

- Nós somos Obreiros e andamos a arranjar mel para o pote - elucidou Alexandre, quando Reinaldo pagou o seu escudo, preço de um passeio no Relâmpago.

Reinaldo não compreendeu muito bem, mas posteriormente, ao notar a insígnia amarela de Francisco, perguntou-lhe qual o seu significado.

- Que é isso? - quis saber. Francisco esclareceu-o, concluindo:

- Tu devias inscrever-te. Por dois motivos: estimas o teu coelho, és portanto amigo dos animais; mas não o tratas adequadamente, e deves aprender. Não tardarás a conhecer muita coisa a respeito dos animais se te tornares um Obreiro.

Decorrida uma semana também Reinaldo ostentava com orgulho o pequeno distintivo amarelo.

- Eis quase um exame - comentou a Sr.a Marshall. - Se reunirmos uma colmeia de Obreiros, podemos atribuir à nossa casa o nome de Colmeia Verde. Poderemos organizar reuniões e pequenas festas e angariar, entre todos, várias espécies de mel: moedas para enviarmos aos dirigentes, folhas de estanho, selos ou outras espécies de colectas.

A seguir ao coelho de Reinaldo surgiu um porquinho-da-índia, lindo animalzinho, completamente desprovido de cauda. Pertencia a um rapaz, Henrique, a quem Francisco nunca necessitara de chamar a atenção para cuidar devidamente de Tico, o porco-da-índia, porquanto Henrique tinha tal desvelo pelo seu protegido que ia ao ponto de visitá-lo já noite, dando azo a que Rex ladrasse, frenético, ao ouvir pisar cautelosamente o tranquilo pátio.

Em seguida veio um cachorro, estouvada criaturinha que logo travou amizade com o Listado. O cachorro era muito irrequieto e Paula e Susana, as gémeas, suas donas, não tinham a menor ideia quanto à maneira de educá-lo.

- Prestem atenção - interveio Francisco, agora uma pessoa de certa importância a chefiar tantas crianças e animais. - Digam-me, Paula e Susana, se desejam que o vosso cão morra atropelado. Porque é o que lhe sucederá, a menos que o eduquem para saber andar na estrada. Que falta de senso, esse hábito de jogarem à bola com ele quando atravessam a estrada! O Simão disse-me que a sua camioneta quase lhe passou por cima hoje de manhã.

- Bem... como se ensina um cão? - perguntou Susana. - Quero dizer, o Pingo é tão maluco que não sei como poderemos educá-lo.

Francisco chamou Daniel.

- Eh, Daniel! Já hoje praticaste a tua boa acção? Pois aqui há uma para ti. Ensina a estas crianças como se treina um cão, elas estão ansiosas por aprender.

Então Daniel levou-as pela mão e também o cachorro. Na verdade, o Abrigo Verde estava a transformar-se, naquelas férias, num local cheio de movimento!

No dia seguinte um homem acorreu ao Abrigo Verde. A Sr.a Marshall não estava visível; apenas a avó. O homem, pobremente vestido, mas de aspecto correcto e asseado, tirou o chapéu.

- Peço desculpa - começou. - Moro numa daquelas casitas, perto dos blocos de apartamentos. Crio pombos-de-leque, minha senhora, lindos! E agora disseram-me que a proibição acerca de ter animais em casa se estende também aos que moram perto dos novos edifícios. E informaram-me também que os senhores recolhem aqui os animais desalojados. Isso também abrange as aves?

A avó ponderava, olhando em redor. Não estava convicta de que à filha agradasse a vinda de pombos. Havia afirmado que já havia suficiente bicharada.

Mas, oh! permanecia ali ainda o velho pombal, podendo, com facilidade, ser reparado, e o Abrigo Verde mais uma vez seria sobrevoado por pombos, cujo arrulhar ecoaria, como outrora, na velha casa.

- Está bem. Traga-os. Venha esta tarde e mostrar-lhe-ei o pombal. Pode repará-lo e pô-lo em condições, mas ouça! Não fale disto a alguém. Encontrar-me-ei consigo às seis horas, junto da porta das traseiras.

Naquela tarde, após o chá, a avó esgueirou-se dissimuladamente para o seu encontro das seis. Começava a sentir um peso na consciência por causa dos pombos. Verificava que o seu amor pelos animais colidia um pouco com os limites do bom senso.

O Abrigo Verde começava a transformar-se numa espécie de orfanato... que disparatado procedimento da sua parte agir às ocultas!

«Não informar a minha própria filha! Que se passa comigo? Não estou a proceder bem. No entanto veremos o que acontece. Sei que toda a gente vai adorar os pombos, esses lindos animaizinhos!»

Por casualidade realizava-se às quatro e meia uma reunião de escoteiros. Clara e Alexandre estavam convidados para uma festa. Que sorte! Poderia atender sem testemunhas o dono dos pombos.

Nessa tarde a avó foi dar uma vista de olhos ao meio desmantelado pombal, com suas seis portinholas no cimo, para permitirem aos pombos a livre entrada e saída. Sim, um homem robusto consertá-lo-ia com facilidade. Mas necessitaria de ajuda de mais duas pessoas para conseguir pô-lo de pé.

«Pedirei ao Simão», decidiu.

Simão era um valioso auxiliar. Não só trabalhava bastante no jardim, que começava a tomar aspecto muito mais agradável, como também estava sempre disposto a acorrer a muitas outras solicitações. De facto considerava-se ele próprio como pertencente à família e era muito afeiçoado à Sr.a Marshall.

Às seis em ponto a avó chegou à porta traseira. Havia ainda muita claridade.

Paula e Susana tinham levado o cachorro para as lições diárias. Reinaldo dera comida ao coelho, limpara a coelheira e fora-se embora. A avó estava sozinha...

O dono dos pombos aguardava-a já. Tirou o chapéu ao vê-la chegar.

A avó conduziu-o até ao estábulo, lugar seguro, longe de ouvidos indiscretos.

- Como se chama? - inquiriu.

- José Silver - respondeu-lhe ele. - Dedico-me a trabalhos ocasionais e saio todos os dias para trabalhar em jardins, consertos, bem... faço um pouco de tudo. E também crio pombos desde há muitos anos. Há pessoas que são loucas por cães, ou gatos, ou cavalos. Eu sou por pombos.

- Também eu era - confessou a avó. - Eles vinham comer à minha mão; pousavam-me nos ombros e na cabeça. Eles...

- Tal qual! Os meus fazem-me o mesmo! - confirmou José Silver. - Bem, minha senhora, estes, como vê, são todos pombos-de-leque, brancos. Nunca pensei que seria forçado a separar-me deles.

- Foi boa ideia ter vindo falar comigo - aprovou a avó. - Agora escute, Sr. José. Vou mostrar-lhe o meu velho pombal. Foi derrubado uma noite por uma rajada de vento e assim continua desde então.

Encaminharam-se para o recanto onde ficava o pombal. José mostrou-se extraordinariamente impressionado.

- É uma maravilha! Magnífico! Eu apenas tenho uma pobre casota, que eu próprio fiz. Tenho a certeza de que se a senhora a visse não havia de querê-la aqui, no seu quintal. Posso facilmente consertar esta. Palavra de honra, os meus pombos vão sentir-se importantes, alojados numa casa destas!

- Como se chamam? - perguntou a idosa senhora ao homem, que examinava minuciosamente o pombal.

- Campanha-Branca, Bóla-de-Neve, Branca-de -Neve - principiou o visitante. - E este é o casal: Arrulho e Boneca - acrescentou.

- Bonitos nomes - concordou a avó. - Bem, agora tenho de retirar-me. Conhece o Simão Miller? Não deve estar longe e o Sr. José pode pedir-lhe ajuda. Ele lhe indicará o local de todas as ferramentas.

- Eu... e quanto ao pagamento, minha senhora? - perguntou o dono dos pombos. - Eu não peço favores sem esperar pagá-los.

- Agradeço mas não aceito - recusou a proprietária do Abrigo Verde. - Conserte o pombal, ponha-o de pé e empreste-me os seus pombos. É suficiente, fico a ganhar. Eu... eu... bem, vou causar uma grande surpresa à família, verá!

Afastou-se a chocalhar as pulseiras. José quedou-se a olhá-la com respeito. Os pombos ficariam a salvo ali. Sim, havia de trazer-lhes diariamente milho. Ninguém mais deveria encarregar-se disso, ou, de contrário, eles esquecê-lo-iam e não mais lhe pousariam, como nuvem branca, na cabeça e nos ombros!

Dispôs-se a procurar Simão, que se encontrava embebido em árduo trabalho, preparando novo canteiro. As covas das roseiras mostravam-se limpas e todos os ramos tinham sido podados.

Outros canteiros estavam também concluídos e Simão ponderava em qual seria a ocasião mais propícia para adquirir algumas sementes de plantas e semeá-las sem que alguém o visse. A loja da aldeia vendia não só flores mas também frutos e outros vegetais e aquela era justamente a melhor época para as sementeiras.

«Alguns narcisos fariam bom efeito nas traseiras», imaginava Simão. «E umas campainhas ali. Acolá, naquele canto, donde a Sr.a Marshall a avistasse da cozinha, uma moita de mal- me-queres.

Deteve-se ao avistar José Silver.

- Olá! - disse. - Que faz você aqui?

José elucidou-o. O rapaz ouvia, interessado, e no final contou, por seu turno, o sucedido com Relâmpago, o pónei.

- Somente me preocupa a maneira de saldar a minha dívida para com a velha senhora - concluiu José. - Como lhes paga você por permitirem aqui a estadia do Relâmpago?

- Assim - exclamou Simão, agitando a enxada.

- Venho trabalhar no jardim. Estou a limpá-lo. Vê aqueles canteiros? Pois eram um matagal de ervas daninhas. Contemple-os agora. Poderá você oferecer alguma coisa semelhante como recompensa? Eles não aceitam dinheiro. Não vale a pena insistir.

- Isso não é muito vulgar no tempo que corre

- comentou José. - A maioria das pessoas recebe, recebe, aceita constantemente e nada dá em troca. Combinado. Primeiramente consertarei o pombal e depois você pode ajudar-me a erguê-lo. Em seguida irei dar uma olhadela às paredes e à porta do estábulo. Posso pintá-las e também a porta de entrada, da casa, se mo permitirem!

Por incrível que pareça, ninguém da família Marshall- excepto a avó - notou que se estava a proceder à reparação do pombal. Em duas tardes José concluiu-o e, em seguida, levantou-o, auxiliado por Simão. Tinha magnífico aspecto!

- Trarei amanhã os pombos - declarou o homem. - Durante uma semana necessitarei de vir fechá-los, nas casotas, até que se habituem ao seu novo lar; de contrário fugirão para a minha casa. Dá-me uma ajuda, não é verdade, Simão?

Alexandre foi quem descobriu que o pombal estava de pé e que haviam seis pombos fechados lá dentro! Rede cobria o tecto das casotas, transformando o pombal numa gaiola. Os pombos podiam passear no interior dos seus domínios, entrar e sair pelas respectivas portas, mas não lhes era possível voarem. Alexandre estacou, completamente estupefacto. Depois correu a bradar:

- Minha mãe! Minha mãe! Há pombos no pombal! E puseram-no outra vez em cima! Mas, oh, mãe, alguém praticou uma crueldade: estão prisioneiros e não podem voar!

A mãe apareceu apressada, seguida por Clara e Francisco. De facto, Alexandre tinha razão. O pombal estava arranjado e nele arrulhavam pombos!

«Cru-crucu», cantava um na sua linda e meiga voz. «Crucru!»

- Oh, mãezinha! - gritou Clara, extasiada. - Donde terão vindo? Oh, não são amorosos? Repare, abrem as caudas como se fossem leques.

- Oh, agora percebo porque lhe chamam pombos-de-leque - observou Alexandre, satisfeito.-Mas quem os trouxe para aqui? É uma maldade aprisioná-los com a rede, não é?

- Não, meu querido, não é, se acabam de ser alojados aqui - explicou a mãe. - Necessitam de habituação ao seu novo lar, compreendes? A rede impede-os de fugirem. Não sei porquê, tenho uma espécie de pressentimento que me faz supor estar a avozinha por detrás deste caso! Nestes dias tem mostrado um aspecto muito peculiar, uma espécie de aparência culpada. Creio que se trata de uma surpresa a nós destinada.

- Que lindos pombos aqueles! - exclamou a mãe das crianças. - Que sabe a esse respeito, avozinha? São encantadores! Que beleza será vê-los sobrevoarem o Abrigo Verde! Donde vieram?

Aliviada de grande peso de consciência, a velhinha sorriu.

- Bem - principiou. - Creio que é uma espécie de surpresa. Mas guardei até agora, por recear que não quisesses cá pombos, esperando que, quando os visses voar, espanejando as asas, havias de apreciá-los! Sou maldosa! Pensei que os não quererias, mas eu desejava-os tanto que acedi, sem te consultar!

- A avozinha é má!? Minha avó, tem aspecto de quem sabe que é má! - disse Alexandre, deliciado. - É verdade?

- Sim, é! - respondeu a avó. - Agora pára com isso, Alexandre apertas-me como se fosses um urso. Valha-me Deus, não sei que me farás quando fores mais velho! Bem, por conseguinte todos vocês concordam com a vinda dos pombos?

A esse respeito não havia dúvidas, e mais concordaram ainda quando José finalmente retirou a rede e os pombos cruzaram os ares em arrulhos de alegria e branco adejar. Como grandes flocos de neve pousaram depois na erva, tufando as penas ou empertigando as bonitas cabeças, orgulhosas.

Não se atardaram em pousar na cabeça e nos ombros dos novos amigos. Alexandre ficou extasiado quando um dia lhe caiu em cima o lote dos seis! A mãe habituou-se a ver um, ou dois, no peitoril da janela, suavizando-lhe o trabalho. Amava o seu terno arrulhar.

Ao marido também agradava. Sentado na cadeira de rodas, ao sol, deliciava-se a ver os pombos, que pousavam nos seus joelhos e ombros. Constituíam, na verdade, um grande sucesso! E José era-o também. Trabalhador por índole, nada mais pedia que consertar isto, ou aquilo, e pintar estoutro, ou limpar aqueloutro. A Sr.a Marshall acedia ao vê-lo feliz, trabalhador e intensamente grato à família que lhe albergava os estremecidos pombos. Prometera que dos três primeiros ovos chocados, as crias se destinariam às três crianças.

As férias chegavam ao fim. Francisco percorria o jardim acompanhado pela mãe. Era o começo de Maio. Lilases despertavam, perfumando o ar. Francisco olhou em volta.

- Repare, minha mãe - disse. - O Abrigo Verde modificou-se muito desde que em Fevereiro vimos a primeira campainha branca. Olhe como está limpo e cuidado! Todos os canteiros desobstruídos. O Simão corta o dobro da relva depois que o José consertou a velha segadora.

- Sim - confirmou a mãe. - Está muitíssimo diferente. O José tem ajudado bastante e o Simão é um autêntico prodígio. Deveria ser jardineiro, não restam dúvidas. Cresce tudo quanto ele planta.

- Só para si, minha mãe, a vida continua difícil- murmurou o rapaz, impressionado pelo pálido rosto querido. - Tem trabalhado muito? Não está doente, pois não?

- Não, meu filho - sossegou-o ela. - Apenas cansada. A avozinha sente-se tão feliz com os seus animais e tudo o resto que não pode ajudar-me muito, as férias são um acréscimo de trabalho e o pai não parece fazer progressos... Somente me sinto um pouco cansada, nada mais. Oh, quem me dera uma casa pequenina, uma linda casinha, ainda que me seja doloroso separar-me deste encantador jardim!

- Tocou a primeira campainha branca mas não

lhe trouxe muita sorte, minha mãe - disse Francisco. - Veja! Eu hoje encontrei um trevo de quatro folhas.

Dizem que é uma das coisas de melhor augúrio... Ofereço-lho. Aguardaremos que lhe traga felicidade!

Nas mãos da mãe fechou o pequenino trevo. Ela começou a rir:

- Pô-lo-ei esta noite debaixo do travesseiro -

prometeu. - Veremos se realmente traz boa sorte...

 

                     UM NOVO HÓSPEDE... E UM SUSTO

Um dia, duas semanas após o recomeço das aulas, um homem ainda novo apresentou-se no Abrigo Verde. Tinha bom aspecto na sua farda de motorista. Cumprimentou a Sr.a Marshall e depois perguntou se poderia falar com Francisco.

- Ainda não regressou da escola - disse a mãe. - Quer deixar algum recado?

- Bem, trata-se do seguinte - explicou o desconhecido. - Moro perto do José Silver, minha senhora, e tenho um cão.

A Sr.a Marshall ficou completamente elucidada! Sorriu e disse:

- Prossiga.

- Ora eu pensei se a senhora consentiria que o seu filho me guardasse aqui o cão - continuou o homem.

- Então não lhe é permitido tê-lo consigo em casa? - inquiriu a mãe de Francisco.

- Oh, sim, mas os vizinhos não gostam dele - declarou o motorista. - É grande, compreende?, e gosta de brincar com as crianças. Como é muito possante é um pouco rude, por vezes quase as derruba. Tive, portanto, de prendê-lo e ele ladra, a protestar. Os meus vizinhos queixaram-se à polícia e...

- O animal está sempre preso? - perguntou a Sr.a Marshall. - Então nunca o solta?

- Não tenho outra alternativa, minha senhora - justificou-se o homem. - Os vizinhos são cruéis para com ele. Chama-se Duque. É de raça alsaciana, lindo.

- E o senhor como se chama? Onde trabalha? indagou a mãe de Francisco. - É motorista, não é verdade?

- Sim, minha senhora. Chamo-me Harrison, Guilherme Harrison, e sou motorista do Dr. Gilberto Heston Baker - declarou o jovem. - Moro actualmente num anexo à residência do meu amo, em Harrow Manor, mas os modernos edifícios já se estendem até perto daquela área. Deduzo que os novos habitantes estão despeitados por não lhes ser permitido coabitarem com os seus cães ou outros animais, ao passo que eu não sou abrangido por essa proibição, apesar de residir próximo.

- Compreendo - observou a Sr.a Marshall. - Está bem; traga o seu cão, para que o meu filho o veja. Quanto à comida, terá de providenciar. Um cão grande como o seu deve necessitar de muito alimento.

- Sim, minha senhora - assentiu Guilherme. - Eu gostaria, além disso, de pagar o que fosse estipulado, mas o José Silver afirmou-me que não aceitam dinheiro. É exacto?

- Absolutamente exacto - confirmou a mãe de Francisco. - Fica portanto combinado; hoje à tarde trará o cão.

Nessa mesma tarde Guilherme voltou com Duque. Trazia preso a uma corrente curta o grande e possante cão, formoso na verdade. Debatia-se vigorosamente, a tentar libertar-se, e Guilherme fazia grandes esforços para contê-lo.

- Oh, que magnífico cão! - exclamou Clara, tentando acariciá-lo. Mas recuou assustada. Duque ladrara-lhe.

- Não tenha medo - tranquilizou-a Guilherme. - Ele não a conhece, é apenas isso. Têm de ser-lhe apresentados. «Duque, amigos, Duque! Todos amigos.»

E Guilherme deu pancadinhas nas costas das três crianças. Duque estava atento, de boca entreaberta, olhos penetrantes. Então de súbito, balançou a cauda.

- Pronto! Agora selou convosco amizade para sempre-exclamou Guilherme.-Cumprimenta, Duque!

Duque estendeu uma pata, tal como Rex já fizera, e as crianças estreitaram-na, ainda que Clara com algum retraimento. Nunca antes um cão lhe ladrara.

- Ele está a rir - observou Alexandre. - Reparem!

Com efeito, parecia exactamente como se Duque estivesse a rir-se, de boca escancarada, primeiro, depois mostrando os dentes, parecendo sorrir. A cauda balouçava para cá e para lá.

- Parece-lhe que ele se dará bem com os outros animais? - lembrou Francisco, preocupado. - É tão grande que quase seria capaz de comê-los...

- Bem, de início haverá problemas. Precisará de adaptar-se - concordou Guilherme. - Há aqui alguma cerca? Temos de prendê-lo, de contrário fugirá. É capaz de dar saltos enormes, ou de trepar o mais alto muro! Tem agilidade até para escalar uma árvore.

- Assombroso! - exclamou Clara, olhando, com respeito, Duque. - É valioso este cão?

- Muito - afirmou o motorista. - Na realidade, ele não me pertence. Está a meu cargo, porque o seu dono e meu patrão, o Dr. Gilberto Heston Baker, se ausentou por uma temporada. Mas trato do Duque há tanto tempo que quase o considero meu ainda que de facto o não seja.

Daniel surgiu no pátio. Duque rosnou e ladrou. O rapaz, alarmado, deu um passo atrás.

- Diga-lhe depressa que é o Daniel - pediu Clara. - Não gosto do Duque quando toma aquele aspecto.

Feita a apresentação, o lobo-de-alsácia estendeu as patas, e, com grande alívio de todos, viram-no menear a cauda de forma amigável.

- Compreendem - esclareceu Guilherme -, o rapazio da vizinhança não gosta do Duque e atiça-o. Gritam-lhe, atiram-lhe pedras e ele quase enlouquece por se sentir preso, sem poder libertar-se.

- Atiram-lhe pedras! Não admira, portanto, que fique desconfiado, a princípio, quando vê crianças!

- observou Francisco, indignado. - Não é culpado. Creio que receia que nós o apedrejemos. «Nós não fazemos tal, Duque. Podes confiar.» De novo oscilou a cauda do belo animal. Uma vez mais ele abriu a boca, mostrou a língua e pareceu rir.

- Exceptuando o Rex, é o cão mais formoso que até hoje vi - declarou Daniel. - Mas, ouçam, será preciso prendê-lo?

- Podemos arranjar-lhe um arame com roldana

- interveio Francisco. - E assim terá a possibilidade de ir até ao pomar, onde está o Relâmpago. Colocaremos um arame entre duas árvores, por exemplo, e a corrente, de modo que o Duque possa correr sempre que queira, com vantagem de o arame o impedir de fugir ou de atacar alguém que não conheça.

- Excelente ideia - aprovou Guilherme. - Eu ainda não me tinha lembrado desse sistema. O Duque esteve sempre preso por esta corrente curta que vêem e digo-lhes que às vezes quase enlouquece, especialmente quando tenho de sair de carro, deixando-o sozinho todo o dia.

- É o suficiente para enfurecer um cão - volveu Francisco. - O Guilherme não devia ter procedido dessa maneira. Acedemos a que o deixe connosco. Agora vamos escolher-lhe um bom local.

Duque não tardou a correr pelo pomar limitado pelo arame. Guilherme retirou-se e apareceu mais tarde com abundante ração de carne e com a promessa de comparecer diariamente para o levar a passeio.

Ao Relâmpago interessava extremamente o grande e enérgico cão, que chegou ao pé dele. Olhou-o, desviou-se e inclinou a cabeça. Soprou-lhe. Duque ladrou. Mas o Relâmpago continuou a soprar, acabando por relinchar baixinho. A cauda de Duque começou a oscilar lentamente. Depois o cão lambeu o focinho do pónei.

Clara espiava perto.

" - Já são amigos! - riu. «Relâmpago, tu não temeste o seu ladrar, não é verdade? Ele foi muito maltratado, Relâmpago, deves ser bondoso para com ele.»

Duque estava ambientado. Já não ladrava - excepto ao varredor.

- É porque o vê vir de mãos vazias e retirar-se com o lixo; supõe que vem roubar-nos - disse a Sr.a Marshall.

Um dia, como de costume, Rita veio para visitar o gatinho, agora muito mais crescido e com pêlo abundante e lustroso. Deparou-se-lhe Listado a brincar, no pomar, junto do Duque, que estava deitado ao lado do pónei, ao qual se afeiçoara.

Duque habitava agora a antiga casota de Rex, e este passara a dormir em casa, numa excelente alcofa, trazida por Daniel. Clara afirmara posteriormente que, se o Relâmpago conseguisse entrar no canil, ambos, cão e pónei, dormiriam lado a lado!

Rita apanhou o gato e fugiu, com ele agarrado.

Francisco surpreendeu-a.

- Que aconteceu? - quis saber.

- Por favor não deixes o Listado aproximar-se do Duque-suplicou.-Encontrei-me hoje com a Joana e o Ricardo, que moram perto do Guilherme Harrison, e disseram-me que o Duque persegue gatos e cães e uma vez até mordeu um gato.

- Não acredito - discordou Francisco. - Ele estava sempre preso, segundo disse o Guilherme.

- Mas às vezes fugia - argumentou Rita.- Costumava forçar a corrente. Atacou gatos e cães e um dia mordeu uma rapariguita, e, de outra vez, um rapaz. O Ricardo diz que ele às vezes fica maluco quando parte a corrente. Nessas condições ninguém está a salvo.

Francisco começou a rir. Estimava o Duque e sabia fazer-se obedecer. Até a própria Clara havia esquecido o susto inicial. Quanto a Alexandre, esse, rebolava na relva com o cão, que o derrubava, fingindo lutar, fazendo o rapaz rir às gargalhadas. Até já gostava mais do Duque do que do Rex!

Mas as gémeas, Paula e Susana, vieram, dois dias mais tarde, com a mesma história.

- Acautelem-se com o Duque - aconselhou Paula. - O leiteiro disse à nossa mãe que este cão é perigoso e avisou-nos para que não nos aproximássemos muito dele. Já mordeu duas ou três pessoas.

- Não acredito - declarou Francisco.

- Bem; tomem cuidado - avisou Susana. - O leiteiro afirmou que o Duque às vezes se põe como doido, rebenta a corrente e abala, à procura do seu verdadeiro dono, o Dr. Gilberto. É depois, no regresso, que morde quem se lhe depara no caminho. Tomem cuidado!

Francisco não falou no assunto à família para não a alarmar e também porque Clara podia acreditar em tal patranha e tomar medo ao Duque. Como se teriam espalhado tais invenções? Sim; porque decerto não havia nelas o menor fundamento. O Duque não podia ter tal comportamento!

Mas um dia aconteceu um facto desagradável. As três crianças haviam saído para um piquenique, acompanhadas pela mãe e pela avó. O pai ficara no jardim, na sua cadeira de rodas. Dos animais, uns estavam fechados, outros andavam à solta. Os pombos, ao sol, no pombal, arrulhavam ou acariciavam-se com os bicos. Quatro crianças desconhecidas, ao ouvirem os pombos, aproximaram-se e espreitaram pelo muro. Avistaram o pomar e o Relâmpago, o pónei, que pacificamente pastava na erva, sob as árvores. Viram também Duque.

Ele pressentiu-as e sentou-se, atento, de orelhas espetadas.

- Clotilde, olha! É o Duque, não é? O lobo-de-alsácia, sabes? O que o Guilherme Harrison costumava ter preso no pátio! - exclamou um rapaz.

- Está preso? - perguntou uma rapariga, cautelosa. - É perigoso, como sabem. Já o ouvi uivar!

- Sim, está preso - declarou outro rapaz. - Escutem, está a rosnar. Iu-u! Não pode alcançar-nos! Brrrrr! Uh!

Duque ergueu-se, furioso, e ladrou. O rapaz apanhou uma pedra e fez pontaria. Acertou no dorso do cão e feriu-o. Duque ladrou novamente, depois uivou, mostrando toda a dentadura, muito branca, brilhante. As raparigas, amedrontadas, fugiram, mas os dois rapazes continuaram no mesmo local, divertidíssimos. «Iu-u! Arre, cão! Horrível cão! Brrrrr!» Atiravam mais pedras e Duque corria pelo arame, tentando esquivar-se.

Ladrava, atroando os ares.

O Sr. Marshall ouviu-o e, servindo-se das mãos, fez rodar lentamente a cadeira de rodas na direcção do pomar. Que teria acontecido ao Duque? Chegou mesmo no momento em que um dos rapazes arremessava, ao cão, enorme pedra.

Atingido na cabeça, o Duque ficou completamente alucinado, correndo pelo arame, forçando a corrente, quase a estrangular-se.

Os rapazes viram o dono da casa e fugiram.

Mas algo aconteceu subitamente. Um brusco puxão, a corrente cedeu e o Duque sentiu-se liberto. Continuava ligado à corrente, que arrastava consigo, mas livre!

De um pulo saltou o muro e desapareceu, a ladrar ferozmente. O Sr. Marshall, preso à sua cadeira de rodas, não sabia que fazer. Forçoso lhe era aguardar a família. Nem sequer poderia mandar chamar Guilherme, ausente nesse dia, para ir buscar o amo que regressava.

Bronzeadas pelo sol e fatigadas, as crianças, sua mãe e avó chegaram a casa, após o agradável piquenique. À frente, Rex bamboleava-se. Nunca se sentia fatigado! Alexandre assobiava alto.

Ao aproximar-se do portão ouviram João, que chamava.

- É o pai a chamar. Depressa! Corram, a ver se aconteceu alguma coisa - pediu a Sr.a Marshall.

As crianças obedeceram e ficaram surpreendidas quando viram, no pomar, a cadeira do pai. Ainda ali permanecia, esperando o regresso do Duque. Mas o Duque não voltara.

João relatou o ocorrido. Clara pôs-se a soluçar. Os cantos da boca de Alexandre baixaram, descaídos.

- Pobre Duque! - choramingou a condoída Clara. - Essas odiosas crianças! Para onde terá ele ido, meu pai?

O pai ignorava.

- Há-de regressar, não se preocupem - disse.

Mas Francisco sentia-se muito preocupado. Recordou as informações que lhe haviam dado. Duque acabava de ser novamente atiçado e podia talvez atacar alguma pessoa. Isso seria a sua perdição.

Enquanto jantava, manteve-se silencioso. Clara não cessava de chorar até que a avó se impacientou:

- Basta, Clara. As lágrimas nada resolvem.

- Está cansada - desculpou-a a mãe. - Todos nós, aliás, após o longo passeio e o agradável piquenique. Vão deitar-se. A avozinha e eu lavaremos a louça.

- Peço autorização para sair. É apenas o tempo de me certificar de que todos os animais estão bem - pediu Francisco.

Ainda não escurecera completamente. O rapaz dirigiu-se para o pomar. O Relâmpago aproximou-se. Como de costume pousou a grande cabeça no ombro de Francisco e ficou imóvel, enquanto o amigo o acariciava e lhe falava baixinho.

«Que aconteceu ao Duque?», disse Francisco. «Que pena não poderes falar...» Estou tão preocupado, Relâmpago.

Compreendes, se porventura ele adoecer, atacado pela raiva, pode morder alguém e então não mais o veremos.»

O Relâmpago relinchou. Nada podia dizer. Havia ficado admirado e amedrontado ao som das primeiras pedras. Depois galopara, em fuga, assustado pelo ladrar do Duque.

Francisco abandonou o cheiroso pomar.

Quando Simão chegou para o que designava por «funções de jardineiro» a Sr.a Marshall pediu-lhe que avisasse a polícia e se informasse se havia notícias de Duque, e deixasse um bilhete, informativo, na casa de Guilherme, perto de Harrow Manor. Nada mais havia a fazer que aguardar.

Nessa noite Francisco não conseguia dormir. Revolvia-se no leito, preocupado com o Duque. Teria mordido alguém? Em caso afirmativo, seria entregue à polícia? Nunca mais o veria? Não fora o Duque o culpado, mas aqueles detestáveis rapazes! Deveriam ser punidos!

As preocupações de Francisco avolumavam-se. Ouviu a mãe, que subia a escada. Então Francisco ergueu-se do leito e abriu a porta.

- Minha mãe! Vai deitar-se?

- Sim; é tarde, meu filho-respondeu a Sr.a Marshall. - Já deverias estar a dormir. Estás preocupado por causa do Duque?

- Estou, minha mãe. Há algumas notícias a esse respeito? - perguntou o rapaz.

- Poucas. O Simão veio comunicar que o Duque foi visto, já de noite, a rondar a estrada, perto da casa do Guilherme. Mas o Guilherme deve regressar tarde, segundo diz o Simão.

- Oh! - exclamou Francisco. - Talvez ele esteja perto, à espera do dono. Minha mãe, sabe se o Duque mordeu alguma pessoa? Disseram-me que morde quando fica furioso.

- Nada sei a esse respeito - afirmou a mãe. - Mas, atormentado como estava, não admira se ele morder alguém. O teu pai contou-me que uma grande pedra acertou na cabeça do pobre cão.

- Não cesso de pensar que o Duque pode estar horrivelmente ferido - prosseguiu Francisco. - Bem, boa noite, minha mãe, e muito obrigado pelo piquenique. Foi consolador termo-la connosco toda a tarde.

- Boa noite, meu filho - despediu-se a mãe e beijou-o. - Dorme bem. Talvez o Duque regresse amanhã ao pomar.

Francisco voltou à cama. Aguardou que sua mãe apagasse a luz. Ouviu o clique e em seguida ergueu-se e vestiu-se. Iria a casa de Guilherme procurar o Duque! Talvez estivesse escondido perto e acorreria se ele, Francisco, o chamasse.

Desceu a escada e atravessou o jardim. Sob o claro luar podia ver quase tão distintamente como de dia. Cruzou a estrada.

Até à casa do Guilherme não gastaria mais que uns dez minutos. Francisco correu durante quase todo o percurso, até que avistou o avantajado vulto do Sr. Streetly, o polícia da aldeia.

Apressou-se a esconder-se. O Sr. Streetly enviá-lo-ia imediatamente, sem apelo, para casa e ele tinha forçosamente de encontrar Duque.

Quando o polícia desapareceu, Francisco saiu do esconderijo. Não tardou a acercar-se de Harrow Manor.

Na casa de Guilherme não havia luz e isso significava que não regressara ainda.

«Duque!-», chamou Francisco, docemente. «Duque, meu amigo! Onde estás? Sou eu, o Francisco. Venho procurar-te. Duque! Duque! Duque!»

Mas Duque não aparecia e nada se mexia perto. Tão-pouco as árvores, que não havia sopro de vento!

O rapaz tentou nos arredores.

«Duque!», chamou e ensaiou o pequeno assobio familiar a que os cães costumam obedecer. «Duque!»

E de Duque nem sinal! Francisco insistiu, percorrendo a estrada à luz do brilhante luar.

«Duque! Duque! Vem a mim, meu velho! Pobre amigo!».

De repente ouviu, por fim, um rumor. Que seria? Chamou de novo: «Duque!»

O som veio repetido, uma rosnadela! Francisco estacou à escuta.

«Grrrrr!»

Sim, era um rosnar, mas decerto Duque não iria rosnar a um rapaz que estimava.

O som parecia provir de uma pequena casa de campo, não distante. Precavido, Francisco aproximou-se. Chamou ainda:

«Duque, meu velho!»

Não obteve resposta. Caminhou silencioso pela relva. O luar incidia-lhe directamente no rosto. Francisco avançou mais e pesquisou com o olhar. Então viu o cão, agachado, de olhos a luzir, ao luar, boca entreaberta e dentes visíveis, muito brancos. Rosnou para Francisco.

Chocado, o pequeno ficou imóvel. Nunca vira o cão com tal aspecto, aspecto cruel, falso, perigoso. Era este o mesmo Duque que acariciara de manhã e que o lambera e estimava?

«Duque», chamou Francisco, anelante. «Vem cá, meu velho! Não olhes assim!»

Duque avançou um passo, rente ao chão, rastejante como um gato. Voltou a rosnar e o rapaz recuou, apavorado.

«Parece que quer morder-me!» pensou. «Vai atacar-me e eu estou sozinho!» Não duvido de que tenha mordido outros quando estivesse com este aspecto.»

Sentia-se demasiado assustado para insistir. Continuou a recuar, lentamente. As rosnadelas não cessavam, mas Duque não se moveu.

Lágrimas escorriam pelo rosto de Francisco, ele que nunca chorava, nunca! Julgava-se corajoso, e, afinal..., oh, oh, que se passaria com Duque?

Ouviu-se um ruído súbito: o som de um carro, a passar, na estrada. Talvez Guilherme, trazendo de volta o patrão! Guilherme saberia agir; Guilherme far-se-ia obedecer pelo Duque.

O rapaz avançou e parou no meio da estrada, acenando freneticamente.

O carro travou e Guilherme saiu.

- Que aconteceu? Francisco, que se passa?

- É o Duque. Algumas crianças atiçaram-no hoje e ele partiu a corrente e fugiu, meio enlouquecido. Está naquela casa de campo, acolá, a rosnar e eu tenho medo dele - disse o rapaz, soluçante. - Tem uma aparência terrível, muito diferente da habitual. Oh, Guilherme, vai buscá-lo. Receio que ele esteja ferido.

- Que aconteceu? - perguntou uma voz, provinda do banco traseiro do automóvel.

Guilherme apressou-se a informar o patrão. Em breves palavras pô-lo ao corrente do relato de Francisco.

O Dr. Gilberto saiu imediatamente do carro.

- O Duque! E enfurecido! Impossível! Foi sempre o mais dócil, o mais manso dos cães! Que lhe aconteceu durante a minha ausência? Vamos buscar o pobre animal. Vai ficar radiante quando me vir!

Mas, pelo contrário, Duque não demonstrava satisfação nem por ver o Dr. Gilberto, nem Guilherme. Com efeito, rosnava-lhes com tal ferocidade que os dois homens estacaram, em sobressalto.

«Duque!», bradaram, em uníssono, Guilherme e o patrão.

O cão não obedeceu e permaneceu na mesma posição sempre a arreganhar os dentes.

- Cuidado! Tornou-se perigoso - avisou o Dr. Gilberto. - Terá de ser abatido antes que ataque alguém. Que pena! Um cão tão bonito, tão manso!

- Abatido! - repetiu Francisco, com extremo horror. - Que quer dizer o senhor? Matar o Duque? Ele não é culpado. Atiçaram-no e maltrataram-no até quase o enlouquecerem. Amanhã já estará bom. Eu ficarei aqui toda a noite. Não pode matá-lo!

- Meu bom rapaz, não te aflijas - disse o Dr. Gilberto. - De resto que te interessa este cão?

E que fazes neste local a esta hora? Tudo isto é tão estranho! Vai para casa, meu rapaz. O cão tem de ser abatido.

- Mas, senhor, ele está ferido. Sei que está - argumentou Francisco. - E quando os cães se sentem feridos assustam-se e rosnam e assustam os seus próprios amigos. Não creio que ele realmente o mordesse, ou ao Guilherme. Não poderiam... não lhes seria possível irem acarinhá-lo ou tranquilizá-lo?

- Nem pensar em tal... - negou-se o dono. - Sinto-me muito apreensivo. Não; deve ser abatido o mais breve possível. É um animal perigoso.

Francisco não insistiu mais. De abalado e perturbado, mal sabia o que estava a fazer. Avançou lentamente até à casa de campo e chamou o cão, com severidade:

«Vem para aqui, idiota!»

Duque não se moveu; continuava agachado. Porquê tão estranha posição?

Os penetrantes olhos do rapaz percorreram o corpo do cão. Então soltou um grito.

«Oh, meu pobre Duque! A corrente prende-te as patas traseiras. Está a cortá-las! Vou libertar-te, Duque, meu pobre amigo!»

O rapaz acercou-se mais e ajoelhou-se perto do impaciente animal.

«Meu querido Duque, pobre Duque, deixa-me ver a corrente. Não tenhas medo, sou eu e sabes quanto te estimo. Pobre Duque, sossega, meu velho, vou aliviar-te. Tu não me morderás, não é verdade?, apenas estás amedrontado e dorido.

Assim, levanta-te um pouco. Meu pobre Duque!»

Guilherme e o patrão, no auge do espanto, contemplavam a cena. Francisco conseguira que o cão se movesse um pouco e tentava libertar-lhe da corrente as patas.

Baixinho, Duque soltou um ganido e depois estendeu a língua e lambeu Francisco. O coração do rapaz palpitou de alegria.

«Não consinto que te matem», declarou. «Não tenhas medo, Duque! Ficarei toda a noite junto de ti.»

 

                     PARABÉNS, FRANCISCO

Uma vez liberto da cruel corrente que lhe tolhia as pernas feridas, Duque tentou erguer-se, mas logo caiu novamente.

- Está muito magoado! - exclamou Francisco, em voz trémula. - Já não há perigo, não cessa de lamber-me. Ele estava apenas assustado, não sabia porque tinha as pernas presas.

À cautela, o Dr. Gilberto avançou para a casa de campo. Duque ganiu de alegria e tentou erguer-se, mas caiu outra vez, lambendo afectuosamente o dono e Guilherme.

- Estão a ver? - perguntou Francisco, contente.

- Ele não é perigoso. Não passa de um pobre animal ferido. Não vão matá-lo, não é verdade?

- Que extraordinária criança - murmurou o Dr. Gilberto, admirado. - É a mais corajosa que até hoje vi! Este cão podia ter-te atacado e mordido gravemente! Pobre Duque! Nunca tiveste tão grande amigo como o foi, esta noite, este rapaz!

- Não o matam, pois não? - repetiu Francisco.

- Ainda não responderam.

- Não, evidentemente - assegurou o Dr. Gilberto, agora ajoelhado junto do cão, examinando-lhe as pernas. - Estes ferimentos precisam de ser convenientemente tratados; o da pata direita tem muito mau aspecto.

- Oh, que pena que o veterinário da D. A. D. não esteja perto - lamentou Francisco. - Saltaria da cama para tratar do Duque, tenho a certeza.

- Não te preocupes - proferiu o Dr. Gilberto. - Sou cirurgião, e se alivio padecimentos de pessoas, posso decerto encarregar-me de um cão. Guilherme, leve-o para casa.

Guilherme ergueu o Duque e encaminhou-se, com ele, para casa. O Dr. Gilberto abriu a porta e entrou. Surgiu então, um mordomo, perplexo, mudo, ante a visão de Guilherme, transportando o alsasiano, seguido pelo patrão e por um rapazinho.

- É preferível que vás para tua casa, meu filho - aconselhou o médico afectuosamente. - Amanhã irei visitar-te a fim de conversarmos acerca deste assunto. Falarei também com o teu pai e dir-lhe-ei que gostaria de ter um filho como tu!

- Por favor não me mande embora - suplicou Francisco. - Deixe-me ficar aqui, junto do Duque.

- És muito persistente, meu rapaz - disse o médico a rir. - De acordo. Guilherme, leve o carro e participe à família deste jovem que ele está bem e que de manhã irá para casa. Ou... espere um pouco - tens telefone, meu rapaz?

- Não senhor - respondeu Francisco, novamente feliz. Agora não se separaria do Duque e o cão voltaria a ser como dantes, saudável e manso.

Guilherme saiu.

O mordomo desempenhou-se de algumas incumbências transmitidas pelo amo. Uma mesa desmontável, de madeira, foi rapidamente armada e nela deitaram cuidadosamente o Duque. O Dr. Gilberto despiu o casaco, arregaçou as mangas, lavou as mãos e iniciou o tratamento.

Duque foi muito paciente. Francisco falou-lhe e acariciou-o, enquanto o cirurgião desinfectava as feridas e as ligava destramente. Havia ainda um ferimento na cabeça, provocado pela última pedrada.

- Nada de gravidade - observou-, mas o suficiente para enfurecer qualquer cão. Pronto, meu rapaz, o trabalho está concluído. Desejas realmente passar cá a noite?

- O Sr. Doutor disse que eu podia - lembrou Francisco. - O Duque ficará apto, depois disto, a andar convenientemente? As feridas eram profundas, não é verdade?

- Oh, ficará óptimo - declarou o cirurgião. - Olha, já tenta erguer-se. Muito bem, Duque, muito bem! E tenta ensaiar uns passos, se bem que isso lhe seja muito doloroso!

O rapaz e o cão dormiram juntos nessa noite. O mordomo empilhou umas quantas mantas, destinadas ao Duque, num canto do pequeno estúdio onde preparou uma cama para Francisco dormir. Mas mal soou o fechar da porta, o pequeno saltou do leito e aconchegou-se junto do cão. Duque lambeu-lhe a cara e ganiu ternamente. Antes que decorresse um minuto, rapaz e cão adormeceram.

Francisco despertou, na manhã seguinte, quando Duque lhe lambeu todo o rosto. Sentou-se e esfregou os olhos.

«Valha-te Deus, Duque! Se continuas, não precisarei de lavar a cara! Como estão as tuas pernas? Sentes-te melhor?»

O Duque demonstrava excelente forma. Sentia as pernas rígidas, mas não magoadas. Tentou alguns passos. A perna direita, posterior, não estava mal de todo, de modo que estendeu a esquerda, arrastando-a pelo chão, correndo a sala apoiado nas três restantes. Francisco estava radiante.

- Vais ficar completamente curado, Duque! O teu dono é muito hábil, não é? Ele regressou e tu vais ficar sarado. Esquece o que aconteceu.

Soou um toque na porta e o mordomo entrou.

- Bom dia, menino Francisco - cumprimentou. - Venho da parte do Dr. Gilberto saber se dormiu bem. Deseja tomar banho? Estava ontem tão fatigado que não quisemos incomodá-lo a respeito de lavar-se, mudar de roupa...

- Bem... Sinto-me um tanto sujo! - exclamou o rapaz analisando-se de alto a baixo. Seus joelhos estavam pretos, o cabelo despenteado e o rosto manchado de terra. - Creio que foi de me ajoelhar perto de Duque.

- Um local com bastante pó - proferiu o mordomo.

Francisco sentiu-se um tanto envergonhado consigo. Ele tão aprumado e correcto! Em seguida, quase imediatamente, tranquilizou-se.

- O Guilherme Harrisson disse que o menino avançou para o Duque quando este estava doido furioso!- declarou o homem. - Ele contou-me também que nem ele nem o Sr. Doutor ousavam aproximar-se e que pensavam em abater o cão. É exacto?

- Bem, o Duque não estava doido furioso - esclareceu Francisco. - Apenas se sentia aterrorizado porque a corrente lhe prendia as pernas. Feriu-se ao tentar correr, preso à corrente. Agora já está bom, repare!

- O menino é corajoso, é o que é - disse o mordomo. - Nada, no mundo, me faria aproximar de um cão perigoso. Venha comigo, o banho está preparado. Com esse aspecto não poderá tomar o pequeno almoço na companhia do meu patrão.

- Que diz? Eu tenho de tomar o pequeno almoço com o Sr. Doutor? - perguntou o rapaz, perplexo. - Devo então apressar-me a tomar banho. É lamentável que a minha roupa esteja também tão suja.

Quando se mirou no espelho da luxuosa casa de banho pensou: «Apre! Pareço um mendigo! Que diria a avó se me visse?»

Sob o chuveiro, ensaboou-se a preceito e até lavou a cabeça. Num radiador aguardava-o enorme toalha felpuda, aquecida, em que se envolveu, da cabeça aos pés.

Soou uma pancadinha na porta.

- Menino Francisco: o pequeno almoço será servido dentro de instantes. Eu aguardarei, no átrio, para lhe indicar o caminho. Se me entregar a sua roupa, escová-la-ei.

O rapaz abriu a porta e entregou a roupa. Depois enxugou bem o corpo e o cabelo. Penteou-se. A porta não tardou a abrir-se para a devolução do vestuário: tinha um aspecto diferente, se bem que ainda um tanto ou quanto amarrotado.

Já no grande átrio, Francisco sentia-se asseado... e esfomeado. Duque e o mordomo aguardavam-no ali.

Foram solenemente conduzidos a uma acolhedora sala, onde o Dr. Gilberto já se encontrava sentado a tomar o pequeno almoço.

- Bom dia - saudou o médico. - Espero que tenhas dormido bem e que estejas com apetite. Aqui tens salsichas, bacon e ovos.

Francisco fez honras à refeição, saboreada na companhia do Dr. Gilberto.

Duque, sentado no chão, perto, de tempos a tempos colocava a cabeça nos joelhos do amigo.

O dono da casa fazia muitas perguntas e o rapaz falou, sem reservas, a respeito da família:

- Há a avozinha, ela adora os animais! A nossa grande casa, o Abrigo Verde, pertence-lhe, mas não quer vendê-la, e nós somos demasiado pobres até mesmo para utilizarmos metade das salas. Compreende um belo jardim, muito, muito grande, e estábulos, que utilizamos como arrecadações!

«O pai... bem, o pai não é muito feliz. Passa os dias numa cadeira de rodas».

- Porquê? - quis saber o médico.

- Não sei ao certo - respondeu o rapaz. - Foi ferido nas costas, na guerra - não me recordo, evidentemente - e faz muito tratamento, mas nada parece dar resultado. Não consegue mover as pernas. Tem, portanto, de utilizar a cadeira de rodas. Mas é muito bondoso. E ganhou muitas condecorações, uma das quais a de Bravura.

- Bem, eu gostaria de dizer-lhe que lhe coube um filho que também merece uma condecoração por bravura - proferiu o cirurgião. - Vou imediatamente visitá-lo. Fiz saber ontem a tua mãe que passavas a noite na minha casa. Ficou admiradíssima, como é natural.

- Mas, e quanto ao Duque?- interrogou Francisco.- Não o deixe com o Guilherme, Sr. Doutor; as crianças atiçam-no e ele fica preso no pequeno quintal do Guilherme. Eu tinha, para ele, um grande arame no pomar.

- Gostarias de alojá-lo? - perguntou o Dr. Gilberto. - É grande bondade tua. Eu ausento-me com frequência e o Guilherme, que, como sabes, é meu motorista, acompanha-me. Não desejo que o cão fique sozinho.

- Eu adorava tê-lo comigo! - observou Francisco com vivacidade. - E posso tratar-lhe das pernas, se o Sr. Doutor me der instruções. Vou ser veterinário. Gostaria de ter uma grande Camioneta de Animais - Sabe?, as que pertencem à D. A. D.

- Toda a tua família é como tu? - perguntou o Dr. Gilberto, divertido.

- Bem... todos nós gostamos dos animais, se é isso a que o Sr. Doutor se refere - respondeu o rapaz, admirado. - Ou quer saber se somos todos parecidos?

- Não, não me refiro à semelhança física - explicou o cirurgião. - Apenas penso que, se a tua família é como tu, deve ser uma família muito simpática. Agora apronta-te, enquanto eu vou vestir o casaco e pôr o chapéu. Seguiremos imediatamente para o Abrigo Verde.

Leva o Duque para o carro. Deixa-o andar, se ele quiser.

Não tardaram a tomar o caminho de casa de Francisco, conduzidos por Guilherme, contente por verificar que o Duque parecia muito melhor. Chegados diante do portão, o rapaz saltou do carro e, antecipando-se ao motorista, abriu a porta do automóvel, para que o médico saísse.

Na opinião do rapaz, o Dr. Gilberto era um homem excepcional. Enquanto com o Duque esperava por ele, Guilherme informara-o ser o amo um dos mais notáveis cirurgiões do país.

Era sábado. Toda a gente estava em casa. Daniel e Rita, Paula e Susana tinham comparecido, para tratarem dos seus animais, e também Reinaldo e Henrique. A avó, no pomar, com Relâmpago, foi a primeira a saudar o ilustre cirurgião.

O médico tirou o chapéu quando Francisco fez as apresentações.

- É a minha avó - disse o rapazinho.

- Bom dia, minha senhora - saudou o Dr. Gilberto. - Esta residência parece uma espécie de Lar de Animais Desamparados!

- Quem dera! - desejou a avó a sorrir. - Mas, na realidade, não alberga mais que um reduzido número! Então, Francisco? Mais outra aventura!?

Entraram em casa. O Sr. e a Sr.a Marshall encontravam-se na sala de estar, onde João acabava de ser auxiliado a sentar-se na cadeira de rodas.

- Bom dia, Sr. Marshall - cumprimentou o médico. - Desejo dizer-lhe algumas palavras a respeito de seu filho.

Nessa manhã não foram apenas trocadas algumas palavras, mas uma longa conversa, que produziu os mais surpreendentes e inesperados resultados!

Após a partida do médico, a avó e a Sr.a Marshall entreolharam-se, emocionadas. Francisco viu lágrimas nos olhos de sua mãe.

- Prometeu fazer o possível por curar o João! - exclamou a Sr.a Marshall.

- Disse que talvez voltasse a andar dentro de meses! - lembrou, por seu turno, a avó, esforçando-se por disfarçar a comoção.

- «Talvez», não se esqueçam - acrescentou o inválido, com semblante tão excitado como o das duas mulheres. - Já tivemos muitas desilusões após vários tratamentos. Este poderá ser mais uma.

- Oh, mas o Dr. Gilberto é um cirurgião tão competente - observou Francisco. - É o melhor do país, disse-mo o Guilherme.

Sentado junto do pai, com o Duque ao lado, o rapaz sentia-se feliz. Não cessava de recordar as palavras do médico: «Muito corajoso! Um cão enlouquecido, que até eu e o Guilherme receámos.» «Pode orgulhar-se do seu rapaz.» «Tal pai, tal filho, e o filho merece também uma medalha!» «Gostaria de ter um filho assim. Os meus parabéns!» A mãe chorara lágrimas de orgulho; o pai ouvira, de olhos a brilhar. A avó, de enternecida, não conseguira ficar quieta, e tilintou sempre as pulseiras. Sim, Francisco estava muito feliz e, para cúmulo de felicidade, o Dr. Gilberto oferecera-se para examinar as costas do pai e afirmara ser quase certo poder aliviar-lhe os padecimentos e que talvez o doente pudesse vir a andar, apoiado em duas muletas.

Quando o médico se retirou, Francisco correu, em busca dos irmãos, a contar-lhes as novidades. Clara e Alexandre resplandeceram de alegria. Pobre pai, merecia bem que a sorte o bafejasse.

De boca entreaberta, ouviram com avidez a aventura da noite anterior. Duque escutava, também muito atento, de língua pendida, como se estivesse a sorrir, sentado junto do amigo, sem saber como poder demonstrar-lhe a gratidão que o inundava. Francisco pôs os braços em redor do possante pescoço do cão.

- Tu não morderias, não é verdade? - ouviu-se o rapaz dizer. - Gosto muito de ti, meu velho Duque. Oxalá fosses meu! Sempre desejei um cão como tu!

Duque lambia-o e os outros olhavam com certo despeito. Indubitavelmente, Duque considerava-se pertença de Francisco e de mais ninguém.

Alexandre, que observava Rita, disse, de súbito:

- Estás muito encarnada. Que tens?

- Bem... - envergonhou-se a rapariga. - Não é verdade o que eu te disse acerca do Duque. Ele nunca mordeu quem quer que fosse! Foi uma patranha inventada pelas crianças a quem ele ladrou, uma espécie de pretexto para lhe atirarem pedras. Eu julguei que elas diziam a verdade, mas não. Lamento sinceramente, Francisco.

Francisco sentiu-se irritado e volveu-se para as gémeas, Paula e Susana.

- Vocês afirmaram o mesmo! - acusou.

- Sim. Foi o leiteiro quem nos disse - justificou-se Susana. - Mas ele é, em geral, tão mentiroso que a minha mãe costuma dizer que só se deve acreditar em metade das suas histórias!

Tenho, portanto, a esperança de que também mentisse a respeito do Duque.

- Nesse caso o Duque nunca mordeu alguém!

- bradou Francisco, afagando a cabeça do cão. - Nem nunca o farias, não é verdade, Duque"!, a menos que alguma pessoa perversa te fizesse enlouquecer! Oh, como me sinto feliz por te ter salvo ontem à noite, Duque! Seria horrível que te matassem estando tu inocente!

 

O Dr. Gilberto não tardou a estudar o caso do Sr. Marshall. No dia seguinte levou-o, no automóvel, ao seu hospital, em Londres. No regresso, João mostrava-se meio animoso, meio pesaroso.

- Afirmou haver possibilidades, mas é necessário o meu internamento num hospital especializado, onde deverei permanecer durante alguns meses - declarou. - É um longo sacrifício.

- Oh, que pena! - entristeceu-se a esposa. - Vamos sentir muitas saudades!

- Poderemos visitar-te? - quis saber a avó. O genro meneou a cabeça.

- Não. É muito distante e a viagem dispendiosa. Precisamos de enfrentar com coragem a separação e aguardar, confiantes, os resultados. Terá valido a pena se eu conseguir melhorar um pouco: Constituo uma sobrecarga de trabalho para a minha querida mulher, que já tem demasiadas ocupações.

- Não és uma sobrecarga! - protestou a esposa.

- Sabes como eu gosto de ti. Oh, meu querido, quando partes?

- Dentro de dois dias - informou o marido. - O Guilherme levar-me-á de carro. É uma extraordinária atenção da parte do Dr. Gilberto.

- Realmente as pessoas importantes são sempre extraordinariamente amáveis - concordou a avó.

- Mas, e quanto a honorários? - preocupou-se a Sr.a Marshall.

- O Francisco encarregou-se desse assunto - disse a avó e todos a olharam, estupefactos.

- Eu não posso... - principiou o neto. - Eu não posso!... Três escudos é tudo quanto possuo!

- Já pudeste, no entanto - replicou a avó, a sorrir. - O Dr. Gilberto afirmou-me estar-te tão reconhecido por teres salvo a vida do Duque e por propores tratar dele e fazê-lo feliz que, em troca, decidiu encarregar-se do teu pai!  

- Nunca mo disse! - admirou-se o rapaz.

- Presumo que supôs que o soubesses - notou a avó. - «O bem com o bem se paga», compreendes?

 

Decorridos dois dias partiu o Sr. Marshall, confortàvelmente sentado no banco traseiro do grande automóvel acenando para todos, até que deixou de os ver, e todos sentiram um vácuo depois que ele se perdeu de vista. Parecia estranho olhar a cadeira de rodas, agora vazia.

A Sr.a Marshall escrevia diariamente e a avó todas as semanas.

Aos domingos era a vez das crianças e inclusivamente, sob a direcção de Alexandre, todos os animais escreveram um dia!

O doente sorriu ao abrir essa carta. Na primeira página depararam-se-lhe quatro diferentes pegadas, impressas, sob as quais o rapaz escrevera:

«Um latido do Duque, Rex, Pingo, o cachorro, e uma assopradela do Sr. Negrão.» Na página seguinte a pegada de um coelho, uma outra mais pequena do porco-da-índia e uma outra, feita pelo Listado. Alexandre designara-as nestes termos:

«Uma narigada do Novelo, uma abanadela de rabo do Tico, o porquito-da-índia (que, na realidade, se a tivesse, poderia acenar com a cauda) e uma lambedela do Listado.»

Na página terceira via-se colada uma longa cerda e adivinhavam-se também marcas de pés de pombos!

«Um cabelo da crina do Relâmpago, porque não consegui que ele marcasse com os cascos o papel. E patadinhas dos pombos. Gosta da maneira como eles assinaram os respectivos nomes, meu pai? Procedi desta forma: meti-lhes os pés na lama e depois coloquei-lhos sobre a carta.»

O pai riu ao ler as palavras do filho e guardou com carinho a singular missiva. Querido Alexandre! Continuaria a assobiar desafinadamente? E a avó, com suas argolas, quando andava apressada!... E a esposa ainda estaria pálida e fatigada? Clara... com suas pequenas explosões temperamentais... e a esquecê-las imediatamente... E Francisco, que estaria a fazer o corajoso filho?

Sempre e sempre, incessantemente, João pensava na família tanto quanto esta o recordava. Era bom, contudo, que não pudesse ver a esposa. Emagrecera extraordinariamente, e, no rosto, os olhos pareciam demasiado grandes, tal como, anteriormente, os de Rita.

Isso preocupava Francisco. Procurava aliviá-la, mas, não obstante, havia sempre novas tarefas naquela grande e arruinada casa, cujas portas necessitavam de conserto; cal, as paredes; os soalhos, reparação, e mil e uma outras coisas!

José fizera quanto pudera, e tudo ficara como novo e bonito aspecto, mas não podia incumbir-se das grandes reparações, nem havia posses para pagar a quem delas se encarregasse.

O jardim estava lindo agora, porque Simão, Daniel e até Guilherme se lhe dedicavam afanosamente sempre que dispunham de tempo livre. Daniel era um excelente auxiliar e a Sr.a Oldham sentia-se orgulhosa quando via o filho acompanhar Francisco às reuniões de escoteiros.

Um dia Francisco teve, com a avó, uma conversa a respeito de sua mãe.

- Avozinha - começou o rapaz. - A minha mãe está doente? Parece menos activa e tem um aspecto tão triste...

- Não anda muito boa, realmente - concordou a avó. - Isso preocupa-me também, mas não quer ir ao médico. Receia que ele a mande para a cama, ou para longe, mudar de ares.

- Minha avó... não poderia vender o Abrigo Verde e irmos para uma casa mais pequena? - suplicou o rapaz, desesperadamente.

- Não quero sair daqui - proferiu ela com o antigo obstinado olhar. - Hão-de vir melhores tempos e então sentir-nos-emos felizes por termos conservado tão encantadora propriedade.

- Se minha mãe adoecer não haverá «melhores tempos» - insistiu Francisco. - Não podemos ter a certeza de que o pai regresse restabelecido! Oh, quem me dera ser mais velho! Saberia melhor como agir. Avozinha, deixe-nos mudar para o estábulo! Não é tão grande como a casa!

- Não sejas tolo, Francisco! - exclamou a avó. - Por favor não sejas tolo! Não costumas ter ideias disparatadas. Isso é mais próprio da Clara.

- Pois bem. Foi lembrança da Clara! - elucidou o rapaz. - Ela pensou que o estábulo poderia transformar-se numa acolhedora casinha, e é verdade. Além disso teríamos ainda o jardim, ou parte dele.

- Vocês são ambos malucos - declarou a avó. - Quanto dinheiro julgam vocês que é necessário para fazer dos estábulos uma casa de habitação?

- Não sei - confessou, desanimado, Francisco. A avó saiu da sala chocalhando furiosamente as pulseiras. Sentia-se sempre irritada e impaciente quando as preocupações a avassalavam, e agora preocupava-se seriamente com a filha, com o trabalho sempre crescente e com as consequências de uma nova doença em casa. E, sobretudo, que resultados estaria realmente a produzir o novo tratamento de João no distante hospital?

Francisco foi em busca do Duque. Estava no pomar, com Relâmpago e Rex, e todos correram simultâneamente para o rapaz. Os cães pulavam em seu redor.

Francisco sentou-se na relva, e os cães sentiram,! nesse momento, que o amigo estava triste e necessitava que o confortassem. Duque pôs a cabeça no ombro de Francisco; Rex colocou a sua nos joelhos do amigo.) Relâmpago, parado, junto deles, apenas se movia quando balançava a cauda a enxotar moscas impertinentes.

Rex latiu docemente, como a dizer: «Que tens? Diz-me.»

«Não há muito que dizer», murmurou Francisco, afagando-lhe a sedosa cabeça. «O pai está longe e eu sou agora o homem da casa, mas confesso que não sei que fazer! A minha mãe está doente, não há dúvida. Se não acontece, em breve, qualquer coisa, tenho de recorrer ao Dr. Gilberto e pedir-lhe que me leve, no automóvel, a aconselhar-me com meu pai, a quem, no entanto, não quero inquietar. Mas a sorte não muda! As coisas vão de mal a pior!»

Mas eis que nesse preciso momento um facto ocorreu: lentamente, um automóvel surgiu e avançou até parar. Baixou-se o vidro de uma das janelas. Um rosto de mulher assomou.

«É aqui!», proferiu ela. «Não há dúvida. Sim, com efeito, Abrigo Verde. Entremos!»

 

                    O MAIS BELO PRESENTE DE NATAL

Francisco pôs-se de pé e dirigiu-se para o portão de entrada, ao encontro das visitantes. Duas senhoras de idade aproximada à da Sr.a Marshall, elegantemente vestidas, saíram do automóvel. Uma delas trazia ao colo um cachorro. Atrás, no carro, ficara um belo cão-de-água.

- Boa tarde - cumprimentou delicadamente, Francisco. - Com quem desejam falar?

- Este deve ser um dos netos - comentou uma

das visitantes. - Sim. Desejamos ser recebidas pela Sr.a Linton. Suponho ser a tua avó; não é verdade?

- A Sr.a Linton? - repetiu o rapaz. - Sim. É a minha avó. Querem entrar? Eu sou o Francisco, o neto mais velho. Quem devo anunciar?

- Diz-lhe que é a Helena Surrey e uma amiga - respondeu a interlocutora, seguindo o rapaz no átrio.

Francisco instalou na sala as duas visitas e foi procurar a avó. A mãe deitara-se, com dor de cabeça.

- Avozinha! - chamou. - Tem visitas. Está na

sala uma senhora que diz chamar-se Helena Surrey e vem com uma amiga.

- A Helena! A Helena Surrey! - exclamou a avó. - Oh, que surpresa! É a filha da que foi a minha melhor amiga; já te tenho falado na rapariguinha que, por ter os pais ausentes, passou quase toda a infância na mesma casa, com a minha família. Tanto como eu, amava os animais. Que alegria pensar que a Helena está aqui!

A Sr.a Linton correu para a sala. Sucederam-se exclamações e beijos. A avó pediu a Francisco:

- Meu filho, trazes-nos limonadas frescas e alguns biscoitos, sim?

Obediente, o rapaz colocou gelo num jarro, depois calculou a exacta conta de sumo de limão. Acrescentou água. Num bonito prato dispôs bolos. Estava acostumado a ajudar às tarefas caseiras e delas se incumbia com desenvoltura semelhante à de Clara.

- Oh! - Alexandre fez a sua aparição, como habitualmente, sempre que havia comida em perspectiva. - Para quem é isso?

- Não para ti - avisou o irmão. - Visitas! Tira-te da minha frente, Alexandre, e vai ver o Listado. Há séculos que não o vejo.

Alexandre desapareceu. Francisco levou o refresco e os biscoitos à sala, onde se desenrolava animada conversa.

- É este, portanto, o seu neto mais velho - disse a menina Surrey. - E é tão amigo de animais como a tia Liliana?

Soava muito estranho a Francisco ouvir a avó ser designada por tia Liliana, mas Helena Surrey sempre assim se lhe dirigira em criança.

- Todos os meus netos têm grande dedicação pelos animais - confirmou a avó. - É próprio da nossa família! Também a tua mãe lhes dedicava muita, muita afeição, amava-os a todos. Senti bastante a ausência que a reteve na África do Sul e fiquei extremamente pesarosa quando soube do seu falecimento.

- Pois bem: não estranhará, decerto, saber que deixou aos animais toda a fortuna - informou Helena. - Sabendo que eu já dispunha de avultados bens, manifestou o desejo de que se comprasse uma casa onde encontrassem abrigo e bem-estar animais desamparados: doentes, maltratados, sem dono...

- Foi uma mulher maravilhosa. Tinha excelente coração - lembrou a Sr.a Linton. - É próprio dela perpetuar, para além da morte, o seu amor pelos animais. Onde se situa o local que adquiriste para esse fim? Gostaria de visitá-lo. Se eu fosse mais nova poderia colaborar nessa obra!

- Oh, ainda nada está decidido - esclareceu Helena. - Nós apenas dispomos, por enquanto, de dinheiro, compreende? A Patrícia Hemming, esta minha amiga, tem-me sido excelente auxiliar e sugeriu-me a criação de um Lar para Animais situado nesta região. E quando regressávamos, após termos visto hoje inúmeras casas, lembrei-me, de súbito, deste velho casarão que eu tanto amei em criança. E decidi vir certificar-me de que a tia Liliana ainda aqui permanecia.

- De facto ainda aqui estou! - assentiu a avó. - Mas esta casa já não é a que foi; metade das salas estão devolutas, inclusivamente o velho quarto de brinquedos.

- Mas tem um aspecto tão cuidado e bonito e o jardim está muito bem tratado - admirou-se Helena. - Não é verdade, Patrícia?

A conversa prosseguiu. Francisco, que se retirara da sala, foi chamado pela avó para acompanhar as

visitas ao automóvel. Obedecendo, atenciosamente, o rapaz abriu-lhes as portas do carro. Helena Surrey tomou o volante. Patrícia assomou a cabeça para se despedir.

- Até breve! - disse ela. - A casa da tua avó é de entre todas as que hoje vimos a única que nos agrada para um recolhimento destinado a animais. Reúne todas as condições requeridas e tem um magnífico quintal, mas, infelizmente, é também decerto a única que não poderemos adquirir!

Com um último aceno, as visitantes partiram. Demasiado depressa para que a criança pudesse retê-las e dizer-lhes: «Por favor, peçam à avozinha que lhes venda a casa! Queremos outra mais pequena! Nós sabemos que é um local excelente para albergar animais. Temos disso a prova!

Lentamente, o rapaz encaminhou-se para o pomar e sentou-se junto do Duque. Necessitava de coordenar ideias. Uma grande excitação invadia-o. Era bem certo que a Helena Surrey e à amiga agradara o Abrigo Verde? Vendê-lo-ia a avó, se concordasse, considerando que muitos animais ali encontrariam repouso e bem-estar? Francisco lembrou-se que nas traseiras havia ainda um pequeno terreno inculto, que poderia ser anexado para cavalos doentes ou póneis. A casa poderia alojar estudantes que desejassem contactar com os animais; a menina Surrey aludira a esse facto.

Com entusiasmo crescente Francisco ergueu-se e avançou para casa, acompanhado por Rex e Duque. Dum ramo, Listado saltou-lhe para o ombro, velho hábito seu.

«Está bem», disse Francisco. «Venham dar-me apoio.»

Ainda na sala, a avó fazia arrumações. Parecia feliz e entusiasmada - as visitas não eram frequentes.

- Minha avó - proferiu Francisco, em voz subitamente ponderada. - Eu sou agora o homem da casa, não é verdade? Bem; desejo que faça o favor de se sentar e de me prestar atenção. Tenho algo importante a comunicar-lhe.

- Credo! - a avó estacou admirada e sentou-se, de pronto, a tilintar ruidosamente. - Explica-te.

- Ouça, minha avó. Eu considero que o Abrigo Verde é exactamente o local desejado pela menina Surrey, segundo afirmou a amiga. Estou convencido de que o pagariam por bom preço, sobretudo porque a Helena viveu nesta casa em criança.

- Credo! - repetiu a avó.

Francisco prosseguiu, com firmeza:

- É antieconómico haver, nesta habitação, tantas salas fechadas e as restantes a desmoronarem-se. Por felicidade o Simão e o José fizeram quanto puderam para lhe melhorar o aspecto, pois estou certo de que, se há meses aqui viesse, a menina Surrey não quereria comprá-la. Por conseguinte, minha avó, peço que a informe que lhe cede a casa.

- Mas... Francisco, meu querido Francisco, para onde nos mudaríamos? - perguntou a avó. - Ser-me-ia insuportável afastar-me daqui. Sei que sou uma velha egoísta, mas...

- Não necessitaria de partir, avozinha - prosseguiu o rapaz, em voz pausada, de pessoa crescida. - Com o dinheiro que realizasse poderia, sem dificuldade, remodelar os estábulos, transformando-os numa bela casinha, não excessivamente trabalhosa para a mãe! Os sótãos adaptar-se-iam a quartos e ficariam bem bonitos!

- É inacreditável! - exclamou a avó, verdadeiramente surpresa. - Pareces um adulto a falar.

- Bem; alguém tem de tomar decisões - balbuciou Francisco, desesperadamente, parecendo de novo o rapazinho que, de facto, era. - Por causa da minha mãe! A avó gostará de ver esta casa transformada num lar para seres a quem tanto ama: cavalos incapazes para o trabalho, animais velhos, maltratados ou doentes, em suma, todos os que são enjeitados ou repelidos. Já quase o é, actualmente!

A avó quedou-se a pensar:

- Eu poderia encarregar-me de todos os que para cá viessem - admitiu, de rosto iluminado. - E, se conseguíssemos fazer dos estábulos uma casa de habitação ficaríamos lado a lado com o Abrigo Verde! Desfrutaríamos do trecho que mais apreciamos no jardim - a ravina, os canteiros floridos e a área junto do pombal.

- Sim, minha avó. E teríamos uma pequena multidão de criaturinhas a quem nos dedicarmos - acrescentou Francisco, radiante por verificar que a sua sugestão não era repelida. - E mais: quer a minha mãe, quer a avozinha teriam uma redução considerável de afazeres!

- É espantoso ouvir-te discernir de tal modo! - declarou a Sr.a Linton, de novo atónita. - Falas como um homem!

- O meu pai pediu-me que velasse pela mãe - replicou Francisco. - E esta é uma oportunidade para pôr em prática a sua recomendação.

- Esta mesma noite falarei com tua mãe - prometeu a idosa senhora, com entusiasmo. - Oh, meu querido, repara nas horas! Procura a Clara e pede-lhe que te ajude a servir o jantar. Vou saber se já não dói a cabeça à tua mãe.

Quando compareceu para jantar a Sr.a Marshall apresentava aspecto mais animoso. Foi ao encontro de Francisco e beijou-o carinhosamente:

- Meu querido filho! Como tiveste tal ideia? Os teus irmãos já sabem?

Francisco, receoso de que a sua sugestão não fosse bem aceite pela mãe, não fizera ainda confidências a Clara e Alexandre. Quando lhes disse sucederam-se as mais excitadas e felizes exclamações quanto a planos futuros. Alexandre pôs-se a assobiar afincadamente.

- À mesa não! - censurou a avó e Alexandre interrompeu-se, apenas a pausa suficiente para recomeçar em seguida.

Dessa vez ninguém o impediu. Sentiam-se todos muito felizes.

Foi tomada a decisão de saber se a menina Surrey continuava interessada na propriedade. O endereço, que não fora deixado no dia da visita, teve de ser procurado. Só depois a avó se dispôs a escrever. Escreveu, rasgou a carta, e entretanto decorreram dois dias. Em casa todos se enervavam...

- Minha avó! Se não se apressa, a menina Surrey pode comprar noutro lado - suplicou Francisco.

Assustada, a Sr.a Linton acabou por decidir-se à pressa, acabou a carta e mandou que o neto a fosse pôr no correio.

Seguiu-se longa espera. Clara precipitava-se para a porta sempre que via o carteiro. A avó vagueava pela casa, tilintando as pulseiras de ansiedade. Agora, que tomara a resolução de vender o Abrigo Verde, a expectativa impacientava-a.

Até que um dia chegou finalmente um telegrama. A Sr.a Marshall abriu-o com mãos trementes. Eis o que leu: «Lamento demora resposta, motivo ausência. Encantada comprar Abrigo Verde.

Mais encantada ainda virmos a ser vizinhos. - Helena Surrey.»

Oh, que brado se seguiu! O Relâmpago ouviu-o no pomar, Duque e Rex vieram até à casa, indagando. Os pombos esvoaçaram, em revoada, chapejando com as asas nevadas!

- Viva! - gritou Francisco. - Desta vez a nossa vida vai endireitar-se! E será mais divertida!

Já que a avó tomara a decisão da venda, não perdeu tempo em preâmbulos. Contratou um mestre-de-obras para dirigir os trabalhos de adaptação dos estábulos; pediu à mãe das crianças que dissesse que área de terreno pretendia.

Escreveu-se ao Sr. Marshall a pô-lo ao corrente das novidades.

«Estou radiante», foi a resposta de João. «Os estábulos podem ser convertidos numa encantadora casinha. Têm actualmente um belo aspecto, com suas paredes cor de tijolo e tecto de telhas, cobertas de musgo. Sinto-me felicíssimo por saber que finalmente a minha mulher e a avozinha terão tempo livre e menos trabalho.»

Nas cartas do Sr. Marshall as notícias sofriam evolução, tal como a sua doença. Numa semana mostrava-se animoso e cheio de esperança, afirmando que sentia sensíveis melhoras. Na semana seguinte queixava-se de novo das costas; o tratamento fora interrompido. Aparentava que, se fosse descoberto e aplicado o remédio adequado, o mal cederia.

Como o doente desejaria poder estar em casa e partilhar do entusiasmo geral! A Sr.a Linton incumbira o mestre-de-obras de começar imediatamente a execução do trabalho nos estábulos. Com a Sr.a Marshall elaborava e estudava planos, com as adaptações previstas: janela aqui, janela acolá, divisões para quartos, uma cozinha, local para o fogão...

- Vai agradar-me ter um quarto no sótão. Lembrar-me-ei dos cavalos que sob ele dormiram – disse Clara.

- É óptimo destinarem-me quarto privativo - regozijou-se Alexandre. - Não mais serei forçado a dormir contigo, Francisco.

- Excelente! - contrapôs o irmão. - Deixará de importunar-me o teu assobio matinal. Minha mãe, não poderia ensinar o Alexandre a entoar uma música? Eu já tentei, mas sem resultados.

- Tudo vem a seu tempo - observou a mãe. - Não maces o Alexandre com tal assunto. Tu próprio também, há tempos, o não conseguias. Vejam esta planta do terreno, decidimos conservar a zona do jardim que está assinalada. Poderemos perfeitamente ocupar-nos dela sozinhos - e, quanto ao restante, embora passe para novos proprietários, continuará a parecer-nos nosso, porque a Helena Surrey terá prazer que o percorramos livremente sempre que tal desejarmos.

- E todos estes animais!-exclamou Alexandre.- Visitarei diariamente cavalos e macacos, se os houver!

A mãe já sabe que o Relâmpago vai de regresso para o dono?

- Sei, sim - assentiu a mãe. - Mas a partida não está prevista para muito breve. O tio do Simão ficou restabelecido, alguns dos telheiros já foram reconstruídos. Afinal estavam no seguro. O Sr. Miller comprou uma nova carroça e o nosso poneizinho voltará a percorrer a aldeia.

- Gozou umas férias muito agradáveis - disse Clara. - E quanto ao Simão? Partirá também? Vamos sentir muito a sua falta!

- Não. Contou-me ontem que o irmão se desenvencilha muito bem sozinho, e portanto Simão não necessita de ir ajudá-lo. Adivinhem qual é, portanto, o seu novo emprego?

- Qual? - perguntaram as crianças.

- Ofereceu à Helena Surrey os seus préstimos como jardineiro - informou a Sr.a Marshall. - Ela, depois de ver o trabalho dele aqui no Abrigo Verde, contratou-o imediatamente.

- Oh, nesse caso continuaremos a vê-lo todos os dias! - exclamou Clara, satisfeitíssima. - Eu receava que viesse um estranho que nos proibisse de correr pelo nosso velho jardim. O Simão não nos impedirá.

Já os operários se ocupavam dos estábulos e José também depois do pedido feito ao mestre-de-obras pela Sr.a Marshall. José ficou reconhecido:

- Primeiramente fizeste-me um favor consentindo em albergar os meus pombos - lembrou. - Então procurei retribuí-lo, oferecendo-me para pequenos consertos.

Mas eis que me é prestado novo favor! Pois bem, é a minha vez de devolvê-lo: e vou trabalhar como nunca na vossa nova casa.

 

Os trabalhos prosseguiam o melhor possível. O tempo estava bom, o que facilitava as obras. Combinara-se que a família partiria para férias, durante dois meses, ao encerrar das aulas, em Julho, para que prosseguissem as reparações na habitação quando devoluta. No regresso estaria apta a abrigar os novos habitantes uma original casinha, com pombos nos beirais e jardim anexo. Os pombos eram então doze, pois dos ovos chocados haviam nascido borrachinhos. Cada criança possuía um. O de Francisco chama-se Pêndulo; Clara baptizara o seu com o nome de Abano, porque o parecia quando experimentava as asas; Asas-Brancas era o de Alexandre, todos vinham em voo directo quando as crianças os chamavam.

Acabaram as aulas, vieram as férias. A avó, com os netos, partiu para uma vivenda alugada, à beira-mar, enquanto as Sr.as Marshall e Oldham retiravam as cortinas e tapetes e desmontavam a mobília.

- A mãe não vai trabalhar em excesso, não é verdade? - inquietou-se Francisco, falando com a avó, após a despedida.

- Não te preocupes. A Sr.a Oldham está com ela - tranquilizou-o a avó. - Agora, que disponho de dinheiro, posso propiciar-vos o que sempre desejei. Estas férias, por exemplo. E pagar à Sr.a Oldham pelos seus serviços diários.

- Espero que o Rex, o Listado e companhia não sintam a nossa ausência - suspirou Clara. - Não me agradou deixá-los. Felizmente o Relâmpago voltou para o dono de muito bom grado. Vi ontem o nosso pónei a trotar, atrelado ao seu novo carro - e oh, avozinha, ele viu-me também e avançou para mim, com carroça e tudo!

A Sr.a Marshall reuniu-se à família para com ela desfrutar de duas semanas na praia. Que dias maravilhosos! Tomaram todos a cor das cerejas.

A avó foi insistentemente aconselhada a banhar-se no mar, o que sempre recusou.

- Não necessita de tirar as pulseiras, se, porventura, receia que deixem de chocalhar - lembrou-se de dizer Alexandre, pelo que recebeu uma palmada na mão!

Regressaram em Setembro - a mãe das crianças com alguma antecedência a fim de se certificar de que tudo estava em ordem. A Sr.a Oldham e Rex deram-lhe as boas-vindas. Daniel demonstrara ser excelente colaborador. Tomara a seu cargo pombos, coelho, porco-da-índia, Listado e Sr. Negrão. O cachorro Pingo, esse gozara as férias na companhia dos verdadeiros donos.

Daniel apreciava o seu novo entretenimento e sentia-se feliz naquelas férias de dias inteiramente passados no Abrigo Verde, enquanto a mãe se ocupava das limpezas.

Chegou finalmente o dia do regresso das entusiasmadas crianças e avó. Mais entusiasmados ficaram à visão da amorosa casinha, limpa e alegre. Ali estava a mãe à entrada e todo o rosto se lhe abria em sorriso.

- Examinemo-la, exploremo-la! - gritou Clara e todos correram imediatamente para a casa, soltando exclamações de agrado.

- Não está tudo concluído - preveniu a mãe. - Refiro-me ao quarto de Alexandre e aos outros dois no rés-do-chão. Ainda falta ultimar algumas pinturas, mas, no entanto, está suficientemente em ordem para nos alojar.

- Oh, se o pai pudesse vê-la! - observou Clara. - Quando regressa ele, minha mãe? Tem sido tão longa a sua ausência...

- O doutor anunciou vir amanhã visitar-me. Veremos que notícias nos traz.

 

Efectivamente, no dia seguinte, o cirurgião compareceu com o Duque. O cão saltou sobre Francisco, que o estreitou com afecto.

- Dois motivos justificaram esta minha visita - explicou o médico. - Comunicar que o seu marido virá passar o Natal a casa, Sr.a Marshall. Acertámos finalmente com o tratamento adequado, em cuja eficácia tenho sólidas esperanças.

- Recuperará o andar? - perguntou a esposa quase num suspiro.

- Ficará coxo, nada mais posso acrescentar - disse o médico. - Mas não sofrerá dores e poderá, decerto, incumbir-se de certos trabalhos... intelectuais, bem entendido. Aguardem com fé.

- E quanto ao segundo motivo? - interrogou a Sr.a Marshall.

- Trata-se do Duque - explicou o Dr. Gilberto. - Sou forçado a partir de novo, desta vez para a América. Não desejo deixá-lo entregue ao Guilherme. Quero oferecê-lo ao Francisco. Sei que o ama e que o Duque lhe retribui esse afecto com todo o seu coração. Na verdade, já pertence ao Francisco mais do que a mim. Aceitas, Francisco?

Ser seu o Duque! O rapaz não queria crer em tamanha felicidade. Pôs-se muito vermelho, sem conseguir proferir uma só palavra.

Mas o Duque respondeu por ele.

«Ão, ão, ão.»

E saltou sobre Francisco. Lambeu-lhe o rosto e mãos.

- Oh, Sr. Doutor! - tartamudeou, finalmente, a criança. - Sim, quero-o! Sempre desejei ter um cão como o Duque. Muito, muitíssimo obrigado! Quer, de facto, oferecer-mo?

- A ti e só a ti - disse o cirurgião a sorrir. - Virei visitá-lo umas vezes por outras, no meu regresso. Permite-me que o deixe já aqui, Sr.a Marshall?

E deste modo Duque passou a viver com os seus amigos, sentindo-se o cão mais feliz do mundo. Nos primeiros dias Francisco não tirara o braço do pescoço de Duque, que o seguia para todo o lado. Ao rapaz parecia inacreditável que o cão fosse verdadeiramente seu!

 

Corriam os dias. O Natal aproximava-se.

As cartas de João eram animosas e nelas afirmava que abandonara a cadeira de rodas e passara a apoiar-se em duas bengalas, dando passeios pelo parque, na companhia de outros doentes! A carta seguinte comunicava que se intensificara o coxear e fora necessário recolher à cama. Outra, posterior, participava que, novamente de pé, sentia melhoras sensíveis. Restabelecer-se-ia até ao Natal?

- Está a chegar! - anunciou a esposa um dia, erguendo os olhos duma carta. - Virá na próxima semana, dois dias antes do Natal! O Guilherme vai buscá-lo de automóvel, segundo as ordens do Dr. Gilberto. Como é bondoso!

 

- Que mais diz o paizinho? - indagou Alexandre.

- Diz que tem uma grande surpresa para todos nós - acrescentou a mãe. - Deus o abençoe, presumo que se afadigou a executar, para nós, algum maravilhoso presente. Como sabem, há naquele hospital uma

excelente oficina para ajudar a passar o tempo dos doentes. É já na próxima semana!

- Aquele trevo de quatro fohas trouxe-nos sorte, afinal - riu Francisco. - Eu começava a chamar-lhe mentiroso!

 

A nova casa ficou completamente aprontada. Só lhe faltava nome, porque ninguém ainda encontrara um que parecesse suficientemente digno dela.

Já no átrio se erguia a árvore de Natal, primorosamente decorada, com fitas cintilantes, embrulhos misteriosos e rubro azevinho, colhido com a colaboração de Simão, no quintal do Abrigo Verde.

Chegou por fim o dia do regresso de João.

«Ê hoje!», pensamento de todos ao acordarem nessa manhã.

A que horas chegaria o automóvel? Ninguém o podia prever com exactidão. Antes das três da tarde, hipótese provável prevista como a hora mais cedo, as crianças foram postar-se junto do portão. Três horas! Três e meia! Quatro! Que ansiosa expectativa... O pai sem chegar! Quatro horas e um quarto!

A Sr.a Marshall foi à porta chamar os filhos.

- Venham, meus filhos. Só uns momentos. Venham buscar uns pãezinhos para comerem. O pai pode vir tarde e vocês almoçaram tão cedo!

Todos obedeceram, e no preciso momento em que se serviam ouviu-se um carro, que logo parou.

- Ê o pai! O pai já chegou! - gritou Clara, alegremente, correndo para fora.

Sim, ali estava o grande automóvel, cuja porta se abriu. Saiu um homem, que avançou para o portão. Resplandecia-lhe todo o rosto, iluminado por um sorriso.

- Pai! Pai! Está a andar - disse Clara, e correu para o pai, que a abraçou com ternura.

De olhos escancarados, Alexandre seguia a irmã. Atrás, Francisco.

Alexandre não desfitava as pernas do pai. Sim, sim, elas moviam-se. E nem sequer precisavam de bengala! Com os braços a criança rodeou o pulso do pai e encostou-lhe a cabeça ao casaco. Ter um pai que andava - que facto verdadeiramente maravilhoso!

A mãe vinha, em corrida, sem fôlego, de olhos a brilhar. Quando viu que o marido caminhava, de mãos nas mãos dos três filhos, estacou, surpresa.

- João! Oh, João! - exclamou louca de alegria, abraçando-o. - Era esta então a surpresa? Oh, nunca imaginei! Bem-vindo ao nosso lar. Sentimos tanto a tua ausência! - A avó surgiu no pátio a tilintar as pulseiras, com Sr. Negrão ao colo. Nos olhos da Sr.a Lindon espreitavam lágrimas de alegria. Enfim, finalmente, por fim, João estava curado!

- Sim, estou completamente bem - disse ele, sorrindo para todos. - Ora fiquem aí, quietos, a olhar-me. Vêem como salto? E que posso correr? Na noite de fim de ano levar-te-ei a dançar, minha querida mulher. Não, não digas que não tens vestido adequado. Vou comprar-te o mais lindo vestido do mundo!

Meio a rir, meio a chorar, a pequena família entrou em casa. Como era acolhedor esse lar! Como estava transformado o Sr. Marshall! Alexandre nunca o vira naquele aspecto, e fitava-o como a uma aparição.

- Quem diria! - murmurou a mãe das crianças. - Oh, pensar em todos os acontecimentos que se desenrolaram este ano! Lembras-te, Francisco, do dia em que passeámos juntos, no jardim, em Fevereiro? Tu chamaste-me e eu confiei-te todas as minhas preocupações.

- Recordo-me perfeitamente - confirmou o rapaz. - E a mãe tocou na primeira campainha branca. Dizem que dá sorte.

- Então - sugeriu o pai, imediatamente - poremos a esta casa o nome de Casa da Campainha Branca e que nela reine sempre a felicidade.

- Oh, sim - Casa da Campainha Branca, que amor de nome! - disse Clara. - Vou pedir ao José que pinte depressa as letras no arco do portão. Casa da Campainha Branca.

Ébrio de alegria, Alexandre escutava, sério, o rosto volvido ainda para aquele pai, de aspecto tão diferente e inesperado. Sem querer os lábios da criança arredondaram-se e eis que principiaram a assobiar muito alto, na verdade, por se sentir tão feliz.

Todos se viraram para ele:

- Alexandre! - quase berrou Clara, no auge de espanto. - Estás a assobiar uma música! Uma autêntica melodia!

Alexandre interrompeu-se, maravilhado.

- Qual é, diz! - perguntou, muito vermelho.

- A mais bela que podias assobiar - declarou a irmã: - a Noite de Natal.

 

                                                                                Enid Blyton  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"