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O dia seguinte amanheceu com um céu sem nuvens. Embora o ar estivesse frio, o sol era brilhante e o vento cessara. Do andaime, Hal vigiava a porta fechada dos calabouços. Daniel se postava perto, a seu lado; ao tomar a parte do trabalho de Hal em seus ombros largos, ele o protegia da chibata de Barnard.
Quando João Lento veio pelos portões e cruzou o pátio para a armaria, com seus passos medidos de agente funerário, Hal encarou-o com olhos rasos d'água. De súbito, quando ele passou por baixo do andaime, Hal apoderou-se do pesado martelo do pedreiro que jazia nas pranchas a seus pés e ergueu-o para girá-lo para baixo e arrebentar o crânio do carrasco. Porém, o punho forte de Daniel se fechou em torno de seu pulso. Daniel soltou o martelo do aperto de Hal como se tomasse um brinquedo de uma criança e colocou-o no topo da muralha, fora de seu alcance.
- Por que fez isso? - protestou Hal. - Eu poderia ter matado o porco.
- Sem nenhuma finalidade - disse-lhe Daniel, com compaixão. - Você não pode salvar Sir Francis matando um subalterno. Iria sacrificar sua própria vida e não conseguiria nada com isso. Eles simplesmente mandariam outro cuidar de seu pai.
Manseer trouxe Sir Francis para cima, dos calabouços. O prisioneiro não conseguia caminhar sem ajuda, com seus pés quebrados e em bandagens, porém sua cabeça estava alta quando o arrastaram pelo pátio.
- Papai! - gritou Hal, atormentado. - Não posso deixar isso acontecer.
Sir Francis ergueu o olhar para ele e gritou numa voz alta o bastante para chegar até ele, no alto da muralha.
- Seja forte, meu filho. Pelo meu bem, seja forte. Manseer forçou-o a descer os degraus para baixo da armaria.
O dia foi longo, mais longo que qualquer um que Hal já tivesse vivido, e o lado norte do pátio estava imerso em sombras profundas quando, por fim, João Lento reapareceu de sob a armaria.
- Desta vez, matarei o porco venenoso - esbravejou Hal, mas Daniel o conteve de novo num aperto do qual ele não pôde se livrar, enquanto o carrasco caminhava lentamente por debaixo do andaime e para fora Pelos portões do castelo.
Hop surgiu precipitadamente no pátio, sua face lívida. Convocou o médico da companhia, e os dois homens desapareceram mais uma vez pelas escadas. Desta vez, os soldados trouxeram Sir Francis para fora numa maca.
- Papai! - gritou Hal para ele, porém não houve nem resposta nem sinal de vida em retorno.
- Eu o avisei por muitas vezes - berrou Hugo Barnard para ele. Seguiu em passos largos pelas pranchas e desferiu uma dúzia de chicotadas nas costas de Hal.
Hal não fez menção de impedir os golpes, e Barnard recuou, atónito, ao ver que ele não mostrava dor.
- Qualquer conversa imbecil a mais e eu lançarei os cães contra você - prometeu, ao se afastar.
Enquanto isso, no pátio, o médico da companhia olhava muito sério enquanto os soldados carregavam a forma inconsciente de Sir Francis de volta à cela. Depois, acompanhado por Hop, rumou para os aposentos do governador, do lado sul do pátio.
Van de Velde ergueu os olhos com irritação dos papéis que enchiam sua mesa.
- Sim? O que é, Dr. Saar? Sou um homem ocupado. Espero que não tenha vindo aqui desperdiçar meu tempo.
- É o prisioneiro, Excelência. - O médico parecia atrapalhado e arrependido ao mesmo tempo.
Van de Velde não permitiu que ele continuasse, mas voltou-se para Hop, que se postava nervosamente atrás do doutor, torcendo o chapéu nos dedos.
- Bem, Hop, o pirata já sucumbiu? Disse-nos o que queremos saber? - gritou, e Hop retraiu um passo.
- Ele é muito teimoso. Eu não teria acreditado que fosse possível, que algum ser humano... - Interrompeu-se, num longo e atormentado gaguejar.
- Eu o considero responsável, Hop. - berrou van de Velde ameaçadoramente, erguendo-se de por detrás da escrivaninha. Aquecia-se para a diversão de humilhar o miserável escrivão, porém o médico interveio.
- Excelência, temo pela vida do prisioneiro. Outro dia de interrogatório... ele pode não sobreviver.
Van de Velde voltou-se para ele agora.
- Isso, doutor, é o objetivo principal desse negócio todo. Courtney é um homem condenado à morte. Morrerá, e você tem minha palavra solene quanto a isso. - Recuou e abaixou o corpanzil para a cadeira macia. - Não venha aqui para me dar notícias de seu iminente falecimento. Tudo que quero saber de você é se ele é ou não ainda capaz de sentir dor, e se é capaz de falar ou pelo menos dar algum sinal de compreender a pergunta. Bem, e então, doutor? - Van de Velde encarou-o com olhos fuzilantes.
- Excelência - o doutor removeu os óculos e poliu as lentes vigorosamente enquanto compunha uma resposta. Sabia o que van de Velde queria ouvir e sabia também que não era boa política negar-lhe isso -, no momento o prisioneiro não está compôs mentis.
Van de Velde fez uma careta e interrompeu-o.
- E as decantadas habilidades do carrasco? Pensei que ele jamais tivesse perdido um prisioneiro, não sem intenção, de qualquer modo.
- Senhor, não estou depreciando as habilidades do carrasco do estado. Tenho certeza que, amanhã, o prisioneiro terá recobrado a consciência.
- Quer dizer que amanhã ele estará saudável o suficiente para continuar o interrogatório?
- Sim, Excelência. Essa é minha opinião.
- Bem, Mijnheer, eu o responsabilizarei por isso. Se o pirata morrer antes que possa ser formalmente executado de acordo com o julgamento da corte, você responderá a mim. O populacho precisa ver a justiça feita. Não é nada bom que o homem passe desta vida para outra pacificamente num quarto fechado abaixo das muralhas. Queremos que esteja lá fora, no passeio, para todos verem. Quero que façam dele um exemplo, compreende?
- Sim, Excelência. - O doutor recuou até a porta.
- Você também, Hop. Compreendeu, estúpido? Quero saber onde ele escondeu a carga do galeão e, depois, quero uma boa e vibrante execução. Para seu próprio bem, é melhor arranjar ambas essas coisas.
- Sim, Excelência.
- Quero falar com João Lento. Mande-o até mim antes que comece a trabalhar amanhã de manhã. Quero me certificar de que ele compreende plenamente suas responsabilidades.
- Trarei o carrasco eu mesmo - prometeu Hop.
Mais uma vez estava escuro quando Hugo Barnard parou o trabalho nas muralhas e ordenou que as filas de prisioneiros exaustos descessem para o pátio. Quando Hal passou Pela cela do pai, no caminho para a escada, chamou desesperadamente Por ele:
- Papai, pode me ouvir?
Quando não houve resposta, socou a porta com ambos os punhos.
- Papai, fale comigo. Em nome de Deus, fale comigo! - Por uma vez, Manseer foi indulgente. Não fez menção de forçar Hal a descer a escada, e Hal implorou de novo: - Por favor, papai. É Hal, seu filho. Não me reconhece?
- Hal - crocitou uma voz que ele não reconheceu. - E você, meu garoto?
- Oh, Deus! - Hal caiu de joelhos e comprimiu a testa contra o painel. - Sim, papai. Sou eu.
- Seja forte, meu filho. Isso não vai durar muito tempo, porém eu lhe peço: se me ama, então mantenha o juramento.
- Não posso deixá-lo sofrer. Não posso permitir que isso continue.
- Hal! - A voz de seu pai estava de repente poderosa de novo. - Não há mais sofrimento. Passei desse ponto. Eles não podem me ferir agora, a não ser através de você.
- O que posso fazer para tranquilizá-lo? Diga-me, o que posso fazer? - implora Hal.
- Só existe apenas uma coisa que você pode fazer agora. Deixe-me levar comigo a constatação de sua resistência e de sua fortaleza. Se me falhar agora, tudo terá sido em vão.
Hal mordeu os nós dos dedos do punho fechado, arrancando sangue na inútil tentativa de sufocar os soluços. A voz de seu pai soou novamente.
- Daniel, está aí?
- Sim, capitão.
- Ajude-o. Ajude meu filho a ser um homem.
- Eu lhe prometo, capitão.
Hal ergueu a cabeça, e sua voz saiu mais forte.
- Não preciso de ninguém para me ajudar. Manterei minha fé com o senhor, papai. Não trairei sua confiança.
- Adeus, Hal. - A voz de Sir Francis começou a fenecer, como se ele caísse num poço infinito. - Você é meu sangue e minha promessa de vida eterna. Adeus, minha vida.
Na manhã seguinte, quando carregaram Sir Francis para cima, do calabouço, Hop e o Dr. Saar caminhavam de cada lado da maca. Eram ambos homens preocupados, pois não havia nenhum sinal de vida na figura quebrada que jazia entre os dois. Mesmo quando Hal desafiou o chicote de Barnard e chamou o pai das muralhas, Sir Francis não ergueu a cabeça. Eles o levaram para baixo pela escada até onde João Lento já esperava, mas em questão de uns poucos minutos os três saíram à luz do sol, Saar, Hop e João Lento, e ficaram a conversar baixinho por um curto espaço de tempo. Depois, seguiram juntos para os aposentos do governador e subiram as escadas.
Van de Velde estava de pé ao lado da janela envidraçada, espiando os navios que jaziam ancorados à beira-mar. Na noite passada, outro galeão da companhia chegara à baía da Mesa, e ele esperava que o capitão do navio o visitasse para lhe apresentar os respeitos e um pedido de provisões e mercadorias. Van de Velde voltou-se impaciente da janela para encarar os três homens, quando estes entraram em seu escritório.
- Ja, Hop? - Encarou a vítima favorita. - Lembrou-se de minhas ordens por uma vez, hein? Trouxe o carrasco do estado para falar comigo. - Virou-se para João Lento. - Então, o pirata lhe disse onde escondeu o tesouro? Vamos, camarada, fale de uma vez.
A expressão de João Lento não se alterou quando ele disse, com suavidade:
- Trabalhei com cuidado para não danificar o respondente além da utilidade. Porém, estou perto do final. Logo, ele não mais ouvirá minha voz, nem será sensível a qualquer persuasão a mais.
- Você falhou? - A voz de van de Velde tremia de raiva.
- Não, ainda não - disse João Lento. - Ele é forte. Eu jamais teria acreditado o quanto era forte. Porém, ainda há a roda. Não creio que ele seja capaz de suportar a roda. Nenhum homem pode resistir à roda.
- Você não a usou ainda? - indagou van de Velde. - Por que não?
- Para mim, é o último recurso. Uma vez que tenha sido posto na roda, nada sobrará. É o fim.
- Irá funcionar com esse pirata? - quis saber van de Velde. - O que acontecerá se ele ainda resistir?
- Então, restarão apenas o cadafalso e o patíbulo - disse João Lento.
Lentamente van de Velde voltou-se para o Dr. Saar.
- É essa a sua opinião, doutor?
- Excelência, se o senhor exige uma execução, então ela deveria ser levada a efeito tão logo o homem seja tirado da roda.
- Tão logo quando? - indagou van de Velde.
- Hoje. Antes do cair da tarde. Depois de ser colocado na roda, ele não durará até a noite.
Van de Velde voltou-se para João Lento.
- Você me desapontou. Estou desgostoso. - João Lento nem pareceu ouvir a reprimenda. Seus olhos nem mesmo piscaram ao encarar van de Velde. - Contudo, devemos fazer o que for possível para encenar do melhor modo este triste assunto. Ordenarei a execução para as três horas desta tarde. Nesse ínterim, você vai voltar lá e colocar o pirata na roda.
- Compreendo, Excelência - disse João Lento.
- Você me falhou uma vez. Não falhe de novo. Ele precisa estar vivo quando for para o cadafalso. - Van de Velde virou-se para o escrivão. - Hop, mande mensageiros pela cidade. Estou declarando feriado o resto do dia por toda a colónia, exceto para o trabalho nas muralhas do castelo, é claro. Francis Courtney será executado às três horas desta tarde. Cada burguês na colónia deve estar lá. Quero que todos vejam como lidamos com um pirata. Oh, a propósito, certifique-se de que Mevrouw van de Velde seja informada. Ela ficará muito zangada se perder a diversão.
As duas da tarde, trouxeram Sir Francis Courtney numa maca da cela abaixo da armaria. Não se importaram em cobrir seu corpo nu. Mesmo do alto da muralha sul do castelo, e com a vista borrada pelas lágrimas, Hal podia ver que o corpo do pai fora grotescamente deformado pela roda. Cada uma das grandes articulações em seus membros, ombros e pelve estava deslocada, inchada e com hematomas de um negro púrpura.
Um destacamento de execução de gibões-verdes foi encaminhado para o pátio. Liderados por um oficial com a espada desembainhada, eles rodearam a maca. Vinte homens marchavam em frente, e vinte seguiam atrás, os mosquetes a tiracolo. O rataplã do tambor da morte marcava o passo. A procissão serpeou pelos portões do castelo para fora, para o campo.
Daniel colocou o braço em torno do ombro de Hal, enquanto o rapaz observava, a face pálida e tremendo, ao vento glacial. Hal não fez menção de se afastar dele. Os marinheiros que tinham cobertas nas cabeças as tiraram, a arrumar os trapos sujos e todos postados de pé, sérios e mudos conforme o pelotão passou por baixo deles.
- Deus o abençoe, capitão - gritou Ned Tyler. - O senhor foi tão bom como homem quanto uma vela içada! - Houve um burburinho e um viva desigual dos outros, e um dos enormes cães pretos de Hugo Barnard uivou pesarosamente, um som estranho e angustiante.
Lá fora, no campo, a multidão esperava em torno do patíbulo em tenso e ansioso silêncio. Cada alma viva na colónia parecia ter respondido à convocação. Acima de suas cabeças, João Lento aguardava, no alto da plataforma. Usava seu avental de couro, e sua cabeça estava coberta com a máscara do ofício, a máscara da morte. Seus olhos e sua boca eram tudo que mostrava através das aberturas no pano preto.
Conduzida pelo tambor, a procissão marchou com passo lento e medido em direção a ele, e João Lento esperou com os braços cruzados no peito. Porém, mesmo ele virou a cabeça conforme a carruagem do governador desceu pela avenida através dos jardins e cruzou o campo. João Lento inclinou-se para o governador e sua esposa enquanto Aboli guiava os seis cavalos cinzentos para o pé do cadafalso e fazia o veículo estacionar.
Os olhos amarelos de João Lento encontraram os de Katinka através das fendas do pano preto. Ele se inclinou novamente, desta vez diretamente para ela. Katinka sabia, sem que palavras fossem ditas, que ele estava dedicando o sacrifício a ela, à sua deusa Kali.
- Ele não tem nenhuma razão para se portar com tamanha pretensão. O estúpido fez uma porcaria de trabalho até agora - resmungou com raiva van de Velde. - Matou o homem sem arrancar uma palavra dele. Não sei o que seu pai e os outros membros dos Dezessete irão dizer quando souberem que a carga está perdida. Vão me culpar, é claro. Sempre fazem isso.
- Como sempre, você me terá para protegê-lo, meu querido marido - disse ela, e levantou-se na carruagem para ter uma visão melhor.
A escolta parou ao pé do patíbulo, e a maca com a figura imóvel foi erguida e colocada aos pés de João Lento. Um longo murmúrio subiu dos espectadores quando o carrasco se ajoelhou ao lado dela para dar início à sua medonha tarefa.
Um pouco mais tarde, quando a multidão deixou escapar um rugido lascivo, feito de excitação e horror e prazer obsceno, os cavalos cinzentos se agitaram e dançaram nervosamente nas travessas com o som e o cheiro de sangue humano fresco. Com uma expressão impassível e mãos gentis nas rédeas, Aboli os conteve e os trouxe de volta ao controle Lentamente, desviou a cabeça do pavoroso espetáculo que tinha lugar diante de seus olhos e olhou para as muralhas inacabadas do castelo.
Reconheceu a figura de Hal entre os outros condenados. Ele se postava quase tão alto como Daniel Grande agora, e tinha a compleição e o jeito de um homem plenamente maduro. Porém, ainda tinha um coração de menino. Não conseguia se defrontar com aquela coisa. Nenhum homem ou garoto jamais deveria ver o pai morrer. O próprio coração enorme de Aboli ficou como se fosse estourar a barreira de seu peito, porém sua face ainda continuava impassível sob as cicatrizes das tatuagens. Olhou de volta para o patíbulo enquanto o corpo de Sir Francis Courtney subia lentamente no ar e a multidão berrava novamente. A pressão de João Lento na corda era suave e segura enquanto erguia Sir Francis da maca pelo pescoço. Isso requeria um toque delicado, para não esmagar as vértebras e pôr um fim a tudo com brevidade. Era uma questão de orgulho para ele que o último espasmo de vida não fosse arrancado daquela concha quebrada até depois da evisceração.
Com firmeza, Aboli desviou os olhos e fitou de novo a figura deplorável e trágica de Hal Courtney nas muralhas do castelo. Não deveríamos nos lamentar por ele, Gundwane. Ele foi um homem e viveu a vida de um homem. Velejou por todos os oceanos e lutou como um guerreiro deve lutar. Conhecia as estrelas e os modos dos homens. Não chamou a nenhum homem de patrão e não se desviou de nenhum inimigo. Não, Gundwane, não deveríamos nos lamentar por ele, você e eu. Ele jamais morrerá enquanto viver em nossos corações.
Por quatro dias, o corpo desmembrado de Sir Francis Courtney permaneceu em exibição pública. Cada manhã, assim que a luz se firmava, Hal olhava das muralhas e via que ainda estava dependurado lá. As gaivotas vinham da praia numa nuvem barulhenta de asas pretas e brancas e brigavam aos gritos pelo festim. Quando estavam satisfeitas, empoleiravam-se na cerca do patíbulo e lavavam as pranchas com as fezes líquidas.
Pela primeira vez, Hal detestou a clareza da própria visão, que não o poupava de nenhum detalhe da terrível transformação que ocorria enquanto observava. No terceiro dia, os pássaros tinham arrancado a carne do crânio de seu pai, de maneira que ele sorria para o céu com as órbitas vazias. Os burgueses que cruzavam o campo aberto a caminho do castelo andavam contra o vento no cadafalso em que ele se pendurava, e as damas levavam saches de ervas secas às faces quando passavam.
Contudo, no amanhecer do quinto dia, quando Hal olhou para baixo, o patíbulo estava vazio. Os restos patéticos de seu pai não mais se penduravam lá, e as gaivotas tinham voltado para a praia.
- Graças ao Senhor misericordioso - murmurou Ned Tyler para Daniel. - Agora, o jovem Hal pode começar a se curar.
- Contudo, é bem estranho que tenham tirado o cadáver tão cedo.
- Daniel estava intrigado. - Eu não julgava que van de Velde pudesse ser tão compassivo.
Sukeena lhe mostrara como se esgueirar pela fresta de uma das pequenas janelas dos fundos do alojamento dos escravos e passar o corpo grande por ela. O guarda da noite tornara-se relapso com os anos, e Aboli teve pouca dificuldade em se evadir da vigia. Por três noites consecutivas, ele escapara do alojamento dos escravos. Sukeena o advertira de que deveria retornar pelo menos duas horas antes do amanhecer, pois, nessa hora, a guarda iria despertar e fazer uma mostra de vigilância para impressionar a equipe da casa.
Assim que pulou os muros, Aboli levou menos de uma hora para correr pela escuridão até os limites da colónia, marcada por uma cerca de amendoeiras amargas plantada por ordem do governador. Embora a cerca fosse ainda raquítica e houvesse mais aberturas que barreiras em sua extensão, era uma linha que nenhum burguês poderia ultrapassar sem a permissão do governador. Por outro lado, nenhuma das dispersas tribos hotentotes que habitavam a ilimitada vastidão de planícies, montanhas e florestas além tinha autorização de cruzar a cerca e entrar na colónia. Por ordens da companhia, seriam recebidos a tiros ou enforcados se transgredissem o limite. A VOC não mais estava disposta a tolerar a traição dos selvagens, seus modos furtivos de ladrões ou suas bebedeiras quando conseguiam colocar as mãos em aguardente. A despudorada Prostituição de suas mulheres, que ergueriam as saias de couro por um punhado de contas ou uma bugiganga vistosa, era uma ameaça para a moral dos burgueses tementes a Deus da colónia. Homens de tribos selecionadas que poderiam ser úteis como soldados e criados tinham permissão para permanecer na colónia, porém os restantes foram expulsos para a terra inculta à qual pertenciam.
A cada noite, Aboli cruzava aquele limite de faz-de-conta e explorava como um silencioso fantasma negro aquela larga expansão cortada da montanha da Mesa e seu bastião de colinas mais baixas da amplitude principal do interior africano. Os animais selvagens não haviam abandonado aquelas planícies, pois a poucos caçadores brancos era permitido deixar os confins da colónia para persegui-los. Ali, Aboli ouvia novamente o coro hostil e de parar o coração de um bando de leões caçadores do qual se lembrava desde a infância. Os leopardos vagueavam e tossiam nas moitas, e, muitas vezes, assustavam hordas não vistas de antílopes, cujos cascos ecoavam como tambores pela noite.
Aboli precisava de um touro preto. Por duas vezes vira um deles muito de perto enquanto farejava a manada de búfalos no mato cerrado. O cheiro o lembrava dos rebanhos de cabra de seu pai, dos quais cuidava quando criança, antes da circuncisão. Ouvira o grunhir dos grandes animais e o mugido dos bezerros, seguira as marcas profundas dos cascos e vira montes de suas fezes úmidas ainda fumegando ao luar. Porém, a cada ocasião, conforme se aproximava do rebanho, o vento o traíra. Eles o tinham sentido e disparado em confusão pelo mato, galopando até que o som de sua fuga mergulhava em silêncio. Aboli não os poderia perseguir mais, pois passava de meia-noite e ele estava ainda a horas de distância da cerca de amendoeiras amargas e de sua cela no alojamento dos escravos.
Na terceira noite, ele teve a chance de se esgueirar para fora da janela do alojamento uma hora antes daquela que Sukeena lhe dissera ser prudente. Um dos cães correu para ele, porém, antes que pudesse alertar o vigia, Aboli acalmou-o com um assobio suave. O cão o reconheceu e lhe cheirou a mão. Ele afagou-lhe a cabeça e murmurou algumas palavras na linguagem da floresta, deixando-o a ganir baixinho e a agitar a cauda enquanto se esgueirava pelo muro como uma sombra escura sob a lua.
Durante suas incursões anteriores, ele descobrira que, a cada noite, a manada de búfalos deixava as profundezas da densa floresta para beber num poço a um quilómetro ou mais além da cerca de fronteira. Sabia que, se cruzasse o limite antes da meia-noite, seria capaz de alcançar os animais enquanto ainda estivessem na água. Era sua melhor chance de poder divisar um touro e se aproximar rastejando.
Do buraco de uma árvore à fímbria da floresta, ele retirou o arco que havia cortado e talhado de um galho de oliveira silvestre. Sukeena furtara a única cabeça de flecha de ferro da coleção de armas que o governador Kleinhans reunira durante seu serviço nas índias, que agora se pendurava nas paredes da residência. Era improvável que fosse notado o sumiço da peça entre as dúzias de espadas, escudos e facas que compunham a coleção.
- Eu a devolverei a você - prometera ele a Sukeena. - Não a farei sofrer pela sua perda.
- Sua necessidade dela é maior que meu risco - dissera-lhe ela enquanto retirava a cabeça de flecha, enrolava-a num pedaço de pano e a colocava debaixo do banco da carruagem. - Eu também tinha um pai a quem foi negado um funeral decente.
Aboli ajustara a cabeça de flecha a um eixo de cana e o fixara no lugar com fio de vela e piche. Depois, enfeitara-o com as penas mofadas dos falcões caçadores que moravam nas gaiolas além dos estábulos. Contudo, não tinha tempo de procurar as larvas de insetos das quais extrair veneno para as farpas e, portanto, precisava confiar em que aquele único eixo voasse direto para a marca.
Agora, conforme caçava nas sombras, ele próprio uma silenciosa sombra furtiva, Aboli redescobria antigas habilidades esquecidas dentro de si e se recordava das instruções que recebera, quando jovem, dos mais velhos de sua tribo. Sentia o vento noturno acariciar-lhe o peito nu e os flancos, e tinha ciência da direção da aragem durante todo o tempo em que circundava a poça d'água, até que o vento lhe soprou direto na face, trazendo consigo o rico cheiro bovino da presa que ele procurava.
O vento era forte o bastante para sacudir os caniços altos e cobrir qualquer som que ele pudesse fazer, de maneira que ele poderia se mover rapidamente pelos últimos cem passos. Acima do zunido do vento norte e do farfalhar dos juncos, ele ouviu um grunhido rouco. Imobilizou-se e fechou os dedos sobre a única flecha. Talvez os leões tivessem vindo Para a água antes da manada, pensou, pois aquele era um som leonino. Espiou adiante e escutou o som de grandes patas a bater e afundar na lama da poça d'água. Acima das pontas murmurantes dos caniços, uma forma escura se movia, montanhosa à luz do luar.
- Um touro - murmurou ele, contendo o fôlego. - Um senhor touro!
O touro acabara de saciar a sede. O velho animal manhoso viera à frente das vacas e bezerros da manada. Seu lombo estava coberto da cintilante lama úmida do barreiro, e ele rumava na direção de onde Aboli se agachara, os cascos a afundar no barro.
Aboli perdeu a visão da presa conforme se afundou entre os talos oscilantes e a deixou se aproximar. Porém, podia detectá-la pelo som da respiração pesada e pelo raspar dos caniços a se arrastar por seus flancos. O touro estava muito perto, mas ainda fora da visão de Aboli quando, subitamente, sacudiu a cabeça conforme os talos dos juncos se emaranharam em seus chifres, e suas orelhas bateram contra as faces. Se eu estendesse a mão agora, poderia tocar seu focinho, pensou Aboli. Cada nervo em seu corpo estava tão esticado e tenso como a corda do arco em seus dedos.
O banco de junco se abriu em frente a Aboli, e a cabeça maciça passou, o luar a luzir nas bossas curvadas dos cornos. Abruptamente, o touro tomou consciência de alguma coisa errada, de perigo a espreitar por perto, parando e erguendo a enorme cabeça preta. Ao levantar as narinas para testar o ar, seu focinho estava úmido e brilhante, e a água gotejava de sua boca. Ele inflou as narinas em negros buracos e farejou o ar. Aboli pôde sentir o bafo quente sobre o peito nu e a face.
O touro voltou a cabeça, buscando o cheiro de homem ou felino do caçador escondido. Aboli continuou imóvel como um tronco de árvore. Segurava o pesado arco completamente distendido. A força do galho de oliveira e da corda de tripas era tão poderosa que mesmo os músculos de granito em seus braços e ombro pulsavam e tremiam com o esforço. Conforme o touro voltou a cabeça, revelou o nó atrás da orelha onde o pescoço se fundia com o osso do crânio e a massiva saliência dos chifres. Aboli manteve a mira por um instante mais e, então, soltou a flecha. Esta luziu e faiscou ao luar, saltando de sua mão e enterrando-se pela metade no comprimento do maciço pescoço preto.
O touro cambaleou para trás. Se a cabeça da flecha tivesse encontrado a abertura entre as vértebras da espinha, como Aboli havia esperado, ele teria caído onde estava, porém a ponta de ferro atingira a coluna e fora desviada pelo osso. Deslizara para o lado, porém cortara a grande artéria atrás da mandíbula. Enquanto o touro corcoveava e chutava sob o pungente impacto do aço, a artéria secionada estourou e um jato de sangue subiu alto no ar, negro como uma pena de avestruz à luz da lua.
O touro arremessou-se em direção a Aboli, a sacudir com selvageria aqueles largos chifres curvados. Se Aboli não tivesse deixado cair o arco e se jogasse de lado, a ponta polida que assobiou, a um dedo de seu umbigo tê-lo-ia retalhado e rasgado seus intestinos.
O touro arremeteu e chegou ao solo duro e seco. De joelhos, Aboli apurou os ouvidos para seguir a investida ressoante da presa pelo mato. Abruptamente, o animal estacou. Houve uma longa e carregada pausa, na qual ele podia ouvir a respiração difícil do búfalo e o tamborilar do fluxo de sangue a cair sobre as folhas dos arbustos baixos ao redor. Então, ouviu o touro cambalear e vacilar para trás, tentando continuar de pé enquanto a força fugia de seu corpo imenso naquela maré de sangue escuro. O animal caiu pesadamente, tanto que a terra tremeu sob os pés descalços de Aboli.
Um momento depois, veio um berro rascante de morte, e, depois disso, uma quietude dolorosa. Mesmo os pássaros noturnos e os sapos do pântano tinham sido silenciados por aquele som pavoroso. Era como se a floresta contivesse seu fôlego pelo passamento de uma tão poderosa criatura. Em seguida, com lentidão, a noite ganhou vida de novo, os sapos a coaxar e cantar nos canteiros de juncos; um curiango gritou e, ao longe, uma coruja piou soturnamente.
Aboli despelou o touro com a faca que Sukeena furtara da cozinha da residência. Dobrou a pele crua e amarrou-a com uma corda de casca de árvore. Era pesada o bastante para provar mesmo sua força. Ele cambaleou com o fardo até que pudesse se postar sob ele e equilibrá-lo sobre a cabeça. Deixou a carcaça nua para os bandos de hienas que rondavam de noite e os bandos de abutres, cegonhas carnívoras, milhafres e urubus que a encontrariam com as primeiras luzes da manhã, e rumou de volta para a colónia e a montanha de topo de mesa, sua silhueta a se recortar contra as estrelas. Mesmo sob o fardo, movia-se no trote rápido dos guerreiros de sua tribo, ato que se tornara de novo tão natural a ele depois do confinamento de duas décadas num pequeno navio sobre os mares. Estava se recordando da sabedoria e da erudição tribais havia longo tempo esquecidas, reaprendendo antigas habilidades, tornando-se mais uma vez um verdadeiro filho daquela sazonada terra africana.
Subiu pelas colinas mais baixas da montanha e deixou a pele enrolada numa fenda estreita no penhasco rochoso. Cobriu-a com grandes Pedras erodidas, pois as hienas vagueavam por ali também, atraídas pelo lixo e dejetos e esgotos produzidos pela povoação humana da colónia.
Quando tinha colocado o último penedo, olhou para o céu e viu que Escorpião em curva caía rápido em direção ao horizonte escuro. Só então se deu conta de como a noite passara depressa, e voltou pela colina.
Chegou à beira dos campos cultivados da companhia logo quando o primeiro galo cantava na escuridão.
Mais tarde, naquela manhã, enquanto esperava no banco com os outros escravos do lado de fora da cozinha pela tigela de desjejum com mingau e espesso leito coalhado, Sukeena passou em seu caminho para cuidar dos afazeres da casa.
- Ouvi quando voltou na noite passada. Estava muito atrasado -. murmurou ela, sem voltar a cabeça sobre a haste de orquídea em seu pescoço. - Se for descoberto, isso trará um grande problema para todos nós, e nossos planos não darão em nada.
- Minha tarefa está quase concluída - resmungou ele baixinho. - Esta noite será a última vez que precisarei sair.
- Tome cuidado, Aboli. Há muito em risco - disse ela e se afastou. A despeito do aviso, ela lhe daria qualquer ajuda de que precisasse,
e, sem observá-la a se afastar, Aboli murmurou consigo mesmo:
- Essa pequena tem o coração de uma leoa.
Naquela noite, quando a casa se acomodara para a noite, ele se esgueirou pela fresta. De novo, os cães foram aquietados por seu suave assobio, e ele tinha nacos de salsicha seca para cada um deles. Quando chegou ao muro abaixo dos gramados, olhou para as estrelas e viu no céu ocidental a primeira suave luminescência do nascer da lua. Saltou as pedras e, mantendo distância da estrada, guiou-se pelo tato ao longo do lado exterior do muro, em direção ao povoado.
Não mais que três ou quatro luzes esmaecidas brilhavam das cabanas e edificações da vila. Os quatro navios ancorados na baía estavam todos queimando lanternas no topo de seus mastros. O castelo era uma forma escura e taciturna contra o céu estrelado.
Ele esperou na beira do passeio e focalizou os ouvidos nos sons da noite. Uma vez, quando estava prestes a sair para campo aberto, ouviu risadas bêbadas e retalhos de cantoria quando um grupo de soldados do castelo voltou de uma noite de libertinagem pelos casebres rústicos de beira-mar, que passavam como tabernas naquele posto remoto, a vender a aguardente desagradável e bruta que os hotentotes chamavam de dop. Um dos farristas carregava uma tocha encharcada de breu.
As chamas oscilaram incertas quando o homem parou diante do patíbulo, no meio do campo, e gritou um insulto para o cadáver que ainda se pendurava nele. Seus companheiros prorromperam em berros e risadas embriagadas diante de seu humor, e depois cambalearam, a se apoiar uns nos outros, rumo ao castelo.
Quando desapareceram pelos portões, e o silêncio e a escuridão caíram, Aboli moveu-se rapidamente pelo campo. Embora não pudesse ver mais que uns poucos passos adiante, o cheiro de podridão o guiava; só um leão morto cheirava tão forte como um cadáver humano apodrecendo.
O corpo de Sir Francis Courtney fora decapitado e completamente esquartejado. João Lento usara um cutelo de açougueiro para extirpar os ossos maiores. Aboli arrancou a cabeça da lança em que ele fora empalado. Enrolou-a num pano branco limpo e colocou-a num alforje de sela que carregava. Depois, recuperou as outras partes do cadáver. Os cães da vila tinham carregado alguns dos ossos menores, porém, mesmo trabalhando na escuridão, Aboli conseguiu recolher o que restava. Fechou e afivelou a aba de couro do saco, jogou-o sobre o ombro e rumou de novo numa corrida em direção à montanha.
Sukeena conhecia intimamente a montanha, cada ravina, penhasco e rochedo. Explicara a ele como encontrar a estreita entrada escondida da caverna onde, na noite anterior, ele deixara a pele crua do búfalo. À luz da lua ascendente, ele voltou sem erro até lá. Quando chegou à entrada, inclinou-se e removeu rapidamente as pedras que cobriam a pele de búfalo. Depois, arrastou-a para dentro da fenda e pôs de lado os arbustos que pendiam do penhasco acima, a esconder a garganta escura da caverna.
Trabalhou habilmente, com pederneira e aço, para acender uma das velas que Sukeena lhe arranjara. Protegendo a chama com as mãos em concha de qualquer observador abaixo da montanha, avançou e arrastou-se para dentro do baixo túnel natural nas mãos e nos joelhos, puxando o alforje de sela atrás de si. Conforme Sukeena lhe dissera, o túnel se abria de repente numa caverna alta o bastante para que ele ficasse de pé. Ele ergueu a vela por sobre a cabeça e viu que a caverna daria um lugar adequado de enterro para um grande chefe. Havia até mesmo uma prateleira natural de rochas ao fundo. Ele deixou o alforje sobre ela e rastejou de volta para recolher a pele de búfalo. Antes de entrar no túnel de novo, olhou para trás, por sobre o ombro, e orientou-se outra vez pela direção do nascer da lua.
- Voltarei sua face para que possa saudar dez mil luas e todos os nascentes da eternidade! - disse, baixinho, e arrastou a pesada pele Para dentro da caverna, estendendo-a no chão rochoso.
Colocou a vela sobre a prateleira de pedra e começou a esvaziar o saco. Primeiro, pôs de lado as pequenas oferendas e peças de cerimonial que trouxera consigo. Depois, tirou a cabeça coberta de Sir Francis e colocou-a no centro da pele de búfalo. Desenrolou-a com reverência e não demonstrou qualquer repugnância quando o pesado odor de podridão encheu lentamente a caverna. Reuniu todas as partes desmembradas do corpo e arranjou-as na ordem natural, prendendo-as no lugar com tiras finas de casca de árvore, até que Sir Francis jazia de lado, os joelhos dobrados abaixo do queixo e os braços envolvendo as pernas, a posição fetal do útero e do sono. Depois, dobrou a pele úmida de búfalo com força em torno do corpo de modo que apenas a face devastada ainda ficasse exposta. Costurou as dobras da pele em torno dele para que secassem e se transformassem num sarcófago duro como aço. Era uma longa e meticulosa tarefa, e quando a vela se queimou por inteiro e se afogou numa poça de sua própria cera líquida, ele acendeu outra e continuou a trabalhar.
Quando terminou, pegou o pente de tartaruga, outro dos presentes de Sukeena, e penteou as mechas emaranhadas que ainda se grudavam ao crânio de Sir Francis, trançando-as com habilidade. Por fim, ergueu o corpo sentado e colocou-o sobre a prateleira de pedra. Voltou-o cuidadosamente para ficar de frente para o leste, para olhar eternamente para o nascer da lua e da alvorada.
Por um longo tempo ficou acocorado sob a plataforma, a olhar para a cabeça devastada, vendo-a com o olhar da mente como ela fora certa vez. A face do jovem marinheiro vigoroso que o resgatara das mãos dos escravagistas, duas décadas antes.
Por fim, ergueu-se e começou a reunir as oferendas do túmulo que trouxera consigo. Colocou-as uma de cada vez sobre a plataforma diante do corpo de Sir Francis. Primeiro, o modelo de um navio que esculpira com as próprias mãos. Não houvera tido tempo para caprichar na construção, e era rústico e infantil. Contudo, os três mastros tinham velas içadas, e o nome gravado na popa era Lady Edwina.
- Possa meu navio carregá-lo pelos oceanos escuros até a terra onde o espera a mulher cujo nome ele leva - murmurou Aboli.
Em seguida, colocou a faca e o arco de oliveira ao lado do navio.
- Eu não tinha espada com que armá-lo; portanto, que essas armas possam ser sua defesa nos lugares sombrios.
Depois, ofereceu a tigela de comida e a bilha de água.
- Possa o senhor jamais passar fome ou sede outra vez.
Por último, a cruz de madeira que Aboli havia feito e decorado com conchas verdes de madrepérola, osso branco esculpido e pequenas pedras brilhantes do leito do rio.
- Possa a cruz do Deus que o guiou em vida guiá-lo ainda na morte disse, ao colocar a cruz diante dos olhos vazios de Sir Francis. Ajoelhando-se no chão da caverna, construiu uma pequena fogueira e acendeu-a com a vela.
- Possa este fogo aquecê-lo na escuridão de sua longa noite. Depois, em sua própria linguagem, cantou o cântico funerário e a canção do viajante de uma longa jornada, batendo as mãos suavemente para marcar o compasso e para mostrar respeito. Quando as chamas do fogo queimaram até o fim, ele se levantou e foi para a entrada da caverna.
- Adeus, meu amigo - disse. - Até logo, meu pai.
Ogovernador van de Velde era um homem cauteloso. A princípio, não tinha permitido que Aboli o levasse na carruagem. - Esse é um de seus caprichos que não lhe negarei, minha querida - disse à esposa -, porém o sujeito é um selvagem negro. O que sabe de cavalos?
- Ele é realmente muito bom, bem melhor que o velho Fredricus. - Katinka riu. - E parece esplêndido na nova libré que escolhi para ele.
- Seu elegante casaco marrom e as calças serão de pouco interesse para mim quando ele quebrar meu pescoço - disse van de Velde; porém, a despeito da desconfiança, ficou a observar a maneira como Aboli conduzia a junta de cinzentos.
Na primeira manhã em que Aboli levou o governador da residência até seus escritórios no castelo, houve um rebuliço e um burburinho entre os condenados que trabalhavam nas muralhas, quando a carruagem cruzou o campo e aproximou-se dos portões do castelo. Tinham reconhecido Aboli sentado ereto no assento do cocheiro, com o longo chicote nas mãos cobertas de luvas brancas.
Hal estava a ponto de gritar uma saudação a ele, mas reprimiu-se a tempo. Não foi o ardor da chibata de Barnard que o dissuadiu; ele simplesmente se deu conta de que seria imprudente recordar aos captores que Aboli fora seu companheiro de navio. Os holandeses haveriam de esperar que se dirigisse a um negro como a um escravo e não como a um camarada.
- Ninguém cumprimente Aboli - murmurou, aflito, para Daniel, que trabalhava duro ao seu lado. - Ignore-o. Deixe-o passar.
A ordem correu de boca em boca pela fileira de homens no andaime e depois para aqueles que trabalhavam no pátio. Quando a carruagem veio dos portões para a reunião da guarda de honra e as saudações dos oficiais da guarnição, nenhum dos condenados prestou qualquer atenção. Devotaram-se ao pesado trabalho com os blocos e a roldana e as alavancas de ferro.
Aboli sentava-se como uma figura de proa esculpida no banco do cocheiro, a olhar diretamente para a frente. Seus olhos negros nem mesmo se desviaram de soslaio na direção de Hal. Ele puxou as rédeas da junta de cinzentos para que eles parassem ao pé da escadaria e saltou para abaixar os degraus dobráveis e estender a mão para o governador. Assim que van de Velde subira as escadas e desaparecera em seus aposentos, Aboli retornou a seu assento e aboletou-se, sem se mover, a olhar reto para diante. Num curto espaço de tempo, os carcereiros e guardas esqueceram-se de sua silenciosa presença, voltaram a atenção para seus deveres, e o castelo caiu em sua rotina.
Uma hora se passou, e um dos cavalos jogou a cabeça e se mostrou irrequieto. Pelo canto do olho, Hal notara que Aboli pegara as rédeas para agitar o animal ligeiramente. Agora, descia sem pressa e se dirigia até a cabeça do cavalo. Segurou o freio de couro e afagou-lhe o pescoço enquanto murmurava palavras carinhosas. O cinzento aquietou-se imediatamente sob seu toque, e Aboli abaixou-se sobre um joelho e ergueu-lhe primeiro uma pata da frente e depois a outra, examinando os cascos em busca de algum machucado.
Ainda de joelhos e oculto pelo corpo do cavalo da vista de qualquer dos guardas ou supervisores, ergueu os olhos pela primeira vez para Hal. Seus olhares se encontraram por um instante. Aboli fez um gesto quase imperceptível e abriu o punho direito, para dar a Hal um vislumbre do minúsculo pedaço de papel branco que tinha na palma, depois, fechou o punho e levantou-se. Caminhou pela junta de cavalos, examinando cada animal e fazendo ajustamentos de minutos nos arreios. Por fim, voltou-se e recostou-se contra o muro de pedra ao lado, inclinan-do-se para limpar a fina camada de poeira das botas.
Hal observou-o pegar o pedaço de papel e enfiá-lo disfarçadamente numa fresta do trabalho de pedra na parede. Então, Aboli endireitou-se e voltou ao assento de cocheiro para aguardar pelo prazer do governador. Van de Velde jamais mostrava consideração por criado, escravo ou animal. Durante toda aquela manhã, a junta de cinzentos postou-se pacientemente nas travessas com Aboli a sossegá-los em intervalos.
Um pouco antes do meio-dia, o governador ressurgiu dos escritórios da companhia e foi levado de volta para a residência para a refeição do almoço.
Ao entardecer, quando os condenados desceram cansados para o pátio, Hal tropeçou ao chegar ao chão e levou as mãos para se firmar. Num gesto rápido, pegou o pedaço de papel dobrado da junta na pedra onde Aboli o deixara.
No calabouço, a luz que se filtrava da tocha no suporte ao topo da escada era suficiente apenas para que Hal pudesse ler a mensagem. Estava escrita em bela caligrafia que ele não reconheceu. A despeito de toda a instrução do pai e a do próprio Hal, a escrita de Aboli nunca passara de um garrancho largo, espalhado e malformado. Parecia que outra mão havia formado aquelas palavras. Um pequeno fragmento de carvão estava enrolado no papel, colocado ali para Hal escrever a resposta no verso.
Capitão enterrado com honra. O coração de Hal saltou ao ler aquilo. Então, fora Aboli que tirara o cadáver mutilado de seu pai do cadafalso. Eu deveria saber que ele prestaria a meu pai essa reverência, pensou.
Havia apenas uma única outra palavra. "Althuda?"
Hal ficou intrigado com isso, até entender que Aboli, ou quem escrevera, devia estar perguntando pelo bem-estar do outro prisioneiro.
- Althuda! - chamou, baixinho. - Está acordado?
- Saudações, Hal. Como se sente?
- Alguém lá fora pergunta por você.
Houve um longo silêncio enquanto Althuda considerava a informação.
- Quem pergunta?
- Não sei. - Hal não poderia explicar, pois tinha certeza de que os carcereiros bisbilhotavam aquelas conversas.
Outro longo silêncio.
- Posso adivinhar - falou Althuda. - E você também. Já conversamos sobre ela antes. Pode mandar uma resposta? Diga a ela que estou vivo.
Hal esfregou o carvão na parede para aguçar a ponta e escreveu: "Althuda bem". Mesmo que sua letra fosse pequena e apertada, não havia espaço para mais nada no papel.
Na manhã seguinte, enquanto eram levados para fora a fim de começar o trabalho no andaime, Daniel deu cobertura a Hal para o momento em que ele precisasse enfiar o pedaço de papel no mesmo buraco do qual o retirara antes.
No meio da manhã, Aboli conduziu o governador da residência e estacionou mais uma vez sob a escadaria. Muito depois que van de Velde desaparecera em seus aposentos, Aboli continuou sentado no banco do cocheiro. Por fim, ergueu os olhos casualmente para um bando de estorninhos de asas tingidas de vermelho que viera dos penhascos para se empoleirar nas muralhas do bastião leste e ficara ali, a cantar seus baixos e lamentosos chamados. Dos pássaros, seu olhar passou por Hal que fez um gesto quase imperceptível. Mais uma vez, Aboli desmontou e foi cuidar dos cavalos, parando ao lado da muralha para ajustar as tiras das botas e, com um movimento de mão de prestidigitador, recuperar a mensagem da fenda na parede. Hal respirou mais fácil quando viu isso, pois tinham estabelecido uma caixa de correspondência.
Não cometeram o erro de tentar trocar mensagens todos os dias. Algumas vezes, uma semana ou mais poderiam passar sem que Aboli fizesse um gesto a Hal e colocasse um bilhete na muralha. Se Hal tinha uma mensagem, daria o mesmo sinal, e Aboli deixaria papel e carvão para ele.
A segunda mensagem que Hal recebeu era naquela caligrafia artística e delicada: A. está a salvo. Orquídea manda seu coração.
- Orquídea é aquela de quem falamos? - gritou Hal para Althuda, naquela noite. - Ela lhe manda seu coração e diz que você está a salvo.
- Não sei como ela conseguiu isso, mas devo acreditar e ser-lhe grato por isso, assim como por tantas outras coisas. - Havia um toque de alívio na entonação de Althuda.
Hal ergueu o pedaço do papel ao nariz e fantasiou que detectava o mais suave perfume nele. Escondeu-o na palha úmida a um canto da cela. Pensou em Sukeena, até que o sono o dominou. A lembrança de sua beleza era como uma chama de vela na escuridão hibernal do calabouço.
Ogovernador van de Velde estava embriagado. Sorvera o vinho do Reno com a sopa, e o Madeira com o peixe e a lagosta. Os tintos da Borgonha tinham acompanhado o ensopado de cordeiro e a torta de pombo. Ele bebera em grandes tragos o clarete com o bife, entremeando-o com goles de bom gim holandês. Quando por fim se erguera da mesa, firmara-se, enquanto cambaleava para o assento ao lado do fogo com a mão apoiada no braço da esposa. Ela não era normalmente tão atenciosa, porém durante toda aquela noite fora afetuosa e se mostrara de ânimo alegre, rindo das tiradas que em outras ocasiões teria ignorado e voltando a encher o copo dele com as próprias mãos graciosas quando estava pela metade. Ao pensar nisso, ele não conseguia se lembrar quando fora a última vez que tinham jantado sozinhos, apenas os dois, como um par de amantes.
Pela primeira vez, ele não fora forçado a suportar a companhia dos rústicos caipiras da povoação, ou a obsequiosa lisonja dos empregados ambiciosos da companhia ou, a maior bênção de todas, a presença imponente e jactanciosa daquele pedante presunçoso do Schreuder.
Caiu de costas na funda cadeira de couro ao lado da lareira, e Sukeena lhe trouxe uma caixa de bons charutos holandeses para escolher. Conforme ela estendia a chama da vela delgada para ele, van de Velde mediu com um olhar lascivo a frente de seu traje. A suave saliência dos seios de menina, entre os quais se aninhava o exótico broche de jade, excitou-o a ponto de ele sentir as virilhas incharem e encorparem agradavelmente.
Katinka estava ajoelhada diante da lareira, porém o olhava tão de soslaio que ele ficou preocupado por um momento que ela pudesse tê-lo visto cobiçar o peito da escrava. Mas, ela sorriu então e pegou o atiçador que aquecia ao fogo e enfiou sua ponta reluzente na bilha de pedra com vinho cheiroso. O líquido ferveu e fumegou, e ela encheu uma caneca com ele e a trouxe para o marido antes que tivesse tempo de esfriar.
- Minha bela esposa! - balbuciou ele indistintamente. - Minha queridinha. - Fez um brinde a ela com a caneca fumegante. Ainda não estava tão ébrio ou fácil de lograr que não percebesse que teria algum preço a pagar por aquela gentileza incomum. Sempre havia.
Ajoelhando-se em frente a ele, Katinka olhou para Sukeena, que estava perto.
- Isso é tudo por hoje, Sukeena. Pode ir. - Deu à escrava um sorriso cúmplice.
- Desejo aos senhores um doce sono e sonhos de paraíso, patrão e patroa. - Sukeena inclinou-se em graciosa genuflexão e saiu do aposento. Correu o biombo oriental esculpido atrás de si e ajoelhou-se ali, silenciosa, com a face colada ao painel. Eram as ordens de sua patroa. Katinka queria que Sukeena testemunhasse o que transpirava entre ela e o marido. Sabia que iria cerrar o elo que a ligava à escrava.
Agora, Katinka se colocava atrás da cadeira do marido.
- Teve uma semana bastante difícil - disse, suavemente -, com o assunto do corpo do pirata sendo roubado do patíbulo e agora com o novo censo e a taxação dos Dezessete. Meu pobre querido marido, deixe-me massagear seus ombros.
Retirou-lhe a peruca e beijou-o no topo da cabeça. Os pêlos duros picaram-lhe os lábios e ela se inclinou para trás, afundando os polegares naqueles ombros pesados. Van de Velde suspirou de prazer, não apenas com a sensação dos nós sendo dissolvidos de seus músculos, mas porque reconhecia naquilo o prelúdio para as pouco frequentes concessões dos favores sexuais da esposa.
- Quanto você me ama? - perguntou ela, e inclinou-se para lhe mordiscar a orelha.
- Eu a adoro - balbuciou ele. - Eu a venero.
- Você sempre foi tão gentil comigo. - A voz de Katinka assumiu aquela qualidade rouca que fazia a pele de van de Velde arrepiar-se. - Quero ser gentil com você. Escrevi para meu pai. Expliquei-lhe as circunstâncias do desaparecimento do pirata e de como não foi sua culpa que isso acontecesse. Darei a carta ao capitão do galeão que irá de regresso para casa, ancorado na baía no momento, para que a entregue a papai em pessoa.
- Posso ver a carta antes que você a despache? - pediu ele, cauteloso. - Iria ter mais peso se pudesse acompanhar meu próprio relatório aos Dezessete, que mandarei no mesmo navio.
- Claro que pode. Eu a trarei a você antes que saia para o castelo, de manhã. - Roçou-lhe o topo da cabeça com os lábios novamente, e deslizou os dedos dos ombros para baixo, sobre o peito. Soltou os botões do gibão e enfiou ambas as mãos pela abertura. Pegou em cada um punhado das tetas penduradas e amassou-as como se fossem pedaços de macio pão fresco.
- Você é uma esposa tão boazinha - disse ele. - Gostaria de lhe dar um sinal de meu amor. O que lhe falta? Uma jóia? Um animalzinho de estimação? Um novo escravo? Diga a seu velho Petrus.
- Eu realmente tenho um pequeno capricho - admitiu ela, timidamente. - Há um homem nos calabouços.
- Um dos piratas? - arriscou ele.
- Não, um escravo de nome Althuda.
- Ah, sim! Sei sobre ele. O rebelde e fujão! Deverei lidar com ele na semana entrante. Sua ordem de execução já está em minha escrivaninha para assinatura. Devo dá-lo a João Lento? Gostaria de observar. É isso? Quer desfrutar do entretenimento? Como posso lhe negar isso.
Katinka estendeu a mão e começou a lhe soltar os laços da calça. Ele espalhou as pernas e recostou-se confortavelmente na cadeira para tornar a tarefa mais fácil para ela.
- Quero que conceda a Althuda uma comutação da pena capital - murmurou ela ao seu ouvido.
Ele se sentou, empertigado.
- Está louca - gaguejou.
- É muito cruel em me chamar de louca. - Ela fez beicinho.
- Mas... ele é um fugitivo. Ele e sua turma de bandidos mataram vinte dos soldados que foram mandados para recapturá-los. Eu jamais poderia libertá-lo.
- Sei que não pode libertá-lo. Só quero que o mantenha vivo. Poderia mandá-lo para trabalhar as muralhas de seu castelo.
- Não posso fazer isso - Ele meneou a cabeça raspada. - Nem mesmo por você.
Katinka rodeou a cadeira e ajoelhou-se em frente a ele. Seus dedos começaram a trabalhar de novo os laços das calças. Ele tentou reaprumar-se, porém ela o empurrou para trás e enfiou as mãos para dentro.
Todos os santos sejam testemunhas, o velho sodomita torna isso difícil para mim. Ele é tão mole e branco como um pão que não cresceu, pensou ela, ao agarrá-lo.
- Nem mesmo para sua própria amorosa esposa? - murmurou, e ergueu o olhar com aqueles deslumbrantes olhos cor de violeta, enquanto pensava: está um pouco melhor, sinto o lírio murcho se torcendo.
- Quero dizer, bem, que isso seria difícil. - Ele estava num dilema.
- Compreendo - murmurou ela. - Também é difícil para mim escrever uma carta para meu pai. Eu detestaria ser forçada a queimá-la.
Levantou-se e ergueu as saias como se estivesse prestes a subir sobre um banco. Estava nua da cintura para baixo, e os olhos dele saltaram como os de um bacalhau tirado abruptamente da água profunda. Ele lutou para sentar-se ereto e ao mesmo tempo para alcançá-la.
Eu não o terei em cima de mim de novo, sua grande barrica de gordura de porco, pensou ela, enquanto sorria amorosamente para ele e o empurrava para baixo com ambas as mãos em seus ombros. Da última vez, você quase arrancou a vida de mim.
Montou-o como se estivesse montando a égua.
- Oh, doce Jesus, que homem potente você é! - gritou, ao tomá-lo dentro de si. O único prazer que recebia daquilo era o pensamento de que Sukeena ouvia tudo por detrás do biombo. Fechou os olhos e visualizou a imagem das coxas esguias da criada e o tesouro que jazia entre elas. A ideia inflamou-a, e ela sabia que seu marido poderia sentir a resposta úmida e julgar que era por ele somente.
- Katinka - balbuciou e gaguejou ele, como se estivesse se afogando. - Eu a amo.
- A comutação da pena? - perguntou ela.
- Não posso fazer isso.
- Então, nem eu - disse ela, e ergueu-se nos joelhos. Teve de lutar para impedir-se de rir alto enquanto observava a face do marido inchar e seus olhos saltarem para fora. Ele se retorcia e socava sob ela, investindo em vão no ar.
- Por favor! - choramingou ele. - Por favor!
- A comutação da pena? - perguntou ela, mantendo-se em suspenso provocativamente acima dele.
- Sim - gemeu ele. - Qualquer coisa. Eu lhe darei qualquer coisa que quiser.
- Eu o amo, meu marido - murmurou-lhe ela ao ouvido, e afundou como um pássaro se acomodando em seu ninho.
Da última vez, ele demorou até ela contar cem, recordou-se. Desta vez, tentarei levá-lo ao fim da linha antes de chegar a cinquenta. Com quadris ondulantes, ela se ajeitou para bater o próprio recorde.
anseer abriu a porta da cela de Althuda e esbravejou: - Saia, seu cão assassino. Ordens do governador, você vai trabalhar na muralha. - Althuda saiu pela porta de ferro,
e Manseer encarou-o com olhos fuzilantes. - Parece que não dançará uma quadrilha no cadafalso com João Lento, que pena. Porém, não coaxe muito alto, vai nos dar muito mais divertimento nas muralhas do castelo. Barnard e seus cães providenciarão isso. Você não durará até o fim do inverno, aposto cem guinéus.
Hal liderava a fila de condenados das celas inferiores, e parou no degrau de pedra abaixo de Althuda. Por um longo momento, os dois se estudaram atentamente. Ambos pareciam satisfeitos com o que viam.
- Se me der escolha, então creio que prefiro o jeito de sua irmã ao seu. - Hal sorriu. Althuda era menor em estatura do que sua voz sugeria, e todas as marcas do longo cativeiro eram claras de se ver: sua pele era descorada, e seus cabelos, foscos e emaranhados. O corpo que mostrava através dos buracos dos trapos miseráveis, porém, era elegante e forte e elástico. O olhar era franco, e sua expressão, atraente e aberta. Embora os olhos fossem amendoados, e o cabelo liso e preto, o sangue inglês se misturara bem com o do povo de sua mãe. Havia um jeito orgulhoso e teimoso em seu queixo.
- De que berço você caiu? - perguntou ele a Hal, com um sorriso. Era óbvio que estava feliz por sair das sombras das masmorras. - Eu o julgava um homem e mandaram um garoto.
- Vamos, seu renegado assassino - berrou Barnard, enquanto o carcereiro entregava os condenados a seu encargo. - Pode ter escapado do laço por um momento, mas eu tenho uns poucos prazeres que lhe estão reservados. Você cortou as gargantas de alguns de meus camaradas na montanha. - Era evidente que toda a guarnição se ressentia amargamente da comutação da pena de Althuda. Então, Barnard voltou-se para Hal. - Quanto a você, seu pirata fedorento, sua língua está muito solta até agora. Uma palavra sua no dia de hoje e eu o chutarei das muralhas e alimentarei meus cães com seus restos.
Barnard separou os dois: mandou Hal para o andaime e destinou Althuda para trabalhar nas turmas de condenados no pátio, a descarregar os blocos de alvenaria dos carros de boi conforme chegavam das pedreiras.
Contudo, naquela noite Althuda foi levado para a cela principal. Daniel e o resto do pessoal amontoaram-se em torno dele na escuridão para ouvir sua história contada em detalhes, e para crivá-lo de todas as perguntas que não haviam podido gritar pelas escadas. Ele era algo de novo na pavorosa e monótona rotina de cativeiro e no trabalho de abalar o coração. Apenas quando o caldeirão de ensopado foi trazido das cozinhas e os homens se apressaram a disputar a frugal refeição, Hal teve a oportunidade de conversar com ele a sós.
- Se você fugiu uma vez antes, Althuda, então deve haver uma chance de que possamos fazer isso novamente.
- Eu estava em melhores condições então. Tinha meu próprio bote de pesca. Meu patrão confiava em mim e eu podia andar pela colónia. Como poderemos escapar das muralhas que nos rodeiam? Receio que seja impossível.
- Você usa as palavras receio e impossível. Essa não é uma linguagem que eu compreenda. Pensei que talvez tivesse conhecido um homem, não algum medroso.
- Guarde as palavras duras para nossos inimigos, meu amigo.
Althuda devolveu-lhe o olhar crítico. - Em vez de me dizer que herói você é, diga-me como consegue receber recados do lado de fora.
A expressão de Hal desanuviou-se e ele sorriu. Gostava do espírito daquele homem, do jeito que podiam se defrontar ombro a ombro, num ataque verbal. Aproximou-se e baixou a voz enquanto explicava a Althuda como aquilo era feito. Então, estendeu-lhe a última mensagem que havia recebido. Althuda levou-a até o portão gradeado e estudou-a sob a luz da tocha que se filtrava pelas escadas.
- Sim - disse. - É a letra de minha irmã. Não conheço ninguém que possa empunhar a pena tão lindamente.
Naquela noite, os dois escreveram uma mensagem para Aboli recolher, para que ele e Sukeena soubessem que Althuda fora libertado do Covil do Esqueleto.
No entanto, parecia que Sukeena já sabia disso, pois no dia seguinte ela acompanhou a patroa a uma visita ao castelo. Seguia ao lado de Aboli no assento do cocheiro da carruagem. Na escada, ajudou a patroa a descer. Era estranho, porém Hal estava agora tão acostumado com as visitas de Katinka que não mais se sentia zangado e amargurado quando olhava para aquela face angelical. Ela mal lhe prendeu a atenção, ficando a observar, isto sim, a jovem escrava. Sukeena ficou ao pé da escada e relanceou olhares rápidos em todas as direções enquanto procurava pela face do irmão entre a turma de condenados.
Althuda trabalhava no pátio, aparando e cinzelando os rústicos blocos de pedra no formato certo antes que fossem içados para o portal no topo das muralhas inacabadas. Tinha a face e os cabelos empoados de branco, como se fosse um moleiro exposto ao pó de pedra, e suas mãos sangravam da abrasão das ferramentas e da rocha dura. Por fim, Sukeena avistou-o, e irmão e irmã se fitaram por um longo e extático momento.
A expressão radiante de Sukeena era uma das mais belas que Hal alguma vez presenciara. Porém, foi apenas por um instante fugidio; depois, Sukeena correu pelas escadas atrás da patroa.
Um curto tempo depois, reapareceram no topo da escada, mas o governador van de Velde estava com elas. Levava a esposa pelo braço, e Sukeena os seguia recatadamente. A escrava parecia estar procurando por alguém mais além do irmão. Quando subiu ao assento do cocheiro na carruagem, murmurou algo a Aboli. Em resposta, Aboli moveu os olhos, e ela lhe seguiu o olhar até o alto do andaime, onde Hal amarrava uma ponta de corda ao calço.
Hal sentiu o pulso acelerar quando se deu conta de que era ele que ela procurava. Olharam um para o outro com expressão solene, e pareceu que eram muito íntimos, pois, depois disso, Hal conseguia se recordar de cada ângulo e plano daquela face e da graciosa curva de seu pescoço. Por fim, ela sorriu, num breve e precioso interlúdio, e depois baixou o olhar. Naquela noite, na cela, Hal deitou-se na palha fria e úmida e reviveu o momento.
Talvez ela volte amanhã, pensou, enquanto o sono o envolvia como uma onda negra. Mas ela não apareceu por muitas semanas.
Tinham escolhido um lugar na palha para que Althuda dormisse perto de Hal e Daniel, de maneira que pudessem conversar baixinho na escuridão.
- Quantos de seus homens estão na montanha? - quis saber Hal.
- Havia dezenove de nós no começo, mas três foram mortos pelos holandeses, e cinco outros morreram depois que escapamos. As montanhas são cruéis e há muitos animais selvagens.
- Que armas têm?
- Têm os mosquetes e as espadas que capturamos dos holandeses, porém há pouca pólvora, e já então deve ter sido toda usada. Meus companheiros precisam caçar para sobreviver.
- Com certeza fizeram outras armas, não? - indagou Hal.
- Devem ter confeccionado arcos e lanças, mas faltam pontas de ferro para ambos.
- Qual a segurança desses seus esconderijos naqueles ermos?
- As montanhas são infinitas. As ravinas são um labirinto emaranhado. Os penhascos são íngremes e não há trilhas, a não ser aquelas feitas pelos babuínos.
- Os soldados holandeses se aventuram por essas montanhas?
- Nunca! Não se atrevem a escalar nem mesmo a primeira ravina. Aquelas conversas enchiam todas as noites, enquanto os ventos do inverno vinham bramindo montanha abaixo como um bando de leões a rugir diante das muralhas do castelo. Os homens nos calabouços jaziam tremendo nos catres de palha. Algumas vezes, apenas a conversa e a esperança eram capazes de impedir que sucumbissem ao frio. Mesmo assim, alguns dos condenados mais velhos e mais fracos adoeceram: suas gargantas e peitos se encheram de espesso catarro amarelo, os corpos Queimavam de febre; morreram, engasgados e tossindo.
A carne consumiu-se naqueles que sobreviveram. Embora tivessem emagrecido, estavam enrijecidos pelo frio e pelo trabalho. Hal alcançou a plena estatura e força naqueles meses terríveis, até que podia se equiparar a Daniel ao ancorar uma corda ou levantar os pesados cochos. Sua barba crescera densa e negra, e o farto rabo-de-cavalo pendia entre as espáduas. As marcas de chicote cortavam-lhe flancos e costas, e seu olhar era duro e inquieto quando ele olhava para os cumes da montanha, azuis à distância.
- Qual a distância daqui até as montanhas? - perguntou a Althuda na escuridão da cela.
- Dez léguas - disse-lhe Althuda.
- Tão longe, assim! - murmurou Hal. - Como conseguiu alcançá-las numa tal distância, com os holandeses em perseguição?
- Pela água. Eu lhe disse que era um pescador - retrucou Althuda. - Eu saía todo dia para matar focas a fim de alimentar os outros escravos. Meu bote era pequeno, e éramos muitos. Mal servia para nos carregar pela baía Falsa até o pé das montanhas. Minha irmã Sukeena não sabe nadar. Eis porque eu nunca a deixaria tentar a travessia.
- Onde está o bote agora?
- Os holandeses que nos perseguiram o encontraram-no onde o tínhamos escondido. E queimaram-no.
A cada noite, aquelas assembleias eram efémeras, pois haviam sido levados ao limite de sua força e resistência. Gradualmente, porém Hal foi capaz de extrair de Althuda cada detalhe que pudesse ser útil.
- Qual é o ânimo dos homens que levou com você para as montanhas?
- São homens corajosos, e mulheres também, pois há três garotas no bando. Fossem menos corajosos, nunca teriam deixado a segurança do cativeiro. Porém, não são guerreiros, exceto um.
- Quem é esse?
- Seu nome é Sabah. Era um soldado até que os holandeses o capturaram. Agora é soldado de novo.
- Poderíamos mandar um recado a ele? Althuda riu com amargura.
- Poderíamos gritar do topo das muralhas do castelo ou sacudir nossas correntes. Ele poderia nos ouvir no cume da montanha onde se esconde.
- Se eu quisesse um piadista, teria chamado Daniel aqui para me divertir. Os gracejos dele fariam um cão vomitar, porém são mais engraçados que os seus. Responda-me agora, Althuda. Não há jeito de chegar a Sabah?
Embora seu tom fosse ligeiro, havia uma ponta de aço nele, e Althuda pensou um instante antes de responder:
- Quando escapei, arranjei com Sukeena um esconderijo além da cerca de amendoeiras amargas da colónia, onde poderíamos deixar mensagens um para o outro. Sabah conhece esse local, pois o mostrei a ele na noite em que voltei para buscar minha irmã. É um lance duvidoso do dado, mas Sabah pode ainda visitá-lo para encontrar uma mensagem minha.
- Pensarei nas coisas que me disse - murmurou Hal, e Daniel, deitado perto dele na cela escura, ouviu o poder e autoridade em sua voz e meneou a cabeça.
É a voz e a maneira do capitão Franky que ele tem agora, maravi-lhou-se Daniel. O que os holandeses estão fazendo com ele aqui poderia jogar um sujeito inferior nos arrecifes; porém, por Deus, tudo que fizeram foi encher sua vela mestra com um vento forte. Hal assumira o papel de seu pai e a tripulação que sobrevivera reconhecia isso. Mais e mais o encararam como uma liderança, dando-lhes coragem para ir em frente e aconselhando-os, resolvendo as disputas insignificantes que acudiam quase diariamente entre homens em tais condições amargas, e mantendo uma fagulha de esperança e coragem a queimar em todos os corações.
Na noite seguinte, Hal retomou o conselho de guerra que a exaustão interrompera na noite passada.
- Então, Sukeena sabe onde deixar uma mensagem para Sabah, certo?
- Naturalmente. A árvore oca às margens do rio Eerste, o primeiro rio além da cerca de limite - retrucou Althuda.
- Aboli precisa tentar fazer contato com Sabah. Existe algo que seja conhecido apenas por você e Sabah, provando a ele que a mensagem vem de você e que não é uma armadilha dos holandeses?
Althuda pensou um pouco.
- Apenas diga que é do pai do pequeno Bobby - sugeriu, por fim. Hal esperou em silêncio que Althuda se explicasse, e, depois de uma Pausa, ele continuou: - Robert é meu filho, nascido naqueles ermos depois que escapamos da colónia. Neste agosto, ele completará um ano de idade. Sua mãe é uma das garotas de que falei. Em tudo, a não ser no nome, é minha esposa. Ninguém dentro da cerca de amendoeiras amargas, além de mim, poderia saber o nome da criança.
- Então, você tem uma razão tão boa quanto qualquer um de nós Para querer fugir destas muralhas - murmurou Hal.
O conteúdo das mensagens que puderam passar a Aboli fora severamente restrito pelo tamanho do papel que podiam empregar com segurança sem alertar os carcereiros ou o agudo e faminto escrutínio de Hugo Barnard. Hal e Althuda passaram horas estreitando os olhos sob a luz ténue e puxando pela cabeça para compor as mais sucintas mensagens que ainda assim pudessem ser inteligíveis. As respostas que retornaram eram a voz de Sukeena falando, pequenas jóias de brevidade que os deliciavam com vislumbres ocasionais de bom senso e humor.
Hal descobriu-se a pensar mais e mais em Sukeena, e quando ela voltou novamente ao castelo, seguindo atrás da patroa, seu olhar correu primeiro para o andaime onde ele trabalhava, antes de ir procurar o irmão. Ocasionalmente, quando havia espaço nos bilhetes que Aboli colocava no vão da muralha, ela fazia pequenos comentários pessoais, uma referência à sua barba hirsuta e negra ou à passagem de seu aniversário. Aquilo espantou Hal e o tocou profundamente. Ele ficou a imaginar por um momento como ela soubera daquele detalhe íntimo, até que adivinhou que Aboli lhe contara. Encorajou então Althuda a falar sobre ela na escuridão. Soube pequenas coisas acerca da sua infância, suas fantasias e as coisas de que não gostava. Enquanto jazia deitado, a ouvir Althuda, começou a se apaixonar por ela.
Agora, quando Hal olhava para as montanhas ao norte, elas estavam cobertas por um manto de neve que brilhava à luz do sol hibernal. O vento descia de lá como uma lança e parecia espicaçar-lhe a alma.
- Aboli ainda não soube de Sabah. - Depois de quatro meses de espera, Hal aceitou por fim aquele fracasso. - Teremos de cortá-lo de nossos planos.
- Ele é meu amigo, porém pode ter desistido - concordou Althuda. - Lamento por minha esposa, pois ela também deve estar chorando minha morte.
- Vamos em frente, então, pois não adianta reclamar por aquilo que nos é negado - disse Hal, com firmeza. - Seria mais fácil escapar da pedreira da montanha do que do próprio castelo. Parece que Sukeena arranjou para que sua pena fosse comutada. Talvez possa do mesmo jeito nos mandar para a pedreira.
Despacharam a mensagem, e, uma semana depois, a resposta voltou. Sukeena se via incapaz de influenciar na escolha do local de trabalho e avisou que qualquer tentativa com relação a isso poderia despertar suspeitas imediatas. "Seja paciente, Gundwane", disse-lhe, numa mensagem mais longa do que jamais lhe mandara antes. "Aqueles que os amam estão trabalhando por sua salvação."
Hal leu a mensagem uma centena de vezes e depois a repetia para si mesmo com a mesma frequência. Ficara comovido com o fato de ela ter usado seu apelido, Gundwane. Claro, Aboli lhe contara isso também.
"Aqueles que os amam? Quer dizer Aboli apenas, ou usa o plural intencionalmente? Existe outra pessoa que me ama também? Ela se refere a mim apenas ou inclui Althuda, o irmão?" Ele se alternava entre a esperança e a aflição. "Como ela pode transtornar minha mente assim, quando jamais nem mesmo ouvi sua voz? Como pode sentir algo por mim, quando nada vê além de um espantalho barbudo em trapos de mendigo? Porém, quem sabe, talvez Aboli seja meu defensor e diga a ela que nem sempre eu fui assim."
Fossem quais fossem os planos, os dias passaram e a esperança definhou. Mais seis dos marujos de Hal morreram durante os meses de agosto e setembro: dois caíram do andaime, um foi esmagado por um bloco de alvenaria em queda, dois mais sucumbiram com o frio e a umidade. O sexto foi Oliver, que fora o criado de Sir Francis. Anteriormente, durante a prisão, seu pé direito fora esmagado sob a roda revestida de ferro de um dos carros de boi que traziam as pedras da pedreira. Mesmo que o Dr. Saar tivesse colocado uma tala no osso partido, o pé não se curaria. Inchou e estourou em úlceras supuradas que fediam como a carne de um cadáver. Hugo Barnard encaminhou-o de volta ao trabalho, mesmo que mancasse pelo pátio com uma muleta rústica.
Hal e Daniel tentavam proteger Oliver; porém, se interferiam de um jeito muito óbvio, Barnard se tornava ainda mais vingativo. Tudo o que podiam fazer era assumir tanto quando pudessem o trabalho de Oliver e mantê-lo fora do alcance do chicote do supervisor. Quando chegou o dia em que Oliver estava fraco demais para subir a escada até o topo da muralha sul, Barnard mandou-o trabalhar como auxiliar de pedreiro, a cortar e modelar as lajes de pedra. No pátio, ficava direto sob o olhar de Barnard, e, por duas vezes na mesma manhã, Barnard o cortara com o chicote.
A última vez foi um golpe casual, não tão malévolo como muitos que o tinham precedido. Oliver era um alfaiate de profissão e, por natureza, uma criatura tímida e gentil, porém, como um cão vira-lata empurrado para uma via onde não havia escape, voltou-se e atacou. Girou a pesada marreta de madeira na mão direita e arremessou-a; embora barnard saltasse para trás, não foi rápido o bastante, e a marreta alcançou-o numa canela. Foi um golpe de raspão, que não quebrou o osso mas rasgou a pele, e um jato de sangue escureceu as calças de Barnard e respingou-lhe o sapato. Mesmo de seu poleiro no andaime, Hal pôde ver, pela expressão, que Oliver estava abalado e apavorado pelo que fizera.
- Senhor! - gritou ele, e caiu de joelhos. - Eu não pretendia isso. Por favor, senhor, perdoe-me. - Deixou cair a marreta e ergueu as duas mãos à face numa atitude de prece.
Hugo Barnard cambaleou para trás e então se inclinou para examinar o ferimento. Ignorou os frenéticos apelos de Oliver e puxou as calças para expor o longo arranhado pela canela. Depois, sem olhar para Oliver, andou até a cerca de prender animais aos fundos do pátio onde seu par de cães negros estava amarrado. Segurou-os pelas correias e apontou-os para onde Oliver ainda se ajoelhava.
- Peguem-no! - Eles avançaram contra as correias, rosnando e ofegando com enormes bocarras vermelhas e longos dentes brancos. - Peguem-no! - incitou Barnard, e ao mesmo tempo, os reprimiu. A fúria em sua voz enraiveceu os animais, e eles saltavam, forçando as peias, tanto que Barnard quase foi arrancado dos pés.
- Por favor! - gritou Oliver, lutando para se levantar e caindo para trás e depois rastejando até onde sua muleta estava encostada contra a muralha de pedra.
Barnard soltou os cães. Eles investiram pelo pátio, e Oliver teve tempo apenas para erguer as mãos a fim de proteger o rosto antes que estivessem sobre ele.
Eles o derrubaram e o mandaram rolando pelo calçamento e depois o atacaram com as mandíbulas ferozes. Um foi para sua face, porém Oliver ergueu o braço e o animal enterrou-lhe os dentes no cotovelo. Oliver estava sem camisa, e o outro cão pegou-o pela barriga. Ambos o sacudiram.
Do alto do andaime, Hal estava impotente para intervir. Gradualmente, os gritos de Oliver se tornaram mais fracos e suas convulsões cessaram. Barnard e seus cães não se afastaram: continuaram sobre o corpo muito tempo depois que o derradeiro resquício de vida havia se extinguido. Então, Barnard deu ao corpo mutilado um último chute e recuou. Ofegava pesadamente, e o suor escorria de sua face e pingava na frente da camisa, mas ele ergueu a cabeça e sorriu para Hal. Deixou o corpo de Oliver a jazer no calçamento até o fim do turno de trabalho, quando gritou para Hal e Daniel:
- Joguem esse monte de lixo na esterqueira atrás do castelo. Ele será mais útil às gaivotas e corvos do que algum dia foi para mim. - Riu com alegria quando viu o ar assassino nos olhos de Hal.
Quando a primavera chegou novamente, apenas oito haviam restado. Contudo, os oito estavam temperados pela adversidade. Cada músculo e nervo se erguia orgulhoso sob a pele queimada e batida pelas intempéries no peito e braços de Hal. As palmas de suas mãos estavam grossas como couro, seus dedos poderosos com as pinças de um ferreiro. Se fosse se meter numa briga, um único golpe de um de seus punhos arranhados poderia mandar um homem de grande estatura para o chão.
A primeira promessa de primavera dispersou as nuvens varridas pelo vento, e o sol tinha um novo fogo em seus raios. Uma inquietude despertou do desânimo resignado que os possuíra a todos durante o inverno. Os ânimos estavam acirrados, as brigas entre eles mais frequentes, e seus olhares miravam muitas vezes as montanhas distantes, nas quais a neve tinha derretido, ou se voltavam para o azul do Atlântico.
Então, chegou uma mensagem de Aboli pela letra de Sukeena. "Sabah saúda A. Bobby e a mãe anseiam por ele."
Aquilo os encheu a todos de uma esperança selvagem e jubilosa que, na verdade, não tinha um firme fundamento, pois Sabah e seu bando somente poderiam ajudá-los assim que tivessem passado a cerca de amendoeiras amargas.
Outro mês se passou, e a vibrante chama de esperança que se acendera em seus corações transformou-se numa brasa. A primavera veio em sua plena glória e transmutou a montanha num prodígio de flores silvestres cujas cores deixavam o olhar atónito e cujo perfume os alcançava mesmo no alto andaime. O vento veio cantando do sudeste, e os pássaros voltaram sabe-se lá de onde, a inflamar o ar com sua plumagem esfuziante.
Então, houve uma mensagem lacónica de Sukeena e Aboli. "É tempo de ir. Quantos são?"
Naquela noite, discutiram a mensagem em murmúrios que vibravam de excitação:
- Aboli tem um plano. Porém, como poderia nos tirar todos daqui? - Para mim, ele é o único cavalo na corrida - resmungou Daniel Grande. - Estou apostando cada centavo que tenho nele.
- Se pelo menos tivéssemos um centavo para apostar - riu Ned. Era a primeira vez que Hal o ouvia rir desde que Oliver fora rasgado em pedaços pelos cães de Barnard.
- Quantos vão? - perguntou Hal. - Pensem um pouco, camaradas, antes de me dar a resposta. - Na luz ruim, ele olhou para o círculo de cabeças cujas expressões tornaram-se sérias. - Se ficarem aqui, viverão por algum tempo pelo menos, e ninguém pensará mal de vocês. Se partirmos e não chegarmos à montanha, então todos viram como meu pai e Oliver morreram. Não é uma morte adequada para um animal, quanto mais para um homem.
Althuda falou primeiro:
- Mesmo que não fosse por Bobby e minha mulher, eu iria.
- Eu também! - disse Daniel.
- Eu também! - disse Ned.
- São três - murmurou Hal. - E quanto a você, William Rogers?
- Estou com o senhor, Sir Henry.
- Não me teste, Billy. Já lhe disse para não me chamar assim. - Hal franziu a testa. Quando usavam seu título, ele se sentia uma fraude, pois não era merecedor da honra que seu avô ganhara pela mão direita de Drake. O título que seu pai tinha carregado com tamanha distinção. - Sua última chance, mestre Billy. Se sua língua se enrolar novamente, chutarei algum sentido do seu outro lado, ouviu?
- Sim, ouvi alto e bom som, Sir Henry. - Billy sorriu para ele, e os outros caíram na risada enquanto Hal o agarrava pelo cangote e lhe socava as orelhas. Estavam todos borbulhando de excitação. Todos, a não ser Dick Moss e Paul Hale.
- Estou muito velho para uma brincadeira como essa, Sir Hal. Meus ossos estão tão enferrujados que eu não poderia cavalgar um jovem atraente nem que o senhor o amarrasse a um barril para mim, quanto mais escalar uma montanha. - Dick Moss, o velho pederasta, sorriu. - Perdoe-me, capitão, mas Paul e eu estivemos conversando, e ficaremos aqui, onde teremos a barriga cheia de ensopado e um monte de palha a cada noite.
- Talvez sejam mais sábios que o resto de nós - concordou Hal, e não ficou triste com a decisão.
Dicky havia muito passara de seus dias de glória, quando fora o homem a bater o topo de mastro quando içavam uma vela ao pleno vento. Aquele último inverno lhe endurecera os membros e deixara grisalhos seus cabelos. Seria uma carga não paga a carregar naquela viagem. Paul era a esposa de Dicky. Estavam juntos por vinte anos, e embora Paul fosse uma fúria com um alfanje na mão, ficaria com seu amante idoso.
- Boa sorte para vocês. São um par como nenhum outro que já conheci - disse Hal, e olhou para Wally Tentilhão e Stan Andorinha. E quanto a vocês, os dois pássaros? Vão voar conosco, camaradas?
- Tão alto e tão longe quanto forem - falou Wally por ambos, e Hal deu-lhe um tapinha no ombro.
- Isso faz seis de nós, oito com Aboli e Althuda. E vamos voar tão alto e tão longe, que todos ficarão satisfeitos, eu lhes garanto.
Houve uma troca final de mensagens enquanto Aboli e Sukeena explicavam o plano em que tinham trabalhado. Hal sugeriu alguns refinamentos e relacionou uma lista de itens que Aboli e Sukeena deveriam tentar furtar para poder tornar mais certa a sobrevivência nos ermos. Os principais entre eles eram um mapa e uma bússola; e um sextante, se conseguissem encontrar um.
Aboli e Sukeena fizeram os preparativos finais sem permitir que a ansiedade ou a emoção se tornassem aparentes para o resto da equipe da casa. Os vigias estavam sempre observando tudo o que acontecia nos alojamentos dos escravos, e eles não confiavam em ninguém, agora que estavam tão perto do dia escolhido. Sukeena gradualmente reuniu alguns daqueles itens mencionados por Hal e adicionou uns poucos por sua própria conta dos que sabia que iriam precisar.
No dia anterior ao da fuga planejada, Sukeena chamou Aboli para a sala de estar principal da residência, onde antes ele nunca tivera permissão para entrar.
- Preciso de sua força para mover o armário entalhado no salão de banquete - disse-lhe ela, na frente da cozinheira e de dois outros membros da equipe de cozinha.
Aboli seguiu-a com ar submisso, tal como um cachorro treinado puxado pelo laço. Assim que estavam sozinhos, Aboli abandonou o comportamento de humilde escravo.
- Seja rápido! - avisou-o Sukeena. - A patroa voltará em breve. Está com João Lento nos fundos do jardim. - Dirigiu-se rapidamente até a veneziana da janela que dava para os gramados e viu que o casal mal combinado ainda estava em animada conversa sob os carvalhos.
- Não há limite para a devassidão daquela mulher - murmurou Para si mesma, enquanto observava Katinka rir de algo que o carrasco lhe dissera. - Ela faria sexo com um porco ou com uma serpente venenosa se lhe ocorresse essa fantasia. - Sukeena estremeceu diante da lembrança daquela língua de ofídio a lhe explorar os recessos secretos de seu próprio corpo. Não acontecerá outra vez, prometeu a si mesma, são apenas mais quatro dias para suportar antes que Althuda esteja a salvo. Se me chamar para o ninho antes disso, então alegarei que minha menstruação está descendo.
Ouviu algo volutear no ar como um grande pássaro em vôo e relanceou o olhar por sobre o ombro para ver que Aboli tirara uma das espadas da exposição de armas no corredor. Ele testava seu equilíbrio e têmpera, balançando-a em círculos cantantes em torno da cabeça, de tal maneira que os reflexos de luz da lâmina dançavam nas paredes brancas.
Deixou-a de lado e escolheu outra, porém não a apreciou em nada e devolveu-a com uma cara feia.
- Depressa! - exclamou ela baixinho para ele.
Em questão de minutos, ele pegara outras três espadas, não apenas pelas jóias que decoravam seus punhos, mas pela leveza e têmpera de suas lâminas. Todas três eram cimitarras curvas feitas pelos armeiros de Shah Jahan, em Agra, no continente da índia.
- Foram feitas para um príncipe mongol e se ajustam mal na mão de um marinheiro rude, porém servirão até que eu possa encontrar um alfanje de bom aço Sheffield para substituí-las. - Então, pegou uma lâmina mais curta, uma faca kukri usada pelo povo dos altiplanos da índia distante, e cortou uma porção de pêlos do antebraço. - Esta servirá para o trabalho próximo que tenho em mente. - Grunhiu de satisfação.
- Marquei bem as que você escolheu - disse-lhe Sukeena. - Agora, deixe-as na estante, ou seus lugares vazios serão percebidos pelos outros escravos da casa. Eu as passarei a você na noite antes do dia combinado.
Naquela tarde, ela pegou a cesta e, com o chapéu cónico de palha na cabeça, foi para a montanha. Embora qualquer eventual observador não pudesse adivinhar seu intento, ela certificou-se de ficar fora da vista, escondida na floresta que cobria a grande ravina abaixo do cume. Havia uma árvore morta que ela notara em muitas excursões prévias. Do miolo podre brotava um ajuntamento de pequenos cogumelos cor de púrpura. Ela calçou um par de luvas antes de começar a colhê-los. Os talos abaixo do topo em formato de guarda-sol eram de uma bela coloração amarela. Aqueles fungos eram tóxicos; porém, apenas se comidos em quantidade seriam fatais. Ela os escolhera por essa característica não queria ter a morte de homens inocentes e suas famílias em sua consciência. Colocou-os no fundo da cesta e cobriu-os com outras raízes e ervas antes de descer a lareira íngreme da montanha e caminhar devagar de volta pelos vinhedos até a residência.
Naquela noite, o governador van de Velde daria um jantar de gala no grande salão, e convidara os notáveis da povoação e todos os dignitários da companhia. Aquelas festividades continuaram até tarde, e depois que os convidados partiram, a equipe da casa e os escravos estavam exaustos. Deixaram Sukeena para fazer a ronda e trancar as cozinhas para a noite.
Assim que estava sozinha, ela ferveu os cogumelos roxos e reduziu a essência até a consistência de um mel fresco. Despejou o líquido dentro de uma das garrafas de vinho vazias da festa. Não tinha odor e ela não precisava prová-lo para saber que mostrava apenas um ligeiro gosto de cogumelo. Uma das mulheres que trabalhavam nas cozinhas das barracas do castelo estava em débito para com ela: as poções de Sukeena tinham salvado seu filho mais velho que fora atacado pela varíola. Na manhã seguinte, ela deixou a garrafa numa cesta com remédios e poções na carruagem, para que Aboli a entregasse à mulher.
Quando Aboli levou o governador para o castelo, este tinha a face pálida como cinza e a expressão mal-humorada devido aos efeitos dos excessos da noite anterior. Aboli deixou uma mensagem na fenda da parede, em que se lia: "Não comam nada da cozinha da guarnição de noite."
Naquela noite, Hal despejou o conteúdo do caldeirão de ensopado dentro do balde da latrina antes que qualquer dos homens fosse tentado a prová-lo. O aroma fumegante encheu a cela, e, para os marinheiros esfaimados, aquilo cheirava como a promessa de vida eterna. Resmungaram e rilharam os dentes, e xingaram Hal, sua sorte e a si próprios ao verem tudo desperdiçado.
Na manhã seguinte, na hora costumeira, o calabouço começou a pulsar de vida. Bem antes que a alvorada delineasse as quatro pequenas janelas barradas, os homens resmungavam e tossiam e então se levantavam, um de cada vez, para se aliviar, grunhindo e peidando enquanto evacuavam no balde da latrina. Depois, à medida que a significação do dia desabava sobre eles, um silêncio forçoso e carregado os envolveu.
Lentamente, a luz do dia filtrou-se até eles das janelas, e todos se entreolharam de soslaio. Nunca tinham sido deixados ali até tão tarde. Em todas as outras manhãs, estavam trabalhando nas muralhas uma hora antes.
Quando por fim as chaves de Manseer retiniram na fechadura o homem parecia pálido e adoentado. Os dois outros com ele não estavam em melhor estado.
- O que é que há com você, Manseer? - perguntou Hal. - pensamos que tinha mudado de afeições e que nunca mais o veríamos de novo. - O carcereiro era um simplório honesto, de pouca malícia e durante aqueles meses, Hal havia cultivado um relacionamento superficialmente amigável com ele.
- Passei a noite sentado na latrina - queixou-se Manseer.
Tinha companhia, pois cada homem da guarnição tentava entrar lá comigo. Mesmo a esta hora, metade deles ainda está deitada nos catres...
- Interrompeu-se quando sua barriga roncou como um trovão distante, e uma expressão desesperada subiu-lhe à face. - Lá vou eu de novo! Juro que matarei aquele cozinheiro sifilítico. - Partiu para as escadas e deixou-os a esperar por outra meia hora, antes que retornasse para abrir o portão gradeado e conduzi-los para o pátio.
Hugo Barnard esperava para assumir o comando. Estava de mau humor.
- Perdemos metade de um dia de trabalho - esbravejou para Manseer.
- O coronel Schreuder vai me culpar por isso, e quando o fizer, cairei em cima de você, Manseer! - Voltou-se para a fila de condenados. - Não fiquem a fazer caretas, seus bastardos! Por Deus, vão me dar um dia inteiro de trabalho, mesmo que eu tenha de mantê-los nos andaimes até a meia-noite. Agora, subam, e bem depressa!
Barnard estava em bom estado, a face rubicunda e o temperamento já em ebulição. Era evidente que a cólica e a diarreia que afligiam o resto da guarnição não o incomodaram. Hal recordou-se de Manseer ter comentado que Barnard vivia com uma jovem hotentote na povoação perto da praia, e não comia da ração da guarnição.
Olhou ao redor rapidamente enquanto caminhava pelo pátio até o pé da escada. O sol já estava alto, e seus raios iluminavam os redutos da parte oeste do castelo. Havia menos da metade do número costumeiro de carcereiros e guardas: uma sentinela em vez de quatro nos portões, nenhuma na entrada da armaria e apenas uma no topo da escada que conduzia aos escritórios da companhia e aos aposentos do governador, no lado sul do pátio.
Quando subiu a escada e chegou ao topo da muralha, olhou pelo passeio até a avenida e pôde apenas divisar o teto da residência do governador entre as árvores.
- Seja rápido, por Deus, Aboli - murmurou. - Estamos prontos para você.
Aboli trouxe a carruagem até a frente da residência uns poucos minutos antes do horário estipulado pela esposa do governador e parou os cavalos abaixo do pórtico. Quase imediatamente, Sukeena apareceu na soleira da porta e o chamou:
- Aboli! A patroa tem alguns pacotes para levar conosco na carruagem. - Sua entonação era leve e tranquila, sem nenhum toque de tensão. - Por favor, entre e carregue-os. - Isso foi dito com vistas aos outros que ela sabia que poderiam estar ouvindo.
Obediente, Aboli travou o breque das rodas da carruagem e, com uma palavra de calma aos cavalos, saltou do assento de cocheiro. Moveu-se sem pressa, e sua expressão era tranquila quando ele seguiu Sukeena para dentro da casa. Saiu de novo um minuto depois, carregando um tapete de seda enrolado e um conjunto de alforjes de sela de couro. Foi até a traseira da carruagem e colocou aquela bagagem nas alcofas e depois fechou a tampa. Não havia nenhum ar de segredo em seus movimentos nem qualquer gesto furtivo para alertar os outros escravos. As duas criadas que estavam ocupadas a varrer o terraço em frente nem mesmo ergueram o olhar para ele. Ele voltou a seu banco e pegou as rédeas, a aguardar com a paciência infinita de um escravo.
Katinka estava atrasada, porém isso não era incomum. Chegou por fim numa nuvem de perfume francês e farfalhar de sedas, e desceu as escadas, a encarar Sukeena com expressão fechada por alguma imaginária má conduta. Sukeena deslizou ao lado dela em passos silenciosos, contrita e sorridente.
Katinka subiu à carruagem como uma rainha a caminho da coroação e ordenou imperiosamente a Sukeena:
- Venha e sente-se aqui, a meu lado!
Sukeena inclinou-se numa mesura, levando as mãos aos lábios. Esperava que Katinka lhe desse aquela ordem. Quando estava com humor para intimidades físicas, Katinka a queria por perto o bastante para poder esticar a mão e tocá-la. Em outras ocasiões, era fria e alheada, porém sempre imprevisível.
É um presságio bom que ela tenha feito o que eu pretendia, encorajou-se Sukeena, ao tomar o assento do lado oposto ao da patroa e sorrir para ela amorosamente.
- Adiante, Aboli - exclamou Katinka, e depois, conforme a carruagem avançava, dirigiu a atenção para Sukeena. - Como se assenta essa cor em mim à luz do sol? Não me torna pálida e insípida?
- Vai lindamente com sua pele, patroa. - Sukeena lhe disse exatamente o que ela queria ouvir. - Até melhor que dentro de casa. Também salienta as luzes violeta em seus olhos.
- Não haveria um toque a mais de renda no decote, o que acha? - Katinka inclinou a cabeça de um jeito elegante.
Sukeena pensou na resposta:
- Sua beleza não precisa nem mesmo da mais bela renda de Bruxelas - disse a ela. - Persiste por si só.
- Pensa assim, Sukeena? É uma grande lisonjeadora, porém devo dizer que você mesma está parecendo particularmente exuberante esta manhã. - Analisou a jovem, pensativa. A carruagem agora rodava pela avenida num trote, os cinzentos a arquear os pescoços e a pisar de um jeito macio. - Há cor em suas faces e um faiscar em seu olhar. Alguém poderia imaginar que está apaixonada.
Sukeena fitou-a de uma maneira que fez a pele de Katinka formigar.
- Oh, mas estou apaixonada por uma pessoa especial.
- Minha queridinha tola - ronronou Katinka.
A carruagem chegou ao campo e virou em direção ao castelo. Katinka estava tão absorta, que, por algum tempo, não se deu conta de para onde estava rumando. Então, uma sombra de aborrecimento cruzou-lhe a face e ela gritou, com estridência:
- Aboli! O que está fazendo, idiota? Não vamos para o castelo. Estamos indo para Mevrouw de Wall.
Aboli pareceu não tê-la escutado. Os cinzentos trotaram direto rumo aos portões do castelo.
- Sukeena, diga ao estúpido para dar a volta.
Sukeena levantou-se num pulo na carruagem oscilante e depois se sentou ao lado de Katinka, deslizando o braço pelo da patroa, seguran-do-a com firmeza.
- Pelos céus, o que está fazendo, criança? Não aqui. Perdeu a cabeça? - Tentou puxar o braço, mas Sukeena segurou-a com uma força que a espantou.
- Vamos para o castelo - disse Sukeena, baixinho. - E a senhora fará exatamente o que eu lhe disser.
- Aboli! Pare a carruagem neste instante! - Katinka ergueu a voz e fez menção de levantar-se. Porém, Sukeena puxou-a de volta para o banco.
- Não se debata - ordenou Sukeena - ou serei obrigada cortá-la. Sua face primeiro, de modo que não seja mais linda. Depois, se ainda não obedecer, mandarei esta lâmina através de seu coração nojento e demoníaco.
Katinka olhou para baixo e, pela primeira vez, viu a lâmina que Sukeena apontava a seu lado. Aquela adaga fora um presente de um dos amantes de Katinka, e ela sabia o quanto era afiada sua esguia lâmina. Sukeena a roubara do quarto de vestir de Katinka.
- Está louca? - Katinka empalideceu de terror e tentou se esquivar da ponta de agulha.
- Sim. Louca o bastante para matá-la e sentir prazer nisso. - Sukeena comprimiu o punhal contra o lado da costela da patroa, e Katinka gritou. Os cavalos empinaram as orelhas. - Se gritar de novo, arrancarei seu sangue - avisou Sukeena. -Agora, contenha a língua e escute enquanto lhe digo o que tem de fazer.
- Eu a entregarei a João Lento e rirei quando ele lhe arrancar as entranhas - esbravejou Katinka, porém sua voz saiu trémula e havia terror em seus olhos.
- Você jamais rirá de novo, a menos que me obedeça. Este punhal cuidará disso - e Sukeena espetou Katinka de novo, com força bastante para romper pano e pele, tanto que uma mancha de sangue do tamanho de um guinéu de prata apareceu no corpete.
- Por favor! - choramingou Katinka. - Por favor, Sukeena, farei o que disser. Por favor, não me machuque de novo. Você disse que me amava.
- E menti - sibilou Sukeena para ela. - Menti pelo bem de meu irmão. Eu a detesto. Você nunca saberá a força de meu ódio. Abomino o toque de suas mãos. Sinto-me revoltada com cada coisa nojenta e asquerosa que me forçou a fazer. Portanto, não espere em troca nenhum amor de minha parte. Eu a esmagarei com tão pouca pena quanto se estivesse tentando livrar meus cabelos de piolhos.
Katinka viu a morte naqueles olhos e teve medo, um medo enorme como raramente tivera em toda a vida.
- Farei conforme me disser - murmurou, e Sukeena instruiu-a num tom duro e baixo que era mais ameaçador que qualquer grito ou vociferação.
Conforme Aboli dirigia a carruagem pelos portões do castelo, o alvoroço usual de atividade saudou sua chegada. A única sentinela postou-se em atitude de prontidão e apresentou o mosquete, Aboli conduziu os cinzentos e levou a carruagem até a frente dos escritórios da companhia. O capitão da guarda veio depressa da armaria afivelando apressado seu cinto da espada. Era um jovem subalterno recém-chegado da Holanda, e fora pego de surpresa pela chegada inesperada da esposa do governador.
- Pelos cornos do diabo! - resmungou para si mesmo. - Por que a cadela escolheu hoje para chegar, quando metade de meus homens está doente como cães?
Olhou ansioso para o único guarda à porta dos escritórios da companhia e viu que a face do homem ainda se tingia de um pálido esverdeado. Depois, percebeu que a esposa do governador o chamava do banco da carruagem. Saiu numa corrida pelo pátio, endireitando o quepe e apertando a tira sob o queixo ao se aproximar. Chegou à carruagem e saudou Katinka:
- Bom dia, Mevrouw. Posso ajudá-la a descer?
A esposa do governador tinha uma expressão tensa e nervosa, e sua voz saiu aguda e ofegante. Instantaneamente, o subalterno alarmou-se.
- Alguma coisa está errada, Mevrouw?
- Sim, algo está muito errado. Chame meu marido!
- Quer ir até seu escritório?
- Não. Ficarei aqui na carruagem. Vá até ele neste instante e diga-lhe que precisa vir imediatamente. É um assunto de extrema importância. De vida e morte! Vá! Depressa!
O capitão pareceu espantado e se inclinou rapidamente, para depois subir os degraus, dois de cada vez, e disparar pelas portas duplas até os escritórios. Enquanto se afastava, Aboli desceu, foi até as alcofas na traseira da carruagem e abriu a tampa. Então olhou ao redor, pelo pátio.
Havia um guarda nos portões e outro no topo da escadaria, porém, como sempre, a mecha de queima lenta em seus mosquetes estava apagada. Não havia sentinela postada nas portas da armaria, contudo, de onde estava, ele podia ver pela janela que três homens estavam na sala de guarda. Cada um dos cinco supervisores no pátio carregava espadas, assim como o chicotes e varas. Hugo Barnard estava ao fundo do pátio e tinha ambos os cães nas correias. Passava um sermão na turma de condenados comuns que se postava nas pedras de pavimentação ao longo do pé da muralha leste. Aqueles outros condenados que não faziam parte da tripulação do Resolução poderiam ser um perigo quando houvesse a tentativa de fuga. Aproximadamente duzentos trabalhavam nas muralhas, a escória multirracial da humanidade. Poderiam facilmente dificultar a tentativa de resgate bloqueando a rota de fuga ou mesmo ao tentar se juntar à tripulação do Resolução e rodear a carruagem quando percebessem o que estava acontecendo.
Lidaremos com isso oportunamente, pensou Aboli, nervoso, e voltou a plena atenção para os guardas e supervisores armados que eram a ameaça principal. Com Barnard e sua turma, havia dez homens armados à vista, porém qualquer grito de alerta traria outros vinte ou trinta soldados apressados para fora das barracas e pelo pátio. O negócio todo poderia fugir do controle rapidamente.
Ergueu os olhos para encontrar Hal e Daniel Grande a observá-lo do andaime. Hal já tinha a corda do pórtico na mão, a ponta enrolada em torno do pulso. Ned Tyler e Billy Rogers estavam na bancada mais baixa, e os dois pássaros, Tentilhão e Andorinha, trabalhavam perto de Althuda, no pátio. Todos fingiam cumprir suas tarefas, porém, sub-repticiamente, olhavam para Aboli.
Aboli estendeu a mão para a alcofa e soltou o barbante que prendia o tapete enrolado de seda. Abriu uma aba dele e, revelou as três cimitarras mongóis e a faca kukri que escolhera para si mesmo. Sabia que, daquela posição vantajosa, Hal e Daniel Grande poderiam ver dentro da alcofa. Então, recostou-se imóvel e sem expressão na roda de trás da carruagem.
De súbito, o governador irrompeu sem chapéu e em mangas de camisa pelas portas duplas ao topo da escadaria e desceu numa corrida cambaleante e desajeitada.
- O que é, Mevrouw? - gritou, aflito, para a esposa, quando estava a meio caminho. - Disseram que mandou me chamar e que é um assunto de vida e morte.
- Depressa! - exclamou ela, chorosa. - Estou no mais terrível apuro.
Ele chegou à porta da carruagem a ofegar pesadamente.
- Diga-me o que a aflige, Mevrouw - gaguejou.
Aboli aproximou-se por detrás dele e enganchou o braço forte em torno do seu pescoço, apertando-o. Van de Velde começou a se debater. Com toda a sua obesidade, era um homem vigoroso, e mesmo Aboli teve dificuldade em segurá-lo.
- Em nome do diabo, o que está fazendo? - vociferou van de Velde, ultrajado.
Aboli colocou a lâmina do kukri em sua garganta. Quando van de Velde sentiu o toque frio do aço e o picar da ponta da lâmina, seus esforços para se livrar cessaram.
- Cortarei sua garganta como o porco glutão que é - murmurou-lhe Aboli ao ouvido -, e Sukeena tem uma adaga no coração de sua esposa. Diga a seus soldados para ficarem onde estão e jogarem fora as armas.
O capitão avançara ao grito de van de Velde, e sua espada estava a meio caminho para fora da bainha quando correu escada abaixo.
- Pare! - gritou-lhe, van de Velde aterrorizado. - Não se mova, seu tolo. Você me matará. - O soldado estacou e estremeceu, confuso.
Aboli aumentou o aperto em torno da garganta do governador.
- Diga-lhe que jogue fora a espada.
- Jogue fora sua espada! - ganiu van de Velde. - Faça o que ele diz. Não vê que ele tem uma faca em meu pescoço?
O subalterno deixou cair a espada, que retiniu nos degraus.
Quinze metros acima do pátio, Hal pulou do andaime, pendurado na corda passada pelo pórtico, e Daniel Grande atracou-se à outra ponta, freando a velocidade de sua queda. A roldana guinchou conforme ele descia e aterrissava no calçamento, em pleno equilíbrio. Ele saltou para a traseira da carruagem e pegou uma das cimitarras enfeitadas de jóias. Com o próximo salto, estava a meio caminho dos degraus, onde se inclinou e agarrou a espada do capitão na mão esquerda. Colocou a ponta sob o queixo do oficial e disse:
- Ordene a seus homens para jogarem fora suas armas!
- Baixem as armas, todos vocês! - berrou o capitão. - Se algum dentre vocês trouxer algum dano ao governador ou sua esposa, pagará por isso com a própria vida.
As sentinelas obedeceram, num burburinho, deixando cair os mosquetes e armas adicionais nas pedras do pavimento.
- Vocês também! - gritou para van de Velde os supervisores, e, com relutância, eles obedeceram.
Contudo, naquele momento Hugo Barnard estava oculto por uma pilha de blocos de alvenaria. Avançou silencioso para dentro da soleira das cozinhas, puxando os dois cães com ele, e agachou-se ali, à espera de uma oportunidade.
Do andaime, saltaram os outros marinheiros. Andorinha e Tentilhão, da bancada mais baixa, foram os primeiros a chegar ao pátio; Ned, Daniel Grande e Billy Rogers estavam segundos atrás deles.
- Vamos, Althuda! - gritou Hal, e Althuda jogou a marreta e o cinzel e correu para se juntar a eles. - Pegue! - Hal lançou a cimitarra enfeitada de pedras preciosas numa parábola alta e reluzente, e Althuda estendeu a mão e pegou-a pelo punho, apanhando-a com destreza no ar. Hal ficou a imaginar que classe de espadachim era ele. Como pescador, era improvável que tivesse muita prática.
Terei de protegê-lo se houver uma luta, pensou, e olhou ao redor de si rapidamente. Viu Daniel tirando as outras armas da alcofa na traseira da carruagem. As cimitarras gémeas pareciam brinquedos em seu punho enorme. Ele jogou uma para Ned Tyler e guardou a outra para si mesmo enquanto corria para se juntar a Hal.
Hal pegou uma espada que uma sentinela tinha deixado cair e jo-gou-a para Daniel Grande.
- Esta faz mais o seu estilo, mestre Danny - berrou, e Daniel sorriu, mostrando os dentes pretos quebrados, ao pegar a pesada arma de infantaria e fazê-la assobiar no ar enquanto cortava à esquerda e à direita.
- Doce Jesus, é bom ter uma lâmina de verdade em minha mão outra vez! - exultou, e jogou a leve cimitarra para Wally Tentilhão. - Uma ferramenta para um homem, e um brinquedo para um garoto.
- Aboli, mantenha um aperto firme nesse grande porco. Corte fora suas orelhas se ele tentar alguma manha - berrou Hal. - O resto de vocês me siga. - Desceu a escada e correu rumo às portas da armaria, com Daniel Grande e os outros em seus calcanhares. Althuda ia segui-lo também, porém Hal o impediu. - Você não. Cuide de Sukeena!
Enquanto Althuda corria de volta e eles atravessavam o pátio, Hal gritou para Daniel:
- Onde está Barnard?
- O bastardo assassino estava aqui um momento atrás, porém não o vejo agora.
- Mantenha um bom vigia para suas velas de mastro. Ainda teremos problemas com aquele suíno.
Hal irrompeu dentro da armaria. Os três homens na sala de guarda estavam curvados no banco: dois dormiam, e o terceiro cambaleava nos pés, num aturdimento. Antes que ele pudesse recobrar o bom senso, a Ponta da espada de Hal estava comprimida em seu peito.
- Fique onde está, ou verei a cor de seu fígado. - O homem afun-dou-se no assento. - Aqui, Ned! - chamou-o Hal enquanto Ned se apressava. - Brinque de ama-seca com esses bebés - e deixou-os a cargo dele enquanto corria atrás de Daniel e os outros marujos.
Daniel investiu contra uma pesada porta de teca ao fim da passagem e arrebentou-a. Nunca antes tinham tido a oportunidade de olhar dentro da armaria, porém agora, num relance, Hal viu que tudo estava arrumado de uma maneira limpa e ordenada. As armas ficavam em estantes ao longo das paredes, e as barricas de pólvora armazenadas no teto, ao fundo.
- Pegue as armas e traga uma barrica de pólvora para cada - ordenou, e correu pelas longas prateleiras de espadas de infantaria, polidas, reluzentes e aguçadas até uma ponta brilhante. Mais além, havia as estantes de mosquetes e pistolas. Hal enfiou um par de pistolas na corda que lhe servia de cinto. - Lembrem-se, terão de carregar tudo que pegarem com vocês para as montanhas; portanto, não sejam gananciosos - avisou, e pegou uma barrica de vinte e cinco quilos de pólvora da pirâmide ao fundo da armaria, que ergueu para o ombro. Então, voltou-se para a porta. - É o bastante, camaradas. Vamos cair fora! Daniel, deixe um rastilho de pólvora conforme sair!
Daniel usou o cano de um mosquete para arrancar os tampões de duas das barricas de pólvora. Ao pé da pirâmide de barris, despejou um monte de pólvora negra.
- Esse lote irá explodir com um bum todo-poderoso! - Sorriu, ao recuar em direção à porta, a outra barrica sob o braço, a espalhar uma longa trilha escura atrás de si.
Com os fardos, arrastaram-se para o sol. Hal foi o último a sair.
- Dê o fora daí, Ned! - ordenou, e estendeu-lhe as armas que carregava conforme Ned corria para a porta. Então, voltou-se para os três soldados holandeses que se encolhiam no banco. Ned os desarmara, suas armas estavam jogadas a um canto da sala de guarda. - Vou explodir este lugar e transformá-lo num inferno - disse a eles em holandês. - Corram para os portões, e, se tiverem juízo, continuem correndo sem olhar para trás. Vão!
Eles saltaram de pé e, na pressa para se safar, entalaram-se na porta. Espremeram-se e lutaram um contra o outro até que irromperam para o pátio e dispararam por ele.
- Olhem lá! - berraram, enquanto corriam para os portões. - Vão explodir o armazém de pólvora!
Os carcereiros e os outros condenados comuns, que, até aquele momento, tinham ficado a olhar boquiabertos para a carruagem e para o governador refém sob o aperto de Aboli, agora voltavam as cabeças em direção à armaria e fitavam o lugar com um ar de surpresa aparvalhada.
Hal apareceu na soleira da porta da armaria com uma espada em uma das mãos e uma tocha fumegante, que apanhara de seu suporte, na outra.
- Vou contar até dez - berrou Hal - e depois vou incendiar o depósito de pólvora! - Em seus trapos, e com a enorme barba preta emaranhada e os olhos selvagens, parecia um louco.
Um murmúrio de horror e medo subiu de cada homem no pátio. Um dos condenados jogou a marreta e seguiu os soldados em fuga numa corrida para o portão. Imediatamente o pandemônio se instalou entre todos. Duzentos condenados e soldados investiram para os portões em busca de segurança.
Van de Velde debateu-se sob o aperto de Aboli e esgoelou:
- Solte-me! O idiota vai explodir tudo até a perdição. Solte-me! Corra! Corra!
Seus gritos juntaram-se ao pânico, e, em questão de um puxar da respiração e da contenção de um longo fôlego, o pátio estava deserto, exceto pelo grupo de marujos em torno da carruagem e Hal. Katinka se pôs a berrar e soluçar histericamente, mas Sukeena esbofeteou-a com força na face.
- Fique quieta, sua tola afetada, ou lhe darei uma boa razão para se debulhar em lágrimas.
E Katinka engoliu de volta a aflição.
- Aboli, leve van de Velde para dentro da carruagem! Ele e sua esposa virão conosco - exclamou Hal, e Aboli ergueu o governador pelo pescoço e empurrou-o por cima da porta. Ele aterrissou num salto desajeitado no assoalho do veículo e ficou a se debater ali, feito um inseto num alfinete. - Althuda, ponha a ponta da espada no coração desse porco e esteja pronto para matá-lo quando eu lhe der a ordem.
- Estou ansioso por isso! - gritou Althuda. Inclinou-se e arrastou van de Velde para cima e empurrou-o para o assento, de frente para a esposa. - Onde devo espetá-lo? - perguntou a ele. - Em seu ventre gordo, talvez?
Van de Velde perdera sua peruca na confusão, e sua expressão era abjeta, cada centímetro de sua compleição enorme parecendo tremer de desespero.
- Não me mate. Posso protegê-lo - implorou, e Katinka começou a chorar e gemer de novo.
Desta vez, Sukeena apertou-a simplesmente um pouco mais forte, levou a ponta do punhal até sua garganta e murmurou:
- Não precisamos de você, agora que temos o governador. Não importa nem um pouco se eu a matar.
Katinka engoliu o próximo soluço.
- Daniel, carregue a pólvora e as armas dispersas - ordenou Hal e eles empilharam tudo dentro da carruagem. O veículo elegante não era uma carroça, e cedeu sob o peso em sua suspensão delicada de molas.
- É o suficiente! Não cabe mais nada. - Aboli impediu-os de jogar as últimas poucas barricas de pólvora a bordo.
- Um homem para cada cavalo! - comandou Hal. - Não tentem abordá-los, camaradas. Não são seus cavaleiros. Cairão e quebrarão os pescoços, o que não importará muito, porém seu peso matará os pobres animais antes que tenham andado um quilómetro, e isso importará. Segurem os arreios e deixem que eles os reboquem. - Eles correram para seus lugares em torno da junta de cavalos da carruagem e se agarraram aos arreios. - Deixem espaço para mim na proa de bombordo, camaradas - gritou ele, e mesmo em sua ansiedade e agitação, Sukeena riu alto do uso daqueles termos náuticos. Seus homens compreendem, pensou, e deixaram o cavalo líder do lado de fora para ele.
Aboli saltou para seu lugar no assento do cocheiro, enquanto, no corpo da carruagem, Althuda ameaçava van de Velde, e Sukeena comprimia o punhal contra a garganta branca de Katinka.
Aboli incitou a junta e gritou:
- Vamos, Gundwane. É tempo de partir. A guarnição acordará a qualquer momento agora.
Enquanto dizia isso, ouviram o estampido de um tiro de pistola, e um oficial da guarnição correu da soleira da porta de uma das barracas pelo pátio, sacudindo a pistola fumegante e gritando a seus homens para que entrassem em formação com ele:
- As armas! Comigo a Primeira Companhia!
Hal parou apenas um momento para acender a mecha de queima lenta de uma de suas pistolas com a tocha fumegante; em seguida, jogou a tocha na trilha de pólvora e esperou para ver a faísca se inflamar e pegar fogo. A chama fumarenta começou a comer o rastilho de volta para as portas da armaria, para dentro do corredor que conduzia ao depósito principal de pólvora. Ele então saltou os degraus para o pátio e correu para encontrar a carruagem sobrecarregada enquanto Aboli conduzia os cavalos num círculo e se alinhava aos portões.
Estava quase lá, erguendo a mão para segurar a brida do garanhão cinzento da liderança, quando de repente Aboli gritou, agitado:
- Gundwane, atrás de você! Cuidado!
Hugo Barnard aparecera na soleira da porta onde ele e seus cães tinham buscado abrigo ao primeiro sinal de problemas. Agora, soltava ambos os cachorros das peias, e com gritos selvagens de encorajamento, mandava-os em perseguição a Hal.
- Vat Bom! Peguem-no! - berrava, e os animais correram num ímpeto silencioso, lado a lado, numa velocidade incrível, cobrindo a extensão do pátio como uma dupla de galgos perseguindo uma lebre.
O aviso de Aboli dera a Hal apenas o tempo suficiente para voltar-se e encará-los. Os cães trabalhavam em equipe, e um saltou para sua face, enquanto o outro lhe atacava as pernas. Hal desviou-se do primeiro enquanto estava em pleno ar e mandou a ponta da espada para a base da garganta negra, onde esta se juntava com as espáduas. O peso em vôo do corpo do cão impeliu a lâmina para dentro em todo o seu comprimento, transfixando o animal claramente pelo coração e pulmão e por dentro das entranhas. Mesmo morto, o impulso do salto empurrou-o para se chocar contra o peito de Hal, e este cambaleou para trás.
O segundo cachorro rastejou no chão e, enquanto Hal ainda estava desequilibrado, enterrou os dentes em sua canela esquerda, logo abaixo do joelho, sacudindo-o de um lado para outro. O ombro de Hal chocou-se contra o pavimento de pedra, porém, quando ele tentou se levantar, o animal ainda o tinha em suas mandíbulas e puxou-o com as quatro patas, fazendo-o se esparramar no chão de novo. Hal sentiu que os dentes atingiam o osso de sua perna.
- Meus cães! - berrou Barnard. - Está machucando meus queridos. - Com a espada desembainhada, correu para intervir.
De novo, Hal tentou se levantar e outra vez o cachorro o puxou para o chão. Barnard aproximou-se e ergueu a espada a toda altura acima da cabeça desprotegida de Hal. Hal viu o golpe descendo e rolou de lado. A lâmina atingiu as pedras do calçamento ao lado de sua orelha numa chuva de fagulhas.
- Seu bastardo! - rosnou Barnard, e ergueu a espada novamente. Aboli deu uma guinada na junta de cavalos e conduziu-os deliberadamente para cima de Barnard. As costas do supervisor voltavam-se para a carruagem que se aproximava, e ele estava tão absorto em sua disputa com Hal que não a viu chegando. Quando estava prestes a desferir um golpe sobre a cabeça de Hal novamente, a roda traseira pegou-o num choque de raspão no quadril e o mandou a cambalear para o lado.
Com um violento esforço, Hal ergueu-se para uma posição sentada e, antes que o cão o pudesse arrastar outra vez, investiu contra a base do pescoço do animal, dirigindo a lâmina para um ângulo entre as espáduas, tal como o cangote de um touro, e encontrou o coração. O cachorro deixou escapar um urro agonizante e soltou o aperto em sua perna, cambaleou ao redor num círculo e depois desabou sobre o calçamento, a chutar o ar debilmente.
Hal levantou-se sobre os pés logo quando Barnard investia contra ele.
- Você matou minhas belezinhas!
Estava enlouquecido de tristeza, e avançou contra Hal num ímpeto selvagem e descontrolado. Hal desviou-se sem esforço para o lado e deixou que o alfanje passasse a centímetros de sua cabeça.
- Seu pirata nojento, vou arrebentá-lo! - Barnard reuniu forças e avançou outra vez.
Com a mesma aparente facilidade, Hal desviou a próxima investida e murmurou, baixinho:
- Lembra-se do que você e seus cães fizeram a Oliver?
Fintou para a esquerda, forçando Barnard a abrir a guarda na linha média, e depois, como um relâmpago, deu uma estocada certeira. A lâmina pegou Barnard logo sob o esterno e saiu pela metade do comprimento para fora de suas costas. Ele deixou cair a espada e caiu de joelhos.
- O débito para com Oliver está pago! - disse Hal, colocando o pé descalço sobre o peito de Barnard, e, contra a resistência da lâmina, puxou a espada para fora. Barnard caiu de bruços e ficou ao lado da carcaça de seu cão agonizante.
- Vamos, Gundwane! - Aboli lutava para controlar a junta de cinzentos, pois os gritos e o cheiro de sangue os tinha deixado em pânico. - O depósito!
Fazia apenas umas poucas frações de minuto desde que Hal acendera o rastilho de pólvora, porém, ao olhar naquela direção, ele viu nuvens de acre fumaça azul a sair aos borbotões pela porta da armaria.
- Depressa, Gundwane! - chamou Sukeena, suavemente. - Oh, por favor, depressa!
Sua voz estava tão cheia de preocupação com a segurança de Hal, que ele se sentiu espicaçado. Mesmo naquelas terríveis condições, Hal se deu conta de que era a primeira vez que a ouvia dizer seu apelido. Avançou em frente. O cão mordera fundo sua perna, porém seus dentes não tinham secionado nervos ou tendões, pois Hal descobriu que, se ignorasse a dor, ainda poderia correr. Saltou e agarrou a brida do cavalo líder. Este jogou a cabeça e revirou os olhos, porém Hal pendurou-se e Aboli pôs a junta no rumo.
A carruagem passou a sacudir e bater sob o arco dos portões, pela ponte, sobre o fosso e para o campo. De súbito, por trás deles, veio uma explosão ensurdecedora, e uma onda de choque de ar deslocado os varreu como uma borrasca tropical. Os cavalos empinaram e dançavam para trás e para a frente, aterrorizados, e Hal foi erguido dos pés. Agarrou-se desesperadamente às travessas e olhou para trás. Uma torre de fumaça da cor de chumbo subia rapidamente do pátio interior do castelo, a girar e se revolver sobre si mesma, junto com chamas escuras e fragmentos de pedras e coisas destroçadas. No meio daquela pluma de destruição, um único corpo humano se revirava a trinta metros no céu.
- Por Sir Hal e o Rei Carlos! - rugiu Daniel Grande, e os outros marujos ergueram um viva para si mesmos, excitados com a fuga.
No entanto, quando Hal olhara para trás, pudera ver que as maciças muralhas exteriores do castelo estavam intocadas pela detonação. As barracas tinha sido construídas do mesmo material pesado e quase com certeza teriam resistido à explosão. Duas centenas de homens estavam alojados ali, três companhias de gibões-verdes, e, mesmo agora, deviam estar provavelmente recuperando o senso depois do estouro. Logo viriam se arrojar pelos portões do castelo em plena perseguição - e onde, ele imaginou, estaria o coronel Cornélius Schreuder?
A carruagem sacolejava pelo campo num galope. Adiante, corria uma multidão de condenados fugitivos. Estavam dispersos em várias direções, alguns a pular sobre os muros de pedra dos jardins da companhia e rumando para a montanha, outros correndo para a praia à procura de um bote no qual pudessem tornar viável sua fuga. Fora do campo, havia uns poucos burgueses e escravos domésticos aparvalhados que estavam fora de casa naquela hora da manhã. Olhavam estupidamente para a maré de fugitivos, em seguida para a nuvem revoluta de fumaça que envolvia o castelo e depois para a visão até mais extraordinária da carruagem do governador que avançava, afestoada com uma mistura heterogénea de desesperados piratas e fora-da-lei esfarrapados, a gritar como loucos e brandindo suas armas. Conforme o veículo avançava sobre eles começaram a esgoelar freneticamente:
- Os piratas escaparam do castelo. Corram! Corram!
Por fim, recobraram-se do susto e espalharam o alerta. O grito era assumido e passado adiante pelas cabanas e casebres da povoação. Hal podia ver os burgueses e seus escravos correndo para escapar da tripulação de piratas sedentos de sangue. Uma ou duas almas corajosas tinham se armado, e havia um incoerente espocar de fogo de mosquete vindo de algumas das janelas dos chalés, porém o alcance era longo, a mira apressada e incerta. Hal nem mesmo ouviu o zunir de balas, e nenhum dos homens ou cavalos foi atingido. A carruagem passou pelas primeiras edificações, seguindo a única estrada que contornava a praia curva da baía da Mesa, e rumou para o desconhecido.
Hal olhou para trás, para Aboli.
- Diminua a marcha, maldição! Vai estourar os cavalos antes que tenhamos passado a cidade.
Aboli inclinou-se e puxou os cavalos para trás.
- Oa, Régio! Devagar, Nuvem!
Mas a junta seguiu em disparada e quase chegava aos arredores da povoação antes que Aboli fosse capaz de reduzir o passo dos animais a um trote. Estavam todos suados e ofegantes do galope, porém longe de se verem desgastados.
Tão logo os viu sob controle, Hal soltou do arreio e começou a correr ao lado da carruagem.
- Althuda - chamou -, em vez de se sentar aí com um cavalheiro num piquenique de domingo, certifique-se de que todos os mosquetes estão munidos e carregados. Aqui! - Passou-lhe a pistola com a mecha incandescente. - Use isso para acender a mecha de todas as armas. Logo estarão sobre nós. - Então, olhou de Althuda para a irmã. - Ainda não fomos apresentados. Seu criado, Henry Courtney. - Sorriu para ela, e Sukeena riu deliciada com seus modos formais.
- Bom dia, Gundwane. Eu o conheço bem. Aboli me falou sobre o jovem pirata corajoso que você é. - Então, ficou séria. - Está ferido. Eu deveria ver sua perna.
- Não é nada que não possa esperar até mais tarde - assegurou-lhe ele.
- A mordida de um cão pode gangrenar rapidamente se ficar sem tratamento - disse ela.
- Mais tarde! - repetiu ele, e voltou-se para Aboli.
- Aboli, conhece a estrada até o limite da colónia?
- Existe apenas uma estrada, Gundwane. Temos de ir direto pela vila, contornar o pântano e depois seguir pela planície arenosa em direção às montanhas. - Apontou. - A cerca de amendoeiras amargas está oito quilómetros além do pântano.
Olhando para além da povoação, Hal já podia ver o pântano e a lagoa adiante, moitas de juncos e água aberta sobre a qual pairavam bandos de aves aquáticas. Tinha ouvido dizer que crocodilos e hipopótamos espreitavam nas profundezas da lagoa.
- Althuda, haverá algum soldado em nosso caminho? - pergun-tou-lhe Hal.
- Normalmente há guardas na primeira ponte e uma patrulha na cerca de amendoeiras amargas, pronta para atirar em qualquer hotentote que tente entrar - retrucou Althuda, sem erguer os olhos do mosquete que estava carregando.
Então, Sukeena falou:
- Não haverá piquetes ou patrulhas hoje. Ao amanhecer, fiz uma inspeção na encruzilhada. Nenhum soldado veio para assumir seu posto. Estão todos muito ocupados cuidando das barrigas doloridas. - Riu alegremente, tão excitada e ansiosa como o resto deles. De súbito, saltou para o corpo da carruagem e gritou, em sua voz cantante: - Livre! Pela primeira vez na minha vida, estou livre! - Suas tranças tinham caído e se soltaram. Seus cabelos esvoaçavam atrás da cabeça. Seus olhos faiscavam, e ela estava tão linda que condensava os sonhos de cada um dos marujos esfarrapados.
Eles a brindaram com um viva.
- Você, e nós também, querida!
Era para Hal que ela olhava com aqueles olhos sorridentes. Conforme passavam pelos prédios da povoação, os gritos de alerta os antecediam:
- Cuidado! Os piratas escaparam. Os piratas estão furiosos!
Os bons cidadãos de Boa Esperança se dispersavam diante deles. Mães corriam para a rua a fim de pegar seus rebentos e puxá-los para dentro de casa, correndo as tramelas das portas e cerrando as venezianas.
- Estamos a salvo agora. Vocês escaparam. Por favor, não vai me libertar, Sir Henry? - Katinka se recobrara do choque o suficiente para implorar por sua vida. - Juro que jamais tive intenção de feri-lo. Eu o salvei do patíbulo. Salvei Althuda também. Farei qualquer coisa que disse, Sir Henry. Por favor, só me deixe livre - choramingou, agarrada ao lado da carruagem.
- Pode me chamar de Sir agora e me fazer essas declarações de boa vontade, porém elas seriam úteis a meu pai enquanto ele estava a caminho do patíbulo. - A expressão de Hal era tão fria e sem remorso, que Katinka encolheu-se e caiu para trás no banco, ao lado de Sukeena, soluçando como se seu coração estivesse partido.
Os marujos que corriam com Hal gritaram seu escárnio e ódio por ela.
- Você nos queria todos pendurados, sua vagabunda pintada, e vamos dá-la de comer aos leões lá fora nos ermos - tripudiou Billy Rogers.
Katinka soluçou ainda mais tristemente e cobriu a face com as mãos.
- Eu nunca quis fazer mal a qualquer um de vocês. Por favor, deixem-me ir.
A carruagem rolou velozmente pela rua vazia, e as últimas poucas cabanas e casebres da povoação eram tudo que jazia adiante quando Althuda se ergueu de seu assento e apontou para trás, para a estrada coberta de cascalhos rumo ao passeio distante.
- Cavaleiros vindo num galope! - gritou.
- Tão depressa? - resmungou, Daniel Grande cobrindo os olhos para protegê-los do sol. - Não esperava uma perseguição ainda. Eles têm cavalaria para mandar atrás de nós?
- Não tenham medo disso, camaradas - reconfortou-os Aboli. - Não há mais que vinte cavalos em toda a colónia, e nós temos seis deles.
- Aboli tem razão. É apenas um cavaleiro! - gritou Wally Tentilhão. O cavalgante deixava uma pálida fita de poeira no ar atrás de si,
deitado sobre o pescoço do cavalo enquanto conduzia o animal a toda velocidade, usando o chicote na mão direita para fustigá-lo para a frente sem clemência. Estava ainda distante, porém Hal o reconheceu pela faixa que flutuava atrás dele com o galope do cavalo.
- Pela doce Maria, é Schreuder! Sabia que ele iria se juntar a nós antes que se passasse muito tempo. - Seu queixo cerrou-se de antecipação. - O idiota de cabeça quente vem sozinho para nos enfrentar. Falta-lhe cérebro, porém tem coragem até as entranhas.
Mesmo de seu banco, Aboli podia ver o que Hal pretendia pelo estreitar de seus olhos e a maneira como mudava a empunhadura na espada.
- Não pense em voltar para trás para tirar satisfação, Gundwane! - gritou Aboli, com firmeza. - Colocará cada alma aqui em risco com qualquer atraso.
- Sei que pensa que eu não sou páreo para Schreuder, mas as coisas mudaram, Aboli. Posso batê-lo agora. Estou certo disso com todo o meu coração.
Aboli julgou que ele bem poderia estar com a razão, pois não era mais um menino. Os meses nas muralhas o tinham endurecido, e Aboli o vira equiparar forças com Daniel Grande.
- Deixe-me aqui para cuidar desse negócio, homem a homem, e eu os seguirei mais tarde - gritou Hal.
- Não, Sir Hal! - berrou Daniel Grande. - Talvez pudesse suplantá-lo, mas não com a perna mordida até o osso. Deixe a rixa com o holandês para outra ocasião. Precisamos de você conosco. Haverá uma centena de gibões-verdes seguindo logo atrás dele.
- Não - concordaram Wally e Stan. - Fique conosco, capitão.
- Pusemos nossa confiança em você - exclamou Ned Tyler. - Podemos jamais encontrar nosso caminho sem um navegador. Não pode desertar de nós agora.
Hal hesitou, ainda a olhar fuzilante para trás, para o cavaleiro que se aproximava rapidamente. Então seus olhos se desviaram para a face da jovem na carruagem. Sukeena o encarava, seus enormes olhos escuros cheios de súplicas.
- Você está seriamente ferido. Olhe para sua perna. - Inclinou-se por sobre a porta da carruagem, de maneira que estava muito perto, e falava tão baixinho que ele apenas conseguia adivinhar as palavras acima do barulho de homens, rodas e cavalos. - Fique conosco, Gundwane.
Ele olhou para baixo, para o sangue e a pálida linfa que escorria das profundas feridas. Enquanto Hal titubeava, Daniel Grande correu para trás e saltou no degrau da carruagem.
- Tomarei conta daquele sujeito - disse, e tirou o mosquete carregado das mãos de Althuda. A segurá-lo, saltou para o pó da estrada e se postou ali, verificando a mecha e o estopim na caçoleta. Não se afobou enquanto a carruagem trotava para longe e o coronel Schreuder galopava para encontrá-lo.
A despeito de todas as súplicas e avisos, Hal correu para intervir.
- Daniel, não mate o idiota. - Queria explicar que ele e Schreuder tinham um destino a resolver juntos. Era uma questão de honra de cavalaria na qual nenhum outro poderia interferir, porém não havia tempo para vocalizar uma noção tão romântica.
Schreuder galopou até estar ao alcance dos ouvidos e então se ergueu nos estribos.
- Katinka! - berrou. - Não tenha medo, estou vindo para salvá-la, minha querida. Eu jamais deixaria esses vilões a levarem.
Pegou a pistola de cano em sino da faixa da cintura e ergueu a mecha ao vento para que a faísca se acendesse. Depois, deitou-se ao longo do pescoço do cavalo com o braço da pistola esticado.
- Fora de meu caminho, estúpido! - rugiu para Daniel, e disparou. Seu braço foi lançado ao alto pela descarga, e a pluma de fumaça azulada serpeou em torno de sua cabeça, mas a bala voou ao largo, atingindo a terra a um passo da perna direita de Daniel, cobrindo-o com uma chuva de pedriscos.
Schreuder jogou de lado a pistola e sacou a espada de Netuno da bainha a seu lado. O trabalho em relevo de ouro na lâmina luziu quando a empunhou.
- Vou abrir-lhe o crânio até os dentes! - vociferou, e ergueu a espada.
Daniel caiu sobre um joelho e deixou o cavalo do coronel aproximar-se nas últimas poucas passadas.
Muito perto, pensou Hal. Perto demais. Se o mosquete negar fogo, Danny é um homem morto. Daniel, porém, mantinha a mira com firmeza e apertou o gatilho. Por um instante, Hal julgou que seu pior medo tinha se realizado, porém, então, com um ruído agudo, numa baforada de chama e fumaça prateada, o mosquete disparou.
Talvez Daniel tivesse ouvido o grito de Hal, ou talvez o cavalo fosse um alvo maior e mais certo que o cavaleiro em seu lombo, porém ele havia mirado para o peito largo e suado do animal, e a pesada bala de chumbo voou para o alvo. Ao impacto, a montaria de Schreuder desabou sob ele. Ele foi jogado por sobre sua cabeça, aterrissando de face e ombro no chão.
O cavalo debateu-se e chutou, caído de costas, jogando o pescoço de um lado para outro enquanto o sangue de seu coração era bombeado pelo ferimento no peito. Então, sua cabeça caiu para trás na terra, com um baque, e, com um último resfolegar, ele ficou imóvel.
Schreuder jazia inanimado na estrada batida pelo sol, e Hal sentiu um medo momentâneo de que seu pescoço se tivesse quebrado. Quase correu para ajudá-lo, mas Schreuder fez uns poucos movimentos desconjuntados, e Hal estacou. A carruagem se afastava rapidamente, e os outros gritavam para ele:
- Volte, Gundwane!
- Deixe o bastardo, Sir Henry.
Daniel levantou e agarrou Hal pelo braço.
- Ele não está morto, porém nós logo estaremos se ficarmos aparvalhados aqui por muito tempo - disse, e puxou-o para longe.
Pelos primeiros poucos passos, Hal resistiu e tentou livrar-se da mão de Daniel.
- Não pode terminar assim. Não compreende, Danny?
- Entendo muito bem - resmungou Daniel Grande, e, nisso, Schreuder sentou-se atordoado no meio da estrada. O cascalho lhe arrancara a pele de um lado da face, porém ele tentava ficar de pé, cambaleando e caindo e, em seguida, tentando outra vez.
- Ele está bem - disse Hal, com um alívio que quase o surpreendeu, e permitiu que Daniel o puxasse para longe.
- Sim! - exclamou Daniel, ao se aproximarem da carruagem. - Está bem o bastante para lhe arrancar as bolas da próxima vez que se encontrarem. Não vamos nos livrar desse sujeito assim tão facilmente.
Aboli brecou a carruagem para permitir que eles a alcançassem, e Hal agarrou a brida do cavalo líder e montou-o. Voltou-se para ver Schreuder de pé no meio da estrada, empoeirado e sangrando. Cambaleava atrás da carruagem como um homem com uma garrafa de gim barato na barriga, ainda brandindo a espada.
Afastaram-se dele num rápido trote, e Schreuder desistiu da tentativa de alcançar a carruagem em fuga, começando a gritar impropérios:
- Por Deus, Henry Courtney, irei atrás de você, mesmo que tenha de segui-lo até os próprios portões do inferno. Estou de olho em você, eu o odeio de todo o meu coração.
- Quando vier, traga com você essa espada que roubou de mim - gritou Hal de volta. - Vou rasgá-lo como um leitão não desmamado para o diabo assar. - Seus marujos caíram na risada e enviaram ao coronel um sortimento de gestos obscenos de adeus.
- Katinka! Minha querida! - Schreuder mudou o tom. - Não se desespere. Irei resgatá-la. Juro pelo túmulo de meu pai. Eu a amo com minha própria vida.
Durante todo o tiroteio e fogo de mosquete, van de Velde estivera agachado no chão da carruagem, mas agora se erguia para o assento e encarava a figura batida na estrada.
- Ele está louco delirante? Como se atreve a se dirigir à minha esposa em tais termos odiosos? - Virou-se para Katinka com a face vermelha e as bochechas trémulas. - Mevrouw, espero que não tenha dado motivo a um bobalhão de um soldado para uma tal liberdade.
- Eu lhe asseguro, Mijnheer, o modo de falar daquele homem é um choque maior para mim do que para você. Sinto-me muito ofendida e imploro que o chame às falas seriamente na primeira oportunidade - retrucou Katinka, agarrando-se à porta da carruagem com uma das mãos e ao chapéu com a outra.
- Farei melhor que isso, Mevrouw. Ele estará no primeiro navio de volta para Amsterdã. Não posso permitir uma tal impertinência. Além do mais, ele é responsável pela situação em que estamos agora. Como comandante do castelo, os prisioneiros são responsabilidade dele. Essa fuga se deve à incompetência e abandono dos deveres por parte do coronel. O bastardo não tem o direito de se dirigir a você dessa maneira.
- Oh, sim, ele tem - murmurou Sukeena, docemente. - O coronel Schreuder tem o direito da conquista a seu favor. Sua esposa estava se deitando com ele muitas vezes com as pernas no ar, para que ele a chamasse de querida, ou mesmo de prostituta e vagabunda, se preferisse ser mais honesto.
- Quieta, Sukeena! - sibilou Katinka. - Está fora de si? Lembre-se de seu lugar. Você é uma escrava.
- Não, Mevrouw. Não mais. Uma mulher livre agora, e sua captora; portanto, posso lhe dizer o que me agradar, especialmente se é a verdade. - Sukeena voltou-se para van de Velde. - Sua esposa e o galante coronel pintaram o diabo da forma mais abominável, justificando cada mexerico na colónia. Colocaram em sua cabeça um par de cornos grandes demais até mesmo para seu corpo inchado e balofo.
- Eu a mandarei açoitar! -gorgolejou van de Velde, quase apoplético. - Sua cadela de uma escrava!
- Não, não mandará - disse Althuda, e colocou a ponta da cimitarra contra a barriga pendente do governador. - Em vez disso, vai pedir desculpas por esse insulto à minha irmã.
- Desculpar-me para uma escrava? Nunca! - reagiu van de Velde, num berro, porém, dessa vez, Althuda espetou-o com mais força, e o berro tornou-se um guincho, como o ar escapando da bexiga de um porco.
- Desculpe-se não para uma escrava, mas para uma princesa balinesa nascida livre - corrigiu Althuda. - E depressa.
- Eu lhe peço perdão, senhora - murmurou van de Velde, de dentes cerrados.
- É tão galante, senhor. - Sukeena sorriu para ele.
Van de Velde afundou-se no assento e não disse mais nada, porém cravara os olhos na esposa com um olhar venenoso.
Assim que tinham deixado a povoação para trás, a superfície da estrada se deteriorou. Havia profundas marcas de rodas deixadas pelas carroças da companhia que iam recolher lenha, e a carruagem sacolejava e se inclinava perigosamente. Ao longo da beira da lagoa, a água secara e transformava o caminho em lama e lodo, e, em muitos lugares, os marinheiros foram forçados a empurrar com os ombros as altas rodas traseiras para ajudar os cavalos a arrastar o veículo para a frente. A manhã terminava, quando viram adiante a estrutura da ponte de madeira sobre o primeiro rio.
- Soldados - gritou Aboli. Do alto de seu banco, vislumbrara o reluzir de uma baioneta e o contorno de grandes elmos.
- Apenas quatro - disse Hal. Seus olhos ainda eram os mais agudos de todos. - Não haverão de esperar problemas desta direção.
Ele tinha razão. O cabo da guarda da ponte adiantou-se para encontrá-los, intrigado, porém sem alarme, a espada na bainha e a mecha da pistola apagada. Hal e sua tripulação o desarmaram e a seus homens, tiraram-lhe as calças e os mandaram a correr de volta rumo à colónia com uma descarga de mosquete sobre as cabeças.
Enquanto Aboli levava a carruagem pela ponte e enfrentava a trilha rudimentar, Hal e Ned Tyler foram para debaixo da estrutura de madeira e amarraram uma barrica de pólvora sob a pesada tora do suporte principal. Quando estava segura, Hal usou o cano da pistola para abrir o buraco da barrica, enfiou um pedaço de mecha nele e o acendeu. Ele e Ned subiram de volta para a estrada e correram atrás da carruagem.
A perna de Hal doía demais agora. Estava inchada e latejando, porém ele olhava para trás por sobre o ombro conforme mancava pela areia que afundava até os tornozelos. O centro da ponte de repente explodiu num jorro de lama, água, pranchas e pilastras destroçadas. Os destroços caíram de volta no rio.
- Isso não irá segurar o bom coronel por muito tempo, mas pelo menos ele terá de molhar as calças - resmungou Hal, ao alcançarem a carruagem.
Althuda saltou e disse a ele:
- Tome meu lugar. Precisa descansar essa perna.
- Há pouca coisa errada com minha perna - protestou Hal.
- Mal pode carregar seu peso - disse Sukeena com firmeza, inclinando-se por sobre a porta. - Suba aqui de uma vez, Gundwane, ou vai piorar as coisas.
Submisso, Hal subiu para o coche e tomou o assento do lado oposto a Sukeena. Sem olhar para o par, Aboli sorriu para si mesmo. Ela já dá as ordens e ele obedece. Parece que estão com a maré e o bom vento por trás deles.
- Deixe-me olhar para essa perna - ordenou Sukeena, e Hal a colocou no assento, entre a jovem e Katinka.
- Tome cuidado, imbecil! - esbravejou Katinka, e afastou as saias. - Vai ensanguentar meu vestido.
- Se não tomar cuidado com a língua, não será a única coisa que encherei de sangue - assegurou-lhe Hal, e fechou a carranca.
Katinka encolheu-se para o canto do assento.
Sukeena examinou a perna com mãos rápidas e competentes.
- Eu poria uma cataplasma quente nessas mordidas, pois estão fundas e certamente irão infeccionar. Mas preciso de água fervente. - Ergueu os olhos para Hal.
- Terá de esperar até que cheguemos às montanhas - disse-lhe. Então, por um momento, a conversa morreu e eles ficaram a se encarar, olhos nos olhos, inebriados. Aquela era a maior intimidade que jamais tinham tido, e cada um encontrou algo no outro para admirar e se deliciar.
Então Sukeena pareceu despertar.
- Tenho meus remédios nos alforjes de sela - disse, bruscamente, e subiu no assento para alcançar as alcofas na traseira da carruagem. Pendurou-se ali enquanto remexia nas sacolas de couro.
A carruagem saltava na trilha rude, e Hal olhou com admiração para aquele pequeno traseiro arredondado, apontado para o céu. A despeito dos babados e anáguas que o encobriam, ele julgou que era quase tão encantador como a face de Sukeena.
Ela voltou a sentar-se, com panos e uma garrafa preta na mão.
- Vou limpar as feridas com esta tintura e depois enfaixá-las - explicou, sem olhar de novo para a distração daqueles olhos verdes.
- Basta! - Hal ofegou ao primeiro toque da tintura. - Isso queima como o bafo do demónio.
Sukeena fechou o semblante.
- Você suportou chicote, tiro, espada e ataque de um animal. Porém, ao primeiro toque do remédio, chora como um bebê. Trate de ficar quieto.
A face de Aboli enrugou-se num buque de tatuagens e linhas alegres de risadas, mas, embora seus ombros sacudissem, ele manteve o passo dos cavalos.
Hal sentiu-lhe a diversão e indagou:
- A que distância está a cerca de amendoeiras amargas?
- Falta outra légua.
- Sabah nos encontrará lá?
- Isso é o que eu creio, se os gibões-verdes não caírem sobre nós antes.
- Me parece que teremos algum descanso. Schreuder cometeu um erro correndo sozinho em nossa perseguição. Deveria ter reunido suas tropas e vindo atrás de nós de uma forma ordenada. Meu palpite é que a maioria dos gibões-verdes estará caçando os outros prisioneiros que tornamos livres. Irão se concentrar em nós apenas quando Schreuder assumir o comando.
- E ele não tem cavalo - emendou Sukeena. - Creio que nos safamos, e assim que chegarmos às montanhas... - Calou-se e ergueu os olhos da perna de Hal. Ambos, ela e Hal, olharam à frente, para a alta plataforma azul que enchia o céu adiante.
Van de Velde seguia avidamente a conversa e agora resolveu se intrometer:
- A escrava está certa. Foram bem-sucedidos nesse esquema ardiloso de vocês, tanto pior. Contudo, sou um homem razoável, Henry Courtney. Deixe minha esposa e eu livres agora. Ceda a carruagem para nós e deixe que voltemos para a colónia. Em troca, eu lhe darei minha garantia solene de suspender a caçada. Ordenarei ao coronel Schreuder que mande seus homens de volta para as barracas. - Voltou-se para Hal com o que esperava fosse uma expressão franca e sem culpa. - Eu lhe ofereço minha palavra como cavalheiro quanto a isso.
Hal viu a canalhice e a malícia nos olhos do governador.
- Excelência, não estou seguro da validade de sua pretensão quanto ao título de cavalheiro, além do que detestaria ser privado tão cedo de sua encantadora companhia.
Naquele momento, uma das rodas dianteiras da carruagem entalou-se num buraco na trilha.
- Os orictéropos cavaram essas tocas - explicou Althuda, quando Hal desceu do veículo adernado.
- Diga-me, que tipo de homem ou bicho é esse?
- O porco-da-terra, um animal com um longo focinho e uma cauda grossa que cava os buracos das formigas com suas poderosas garras e as devora com sua longa língua pontiaguda - disse Althuda.
Hal jogou a cabeça para trás e caiu na risada.
- Claro, acredito nisso. Também acredito que seu porco-da-terra voa, dança com as gaitas de fole e lê a sorte nas cartas.
- Você tem umas poucas coisas ainda para aprender sobre a terra que se espalha por aqui, meu amigo.
Ainda rindo, Hal afastou-se dele.
- Vamos lá, camaradas! - chamou os marujos. - Vamos tirar este navio do recife e correr à frente do vento de novo.
Fez van de Velde e Katinka apearem, e os restante forçaram, junto com os cavalos, para livrar a carruagem. Dali para frente contudo, a trilha se tornava quase transitável, e o mato de ambos lados crescia mais alto e mais denso à medida que prosseguiam. No próximo quilómetro, por duas vezes ficaram entalados em buracos novamente.
- Está quase na hora de nos livrarmos da carruagem. Podemos ir mais rápido em nossas próprias pernas - disse Hal a Aboli, baixinho. - A que distância estamos da cerca?
- Já deveríamos tê-la alcançado - retrucou Aboli -, mas não pode estar longe.
Chegaram à divisa na próxima curva pela trilha estreita. A famosa cerca de amendoeiras amargas era uma excrescência esparsa e arruinada, que mal chegava à altura do ombro, porém a estrada terminava dramaticamente contra ela. Havia também uma rústica cabana, que servia como um posto de guarda para o piquete de fronteira, e uma placa, em holandês.
"CUIDADO!" advertia a placa, em vívidas letras escarlates, e prosseguia falando da proibição da movimentação de pessoas além daquele ponto, a penalidade para a infração sendo a prisão ou o pagamento de uma multa de mil guinéus, ou ambos. A placa fora erguida em nome do governador da Companhia Holandesa das índias Orientais.
Hal chutou e abriu a porta do único cómodo da cabana do guarda e o encontrou deserto. O fogo no fogão aberto estava frio e morto. Uns poucos artigos do uniforme da companhia pendiam de ganchos de madeira na parede, e uma caçarola preta estava sobre os carvões apagados, com tigelas desparceiradas, garrafas e utensílios espalhados sobre a rústica mesa de madeiras ou em prateleiras ao longo das paredes.
Daniel Grande estava prestes a pôr a mecha de queima lenta no telhado de sapé, mas Hal o impediu.
- Não faz sentido dar a Schreuder uma bóia de sinalização de fumaça para seguir - disse -, e não há nada de valor aqui. Deixe estar e o mandou de volta para onde os marinheiros descarregavam a carruagem.
Aboli virava os cavalos nos tirantes e Ned Tyler o ajudava improvisar selas para eles, usando os arreios, pedaços de couro e o toldo de lona da carruagem.
Katinka se postava desolada ao lado do marido.
- O que vai ser de mim, Sir Henry? - murmurou, quando Hal se aproximou.
- Alguns dos homens querem levá-la para o alto das montanhas e dá-la de comer aos animais selvagens - retrucou ele. A mão de Katinka subiu aos lábios e ela empalideceu. - Outros querem cortar-lhe a garganta aqui e agora pelo que você e o sapo desprezível de seu marido gordo fizeram a nós.
- Você não deveria permitir que uma coisa dessas acontecesse - esbravejou van de Velde. - Fiz apenas o que era meu dever.
- Tem razão - concordou Hal. - Creio que cortar garganta seja bom demais para você. Sou a favor de pendurar e esquartejar, como você fez com meu pai. - Encarou-o friamente, e van de Velde estremeceu de medo. - Contudo, estou cheio de vocês dois. Não quero mais tratos com qualquer um; portanto, deixo você e sua adorável esposa à mercê de Deus, o demónio e o amoroso coronel Schreuder. - Voltou-se e rumou para onde Aboli e Ned verificavam e apertavam as cargas nos cavalos.
Três dos cinzentos tinham barris de pólvora amarrados de cada lado do lombo, dois carregavam fardos e armas, e o sexto trazia os volumosos alforjes de sela de Sukeena.
- Tudo em boa ordem, capitão. - Ned bateu com os nós nos dedos na testa. - Podemos içar âncora e nos pôr a caminho sob o seu comando.
- Não há nada que nos prenda aqui. A princesa Sukeena cavalgará no cavalo líder. - Olhou ao redor, procurando por ela. - Onde está ela?
- Estou aqui, Gundwane. - Sukeena saiu de trás da cabana de guarda. - E não preciso de nenhum mimo. Caminharei com o resto de vocês.
Hal viu que ela rasgara as longas saias e usava agora calças largas balinesas e uma camisa solta de algodão que lhe chegava até os joelhos. Amarrara uma tira de pano sobre os cabelos, e trazia nos pés fortes sandálias de couro que seriam confortáveis para caminhar. Os homens arregalaram os olhos diante da forma de suas canelas nas calças, porém ela ignorou os olhares rudes, tomou a rédea do cavalo mais próximo e conduziu-o para a abertura na cerca de amendoeiras amargas.
- Sukeena!
Hal a teria impedido, porém a jovem reconheceu o tom de censura e ignorou-o. Ele se deu conta da tolice em insistir e temperou com prudência a próxima ordem:
- Althuda, você é o único que conhece o caminho daqui. Vá na frente com sua irmã.
Althuda correu para alcançá-la, e irmão e irmã os conduziram para os ermos não explorados além da cerca.
Hal e Aboli fechavam a retaguarda da coluna enquanto ela ondulava pelos arbustos e o mato cerrado. Nenhum homem passara por aquela trilha recentemente. Fora feita por animais selvagens: as marcas de cascos e patas eram fáceis de ver no macio solo arenoso, e suas fezes coalhavam o caminho.
Aboli podia reconhecer cada animal por aqueles sinais, e enquanto avançavam num passo forçado, apontava-os para Hal.
- Aquele é um rastro de leopardo, e ali está o do antílope de chifres torcidos que chamamos de kudu. Pelo menos não morreremos de fome - prometeu. - Há muita caça nesta terra.
Aquela era a primeira oportunidade desde a fuga que tinham tido para conversar, e Hal perguntou, baixinho:
- Esse Sabah, o amigo de Althuda, o que sabe sobre ele?
- Sei apenas das mensagens que mandou.
- Não deveria ter nos encontrado na cerca?
- Disse apenas que iria nos levar para as montanhas. Eu esperava que estivesse aguardando na cerca - Aboli deu de ombros -, mas, com Althuda para guiar-nos, não precisamos dele.
Fizeram bom progresso, a égua cinzenta a trotar facilmente com eles em seu rastro, a correr ao lado. Sempre que passavam por uma árvore que pudesse suportar o peso de Aboli, ele a escalava e olhava para tras em busca de sinais de perseguição. A cada vez, descia e meneava a cabeça.
- Schreuder virá - disse-lhe Hal. - Ouvi os homens dizerem que aqueles seus gibões-verdes podem perseguir e prender um sujeito montado. Eles virão.
Caminharam com constância pela planície, parando apenas nas poças pantanosas de água por que passavam. Hal pendurou-se no cavalo para aliviar a perna machucada, e, enquanto mancava e seguia adiante, Aboli recontou tudo que acontecera nos meses desde que tinham estado juntos pela última vez. Hal ficou silencioso quando ele descreveu, em sua própria língua, como resgatara o corpo de Sir Francis do patíbulo e fizera o seu funeral.
- Foi o funeral de um grande chefe. Eu o vesti na pele de um touro negro e coloquei seu navio e suas armas dentro de seu alcance. Deixei comida e água para a sua jornada, e, diante dos olhos, coloquei a cruz de seu Deus.
A garganta de Hal estava apertada demais para que ele pudesse agradecer a Aboli por aquilo que fizera.
O dia se gastou, e o progresso diminuiu à medida que homens e cavalos se cansavam no terreno macio e arenoso. No próximo charco cheio de mato onde pararam para uns poucos minutos de descanso, Hal postou-se ao lado de Sukeena.
- Você tem sido forte e corajosa, porém suas pernas não são tão longas como as nossas, e observei que você cambaleava de fadiga. De agora em diante, precisa ir a cavalo. - Quando ela ia protestar, ele a impediu com firmeza. - Eu a obedeci na questão de meus ferimentos, porém em tudo mais sou capitão, e você deve fazer o que eu digo. Daqui para a frente, você irá cavalgar.
Os olhos dela faiscaram. Sukeena fez um gracioso gesto de submissão, colocando as pontas dos dedos juntas e tocando-as nos lábios.
- Como ordenar, mestre - e permitiu que ele a erguesse para o topo dos alforjes de sela no cinzento de liderança.
Contornaram o charco e seguiram um pouco mais depressa agora. Por duas vezes mais, Aboli subiu numa árvore para olhar para trás e não viu sinal de perseguição. Contra seus instintos naturais, Hal começou a esperar que pudessem ter escapado de seus perseguidores, que pudessem chegar às montanhas que assomavam cada vez mais próximas e mais altas sem serem mais molestados.
No meio da tarde, cruzaram um largo e aberto vale, uma campina de grama verde curta onde pastavam hordas de antílopes selvagens com chifres curvos como cimitarras. Os animais ergueram a cabeça com a aproximação da caravana de cavalos e homens, olhos arregalados, todos imobilizados no lugar de aturdimento, sua pelagem de um cinza-metálico azulado a luzir no sol da tarde.
- Mesmo eu nunca tinha visto animais dessa espécie - admitiu Aboli.
Conforme os bandos fugiam diante deles, envoltos na própria poeira Althuda gritou de volta:
- Aqueles são os animais que os holandeses chamam de blaauwbok o cervo azul. Vi grandes manadas deles nas planícies além das montanhas.
Além do vale, o terreno começou a subir numa série de canteiros ondulantes em direção ao sopé das colinas. Escalaram o primeiro canteiro, com Hal a fechar a retaguarda da coluna. Já então ele caminhava pesadamente, com evidente sofrimento. Aboli viu que sua face estava ruborizada de febre e que sangue e fluido aquoso escorriam da atadura que Sukeena lhe colocara na perna.
No topo da ondulação, Aboli forçou uma parada. Olharam para trás, para a grande montanha da Mesa, que dominava o horizonte ocidental. A esquerda, a larga curva azul da baía Falsa se abria. No entanto, estavam por demais exaustos para passar longo tempo admirando as redondezas. Os cavalos pararam, cabeças penduradas, e os homens se jogaram em qualquer sombra que puderam encontrar. Sukeena escorregou da montaria e correu até onde Hal caía com as costas apoiadas num pequeno tronco de árvore. Ajoelhou-se à frente dele, desenrolou a bandagem da perna e conteve o fôlego quando viu como estava inchada e inflamada. Inclinou-se para mais perto e cheirou os furos que exsudavam. Quando falou, sua voz era severa.
- Não pode caminhar adiante assim. Precisa cavalgar como me forçou a fazer. - Então, ergueu os olhos para Aboli. - Faça um fogo para ferver água - ordenou.
- Não temos tempo para essa bobagem - murmurou Hal, desanimado, porém eles o ignoraram.
Aboli acendeu uma pequena fogueira com a mecha de queima lenta e colocou sobre ela uma caneca de água. Assim que ferveu, Sukeena preparou uma pasta com as ervas que trazia no alforje de sela e espalhou-a num pano dobrado. Enquanto ainda fumegava de calor, pousou o pano sobre os ferimentos de Hal. Ele gemeu e disse:
- Juro que iria preferir que Aboli urinasse em minha perna a vela queimada com suas cocções demoníacas.
Sukeena fez como se não ouvisse a linguagem indecorosa e prosseguiu na tarefa. Prendeu a cataplasma no lugar com um pano limpo, e depois, dos alforjes de sela, tirou um pão e uma salsicha seca. Cortou-os em fatias, dobrou as fatias com a salsicha dentro e estendeu uma para cada um dos homens.
- Abençoada seja, princesa. - Daniel Grande bateu os nós dos dedos na testa antes de pegar sua ração das mãos dela.
- Deus a ama, princesa - disse Ned, e todos os outros adotaram o nome. De agora em diante, ela era a sua princesa, e os rudes marinheiros a encaravam com crescente respeito e florescente afeição.
- Podem comer em marcha, camaradas. - Hal ergueu-se nos pés. - Fomos afortunados hoje. Logo o demónio irá querer sua vez.
Eles resmungaram e reclamaram, porém seguiram o líder. Enquanto Hal ajudava Sukeena a montar, ouviu-se um grito de alerta de Daniel.
- Eis que os bastardos chegam por fim. - Apontou para o vale aberto ao fundo do declive.
Hal empurrou Sukeena entre os alforjes de sela e mancou de volta para a retaguarda da coluna. Olhou para o lado da colina e viu a longa fila de homens em corrida que emergia da beira de um matagal e cruzavam agora o terreno aberto. Eram conduzidos por um único cavaleiro que vinha num trote.
- É Schreuder outra vez. Achou outra montaria.
Mesmo àquela distância, não havia engano: que era o coronel. Sentava-se ereto e arrogante na sela, e havia um senso de mortal propósito no jeito de seus ombros e na maneira como erguia a cabeça para olhar pelos declives à frente. Era óbvio que ainda não os avistara, escondidos que estavam pelo mato espesso.
- Quantos homens com ele? - perguntou Ned Tyler, e todos olhavam para Hal, para que os contasse. Ele apertou os olhos e observou-os avançar pelo matagal denso. Com o trote oscilante, mantinham o passo facilmente com o cavalo de Schreuder.
- Vinte - contou Hal.
- Por que tão poucos? - indagou Daniel Grande.
- Quase certamente Schreuder escolheu seus mais rápidos corredores para nos pressionar. O resto seguirá da melhor maneira que puder. - Hal protegeu os olhos. - Sim, por Deus, lá estão eles, uma légua além do primeiro platô, mas se aproximam depressa. Posso ver sua poeira e a forma de seus elmos acima da vegetação. Deve haver uma centena ou mais naquele segundo destacamento.
- Com vinte podemos lidar - resmungou Daniel Grande -, mas uma centena daqueles gibões-verdes assassinos é mais do que eu posso comer no desjejum sem arrotar. Quais as ordens, capitão?
Cada homem olhou para Hal.
Ele parou antes de responder, estudando cuidadosamente a disposição e a granulação do terreno abaixo antes de dizer:
- Mestre Daniel, leve o resto do grupo com Althuda para guiá-los. Aboli e eu ficaremos aqui com um cavalo para retardar o avanço da tropa.
- Não podemos superá-los. Eles provaram isso a nós, capitão - protestou Daniel. - Não seria melhor enfrentá-los aqui?
- Você tem suas ordens. - Hal voltou um olhar frio e firme como aço sobre ele.
Daniel bateu de novo os nós dos dedos na testa.
- Sim, capitão - e virou-se para os outros. - Ouviram as ordens, rapazes.
Hal mancou de volta até onde Sukeena sentava-se no cavalo, com Althuda a segurar a rédea.
- Você precisa ir, não importa o que aconteça. Não volte por qualquer razão - disse a Althuda, e então sorriu para Sukeena. - Nem mesmo se Sua Alteza Real ordenar.
Ela não lhe devolveu o sorriso, mas inclinou-se para mais perto e murmurou:
- Esperarei por você na montanha. Não me faça aguardar por muito tempo.
Althuda conduziu a coluna de cavalos para a frente outra vez, e, conforme cruzaram a linha do céu, ouviu-se um tiro distante vindo do vale abaixo.
- Eles nos descobriram - resmungou Aboli.
Hal foi até o único cavalo restante e soltou uma das barricas de vinte e cinco quilos de pólvora. Baixou-a ao chão e disse a Aboli:
- Leve o cavalo. Siga os outros. Deixe Schreuder ver que você se vai. Amarre-o fora da vista, além da crista da colina, e então volte ao meu encontro.
Hal rolou a barrica para a mais próxima saliência de rocha e se agachou ao lado dela. Com apenas o cocuruto da cabeça de fora, estudou de novo o declive abaixo, e depois voltou a toda a atenção para Schreuder e seu bando de gibões-verdes. Já estavam muito próximos, e ele pôde ver que dois hotentotes corriam adiante do cavalo de Schreuder. Estudavam o terreno conforme avançavam, seguindo exatamente a rota que o grupo de Hal tinha assinalado.
Eles lêem nosso sinal na terra, como cães atrás do alce, pensou. Virão pela mesma trilha que seguimos.
Naquele momento, Aboli voltou pela colina e agachou-se ao lado dele.
- O cavalo está amarrado, e os outros seguiram adiante. Agora, qual é seu plano, Gundwane?
- É muito simples, não há necessidade de explicá-lo a você - disse Hal, ao comprimir o tampão da barrica com a ponta da espada. Então desenrolou um pedaço da mecha de queima lenta que tinha amarrado em torno do pulso. - Esta mecha é o demónio. Queima muito depressa ou muito devagar. Porém, arriscarei com três dedos de comprimento - resmungou, enquanto media e depois cortava um pedaço. - Enrolou-a gentilmente entre as palmas das mãos numa tentativa de induzi-las a queimar de maneira uniforme e depois enfiou uma ponta no buraco da barrica e prendeu-a ali, colocando de novo o tampão de madeira.
- É melhor se apressar, Gundwane. Seu velho parceiro de esgrima, Schreuder, está com muita pressa de encontrá-lo novamente.
Hal ergueu os olhos da tarefa e viu que os perseguidores tinham cruzado a campina e estavam agora rumando para o declive em direção a eles.
- Mantenha-se fora da vista - disse-lhe Hal. - Quero que cheguem bem perto.
Os dois se jogaram de barriga no chão e espiaram para baixo da colina. Sentado ereto na sela, Schreuder surgia à plena vista, porém os dois batedores que o conduziam estavam ocultos pelo mato e os arbustos florescentes. Ao se aproximarem, Hal pôde divisar o feio arranhão dos pedregulhos na face de Schreuder, os rasgos e as manchas sujas em seu uniforme. Ele não usava nem chapéu nem peruca, que perdera provavelmente ao longo do caminho, talvez na queda. Por mais vaidoso que fosse, não perdera tempo em tentar recuperá-los, tão urgente era sua determinação.
O sol já avermelhara seu crânio barbeado, e seu cavalo babava. Talvez ele não tivesse se importado em lhe dar água durante a longa caçada. Aproximava-se ainda mais. Seus olhos estavam pregados na crista da colina onde vira os fugitivos passarem. A face era uma máscara pétrea, e Hal pôde ver que ali estava um homem dominado por um temperamento vulcânico, pronto para assumir qualquer risco ou enfrentar qualquer perigo com coragem.
No íngreme aclive, seus infatigáveis batedores começaram a se cansar. Hal podia ver o suor a escorrer por suas faces chatas e amarelas de asiáticos e ouvir sua respiração ofegante.
- Vamos lá, seus trapaceiros! - instigou-os Schreuder. -Vão deixá-los escapar. Mais depressa! Corram mais depressa.
Os hotentotes começaram a subir aos tropeções e escorregões pelo aclive.
- Ótimo! - resmungou Hal. - Estão seguindo por nossos rastros, como eu esperava. - Murmurou as instruções finais a Aboli. - Mas espere até que o avise - advertiu-o.
Eles se aproximaram ainda mais, até que Hal podia ouvir os pés descalços dos hotentotes a escorregar no terreno, o guincho dos arreios de Schreuder e o tilintar de suas esporas. Com a aproximação, Hal viu as gotas de suor que decoravam as pontas de seu bigode, e as veias finas nos olhos azuis saltados, enquanto o coronel fixava o olhar furioso e obsessivo na linha do céu da colina, vigiando o inimigo que jazia escondido muito perto ao alcance.
- Pronto! - murmurou Hal, e levou a mecha ao estopim da barrica de pólvora. Esta se inflamou, faiscou, pegou fogo e então queimou com força. A chama correu pelo curto pedaço do estopim até o buraco da barrica.
- Agora, Aboli!
Aboli pegou a barrica e ergueu-se de pé, quase sob os cascos do cavalo de Schreuder. Os dois hotentotes gritaram de espanto e saltaram para fora da trilha, enquanto o cavalo relinchava e recuava, lançando Schreuder para a frente, agarrado a seu pescoço.
Por um momento, Aboli permaneceu imóvel, segurando a barrica no alto, acima da cabeça, com ambas as mãos. O estopim assobiou e sibilou como uma zangada víbora africana, e a fumaça da pólvora flutuou em torno de sua grande cabeça tatuada como um nimbo azul. Em seguida, ele lançou a barrica pelo lado da colina. Ela se virou preguiçosamente no ar antes de atingir o chão rochoso e girar para a frente, sacudindo e pulando conforme ganhava velocidade. Saltou para cima, na cara do cavalo de Schreuder, que empinou logo quando o cavaleiro tinha recuperado o equilíbrio. Schreuder foi jogado para a frente de novo, no pescoço do animal, perdeu um dos estribos e se pendurou desajeitadamente do lado da sela.
O cavalo girou e saltou para trás, pela encosta, quase para dentro do destacamento de infantaria que seguia em seus calcanhares. Quando o cavalo enlouquecido e a barrica de pólvora, aos saltos, vieram de volta para cima deles, a coluna de gibões-verdes soltou um urro de consternação. Cada um sabia que o estopim fumegante era o arauto de uma pavorosa detonação apenas segundos adiante, e todos quebraram as fileiras e se dispersaram. A maioria se voltou instintivamente para baixo da colina, em vez de correr para os lados, e a barrica alcançou-os, saltando no meio deles.
O cavalo de Schreuder desceu nos quartos traseiros, conforme deslizava e escorregava colina abaixo. As rédeas escaparam de uma das mãos do cavaleiro, enquanto a outra perdeu a precária fixação no arção da sela. Schreuder caiu quase sob as patas da montaria, e, assim que atingiu o chão, a barrica explodiu. A queda salvou-lhe a vida, pois ele caíra ao abrigo de uma baixa saliência de rocha, e a força principal do estouro passara sobre ele.
Contudo, aquilo arrasou a horda de soldados desgarrados. Aqueles mais próximos foram atingidos e lançados para cima como folhas em chamas de uma fogueira de jardim. Suas roupas foram destroçadas dos corpos desconjuntados, e um braço desmembrado subiu ao alto para cair de volta aos pés de Hal. Tanto Aboli como Hal haviam sido jogados ao solo pela força da explosão. Com os ouvidos zunindo, Hal cambaleou para se levantar novamente e olhou para baixo, admirado pela devastação que tinham criado.
Nenhum dos inimigos estava ainda de pé.
- Por Deus, você os matou a todos! - Hal maravilhou-se, porém, então, ouviram-se gritos e berros confusos entre os arbustos arrasados. Primeiro um e depois mais dos soldados inimigos cambaleavam tontos para fora das moitas.
- Vamos embora!
Aboli pegou o braço de Hal e arrastou-o para a crista da colina. Antes que chegassem ao topo, Hal olhou para trás e viu que Schreuder tinha se erguido do chão. A oscilar como um bêbado, ele se erguia sobre a carcaça mutilada de sua montaria. Estava ainda tão atordoado, que, mesmo enquanto Hal observava, suas pernas se dobraram sob ele e ele se sentou pesadamente entre os galhos e folhas quebrados, cobrindo a face com as mãos.
Aboli soltou o braço de Hal e mudou a espada para a mão direita.
- Posso correr de volta e acabar com ele - resmungou, porém a sugestão arrancou Hal do próprio devaneio.
- Deixe-o estar! Não seria honroso matá-lo quando está incapaz de se defender.
- Então, vamos, e depressa - grunhiu Aboli. - Podemos ter jogado esse bando de homens de Schreuder no recife, porém, olhe! O resto dos gibões-verdes não está muito distante atrás.
Hal limpou o suor e a poeira da face e pestanejou para que os olhos se aclarassem. Viu que Aboli tinha razão. A nuvem de pó do segundo destacamento do inimigo erguia-se do matagal na planície no outro lado do vale, aproximando-se rapidamente.
- Se corrermos depressa agora, poderemos manter distância deles até o cair da noite, e já então estaremos nas montanhas - estimou Aboli.
Em questão de poucos passos, Hal tropeçou e mancou quando a perna ferida cedeu sob seu peso. Sem uma palavra, Aboli deu-lhe o braço para ajudá-lo a cobrir o terreno rústico até onde tinha amarrado o cavalo. Desta vez, Hal não protestou quando Aboli o empurrou para o lombo do animal e tomou as rédeas.
- Qual a direção? - indagou Hal.
Ao olhar adiante, a barreira da montanha se separava num labirinto de ravinas e elevados contrafortes rochosos, de penhascos e profundas gargantas nas quais cresciam densas faixas de floresta e vegetação emaranhada. Não conseguia divisar nenhuma trilha ou passagem através daquela confusão.
- Althuda conhece o caminho e deixou sinais para que nós os seguíssemos.
O rastro de cinco cavalos e do bando de fugitivos estava visivelmente marcado adiante deles, porém, para salientá-los, Althuda tinha queimado a casca das árvores ao longo da rota. Eles seguiram a trilha na melhor das velocidades e, da próxima colina, viram os pequenos contornos de cinco cavalos cinzentos a cruzar a extensão de terreno aberto, três ou quatro quilómetros adiante. Hal conseguiu até mesmo divisar a figura pequena de Sukeena empoleirada no lombo do cavalo guia. A coloração prateada dos cavalos fazia-os se destacarem como espelhos entre os arbustos escuros em volta, e ele murmurou:
- São belos animais, porém atraem o olhar de um inimigo.
- Nos tirantes de uma carruagem de cavalheiro não poderiam ser mais belos - concordou Aboli -, porém, nas montanhas, só vão atrapalhar. Precisamos abandoná-los quando chegarmos a terreno difícil, ou quebrarão as adoráveis pernas nas rochas e gretas.
- Deixá-los para os holandeses? - perguntou Hal. - Por que nao uma bala de mosquete para terminar com seu sofrimento?
- Porque são lindos e porque eu os amo como meus filhos - disse Aboli, suavemente, estendendo a mão e alisando o pescoço do animal-A égua cinzenta revirou os olhos para ele e relinchou baixinho, devol-vendo-lhe a afeição.
Hal riu.
- Ela o ama também, Aboli. Por sua causa, iremos poupá-los. Arrastaram-se para baixo pelo próximo declive e lutaram para subir do lado oposto. O terreno se tornava mais escarpado a cada passo, e as cristas da montanha pareciam pender suspensas acima de suas cabeças. No topo, pararam novamente para deixar a égua bufar, e olharam adiante.
- Parece que Althuda está rumando para aquela garganta escura logo adiante. - Hal aguçou os olhos. - Pode vê-los?
- Não - resmungou Aboli. - Estão escondidos pelas dobras do sopé das colinas e as árvores. - Então, voltou o olhar para a retaguarda novamente. - Mas olhe atrás de você, Gundwane!
Hal virou-se e olhou para onde ele apontava, e exclamou, ofegante:
- Como podem ter vindo tão depressa? Estão chegando até nós como se estivéssemos imóveis!
A coluna de gibões-verdes corredores enxameava a colina atrás deles como formigas-soldados de um ninho perturbado. Hal conseguia contá-los facilmente e divisar os oficiais brancos. O sol do meio da tarde luzia em suas baionetas, e Hal pôde ouvir seus débeis mas jubilosos gritos conforme visualizavam a caça tão perto adiante.
- Lá está Schreuder! - exclamou Hal, com amargura. - Por Deus, aquele homem é um monstro. Não há meios de pará-lo?
O coronel desmontado trotava perto da retaguarda da longa e espalhada coluna, porém, enquanto Hal o observava, o homem passou adiante na trilha.
- Ele corre mais rápido que seus próprios hotentotes. Se nos demorarmos aqui outro minuto, estará em cima de nós antes que alcancemos a boca da garganta escura.
O terreno adiante se elevou tão abruptamente que o cavalo não podia subi-lo ereto, e a trilha começou a ziguezaguear pela colina. Ouviu-se outro berro alegre vindo de baixo, como o grito de açular os cães de um caçador de raposa, e eles viram os perseguidores avançar em fila, dois quilómetros ou mais além da trilha. Os líderes estavam mais perto agora.
- Tiro longo de mosquete. - Hal viu o potencial perigo, e enquanto ele falava, um dos soldados de vanguarda ajoelhou-se atrás de uma pedra e fez uma mira deliberada antes de disparar. Viram a pluma de fumaça do cano bem antes de ouvirem o espocar seco do tiro. A bala arrancou uma lasca azul de uma rocha vinte e cinco metros abaixo de onde estavam. - Ainda muito longe. Deixe que gastem sua pólvora.
a cinzenta saltou para cima pela trilha rochosa do caminho, muito mais segura nos pés do que Hal poderia ter esperado. Então, chegara à curva externa do largo cotovelo e começaram a cruzar a colina. Agora aproximavam-se do inimigo num ângulo oblíquo, e a distância entre eles se estreitava ainda mais depressa.
Os homens da trilha abaixo os saudaram com gritos alegres.
Jogaram-se no chão para descansar, para acalmar os corações palpitantes e as mãos trêmulas. Hal podia vê-los a verificar os gatilhos das caçoletas dos mosquetes e a acender as mechas de queima lenta, preparando-se para disparar quando a égua cinzenta e seu cavaleiro chegassem dentro do alcance justo do mosquete.
- Pelo bafo de Satã! - resmungou Hal. - Isso é como velejar para o costado do inimigo! - Porém, não havia lugar algum para correr ou se esconder, e suaram para subir pela trilha.
Hal podia avistar Schreuder agora: ele abrira caminho tenazmente rumo à vanguarda da coluna e olhava diretamente para eles. Mesmo àquela distância, Hal conseguia ver que ele se forçara muito além da resistência natural: sua face estava chupada e mostrava sinais de cansaço, seu uniforme, roto, sujo, ensopado de suor e sangue de uma dúzia de arranhões e abrasões. Ele ofegava e puxava pela respiração, porém seus olhos afundados queimavam de malevolência. Não tinha forças para gritar ou sacudir uma arma, mas observava Hal com ar implacável.
Um dos gibões-verdes atirou e ouviram a bala zunir perto, acima de suas cabeças. Aboli incitava a égua ao melhor passo pela trilha íngreme e quebrada, porém estariam dentro do alcance dos mosquetes por muitos minutos mais. Agora, uma linha de fogo corria ao longo da fila de soldados pelo caminho abaixo. Balas de mosquetes estouravam entre as rochas ao redor deles, algumas se achatando em brilhantes discos onde se chocavam. Outras espalhavam lascas de pedras sobre eles, ou zumbiam em ricochetes pelo vale.
Ilesa, a égua cinzenta chegou ao cotovelo externo da trilha e iniciou a subida. Agora, a distância era maior, e grande parte da infantaria de hotentotes saltou de pé e partiu para a perseguição. Um ou dois rumaram diretamente para cima da colina, tentando evitar o canto, mas a inclinação mostrou-se muito íngreme mesmo para seus pés ágeis. Desistiram, escorregaram de volta para a trilha angulada e correram atrás de seus companheiros pela rota mais suave porém mais longa.
Uns poucos soldados permaneciam ajoelhados no caminho recarregavam as armas, a enfiar os soquetes nos canos de seus mosquete, freneticamente, e depois despejando a pólvora negra na caçoleta. Schreuder ficara a observar a fuzilada, encostado pesadamente contra uma rocha enquanto seu coração acelerado e a respiração difícil se acalmavam. Agora, erguia-se e pegava um mosquete carregado da mão de um de seus hotentotes e afastava o homem para o lado com o cotovelo.
Estamos além do alcance de um tiro de mosquete! - inconformou-se Hal. - Por que ele persiste?
- Porque está louco de ódio por você - retrucou Aboli. - O diabo lhe dá forças para continuar.
Schreuder arrancou rapidamente seu casaco e enrolou-o sobre a rocha, fazendo um colchão no qual descansar o corpo da arma. Olhou pelo cano e ajustou a alça de mira ao entalhe do visor. Acomodou-a por um instante na cabeça oscilante de Hal e então a ergueu até que tinha uma fatia de céu azul se mostrando por baixo, compensando a queda da pesada bala de chumbo quando alcançasse o limite de seu alcance. No mesmo movimento, ajustou o visor para a cabeça ereta da égua.
- Ele jamais pode esperar atingir-nos de lá! - balbuciou Hal, porém naquele instante viu a fumaça prateada florescer como uma flor tóxica no talo do cano do mosquete. Então, sentiu um baque de marreta quando a bala afundou nas costelas da égua cinzenta, dois centímetros abaixo de seu joelho.
Hal ouviu o ar escapar dos pulmões perfurados do cavalo. O corajoso animal cambaleou para trás e caiu nos quartos. Tentou recobrar o pé empinando loucamente, mas acabou se lançando pela borda da trilha estreita. Em tempo, Aboli agarrou a perna ferida de Hal e puxouo do lombo da égua.
Hal e Aboli caíram juntos nas rochas e olharam para baixo. O cavalo rolou até que atingiu a curva da trilha, onde ficou a descansar numa chuva de pedregulhos, terra solta e poeira. Jazia com as quatro patas a chutar debilmente o ar. Um ressoante grito de triunfo subiu dos soldados perseguidores, cujos gritos correram pelos penhascos e ecoaram através das sombrias profundezas da garganta escura.
Hal rastejou trêmulo e se ergueu, avaliando rapidamente as circunstâncias. Tanto ele quanto Aboli ainda tinham os mosquetes pendurados nos ombros e as espadas nas bainhas. Além disso, cada um estava com um par de pistolas, um pequeno chifre de pólvora e um saco contendo balas de mosquete amarrado em torno da cintura. Porém, haviam perdido tudo mais.
Abaixo deles, os perseguidores se animaram com aquela reviravolta na sorte e uivavam como um bando de cães com o cheiro da caça arder em suas narinas. Vinham avançando com mãos e pés para cima.
- Deixe suas pistolas e o mosquete - ordenou Aboli. - Deixe chifre de pólvora e a espada também, ou seu peso irá derrubá-lo.
Hal meneou a cabeça.
- Logo precisaremos deles. Adiante.
Aboli não discutiu e avançou em passos largos. Hal ficou logo atrás dele, forçando a perna ferida a servir a seu propósito através da dor e da trémula fraqueza que se espalhava lentamente para cima de sua coxa Aboli estendeu a mão para trás para ajudá-lo pelos degraus mais difíceis do caminho, porém a inclinação tornou-se mais aguda conforme avançavam para cima e começavam a rodear os contrafortes escarpados de rocha que formavam um dos portais da garganta sombria. Agora, a cada passo para frente, eram forçados a alcançar o próximo nível, como se estivessem numa escadaria, e ladeavam a muralha alcantilada que caía para o vale abaixo. Os perseguidores, embora ainda próximos, ficaram fora da vista, ocultos pelo contraforte.
- Tem certeza de que este é o caminho certo? - Hal ofegou, quando pararam para uns poucos segundos de descanso num degrau mais largo.
- Althuda ainda está deixando sinais para nós - assegurou-lhe Aboli, e chutou o monte de três pequenos pedregulhos equilibrados um sobre o outro que haviam sido erigidos visivelmente no centro da trilha. - E meus cavalos cinzentos também. - Sorriu ao apontar uma pilha de reluzentes bolas úmidas de esterco um pouco mais adiante. Então, pendeu a cabeça. - Escute!
Hal podia ouvir agora as vozes dos homens de Schreuder. Estavam mais próximos do que da última vez que tinham parado. Soavam como se estivessem na volta da curva do contraforte atrás deles. Hal olhou para Aboli com aflição, e tentou equilibrar-se na perna boa para ocultar a fraqueza da outra. Conseguiam escutar nitidamente o tilintar de espada na rocha e o baque de pedras soltas sob os pés. As vozes dos soldados eram tão claras e altas que Hal podia distinguir as palavras e o comando de Schreuder, urgindo sem descanso as tropas para a frente.
- Agora irá me obedecer, Gundwane! - disse Aboli, inclinando-se e arrancando o mosquete da mão de Hal. - Irá em frente na melhor velocidade enquanto eu os seguro aqui por algum tempo. - Hal estava pronto para discutir, porém Aboli encarou-o com dureza nos olhos. - Quanto mais discutir, mais perigo coloca sobre mim - disse.
Hal concordou.
Eu o encontro no topo da garganta. - Segurou o braço de Aboli num aperto firme e depois avançou sozinho, mancando.
Conforme a trilha adentrava a garganta principal, Hal olhou para trás e viu que Aboli buscara abrigo agachando-se na curva do caminho, e que depusera os dois mosquetes sobre a rocha em frente a ele, ao alcance da mão.
Hal fez a volta, ergueu os olhos e viu a garganta abrir-se acima dele como um grande funil sombrio. Os lados eram de paredes rochosas íngremes, e o teto era formado pelas árvores em altos caules esguios que se estendiam para cima em busca da luz do sol. Estavam vestidas e enfeitadas de liquens. Um pequeno riacho saltava para baixo, numa série de poças e cascatas, e a trilha tomava aquele leito do riacho e subia pelas lajes molhadas. Hal caiu de joelhos, enfiou o rosto na primeira poça e sorveu a água, engasgando-se e tossindo com a sede. Conforme a água lhe distendia a barriga, sentiu a força fluir de volta para a perna inchada e latejante.
Do outro lado do contraforte atrás dele, veio o estouro de um tiro de mosquete, depois o baque de uma bala atingindo a carne, seguido imediatamente pelo berro de um homem lançado ao abismo, um grito que diminuía e fenecia enquanto ele despencava para baixo. Foi cortado abruptamente quando ele atingiu as rochas lá o fundo. Aboli fizera certeiro seu primeiro tiro, e os perseguidores se lançaram para trás em confusão. Levaria tempo para se reagruparem e seguirem com mais cautela, e assim Aboli ganhara preciosos minutos para Hal.
Hal ficou de pé e arrojou-se pelo leito do riacho. Cada uma das imensas e suaves lajes testava-lhe a perna ferida a seu limite. Ele resmungava, gemia e se arrastava para cima, apurando os ouvidos ao mesmo tempo em busca de sons de luta atrás, porém não ouviu mais nada até que chegou à próxima poça, onde estacou, surpreso.
Althuda deixara os cinco cavalos cinzentos amarrados a uma árvore morta à beira d'água. Quando ele olhou além deles, para o próximo gigantesco degrau no leito do riacho, percebeu por que eles os tinham abandonado ali. Não poderiam mais seguir aquela trilha vertiginosa. A garganta se contraía numa estreita fenda acima de sua cabeça - e sua Própria coragem falhou quando ele inspecionou a perigosa rota que teria de seguir. Porém, não havia nenhum outro caminho, pois a garganta se transformara numa armadilha da qual não havia nenhum escape. Enquanto se postava indeciso, ouviu ao longe e abaixo um outro tiro de Mosquete e um clamor de gritos zangados.
- Aboli acertou outro - disse, em voz alta, e sua própria voz ecoou sobrenatural pelas altas paredes da garganta. -Agora, ambos os mosquetes estão vazios, e ele terá de correr.
Aboli, porém, ganhara aquele tempo para ele, e Hal não ousava desperdiçá-lo. Avançou para a trilha íngreme, arrastando a perna ferida sobre a rocha luzidia, polida pela água, que estava escorregadia e traiçoeira com as viscosas algas verdes.
Com o coração a pulsar de fadiga, e as unhas quebradas até o toco ele escalou os últimos poucos passos para cima e alcançou o parapeito da garganta. Ali, caiu de barriga e olhou para trás, pela borda. Viu Aboli, que subia, saltando de rocha em rocha sem hesitação, um mosquete apertado em cada mão, sem nem mesmo relancear os olhos para baixo para avaliar as passadas pelas lajes traiçoeiras.
Hal ergueu os olhos para o céu pela estreita abertura da garganta, ao alto de sua cabeça, e viu que o dia estava findando. Logo estaria escuro, e os topos das árvores se transformavam em ouro com os últimos raios do sol.
- Por aqui! - gritou para Aboli.
- Continue, Gundwane! - berrou Aboli de volta. - Não espere por mim. Eles estão logo atrás!
Hal virou-se e olhou para o leito íngreme do riacho atrás de si. Pelos próximos duzentos passos, a torrente ficava a plena vista: se ele e Aboli tentassem continuar a escalada, então Schreuder e seus homens alcançariam aquela posição vantajosa enquanto as costas dos dois fugitivos ainda estivessem expostas. Antes que pudessem alcançar o próximo abrigo, seriam atingidos pelo fogo de mosquetes de curto alcance.
Temos de fazer nossa parada aqui, decidiu. Precisamos segurá-los até o cair da noite, e então tentar nos esgueirar para longe na escuridão. Reuniu depressa as pedras soltas do curso d'água em que se escondia e amontoou-as ao longo da beirada do parapeito. Quando olhou para baixo, viu que Aboli chegara ao sopé da muralha de pedra e subia rapidamente em direção a ele.
Quando Aboli estava a meio caminho e completamente exposto, ouviu se um tiro vindo de baixo da garganta sombria. Através da penumbra. Hal divisou a forma do primeiro de seus perseguidores. Houve um lampejo e o espocar de um tiro de mosquete, e Hal espiou para baixo, ansioso, mas Aboli estava ileso e ainda subia depressa.
Agora, o fundo da garganta enxameava de homens, e uma fuzilaria produziu um eco de estouros e baques. Hal divisou Schreuder em meio à penumbra; sua face branca se destacava entre as mais escuras que o rodeavam.
Aboli chegou ao topo da parede rochosa, e Hal estendeu-lhe a mão para o parapeito.
Por que não continuou, Gundwane? - Ele ofegava. Não há tempo para conversa. - Hal agarrou um dos mosquetes dele e começou a recarregá-lo. - Temos de segurá-los aqui até o escurecer. Recarregue!
- A pólvora quase acabou - retrucou Aboli. - Só há o suficiente para uns poucos tiros mais. - Enquanto falava, manejava o soquete.
- Então precisamos fazer valer cada disparo. Depois disso, vamos atacá-los com pedras. - Hal comprimiu a caçoleta do mosquete. - E quando tivermos esgotado as pedras para jogar, meteremos o aço neles.
Balas de mosquete começaram a zunir e estourar em torno de suas cabeças à medida que os homens abaixo abriam uma saraivada contínua de tiros. Hal e Aboli foram forçados a se esconder embaixo do parapeito, a cada poucos segundos erguendo as cabeças para dar uma espiada rápida para baixo da muralha.
Schreuder usava a maioria de seus homens para manter a fuzilaria, controlando-os para que as armas estivessem sempre carregadas e prontas para disparar a seu comando, enquanto outros as recarregavam. Parecia que escolhera uma equipe de seus homens mais fortes para escalar a parede, enquanto seus artilheiros tentavam impedir Hal e Aboli de se defenderem.
Aquela primeira onda de uma dúzia ou mais de escaladores carregando apenas as espadas avançou em frente e arrojou-se pela parede rochosa, mãos e pés seguindo para cima. Então, assim que as cabeças de Hal e Aboli apareceram sobre a borda, veio o estrondoso estouro de fogo de mosquete, e as chispas dos canos iluminaram a penumbra.
Hal ignorou as balas que voavam ao redor e se chocavam contra a rocha abaixo. Empurrou para fora o cano do mosquete e mirou-o para o escalador mais próximo. Aquele era um dos cabos brancos holandeses, e o alcance era à queima-roupa. A bala de Hal atingiu-o na boca, arrebentou-lhe os dentes e esmagou-lhe a mandíbula. Ele perdeu o aperto na face escorregadia da pedra e caiu de costas. Chocou-se contra os três homens abaixo, arrancando-lhes as mãos do apoio, e todos os quatro voaram para baixo para se estourar nas rochas.
Aboli disparou e mandou outros dois gibões-verdes a escorregar pelo Paredão. Em seguida, tanto ele como Hal pegaram as pistolas e dispararam de novo e outra vez, limpando a parede de escaladores, a não ser por dois homens que se agarravam impotentes a uma fenda a meio caminh da face polida da rocha.
Hal deixou cair as pistolas vazias e agarrou uma das lápides que colocara ao alcance da mão. A pedra lhe enchia o punho, e ele lançou-a contra o homem que estava abaixo. O gibão-verde a viu chegar, porém não podia evitá-la. Tentou enfiar a cabeça entre os ombros, mas a pedra pegou-o na têmpora, e ele abriu os dedos e caiu.
- Bom lance, Gundwane! - aplaudiu-o Aboli. - Sua mira está melhorando. - Atirou uma pedra no último homem na parede e atingiu-o sob o queixo. O gibão-verde oscilou por um momento e então perdeu o equilíbrio e despencou.
- Recarregue! - murmurou Hal com aspereza, e quando despejava a pólvora na arma, relanceou os olhos para a faixa de céu acima deles. - Será que a noite nunca chega? - lamentou, e viu Schreuder mandar uma nova onda de escaladores para subir a parede. A escuridão não viria salvá-los, pois, antes que tivessem recarregado os mosquetes, os soldados inimigos já estavam a meio caminho rocha acima.
Ajoelharam-se na borda e dispararam novamente, porém, desta vez, seus dois tiros derrubaram apenas um dos atacantes, e o resto continuou com firmeza. Schreuder mandou outra leva de escaladores para se juntar aos primeiros, e a parede inteira fervilhava de figuras escuras.
- Não podemos empurrá-los a todos para trás - disse Hal, com um desespero sombrio no coração. - Precisamos recuar para a garganta. - Porém, quando olharam para cima, para a escarpada subida cheia de contrafortes, o ânimo dos dois fraquejou.
Hal jogou o mosquete e, com Aboli a seu lado, seguiu para a traiçoeira escarpa. Os primeiros escaladores alcançavam a beirada da muralha e corriam, aos gritos, atrás deles.
Na escuridão que se aproximava, Hal e Aboli lutaram para seguir para cima, voltando-se quando os perseguidores os pressionavam bem mais de perto; espantavam-nos com suas lâminas e os faziam recuar o suficiente para lhes dar fôlego e seguir em frente. Porém, agora, mais e mais gibões-verdes chegavam ao topo da muralha, e era apenas uma questão de minutos antes que fossem alcançados e dominados.
Logo adiante, Hal percebeu uma profunda fenda na parede lateral da garganta, e, por ela, ele e Aboli poderiam encontrar abrigo em sua escuridão. Abandonou a ideia, no entanto, ao se nivelar a ela e ver como era rasa. Schreuder iria caçá-los ali como um furão expulsando um casal coelhos de um viveiro.
- Hal Courtney! - chamou uma voz da sombria greta na rocha.
Hal espiou dentro dela e, em seu fundo, viu dois homens. Um era Althuda, que o chamava, e o outro era um homem estranho, mais velho, barbado, vestido em peles de animal. Estava muito escuro para lhe ver a face claramente, porém, quando ele e Althuda insistiram com urgência, nem Hal nem Aboli hesitaram. Lançaram-se pela estreita abertura e se espremeram entre os dois homens que já estavam ali.
- Abaixe-se! - disse o estranho ao ouvido de Hal, e inclinou-se com um machado de cabo curto na mão.
Um soldado apareceu na abertura da fenda e ergueu a espada para investir contra os quatro homens agachados lá dentro, mas Althuda ergueu a pistola que tinha na mão e disparou à queima-roupa no centro do peito do inimigo.
Ao mesmo tempo, o estranho barbado levantou o machado e então o desceu com um golpe poderoso. Hal não entendeu o que ele estava fazendo, até que viu que o estranho cortara uma corda de casca trançada, espessa como o pulso de um homem e cabeluda. O machado secionara a corda rústica, e, conforme ela se partia, a ponta cortada chicoteou para longe, como se impelida por alguma imensa força. A extremidade fora enrolada e amarrada em torno de uma rija estaca de madeira enfiada dentro de uma rachadura na pedra. O comprimento da corda corria pelo canto da fenda e depois se esticava para cima até algum ponto perdido na penumbra reinante ao alto da garganta íngreme.
Por um longo minuto, nada mais aconteceu, e Hal e Aboli se entreolharam, admirados. Então, ouviram-se um ranger e um crepitar do alto do funil da garganta, um estrondo surdo e um estalar como se um gigante adormecido se espreguiçasse.
- Sabah provocou um desabamento de rochas! - explicou Althuda, enstantaneamente Hal compreendeu.
Olhou para a garganta através da entrada estreita da greta. O retumbar tornou-se um rugido concentrado e, acima dele, Hal podia ouvir os gritos selvagens e terrificados dos gibões-verdes colhidos em cheio pela trilha daquela avalanche. Para eles, não havia nem abrigo nem escape. A garganta era uma armadilha mortal para a qual Althuda e Sabah os tinham atraído.
O roncar e moer de pedras elevou-se num crescendo ensurdecedor. A montanha parecia tremer sob eles. Os berros dos soldados na trilha foram afogados, e, de repente, um rio poderoso de lajes em queda veio varrendo a entrada da fenda. A luz foi bloqueada, e o ar se encheu de tal maneira de poeira e de rocha moída, que os quatro homens engas-garam e ofegavam para respirar. Cego e sufocado, Hal ergueu a ponta da camisa rasgada e segurou-a sobre o nariz e a boca, tentando filtrar o ar para que pudesse respirar na tumultuosa tempestade de pó lançado pela onda arrasadora de rochas e pedras em vôo que escorria por sobre eles.
A avalanche continuou por um longo tempo, porém, gradualmente, o rio de pedras moventes diminuiu até se tornar um lento e intermitente deslizar e bater dos últimos poucos fragmentos. Um último silêncio, completo e opressivo, pesou sobre eles, e a poeira assentou-se para revelar e delinear a abertura de seu abrigo.
Aboli engatinhou para fora e equilibrou-se desajeitadamente no terreno solto e instável. Hal subiu até o lado dele e ambos espiaram para baixo, para a garganta escura. De parede a parede, fora limpa pela avalanche. Não havia nenhum som ou traço de seus perseguidores, nem um último grito desesperado ou gemido de morte, nem um pedaço de pano ou arma descartada. Era como se eles nunca tivessem estado ali.
A perna ferida de Hal não podia mais suportar seu peso. Ele cambaleou e caiu na abertura da fenda. Em seu sangue, a febre das feridas infeccionadas fervia, e encheu sua cabeça com escuridão e calor. Ele teve noção de mãos fortes que o apoiavam e então afundou na inconsciência.
O coronel Cornélius Schreuder aguardou por uma hora na antecâmara do castelo antes que o governador van de Velde tivesse a condescendência de vê-lo. Quando, por fim, foi chamado por um ajudante-de-ordens, caminhou em passadas largas para a câmara de audiência do governador, mas ainda assim van de Velde declinou de prestar atenção à sua presença. Continuou a assinar os documentos e proclamações que Jacobus Hop colocava diante dele, um de cada vez.
Schreuder estava em pleno uniforme, usando todas as suas condecorações e estrelas. Sua peruca fora empoada e enrolada fazia pouco, e seus bigodes estavam untados com cera de abelha em pontas agudas. De um lado de sua face havia cicatrizes rosadas e crostas de feridas.
Van de Velde assinou o último documento e dispensou Hop com um aceno de mão. Quando o escrivão saiu e fechou a porta atrás de si, van de Velde apanhou o relatório escrito de Schreuder da escrivaninha à sua frente como se fosse um pedaço particularmente revoltante de excremento.
- Então, perdeu quase quarenta homens, Schreuder? - perguntou, asperamente. - Para não mencionar oito dos melhores cavalos da companhia.
Trinta e quatro homens - corrigiu Schreuder, ainda postado rígido em atenção.
- Quase quarenta! - repetiu van de Velde, com uma expressão de repugnância. - E oito cavalos. Os condenados e escravos que estava perseguindo se safaram para longe de você. Dificilmente uma retumbante vitória, não concorda, coronel? - Schreuder fez uma careta furiosa para as cornijas esculpidas no teto, acima da cabeça do governador. - A segurança do castelo é sua responsabilidade, Schreuder. A intenção dos prisioneiros é de sua responsabilidade. A segurança de minha pessoa e de minha esposa é também de sua responsabilidade. Concorda, Schreuder?
- Sim, Excelência. - Um nervo sob o olho de Schreuder começou a pulsar.
- Você permitiu que os prisioneiros escapassem. Permitiu que roubassem a propriedade da companhia. Permitiu que causassem graves danos a este prédio com explosivos. Olhe para minhas janelas! - Van de Velde apontou para os encaixes vazios dos quais os vitrais de vidro estanhado tinham estourado. - Tenho estimativas do supervisor da companhia que avaliam o dano em mais de cem mil guinéus! - Caminhava firmemente para um acesso de raiva. - Cem mil guinéus! Depois, para coroar tudo isso, permitiu que minha esposa e eu mesmo fôssemos sequestrados e colocou-nos em perigo mortal... - Teve de se interromper para controlar o temperamento. - Então, permitiu que quase quarenta dos servos da companhia fossem assassinados, inclusive cinco homens brancos! Qual imagina que seja a reação do Conselho dos Dezessete em Amsterdã, quando receber meu completo relatório detalhando a profundeza da derrelição de seus deveres, hein? O que julga que dirão? Responda-me, seu papagaio arrivista. O que pensa que dirão?
- Podem ficar de alguma forma desgostosos - retrucou Schreuder, empertigado.
- Desgostosos? De alguma forma desgostosos? - esgoelou van de Velde, e caiu de costas na cadeira, ofegando como um peixe fisgado. Quando se recuperou, prosseguiu: - Será o primeiro a saber se estão ou não de alguma forma desgostosos, Schreuder. Eu o estou mandando de volta a Amsterdã na mais profunda desgraça. Partirá em três dias a bordo do Weltevreden, que está ancorado na baía neste momento.
Apontou pelas janelas vazias para o amontoado de navios que jaziam em âncoras além da linha do quebra-mar.
- Meu relatório sobre o assunto irá para Amsterdã no mesmo navio junto com minha condenação a você nos termos mais fortes possíveis. Ficará diante dos Dezessete e apresentará suas escusas a eles em pessoa - Sorriu maliciosamente para o coronel com um ar de satisfação. - Sua carreira militar está destruída, Schreuder. Sugiro que assuma sua vocação de cafetão, para a qual demonstrou considerável aptidão. Adeus coronel Schreuder. Duvido que eu tenha o prazer de sua companhia alguma vez novamente.
Doído com os insultos do governador como se tivesse levado vinte chibatadas de azorrague, Schreuder seguiu até o topo da escada. Para dar a si mesmo tempo de recuperar a compostura e o temperamento, parou para inspecionar o dano que a explosão infligira aos edifícios que rodeavam o pátio. A armaria fora destruída, estourada numa pilha de entulhos. As tábuas do teto da ala norte estavam arrebentadas e enegrecidas pelo incêndio que se seguira à explosão, porém as muralhas exteriores estavam intactas, e outros prédios apenas superficialmente danificados.
As sentinelas que antes saltariam em atenção à sua aparição agora se demoravam em lhe render as honras, e quando finalmente lhe endereçaram uma saudação afetada, um acompanhou-a com um sorriso impudente. Na minúscula comunidade da colónia, as notícias se espalhavam com rapidez, e, evidentemente, sua dispensa desonrosa do serviço da companhia já era conhecida da guarnição inteira. Jacobus Hop devia ter tido prazer em espalhar as novas, julgou Schreuder, e voltou-se para a sentinela sorridente.
- Varra essa careta de sua face horrenda, ou, por Deus, eu a barbearei com minha espada.
O homem ficou sério instantaneamente e olhou rígido para a frente. No entanto, conforme Schreuder cruzava o pátio, Manseer e os outros supervisores murmuravam e sorriam atrás dos seus punhos fechados. Mesmo alguns dos prisioneiros recapturados, agora a usar grilhões, que reparavam o dano à armaria, pararam de trabalhar para sorrir de soslaio.
Tal humilhação era penosamente difícil para um homem de seu orgulho e temperamento suportar, e ele tentou imaginar quanto mais isso ia piorar quando retornasse à Holanda e se defrontasse com o Conselho dos Dezessete. Sua vergonha seria gritada em cada taberna e porto, em cada guarnição e regimento, nos salões de todas as grandes casas e mansões de Amsterdã. Van de Velde estava correto: ele se tornaria um pária.
Seguiu em frente, passando pelos portões e pela ponte sobre o fosso. Não sabia para onde ia, porém voltou-se em direção à beira-mar e postou-se acima da praia, olhando para o oceano. Lentamente, pôs as emoções turbulentas sob controle e começou a procurar por algum escape ao escárnio e do ridículo que não poderia suportar.
Terei de engolir uma bala, resolveu. É o único caminho aberto para mim. Então, quase instantaneamente, sua natureza revoltou-se contra um tal curso covarde de ação. Recordou-se de como desprezara um de seus oficiais na Batávia que, por causa de problemas com uma mulher, colocara o cano de uma pistola carregada na boca e explodira a parte posterior do crânio.
- É a saída de um covarde! - exclamou Schreuder em voz alta. - E não é para mim.
Contudo, sabia que não poderia nunca obedecer às ordens de van de Velde, de voltar para casa, na Holanda. Porém, também não poderia permanecer ali, em Boa Esperança, nem viajar para qualquer possessão holandesa em algum lugar no globo. Era um proscrito, e devia encontrar alguma outra terra onde sua vergonha fosse desconhecida.
Agora, seu olhar focalizou-se no amontoado de naus ancoradas na baía da Mesa. Havia o Weltevreden, no qual van de Velde queria mandá-lo de volta para enfrentar os Dezessete. Seu olhar moveu-se para os três outros navios holandeses que jaziam perto dele. Não zarparia num navio holandês, porém havia apenas duas naus estrangeiras. Uma era uma embarcação de escravos portuguesa, rumo aos mercados de Zanzibar. A simples ideia de viajar num navio negreiro era detestável - podia sentir-lhe o cheiro dali de onde estava, acima da praia. O outro navio era uma fragata inglesa, e, pela aparência, recém-lançada ao mar e bem construída. Seus cordames eram novos, e sua pintura apenas ligeiramente estragada pelos ventos do Atlântico. Tinha o ar de um navio de guerra, porém ele ouvira dizer que pertencia a um comerciante armado. Podia ler-lhe o nome no pranchão: Golden Bough - Ramo Dourado. Tinha quinze portinholas de artilharia no costado, do lado que se aPresentava para ele conforme rodava ligeiramente na âncora, porém e não sabia de onde viera e para onde rumava. Contudo, sabia exatamente onde descobrir tal informação; assim, enfiou o chapéu firmemente sobre a peruca e caminhou ao longo da praia, rumando para a mais próxima das insalubres choupanas que serviam como bordel e bares para os marujos dos oceanos.
Mesmo àquela hora da manhã, a taberna estava lotada, e o interior sem janelas era sombrio e fedorento com a fumaça de tabaco e os eflúvios das aguardentes baratas e da freguesia sem banho. As prostitutas eram na maioria hotentotes, contudo havia uma ou duas mulheres brancas que tinham ficado velhas demais e marcadas de varíola para trabalhar mesmo nos portos de Roterdã ou St. Pauli. De alguma forma tinham encontrado navios que as levassem para o sul e vieram para terra, como ratos, para desperdiçar seus últimos dias naquelas esquálidas redondezas antes que a tularemia as consumisse inteiramente.
Com a mão na empunhadura da espada, Schreuder conseguiu uma pequena mesa para si com uma palavra dura e um olhar superior. Assim que estava sentado, chamou uma das cansadas meretrizes atendentes para trazer-lhe uma caneca de cerveja leve.
- Quais são os marujos do Golden Bough - perguntou, e jogou uma moeda de prata sobre o sujo tampo da mesa.
A rameira apoderou-se daquela liberalidade e deixou-a cair pela frente do vestido encardido entre as tetas penduradas, antes de jogar a cabeça na direção de três marujos a uma mesa no canto oposto do salão.
- Leve a cada um daqueles cavalheiros outra caneca cheia de qualquer porcaria de urina que esteja servindo a eles e diga-lhes que estou pagando por isso.
Quando deixou a taberna, meia hora mais tarde, Schreuder sabia para onde o Golden Bough rumava, e o nome e a disposição de seu capitão. Desceu até a praia e alugou um esquife para levá-lo até a fragata.
O vigia de âncora a bordo do Golden Bough o avistara assim que ele deixara a praia, e podia dizer pela vestimenta e pelo porte que era um homem refinado. Quando Schreuder tocou o costado da fragata e pediu permissão para subir a bordo, um pesado e sorridente oficial galês saudou-o com cautela no convés e depois o conduziu até a cabine de popa, onde o capitão Christopher Llewellyn se levantou para cumprimentá-lo. Assim que ele estava sentado, ofereceu a Schreuder uma caneca de peltre de cerveja escura e adocicada. Estava obviamente aliviado ao descobrir que Schreuder falava um bom inglês. Llewellyn logo o reconheceu como um cavalheiro e um igual, relaxou e passou a conversar aberta e francamente.
Primeiro, discutiram as recentes hostilidades entre seus dois países, e se mostraram satisfeitos que uma paz satisfatória houvesse sido concluída; depois se puseram a falar sobre o comércio marítimo nos oceanos orientais e os poderes temporais e políticos que governavam as regiões das índias Orientais e índia remota. Eram assuntos altamente envolventes e complicados pela rivalidade entre os poderes europeus, cujos mercadores e naus entravam em mares orientais cada vez mais em maior número.
Há também os conflitos religiosos que embaraçam as terras orientais - comentou Llewellyn. - Minha presente viagem é em resposta a um apelo do rei cristão da Etiópia, o Padre João, para assistência militar em sua guerra contra as forças do Islã.
À menção de guerra no Oriente, Schreuder sentou-se um pouco mais ereto na cadeira. Era um guerreiro, no momento um guerreiro desempregado, e guerra era seu negócio.
- Não tinha ouvido falar do conflito. Por favor, conte-me mais sobre isso.
- O grão-mogol mandou sua frota e uma armada sob o comando de seu irmão mais novo, Sadiq Khan Jahan, para recuperar os países que compõem o litoral do Great Horn da África das mãos do rei cristão. - Llewellyn interrompeu sua explicação para perguntar: - Diga-me, coronel, conhece alguma coisa sobre a religião islâmica?
Schreuder aquiesceu.
- Sim, é claro. Muitos dos homens que comandei durante os últimos trinta anos eram muçulmanos. Falo árabe e tenho feito um estudo sobre o Islã.
- Saberá, então, que um dos preceitos dessa crença de militantes é o hadj, a peregrinação ao lugar de nascimento do profeta em Meca, que está situada nas praias orientais do mar Vermelho.
- Ah! - exclamou Schreuder. - Posso ver aonde quer chegar. Qualquer peregrino do reinado do grão-mogol na índia seria forçado a entrar no mar Vermelho passando ao redor do grande corno da África. Isso traria as duas religiões para confrontação na região, estou correto em minha dedução?
Na verdade, coronel, eu me congratulo com o senhor por sua compreensão das implicações religiosas e políticas. Essa é precisamente a desculpa que vem sendo usada pelo grão-mogol para atacar o padre João. Claro, os árabes comerciam com a África desde antes do nascimento seja de nosso salvador, Jesus Cristo, ou do profeta Maomé. De uma cabeça-de-ponte na ilha de Zanzibar, eles vêm expandindo gradualmente a dominação para o continente. Agora têm a intenção de conquistar e subjugar o coração da Etiópia cristã.
- Se me permite a ousadia, qual é o seu papel nesse conflito? perguntou Schreuder, muito sério.
- Pertenço a uma ordem naval de cavalaria, os Cavaleiros do Templo da Ordem de São Jorge e do Santo Graal, comprometida em defender a fé cristã e os lugares sagrados do cristianismo. Somos os sucessores dos Cavaleiros Templários.
- Conheço sua ordem - disse Schreuder - e sou relacionado com diversos de seus irmãos cavaleiros. O conde de Cumbrae é um deles.
- Ah! - fungou Llewellyn. - Ele não é um exemplo brilhante de nossos membros.
- Também conheci Sir Francis Courtney - prosseguiu Schreuder. O entusiasmo de Llewellyn não foi fingido.
- Eu o conheço bem - exclamou. - Que belo homem do mar e cavalheiro. Sabe, por acaso, onde posso encontrar Franky? Essa guerra religiosa no Graet Horn o atrairia como uma abelha para o mel. Com seu navio junto ao meu, seríamos uma força formidável.
- Receio que Sir Francis seja uma fatalidade da guerra recente entre nossos dois países. - Schreuder compôs a frase diplomaticamente, e Llewellyn pareceu perturbado.
- Fico triste com essas notícias. - Ficou calado por um momento e depois se levantou. - Para dar uma resposta a sua pergunta, coronel Schreuder, estou a caminho de Great Horn em resposta ao chamado do padre para ajudar a repelir as investidas do Islã. Pretendo zarpar com a maré esta noite mesmo.
- Sem dúvida, o padre deve estar necessitando de militares, assim como de assistência naval, não é? - perguntou Schreuder, abruptamente. Tentou disfarçar a excitação que o acometia. Aquela era a resposta direta às suas preces. - Olharia com gentileza uma solicitação minha no sentido de viajar a bordo de seu belo navio para o teatro de guerra? Eu também estou determinado a oferecer meus serviços à causa.
Llewellyn pareceu espantado.
- Uma súbita decisão, senhor. Não tem deveres e obrigações em terra? Seria possível ao senhor partir comigo com tal brevidade?
- Na verdade, capitão, sua presença aqui na baía da Mesa parece um golpe do destino. Livrei-me hoje mesmo das obrigações das quais fala. É quase como se que tivesse a premonição divina desse chamado para o dever. Estou pronto a atender ao chamado. Ficaria satisfeito em pagar por minha passagem e a da dama que está para ser minha esposa, em moedas de ouro.
A Llewellyn fez um ar de dúvida, coçou a barba e estudou Schreuder judiciosamente.
- Tenho apenas uma única pequena cabine desocupada, dificilmente seria acomodação para pessoas de qualidade.
Pagarei dez guinéus ingleses pelo privilégio de viajar com o senhor - disse Schreuder, e a expressão do capitão desanuviou-se.
Eu ficarei honrado com sua companhia e a de sua dama. Contudo, não posso atrasar minha partida por uma única hora. Devo zarpar com a maré. Mandarei um bote levá-lo à terra e ficar à sua espera na praia.
Enquanto era levado para terra, Schreuder fervia de excitação. O serviço de um potentado oriental numa guerra religiosa certamente ofereceria oportunidades para glórias marciais e enriquecimento muito além do que poderia alguma vez ter esperado sob as ordens da Companhia Holandesa das índias Orientais. Havia encontrado um escape da ameaça de desgraça e ignomínia. Depois daquela guerra, ele ainda poderia retornar à Holanda carregado com ouro e glória. Aquela era a maré da fortuna pela qual esperara toda a sua vida, e, com a mulher que amava além de tudo mais a seu lado, ele a aproveitaria em sua plenitude.
Tão logo o bote chegou à praia, ele saltou e jogou uma pequena moeda de prata para o remador.
- Espere por mim!
E rumou para o castelo. Seu criado o esperava em seus aposentos, e Schreuder deu-lhe instruções para que empacotasse todas as suas posses, mandando-as para a beira da praia e colocando-as no escaler do Golden Bough. Parecia que toda a guarnição já sabia de sua demissão. Mesmo o criado não ficou surpreso com as ordens, nem ninguém julgaria estranho que ele se mudasse.
Gritou para o cavalariço e ordenou-lhe que selasse o único cavalo que restara. Enquanto esperava que a montaria fosse trazida dos estábulos, postou-se diante do pequeno espelho em seu quarto de vestir e aJeitou o uniforme, escovou a peruca e deu nova forma aos bigodes. Sentia um rubor de excitação e uma sensação de alívio. À hora em que o governador percebesse que ele e Katinka tinham partido, o Golden ough estaria em alto-mar e rumo ao Oriente.
Desceu correndo as escadas e para fora, no pátio, onde o cavalariço agora segurava o cavalo, e saltou para a sela. Estava com grande pressa, ansioso para partir, e incitou a montaria a um galope ao longo das avenidas rumo à residência do governador. Sua pressa, contudo, não era assim tão grande, para privá-lo de toda cautela. Não seguiu pelo caminho direto pelos gramados em frente à casa, tomando então a estrada lateral através do bosque de carvalho que era usada pelos escravos e fornecedores de lenha e provisões da vila. Puxou as rédeas assim que estava próximo o bastante para que o ruído de cascos fosse ouvido da residência, e levou o animal devagar para o estábulo atrás das cozinhas. Ao desmontar, um assustado cavalariço correu para pegar o cavalo, e Schreuder contornou a parede da cozinha, entrando nos jardins pelo pequeno portão ao canto.
Olhou ao redor com cautela em busca dos jardineiros que muitas vezes trabalhavam naquela parte da herdade, porém não viu sinal deles. Caminhou pelos gramados, nem devagar nem depressa, e entrou na residência pelas portas duplas que levavam à biblioteca. O longo aposento alinhado de livros estava deserto.
Schreuder estava bem acostumado com a disposição da residência. Visitara Katinka com frequência suficiente enquanto o marido cuidava dos deveres no castelo. Foi primeiro ao salão de leitura, que dominava os gramados e uma vista distante da baía e do Atlântico todo o seu azul. Era o retiro favorito de Katinka, porém, naquela hora, ela não estava ali. Havia uma escrava de joelhos em frente à estante de livros, a pegar cada volume e polir as capas de couro com um pano macio. Ela ergueu os olhos e se assustou, quando Schreuder surgiu quase em cima dela.
- Onde está sua patroa? - indagou ele, e quando a escrava gaguejou, com ar idiota, ele repetiu: - Onde está Mevrouw van de Velde?
A garota levantou-se, confusa.
- A patroa está em seu quarto. Mas não quer ser perturbada. Não está bem. Deixou ordens estritas.
Schreuder girou nos calcanhares e desceu pelo corredor. Gentilmente, tentou a maçaneta da porta ao fim da passagem, porém estava trancada por dentro. Soltou uma exclamação de impaciência. O tempo se esgotava, e ele sabia que Llewellyn não hesitaria em fazer valer o aviso de partir sem ele quando a maré subisse. Correu pelo corredor e passou pelas portas envidraçadas para a longa varanda. Correu para as janelas que se abriam para dentro da suite principal. As janelas para o quarto de vestir de Katinka estavam fechadas, e ele ergueu o punho para bater e então se controlou. Não queria alertar os escravos da casa. Assim puxou a espada, enfiou a lâmina pela abertura nas venezianas e ergueu o trinco do lado de dentro. Abriu a porta e entrou para o aposento. O perfume de Katinka assaltou-lhe os sentidos, e, por um instante, Schreuder se sentiu atordoado por seu amor e anseio por ela. Então, com um ímpeto de alegria, recordou-se de que ela seria só dele, logo os dois estariam longe, em viagem, de mãos dadas, para construir uma nova vida e fortuna juntos. Atravessou o assoalho em passos leves, para não assustá-la, e puxou suavemente as cortinas da porta para o quarto principal. Ali, também, as venezianas estavam fechadas e trancadas, e o quarto em semi-obscuridade. Ele parou para permitir que seus olhos se ajustassem à luz ténue e viu que a cama estava em desalinho.
Então, na penumbra, divisou o brilho perolado da pele branca sem sardas entre as roupas de cama emaranhadas. Ela estava nua, as costas voltadas para ele, os cabelos de um ouro prateado caindo em cascata até a elevação das nádegas perfeitas. Schreuder sentiu uma onda de luxúria, sua virilha inchou-se, e ele foi tão dominado pelo desejo, que por um momento não conseguiu se mover, nem mesmo respirar.
Então, ela virou a cabeça e olhou diretamente para ele. Seus olhos se arregalaram e toda a cor drenou-se de sua face.
- Seu porco desprezível! - disse, entre os dentes. - Como ousa me espionar? - Sua voz era baixa, porém cheia de escárnio e fúria.
Ele se encolheu, atónito. Ela era sua amante e ele não podia compreender que lhe falasse daquele jeito, nem que pudesse encará-lo com tanto desprezo e fúria. Então ele viu que seus seios nus brilhavam com o suave brilho do próprio suor, e que ela estava sentada a cavalo sobre uma forma masculina. O homem sob ela jazia de costas, e Katinka estava empalada nele, no ato da paixão, cavalgando-o como a um corcel.
O corpo do homem era musculoso, branco e rijo, o corpo de um gladiador. Com um movimento explosivo, Katinka livrou-se dele e virou-se para encarar Schreuder. Enquanto se postava ao lado da cama, tremendo de ultraje, suas coxas internas reluziam com o fluxo do ato sexual.
- O que está fazendo em meu quarto? - sibilou ela para Schreuder. Com ar estupidificado, ele respondeu:
- Vim para levá-la embora comigo.
Mas seus olhos correram para o corpo do homem. Seus pêlos púbicos estavam molhados e emaranhados, e seu sexo investia rumo ao teto, grosso, inchado e luzidio, com uma brilhante e viscosa cobertura. O homem sentou-se e olhou reto para Schreuder, com um olhar amarelado.
Uma onda de indescritível horror e repulsa invadiu Schreuder. Katinka, Seu amor, estava mantendo relações sexuais com João Lento, o carrasco.
Katinka estava falando, porém as palavras mal faziam sentido para ele.
- Veio para me levar embora? O que o fez pensar que eu iria com você, o palhaço da companhia, a inspiração das risadas da colónia? Saia daqui, seu idiota. Vá para a obscuridade e vergonha às quais pertence João Lento levantou-se da cama.
- Você a ouviu. Saia ou o eu o jogarei lá fora.
Não foram as palavras que transtornaram Schreuder, deixando-o como um louco, e sim o fato de que o pênis de João Lento ainda estava completamente intumescido. Seu temperamento, que até aquele momento ele fora capaz de manter sob restrição, entrou a ferver e assumiu o controle. A humilhação, insultos e rejeição que haviam desabado sobre ele durante aquele dia, somava-se a fúria negra de seu ciúme.
João Lento inclinou-se para a pilha de roupas descartadas, que jaziam sobre os ladrilhos ao lado da cama, e endireitou-se de novo com uma faca de podar na mão direita.
- Eu o advirto - disse, naquela voz profunda e melodiosa -, saia agora, de uma vez.
Com um movimento fluido, a espada de Netuno saltou de sua bainha como se fosse uma coisa viva. João Lento não era um guerreiro. Suas vítimas lhe eram sempre entregues presas e algemadas. Nunca se confrontara antes com um homem como Schreuder. Saltou para a frente, a faca mantida baixa à frente, porém Schreuder lançou a espada pela face interna do pulso de João Lento, secionando-lhe os nervos de forma que os dedos do homem se abriram involuntariamente e a faca caiu nos ladrilhos.
Então investiu contra o coração. João Lento não teve nem tempo nem chance de se desviar do golpe. A ponta pegou-o no centro do peito largo e sem pêlos, e a lâmina enterrou-se direto até o punho enfeitado de safira. Os dois homens se postaram de pé, frente a frente, travados juntos pela arma. Gradualmente, o sexo de João Lento murchou e se pendurou, branco e flácido. Seus olhos esgazearam em volta e se tornaram opacos e sem vida, como pedregulhos amarelos. Conforme ele caía de joelhos, Katinka começou a gritar.
Schreuder arrancou a lâmina do peito do carrasco. Sua superfície polida estava ofuscada pelo sangue. Katinka berrou de novo quando um filete de sangue brilhante espirrou da ferida no peito de João Lento enquanto ele tombava de cabeça nos ladrilhos.
- Não grite - esbravejou Schreuder, com a fúria negra ainda a devorá-lo, e avançou para ela com a espada na mão. - Você me fez de bobo com essa criatura. Você sabia que eu a amava. Vim para buscá-la. Queria que partisse comigo.
Ela recuou diante dele, os punhos cerrados nas faces, e soltou um grito alto e cantante de histeria.
- Não grite - exclamou ele. - Fique quieta. Não posso suportar quando faz isso. - O som terrível ecoava em sua cabeça e a fazia doer, porém ela se encolheu para mais longe, os gritos mais altos agora, em berros pavorosos, e ele tinha de fazê-la parar. - Não faça isso!
Tentou segurá-la pelo pulso, porém ela foi mais rápida. Livrou-se do aperto. Seus berros aumentaram de volume, e a raiva de Schreuder rompeu seus limites como se fosse algum animal negro terrível sobre o qual não tivesse nenhum controle. A espada em sua mão voou sem que seu cérebro ou sua mão comandasse, e ele espetou-lhe o ventre branco e acetinado, logo acima do ninho dourado do mons veneris.
Os berros de Katinka transformaram-se num guincho mais alto e agonizante, e ela agarrou-se à lâmina conforme ele a puxava da carne. Cortou-lhe as palmas até o osso, e ele investiu de novo, para aquietá-la, duas vezes mais na barriga.
- Quieta! - rugiu, e ela se voltou e tentou correr para as portas do quarto de vestir, porém ele a acertou nas costas, logo acima dos rins, puxou a lâmina e atingiu-a entre os ombros.
Katinka caiu e rolou de costas; e Schreuder se inclinou sobre ela e a trespassou e furou e cravou-lhe a lâmina. A cada vez, a espada passava através do corpo e batia nos ladrilhos sobre os quais ela se contorcia.
- Fique quieta! - berrava ele, e continuou com as estocadas até que os gritos e soluços de Katinka findaram. Mesmo então, ele continuou a perfurá-la, de pé na poça de sangue que se espalhava, seu uniforme ensopado de gotas escarlates, sua face e braços de tal modo borrifados e manchados, que ele parecia uma vítima da praga com as escaras de sua doença.
Então, lentamente, a ira negra drenou-se de seu cérebro, e ele cambaleou para trás, contra a parede, deixando borrões do sangue da amante pela caiação.
- Katinka! - murmurou. - Eu não pretendia feri-la. Eu a amo tanto!
Ela jazia na larga e funda poça de seu próprio sangue. Os ferimentos eram como um coro de bocas vermelhas na pele branca. O sangue ainda fluía de cada um deles. Ele jamais poderia sonhar que houvesse tanto sangue naquele corpo esguio e branco. A cabeça de Katinka repousava numa lagoa escarlate, e seus cabelos estavam ensopados de vermelho a face embaciada por uma camada grossa de sangue. As feições se mostravam torcidas num ricto de terror e agonia, não mais uma visão prazerosa.
- Katinka, minha querida. Por favor, perdoe-me.
Schreuder cambaleou pelo chão na direção dela, pisando no rio de sangue que se espalhava sobre os ladrilhos. Então, parou com a espada na mão quando, no espelho do quarto, vislumbrou uma selvagem aparição manchada de sangue que olhava de volta para ele.
- Oh, doce Maria, o que foi que eu fiz? - Desviou os olhos da criatura no espelho e ajoelhou-se ao lado do corpo da mulher que amava. Tentou erguê-la, porém ela estava flácida e parecia sem ossos. Escorregou de seu abraço e afundou na poça do próprio sangue.
Ele se levantou novamente e se afastou.
- Não queria que você morresse. Você me deixou louco. Eu a amava, porém você foi infiel.
De novo, viu seu próprio reflexo no espelho.
- Oh, meu Deus, o sangue. E tanto! - Limpou, com as mãos ensopadas, a confusão escarlate que lhe recobria a jaqueta e depois a face, espalhando o sangue numa máscara rubra de carnaval.
Pela primeira vez, pensou em fugir no bote que esperava por ele na praia e na fragata que jazia em âncora na baía.
- Não posso sair pela colónia desse jeito! Não posso subir a bordo assim!
Cambaleou pelo quarto para a porta do quarto de vestir do governador. Arrancou a jaqueta encharcada e jogou-a para longe. Uma jarra d'água estava numa bacia no gabinete, e ele enfiou nela as mãos ensanguentadas e esfregou-as sobre a face. Pegou a toalha do gancho e encharcou-a na água rosada, e depois esfregou os braços e a frente das calças.
- Tanto sangue! - continuou repetindo, conforme esfregava e depois enxaguava o pano e esfregava novamente.
Achou uma pilha de camisas brancas limpas em uma das prateleiras e enfiou uma sobre o peito molhado. Van de Velde era um homem grande, e a peça lhe serviu muito bem. Schreuder olhou para baixo e viu que as manchas de sangue não eram tão evidentes na sarja escura de suas calças. A peruca estava manchada, e assim ele a arrancou e a jogou contra a parede oposta. Escolheu outra da fila colocada em blocos ao longo da parede do fundo. Achou um manto de lã que o cobria dos ombros canelas. Passou um minuto limpando a lâmina e a safira da espada de Netuno e depois a enfiou de volta na bainha. Quando olhou outra vez no espelho, viu que sua aparência não mais iria chocar ou alarmar. Então, um pensamento acudiu-lhe. Pegou a jaqueta ensopada e arrancou as estrelas e as condecorações das lapelas. Enrolou-as num lenço de pescoço que encontrou numa das prateleiras e enfiou o embrulho do bolso interno do manto de lã.
Parou no limiar do quarto de vestir do governador e olhou pela última vez para o corpo da mulher que amava. Seu sangue ainda continuava escorrendo pelos ladrilhos como uma víbora gorda e preguiçosa. Enquanto olhava, a trilha chegou à beirada da poça menor em que João Lento jazia. O sangue dos dois correu junto, e Schreuder sentiu uma profunda sensação de sacrilégio de que o puro pudesse se misturar assim com o abjeto.
- Não queria que isso acontecesse - disse, desesperadamente. - Sinto tanto, minha querida! Eu queria que viesse comigo. - Passou com cuidado por sobre o rio de sangue, foi até a janela por onde entrara e saiu para a varanda. Puxou o manto em torno dos ombros e seguiu pelos jardins até a pequena porta no estábulo, onde gritou para o cavalariço, que se apressou em lhe trazer o cavalo.
Schreuder trotou pela avenida e cruzou o campo, a olhar direta-mente para a frente. O escaler ainda estava na praia, e quando se aproximou, o barqueiro chamou por ele:
- Estava a ponto de desistir do senhor, coronel. O Golden Bough está encurtando o cabo de âncora e manejando as vergas.
Quando ele subiu para o convés da fragata, o capitão Llewellyn e sua tripulação estavam tão absortos com a tarefa de içar a âncora e colocar o navio sob velas, que lhe prestaram pouca atenção. Um aspirante mostrou-lhe a pequena cabine e depois se apressou em deixá-lo sozinho. Seus baús de viagem haviam sido trazidos para bordo e estavam guardados sob o catre estreito. Schreuder arrancou todas as roupas sujas e encontrou um uniforme limpo em um dos baús. Antes de envergá-lo, colocou as estrelas e as condecorações nas lapelas. Sua roupa manchada de sangue, ele a amarrou num embrulho e então olhou ao redor em busca de alguma coisa para lhe dar peso. Obviamente, as anteparas de madeira delgada seriam arrancadas quando a fragata entrasse em ação, e sua cabine faria parte do convés de artilharia do navio. Uma colubrina enchia a maior parte do espaço disponível. Ao lado da arma, havia uma pirâmide de bolas de canhão de ferro. Ele enfiou uma no embrulho de roupas encharcadas de sangue e esperou até sentir que o navio se chegava ao vento e avançava para a baía.
Então, abriu a escotilha de fogo numa fenda e deixou cair o embrulho através dela para as cinquenta braças de água verde. Quando subiu ao tombadilho, já estavam uma légua ao largo da praia e correndo velozmente com o sudeste para se fazer ao alto-mar antes de rodear o cabo.
Schreuder olhou para a terra e divisou o teto da mansão do governador entre as árvores, na base da grande montanha. Ficou a imaginar se já tinham descoberto o corpo de Katinka, ou se ela ainda jazia unida na morte a seu amante abjeto. Ficou postado ali, na amurada de popa, até que o grande maciço da montanha da Mesa era apenas uma distante silhueta azul contra o céu da noite.
- Adeus, minha querida - murmurou.
Somente quando jazia insone no duro catre, à meia-noite, foi que a enormidade de sua situação começou a revelar-se para ele. Sua culpa era manifesta. Cada navio que deixasse a baía da Mesa carregaria as notícias pelos oceanos e a cada porto no mundo civilizado. Daquele dia em diante, era um fugitivo e um fora-da-lei.
Hal acordou com uma sensação de paz como raramente conhecera antes. Continuou deitado de olhos fechados, preguiçoso e fraco demais para abri-los. Percebeu que estava quente e seco e espalhado sobre um colchão confortável. Esperava que o fedor do calabouço o assaltasse, o mofado odor de umidade, de palha podre, da barrica de latrina, e o cheiro de homens que não se banhavam por doze meses, amontoados juntos num buraco fétido na terra. Em vez disso, sentiu o aroma de fumaça de lenha fresca, perfumada e doce, o cheiro de feixes de cedro se queimando.
De súbito, as lembranças lhe chegaram em fluxo de volta, e, com uma grande elevação de espírito, ele se recordou da fuga, de que ele não mais era um prisioneiro. Continuou deitado, a saborear a constatação. Havia outros cheiros e sons. Divertiu-o tentar reconhecê-los sem abrir os olhos. Havia o odor do colchão de capim recém-cortado sobre o qual ele jazia e do manto de pele que o cobria, o aroma de carne assan do nos carvões e outra fragrância perturbadora que ele não conseguia identificar. Era uma mescla de flores silvestres e um cálido e travesso almíscar que o excitava estranhamente e se somava à sua sensação de bem-estar.
Abriu os olhos, lenta e cautelosamente, e foi ofuscado pela luz forte da montanha através da abertura do abrigo no qual jazia. Olhou ao redor e viu que fora construído na lateral da montanha, pois metade das paredes era de rocha macia, e os lados mais próximos da abertura, construídos de árvores novas, entrelaçadas e rebocadas com argila vermelha. O teto era de palha. Potes de cerâmica e ferramentas cruamente fabricadas e implementos estavam encostados contra a parede interna. Um arco e uma aljava pendiam de uma pequena estaca ao lado da porta. Ao lado deles, sua espada e as pistolas.
Continuou deitado e ouviu o borbulhar de um riacho de montanha e depois a risada de mulher, mais alegre e mais adorável que o murmurejar da água. Ergueu-se lentamente sobre um cotovelo, espantado com o esforço que isso exigia, e tentou olhar através da abertura. O som de uma risada de criança misturou-se ao da mulher. Através de todo o longo cativeiro, ele nunca ouvira nada igual àquilo, e não pôde se impedir de soltar uma risadinha deliciada.
O som do riso feminino cessou e houve um rápido movimento do lado de fora da choupana. Uma figura flexível de moleque apareceu na abertura, recortada pelo sol, de maneira que o que ele via era apenas uma silhueta adorável. Embora não lhe pudesse ver a face, Hal sabia muito bem quem era.
- Bom dia, Gundwane, dormiu por muito tempo, mas dormiu bem? - indagou Sukeena com timidez. Tinha a criança no quadril, e seus cabelos estavam soltos, pendurados num negro véu até a cintura. - Este é meu sobrinho, Bobby. - Sacudiu o bebé no quadril e ele gorgolejou deliciado.
- Por quanto tempo eu dormi? - perguntou Hal, começando a se levantar, porém ela passou o bebé para alguém do lado de fora e veio depressa se ajoelhar ao lado do colchão. Segurou-o com a mão quente sobre o peito nu.
- Devagar, Gundwane. Esteve em sono febril por muitos dias.
- Estou bem de novo, agora - disse ele, e então reconheceu o Perfume misterioso que sentira antes. Era o cheiro de mulher de Sukeena, as flores em seus cabelos e o suave calor de sua pele.
-- Ainda não - contradisse-o Sukeena, e Hal deixou que ela lhe deitasse a cabeça de volta no colchão. Ele a fitava, e Sukeena sorria sem constrangimento.
- Jamais vi alguma coisa tão bela como você - murmurou ele, e depois ergueu a mão e tocou o próprio queixo. - Minha barba?
- Foi-se. - Ela riu, sentando-se com as pernas curvadas sob si.
- Furtei uma navalha do governador gordo especialmente para a tarefa.
- Pendeu a cabeça para um lado e estudou-o. - Com a barba fora, você também é bonito, Gundwane.
Corou ligeiramente ao se dar conta da importância de suas palavras, e Hal ficou a ver deleitado o vermelho dourado enrubescer-lhe as faces. Então ela voltou atenção total para a perna ferida, puxou a manta de pele para expô-la e desenrolou as ataduras.
- Ah! - murmurou, ao tocá-la de leve. - Sara maravilhosamente, com uma pequena ajuda de meus remédios. Você foi afortunado. A mordida da mandíbula de um cão é sempre venenosa, e depois o esforço ao qual submeteu a perna durante nossa fuga poderia tê-lo matado ou tê-lo deixado aleijado pelo resto de sua vida.
Hal sorriu diante dos comentários enquanto jazia de costas confortavelmente e se rendia às mãos de Sukeena.
- Está com fome? - perguntou ela, ao amarrar de novo as bandagens sobre a ferida.
Diante daquela pergunta, Hal se deu conta de que estava esfaimado. Ela lhe trouxe a carcaça de uma perdiz selvagem, grelhada nos carvões, e sentou-se do lado oposto ao dele, observando com um ar proprietário enquanto ele comia e depois sugava os ossos até ficarem limpos.
- Logo estará forte outra vez. - Sorriu. - Come como um leão.
- Reuniu os restos da comida e depois se levantou. - Aboli e seus outros marujos têm implorado a mim por uma oportunidade de vir vê-lo. Eu os chamarei agora.
- Espere! - impediu-a ele. Queria que aquele tempo de intimidade sozinho com ela não terminasse assim tão logo.
Sukeena ajoelhou-se ao lado dele mais uma vez e fitou-lhe a face, na expectativa.
- Não lhe agradeci ainda - murmurou ele, de forma pouco convincente. - Sem seus cuidados, eu provavelmente teria morrido de febre. Ela sorriu docemente e disse:
- Eu não lhe agradeci também. Sem você, eu ainda seria uma escrava. - Por um instante, fitaram-se sem falar, examinando abertamente a face um do outro em detalhes.
Então, Hal perguntou:
- Onde estamos, Sukeena? - Ele fez um gesto que englobou as redondezas. - Esta choupana?
- É de Sabah. Ele a emprestou a nós dois. Foi viver com os outros de seu bando.
- Então, estamos nas montanhas por fim?
- Fundo nas montanhas - concordou ela. - Num lugar que não tem nome. Num lugar onde os holandeses nunca podem nos encontrar.
- Quero ver - disse ele.
Por um momento, ela pareceu em dúvida, mas em seguida aquiesceu. Ajudou-o a ficar de pé e ofereceu-lhe o ombro para apoiá-lo quando ele saltou num pé só para a abertura do abrigo coberto de sapé.
Hal se abaixou e se recostou contra o poste da entrada, de dura madeira de cedro. Sukeena sentou-se ao lado dele enquanto ele relanceava os olhos ao redor. Por um longo tempo, nenhum dos dois falou. Hal respirava profundamente o ar fresco e alto que cheirava e sabia a flores silvestres que cresciam em grande profusão ao redor.
- É uma visão de paraíso - disse ele, por fim.
Os picos que os rodeavam eram selvagens e esplêndidos. Os penhascos e gargantas eram pintados de liquens que perfaziam todas as cores da paleta de um artista. O sol tardio caía em cheio sobre os topos da montanha pelo vale profundo e os coroava com uma radiância dourada. As longas sombras lançadas pelos picos atrás deles eram de um púrpura real. A água do riacho abaixo era clara como o ar que respiravam, e Hal podia ver os peixes a jazer como sombrias formas na areia amarela, a sacudir seus rabos escuros para manter as cabeças na corrente.
- É estranho, nunca vi este lugar nem qualquer outro como este, e, no entanto, sinto como se o conhecesse bem. Uma sensação de chegar ao lar, como se estivesse esperando para voltar para cá.
- Não é estranho, Henry Courtney. Eu também estava esperando. - Virou a cabeça e fitou-o profundamente dentro dos olhos. - Estava esperando por você. Sabia que viria. As estrelas me disseram. Naquele dia em que o vi pela primeira no campo fora do castelo, eu o reconheci como sendo aquele pelo qual esperava.
Havia tanto a ponderar naquela simples declaração, que Hal ficou em silêncio de novo por um longo tempo, a lhe observar a face. - Meu pai também era um iniciado. Podia ler as estrelas - disse.
- Aboli me contou.
- Então, você também pode adivinhar o futuro através das estrelas, Sukeena.
Ela não negou o fato.
- Minha mãe me ensinou muitas habilidades. Fui capaz de vê-lo de longe.
Ele aceitou o que ela dissera sem questionar.
- Então, deve saber o que está para vir para nós, você e eu? Ela sorriu, e houve uma faiscar misterioso em seu olhar. Envolveu o braço esguio em torno dele.
- Eu não precisaria ser um grande sábio para saber disso, Gundwane. Porém, há muita coisa mais que eu posso dizer que jaz adiante.
- Conte-me, então - pediu ele, porém ela sorriu de novo e meneou a cabeça.
- Haverá tempo mais tarde. Tempo para conversar enquanto sua perna sara e você fica forte de novo. - Sukeena levantou-se. - Agora, porém, chamarei os outros, não posso mais negar isso a eles.
Vieram todos imediatamente, mas Aboli foi o primeiro a chegar. Saudou Hal na linguagem das florestas.
- Vejo que está bem, Gundwane. Pensei que iria dormir para sempre.
- Sem sua ajuda, eu poderia na verdade ter feito isso.
Então Daniel Grande e Ned e os outros se aproximaram, a tocar as testas com os nós dos dedos e resmungando suas saudações. Agacharam-se num semicírculo em frente a ele. Não eram muito dados a expressar as emoções em palavras, porém o que Hal viu em seus olhos quando o fitavam aqueceu-o e fortificou-o.
- Este é Sabah, a quem você já conhece. - Althuda conduziu o amigo para a frente.
- Prazer, Sabah! - Hal apertou-lhe a mão. - Jamais fiquei mais feliz de ver outro homem do que naquela noite na garganta.
- Eu gostaria de ter ido em sua ajuda muito mais cedo - retrucou Sabah em holandês -, porém somos poucos, e o inimigo era tão numeroso quanto riscos na barriga de um antílope na primavera. - Sabah sentou-se na roda de homens e, com um ar de desculpas, começou a explicar. - A sorte não tem sido gentil conosco aqui nas montanhas. Não tínhamos os serviços de um médico tal como Sukeena. Nós, que éramos dezenove, agora somos apenas oito, e dois destes, uma mulher e uma criança. Sabia que não poderíamos ajudá-lo a lutar no aberto, pois na caça por comida tínhamos usado toda a nossa pólvora. Contudo, sabíamos que Althuda iria trazê-lo para cima da Garganta Sombria. Construímos uma maneira de provocar uma avalanche, sabendo que os holandeses o seguiriam.
- Fez uma coisa corajosa e prudente - disse Hal.
Althuda trouxe sua mulher para o círculo, na escuridão que se aproximava. Era uma bela garota, pequena e de pele mais escura que a dele, porém Hal não podia duvidar que Althuda fosse o pai do menino no colo dela.
- Esta é Zwaantie, minha esposa, e este é meu filho, Bobby. Hal estendeu a mão, e Zwaantie entregou-lhe a criança. Ele segurou Bobby no colo, e o pequeno garoto fitou-o com os enormes e solenes olhos negros.
- É um rapaz promissor, e forte - murmurou Hal, e pai e mãe sorriram, orgulhosamente.
Zwaantie pegou o bebé e prendeu-o nas costas. Então, ela e Sukeena prepararam a fogueira e começaram a cozinhar a refeição da noite, de caça e de frutas das florestas da montanha, enquanto os homens conversavam tranquila e seriamente.
Primeiro, Sabah explicou as circunstâncias, dirigindo-se diretamente a Hal, ampliando o breve relato que fizera antes. Hal logo compreendeu que, a despeito da beleza das imediações agora no verão e da aparente abundância de comida que as mulheres estavam preparando, as montanhas não eram sempre tão hospitaleiras. Durante o inverno, a neve era grossa mesmo nos vales, e a caça era pouca. Contudo, não se atreviam a se mover para altitudes mais baixas, onde seriam vistos pelas tribos hotentotes e seu paradeiro informado aos holandeses em Boa Esperança.
- Os invernos aqui são furiosos - resumiu Sabah. - Se passarmos outro mais aqui, então poucos de nós estarão vivos no próximo ano.
Durante o cativeiro, os marujos de Hal tinham reunido conhecimento bastante do idioma holandês para possibilitar que seguissem o que Sabah dizia, e quando ele terminou de falar, todos estavam silenciosos e fitavam o fogo, taciturnos, a mastigar desconsoladamente a comida que as mulheres haviam trazido.
Então, uma de cada vez, suas cabeças se voltaram para Hal. Daniel Grande falou por eles todos quando perguntou:
- O que vamos fazer agora, Sir Henry?
- São marujos ou montanheses? - Hal respondeu à pergunta com outra pergunta, e alguns dos homens riram.
- Nascemos no paiol do Davey Jones e nos foi dada água salgada como sangue - respondeu Ned Tyler.
- Então, terei de levá-los para o mar e lhes encontrar um navio, certo? - disse Hal. Todos pareceram confusos, mas alguns riram de novo, embora meio desanimados. - Mestre Daniel, quero um manifesto de todas as armas, pólvora e outros equipamentos que pudemos trazer conosco - disse Hal, secamente.
- Não há muita coisa, capitão. Assim que deixamos os cavalos, tínhamos apenas força suficiente para arrastá-los para as montanhas.
- Pólvora? - indagou Hal.
- Apenas a que tínhamos em nossos frascos.
- Quando partiram na frente, tinham duas barricas cheias nos cavalos.
- Aquelas barricas pesavam vinte e cinco quilos cada. - Daniel parecia envergonhado. - Carga demais para carregarmos.
- Já o vi carregar duas vezes esse peso. - Hal estava zangado e desapontado. Sem um estoque de pólvora, estariam à mercê daquele terreno selvagem e dos animais e tribos que o infestavam.
- Daniel carregou meus alforjes de sela pela Garganta Sombria - interveio suavemente Sukeena. - Ninguém mais poderia fazer isso.
- Sinto muito, capitão - resmungou Daniel. Porém Sukeena apoiou-o com vigor.
- Não há uma só coisa em minhas sacolas sem a qual pudéssemos passar. Isso inclui os remédios que salvaram sua perna e salvarão cada um de nós dos ferimentos e pestilências que encontraremos aqui.
- Obrigado, princesa - murmurou Daniel, e fitou-a como um cão afetuoso. Se tivesse um rabo, Hal sabia que o teria abanado.
Hal sorriu e deu um tapinha no ombro de Daniel.
- Não vejo falha no que você fez, Danny Grande. Não há homem vivo que pudesse ter feito melhor.
Todos relaxaram e sorriram. Então, Ned perguntou:
- Falava sério quando nos prometeu um navio, capitão? Sukeena levantou-se de perto da fogueira.
- Basta por esta noite. Ele precisa recobrar as forças antes que o amolem mais. Precisam ir agora. Podem voltar de novo amanhã.
Um de cada vez, aproximou-se de Hal, apertou sua mão e resmungou algo incoerente, depois seguiram pela escuridão, rumo às outras choupanas espalhadas pelo vale. Quando o último se fora, Sukeena lançou outra tora de cedro na fogueira e depois veio e sentou-se perto de Hal-De uma maneira natural e possessiva, Hal passou-lhe o braço pelos ombros. Ela inclinou o corpo esguio contra o dele e acomodou a cabeça no vão de seu ombro. Suspirou, um som doce e satisfeito, e nenhum dos dois falou por algum tempo.
- Quero ficar aqui a seu lado assim para sempre, porém as estrelas podem não permitir isso - murmurou ela. - A estação de nosso amor pode ser curta como um dia de inverno.
- Não diga isso - ordenou Hal. - Jamais diga isso.
Ambos olharam para as estrelas, que, ali, naquelas paragens de ar rarefeito, pareciam tão brilhantes que iluminavam céus com a luminescência da madrepérola que se alinha no interior de uma concha de abalone tirada recentemente do mar. Hal fitou-as com respeito e admiração e pensou no que Sukeena havia dito. Sentiu uma sensação de impotência e tristeza invadi-lo. Estremeceu.
Imediatamente, ela se sentou ereta e disse, baixinho:
- Você está com frio. Vamos, Gundwane!
Ajudou-o a ficar de pé e conduziu-o para dentro da choupana, para o colchão contra a parede do fundo. Sentou-se sobre ele e então acendeu o pavio de uma pequena lamparina de cerâmica de óleo e colocou-a numa prateleira na parede de pedra. Foi até a fogueira e pegou o pote de argila com água que estava sobre os carvões. Derramou a água fumegante numa tigela vazia e misturou com água fria do pote ao lado da porta até que a temperatura estava a seu contento.
Seus movimentos eram sem pressa e calmos. Apoiado sobre um cotovelo, Hal a observava. Ela colocou a tigela de água morna no centro do chão e depois derramou umas poucas gotas de um frasco de vidro nele e mexeu novamente com a mão. Cheirou o perfume leve e sutil na onda de vapor.
Levantou-se, foi até a porta e fechou a cortina de pele de animal sobre a abertura, depois voltou e postou-se ao lado do recipiente de água perfumada. Tirou as flores silvestres dos cabelos e jogou-as sobre a manta de pele aos pés de Hal. Sem olhar para ele, soltou as voltas do cabelo e penteou-os até que brilhavam como uma onda de obsidiana. Começou a cantar em sua própria língua enquanto se penteava, uma cantiga de ninar ou uma canção de amor, Hal não tinha certeza. Sua voz era melodiosa; acalmava e deleitava.
Jogou de lado o pente e deixou a camisa escorregar dos ombros. Sua pele luziu sob a luz amarela da lamparina, e seus seios eram petulantes como pequenas pérolas douradas. Quando se voltou de costas Para Hal, ele lamentou que estivessem escondidos de sua vista. A canção de Sukeena mudava agora - havia nela um toque de alegria e emoção.
- O que está cantando? - perguntou Hal. Sukeena sorriu para ele por sobre o ombro nu.
- É uma canção de núpcias do povo de minha mãe - respondeu. - A noiva está dizendo que é feliz e que ama seu marido com a força eterna do oceano e a paciência das estrelas cintilantes.
- Nunca ouvi coisa mais agradável - murmurou Hal.
Com lentos movimentos voluptuosos, ela desenrolou o sarongue da cintura e jogou-o de lado. Suas nádegas eram pequenas e firmes, a fenda profunda dividindo-as em perfeitos ovais. Ela se agachou ao lado da tigela para molhar um pano na água perfumada e começou a se lavar. Começou pelos ombros e banhou cada braço até os longos dedos afunilados. Havia sedosos montes de pêlos negros em suas axilas.
Hal percebeu que era um banho ritual o que ela realizava, parte de alguma cerimónia que praticava diante dele. Observou avidamente cada movimento que ela fazia; de vez em quando, Sukeena erguia os olhos e sorria para ele com timidez. Os cabelos macios atrás de suas orelhas foram umedecidos com o pano, e gotas de água reluziam em suas faces e no lábio superior.
Ela se levantou, por fim, e voltou-se lentamente para encará-lo. Certa vez, Hal julgara aquele corpo como de um moleque, porém agora via que era tão feminino que seu coração se encheu de desejo por ela. Sua barriga era lisa mas suave como manteiga, e em sua base estava um triângulo de pêlos negros, macios como um gatinho adormecido.
Ela afastou-se da tigela e secou-se com a camisa de algodão que descartara. Então, foi até a lamparina de óleo, curvou a mão em concha em torno do pavio e inclinou-se como se fosse soprar a chama.
- Não! - exclamou Hal. - Deixe a luz. Quero olhar para você. Por fim, ela se aproximou dele, deslizando pelo chão de pedra nos pezinhos descalços, trepou na cama ao lado dele, para os seus braços, e comprimiu o corpo contra o dele. Ergueu os lábios para os de Hal. Os dela eram macios e úmidos e cálidos, e a respiração misturava-se à dele, e cheirava às flores silvestres que ela usara nos cabelos.
- Esperei toda a minha vida por você - murmurou ela, contra a boca de Hal.
Ele murmurou de volta.
- Foi muito tempo para esperar, porém estou aqui agora.
De manhã, ela exibiu orgulhosamente os tesouros que trouxera para ele nos alforjes de sela. De alguma forma, tinha procurado tudo que ele pedira nos bilhetes que deixara para Aboli na muralha do castelo.
Ele se apoderou dos mapas.
- Onde conseguiu isso, Sukeena? - indagou, e ela ficou deliciada em ver quanto valor ele dava a eles.
- Tenho muitos amigos na colónia - explicou ela. - Mesmo algumas das prostitutas das tabernas me procuravam para tratar suas enfermidades. O Dr. Saar mata mais seus pacientes do que os salva. Algumas das damas da taberna sobem a bordo dos navios na baía para fazer seus negócios, e voltam com várias coisas, nem todas presentes dos marujos. - Riu alegremente. - Se alguma coisa não está amarrada ao convés do galeão, julgam que pertence a elas. Quando pedi por mapas, estes foram os que me trouxeram. São os que você queria, Gundwane?
- Não, são mais do que jamais haveria esperado, Sukeena. Esta carta é valiosa, e também esta outra.
As cartas náuticas eram obviamente o tesouro de algum navegador, extremamente detalhadas e cobertas com anotações e observações, numa letra bem-feita e educada. Mostravam as costas da Africa do Sul em maravilhosos pormenores e, por seu próprio conhecimento, Hal podia ver o quanto eram precisas. Para seu espanto, a localização da lagoa do Elefante estava marcada numa delas, e era a primeira vez que via isso mostrado em qualquer mapa que não fosse o de seu pai. A posição era precisa dentro de uns poucos minutos de ângulo e, na margem, havia um croqui de terra e da elevação rumo ao mar das pontas, que ele reconheceu instantaneamente como tendo sido desenhado de observação.
Embora a costa e o litoral imediato fossem acuradamente registrados, o interior, como sempre, fora deixado em branco ou preenchido com conjecturas, lagos apócrifos e serras que nenhum olhar jamais vira. O contorno das montanhas nas quais estavam agora isolados era delineado como se o cartógrafo as tivesse observado da colónia de Boa Esperança ou ao navegar para dentro da baía Falsa, e tivesse adivinhado sua forma e extensão. De algum lugar e de alguma forma, Sukeena descobrira para ele um almanaque dos marinheiros holandeses que acompanhavam as cartas. Fora publicado em Amsterdã, e relacionava os movimentos dos corpos celestes até o fim da década.
Hal deixou de lado aqueles preciosos documentos e pegou o sextante que Sukeena encontrara. Era um modelo dobrável cujas partes separadas encaixavam-se num pequeno estojo de couro, cujo interior era coberto com veludo azul. O instrumento em si era uma manufatura extraordinariamente fina: o quadrante de bronze decorado com as personificações dos quatro ventos, agulhas e parafusos, tudo esculpido e trabalhado em agradáveis formas artísticas e figuras clássicas. Uma pequena placa de bronze dentro da tampa do estojo trazia gravado "Cellini. Veneza".
A bússola que ela trouxera estava contida num reforçado estojo de couro; o corpo era de bronze, e a agulha magnética tinha as pontas de ouro e marfim, tão belamente equilibradas que giravam infalivelmente para o norte conforme ele girava o estojo lentamente na mão.
- Isto vale vinte libras pelo menos! - Hal maravilhou-se. - A sua magia funcionou.
Tomou-lhe a mão e conduziu-a para fora, sem mancar da forma acentuada como no dia anterior. Sentados lado a lado no declive da montanha, Hal mostrou a ela como observar a passagem do meio-dia do sol e marcar a posição em uma das cartas. Ela se deliciou com o prazer que lhe dera e impressionou-o com a imediata compreensão das artes esotéricas da navegação. Então, ele se recordou de que ela era uma astróloga, e que compreendia os céus.
Com aqueles instrumentos nas mãos, ele poderia se movimentar com autoridade através daqueles ermos selvagens, e seu sonho de encontrar um navio começou a parecer menos tolo do que fora apenas um dia antes. Puxou-a contra o peito, beijou-a, e Sukeena aconchegou-se ternamente a ele.
- Esse beijo é melhor recompensa do que as vinte libras de que falou, meu capitão.
- Se um beijo vale vinte libras, então eu tenho alguma outra coisa para você que deve valer quinhentas - disse; deitou-a de costas na grama e fez amor com ela.
Um longo tempo mais tarde, ela sorriu para ele e murmurou.
- Isso valeu todo o ouro deste mundo.
Quando voltaram ao acampamento, descobriram que Daniel tinha reunido todas as armas e Aboli polia as lâminas das espadas e aguçava as bordas com uma pedra finamente granulada que apanhara no leito do riacho.
Hal examinou cuidadosamente a coleção. Havia alfanjes suficientes para armar cada homem, e pistolas também. Contudo, havia apenas cinco mosquetes, todos modelos militares padronizados holandeses, pesados e robustos. A falta era de pólvora, mecha de queima lenta e balas de chumbo. Poderiam sempre usar pedregulhos como mísseis, porém não havia nenhum substituto para a pólvora negra. Tinham menos de dois quilos daquela preciosa substância nos frascos, não o suficiente para vinte descargas.
- Sem pólvora, não podemos mais abater a caça maior - disse Sabah a Hal. - Comemos perdizes e híraces. - Usou o diminutivo do nome holandês para texugo, dasc, para descrever as criaturas peludas e parecidas com lebres que enxameavam as covas e fendas de cada penhasco. Hal pensou que as reconhecia como os coelhos da Bíblia.
A urina das colónias de híraces escorria pela face do rochedo tão copiosamente, que, ao secar, cobria as pedras com uma espessa camada que brilhava ao sol como puxa-puxa, porém com cheiro menos doce. Com cuidado e perícia, aqueles coelhos das rochas podiam ser mortos e presos em número suficiente para prover o pequeno bando com matéria-prima de sobrevivência. Sua carne era suculenta e deliciosa como a de um leitãozinho.
Agora que Sukeena estava com eles, a dieta era mais ampla em virtude de seu conhecimento de raízes e plantas comestíveis. Todo dia, Hal saía com ela para lhe carregar a cesta enquanto ela vasculhava as encostas. Conforme sua perna se fortalecia, eles se aventuravam adiante e ficavam no terreno selvagem um pouco mais a cada dia.
As montanhas pareciam envolvê-los na própria grandeza e providenciar o perfeito cenário para a brilhante jóia de seu amor. Quando a cesta de suprimentos de Sukeena estava cheia a ponto de transbordar, eles encontravam lagoas escondidas nos numerosos riachos, onde se banhavam nus, juntos. Depois disso, deitavam-se lado a lado nas rochas macias e polidas pela água e se secavam ao sol. Com provocativa lentidão, brincavam com os corpos um do outro e por fim faziam amor. Então conversavam e exploravam a mente um do outro com a intimidade com que tinham explorado os corpos, e depois faziam amor novamente. O apetite de um para outro parecia insaciável.
- Oh! Onde aprendeu a agradar uma garota assim? - murmurou Sukeena, sem fôlego. - Quem lhe ensinou todas essas coisas especiais que faz para mim?
Não era uma pergunta que ele se importasse em responder, e Hal disse:
- Simplesmente nos encaixamos perfeitamente. Meus lugares especiais foram feitos para tocar seus lugares especiais. Busco prazer em seu prazer. Meu prazer é aumentado numa centena de vezes pelo seu.
Nas noites, quando todos os fugitivos se reuniam em torno da fogueira de cozinha, Hal era pressionado com questões acerca de seus planos para eles, porém ele evitava as conversas com uma risada fácil e um menear de cabeça. Um plano de ação na verdade já germinava em sua mente, porém não estava ainda pronto para ser revelado, considerados os muitos obstáculos a enfrentar. Ele interrogava Sabah e os cinco escravos foragidos, que com ele tinham sobrevivido ao inverno na montanha.
- Até que distância para leste você viajou pela região, Sabah?
- No meio do inverno, viajamos seis dias naquela direção. Tentamos encontrar comida e um lugar onde o frio não fosse tão intenso.
- Que terra fica a leste?
- São montanhas tais como esta por muitas léguas, e depois, de súbito, caem em planícies de floresta e grama em depressões suaves, com vislumbres do mar à direita. - Sabah pegou um galho e começou a desenhar na poeira ao lado do fogo.
Hal memorizou as descrições, fazendo-lhe perguntas com frequência, incitando-o a recordar cada detalhe do que tinha visto.
- Desceu para aquelas planícies?
- Descemos por um pequeno trecho. Encontramos estranhas criaturas nunca vistas antes pelos olhos de um homem: cinzas e enormes, com longos chifres assentados nos focinhos. Uma delas investiu sobre nós com roncos e assobios terríveis. Embora tivéssemos disparado nossos mosquetes, ela acabou empalando a esposa de Johannes com o chifre do nariz e a matou.
Todos olhavam para o pequeno Johannes de um olho só, do bando de Sabah de escravos fugidos, que chorava pela memória da esposa morta. Era estranho ver lágrimas escorrendo da órbita vazia de seu olho. Todos ficaram em silêncio por algum tempo e então Zwaantie continuou a narrativa:
- Meu pequeno Bobby tinha apenas um mês de idade, e eu não poderia colocá-lo em tamanho perigo. Sem pólvora para os mosquetes, não poderíamos prosseguir. Insisti com Sabah para voltarmos, e retornamos a este lugar.
- Por que faz essas perguntas? Qual é seu plano, capitão? - quis saber Daniel Grande, porém Hal meneou a cabeça.
- Não estou pronto para explicá-lo a vocês, porém não desanimem, rapazes. Prometi encontrar-lhes um navio, não prometi? - disse, mais confiança do que sentia.
De manhã, com a desculpa de pescar, ele conduziu Aboli e Daniel Grande riacho acima, para a próxima lagoa. Quando estavam fora da vista do acampamento, sentaram-se juntos na margem rochosa.
- Está claro que, a menos que possamos nos armar melhor, estamos presos a estas montanhas. Iremos perecer tão lenta e melancolicamente quanto já pareceu a maioria dos homens de Sabah. Precisamos de pólvora para os mosquetes.
- Onde conseguiremos? - perguntou Daniel. - O que propõe?
- Estive pensando na colónia - disse-lhes Hal.
Ambos os homens o fitaram, incrédulos. Aboli quebrou o silêncio.
- Planeja voltar para Boa Esperança? Mesmo lá, você não seria capaz de botar a mão na pólvora. Oh, talvez possa roubar meio quilo ou dois dos gibões-verdes, ou de um caçador da companhia, porém isso não é o bastante para nos suprir em nossa jornada.
- Planejei entrar no castelo novamente - disse Hal. Os dois homens riram com amargura.
- Não lhe falta iniciativa ou coragem, capitão - disse Daniel Grande -, porém isso é loucura.
Aboli concordou com ele e disse, em sua profunda e pensativa voz:
- Se eu julgasse que haveria mesmo a mínima chance de sucesso, iria sozinho alegremente. Porém, pense, Gundwane, não me refiro simplesmente à impossibilidade de chegar até a armaria do castelo. Digamos até mesmo que fôssemos bem-sucedidos nisso e que o armazém de pólvora que destruímos tenha desde então sido reabastecido pelos carregamentos vindos da Holanda. Digamos que fôssemos capazes de escapar com um pouco do estoque. Como iríamos carregar mesmo uma única barrica de volta pelo terreno, com Schreuder e seus homens nos perseguindo? Desta vez não teríamos os cavalos.
Em seu coração, Hal sabia que aquilo era loucura, porém tinha esperado que mesmo uma tal proposta desesperada e tola pudesse atiçá-los a pensar em outro plano.
Por fim, Aboli quebrou o silêncio.
- Falou de um plano de encontrar um navio. Se nos contar esse plano, Gundwane, então talvez possamos ajudá-lo a fazê-lo viável.
Ambos o fitaram, na expectativa.
- Onde supõe que o Gavião esteja neste exato momento? - perguntou Hal.
Aboli e Daniel Grande pareceram espantados.
- Se minhas preces tiverem sido atendidas, ele está assando no inferno - retrucou Daniel, com amargura.
Hal olhou para Aboli.
- O que pensa, Aboli? Onde procuraria por Cumbrae, o Gavião?
- Em algum lugar dos sete mares. Onde quer que fareje ouro ou a promessa de presa fácil, como a ave carniceira que lhe dá o nome.
- Sim! - Hal deu-lhe um tapa no ombro. - Mas onde pode o cheiro de ouro ser mais forte? Por que o Gavião comprou Jiri e outros companheiros negros no leilão?
Aboli encarou-o com ar perplexo. Então, um lento sorriso espalhou-se por sua larga face escura.
- A lagoa do Elefante! - exclamou. Daniel Grande explodiu uma risada excitada.
- Farejou o tesouro dos galeões holandeses e achou que nossos rapazes negros poderiam conduzi-lo até ele.
- A que distância estamos da lagoa do Elefante? - perguntou Aboli.
- Pelos meus cálculos, trezentas milhas marítimas. A imensidão da distância silenciou-os.
- É um longo caminho - disse Daniel -, sem pólvora para nos defender no trajeto ou com a qual lutar contra o Gavião, se chegarmos lá.
Aboli não respondeu, mas olhou para Hal.
- Quanto tempo nos custará a viagem, Gundwane?
- Se pudéssemos fazer uns bons quinze quilómetros por dia, o que duvido, talvez um pouco mais de um mês.
- O Gavião ainda estará lá quando chegarmos ou terá desistido da busca e partido? - pensou alto Aboli.
- Sim! - resmungou Daniel. - E se ele tiver partido, o que será de nós então? Ficaremos presos lá para sempre.
- Prefere ficar preso aqui, mestre Daniel? Quer morrer de frio e inanição nesta montanha esquecida por Deus, onde o inverno vem rondando outra vez?
Ficaram quietos de novo. Então, Aboli disse:
- Estou pronto para partir agora. Não há nenhuma outra trilha aberta para mim.
- Mas, e a perna de Sir Henry? Já está forte o suficiente?
- Dêem-me outra semana, rapazes, e sairei à francesa na frente de vocês.
- O que faremos se encontrarmos o Gavião ainda alojado na lagoa do Elefante? - Daniel não estava pronto para concordar tão facilmente. - Ele tem uma tripulação de uma centena de rufiões bem armados, e se todos nós sobrevivermos à jornada, seremos uma dúzia, armados apenas com espadas.
- Que bela disparidade! - Hal caiu na risada. -Já o vi enfrentar coisa pior. Com pólvora ou sem pólvora, partiremos para encontrar o Gavião. Está conosco ou não, mestre Daniel?
- Claro, estou com o senhor, capitão. - Daniel Grande estava afrontado. - O que o fez pensar que eu não estava?
Naquela noite, em torno da fogueira de conselho, Hal explicou o plano para os outros. Quando terminou, olhou suas faces sombrias à luz do fogo.
- Não vamos obrigar nenhum homem a vir conosco. Aboli, Daniel e eu estamos determinados a partir, porém se algum entre vocês desejar ficar aqui nas montanhas, deixaremos metade do estoque de armas com vocês, inclusive metade da pólvora restante, e não pensaremos mal de ninguém. Algum de vocês quer se manifestar?
- Sim - disse Sukeena, sem erguer os olhos da comida que estava cozinhando. - Iremos a onde quer que você vá.
- Palavras corajosas, princesa - sorriu Ned Tyler. - E eu vou também.
- Sim! - disseram os outros marujos em uníssono. - Estamos todos com você.
Hal fez um gesto de agradecimento a eles e depois olhou para Althuda.
- Você tem mulher e filho em quem pensar, Althuda. O que diz? Ele podia ver a aflição na face da pequena Zwaantie enquanto ela embalava o bebé que mamava em seu seio. Seus olhos escuros estavam cheios de receios e dúvidas. Althuda levantou-a de pé e levou-a para longe, na escuridão.
Quando tinham se afastado, Sabah falou por todos de seu bando.
- Althuda é nosso líder. Ele nos trouxe para fora do cativeiro, e não podemos deixá-lo e a Zwaantie sozinhos aqui, expondo o bebé ao frio e à fome. Se Althuda for, nós iremos, porém, se ele ficar, devemos ficar com ele.
- Admiro sua decisão e sua lealdade, Sabah - disse Hal.
Esperaram em silêncio, ouvindo Zwaantie chorar de medo e indecisão no escuro. Então, depois de um longo tempo, Althuda conduziu-a de volta à fogueira, seus braços em torno dos ombros dela, e tomaram lugar no círculo.
- Zwaantie teme, não por si, mas pelo bebé - disse. - Porém sabe que nossa melhor chance estará com você, Sir Hal. Iremos com vocês.
- Eu iria lamentar se sua decisão fosse diferente, Althuda. - Hal sorriu com genuíno prazer. -Juntos, nossas chances são muito aumentadas. Agora precisamos fazer nossos preparativos e acertar o dia de nossa partida Sukeena veio do fogo para sentar-se ao lado de Hal, e falou com firmeza:
- Sua perna não estará curada antes de pelo menos outros cinco dias. Não permitirei que saia em marcha antes disso.
- Quando a princesa fala - exclamou Aboli, em sua voz profunda -, só um tolo não escuta.
Durante aqueles últimos dias, Hal e Sukeena vasculharam os arredores em busca de ervas e plantas que ela usaria para remédio e alimento. A última das infecções de Hal cedera ao tratamento, enquanto o subir e descer das colinas íngremes e acidentadas rapidamente fortalecia seu membro ferido.
Um dia antes que a viagem começasse, os dois pararam ao meio-dia para se banhar e descansar e fazer amor na grama macia ao lado do riacho. Aquele era um braço do rio que não tinham visitado nas incursões anteriores, e, enquanto Hal jazia saciado de paixão ao cálido sol, Sukeena levantou-se nua e afastou-se para uma ravina, a uma curta distância, para se aliviar.
Hal viu-a se agachar atrás de uma moita de arbustos baixos, dei-tou-se de costas e fechou os olhos, a cochilar preguiçosamente até a beira do sono. Foi despertado pelo som familiar da aguda estaca de cavar de Sukeena a bater no chão. Uns poucos minutos depois, ela retornou, ainda nua, porém com um farelento monte de terra amarela na mão.
- Cristais de flores! As primeiras que encontro nestas montanhas! - Olhava encantada para a descoberta, e tirou algumas das ervas menos valiosas da cesta para dar lugar aos montes de terra esboroável. Parte destas montanhas deve ter sido algum dia constituída de vulcões, pois os cristais de flores brotam da terra na lava.
Hal ficou a vê-la trabalhar, mais interessado na maneira como seu corpo nu luzia ao sol, qual ouro derretido, e no modo como seus pequenos seios mudavam de forma conforme ela empunhava a estaca vigorosamente, depois nos montes cristalinos de terra amarela que ela recolhera na margem da ravina.
- Para que você usa essa terra? - perguntou, sem se erguer de seu ninho de grama.
- Tem muitos usos. É excelente para dores de cabeça e cólica. Se a misturar com o sumo da cereja da verbena, ela acalma palpitações do coração e alivia a menstruação de uma mulher...
Passou por uma lista de enfermidades que poderia tratar com ela, porém, para Hal, aquilo não parecia ter qualquer virtude especial, e era igual a qualquer outro torrão de terra seca. A cesta estava tão pesada agora, que, no retorno ao acampamento, Hal teve de tirá-la das mãos de Sukeena.
Naquela noite, enquanto o grupo se sentava ao redor do fogo e mantinha o conselho final antes do início da longa jornada para leste, Sukeena moeu os torrões de terra no rústico pilão de pedra que fizera e misturou o pó num pote de água. Aqueceu-o sobre o fogo e depois foi sentar-se ao lado de Hal, enquanto ele explicava a ordem de marcha para o dia seguinte. Estava alocando armas e cargas para os homens. O peso e o volume de cada carga seriam ditados pela idade e força do homem a carregá-la.
De súbito, Hal interrompeu-se e farejou o ar.
- Céus, por todos os apóstolos! - exclamou. - O que há nesse pote, Sukeena?
- Eu lhe disse, Gundwane. São as flores amarelas. - Olhou alarmada quando ele circundou-a por trás, ergueu-a nos braços, jogou-a para o ar e pegou-a quando ela descia, saias a flutuarem a seu redor.
- Não é qualquer tipo de flor, de jeito nenhum! Eu diria que cheira ao próprio inferno a que pertence! - Beijou-a até que ela lhe empurrou a face.
- Está louco? - Ela riu e ofegou.
- Louco de amor por você! - disse, e voltou-se para encarar os homens que observavam aquela cena com ar divertido. - Rapazes, a princesa criou o milagre que nos salvará a todos!
- Você fala por enigmas! - disse Aboli.
- Sim! - gritaram os outros. - Fale claro, capitão.
- Falarei claro o bastante para que mesmo os mais tapados de vocês, ratos do mar, possam compreender minhas palavras. - Hal riu do ar de confusão. - Aquele pote está cheio de enxofre! Enxofre mágico e amarelo!
Foi Ned Tyler quem compreendeu primeiro, pois era o mestre artilheiro. Também saltou de pé, correu para se ajoelhar sobre o pote e inalou os fumos como se fossem a fumaça de um cachimbo de ópio.
- O capitão está certo, rapazes - berrou ele, com alegria. - súlfur, enxofre, com certeza.
Sukeena liderou um grupo, encabeçado por Aboli e Daniel Grande, de volta à ravina na qual descobrira o depósito de enxofre, e eles voltaram ao acampamento cambaleando sob as cargas da terra amarela, colocadas em cestas ou costuradas em sacos feitos de pele de animal.
Enquanto Sukeena supervisionava a fervura e lixívia dos cristais de súlfur do minério, Johannes zarolho e Zwaantie cuidavam do fogo lento, protegido com terra, no qual os madeiros de cedro eram gradualmente reduzidos a puros pedaços negros de carvão.
Hal e o bando de Sabah escalaram a encosta íngreme da montanha acima do acampamento para chegar aos penhascos em que as multidões de coelhos da rocha tinham suas colónias. Os homens de Sabah grudavam-se ao precipício como moscas à parede enquanto arrancavam os cristais coloridos de âmbar de urina seca. Os pequenos animais defecavam em estrumeiras comunais, e enquanto as bolotas roliças de fezes rolavam para longe, a urina escorria e ensopava a face da rocha. Descobriram que, em alguns lugares, aquela camada tinha vários centímetros de espessura.
Baixaram os sacos de pele daqueles depósitos odoríficos para o pé do penhasco e depois, os carregaram para o acampamento. Trabalhavam em turnos, para manter as fogueiras queimando dia e noite sob os potes de cerâmica, extraindo o enxofre da terra socada e o salitre da excreção dos animais.
Ned Tyler e Hal, os dois artilheiros, rondavam aqueles potes fumegantes como um par de alquimistas, filtrando o líquido e reduzindo-o com o calor. Finalmente, secaram a espessa pasta residual ao sol. Da primeira fervura dos compostos fedorentos restava um estoque de po seco cristalino que enchia três grandes potes.
Quando esmagado, o carvão era um pó preto macio, enquanto o salitre era de um marrom pálido e fino como o sal marinho. Quando Hal colocou uma pequena picada daquilo na língua, era ainda tão pungente e salgado como o mar. As flores de súlfur eram de um amarelo de narciso e quase inodoras.
O bando inteiro de fugitivos reuniu-se em torno para observar quando, por fim, Hal começou a misturar os três ingredientes no pilão de pedra de Sukeena. Ele mediu as proporções e primeiro socou juntos o carvão e o enxofre, pois, sem o ingrediente vital final, eram inertes e inofensivos. Depois, adicionou o salitre e, cautelosamente, combinou-o com o pó cinzento escuro primário até obter um frasco cheio com o que parecia e cheirava como a verdadeira pólvora.
Aboli estendeu-lhe um dos mosquetes e ele mediu uma carga, gotejou-a pelo cano, enfiou um pedaço de casca seca fibrosa no topo e carregou a arma com um pedregulho roliço que escolhera na margem arenosa do riacho. Não iria desperdiçar uma bala de chumbo naquele experimento.
Enquanto isso, Daniel Grande colocara um alvo de madeira na margem oposta. Conforme Hal se agachava e fazia a mira, o resto espalhou-se de cada lado dele e tampou os ouvidos com os dedos. Um silêncio de expectativa caiu quando ele firmou a mira e pressionou o gatilho.
Houve uma detonação estrondosa e uma nuvem cegante de fumaça. O alvo de madeira esfacelou-se e caiu da margem para a água. Um viva exultante escapou de todos, e eles davam socos uns nos outros nas costas e dançavam passos delirantes de triunfo ao sol.
- É uma graduação tão fina de pólvora quanto qualquer outra que se possa encontrar nos estoques navais em Greenwich - opinou Ned Tyler -, porém terá de ser aglutinada do jeito certo antes que possamos ensacá-la e carregá-la para longe.
Para esse fim, Hal pediu que um largo pote de argila fosse colocado atrás de um biombo de grama à beira do acampamento, e todos foram convocados a fazer uso dele em cada ocasião possível. Mesmo as duas mulheres foram para trás do biombo para fazer suas contribuições modestas. Assim que o pote estava cheio, a pólvora foi misturada em pasta com a urina e depois formou briquetes que secaram até ficarem duros ao sol. Aquilo foi embalado em cestas de junco para facilitar o transporte.
- Podemos moer os tijolos quando precisarmos deles - explicou Hal a Sukeena. - Agora, não teremos de carregar um peso de peixe seco e carne, pois poderemos caçar conforme viajarmos. Se há uma tal abundância de caça, como Sabah nos diz que há, não teremos falta de carne fresca.
Dez dias depois do que tinham planejado, o bando estava pronto Para partir para leste. Hal, como navegador, e Sabah, que viajara por aquela rota antes, conduziam a coluna; Althuda e os três mosqueteiros estavam no centro, para guardar as mulheres e o pequeno Bobby, enquanto Aboli e Daniel Grande fechavam a traseira sob seus fardos pesados.
Viajaram seguindo o veio e o curso da região, sem tentar escalar o terreno íngreme, mas seguindo os vales e interseções apenas através dos passos entre os altos picos. Hal estimava as distâncias percorridas através do olho e do tempo, e a direção com a bússola do estojo de couro. Essa, ele marcava nas cartas toda noite, antes que a luz desaparecesse.
A noite, acampavam no aberto, pois o tempo era ameno e estavam cansados demais para construir um abrigo. Quando acordavam a cada alvorada, suas mantas de pele, que Sabah chamava de karosses, estavam ensopadas de orvalho.
Conforme Sabah havia avisado, eram seis dias de jornada dura através dos labirintos de vales antes que chegassem à escarpa mais íngreme de leste e olhassem do cume para o terreno mais baixo.
Distante, à direita, puderam divisar a mancha azul do oceano a se mesclar com o azul mais pálido do céu, da cor de um ovo de garça. Porém, abaixo, o terreno não era de verdadeiras planícies como Hal esperava, mas interrompido por outeiros, ondulantes sendas gramadas e trechos de floresta de um verde escuro que pareciam seguir os cursos dos muitos riachinhos que entrecortavam o litoral ao serpentearem para o mar.
A esquerda, outra região de montanhas azuis serrilhadas marchava em paralelo ao mar, formando um baluarte que guardava o misterioso interior do continente. O olhar agudo de Hal divisou manchas escuras nas douradas planícies gramadas, movendo-se como sombras de nuvens quando não havia nuvens no céu. Viu a bruma de poeira que seguia as hordas moventes de caça selvagem, e, de vez em quando, avistava o reflexo do sol em presas de marfim ou num chifre polido.
- Esta terra enxameia de vida - murmurou a Sukeena, que se postava a seu ombro. - Deve haver estranhos animais aqui nos quais homem algum jamais pousou os olhos antes. Talvez mesmo dragões que respiram fogo e unicórnios e grifos.
Sukeena estremeceu e abraçou-se, mesmo que o sol estivesse alto e quente.
- Vi tais criaturas desenhadas nas cartas que trouxe para você concordou.
Havia uma trilha diante deles, batida pelas grandes patas de elefantes e assinalada por pilhas de seu esterco fibroso e amarelo, que ser peava para baixo do declive, a percorrer os declives mais favoráveis, contornando as profundas ravinas e gargantas perigosas, e Hal a seguiu.
Conforme desciam, as características da paisagem abaixo se tornaram mais aparentes. Hal pôde mesmo reconhecer algumas das criaturas que se moviam ali. A massa escura de animais bovinos, coroada por uma névoa dourada de poeira e uma nuvem de pássaros carrapateiros a voejar, espargindo branco ao sol, devia ser dos búfalos selvagens de que Aboli falara. Nyati, como os chamara, quando alertara Hal sobre sua ferocidade. Devia haver várias centenas daqueles animais em cada uma das três manadas separadas que ele tinha sob a vista.
Além da manada mais próxima de búfalos, havia uma pequena reunião de elefantes. Hal recordava-se bem deles das vezes que os avistara antes, tempos atrás, nas praias da lagoa. Porém, nunca os tinha visto em tal número. Havia pelo menos vinte grandes fêmeas cinza com um pequeno rebanho, como de porquinhos, em seus calcanhares. Dispersos pela planície como outeiros de granito cinza, viam-se três ou quatro machos solitários: ele mal podia avaliar o tamanho daqueles patriarcas ou o comprimento e largura de suas presas amarelas e reluzentes de marfim.
Havia outras criaturas, não tão grandes quanto os elefantes machos, porém não menos maciças e cinzas, que a princípio ele tomou por elefantes também, porém conforme desciam rumo ao terreno baixo, foi capaz de perceber que tinham chifres negros, alguns tão compridos como a altura de um homem, que decoravam seus grandes e cinzentos focinhos pregueados. Recordou-se então que Sabah lhe contara daqueles animais selvagens, um dos quais havia espetado e matado a mulher de Johannes com seu chifre mortal. Aqueles rben-osters, que era o nome de Sabah para eles, pareciam solitários por natureza, pois se postavam à parte dos outros da mesma espécie, cada um à sombra de sua própria árvore.
Enquanto caminhava à frente da pequena coluna, Hal ouviu o ligeiro arrastar de pés seguindo atrás de si, passos que viera a conhecer e amar tanto. Sukeena deixara seu lugar ao centro da fila, como sempre fazia quando encontrava alguma desculpa para caminhar com ele por algum tempo.
Enfiou a mão na de Hal e acertou o passo com ele.
- Não quero entrar sozinha nessa nova terra. Quis caminhar a seu lado - disse, baixinho, e depois olhou para o céu. - Vê o jeito como o vento muda de direção para o sul e as nuvens se amontoam nos topos das montanhas como uma matilha de animais selvagens em emboscada? Há uma tempestade chegando.
Seu aviso chegou na hora certa. Hal pôde liderá-los para uma caverna na encosta da montanha para abrigá-los antes que a tempestade desabasse. Ficaram ali por três longos dias e noites enquanto a tormenta fustigava a região, porém, quando emergiram por fim, a terra estava lavada e o céu era de um brilhante e incandescente azul.
Antes que o Golden Bough tivesse se posto ao largo de Boa Esperança e rumasse para seu verdadeiro curso para contornar o cabo, o capitão Christopher Llewellyn já se lamentava por ter levado a bordo seu passageiro pagante.
Descobrira logo que o coronel Cornélius Schreuder era um homem difícil de se lidar, arrogante, sem papas na língua e altamente cheio de opiniões. Mantinha firmes e imutáveis pontos de vista em cada assunto que era levantado, e não tinha acanhamento em dar expressão a suas ideias.
- Ele granjeia inimigos como um cão apanha moscas - disse Llewellyn a seu imediato.
No segundo dia fora da baía da Mesa, Llewellyn convidara Schreuder para jantar com ele e alguns de seus oficiais na cabine de popa. Era um homem culto e mantinha um grande estilo mesmo no mar. Com o dinheiro da recompensa que ganhara na recente guerra com a Holanda, pudera bancar seu gosto por coisas finas.
O Golden Bough custara quase duas mil libras para ser construído e lançado ao mar, porém era provavelmente a mais bela nau de sua classe e capacidade de carga a flutuar. Suas colubrinas eram recém-fundidas, e as velas, das melhores lonas. Os alojamentos do capitão eram arranjados com um gosto e distinção sem paralelo em qualquer marinha, porem suas qualidades como navio de guerra não tinham sido sacrificadas em prol do luxo.
Durante a viagem pelo Atlântico abaixo, Llewellyn descobrira, para seu deleite, que suas características de navegabilidade eram tudo que ele esperava. Numa larga extensão de água, com suas velas cheias e o vento livre, seu casco deslizava pela água como uma lâmina, e a nau podia apontar tão alto ao vento, que seu coração cantava quando ela sentia o tombadilho inclinar-se sob seus pés.
A maioria de seus oficiais e suboficiais servira com ele durante a guerra e provara sua qualidade e coragem, porém ele tinha a bordo um oficial mais jovem, o quarto filho de George, visconde de Winterton.
Lorde Winterton era o Mestre Navegador da Ordem, um dos homens mais ricos e poderosos da Inglaterra. Possuía uma frota de navios corsários e mercantes. O honorável Vincent Winterton estava em sua primeira viagem de corsário, colocado pelo pai sob a tutela de Llewellyn. Era um belo jovem, com modos francos e cativantes que o tornavam popular tanto entre os marinheiros como entre seus irmãos oficiais. Era um dos outros convidados para a mesa de jantar de Llewellyn naquela segunda noite fora de Boa Esperança.
O jantar começou alegre e animado, pois todos os ingleses estavam felizes, com um belo navio sob eles e a promessa de glória e ouro adiante. Schreuder, contudo, mostrava-se distante e sombrio. Com o segundo copo de vinho a aquecê-los todos, Llewellyn exclamou:
- Vincent, meu rapaz, pode nos cantar algo?
- Poderia suportar ouvir, de novo, minha miação, senhor?
O jovem sorriu com modéstia, porém o resto da companhia o encorajou:
- Vamos lá, Vinny! Cante para nós, homem!
Vincent Winterton levantou-se e rumou para o pequeno clavicórdio que estava preso com pesados parafusos de bronze a uma das principais armações do navio. Sentou-se, jogou para trás os longos e fartos cachos e arrancou um suave e vibrante acorde do teclado.
- O que querem que eu cante?
- Greensleeves! - sugeriu alguém, mas Vincent fez cara feia.
- Já ouviram uma centena de vezes e mais, desde que partimos de casa.
- Mother Mine! - gritou outro.
Desta vez, Vincent concordou, jogou a cabeça para trás e se pôs a cantar numa voz forte e afinada que acentuou a sentimentalidade da letra e trouxe lágrimas aos olhos de muitos da companhia, conforme marcavam o ritmo da canção com os pés.
Schreuder fora tomado por uma antipatia imediata e sem razão pelo atraente jovem, tão belo e popular entre seus pares, tão seguro de si e sereno em seu alto status social e berço privilegiado. Schreuder, em comparação, sentia-se velho e ultrapassado. Nunca atraíra a admiração e afeição natural dos outros sobre si, como aquele rapaz tão obviamente conseguia.
Sentou-se rígido a um canto, ignorado por aqueles homens que, não fazia tanto tempo atrás, haviam sido seus inimigos mortais e que, ele sabia, desprezavam-no como um estrangeiro obtuso e um soldado a pé, não um de sua fraternidade de elite dos oceanos. Sentiu a antipatia trans-formar-se em ódio ativo para com o jovem, cujas belas feições eram claras e sem linhas e cuja voz tinha o timbre e a cor tonal de um sino de templo.
Quando a canção terminou, houve um momento de silêncio, atento e respeitoso. Então, todos explodiram em palmas e aplausos.
- Oh, muito bem, rapaz! E:
- Bravo, Vinny!
Schreuder sentiu sua irritação se tornar insuportável.
Os aplausos continuaram por tempo demais para o gosto do cantor, e Vincent levantou-se do clavicórdio com um aceno de protesto da mão que lhes pedia para não continuar.
No silêncio que se seguiu, Schreuder murmurou, suave porém distintamente:
- Miação? Não, senhor, isso foi um insulto à espécie felina. Um silêncio chocado caiu sobre a cabine. O jovem enrubesceu, e sua mão desceu instintivamente para o punho do punhal de lâmina curta que ele usava no cinto de pedrarias, mas Llewellyn exclamou, com voz dura:
- Vincent! - e meneou a cabeça.
Relutante, ele deixou a mão cair da arma e obrigou-se a sorrir e a se inclinar ligeiramente.
- Tem um ouvido apurado, senhor. Louvo seu gosto perceptivo. Reassumiu seu assento e afastou-se de Schreuder para se reunir a seu vizinho numa conversa despretensiosa. O momento desagradável passou, e os outros convidados relaxaram, sorriram e se juntaram à conversa, que nitidamente excluía o coronel.
O cozinheiro de Llewellyn viera com ele de casa, e o navio fora aprovisionado em Boa Esperança com carne fresca e vegetais. A refeição era tão boa quanto qualquer outra que pudesse ser servida em cafeterias e cervejarias de Fleet Street, a conversa bastante agradável, e as troças, sagazes e divertidas, entremeadas de trocadilhos espertos, de duplo sentido e gírias da moda. A maioria delas estava acima da compreensão de Schreuder do idioma, e seu ressentimento cresceu como a fermentação de um tufão tropical.
Ofereceu uma contribuição à conversa, uma referência mordaz à vitória holandesa no rio Tamisa e à captura do Royai Charles, o orgulho da marinha inglesa e o homónimo de seu amado soberano. A conversa parou num silêncio gelado mais uma vez, e a companhia encarou-o com um glacial escrutínio, antes de continuar a conversar como se ele não tivesse se manifestado.
Schreuder consolou-se com o clarete, e quando a garrafa à sua frente estava vazia, pegou na mesa um frasco de conhaque. Sua resistência para bebida era tão forte quanto seu orgulho, porém, naquele dia, parecia apenas torná-lo mais truculento e zangado. Ao fim da refeição, procurava barulho e buscava alguma maneira pela qual aliviar a terrível sensação de rejeição e desesperança que o dominava.
Por fim, Llewellyn levantou-se para propor um brinde de lealdade:
- Saúde e uma vida longa ao Preto!
Todos se ergueram com entusiasmo, inclinando-se sob o teto de tábuas baixas do tombadilho, porém Schreuder continuou sentado. Llewellyn bateu na mesa com os nós dos dedos.
- Por favor, coronel, levante-se. Estamos bebendo à saúde do rei da Inglaterra.
- Não estou mais com sede, obrigado, capitão. - Schreuder cruzou os braços.
Os homens resmungaram, e um disse, alto e bom som:
- Deixe-o comigo, capitão.
- O coronel Schreuder é um convidado a bordo deste navio - disse Llewellyn, com voz sombria -, e nenhum de vocês lhe fará qualquer descortesia, não importa se ele se comporta como um porco e transgride todas as convenções de uma sociedade decente. - Então, voltou-se para Schreuder. - Coronel, estou pedindo pela última vez que se junte ao brinde de lealdade. Ainda, estamos próximos de Boa Esperança. Portanto, se se recusar, darei ordens imediatamente para o navio mudar de rumo e voltar para a baía da Mesa. Lá, devolver-lhe-ei o dinheiro da passagem, e mandarei que o depositem na praia como o conteúdo de um balde de restos de cozinha.
Schreuder ficou sóbrio instantaneamente. Aquela era uma ameaça Que não tinha antecipado. Esperara provocar um daqueles estúpidos ingleses Para um duelo. Teria então dado a eles uma exibição de esgrima que abriria seus olhos de bacalhau e varreria aquelas caretas de superioridade de suas faces, porém a ideia de ser levado de volta ao cenário de seu crime e entregue nas mãos vingativas do governador van de Velde fez seus lábios se entorpecerem e seus dedos formigarem de pavor. Ele se levantou lentamente com o copo na mão. Llewellyn relaxou ligeiramente todos beberam o brinde e sentaram-se outra vez num burburinho de risadas e conversas.
- Alguém estaria inclinado a uns poucos lances de dado? - sugeriu Vincent Winterton, e houve uma concordância geral.
- Não, mas se quiser jogar com apostas de xelins de novo - objetou um dos oficiais mais velhos. - Da última vez, perdi quase vinte libras, todo o dinheiro que ganhei quando capturamos o Buurman.
- Apostas de um quarto de penny e um limite de xelins - sugeriu outro, e todos concordaram, vasculhando suas bolsas.
- Sr. Winterton, senhor - interrompeu Schreuder -, eu o favorecerei com qualquer aposta que seu estômago possa suportar e não me furtarei ao lance. - Estava pálido e o suor brilhava em sua testa, porém era o único efeito visível que a bebida exercia sobre ele.
Mais uma vez o silêncio caiu sobre a mesa enquanto Schreuder rebuscava sob a túnica e dela retirava uma bolsa de pele de porco. Dei-xou-a cair com indiferença sobre a mesa, e o saco tilintou com a música inconfundível do ouro. Todos ao redor ficaram rígidos.
- Jogamos por esporte e pela boa camaradagem aqui - resmungou Llewellyn.
Vincent Winterton, porém, disse, alegremente:
- Quanto tem nessa bolsa, coronel?
Schreuder soltou os cordões e, com um floreio, derramou as moedas num pesado monte no centro da mesa, onde faiscaram à luz do lampião. Triunfalmente, olhou para o círculo de faces.
Não vão me tomar tão levianamente agora!, pensou, mas disse, em voz alta:
- Vinte mil guinéus holandeses. Mais de duzentas de suas libras inglesas. - Era toda sua fortuna, porém havia um latejar imprudente e autodestrutivo em seu coração. Descobriu-se impelido à insensatez, como se pudesse varrer com ouro a culpa do terrível assassinato.
A companhia ficou pasma, em silêncio, diante do valor. Era uma soma enorme, mais que a maioria daqueles oficiais poderia esperar acumular durante uma vida inteira de esforços perigosos.
Vincent Winterton sorriu placidamente.
- Vejo que na verdade é um esportista, senhor.
- Ah! De fato! - Schreuder sorriu com frieza. - As apostas são muito altas, não são? - Recolheu as moedas de ouro de volta para a bolsa e fez como se fosse se levantar da mesa.
- Espere um pouco, coronel - disse Vincent, e Schreuder afundou-se em seu assento. - Vim despreparado, porém poderia me dispensar uns poucos minutos de seu tempo? - Levantou-se, fez uma mesura e saiu da cabine.
Todos se sentaram em silêncio até que ele voltou e colocou um pequeno baú de teca em frente ao coronel, na mesa.
- Trezentas, era isso? - Começou a contar as moedas do baú. Elas escorreram numa esplêndida profusão pelo centro da mesa.
- Será gentil o bastante para guardar as apostas, capitão? - perguntou Vincent, educadamente. - Isto é, se o coronel concordar?
- Não tenho objeções. - Schreuder concordou empertigado e passou a bolsa para Llewellyn. No íntimo, as primeiras ondas de pesar o assaltavam. Não esperava que qualquer um deles topasse seu desafio. Uma perda de tal magnitude poderia empobrecer a maioria dos homens, como realmente iria deixá-lo na miséria.
Llewellyn recebeu ambas as bolsas e colocou-as diante de si. Então Vincent pegou o copo de couro dos dados e passou-o para Schreuder.
- Normalmente jogamos com estes, senhor - disse Vincent, com tranquilidade. - Importa-se de examiná-los? Se não forem de seu gosto, talvez possamos encontrar outros que lhe agradem mais.
Schreuder jogou os dados para fora do copo e rolou-os sobre a mesa. Então pegou cada cubo de marfim e segurou-o à luz do lampião.
- Não vejo nada de errado - disse, e recolocou-os no copo. - Resta apenas acertar as regras. Como será o jogo?
- Pelo método inglês, o Hazard - disse Vincent. - Que outro poderia ser mais?
- Qual o limite em cada copo? - quis saber Schreuder. - Uma libra ou cinco?
- Um único copo - disse Vincent. - O lançador será decidido Pelo número mais alto, e depois serão duzentas libras em jogo.
Schreuder ficou espantado com a proposta. Esperava fazer lances menores, o que lhe possibilitaria retirar-se com algum semblante de graça Se o rolar dos dados se voltasse contra ele. Nunca ouvira falar de tal imensa soma apostada num único lançamento.
Um dos amigos de Vincent riu à socapa, deliciado.
- Por Deus, Vinny! Isso irá mostrar a cor do fígado do cabeça-de-queijo.
Schreuder encarou-o furioso, porém sabia que estava numa armadilha. Por um momento mais, procurou algum escape, porém Vincent murmurou:
- Espero realmente não tê-lo constrangido, coronel. Confundi-o com um esportista. Gostaria de cancelar a coisa toda?
- Eu lhe asseguro - disse Schreuder, com frieza - que, por mim, está tudo bem. Um lance por duzentas libras. Concordo.
Llewellyn colocou um dos dados no copo e passou-o a Schreuder.
- Um dado para escolher o lançador. O número mais alto. Estão de acordo, cavalheiros?
Ambos concordaram. Schreuder rolou o único dado.
- Três! - disse Llewellyn, e recolocou-o no copo de couro. - Sua jogada, Sr. Winterton. - Colocou o copo na frente de Vincent, que o sacudiu e lançou-o no mesmo movimento.
- Cinco! - disse Llewellyn. - O Sr. Winterton é o lançador no jogo de dados inglês por uma bolsa de duzentas libras. - Desta vez, colocou ambos os dados no copo. - O lançador jogará para decidir o número principal. Por favor, Sr. Winterton.
Vincent pegou o copo, sacudiu-o e lançou os dados sobre a mesa. Llewellyn leu:
- O principal é sete.
O espírito de Schreuder acovardou-se. Sete era o número mais fácil de duplicar. Muitas combinações dos dados produziriam isso. A disputa se virara contra ele, e essa constatação se refletia na face de maldosa satisfação de cada um dos observadores. Se Vincent conseguisse outro sete ou um onze, ganharia, o que era bem provável. Se os números fossem um e um ou um e dois, ou doze, então perderia. Qualquer outro número iria se tornar o que chamava de sua chance, e ele teria de se manter jogando até que o repetisse ou acontecesse uma das combinações em que perderia.
Schreuder se recostou e cruzou os braços como se fosse se defender de um brutal ataque. Vincent lançou os dados.
- Quatro! - disse Llewellyn. - A chance agora é quatro. Houve um simultâneo tomar de fôlego de cada pessoa na mesa, a não ser Vincent. Quatro era o número mais difícil para ele se sair bem. A sorte voltara-se a favor de Schreuder. Agora Vincent precisava obter um quatro para vencer; se fosse sete o principal, ele perderia. Apenas duas combinações poderiam dar um total de quatro, enquanto muitas outras perfariam um sete de perda.
- Tem a minha simpatia, senhor. - Schreuder sorriu com crueldade. - Quatro é o próprio número do diabo. Vamos ver como se sai dessa.
- Os anjos favorecem os virtuosos. - Vincent fez um gesto de descaso e sorriu. - Quer aumentar a aposta? Outras cem libras?
Era uma oferta tola, com a disputa a se voltar contra ele, porém Schreuder não tinha outro guinéu para apostar. Meneou a cabeça com secura.
- Não me aproveitaria de um homem que está de joelhos.
- E elegante, coronel - disse Vincent, e lançou os dados novamente.
- Dez! - disse Llewellyn. Era um número neutro.
Vincent pegou os dados e sacudiu-os no copo. Lançou-os outra vez.
- Seis!
Outro número neutro, e embora Schreuder continuasse sentado imóvel como um cadáver, sua cor era de cera, e ele podia sentir as gotas de suor escorrendo por entre os pêlos de seu peito como lesmas viscosas de jardim.
- Esta jogada é por todas as belas moças que deixamos para trás - exclamou Vincent, e os dados estalaram no tampo de nogueira da mesa quando ele os jogou de novo.
Por um longo e terrível momento, nenhum homem se moveu ou falou. Então um berro subiu da garganta de cada inglês, que deve ter assustado o vigia no tombadilho acima e chegado à sentinela no topo do mastro principal.
- Maria e José! Dois pares de tetas! Um quatro tão doce como jamais vi!
- O Sr. Winterton aproveitou sua chance - entoou Llewellyn, e colocou as duas pesadas bolsas em frente a ele. - O Sr. Winterton é o vencedor.
Sua voz, porém, quase se afogara pelo tumulto de risadas e congratulações. Passaram-se vários minutos, enquanto Schreuder se sentava imóvel como um tronco caído, a face cinzenta e suada.
Por fim, Winterton dispensou qualquer gracejo ou congratulações a mais. Levantou-se, inclinou-se sobre a mesa na direção de Schreuder e disse, muito sério:
- Eu o cumprimento, senhor. É um cavalheiro de nervos de aço e um esportista de primeira linha. Ofereço-lhe um aperto de mão de amigo.
- Estendeu a mão direita com a palma aberta.
Schreuder olhou para ela com desdém, ainda sem se mover, e os sorrisos de todos feneceram. Outro silêncio carregado caiu sobre a pequena cabine.
Schreuder então falou, com voz clara e altissonante:
- Eu deveria ter examinado aqueles seus dados mais de perto quando tive a oportunidade. - Colocou uma ênfase pesada no pronome possessivo. - Espero que vá me perdoar, senhor, porém tenho uma regra de jamais apertar mãos de trapaceiros.
Vincent encolheu-se vivamente e encarou Schreuder, incrédulo, enquanto ou outros arquejavam e fungavam.
Custou um longo momento a Vincent recuperar se do choque daquele insulto inesperado, e suas belas feições ficaram pálidas sob a pele bronzeada de sal e sol, ao retrucar:
- Eu ficaria profundamente agradecido se pudesse me dar satisfações por esse comentário, coronel Schreuder.
- Com o maior dos prazeres. - Schreuder ficou de pé, a sorrir triunfante. Fora desafiado e portanto a escolha de armas seria dele. Nada de pistolas. Seria o aço, e aquele peralvilho inglês teria o prazer de receber meio metro da espada de Netuno na barriga. Schreuder voltou-se para Llewellyn. - Dar-me-ia a honra de atuar como meu padrinho nessa questão? - perguntou.
- Não! - Llewellyn sacudiu a cabeça com firmeza. - Não permitirei duelo a bordo de qualquer navio meu. Terá de encontrar outra pessoa para isso, e terá de conter seu temperamento até chegarmos a um porto. Então poderá ir a terra para resolver esse assunto.
Schreuder olhou de volta para Vincent.
- Eu o informarei do nome de meu padrinho na primeira oportunidade - disse. - Prometo satisfação tão logo cheguemos a um porto.
- Levantou-se e saiu da cabine. Podia ouvir as vozes às suas costas, altas em comentários e conjecturas, porém os vapores do conhaque ergueram-se para se misturar à sua raiva até que ele receou que as veias que latejavam em suas têmporas pudessem romper-se com a força da pulsação.
No dia seguinte, Schreuder recolheu-se à própria cabine, onde um criado lhe trouxe a refeição enquanto ele jazia no catre como uma fatalidade de batalha, curtindo as terríveis feridas de seu orgulho e a dor insuportável causada pela perda total de sua fortuna. No segundo dia, foi ao tombadilho enquanto o Golden Bough estava num curso de bombordo e acertava o rumo para oeste-noroeste ao longo da linha protuberante da costa meridional da África.
Tão logo sua cabeça apareceu acima do patamar do corredor, o oficial do turno se virou para o lado e ocupou-se com as cavilhas da tábua de bordejo, enquanto o capitão Llewellyn erguia a luneta e estudava as montanhas azuis que assomavam no horizonte ao norte. Schreuder caminhou ao longo da amurada de sotavento do navio enquanto os oficiais ignoravam conscientemente sua presença. O criado que fora o garçom no jantar da cabine do capitão espalhara a notícia do duelo pendente por todo o navio, e a tripulação o encarava com curiosidade e se mantinha fora de seu caminho.
Depois de meia hora, Schreuder parou abruptamente na frente do oficial do turno e, sem preâmbulos, perguntou:
- Sr. Fowler, poderá atuar como meu padrinho?
- Peço desculpas, coronel, o Sr. Winterton é meu amigo. Pode me dar licença, por favor?
Durante os dias que se seguiram, Schreuder abordou cada oficial para que atuasse como seu padrinho, porém a cada vez era recebido com recusas frígidas. Mergulhado no ostracismo e humilhado, ele rondava pelo tombadilho aberto como um leopardo caçador da noite. Seus pensamentos balançavam como um pêndulo entre o remorso e a agonia com relação à morte de Katinka, e o ressentimento pelo tratamento a ele dirigido pelo capitão e os oficiais do navio. Sua raiva se expandia até que mal podia suportá-la.
Na manhã do quinto dia, enquanto passeava pela amurada de sotavento, um brado de alerta o despertou daquela névoa negra de sofrimento. Quando o capitão Llewellyn seguiu para a amura de barlavento e olhou para sudoeste, Schreuder seguiu-o pelo tombadilho e postou-se a seu ombro.
Por alguns momentos, duvidou da própria visão, à medida que fitava a extensão montanhosa de ameaçadoras nuvens escuras que se espalhavam do horizonte até os céus e avançavam sobre eles com tamanha velocidade, que ele voltou a pensar na avalanche escorrendo pela garganta escura.
- É melhor descer, coronel - avisou-o Llewellyn. - Estamos à beira de uma calamidade.
Schreuder ignorou o aviso e ficou de pé na amurada, cheio de respeito e admiração enquanto observava as nuvens rolarem sobre eles. A seu redor, por toda parte, o navio estava em tumulto, a tripulação a correr para colher as velas e girar a proa de modo que o Golden Bough pudesse enfrentar a tempestade que se avizinhava. O vento chegou tão rapidamente que pegou a nau com as velas do joanete e da bujarrona ainda içadas e aladas pelas escotas.
A tormenta desabou sobre o Golden Bough, uivando com fúria, e girou-o de modo que a amurada de sotavento desceu e a água verde entrou a bordo para varrer o tombadilho. Schreuder foi arrastado pelo fluxo e poderia ser lançado pelo costado se não se agarrasse firmemente às enxárcias.
A bujarrona e os joanetes do Golden Bough estouraram como se fossem pergaminho molhado, e por um longo minuto a embarcação chafurdou sob as vagas conforme o vendaval a empurrava para baixo. O mar se derramava pelas escotilhas abertas, e lá de baixo vieram um estouro e um estampido, como se as anteparas se rachassem e a carga se deslocasse. Homens gritaram ao serem esmagados por uma colubrina que rompera suas cordas de fixação e corria às cegas pelo convés de artilharia. Outros marinheiros gritavam como almas perdidas caindo no abismo conforme eram carregados dos lados pelas velozes águas verdes. O ar tornou-se branco com os borrifos, tanto que Schreuder sentiu-se afogar, mesmo que sua face estivesse fora d'água, e a névoa branca o cegou.
Lentamente, o Golden Bough endireitou-se quando sua quilha bem sopesada nivelou-a para cima, porém a mastreação e os cordames estavam em farrapos, batendo e chicoteando ao vento. Algumas das vergas estavam quebradas e se chocavam com ruído, martelando e arruinando os mastros. Adernando pesadamente com a água do mar que o invadira, o Golden Bough era arrastado fora de controle ante o vento.
Arquejando e engasgado, meio afogado e encharcado até os ossos, Schreuder arrastou-se pelo tombadilho até o abrigo do corredor. Dali, ficou a observar, com terror e fascinação, enquanto o mundo a seu redor se dissolvia em jatos prateados e enlouquecidas ondas verdes estriadas com longas franjas de espuma.
Por dois dias, o vento não cessou seu assalto sobre eles, e os mares cresceram mais altos e mais selvagens a cada hora, até que as vagas pareciam torres a avançar sobre o mastro principal conforme desabavam sobre o navio. Meio submerso, o Golden Bough se erguia com lentidão, e as ondas estouravam em espuma e escorriam verdes pelos tombadilhos, pois timoneiros, trancafiados à cana de leme, batalhavam para mantê-lo apontando para o vento, mas cada onda que vinha a bordo estourava sobre suas cabeças. Pelo segundo dia, todos estavam exaustos e perto dos limites de sua resistência. Não havia nenhuma chance de dormir, e apenas biscoitos duros para comer.
Llewellyn se amarrara ao mastro principal e de lá dirigia os esforços de seus oficiais e homens para manter o navio vivo. Nenhum homem era capaz de se manter em pé sem apoio no tombadilho aberto, de modo que Llewellyn não poderia ordenar-lhes que manejassem as bombas principais, porém, no convés de artilharia, equipes de marujos trabalhavam num frenesi nas bombas auxiliares para tentar tirar os dois metros de água dos porões da nau. Por mais rápido que bombeassem, o mar escorria de volta pelas portinholas de canhão arrebentadas e cobertas de escotilha rachadas.
A terra assomava sempre mais próxima a bombordo, conforme a tempestade os empurrava para a frente sob os mastros nus, e embora o timoneiro retesasse músculo e coração para livrá-lo, o Golden Bough rumava em direção à terra firme. Naquela noite, ouviram as ondas a quebrar e estourar lá fora como uma barragem de canhão, na escuridão, a cada hora mais tumultuosas, conforme eram impelidos para as rochas.
Quando a alvorada irrompeu, no terceiro dia, puderam ver, através da névoa e da espuma, o sombrio e ameaçador contorno da terra, os penhascos e as protuberantes pontas avançadas apenas a uma légua de distância através das montanhas onduladas de águas cinzentas e furiosas.
Schreuder arrastou-se pelo tombadilho, agarrando-se ao mastro, à enxárcia e ao brandal conforme cada onda vinha a bordo. A água do mar escorria de seus cabelos para a face, enchendo-lhe a boca e narinas, quando ele ofegou para Llewellyn.
- Conheço essa costa. Reconheço aquela ponta de terra se aproximando adiante de nós.
- Precisaremos das bênçãos de Deus para aguentar firme neste curso berrou Llewellyn. - O vento nos tem em seus dentes.
- Então reze ao Todo-poderoso com todo o seu coração, capitão, pois nossa salvação está cinco léguas além - gritou Schreuder, pestanejando para tirar o sal dos olhos.
- Como pode ter certeza disso?
- Estive em terra aqui e marchei pela região. Conheço cada ruga da terra. Há uma baía além daquele cabo, a que demos o nome de baía do Búfalo. Uma vez que estiver dentro dela, o navio ficaria abrigado da plena força do vento, e do lado oposto se ergue um par de cabeças rochosas que guardam a entrada de uma larga e calma lagoa. Dentro dela, ficaremos a salvo mesmo de uma tal tempestade como essa.
- Não há nenhuma lagoa marcada em minhas cartas. - A expressão de Llewellyn se dividia entre a esperança e a dúvida.
- Pelo doce Jesus, capitão, precisa crer em mim! - esbravejou Schreuder. No mar, estava fora de seu elemento natural, e, por essa vez, tinha medo.
- Primeiro, precisamos superar aquelas rochas, depois, poderemos comprovar a qualidade de sua memória.
Schreuder caiu em silêncio e agarrou-se desesperadamente ao mastro ao lado de Llewellyn. Olhou à frente com horror quando viu o mar abrir seus lábios rosnentos de espuma branca e os dentes nus de rochas negras. O Golden Bough rumava inexoravelmente para aquela mandíbula.
Um dos timoneiros esgoelou:
- Oh, Santa Mãe de Deus, salve nossas almas mortais! Vamos bater!
- Gire seu leme com força! - berrou Llewellyn para ele.
Ali perto, ao lado, o mar se abria perversamente e os recifes irrompiam para fora d'água como uma baleia a respirar. Garras de pedra pareciam se estender em direção às frágeis pranchas do pequeno navio, e estavam tão perto que Schreuder podia ver as massas de crustáceos e sargaços que revestiam as rochas. Outra onda, maior que o resto, ergueu-se e jogou-os para o recife, mas as rochas desapareceram abaixo da superfície borbulhante e o Golden Bough saltou como um caçador numa cerca e atirou-se por sobre elas.
Sua quilha tocou as pedras e a nau sacudiu com tanta força, que o aperto de Schreuder no mastro se soltou e ele foi empurrado para o tombadilho, mas o navio balançou e se livrou, impulsionado para a frente, carregado na crista daquela poderosa vaga, e deslizou para longe do recife para águas mais profundas adiante. Investiu em frente, a cabeça da ponta de terra afastando-se atrás e a baía se abrindo pela proa. Schreuder arrastou-se para ficar de pé e sentiu de imediato que o pavoroso poderio do vendaval fora quebrado pelo abrigo da terra. Embora ainda se atirasse com selvageria para a frente, o navio começava a voltar a ficar sob controle, e Schreuder podia senti-lo responder à insistência de seu leme de direção.
- Lá! - gritou ao ouvido de Llewellyn. - Lá! Bem adiante!
- Céus! Você tinha razão. - Através da espuma e das águas encrespadas, Llewellyn divisou o contorno das pontas gémeas sobre a proa do navio. Virou-se para os timoneiros. - Deixe a nau cair um ponto!
Pela expressão terrificada, eles mostraram como detestavam obedecer, mas deixaram a embarcação cair pelo vento e apontar em direção ao próximo píer de rochas negras e de ondas.
- Mantenham nesse curso! - ordenou-lhe Llewellyn, e o Golden Bough avançou ao longo das pontas pela baía.
- Sr. Winterton! - berrou ele para Vincent, que se agachara debaixo da braçola de escotilha ali perto, com meia dúzia de marinheiros abrigados atrás dele. - Precisamos rizar as velas da verga do joanete principal para dar direção ao navio. Pode fazer isso?
Fez da ordem um pedido, pois era uma condenação de morte enviar um homem ao topo do mastro principal com aquela ventania. Um oficial devia liderar o caminho, e Vincent era o mais forte e corajoso entre eles.
- Vamos lá, rapazes! - gritou Vincent a seus homens sem hesitação. - Um guinéu de ouro para cada homem que possa me vencer até a verga do joanete principal. - Saltou de pé e correu pelo convés até as enxárcias do mastro principal e começou a subir, mão após mão, com seus homens a persegui-lo.
O Golden Bough investiu pela baía do Búfalo como um cavalo disparado. De súbito, Schreuder berrou novamente:
- Olhem lá! - E apontou para onde a entrada para a lagoa começava a se abrir às suas vistas entre as pontas que se avolumavam de cada lado.
Llewellyn jogou a cabeça para trás e ergueu os olhos para o mastro principal, para as minúsculas figuras que se espalhavam ao longo da verga alta e lutavam com as lonas enrizadas. Reconheceu Vincent facilmente por sua esguia forma atlética e os cabelos negros que esvoaçavam ao vento.
- Tudo bem-feito com coragem até agora - murmurou Llewellyn -, mas, depressa, rapaz. Dê-me um pequeno pedaço de lona para obedecer à ação do leme.
Conforme ele dizia isso, a vela auxiliar voou e enfunou-se com um estouro, como um tiro de mosquete. Por um pavoroso momento, Llewellyn Pensou que a lona pudesse ser rasgada em trapos pelo vento, porém ela se inchou e se aguentou, e, imediatamente, ele sentiu o movimento do navio mudar.
- Pela doce mãe Maria! Podemos conseguir ainda! - crocitou, pela garganta arranhada e rouca de sal. - Força! - berrou para o leme, e o Golden Bough respondeu diligente e pôs a proa pelo vento.
Como uma flecha solta de um arco, a nau avançou direto para a ponta de terra a oeste como se investisse para terra, porém seu casco deslizou pela água e o ângulo de sua proa se alterou. A passagem abriu-se toda adiante, e, conforme passava para o abrigo de sotavento da terra, a embarcação se estabilizou, disparou por entre as pontas, pegou a maré que estava em pleno fluxo e arremessou-se pelo canal para dentro da tranquila lagoa onde estava protegida da força da tempestade.
Llewellyn olhou para a praia coberta de verdes florestas com admiração e alívio. Então, espantou-se e apontou adiante.
- Já há outro navio ancorado ali!
Ao lado dele, Schreuder protegeu os olhos dos rascantes golpes de vento que redemoinhavam pelos penhascos.
- Conheço aquela nau! - gritou. - Conheço-a muito bem. É o navio de lorde Cumbrae. É o Gull of Morayl landi - murmurou Aboli, baixinho, e Hal reconheceu o nome holandês para alce, porém aquelas criaturas eram diferentes de quaisquer dos grandes cervos vermelhos do norte que vira algum dia. Eram enormes, maiores mesmo que o gado que seu tio Thomas criava nos domínios de High Weald.
Os três, Hal, Althuda e Aboli, jaziam de barriga para baixo num pequeno buraco cheio de capim grosso. A manada se espalhava entre o bosque aberto de árvores de espinhos miúdos adiante. Hal contou cinquenta e dois machos, fêmeas e filhotes ao todo. Os machos eram pesados e gordos, de maneira que, quando caminhavam, suas papadas balançavam de lado a lado e a carne de suas barrigas e quartos estremecia como a de uma água-viva. A cada passo, subia um estranho som estaladiço, como de galhos se quebrando.
- São seus joelhos que fazem esse ruído - explicou Aboli ao ouvido de Hal. - Nkulu Kulu, o grande deus de todas as coisas, puniu-os quando se vangloriaram de ser os maiores de todos os antílopes. Deu-lhes essa aflição para que o caçador os pudesse sempre ouvir de longe.
Hal sorriu diante da crença curiosa, porém então Aboli lhe disse algo mais que dissipou aquele sorriso.
- Conheço essas criaturas, são altamente valorizadas pelos caçadores de minha tribo, pois um macho tal como aquele, à frente da horda, carrega uma massa de gordura branca em torno de seu coração que dois homens não podem carregar.
Por meses, agora, nenhum deles tinha provado gordura, pois toda a caça que tinham conseguido matar era desprovida dela. Todos ansiavam por isso, e Sukeena avisara Hal que, por falta de gordura, logo estariam doentes e cairiam presos de enfermidades.
Hal estudou o macho do rebanho quando o animal se pôs a pastar sob uma das árvores espinhentas, fisgando os galhos mais altos com seus enormes chifres espiralados. Diferentemente das fêmeas, que eram de um marrom suave e aveludado, estriado de branco pelos ombros, o macho se tornara cinza azulado com a idade e havia um tufo de pêlos mais escuros em sua testa, entre as bases de seus grandes cornos.
- Deixe o macho - disse Aboli a Hal. - Sua carne é ordinária e dura. Vê aquela fêmea atrás dele? É doce e tenra como uma virgem, e sua gordura como mel em sua boca.
Contra o conselho de Aboli, que ele sabia ser sempre o melhor disponível, Hal sentiu o ímpeto de caçador atraí-lo para o grande macho.
- Se formos cruzar o rio com segurança, então precisaremos de tanta carne quanto pudermos carregar. Cada um de nós atirará em seu próprio animal - resolveu. - Ficarei com o macho, você e Althuda peguem animais mais jovens. - Começou a rastejar para a frente sobre a barriga, e os outros dois o seguiram.
Naqueles últimos dias, desde que haviam descido as escarpas, tinham descoberto que a caça naquelas pradarias nutria pouco medo do homem. Parecia que a temida silhueta bípede em pé não representava nenhum especial terror para eles, e eles permitiam que os caçadores se aproximassem no raio de um tiro certeiro de mosquete antes de se afastarem.
Assim devia ter sido no Eden antes da Queda, pensou Hal, ao se aproximar do macho da manada. A brisa suave o favorecia, e os anéis de fumaça azulada de sua mecha de queima lenta esvoaçavam para longe do rebanho.
Ele estava tão perto agora que podia divisar os cílios que emolduravam os enormes olhos líquidos e escuros do macho, e as pernas vermelhas e douradas dos carrapatos que se grudavam em bandos à pele acima entre as patas dianteiras. O macho comia, arrancando delicadamente as jovens folhas verdes dos galhos entre os espinhos com sua língua azul.
De cada lado dele, duas de suas fêmeas se alimentavam da mesma árvore espinhosa. Uma tinha um filhote nos calcanhares, enquanto a outra estava com o ventre inchado e prenhe. Hal voltou a cabeça lentamente e olhou para os homens que jaziam a seu lado. Indicou-lhes as fêmeas com um lento movimento dos olhos, e Aboli aquiesceu e ergueu o mosquete.
Mais uma vez, Hal concentrou toda a sua atenção no grande macho, e traçou a linha da escápula abaixo da pele que recobria o ombro, fixando um ponto em toda aquela larga expansão de pêlo macio de um cinza azulado no qual mirar. Ergueu o mosquete e ajustou o cabo no nó do ombro, sentindo que os homens de cada lado dele faziam o mesmo.
Conforme o macho avançava outro passo para a frente, ele segurou o disparo. O animal parou de novo e ergueu totalmente a cabeça, no grosso pescoço cheio de papadas, alcançando com as costas os maciços chifres torcidos, procurando alcançar os brotos no topo da árvore de espinhos, onde cresciam os mais doces buques de macias folhas verdes.
Hal disparou, e ouviu a detonação dos outros mosquetes, de cada lado, mesclar-se à concussão de sua própria arma. Uma revoluta parede de fumaça branca bloqueou-lhe a visão em frente. Ele deixou o mosquete cair, saltou de pé e correu para o lado para ter uma visão clara em torno do banco de fumaça. Viu que uma das fêmeas estava caída, a chutar e se revirar conforme o sangue vivo saía em jatos da ferida em sua garganta, enquanto a outra cambaleava para trás, a perna frontal a girar solta no osso quebrado. Aboli já corria atrás dela, o alfanje desembainhado na mão direita.
O resto do rebanho se afastava numa massa marrom e comprimida pelo vale, os filhotes a cair atrás de suas mães. O macho, no entanto, deixara o rebanho, sinal seguro de que a bala de chumbo o atingira cruelmente. Fugia para a gentil inclinação do outeiro coberto de relva adiante. Porém, seu passo era curto e hesitante, e conforme ele mudava de direção, expondo o grande ombro à vista de Hal, o sangue que escorria por seu flanco era vermelho como uma bandeira ao sol e borbulhante com o ar de seus pulmões perfurados.
Hal começou a correr em passadas cada vez mais rápidas pelo mato pisoteado. O ferimento em sua perna era agora apenas uma cicatriz perfeitamente curada, de um azul lustroso, e enrugada. A longa jorna sobre as montanhas e planícies tinha fortalecido aquele membro, de modo que sua passada era firme e flexível. Uma amarra ou mais adiante, o macho se arrastava para longe dele, deixando uma névoa de fina poeira vermelha a flutuar no ar, porém já então sua ferida começava a produzir efeito, e o sangue em jatos pintava uma luzidia trilha na grama prateada para marcar sua passagem.
Hal fechou o espaço até que estava doze passos atrás do gigantesco animal. Ele sentiu a perseguição e se voltou ao largo. Hal esperou uma furiosa investida, um baixar da grande cabeça inchada e um nivelar daqueles chifres em espiral. Avançou, encarando o antílope, e tirou a adaga da bainha, preparado para se defender.
O macho olhou para ele com enormes olhos intrigados, escuros e marejados de lágrimas com a agonia da morte que se aproximava. O sangue pingava de suas narinas, e a macia língua azul pendurava-se do lado de sua boca. Não fez nenhum movimento para atacá-lo ou defender-se, e Hal não viu malícia ou raiva em seu olhar.
- Perdoe-me - murmurou, ao circular a besta, esperando por uma abertura, e sentiu as lentas e tristes ondas do remorso se quebrarem em seu coração ao observar a agonia que infligira àquele animal magnífico. De repente, investiu em frente e avançou com o aço. O golpe do experiente espadachim enterrou a lâmina em todo o seu comprimento na carne do animal, e o macho corcoveou e girou para o lado, arrancando o cabo da adaga da mão de Hal. Porém o aço encontrara-lhe o coração, e, com suas pernas a se dobrarem gentilmente, o cervo fraquejou fracamente nos joelhos. Com um gemido baixo, tombou de lado e morreu.
Hal pegou o cabo da adaga e retirou a longa lâmina manchada; então, escolheu uma rocha perto da carcaça e foi sentar-se ali. Sentia-se tristonho, ainda que estranhamente alvoroçado. Estava intrigado e confuso com aquelas emoções contraditórias, e demorou-se em fitar a beleza e a majestade do animal que havia reduzido àquele triste monte de carne morta na relva.
Uma mão pousou em seu ombro, e Aboli resmungou, baixinho:
- Apenas o verdadeiro caçador conhece essa angústia do ato de matar, Gundwane. Eis por que minha tribo, que é de caçadores, canta e dança para dar graças e aplacar os espíritos da caça que mataram.
,. Ensine-me a cantar essa canção e dançar essa dança, Aboli - disse Hal, e Aboli começou a cantar em sua profunda e bela voz. Quando Pegou o ritmo, Hal, juntou-se ao refrão repetitivo, louvando a beleza e a graça da presa e agradecendo-lhe por morrer para que o caçador.
Sua tribo pudessem viver.
Aboli começou a dançar, arrastando e batendo os pés e cantando num círculo em torno da grande carcaça, e Hal dançou com ele. Seu peito estava engasgado, e seus olhos borrados, quando, por fim, a canção terminou, e os dois se sentaram juntos, sob os raios oblíquos do sol amarelado, para observar a pequena coluna de fugitivos liderada por Sukeena, que vinha na direção deles, de longe, pela planície.
Antes que a escuridão caísse, Hal colocou-os a construir uma paliçada, e inspecionou-a com cuidado para ter certeza de que as fendas na defesa estavam fechadas com ramos de espinheiro. Carregaram os quartos e os ombros da carne do eland e a amontoaram dentro da paliçada, onde os carniceiros não poderiam alcançá-la. Deixaram apenas retalhos e as vísceras, os cascos cortados e as cabeças, os montes de entranhas e intestinos estufados com a polpa de folhas meio digeridas e grama. Conforme se afastavam, os abutres começaram a circular no ar ou desciam em grandes espirais, e a hiena e o chacal corriam em frente para devorar e urrar, e disputar aquele festim mortal.
Depois que todos tinham comido até se fartar os suculentos pedaços do alce, Hal escolheu Sukeena e a si próprio para o turno do meio que começava à meia-noite. Embora fosse o mais custoso, pois era a hora em que a vitalidade de um homem estava em sua maré mais baixa, eles adoravam ter a noite para si mesmos.
Enquanto o resto do bando dormia, eles se reuniram à entrada da paliçada sob uma única pele de kaross, com o mosquete postado perto da mão direita de Hal. Depois de terem feito amor suave e silencioso, para não perturbar os outros, ficaram a observar o céu e a falar em murmúrios enquanto as estrelas faziam seu remoto e antigo circuito lá em cima.
- Diga-me a verdade, meu amor, o que você leu naquelas estrelas. O que jaz adiante para mim e você? Quantos filhos você vai me dar? A mão dela, presa na dele, ficou imóvel, e Hal sentiu que o corpo de Sukeena se retesava. Ela não respondeu, e ele teve de perguntar de novo. - Por que nunca me conta o que vê no futuro? Sei que traçou nossos horóscopos, pois muitas vezes, quando pensou que eu estava dormindo, pude vê-la estudando e escrevendo em seu pequeno livro azul.
Ela levou os dedos aos lábios de Hal.
- Fique tranquilo, meu senhor. Há muitas coisas nesta existência que é melhor ficarem escondidas de nós. Por esta noite e amanhã, vamos amar um ao outro com todo o nosso coração e toda a nossa força. Vamos extrair o máximo de cada dia que Deus nos concede.
- Você me preocupa, minha doçura. Não haverá filhos, então? Sukeena ficou em silêncio outra vez, conforme observavam uma estrela cadente deixar sua breve trilha fulgurante pelos céus e por fim sumir diante de seus olhos. Então, ela suspirou e murmurou:
- Sim, eu lhe darei um filho, porém... - Sufocou as outras palavras que lhe subiram à língua.
- Há uma grande tristeza em sua voz. - O tom de voz de Hal era inquieto. - E, no entanto, a ideia de que carregará meu filho me enche de alegria.
- As estrelas podem ser malevolentes - murmurou ela. - Algumas vezes, consumam suas promessas de uma maneira que não esperamos ou apreciamos. De uma coisa pelo menos eu tenho certeza: os fados deram a você uma tarefa de grandes consequências. Isso foi feito desde o dia de seu nascimento.
- Meu pai me falou dessa mesma tarefa. - Hal pensou com ressentimento na antiga profecia. - Estou desejoso de encarar meu destino, porém preciso que você me ajude e me sustenha, como já tem feito tantas vezes.
Ela não respondeu ao apelo, porém disse:
- A tarefa que lhe reservaram envolve um juramento e um talismã de mistério e poder.
- Estarão comigo, você e nosso filho? - insistiu ele.
- Se eu puder guiá-lo na direção em que você precisa ir, assim o farei com todo o meu coração e toda a minha força.
- Mas, irá comigo? - implorou ele.
- Irei com você até onde as estrelas o permitam - prometeu ela. - Mais do que isso eu não sei e não posso dizer.
?- Mas... - começou ele, porém Sukeena ergueu a boca e lhe cobriu os lábios com os seus para impedi-lo de falar.
-- Não mais! Não deve perguntar mais nada - avisou-o. - Agora, junte seu corpo com o meu mais uma vez e deixe o assunto das estrelas aPenas para as estrelas.
Rumo ao fim de seu turno, quando as Sete Irmãs tinham afundado abaixo das colinas e o Touro se postava alto e orgulhoso, eles ficaram um nos braços do outro, ainda conversando baixinho para lutar contra o entorpecimento que os acometia. Tinham se acostumado aos sons da noite ali nos ermos, do líquido gorjeio dos pássaros noturnos, do ganir agudo do coro modulado dos pequenos chacais vermelhos ao horrendo gargalhar e uivar dos bandos de hienas nos restos de carcaças, porém de súbito, veio um som que os enregelou até as profundezas de suas almas.
Era o som de todos os demónios do inferno, um monstruoso rugir e rosnar que imobilizou toda a criação menor, rolou contra as colinas e voltou para eles numa centena de ecos. Involuntariamente, Sukeena agarrou-se a ele e gritou, alto:
- Oh, Gundwane, que terrível criatura será essa?
Não estava sozinha em seu terror, pois todo o acampamento estava de súbito acordado. Zwaantie gritava, e o bebé ecoava seu pavor. Mesmo os homens saltaram de pé e gritavam para Deus.
Aboli apareceu ao lado deles como uma escura sombra de lua e acalmou Sukeena pousando a mão em seu ombro trêmulo.
- Não é fantasma, porém uma criatura deste mundo - disse a eles. - Dizem que mesmo o mais bravo caçador fica apavorado três vezes pelo leão. A primeira, quando vê seus rastros; a segunda, quando ouve sua voz; e a terceira, quando se confronta com o animal face a face.
Hal saltou de pé e chamou os outros.
- Lancem lenha nova na fogueira. Acendam as mechas de todos os mosquetes. Coloquem as mulheres e a criança no centro da paliçada.
Agacharam-se num círculo apertado atrás das paredes frágeis, e, por um momento, tudo estava quieto, mais quieto do que estivera durante toda aquela noite, pois, agora, mesmo os carniceiros tinham sido silenciados pela voz poderosa que falara de dentro da escuridão.
Esperaram, as armas prontas, e fitaram a noite, onde a luz amarelada das chamas não conseguia alcançar. Pareceu a Hal que o fogo bruxuleante pregava peças a seus olhos, pois, vez ou outra, julgara ter visto uma fantasmagórica forma a deslizar silenciosamente pelas sombras. Então Sukeena agarrou-lhe o braço, enterrando as unhas em sua carne, e ele soube que ela vira também.
Abruptamente, aquele vendaval de barulho terrificante desabou sobre eles, eriçando-lhes os cabelos das cabeças. As mulheres gritaram e os homens tremeram e aumentaram o aperto das armas, que agora pareciam tão frágeis e inadequadas em suas mãos.
- Ali! - murmurou Zwaantie, e desta vez não poderia haver dúvida de que o que viam era real.
Era uma forma monstruosa de felino, que parecia tão alta como o ombro de um homem e que passou diante de seus olhares em passos sem ruído. As chamas alumiaram sua pele lustrosa de bronze, tornando seus olhos em fulgurantes esmeraldas como aquelas na coroa do próprio Satã. Outro veio e depois outro, passando em rápida e ameaçadora parada diante deles e depois desaparecendo na noite mais uma vez.
- Eles concentram coragem e resolução - disse Aboli. - Farejaram o sangue e a carne crua e estão nos caçando.
- Deveríamos fugir da paliçada então? - perguntou Hal.
- Não! - Aboli meneou a cabeça. - A escuridão é o domínio deles. São capazes de enxergar quando a noite impede nossos olhares. A escuridão os torna ousados. Devemos ficar aqui, onde poderemos ver quando chegarem.
Então, de fora da noite, veio uma criatura como se para apequenar as outras que já tinham visto. Caminhou para eles com um andar gingado majestoso; uma juba de cabelos negros e dourados recobria sua cabeça e ombros, e o fazia parecer tão grande quanto um monte de feno.
- Devo disparar nele? - murmurou Hal para Aboli.
- Um ferimento iria enlouquecê-lo - retrucou Aboli. - A menos que possa matá-lo de uma vez, não atire.
O leão parou na plena luz da fogueira. Colocou as patas dianteiras separadas e abaixou a cabeça. Os pêlos escuros de sua juba se eriçaram, inchando-o diante do olhar horrorizado de todos, fazendo-o como que dobrar de tamanho. Ele abriu as mandíbulas, e eles viram os dentes de marfim reluzirem, a língua vermelha se curvar entre eles, e ele rugiu novamente.
O som atingiu-os com uma força física, como uma onda arrasadora Pela tempestade. Zuniu-lhe nos ouvidos e lhes embotou os sentidos. O animal estava tão perto que Hal podia sentir o hálito de seus poderosos Pulmões soprar em sua face. Cheirava a carniça e carne putrefata.
- Quietos agora! - pediu Hal a eles. - Não façam nenhum som e não se mexam, para não provocar um ataque.
Mesmo as mulheres e a criança obedeceram. Sufocaram os gritos e sentaram-se rígidos de terror. Pareceu uma eternidade que ficaram assim, o leão a encará-los, até que o pequeno Johannes zarolho não pôde Suportar mais. Soltou um berro, agarrou seu mosquete e disparou enlouquecido.
No instante antes que a fumaça os cegasse, Hal viu que a bala perdera o animal e atingira a terra entre as suas patas dianteiras. Então fumaça os rodeou como uma nuvem, e de suas profundezas veio o urro do leão zangado. Agora, tanto as mulheres gritavam como os homens se chocavam uns contra os outros na ânsia de correr para mais longe na paliçada. Apenas Hal e Aboli mantiveram seus postos, mosquetes nive lados, e miraram para o banco de fumaça. A pequena Sukeena colou-se ao flanco de Hal, e não correu.
Então o leão investiu a plena carga para fora da névoa do disparo Hal apertou o gatilho e seu mosquete negou fogo. A arma de Aboli roncou de forma ensurdecedora, porém o animal era um borrão de movimento tão rápido, na fumaça e na escuridão, que deve ter lhe enganado o olho. O tiro de Aboli devia ter passado ao largo, pois não teve nenhum efeito sobre o leão, que saltou para a paliçada, rugindo horrivelmente. Hal jogou-se no chão com Sukeena, cobrindo-a com o próprio corpo, e o leão passou sobre ele.
Pareceu divisar Johannes no amontoado de gente terrificada. As grandes mandíbulas se fechavam na parte baixa de suas costas, e o animal o ergueu como um gato poderia erguer um rato. Com um salto a mais, arrebentou a parede traseira da paliçada e desapareceu na noite.
Os gritos de Johannes ecoavam na escuridão, mas o leão não o carregou para longe. Logo além da luz da fogueira, começou a devorá-lo enquanto ele ainda estava vivo. Todos ouviram seus ossos estalarem conforme o animal os mordia e depois o lacerar de sua carne quando a mastigou num bocado. Houve mais rugidos e roncos assim que as leoas correram para partilhar a presa, e, enquanto Johannes ainda gritava e soluçava, os bichos o despedaçaram. Gradualmente seus gritos tornaram-se mais fracos, até que sumiram inteiramente e, da escuridão, subiam apenas os sons medonhos do festim.
As mulheres estavam histéricas, e Bobby chorava e batia o pequeno pulso, em terror, contra o peito de Althuda. Hal acalmou Sukeena, que respondeu depressa à sensação de seu braço a rodeá-la pelo ombro.
- Não corram. Movam-se em silêncio. Sentem-se num círculo. As mulheres no centro. Recarreguem os mosquetes, mas não disparem até eu dar a ordem - organizou-os Hal e depois olhou para Daniel e Aboli.
- É nosso estoque de comida que os atrai. Quando tiverem terminado com Johannes, irão atacar a paliçada de novo em busca de mais.
- Tem razão, Gundwane.
- Então, daremos a eles a carne do eland para distraí-los de nós - disse Hal. - Ajudem-me.
pegaram um dos grandes quartos traseiros da carne crua do alce e cambalearam com ele até a beirada da fogueira. Jogaram a peça no chão.
- Não corram - avisou-os Hal de novo -, pois, como o gato que persegue o rato, irão atrás de nós se o fizermos.
Recuaram para a paliçada. Quase imediatamente, uma leoa avançou, apoderou-se do sangrento quarto traseiro e arrastou-o para a noite. Podiam ouvir a comoção conforme os animais lutavam com ela pela presa, e então os sons de todos a se acomodarem para comer, rosnando e resmungando e bufando um para o outro.
Aquele pedaço de carne crua foi suficiente para manter aquele bando voraz de grandes gatos a se alimentar e brigar por uma hora, porém, quando mais uma vez começaram a rondar até a beira da fogueira e a investir em curtos botes de intimidação para o ajuntamento de humanos terrificados, Hal disse:
- Precisamos alimentá-los outra vez.
Logo se tornou evidente que os leões aceitariam aquelas oferendas de preferência a investir contra o acampamento, pois, quando os três homens arrastaram outro quarto traseiro da paliçada, os animais esperaram que eles se retirassem antes que a leoa surgisse da noite para arrastá-lo para longe.
- Sempre é a fêmea a mais ousada - disse Hal, para distrair os outros.
Aboli concordou com ele.
- E a mais esganada!
- Não é nossa culpa que a vocês, machos, faltem a coragem e o sentimento de se ajudarem - disse-lhes Sukeena, num tom mordaz, e a maioria riu, mas sem fôlego e convicção.
Por duas vezes mais, durante a noite, Hal os fez carregar pernas do eland para alimentar o bando. Por fim, quando a alvorada começou a definir os topos das árvores de espinhos contra o céu pálido, os leões Pareceram ter saciado seu apetite. Ouviu-se o rosnar do macho de juba preta diminuir na distância conforme se afastava. Ele rugiu pela última Vez a uma légua de distância, logo quando o sol empurrava sua borda flamejante acima dos cimos serrilhados pela linha de montanhas que corria em paralelo com a rota da jornada.
Hal e Althuda foram procurar o que restava do pobre Johannes. Estranhamente, os leões tinham deixado suas mãos e a cabeça intocadas, porém haviam devorado o resto dele. Hal fechou-lhe os olhos arregalados, e Sukeena enrolou aqueles patéticos restos num pedaço de pano e rezou sobre a sepultura que cavaram. Hal colocou lascas de rocha sobre a terra recém-escavada para impedir as hienas de remexê-la.
- Não podemos passar mais tempo aqui. - Ergueu Sukeena nos pés. - Precisamos partir imediatamente se quisermos chegar ao rio hoje. Felizmente, ainda há carne suficiente para nosso sustento.
Amarraram as pernas restantes de carne de eland em varas de suporte e, com um homem em cada ponta, caminharam com aquilo sobre as colinas ondulantes e pradarias. Era fim de tarde quando chegaram ao rio e, da ribanceira alta, olharam para baixo, para a larga expansão esverdeada, que já se provava uma imensa barreira à sua marcha.
OGolden Bough baixou sua âncora na cabeça do canal na lagoa do Elefante, e, imediatamente, toda a tripulação começou a bombear água para fora de seus porões e reparar os danos da tempestade no casco e nos cordames. Um vento forte ainda soprava; porém, embora a superfície da lagoa se arrepiasse num frisado de brancas ondulações, o terreno alto das pontas bloqueava sua plena força.
Cornélius Schreuder impacientava-se para ir à terra. Estava desesperado para sair do Golden Bough e livrar-se daquela companhia de ingleses que viera a detestar amargamente. Tinha lorde Cumbrae como amigo e um aliado e estava ansioso para se juntar a ele e pedir-lhe que fosse seu padrinho na questão de honra com Vincent Winterton. Em sua minúscula cabine, arrumou os baús, apressado, e, quando ninguém pôde ser poupado para ajudá-lo, carregou-os ele próprio para o tombadilho. Postou-se com a pilha de seus pertences no convés de embarque, olhando pela lagoa para a base terrestre de Cumbrae.
O Gavião assentara seu acampamento no mesmo local onde se instalara o de Sir Francis Courtney, que Schreuder atacara com seus gibões-verdes. Uma grande atividade tinha lugar entre as árvores. Pareceu a Schreuder que Cumbrae devia estar cavando trincheiras e outras fortificações, e ele ficou intrigado com isso: não viu nenhum sentido em mover montanhas de terra contra um inimigo que não existia.
Llewellyn não iria deixar seu navio até que tivesse certeza de que os reparos estavam indo bem e que a nau estivesse totalmente protegida e segura. Por fim, colocou seu primeiro intendente, Arnold Fowler, para cuidar do tombadilho e ordenou que um dos escaleres fosse aprontado.
- Capitão Llewellyn - abordou-o Schreuder, quando ele chegou à amura do navio. - Resolvi que, com a concordância de lorde Cumbrae, deixarei seu navio e me transferirei para o Gull of Moray.
Llewellyn concordou.
- Compreendo suas intenções, e, para ser franco, coronel, duvido que haja muitas lágrimas derramadas a bordo do Golden Bough quando o senhor partir. Vou à terra agora para saber onde podemos encher de novo as barricas d'água que foram contaminadas com água do mar durante o vendaval. Levarei o senhor e seus pertences para o acampamento de Cumbrae, e tenho aqui o dinheiro que me pagou por sua passagem. Para me poupar de mais desagradáveis e indigestas discussões, estou devolvendo-o integralmente ao senhor.
Schreuder teria adorado imensamente dar-se o prazer de recusar a oferta com desdém, porém aqueles poucos guinéus eram toda a sua fortuna no mundo e ele pegou a leve bolsa que Llewellyn lhe estendeu. Resmungou, com relutância.
- Nisso, pelo menos, age como um cavalheiro, senhor. Fico-lhe em débito.
Tomaram o escaler, e Llewellyn sentou-se nas pranchas de popa, enquanto Schreuder encontrou um assento na proa e ignorou as faces sorridentes da tripulação e as irónicas continências dos oficiais do navio no tombadilho superior enquanto se afastavam. Estavam apenas na metade do caminho para a praia, quando uma figura familiar, usando um manto e um chapéu adornado com fitas, saiu de entre as árvores, a barba ruiva e os cabelos emaranhados reluzindo ao sol, e ficou a observá-los se aproximarem com ambas as mãos nos quadris.
- Coronel Schreuder, pela merda fumegante do demónio! - berrou Cumbrae, ao reconhecê-lo. - Alegra meu coração olhar para sua face sorridente.
Assim que a proa tocou a praia, Schreuder saltou em terra e apertou a mão estendida do Gavião.
- Estou surpreso, porém profundamente feliz de encontrá-lo aqui, meu senhor.
O Gavião olhou por sobre o ombro de Schreuder e sorriu, um sorriso largo.
- Ora, se não é meu amado irmão do templo, Christopher Llewellyn! Bem-vindo, primo, e que a benevolência de Deus esteja sobre você.
Llewellyn não sorriu, e mostrou pouca ansiedade em tomar a mão que Cumbrae lhe estendia tão logo seus pés tocaram a areia.
- Como vai, Cumbrae? Nossa última conversa na baía de Trincomalee foi interrompida num ponto crucial, quando você partiu com alguma confusão.
- Ah, mas foi em outra terra e longo tempo atrás, primo, e tenho certeza que ambos podemos ser magnânimos o bastante para perdoar e esquecer um assunto tão insignificante e tolo.
- Quinhentas libras e as vidas de vinte de meus homens não é um assunto insignificante e tolo em minha contabilidade. E, devo lembrá-lo, não sou nenhum primo ou qualquer espécie de parente seu - rebateu Llewellyn, e suas pernas estavam rígidas com a lembrança daquele antigo ultraje.
Cumbrae, no entanto, colocou um braço sobre seu ombro e disse, baixinho:
- In Arcádia habito.
Llewellyn, obviamente, lutava contra si mesmo, porém não poderia negar seu juramento de cavalaria e, por fim, deu a resposta, entre os dentes cerrados:
- Flumen sacrum bene cognosco.
- Eis aí você. - O Gavião explodiu numa gargalhada. - Não foi tão ruim, foi? Se não primos, então ainda somos irmãos em Cristo, não somos?
- Eu me sentiria mais fraterno com relação a você, se tivesse minhas quinhentas libras de volta em minha bolsa.
- Eu poderia descontar esse débito do sério dano que você infligiu ao meu doce Gull e à minha pessoa. - O Gavião puxou o manto para exibir a brilhante cicatriz pelo antebraço. - Porém, sou um homem clemente com um coração amoroso, Christopher, e portanto você terá de volta seu dinheiro. Dou-lhe minha palavra. Cada penny de suas quinhentas libras, e o juro de lambujem.
Llewellyn sorriu para ele com frieza.
- Adiarei meus agradecimentos até que sinta o peso de sua bolsa em minhas mãos.
Cumbrae viu o propósito em seu olhar de igual para igual, e, sem outro relancear de olhos para a fila de portinholas de artilharia do Golden Bough e para as linhas jeitosas de seu casco, soube que estavam par a par e seria um golpe duro se viesse a haver uma luta entre os dois navios, tal como acontecera quatro anos antes, na baía de Trincomalee.
- Não o culpo por não confiar em homem algum deste nosso mundo malcomportado, porém jante comigo hoje, aqui, em terra, e eu colocarei a bolsa em suas mãos, juro a você.
Llewellyn encarou-o com expressão fechada.
- Obrigado por essa oferta de hospitalidade, senhor, porém eu bem me lembro da última vez que atendi a um de seus convites. Tenho um ótimo cozinheiro a bordo de meu próprio navio que pode me providenciar uma refeição mais a meu gosto. Contudo, voltarei ao entardecer para buscar a bolsa que me prometeu. - Llewellyn inclinou-se numa mesura e voltou a seu escaler.
O Gavião observou-o se afastar, com um olhar calculista nos olhos. O escaler rumou pela lagoa em direção ao riacho de água doce que fluía na ponta superior.
- Aquele bastardo elegante tem um temperamento detestável - resmungou, e, ao lado dele, Schreuder concordou.
- Nunca fiquei tão contente em me livrar de alguém desagradável e de estar de pé aqui, nesta praia, apelando para sua amizade, como agora.
Cumbrae encarou-o judiciosamente.
- O senhor me tem em desvantagem - disse. - O que realmente está fazendo aqui, e o que é que posso fazer em seu benefício por boa amizade?
- Onde poderemos conversar? - perguntou Schreuder.
- Por aqui, meu velho amigo e companheiro de armas - e conduziu Schreuder para sua cabana no bosque e lhe serviu metade de uma caneca de uísque. - Agora, conte-me, Por que não está mais no comando da guarnição em Boa Esperança?
- Para ser franco com o senhor, milorde, estou no próprio dilema do diabo. Fui acusado pelo governador van de Velde de um crime que não cometi. O senhor bem sabe como ele era amargurado pela inveja e má vontade com relação a mim - explicou Schreuder, e Cumbrae concordou com cautela, sem se comprometer.
- Por favor, continue.
- Dez dias atrás, a esposa do governador foi assassinada num arrojo de luxúria e paixão bestial pelo jardineiro e carrasco da companhia.
- Céus! - exclamou Cumbrae. - João Lento? Sabia que era um louco. Podia ver isso em seus olhos. Um maníaco tagarela! Sinto muito ao saber sobre a mulher, contudo. Era um docinho delicioso. Eu ficava com um osso em minhas calças só de olhar para aquelas tetas dela, ela conseguia isso.
- Van de Velde acusou-me falsamente desse horrível assassinato. Foi forçado a fugir no primeiro navio disponível antes que ele me prendesse e me colocasse na roda. Llewellyn me ofereceu uma passagem para o Oriente, onde eu me alistaria na guerra que está em curso no Great Horn da África, entre o Padre e o grão mogol.
Os olhos de Cumbrae se iluminaram e ele se inclinou para a frente em seu banco à menção de guerra, como uma hiena farejando o sangue de um campo de batalha. Já então, estava profundamente aborrecido de cavar em busca do indefinido tesouro de Franky Courtney, e a promessa de um jeito mais fácil de encher seus porões com riquezas chamou-lhe toda a atenção. Porém, não iria mostrar àquele fanfarrão cheio de si o quanto estava ansioso; portanto, deixou o assunto para outra hora e disse, com sentimento e compreensão:
- Tem minha mais profunda simpatia e minha garantia de qualquer ajuda que eu possa ser capaz de prestar.
Sua mente fervilhava de ideias. Ele sentiu que Schreuder era culpado do assassinato que negava com tanta veemência, porém, culpado ou não, era agora um fora-da-lei e estava se colocando à sua mercê.
O Gavião tinha presenciado uma ampla demonstração das qualidades de Schreuder como um guerreiro. Um homem excelente para servir sob suas ordens, especialmente se ficasse completamente submisso em virtude da culpa e do sangue que tinha nas mãos. Como um fugitivo e um assassino, o holandês não poderia se mostrar tão melindroso em matéria de moralidade.
Uma vez que uma moça tenha perdido a virgindade, ergue as saias e se deita no feno com a maior desenvoltura da segunda vez, disse a si mesmo o Gavião, contente, porém estendeu a mão e agarrou o braço de Schreuder com firme e amistoso aperto.
- Pode confiar em mim, meu amigo - disse. - Como posso ajudá-lo?
- Quero me juntar a você. Eu me tornarei seu homem de confiança.
- E profundamente bem-vindo será. - Cumbrae sorriu pelas suíças ruivas com prazer não fingido. Tinha encontrado para si um cão de caça, um cão que talvez não carregasse uma grande carga de inteligência, mas, não obstante, era impetuoso e intimorato.
- Peço apenas um favor em troca - disse Schreuder.
O Gavião deixou a mão amistosa cair do ombro do outro, e seus olhos se tornaram velados. Deveria ter sabido que um tal belo presente teria um preço escrito do lado de baixo.
- Um favor? - perguntou.
- A bordo do Golden Bough, fui tratado da maneira mais vergonhosa e mesquinha. Fui trapaceado numa grande soma de dinheiro no Hazard por um dos oficiais do navio, e insultado e vilipendiado pelo capitão Llewellyn e seus homens. Para coroar tudo, a pessoa que me enganou me desafiou para um duelo. Não pude encontrar nenhuma pessoa a bordo para ser meu padrinho, e Llewellyn proibiu que essa questão de honra fosse resolvida até que chegássemos a um porto.
- Continue, por favor. - As suspeitas de Cumbrae começaram a se evaporar quando ele percebeu para onde a conversa se dirigia.
- Ficaria muito grato e honrado se pudesse consentir em agir como meu padrinho nesse assunto, milorde.
- Isso é tudo o que quer de mim?
Ele mal podia acreditar que fosse tão fácil. Já podia ver os lucros que poderiam ser obtidos como resultado daquele assunto. Prometera a Llewellyn as quinhentas libras, e as daria a ele, porém apenas quando tivesse certeza de que poderia ter o dinheiro de volta, junto com qualquer outro lucro no qual pudesse pôr as mãos. Olhou pelas águas da lagoa. Lá jazia o Golden Bough, uma poderosa nau guerreira. Se fosse capaz de adicioná-la à sua flotilha, comandaria uma força nos oceanos orientais praticamente imbatível. Se aparecesse no Great Horn da África com aquelas duas naus, no meio da guerra que Schreuder lhe assegurara estar em curso, nem fazia ideia do espólio que lá estaria para ser pilhado.
- Será minha honra e meu prazer agir por você - disse a Schreuder. - Dê-me o nome do bastardo que o desafiou, e farei que obtenha imediata satisfação dele.
Quando Llewellyn veio à terra outra vez ao fim da tarde, estava acompanhado por dois de seus oficiais e uma dúzia de seus marujos, carregando alfanjes e pistolas. Cumbrae estava na praia para lhe dar as boas-vindas.
- Tenho a bolsa que lhe prometi, meu caro Christopher. Acompanhe-me até meus pobres alojamentos e tome um drinque comigo por amável camaradagem e pela memória dos dias de convívio que passamos tempos atrás na companhia um do outro. Antes, porém, não irá me aPresentar a esses seus dois elegantes cavalheiros?
- Sr. Arnold Fowler, primeiro imediato de meu navio. - Os dois homens se inclinaram um para o outro. - E este é meu terceiro oficial, Vincent Winterton, filho de meu patrono, o visconde de Winterton.
- Também, assim fui informado, um modelo no Hazard e com mãos hábeis nos dados - Cumbrae sorriu para Vincent, e o rapaz retirou a mão que estava a ponto de estender.
- Perdão, senhor, mas o que quer dizer com esse comentário? - indagou Vincent, empertigado.
- Apenas que o coronel Schreuder me pediu para ser seu padrinho. Seria gentil o bastante para me informar quem é o seu?
Llewellyn interferiu rapidamente.
- Tenho a honra de ser o padrinho do Sr. Winterton.
- Na verdade então, temos muito a discutir, meu caro Christopher. Por favor, siga-me. Porém, como será sobre os assuntos do Sr. Winterton que iremos falar, poderia ser melhor que ele permanecesse aqui, na praia.
Llewellyn acompanhou o Gavião até sua cabana e tomou o banco que ele lhe oferecia.
- Um gole da água da vida? Llewellyn meneou a cabeça.
- Obrigado, não. Vamos logo aos assuntos que interessam.
- Você sempre foi impaciente e cabeça-dura. - O Gavião encheu sua própria caneca e tomou um grande gole. Estalou os lábios e enxugou as suíças com as costas da mão. - Nunca saberá o que está perdendo. Este é o melhor uísque em todas as ilhas. Porém, eis aqui, isso é para você. - Empurrou a pesada bolsa pela barrica que servia como mesa.
Llewellyn pegou-a e sopesou-a ponderadamente na mão.
- Conte, se quiser - disse o Gavião. - Não ficarei ofendido. - Recostou-se e observou com um sorriso na face, tomando goles em sua caneca, enquanto Llewellyn distribuía as moedas de ouro em pilhas certas no topo da barrica.
- São quinhentas delas e cinquenta pelo juro. Sou-lhe grato, senhor. - A expressão de Llewellyn se suavizara.
- É um pequeno preço a pagar por seu amor e amizade, Christopher - disse-lhe Cumbrae. - Agora, vamos a essa outra questão. Como lhe disse, sou o padrinho do coronel Schreuder.
- E eu, do Sr. Winterton - confirmou Llewellyn. - Meu afiançado ficará satisfeito com um pedido de desculpas de Schreuder.
- Você sabe muito bem, Christopher, que meu rapaz não lhe dará isso. Receio que os dois jovens peraltas tenham de lutar.
- A escolha de armas recai para o seu lado - disse Llewellyn. - Podemos concordar com pistolas a vinte passos?
- Diremos não a tal coisa. Meu afiançado prefere espadas.
- Então devemos concordar. E quanto ao local e à hora?
- Deixo essa decisão para você.
- Tenho reparos a fazer em meus cordames e casco. Danos provocados pelo vendaval. Preciso do Sr. Winterton a bordo para me ajudar com isso. Posso sugerir três dias a partir de hoje, na praia, ao nascer do sol?
O Gavião cofiou sua barba como se considerasse a proposta. Precisaria de uns poucos dias para fazer os arranjos que tinha em mente. Três dias de espera lhe serviriam perfeitamente.
- De acordo! - disse, e Llewellyn levantou-se de imediato e colocou o saco de moedas no bolso de sua túnica.
- Não tomará aquele drinque que lhe ofereci agora, Christopher? - sugeriu Cumbrae, porém de novo Llewellyn declinou.
- Como eu lhe disse, senhor, tenho muito a fazer a bordo de meu navio.
O Gavião observou-o descer para a praia e entrar no escaler. Enquanto eram levados de volta para onde o Golden Bough estava ancorado, Llewellyn e Winterton entabularam profunda e atenta conversação.
- O jovem Winterton está para ter uma surpresa. Nunca deve ter visto o holandês com uma espada na mão para ter concordado tão levianamente com a escolha das armas. - Emborcou as poucas gotas de uísque que restavam na caneca e sorriu outra vez. - Veremos se não poderemos arranjar uma pequena surpresa para Christopher Llewellyn também. - Bateu a caneca no topo da barrica e berrou: - Mandem o Sr. Bowles até mim, e sejam rápidos com isso.
Sam Bowles veio todo encantado, a sacudir o corpo como um cão surrado para cair nas graças de seu capitão. Seus olhos, porém, eram frios e astutos.
- Sammy, meu rapaz. - Cumbrae deu-lhe um tapa no braço que doeu como uma ferroada mas não tirou o sorriso dos lábios do homem.
Tenho algo para você que seria muito do seu gosto. Escute bem. Sam Bowles sentou-se do lado oposto ao dele e deixou pender a cabeça, como se para não perder uma palavra de suas instruções. Por uma ou duas vezes, fez uma pergunta ou soltou uma risadinha de alegria e admiração enquanto Cumbrae desfiava seus planos.
- Você sempre quis o comando de seu próprio navio, Sammy, meu rapazinho. Esta é a sua chance. Sirva-me bem e o terá. Capitão Samuel Bowles. Como soa para você?
- Bem demais, milorde! - Sam Bowles inclinou a cabeça. - E não o deixarei na mão.
- Isso você não fará - concordou Cumbrae. - Pelo menos mais de uma vez, pois se o fizer, dançará uma alegre dança da gaita de foles para mim enquanto se pendurar na verga mestra de meu Gull.
As margens do rio eram alinhadas com salgueiros silvestres e árvores de acácia de um verde escuro, cobertas de um manto de flores amarelas. O rio corria largo e profundo, lento e verde entre seus píeres rochosos. Os bancos de areia mostravam-se expostos, e quando olhou para eles dos declives íngremes do vale, Sukeena estremeceu e murmurou:
- Oh, que horríveis e medonhas criaturas! Serão os próprios dragões de que falamos?
- São dragões realmente - concordou Hal, ao olhar para os crocodilos que jaziam ao sol na praia branca.
Havia dúzias deles, alguns não maiores que lagartos, e outros, brutos, com a largura e o comprimento de um bote de navio, maciços monstros cinzentos que certamente poderiam engolir um homem inteiro. Eles tinham descoberto quão ferozes eram aquelas criaturas na primeira tentativa de vadear o rio, quando Billy Rogers fora apanhado por um e arrastado para baixo da superfície. Não recuperaram qualquer parte de seu corpo.
- Tremo com a ideia de tentar atravessar de novo, com essas criaturas ainda guardando o rio - murmurou Sukeena, apavorada.
- Aboli as conhece de sua própria terra ao norte, e sua tribo tem um jeito de lidar com eles.
No penhasco rochoso, acima do rio, que os crocodilos não podiam alcançar, eles arrumaram em pilhas a carne de alce, que já começava a feder, ao sol quente. Então, Hal mandou alguns dos homens procurarem no chão da floresta troncos secos que pudessem flutuar na água. Sob as instruções de Ned Tyler, eles os modelaram com os alfanjes, embora Hal detestasse ver a borda fina de aço cega e lascada. Enquanto isso era feito, Althuda, com Sukeena a ajudá-lo, cortou as peles úmidas do eland em longas cordas rústicas tão grossas como seu dedo mínimo.
Aboli procurou pelas espécies de árvore de que precisava, e depois cortou curtas estacas de seus galhos e carregou os fardos de volta até onde estavam os outros, trabalhando. Daniel Grande ajudou-o a aguçar ambas as pontas daquelas peças curtas e flexíveis de madeira verde em pontas de lança, e endureceu-as no fogo. Depois, usando um tronco de circunferência correta como modelo, os dois poderosos homens curvaram cada estaca em torno do tronco até que formavam um círculo, as pontas aguçadas se cruzando. Enquanto as mantinham no lugar, Hal amarrou as pontas juntas com tiras de pele crua do alce. Quando cautelosamente soltaram a tensão, as estacas curvadas eram como as molas de aço carregadas de uma trava de mosquete, prontas para voar se a tira que as retinha fosse cortada. Pelo pôr-do-sol, tinham terminado o trabalho de uma pilha daquelas armadilhas.
Ainda se lembravam do encontro com o bando de leões, e, naquela noite, penduraram as pernas da carne do alce no alto, nos galhos do topo de uma das árvores mais altas que cresciam ao longo das margens do largo rio. Construíram a paliçada bem distante daquele estoque de carne e certificaram-se de que as paredes eram de troncos sólidos e a entrada estivesse bloqueada com galhos espinhosos recém-aparados.
Embora dormissem pouco naquela noite, deitados a ouvir as hienas e os chacais que uivavam e resmungavam debaixo da árvore onde a carne se pendurava, os leões não os perturbaram de novo. Na alvorada, deixaram a paliçada para começar a trabalhar mais uma vez nos preparativos para cruzar o rio.
Ned Tyler terminou a construção da balsa, amarrando os remos juntos com corda de couro cru.
- É uma embarcação instável. - Sukeena fitou-a com evidente apreensão. - Um daqueles grandes dragões do rio poderia virá-la com um abanar da cauda.
- Eis por que Aboli preparou suas armadilhas para eles. Voltaram pelo declive onde Althuda e Zwaantie ajudavam Aboli a envolver os círculos de madeira verde com uma grossa coberta de carne meio pútrida do alce.
- O crocodilo não pode mastigar essa comida - explicou-lhes Aboli, enquanto trabalhava. - Cada uma dessas bolas de carne é do tamanho certo para ser engolida por inteiro.
Quando todas as iscas tinham sido preparadas, carregaram-nas para a beira d'água. Conforme se aproximaram do banco de areia onde os grandes sáurios jaziam como troncos esticados, bateram palmas e dispararam os mosquetes, criando uma comoção que alarmou mesmo aqueles enormes animais.
Os répteis ergueram os corpos maciços em pernas curtas e tortas e correram para o abrigo de seu elemento natural, deslizando para as profundas lagoas verdes com poderosas espanadas e produzindo ondas que quebravam na margem distante. Tão logo o banco de areia estava livre, os homens correram e colocaram os bocados de carne fedorenta ao longo da beira d'água. Então dispararam de volta e subiram o declive até onde as mulheres esperavam na segurança do alto penhasco acima do rio.
Depois de um momento, os calombos dos olhos dos crocodilos começaram a pular de toda parte acima da superfície da lagoa, e então eles se moveram lentamente rumo ao banco de areia.
- São animais covardes, furtivos - disse Aboli, com ódio na entonação e repulsa nas feições -, porém logo, quando farejarem a carne, sua cobiça irá se sobrepor ao medo.
Enquanto ele falava, um dos maiores répteis ergueu-se para fora dos baixios da beirada e se arrastou cautelosamente para o banco de areia, sua enorme cauda denteada cavando uma vala atrás dele. De súbito, com surpreendente rapidez e agilidade, investiu em frente e abocanhou uma das bolas de carne do alce. Abriu as mandíbulas em toda a extensão conforme se esticava para engolir. Do penhasco, todos viram, admirados, quando o enorme bocado de carne deslizou para baixo de seu bucho, estufando as macias escamas brancas do lado de fora de sua garganta. O animal voltou-se e correu de volta para a lagoa, porém imediatamente, outro dos répteis escamados emergiu e engoliu uma isca. Seguiu-se uma confusão geral de longos corpos escorregadios, brilhando molhados ao sol, que sibilavam e resmungavam e trombavam uns contra os outros conforme lutavam pela comida.
Assim que cada isca fora consumida, alguns crocodilos espanejaram na lagoa, porém muitos se acomodaram de novo na areia quente de sol onde tinham sido perturbados. A paz caiu sobre a margem do rio outra vez, e os martins-pescadores projetavam-se como dardos e voejavam sobre as águas verdes. Um grande hipopótamo cinzento lançou para fora a cabeça, no lado oposto da lagoa, e soltou uma desagradável risada. Suas fêmeas se amontoaram em torno dele, as costas como uma pilha de brilhantes penedos negros.
- Seu plano não funcionou - disse Sabah, em holandês. - Os crocodilos estão ilesos e ainda prontos para cair sobre qualquer um de nós que chegue perto da água.
- Seja paciente, Sabah - disse-lhe Aboli. - Levará um tempo para os sucos de seus estômagos digerirem a pele crua. Porém, quando isso acontecer, as varas irão se abrir e as pontas afiadas perfurarão suas entranhas e passarão por seus órgãos vitais.
Quando ele acabou de falar, um dos maiores répteis, o primeiro a pegar a isca, deixou escapar de repente um tremendo urro e arqueou as costas até que a cauda serrilhada bateu em sua cabeça. Rugiu novamente e girou ao redor para morder com as poderosas mandíbulas o próprio flanco, seus dentes amarelos pontiagudos rasgando as escamas da armadura, arrancando pedaços da própria carne.
- Veja lá! - Aboli saltou de pé e apontou. - A ponta aguda da estaca cortou direto sua barriga.
Então eles viram a ponta enegrecida pelo fogo da madeira afiada saltar um palmo pelo couro escamoso. Enquanto o crocodilo macho se retorcia e silvava em seus medonhos estertores da morte, um segundo réptil começou a se debater em convulsões enormes, e depois outro e mais outro, até que a lagoa se transformou em espuma branca, e os terríveis gritos e rosnados ecoavam ao longo dos penhascos do rio, assustando as águias e abutres de suas plataformas de ninho no alto dos penedos.
- Bravo, Aboli! Você limpou o caminho para nós. - Hal saltou de pé.
- Sim! Podemos cruzar agora - concordou Aboli. - Porém, seja rápido e não se demore na água ou perto da margem, pois alguns dos ngwenya podem não ter sentido as estacas em suas barrigas.
Eles atentaram para o aviso. Erguendo a desajeitada balsa entre si, correram para a margem, e, tão logo a jangada improvisada estava flutuando, colocaram a bordo as cestas de provisões, os alforjes de sela e os sacos de pólvora, e então embarcaram as duas mulheres e o pequeno Bobby na frágil embarcação. Os homens se livraram das roupas e empurraram a balsa nadando pela corrente preguiçosa. Tão logo chegaram à margem oposta, pegaram seus pertences e subiram com pressa o declive rochoso até que estavam longe da margem do rio.
No alto, acima da água, puderam por fim cair um ao lado do outro, entre risadas e congratulações. Acamparam ali naquela noite, e, ao amanhecer, Aboli perguntou baixinho a Hal:
-- A que distância está a lagoa do Elefante?
Hal desenrolou sua carta e apontou para a estimativa de sua posição.
- Estamos aqui, cinco léguas terra adentro a partir do litoral, e não mais que a cinquenta léguas da lagoa. A menos que haja outro rio tão largo como esse para barrar nosso caminho, deveremos chegar lá em mais cinco dias de dura caminhada.
- Então, vamos dar duro - disse Aboli, e animou o resto do bando reduzido.
A seu incentivo, eles tomaram as cargas e, com os raios do sol nascente batendo em cheio em suas faces, entraram mais uma vez na ordem de marcha que tinha mantido durante toda a longa jornada.
Os quatro escaleres do Golden Bough estavam lotados de marujos enquanto remavam para a praia naquela hora escura antes do amanhecer. Um marinheiro à proa de cada bote segurava ao alto uma lanterna para alumiar o caminho, e os reflexos dançavam como vaga-lumes na calma superfície negra da lagoa.
- Llewellyn está trazendo metade de sua tripulação a terra com ele! - rejubilou-se o Gavião, ao observar a pequena frota rumar em direção à praia.
- Suspeita de traição. - Sam Bowles riu, deliciado. - Assim, vem com força.
- Que convidado grosseiro, suspeitar de vilania de nossa parte. - O Gavião meneou a cabeça com tristeza. - Merece seja qual for o fado a ele reservado.
- Ele dividiu sua força. Há pelo menos cinquenta homens naqueles botes - estimou Sam. - Isso torna as coisas mais fáceis para nós. Aqui, tudo vai ter um curso calmo e sem empecilhos e um vento a favor.
- Vamos esperar que sim, Sr. Bowles - resmungou o Gavião. - Vou agora encontrar nossos convidados. Lembre-se, o sinal é um rojão vermelho chinês. Espere até vê-lo estourar.
- Sim, capitão! - Sam bateu na testa e esgueirou-se para as sombras. Cumbrae rumou pela areia para encontrar o bote líder. Quando a embarcação chegou à praia, ele pôde ver, sob a luz do lampião, que Llewellyn e Vincent Winterton estavam sentados juntos nas pranchas de popa. Vincent usava um manto de lã escuro para protegê-lo do frio da manhã, porém sua cabeça estava descoberta. Penteara os cabelos num grosso rabo-de-cavalo que lhe caía pelas costas. Seguiu seu capitão para terra.
- Bom dia, cavalheiros - cumprimentou-os Cumbrae. - Dou-lhes os parabéns por sua pontualidade.
Llewellyn inclinou a cabeça, em saudação.
- O Sr. Winterton está pronto para começar. O Gavião meneou a barba.
- O coronel Schreuder está esperando. Por aqui, por favor. - Caminharam lado a lado ao longo da praia, os marujos dos botes seguin-do-os numa coluna ordenada. - É pouco incomum ter uma tal multidão de rufiões para testemunhar uma questão de honra - comentou.
- Não há nada além de umas poucas convenções aqui, além da Linha - retrucou Llewellyn -, mas uma é manter nossas costas bem guardadas.
- Entendo o que quer dizer. - Cumbrae deu uma risadinha. - Porém, para demonstrar minha boa-fé, não convidarei nenhum de meus rapazes para se juntar a nós. Estou desarmado. - Mostrou as mãos e depois abriu a frente da túnica para demonstrar o fato. Num confortável bolo em suas costas, enfiada dentro do cinto, estava uma das novas pistolas da moda de trava denteada, feita por Fallon, de Glasgow. Era uma invenção maravilhosa, porém proibitivamente cara, motivo principal por que não era largamente empregada. Ao pressionar o gatilho, o dente impulsionado por mola da trava girava e o acionador de piritas de ferro mandava uma chuva de fagulhas para a caçoleta a fim de detonar a carga. A arma tinha-lhe custado mais de vinte libras, porém valia o preço, pois não havia mecha de queima lenta para trair sua presença.
- Para demonstrar sua própria boa-fé, meu caro Christopher, poderá por gentileza manter seus homens juntos de seu lado do quadrado e sob seu controle direto?
A uma curta distância da praia, chegaram a uma área onde a areia tinha sido nivelada e um quadrado fora demarcado por cordas. Uma barrica de água fora colocada em cada um dos quatro cantos.
- Vinte passos de cada lado - disse Cumbrae a Llewellyn. - Isso dará a seu homem bastante espaço para trabalhar?
Winterton inspecionou o quadrado e então concordou secamente.
- Serve muito bem - falou Llewellyn por ele.
- Teremos de esperar algum tempo até que a luz aumente - disse Cumbrae. - Meu cozinheiro preparou um desjejum de biscoito quente e vinho com especiarias. Quer participar?
- Obrigado, meu senhor. Um copo de vinho seria bem-vindo.
Um intendente trouxe os copos fumegantes para eles, e Cumbrae disse:
- Se pode me desculpar, irei atender meu afiançado. - Inclinou-se e subiu a trilha entre as árvores, para retornar, minutos depois, conduzindo o coronel Schreuder.
Postaram-se juntos do lado oposto do quadrado demarcado de cordas, a conversar baixinho Por fim, Cumbrae olhou para o céu, disse algo a Schreuder, depois meneou a cabeça e veio até onde Llewellyn e Vincent esperavam.
- Acho que a luz está boa o bastante agora. Os cavalheiros concordam?
- Podemos começar - aquiesceu Llewellyn, com rigidez.
- Meu afiançado oferece sua arma para exame - disse Cumbrae, e estendeu a espada de Netuno, o punho primeiro.
Llewellyn pegou-a e ergueu a lâmina entalhada de ouro para a luz da manhã.
- Um extravagante trabalho de arte - murmurou, com ar de desaprovação. - Essas mulheres nuas não estariam fora de lugar num prostíbulo. - Tocou as gravações em ouro das ninfas do mar. - Porém, pelo menos a ponta não está envenenada, e o comprimento se equipara ao da lâmina de meu afiançado. - Segurou as duas espadas lado a lado para compará-las, e depois entregou a arma de Vincent para a inspeção de Cumbrae.
- Uma luta justa - concordou ele, e devolveu-a.
- Rounds de cinco minutos e o primeiro sangue? - perguntou Llewellyn, tirando seu relógio de ouro do bolso do colete.
- Receio que não possamos concordar com isso. - Cumbrae meneou a cabeça. - Meu homem quer lutar sem pausa até que um deles grite por mercê ou seja morto.
- Por Deus, senhor! - esbravejou Llewellyn. - Essas regras são assassinas.
- Se seu homem urina como um filhotinho, então não deveria aspirar uivar com os lobos. - Cumbrae deu de ombros.
- Concordo! - exclamou Vincent. - Lutaremos até a morte, se e assim que o holandês quer.
- Isso, senhor, é exatamente o que ele quer - assegurou-lhe Cumbrae. - Estamos prontos para começar quando você estiver. Me dará o sinal, capitão Llewellyn?
O Gavião recuou e, em poucas e concisas sentenças, explicou as regras a Schreuder, que concordou e passou por baixo da corda do quadrado.
Usava uma camisa fina aberta na garganta para que ficasse evidente que não vestia nenhuma armadura de corpo debaixo dela. Tradicionalmente, o brilhante algodão branco daria a seu oponente uma marca clara de mira e mostraria o sangue de um golpe feliz.
Do lado oposto do quadrado, Vincent soltou os cordões de seu manto e deixou-o cair na areia. Estava vestido com uma camisa branca semelhante. Com sua espada na mão, moveu-se com saltos ligeiros pela barreira de cordas e encarou Schreuder pela areia varrida da praia. Ambos começaram a fazer exercícios preparatórios com uma série de práticas estocadas e investidas que faziam suas lâminas cantar e luzir à luz matutina.
- Está pronto, coronel Schreuder? - exclamou depois de alguns minutos, Llewellyn, da linha lateral, enquanto erguia um lenço de seda vermelho.
- Pronto!
- Está pronto, Sr. Winterton?
- Pronto!
Llewellyn deixou o lenço cair, e um urro subiu dos marujos do Golden Bough, do lado oposto do quadrado. Os dois espadachins circularam um ao outro, aproximando-se cautelosamente com as lâminas estendidas e as pontas girando e se abaixando. De súbito, Vincent saltou para a frente e fintou para a garganta de Schreuder, mas Schreuder rebateu com facilidade e travou-lhe a lâmina. Por um longo momento, ficaram retesados em silêncio, a se encarar nos olhos. Talvez Vincent visse a morte no olhar implacável do outro, e sentisse o aço no pulso, pois rompeu primeiro o impasse. Conforme recuava, Schreuder foi atrás dele com uma série de velozes estocadas de rebate que fizeram sua lâmina faiscar e reluzir como um raio de sol.
Era uma exibição estonteante, que levou Vincent a aparar e recuar desesperadamente contra uma das barricas de água que marcavam um canto do quadrado. Encurralado ali, estava à mercê de Schreuder. Abruptamente, Schreuder interrompeu o assalto, virou suas costas ostensivamente para o homem mais jovem e caminhou de volta para o centro. Lá, entrou em guarda outra vez e, lâmina postada, esperou por Vincent Para enfrentá-lo uma vez mais.
Todos os espectadores, exceto Cumbrae, ficaram espantados com a virtuosidade do holandês. Vincent Winterton era evidentemente um espadachim de habilidade superior, porém fora forçado a usar de toda a sua perícia para sobreviver àquele ataque fulminante. Em seu coração, Llewellyn sabia que Vincent sobrevivera não por causa de sua perícia,
mas porque Schreuder quisera desse jeito. O jovem inglês já fora tocado três vezes, dois ligeiros cortes no peito e outro ferimento mais fundo no braço esquerdo. Sua camisa estava aberta em três rasgos irregulares e começava a se tingir de vermelho conforme as feridas começavam a sangrar profusamente.
Vincent baixou os olhos para elas, e sua expressão espelhou o desespero que sentia ao se defrontar com a constatação de que não era páreo para o holandês. Ergueu a cabeça e olhou para onde Schreuder esperava por ele, as feições clássicas e arrogantes, a expressão grave e decidida enquanto ele estudava o adversário sobre a ponta oscilante da espada de Netuno.
Vincent endireitou a espinha e tomou sua guarda, tentando sorrir com descuido ao se fortalecer para avançar rumo à morte certa. Os rudes marujos que observavam poderiam ter urrado e berrado com o espetáculo de uma tourada ou uma briga de galos, porém mesmo eles tinham caído em silêncio, admirados pela terrível tragédia que viam prestes a se desenrolar. Llewellyn não poderia deixar isso acontecer.
- Contenham-se! - gritou ele, e passou por sob a corda. Caminhou para o meio dos dois homens, a mão direita erguida. - Coronel Schreuder, senhor. Deu-nos toda razão para admirar sua perícia na esgrima. Arrancou o primeiro sangue. Não nos dará boa razão para respeitá-lo declarando que sua honra está satisfeita?
- Deixe o covarde inglês desculpar-se comigo na frente de toda a companhia presente e então estarei satisfeito - disse Schreuder, e Llewellyn voltou-se para apelar para Vincent.
- Fará o que o coronel pede? Por favor, Vincent, por mim e pela confiança que empenhei a seu pai.
A face de Vincent estava mortalmente pálida, porém o sangue que manchava sua camisa era de um escarlate brilhante, como as florescentes rosas de junho nos arbustos.
- O coronel Schreuder me chamou neste momento de covarde. Perdoe-me, capitão, mas o senhor sabe que não posso aceder a tais condições.
Llewellyn olhou com tristeza para o jovem protegido.
- Ele pretende matá-lo, Vincent. É um vergonhoso desperdício de uma jovem e bela vida.
- E eu pretendo matá-lo. - Vincent foi capaz de sorrir agora que estava decidido. Era um sorriso alegre, irresponsável. - Por favor, afaste-se, capitão.
Impotente, Llewellyn voltou para a linha lateral.
- Em guarda, senhor! - exclamou Vincent, e investiu, com a areia branca voando de sob suas botas, em estocadas e rebates, lutando pela própria vida.
A espada de Netuno era uma muralha de aço impenetrável diante dele, aparando e girando sua própria lâmina com uma facilidade que fazia todos os seus mais corajosos esforços parecerem os de uma criança. A grave expressão de Schreuder não se alterava, e quando, por fim, Vincent cambaleou de costas, ofegando e arquejando, o suor a diluir o sangue que escorria num rosa claro, foi ferido duas vezes mais. Havia um negro desespero em seus olhos.
Agora, por fim, os marujos do Golden Bough encontraram a voz:
- Mercê! Seu cabeça-de-queijo sanguinário e assassino! - berravam, e: - Tratamento justo, homem. Deixe o rapaz viver!
- Ele não terá a misericórdia do coronel Schreuder - disse para si mesmo Cumbrae, sorrindo com ar feroz -, mas o tumulto que estão fazendo ajudará Sam a fazer seu trabalho.
Relanceou os olhos para a lagoa onde o Golden Bough jazia no canal. Cada homem ainda a bordo se amontoava ao longo da amurada traseira, apertando os olhos para um vislumbre do duelo. Mesmo o vigia no topo do mastro tinha desviado sua luneta para a praia. Ninguém estava alerta aos botes que rumavam rapidamente para a nau ancorada entre os mangues na terra distante. Cumbrae reconheceu Sam Bowles no bote líder enquanto ele corria para se inclinar para dentro da parte central do costado do navio e ficava escondido da vista pelo casco. Doce Maria, Sam a tomará sem um tiro disparado, pensou Cumbrae, exultante, e olhou de novo para a arena.
- Teve seu turno, senhor - disse Schreuder, com tranquilidade. - Agora, é o meu. Em guarda, por favor.
Com três passadas rápidas, cobriu a distância que os separava. O jovem aparou sua primeira estocada e depois a segunda com uma parada alta e um bloqueio, mas a espada de Netuno era rápida e furtiva como uma cobra enraivecida. Parecia hipnotizá-lo com sua mortal dança reluzente, e, em investidas rápidas e surpreendentes, lentamente forçou-o a ceder terreno. A cada vez que parava e recuava, perdia posição e equilíbrio.
Então, de repente, Schreuder executou um golpe que poucos espadachins ousariam tentar fora do campo de treino. Capturou ambas as lâminas no clássico engatar prolongado, girando as duas espadas juntas de maneira que as bordas de aço estridulavam com um som que perpassava pelas terminações nervosas dos observadores. Uma vez travados, nenhum deles se atrevia a romper o engate, pois fazer isso era conceder uma abertura Em torno de um círculo mortalmente reluzente, as duas espadas se revolviam. Tornou-se uma disputa de força e resistência. O braço de Vincent começou a ficar entorpecido, e o suor pingava de seu queixo. Seus olhos estavam desesperados, e seu pulso começou a tremer e dobrar sob a tensão.
Então, Schreuder congelou o círculo fatal. Não rompeu o contato, mas simplesmente prendeu a espada de Vincent num torno de aço. Era uma exibição de tanta força e controle que até mesmo Cumbrae ofegou de admiração.
Por um momento, os duelistas permaneceram imóveis, depois, lentamente Schreuder começou a forçar ambas as pontas para cima, até que apontavam para o céu na plena extensão de seus braços. Vincent estava indefeso. Tentou segurar a outra lâmina, porém seu braço começou a sacudir, e seus músculos a tremer. Ele mordeu a própria língua com o esforço, até que uma mancha de sangue apareceu no canto de sua boca.
Aquilo não poderia durar mais, e Llewellyn gritou em desespero quando o jovem chegou ao máximo limite de sua força e resistência.
- Aguente, Vincent!
Foi em vão. Vincent rompeu o impasse. Desengatou a lâmina com o braço direito todo estendido acima da cabeça e o peito aberto.
- Ah! - berrou Schreuder, e sua estocada foi um borrão, rápida como a soltura de uma flecha de um arco.
Enterrou sua ponta dois centímetros abaixo do esterno de Vincent, perpassou-lhe o corpo, e a lâmina saiu um palmo fora das costas. Por um longo momento, Vincent ficou paralisado, como uma figura esculpida num bloco de mármore. Então suas pernas se dobraram e ele tombou na areia.
- Assassinato! - gritou Llewellyn. Saltou para dentro do quadrado e ajoelhou-se ao lado do jovem agonizante. Tomou-o nos braços e ergueu os olhos de novo para Schreuder. - Assassinato a sangue-frio-- berrou outra vez.
- Devo tomar isso como um pedido. - Cumbrae sorriu e aproximou-se por trás do homem ajoelhado. - E estou feliz em lhe servir, primo! - disse, e trouxe a pistola de trava denteada para fora, das costas-Enfiou o cano no verso da cabeça de Llewellyn e puxou o gatilho.
Houve um clarão brilhante de fagulhas e então a pistola rugiu e saltou no punho do Gavião. Naquela curta distância, a carga de balas de chumbo passou direto pelo crânio de Llewellyn e arrancou metade de sua face em farrapos vermelhos. Ele caiu para a frente com o corpo de Vincent ainda nos braços.
O Gavião olhou ao redor rapidamente e viu que, do bosque escuro, o rojão vermelho já alçava vôo para o alto, deixando uma parábola de fumaça prateada arquear-se no frágil azul do céu matutino, o sinal para Sam Bowles e seu grupo de abordagem invadirem os tombadilhos do Golden Bough.
Enquanto isso, acima da praia, os artilheiros escondidos entre as árvores arrastavam para fora os galhos que cobriam suas colubrinas. O Gavião localizara ele próprio a bateria e a dispusera para cobrir todo o lado oposto do quadrado onde os marujos do Golden Bough se postavam numa fila de quatro. As colubrinas estavam em fogo de enfiada sobre o grupo, e cada uma tinha uma plena carga de metralha.
Embora alheios à bateria escondida, os marujos do Golden Bough se recobravam rapidamente do choque de ver seus oficiais assassinados diante de seu olhar horrorizado. Um burburinho de fúria e gritos selvagens de ultraje subiu de seu meio, porém não havia nenhum oficial para dar a ordem, e embora puxassem seus alfanjes, instintivamente ainda hesitavam e não avançaram.
O Gavião pegou o braço livre do coronel Schreuder e exclamou a seu ouvido:
- Vamos! Depressa! Limpe a área. -Arrastou-o do ringue de cordas.
- Por Deus, senhor, você matou Llewellyn! - protestou Schreuder. Estava aturdido com o ato. - Ele estava desarmado! Sem defesa!
- Debateremos as sutilezas disso mais tarde - prometeu Cumbrae, e ergueu uma das botas, enganchando o tornozelo de Schreuder e ao mesmo tempo empurrando-o para a frente.
Os dois homens se esparramaram na trincheira rasa na areia, que Cumbrae cavara especialmente para esse propósito, logo quando os marujos do Golden Bough avançavam pelas cordas do ringue atrás deles.
- O que está fazendo? - berrou Schreuder. - Solte-me de uma vez.
- Estou salvando sua vida, seu idiota tagarela - gritou-lhe Cumbrae ao ouvido, e manteve a cabeça abaixo da borda da trincheira assim que a primeira salva de metralha estrondeava do bosque e varria a praia.
O Gavião calculara o alcance com cuidado, de maneira que o padrão de tiro se espalhasse em seu arco mais mortal. A saraivada de tiros atingiu a falange de marujos em cheio, revolveu a areia da praia numa ofuscante tempestade branca e foi rasgar a superfície das tranquilas águas da lagoa como um vendaval. A maioria dos homens do Golden Bough foi abatida instantaneamente, porém uns poucos ficaram de pé, desnorteados e aturdidos, a cambalear como bêbados pelos ferimentos e o torvelinho de metralha e golpes de ar deslocado.
Cumbrae pegou sua espada escocesa do fundo do buraco, onde a enterrara sob uma leve camada de areia, e saltou de pé. Investiu contra os poucos sobreviventes, a grande arma apertada em ambas as mãos. Arrancou a cabeça do torso do primeiro homem em seu caminho assim que seus próprios marinheiros saíram em investida para fora da fumaça, a gritar como demónios e brandindo seus alfanjes.
Desabaram sobre o dizimado grupo de terra e o massacraram, mesmo quando Cumbrae berrou:
- Basta! Mercê para aqueles que implorarem!
Não deram atenção à sua ordem, e giraram os alfanjes até que os jorros de sangue os empapavam até os cotovelos e espirravam em suas faces sorridentes. Cumbrae teve de pular sobre o grupo com os punhos cerrados e o lado chato da lâmina voltado para eles.
- Chega! Precisamos de homens para manejar o Golden Bough. Poupem pelo menos uma dúzia deles, seus rufiões sanguinários.
Deram-lhe menos do que ele exigia. Quando a carnificina terminou, havia apenas nove sobreviventes, amarrados pelos tornozelos e punhos e a jazer de barriga para baixo na areia como porcos no mercado.
- Por aqui! - berrou O Gavião novamente, e conduziu a tripulação pela praia até onde os escaleres do Golden Bough estavam ancorados.
Jogaram-se para dentro e tomaram os remos. Com Cumbrae a berrar na proa como um animal ferido, rumaram para o Golden Bough, agarraram-se ao seu costado e subiram como um enxame para o convés, com os alfanjes nus e as pistolas engatilhadas.
Lá, não havia necessidade de ajuda. Os homens de Sam Bowles tinham tomado o Golden Bough de surpresa e numa investida feroz. O tombadilho estava escorregadio de sangue, e os cadáveres, espalhados e amontoados nos embornais. Sob o castelo de proa, um pequeno grupo dos homens de Llewellyn se agarrava desesperadamente à vida, rodeados pelo bando de abordagem de Sam, porém, quando viram o Gavião e seu bando irromper pelo tombadilho, jogaram fora seus alfanjes. Os poucos que sabiam nadar correram para a amurada do navio e mergulharam na lagoa, enquanto os outros caíam de joelhos e imploravam por misericórdia.
- Poupe-os, Sr. Bowles - berrou Cumbrae. - Preciso de marinheiros! Não esperou para ver a ordem obedecida, arrancando um mosquete das mãos do homem a seu lado e correndo para a amurada. Os marujos que escapavam espadanavam na água rumo às árvores do mangue. Cumbrae fez mira cuidadosamente na cabeça de um deles, cujo cocuruto rosado se mostrava pelos molhados cabelos grisalhos. Foi um tiro certeiro, e o homem ergueu ambas as mãos e afundou, deixando uma mancha rosada na superfície. O grupo em torno de Cumbrae urrou de alegria e se juntou à diversão, marcando seus alvos e fazendo apostas:
- Quem me dará cinco xelins por aquele patife com o rabo-de-cavalo louro?
Disparavam nos nadadores como em patos feridos.
Sam Bowles veio sorridente e gingando para encontrar Cumbrae.
- O navio é seu, milorde.
- Muito bem, Sr. Bowles. - Cumbrae deu-lhe um caloroso murro de congratulações que quase o arrancou dos pés. - Deve haver alguns escondidos nos conveses abaixo. Arranque-os de lá. Tente tirá-los vivos. Ponha um bote na água e arraste aqueles lá fora também. - Apontou para os poucos sobreviventes ainda nadando em direção aos mangues. - Vou descer até a cabine de Llewellyn para encontrar os papéis do navio. Avise-me quando tiver todos os prisioneiros amarrados no centro do navio.
Chutou e abriu a porta trancada da cabine de Llewellyn e parou para inspecionar o interior. Era belamente arrumada, a mobília entalhada e polida, e os cortinados, de fino veludo.
Na escrivaninha, encontrou as chaves da caixa forte de ferro que estava aparafusada ao convés abaixo do confortável beliche. Assim que a abriu, reconheceu a bolsa que dera a Llewellyn.
- Sou muito grato a você, Christopher. Não irá precisar no lugar Para onde foi - murmurou, ao enfiá-la dentro do bolso. Sob ela, estava uma segunda bolsa, que ele carregou para o convés. Espalhou as moedas de ouro sobre o tampo da mesa. - Duzentas e dezesseis libras, cinco xelins e dois pence - contou. - Esse deve ser o dinheiro para a administração do navio. Muito parcimonioso, mas estou grato por qualquer contribuição.
Então seus olhos caíram sobre um pequeno baú de madeira no fundo da caixa. Ergueu-o e inspecionou o nome cravado na tampa.
- O Honorável Vincent Winterton.
O baú estava trancado, mas cedeu prontamente à lâmina de seu punhal. Ele sorriu ao ver o que continha, e deixou um punhado de moedas escorrer por entre seus dedos.
- Sem dúvida, as perdas de jogo do bom coronel Schreuder estão aqui, porém ele jamais deve ser tentado a apostá-las de novo. Tomarei conta disso para ele.
Serviu-se de uma caneca de conhaque francês dos estoques do capitão e sentou-se à mesa enquanto examinava os livros e documentos do navio. O diário de bordo seria uma interessante leitura para uma data posterior. Deixou-o de lado. Correu os olhos por uma carta de acordo de sociedade com lorde Winterton, que, parecia, era dono do Golden Bough.
- Não mais, milorde. - Sorriu. - Lamento informá-lo que ele é todo meu agora.
O manifesto de carga era desapontador. O Golden Bough carregava, na sua maior parte, mercadorias baratas de comércio, canivetes e machados, roupas, contas e anéis de cobre. Contudo, havia também quinhentos mosquetes e um estoque considerável de pólvora negra em seus porões.
- Puxa! Então você ia fazer um contrabandozinho de armas. Que vergonha, meu caro Christopher. - Estalou a língua em desaprovação. - Encontrarei alguma coisa melhor para encher seus porões na viagem de retorno - prometeu a si mesmo, e tomou um gole longo de conhaque.
Perpassou os outros documentos. Havia uma segunda carta de Winterton, concordando com a comissão do Golden Bough como um navio de guerra a serviço do padre João, e uma carta floreada de apresentação, assinada pelo chanceler de Inglaterra, o conde de Clarendon, sob o Grande Selo, recomendando Christopher Llewellyn ao regente da Etiópia nos mais altos termos.
- Ah! Esta é de maior valor. Com algumas pequenas alterações do nome, mesmo eu cairia nessa!
Dobrou-a cuidadosamente e recolocou o baú, as bolsas, os livros e documentos na caixa forte, pendurando a chave numa fita em torno do pescoço. Enquanto terminava o resto do conhaque, considerou os cursos de ação que agora se abriam para si.
Aquela guerra no Great Horn o intrigava. Logo os ventos alísios de sudeste iriam começar a soprar pelo oceano das índias. Em suas asas benevolentes, o grão-mogol mandaria seus caíques carregados de tropas e tesouros de seu império do continente da índia e índia distante para seus entrepostos na costa africana. Haveria também a peregrinação anual da fé do Islã a se aproveitar do mesmo bom vento para velejar pelo mar da Arábia, em sua jornada ao local de nascimento do Profeta de Deus. Potentados e princesas, ministros de estado e ricos mercadores de cada canto do Oriente iriam carregar consigo riquezas cujo valor ele podia apenas adivinhar para depositar como oferendas nas mesquitas e templos sagrados de Meca e Medina.
Cumbrae permitiu-se uns poucos minutos de devaneio ao imaginar rubis da cor do sangue de pombos e safiras do tamanho de seu punho, e enormes cargas de prata e lingotes de ouro.
- Com o Gull e o Golden Bough velejando juntos, não há nenhum príncipe negro pagão que seja capaz de me contestar. Encherei meus porões com o melhor. O miserável pequeno tesouro de Franky Courtney empalidece ao lado de tamanha abundância - consolou-se. Ainda se remoía amargamente de não ter podido encontrar o esconderijo de Franky, e fechou a cara. - Quando eu partir desta lagoa, deixarei os ossos de Jiri e daqueles outros negros mentirosos como sinaleiros para marcar minha passagem - prometeu a si mesmo.
Sam Bowles interrompeu-lhe os pensamentos ao enfiar a cabeça para dentro da cabine.
- Peço perdão, milorde, arrebanhamos todos os prisioneiros. Foi uma limpeza bem-feita. Nenhum deles se safou.
O Gavião ergueu-se nos pés, feliz por ter uma distração daqueles desapontamentos por ninharias.
- Deixe-me ver o que você conseguiu para mim, então.
Os prisioneiros estavam amarrados e acocorados em três filas no centro do navio.
- Quarenta e dois homens curtidos de água do mar - disse Sam, orgulhoso -, em juízo perfeito e com boa saúde.
- Nenhum deles ferido? - perguntou o Gavião, incrédulo. Sam respondeu num sussurro.
- Eu sabia que o senhor não haveria de querer se aborrecer bancando a enfermeira para esses. Então, mantivemos suas cabeças sob a agua para ajudá-los em seu caminho para o seio de Jesus. Para a maioria deles, foi uma bênção.
- Estou admirado com sua compaixão, Sr. Bowles - resmungou Cumbrae -, porém, no futuro, poupe-me de tais detalhes. Sabe que sou um homem de natureza gentil. - Tirou o assunto da mente e contemplou os prisioneiros. A despeito das afirmações de Sam, muitos tinham sido surrados brutalmente, os olhos estavam enegrecidos, e os lábios, cortados e inchados. Tinham as cabeças penduradas, e nenhum o fitava.
Cumbrae caminhou lentamente pelas filas acocoradas, vez ou outra segurando um punhado de cabelos e erguendo a face do homem para estudá-lo. Ao chegar a fim da linha, voltou e dirigiu-se a eles com jovialidade:
- Ouçam-me, meus valentes camaradas, tenho um emprego para todos vocês. Velejem comigo e terão um xelim por mês e uma justa parte do dinheiro que conseguiremos, e, tão certo como meu nome é Angus Cochran, haverá sacos de ouro e prata a partilhar.
Nenhum replicou, e ele franziu a testa.
- São surdos ou o demónio arrancou suas línguas? Quem viajará com Cochran de Cumbrae?
O silêncio persistiu pesadamente sobre o tombadilho. Ele avançou e avistou um dos de aparência mais inteligente dentre os prisioneiros.
- Qual é seu nome, rapaz?
- Davey Morgan.
- Velejará comigo, Davey?
Lentamente, o homem ergueu a cabeça e encarou o Gavião.
- Vi o jovem Sr. Winterton ser assassinado, e o capitão morto a sangue-frio na praia. Não velejarei com um pirata assassino.
- Pirata! - berrou o Gavião. - Você ousa me chamar de pirata, seu monte de vísceras fedorentas? Você nasceu para alimentar as gaivotas, e é isso o que fará!
A grande espada escocesa escorregou de sua bainha, e ele a girou para dividir a cabeça de Davey Morgan pelos dentes até os ombros. Com a espada ensanguentada na mão, caminhou pela fila de prisioneiros.
- Há algum entre vocês que se atreveria a me chamar de pirata na minha cara? - Nenhum homem se manifestou; por fim, Cumbrae virou-se para Sam Bowles. - Tranque-os no porão do Golden Bough. Alimente-os com metade de um quartilho de água e um biscoito por dia. Deixe-os pensar sobre minha oferta mais seriamente. Em poucos dias, falarei com esses amores de novo, e veremos se terão maneiras melhores então.
Puxou Sam de lado e falou; num tom mais baixo:
- Há ainda alguns estragos da tempestade que precisam de reparo. - Apontou para os cordames. - É o seu navio agora, para velejar e comandar. Seja bem-sucedido de uma vez. Quero deixar esta ancoragem esquecida de Deus tão logo seja possível. Ouviu, capitão Bowles?
A face de Sam Bowles iluminou-se de prazer com o título.
- Pode confiar em mim, milorde.
Cumbrae caminhou para a porta de embarque e deslizou para um dos escaleres.
- Levem-me de volta para a praia, biltres.
Saltou por sobre o lado antes que tivessem tocado a areia e vadeou com água até o joelho para a praia, onde o coronel Schreuder o esperava.
- Milorde, preciso falar com o senhor - disse, e o Gavião sorriu para ele de forma encantadora.
- Sua conversa sempre me dá prazer, senhor. Venha comigo. Podemos conversar enquanto cuido de meus afazeres. - Liderou o caminho pela praia e para o bosque.
- O capitão Llewellyn foi... - começou Schreuder, mas o Gavião o interrompeu:
- Llewellyn era um pirata sanguinário. Eu estava me defendendo de sua traição. - Parou abruptamente e encarou Schreuder, erguendo a manga para exibir a cicatriz protuberante e violácea que desfigurava seu ombro. - Vê isso? Foi o que consegui por confiar em Llewellyn uma vez, antes. Se não o tivesse impedido, seus desesperados teriam caído sobre nós e nos matado onde estávamos. Tenho certeza de que compreende e que está grato por minha intervenção. Poderia ser você a seguir aquele caminho. - Apontou para o grupo de homens que cambaleava pela praia, arrastando os cadáveres de Llewellyn e Vincent Winterton pelas pernas. A cabeça estourada de Llewellyn deixava uma marca vermelha pela areia.
Schreuder olhou horrorizado para o grupo funerário. Reconhecia nas palavras de Cumbrae tanto um aviso como uma ameaça. Além da primeira fileira de árvores, via-se uma série de profundas trincheiras recém-cavadas sobre a área onde uma vez o acampamento de Sir Francis Courtney se estabelecera. Sua cabana se fora, mas em seu lugar havia um buraco de seis metros de profundidade, o fundo cheio de infiltração de água salobra da lagoa. Havia outra extensa escavação no local do velho depósito de especiarias. Parecia que um exército de mineiros estivera trabalhando entre as árvores. Os homens do Gavião arrastaram os cadáveres até o mais próximo desses buracos e os jogaram sem cerimônia para dentro. Os corpos deslizaram pelo lado íngreme e caíram com estrépito na poça ao fundo.
Schreuder pareceu preocupado e indeciso.
- Acho difícil de acreditar que Llewellyn fosse essa pessoa. - Mas Cumbrae não o deixaria terminar.
- Por Deus, Schreuder, duvida de minha palavra? É a confiança que queria demonstrar para comigo? Se minhas ações o ofendem, então é melhor que nos separemos agora. Darei a você uma pinaça do Golden Bough e uma tripulação dos piratas de Llewellyn para ajudá-lo a fazer seu próprio caminho de volta a Boa Esperança. Pode explicar seus finos escrúpulos ao governador van de Velde. É mais do seu gosto?
- Não, senhor, não é - disse Schreuder, apressadamente. - O senhor sabe que não posso voltar a Boa Esperança.
- Bem, então, coronel, ainda está comigo?
Schreuder hesitou, a observar a tarefa repugnante da equipe de enterro. Sabia que, se confrontasse Cumbrae, provavelmente terminaria no buraco com Llewellyn e os marujos do Golden Bough. Estava sem saída.
- Ainda estou com o senhor - disse, por fim. O Gavião concordou.
- Eis aqui minha mão, então.
Estendeu o enorme punho cheio de sardas, coberto com pêlos duros cor de gengibre. Lentamente, Schreuder esticou o seu e tomou-lhe a mão. Cumbrae pôde ver despontando em seus olhos a percepção de que, de agora em diante, estaria fora dos limites considerados razoáveis, e ficou contente de que pudesse por fim confiar em Schreuder. Ao fazer vistas grossas para o massacre dos oficiais e tripulação do Golden Bough, ele se tornara um pirata e um fora-da-lei. Era, em cada sentido, o homem do Gavião.
- Venha comigo, senhor. Deixe-me mostrar-lhe o que fizemos aqui. - Cumbrae mudou de assunto com facilidade e conduziu Schreuder ao largo do túmulo coletivo sem outro olhar para a pilha de cadáveres. - Veja, eu conhecia Francis Courtney muito bem, éramos como irmão. Ainda tenho certeza de que sua fortuna está escondida nas imediações. Ocultou o que tomou do Standvastigheid e do Herlycke Nacht. Pelo sangue de todos os santos, deve haver vinte mil libras enterradas em algum lugar sob essas areias.
Com isso, chegaram à longa e profunda trincheira onde quarenta dos homens de Cumbrae já estavam de volta ao trabalho, com pás. Entre eles havia os três marujos negros que ele comprara no leilão de escravos em Boa Esperança.
- Jiri! - berrou o Gavião. - Matesi! Kimatti!
Os escravos saltaram, lançaram fora as pás e saíram do buraco, depressa, para encarar seu patrão.
- Olhe para essas grandes belezas, senhor. Paguei quinhentos florins por cabeça. Foi a pior barganha em que já me meti. Aqui, diante de seus olhos, o senhor tem a prova viva de que existem apenas três coisas que um negro pode fazer bem. Pode prevaricar, roubar e agir como um porco. - O Gavião deixou escapar uma gargalhada. - Não é verdade, Jiri?
- Sim, meu senhor - Jiri sorriu e concordou. - É a própria verdade de Deus.
O Gavião parou de rir tão de repente como começara.
- O que sabe sobre Deus, seu pagão? - rosnou, e, com um poderoso giro do punho, jogou Jiri de volta para dentro do buraco. - Voltem ao trabalho todos três!
Eles pegaram suas pás e atacaram o fundo do buraco em movimentos frenéticos, mandando terra a voar sobre o parapeito numa nuvem. Cumbrae postou-se acima deles, mãos nos quadris.
- Escutem-me, seus filhos da meia-noite. Disseram que o tesouro que procuro estava enterrado aqui. Bem, então, encontrem-no para mim ou não virão comigo quando eu partir. Enterrarei todos os três nessa sepultura que estão cavando com suas próprias patas de carvão. Ouviram?
- Ouvimos, meu senhor - responderam eles, em coro.
Ele tomou o braço de Schreuder num aperto amistoso e conduziu-o para longe.
- Tenho de aceitar o triste fato de que eles realmente nunca souberam do paradeiro do esconderijo secreto de Franky. Estiveram me engambelando durante todos esses meses. Meus camaradas e eu estamos fartos desse joguinho nos molhes. Deixe-me oferecer-lhe a hospitalidade de minha humilde casa e uma caneca de uísque, e você poderá me contar o que sabe sobre essa bela guerrinha que está havendo entre o grão-mogol e o padre. Parece que você e eu, bem que poderíamos encontrar melhor ocupação e mais lucro em algum lugar além daqui, na lagoa do Elefante.
Aluz do fogo, Hal estudou seu bando enquanto comiam, com voraz apetite, o jantar de carne defumada. A caçada fora pobre naqueles últimos dias, e a maioria deles estava cansada. Seus próprios marujos nunca tinham sido escravos. O trabalho nas muralhas do castelo de Boa Esperança não os quebrara ou acovardara. Na verdade, tinha-os enrijecido, e agora a longa marcha lhes dava têmpera. Hal não podia querer mais: eram guerreiros resolutos e treinados. Gostava de Althuda e confiava nele, porém ele fora um escravo desde a infância e alguns de seus homens jamais seriam lutadores. Sabah era um desapontamento. Não preenchia as expectativas de Hal. Tornara-se hostil e obstrutivo. Furtava-se de seus deveres e contestava as ordens que Hal lhe dava. Seu grito favorito era:
- Não sou mais um escravo! Nenhum homem tem o direito de me comandar!
Sabah não se sentiria bem se comparado aos marujos do Gavião, pensou Hal, mas ergueu os olhos e sorriu quando Sukeena veio sentar-se a seu lado.
- Não faça de Sabah um inimigo - murmurou ela, baixinho.
- Não quero isso - retrucou ele -, mas cada homem entre nós deve fazer sua parte. - Ele a fitou com ternura. - Você vale mais que dez homens como Sabah, porém hoje eu a vi tropeçar mais de uma vez, e quando achou que eu não estava olhando, havia dor em seus olhos. Está adoentada, minha querida? Estou realmente forçando o passo?
- Você é muito afetuoso, Gundwane. - Ela lhe sorriu. - Caminharei com você até os próprios portões do inferno e não reclamarei.
- Sei que o faria, e isso me preocupa. Se não reclama, como saberei o que a aflige?
- Nada me aflige - assegurou-lhe ela.
- Jure então - insistiu ele. - Você não está escondendo qualquer doença de mim.
- Juro com este beijo. - Ofereceu-lhe os lábios. - Tudo está bem como Deus sempre pretendeu. E provarei a você. - Tomou-lhe a mão e conduziu-o ao canto escuro da paliçada onde ela arrumara a cama.
Embora seu corpo se juntasse ao dele com tanta doçura como antes, havia um langor e uma suavidade no ato de amor que eram estranhos e, mesmo que o deliciasse enquanto a paixão fervia, depois o deixou com uma sensação de inquietude e perplexidade. Ele estava ciente de que algo tinha mudado, porém não sabia dizer exatamente o quê.
No dia seguinte, ele a observou cautelosamente durante a longa marcha, e pareceu-lhe que, no terreno mais escarpado, o passo de Sukeena não era tão ágil como já fora. Então, quando o calor estava mais forte, ela perdeu o lugar na coluna e começou a ficar para trás. Zwaantie foi ajudá-la a passar pelo trecho rude na trilha de elefante que estavam seguindo, porém Sukeena disse alguma coisa asperamente e lhe afastou a mão. Hal diminuiu o passo, quase imperceptivelmente, para dar-lhe um descanso, e anunciou a parada do meio-dia mais cedo do que o fizera nos dias precedentes.
Sukeena dormiu ao lado dele naquela noite com uma imobilidade de morta, enquanto Hal jazia acordado. Já então se convencera de que ela não estava bem e que tentava esconder dele sua fraqueza. Enquanto ela dormia, sua respiração era tão leve que ele teve de colocar o ouvido em seus lábios para se acalmar. Abraçou-a, e seu corpo pareceu quente. Uma vez, logo antes do amanhecer, ela gemeu tão dolorosamente que ele sentiu o coração inchar de amor e preocupação por ela. Por fim, também caiu num profundo sono sem sonhos. Quando acordou sobressaltado e estendeu a mão, ela se fora.
Ergueu-se num cotovelo e olhou ao redor da paliçada. O fogo morrera num monte de brasas, mas a lua quase cheia, muito embora baixa a oeste, lançava luz suficiente para que Hal visse que ela não estava ali. Ele pôde divisar a forma escura de Aboli: a estrela da manhã fora quase apagada pela luz mais brilhante da lua, porém queimava logo acima de sua cabeça enquanto ele se sentava de vigia na entrada. Aboli estava acordado, pois Hal o ouviu tossir baixinho e o viu puxar o manto de pele para mais perto em torno dos ombros.
Hal empurrou seu próprio kaross e foi se agachar ao lado dele.
- Onde está Sukeena? - murmurou.
- Saiu faz pouco tempo.
- Que caminho tomou?
- O do riacho.
- Você não a impediu?
- Ela ia cuidar das necessidades. - Aboli se voltou para olhá-lo com curiosidade. - Por que a impediria?
- Sinto muito - murmurou Hal de volta. - Não pretendia censurá-lo. Ela me preocupa. Não está bem. Não percebeu?
Aboli hesitou.
- Talvez - concordou. - Mulheres são filhas da lua, que ainda tem umas poucas noites até ficar cheia, e assim talvez seu período esteja em fluxo.
- Vou atrás dela.
Hal levantou-se e desceu a rude trilha em direção à lagoa rasa onde tinham se banhado na noite anterior. Estava prestes a lhe chamar o nome quando ouviu um som que o silenciou e alarmou. Parou e apurou os ouvidos, ansioso. O som veio de novo, o som de dor e aflição. Ele avançou em frente e avistou-a no banco de areia, ajoelhada ao lado da lagoa. Jogara de lado a manta, e a luz reluzia em sua pele nua, emprestando-lhe a patina de um marfim polido. Estava dobrada numa convulsão de dor e enfermidade. Enquanto ele a observava, aflito, ela teve um espasmo e vomitou na areia.
Ele correu e jogou-se de joelhos ao lado dela. Sukeena fitou-o em desespero.
- Não deveria me ver assim - murmurou, com voz rouca, e então virou a cabeça e vomitou de novo.
Hal envolveu-a com o braço pelos ombros nus. Ela estava fria e tremendo.
- Está doente. Oh, meu amor, por que não me respondeu direito? Por que tentou esconder isso de mim?
Ela enxugou a boca com as costas da mão.
- Não deveria ter me seguido - disse. - Não queria que você soubesse.
- Se está doente, então eu preciso saber. Deveria confiar o suficiente em mim para me contar.
- Não queria ser um fardo para você. Não queria que atrasasse a marcha por minha causa.
Ele a abraçou.
- Você jamais será um fardo para mim. E a respiração de meus pulmões e o sangue em minhas veias. Conte-me agora de verdade o que a aflige, minha querida.
Ela suspirou e estremeceu contra Hal.
- Oh, Hal, perdoe-me. Eu não queria que isso acontecesse ainda. Tomei todos os remédios que conheço para evitar.
- O que é? - Ele estava confuso e aflito. - Por favor, diga.
- Estou carregando seu filho em meu ventre. - Ele a fitou, atónito, e não pôde nem se mover nem falar. - Por que está calado? Por que me olha assim? Por favor, não fique zangado comigo.
De repente, ele a agarrou contra o peito com toda a força.
- Não é raiva que trava minha língua. É alegria. Alegria por nosso amor. Alegria pelo filho que me prometeu.
Naquele dia, Hal mudou a ordem da marcha e levou Sukeena para caminhar com ele à vanguarda da coluna. Embora ela protestasse, risonha, ele tomou-lhe a cesta da mão e somou-a a sua própria bagagem. Aliviada do peso, ela foi capaz de caminhar com ligeireza e ficar ao lado dele sem problemas. Mesmo assim, Hal tomou-lhe a mão nos lugares mais difíceis, e ela não relutou quando viu o prazer que dava a ele protegê-la e mimá-la.
- Não deve contar aos outros - murmurou ela-, caso contrário irão querer diminuir a marcha por minha causa.
- Você é tão forte quanto Aboli e Daniel Grande - assegurou-lhe ele, com firmeza -, porém não contarei a eles.
Assim, guardaram seu segredo, a caminhar de mãos dadas e sorrindo um para o outro em tal evidente felicidade, que, mesmo que Zwaantie não contasse a Althuda e este a Aboli, teriam imaginado. Aboli sorriu como se ele próprio fosse o pai e encheu Sukeena de tantos agrados e atenção, que mesmo Sabah, no fim, adivinhou a razão para aquele novo ânimo que dominava agora o bando.
O terreno pelo qual estavam passando agora se tornou mais denso de florestas. Algumas das árvores eram monstruosas e pareciam, como grandes flechas, espetar os próprios céus.
- Já deviam ser antigas quando Cristo, o Salvador, nasceu nesta terra! - maravilhou-se Hal.
Com os prudentes conselhos e a orientação de Aboli, estavam chegando a um acordo com aquele terreno selvagem e os grandes animais que nele abundavam. O medo não mais era seu constante companheiro, e Hal e Sukeena tinham aprendido a extrair prazer de toda a estranheza e beleza que havia ao redor. Paravam no cume de uma colina para observar uma águia planar no vento alto com asas imóveis, ou para apreciar um minúsculo pássaro de um metálico reluzente, não maior que o polegar de Sukeena, conforme se alçava suspenso diante de uma flor para sugar o néctar com o bico curvado que parecia tão longo quanto seu corpo.
A pastagem pululava com uma exuberância de animais estranhos que desafiavam sua imaginação. Havia manadas do mesmo cervo azul que tinham encontrado primeiro abaixo das montanhas, e cavalos selvagens barrados com listras extensas de creme, castanho-avermelhado e preto. Muitas vezes viam, à frente, entre as árvores, as formas escuras e gigantescas do rinoceronte de chifres duplos, mas tinham aprendido que aqueles animais medonhos eram quase cegos, e que poderiam evitar sua investida selvagem e cheia de bufos fazendo um curto desvio pela trilha.
Nas pradarias, além das florestas, havia bandos de pequenas gazelas cor de canela, tão numerosos que se moviam como fumaça pelas colinas. Seus flancos eram rajados com uma faixa horizontal chocolate e os chifres em formato de lira coroavam suas delicadas cabeças. Quando alarmados pela vista de figuras humanas, disparavam com estonteante leveza nos cascos, saltando alto no ar e deixando ver de relance uma pluma cor de neve sobre as costas. Cada fêmea era seguida por um pequeno filhote, e Sukeena bateu palmas, deliciada, e soltou exclamações de prazer ao ver os jovens animais mamando ou brincando com seus iguais. Hal a observava com ternura, sabendo agora que ela também carregava uma criança dentro de si, partilhando de sua alegria ao admirar os rebentos das outras espécies e deleitando-se com ela no segredo que julgavam esconder dos outros.
Leu o ângulo do sol do meio-dia, e todos do bando se reuniram em torno dele para observá-lo marcar a posição na carta. A corrente de pontos na folha do pesado pergaminho rumava lentamente rumo à depressão do litoral que estava marcada no mapa holandês como Buffels Baai ou baía dos Búfalos.
- Não estamos a mais que cinco léguas da lagoa agora. - Hal ergueu os olhos da carta.
Aboli concordou.
- Quando estávamos fora, caçando, esta manhã, reconheci as colinas adiante. Do terreno alto, vi a linha de nuvem baixa que marca a costa. Estamos muito próximos.
- Precisamos avançar com cautela - alertou Hal. - Podemos correr perigo se saquearmos o Gull. Este é um lugar favorável para assentar um acampamento mais permanente. Há abundância de água e lenha e um bom panorama daquela colina. De manhã, Aboli e eu deixaremos o resto de vocês aqui, enquanto vamos adiante para descobrir se o Gull está realmente ancorado na lagoa do Elefante.
Uma hora antes do amanhecer, Hal chamou Daniel Grande de lado e entregou Sukeena a seus cuidados.
- Guarde-a bem, mestre Daniel. Nunca a deixe fora de sua vista.
- Não tenha medo, capitão. Ela estará segura comigo.
Tão logo havia luz suficiente para ver a trilha que conduzia a leste, Hal e Aboli deixaram o acampamento. Sukeena caminhou uma curta distância com eles.
- Deus o guie, Aboli - Sukeena abraçou-o. - Cuide de meu homem.
- Cuidarei dele enquanto você cuida de seu filho.
- Seu patife monstruoso! - Ela o atingiu com um soco de brincadeira no grande peito largo. - Como sabe de tudo? Estávamos certos de que tínhamos isso em segredo até mesmo de você. - Voltou-se, rindo, para Hal. - Ele sabe!
.- Então, tudo está perdido. - Hal meneou a cabeça. - Pois no dia em que nascer, esse patife vai tomá-lo como seu, assim como fez comigo.
Ela ficou a observá-los subir a colina e acenar do cume. Porém, quando desapareceram, o sorriso estremeceu nos seus lábios, e uma única lágrima traçou seu caminho por sua face. No caminho de volta, ela parou ao lado do riacho e lavou o rosto. Quando entrou no acampamento outra vez, Althuda olhou para ela, tirando os olhos da lâmina de espada que polia, e sorriu, sem suspeitar de sua aflição. Maravilhou-se de como ela parecia bela e fresca, mesmo depois de todos aqueles meses de jornada dura por aquela região.
Quando haviam estado ali pela última vez, Hal e Aboli tinham caçado e explorado aquelas colinas acima da lagoa. Conheciam o correr do rio, e entraram na garganta profunda um quilómetro e meio acima da lagoa, seguindo uma trilha de elefante para baixo, para um vau raso que conheciam. Não se aproximaram da lagoa daquela direção.
- Pode haver grupo de aguadeiros do Gull - avisou Aboli.
Hal concordou e decidiu ir para cima, para o outro lado da garganta e num largo circuito em torno das costas da colina, fora da vista da lagoa.
Subiram o declive até que estavam poucos passos abaixo da linha do horizonte. Hal sabia que a caverna de antigas pinturas na rocha, onde ele e Katinka tinham se encontrado, ficava logo acima do cume em frente a eles e que, do parapeito, teriam uma vista panorâmica desde a lagoa até as pontas rochosas e o oceano além.
- Use aquelas árvores para disfarçar sua silhueta da linha do céu disse Aboli a ele, baixinho.
Hal sorriu.
?- Você me instruiu bem. Não esqueci.
Subiu devagar pelos últimos poucos passos, seguido por Aboli, e, gradualmente, a vista lá embaixo do lado oposto abriu-se a seu olhar.
Não via o mar fazia semanas agora, e sentiu o coração saltar e o espírito alçar vôo ao olhar para aquela serena extensão azul, encimada pelas cristas brancas das ondas que corriam diante do sudeste. Era o elemento que regrava sua vida, e ele sentira imensas saudades dele.
- Oh, um navio! - murmurou. - Por favor, Deus, permiti que lá exista um navio!
Conforme subia, diante de seus olhos apareceram os grandes castelos cinzentos das pontas, os bastiões que guardavam a entrada da lagoa. Parou antes de dar outro passo, fortalecendo a si mesmo para o terrível desapontamento de encontrar a ancoragem deserta. Como um jogador no Hazard, apostara sua vida naquele lance de dados do Destino. For-çou-se a dar outro lento passo para cima até a colina, e então ofegou, agarrou o braço de Aboli e enterrou-lhe os dedos nos músculos fortes.
- O Gulll - murmurou, como se fosse uma prece de agradecimento. - E não está sozinho! Há um outro belo navio com ele.
Por um longo momento, nenhum dos dois falou outra vez, até que Aboli disse, baixinho:
- Encontrou o navio que prometeu a eles. Se puder capturá-lo, será um capitão por fim, Gundwane.
Subiram adiante e, no cume da colina, afundaram de barriga e olharam pela extensa lagoa, abaixo.
- Que navio é aquele com o Gull - perguntou Hal. - Não posso divisar seu nome daqui.
- É uma nau inglesa - disse Aboli, com certeza. - Nenhum outro cruzaria sua verga da vela do joanete da mezena daquele jeito.
- Galesa, talvez. Tem um caimento em suas proas e um estilo vigoroso em sua curvatura para cima. Deve ter sido construída na costa ocidental.
- É possível, porém, quem quer que seja, é uma nau de guerra. Olhe para aqueles canhões. Deve haver poucas que se comparem a ela em sua classe - murmurou Aboli, pensativo.
- Nem mesmo o Gull - Hal fitou a nau com olhos cobiçosos. Aboli meneou a cabeça.
- Não se atreva a tentar tomá-la, Gundwane. Certamente pertence a um honesto capitão do mar inglês. Se puser as mãos nela, nos tornará a todos piratas. Melhor tentarmos o Gull.
Por outra hora, ficaram deitados no topo da colina, conversando e planejando baixinho enquanto estudavam os dois navios e o acampamento entre as árvores na praia, perto da lagoa.
- Céus! - exclamou Hal, abruptamente. - Aquele é o próprio Gavião. Eu reconheceria aquela touceira de cabelos cor de fogo em qualquer lugar. - Sua voz estava aguda de ódio e raiva. - Está indo para o outro navio. Veja como sobe a escada sem ao menos pedir licença, como se fosse seu dono.
- Quem o está cumprimentando na escada de tombadilho? - perguntou Aboli. - Juro que conheço aquele andar e a careca brilhando ao sol.
- Não pode ser Sam Bowles a bordo daquela fragata... mas é! - admirou-se Hal. - Há algo muito estranho acontecendo aqui, Aboli. Como poderemos descobrir o que é?
Enquanto observavam, o sol começou a deslizar para o céu ocidental, e Hal tentou manter a raiva sob controle. Lá estavam os dois homens responsáveis pela morte terrível de seu pai. Reviveu cada detalhe de sua agonia e odiou Sam Bowles e o Gavião até que percebeu que suas emoções poderiam sobrepujar a razão. Seu forte instinto era jogar tudo o mais de lado, descer correndo para se confrontar com eles e buscar vingança pela agonia e morte do pai.
Não devo deixar que isso aconteça, disse a si mesmo. Devo pensar primeiro em Sukeena e no nosso filho que ela carrega.
Aboli tocou-lhe o braço e apontou para baixo, na colina. Os raios do sol que se afundava tinham mudado o ângulo das sombras das árvores da floresta, de maneira que podiam ver mais claramente através delas pelo acampamento.
- O Gavião está cavando fortificações lá embaixo. - Aboli estava intrigado. - Porém, não há planos nelas. Suas trincheiras são todas desorganizadas.
- No entanto, todos os seus homens parecem estar no trabalho das escavações. Deve haver algum plano... - Hal interrompeu-se e caiu na gargalhada. - Claro! Eis por que ele voltou para a lagoa. Ainda está procurando pelo esconderijo de meu pai.
- Está bem distante dele. - Aboli soltou uma risadinha. - Talvez Jiri e Matesi o tenham enganado deliberadamente.
- Pela doce Maria, claro que aqueles patifes pregaram uma peça nele. Cumbrae comprou mais do que barganhou no mercado de escravos. Vão torcer o nariz enquanto fingem se comportar com humildade e o chamam de "meu senhor". - Sorriu ao pensamento, e depois ficou sério de novo. - Acha que ainda podem estar lá embaixo, ou o Gavião já os matou?
- Não, ele os manterá vivos enquanto julgar que são de valor. Ele está cavando, portanto ainda está esperando. Minha impressão é que estão ainda vivos.
- Precisamos procurar por eles. - Por outra hora, ficaram no topo da coluna, em silêncio, e então Hal disse: - A maré está mudando. A fragata estranha está girando nas amarrações. - Viram-na se curvar e fazer uma cortesia para a maré com uma graça imponente, e depois Hal falou de novo: - Agora posso ver o nome na prancha, mas é difícil de ler. Golden Swanl Golden Hart Não, acho que não. É o Golden Bough.
- Um belo nome para um belo navio - disse Aboli, e então saltou e apontou excitado para a rede de trincheiras e buracos entre as árvores. - Há homens pretos saindo daquele canal estreito, três deles. É Jiri? Seus olhos são mais agudos que os meus.
- Céus! E ele sim, e Matesi e Kimatti atrás dele.
- Estão sendo levados para uma cabana perto da beira d'água. Deve ser lá que os trancam durante a noite.
- Aboli, precisamos falar com eles. Descerei tão logo esteja escuro e tentarei chegar àquela cabana. A que horas será o nascer da lua?
- Uma hora antes da meia-noite - respondeu-lhe Aboli. - Mas não o deixarei ir. Fiz uma promessa a Sukeena. Além disso, sua pele branca brilha como um espelho. Eu irei.
Completamente nu, Aboli vadeou a lagoa pelo lado mais afastado da praia até que a água chegou a seu queixo e avançou num nado de cachorrinho que não fazia borrifos e deixava apenas uma silenciosa esteira oleosa atrás de sua cabeça. Quando chegou a terra, ficou nos baixos até que teve certeza de que a praia estava vazia. Então engatinhou rapidamente pela areia aberta e apertou-se contra o tronco da primeira árvore.
Uma ou duas fogueiras de cozinha estavam queimando no bosque, e, de lá, ele ouvia o som de vozes de homens e um ocasional retalho de canção ou o espocar de uma risada. As chamas lhe davam luz suficiente para discernir a cabana onde os escravos estavam aprisionados. Perto da frente dela, ele avistou o brilho de uma mecha de queima lenta na trava de um mosquete e, por causa disso, deduziu que havia uma única sentinela, sentada de costas para uma árvore que cobria a porta da cabana.
São descuidados, pensou. Um único guarda, e ele parece estar adormecido.
Avançou em frente de gatinhas, mas, antes que alcançasse a parede dos fundos da cabana, ouviu passos e correu depressa para o abrigo de outro tronco de árvore e agachou-se ali. Dois dos marujos do Gavião vinham caminhando despreocupadamente pelo bosque em direção a ele. Discutiam em voz alta.
- Não viajarei com aquele fuinha - declarou um. - Ele cortaria uma garganta por diversão.
- Você também, Willy MacGregor.
- Sim, mas não estaria usando uma lâmina cega, como Sam Bowles.
- Vá com quem quer que o Gavião diga que irá, e ponto final para sua choradeira - anunciou, seu parceiro e parou ao lado da árvore onde Aboli se agachava. Puxou as calças e urinou com ruído no tronco. - Pelos bagos do diabo, mesmo com Sam Bowles como capitão, ficarei bastante feliz em dar o fora deste lugar. Deixei a bela Escócia para escapar da mina de carvão, e aqui estou, cavando buracos de novo. - Sacudiu as gotas do pênis vigorosamente, e os dois se afastaram.
Aboli esperou até que estavam bem distantes e então se arrastou até a parede dos fundos da cabana. Descobriu que era rebocada com argila não queimada, mas que os pedaços estavam caindo do esquadro de galhos trançados por debaixo. Engatinhou lentamente ao longo da parede, experimentando cada vão com um talo de grama, até que achou uma frincha pela qual o talo passou. Colocou os lábios na abertura e murmurou baixinho:
- Jiri!
Ouviu um movimento de salto no lado oposto da parede; um momento depois, um murmúrio temeroso veio de volta.
- É a voz de Aboli, ou é seu fantasma?
- Estou vivo. Aqui, sinta o calor de meu dedo. Não é a mão de um homem morto.
Cochicharam um com o outro por quase uma hora antes que Aboli deixasse a cabana e rastejasse de volta à praia. Esgueirou-se nas águas da lagoa como uma lontra.
A alvorada pintara o céu do leste com as cores de limões e damascos maduros quando Aboli escalou a colina outra vez até onde deixara Hal. Ele não estava na caverna, mas quando Aboli emitiu um suave trinado de passarinho, Hal saiu de trás das trepadeiras penduradas que fechavam a entrada, o alfanje na mão.
- Tenho novidades - disse Aboli. - Por uma vez, os deuses foram gentis.
- Conte-me! - exigiu Hal com ansiedade, enquanto embainhava de novo a lâmina.
Sentaram-se lado a lado à entrada da caverna, de onde podiam manter plena visão da lagoa sob seus olhos, enquanto Aboli relatava em detalhes tudo que Jiri pudera contar-lhe.
Hal soltou uma exclamação indignada quando Aboli descreveu o massacre do capitão e dos homens do Golden Bough, e a maneira como Sam Bowles afogara os feridos como gatinhos indesejados nos baixios da lagoa.
- Mesmo para o Gavião, é um feito que recende ao próprio inferno.
- Nem todos foram mortos - disse-lhe Aboli. - Jiri diz que um grande número de sobreviventes está trancado no porão principal do Golden Bough. - Hal ficou pensativo. - Diz também que o Gavião deu o comando do Golden Bough a Sam Bowles.
- Céus, aquele patife subiu na vida - exclamou Hal. - Mas isso tudo poderia trabalhar a nosso favor. O Golden Bough se tornou um navio pirata e é agora uma caça justa para nós. Contudo, será uma empreitada perigosa caçar o Gavião em seu próprio ninho. - Caiu num longo silêncio, e Aboli não o perturbou.
Por fim, Hal ergueu os olhos, e era evidente que chegara a alguma decisão.
- Jurei a meu pai nunca revelar aquilo que vou lhe mostrar agora. Porém, as circunstâncias mudaram. Ele iria me perdoar, eu sei. Venha comigo, Aboli.
Hal conduziu-o para a encosta posterior da colina e depois virou em direção à garganta do rio. Encontraram uma trilha feita por babuínos e escorregaram pelo declive até o fundo. Lá, Hal voltou-se corrente acima, e os penhascos se tornaram mais altos e mais íngremes conforme avançavam. Em alguns lugares, eram forçados a entrar na água e vadear ao longo dos penedos. A cada poucas centenas de metros, Hal parava para avaliar seu rumo, até que por fim resmungou de satisfação ao divisar a árvore morta. Andou pela água até a beira da margem e subiu em terra, começando a escalar a parede rochosa.
- Aonde está indo, Gundwane? - gritou Aboli, atrás dele.
- Siga-me - respondeu Hal, e Aboli deu de ombros, começando a subir atrás dele.
Soltou uma risada quando Hal de repente estendeu o braço e lhe deu a mão para que subisse até a estreita saliência que não pudera ver do lado de baixo.
- Isso tem o cheiro da toca do capitão Franky - disse. - O Gavião teria poupado a si mesmo um bocado de trabalho procurando aqui em vez de cavar buracos no bosque, estou certo?
- Por aqui.
Hal arrastou-se ao longo da saliência com as costas contra o penhasco, protegendo-se ao máximo do abismo de trinta metros que se abria sob seus pés. Quando chegou ao lugar em que a saliência se alargava e o penedo dividia a face, parou para examinar as rochas que bloqueavam a entrada.
- Não houve visitantes, nem mesmo os macacos - disse, com alívio, e começou a tirar as pedras da abertura.
Quando havia espaço para passar, ele se esgueirou para dentro e tateou na escuridão à procura da pederneira e da caixa de aço e a vela que seu pai colocara na saliência acima do nível da cabeça. A mecha se inflamou ao terceiro golpe do aço na pederneira, e ele acendeu a vela e segurou-a no alto.
Aboli riu na luz amarelada ao olhar para o monte de sacos de lona e baús.
- É um homem rico, Gundwane. Mas que utilidade tem todo esse ouro e prata para você agora? Não lhe comprará um bocado de comida ou um navio para levar isso tudo para longe.
Hal foi até o baú mais próximo e ergueu a tampa. As barras de ouro luziram sob a luz da vela.
- Meu pai morreu para me deixar este legado. Eu haveria de preferir que estivesse vivo e eu fosse um mendigo. - Bateu a tampa e olhou de novo para Aboli. - A despeito do que possa pensar, não estamos aqui pelo ouro - disse. - Vim por isto. - Chutou a barrica de pólvora ao lado. - E aquilo! - Apontou para os mosquetes e espadas que estavam empilhados contra a parede oposta da caverna. - E isto também! - Foi até onde os blocos de polia e o guindaste estavam empilhados num monte e pegou uma das cordas de cânhamo que ele e o pai tinham usado. Testou-lhe a força esticando um pedaço por sobre as costas e puxando, para parti-la com os braços e os ombros.
- Ainda está forte e não apodreceu - deixou cair o rolo -, portanto temos tudo de que precisamos aqui.
Aboli veio sentar-se no baú ao lado dele.
- Portanto, você tem um plano. Então, partilhe-o comigo, Gundwane. Ouviu calado enquanto Hal o expunha e, por uma ou duas vezes,
fez um gesto de aprovação ou uma sugestão.
aquela mesma manhã, partiram para o acampamento de base e, viajando depressa, a trotar e a correr a maior parte do caminho, chegaram a ele logo antes do meio-dia. Sukeena viu-os subindo a colina e veio correndo para alcançá-los. Hal apertou-a nos braços e virou-a no ar, então se controlou e colocou-a no chão com grande cuidado, como se ela estivesse vestida de um tecido diáfano de teias de aranha que pudesse facilmente se romper.
- Perdoe-me, tratei-a com rudeza.
- Sou sua para tratar como quiser, e ficarei mais feliz com isso. - Agarrou-se a ele e beijou-o. - Diga-me o que descobriu. Há um navio na lagoa?
- Um navio. Um navio elegante. Um belo navio, mas não tão adorável quanto você.
Com Hal a instá-los, desmontaram o acampamento e partiram de imediato. Ele e Aboli iriam de batedores à frente para limpar a trilha e conduzir o bando rumo à lagoa.
Quando chegaram ao rio e desceram a garganta, Hal deixou ali Daniel Grande e todos os outros marujos, a não ser Ned Tyler. Estavam alheios ao fato de que a caverna do tesouro ficava apenas a uma amarra de distância, rio acima.
- Espere por mim aqui, mestre Daniel. Preciso levar os outros para um lugar seguro. Escondam-se bem. Voltarei antes do escurecer.
Aboli foi com eles enquanto Hal conduzia o resto do grupo para cima, para o lado oposto da garganta, e depois os levava por uma volta para as costas das colinas. Aproximaram-se dos bancos de areia que separavam o continente da ilha, na qual tinham construído os navios de fogo.
Já então era fim de tarde, e Hal permitiu que descansassem ali até o cair da noite. Tão logo estava escuro, todos vadearam os baixios, Hal a carregar Sukeena nas costas. Assim que chegaram à ilha, afundaram-se no matagal espesso, onde estavam a salvo de observação a partir do acampamento pirata.
- Sem fogueiras! - avisou-os Hal. - Falem apenas em sussurros. Zwaantie, impeça o pequeno Bobby de chorar. Ninguém deve vagar por aí. Mantenham-se perto. Ned estará no comando quando eu não estiver aqui. Obedeçam a ele.
Hal e Aboli cruzaram a ilha pelo mato até a praia que ficava de frente para a lagoa. Na área onde tinham construído os navios de fogo, o chão estava todo coberto de novo de relva espessa. Tatearam e procuraram pelo mato até que localizaram as duas embarcações de casco duplo que não haviam sido usadas no ataque ao Gull, e as arrastaram para mais perto da praia.
- Será que irão flutuar? - perguntou Aboli, em dúvida.
- Ned fez um bom trabalho nelas, e parecem fortes o bastante - disse-lhe Hal. - Se descarregarmos os combustíveis, então flutuarão mais alto na água.
Livraram as embarcações de sua carga de lenha seca encharcada de breu.
- Está melhor - disse Hal, com satisfação. - Ficarão mais leves e mais fáceis de manejar agora.
Esconderam-nas de novo, cobrindo-as com galhos.
- Ainda há muito a fazer antes do nascer do dia. - Hal conduziu Aboli de volta até onde a maioria do grupo de Althuda já estava dormindo. - Não acorde Sukeena - avisou ao irmão. - Está exausta e precisa descansar.
- Aonde você vai? - perguntou Althuda.
- Não há tempo para explicar. Voltaremos antes da alvorada. Hal e Aboli cruzaram o canal até o continente e então correram de volta pela floresta na escuridão; porém, ao chegarem à linha das colinas, Hal parou e disse:
- Há uma coisa que preciso encontrar.
Voltou rumo às luzes bruxuleantes do acampamento pirata, movendo-se lentamente e parando sempre para se orientar, até que por fim estacou na base de uma árvore alta.
- É esta.
Com a ponta do alfanje, cutucou a terra argilosa e macia em torno das raízes. Sentiu que batia em metal e caiu de joelhos. Cavou com as mãos nuas e depois ergueu a corrente de ouro e levou-a ao alto para captar a luz das estrelas.
- Este é o selo de Nautonnier de seu pai - reconheceu-o Aboli de imediato.
- O anel também. E o medalhão com o retrato de minha mãe. - Hal levantou-se e limpou a terra úmida do vidro que protegia a miniatura. - Com isso em minhas mãos, sinto-me um homem inteiro de novo. - Enfiou os tesouros em seu bolso de couro.
- Vamos embora, antes que sejamos descobertos.
Passava da meia-noite quando, mais uma vez, escorregaram pelo lado da garganta e Daniel Grande os confrontou baixinho ao chegarem à margem do rio.
- Sou eu - sossegou-o Hal, e os outros emergiram de onde estavam escondidos. - Fiquem aqui - ordenou Hal. - Aboli e eu voltaremos logo.
Os dois subiram corrente acima. Hal escalou o penhasco até a saliência e abriu caminho pelas trevas até a caverna. Trabalhando sob a luz débil da vela, amarrou os alfanjes em feixes de dez e depois os empilhou na entrada. Esvaziou um dos baús de seu precioso conteúdo, colocando as barras de ouro desdenhosamente num canto da caverna, e enfiou nele vinte pistolas no baú vazio.
Depois, os dois rolaram as barricas de pólvora com a mecha de queima lenta para a estreita saliência e assentaram o guindaste e os blocos de polia com a corda passando por elas. Hal desceu pelo penhasco. Quando chegou à margem do rio, assobiou baixinho. Aboli desceu os feixes de armas e as barricas para ele.
Era um trabalho pesado, mas os grandes músculos de Aboli o faziam parecer leve. Quando terminaram, Aboli desceu para se juntar a Hal, e começaram o fatigante transporte das mercadorias para baixo, até onde Daniel Grande e os outros marujos esperavam.
- Reconheço isto aqui. - Daniel Grande soltou uma risadinha ao correr as mãos sobre um feixe de alfanjes e examinando-os à luz do luar.
- Aqui tem algo mais que irá reconhecer - disse-lhe Hal, e deu-lhe duas das pesadas barricas de pólvora para carregar.
Com todos eles suportando tanto quanto suas costas poderiam aguentar, escalaram com dificuldade o lado da garganta, deixaram seus fardos e depois escorregaram para baixo de novo para buscar a próxima carga. Por fim, plenamente carregados, avançaram pela floresta. Hal fez apenas um desvio, para esconder as duas barricas de pólvora, um feixe de mechas de queima lenta e três alfanjes na caverna das pinturas rupestres. Depois, prosseguiram de novo.
Era quase manhã quando finalmente se juntaram a Althuda e seu bando na ilha. Comeram fria a carne defumada de veado que Sukeena e Zwaantie tinham pronta para eles. Então, quando os outros se enrolaram em seus karosses, Hal puxou Sukeena de lado e mostrou-lhe o grande selo do Nautonnier e o camafeu.
- Onde encontrou isso, Gundwane?
- Escondi-os na floresta no dia em que fomos capturados.
- Quem é a mulher? - Ela estudou o retrato.
- Edwina Courtney, minha mãe.
- Oh, Hal, ela é linda. Você tem os olhos dela.
- Dê a meu filho esses mesmos olhos.
- Tentarei. Com todo o meu coração, tentarei.
No fim da tarde, Hal acordou os outros e designou-lhes as tarefas. - Sabah, tire as pistolas do baú e limpe as cargas. Recarregue-as e depois coloque-as de volta no baú para mantê-las secas. O outro homem começou a trabalhar de imediato.
- Daniel Grande me ajudará a carregar os botes. Ned, leve as mulheres até a praia e explique a elas como ajudá-lo a lançar o segundo bote quando chegar a hora. Devem deixar tudo o mais para trás. Não haverá nem espaço nem tempo para cuidar de bagagem extra.
- Mesmo meus sacos? - perguntou Sukeena. Hal hesitou e depois confirmou, com firmeza:
- Mesmo seus sacos - disse, e Sukeena não discutiu, enviando-lhe simplesmente um olhar modesto de sob os cílios, antes que ela e Zwaantie, carregando Bobby amarrado às costas, seguissem Ned pelas árvores.
- Venha comigo, Aboli.
Hal tomou-lhe o braço, e os dois se moveram em silêncio até a extremidade da ilha. Então, avançaram em frente de gatinhas até que puderam deitar e olhar pela extensão aberta de água para a praia, onde os botes do Gull e do Golden Bough estavam parados acima do acampamento.
Enquanto mantinham vigilância, Hal explicou os detalhes mais sutis e as pequenas modificações de seu plano original. De vez em quando, a cabeça tatuada de Aboli fazia um gesto de concordância. Por fim, ele disse:
- É um plano bom e simples, e se os deuses forem gentis, funcionará.
Ao pôr-do-sol, estudaram os dois navios ancorados no canal e observaram a atividade na praia. Conforme ficava mais escuro, as equipes de homens que tinham trabalhado durante todo o dia, cavando as trincheiras do Gavião, eram liberadas. Alguns desciam para se banhar na lagoa. Outros remavam para seus alojamentos no Gull.
A fumaça de suas fogueiras de cozinha espiralava pelas árvores e se espalhava numa pálida névoa azul pelas águas. Hal e Aboli podiam sentir o cheiro de peixe grelhado na brisa. Os sons perpassavam claramente pela água calma. Podiam ouvir as vozes dos homens e mesmo entender alguma coisa do que estavam dizendo, uma jura gritada ou uma discussão explosiva. Por duas vezes Hal teve certeza de reconhecer a voz do Gavião porém não tiveram nenhum sinal posterior dele.
Logo quando a escuridão começou a cair, um escaler se afastou do lado do Golden Bough e rumou em direção à praia.
- Aquele é Sam Bowles na popa - disse Hal, e sua voz estava cheia de desprezo.
- Capitão Bowles agora, se o que Jiri me disse é verdade - corrigiu-o Aboli.
- Está quase na hora de ir em frente - disse Hal, quando as formas dos navios ancorados começaram a se mesclar com a massa escura da floresta atrás deles. - Você sabe o que fazer, e Deus o acompanhe, Aboli. -. agarrou-lhe o braço por um breve instante.
- E a você também, Gundwane.
Aboli levantou-se e desceu para a água. Não fez nenhum ruído ao nadar pelo canal deixando apenas uma leve trilha fosforescente na superfície escura.
Hal encontrou seu caminho de volta pelo mato, até onde os outros esperavam ao lado das formas desengonçadas dos dois navios de fogo. Pediu que se sentassem num círculo apertado a seu redor, enquanto falava baixinho, por fim fez cada um repetir suas instruções e corrigiu-os quando erravam.
- Agora nada mais resta além de esperar que Aboli faça seu trabalho.
Aboli chegou ao continente e saiu da água com toda a pressa. Moveu-se silenciosamente pela floresta, e a brisa quente secou seu corpo antes que ele chegasse à caverna das pinturas rupestres. Agachou-se ao lado das barricas de pólvora e fez seus preparativos, como Hal o instruíra.
Cortou dois estopins da mecha de queima lenta. Um tinha apenas uma braça de comprimento, porém o segundo era uma serpentina de dez metros de extensão. O atraso de tempo era um cálculo impreciso; o primeiro deveria queimar por dez minutos, e o segundo, por quase três vezes mais.
Aboli trabalhou rapidamente, e quando ambas as barricas estavam prontas, amarrou o feixe de três alfanjes nas costas, girou uma barrica de pólvora para cada ombro e saiu da caverna. Recordou-se que, na noite anterior, quando visitara a cabana em que Jiri e os outros escravos eram mantidos presos, percebera que os homens do Gavião tinham se tornado descuidados. Os meses monótonos que tinham passado acampados ali, acalentara-os e tornara-os complacentes. As sentinelas não mais se mostravam vigilantes. Mesmo assim, ele não confiaria em sua indolência.
Em movimentos furtivos, aproximou-se do acampamento, até que podia divisar claramente as feições dos homens sentados ao lado das fogueiras de cozinha. Reconheceu muitos, porém não havia nenhum sinal nem de Cumbrae nem de Sam Bowles. Assentou a primeira barrica num trecho de mato no perímetro do acampamento, tão perto quanto se atreveu a se aproximar, e, depois, sem acender o estopim, afastou-se até que chegou a uma das trincheiras em que os homens do Gavião vinham cavando em busca do tesouro.
Colocou a barrica com o estopim mais longo na borda da trincheira e cobriu-a com areia e cascalho da escavação. Depois, estendeu o estopim enrolado e levou a ponta para baixo, para dentro da trincheira. Agachou-se ali e protegeu a pederneira e o aço com o corpo para que o luzir das fagulhas não alertasse os homens no acampamento quando ele acendesse a mecha de queima lenta. Quando estava luzindo firme, incendiou o estopim com ela e observou por um minuto para ter certeza de que estava queimando bem. Depois, subiu a trincheira e movimentou-se rápida e silenciosamente de volta até a primeira barrica. Com a mecha na mão, acendeu o estopim mais curto.
- A primeira explosão os fará correr - havia explicado Hal. - Então, a segunda barrica irá pelos ares em suas caras.
Ainda carregando o feixe de alfanjes, Aboli afastou-se depressa. Havia sempre o perigo de que a chama de um dos estopins pudesse saltar em frente e explodir a barrica antes da hora. Assim que estava seguro, Aboli continuou com mais cautela e encontrou a trilha que corria em direção à praia. Por duas vezes foi forçado a deixar o caminho, quando outras figuras vieram em sua direção no escuro. Uma vez, não foi rápido o bastante, porém enfrentou descaradamente o sujeito, trocando um "Boa noite!" resmungado com o pirata que passou por ele.
Avistou a cabana de barro contra o brilho das fogueiras e arrastou-se para a parede dos fundos. Jiri respondeu de imediato a seu sussurro.
- Estamos prontos, irmão. - Seu tom era claro e forte, não mais o desalentado choramingo de escravo.
Aboli pôs no chão o feixe de armas e, com seu próprio alfanje, cortou a tira que os prendia.
- Aqui! - murmurou, e o braço de Jiri se enfiou pela fenda na parede de barro. Aboli passou os alfanjes para ele.
- Espere até que a primeira barrica vá pelos ares - disse-lhes, através do buraco na parede.
- Certo, Aboli.
Aboli rastejou até o canto da cabana e olhou ao redor. O guarda sentava-se na posição usual em frente à porta. Naquela noite, estava acordado, fumando um cachimbo de barro de tubo longo. Aboli viu o tabaco aceso reluzir no fornilho enquanto ele puxava as baforadas. Agachou-se atrás do canto da parede e esperou.
O tempo passou tão lentamente que ele começou a recear que o estopim da primeira barrica tivesse falhado e se apagado antes de alcançá-la. Resolveu que teria de voltar para verificar, porém, quando começou a se pôr de pé, o estouro varreu o acampamento.
Arrancou galhos das árvores e mandou nuvens de cinzas em chamas e fagulhas a redemoinhar das fogueiras do acampamento. Atingiu a cabana de barro, abatendo metade da parede e arrancando o teto de palha. Acertou o guarda parado na porta da frente e jogou-o de costas. Ele esperneou, tentando sentar-se, porém a enorme barriga o deixava desajeitado. Enquanto o homem se debatia, Aboli postou-se sobre ele, colocou-lhe um pé no peito, comprimindo-o contra a terra, girou o alfanje e sentiu a empunhadura da arma saltar em sua mão quando a borda dilacerou o pescoço do homem. O corpo do pirata entrou em espasmo e depois se quedou imóvel. Aboli saltou para longe e agarrou a alça de corda da porta desbastada da cabana. Ao erguê-la, os três homens lá dentro investiram seu peso combinado sobre a porta, do lado oposto, e a abriram.
- Por aqui, irmãos. - Aboli os conduziu em direção à praia.
O acampamento estava em tumulto. A escuridão regurgitava de homens a correr de um lado para outro, xingando, gritando ordens e alertas.
- As armas! Fomos atacados.
- Fiquem aqui - ouviram o Gavião berrar. - A eles, rapazes!
- Peter! Onde está você, meu garotão? - gritou um homem correndo para seu parceiro. - Estou perdido. Venha me ajudar, Peter.
Achas em chamas das fogueiras do acampamento tinham sido arrojadas para o mato, e o fogo tomava conta da floresta. Era um cenário de iluminação demoníaca, e as sombras dos homens faziam deles monstros à medida que corriam desnorteados, assustando uns aos outros. Alguém disparou um mosquete, e imediatamente houve uma fuzilada selvagem, quando os marujos tomados pelo pânico começaram a atirar nas sombras e nos demais vultos. Mais gritos e berros se elevaram enquanto as balas que voavam faziam seu estrago entre as figuras em fuga.
- Os bastardos estão nas florestas atrás de nós! - Era a voz do Gavião outra vez. - Por aqui, meus bravos garotos!
Ele os arregimentava, e homens vieram correndo da praia para se juntar à defesa. Avançaram em cheio para o fogo de mosquetes de seus companheiros nervosos entre as árvores e dispararam de volta contra eles.
Quando Aboli chegou à praia, encontrou escaleres parados, abandonados pela tripulação que correra para responder ao chamado do Gavião para as armas.
- Onde guardam as ferramentas? - murmurou Aboli para Jiri.
- Há um depósito ali. - Jiri conduziu-o ao local numa corrida. As pás, machados e barras de ferro estavam empilhados sobre um puxado aberto. Aboli embainhou seu alfanje e pegou uma pesada barra de ferro. Os outros três lhe seguiram o exemplo e depois correram de volta para a praia e pularam nos barcos que jaziam ali.
Com uns poucos golpes pesados, arrebentaram as tábuas do fundo, deixando apenas um sem danos.
- Vamos! Não percam mais tempo! - instou Aboli, e eles lançaram fora as ferramentas e correram para o único barco não danificado.
Empurraram-no para a lagoa e saltaram a bordo; cada um agarrou um remo e começaram a remar rumo à forma da fragata que estava agora emergindo da escuridão conforme as chamas da floresta incendiada a iluminavam.
Enquanto estavam ainda apenas a uns golpes de remo da praia, uma chusma de piratas saiu do bosque.
- Parem! Voltem! - gritou um.
- São aqueles macacos pretos. Estão roubando um dos botes.
- Não deixe que se afastem!
Um mosquete rugiu e uma bala assobiou por sobre as cabeças dos homens nos remos. Eles se inclinaram e remaram com mais força, pondo todo o peso nas puxadas. Agora, todos os piratas disparavam, e as balas arrancavam borrifos da água ali perto, ou estouravam nas pranchas do escaler.
Alguns dos piratas correram para os botes à beira d'água e se jogaram dentro deles. Lançaram-se à perseguição; porém, quase de imediato elevaram-se os urros de susto quando a água entrou pelas tábuas arrebentadas e os botes adernaram e emborcaram. Poucos sabiam nadar, e os berros de raiva tornaram-se gritos desesperados por ajuda, conforme espanejavam e se debatiam na água escura.
Naquele momento, a segunda explosão varreu o acampamento. Causou ainda mais danos que a primeira, pois, em resposta a suas ordens berradas, os homens do Gavião tinham investido direto para o local da explosão quando ela os atingiu.
- Isso é algo para mantê-los ocupados por algum tempo - resmungou Aboli. - Para a fragata, rapazes, e deixem o Gavião para seu parente, o diabo.
Hal não esperou pela primeira explosão que sacudira a noite para lançar o navio de fogo. Com todos os homens do grupo ajudando, arrastaram o casco pela praia. Aliviada de sua carga, a embarcação era muito mais leve de se manejar. Empilharam dentro dela os feixes de alfanjes e o baú cheio com as pistolas carregadas.
Deixaram Sabah para segurá-la e voltaram para buscar o segundo bote. As mulheres correram atrás deles enquanto o empurravam para a beira d'água e subiam a bordo. Daniel Grande carregou o pequeno Bobby e estendeu-o a Zwaantie quando ela estava segura, sentada do fundo. Hal ergueu Sukeena e colocou-a gentilmente nas pranchas de popa. Deu-lhe um último beijo.
- Mantenham-se longe do perigo até que tenhamos apresado o navio. Escutem Ned. Ele sabe o que fazer.
Deixou-a e correu de volta para assumir o comando do primeiro bote. Daniel Grande e os dois pássaros, Andorinha e Tentilhão, estavam com ele, assim como Althuda e Sabah. Precisariam de cada lutador no tombadilho da fragata, se quisessem tomá-la.
Empurraram o bote para dentro do canal e, conforme seus pés perdiam o fundo, começaram a nadar e endireitar a embarcação para a fragata ancorada. A maré estava no fluxo mais alto: logo iria virar e dar-lhes ajuda quando levassem a fragata para o profundo canal entre as pontas.
Primeiro, porém, temos que fazê-la nossa! disse Hal a si mesmo, enquanto batia os pés com força, agarrado à amurada.
A uma amarra de distância do Golden Bough, murmurou Hal:
- Basta, rapazes. Não queremos chegar antes de sermos bem-vindos. Deixaram-se ficar na água enquanto o bote balançava sem rumo no fluxo da maré.
A noite estava quieta, tão quieta que podiam ouvir as vozes dos homens na praia e o bater e estalar dos cordames da fragata conforme ela rodava em sua âncora e seus mastros nus rolavam, quase imperceptivelmente, contra o luzir das estrelas.
- Talvez Aboli tenha enfrentado problemas - murmurou Daniel Grande, por fim. - Teremos de abordá-la sem esperar sua ação.
- Espere! - retrucou Hal. - Aboli nunca nos deixaria na mão. Continuaram na água, os nervos retesados a ponto de rebentar. Então,
veio o som de um suave borrifar atrás deles, e Hal virou a cabeça. A forma do segundo bote avançou na direção deles, vindo da ilha.
- Ned está ansioso demais - disse Daniel Grande.
- Está apenas seguindo minhas ordens, porém não deve passar adiante de nós.
- Como podemos impedi-lo?
- Irei a nado falar com ele - respondeu Hal, e soltou a mão da amurada. Partiu em direção ao outro bote em braçadas silenciosas que não rompiam a superfície. Ao se aproximar, boiou e chamou, baixinho:
- Ned!
- Sim, capitão! - respondeu Ned, também em sussurros.
- Houve algum atraso. Fique aqui e não passe adiante de nós. Espere até ouvir a primeira explosão. Então, vá em frente e agarre o cabo de âncora da fragata.
- Sim, capitão - retrucou Ned.
Olhando para o casco negro, Hal viu uma cabeça espiando para ele sobre a beirada. As estrelas luziam na pele dourada como mel de Sukeena, e ele soube que não podia falar com ela de novo ou nadar para mais perto, a fim de que sua preocupação não afetasse seu julgamento - para que seu amor por ela não subjugasse o fogo da luta em seu sangue. Voltou-se e nadou de volta, rumo ao outro bote.
Ao chegar do lado e erguer a mão para agarrar a beirada, a noite quieta foi sacudida pelo trovão, e os ecos que ressoavam contra as colinas varreram a lagoa. Do bosque escuro, chamas subiram para o céu noturno e, por um breve momento, iluminaram o cenário como uma alvorada. Naquela iluminação, Hal viu cada pano e vergôntea do cordame da fragata, porém não havia nenhum sinal de um vigia de âncora ou outra presença humana a bordo dela.
- Todos juntos agora, rapazes - exclamou, e eles avançaram outra vez, com ânimo redobrado.
Tomou-lhes apenas minutos cruzar o espaço que restava. Porém, nesse ínterim, a noite estava transformada. Podiam ouvir os berros e a fuzilaria de mosquetes na praia, e as chamas da floresta incendiada a dançar e luzir na superfície em torno deles. Hal receiou que as luzes os clareassem a ponto de serem avistados por uma sentinela de vigilância no tombadilho da fragata.
Com alívio, empurraram o bote desengonçado para a sombra lançada pelo casco alto da fragata. Hal olhou para trás e viu Ned Tyler trazendo a outra embarcação para perto, logo atrás deles. Enquanto observava chegaram à linha de âncora da fragata, e ele viu Sukeena levantar-se na proa e segurar o cabo. Sentiu uma onda de alívio. Suas ordens a Ned eram para manter as mulheres em segurança, fora do caminho, até que tivessem o controle do tombadilho da fragata.
Viu com satisfação que um esquife estava atracado ao lado do Golden Bough, com uma escada balançando-se para dentro dele, vindo do convés acima. Por sorte, estava vazio, e nenhuma cabeça apontava no alto da amurada da fragata. Contudo, ele podia ouvir um burburinho de vozes acima. A tripulação devia estar reunida na amura oposta da fragata, de frente para a praia, consternada e alarmada por causa das chamas, observando aturdida as figuras que corriam e os lampejos de fogo de mosquete.
O grupo de Hal empurrou o bote pelos últimos poucos metros, e a embarcação chocou-se suavemente contra o lado do esquife vazio. Imediatamente, Hal saiu da água, agarrou-se ao esquife, deixando os outros para segurar o bote, e subiu pela escada de corda até o tombadilho.
Como tinha esperado, a esquelética tripulação da fragata estava toda observando o distúrbio, porém o número de marujos que havia ali o deixou aflito. Deviam ser cinquenta deles pelo menos. Mas, estavam absortos com o que acontecia em terra, e quando Hal tomou coragem para subir ao convés, houve outra poderosa detonação de fora da floresta.
- Por Deus, olhem só para aquilo! - berrou um dos piratas de Sam Bowles.
- Há uma grande batalha sangrenta acontecendo lá.
- Nossos companheiros estão em apuros. Precisam de nossa ajuda•
- Não devo favores a qualquer um deles. Não terão ajuda de mim.
- Shamus tem razão. Deixe o Gavião lutar suas próprias batalhas. Hal esgueirou-se para o convés e, com meia dúzia de passos rápidos, chegou ao abrigo da abertura do castelo de proa. Agachou-se ali e inspecionou o tombadilho. Jiri dissera a Aboli que estavam mantendo a tripulação leal da fragata no porão principal. Porém a escotilha estava à plena vista dos homens de Sam Bowles na amurada oposta.
Hall olhou para trás e viu a cabeça de Daniel Grande aparecer na amura de embarque. Não poderia se atrasar. Saltou e correu para a braçola da escotilha principal, caindo de joelhos atrás dela. Havia uma marreta ao lado da escotilha, porém ele não se arriscou a usá-la para soltar os calços. Os piratas o ouviriam e logo estariam sobre ele.
Bateu suavemente nas tábuas com o cabo do alfanje e falou, em voz baixa:
- Vocês aí, do Golden Bough. Podem me ouvir?
Uma voz abafada de sob a cobertura da escotilha respondeu de imediato, num cantante sotaque celta:
- Sim. Quem é você?
- Um inglês honesto, vindo para libertá-los. Lutarão conosco contra o Gavião?
- Deus o ama, inglês honesto! Imploramos por provar o sabor do sangue daquele bastardo.
Hal relanceou os olhos ao redor. Daniel Grande trouxera para cima um feixe de alfanjes, e tanto Wally Tentilhão como Stan Andorinha carregavam outros. Althuda tinha o baú de pistolas carregadas. Baixou-o para o convés e abriu a tampa. A primeira vista, as armas dentro pareciam secas e prontas para disparar.
- Temos armas para vocês - murmurou Hal para o homem sob a escotilha. -Ajudem a empurrar a escotilha quando eu arrancar os calços, e depois saiam para a luta como cães de caça, mas gritem o nome de seu navio para que saibamos quem são vocês e vocês saibam quem somos nós.
Fez um gesto a Daniel e ergueu a pesada marreta. Daniel Grande segurou a tampa da escotilha e colocou todo o peso nela. Hal girou a marreta e, com um ressoante estalo, o primeiro calço voou pelo convés. Saltou para o outro lado e, com outros dois giros mais enérgicos da marreta, mandou os calços restantes a escorregar com estrépito pelo tombadilho. Com Daniel Grande a puxar em cima e a tripulação aprisionada do Colden Bough a empurrar por baixo, a braçola de escotilha estalou e se abriu, e os prisioneiros saíram em turba como vespas zangadas.
Diante daquele súbito tumulto atrás deles, os homens de Sam Bowles se voltaram e arquejaram. Foi quando perceberam que tinham sido abordados e que seus prisioneiros estavam livres. Porém, já então Hal e Daniel os defrontavam pelo convés iluminado pelo fogo, alfanjes na mão.
Atrás deles, Althuda arrancava fagulhas da pederneira e do aço enquanto se apressava em acender as mechas de queima lenta nas travas das pistolas, e Wally e Stan jogavam alfanjes para os marujos libertados conforme estes irrompiam do porão.
Com um grito selvagem, um bando de piratas liderados por Sam Bowles investiu pelo convés. Eram vinte contra dois, e, no primeiro ímpeto, empurraram Daniel e Hal para trás, aço rangendo e raspando contra aço, enquanto a dupla cedia terreno lentamente. Porém, os dois conseguiram segurar os rufiões por tempo suficiente para que os marujos do Golden Bough se lançassem à batalha.
Em questão de minutos, o tombadilho estava apinhado de homens em luta, e era tamanha a mistura, que apenas seus gritos de guerra identificavam inimigo e amigo recém-feito.
- Cochran de Cumbrae - rugia Sam Bowles, e os homens de Hal berravam de volta:
- Sir Hal e o Golden Bough.
Os marujos libertados da fragata estavam loucos por vingança - não simplesmente pela própria prisão, mas pelo massacre de seus oficiais e o afogamento dos companheiros feridos. Hal e seus homens tinham mil razões melhores para sua raiva, e haviam esperado por um tempo infinitamente mais longo para acertar aquela conta.
A tripulação de Sam Bowles era uma corja de animais encurralados. Os piratas sabiam que não poderiam esperar nenhuma ajuda de seus companheiros em terra. Nem iriam merecer misericórdia ou mercê dos vingadores que os confrontavam.
Os dois lados estavam quase igualados em número, mas talvez a tripulação da fragata estivesse enfraquecida pelo longo confinamento no porão escuro e sem ar. Na vanguarda da luta, Hal tomou ciência de que a sorte estava virando contra eles. Seus homens estavam sendo forçados a ceder mais do convés e recuar em direção à proa.
Pelo canto dos olhos, viu Sabah fraquejar e correr, lançando de lado sua espada e se apressando em ir para a escotilha, a fim de se esconder nos conveses abaixo. Hal odiou-o por isso. Bastava um covarde para iniciar uma debandada. Porém, Sabah não chegou à escotilha. Um pirata alto de barba negra desferiu-lhe uma estocada através da parte baixa das costas que lhe saiu através do fundo da barriga.
Outra hora no campo de exercício poderia tê-lo salvado, pensou Hal, de passagem, e então concentrou toda a sua mente e força nos quatro homens que se amontoavam em frente, a ganir como hienas em torno da presa ensanguentada, para instigá-lo.
Hal matou um com uma estocada sob o braço erguido, direto no coração, e desarmou outro com uma cutilada limpa pelo pulso que secionou seus nervos retesados. A espada caiu dos dedos do homem e ele correu aos gritos pelo convés e se lançou, sangrando, por sobre a amurada. Os outros dois atacantes recuaram de medo, e, naquele instante de alívio, Hal olhou ao redor da confusão em busca de Sam Bowles.
Viu-o na traseira do bando, mantendo-se cautelosamente fora do pior da luta, gritando ordens e ameaças a seus homens, as feições de fuinha torcidas de malícia.
- Sam Bowles! - gritou Hal para ele. - Eu o tenho sob meu olho. Por sobre as cabeças dos homens em luta, Sam olhou para Hal, e um terror súbito surgiu em seus pálidos olhos apertados.
- Estou indo atrás de você agora! - berrou Hal, e seguiu em frente, mas três piratas estavam em seu caminho. Nos segundos que lhe custaram batê-los e limpar o caminho, Sam fugira e se escondera na confusão.
Agora, os piratas clamavam em torno de Hal como chacais ao redor de um leão. Por um momento, ele lutou lado a lado com Daniel e viu, com admiração, que o enorme companheiro estava ferido numa dúzia de lugares. Então, sentiu o cabo do alfanje escorregar como se pegasse mel de uma jarra com os dedos. Percebeu que não era mel, mas seu próprio sangue. Ele, também, estava ferido, porém, no calor de tudo aquilo, não sentira dor e continuara lutando.
- Atenção, Sir Hal! - rosnou Daniel Grande, ali perto, ao lado dele, na confusão. - A popa!
Hal saltou para trás, afastando-se da luta, e olhou por sobre o ombro. O alerta de Daniel viera justo a tempo de salvá-lo.
Sam Bowles estava na amurada da popa que dominava o tombadilho inferior. Havia um pesado morteiro de bronze na abertura da amurada, e Sam tinha uma mecha acesa na mão enquanto girava e mirava o pequeno canhão portátil. Avistara Hal entre o grupo de homens em luta, e o morteiro estava apontado para ele. Sam levou a mecha à caçoleta do canhão.
No instante antes que a arma disparasse, Hal saltou adiante, pegou o pirata à sua frente pela cintura e ergueu-o dos pés. O homem berrou de surpresa quando Hal o segurou como um escudo, logo quando o morteiro disparou e um vendaval de balas de chumbo varreu o convés Hal sentiu o corpo do homem em seus braços saltar quando meia dúzia de projéteis pesados se enterraram nele. Estava morto mesmo antes que Hal o deixasse cair sobre o tombadilho.
Porém, o tiro produzira uma chacina pavorosa entre a tripulação do Golden Bough, que se agrupara perto de onde Hal se postava. Três estavam abatidos e estrebuchando no próprio sangue, enquanto outros dois ou três tinham sido atingidos e cambaleavam para ficar de pé.
Os piratas viram que aquele súbito ataque furioso inclinara a balança a seu favor e investiram num bando, Sam a incitá-los com gritos excitados. Foram segundos de total desordem - até que, de sobre a amura por trás da enfurecida turba de piratas, ergueu-se uma grande face negra tatuada.
Aboli soltou um berro que os congelou a todos onde estavam, e quando saltou sobre a amurada, foi seguido de perto por três outras formas imensas, cada uma com um alfanje na mão. Tinham matado cinco homens antes que os piratas se reorganizassem para enfrentar aquela nova investida.
Aqueles em torno de Hal cobraram novo ânimo: reuniram-se sob os gritos roucos de seu capitão e, com Daniel Grande a liderá-los, correram de volta para a luta. Encurralados entre Aboli e seus selvagens, e os marujos renovados, os piratas uivaram de desespero e fugiram. Aqueles incapazes de nadar esgueiraram-se pelas escotilhas para o ventre da fragata, enquanto os outros correram para a amurada e saltaram por sobre a borda.
A luta estava terminada, e a fragata era deles.
- Onde está Sam Bowles? - gritou Hal para Daniel.
- Eu o vi correr para baixo.
Hal hesitou um momento, lutando contra a tentação de correr atrás dele e ter sua vingança. Então, com esforço, deixou isso de lado e voltou para seu dever.
- Haverá tempo para ele mais tarde.
Caminhou para o lugar do capitão no convés de popa e inspecionou o navio. Alguns de seus homens estavam disparando as pistolas sobre a amurada contra os piratas que se debatiam e nadavam em direção à praia.
- Basta dessa bobagem! - gritou-lhes. - Preparem-se para pôr o navio a caminho. O Gavião estará sobre nós a qualquer momento agora.
Mesmo os estranhos que ele havia libertado do porão correram a obedecer a seu comando, pois reconheciam o tom de autoridade.
Então, Hal baixou a voz:
- Aboli e mestre Daniel, tragam as mulheres a bordo. Tão depressa quanto possível.
Enquanto os dois corriam para a porta de embarque, ele voltou toda a atenção para o manejo da fragata.
Os homens de topo de mastro já estavam a meio caminho das enxárcias, e outro grupo manejava o cabrestante para içar âncora.
- Não há tempo para isso - disse-lhes Hal. - Levem um machado até o cabo da âncora e cortem-no.
Ouviu o baque do machado nas tábuas da proa, e sentiu o navio soltar-se e dançar com a maré.
Relanceou os olhos para a ponte de embarque e viu Aboli erguer Sukeena para o tombadilho. Daniel Grande tinha o pequeno Bobby chorando em seu peito e Zwaantie no outro braço.
A vela mestra abriu-se ao alto, acima da cabeça de Hal, sacudiu-se preguiçosamente e enfunou-se com a gentil brisa da noite. Hal voltou-se para o timão e sentiu outro grande alívio no peito quando viu que Ned Tyler já estava à cana de leme.
- A todo pano, Sr. Tyler - exclamou.
- A todo pano, capitão.
- Aproe para o canal principal!
- Sim, capitão! - Ned não pôde suprimir o sorriso, e Hal sorriu de volta para ele.
- Este navio serve para você, Sr. Tyler?
- Serve muito bem - disse Ned, e seus olhos faiscaram.
Hal pegou a corneta de comunicação e apontou-a para o céu, ao gritar ordens para as velas de topo serem colocadas acima da vela mestra. Sentiu a nau saltar sob seus pés e começar a voar.
- Maravilha! - murmurou. - Um verdadeiro pássaro, o vento como seu amante.
Caminhou até onde Sukeena já se ajoelhara ao lado de um dos marujos feridos.
- Eu lhe disse para deixar esses sacos em terra, não disse?
- Sim, meu senhor. - Ela sorriu docemente para ele. - Porém eu sabia que estava brincando. - Então, sua expressão transformou-se em aflição. - Você está ferido! - Saltou de pé. - Deixe-me cuidar de seus ferimentos.
- Estou arranhado, não ferido. Esse homem precisa de suas habilidades mais do que eu. - Afastou-se, caminhou até a amurada e olhou para a praia.
O fogo ganhara força na floresta, e agora o cenário se iluminava tal qual na alvorada. Ele podia claramente divisar as feições da horda de homens à beira d'água. Dançavam de raiva e frustração, pois tinham percebido por fim que a fragata fora roubada de sob os seus narizes.
Hal avistou a figura gigante de Cumbrae à frente da turba. Agitava sua espada escocesa, e sua face estava tão inchada de ira que parecia a ponto de estourar como um tomate maduro demais. Hal riu para ele, e a fúria do Gavião aumentou ainda mais. Sua voz sobrepujou o burburinho que seus homens faziam.
- Não há oceano largo o bastante para escondê-lo, Courtney. Eu o encontrarei nem que leve cinquenta anos.
Então Hal parou de rir ao reconhecer o homem que se postava um pouco mais acima da linha da praia. A princípio, duvidou da própria visão, porém as chamas o iluminavam tão claramente, que não poderia haver engano. Em contraste com os esgares e a ira transparente do Gavião, Cornélius Schreuder se postava de braços cruzados, a encarar Hal com um olhar frio que lhe provocou um súbito arrepio do coração. Os olhos de ambos se encontraram, e foi como se confrontassem um ao outro num campo de duelo.
O Golden Bough adernou ligeiramente quando uma contracorrente mais forte do vento sobre as pontas o apanhou, e a água começou a gorgolejar sob seu talha-mar como um bebé feliz. O tombadilho tremeu e a nau se afastou da praia. Hal dirigiu toda a sua atenção para a pilotagem do navio, alinhando-o, para cima com vista, à corrida através do perigoso canal até o mar. Longos minutos se passaram antes que pudesse olhar para trás de novo, na direção da praia.
Apenas duas figuras permaneciam ali: Os dois homens a quem Hal odiava com mais ardor em todo o mundo, ambos seus implacáveis inimigos. O Gavião vadeava a lagoa com água pela cintura, como se para ficar tão perto quanto pudesse. Schreuder ainda estava onde Hal o vira pela última vez. Não se movera, e sua imobilidade reptiliana era em cada sentido tão arrepiante como as selvagens histrionices de Cumbrae.
- Dia virá em que terá de matar a ambos - disse uma voz profunda ao lado dele, e Hal olhou para Aboli.
- Sonho com esse dia.
Sob seus pés, sentiu o primeiro impulso do mar a chegar pelas pontas. As chamas tinham ofuscado sua visão noturna, e adiante jazia a escuridão absoluta. Hal teria de seguir caminho pelo traiçoeiro canal como um cego.
- Apaguem as lanternas! - ordenou. Sua luz débil não penetraria a escuridão adiante e serviria apenas para confundi-lo.
- Traga a nau um ponto para bombordo - ordenou a Ned Tyler, calmamente.
- Um ponto para bombordo!
- Em frente!
Sentia, mais do que via, o vulto gigantesco do penhasco adiante, e ouvia o ondular e o quebrar das ondas no recife, à entrada. Avaliou o rumo pelos sons do mar, pela sensação do vento no peito e pelo tombadilho debaixo de seus pés.
Depois de toda a gritaria e tiros de pistola, o navio estava mortalmente quieto. Cada marujo a bordo sabia que Hal os liderava contra um antigo inimigo bem mais perigoso que o Gavião ou qualquer homem vivo.
- Estabilizem suas velas mestra e de mezena - berrou aos homens nos panos. - Fiquem prontos para deixar as do mastaréu do joanete voar.
Um medo quase palpável prostrou-se sobre o Golden Bough, pois a maré o tinha pela garganta e não havia maneira pela qual a tripulação pudesse diminuir o ímpeto temerário do navio em direção aos penhascos ocultos na negrura dolorosa.
O momento chegou. Hal sentiu a corrente contrária dos recifes empurrar a proa, e o golpe de vento em sua face vindo de uma nova direção quando o navio correu para dentro do papo de rochas.
- A estibordo com o leme! - disse, secamente. - Firme. Deixem as velas do mastaréu do joanete voar.
O Golden Bough girou nos calcanhares, e suas velas de topo se agitaram com o vento, como as asas de um abutre farejando a morte. O navio investiu para dentro da escuridão, e cada homem no tombadilho preparou-se para o terrível choque quando o ventre da nau fosse destripado Pelos dentes dos recifes.
Hal rumou para a amurada e olhou para o céu. Seus olhos se ajustavam à escuridão. Ele viu a linha, lá em cima, onde as estrelas tinham se extinguido pelo vulto enorme das pontas rochosas.
- Leme a meia nau, Sr. Tyler. Segure nesse ponto.
O navio firmou-se no novo curso para dentro da noite, e o coração de Hal bateu depressa ao eco das ondas estrepitosas contra o penhasco ali perto. Ele fechou os punhos ao lado do corpo com a perspectiva do choque no recife. Em vez disso, sentiu a arfada do mar aberto corcovear sob ele, e o Golden Bough ir a seu encontro com o ímpeto apaixonado de um amante.
- Estabilizem as velas do mastaréu do joanete. - Ergueu a voz para que chegasse até o alto. O bater de velas cessou, e Hal ouviu mais uma vez o trautear áspero das lonas esticadas.
O Golden Bough lançou a proa para cima conforme a primeira vaga do oceano deslizou sob ele, e, por um momento, nenhum homem ousou crer que Hal os tinha conduzido do turbilhão para a segurança.
- Acenda as lanternas - disse Hal, calmamente. - Sr. Tyler, mude para o rumo sul. Sairemos muito bem ao largo.
O silêncio persistiu, e, então, uma voz da verga principal berrou para baixo:
- O Senhor o ama, capitão. Passamos. Um brado varreu o convés:
- Por Sir Hal e o Golden Bough.
Deram-lhe vivas até que suas gargantas doíam, e Hal ouviu vozes estranhas chamando seu nome. Os marujos que libertara dos porões o exaltavam tão alto quanto os outros.
Sentiu uma pequena mão quente agarrar a sua e olhou para ver a doce face de Sukeena a luzir sob a luz da lanterna ao lado da bitácula.
- Eles já o amam quase tanto quanto eu. - Apertou-lhe suavemente a mão. - Pode ir até onde eu possa ver seus ferimentos?
Ele, porém, não queria deixar o tombadilho superior. Queria delei-tar-se um pouco mais com os sons e a sensação de seu novo navio e com o mar sob ele. Assim, puxou Sukeena para mais perto enquanto o Golden Bough corria para dentro da noite e as estrelas coruscavam lá em cima.
Daniel Grande aproximou-se deles por fim, arrastando consigo uma figura abjeta. Por um momento, Hal não reconheceu a criatura, porém, então, a voz chorosa fez sua pele formigar de desprezo e os pêlos finos em sua nuca se eriçarem.
- Bondoso Sir Henry, imploro sua mercê para um velho companheiro.
- Sam Bowles. - Hal tentou manter a voz calma. - Você tem suficiente sangue inocente em sua consciência para fazer flutuar uma fragata.
- Faz-me injustiça, meu bom Sir Henry. Sou um pobre infeliz levado pelas tempestades e vendavais da vida, nobre Sir Henry. Jamais quis fazer mal a homem algum.
- Lidarei com ele de manhã. Prenda-o ao mastro principal e coloque dois homens para guardá-lo - ordenou Hal a Daniel Grande. - Certifique-se de que nesse tempo ele não escorregue como uma enguia de nossas mãos e nos engane e estrague a vingança que tanto merecemos.
Ficou a observar sob a luz da lanterna enquanto eles agrilhoavam Sam Bowles ao pé do mastro principal e dois marujos da tripulação se postavam ao lado dele com os alfanjes desembainhados.
- Meu irmãozinho Peter foi um daqueles que você afogou - disse a Sam Bowles o mais velho dos dois guardas. - Imploro por qualquer desculpa para enfiar essa lâmina por sua barriga.
Hal deixou Daniel encarregado do tombadilho e, levando Sukeena consigo, desceu para a cabine principal. Ela não descansaria até que tivesse limpado os cortes e ferimentos, colocando-lhes depois ataduras embora nenhum deles fosse sério o bastante para causar preocupação. Quando ela terminou, Hal levou-a para a pequena cabine na próxima porta.
- Você poderá descansar aqui sem ser perturbada - disse; ergueu-a para o beliche e, embora ela protestasse, cobriu-a com uma manta de lã.
- Há feridos que precisam de minha ajuda - retrucou ela.
- Seu filho ainda não nascido e eu precisamos mais - disse ele, com firmeza, e empurrou-a gentilmente. Ela suspirou e quase que imediatamente caiu no sono.
Hal voltou à cabine principal e sentou-se à escrivaninha de Llewellyn. No centro do tampo de mogno jazia uma grande Bíblia de capa preta de couro. Durante todo o seu cativeiro, Hal tivera negado o acesso àquele livro. Abriu a capa e leu a inscrição, escrita numa caligrafia segura e inclinada: "Christopher Llewellyn esq; Nascido em 16 de outubro no ano da graça de 1621".
Abaixo dessa, havia outra inscrição mais recente: "Consagrado como um Cavaleiro Nautonnier do Templo da Ordem de São Jorge e o Santo Graal, 2 de agosto de 1643."
Saber que o homem que capitaneara aquele navio antes dele era um irmão cavaleiro deu a Hal um profundo propósito e prazer. Por uma hora, virou as páginas da Bíblia e releu as passagens familiares e inspiradoras Por meio das quais seu pai o ensinara a manter o curso pela vida. Por fim, fechou-a, levantou-se e começou a revistar a cabine atrás dos livros e documentos do navio. Logo descobriu a caixa forte de aço sob o beliche. Quando não encontrou a chave, chamou Aboli para ajudá-lo. Os dois forçaram e abriram a tampa, e Hal dispensou Aboli. Sentou-se o resto na noite à mesa de Llewellyn, estudando os livros e papéis sob a luz da lanterna. Estava tão absorto na leitura, que, quando Aboli desceu para buscá-lo, uma hora depois que o sol tinha se levantado, fitou-o com surpresa.
- Que horas são, Aboli?
- Dois sinos no turno da manhã. Os homens estão pedindo para vê-lo, capitão.
Hal levantou-se, a se espreguiçar e a esfregar os olhos, e depois foi até a porta da cabine onde Sukeena ainda dormia.
- Seria melhor se falasse com os novos homens tão logo possa, Gundwane - disse Aboli, atrás dele.
- Sim. Você tem razão. - Hal voltou-se.
- Daniel e eu já lhes dissemos quem você é, porém precisa convencê-los agora a velejar sob seu comando. Se se recusarem a aceitá-lo como seu novo capitão, haverá pouco que possamos fazer. Há trinta e quatro deles, e apenas seis de nós.
Hal foi até o pequeno espelho na antepara em cima da qual estavam a jarra e a bacia de toalete. Quando viu seu reflexo, assustou-se.
- Céus, Aboli, pareço tanto um pirata que nem eu confiaria em mim mesmo.
Sukeena devia ter ouvido, pois apareceu de repente no vão da porta com a manta enrolada sobre os ombros.
- Diga a eles que iremos num minuto, Aboli, quando eu tiver dado um jeito na aparência dele - disse.
Quando Hal e Sukeena subiram para o tombadilho juntos, os homens reunidos no centro do navio olharam para eles, atónitos. A transformação era extraordinária. Hal estava barbeado de fresco, vestido numa roupa simples porém limpa do baú de Llewellyn. Os cabelos de Sukeena estavam penteados, untados com óleo e trançados, e ela improvisara uma saia longa com uma das cortinas de veludo da cabine e a enrolava em torno da cintura e quadris de menina. Faziam um casal notável, o jovem e alto inglês e a beleza oriental.
Hal deixou Sukeena na escada de tombadilho e rumou para a frente dos homens.
- Sou Henry Courtney. Um inglês, como vocês. Um marinheiro,
como vocês.
- Sim, isso o senhor é, capitão - gritou um deles. - Vimos quando levou um navio estranho para fora daquelas pontas na escuridão. E marinheiro o bastante para encher meu caneco e me dar uma sensação quente nas entranhas.
Outro exclamou:
- Velejei com seu pai, Sir Francis, no velho Lady Edwina. Ele era um capitão do mar e um lutador, e um homem honesto ainda por cima.
Então, mais um outro gritou:
- Na noite passada, pelas minhas contas, o senhor abateu sete da escória do Gavião com sua própria espada. O filhote foi bem criado pelo velho cão.
Começaram todos a vivá-lo, de modo que ele não conseguiu falar por algum tempo, mas, por fim, ergueu a mão.
- Vou lhes contar o que li no diário de bordo do capitão Llewellyn. Inteirei-me do contrato de afretamento que ele tinha com o dono do navio e descobri para onde o Golden Bough rumava e qual era sua finalidade. - Parou e olhou para as faces honestas, batidas e surradas pelo tempo. - Temos uma escolha, vocês e eu. Podemos dizer que fomos derrotados pelo Gavião antes de iniciarmos a missão e velejar de volta para a Inglaterra.
Todos resmungaram e gritaram protestos, até que ele levantou a mão de novo.
- Ou podemos assumir o contrato do capitão Llewellyn e seu acordo com os proprietários do Golden Bough. Por seu lado, podem assinar comigo pelos mesmos termos e com a mesma partilha do prémio com que concordaram antes. Antes que me respondam, lembrem-se de que, se vierem comigo, são grandes as chances de que possamos cruzar com o Gavião de novo, e terão de lutar com ele uma vez mais.
- Lidere-nos até ele agora, capitão - berrou um. - Lutaremos contra ele hoje mesmo.
- Não, rapaz. Estamos com falta de gente e preciso aprender a pilotar este navio antes que encontremos o Gavião novamente. Enfrentaremos o Gull em dia e lugar de minha própria escolha - disse-lhes Hal, muito sério. - Nesse dia, hastearemos a cabeça do Gavião em nosso topo de mastro e dividiremos seu butim.
?- Estou com o senhor, capitão - gritou um marujo alto e magro de cabelos louros. - Não posso escrever meu nome, mas traga-me o livro e eu marcarei uma cruz tão grande e negra que irá assustar o próprio demo.
Todos berraram com fogosas risadas.
- Traga o livro e deixe-nos assinar.
- Estamos com o senhor. Minha jura e minha marca nele. Hal interrompeu-os outra vez.
- Irão, um de cada vez, à minha cabine, para que eu possa saber seus nomes e apertar a mão de todos.
Voltou para a amurada e apontou para a popa.
- Saímos muito bem ao largo. A costa africana está baixa e azul ao longo do horizonte. Subam ao topo do mastro agora para fazermos vela e virarmos o navio para o seu verdadeiro curso rumo ao Great Horn da África.
Eles subiram em enxames pelas enxárcias e ao longo das vergas, e os panos se enfunaram até que brilhavam à luz do sol como um cúmulo de trovoada pairando nas alturas.
- Qual o curso, capitão? - exclamou Ned Tyler, do leme.
- Leste pelo norte, Sr. Tyler - retrucou Hal, e sentiu o navio investir sob ele, ao se voltar para observar a esteira vincar as vagas azuis com uma linha de cintilante espuma.
Sempre que alguém da tripulação passava pelo pé do mastro principal onde Sam Bowles se agachava, preso pelos pés e mãos como um macaco cativo, parava para juntar saliva na boca e cuspir nele. Aboli procurou Hal no turno de antes do meio-dia.
- Precisa cuidar de Sam Bowles agora. Os homens estão ficando impacientes. Um deles quer cortar a corda e enfiar uma faca em suas costelas.
- Isso me pouparia um bocado de aborrecimento. - Hal ergueu os olhos do maço de cartas e do livro de orientações de navegação que encontrara no baú de Christopher Llewellyn. Sabia que sua tripulação exigiria uma vingança selvagem com relação a Sam Bowles, e não apreciava o que tinha de ser feito.
- Irei ao convés de imediato. - Suspirou, rendendo-se por fim a persuasão implacável de Aboli. - Tenha os homens reunidos no centro do navio.
Pensara que Sukeena ainda estava na pequena cabine que se comunicava com o depósito de pólvora, que ela transformara numa enfermaria e na qual dois dos feridos ainda oscilavam entre a vida e a morte. Esperava que ela ficasse ali, porém, ao sair para o convés, ela veio a seu encontro.
- Deveria ir para baixo, princesa - disse a ela, com suavidade. - Não será uma vista adequada para seus olhos.
- O que diz respeito a você diz respeito a mim também. Seu pai era parte de você, portanto sua morte me toca também. Perdi meu próprio pai em circunstâncias terríveis, mas vinguei-o. Ficarei para vê-lo vingar-se da morte de seu pai.
- Muito bem - concordou Hal, e berrou pelo tombadilho. - Tragam o prisioneiro!
Foram forçados a arrastar Sam Bowles para enfrentar seus acusadores, pois suas pernas mal podiam suportá-lo e suas lágrimas escorriam para se misturar às cuspidelas que os homens tinham lançado em sua face.
- Não pretendia nenhum mal - implorou ele. - Escutem-me, companheiros. Foi aquele demónio do Cumbrae que me levou a isso.
- Você riu quando segurava a cabeça de meu irmão sob as águas da lagoa - berrou um dos marujos.
Enquanto o arrastaram até onde Aboli se postava com os braços cruzados sobre o peito, o negro encarou Sam com olhos que reluziam estranhamente.
- Lembre-se de Francis Courtney! - resmungou Aboli. - Lembre-se do que fez ao mais fino homem com quem alguma vez navegou pelos oceanos.
Hal tinha preparado uma lista dos crimes pelos quais Sam Bowles deveria responder. Ao ler em voz alta cada acusação, os homens urravam por vingança.
Finalmente, Hal chegou ao último item do pavoroso recital.
- Que você, Samuel Bowles, à vista de seus camaradas e companheiros, realmente matou os marinheiros feridos do Golden Bough que tinham sobrevivido à sua traiçoeira emboscada, fazendo com que se afogassem.
Dobrou o documento e perguntou, com ar severo:
- Ouviu as acusações contra você, Samuel Bowles. O que tem a dizer em sua defesa?
- Não foi por minha própria culpa! Juro que não teria feito isso se não estivesse com pavor por minha vida.
A tripulação apupou-o, e foram precisos alguns minutos até que Hal Pudesse aquietá-los. Então, perguntou:
- Então, não nega as acusações contra você?
- Que utilidade haveria em negar? - berrou um dos homens. -. Todos vimos com nossos próprios olhos.
Sam Bowles chorava alto agora.
- Pelo amor do doce Jesus, tenha misericórdia, Sir Henry. Sei que errei, mas dê-me uma chance e não encontrará criatura mais confiável e mais amorosa para servi-lo por todos os dias de sua vida.
A visão de Bowles desgostava Hal tão profundamente, que ele gostaria de lavar o gosto amargo daquilo da própria boca. De súbito, uma imagem lhe apareceu no olho da mente. Seu pai a jazer na maca, sendo levado para o cadafalso, o corpo quebrado e retorcido pela roda. Hal começou a tremer.
Ao lado dele, Sukeena sentiu-lhe a aflição. Pousou a mão suavemente em seu braço para lhe transmitir equilíbrio. Ele puxou um longo e lento respiro e lutou contra as ondas negras de tristeza que ameaçavam dominá-lo.
- Samuel Bowles, admitiu sua culpa de todas as acusações trazidas contra você. Há alguma coisa que deseje dizer antes que eu pronuncie a sentença? - Com ar muito sério, olhou para os olhos inundados de Sam e viu uma estranha transformação acontecer. Percebeu que as lágrimas eram um recurso de que Sam podia se utilizar a seu bel-prazer. Alguma coisa incendiou-se de uma parte profunda e escondida de sua alma, um nimbo tão feroz e maligno que Hal duvidou que ainda olhasse para os olhos de um ser humano e não para um animal selvagem encurralado.
- Você acha que me detesta, Henry Courtney? Não sabe realmente o que seja o ódio. Regozijo-me com o pensamento de seu pai gritando na roda. Sam Bowles fez isso. Lembre-se disso durante cada dia em que viva. Sam Bowles pode estar morto, mas Sam Bowles fez isso! - Sua voz cresceu para um grito, e a saliva espumava em seus lábios. O próprio demónio interior o dominara, e seus berros mal eram coerentes. - Este é meu navio, meu próprio navio. Eu seria o capitão Samuel Bowles, e você tomou isso de mim. Possa o diabo beber seu sangue no inferno. Possa você dançar sobre o corpo retorcido e podre do cadáver de seu pai, Henry Courtney.
Hal voltou-se de costas para aquele revoltante espetáculo, tentando fechar os ouvidos para o rio de insultos.
- Sr. Tyler. - Falou em voz alta o bastante para que toda a tripulação ouvisse acima dos berros de Sam Bowles. - Não perderemos mais tempo do navio com esse assunto. O prisioneiro deve ser enforcado imediatamente. Passe uma corda pela verga principal...
- Gundwane! - Aboli berrou um aviso. - Atrás de você! Dançou tarde demais para intervir. Sam Bowles enfiara a mão sob as roupas. Amarrada na parte interna de sua coxa, estava uma bainha de couro. Ele foi tão rápido quanto uma víbora no ataque. Em sua mão, a lâmina do estilete luziu como uma lasca de cristal, bonita como uma bugiganga de uma moça. Ele a lançou com um estalar do punho.
Hal começara a se voltar diante do aviso de Aboli, mas Sam foi mais veloz. O estilete voou pelo espaço que os separava, e Hal pestanejou de antecipação pela picada da lâmina afiada a se enterrar em sua carne. Por um instante, duvidou dos próprios sentidos, pois não sentiu nenhum golpe.
Baixou os olhos e viu que Sukeena antepusera um braço nu para bloquear a picada. A lâmina prateada a atingira dois centímetros abaixo do cotovelo e se enterrara até o cabo.
- Jesus, protegei-a! - berrou Hal, pegando-a nos braços e abra-çando-se a ela. Ambos olharam para o cabo do estilete que se projetava de sua carne.
Aboli alcançou Sam Bowles um instante depois que o estilete voara de seus dedos e mandou-o a se esparramar no convés com um soco de seu punho fechado. Ned Tyler e uma dúzia de homens saltaram em frente para pegá-lo e o arrastaram até erguê-lo de pé. Sam sacudiu a cabeça, os olhos turvos, pois o punho de Aboli o aturdira. O sangue escorria do lado de sua boca.
- Passem uma corda pela verga principal - gritou Ned Tyler, e um homem subiu as enxárcias. Avançou pela verga principal, e, um minuto depois, a corda caía pela roldana e sua ponta balançava sobre o tombadilho.
- A lâmina entrou fundo - murmurou Hal, enquanto segurava Sukeena contra o peito e erguia ternamente seu braço ferido.
- É fina e aguda. - Sukeena sorriu corajosamente para ele. - Tão aguda que mal senti. Puxe a lâmina depressa, meu querido, e tudo ficará bem.
- Ajude-me aqui! Segure o braço dela - gritou Hal para Aboli, Que correu, agarrou o esguio cabo encravado e, com um movimento rápido, arrancou a lâmina da carne de Sukeena. O estilete saiu com surpreendente facilidade.
Ela murmurou, baixinho:
- Fez pouco dano. - Porém suas faces estavam pálidas e lágrimas tremiam nas pálpebras inferiores.
Hal ergueu-a nos braços e rumou para a escada de tombadilho na popa. Um grito selvagem o fez parar.
- Sua cadela está morta, Henry Courtney. Está morta, assim como seu filho bastardo. Sam Bowles matou a ambos. Louvado seja, capitão Courtney Sanguinário, lembre-se de mim em suas preces. Sou o homem que você jamais esquecerá!
- É um corte pequeno. A princesa é uma moça forte e corajosa. Viverá - resmungou Ned, furioso, ao ouvido de Sam Bowles. - Você é quem está morto, Sam Bowles. - Afastou-se e fez um gesto de cabeça para os homens na ponta da corda, que se afastavam com ela, batendo os pés descalços nas tábuas do convés em uníssono.
No instante antes que a corda se retesasse e cortasse sua respiração, Sam berrou de novo:
- Olhe bem para a lâmina que cortou sua vagabunda, capitão. Pense em Sam Bowles quando testar a ponta. - A corda mordeu-lhe a garganta e arrancou-o dos pés, sufocando a próxima palavra antes que lhe chegasse aos lábios.
A tripulação urrou com alegria de lobos quando Sam Bowles ergueu-se espiralando no ar, balançando na ponta da corda conforme o Golden Bough rolava sob ele. Suas pernas chutavam e dançavam tanto, que as algemas em seus tornozelos tiniam como guizos.
Ainda se retorcia e gorgolejava quando seu pescoço espremeu-se com força contra o bloco da roldana no fim da verga principal, no alto, acima do convés.
- Deixe-o pendurado lá durante toda a noite - ordenou Ned Tyler. - Nós o desceremos pela manhã e o jogaremos aos tubarões. - Então se inclinou e pegou o estilete do convés onde Hal o jogara. Examinou a lâmina manchada de sangue, e sua face queimada tornou-se de um cinza amarelado.
- Doce Maria, permita que não seja isso! - Olhou de novo para o cadáver de Sam Bowles a girar com o movimento do navio, lá no alto. - Sua morte foi muito fácil. Se estivesse em meu poder, eu o mataria uma centena de vezes mais, e cada vez mais dolorosamente que a última.
Hal colocou Sukeena no beliche da cabine principal. - Eu cauterizaria a ferida, mas o ferro quente deixaria uma cicatriz. - Ajoelhou-se ao lado do beliche e examinou-a atentamente. - É profundo, mas quase não está sangrando. - Enrolou o braço dela com uma tira de linho branco que Aboli lhe trouxera do baú ao pé do beliche.
- Traga-me minha sacola - pediu Sukeena, e Aboli saiu imediatamente.
Tão logo estavam sozinhos, Hal inclinou-se sobre ela e beijou-lhe a face pálida.
- Você aparou o golpe de Sam para me salvar - murmurou, a face comprimida à dela. - Arriscou sua própria vida e a vida da criança em seu ventre por mim. Foi uma barganha insensata, meu amor.
- E a faria novamente... - Ela se calou, e Hal sentiu-a retesar-se em seus braços e ofegar.
- O que a aflige, minha doçura? -Afastou-se e encarou-a na face. Diante de seus olhos, pequenas gotas de perspiração saíam pelos poros da pele de Sukeena, como o orvalho nas pétalas de uma rosa amarela. - Está com dor?
- Queima - murmurou ela. - Queima mais que o ferro quente de que falou.
Hal desenrolou rapidamente a tira do braço dela e olhou para a mudança que acontecera no ferimento enquanto se abraçavam. O braço inchava diante de seus olhos, como um dos peixes baiacus do recife de coral que podia inflar-se até muitas vezes o seu tamanho original quando ameaçado por um predador.
Sukeena ergueu o braço e acomodou-o sobre o seio. Gemeu involuntariamente quando a dor fluiu do ferimento para encher seu peito como chumbo derretido fulgurante.
- Não entendo o que está acontecendo. - Começou a se retorcer sobre o beliche. - Não é natural. Olhe como muda de cor.
Hal olhou impotente para o braço adorável que lentamente se estufava e se coloria com linhas de escarlate e roxo vivo, que corriam do cotovelo até o ombro. A ferida começou a exsudar um viscoso fluido amarelado.
?- O que posso fazer? - berrou ele.
- Não sei - murmurou ela, desesperada. - É algo além do meu entendimento. - Um espasmo de agonia apertou-a num torno, e suas costas se arquearam. Então passou, e ela implorou: - Preciso de minha sacola. Não posso suportar esta dor. Tenho um pó feito da papoula que dá ópio.
Hal saltou de pé e cruzou a cabine.
- Aboli, onde está você? - berrou. - Traga a sacola, e depressaNed Tyler inclinou-se no patamar da porta. Segurava algo na mão e tinha uma estranha expressão na face.
- Capitão, tem uma coisa que preciso lhe mostrar.
- Não agora, homem, agora não. - Hal ergueu a voz outra vez.
- Aboli, venha depressa.
Aboli desceu a escada do tombadilho numa corrida, carregando os alforjes de sela.
- O que é, Gundwane?
- Sukeena! Há algo acontecendo com ela. Precisa do remédio...
- Capitão! - Ned Tyler forçou sua passagem pela força avultada de Aboli para dentro da cabine e agarrou o braço de Hal, aflito. - Isso não pode esperar. Olhe para o estilete. Olhe para a ponta! - Ergueu o estilete, e os outros o fitaram.
- Em nome de Deus! - murmurou Hal. - Permita que não seja isso.
Uma estreita ranhura pela extensão da lâmina estava cheia de uma pasta negra e viscosa que se tornara ressequida e brilhante.
- É a lâmina de um assassino - disse Ned, baixinho. - A ranhura está cheia de veneno.
Hal sentiu o convés oscilar sob seus pés, como se o Golden Bough tivesse sido atingido por uma vaga enorme. Sua vista escureceu.
- Não pode ser - disse. - Aboli, diga-me que não pode ser.
- Seja forte - resmungou Aboli. - Seja forte por ela, Gundwane.
- Agarrou o braço de Hal.
O gesto deu firmeza a Hal, e sua vista clareou; porém, quando tentou puxar a respiração, a mão pesada do pavor comprimiu-lhe as costelas.
- Não posso viver sem ela - disse, como uma criança confusa.
- Não deixe que ela saiba - retrucou Aboli. - Não faça a separação mais dura para ela do que precisa ser.
Hal encarou-o sem compreender. Então, começou a entender a finalidade, a significância daquela pequena ranhura na lâmina de aço e das ameaças fatais que Sam Bowles gritara para ele com o nó da forca em torno do pescoço.
- Sukeena vai morrer - exclamou, num tom de aturdimento.
- Será mais duro para você do qualquer outra batalha que tenha lutado antes, Gundwane.
Com um enorme esforço, Hal lutou para recuperar o controle de si mesmo.
- Não lhe mostre o estilete - disse a Ned Tyler. - Vá! Jogue essa coisa maldita pela amurada.
Quando se aproximou de novo de Sukeena, tentou esconder o negro desespero que tinha no coração.
- Aboli trouxe sua sacola. -Ajoelhou-se ao lado dela. - Diga-me como preparar a poção.
- Oh, faça isso depressa - implorou ela, quando outro espasmo a constrangeu. - O frasco azul. Duas medidas numa caneca de água quente. Não mais que isso, pois é muito forte.
Sua mão tremeu violentamente ao tentar pegar a caneca dele. Podia usar apenas uma das mãos agora: seu braço estava inchado e cor de púrpura, os dedos outrora delicados, tão intumescidos que a pele ameaçava romper-se. Teve dificuldade em segurar a caneca, e Hal ergueu-a até seus lábios enquanto ela sorvia a poção com patética urgência.
Caiu de costas com o esforço e retorceu-se no beliche, ensopando os lençóis com o suor da agonia. Hal jazia ao lado dela e a apertava contra o peito, na tentativa de confortá-la, mas sabendo muito bem quão fúteis eram seus esforços.
Depois de um momento, a flor da papoula pareceu fazer seu efeito. Sukeena se agarrou a ele e comprimiu a face contra seu pescoço.
- Estou morrendo, Gundwane.
- Não diga uma coisa dessas - implorou ele.
- Sabia disso fazia muitos meses. Vi nas estrelas. Eis por que eu não podia responder à sua pergunta.
- Sukeena, meu amor, morrerei com você.
- Não. - Sua voz estava um pouco mais forte. - Você irá em frente. Viajei com você tão longe quanto me foi permitido. Para você, Porém, os Fados reservaram um destino especial. - Descansou por um momento, e ele julgou que Sukeena tivesse entrado em coma, porém, então, ela balbuciou novamente. - Você viverá. Terá muitos filhos fortes, e seus descendentes florescerão nesta terra da África, e a farão sua.
- Não quero filhos, a não ser os seus - exclamou ele. - Você me Prometeu um filho.
- Não fale, meu amor, pois o filho que lhe dou partirá seu coração.
Outra terrível convulsão a sacudiu, e ela gritou em agonia. Por fim quando parecia não podia suportar mais, caiu de costas tremendo e ensopada de suor. Hal abraçou-a e não pôde encontrar palavras para lhe contar seu sofrimento.
As horas passaram, e, por duas vezes, ele ouviu o sino do navio anunciar as mudanças de turno. Sentiu Sukeena se tornar mais fraca e afundar para longe dele. Então, uma série de poderosas convulsões sacudiu seu corpo. Quando caiu de costas nos braços de Hal, murmurou:
- Seu filho, o filho que prometi a você, nasceu. - Seus olhos estavam fechados e apertados, e lágrimas escorriam entre as pálpebras.
Por um longo minuto, ele não compreendeu aquelas palavras. Então, temeroso, deitou-a nos lençóis.
Entre as coxas ensanguentadas, jazia uma minúscula criatura reluzente de umidade e ainda ligada a ela por um emaranhado de cordão fresco. A pequena cabeça estava apenas meio formada, os olhos jamais se abririam e a boca nunca sugaria, ou gritaria, ou riria. Contudo, ele viu que era, realmente, um menino.
Hal tomou Sukeena de novo nos braços, e ela abriu os olhos e sorriu suavemente.
- Sinto muito, meu amor. Tenho de ir agora. Se você se esquecer de tudo mais, lembre-se apenas disso, que eu o amei como nenhuma outra mulher será capaz de amá-lo.
Fechou os olhos, e Hal sentiu a vida esgotar-se nela, a tremenda imobilidade da morte descer.
Esperou com eles, sua mulher e seu filho, até meia-noite. Então Althuda trouxe uma peça de lona e uma agulha de costurar vela, linha e repuxo. Hal colocou o filho natimorto nos braços de Sukeena e amarrou-o ali com um pedaço de linho. Depois, ambos costuraram os dois corpos dentro de uma mortalha de brilhante lona nova, com uma bala de canhão aos pés de Sukeena.
A meia-noite, Hal carregou a mulher e a criança em seus braços para cima, para o tombadilho aberto. Sob a brilhante lua africana, entregou ambos ao mar. Caíram na superfície escura e mal deixaram uma ondulação na esteira do navio, à sua passagem.
- Adeus, meu amor - murmurou ele. - Adeus, meus dois queridos. Então, desceu para a cabine de popa. Abriu a Bíblia de Llewellyn e procurou por conforto e alívio entre as capas de couro preto, mas não encontrou nenhum.
Por seis longos dias, ele ficou sentado, sozinho, ao lado da janela de sua cabine. Não comeu nada da comida que Aboli lhe trouxe. Algumas vezes, lia a Bíblia, porém a maior parte do tempo olhava pela esteira do navio. Subia todo dia ao tombadilho, ao meio-dia, desolado e abatido, e assinalava a passagem do sol. Fazia os cálculos da posição do navio e dava suas ordens para o leme. Depois, voltava a ficar sozinho com seu sofrimento.
À alvorada do sétimo dia, Aboli foi procurá-lo.
- O pesar é natural, Gundwane, porém isso é indulgência. Esqueceu seu dever e aqueles de nós que colocamos nossa confiança em você. Já basta.
- Jamais será o suficiente. - Hal o fitou. - Ficarei de luto por ela durante todos os dias de minha vida. - Levantou-se, e a cabine rodou ao redor dele, pois estava fraco pelo sofrimento e pela falta de comida. Esperou até que sua cabeça estivesse firme e clara. - Você tem razão, Aboli. Traga-me um prato de comida e uma caneca de cerveja fraca.
Depois de ter comido, sentiu-se mais forte. Lavou-se e barbeou-se, trocou de camisa e penteou os cabelos para trás numa trança grossa que lhe caía pelas costas. Viu que havia fios de branco puro nas mechas negras de zibelina. Quando olhou no espelho, mal reconheceu a face profundamente bronzeada que o fitou de volta, o nariz tão adunco como o de uma águia, e não havia carne de sobra para cobrir as maçãs altas do rosto ou as linhas implacáveis do queixo. Seus olhos eram verdes como esmeraldas, e com aquela rutilação dura de pedra.
Mal tenho vinte anos, pensou, com admiração, e já pareço ter duas vezes mais.
Apanhou a espada de sobre o tampo da mesa e enfiou-a na bainha.
- Muito bem, Aboli. Estou pronto para assumir meu dever novamente - disse, e Aboli seguiu-o para o tombadilho.
O contramestre no leme bateu os nós dos dedos na testa, e os homens do turno cutucaram um ao outro. Todos estavam plenamente cientes de sua presença, porém nenhum olhou em sua direção. Hal ficou por algum tempo na amurada, os olhos a dardejar com intensidade pelo convés e os cordames.
- Contramestre, segure seu leme de ló, maldito sejam seus olhos!
berrou para o timoneiro.
A borda vertical da vela principal mal tremia conforme se abafava ao vento, porém Hal notou o que acontecia, e os marujos de turno,
agachados ao pé do mastro principal, sorriram um para o outro com modos furtivos. O capitão estava no comando outra vez.
A princípio, não entenderam o que viria a seguir. Contudo, logo conheciam a amplitude e extensão do fato. Depois que ele perguntou seus nomes, qual a vila ou cidade de seu nascimento, interrogou-os judiciosamente quanto ao serviço. Enquanto isso, estudava cada um e avaliava seu valor.
Três se destacavam sobre os outros; haviam sido todos responsáveis de turno sob o comando de Llewellyn. O contramestre, John Lovell, era o homem que servira sob o pai de Hal.
- Manterá seu antigo posto, contramestre - disse-lhe, Hal e John sorriu.
- Será um prazer servir sob seu comando, capitão.
- Espero que sinta o mesmo daqui a um mês - retrucou Hal, muito sério.
Os outros dois eram William Stanley e Robert Moone, ambos patrões de embarcação. Hal gostou do jeito deles: Llewellyn tinha um bom olho para julgar homens, pensou ele, e apertou-lhes as mãos.
Daniel Grande era seu outro contramestre, e Ned Tyler, que sabia tanto ler como escrever, era piloto. Althuda, um dos poucos outros letrados a bordo, tornou-se o escrivão do navio, encarregado de todos os documentos e com a obrigação de mantê-los em dia. Era o elo mais próximo que lhe restava de Sukeena, e ele sentia uma grande afeição pelo rapaz e desejava mantê-lo por perto. Poderiam partilhar o sofrimento entre si.
John Lovell e Ned Tyler repassaram o rol do navio com Hal e o ajudaram a redigir o boletim de turno, a lista nominal que permitia a cada homem saber para qual turno estava designado e qual sua função em cada situação.
Tão logo isso foi feito, Hal inspecionou o navio. Partiu do tombadilho principal e depois, com seus dois contramestres, abriu cada escotilha. Subiu e algumas vezes arrastou-se para cada parte do casco, desde os porões até o topo do mastro. No depósito, abriu três barricas, escolhidas aleatoriamente, e verificou a qualidade da pólvora e das mechas de queima lenta.
Conferiu a carga com o manifesto, e ficou surpreso e encantado ao descobrir a quantidade de mosquetes e balas de chumbo que o navio carregava, junto com grandes quantidades de mercadorias de comércio.
Depois, ordenou que a nau fosse parada e um escaler baixado. Ele próprio remou em torno do navio para que pudesse julgar sua condição de navegabilidade. Moveu algumas das colubrinas para as portinholas de artilharia mais à ré e ordenou que a carga fosse levada ao convés e reorganizada para estabilizar a navegabilidade conforme sua preferência. Depois, exercitou a companhia do navio no ajuste e alteração das velas, levando o Golden Bough através de cada ponto da bússola e de cada postura com relação ao vento. Isso prosseguiu por quase uma semana, enquanto ele chamava o grupo de turno ao meio-dia ou durante a noite para encurtar ou aumentar os panos e empurrar o navio aos limites de sua velocidade.
Logo conhecia o Golden Bough tão intimamente como a uma amante. Descobriu quão próximo estava de poder levar a nau ao vento, e como ela apreciava correr diante dele com todas as velas enfunadas. Tinha uma tripulação com baldes para molhar seus panos a fim de que pudessem segurar melhor o vento e, depois, quando a nau estava em pleno vôo, para medir sua velocidade pela água com ampulheta e silômetro a cronometrar desde a proa até a popa. Descobriu como obter o último metro de velocidade dela e como ter sua resposta ao leme como um excelente caçador nas rédeas.
A tripulação trabalhava sem queixas, e Aboli ouviu-os a conversar entre si no castelo de proa. Longe de reclamações, pareciam estar gostando da mudança do comando mais complacente de Llewellyn.
- O rapaz é um marujo. O navio o adora. Pode conduzir o Bough a seu limite e fazê-lo voar através da água, sim, ele pode.
- Fica feliz em levá-lo ao limite também - opinou outro.
- Ânimo, seus preguiçosos indolentes, calculo que haverá dinheiro em abundância ao fim desta viagem.
Em seguida, Hal colocou-os para trabalhar nos canhões, correndo-os para fora e depois para dentro de novo, até que os homens suavam, extenuados, e sorriam enquanto o xingavam, chamando-o de tirano. Então, fazia os artilheiros dispararem numa barrica flutuante, e aplaudia o melhor deles quando o alvo era arrebentado pelo disparo.
Entrementes, exercitava-os com o alfanje e a lança, e lutava junto com eles, nu até a cintura, e competia contra Aboli, Daniel Grande ou John Lovell, que era o melhor espadachim da nova tripulação.
O Golden Bough velejou ao redor da protuberância do continente sul-africano, e Hal o fez rumar para o norte. Agora, a cada légua que Velejavam, o mar mudava suas características. As águas assumiram um matiz de índigo vívido que maculava o céu da mesma cor. Eram tão claras que, ao se inclinar por sobre a proa, Hal podia ver os cardumes de golfinhos, quatro braças abaixo, correndo adiante da proa e brincando despreocupadamente como um bando de turbulentos spaniels até que se arqueavam para a superfície. Ao irromperem para cima, ele podia ver no topo de suas cabeças o nariz aberto para respirar, e eles o fitavam com olhar alegre e um sorriso inteligente.
Os peixes-voadores eram seus batedores, viajando adiante deles nas reluzentes asas prateadas, e as montanhas de nuvens cúmulos eram as luzes de sinalização que os dirigiam sempre no rumo norte.
Quando navegavam para dentro das grandes calmarias, ele não deixava a tripulação descansar; baixava os botes e promovia corridas de turno contra turno, os remos tornando a água branca. Depois, ao final do exercício, faziam-nos abordar o Golden Bough como se a nau fosse uma inimiga, enquanto ele e Aboli e Daniel Grande os enfrentavam e os faziam lutar por um pé no convés.
No calor sem vento dos trópicos, enquanto o Bough rolava gentilmente sobre as vagas lentas e as velas vazias panejavam e pendiam com indolência, ele os fazia apostar corridas em equipes de revezamento que tinham de subir e descer o mastro principal com as mãos, com um trago extra de rum como prémio.
Em questão de semanas, os homens estavam dispostos e enxutos e explodindo de ânimo, loucos por uma luta. Hal, no entanto, era assolado por uma preocupação persistente que não partilhava com ninguém, nem mesmo com Aboli. Noite após noite, sentava-se à sua mesa na cabine principal, não se atrevendo a dormir, pois sabia que o sofrimento e as lembranças da mulher e da criança que tinha perdido iriam assombrá-lo nos sonhos, e estudava as cartas náuticas e tentava buscar uma solução.
Mal tinha quarenta homens sob seu comando, apenas o suficiente para trabalhar no navio, porém muito pouco para servir em batalha. Se se encontrassem de novo, o Gavião poderia mandar uma centena de homens para o tombadilho do Golden Bough. No caso de precisarem se defender, além de procurar emprego a serviço do padre, então Hal precisava encontrar marinheiros.
Quando examinava os mapas, conseguia encontrar poucos portos onde pudesse arrebanhar marujos treinados. A maioria estava sob o controle dos portugueses e dos holandeses, e eles não acolheriam bem uma fragata inglesa, especialmente uma cujo capitão tivesse a intenção de seduzir seus marinheiros para que ficassem a seu serviço.
Os ingleses não haviam penetrado com qualquer força por aquele oceano distante. Uns poucos mercadores tinham feitorias no continente da índia, porém estavam sob a servidão do grão-mogol, e, além disso, chegar até lá significaria uma viagem de várias milhares de milhas fora do curso pretendido.
Hal sabia que no litoral sudeste da longa ilha St. Lawrence, também chamada de Madagáscar, os Cavaleiros Franceses da Ordem do Santo Graal tinham um porto seguro a que chamavam Fort Dauphin. Se aportasse lá, como um Cavaleiro Inglês da Ordem, poderia esperar receber as boas-vindas, porém pouco mais além disso para seu conforto, a não ser que ocorresse alguma rara circunstância, tal como um ciclone, que tivesse causado um naufrágio e deixado marinheiros no porto sem navio. Contudo, resolveu que deveria arriscar essa chance e fazer de Fort Dauphin sua primeira escala, desviando o curso para a ilha.
Enquanto navegavam rumo ao norte, com Madagáscar como seu objetivo, a África estava sempre lá, ao largo de estibordo. Às vezes, a terra só podia ser imaginada na distância azul; outras vezes, estava tão próxima que podiam sentir seu aroma peculiar. Era um cheiro apimentado de especiarias e do rico odor negro da terra, como biscoito recém-assado, quente do forno.
Muitas vezes Jiri, Matesi e Kimatti amontoavam-se na amurada, apontando para as colinas verdejantes e as rendadas linhas das ondas, a conversar juntos calmamente na linguagem das florestas. Numa hora tranquila, Hal subia até o topo do mastro e olhava para a terra. Quando descia, sua expressão era triste e solitária.
Dia após dia, não viram nenhum sinal de outro homem. Não havia nem portos nem cidades ao longo do litoral que pudessem divisar, e nenhuma vela sobre o mar, nem mesmo uma canoa ou caíque costeiro.
Só quando estavam menos de cem léguas ao sul do cabo de St. Marie, o ponto mais ao sul da ilha, foi que avistaram outra vela. Hal postou o navio de proa e deixou as colubrinas carregadas com metralha e a mecha de queima lenta acesa, pois ali, além da Linha, não ousava confiar em nenhum navio.
Quando estavam quase dentro do alcance de voz da outra nau, ela desfraldou suas cores. Hal ficou encantado ao ver a bandeira da união e a croix pattée da ordem tremulando no topo do mastro. Respondeu com a mesma demonstração de panos, e ambos os navios pararam ao alcance um do outro.
- Qual o navio? - perguntou Hal, e a resposta veio de volta pelas vagas azuis:
- O Rose of Durham. Capitão Welles. - Era uma mercante armada, uma caravela com doze canhões de um lado.
Hal baixou um escaler e remou ele próprio pelo espaço que os separava. Foi saudado na porta de embarque por um capitão lépido e miúdo de meia idade.
- In Arcádia habito.
- Flumen sacrum bene cognosco - respondeu Hal, e se deram as mãos no aperto de reconhecimento do templo.
O capitão Welles convidou Hal a descer para sua cabine, onde beberam juntos uma caneca de cidra e trocaram notícias avidamente. Welles tinha navegado anteriormente por quatro semanas, vindo da feitoria inglesa de St. George, perto de Madras, na costa leste da índia ulterior, com uma carga de tecidos de comércio. Pretendia trocá-la por escravos na costa de Gâmbia da África Ocidental, e depois velejar pelo Atlântico até o Caribe, onde permutaria os escravos por açúcar e então, voltaria para a Inglaterra.
Hal sondou-o sobre a disponibilidade de marujos nas feitorias inglesas no Carnático, aquele trecho de litoral da índia ulterior desde as Ghats orientais até a costa de Coromandel, porém Welles meneou a cabeça.
- Terá de ficar ao largo de toda aquela costa. Quando parti, a cólera grassava em cada vila e feitoria. Qualquer homem que leve a bordo pode trazer a morte com ele por companhia.
Hal enregelou diante da ideia da catástrofe que aquela praga poderia representar para sua tripulação já desfalcada, caso se disseminasse pelo Golden Bough. Não ousaria se arriscar a uma visita àqueles portos atingidos pela febre.
Durante uma segunda caneca de cidra, Welles deu a Hal o primeiro relato confiável do conflito que reinava no Great Horn da África. O irmão mais novo do grande-mongol, Sadiq Khan Jahan, chegara ao largo da costa do Great Horn com uma grande frota. Juntara forças com Ahmed El Grang, que chamavam de Canhoto, o rei dos árabes omanis que tinham o domínio das terras fronteiriças ao império do Padre. Esses dois tinham declarado a jihad, a guerra santa, e, juntos, caído como um vendaval enfurecido sobre os cristãos. Tinham tomado de assalto e saqueado os portos e cidades da costa, queimando as igrejas e despojando os monastérios, massacrando os monges e os homens santos.
- Pretendo navegar para oferecer meus serviços ao padre, ajudan-do-o na resistência aos pagãos - disse-lhe Hal.
- É outra cruzada, e a sua é de uma nobre inspiração - aplaudiu-o Welles. - Muitas das mais sagradas relíquias da cristandade são mantidas pelos padres santos na cidade etíope de Aksum, e nos conventos, em lugares secretos nas montanhas. Se caíssem nas mãos dos pagãos, seria um dia triste para toda a cristandade.
- Se não pode o senhor mesmo lançar-se a essa sagrada aventura, não poderia me dispensar uma dúzia de seus homens, pois estou tristemente pressionado pela falta de bons marinheiros? - perguntou Hal.
Welles desviou os olhos.
- Tenho uma longa viagem à minha frente e há possibilidade de pesadas perdas entre minha tripulação, por causa da febre, quando visitarmos a costa da Gâmbia e fizermos a meia passagem do Atlântico - resmungou.
- Pense em seu juramento - instou-o Hal. Welles hesitou e depois deu de ombros.
- Reunirei minha tripulação e você poderá apelar a eles e pedir voluntários para se juntarem à sua aventura.
Hal agradeceu-lhe, sabendo que Welles fazia uma aposta sem risco. Poucos marujos ao fim de uma viagem de dois anos iriam abrir mão de sua parte dos lucros, e da perspectiva de um rápido retorno para casa, em favor de um chamado às armas para ajudar um potentado estrangeiro, ainda que cristão. Apenas dois homens atenderam ao apelo de Hal, e Welles pareceu aliviado por se ver livre deles. Hal imaginou que fossem criadores de caso e descontentes, porém não poderia se permitir ser exigente.
Antes de partirem, Hal entregou a Welles dois pacotes de cartas, costurados em cobertas de lona, com o endereço escrito em letras fortes em cada um. Um era endereçado ao visconde Winterton, e, na longa carta que escrevera, Hal descrevia as circunstâncias do assassinato do capitão Llewellyn, e sua própria aquisição do Golden Bough. Compro-metia-se a navegar com o navio de acordo com o fretamento original.
A segunda carta era destinada a seu tio, Thomas Courtney, em High Weald, para informá-lo da morte de seu pai e da herança do título. Pedia ao tio para continuar a administrar o domínio em seu nome.
Quando, por fim, despediu-se de Welles, os dois marinheiros que conseguira foram com ele de volta para o Golden Bough. De seu tombadilho Superior, Hal observou as velas de topo do Rose ofDurham caírem abaixo do horizonte sul, e, dias depois, as colinas de Madagáscar ergueram-se diante dele, ao norte.
Naquela noite, Hal, como já se tornara seu hábito, subiu para o tombadilho ao fim do segundo turno de vigia para ler o quadro de rota e falar com o timoneiro. Três sombras escuras esperavam por ele ao pé do mastro principal.
- Jiri e os outros querem conversar com você, Gundwane - disse-lhe Aboli.
Reuniram-se em torno de Hal enquanto ele se postava na amura voltada para o vento. Jiri falou primeiro, na linguagem das florestas.
- Eu era um homem quando os negreiros me tiraram de meu lar - disse a Hal, calmamente. - Tinha idade suficiente para me recordar muito mais da terra de meu nascimento que esses outros. - Indicou Aboli, Kimatti e Matesi, e todos os três menearam as cabeças em concordância.
- Éramos crianças - disse Aboli.
- Nestes últimos dias - continuou Jiri-, quando senti o cheiro de terra e vi de novo as verdes colinas, velhas lembranças havia muito tempo esquecidas me voltaram. Tenho certeza agora, do fundo de meu coração, que posso encontrar meu caminho de volta até o grande rio ao longo de cujas margens minha tribo vivia quando eu era criança.
Hal ficou em silêncio por algum tempo e então perguntou:
- Por que me diz essas coisas, Jiri? Quer voltar para seu próprio povo?
Jiri hesitou.
- Foi há tanto tempo... Meu pai e minha mãe estão mortos, assassinados pelos negreiros. Meus irmãos e os amigos de minha infância se foram também, levados nos grilhões dos escravagistas. - Ficou calado por alguns instantes, mas então prosseguiu: - Não, capitão, não posso retornar, pois o senhor agora é meu chefe, como seu pai foi antes do senhor, e estes são meus irmãos. - Indicou Aboli e os outros que se postavam ao redor.
Aboli assumiu a conversa.
- Se Jiri conseguir nos levar de volta ao grande rio, se pudermos encontrar nossa tribo perdida, pode ser que consigamos encontrar também uma centena de guerreiros dentre eles para encher o boletim de turno deste navio.
Hal encarou-o, atónito.
- Uma centena de homens? Homens que podem lutar como quatro patifes feito vocês? Então realmente as estrelas lá em cima estão sorrindo para mim de novo.
Levou os quatro para baixo, para a cabine de popa, acendeu as lanternas e espalhou as cartas náuticas sobre a mesa. Agacharam-se em torno delas num círculo, e os pretos apontaram para as folhas de pergaminho com seus indicadores e discutiram suavemente em suas vozes sonoras, enquanto Hal explicava as linhas das cartas para os três que, diferentemente de Aboli, não sabiam ler.
Quando o sino do navio chamou para o início do turno da manhã, Hal subiu ao tombadilho e chamou Ned Tyler.
- Novo curso, Sr. Tyler. Rumo sul. Marque-o no quadro de rota. Ned estava evidentemente espantado com a ordem de voltar no curso,
porém não fez perguntas.
- Rumo sul.
Hal teve pena dele, pois era óbvio que a curiosidade o comichava como um carrapicho nas calças.
- Estamos nos aproximando do litoral da África outra vez. Cruzaram o largo canal que separava Madagáscar do continente africano.
A terra firme surgiu como um lento borrão azulado no horizonte, e, ao largo, fizeram a volta e rumaram para o sul, uma vez mais ao longo da costa.
Aboli e Jiri passavam a maior parte das horas de dia claro no topo do mastro, espiando a terra. Por duas vezes, Jiri desceu e pediu a Hal para ficar perto da costa a fim de investigar o que parecia ser a desembocadura de um rio largo. Na primeira vez, aquilo mostrou ser um falso canal, e, na segunda vez, Jiri não o reconheceu quando ancoraram ao largo da foz.
- É muito pequeno. O rio que procuro tem quatro desembocaduras.
Levantaram âncora e rumaram para o mar outra vez, seguindo depois rumo sul. Hal já começava a duvidar da memória de Jiri, porém perseverou. Vários dias mais tarde, percebeu a excitação patente dos dois homens no topo do mastro ao olharem para terra e gesticularem um com o outro. Matesi e Kimatti, que, como parte do turno fora de serviço estavam vagabundeando no castelo de proa, saltaram de pé e subiram as enxárcias para se pendurarem nos cordames, a fitar com avidez a terra.
Hal foi até a amurada e ergueu a luneta revestida de bronze de Llewellyn ao olho. Viu o delta de um grande rio espalhar-se diante deles. As águas que se derramavam das múltiplas embocaduras eram descoradas e carregavam com elas os detritos dos charcos e das terras desconhecidas que deviam jazer na nascente daquele poderoso rio. Esquadrões de tubarões se alimentavam daquele despejo, e suas altas barbatanas triangulares faziam ziguezagues pela corrente.
Hal chamou Jiri para perto de si e perguntou:
- Como sua tribo chama esse rio?
- Há muitos nomes para ele, pois o único rio chega ao mar com muitos afluentes. São chamados de Muselo, Inhamessingo e Chinde. Porém, o principal deles é o Zambeze.
- Todos eles têm uma entonação sonora - comentou. - Porém, tem certeza de que esse é o rio serpente com quatro bocas?
- Pela cabeça de meu pai morto, juro que é.
Hal tinha dois homens na proa fazendo sondagens conforme avançavam para terra, e, tão logo o fundo começou a declivar, lançou âncora em doze braças de água. Não iria arriscar o navio nas águas estreitas de terra e nos retorcidos canais do delta. Porém, havia outro risco que não estava disposto a enfrentar.
Sabia de seu pai que aqueles deltas tropicais eram perigosos para a saúde da tripulação. Se respirassem os ares noturnos do pântano, logo cairiam presa das febres mortais que se abateriam sobre eles, apropriadamente chamadas de malária, os maus ares.
Os alforjes de sela de Sukeena, que, com o broche de jade de sua mãe, eram seu único legado para Hal, continham uma satisfatória quantidade do pó dos jesuítas, o extrato da casca da árvore da quina. Ele também descobrira um grande jarro da mesma preciosa substância entre os estoques de Llewellyn. Era o único remédio contra a malária, a doença que os marinheiros encontravam em cada área conhecida dos oceanos, desde as florestas da Batávia e índia ulterior até os canais de Veneza, os charcos da Virgínia e do Caribe, no Novo Mundo.
Hal não iria expor a tripulação inteira a essa destruição. Ordenou que duas pinaças fossem trazidas dos porões e equipadas. Depois, escolheu as equipes para essas embarcações, que incluíam naturalmente os quatro africanos e Daniel Grande. Colocou um falconete na proa de cada uma e mandou que fosse montado um par de morteiros nas popas.
Todos os homens da expedição estavam pesadamente armados, e Hal colocou três volumosos baús de mercadorias de comércio em cada bote, canivetes e tesouras e pequenos espelhos de mão, rolos de fio de cobre e contas de cristal de Veneza.
Deixou Ned Tyler encarregado do Golden Bough, com Althuda, e ordenou-lhes que ficassem ancorados bem ao largo da costa e esperassem por seu retorno. O sinal de revés seria um rojão vermelho chinês: somente se o visse, Ned teria de mandar os escaleres para encontrá-los.
- Podem ser muitos dias, semanas talvez - avisou Hal. - Não perca a paciência. Fique em seu posto enquanto não tiver notícias de nós.
Hal assumiu o comando do bote líder. Tinha Aboli e os outros africanos em sua tripulação. Daniel Grande seguiu-o no segundo.
Exploraram cada uma das quatro desembocaduras. O nível da água parecia baixo, e algumas das entradas, quase fechadas por seus bancos de areia. Hal conhecia o perigo dos crocodilos e não se arriscaria a enviar homens para a margem a fim de arrastar os botes sobre a barragem. Por fim, escolheu a foz do rio com o maior volume de água. Com a brisa da manhã vinda de terra a encher a catita, e todas as mãos nos remos, forçaram passagem sobre os bancos de areia para o mundo quente e silencioso dos pântanos.
Altas plantas de papiro e extensões de mangue formavam uma parede firme de cada lado do canal, de maneira que sua visão era limitada, e o vento, bloqueado. Remaram em frente com constância, seguindo as voltas do canal. A cada curva abria-se a mesma vista monótona. Hal percebeu quase de imediato quão fácil seria perder-se naquela confusão, e marcou cada ramo do canal com tiras de lona atadas nos galhos do topo das árvores do mangue.
Por dois dias, avançaram para oeste, guiados pela bússola e pelo fluxo das águas. Nas lagoas, chafurdavam hordas dos grandes hipopótamos que abriam as bocas cavernosas e rosadas e roncavam para eles com selvagens gargalhadas conforme eles se aproximavam. A princípio, passavam bem ao largo deles, porém, uma vez mais familiarizado, Hal começou a ignorar seus gritos de alerta e exibições de raiva, e seguiu em frente, incansavelmente.
Sua bravata pareceu a princípio justificada, e os animais submergiam quando ele avançava diretamente sobre eles. Então, fizeram outra curva para dentro de uma lagoa verde mais larga. No centro, havia um banco de lama, e sobre ele se postava um imenso hipopótamo fêmea; em seu flanco, um filhote recém-nascido não maior que um porco. A fêmea berrou para eles, ameaçadoramente, quando remaram em sua direção, mas os homens riram divertidos, e Hal gritou, da proa:
- Afaste-se, velha dama, não é nossa intenção lhe fazer mal, porém queremos passar.
O grande animal baixou a cabeça e, grunhindo com beligerância investiu pela lama num selvagem e desajeitado galope que levantava nuvens de barro. Assim que se deu conta de que o bicho avançava a sério, Hal pegou a mecha de queima lenta do tubo a seus pés.
- Céus, ela pretende nos atacar.
Agarrou a alça de ferro do falconete e girou-o para mirar em frente, porém o hipopótamo chegou à água e arrojou-se dentro dela a toda velocidade, fazendo subir um lençol de borrifos. Desapareceu sob a superfície. Hal virou o cano do falconete de lado a lado, procurando uma chance para disparar, porém viu apenas uma ondulação na superfície enquanto o animal nadava no fundo.
- Está vindo direto para nós! - gritou Aboli. - Espere até conseguir um tiro certo, Gundwane!
Hal olhou para baixo, a mecha pronta, e, através da água verde clara, viu uma coisa notável. O hipopótamo se movia ao longo do fundo num lento galope, nuvens de lama a borbulhar sob suas patas a cada passo. Porém, estava ainda a uma braça de profundidade, e o tiro poderia não atingi-lo.
- Está vindo para debaixo de nós! - gritou ele para Aboli.
- Fique pronto! - avisou Aboli. - É assim que destroem as canoas de meu povo.
As palavras mal tinham deixado seus lábios, quando, debaixo de seus pés, veio um baque retumbante conforme o bicho se elevou sob eles, e o pesado bote com seus dez remadores foi erguido para fora d'água.
Foram arrancados de seus bancos, e Hal poderia ter caído de lado se não se agarrasse à bancada. O bote bateu de novo na superfície, e Hal apanhou outra vez o rabo do falconete.
A investida do animal teria aberto um rombo no casco de qualquer outra embarcação mais leve, e certamente destroçado uma piroga nativa, porém a pinaça fora construída com robustez para suportar as asperezas do mar do Norte.
Ali perto, a enorme cabeça cinza irrompeu para a superfície, e a boca se abriu como uma caverna rosada alinhada de dentes de marfim amarelo, tão longos quanto o antebraço de um homem. Com um berro que chocou a tripulação pela ferocidade, o hipopótamo investiu sobre eles com a bocarra arreganhada para estourar as tábuas do lado do bote.
Hal girou o falconete até que ele quase tocou a cabeça que investia. Disparou. Fumaça e fagulhas arremessaram-se em cheio pela garganta escancarada, e a queixada se fechou. O bicho desapareceu num torvelinho para reaparecer, segundos depois, a meio caminho de volta até o banco de lama no qual estava seu filhote, abandonado e aturdido.
O corpo imenso e rotundo subiu a meio para fora d'água, numa convulsão gigantesca, e depois caiu de costas e afundou para a morte, deixando uma longa esteira escarlate a marcar as verdes águas à sua passagem.
Os remadores atiraram-se aos remos com vigor renovado, e o bote contornou a próxima curva, com a pinaça de Daniel perto, à popa. O casco da embarcação de Hal fazia água com rapidez, porém, com um dos homens a esgotá-la com um balde, puderam mantê-la seca até que tivessem uma oportunidade de atracá-la e virá-la de borco para reparar os danos. Apressaram-se em subir o canal.
Nuvens de aves aquáticas erguiam-se dos densos canteiros de papiro em torno deles ou se empoleiravam nos galhos das árvores do mangue. Havia garças, patos e gansos que reconheciam, junto com dezenas de outros pássaros que jamais tinham visto antes. Várias vezes avistaram de relance um estranho antílope com o pêlo sujo marrom e chifres em espiral com pontas pálidas, que parecia fazer dos charcos profundos o seu habitat. Ao crepúsculo, surpreenderam um que se postava na beira dos papiros. Com um longo e feliz tiro de mosquete, Hal derrubou-o. Ficaram atónitos ao descobrir que suas patas eram deformadas, enormemente alongadas. Tais pés poderiam atuar como as nadadeiras de um peixe na água, avaliou Hal, e dar-lhe ponto de apoio no terreno macio de lama e caniços. A carne do antílope era doce e tenra, e os homens, esfaimados fazia longo tempo por comida fresca, comeram-na com prazer.
As noites, quando dormiam no convés nu, eram murmurantes, atribuladas por grandes nuvens de insetos que os aferroavam, e, nas alvoradas, suas faces estavam inchadas e intumescidas de caroços vermelhos.
No terceiro dia, os papiros começaram a ceder passagem para planícies alagadiças abertas. A brisa podia alcançá-los agora, soprando para longe as nuvens de insetos e enchendo a catita que tinha içado. Avançaram com mais velocidade e chegaram até onde todos os outros braços do rio se juntavam para formar um grande fluxo de quase três amarras de largura.
As planícies aluviais de cada margem daquele poderoso rio eram verdejantes, com uma vegetação de rica pastagem, com cerca de meio metro de altura, cheia de imensas manadas de búfalos. O número deles era incontável e formavam um tapete movediço até tão distante quanto Hal podia enxergar, mesmo quando subia no mastro da pinaça. Espalhavam-se tão densamente sobre a pradaria, que grandes áreas de pastagens eram obscurecidas por sua quantidade. Havia lagos alcatroados e rios correntes de carne bovina.
As franjas externas dessas hordas se alinhavam nas margens do rio e os animais os fitavam através da água, os focinhos cheios de baba erguidos ao alto e as cabeças protuberantes e pesadas com os chifres curvados. Hal aprumou o bote para perto e disparou o falconete para cima deles. Com aquela única descarga, abateu duas jovens fêmeas. Naquela noite, pela primeira vez, acamparam em terra e deliciaram-se com os espetos de búfalo assado nos carvões.
Por muitos dias, continuaram a seguir o imponente fluxo verde, e as planícies aluviais gradualmente cederam terreno a florestas e clareiras. O rio estreitou-se, tornou-se mais fundo e mais forte, e o progresso era mais lento contra a corrente. Na oitava noite depois de deixarem o navio, foram para terra, para acampar num bosque de altas figueiras selvagens.
Quase de imediato, viram sinais de habitação humana. Era uma paliçada em destroços, construída de toras pesadas. Dentro de suas paredes de madeira havia cercados que Hal julgou destinarem-se ao aprisionamento de gado ou outros animais.
- Negreiros! - disse Aboli, com amargura. - É onde prenderam meu povo como animais. Em uma dessas bomas, talvez nessa mesma, minha mãe morreu sob o peso da tristeza.
A paliçada fora abandonada havia longo tempo, porém Hal não conseguiu acampar nesse local de tanta miséria humana. Moveram-se por uma légua rio acima e encontraram uma pequena ilha na qual bivacar. Na manhã seguinte, prosseguiram ao longo do rio através da floresta e pastos virgens de qualquer evidência de homem.
- Os negreiros varreram tudo com sua rede - disse Aboli, com tristeza. - Eis por que abandonaram sua feitoria e foram embora. Parece que não há nem homens nem mulheres de nossa tribo que tenham sobrevivido à destruição. Devemos abandonar a busca, Gundwane, e voltar.
- Não, Aboli. Vamos prosseguir.
- Por toda parte em torno de nós está a memória antiga do desespero e da morte - insistia Aboli. - Estas florestas são habitadas apenas pelos fantasmas de meu povo.
- Decidirei quando voltaremos, e essa hora ainda não chegou - disse-lhe Hal, pois, na verdade, começava a se sentir fascinado por aquela estranha nova terra e a exuberância de criaturas selvagens de que abundava. Sentia um poderoso ímpeto de viajar mais e mais, de seguir o grande rio até sua nascente.
No dia seguinte, da proa, Hal avistou uma região de outeiros ondulantes a uma curta distância ao norte do rio. Ordenou que levassem os botes para a praia e deixou Daniel Grande e seus marujos para reparar os vazamentos no casco do primeiro deles, causado pelo ataque do hipopótamo. Levou Aboli consigo e começaram a subir as colinas para ter uma visão melhor da região adiante. Estavam mais longe do que pareciam estar, pois as distâncias são enganosas no ar claro e sob a luz brilhante do sol africano. Era fim da tarde quando chegaram ao cume e olharam para baixo, pelas ilimitadas distâncias onde florestas e colinas se replicavam, fileira após fileira, renque após renque, como imagens de infinidade em espelhos de azul sombreado.
Sentaram-se em silêncio, admirados e reverentes diante da imensidão daquela terra selvagem. Por fim, Hal levantou-se, relutante.
- Tem razão, Aboli. Não há vida humana aqui. Devemos voltar para o navio.
Contudo, sentiu no íntimo uma estranha relutância em voltar as costas àquela terra extraordinária. Mais do que nunca, sentia-se atraído para o seu mistério e o romance de seus vastos espaços. "Você terá muitos filhos fortes" profetizara Sukeena. "Sua descendência florescerá nesta terra de África e a fará sua."
Hal ainda não amava aquela terra. Era demasiado estranha e bárbara, tão diferente de tudo que ele conhecera nos climas mais gentis do norte, porém, no mais profundo do seu ser, ele sentia sua magia no próprio sangue.
O silêncio do crepúsculo caiu sobre as colinas, aquele momento em que toda criação contém seu fôlego diante do insidioso avanço da noite. Hal lançou um último olhar, varrendo o horizonte até onde as colinas, como camaleões monstruosos, mudavam de cor. Diante de seus olhos, adquiriam matizes de safira, de anil, e do azul das costas de um martim-pescador. De súbito, empertigou-se.
Agarrou o braço de Aboli e apontou.
- Olhe! - disse, baixinho.
Do sopé do próximo plano, uma única pluma fina de fumaça se alçava da floresta e subia para o violeta do ar da noite.
- Homens! - murmurou Aboli. - Estava certo em não querer voltar tão cedo, Gundwane.
Desceram a colina na escuridão e moveram-se pela floresta como sombras. Hal se orientava pelas estrelas, olhos cravados na grande e reluzente constelação do Cruzeiro do Sul que pendia acima da colina ao pé da qual tinham avistado a coluna de fumaça. Depois da meia-noite, enquanto avançavam com redobrada cautela, Aboli parou tão abruptamente que Hal quase tropeçou nele no escuro.
- Escute! - disse ele.
Ficaram em silêncio, minuto após minuto. Então Hal disse:
- Não ouço nada.
- Espere! - insistiu Aboli, e Hal ouviu. Era um som que já fora comum, mas que ele não ouvia desde que deixara Boa Esperança. O mugir lamentoso de uma vaca.
- Meu povo é de pastores - murmurou Aboli. - Seu gado é sua mais preciosa posse.
Conduziu Hal para a frente com cautela, até que puderam sentir o cheiro de fumaça de lenha e o familiar odor bovino do cercado de gado. Hal divisou o monte de carvões debilmente reluzentes que marcavam a fogueira do acampamento. Silhuetado contra a luz bruxuleante estava o contorno de um homem sentado, enrolado num kaross.
Ficaram ali e esperaram pelo amanhecer. Contudo, bem antes das primeiras luzes da manhã, o acampamento começou a se agitar. O vigia levantou-se, espreguiçou-se, tossiu e cuspiu nas brasas mortas. Depois, lançou madeira nova sobre a fogueira e se ajoelhou para soprar os carvões. As chamas estalaram e, com a luz, Hal viu que o guarda não passava de um garoto. Nu, a não ser por uma tanga, ele se afastou do fogo e se aproximou de onde estavam escondidos. Ergueu a tanga e urinou no mato, brincando com o jato de urina, mirando as folhas caídas e brotos e rindo ao tentar derrubar um escaravelho em disparada.
Então voltou para a fogueira e gritou para um puxado de galhos e sapé:
- A aurora nasceu. É hora de deixar sair o rebanho.
Sua voz era alta e firme, porém Hal ficou encantado por descobrir que compreendia cada palavra que o menino dizia. Era a linguagem das florestas que Aboli lhe ensinara.
Dois outros rapazes da mesma idade arrastaram-se para fora da cabana, tremendo, resmungando e se coçando, e os três foram para o cercado de gado. Falaram com os animais como se eles fossem também crianças, afagaram-lhes as cabeças e deram tapinhas em seus flancos.
Quando a luz aumentou, Hal viu que aquele gado era bem diferente daquele que conhecera em High Weald. Eram animais mais altos e mais rústicos, com enormes corcovas sobre os ombros, e o espaço entre seus chifres era tão largo que parecia grotesco, o peso quase exagerado até mesmo para suas compleições pesadas.
Os garotos pegaram uma vaca e tiraram o bezerro de seu úbere. Então, um se ajoelhou sob sua barriga e a ordenhou, mandando jatos espumosos para dentro de uma cabaça. Enquanto isso, os dois outros seguravam um touro jovem e passavam uma tira de couro em seu pescoço. Puxaram apertado, e quando as veias comprimidas saltaram sob a pele negra, um picou uma delas com a ponta aguda de uma cabeça de flecha. O primeiro menino veio correndo com a cabaça de leite pela metade e colocou a boca da cuia sob o fluxo de brilhante sangue vermelho que espirrava da veia perfurada.
Quando a cabaça estava cheia, um deles estancou o pequeno corte do pescoço do touro com um punhado de terra e soltou-o. O animal afastou-se, sem parecer se importar com a sangria. Os garotos sacudiram a cabaça vigorosamente e então a passaram de um para o outro, cada um deles bebendo avidamente da mistura de leite e sangue quando chegava sua vez, estalando os lábios e suspirando de prazer.
Tão absortos estavam com seu desjejum, que não notaram Aboli ou Hal até que foram agarrados por detrás e erguidos no ar, entre chutes e gritos.
- Quieto, seu pequeno babuíno - ordenou Aboli.
- Negreiros! - berrou o mais velho, ao ver a face branca de Hal. - Fomos pegos pelos feitores de escravos!
- Vão nos comer - esgoelou o mais jovem.
- Não somos negreiros! - disse-lhes Hal. - E não lhes faremos mal.
Aquela afirmação provocou no trio um novo paroxismo de terror.
- Ele é um demónio que pode falar a linguagem do céu.
- Entende tudo que falamos. É um demónio albino.
- Vai nos comer com certeza, como minha mãe me avisou. Aboli segurou o mais velho pelo braço e o encarou.
- Qual é seu nome, macaquinho?
- Veja as tatuagens dele. - O garoto urrava de pavor e confusão - Está tatuado como o Monomatapa, o escolhido do céu.
- É o grande Mambo!
- Ou o fantasma do Monomatapa que morreu faz muito tempo.
- Sou na verdade um grande chefe - concordou Aboli. - E você me dirá seu nome.
- Meu nome é Tweti... oh, Monomatapa, poupe-me, pois sou muito pequeno. Seria apenas uma única mordida para sua poderosa queixada.
- Leve-me para sua vila, Tweti, e eu o pouparei e a seus irmãos. Depois de um momento, as crianças começaram a acreditar que realmente não seriam nem comidas nem tornadas escravas e começaram a sorrir timidamente para Hal. Não demorou muito e estavam dando risadinhas deliciadas por terem sido escolhidos pelo grande chefe tatuado e pelo estranho albino para conduzi-los até a vila.
Tocando o gado adiante deles, tomaram uma trilha pelas colinas e saíram de súbito numa pequena vila rodeada de campos de cultivo rudimentares, nos quais uns poucos pés dispersos de milho miúdo cresciam. As cabanas tinham o formato de favos de colmeia, com belos telhados de sapé, porém estavam desertas. Potes de cerâmica estavam nas fogueiras de cozinha diante de cada cabana e havia vacas nos cercados, cestas trançadas, armas e utensílios espalhados onde haviam caído quando os moradores fugiram.
Os três garotos começaram a gritar para os arbustos ao redor.
- Saiam! Venham ver! É o grande Mambo de nossa tribo que voltou da morte para nos visitar!
Uma velha foi a primeira a emergir timidamente de uma moita de tábuas. Usava apenas uma saia engordurada de couro, e uma órbita do olho estava vazia. Tinha apenas um único dente amarelo na frente da boca. Seus peitos pendurados batiam contra a barriga enrugada, que mostrava cicatrizes de tatuagens rituais.
Dirigiu um olhar para a face de Aboli e então correu a se prostrar diante dele. Ergueu-lhe um pé e o colocou sobre a cabeça.
- Poderoso Monomatapa - gemeu, num lamento -, você é o escolhido do céu. Sou um inseto inútil, um besouro que remexe bosta, diante de sua glória.
Sozinhos e aos pares, e depois em grande número, os outros aldeões surgiram de seus esconderijos e se reuniram diante de Aboli para se ajoelharem em obediência e derramar terra e cinzas nas cabeças, em reverência.
- Não deixe essa adulação virar sua cabeça, ó, Escolhido - disse Hal a Aboli com azedume, em inglês.
- Dou-lhe as dispensas reais - retrucou Aboli, sem sorrir. - Não precisa se ajoelhar em minha presença nem jogar terra em sua cabeça.
Os aldeões trouxeram bancos de madeira entalhada para Aboli e Hal se sentarem e lhes ofereceram cabaças de leite coalhado misturado com sangue fresco, papa de milho, pássaros silvestres grelhados, cupins assados e lagartas tostadas das brasas para que suas penugens se queimassem.
- Você precisa comer um pouco de tudo que lhe oferecerem - avisou Aboli a Hal. - Caso contrário, eles se sentirão bastante ofendidos.
Hal engoliu uns poucos goles da mistura de sangue e leite, enquanto Aboli bebia uma cabaça cheia. Hal achou as outras especialidades um pouco mais palatáveis: as lagartas tinham gosto de suco fresco de grama, e os cupins eram crocantes e deliciosos como castanhas assadas.
Quando tinham comido, o chefe da aldeia avançou, rastejando sobre as mãos e joelhos, para responder às perguntas de Aboli.
- Onde é a cidade do Monomatapa?
- Fica a dois dias de marcha na direção do pôr-do-sol.
- Preciso de dez bons homens para me guiar.
- Como ordenar, ó, Mambo.
Os dez homens estavam prontos dentro de uma hora, e o pequeno Tweti e seus companheiros choraram amargamente quando não foram escolhidos para aquela honra, sendo, isto sim, mandados de volta para a tarefa inferior de cuidar do gado.
A trilha que seguiram rumo oeste atravessava florestas abertas de altas e graciosas árvores interceptadas por largas extensões de pastagens de savana. Começaram a encontrar mais rebanhos do gado de giba pastoreados por pequenos garotos nus. O gado pastava numa proximidade insólita, uma trégua talvez, com hordas de antílopes selvagens. Alguns desses espécimes eram quase equinos, porém com pelagem de ruão avermelhado ou negro retinto, e chifres que se curvavam para trás como cimitarras orientais a lhes tocar os flancos.
Várias vezes, nas florestas, viram elefantes, pequenas manadas de fêmeas e filhotes. Uma vez, passaram a uma amarra de distância de um macho ossudo parado sob um espinheiro de copa chata no meio da savana aberta. Esse patriarca mostrou pouco medo deles, mas abriu as orelhas rasgadas como estandartes de batalha e ergueu as presas curvadas para o alto, a espiá-los com os olhos miúdos.
- Seria preciso dois homens fortes para carregar uma daquelas presas - disse Aboli. - Nos mercados de Zanzibar, alcançariam trinta libras inglesas por peça.
Passaram por muitas pequenas vilas de cabanas em colmeia e tetos de palha, semelhantes àquela em que Tweti vivia. Obviamente, as notícias de sua chegada tinham seguido à frente, pois os moradores saíam para olhar com reverência as tatuagens de Aboli e então se prostravam perante ele e se cobriam de terra.
Cada um dos chefes locais implorou a Aboli para que honrasse sua vila, passando a noite na nova cabana que seu povo construíra especialmente para ele, tão logo correra a notícia de sua chegada. Ofereciam comida e bebida, cabaças da mistura de leite e sangue, e potes de argila borbulhantes de aguardente de milho.
Presentearam-no com oferendas, lanças de ferro e cabeças de machado, uma pequena presa de elefante, capas e sacos de couro curtido. Aboli tocou cada um dos presentes para assinalar sua aceitação e depois os devolveu aos doadores.
Trouxeram moças para que escolhesse, belas e pequenas ninfas com braceletes de fio de cobre nos pulsos e tornozelos, e pequenas tangas de contas coloridas que mal lhe escondiam as partes pudendas. Elas davam risadinhas e cobriam as bocas com as belas mãos de palmas rosadas, encarando Aboli com olhos negros arregalados, marejados de admiração. Seus seios adolescentes brilhavam de gordura de vaca e argila vermelha, e as nádegas estavam nuas e dançavam roliças, e elas se desapontavam, conforme Aboli as dispensava. Olhavam para trás, para ele, por sobre um ombro nu, com desejo e reverência. Que prestígio teriam desfrutado se fossem escolhidas pelo Monomatapa.
No segundo dia, aproximaram-se de outra cadeia de colinas, estas porém eram mais irregulares e de lados de puro granito. Ao chegarem mais perto, viram que o cume de cada uma delas era fortificado com muralhas de pedra.
- Yonder é a grande cidade do Monomatapa. Foi construída sobre os topos da colina para resistir aos ataques dos negreiros, e seus regimentos de guerreiros estão sempre de prontidão para repeli-los.
Uma multidão desceu para lhes dar as boas-vindas, centenas de homens e mulheres a usar todas os seus enfeites de contas e jóias de marfim entalhado. Os mais velhos usavam cocares de penas de avestruz e saias de rabos de vaca. Todos os homens estavam armados de lanças, e arcos de guerra se penduravam em suas costas. Resmungaram de admiração quando viram a face de Aboli e se jogaram no chão diante dele, para que caminhasse sobre seus corpos trémulos.
Carregados por aquela multidão, subiram lentamente a trilha até o cume da mais alta colina, passando através de uma série de portais. A cada portal, parte da multidão ao redor ficava para trás, até que, ao se aproximarem da esplanada final, diante da fortaleza que coroava o cume, estavam acompanhados apenas por um punhado de chefes, guerreiros e conselheiros do mais alto posto, que usavam todas as insígnias e enfeites de seu ofício.
Mesmo esses pararam diante da porta final, e um nobre ancião com cabelos prateados e olhar aquilino tomou Aboli pela mão e conduziu-o para o pátio interno. Hal livrou-se dos conselheiros que tentavam segurá-lo e caminhou para o pátio interno ao lado de Aboli.
O chão era de argila que fora misturada com sangue e estrume de vaca, e depois nivelado até que secasse como mármore vermelho polido. Cabanas circundavam aquele pátio, muitas delas maiores do que as que Hal vira antes, e o trançado do teto era de capim novo dourado, intrincado e esplêndido. As soleiras das portas de cada cabana eram decoradas com o que parecia, à primeira vista, serem globos de marfim, e só quando estavam a meio caminho do pátio, foi que Hal se deu conta de que eram crânios humanos, e que altas pirâmides formadas de centenas deles se postavam a intervalos espaçados em torno do perímetro.
Ao lado de cada pirâmide de crânios, estava plantada uma estaca alta, e, na ponta aguçada daqueles postes, um corpo de homem ou de mulher, fora empalado pelo ânus. A maioria daquelas vítimas estava morta fazia longo tempo e fedia, porém uma ou duas ainda se retorciam e gemiam dolorosamente.
O velho parou no centro do pátio. Hal e Aboli se postaram ali, de pé, em silêncio por um momento, até que uma cacofonia estranha de instrumentos musicais primitivos e discordantes vozes humanas subiu da maior e mais imponente cabana em frente a eles. Uma procissão de criaturas avançou para a luz do sol. Arrastavam-se e se retorciam como insetos sobre a superfície polida de argila, e seus corpos e faces estavam emplastados de argila colorida e pintados em padrões fantásticos. Estavam decorados com encantamentos, amuletos e fetiches mágicos, peles de répteis, ossos e crânios de homem e de animais, e toda a horrível parafernália dos feiticeiros e das bruxas. Gemiam e uivavam e balbuciavam coisas incoerentes, reviravam os olhos e matraqueavam os dentes, e batiam em tambores e tangiam harpas de uma corda só.
Duas mulheres os seguiam. Ambas estavam completamente nuas; a primeira; uma mulher madura com seios cheios e generosos, a barriga marcada com a estria da gravidez. A outra era uma menina, esguia e graciosa com uma face doce de lua e faiscantes dentes brancos por trás dos lábios cheios. Era mais adorável que qualquer outra em que Hal pusera os olhos desde que tinham entrado na terra do Monomatapa. Sua cintura era estreita, e seus quadris cheios, a pele como de cetim negro. Ajoelhou-se com as mãos no chão com as nádegas voltadas em direção a eles. Hal se mexeu constrangido quando as mais profundas dobras das partes privadas da menina ficaram expostas a seu olhar. Mesmo naquelas circunstâncias de perigo e incerteza, descobriu-se excitado por aquela exibição.
- Não mostre emoção - avisou-o Aboli, baixinho, sem mover os lábios. - Se ama a vida, fique imóvel.
Os feiticeiros caíram em silêncio, e, por um espaço de tempo, todos ficaram imóveis. Então, irrompeu de dentro da cabana uma figura corpulenta vestida num manto de pele de leopardo. Sobre a cabeça tinha um chapéu alto da mesma pele salpicada de manchas, que exagerava a sua já majestosa altura.
Parou na soleira da porta e os encarou. Toda a companhia de feiticeiros e bruxas agachou-se a seus pés, a resmungar de admiração, e cobriram os olhos, como se sua beleza e majestade os cegasse.
Hal encarou-o de volta. Era difícil seguir o conselho de Aboli para permanecer inexpressivo, pois as feições do Monomatapa eram tatuadas exatamente no mesmo padrão e estilo que ele conhecia desde a infância, a grande cara redonda de Aboli.
Aboli quebrou o silêncio.
- Eu o vejo, grande Mambo. Eu o vejo, meu irmão. Eu o vejo, NTofho, filho de meu pai.
Os olhos do Monomatapa se estreitaram ligeiramente, porém suas feições tatuadas continuaram como se entalhadas no ébano. Com passos lentos e imponentes, andou até onde a menina nua se ajoelhava e sentou-se sobre suas costas arqueadas como se fosse um banco. Continuou a encarar Aboli e Hal, e o silêncio se prolongou.
De repente, ele fez um gesto impaciente para a mulher que se postava a seu lado. Ela tomou um dos próprios seios na mão e, colocando o mamilo intumescido entre seus lábios grossos, deu-lhe de mamar. Ele sugou o seio, a garganta a ondular, e depois a empurrou e secou a boca com a palma da mão. Refrescado por aquela bebida cálida, olhou para seu principal adivinho.
- Fale-me desses estranhos, Sweswe! - ordenou. - Faça-me uma profecia, ó, amado dos espíritos sombrios!
O mais velho e mais feio dos feiticeiros saltou de pé e começou uma dança selvagem, em giros e volteios. Gritava e saltava no ar, sacudindo o chocalho na mão.
- Traição! - esgoelou, e um cuspe espumoso espirrou de sua boca.
- Sacrilégio! Quem ousa clamar laços de sangue com o Filho dos Céus?
- Saltou em frente a Aboli como um macaco encarquilhado nas pernas esqueléticas. - Sinto o fedor de traição! - Sacudiu seu chocalho aos pés de Aboli e puxou o espanador de rabo de vaca do cinto. - Sinto o cheiro de sedição! - Brandiu o espanador e começou a tremer em cada músculo. - Que demónio é esse que se atreve a imitar a sagrada tatuagem? - Seus olhos se reviraram para dentro do crânio até que só o branco se mostrava. - Alerta! Pois o fantasma de seu pai, o grande Holomima, exige o sacrifício de sangue! - berrou, e concentrou energias para saltar para a face de Aboli, a atacá-lo com o espanador mágico.
Aboli foi mais rápido. O alfanje saltou da bainha em seu cinto como se fosse uma coisa viva. Faiscou ao sol conforme descia. A cabeça do feiticeiro foi decepada num só golpe do tronco e rolou por suas costas. Caiu na argila polida a olhar com os olhos arregalados e atónitos para o céu, e os lábios se mexiam e retorciam como se tentassem pronunciar a próxima e horrível denúncia.
O corpo sem cabeça ficou de pé, por um momento, nas pernas trémulas. Uma fonte de sangue do pescoço secionado jorrava para o ar, o espanador caiu-lhe da mão, e o tronco despencou lentamente no topo da própria cabeça.
- O fantasma de nosso pai Holomima exige o sacrifício de sangue - disse Aboli, calmamente. - E vejam! Eu, Aboli, seu filho, dei-o a ele. Nenhuma pessoa na comitiva real falou ou se moveu por aquilo que pareceu a Hal quase uma eternidade. Então, o Monomatapa começou a se sacudir todo. Sua barriga se pôs a tremelicar, e suas bochechas tatuadas, a dançar e sacudir. Sua face contorceu-se naquilo que parecia uma fúria frenética.
Hal colocou a mão no punho de seu alfanje.
- Se ele é realmente seu irmão, então eu o matarei por você - murmurou para Aboli. - Cubra minha retaguarda e lutaremos para dar o fora daqui.
Porém, o Monomatapa arreganhou a boca e soltou um berro sonoro de gargalhada.
- O tatuado fez o sacrifício de sangue que Sweswe exigiu! - bradou. Então, a alegria o dominou, e por um longo momento ele não conseguiu falar outra vez. Sacudia-se com as risadas, ofegava por fôlego, abraçou-se e, então exclamou, entre risos:
- Viram como ele ficou ali sem cabeça, enquanto sua boca ainda tentava falar? - berrou, e lágrimas de riso lhe rolaram pelas faces.
O bando servil de mágicos explodiu em guinchos e gritos de alegria complacente.
- Os céus riem! - guinchavam. - E todos os homens são felizes. De súbito, o Monomatapa parou de rir.
- Tragam-me a cabeça estúpida de Sweswe! - ordenou, e o conselheiro que os conduzira até ali avançou para obedecer. Pegou-a e ajoelhou-se diante do rei para entregá-la a ele.
O Monomatapa segurou a cabeça pelas mechas emaranhadas de cabelo pixaim e olhou para os olhos arregalados e vagos. Começou a rir novamente.
- Que estupidez não conhecer o sangue dos reis. Como não pôde reconhecer meu irmão Aboli por seu porte majestoso e a fúria de seu temperamento?
Jogou a cabeça que pingava sangue para os outros mágicos, que se dispersaram.
- Aprendam com a estupidez de Sweswe - advertiu-os. - Não façam mais falsas profecias! Não me falem mais de falsidades! Sumam, todos vocês. Ou pedirei a meu irmão para fazer outro sacrifício de sangue.
Fugiram todos em pandemônio, e o Monomatapa levantou-se de seu trono vivo e avançou para Aboli, com um imenso e feliz sorriso a se espalhar por sua face gorda e tatuada.
- Aboli - disse -, meu irmão que estava morto fazia tempo e que agora vive! - e abraçou-o.
Uma das cabanas de teto elaborado de sapé no perímetro do pátio foi colocada à disposição deles, e uma procissão de moças foi enviada até lá, carregando potes de barro de água quente, equilibrados em suas cabeças, para que os dois homens pudessem se banhar. Outras moças carregavam ainda bandejas sobre as quais estavam empilhados belos trajes para substituir suas roupas manchadas da jornada, tangas de couro curtido cheios de contas e mantos de pele e penas.
Quando tinham se lavado, vestido os novos trajes, outra fila de moças veio lhes trazer cabaças de bebida, um tipo de aguardente fermentada do mel silvestre, e o sangue e o leite misturados. Outras trouxeram gamelas de comida quente.
Depois de comerem, o conselheiro de cabelos prateados que os tinha levado até a presença do Monomatapa veio até eles. Com grande civilidade e toda a demonstração de respeito, acocorou-se aos pés de Aboli.
- Embora você fosse muito mais jovem na última vez que me viu para se recordar de mim agora, meu nome é Zama. Eu era o Induna de seu pai, o grande Monomatapa Holomima.
- É uma pena, Zama, porém não me recordo de quase nada daqueles dias. Lembro-me de meu irmão NTofho. Lembro da dor da faca de tatuagem e do corte de nossa circuncisão que suportamos juntos. Lembro-me que ele gritou mais alto do que eu.
Zama pareceu preocupado e meneou a cabeça como se para advertir Aboli contra a leviandade de falar do rei, porém sua voz saiu sensata e calma:
- Tudo isso é verdade, a não ser apenas o fato de que o Monomatapa jamais gritou. Eu estava presente na cerimónia da faca, e fui eu que prendi sua cabeça enquanto o ferro quente marcava suas faces e cauterizava o capuz de seu pênis.
- Acho que vagamente posso me recordar agora de suas mãos e de suas palavras de conforto. Agradeço por elas, Zama.
- Você e NTofho eram gémeos, nascidos na mesma hora. Assim, seu pai ordenou que ambos devessem ostentar a tatuagem real. Era um costume novo. Nunca antes dois filhos reais tinham sido tatuados na mesma cerimónia.
- Lembro-me pouco de meu pai, a não ser de como era alto e forte. Recordo-me de que, a princípio, tinha medo das tatuagens em sua face.
- Era um homem poderoso e terrível - concordou Zama.
- Lembro-me da noite em que morreu. Dos gritos e das fuziladas de mosquetes e das chamas horríveis na noite.
- Eu estava lá quando os feitores de escravos vieram com seus grilhões de tristeza. - Lágrimas encheram os olhos do velho. - Você era tão criança, Aboli. Me espanta que se recorde dessas coisas.
- Fale-me sobre aquela noite.
- Como era meu costume e meu dever, dormi no portal da cabana de seu pai. Estava ao lado dele quando ele foi atingido por uma bala dos mosquetes dos negreiros. - Zama caiu em silêncio diante da lembrança e, então, ergueu os olhos de novo. - Quando estava morrendo disse a mim: - Zama, deixe-me. Salve meus filhos. Salve o Monomatapa! - E eu corri para obedecer.
- Foi me salvar? - perguntou Aboli.
- Fui até a cabana onde você e seu irmão dormiam com sua mãe. Tentei tirá-lo dela, porém ela não quis entregá-lo a mim. "Pegue NTofho!", ordenou ela, pois você sempre fora o favorito. Então, peguei seu irmão e corremos juntos para a noite. Sua mãe e eu fomos separados pela escuridão. Ouvi-lhe os gritos, porém tinha outra criança nos braços, e voltar atrás significaria a escravidão para todos nós e a extinção da linhagem real. Perdoe-me agora, Aboli, porém deixei você e sua mãe e fugi, e, com NTofho, escapei para as colinas.
- Não há culpa no que você fez - absolveu-o Aboli.
Zama olhou ao redor da cabana com expressão cautelosa e então seus lábios se moveram, porém não emitiram nenhum som. Foi a escolha errada. Deveria ter levado você, pensou.
Suas feições mudaram, e ele se inclinou para mais perto de Aboli, parecendo querer dizer mais alguma coisa. Então, afastou-se com relutância, como se não tivesse coragem de fazer algum jogo perigoso.
Levantou-se lentamente.
- Perdoe-me, Aboli, filho de Holomima, porém devo deixá-lo agora.
- Eu o perdoo de tudo - disse Aboli, baixinho. - Sei o que se passa em seu coração. Pense nisso, Zama. Outro leão ruge no topo da colina que um dia poderia ser minha. Minha vida agora está vinculada a um novo destino.
- Tem razão, Aboli, e eu sou um velho. Não mais tenho a força ou o desejo de mudar o que não pode ser mudado. - Endireitou-se. - O Monomatapa lhe concederá outra audiência amanhã de manhã. Virei buscá-lo. - Baixou o tom de voz. - Por favor, não tente deixar o recinto real sem a permissão do rei.
Quando ele se fora, Aboli sorriu.
- Zama nos pediu para não sair. Seria difícil fazer isso. Viu os guardas que foram colocados em cada entrada?
- Sim, como se poderia deixar de vê-los.
Hal levantou-se do banco de ébano entalhado e foi até a soleira baixa da cabana. Contou vinte homens no portal. Eram todos magníficos guerreiros, altos e bem musculosos, e cada um estava armado com lança e machado de guerra. Carregavam grandes escudos de couro de boi manchado de preto e branco, e seus cocares eram de penas de garça-azul.
- Será mais difícil deixar este lugar do que foi para entrar - disse Aboli, muito sério.
Ao pôr-do-sol, chegou outra procissão de moças trazendo a refeição da noite.
- Posso ver por que seu irmão real carrega uma carga tão boa de gordura - comentou Hal, ao inspecionar a superabundância de comida.
Assim que tiveram a fome satisfeita, as moças se retiraram com as gamelas e potes, e Zama voltou. Desta vez, trazia duas donzelas, uma em cada mão. As garotas se ajoelharam diante de Hal e Aboli. Hal reconheceu a mais bonita e mais petulante das duas como a mocinha que fora o trono vivo do Monomatapa.
- O Monomatapa manda essas mulheres para vocês, para lhes suavizar os sonhos com o mel de seus lombos - disse Zama, e retirou-se.
Consternado, Hal viu a menina bonita erguer a cabeça e lhe sorrir com timidez. Tinha feições calmas e doces, com lábios cheios, e enormes olhos negros. Seus cabelos estavam torcidos e trançados com contas de tal maneira, que as tranças pendiam até seus ombros. Seu corpo era roliço e acetinado. Os seios e nádegas estavam nus, e ela usava apenas uma minúscula tanga de contas na frente.
- Eu o vejo, Grande Senhor - murmurou ela -, e meus olhos ficam toldados pelo esplendor de sua presença. - Arrastou-se para a frente como um gatinho e pousou a cabeça no colo de Hal.
- Você não pode ficar aqui. - Hal saltou de pé. - Precisa sair imediatamente.
A garota fitou-o com aflição, e lágrimas lhe encheram os olhos negros.
- Eu não o agrado, ó Grande Senhor? - murmurou.
- Você é muito bonita - gaguejou Hal -, mas... - Como poderia dizer a ela que estava casado com uma lembrança dourada?
- Deixe-me ficar, senhor - implorou a garota num tom patético. - Se me rejeitar, serei mandada para o carrasco. Morrerei com a estaca aguda enfiada através da secreta abertura de meu corpo para espetar meus intestinos. Por favor, deixe-me viver, ó Grande Senhor. Tenha misericórdia desta inútil mulher, ó Gloriosa Face Branca.
Hal voltou-se para Aboli.
- O que posso fazer?
- Mande-a embora. - Aboli deu de ombros. - Como ela disse, é inútil. Você pode tapar os ouvidos para não ter de ouvir seus berros na estaca.
- Não caçoe de mim, Aboli. Sabe que não posso trair a memória da mulher que amo.
- Sukeena está morta, Gundwane. Eu também a amava, como um irmão, porém ela está morta. Essa menina está viva, porém não estará mais ao pôr-do-sol de amanhã, a menos que tenha piedade dela. Seu juramento não foi algo que Sukeena exigisse de você.
Aboli inclinou-se sobre a outra garota, tomou-lhe a mão e puxou-a de pé.
- Não posso lhe dar mais ajuda, Gundwane. Você é um homem, e Sukeena sabia disso. Agora que se foi, ela deve achar justo que você viva o resto de sua vida como um homem de verdade.
Conduziu a garota para o fundo da cabana, onde havia uma pilha de macios karosses, e um par de pedestais de madeira entalhada se postava de lado a lado. Deitou-a e puxou a cortina de couro que os ocultava.
- Qual é seu nome? - perguntou Hal à garota que se agachava a seus pés.
- Meu nome é Inyosi, a abelha do mel - respondeu ela. - Por favor, não me mande para a morte. - Rastejou até ele, agarrou-lhe as pernas e comprimiu a face contra seu ventre.
- Não posso - resmungou ele. - Pertenço à outra. - Porém usava apenas a tanga de contas e a respiração da jovem era quente e suave em sua barriga, enquanto suas mãos acariciavam o verso de suas pernas.
- Não posso - repetiu ele, desesperado, porém uma das mãos de Inyosi avançou para debaixo de sua tanga.
- Sua boca diz uma coisa, Poderoso Senhor - ronronou ela -, mas a grande lança de sua masculinidade me diz outra.
Hal deixou escapar um gemido sufocado, pegou-a nos braços e correu com ela até onde sua própria cama de peles fora colocada.
A princípio, Inyosi ficou espantada com a fúria de sua paixão, porém em seguida deixou escapar um grito de alegria e correspondeu, beijo por beijo, investida por investida.
Ao alvorecer, quando se preparava para deixá-lo, ela murmurou:
- Salvou minha vida imprestável. Em troca, devo tentar salvar a sua, que é valiosa. - Beijou-o uma última vez e depois murmurou, com os lábios contra os dele: - Ouvi o Monomatapa conversar com Zama enquanto se sentava em minhas costas. Ele crê que Aboli voltou para reclamar o seu Assento do Céu. Amanhã, durante a audiência para a qual convocou você e Aboli, ele ordenará a seus guarda-costas que os agarrem e joguem do penhasco para as rochas lá embaixo, onde as hienas e os abutres esperam para devorar seus cadáveres. - Inyosi aconchegou-se contra o peito de Hal. - Não quero que morra, meu senhor. É muito bonito.
Então, levantou-se da cama e esgueirou-se silenciosamente para a escuridão. Hal foi até a fogueira e lançou uma acha de lenha no fogo. A fumaça subiu pelo buraco no centro do teto em domo, e as chamas iluminaram o interior com uma luz amarela bruxuleante.
- Aboli? Está sozinho? Precisamos conversar imediatamente - chamou, e Aboli saiu de detrás da cortina.
- A garota está dormindo.
- Seu irmão pretende nos matar durante a audiência.
- A moça lhe disse isso? - perguntou Aboli, e Hal concordou, sentindo-se culpado por sua infidelidade.
Aboli sorriu com simpatia.
- Então a pequena abelha do mel quer salvar sua vida. Sukeena ficaria feliz com isso. Não precisa sentir culpa.
- Se tentarmos escapar, seu irmão mandará um exército para nos perseguir. Nunca chegaremos ao rio outra vez.
- Então, tem um plano, Gundwane?
Zama veio para conduzi-los à audiência real. Saíram da penumbra da grande cabana para o brilhante sol africano, e Hal parou ao relancear os olhos ao redor, para a reunião do Monomatapa. Podia apenas estimar seu número, porém um regimento completo de guarda-costas reais se postava num círculo pelo espaço aberto, talvez um milhar de altos guerreiros com os cocares de penas de garça-azul transformando cada um em um gigante. A brisa leve da manhã agitava e revolvia as plumas, e o sol reluzia em suas lanças de lâminas largas.
Além deles, os nobres da tribo enchiam cada espaço e alinhavam-se no topo da muralha de blocos de granito que circundava a cidadela. Uma centena de esposas reais se amontoava em torno da porta da cabana do rei. Algumas eram tão gordas e carregadas com balangandãs e ornamentos que não podiam andar sem ajuda e se apoiavam pesadamente nas mucamas. Quando caminhavam, suas nádegas rolavam e ondulavam como bexigas macias cheias de toucinho.
Zama conduziu Hal e Aboli para o centro do pátio e deixou-os lá. Um pesado silêncio caiu sobre a multidão e ninguém se movia, até que de repente o capitão da guarda arrancou um sopro de um chifre espiralado de kudu e o Monomatapa surgiu na soleira de sua cabana.
Um suspiro abafado varreu a assembleia, e, como um só, todos se lançaram prostrados na terra e cobriram as faces. Apenas Hal e Aboli continuaram de pé.
O Monomatapa caminhou até seu trono vivo e sentou-se sobre as costas nuas de Inyosi.
- Fale primeiro! - sussurrou Hal pelo canto da boca. - Não o deixe dar a ordem para nossa execução.
- Eu o vejo, meu irmão! - saudou-o Aboli, e os cortesãos gemeram de pavor diante daquela quebra de protocolo. - Eu o vejo, Grande Senhor dos Céus!
O Monomatapa não demonstrou sinal algum de ter ouvido.
- Trago saudações do fantasma de nosso pai, Holomima, que foi o Monomatapa antes de você.
O irmão de Aboli se encolheu visivelmente, como se uma cobra tivesse saltado diante de sua face.
- Você fala com fantasmas? - Sua voz tremia ligeiramente.
- Nosso pai veio até mim de noite. Era tão alto como uma grande árvore de baobá, e sua face era terrível com olhos de fogo. Sua voz era como o trovão dos céus. Veio até mim para me fazer um aviso medonho.
- Que aviso era esse? - crocitou o Monomatapa, a fitar o irmão com admiração.
- Nosso pai teme por nossas vidas, a sua e a minha. Um grande perigo nos ameaça a ambos. - Algumas das gordas esposas gritaram, e uma delas caiu ao chão, num acesso, pondo espuma pela boca.
- Que perigo é esse, Aboli? - O rei olhou ao redor, temeroso, como se procurando um assassino entre seus cortesãos.
- Nosso pai me avisou que você e eu estamos ligados na vida como estávamos no nascimento. Se um de nós prosperar, então assim será também com o outro.
O Monomatapa concordou.
- O que mais disse nosso pai?
- Disse que, assim como estamos ligados na vida, também estaremos na morte. Profetizou que morreremos no mesmo dia, porém esse dia é de nossa própria escolha.
A face do rei tornou-se de um estranho tom acinzentado e brilhava de suor. Os mais velhos gritavam, e aqueles mais perto de onde ele se sentava puxaram pequenas facas de ferro e cortavam seus próprios peitos e braços, espalhando o sangue na terra para protegê-lo da feitiçaria.
- Estou profundamente preocupado com essas palavras que nosso pai proferiu - continuou Aboli. - Gostaria de poder morar com você aqui, na Terra do Céu, para protegê-lo desse destino. Contudo, ai de mim, o espectro de meu pai me avisou, além disso, que se eu ficasse mais um dia, morreria e levaria o Monomatapa comigo. Preciso partir de imediato e jamais retornar. É a única maneira de ambos podermos sobreviver à maldição.
- Então, que seja. - O Monomatapa levantou-se e apontou com o dedo trémulo. - Neste mesmo dia de hoje você deve ir embora.
- Ai de mim, meu amado irmão, não posso partir daqui sem aquela dádiva que vim buscar.
- Fale, Aboli! O que é que lhe falta?
- Preciso ter cento e cinquenta de seus melhores guerreiros para me proteger, pois um inimigo terrível jaz à minha espera. Sem esses soldados, irei para a morte certa, e minha morte deve indicar a morte do Monomatapa.
- Escolha! - berrou o Monomatapa. - Escolha dentre os melhores de meus amadodas, e leve-os com você. São seus escravos, faça com eles o que quiser. Porém, parta hoje mesmo, antes do pôr-do-sol. Deixe minha terra para sempre.
Na pinaça de vanguarda, Hal passou pelos bancos de areia e remou para a foz do Musela, do delta para mar aberto. Daniel Grande o seguia de perto, e lá estava o Golden Bough ancorado nas águas rasas de dez braças de profundidade onde o tinham deixado. Ned Tyler virou o navio de alheta e correu os canhões para fora quando os viu se aproximarem. As pinaças estavam tão lotadas de homens que tinham apenas dois centímetros ou três de bordo livre. Avançando tão baixas na água, de longe pareciam canoas de guerra. As lanças reluzentes e os cocares esvoaçantes dos amadodas reforçavam essa impressão,
e Ned deu a ordem para disparar um tiro de aviso pela proa. Conforme o canhão estrondeou e uma alta pluma de borrifos subiu da água, a meia amarra de distância na frente do bote líder, Hal levantou-se na proa e acenou com a croix pattée.
- O Senhor nos ama! - gaguejou Ned. - Era no capitão que estávamos atirando.
- Não terei pressa em esquecer aquela saudação que me deu, Sr. Tyler - disse-lhe Hal, muito sério, ao passar pela ponte de embarque. - Mereço uma salva de quatro canhões, não um simples tiro.
- Abençoado seja, capitão, eu não tinha ideia. Pensei que era um bando de selvagens pagãos, peço desculpas, senhor.
- E somos, Sr. Tyler. E somos! - Hal sorriu da confusão de Ned quando a horda de magníficos guerreiros encheu como um enxame o tombadilho do Golden Bough. - Acha que poderá fazer deles marujos, Sr. Tyler?
Tão logo se tinham posto ao largo, Hal voltou a proa para o norte uma vez mais e subiu pelo canal interior entre Madagáscar e o continente. Rumava para Zanzibar, o centro de todo o comércio naquela costa. Ali, esperava ter mais notícias do progresso da Guerra Santa no Great Horn e, se fosse afortunado, saber alguma coisa dos movimentos do Gull of Moray.
Foi um tempo de assimilação para os amadodas. Tudo a bordo do Golden Bough era estranho para eles. Nenhum jamais vira antes o mar. Acreditavam que as pinaças eram as maiores canoas já concebidas pelo homem, e estavam apavorados com o tamanho do navio, o peso de seus mastros e o tamanho de suas velas.
A maioria deles foi abatida de imediato pelos enjoos, e foram precisos vários dias para que adquirissem a habilidade de caminhar pelo navio que jogava sem perder o equilíbrio. Seus intestinos ficaram em revolução com a dieta de biscoitos e carne curtida em picles. Estavam famintos por seus potes de mingau de milho e as cabaças de sangue e leite. Jamais tinham ficado confinados em espaço tão pequeno e ansiavam pela extensa savana.
Sofreram com o frio, pois mesmo naquele mar tropical os ventos alísios eram gelados, e a corrente morna de Moçambique, muitos graus abaixo da temperatura das planícies ressecadas pelo sol da savana. Hal ordenou a Althuda, que estava encarregado dos estoques do navio, que arranjasse peças de lona de velas para eles, e Aboli mostrou-lhes como costurar calças e jaquetas de pano alcatroado.
Eles logo esqueceram essas atribulações, quando Aboli ordenou que um pelotão de homens seguisse Jiri e Matesi e Kimatti para cima, para ajustar e rizar as velas. Trinta vertiginosos metros acima do convés, a balançar no grande pêndulo do mastro principal, pela primeira vez em suas vidas aqueles guerreiros - que tinham, cada um, matado seu leão - foram dominados pelo terror.
Aboli subiu até onde se agarravam desamparadamente às enxárcias, e caçoou deles:
- Olhem para essas belas virgens. Julguei a princípio que houvesse um homem entre eles, porém vejo que todos devem se agachar quando mijam. - Então se levantou ereto na verga oscilante e riu deles. Correu até o fim dela e lá executou uma dança de guerra de saltos e batidas de pé. Um dos amadodas não pôde mais suportar aquela zombaria: soltou o aperto mortal nos cordames e equilibrou-se ao longo da verga até onde Aboli estava, com as mãos nos quadris.
- Um homem entre eles! - Aboli riu e abraçou-o.
Durante a semana seguinte, três dos amadodas caíram dos cordames ao tentar imitar aquele feito. Dois despencaram no mar, porém, antes que Hal pudesse virar o navio e voltar para apanhá-los, os tubarões os pegaram. O terceiro se espatifou no tombadilho, e seu fim foi mais misericordioso. Depois disso, não houve mais fatalidades, e os amadodas, acostumados desde a infância a escalar as árvores mais altas em busca de mel e ovos de pássaros, tornaram-se bem depressa peritos como homens do topo do mastro.
Quando Hal ordenou que os feixes de lanças fossem trazidos do porão e entregues aos amadodas, eles urraram e dançaram deleitados, pois tinham nascido lanceiros. Encantaram-se com as lanças de cabos pesados com suas cabeças mortais de ferro. Aboli adaptou suas táticas e formações de luta para os espaços do tombadilho lotado do Golden Bough. Mostrou-lhes como formar o clássico Testudo Romano, seus escudos a se sobreporem, travados como as escamas de um tatu. Com aquela formação, poderiam varrer o convés de um navio inimigo irresistivelmente.
Hal ordenou-lhes que armassem uma pesada esteira de corda entranhada de breu sob a abertura do castelo de proa para servir de alvo. Assim que os amadodas tinham assimilado o peso e o equilíbrio das pesadas lanças, podiam arremessá-las pela extensão do navio para enterrarem as cabeças de ferro em cheio na esteira de fibras rústicas. Atiravam-se a esses exercícios com tamanho gosto, que dois dos seus foram trespassados e mortos antes que Aboli pudesse fazê-los entender que aquelas eram batalhas simuladas e não deveriam ser disputadas até o extermínio.
Depois, chegou o momento de apresentá-los aos arcos ingleses. Seus próprios arcos eram curtos e fracos em comparação, e eles olharam de soslaio para aquela arma de um metro e oitenta, testaram em dúvida o peso maciço da tração e menearam as cabeças. Hal pegou o arco de suas mãos e colocou uma flecha. Olhou para cima, para a única gaivota branca e preta que pairava no alto sobre o mastro principal.
- Se eu abater uma daquelas aves, vocês a comerão crua? - perguntou, e eles estouraram em gargalhadas com a piada.
- Comerei as penas também! - gritou um mais arrogante chamado de Ingwe, o Leopardo.
Num movimento fluido, Hal puxou a corda e a soltou. A flecha arqueou-se para cima, seu vôo se curvando ao vento, e eles gritaram de admiração quando se espetou no peito nevado da gaivota e as asas enormes se dobraram. O pássaro tombou numa confusão de penas e pés empalmados, e caiu no convés ao lado de Hal. Um amadoda o pegou, e a carcaça transfixada foi passada de mão em mão entre trejeitos atónitos.
- Não amassem as penas - avisou-os Hal. - Vão estragar o jantar de Ingwe.
Daquele momento em diante, o amor que dedicaram ao arco longo foi apaixonado, e, em questão de dias, transformaram-se em arqueiros de primeira linha. Quando Hal rebocou uma barrica vazia a uma distância de uma amarra atrás do navio, os amadodas atiraram nela, primeiro individualmente e depois em divisões em massa como arqueiros ingleses. Quando a barrica foi içada de volta ao tombadilho, estava como as costas de um porco-espinho, e eles recuperaram sete das cada dez flechas que tinham arremessado.
Somente numa área os amadodas não mostravam qualquer aptidão: no serviço das grandes colubrinas de bronze. A despeito de todas as ameaças e caçoadas que lhes dirigia, Aboli não conseguiu que se aproximassem de qualquer delas com nada menos que respeito supersticioso. A cada vez que uma surriada estourava, eles urravam:
- É bruxaria. É o trovão dos céus.
Hal elaborou um novo boletim de turno, no qual os postos de batalha da tripulação foram rearranjados para ter os marujos brancos em serviço nas baterias, e os amadodas manejando as velas e compondo o grupo de abordagem.
Um banco estacionário de nuvens altas, vinte léguas à frente de sua proa, marcava a Ilha de Zanzibar. Uma fímbria de coqueiros circundava a praia branca da baía, porém as muralhas maciças da fortaleza eram ainda mais brancas, reluzindo como penhascos de gelo de uma geleira ao sol. A cidadela fora construída um século antes pelos portugueses e, até apenas uma década antes, havia assegurado o domínio daquela nação das rotas de comércio de todo o litoral oriental do continente africano.
Mais tarde, os árabes omanis, sob seu rei guerreiro, Ahmed El Grang, o Canhoto, avançaram com seus caíques de guerra, atacaram os portugueses e devastaram sua guarnição com grande carnificina. Aquela perda tinha assinalado o início do declínio da influência portuguesa sobre a costa, e os omanis tinham usurpado seu lugar como a primeira nação de comércio.
Hal examinou o forte pelas lentes de sua luneta e notou a bandeira do Islã a flutuar sobre a torre, e as filas rentes de canhões ao longo das muralhas. Aquelas armas poderiam vomitar chumbo quente em qualquer embarcação hostil que tentasse entrar na baía.
Sentiu o arrepio de um pressentimento ao longo da espinha ao contemplar o fato de que, se se aliasse às forças do padre, tornar-se-ia inimigo de Ahmed El Grang. Um dia, aqueles enormes canhões poderiam estar disparando sobre o Golden Bough. Nesse ínterim, ele devia fazer o melhor daquela última oportunidade, entrar no acampamento omani como um neutro e reunir todas as informações secretas que pudesse pelo caminho.
O porto estava coalhado de pequenas naus, a maioria caíques dos muçulmanos da índia, Arábia e Mascate. Havia dois grandes navios: um ostentava uma bandeira espanhola, e o outro era francês, porém Hal não reconheceu nenhum dos dois.
Todos aqueles mercadores eram levados a Zanzibar pelas riquezas da África, o ouro da ilha de Sofala, a goma-arábica, o marfim, e o fluxo infindável de gente para seu mercado de escravos. Era ali que sete mil homens, mulheres e crianças eram oferecidos para venda a cada estação, quando os ventos alísios traziam os barcos em torno do cabo da Boa Esperança e de toda a vasta bacia do oceano das índias.
Hal abaixou suas insígnias em cortesia para a fortaleza e depois dirigiu o Golden Bough em direção à ancoragem sob as velas de joanete. A sua ordem, a âncora caiu com estardalhaço na água clara e o pequeno retalho de lona foi enrolado pelos exuberantes amadodas de Aboli. Quase de imediato, o navio foi cercado por uma frota de pequenos botes a vender cada bem de comércio concebível, desde frutas frescas e água a garotinhos. Esses últimos recebiam ordens de seus donos para se inclinarem sobre as bancadas das embarcações, erguerem seus mantos e exibirem as pequenas nádegas amarronzadas para o deleite dos marujos na amurada do Golden Bough.
- Belos meninos para uma boa trepada - cantavam os libidinosos em inglês simplificado. - Bumbuns doces como mangas maduras.
- Sr. Tyler, mande descer um bote - ordenou Hal. - Vou a terra. Levarei Althuda e mestre Daniel comigo, e dez de seus melhores homens.
Remaram para os degraus do ancoradouro de pedra abaixo das muralhas da fortaleza, e Daniel Grande desceu em terra primeiro para abrir uma passagem através da multidão de mercadores, que enxameavam pela beira d'água para oferecer suas mercadorias. Na última visita, ele acompanhara Sir Francis em terra, de maneira que conhecia o caminho. Seus marujos formaram uma falange em torno de Hal e marcharam pelas ruas estreitas.
Passaram por bazares e tendas lotadas onde os comerciantes exibiam seus estoques. Mercadores e marujos de outras embarcações no porto examinavam as pilhas de presas de elefante, e bolos de cheirosa goma-arábica, feixes de penas de avestruz e chifres de rinoceronte. Regateavam o preço dos tapetes de Mascate e das agulhas arrolhadas de porco-espinho cheias de grãos de ouro aluvial de Sofala e dos rios do interior da África. Os feitores de escravos faziam desfilar filas de seres humanos em parada para compradores potenciais, para que examinassem seus dentes e apalpassem os músculos dos homens ou erguessem as tangas das jovens para ver suas doçuras.
Daquela área de comércio, Daniel Grande os conduziu para o setor da cidade onde os prédios de cada lado dos becos quase tocavam um ao outro no alto e bloqueavam a luz do dia. O fedor de fezes humanas dos esgotos abertos, que corria para o porto, quase os sufocava.
Daniel Grande parou abruptamente em frente a uma porta em arco de mogno, entalhada com intrincados motivos islâmicos e guarnecida de lanças de ferro, e puxou a corda pendente do sino. Em questão de minutos, ouviram os ferrolhos do lado oposto serem puxados, e a pesada porta se abriu. Meia dúzia de pequenas faces marrons espiaram para eles, meninos e meninas de sangue misturado e de todas as idades entre cinco e dez anos.
- Bem-vindos! Bem-vindos! - chilrearam em charmoso inglês com sotaque antigo. - Que a bênção de Alá, o Todo-poderoso, cria sobre você, milorde inglês. Possam todos os seus dias serem dourados e perfumados com o jasmim silvestre.
Uma garotinha puxou Hal pela mão e levou-o através do pátio interior. Uma fonte marulhava no centro, e o ar estava impregado do aroma de jasmim vermelho e de flores amarelas de tamarindo. Uma figura alta, vestida em fluidos mantos brancos e com o albornoz árabe preso com cordão dourado, levantou-se da pilha de tapetes de seda onde estava reclinada.
- Realmente acrescento um milhar de boas-vindas aos votos de acolhida de minhas crianças, meu bom capitão, e possa Alá banhá-lo com riquezas e bênçãos - disse, num familiar e reconfortante sotaque de Yorkshire. - Observei seu belo navio ancorar na baía e soube que logo viria me visitar. - Bateu palmas, e, do fundo da casa, emergiu uma fila de escravas, cada uma trazendo bandejas que continham copos coloridos de refrescos de frutas e leite de coco e pequenas tigelas de docinhos e nozes tostadas.
O cônsul mandou que Daniel Grande e seus marujos fossem levados até os alojamentos dos criados, nos fundos da casa.
- Terão refrescos - disse.
Hal lançou um olhar significativo a Daniel Grande, que o contramestre interpretou adequadamente. Não encontrariam nenhuma bebida alcoólica naquela casa islâmica, porém haveria mulheres, e os marujos teriam de se proteger delas. Hal manteve Althuda a seu lado. Poderia utilizá-lo para redigir documentos ou tomar notas.
O cônsul conduziu-os a um canto reservado do pátio.
- Agora, deixe que eu me apresente: sou William Grey, o cônsul de Sua Majestade para o Sultanato de Zanzibar.
- Henry Courtney, a seu serviço, senhor.
- Conheci um Sir Francis Courtney. São por acaso parentes?
- Meu pai, senhor.
- Ah! Um homem honrado. Por favor, apresente-lhe meus respeitos da próxima vez que o encontrar.
- Tragicamente, ele foi morto na guerra holandesa.
- Minhas condolências, Sir Henry. Por favor, sente-se. - Uma pilha de tapetes de seda de belos padrões fora colocado ali perto, para Hal. O cônsul sentou-se do lado oposto a ele. Assim que estava confortável, um escravo trouxe a Grey um narguilé. - Uma baforada de bhang é um remédio soberano para os destemperos do fígado e para a malária, que é uma praga nestes climas. Quer se juntar a mim, senhor?
Hal recusou a oferta, pois sabia das peças que o haxixe das flores indianas do cânhamo pregava na mente, e os sonhos e transes com os quais poderia seduzir o fumante.
Enquanto fumava o cachimbo, Grey interrogou-o astuciosamente quanto a seus recentes movimentos e seus futuros planos, e Hal foi educado porém evasivo. Como um par de duelistas, aparavam os golpes e esperavam por uma abertura. Conforme a água borbulhava no frasco alto de vidro do cachimbo e a fumaça perfumada esvoaçava pelo pátio, Grey tornou-se mais afável e expansivo.
- Vive no estilo de um grande sheik. - Hal tentou um pouco de bajulação, e Grey reagiu, satisfeito.
- Acharia difícil de acreditar que quinze anos atrás eu era simplesmente um escrivão de posto inferior com emprego na Companhia Inglesa das índias Orientais? Quando meu navio naufragou nos corais de Sofala, vim dar em terra aqui, como um náufrago. - Deu de ombros e fez um gesto que era mais oriental que inglês. - Como dizem, Alá sorriu para mim.
- Abraçou o Islã? - Hal não permitiu que sua expressão mostrasse a repugnância que sentia pelo apóstata.
- Sou um verdadeiro crente de um só Deus, e Maomé é seu Profeta - concordou Grey.
Hal ficou a imaginar o quanto a decisão de se converter tinha se baseado em considerações políticas e práticas. Grey, o cristão, não teria prosperado em Zanzibar como Grey, o muçulmano, tão obviamente prosperara.
- A maioria dos ingleses que aportam em Zanzibar tem uma coisa em mente - continuou Grey. - Vêm aqui para comerciar e normalmente para adquirir uma carga de escravos. Lamento que esta não seja a melhor estação para a escravatura. Os ventos alísios trouxeram os caíques da índia ulterior e além. Já levaram para longe os melhores espécimes, e o que sobrou no mercado é o restolho. Contudo, ainda tenho disponíveis duzentas criaturas de primeira linha, o melhor que você encontrará em mil milhas de viagem.
- Obrigado, senhor, mas não estou interessado em escravatura recusou Hal.
- Essa, senhor, é uma decisão lamentável. Asseguro que há ainda grandes fortunas a serem feitas com o comércio. Os plantadores de cana do Brasil e do Caribe estão implorando por trabalhadores que labutem em seus campos.
- Obrigado de novo. Não estou no mercado. - Agora ficava evidente para Hal como Grey fizera sua própria fortuna. O posto de cônsul era secundário diante do de agente e intermediário dos mercadores europeus que aportavam em Zanzibar.
- Então, há outra área altamente lucrativa na qual eu poderia lhe dar assistência. - Grey fez uma pausa, com ar de cautela. - Observei seu navio de meu terraço quando o senhor ancorou e não pude deixar de notar que está bem armado. Alguém poderia acreditar que seja um vaso de guerra. - Hal concordou evasivamente, e Grey continuou. - O senhor pode não saber que o sultão de Omã, amado de Alá, Ahmed El Grang, está em guerra com o imperador da Etiópia.
- Ouvi falar.
- Grassa uma guerra em terra e mar. O sultão tem concedido Cartas de Marca a navios que queiram se juntar a suas forças. Essas comissões são, essencialmente, restritas aos capitães muçulmanos. Contudo, tenho grande influência junto à corte do sultão. Posso obter uma comissão em seu nome. Claro, tal privilégio não sai barato. Custaria duzentas libras a mim para obter uma Carta de Marca omani para você, meu senhor.
Hal estava prestes a recusar com indignação aquela oferta para se juntar ao pagão na guerra contra Cristo e seus seguidores, porém o instinto o alertou para não repudiá-la de imediato.
- Pode haver lucros, então, senhor? - perguntou, pensativo.
- Realmente. Há imensas riquezas das quais se apoderar. O império do Padre é uma das mais antigas cidadelas da fé cristã. Por bem mais de mil anos, o ouro e as oferendas dos peregrinos e devotos têm sido empilhados nas casas de tesouro das igrejas e monastérios. O próprio padre é tão rico quanto qualquer soberano europeu. Dizem que há mais de vinte toneladas de ouro em seu tesouro em Aksum. - Grey respirava pesadamente de cobiça diante da imagem que conjurara em sua própria mente.
- Seria capaz de obter uma comissão para mim de parte do sultão? - Hal inclinou-se para a frente com assumida ansiedade.
- Na verdade, sim, senhor. Não faz um mês, consegui obter uma comissão para um escocês. - Um súbito pensamento ocorreu a Grey, e sua face iluminou-se. - Se eu fizer o mesmo pelo senhor, talvez possam juntar suas forças. Com dois navios de batalha tais como os seus, seriam um esquadrão poderoso o bastante para tomar qualquer coisa que a marinha do padre pudesse mandar contra vocês.
- A ideia me anima. - Hal sorriu, para encorajá-lo, tentando não mostrar muito interesse. Imaginava quem poderia ser o escocês. - Porém diga-me, quem é esse homem de quem fala?
- Um fino cavalheiro e um grande marinheiro - retrucou Grey, com entusiasmo. - Partiu de Zanzibar não faz cinco semanas, rumo a Great Horn.
- Então poderei alcançá-lo e juntar meu navio ao dele - resmungou Hal, como se pensasse em voz alta. - Dê-me o nome dele e o posto, senhor.
Grey relanceou os olhos pelo pátio de um jeito conspiratório e depois baixou o tom de voz.
- É um nobre de alta estirpe, o conde de Cumbrae. - Grey recostou-se e deu um tapa no joelho para enfatizar a importância de sua revelação.
- Eis aí, senhor! O que pensa disso?
- Estou profundamente admirado! - Hal não ocultou sua excitação. - Contudo, o senhor realmente acredita que poderia obter uma comissão para mim também? E, se assim for, quanto tempo levaria o negócio?
- As coisas não são feitas com rapidez na Arábia. - Grey tornou-se evasivo outra vez. - Porém, podem sempre ser apressadas com uma pequena baksheesh. Digamos, umas duzentas libras extras, isto é, quatrocentas libras ao todo, e eu poderia colocar a comissão em suas mãos na noite de amanhã. Naturalmente, eu precisaria ter seu pagamento adiantado.
- É uma grande soma de dinheiro. - Hal franziu a testa. Agora que sabia para onde o Gavião rumava, queria voltar imediatamente ao Golden Bough e sair em sua perseguição. Porém, reprimiu o impulso. Precisava arrancar qualquer retalho de informação de Grey.
- Sim, é - concordou Grey. - Porém, pense no retorno que trará. Vinte toneladas de puro ouro para o homem ousado o suficiente para pegá-lo do tesouro do padre. E isso não é tudo. Há também as jóias e outros tesouros mandados em tributo para o império por mais de mil anos, os tesouros das igrejas cópticas; as relíquias de Jesus Cristo e da Virgem, dos apóstolos e dos santos. O resgate que poderiam exigir não tem limite. - Os olhos de Grey brilhavam de cobiça. - Dizem.••
- Interrompeu-se e baixou a voz outra vez. - Dizem que o padre João é o guardião do próprio Santo Graal.
- O Santo Graal... - Hal empalideceu de respeito, e Grey ficou deliciado em ver a reação que provocava.
- Sim! Sim! O Santo Graal! O precioso cálice pelo qual os cristãos têm procurado desde a crucificação.
Hal meneou a cabeça e encarou Grey com não fingida admiração. Sentia-se movido por uma estranha sensação de déjà vu que o deixou sem palavras. As profecias tanto de seu pai como de Sukeena perpassaram num relâmpago por sua mente. Sabia, no fundo do coração, que isso era parte do destino que tinham predito para ele.
Grey tomou o silêncio e o menear da cabeça por ceticismo.
- Eu lhe asseguro, senhor, que o Santo Graal é a mais pungente razão pela qual o grão-mogol e Ahmed El Grang têm atacado o império da Etiópia. Ouvi isso dos próprios lábios do sultão. Ele também está convencido de que a relíquia está sob os cuidados do padre. Um dos mais poderosos aiatolás do Islã profetizou isso e lhe deu a palavra de Alá de que, se pudesse arrebatar o Graal do padre, sua dinastia se investiria de um poder inaudito, e proclamaria o triunfo do Islã sobre todas as falsas religiões do mundo.
Hal fitou-o estupefato. Seus pensamentos estavam em medonha confusão e ele não tinha mais certeza de si mesmo ou de alguma coisa a seu redor. Precisou de um imenso esforço para pôr de lado uma perspectiva tão terrível como a subjugação do cristianismo e para reorganizar as ideias.
- Onde essa relíquia é mantida escondida? - perguntou, rouco de emoção.
- Ninguém além do padre e seus monges sabe com certeza. Alguns dizem que se encontre em Aksum ou em Gonder, e outros que está escondida num mosteiro no alto das montanhas.
- Será que caíram nas mãos de El Grang ou do grão-mogol? Quem sabe a guerra já esteja perdida e vencida? - sugeriu Hal.
- Não! Não! - Grey foi veemente. - Chegou um caíque do golfo de Aden esta manhã mesmo. As notícias que traz têm menos de oito dias. Parece que os exércitos vitoriosos do Islã foram repelidos em Mitsiwa. Dentro das fileiras cristãs, destacou-se um poderoso general. Chamam a esse guerreiro Nazet, e embora não passe de um garoto, os exércitos do Tigre e de Gala congregam-se sob seu estandarte.
Hal teve a impressão, pelo alívio com que Grey contava aqueles reveses para a causa do Islã, que o cônsul tinha o pé em duas canoas.
- Nazet rechaçou os exércitos de El Grand e do grão-mogol. Congregam-se diante de Mitsiwa, concentrando-se para a batalha final que decidirá a guerra. Está longe de terminar, contudo. Sinceramente, eu o aconselho, meu jovem amigo: assim que tenha em mãos a Carta de Marca que conseguirei para você, parta para Mitsiwa a tempo de partilhar os espólios.
- Preciso pensar em tudo que me contou. - Hal levantou-se da pilha de tapetes. - Se eu resolver aceitar sua generosa oferta, voltarei amanhã com as quatrocentas libras para comprar minha comissão do sultão.
- Será sempre bem-vindo em minha casa - assegurou-lhe Grey.
Leve-me de volta ao navio tão depressa quanto possa - ordenou Hal rispidamente a Daniel Grande, no momento em que as altas portas entalhadas se fecharam por trás deles. - Quero partir com a maré desta noite.
Não tinham chegado ao primeiro bazar, quando Althuda pegou Hal pelo braço.
- Preciso voltar. Deixei meu diário no pátio.
- Estou numa pressa desesperada, Althuda. O Gavião já está mais de um mês adiante de nós, e sei agora com certeza onde devo procurá-lo.
- Preciso recuperar meu diário. Vá adiante para o navio. Não demorarei muito. Mande o bote de volta para mim, e diga que esperem nos degraus do porto. Estarei lá antes que parta.
- Não me falhe, Althuda. Não posso me atrasar.
Relutante, Hal deixou-o ir e apressou-se em alcançar Daniel Grande. Tão logo chegou ao Golden Bough, mandou o escaler para esperar por Althuda, em terra, e deu as ordens para aprontar o navio para o mar. Depois, desceu para sua cabine e espalhou pela mesa sob as janelas de popa as cartas náuticas e orientações de navegação para o Golfo de Aden e o mar Vermelho, que herdara de Llewellyn.
Ele as vinha estudando quase todo dia desde que estava a bordo do Golden Bough, de maneira que não teve qualquer dificuldade em localizar todos os nomes que Grey mencionara na conversa. Traçou seu curso para contornar a ponta do Grat Horn e descer pelo golfo de Aden através dos estreitos de Bab El Mandeb e para a região sul do mar Vermelho. Havia centenas de pequenas ilhas dispersas pela costa da Etiópia, perfeitos covis para piratas e corsários.
Teria de evitar as frotas do grão-mogol e dos omanis até que alcançasse a corte cristã do Padre e obtivesse dele sua comissão. Não poderia atacar os muçulmanos antes de ter tal documento em mãos, ou se arriscaria ao mesmo fado de seu pai, ou de ser acusado de pirataria em altos-mares.
Talvez pudesse se vincular ao exército cristão do general Nazet, de quem Grey falara, e colocar o Golden Bough à sua disposição. Em qualquer circunstância, ponderou, a frota de transporte do exército muçulmano estaria reunida naqueles mares congestionados em enorme quantidade e seria presa fácil para uma rápida fragata audaciosamente manejada. Grey tinha razão num ponto: haveria fortuna e glória a serem conquistadas nos dias à frente.
Ouviu o sino anunciar o fim do turno, deixou as cartas e subiu para o convés. Viu de relance, pela posição diferente do navio com a preamar, que a maré subira.
Então olhou para o porto e, mesmo àquela distância, reconheceu a figura de Althuda no topo dos degraus do ancoradouro. Estava em profunda conversação com Stan Andorinha, que levara o escaler de volta para esperar por ele.
- Maldição - resmungou Hal. - Está perdendo tempo com conversas ociosas. - Voltou toda a atenção para os assuntos do navio e observou seu homem de gávea subir ao alto, rápido e com pés seguros, para assentar as velas. Quando olhou para a praia novamente, viu que o escaler se aproximava da amurada do navio, abaixo de onde estava.
Assim que o bote encostou, Althuda subiu a escada. Parou em frente a Hal e disse, com uma expressão muito séria.
- Vim buscar Zwaantie e meu filho. E lhe dizer adeus.
- Não compreendo. - Hal estava estupefato.
- O cônsul Grey me tomou a seus serviços como escrivão. Pretendo ficar com minha família aqui em Zanzibar - retrucou Althuda.
- Mas... por que, Althuda? Por quê?
- Como sabe muito bem, tanto Sukeena como eu fomos criados por nossa mãe como seguidores de Maomé, o Profeta de Alá. Você tem a intenção de deflagrar guerra contra os exércitos do Islã em nome do deus cristão. Não posso mais segui-lo.
Althuda afastou-se e rumou para o castelo de proa. Voltou poucos minutos depois trazendo Zwaantie e carregando o pequeno Bobby. Zwaantie chorava silenciosamente, mas não olhou para Hal. Althuda parou no topo da escada e encarou-o.
- Lamento esta separação, porém acalento com carinho a lembrança do amor que dedicou à minha irmã. Peço a bênção de Alá sobre você - disse, e depois seguiu Zwaantie para o escaler.
Hal ficou a observá-los rumarem para o cais e subirem os degraus de pedra. Althuda não olhou para trás, e ele e sua pequena família desapareceram na multidão de mercadores de mantos brancos e seus escravos.
Hal sentiu-se tão triste que não se deu conta de que o escaler voltara, até que, com um sobressalto, percebeu que já estava sendo içado para bordo e que Ned Tyler esperava na cana de leme por suas ordens.
- Içar âncora, por favor, Sr. Tyler. Assente as velas de joanete e rume para o canal. - Lançou um último olhar para terra. Estava consternado, pois Althuda cortara seu último e ténue elo com Sukeena. - Ela se foi - murmurou. - Agora, ela se foi realmente.
Resolutamente, voltou as costas para a cidadela branca e olhou para a frente, onde as montanhas de Usambara, no continente africano, apontavam, baixas e azuis no horizonte.
- Ponha o navio no rumo de bombordo, Sr. Tyler. Assente todas as velas planas. O curso é norte por leste para transpor a ilha Pemba. Marque na tabela de rota.
O vento manteve-se firme, e, doze dias mais tarde, passaram pelo cabo Guardafui, na ponta do grande chifre de rinoceronte da África, e diante deles se abriu o golfo de Aden. Hal ordenou a mudança de curso e rumaram para oeste.
Os ásperos penhascos de rocha vermelha e colinas do golfo de Aden eram a garganta da África. Velejaram para dentro dela com as últimas brisas dos alísios a lhe enfunarem os panos. O calor era de sufocar, e, sem o vento, seria insuportável. O mar tinha um azul vívido peculiar, que refletia as barrigas nevadas das andorinhas-do-mar que volteavam sobre a esteira do navio.
Adiante, o litoral rochoso se constringia na garganta de Bab El Mandeb. Com dia claro, passaram pelos estreitos demarcados pelas pedras para dentro da pança do mar Vermelho, e Hal encurtou as velas, pois aquelas eram águas perigosas, pontilhadas de centenas de ilhas e semeadas de recifes de coral denteados. Ao leste, jaziam as terras tórridas da Arábia, e, a oeste, as costas da Etiópia e o império do padre.
Começaram a encontrar outros navios naquelas águas congestionadas. A cada vez que o vigia de gávea bradava avisos para o tombadilho superior, Hal subia, ele mesmo ansioso por ver os joanetes do navio de velas quadradas subir no horizonte e reconhecer o perfil do Gull of Moray. Porém, a cada vez se desapontava. Eram todos caíques que fugiam de sua alta e perigosa silhueta, a buscar abrigo no santuário de águas rasas onde o Golden Bough não ousaria segui-los.
Bem depressa Hal percebeu quão imprecisas eram as cartas náuticas que encontrara na mesa de Llewellyn. Algumas das ilhas pelas quais passavam não eram mostradas, e outras estavam assinaladas léguas além de sua verdadeira posição. As sondagens marcadas eram mera ficção da imaginação do cartógrafo. As noites eram sem lua, e Hal não se atrevia a ir avante entre aqueles recifes e ilhas na escuridão. Ao crepúsculo, ancorava para a noite a sotavento de uma das ilhas maiores.
- Sem luzes - avisou a Ned Tyler -, e mantenha os homens quietos.
- Não há como manter os homens de Aboli quietos. Grasnam como gansos sendo comidos por uma raposa.
Hal sorriu.
- Falarei com Aboli.
Quando subiu ao tombadilho outra vez, no início do primeiro turno de vigia, o navio estava silencioso e escuro. Fez a ronda, parando por uns poucos minutos para falar com Aboli, que era a sentinela. Então, foi se postar sozinho na amurada, a olhar para os céus, perdido de deslumbramento diante da glória das estrelas.
De repente, ouviu um som estranho e, por um momento, pensou que vinha do navio. Então, percebeu que eram vozes humanas falando um idioma que ele não conhecia. Caminhou depressa para a popa, e os sons estavam mais próximos e mais claros. Ouviu o estalar de cordame e o ranger e o marulhar de remos.
Saiu correndo e encontrou Aboli.
- Reúna um grupo de abordagem armado. Dez homens - murmurou. - Sem barulho. Baixe o escaler.
Levou apenas minutos para que Aboli executasse as ordens. Quando o bote tocou a água, pularam dentro dele e se afastaram. Hal estava na cana do leme e seguia pela escuridão, buscando às cegas a ilha não vista.
Depois de vários minutos, murmurou:
- Alto com o avanço! - e os remadores descansaram os remos. Os minutos se escoaram e, então, de repente, bem perto, ouviram algo estalar num tombadilho de madeira e uma exclamação de dor ou aborrecimento. Hal apertou os olhos naquela direção e viu o pálido contorno de uma pequena vela latina contra a luz das estrelas.
- Todos juntos. Avante! - murmurou, e o bote avançou em frente. Aboli postava-se na proa com um gancho de garra e um cabo. O pequeno caíque que emergiu abruptamente da escuridão logo adiante não era mais alto de amurada que o escaler. Aboli girou o gancho ao lado do corpo e soltou o cabo.
- Preso! - resmungou. - Lá vamos nós, rapazes.
A tripulação largou os remos e, com um coro de uivos de arrepiar o coração, caiu num enxame sobre o convés da embarcação estranha. Foram recebidos por gritos patéticos de aflição e terror. Hal trancafiou a cana de leme, apanhou a lanterna coberta e correu atrás de seus homens para restringir sua beligerância. Quando abriu o postigo da lanterna e iluminou ao redor, descobriu que a tripulação do caíque já fora subjugada, e estava estendida de braços abertos no convés. Havia uma dúzia ou mais de marujos de pele escura meio despidos, porém, entre eles, um homem mais velho vestido num manto comprido que Hal, a princípio, tomou pelo capitão.
- Tragam aquele aqui - ordenou.
Quando arrastaram o cativo para diante de si, Hal viu que ele tinha uma barba comprida que chegava quase aos joelhos, e um amontoado de cruzes coptas e rosários pendurados no peito. A mitra quadrada em sua cabeça era bordada com fios de ouro e prata.
- Tudo bem! - avisou aos homens que o seguravam. - Tratem-no com gentileza. É um padre.
Eles soltaram o prisioneiro entre brados alegres. O padre rearranjou seu manto e alisou a barba com as pontas dos dedos, e depois se empertigou a toda altura e encarou Hal com glacial dignidade.
- Fala inglês, padre? - perguntou Hal.
O homem fitou-o de volta. Mesmo sob a luz incerta da lanterna, seu olhar era frio e perspicaz. Ele não mostrou qualquer indício de ter compreendido.
Hal mudou para o latim:
- Quem é o senhor, padre?
- Sou Fasilides, bispo de Aksum, confessor de Sua Majestade Cristã, Uyasu, Imperador da Etiópia - retrucou ele em fluente e educado latim.
- Imploro humildemente seu perdão, padre. Confundi este navio com um saqueador islâmico. Anseio por sua bênção. - Hal caiu de joelhos.
Talvez eu esteja exagerando, pensou, porém o bispo pareceu aceitar aquilo como o seu dever. Fez um sinal-da-cruz sobre a cabeça de Hal e depois colocou dois dedos em sua testa.
- In nomine patris, et filii, et spiritus sancti - entoou, e deu a Hal o anel para beijar. Pareceu suficientemente apaziguado para Hal se aproveitar da vantagem.
- Este é um encontro muito providencial, padre. - Hal se pôs de pé de novo. - Sou um cavaleiro do Templo da Ordem de São Jorge e do Santo Graal. Estou em viagem para colocar meu navio e sua companhia à disposição do padre João, o imperador mais cristão da Etiópia, em sua guerra santa contra as forças do Islã. Como confessor de Sua Majestade, talvez pudesse me conduzir até sua corte.
- Pode ser possível arranjar uma audiência - disse Fasilides, com ares importantes.
No entanto, seu aplomb ficou abalado e suas maneiras melhoraram muito quando a luz da alvorada revelou o poder e a magnificência do Golden Bough, e ele se tornou ainda mais amável quando Hal o convidou para ir a bordo e se ofereceu para levá-lo pelo resto da viagem.
Hal podia apenas imaginar a razão pela qual o bispo de Aksum estaria se deslocando furtivamente pelas ilhas no meio da noite num pequeno caíque fedendo a peixe, e Fasilides tornou-se novamente distante e evasivo quando questionado.
- Não tenho liberdade para discutir assuntos de estado, sejam temporais ou espirituais.
Fasilides trouxe seus dois criados a bordo consigo, e um dos pescadores do caíque para atuar como piloto para Hal. Uma vez instalado no Golden Bough, acomodou-se confortavelmente na pequena cabine adjacente à de Hal. Com um piloto local a bordo, Hal pôde rumar na direção de Mitsiwa com toda pressa, nem mesmo se dignando a encurtar as velas quando o sol se pôs naquela tarde.
Convidou Fasilides para jantar consigo, e o bom bispo mostrou uma profunda afinidade com o vinho e o conhaque de Llewellyn. Hal manteve-lhe o copo cheio até a borda, um feito de prestidigitação. A dignidade de Fasilides diminuiu na proporção do nível da garrafa de conhaque, e ele começou a responder às perguntas de Hal com menos e menos reserva.
- O imperador está com o general Nazet no mosteiro de São Lucas, nas colinas acima de Mitsiwa. Vou encontrá-lo lá - explicou.
- Ouvi dizer que o imperador conquistou uma grande vitória sobre os pagãos em Mitsiwa, não é assim? - instigou-o Hal.
- Uma grande e maravilhosa vitória! - Fasilides mostrou-se entusiasmado. - Na estação da Páscoa, os pagãos cruzaram os estreitos do Bab El Mandeb com um poderoso exército e depois rumaram para o norte, costa acima, dominando todos os portos e fortes. Nosso imperador Caleb, pai de Iyasu, caiu em batalha e grande parte de nosso exército foi dispersada e destruída. Os caíques de guerra de El Grang investiram sobre nossa frota na baía de Adulis e capturaram ou queimaram vinte de nossos melhores navios. Depois, quando os pagãos dispuseram suas tropas em formação de combate com cem mil homens diante de Mitsiwa, pareceu que Deus se esquecera da Etiópia. - Os olhos de Fasilides se encheram de lágrimas, e ele tomou um profundo gole de bom conhaque para se recompor. - Porém, Ele é o único Deus e a única verdade para Seu povo, e mandou-nos um guerreiro para liderar nosso exército desbaratado. Nazet desceu das montanhas, trazendo o exército do Amhara para se juntar a nossas forças aqui na costa, levando consigo na vanguarda o sagrado Tabernáculo de Maria Mãe de Deus. Esse talismã é como um raio na mão de Nazet. Ante seu avanço, os pagãos foram rechaçados, em confusão.
- Que talismã é esse de que fala, padre? É uma relíquia sagrada?
- perguntou Hal.
O bispo baixou a voz e estendeu o braço pela mesa para agarrar a mão de Hal e encará-lo dentro dos olhos.
- É uma relíquia de Jesus Cristo, o mais poderoso de toda a cristandade. - Fitou a face de Hal com um fervor fanático tão intenso que Hal sentiu sua pele formigar de respeito religioso. - O Tabernáculo de Maria contém o Cálice da Vida, o Santo Graal que Cristo usou na última Ceia. O mesmo cálice em que José de Arimatéia recolheu o sangue do Salvador enquanto ele se pendurava na cruz.
- Onde está o tabernáculo agora? -A voz de Hal saiu rouca, e ele devolveu o aperto de Fasilides com tanta força que o velho pestanejou.
- O senhor o viu? Realmente existe?
- Rezei sobre o tabernáculo que contém o cálice sagrado, embora ninguém possa ver ou pôr as mãos no cálice em si.
- Onde está essa coisa sagrada? - Hal ergueu a voz de excitação.
- Ouvi falar disso durante toda a minha vida. A ordem de cavaleiros da qual sou membro é baseada nesse cálice fabuloso. Onde posso encontrá-lo e prostrar-me em veneração diante dele?
Fasilides pareceu ficar sóbrio diante da excitação de Hal e recuou, livrando a mão do aperto.
- Há coisas que não podem ser reveladas.
Mais uma vez ele se tornou distante e impossível de se alcançar. Hal percebeu que seria imprudente insistir mais no assunto e procurou outro tópico para suavizar as feições contraídas do bispo.
- Fale-me do empenho da frota na baía de Adulis - sugeriu. - Como marinheiro, minhas preocupações repousam francamente nos mares. Haveria um grande navio semelhante a este um lutando com os esquadrões do Islã?
O bispo relaxou um pouco.
- Havia muitos navios de ambos os lados. Tempestades enormes de fuzilaria e terrível carnificina.
- Um navio de velas quadradas, com a croix pattée hasteada. - insistiu Hal. - Tem relato de algum assim?
Era evidente, contudo, que o bispo não distinguia uma fragata de um quinquerreme. Deu de ombros.
- Talvez os almirantes e generais possam responder a essas perguntas quando chegarmos ao mosteiro de São Lucas - sugeriu.
Na tarde seguinte, passaram pela entrada da baía de Adulis, rumando para a costa da ilha de Dahlak, à boca da baía. Nesse sentido, Fasilides fora preciso em seu relato. As rotas estavam lotadas de navios. Uma floresta de mastros e cordames se delineava contra as ameaçadoras colinas avermelhadas que circundavam a baía. Em cada topo de mastro, flutuavam as bandeiras do Islã e os pendões de Omã e do grão-mogol.
Hal ordenou que o Golden Bough fosse deixado à capa, e subiu até a verga mestra. Sentou-se ali por uma hora, com a luneta contra o olho. Não era possível contar o número de navios ancorados na baía, e as águas fervilhavam com pequenos botes transportando os estoques e provisões de um grande exército para a terra. De uma coisa apenas Hal tinha certeza quando retornou ao convés e ordenou que as velas fossem assentadas mais uma vez: não havia nenhum navio de velas quadradas na baía de Adulis.
Os remanescentes destroçados da frota do imperador Iyasu jaziam ao largo de Mitsiwa. Hal ancorou bem longe daqueles cascos queimados e destruídos, e Fasilides mandou um de seus criados para terra, no escaler.
- Ele precisa descobrir se o quartel-general de Nazet ainda está no mosteiro: se estiver, devemos arranjar cavalos para viajar até lá.
Enquanto esperavam que o criado voltasse, Hal fez arranjos para sua ausência temporária do Golden Bough. Resolveu levar apenas Aboli consigo e deixar o comando do navio com Ned Tyler.
- Não fique em âncora, pois esta é uma costa de sotavento e estará vulnerável se o Gavião puder encontrá-lo aqui - avisou a Ned. - Patrulhe bem ao largo da costa e trate cada vela como se de um inimigo. Se encontrar o Gull of Moray, não deve, sob nenhuma circunstância, entrar em batalha. Voltarei o mais depressa que puder. Meu sinal será um rojão vermelho chinês. Quando o vir, mande um bote para me apanhar em terra.
Hal corroeu-se de irritação durante o resto daquele dia e noite, porém, às primeiras luzes da manhã, o vigia do cesto de gávea gritou para o convés:
- Pequeno caíque saindo da baía. Rumando nesta direção.
Hal ouviu o grito de sua cabine e correu para o tombadilho. Mesmo sem a luneta, reconheceu o criado de Fasilides de pé no convés aberto da pequena embarcação. Mandou chamar o bispo. Quando Fasilides chegou ao tombadilho, mostrava os efeitos do exagero das bebidas alcoólicas da noite anterior, porém ele e o criado conversaram rapidamente no idioma gueês. Voltou-se para Hal.
- O imperador e o general Nazet ainda estão no mosteiro. Cavalos esperam por nós na praia. Podemos estar lá pelo meio-dia. Meu criado trouxe roupas para o senhor e seu servo, que darão menos na vista.
Em sua cabine, Hal vestiu as calças de algodão fino que eram cortadas amplas como ceroulas e caíam até os tornozelos. As botas eram de couro macio, com as pontas reviradas para cima. Sobre a camisa de algodão usava um dólmã bordado que chegava até abaixo de suas coxas. O criado do bispo mostrou-lhe como enrolar o longo tecido branco em torno da cabeça para formar um haike. Sob o albornoz, ajustou o elmo em forma de cebola de aço brunido, aguçado no topo e cinzelado e incrustado com cruzes cépticas.
Quando ele e Aboli voltaram ao convés, a tripulação deixou cair o queixo, e Fasilides fez um gesto de aprovação.
- Agora, ninguém o reconhecerá como um Francis.
O escaler depositou-os na praia abaixo dos penhascos, onde uma escolta armada os esperava. Os cavalos eram árabes, com longas crinas e rabos esvoaçantes, narinas largas e olhos de raça pura. As selas eram entalhadas de um único bloco de madeira e decoradas com bronze e prata, as mantas e rédeas firmes com bordados de fio de metal.
- É uma longa jornada até o mosteiro - avisou-os Fasilides. - Não podemos perder tempo.
Subiram a trilha do penhasco e saíram no terreno nivelado que jazia diante de Mitsiwa.
- Este é o campo de nossa vitória! - exclamou Fasilides, e puxou as rédeas para fazer um gesto abrangente que englobava a horrível campina.
Embora a batalha houvesse acontecido semanas antes, os pássaros carniceiros ainda rondavam o campo como uma nuvem escura, e os chacais e cães vira-latas rosnavam entre pilhas de ossos e mastigavam a carne enegrecida pelo sol que ainda se agarrava a eles. As moscas eram azuis no ar como um enxame de abelhas. Grudavam-se à face de Hal e tentavam beber de seus olhos e se enfiavam em suas narinas. Suas larvas enxameavam e coleavam em tão grande número nos cadáveres putrefatos, que eles pareciam se mover como se ainda estivessem vivos.
Os carniceiros humanos também faziam seu trabalho pelo imenso campo de batalha, mulheres e crianças em longos mantos empoeirados, as bocas e os narizes cobertos contra o fedor. Cada uma carregava uma cesta para recolher sua coleta de botões, moedas pequenas, jóias, adagas e anéis que arrancavam dos dedos esqueléticos dos cadáveres.
- Dez mil inimigos mortos! - exclamou Fasilides, triunfante. E conduziu-os por uma trilha que deixava o campo de batalha e contornava a cidade murada de Mitsiwa. - Nazet é um guerreiro portentoso por ter contido nosso exército atrás daquelas muralhas - disse. - Dessas alturas, Nazet comanda o terreno. - Apontou adiante para os primeiros recôncavos e picos dos altiplanos.
Além da cidade, no terreno aberto abaixo das colinas descampadas, estava acampado o exército vitorioso do imperador Iyasu. Era uma cidade esparramada de tendas de couro e cabanas construídas com pressa e puxados de pedra e sapé que se espalhavam do mar até as colinas. Os cavalos, camelos e touros se postavam em grandes manadas entre as rudes habitações, e uma nuvem de poeira suspensa e fumaça azul das fogueiras de estrume seco manchava o azul do céu. O cheiro de amoníaco das filas de animais, da fumaça e do fedor de montes de lixo apodrecendo ao sol, das estrumeiras e das covas de latrina, o ácido odor de carniça e de gente sem banho sob o sol do deserto rivalizavam com a exalação do campo de batalha.
Passaram por esquadrões de cavalaria de magníficos cavalos de batalha com crinas trançadas e plumas do rabo orgulhosamente arqueadas. Os cavaleiros envergavam estranha armadura e extravagantes costumes das cores do arco-íris. Estavam armados com arco e lança e longos arcabuzes com base curvada e enfeitada de jóias.
Os parques de artilharia se espalhavam por uma légua de areia e pedra, e havia centenas de canhões. Algumas das colossais armas de cerco tinham o formato de golfinhos e dragões, em carruagens puxadas por uma centena de touros cada uma. As carroças de munição, carregadas com barricas de pólvora negra, eram transportadas por pelotões de infantaria.
Regimentos de soldados marchavam e contramarchavam. Tinham acrescido a seus próprios diferentes e exóticos uniformes o fruto da pilhagem do campo de batalha, de maneira que nenhum homem se vestia igual a outro. Seus escudos e broquéis eram quadrados, redondos e oblongos, feitos de bronze, madeira ou couro cru. Suas faces eram de gavião e escuras, e as barbas tão prateadas como a areia da praia, ou negras como as asas dos abutres carniceiros que planavam sobre o acampamento.
- Sessenta mil homens - disse Fasilides. - Com o Tabernáculo e Nazet na vanguarda, nenhum inimigo pode se postar diante deles.
As prostitutas e vivandeiras que não estavam ocupadas escarafunchando o campo de batalha eram quase tão numerosas quanto os homens. Cuidavam das fogueiras de cozinha ou vagabundeavam na sombra esparsa das carroças de bagagem. As mulheres somalis eram altas e misteriosamente veladas, as jovens dos galas, de seios nus e ousadas. Algumas divisaram a figura viril de ombros largos de Hal e gritavam-lhe convites ininteligíveis, deixando claro o significado pelos gestos obscenos que os acompanhavam.
- Não, Gundwane - murmurou-lhe Aboli ao ouvido. - Nem mesmo pense nisso, pois os galas ou oromos circuncidam suas mulheres. Onde poderia esperar uma acolhida úmida e escorregadia, encontraria apenas um buraco seco e marcado de cicatrizes.
Tão densa era aquela falange de homens, mulheres e animais, que o avanço do grupo foi reduzido a uma caminhada. Quando os fiéis reconheciam o bispo, avançavam em bando para ele e caíam de joelhos na trilha de seu cavalo para lhe pedir a bênção.
Por fim, abriram caminho entre aquele emaranhado de gente e esporearam as montarias para cima, pela trilha íngreme das colinas. Fasilides conduziu-os num galope, seus mantos a esvoaçar em torno de sua rija figura e a barba a ondear sobre seu ombro. No cume, puxou as rédeas de seu fogoso cavalo e apontou para o sul.
- Lá! - gritou. - Lá está a baía de Adulis, e, diante do porto de Zulla, o exército do Islã.
Hal protegeu os olhos contra o ofuscamento do deserto e viu que a nuvem marrom-acinzentada de fumaça e poeira era perpassada por lampejos de sol refletidos nos comboios de artilharia e armas do outro imenso exército.
- Quantos homens El Grang comanda em suas legiões?
- Era essa minha missão quando o senhor me encontrou - descobrir a resposta a essa pergunta junto a nossos espiões.
- Quantos, então? - insistiu Hal, e Fasilides riu.
- A resposta a essa pergunta é apenas para os ouvidos do general Nazet - disse, e esporeou seu cavalo. Subiram até mais alto, ao longo da trilha rude, e chegaram ao próximo cume. - Ali! - Fasilides apontou adiante. - Ali está o mosteiro de São Lucas.
O mosteiro se agarrava ao topo escarpado de uma colina. As muralhas eram altas e sua silhueta de padrão quadrado e ríspido se delineava invariável, sem ornamentos, colunas ou arquitraves. Um dos batedores do bispo arrancou um sopro de um chifre de carneiro, e o único portão maciço de madeira se abriu diante deles. Galoparam para dentro do pátio e desmontaram em frente à fortaleza. Cavalariços correram para pegar seus cavalos e levá-los dali.
- Por aqui! - ordenou Fasilides, e seguiram por uma soleira estreita para uma área congestionada de passagens e escadas, além. Suas botas ressoavam no pavimento de pedra e ecoavam pelos corredores e átrios enfumaçados.
Abruptamente, encontraram-se numa capela escura e cavernosa, cujo teto em domo se perdia na altura sombria sobre suas cabeças. Centenas de velas bruxuleantes e o brilho de queimadores de incenso suspensos iluminavam as tapeçarias penduradas, de santos e mártires, as bandeiras esfarrapadas das ordens monásticas e os ícones pintados e decorados de jóias.
Fasilides ajoelhou-se diante do altar no qual se erguia uma cruz cóptica de prata de dois metros de altura. Hal ajoelhou-se ao lado dele, mas Aboli se postou atrás, os braços cruzados sobre o peito.
- Deus de nossos pais, Senhor das hostes - rezou o bispo, em latim, em favor de Hal. - Damos graças por vossa generosidade e pela poderosa vitória sobre os pagãos que Vós nos concedestes. Recomendamos este vosso servo, Henry Courtney, a vossos cuidados. Possa ele prosperar no serviço do único Deus verdadeiro, e possam suas forças prevalecer contra os incrédulos.
Hal mal teve tempo de completar suas genuflexões e seus améns antes que o. bispo se levantasse e seguisse em frente outra vez, conduzindo-o para um santuário menor, fora da nave.
- Espere aqui! - disse.
Seguiu diretamente para o estandarte vividamente colorido de lã que pendia da parede atrás do altar menor e puxou-o de lado para revelar uma passagem baixa e estreita. Então se inclinou pela abertura e desapareceu.
Quando Hal olhou ao redor do santuário, viu que era mais ricamente mobiliado que a sombria e desolada capela. O pequeno altar estava coberto com lâminas de metal amarelo que poderia ser de bronze mas que brilhava como ouro puro à luz do candelabro. A cruz era decorada com grandes pedras coloridas. Talvez fossem apenas de vidro, porém pareceu a Hal que tinham o lustre da esmeralda, do rubi e do diamante. As prateleiras que subiam até o teto em domo estavam carregadas de oferendas de ricos e nobres penitentes e suplicantes. Algumas deviam estar intocadas por séculos, pois se mostravam cobertas por uma espessa camada de poeira e teias de aranha, de modo que sua verdadeira natureza ficava escondida. Cinco monges em hábitos sujos e rasgados ajoelhavam-se em prece diante da estátua de uma Virgem Maria de feições escuras, com um pequeno Jesus negro nos braços. Não ergueram os olhos de suas devoções diante daquela intrusão.
Hal e Aboli ficaram juntos, de pé, recostados numa coluna de pedra aos fundos do santuário, e o tempo escoou-se. O ar era pesado e opressivo com o cheiro de incenso e antiguidade. O canto suave dos monges era hipnótico. Hal sentiu o sono sobrevir-lhe em ondas, e teve de se esforçar para expulsá-lo e impedir que os olhos se fechassem.
De súbito, ouviu-se o bater de pés em correria vindo de além dos pendentes da parede. Hal endireitou-se quando um garotinho apareceu de sob a cortina e, com toda a exuberância de um animalzinho, correu para o santuário. Escorregou pelo pavimento até parar. Tinha quatro ou cinco anos de idade, e trajava um camisão simples de algodão branco, e seus pés estavam descalços. Sua cabeça era coberta de brilhantes cachos negros que dançaram conforme ele olhava pelo santuário com ansiedade. Tinha os olhos negros e tão grandes quanto os dos santos pintados nos retratos estilizados que pendiam das paredes de pedra atrás dele.
Viu Hal, correu até onde ele estava e parou à sua frente. Encarou-o com um ar tão solene, que Hal ficou encantado pelo belo elfo e se abaixou em um dos joelhos para que pudessem se estudar no mesmo nível.
O menino disse alguma coisa no idioma que Hal podia agora reconhecer como gueês. Era obviamente um pedido, porém Hal não podia nem mesmo imaginar de que natureza.
- Você também! - exclamou, rindo.
A criança continuou séria e fez a pergunta de novo. Hal deu de ombros, e o garotinho bateu os pés e o inquiriu pela terceira vez.
- Sim! - Hal sacudiu a cabeça com vigor.
O garotinho riu deliciado e bateu palmas. Hal endireitou-se, porém a criança abriu os braços e fez um gesto que só poderia significar uma coisa.
- Quer que o pegue no colo? - Hal inclinou-se e pegou-o nos braços.
O menino encarou-o dentro dos olhos e então falou novamente, apontando tão apaixonadamente para a face de Hal que quase lhe furou um olho com o dedinho.
- Não consigo entender o que está dizendo, pequenino - disse Hal, gentilmente.
Fasilides surgiu silenciosamente por detrás dele e disse, com voz solene:
- Sua Majestade Mais Cristã, Iyasu, Rei dos Reis, Regente de Gala e Amhara, Defensor da Fé de Cristo Crucificado, comenta que seus olhos são de uma cor verde estranha, diferente de qualquer um que ele já tenha visto antes.
Hal olhou para as feições angélicas da criança que segurava nos braços.
- Este é o padre João?
- Exatamente - retrucou o bispo. - O senhor também prometeu levá-lo para um passeio em seu grande navio, que descrevi para ele.
- Poderia informar ao imperador que eu ficaria profundamente honrado em tê-lo como hóspede a bordo do Golden Bough
De repente, Iyasu retorceu-se e desceu dos braços de Hal, tomou-lhe a mão e puxou-o em direção à passagem oculta. Além da abertura, seguiram por uma longa passagem iluminada com tochas em suportes de ferro sobre as paredes de pedra. Ao fim da passagem, havia dois guardas armados, porém o imperador gritou uma ordem e eles se postaram de lado e saudaram sua pequena majestade. Iyasu conduziu Hal para dentro de um longo aposento.
Estreitas frestas abriam-se no alto das paredes, e, através delas, o brilhante sol do deserto se filtrava em sólidos feixes dourados. Uma longa mesa corria pelo comprimento da sala; sentados ao redor, estavam cinco homens. Levantaram-se e se inclinaram profundamente para Iyasu, e depois olharam atentamente para Hal.
Eram todos guerreiros - isso era evidente por sua postura e seus atavios: usavam cotas de malha e couraças, e alguns tinham elmos de aço nas cabeças, e túnicas sobre a armadura, que eram brasonadas com cruzes ou outros motivos heráldicos.
À ponta da mesa se postava o mais jovem e mais simplesmente vestido, e, contudo, o mais impressionante e imponente de todos. O olhar de Hal foi atraído imediatamente para sua figura esguia e graciosa.
Iyasu puxou Hal com impaciência na direção dele, conversando em gueês, e o guerreiro ficou a observá-los com um olhar franco e firme. Embora passasse a ilusão de altura, era na verdade uma cabeça mais baixo que Hal. Um raio de sol de uma das altas fendas o iluminou por trás, rodeando-o com uma aura dourada na qual os grãos de poeira dançavam e voluteavam.
- É o general Nazet? - perguntou Hal em latim, e o general concordou com um gesto.
Em torno de sua cabeça havia um grande emaranhado de mechas encaracoladas, como uma coroa escura ou um halo. Usava uma túnica branca sobre a camisa de cota de malha, porém, mesmo sob aquela cobertura volumosa, sua cintura era estreita e suas costas retas e flexíveis.
- Sou realmente o general Nazet.
Sua voz era baixa e rouca, e contudo estranhamente musical ao ouvido. Hal percebeu com um choque o quanto ele era jovem. Tinha a pele sem sardas, do âmbar escuro e transluzente da goma-arábica. Nenhum traço de barba ou bigode manchava sua esguia linha do queixo ou a curva orgulhosa de seus lábios cheios. Seu nariz era reto e estreito, as narinas finamente cinzeladas.
- Sou Henry Courtney - disse Hal -, o capitão inglês do Golden Bough.
- O bispo Fasilides me disse isso - retrucou o general. - Talvez preferisse falar em seu próprio idioma. - Nazet mudou para o inglês. - Devo admitir que meu latim não é tão fluente como o seu, capitão.
Hal arquejou por um momento, e Nazet sorriu.
- Meu pai era embaixador do palácio do doge, em Veneza. Passei muito de minha infância em suas latitudes nortes e aprendi os idiomas da diplomacia, francês, italiano e inglês.
- Deixa-me atónito, general - admitiu Hal, e, enquanto se recuperava do aturdimento, notou que os olhos de Nazet eram da cor de mel, e os cílios, longos, espessos e curvados como os de uma menina. Jamais se sentira atraído sexualmente por outro homem antes. Agora, contudo, conforme olhava aquelas feições régias e a pele de um belo dourado, e fitava aqueles olhos lustrosos, tomou consciência de uma pressão no peito que lhe tornava difícil puxar a próxima respiração.
- Por favor, sente-se, capitão. - Nazet indicou o banco a seu lado. Sentaram-se tão próximos que ele podia sentir o cheiro do corpo do outro homem. Nazet não usava perfume, e era um odor natural, quente, almiscarado, que Hal se percebeu a saborear intensamente. Com uma sensação de culpa, constatou o quanto era inatural aquela atração pecaminosa que sentia e afastou-se do general para tão longe quanto o banco duro e baixo o permitia.
O imperador saltou para o colo do general Nazet e lhe afagou a face macia e dourada, balbuciando alguma coisa numa voz alta e infantil, ao que o general riu baixinho e retrucou em gueês, sem tirar os olhos da face de Hal.
- Fasilides me disse que você veio à Etiópia para oferecer seus serviços à causa do Imperador Mais Cristão.
- Assim é. Vim pedir a Sua Majestade que me conceda uma Carta de Marca para que eu possa empregar meu navio contra os inimigos de Cristo.
- Chegou no momento mais propício - concordou Nazet. - Fasilides lhe contou da derrota que nossa marinha sofreu na baía de Adulis?
- Também me contou de sua magnificente vitória em Mitsiwa. Nazet não demonstrou falso orgulho diante do elogio.
- Uma contrabalança a outra - disse. - Se El Grang tirar o domínio do mar, poderá trazer infindáveis reforços e estoques da Arábia e do território do mongol para reaprovisionar seu exército destruído. Já ressarciu todas as perdas que lhe infligi em Mitsiwa. Estou esperando por reforços que devem chegar das montanhas, de maneira que não estou pronto para atacá-lo de novo onde ele está, em Zulla. A cada dia ele se alimenta do mar e se torna mais forte.
Hal inclinou a cabeça.
- Compreendo a dificuldade da situação.
Havia algo na voz do general que o preocupava: à medida que Nazet se tornava mais agitado, seu timbre se alterava. Hal teve de fazer um esforço para se concentrar nas palavras e não em quem falava.
- Uma nova ameaça agora me persegue - continuou Nazet. - El Grang tomou a seu serviço um navio estrangeiro mais poderoso que qualquer outro de que pudéssemos dispor para enfrentá-lo.
Hal sentiu uma comichão de ansiedade correr por sua nuca, e os pêlos se eriçaram em seus antebraços.
- Que tipo de navio é esse? - perguntou, suavemente.
- Não sou marinheiro, porém meus almirantes que disseram que é um navio de velas quadradas da categoria fragata. - Nazet olhou atentamente para Hal. - Deve ser semelhante à sua própria nau.
- Sabe o nome do capitão? - indagou Hal, porém Nazet meneou a cabeça.
- Sei apenas que está infligindo terríveis perdas a nossos caíques de transporte com os quais eu contava para trazer suprimentos do norte.
- Que bandeira ele ostenta? - insistiu Hal.
Nazet falou rapidamente com um dos oficiais em gueês, e depois se voltou de novo para ele.
- Ele exibe o pendão de Omã, porém também uma cruz vermelha de formato incomum sob um fundo branco.
- Creio que conheço esse saqueador - disse Hal, muito sério -, e lançarei meu próprio navio contra ele na primeira oportunidade - isto é, se Sua Majestade Mais Cristã me conceder uma comissão para servir como um corsário em sua marinha.
- Diante da insistência de Fasilides, já ordenei que os escribas da corte redijam sua comissão. Precisamos apenas acordar os termos e eu a assinarei em nome do imperador. - Nazet levantou-se do banco. - Mas, venha, deixe-me mostrar-lhe em detalhes a posição de nossas forças e as de El Grang.
Rumou para o lado oposto do aposento, e os outros oficiais mais velhos levantaram-se com ele. Rodearam a mesa circular sobre a qual, Hal viu, fora construíra um modelo em argila do mar Vermelho e os territórios circundantes. Fora elaborado com detalhes gráficos e pintado com realismo. Cada cidade e porto eram claramente mostrados; pequenos navios entalhados navegavam as águas azuis enquanto regimentos de cavalaria e infantaria eram representados por figuras de modelo talhadas em marfim e pintadas em esplêndidos uniformes.
Enquanto estudavam a cena com ar sombrio, o imperador puxou um banco e subiu para poder alcançar os modelos. Com berros de alegria e imitações infantis de relinchos de cavalos e canhões disparando, começou a mover as figuras pela mesa. Nazet estendeu o braço para contê-lo, e Hal fitou-lhe a mão. Era esguia e macia e elegante, com longos dedos torneados, as unhas de um rosa perolado. De repente, a verdade revelou-se diante dele, e, antes que pudesse impedir, exclamou, em inglês:
- Mãe Maria, você é mulher!
Nazet fitou-o, e suas faces cor de âmbar sombrearam-se de aborrecimento.
- Eu o advirto a não me depreciar por causa de meu sexo, capitão. Como inglês, pode se recordar de uma lição militar que uma mulher lhes deu em Orléans.
A réplica subiu aos lábios de Hal irresistivelmente, e ele pensou: Sim, porém foi há mais de duzentos anos, e nós a queimamos pelos problemas que nos causou! Contudo, fez um esforço para se calar e tentou tornar a entonação conciliadora.
- Não pretendia ofendê-la, general. Isso apenas aumenta minha admiração. Eu já fazia ideia de seu poder de liderança.
Nazet não foi tão facilmente apaziguada, e suas maneiras se tornaram bruscas e profissionais enquanto ela explicava as posições táticas e estratégicas dos dois exércitos e apontava a Hal onde poderia ser mais bem empregado o Golden Bough. Não mais o encarava diretamente, e a linha daqueles lábios polpudos e macios se endurecera.
- Esperarei que se coloque sob meu direto comando, para tal fim, ordenei ao almirante Senec que elaborasse um conjunto simples de sinais, rojões e lanternas para a noite, e bandeiras e fumaça durante o dia, através do qual eu pudesse passar minhas ordens de terra para você, no mar. Tem alguma objeção quanto a isso?
- Não, general, não tenho.
- Em relação ao prémio, dois terços resultarão para o erário do imperador, e o restante para você e sua tripulação.
- É costume que o navio retenha metade do prémio - contestou Hal.
- Capitão - disse Nazet, com frieza -, nestes mares, o costume é estabelecido por Sua Majestade Mais Cristã.
- Então, devo concordar. - Hal sorriu com ironia, porém não recebeu qualquer encorajamento para mais veleidades por parte de Nazet.
- Quaisquer estoques ou provisões de guerra que possa capturar serão comprados pelo erário, e, igualmente, quaisquer naus inimigas serão compradas pela marinha.
Ela olhou para longe dele quando um escriba entrou na sala e se inclinou, antes de lhe entregar um documento escrito em duro pergaminho amarelo. Nazet relanceou o olhar rapidamente pelo papel e depois pegou a pena que o escriba lhe estendia, encheu os brancos na escrita e assinou ao pé do documento: Judith Nazet, acrescentando uma cruz depois do nome.
Ao colocar areia para secar a tinta, disse:
- Está escrito em gueês, porém terei uma tradução preparada para o senhor quando nos encontrarmos da próxima vez. Nesse ínterim, dou-lhe minha garantia de que esta carta contém exatamente os termos que discutimos. - Enrolou o documento, prendeu-o com uma fita e entre-gou-o a Hal.
- Sua garantia é suficiente para mim. - Hal enfiou o documento enrolado na manga de sua túnica.
- Tenho certeza de que está ansioso para voltar a seu navio, capitão. Não o deterei por mais tempo.
Com aquela dispensa, ela pareceu se esquecer da existência de Hal e centrou toda a a atenção de volta em seus comandantes e no panorama em argila do campo de batalha no tampo da mesa à sua frente.
- Falou de uma série de sinais, general.
A despeito das maneiras indiferentes dela, Hal se descobriu estranhamente relutante em sair de sua presença. Sentia-se atraído para ela do mesmo jeito que a agulha de uma bússola procura o norte.
Nazet não ergueu os olhos para ele outra vez, porém disse:
- O almirante Senec mandará o livro de sinais para seu navio, antes que o senhor parta. O bispo Fasilides o encontrará onde seus cavalos estão esperando. Adeus, capitão.
Enquanto Hal caminhava pelos longos corredores de pedra ao lado do bispo, disse, baixinho:
- O Tabernáculo de Maria está aqui neste mosteiro. Estou correto em crer nisso?
Fasilides parou de imediato e o encarou.
- Como soube? Quem lhe disse?
- Como um devoto cristão, gostaria de ver de perto um objeto tão sagrado - retrucou Hal. - Pode me conceder esse desejo?
Fasilides torceu nervosamente a barba.
- Talvez. Veremos. Venha comigo.
Conduziu Hal até onde Aboli ainda esperava e depois ambos o seguiram por outra confusão de escadarias e passagens; em seguida, pararam diante de uma porta guardada por quatro padres em mantos e turbantes.
- Esse seu homem é um cristão? - perguntou, ao olhar para Aboli, e Hal meneou a cabeça. - Então, deve ficar aqui.
O bispo tomou o braço de Hal e o conduziu para a porta. Falou suavemente em gueês com um dos padres, e o velho pegou uma enorme chave preta de sob o manto e girou-a na fechadura. Fasilides puxou Hal para dentro de uma cripta que ficava adiante.
Rodeado por uma floresta de velas queimando em altos suportes de bronze de muitos braços, o tabernáculo jazia do centro do chão pavimentado.
Hal sentiu uma esmagadora sensação de respeito e graça inundá-lo. Sabia que aquele era um dos momentos mais supremos de sua vida, talvez mesmo a razão de seu nascimento e existência.
O tabernáculo era um pequeno baú que se sustentava em quatro pés entalhados como as patas de um leão. Havia quatro alças de carregar. Seu corpo quadrado era coberto com uma tapeçaria de bordados de prata e ouro que tinha a patina de grande idade. De cada lado da tampa ajoelhava-se uma estátua dourada de um anjo em miniatura, com a cabeça inclinada e as mãos em prece. Era uma coisa de extraordinária beleza.
Hal caiu de joelhos na mesma atitude dos anjos dourados.
- Senhor Deus das hostes, vim para cumprir Vossa ordem, como comandastes - começou a rezar em voz alta. Depois de um longo tempo, fez o sinal-da-cruz e levantou-se.
- Posso ver o cálice? - pediu, com deferência, porém Fasilides meneou a cabeça.
- Nem mesmo eu o vi. É sagrado demais para os olhos de um mortal. Ele o cegaria.
O piloto etíope guiou o Golden Bough rumo sul, de noite, sob os joanetes apenas. Com um homem com uma chumbada a fazer sondagens, avançaram para sotavento da ilha de Dahlak, ao largo da boca da baía de Adulis.
Ansioso, Hal ouvia, na escuridão, o canto do marujo:
- Sem fundo, com esta linha! - E, minutos depois: - Sem fundo com esta linha! - E, em seguida, o chape do chumbo conforme era girado para adiante da proa e caía na superfície da água. De repente, o canto alterou-se e a voz do marujo adquiriu um tom mais agudo. - Pelo fundo, vinte.
- Sr. Tyler - berrou Hal. - Encurtar outro mastaréu nos joanetes. A postos para deixar cair a âncora.
- Pela marca, dez! - O próximo grito do sondador foi mais agudo ainda.
- Colher todos os panos. Deixar cair a âncora.
A âncora afundou e o Golden Bough avançou suavemente por uma curta distância antes de ser retido pelo cabo.
- Assuma o tombadilho, Sr. Tyler - disse Hal. - Vou para o alto. Subiu as enxárcias desde o convés até o mastro principal sem uma pausa, e ficou contente que sua respiração estivesse apenas profunda e serena ao chegar ao ninho de gávea.
- Eu o vejo, Gundwane! - saudou-o Aboli, e deu espaço para ele no ninho de lona.
Hal acomodou-se ao lado dele e olhou primeiro para terra. A ilha de Dahlak era uma massa mais escura na noite sombria, porém estavam a uma amarra completa de distância além das rochas. Então, desviou o olhar para oeste e viu o perfil da baía de Adulis, claramente delineado pelas fogueiras do exército de El Grang acampado ao longo do litoral do pequeno porto de Zulla. As águas da baía luziam com as lanternas de sinalização da frota ancorada do Islã. Hal tentou contar aquelas luzes, porém desistiu quando a quantidade chegou a sessenta e quatro. Ficou a imaginar se uma daquelas naus era o Gull ofMoray e sentiu suas entranhas se contraírem ao pensamento.
Voltou-se para olhar para leste e viu a primeira promessa pálida da aurora recortar as silhuetas dos picos escarpados da Arábia, de onde vinham os caíques de transporte de El Grang, carregados de homens, cavalos e provisões para engordar suas legiões.
Depois, abaixo do horizonte do alvorecer, no mar escuro, viu as lanternas de outros navios a piscar como vaga-lumes conforme viajavam com a brisa noturna em direção à baía de Adulis.
- Pode contá-los, Aboli? - perguntou, e Aboli soltou uma risadinha.
- Meus olhos não são tão agudos quanto os seus, Gundwane. Vamos dizer simplesmente que são muitos, e esperar pelo alvorecer para descobrir seu número verdadeiro - murmurou.
Esperaram no silêncio de velhos companheiros, e ambos sentiram o arrepio da aurora que chegava para aquecê-los com a promessa de batalha que o dia poderia trazer, pois aquele mar estreito enxameava de naus do inimigo.
O céu do leste começou a brilhar como uma forja de ferreiro. As rochas da ilha ali perto surgiram pálidas através da obscuridade, pintadas de branco pelo excremento de aves marinhas que, por séculos, nelas se abrigavam. De seus poleiros rochosos, os pássaros lançavam-se ao vôo. Em vacilantes formações em flecha, voavam pelo céu avermelhado pela aurora a soltar selvagens e pavorosos gritos. Ao erguer os olhos para elas, Hal sentiu o vento da manhã roçar-lhe a face com os dedos gelados. Soprava de oeste como ele confiara que sopraria. Teria a flotilha de pequenos caíques sob o sotavento, e à sua mercê.
O sol nascente fulgurou sob os cumes da montanha e deixou-os em chamas. Bem além das rochas da ilha, uma vela coruscou nas águas sombrias, e depois outra, e, conforme o círculo de sua visão se expandia, uma dúzia mais.
Hal deu um tapinha no ombro de Aboli.
- É hora de trabalhar, velho amigo - disse, e deslizou para baixo das enxárcias. Quando seus pés atingiram o convés, ele gritou para o leme: - Içar âncora, Sr. Tyler. Todas as mãos no alto para assentar velas.
Aliviado de seu cativeiro, o Golden Bough enfunou seus panos e se afastou. Com as águas a marulhar sob sua proa e a esteira a deslizar cremosa atrás, partiu em velocidade de seu posto de emboscada por trás da ilha de Dahlak.
A luz era pródiga agora para que Hal divisasse claramente sua presa dispersa pelas águas revolvidas pelo vento, adiante. Olhou ansioso para os panos recolhidos de um alto navio entre elas, porém viu apenas a única vela latina dos caíques árabes.
As mais próximas daquelas naus pareciam pouco alarmadas com a aparência do Golden Bough, a alta pirâmide de velas a apontar direto para a entrada da baía de Adulis. Mantinham seu curso, e, conforme a fragata se aproximou por barlavento da mais contígua delas, Hal viu a tripulação e passageiros enfileirados na amura do caíque, a espiá-los. Alguns tinham subido do robusto mastro e acenavam em saudação.
Hal parou ao lado do leme e disse a Ned Tyler:
- É como se tivessem visto apenas um outro navio como o nosso nestas águas, o Gull. Tomam-nos por um aliado.
Olhou para o alto, onde seus homens do topo do mastro se penduravam nos cordames, prontos para manejar a grande massa de panos. Então, correu o olhar para o convés, onde os artilheiros alvoroçavam-se em torno das colubrinas e os carregadores de pólvora subiam dos tombadilhos abaixo com seus fardos mortais.
- Sr. Pescador! - chamou. - Carregue uma bateria de cada lado com bala, todas as outras com elos e metralha, por favor.
Daniel Grande sorriu com os dentes pretos e podres, e bateu com os nós dos dedos na testa. Hal queria simplesmente desabilitar as naus inimigas, não afundá-las ou queimá-las. Mesmo a menor e mais pobre daquelas embarcações poderia valer uma grande soma para o erário de Sua Majestade Mais Cristã, se pudesse capturá-las e entregá-las ao almirante Senec, em Mitsiwa. A bateria de cada lado, carregada com bala, seria mantida na reserva.
O primeiro caíque estava tão próximo à frente, que Hal podia ver as expressões das faces de sua tripulação. Havia uma dúzia ou mais de marinheiros, vestidos em mantos rasgados e desbotados e com turbantes haiks. A maioria ainda estava sorrindo e acenando, porém o velho ao leme na popa olhava ao redor assustado, como se procurasse alguma via de escape providencial do alto casco que avançava sobre sua pequena embarcação.
- Desfralde nossas cores, por favor, Sr. Tyler - ordenou Hal, e ficou a observar a croix pattée se enfunar ao lado da cruz copta de cor branca do Império, em seu fundo azul real. A aflição das faces da tripulação do caíque ao verem a cruz de sua ruína se abrir diante de seus olhos era patética de se contemplar, e Hal deu a próxima ordem: - Corra suas armas, mestre Daniel!
As portinholas de artilharia do Golden Bough caíram com um estrondo, e o casco reverberou com o ruído surdo dos canhões conforme as colubrinas apontavam para fora seus canos de bronze.
- Passaremos perto da caça a estibordo. Dispare conforme puder, mestre Daniel!
Daniel Grande correu para a proa e assumiu o comando da bateria número um de estibordo. Hal viu-o correr rapidamente de canhão a canhão para verificar sua colocação, inserindo os calços para baixar a mira. Iriam disparar quase que diretamente para baixo, para dentro do caíque, conforme passassem por ele.
O Golden Bough avançou silenciosamente sobre a pequena embarcação, e Hal disse calmamente para o leme:
- Traga a nau devagar para um ponto a bombordo.
Ao se dar conta da ameaça dos canhões escancarados, a tripulação do caíque fugiu da amurada e voou para baixo, para trás do rijo e pequeno mastro, ou se agachou atrás dos fardos e barricas que lotavam o convés.
A primeira bateria disparou em conjunto uma descarga fumegante e estrondosa, e cada tiro atingiu o alvo. A base do mastro foi arrancada numa tempestade de lascas brancas de madeira, e o cordame despencou para se pendurar de lado numa confusão desordenada de cordas e panos. O velho ao leme desapareceu, como se transformado em ar pela magia de um feiticeiro. Deixou apenas uma mancha vermelha nas pranchas destroçadas.
- Alto com os disparos! - Hal berrou, para se fazer ouvir acima do barulho ensurdecedor do canhonaço.
O caíque estava estropiado: sua proa já girava diante do vento, o leme arrancado e o mastro caído sobre a amurada. O Golden Bough deixou-o rolando em sua esteira.
- Mantenha o curso, Sr. Tyler.
O Golden Bough avançou direto para a flotilha de pequenas naus espalhadas pelas águas azuis adiante. Essas tinham visto o tratamento sem misericórdia dado ao primeiro caíque e as cores imperiais desfraldadas no topo de mastro da fragata, e, agora, cada uma girava seu leme e fazia a volta diante do vento. Desengonçadas, fugiam diante da carga do Golden Bough.
- Rume para a nau logo adiante! - disse Hal, tranquilamente, e Ned Tyler girou a fragata um ponto ao redor.
O caíque que Hal escolhera era um dos maiores à vista, e seu tombadilho aberto estava coalhado de homens. Deviam ser pelo menos trezentos deles amontoados lá dentro, estimou Hal. Era uma viagem curta pelo mar estreito, e seu capitão assumira um risco: carregava mais tropas do que era prudente.
Um débil grito de desafio chegou aos ouvidos de Hal quando fecharam o espaço:
- Allah Akbar! Deus é grande!
Elmos de aço reluziam nas cabeças das tropas omanis, e os soldados brandiam suas longas e curvadas cimitarras. Houve uma surriada confusa de fogo de mosquete, mirada para a fragata, o espocar dos arcabuzes e as rajadas de fumaça ao longo da amurada do caíque. Uma bala de chumbo enterrou-se no mastro acima da cabeça de Hal.
- Cada homem a bordo dele é um soldado - disse Hal, em voz alta. Não teve de acrescentar que, se conseguissem chegar ao litoral oeste do mar, marchariam contra Judith Nazet. - Dê-lhes uma surriada de balas. Afunde-o, mestre Daniel!
As pesadas balas de ferro varreram a tropa do convés até a quilha e fenderam a nau como se fende um graveto debaixo do machado. O mar investiu por seu ventre estourado. O caíque emborcou, e, de repente, a água pululava de cabeças boiando, dos homens que se debatiam e se afogavam.
- Rume para aquela nau com o pendão prateado.
Hal não olhou para trás, investindo como uma barracuda para dentro de um cardume de peixes-voadores. Nenhum poderia correr mais do que ele. Com sua montanha de velas brancas a impeli-lo, o Golden Bough voou sobre as embarcações como se elas tivessem em âncora, e seus canhões explodiam em chamas e fumaça. Alguns dos pequenos navios abriam-se em cacos e afundaram, outros eram deixados na esteira da fragata com os mastros destroçados e as velas pendendo de lado. Alguns dos marinheiros se jogaram pela amurada no momento em que as colubrinas apontaram para eles. Preferiam os tubarões ao choque das balas de canhão.
Vários correram para a ilha mais próxima e tentaram ancorar nas águas rasas, onde o Golden Bough não poderia alcançá-los. Outros, deliberadamente, atracaram, e suas tripulações mergulharam pela amura para nadar e vadear até a praia.
Apenas os navios mais distantes a leste e mais próximos da costa árabe tiveram chance de correr da investida da fragata. Hal olhou para a popa e viu a água atrás pontilhada com os cascos daqueles que tinha sobrepujado a chapinhar. Cada milha em que caçava os sobreviventes a leste era uma milha mais longe de Mitsiwa.
- Nenhum daqueles voltará depressa! - disse, muito sério, ao observá-los fugir em confusão. - Sr. Tyler, por favor, leve o navio a uma volta e o traga orçado para o curso de estibordo.
Aquele era o melhor ponto de navegação do Golden Bough.
- Não há nenhum caíque em toda a Arábia que possa apontar mais alto ao vento que minha querida banheira - exclamou Hal, em voz alta, ao ver vinte velas no rumo do vento tentando escapar, seguindo para oeste.
O Golden Bough investiu de volta sobre a frota dispersa, e, agora, alguns dos caíques deixavam cair sua larga vela triangular à sua aproximação, e gritavam por Alá, pedindo misericórdia.
Hal controlou a fragata quando passou ao longo de cada um deles, trazendo a proa para o vento enquanto lançava um bote e enviava uma tripulação de abordagem, com um marujo branco e seis de seus amadodas, para tomar o navio rendido.
- Se não houver nada de valor a bordo, tirem fora a tripulação e ponham uma tocha no barco.
Ao final daquela tarde, Hal tinha cinco grandes caíques em fila, atrás do Golden Bough, e outros sete velejando em sua companhia, sob cordames de guindola e com sua tripulação de apresamento a bordo, conforme rumavam de volta rumo a Mitsiwa. Cada uma das naus capturadas estava pesadamente carregada com provisões vitais de guerra. Atrás dele, o céu se estendia nublado com a fumaça dos cascos em chamas, e o mar estava coalhado de restos de naufrágio.
A general Nazet, sentada em seu negro garanhão árabe, observava dos cumes do penhasco aquela desconjuntada flotilha afastar-se pelas rotas de Mitsiwa. Por fim, fechou a luneta e comentou com o almirante Senec, a seu lado:
- Vejo por que o chamam de El Tazar! Esse inglês é uma barracuda, realmente. - Então virou a face para que ele não pudesse ver o sorriso pensativo que lhe suavizou as belas feições.
El Tazar. É um bom nome para ele, pensou, e então outra ideia irrelevante lhe ocorreu. Fico a imaginar se é tão poderoso como amante quanto o é como guerreiro, pensou. Era a primeira vez desde que Deus a escolhera para liderar as suas legiões contra os pagãos que ela olhava para algum homem com olhos de mulher.
O coronel Cornélius Schreuder desmontou em frente à tenda esparramada de reluzentes sedas vermelhas e amarelas. Um cavalariço tomou-lhe o cavalo, e ele parou para olhar ao redor do acampamento. A tenda real se erguia num pequeno outeiro que dominava a baía de Adulis. Ali em cima, a brisa do mar refrescava o ar e tornava possível respirar. Na planície abaixo, onde o exército do Islã estava bivacado em torno do porto de Zulla, as pedras estalavam com o calor e tremeluziam na miragem.
A baía estava coalhada de navios, porém os altos mastros do Gull of Moray dominavam todos os outros. O navio do conde de Cumbrae chegara durante a noite, e agora Schreuder ouvia sua voz se erguer em discussão, vinda de dentro da tenda de seda. Seus lábios se torceram num sorriso ao qual faltava humor, e ele ajustou o caimento da espada dourada a seu lado antes de caminhar até a abertura da tenda. Um alto comandante de uma companhia de sipaios inclinou-se diante dele. Todas as tropas do Islã tinham vindo a conhecê-lo bem: no curto tempo em que servira com eles, os feitos de ousadia de Schreuder haviam se transformado em lenda no exército mongol. O oficial o introduziu à presença real.
O interior da tenda era cómodo e suntuosamente decorado. O chão inteiro era fartamente coberto com maravilhosos tapetes de seda coloridos, e cortinados acetinados formavam uma parede dupla que mantinha do lado de fora o calor do sol. As mesas baixas eram de marfim e de madeira rara, e os vasos sobre elas, de ouro sólido.
O irmão do grão-mogol, o marajá Sadiq Khan Jahan, sentava-se no centro de uma pilha de almofadas de seda. Usava uma túnica acolchoada de seda amarela e pantalonas listradas de vermelho e dourado. Os sapatos em seus pés eram de cor escarlate com pontas longas e recurvas e fivelas de ouro. Seu turbante era amarelo e preso acima de sua testa por uma esmeralda do tamanho de uma noz. Tinha a barba escanhoada, com apenas uma linha de kohl no bigode fino sobre o petulante lábio superior. Atravessada em seu colo havia uma cimitarra numa bainha tão ricamente incrustada de jóias, que o fulgurar delas ofuscava a vista. Em uma das mãos enluvadas segurava um falcão, um magnífico sacre do deserto. Ergueu a ave e beijou-a no bico com tanta ternura como se ele fosse uma bela mulher - ou, de preferência, Schreuder pensou, com desagrado, um de seus belos meninos dançarinos.
Um pouco atrás dele, em outra pilha de almofadas, sentava-se Ahmed El Grang, a Mão Esquerda de Alá. Tinha os ombros tão largos que parecia deformado, e seu pescoço era grosso e encordoado de músculos. Usava um elmo de guerra de aço, e sua barba estava tingida de hena, vermelha como aquela do Profeta. Seu peito maciço era coberto por uma couraça de aço, e havia braceletes também de aço em seus pulsos. Tinha sobrancelhas hirsutas, e os olhos, tão frios e implacáveis quanto os de uma águia.
Atrás daquele par mal combinado, sentava-se uma hoste de cortesãos e oficiais, todos ricamente vestidos. Diante do príncipe, ajoelhava-se um tradutor, que, com a testa comprimida ao chão, tentava acompanhar o fluxo de invectivas do Gavião.
O Gavião se postava diante do príncipe com os punhos fincados nos quadris. Em sua cabeça estava o chapéu de fitas, e sua barba parecia mais cerrada e feroz que os cachos tingidos e encaracolados que cobriam o queixo de El Grang. Usava meia armadura por cima do manto escocês. Voltou-se com alívio quando viu Schreuder entrar na tenda e se inclinar, profunda e respeitosamente, primeiro diante do príncipe, e depois de El Grang.
- Jesus o ama, coronel. Preciso de você agora para colocar algum senso nessas duas adoráveis damas. Este macaco... - Cumbrae empurrou o tradutor servil com a bota. - Este macaco está falando besteiras e tornando sem sentido o que estou dizendo a eles. - Sabia que Schreuder passara muitos anos no Oriente e que o árabe era um dos idiomas em que era fluente.
- Diga-lhes que vim aqui para conquistar presas, não para expor meu Gull a um navio de igual força e vê-lo arrebentado sob meus pés! - instruiu-o o Gavião. - Querem que eu combata contra o Golden Bough.
- Explique-me o assunto com mais clareza - pediu Schreuder. - Dessa maneira, poderei dar-lhe assistência.
- O Golden Bough chegou a estas águas; devemos presumir que sob o comando do jovem Courtney - disse-lhe o Gavião.
As feições de Schreuder se escureceram diante da menção daquele nome.
- Nunca nos livraremos dele?
- Parece que não. - Cumbrae soltou uma risadinha. - Em todo caso, está desfraldando a cruz branca do império e investindo contra os transportes de El Grang por vingança. Afundou e capturou vinte e três velas na última semana, e nenhum capitão muçulmano se fará ao mar enquanto ele estiver ao largo. Sem qualquer ajuda, está bloqueando a costa inteira da Etiópia. - Meneou a cabeça em relutante admiração. - Dos penhascos acima de Tenwera, eu o observei cair sobre uma flotilha de caíques de guerra de El Grang. Cortou-os em pedaços. Por Jesus, ele maneja um navio tão bem quanto Franky o fazia. Girou em círculos em torno daqueles muçulmanos e explodiu-os na água. A frota inteira de Alá, o Todo-Misericordioso, está engarrafada no porto, e El Grang está faminto por reforços e provisões. Os muçulmanos chamam o jovem Courtney de El Tazar, o Barracuda, e não irão se confrontar com ele.
Então, seu sorriso feneceu e ele pareceu lúgubre.
- O Golden Bough está brilhante e livre de teredos. Meu Gull tem estado no mar há cerca de três anos. Suas tábuas estão carcomidas de vermes de navio. Posso imaginar que, mesmo em meu melhor ponto de navegabilidade, o Golden Bough tem pelo menos três nós de velocidade de vantagem sobre mim.
- O que quer que eu diga a Sua Alteza? - perguntou Schreuder, com escárnio. - Que tem medo de enfrentar o jovem Courtney?
- Não tenho medo de nenhum homem vivo. Ou morto. Contudo, não há lucro para mim nisso. Hal Courtney não tem nada que eu queira, porém, se vier para a briga, poderá causar a mim e a meu Gull um horrível dano. Se querem que eu lute com ele, terão de adoçar um pouco meu copo.
Schreuder voltou-se para o príncipe e explicou-lhe o assunto em termos diplomáticos cuidadosamente escolhidos. Sadiq Khan Jahan acariciou seu falcão enquanto ouvia com ar inexpressivo, e o pássaro arrepiou as penas e encapuzou os olhos amarelos. Quando Schreuder terminou, o príncipe voltou-se para El Grang.
- Como disse que chamavam a esse fanfarrão de barba ruiva?
- Eles o chamam de o Gavião, Sua Alteza - retrucou El Grang, com voz rouca.
- Um nome bem escolhido, pois parece que prefere picar os olhos do fraco e dos mortos e escarafunchar os restos de criaturas mais poderosas a matar por si mesmo. Não é nenhum falcão.
El Grang assentiu com a cabeça, e o príncipe voltou-se para Schreuder.
- Pergunte a essa nobre ave de rapina que pagamento ele exige para lutar com El Tazar.
- Diga ao menino bonito que quero um laque de rupias em moedas de ouro, e quero-as em minhas mãos antes de deixar o porto - retrucou Cumbrae, e mesmo Schreuder arquejou diante de tanta audácia. Um laque eram cem mil rupias. O Gavião continuou, num tom amistoso. - Veja, peguei o príncipe com o bumbum no ar e as pantalonas enroladas até os joelhos. Pretendo comê-lo por inteiro, porém não do jeito que ele gosta.
Schreuder ouviu a resposta do príncipe e em seguida voltou-se para Cumbrae.
- Ele diz que poderia construir vinte navios como o Gull por um laque.
- Pode ser que sim, porém não me comprarão um par de bolas para substituir aquelas que Hal Courtney arrancar.
O príncipe sorriu diante daquela resposta.
- Diga ao Gavião que ele as deve ter perdido faz muito tempo, mas que é um belo eunuco. Eu sempre poderia encontrar um lugar para ele em meu harém.
O Gavião soltou uma risada raivosa com o insulto, mas meneou a cabeça.
- Diga ao belo pederasta: nenhum ouro, e o Gavião vai se embora. O príncipe e El Grang cochicharam um com o outro, a gesticular.
Por fim, pareceram chegar a uma decisão.
- Tenho outra proposta que o atrevido capitão poderia achar mais a seu gosto. O risco que assumirá não será tão grande, porém ele receberá o laque que exige. - O príncipe pôs-se de pé, e toda a corte caiu de joelhos e comprimiu a testa no chão. - Deixarei que o sultão Ahmed El Grang explique isso a ele em segredo.
Retirou-se pelas cortinas nos fundos da tenda, e toda sua comitiva saiu com ele, deixando apenas os dois europeus e o sultão na caverna de seda.
El Grang fez um gesto para que ambos os homens se aproximassem e se sentassem de frente para ele.
- O que tenho a dizer não é para os ouvidos de nenhuma outra alma vivente. - Enquanto organizava os pensamentos, deslizou o dedo pelo antigo ferimento de lança que corria numa cicatriz de borda de tecido intumescido desde seu ouvido até o colarinho alto de sua túnica: metade de suas cordas vocais tinha sido cortada por aquele velho ferimento. Começou, rouco, com uma voz sibilante: - O imperador foi assassinado diante de Suakin, e seu filho infante, Iyasi, herdou a coroa de padre João. Seus exércitos estavam desbaratados, quando então surgiu um profeta feminino proclamando ter sido escolhido pelo deus cristão para liderar suas forças. Desceu das montanhas conduzindo cinquenta mil lutadores e carregando diante de si um talismã religioso a que chamam de Tabernáculo de Maria. Seus exércitos, inspirados por fanatismo religioso, foram capazes de nos parar em Mitsiwa.
Tanto Schreuder como Cochran concordaram. Aquilo não era novidade.
- Agora, Alá me deu a oportunidade de me apoderar tanto do talismã como da pessoa do imperador infante.
El Grang recostou-se e mergulhou no silêncio, observando as faces dos dois homens brancos judiciosamente.
- Com o Tabernáculo e o imperador em suas mãos, os exércitos de Nazet se dissolveriam como neve ao sol de verão - disse Schreuder, calmamente.
El Grang concordou.
- Um monge renegado veio ter conosco e ofereceu-se para conduzir um pequeno grupo comandado por um homem ousado ao lugar onde tanto o talismã como o imperador estão escondidos. Assim que a criança e o Tabernáculo forem capturados, precisarei de um navio rápido e poderoso para transportá-los para Mascate antes de Nazet possa fazer qualquer tentativa de resgatá-los. - Voltou-se para Schreuder e disse: - Você, coronel, é o homem corajoso de que preciso. Se tiver sucesso, seu pagamento será também de um laque.
Então El Grang olhou para Cochran.
- Seu navio é o mais rápido para levá-los a Mascate. Quando entregá-los lá, haverá outro laque para você. - Sorriu com frieza. - Desta vez, eu lhe pagarei para fugir de El Tazar, não para confrontá-lo. Suas bolas são grandes e pesadas o bastante para essa tarefa, meu bravo Gavião?
espiões de Fasilides tinham trazido o relato - e seu capitão está em terra. Dizem que se senta em conselho com El Grang.
Aquela informação sigilosa, porém, estava dois dias atrasado.
- O Gavião ainda estará lá? - conjecturou Hal consigo mesmo, e estudou suas velas.
O Golden Bough não poderia carregar qualquer outra porção ínfima de panos, e cada vela se içava docemente. O casco deslizava pela água, e o tombadilho vibrava debaixo de seus pés como uma criatura viva. Se encontrarmos o Gull ainda em âncora, poderemos abordá-lo mesmo na escuridão, pensou Hal, e seguiu pelo convés, verificando as talhas de seus canhões. Os marujos brancos batiam na testa e sorriam para ele, enquanto as fileiras agachadas dos amadodas riam e faziam cruzes no peito com a mão direita aberta em saudação. Eram como cães de caça com o cheiro do alce em suas narinas. Hal sabia que não iriam recuar quando pusesse o Golden Bough ao lado do Gull e os liderasse para o tombadilho da nau inimiga.
O sol afundava rumo ao horizonte e espalhava suas chamas pelo mar. A escuridão desceu e o contorno de terra mesclou-se a ela.
Nascer da lua em duas horas, pensou Hal, ao parar ao lado da bitácula para verificar o rumo do navio. Estaremos dentro da baía de Adulis até então. Ergueu os olhos para Ned Tyler, cuja face era iluminada pela lanterna da bússola.
- Içar nossas novas lonas - ordenou, e Ned repetiu a ordem através do corneta de comunicação.
As novas lonas estavam depositadas no convés, os panos já passados nos gornes pelas tralhas de escota e alças de cabo, porém custou uma hora de trabalho árduo e perigoso até que as velas brancas fossem trazidas para baixo e postas de lado, e as lonas que tinham sido ensopadas de piche içadas para as vergas e enfunadas.
Negro era seu casco, e negras como a meia-noite eram suas lonas. O Golden Bough não mostraria nenhum relance à luz da lua quando velejasse para a baía de Adulis a fim de pegar desprevenida a frota ancorada do Islã.
Permiti que o Gavião esteja lá, rezou Hal silenciosamente. Por favor, Deus, permiti que ele não tenha partido.
Lentamente a baía se abriu para eles, e viram as lanternas da frota inimiga como as luzes de uma grande cidade. Além delas, as fogueiras de vigia da hoste de El Grang refletiam-se no ventre da nuvem baixa de poeira e fumaça.
- Deixe o navio no curso de bombordo, Sr. Tyler. Rume para a baía.
O navio fez a volta e investiu rapidamente em direção à frota ancorada.
- Encurtar um mastaréu nas mestras. Colha todas as de topo não usadas, por favor, Sr. Tyler.
O impulso do navio diminuiu, e o sussurro da onda na proa definhou conforme seguiam sob velas de batalha.
Hal rumou para proa, e Aboli saiu da escuridão.
- Seus arqueiros estão prontos? - perguntou Hal. Os dentes de Aboli faiscaram nas sombras.
- Todos prontos, Gundwane.
Hal podia divisá-los agora, formas escuras agachadas ao longo da amurada do navio, entre as colubrinas, os fardos de flechas depositados sobre o convés.
- Mantenha-os sob seu olhar! - avisou-o Hal. Se os amadodas tinham uma falha em batalha, era que podiam ficar cegos por sua luxúria por sangue.
Ao chegar ao posto de Daniel Grande, na parte do convés entre os castelos, Hal certificou-se de que todas as mechas de queima lenta estivessem escondidas nos tubos e que as pontas reluzentes não pudessem alertar uma sentinela do inimigo.
- Boa noite, mestre Daniel. Seus homens nunca estiveram numa batalha noturna. Mantenha a rédea curta. Não os deixe sair atirando doidamente.
Voltou para o leme, e o navio avançou para dentro da baía, uma sombra escura nas águas sombrias. A lua ergueu-se por detrás deles e iluminou o cenário à frente com uma radiância prateada, de maneira que Hal pôde discernir as silhuetas da frota inimiga. Sabia que seu próprio navio ainda estava invisível.
Avançaram furtivamente e agora estavam perto o bastante para ouvir os sons das naus atracadas adiante, vozes a cantar, rezar e conversar. Alguém martelava com uma marreta de madeira, e havia o ranger de remos e o estalar de cordames conforme os caíques rodavam gentilmente em âncora.
Hal estreitou os olhos para divisar os mastros do Gull of Moray, porém sabia que, se ele estivesse na baía, não poderia avistá-lo até que a primeira surriada iluminasse a escuridão.
- Um grande caíque logo à frente - disse baixinho para Ned Tyler. - Aproe para passar perto dele a estibordo.
- Pronto, mestre Daniel. - Ergueu a voz. - Na embarcação a estibordo, dispare como puder.
Investiram contra o caíque ancorado e, conforme a nau se apresentou plenamente de través, os disparos do Golden Bough iluminaram a escuridão como um relâmpago difuso, e o estrondo dos canhões chocou-lhes os tímpanos e ecoou pelas colinas desertas. Naquela breve luz de cegar a vista, Hal viu os mastros e cascos de toda a frota inimiga brilhantemente iluminada, e sentiu o chumbo do desapontamento pesar em suas entranhas.
- O Gull se foi - exclamou. Mais uma vez, o Gavião lhe escapara. Haverá outro momento, consolou-se. Com firmeza, afastou o pensamento perturbador da mente e voltou a plena atenção de novo para o cenário da batalha que se abria como algum quadro vivo infernal diante de si.
No instante em que a primeira surriada investiu com violência sobre a presa, Aboli não teve de esperar por uma ordem. O tombadilho se iluminou com o clarão de muitas chamas vivas conforme os amadodas acendiam suas flechas de fogo. Em cada eixo de cana, amarrado atrás da ponta de ferro, estava um tufo de corda desemaranhada de cânhamo, encharcada em piche, que faiscava e depois queimava ferozmente quando tocada com a mecha de queima lenta.
Os arqueiros soltaram suas flechas, que voaram numa alta e flamejante parábola e desceram para se enterrar nas tábuas de uma nau ancorada. Enquanto os berros de terror e agonia se erguiam do casco arrebentado pelos tiros, o Golden Bough deslizava para dentro da massa de embarcações.
- Duas naus a um ponto de cada lado de sua proa - disse Hal ao timoneiro. - Passe entre elas.
Conforme passavam perto de cada uma das duas, o navio adernou de um lado e depois de outro enquanto seus costados retumbavam com os disparos em rápida sucessão, e uma chuva de flechas de fogo caía do céu sobre as naus atingidas.
Atrás deles, o primeiro caíque ardia em chamas, e o fogo clareava a baía, a iluminar brilhantemente a presa para os artilheiros do Golden Bough, enquanto a nau avançava por entre a frota inimiga.
- El Tazar!
Quando Hal ouviu as vozes terrificadas dos árabes a gritar seu nome, de navio a navio, sorriu com ar sinistro e ficou a observar os esforços derivados do pânico para cortar os cabos de âncora e escapar de sua aproximação. Agora, cinco caíques queimavam e eram arrastados pela corrente, fora de controle, para dentro da ancoragem lotada.
Algumas naus inimigas disparavam endoidecidas e continuavam a atirar sem fazer qualquer tentativa de apontar a mira para a fragata. Balas de canhão perdidas, miradas muito ao alto, uivavam por sobre suas cabeças, enquanto outras, apontadas muito para baixo, ricocheteavam pela superfície da água e se chocavam com os navios amigos ancorados ao lado deles.
As chamas saltavam de navio a navio, e a extensão toda da baía brilhava como se fosse dia. Mais uma vez, Hal procurou pelos altos mastros do Gull. Se estivesse ali, por essa hora o Gavião teria assentado as velas e sua silhueta seria inconfundível. Contudo, não estava em parte alguma à vista, e Hal voltou zangado para a tarefa de espalhar quanta destruição pudesse sobre a frota do Islã.
Atrás deles, um dos cascos em chamas devia estar carregado com várias centenas de toneladas de pólvora negra para a artilharia de El Grang. Explodiu numa imensa torre de fumaça negra, detonando a carga entre flamejantes chamas vermelhas, como se o demónio tivesse escancarado as portas do inferno. A coluna revoluta de fumaça elevou-se, avultando para o céu noturno, até que seu topo não era mais visível e parecia chegar aos céus. O estouro varreu a frota, abatendo-se sobre as embarcações mais próximas e arrebentando suas pranchas ou fazendo-as emborcar.
O vento da explosão rugiu sobre a fragata, e, por um momento, as velas foram abafadas e a nau começou a perder o rumo. Então a brisa da noite que soprava de terra assumiu o controle e enfunou-as mais uma vez. A nau avançou, para o fundo da baía e para dentro do coração da frota inimiga.
Hal fazia um gesto de satisfação implacável a cada vez que uma das salvas do Golden Bough explodia. Viam-se envoltos numa súbita onda de choque e numa única erupção de chamas vermelhas conforme cada canhão disparava no mesmo instante. Mesmo os amadodas de Aboli lançavam suas chuvas de flechas numa única nuvem flamejante. Em contraste, nunca se vira um tal espocar selvagem e discordante de tiros descontrolados como os disparados dos navios inimigos.
As baterias de terra de El Grang começaram a abrir fogo enquanto seus artilheiros aturdidos de sono cambaleavam para as colossais armas de defesa. Cada descarga era como um estampido separado de trovão, depreciando mesmo o rugido das maciças surriadas da fragata. Hal sorriu a cada vez que um daqueles poderosos canos flamejava dos redutos murados de rocha pela baía. Os artilheiros de terra não poderiam divisar as velas negras do Golden Bough na confusão e na fumaça. Disparavam contra sua própria frota, e Hal viu pelo menos um navio inimigo arrebentado até as pranchas por uma única bala vinda de terra.
- De prontidão para bordejar! - Hal deu a ordem em um dos momentos fugidios de quietude. A praia se aproximava depressa e logo se veriam cercados de terra nas profundezas da baía. Os homens do topo do mastro manejaram as velas com sincronização perfeita, e a proa girou num largo arco e depois se endireitou quando apontou de novo para o mar aberto.
Hal avançou pela luz brilhante dos navios incendiados e ergueu a voz para que os homens pudessem ouvi-lo.
- Não duvido que El Grang vá se lembrar por muito tempo desta noite.
Deram vivas a ele mesmo enquanto puxavam as talhas das armas e punham as flechas nos arcos.
- O Bough e Sir Hal! Então uma única voz ecoou:
- El Tazar!
E todos eles adotaram o grito com tamanho entusiasmo, que El Grang e o príncipe deviam tê-los escutado de onde se postavam, diante da tenda de seda no outeiro acima da baía, e olhavam para a frota destruída.
- El Tazar! El Tazar!
Hal fez um gesto para o leme.
- Leve-nos para fora daqui, por favor, Sr. Tyler.
Ao abrir caminho por entre os cascos em chamas e os destroços flutuantes, e avançar lentamente rumo à entrada, um único tiro disparado de um dos caíques à deriva passou pela apostura e avançou pelo convés aberto. Miraculosamente, passou entre um dos artilheiros e um grupo de arqueiros meio nus sem tocá-los. Stan Andorinha, contudo, estava de pé na amurada oposta, comandando uma bateria de fogo, e a quente bala de ferro arrancou-lhe as pernas logo acima dos joelhos.
Instintivamente, Hal correu para socorrê-lo, porém então se controlou. Como capitão, os mortos e feridos não eram de sua conta, mas ele sentiu a agonia da perda. Stan Andorinha estivera com ele desde o princípio. Era um bom homem e um companheiro.
Quando carregaram Stan para longe, passaram perto de onde Hal estava. Ele viu que a face de Stan era de uma palidez de marfim e que a hemorragia lhe drenava a vida. Stan afundava para a morte depressa, porém viu Hal e, com grande esforço, ergueu a mão para tocar a testa.
- Foram bons tempos, capitão - disse, e sua mão caiu.
- Boa viagem, mestre Stan - disse Hal e, enquanto o carregavam para baixo, voltou-se para olhar de novo para a baía, para que, sob a luz dos navios em chama, nenhum homem pudesse ver sua aflição.
Bem depois que tinham deixado a baía e virado para rumo norte, em direção a Mitsiwa, os céus da noite atrás deles reluziam com o inferno que tinham criado. Os capitães de divisão aproximaram-se, um de cada vez, para fazer o relato da batalha. Embora Stan Andorinha fosse o único homem morto, três outros haviam sido feridos pelo fogo de mosquete dos caíques pelos quais tinham passado, e a perna de outro fora esmagada pelo coice de uma colubrina carregada em excesso. Era um pequeno preço a pagar, considerou Hal; contudo, mesmo que soubesse ser fraqueza, sentia pesar pela perda de Stan Andorinha.
Embora estivesse exausto e sua cabeça doesse com o tumulto da batalha e a fumaça de pólvora, Hal estava perturbado demais para dormir, e sua mente era num turbilhão de emoções e pensamentos acelerados. Deixou o leme para Ned Tyler e foi se postar sozinho na proa, para deixar que o ar frio da noite o acalmasse.
Ainda estava sozinho ali quando a aurora começou a irromper e o Golden Bough rumou na direção das rotas de Mitsiwa, e foi o primeiro a ver os três rojões chineses vermelhos que voaram para o céu das alturas dos penhascos, acima da baía.
Era um sinal de Judith Nazet, um chamado urgente. Ele sentiu o pulso se acelerar de pavor ao se voltar e berrar para Aboli, que estava de vigia:
- Ice três lanternas vermelhas do topo do mastro! Três luzes vermelhas eram uma confirmação do sinal.
Ela ouvira os canhões e vira as chamas, pensou Hal. Quer ter meu relatório da batalha. De alguma forma, ele sabia que não era assim, porém tentou com isso acalmar a súbita sensação de pavor que o assaltava.
Já era dia claro quando apontaram para terra. Hal ainda estava na proa e foi o primeiro a avistar o bote que partiu da praia para encontrá-los. A duas amarras de distância, ele reconheceu a esguia figura de pé ao lado do único mastro. Sentiu o coração saltar no peito, e sua tristeza feneceu, substituída por uma sensação de ansiosa antecipação.
A cabeça de Judith Nazet estava descoberta, e o halo negro de seus cabelos emoldurava-lhe a face. Usava armadura, e uma espada estava presa a seu lado, um elmo de aço sob seu braço.
Hal voltou para o tombadilho superior e deu suas ordens ao leme:
- Faça a volta e pare! Deixe o bote chegar de lado.
Judith Nazet passou pela porta de embarque com pressa, e Hal viu que suas feições maravilhosas estavam tensas.
- Dou graças a Deus por trazê-lo de volta tão depressa - disse ela, numa voz que tremia com alguma forte emoção. - Uma terrível catástrofe se abateu sobre nós. Mal posso encontrar palavras para descrevê-la a você.
Tinham amortecido as patas dos cavalos com botas de couro para que fizessem pouco ruído na terra rochosa. O padre cavalgava perto, ao lado de Cornélius Schreuder, mas este tomara a precaução de prender uma leve corrente de aço em torno da cintura do homem e a outra ponta em torno de seu próprio pulso. O padre tinha o olhar evasivo e feições de fuinha em que Schreuder não confiava nem um pouco.
Cavalgavam em fila dupla pelo vale estreito, e, embora a lua tivesse nascido uma hora antes, as paredes rochosas ainda lançavam o calor do sol em suas faces. Schreuder selecionara os quinze homens mais confiáveis de seu regimento, e todos estavam montados em cavalos ligeiros. Os arreios haviam sido cuidadosamente amortecidos e as armas envoltas em pano para que não tilintassem na noite.
O padre ergueu a mão de repente.
- Pare aqui!
Schreuder repetiu a ordem num murmúrio.
- Preciso ir em frente para ver se o caminho está limpo - disse o padre.
- Irei com você.
Schreuder desmontou e diminuiu seu aperto na corrente. Deixaram o resto do bando no fundo do leito seco do rio e escalaram a encosta íngreme.
- Lá está o mosteiro. - O padre apontou para o vulto maciço e quadrado que se assentava sobre as colinas acima deles, bloqueando metade das estrelas do céu noturno. - Faça um sinal luminoso por duas vezes e depois duas vezes de novo - disse.
Schreuder mirou a pequena lanterna em direção às muralhas do mosteiro e abriu o postigo que fechava a chama. Por duas vezes e depois mais duas de novo, fez o sinal cintilar. Esperaram. Nada aconteceu.
- Se está brincando comigo, arrancarei sua cabeça com as costas de minha espada - rosnou Schreuder, e sentiu o pequeno padre estremecer a seu lado.
- Ilumine de novo! - pediu ele, e Schreuder repetiu o sinal. De repente, um débil facho de luz luziu brevemente no topo da muralha.
Por duas vezes se mostrou e depois se extinguiu.
- Podemos continuar - murmurou o padre, excitado, porém Schreuder o impediu.
- O que disse àqueles dentro do mosteiro que nos ajudarão a entrar?
- Que estamos levando o imperador e o tabernáculo para um lugar seguro, para salvá-lo de um complô de assassinato engendrado por um grande nobre da facção dos galas, que quer tomar a coroa do padre João.
- Um bom plano - murmurou Schreuder, e instou o padre para que descesse a ladeira até onde os cavalos esperavam.
O guia conduziu-os para a frente, e subiram outra profunda ravina até se encontrarem sob as maciças e gigantescas muralhas.
- Deixe os cavalos aqui - murmurou o padre. Sua voz era trémula. Os homens de Schreuder desmontaram e entregaram as rédeas para dois companheiros, a quem fora delegado o cuidado com os cavalos. Schreuder reuniu o grupo de invasão e conduziu-os, atrás do padre, para a muralha. Uma escada de corda pendia das alturas, e, na escuridão, Schreuder não conseguia ver o topo de onde vinha.
- Mantive minha parte da barganha - resmungou o padre. - Outro irá encontrá-los no topo. Tem a recompensa que me foi prometida?
- Saiu-se bem - concordou Schreuder prontamente. - Está em meu alforje de sela. Um de meus homens voltará até os cavalos e a entregará a você. - Passou a ponta da corrente para seu tenente. - Cuide bem dele, Ezekiel - disse, em árabe, para que o padre pudesse entender. - Dê a ele a recompensa pela qual anseia tanto.
Ezekiel conduziu o homem para longe, e Schreuder esperou uns poucos minutos até que houve um resmungo de choque e surpresa vindo da escuridão e a suave lufada de ar escapando de uma traqueia secionada. Ezekiel voltou em silêncio, enxugando a adaga numa dobra do turbante.
- Serviço limpo - comentou Schreuder.
- Minha faca é afiada - disse Ezekiel, e enfiou a lâmina de volta na bainha.
Schreuder pisou no degrau de corda e começou a subir. Quinze metros ao alto, chegou a uma estreita fenda cortada na muralha. Era larga o suficiente para espremer seus ombros por ela. Outro padre o esperava na pequena cela de pedras, adiante.
Um após o outro, os homens de Schreuder o seguiram para cima e se esgueiraram pelo dintel, até que todos estavam amontoados no quarto.
- Leve-nos ao infante primeiro! - ordenou Schreuder ao padre, e colocou a mão em seu ombro ossudo.
Os homens o seguiram ao longo de passagens sombrias e sinuosas, cada um agarrando o ombro do companheiro à frente.
Viraram e voltearam pelo escuro labirinto, até que, por fim, desceram uma escada em espiral e viram um tremeluzir de luz à frente. Tornou-se mais forte conforme avançavam em direção a ela, até que chegaram a uma soleira de porta, em cujos lados tochas queimavam nos suportes. Dois guardas estavam amontoados no limiar, com as armas caídas ao lado.
- Mate-os! - murmurou Schreuder para Ezekiel.
- Já estão mortos - disse o padre.
Schreuder tocou um deles com o pé: o braço do guarda escorregou, sem vida, e a tigela vazia que continha a comida envenenada rolou de sua mão.
O padre bateu em toques convencionados na porta, e a barra de trava foi erguida do lado oposto. A porta se abriu e uma babá postou-se do outro lado com uma criança nos braços, os olhos cheios de terror à luz das tochas.
- É este?
Schreuder ergueu a dobra do manto e espiou a doce face morena da criança. Seus olhos estavam fechados no sono, e os cachos negros molhados de perspiração.
- Sim - confirmou o padre.
Schreuder segurou o braço da babá com um aperto firme e puxou-a para fora, para seu lado.
- Agora, leve-me para a outra coisa - disse, baixinho.
Seguiram em frente, mais fundo dentro da confusão de paredes escuras e de estreitos corredores, até que chegaram a outra porta pesadamente reforçada diante da qual jaziam os corpos de quatro padres, contorcidos na agonia de sua morte por veneno. O guia ajoelhou-se ao lado de um deles e rebuscou em seus mantos. Quando se levantou de novo, tinha em suas mãos uma grande chave de ferro. Girou-a na fechadura e deu um passo atrás.
Schreuder chamou Ezekiel com um murmúrio e colocou a babá a seus cuidados.
- Guarde-a bem!
Em seguida, deu um passo para a porta e segurou a maçaneta de bronze. Quando a abriu, o padre traidor e mesmo o bando de invasores recuaram com o brilho da luz que fluía da cripta de pedra. Depois da escuridão, o fulgor de centenas de velas era ofuscante.
Schreuder passou pelo limiar e então fraquejou e deu um passo em falso. Olhou para o tabernáculo em sua veste de radiante tapeçaria. Os anjos sobre a tampa pareciam dançar na luz bruxuleante, e ele foi tomado por uma sensação de respeito religioso. Instintivamente, fez o sinal-da-cruz. Tentou avançar para segurar uma das alças do baú, porém era como se tivesse encontrado uma barreira invisível que o empurrava para trás. Sua respiração roufenhava, e seu peito parecia constrito.
Ele foi invadido por um impulso irracional de se voltar e correr, e recuou um passo antes que pudesse se controlar. Lentamente, saiu da cripta.
- Ezekiel! - disse, com voz rouca. - Tomarei conta da mulher e da criança. Com Mustapha para ajudá-lo, pegue o baú.
Os dois muçulmanos não foram assaltados por nenhum zelo religioso; avançaram depressa e pegaram as alças. O tabernáculo era surpreendentemente leve, quase sem peso. Carregaram-no sem esforço.
- Nossos cavalos estarão esperando no portão principal - disse Schreuder a seu guia, em árabe. - Leve-nos para lá!
Seguiram rapidamente pelas passagens escuras. Uma vez, depararam-se inesperadamente com outro padre de mantos brancos que dobrava uma curva do corredor em direção a eles. Na luz incerta das tochas, ele viu o tabernáculo nas mãos dos dois soldados armados, gritou de horror diante do sacrilégio e caiu de joelhos. Schreuder tinha o braço da mulher na mão esquerda e a espada nua de Netuno na direita. Matou o padre ajoelhado com uma única estocada pelas costelas.
Todos apuraram os ouvidos por alguns instantes, porém não houve nenhum grito de alarme.
- Vamos! - ordenou Schreuder. O guia parou de novo, de repente.
- O portão fica apenas a uma curta distância à frente. Há três homens na sala de guarda ao lado dele. - Schreuder podia divisar o brilho de sua lamparina passando pela porta aberta. - Devo deixá-lo aqui.
- Vá com Deus! - disse Schreuder, com ironia, e o homem se afastou.
- Ezekiel, ponha o baú no chão. Vá em frente e cuide dos guardas. Três deles desceram a passagem enquanto Schreuder mantinha a babá presa pelo braço. Ezekiel esgueirou-se para dentro da sala de guarda. Por um momento, nada se ouviu. Então, soou o baque de algo que caía no chão de pedra.
Schreuder vacilou, porém tudo ficou silencioso novamente, e Ezekiel voltou.
- Está feito!
- Você está velho e desajeitado - censurou-o Schreuder, e conduziu-os para a porta maciça.
Só com o concurso de três deles foi possível erguer as enormes vigas de madeira que a trancavam, e depois Ezekiel girou a manivela da primitiva roda de guincho e a porta rolou nos rodízios e se abriu.
- Mantenham-se juntos agora! - avisou Schreuder, e levou-os em grupo a correr pela ponte e para a trilha rochosa. Parou sob o luar e assobiou uma vez, baixinho.
Ouviu-se um suave baque de cascos amortecidos assim que os guardadores dos cavalos saíram de trás das pedras onde estavam escondidos. Ezekiel ergueu o tabernáculo para a sela do cavalo de reserva, e prendeu-o ali firmemente. Então, cada homem pegou as rédeas de sua própria montaria e saltou para a sela. Schreuder abaixou-a e ergueu a criança adormecida dos braços da babá. O menino se debateu, sonolento, mas Schreuder acalentou-o e acomodou-o em segurança no ressalto da sela.
- Vá! - ordenou à babá. - Não é mais necessária.
- Não posso deixar meu bebê. - A voz da mulher era alta e agitada. Schreuder inclinou-se outra vez e, com uma estocada da espada de Netuno, matou a babá de um só golpe. Deixou-a caída ao lado da trilha e conduziu o grupo invasor para baixo, pela montanha.
Dois dos padres do mosteiro conseguiram seguir os blasfemos quando eles fugiram - explicou Judith Nazet a Hal. Mesmo em face do desastre, seus lábios eram firmes, e seus olhos, calmos e inabalados.
Ele admirou-lhe a fortaleza moral, descobrindo então por que ela fora capaz de assumir o comando de um exército desbaratado e tornálo vitorioso.
- Onde estão agora? - indagou Hal. Estava tão abalado pelas pavorosas notícias, que lhe era difícil pensar com clareza e lógica.
- Seguiram diretamente do mosteiro para Tenwera. Chegaram lá antes do alvorecer, três horas atrás, e havia um grande navio esperando por eles, ancorado na baía.
- Descreveram-lhe essa nau? - perguntou Hal.
- Sim, era do corsário que tem a comissão do grão-mogol. Aquele de quem falamos antes, em nosso último encontro. O mesmo que causou tanto caos entre nossa frota de transportes.
- O Gavião! - exclamou Hal.
- Sim, é como é chamado mesmo por seus aliados - concordou Judith. - Enquanto meu povo observava dos penhascos, um pequeno bote levou tanto o imperador quando o tabernáculo até onde esse navio estava ancorado. Assim que estavam a bordo, o Gavião içou âncora e se fez ao mar.
- Em que direção?
- Quando estava fora da baía, rumou para o sul.
- Sim, claro - concordou Hal. - Deve ter recebido ordens para levar Iyasu e o tabernáculo para Mascate, ou mesmo para a índia, para o reino do grão-mogol.
- Já mandei um de nossos navios mais rápidos segui-lo. Estava apenas uma hora ou pouco mais atrás dele, e o vento está leve. É um pequeno caíque e não poderia jamais atacar um navio tão poderoso como aquele. Porém, se Deus é misericordioso, ainda deve estar em seu rastro.
- Precisamos seguir de imediato. - Hal afastou-se e chamou Ned Tyler com urgência. - Faça a volta e coloque a nau no rumo oposto. Assente todas as velas, cada verga de lona que possa enfunar. O curso é sul-sul-leste, para o Bab ei Mandeb.
Pegou o braço de Judith, a primeira vez que a tocava, e conduziua até sua cabine.
- Você está cansada - disse. - Posso ver em seus olhos.
- Não, capitão - retrucou ela. - Não é cansaço o que vê, mas tristeza. Se não puder nos salvar, então tudo estará perdido. Um rei, um país, uma fé.
- Por favor, sente-se - insistiu ele. - Eu lhe mostrarei o que devemos fazer. - Abriu a carta náutica diante dela. - O Gavião pode seguir direto para a costa ocidental da Arábia. Se o fizer, então estaremos perdidos. Mesmo neste navio, não tenho esperanças de capturá-lo antes que alcance o outro litoral.
O sol matutino infiltrou-se pelas janelas de popa e mostrou cruelmente as marcas de angústia cinzeladas na face adorável de Judith. Foi uma coisa terrível para Hal ver a dor que suas palavras tinham causado, e ele baixou os olhos para a carta, tentando poupá-la.
- Contudo, não creio que seja isso o que ele fará. Se velejar diretamente para a Arábia, o imperador e o tabernáculo enfrentarão uma perigosa e difícil jornada por terra para chegar ou a Mascate ou à índia. - Meneou a cabeça. - Não. Ele seguirá para o sul, através de Bab El Mandeb.
Hal apontou o dedo para a entrada estreita do mar Vermelho.
- Se pudermos alcançá-lo antes, então ele não poderá nos evitar. O Bab é muito estreito. Poderemos capturá-lo lá.
- Deus permita que sim! - rezou Judith.
- Tenho uma longa conta a acertar com o Gavião - disse Hal, muito sério. - Anseio em cada parte de meu corpo e alma em tê-lo sob meus canhões.
Judith encarou-o, consternada.
- Não pode disparar contra aquele navio.
- O que quer dizer com isso? - Ele a encarou de volta.
- O imperador e o tabernáculo estão a bordo. Você não pode se arriscar a destruir um deles.
Ao se dar conta da verdade do que ela dissera, Hal sentiu o espírito fraquejar. Teria de correr atrás do Gull of Moray e aproximar-se perigosamente enquanto o Gavião disparasse suas surriadas contra o Golden Bough, e não poderia responder. Podia imaginar a terrível situação que teriam de enfrentar, as balas de canhão rasgando o casco de seu navio e a chacina nos tombadilhos, antes que pudessem abordar o Gull.
O Golden Bough rumou para o sul. Ao fim do turno de antes do meio-dia, Hal reuniu todos os homens entre os castelos do navio e relatou-lhes a tarefa que exigia deles.
- Não esconderei isso de vocês, rapazes. O Gavião poderá atacar-nos, e não teremos condições de disparar de volta. - Todos ficaram silenciosos e de feições sombrias. - Porém, imaginou o quanto será doce quando abordarmos o Gull e metermos o aço neles.
Então os vivas se ergueram, porém havia medo nos olhos de todos quando ele os mandou de volta para marear as velas e extrair cada centímetro de velocidade do navio em seu vôo rumo a Bab El Mandeb.
- Você lhes prometeu a morte, e eles o vivaram - disse Judith Nazet, suavemente, quando ficaram a sós. - No entanto, você me chama de líder de homens.
Hal julgou ter ouvido mais do que respeito naquele tom de voz. A meio caminho do primeiro turno de vigia, veio um berro do cesto de gávea.
- Vela à vista! Em cheio à proa!
O pulso de Hal disparou. Poderia ter alcançado o Gavião tão cedo? Pegou a corneta de comunicação de seu gancho.
- Topo do mastro! Como a divisa?
- Verga latina!
Seu coração se afundou.
- Um pequeno navio. No mesmo curso em que estamos. Judith exclamou, baixinho.
- Poderia ser aquele que mandei para seguir o Gull.
Gradualmente, ganharam distância até a outra nau, e, em questão de meia hora, ela estava à vista do tombadilho. Hal entregou a luneta a Judith e ela estudou a nau com cuidado.
- Sim. É minha nau de reconhecimento. - Baixou o instrumento.
- Pode desfraldar a cruz branca para apaziguar seus temores e depois me levar para perto o bastante para que eu possa falar com eles?
Passaram tão perto da outra embarcação que podiam olhar para seu único tombadilho. Judith gritou, fazendo uma pergunta em gueês, e depois ouviu a débil resposta.
Voltou-se de novo para Hal, os olhos brilhantes de emoção.
- Você tinha razão. Eles seguiram o Gull desde a alvorada. Até poucas horas atrás, tinha suas velas de joanete à vista, mas então o vento aumentou e ele se afastou deles.
- Que curso fazia da última vez que o viram?
- O mesmo que manteve durante todo esse dia - disse-lhe Judith.
- Rumo sul, direto para os estreitos de Bab.
Embora ele tentasse convencê-la a descer para a cabine e descansar, Judith insistiu em ficar ao seu lado, no tombadilho superior. Conversaram pouco, pois ambos estavam muito tensos e receosos, porém, aos poucos, sobreveio-lhes uma sensação de companheirismo. Extraíam conforto um do outro, e recorreram a uma mútua reserva de força e determinação.
A cada poucos minutos, Hal olhava para cima, para suas funéreas velas negras, e depois seguia até a bitácula. Não havia nenhuma ordem que pudesse dar ao leme, pois Ned Tyler mantinha a nau em rumo firme conforme podia velejar.
Um silêncio carregado e pungente caíra pesadamente sobre o navio. Nenhum homem gritava ou ria. Aqueles fora de turno não cochilavam à sombra da vela mestra como era sua prática usual, mas se amontoavam em pequenos grupos silenciosos, alertas a cada movimento que Hal fazia ou a cada palavra que ele proferia.
O sol fez seu majestoso círculo no céu e caiu para tocar as colinas ocidentais distantes. A noite desabou sobre eles tão furtivamente como um assassino, e o horizonte tornou-se indistinto e mesclou-se com o céu que escurecia para depois desaparecer.
Na escuridão, Hal sentiu a mão de Judith pousar em seu braço. Era macia e quente, e contudo forte.
- Nós os perdemos, porém não é por sua culpa - disse, suavemente. - Ninguém poderia ter feito mais.
- Não fracassei ainda - disse ele. - Tenha fé em Deus e confie em mim.
- Mas... na escuridão? Certamente o Gavião não irá mostrar uma luz, e, pela alvorada de amanhã, já terá passado pelo Bab e para dentro do mar aberto.
Hal gostaria de dizer a Judith que tudo aquilo fora ordenado longo tempo atrás, que ele estava rumando para sul para se defrontar com um destino especial. Mesmo que aquilo pudesse ser fantasioso para ela, precisava lhe contar.
- Judith - disse, e então parou, como se procurasse as palavras certas.
- Tombadilho!
A voz de Aboli estrondeou na escuridão lá em cima. Tinha um timbre e uma ressonância que fizeram a pele de Hal formigar e os pêlos de sua nuca se eriçarem.
- Gávea! - berrou ele de volta.
- Uma luz logo adiante!
Hal pousou um braço em torno dos ombros de Judith e ela não fez nenhum gesto para se afastar dele. Em vez disso, aconchegou-se.
- Eis a resposta à sua pergunta - murmurou ele.
- Deus a providenciou para nós - retrucou ela.
- Preciso ir lá em cima. - Hal deixou o braço cair dos ombros dela. - Talvez estejamos muito apressados, e o demónio a nos pregar uma peça. - Caminhou até Ned. - Navio escuro, Sr. Tyler. Passarei pela quilha o homem que acender uma luz. Navio em silêncio, sem som ou voz. - Foi para as enxárcias do mastro principal.
Subiu rapidamente, até que se juntou a Aboli.
- Onde está essa luz? - Esquadrinhou a escuridão adiante. - Não vejo nada.
- Sumiu, mas estava quase bem à frente.
- Não era uma estrela, Aboli?
- Espere, Gundwane. Era uma luz pequena e distante.
Os minutos se escoaram lentamente, e então, de repente, Hal a viu. Nem mesmo era um lampejo, mas uma suave luminescência, tão nebulosa que ele duvidou dos próprios olhos, especialmente quando Aboli, a seu lado, não mostrou nenhum sinal de vê-la. Hal desviou o olhar para descansar os olhos e depois voltou e viu na escuridão que ainda estava lá, baixa demais para ser uma estrela, um brilho estranho e sobrenatural.
- Sim, Aboli, vejo agora. - Enquanto ele falava, a luz se tornou mais brilhante, e Aboli soltou uma exclamação de prazer. Então o brilho morreu de novo.
- Pode ser uma nau estranha, não o Gull.
- Certamente o Gavião não seria tão descuidado de mostrar uma lanterna em movimento.
- Uma lanterna na cabine de popa? O reflexo de sua bitácula?
- Ou um de seus marujos desfrutando de uma cachimbada tranquila?
- Vamos rezar para que seja algo assim. E onde poderíamos esperar que o Gavião estivesse - disse Hal. - Vamos nos manter atrás da luz até o nascer da lua.
Ficaram juntos, espiando adiante, para dentro da noite. Algumas vezes, a luminosidade estranha mostrava-se como um ponto distinto, em outras era um débil brilho amorfo, e muitas vezes desaparecia. Uma vez sumiu completamente por terrificante meia hora antes que luzisse de novo, perceptivelmente mais forte.
- Estamos ganhando terreno - atreveu-se Hal a murmurar. - A que distância calcula que estejamos ao largo?
- Uma légua - disse Aboli -, talvez menos.
- Onde está a lua? - Hal olhou para leste. - Será que nunca vai nascer?
Viu a primeira iridescência além das montanhas escuras da Arábia, e, tímida como uma noiva, a lua desvelou sua face. Deixou uma trilha de prata sobre as águas, e Hal sentiu a respiração se travar em seu peito e cada nervo de seu corpo ficar tenso como
uma corda de arco.
Adiante, na escuridão, surgia uma adorável aparição, suave como uma nuvem de névoa opalina.
- Lá está ele! - murmurou Hal. Teve de inalar fundo para firmar a voz. - O Gull of Moray logo adiante.
Agarrou o braço de Aboli.
- Desça e avise Ned Tyler e Daniel Grande. Fique lá até que possa ver o Gull do convés, então volte.
Quando Aboli se afastou, Hal ficou a observar a forma das velas do Gull, firmes e robustas ao luar, e sentiu medo, medo como raramente sentira na vida, medo não apenas por si mesmo, mas pelos homens que confiavam nele e pela mulher no convés lá embaixo e pela criança a bordo do outro navio. Como poderia esperar colocar o Golden Bough ao lado do Gull enquanto a nau corsária disparasse suas surriadas contra eles, e não pudessem replicar? Quantos deveriam morrer na próxima hora e quem estaria entre eles? Pensou no orgulhoso corpo esguio de Judith Nazet destroçado pela metralha voadora.
- Não permitais que isso aconteça, Senhor Deus. Já tomastes mais de mim do que eu posso suportar. Quanto mais? Quanto mais pedireis de mim?
Viu a luz novamente a bordo do outro navio. Luzia das altas janelas na popa. Haveria velas queimando lá? Firmou a vista até que seus olhos ardiam, mas não havia nenhuma fonte para a emanação de luz.
Sentiu um ligeiro toque no braço. Não ouvira Aboli subir de volta.
- O Gull está à vista do convés - disse a Hal, baixinho.
Hal não podia deixar o topo do mastro ainda, pois tivera uma sensação de temor religioso ao fitar a estranha luz na popa do Gull.
- Não é nem lâmpada nem lanterna nem vela, Aboli - disse. - É o Tabernáculo de Maria que reluz na escuridão. Um farol para me guiar a meu destino.
Aboli estremeceu ao lado dele.
- É verdade que não é uma luz deste mundo, é um brilho sobrenatural, como nunca vi antes. - Sua voz se alquebrou. - Mas, como sabe, Gundwane? Como pode estar tão certo de que é o talismã que arde assim?
- Porque sei - disse Hal, simplesmente, e enquanto falava, a luz morreu diante de seus olhos, e o Gull ficou às escuras. Apenas suas velas banhadas pelo luar assomavam diante deles.
- Era um sinal -murmurou Aboli.
- Sim, era um sinal - disse Hal, e sua voz soou forte e serena outra vez. - Deus me deu um sinal.
Desceram para o convés, e Hal seguiu direto para o leme.
- Lá está ele, Sr. Tyler - Ambos olharam para a frente, para onde os panos do Gull luziam ao luar.
- Sim, lá está ele, capitão.
- Apague a luz da bitácula. Leve-me para o lado do Gull, por favor. Tenha quatro timoneiros de reserva de prontidão para assumir a cana de leme quando os outros forem mortos.
- Sim, Sir Hal.
Hal seguiu em frente. A figura de Daniel Grande emergiu da escuridão.
- Arpéus, Sr. Daniel?
- Tudo pronto, capitão. Eu e dez de meus homens mais fortes iremos lançá-los.
- Não, Daniel, deixe isso com John Lovell. Tenho serviço melhor para você e Aboli. Venha comigo.
Conduziu Daniel e Aboli de volta até onde Judith Nazet estava, ao pé do mastro principal.
- Vocês dois irão com o general Nazet. Levem dez de seus melhores marujos. Não se prendam a uma luta no convés. Tão depressa quanto possam, desçam até a cabine de popa do Gull. Lá encontrarão o tabernáculo e a criança. Tragam-nos. Nada deve desviá-los desse propósito. Compreendem?
- Como sabe onde estão mantendo o imperador e o tabernáculo? - perguntou Judith, baixinho.
- Eu sei - disse Hal, com tanta convicção que ela ficou em silêncio. Hal gostaria de ordenar-lhe que ficasse num lugar seguro até que a luta acabasse, porém sabia que Judith se recusaria - e, além disso, não havia nenhum lugar seguro quando dois navios de tanta força estivessem travando um combate mortal.
- Onde estará você, Gundwane? - indagou Aboli, suavemente.
- Estarei com o Gavião - retrucou Hal, e deixou-os sem outra palavra.
Rumou para a proa, parando ao chegar a cada uma das divisões que se acocoravam sob a amurada, a falar baixinho a seus contramestres:
- Deus o ama, Samuel Moone. Poderemos ter de levar um tiro ou dois antes de abordá-lo, mas pense no prazer que o espera no tombadilho do Gull.
Para Jiri, disse:
- Será uma luta da qual se vangloriar para seus netos.
Teve uma palavra para cada um e depois se postou mais uma vez na proa, a olhar para o Gull. Estava a uma amarra de distância agora, a velejar serenamente sob os panos radiantes de luar.
- Senhor, mantende-nos ocultos deles - murmurou, e ergueu os olhos para as próprias velas negras, uma alta e sombria pirâmide contra as estrelas.
Lentamente, num vagar doloroso, fecharam o vão que os separava. Ele não pode fugir de nós agora, Hal pensou, com uma satisfação implacável. Estamos muito próximos.
De repente, ouviu-se um grito selvagem de terror vindo da gávea do Gull.
- Vela à vista! Logo à popa! O Golden Boughl.
Depois, tudo era grito e confusão no tombadilho do outro navio. A batida selvagem de um tambor se elevou, chamando a tripulação do Gavião para os postos de batalha e, com isso, o arrastar de muitos pés sobre as pranchas. Ouviu-se uma série de baques altos à medida que os postigos de artilharia eram abertos, e depois o rangido e o roncar dos canhões sendo corridos. De vinte pontos ao longo da amurada escura vieram o luzir das mechas queimando e o faiscar de seu reflexo no aço.
- Acenda as lanternas de batalha! - Hal escutou os berros de raiva do Gavião, que empurrava sua tripulação em pânico para suas posições e, depois, claramente, suas ordens para o leme: - Com força para bombordo! Deixe os bastardos sob nossa surriada! Daremos a eles uma boa pitada de fumaça, que os fará peidar na cara do diabo quando os mandarmos para o inferno!
As lanternas de batalha do Gull luziram conforme se acendiam para dar aos artilheiros luz para operar. Em seu brilho amarelado, Hal avistou de relance a moita de cabelos ruivos do Gavião.
Então, a silhueta do Gull se alterou rapidamente conforme a nau fazia a volta. Hal meneou a cabeça; o Gavião agira instintivamente, porém de forma imprudente. Em sua posição, Hal teria ficado ao largo e disparado sobre o Golden Bough, reduzindo-o a destroços enquanto estivesse incapaz de responder. Agora, ele teria de ter sorte e ser rápido para livrar um costado estável antes que o Golden Bough estivesse sobre ele.
Hal sorriu. O Gavião era vítima de sua própria perversidade. Era provável que nem mesmo tivesse entrado em seus cálculos que Hal iria segurar o fogo em prol de uma criança e de uma antiga relíquia. Se estivesse na mesma posição que Hal, o Gavião teria começado a atirar com todos os seus canhões.
Conforme o Gull fazia lentamente a volta, o Golden Bough voou sobre ele e, por um momento, Hal julgou que iriam ficar costado contra costado antes que os canhões pudessem disparar.
Fechavam a última centena de metros, e Ned já tinha dado a ordem para encurtar para velas de batalha, quando o Gull virou pelos últimos graus do arco e todos os seus canhões miraram direto para onde Hal se postava.
Frente a frente com a bateria do Gull, os olhos de Hal ficaram ressequidos com o brilhante fulgor escarlate quando os artilheiros dispararam à queima-roupa sua surriada para dentro do Golden Bough.
Uma tempestade de ar deslocado atingiu-os tão violentamente que Hal foi empurrado para trás como se acertado por uma bala. O convés em torno dele dissolveu-se numa chuva sibilante de lascas, e o grupo de amadodas perto dele foi atingido em cheio, não sobrando nenhum deles. O Golden Bough adernou agudamente ao peso dos tiros que estouravam, e a névoa sufocante de fumaça amontoou-se sobre seu casco esfacelado.
O terrível silêncio que se seguiu ao estrondo da descarga de artilharia foi quebrado apenas pelos gritos e gemidos dos feridos e dos agonizantes. Então, a parede de fumaça dissipou-se para o lado e, pelo estreito vão de água vieram os vivas da outra tripulação:
- O Gull e Cumbrae!
Hall ouviu o ranger dos trilhos dos canhões enquanto eles eram corridos para serem recarregados.
Quantos de meus rapazes estão mortos? Indagou-se ele. Um quarto? Metade? Olhou para trás, para seus próprios tombadilhos, porém a escuridão escondeu de seus olhos as tábuas destruídas e os montes de mortos e agonizantes.
Do outro lado da água, ouviu o baque de soquetes forçando a pólvora e as balas para dentro dos canos dos canhões.
- Mais depressa! - murmurou ele. - Mais depressa, minha querida. Feche o vão e não nos faça enfrentar outra carga dessas.
Ouviu o guincho da talha e o ronco quando um dos mais rápidos artilheiros completou a carga antes dos outros e correu sua colubrina para fora. Os dois navios estavam agora tão próximos que Hal viu o monstruoso cano escancarado sair pelo postigo. Com a boca quase tocando o costado do Golden Bough, ele rugiu novamente, e tábuas se esfacelaram e homens gritaram quando a pesada bala avançou sobre eles.
Então, antes que outro dos canhões do Gull pudesse correr para fora, os dois navios se juntaram num baque dilacerante e triturador. A luz das lanternas de batalha do Gull, Hal viu os arpéus serem arremessados e ouviu-os se fincarem ao convés oposto. Não hesitou; pulou pela amurada e saltou pela estreita faixa de água enquanto os dois cascos se travavam um no outro. Aterrissou leve como um gato entre os mais próximos artilheiros do Gavião e matou dois homens antes que estes pudessem sacar seus alfanjes.
Então uma onda de seus abordadores seguiu-o, liderados pelos amadodas, armados com lanças e machados. Em questão de segundos, o tombadilho superior do Gull estava transformado num campo de batalha. Homens lutavam peito a peito e mão a mão, gritando e uivando de raiva e terror.
- El Tazar! - rugiam os homens do Golden Bough, ouvindo em resposta:
- O Gull e Cumbrae!
Hal viu-se confrontado por quatro homens simultaneamente e foi empurrado para trás, para a amurada, antes que John Lovell investisse sobre eles por detrás e matasse um deles com um golpe entre as espáduas. Hal matou outro que hesitou, e os outros dois recuaram e correram. Hal teve um momento para olhar ao redor. Viu o Gavião no lado oposto do tombadilho, a rugir de ódio, a enorme espada escocesa a girar numa curva descendente sobre sua cabeça para abrir ao meio o opositor à sua frente.
Então, pelo canto dos olhos, Hal viu de relance o brilho do elmo de aço de Judith Nazet e, portentosas de cada lado dela, as formas de Aboli e Daniel Grande. Cruzaram o convés e desapareceram pela escada, para a cabine de popa. Aquele momento de distração poderia ter custado a Hal sua vida, pois um homem investiu sobre ele com uma lança, e ele voltou-se apenas a tempo de evitar o golpe. Então, estava em meio à luta de novo, conforme a onda humana recuava e avançava pelo tombadilho.
Abateu outro oponente com uma estocada na barriga e depois olhou em torno em busca do Gavião. Viu-o entre os castelos e gritou:
- Cumbrae, estou indo enfrentá-lo!
Porém, no tumulto, o Gavião não o viu, e Hal partiu para cima dele abrindo caminho entre a multidão de homens em luta.
Naquele instante, uma das enxárcias principais foi arrebentada e solta por um machado em vôo que perdera a cabeça na qual estava mirada, e a lanterna de batalha que estava suspensa nela veio arrebentar-se no convés, aos pés de Hal. Ele saltou para trás para escapar da labareda do óleo em chamas que se ergueu para sua face e depois concentrou energias e saltou pelo fogo para alcançar o Gavião.
Caiu do outro lado e olhou ao redor rapidamente, porém o Gavião desaparecera, e, em vez dele, dois de seus marujos investiam contra Hal. Ele enfrentou-os e vergastou os nervos de um braço de espada estendido quando um deles avançou. Depois, no mesmo movimento, trocou o corte por cutilada e enterrou a ponta da espada no fundo da garganta do segundo.
Recobrou-se e relanceou um olhar por sobre o ombro. As chamas da lanterna estilhaçada tinham ganhado força e iluminavam o convés brilhantemente. Línguas de fogo lambiam a enxárcia pendente em direção aos cordames. Através das chamas dançantes, ele viu Judith Nazet saltar para fora da entrada da escada de popa. Era seguida de perto por Daniel Grande, que carregava o Tabernáculo de Maria, equilibrado facilmente em seu ombro como se fosse leve como um almofadão meio cheio. Os anjos dourados na tampa faiscavam sob a luz das chamas.
Um marujo investiu contra Judith com sua lança, e Hal berrou de pavor quando a cabeça reluzente atingiu-a em cheio de lado, sob o braço erguido. Rasgou o fino algodão de sua túnica, porém deslizou sem dano pela cota de malha debaixo da roupa. Judith rodopiou como uma pantera zangada, e sua lâmina faiscou quando a mirou para a face do oponente. Tal foi a fúria de seu golpe, que a ponta saiu pelo verso do crânio do pirata, e o homem caiu a seus pés.
Os olhos negros e ferozes de Judith encontraram os de Hal pelo convés apinhado.
- Iyasu! - gritou ela. - Sumiu!
As chamas saltavam entre os dois, e Hal berrou através delas.
- Vá com Daniel! Saia deste navio! Leve o tabernáculo para a segurança do Golden Bough. Encontrarei Iyasu.
Ela nem discutiu nem hesitou, pondo-se a correr para a amurada, com Daniel a seu lado, e saltou para o tombadilho do Golden Bough. Hal começou a abrir caminho em direção à escada para chegar aos tombadilhos inferiores onde a criança deveria estar escondida, porém uma falange de amadodas conduzidos por Jiri invadiu o convés e cortou-lhe a passagem. Os guerreiros negros tinham travado seus escudos juntos numa sólida carapaça de tatu, investindo com as lanças em riste; e os piratas não tinham como enfrentar aquela carga.
Em toda batalha, chega o momento em que seu resultado está decidido, e, enquanto os marujos do Gull debandavam diante daquela onda de guerreiros que urravam e cabriolavam, esse momento chegou. Os homens do Gavião estavam batidos.
- Preciso encontrar Iyasu e tirá-lo do Gull antes que as chamas cheguem ao depósito de pólvora - disse Hal a si mesmo, e voltou-se para a abertura no castelo de proa, acesso mais fácil aos tombadilhos inferiores. Naquele momento, um berro imobilizou-o.
O Gavião estava de pé, ao alto, iluminado pela luz dançante e amarelada das chamas.
- Courtney! - rugiu. - É isto que está procurando?
Tinha a cabeça descoberta, e os cachos ruivos emaranhados caíam-lhe pela face. Na mão direita segurava a espada escocesa, e, na esquerda carregava Iyasu. A criança berrava de terror quando o Gavião a ergueu para o alto. Usava apenas uma fina camisola, repuxada acima de sua cintura, e suas pernas finas e morenas chutavam freneticamente o ar.
- É isto que está procurando? - berrou de novo o Gavião, e ergueu o menino acima da cabeça. - Então, venha e pegue o pirralho.
Hal avançou, cortando dois homens que estavam em seu caminho antes de chegar ao pé da escada do castelo de proa. O Gavião o observava aproximar-se. Devia saber que estava vencido, com seu navio em chamas e a tripulação sendo abatida e lançada sobre as amuradas pela onda de lanceiros, porém sorriu como uma gárgula.
- Deixe-me mostrar-lhe um belo truquezinho, Sir Henry. É chamado de pegar o fedelho no aço.
Com um giro do grosso braço cabeludo, lançou a criança a três metros no ar e depois ergueu a ponta da espada escocesa por baixo dele, conforme o menino caía.
- Não! - berrou Hal, desesperado.
No último instante, antes que a criança fosse empalada pela ponta, o Gavião desviou a espada de lado e Iyasu caiu de volta, incólume, em suas garras.
- Negociação! - gritou Hal. - Dê-me a criança ilesa e pode ir embora livre, com todo o seu butim.
- Que barganha! Meu navio está queimando, e meu butim com ele.
- Ouça-me - implorou Hal. - Deixe o garoto livre.
- Como posso eu me recusar a ouvir um irmão cavaleiro? - perguntou o Gavião, ainda explodindo em gargalhadas. - Terá o que pediu. Eis aqui! Deixo o pequeno bastardo negro livre.
Com outro poderoso giro do braço, lançou Iyasu por sobre o lado do navio. A camisola da criança se enfunou em torno de seu corpo quando ela caiu. Então, com apenas um suave borrifo, o mar negro a tragou.
Atrás de si, Hal ouviu o grito de Judith Nazet. Jogou a espada no convés e com três passadas velozes, chegou à amurada, de onde mergulhou de cabeça. Atingiu a água e afundou e, em seguida, voltou à superfície.
Vista de cima, de seus vinte pés de profundidade, a água era clara como o ar da montanha. Hal podia ver o fundo cheio de ervas daninhas do Gull a flutuar a seu lado, e o reflexo das chamas dançando na superfície ondulada. Então, entre ele e a luz do fogo, viu uma pequena forma escura. Os membros pequeninos se retorciam como um peixe numa rede, e bolhas prateadas brotavam da boca de Iyasu conforme ele se revirava na esteira do casco.
Hal lançou-se para a frente, a nadar com gestos frenéticos de braços e pernas, e alcançou-o antes que fosse arrastado para longe. Seguran-do-o pelo peito, irrompeu para a superfície e ergueu a face da criança para fora d'água.
Iyasu se debatia debilmente, tossindo e se engasgando, e depois, deixou escapar um vagido agudo e apavorado.
- Vomite tudo para fora - disse Hal, e olhou ao redor.
Daniel Grande devia ter chamado seus homens e depois cortado os cabos dos arpéus para afastar o Golden Bough do casco incendiado. Os dois navios derivavam agora para longe um do outro. Os marujos do Gull saltavam pelas amuradas conforme o calor das chamas desabava sobre eles, e a vela principal pegou fogo. O Gull começou a se afastar com os panos flamejantes e sem qualquer mão no leme. Deslizou lentamente para onde Hal se mantinha à tona batendo os pés, e ele se pôs a nadar desesperadamente com apenas uma das mãos, puxando Iyasu para fora do caminho da embarcação.
Por um longo e terrível minuto, pareceu que seriam esmagados pela quilha, e, então, uma lufada de vendo empurrou a proa um ponto, e a nau passou a menos de um bote de distância deles.
Com espanto, Hal viu que o Gavião ainda se postava sozinho na abertura do castelo de proa. As chamas o rodeavam, porém ele não parecia sentir seu calor. Sua barba começou a fumegar e enegrecer, mas ele olhou para Hal e engasgou-se de rir. Ofegou para respirar e então abriu a boca para gritar-lhe alguma coisa, mas, nesse instante, a escota do traquete do Gull incendiou-se e o imenso lençol de lona veio flutuando para baixo, cobrindo o Gavião. De sob aquela mortalha em chamas, Hal ouviu um último berro terrível e depois as labaredas saltaram para o alto, e o destroçado Gull arrastou seu mestre ao sabor do vento.
Hal ficou a observá-lo se afastar até que as vagas do oceano intervieram e ele perdeu de vista o navio em chamas. Então, uma onda inesperada ergueu-o e à criança para o alto. O Gull estava uma légua ao largo, e, naquele instante, as chamas deviam ter chegado a seu depósito de pólvora, pois a nau explodiu com um rugido devastador, e Hal sentiu as águas lhe constringirem o peito com a força da explosão que se transmitiu por elas. Ficou imóvel, a ver as tábuas em chamas rodarem ao alto, no céu noturno, para depois cair e se apagar nas águas escuras. Escuridão e silêncio desceram de novo.
Não havia nem rastro ou sinal do Golden Bough na noite. A criança chorava desoladamente, e Hal não sabia nenhuma palavra em gueês para confortá-la, de modo que manteve a cabeça do menino fora d'água e falou-lhe em inglês:
- Seja um rapazinho bom e forte. Tem de ser corajoso, pois nasceu um imperador e eu sei com certeza que um imperador nunca chora.
Porém, as botas e as roupas encharcadas de Hal o puxavam para o fundo, e ele teve de nadar com força para resistir. Manteve-se e ao menino à tona pelo resto daquela longa noite, porém, ao alvorecer, percebeu que estava perto do fim de suas forças e que a criança tremia e soluçava baixinho em seus braços.
- Não falta muito agora, Iyasu, e logo será dia claro - rouquejou, pela garganta escaldada de sal, porém sabia que nenhum deles aguentaria tanto.
- Gundwane!
Hal ouviu a voz tão amada chamar por ele, porém sabia que era delírio e riu alto.
- Não me pregue peças agora - disse. - Não tenho estômago para isso. Deixe-me em paz.
Então, em meio à escuridão, viu uma forma que emergia, ouviu o chape de remos puxando firme em sua direção, e a voz chamou novamente:
- Gundwane!
- Aboli! - Sua voz falhou. - Estou aqui!
Aquelas grandes mãos negras se estenderam e o pegaram, ergueram-no e à criança por sobre o lado do escaler. Assim que estava a bordo, Hal olhou ao redor de si. Com todas as suas lanternas acesas, o Golden Bough jazia parado a meia légua.
Judith Nazet estava sentada diante dele nas pranchas de popa, e tomou a criança de Hal e enrolou-a em seu manto. Acalentou Iyasu e se pôs a falar docemente com ele, em gueês, enquanto a tripulação remava de volta para o navio. Antes que chegassem ao Golden Bough, Iyasu dormia em seus braços.
- O tabernáculo - perguntou Hal a Aboli com voz rouca. - Está salvo?
- Está em sua cabine - acalmou-o Aboli, e depois baixou a voz. - Tudo isto é como seu pai previu. Por fim as estrelas devem deixá-lo livre, pois você cumpriu a profecia.
Hal sentiu uma profunda sensação de plenitude invadi-lo, e a desesperada fraqueza escorregou de seus ombros como um manto descartado. Sentiu-se leve e livre como se liberado de alguma longa e onerosa penitência. Olhou para Judith, que o observava. Havia algo em seu olhar profundo que ele não conseguiu imaginar, porém ela baixou os olhos antes que ele pudesse ler neles com clareza. Queria chegar mais perto dela, tocá-la, falar com ela e contar-lhe daqueles estranhos e poderosos sentimentos que o possuíam, porém quatro fileiras de remadores os separavam no pequeno bote lotado.
Ao se aproximarem do Golden Bough, a tripulação estava nos cordames e saudou-o com vivas quando o escaler prendeu-se às amarras. Aboli ofereceu a mão a Hal para ajudá-lo a subir a escada para o convés, porém Hal a ignorou e subiu sozinho. Parou ao ver a longa fila de cadáveres enrolados em mortalhas de lona que jazia entre os castelos, e o terrível dano que a artilharia do Gull fizera a seu navio. Contudo, não era hora de se preocupar com isso, pensou. Lançariam os mortos pela amurada e os pranteariam depois, mas agora era a hora da vitória. Olhou ao redor para as faces sorridentes de sua tripulação.
- Bem, seus rufiões, vocês pagaram ao Gavião e seus corta-goelas com uma moeda mais pesada do que a que eles barganharam. Sr. Tyler, abra um barril de rum e dê uma ração dupla para cada homem brindar ao Gavião em seu caminho para o inferno. Depois, assente o curso de volta para as rotas de Mitsiwa.
Pegou a criança dos braços de Judith Nazet e carregou-a para a cabine de popa. Colocou-a sobre o beliche e voltou-se para Judith, que estava a seu lado.
- Ele é um rapazinho forte, e saiu desta quase incólume. Devemos deixá-lo dormir.
- Sim - murmurou ela, a fitá-lo com aquele mesmo olhar profundo e imperscrutável. Então, tomou-o pela mão e conduziu-o à alcova fechada por cortinas onde estava o Tabernáculo de Maria. - Rezará comigo, El Tazar? - perguntou, e os dois se ajoelharam juntos.
- Agradecemos a vós, Senhor, por poupar a vida de nosso imperador, vosso pequeno servo, Iyasu. Agradecemos por livrá-lo das mãos ímpias dos blasfemos. Pedimos vossa bênção sobre vossos exércitos no conflito que jaz adiante. Quando a vitória estiver garantida, nós vos suplicamos, Senhor, que lhe conceda um longo e pacífico reinado. Tornai-o um sábio e gentil monarca. Por vosso nome, amém!
- Amém! - repetiu Hal, e fez menção de se levantar, porém ela o impediu com a mão em seu braço.
- Agradecemos também a vós, Senhor Deus, por mandar-nos vosso bom e leal servo, Henry Courtney, sem cujo valor e serviço altruísta os ateus teriam triunfado. Possa ele ser plenamente recompensado pela gratidão de todo o povo da Etiópia, e pelo amor e admiração que essa vossa serva, Judith Nazet, dedica a ele.
Hal sentiu o choque daquelas palavras reverberarem por todo o seu corpo e voltou-se para fitá-la, mas os olhos de Judith estavam fechados. Julgou que a compreendera mal, porém, então, o aperto em seu braço se acentuou. Ela se levantou e puxou-o contra o corpo.
Ainda sem encará-lo, Judith o conduziu para fora da cabine principal, para a menor, adjacente, fechou a porta e trancou-a.
- Suas roupas estão molhadas - disse, e, como uma camareira, começou a despi-lo.
Seus movimentos eram calmos e lentos. Tocou-lhe o peito quando estava nu, e correu os longos dedos morenos pelas suas costas. Ajoelhou-se diante dele para lhe soltar o cinto e lhe puxar as calças. Quando ele estava completamente despido, fitou-lhe o sexo com um olhar profundo e sombrio, porém sem tocá-lo ali. Pôs-se de pé, tomou-o pela mão e levou-se até o duro catre de madeira, onde o deitou. Hal tentou puxá-la para seu lado, porém ela afastou-lhe as mãos.
Postada diante dele, começou a se desnudar. Soltou a cota de malha, que caiu no convés em torno de seus pés. Por baixo da veste guerreira, pesada, masculina, seu corpo era um paradoxo de feminilidade. Sua pele era de um âmbar transluzente. Os seios, pequenos, porém de mamilos duros, roliços e de um vermelho escuro como as amoras maduras. Os quadris esguios eram esculpidos na doce ondulação da cintura. O tufo de pêlos que cobria seu monte de Vénus era crespo e de um preto lustroso.
Por fim, ela se aproximou de onde ele se deitava, inclinou-se e bei-jou-o profundamente na boca. Então soltou um gritinho de urgência e, com um movimento flexível, caiu sobre ele. Hal ficou atónito com a força e agilidade daquele corpo ao agarrar-se a ela e penetrá-la.
Ao final da tarde daquele dia quente e irreal, semelhante a um sonho, foram despertados pelo choro da criança na cabine ao lado. Judith suspirou e se levantou de imediato. Enquanto se vestia, ficou a fitá-lo como se quisesse se recordar de cada detalhe da face e do corpo de Hal. Depois, ao prender a armadura, aproximou-se e parou diante dele.
- Sim, eu realmente o amo. Porém, da mesma maneira como o escolheu, Deus me indicou para uma tarefa especial. Devo fazer com que o menino imperador seja instalado são e salvo no trono do padre João, em Aksum. - Ficou silenciosa por um longo momento e, depois, disse, baixinho. - Se eu o beijar outra vez, posso perder minha resolução. Adeus, Henry Courtney. Gostaria de todo o meu coração de ser uma simples mulher e que isso pudesse ser de outro jeito.
Rumou para a porta e foi servir a seu rei.
Hal ancorou ao largo da praia nas rotas de Mitsiwa e baixou o escaler. Reverentemente, Daniel Pescador colocou o Tabernáculo de Maria sobre as pranchas do fundo. Judith Nazet, em plena armadura e elmo de guerra, postou-se na proa, a segurar a mão do garotinho a seu lado. Hal tomou o leme e dez marujos os levaram a remo através das ondas suaves em direção à praia.
O bispo Fasilides e cinquenta capitães de guerra esperavam por eles nas areias vermelhas. Dez mil guerreiros alinhavam-se nos penhascos acima. Assim que reconheceram seu general e seu monarca, começaram a gritar vivas, e o coro se espalhou pela planície, até que era entoado por cinquenta mil vozes a ecoar ao longo das colinas do deserto.
Aqueles regimentos que tinham perdido o ânimo e já estavam na estrada de volta para as montanhas e o distante interior, acreditando-se desertados por seu general e seu imperador, ouviram o clamor e rumaram de volta. Fileira após fileira, coluna após coluna, uma poderosa confluência, os cascos de seus cavalos a erguer uma alta nuvem de poeira vermelha, suas armas a luzir ao sol e as vozes a repetir o coro triunfante, chegaram aos borbotões das colinas.
Fasilides adiantou-se para saudar Iyasu, conforme o menino pisava em terra, de mãos dadas com Judith. Os cinquenta capitães se ajoelharam na areia, ergueram suas espadas e clamaram pelas bênçãos de Deus sobre ele. Então avançaram e competiram ferozmente pela honra de carregar o Tabernáculo de Maria sobre os ombros. Cantando um hino de batalha, serpearam em procissão para cima, pela trilha do penhasco.
Judith Nazet montou seu garanhão negro com os arreios dourados de armadura e o penacho de plumas de avestruz. Tomou as rédeas e incitou-o, a empinar e cabriolar, para onde Hal se postava, à beira d'água.
- Se a batalha prosseguir a nosso favor, os pagãos tentarão escapar por mar. Faça-os conhecer a fúria e a vingança de Deus Todo-poderoso com seu belo navio - ela ordenou. - Se a batalha se voltar contra nós, faça o Golden Bough esperar aqui neste lugar para levar o imperador em segurança.
Inclinou-se na sela, e seus olhos luziam escuros e brilhantes por trás da peça de proteção de nariz do elmo, porém Hal não soube com certeza se o brilho era de ferocidade guerreira ou das lágrimas pelo amante perdido.
- Hei de desejar todos os dias de minha vida que isso pudesse ser diferente, El Tazar.
Endireitou-se, puxou as rédeas do corcel e se afastou, rumando para a trilha dos penhascos. O imperador Iyasu voltou-se nos braços do bispo Fasilides e acenou para Hal. Gritou alguma coisa em gueês, e sua voz aguda e flauteada arrastou-se debilmente até onde Hal se postava, à beira d'água.
Ele não compreendeu uma palavra. Acenou de volta e bradou:
- Você também, rapaz! Você também!
OGolden Bough se fez ao mar, e, além da linha de cinquenta braças, de cabeças descobertas sob o escaldante sol africano, seus mortos foram entregues ao mar. Eram quarenta e três naquelas mortalhas de lona, homens de Gales e Devon e das misteriosas terras ao longo do rio Zambeze, todos companheiros agora para sempre.
Em seguida à cerimónia fúnebre, Hal lançou o navio de volta para as águas rasas protegidas, onde pôs cada homem para trabalhar no reparo dos danos da batalha e recarregar o depósito de pólvora com as munições que o general Nazet mandara da praia.
Na terceira manhã, acordou na escuridão ao som de tiros. Subiu ao convés de imediato. Aboli estava parado na amurada de sotavento.
- Começou, Gundwane. O general lançou seu exército contra El Grang na batalha final.
Postaram-se juntos à amurada e olharam para a terra escura, onde as colinas distantes se iluminavam com as chamas infernais do campo de batalha, e um vasto pálio de poeira e fumaça subia lentamente para o céu sem vento e crescia em vagalhões no formato de bigorna de um tremendo cúmulo de trovoada tropical.
- Se El Grang for batido, tentará escapar com todo o seu exército pelo mar até a Arábia - disse Hal a Ned Tyler e Aboli, ao ouvirem o incessante pandemônio dos canhões. - Ice âncora e ponha o navio num curso rumo sul. Iremos encontrar os fugitivos quando tentarem sair da baía de Adulis.
Passava do meio-dia quando o Golden Bough abandonou a boca da baía e encurtou velas. O ribombar dos canhões nunca cessava, e Hal subiu até a gávea e focalizou a luneta na extensa planície além de Zulla, onde as duas grandes hostes se enfrentavam em luta mortal.
Através das cortinas de poeira e fumaça, ele pôde divisar as minúsculas formas dos cavaleiros à medida que atacavam e contra-atacavam, fantasmagóricos no pó das patas sob si. Viu os longos relâmpagos das grandes armas, de um vermelho pálido ao sol, e os serpeantes regimentos de infantaria redemoinhando pela névoa avermelhada como serpentes moribundas, as pontas das lanças a faiscar como as escamas de um réptil.
Lentamente, a batalha estendeu-se em direção ao litoral, e Hal viu uma carga de cavalaria lançar-se ao longo do cume dos penhascos e investir para dentro de uma formação solta e desordenada de infantaria. Os sabres subiam e desciam e os soldados a pé dispersavam-se diante deles. Homens começavam a se arrojar dos penhascos para o mar, lá embaixo.
- Quem são eles? - preocupou Hal. - Que cavalos são aqueles? E então, pelas lentes, divisou a cruz branca da Etiópia na vanguarda da massa de cavaleiros que corriam em direção a Zulla.
- Nazet os bateu - disse Aboli. - O exército de El Grang está em debandada!
- Ponha um homem para fazer sondagens, Sr. Tyler. Leve-nos para mais perto.
O Golden Bough deslizou silenciosamente para dentro da boca da baía, ficando apenas a uma amarra de distância ao largo de terra. Da gávea, Hal observou as nuvens pardacentas de guerra a rolar pesadas em direção à praia, e a turba do exército derrotado de El Grang a serpear de volta ante os esquadrões etíopes de cavalaria.
Livraram-se de suas armas e correram erráticos até a beira d'água para encontrar alguma nau que os tirasse dali. Uma armada heterogénea de caíques de todos tamanhos e condições, abarrotada de fugitivos, zarpou das praias em torno do flamejante porto de Zulla, rumo à abertura da baía.
- Céus! - Daniel Grande riu. - São tantos na água que seria possível cruzar de um lado da baía para o outro, sobre aqueles cascos lotados, sem molhar os pés.
- Corra para fora suas armas, por favor, mestre Daniel, e deixe-nos ver se podemos molhar mais que os pés deles - ordenou Hal.
O Golden Bough investiu contra aquela vasta frota, e os pequenos botes tentaram fugir, porém a fragata sobrepujou-os sem esforço e seus canhões começaram a estrondear. Um após o outro, os caíques foram esfacelados e emborcaram, e sua carga de tropas exaustas e derrotadas afundou na água. As armaduras os puxaram para baixo rapidamente.
Era um massacre tão terrível, que os artilheiros não mais davam vivas quando corriam os canhões, preparando-os em pesado silêncio. Hal seguiu pelas baterias e dirigiu-se a eles, compenetrado:
- Sei como se sentem, rapazes; porém, se os pouparem agora, poderão ter de lutar com eles de novo amanhã, e quem poderá dizer se lhes concederão mercê, se pedirem por isso então?
Ele, também, estava enojado com a carnificina, e ansiava pelo pôr-do-sol, ou por qualquer outra chance de cessar a matança. E tal oportunidade se apresentou de uma direção imprevista.
Aboli deixou seu posto na bateria de estibordo dos canhões e correu até onde Hal andava de um lado para outro, no tombadilho superior. Hal ergueu os olhos para ele com dureza, mas, antes que pudesse deixar escapar uma reprimenda, Aboli apontou pela proa de estibordo.
- Aquele navio com a vela vermelha. O homem na popa. Consegue vê-lo, Gundwane?
Hal sentiu um formigamento de apreensão em seus braços e o suor frio escorrer por suas costas ao reconhecer a figura alta de pé e inclinada contra o braço do leme. O homem estava completamente barbeado agora: os bigodes espetados tinham sumido. Usava um turbante amarelo, e o dólmã pesadamente bordado de um grande islâmico sobre as calças brancas folgadas e as botas macias até os joelhos, porém sua face pálida se distinguia como um espelho entre os homens de barbas negras e cerradas. Poderia haver outros com a mesma larga postura de ombros e de mesma figura alta e atlética, porém ninguém com a mesma espada do lado do quadril, em sua bainha de ouro estampada em relevo.
- Traga o navio para a direção contrária, Sr. Tyler. Vire de bordo para aquele caíque com a vela vermelha - ordenou Hal.
Ned olhou para onde ele apontava e então praguejou:
- Céus, aquele é o filho da puta do Schreuder! Possa o demo condená-lo ao inferno!
A tripulação árabe correu para o lado do caíque quando a alta fragata veio para cima deles. Saltaram pela amurada e tentaram nadar de volta à praia, preferindo os sabres da cavalaria etíope às colubrinas escancaradas do costado do Golden Bough. Schreuder continuou de pé, sozinho, na popa, os olhos cravados na fragata, com aquela expressão fria e implacável. Ao chegarem mais perto, Hal viu que sua face estava riscada de poeira e fuligem, e que suas roupas estavam rasgadas e sujas com a imundície do campo de batalha.
Hal seguiu até a amurada e lhe devolveu o olhar. Estavam tão perto que Hal mal precisava erguer a voz para se fazer ouvido.
- Coronel Schreuder, está com minha espada.
- Então, senhor, venha até aqui tomá-la de mim - desafiou Schreuder.
- Sr. Tyler, tem o comando em minha ausência. Leve-me para mais perto do caíque, para que eu possa abordá-lo.
- Isso é loucura, Gundwane - disse Aboli, baixinho.
- Certifique-se de que nem você nem qualquer outro homem intervenham, Aboli - disse Hal, e foi para a porta de embarque. Conforme o pequeno caíque balançava ali perto, ele desceu pela escada e saltou pelo estreito vão de água, aterrissando com leveza no tombadilho.
Sacou a espada e olhou para a popa. Schreuder se afastou da barra de leme e tirou dos ombros o dólmã pesado.
- Você é um tolo romântico, Henry Courtney - murmurou, e a lâmina da espada de Netuno sibilou suavemente ao sair da bainha.
- Até a morte? - perguntou Hal, ao erguer a própria espada.
- Naturalmente - concordou Schreuder, gravemente. - Pois vou matá-lo.
Aproximaram-se com a graça lenta de dois amantes iniciando um minueto. Suas lâminas se encontraram e flertaram enquanto circulavam em toques e roçados e coleios de aço em aço, os pés nunca imóveis, pontas ao alto e olhos travados.
Ned Tyler segurou a fragata a cinquenta metros de distância, mantendo aquele intervalo com destros toques de leme e ajustes das velas encurtadas. Os homens se alinharam na amurada próxima. Estavam quietos e atentos. Embora poucos compreendessem os detalhes mais elegantes de estilo e técnica, nada mais conseguiam fazer a não ser ficar de olhos grudados na graça e beleza daquele ritual mortal.
"Um olho nos olhos!" Hal parecia ouvir a voz de seu pai na cabeça. "Leia neles a alma!"
As feições de Schreuder continuavam graves, porém Hal viu a primeira sombra em seus frios olhos azuis. Não era medo, mas respeito. Mesmo com aqueles leves toques das lâminas, Schreuder avaliara o adversário. Relembrando os encontros anteriores, não tinha esperado defrontar-se com tanta força e perícia. No que dizia respeito a Hal, sabia que, se sobrevivesse ao embate, jamais dançaria outra vez tão perto da morte, a sentir o cheiro de sua respiração como fazia agora.
Hal viu isso em seus olhos, no instante mesmo em que Schreuder abriu o ataque, avançando em passos leves e depois investindo com uma rápida série de estocadas. Recuou, aparando cada golpe, porém sentin-do-lhes o poder. Mal ouvia os berros excitados dos espectadores no convés da fragata, acima, mas observava os olhos de Schreuder e foi ao encontro dele com a lâmina alçada. O holandês investiu de repente para sua garganta, e, no momento em que Hal bloqueou o golpe, desengatou as lâminas num movimento fluido e caiu dobrado sobre o joelho direito. Deu uma cutilada para o tornozelo de Hal, tentando secionar-lhe o tendão de Aquiles, para incapacitá-lo.
Hal saltou sob a faiscante lâmina dourada, mas sentiu-a enterrar-se no calcanhar de sua bota. Com ambos os pés no ar, estava momentaneamente fora de equilíbrio. Schreuder endireitou-se e, como uma cobra num bote, mudou o ângulo de sua lâmina, dirigindo-a para a barriga de Hal. Hal encolheu-se para trás, porém sentiu o toque indolor da borda afiada, apenas um pequeno arranhão. Revidou, apoiado no pé esquerdo, e mirou a ponta para um dos olhos azuis de Schreuder. Viu a surpresa naquele olhar, mas Schreuder desviou a cabeça e a ponta deslizou por sua face.
Recuaram e se circundaram, ambos a sangrar agora. Hal sentiu a umidade quente ensopar a frente de sua camisa, e viu uma serpente escarlate escorrer pelo canto dos lábios finos de Schreuder e pingar do queixo.
- O primeiro sangue foi meu, creio, não, senhor? - perguntou Schreuder.
- Foi, senhor - concordou Hal. - Mas de quem será o último? As palavras ainda não tinham passado de seus lábios, quando Schreuder atacou resolutamente. Enquanto os espectadores do Golden Bough urravam e dançavam com excitação, ele empurrou Hal, passo a passo, da popa para a proa do caíque e o encurralou ali, com as lâminas travadas, forçando-lhe as costas contra a amurada. Postaram-se assim, com as lâminas cruzadas à frente das faces, e os olhos apenas a um palmo de distância.
Seus hálitos se misturavam, e Hal viu as gotas de suor se formarem no lábio superior de Schreuder à medida que esforçava para mantê-lo preso.
Deliberadamente, Hal oscilou o corpo para trás e viu o brilho de triunfo nos olhos azuis tão perto dos seus. Curvou as costas como um arco sob o peso do empuxo do arqueiro. Desvencilhou-se e, com a força das pernas, braços e tronco, empurrou Schreuder para trás. Com o ímpeto daquele movimento, partiu para o ataque e, com as lâminas a rasparem e tinirem, forçou Schreuder a recuar do convés aberto para a popa.
Com o braço do leme a se enterrar em suas costas, Schreuder não poderia recuar mais. Apanhou no alto a lâmina de Hal e, com todo o poder de seu pulso, forçou o engate prolongado, a manobra com que matara Vincent Winterton e uma dúzia de outros antes dele. Suas espadas se enroscaram e guincharam juntas, num redemoinho prateado de sol fundido que os mantinha separados e contudo travados juntos.
Ficaram assim por um momento interminável. O suor escorria de ambas as faces, e a respiração vinha em arquejos curtos e urgentes. Era morte para o primeiro que rompesse a ligação. Seus punhos pareciam forjados do mesmo aço que suas espadas; então, Hal viu algo nos olhos de Schreuder que jamais sonhara ver ali. Medo.
Schreuder tentou romper o círculo e travar ao alto as lâminas, como fizera com Vincent, porém Hal recusou e forçou-o mais e mais. Sentiu a primeira fraqueza no braço de espada de Schreuder, e viu o desespero nos olhos do rival.
Então Schreuder desengatou as espadas, e Hal estava sobre ele no mesmo instante em que a ponta da lâmina do oponente caía e ele abria a guarda. Atingiu-o duro no centro do peito e sentiu a ponta penetrar e atingir o osso, o cabo da espada estremecendo em sua mão.
O tumulto dos homens no convés da fragata desabou sobre eles como uma onda empurrada pela tempestade. No momento em que Hal sentiu a oscilação de triunfo e a sensação viva de sua espada enterrada fundo na carne do oponente, Schreuder recuou e ergueu a lâmina entalhada em ouro da espada de Netuno ao nível dos olhos, nos quais as luzes de safira começavam a fenecer, e investiu.
O movimento atrevido forçou a lâmina de Hal para mais fundo no seu corpo; no entanto, conforme a ponta da espada de Netuno faiscava em direção a seu peito, Hal não tinha defesa. Soltou o aperto do cabo da própria arma e saltou para trás, porém não pôde escapar do alcance da espada dourada ou de sua ponta aguda como um estilete.
Sentiu o golpe, alto, do lado esquerdo do peito, e, conforme cambaleava para trás, o deslizar da lâmina para fora de sua carne. Com esforço, manteve-se de pé, e os dois homens se confrontaram, ambos duramente feridos, Hal porém desarmado, e Schreuder com a espada de Netuno ainda agarrada na mão direita.
- Acho que o matei, senhor - murmurou Schreuder.
- Talvez. Eu, porém sei que o matei, senhor - retrucou Hal.
- Então, terei a certeza do meu lado - resmungou Schreuder, e deu um passo desequilibrado em direção ao rival. A força fugiu de suas pernas. Ele cambaleou para a frente e caiu no tombadilho.
Penosamente, Hal dobrou um joelho e inclinou-se ao lado do corpo. Com a mão esquerda, comprimiu o próprio peito ferido, mas, com a direita, soltou os dedos mortos de Schreuder do cabo da espada de Netuno e, com ela em sua própria mão, levantou-se para encarar o tombadilho volumoso do Golden Bough.
Ergueu a espada reluzente ao alto, e a tripulação o vivou com berros selvagens. O som dos braços ecoou estranhamente aos ouvidos de Hal, e ele pestanejou, hesitante, conforme o sol brilhante da África se nublava e seus olhos se enchiam de sombras e escuridão.
Suas pernas cederam sob si e Hal sentou-se pesadamente no convés do caíque, dobrado sobre a espada em seu colo.
Sentiu e no entanto não viu a fragata bater contra o caíque, quando Ned Tyler a trouxe para o lado, e, então, as mãos de Aboli estavam em seus ombros, e a voz amiga soou profunda e próxima quando ele ergueu Hal nos braços.
- Acabou agora, Gundwane. Tudo acabou.
Ned Tyler levou o navio para mais fundo dentro da baía e ancorou-o nas águas calmas do porto de Zulla, onde, agora, a cruz branca da Etiópia flutuava acima das muralhas destroçadas pelos tiros.
Hal ficou em convalescença por quatorze dias no beliche da cabine de popa, assistido apenas por Aboli. No décimo quinto dia, Aboli e Daniel Grande o colocaram numa das cadeiras de carvalho e o carregaram para o tombadilho. Os homens se aproximaram, um de cada vez, com um toque na testa e uma saudação resmungada.
Sob seu olhar, deixaram o navio pronto para o mar. Os carpinteiros substituíram as pranchas que haviam sido destroçadas, e os marujos costureiros consertaram as velas rasgadas. Daniel Grande saltou para a água e nadou sob o casco para verificar os danos abaixo da linha-d'água.
- Está tesa e doce como a fenda de uma virgem - berrou para o convés, ao vir à tona do outro lado.
Havia muitos visitantes vindos de terra. Governadores e nobres e soldados chegavam com presentes para agradecer a Hal, e para fitá-lo com admiração. À medida que ficou mais forte, Hal pôde recebê-los de pé no tombadilho superior. Traziam notícias, além de presentes.
- O general Nazet levou o imperador de volta a Aksum em triunfo - disseram-lhe.
Então, muitos dias mais tarde, contaram:
- Graças a Deus, o imperador foi coroado em Aksum. Quarenta mil pessoas vieram para sua coroação.
Hal fitou com saudades as distantes montanhas azuis, e, naquela noite, dormiu pouco. Então, de manhã, Ned Tyler o procurou.
- O navio está pronto para o mar, capitão.
- Obrigado, Sr. Tyler. - Afastou-se dele e deixou-se plantado de pé ali, sem ordens.
Antes que chegasse à escada do tombadilho para a cabine de popa, ouviu-se um brado da gávea:
- Há um bote partindo do porto!
Ansioso, Hal caminhou de volta até a amurada. Esquadrinhou os passageiros, procurando por uma figura esguia em armadura com um halo negro de cachos em torno da amada face cor de âmbar. Sentiu uma pontada de desapontamento fisgar-lhe a alma quando reconheceu apenas a compleição delgada do bispo Fasilides e sua barba branca a flutuar sobre o ombro.
Fasilides passou pela porta de embarque e fez o sinal-da-cruz.
- Abençoai este belo navio e todos os bravos que nele velejam. - Os rudes marujos descobriram as cabeças e se postaram de joelhos. Quando tinha abençoado a cada um deles, Fasilides aproximou-se de Hal. - Vim como mensageiro do imperador.
- Deus o abençoe! - murmurou Hal.
- Trago suas saudações e seus agradecimentos a você e a seus homens. Voltou-se para um dos padres que o acompanhavam e pegou dele a pesada corrente de ouro que carregava.
- Em nome do imperador, eu lhe concedo a ordem do Leão Dourado da Etiópia. - Colocou a corrente com seu medalhão cheio de jóias no pescoço de Hal. - Trago comigo o dinheiro do prémio que conquistou por sua valente guerra contra os pagãos, junto com a recompensa que o imperador pessoalmente lhe envia.
Do caíque, trouxeram um simples e pequeno baú de madeira. Era pesado demais para ser carregado, e foram precisos quatro fortes marujos na talha e na roldana para erguê-lo para o convés do Golden Bough.
Fasilides ergueu a tampa do baú, e o faiscar do ouro dentro dele era ofuscante à luz do sol.
- Bem, meus rapazes! - Hal chamou seus homens. -Terão o prémio de um garrafão de cerveja em seus bolsos da próxima vez que atracarmos nas docas de Plymouth.
- Quando partirão? - quis saber Fasilides.
- Tudo está pronto - retrucou Hal. - Porém, diga-me, tem notícias do general Nazet?
Fasilides encarou-o de soslaio.
- Nenhuma. Depois da coroação, ela desapareceu, e o Tabernáculo de Maria com ela. Alguns dizem que voltou para as montanhas de onde veio.
A face de Hal se sombreou.
- Partirei amanhã com a maré da manhã, padre. E agradeço ao senhor e ao imperador por sua caridade e suas bênçãos.
Na manhã seguinte, Hal estava no tombadilho duas horas antes do nascer do sol, e todo o navio se achava acordado. A excitação que sempre antecede a partida tomara conta do Golden Bough. Apenas Hal não se via afetado por isso. A sensação de perda e traição pesava sobre ele. Embora Judith não tivesse feito nenhuma promessa, ele esperara de todo o coração que ela pudesse vir. Agora, enquanto fazia a ronda final de inspeção no navio, resistiu com firmeza à tentação de olhar para terra.
Ned veio procurá-lo.
- A maré mudou, capitão! E o vento sopra promissor para a ilha Dahlak numa única amura.
Hal não poderia se atrasar mais.
- Ice a âncora, Sr. Tyler. Assente todas as velas planas. Leve-nos ao sul, para a lagoa do Elefante. Temos alguns assuntos não concluídos naquelas paragens.
Ned Tyler e Daniel Grande sorriram com a perspectiva de reclamar sua parte do tesouro que sabiam estar escondido ali.
Os panos se enfunaram em suas vergas, e o Golden Bough estremeceu e acordou. Sua proa girou em volta e se firmou ao apontar para a entrada do mar aberto.
Hal postou-se de pé, as mãos entrelaçadas atrás das costas, a olhar diretamente para a frente. Aboli aproximou-se então com um manto sobre o braço, e quando Hal se voltou para ele, abriu-o e ergueu-o ao alto para sua apreciação.
- A croix pattée, o mesmo manto que seu pai usava no início de cada viagem.
- Onde conseguiu isso, Aboli?
- Mandei fazer para você em Zulla, enquanto jazia ferido. Conquistou o direito de usá-lo. - Colocou-o sobre os ombros de Hal e recuou para apreciar. - Parece igual a seu pai no primeiro dia em que o vi.
Aquelas palavras deram a Hal tanto prazer, que aliviaram seu ânimo sombrio.
- Tombadilho! - O brado do vigia ecoou do céu que se iluminava.
- Gávea? - Hal jogou a cabeça para trás e olhou para o alto.
- Sinal de terra!
Hal voltou-se depressa com o manto a rodopiar a seu redor. Acima das muralhas de Zulla, três luzes vermelhas brilhantes penduravam-se no céu tingido pela aurora, e, conforme ele olhava, flutuaram graciosamente de volta à terra.
- Três rojões chineses! - exclamou Aboli. - O sinal de chamado.
- Ponha o navio ao redor, por favor, Sr. Tyler - disse Hal, e correu para a amurada enquanto o navio girava.
- Bote partindo do porto! - veio o berro de Aboli.
Hal espiou em frente e, através da obscuridade, viu a forma de um pequeno caíque vindo para encontrá-los. Conforme a distância se encontrou e a luz ficou mais forte, sentiu o coração saltar e a respiração ficar curta.
Na proa se postava uma figura num traje pouco familiar, uma mulher que usava um caftan azul e um véu da mesma cor. Assim que o bote deslizou para o lado, ela ergueu o véu da cabeça e Hal viu a gloriosa coroa negra de seus cabelos.
Estava esperando por ela na porta de embarque. Quando Judith Nazet pisou no tombadilho, ele cumprimentou-a, sem jeito.
- Bom dia, general Nazet.
- Não sou mais um general. Agora, sou apenas uma moça comum chamada Judith.
- É bem-vinda, Judith.
- Vim tão logo pude. - Sua voz era rouca e hesitante. - Agora, por fim, Iyasu está coroado, e o tabernáculo voltou a seu lugar de descanso nas montanhas.
- Eu tinha perdido a esperança de ter você - murmurou ele.
- Não, El Tazar. Jamais faça isso - respondeu ela.
Com surpresa, Hal viu que o caíque já seguia de volta para terra. Não descarregara nenhuma bagagem.
- Não trouxe nada com você? - perguntou ele.
- Somente meu coração - retrucou ela, suavemente.
- Estou rumando para o sul - disse ele.
- Aonde quer que vá, meu senhor, eu irei também. Hal voltou-se para Ned Tyler.
- Leve o navio a um giro. Coloque-o no outro rumo. Curso para passar ao largo da ilha de Dahlak e depois ao sul, pelo Bab El Mandeb. A todo pano, Sr. Tyler.
- A todo pano, capitão. - Ned abriu um sorriso largo e piscou para Daniel Grande.
Enquanto o Golden Bough corria para encontrar a alvorada, Hal postou-se imponente no tombadilho superior, a mão esquerda a descansar ligeiramente sobre a safira do cabo da espada de Netuno. Estendeu a mão direita e puxou Judith Nazet para mais perto de si. Ela se aconchegou de boa vontade.
Wilbur Smith
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