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AVENTUREIROS PRECOCES
O meu nome é Arthur Gordon Pym. O meu pai era um respeitável comerciante de artigos para a marinha em Nantucket, lugar onde nasci. Meu avô materno era procurador e tinha uma boa clientela. Afortunado em todos os negócios em que se metia, ganhou imenso dinheiro especulando com as acções do Edgarton llew Bank, na altura da sua fundação. Por estes e outros meios, consegui arranjar uma fortuna razoável. Como penso que me estimava mais do que a qualquer outra pessoa no mundo, tinha uma certa esperança em ser o seu principal herdeiro. Quando fiz seis anos mandou-me para a escola do velho Sr. Ricketts, bom homem que apenas tinha um braço e excêntricas maneiras. Quem já esteve em New Bedford conhece-o com toda a certeza. Até aos dezasseis anos estive na sua escola de onde saí para ingressar na academia do Sr. E. Ronald, situada na montanha. Aí, tornei-me íntimo amigo do filho do Sr. Barnard, oficial de marinha, que, normalmente, viajava por conta da casa LIoyd & Vredenburg. Também era muito conhecido em New Bedford e sei que tinha vários familiares em Edgarton. O filho chamava-se Augusto e era mais velho do que eu cerca de dois anos. Em determinada altura tinha acompanhado o pai no baleeiro John Donaldson numa das suas viagens e, continuamente, relatava-me as peripécias por que tinha passado no Oceano Pacífico do Sul. Frequentemente ia com ele a casa da família onde passava todo o dia e, uma vez por outra, a noite. Dormíamos na mesma cama, e conseguia manter-me acordado até ao romper da aurora, contando-me uma longa série de histórias sobre os nativos da ilha de Tinian e de outros lugares que tinha visitado nas suas viagens. Com a contínua repetição deste relatos acabei por me interessar de tal maneira que, pouco a pouco, um único e obsessivo desejo existia em mim: embarcar e ir pelo mar fora. Possuía nessa altura um pequeno veleiro chamado Ariel que talvez valesse setenta e cinco dólares. Tinha o tombadilho cortado, uma segunda câmara e estava aparelhado com uma vela principal no centro e, na proa, uma vela triangular; já não me lembro da sua tonelagem mas podia levar à vontade dez pessoas. Com este barco fizemos as maiores loucuras e agora, quando penso nisso, espanto-me por ainda estar vivo.
Como introdução a uma narrativa mais extensa e importante, poderei contar uma dessas aventuras. Certa noite havia uma recepção na casa dos Barnard e, em fim de festa, encontrávamo-nos, Augusto e eu, bastante bebidos. Por este motivo, como costumava fazer em ocasiões semelhantes, em lugar de regressar a casa, preferi ficar em casa do meu amigo. Penso que Augusto adormeceu logo profundamente — era quase uma hora da madrugada quando as visitas se retiraram—, tanto mais que não disse uma só palavra sobre os seus assuntos preferidos. Entretanto, tinha já passado uma boa meia hora desde que nos tínhamos deitado, estava quase a adormecer, quando ele se levantou repentinamente e após um palavrão terrível, jurando por todos os Arthur Pym da cristandade, afirmou que não dormiria nessa noite quando soprava uma tão magnífica brisa de sudoeste. Fiquei, como é de calcular, completa-mente siderado, sem perceber o que Augusto pretendia, mas, no fundo, atribuindo aquelas estranhas palavras ao efeito da enorme quantidade de vinhos e licores que tinha bebido. Contudo, para meu espanto, começou serenamente a falar, dizendo-me que sabia muito bem que eu devia pensar que ele estava bêbedo, mas, pelo contrário, nunca em dias da sua vida tinha estado tão calmo. Acrescentou ainda que estava farto de estar deitado na cama que nem um cão, para mais com uma noite daquelas, e que, por isso, estava decidido a levantar-se, vestir-se e sair para dar uma volta de barco. Não consigo relatar o que então se passou em mim mas, mal o meu amigo se calou, senti um frémito de excitação e de alegria e pareceu-me aquela louca ideia uma das coisas mais deliciosas e razoáveis do mundo. A brisa que então soprava era quase uma tempestade e o tempo estava muito frio, tanto mais que estávamos quase no fim do mês de Outubro. Apesar disto tudo, saltei rapidamente da cama, quase demente, e disse-lhe que era tão valente como ele, que estava também farto de estar na cama que nem um cão, e também pronto a compartilhar todos os prazeres do mundo com todos os Augustos Barnard de Nantucket.
Vestimo-nos apressadamente, e precipitámo-nos para o arruinado molhe dos estaleiros de Pankey & C. junto ao qual estava amarrado o meu veleiro, batendo lugubremente com o costado contra o tosco madeiramento. Augusto entrou no barco e pôs-se imediatamente a baldear a água que enchia o Ariel. Feito isto, içámos o cutelo e a vela grande e, resolutamente, a todo o pano, dirigimo-nos para o mar alto.
O vento, como disse, soprava fresco de sudoeste. A noite esta límpida e fria. Augusto tomou conta do leme e eu instalei-me perto do mastro, sobre a coberta da cabina. Sulcávamos as águas a grande velocidade e nenhum de nós tinha dito uma só palavra desde que largáramos amarras. Mas, por fim, perguntei ao meu companheiro qual a rota que pretendia seguir, e quando calculava que regressássemos a terra. Assobiou durante alguns minutos, e depois, num tom de voz irritante, disse: —Eu vou para o mar, mas você, se assim o entender, pode perfeitamente ir para casa!
Olhando para ele, logo me apercebi de que, apesar da sua falsa nonchalance, estava vivamente agitado. Podia vê-lo nitidamente contra a claridade da lua: o rosto estava mais branco que o mármore, e as mãos tremiam-lhe tanto que a custo segurava o leme. Reparei que acontecera qualquer coisa de grave e alarmei-me seriamente. Nesta altura, os meus conhecimentos náuticos eram fracos e, fiquei assim completamente à mercê da ciência do meu amigo. O vento também se tornara bruscamente mais frio, visto que tínhamos sido arrastados para longe da costa; mas, de modo algum, queria deixar transparecer o mínimo receio, e durante cerca de uma hora, mantive um mutismo total. Contudo, não podendo suportar por mais tempo esta situação, falei a Augusto na necessidade de regressarmos a terra. Mais uma vez manteve-se calado aproximadamente um minuto, sem dar qualquer indicação que me tinha ouvido.
- Vamos já — disse por fim —, temos tempo... em nossa casa... vamos já. — Já estava à espera de semelhante resposta, mas havia qualquer coisa no seu modo de falar, que me encheu de uma indescritível sensação de medo. Olhei-o novamente com a máxima atenção. Os lábios estavam completamente lívidos e os joelhos tremiam-lhe de tal maneira que parecia não se poder manter por mais tempo em pé.
- Por amor de Deus, Augusto! - exclamei, já completamente aterrorizado. — Que tem?... Que se passa?... Que pretende fazer?
- O que se passa?! - balbuciou espantado Augusto, ao mesmo tempo que largava a barra do leme, deixando-se cair no fundo do barco. — O que se passa?! Nada... absolutamente nada... em casa... lá chegaremos, que diabo!... Não vê isso?
Foi então que se me deparou toda a verdade. Corri para ele e levantei-o. Estava bêbedo, brutalmente bêbedo: não se aguentava em pé, não falava, não via. Tinha os olhos vidrados e, no meio do meu imenso desespero, larguei-o e ele rolou como um cepo na água do fundo do barco de onde o tinha retirado. Era evidente que durante a festa tinha bebido muito mais do que eu imaginara, e que o seu comportamento no quarto tinha sido o resultado de uma dessas bebedeiras reforçadas que, como a loucura, dão por vezes à vítima a faculdade de imitar o comportamento exterior das pessoas em plena posse dos seus sentidos. Contudo, a atmosfera fria da noite tinha produzido o efeito natural; a energia mental tinha cedido à sua influência e a percepção confusa que. sem sombra de dúvida, ele tivera da nossa perigosa situação, tinham contribuído para apressar a catástrofe. Agora estava completamente inerte e não era natural que o seu estado se modificasse antes de algumas horas.
Não é possível transmitir em palavras toda a extensão do meu terror. Os vapores do vinho tinham-se dissipado e estava agora tímido e irresoluto. Sabia que era de todo incapaz de governar o barco, e que o vento furioso e as fortes ondas nos lançavam para a morte. Nas nossas costas formava-se com toda a nitidez uma tempestade. Não tínhamos bússola nem provisões e era evidente que se mantivéssemos a rota em que seguíamos, perderíamos a terra de vista antes do amanhecer. Estes pensamentos, como muitos outros, igualmente terríveis, cruzaram-se-me no espírito com a velocidade do relâmpago e, durante alguns momentos, mantiveram-me paralisado, incapaz de qualquer gesto. O barco cortava as águas a uma velocidade medonha, com vento a seu favor e sem rizes no cutelo ou vela grande, mergulhando a proa na espuma das ondas. Era o milagre dos milagres não ter ainda sido destruído, pois Augusto, como já disse, tinha largado o leme e eu estava demasiado agitado para pensar em torná-lo. Mas a sorte quis que o barco se mantivesse a favor do vento e, pouco a pouco, consegui recuperar em parte a presença de espírito. O vento continuava a aumentar de intensidade e quando nos levantávamos, depois de haver mergulhado de proa, as vagas caíam esmagadoras sobre a ré, encharcando-nos totalmente. ^ Estava com o corpo tão gelado que quase não dava conta das minhas sensações. Por fim, fazendo apelo a todas as forças do desespero, precipitei-me para a vela grande e dei-lhe todo o pano. Como era de esperar, correu por cima da proa e, ao empapar-se de água, arrastou consigo o mastro pela borda fora. Foi este último acidente que me salvou da iminente destruição. Apenas com o cutelo, podia agora navegar com vento de popa e, embora de vez em quando entrasse muita água pela ré, estava livre do espectro de uma morte imediata. Empunhei o leme e respirei com mais tranquilidade ao ver que ainda tínhamos algumas esperanças. Augusto continuava insensível no fundo do barco. Como estava em perigo iminente de se afogar (a água já atingia um pé de altura no lugar onde caíra), tentei levantá-lo um pouco e, para o manter sentado, passei-lhe uma corda à volta do peito, corda essa que amarrei a uma argola na coberta da cabina. Tendo arranjado assim as coisas da melhor maneira que me foi possível, gelado e agitado com estava, encomendei-me a Deus e dispus-me a aguentar tudo o que viesse a suceder-me com a coragem de que me sentia capaz.
Tinha acabado de tomar estas resoluções, quando, subitamente, um forte e enorme grito, um urro, como se saísse das gargantas de mil demónios, pareceu atravessar o espaço e ressoar por cima do barco. Nunca poderei esquecer, em dias da minha vida, o intenso frémito de terror que senti naquele momento. Arrepiaram-se-me os cabelos, senti o sangue gelar-me nas veias, o coração parou de bater e, sem erguer uma só vez os olhos para ver a causa do meu terror, caí de borco, como um peso morto, sobre o corpo do meu companheiro.
Ao voltar a mim, encontrei-me no camarote de um grande baleeiro, o Penguin, com destino a Nantucket. Alguns indivíduos debruçavam-se sobre mim e Augusto, mais pálido do que a morte, friccionava-me activamente as mãos. Quando me viu abrir os olhos, as suas exclamações de gratidão e de alegria, provocaram, alternada-mente, o riso e as lágrimas entre os homens rudes que nos rodeavam. E o mistério da nossa sobrevivência foi-me então revelado.
Tínhamos sido abalroados pelo baleeiro, que seguia uma rota próxima e com as velas abertas tanto quanto o permitia um tempo daqueles, bordejava para Nantucket. Deste modo, avançava para nós quase em ângulo recto. A proa estavam alguns vigias que só puderam aperceber-se do nosso barco quando o choque já era inevitável: os seus gritos de alarme tinham sido a causa do meu terror. Segundo me contaram, o enorme navio passou sobre nós com a mesma facilidade que o nosso barquinho teria ao deslizar sobre uma pena, e sem qualquer incómodo perceptível para a sua marcha. Nem um só grito se ergueu da coberta do veleiro martirizado; apenas se ouviu um ruído leve, como uma queda, que se misturou ao bramido do vento e da água, quando a frágil embarcação, já submersa, foi aplainada pela quilha do seu carrasco - e nada mais se passou. Pensando que o nosso barco (sem mastros, não se esqueçam) não passava de um destroço sem valor, o comandante (capitão E. T. V. Block, de New London) ia continuar a sua rota sem se preocupar com o acidente. Mas, por sorte, dois dos homens que estavam de vigia afirmaram com convicção que haviam visto alguém ao leme e que ainda seria possível salvá-lo. Seguiu-se uma discussão mas Block, passados alguns instantes, encolerizou-se, e acabou por dizer que “não fazia parte do seu trabalho velar constantemente por todas as cascas de noz; que o navio não iria virar de bordo por qualquer palermice e que se houvesse um homem tragado pelas águas, a culpa era toda dele; que se queixasse a si próprio; que se afogasse e fosse para o diabo!”, ou semelhantes palavras com o mesmo sentido. Falou então Henderson, o imediato, que se mostrou justamente indignado como, aliás, toda a tripulação, por aquela linguagem que revelava uma tal crueldade e uma tão grande falta de sentimentos. Sentindo-se apoiado pelos marinheiros, as suas palavras foram firmes e, dirigindo-se ao comandante, disse-lhe que o considerava um tipo digno da forca e que desobedeceria às suas ordens, mesmo sabendo que poderia vir a ser enforcado por causa disso quando desembarcassem. Empurrando Block que, entretanto, ficara lívido e sem dizer palavra, correu para a ré e, empunhando o leme, gritou com voz firme: “Virar de bordo!” Os homens correram para os seus postos e o navio prontamente mudou de rota. Em tudo isto tinham-se perdido cerca de cinco minutos e parecia agora quase impossível salvar a pessoa que julgavam ter visto dentro do barco. Mas, como é do conhecimento do leitor, Augusto e eu tínhamos sido retirados e a nossa salvação parecia ter-se devido a uma dessas sortes grandes que as pessoas sensatas e piedosas atribuem à especial intervenção da Providência. Enquanto o navio continuava à capa, o imediato mandou arriar o bote e saltou para bordo com dois homens dos que, segundo creio, haviam afirmado ter-me visto ao leme. Acabavam de se afastar do costado sotavento do baleeiro (a lua continuava muito clara), quando o barco deu um forte e prolongado balanço de barlavento e Henderson, imediatamente, pondo-se de pé no bote, gritou aos homens que reinassem para a ré. Não conseguia dizer outra coisa, gritando, sempre com impaciência: “Remem para a ré! Remem para a ré.” Remavam com toda a força possível mas, entretanto, o barco voltara-se e começava a avançar, embora todos os braços de bordo lutassem por reduzir as velas. Apesar do perigo da tentativa, o imediato pendurou-se nos grandes suportes das enxárcias logo que ficaram ao seu alcance. Então, uma nova e forte guinada atirou o lado de estibordo para fora da água, quase até à quilha e, por fim, o motivo da sua ansiedade estava à vista: Surgia o corpo de um homem, amarrado da maneira mais estranha ao fundo polido e brilhante (o Penguin era forrado e cavilhado de cobre), batendo violentamente contra o barco, a cada movimento do casco. Depois de vários esforços ineficazes, repetidos a cada guinada da embarcação, em risco de se despedaçar o bote, fui, por fim, retirado da perigosa situação em que me encontrava e içado para bordo - pois aquele corpo era o meu. Parece que uma das cavilhas do madeiramento se soltara e, abrindo caminho através da chapa de cobre, acabara por me prender daquela insólita maneira, quando passei por debaixo do barco. A cabeça da cavilha tinha furado a gola do meu casacão de pano grosso e a parte posterior do pescoço, e enfiara-se entre dois tendões, mesmo sob a orelha direita. Meteram-me logo na cama, embora desse poucos sinais de vida. Não havia médico a bordo mas o capitão tratou-me com todos os cuidados, sem dúvida para se reabilitar perante a tripulação, do comportamento atroz durante a primeira parte da aventura.
Entretanto, Henderson tinha-se novamente afastado do navio, embora o vento soprasse como um furacão e, instantes depois, deu com alguns destroços do nosso barco. Pouco depois, um dos homens assegurou-lhe que de vez em quando, por entre o bramido da tempestade, ouvia um grito. Isto levou os corajosos marinheiros a perseverarem nas pesquisas durante mais de meia hora, apesar dos repetidos sinais do capitão Block para regressarem a bordo, e do perigo iminente e mortal por que passavam em cada minuto naquele frágil bote. Na verdade, é muito difícil imaginar-se como pôde o pequeno barquito resistir mais do que um minuto à destruição. Mas estava construído para o serviço da pesca à baleia e munido, como depois pude verificar, de depósitos de ar, como têm alguns botes salva-vidas das costas do País de Gales.
Após terem procurado em vão durante o mencionado espaço de tempo, resolveram regressar a bordo; contudo, mal haviam acabado de tomar semelhante resolução, um débil grito ergueu-se de um objecto negro que passava rapidamente junto deles. Foram em perseguição dessa coisa e conseguiram agarrá-la: era a coberta do Ariel e a sua cabina. Augusto agitava-se junto dela, em extrema agonia. Quando o recolheram, viram que estava amarrado com uma corda ao madeiramento flutuante. Esta corda, recordemo-lo, fora eu quem lha passara à volta da cintura e a fixara a uma argola para o manter em boa posição e, ao proceder assim, tinha, ao que parece, conseguido um meio de lhe salvar a vida. O Ariel era de frágil construção e, ao naufragar, toda a armação estalou; como é natural, a coberta da cabina foi arrancada pela força da água que aí se precipitava, destacando-se completamente do cavername, e, como outros fragmentos, ficou a flutuar; Augusto flutuava com eles escapando deste modo a uma morte terrível.
Depois de ter sido transportado para bordo do Penguin, passou-se ainda mais de uma hora, antes de dar sinal de vida e compreender a natureza do acidente que sucedera ao nosso barco. Com o decorrer do tempo, acabou por despertar e falou demoradamente das sensações que teve quando náufrago. Logo que retomou um pouco de consciência, notou que estava submerso, girando, girando, com inconcebível rapidez, e sentindo uma corda estreitamente apertada e enrolada, duas ou três vezes, à volta do pescoço. Momentos depois, sentiu-se elevar rapidamente, até que a cabeça, batendo com violência contra um objecto duro, o fez perder de novo os sentidos. Voltando a si, sentiu-se mais seguro, embora ainda estivesse bastante confuso. Compreendera finalmente que tinha havido um acidente e que estava debaixo de água, embora a boca se mantivesse à superfície, o que lhe permitia respirar com certa liberdade. Talvez nesse momento a cabina fosse impelida velozmente pelo vento e assim o arrastasse, flutuando e deitado de costas. Enquanto se mantivesse nessa posição, quase não havia perigo de se afogar. De repente, uma vaga lançou-o contra a coberta; esforçou-se por se manter nesta nova posição, gritando de vez em quando: “Socorro!” Precisamente um pouco antes de ser descoberto por Henderson, foi obrigado a desprender-se, devido ao esgotamento e, voltando a cair ao mar, julgou-se perdido. Durante o período que esta luta durou, não lhe ocorrera a mais ligeira recordação do Ariel, nem nada que se relacionasse com a origem da catástrofe. Apossou-se dele um vago sentimento de terror e desespero. Quando, por fim, foi recolhido, as suas faculdades mentais tinham-no abandonado e, como já disse, só depois de uma hora de ter sido posto a bordo do Penguin tomou plena consciência da sua situação. No que me diz respeito, trouxeram-me de um estado muito próximo da morte (e só após três horas e meia, durante as quais foram usados todos os recursos) graças a vigorosas fricções com flanelas embebidas em óleo quente, processo sugerido por Augusto. A ferida do pescoço, embora com horrível aspecto, não era de grande gravidade, e depressa me curei.
O Penguin entrou no porto às nove horas da manhã, depois de ter lutado contra uma das mais tremendas borrascas sentidas ao largo de Nantucket. Augusto e eu arranjámo-nos para aparecer à hora do almoço em casa do Sr. Barnard que, felizmente, estava um pouco atrasado devido à reunião da véspera. Suponho que todas as pessoas que estavam à mesa se sentiam demasiado fatigadas para poderem notar o nosso ar extenuado, pois não seria necessário um grande espírito de observação para o facto ser notado. Aliás, os estudantes são capazes de fazer milagres para justificarem uma mentira, e não creio que um só dos nossos amigos de Nantucket acreditasse que a terrível história contada na cidade por alguns marinheiros —que tinham afundado um barco no alto mar e afogado trinta ou quarenta pobres diabos pudesse corresponder ao Ariel, ao meu companheiro ou a mim. Falámos muitas vezes dessa aventura, mas nunca sem sentirmos um certo calafrio. Numa destas conversas, Augusto confessou-me francamente que nunca sentira tão grande sensação de medo em toda a sua vida, como quando, no nosso pequeno barco descobrira, de repente, toda a extensão da sua embriaguez e se sentira esmagar por ela.
O ESCONDERIJO
Em qualquer história de simples susto ou perigo, não podemos tirar conclusões certas, a favor ou contra, mesmo dos dados mais simples. Julgar-se-á talvez que uma catástrofe como aquela que contei deveria esfriar toda a minha recente paixão pelo mar. Mas, pelo contrário, nunca senti um tão ardente desejo por conhecer as estranhas aventuras que preenchem a vida de um navegante, tendo apenas passado uma semana sobre o nosso miraculoso salvamento. Este curto espaço de tempo foi mais que suficiente para me apagar da memória as partes sombrias e para aclarar todos os pormenores de cores deliciosamente excitantes, todo o lado pitoresco do nosso perigoso acidente. As conversas com Augusto eram cada vez mais frequentes e de um interesse sempre crescente. Tinha um modo de contar as suas aventuras no mar (metade das quais, suspeito agora, eram pura invenção) perfeitamente adequado para agir sobre um temperamento entusiasta como o meu, sobre uma imaginação um pouco sombria, mas cheia de ardor. O que não deixa de ser estranho é que ele conseguia agarrar todas as minhas faculdades e todos os meus sentimentos, para admirar essa romanesca profissão, principalmente quando me descrevia os momentos de sofrimento e desespero da vida dos marinheiros; pelo lado brilhante do quadro, a simpatia era muito menor. As minhas visões estavam cheias de naufrágios e de fome, de morte ou cativeiro entre as tribos bárbaras, de uma vida arrastada entre sofrimentos e lágrimas sobre um cinzento e desolado rochedo, num oceano inacessível e desconhecido. Estes sonhos, estes desejos — pois no desejo acabavam as visões - são muito comuns, disseram-me depois, entre a numerosíssima espécie dos homens melancólicos; mas, na altura a que me refiro, considerava-as como fugas proféticas de um destino ao qual me sentia, por assim dizer, votado. Augusto estava perfeitamente identificado com o meu modo de pensar e é provável que a nossa intimidade tivesse provocado esta parcial mistura de temperamentos.
Cerca de oito meses depois do desastre do Ariel, a casa Lloyd & Vredenburg (segundo creio, de certo modo ligada com a dos Srs. Enderby, de Liverpool) pensou reparar e equipar o brigue Grampus para a pesca à baleia. Era uma velha carcaça, em péssimas condições de navegabilidade, mesmo depois de todas as reparações feitas. Não faço a mínima ideia por que razão foi escolhido, de preferência a outros navios em boas condições e dos mesmos proprietários. Mas, o que é um facto, é que assim aconteceu. O Sr. Barnard foi encarregado do comando e Augusto ia partir com ele. Enquanto preparavam o brigue, o meu amigo insistia frequentemente comigo para que aproveitasse a excelente oportunidade que se me oferecia para satisfazer o desejo de viajar. É claro que encontrava em mim o eco das suas palavras, mas as coisas não eram assim tão fáceis de arranjar. O meu pai não se opunha directamente, mas a minha mãe tinha logo ataques de nervos mal se falava no projecto; e, pior ainda, era o meu avô, de quem muito esperava, que jurou não me deixar um tostão se eu voltasse a ousar falar no assunto diante dele. Contudo, estas dificuldades, longe de me abaterem o ânimo, eram como álcool sobre as chamas. Resolvi partir, desse por onde desse, e quando relatei as minhas intenções a Augusto, começámos a tentar descobrir um plano para as pôr em prática. Entretanto, daí em diante, abstive-me de dizer uma palavra que fosse acerca da viagem aos meus parentes e, como ostensivamente me dedicava aos meus estudos habituais, julgaram que tinha abandonado o projecto. Posteriormente pensei na minha conduta daquela ocasião, com sentimentos de desagrado e surpresa. A intensa hipocrisia que utilizei para a consumação do meu projecto — hipocrisia que, durante tanto tempo, presidiu a todas as minhas palavras e actos - só conseguia torná-la suportável para mim próprio graças à ardente e estranha esperança com que via prestes a realizarem-se todos os meus sonhos de viagem, longamente acarinhados.
Para a concretização do estratagema era obrigado a deixar muitos pormenores a cargo de Augusto, que estava quase todo o dia a bordo do Grampus, ocupando-se de diversos preparativos para o pai na cabina e no porão; mas, à noite, podíamos estar juntos e falávamos das nossas esperanças. Após cerca de um mês passado desta forma, sem termos conseguido encontrar um plano de êxito assegurado, disse-me que já tinha tudo preparado.
Tinha um parente que vivia em New Bedford, um tal Sr. Ross, em casa de quem costumava passar algumas vezes duas ou três semanas. O brigue devia fazer-se ao mar em meados de Junho (Junho de 1827) e ficou assente que um ou dois dias antes da partida, o meu pai receberia, como era hábito, uma carta do meu parente Ross, pedindo-lhe que me mandasse para sua casa a fim de passar quinze dias com os seus filhos Robert e Emmet. Augusto encarregou-se de escrever a carta e de a fazer chegar ao destino. Assim, fingindo partir para New Bedford, juntar-me-ia ao meu amigo que, entretanto, me preparara um esconderijo a bordo do Grampus. Este esconderijo, assegurara-me ele, seria suficientemente cómodo e confortável para aí permanecer durante alguns dias durante os quais não me poderia mostrar. Quando o brigue já tivesse avançado o suficiente para não se pôr a hipótese do regresso, então, dizia ele, seria formalmente instalado, podendo gozar todas as regalias de uma cabina. Quanto ao seu pai. acabaria por rir com gosto desta partidinha. Encontraríamos numerosos navios pelos quais poderia fazer chegar uma carta aos meus familiares explicando-lhes a aventura.
Chegaram, por fim, os meados de Junho e tudo estava devidamente amadurecido. A carta foi escrita e enviada e, numa manhã de segunda-feira, deixei a minha casa, fingindo dirigir-me para o vapor de New Bedford. Contudo, ia directamente ter com Augusto que me esperava à esquina de uma rua. Fazia parte do nosso primitivo plano que me mantivesse escondido até ao anoitecer, entrando então, sub-repticiamente, para bordo do brigue; mas, como tínhamos a nosso favor um espesso nevoeiro, ficou assente que não valia a pena perder mais tempo a esconder-me. Augusto tomou o caminho do molhe, e eu segui-o a pouca distância, envolto num espesso casaco de oleado que ele trouxera para me disfarçar e tornar difícil o meu reconhecimento. Tínhamos acabado de virar na segunda esquina, depois de termos passado pelo poço do Sr. Edmund, e quem apareceu, em frente de mim, cara a cara? Nem mais nem menos que o meu avô, o velho Peterson!
- Ora bem! Ora bem! — disse ele após uma longa pausa. — Gordon! Que Deus me valha! A quem pertence esse oleado sebento que traz às costas?
- Senhor! - repliquei, adoptando, tanto quanto me era possível, pelas necessidades da altura, um ar de ofendida surpresa e falando no tom mais rude que imaginar se possa - , senhor! penso que está equivocado; em primeiro lugar o meu nome não é Gordon nem Gordin e será melhor para si que repare bem no meu oleado novo e não volte a dizer que é um oleado sebento. Ora esta!
Não sei como me pude impedir de desatar a rir, ao ver o ar espantado com que ficou o velho empertigado, ao receber na cara com estas fanfarronadas. Deu dois ou três passos para trás, ficou primeiro muito pálido, a seguir excessivamente corado, levantou os óculos e depois, ao pô-los no lugar, atirou-se a mim com violência, de guarda-chuva em riste. Contudo, parou de repente, como se de súbito lhe viesse qualquer ideia à cabeça, e acabou por dar meia-volta, afastando-se rua fora a coxear ligeiramente e a murmurar entre dentes: - Isto não está bem!... óculos!... ia jurar que era Gordon... maldito vadio do diabo, esse marinheiro!
Depois de termos escapado de boa, continuámos o nosso caminho com mais prudência e chegámos sem novidade ao destino. A bordo não havia mais que um ou dois marinheiros, ocupados em qualquer coisa no castelo da proa. Quanto ao capitão Barnard, sabíamos muito bem que estava a tratar de assuntos na casa Lloyd & Vredenburg e por lá devia permanecer até altas horas; não tínhamos, por conseguinte, nada a temer do seu lado. Augusto foi o primeiro a subir para bordo do navio e eu segui-o rapidamente, sem ter sido notado pelos homens que trabalhavam. Entrámos imediatamente no camarote e também aí não encontrámos ninguém. Estava confortàvelmente arranjado, coisa rara num baleeiro. Havia quatro excelentes beliches para oficiais, com catres largos e cómodos. Reparei também num grande fogão e num belíssimo e espesso tapete que cobria completamente o chão do camarote e dos beliches dos oficiais. O tecto estava a uma altura de sete pés e tudo aparentava ser muito mais amplo e agradável do que imaginara. Augusto, porém, pouco tempo me deu para satisfazer toda a minha curiosidade, insistindo na necessidade de me esconder o mais depressa possível. Levou-me ao seu beliche, que ficava a estibordo e muito perto dos compartimentos estanques e, depois de entrarmos, fechou a porta e correu o ferrolho. Tenho a impressão que nunca vira um quartinho tão bonito como aquele onde agora me encontrava. Tinha cerca de dez pés de comprimento e uma única cama, que, como já afirmei, era larga e cómoda. Na parte do beliche contígua ao costado do barco, havia um espaço de quatro pés quadrados, onde estavam uma mesa, uma cadeira e uma fila de prateleiras carregadas de livros, principalmente livros de viagens e de navegação. Neste beliche vi uma série de outras pequenas comodidades entre as quais não posso esquecer uma espécie de armário para comida ou refrescos, onde Augusto tinha um sortido escolhido de guloseimas e licores.
Comprimindo com os dedos um certo ponto do tapete, num canto do espaço a que já me referi, mostrou-me que uma parte do soalho, com cerca de dezasseis polegadas quadradas, tinha sido cuidadosamente cortada e ajustada. Sob a pressão, esta parte subiu o bastante de um dos lados para deixar passar por baixo os seus dedos. Deste modo alargou a abertura do alçapão (ao qual o tapete ficava fixado pelas pontas) e vi que conduzia ao porão da ré. Acendeu imediatamente uma pequena vela com o auxílio de um fósforo e, colocando a luz numa lanterna de furta-fogo, desceu através da abertura, pedindo-me que o seguisse. Fiz como ele dizia, voltando então a pôr a porta no buraco por meio de um prego cravado na parte inferior; deste modo o tapete retomava à sua posição primitiva no soalho do beliche e todos os vestígios da abertura estavam dissimulados.
A vela dava tão escassa luz que me era muito difícil encontrar o caminho através daquela balbúrdia de objectos de que estava rodeado. Mas, os meus olhos foram-se habituando pouco a pouco à escuridão e conseguia agora avançar com menor embaraço, mantendo-me agarrado às abas do casaco do meu companheiro. Depois de termos rastejado e rodado através de inumeráveis e estreitas passagens, conduziu-me por fim a uma caixa reforçada de ferro, parecida com aqueles caixotões que servem para embalar as louças caras. Tinha perto de quatro pés de altura e uns bons seis pés de comprimento, mas era excessivamente estreita. Em cima estavam duas grandes barricas de óleo vazias e, sobre ambas, uma enorme quantidade de esteiras empilhadas até ao tecto. Por todo o lado, apinhada também até ao tecto, encontrava-se uma montanha caótica de provisões, misturadas da maneira mais estranha com caixas, cestos, barris e balas, de tal maneira que constituía para mim um milagre a forma como tínhamos podido abrir caminho até à caixa em questão. Soube depois que Augusto dispusera de propósito toda a carga no porão, com o fim de me preparar um excelente esconderijo, apenas com a ajuda de um único homem que não partia com o brigue.
O meu companheiro mostrou-me então que um dos lados da caixa se podia tirar à vontade e, fazendo-o deslizar, mostrou-me o interior, que muito me divertiu. O fundo da caixa estava completamente coberto por um colchão roubado de um dos catres do camarote e ali estava toda a espécie de conforto que podia ser acumulado num lugar tão apertado deixando-me, contudo, espaço suficiente para me mexer à vontade, sentado ou deitado. Havia, entre outras coisas, alguns livros, canetas, tinta e papel, três mantas, um grande cântaro cheio de água, um pequeno barril de biscoitos, três ou quatro enormes salpicões da Bolonha, um descomunal presunto, uma perna de carneiro assada e uma meia dúzia de garrafas de revigorantes e de licores. Tomei imediatamente posse do meu pequeno apartamento, com uma alegria maior do que um rei poderia ter ao entrar num novo palácio. Disto estou bem certo. Augusto indicou-me então o meio de fixar o lado móvel da caixa e, depois, aproximando a vela da coberta, mostrou-me a ponta de uma corda preta que aí estava presa. Esta corda, segundo me disse, partia do meu esconderijo, serpenteava através do cavername e terminava num prego cravado na coberta, mesmo por debaixo do alçapão que levava ao beliche. Por meio desta corda, facilmente poderia encontrar o caminho, sem que Augusto me servisse de guia, se algum acidente imper-visto me obrigasse a dar esse passo. Despediu-se então de mim, deixando-me a lanterna e uma boa provisão,de velas e de fósforos, prometendo visitar-me tantas vezes quantas o pudesse fazer sem ser observado. Estávamos a 17 de Junho.
Segundo os meus cálculos, fiquei no esconderijo durante três dias e três noites, tendo apenas saído duas vezes, para desentorpecer o corpo à vontade, mantendo-me de pé entre duas caixas mesmo em frente à abertura. Durante este espaço de tempo não tive notícias de Augusto o que não me inquietou muito pois sabia que o brigue estava para zarpar de um momento para o outro e, no meio daquela agitação toda, não devia ser fácil para o meu amigo ter oportunidade de descer. Ouvi, por fim, abrir e fechar-se o alçapão, e uma voz abafada chamou por mim, perguntando se tudo corria bem e se precisava de alguma coisa.
- Não preciso de nada - respondi - e estou tão bem quanto é possível. Quando é que o barco larga?
- Levanta ferro daqui a meia hora - respondeu-me ele - e vim aqui para lhe dar a notícia e por recear que estivesse inquieto com a minha ausência. Antes de passarem três ou quatro dias não devo ter oportunidade de descer, mas lá em cima tudo corre bem. Depois de voltar a subir e fechar o alçapão, siga a corda até ao prego onde poderá encontrar o meu relógio; pode ser-lhe útil pois não tem a luz do dia para dar conta do tempo. Aposto que não saberá dizer-me desde quando se encontra aqui encerrado: apenas há três dias; estamos hoje a 20 de Junho. Gostaria de levar o relógio até à sua caixa, mas tenho receio que precisem de mim.
E, após estas palavras, foi-se embora.
Cerca de uma hora após a sua partida senti nitidamente que o brigue se punha em movimento e congratulei-me por começar a viagem a sério. Satisfeito com esta ideia, resolvi manter a boa disposição e aguardar com tranquilidade o curso dos acontecimentos, até que me fosse permitido trocar a minha estreita caixa pelas comodidades mais amplas, mas talvez menos requintadas, do beliche. O meu primeiro cuidado foi ir buscar o relógio. Deixei a vela acesa e avancei às apalpadelas nas trevas, seguindo a corda através" dos seus meandros, de tal modo complicados que por vezes me apercebia, apesar de todo o meu trabalho e de todo o caminho percorrido, estar a um ou dois pés de uma posição precedente. Cheguei por fim ao sítio onde estava o prego e, apoderando-me do objectivo de tão longa viagem, regressei sem novidade. Examinei então os livros que Augusto, com uma deliciosa solicitude, me tinha deixado, e escolhi A Expedição de Lewis e Clark à Embocadura do Colúmbia. Com esta leitura me distraí durante algum tempo até que, sentindo os olhos fecharem-se, apaguei cuidadosamente a vela e caí num sono profundo.
Ao despertar, notei uma estranha confusão na cabeça, e decorreu algum tempo antes de poder lembrar-me das diversas circunstâncias da minha situação. Mas, pouco a pouco, acabei por me lembrar de tudo. Acendi a vela e olhei para o relógio: tinha parado. Não possuía qualquer meio para saber quanto tempo tinha dormido. Tinha as pernas e os braços dormentes devido às cãibras e, para os aliviar, fui obrigado a manter-me em pé no meio das caixas. Depois, sentindo uma fome verdadeiramente devoradora, pensei na perna de carneiro de que comera um pedaço antes de adormecer e que achara magnífica. Mas, qual não foi o meu espanto, ao descobrir que se encontrava num estado de putrefacção total! Este facto inquietou-me imenso porque, relacionando-o com a perturbação mental que tinha sentido ao despertar, comecei a ver que devia ter dormido durante um período de tempo exagerado. A atmosfera densa do porão tivera nisso alguma influência e podia, com a continuação, levar aos resultados mais deploráveis. Doía-me imenso a cabeça, parecia-me que respirava com dificuldade e, numa só palavra, sentia-me angustiado por toda uma série de ideias melancólicas. Contudo não ousava abrir o alçapão ou tentar qualquer outro meio que pudesse chamar a atenção e, tendo simplesmente dado corda ao relógio, fiz o melhor que pude para me resignar.
Durante as longas e insuportáveis vinte e quatro horas seguintes ninguém veio em meu auxílio e não podia deixar de acusar Augusto da indiferença mais ordinária. Mas, o que mais me alarmava, era o facto da água do cântaro estar reduzida a quase meia-pinta e sofrer muito com a sede, pois tinha comido muito salpicão de Bolonha depois da perda da perna de carneiro. Comecei a ficar excessivamente inquieto e deixei de ligar qualquer interesse aos livros. Sentía-me também dominado por um espantoso desejo de dormir mas tremia à ideia de me abandonar ao sono, com medo de que existissem no ar viciado do porão influências perniciosas, como, por exemplo, das emanações do carvão. Contudo, o balanço do brigue demonstrava-me que estávamos no mar alto, e um ruído abafado, um fragor, que me chegava como se viesse de uma imensa distância, convencia-me que o vento que soprava não era uma brisa vulgar. Não sabia como explicar a ausência de Augusto. Com toda a certeza a viagem já estava suficientemente avançada para eu poder subir à coberta. Podia ter acontecido qualquer coisa ao meu companheiro mas, por mais que pensasse nisso, não podia imaginar nenhum facto que explicasse a sua indiferença, deixando-me tanto tempo prisioneiro; a menos que tivesse morrido subitamente ou tivesse caído pela borda fora. Mas, só de pensar nisso, segundos que fossem, era-me insuportável. Podia ainda pensar que talvez fosse possível que tivéssemos sido batidos por ventos contrários e que ainda estivéssemos perto de Nantucket. Mas em breve fui forçado a renunciar a esta ideia pois. se tal fosse o caso, o brigue teria virado frequentemente de bordo e eu estava convencido, devido à sua contínua inclinação para bombordo, de que fizera toda a rota com vento de estibordo. Aliás, admitindo que continuássemos nas vizinhanças da ilha, não teria podido Augusto visitar-me e informar-me da situação?
Reflectindo deste modo sobre as dificuldades da minha triste e solitária situação, resolvi aguardar mais vinte e quatro horas, após as quais, se não recebesse auxílio, me dirigiria para o alçapão e tentaria falar com o meu amigo; ou, pelo menos, respirar um pouco de ar puro através da abertura e renovar a provisão de água no beliche. Enquanto me entregava a estes pensamentos caí, apesar dos esforços que fazia para resistir, num sono profundo ou, melhor dizendo, numa espécie de torpor. Os meus sonhos eram do mais terrível que se possa imaginar. Caía sobre mim toda a espécie de calamidades e horrores. Entre outros terrores, sentia-me sufocado até à morte, debaixo de enormes almofadas, por demónios com o mais sinistro e feroz aspecto. Imensas serpentes estreitavam-me entre os seus anéis e fixavam-me ardentemente com os seus reluzentes e arrepiantes olhos. Desertos e desertos sem fim, hostis, solitários, angustiantes, estendiam-se à minha frente. Gigantescos troncos de árvores, cinzentos e sem folhas, erguiam-se em infinita sucessão, até onde a minha vista podia alcançar. As raízes perdiam-se em extensos pântanos cujas águas se espalhavam ao longe, horrivelmente negras, sinistras e terríveis na sua imobilidade. E todas estas estranhas árvores pareciam dotadas de vitalidade humana e, agitando aqui e além os seus braços de esqueleto, pediam perdão às águas silenciosas e gritavam por misericórdia com um tom vibrante, tocado pelo desespero e pela mais aguda agonia. E depois a paisagem mudava e estava de pé, nu e só, nas areias ardentes do Sara. A meus pés jazia, acaçapado e recolhido, um feroz leão dos trópicos. De súbito, os seus olhos espantados abriam-se e caíam sobre mim. Com um salto convulsivo, erguia-se nas patas e descobria a horrível fila de dentes. Logo a seguir, saía das suas fauces vermelhas um rugido semelhante ao trovão e eu atirava-me ao chão. Sufocado pelo paroxismo do terror, senti-me enfim meio acordado. Mas o meu sonho era mais que um sonho. Contudo, agora, estava ao menos na posse das minhas faculdades e as patas de qualquer enorme e verdadeiro monstro apoiavam-se pesadamente no meu peito; o seu bafo quente soprava nas minhas orelhas e as brancas e sinistras presas brilhavam na escuridão.
Mesmo que só tivesse de mexer um braço ou pronunciar uma sílaba para salvar mil vezes a vida, não o teria feito. O animal, fosse ele qual fosse, continuava na mesma posição, sem tentar qualquer ataque imediato e eu permanecia debaixo dele num estado de completa impotência, muito próximo da morte. Sentia as faculdades físicas e intelectuais abandonarem-me rapidamente; numa palavra: sentia-me morrer e morria de terror. O cérebro vacilava - invadia-me a náusea mortal da vertigem - , os olhos traíam-me e os globos resplandecentes apontados para mim pareciam também obscurecerem-se. Fazendo um supremo e violento esforço, ergui uma débil prece a Deus e resignei-me a morrer.
O som da minha voz pareceu despertar toda a latente fúria do animal que se atirou ao comprido para cima de mim. Mas, qual não foi o meu espanto quando, soltando um longo e surdo gemido, começou a lamber-me a cara e as mãos com afinco e com as mais extravagantes demonstrações de afecto e alegria! Estava como que aturdido, perdido de espanto, mas não podia esquecer os gemidos típicos do Tigre, o meu terra-nova, e lembrava-me bem da bizarria das suas carícias. Era ele. Senti como que uma torrente de sangue precipitar-se nas têmporas, como que uma sensação vertiginosa, esmagadora, de alívio e de ressurreição. Ergui-me precipitadamente do colchão da minha agonia e, abraçado ao meu fiel companheiro e amigo, desafoguei a pesada opressão do meu peito com as mais ardentes lágrimas.
Quando me levantei do colchão, o meu cérebro, como em circunstâncias precedentes, estava numa confusão singular, numa autêntica desordem. Durante bastante tempo, pareceu-me quase impossível ligar duas ideias; mas, lenta e gradualmente, fui recobrando as faculdades mentais e acabei por recordar as diversas particularidades da minha situação. Quanto à presença do Tigre, em vão me esforcei por explicá-la e, depois de me ter perdido em mil diversas conjecturas, sem mais pesquisas, alegrei-me pura e simplesmente por ele ter vindo partilhar a minha lúgubre solidão e reconfortar-me com as suas carícias. Muitas pessoas gostam de cães mas eu tinha pelo Tigre uma ternura mais ardente do que é vulgar, e nunca criatura alguma a mereceu melhor. Durante sete anos foi o meu companheiro inseparável e, numa série de casos, tinha-me dado provas das qualidades nobres que nos fazem estimar este animal. Tinha-o arrancado, quando era ainda cachorrinho, das manápulas de um galfarro de Nantucket que o arrastava para a água com uma corda ao pescoço. Quando cresceu, pagou-me esta dívida, aproximadamente três anos depois, salvando-me da moca de um ladrão de esquina.
Peguei então no relógio e apercebi-me, levando-o ao ouvido, que tornara a parar; mas não me espantei, convicto que estava, pelo estado peculiar das minhas sensações, que tinha dormido, como já me acontecera, durante um longo espaço de tempo. Quanto tempo? Não fazia a menor ideia. Estava cheio de febre e a sede tornara-se intolerável. Procurei às apalpadelas, através da caixa, o pouco que devia restar da minha provisão de água, porque não dispunha de luz, tendo-se a vela consumido até ao nível do castiçal da lanterna, e não podia por enquanto encontrar os fósforos. Por fim, encontrando o cântaro, verifiquei que estava vazio. Tinha, com toda a certeza, sido o Tigre, que não resistira ao desejo de beber, nem ao de devorar todo o resto do carneiro cujo osso, impecavelmente limpo, estava à entrada da caixa. Podia passar muito bem sem a carne, mas sentia o coração partir-se-me só com a ideia da água. Estava excessivamente débil, a ponto do menor movimento, o mais leve esforço, me fazer tremer o corpo todo, como num violento acesso de febre. Para cúmulo do azar, o brigue dançava e balanceava com grande violência, e as barricas de óleo colocadas por cima da caixa, ameaçavam cair a cada momento, fechando assim a única saída do meu esconderijo. Para além disto tudo, sofria imenso com o enjoo. Estas considerações levaram-me a dirigir-me ao acaso para o alçapão e a procurar imediatamente auxílio, enquanto o podia fazer. Resolução tomada, procurei de novo às apalpadelas os fósforos e as velas. A muito custo descobri os fósforos mas, não encontrando as velas tão depressa como esperava (pois mal me recordava do sítio onde as pusera), abandonei as pesquisas e, recomendando ao Tigre que estivesse sossegado, empreendi decididamente a caminhada até ao alçapão
Nesta tentativa, a minha extrema fraqueza tornou-se ainda mais notória. Só com muita dificuldade me conseguia arrastar e muitas vezes as pernas dobravam-se-me; depois, caindo prostrado, fiquei alguns instantes num estado de semi-insensibilidade. Contudo, continuava a luta e avançava lentamente, temendo a todo o momento desmaiar no estreito e complicado labirinto do porão da estiva, o que teria como único resultado esperar que chegasse a morte. Por fim, dando um impulso para a frente com toda a energia possível, bati violentamente com a testa de encontro à esquina aguçada de uma caixa reforçada de ferro. O acidente apenas me causou um aturdimento de alguns instantes mas descobri, com mágoa inexprimível, que o balanço seco e violento do navio atravessara a caixa no meu caminho, barricando completamente a passagem. Embora usasse de toda a força, não a consegui mover uma polegada que fosse, pois estava solidamente entalada entre as caixas vizinhas e os apetrechos do barco. Era-me pois necessário, fraco como estava, largar a corda que me conduzia e procurar uma nova passagem, ou então, saltar por cima do obstáculo e retomar o caminho do outro lado. A primeira opção apresentava inúmeros perigos e dificuldades - só de pensar nela me arrepiava. Esgotado de corpo e alma, acabaria com toda a certeza por me perder se tentasse uma tal imprudência, e perecer miseravelmente no lúgubre e repugnante labirinto do porão. Assim, comecei sem hesitações, a reunir o que me restava de força e coragem para tentar o salto por cima da caixa.
Ao pôr-me em pé para realizar este plano, apercebi-me que a empresa era mais árdua e implicava um trabalho ainda mais complicado do que imaginara. De cada lado da estreita passagem, elevava-se um autêntico muro feito de uma quantidade enorme dos mais pesados materiais e, o menor descuido, podia fazê-los cair em cima da minha cabeça, ou, se escapasse a isto, o regresso podia ficar-me vedado pelos objectos deslocados e, deste modo, estava perante novo obstáculo. Quanto à caixa, era muito alta e maciça e não oferecia ponto de apoio para pôr os pés. Por fim, tentei por todos os meios possíveis alcançar o topo, tentando elevar-me a pulso. Se o conseguisse, era mais que certo não ter força bastante para me elevar e, em resumo, mais valia não tentar. Finalmente, ao fazer um esforço desesperado para tirar a caixa do lugar, senti como que uma vibração sensível à superfície. Metendo os dedos por entre os bordos das tábuas, apercebi-me que uma delas, uma das maiores, oscilava. Com a faca, que por sorte trazia comigo, consegui, com muita dificuldade, arrancá-la completamente e, passando através da abertura, descobri com grande alegria que não havia tábuas do outro lado, ou seja: a caixa não tinha tampa e tinha sido pelo fundo que abrira passagem. Daí em diante, segui a corda sem dificuldades de maior, até que por fim atingi o prego. Com o coração a bater mais forte, levantei-me e empurrei suavemente a porta do alçapão. Não se abriu com a prontidão que eu esperava e empurrei-a com mais energia, não sem temer que outra pessoa sem ser Augusto se encontrasse nesse momento no beliche. Mas a tampa, para meu espanto, continuou firme e comecei a ficar inquieto pois sabia que primitivamente ela cedia sem esforço e à menor pressão. Empurrei-a com vigor: não se mexeu; com toda a força: permaneceu imóvel; com raiva, com fúria, com desespero: e todos os meus esforços foram inúteis. Era evidente, a avaliar pela firmeza da resistência, que o buraco fora descoberto e solidamente tapado, ou então que algum peso enorme lhe tinham posto em cima, o qual era inútil tentar levantar.
O que senti foi uma extrema sensação de horror e de assombro. Tentei em vão raciocinar sobre a causa provável que assim me emparedava no meu túmulo. Não conseguia coordenar ideias e, deixando-me cair no chão, abandonei-me sem resistência aos pensamentos mais negros, entre os quais se salientavam, esmagadores e terríveis, a morte pela sede, pela fome, pela asfixia e um enterro prematuro. Mas, com o tempo, acabei por recobrar a presença de espírito. Levantei-me e procurei com os dedos as juntas e as ranhuras do alçapão. Tendo-as encontrado, examinei-as meticulosamente para ver se deixavam passar luz do beliche; mas não se via nada. Introduzi então a lâmina de afiar as penas através das fendas, até encontrar um obstáculo duro e, ao raspá-lo, descobri que se tratava de um sólido objecto de ferro, concluindo que devia ser uma corrente, pela sensação típica de ondulação que me transmitia a lâmina ao raspar ao comprido. O único recurso que me restava era retomar o caminho da caixa e, aí, resignar-me ao meu triste destino, ou tentar acalmar o espírito para o tornar capaz de congeminar qualquer plano de salvação. Como me deixei cair inteiramente esgotado em cima do colchão, o Tigre estendeu-se ao comprido a meu lado, como se desejasse, com as suas carícias, consolar-me das minhas penas e exortar-me a suportá-las com coragem.
Com o tempo, o seu estranho comportamento acabou por me chamar a atenção. Depois de me lamber a cara e as mãos durante alguns minutos, parava de repente e soltava um surdo gemido. Quando lhe estendia a mão encontrava-o invariavelmente deitado de costas, de patas para o ar. Este comportamento, tantas vezes repetido, parecia-me estranho e não sabia de que maneira explicá-lo. Como o pobre do bicho parecia abatido, concluí que recebera alguma pancada e, pegando-lhe nas patas, apalpei-as uma a uma, mas não encontrei nenhum sintoma de ferimento. Supus que tivesse fome e dei-lhe um gordo naco de presunto que ele devorou com avidez, recomeçando em seguida as suas estranhas manobras. Imaginei então que sofresse como eu as torturas da sede, e ia adoptar esta conclusão como válida, quando me ocorreu a ideia de que só lhe tinha visto as patas e que talvez pudesse estar ferido em qualquer outro lugar do corpo ou da cabeça. Apalpei cuidadosamente a cabeça e nada encontrei mas, pelo dorso, notei uma ligeira erecção do pêlo a toda a largura. Palpando-lhe os pêlos, descobri um cordel que segui e que lhe passava em redor do corpo. Graças a um exame mais minucioso, encontrei uma pequena ligadura que me pareceu conter um bilhete; o cordel atravessava essa ligadura e fora preso de modo a fixá-la mesmo por baixo da espádua esquerda do animal.
TIGRE ENRAIVECIDO
Imediatamente pensei que o papel devia ser um recado de Augusto e que, impedido por qualquer acidente inexplicável de vir buscar-me a esta prisão, adoptara aquele processo para me pôr ao corrente do que se passava. Trémulo de ansiedade, procurei de novo os fósforos e as velas. Lembrava-me vagamente de os ter cuidadosamente guardado em qualquer lado antes de adormecer, e tinha a certeza que antes da minha última expedição até ao alçapão era perfeitamente capaz de me recordar do sítio preciso onde estavam guardados. Mas, agora, era em vão que me esforçava por me recordar, e perdi uma boa meia hora numa pesquisa inútil e irritante daqueles malditos objectos; tenho a certeza que nunca me encontrei em semelhante estado de dolorosa ansiedade e incerteza. Por fim, como esquadrinhava por toda a parte, com a cabeça de rastos, perto da abertura da caixa e um pouco por fora, entrevi uma débil luminosidade perto do meu lugar. Espantado, esforcei-me por me dirigir para essa luz que parecia estar apenas a alguns pés de distância. Mal começara a mover-me nesse sentido quando a perdi logo de vista e, para a lobrigar de novo, fui obrigado a caminhar às apalpadelas ao longo da caixa até conseguir reencontrar a primitiva posição. Então, movendo cuidadosamente a cabeça para um e outro lado, acabei por descobrir que se avançasse lentamente com o máximo cuidado num sentido oposto ao que primeiro seguira, poderia atingir a luz sem a perder de vista. Assim sucedeu, depois de seguir um caminho, penosamente interrompido por uma série de desvios, e descobri que essa luz provinha de alguns fragmentos dos meus fósforos espalhados num barril vazio e deitado de lado. Estranhei muito encontrá-los num sítio daqueles, quando dei com dois ou três bocados de cera fosfórica que deviam ter sido mastigados pelo cão. Daí ter concluído que ele devorara toda a minha provisão de velas e ficar desesperado por ver que nunca me seria possível ler o recado de Augusto. Os restos de cera estavam tão bem misturados com os outros resquícios do barril que renunciei a utilizá-los e deixei-os onde estavam. Quanto aos pedaços de fósforo, de que ainda restavam uma ou duas migalhas luminosas, recolhi-os o melhor que pude e regressei com muita dificuldade à caixa, onde, durante este tempo todo, tinha ficado o Tigre.
Na verdade, não sabia agora que fazer. A obscuridade que reinava no porão era tão profunda que nem as mãos conseguia ver, mesmo aproximando-as dos olhos. Quanto à branca tira de papel, só a podia distinguir olhando-a, não directamente, mas voltando em sua direcção a parte exterior da retina, ou seja: observando-a de viés mesmo assim a visão era muito débil para a sensibilidade da minha vista. Pode deste modo compreender-se como era negra a noite da minha prisão e, o recado do meu amigo, se acaso era dele, apenas servia para aumentar a perturbação, atormentando sem utilidade o meu pobre espírito, já tão agitado e enfraquecido. Em vão dava voltas à cabeça com uma quantidade de absurdos expedientes para conseguir luz, expedientes análogos aos que imaginaria, para um fim idêntico, um homem dominado pelo sono perturbador do ópio; surgindo cada um deles ao sonhador como a mais razoável e absurda das invenções, conforme são as luzes da razão ou as da imaginação, que lhe dominam o espírito vacilante. Por fim, surgiu-me uma ideia que me pareceu razoável e só me admirou uma coisa: não ter ainda pensado nela. Coloquei a tira sobre um livro e, recolhendo os pedaços dos fósforos químicos que trouxera do barril, juntei-os em cima do papel; depois, com a palma da mão, esfreguei-os com força, mas também com firmeza. Imediatamente se espalhou por toda a superfície uma luz clara e, se houvesse qualquer coisa escrita, estou certo que não teria a mínima dificuldade em lê-la. Mas nem uma sílaba, apenas uma triste e desoladora brancura. A claridade apagou-se após alguns segundos, e senti o coração apagar-se com ela.
Disse já que, durante o período precedente, o meu espírito estivera num estado muito próximo da estupidez. É certo que tive alguns momentos de perfeita lucidez e até, de vez em quando, de energia; mas tinham sido pouco numerosos. Deve recordar-se que respirava, com toda a certeza há bastantes dias, a atmosfera quase pestilencial de um estreito calabouço num barco baleeiro e, durante boa parte desse tempo, apenas dispusera de uma insuficiente quantidade de água. Nas últimas catorze ou quinze horas, estivera totalmente privado dela, assim como estivera privado de sono. Alimentos salgados, extremamente irritantes, tinham sido a minha alimentação e, depois da perda do carneiro, o meu único sustento (não falando nos biscoitos que se tornaram perfeitamente intragáveis, demasiado secos e duros para a minha garganta, inchada e seca). Sentia imensa febre e estava, sob todos os pontos de vista, muito, muito mal. Isto explicará como se passaram longas e angustiantes horas de abatimento depois da aventura do fósforo, antes de me ocorrer que apenas tinha examinado um dos lados do papel. Não tentarei descrever todos os meus sentimentos de raiva (pois penso que a cólera dominava todos os outros), quando compreendi de súbito o fatal esquecimento. Este descuido não teria sido tão grave se a minha loucura e a minha petulância não o tornassem quase irremediável - no auge do desespero não encontrar uma só palavra que fosse na tira de papel, tinha-a infantilmente rasgado e atirara fora dos pedaços. Para onde? Era-me impossível sabê-lo.
A parte mais difícil do problema pude resolvê-la, auxiliado pela sagacidade do Tigre. Tendo achado, após longa busca, um pedacinho do bilhete, coloquei-o debaixo do focinho do cão, esforçando-me por lhe fazer compreender que me devia trazer o resto. Para grande espanto (pois nunca lhe ensinara nenhum dos truques habituais que dão fama aos seus semelhantes), pareceu compreender-me imediatamente e, farejando durante alguns momentos, depressa encontrou outro pedaço bastante grande. Trouxe-mo, fez uma pequena pausa e, esfregando o focinho nas minhas mãos, pareceu aguardar que eu aprovasse o que tinha feito. Fiz-lhe uma festa na cabeça e ele partiu logo para a sua tarefa. Alguns minutos decorreram antes do seu regresso, mas, por fim, trouxe-me uma larga tira que completava o papel perdido - segundo parecia, apenas o tinha rasgado em três pedaços. Afortunadamente não tive grandes dificuldades em encontrar o pouco que me restava do fósforo, guiado pela vaga luminosidade que continuavam a emitir um ou dois pequenos fragmentos. As minhas desventuras tinham-me ensinado a necessidade da prudência e reflecti então sobre aquilo que devia fazer. O mais certo era estar escrito qualquer coisa do lado do papel que ainda não examinara. Mas qual era esse lado? A junção dos pedaços nada me dizia a este respeito e simplesmente me garantia que encontraria todas as palavras do mesmo lado (se acaso houvesse alguma), sucedendo-se logicamente tal como tinham sido escritas. Era absolutamente necessário descobrir a parte escrita, pois os fragmentos de fósforo não seriam suficientes para uma terceira experiência, se acaso falhasse a que ia tentar. Coloquei, como já fizera, o papel em cima de um livro, sentando-me em seguida e, durante alguns minutos deixei que se fizesse luz no meu espírito. Por fim, pensei que não era de todo impossível que a face escrita contivesse asperezas à superfície, asperezas que uma minuciosa observação pelo tacto poderia detectar. Resolvi fazer a experiência e passei cuidadosamente um dedo pela face que se me apresentava; como não senti nada, voltei o papel, ajustando-o em cima do livro. Passei de novo o indicador ao comprido com a máxima precaução, até descobrir que uma pálida mas visível luminosidade acompanhava o movimento do meu dedo. Isto não podia deixar de provir de algumas pequenas moléculas de fósforo com que esfregara o papel na minha primeira tentativa. Assim, se houvesse qualquer coisa escrita, devia estar do lado oposto. Voltei portanto a virar o bilhete e meti mãos à obra, como tinha feito anteriormente. Esfreguei o fósforo: uma luz voltou a brilhar mas, desta vez, distinguiam-se nitidamente algumas linhas manuscritas em grandes caracteres que pareciam traçados a tinta vermelha. A claridade, embora suficientemente brilhante, só durou uns instantes. Contudo, se não estivesse tão perturbado, teria tido tempo mais que suficiente para ler as três frases que estavam debaixo dos meus olhos: pois vi que eram três. Mas, na ânsia de ler tudo ao mesmo tempo, só consegui reter as últimas oito palavras que eram: ...sangue; continue escondido, a sua vida depende disso.
Se acaso tivesse conseguido inteirar-me do conteúdo completo do bilhete - todo o sentido da advertência que o meu amigo tentara comunicar-me - estou certo de que, embora me tivesse revelado a história de um atroz e indescritível desastre, não teria experimentado um décimo do subjugante e indefinível horror que me inspirou esse fragmentário aviso recebido desta maneira. E essa palavra sangue, essa suprema palavra, rainha das palavras, sempre plena de mistério, sofrimento e terror, como ela aumentou de importância! Como estas vagas sílabas, desligadas das palavras anteriores que as qualificavam e tornavam claras, caíam, duras e gélidas, nas mais profundas trevas da minha prisão, nos mais íntimos recônditos da minha alma!
Sem sombra de dúvida, Augusto devia ter boas razões para desejar que eu permanecesse escondido e formulei mil e uma conjecturas sobre as causas da sua recomendação, sem encontrar qualquer solução satisfatória para o mistério. Ao regressar da última viagem ao alçapão, antes da minha atenção ter sido atraída pelo estranho comportamento do Tigre, tinha resolvido fazer-me ouvir, custasse o que custasse, pelos tripulantes, ou então, se não o conseguisse, tentaria abrir caminho através dos bailéus do porão. A confiança que tinha na capacidade de realizar, em último recurso, um destes propósitos, dera-me coragem (que de outro modo não teria) para suportar as agruras da situação. E eis que as poucas palavras que acabava de ler me cortavam esses dois recursos derradeiros! Foi então que vi pela primeira vez, toda a extensão do meu miserável destino. Quase louco e desesperado, atirei-me para cima do colchão onde permaneci estendido, um dia e uma noite, numa espécie de entorpecimento, cortado, aqui e além, por alguns intervalos de lucidez e memória.
Com o decorrer do tempo, acabei por me levantar para reflectir acerca dos horrores que me cercavam. Tornava-se-me muito difícil, direi mesmo impossível, aguentar mais vinte e quatro horas sem água. Durante a primeira parte do meu cativeiro, fizera largo consumo dos licores que Augusto me deixara, mas só tinham servido para me aumentar a febre, sem, um pouco que fosse, me aplacarem a sede. Apenas me restava agora um quarto de pinta de uma espécie de licor feito de caroço de fruta, muito forte, que me agoniava imenso. Os salpicões tinham acabado, do presunto apenas restava um pequeno courato e, excepto as migalhas de um biscoito, tudo o resto fora devorado pelo Tigre. Para cúmulo dos azares, a minha dor de cabeça aumentava incessantemente, sempre acompanhada daquela espécie de delírio que, com maior ou menor intensidade, sempre me atormentara desde o primeiro desmaio. Há já algumas horas que respirava com grande dificuldade e agora, de cada vez que inspirava, sentia no peito um movimento espasmódico que muito me alarmava. Mas, havia ainda uma outra razão completamente diferente para me inquietar. Esta inquietação, em consequência da qual os extenuantes terrores me tinham arrancado ao torpor e me haviam obrigado a soerguer-me do colchão, provinha do comportamento do cão.
Enquanto esfregava o fósforo no papel durante a minha última experiência, tinha reparado numa alteração da sua maneira de ser. Precisamente quando o esfregara, ele enfiara o focinho nas minhas mãos com um leve rosnar; mas, nesse momento, eu estava demasiado preocupado para prestar suficiente atenção a tal facto. Pouco depois, como se devem recordar, atirara-me para cima do colchão e caíra numa espécie de modorra. Apercebi-me então de um estranho silvar junto aos meus ouvidos, e acabei por descobrir que o ruído provinha do Tigre que bufava e resfolegava como se estivesse excitadíssimo, enquanto os olhos brilhavam na escuridão. Disse-lhe qualquer coisa e ele respondeu-me com um surdo rosnar após o que ficou tranquilo. Voltei a cair no torpor para de novo ser acordado pelo mesmo motivo. Isto repetiu-se três ou quatro vezes, até que o seu comportamento me inspirou um tal pavor que despertei completamente. Estava deitado contra a abertura da caixa, rosnando medonhamente, embora num tom baixo e surdo, e rangendo os dentes como se estivesse acometido por fortes convulsões.
Não duvidava que a falta de água e a atmosfera viciada do porão o pudessem ter enraivecido, mas não sabia que atitude tomar. Não suportava a ideia de ter de o abater mas, no entanto, isso parecia-me absolutamente necessário para minha própria segurança. Via-lhe distintamente os olhos fixados em mim com uma tal expressão de animosidade mortal que, a cada momento, esperava que me atacasse.
Por fim, não podendo suportar por mais tempo esta situação terrível, resolvi sair da caixa a todo o custo e acabar com ele, se uma resistência da sua parte tornasse esse caso extremo necessário. Para sair era-me necessário, passar directamente por cima do seu corpo, e dir-se-ia que ele presssentira já as minhas intenções: ergueu-se nas patas dianteiras - o que adivinhei pela mudança de posição dos olhos - e arreganhou as brancas presas que podia distinguir sem dificuldade. Peguei nos restos do courato de presunto e na garrafa de licor, apertei-os bem contra mim e empunhei uma grande faca de cozinha que Augusto me tinha deixado; depois, envolvido o melhor possível na capa de oleado, avancei em direcção à abertura da caixa. Mal me mexera, logo o cão se me atirou à garganta, soltando um forte latido. Todo o peso do seu corpo caiu sobre o meu ombro direito o que me fez tombar com violência sobre a esquerda, enquanto o animal enraivecido passava por cima de mim. Tinha caído de joelhos, a cabeça enfiada nas mantas, o que me protegia contra os perigos de um segundo ataque; este deveria ser igualmente furioso, pois sentia os seus dentes aguçados a arrepanharem com toda a força os panos que me envolviam o pescoço e que, por grande sorte, não podiam ser rasgados facilmente. Estava nessa altura debaixo do animal e dentro de pouco tempo estaria completamente à sua mercê. Mas o desespero deu-me forças e, levantando-me resolutamente, atirei com o cão para longe, graças à força do movimento, e puxei para o meu lado as mantas do colchão. Atirei-as então para cima do Tigre e, antes que ele se pudesse desembaraçar, já eu atravessara a porta e felizmente a fechara, não fosse ele recomeçar a perseguição. Contudo, nesta luta, fora obrigado a largar o pedaço de courato e estava agora com as minhas provisões reduzidas a um quarto de pinta de licor. Quando reparei nisto, senti-me atacado por um desses acessos de maldade análogos à atitude de um menino mimado em ocasião semelhante, e, levando a garrafa à boca, esvaziei-a até à última gota, quebrando-a depois com fúria a meus pés.
Mal se desvanecera o eco do vidro estilhaçado, quando ouvi pronunciar o meu nome por uma voz inquieta, mas abafada, na direcção das instalações da tripulação. Uma coisa destas era tão inesperada, e a emoção que causou foi tão intensa, que foi em vão que tentei responder. Havia perdido por completo a faculdade de falar e, torturado pelo receio de que o meu amigo me julgasse morto e se fosse embora sem tentar encontrar-me, pus-me de pé entre as caixas, perto da porta do meu alojamento, tremendo convul-sivamente, de boca aberta, lutando por recuperar a fala. Mesmo que tudo estivesse dependente de uma única sílaba, não seria capaz de a articular. Ouvi então como que um ligeiro movimento no meio do porão da estiva, um pouco adiante do lugar onde estava. Mas o roído tornou-se menos audível, em seguida ainda menos e cada vez se tornava mais ténue. Poderei algum dia esquecer essas minhas sensações? Ele afastava-se... O meu amigo, o meu companheiro de quem tanto esperava! Afastava-se... Abandonava-me... Partia! Deixava-me sofrer miseravelmente? Morrer na mais horrenda e sinistra das prisões... e uma só palavra, uma única sílaba podia salvar-me!... e essa sílaba apenas, não a conseguia articular! Estou certo que naqueles instantes senti as turturas da morte dez mil vezes aumentadas. A cabeça começou a andar-me à roda e caí vítima de mortal fraqueza, contra a esquina da caixa.
Ao cair, a faca de cozinha soltou-se do cinto e rolou pelo chão com o ruído metálico do ferro. Nenhuma melodia soou tão deliciosamente aos meus ouvidos como aqueles compassos! Cheio de inquietação pus-me à escuta a fim de ver qual o efeito que o ruído produziria em Augusto, pois sabia que a pessoa que pronunciara o meu nome só podia ser ele. Mas, durante alguns instantes, apenas o silêncio. Contudo, passado algum tempo, ouvi de novo a palavra Artur! várias vezes repetida em tom baixo como por uma pessoa hesitante. A esperança renascente libertou-me de súbito a palavra presa e gritei com toda a força da minha voz:
- Augusto! Oh, Augusto!
- Cale-se! Cale-se, por amor de Deus! - respondeu-me ele com uma voz trémula de agitação - vou já ter consigo... assim que consiga abrir caminho através do porão.
Durante imenso tempo, ouvi-o remexer no meio do porão da estiva e cada instante me parecia um século. Senti, finalmente, a sua mão nos meus ombros, ao mesmo tempo que me chegava aos lábios uma garrafa de água. Só aqueles que tenham sido arrancados de súbito às garras da morte, ou tenham sofrido os insuportáveis tormentos da sede, em circunstâncias tão complicadas como as que me cercaram naquela lúgubre prisão, podem fazer ideia das delícias inefáveis que me proporcionou aquela boa golada, bebida demoradamente, de um só trago, dessa bebida requintada, a mais perfeita de todas as volúpias!
Quando apaziguei um pouco a sede, Augusto tirou dos bolsos três ou quatro batatas cozidas e frias, que devorei com a maior avidez. Trouxera luz numa lanterna de furta-fogo e os raios luminosos não me causavam menor alegria do que a comida e a bebida, contudo, estava impaciente por conhecer as razões da sua prolongada ausência e, assim, começou a contar-me o que sucedera a bordo durante o meu cativeiro.
REVOLTA E MASSACRE
O brigue fizera-se ao mar, tal como calculara, cerca de uma hora após Augusto me ter deixado o relógio. Estávamos a 20 de Junho. Há três dias que me encontrava no porão e, durante todo esse tempo, rebentou a bordo uma constante balbúrdia, tantas idas e voltas, especialmente no camarote e nos beliches dos oficiais, que o meu amigo, sem correr o risco de revelar o segredo do alçapão, não podia vir ver-me. Quando, por fim. pôde descer ao porão, eu afirmei-lhe que estava bem e, durante os dois dias seguintes, não se inquietou com a minha situação, embora nem por isso deixasse de aguardar uma ocasião propícia para voltar a ver-me. Mas foi apenas ao quarto dia que teve oportunidade de descer. Diversas vezes, durante este período, pensara em confessar a aventura ao pai para que eu pudesse sair do esconderijo, mas continuávamos ainda muito perto de Nantucket e ele receava, por algumas palavras que haviam escapado ao capitão Bamard. que regressassem imediatamente se descobrissem que eu estava a bordo. Aliás, vendo bem as coisas, Augusto, segundo me disse, não poderia imaginar que eu necessitasse de qualquer cuidado mais premente, ou que. num caso destes, hesitasse em chamar através do alçapão. Assim, pensando bem, acabou por adiar a sua descida até que a pudesse fazer sem ser observado; o que ocorreu, como já disse, no quarto dia depois de me ter trazido o relógio, ou seja: no sétimo depois de me ter escondido no porão. Então desceu, sem trazer água nem provisões, pois tencionava apenas chamar-me a atenção para que fosse ter com ele junto do alçapão e depois subir ao beliche de onde me entregaria tudo aquilo de que eu necessitasse. Quando desceu com estes propósitos, viu que eu dormia, pois parece que ressonava muito alto. Segundo os cálculos que pude fazer a este respeito, devia tratar-se daquele desastroso sono e delírio no qual caíra após ter regressado do alçapão com o relógio, sono esse que, consequentemente, devia ter durado pelo menos, mais de três noites e três dias. Posteriormente pude conhecer, por experiência própria e pelo testemunho dos outros, os poderosos efeitos suporíferos das emanações do óleo rançoso de peixe em lugares fechados; e, quando penso no estado do porão em que estava encerrado e no largo espaço de tempo em que o brigue serviu de baleeiro, espanto-me muito mais por ter conseguido acordar, depois de ter caído naquele perigoso sono, do que por ter dormido sem interrupção durante todo aquele tempo.
Augusto chamou-me. Primeiro, em voz baixa e sem fechar o alçapão, mas eu não dei qualquer resposta; fechou então o alçapão e falou-me num tom de voz mais alto; depois aos berros, mas eu continuava a ressonar. Não sabia que fazer. Necessitava de dispor de algum tempo para atravessar toda a balbúrdia do porão até atingir o meu posto e, entretanto, a sua ausência podia ser notada pelo capitão Barnard que, a cada momento, necessitava dos seus préstimos para pôr em ordem e transcrever as papeladas relativas aos objectivos da viagem. Assim, após reflectir sobre estes problemas, resolveu subir e aguardar outra oportunidade para me visitar. Sentiu-se apoiado nesta resolução por lhe parecer o meu sono tranquilo, não imaginando sequer que me tivesse sentido mal por estar fechado. Acabava precisamente de pensar nisto tudo, quando a sua atenção foi atraída por um estranho tumulto que parecia vir do beliche. Esgueirou-se pelo alçapão o mais rapidamente possível, fechou-o e abriu a porta do camarote. Mal tinha posto os pés de fora quando uma bala de pistola lhe passou a rasar a cabeça e logo tombava sob um golpe de bimbarra.
Uma mão vigorosa mantinha-o deitado no chão do camarote, ao mesmo tempo que lhe apertava com força o pescoço; mas, mesmo assim, podia ver o que se passava à sua volta. O pai, atado de pés e mãos, estava estendido ao longo dos degraus da escada da escotilha, de cabeça para baixo, com um profundo ferimento na cabeça, de onde um rio de sangue corria sem cessar. Não falava e parecia estar moribundo. Sobre ele debruçava-se o imediato, olhando-o com uma expressão de zombaria diabólica e revistando-lhe com toda a calma os bolsos, de onde tirava nesse momento uma recheada carteira e um cronómetro. Sete homens da tripulação, entre os quais o cozinheiro preto, vasculhavam os beliches de bombordo em busca de armas e não tardaram a estar munidos de espingardas e munições. Além de Augusto e do capitão Barnard, havia ao todo nove homens no camarote - os maiores rufiões da tripulação. Os bandidos subiram então à coberta, levando com eles o meu amigo, depois de lhe terem amarrado as mãos atrás das costas. Dirigiram-se para o castelo da proa que estava fechado e, dois dos amotinados, armados de machados, postaram-se em cada um dos lados, enquanto outros dois se colocavam junto da escotilha principal. Então o imediato gritou, com voz altissonante:
- Estão-me a ouvir, vocês aí de baixo? Vamos a sair para a coberta!... Um a um, cuidado!... E nem pensem em refilar!
Passaram alguns minutos antes que um só ousasse mostrar-se mas, por fim, um inglês que embarcara como grumete, subiu a chorar lastimosamente, suplicando ao imediato, da maneira mais humilde, que lhe poupasse a vida. A única resposta à sua súplica foi uma machadada na cabeça. O pobre rapaz rolou pela coberta sem soltar um gemido e o cozinheiro preto levantou-o nos braços, como se fosse uma criança, atirando-o ao mar. Ao ouvirem a pancada e a queda do corpo, os homens de baixo não se atreviam a subir à coberta, nem à força de promessas ou ameaças, até que alguém se lembrou de alvitrar que os obrigassem a sair enchendo o castelo de fumo. Foi uma debandada geral e pôde julgar-se, por instantes, que o brigue ia ser retomado. Mas os amotinados conseguiram fechar solidamente o castelo da proa e apenas seis dos seus adversários conseguiram lançar-se para a coberta. Estes seis, ao verem-se ante forças tão desiguais, sem armas, renderam-se após breve luta. O imediato dirigiu-lhes boas palavras, sem dúvida para levar os de baixo a submeterem-se, pois podiam ouvir perfeitamente o que se dizia na coberta. O resultado destas palavras provou a sua esperteza, bem como a sua diabólica perversidade. Todos os prisioneiros do castelo da proa manifestaram o desejo de se submeterem e, à medida que iam subindo, um a um, eram amarrados e atirados de costas para junto dos seis primeiros. Ao todo vinte e sete homens da tripulação que não haviam participado na revolta.
Seguiu-se uma terrível carnificina. Os marinheiros amarrados foram arrastados até à coberta superior onde o cozinheiro, armado de um machado, atingia cada uma das vítimas na cabeça, e os outros bandidos os atiravam borda fora. Vinte e dois pereceram desta forma e Augusto considerava-se já perdido, esperando a cada momento que fosse a sua vez. Mas, pelos vistos, os miseráveis estavam cansados, ou talvez mesmo arrepiados com a sangrenta tarefa, pois os quatro últimos prisioneiros entre os quais estava o meu amigo que com os outros fora atirado para a coberta, foram de momento poupados, enquanto o imediato mandava buscar rum e o grupo de assassinos Iniciava uma festa de bêbedos que durou até ao pôr-do-sol. Começaram então a discutir acerca da sorte dos sobreviventes, que estavam deitados a menos de quatro passos deles e que ouviam tudo o que se discutia. Em alguns dos amotinados o vinho parecia ter produzido um efeito calmante, pois elevaram-se várias vozes pedindo que soltassem os prisioneiros desde que aceitassem a revolta e estivessem dispostos a lutar por ela. Contudo, o cozinheiro preto {que, sob todos os pontos de vista era um autêntico demónio e parecia ter tanta ou mais influência que o imediato) não admitia sequer que isso fosse discutido e levantou-se repetidas vezes para retomar o seu ofício de carrasco. Felizmente, estava de tal maneira debilitado pela bebedeira que pôde facilmente ser detido pelos menos sanguinários do grupo, entre os quais figurava um contramestre, conhecido pelo nome de Dirk Peters. Era filho de uma índia da tribo dos Upsarokas, que vive nas fortalezas naturais das Montanhas Negras, perto da nascente do Missouri. O pai, segundo julgo, era um comerciante de peles ou, pelo menos, estava relacionado com os estabelecimentos comerciais no rio Lewis. Quanto ao próprio Peters, era um dos homens de aspecto mais feroz que vi até hoje. De pequena estatura, pois não tinha mais de quatro pés e oito polegadas de altura, mas com membros hercúleos, principalmente as mãos, que, de tão monstruosamente grossas e largas, não pareciam humanas. Os braços, como as pernas, eram arqueados da maneira mais estranha e não pareciam dotados de qualquer maleabilidade. A cabeça era igualmente disforme, de um tamanho espantoso, com uma protuberância ao alto (como têm muitos pretos) e completa-mente calva. Para disfarçar esta particularidade, usava habitualmente uma peruca feita da primeira pele que tinha a jeito - por vezes a pele de um cão felpudo ou de um urso pardo. Naquela altura usava um pedaço de uma dessas peles de urso, o que contribuía bastante para aumentar a natural ferocidade do seu aspecto, que mantinha ainda bastantes traços da raça dos Upsarokas. A boca quase que ia de orelha a orelha; os lábios eram finos e, como outras partes do corpo, pareciam desprovidos de flexibilidade, de modo que o seu aspecto não variava sob a influência de qualquer emoção. Pode conceber-se qual era o seu aspecto se imaginarmos os dentes, particularmente compridos e salientes, que os lábios nunca tapavam. Olhando-o de repente, poder-se-ia pensar que estava a rir; mas, a uma observação mais atenta, verificava-se não sem um arrepio, que, se aquela expressão fosse um sintoma de alegria, só poderia ser a alegria de um demónio. Entre os embarcadiços de Nantucket circulava uma série de "anedotas acerca desta singular personagem. Todas estas anedotas, falavam da sua força prodigiosa quando estava excitado e, em algumas, duvidava-se do seu perfeito juízo. Mas, segundo parece, a bordo do Grampus era considerado na altura da revolta, mais como objecto de chacota. Se acaso me alonguei um pouco sobre Dirk Peters, foi porque, apesar de toda a sua aparente ferocidade, ele acabou por ser o principal meio da salvação de Augusto, e porque terei de falar várias vezes dele na continuação da minha narrativa - narrativa em cujos últimos capítulos, seja-me permitido dizê-lo, figurarão factos tão fora da normalidade e ultrapassando tanto os limites da credulidade humana, que só a prossigo, desesperado ao pensar que ninguém acredite no que afirmo, pela confiança plena que deposito no tempo e nos progressos da ciência que confirmarão algumas das minhas asserções mais importantes e, ao mesmo tempo, mais improváveis.
Depois de muita indecisão e de duas ou três violentas disputas, foi decidido que todos os prisioneiros (com excepção de Augusto, que Peters teimou, de uma maneira cómica, em conservar como seu secretário) seriam abandonados à deriva num dos botes mais pequenos. O imediato desceu ao camarote para verificar se o capitão Barnard ainda estava vivo pois, como se recordará, quando os revoltosos subiram à coberta, tinham-no lá deixado. Reapareceram em breve os dois, vindo o capitão pálido como a morte, mas um pouco reabilitado dos efeitos do ferimento. Falou aos homens, numa voz quase inaudível, suplicando-lhes que não o abandonassem à deriva mas que regressassem aos seus postos, prometendo desembarcá-los onde quisessem sem tentar entregá-los à justiça. Foi o mesmo que falar com o vento. Dois dos malandros agarraram-nos pelos braços e atiraram-nos borda fora para dentro da embarcação, que entretanto fora arriada enquanto o imediato descera ao camarote. Os outros quatro homens que estavam estendidos na coberta foram desamarrados e receberam ordem para descer, o que fizeram sem tentar a mínima resistência. Augusto continuava na mesma posição dolorosa, embora se agitasse e implorasse que, ao menos, lhe deixassem dar um último adeus ao pai. Um punhado de biscoitos e um cântaro de água foram então lançados aos infelizes; mas não lhes deram mastro, vela, remos, nem bússola. Durante o tempo em que os revoltosos estiveram de novo reunidos a conferenciar, o bote foi rebocado pelo navio mas, acabaram por cortar o cabo e deixá-lo à deriva. Entretanto, tinha-se feito noite escura - não se via a lua nem as estrelas - e o mar começava a encapelar-se, embora não soprasse uma brisa muito forte. O bote perdeu-se de vista e poucas esperanças havia pela sorte daqueles desgraçados. Tudo isto se passava a 35° e 30° de latitude norte e 61° e 20° de longitude oeste, ou seja, a curta distância das Bermudas. Por esta razão, Augusto tentou consolar-se, pensando que a embarcação talvez conseguisse alcançar terra ou que dela se aproximasse bastante para encontrar algum navio costeiro.
Foram desfraldadas todas as velas e o brigue continuou a sua rota para sudoeste. Os amotinados visavam qualquer expedição de pirataria e, tanto quanto Augusto pudera compreender, tratava-se de surpreender e abordar um navio que devia seguir a rota das ilhas de Cabo Verde para Porto Rico. Pouca importância deram ao meu amigo que, entretanto, fora desamarrado e podia correr todo o navio. Dirk Peters tratava-o com um certo carinho e, em determinada altura, salvou-o das brutalidades do cozinheiro. Mas a sua posição continuava a ser angustiante e difícil, na medida em que os marinheiros se mantinham permanentemente bêbedos, e não podia fiar-se muito no bom humor momentâneo e na indiferença a seu respeito. O mais triste era, segundo me disse, a ansiedade que sentia pela minha situação - e não tinha qualquer motivo para duvidar da sinceridade da sua amizade - tanto que, mais de uma vez, esteve quase resolvido a revelar aos amotinados o segredo da minha presença a bordo. Contudo, nunca chegou a fazê-lo por se recordar das atrocidades de que fora testemunha, e, em parte, devido à esperança de em breve me levar socorros. Para a realização deste último plano, andava constantemente de olhos bem abertos à espera de uma ocasião mas, a despeito da atenção mais vigilante, passaram-se três dias, desde que haviam abandonado o bote à deriva, sem que surgisse qualquer oportunidade. Finalmente, na noite do terceiro dia, sobreveio uma rajada forte de leste e todos os homens tiveram que se ocupar a recolher o velame. Durante a confusão que se estabeleceu pôde descer sem ser visto e entrar no seu camarote. Mas, qual não foi o seu desgosto e o seu pavor, ao descobrir que tinham feito dele um lugar para depósito de provisões e parte do material de bordo, e que várias braçadas de velhas correntes, inicialmente arrumadas sob a escada do camarote, daí tinham sido retiradas para dar lugar a uma caixa, encontrando-se agora precisamente em cima do alçapão! Era impossível retirá-las sem dar nas vistas, de modo que regressou à coberta o mais rapidamente possível. Quando ia a chegar, o imediato agarrou-o pelo pescoço, perguntando-lhe o que é que ele tinha ido fazer ao beliche e, estava prestes a lançá-lo ao mar pela amurada de bombordo, quando Dirk Peters interveio, e, mais uma vez, lhe salvou a vida. Puseram-lhe então algemas (havia vários pares a bordo), ataram-lhe firmemente os pés e, levando-o para o camarote da tripulação, atiraram-no para um dos catres inferiores, encostado ao compartimento estanque do castelo da proa, assegurando-lhe que só voltaria a pôr os pés na coberta quando o brigue já não fosse um brigue. Esta foi a expressão do cozinheiro, que foi quem o atirou para o catre, e é impossível saber-se o que quereria dizer com isto. Contudo, este facto acabou por resultar favorável para a minha salvação, como se poderá ver em seguida.
UMA CARTA ESCRITA COM SANGUE
Augusto, durante alguns minutos, entregou-se ao desespero, convencido de que não deixaria o catre com vida. Resolveu então noticiar a minha existência ao primeiro homem que descesse, acreditando ser preferível eu tentar a sorte com os amotinados do que morrer de sede no porão - pois havia agora dez dias que lá me encontrava encarcerado, e um cântaro de água nem sequer para quatro dias era provisão suficiente. Ao reflectir nisto, ocorreu-lhe de súbito a ideia de que talvez pudesse comunicar comigo pelo porão grande. Em qualquer outra altura, a dificuldade e os acasos do empreendimento tê-lo-iam impedido de tentá-lo, mas, agora, como tinha poucas esperanças de vida, muito pouco tinha a perder. Assim pensando, logo se aplicou, de corpo e alma, a esta nova tentativa.
O primeiro problema a resolver eram as algemas. Ao princípio não descobriu qualquer meio de se desembaraçar delas e logo pensou que a empresa fracassava de início; mas, a um exame mais pormenorizado, reparou que podia, sem grande esforço nem inconveniente, comprimir as mãos e fazê-las deslizar à vontade para fora dos ferros, pois este tipo de algemas era ineficaz para prender as mãos de um jovem, cujos ossos pequenos cedem facilmente à pressão. Desamarrou depois os pés e, deixando a corda posta de tal maneira que pudesse ajustá-la com facilidade no caso de vir alguém, começou por examinar o tabique no sítio onde confinava com o catre. Era constituído por uma tábua de abeto macio e viu que não teria grande dificuldade em abrir caminho através dela. Naquele momento soou uma voz no cimo das escadas do castelo de proa e mal teve tempo para colocar a mão direita na algema (a esquerda ainda estava presa), e para apertar a corda com um nó corredio, em volta dos tornozelos. Era Dirk Peters que descia, acompanhado pelo Tigre, que logo se lançou para o catre onde se deitou. O cão tinha sido trazido para bordo por Augusto que, sabendo o carinho que tinha ao animal, calculou que me agradasse tê-lo a meu lado durante a viagem. Fora buscá-lo a minha casa, depois de me ter conduzido ao porão, mas tinha-se esquecido de mo dizer quando me trouxe o relógio.
Não o voltara a ver depois da revolta e julgava o animal perdido, supondo mesmo que tivesse sido atirado borda fora por um desses miseráveis bandidos que faziam parte do grupo do imediato, até que agora ele aparecia acompanhando Dirk Peters. Parece que se tinha metido num buraco debaixo de um bote, de onde depois não podia sair por não ter espaço suficiente para dar a volta. Peters acabou por libertá-lo e, por um bom sentimento momentâneo que o meu amigo muito apreciou, vinha trazê-lo ao castelo da proa para lhe fazer companhia, deixando-lhe, ao mesmo tempo, uma pequena porção de salame e batatas, e um jarro de água. Em seguida regressou à coberta, prometendo voltar a descer no dia seguinte com mais comida.
Quando se foi embora, Augusto libertou as mãos das algemas e desatou os pés. Depois, baixou a cabeceira do colchão onde estava deitado e, com o canivete (pois os bandidos não se tinham dado ao trabalho de o revistar), começou a arrancar uma das pranchas do tabique, o mais perto possível do fundo do catre. Escolheu este ponto para poder ocultar a tarefa iniciada, se acaso fosse surpreendido subitamente, deixando muito simplesmente cair o colchão no lugar habitual. Mas ninguém o interrompeu durante todo o dia e, à noite a prancha estava cortada. É preciso dizer-se que nenhum dos homens da tripulação se servia do castelo da proa como dormitório pois, desde o motim, tinham-se instalado no camarote da ré, bebendo e comendo, à custa das provisões do capitão Barnard, e prestando ao barco os mínimos cuidados indispensáveis para ele poder navegar. Esta série de factores acabou por ser vantajosa para Augusto e para mim, pois, se assim não fosse, teria sido impossível vir ao meu encontro. Assim, pôde prosseguir o seu projecto com confiança.
Amanhecia já e ele ainda não terminara a segunda parte do trabalho, que consistia em abrir um buraco a cerca de um pé acima do primeiro, deixando uma abertura suficientemente larga para poder passar com facilidade para os bailéus do porão. Uma vez aí chegado, alcançou sem grande dificuldade a escotilha principal inferior, embora para isso tivesse de trepar por cima das pilhas de barricas de óleo, amontoadas quase até ao tecto, mal deixando passagem livre para o corpo. Ao chegar à escotilha, reparou que o Tigre o tinha seguido, esgueirando-se por entre duas filas de barricas. Mas já se fazia tarde para poder chegar até mim antes de ser dia claro, pois a dificuldade maior consistia agora em passar através da carga do segundo porão.
Por este motivo resolveu subir e esperar até ao anoitecer, para então recomeçar. Com este propósito, começou a levantar a escotilha: era tempo que poupava para quando voltasse. Mas, mal tinha acabado de a abrir, logo o Tigre saltou pela abertura, farejou durante alguns instantes com impaciência e, gemendo, começou a arranhar a abertura do alçapão, como se a quisesse arrancar. O seu comportamento não oferecia dúvidas quanto ao instinto que tinha da minha presença no porão e, Augusto, pensou que o animal poderia vir ter comigo se o deixasse descer. Lembrou-se então do expediente do bilhete pois, nas actuais circunstâncias, era mais do que desejável que eu não tentasse nada para sair do esconderijo, não tendo, além disso, a certeza de poder ir ter comigo na manhã seguinte, como tencionava fazer. Os acontecimentos posteriores demonstraram bem o acerto desta feliz ideia que então lhe ocorreu, pois, se não tivesse recebido o bilhete, sem sombra de dúvida que teria arquitectado qualquer plano desesperado para chamar a atenção da equipagem e, neste caso, teríamos, com toda a certeza, sido chacinados.
Resolvido a escrever, a dificuldade estava agora em encontrar meios para executar a tarefa. Um velho palito dos dentes converteu-se rapidamente em pena, e isto sem luz, quase ao acaso, pois a entrecoberta estava escura como breu. A folha posterior de uma carta forneceu-lhe o papel necessário - era de uma cópia de um primeiro esboço, da carta do Sr. Ross, falsificada por Augusto que, não lhe parecendo bem imitada a letra, acabou por escrever outra carta e, por feliz acaso, guardara a primeira no bolso do casaco, onde acabara, muito a propósito, por reencontrá-la. Só faltava a tinta, e o seu substituto acabou por ser encontrado fazendo uma leve incisão na cabeça de um dedo, mesmo por baixo da unha, de onde saiu uma mais que suficiente quantidade de sangue, como ocorre com todas as feridas feitas neste ponto. Escreveu então o bilhete o mais legivelmente possível, dadas as circunstâncias e a escuridão reinante. Nele me explicava em poucas linhas que tinha estalado um motim a bordo, que o capitão Barnard fora abandonado ao largo, que podia contar com auxílio imediato, pelo menos quanto a provisões, mas que não me devia arriscar a dar sinais de vida. A carta concluía com as palavras: Rabisco isto com sangue; continue escondido a sua vida depende disso.
Atada ao cão a tira de papel, Augusto largou-o através da escotilha e regressou pelo mesmo caminho ao castelo da proa, onde não encontrou qualquer indício de que alguém lá tivesse estado durante a sua ausência. Para ocultar o espaço aberto na madeira cravou o canivete por cima do buraco, de onde suspendeu uma blusa de marinheiro que encontrou no catre. Depois, voltou a pôr as algemas nas mãos e a corda em redor dos tornozelos.
Tinha acabado de tomar estas precauções, quando apareceu Dirk Peters, muito bêbedo mas com óptima disposição, que vinha trazer ao meu amigo a ração do dia. Consistia numa dúzia de grandes batatas irlandesas assadas e de um cântaro de água. Sentou-se um bocado numa mala junto ao catre, falando, à vontade e sem rodeios, do imediato, e do que se passava a bordo. O seu comportamento era tão estranho e tão grotesco que Augusto, a certa altura, ficou extremamente alarmado com a sua conduta. Por fim lá acabou por regressar à coberta, não sem antes murmurar qualquer coisa que Augusto entendeu como uma promessa de lhe trazer no dia seguinte um bom jantar.
Durante o dia apareceram dois homens da tripulação - dois arpoadores - acompanhados pelo cozinheiro; os três quase a caírem de bêbedos. Como Peters, não se inibiram de falar dos seus projectos. Segundo parecia, estavam muito divididos entre si no que se referia ao destino da viagem, pois apenas estavam de acordo sobre o projectado ataque ao navio que vinha das ilhas de Cabo Verde, e que esperavam encontrar de um momento para o outro. Tanto quanto pôde avaliar, o motim não estalou apenas pelo desejo do saque: uma desavença particular entre o imediato e o capitão Barnard tinha sido a causa determinante e principal. Mas agora, segundo lhe parecia, havia duas facções a bordo, bastante divididas: uma, chefiada pelo imediato; outra, conduzida pelo cozinheiro. A primeira queria apoderar-se do primeiro navio razoável com que se cruzassem e equipá-lo numa das Antilhas para se dedicarem à pirataria. A segunda facção, que era a mais forte e entre cujos partidários se encontrava Dirk Peters, pretendia seguir a primitiva rota em direcção ao Oceano Pacífico do Sul, onde se dedicariam à pesca da baleia, ou ao que as circunstâncias aconselhassem.
As descrições de Peters, que visitara frequentes vezes aquelas paragens, exerciam grande peso sobre os amotinados, hesitantes como estavam entre as suas mal engendradas noções de lucro e de prazer. Peters falava-lhes de um mundo de novidades e diversões que poderiam encontrar nas inumeráveis ilhas do Pacífico; da perfeita segurança e inteira liberdade que lá usufruiriam e, para além das delícias do "lima, dos abundantes recursos para uma vida regalada, e da estonteante beleza das mulheres. Embora nada estivesse ainda decidido, as cenas que o contramestre mestiço pintava, ficavam indelevelmente marcadas nas ardentes imaginações dos marinheiros, e era muito provável que o seu plano fosse levado avante.
Os três homens retiraram-se ao fim de uma hora e, durante o resto do dia, ninguém voltou a descer ao castelo da proa. Augusto nada fez antes de começar a anoitecer, altura em que se desembaraçou dos ferros e das cordas, e se preparou para nova tentativa. Encontrou uma garrafa num dos catres e encheu-a com água do cântaro deixado por Peters; em seguida, meteu nos bolsos as batatas e, cheio de sorte, encontrou também uma lanterna com um coto de vela que poderia acender quando necessitasse pois tinha uma caixa de fósforos.
Ao cair da noite, deslizou pelo buraco do tabique, não sem antes, precavidamente, ter composto as mantas de forma a simular um homem deitado. Depois de ter passado, suspendeu de novo a blusa no canivete a fim de esconder a abertura, manobra que executou com facilidade, reajustando depois o pedaço de madeira. Estava agora nos bailéus do porão e continuou o caminho, como já fizera, através do curto espaço deixado pelas barricas de óleo, até à escotilha principal. Uma vez aí, acendeu o coto de vela e desceu às apalpadelas e com grande dificuldade, através da carga compacta do porão. Após alguns segundos, ficou alarmado com a atmosfera pesada e com o seu intolerável cheiro fétido. Não lhe parecia possível que eu pudesse ter resistido a um encarceramento tão demorado, obrigado a respirar aquele ar abafadiço. Chamou-me diversas vezes pelo nome mas, como não respondia, as apreensões que manifestava pareciam confirmar-se. O brigue balanceava furiosamente e, por esse motivo, havia um tal estrépido, que era inútil tentar ouvir um ruído tão débil como o da minha respiração ou mesmo do meu ressonar. Abriu a lanterna e manteve-a levantada o mais alto possível, cada vez que encontrava espaço suficiente, no intuito de me enviar um raio de luz que me fizesse compreender, se acaso ainda estivesse vivo, que se aproximava com socorro. Mas, como não lhe dava qualquer sinal, a hipótese da minha morte era quase uma certeza. Apesar de tudo, resolveu tentar abrir caminho até à minha caixa para, pelo menos, comprovar as suas terríveis suspeitas. Avançou durante algum tempo, com profunda ansiedade, até que encontrou o caminho completamente obstruído, sem qualquer possibilidade de avançar mais um passo. Acabrunhado pelo desespero, deixou-se cair sobre uma amálgama confusa de objectos e desatou a chorar como uma criança. Foi nesse instante que ouviu o chinfrim da garrafa que eu partira. Mil vezes ditoso, verdade seja dita, foi esse incidente, pois, por mais trivial que pareça, dele dependeu o meu destino. Mas muitos anos decorreram antes de eu saber como as coisas se passaram. A vergonha, muito natural, e os remorsos da sua fraqueza e indecisão, impediram que Augusto me dissesse logo o que, com maior e franca amizade, lhe permitiu mais tarde revelar-me. Estando o caminho, através do porão, obstruído por uma série de obstáculos que não podia transpor, tinha decidido renunciar ao empreendimento e regressar imediatamente ao castelo da proa. Antes de ser condenado por esta atitude, devem ser tomadas em consideração as circunstâncias acabrunhantes que o rodeavam. A noite avançava rapidamente e a sua ausência podia, a todo o momento, ser descoberta, o que, indubitavelmente, aconteceria, se não estivesse no catre antes do amanhecer. A vela estava quase a finar-se e ser-lhe-ia dificílimo, em plena escuridão, voltar a encontrar o caminho para a escotilha. Deve também ser lembrado que tinha todos os motivos e mais um para me julgar morto, e nesse caso eu nada lucraria com a sua chegada à caixa, quanto a ele, teria de afrontar, em contrapartida, toda uma série de perigos sem qualquer utilidade. Tinha-me chamado por diversas vezes e não obtivera qualquer resposta. Há onze dias e onze noites que a minha única água era a do cântaro que me deixara, provisão que, com toda a certeza, não poupara no início da reclusão, altura em que tinha razões para confiar num regular fornecimento. Por outro lado, a atmosfera do porão devia parecer-lhe, a ele que saíra do ar relativamente puro do castelo da proa, envenenada, e muitíssimo mais intolerável do que me parecera quando a princípio me instalei na caixa, pois as escotilhas estavam abertas há vários meses. Acrescente-se a estas considerações as horríveis e sanguinolentas cenas de que o meu amigo fora testemunha há bem pouco tempo; a prisão, as privações e o espectro da morte, sempre diante dos seus olhos; uma existência precária, devida a uma espécie de pacto, frágil e ambíguo, circunstâncias estas, capazes de roubar a força ao mais valente, e o leitor poderá ver sob outro prisma, como eu próprio o fiz, a sua aparente falta de amizade e de companheirismo, com um sentimento mais de pena do que de indignação.
Augusto ouviu o estilhaçar da garrafa, mas não | estava certo que o ruído proviesse do porão. Mas esta dúvida foi o suficiente para fazê-lo continuar. Trepou pela carga quase até ao tecto e, aproveitando uma pausa no balancear furioso do navio, chamou-me em altos berros, sem se preocupar, um instante que fosse, com o perigo de ser ouvido pela tripulação. Recordar-se-á que naquela ocasião ouvi a sua voz, mas estava de tal maneira perturbado que não consegui responder-lhe. Ficou então convencido que os seus terrores eram mais que justificados, e resolveu descer com a intenção de regressar sem demora ao castelo da proa. Na precipitação, deitou abaixo algumas caixas, cujo ruído, como se recordará, chegou até mim. Fizera já um considerável caminho de regresso, quando a queda da minha faca o fez de novo hesitar. Regressou imediatamente e, trepando uma segunda vez pela carga e aproveitando nova acalmia, gritou mais uma vez por mim. DestaI vez conseguira recuperar a voz e respondi-lhe. Cheio de alegria ao ver que ainda estava vivo, resolveu enfrentar todas as dificuldades e todos os perigos para chegar até mim. Libertando-se, tão depressa quanto possível, do terrível labirinto em que estava metido, descobriu, por fim, o caminho mais largo que dava melhor saída e, após uma série de esforços, chegou à caixa num estado de completo esgotamento.
UM RAIO DE ESPERANÇA
Enquanto permanecemos junto da caixa, Augusto apenas me comunicou os pontos principais desta narrativa; os pormenores só mais tarde os soube. Como ele temia que tivessem dado pela sua falta e eu ardia em desejos por deixar aquela infame prisão, resolvemos dirigir-nos imediatamente para o buraco do alçapão, junto ao qual eu devia ficar, enquanto ele iria ver o que se passava. Não podíamos suportar a ideia de deixarmos o Tigre na caixa. Mas, por outro lado - e aqui é que estava o problema -, que fazer? O animal parecia estar agora sossegado pois, encostando o ouvido à caixa, nem sequer distinguíamos o ruído da sua respiração. Convencido de que estava morto, decidi-me a abrir a porta. Encontrámo-lo estendido ao comprido, aparentemente num estado de entorpecimento, mas ainda vivo. Não havia tempo a perder mas não me atrevia a abandonar um animal que por duas vezes me salvara a vida, sem fazer sequer um esforço para salvar a sua. Assim, penosa e fatigadamente, arrastámo-lo connosco. Augusto via-se muitas vezes obrigado a trepar, com o cão ao colo, por cima dos obstáculos que obstruíam o caminho - tarefa que requeria uma força e uma habilidade que eu não podia ter, devido ao meu estado de debilidade e esgotamento. Conseguimos por fim chegar ao buraco, através do qual passou Augusto e depois, empurrado, o Tigre. Tudo corria pelo melhor, estávamos sãos e salvos, e demos graças a Deus por nos ter livrado de tantos perigos iminentes. Foi decidido que, de momento, eu ficasse perto da abertura, através da qual o meu companheiro facilmente me poderia passar uma parte da sua ração diária, e onde desfrutaria das vantagens de respirar uma atmosfera mais pura, ou melhor: relativamente mais pura.
Para mais fácil compreensão dalguns pontos deste relato, no qual tanto falei da arrumação da carga do brigue, pontos esses que podem parecer intrigantes a alguns dos leitores que já tenham visto uma tarefa de estiva normal e bem feita, devo dizer que o modo como essa importantíssima tarefa fora feita a bordo do Grampus, era um vergonhoso exemplo da negligência do capitão Barnard, que deixava muito a desejar em cuidado e em experiência, qualidades indispensáveis para a natureza arriscada do serviço a seu cargo. Para que a estiva seja bem feita é necessário haver um cuidado extremo e, pelo que sei, os acidentes de piores consequências são, muitas vezes, resultado da incúria ou da ignorância na realização desta tarefa. As embarcações costeiras, na normal confusão e movimento da carga e descarga das mercadorias, são as mais expostas a contratempos pela falta de cuidado na estiva. O mais importante, é não deixar ao lastro ou à carga a possibilidade de se moverem, por mais violentos que sejam os balanços do navio. Com esse objectivo, deve prestar-se a máxima atenção, não apenas à própria carga, mas também à sua natureza e, além disso, deve ver-se se é um carga completa ou parcial.
Na maioria dos casos, a arrumação faz-se com o auxílio de um macaco manual. Assim, se é uma carga de tabaco ou de farinha, o conjunto é de tal maneira comprimido no porão do navio, que os barris ou os fardos, quando são descarregados, estão tão achatados que demoram algum tempo a retomar a sua forma primitiva. Este método é usado a fim de se obter mais espaço no porão, porque com uma carga completa de mercadorias, como o tabaco ou a farinha, não pode haver folgas, e não há qualquer perigo das caixas oscilarem ou, pelo menos, não há inconvenientes graves. Houve, na verdade, casos em que este processo de aperto pelo macaco tiveram tristes consequências, derivadas de causas completamente alheias ao perigo das deslocações da carga. Sabe-se, por exemplo, que um carregamento de algodão, apertado e prensado, pode, em determinadas alturas, pela expansão do seu volume, abrir fendas num navio e originar uma entrada de água. O mesmo poderia acontecer com o tabaco quando atingisse a fermentação normal, se não fossem os interstícios que se formam normalmente na parte arredondada dos fardos.
O risco do movimento das cargas é particularmente perigoso quando se embarca um carregamento parcial de qualquer mercadoria e, num caso destes, todo o cuidado é pouco para precaver um acidente. Só quem suportou uma violenta rabanada de vento ou o voltear de um navio, quando uma súbita acalmia sucede à tempestade, pode fazer ideia da tremenda violência dos embates da água. É, principalmente nesses transes, que a necessidade de uma cuidadosa arrumação de um carregamento parcial se torna mais evidente. Quando um barco está à capa (sobretudo com uma vela de proa pequena), se os costados não foram bem construídos, é atirado com frequência de lado. Ora, isto pode acontecer de quinze em quinze, ou de vinte em vinte minutos, sem graves consequências, desde que a estiva esteja bem feita. Mas, se foi mal feita, toda a carga desaba para o lado do navio apoiado na água, ao primeiro dos embates e, não podendo reencontrar o equilíbrio, como normalmente aconteceria, acabará por meter água dentro de segundos, e em breve naufragará! Sem exagero, pode dizer-se que, pelo menos, metade dos naufrágios que ocorrem nos temporais, são devidos a um deslocamento da carga ou do lastro.
Quando se embarca um carregamento parcial de qualquer espécie, deve colocar-se o mais compacta-mente possível, e cobrir-se depois com uma série de pranchas a toda a largura do navio. Em cima dessas pranchas devem colocar-se pesadas escoras até ao tecto, de modo a não permitir qualquer movimento. Quando os carregamentos são de cereais ou de mercadorias semelhantes, é ainda necessário tomar outras precauções. Um porão completamente cheio de grão ao sair do porto, quando chega ao destino não tem mais de três quartos do volume inicial - embora tenha sido medido alqueire a alqueire pelo consignatário, ultrapassando mesmo o volume indicado - , devido à dilatação do grão. Isto acontece com a compressão durante a viagem, compressão essa que é maior ou menor conforme o estado do tempo em que o navio singrou. Numa viagem longa, se o carregamento não tiver sido feito em condições, há o perigo de se deslocar, com as péssimas consequências daí resultantes, por mais bem preso que esteja com pranchas ou escoras. Para impedir que isso aconteça é necessário, antes do barco sair a barra, usar todos os meios para assentar a carga o melhor possível. Assim, há vários processos, entre os quais o de meter cunhas entre o grão. Mas, apesar destes cuidados e de todos os sacrifícios feitos para prender bem as pranchas, nenhum marinheiro digno deste nome ficará tranquilo durante uma ventania mais forte, tendo a bordo um carregamento de cereais em grão, ou, pior ainda, um carregamento parcial. Contudo, centenas de barcos de cabotagem das nossas costas, e muitos mais nos diferentes portos da Europa, navegam diariamente com carregamentos parciais, mesmo dos mais perigosos, sem tomarem qualquer espécie de precauções. É um autêntico milagre que se não dêem mais acidentes. Tive conhecimento de um lamentável exemplo deste desleixo, passado com o capitão Joêl Rice, comandante da escuna Fire-Fly, em rota de Richmond (Virgínia) para a Madeira com um carregamento de trigo, no ano de 1825. O capitão efectuara numerosas viagens sem graves contratempos, embora fosse seu costume não prestar grande atenção à operação da estiva, para além do vulgar cuidado em amarrar a carga. Nunca tinha navegado com um carregamento de cereais e, nessa ocasião, o trigo fora carregado a bordo a granel, não ultrapassando meio-porão. Durante a primeira parte da viagem, teve apenas que enfrentar ligeiras brisas mas. quando se achava a um dia da Madeira, levantou-se uma forte ventania de nor-nordeste que o obrigou a pôr o navio à capa. Conduziu a escuna contra o vento com um simples traquete com dois rizes e o navio aguentou-se valentemente sem meter água pela borda. Durante a noite a tempestade amainou um pouco e a escuna começou a balancear menos, continuando a defender-se bem até que, de súbito, uma onda violenta a atirou para estibordo. Ouviu-se então o ruído da carga de trigo a deslocar-se em bloco, e a força da guinada foi tão grande que fez rebentar a escotilha principal. O navio afundou-se como um prego. Isto ocorreu à vista de uma pequena chalupa da Madeira que recolheu um dos homens da tripulação (o único a ser salvo) e que parecia brincar com a tempestade tão à vontade como o poderia fazer o barco melhor aparelhado.
A arrumação a bordo do Grampus tinha sido feita da pior maneira, se acaso se pode falar de arrumação a propósito de um confuso amontoado de barricas de óleo e de material de bordo, cuja colocação no porão já descrevi. Nos bailéus havia, como já disse, espaço suficiente para o meu corpo, entre a ponte superior e as barricas de óleo; à volta da escotilha principal ficara outro espaço vazio, assim como outros espaços consideráveis existiam por entre a carga. Perto do buraco que Augusto abrira no tabique do castelo da proa, havia um lugar que dava para uma barrica de óleo e era nesse sítio que então me encontrava, comodamente instalado.
Era já dia claro, enquanto o meu companheiro regressava ao catre, reajustava as algemas e voltava a pôr a corda. Tínhamos escapado de boa pois, mal ele terminara as suas tarefas, desceu o imediato com Dirk Peters e o cozinheiro. Durante alguns minutos falaram do navio que vinha de Cabo Verde e pareciam extremamente impacientes por vê-lo surgir. Depois, o cozinheiro aproximou-se da cama de Augusto e sentou-se à cabeceira. Do meu esconderijo podia ouvir e ver tudo o que se passava pois a prancha retirada não voltara a ser colocada no lugar, e temia a cada momento que o negro fosse de encontro ao camisolão pendurado para ocultar a abertura, o que redundaria na descoberta do caso e, sem sombra de dúvida, na nossa morte. Mas a sorte não nos abandonou e, embora tenha tocado muitas vezes no pano devido aos balanços do barco, nunca se apoiou o bastante para descobrir o buraco que havia atrás. A parte inferior do camisolão fora cuidadosamente presa ao tabique de modo a impedir que oscilasse, revelando assim a existência da abertura. Durante todo este tempo, o Tigre mantinha-se deitado ao pé da cama e parecia ter em parte recuperado as suas faculdades, pois via-o abrir de vez em quando os olhos e respirar profundamente.
Passado algum tempo, o imediato e o cozinheiro voltaram a subir deixando para trás Dirk Peters que logo regressou, sentando-se precisamente no lugar onde estava o imediato. Começou a falar com Augusto amigavelmente e apercebemo-nos que a sua aparente bebedeira enquanto os outros dois estavam presentes, tinha muito de fingida. Com grande lucidez respondeu a diversas perguntas do meu companheiro. Disse-lhe que não duvidava que o seu pai fosse recolhido, pois havia pelo menos cinco barcos no horizonte, ao pôr-do-sol do dia em que o tinham deixado à deriva, e falou-lhe com palavras de ânimo e consolo, que me surpreenderam tanto como me agradaram. Para ser franco, começava a albergar certas esperanças de que, por intermédio de Peters, pudéssemos reapossar-nos do brigue e, logo que me foi possível, falei disto a Augusto. Também ele admitia esta hipótese mas insistia na necessidade de procedermos com a máxima prudência, pois a conduta do mestiço parecia-lhe inspirada pelos mais arbitrários caprichos, e era realmente muito difícil saber se estava em seu juízo perfeito. Peters voltou a subir à ponte cerca de uma hora depois, regressando por volta do meio-dia, com uma boa porção de carne salgada e de pudim, a qual alegremente compartilhei, logo que ficámos sozinhos, sem me dar ao trabalho de atravessar o buraco. Durante o resto do dia ninguém voltou a descer ao castelo da proa e à noite enfiei-me no catre de Augusto, onde dormi magnificamente quase até de manhã. Tendo ouvido movimentos na coberta, acordou-me bruscamente e regressei ao esconderijo o mais depressa possível. Quando amanheceu, reparámos que o Tigre tinha recobrado completamente as suas forças, e não apresentava qualquer sinal de hidrofobia pois bebeu com grande avidez a água que Augusto lhe deu. Durante o dia recuperou o primitivo vigor e apetite. A sua estranha loucura devia ter sido provocada pela natureza venenosa da atmosfera do porão, e nada tinha a ver com a raiva. Só tinha que me felicitar com a obstinada insistência em trazê-lo comigo da caixa. Estávamos então a 30 de Junho e havia treze dias que o Grampus partira de Nantucket.
A 2 de Julho desceu o imediato, bêbedo como de costume, mas muito bem disposto. Aproximou-se de Augusto e, dando-lhe uma palmada nas costas, perguntou-lhe se daí em diante se portaria bem, pois estava a pensar em soltá-lo, e se prometia não voltar mais ao camarote. É evidente que o meu amigo lhe respondeu afirmativamente, sendo então posto em liberdade pelo tratante do imediato, que antes lhe deu a beber uma golada de rum, de um frasco .que tirou do bolso do casaco. Subiram depois à coberta e não voltei a ver Augusto durante cerca de três horas, ao fim das quais desceu para me trazer boas notícias: tinha obtido autorização para, conforme lhe apetecesse, correr à vontade todo o brigue a partir do mastro principal, e tinham-lhe dado ordem para se deitar, como de costume, no castelo da proa. Trouxe-me também um bom jantar e uma abundante provisão de água. O brigue continuava a navegar ao encontro do navio que saíra de Cabo Verde, e havia agora uma vela à vista que se julgava ser do barco procurado. Como os acontecimentos dos oito dias seguintes foram de escassa importância e sem qualquer ligação directa com os principais incidentes da minha narrativa, vou transcrevê-los sob a forma de diário, pois, de qualquer forma, não quero omiti-los por completo.
3 de Julho. - Augusto deu-me três mantas, com as quais arranjei uma razoável cama no esconderijo. Ninguém desceu durante o dia, excepto o meu companheiro. O Tigre instalou-se no catre, mesmo ao lado da abertura, e dormiu que nem uma pedra, como se ainda não estivesse restabelecido dos achaques da doença. Ao anoitecer, uma brisa repentina surpreendeu o brigue, antes de haver tempo para baixar as velas, e quase o fez naufragar. O vento acalmou-se instantaneamente, e a única avaria que tivemos foi o velacho que se rasgou ao meio.
Dirk Peters tratou todo o dia Augusto com extrema afabilidade e teve com ele uma extensa conversa relativa ao Oceano Pacifico e às ilhas que naquelas paragens tinha visitado. Perguntou-lhe se não lhe agradaria empreender, com a tripulação revoltada, uma viagem de recreio e de exploração àquelas regiões, embora infelizmente, segundo lhe disse, os marinheiros estivessem cada vez mais inclinados para as ideias do imediato. Augusto julgou oportuno responder que teria muito gosto em tomar parte na expedição, pois nada tinha a perder e tudo era preferível à vida de pirata.
4 de Julho. - O navio à vista era afinal um pequen brigue vindo de Liverpool e deixaram-no prosseguir rota sem o inquietarem. Augusto passou a maior part do tempo na coberta, com o intuito de colher todas as informações possíveis sobre as intenções dos amotinados. Havia entre eles violentas e frequentes disputas e, no meio de uma dessas altercações, um tal Jim Bonner, arpoador, foi atirado pela borda fora. O partido do imediato ganhava terreno. Este Jim Bonner pertencia ao grupo do cozinheiro, do qual Peters era partidário.
5 de Julho. - Quase ao amanhecer levantou-se de oeste uma forte rajada que, por volta do meio-dia, se converteu em tempestade, havendo necessidade de reduzir todo o pano à mezena e ao traquete. Ao arriar o velacho, Simms, um dos poucos marinheiros, também pertencente ao grupo do cozinheiro, caiu à água; como estava muito bêbedo afogou-se sem que fizessem qualquer esforço para o salvar. O número total de homens a bordo ficou então reduzido a treze: Dirk Peters, Seymour (o cozinheiro negro), Jones, Greely, Hartman Rogers e Willíam Alen, todos do partido do cozinheiro; o imediato, de quem nunca soube o nome, Absalon Hicks, Wilson, John Hunt e Richard Parker, estes representando o bando do imediato; e, por fim, Augusto e eu.
6 de Julho. - A tempestade manteve-se todo o dia, entremeada com fortes rabanadas e chuva. O brigue embarcou bastante água através das juntas e uma das bombas parou de funcionar. Augusto deu à manivela com os outros, quando lhe calhava a vez. Mesmo ao cair da noite, passou muito perto de nós um grande navio, que só notámos quando já estava ao alcance da voz, supondo-se que era aquele que há tanto tempo aguardavam. O imediato chamou-o à fala, mas a resposta perdeu-se no bramido da tempestade. As onze horas apanhámos de lado com uma vaga enorme que arrancou boa parte da amurada de bombordo e nos causou outras pequenas avarias. Ao amanhecer o tempo acalmou e, quando o sol se ergueu, o vento era quase nulo.
7 de Julho. - Durante todo o dia tivemos de suportar uma ondulação larga e forte e o brigue, pouco carregado, balanceou terrivelmente, chegando a soltar-se diversas partes da carga do porão, como pude claramente ouvir do meu esconderijo. Estive muito mal devido ao enjoo. Neste dia, Peters teve uma grande conversa com Augusto e disse-lhe que dois homens do seu grupo, Greely e Allen, se tinham passado para o lado do imediato, decididos a tornarem-se piratas. Fez a Augusto várias perguntas, que este não compreendeu perfeitamente. Durante a noite deram conta que o navio metia muita água e que não havia possibilidades de a tirar pois a fadiga tornara-se excessiva e a água entrava Pelas juntas. Ensebaram uma vela que foi metida por debaixo da proa, o que nos trouxe algum auxílio e a possibilidade de começarem a dominar as entradas da água.
8 de Julho. - Ao nascer-do-sol, levantou-se uma brisa de leste e o imediato mandou apontar para sudoeste, a fim de alcançar algumas das Antilhas e pôr em prática o seu projecto de pirataria. Não surgiu qualquer oposição da parte de Peters, nem do cozinheiro, pelo menos pelo que Augusto soube. A ideia de se apoderarem do navio vindo de Cabo Verde foi completamente abandonada. A entrada de água foi dominada com facilidade graças a uma só bomba funcionando, hora a hora, durante três quartos de hora. Retiraram a vela que estava por debaixo da proa. Durante o dia chamaram à fala duas pequenas escunas.
9 de Julho. - Bom tempo. Todos os homens estão ocupados na reparação da amurada. Peters voltou a ter uma extensa conversa com Augusto e explicou-se um pouco melhor do que antes. Disse que nada no mundo o forçaria a seguir os projectos do imediato e chegou mesmo a deixar entrever a intenção de lhe arrancar o comando do brigue. Perguntou ao meu amigo se nesse caso poderia contar com a sua ajuda, ao que Augusto respondeu Sim, sem qualquer hesitação. Peters disse-lhe então que sondaria os homens do seu grupo acerca disso e abandonou-o. Durante o resto do dia, Augusto não teve oportunidade de lhe falar em particular.
PLANO DE LIBERTAÇÃO
10 de Julho. - Chamaram à fala um brigue que vinha do Rio de Janeiro com destino a Norfollk. Tempo brumoso com um ventinho de leste. Neste dia morreu Hartman Rogers; desde o dia 8 que estava com dores violentas depois de ter bebido um copo de grogue. Pertencia ao grupo do cozinheiro, e era precisamente o que mais confiança inspirava a Peters. Segundo este disse a Augusto, desconfiava que o imediato o envenenara e, se não andasse com cuidado, talvez lhe viesse a acontecer o mesmo. Assim, apenas restavam do seu partido, ele próprio, Jones e o cozinheiro, enquanto que do outro lado eram cinco. Tinha falado a Jones do projecto de se apoderar do comando, mas, como a ideia fora acolhida com frieza, evitara insistir no assunto e dizer uma palavra que fosse ao cozinheiro. A sua prudência fora mais do que acertada porque à tarde o cozinheiro exprimiu a intenção de se passar para o partido do imediato, o que acabou por fazer. Entretanto Jones procurava todas as ocasiões para discutir com Peters, dizendo-lhe que iria informar o imediato do plano que ele urdira. Não havia tempo a perder e Peters resolveu arriscar-se a tomar conta do navio, custasse o que custasse, desde que Augusto quisesse ajudá-lo. O meu amigo assegurou-lhe imediatamente a vontade de entrar em qualquer plano com o fim previsto e, julgando favorável a ocasião, revelou-lhe a minha presença a bordo.
O mestiço, se ficou admirado, ficou ao mesmo tempo satisfeito, porque não tinha a mínima confiança em Jones, que já considerava vendido ao partido do imediato. Desceram imediatamente, Augusto chamou-me, e em breve Peters e eu travávamos conhecimento. Ficou assente que tentaríamos retomar o navio na primeira ocasião favorável, e que afastaríamos de vez Jones dos nossos planos. Em caso de êxito levaríamos o brigue até ao primeiro porto que aparecesse onde o entregaríamos às autoridades. Peters, devido à traição dos seus partidários, via-se obrigado a renunciar ao Pacífico - expedição que não podia fazer sem tripulação- e contava ficar absolvido por demência, pois jurou-nos solenemente que fora a loucura que o levara a tomar parte no motim; se acaso o condenassem, contava comigo e com Augusto, a fim de obter perdão. Entretanto, as nossas deliberações eram interrompidas pelo grito: Todos às velas!, Peters e Augusto correram para a coberta.
Como de costume, quase todos os homens estavam bêbedos e, antes das velas estarem devidamente recolhidas, uma forte rabanada atirou o brigue de lado. O barco conseguiu manter-se direito mas tinha metido muita água. Mal estava refeito, quando outra rajada o colheu, e depois ainda outra, sem contudo causarem danos. Tudo indicava que íamos ter tempestade grossa e, de facto, não se fez esperar, soprando o vento com fúria de norte e de oeste. Apertou-se tudo o melhor possível e pusemo-nos, como de costume, à capa, só com traquetes de rizes curtos. Como o vento refrescou ainda mais e o mar estava excepcionalmente encrespado, Peters regressou com Augusto ao castelo da proa e retomámos as nossas deliberações.
Estávamos os três de acordo que não podia oferecer-se-nos ocasião mais favorável do que esta para pôr em prática o nosso plano, visto que ninguém podia contar com semelhante tentativa naquelas circunstâncias. Como o brigue estava à capa, quase sem velas, não havia necessidade de qualquer manobra até regressar o bom tempo e, se fôssemos bem sucedidos, poderíamos libertar um, ou talvez mesmo dois homens, para nos ajudarem a levar o navio até ao porto. A principal dificuldade estava na desigualdade de forças: nós éramos apenas três, e no camarote havia nove homens. Para além disto, todas as armas de bordo estavam em poder deles, excepto um par de carabinas, que Peters trazia escondidas, e o facalhão de marinheiro que usava sempre à cintura. Aliás, certos indícios, como, por exemplo, não se encontrar qualquer machado nem qualquer bimbarra nos sítios habituais, levava-nos a temer que o imediato suspeitasse pelo menos de Peters, apenas aguardando uma ocasião oportuna para se desembaraçar dele. Era evidente que o que estávamos a fazer tinha de ser feito quanto antes, mas as forças eram tão desiguais que todos os cuidados não seriam poucos.
Peters ofereceu-se para subir à coberta e meter conversa com o homem de vigia (Allen) até conseguir uma oportunidade para o atirar ao mar sem fazer grande barulho. Então, subiríamos nós que tentaríamos apoderar-nos de todas e quaisquer armas da coberta. Depois lançávamo-nos os três juntos para tomar a escada da proa, antes que pudessem opor qualquer resistência. Contrariei este plano porque não acreditava que o imediato, um tipo manhoso e esperto, excepto nos seus supersticiosos temores, fosse homem para se deixar surpreender com tanta facilidade. O simples facto de haver um homem de quarto na coberta, era prova bastante de que o imediato estava de olhos bem abertos, pois não é costume, excepto a bordo dos navios onde a disciplina é rigorosamente observada, pôr um homem de vigia na coberta quando a embarcação está à capa com vento forte.
Como a maioria dos leitores a quem me dirijo, certamente nunca navegou, creio ser conveniente explicar a situação exacta de um navio em semelhantes circunstâncias. Estar ao pairo e pôr-se de capa, são manobras às quais se recorre por diferentes motivos e que se efectuam de diversas maneiras. Com bom tempo está-se frequentemente ao pairo apenas para manter o navio aí parado, enquanto se aguarda a chegada de outra embarcação ou qualquer motivo semelhante. Se o barco tem todas as velas abertas, a manobra executa-se normalmente colocando uma parte do velame de tal maneira que a força que o vento exerce sobre essa parte seja contrariada pela força que faz sobre as partes opostas, ficando assim o navio parado. Mas, como falamos de um barco à capa durante uma tempestade, a manobra faz-se com o vento contrário e demasiado violento para que as velas o suportem sem risco de naufrágio, muitas vezes até com vento favorável, mas com mar demasiadamente encrespado para o barco poder cortar as ondas. Quando um navio corre a favor do vento com uma ondulação muito larga, sucedem muitas vezes graves danos em consequência das ondas que batem na ré e também, por vezes, das violentas guinadas da proa. Nestes casos, apenas se recorre à manobra quando é de absoluta necessidade. Se o barco mete água, deixa-se prosseguir a favor do vento, mesmo com o mar muito agitado, pois se estivesse à capa, correr-se-ia o perigo de abrirem as juntas, ao passo que prosseguindo com o vento de ré o desgaste é muito menor. Muitas vezes é também necessário prosseguir a favor do vento quando a tempestade é tão terrível que faria em pedaços a vela orientada contra o vento ou quando devido à deficiente construção ou qualquer outro motivo, não se pode efectuar a manobra desejada. Durante a tempestade há distintas maneiras de se pôr os navios à capa, conforme a sua peculiar construção. Alguns aguentam-se muito bem com um traquete que é, segundo creio, a vela que com mais frequência se emprega. Os grandes barcos de aparelhagem de cruzamento têm velas especiais que se chamam velas de estai. Mas, por vezes, servem-se apenas do cutelo, outras do cutelo e do traquete, ou de um traquete com dois rizes e ainda, frequentemente, das velas da ré. Pode suceder que os velachos dêem melhor resultado que qualquer outro tipo de vela. O Grampus punha-se normalmente à capa com um traquete de dois rizes.
Para se pôr à capa, coloca-se o navio de maneira que o vento encha completamente a vela quando esta está bordada, ou seja: quando atravesse o navio em diagonal. Feito isto, a proa fica inclinada alguns graus em relação à direcção do vento e recebe, naturalmente, , o embate das vagas do lado de onde sopra o vento. Em tais circunstâncias, um bom navio pode suportar uma grande tempestade sem meter uma gota de água, 'e sem que os marinheiros tenham necessidade de se ocupar dele. Geralmente prende-se o leme, mas é uma manobra inútil, pois o leme não tem acção sobre um navio à capa e apenas se prende por causa do barulho irritante que faz quando está solto. Realmente, seria preferível deixá-lo livre a prendê-lo rigidamente, como é costume fazer-se, pois o leme pode ser arrancado pelos fortes embates do mar se não lhe deixam folga suficiente. Enquanto a vela aguentar, um navio bem construído pode manter a sua posição e vencer todas as vagas, como se tivesse vida e razão. Contudo, se a violência do vento rasgasse a vela (infelicidade que normalmente apenas acontece com um verdadeiro furacão), haveria então um perigo iminente. Neste caso, o barco inclina-se pela força do vento e, apresentando o costado ao mar, fica completamente à sua mercê. O único recurso é colocar-se rapidamente a favor do vento e correr de vento em popa até poder ser colocada outra vela. Alguns navios põem-se à capa sem qualquer vela mas, para estes, as vagas violentas são muito mais perigosas.
Já é tempo de acabarmos com estas divagações. O imediato não tinha por hábito deixar na ponte um homem de quarto quando se punham à capa com mau tempo e, o facto de aí estar agora um, aliado ao desaparecimento dos machados e das bimbarras, demonstrava-nos com clareza que a tripulação estava demasiado alertada para se deixar surpreender da forma que Peters nos sugeria. Contudo, impunha-se tomar uma atitude o mais depressa possível pois era mais que evidente que existiam suspeitas contra Peters e que este seria sacrificado na primeira oportunidade que, tudo o indicava, se não surgisse, seria provocada logo que a tempestade amainasse.
Augusto sugeriu então que, se Peters retirasse, sob qualquer pretexto, o molho de correntes que estava em cima do alçapão da cabina, talvez conseguíssemos cair sobre eles de surpresa, indo pelo porão; mas, reflectindo melhor, vimos que o navio balanceava e tremia com demasiada violência para permitir tal empresa.
Por sorte, fui eu que me lembrei de agir sobre os supersticiosos terrores e o sentimento de culpa do imediato. Deve recordar-se que um dos homens da tripulação, Hartman Rogers, morrera de manhã, depois de haver passado dois dias atacado por convulsões, em consequência de ter bebido uma porção de água com álcool. Peters tinha-nos dito que suspeitava que o homem fora envenenado pelo imediato e tinha, para assim pensar, razões de peso que nunca conseguimos arrancar-lhe; aliás, esta recusa obstinada estava de acordo, sob todos os pontos de vista, com o seu estranho carácter. Mas, tivesse ou não razões mais válidas do que as nossas para suspeitar do imediato, o facto é que nos deixámos facilmente levar pelas suas suspeitas e resolvemos agir de acordo com elas.
Rogers tinha morrido cerca das onze da manhã, no meio de violentas convulsões e o corpo oferecia, pouco tempo depois da morte, um dos espectáculos mais repugnantes de que tenho memória. Tinha o estômago exageradamente inchado, como o de um afogado que permanecesse debaixo de água durante várias semanas. As mãos tinham passado pela mesma transformação e o rosto, enrugado, engelhado, branco como a cal, marcado em dois ou três pontos, por manchas como se fossem salpicos de lama de um vermelho ardente, semelhantes às provocadas pela erisipela. Uma dessas manchas estendia-se em diagonal através da cara, cobrindo totalmente um olho, como se fosse uma venda de veludo vermelho. Neste horrível estado, o corpo fora levado do camarote cerca do meio-dia a fim do lançarem borda fora, mas, quando o Imediato o viu pela primeira vez, assaltado talvez pelos remorsos do seu crime ou horrorizado por aquele agoniante espectáculo, ordenou aos homens que o cosessem à maca e lhe dessem a habitual sepultura dos marinheiros. Depois destas ordens, desceu novamente, como se quisesse evitar daí em diante o espectáculo da sua vítima. Enquanto se faziam os preparativos para cumprir as suas ordens, a tempestade aumentara de fúria e, de momento, a tarefa fora posta de parte. O cadáver, então abandonado, começou a flutuar nos embomais de bombordo, onde ainda se encontrava na ocasião a que me refiro, revoiteando açoitado pelos violentos balanços do brigue.
Tendo preparado o nosso plano, dispusemo-nos a executá-lo o mais depressa possível. Peters subiu à coberta e, como estava previsto, deparou imediatamente com Allen, postado no castelo de proa mais para espiar do que para qualquer outra coisa. Mas, a sorte daquele miserável foi decidida rápida e silenciosamente: Peters aproximou-se dele com um ar indiferente, como se fosse falar-lhe e, agarrando-o pela garganta, antes que ele pudesse soltar um grito, atirou-o por cima da amurada. Então chamou-nos e subimos. O nosso primeiro cuidado foi procurar por toda a parte quaisquer armas e, para isso, avançámos com toda a cautela, porque era impossível permanecer na coberta um só instante que fosse sem se estar solidamente agarrado a qualquer coisa, pois, a cada mergulho da proa, violentas vagas flagelavam o navio. Contudo, era também indispensável proceder com rapidez pois esperávamos a todo o momento ver subir o imediato para mandar bombear, porque era evidente que o brigue estava a encher-se de água. Depois de havermos esquadrinhado durante algum tempo, não conseguimos encontrar nada mais adequado do que as duas alavancas da bomba, pegando Augusto numa e eu noutra. Após as termos escondido, despojámos o cadáver da camisa e lançámo-lo borda fora. Peters e eu voltámos a descer, deixando Augusto de guarda na coberta, precisamente no lugar onde estava Allen, mas de costas voltadas para as escadas do beliche para que, se acaso subisse um dos homens do imediato, pensasse que era o marinheiro de quarto. Apenas desci, comecei a disfarçar-me de modo a imitar o cadáver de Rogers. A camisa que lhe tínhamos tirado iria ajudar-nos muito porque era de um modelo e características muito próprias, facilmente reconhecíveis. Tratava-se de uma espécie de blusa de tecido azul, atravessada por barras brancas, que o defunto punha por cima das outras roupas. Após tê-la vestido, arranjei o estômago postiço para imitar a horrível deformidade do cadável inchado. Com o auxílio de algumas mantas que meti debaixo da roupa, o efeito era perfeito. Dei às mãos um ar parecido com as do cadáver, utilizando um par de mitenes de lã branca que enchemos com toda a espécie de trapos que encontrámos. Peters pintou-me o rosto, esfregando-o primeiro com giz branco, e manchando-o depois com sangue que tirou de um corte que fez num dedo. A grande mancha vermelha através do olho não foi esquecida e, com toda a certeza devia ter um aspecto repugnante.
O ESPECTRO
Quando, por fim, me contemplei num caco de espelho que lá estava pendurado, à débil luz de uma espécie de lanterna de caça, o meu aspecto e a recordação da horrível realidade que imitava encheram-me de um vago sentimento de terror, de tal maneira que me assaltou um violento arrepio e foi com dificuldade que consegui juntar a necessária energia para continuar a desempenhar o meu papel. Mas era preciso agir com decisão e Peters e eu subimos à coberta.
Aí, por enquanto, tudo corria bem e caminhando junto à amurada do navio, esgueirámo-nos os três até à balaustrada da escada do camarote. Esta não estava totalmente fechada pois haviam sido colocadas buchas no primeiro degrau de modo a impedir o seu fecho e e também que a porta fosse bruscamente empurrada do exterior. Pudemos ver sem dificuldade o interior do quarto através das fendas produzidas pelos gonzos. Fora uma sorte não termos levado avante a ideia de os atacarmos de surpresa, pois era evidente que estavam de sobreaviso. Apenas um dos bandidos estava adormecido, deitado mesmo ao pé da escada, com uma espingarda ao lado. Os outros estavam sentados em cima dos colchões que tinham tirado dos catres e espalhado pelo chão. Falavam de assuntos sérios e embora tivessem estado na farra, como se depreendia pelos dois jarros vazios e por alguns copos de estanho espalhados a esmo, não estavam tão bêbedos como de costume. Todos eles tinham facas, ou outras pistolas, e muitas espingardas estavam amontoadas num catre ao alcance da mão.
Escutámos durante algum tempo a conversa, antes de decidirmos o que havíamos de fazer, pois nada tínhamos ainda resolvido a não ser, na altura do ataque, tentarmos paralisar a sua resistência pela aparição do espectro de Rogers. Discutiam os seus planos de pirataria e tudo quanto conseguimos entender foi que se propunham reunir à tripulação da escuna Hornet e, se fosse possível, apoderarem-se dela como primeiro passo para outra tentativa em maior escala, cujos pormenores nenhum de nós conseguiu perceber.
Um dos marinheiros referiu-se a Peters e o imediato respondeu-lhe em voz baixa sem que pudéssemos ouvi-lo; mas, pouco depois, acrescentou em voz alta “que não sabia por que razão Peters ia tantas vezes ao castelo da proa para estar com o miúdo do capitão, e que era preferível atirá-los borda fora, quanto mais cedo melhor”. Estas palavras não tiveram resposta, mas pudemos facilmente compreender que a insinuação fora bem recebida por todo o bando e particularmente por Jones. Neste momento eu estava excessivamente agitado, tanto mais que via que Augusto e Peters não sabiam que fazer. Contudo, resolvi vender cara a vida e não me deixar dominar por qualquer sentimento de temor.
O barulho terrível produzido pelo bramido do vento nas enxárcias e pelas ondas que varriam a coberta, impediam-nos de ouvir o que se dizia, excepto durante alguns momentos de calma. Num desses intervalos, ouvimos nitidamente o imediato dizer a um dos homens que “fosse à proa e ordenasse àqueles cães tinhosos que descessem ao camarote, porque ao menos ali podia tê-los à vista, e que não admitia segredos a bordo do brigue”. Felizmente para nós, o balancear era tão forte naquele momento que a ordem não pôde ser executada imediatamente. O cozinheiro levantou-se do colchão para nos vir buscar, quando uma guinada, tão terrível que pensei que iria arrancar a mastreação, lhe fez bater com a cabeça na porta de um dos beliches de bombordo com tanta força que rebentou com a testa, o que serviu para aumentar a confusão. Afortunadamente nenhum de nós fora arremessado ao chão, e tivemos tempo de fugir para o castelo da proa para improvisarmos um novo plano de acção, antes que aparecesse, ou melhor, antes que assomasse a cabeça fora da balaustrada, na medida em que não subira à coberta. Do sítio onde estava colocado, não podia notar a ausência de Alen e, julgando-o no seu posto, chamou-o em altos berros, repetindo-lhe as ordens do imediato. Peters respondeu, gritando-lhe no mesmo tom, e disfarçando a voz: “Sim! Sim!”, e o cozinheiro desceu imediatamente, sem ter suspeitado de que nem tudo corria bem a bordo.
Os meus companheiros dirigiram-se então audaciosamente para a ré e desceram ao camarote, fechando Peters a porta atrás de si como a tinha encontrado. O imediato recebeu-os com uma fingida cordialidade e disse a Augusto que, como se tinha portado correctamente nos últimos dias, podia instalar-se no beliche e considerar-se a partir dessa altura um marinheiro como os outros. Serviu-lhe depois um grande copo de rum, quase cheio, que o obrigou a beber. Eu via e ouvia tudo o que se passava porque tinha seguido os meus amigos até ao camarote, logo que a porta fora fechada, para me colocar no primitivo posto de observação. Tinha trazido as duas alavancas da bomba, tendo escondido uma delas perto da escada para a ter à mão em caso de necessidade.
Apliquei-me então o melhor possível a nada perder do que lá se passava, e reuni toda a força e coragem para aparecer junto dos amotinados logo que Peters me desse o sinal combinado. Nesse momento ele esforçava-se por fazer recair a conversa para os sangrentos episódios da revolta e, gradualmente, obrigou os marinheiros a falar das mil superstições que geralmente correm entre as gentes do mar. Não conseguia perceber tudo o que se dizia, mas podia facilmente ver o efeito da conversa na fisionomia dos interlocutores. O imediato estava visivelmente agitado e quando, um momento depois alguém falou do horrível aspecto do cadáver de Rogers, pensei seriamente que ele iria desmaiar. Peters perguntou-lhe então se não seria muito melhor atirá-lo imediatamente à água, evitando assim o repugnante espectáculo de o ver a debater-se e a flutuar nos embornais O miserável respirou convulsivamente e olhou lenta mente à sua volta para todos os companheiros, como se quisesse suplicar a um deles que subisse e se ocupasse da tarefa. Ninguém se mexeu; era evidente que tinham atingido o grau mais elevado de excitação nervosa. Peters fez-me então sinal. Abri imediatamente a porta da escada e, descendo sem pronunciar uma só palavra, apresentei-me de súbito no meio do bando.
O efeito prodigioso produzido por esta súbita aparição não surpreenderá ninguém, se tivermos em conta as diversas circunstâncias nas quais se produziu. Normalmente, em casos desta natureza, fica no espírito do espectador como que um raio de dúvida sobre a realidade da visão que tem diante dos olhos e conserva, até certo ponto, uma esperança, débil que seja, de estar a ser vítima de uma mistificação e de que a aparição não seja realmente um visitante vindo do reino das sombras. Pode afirmar-se que essa dúvida- obstinada acompanhou quase sempre as aparições deste tipo e que o gélido horror que algumas vezes produziram deve ser atribuído, mesmo nos casos mais flagrantes, naqueles que causaram a mais viva angústia, a uma espécie de temor antecipado, ao receio de que a aparição não seja real, mais do que à firme crença na sua autenticidade. Mas, no caso presente, será fácil ver que não poderia existir no espírito dos amotinados qualquer fundamento para duvidarem de que a aparição de Rogers não fosse realmente a ressurreição do seu medonho cadáver ou, pelo menos, da sua imagem incorpórea. A posição isolada do brigue e a impossibilidade de o atracarem devido à tempestade, reduziam os meios possíveis de ilusão a tão estreitos limites que podiam ser abarcados de uma só vez. Havia já vinte e quatro dias que andavam no mar e ainda não tinham comunicado com qualquer navio, excepto um que apenas tinham chamado à fala. Além disso, toda a tripulação (todos os que julgavam formar a tripulação completa estavam longe de suspeitar da presença de outro indivíduo a bordo) encontrava-se reunida no camarote, exceptuando Allen, o homem de quarto. Quanto a este, a sua estatura gigantesca (tinha seis pés e seis polegadas de altura) era bastante familiar aos olhos dos marinheiros para que a ideia de que pudesse ser ele a aparição terrível entrasse, um instante que fosse, nos seus espíritos. Acrescente-se a estas considerações, o fragor da tempestade e a natureza da conversa suscitada por Peters, a profunda impressão que a hediondez do verdadeiro cadáver produzira de manhã na mente daqueles homens, a perfeição do meu disfarce e a luz vacilante e incerta através da qual me viam, a lanterna do quarto oscilando com violência de um lado para o outro conforme os balanços do navio e lançando sobre mim reflexos incertos e trémulos, e não se achará espantoso que o efeito do embuste tenha sido muito maior do que ousáramos esperar.
O imediato ergueu-se de um salto do colchão onde estava deitado e, sem uma palavra, caiu de costas, redondamente morto, no chão do camarote; um balanço mais forte fê-lo rolar como um cepo. Dos sete restantes, apenas três conservaram de início certa presença de espírito. Os outros quatro permaneceram sentados durante algum tempo, como que pregados ao chão, oferecendo os seus semblantes uma imagem de horror e desespero como nunca tinha visto. A única resistência que se nos deparou, partiu do cozinheiro, de John Hunt e de Richard Parker; mas foi uma defesa débil e irresoluta. Os dois primeiros foram imediatamente abatidos por Peters e, com a alavanca que tinha trazido, assestei uma pancada na cabeça de Parker. Ao mesmo tempo, Augusto apoderava-se de uma das espingardas que estavam no chão e descarregava-a no peito de Wilson, um dos outros revoltosos. Restavam apenas três que, entretanto, tinham saído do seu entorpecimento e começavam sem dúvida a ver que tinham sido vítimas de um estratagema, pois combatiam cheios de resolução e de fúria e, se não fosse a tremenda força muscular de Peters, talvez acabassem por nos dominar. Estes três homens eram Jones, Greely e Absalon Hicks. Jones derrubara Augusto, já o apunhalara diversas vezes ao braço direito e iria acabar com ele (nem Peters nem eu podíamos acudir-lhe, pois ainda não nos tínhamos desembaraçado dos nossos adversários) se um amigo, cuja ajuda não tínhamos tido em conta, não viesse muito a propósito em seu auxílio. Este amigo não era outro senão o Tigre. Com um rosnar abafado, saltou para o camarote no momento mais crítico para Augusto e, atirando-se a Jones, imediatamente o prostou no chão. Contudo o meu companheiro estava gravemente ferido para nos prestar qualquer auxílio, e eu estava tão ensarilhado pelo meu disfarce que não podia fazer grande coisa. O cão obstinava-se em não largar a garganta de Jones. Mas Peters estava suficientemente forte para dominar os dois homens que restavam e tê-los-ia, sem dúvida, despachado mais cedo, se não fosse afectado pelo espaço estreito onde actuava, e pelas guinadas violentas do brigue. Finalmente conseguiu apo-rar-se de um dos pesados escabelos que estavam no chão e com ele desfez o crânio de Greely, precisamente na altura em que este ia descarregar a espingarda sobre mim; em seguida, tendo sido atirado por um balanço para cima de Hicks, agarrou-se-lhe à garganta e estrangulou-o instantaneamente à força de pulso. Assim, em menos tempo do que foi preciso para o contar, estávamos senhores do brigue.
O único dos nossos adversários que tinha ficado com vida era Richard Parker. Como se recordará, no início do ataque atingira este homem com uma pancada da minha alavanca. Jazia agora imóvel, ao lado da porta do revolto camarote. Como Peters lhe tocou com o pé, recuperou a fala e pediu clemência. Tinha apenas uma ligeira ferida na cabeça, sem qualquer outro ferimento, pois tinha sido a pancada que o fizera desmaiar. Levantou-se e, de momento, amarrámos-lhe as mãos atrás das costas. O cão continuava ainda em cima de Jones, rosnando furiosamente; contudo, examinando-o com atenção, vimos que estava morto e que um jorro de sangue saía de uma profunda ferida na garganta, feita pelas poderosas presas do animal.
Era uma da madrugada e o vento continuava a soprar com uma fúria tremenda. Era evidente que o brigue sofria um desgaste maior do que o habitual, e tornava-se necessário fazer qualquer coisa para aliviar a sua situação. A cada assalto das vagas de sotavento metia água, que já chegara ao camarote durante a luta, porque, ao descer, tinha deixado a escotilha aberta. Toda a amurada de bombordo havia sido arrancada, assim como as cozinhas e o bote da ré. Os estalidos e as vibrações do mastro maior, indicavam-nos que ele ia ceder. Para deixar mais espaço à carga no porão da ré, haviam fixado a base desse mastro na entrecoberta (péssimo método ao qual recorrem tantas vezes os construtores ignorantes), de modo que existia um perigo iminente de ser arrancado. Mas, para cúmulo das nossas infelicidades, sondámos a caixa da bomba, e verificámos que o barco tinha nem mais nem menos que sete pés de água.
Deixámos os cadáveres dos marinheiros no camarote, e pusemos imediatamente a trabalhar as bombas tendo, naturalmente, solto Parker, para nos ajudar neste trabalho. Ligámos o braço de Augusto o melhor que conseguimos e o pobre moço fez o que pôde, isto é, bem pouco. Entretanto descobrimos que podíamos impedir que a água subisse de nível, mantendo em funcionamento uma só bomba, sem interrupção. Como éramos apenas quatro, o trabalho tornava-se violento mas, apesar de tudo, tentámos não nos deixar abater e aguardámos com ansiedade o nascer do dia esperando então aliviar o brigue cortando o mastro maior.
Assim, passámos uma noite de horrível ansiedade e de fadiga e, quando por fim amanheceu, a tempestade não tinha amainado nem dava mostras de próxima bonança. Arrastámos então os cadáveres para a coberta e lançámo-los pela borda fora, ocupando-nos depois do mastro maior. Feitos os preparativos necessários, Peters, que entretanto descobrira os machados no beliche, cortou o mastro enquanto nós vigiávamos as velas de estai e o aparelho. Como o brigue desse uma guinada tremenda para sotavento, foi dada ordem para se cortar os cabos de barlavento, de que resultou a queda de toda essa massa de madeira e de enxárcia ao mar, desembaraçando o brigue sem lhe causar qualquer dano material. Desta maneira, o barco desgastava-se menos mas a nova situação continuava a ser extremamente precária e, a despeito de todos os esforços, não tínhamos conseguido dominar o veio de água sem o auxílio das duas bombas. A ajuda que Augusto nos podia prestar era praticamente insignificante e, para aumentar o nosso infortúnio, uma vaga enorme atingiu o brigue no costado de barlavento, lançando-o a vários pontos do vento e, antes que pudesse retomar a sua posição, uma outra vaga rebentava em cheio sobre ele, tombando-o completamente. Devido a este movimento o lastro deslocou-se em bloco para o costado de sotavento (a carga, há já muito tempo que andava espalhada ao acaso) e, durante alguns segundos, julgámos que iríamos Irremediavelmente naufragar. Contudo, o barco endireitou-se parcialmente mas, mantendo-se o lastro a bombordo, virámos tantas vezes que era inútil pensar pôr a trabalhar as bombas, que, de qualquer forma, não funcionariam durante muito tempo, pois tínhamos as mãos em carne viva devido ao excesso de trabalho, sangrando de uma maneira horrível.
Contrariamente aos conselhos de Peters, começámos a abater o mastro do traquete o que conseguimos com extrema dificuldade ao fim de algum tempo, devido à inclinação do navio. Escorregando pela borda, arrastou com ele o gurupés, deixando o brigue transformado em simples batelão.
Até então, tínhamos motivos para nos alegrarmos por havermos conseguido conservar a chalupa que não fora danificada por todos aqueles enormes vagalhões. Mas esta alegria durou pouco tempo, pois tendo-se partido o mastro do traquete e o traquete, que sustinham um pouco o brigue, as vagas vinham agora rebentar em cima de nós e, em cinco minutos, a coberta era varrida de uma ponta à outra, a chalupa e a amurada de estibordo foram arrancadas e o próprio molinete feito em pedaços. Na verdade era quase impossível que a nossa situação fosse mais deplorável.
Ao meio-dia, acalentámos certas esperanças de ver a tempestade diminuir, mas ficámos cruelmente desapontados ao ver que a acalmia fora apenas momentânea, para logo redobrar de fúria. Às quatro da tarde, a intensidade do vento era tanta que se tornava impossível mantermo-nos de pé e, quando a noite caiu, nem um raio de esperança me animava, pois não me parecia possível que o navio se aguentasse até de manhã.
A meia-noite a água tinha subido consideràvelmente e estava agora nos bailéus do porão. Pouco depois, o leme partiu-se e a onda que o arrancou levantou toda a ré fora de água de modo que, ao tombar de novo, o brigue estacou e deu uma guinada semelhante à de um barco que encalha. Tínhamos calculado que o leme se aguentaria até ao fim, porque era muito forte e estava colocado de uma maneira que até então nunca vira e que, aliás, não voltei a ver. Ao longo da peça principal estendia-se uma série de fortes ganchos de ferro, enquanto que outra série semelhante se prendia ao cadaste. Através desses ganchos passava um espigão de ferro reforçado muito espesso, ficando assim o leme ligado ao cadaste e mexendo-se livremente no espigão. Pode calcular-se a terrível força das ondas que o arrancaram, pelo facto dos ganchos do cadaste que, como disse, se estendiam de uma ponte à outra e estavam cravados do lado oposto, serem completamente arrancados da peça de madeira até ao último gancho.
Mal tivéramos tempo para respirar, após este choque violento, quando uma das mais tremendas ondas que os meus olhos viram rebentou a prumo sobre o navio, arrebatando o castelo de proa, arrombando as escotilhas e inundando o navio como um autêntico dilúvio.
A PESCA AOS VÍVERES
Por sorte, antes de anoitecer, havíamo-nos amarrado solidamente aos restos do molinete e tínhamo-nos estendido sobre a coberta o mais possível rente ao chão. Foi esta precaução que nos salvou da morte. Por agora, estávamos mais ou menos aturdidos pelo imenso peso da água que nos caíra em cima e quando, por fim, se escoou, sentimo-nos quase prostados. Logo que pude respirar, chamei em voz alta os meus companheiros, mas apenas Augusto me respondeu: “Estamos perdidos! Deus tenha piedade das nossas almas!” Passados alguns instantes, os outros dois puderam falar e exortaram-nos a ter coragem, dizendo que ainda havia esperança, pois era impossível que o brigue se afundasse devido à natureza da sua carga, e que havia fortes motivos para crer que a tempestade amainasse pela manhã. Estas palavras deram-me outra vida pois, por estranho que pareça, embora fosse evidente que um navio carregado de barricas vazias não se pudesse afundar, tivera até então o espírito tão confuso que este pormenor me escapara de todo, e era o perigo do naufrágio aquele que desde há algum tempo considerava como o mais iminente. Sentindo a esperança renascer dentro de mim, aproveitei todas as oportunidades para reforçar as amarras que me ligavam aos restos do molinete, não tardando a descobrir que os meus companheiros tendo tido a mesma ideia faziam o mesmo. A noite estava escura como breu, e é inútil tentar descrever o barulho ensurdecedor e o caos que nos rodeava. A coberta estava ao nível do mar ou, melhor dizendo, encontrávamo-nos rodeados por uma crista, uma muralha de espuma, parte da qual caía constantemente em cima de nós. Não será exagero dizer que as nossas cabeças estavam fora de água, apenas um em cada três segundos. Embora estivéssemos muito perto uns dos outros, não conseguíamos ver-nos e nem sequer distinguíamos qualquer parte do brigue sobre o qual o mar nos açoitava e agitava impiedosamente. De vez em quando chamávamos uns pelos outros, esforçando-nos por conservar a esperança, e por dar um pouco de ânimo e coragem aos que mais necessitavam. O estado de fraqueza de Augusto tornava-o objecto da nossa inquietação e, como a ferida que tinha no braço direito o impedia de prender solidamente as amarras, temíamos que a cada instante fosse arrebatado pelas águas, tanto mais que era completamente impossível prestarmos-lhe socorro. Por sorte, o seu lugar era mais seguro do que qualquer dos nossos, pois, tendo a parte superior do corpo resguardada por um pedaço do molinete despedaçado, a violência das ondas que lhe caíam em cima era em parte amortecida. Em qualquer outra posição (escolhida por casualidade, na medida em que para lá fora atirado depois de se ter amarrado num lugar muito perigoso) já teria perecido, sem sombra de dúvida, antes de amanhecer. Como já disse, o brigue estava muito inclinado e, graças a este facto, estávamos menos expostos a ser arrebatados pelas ondas do que em qualquer outra posição. O lado do navio mais inclinado era, como já frisei, o de bombordo, estando praticamente submersa metade da coberta. Assim, as vagas que nos atingiam de estibordo eram em parte quebradas pelo costado do navio e, deitados de bruços, apenas nos atingiam alguns ressaltos; as ondas que vinham de bombordo caíam-nos nas costas e não tinham, devido à nossa posição, suficiente impetuosidade para nos arrancarem às amarras. Permanecemos deitados nesta terrível situação até que a claridade do dia nos veio mostrar com mais evidência os horrores que nos rodeavam. O brigue era um simples madeiro que rodava à mercê de cada vaga; o vento continuava a aumentar e era agora, mais do que nunca, um autêntico furacão, não nos parecendo haver qualquer perspectiva de salvação. Durante várias horas permanecemos em silêncio, temendo a cada momento que as amarras cedessem, que os restos do molinete se desprendessem, ou que algumas das enormes vagas que rugiam em todas as direcções à nossa volta, ou por cima das nossas cabeças, submergisse de tal maneira a carcaça que nos afogássemos antes de ela voltar à superfície. Mas, a misericórdia de Deus livrou-nos desses perigos iminentes e, por volta do meio-dia, fomos contemplados com a luz abençoada do sol. Pouco depois pudemos notar uma sensível diminuição na força do vento e Augusto falou, pela primeira vez desde o fim da noite anterior, perguntando a Peters, que era o que estava mais perto dele, se lhe parecia que houvesse ainda qualquer possibilidade de salvação. Como o mestiço não respondesse imediatamente à pergunta, concluímos que se tinha afogado; mas, passado um pouco, com grande alegria nossa, falou, embora dèbilmente, dizendo que sofria muito, que estava como que cortado pelas amarras que lhe apertavam fortemente o estômago e que tinha de conseguir afrouxá-las, ou então morrer, pois não lhe era possível suportar mais tempo aquela tortura. Este facto muito nos atormentou pois nenhum de nós podia sequer pensar em ir em seu auxílio enquanto o mar continuasse a fustigar-nos daquela maneira. Exortámo-lo a suportar com coragem os sofrimentos, prometendo-lhe aproveitar a primeira ocasião favorável para então o aliviarmos. Respondeu que seria já tarde, e que estaria perdido antes de podermos auxiliá-lo; depois, tendo-se queixado durante alguns instantes, quedou-se silencioso, do que deduzimos que se tinha finado.
Ao cair da tarde o mar acalmou-se bastante; era raro que no espaço de cinco minutos mais de uma vaga viesse quebrar-se contra o casco de barlavento; o vento havia amainado bastante, embora ainda soprasse forte. Há várias horas que não ouvia falar os meus companheiros, e chamei então Augusto. Respondeu-me, mas tão debllmente que não consegui perceber o que dizia. Falei depois a Peters e a Parker, mas nenhum deles me respondeu.
Pouco depois caí num estado de semi-insensibilidade durante o qual flutuaram na minha imaginação as mais encantadoras imagens: árvores verdejantes, magníficos prados onde ondulava o trigo maduro, procissões de jovens bailarinas, soberbas tropas de cavalaria, e outras fantasias. Lembro-me agora de que o movimento era a ideia predominante em tudo aquilo que perpassava pela minha imaginação. Assim, nunca sonhava com um objecto imóvel, tal como uma casa, uma montanha, ou qualquer coisa semelhante, mas sim com moinhos de vento, navios, enormes pássaros, balões, homens a cavalo, carros deslizando a grande velocidade e outros objectos móveis que se me apresentavam em sucessão infinita. Quando saí deste estranho estado, o sol, segundo pude deduzir, erguia-se no horizonte há cerca de uma hora e tive uma enorme dificuldade em recordar-me das diversas circunstâncias relacionadas com a minha situação, continuando, durante algum tempo, firmemente convencido que continuava no porão do brigue, junto da minha caixa, e que o corpo de Parker era o do Tigre.
Quando, por fim, recuperei por completo os sentidos, o vento não passava de moderada brisa e o mar estava relativamente calmo, apenas arrastando o brigue de lado. O braço esquerdo tinha-se desprendido das cordas e estava muito macerado junto do cotovelo; o direito está completamente paralisado, com a mão e o punho terrivelmente inchados, devido à pressão do cordame que vinha desde o ombro. Também muito me incomodava uma outra corda que me rodeava a cintura e que tinha sido apertada, de uma maneira agora intolerável. Olhando em volta para os meus companheiros, vi que Peters ainda estava vivo, embora tivesse à volta dos rins uma grossa corda apertada de tal maneira que parecia estar cortado em dois pedaços; ao mover-me, fez-me um débil sinal com a mão, apontando para a corda. Augusto não dava sinais de vida, e estava quase partido en dois, atravessado num dos restos do molinete. Parker falou-me quando me viu mexer e perguntou-me se ainda tinha força suficiente para o libertar da sua posição, assegurando-me que se eu quisesse reunir todas as energias e conseguisse libertá-lo, talvez pudéssemos salvar-nos, pois, de outra forma, pereceríamos.
Disse-lhe que tivesse coragem e que tentaria libertá-lo. Procurando nos bolsos das calças, encontrei o meu canivete que consegui abrir após várias tentativas infrutíferas. Depois, com a mão esquerda, consegui desembaraçar o braço direito das amarras, cortando em seguida as restantes cordas que me prendiam. Contudo, ao tentar mover-me, notei que as pernas me falhavam e que não conseguia levantar-me, sendo-me também impossível movimentar o braço direito em qualquer direcção. Ao dizer a Parker o que me acontecia, aconselhou-me a permanecer durante alguns minutos apoiando-me ao molinete com a mão esquerda, até que se restabelecesse a circulação do sangue. De facto, o entumecimento em breve começou a desaparecer, de modo que pude mover primeiro uma perna, depois outra e, pouco depois, recobrei parcialmente o uso do braço direito. Deslizei então cautelosamente até junto de Parker, sem me levantar, e cortei-lhe todas as amarras que o prendiam; também ele, como eu, recobrou em parte o uso dos membros, passado pouco tempo. Apressámo-nos em seguida a desfazer a corda de Peter, que tinha aberto um rasgão através da cintura das calças de lã e de duas camisas e havia penetrado na virilha, de onde o sangue jorrou com abundância quando soltámos a corda. Contudo, mal o libertámos, Peters começou a falar e pareceu sentir um alívio imediato, mexendo-se com muito mais facilidade do que Parker e eu, certamente devido àquela sangria involuntária.
Augusto não dava sinais de vida e poucas esperanças tínhamos de que se restabelecesse, mas, ao acercarmo-nos dele vimos que estava apenas desmaiado em consequência de ter perdido sangue, pois as ligaduras com que lhe havíamos enrolado o braço tinham sido arrancadas pelas ondas; nenhuma das cordas que o prendiam ao molinete estava suficientemente apertada para lhe poder causar a morte. Tendo-o desembaraçado das amarras, e retirado do pedaço de madeira que o comprimia, depositámo-lo num sítio seco a barlavento, com a cabeça um pouco mais baixa que o corpo e começámos os três a friccionar-lhe os membros. Ao fim de meia hora voltou a si, mas só na manhã seguinte é que demonstrou reconhecer-nos, e conseguiu reunir forças para falar. Quando acabámos de nos desembaraçar de todas as amarras, era já noite, e o céu começava a encobrir-se, o que nos causava um medo terrível que o vento redobrasse de violência, o que, se isso viesse a acontecer, seria a nossa morte, esgotados como estávamos. Por sorte o tempo manteve-se estacionário durante toda a noite e o mar ia-se acalmando cada vez mais, fazendo-nos acalentar a esperança de nos salvarmos. Uma brisa ligeira continuava a soprar de noroeste mas o tempo não estava nada frio. Como Augusto estava de masiado fraco para se aguentar sozinho, foi cuidadosa mente amarrado ao molinete, pois receávamos que os balanços do navio o atirassem pela borda fora. Quanto a nós, não precisávamos de idênticas precauções e sentámo-nos muito juntos, apoiando-nos uns aos outros com a ajuda das cordas quebradas do molinete, enquanto falávamos das possibilidades que haveria de sairmos daquela terrível situação. Tivemos a bela ideia de tirar as roupas, e de as torcer para sair a água, de modo que, quando voltámos a vesti-las, pareceram-nos extremamente quente e agradáveis, o que muito nos ajudou a recuperar o vigor. Desembaraçámos Augusto do seu fato, torcemo-lo, e também ele sentiu o mesmo bem-estar.
Os nossos principais sofrimentos eram agora a fome e a sede e, quando nos pusemos a pensar nos meios de resolver esta situação, sentimos o coração apertar-se-nos e quase lastimámos termos conseguido escapar aos perigos, afinal menos terríveis, do mar. Contudo, esforçámo-nos por nos consolar com a esperança de sermos em breve recolhidos por algum navio animando-nos mutuamente, para suportarmos com resignação todos os males que nos pudessem ainda estar reservados.
Por fim, surgiu a madrugada do dia 14 e o tempo mantinha-se claro e agradável, com uma brisa constante, mas ligeira, de nordeste. O mar tinha-se acalmado completamente e, por qualquer razão que não descobrimos, o brigue já não se inclinava tanto, a coberta estava relativamente seca e podíamos movimentar-nos com uma certa segurança. Levávamos já três dias e três noites sem nada ter comido nem bebido, e era absolutamente indispensável fazer qualquer tentativa para procurar qualquer coisa no interior do navio. Como o brigue estava completamente cheio de água, dispusemo-nos ao trabalho com uma certa tristeza, e sem grandes esperanças de o conseguirmos. Fizemos uma espécie de draga, cravando alguns pregos, que entretanto arrancáramos dos destroços do castelo da proa, em duas tábuas. Prendemo-las em forma de cruz e, amarrando-as à ponta de uma corda, atirámo-las para o camarote, arrastando-as em diversos sentidos, com a débil esperança de enganchar qualquer coisa que nos pudesse servir de alimento, ou, pelo menos, que nos proporcionasse o meio de o obter. Passámos a maior parte da manhã nesse trabalho sem conseguirmos nada, excepto algumas mantas que os pregos agarraram facilmente. Realmente, era tão tosco o nosso invento que não se podia esperar dele melhor resultado.
Recomeçámos a tarefa no castelo da proa, mas o resultado foi idêntico e, estávamos já desesperados quando Peters propôs fazer-se amarrar por uma corda à volta do corpo, e tentar apanhar alguma coisa mergulhando em direcção ao camarote. Acolhemos a proposta com grande alegria porque nos fazia renascer as esperanças. Imediatamente começou a tirar a roupa, ficando apenas com as calças, e atámos-lhe uma grossa corda com todo o cuidado à volta do corpo, passando-lhe por cima dos ombros, de modo a impedi-lo de escorregar. A empresa era difícil e perigosa pois, como não contávamos que houvesse qualquer coisa no camarote, mesmo supondo que ainda houvesse quaisquer provisões, era necessário que o mergulhador, após ter descido, virasse à direita e caminhasse debaixo de água uns dez ou doze pés, através de uma estreita passagem, até à despensa, regressando finalmente sempre sem respirar.
Qispostas todas as coisas necessárias, Peters desceu ao camarote, seguindo pela escada, até a água lhe chegar ao queixo. Então, mergulhou de cabeça, voltou à direita e tentou penetrar na despensa; contudo, esta primeira tentativa falhou completamente. Não tinha ainda passado meio minuto quando sentimos um violento puxão na corda: era o sinal combinado para o retirarmos da água quando desejasse. Puxámo-lo logo em seguida, mas com tão pouco jeito que o magoámos seriamente de encontro à escada. Não trazia nada, e tinha-lhe sido impossível avançar mais que um pequeno troço no corredor, devido aos esforços constantes que era obrigado a fazer para se manter seguro ao solo e não flutuar até ao tecto. Quando saiu, estava esgotadíssimo e teve de descansar um bom quarto de hora antes de se aventurar de novo.
A segunda tentativa foi ainda mais infeliz porque permaneceu tanto tempo debaixo de água sem dar sinal que, sentindo-nos inquietos, puxámo-lo sem esperar mais tempo. O infeliz, quase asfixiado, tinha já puxado repetidas vezes a corda, sem nós termos sentido, pois uma parte daquela tinha-se enredado na balaustrada da escada. Realmente, a balaustrada estorvava tanto que resolvemos arrancá-la antes de procedermos a uma nova tentativa. Como não tínhamos outro meio de a arrancar, excepto à força dos braços, entrámos os quatro dentro de água, o mais longe possível, e, reunindo as nossas forças, demos um forte empurrão, conseguindo assim derrubá-la.
A terceira tentativa foi igualmente infrutífera e era evidente que, por este meio, nada conseguiríamos obter sem o auxílio de um peso, que mantivesse o mergulhador fixo ao chão do camarote, enquanto procedia às suas pesquisas. Olhámos durante algum tempo à nossa volta procurando qualquer coisa que servisse para esse fim e, por fim, descobrimos com grande alegria uma das cadeias do traquete de barlavento que estava já tão solta que a arrancámos com grande facilidade. Peters atou-a a um dos tornozelos e desceu então pela quarta vez ao camarote, conseguindo agora abrir caminho até à porta da despensa. Mas, com grande desgosto, encontrou-a fechada e foi obrigado a subir sem lá ter entrado, pois, tendo já feito um excessivo esforço, não podia permanecer debaixo de água mais de um minuto. As coisas tomavam realmente um aspecto sinistro e, não nos podendo conter mais, Augusto e eu desatámos a chorar, ao pensarmos em todas as dificuldades que surgiam, e na escassa possibilidade que havia de nos salvarmos. Porém, esta fraqueza foi apenas passageira. Ajoelhámos e rezámos a Deus, Implorando a sua ajuda nos infinitos perigos que nos ameaçavam. Depois, com esperança e vigor renovados, levantámo-nos, prontos a continuar as buscas, e a tentar todos os meios possíveis de libertação.
O BRIGUE MISTERIOSO
Pouco tempo depois, ocorreu um caso que foi motivo da mais intensa emoção, porque nos levou aos extremos da alegria e do horror, como nunca experimentei em qualquer das aventuras que posteriormente tive, durante nove longos anos - anos repletos de acontecimentos da mais surpreendente, e muitas vezes até da mais incrível e da mais inimaginável natureza. Estávamos deitados na coberta, perto da escada, e discutíamos ainda a possibilidade de entrarmos na despensa quando, ao olhar para Augusto que estava à minha frente, notei que, de repente, ficara extremamente pálido e que os lábios lhe tremiam de um modo estranho e incompreensível. Alarmadíssimo, falei-lhe mas ele não respondeu, e começava já a acreditar que fora atacado por qualquer doença súbita quando, reparando nos seus olhos, vi que estavam extremamente brilhantes e fixos em qualquer coisa atrás de mím. Voltei a cabeça, e nunca poderei esquecer a tremenda alegria que fez estremecer todo o meu corpo, quando vi um enorme brigue a aproximar-se de nós, não distando mais que duas milhas. Pus-me de pé, como se de súbito tivesse recebido um tiro em cheio no coração e, estendendo os braços em direcção ao navio, permaneci nesta posição, imóvel, incapaz de articular uma sílaba. Peters e Parker estavam igualmente emocionados, embora de diferentes maneiras. O primeiro dançava que nem um louco na coberta, lançando as mais extravagantes exclamações, misturadas com urros e imprecações, enquanto o segundo se desfazia em lágrimas, mantendo-se a chorar como uma criancinha durante alguns minutos.
O barco à vista era um grante brigue-escuna, de construção holandesa, pintado de preto e com um reluzente e dourado beque de proa. Era evidente que suportara o mau tempo, e calculámos que devia ter sofrido bastante com a tempestade que para nós fora desastrosa, porque perdera o mastaréu da gávea do traquete e parte da amurada de estibordo. Quando o vimos pela primeira vez, estava, como já disse, a cerca de duas milhas para barlavento e avançava em nossa direcção. A brisa era muito suave e, o que primeiro nos surpreendeu, foi que apenas tivesse içados o traquete e a vela grande com o cutelo, o que o fazia avançar com grande lentidão, levando ao frenesim a nossa impaciência. Também nos chocou, apesar de toda a nossa emoção, a maneira desajeitada como era governado. Dava tais guinadas que, por uma ou duas vezes, julgámos que não nos tinha avistado ou que, tendo descoberto o nosso navio mas pensando não haver ninguém a bordo, mudasse de rumo e tomasse uma rota diferente. Nestas ocasiões, gritávamos e berrávamos com toda a força dos pulmões, e o navio desconhecido parecia mudar momentaneamente de rumo, e apontava para nós. Esta estranha manobra repetiu-se duas ou três vezes pelo que concluímos, como explicação para o caso, que o timoneiro estava bêbedo.
Não distinguimos ninguém a bordo, até o brigue chegar a um quarto de milha. Vimos então três homens que, pelo trajo, tomámos por holandeses. Dois deles estavam estendidos em cima de velhas velas perto do castelo da proa e o terceiro, que parecia fitar-nos com curiosidade, encontrava-se à proa, a estibordo, junto do gurupés. Era um homem alto e forte, com a pele muito escura e, pelos seus gestos, parecia encorajar-nos a ter paciência, acenando-nos alegremente com a cabeça, mas de um modo que não deixava de ser estranho, sorrindo constantemente, como que para exibir uma branca e reluzente dentadura. Quando o navio se aproximou mais, vimos que lhe caiu à água o gorro de lá vermelha que tinha na cabeça, facto a que não ligou importância, continuando com os sorrisos e os gestos extravagantes. Relato minuciosamente estas coisas e estas circunstâncias, assim deve ser compreendido, precisamente como nos apareceram.
O brigue aproximava-se lentamente de nós, agora com maior precisão nas manobras, e (não posso falar com sangue-frio desta aventura) o coração saltava loucamente nos nossos peitos, expandindo o nosso profundo sentimento em gritos de alegria e agradecimentos a Deus pela completa, gloriosa e inesperada salvação, que tão segura e certa nos parecia. De repente, do misterioso navio, agora muito próximo, chegou-nos, através do oceano, uma mistura de odores de tal maneira fétidos, que não há palavras no mundo para os definir - infernais, sufocantes, intoleráveis, inconcebíveis! Abri a boca para respirar e, virando-me para os meus companheiros, notei que estavam mais pálidos que o mármore. Contudo, não tínhamos tempo para discutir ou pensar, pois o brigue estava agora a cinquenta pés e parecia ter a intenção de nos acostar pela proa, para que pudéssemos abordá-lo sem haver necessidade de lançarem um bote ao mar. Precipitámo-nos para a ré, quando, de súbito, uma forte guinada atirou-o cinco ou seis pontos para fora da rota que seguia e, como passava a uma distância de cerca de vinte pés da nossa ré, pudemos ver perfeitamente a coberta. Poderei algum dia esquecer o imenso horror de tal espectáculo? Vinte e cinco ou trinta corpos humanos, entre os quais algumas mulheres, jaziam espalhados a esmo, entre a ré e as cozinhas, no mais decadente e repugnante estado de putrefacção! Vimos, claramente visto, que não havia um só ser vivo naquele sinistro barco! Contudo, não deixávamos de chamar esses mortos em nosso auxílio! Sim, é verdade, na angústia daquele momento, com toda a nossa força, e durante longos minutos, rogámos àquelas silenciosas e repugnantes imagens que parassem por nossa causa, que não nos deixassem ficar como elas, e que nos dessem a sua companhia! O horror e o desespero faziam-nos desvairar, pois a angústia e a decepção tinham-nos transtornado completamente
Quando soltámos o primeiro grito de terror, qualquer coisa respondeu, vindo o som do lado do gurupés do barco desconhecido, e que se assemelhava tanto a um grito humano que o ouvido mais atento teria estremecido e deixar-se-ia enganar. Neste momento, outra súbita guinada, pôs-nos a descoberto, durante alguns minutos, o castelo da proa e percebemos então a causa do ruído. Vimos a alta e forte personagem, sempre apoiada à amurada, e sempre a oscilar a cabeça, mas com o rosto voltado de tal maneira que o não conseguíamos ver. Os braços estavam estendidos sobre as armadoiras e as mãos pendentes; os joelhos repousavam sobre um grosso cabo estendido e rígido que ia da base do gurupé até um dos turcos. Nas costas, onde uma parte da camisa tinha sido arrancada, deixando a descoberto a pele, estava pousada uma enorme gaivota que, avidamente, comia aquela horrível carne, com o bico e as garras enterradas no corpo, e com a branca plumagem toda salpicada de sangue. Como o brigue continuava a virar, parecendo querer ver-nos melhor, a ave retirou, a custo e contrafeita, a cabeça sangrenta do buraco e, depois de nos olhar por um momento como que estupefacta, ergueu-se preguiçosamente do cadáver sobre o qual se banqueteava, e lançou-se em voo por cima da nossa coberta, planando durante algum tempo com um pedaço da substância coagulada, quase viva, no bico. Por fim, o horrível pedaço caiu, com um sinistro plafe, mesmo aos pés de Parker. Que Deus me perdoe mas, nessa altura, no primeiro momento, um pensamento que não mencionarei atravessou o meu espírito, e encontrei-me a dar um passo maquinal para o ponto ensanguentado! Ergui os olhos e o meu olhar cruzou-se com o de Augusto, expressando este uma censura tão intensa e tão enérgica que me fez voltar de novo a mim. Avancei então com decisão e, com um profundo arrepio, lancei aquela coisa horrível ao mar.
O corpo de onde o pedaço fora arrancado, insensível a todos estes factos, oscilava facilmente sob as picadas da ave carnívora, e fora este movimento que nos tinha levado a acreditar estarmos em presença de um ser vivo. Quando a gaivota o largou, cambaleou, girou sobre si próprio, e caiu de lado, deixando-lhe a cara completamente à vista. Nunca vi coisa mais terrível e pavorosa! Os olhos haviam desaparecido, assim como toda a carne à volta da boca, deixando a dentadura totalmente a descoberto. Era isto, evidentemente, o sorriso que encorajava a nossa esperança! Era isto... mas detenho-me. Como já disse, o brigue passou à nossa ré, e prosseguiu lentamente a sua rota para sotavento. Com ele, e com a sua terrível tripulação, desvaneceram-se todas as felizes visões de alegria e de libertação. Como demorou algum tempo a passar, teria sido fácil abordá-lo, se o nosso súbito desapontamento, e a pavorosa natureza da descoberta, não nos deixassem completamente prostradas todas as nossas faculdades mentais e físicas. Tínhamos visto e sentido, mas era já demasiado tarde quando pudemos pensar e agir! Por este simples facto, poderá ver-se bem de que maneira os acontecimentos tinham enfraquecido os nossos espíritos: quando o barco se afastava, a ponto de apenas vermos metade do casco, discutimos seriamente a hipótese de o alcançarmos a nado!
Posteriormente, tentei em vão obter qualquer pista que aclarasse a horrível incerteza que envolvia o destino do navio desconhecido. A sua construção e aspecto geral levaram-nos a pensar, como já disse, que se tratava de um navio mercante holandês, e o trajo da tripulação confirmou-nos esta opinião. Poderíamos ter lido, com toda a facilidade, o nome na popa, e captar também outras observações que nos teriam servido para melhor determinar as suas características mas, a intensa excitação do momento, cegou-nos para todas as coisas desta natureza. Pela cor de açafrão de alguns cadáveres que não estavam totalmente decompostos, concluímos que a tripulação perecera devido à febre amarela ou a qualquer outra doença contagiosa com os mesmos violentos resultados. Se o caso foi este (e não sei que outra coisa pensar) a morte, a julgar pela posição dos corpos, devia tê-los surpreendido de uma maneira espantosamente rápida e esmagadora, totalmente diferente da que geralmente caracteriza as mais mortíferas pestes conhecidas pela humanidade. Também é possível que qualquer veneno, introduzido acidentalmente nas provisões de bordo, haja provocado esse desastre; talvez tivessem comido qualquer peixe desconhecido, de uma espécie venenosa, qualquer ave marinha ou outro animal qualquer; mas, quem sou eu para o saber? É inútil formular hipóteses acerca de um caso que tão enredado está e que, seguramente, ficará para sempre envolvido no mais pavoroso e insondável mistério.
A GARRAFA DE PORTO
Passámos o resto do dia num estado de estúpida | apatia, continuando a contemplar o navio até que as trevas ocultando-o à nossa vista, nos devolveram de certo modo os sentidos. A agonia da fome e da sede atingiram-nos de novo, absorvendo todas as outras considerações e cuidados. Mas, como nada podíamos fazer até de manhã, instalámo-nos o melhor possível e esfor-çámo-nos por obter um pouco de repouso. Pela minha parte, foi além do que esperava, dormindo até ao nascer do dia, altura em que os meus companheiros, menos favorecidos do que eu, me despertaram para recomeçarmos as tentativas, até então falhadas, para entrarmos na despensa.
Reinava agora uma plácida calmaria, o mar estava sereno como nunca vira, e a temperatura, quente e agradável. O brigue fatal desaparecera no horizonte. Começámos as nossas operações, arrancando, não sem dificuldade, outra cadeia do traquete e, prendendo as duas aos pés de Peters, este tentou de novo atingir a porta da despensa, pensando que talvez lhe fosse possível arrombá-la, desde que lá chegasse em pouco tempo; para isso, contava com a Calma que o casco do navio mantinha nessa altura.
Realmente, conseguiu alcançar com rapidez a porta e aí, soltando uma das cadeias do tornozelo, tentou servir-se dela para arrombar a porta; mas todos os seus esforços foram inúteis pois o madeiramento era muito mais sólido do que ele contava. Estava completamente exausto pela longa permanência debaixo de água e era necessário que um de nós o substituísse. Parker ofereceu-se imediatamente para esse serviço mas, após três viagens infrutíferas, não conseguiu sequer chegar até à porta. O mau estado do braço de Augusto tornava-o incapaz de qualquer tentativa pois, mesmo que conseguisse atingir o camarote, nunca seria capaz de forçar a entrada. Assim, era a mim que agora me cabia empregar todos os esforços para a salvação comum. Peters tinha deixado uma das cadeias na passagem e, logo que mergulhei, vi que não tinha peso suficiente para me manter de pé com facilidade debaixo de água. Foi esta razão que me levou a procurar pura e simplesmente, nesta primeira tentativa, o outro peso. Com esta intenção, apalpava o chão do corredor quando senti qualquer coisa dura que imediatamente agarrei, sem sequer ter tempo para ver o que era, e, voltando para trás, subi imediatamente à superfície. O meu achado era uma garrafa, e será fácil imaginar-se qual a nossa alegria quando vimos que estava cheia de vinho do Porto. Demos graças a Deus por esta oportuna e animadora ajuda e, servindo-nos do meu canivete, desarrolhámo-la e, tendo cada um de nós bebido uma moderada golada, sentimo-nos espantosamente reconfortados, como se nos tivesse invadido uma onda de calor, de força e de ânimo. Voltámos a tapar a garrafa cuidadosamente e, por meio de um lenço, prendemo-la de tal maneira que não houvesse possibilidade de se quebrar.
Descansei um pouco após esta feliz descoberta, voltei a descer e, recuperando a cadeia, subi imediatamente com ela. Depois de a ter amarrado ao pé, desci pela terceira vez apenas para verificar que nunca conseguiria forçar a porta da despensa. Subi desolado.
Depois disto tudo, o melhor seria renunciar a mais esperanças, e pude notar nos rostos dos meus companheiros que estavam resignados a morrer. O vinho tinha-lhes produzido uma espécie de delírio, de que escapara, talvez devido às minhas imersões. Tagarelavam incoerentemente de assuntos que nada tinham a ver com a nossa situação. Peters, por exemplo, enchia-me de perguntas sobre Nantucket e lembro-me também que Augusto se aproximou de mim, com o ar mais sério deste mundo, e pediu-me para lhe emprestar um pente pois, segundo dizia, tinha o cabelo cheio de escamas de peixe e queria tirá-las antes de desembarcarmos. Parker parecia menos afectado, e apenas me dizia para voltar a mergulhar no camarote, a fim de lhe trazer o primeiro objecto que agarrasse. Acedi e, logo à primeira tentativa, depois de ter estado debaixo de água um minuto, trouxe uma pequena mala de couro que pertencia ao capitão Barnard. Abrimo-la imediatamente, com a débil esperança de que tivesse qualquer coisa de comer ou de beber; mas nada mais tinha que uma caixa de navalhas de barba e duas camisas de linho. Voltei a mergulhar e subi sem qualquer resultado. Ao tirar a cabeça da água, ouvi na coberta o ruído de qualquer coisa a quebrar-se e, ao subir, vi que os meus companheiros de infortúnio se haviam ignobilmente aproveitado da minha ausência para beberem o resto do vinho, deixando cair a garrafa na precipitação para a reporem no lugar, antes que eu os surpreendesse. Fiz-lhes notar a falta de camaradagem e Augusto rompeu em lágrimas. Os outros dois tentaram rir e levar o caso para a brincadeira, mas espero não voltar a contemplar semelhante riso, pois as convulsões por que passavam os seus rostos eram na verdade aterradoras. Era evidente que a excitação produzida nos seus estômagos vazios, provocara um violento e instantâneo efeito, e que todos estavam tremendamente embriagados. Com imensa dificuldade consegui convencê-los a deitarem-se, caindo' quase logo num sono profundo, acompanhado de forte ressonar. Posso dizer que fiquei então praticamente sozinho no brigue, e os meus pensamentos eram do mais terrível e mais desesperado que se possa imaginar. A única perspectiva que se me apresentava, era morrer lentamente de fome ou então, vendo as coisas pelo lado melhor, ser tragado pela primeira tempestade que se levantasse pois, dado o nosso estado de esgotamento, era impossível esperar sobreviver a outra borrasca. A fome dilacerante que então sentia era quase intolerável, e estava capaz de tudo para a aplacar. Com a faca, cortei um pequeno pedaço da mala de couro e tentei comê-lo; mas foi-me totalmente impossível engolir um bocado que fosse, embora me parecesse que mascando o couro em pequenos fragmentos, obtinha um certo alívio para os meus sofrimentos. Ao fim da tarde acordaram os meus companheiros, todos eles num indescritível estado de fraqueza e de horror, devido ao vinho, cujos vapores já se tinham dissipado. Tremiam como se estivessem atacados por qualquer febre violenta e pediam água em lastimosos gritos. O seu estado tocava-me imenso, embora não pudesse deixar de me alegrar com o acidente, afinal feliz, que impediu de me deixar tentar pelo vinho, poupando-me assim àquelas tristes e desesperadas consequências. Contudo, o seu comportamento cada vez me alarmava e inquietava mais, porque era evidente que se não ocorresse uma mudança favorável do seu estado, não poderiam prestar-me qualquer auxílio para a nossa salvação comum. Ainda não havia abandonado de todo a ideia de trazer qualquer coisa de baixo; contudo, as tentativas só poderiam recomeçar, desde que um deles estivesse em perfeito juízo para segurar na ponta da corda enquanto eu descia. Como Parker parecia em melhor estado que os outros, esforcei-me por reanimá-lo por todos os meios ao meu alcance. Lembrando-me que talvez um banho de mar lhe fizesse bem, atei-lhe uma corda à volta do corpo e, depois de o conduzir ao castelo da proa, sempre inerte e passivo, empurrei-o para a água, puxando-o imediatamente. Estava de parabéns pela minha experiência pois pareceu-me recuperar vida e força e, ao subir, perguntou-me com um ar absolutamente normal, qual a razão daquele procedimento. Quando lhe expliquei o meu intuito, agradeceu-me imenso e disse que se sentia muito melhor depois do banho, falando-me depois seriamente da nossa situação. Resolvemos então aplicar o mesmo tratamento a Augusto e Peters, o que fizemos imediatamente, proporcionando a ambos um alívio notável. Esta ideia da imersão brusca fora-me sugerida pela recordação de qualquer velha leitura sobre medicina, acerca dos bons efeitos da aspersão e do duche, nos casos em que o paciente sofre de delirium tremens.
Vendo que já podia confiar nos meus companheiros para segurarem na corda, mergulhei ainda três ou quatro vezes no camarote, embora fosse já noite escura e uma ondulação suave, mas bastante alta, vinda do norte, fizesse balançar um pouco o nosso pontão. No decurso destas tentativas, consegui trazer duas grandes facas de cozinha, um cântaro com a capacidade de três galões, mas vazio, uma manta, mas nada que servisse para nos mitigar a fome. Depois de recolher estas coisas, continuei os meus esforços, até ficar completamente esgotado, mas sem qualquer proveito. Durante a noite, Parker e Peters, ocuparam-se das buscas, cada um por sua vez, mas nada mais conseguiram trazer; convencidos que nos estávamos a esgotar em vão, abandonámos com desespero aquele trabalho.
Passámos o resto da noite num estado de angústia mental e física do mais intenso e terrível que se possa imaginar, até que surgiu a manhã de 16 e os nossos olhos buscaram com avidez o socorro em todos os pontos do horizonte; mas em vão. O mar continuava tranquilo, com ondas compassadas de norte, como na véspera. Havia então seis dias que já não tocávamos em qualquer comida ou bebida, com excepção do vinho do Porto, e era evidente que pouco mais tempo poderíamos subsistir, se entretanto nada descobríssemos. Nunca vi, nem quero voltar a ver, seres humanos tão macilentos como Peters e Augusto. Se os tivesse encontrado em terra no seu estado actual, não teria sequer suspeitado de que os conhecia. A sua fisionomia mudara tanto, que a custo podia acreditar serem eles os mesmos indivíduos que me acompanhavam dias antes.
Parker embora terrivelmente abatido e tão fraco que nem conseguia levantar a cabeça do peito, não estava tão acabado como os outros. Sofria pacientemente, ; sem se lastimar, e procurava incutir-nos esperanças, por todas as formas possíveis e imaginárias. Quanto a mim, embora tivesse estado doente no início da viagem, e tenha sido sempre de constituição débil, sofria menos do que qualquer deles; não estava tão magro e conservava as minhas faculdades mentais em óptimas condições, enquanto que os meus companheiros estavam totalmente acabrunhados, e pareciam estar agora numa espécie de segunda infância, misturando as palavras com sorrisos tolos, como os idiotas, e proferindo as mais absurdas parvoíces. Contudo, de vez em quando, pareciam reviver bruscamente, como se fossem de súbito inspirados pela consciência da situação; punham-se então a pé de um sopetão, como que impulsionados por um momentâneo acesso de vigor, e falavam dos problemas de uma maneira perfeitamente racional, embora cheia do mais intenso desespero. É claro que é muito possível que os meus companheiros tenham tido do meu estado a mesma opinião que tive do seu, e me tenha involuntariamente tornado culpado das mesmas extravagâncias e das mesmas imbecilidades. É um facto que nunca poderei determinar.
Cerca do meio-dia, Parker declarou que via terra do costado de bombordo, e tive um trabalhão dos diabos para o impedir de se atirar ao mar, a fim de alcançar a costa a nado. Peters e Augusto não prestavam grande atenção ao que ele dizia; pareciam ambos absortos numa sombria contemplação. Olhando na direcção indicada, não pude distinguir o mínimo indício de terra, sabendo, aliás, muito bem, que estávamos muito longe dela para abrigar semelhante esperança. Não obstante, necessitei de imenso tempo para convencer Parker do seu erro. Rompeu então num caudal de lágrimas, choramingando como uma criança, dando altos gritos e soluços, até que, ao fim de duas ou três horas, esgotado pela fadiga de todo aquele desespero, adormeceu.
Peters e Augusto, tentaram por várias vezes mastigar pedaços de couro, mas não o conseguiram. Aconselhei-os a mascarem o couro e a cuspi-lo depois, mas estavam demasiado cansados para seguirem o meu conselho. Eu continuei a mascar os pequenos pedaços de vez em quando, e sentia um certo alívio; mas o meu principal sofrimento era a falta de água, e só consegui resistir ao desejo de beber a água do mar, recordando as terríveis consequências que daí resultaram para outros indivíduos em circunstâncias semelhantes às nossas. Assim se passava o dia, quando, de repente, descobri uma vela a leste, na direcção da nossa proa, do nosso costado de bombordo. Segundo me parecia, era um grande navio que vinha em nossa direcção e estava, provavelmente, a uma distância de doze ou quinze milhas. Nenhum dos meus companheiros o avistara ainda, e evitei revelá-lo imediatamente, com medo que as nossas esperanças se frustrassem de novo. Por fim, como se aproximava, vi nitidamente que tinha a proa apontada em nossa direcção, com as velas pequenas todas abertas. Não pude conter-me por mais tempo e apontei-o aos meus companheiros de sofrimento que, imediatamente, se puseram de pé, entregando-se de novo às mais extravagantes manifestações de alegria, chorando, rindo como loucos, saltando, batendo com os pés na coberta, arrancando os cabelos, rezando e blasfemando alternadamente. Estava tão influenciado pela sua conduta, e também por aquela perspectiva de salvamento que considerava já praticamente certa, que não pude deixar de me juntar a eles e de participar nas suas loucuras, dando livre saída a todos os impulsos da minha alegria e felicidade, espojando-me e rebolando pela coberta, batendo as palmas, gritando, e participando em mil e uma infantilidades semelhantes, até que caí em mim, e no âmago do desespero e da miséria humana, ao ver de súbito o navio apresentar-se-nos totalmente de ré, e navegar para uma direcção completamente oposta daquela para onde o vira inicialmente dirigir-se. Passou-se algum tempo antes de mostrar a nossa nova infelicidade aos meus pobres companheiros. Respondiam a tudo quanto dizia com olhares fixos, e gestos que significavam que não brincavam com coisas sérias. A reacção de Augusto foi a que mais me chocou pois, apesar de tudo o que pude dizer ou fazer para o dissuadir, continuou a afirmar que o barco se aproximava a olhos vistos de nós, fazendo preparativos para subir para bordo. Apontava algumas algas que flutuavam ao longo do brigue e afirmava que eram o bote do navio, chegando a tentar saltar para lá, clamando e gritando que, só de o ouvir, partia-se-me o coração. Finalmente, vi-me obrigado a usar a força, para o impedir de se precipitar no mar.
Quando recuperámos um pouco o sangue-frio, continuámos a observar o navio até que o perdemos de vista, porque, entretanto, o tempo tinha-se enevoado e uma ligeira brisa fazia-se sentir. Quando desapareceu completamente, Parker virou-se de súbito para mim com uma expressão no semblante que me causou calafrios. Tinha um ar de perfeita segurança e tranquilidade como não lhe tinha ainda observado e, antes dele abrir a boca, o coração já me revelara o que ia dizer. Propôs-me, em poucas palavras, que um de nós fosse sacrificado, para salvar a existência dos outros.
UM JOGO DE AZAR
Há já algum tempo que pensava que acabaríamos por chegar a este último e horrível extremo e, secretamente, tomei a resolução de aguentar a morte, qualquer que fosse a forma de que se revestisse, de preferência a tal recurso, não sendo de modo algum abalada esta minha resolução pela violência da fome que me torturava. Como a proposta não tinha sido ouvida por Augusto nem por Peters, chamei Parker de parte e, rogando mentalmente a Deus suficiente eloquência para o dissuadir do seu abominável projecto, tentei fazê-lo demover, suplicando-lhe ardentemente, e implorando-lhe em nome do que ele tivesse de mais sagrado e, aduzindo todos os argumentos que este caso me sugeria, pedi-lhe que abandonasse a ideia, e nada dissesse aos outros.
Escutou tudo o que lhe disse sem tentar rebater os meus argumentos e começava já a acreditar que acabaria por demovê-lo quando, ao calar-me, respondeu que sabia muito bem que tudo o que lhe havia dito era verdade, e que recorrer a tal solução era a alternativa mais horrível que podia entrar no cérebro humano, mas já sofrera mais do que a natureza humana podia suportar, e não era necessário que todos morressem quando, com a morte de um só, era possível, e até provável, que os outros sobrevivessem; acrescentou ainda que podia poupar o trabalho de o tentar desviar daquele propósito, pois estava já bem assente no seu espírito, antes do aparecimento do navio, e fora apenas a sua presença que o impedira de falar mais cedo. Supliquei-lhe então, vendo que não conseguia demovê-lo do projecto, que, pelo menos, o adiasse para outro dia, pois ainda podia vir algum navio em nosso socorro; retomando todos os argumentos que me vieram à cabeça, e que considerei adequados a um espírito rude como o seu. Respondeu-me que já tinha esperado tempo demais para falar no assunto, que não lhe era possível aguentar mais tempo sem comer qualquer coisa e que, por isso, deixar para outro dia a realização do projecto, seria demasiado tarde, pelo menos quanto a ele.
Vendo que nada o dissuadia, e que não podia convencê-lo com bons modos, usei um tom diferente e disse-lhe que devia ter presente que sofrera menos do que eles em todas as calamidades e que, por consequência, a minha saúde e a minha força eram muito superiores não só às dele, mas também às de Peters e Augusto; numa palavra: estava decidido a utilizar a força, se acaso a julgasse necessária e, se ele tentasse por qualquer forma revelar aos outros o seu sanguinário e canibalesco projecto, não hesitaria em atirá-lo ao mar. Ao ouvir isto, agarrou-me bruscamente pela garganta e, puxando da faca, fez vários esforços inúteis para cravar-ma na barriga, atrocidade que só não conseguiu levar a cabo, devido à sua extrema debilidade. Entretanto, encolerizado ao máximo, empurrei-o até à borda do navio, com a firme intenção de o lançar à água. Salvou-se deste destino pela intervenção de Peters, que se aproximou e nos separou, perguntando qual o motivo da desavença. Parker explicou-lhe, antes que eu pudesse impedi-lo.
O efeito das suas palavras foi ainda mais terrível do que eu esperava. Tanto Augusto como Peters que, pelos vistos, há já muito tempo alimentavam em segredo o terrível pensamento, que Parker fora simplesmente o primeiro a expor, uniram-se a ele, e insistiram que se levasse a efeito, acto contínuo. Tinha imaginado que, pelo menos um deles, conservasse a força de vontade e mantivesse suficiente sangue-frio para se pôr do meu lado e opor-se à execução daquele terrível intuito e, com o auxílio com que contava, julgava-me perfeitamente capaz de impedir a sua realização. Frustrada esta esperança, era-me absolutamente indispensável atender à minha segurança, porque uma resistência mais prolongada da minha parte podia servir àqueles homens, completamente exasperados pela sua situação, como desculpa bastante para me recusarem um jogo limpo na tragédia que, com toda a certeza, não demoraria a realizar-se.
Assim, disse-lhes que estava disposto a aderir à. proposta, pedindo-lhes apenas que aguardassem uma hora, a fim de permitir que o nevoeiro que nos envolvia se dissipasse, pois talvez estivesse à vista o navio que anteriormente tínhamos visto. Com grande dificuldade, obtive deles a promessa de aguardarem e, como calculara, graças a uma brisa que surgiu rapidamente, a bruma levantou-se antes ainda do prazo marcado e, como nenhum navio estivesse no horizonte, preparámo-nos para tirar a sorte.
É com excessiva repugnância que vou relatar a pavorosa cena que se desenrolou, e que nenhum acontecimento posterior pôde apagar-me da memória, onde ficou gravada com os mais minuciosos pormenores, e cuja cruel recordação amargará todos os futuros momentos da minha existência. Passemos, pois, por esta parte da minha narrativa, o mais rapidamente que a natureza dos incidentes a revelar permita. O único meio que estava à nossa disposição para a terrível lotaria, na qual cada um de nós tinha o risco a correr, era o da palha mais curta. Pequenas estilhas de madeira serviam para o fim proposto, e foi convencionado que seria eu a apresentá-las. Afastei-me para um canto no navio, enquanto os meus pobres companheiros ficavam no extremo oposto, de costas para mim. O momento mais cruel deste drama terrível, o mais angustiante, foi quando procurava arranjar as várias parcelas. São poucas as situações em que o homem deixa de sentir um profundo interesse pela conservação da existência, interesse que aumenta momentaneamente com a fragilidade dos laços de que depende a sua vida. Mas agora, a silenciosa, definitiva e rigorosa tarefa a que me entregava (tão diferente dos tumultuosos perigos da tempestade ou dos horrores crescentes da fome), permitiu-me reflectir sobre as poucas possibilidades que tinha de escapar à mais terrível das mortes - uma morte que servia para um fim horroroso - , e as partículas desta energia que tanto tempo me sustentaram, desprendiam-se agora de mim como as penas que o vento leva, deixando-me desamparado, presa impotente do mais abjecto e lamentável terror. A princípio, não tive sequer forças suficientes para arrancar e reunir as pequenas lascas de madeira; os dedos negavam-se terminantemente a cumprir aquela tarefa e os joelhos entrechocavam-se com violência. Pela cabeça, passavam-me em turbilhão milhares de absurdos projectos para evitar a participação naquele terrível jogo. Pensei cair de joelhos diante dos meus companheiros, suplicando-lhes que me desobrigassem daquela necessidade; em precipitar-me sobre eles de improviso e matar um, para tornar assim desnecessária a jogada à sorte; em resumo: pensei em tudo, menos em executar o que tinha para fazer. Finalmente, a voz de Parker fez-me descer à realidade, ao instar-me a arrancá-los à temível inquietação em que estavam mergulhados. Mas, nem assim conseguia resignar-me a arranjar imediatamente as estilhas de madeira. Pus-me a pensar em todos os ardis imagináveis para fazer batota no jogo, de modo a levar um dos meus pobres companheiros de infortúnio a tirar o pedaço mais pequeno, pois fora convencionado que o que tirasse a mais curta das quatro lascas, morreria para conservação dos outros. Antes que alguém me condene por esta aparente infâmia, deve colocar-se numa situação precisamente igual à minha!
Como já não era possível adiar por mais tempo, avancei, com o coração a saltar-me do peito, para o castelo da proa, onde os meus companheiros aguardavam. Apresentei a mão fechada com as lascas e Peters tirou uma delas imediatamente. Estava livre! O seu pedaço, pelo menos não era o mais curto. Havia agora mais uma probabilidade contra mim. Reuni todas as energias e estendi os pedaços a Augusto, que tirou rapidamente o seu e ficou igualmente livre. Nesta altura, as probabilidades de viver ou morrer eram exactamente iguais e, então, apoderou-se do meu espírito toda a ferocidade do tigre, sentindo contra Parker, meu semelhante, meu pobre companheiro, o mais intenso, o mais diabólico ódio. Este sentimento durou pouco tempo e, por fim, com um arrepio convulsivo e os olhos fechados, estendi-lhe as restantes duas lascas. Mais de cinco minutos passaram, antes de conseguir resolver-se a tirar a sua e, durante esse período de indecisão (que me pareceu um século!), capaz de partir o coração ao mais insensível, não abri os olhos um instante que fosse. Finalmente, um dos pedaços foi-me vivamente arrancado da mão. A sorte estava jogada, mas não sabia se era a favor ou contra mim. Ninguém falava, e não ousava quebrar a minha incerteza olhando o pedaço que me restava, até que Peters me agarrou na mão, esforçando-me por olhar para ela. Não foi necessário, pois bastou-me olhar para o rosto de Parker para ver que estava salvo, e que era ele a vítima condenada. Respirei con-vulsivamente e caí desmaiado na coberta.
Voltei a mim a tempo de ver a consumação da tragédia e assistir à morte daquele que, como autor da proposta, havia sido o seu próprio carrasco. Parker não ofereceu a mínima resistência e caiu morto, atingido por uma punhalada nas costas dada por Peters. Não me vou deter a falar do terrível festim que imediatamente se seguiu: são coisas que poderemos imaginar, pois as palavras não têm poder suficiente para impressionar o espírito com o tremendo horror da realidade. Apenas direi que após termos aplacado a raivosa sede que nos destroçava com o sangue da vítima, e cortado, de comum acordo, as mãos, os pés e a cabeça, que atirámos ao mar com as entranhas, devorámos o resto do corpo, pedaço a pedaço, durante esses quatro dias para sempre memoráveis que se seguiram: 17, 18, 19 e 20 de Julho.
A 19, caiu uma chuvada torrencial que durou quinze ou vinte minutos, e que nos permitiu recolher um pouco de água num lençol que a nossa draga pescara no camarote, logo que se desencadeou a tempestade. A quantidade que ao todo recolhemos não chegava a meio galão, mas esta escassa provisão foi o bastante para, em certa medida, nos fazer recobrar a força e a esperança.
A 21, estávamos de novo reduzidos ao último extremo. O tempo mantinha-se quente e agradável, com alguma névoa e ligeiras brisas, geralmente de Norte para Oeste.
A 22, quando estávamos sentados, apertados uns contra os outros, meditando tristemente na nossa lamentável condição, ocorreu-me uma súbita ideia que brilhou num fulgurante raio de esperança. Lembrei-me de que ao ser cortado o mastro do traquete, Peters, nessa altura exposto ao vento nas mesas da enxárcia, tinha-me passado um dos machados, pedindo-me para o guardar, caso fosse possível, num sítio seguro, e que, minutos antes das últimas ondas terem inundado o brigue, eu tinha-o metido no castelo da proa, num dos catres de bombordo. Pensava agora que se o conseguíssemos encontrar, talvez nos fosse possível abrir a coberta por cima da despensa, arranjando assim provisões com toda a facilidade.
Quando comuniquei este projecto aos meus companheiros, lançaram um débil grito de alegria e lançámo-nos imediatamente para o castelo da proa. Mas, aqui, a dificuldade em descer era muito maior do que no camarote, pois a sua abertura era muito mais estreita. Como se recordará, todo o madeiramento à volta da escada do camarote tinha sido arrancado, ao passo que a passagem para o castelo da proa, não sendo mais do que uma simples escotilha, permanecera intacta. Contudo, não hesitei em tentar a aventura e, tendo-me sido atada uma corda à volta do corpo, como nas ocasiões anteriores, mergulhei intrepidamente, alcancei com rapidez o catre e, logo à primeira tentativa, recuperei o machado que foi acolhido entusiasticamente com gritos de alegria e de triunfo, considerando-se como um presságio da nossa definitiva salvação, a facilidade com que o encontrámos.
Começámos às machadadas à coberta, com toda a energia de uma esperança renovada, servindo-nos Peters e eu alternadamente do machado, pois o estado do braço de Augusto impedia-o de nos prestar qualquer auxílio. Como estávamos ainda muito debilitados para permanecer de pé, e como não podíamos trabalhar mais de um minuto ou dois sem descansar, em breve se tornou evidente que necessitaríamos de muitas horas para realizar uma tal tarefa, ou seja: abrir um buraco suficientemente amplo que desse livre acesso à despensa. Mas estas considerações não nos desanimaram e, trabalhando toda a noite à luz da lua, conseguimos atingir os nossos propósitos ao amanhecer do dia 23.
Peters ofereceu-se para descer e, após os preparativos usuais, mergulhou, para regressar quase em seguida com um pequeno pote que, com grande alegria, descobrimos estar cheio de azeitonas. Dividimo-las entre nós, e devorámo-las depois com enorme avidez. Peters voltou a descer e, desta vez, o resultado das suas pesquisas ultrapassou todas as esperanças, pois subiu imediatamente com um enorme presunto e uma garrafa de Madeira. Apenas bebemos uma pequena golada de vinho, sabendo agora, por experiência própria, os perigos que haveria se a ele nos entregássemos sem moderação. O presunto, excepto umas duas libras junto ao osso, estava deteriorado pela água salgada, e não se podia tragar. A parte sã foi dividida em três pedaços e Peters e Augusto, incapazes de dominarem a fome, comeram Imediatamente o quinhão que lhes competia; quanto a mim, fui mais prudente e, temendo a sede que daí poderia advir, comi apenas um pequeno pedaço da minha parte. Depois, descansámos um pouco do nosso trabalho, que fora terrivelmente árduo.
Cerca do meio-dia, mais recuperados e fortalecidos, recomeçámos à procura das provisões. Peters e eu, mergulhámos alternadamente, sempre com maior ou menor êxito, até ao pôr-do-sol. Durante este espaço de tempo, tivemos a sorte de reunir mais quatro potes de azeitonas, outro presunto, um garrafão contendo quase três galões de um excelente vinho da Madeira e, o que nos deu maior prazer, uma pequena tartaruga do tipo galápago. O capitão Barnard, quando o Grampus estava para sair do porto, recebera a bordo várias tartarugas da escuna Mary-Pitts, que regressava de uma viagem ao Pacífico à caça das focas.
Mais adiante, falarei frequentemente desta espécie de tartaruga que se encontra, como a maior parte dos leitores sabe, num grupo de ilhas chamadas Galápagos cujo nome vem do próprio animal - a palavra espanhola galápago significa tartaruga de água doce. Pela sua forma particular e pelos movimentos, dá-se-lhe às vezes o nome de tartaruga-elefante, atingindo algumas delas enormes dimensões. Eu próprio vi certos animais deste tipo, que pesavam de mil e duzentas a mil e quinhentas libras, embora não conheça nenhum marinheiro que se referisse a esta espécie de tartarugas com mais de oitocentas libras. O seu aspecto é estranho e chega a ser repugnante. A maneira de andar é muito lenta, compassada e pesada, levantando o corpo apenas a um pé do solo. O pescoço é comprido e excessivamente fino, com um comprimento normal de dezoito polegadas e dois pés, mas, uma vez, matei uma em que a distância da carapaça à extremidade da cabeça não tinha menos que três pés e dez polegadas. A cabeça tem uma notável semelhança com a da serpente. Podem viver sem comer durante tanto tempo que parece Incrível, e contam-se casos em que tartarugas desta espécie foram lançadas para o porão de um navio e aí ficaram dois anos sem qualquer alimento, vindo a ser encontradas com o mesmo aspecto e a mesma disposição do primeiro dia. Estes estranhos animais assemelham-se, por uma particularidade dos seus organismos, aos dromedários ou camelos do deserto, pois têm uma bolsa junto à base do pescoço onde guardam uma provisão de água. Ao matá-los, depois de os haver privado de qualquer alimento durante um ano, encontram-se por vezes nessa bolsa quase três galões de água doce e fresca.
A sua alimentação é à base de salsa selvagem e do aipo, da beldroega, da barrilha e do nopal, existindo em grande abundância este último vegetal, de seu especial agrado, nas vertentes das colinas, perto da beira-mar, onde se encontra o próprio animal. Esta tartaruga, um excelente e substancial pitéu, serviu, fora de dúvida, para a sobrevivência de milhares de marinheiros empenhados na pesca da baleia e noutras expedições no Pacífico.
A que tivemos a sorte de trazer da despensa não era muito grande, e não pesava mais de sessenta e cinco ou sessenta e seis libras. Era fêmea, estava em óptimo estado, bastante gorda, e tinha na bolsa do pescoço mais de um quarto de galão de água doce e límpida. Era um autêntico tesouro e, caindo de joelhos, demos graças a Deus por aquele oportuno auxílio.
Deu-nos imenso trabalho fazer passar o animal pela abertura, porque resistia com furor e tinha uma força espantosa. Estava a ponto de escapar das mãos de Peters, e a voltar a cair à água, quando Augusto lhe lançou ao pescoço uma corda de nó corredio, e assim a susteve até eu saltar para o lado de Peters e ajudá-lo a levantar o bicho até à coberta.
Foi com grande alegria que transvasámos a água da bolsa do animal para o cântaro que, como se recordará, havíamos trazido anteriormente do camarote. Depois, partimos o gargalo de uma garrafa, de modo a fazermos, com o auxílio da rolha, uma espécie de copo que não chegava a levar um quarto de pinta. Cada um bebeu um copo cheio, e resolvemos limitar-nos a esta ração diária, para que a provisão de água durasse mais.
Como o tempo tinha estado seco e agradável nos últimos dois ou três dias, as mantas que tínhamos tirado do camarote estavam completamente secas, assim como as nossas roupas, de modo que passámos esta noite (a noite de 23) com uma relativa comodidade, desfrutando de um sono tranquilo, depois de nos termos consolado com azeitonas e presunto, e uma pequena quantidade de vinho. Como receávamos de durante a noite caíssem ao mar algumas das nossas provisões, se acaso se levantasse um vento mais forte, atámo-las da melhor maneira possível aos restos do molinete. Quanto à tartaruga, que desejávamos a todo o custo conservar viva enquanto pudéssemos, virámo-la de pernas para o ar, e prendemo-la com o máximo cuidado.
FINALMENTE
24 de Julho. - A manhã do dia 24 veio encontrarmos extraordinariamente restabelecidos, de força e de coragem. Apesar da perigosa situação em que nos encontrávamos, ignorando a nossa posição e longe, com toda a certeza, de qualquer terra, com provisões que apenas davam para uma quinzena, mesmo rigorosamente racionadas, inteiramente privados de água e flutuando à mercê das ondas e dos ventos no mais miserável destroço do mundo, as angústias e perigos infinitamente mais terríveis a que recente e milagrosamente havíamos escapado, faziam-nos considerar os actuais sofrimentos como coisa corriqueira; na verdade, felicidade e infelicidade são coisas muito relativas.
Ao nascer-do-sol, preparávamo-nos para recomeçar as tentativas para trazer mais coisas da despensa, quando desabou uma intensa chuvada e empregámos todos os esforços a recolher a água, com o lençol que já anteriormente utilizáramos para o mesmo efeito. A única maneira que tínhamos para recolher a água da chuva, era manter o lençol esticado e, no meio, colocarmos uma das correntes das mesas de enxárcia do traquete. A água, reunida deste modo no centro, escorria depois para o cântaro. Por este processo, tínhamo-lo quase enchido, quando uma violenta nortada nos obrigou a largar o pano, porque o barco começava a balancear tanto que não nos conseguíamos manter de pé. Fugimos para a proa e, amarrando-nos com solidez ao molinete, como já tínhamos feito, aguardámos o que desse e viesse, com muito mais calma do que seria de prever em semelhantes circunstâncias. Ao meio-dia, o vento refrescou; era já uma brisa de meter dois rizes e, à noite uma forte nortada, acompanhada de ondas muito altas. Como a experiência nos ensinara a melhor maneira de prender as amarras, suportámos esta triste noite sem demasiada inquietação embora, minuto a minuto, nos víssemos fustigados pelas ondas que nos encharcavam completamente, e estivéssemos em constante perigo de sermos varridos pelo mar. Por sorte, como o tempo estava muito quente, era quase agradável receber toda aquela água.
25 de Julho. - Ao amanhecer, a tempestade não passava agora de uma brisa de dez nós por hora e as ondas eram tão pequenas que podíamos andar na coberta sem nos molharmos. Infelizmente, vimos que dois dos potes de azeitonas, e o resto do presunto, haviam sido arrancados pelas ondas, não obstante terem sido cuidadosamente atados. Resolvemos não matar ainda a tartaruga, contentando-nos para o almoço com algumas azeitonas, e uma pequena porção de água misturada em partes Iguais com vinho; esta mistura ajudava-nos a aliviar a sede e reanimáva-nos, sem por isso provocar a malfadada embriaguez que adviera do vinho do Porto. O mar estava ainda muito encrespado para podermos recomeçar as tentativas na despensa. Durante o dia, vieram à superfície, através da abertura, vários objectos de escassa importância para a nossa actual situação, e deixámos que o mar os levasse. Observámos também que a nossa carcaça se inclinava cada vez mais, de tal maneira que já não conseguíamos permanecer de pé um instante que fosse, a não ser amarrados e, assim, passámos um dia melancólico e dos mais penosos. Ao meio-dia, o sol surgiu quase a pino sobre as nossas cabeças, sinal quase certo de que toda aquela sucessão de ventos de norte e de noroeste, nos devia ter arrastado para as proximidades do Equador. A tardinha, avistámos alguns tubarões e alarmou-nos bastante a audácia com que um deles, enorme, se aproximou de nós. Como um forte balanço fez submergir profundamente a coberta na água, durante um momento o monstro nadou mesmo por cima de nós, debateu-se alguns instantes sobre a escotilha, e chegou a atingir seriamente Peters com a cauda, até que, com grande alegria nossa, uma onda mais forte o atirou pela borda fora. Se o tempo estivesse mais calmo teria sido fácil capturá-lo.
26 de Julho. - De manhã, como o vento acalmara e as ondas não eram muito fortes, resolvemos retomar a pesca às provisões da despensa. Depois de um árduo trabalho que se prolongou todo o dia, chegámos à conclusão que já não valia a pena continuar as pesquisas porque os tabiques tinham sido arrancados durante a noite e as provisões haviam-se dispersado pelo porão. Como é de calcular, esta descoberta encheu-nos de desespero.
27 de Julho. - Quase calmaria, com uma ligeira brisa, sempre de Norte ou Noroeste. Como à tarde o sol aquecesse muito, dedicámo-nos a secar a nossa roupa. Sentimos muito alívio e bem-estar, e acalmámos um pouco a sede banhando-nos no mar, mas sempre com extrema prudência, porque temíamos imenso os tubarões que avistáramos a nadar à volta do brigue durante todo o dia.
28 de Julho. - Continua o bom tempo. O brigue começou a adornar de um modo tão alarmante que receámos que se voltasse definitivamente, de quilha para cima. Preparámo-nos o melhor possível para esta contingência. A tartaruga, o cântaro de água e os dois potes de azeitonas que nos restavam, foram amarrados a barlavento, o mais longe possível do casco, debaixo das grandes mesas da enxárcia. Durante todo o dia, um mar muito calmo, com pouco ou nenhum vento.
29 de Julho. - Persiste o bom tempo. O braço ferido de Augusto começou a apresentar sintomas de gangrena. O meu amigo queixa-se de um entorpecimento e de uma sede excessivos, mas não tem dores agudas. Nada podíamos fazer para o aliviar, excepto esfregar-lhe os ferimentos com um pouco do vinagre das azeitonas o que, pelos vistos, nada lhe adianta. Fizemos por ele tudo o que nos era possível, e triplicámos-lhe a ração de água.
30 de Julho.- Dia terrivelmente quente, sem vento. Um enorme tubarão manteve-se ao lado do casco durante toda a tarde. Fizemos várias tentativas infrutíferas para o apanharmos com um laço. Augusto estava bastante pior e era evidente que enfraquecia, quer pela falta de comida conveniente, quer devido aos seus ferimentos. Suplicava constantemente que lhe poupassem os seus padecimentos, nada mais desejando, segundo dizia, que a morte. À noite comemos as últimas azeitonas, e achámos a água do cântaro demasiado deteriorada para a podermos beber sem lhe adicionarmos um pouco de vinho. Resolvemos matar a tartaruga na manhã seguinte.
31 de Julho. - Depois de uma noite de fadiga e ansiedade tremendas, devido à posição do barco, dispusemo-nos a matar e a esquartejar a tartaruga, que tinha muito menos carne do que havíamos suposto, embora de boa qualidade - tudo o que pudemos tirar dela não ultrapassava as dez libras. No intuito de conservarmos uma porção o maior tempo possível, cortámos a carne em postas muito finas, enchemos com ela os três potes de azeitonas vazios e a garrafa de Madeira (que preciosamente tínhamos conservado), e regámo-la com o vinagre das azeitonas. Desta maneira, pusemos de parte cerca de três libras de carne de tartaruga, prometendo não lhe tocar antes de termos consumido o resto. Ao escurecer, chuva intensa, acompanhada de relâmpagos e violentos trovões, mas que durou tão pouco tempo que pouco mais de meia pinta de água conseguimos recolher. De comum acordo, demos a água toda a Augusto que parecia ter chegado aos seus últimos momentos. Bebia a água directamente do lençol à medida que a recolhíamos, segurando no pano de modo a cair-lhe na boca, enquanto ele se estendia na coberta. Éramos obrigados a utilizar este processo porque não tínhamos nada que pudesse servir para conter a água, a não ser, claro, esvaziando o vinho do garrafão, ou o cântaro de água deteriorada. Mas, se o aguaceiro tivesse continuado, teríamos recorrido a um destes expedientes.
Segundo parece, Augusto não obteve grande alívio com a bebida. Tem o braço completamente negro, desde o punho até ao ombro, e os pés frios como o gelo. Esperamos a cada momento vê-lo soltar o último suspiro. Estava espantosamente magro pois, embora pesasse cento e vinte e sete libras ao deixar Nantucket, não pesava agora mais de quarenta ou cinquenta libras, no máximo. Os olhos estavam tão profundamente encovados na cabeça que mal se viam, e a pele das faces pendia-lhe, flácida e sem vigor, a ponto de o impedir de mastigar qualquer coisa ou beber qualquer líquido, a não ser com uma enorme dificuldade.
1 de Agosto. - Sempre o mesmo tempo: calmaria e sol cujo calor sufoca. Sofremos horrivelmente com sede, pois a água do cântaro está completamente pútrida e cheia de bichos. Mesmo assim, conseguimos beber um pouco, misturando-a com vinho, mas a sede foi apenas mediocremente aplacada. Os banhos de mar aliviam-nos imenso, mas só de longe em longe é que podemos recorrer a este expediente, devido à contínua presença dos tubarões. É agora evidente que Augusto está perdido; pouco a pouco vai-se apagando. Nada podíamos fazer para lhe diminuir os sofrimentos que pareciam horríveis. Cerca do meio-dia, expirou no meio de violentas convulsões e sem ter proferido uma só palavra há várias horas. A sua morte despertou em nós os pressentimentos mais melancólicos e exerceu uma impressão tão forte sobre o nosso espírito, que passámos todo dia deitados ao lado do corpo, sem nada dizer a não ser em voz baixa. Só depois de anoitecer é que arranjámos ânimo para nos levantarmos e lançar ao mar o cadáver. Estava hediondo, para além do que se possa dizer, e num estado tal de decomposição que, quando Peters tentava soerguê-lo, ficou-lhe uma perna na mão. Quando esta massa putrefacta deslizou para o mar por cima da amurada do navio, a claridade fosforescente que, por assim dizer, a rodeava, deixou-nos ver sete ou oito tubarões, cujas presas terríveis produziram, enquanto dividiam e retalhavam a presa, um estalido sinistro que podia ouvir-se a uma milha de distância. Perante este fúnebre ruído, o horror invadiu-nos até ao âmago do nosso corpo e da nossa alma.
2 de Agosto. - O mesmo tempo, calmaria terrível, excessivo calor. A alvorada surpreendeu-nos num lastimoso estado de abatimento mental e de total esgotamento físico. A água do cântaro está totalmente impo-tável pois converteu-se numa massa gelatinosa, numa mistura pavorosa de vermes e de lodo. Deitámo-la fora e, depois de termos cuidadosamente lavado o cântaro no mar, despejámos-lhe um pouco de vinagre dos recipientes onde estavam em conserva os pedaços de tartaruga. Como a sede era quase intolerável, tentámos em vão aplacá-la com o vinho, que era o mesmo que deitar lenha no lume, e nos excitava até um elevado grau de embriaguez. Procurámos depois mitigar os nossos sofrimentos, misturando o vinho com a água do mar; mas, sentindo imediatas e violentas náuseas, não voltámos a recorrer a tal processo. Passámos ansiosamente o dia à espera de uma oportunidade para nos banharmos, mas era impossível, porque o nosso pontão fora inteiramente sitiado pelos tubarões - sem dúvida os mesmos monstros que na noite anterior devoraram o nosso pobre companheiro, e que aguardavam a cada instante outro festim similar. Este facto causou-nos um profundo pesar e encheu-nos dos mais melancólicos e deprimentes pressentimentos. O banho dava-nos um alívio tão grande que, ao vermo-nos privados desse recurso de um modo tão terrível, era superior às nossas forças suportar tal ideia. Aliás, não estávamos livres de perigo, pois o mais leve deslize ou qualquer movimento em falso, podia pôr-nos ao alcance desses vorazes animais que avançavam de sotavento e se dirigiam muitas vezes direitos a nós. Nem gritos nem movimentos da nossa parte pareciam assustá-los. Um dos maiores, mesmo depois de ter sido atingido com uma machadada por Peters, e de estar profundamente ferido, persistia nos seus intentos de nos alcançar.
Ao anoitecer surgiu uma nuvem mas, com extremo desapontamento nosso passou sem se transformar em chuva. É totalmente impossível conceber os sofrimentos que a sede nos causou neste período. Passámos a noite sem dormir, quer devido às torturas da sede, ou ao receio dos tubarões.
3 de Agosto. - Nenhuma perspectiva das coisas melhorarem, e o brigue inclina-se cada vez mais, a ponto de os nossos pés não se conseguirem apoiar na coberta. Ocupámo-nos a pôr em segurança o vinho e os restos da tartaruga, para não corrermos o risco de os perder no caso do navio se voltar completamente. Arrancámos dois fortes pregos das mesas de enxárcia do traquete e, com o machado, cravámo-los no casco de sotavento, a cerca de dois pés da água, não longe da quilha, porque já estávamos quase de lado. Atámos as provisões a estes pregos, parecendo-nos que estariam aí mais seguras do que no local onde as colocáramos anteriormente. Durante todo o dia horríveis sofrimentos devidos à sede; nenhuma ocasião para nos banharmos, pois os tubarões não nos abandonaram durante um só instante. O sono: impossível.
4 de Agosto. - Pouco antes de amanhecer, apercebemo-nos que o navio voltava a quilha para o ar, e tentámos segurar-nos, para evitar sermos cuspidos pelo movimento. De início, a volta foi lenta e gradual, e conseguimos trepar com relativa facilidade até sotavento, pois tivemos a feliz ideia de deixar pender umas cordas dos pregos que seguravam as provisões. Mas, como não calculámos bem a aceleração do impulso, e o movimento era agora tão violento que nos Impedia de o acompanhar, antes que déssemos conta do que se passava, vimo-nos bruscamente atirados ao mar, debatendo-nos a várias braças de profundidade, com o enorme casco precisamente por cima de nós.
Ao cair à água, tinha-me visto obrigado a largar a corda e, ao reparar que estava mesmo por debaixo do navio, as minhas pobres forças completamente esgotadas, poucos esforços fiz para me salvar, resignando-me em poucos segundos a morrer. Mas, também nisto me enganei, pois não contara com o natural ressalto do casco de sotavento. O turbilhão ascendente de água, ocasionado pela revolução parcial do barco, trouxe-me de novo à superfície ainda mais depressa do que quando mergulhara. Ao chegar à tona, estava, segundo os meus cálculos, a cerca de vinte jardas do casco. O navio estava de quilha para o ar e balançava com violência de um lado para o outro e, à sua volta, em todos os sentidos, o mar estava muito agitado e cheio de violentos turbilhões. Quanto a Peters: nada. Uma barrica de óleo flutuava a poucos pés de mim, e outros destroços provenientes do brigue estavam espalhados a esmo.
O meu principal receio era agora os tubarões, que sabia estarem perto. Para os espantar, se tal fosse possível, das minhas imediações, comecei a bater com toda a força na água com os pés e com as mãos, enquanto nadava para o casco, provocando assim grande quantidade de espuma. Não tenho dúvidas que foi a este expediente, por simples que pareça, que devo a minha salvação; antes do brigue se voltar, o mar em seu redor estava repleto de tal maneira com estes monstros que devo ter estado em contacto directo com eles (e es tive com toda a certeza), durante o meu trajecto. Felizmente, por um acaso da sorte, cheguei são e salvo ao costado do navio; mas estava de tal maneira esgotado pelos violentos esforços que tivera de fazer, que nunca teria conseguido trepar se não fosse a oportuna ajuda de Peters que, com grande alegria da minha parte, reapareceu e, tendo trepado para a quilha do outro lado do casco, atirou-me uma das cordas que tínhamos atado aos pregos.
Mal havíamos escapado a este perigo e já a nossa atenção se ocupava de outra iminência não menos terrível: morrer de fome. Todas as nossas provisões tinham desaparecido, arrastadas pelas águas, a despeito do extremo cuidado que tivéramos ao colocá-las num local seguro e, não vendo nenhuma remota possibilidade de conseguirmos outras, entregámo-nos ao desespero, desatando a chorar como crianças, sem tentarmos sequer dar coragem um ao outro. Só com dificuldade se poderá compreender semelhante fraqueza e aqueles que nunca se encontraram em semelhantes assados devem pensar que tudo isto é inverosímel; porém, deve ter-se presente que o nosso espírito estava de tal maneira transtornado pela longa série de privações e de terrores que, naquele momento, não podíamos ser considerados como seres racionais. Em perigos posteriores, quase tão graves, se não maiores, suportei com coragem todos os azares das situações e Peters, como se verá, deu provas de uma filosofia estóica, quase tão inconcebível, como o seu actual abandono e a sua imbecilidade de criança. A diferença está nas condições do espírito.
A inversão do brigue, e até a consequente perda do vinho e da tartaruga não teriam, realmente, tornado a nossa situação mais miserável do que antes, se não fosse o desaparecimento dos lençóis e das mantas, que até então nos haviam servido para recolher a água da chuva, assim como o desaparecimento do cântaro onde a guardávamos, porque encontrámos o casco, a partir de dois ou três pés da precinta até a quilha, e toda esta, coberta por uma espessa camada de grandes percebes que nos deram um excelente e um dos mais substanciais alimentos. Assim, o acidente que a princípio nos causara um terror tão grande, trouxera-nos mais vantagens do que prejuízos, relativamente a duas das coisas mais importantes: proporcionara-nos uma mina de provisões que, consumida moderadamente, duraria mais de um mês; contribuíra grandemente para maior comodidade da nossa posição, porque estávamos agora muito mais à vontade e muitíssimo menos expostos do que antes.
Contudo, a dificuldade de obter água, fazia-nos cegos para todos os benefícios resultantes da mudança de posição. Para podermos aproveitar, tanto quanto possível, a primeira chuvada que caísse, tirámos as camisas a fim de as usarmos como tínhamos feito com os lençóis, embora não contássemos recolher por este processo, mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, mais que um oitavo de pinta de cada vez. Durante todo o dia não surgiu nenhuma nuvem e as angústias da sede eram quase intoleráveis. À noite, Peters conseguiu dormir cerca de uma hora de um sono agitado; quanto a mim, a intensidade dos meus padecimentos não me deixaram fechar os olhos um instante que fosse.
5 de Agosto.- Neste dia, uma fresca brisa levou-nos através de uma grande quantidade de algas, entre as quais tivemos a sorte de encontrar alguns caranguejos pequenos que nos proporcionaram diversas refeições deliciosas. Como as carapaças eram muito tenras, comemo-los inteiros e vimos que nos causavam muito menos sede do que os percebes. Como não víssemos rasto de tubarões no meio das algas, aven-turámo-nos a banhar-nos, permanecendo na água quatro ou cinco horas, durante as quais experimentámos uma notável diminuição da sede. Ficámos extraordinariamente reconfortados, e passámos uma noite um pouco menos penosa do que a anterior, conseguindo ambos dormir.
6 de Agosto. - Hoje recebemos os benefícios de uma forte e contínua chuva, que durou do meio-dia até ao anoitecer. Deplorámos com amargura a perda do cântaro e do garrafão, porque apesar dos pobres meios de que dispúnhamos para recolher a água, teríamos podido encher uma das vasilhas, ou talvez até as duas. Mas, o que interessa é que conseguimos acalmar os ardores da sede, deixando que as camisas se empapassem de água e torcendo-as depois, de modo a cair-nos na boca o bem-aventurado líquido. Passámos nisto todo o dia.
7 de Agosto.- Precisamente ao romper do dia, descobrimos, os dois ao mesmo tempo uma vela a leste que se dirigia, sem sombra de dúvida, em nossa direcção! Saudámos esta magnífica aparição com um longo, embora débil, grito de intensa alegria, e começámos imediatamente a fazer todos os sinais possíveis, agitando as camisas no ar, saltando o mais alto que a nossa fraqueza permitia, e até gritando com toda a força dos pulmões, embora o navio estivesse ainda a uma distância de cerca de quinze milhas. Não havia dúvida que continuava a aproximar-se do nosso casco, e percebemos que se mantivesse a mesma rota, passaria tão perto que não podia deixar de nos ver. Ao fim de uma hora depois de o termos descoberto, já podíamos distinguir com facilidade os marinheiros na coberta. Era uma escuna comprida e baixa, com a mastreação muito inclinada para a popa, e parecia ter numerosa tripulação. Começámos então a angustiar-nos, pois embora fosse quase impossível que não nos vissem, temíamos que nos abandonassem à nossa sorte e nos deixassem perecer sobre os destroços do nosso navio, acto de crueldade diabólica que, por incrível que pareça, é tantas vezes feito em pleno mar por seres considerados como pertencentes à espécie humana. Mas, neste caso, graças à misericórdia de Deus, estávamos destinados a ser enganados da melhor maneira. Em breve notámos um súbito movimento na coberta do navio desconhecido, que imediatamente içou o pavilhão inglês e, cortando o vento, navegou direito a nós. Meia hora depois estávamos no camarote. A escuna era a Jane Guy, de Liverpool; o seu capitão, Guy; vinha caçar focas e comerciar nos mares do Sul e no Pacífico.
ALBATROZES E PINGUINS
A Jane Guy era uma formosa escuna de cento e oitenta toneladas de carga. Era extraordinariamente aguçada à proa e, com bom vento e tempo favorável, era o veleiro mais rápido que até hoje vi. No entanto, as suas qualidades como barco próprio para aguentar mar forte, estavam longe de ser tão grandes e, o seu calado era demasiado avantajado para o trabalho a que estava destinado. Para este tipo de serviço, é mais conveniente um barco maior e de calado relativamente escasso, ou seja: um navio de trezentas a trezentas e cinquenta toneladas. Deveria estar aparelhado com três-mastros-barca e ser completamente diferente dos navios que sulcam os mares do Sul. Era absolutamente indispensável que estivesse bem armada, por exemplo, com dez ou doze pequenos canhões de calibre doze, e dois ou três canhões muito maiores, com bacamartes de bronze e caixas de munições impermeáveis à água, para cada cesto de gávea. As âncoras e os cabos deveriam ter muito maior resistência da que se requer para outro tipo de navegação e, o fundamental, a tripulação tinha que ser muito mais numerosa pois, para um barco deste género, não podia ter menos de cinquenta ou sessenta homens práticos e vigorosos. A Jane Guy possuía trinta e cinco homens de tripulação, para além do capitão e do imediato, todos eles bons marinheiros, mas não estava bem armada nem equipada como o teria desejado um navegador familiarizado com os perigos e dificuldades do ofício.
O capitão Guy era um cavalheiro de modos distintos e tinha uma considerável experiência de todo o comércio do Sul, ao qual dedicara grande parte da vida: mas faltava-lhe energia e, por conseguinte, o espírito indispensável para um empreendimento deste género. Era co-proprietário do navio que comandava e tinha carta branca para cruzar os mares do Sul, e embarcar qualquer carga que melhor lhe conviesse. Como geralmente acontece nestas expedições, tinha a bordo colares, espelhos, isqueiros, machados, machadinhas, serras, enxós, plainas, escopros, goivas, verrumas, limas, raspilhas, martelos, grosas, pregos, facas, tesouras, navalhas de barbear, agulhas, fios, faianças, panos, jóias de fantasia, e outros artigos semelhantes.
A escuna saíra de Liverpool em 10 de Julho, passara o trópico de Câncer no dia 25, a 20° de longitude oeste, e tinha chegado ao Sal, uma das ilhas de Cabo Verde, a 29, onde embarcara sal e outros artigos necessários para a viagem. A 3 de Agosto deixara Cabo Verde e fizera rumo a sudoeste, apontando para as costas do Brasil, de forma a cruzar o Equador entre 28° e 30" de longitude oeste. É a rota habitualmente seguida pelos navios que vão da Europa para o Cabo da Boa Esperança, ou ainda mais para além, rumo às índias Orientais Seguindo este caminho, evitam as calmarias e as fortes correntes contrárias que existem continuamente nas costas da Guiné, de modo que, vendo bem, é o caminhe mais curto, porque há sempre a certeza de se encontrar ventos de oeste que lançam os navios até ao Cabo. O capitão Guy tinha o propósito de fazer a primeire escala em Kerguelen, não sei bem por que motivo. No dia em que fomos recolhidos, a escuna estava em direcçãc ao cabo de São Roque, a 31° de longitude oeste, de modo que quando nos encontraram, é muito natural que nos tivéssemos desviado pelo menos vinte e cinco graus, do norte para o sul!
A bordo da Jane Guy, fomos tratados com todos os cuidados e atenções que o nosso estado lamentável Exigia. Nos primeiros quinze dias, durante os quais seguimos continuamente rumo a sudeste, com brisas ligeiras e bom tempo, tanto Peters como eu restabelecemo-nos por completo dos efeitos das nossas últimas privações e dos terríveis padecimentos, e em breve recordávamos o passado mais como um pesadelo pavoroso, a que afortunadamente o acordar nos tinha arrancado, do que uma série de factos que tinham realmente acontecido, num tempo e num espaço bem definidos. Posteriormente, tive ocasião de observar que esta espécie de amnésia parcial é produzida pela brusca transição da alegria à tristeza, ou da tristeza à alegria, e o grau do esquecimento é proporcional à diferença de grau dos sentimentos contrastantes. Assim, no meu caso particular, sentia-me agora completamente incapacitado de me lembrar de todas as desgraças que tinha suportado no casco do navio. Os acontecimentos são fáceis de recordar, mas o mesmo não se passa com as sensações que os mesmos acontecimentos nos causaram. Tudo quanto sei é que, à medida que estes acontecimentos se produziam, parecia-me que a natureza humana era incapaz de suportar uma dor maior.
Durante várias semanas prosseguimos a viagem sem mais incidentes que os naturais encontros com baleeiros, e com maior frequência, baleias pretas ou baleias brancas, assim chamadas para se distinguirem dos cachalotes. A 16 de Setembro, nas proximidades do cabo da Boa Esperança, a escuna apanhou o primeiro temporal desde que saíra de Liverpopl. Nestas paragens, mas mais frequentemente a sul e a leste do promotório (nós estávamos a oeste), os navegadores têm muitas vezes de lutar com as tempestades de norte que são violentíssimas. Vêm sempre acompanhadas de vagas enormes, e uma das suas mais perigosas características é a repentina mudança do vento, facto que quase sempre acontece no auge da tempestade. Se, em determinada altura, há um autêntico furacão de norte ou nordeste, no minuto seguinte nem uma simples brisa vem desta direcção, enquanto que de sudoeste rebenta a ventania com uma violência quase inconcebível. Uma aberta a sudoeste é o sinal mais seguro destas mudanças, e é deste modo que os navios podem tomar as precauções necessárias.
Seriam talvez seis da manhã quando a borrasca começou, com as habituais rajadas de norte que nenhuma nuvem anunciara. Às oito, o vento aumentara imenso de intensidade, trazendo consigo um dos mares mais tremendos que vi até hoje. Tinham recolhido as velas, o melhor possível, mas a escuna era terrivelmente fustigada, revelando a sua impotência em se aguentar com mar picado, mergulhando com violência a proa sempre que descia numa onda, e erguendo-se com dificuldade, para logo receber novo embate. Precisamente ao pôr-do-sol, a aberta que temíamos surgiu a sudoeste e, uma hora depois, o nosso único velame de proa relingava contra o mastro. Dois minutos depois, não obstante todos os cuidados, tombávamos de costado como por magia, e rebentava sobre nós, vindo de lado, um espantoso turbilhão de espuma. Mas, por sorte, foi momentânea a ventania de sudoeste e conseguimos erguer-nos sem ter perdido um só mastro. Um mar bastante picado ainda nos deu algumas horas de inquietação, mas, de manhã, estávamos quase em tão boas condições como antes da tempestade. Segundo o capitão Guy, tínhamos escapado de boa e a nossa salvação parecia milagrosa.
A 13 de Outubro chegámos à vista da ilha do Príncipe Eduardo, a 46° e 53° de latitude sul e a 37° e 46° de longitude leste. Dois dias depois, estávamos nas imediações da ilha da Possessão e, em breve, deixávamos para trás as ilhas Crozet a 42° e 59' de latitude sul e 48° de longitude leste. A 18, atingimos a ilha de Kerguelen ou da Desolação, no Oceano Índico do Sul, e ancorámos em Christmas Harbour, sobre quatro braças de água.
Esta ilha, ou melhor, este grupo de ilhas, está situado a sudoeste do cabo da Boa Esperança, a cerca de 800 léguas. Foi descoberto em 1772 pelo barão francês Kergulen ou Kerguelen, que, presumindo que esta terra fazia parte de um extenso continente meridional, fez no regresso um relatório nesse sentido, que na altura despertou imensa curiosidade. No ano seguinte, o governo francês, que entretanto tomara conta do assunto, ordenou ao barão que lá voltasse com o objectivo de verificar de novo a sua descoberta, e foi então que se descobriu o erro. Em 1777 o capitão Cook encontrou o mesmo grupo e deu à ilha principal o nome de ilha da Desolação, nome que bem merece. Contudo, ao aproximar-se de terra, o navegador poderia enganar-se e supor o contrário, na medida em que as vertentes da maior parte das colinas estão cobertas da verdura mais viçosa, desde Setembro a Março. Esta enganosa aparência é devida à presença de uma planta rasteira semelhante às saxífragas, muito abundante na ilha, crescendo em grandes extensões sobre uma espécie de musgo sem consistência. Excepto esta planta, poucos mais vestígios de vegetação podem ser encontrados, exceptuando, perto do porto, um pouco de relva silvestre muito rija, alguns líquenes e um arbusto parecido com a couve, de sabor amargo e ácido.
A superfície do terreno é montanhosa, embora a nenhuma das suas colinas se possa chamar uma montanha. Os seus cumes estão cobertos de neves eternas. Há vários portos, dos quais, Christmas Harbour é o melhor. É o primeiro que se encontra do lado oriental da ilha, depois de se ter dobrado o cabo François, que forma o lado norte e que, pela sua forma peculiar, serve para distinguir o porto. A ponta termina num alto rochedo, através da qual se abre um largo buraco formando um arco natural. A entrada está a 48° e 40' de latitude sul e 66° e 6' de longitude leste. Passado este ponto, encontra-se um bom ancoradouro, abrigado por algumas ilhotas que constituem óptima protecção contra os ventos de leste. Seguindo para leste, a partir do referido encoradouro, chega-se a Wasp-Bay, à entrada do porto. É uma pequena baía completamente rodeada de terra, na qual se pode entrar sobre quatro braças de água, e encontrar um lugar para ancorar, com dez a três braças de água sobre um fundo de argila compacto. Um navio pode permanecer aí um ano inteiro, sobre a segunda âncora, sem o mínimo perigo. Na parte ocidental de Wasp-Bay, à entrada, desagua um pequeno regato que tem uma excelente água, muito fácil de recolher.
Encontram-se nas ilhas de Kerguelen focas de diversas espécies, e também abundam as focas de tromba ou elefantes marinhos. Os pinguins existem em bandos numerosos e são de quatro famílias diferentes. O maior de todos é o pinguim real, assim chamado devido ao porte e à beleza da sua plumagem. Geralmente, a parte superior do corpo é cinzenta, por vezes mesclada de lilás, e a parte inferior é do branco mais puro que se possa imaginar. A cabeça e as patas são de um negro luzidio e muito brilhante. Mas, a principal beleza da plumagem, consiste em duas longas faixas douradas que descem da cabeça até ao peito. O bico é comprido, algumas vezes róseo, de outras vermelho-vivo. Estes animais caminham muito direitos, com um passo majestoso. Como trazem a cabeça sempre erguida, as asas pendentes, como dois braços, e a cauda se projecta para fora do corpo à mesma altura das patas, é verdadeiramente chocante a sua semelhança com a figura humana, a ponto de enganar qualquer espectador que lhes dirijisse um rápido olhar ou os visse entre as sombras do crepúsculo. Os pinguins reais que encontrámos em Kerguelen eram um pouco maiores do que os gansos. As outras espécies são: o pinguin macaroni, o jack-ars e o pinguim rookery. São muito mais pequenos, com menor beleza de plumagem, e diferentes sob todos os aspectos.
Além do pinguim, encontram-se nesta ilha muitas outras aves, entre as quais se podem mencionar a uria, o petrel azul, a cerceta, o pato, a galinha de Port-Egmond, o corvo-marinho, a pomba do cabo, a nelly, vários tipos de andorinhas-do-mar, a gaivota, o petrel das tempestades, ou Mother Carey's chicken, o grande petrel, ou, Mother Carey's goose, e, finalmente, o albatroz.
O grande petrel tem quase o mesmo tamanho que o albatroz normal, e é também carnívoro. Muitas vezes chamam-lhe petrel-quebra-ossos ou petrel-águia-marinha. Estas aves não são nada esquivas e constituem um agradável alimento, depois de devidamente arranjadas e temperadas. Ao voar, rasam frequentemente a superfície das águas com as asas muito abertas, dando a impressão que as não movem, ou que nem sequer as utilizam.
O albatroz é uma das aves maiores e mais rápidas dos mares do Sul. Pertence à família das gaivotas, e agarra as presas em pleno voo, apenas pousando em terra para cuidar das crias. Entre estas aves e os pinguins existe uma extrema amizade. Os ninhos são construídos com grande uniformidade, segundo um plano definido pelas duas espécies: o albatroz ocupa o centro de um pequeno quadrado formado pelos ninhos de quatro pinguins. Os navegadores chamam a esta espécie de organismo, ou conjunto de ninhos, uma rookery. Mais de uma vez foram descritas estas colónias, mas, como nem todos os nossos leitores leram essas descrições e como mais adiante voltarei a falar do pinguim e do albatroz, não me parece despropositado escrever agora algumas palavras sobre essas construções e a sua existência.
Ao chegar a época da incubação, estas aves reú-nem-se em grandes bandos, e assim passam vários dias como se estivessem a deliberar sobre o melhor método a seguir, até que. finalmente, passam à acção. Escolhem um local plano, de dimensões convenientes, normalmente com 3 ou 4 acres de superfície, e situado o mais perto possível do mar. embora fora do seu alcance. O que os leva fundamentalmente à escolha do local é a uniformidade da superfície e. dentro desse local, o espaço onde haja menos pedras. Resolvido este assunto, as aves procedem de comum acordo, como que movidas por um único espírito, a traçar, com precisão matemática, um quadrado ou qualquer outro paralelogramo. segundo a natureza do terreno, com capacidade suficiente para alojar todas as aves reunidas, mas só essas. Esta precisão deve querer exprimir o desejo de fechar a colónia aos vagabundos que não participaram na construção do acampamento. Um dos lados do local estende-se paralelamente à costa, e fica aberto para que as aves possam entrar ou sair.
Fixados os limites da sua habitação, começam a desembaraçá-la de toda a espécie de detritos, recolhendo tudo, pedaço a pedaço, e transportando-o para fora, mas muito perto das linhas demarcantes, de modo a levantarem uma muralha a circundar as três faces voltadas para terra. Por dentro, e paralelamente a essa muralha, constróem uma espécie de corredor, perfeitamente plano e unido, com cerca de 6 a 8 pés de largura, que se estende a toda a volta do acampamento, para criarem uma espécie de passeadoiro comum.
A operação que se segue, consiste em dividir toda a zona em pequenos quadrados de área absolutamente igual. Para obterem esta divisão fazem estreitos caminhos, perfeitamente nivelados e cruzando-se em ângulos rectos, através de toda a extensão da rookery. Em cada intersecção destes caminhos fica um ninho de pinguins, de modo que cada pinguim está rodeado por quatro albatrozes, e cada albatroz por número igual de pinguins. O ninho do pinguim consiste num buraco cavado na terra, a uma profundidade suficiente para impedir que role o seu único ovo. O albatroz é um pouco mais complicado, pois levanta um pequeno montículo, com cerca de um pé de altura por dois de largura, feito com terra, algas e conchas, e aí, no cimo do monte constrói o ninho.
Estas aves têm um cuidado muito especial em nunca deixarem os ninhos abandonados durante a incubação, e mesmo depois de as crias serem suficientemente fortes para se bastarem a si próprias. Enquanto o macho está no mar em busca de alimentos, a fêmea permanece no ninho, e só se aventura a sair quando regressa o companheiro. Os ovos nunca ficam a descoberto e, se acaso a fêmea se levanta e deixa o ninho, o macho ocupa o seu lugar. Esta precaução é indispensável devido à tendência para a ratoneirice que existe entre os habitantes da colónia, que não têm pejo em se roubarem mutuamente os ovos quando têm ocasião para isso.
Embora existam algumas colónias destas, unicamente povoadas por pinguins e albatrozes, em outras, que são a maioria, reúne-se uma grande variedade de aves marinhas que partilham os mesmos direitos, espalhando os seus ninhos a esmo, onde conseguem encontrar lugar, mas nunca usurpando os locais já ocupados pelas espécies mais fortes. Visto de longe, o aspecto destas colónias é muito estranho. Por cima delas, o ar parece negro pela grande quantidade de albatrozes, misturados com outras espécies mais pequenas, que constantemente planam sobre a rookery, cruzando-se os que partem para o mar com os que regressam aos ninhos. Simultaneamente, vê-se uma multidão de pinguins que vão e vêm através dos estreitos carreiros, e outros que caminham, com o garboso porte militar que os caracteriza, ao longo do corredor que dá a volta à colónia. Numa só palavra, qualquer que seja o prisma com que se observem os factos, não há nada tão surpreendente como o espírito de reflexão de que dão provas estes seres emplumados, e não existe, com toda a certeza, outro facto que seja mais adequado para fazer meditar os seres humanos de inteligência certa e ponderada.
Na própria manhã da nossa chegada a Christmas Harbour, o imediato, Sr. Patterson, mandou preparar os botes e, embora a temporada não tivesse começado, saiu para a caça às focas, deixando o capitão, com um jovem familiar, junto à margem ocidental, porque tinham que fazer qualquer coisa no interior da ilha de que não me informaram. O capitão Guy levou consigo uma garrafa que continha uma carta e, do local onde desembarcou, dirigiu-se a um dos picos mais altos da região, é muito possível que o seu propósito fosse deixar a carta naquele ponto para o capitão de algum barco que ele soubesse que viria depois. Logo que os perdemos de vista (Peters e eu estávamos no bote do imediato), começámos a explorar a costa, em busca de focas. Nesta ocupação passámos três semanas, examinando com minúcia todas as enseadas e esconderijos, não só da ilha de Kerguelen, mas também das ilhotas vizinhas. Contudo, as nossas explorações não tiveram grande êxito. Vimos muitas focas de pele, mas eram tão desconfiadas que só com imenso trabalho conseguimos reunir trezentas e cinquenta peles, na totalidade. Os elefantes marinhos, ou focas de trombas, são muito abundantes, especialmente na costa ocidental da ilha principal, mas não matámos mais de duas dezenas, e com extrema dificuldade. Nas ilhas pequenas avistámos uma grande quantidade de focas de pêlo áspero que deixámos tranquilas. Regressámos a bordo da escuna no dia 11 de Novembro, onde encontrámos o capitão Guy e o sobrinho, que nos deram péssimas informações sobre o interior da ilha, dizendo que era um dos sítios mais tristes e áridos do universo. Haviam passado duas noites em terra devido a um mal-entendido do segundo-piloto que não lhes tinha enviado um bote para os recolher a tempo.
AS ILHAS INEXISTENTES
No dia 12 saímos de Christmas Harbour, retomando a rota de oeste, e deixando a bombordo a ilha da Ma-rion, pertencente ao arquipélago das Crozet. Passámos depois ao largo da ilha do príncipe Eduardo, que deixámos igualmente à nossa esquerda e, desviando-nos mais para o norte, chegámos passados quinze dias às ilhas de Tristão da Cunha, situadas a 37° e 8° de latitude sul e 12° e 8° de longitude oeste.
Este grupo, hoje tão bem conhecido, formado por três ilhas circulares, foi inicialmente descoberto pelos Portugueses, visitado mais tarde pelos Holandeses em 1643, e pelos Franceses em 1767. As três ilhas formam um triângulo e estão muito distantes, cerca de 10 milhas, umas das outras. Em todas elas a costa é muito alta, principalmente na de Tristão da Cunha, propriamente dita. É a maior do grupo (15 milhas de circunferência) e é tão alta que, com tempo límpido, pode-se avistar a uma distância de 80 ou 90 milhas. Uma parte da costa para norte eleva-se a pique sobre o mar, a mais de 100 pés de altura. No topo há um planalto que se estende quase até ao centro da ilha e do planalto ergue-se um cone semelhante ao de Tenerife. A metade inferior deste cone está coberta de árvores frondosas; mas, a região mais alta, é um rochedo árido que está normalmente escondido pelas nuvens e coberto de neve durante grande parte do ano. Nas imediações da ilha não há baixios, nem quaisquer outros perigos; as costas são excepcionalmente límpidas e caprichosamente recortadas, e a água é muito funda. Na costa noroeste há uma baía com uma praia de areia negra, onde um bote pode atracar facilmente desde que sopre vento de sul. Encontra-se aí com facilidade água potável, e pode-se pescar ao anzol e à linha, o bacalhau e outras qualidades de peixe.
A segunda ilha, por ordem de tamanho, e a mais ocidental do grupo, chama-se Inacessível. A sua situação exacta é de 37° e 7' de latitude sul, por 12° e 24' de longitude oeste. Tem sete a oito milhas de circunferência e todas as costas são semelhantes a uma muralha a pique. No alto é completamente plana e todo o terreno é estéril, pois nada aí resiste, excepto uns arbustos enfezados.
A ilha Nightingale, a mais pequena e a mais meridional, está situada a 37° e 26' de latitude sul e 12° e 12' de longitude oeste. Ao largo da sua extremidade sul há um recife bastante alto, formado por pequenas ilhotas rochosas, vendo-se também alguns de aspecto semelhante a nordeste. O terreno é estéril e irregular e um profundo vale corta parte da ilha.
Na estação favorável, as costas destas ilhas são abundantes em focas, desde as focas de crinas, aos elefantes-marinhos e às focas de peles, assim como todo o género de aves oceânicas. Também a baleia é frequente nestas paragens. A facilidade com que antigamente se caçavam estes animais fez com que estas ilhas, desde a sua descoberta, fossem muito frequentadas. Os Holandeses e os Franceses aí acorriam desde os primeiros anos. Em 1790, o capitão Patten, comandante do Industry, de Filadélfia, fez uma viagem a Tristão da Cunha onde permaneceu sete meses (de Agosto de 1790 a Abril de 1791), para recolher peles de focas. Durante esse período, conseguiu arranjar cinco mil e seiscentas, e afirmou que, sem grande trabalho, poderia ter produzido em três semanas um carregamento de óleo para um navio de grande tonelagem. À chegada não encontrou qualquer quadrúpede, exceptuando algumas cabras monteses; mas, agora, existem na Ilha as melhores espécies dos nossos animais domésticos, que os navegadores foram sucessivamente introduzindo.
Segundo penso, foi pouco tempo depois da expedição do capitão Patten que o capitão Colquhoun, do brigue americano Betsey, acostou à maior das ilhas para se reabastecer. Plantou cebolas, batatas, couves e toda uma longa série de outros legumes que ainda agora aí se encontram com abundância.
Em 1811, um tal capitão Heywood, do Nereus, visitou Tristão, encontrando três americanos que aí haviam ficado para prepararem o óleo e as peles das focas. Um destes homens chamava-se Jonathan Lambert e intitulava-se a si próprio soberano da ilha. Tinha desbravado e cultivado cerca de sessenta acres de terra, e esforçava-se por introduzir o cafezeiro e a cana-de-açúcar, que lhe tinham sido fornecidos pelo embaixador americano residente no Rio de Janeiro. As terras acabaram por ser abandonadas e, em 1817, o governo inglês enviou um destacamento do cabo da Boa Esperança para tomar posse das ilhas. Contudo, estes novos colonos não ficaram muito tempo; mas, depois da evacuação do país pelas tropas britânicas, duas ou três famílias inglesas aí se estabeleceram sem qualquer auxílio do governo.
Em 25 de Março de 1824, o Berwick, capitão Jeffrey, saído de Londres com destino à terra de Van-Diémen, tocou na ilha, onde foi encontrado um inglês chamado Glass, antigo cabo na artilharia britânica. Arrogava-se o título de governador-geral das ilhas e tinha às suas ordens vinte e um homens e três mulheres. Fez uma descrição muito favorável da qualidade do clima e da natureza produtiva do solo. Esta escassa população ocupava-se, fundamentalmente, da recolha de peles de foca e de óleo do elefante-marinho, com que comerciavam com o cabo da Boa Esperança, sendo Glass proprietário de uma pequena escuna. Na altura da nossa chegada, o governador ainda existia, mas a pequena comunidade tinha-se multiplicado: havia em Tristão da Cunha sessenta e cinco indivíduos, não contando com uma colónia secundária de sete pessoas que viviam na Ilha Nightingale. Não tivemos qualquer dificuldade em nos reabastecermos convenientemente, porque havia com abundância carneiros, porcos, bois, coelhos, criação, cabras, peixes de diversas espécies, e legumes. Ancorámos perto da ilha principal, com dezoito braças de fundo, e embarcámos com comodidade tudo quanto necessitávamos. O capitão Guy também comprou a Glass quinhentas peles de foca e uma certa quantidade de marfim. Permanecemos aí uma semana, durante a qual sopraram constantemente ventos de noroeste, com tempo medianamente enevoado. A 5 de Dezembro fizemos rumo a sudoeste, para uma exploração minuciosa a um determinado grupo de ilhas chamadas Auroras, sobre cuja existência havia as mais contraditórias opiniões.
Pretende-se que estas ilhas foram descobertas em 1762, pelo comandante do três-mastros Aurora. Em 1790, o capitão Manuel de Oyarvido, do três-mastros Prin-cess, pertencente à Companhia Real das Filipinas, afirma que passou pelas ilhas. Em 1794, a corveta espanhola Atrevida partiu com o objectivo de verificar a sua exacta posição e, num memorial publicado pela Real Sociedade Hidrográfica de Madrid, em 1890, esta exploração é referida nos seguintes termos:
- De 21 a 27 de Janeiro, a corveta Atrevida fez, nas proximidades imediatas destas ilhas, todas as observações necessárias, medindo com cronómetros a diferença de longitude entre estas ilhas e o porto de Soledad, nas Malvinas. São em número de três, quase situadas no mesmo meridiano, a do centro um pouco mais baixa, e as duas restantes visíveis a nove léguas de distância.”
As observações feitas a bordo da Atrevida dão os seguintes resultados, relativamente à exacta posição de cada ilha: a mais setentrional está situada a 52°, 37' e 24" de latitude sul e a 47°, 43' e 15" de longitude oeste.
A 27 de Janeiro de 1820, o capitão James Weddell, da marinha inglesa, partiu de StatenLand, sempre com o objectivo de descobrir as Auroras. No seu relatório afirmou que embora haja feito as mais cuidadas investigações e parado, não só nos pontos precisos referidos pelo comandante da Atrevida, mas também nas proximidades dos ditos pontos, não conseguiu descobrir qualquer indício de terra. Estes relatos contraditórios levaram outros navegadores a procurar as ilhas e, por estranho que pareça, enquanto uns sulcavam o mar em todos os sentidos no sítio indicado, sem conseguir descobri-las, outros, e em grande número, declaram firmemente tê-las visto, e terem até estado próximos das suas costas. O capitão Guy tinha o propósito de fazer todos os esforços possíveis para aclarar este assunto tão contestado.
Prosseguimos a nossa rota para sul e para oeste, com tempo incerto, até que a 20 do mesmo mês chegámos ao discutido local, a 52° e 15' de latitude sul e 47° e 58' de longitude oeste, ou seja, muito perto do sítio indicado como posição da ilha mais meridional do grupo. Como não avistássemos sinais de terra, continuámos a navegar para oeste a 53° de latitude sul, até 50° de longitude oeste. Dirigimo-nos então para norte, até ao paralelo 52 de latitude sul; depois, virámos para leste, e mantivemo-nos no mesmo paralelo por altura dupla, de dia e de noite, e pelas alturas meridianas dos planetas e da lua. Tendo assim avançado para leste, até à costa ocidental da Geórgia, conservámo-nos neste meridiano até atingirmos a latitude de onde partíramos. Fizemos então várias rotas diagonais através das águas circunscritas, tendo sempre um vigia no alto do mastro maior, e repetindo as pesquisas com o máximo cuidado durante três semanas, no decorrer das quais o tempo se manteve excepcionalmente bom e agradável, sem qualquer bruma. Deste modo, ficámos plenamente convencidos de que, se em épocas precedentes existiram ilhas naquelas paragens, hoje em dia não restava delas qualquer vestígio. Depois do meu regresso, soube que o mesmo percurso foi cuidadosamente seguido em 1822 pelo capitão Johnson, da escuna americana Henry, e pelo capitão Morrell, da escuna americana Wasp, e ambos tiveram os mesmos resultados que nós.
EXPLORAÇÕES AO PÓLO SUL
As primitivas intenções do capitão Guy, eram, após ter satisfeito a curiosidade em relação às Auroras, atravessar o estreito de Magalhães e seguir ao longo da costa ocidental da Patagónia; contudo, uma informação que recebera em Tristão da Cunha, levou-o a tomar o rumo do sul, na esperança de encontrar umas Ilhotas que, segundo lhe disseram, estavam situadas a 60° de latitude sul e 40° e 20' de longitude oeste. No caso de não encontrar as ilhas, e se a estação fosse favorável, tencionava avançar em direcção ao Pólo Sul. Deste modo, no dia 12 de Dezembro fizemo-nos à vela na direcção indicada. A 18 estávamos na posição indicada por Glass e cruzámos as águas durante três dias sem encontrar rastos das ilhas em causa. A 21, como o tempo estivesse excepcionalmente agradável, voltámos a rumar a sul com a Intenção de avançar por esta rota o mais longe possível. Antes de prosseguir a minha narrativa, penso que será conveniente, principalmente para os leitores que não prestaram atenção aos descobrimentos realizados nestas regiões, fazer um breve relato das escassas tentativas feitas até hoje para chegar ao Pólo Sul.
A primeira expedição de que temos dados concretos é a do capitão Cook que, em 1772, fez rumo ao sul, no Resolution, acompanhado pelo tenente Fourneaux, comandante do Adventure. Em Dezembro, atingia o paralelo 58 de latitude sul, a 26° e 57' de longitude leste, onde encontrou bancos de gelo com uma espessura de cerca de 8 a 10 polegadas, prolongando-se para noroeste e sudeste. Este gelo era formado por blocos, tão solidamente ligados, que os barcos tinham extrema dificuldade em abrir passagem. Nessa altura, devido ao grande número de aves que se avistavam e por outros Indícios, o capitão Cook supôs que estava nas imediações de terra, continuando para sul, com tempo excessivamente frio, até ao paralelo 64, a 38° e 14' de longitude leste. Aí, encontrou uma temperatura agradável e brisas suaves durante cinco dias, marcando o termómetro 36° Fahrenheit. Em Janeiro de 1773, os navios cruzaram o círculo antárctico, mas não conseguiram avançar muito mais porque ao atingirem os 67° e 15' de latitude, encontraram o caminho barrado por uma extensa massa de gelo que se estendia pelo horizonte sul até onde a vista podia alcançar. Este gelo tinha formas diferentes, e alguns bancos enormes, estendendo-se ao longo de várias milhas, formavam uma massa compacta que se elevava a 18 ou 20 pés da água. Como a estação já estava avançada, e não havia possibilidade de contornar aqueles obstáculos, o capitão Cook, embora contrariado, regressou rumo ao norte.
No mês de Novembro seguinte, retomou a viagem de exploração ao Pólo Antárctico. A 59° e 40' de latitude sul deparou com uma forte corrente que puxava para o sul. Em Dezembro, quando os barcos estavam a 67° e 31' de latitude e a 142° e 54' de longitude oeste, o frio era muito intenso, com fortes ventos e nevoeiro. Também aí havia muitas aves: o albatroz, o pinguim e, especialmente, o petref. A 70° e 23' de latitude, encontraram alguns grandes icebergues, e pouco depois, observaram que as nuvens mais para sul tinham uma brancura de neve, o que indicava a proximidade de bancos de gelo. A 71° e 10' de latitude e 106' e 54' de longitude oeste, os navegadores foram retidos, como da primeira vez, por uma Imensa extensão gelada que a sul enchia toda a linha do horizonte. O lado setentrional desta planície de gelo era muito irregular e recortado, e os blocos estavam tão firmemente encaixados uns nos outros que formavam uma barreira totalmente intransponível, estendendo-se uma milha para sul. Para lá dessa barreira a superfície parecia relativamente mais plana até certa distância, terminando num anfiteatro de gigantescas montanhas de gelo, que se escalonavam umas sobre as outras. O capitão Cook deduziu que esta imensa extensão chegava até ao Pólo Sul ou então se unia a qualquer continente. O Sr. J. N. Reynolds, cujos intrépidos e perseverantes esforços conseguiram que se organizasse uma expedição nacional, cujo fim parcial era explorar estas regiões, fala nestes termos da viagem do Resolution:
“Não nos surpreende que o capitão Cook não pudesse ultrapassar os 71° e 10' de latitude; o que nos espanta é que tenha conseguido atingir esse ponto por 106° e 54' de longitude oeste. A região de Palmer está situada a sul das ilhas Shetland, a 64° de latitude, e estende-se para sudoeste muito mais além dos pontos já atingidos por anteriores navegadores. Cook dirigia-se para esta região, quando viu a sua marcha detida pelos gelos, caso que tememos se repita sempre, sobretudo numa época tão pouco avançada de estação como é 6 de Janeiro, e não nos surpreenderia se parte das referidas montanhas de gelo estivesse unida ao corpo principal da terra de Palmer, ou a qualquer outra porção de terra firme situada mais para sul e para sudoeste.”
Em 1803, Alexandre, imperador da Rússia, encarregou os capitães Kreutzenstern e Lisiauski, de uma grande viagem de circumnavegação. Ao tentarem avançar mais para sul, não ultrapassaram os 59° e 58' de latitude e os 70° e 15' de longitude oeste. Aí, encontraram fortes correntes para leste. Abundavam as baleias, mas não avistaram massas de gelo. A propósito desta viagem, o Sr. Reynolds assinala que, se Kreutzenstern tivesse chegado mais cedo àquelas paragens, teria indubitavelmente encontrado gelos, pois já se estava em Março quando atingiu a latitude descrita. Os ventos predominantes de sudoeste, ajudados pelas correntes, haviam empurrado os icebergues para a região gelada propriamente dita, limitada a norte pela Geórgia, a leste pelas Sandwich e as Orkneys do sul e a oeste pelas Shetland do sul.
Em 1822, o capitão da marinha inglesa James Weddell, com dois pequenos navios, conseguiu ir mais para sul do que qualquer outro navegador precedente, e sem grandes dificuldades. Relata ele que, embora se visse frequentemente rodeado por gelo antes de chegar ao paralelo 72, ao chegar aí não encontrou nem uma partícula, e, tendo continuado até 74° e 15' de latitude, também não encontrou extensões geladas, mas apenas três ilhotas. O que é estranho é que embora tivesse avistado imensos bandos de aves e outros indícios de terra, e que a sul das Shetland o vigia houvesse assinalado costas desconhecidas que.se estendiam para sul, Weddell se obstinasse em recusar a ideia da possibilidade de existir um continente nas regiões polares do sul.
A 11 de Janeiro de 1823, o capitão Benjamim Morrell, da escuna americana Wasp, largou de Kerguelen com o propósito de penetrar para o sul o mais longe possível. A 1 de Fevereiro, estava a 64° e 52' de latitude sul e a 118° e 27' de longitude leste. Do seu diário, nesta data, cito a seguinte passagem:
“O vento não tardou a refrescar, convertendo-se numa brisa de onze nós; aproveitámos para avançar para leste; plenamente convencidos que quanto mais fôssemos para além de 64°, menos teríamos a recear os gelos, fizemos rumo um pouco mais para sul; tendo ultrapassado o círculo antárctico, seguimos até 69° e 15' de latitude sul. Neste ponto não avistámos qualquer extensa planície de gelo; apenas vimos alguns pequenos icebergues.”
Com data de 14 de Março, outro excerto do mesmo diário:
“O mar estava completamente'livre dos extensos bancos e não avistámos mais de uma dúzia de icebergues. A temperatura do ar e da água era mais elevada (pelo menos mais 13°F.) do que a observada anteriormente entre os paralelos 60 e 62. Estávamos então a 70° e 14' de latitude sul, a temperatura do ar era 47°F. e a da água 44°F. Calculámos que a variação de bússola fosse de 14° e 27' para leste, por azimute... Atravessei várias vezes o círculo antárctico em diferentes meridianos e observei sempre que a temperatura do ar e da água eram tanto mais suaves quanto mais avançava para sul, para além do paralelo 65, e que a variação magnética diminuía na mesma proporção. Mas, a norte desta latitude, ou seja, entre 60° e 50°, o navio tinha frequentes dificuldades em abrir caminho por entre os enormes e inumeráveis icebergues alguns dos quais mediam de uma a duas milhas de circunferência, e erguiam-se a mais de 500 pés do nível do mar.”
Quase sem água e combustível, privado dos instrumentos necessários, com a estação já muito adiantada, o capitão Morrell viu-se obrigado a retroceder, sem tentar avançar mais para sul, embora se estendesse à sua frente um mar completamente livre. Afirma ele que se estas considerações imperiosas o não tivessem constrangido a desistir, teria chegado, se não ao próprio Pólo, pelo menos até ao paralelo 85. Relatei um pouco pormenorizadamente as suas ideias sobre este assunto, para que o leitor possa ver até que ponto foram confirmadas pela minha própria experiência.
Em 1831, o capitão Briscoe, navegador por conta dos Srs. Enderby, armadores de baleeiros de Londres, fez-se à vela no brigue Lively em direcção ao mares do Sul, acompanhado pelo cúter Tuia. A 28 de Fevereiro, a 66° e 30' de latitude sul e 47° e 31' de longitude leste, avistou terra e “descobriu claramente através da neve os picos negros de uma cadeia de montanhas, em direcção a leste-sudeste”. Permaneceu naquelas paragens durante todo o mês seguinte, mas não se pôde aproximar da costa a menos de dez léguas, devido ao estado terrível do tempo. Vendo a impossibilidade de efectuar qualquer outra descoberta durante aquela estação, rumou para norte e foi hibernar para a região de Van-Diémen.
Nos começos de 1832, voltou a dirigir-se para o sul e, a 4 de Fevereiro, descobriu terra a sudeste, a 67° e 15' de latitude e 69° e 29' de longitude oeste. Reparou que era uma ilha situada perto da parte mais avançada da região que anteriormente descobrira. A 21 do mesmo mês conseguiu desembarcar nesta última e tomou posse dela em nome de Guilherme IV, dando-lhe o nome de ilha Adelaide, em homenagem à rainha da Inglaterra. Expostos estes pormenores à Real Sociedade Geográfica de Londres, esta concluiu -que existe uma contínua extensão de terra que vai desde 47° e 30' de longitude leste até 69 e 29' de longitude oeste, paralelamente aos 66° e 67° de latitude sul”.
A propósito desta conclusão, o Sr. Reynolds fez a seguinte observação: “Não podemos aceitar esta conclusão como racional, nem as descobertas de Briscoe justificam semelhante hipótese. Foi precisamente através desse espaço que Weddell se dirigiu para o sul, seguindo um meridiano a leste da Geórgia, das Sandwich, da Orkney, e das ilhas Shetland. A minha própria experiência servirá para demonstrar, ainda mais claramente, a falsidade das conclusões adoptadas pela Sociedade.
Estas são as principais tentativas que foram feitas para se penetrar nas mais remotas latitudes do sul, e por aqui se pode ver que ainda restavam, antes da viagem da Jafie Guy, cerca de 300 graus de longitude no círculo antárctico que não haviam sido cruzados. Assim, estendia-se diante de nós um vasto campo de descobertas, e foi com um sentimento de ardente e voluptuosa curiosidade que ouvi o capitão Guy afirmar a resolução de avançar intrepidamente para o sul.
TERRA!
Durante quatro dias, depois de se ter renunciado à busca das ilhas de Glass, seguimos rumo ao sul, sem encontrar gelos. A 26, ao meio-dia, estávamos a 63° e 23' de latitude sul por 41° e 25' de longitude oeste. Aí vimos alguns grandes icebergues e um banco que, vendo bem, não tinha grande extensão. Os ventos sopravam geralmente de sudeste, mas muito fracos. Quando o vento soprava de oeste, o que era muito raro, vinha invariavelmente acompanhado de chuvadas. Todos os dias, em maior ou menor quantidade caía neve. No dia 27 o termómetro marcava 35°F.
1 de Janeiro de 1828. - Neste dia ficámos completamente cercados de gelo, e as nossas perspectivas eram bastante tristes. Durante toda a tarde soprou uma forte ventania de nordeste que atirou contra o leme e a ré do navio grandes pedaços de gelo, com tal violência que chegámos a temer as consequências. Ao fim da tarde, a ventania ainda soprava com fúria, mas aproveitando a abertura de uma larga massa de gelo diante de nós, conseguimos, à força de velas, franquear uma passagem através dos pequenos pedaços de gelo até ao mar aberto. À medida que nos aproximávamos, fomos recolhendo as velas gradualmente, e, quando conseguimos escapar, pusemo-nos à capa, apenas sob a vela do traquete com um só riz.
2 de Janeiro. - Tempo bastante razoável. Ao meio-dia estávamos a 69° e 10' de latitude sul por 42° e 20' de longitude oeste, tendo já cruzado o círculo antárctico. Para sul não avistámos muito gelo, embora houvesse atrás de nós extensos bancos. Arranjámos uma espécie de sonda com um grande caldeirão de ferro de vinte galões de capacidade, e uma corda de duzentas braças. Observámos que a corrente para sul arrastava à velocidade de um quarto de milha por hora. A temperatura do ar era de cerca de 33°F.; o desvio da agulha de 14° e 28' para leste, por azimute.
5 de Janeiro. - Continuámos a avançar para o sul sem grandes impedimentos. Contudo, esta manhã, achando-nos a 73° e 15' de latitude sul por 42° e 10' de longitude oeste, fomos novamente detidos por uma enorme extensão de gelo. Apesar disso, víamos mais para sul o mar aberto, e não duvidávamos que acabaríamos por conseguir alcançá-lo. Rumando a leste, ao longo do banco de gelo, chegámos por fim a uma passagem, com cerca de uma milha de largura, pela qual seguimos até ao pôr-do-sol. O mar em que agora navegávamos estava profundamente coberto de icebergues mas, como não havia bancos extensos, prosseguimos, como sempre intrepidamente. O frio não parecia aumentar, embora nevasse frequentemente, e caíam de vez em quando chuvadas de granizo de extrema violência. Imensos bandos de albatrozes passaram hoje sobre a escuna, de sudeste para noroeste.
7 de Janeiro. - O mar quase sempre livre e aberto, o que nos permite continuar a nossa rota sem embaraços. A oeste vimos alguns icebergues de espessura inconcebível, e, à tarde, passámos muito perto de uma dessas massas, cujo topo devia estar pelo menos a quatrocentas braças do nível do mar. O perímetro da base devia andar à volta de três quartos de légua, e, pelas fendas dos costados, corriam fios de água. Permanecemos dois dias à vista desta espécie de Ilha, acabando por desaparecer durante um nevoeiro.
10 de Janeiro. - De manhã cedo tivemos a desgraça de perder um homem, que caiu ao mar. Era um americano chamado Peter Vredenburgh, natural de New York e um dos melhores marinheiros da escuna. Ao passar na proa, escorregou, caindo entre dois blocos de gelo para não aparecer mais. Ao meio-dia, estávamos a 78° e 30' de latitude por 40° e 15' de longitude oeste. O frio era agora excessivo e tínhamos constantemente chuvadas de granizo de nordeste. Nesta direcção voltámos a ver alguns enormes icebergues, e o horizonte a leste parece formado por um campo de gelo, elevando-se e sobrepondo-se em massas, como num anfiteatro. À noite, avistámos alguns pedaços de madeira flutuando à deriva e uma grande quantidade de aves, entre as quais havia nellies, petréis, albatrozes e um grande pássaro de brilhante plumagem azul. A variação por azimute era aqui menor do que a observada anteriormente, ao cruzarmos o círculo antárctico.
12 de Janeiro. - A continuação para sul voltou a parecer-nos duvidosa, porque na direcção do Pólo apenas se consegue ver um banco de gelo, aparentemente sem limites, encostado a autênticas montanhas de gelo recortadas, formando tremendos precipícios escalonados uns sobre os outros. Dirigimo-nos para oeste até ao dia 14, com a esperança de encontrar uma passagem.
14 de Janeiro. - Hoje de manhã, chegámos ao extremo ocidental do enorme campo de gelo que nos barrava a passagem e, dobrando-o, desembocámos em mar aberto, sem uma partícula de gelo. Ao sondarmos a água com uma corda de duzentas braças, encontrámos uma corrente para sul à velocidade de meia milha por hora. A temperatura do ar era de 47°F. e a da água de 34°F. Continuámos a nossa rota para sul, sem qualquer outro obstáculo grave, até ao dia 16; ao meio-dia, navegávamos a 81° e 21' de latitude e 42° de longitude oeste. Lançámos novamente a sonda e encontrámos uma corrente de três quartos de milha, também a puxar para sul. A variação por azimute tinha diminuído, e a temperatura do ar era amena e agradável, marcando o termómetro 51 °F. Nesta altura, nem um só pedaço de gelo avistávamos. Ninguém a bordo punha já em dúvida a possibilidade de atingirmos o Pólo.
17 de Janeiro.- Um dia cheio de incidentes. Inumeráveis bandos de aves voaram sobre as nossas cabeças, em direcção ao sul e atirámos-lhes algumas chumbadas; um dos pássaros abatidos, uma espécie de pelicano, forneceu-nos um excelente pitéu. A meio da manhã, o vigia, instalado no turco de bombordo, avistou um pequeno banco de gelo, onde parecia estar deitado um corpulento animal. Como o tempo estava bom, quase calmo, o capitão Guy mandou descer os botes para se investigar que tipo de animal era. Dirk Peters e eu, acompanhámos o imediato no bote maior. Ao chegarmos ao banco de gelo, vimos que se tratava de um urso gigantesco da raça do urso árctico, mas muito superior em tamanho aos maiores dessa espécie. Como íamos bem armados, não hesitámos em atacá-lo. Disparámos vários tiros em rápida sucessão, a maioria dos quais atingiu evidentemente o animal na cabeça e no dorso. Mas o monstro, sem parecer molestado, atirou-se à água e começou a nadar, as mandíbulas abertas, em direcção ao bote onde eu estava com Peters. Devido à confusão que se estabeleceu entre nós, diante da inesperada reviravolta da aventura, pois ninguém estava apetrechado para disparar um segundo tiro, o urso conseguiu passar metade do seu corpo por cima da borda, agarrando um dos marinheiros pela cintura, antes de havermos tomado medidas eficazes para o rechaçar. Neste transe, salvou-nos da destruição a presteza e a agilidade de Peters, que, saltando para o lombo do enorme animal, espetou-lhe a navalha na nuca, atingindo-lhe ao primeiro golpe a espinal-medula. O animal caiu imediatamente ao mar, já sem vida, mas arrastando Peters na queda, ao tombar sobre ela. Este em breve apareceu; lançámos-lhe uma corda e, antes de subir para bordo, amarrou o corpo do animal vencido. Regressámos em triunfo à escuna rebocando o nosso trofeu. Quando medimos o urso, verificámos que tinha uns bons quinze pés no seu maior comprimento. O pêlo tinha brancura imaculada, muito áspero e muito eriçado. Os olhos eram vermelhos cor de sangue, maiores do que os do urso árctico; o focinho era também mais arredondado, muito parecido com o do buldogue. A carne era tenra e, embora muito rançosa e a cheirar a peixe, os marinheiros comeram-na com avidez e afirmaram que era excelente.
Mal havíamos içado para bordo a nossa presa, quando o vigia gritou alegremente “Terra a estibordo!” Toda a tripulação ficou então alerta e, aproveitando uma brisa que se levantou de nordeste, em breve chegámos à costa. Era uma ilhota baixa e rochosa, com uma légua de circunferência, e totalmente desprovida de vegetação com excepção de uma espécie de nopal espinhoso. Aproximando-nos pelo norte, vimos um estranho rochedo que fazia promontório e que imitava espantosamente a forma de uma bola de algodão amarrada com cordas. Dobrando esta ponta para oeste, encontrámos uma pequena baía, onde pudemos fundear comodamente os nossos botes.
Não foi necessário muito tempo para explorar todas as partes da ilha e, tirando uma coisa ou outra, nada encontrámos digno de interesse. No extremo meridional, muito perto da costa, e meio enterrada debaixo de um montão de pedras, encontrámos uma peça de madeira que parecia ter sido a proa de um bote. Era evidente que tinham procurado esculpir nela qualquer coisa; o capitão Guy julgou descobrir a forma de uma tartaruga, mas devo confessar que, quanto a mim a semelhança me parecia extremamente vaga. Excepto esta proa, se acaso o era, nada mais encontrámos que nos provasse que a ilha já recebera a visita de um ser humano. A volta da costa, encontrámos alguns blocos de gelo, muito pequenos e em escassa quantidade. A exacta situação da ilhota (à qual o capitão Guy deu o nome de ilhota de Bennet, em honra do seu consócio na propriedade da escuna) era de 82° e 50' de latitude sul, por 42° e 20' de longitude oeste.
Nesse momento, tínhamos já avançado no sul mais de oito graus para além dos limites atingidos por todos os precedentes navegadores, e o mar continuava a estender-se à nossa frente, totalmente livre de obstáculos. Também observáramos que a variação diminuía uniformemente à medida que avançávamos e que a temperatura atmosférica, e agora a da água, eram cada vez mais suaves. O tempo podia qualificar-se de agradável, e tínhamos constantemente uma ligeira brisa que soprava do quadrante norte. O céu mantinha-se límpido; apenas, de vez em quando, se levantava um débil vapor no horizonte meridional, mas esta nebulosidade era sempre de breve duração. Apenas nos apercebíamos de duas dificuldades: estávamos quase sem combustível, e já se tinham manifestado sintomas de escorbuto entre os homens da tripulação. Estas considerações começaram a influenciar o ânimo do capitão Guy, que já falava muitas vezes em fazer rumo ao norte. Pela minha parte, sentia tal confiança em que não tardaríamos a encontrar terra seguindo a mesma rota, e que o solo não seria estéril como nas altas latitudes árcticas, que insisti calorosamente com ele sobre a necessidade de preserverarmos, ao menos mais uns dias, na direcção que levávamos. Nunca se tinha apresentado ao ser humano uma ocasião tão tentadora para aclarar o grande problema relativo à existência de um continente antárctico, e confesso que me enchia de indignação ao escutar as tímidas e inoportunas sugestões do nosso comandante. Creio firmemente que foram as minhas palavras, por vezes duras, que o convenceram a seguir em frente e, embora seja obrigado a lamentar os sangrentos e tristes factos que ao meu conselho são devidos, sinto-me de certo modo satisfeito por ter sido, embora indirectamente, o instrumento de uma descoberta, e de ter servido para abrir aos olhos da ciência, um dos segredos mais excitantes que motivaram a sua atenção.
OUTROS HOMENS
18 de Janeiro. - Hoje de manhã continuámos rumo ao sul, com um tempo tão agradável como nos dias anteriores. O mar estava sereno, o vento de nordeste bastante temperado, e a temperatura da água marcava 53°F. Recomeçámos com as sondagens e, com uma corda de 150 braças, encontrámos uma corrente que se dirigia para o Pólo à velocidade de uma milha por hora. Esta constante tendência para o sul, tanto do vento como da corrente, deu-nos que pensar e causou certo alarme entre a tripulação da escuna. Também o capitão Guy tinha ficado impressionado com as coincidências referidas mas, como não gostava de cair em ridículo, acabei por conseguir que ele próprio se risse das suas apreensões. A variação era agora praticamente nula. Durante o dia avistámos algumas grandes baleias, e inumeráveis bandos de albatrozes sobrevoaram o navio. Também apanhámos uma espécie de arbusto cheio de bagas vermelhas como as do espinheiro, e o cadáver de um animal terrestre, com um aspecto muito estranho. Media 3 pés de comprimento por apenas 6 polegadas de altura; as quatro patas eram muito curtas e estavam armadas de compridas garras de escarlate vivo, parecendo formadas por uma substância como a do corar. O corpo estava coberto de pêlo sedoso e escorrido, totalmente branco. Tinha a cauda afilada como a dos ratos, e media cerca de um pé e meio de comprimento. A cabeça assemelhava-se à do gato, com excepção das orelhas, reviradas e pendentes como as de um cfio. Os dentes eram escarlates como as garras.
19 de Janeiro. - Neste dia, a 83° e 20' de latitude e 43° e 5' de longitude oeste (com o mar de uma extraordinária tonalidade escura), o vigia assinalou novamente terra e, após uma observação mais minuciosa descobrimos que era uma ilhota pertencente a um grupo de ilhas muito extensas. A costa era a pique, e o interior parecia ser bastante arborizado, circunstância que nos encheu de alegria. Cerca de quatro horas após termos avistado terra, ancorámos com dez braças de profundidade num fundo arenoso, e a uma légua da costa, porque a ressaca, com fortes remoinhos em vários pontos, tornava perigosa a aproximação. Por ordem do capitão foram arriados os dois botes maiores, e um grupo bem armado (de que Peters e eu fazíamos parte) foi encarregado de procurar uma abertura no recife que parecia circundar a ilha. Depois de termos procurado durante algum tempo, descobrimos uma passagem por onde íamos penetrar, quando avistámos quatro grandes canoas que largavam da margem, cheias de homens que pareciam vir bem armados. Deixámo-las aproximar e, como remavam com grande velocidade, em breve estavam ao alcance da voz. O capitão Guy atou então um lenço branco na ponta de um remo. Contudo, os selvagens pararam imediatamente, e começaram a falar muito alto numa estranha algaraviada, lançando de vez em quando grandes gritos entre os quais podíamos distinguir as palavras: Anamoo-moo! e Lama-Lama! Esta barulheira durou ainda uma boa meia hora, durante a qual pudemos observar à vontade o seu aspecto.
Nas quatro canoas, que tinham uns bons cinquenta pés de comprimento por cinco de largura, havia ao todo cento e dez selvagens. Eram da estatura normal dos europeus, mas de constituição mais musculosa e maciça. A tez era de um negro de jade e os cabelos compridos, espessos e encarapinhados. Estavam vestidos com peles de algum animal desconhecido, negras e de pêlos compridos e sedosos, e traziam-nas perfeitamente ajustadas ao corpo, com o pólo para dentro, excepto à volta do pescoço, dos punhos e dos tornozelos. As armas eram praticamente constituídas por paus de madeira preta e aparentemente muito dura. Mas também notámos algumas lanças de ponta de sílex e algumas fundas. O fundo dos botes estava repleto de pedras negras do tamanho de um ovo grande.
Quando terminaram a sua discursata (pois era evidente que toda aquela horrorosa algaraviada nos era dirigida), um deles, que parecia ser o chefe, pôs-se de pé na proa da canoa e fez-nos repetidas vezes sinal para nos aproximarmos da sua embarcação. Fingimos não compreender o que ele pretendia, pensando ser mais prudente manter, quanto possível, uma distância razoável, porque o seu número quadruplicava o nosso. Parecendo adivinhar este pensamento, o chefe ordenou às restantes canoas que ficassem para trás, enquanto ele avançava com a sua. Logo que nos alcançou, saltou para bordo da nossa canoa maior, e sentou-se ao lado do capitão Guy, ao mesmo tempo que apontava para a escuna, repetindo as palavras: Anamoo-moo! e Lama-Lama! Regressámos ao navio, seguidos a alguma distância pelas quatro canoas.
Ao chegarmos ao costado do barco, o chefe deu mostras da maior surpresa e alegria, batendo palmas e esmurrando as coxas e o peito, ao mesmo tempo que soltava gargalhadas atroadoras. Os seus súbditos, que vinham atrás de nós, uniram-se ao regozijo e, durante alguns minutos, foi uma barulheira ensurdecedora. Feliz por se ver regressado a bordo, o capitão Guy mandou içar os botes como medida de precaução, e deu a entender ao chefe (que em breve descobrimos que se chamava Too-Wit} que não podia receber na coberta mais de vinte dos seus homens de cada vez. Este pareceu satisfazer-se à exigência, deu algumas instruções às canoas, e aproximou-se uma delas, permanecendo as restantes a cinquenta jardas de distância. Vinte dos selvagens subiram a bordo e começaram a esquadrilhar por toda a parte, a subir nas enxárcias, e a procederem com grande à-vontade, examinando todos os objectos com enorme curiosidade.
Era mais que evidente que nunca tinham visto homens de raça branca, pois até a nossa cor parecia causar-lhes uma espantosa repugnância. Julgavam que a Jane era um ser vivo e dir-se-ia que temiam tocar-lhe com a ponta das lanças, que levantavam ao alto cuidadosamente. Em determinada altura, toda a tripulação se divertiu imenso com o comportamento de Too-Wit. O cozinheiro estava a rachar lenha perto da cozinha e, por casualidade, cravou o machado na coberta, onde fez um entalhe bastante profundo. O chefe aproximou-se Imediatamente e, empurrando o cozinheiro com certa brusquidão, soltou um gemido, quase um grito, que demonstrava claramente a pena que tinha dos sofrimentos da escuna; depois, começou a acariciar e a esfregar a ferida com as mãos e a lavá-la com um balde de água, que ali estava ao lado. Diante de semelhante prova de Ignorância, para a qual não estávamos preparados, não pude deixar de suspeitar que fosse fingida.
Quando os visitantes satisfizeram completamente a curiosidade relativa à parte superior do barco, foram conduzidos para o interior, onde o assombro ultrapassou todos os limites. A sua estupefacção era tal que não conseguiam falar, limitando-se a caminhar em silêncio por toda a parte, soltando apenas de vez em quando exclamações abafadas. As armas deviam ter-lhes dado muito que pensar e permitimos que as examinassem à vontade. Não acredito que tivessem a menor suspeita do seu verdadeiro uso, mas sim que pensassem que eram ídolos, vendo os cuidados que tínhamos e a atenção com que vigiávamos os seus movimentos enquanto as manejavam. Diante dos canhões, o seu espanto rodobrou. Aproximaram-'se, com as maiores demonstrações de veneração e de terror, mas não se atreveram a observá-los minuciosamente. Havia no camarote dois grandes espelhos, e isso foi para eles o cúmulo do espanto. Too-Wit foi o primeiro a aproximar-se, e estava já a meio do camarote, com um dos espelhos à frente e o outro atrás, mas sem os ter ainda fixado. Então, quando o selvagem ergueu os olhos e se viu reflectido no cristal, julguei que Ia enlouquecer, mas, quando se voltou bruscamente para fugir, e se viu novamente reflectido no espelho oposto, temi que não sobrevivesse à emoção. Não foi possível levá-lo a olhar-se novamente, e todos os meios de persuasão foram inúteis; atirou-se ao chão, escondendo a cara entre as mãos ficou imóvel, de tal maneira que resolvemos arrastá-lo para a coberta.
Todos os selvagens foram admitidos a bordo em grupos de vinte; mas Too-Wit permaneceu connosco o tempo todo. Não observámos entre eles qualquer propensão para o roubo, nem demos conta que qualquer objecto tenha desaparecido após a sua ausência. Durante toda a visita, deram mostras da maior cordialidade. Contudo, notámos no seu comportamento algumas características que não nos foi possível compreender; por exemplo, nunca conseguimos fazê-los aproximar de diversos objectos inofensivos, tais como as velas da escuna, um ovo, um livro aberto, uma xícara de farinha. Tentámos averiguar se possuíam artigos que pudessem servir para troca ou comércio, mas tivemos imensas dificuldades em nos fazermos entender. Apesar de tudo, ficámos a saber, com grande surpresa, que nas ilhas abundavam grandes tartarugas do tipo Galápagos, e vimos uma canoa de Too-Wit.
Estas anomalias (pois como tal podiam ser consideradas, tendo em conta a latitude), levaram o capitão Guy a querer fazer uma exploração completa da região, esperando tirar das descobertas que viessem a fazer algumas vantagens. Pela minha parte, ansioso como estava por levar mais longe a nova exploração, apenas tinha um desejo em mente: prosseguir sem mais demoras para o sul. O tempo estava bom, mas ninguém nos garantia que assim se mantivesse. Estávamos no paralelo 84, o mar estava totalmente livre à nossa frente, havia uma corrente que arrastava vigorosamente para sul e o vento era-nos favorável; por estas razões, não podia sequer ouvir falar em determo-nos nestas paragens, mais tempo que o estritamente necessário para se restabelecer a saúde da tripulação, e para nos reabastecermos de provisões frescas e de combustível. Disse ao capitão que nos seria fácil aportar a estas ilhas no regresso, e até passarmos aqui o Inverno, se acaso os gelos nos impedissem a passagem. Por fim, seguiu o meu conselho (não sei porquê, mas o facto é que havia adquirido grande influência sobre ele), e acabou por decidir que, mesmo que encontrássemos tre-pangue em abundância, não ficaríamos ali mais de uma semana, seguindo para o sul logo que nos fosse possível.
De acordo com estas decisões, fizemos os preparativos necessários e, seguindo as indicações de Too-Wit, conduzimos a escuna com segurança através dos recifes, ancorando a cerca de uma milha da costa, numa magnífica baía, quase completamente rodeada por terra, na costa sudeste da ilha principal, num fundo de areia negra com dez braças de água. Segundo nos disseram os indígenas, na extremidade dessa baía desembocavam três belos regatos de excelente água, e vimos que as imediações eram muito arborizadas. As quatro canoas seguiram atrás de nós, mantendo uma distância respeitosa. Too-Wit permaneceu a bordo e, quando ancorámos, convidou-nos a acompanhá-lo a terra e a visitar a sua aldeia no interior. O capitão Guy acedeu e, tendo ficado a bordo dez dos selvagens como reféns, doze de nós preparámo-nos para acompanhar o chefe, tendo o cuidado prévio de nos armarmos bem, embora sem darmos provas da mínima desconfiança. Na escuna tinham-se tomado todas as precauções convenientes para evitar uma surpresa, colocando se os canhões nas portinholas e içando-se as redes de filerete. Foi particularmente recomendado ao imediato que não recebesse ninguém a bordo durante a nossa ausência e que, no caso de não regressarmos ao fim de doze horas, enviasse a chalupa à nossa procura armada com um canhão pedreiro.
A cada passo que dávamos naquela terra, mais firmemente nos convencíamos de estar numa região totalmente distinta de todas as que foram visitadas pelos homens civilizados. Nada do que víamos nos era familiar. As árvores não se assemelhavam a nenhuma, quer das zonas tórridas, quer das zonas temperadas ou das zonas glaciais do Norte, e eram completamente diferentes das que existiam nas latitudes inferiores meridionais que acabávamos de atravessar. Até as rochas eram diferentes, no volume, na cor e na contextura; e os cursos de água, por prodigioso que pareça, assemelhavam-se tão pouco aos das outras zonas, que hesitámos em beber da sua água, sendo-nos difícil persuadir-nos de que as suas qualidades fossem puramente naturais. Junto a um pequeno regato que nos cortava o caminho (o primeiro que encontrámos), Too-Wit e a sua comitiva pararam para beber. Devido ao estranho aspecto da água recusámo-nos a prová-la, supondo que não fosse potável, pois, só mais tarde é que vimos que aquele aspecto era o aspecto de todos os cursos de água deste arquipélago. Sinceramente, não sei que fazer para dar uma ideia precisa da natureza do líquido, e não posso deixar de usar muitas palavras para o fazer. Embora a água fluísse com rapidez por todas as encostas, como qualquer água normal, nunca tinha, excepto nas quedas e cascatas, a habitual aparência de limpidez. Contudo, devo dizer que era tão límpida como qualquer água calcária, e a diferença que existia era simplesmente aparente. A primeira vista, principalmente quando o declive era pouco sensível, assemelhava-se um pouco, quanto à consistência, a uma espessa mistura de goma-arábica na água vulgar; mas esta era a menos importante das suas espantosas qualidades. Sem ser incolor, também não tinha qualquer cor uniforme, pois o seu curso dava-nos todas as variedades possíveis da púrpura e os reflexos e os cambiantes da seda furta-cores. Para dizer a verdade, esta variação de tom verificava-se de tal maneira, que produziu nos nossos espíritos um espanto tão profundo como os espelhos no espírito de Too-Wit. Enchendo com esta água um recipiente qualquer, e deixando-a assentar, podíamos notar que a massa líquida se compunha de um certo número de veios distintos, cada um com a sua cor especial; que esses veios não se misturavam e que a sua coesão era perfeita, relativamente às moléculas que os formavam, e imperfeita, quanto aos veios próximos. Metendo a ponta de uma faca através dos ditos veios, a água fechava-se imediatamente sobre a ponta, desaparecendo totalmente todos os vestígios da passagem da lâmina, quando depois a retirávamos; mas, se a faca seccionasse cuidadosamente dois veios, a separação era perfeita, e a coesão não era imediata. Os fenómenos desta água formaram o primeiro elo de uma imensa cadeia de aparentes milagres, que, pouco a pouco, me foram envolvendo.
Klock-Klock
Demorámos cerca de três horas a chegar à aldeia, que estava situada a mais de três milhas da costa, atravessando o caminho uma região bravia. Durante o percurso, o destacamento de Too-Wit (os cento e dez selvagens das canoas) foi-se reforçando, a cada momento, com pequenos rupos de seis ou sete nativos que, desembocando de diversos atalhos do caminho, juntavam-se como se fosse por acaso. Havia nisso uma certa premeditação e, começando a desconfiar, comuniquei as minhas apreensões ao capitão Guy. Mas agora era já tarde para retrocedermos, e pensámos que o melhor para a nossa segurança seria demonstrar plena confiança na lealdade de Too-Wit. Assim, prosseguimos, mas sempre de olhos bem abertos para todas as manobras dos selvagens, impedindo-os de romper as nossas alas com súbitos empurrões. Tendo deste modo atravessado um escarpado barranco, chegámos a um grupo de habitações que nos disseram ser o único de toda a ilha. Ao chegarmos à vista da aldeia, o chefe lançou um grito e repetiu muitas vezes a palavra Klock-Klock, que nos pareceu ser o nome da aldeia, ou talvez um nome comum aplicado a todas as aldeias.
As habitações tinham o aspecto mais miserável que se possa imaginar, diferenciando-se das cabanas das raças mais atrasadas que a humanidade conhece, por não estarem construídas sob um plano uniforme. Algumas (pertencentes aos Wampoos ou Yampoos, altos dignitários da ilha) consistiam numa árvore cortada a cerca de quatro pés da raiz, com uma grande pele negra estendida em cima, caindo em pregas soltas até ao chão. Era debaixo dessa pele que se Instalava o selvagem. Outras, estavam construídas com ramos de árvores, nem sequer desbastadas, conservando a folhagem já ressequida, e apoiadas entre si num ângulo de quarenta e cinco graus e sobre uma base de argila, amontoada, sem qualquer preocupação de forma regular, a cinco ou seis pés de altura. Outras ainda, eram simples buracos abertos perpendicularmente no solo e cobertos das mesmas ramagens, que o habitante era obrigado a afastar, quer para entrar, quer para sair. Algumas eram feitas com ramos bifurcados das árvores, tal como tinham sido encontrados, apoiadas as superiores nas inferiores, de modo a formarem um abrigo mais espesso contra o mau tempo. As mais numerosas consistiam em pequenas cavernas pouco profundas, feitas arranhando, por assim dizer, a superfície de uma parede de pedra negra cortada a pique, muito parecida com a terra calcada que envolvia os três lados da aldeia. À entrada de cada uma destas primitivas cavernas, havia um pequeno bloco de rocha que o proprietário colocava cuidadosamente à entrada ao sair do seu nicho; nunca cheguei a saber com que fim, pois as pedras nunca eram de tamanho suficiente para tapar mais de um terço da abertura.
Este aldeamento, se acaso merecia semelhante nome, situava-se num vale de certa profundidade, e apenas tinha acesso por sul, pois o barranco escarpado de que já falei, impedia a entrada nas outras direcções. No meio do vale marulhava um riacho com o mesmo aspecto mágico que já referi. Junto às habitações, notámos alguns estranhos animais que pareciam estar perfeitamente domesticados. Os maiores assemelhavam-se ao nosso porco vulgar, quer pela estrutura do corpo, quer pelo focinho, mas tinha o rabo em forma de tufo e as patas esguias, como as do antílope. Os movimentos do bicho eram indecisos e desajeitados, e nunca o vimos tentar correr. Também avistámos outros animais de aspecto semelhante, mas mais compridos e cobertos de lã preta. Havia uma grande variedade de aves domésticas, que andavam nas vizinhanças, e que parecia constituir o principal alimento dos indígenas. Com grande assombro, avistámos entre as referidas aves albatrozes negros, completamente domesticados, que iam periodicamente ao mar em busca de comida, regressando sempre à aldeia como se fosse o seu poiso. Para incubar, utilizavam apenas a costa sul onde, como de costume, se reuniam aos seus amigos pinguins que nunca os seguiam até às habitações dos selvagens. Entre as outras aves domesticadas, havia patos que não diferiam muito do canvass-back ou anãs valisneria do nosso país, búbias negras, e um pássaro muito grande que se parecia muito com busardo, mas que não era carnívoro. Havia peixe em grande abundância. Durante a nossa visita vimos grandes quantidades de salmões secos, bacalhaus, golfinhos azuis, cavalas, raias, congros, elefantes-do-mar, tainhas, linguado, escaros ou papagaios-do-mar, leather-jackets, salmonetes, badejos, patruças, pacutas, e uma enorme quantidade de outras espécies. Notámos ainda que, em grande parte, se assemelhavam às que encontrámos nas proximidades do arquipélago de Lord Auckl-and, a 51° de latitude sul. A tartaruga galápago era também muito abundante. Vimos poucos animais selvagens, e nenhum de grande porte, nem de espécies conhecidas. Uma ou duas serpentes de tremendo aspecto cruzaram o nosso caminho, mas, como os indígenas não lhes prestaram muita atenção, deduzimos que não eram venenosas.
Quando nos aproximávamos da aldeia com Too-Wit e o seu séquito, uma populaça imensa saiu ao nosso encontro, lançando fortes gritos entre os quais distinguimos os habituais Anamoo-moo! e Lama-Lama! Ficámos espantados ao ver que os recém-chegados, na sua grande maioria, estavam completamente nus, pois só os homens das canoas é que usavam peles. Segundo parecia, também estavam em poder destes últimos todas as armas do aldeamento, pois não víamos uma que fosse nas mãos dos habitantes da aldeia. Havia uma grande quantidade de mulheres e crianças, não faltando às primeiras uma certa beleza pessoal. Eram altas, esguias, bem feitas de corpo, com uma graça e desenvoltura de movimentos como não se encontra numa sociedade civilizada. Contudo, os lábios, como os dos homens, eram largos e grossos, não deixando ver os dentes, mesmo quando se riam. A cabeleira era muito mais fina do que a dos homens. Entre todos estes selvagens nus, havia dez ou doze vestidos de peles, como os do bando de Too-Wit, e armados de lanças e pesadas mocas. Pareciam ter grande influência sobre os demais que nunca lhes falavam sem lhes dar o título de Wampoo. Eram os mesmos que viviam nos famosos palácios de peles pretas. A habitação de Too-Wit estava situada no centro da aldeia, e era muito maior e de melhor construção que as restantes do mesmo género. A árvore que lhe servia de suporte tinha sido cortada a doze pés da raiz, e tinham-lhe deixado vários ramos debaixo do corte, que serviam para prolongar o tecto, impedindo-o de embater no tronco. A cobertura era formada por quatro grandes peles unidas entre si por cavilhas de madeira, e estava presa ao solo por pequenas estacas que a atravessavam. O chão estava coberto de uma quantidade enorme de folhas secas servindo de tapete.
Fomos conduzidos a esta cubata com a maior solenidade, juntando-se a nós todos os indígenas que lá puderam caber. Too-Wit sentou-se em cima das folhas e fez-nos sinais para lhes seguirmos o exemplo. Obedecemos para logo ficarmos numa situação extremamente incómoda, para não dizer crítica. Estávamos sentados no chão, em número de doze, entre quarenta selvagens acocorados e apertando-nos tanto que, se acaso se levantasse qualquer desordem, teria sido impossível fazer uso das armas, ou mesmo pormo-nos de pé. O aperto não era só no interior da casa, mas também vinha de fora, onde provavelmente se amontoava toda a população da ilha, que só os esforços e os berros de Too-Wit impediam de nos espezinharem. A nossa segurança dependia da presença de Too-Wit e resolvemos apertá-lo o mais possível Junto de nós, rodeando-o completamente, decididos a matá-lo, mal se desse qualquer manifestação hostil.
Depois de alguma balbúrdia estabeleceu-se uma certa calma, e o chefe dirigiu-nos uma extensa discursata, muito semelhante à que pronunciara nas canoas, mas agora acentuando muito mais os Anamoo-mool do que os Lama-Lama! Escutámos esta arenga até ao fim em profundo silêncio, respondendo-lhe depois o capitão
Guy, assegurando ao chefe a sua amizade e a sua eterna estima, concluindo a sua réplica com a oferta de alguns rosários ou colares de vidrilhos azuis, e de uma [faca. Ao receber os colares, o monarca, para nosso espanto, torceu o nariz, em Jeito de desdém, mas a oferta da faca causou-lhe uma satisfação indescritível, ordenando que servissem imediatamente de comer.
A comida entrou para a tenda por cima das cabeças dos circunstantes, e consistia em vísceras palpitantes de qualquer animal desconhecido, possivelmente de um daqueles porcos de patas esguias que tínhamos visto ao chegar à aldeia. Reparando que não sabíamos como se comia aquele manjar, começou, para dar o exemplo, a devorar, pedaço a pedaço, a apetitosa comida, até que não nos foi possível suportar por mais tempo semelhante espectáculo, e deixámos transparecer tal repulsa e agonia que Sua Majestade ficou quase tão espantado como no caso dos espelhos. Apesar do perigo que corríamos, recusámos partilhar com ele aquelas maravilhas culinárias que nos oferecia, esforçando-nos por lhe fazer compreender que não tínhamos fome, pois acabáramos há pouco tempo de almoçar copiosamente. Quando o soberano terminou o seu repasto, começámos a interrogá-lo da maneira mais inteligente possível, com o fim de averiguarmos quais eram os principais produtos da região, e se existiam alguns que nos fossem úteis. Com o tempo, pareceu dar-se conta do que pretendíamos e ofereceu-se para nos acompanhar a um certo ponto da costa onde nos assegurou que abundava o trepangue (desenhando ao mesmo tempo um esboço do animal). Felizes da vida, aproveitámos esta oportunidade para escaparmos à pressão da turbamulta, e manifestámos a nossa impaciência em partir. Assim, abandonámos a tenda, e, acompanhados por toda a gente do aldeamento, seguimos o chefe até à ponta sudeste da ilha, não longe da bacia onde o navio estava ancorado. Aí, aguardámos cerca de uma hora, até que chegaram vários selvagens com quatro canoas. O nosso grupo embarcou numa delas, e levaram-nos a pangaia ao longo do recife a que já me referi, até um outro, um pouco mais largo, onde encontrámos o trepangue numa abundância nunca vista pelos nossos marinheiros mais velhos nos arquipélagos das latitudes inferiores, tão afamadas neste artigo de comércio. Permanecemos naqueles recifes o tempo necessário para verificar que havia quantidade suficiente para carregar, se caso fosse necessário, uma dúzia de navios, regressando depois à escuna, após nos termos despedido de Too-Wit, que nos prometeu que no prazo de vinte e quatro horas nos traria as canoas repletas de patos canvass-back e de tartarugas galápagos. Durante toda esta aventura, nada observámos no comportamento dos indígenas que nos pudesse despertar suspeitas, excepto a estranha e premeditada maneira com que foram aumentando o número no caminho da escuna para a aldeia.
SEPULTADOS VIVOS!
O chefe cumpriu o que tinha combinado e não tardámos a ver-nos abundantemente fornecidos de provisões froscas. As tartarugas eram as melhores que até então comêramos, e os patos eram muito superiores às nossas melhores espécies - excepcionalmente tenros, suculentos e de sabor requintado. Além disso, os selvagens trouxeram-nos, depois de lhes termos feito compreender o nosso desejo, uma grande quantidade de aipo castanho e de cocleária, ou erva contra o escorbuto, e uma canoa cheia de peixe fresco e seco. O aipo foi um autêntico manjar e a cocleária obteve um fantástico resultado, servindo para curar os marinheiros que já tinham sintomas dessa terrível doença. Num breve espaço de tempo todos os enfermos estavam bons. Também recebemos outras provisões frescas, entre as quais posso referir uma espécie de marisco exteriormente parecido com o mexilhão, mas com o sabor da ostra. Igualmente nos trouxeram em abundância, camarões e lagostins, e ovos de albatroz e de outras aves, cujas cascas eram negras. Embarcámos ainda uma boa quantidade de carne de porco, da espécie já mencionada. A maioria dos marinheiros achou-a gostosa mas, quanto a mim, pareceu-me impregnada de um intenso e repugnante cheiro a peixe. Em troca de todas estas coisas, oferecemos aos indígenas colares de contas azuis, jóias, facas e retalhos de panos encarnados, ficando muito satisfeitos com a troca. Estabelecemos na costa um mercado permanente, ao alcance dos canhões da escuna, e o tráfego realizou-se com toda a aparência de boa fé e com uma formalidade que não esperávamos da parte dos selvagens, a julgar pela sua conduta na aldeia de Klock-Klock.
Tudo prosseguiu desta forma amigável por vários dias, durante os quais vieram à escuna grupos de nativos, enquanto destacamentos dos nossos homens iam muitas vezes a terra, fazendo longas incursões pelo interior sem nunca serem molestados pelos habitantes. Vendo a facilidade com que se podia carregar o barco de trepangue, aproveitando a amistosa disposição dos ilhéus, e a ajuda que nos podiam prestar, o capitão Guy resolveu negociar com Too-Wit a construção de edifícios próprios para preparar o artigo, e a recompensa para ele e para os homens que se encarregassem de recolher o mais possível, enquanto nós, aproveitando o bom tempo, continuávamos a viagem para sul. Quando revelou o projecto ao chefe, este pareceu disposto a aceitá-lo, acabando por se assentar num negócio vantajoso para ambas as partes. Convencionou-se depois que, após os preparativos necessários, tais como a escolha do melhor local, a construção de parte dos edifícios e outras tarefas em que tomaria parte a nossa tripulação, a escuna prosseguiria o seu rumo, deixando na ilha três homens para zelarem pelo cumprimento do projecto e ensinarem aos nativos a secagem do trepangue. Quanto às recompensas, dependeriam do cuidado e da actividade dos selvagens durante a nossa ausência, ficando assente que receberiam uma determinada quantidade de contas azuis, de facas e de panos encarnados, por uma certa medida de piculs de trepangue que tivessem preparado quando regressássemos.
Como talvez tenha algum interesse para os leitores uma descrição deste importante artigo de comércio e da maneira de o preparar, creio ser esta a melhor altura para me ocupar do assunto. A explicação seguinte, relativa à matéria em questão, foi tirada de um recente relato de viagens aos mares do Sul:
“O molusco dos mares do Sul conhecido no comércio pelo nome francês de bouche de mer (petisco tirado do mar) é o que o célebre Cuvier chamava, se não estou em erro, gasteropoda pulmonifera. Apanha-se com abundância nas costas das ilhas do Pacífico, especialmente para o mercado chinês, onde está cotado a um elevado preço, quase semelhante aos famosos ninhos de andorinha comestíveis, que provavelmente são feitos de uma matéria gelatinosa que certas andorinhas recolhem do corpo desses moluscos. Não têm conchas, nem patas, nem qualquer parte saliente, excepto um órgão absorvedor e um órgão excretor, situados em partes opostas do corpo; contudo, graças aos seus anéis, elásticos como os das lagartas e dos vermes, arrastam-se para os recifes pouco profundos onde, quando a maré está baixa, são atacados por certas andorinhas que com o bico aguçado lhes picam o corpo mole e dele retiram uma substância gomosa e filamentosa que, ao secar, lhes serve para solidificar as paredes do ninho. Daí o nome de gasteropoda pulmonifera.
“Estes moluscos são de aspecto oblongo e de tamanho variável, desde 3 a 18 polegadas de comprimento, embora tenha visto um que, pelo menos, media 2 pés. São praticamente redondos, embora ligeiramente achatados no lado que está virado para o fundo do mar, e têm uma espessura de 1 a 8 polegadas. Arrastam-se para os recifes em certas épocas do ano, provavelmente para se reproduzirem, pois muitas vezes encontrámo-los acasalados. Aproximam-se da costa, quando o sol aquece muito a água e a torna tépida, e vão muitas vezes para locais de tão escassa profundidade que, quando a maré baixa, ficam em seco, expostos ao calor do sol. Nunca fazem criação nos baixios, pois nunca aí vimos as crias e, quando os observámos a subir das águas mais fundas, já tinham atingido o tamanho normal. O seu principal alimento é uma espécie de zoófitos que o coral produz.”
O trepangue apanha-se normalmente a três ou quatro pés de profundidade; leva-se depois para a costa e. com a ponta de uma faca, faz-se-lhe uma incisão com cerca de uma polegada, numa das extremidades. Através da abertura tiram-se as entranhas à pressão (as entranhas são semelhantes às de todos os pequenos animais do mar), lavam-se e põem-se a ferver a uma determinada temperatura, nem muito alta, nem demasiado baixa. Os moluscos melhores são aqueles que secam ao sol, mas há que ter em conta que se obtém por este meio o valor de um picul (133 libras e 1/3), enquanto se podem obter trinta piculs, secando-os ao lume. Quando já estão convenientemente secos, podem ser conservados por três ou quatro anos num local seco, sem nenhum perigo, embora seja necessário examiná-los de longe a longe, ou melhor, quatro vezes por ano, para ver se a humidade não os atingiu e estragou.
Os Chineses, como antes já dissemos, consideram o trepangue como um pitéu dos mais requintados, pois acreditam que é extremamente alimentício e fortificante, o mais indicado para rejuvenescer um temperamento esgotado pelas volúpias desregradas. Um molusco de primeira qualidade está cotado a um preço muito elevado em Cantão e vende-se o picul a 90 dólares; o de segunda qualidade, a 75 dólares; de terceira, 50; de quarta, 30; de quinta, 20; de sexta, 12; de sétima, 8, e de oitava, 4 dólares; contudo, muitas vezes, os carregamentos pequenos conseguem alcançar preços mais altos nos mercados de Manila, Singapura e Batávia.
Feito o contrato, desembarcámos imediatamente tudo o que era necessário para preparar as construções e desbravar o terreno. Escolheu-se um grande espaço plano, perto da costa oriental da baía, onde havia água e árvores em abundância, e a uma distância conveniente dos principais recifes onde se podia apanhar o trepangue. Metemo-nos ao trabalho com grande afinco, e, em breve com grande espanto dos selvagens, não tardámos a abater suficientes árvores para o fim em vista, tendo aparelhado a madeira e começado a armar as construções com tanta rapidez que, ao fim de dois ou três dias, os trabalhos estavam já bastante avançados para podermos, confiadamente, deixar o resto das tarefas aos três marinheiros que iriam ficar na ilha.
Estes homens eram John Carson, Alfred Harris e um tal Peterson (todos de Londres, segundo julgo) que se tinham oferecido voluntariamente para este serviço.
No fim do mês tínhamos tudo preparado para a partida. Mas, como havíamos prometido fazer uma solene visita de despedida à aldeia, e Too-Wit insistia tão afincadamente no cumprimento da nossa promessa, não nos atrevemos a correr o risco de o ofender com a nossa recusa definitiva. Penso que nessa altura nenhum de nós tinha a menor suspeita da boa fé dos selvagens. Todos os nativos se haviam comportado com o máximo respeito, auxiliando-nos de bom grado nas nossas tarefas, oferecendo-nos, muitas vezes de graça, os seus produtos, e nunca nos tinham roubado nada, apesar do alto valor que atribuíam às nossas mercadorias, a avaliar pelas excessivas e extravagantes manifestações de alegria quando os presenteávamos. As mulheres eram particularmente atenciosas em todas as coisas e, numa palavra, teríamos sidos os seres mais : desconfiados do mundo, se acaso suspeitássemos da mínima perfídia por parte de uma gente que tão bem nos tratava. Mas, infelizmente, passado muito pouco tempo, poderíamos ver até que ponto aquela aparente solicitude não era mais que o resultado de um plano ^cuidadosamente estudado para a nossa destruição, e : que aqueles ilhéus que nos haviam inspirado sentimentos tão extraordinários de estima, pertenciam à raça dos mais bárbaros, manhosos e sanguinários canalhas que infestam a superfície do globo.
Era 1 de Fevereiro quando resolvemos ir a terra com o propósito de visitar o aldeamento e, embora não tivéssemos a mais leve suspeita, como já afirmei, não deixámos de tomar as devidas precauções. A bordo da escuna ficaram seis homens, com ordem de não deixarem aproximar qualquer selvagem durante a nossa ausência, sob que pretexto fosse, de permanecerem constantemente na coberta. Recolheram-se as redes de filerete, carregaram-se os canhões com uma carga dupla de balas e metralha, e as roqueiras foram carregadas com caixas de balas de espingarda. O navio estava ancorado, com a âncora a pique, a cerca de uma milha da costa, e nenhuma embarcação poderia aproximar-se dele, por nenhum lado, sem ser vista e ficar imediatamente exposta ao fogo da nossa artilharia.
Descontados os seis homens que ficavam a bordo, o nosso grupo compunha-se de trinta e duas pessoas no total, íamos armados até aos dentes com espingardas, pistolas e punhais, tendo, além disso, cada homem, um facalhão de marinheiro, um pouco semelhante à faca de mato, actualmente tão popularizada em todas as nossas regiões do Sul e do Oeste. Quando desembarcámos, aguardava-nos uma centena de guerreiros com os seus trajes de pele negra para nos ensinar o caminho. Devo dizer que notámos com um misto de surpresa, que estavam completamente desarmados e, quando interrogámos Too-Wit acerca deste facto, limitou-se a responder: Mattee nou we pa pa si - isto é: Onde todos são irmãos, não há necessidade de armas. Interpretámos favoravelmente esta resposta e continuámos o caminho.
Havíamos já passado a fonte e o regato de que falei anteriormente, e penetrávamos numa estreita garganta através das colinas de pedra mole no meio das quais estava situada a aldeia. A garganta era rochosa e muito desigual, tendo-a franqueado com extrema dificuldade na nossa primeira visita a Klock-Klock. O desfiladeiro, a todo o comprimento, devia ter cerca de uma milha e meia, ou mesmo duas milhas. Serpenteava em centenas de sinuosidades através das colinas (em épocas recuadas devia ter sido o leito de uma torrente), e nunca continuava mais de vinte jardas sem fazer uma acentuada curva. As vertentes deste vale tinham, em média, 70 ou 80 pés de altura, e eram totalmente cortadas a pique, alcançando em determinados pontos numa altura tão prodigiosa que obscureciam de tal forma a passagem que a luz do dia mal podia entrar. A largura média era de uns quarenta pés, embora por vezes estreitasse tanto que não podiam ir mais de cinco ou seis homens de frente. Em resumo, não havia sítio no mundo mais adequado para uma emboscada, e não era estranho que agarrássemos cuidadosamente as armas quando aí entrámos.
Quando agora penso nessa estúpida loucura, o meu principal motivo de espanto é que nos aventurássemos daquela maneira, sem atender às circunstâncias, pondo-nos à disposição de selvagens desconhecidos, a ponto de os deixar caminhar adiante e atrás de nós durante toda a extensão da ravina. Contudo, tal foi a ordem que cegamente adoptámos, fiando-nos estupidamente nas nossas forças, na não existência de armas entre o bando de Too-Wit, na certeza eficaz das nossas armas de fogo (cujos efeitos eram ainda um segredo para os nativos), e, principalmente, nas reiteradas demonstrações de amizade daqueles miseráveis canalhas. Cinco ou seis deles abriam a marcha, como para nos ensinar o caminho, fazendo gala dos seus cuidados e retirando pomposamente as pedras grandes e outros entraves para os nossos passos. Depois íamos nós, muito juntos, apenas preocupados em não nos separarmos. Atrás, seguia o grosso dos selvagens, numa ordem e correcção perfeitamente insólitas.
Dirk Peters, um indivíduo chamado Wilson Allen e eu, caminhávamos à direita dos nossos camaradas, examinando, ao longo do percurso, a estranha estratificação da muralha que se erguia sobre as nossas cabeças. Uma fenda na rocha macia chamou-nos a atenção. A sua largura era suficiente para nela se poder entrar à vontade, internando-se na montanha dezoito ou vinte pés em linha recta e curvando depois para a esquerda. A altura deste buraco, até onde podíamos ver, era cerca de sessenta ou setenta pés. Através das sinuosidades, cresciam dois ou três arbustos enfezados, assemelhando-se um pouco à aveleira e, como tive curiosidade de os examinar, avancei decididamente com esse propósito, arranquei cinco ou seis avelãs de um cacho e retirei-me apressadamente. Quando voltava, reparei que Peters e Allen me tinham seguido e disse-lhes |para recuarem porque não havia espaço para deixar passar duas pessoas, prometendo dar-lhes parte das minhas avelãs. Os meus companheiros voltaram-se e dirigiram-se para o caminho. Quando Allen estava quase à entrada da gruta, senti uma sacudidela que em nada se parecia com o que já sentira, e que me fez vagamente pensar (se acaso posso dizer que pensei) que tinham ruído os alicerces do nosso maciço globo, e que chegara a hora da destruição universal.
CATACLISMO ARTIFICIAL
Quando recuperei os sentidos, senti-me praticamente asfixiado, movendo-me na mais profunda escuridão, no meio de um montão de terra solta que caía pesadamente sobre mim de todas as direcções, ameaçando enterrar-me completamente. Horrivelmente alarmado por esta ideia, esforcei-me por me pôr em pé, o que, passado algum tempo, consegui, ficando por alguns instantes imóvel, enquanto tentava compreender o que me sucedera e onde estava. Em breve ouvia um profundo lamento, mesmo junto de mim, e, pouco depois a voz apagada de Peters suplicando-me, por amor de Deus, que o auxiliasse. Avancei penosamente um ou dois passos, até que tropecei na cabeça e nos ombros do meu companheiro, que estava enterrado num montão de terra solta até à cintura, lutando desesperadamente para se livrar daquela prisão. Com a máxima energia de que dispunha, apressei-me a tirar a terra que o rodeava, tendo por fim conseguido libertá-lo.
Logo que nos sentimos suficientemente recuperados do susto e da surpresa para podermos falar com raciocínio, chegámos à conclusão de que as paredes do buraco onde nos havíamos metido se tinham desmoronado devido a qualquer convulsão da natureza ou até, quem sabe, devido ao seu próprio peso, encontrando-nos enterrados vivos, perdidos para sempre. Durante muito tempo, entregámo-nos cobardemente à dor e ao desespero mais terríveis, que só aqueles que passaram por situações semelhantes poderão compreender. Acredito firmemente que nenhum dos acidentes a que está sujeita a existência humana é mais susceptível de provocar o paroxismo da dor física e moral do que o nosso caso: ser enterrado vivo! As trevas que envolvem a vítima, a terrível opressão dos pulmões, os sufocantes vapores que se desprendem da terra húmida, juntam-se às sinistras considerações de que estamos lançados para além dos mais remotos limites da esperança e que, praticamente, estamos na mesma condição dos mortos, infundindo no espírito humano um calafrio e um gélido horror que são intoleráveis e nem sequer se podem conceber!
Por fim, Peters propôs que, antes de mais, devíamos tentar ver até onde ia a nossa desgraça, sondando bem a nossa prisão, porque não era totalmente impossível que conseguíssemos descobrir uma abertura por onde escapar. Agarrei-me ansiosamente a esta esperança e, fazendo apelo a todas as energias, tentei abrir caminho através daquele amontoado de terra esboroada. Havia apenas dado um passo, quando me apercebi de uma débil claridade, quase imperceptível, mas que chegava para me convencer de que, pelo menos, não morreríamos imediatamente por falta de ar. Esta circunstância restituiu-nos um pouco de coragem, e tentámos persuadir-nos mutuamente de que conseguiríamos sair dali. Depois de ter trepado por cima de um montão de escombros que obstruía a passagem para a luz, foi-nos menos difícil avançar, ao mesmo tempo que experimentávamos algum alívio da excessiva opressão que nos atormentava os pulmões. Em breve conseguíamos distinguir o que nos rodeava e descobrimos que estávamos quase na extremidade da fenda que se estendia em linha recta, ou seja, no ponto onde curvava para a esquerda. Após alguns esforços, atingíamos a curva, de onde vimos, com indescritível alegria, uma extensa fenda que se prolongava a grande distância sobre a parte superior, formando quase um ângulo de quarenta e cinco graus, por vezes mais em certos pontos. Não conseguíamos descortinar toda a extensão desta abertura mas, pela quantidade de luz que por aí penetrava, tínhamos quase a certeza, se acaso pudéssemos trepar até ao topo, de encontrarmos uma saída para o ar livre.
Nesse momento, dei conta de que tínhamos sido três a deixar o desfiladeiro para entrar no buraco e que, portanto, faltava o nosso companheiro Allen. Assim, resolvemos voltar atrás e procurá-lo. Depois de uma busca demorada e perigosa, devido aos desprendimentos de terra que nos caíam em cima, Peters lançou um grito, dizendo-me que havia encontrado um pé do nosso companheiro e que o corpo estava de tal maneira sepultado sob os escombros que era impossível retirá-lo. Depressa descobri que era certo o que Peters dizia, e que já há bastante tempo não existia ali vida. Tristemente abandonámos o corpo ao seu destino e encaminhámo-nos de novo para a curva da galeria.
A largura da fenda era mesmo à justa para os nossos corpos e, após uma ou duas tentativas infrutíferas para subir, começámos a desesperar de novo. Já antes referi que a cadeia de montanhas, através das quais se estendia o disfiladeiro, era formada por uma espécie de rocha branca, parecida com a esteatite ou pedra sabão. As paredes da abertura, que agora nos esforçávamos por escalar, eram da mesma substância, de tal maneira escorregadias e húmidas que mal conseguíamos fixar os pés, mesmo nos pontos menos íngremes; nalguns sítios, quando a escalada era quase perpendicular, a dificuldade era, naturalmente, muito maior, e chegámos a pensar que não conseguiríamos transpor aquele obstáculo. Fomos buscar forças ao desespero, e. ocorrendo-nos a feliz ideia de talhar uma espécie de degraus na rocha macia com as nossas facas de mato. subimos, sujeitos a espatifar-nos, apoiando-nos em pequenas proeminências de uma espécie de argila xistosa um pouco mais dura, que se destacavam em vários pontos das paredes, chegando assim a uma plataforma natural de onde se podia ver uma nesga de céu azul, no extremo de um desfiladeiro cheio de árvores. Olhando para trás, e examinando agora mais serenamente a passagem através da qual tínhamos subido, observámos nitidamente, pelo aspecto das paredes, que era de formação recente, o que significava que o tremor de terra, fosse de que natureza fosse, que tão inesperadamente nos tinha sepultado, havia-nos também aberto esta via de salvação. Praticamente esgotados pelo esforço, e tão fracos que mal nos conseguíamos manter em pé, nem pronunciar uma palavra, Peters propôs alarmar os nossos companheiros, disparando as pistolas que ainda tínhamos presas à cintura, pois as espingardas e as catanas tinham-se perdido nos escombros do fundo do abismo. Os acontecimentos seguintes vieram demonstrar-nos que, se acaso tivéssemos feito fogo, nos arrependeríamos amargamente; por sorte, um vislumbre de suspeita de que tínhamos sido vítimas de uma infame patifaria, atravessara o meu espírito, e tivemos o cuidado de não dar a conhecer aos selvagens o nosso paradeiro.
Depois de repousarmos cerca de uma hora, seguimos lentamente para o topo da ravina e, não tínhamos avançado ainda muito, quando ouvimos uma série de pavorosos bramidos. Chegámos por fim àquilo a que poderíamos chamar a superfície do solo, porque o nosso caminho, desde que tínhamos deixado a plataforma, serpenteara sob um túnel de altas rochas e folhagem, a grande distância das nossas cabeças. Com a máxima prudência, rastejámos até uma estreita abertura de onde podíamos divisar toda a região e, finalmente, foi-nos revelado num momento, à primeira vista, o segredo terrível do tremor de terra.
O local onde estávamos não distava muito do pico mais alto da cadeia de montanhas de esteatite. A garganta onde se metera o nosso destacamento de trinta e dois homens estendia-se a cinquenta pés para o nosso lado esquerdo e, num espaço de cerca de cem jardas, o desfiladeiro, ou o fundo da garganta, estava completa-mente juncado dos destroços caóticos de mais de um milhão de toneladas de terra e pedras, autêntica avalanche artificial que para lá fora lançada premeditadamente. O sistema empregado para fazer deslocar aquela massa imensa, era tão simples como evidente, na medida em que ainda restavam vestígios inequívocos da criminosa acção. Em vários pontos, ao longo da crista oriental da garganta (estávamos agora no lado ocidental), viam-se estacas de madeira cravadas no solo. Nesses locais, o terreno não cedera; mas, a todo o comprimento da vertente do precipício de onde se havia desprendido a terra, era evidente, pelos rastos que ficaram marcados, semelhantes aos traços de um trabalho de escavação, que outras estacas idênticas às que ainda subsistiam, haviam estado cravadas, à distância máxima de uma jarda umas das outras, numa extensão aproximada de trezentos pés e a cerca de dez pés da borda do abismo. Fortes ramos de vide, rodeavam ainda as estacas existentes no cimo da vertente, e era evidente que as mesmas ligações deviam unir as estacas derrubadas. Já me referi à estranha estratificação destes montes de pedra do género da esteatite, e a descrição que fiz da estreita e profunda fenda através da qual escapámos à nossa terrível sepultura, deve dar uma ideia da natureza do terreno, que qualquer convulsão natural podia facilmente fender em camadas perpendiculares, ou linhas paralelas, e que um vulgar esforço provocado era suficiente para obter o mesmo resultado. Os selvagens tinham-se aproveitado deste tipo especial de estratificação para pôr em prática a sua abominável traição. Não havia qualquer dúvida que a ruptura parcial do terreno se devia àquela contínua linha de estacas, cravadas a um ou dois pés de profundidade, e que um selvagem colocado na extremidade de cada um dos entrançados de vide, e puxando para si (as ligações estavam presas à base das estacas, e estendiam-se desde a crista do monte), não obtivesse uma enorme força de alavanca, capaz de fazer desmoronar, após um determinado sinal, toda a camada superficial da vertente no fundo do abismo. Também já não havia dúvidas sobre o destino dos nossos pobres companheiros. Apenas nós escapámos àquele esmagador cataclismo artificial. Éramos os únicos homens brancos vivos na ilha.
TEKELI-LI!
A nossa situação era agora quase tão terrível, como na altura em que já nos julgávamos enterrados vivos. A única perspectiva que se nos deparava, era a de sermos mortos pelos selvagens, ou arrastar entre eles uma existência miserável de cativos. Embora durante algum tempo pudéssemos ocultar-nos nos recônditos das montanhas ou, em caso extremo, no abismo de onde tínhamos saído, acabaríamos por morrer de fome ou frio durante o longo Inverno polar, ou por trair a nossa existência nos esforços que fizéssemos para encontrar alimentos.
Toda a região circundante parecia formigar de selvagens, e vimos que chegavam novos bandos, vindos em jangadas, das ilhotas mais para sul, sem dúvida alguma para ajudarem a tomar e saquear a Jane. O navio permanecia tranquilamente ancorado na baía, não suspeitando sequer os homens de bordo do perigo que os ameaçava. Como ansiávamos por estar junto deles nesse momento, quer para os ajudar a tentar a fuga, quer para morrermos juntos, procurando defender-nos! Não tínhamos qualquer possibilidade de os advertir do perigo, nem atrair a morte sobre as nossas cabeças, e mesmo assim, poucas esperanças havia de lhes sermos úteis. Um tiro de pistola, seria o bastante para lhes anunciar que acontecera uma desgraça; mas este aviso não os faria compreender que a sua única salvação estava em levantar âncora imediatamente, pois nenhum compromisso de honra os obrigava a ficar, na medida em que os seus companheiros haviam sido riscados do número dos vivos. O disparo, também não serviria para se prepararem melhor do que estavam, e do que tinham estado até aí, a fim de receberem um inimigo disposto ao ataque. Como nenhuma vantagem podia resultar do alarme causado por um tiro, e um enorme dano podia daí advir, resolvemos, após maduras reflexões, abster-nos de disparar.
Ocorreu-nos então a ideia de nos precipitarmos para a praia, apoderarmo-nos de uma das quatro canoas amarradas à entrada da baía, e procurarmos abrir caminho até à escuna. Mas, a total impossibilidade de termos êxito nesta desesperada tentativa, em breve se tornou evidente. Como já disse, toda a região formigava de selvagens, rastejando atrás das moitas ou nos recônditos das colinas, de modo a não serem vistos da escuna. Muito próximo do ponto onde nos encontrávamos, e bloqueando a única passagem por onde poderíamos chegar ao sítio ideal da costa, estava colocado o grupo dos guerreiros de peles pretas, com Too-Wit à frente, e parecia que apenas aguardavam alguns reforços para iniciarem a abordagem da Jane. Também as canoas, à entrada da baía, estavam apinhadas de selvagens que, embora não estivessem armados, o mais natural era terem as armas escondidas ao seu alcance. Assim, apesar de toda a nossa boa vontade, vimo-nos obrigados a permanecer no esconderijo, como meros espectadores da batalha que já se desenhava.
Cerca de meia hora depois, vimos sessenta ou setenta jangadas, ou balsas, com balanceiros de piroga, encherem-se de selvagens e dobrarem a ponta sul da baía. Segundo parecia, não tinham mais armas do que curtas clavas, e pedras amontoadas no fundo das embarcações. Pouco depois, aproximou-se outro destacamento, ainda mais numeroso, e com armas iguais, vindo da direcção contrária. As quatro canoas também se encheram rapidamente com uma multidão de nativos, que apareciam vindos dos bosques, dirijindo-se todos para a entrada do porto e fazendo-se logo ao largo para se Juntarem aos outros bandos. Deste modo, em menos tempo do que necessitei para o descrever, a Jane era sitiada por uma imensa multidão de demónios, resolvidos, custasse o que custasse, a apoderarem-se da escuna.
Não tínhamos a mínima dúvida do êxito do empreendimento. Por mais resolutos que fossem a defender-se, os seis homens que ficaram no navio não chegavam para o serviço dos canhões e, de qualquer modo, eram incapazes de sustentar um combate tão desigual. Mal contava que oferecessem um mínimo de resistência; mas enganava-me, pois em breve os vi orientar o navio de modo que o lado de estibordo ficasse com o costado apontado para as canoas, nessa altura ao alcance de um tiro de pistola enquanto as jangadas estavam aproximadamente a um quarto de milha para sotavento. Devido a qualquer razão desconhecida, possivelmente à agitação dos nossos desgraçados amigos ao verem-se em tão desesperado transe, a descarga foi um total malogro. Como o disparo foi muito curto, e a carga fez ricochete por cima das cabeças deles, nenhuma canoa foi atingida, e nem um só selvagem ficou ferido. O único efeito produzido foi o seu grande espanto pela inesperada detonação e pela fumarada; e o espanto foi tão grande que, durante alguns momentos, cheguei a pensar que iriam abandonar os seus intentos e fugir para a costa. Talvez isso acontecesse se os nossos homens tivessem continuado o combate com uma descarga dos moquetes, pois, com as canoas tão perto, esse disparo não deixaria de causar danos e vítimas que, pelo menos, impediria o bando de se aproximar mais, e lhes permitiria atirar outra descarga contra as jangadas. Mas, pelo contrário, correram para bombordo para se defenderem das jangadas dando tempo que os selvagens das canoas se recompusessem do pânico e verificassem, olhando à sua volta, que não haviam sofrido qualquer dano.
A descarga de bombordo produziu um efeito terrível. A metralha e as balas, arremeçadas pelos grandes canhões, despedaçaram completamente sete ou oito jangadas, matando trinta ou quarenta selvagens, enquanto que pelo menos uma centena caía à água, quase todos horrivelmente feridos. Os que escaparam, desvairados, puseram-se imediatamente em fuga, não se detendo sequer para salvarem os companheiros feridos, que nadavam a esmo, gritando e suplicando por socorro. Contudo este êxito chegou tarde demais para salvar os nossos enérgicos camaradas. O bando das canoas, em número superior a cento e cinquenta homens, tinha já chegado a bordo da escuna, conseguindo a maior parte deles trepar às enxárcias e por cima das redes de fileretes, antes das mechas serem aplicadas aos canhões de bombordo. Já nada podia deter a raiva daqueles brutamontes. Os nossos homens foram atirados ao chão, pisados, espezinhados e completamente feitos em pedaços, num espaço de segundos.
Vendo isto, os selvagens das jangadas recompuseram-se do terror em que estavam, e chegaram em multidão para a pilhagem. Em cinco minutos, a Jane foi o deplorável teatro de uma devastação e desordem incomparáveis. A coberta foi rachada, arrancada e demolida; os cabos, as velas e os aparelhos foram espatifados como por magia; enquanto que, rebocando a escuna com as canoas, e empurrando-a pela ré e pelos costados, aquela multidão miserável que nadava à volta do navio, acabou por conseguir encalhá-lo junto à costa (o cabo da âncora tinha sido arrancado) e entregá-lo a Too-Wit que, durante toda a batalha, como um perfeito general, havia permanecido no seu posto de observação nas colinas mas, agora que a vitória era tão completa como desejava, surgia com o seu estado-maior felpudo para tomar parte no saque.
A descida de Too-Wit permitiu-nos abandonar o esconderijo, e fazer um reconhecimento da colina, nas imediações do desfiladeiro. A umas cinquenta jardas da entrada, vimos uma pequena nascente onde apagámos a ardente sede que nos consumia. Perto da nascente, descobrimos algumas aveleiras do mesmo género das que já referi e, provando os frutos não as achámos más de todo, com um sabor muito semelhante a avelã inglesa comum. Enchemos os chapéus com elas, colocámo-los na berma e voltámos à colheita. Enquanto estávamos activamente empenhados a apanhar avelãs, sentimos um barulho nos arbustos que nos causou um sério alarme e, estávamos quase para rastejar em direcção ao nosso poiso, quando um enorme pássaro negro do tipo da garça se ergueu lenta e pesadamente dos arbustos. Fiquei de tal maneira surpreendido que não me mexi; mas Peters teve suficiente presença de espírito para se atirar ao pássaro antes que ele escapasse, e agarrou-o pelo pescoço. O animal debatia-se furiosamente, e lançava gritos tão lancinantes, que estivemos quase para o largar, temendo que o ruído alarmasse os selvagens que ainda estivessem emboscados nas redondezas. Mas, por fim, um golpe de faca de mato bem dado liquidou-o, e arrastámo-lo para o desfiladeiro, felicitando-nos por termos conseguido uma provisão de carne suficiente para uma semana.
Voltámos a sair para examinar as imediações, e, desta vez, aventurámo-nos a uma distância considerável na vertente sul da montanha; mas nada mais descobrimos com que aumentar as nossas provisões. Apesar disso, apanhámos uma razoável quantidade de lenha seca, e só regressámos quando vimos um ou dois enormes grupos de nativos que se dirigiam para a aldeia, carregados com o espólio do navio, temendo que nos vissem quando passassem no sopé da colina.
Aplicámo-nos imediatamente a tornar o nosso local de retirada o mais seguro possível e, com este objectivo, pusemos alguns silvados sobre a abertura de que já falei, através da qual avistáramos uma nesga de céu azul, quando, subindo do abismo, atingimos a plataforma. Deixámos apenas aberto um pequeno orifício, que nos permitisse vigiar a baía, sem corrermos o risco de ser vistos de baixo. Terminado o trabalho, congratulámo-nos pela segurança da nossa posição porque, enquanto permanecêssemos no desfiladeiro, sem nos aventurarmos nas montanhas, estávamos totalmente ao abrigo de qualquer observação. Não havia rastos que indicassem que os selvagens conhecessem o buraco mas, quando nos ocorreu que a fenda através da qual tínhamos subido, tinha sido provavelmente originada pela recente queda da vertente oposta, e que não seria possível descobrir outro caminho para aí chegar, não nos alegrámos tanto pela segurança do nosso abrigo, como nos assustámos ao pensar que nos seria completamente impossível lá descer. Assim, resolvemos aguardar a primeira oportunidade para explorar minuciosamente o cume da montanha e, para isso, observámos todos os movimentos dos selvagens através da nossa fresta.
Estes haviam já devastado completamente o navio, preparando-se agora para o incendiar. Passado pouco tempo vimos o fumo subir em espessos turbilhões através da escotilha principal, e, pouco depois, densas labaredas irrompiam do castelo da proa. O fogo depressa se propagou à enxárcia, aos mastros, e ao que restava ainda das velas, espalhando-se rapidamente por toda a coberta. Apesar disso, uma multidão de selvagens ainda se mantinha a bordo, martelando com pedras enormes, machados e balas de canhão, todas as cavilhas, todas as ferragens e todas as peças de cobre. Na praia, nas canoas e nas jangadas, à volta da escuna, havia para aí uns dez mil ilhéus, não contando com os grupos que se dirigiam para o interior, ou para as ilhas vizinhas, carregados com o resultado do saque. Estávamos já a prever uma catástrofe e não nos enganámos. O primeiro sintoma foi uma forte sacudidela (cujo estremecimento sentimos como se tivéssemos apanhado uma ligeira descarga de pilha voltaica), mas que não foi seguida de sinais visíveis de explosão. Os selvagens ficaram evidentemente surpreendidos e, durante alguns instantes, suspenderam os trabalhos e pararam de gritar.
Quando iam continuar com as destruidoras tarefas, uma imensa fumarada, semelhante a uma enorme e pavorosa nuvem de trovoada, irrompeu do centro do navio e, logo a seguir, como se jorrasse das suas entranhas, ergueu-se uma alta coluna de chamas brilhantes que atingia cerca de um quarto de milha, expandindo-se depois em círculo, e, num segundo, ficou o espaço crivado, como por artes mágicas, por um tremendo caos de madeiras, metais e membros humanos, dando-se por fim a explosão com toda a fúria, que nos atirou impetuosamente por terra, enquanto as montanhas repetiam os ecos multiplicados desse ribombar, e uma chuva densa de minúsculos fragmentos caía à nossa volta, vinda de todas as direcções.
A devastação entre os ilhéus ultrapassou as nossas melhores previsões, recolhendo assim os frutos merecidos da sua traição. Cerca de um milhar de homens morreu na explosão, e, pelo menos, outros mil ficaram horrivelmente mutilados. Toda a superfície da baía estava literalmente juncada daqueles miseráveis que se debatiam e afogavam, e, na costa, o resultado tinha sido ainda mais grave. Pareciam estar de tal maneira aterrorizados pela inesperada catástrofe, que não faziam nenhum esforço para se entreajudarem. Mas, de súbito, notámos uma completa mudança no seu comportamento. Da apatia total em que estavam, passaram a um estado de máxima excitação; corriam desordenadamente de um lado para o outro até um certo ponto da praia, fugindo imediatamente, com as expressões mais estranhas de raiva, terror e intensa curiosidade estampados nos rostos, e gritando com toda a força dos pulmões: Tekeli-li! Tekeli-li!
Em breve vimos um enorme grupo dirigir-se para as montanhas, regressando, passado pouco tempo, com estacas de madeira que levaram para o local onde o ajuntamento era maior, e a multidão afastou-se como Ipara nos mostrar a causa de toda aquela agitação. Avistamos qualquer coisa branca no solo, mas não conseguimos imediatamente identificar o que era. Por fim, reparamos que era o corpo do estranho animal de dentes e garras escarlates, que havíamos pescado no mar, em 18 de Janeiro. O capitão Guy, mandara conservar o corpo para empalhar a pele e levá-la para Inglaterra. Lembro-me de que, pouco antes de chegarmos à ilha, dera certas ordens a esse respeito, e que tinham levado para o beliche e fechado numa das arcas aquela espécime preciosa. O corpo do misterioso animal tinha sido arrojado à praia pela explosão, mas não conseguia perceber porque causava uma agitação tão grande entre os selvagens. Embora a multidão se amontoasse a pouca distância, ninguém se atrevia a aproximar-se. Então, os homens que tinham trazido as estacas cravaram-nas em círculo à volta do animal e, quando acabaram esta tarefa, toda aquela mole imensa se precipitou para o interior da ilha, gritando os seus Tekeli-li! Tekeli-li!
O LABIRINTO
Durante os seis ou sete dias seguintes permanecemos no nosso esconderijo da colina, saindo poucas vezes, sempre com as máximas precauções, para buscar água e avelãs. Havíamos construído uma espécie de telheiro ou de coberta na plataforma, e tínhamo-la dotado de uma cama de folhas secas e de três grandes pedras rasas que nos serviam, simultaneamente, de forno e de mesa. Conseguimos facilmente lume esfregando dois pedaços de madeira, um macio, outro duro. O pássaro que tão oportunamente conseguimos apanhar proporcionou-nos magníficas refeições, embora a carne fosse um pouco rija. Não era uma ave marinha, mas uma espécie de garça, de plumagem negra de jade salpicada de cinzento, e com as asas muito pequenas em relação ao tamanho do corpo. Posteriormente vimos três aves da mesma espécie nas imediações do desfiladeiro, aparentemente em busca da que havíamos capturado; mas, como não pousaram uma única vez, não tivemos ocasião de nos apoderarmos de qualquer delas.
Enquanto durou a carne do animal, não tivemos razão de queixa da nossa situação; mas, agora que acabara, era absolutamente necessário procurar provisões. As avelãs não chegavam para acalmar o desespero da fome e, além disso, quando comíamos muitas provocavam-nos cólicas intestinais extremamente dolorosas acompanhadas de violentas dores de cabeça. Tínhamos visto várias tartarugas de grande tamanho junto à costa, a leste do monte, que se poderiam apanhar com facilidade se conseguíssemos chegar perto delas sem sermos descobertos pelos indígenas. Resolvemos, portanto, tentar a descida.
Começámos por descer pela encosta sul, que era a que parecia oferecer menos dificuldades; mas, não tínhamos ainda percorrido cem jardas quando a nossa marcha, tal como havíamos pensado ao examinarmos os locais do topo da colina, foi cortada por um ramo da garganta onde haviam perecido os nossos companheiros. Seguimos o bordo desta garganta, aproximadamente durante um quarto de milha, até sermos de novo detidos por um precipício com uma profundidade enorme, e, como era impossível descer pelas suas vertentes, vimo-nos obrigados a retroceder ao desfiladeiro principal. Encaminhámo-nos então para leste, mas não tivemos melhor sorte, pois os resultados foram idênticos. Depois de uma hora de malabarismos de partir o pescoço, descobrimos que tínhamos simplesmente descido num amplo poço de granito negro, com o fundo coberto por uma fina poeira, e cuja única saída era o áspero caminho por onde acabáramos de descer. Massacrámo-nos de novo através da perigosa senda, tentando depois a crista norte da montanha, onde tivemos de avançar com extrema precaução nas nossas pesquisas, porque a menor imprudência poderia expor-nos em cheio à vista dos selvagens da aldeia. Avançávamos de gatas, e muitas vezes a rastejar, arrastando o corpo fazendo força nos arbustos. Com todos estes cuidados tínhamos percorrido uma distância muito curta, até que chegámos a um abismo, ainda mais profundo do que os já vistos anteriormente, e que dava directamente para a garganta principal. Desta maneira, ficaram plenamente confirmados os nossos receios: estávamos totalmente isolados e sem qualquer acesso à zona situada por baixo de nós. Embora muito cansados por tantos esforços, conseguimos alcançar a plataforma e, atirando-nos para cima da nossa cama de folhas, caímos durante algumas horas num sono profundo e benéfico.
Depois desta inútil exploração, passámos vários dias a reconhecer todos os pontos do cume da montanha para verificarmos quais os verdadeiros recursos com que poderíamos contar. Vimos que era impossível encontrar qualquer coisa de comer, excepto as perigosas avelãs, e uma espécie de cocleária muito dura que crescia num pequeno espaço de, quanto muito, quatro varas quadradas. A quinze de Fevereiro, se bem me lembro, não restava um só raminho, e as avelãs começavam a rarear, pelo que era difícil conceber uma situação mais lamentável do que a nossa. A 16, voltámos a percorrer os muros da nossa prisão, esperançados em encontrar qualquer saída; mas as buscas foram inúteis. Também descemos de novo à fenda onde tínhamos estado quase sepultados, com a vaga esperança de descobrirmos, seguindo pelo túnel uma abertura que desse para a garganta principal. Foram igualmente infrutíferas estas buscas, mas encontrámos, e trouxemos para cima, uma espingarda.
A 17, saímos decididos a examinar mais pormenorizadamente o poço de granito negro que havíamos percorrido nas nossas primeiras explorações. Recordávamo-nos de que tínhamos observado muito superficialmente uma das fendas nas paredes do poço e estávamos impacientes por explorá-la melhor, embora sem grandes esperanças de encontrar uma saída.
Desta vez, chegámos sem grande dificuldade ao fundo do fosso e estávamos à vontade para o examinarmos com a máxima atenção possível. Era realmente um dos lugares mais estranhos que se possa imaginar, e quase não podíamos crer que fosse apenas obra da Natureza. De uma extremidade à outra, o poço media aproximadamente quinhentas jardas de comprimento, seguindo todas as suas sinuosidades; a distância em linha recta não ultrapassava as quarenta ou cinquenta jardas, segundo pude calcular de grosso modo, pois não dispunha de meios para tirar medidas exactas. No início da descida, ou seja, até cerca de cem pés abaixo do topo da colina, as paredes do abismo eram muito diferentes e, aparentemente, nunca deviam ter estado unidas, na medida em que uma delas era de pedra sabão e a outra de marga, granulada com uma substância metálica desconhecida. A largura média, ou espaço entre as duas faces, era por vezes de cerca de sessenta pés, embora não se observasse uma formação regular. Mais abaixo, passado o limite mencionado, o espaço estreitava-se rapidamente e as paredes começavam a ser paralelas, embora, até determinada altura, continuassem a ser diferentes, na matéria e na forma, das superfícies. A partir de cinquenta pés do fundo, a regularidade era perfeita. As duas faces apareciam agora totalmente idênticas quanto à estrutura, à cor e à direcção lateral, e a matéria que as construía era um granito muito negro e brilhante. A distância entre as duas paredes, perfeitamente paralelas, era de vinte jardas exactas. Pude perceber melhor o contorno preciso deste fosso através de um desenho feito no local, porque, felizmente, tinha em meu poder um bloco de notas e um lápis, que conservei com o máximo cuidado através de toda uma série de aventuras subsequentes. Graças a estes dois elementos pude anotar uma quantidade enorme de dados sobre os mais variados assuntos, que de outro modo me teriam escapado.
A figura 1 indica o contorno geral do abismo, sem as reentrâncias menores das paredes (aliás muito frequentes) correspondendo cada cavidade a uma saliência oposta. O fundo do fosso estava coberto por uma poeira quase impalpável de 3 ou 4 polegadas de espessura, debaixo da qual se continuava o granito negro. A direita, na extremidade inferior, poderá ver-se uma pequena abertura: é a fenda de que falei anteriormente, e o objectivo desta nossa segunda visita, para uma mais minuciosa observação. Introduzimo-nos nela com decisão, desbastando uma quantidade de silvas que nos estorvavam o caminho e arredando um montão de pedras aguçadas, cuja forma lembrava pontas de setas. Apesar das dificuldades, uma débil claridade que se vislumbrava no extremo oposto, animava-nos a perseverar. Avançámos com muita dificuldade cerca de trinta pés, até descobrirmos que a abertura era uma abóbada baixa e de forma regular, com o mesmo chão de poeira impalpável que atapetava o fosso principal. Uma intensa claridade quase nos cegou e, ao dobrarmos uma esquina acentuada, encontrámo-nos noutra galeria elevada, muito semelhante à que havíamos deixado, mas de forma longitudinal. O seu aspecto geral está representado na figura 2.
O comprimento total deste fosso começando pela abertura a, seguindo pela curva b, até à sua extremidade d, era de 550 jardas. Em c, descobrimos uma pequena fenda semelhante àquela por onde saíramos do anterior abismo, e igualmente tapada por silvas e por uma série de pedras amareladas em forma de pontas de setas. Abrimos caminho através dessa fenda, que, a uma distância aproximada de 40 pés, desembocava num terceiro abismo. Este, era igualmente semelhante ao primeiro, excepto na sua forma longitudinal, representada na figura 3.
O comprimento total do terceiro fosso era de 320 jardas. No ponto a havia uma abertura com uns seis pés de largura, que se prolongava na rocha a uma profundidade de 15 pés, terminando numa camada de marga. Para lá desta abertura não havia, como aliás já esperávamos, mais nenhum abismo. Estávamos quase a deixar esta fenda, onde entrava muito pouca luz, quando Peters | me chamou a atenção para uma série de entalhes de aspecto estranho que decoravam a superfície da marga onde terminava aquele beco sem saída. Com um pouco de imaginação, o entalhe da esquerda, ou seja, o que estava mais a norte, poderia tomar-se pela representação intencional, de uma figura humana de pé, com um braço estendido. Os restantes entalhes tinham uma certa semelhança com caracteres alfabéticos e esta opinião ficou a pairar - de que eram realmente caracteres - seduzindo de tal maneira Peters que este acabou por acreditar nisso. Acabei por convencê-lo do erro chamando-lhe a atenção para o solo da fenda onde, no meio da poeira, estavam umas grandes lascas de marga, de que apanhámos todos os fragmentos, e era evidente que tinham saltado, devido a qualquer convulsão, da superfície em que estavam os entalhes. Estas lascas tinham pontos salientes que se ajustavam perfeitamente às pretensas incisões da parede, prova evidente que tudo aquilo era obra da Natureza. A figura 4 é uma cópia exacta do conjunto.
Depois de nos termos convencido que aquelas estranhas cavernas não nos ofereciam qualquer oportunidade de escapar à nossa prisão, regressámos, desanimados e sem esperança, ao topo da colina. Durante as vinte e quatro horas seguintes, nada ocorreu digno de menção, excepto o facto de termos examinado o terreno a leste da terceira caverna, e encontrarmos dois buracos triangulares muito profundos, cujas paredes eram também de granito negro. Não acreditámos que valesse a pena descer a esses buracos, na medida em que não tinham saída e pareciam simples poços naturais. Mediam cerca de vinte pés de circunferência e a forma, bem como a posição em relação ao terceiro fosso, é indicada mais atrás na figura 5.
A EVASÃO
No dia 20 de Fevereiro, vendo que nos era completamente impossível continuar a viver das avelãs que nos davam um mal-estar atroz, decidimos fazer uma tentativa desesperada para descer a vertente sul da colina. Desse lado, a parede do precipício era de uma espécie de pedra sabão extremamente macia, praticamente a pique a toda a altura (pelo menos cento e cinquenta pés) e, em certos pontos inclinada para o interior. Após um exame minucioso, descobrimos uma estreita saliência, aproximadamente a vinte pés abaixo da beira do abismo. Atando os nossos lenços, ajudei Peters a saltarcom um pouco mais de dificuldade, lá consegui também descer. Vimos então que era possível chegar ao fundo, utilizando o mesmo processo que havíamos usado para escalar a fenda onde tínhamos estado quase sepultados pelo desprendimento das terras da colina; ou seja: abrindo degraus na superfície da estalactite com as nossas facas. É difícil conceber até que ponto isso era arriscado mas como não havia outra alternativa, resolvemos tentar a aventura.
Na saliência onde estávamos, cresciam algumas aveleiras selvagens e, a uma delas, atámos uma das pontas da nossa corda de lenços. Prendemos a outra extremidade à cintura de Peters e desci-o ao longo do precipício até os lenços ficarem bem esticados. Peters começou a abrir um buraco, de oito ou dez polegadas de profundidade, na pedra de sabão, cortando a rocha até um pé mais acima, para poder cravar na superfície, com a coronha da pistola, uma estaca suficientemente fixa. Icei-o uns quatro pés mais acima, e ele voltou a abrir outro buraco igual ao primeiro, onde cravou nova estaca, obtendo deste modo um ponto de apoio para os pés e para as mãos. Soltei depois os lenços do arbusto e atirei-lhe a ponta, que ele prendeu à estaca do buraco superior; em seguida, deixou-se escorregar suavemente uns três pés abaixo do ponto anterior. Isto é, do comprimento total dos lenços. Aí, abriu novo buraco, e cravou outra estaca. Depois, içou-se a pulso, de modo a pousar os pés no buraco que acabara de abrir, agarrando com as mãos a estaca do buraco de cima.
Necessitava agora de desatar a ponta do lenço da estaca superior, para a prender na inferior, e foi então que viu o erro que fizera ao abrir os buracos a tão grande distância. Mesmo assim, depois de várias e perigosas tentativas para alcançar o nó (em que só podia usar a mão direita, pois a esquerda estava agarrada à estaca), acabou por cortar a corda, deixando seis polegadas agarradas à estaca. Atando os lenços à segunda cavilha, desceu abaixo da terceira, tendo agora o máximo cuidado em não a deixar muito abaixo. Por este processo (confesso que nunca me teria ocorrido tal, e que tudo fiquei a dever à coragem e à habilidade de Peters), o meu companheiro conseguiu chegar ao fundo do precipício, apoiando-se de vez em quando às saliências da rocha, sem sofrer qualquer acidente.
Precisei de algum tempo para reunir suficiente coragem para o seguir, até que por fim me decidi. Peters tinha tirado a camisa antes de descer e, atando-a à minha, obtive uma corda necessária para o meu propósito. Depois de ter atirado para o fundo do precipício a espingarda encontrada na fenda, atei a corda aos arbustos e deixei-me escorregar rapidamente, procurando dominar o medo com a rapidez dos movimentos, pois de outra forma não conseguiria descer.
Este processo deu resultado para os primeiros quatro ou cinco degraus, mas em breve começou a perturbar-se terrivelmente a minha imaginação, ao pensar na enorme profundidade que se abria aos meus pés, e na fragilidade e insegurança das estacas e dos escorregadios buracos, que eram o meu único suporte. Inutilmente me esforcei por afastar estes pensamentos e manter a vista fixa na superfície plana da muralha que tinha diante dos olhos. Quanto mais me esforçava por não pensar, mais nítidos e intensos, mais horrivelmente claros eram os meus pensamentos.
Por fim, sobreveio o facto mais terrível nestes casos: o delírio. Nestas situações de crise, surgem-nos todas as imagens que sentiríamos se realmente caíssemos, desde o enjoo às vertigens, da luta desesperada para não cair às tonturas, e, finalmente, ao horror de uma súbita queda vertical. Via estas imagens converterem-se em realidade e todos os horrores do delírio caíram sobre mim. Sentia os joelhos baterem com violência, enquanto os dedos largavam gradualmente, mas cada vez mais, a corda a que me agarrava. Tinha um zumbido nos ouvidos que me levava a pensar: “É o dobre de finados!” Naquele momento, consumia-me um irresistível desejo de olhar para baixo. Já não conseguia nem sequer desejava, concentrar-me na muralha, e, com uma estranha e indefinível emoção, misto de horror e alívio, mergulhei o olhar no abismo.
Durante alguns segundos, os dedos agarraram-se convulsivamente à estaca, e a ideia de uma possível salvação voltou a pairar, como débil sombra, no meu espírito; contudo, no instante seguinte, todo o meu espírito estava invadido por um imenso desejo de cair, um desejo e uma ternura pelo abismo, uma paixão completamente irresistível! Larguei de súbito a estaca e, indo de encontro à muralha, permaneci um instante a oscilar sobre aquela superfície polida. A vertigem invadiu-me então por completo; uma voz imaginária e estridente gritava-me aos ouvidos; uma figura enegrecida, diabólica e obscura, ergueu-se aos meus pés; suspirei, senti o coração quase a estalar, e deixei-me cair nos braços do fantasma.
Desmaiara, e Peters agarrara-me ao cair. Do seu posto no fundo da colina, tinha estado a observar os meus movimentos; apercebendo-se do perigo iminente que corria, tentara incutir-me coragem por todos os meios que lhe vieram à cabeça; mas, a confusão no meu espírito era tão grande, que nada ouvi do que ele me disse, nem sequer dei conta que me falava. Por fim, vendo-me vacilar, apressou-se a vir em meu auxílio, chegando mesmo a tempo de me salvar. Se tivesse caído com todo o peso, a corda feita com a roupa, ter-se-ia inevitavelmente rompido e eu teria sido precipitado no abismo. Graças a Peters, que amorteceu o tombo, pude cair suavemente, ficando suspenso, e sem perigo, até voltar à vida. Quando recuperei os sentidos, passados quinze minutos, o terror tinha-se desvanecido por completo; sentia-me um novo ser e, com alguma ajuda do meu camarada, atingi o fundo são e salvo.
Estávamos agora a pouca distância do desfiladeiro que tinha sido o túmulo dos nossos companheiros, e a sul do lugar onde se desmoronara a colina. Essas paragens tinham um ar de devastação estranha que me recordavam as descrições dos viajantes das lúgubres regiões que assinalam o lugar da Babilónia destruída. Para além dos escombros da colina desmoronada, formando uma barreira caótica que tapava a vista a norte, a superfície do solo estava juncada de grandes túmulos, disseminados por toda a parte, aparentemente restos de gigantescas construções artificiais. Contudo, a um exame mais minucioso, não se descortinava qualquer vestígio de arte. As escórias abundavam, assim como grandes blocos de granito negro misturados com blocos de marga, ambos granulados de metal. Em toda a extensão desta região desolada, tanto quanto a vista podia abarcar, não havia qualquer traço da mínima vegetação. Avistámos alguns enormes escorpiões e diversos répteis que não existem nas latitudes norte.
Como o nosso objectivo imediato era a comida, de-cidimo-nos avançar para a costa, que não distava mais de meia milha, para tentarmos caçar tartarugas, várias das quais tínhamos visto do nosso esconderijo, no alto da montanha. Havíamos percorrido umas cem jardas, deslizando com cuidado entre as grandes rochas e as ruínas, quando, ao virar de uma curva, caíram sobre nós cinco selvagens que saíram de uma pequena caverna, derrubando Peters com uma paulada. Quando caiu, o bando inteiro lançou-se sobre ele para tentar dominá-lo, dando-me tempo para me recompor da surpresa. Tinha ainda em meu poder a espingarda, mas, como o cano estava muito danificado pelas quedas do alto do precipício, não me servia de nada. Deste modo, resolvi confiar nas pistolas que tinha mantido cuidadosamente em bom estado, e, avançando para os selvagens, descarreguei rapidamente sobre eles as duas armas. Dois caíram logo e um terceiro, que ia para atravessar Peters com a lança, saltou para trás sem o ferir. Com o meu companheiro livre, não tivemos mais problemas. Embora também tivesse pistolas, achou mais prudente não as usar e servir-se da sua força colossal, maior do que a de qualquer homem que já conheci. Apoderando-se da clava de um dos selvagens mortos, instantaneamente, com um só golpe para cada um, rebentou a cabeça aos três que restavam, o que nos tornou totalmente senhores do campo de batalha.
Tudo isto se passou com tanta rapidez que nos custava acreditar na realidade dos acontecimentos, e mantínhamo-nos diante dos cadáveres em estúpida contemplação, até cairmos em nós, ao ouvirmos gritos ao longe. Era evidente que os tiros tinham alarmado os restantes selvagens, e corríamos grave perigo de sermos descobertos. Para subirmos de novo à montanha, era necessário avançar na direcção da gritaria e, mesmo que atingíssemos o sopé, não conseguiríamos subir sem ser apercebidos. A situação era extremamente perigosa e não sabíamos para que lado fugir, quando um dos selvagens sobre quem disparara, e que julgava morto, se levantou de um salto e tentou fugir. Conseguimos agarrá-lo e estávamos para o matar, quando Peters se lembrou que talvez nos fosse vantajoso obrigá-lo a compartilhar a nossa tentativa de fuga. Arrastámo-lo connosco, e fizemos-lhe compreender que estávamos dispostos a matá-lo à menor resistência. Poucos minutos depois estava já totalmente dócil, caminhando ao nosso lado enquanto deslizávamos por entre as rochas, em direcção à praia.
Até essa altura, as irregularidades do terreno que tínhamos percorrido, não nos deixavam ver o mar, com excepção de curtos espaços e, quando por fim se estendeu totalmente à nossa frente, não distava mais de duzentas jardas. Ao sairmos a descoberto na baía, observámos com profundo terror, uma multidão imensa de indígenas que se precipitavam da aldeia e de todos os pontos visíveis da ilha, dirigindo-se para nós, gesticulando com furor e uivando como feras, íamos a retroceder, tentando fugir para os abrigos que as irregularidades do terreno nos podiam oferecer, quando avistámos a proa de duas canoas que estavam por detrás de uma grande rocha que entrava pelo mar dentro. Corremos para elas o mais depressa possível, e encontrámo-las desocupadas, contendo apenas três enormes tartarugas galápagos e remos para sessenta homens. Apoderámo-nos imediatamente de uma e, forçando o nosso prisioneiro a embarcar, fizemo-nos ao largo com todo o vigor de que éramos capazes.
Afastáramo-nos da costa apenas umas cinquenta jardas quando, recuperando um pouco mais de sangue-frio, demos conta do enorme erro que havíamos cometido deixando a outra canoa na posse dos selvagens; estes, entretanto, aproximavam-se já da baía e estavam agora a uma distância dupla da que nos separava, adiantando-se rapidamente. A esperança era débil, mas não havia tempo a perder. Embora fosse duvidoso que pudéssemos, mesmo fazendo os máximos esforços, apo-derarmo-nos da canoa antes deles, havia ainda uma hipótese. Se o conseguíssemos, talvez nos salvássemos; mas, se nem sequer o tentássemos, teríamos que nos resignar a uma carnificina inevitável.
A nossa canoa estava construída de tal maneira que proa e ré eram iguais e, em lugar de virar, modificámos apenas a direcção para que remávamos. Logo que os selvagens se aperceberam da nossa manobra, redobraram de gritos e de velocidade, aproximando-se com inconcebível rapidez. Mas nós remávamos com a energia que só o desespero pode dar e, ao alcançarmos o local em disputa, apenas um dos selvagens aí tinha chegado. Este homem pagou caro a sua agilidade superior: Peters disparou-lhe um tiro de pistola na cabeça, ao atingir a margem. Os mais adiantados dos nativos estavam já a vinte ou trinta passos quando nos agarrámos à canoa. Tentámos primeiro pô-la a flutuar mas vendo que estava muito presa, e não tendo tempo a perder, com duas ou três fortes coronhadas de espingarda, Peters conseguiu abrir um grande buraco na proa e num dos lados. Em seguida pusemo-nos ao largo. Entretanto, dois dos selvagens tinham-se agarrado ao barco e recusavam-se obstinadamente a largá-lo, vendo-nos obrigados a rechaçá-los com as facas.
De momento estávamos salvos, e avançávamos decididamente para o alto mar. Quando a grande maioria dos selvagens chegou junto da canoa espatifada, ouviram-se os mais terríveis gritos de raiva e de desapontamento que imaginar se possa. Por tudo quanto pude conhecer daqueles miseráveis, pareceram-me ser a raça mais cruel, mais hipócrita, mais vingativa, mais sanguinária, e mais diabólica, de toda a face da terra. Era evidente que não poderíamos contar com a mínima piedade se acaso lhes caíssemos nas mãos. Ainda tentaram perseguir-nos na canoa despedaçada mas, vendo que era impossível, expandiram a sua raiva em horríveis gritarias, acabando por regressar às colinas.
Estávamos agora livres de qualquer perigo iminente, embora a nossa situação não fosse das melhores. Sabíamos que os selvagens possuíam quatro canoas semelhantes à nossa e ignorávamos (até que o nosso prisioneiro nos elucidou do facto) que duas delas tinham sido estilhaçadas pela explosão da Jane Guy. Assim, calculávamos que voltaríamos a ser perseguidos logo que os nossos inimigos dessem a volta à ilha e chegassem à baía (que distava cerca de três milhas) onde as restantes canoas estavam normalmente amarradas.
Temendo isto, envidámos todos os esforços para nos afastarmos o mais possível da ilha, avançando com toda a rapidez para o alto mar, e forçando o prisioneiro a remar connosco. Aproximadamente meia hora depois, já havíamos avançado cinco ou seis milhas para sul, avistámos uma enorme frota de Jangadas e de barcos de fundo chato, surgir da baía, com o Intuito evidente de nos perseguir, mas em breve retrocediam, pela total impossibilidade de nos alcançarem.
O GIGANTE BRANCO
Navegávamos no Imenso e desolado oceano Antárctico, a uma latitude de mais de 84°, numa frágil canoa, sem mais provisões que três tartarugas. Além disso, como o longo Inverno polar não devia tardar muito, era necessário pensar a sério na rota a seguir. Havia seis ou sete ilhas à vista, pertencentes ao mesmo grupo e distantes entre si cinco ou seis léguas; mas, não nos sentíamos tentados a desembarcar em qualquer delas. Ao virmos do Norte na Jane Guy, fomos deixando para trás as regiões mais atingidas pelos gelos e, embora pareça um contra-senso, por estar em completo desacordo com os juízos geralmente formulados acerca do oceano Antárctico, é uma verdade que a experiência nos obriga a não repudiar. Deste modo, era uma autêntica loucura tentar voltar para trás, tanto mais que a ; estação estava muito adiantada. Só havia um caminho aberto à esperança. Assim, resolvemos navegar intrèpidamente para sul, onde talvez pudéssemos descobrir outras ilhas, e onde encontraríamos com toda a certeza um clima mais ameno.
Até aqui, o oceano Antárctico parecera-nos semelhante ao Árctico, sem violentas tempestades nem vagas muito fortes. Mas, como a nossa canoa embora grande, : era, para não dizer pior, de frágil construção, resolvemos : tentar torná-la mais segura por todos os meios limitados que tínhamos ao nosso alcance. A matéria de que era feito o fundo do barco provinha de uma simples casca de qualquer árvore desconhecida. A armação era de verga rija e flexível, perfeitamente adaptável ao fim a que se destinava. Da proa à ré dispúnhamos de um espaço de cinquenta pés, por quatro a seis de largura, com uma profundidade geral de quatro pés e meio. Como se vê, estes barcos têm uma forma completamente diferente das embarcações usadas pelos povos dos mares do Sul que tem relações com as nações civilizadas. Nunca acreditámos que fossem obra daqueles ignorantes ilhéus, em poder de quem estavam; alguns dias depois, acabámos por descobrir, interrogando o nosso prisioneiro, que as referidas canoas tinham sido construídas pelos indígenas de um arquipélago situado a sudoeste da sua região, e que tinham caído acldentamente em poder dos nossos repelentes bárbaros.
Era muito pouco o que podíamos fazer pela segurança do barco. Nas duas extremidades descobrimos algumas fendas que tentámos tapar com pedaços dos nossos camisolões de lã. Com a ajuda dos remos que não eram necessários (havia uma grande quantidade deles a bordo), erguemos uma espécie de armação em volta da proa, para amortecer a força das vagas que pudessem ameaçar-nos desse lado. Levantámos depois dois remos que nos serviram de mastros, colocando-os nos dois extremos da embarcação, remediando assim a falta de uma verga. A estes mastros atámos uma vela feita com as nossas camisas. Este último trabalho foi extremamente difícil pois não conseguimos que o prisioneiro nos ajudasse, embora não se tivesse recusado a colaborar nas outras tarefas. A visão da vela pareceu afectá-lo de um modo muito especial. Nunca conseguimos levá-lo a tocar-lhe, nem sequer a aproximar-se e, quando o quisemos forçar, começou a tremer e a gritar em altos berros: Tekeli-li!
Terminados todos os cuidados necessários à segurança da canoa, fizemo-nos à vela em direcção a sul-sudeste, de modo a dobrarmos a ilha mais meridional do grupo. O tempo não se podia considerar desagradável. Estava uma brisa suave e constante de norte, um mar sereno e uma luminosidade permanente. Não avistámos nenhum bloco de gelo e já não víamos um pedaço que fosse desde que atravessámos o paralelo da ilhota Bennet. Realmente, a temperatura da água era então demasiado elevada para permitir a fixação da mínima partícula gelada. Matámos a tartaruga mais gorda e obtivemos, não só carne, mas também uma abundante provisão de água, e continuámos no mesmo rumo sem qualquer incidente importante, durante uns sete ou oito dias; no decurso deste período devíamos ter avançado imenso para sul, na medida em que o vento nos foi sempre favorável, e uma forte corrente nos arrastava continuamente na direcção que desejávamos.
1 de Março. - Diversos fenómenos insólitos indicaram-nos que penetrámos numa região de novidades e maravilhas. Uma alta e ténue cortina de vapor cinzento, ergue-se permanentemente no horizonte sul, cortada de vez em quando por extensos traços luminosos que vão de leste para oeste, ou de oeste para leste, reunindo-se depois numa só linha. Ou seja: apresentando todas as admiráveis variantes da aurora boreal. A altura média desta barreira de vapor, tal como se nos apresentava do ponto onde estávamos, era aproximadamente de vinte e cinco graus. A temperatura da água do mar parecia aumentar de instante a instante, e havia na sua cor uma perceptível alteração.
2 de Março. - Hoje, interrogando repetidas vezes o nosso prisioneiro descobrimos vários pormenores relativos à ilha do massacre, aos seus habitantes e aos seus hábitos (mas poderiam agora estas coisas interessar o leitor?). Averiguámos que o arquipélago era constituído por oito ilhas governadas por um só rei, chamado Tsalemon ou Psaiemoun, residente na mais pequena de todas; as peles negras que serviam de traje : aos guerreiros eram obtidas de um animal enorme que apenas podia ser encontrado num vale, próximo da residência real; os habitantes do arquipélago não faziam outro tipo de embarcações a não ser jangadas, e as quatro canoas eram tudo quanto possuíam de diferente, tendo vindo, por mero acidente, de uma ilha muito grande a sudoeste. O prisioneiro chamava-se Nu-Nu e nunca ouvira falar na ilhota Bennet. O nome da ilha onde tínhamos estado era Tsalal. O início das palavras Tsalemon e Tsalal pronunciava-se de uma forma sibilante muito prolongada, que nunca conseguimos imitar, mesmo após repetidos esforços, e que lembrava precisamente o som que soltava a garça negra que havíamos comido no cimo da montanha.
3 de Março. - O calor da água era um facto extremamente intrigante, e a sua cor, sofrendo uma brusca alteração, depressa perdeu a transparência e adquiriu um aspecto opaco e leitoso. Â nossa volta, o mar continuava calmo, sem se agitar de modo a pôr em perigo a canoa; mas, espantávamo-nos frequentemente ao ver à esquerda e à direita, a distâncias diferentes, bruscas e extensas agitações à superfície, as quais, segundo observámos depois, eram sempre precedidas por estranhas fulgurações na região da cortina de vapor, lá para sul.
4 de Março. - Hoje, com o fim de ampliar a vela, pois a brisa de norte diminuía sensivelmente, tirei do bolso do casaco um lenço branco. Nu-Nu estava sentado ao meu lado e, tendo-lhe por acaso tocado com o lenço na cara, ficou profundamente convulsionado. A esta crise seguiu-se um período de prostração e de apatia, acompanhado dos seus contínuos Tekell-li! Tekeli-lil, murmurados em surdina.
5 de Março. - O vento tinha cessado por completo mas era evidente que continuávamos a seguir para sul, arrastados por uma poderosa corrente. Vendo bem, seria muito natural que começássemos a sentir um certo receio pelo estranho aspecto que as coisas tomavam; mas, a verdade é que não sentíamos medo algum! O semblante de Peters não denunciava qualquer espécie de receio, embora, às vezes, apresentasse uma expressão enigmática, cujo sentido não conseguia perceber. Era evidente que se aproximava o Inverno polar, mas vinha sem o seu habitual cortejo de horrores. Sentia um entorpecimento do corpo e do espírito, uma propensão espantosa para o sonho, mas nada mais.
6 de Março. - O vapor subiu agora muitos graus no horizonte, e começou gradualmente a perder a tonalidade acinzentada. O calor da água era excessivo, e o aspecto leitoso mais evidente que nunca. Hoje deu-se uma violenta agitação da água muito perto da canoa. Como de costume, foi acompanhada por um estranho flamejar do vapor no topo da cortina e por uma momentânea separação na base. Uma chuva de poeira branca muito fina, semelhante à cinza (mas era evidente que o não era), caiu sobre a canoa e sobre uma extensão considerável das águas do mar, enquanto se desvaneciam as fulgurações do vapor e cessava a agitação da água. Nu-Nu atirou-se de bruços para o fundo da canoa e não conseguimos persuadi-lo a levantar-se.
7 de Março.- Interrogámos Nu-Nu acerca dos motivos que teriam levado os seus irmãos de raça a aniquilarem os nossos camaradas; mas estava de tal maneira dominado pelo terror, que não lhe era possível dar-nos qualquer resposta. Permanecia obstinadamente deitado no fundo do barco e, às nossas incessantes perguntas a respeito dos motivos do massacre, respondia com gestos idiotas, tais como levantar com o indicador o lábio superior, mostrando os dentes que eram negros. Até então, nunca tínhamos visto os dentes dos habitantes de Tsalal.
8 de Março. - Neste dia, flutuou ao nosso lado um animal branco como aquele que tanta perturbação produziu entre os selvagens. Pensei apanhá-lo quando passava perto, mas caí num desinteresse e numa súbita indolência e nem sequer me movi. A temperatura do mar aumentava constantemente e já não se podia meter a mão na água. Peters quase não falava, e eu não sabia a que atribuir aquela apatia. Nu-Nu limitava-se a suspirar.
9 de Março. - A poeira semelhante à cinza caía agora incessantemente à nossa volta em grande quantidade. A cortina de vapor, a sul, erguia-se a uma altura fantástica no horizonte e começava a apresentar uma forma mais nítida. A única comparação possível era com uma imensa catarata caindo silenciosamente sobre o mar, do alto de uma remota e imensa vertente perdida no espaço. A gigantesca cortina tapava todo o horizonte sul e não produzia qualquer ruído.
21 de Março. - Sinistras trevas pairavam agora sobre as nossas cabeças; contudo, das profundidades leitosas do oceano, crescia um esplendor luminoso que se reflectia nos costados da canoa. Estávamos quase esmagados pelas brancas cinzas que tombavam sobre nós e sobre o barco, mas que se dissolviam na água. A parte superior da catarata perdia-se totalmente nas trevas e no espaço, mas era evidente que nos aproximávamos dela com Incrível velocidade. Por vezes, mas só por momentos, imensas e medonhas fendas abriam-se naquele lençol de vapor, e através dessas fendas, onde víamos agitar-se um caos de vacilantes e confusas Imagens, precipitavam-se fortes, mas silenciosas, correntes de ar, agitando à sua passagem o oceano flamejante.
22 de Março. - As trevas adensam-se à nossa volta e apenas são cortadas pela luminosidade das águas, reflectindo a cortina branca que se ergue à nossa frente. Uma enorme quantidade de gigantescas aves, de uma brancura arrepiante, voavam incessantemente por detrás da estranha barreira, soltando, ao passarem por nós, o eterno Tekeli-li! Nu-Nu agitou-se um pouco no fundo do barco, mas, quando lhe tocámos, vimos que a alma já o tinha abandonado. Foi então que nos precipitámos nas entranhas da catarata, onde se entreabriu um abismo, como para nos receber. Mas eis que à nossa frente se ergueu uma figura humana, coberta por um branco manto, de proporções muito maiores do que qualquer habitante da Terra. E a cor da pele do homem era da brancura imaculada da neve...
ALGUMAS CONJECTURAS
As circunstâncias relativas à morte do Sr. Pym, tão repentina e lamentável, são já bem conhecidas do público em geral, graças às informações da imprensa diária. Receamos que os restantes capítulos que deviam completar o seu relato, e que ele guardara para rever, enquanto os capítulos precedentes estavam na tipografia, se tenham irremediavelmente perdido no desastre em que ele próprio encontrou a morte. Mas, talvez isso não tenha acontecido e. se acaso o manuscrito for encontrado, será tornado público. Tentaram-se todos os processos para anular esta falta. O cavalheiro cujo nome é mencionado no prefácio, e que, pelo que se diz dele, talvez fosse capaz de remediar a lacuna, recusou encarregar-se da tarefa, por fortes razões relacionadas com a falta de exactidão geral dos pormenores que lhe foram comunicados, e pela sua incredulidade respeitante à veracidade total das últimas partes da narrativa. Peters, de quem se poderia obter algumas informações, ainda está vivo e reside no Illinois. De momento não foi possível encontrá-lo, mas poderemos vê-lo em qualquer outra altura e, sem dúvida, fornecerá os elementos necessários para completar o relato do Sr. Pym.
A perda dos últimos dois ou três capítulos (pois não havia maish) é tanto mais de lamentar quanto era praticamente certo que se deviam ocupar do próprio Pólo, ou pelo menos das proximidades imediatas, e porque as afirmações do autor, relativas a essas regiões, poderiam em breve ser comprovadas ou rejeitadas pela expedição ao oceano Antárctico que o governo está neste momento a preparar.
Há uma parte da narrativa sobre a qual se podem fazer algumas observações. O autor deste apêndice, ficará extremamente satisfeito se as suas reflexões puderem contribuir para dar um certo crédito às estranhas páginas que compõem este livro. Referimo-nos aos fossos descobertos na ilha de Tsalal e ao conjunto de figuras que aparecem no capítulo XXIII.
O Sr. Pym apresentou os desenhos dos abismos sem qualquer comentário, e estava plenamente convencido que os entalhes encontrados na extremidade do fosso situado mais a leste, não eram caracteres alfabéticos, tendo apenas uma certa semelhança fantástica com os mesmos. Esta afirmação é feita de uma maneira tão simples e apoiada numa argumentação tão concludente (o ajuste perfeito dos fragmentos encontrados no meio da poeira, com as incisões das paredes), que somos levados a acreditar da boa fé do autor; nenhum leitor razoável suporá outra coisa. Mas, como os factos relativos a todas as figuras são muito estranhos (especialmente se os relacionarmos com certos pormenores referidos no texto), talvez fosse conveniente dizer qualquer coisa acerca de tudo isto, tanto mais que há minúcias que, sem dúvida alguma, escaparam à atenção do Sr. Poe.
Assim, as figuras 1, 2, 3, 4 e 5, quando se juntam umas às outras, exactamente segundo a mesma ordem em que se encontravam as próprias cavernas, e desembaraçando-as das pequenas ramificações laterais ou galerias abobadadas - que, como se recordará, apenas serviam de comunicação entre as galerias principais e eram de aspecto totalmente diferente - , constituem uma palavra-ralz etíope - raiz (reprodução dos desenhos das figuras) ou ser tenebroso - , de onde derivam todas as palavras relativas à sombra ou às trevas.
Quanto ao entalhe situado à esquerda e mais ao norte, na figura A; é muito provável que a opinião de Peters fosse acertada, e que o seu aspecto hieroglífico fosse realmente uma obra de arte e uma representação intencional da figura humana. Contemplando as gravuras, o leitor poderá aceitar ou rejeitar a semelhança indicada; mas, as restantes incisões, confirmam seriamente a ideia de Peters. A fila superior é evidentemente a palavra-raiz árabe (reprodução da primeira linha da figura 4) ou ser branco, de onde derivam todas as palavras respeitantes ao brilho e à brancura. A fila inferior não é tão nítida nem tão fácil de decifrar. Os caracteres estão um pouco partidos e separados; mas, não há dúvida que na sua forma original completamente a palavra egípcia (reprodução da linha de baixo da figura 4), ou seja: a região do sul. Observe-se que estas interpretações confirmam a opinião de Peters relativamente à figura situada mais ao norte. O braço está a apontar para o sul.
Estas conclusões abrem um amplo campo à fantasia e às conjecturas mais excitantes. Talvez estejam relacionadas com alguns dos incidentes menos pormenorizados da narrativa e, embora o conjunto das relações não seja perfeitamente claro, é evidente que uns factos completam os outros. Tekeli-li! era o grito dos apavorados indígenas de Tsalal ao verem o cadáver do animal branco encontrado no mar. Tekeli-li! era igualmente a exclamação de terror do cativo tsalaliano ao tocar nos objectos brancos do Sr. Pym. Era também o grito das gigantescas aves brancas que saíam da cortina de vapor branco existente no sul. Em Tsalal não se encontrou nada branco, enquanto que na viagem seguinte para as regiões do sul, praticamente tudo era branco. Não seria totalmente impossível que Tsalal, o nome da ilha dos abismos, submetido a uma minuciosa análise linguística, tivesse qualquer ligação com as cavernas alfabéticas ou com os caracteres etíopes tão misteriosamente gravados nas suas paredes.
Gravei isto na montanha e a minha vingança está escrita na poeira do rochedo.
Edgar Allan Poe
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