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Breve História de um Romance
QUANDO, há trinta anos, vi entrar aquele homem na taberrna do cais de Vila Franca, onde passava a manhã de domingo com o dono, o meu amigo António Vitorino, o Toninho, carpinteiro com senhoria, dos que não se encontram agora por aí nesta falperra de prego e racha, fiquei interessado pelo estranho personagem que, sendo do trato do rio, pouco tinha de comum com os varinos da rua onde passei a maior parte da minha meninice. A estes conhecia-os bem.
Tive-os como companheiros na escola da Marouca, acompanhei-os
no preparo e na venda de moinhos de papel, brinquei com eles
às toiradas. Suámos juntos, as estopinhas, no jogo da bola de
trapo no Campo da Feira e na Avenida, aprendi com as mulheres
todo o seu linguarejar de malandreiras, fui com os filicos de
muitas tomar banho à Areiazinha, namorisquei a Rosa, meu par
predilecto nos bailaricos do Celeiro, e ensinei os filhos dalguns deles,
mais tarde, quando me dei a leccionar crianças
numa escola nocturna, encerrada pelo zelo torvo das
autoridades concelhias, muito receosas com o mal que eu e o
António Cascais podiamos fazer á garotada.
Trocava assim o que aprendi com os pais nas
pescas do Tejo e nas viagens pelo rio, cuja paixão ganhei
nesse tempo, embora mais tarde pudesse interpretar noutro
jeito o meu amor pelo Tejo. Mas lá iremos.
O homem entrou na taberna e fez-me espécie. Mal abalou com o
garrafão que viera encher de vinho, perguntei ao meu amigo de
quem se trattava.
Com o esquadro da sua inteligência minuciosa, revelou-me
aquela gente que vivia em barcos, pescando ou vendendo melões
e melancias, segundo as épocas. Nómadas do rio, como os
ciganos na terra, tinham vindo da Praia da VIieira e faziam
vida à parte: chamavam-lhes avieiros.
Nunca ouvira falar de semelhante gente.
A minha curiosidade alongou-se e soube então que
o Tarrinca os encontrava durante a safra do sável, que
lhes transportava o pescado até à Ribeira de Lisboa e que
não me seria fácil merecer-lhes a convivência.
Este romance nasceu, portanto, numa manhã soalheira
no cais de Vila Franca. Já lá vai uma trintena.
Durante quatro anos persegui-os como pude, sempre
com a ajuda do impetuoso Jerónimo Tarrinca, que me
levou à Toureira, uma das poucas aldeias de avieiros,
criadas à margem do Tejo e do mundo, e onde semeei,
pouco a pouco, amizades e até devoções. Mas tão escassas
horas de convivio não bastavam para saber cuando precisava
acerca deles. Até que um dia consegui a promessa de viver numa
barraca da Palhota, lá mais acima, perto de Valada do
Ribatejo, em casa de Manuel Lobo.
Escritor de domingo, já autor, então, de três livros
publicados, fui à cata do meu poiso para férias próximas,
marcadas para a época do sável. Falei aos meus anfitriões.
Tudo ficou aprazado, com a condição de eu
levar mulher comigo; doutra forma a aldeia não me poderia
receber. Assim fiz. E por ali andei com eles, pescando à
noite com as artes mais pequenas, ou partilhando o trabalho
dos lances nas companhas do sável entre queixas dos mais
velhos ainda lembrados dos tempos em que o Tejo era um
jardim de peixe. Tornei-me expedito no largar da rede-varina e
acabei por ser solicitado a começar os lances em várias
companhas - dava sorte, - diziam.
Quando chegou o dia de regressar à "cadeira eléctrica" de
empregado de escritório, deram-me alegria grande. Por decisão
do conselho dos anciãos da Palhota, ficava convidado a
apadrinhar o primeiro casamento que houvesse na aldeia.
Queriam que eu pertencesse à familia deles, assim me
falaram.
Emocionei-me. Sou homem de emoções simples.
Não me arrependo de ter procurado esta experiência,
como tantas outras que tornei carne viva dos meus livros
embora o engenho de escritor pouco me bastasse ainda para
interpretar e recriar o que a realidade lhe oferecia,
elevando-a ao nível da significação. O escritor não é ser
passivo ante o mundo que o cerca. Apaixona-se sempre. A
diferença entre um escritor e um aprendiz, ou um medíocre
é que naquele nunca a paixão se faz retórica. Recusa
padrões, fórmulas, os caminhos fáceis do naturalismo
mesmo que surjam, como agora, sob disfarces de vanguarda.
Escolhe, representa, desencadeia a percepção e a imaginação
do leitor: entrega-lhe um instrumento, um estímulo, para
penetrar na realidade e interpretá-la também por sua vez. Para
que cada leitor, outro homem biológico e
social, sensitivo e diferenciado, recrie a seu modo por vias
algumas vezes insuspeitadas, a nova realidade que o escritor
teceu. Todos eles, individual e colectivamente, participam na
criação constante de um corpo vivo, projectado em milhentas
imagens que se focam e desfocam ao sabor de quem lê e
reimagina, segundo o todo que os habita. Também sob a coacção
do grupo social, familiar ou político de que participam;
segundo também o momento, o exacto momento psicológico em que
o escritor cria e o público lê ou medita. Mas voltemos à minha
experiência espontânea, logo depois premeditada. Muitos
chamavam recolha, talvez impròpriamente, a esta busca de
contacto humano; outros apoucaram o processo, impròpriamente
também. Na verdade, quando se recolhem os materiais da vida;
vivem-se. Ou inventam-se. Mas escolhem-se as vivências ou as
invenÇões quando um escritor sabe para que vive. E como lhe
importa viver.
Quando cheguei à Palhota, não entrou nessa aldeia
ribeirinha um observador curioso de pitoresco ou de bizarria.
Nem eu próprio suspeitava de tudo o que me levava até ali: que
era, afinal, e ainda é, o que me transcende, porque nunca se
me recusa. Mas importa sublinhar e encarecer que tal convívio
me enriqueceu: alarguei na aldeia avieira uma parte da minha
paixão pelo Tejo, nascida em menino, quando o descobri pela
mão do meu avô Venâncio. A outra, a maior, a de sangue, só
algum tempo depois a conheci. Quando o conselho de anciãos
da Palhota incumbiu Manuel Lobo e Manuel Guerra de
me falarem do seu desejo de nos tornarmos família, mal
sabíamos todos que já o éramos em parte inteira.
Sempre a minha avó paterna, a Sra. Ana da Guia, me pareceu
estranha entre as camponesas que viviam nos ermos do Casal do
Sobreiro, perto de Tomar. Miúda, negra de cor e de roupa,
moira de trabalho, exaltada nas devoções como nos
agravos, gostava-se de pé descalço e vestia blusas e saias de
corte di ferente do das outras mulheres. Rezava dia e noite;
tinha sempre uma reza para cada acontecimento: tempestade, pão
amassado no alguidar e coberto pela manta, animal doente, neto
a definhar-se, leira semeada ou figos a crestar ao sol, tudo
lhe pedia prece.
Vivia entre Deus e o Diabo num purgatório de dúvidas.
Se amuava com o meu avô João Redol, todo campino
naquelas terras de pinheiros e vinha, e de figueiras,
embiocava-se, ficava largos dias sem lhe dar fala.
Reservada, quase seca, brilhavam-lhe nos olhos vivões a
ternura que a todos oferecia, como a força corajosa com que
naquele ermo deu ao mundo onze filhos, vendo morrer cinco e
agenciando com o seu homem o pão para todos eles.
O casal viera da Golegã em andanças de trabalho,
quando o meu avô passara a feitor da quinta que uma
senhora goleganense tinha nos Pegões, junto ao aqueduto
filipino da cidade do Nabão, depois de longos anos viver no trato de cavalos e toiros em seu ofício de maioral.
Exactamente na Golegã, descobri novos vinculos de família.
Certa noite, ao serão, acolhido ao calor amoroso dos meus
primos, falou-se da minha avó. Escrevia, então, o meu romance
Fanga - escrevia-o em casa de fangueiros.
E aí, pela primeira vez, disse do mistério que deixara em
mim a recordação de Ana da Guia. Não tardou a revelação: Ana
da Guia nascera de pescadores do Tejo, era avieira, andara no
trato de barcos e redes, vendera peixe
pelas portas; acabara por se meter ao trabalho do campo
quando o pai lhe morreu e o barco ficou sem homem na Praia da
Vieira, os Guias fazem parte da aristocracia marinheira e
descalça da terra. São meus parentes. Falei acerca deles com o
Loureiro Botas e o António Vitorino; falei dos Guias com o
Martins Correia, escultor, filho de Maria da Guia, prima da
minha avó.
Ainda lhe parece estranho, Luísa da Costa, o meu amor pelo
Tejo!
Entre a constância e a mudança, entre o necessário e
o possível, regresso ao convívio avieiro. Regresso a um
tema que me apaixonou, percorrendo, de novo, caminhos que
ainda são os meus e não enjeito, Essa apetência lúcida de
participar numa epopeia que faria voltar da Índia, assistir
correndo D. Sebastião, o povo que andava ignorado de si,
consentira-se têmo-la de todos os Cabrais da história
portuguesa. Avieiros é uma pegada nesse caminho.
Esta variação sobre o mesmo tema de 1940, para que
cheguei a admitir titulo diferente, resultou de uma longa
batalha, longa e exaltada e amorosa, entre um homem-escritor e
o seu passado-futuro. Dela nasceu esta versão. Outra e a
mesma, outra e a mesma como eu, ambos remoçados pela nova
convivência de três anos em que fomos íntima companha. Em
que duvidámos e nos quisemos, dormindo no mesmo travesseiro, apetecendo as mesmas insónias, rasgando-nos com as mesmas
palavras, tão frementes e insubmissas como poldros
deslumbrados em pLena liberdade de sol.
E tão fiéis que ao homem não sobeja fidelidade para
outrem, enquanto ao romancista apetecerão novas brigas
de amor criativo, na ânsia de deixar testemunhos do que
viveu e descobriu e desejou.
Avieiros é romance lírico, de um lirismo doloroso e
concreto. Documento e sonho vazados na matriz irregular
de uma consciência, há neLe um gosto fundo, autêntico
e viril, de semear na companhia do povo um país para
homens livres. Mas um lirismo rigoroso, digamos, sem
romantismos fáceis, um pouco como os versos liricos
que também moram nas tábuas de logaritmos ou nos
foguetões interplanetários.
Se con fessar que este romance me aterrorizou, depois
de me deslumbrar, digo a verdade inteira.
O tema realmente novo, a descoberta, a busca de
concretização da prosa poética que desejava atingir para o
estilo épico da epopeia ou gesta popular, logo o alvoroço
do acolhimento dispensado pelo público, meteram-me
depois no labirinto da dúvida. Terrivel labirinto de miragens,
de sombras e de luz. Entretanto, a Academia acenava-me com o
Prémio Ricardo Malheiros, para depois mo negar, embora Joaquim
Manso, académico, me mandasse entrevistar por Artur Portela,
antecipando-se no seu jornal à notícia ambigua do galardão
engasgado.
Nesse ano, o prémio tardou; entravam no parto muitos
empatas com razões extraliterárias. Um júri é uma das
formas conhecidas, e das mais prestigiadas, para se cometerem
injustiças. O daquele prémio, ao que parece, exigiu novo júri,
que segredou recado por alta personalidade académica,
justificando que passaria eu a ser o mais jovem premiado com o
"Ricardo Malheiros". Havia, purtanto, muito tempo para mo
distribuírem. valha a verdade que assim fizeram. Só lá voltei
com Horizonte Cerrado, e logo se apressaram em emendar a mão.
Mas vivi um drama verdadeiro com este romance.
Não me compadecia em repisar histórias no almofariz da
mediocridade, conhecia o perigo das vozes alheias que ainda
me dominavam, estava longe de estabelecer
o equilíbrio entre a paixão e a lucidez. entre o coração
quente, em fogo, e o raciocínio quase matemático,
empreendedor e terso. O domínio da efabulação, a chave da
vida inteira de cada personagem, o tom justo, mesmo quando
exaltado, a simplicidade da palavra. A palavra-pele que cobre
cada passo de um fecundo emaranhado de sugestões
inquietas e inquietantes. a palavra-pele que só ela pode
viver ali, exactamente ali, como a das minhas mãos ou a das
tuas, que enfeixa músculos e tecidos, sangue, vida.
Confesso que ganhei medo ao papel branco. Medo autêntico. Com
tantos fantasmas à minha beira, atormentei-me. Longos meses.
As primeiras páginas de Fanga, o romance que se lhe seguiu,
queimaram-me os nervos.
Foi bem longa a tortura. Mas andei com a sorte pela minha
banda, ao ser visitado por angústia tão funda. Aprendi com ela
a porfiar no trabalho e a compreender
que as palavras se forjam em nós, e com o tempo, e com
a dor, e com a alegria, que não são as mesmas em cada
poeta ou romancista, onde perdem ou ganham ressonâncias, que
deveremos contê-las ou soltá-las ao sabor da invenção, e logo
da análise, sem que o contexto esmaeça ou se canse na jornada.
Na longa jornada do confronto.
Sei o que ainda não atingi de tudo o que me parece
necessário. E passaram trinta anos.
Nesta variação sobre um tema de 1940 estabeleci um
compromisso. Mantenho o tom da primeira edição, mas sirvo-o
com outra ferramenta afeiçoada à gesta popular. Gostaria
de a ler aos mesmos que ouviram da minha boca a primeira
versão, para que me dissessem se errei. Mas é tarde.
A vida separou alguns; a morte levou outros tantos. Neste
momento recordo Joaquim Soeiro Pereira Gomes e Carlos de
Oliveira.
E tenho de acrescentar Jerónimo Tarrinca, a quem
ainda e também dedico o livro. A sua morte pertence à
história deste romance e de todos nós. Incapaz de fazer
frente à concorrência da camionagem que lhe tomava os
fretes ao barco, o meu amigo resolveu adquirir um motor para o
tornar mais rápido. Empenhou-se ao comprá-lo, nasceu-lhe uma
esperança, mas a máquina era débil para o peso da lancha e as
exigências das viagens. Sem dinheiro
para a substituição, Jerónimo Tarrinca começou a empreender no
seu novo falhanço. E um dia, mesmo à
vista do Tejo, onde o bote balouçava sem préstimo, saltou para
a frente de um comboio rápido. Cara a cara, sem baixar os
olhos.
O mar trouxe uma criança: DEIXa FICAR A navalha
PELA vala da Casa Branca, a reponta da maré não corria de
feição. O homem meteu o barco junto à margem de uma das ínsuas
e lá foi remando sem esforço, embora as pontas dos ramos dos
salgueiros lhe verdascassem a cara. No silêncio da vala, o
saveiro deslizava em círculos de água mansa.
O olhar fatigado do homem andava entre a carreira
do rumo que traçara e o banco da ré onde a companheira
pousara a cabeça. Junto dela, ansioso entre ambos, o filho
interrogava os gemidos contidos da mãe.
- Vais melhor? - perguntou o homem.
Ela respondeu num cerrar de olhos. Queria falar,
dizer qualquer coisa, mas a boca seca esganava-lhe as
palavras. Estendeu depois a mão para os cabelos do filho
e passou-lhe com os dedos, devagar, devagarzinho, como
se a carícia Lhe abrandasse as dores do ventre. Mimalho,
o rapaz, aproximou-se mais até lhe tocar com o ombro.
- Deixa a mãe, Zé!
O garoto encolheu-se, furtando um olhar sombrio para o pai.
Pressentia para breve o fim dos mimos que ambos lhe davam nas
folgas da pesca. Já ouvira dizer que qualquer dia chegava um
menino (para quê um irmão?. ) e lembrava-se, pesaroso, dos
meninos pequenos das outras mulheres, para quem iam beijos, sape-sapes e cantigas de adormecer.
Amuado por tão ruins lembranças, afastou a cabeça
dos dedos da mãe. Começava a compreender porque resmungavam os
do seu tamanho quando os mandavam embalar os irmãos. Receber
sobras dói sempre - parece esmola; e esmola, mesmo farta, sabe
a coisa podre, assim ouvira dizer ao Tó Mirão num dia de
bebedeira.
Quantas perguntas lhe apetecia fazer aos dois!.
Mas valia a pena?. Sentia que os pais estavam agora
contra ele e pouco remediava falar com gente bruta.
O pai, então, andava mesmo a embirrar:
- Não ouviste, Zé?. Tira-te aí do pé da tua
mãe.
Nem perto da mãe já podia ficar um niquinho, benza-os Deus.
Raio dhomem! Raio de gente! E enrolou-se no fundo do barco a
coçar a cabeça com as unhas. Gostaria de fazer sangue para que reparassem nele e se pusessem a gritar: "Ai que o meu Zé tem sangue, ai o meu rico filho!" Já tinha a resposta
afiada para Lhes atirar às fuças: "Deixe lá morrer quem
morre, seu homem ! Um desgraçado não faz falta a ninguém"...
Como se adivinhasse no que pensava, o pai tocou-lhe na perna
com o pé descalço, largou-lhe uma palavra má:
- Sarna! Este rapaz é pior do que a sarna.
Zé olhou-o com danação e começou a choramingar
por birra. Da dor não era, não, podia atirar-lhe mais duas
iguais àquela, que na porrada nenhum do seu tamanho
lhe levava a melhor. Sarna era a pata que o pôs! Gente
daquela não havia de Lhe ver as lágrimas.
E limpouas na manga da camisa.
A mãe mexeuse na esteira e disse:
- Sede danada!. Tenho frio no corpo e a boca parece que me
arde. É mesmo uma secura funda. Quisera falar noutra coisa,
animar o companheiro e o filho, mas os pensamentos aquebrantavam-na. Pensava na
Ana Remelga cheia de cachopada, quase tantos como de
anos tinha de recebida, menos os anjinhos que o Céu
levara. Dava-se graças a Deus pelos filhos que morriam,
Mãe Santíssima! Nem os bichos eram como eles!. Só quem não vira e ouvira a gata do Manel Guerra quando lhe tiraram as crias, doida, à procura, numa miadeira
capaz de quebrar o coração do próprio Mafarrico, é que
podia alegrar-se com a colheita de Deus no mês dos anjinhos.
"Entretém de pobre é só um", disse, para si. "Só um
e bem caro é; custa os olhos da cara"
- Vais a dormir? - perguntou o marido.
- Não, não sou capaz de dormir. Tenho sede, uma
sede danada. Não há água que me mate esta secura.
- Faz por não beberes mais; pode fazer mal à
criança.
João Carramilo fingiu-se preocupado com a maré,
alargando a vista para o fundo da vala inundada de sombra.
Nunca vira a companheira tão pálida e insofrida. Não devia
também ser coisa para tanto, pensou. Os Guias
punham sempre labaredas onde não havia fogo; gente zelosa para
o trabalho, sim senhor, mas não conhecia outra mais aziumada e
aumentadeira.
O filho levantou-se a gritar a um pássaro que saíra do
mouchão, num voo assustado. Ficou a acenar os braços
com frenesi e depois abandonou-os, desesperando-se a
coçar os caracóis loiros e sujos, enquanto procurava adivinhar
o esconderijo do pássaro entre as árvores da outra margem.
Olhou ainda o pai, como a lembrar-lhe a falta
da atiradeira que Lhe prometera há mais de três quinze
dias, desculpando-se com as tiras de borracha. Se a tivesse
pronta, aquele guarda-rios não lhe escapava, presumiu.
Zé Carramilo era um bravatão.
Os remos chiavam nos toletes. Pareciam uma carpideira que
acompanhava o saveiro numa predição de más notícias. Também
que notícias boas podiam chegar ali?!.
Ana Carramilo pensou nisso e ganhou medo. Se fosse
sòzinha, daria largas ao seu feitio alevantadiço, lamuriando
os receios pressentidos desde que deixara de sentir a criança
dentro dela. Meteu a mão por debaixo do franzido da saia, apalpou o ventre e achou-se fria. Valha-me Nosso Senhor! Donde
virá este frio tamanho?. Maria Santíssima! Nem de Inverno, nem
naquela cheia em que passara quase um dia em cima duma árvore à espera que a tirassem, Ana Carramilo sofrera um frio tão
fundo.
Toda ela se tornou uma interrogação "Seria a sua
barriga o caixão do filho? Cruzes, cruzes!"
Depois, por instantes, só por instantes, a ideia
agradou-lhe. Como havia de se amanhar com mais um menino de
colo, quando o outro ainda mal se governava nas pernas? Remar
nas pescarias, cuidar do comer, ir às vendas por essa terra
dentro, e já dois tropeços à sua volta. Os
homens levam boa vida. Deitam as redes e colhem-nas,
lá porfiam uma malha ou outra que se parte, e o resto
do tempo vá de conversar e dormir. Boa vida, a dos homens!.
Mas que mulher avieira tinha penar diferente do seu? Era a
mesma galé para quase todas elas.
Resignou-se.
E começou a afagar o casúlo onde o filho permanecia
quedo, falando-lhe num sussurro, como se a voz pudesse
ser escutada por ele e trazê-lo pelo murmúrio até à boca do
corpo. Esqueceu tudo o mais naquele momento.
- ó João! - bradou com ansiedade.
O marido mal lhe volveu o olhar. Remava sempre,
de pé, no meio do barco, entretido a assobiar, embora
levasse na testa a ruga funda das preocupações.
-Já não sinto o nosso menino, ó João! Não adivinho coisa
boa.
- Quando ele se mexe, queixas-te.
- Antes queria, ó João!
- Cala-te aí! Só queres o que não tens. Pareces uma
telefonia.
Ana Carramilo jogou-lhe quatro pedras certeiras no
olhar e tapou a cabeça com a saia. Ficou a arrenegar o
homem com quantas malquerenças lhe vinham à ideia, mas depois voltou a pensar no filho. Quantas vezes conversara
ali mesmo com ele enquanto à noite remava? E quantas outras
Lhe adivinhara as palavras quando corria as estradas na venda
do peixe? Rico menino da sua alma!.
Sonhara-o forte, a prometer um pedaço de homem
como a gente do sangue paterno, bonito e rijo, benza-o
Deus!, que lindo cachopo!, a gatinhar o barco da proa
à rè e a querer levantar-se nas pernas cambadas com a
ajuda das saias dela.
"Porque estás quieto agora, meu rico menino, que mal te
fizeram?. . Diz à tua mãe que maL te fizerem. Dá-me
pontapés que eu não me queixo, nem digo nada ao teu pai. Anda,
faz qualquer coisa!"
- Ó João! -clamou num grito.
Quis reprimir-se, mas o grito saltara-lhe num impulso, de
todo o corpo.
Dores súbitas descarnavam-na em golpes de lâmina viva, ali
mesmo no bojo do ventre onde julgava acolher-se a cabeça do
seu menino quedo. O pior é que as sentia diferentes das outras
todas.
"Anda, faz qualquer coisa, meu rico menino!. Porque estás
quieto agora? Cá fora está um sol muito brandinho. muito bom.
O nosso Zé anda amuado por mor de ti, mas ele vai gostar de ti
quando tu nasceres. Anda, faz qualquer coisa!"
As dores Sacudiam-na. Teve medo e encolheu-se mais, mirrada
na esteira. Percebeu que o companheiro se ajoelhara perto
dela, a acariciá-la.
- Que tens, Ana? Fala, mulher! Que queres tu que
eu faça?.
Logo bravejou como era costume;
- Fala, mulher dum raio! A gente encosta aqui e eu
deito ao barracão. Grita para aí, se queres. Nunca te disse
pra não gritares.
A ansiedade dele ajudava-a a suportar a sua. E mais
do que isso, agora, sim, agora, lá distante, distante e muito
perto, cada vez mais perto, agora ali mesmo a palpitar
junto dos dedos, tanto e tanto, dentro dos próprios dedos,
o bater compassado do coração do filho.
O marido continuava a falar a esmo, parecia tonto.
Ana Carramilo gostou de perceber que ele estava com
medo; então, afastou a manta de mansinho para lhe segredar:
- Está outra vez a mexer. Põe aqui a tua mão.
Tímido com o contacto, o homem encostou a canhota
ao ventre dela. Arregalou os olhos pequeninos, espantado,
esboçou um sorriso fugidio, como se receasse abri-lo;
depois os fios do medo partiram-se duma só vez e João
Carramilo regalou-se de riso, às escâncaras, a chorar e a
rir ao mesmo tempo, tonto de alegria, sem perceber o que
lhe cabia fazer naquele momento.
- Deu-me agora uma turra aqui mesmo - explicou
a mulher.
- Uma turra?. .
- Sim, uma turra.
- Aonde?.
- Aqui. Aqui mesmo no bico da barriga.
Zé quis espreitar por entre os braços do pai, embora
lhe parecesse que os dois estavam bêbados. Puxou-lhe pela
camisa, pediu para ver, também queria ver, mas o pai sacudiu-o
e disse que ele não podia ver o irmão, não fosse o irmão
nascer lázaro dalgum braço.
A mulher tirou-os daquela teima:
- Anda lá depressa, João! Agora tem de ser depressa!
Um barco de água-acima, carregado de cortiça, passou
de velas bambas. A aragem mal palpitava na vegetação
das margens.
- Boa viagem! - bradou para o barco.
- Tens alguma coisa que se beba? - perguntaram de lá.
- Vou ser pai!. Outra vez!.
Do barco chegaram risos dalguma chacota que o Carramilo não
entendeu. Meteu a mão à água, deitou-a nos toletes dos remos
e voltou para o meio da embarcação para recomeçar viagem. A
mulher sorria-lhe da ré, apesar das dores curtas e ásperas que
a acometiam. Erguera-se um pouco e pusera
a mão direita fora da borda, como se o farfalho da maré
no costado do saveiro lhe lambesse os dedos de ternura.
O rapaz espreitava o braço da mãe sem dizer palavra.
Resmoía pragas contra o irmão.
Na faina da remada, João marcava o ritmo com a
respiração opressa; pensava chegar perto do barracão do
Ti Feliciano e ainda lhe faltava uma boa milha. Mesmo
à frente do bico da proa saltou uma fataça.
- Há peixe por aqui. Saltou uma fataça que nem
um toiro. Era um peixe real!
Ana Carramilo não sabia responder-lhe. As aguilhadas das
dores tornavam-se mais fundas. Viu a copa alta de um salgueiro
seu conhecido pelo jeito dos ramos, lembrou-se de que o rio
fazia ali uma curva e pediu ao marido.
- Aproa aí, João. Não aguento mais.
Ele manejou o remo direito, num pronto, e o saveiro
girou na água, ficando encostado à margem; depois armou o
encerado do toldo por cima da companheira, deu-lhe uma palmada
no joelho e contou-lhe que ia pedir ajuda ao barracão.
- Não é preciso; não quèro favores da Sra Clotilde.
- Mas agora.
-Agora nada! Agora quem manda sou eu. Deixa-me
só ficar a tua navalha.
Carramilo gostou da resposta. Tirou a navalha do
bolso, abriu-a e passou a lâmina na calça. Molhou-a ainda
na água; voltou a corrê-la com os dedos.
- Até já!. E seja o que Deus quiser.
Então, amarrou bem a corda do saveiro a um tronco
de árvore, olhou o Sol e benzeu-se; depois estendeu o
braço para o Zé e puxou-o:
- Faz-te leve, rapaz!
Zé Carramilo deixou-se levar pelo impulso, sentindo-se voar
como um pássaro.
- Aonde vamos, pai?
- Por aí fora.
UM GRITO DA BANDA DO RIO
A PERTARAM as mãos com força. Sentiam-se bem assim.
Calados por muito tempo, caminharam pela pequena floresta
onde as cheias deixam vestígios para todo o ano. Dizem os
velhos e os cachopos que por ali andam almas penadas.
A terra fica mole, aberta e esbeiçada, cor de cobre
com verdete, estranha, onde a erva se queima por entre
árvores que se tocam e parecem lutar braço a braço, rastejando a morder o chão, grimpando na soberba de agarrar a
luz, num esgotamento de formas arrebatadas que deliram e
sofrem; parecem paliçada que cortasse os caminhos do homem,
mas abrem-se se este avança e logo se fecham, emaranhados,
troncos e ramos, onde raras folhas se esboçam em verde, e
depois ficam ruivas, metálicas, enrugadas e caducas, sem
tombarem, talvez presas pela raiva de não conhecerem a
Primavera; aqui e acolá surgem troncos atacados de volúpia, mas que se quedam na ânsia, vencidos, logo frouxos, cortados num golpe, como se a luz lhes matasse o ímpeto, deixando-os esvaídos, de bruços, malditos desde a raíz ao tronco mais
afoito; espécie de floresta petrificada, cor de xisto; o ar
cheira a morte, a morte fria e premeditada, de troncos gafos,
escalavrados, de grandes chagas onde os bichos devoram e se
devoram numa morte cansada, longa, bem sofrida e longa, gritada e silenciosa; inferno queimado até ao último estertor, logo arde nele o vagido verde da folha ou do musgo tornados metal e pedra, polvo de mil braços decepados pela luz, enjeitando os tentáculos mais débeis que resistem à queda, dos quais se sentem os gritos vegetais, estridentes e apagádos e ali ficam caídos sem clemência, apertando as mãos aos que ficam agarrados aos troncos, calados por muito tempo, como o homem e o rapaz que caminhavam na floresta por aquela manhã
de sol brandinho, apegados a preocupações diferentes.
Zé Carramilo reparou onde estava, sentiu-se cercado
Aquele grito que ecoou causou-lhe um frémito. Fica junto do
pai sem lhe largar a mão.
- Que foi?
O rapaz olhou à volta e não respondeu.
- Viste bicho?
Zé negou com a cabeça e começou a puxar pelo pai, que lhe
percebeu o susto.
- A qui há sombra.
- Não gosto de sombra.
Deixou-se o homem conduzir pelo filho até uma baixa
onde cresciam flores amornadas pela babugem do Tejo.
Um salgueiral desdobrava-se para o sul. à borda do rio,
uma égua peada badalava. o seu chocalho, de cada vez
que pulava para mudar de sítio na pastagem. O rapaz imaginou
entretém e foi mirar o animal de perto. João Carramilo
sentou-se, encostando-se a um tronco arrastado pela última
cheia. O silêncio penetrava-o de modorra.
Ao pensar na companheira e no filho que ia nascer levou-se para o passado, para a vida deles na Praia da Vieira.
Vida danada! Invernos inteiros a ver o mar empinar-se e varrer tudo da frente e não largar um naco de pão para a boca
de um menino. Sempre à espera, mal o mar dava sota, lá ia com
os camaradas oferecer-se à morte, metendo o barco à má cara na entrada até aguentá-lo depois à volta no contrabanco; no saco trazia um punhado de peixe que mal dava para o almoço da companha, quanto mais para pagar imposto e dar parte à rede. Acabara por se resolver depois de muito matutar: que ficassem por ali os velhos a fumar cachimbo e a contar patranhas; a ele não lhe faltavam braços, graças a Deus, para lutar com o mundo. Não ia ficar toda a vida a fossar na
má sina. Sim, iria para o Tejo. Ir para o rio de Lisboa
tornara-se viagem de muitos; era caminho antigo da gente da
Vieira. Mal acomparado, dava quase o mesmo
que abalar para a estranja à procura de sorte fêmèa.
Bem dito, bem feito. Nessa mesma noite, beijo de um
lado, conversa do outro, falara à mulher:
"- Ana!. tás a ouvir?.
- tou!
- A gente vai dar governo à vida pra outra banda.
Com esta esteira da nossa Praia nem o corpo se deita.
O mar daqui é um malandro, leva tudo à gente"
Contratara-se para uma companha de sável e abalaram os três.
A Rita morrera com um mal nas tripas, mal haviam deitado ali:
Nascera depois o Zé, a tomar-lhe o lugar.
Lembrou-se do filho e assobiou-lhe. Depois voltou
para dentro de si.
Trabalhara à maluca. Safras de sável em companhas,
artes mais pequenas só com a mulher. Passaram Verões
e Invernos. Quantos?. Não valia a pena deitar contas.
Há anos dobrados e redobrados. Depois de comprar o
saveiro onde vivia, a sorte pusera-se macha. Pouco adiantara.
Chegavam-lhe notícias da Vieira pelos homens que vinham todos
os Invernos trabalhar para o Rebelo de Valada. A mesma coisa: mar ruim, peixe de fome. Não, isso não. Voltar à Praia de mãos a abanar não era para o João Carramilo. Antes penar fora das vistas da família da mulher, que gozaria com Uns soberbos a teima dele.
O filho bradou- Lhe de longe; e mostrava-lhe um
punhado de flores amarelas que colhera no salgueiral.
Quando se sentou a seu lado, percebeu que o rapaz não estava bem.
- Filha da mãe da égua é arisca.
- Fizeste-Lhe alguma.
- Quis que ela comesse da minha mão. Abalou-me. Gostava de
saber falar às éguas.
- Os campinos é que sabem.
- Eles sabem mais que a gente.
- Sabem mais de éguas e de toiros; de peixe sabe a gente.
- Peixe dá mais trabalho.
João percebera que o filho procurava caminhos atravessados
para falar doutra coisa. Conhecia-lhe as voltas. O rapaz
pegou numa flor grande e entalou-a entre a orelha e o cabelo;
ofereceu outra ao pai e entreteve-se a jugar com quatro pedras
que esculheu, atirando-as ao ar e agarrando-as com a mão
esquerda.
- É verdade.
- O quê?
- Que vem um menino prà gente.
- Vem. Está a chegar.
- E quem o traz.
- O mar.
Zé Carramilo encostou-se ao ombro du pai, num sorriso de
mistério.
Uma rã chapinhou no lodo do regato, assustada com a
queda de uma folha. O badalar do chocalho da égua cortava o
silêncio, a espaços.
- E depois? . - perguntou o rapaz.
- Os meninos moram no fundo da água guardados por um peixe
grande.
- Os meninos todos?
- Não. Só os filhos dos pescadores. Nascem na
água e muitos morrem na água.
- E eu?.
- Tu também. Pedi que te mandassem e vieste.
- Como é que o peixe grande ouve as pessoas?
- à noite. à noite, dentro do barco, quando não há
lua. O peixe não gosta de luz; assusta-se.
O rapaz olhava-o surpreendido, desconfiado e surpreendido.
Tirou a flor da orelha e segurou-a na do pai. O Ti Lobo nunca
lhe contara uma história daquelas, pensou. Se calhar, o pai
estava a brincar com ele. Quis certificar-se:
- Deixas-me ir ver o menino?.
- Os homens não podem. O peixe grande só entrega os meninos
às mulheres. Por isso eu abalei contigo. Eu também nunca o vi.
- A gente podia espreitar atrás dum salgueiro - lembrou o
rapaz num sorriso de manha.
- Se a gente o visse, o menino podia vir lázaro como
o Maneta da Toureira. Não pode ser.
Zé Carramilo tinha mais interrogações consigo:
- E então os meninos dentro dágua não morrem? A mãe está
sempre a dizer pra eu não me chegar à borda do barco.
O homem queria rir, gostara da pergunta, e fingiu
tossir para abafar uma gargalhada.
- Porque é, pai?
- Ora! Secas-me com perguntas. Quando estão lá em baixo,
eles são como os peixes; depois fazem-se homens quando chegam
fora dágua.
- E morrem se não sabem nadar, não é?
- isso mesmo.
- E os meninos que não são de pescadores donde vêm
- Sei lá!
- Eu sei.
Por cima deles passou um bando de estorninhos que foi rasar
o Tejo e subiu depois na outra margem, elevando-se ao longe,
- Disse-me um rapaz em Vila Franca. Ele disse que são os
homens, pois, os homens, que metem os filhos dentro da barriga
das mulheres.
-Não pode ser, Zé - respondeu-lhe a sorrir, ao buscar a mão
que o apertava nos braços.
- Onde vão buscá-los?
Zé Carramilo encolheu os ombros e fez uma careta.
Da banda do rio uma voz de mulher lançou um grito.
O MAR NÃO OUVE OS VELHOS
Ela não ganhara para o susto quando vira entrar aquele
desalmado pela porta dentro; vinha esbaforido
o maldito, como se trouxesse toiro a bufar-Lhe aos
calcanhares perceb também pelo olhar que lhe deitara, ele
devia saber bem que ali não era igreja ou casa de malta.
O homem entaramelara desculpas (ora essa tal e coisa),
dera voltas e reviravoltas com o boné na mão mas ela
não gostava que lhe pusessem o carro antes dos bois.
dentro do decoro, muito certo, muito bem, mas respeito acima
de tudo.
- Ora põe-te lá fora e pede licença para entrares.
Antes disso sou surda e muda. Esta casa tem dono e não
admito confianças a ninguém.
Ficara-lhe aquela opinião depois da morte da sogra,
para quem o barracão pertencia a quantos precisassem
de ajuda ou guarida. Clotilde ainda tentara demovê-la
mas vira endurecer-se aquele olhar suave que só reflectia carinhos. "Isso não, menina. Enquanto eu for viva, isto também
é deles. Desassossegava a alma do meu António no outro mundo,
se mostrasse soberbas a esta gente. Assim que eu fechar os
olhos, faça o que quiser ou o Feliciano lhe deixar. Não lhe
peço que os receba; já vi que não morre de amores por eles.
Mas eu tenho-os como família. Nas aflições achei-me sempre com
esta gente. Quando a nossa barca naufragou, aqui mesmo
defronte, salvaram-me o homem e a nau; e puseram-me a barca
novinha em folha, sem me pedirem dez réis furados em paga.
Duas semanas depois da morte da Tia Rosa da Barca,
começara vida nova no barracão, O seu Feliciano ainda
lembrara as conversas da mãe, mas ela não dera por novas nem
mandados. Ficara na sua Debaixo de telha. mandava a mulher:
- Esta casa tem dono e não admito confianças a ninguém
João Carramilo voltou costas. Apeteceu-lhe mandá-la
para um sítio onde ele nunca fora, mas acabou por parar
no rebate da porta. Pensara abalar, confessou-lhe depois;
o pior é que em horas daquelas não há homem capaz de
aguentar a vergonha no seu lugar
Tartamudeara razões de peso:
- Nasceu-me agora mesmo uma menina. Como estava aqui perto,
lembrei-me. Não sou homem que perca o respeito às pessoas, não
senhora. Pobrinho mas sério
E então em casa do Mestre Feliciano.
Acrescentara palavras e desculpas quando era homem
de poucas falas; mas o diabo da mulher não emendava
o arrenego da cara e ele não achara outro remédio senão
sangrar-se em vida com o que lhe vinha à cabeça
A paz acabara por chegar
- Mas que queres tu, afinal?
- Uma pinga de água quente, Sra. Clotilde. Nasceu-me uma
menina.
Disse-lhe aquilo a palpitár de orgulho. Lembrara-se
de que Deus a secara para ser mãe, talvez pelo feitio
arisco e presunçoso
- Até Parece que a cachopa trazia o cordão- ao pescoço.
Podia enforcar-se sem a gente saber, disse a minha Ana.
A Sra Clotilde benzia-se com o que escutava.
- A minha Ana tem o seu feitio, mas é uma grande
mulher. Fez o serviço todo sózinha. A criança é uma bolinha de
carne.
Agarrou na panela que tirara do lume, metendo o
boné dentro da camisa, não fosse descuidar-se e pô-lo na
cabeça. Não queria ouvir mais sermões; já bastara a primeira
missa.
Enquanto dava uma olhadela pelo tacho do almoço,
a Sra Clotilde pensava no que ouvira ao Carramilo: uns
animaizinhos, benza-os Deus. De boa cepa eram eles para
darem gente tão enxuta e trabalhadeira, fora os que morriam
sem se saber porquê. Para ir um filho avante precisavam de
duas e três barrigas.
- Espera aí, que vou contigo. - acabou por dizer
quando o homem desapareceu.
Pusera um xale pelos ombros e apanhara-o a meio
do carreiro No Cais das Barcas. recomendara ao marido
que mandasse o Manel Lombriga tomar conta do almoço;
faltava deitar as batatas, já as descascara.
Mestre Feliciano lembrou-se da mãe quando a viu
tão desembaraçada a ajudar o Carramilo.
Tiveram de afastar um tufo de ervas bravas que escondia o
barco. O Zé aproximara-se, curioso, a querer dar conta se o
peixe grande ainda lá estaria a descansar
da caminhada. Porém, o pai pegara-lhe na mão e levara-o consigo pelo salgueiral dentro.
Os vagidos da criança enterneceram a Sra Clotilde.
Também nunca mais poderia esquecer o olhar agradecido
da avieira, e mirá-la toda, como se quisesse metê-la no
coração.
- Nunca mais lhe pago; por muitos anos que viva.
- Deixa-te de histórias! Temos de ser uns para os
outros, enquanto andarmos por cá.
No balde de bordo lavaram a menina, tirando-lhe as
gorduras que trazia agarradas ao corpo. Vestiu-lhe os
trapos lavados que a mãe lhe estendera, e ficara-se a
embalá-la depois, com um misto de satisfação e de
mágoa.
De longe chegavam os gritos do Zé a jogar pedras às árvores.
Esqueceu, por momentos, a outra mulher que adormecera
debaixo do toldo do saveiro. Afagava a criança com mimos que
nunca ninguém lhe vira e sentia-se ligada àquele pedacito de gente, mais bicho que pessoa. Como teria sido a sua vida com um filho?. Espreitou a outra e viu-a a sorrir, talvez num sonho bonito.
Chamou o Carramilo e começou a dar ordens. Nascera para
mandar.
- Ela não fica bem aqui no barco. Lá em casa eu
trato das duas. .
De olhos inquietos, o Zé espreitava o saveiro e o rio,
numa tentativa de perceber sinais do peixe grande que
lhe trouxera a irmã. A Sra Clotilde mandou-o saltar para
dentro do barco depois de fazer o mesmo. O rapaz aproximou-se
da mãe.
- Leva a gente ao Cais das Barcas, anda. Arranja-se
um caldinho para ela - ordenou a Sra Clotilde.
- Pra favor já basta - contrariou o Carramilo.
- Pega lá nos remos e deixa-te de conversas. Não
sejas de reservas por mor do que te disse há bocado.
O rapaz acabara por se sentar no banco da ré a mexer
a água com as mãos. Ia triste. A menina viera e ele percebia
que lhe tomava o barco todo, embora coubesse à vontade no
refúgio do bico da proa. No enleio dos pensamentos, lembrou ao
pai:
- o Mar podia dar a menina a esta senhora.
- Já vem tarde - disse a Sra Clotilde. - O Mar
já não ouve pedidos de velhos.
Chegaram depressa.
Quando o Mestre Feliciano veio pelo almoço, a mulher levou-o
à claridade para que visse bem a criança.
- Se não timportasses, a gente apadrinhava a cachopinha.
Já escolhera nome - Olinda.
- Não gostas?.
Ele fizera que sim, sabia que não teria outro remédio
senão aceitar, e puxou-lhe o lábio com a ponta dos dedos.
Depois voltou para as barcas com o Carramilo; precisavam de
combinar o baptizado.
Em amuo a um canto da lareira, o Zé mal pegara na
açorda que lhe deram. Não gostava da casa nem das pessoas, nem
do pai nem da irmã. Precisava de arranjar maneira de sair
dali. O diabo da velha não o deixava mexer em nada; também o
mandara brincar para a porta e ele
fingira não ouvir.
Quando deu com um saveiro a subir o rio, lembrou-se
que podia trazer uma criança.
Riram-se dele.
Achou a risota disparatada e teve vontade de lhes voltar
costas, abalando sòzinho para o barco. Mas partiram quase ao
sol-posto. As marés não esperam e os lances não se colhem com
o pé em terra. Zé Carramilo garantiu ao pai que o ajudaria no
trato das redes. O pior é que adormeceu junto da mãe a chuchar
no dedo, talvez por influência da irmã. com arrenego:
- Então a gente não vai hoje ao Mar?. .
Naquela noite, no barracão de Mestre Feliciano só
falaram nela. A Sra. Clotilde recomendara ao marido que
pedisse boleia a qualquer carroça que fosse a Salvaterra,
pois queria oferecer-lhe enxoval que não envergonhasse
os padrinhos.
AS CRIANÇAS SÃO COMO AS MELANCIAS
FoI um estadão, bem ao contrário, disse-se pelo Tejo,
da Chamusca a Vila Franca. Nunca baptizado de
avieiro teve galas tamanhas, garantiam os mais velhos.
A Ana Carramilo com as suas ensanchas também ajudou
à imaginação dos outros. A menina parecia uma princesa,
ó mulher! Só a touca tinha cinco folhos e rendas; veio
de Lisboa.
A Sra. Clotilde deitou vestido de seda, Mestre Feliciano fato
azul de chavidote, ou lá o que é, e o João Carramilo estreou
botas pretas que trouxe na mão, à volta da igreja, porque os
pezunhos não aguentavam aqueles entalões tão rijos. A comadre
zangara-se com ele por mor do desatino, mas o Carramilo metera-se nos copos antes do baptizado e o sangue aferventara-se-Lhe. Uma vergonha, contavam as más-línguas. à frente do Sr. Prior e de todo o acompanhamento, garantira que havia de partir os cornos ao sapateiro; o malandro esquecera-se de contar nos sapatos com lugar para os dedos dos pés. E quando a mulher, chorosa, lhe
pediu "Ó João, aguenta!", o Carramilo perdeu a cabeça e
gritou que não era burro para andar com ferraduras. Foi um
vergonhaço.
Mas em festa e boda ninguém se lembrava de coisa tão bonita
e tão farta de comer. A Sra. Clotilde metera-se
em opinião e nisso só os ricos sem avareza lhE levariam a palma. Falava-se que tudo junto custara um dinheiral
ao Mestre Feliciano.
Os amens da Sra. Clotilde passaram todos para a afilhada.
Sempre que as fainas da pesca lho consentiam, os Carramilos
visitavam o barracão para que os padrinhos bajulassem a
menina, embora o João ficasse no saveiro, à espera, entretido
a porfiar alguma arte, pois não podia encarar a comadre depois
da história das botas. Ele mandava-lhe os melhores mimos do
rio: eiroses de metro, vivinhas gordas, para assar nas
brasas, linguados de fundo de areia, mais brancos do que carne de galinha, fataças-toiras para caldeirada e sopa, que nem de unto precisavam para encher o caldo de olhas amarelas, mugens, camarão, estreminho e até savogas, mais espinhas do que carne mas gostosas como nenhuma outra novidade do rio para
adubarem caldo de sopa com hortelã e
linguados-folhas-de-oliveira, de comer inteiros e chorar por
mais, quando o fundo da panela só dá cheiro. A comadre
devolvia-lhe as gentilezas em apaparicos de boca, mas nada de vinho.
João Carramilo encaixava as bofetadas sem mão e
peguilhava com a mulher por causa do tempo que ela
perdia a apajar a outra. No fundo, porém, babava-se com
os luxos que ofereciam à filha, embora receasse o dia de
amanhã, quando os padrinhos lhe faltassem e a rapariga
tivesse de perceber que nascera de pescadores.
Um dia, o Mestre Feliciano adoeceu com sezões, o
Carramilo prontificou-se a tomar conta da barca e a Sra.
Clotilde acabou por ir, em pessoa, convidar o compadre a
dormir no barracão. Fez-se ainda rogado, mas cresceu um palmo.
A ceia foi de riso. Afinal, a comadre achara-lhe graça
ao dito das botas, pretexto para contar algumas anedotas.
de frades lambões e femeeiros, que ela aprendera em
casa de um tio maçónico, afazendado em candonga de
aguardente para o Douro.
Arranjaram-se os Carramilos na arrecadação das madeiras que
vinham em jangadas pelo rio abaixo, lá de casa de mil diabos;
por ali dormiam, a Ana ajudava à lida, agora dobrada por mor do doente, e até o Zé se ia habituando ao lugar, porque o pai lhe arranjara atiradeira para os pássaros. No meio dos febrões, mestre Feliciano achava que
a mulher galgara para o exagero. Nem tanto ao mar nem
tanto à terra, pensava nas folgas da modorra e dos delírios.
Um nadinha avarento, deitava contas ao que gastava, sem meter
nas parcelas o que poupava com o Carramilo
a governar-lhe a barca. às escondidas, indagava do Manel
Lombriga se o compadre não o roubaria na cobrança dos
fregueses que passavam o rio.
Lá isso, não senhor, garantia o criado, porque quem
ferrava o dinheiro era ele. Sem aquela deixa para se
ralar, recomendava à mulher que não deixasse o Zé à
vontade - o rapaz era ruim e podia dar-lhe cabo dalgumas
tábuas no armazém. A doença tornara-o miudinho de feitio.
Só para a afilhada todo ele era mimos e mãos abertas.
E por essa balda lhe pegou a mulher quando o viu
menos atordoado com a malária. Deitara-se a seu lado,
depois de confortá-lo com dois pratos de canja, bem entulhada
de moela e ovinhos; e palavra puxa palavra, nunca vira gente
tão honrada e respeitadora, podia-se-lhe entregar ouro em pó,
largou-lhe a proposta:
- Tinha-me lembrado de puxar a menina
cá pra casa.
Mestre Feliciano susteve a respiração.
- Era uma companhia para a gente. Qualquer dia
estamos jarretas de todo e ninguém olha por gente velha.
Chegar ao fim da vida sem uma amizade é a coisa mais
triste. Até os pobres das portas têm a amizade dum cão.
Não demos filhos ao mundo.
- A culpa não foi minha - resmungou o velho com
azedume.
- Foi dos dois. Ou fizeste algum filho fora da nossa cama?.
Mestre Feliciano não ia confessar-se tão cedo.
- Foi dos dois - insistiu a mulher. - Sabe-se lá
porquê? Os sangues não se deram pra isso.
Pôs-se a amimar-lhe as mãos descarnadas.
- O resto da família vai com dono logo que tu não
precises deles. A menina podia ficar; fazíamo-la ao nosso
jeito.
- Filhos doutra gente.
- É boa gente. .
- As crianças são como as melancias, Clotilde. Só
depois de caladas é que se lhes sabe a raça. Mesmo assim,
enganam...
- Há sempre remédio. Se não tiver juízo, sai pela
porta por onde entrou.
- Isso é modo de dizer.
- Não se faz contrato.
- A gente toma-lhe afeição e depois é o diabo. Custa
mais do que vê-la para aí a penar, raladinha de trabalho e de
pancada como a mãe e as outras. - Fazia jeito!
Calaram-se. Mestre Feliciano virou-se para o outro
lado a pedir conselho ao travesseiro. Na noite, nem o
rumorejar das árvores.
- Estás a dormir?
Não respondeu. Batalhava consigo. Levou a mão à
testa e achou que a febre Lhe subira outra vez. Nunca um
homem está sossegado. A vida não sefarta de pedir contas
às pessoas. É um credor que nunca larga a porta. Empresta e
está sempre a contar juros; tudo bem regateado.
Preferiu falar a prosseguir no enleio do pensamento.
- É uma grande responsabilidade.
- A gente precisa de companhia. Se fecho os olhos
antes de ti, quem te trata das coisas?
Arrepelou-se por dentro com a ideia de ficar sózinho.
- E vem assim nesta idade?
- Logo que deixe o leite da mãe. Acostuma-se com
a gente.
- Não iremos arranjar alguma carga de desgostos?
- Estás com medo.
- Medo, não. Nunca tive medo de nada.
- Então.
As conversas acabavam sempre na mesma. Clotilde
nascera com feitio de caruncho. Entrava de mansinho e depois
fazia o trabalho até ao fim, sem largar.
- Faz lá o que quiseres, mulher do diabo!
Barracão: Não há por aí mais telha
SENTADO na barca, à espera de gente ou gado para
atravessar o rio, Mestre Feliciano abria o canivete.
Pegava na obra encetada, em pedaço de salgueiro ou freixo,
e remendava a solidão a dar forma à madeira ou a retalhá-la,
fantasiando flores e símbolos, ao sabordos caprichos da
imaginação. Gabavam-lhe a arte e ele cerrava os olhos,
acenando a cabeça, num sinal secreto para si das razões
daquela Vida tardia.
Era a sua maneira de ficar sòzinho. Assim fingia melhor que
não gostava dos incómodos da conversa dos outros - no fundo,
isolava-se da mulher, sempre de sanfona pronta a peguilhar com
alguém. com ele, em primeiro lugar, escolhido para
grandde martírio de ouvi-la tOdOS oS dias.
Desabafava com a madeira. Depois que a afilhada viera para
o barracão, Mestre Feliciano acusava-se muitas vezes de ter
acedido a mais um capricho da Sra. Clotilde. "Capricho dela e
egoísmo dos dois", pensava com desespero em certos dias. "Esta
mulher do diabo só passa bem da enxaqueca quando traz a gente
ao seu jeito. Deve gozar com isso! Precisa de mandar; tem de
haver alguém para mandar. Há pessoas assim. à força de
chicote, à força de sorrisos ou à força de lágrimas. A dela
tem de ir sempre avante, haja o que houver. Os outros são
assim uma espécie de palha para ela dar de comer ao
cavalo da vaidade".
O coração parecia-lhe a pintar. E quando a ouvia em
alardeios de soberbia punha-lhe a cabeça com penacho e fitas
de seda entrançada, aos acenos, como os cavalos dos desfiles
taurinos. Sorria à socapa. Desconfiada, ela perguntava-Lhe de
que se ria; mestre Feliciano, manhoso, inventava desculpa para
se rir mais à larga. Vingava-se a seu modo da intromissão dela
na sua vida.
Era mal de raiz; não havia volta a dar-lhe.
Até na bonecada que fazia, lá vinha ela com as suas
sentenças. Mas isto e mais aquilo, eu se fosse a ti; eu cá
acho, mais frito e mais assado, muito eu, tudo ela; tinha
sempre de meter o bedelho em cada coisa. Secava as pessoas.
Mal apanhava alguém para mostrar os madeiros trabalhados,
qualquer ficaria a pensar que a ideia, o engenho, até a
madeira, eram obra dela. Mestre Feliciano, de poucas falas,
encaixava os caprichos da mulher, as rabugices, os vexames, e
duas ou três vezes por ano despejava o saco. No despejar o
saco limitava-se a atirar-lhe dois berros, a partir numa fúria o que lhe aparecia à mão e a deixá-la uns dias a dormir
sòzinha no barracão. Em toda a vida abanar a-lhe as moscas da
cara aí meia dúzia de vezes. Se tanto!. O castigo maior que
lhe dava, era pegar numa manta
e deitar-se na barca. Abandonada no barracão, a Sra. Clotilde
fechava-se no quarto, trancava as portas com mesas e cadeiras,
acendia os três candeeiros de petróleo e ficava
vestida, toda a noite alerta, em sobressaltos constantes por
cada ruído estranho que ouvisse à sua volta. Pálida, de
olhos arregalados, aparecia-Lhe na outra manhã com o
café; sabia que ela vinha para fazerem as pazes, mas
prolongava o castigo até se cansar de dormir ao relento.
Zangava-se de Verão, é claro, quando sabia bem dormir cá
fora. A Sra. Clotilde comparava-o ao gato vadio que tinham
em casa, batia no bicho para se desforrar do homem, e
acabava por pedir tréguas, num choro sentido, mostrando
a sua outra face de gente - meiga e infeliz, prometia
e jurava o que lhe parecesse bom para garantir emenda.
Mas era sol de pouca dura. Esquecia-se de tudo em
menos de uma semana.
Mestre Feliciano pensava nisto com frequência, depois que a
Olinda viera para junto deles. Exagerava, talvez. Entendia que
a criança havia de pagar e repagar os esmeros da mullher,
apostada em mostrar a toda a gente que ninguém seria capaz de ver naquela menina uma filha de pescadores. Tocava sanfona todo o santo dia assim que a rapariga começara a mostrar tino para a compreender. Quando queria arreliá-la, bastava dizer: "A cachopinha não matou ninguém para ser degredada. Com
carcereira da tua espécie seria melhor pendurá-la numa árvore..."
Parecia um gracejo, mas exprimia as suas próprias
queixas. Também a Olinda ficaria seca e triste se
continuasse muito tempo por ali. As tábuas do barracão haviam
de guardar mais tarde a má lembrança daqueles dias, pensava
Mestre Feliciano.
Por isso mesmo se indignava com o capricho da mulher e com o
egoísmo dos dois, ao chamarem a criança para ali. No fundo,
alugavam-na para se distraírem.
Não seria melhor o pão incerto da liberdade no rio?
Teimoso de velho, as pessoas secam-se ali dentro, e
o barracão fica sempre. Não há por ali mais telha. Curtido por
invernias e soalheiras, remendado como um pedinte, nada o
vence. Astábuas, se falassem, fariam um grande livro, dizia
Mestre Feliciano muita vez.
É bem verdade. Cada tábua tem muito para contar.
; Mais do que os dois velhos que o habitam. Algumas viram
nascer o arrais das barcas e este já mostra a cabeça quase
branca. E o barracão é herança de avós, mais grilheta do
que fortuna, embora o velho não se possa queixar de mau passadio de mesa. A Sra. Clotilde guarda ainda mais
queixas do que o marido e não lhas esconde. Degredada
foi ela quando aceitou a mão daquele homem.
Mestre Feliciano nessa conversa nunca se cala:
"- Cá por mim bem podias ficar onde te conheci.
Não te chamei para estes sítios.
- Tiveste de pagar aquilo que mexeste em primeira
mão.
- E paguei bem; fiei-me nos teus olhos bonitos.
- E eu nas tuas graças...
- Nunca fui engraçado".
Ficam-se por aí; não adiantam muito a conversa.
As tábuas contariam muita coisa, se tivessem fala e
memória, repete Feliciano da Barca há longos anos. lembra-se,
então, do tio António, que se embebedava todos os dias para
matar aquela solidão e acabou tonto com a
mania de meter vela na barca e abalar dali para o Brasil; e da
Cassilda, daquela que um cigano levou não se sabe para onde,
foi um feitiço, diziam todos, bruxedo de
cigano para lhe beberem o sangue, mas Feliciano não se
engana com o feitiço quando julga que a tia-avó foi atrás
do vagabundo para não morrer de pasmo; e do menino
que se afogou mesmo defronte da porta do barracão,
sem saber que a estrada do rio vai cheia de armadilhas.
Histórias sem fim para encher todas as noites de Inverno.
Também a Olinda terá recordações para mais tarde,
à hora do arrependimento, quando sentir que a encarceraram
entre aquelas paredes. Feliciano da Barca
conhece-lhe o destino, revê-se no seu e lamenta-lhe a sina.
Ele fugira dali com 15 anos, numa madrugada de Verão,
metendo-se pela charneca dentro até Coruche, e depois,
Alentejo fora, à procura da vida que lhe furtavam. Fez
mondas e ceifas, foi porqueiro e ajuda, pegou em todos
os ofícios de maltês, e um dia chegou a Mértola, morto de saudades de qualquer coisa que só entendeu quando
viu o Guadiana. Sim, faltara-lhe sempre um rio grande,
a água viva de um Tejo qualquer. Conheceu a Clotilde.
Clotilde da voz mansa e cantada, feita depois amargura
e aspereza, talvez porque também ela se fine de saudades
pela sua terra fronteiriça.
Numa madrugada de há mais de quarenta anos, Feliciano
maltês regressou à pátria do Tejo, atravessou o rio a nado,
sem paciência para esperar que a barca do pai
o fosse buscar à outra margem, e chorou sòzinho os cinco
anos de vadiagem. Quando bateu à porta do barracão e
a mãe lha abriu, correu para a lareira e sentou-se no
banco, onde o avô lhe contara histórias de campinos e toiros.
O pai só lhe disse:
- Vens pra ficar?
- Venho. Dê-me a sua bênção.
- Sabes o mal que deixaste na gente?.
- Faça de conta que voltei agora de Valada. O que lá vai lá
vai!
Antes de um ano tomou o comboio para o Alentejo
e trouxe mulher consigo. A Sra. Clotilde não fora capaz
de recusar o rapto, porque nesse tempo Feliciano Maltês
lhe sabia descobrir os mistérios da carne moça.
"Contavas histórias bonitas", lembra-lhe ainda hoje
quando lhe quer dizer que a enganara com promessas.
Mestre Feliciano sabe HiSTÓRIAS
NÃo. não sabia histórias para enganar pessoas, ao contrário do
que a mulher insinuava. Nunca lhe prometera mundos e fundos,
isso não. Todos os homens nas faIas de amor imaginam o mundo
com asas de pássaro cantador. Não será culpa deles que o mundo não se deixe criar ao sabor do que imaginam.
Também nos olhos azuis dela e no seu corpo bonito,
enxuto, com peito de rola, pernas esguias e cintura de
junco, poderia encontrar alguém o trambolho que por
ali andava, molesta e triste, a amargar cada coisa da vida?.
Quem a ouvisse, pensaria que deixara palácio de duque para o
seguir. Vivia recatada, sim senhor, nunca precisara de ganhar
o pão fora de telha sua; ninguém dizia menos do que isso. O
pai trazia terras de renda, matava
porcos e tinha açougue de carne fresca e salgada; daí
a casa rica sobejaria a vontade e a vaidade, mas faltava
de certeza o dinheiro e o resto. Depois metera-se no jogo
de cartas, pusera por conta rapariga em Beja e o arranjo
ardera-lhe em menos de dois anos. Parecia um montinho
de forrejo seco.
Enforcara-se na trave de abrir os porcos, deixando
dívidas em letras e outras maiores em tretas, três filhos
varões, sem ganas de ganharem vida, e a Clotilde, a quem
nunca a família perdoou a vergonha da fuga com um
valdevinos.
O valdevinos, porém, sempre lhe ganhara para as sopas, não
devia cinco tostões a pobre nem a rico, e nem
agora lhe regateava o dinheiro para ela se dar a luxos
com a afilhada.
Percebia que aquilo entrava no jogo contra ele, se
calhar era parvo, mas também, por seu lado, tinha cartas para ganhar a amizade da rapariga.
A Sra. Clotilde desvelava-se aos serões a tratar-lhe da
roupa, penteava-a logo de manhã com cheiros e canudos,
e acabava os primores com um laçarote de seda de que
guardava colecção, alguns cinco de cores diferentes,
abrindo-lhe uma borboleta no alto da cabeça. A cachopinha
pagava-lhe o apuro com o calvário de segurar o
laçarote direito, sem folga para dar uma corrida à solta
na borda do rio ou quando deitava ao Reguengo para trazer o avio da casa. Desejosa de acamaradar com as
outras nas brincadeiras dos jantarinhos, do trato das
bonecas e das cantigas de roda, Olinda Carramilo ficava à
distância, pesarosa, encostada ao dique da estrada, e
invejava-as na sua pobreza. Num desses dias, mais afoita,
meteu-se na galhofa, esqueceu-se das horas e acabou com as outras, à caça das rãs, dentro dum charco deixado pela cheia. à sua banda a cachopa apanhou duas das maiores; mas ficou numa
vergonha.
Quando percebeu bem os trabalhos que arranjara,
pensou abalar. Se soubesse que o barco do pai andava
perto, fugiria para lá; ainda tentou, aproximando-se da
borda do Tejo a chamar pelos seus, mas a noite começou
a cair e os seus gritos acabaram por conduzir a madrinha
até ela. Foi um inferno. Provou-lhe as verdascas das mãos,
deitouse sem comer e ouviu-a pela noite dentro até o padrinho
chegar a casa. Feliciano da barca deu às do cabo com o
alarido da mulher e jogou-lhas com força:
"- Crianças são crianças, mulher do diabo! Não
queiras tirar à cachopa a melhor coisa que a gente tem
da vida.
- Não Lhe dou manfa para fazer dela uma galdéria!
- vais pô-la que nem uma árvore seca.
- Isso é de minha conta. Quem Lhe dá o pão, dá-lhe
o ensino.
- O pior é que sou quem o ganha e não quero fazer
da cachopa nenhuma santa falsa. Amanhã vou eu mesmo
levá-la à escola. A criança precisa de viver com gente do
seu tamanho. Pra velhos chegamos os dois e o Manel Lombriga.
Tudo cheira a mofo nesta casa".
Olinda ouviu a madrinha chorar, a voz do padrinho
a falar-lhe mais de manso, e adormeceu cansada.
Nesse Inverno, Feliciano da barca caiu à cama com
as pernas tolhidas de reumático. Meteu outro moço para
o trabalho das barcas, rabujou que não prestava para
guardar um animal peado e acabou por se entreter com
a navalha e os pedaços de madeira. O médico vinha de
charrette ao fim da tarde, dava-lhe remédio de conversa,
ao recordar o tempo em que tinham feito a tropa juntos,
e abalava já à noite, um nadinha embalado com as pingas
que ambos bebiam debaixo da parreira da entrada do
barracão.
"- O teu remédio é descanso e bom trato. Come-lhe
bem, bebe-lhe melhor e dá por aí o teu passeio. Vai a
Lisboa ver uma revista com raparigas em pêlo. (Ria-se
a perder com a má cara da Sra. Clotilde. ) É o que se leva
deste mundo"
Mestre Feliciano achava-lhe graça, mas depois ruminava o
desgosto de se sentir sem préstimo. Mãos e braços não lhe
faltavam, caramba! Assim tivesse pernas.
Sempre que regressava da escola, Olinda abalava para
o porto a fazer-lhe companhia. Quando a barca largava,
via-Lhe bem os olhos vidrados a seguirem a carreira para
a outra margem. Tinha sempre uma recomendação a fazer
aos homens para se sentir necessário, mas apertava as
coxas com as mãos, acenava a cabeça numa arrelia e voltava
costas ao Tejo.
A rapariga puxava conversa para afastá-lo daquela
pena. E repetia-Lhe perguntas sobre o rio.
Mestre Feliciano gostava de lhe explicar a sua sabença de
marinheiro.
"- Quando o Mar respira, dá cabeças de água.
É quando a Lua mostra a cara toda. O Mar e a Lua são
companheiros. Andam sempre juntos. É um casal que se
entende bem. Quando a Lua se zanga, o Mar escoicinha.
E a gente é que paga. O Mar tem oito dias de refôlego
e oito dias a morrer. No quarto crescente tem pontas de
maré; no quarto minguante as águas estão mortas; andam fracas e o teu pai traz o saco da rede sem peixe. É uma
coisa que me quebra a cabeça, esta da Lua e do Mar. Tão
longe um do outro. naturalmente é por isso que se dão
bem"
E ria.
Tinha de cor tudo aquilo, mas quando não sabia que
perguntar, voltava à mesma.
"- Padrinho!... Como é isso da lua e do Mar".
Se estava de maré, ele fazia-lhe uma história:
"-A Lua era uma princesa que vivia na Terra, num
grande palácio, mais lindo que tudo que há no mundo.
Tinha muitas aias.
- Que é isso?!
- São criadas, Linda. Os seus cabelos eram de oiro
muito compridos, tão compridos que, quando andava, era
como se levasse um manto atrás dela. Não havia na Terra
uma cara assim. Cresceu e fez-se mulher. Um dia, o pai
quis casá-la. Mandou ministros por todo o mundo a dizer
a nova: "Vai casar a princesa Lua!" Encheram-se todos os
caminhos que davam ao palácio. Eram carros, cavalos
brancos.
- Porquê cavalos brancos?.
- São mais bonitos.
-Ah!.
- Até veio gente a pé de casa do Inferno para a princesa
escolher marido. Foi pondo de banda, pondo de banda, e no fim
só ficaram dois".
Ela ajeitava-se-lhe nas pernas e agarrava-Lhe a mão.
Mestre Feliciano sorria e continuava:
"- Um era rei. O mais rico de todo o mundo. Rei e
feiticeiro. Punha flores onde queria, fazia as árvores dar
folhas e frutos lindos.
- Quem era!
- Era o Sol.
- Ah!.
- O outro era um pobre de Cristo, vestido de azul,
de um azul que ninguém conhecia.
- Era o Mar?. .
- Pois era. Esse era o Mar. E a princesa escolheu
o Mar. O pai gostava do Sol. Teimou com ela. Mandou
vir fadas e nenhuma conseguiu voltar-lhe a ideia. Meteu-a num
quarto e não houve luz na Terra não sei por quantos dias.
Depois mandou prender o Mar com correntes de ferro, tão
grossas, tão grossas que cada argola. eu sei lá!
- Mais grossas que um boi.
- Quantas vezes!"
Via-o sorrir.
"- Bem amarrádo, o Mar aquietou-se, à espera.
O pai da princesa entregou-a ao Sol e ele levou-a para o
seu reino.
-Onde é?.
- Lá em cima, no Céu. Mas o Mar, quando soube,
enfureceu-se. Gritou, abriu os braços e partiu as correntes. E
espalhou-se por todo o mundo à procura dela. Fez-se
um gigante, meigo como ninguém; mas quando se zanga,
nada há que o aquiete senão a Lua. Só ela, quando o namora lá
de riba, o faz brando.
- E o Sol casou com ela?
- Nunca mais Lhe pôs a vista em cima. O seu reino
é grande e ela fugiu-lhe. Se ele está num lado, ela aparece no
outro, para ver o VIar. Ela gosta é do Mar. E as estrelas que
andam à volta dela são os guardas que o Sol
mandou para a agarrar. Mas nenhuma Lhe deita a mão,
porque as estrelas gostam também do pobre vestido de
azul. E há uma, a Estrela da Manhã, que vem sempre
avisá-los, mal adivinha o Sol. Então, a Lua abala e o
Mar vai vê-la no outro lado da Terra."
Ficavam calados a ver seguir a barca. Aos olhos de
Mestre Feliciano regressava a tristeza de estar parado.
Olinda inventava mais perguntas e ele respondia-lhe.
Sem a sua companhia, passava as horas do barracão
para as barcas, a rever-lhes o cavername e os remos, na
esperança de encontrar mazela que precisasse de conserto.
Puxava, então, o banco de carpinteirar para o sol, e todo
o dia os braços não paravam. Era preciso ir chamá-lo
para o almoço.
A meio da tarde, pegava na madeira, abria a navalha
e punha-se a trabalhar nos seus bonecos. Com o tempo
ganhou perícia. Debruçado sobre o pedaço de salgueiro
ou freixo que goivava, lembrou-se um dia de contar na
madeira a história da Lua, do Sol e do Mar. Fê-lo em segredo.
Afastou-se do porto das barcas, esquecido de mágoas, e
atirou-se à faina. Voltaram a ouvir-lhe o assobio estridente
de uma marcha que aprendera em toirada de Salvaterra. Música
de toirada era outra coisa! Mestre Feliciano ainda hoje
dá tudo por uma boa corrida, embora recorde o tempo
dos Robertos e do Peixinho. Toiradas com dez toiros,
sorte de cadeira, salto à vara, e moços de forcado a fazerem a
casa da guarda junto da trincheira. De qualquer jeito,
toirada é coisa séria. Ele bem podia
dizê-lo. Numa terra, em Muge, com bezerros da Senhora
Casa Cadaval, tirara o casaco para fazer frente a um
bicho quase de mama e o malandro agarrara-o com tanta
gana que o pusera meio despido e com um lenho na cabeça
fechado com oito pontos. Depois daquele boléu, Mestre
Feliciano da Barca entendia-se sabedor de toiros.
ZÉ
EMBoRA a Sra. Clotilde não mostrasse boa cara quando
os pais vinham visitá-la com frequência, eles apareciam no
barracão sempre que andavam perto na lida das pescas. Mestre
Feliciano punha-os à vontade, insistia,
não maçavam coisa nenhuma, ora essa!
Zé Carramilo acompanhava-os também. Fizera-se um
homem, moreno e arruçado, neão como o pai, mas largo
de peito. Mostrava-se desconfiado junto da irmã, sem
atinar conversa para ela. Olinda lembrava-se do tempo
em que o Zé trazia uma corda do barco para lhe armar
baloiço no ramo dalguma faia. Nem nesse tempo a tratava pelo
nome. Era a sua menina e nada mais. Olinda não gostava do
trato. Um dia perguntou-Lhe:
"- Por que não me chamas pelo nome, Zé?"
Vira-o vermelho, a encolher os ombros e a correr a
vista pelos longes, como se a irmã o apanhasse em falta.
Não sabia explicar porquê, não atinava com as palavras, mas
ela nada tinha a ver com a menina que nascera no saveiro,
quando ele ainda acreditava na visita do peixe grande para
trazer do Mar os filhos dos pescadores. A irmâ não era igual
às cachopitas do Vau, da Toureira e da Palhota com as quais
podia entender-se nas brincadeiras. Essas usavam lenço,
vestiam saia e blusa como as mulheres, andavam descalças e
sabiam pegar nuns remos para ajudar no trabalho; auxiliavam as
companhas na safra do sável e viviam com os outros as coisas
ruins e as coisas boas da vida do rio.
Zé Carramílo não se mostrava peco ao falar com elas;
nenhuma andara na escola a aprender letras e contas, não
precisavam disso para conduzir um saveiro, remendar
uma rede, fiar linho para as nassas, os botirões ou as
tarrafas. Com essas ele conhecia o jeito das conversas,
o golpe de perna e braço para fazê-las rebolar nos areais, ou encharcá-las bem, como se não desse por isso, quando
elas deitavam mão às cordas dos barcos ou das redes
varinas.
Achava que aquela gente do barracão Lhe roubara
a irmã, e não havia maneira de encará-los a direito. Com
o Mestre Feliciano sempre lhe dava troco ao pé das barcas.
Ali eram dois homens do rio, podiam entender-se a falar de
marés, de barcos bem lançados e dos mil segredos da arte de
navegar no Tejo. Ensinavam isso na escola? Então para que
precisava um pescador ou um barqueiro de se meter numa casa a
apanhar pancada dos professores? Era a ideia que tinha da
escola: uma casa fechada onde batiam com réguas para as
pessoas contarem pelos
dedos e lerem umas letras nos livros. E as mulheres
deles?. .
Nisso, mais ainda do que no vestir, a irmã fora obrigada a
separar-se da sua gente. Zé Carramilo pensava que ela ainda
teria vergonha de serem os dois do mesmo sangue. Não era a
primeira vez que irmãos com vidas diferentes acabavam
afastados como estranhos.
Olinda não atinava com os reparos dele e insistia,
sempre que ficavam sós.
"- Porque não me chamas pelo nome, Zé? Não gostas de mim?!"
No barracão, a madrinha mostrava a carranca e repreendia-a:
"-Que é isso de Zé?. Não sabes como se diz?"
Enquanto os pais se babavam de vaidade com a educação da
filha, o irmão abalava para a porta, danado por não pegar com
a velha; daí a pouco a rapariga voltava costas, escapando-se
para junto do padrinho. Mestre Feliciano percebia-lhe a
intenção e levava-a a ver o Tejo. Sorrateiro, amaciando os
passos, Zé Carramilo seguia-os à distância. Os
dois fingiam não dar por ele, rindo-se à socapa. Depois o
padrinho sentava-se na barca que esperava fregueses e mandava-os apanhar pequenos ramos de salgueiro para ele
trabalhar à navalha.
"- A Olinda já sabe. Ramos em curva, da grossura dum pulso
dos teus" O rapaz admirava o velho por mor dos bonecos; a
irmã mostrava-lhos, Zé Carramilo abismava-se com a
renda que Mestre Feliciano fazia na madeira. Da primeira vez
nem a acreditara quando ela lhe mostrou a história da Lua,
talvez porque o velho gravara um saveiro
num dos lados da peça. Por cima do barco, mesmo na
direcção do bico da proa, pusera-Lhe um Sol com muitos
raios e cara de gente. Nunca vira coisa tão bonita!.
Sempre que vinha ao barracão, ele esperava que Feliciano da
Barca saísse com a irmã e o encarregasse de ajudá-la na
escolha dos bocados de pau. Era bom para
ficarem sòzinhos algum tempo, pensava a rapariga; e
ainda mais para ele os reconhecer depois, quando a irmã
lhe mostrasse os bonecos, desejava Zé Carramilo.
Naquela tarde entraram pelo salgueiral dentro, afastando-se
da margem da vala grande. As árvores estavam com as folhas
doiradas por causa do Outono. Mal a aragem corria, muitas
folhas se soltavam dos ramos e pareciam brincar no espaço,
juntando-se em revoadas de pássaros de oiro que fugiam por
entre os troncos ou lhes caíam aos pés, quando eles as
perseguiam e as apanhavam no ar.
Todas as cores do seu mundo se tornavam mais brandas.
Uma réstia de sol penetrava o emaranhado do salgueiral e
cortava-o com o gume da sua luz doce. Zé Carramilo sentou-se
num cômoro; a irmã agarrou-o pelos
ombros, apertou-o de encontro a si e deu-lhe um beijo
na cara sardenta.
- Não gostas de mim. Anda, Zé, fala.
O rapaz respondeu-lhe num sorriso feliz. E, de repente,
começou às gargalhadas, abalando a correr em direcção ao Tejo.
Olinda perseguiu-o, a repetir-lhe o nome. Deitado no declive
da margem, ele esperou que a irmã se ajoelhasse junto dele a puxar-lhe a cara para o seu lado.
- Não gostas de olhar pra mim? - Mima-o bem.
Acenou-lhe a cabeça.
Olinda reparou que ele tinha um buço loiro.
- Tu agora és homem, Zé. Já és homem.
Ele emproou os ombros numa respiração funda. Abriu
os braços, espreguiçou-se a assobiar.
- Tens sono?
- Não.
Depois Zé Carramilo pegou-lhe na mão e levou-a por
entre os salgueiros da margem. Iam calados. O rio vinha
crescendo, espraiava-se na terra, a matar-lhe securas.
Ele passou-a para o outro lado; queria caminhar com os
pés metidos na água.
- Gostas do Mar?... - perguntou a rapariga.
Acenou-lhe a cabeça.
- Não sei andar nisto - respondeu.
E bateu com o pé no areal. Um saveiro, leve como o
vento, passou de vela içada; gritou-lhe:
- Eh, hoooome.
O eco andou por momentos no ar.
- Aquilo é que é bom. É como um berÇo. Com o
vento a dar-lhe, a gente põe-se num instante onde quer.
E gingava o corpo, como se viesse de longa caminhada.
- Aquilo nunca pára. Quanto mais se estica a corda mais anda. Já ganhei três corridas ao Manel Soisa. Ele
esmoncou-se, mas nem me cheirou a ré. O nosso barco
é leve como um estorninho. Se andasses nele, havias de ver.
Tanto gostava que o irmão falasse, e agora, de repente, ao
ouvi-lo, não sabia que dizer.
- A gente passa maus bocados, lá iso é verdade;
mas não ficava uma semana no barracão, nem que me
dessem uma mãozada de libra. Aquilo parece uma aldeia.
Foram seguindo pela margem adiante. As casas de
Valada chegavam-se para eles. Ouvia-se o bater de roupa
nas pedras. Uma borboleta passou aos altos e baixos; Zé
sacou do boné e atirou-lho.
- Queres, menina?!
Viu-o deitar a correr, procurando alcançar a borboleta com a
mão. Como se lhe escapasse, ficou-se a segui-la com o olhar.
Olinda foi ao seu encontro, de cabeça pendida e aquela mágoa
na alma. Ele reparoú-lhe na expressão e perguntou:
- Ficaste triste por causa dela? Eu arranjo-te muitas,
quantas quiseres e mais bonitas. Nas Obras, em Azambuja,
apanho quantas quiser. Quando cá voltar, dou-te todas.
- Não é isso. Porque não me chamas pelo nome? Não gosto de
menina.
A caminho do barracão, Zé Carramilo começou a falar. às
vezes nem lhe parecia irmã. Gostava de vê-la
bem tratada, sem fome nem frio, mas queria-a vestida
como a sua gente. Assim com modos de senhorita, não
sabia atinar conversa com ela. Dava-Lhe em pensar que se
prantaria a rir com o que dissesse. Ela tinha os exames da
escola e ele só sabia remar, içar a vela, fazer o trabalho das
redes.
- E depois o nome não me dá jeito - rematou, contrariado.
- feio?!.
- Não, isso não; feio não é. Mas não parece nome
de pessoa do nosso trato. Nome bonito, bonito a valer, é
Maria. Não gostavas de ser Maria?. Maria ou Ana, como a nossa
mãe.
Olinda fez que sim. E apeteceu-lhe repetir o nome
dele antes que chegasse ao barracão e a obrigassem a
chamar-Lhe José.
Zé . Ó Zé . Ouves, Zé?
Sem perceber porquê, Olinda desprendeu a mão e
pôs-se a correr pelo areal fora, procurando outra vez a
margem babujada pelo rio. Levava os olhos cheios de
lágrimas, apetecia-lhe fugir sòzinha, sem saber para onde.
Uma voz chamou-a.
-Linda! Olha.
O irmão corria para ela com o boné debaixo do braço
e uma das mãos estendida, bem fechada.
- Queres ver? Apanhei uma.
E mostrou-lhe uma borboleta amarela com pintas
negras, agitando-se na palma da mão.
A Vid É um Pássaro
Um pássaro de muitas penas que se mudam ou que
ficam para sempre. A vida é um pássaro que voa
muito alto ou raso de mais, dizia Mestre Feliciano da
Barca. A gente traz o pássaro dentro de si, mas deixa-o
fugir muitas vezes. Muitos deixam-no fugir à nascença.
Esses ficam como pedras. Piores do que as pedras. São
poucos os que voam com o pássaro.
A Sra. Clotilde não gostava da conversa - achava-a
equívoca.
Mas ele falava para a afilhada:
"- Se um dia vires o pássaro, abala com ele. Vai
atrás dele até o agarrares"
Olinda sabia que as horas se repetiam ali dentro, sempre
iguais. Só ela mudava. Só o corpo dela marcava o tempo.
Diziam-lhe: "Estás uma mulher"
Ela sabia-o melhor do que ninguém.
Os seus olhos tornavam-se mais verdes, os cabelos
mais castanhos, de um castanho avermelhado, como o da
avó Carramilo, e já o peito lhe crescia sob as blusas, talvez
um nadinha farto para os 16 anos. Parecia resignada com a
vida insonssa do barracão, assistindo ao apagar lento dos
padrinhos. Mestre Feliciano deixara a navalha e os pedaços de
madeira, queixoso dos olhos; evitava confessar que perdera
firmeza na mão e já não podia gravar os saveiros e as flores, os astros e os signos saimões, todos os símbolos da sua
imaginação cansada. A Sra. Clotilde, por sua vez, passava os
dias a espiá-la; vivia no receio daquela história da tia-avó
que abalar a dali com um cigano, lembrando-se também da sua
própria fuga de Mértola. Queria-a bem casada; talvez algum
lojista de Valada ou do Reguengo, se a sorte não lhe trouxesse
um empregado do Governo, que, na sua opinião, era o melhor casamento para uma rapariga - em velhos tinham reforma e, se eles morressem primeiro, deixavam a viúva a coberto da miséria.
Já lhe falara nos seus projectos. Olinda nem resposta
lhe dera; achava a conversa tonta.
Mas a novidade que a mãe trouxe naquela tarde alarmou-a.
- A Maria vai casar.
- Qual Maria? - perguntara a madrinha.
- A do meu irmão Chico. Vai casar com o rapaz
mais velho do João Bogas.
Para Olinda, de repente, todo o barracão se tornou
na cadeia de que o irmão lhe falara uma vez, há já muitos
anos. Recordava-se agora de tudo. A corrida pelo salgueiral, a
conversa, a borboleta amarela, o grito que a chamara e o
regresso para ali, enquanto ele partia com os pais no saveiro.
Escancarou a porta e a brisa da tarde cortou-lhe o
rosto. Naquele tempo a noite caía depressa. Deu dois passos
para fora, encostou-se ao tronco da parreira e a calma do rio invadiu-a. "Foi esta calma que me enganou", disse
num sussurro.
- Fecha - pediu-lhe a madrinha. - Estás a fazer
má vizinhança.
Agarradas às tigelas do café, a mãe e a Sra. Clotilde
pareciam apertar o calor que lhes faltava. O padrinho
adormecera ao canto da lareira.
Esteve para sair, caminhando nas sombras que já afogavam o
silêncio: deitar até ao porto das barcas e esperar o pai,
que fora ao Vau falar com o Zé. Há quanto t mpo
não lhe falava? Já com três meninas, o irmão aparecia
agora poucas vezes. Da última dissera-lhe:
"- Quando eles morrerem, e se precisares, conta
com uma esteira na minha barraca. Já sei que ficas lá
pouco tempo", - acrescentara com ar travesso. - "Vão-me
aparecer mais cunhados do que cabelos tenho na cabeça.
Estás bonita!"
Ficaria à espera que os padrinhos morressem?.
Cerrou a porta, num impulso, e desapareceu no quarto
com intenção de chorar o súbito desespero que dela se
apossara no meio da calma da noite. Mas acabou por se
atirar sobre a cama, animando-se para vencer as lágrimas:
- Remedeio alguma coisa em chorar?. Então para
que hei-de chorar?.
Pôs-se a roçar a face esquerda na colcha, primeiro
com violência, que foi diminuindo pouco a pouco, até se tornar carícia; repetiu o mesmo movimento na outra face
e começou a despir a saia naquela posição, atirando-a
depois de encontro ao tabique, como se rompesse o cercado em
que a haviam metido; em seguida, rolou o corpo para tirar a
blusa e a roupa interior, que afastou de si com o mesmo asco.
Quando se viu nua, sobreveio-lhe um sossego ténue,
qualquer coisa como a capa aparente de um sentimento
emprestado. Coadas pela distância, chegavam-lhe as vozes
da madrinha e da mãe.
Levantou-se para espreitar a noite, e viu-a negra,
pesada e negra, como a angústia que há momentos sentira
cravada no fundo de si. Uma ponta de frio trespassou o quarto;
pareceu-Lhe ver o seu negrume cortar a escuridão e cair-lhe
sobre o corpo. De súbito, precisou de imaginar qualquer coisa
que destruísse a calma aparente do barraco e os melindres da
madrinha. O quê?? Que seria melhor?!.
Pensou nos jangadeiros. Pensou exactamente naquele
moço de cabelo crespo e negro que viera uma vez numa
jangada de Rio de Moinhos e andara à volta do barracão
até de madrugada, a assobiar, talvez com a esperança
de que ela lhe aparecesse para conversarem a sós. A Sra.
Clotilde seguira também o desvario do moço, proibira-a
de sair de casa durante os dias em que aqueles jangadeiros
tinham ficado por ali e obrigara o marido a falar com o mestre
para que o rapaz não oltasse.
Os jangadeiros vinham muitas vezes no Verão. Chegavam
cansados depois de descerem o Tejo, dias e noites, sobre a
jangada feita com a madeira que traziam para ser embarcada nas
fragatas até Lisboa. Dormiam em tarimbas, enrolados em mantas;
arribavam estremunhados e sujos, de barba crescida, e logo
se entregavam ao trabalho de desfazer a jangada, desenrolando
as cordas dos prumos que apertavam os extremos da grade onde
tinham viajado.
A madrinha mandava dar-lhes uma sopa bem quente;
só com as ceroulas vestidas, de tronco nu, os jangadeiros
ganhavam alento para continuar a faina pela noite fora,
passando os prumos, as tábuas de soalho e as costaneiras para
o bojo da fragata que os esperava. Ouvia-os cantar baixinho.
Cantavam a noite inteira, sem galas
nas vozes roucas e fatigadas.
Algumas vezes acendiam fogueiras, para cozinharem ou se
aquecerem, embora não Lhes faltasse o calor da aguardente. De
manhã, extenuados e bêbados, atiravam-se a dormir para o chão.
Olinda espreitava-os sempre que podia. Via-Lhes as
sombras agitadas nas noites luarentas de Verão e adivinhava os mais jovens, não porque desejasse qualquer deles, mas para distinguir os que Lhe atiravam gracejos quando passava com a comida para o Manuel Lombriga e o Maltorto. (Maltorto não devia favores ao nome que lhe deram, mas andava sempre a espreitá-la; fora ele, por certo, quem contara à madrinha a conversa que tivera, à socapa, com o jangadeiro de cabelo negro e crespo.
Naquela noite gostou de pensar o que aconteceria se
aparecesse, assim nua junto da fogueira onde os jangadeiros
se reuniam. Achou graça à ideia e riu. Adivinhava os gritos da
madrinha e os seus carpidos de mulher enganada nas aspirações
que imaginara para o seu futuro. Parecia ouvir-lhe a
sarrazina. Mestre Feliciano diria ainda que a vida é um
pássaro?.
Esqueceu depois a surtida que fantasiara e voltou
a pensar na novidade que a mãe trouxera. A Maria ia
casar, tinha 16 anos como ela. Nessa idade todas as
raparigas do rio já viviam com homem ou já estavam prometidas.
O Zé contara-Lhe tudo. Logo de meninos nasciam afeições
entre eles. Procuravam-se para brincar, ajudavam-se nas
tarefas que Lhes cabiam durante as safras do sável, quando os
pais se juntam a trabalhar em companhas.
O Inverno é a época do amor entre os avieiros.
Quando toda a gente puxa ao chicote da rede-varina,
os rapazes e as raparigas chegam-se uns aos outros para
se acompanharem. Os pais espreitam-nos, jogam olhares de
aprovação entre eles e acabam em conversa de compromisso, se a
tineta dos filhos se prolonga e não bulham muito um com o
outro.
O seu Zé contara-lhe:
"- A tua Maria anda muito ao pé do meu rapaz do meio.
- E então?. . Tem ali mulher tesa para ajudá-lo.
- E queres cachopo mais vivo e são do que o meu Zé?
- A minha Maria pega já nos remos como eu. Nem
que andasse de candeia acesa, ele botava a vista noutra igual.
- Quer-la para algum rei?. .
- Para um rei de pescadores.
-Então não há outro como o meu Zé"
Começam a tratar-se por comadres e os filhos ficam
logo casados para o resto da vida. Afeição de avieiro
é só uma: vem na meninice e só acaba no caixão.
Lá mais adiante, quando ambos crescem, chega a
cerimónia do primeiro noivado. No silêncio dos saveiros,
Nas noites de amor, todos aprendem com os pais.
Um deles diz:
"- A gente precisa de lenha, ó Maria! Naquele
malagueiro no meio do rio há lenha em barda. Vai lá
buscar uma braçada".
Maria do rio procura nos grupos de rapazes e chama por ele:
"- Ó Zé!. Queres vir ajudar-me?"
Ele salta como um gamo, emproa o tronco e põe-se
a andar à frente dela. A Maria guardará a distância que
sempre ficará entre os dois quando caminharem.
O rapaz mete-se à água, desamarra o barco e trá-lo
para junto da margem; oferece-lhe a mão para a Maria
saltar e senta-se no banco, pega nos remos e corta o Tejo com as pás bem vivas. Nunca na sua vida o Zé remara
com tanta alma e apuro. A Maria aconchega-se à ré, saltitando o olhar entre ele e o Tejo.
Uma expectativa de festa fica no silêncio dos grupos
que estão na margem. Seguem-lhes o rumo em direceão
ao malagueiro, vêem-nos saltar em terra e desaparecer
por entre as moitas floridas. Só o Sol e os pássaros podem
seguir-lhes as pisadas do primeiro noivado. Ambos seguem de
mãos dadas pelas veredas que os pés doutros noivos abriram na
clareira da vegetação.
Os olhos dos pais não se despregam da ilha onde se
sumiram. O tempo leva a passar.
Depois, entre o silêncio, por entre a parede da ansiedade e
do silêncio, há uma voz de homem que o corta, como missa da
glória ao amor:
o meu coração, amor,
é de vidro, vai na mão.
A mãe dele confirma:
"- O meu Zé já canta"
Quando um rapaz canta com moça dentro do barco,
é sinal de que o noivado acabou bem.
"-O meu Zé já é homem"
O meu coração, amor,
é de vidro, vai na mão;
se te quiseres vingar nele,
deixa-lo cair no chão.
Ao correr da maré, o barco regressa conduzido por
ambos. Olham-se, de vez em quando, sorriem, puxam
os remos ao peito no mesmo golpe certo e manso, e voltam-se
para trás, como se quisessem trazer consigo o malagueiro onde
se amaram. Fingindo-se distraída, a Maria toca as mãos do
rapaz para repetir a lembrança das carícias vivas que leva
consigo.
O seu Zé contara-Lhe tudo. E ela?. Que tem ela para Lhe
contar?!.
o APELO
A areia cavava-se num salto brusco; quando vinham
A cabeças-dágua, o rio estendia-se até lá, numa curva
escondida aos olhos de quem navegasse de Valada para
baixo. Mais viçosas do que as outras, a frescura das águas
dava calmante à sede; as moitas que a tapavam do poente
cresciam sem licença de Deus.
O calor esbraseava. O trabalhar de um tractor era
o único som que andava no espaço. Os gados estavam
recolhidos e não tangiam badalos, enquanto os pássaros
passavam, numa vertigem, em busca de sombra.
Olinda foi andando pela água dentro, a chapinhar
as mãos, de cabeça baixa, como a esconder o seio do olhar
do Sol. Quando as ancas ficaram submersas, deitou-se de
bruços e bateu os braços para ganhar equilíbrio. Bebeu
um gole de água e logo se ergueu de supetão; um cansaço
súbito tomou-lhe o peito. Esfiampados, os cabelos tapavam-lhe
os olhos. Afastou-os para trás das orelhas, sacudindo a
cabeça; dentro dela ficouum zumbido, como se um enxame de
abelhas andasse à sua volta.
Na transparência do rio via os recortes da areia e a
vegetação rala. Precisou, lá no fundo, a marca de um
pé bem espalmado. Foi pôr-lhe o seu em cima, fincando
a perna e abanando o corpo, para que ficasse mais nítida
a marca dela; depois deixou-se cair e o impulso da água
salpicou os ramos das moitas.
Longe do barracão parecia livre. Agora, sempre que
podia, vinha para ali banhar-se, escondida dos olhares
da madrinha.
Gostava de se mirar assim, batida pelos reflexos azuis
do espelho das águas. O seu corpo ganhava irrealidades
e fundia-se, por vezes, com o dourado da areia. Numa
contemplação muda, embriagada pela carícia do rio que
lhe refrescava a pele e parecia chegar mais longe, ao
fundo de si, ficou muito queda durante algum tempo.
Como a entregar-se ao sol, abriu os braços, preguiçosa, e
começou a fechá-los, de mansinho, na ilusão inconsciente de
guardá-lo. Depois, de súbito, mergulhou a cabeça; quando a
trouxe à superfície, deu um grito, a que respondeu a gargalhada alegre de um gaio. Olinda seguiu-lhe o voo, volvendo os ombros. Mas logo se voltou num pressentimento; e viu o bico de um saveiro a espreitar pelo braço do rio, seguido pela ponta de um remo que desapareceu depois.
De súbito, todo o corpo ficou tomado de um calor
estranho, como se num momento a água do Tejo dissolvesse a
brasa do sol. Quis fugir sem que a descobrissem; os seus
passos na água traíram-na e recuou. Escondida
numa moita, com os braços em cruz sobre o peito, pôs-se
a seguir o rumo do barco. Mal o viu aparecer, gritou ao
homem:
- Não venhas mais, Tóino!. Passa de largo!
Tóino da Vala conheceu-lhe a voz. Parou os remos,
procurando-a com o olhar; deitou o boné para a nuca e
passou a mão pela trunfa encaracolada.
- Eh!. Onde te meteste?...
Quando a adivinhou por detrás da moita, sentou-se no
banco, a sorrir, e tomou os remos; de manso, foi ciando
até encostar à borda, na entrada do braço do Tejo. Começou a
enrolar um cigarro:
- Estavas no banho!.
Só o tractor falava ao silêncio da calmaria.
- A tarde está boa pra isso - insistiu ainda.
No monte da roupa de Olinda tudo se confundia
agora, sem que ela soubesse distinguir o que precisava.
Passou-a nas mãos, pareceu-lhe que perdera qualquer
coisa de essencial.
- Venho de Muge - disse o rapaz. - Quis armar a vela, e nem
um soprozinho. Ainda por cima, a maré não corre.
Pusera-se a assobiar, em resposta às suas próprias
falas.
A rapariga acalmou-se; sem limpar o corpo, principiou a
vestir-se, embora não deixasse de vigiar o saveiro. Mesmo
assim, recomendou:
- Volta-te pra lá, Tóino.
Ele riu-se: Passou as pernas para o outro lado do
barco e espreguiçou-se. Olinda só lhe via o tronco curvado
sob a camisa de castorina azul e preta; o boné descaído
tapava-lhe a cabeça, como se o Tóino fosse um espantalho
de roupa.
Os botões sobejavam-lhe nas casas do vestido e voltou
a abotoá-los.
- Estás muda? - interrogou o rapaz. - Não deitas uma fala.
Pensas que sou algum lobisomem? - Depois levantou-se e foi
compor a coroa de flores que pusera, na proa, no dia 1" de
Maio. Era um hábito antigo, a que nenhum faltava.
- Falei ao teu Zé - disse, aumentando o tom de
voz. - Tem a cachopinha mais nova doente. Se não se
puser melhor, vem com ela ao médico a Valada.
Olinda acabara de se vestir, mas sentia-se incapaz de
deixar a revessa da moita, como se ainda estivesse despida e
só as flores a cobrissem. Passou o pente pelos cabelos
molhados e compô-los à banda para gastar o tempo.
- Queres alguma coisa? Diz se queres.
Tardou na resposta. Vigiava-o de lá, atraída para o
barco, mas receava aproximar-se.
- Quero! - disse por fim.
- O quê? ! Alguma ajuda?!
- Quero só que te vás embora.
- Então, cá vou! Falo contigo na boda da Maria.
Tóino da Vala pegou nos remos, meteu-os nos toletes e abalou
Tejo abaixo.
Quando o viu longe, Olinda saiu de detrás da moita
e teve vontade de chamá-lo. Depois acenou-lhe por longo
tempo, embora o rapaz remasse de costas para a margem
do barracão.
A MARIA VAI CASAR
Já na véspera houvera jantar de noivos.
A festa só corre bem com seis quartéis de comer,
onde não entra escama de peixe, pois andam bem fartos
dele a vida inteira. Em dias alumiados só conhecem carne
nas panelas.
Festões de verdura e penduricalhos de papéis garridos
enfeitavam a barraca da noiva, o terreiro para o bailarico e a
casa de jantar, armada cá fora, ao ar livre,
com varas e serapilheiras. Comer muito é sinal de agrado;
dentro de casa nem os convidados se acomodam, nem o
apetite abre bem o saco da fome. Viera um tocador de
fora, dos de fama, contratado para os três dias de boda.
Bons dedos havia de ter para o harmónio, pois ali ninguém
parava de bailar e comer em toda a roda do dia e pela noite
dentro. Também, se gostasse da pinga, não levaria queixa no
regresso. Quem vinha ganhar dinheiro precisava de dar a sua
conta. Senão, sucedia-lhe como ao tocador dos Cadafais,
que só fizera um baile em Porto de Muge e nunca mais
achara ganho em festa de avieiro.
Andava tudo numa fona. Tinham vindo mais convidados e o
casamento prometia; até a Olinda da Barca chegara com os pais,
por grande mercê da madrinha, que se fizera esquerda com a
licença.
Na margem do Tejo, três saveiros esperavam viagem.
O da noiva lá estava com uma grinalda de flores na proa.
A Maria já começara a despedir-se dos que não podiam
acompanhá-la à igreja. Ia vestida de seda cor de pérola, toda
enfeitada: a renda no busto, de mantilha
branca a cobrir-lhe os cabelos e a pender-Lhe para as
costas; só os sapatos pretos lhe martirizavam os pés,
desabituados daquelas talas rijas que a obrigavam a perder o
ritmo ligeiro do andar.
- Deus te leve pra bem, Maria!
-Que seja em boa hora!.
E as mulheres limpavam os olhos à ponta do avental, enquanto
os homens largavam o seu dito para amenizar a choradeira:
"Parece que a moça vai a enterrar, louvado seja Deus!"
O Zé Bogas sorria a todos, abraçando os seus. De chapéu novo
no alto da cabeça, fato um nadinha apertado, parecia talhado
em verde, gravata cinzenta de nó bem
feito; se não fora a Olinda da Barca, bem o levaria
esparranhado, pois na aldeia não havia quem se entendesse com
aquele trapo tão fugidio.
O homem do harmónio apurou-se a tocar uma moda
saltitante. Os padrinhos da noiva foram tirar a Maria dos
braços da mãe, toda num soluço pegado mal se lembrava
de que a filha voltaria da igreja com o compromisso do
peso de casa e já talhada para aturar vida igual à sua.
Com adeuses e ditos, os barcos partiam.
Garridas, as cachopas deitavam olhares mansos, de
fugida, para os seus prometidos; agarrados aos remos,
pois ali não iam fidalgos de costas direitas, os rapazes
fumegavam cigarros feitos. Festa é festa, dias não são
dias; morra o homem, fique a fama.
- Vá, rema!. - incitavam-nos as moças.
De terra acenavam lenços e aventais numa última despedida. A
garotada ficava a desejar o regresso dos saveiros, por mor dos
punhados de amêndoas e confeitos que viriam contemplá-los na
festa. Nada mais presavam que boas unhas para lhes deitar o
gadanho e de corpo rijo para se aguentarem nas lutas de
empurrão.
Na fornalha acesa, ao ar livre, dois panelões cozinhavam o
almoço; largavam um cheiro catita, de entontecer e desafiar o
estômago. A Margarida Perneta, mestra de pitéus, não deixava
a pimenta morrer-lhe na mão do tempero. Pimenta puxa copo,
copo puxa outro copo, outro copo puxa alegria, e bem bebido
qualquer um baila a noite inteira, o que se precisa é de
espaço para balouçar e girar de pião.
Havia ainda cordas de buxo para pendurar no terreiro
do baile; os mais decididos voltaram costas ao rio para
acabar a ornamentação, pois quando os noivos chegassem
não havia tempo para cuidar de tudo. Algumas mulheres,
instigadas, deitaram à casa da noiva para saber se era
preciso ajuda, tanto mais que no fim do trabalho era de
uso oferecerem bolos e licor; um licor docinho com ramo
de açúcar lá dentro, e que se lambia nos beiços.
O cortejo de barcos chegara à outra margem e agora
o acompanhamento seria a pé até à igreja.
à frente, com um sorriso a tocar-lhe o rosto triste ia a
noiva entre os padrinhos, logo os pais e os convidados dela;
só depois viriam os do noivo, posto à rabeira do
cortejo, como se receassem dele algum assalto à moça. Também
durante três dias não dormiriam juntos, assim mandavam as
regras do casamento. Desde manhã que o lugar de honra cabia ao
padrinho. Fora ela quem o acordara
com um beijo e lhe servira o café na cama, sentando-se
a seu lado para o acompanhar na refeição. Com ele ia e
voltava no cortejo, não o deixaria em todos os momentos,
tanto nas horas de comer como no baile, pois outro não seria o
seu par durante toda a festa. Investido na
vaidade do cargo, o padrinho oferecia-lhe o braço para
a Maria descansar do tropeço dos sapatos. De vez em
quando tinham de parar, porque as amigas que não iam
à boda sentavam-se em fila no carril que o séquito percorria, para se despedirem da sua mocidade, beijarem-na e
desejarem-lhe felicidades.
-Deus te leve pra bem, Maria!
- Que seja em boa hora!
Com o seu toque de vinho, alguns homens brincavam
com a conversa, metendo-se com o Zé Bogas. Pouco dado
a graças, o noivo retorquia com duas pedras na mão, o
que desafiava os outros para lhe meterem mais a choupa,
salvo seja, comentava o Dionísio, convidado certo de todos os
casamentos de avieiros da Borda-dÁgua. Zé Bogas desconfiava:
- Não me grudo com graças dessas.
- Até vocês darem o sim no altar, posso chamar-te
boi quantas vezes me der na cabeça. Mas tu, assim arisco,
pareces mais toiro do que outra coisa.
A gaguejar, o noivo resmoía desforras ao Dionísio.
Foi preciso que o pai o ameaçasse com dois murros para
o rapaz se mostrar menos respingão. Mesmo assim, à rabeira do
cortejo, os ânimos começavam a escaldar. Entre o irmão e o
Tóino da Vala, Olinda Carramilo pensava no degredo do barracão; a vigilância da madrinha tornara-se mais apertada e insuportável. Parecia recear agora que a brisa do Tejo a levasse, evitando que estivesse muito tempo ao pé da barca de passagem. Valia-lhe Mestre Feliciano, que, a pretexto de dar um passeio e de já não ter olhos para andar sòzinho, a convidava para ir até Valada, pelo areal. Para vir ao casamento da Maria só a intervenção do padrinho conseguira demover a Sra. Clotilde, depois de discutirem muitos dias e de Feliciano da Barca desvairar num dos raros momentos de violência que lhe conhecera.
A seu lado, Tóino da Vala lembrava-se do seu primeiro
encontro à borda do Tejo. E pensava na noiva que lhe haviam
destinado em pequeno, morta de sezões no
hospital de Benavente, ia para quatro meses. Gostaria
de falar à Olinda, sentia-se capaz de lhe dizer o que
queria; mas quando a olhava percebia que entre ambos havia a
distância do trato e até do falar.
No baile da tarde foi tirá-la duas vezes a seguir. Ela
nunca aprendera a dançar e o Tóino propunha-se ensiná-la;
não custava nada: dois passos curtos para a direita, dois
passos curtos para a esquerda, de vez em quando umas voltas de
rodopio, ouvido para a música do harmónio, e era deixar-se
levar, pois o homem é que manda.
Avieiro só acasala com moça do rio; as safras não dão
para meter camarada e guardar mulher em casa, pensava
o Tóino. Mas no aconchego dos seus braços, Olinda Carramilo
sentia-se mulher e recordava novamente a conversa do padrinho:
"A vida é um pássaro. Se um dia vires o pássaro, vai atrás
dele até o agarrares."
Maria do rio: QUE A TERRA SE QUEIME ONDE PUSERES O RASTO DOS TEUS PÉS
QUANDO deram pela sua falta e viram que a cama nem
sequer fora mexida naquela noite, a Sra. Clotilde
apareceu à porta do barracão em alta gritaria; de braços
a acenar para os barqueiros que já tinham feito o primeiro
curso da manhã e esperavam viageiros na outra margem para o
regresso, chamava-os pelo nome e praguejava, carpia depois e
logo voltava à mesma grita desesperada, intermeando os vários
pressentimentos com súplicas a Deus e à Virgem Santíssima.
Mestre Feliciano acordara também aos primeiros brados da
mulher. Saltara da cama, atarantado, pusera o chapéu na
cabeça, num gesto inconsciente, e apareceu-lhe
em ceroulas e camisola a indagar do que se passara, tão
longe da notícia que ela lhe deu como de virem buscá-lo
para administrador do concelho, disse depois, mais tarde
quando, fartos de correrem o salgueiral e Valada, a
perguntarem a quem calhava se a tinham visto e de mandarem
procurá-la pelas valas do rio, chegaram à conclusão de que
galgara no Tejo.
Esparvoado com a dor que ele próprio sentia, o Maltorto
ofereceu-se para ir ao Vau, a casa do Zé, se Mestre Feliciano
ajudasse o Lombriga no tráfego da barca. Com
a vazante punha-se lá em menos de duas horas garantia
sem bravata. ,
Morta não, não acreditava que a Olinda
tivesse morrido afogada. Uma rapariga bonita como a sua menina não podia aparecer inchada e sem olhos, feia
e opada, pensava na sua, ao recordar um homem que vira
morto, a boiar na vala da Casa Branca. Falava nisso para
Manel Lombriga:
- Parece mentira como a água, que tudo lava, seja
capaz de pôr as pessoas que nem bichos. Não conheço bicho mais
feio do que uma pessoa morta dentro de água. Nem um sapo. A
nossa menina não pode ficar como um sapo. Não, isso não. Se isso for verdade, não acredito mais no mundo, nem em Deus.
Manel Lombriga ruminava, enquanto o Maltorto tentava
esvaecer a sua dor:
- Ela nunca fez mal a ninguém. A patroa acha que
antes a quer ver morta do que sabê-la fugida. Mas eu
gosto das pessoas vivas. Mesmo más, mesmo desgraçadas. A
morte acaba tudo e a vida anda sempre às voltas, mal
acomparado, assim como as cobras. Nunca se sabe o que as
voltas da vida podem trazer à gente.
Manel Lombriga não dava um pio, só a fumar, a fumar.
Adivinhava coisa má para todos; vira-a muito metida consigo
nos últimos dias, triste, parecia que os olhos se lhe enchiam
de pranto mal falava às pessoas, e ele sabia que gente calada faz sempre partida grossa. Sabia-o por si quando abalara da família, só porque o pai lhe chamara malandro, num dia em que o encontrara num baile de gaibéuas, abandonando dois poldros à sua guarda.
- A vida é uma corda muito embaraçada - foi o
que disse, talvez para calar o companheiro. - Há nós
que nunca se desatam; a vida faz nós que nunca se desatam. .
Decidiu-se Mestre Feliciano a mandar o Maltorto até
ao Vau. Que procurasse a gente dela e lhes desse a notícia,
se a não sabiam antes. Isso é que nunca lhes perdoaria, por
muitos anos que andasse por cá. Franqueza não custa
dinheiro; a boca fez-se para falar e para as pessoas se
entenderem umas com as outras.
Rezingava pela mulher. Já não podia ouvi-la no barracão.
Começara por lhe deitar culpas, tantos amens ele dera à
rapariga, e logo se acusava por tê-la puxado para
casa; nisso tivera ele razão, quando lhe lembrara que as
crianças são como as melancias. Depois voltava-se para
os Carramilos e lembrava que o sangue deles puxava para
a vadiagem, bem piores do que os ciganos, pois destes
ainda conhecera alguns capazes de ficarem agarrados
ao mesmo sítio.
Tudo lhe acontecera naquele maldito barracão, onde
uma pessoa asseada nem podia caiar as paredes como na
sua terra branca, a sua rica terra, branca de jaspe, onde
nem aos pobres mais pobretes faltava a cal. Vivia-se aqui
por licença paga ao ano. Nunca aqui pudera pôr um só
pé em terra sua. Aquela terra não se vendia por nenhum
preço do mundo. Pertencia ao Governo, ou lá a quem era.
Bem mal andara Deus em não lhe quebrar uma perna
quando a viu sair de casa para abalar com o Feliciano.
Andava babada e tonta com os beijos dele. Que ganhara
com isso?.
Seguira-o como cadela aluada, sem medo nem vergonha, e agora
nem olhos já tinha para chorar. Os contos da sua vida não
variavam muito: penas de cativa, sacrifícios por bem-querer ao
seu homem, raios o partissem!, sem sequer adivinhar que o amor
floreia mas é melindroso. Quanto mais floreia, mais lhe dói a
raiz. Depois fica num fio de baba de aranha que se tece e retece na aparência, só para que os outros não falem. Sim, depois todos dizem que fica a amizade, uma coisa bonita. Uma
coisa bonita para meter numa jarra. No fim de contas
chama-se amizade àquilo que as pessoas agarram em
sofrimento bem calado e dorido para não se ajoelharem
aos pés das tonteiras e dos enganos.
Quanto isso custa que o diga quem sabe. O preço que
se paga com medo de se começar outra vez nem podem
avaliá-lo os que o sofrem, pensava a Sra. Clotilde só
consigo.
Ninguém deita a mão às mulheres que se enganam;
a mão dos homens só as sabe levar para um sítio. Quantas
tentações tivera em abalar mais de uma vez! Com quem? ! às
vezes com qualquer. Qualquer homem servia em certas marés. A
Lua tem a ver com as marés e com as mulheres. É uma raiva tão
grande de ficar honrada!.
O homem é bicho malandro, pois é. Mas o que seria
a vida sem esse bicho traidor?.
Uma noite, já tinham passado mais de vinte anos, pensara no
Manel Lombriga. O Feliciano arranjara outra qualquer lá para
Muge - uma rapariga dos Foros. E ela dissera: vais pagá-las. Vais pagá-las e bem. A dor há-de ser igual para os dois. Estava ela sentada a rememorar essa noite distante, quando a notícia lhe caiu de chapuz em cima da cabeça:
- O Carcanholas viu-a aí às cinco da manhã - gritou o
Maltorto da porta.
- às cinco da manhã?.
- Acho que sim, foi o que ele me disse.
- Onde?!.
- Num barco.
- Num barco?...
- Pois, pois, num barco. Num barco que ele não
conheceu. Ela é que falou para o Carcanholas.
- Falou o quê?. .
- Acho que disse bom dia. O Carcanholas não
conheceu o pescador que ia a remar.
A Sra. Clotilde deitou a cabeça e os braços sobre a
mesa, sem mais palavra. Mestre Feliciano ouvira ainda
o resto da conversa, parecia tonto, quase corria de uma
ponta à outra do barracão, como se a doença das pernas
se tivesse esvaído com a dor da ofensa. Mordia na voz,
adejava as mãos e parecia não ver a mulher nem o Maltorto.
- Morre tudo. e eu pareço vivo. Se queria abalar,
dissesse-me, uma palavra dá-se a um cão, com trezentos
diabos, não sou menos que um cão. E eu dizia-Lhe pois
vai, vai lá à tua vida, rapariga, já basta que eu me tivesse
enterrado aqui, não quero o mesmo mal pra ninguém.
Leva o que é teu, segue o teu rumo e aparece sempre que
passes por aqui, ninguém te fecha a porta.
Nesse momento a mulher levantou a cabeça e desafiou-o:
- Esta porta nunca mais ela cruza. Aqui não entram
marafonas. Enquanto eu estiver viva, nunca mais ela
cruza aquela porta: mato-a.
Ergueu-se num impulso, movendo-se aos tropeções, e
encafuou-se na divisória de madeira onde a rapariga
dormira. Mestre Feliciano fez sinal ao Maltorto para
regressar à barca; recomendou-llhe:
- Não quero conversas com ninguém a respeito disto.
Nem uma palavra. Se os pais dela vierem, manda-os
embora. A gente não sabe nada nem viu nada. Ela está
viva; procurem-na.
Falava com arreganho, mas pensava que Linda fizera
bem; só não aceitava que tivesse abalado sem falar
com ele.
A Sra. Clotilde apareceu com uma trouxa de roupa
. nos braços e abriu-a mesmo defronte da porta; depois
desapareceu no barracão mais duas vezes e repetiu os
gestos de ira e de nojo com que espalhara a primeira leva.
Trazia a rouparia a esmo, arrepanhada nas mãos, e atirava peça
por peça para o monte; lembrava-se da pequena história de cada
uma que lhe passara também pelas mãos, cortando-as e
costurando-as nas vagas que a cozinha lhe deixara. Estavam ali dezasseis anos da sua vida. Não dava pelo marido, alheada de tudo o mais. Só quando ele lhe perguntou o que estava a fazer volveu a cabeça para a sombra que o seu corpo projectava no chão. Em resposta foi reduzindo o monte com os pés.
Mestre Feliciano via-lhe os olhos azuis quase vermelhos,
embora não deitassem uma lágrima.
Quando ela apareceu com a vasilha do petróleo e começou a regar a roupa, ainda Lhe disse:
- Há por aí muita gente que precisa.
Ela prosseguiu na tarefa, preparando um archote a
que depois deitou o fogo. Via-a envelhecer mais em cada
gesto, tornara-se de cera, mas devia sorrir; ele
adivinhava-lhe o sorriso que lhe movia a boca sempre que
tirava desforços.
- Podias dar essa roupa.
Só então ela levantou os olhos para o marido:
- Fui eu que a fiz ponto por ponto. Esta roupa
está cheia de peçonha, não serve pra gente honrada.
Principiara a pegar o fogo em vários lados do monte.
As labaredas subiam.
- Roupa de marafada não serve pra mais ninguém. Pensa que
ela está ali dentro e que a peçonha dela vai acabar em lume.
O mundo há-de acabar em lume como já uma vez acabou com água.
Quando percebeu que a fogueira ateara bem e já não
precisava dos seus cuidados, atirou-se de joelhos para
o chão, juntou as mãos numa prece e ergueu o olhar para
o céu. Depois baixou a cabeça, de olhos cerrados, e começou
a rezar em voz alta. Mestre Feliciano tirou o chapéu e
caminhou para junto da mulher.
Fustigado pelo vento, o fogo lançava-lhes baforadas
quentes: A gemerem nos toletes, os remos da barca tocavam as
cordas do silêncio. à medida que o fogaréu aumentava, a voz
da Sra. Clotilde crescia também:
- Que nem os cardos te dêem pão, nem as árvores
queimadas te dêem sombra, maldita! Cem vezes maldita,
aqui e no Inferno, que a terra se queime onde puseres
o rasto dos teus pés. Que a vida seja um inferno para ti
e para os teus: que a barriga te dê tantos filhos como de
lágrimas chorei neste dia e que cada um...
Como se um medo brusco lhe varasse o sangue,
a Sra. Clotilde calou-se de repente. O corpo e as mãos
tremiam-lhe.
VOOu um pássaro NA noitE
Antes tremeram as mãos e o corpo de Linda quando
o Tóino da Vala lhe apareceu ao encontro que haviam aprazado
no casamento da Maria. Ele dissera quase ao sol-pôr e ela
chegara antes, como se o tempo lhe fugisse na carreira da
vazante.
Fizera as compras à pressa, vindo do Reguengo pelos
atalhos que levam ao areal de Valada, e fora acoitar-se
na mesma moita em que se escondera no dia do banho.
Se hoje lhe perguntassem por que razão aceitara comparecer.
talvez a resposta não viesse de pronto.
ainda não decorrera uma semana. Mas nesse momento em que
espiava o rio, atenta a cada ruído, Olhuda, da Barca sabia o
que a trouxera até ali. Quando, na noite do terceiro dia da
boda, o padrinho da Maria a foi levar à barraca onde o marido
a esperava à porta, e subiu os quatro degraus até aos braços
do homem, olhando ambos para os convidados e desaparecendo
depois na escuridão, Olinda apertou o braço do Tóino da Vala,
aconchegado ao seu corpo.
Já ouviram o grito de um gaio? Foi o que Olinda sentiu
dentro do corpo. Um grito que lhe entrasse de cima pela cabeça
e se abrisse dentro do peito como um repuxo de pirilampos na
noite; e depois todos juntos numa rosa de luz que andava à
volta.
De pé, à popa do saveiro, ele recortava-se de negro
na contraluz do poente, a manejar a vara que fincava no
fundo. Trazia presa aos ombros uma capa azulada e roxa,
uma capa de água ferida pelo morrer do Sol, assim do
tamanho de todo o rio que ela via, escondida. Disse-lhe
o nome em voz baixa; ela mirrou-se ainda mais. Quando
o adivinhou tonto, à sua procura, surgiu-lhe num pulo,
a rir, caminhou descalça ao seu encontro e pôs-se a empurrar o
bico da proa com o ombro e as mãos. Foi quando ele lhas
agarrou que o corpo e as mãos dela tremeram.
- Tens mãos de princesa - disse o Tóino ao virá-las de
palmas para cima.
- Sou filha do João Carramilo.
- As da tua mãe são como as minhas. Assim, de.
pedra. Feias e rijas como pedra.
- Não nasceste com as tuas assim; as tuas já foram
como as minhas.
- Mas a gente começa de meninos a mexer nos remos
e nas cordas. .
Pensou dizer-lhe que a ensinasse, mas caiu-lhe um
peso de vergonha no peito. Sentou-se na borda do saveiro,
a pensar no que o irmão lhe contara um dia. E perguntou:
- Já sabes cantar, Tóino? Se sabes cantar, canta.
- Podem ouvir no barracão.
- Então, vamos para longe. Encosta à margem; lá
acima atravessas para o outro lado.
- Queres ir à lenha comigo? - perguntou o Tóino,
resoluto.
Ela passou as pernas para dentro do barco, foi sentar-se no
banco de remar e ficou à espera. As sombras das árvores já não
manchavam o manto que cobria o Tejo.
De remos ao ombro, ele aproximou-se. Meteu-os nos
toletes e pediu-lhe que se deitasse à ré. Os moços da barca
podiam vê-la; quando passassem para a outra margem,
ele sabia onde, deixava-a remar sòzinha.
Com os pés nus fincados na estribeira, o rapaz puxou
os punhos dos remos para o peito e o saveiro galgou, rápido,
como nunca soubera navegar desde que o calafate o dera pronto
para o rio. Tóino da Vala deitava o olhar
sobre o corpo da companheira estendida no paneiro da
popa. Já cantara uma vez para outra rapariga e sabia
onde havia um sítio para a levar.
Um pássaro vooú na noite. Passou-lhe por cima da
cabeça, foi esconder-se num salgueiro, isolado, e trinou
de lá uns gorjeios sem sol.
- Canta, Tóino! - pediu a rapariga. - Canta a do
coração...
- Um homem só canta quando tem mulher.
- Podes cantar...
Tóino da Vala largou os remos ao acaso e foi deitar-se ao pé
dela.
FIZESTe umA cOISA BONITA
A família deu-a como morta.
Os pais botaram luto carregado depois de procurarem os
padrinhos e de a Sra. Clotilde lhes gritar de longe que nunca
mais os queria ver. Não conhecia vadios
nem ciganos. Acabara-se. Nunca mais consentia um Carramilo à
sua porta por coisa nenhuma deste mundo. Dali nem uma sede de
água lhes seria satisfeita. Que fossem atentar o Diabo!
Antes a cara cuspinhada de desprezo do que se verem
desfeiteados por culpa daquela filha em quem haviam
posto tanta coisa sonhada. às vezes diziam um para o outro: os
netos que tivermos da banda da Olinda hão-de gozar numa semana
o que nunca pudemos juntar na vida inteira. Só pedimos a Deus que não voltem a cara à gente do seu sangue.
Consumira-se tudo numa vergonha tão vergonhosa,
que nem a água do Tejo seria capaz de lhes tirar da cara
a lama daquela desfeita. Não se falava noutra coisa entre
a gente do rio desde Santarém a Vila Franca E se a maioria
dava galarins à filha por ela ter regressado à sua gente,
também não faltavam debicadores da desonra para
porem de rastos o nome estreminho dos Carramilos.
Que nunca parassem o barco ao pé do deles para não
haver morte de homem, mandara dizer o pai pelo irmão
do Tóino da Vala. Não queria desculpas nem bom-dia.
Agora fizera-se tarde para tratarem do caso. Procurasse-o
antes. viesse dizer-lhe as intenções, e as coisas falam-se
entre gente de vergonha, sempre há maneira de as pessoas se
entenderem. Assim nada feito. Esse malandreco precisav a de se
lembrar de que o João Carramilo também não era peco como
caçador e que punha os tiros onde punha os olhos. E olhos
dera-lhos Deus mais vivos do que os dos ratos. A espingardinha passava a andar sempre carregada e pronta, quem avisa amigo é, e tomasse conta de andar sempre bem ao largo, para que um homem de bem não tivesse de rebentar os miolos a um milhafre roubador da filha e da honra dos outros.
Tóino da Vala pensou que cão ladrador não morde,
mas sempre lhe mandou resposta ao jeito:
- A gente marca fronteira. Nem ele passa pra baixo
da Azambuja, nem eu pra cima. Se eu faltar ao prometido,
atire-me que nem um raposo; faça da minha pele uma gola pra
samarra, que ninguém lhe pede contas.
A rapariga veio porque quis.
No dia seguinte, atracado ao esteiro do Ruivo, Tóino
da Vala viu avançar para eles um saveiro de vela armada.
O coração ficou-lhe num bombo. O homem que manobrava ao
leme, cheirara-o à distância, era o cunhado, o Zé Carramilo.
Vamos tê-las e das tesas, pensou sem bazófia. Abriu a navalha
em dois tempos, pô-la debaixo de um dos pés e continuou a
remendar a vela. Quando pudesse, havia de lhe dar tinta. A
companheira afastara-se para lá do valado; começava a
demorar-se e levantou a cabeça para tentar descobri-la. Num
relancear de olhos, viu que o cunhado vinha sòzinho.
Conhecia-o bem. Devia ter metido uns copos nas
tripas para ganhar farroncas de valente e agora precisava
de jogá-las à má cara. Morra homem, fique fama. Vamos
a isto!
Tudo se passou num instante, porque o saveiro do Zé,
bem tocado por uma ponta de nordeste rijo, nem parecia
roçar a babugem da ondulação. Tóino da Vala premeditava galgar
para terra, mal o outro lhe pisasse a borda do barco, e daí
havia de mantê-lo em respeito, impedindo
que o cunhado saltasse atrás dele. Mas só conseguiu agarrar a
navalha quando os barcos chocaram e a força do embate o
derrubou para o banco da ré.
Atarantado com a queda, levantou-se de supetão, como
se pressentisse algum salto do Carramilo para o dominar,
e gritou-lhe de navalha em riste:
- Se queres festa, encontras homem pela frente.
Assustara-se com o tombo; esgazeado, nem notava que
a expressão do cunhado lhe trazia paz.
- Vens cego?.
Noutra altura, Zé Carramilo dar-lhe-ia resposta no
mesmo tom, ainda que viesse por bem. Valentaço mas
também gabarola, não lhe cabia no feitio pedir tréguas,
enquanto o outro não se chegasse às boas. Para a banda
do torto ninguém lhe punha a mão no remo, como ele
próprio dizia no seu vozeirão presumido. Mas naquele
dia alvoroçava-se com o gosto de saber a irmã mais perto
de si, queria fazer festa com os dois e nada mais lhe
importava. Gracejou ainda:
- Venho desafrontar a honra da família. Trago um
garrafão de vinho pra lavar a mancha.
Depois reparou melhor na navalha que o Tóino seguráva.
- Ias escalar algum cação enjoado?
- Pensei que vinhas por contas. O teu pai mandou-me
dizer ontem.
- Ora! Arranja-lhe um neto e tudo passa. Por aí
respondo eu.
Saltou depois para o saveiro do Tóino da Vala e apertou o
cunhado nos braços, a sacudi-lo com alvoroço e a encará-lo bem
nos olhos; arrancou-lhe o boné da cabeça e
esfregou-lhe os cabelos crespos, primeiro com ganas de
os alisar, depois num afago que trouxe até ao pescoço
do outro, onde descarregou duas palmadas de apreço.
- Fizeste uma coisa bonita. A Linda? Onde está ela?!.
- Anda por aí à cata de lenha.
Pôs na boca as mãos em concha e chamou a irmã num
prolongamento de voz. Como não ouvisse resposta, galgou para
terra. Subiu ao capelo do valado, bradou por ela mais vezes e
meteu ao canavial.
A Lezíria parecia abandonada.
Ceifados os trigos, já mondados os arrozais, assemelhava-se
a terra enjeitada pelo homem. A vegetação das abertas marcava
as veias de água que percorriam a planície quase morta de
sede. A soalheira castigava as restevas amarelas, onde
pastavam gados manadios, em contraste com as manchas largas
das searas de arroz, verdes, verdoengas, verde-mar,
verde-cré, verde-negro, verde-gaio. Sobre os valados, em
fila, oliveiras maneirinhas prateavam sobre o fundo azul do céu.
Zé Carramilo olhava e bradava. A sua voz explodía
no silêncio e saltava de eco para eco até longe talvez
para lá ainda daqueles choupos quase desfolhados que
pendiam os ramos sobre a vala real de Mar de Cães.
Começou a estranhar a ausência da irmã. Que se teria
passado? Lembrou-se da navalha aberta na mão do Tóino
e suspeitou do outro. Que houvera entre eles para tanto
receio da parte do cunhado?
Num sobressalto, regressou a correr pelo valado.
Quando passou na curva que o rio adoça para o lado do
esteiro, sentiu-se agarrado pelo braço e foi a sua vez de
estremecer com medo. Voltou a recordar a navalha; escapou-se
num puxão brusco para levar a mão à algibeira das calças, já
pronto a fazer frente a quem viesse.
Arregalou os olhos e abriu os braços:
- Minha menina. a minha menina.
- Tiveste cagufa, Zé! - E Olinda ria com o corpo
todo.
Abraçou-a para lhe meter as costelas dentro, lambuzou-lhe a
cara com beijos, sôfrego, tonto, pegou-a pelas pernas e pô-la
ao colo, a tomar-lhe o peso e a rir com ela, felizes os dois
por se encontrarem iguais.
- Fizeste uma coisa bonita. Deixares tudo e arranjares um
homem do nosso pano.
Ela silenciava de emoção e prendia-se-lhe ao pescoço.
- Vai-te custar. Vais-te arrepender muitas vezes.
Só agora, ao falar, compreendia que desejara para
a irmã as penas duras dos ciganos do Tejo. Teria ela
madeira para aguentar os vendavais daquela vida?
- Mas tu és do nosso sangue, Linda.
Espreitou-Lhe o rosto ainda amimado, sorriu-lhe dentro dos
olhos verde-montanha e apertou-a mais contra o peito.
Sentado no barco, Tóino da Vala parecia amodorrado
pela fadiga. Pensava por sua banda na mulher que pusera
aos remos da vida. Andavam juntos há menos duma semana e
receava o dia de amanhã. Quando ouviu vozes, relanceou o
olhar e viu Zé Carramilo com a mulher nos braços. Achou feio
que ela lhe aparecesse nos braços doutro homem.
Vagabundos do Tejo
- Zé é meu irmão.
- Mas eu acho feio mesmo assim. Já não
tens idade para andares ao colo dele.
- Não gostas do Zé?
- Gosto; sou amigo dele. Mas é um homem. Em
Salvaterra há dois irmãos que se deitam juntos.
- Não pode ser.
- Sou eu que te digo; acabou-se a conversa.
Sentado no fundo do barco, Tóino da Vala porfiava
as redes. Oito botirões e dez nassas faziam-lhe a fortuna,
mais o saveiro e as licenças pagas. O céu para telhado
e coberta no tempo bom, um toldo de oleado para os dias
de inverneira; e todas as margens do Tejo para encostar
o barco e o rio inteiro para lançar as artes. (O peixe,
onde se metera o peixe? )
De agulha viva nos dedos, ele porfiava as redes para
aproveitar o lance da noite. Andara quinze dias para puxar a
conversa do cunhado; agora, que já falaram sentia-se
repeso do que dissera. O Zé Carramilo era um bom camarada,
viera oferecer-Lhes a casa se quisessem ir viver para o Vau,
embora tivesse à sua volta três meninas. Ele agradecera-lhe,
mas não senhor, não eram só eles que vadiavam pelo rio, um
dia, quando pudessem, teriam casa de madeira, e então talvez
fossem para o Vau.
A companheira acabara de arrumar as latas e os sacos
no fundo da caixa, pusera-lhes por cima o tacho e os dois
pratos; depois arrastara-se para o banco da ré, a mergulhar as
mãos na frescura da água. Olhava-as, nunca mais os calos
endureciam, doíam-lhe, um criara-lhe na
mão esquerda e trazia-o enrolado num trapo.
- Vim estragar-te a vida.
- Lá vens tu.
- Conheço as pessoas quando não andam contentes.
- Mas eu aprendo como as outras.
- Já sabes tudo.
- A tua cara está sempre a dizer que não sei. Canso-me depressa, Tóino.
- Todas se cansam, mulher! O trabalho é muito, o
comer é pouco.
- Quando vier o sável, já eu te ajudo mais.
- O sável abalou do Tejo; parece seca de peixe esta
água maldita.
- O peixe foge de mim.
- És douda; foge de todos. Morre nos arrastões lá
fora da barra.
Na sombra do caniçal, o sol não penetrava. Pousadas
na areia, três garças corriam as penas com o bico. Aos
bordos, surgiu uma fragata carregada de palha. Tóino
passou outra malha do botirão para o polegar do pé, pegou na navalha e cortou a linha.
- Parece que te sou pesada - disse a rapariga com
amargùra.
- Pesas-me aqui dentro; não te faltava de comer
nem cama.
- Ainda não me queixei.
- Mas eu gostava que te queixasses - gritou-lhe
com asco. - Assim, sem dizeres nada, é pior. Calada é
pior. Bem percebo nos teus olhos.
- Deves perceber mal, Tóino.
- Estás a chamar-me parvo?
- Não, não, Tóino. Mas os meus olhos não dizem o
que tu pensas. Fui eu que quis vir, bem sabes. Eu sabia
o que vinha encontrar.
- Estás arrependida?
- Não.
Ela furtou-lhe o olhar.
- Olha bem pra mim e responde, não tenhas medo.
Aproximou-se dele para lhe passar o braço pelo ombro e
fitá-lo bem na menina dos olhos azuis.
- Não, não estou arrependida. Julguei que seria
pior. Sem ti seria pior.
Apertou-a nos braços com desespero, como se quisesse
metê-la dentro de si; depois começou a afagá-la e a
beijá-la com sofreguidão, puxando-a para o lado da proa,
de mansinho, e ela fugia-Lhe, tentava escapar-se, a dizer
que de dia não, não podia ser, quem viesse do valado dava
com eles, era uma vergonha. Prometeu-lhe, para o
aquietar:
- à noite, depois de deitàrmos as redes.
Ele sorria-Lhe, mas a expressão do olhar tornara-se
dura. Deixou de acariciá-la, amuado; pegou no botirão
que estava a porfiar, procurou as malhas rasgadas, ainda
lhe meteu a agulha para o primeiro laço, mas acabou
por rompê-la ainda mais num acesso de ira.
Insurgiu-se, blasfemou: a vida da gente é pior que
a dos bichos; esses, ao menos, têm liberdade pra uma
coisa.
Depois reagiu:
- Vamos ali ao valado.
- Não, Tóino! - pediu-lhe com medo. - Não
mobrigues assim.
Uma das garças levantou voo do cabeço de areia. Um
voo ruidoso e pesado logo seguido pelo garção, que fez
um círculo à sua volta e meteu pela Lezíria a indicar-lhe
o caminho.
- Levamos o barco para o meio do rio - lembrou
Olinda. - Daí não vêem a gente de terra.
Ele parecia indiferente; os dedos tremiam-lhe a enrolar um
cigarro.
- Eu fico alerta para os barcos que vierem - insistiu a rapariga sem alegria.
Quando regressaram à revessa do caniçado, Olinda
manejava os remos. O companheiro sentara-se a seus pés e fitava-a com ternura, assobiando. Levantara-se uma
ponta de vento agreste.
Ela vinha ausente; o amor não chegara a avivar-se
no seu corpo fatigado.
- Falta-me arranjar dois botirões. Prà pesca que vamos ter,
não vale a pena.
- Nunca se sabe a rede que agarra peixe,- Tóino respondeu, saltando em terra para amarrar a corda. O barco adernou e manteve-se a balouçar por momentos.
Trôpega dos pés retalhados pelos bicos dos cardos
e da erva unha-gata, a rapariga galgou para o valado e
desapareceu. Tóino da Vala mirou o Sol, ainda alto, deitando
contas às horas, e estendeu-se no fundo do saveiro para
dormitar. Pensava no que a mãe dissera quando lhe
contou que ia comprar um barco velho ao Chico da Guia
e tencionava fazer vida com a Carramilo. Palavras santas:
olha, rico filho!, a boniteza das mulheres do nosso pano não
se guarda na cara; precisas duma mulher moira
para o trabalho, que durma de noite só com um olho, que
ande na lida com seis braços e que coma sacrifícios em
vez de pão; com essa tens tu de trazê-la ao colo, é um
mimo de princesa.
Olinda correu os olhos à sua volta. As manchas dos
arrozais pendiam já para o verde-cré, tudo o mais não
passava de erva rasteira para o gado e restolhos secos.
A tasquinhar, uma manada de éguas apoldradas pastava
sem guardador. Desceu à Lezíria, perto duma aberta, e
descobriu as flores amarelas da mostarda já espigada.
Sem viço, prontas a amarelecer, as folhas pendiam enrugadas.
Apalpou umas tantas, achou-as velhas e pôs-se a mastigar a
ponta de uma folha que lhe pareceu com mais
viço. Sentiu na boca um travo amargo que se lhe espalhou
por todo o corpo.
O vento fazia ondular a seara de arroz.
Tinha de apanhar mostarda para a sopa da noite.
No caixote não encontrara mais do que meio punhado de
massa para cozer. O pão acabara-se ao almoço e o galricho que
pusera no rio dera uma enguia pequena.
Aproximou-se da manada, caminhando pela borda da
aberta. Pegou no avental com a mão esquerda para nele
receber as folhas que colhesse, mas a mostarda espigara
e a folhagem pusera-se rugosa, quase seca. Para se animar,
pegou numa folha áspera, sacudiu-lhe o pó e deitou-a no
regaço. Depois apalpou-a, de novo, e jogou-a fora. Que diria o
Tóino duma ceia tão pobre?
- Eh mulheeeeer!.
Conheceu-Lhe a voz. Devia fazer-se tarde para os lances da
noite; se demorasse muito, as culpas cairiam em cima dela, mas
quem havia de ouvi-lo rezingar, se não tivesse comer para lhe pôr no prato quando acabassem a faina?
- Eh mulheeeeer?.
- Lá vaaaai! - respondeu.
Olhou o regaço vazio e começou a colheita das folhas
menos enrugadas. Regressava pelo mesmo caminho e já
ouvia o farfalhar da água e o marulhar do vento no caniçado da
margem. Tóino da Vala pulou também para o valado e
descobriu-a:
- As marés são como os comboios; não esperam.
Deixa lá isso!.
Em seguida voltou para o saveiro e foi dispondo as
redes junto da popa. Apressando o passo, em corridas
curtas, Olinda descobriu ainda uma moita de enleios e
mostarda, donde colheu toda a folhagem; depois escolheria as
que dessem para comer.
- Vamos lá pra dentro! - gritou-lhe o homem - Já passou meio
mundo e a gente ainda aqui. Os melhores sítios já estão
agarrados quando a gente chegar.
Já pronto para a abalada, o Tóino ajudou-a a entrar
e afastou o saveiro com o pé apoiado na margem; ela
sentou-se no banco de remar, deixando cair na caverna
do peixe as folhas de mostarda, sobre as quais deitou
uma lata de água.
Mirava-o de soslaio, como se receasse que o encontro
dos olhares Lhe despertasse a ira. Ainda não o conhecera
tão severo. Apertou os punhos dos remos para o impulso
da saída e o saveiro fez rumo para a margem da vala.
- Vais zangado, Tóino?
- As marés não esperam.
- Não tínhamos nada prà ceia.
- Discásses mais cedo. Pedia-se fiado.
- O homem não fia mais. Mandaste-me comprar o
lenço e ficámos lá com mais de cem mil réis; diz que
não pode.
- Leva-lhe uma fataça boa.
- A gente paga e ainda dá peixe; paga-se duas vezes.
- É o negócio deles.
- E o nosso?
Ele achou que a conversa já ia a mais e mandou-a
remar com força. As pás começavam a bater de chapuz
na água, sinal de que a rapariga fraquejava. De costas
para ela, o Tóino desandava as margens a agüentar a faina.
Corria uma brisa rija que dobrava a vegetação dos
valados e deixava no rosto dele uma expressão amarga.
Mais adiante, outros barcos procuravam os lugares mais
pesqueiros daquela zona.
- Vá com força! - bradou-lhe; e pôs a mão junto
da sua para ajudá-la. Olinda fincou os pés na estribeira
soergueu-se e puxou algumas remadas com vigor; mas
a fadiga quebrou-a de novo. Ele marcava-lhe com a voz
o ritmo dos braços:
- Vá! Vá! Vá!
Quando a olhou, ela sorriu para esconder o cansaço.
Sentia-se tonta.
- Então?!.
- Vai melhor assim - respondeu Olinda. O lenço
caía-lhe sobre os olhos; num repelão, deitou-o para os
ombros.
A voz dele insistia:
- Vá! Vá! Vá!
Degolado, perto da margem, um freixo mostrava o
tronco desfolhado; a água gorgolejava à sua volta, abrindo
um remoinho em círculos largos.
- Puxa à borda! - ordenou o homem.
Depois agarrou nas duas rabeiras do botirão, apoiou
um dos pés no banco do cavernil, e o saveiro pendeu-se,
derreado pelo seu peso; num salto pôs-se em cima do
tronco do freixo, amarrou-lhe a rabeira do arco da boca
da rede e foi prender a outra à vara, que fixou no fundo
do rio. Sacudiu tudo para se certificar de que a maré
não lhe levaria o botirão.
Olinda ciava com os remos, segurando o barco ao
jeito do trabalho do companheiro.
Quando ele fez sinal com o braço que devia chegar-se
mais para a borda, Olinda tomou água com a mão em
concha e bebeu; bebeu três vezes e suspirou.
- Lá em cima há água boa no furo.
- Esta é água de mil fontes - respondeu-lhe num
sussurro.
Os ramos dos salgueiros raspavam no costado do barco
e obrigavam os dois a curvarem-se para não serem empurrados
pelos ramos mais altos.
- Puxa lá adiante! - ordenou o Tóino. - Com esta
vagadiazia de vento o peixe encolhe-se.
- O peixe é tonto como as pessoas; nunca se sabe
bem quando vai à rede.
Ele pegou noutro botirão, descansou uma rabeira no
ombro e deitou mão ao ramo duma árvore. O barco parou.
Andanças e Lambanças
A meio da noite, o Tejo parecia aceso com o lume dos
archotes.
De pé, no bico da proa, os homens empunhavam os
lumaréus para descobrirem as redes, enquanto as companheiras
continuavam aos remos, atentas às ordens que eles lhes
davam. Tinham antes passado pelo sono, logo
a seguir à ceia; depois não havia tempo para as mulheres
descansarem, se a sorte não os amadrastasse, porque a venda
não esperava. Uma légua ou duas nas pernas era
conta certa para todas elas.
Aquilo nem se podia chamar descanso. Um sono mal
dormido, às fugidas, sempre um deles alerta, assim que
ouviam bater de remos na água ou ruído estranho na margem.
Até as horinhas de dormir Lhes haviam roubado, louvado seja
Deus! Desde que o ladrão do Remelga andara com a mulher
a furtar o peixe dos botirões e das nassas, deixando os
camaradas sem pesca, o sossego dos avieiros abalara
também. Ainda não contente, o maldito dera cabo de umas
tantas artes com a ganância de rapar tudo, o que vale é
que o Diabo tem uma capa com que tapa e outra com que
destapa, e só por isso puderam acusá-lo ao Tubarão, salvo
seja, senhor fiscal da pesca no Tejo e de seu nome Júlio
Gonçalves, porque Tubarão era alcunha secreta, posta
a preceito pelos que mourejam por ali.
Nunca se soubera de malfeitoria tão ruim entre gente
do rio. Nem os velhos se lembravam de coisa igual. Trocar rede
velha por outra mais nova, com mil diabos, um engano qualquer
tem, embora nunca se soubesse de troca
às avessas. Mas quem fica a dormir no quente, embrulhado com a
mulher debaixo do toldo, deve pagar a sua peita de descuido e
gozo.
Tóino da Vala marcara as artes com um signo saimão
metido num V, depois de lhe levarem três botirões novinhos,
sem um remendo. A Olinda passava agora parte da noite em
vigília e nunca mais deram por falcatrua nas
redes. Jurara a si mesma que a sogra só zombaria com ela
daquela vez em que, na risota, a culpara de enfeitiçar o
filho.
Não gostavam uma da outra; não vale a pena falar com
rodeios. Perdoar-lhe, sim, mas esquecer nunca, dizia a
rapariga quando se recordava da malvadez da mãe do Tóino,
ensinando-Lhe a curar os calos com rodelas de cebola.
Dores daquelas havia Deus de lhas pôr na língua danosa,
para não falar ao desbarato ou à má-crença.
Viera num mel dar-lhe conselhos, a fingida.
"- Tu és melindrosa. O Tóino havia de pôr os beiços onde
tu prantas os pés, se vocês pudessem morar os dois num palácio
de conde. Mas assim num barco. Se
a mulher não for de ferro, nem um nem outro levantam
cabeça. Rica filha!, tão bem tratada e agora metida aqui
nesta galé de escrava!. Cara mais bonita do que a tua
não encontrava ele na nossa gente. Escolheu bem, u Tóino.
O feitiço da boniteza deu-lhe volta à cabeça e tu não tens
culpa. Mostra cá essas mãos! Ih Jesus! Se a tua madrinha te
visse agora, nem te conhecia. Põe-lhe rodelas de cebola. A
cebola cura tudo; até mata a fome. Mais vale
cebola com pão do que bife de vaca. E nisto de calos não
há remédio mais santo; mas não digas ao Tóino. Há coisas que a
gente deve esconder deles; e já que os teus te enjeitaram, tu
bem merecias andar com coroa de condessa, cuido eu de ti, rica
filha! Ainda ontem vi a tua mãe e ela nem a salvação me deu.
Como se eu tivesse a culpa! Ela ganhou a soberba de te querer para fidalga e eu, coitadinha de mim, não me acuso de o meu rico filho te ter procurado. Cada um é prò que nasce".
Falava naquele enleio sem ponta, reco-reco, quando se
punha a besoirar ninguém tinha mão nela, a falsária.
Uma pessoa escolhe o homem, mas não joeira a família.
O pai dele, sim senhor, não havia no Tejo outro homem
mais mansarrão e trabalhador. Mas a Rita Bordaleira era
ouvi-la e cuspi-la, explicou-lhe o Zé quando a irmã lhe
contou a comédia que a falsária representara.
O Toino não arranjara mulher para pôr na cómoda
como ela dizia; nem os avieiros com barraca se podiam
dar ao luxo de comprá-la, quanto mais os que andavam
como eles ao sabor do tempo, feitos ciganos, sem casa nem
poiso certo. Mas havia de lhe provar- que ele não arranjara
mulher só prà cama, mesmo que tivesse de morrer tísica.
Roubaram-lhe os três botirões, e então? Ela não sabia
que no Tejo havia gente capaz de furtar à pobreza.
Guardava então essas horas da noite para vigiar o
rio e chorar sòzinha os seus prantos. Deixava o Toino
deitado na proa, tirava-lhe as mãos com que a prendia a si e
sentava-se a olhar- o rio, rrememorando o que perdera na
mudança.
Ainda ontem soubera que a madrinha nunca mais
saíra da cama, ia já para três meses que ela abalara.
Voltar atrás, isso não, não pensava em semelhante coisa
e muito menos ainda em fugir da companhia do Tóino,
embora não fosse recebida. Nunca no Tejo uma mulher
deixara o seu homem por muito má vida que ele lhe desse;
e não seria ela a primeira.
Havia de arranjar coragem para lhe fechar os olhos
na hora da morte, se Deus não lhe fizesse a mercê de morrer à
frente. Todos se punham contra ela. Só o sogro e o irmão
aparelhavam da sua banda. Mesmo o companheiro
parecia repeso de aguentar a sina que lhes coubera, sem
paciência para as faltas dela. Ainda não o ouvira queixar-se,
mas adivinhava o que o Tóino pensava sòzinho. Já por mais duma
vez lhe puxara a conversa; ele fugia-lhe a encolher os ombros, era tonta, que diabo de ideia se lhe metera na cabeÇa.
Assim que a maré começava a vazar, Olinda acendia
o archote, acordava o seu homem, desprendia o saveiro
do tronco onde o tinham amarrado e punha-se a remar
para o sítio do primeiro botirão. As mãos já não se queixavam,
cravadas de calos. Só os braços se lhe derreavam com o manejar
dos remos. O Tóino castigava-a bem. Fazia como os outros,
emendava de seguida, lembrando-se de que o trabalho mais
esforçado era para as mulheres.
- Vamos embora, Tóino! Vamos lá com Deus!.
A manhã não demora muitas horas.
Pelo sítio em que pescavam, ela sabia da distância
a percorrer até à venda. Se o peixe desse, iria de barco
para a outra margem e dali acamaradaria com mais uma
ou duas até Benavente, se não aparecesse alguma camioneta com
sardinha. Jogava-se a sorte. Andavam por ali num jogo de
sorte.
- Encosta à revessa - recomendou a voz do Tóino.
Parecia ainda mal acordado; quando ela abalasse,
iria dormir mais umas horas dentro do barco ou nalguma
sombra da margem ou dos mouchões do rio.
Naquela noite começavam bem. Pelo sacudir do peixe
nas mãos dele, Olinda adivinhou que deviam ter agarrado
fataça gorda; depois outra ainda menos esperta, e também mais
mindinha. Viu-o atirá-las para dentro da caverna e levantou-se
do banco para as espreitar; não se enganara. A maior devia
andar por um quilo.
- Vamos lá depressa!
Os outros deram por eles e perseguiam-nos. O Tejo
parecia aceso com o lume dos archotes.
O esparvoado do Tó Lobo atravessara-se-lhes na frente
por causa de um botirão que havia posto num salgueiro
muito pescarejo; pensava o abrutalhado que o Tóino iria
levantá-lo por desforço do que lhe fizera na noite anterior. O
salgueiro atirava com um ramo quase ao meio da vala,
prestava-se mesmo para lhe amarrarem os dois rabinhos
da rede, e era rara a noite que não agarravam ali mais
de dois quilos de peixe. Todos os pescadores procuravam
estar perto daquele lugar, para romperem numa corrida
até lá assim que a maré se punha de feição.
Na véspera, calhara a vez ao Tóino. Mas quando se
chegaram para levantar a rede - tinham-se atrasado por
mor dela, que começara a andar agoniada com a gravidez -,
viram-Lhe só o sítio. à frente deles singrava o saveiro do
outro.
- ó Tó Lobo! Viste algum malandro levantar o meu
botirão do salgueiro?
o outro fingiu que não o ouvia. O Tóino insistiu,
mandou-a remar com força até se lhe chegar perto e
interroguu-o de cara a cara. Não, não tinham visto ninguém a
mexer na rede; ia um botirão à deriva e apanharam-no.
- Será este? - indagou com ar distraídu, sem deixar a
tarefa de trazer acima a outra rede submersa. Era mesmo
aquele inteirinho, estava bem de ver-. Nem
precisavam das marcas para o conhecerem. Olinda espreitara
para dentro do barco do outro e descobrira-lhe três
fataças-toiras a sacudirem-se ainda na caverna, uma lindeza de
prata, mais de quinze mil réis de peixe.
- O raio da maré trazia unhas - comentou o Tóino,
mal-encarado. - Amarrei o butirão com cordel e a maré
desatou-o.
- Apanhei-o aí em baixo.
- Ia à deriva? - insistiu o da Vala com arrenego.
- Prà outra vez deixo-o abalar-. Escuso de te ver o
mau modo.
As mulheres miravam-se de fugida, sem largarem os
remos. Aproveitavam a oportunidade para descansarem
os braços.
- Ó Tó Lobo, Tó Lobo! - disse Olinda, por fim.
O outro voltou-se de rompamte:
- No meu barco, quando canta o galo, não se ouve a
galinha. Assim é a lei da nossa gente.
Tóino da Vala fez sinal à companheira para se calar;
já não era a primeira vez que ela se metia nas conversas
e logo os camaradas Lhe vinham com o mesmo remoque.
- Ofendeu-te? - retorquiu depois de um silêncio.
- Não, mas não gosto de gente abelhuda; não me entendo com
doutores, quanto mais com doutoras.
- Só falas com brutos.
- Isso mesmo: com brutos e à porrada.
Deitaram as mãos às varas, erguendo-as numa
ameaça. Mas os gestos e as palavras serviam de joguete
entre os dois, como se se batessem de corpo a corpo. Receavam
ambos que o Tubarão tomasse conta do caso e os levasse à
Capitania para lhes dar o castigo. Queria-os
dóceis, nada de violências; quem se fizesse esperto pagava
com multa e cadeia a falta de respeito pela sua autoridade de
dono do Tejo. Sabia de tudo, afirmava-se nos ancoradouros
dos avieiros sem casa e nas aldeias ribeirinhas. Havia sempre
alguém para Lhe contar as infracções à lei e as rixas entre
pescadores.
Receosos, acabaram por se afastar um do outro; naquela
noite, Tó Lobo julgara que o Tóinú se preparava para a
desforra do que lhe fizera.
- Vais cego?
- A gente um dia fala.
- Se tu não perderes a voz antes disso.
- Tu levas aí quem fale por ti.
ATÉ QuANDO
O irmão trouxera-lhe a notícia na véspera, ao fim da
tarde, quando passara por eles ao pé da vala; ia para Vila Franca vender melões e melancias, chegava-se o fim
da colheita, e dali por diante, até Dezembro, o Tejo só
daria uns peixitos para comerem. Quem pudesse amealhar alguma
coisa para o pão, já não dispunha de muito tempo para o
granjear. O Tóino nem uma barcada conseguira levantar dos
meloais, apesar de todos os dias imaginar ganhos chorudos com
as vendas que premeditava. O ruído do mercado enchia-lhe a
cabeça. Era um burburinho que a entontecia e lhe despegava os pensamentos. Sabia-se culpada; não, não estava a inventar culpas para se mortificar, podia ter arranjado as coisas doutra maneira. à sua volta, as outras apregoavam o que queriam vender, enquanto os compradores passavam de alcofas e sacos vazios, à procura de qualquer coisa mais em conta. Corriam as bancas à volta do mercado, mexiam e remexiam, perguntavam preços, ofereciam menos de metade e abalavam. As jornas no campo eram magras e o almoço de todos ficava nos olhos e nas palavras.
Olinda precisava de chorar, às vezes não retraía as
lágrimas, mas não queria dar espectáculo da sua dor. Dentro
dela, o filho agitava-se, aumentando-lhe o receio de andar
sòzinha.
- Não vem sardinha? - perguntavam.
- Leve aqui esta fataSa que é um brinquinho, ah
olhos bonitos!
- A como é?!.
- A quatro.
A freguesa voltou costas, a menear a cabeça, e foi
pela fila adiante, mexendo e perguntando, até que regressou
junto dela; mas já outra lhe tomava o caminho, a confidenciar
um preço mais baixo que a freguesa regateava.
- É pesca desta noite, minha rica senhora. Ainda
trago as cruzes despegadas de tanto remar.
- Fataça é comer de rico.
A vendedeira mostrava as guelras do peixe, levantava-o nos
dedos para lhe realSar o tamanho e a frescura, insistia na
confidência doutro desconto e depois acabou
por voltar à banca, hostilizando a freguesa:
-Isso é preço de carapau prò gato. Ora a gulosa!
Julga que a fataça se apanha na cama a dormir?. As
varinas é que são boas a negociar com gente desta.
Arrasavam-na de todos os nomes, se tivesse o descaramento de
oferecer um dinheiro desses. Cinco mil réis por um
peixe deste tamanho.
Enrolada na sua dor, Olinda apregoava de vez em quando os
três peixes que lhe vieram às redes no trabalho da noite.
Pesca chorada com o Tóino a ralhar-Lhe por mor dos remos tão
frouxos nas mãos. Mas quem podia arranjar forças depois de o
Zé deixar a notícia? A madrinha morrera no domingo, a falar
nela sem Lhe repetir o nome; passara a tratá-la por maldita
depois que ela abalara e nunca mais ninguém a vira fora do
barracão. Dizia-se que se enfiara na cama, amaldiçoando quem
lhe tirara o sossego e sem nunca mais meter na boca um nico de
comer. Ficara em metade do que era, bastara-lhe a cunhada à
parte. Pusera o médico na rua quando o Mestre Feliciano
o chamara para a demover daquela matação em que caíra.
O Manel Lombriga encontrara-a à borda do Tejo, a
falar sòzinha, umas horas antes de fechar os olhos para
sempre. Parecia um fantasma, contara o barqueiro ao João
Carramilo. E quando este quisera acompanhá-la no enterro,
Mestre Feliciano mandara dizer-lhe que não queria gente da
sua laia ao pé da morta. Mas o pai esperara o corpo
da comadre a caminho do cemitério e seguira-o à distância.
O sino da igreja tocou para a missa.
Há quantos meses não rezava? lembrou-se de que a
madrinha lhe ensinara as orações, um pouco antes de
jantar, todas as tardes, à porta do barracão, ou à lareira,
se o tempo arrefecia. Nunca a levara à igreja, não gostava de
padres, mas achava que as pessoas deviam ter a sua fé,
embora continuasse dedicada ao partido jacobino. Olinda
revivia naquele momento as horas que passara junto dela,
sempre a procurar-lhe mimos, sabendo-se injusta quando
pensava ganhar a liberdade das outras mulheres do rio e
resolvera abalar. A fuga deslumbrara-a, mas não lhe fora
fácil. Alguém soubera que chorara antes de fugir? Talvez um
pressentimento do que viria depois, do que vivia agora dentro
do saveiro, só amparada pelo dever que contraíra com o Tóino.
Era a mulher dele, ficaria ao seu lado o resto da vida, e
talvez o filho que se lhe agitaVa na barriga VoltaSSe para
dar-lhe a mais Total coragem.
Passava-se no mercado qualquer coisa de que se não
dera conta. As pessoas agitavam-se, algumas corriam; as
freguesas debandavam dos lugares de perto das avieiras
e encaminhavam-se para o portão do lado da igreja.
A roncar o motor e a buzinar, chegou a primeira camioneta
com peixe do alto. De cima das caixas empilhadas, um dos
homens oferecia:
- Sardinha do alto! Sardinha fresca!
Uma vendedeira da terra aproximou-se:
- Quantas tiras hoje?
- Duas - respondeu a mulher sem alegria.
-Vá lá mais uma, Rosária. Esta é de reis.
- Ainda me ficou um resto de ontem; não quero mais. Tenho de
pôr o marido e os filhos a comer sardinhas a semana toda. Os
ganhos são poucos.
Um vendedor apertava a cabeça duma sardinha até lhe
chegar o sangue aos dedos e mostrava-a ao povo e às
vendedeiras da praça.
Aturdidas com a chegada das camionetas, as avieiras
apregoavam o seu rico peixe vivinho, pescado esta noite,
minha rica flor, mas muitas delas já sabiam que a venda
acabara. Agora teriam de levantar depressa e percorrer os caminhos das aldeias e lugarejos, oferecendo o que
ficara por preço mais baixo.
Olinda Carramilo lançou o seu pregão para se distrair. O
barulho do mercado arrastava-a, dava-Lhe vertigens. Mesmo que
agora quisesse Saír, o seu menino Implorava, dentro de si. nun
estendal de melões, havia um a despertar-lhe desejos, que lhe
Cresciam agora na boca. lá estava um amarelo raiado de verde,
que levava a palma aos outros todos. Oblongo, devia ser, como
mel, doirado por dentro e doce como mel, o seu menino
pedia-lho dentro de si, talvez porque a sede apertava com a
soalheira. Atenuara-se-Lhe a recordação da morte da madrinha
com a tentação que a assaltara. Num gesto instintivo, levou a
mão ao ventre, numa carícia, como se aquietasse dentro de si o
filho que voltara a mover-se.
Deitou contas ao preço do melão, ainda não vendera
um único peixe; que diria o Tóino quando ela chegasse
sem dinheiro?
Uma velha parou à sua beira, assim com ar de quem
teme e deve alguma coisa. Aconchegou o xale preto, a
olhá-la; depois compôs o lenÇo para fazer qualquer coisa.
Olinda saiu de detrás da barica e tomou-lhe o braço.
- Gorda e fresquinha que é um louvar, minha rica senhora.
Pegou no peixe maior. mostrou-lho ao sol. A velha
estendeu os dedos, apalpou o dorso da fataça e sorriu:
- É muito grande. É só prò meu neto, que está doentinho.
Não se chega à carne.
Confidenciava e sorria comprometida. A Carramilo pegou
na fataça mais maneira e meteu-lha no cesto.
- Dá dois mil réis, é de graça.
-É muito pra mim.
Remexeu com os dedos o saquito que desamarrara
e trazia preso ao pulso; depois despejou-o na palma da
mão, contou as moedas. fez uma careta e voltou à recontagem:
- Tenho só dezasseis tostões.
Ficaram ambas a fitar-se nos olhos, sem palavras.
A velha pensou no neto, mirrado na cama com as sezões que
agarrara no trabalho da canatra do valado; ela sentiu o filho
dentro de si, a lembrar-lhe as noites passadas ao tempo.
- Leve lá isso, senhora! Vá com Deus!
A velha escapou-se, ligeira, por entre os grupos que
atravancavam a rua central do mercado, como se tivesse
cometido alguma falta com a ajuda da outra. Voltou-se
ao portão, acenou o braço e desapareceu quase a correr.
Ela regressou ao lugar, batendo na bolsa; parecia temer
que o ar lhe levasse o apuro da venda.
Defronte, num desafio, o melão amarelo raiado de verde
provocava-a. Voltou a pensar- no filho: o menino podia sair
aguado, se não lhe fizesse a vontade. Nasciam muitos com
mazelas por coisas assim. O pior é que no barco não havia uma
côdea de pão.
Hesitou. à sua beira, a mulher do Guia lamentava-se.
Viu-a sentar-se, amarfanhada, numa caixa vazia e afundar a
cara nas mãos:
- O meu Chico desanca-me a pau e trupa. Ai Nossa
Senhora da Encarnação me valha!. Uma noite toda na
canseira e nem um peixe vendido.
Descobriu os olhos quando a Olinda lhe pousou a mão
no ombro e tinha-os vidrados.
- Isto é de fechar- o coração a uma pessoa.
A Carramilo pensava o mesmo, enquanto via o monte
dos melões com aquele amarelo à sua espera. Sentia a
polpa das talhadas nos lábios secos a ressumar pingos
doces que nem mel, muito frescos e doces. Deitava contas à
vida, ainda tinha dois peixes para vender, quanto dariam por
eles? Ali não, ali já não vendia mais nada
depois que chegara a sardinha ninguém procurava peixe
do rio, os ganhos eram poucos, porque nem lá para Outubro o
arroz se chegava às foices.
Resolvera abalar, u melão desafiava-a, precisava de
ganhar curagem para sair dali, ainda pegou na canastra com as
duas fataças, passou perto do monte dos melões, só precisava
de dar mais uns passos, e nessa altura, exactamente nessa
altura uuviu uma voz perguntar ao homem: "Quanto custa
aquele?"
Então, num impulso, regressou quase a correr e agarrou no
melão que namorava havia já tanto tempo. Conhecia-lhe o sítio
de olhos fechados
- Quanto custa?
Outra voz disse:
- Esse melão é meu.
- Seu porquê? Se estava no monte, ainda não tinha dono.
O vendedor não se meteu na contenda; esperou que os dois
discutissem e depois adiantou uma fala:
- Há aí um monte de melões; são todos maduros e doces.
- Este é meu - repetiu Olinda, apertando o melão
amarelo contra o seio que lhe batia em punhadas, como
se quisessem roubá-lo.
Os homens repararam na sua gravidez e sorriram-lhe.
- O rapaz gosta? - perguntou um homem.
- Acho que sim, é pra ele, todo.
O vendedor atirou-o ao ar duas vezes, apalpou-lhe
os extremos e atirou o preço:
- Dezoito tostões! Tem quase três quilos.
- Não, não pode ser - disse numa voz sumida - Dou-lhe dez
tostões.
- Fique lá com a vontade. Quase não me chega para o frete.
Pelos caminhos da venda havia de se esquecer, pensou
com raiva. Jungiu a faixa preta à saia, olhou mais uma
vez o melão que o homem agarrava e saiu do mercado a correr.
O seu pregão cobriu o ruído do mercado.
NãO TE MEXAS, TÓINO!
ToDA a vida se havia de lembrar daquela tarde de
Outono.
A semana de pesca correra de feição, como se as redes
chamassem o peixe à babugem e lhes nascessem olhos para os
ver e mãos para os conduzir lá para dentro. Pampos e eirós,
tainhas e barbos, pareciam apostados em se emalhar nas suas
artes. Ela escolhera os sítios de colocar as redes, já
percebia o que o peixe gostava, e o Tóino deixara-se mandar.
Andava agora a pensar numa saval branqueira para as águas
luzinhas do Tejo, ensinara-a a fazer malha e ela levava-a
quase em meio, pelo tamanho da que o Zé lhe emprestara. Só
falava da sua rede e das pescas milagreiras que havia de
recolher com ela. Fosse cego, se não arranjasse dinheiro para
antes das chuvas e das nxurradas de Espanha comprar fio que lhe desse para uma saval bem tinta, quando o Tejo corresse barrento.
Camaroeiros, nassas, tarrafas e botirões eram artes
de pescadores da choldra. Uma saval agarrava sável
grande e gordo, ele e a companheira bastavam para fazer
o trabalho; de dia metiam-se numa companha de rede
varina, haviam de ganhar a sua parte, e à noite teriam
tempo para pescar com a saval quatro ou cinco peixes
bons, embora a licença fosse cara.
Tóino da Vala vivia sempre adiante da realidade.
A companheira já lhe sabia o pendor e gostava que ele
fosse um homem de sonhar. Quem não sonha encontra
na vida algum sabor?
Nunca gostaram um do outro como naquela semana
dizia a Olinda mais tarde. Tudo lhes corria ao jeito, nunca
haviam apanhado tanto peixe e nunca ela o vendera por
melhor preço. Talvez faltassem quatro meses para o filho
nascer. Ele queria uma rapariga, bonita e esperta como
a mãe; a Olinda apostava num rapaz, loiro e grande como tu, Tóino, um homem que se engane muitas vezes, mas
que fale nas coisas boas da vida, mesmo que só haja fome
para encher o prato à hora de comer.
- A vida é mais o que se deseja levar do que ela dá.
E disso sabes tu, Tóino. Queres que te diga tudo?. Pois,
ouve lá: pensei algumas vezes voltar para o barracão
quando me achei metida nesta cadeia de trabalho e mau
passadio. Mas na noite em que fui ter contigo arranjei
um compromisso a que não posso faltar. Tu és o meu
homem. Nem que o Tejo se queimasse todo eu te devia
deixar. mandavas em mim como num cão; sim, é verdade;
mas a certas horas, quando me procuravas, eu sabia que
mandava em ti, nada havia no mundo senão eu. Eu sei
que vai nascer um rapaz; sei pela minha cara que vai
nascer um rapaz. E hei-de então contar aos dois uma história
bonita da Lua e do mar.
A tarde pusera-se branda com o rio muito azul da
cor do céu. Ela via, à distância, manchas verdes na água
e o Tóino dizia-lhe que eram da cor dos seus olhos quando
havia muito sol. Naquele dia nada deviam a ninguém
e ela tinha escondido no seio algum dinheiro para Novembro,
que é o mês da fome mais faminta em todo o rio
dos avieiros, e um filho dos dois estava guardado no seu
ventre para quando nascessem as primeiras flores.
A tarde pusera-se brandinha. No mesmo ancoradouro
havia mais três saveiros de pescadores sem casa. A rapaziada
pusera-se nua, a brincar pelas margens. Uns arranjaram canas
que metiam entre pernas, e pensavam-se a correr em cima de
cavalos de cores que nunca ninguém viu, que nunca alguém verá
em qualquer parte; outros banhavam-se no rio e supunham
nadar num Tejo de luz, num charco de cores. A fome
escondera-se de todos eles.
O Tóino comprara um garrafão de vinho para a semana
seguinte e já o levava em meio. Devia estar tonto, mas
parecia mais bonito do que nos outros dias. Falava
com ela da rede branqueira, pusera a cabeça no seu regaço e
dizia coisas sem sentido sobre os peixes que iriam apanhar
naquele Inverno.
- Uma branqueira com dez peixes dentro é mais
bonito do que uma seara de pão. Se não houver vento.
no ano, quando houver vento, aí pelo mês de Julho
hei-de ir deitar-me contigo numa seara de trigo. Deve ser
bom beijar-te dentro duma seara.
- Não sejas tonto!.
- Deixa-me ser tonto. Se não fosse tonto, tu não
estavas aqui comigo com um filho meu dentro da tua
barriga. Deixa-me ser tonto.
Ela sentara-se no banco de remar e partira antes dos
outros.
Quase ao fin da tarde, o Tejo pusera-se mais calmo
Parecia que o saveiro navegava por cima de um vidro
Com o rio tão límpido deixandO-O eSpelhar na Sua
superfície o brilho do céu.
O TÓino dizia:
- Mete pela vala da Casa Branca.
E depois pusera-se a cantar a mesma quadra que ela
lhe pedira na tarde do seu encontro. Ele ia deitado no
fundo do saveiro e ela aos remos, sòzinha, sem esforço,
com o filho a brincar dentro de si.
Mal entraram no túnel das árvores que enchem as
duas margens, apareceu um vento áspero, a sacudir tudo;
até assobiava nos troncos e nos ramos. E corria tanto,
e assobiava tanto, espantado, quem o espantara?, que as
folhas começaram a cair aos cachos, fugindo algumas,
juntando-se depois, num torvelinho, indo e regressando
num corropio, que Olinda Carramilo parou de remar e
ficou queda no banco, meio tonta, como o Tóino, que já
bebera mais de meio garrafão de vinho e ainda não parara de
cantar. E num repente, quando o vento garanhão fugiu para a
Lezíria à procura das éguas, as folhas que revoluteavam como pintassilgos tontos caíram de chapuz sobre a vala
da Casa Branca e deixaram tudo alagado das cores do
Outono, um nadinha triste, mas tão sorrateiro, que o
Tóino da Vala não se moveu no fundo do barco. Amarelas,
doiradas, vermelhas, quase de fogo, ardidas e ainda ardentes,
verdes, cúpricas, verde-cré, verde-montanha, verde-gaio,
verdenegro, ocres, castanho-queimado, e vermelhas, acesas,
fogaréus a arder, as folhas do arvoredo da vala tombaram,
de repente, sobre o corpo do pescador vagabundo e vestiram-no
a esmo de todas as cores que havia nesse mês.
Deslumbrada, Olinda Carramilo ergueu os olhos para
aquela chuva fantástica que também lhe escorria pelos
ombros e engrinaldava a cabeça.
Depois tudo se quedou num grande silêncio, como
se as árvores ficassem a ver o que delas fugira com o
vento.
- Não te mexas, Tóino ! - pediu a rapariga.
De mansinho, a rastejar, foi deitar-se junto dele;
apetecia-lhe beijá-lo, mas antes disso chorou no seu peito
coberto de folhas, feliz, sabendo agora que ficaria o resto da
vida junto do seu homem.
Tóino da Vala deixou de cantar. Calou-se, mas as suas
mãos enredaram-se nos cabelos da companheira.
É UM RAPAZ, TEM DE SE CHAMAR JOÃO
ERA ela quem agora cantava para adormecer o filho.
Ia já para um ano que o João nascera - como o
tempo passa!, ou como a gente passa pelo tempo sem lhe
deixar sinal !
A idade do filho andava pela saval branqueira, nem
mais nem menos um dia. O Tóino quisera molhá-la na
tarde em que o menino viera ao mundo, estava ela deitada na barraca do Zé, para onde puxara, mal as dores
do parto começaram a apertar.
Depois de ver o filho, ruço-ruço como ele, Tóino da
Vala pediu à companheira que estreasse a rede que os
dois tinham feito. Era uma fé. Com a ajuda do cunhado
foi deitá-la mesmo defronte das Obras, naquele sítio que
ela conhecia desde a noite da sua fuga do barracão. Aí
mesmo, no enfiamento da enseada onde se amaram pela
primeira vez, ele molhou a saval branqueira de cabeça
descoberta, em sinal de respeito, jogou-a ao Tejo sem uma
palavra, como se cumprisse um ritual sagrado.
Zé Carramilo ainda começara a assobiar, era mesmo
um melro assobiador, mas o Tóino pediu-lhe silêncio
e ele remou e ciou, calado, à espera de dar largas ao
contentamento que sentia por ver a irmã com um filho. Agora
nada lhe faltava para ser mulher do rio.
O lance foi pescarejo. Quatro sáveis gordos e bonitos
aí dez quilos de peixe, e três deles fêmeas, com ovas bem
cheias, que se adivinhavam pelo toque dos dedos.
- Louvado seja Deus! - clamou o Tóino ao bico
da proa, mostrando o rosto ao Sol.
- Louvado seja! - repetiu Zé Carramilo, de pé e de
carapuço na mão.
Sentaram-se depois a beber o vinho do barril que um
deles enchera na véspera, beberam e falaram, e o Zé
pôs-se a contar o que se lembrava do dia em que a irmã
nascera, quando o pai lhe dissera que os meninos dos
avieiros eram trazidos por um peixe grande, vindo das
profundas do Mar.
Com a ajuda do vinho, Tóino da Vala amarinhou
ainda mais nas suas fantasias. Queria para a próxima
safra uma saval bem tinta, havia de ter casa sua antes do
Inverno, e desafiou o cunhado para comprarem uma rede
varina, a meias; o Manel Lobo tinha uma em segunda
mão, e se ele lhe falasse, ainda eram primos carnais, talvez
lha pagassem em dois anos. Sim, para aí dois anos.
Zé Carramilo conhecia a tineta do cunhado e deixava-o voar
em fantasias. Quando saltaram em terra, Tóino da Vala
embrulhou-se na rede, pegou nos quatro sáveis com os dedos e
teimou em aparecer à companheira naquele flambó. Ia
com um grão na asa, comentou a gente do Vau quando o
viu aparecer naquele preparo. Mas só ele sabia o que a
sua imaginação queria significar; e disse-o à companheira
"- Vamos fazer ver aos que te mordem, aos que
andavam a dizer por aí que nem éramos capazes de ganhar para a
cantoria dum cego. Esta rede nasceu no mesmo dia do nosso
João. É um rapaz, tem de se chamar João, que é o nome do teu
pai e do meu avô. Nascem os dois no mesmo dia e estes quatro
peixes não se vendem, nem que dessem agora uma nota de conto
por cada um. Hoje sou um homem rico. Manda-se o mais gordo
para o Mestre Feliciano, a quem nunca mais pagas o que Lhe
deves; o outro vai para a tua mãe e estes dois, da mão
esquerda, come-os a gente aqui no Vau. Faço eu a açorda
com a cabeça, o rabo e as ovas fêmeas; o peixe vai ser
frito e todos hão-de provar dele".
Passara quase um ano.
A saval branqueira não chegou para comprar a rede
tinta com que o Tóino queria pescar nos dias de águas
barrentas; ainda menos tinham juntado dinheiro para a
madeira da barr aca.
- Mas estamos vivos os dois - lembrou à companheira com
galardão.
- E gostamos mais um do outro - acreseentou ela.
Tóino da Vala ergueu o filho nos braços e gritou para
o rio:
- E temos um rapaz!
João da Vala gatinhava no barco, onde era senhor,
e corria-o da proa à ré, passando a caverna de escoar,
mesmo cheia de água. Até gostava mais dela assim, porque via
do outro lado um menino como ele, para quem estendia a mão
sapuda, disposto a puxá-lo para cima;
mas quando João da Vala tentava agarrá-lo e batia na
água, o outro menino desaparecia, embora o visse momentos
antes a estender-lhe a sua. Então, olhava de seguida para a
mãe, na esperança de que o outro estivesse nos braços dela, voltava, surpreendido, a espreitar a caverna, e o companheiro
regressava também para espìiá-lo do outro lado. Nunca puderam
tocar a mão um do outro por mais que o João se esforçasse. Uma
manhã atirou-se de chapuz para cima da água, pensara que podia
segurá-lo dessa maneira, sentiu uma
dor na testa, depois qualquer coisa a crescer e teve de chorar, chorou aos berros, até que a mãe Lhe pegou ao
colo, dando-lhe o bico do peito para se calar.
Mamou e choramingou.
- O menino está com febre - disse Olinda para o
companheiro.
- Só se ofendeu a cabeça.
- Pus-lhe um pano com vinagre e baixou.
- Se calhar, o sangue recolheu; era melhor deixar
o sangue sair. O sangue pisado quando recolhe, faz mal.
Ficaram acordados toda a noite, à espera que a febre
subisse ainda mais ou descesse. De madrugada começou
a ficar pela temperatura da mão deles e aquietaram.
Nessa mesma noite, e pela primeira vez na vida, João
da Vala sonhou que saltara para fora do barco e se pusera a
andar com o outro menino por aquela estrada larga e azul, onde
nunca o deixavam debruçar. Os pais viram-no
sorrir muitas vezes durante a noite.
- Está a sorrir para a Lua.
- Tapa-lhe a cara; parece que não é bom.
- A Lua entende-se bem com as marés e com as mulheres.
- Mas ele é macho.
A mãe destapava-lhe o sexo, sorrindo para o companheiro.
- Vai ser um grande homem, o nosso João.
Assim que se apanhou livre na manhã seguinte, João
da Vala aproximou-se da caverna de escoar com todas
as cautelas. Espreitou e logo recuou, convencido de que
o outro menino lhe batera com qualquer coisa dura; precisava
de se vingar, havia de lhe fazer o mesmo, ainda que para isso
tivesse de pedir a ajuda da mãe.
E foi puxar-lhe pelo braço quando ela remava, enquanto o pai
ia de pé, quase no bico do saveiro, atirando com a branqueira
para o rio. Como a mãe não lhe fizesse
a vontade, João da Vala sanfonou, gritou depois e acabou
a chorar.
- O que tem esse cachopo?
- Quer que eu vá com ele.
Mas festa grande aconteceu no barco quando o pai
desemalhou um sável e o meteu na caverna com água;
o peixe saracoteava-se, a tocar pandeireta no panal do
saveiro, punha-se de pé, apoiado na cabeça, sacudia a
cauda, abria e fechava as barbatanas, aquietava-se, por
instantes, e logo voltava ao mesmo estertor da agonia.
João da Vala assarapantou-se com o espectáculo, quis segurar o
peixe, atirou-se-lhe para cima e o sável fugiu-lhe das mãos,
depois de forçá-lo a outra cabeçada no anteparo
da caverna.
O pai veio a correr, assustado, de sobrancelhas franzidas;
João da Vala fez beiço, porque já lhe conhecia o modo severo,
e tudo acabou ao colo da mãe com outra
mamada, mais de brincadeira do que de comida, pois o
cachopo divertia-se a tocar o bico do seio ou a apertá-lo,
para que o leite corresse sem ele chupar.
- Vamos fazer óó, João!
Nu, escorregou pelo colo da mãe, amparou-se-lhe na
saia, e foi, de pernas cambaias, espreitar o outro, gatinhando de braço erguido para lhe bater, mal o menino
velhaco aparecesse.
Viu dois peixes na caverna e ficou atrapalhado.
De repente sentiu-se levado pelo ar, como se fosse um
pássaro, e estendido na esteira da proa.
- Toca de dormir! - ameaçou o pai.
João da Vala cerrou os olhos, à espera que a trovoada
passasse, mas acabou por se sentir bem. Uma voz cantou-Lhe. Já
a conhecia.
O meu coração, amor,
é de vidro, vai na mão.
Ainda se viu a agatanhar a cara do menino que lhe
aparecia na água, mas adormeceu quando o outro chorava.
Olinda beijou-lhe os dedos, cobriu-o com o xale e
voltou a sentar-se no banco de remar. Estava exausta.
- Vamos embora, Tóino!
O saveiro encavalitou-se na vaga do rio, levando João
da Vala para o mundo dos sonhos.
UM HOMEM DO TEJO NÃO SaRRECEIA DUM TOIRO.
DIas não são dias, com mil diabos! Um homem é
alguma pedra? Já se vê que não!. Se até os bichos gostam de
dar regalo ao corpo, deve um bicho-homem passar a vida a lidar
noite e dia, sem folga, como se fosse cego ou lázaro? Já se vê
que não!. Depois ali estavam três camaradas com ele às
salhas, por gracejo, bem se vê,
mas sempre lhe largavam das suas: se tinha medo de deixar a
mulher sòzinha ou se era preciso pedir-lhe licença. Tóino da
Vala pusera-se a fingir que a paródia não
Lhe calhava, mais por causa do João Marujo, com quem andava de esguelha; mas a conversa dos outros bulia-lhe
na farronca e azedava-o. Incitou-o a mulher por seu lado,
que fosse, pois então!, ela daria volta aos valados em
busca de madeira para a barraca, e se ele voltasse com
gosto de carpinteirar não lhe faltaria material para se
atirar à obra. Zé Bogas encarecia a festa:
-Ouvi dizer em Azambuja que há muito ano não se
faz uma ferra destas. Até vêm espanhóis.
- Parece que o lavrador quer ferrar mais de cem
bezerros. As vacas bravas pariram bem - acrescentou
o Marujo todo ancho, a presumir de metido nos segredos
da ganadaria. - Dentro de três anos não há por aí gado
mais bravio.
- Eu gosto de boi só no prato - chalaceou o Manel
Fateixa, grandalhão de corpo mas mindinho no gosto pelo
trabalho. A mulher queixava-se de que não havia outro
para caçar ratas sem vergonha, saias porcas, e ele ria-se,
gostava de vê-la molestada con ciúmes, embora os amigos
garantissem que tudo era farófia na boca do Manel. - De
boi no prato e de bezerrinha à mão. - galopinou de
seguida em voz alta para que Olinda Carramilo o ouvisse.
- A presunção do Marujo deu-lhe volta às tripas, - disse
a rapariga, a meio da tarde, quando encontrou a cunhada
no malagueiro das Obras; e logo lhepespegou:
- É por isso que mal vossemecê salta da bateira o
povo se põe todo a fugir; não há homem descansado nem
mulher que fique enxuta na sua honra.
Cala-te aí, rapariga! - disse o Tóino. - Conversa
d'homens não mete saias.
Zé Bogas deu em rir, ria de nada, o trombudo!, pensou
Olinda; mas a galhofa deu jeito para amansar melindres e a
companhia fez-se com recomendações de terem juízo, não se
metessem em toiradas, isso era bom para os
campinos, que tratavam os bois por tu.
Parecia um noivo, o Tóino da Vala. A companheira
dera-lhe o boné de astracã e a camisa lavada; uma camisa de castorina que lhe comprara no Inverno com o dinheiro
ganho na companha do Zé Malho. Casaco não quis, era
o que faltava num dia daqueles; não, lá casaco não, parecia
que o engatavam à cerimónia de enterro ou casamento
- tudo enterros, ao resto, - chasqueou o Fateixa, aproveitando
a deixa para esporear a Carramilo. Esta não se deu por achada
e meteu a resposta no fel; só lembrou ao companheiro que não
se metesse com brutos, sim com gado bravio, o que havia de
ser!, embora na dela se referisse ao presumido do Manel,
um rabo de galo cheio de vento e de malícia.
Meteram os homens pelos carris da Lezíria, que o
Zé Bogas conhecia a palmos nas suas andanças de caçarreta. Em
menos de duas horas estariam lá caídos, garantia. - Dias não
são dias - filosofava o Marujo, de garrafão atestado. - Um
homem não é escravo da vida nem de gajo nenhum.
Os outros ouviam-lhe a parlenga sem convicção. Estava um
amor de dia, soalheiro, lavado; até queimava a vista. Coração
ao largo, tristezas não pagam dívidas, fizeram conversa de
paródia. Para o Tóino da Vala tudo serenou quando o João
Marujo veio às boas e lhe jurou pela alma do pai que não se
lhe atravessara com a rede por garganeirice ou maldade; distraíra-se, então, não vira o saveiro do amigo, são coisas que assucedem. Estendeu-lhe a mão:
- Aperta a minha mão honrada, Tóino!
Acabaram num abraço e beberam ali mesmo uma
pinga, à sossega. Luziram os olhos de ambos; e meteram-se
num rosário de lembranças boas, tu cá, tu lá, nada de
ressentimentos, o pior são as mulheres quando entram nestas
coisas e começam a tirar o pó às teimas e aos zelos.
- à minha enxoto-lhe as moscas mal ela começa no reco-reco. Jogo-lhe um badanal e ela cala-se; fica que
nem um prego.
O ajuntamento de povo abreviou-lhes a carreira no
último quilómetro. Bem diziam os companheiros, pensou
o Tóino. Ia um mar de gente por todos os caminhos. Ah,
grande dia! Zé Bogas largou numa corrida; parecia um
gamo de perna curta, o alma do diabo! Os outros foram-lhe na
cola.
- Eia de povo!
Sentaram-se à má cara na primeira fila, mesmo ao
jeito de verem o curral. Na praça não cabia um bugalho,
comentou o Fateixa, alargando as vistas pelo mulherio.
Quem quisesse ir molhar o bico ou verter águas, perdia
logo o assento. Tino de homem, tino a valer, tivera o João
Marujo quando pedira o garrafão emprestado para arrefecer o
calor. Não era lá grande coisa a pinga cartaxeira, baptizada
em mais duma água, com certeza. Mas servia.
- Aquilo também era pra sair por cima ou por
baixo - explicou o Fateixa, sempre de carinha na água.
Quem andasse à sua ilharga não morria de pasmo, isso não.
Viera malta da Toureira, do Vau e do Mouchão da
Malandrice. Se houvesse zaragata com campinos por mor
da ferra, não faltariam amigos para dar ajuda, embora
não viessem ali para rixar. Mas se pegasse nesse jeito,
que remédio!
Para os avieiros a festa soava a dobrar. Excitavam-se
em palmedo e grita, chamavam uns pelos outros, assobiavam de
dedos na boca, como se pagassem bilhete e a espera fosse a
mais, sim senhor, que rica tarde! Primeiro
de Agosto dá primeiro dia de Inverno no calendário da
pesca. E ainda bem. Dentro de um mês toca de arejar as
redes varinas, meter-Lhe pandulhos novos ou porfiar malhas
partidas, vivendo no aconchego de safra graúda. A como
pagariam o sável este ano? !.
O campo estorricava. Os trigos serôdios já pediam
foice, reclamavam os gados por restevas novas e os arrozais
mudavam para verde-cré. Estavam as mondas feitas e o tempo
aprontava o resto. Os outros lavradores faziam ferras em
Maio, mas aquele pensará festejar o ano todo quando o último trigo se chegasse à debulhadora.
- Não lhe cabe um feijão no rabo - comentou João
Marujo depois de tirar o boné ao lavrador, que aparecera
em riba dos currais, de pampilho sobre o ombro.
Parecia opado, o lavrador Prudêncio. Ficara um odre
em menos de dois anos; nem a cinta preta lhe segurava
a calça justa, nem a jaqueta de cotim Lhe caía a jeito,
aperreada nas cavas e nos ombros - pusera-se um trongo
com medo da pleurisia que agarrara numa passagem de
gado para a Charneca. Só ele sabia que naquela ferra
também festejava a saúde, segunda parte de uma promessa
cumprida já em Fátima com um quilómetro hem puxado nas
rótulas, embora tivesse mandado fazer joelheiras forradas a
pele de ovelha. Convidara amigos de Lisboa, para quem guardara
o palanque coberto a esteiras novas, e mandara assar dois
bezerros bravos para quem quisesse abancar. Vinho, cada qual
que o levasse, constara depressa; por isso mesmo, não faltavam borrachas, cabaças e pcquenos pipos que passavam de boca para boca, em confraternizações de palmadas e pingas.
O dia punha securas na bica de uma fonte.
E o João Marujo bem andara em encher o garrafão
para si e mais os três companheiros de estúrdia, entre
os quais se havia de tirar sorte para paga da patente da
segunda enchedela.
Quando o primeiro bezerro apontou à porta do curral, foi um
alvoroço de assobiadelas e desafios. Só os criados da casa,
porém, lhe fizeram frente, furtando-se às acometidas do bicho
de mãos descansadas nos quadris sobre a cinta vermelha. Estoirado de cabeça, o bezerro corria à volta da arena (tinha lume nas patas, o alma do diacho! ajoelhava nalguma curva mais apertada, se lhe acenavam barrete de qualquer esconderijo, mas logo continuava no rodopio, espantado da algazarra que lhe fazia o povoléu de cima do cercado. Logo depois, mesmo antes
de o agarrarem, rompeu praça um bezerro malhado, ferido de
anca pelo aguilhão do maioral. Já o outro berregava de língua
pendente, sem saber a que desafios podia dar confiança, tantos
valentes o apoucavam. Mesmo cansado, um bezerro não é de pau.
E num resto de génio rompeu para o vulto mais afoito, um
rapazola alto de perna e enxuto de tronco que lhe batia palmas e o desfeiteava com punhados de terra ao focinho. Meteu a cabeça a bufar, de cornitos engravitados à procura do valente,
mas o valentaço embarbelou-se bem, de unhas fincadas
no pescoço magro do bicho, que tentava varrer o chão da
praça com o seu corpo.
Cá de cima a gritaria aumentava. O carrascão ia mais
para os pulmões e a cabeça do que para a barriga. Começaram os
remoques pesados.
- Eh, garraio de trampa! Isto não é gado nem é nada!
- Metam o bicho à charrua! Charrua! Charrua!
Um magote de criados atirou-se ao segundo animal,
que já volteara dois valentes pela banda das curvas. E daí
a momentos, com amarra nos pés e joelhos de campinos
no lombo, as ancas dos bezerros fumegavam sob o ferro
em brasa. Cheirava a carne queimada. Uivaram os bichos
com a dor do ferrete. Então, empurrado pelo vinho travesso,
saltou do cercado um pé descalço; de camisa aberta a mostrar o
peito guedelhudo e calças derreadas nas pernas, atravessou a
arena a balouçar e foi agarrar-se aos chavelhos do bezerro
malhado, todo pimpão, como se sòzinho domasse um toiro dos que
conhecem a cartilha
de trás para diante.
Gritou-lhe uma voz:
- Olha que ele marra, pá!.
- Larga o animal! O que ele quer é mama!
- provocou um granjolão de borracha a tiracolo.
O alarido crescia sempre.
- Não te chegues ao garraio, que o embebedas
com o bafo!
- Eh pá! Larga o garraio, que te borras!
Feitos entre si para armarem partida aos abelhudos
à uma os campinos largaram os dois bichos, fugindo para
os esconderijos. O primeiro bezerro, mal se viu à solta
espinoteou a praça toda, procurando tocar com o focinho
a anca ferida e lambuzada de cal. Mas o outro, o malhado,
não conseguia levantar-se com o corpanzil do rapaz pendurado
no pescoço. Os de fora riam e vociferavam. Já poucos
distinguiam o garraiote do pé-descalço, tão embrulhados
estavam ambos naquela luta de fuga.
- Larga a criança, calmeirão! Deixa o animal!.
- Isto não é gado nem é nada! - gritou um velho, que
já começara a contar aos parceiros certas histórias do seu
tempo de maioral. - Isso é que havia toiros! Toiros do
tamanho dum comboio, pois então! A isto chamava a
gente gado de trampa; carne para bife! - voltou a bramar para
a praça. Atarantado com a algazarra, o pegador fraldiqueiro
levantou a cabeça, viu braços a acenarem-lhe, teve um
pressentimento ruim no meio das tropelias do vinho e
quis erguer-se. Mal se conseguiu safar, ainda de gatas,
o bezerro pulou-lhe por riba e atirou-Lhe um coice à
ilharga.
Os de cima gargalharam à tripa-forra. Zé Bogas
desarqueava-se a rir, como disse o Marujo, todo amizades com o
Tóino da Vala, a quem entregara o garrafão da
terceira volta. O pé-descalço lá se levantou no meio da
arena e desafiou-os a todos lá para dentro - ali é que
se viam os homens. Quando os bezerros recolheram ao curral, uma aclamação cerrada encheu-o de farroncas.
E o exemplo empurrou o vinho de mais uns tantos.
Em mangas de camisa, apanhavam punhados de terra
para esfregar as mãos e iam depois abraçar o valentaço,
que babujava insultos aos campinos, uma corja de malandros!,
uns malandros que se punham do lado dos bezerros pra lixarem
um homem! Mas os aplausos da matula aumentaram-lhe a empáfia.
E logo daí armou um grupo de forcados de que ele se fez cabo,
dando indicações aos companheiros para as pegas e pondo-se ele
ao jeito do melhor esconderijo. O coice deixara-Lhe sinal no
quadril.
Sem aviso da campinada, saltaram pela porta grande
dois bezerros espevitados e esgravulhas, seguidos de outro
menos espirra-canivetes e de testa malhada. Os três varreram a
praça em duas voltas. De pé ficaram poucos curiosos; de boléus
perdeu-se a conta. Tóino da Vala já não se sentia bem ao pé dos amigos. O João e o Zé Bogas quiseram mostrar das suas e desafiavam-no.
- Lá por serem do trato do Mar, tinham braços como
os outros. E dois olhos.
- Dois olhos vivos prà gente se pôr na alheta se for
preciso.
Nas andanças de fugas e brincas, embrulharam-se os
avieiros na chusma dos atiradiços. Com o Tóino ficou o
Manel Fateixa, pinga puxa pinga, uma côdea de pão enxuga meio
litro e o calor ensopa outro tanto. Resmoíam mais isto e mais
aquilo; tratavam-se por compadres, o
primeiro crianço que nascesse em qualquer dos dois
barcos já tinha padrinho, e tal, e tal e coisa; estavam
capazes de prometer Lisboa um ao outro. Bem os dois
amigos os desafiavam lá de baixo para a função, metendo-os em
Itrios de lide a pé leve. Enquanto os campinos baldeavam os
três bezerros e lhes punham o ferro do lavradór Prudêncio, saltaram mais homens para a arena, como se a bicha de um azougue os agarrasse ao mesmo tempo. E nesta virada, num
repente, sem dizer água vai, compadre Manel Fateixa
galga também à praça e aí se põe ele agarrado ao pé
do Tóino da Vala a querer metê-lo na alhada. Zé Bogas
surriava-o:
- Ó Tóino tu és caguinchas. És caguinchas, pois,
e eu vou dizer à tua mulher.
- É só um encosto - garantia o Marujo, que já beijara terra.
- Os animais não marram; só bufam. - Um homem do Tejo não se
arreceia dum toiro
quanto mais dum cabrito - insistia compadre Manel
todo derrancado de pernas.
Tóino da Vala negava com a cabeça, mas o corpo pulava-lhe
para a tropelia. Cagarola nunca fora; nisso queria meças com
qualquer. Lá com gado bravo era caso para ver. Mesmo com
bois, carago! Os campinos são homens como os outros; ou não
são? Começou depois a sentir-se muito só lá em cima, um tanto
traidor por abandonar os companheiros; o que diriam depois?
Iam moer-lhe os fígados, com certeza. O toutiço andava-lhe
num badanal, ó rapazes!, parecia mesmo que se metera numa
roda de cavalinhos, de-roda-de-roda, via as coisas e as pessoas aos balanços, muito trupe-zupe de cabeça, a ficar triste, triste quase com ganas de chorar, porque sem amigos e sem vinho à mão sentia-se aborrecido e tonto, tonto, tão tonto, que se lembrava da roda de cavalinhos. Só andara uma vez em máquina dessas, na Feira dos Santos, do Cartaxo, e jurara para nunca mais. Um homem, quando se embebeda, deve
ser com vinho. E vinho tinto, pois então!
Lá de baixo, os camaradas continuavam a provocá-lo.
Viu dois deles a sacudirem as calças, pois naquela
saída viera um bezerro negro, duro de cabeça, espirrador
que nem um foguete, e a malta debandava ou jogava-se
para o chão por mor dos coices. Toda a praça assobiava.
Os campinos e os convidados riam das fugas e dos sustos
um valente desafiara o bicho com o casaco que largara de seguida para se pôr a salvo, mas depois tivera pena
do casaco e voltara atrás, chocando de frente com o bezerro,
cegos os dois, como se fizessem parte da mesma manada e
disputassem a chefia entre si. Deu o valente
duas voltas no ar, para vir outra vez aos tropeções em
busca do casaco que desaparecera, não se sabia como;
agarrou-o o bezerro pelas curvas das pernas e fê-lo baldear de
novo, até que o valente se acobardou, pondo-se a fugir de
gatas para a vedação, aos gritos pelo casaco,
tinha lá a féria toda, a sua rica féria ganha na ceifa.
Ouviu-se nessa altura o vozeirão de um campino:
- Ponham lá fora esses gajos de pé descalÇo!
Tóino da Vala ficou molestado com o insulto; pior
do que levar um coice pela banda dos queixos. Pensou
ainda dizer qualquer coisa para tirar desforra, mas as
palavras perdiam-se-lhe na boca, o vinho devia ter goma,
raios partam isto!, e então deu-lhe a veneta para se atirar à
praça; jogou-se de chapuz. "Um homem é algum bocado
de trampa ou quê?! resmoeu envinagrado. Viu o bezerro
entretido a forquilhar um rapazola, tão enrolado de medo
que parecia de berço, e gritou para o palanque do
lavrador:
- Deixem cá o animal comigo! Agora é que se vai
ver quem dança!.
Avançou uns passos a cambalear, fez-se rúfio e ficou
sòzinho no meio da praça. Ó praça dum raio, que nunca
mais deixas de andar à roda! Pulou duas vezes a bater
as palmas e pespegou depois as mãos atrás das costas,
como vira fazer a um forcado na feira de Vila Franca.
-Eh boi! - lançou num desafio.
Esticou o peito, mas os joelhos derrearam-se; logo se
empinou a procurar equilíbrio, limpando a boca com o
punho da camisa.
- Eh toiro!
O bicho resolvera-se a tratar do outro e não lhe dava
confiança. Tóino da Vala melindrou-se com o desdém do bicho, deu mais uns passos e atirou-lhe um punhado de terra.
- Eh boi dum filho da mãe!. Marras ou quê?!
O garraiote voltou-se, estremeceu a cabeça e encarou
com ele; mediu-o, bem medido, como se estivesse a escolher
sítio para lhe pegar, escarvou a terra revolvida da praça e
ergueu outra vez a cabeça. Depois mugiu.
Tóino da Vala arrepiou-se, mas repetiu o desafio das palmas.
Então, a bufar com palheta de gamo, o bezerro arrancou para o
vulto, que o sentia crescer, crescer cada vez mais,
parecia mesmo um prédio de casas a correr
para ele de chavelhos em riste. O malandro do garraio
fizera-se pequeno para o enganar, pensou o Tóino cheio
de frio e ânsias de abalar; as pernas, porém, não lhe
davam ajuda, as falsárias! Num instinto de defesa, pôs
as mãos à frente, lembrou-se de Deus Nosso Senhor, da
bruxa da Glória, da mulher e do filho, e ala que aí vai
um homem para os pássaros e para os anjos. Com o corpo
amassado entre a terra e aquele diabo negro com chavelhos,
julgou que o maldito o levava pelos ares fora, tão longe já
ouvia as gargalhadas da súcia. Queria gritar, a
boca secara-se-lhe, arrotou fundo, pois não!, uma bulada
daquelas era de virar as miudezas todas a um maltês.
Quando se sentiu agarrado, pensou na sua que o bezerro até
mãos arranjara para pôr ao jeito quem lhe caísse debaixo da
cabeça. Mas do fundo do céu ouviu uma voz:
- Tóino!. Eh Tóino!.
Abriu os olhos a medo. O Manel e o João Marujo pegavam-lhe
pelas pernas e pelos braços, levando-o em charola para
o canto da praça.
- O gajo fez-te lenha, pá! - disse um deles. "Gaita
pròs amigos!", pensou o da Vala.
Ataram-Lhe um lenço à cabeça depois de Lhe lavarem
a ferida com aguardente, doía-lhe, carago! Os das bancadas
aplaudiam-no, mas Tóino só via a cara de um campino
a rir-se dele e a gritar: "Ponham lá fora esses gajos de pé
descalço!" A lembrança buliu-lhe no asco, furtou-se
aos amigos, tonto, tonto de todo, levava-a fisgada, e quis
desafiar o malandro que provocava a sua gente. A voz,
porém, voltou a falhar, enquanto o corropio da roda lhe
pegava no corpo e o punha a girar outra vez. Incapaz de
se desforrar em palavras, repuxou dois manguitos com
toda a força que juntou nos braços fanfos e desmaiou a
seguir, indo-se abaixo das pernas; pareciam de lama, as malditas.
O HOMEM SOU EU
Só quase ao anoitecer procuraram caminho para a
borda do Tejo.
O João Marujo perdera o garrafão e nem se lembrava
de que tinha de pagá-lo na taberna onde o enchera pela
primeira vez. Animados na conversa, metiam-se depois
a cantarolar qualquer moda. E quando um deles voltava
a falar, os outros só Lhe davam troco ao cabo de muita
repisadela.
Mal dava a estrada para os quatro. Levavam-na de
berma a berma, como se as árvores os empurrassem, fazendo-os
num harmónio. O Tóino da Vala, de camisa nova rasgada de
alto a baixo e boné de astracã numa nódoa de vinho e terra,
caminhava atrás; as pernas pesavam-lhe mais do que os
chumbos todos da sua saval branqueira e a cabeça outro
tanto, numa dor pegada; parecia que do lado direito Lhe
crescera um corno grosso, muito dorido.
- Gaita para os amigos. Deito-me eu ao bicho por mor
de vossemecês e nem um me deu ajuda.
- Não combinaste com a gente! - retorquiu, azedo, o
Zé Bogas. - Armaste em teso e o bicho deu-te a maquia.
Grande maquia, ó Tóino!
- Agora no barco é que vão ser elas! - resmoeu o
Marujo, ressabiado outra vez com o companheiro.
- No barco porquê!
- Cá por coisas!
- Quais coisas?! Diz lá quais coisas!.
- Ora! Querem ver que tu não sabes!
Tóino da Vala agarrou o Marujo pela manga da camisa;
apetecia-lhe baldeá-lo à cabeçada.
- Diz lá essas coisas!.
Arreliador e travesso, João Marujo adivinhou o pensamento do
Tóino e logo se pôs a agatanhar-lhe os brios.
- Se não é a gente, o garraio fazia-te numa sopa;
nunca mais és homem. Vale-te a companheira que arranjaste.
Os outros dois camaradas perceberam o trunfo e toca de
jogarem com força.
- És um fala-barato. Quando dizes que viste um milhafre,
viste um mosquito; sais ao teu avô.
- Se não te calhasse uma mulher daquelas, andavas com uma mão à frente e outra atrás pra não se te verem as vergonhas.
- Aquilo é um homem.
- Qual homem? - resmungou o Tóino, desdenhoso.
- Tem sangue de Carramilo lá dentro. Nem que te
matasses davas com outra igual. Ela, coitada, andava
cega, quando abalou contigo. Podia hoje ser uma rainha.
- Mas no barco desse gajo ela é o rei. Quem manda
é ela.
- O homem sou eu.
- Só porque andas de calças? Ora!
- Calças também a Olinda tem. Mais curtas, mas
são calças.
- Aposto que nunca lhe deste um murro. .
Hesitou o da Vala:
- Quantas vezes!. Até mia. Isto de mulheres é pão na canhota e porrada na outra, pois então! Lá no barco
falta tudo menos isso.
- Ena, que grande taínha com barbas!
- Ó Tóino da Vala! Diz lá a verdade só uma vez:
se Lhe tocasses, até amarinhavas pelas árvores.
- Que nem um macaco.
Tóino da Vala arreminou-se com aquela e voltou-se
a um dos camaradas, abanando-o com as mãos. Intervieram os
demais na contenda, puxa de um lado, larga do outro, e a
camisa nova ficou-Lhe presa nos ombros em
duas tiras.
- Queres um homem, pois aqui o tens - refilou
ainda. - Não andei a fugir dos toiros como vossemecês.
Data de caguinchas!. Quando agarrei o bicho pelos cornos,
ninguém mo tirava das unhas, ouviram?
Responderam-lhe com gargalhadas.
- Um homem.
Nesse momento reparou na carantonha da Lua. Quis
encará-la, mas a luz macia batia-lhe nos olhos e turvou-o
mais. Puxou o boné de astracã para a frente, a defender-se da
perturbação, guinou duas vezes para a direita, contrabalançou
só uma para a esquerda, e teve a sensação de que a Lua lhe
dera um coice no meio da testa, atirando-o para a berma do
carril. Vista do chão, a carantonha amarela andava também
na roda de cavalinhos, a girar, a girar, entrava-lhe pelos
olhos, moía-lhe a cabeça num sal miúdo e entrava-lhe
pelo estômago num rodopio danado, a chocalhar-lhe o
vinho e o pão, a marrada do garraio e o alarido do povo
a gritar-lhe que fugisse.
- Um homem não foge.
Deram-lhe ajuda e ergueu-se, a bater as mãos no peito,
desesperado, como se quisesse parti-lo em estilhas.
- Queres um homem?. Aqui tens um homem. Havias de ver o
toiro, aquilo era um prédio de casas, o filho
da mãe. Apareceu pequeno, mas depois começou a crescer, a
crescer, se eu não o agarro.
Os outros esbandalhavam-se a rir.
- Se eu não o agarro, estava agora no Céu à marrada àquilo
tudo. Nem tu escapavas - gritou para a Lua.
Pegaram-lhe os camaradas pelos braços, arrastando-o
ao sabor dos tombos. Era como se levassem homem
morto. Tiveram de pendurá-lo nos ombros do Manel Fateixa e do
Zé Bogas; um deles reparou que Lhe arrastavam os pés já
escalavrados, e o João Marujo pegou-lhe nas pernas,
apoiando-as nos antebraços. De cabeça a bambolear ao ritmo da
marcha, dizia ainda palavras soltas, adormecia por instantes,
numa respiração bufada, e depois voltava a falar aos gemidos,
sacudindo a voz. Sonhou que voltara à praça e estrebuchou aos
gritos. Esquecera o caminho e o carão amarelo da Lua, mais
embriagado pela luz do que pelo vinho. O latejar da cabeça
parecia um martelo a bater nos cornos do garraio.
- Um homem.
- Tu sabes o que é um homem? - perguntou-lhe o
Zé Bogas.
- Um homem é um bicho. Um garraio é um bicho. Tudo são
bichos.
- Mas há bichos que marram e há outros que fogem.
- Eu não fugi. O único que não fugiu está aqui.
Na regadeira de um arrozal deram-Lhe banho à cabeça.
Escoicinhou os camaradas, mas acabou mais direito. Parecia ter
acordado de um sono longo e cheio de pesadelos.
Espreguiçou-se; as tonturas saíam-lhe pelas mãos e pelos
bocejos.
Quando chegaram, não havia uma luz acesa na Toureira. Só o
luar polvilhava as sombras de claridade baça. Cansadas de
esperar por eles desde o sol-posto, as companheiras vieram ao
seu encontro.
- Ai, o Tóino!
- Vem numa açorda - explicou o Manel Fateixa.
Mal o deixaram no apoio das pernas, vergou-se para
diante, mas reagiu.
- O meu barco? - perguntou.
- Está ali ao ferro - respondeu uma voz de mulher.
- Devia estar aqui mesmo à minha espera. A mulher
espera sempre pelo seu homem, seja a que hora for.
Aos balanços, como se a areia empapada não lhe
aguentasse o corpo, caminhou para a borda do rio, a resmungar,
azedo da pinga, do boléu e das conversas dos camaradas.
Vinha-Lhe tudo em balbúrdia, aos tombos
como os dele, sem esquecer a ofensa do João Marujo;
havia de lhas pagar um dia, negro ficasse como o alcatrão de
calafetar os barcos. O reflexo do luar no Tejo irritou-o
mais. Seguiam-no um cortejo de gargalhadas e vultos. Gritou com raiva:
- O meu barco! Venha aqui depressa o meu barco!
De remo fincado no ombro, Olinda deu volta ao saveiro para
encalhá-lo de lado, mais ao jeito de o companheiro entrar.
Pelos risos e vozearia percebera que o passeio trazia fanfarra
de vinho. Sorriu.
- Como vens, Tóino!
- Como venho? Essa agora! Que falas são essas?!.
O homem sou eu, ouviste?
Ela saltou para a praia a querer ampará-lo, agarrou-lhe no
braço, mas ele sacudiu-a; olhou depois a mancha cerrada dos
vultos e correu para a mulher, numa corrida
curta, meio tombada, que ela segurou com o corpo.
Tóino da Vala recuou um passo para Lhe atirar uma
punhada à cara. Ela só baixou a cabeça, lembrando-se
do que a sogra lhe dissera; esperou pelo resto, outra e
mais outra, estava ali para apanhar o que ele quisesse,
só punha a condição de não chorar, embora o coração lhe
sangrasse de vergonha.
Interveio o João Marujo para afastá-lo, mas ela sacudiu-o.
- Vocês agora viram todos que o homem é ele - disse Olinda
com raiva. - Deixa lá o homem bater
à vontade na mulher que lhe pertence.
MAIS FORÇA, LINDA!
- PUXA lá isso!
A voz tinha gume. Havia três semanas que ela
se recusava a dormir debaixo do toldo, sentia-lhe a falta
dos carinhos e do aconchego do corpo, mas não podia confessar
arrependimento, senão estava perdido para o resto da vida.
Ouvira o Ti João Lobo dizer muitas vezes que
as mulheres gostam de mandar; lá porque são elas a vender o
peixe e a governar o dinheirojulgam que as crianças e o homem
andam todos debaixo das suas saias de mãe.
Já a chamara por cinco vezes para junto dele, à noite,
e ela pegava na manta, sòzinha, e ia deitar-se à ré, Naquele
tempo todo dera-lhe meia dúzia de palavras.
- Puxa lá isso mais certo! - insistiu, agressivo.
Deitou-lhe um olhar duro de culpa, enquanto a mulher puxava
o chicote da rede por um cabeço de areia que o Tejo deixara
descobrir na baixa-mar. Assim pendida
para a frente, parecia que os seios, a linha da anca quebrada
pela faixa preta e o contorno das pernas se tornavam ainda
mais provocantes. Numa das noites agarrara-a à força,
atirara-a para cima da esteira e nem à pancada
conseguira dobrá-la.
Uma tainha saltou na água, perto do barco, a troçar
do lance.
As malhas das suas redes traziam mau-olhado, não
havia que ver. Punha as nassas e os botirões nos melhores sítios de peixe, mas nenhuma caverna era mais pobre do
que a dele, pensava o Tóino. Soubesse doutro ofício qualquer e
bem se lhe daria em abalar por terra dentro, à cata de
trabalho. Que faziam ali?!. Os velhos falavam
num Tejo que fora um jardim de peixe; e diziam que
andavam todos a pagar o pecado das guerras e das artes
modernas de pescar. Um dia o Tejo compensaria os que
ficassem. Tretas!
Deixar o rio era coisa reparada, assim uma espécie
de traição à família e ao seu povo; mas andar no Tejo
só a colher cavacos e ervas, se não ainda algum peguilho que
destruísse as redes, era morrer aos poucos. Já se lembrara de
deitar até à bruxa da Glória com a mulher
e o filho - quem sabe se ela não trouxe alguma praga
em cima rogada pela madrinha?, e agora que a velha
morreu, sei lá!.
A falta de amor forrava-o de negro.
Todos se queixavam, sem casa havia mais avieiros
do que abrigados, as artes dos outros não andavam menos
lázaras do que as dele, mas o Tóino perdera a fé. O saveiro
encalhou no cabeço de areia e ele saltou fora com a outra
ponta da rede na mão; mais além, a companheira prosseguia no
mesmo passo resignado.
-Puxa certo ! - gritou-lhe.
A rede fazia um semicírculo no rio, todo marcado
pelas bóias. No começo da enchente a água farfalhava.
O Tejo era luz. A tremulina fechava os olhos cansados.
Lado a lado, agora, ainda sem palavras, voltaram-se para
a rede, de braços pendidos para que o peixe não fugisse;
além das bóias, uma fataça sacudiu-se de barbatanas abertas,
acenando com a negaça do corpo prateado.
- Está presa! - gritou Olinda num relâmpago de
alegria.
O homem entregou-Lhe a sua ponta da rede e meteu-se
pela água dentro, até aos ombros, a aliviar as bóias.
Bradou-Lhe de lá. Depois regressou a correr para tomar de novo
a mão da barca.
Acocorados na areia, seguindo o fechar do saco, de
olhos fitos, como a desvendar-Lhe o segredo, foram juntando a
corda aos pés, uma braçada e outra; quando deitaram a mão à
primeira bóia, recolheram-se mais ainda, reprimidos pela
emoção. Os braços iam e vinham, lentos;
os gestos mal se definiam com receio de espantar a pesca.
Interrogaram-se com os olhos.
Ela acenou a cabeça e prosseguiu.
João da Vala espreitava-os da borda do barco e mostrava-lhes
o cão que o maioral Luís lhe oferecera. Rebiteso, o cachorro
ladrou aos donos a querer escapar-se do abraço do garoto.
Como peixes mortos, vieram emalhados alguns pedaços de
madeira.
- Bom sinal; onde há lenha há peixe.
Parecia que nem tocavam a rede. Uma a uma, as
bóias chegavam espaçadas a repetir o tempo. E vieram
mais, e vieram todas, nem um pampo, nem um barbo.
Na caverna de escoar, ao fim de quatro lances, um punhado de
linguados miúdos e duas tainhas.
- Nem os pampos morrem - disse Tóino da Vala agastado.
Pensara ir vender o peixe no dia seguinte, ela que
ficasse com o filho, e o raio da sorte não o ajudava. Tinham
de fazer as pazes, já não podia mais viver assim ao pé dela, e
lembrara-se de lhe oferecer um chapéu preto de veludo com uma
pena de pavão. Nunca lhe comprara uma bugiganga.
Pegou na rede às costas, saltou para o barco e atirou-a
lá para dentro, ao acaso. Quando se sentou à proa, o filho
aproximou-se com o cachorro para lhe contar que o bicho
havia de ser um caçador de três assobios: vira um pássaro
a voar e ladrara-Lhe. Como se Lhe entendesse o elogio,
Malagueiro, o cão, abocanhou a fralda da camisa do rapaz e tanto puxou, tanto torceu, que João da Vala caiu
de costas.
- Onde vamos?. - perguntou Olinda, agarrada aos remos.
- Tanto faz.
O cachorro correra para junto dela, a lamber-lhe
os pés.
A remar de pé, via o rio a saltar na areia, deixando
à transparência da água os seixos coloridos. Parou o saveiro
para agarrar alguns e atirou-os para o filho. Os salgueiros da
margem refluíam com o singrar do barco,
levado agora à força de vara contra a corrente.
- Prepara a rede -. disse a mulher.
Já lhe falara naquela tarde mais do que em três semanas.
Animou-se.
- O arrais é que manda - respondeu ele a gracejar.
Ela sorriu.
- Vamos dar uma ripada ali abaixo. Tenho fé.
A assobiar, Tóino da Vala dispôs a rede para o lance
e tomou a vara das mãos da companheira; antes disso
deu-lhe uma palmada na anca.
- Já sei que vamos agarrar peixe.
Deixou-a noutro cabeço de areia, entregando-lhe a
corda do chicote, que ela passou sobre o ombro.
- Vais tu vendê-lo - disse-lhe sem adivinhar a intenção do
homem.
- Palavra!
- Palavra dhomem!
Tóino envergonhou-se:
- Não fales nisso.
Firme nos passos, Olinda Carramilo caminhava a passo
firme pelo areal.
- Puxa bem! - gritou-lhe o companheiro.
Puxou com toda a força. Mesmo que o mundo caísse dentro
da rede, ela sentia-se capaz de arrastá-lo nos braços.
- Mais força, Linda!
AREIA DE FORMIGAS
OS que agenciaram dinheiro para ir aos meloais carregar as
bateiras, partiam rio abaixo, a caminho de Vila Franca e de
Alhandra, onde faziam mercado à
beira do Tejo. E se as cargas de fruta boa, crescida em
doçura e de casca enrugada, rendiam para a despesa e o
trabalho, outro tanto valia a viagem, porque sempre os
olhos se arregalavam a ver terras mais opiniosas, outra
vida, outra gente, bastava uma pessoa sentar-se no passeio
duma rua e só a vista dava gozo, era mesmo um ai-jesus de
senhoras bonitas e lavadas, contara a Ana Carramilo à filha.
Mas o Tóino não quisera pedir dinheiro emprestado
para o negócio, andava medroso de dívidas; da safra do
sável na companha do Zé Malho ficara uma nota, depois
de pagarem as contas da loja. Para quem trabalhava
debaixo das ordens do Espanta não bastavam as ervas dos
valados e o peixe menos valioso das pescarias. De sol a sol
ninguém ali arriava. Ao lado dos murtoseiros, era dar-lhe para
diante, se um homem não queria ficar de cara envergonhada e
sem patrão onde matar o corpo no Inverno seguinte.
Agora só havia que correr o Tejo em cata de abrigo
e de peixe; ao menos ganhava-se para o pão, às vezes, e
teimar, teimar sempre, era a única achega capaz de evitar
a morte pasmada de fome. O Tóino ficara apurado para
a vida militar, ainda por cima, e seriam muitos meses
sem ele, Maria Santíssima! O telhado era ainda o mesmo: toldo armado no tempo das chuvas e estrelas nas noites quentes; distraía vê-las correr e piscar no escuro, nascerem
ou apagarem-se lá em cima. A Sra. Clotilde afiançara-lhe que um dia qualquer, talvez no Verão, haveria uma chuva de estrelas para queimar a Terra toda e os
pecados das pessoas. Credo, Mãe Santíssima!
Uma noite zangara-se com o Tóino por causa das estrelas e do
filho. Olinda vira uma estrela correr no céu, percebera que o
João olhava para a noite e apressou-se a esconder-lhe a cabeça
no regaço.
"- Que assucedeu? - perguntou o Tóino, deitado de costas.
- Nada.
- Escondeste a cabeça do cachopo.
- Pra ele não ver uma estrela a correr.
- Porquê?!
- As crianças não devem ver as estrelas correr. Ficam gagas;
podem até perder a fala.
- Isso é parvoeira. Quem te meteu essa na cabeça?
- A madrinha. Ela contou dum menino de Muge
que ficou sem fala.
- As pessoas dizem parvoeiras do que não sabem.
O João vai ser pescador como eu, não vai ter outra vida,
e precisa de conhecer as estrelas. Eu conheço-as desde
pequeno; nunca me fizeram mal. Não falo mais porque
sou bruto"
Ele agarrou no filho e levantou-o nos braços, pondo-se
a apontar as estrelas, à espera que uma qualquer riscasse
o escuro da noite. Ela benzia-se e rezava. Quando isso
aconteceu, Tóino da Vala falou com o João e ele respondeu-lhe
na mesma, explicado como sempre; falou bem muito cedo, dizia
tudo como as pessoas crescidas.
"- E agora?!.
- Uma vez não é a primeira.
- Não digas coisas tontas.
Agora também ela as conhecia, não tantas como o
Tóino: aquelas são as Três Marias. E aquela, aquela
mais viva, é a do Norte. Ali, a nordeste, fica a Brisa de
Terra e a outra é a Barca.
João da Vala habituava-se a ouvir os nomes da sua
cartilha de homem do Tejo e repetia-os a esmo, de dedo
espetado para a noite. Os dois riam-se da graça; depois
levavam-no à água da caverna do saveiro, para que o filho
visse o reflexo da Lua. E João da Vala lembrava-se, confuso,
do menino que espreitava ali noutro tempo, mas
nunca conseguira agarrar.
Olhava os pais e dizia: "Faz dói. Dói, dói"
O Tóino trazia agora a mulher nas palminhas, porque
ela lhe anunciara que devia estar grávida outra vez. Tinham
ficado ambos muito calados quando ela lhe deu a notícia, quase
triste, pensando no irmão Zé e na Ana Remelga, e em todos
os avieiros que à noite não conhecem outra distracção:
a de repetirem o nome das estrelas e contarem os anos de
companhia pelos filhos que a bateira embala.
Quando teriam casa?! perguntavam-se, sem interrogar o outro.
Com a ida do Tóino para a tropa, ela não podia andar por ali
com os filhos, sujeita às tropelias de
algum maltês falto de mulher. Na barraca do irmão, o
Zé Carramilo, pouco mais havia do que boas palavras,
de tal maneira ele estava carregado de criançada e de
faltas.
No mouchão à guarda do maioral Luís lá tinham eles
alguma madeira guardada para a barraca, além de quatro folhas
de zinco, ainda boas, que a Olinda agarrara na vazante da
última cheia grande. O mal de uns é às vezes o bem de outros,
comentara ela para a prima Maria, a mulher do Zé Bogas. Por
isso o saveiro do Tóino da Vala não se acolhia à sombra dos
salgueiros, nem procurava ancoradouros para repouso. Assim que
atracavam, ela partia, em busca de tábuas para a barraquinha e ele procurava vime para fazer cestos ou bunho para tecer
esteiras. Tinha mãos de oiro, gabava-as a Olinda Carramilo;
quem havia de as gabar?!. . Sentado à frente do tear das
esteiras, ele escolhia agora o melhor bunho para a empreitada: o feitor do lavrador Prudêncio encomendara-lhe dez esteiras para o rancho do arroz.
Encostado à barraca do mouchão, dava companhia
ao maioral Luís, amigo dos bons para todas as horas.
Tóino da Vala falava sem calor, mais para gastar o tempo
e não pensar na abalada até Santarém, onde iria assentar
praça. às vezes entretinha-se com outros avieiros a puxar
conversas da militança, coisas da recruta; há de tudo na
tropa como em toda a parte, gente boa e gente ruim, um
homem abre os olhos, aprende muita coisa nova, conhece
outras caras e o peso do mundo em certos dias, o pior é o
encargo da família de que ninguém se lembra.
Mas a conversa entre ambos corria ao jeito de más
lembranças. E o avieiro disse:
-Tanto faz um homem correr como saltar em certos dias;
tudo sai furado.
- Que nem um crivo. A vida pra mim foi sempre
um crivo de furos largos. Mas nunca me escusei, dei sempre a
cara às coisas. - Há que procurar a côdea.
- Se a gente não comesse, morria de pasmo. As coisas estão
bem feitas para quem ganha o dinheiro. Se um pobre não
precisassse de comer, deixava de trabalhar.
Então, havia de ser bonito.
Acenou a cabeça e fez um sorriso de ironia ao estender a
ponta do cigarro no lábio grosso. A seguir fincou o cacete
numa cova, cruzou os dedos na ponta de cima
e acabou por apoiar o queixo nas costas da mão direita.
O outro sentara-se num cepo à frente do tear, cujas pontas
encostara à barraca do guardador. Nas corcovas da tábua pendiam as oito pedras do tear de outras tantas cordas
que balouçavam.
Tóino pensava no trabalho e disse:
- Dão pouco por isto, mas sempre é melhor que nada.
Mata-se a lazeira e ganham-se uns pregos para o palácio.
- É o que eu digo. Vocês esbagulham tudo; são piores do que
as formigas.
- As formigas devem passar melhor ca gente.
- E vocês melhor que eu. Eu passo às vezes uma
semana inteira sem falar com pessoas. Faço conversa
com o cajado e cos bois; qualquer dia fico maluco.
Ao badalar de um chocalho, o maioral Luís voltou a
cabeça e gritou ao Gravito, que forquilhava òutro boi;
como o animal não se quedasse, atirou-lhe uma pedra.
- Já vendeste os cestos? - perguntou para o avieiro.
- Já, pois. No domingo, no mercado de Salvaterra.
Mau preço. Eram mais cas mães. Nunca vi tanto cesto
junto!. No fim de tudo, ainda tive sorte. Comprou-mos
o abegão do lavrador Prudêncio; ainda me pediu dez
esteiras.
Colocou um feixe de bunho no tear, acamando-o com
a parte mais grossa para baixo, e passou-lhe os cordéis
do extremo do outro feixe já apertado. Puxou as pedras
uma a uma e depois uniu bem a palha. Via-se que trabalhava
agora com gosto pelo que fazia.
- Enquanto se é novo, as coisas todas têm outra cor
- disse o campino, reparando no sorriso do Tóino - O pior é
quando chega o caruncho. - Começou a desfazer a ponta do
cigarro com os lábios, sugava os fios de tabaco e cuspia-os a
seguir, com caretas. - para o caruncho dum homem não há remédio.
Há só um: a morte. Mas enquanto ela não chega, atiram logo com a gente para um canto.
- Não há outro jeito.
- Lá haver, há, a gente é que não o sabe dar. Eu já
não agarro outro tempo.
- Qual?!
-O tempo em que um velho deixa de ser um tropeço
e merece o respeito dos outros. Trabalhei a vida toda,
sabes?! Comecei aos sete na canastra; aos dez já era
anojeiro. Tenho quase sessenta anos de canga e ainda
ando por aqui. Os filhos e a mulher foram adiante de
mim.
O pescador percebeu para onde o maioral queria deitar a
conversa. Assim que Lhe pegava, parecia outro homem:
alumiavam-se-Lhe os olhos, a voz ganhava um calor novo, e até
a cara sabia sorrir.
O Tóino atirou-lhe o pretexto:
- Mas bons dias passou, maioral Luís.
Correu outro feixe nos dedos e acamou-o ao contrário.
- Bons e maus.
Ficou um silêncio. Só o bunho rangia pelo aperto dos
cordéis.
- Aguentei muita trovoada no lombo e muita canseira. Vi a
morte encostada aos olhos muitas vezes.
Fez uma pausa para acender a isca; tirou o lenço
para enxugar a testa.
- Mais vezes do que anos tenho; perdi-lhe o conto.
- Aquela da cheia grande que vossemecê me contou,
foi um milagre.
- São tantas!. Tem me lembrado. Outro dia, ali no
campo - e indicou com a cabeça -, pensei que acabava.
na de um toiro cardino e bragado; salgado e branco da barriga.
uma linda estampa, mas, de mau sangue, atravessado. Que
isto nos touros é como nos homens. Naquela manhã, os animais deram de brigar. Vi-me parvo. Sem vacas pra
tratar no cio, governavam-se entre eles. Estava a ver que me morriam os dois. Quem havera de ouvir o
patrão mais novo? Rasgaram-se não sei em quantos sítios. Iam
um ao outro com uma vontade. Ah, rapazes!. Isto há coisas!.
Calou-se a rememorar. Correu a beata na ponta da
língua e levou-a para o outro canto da boca.
- Já não eram toiros: pareciam duas postas de sangue.
Andaram para ali até que se desimaginaram. Cada um para o seu
lado, mas sempre de esguelha um com o outro. O Andorinho era um animal de poder. Um bicho bem feito de cabeça e corno, duas agulhas que era de um homem se encomendar a um santo.
O Tóino da Vala olhou o Sol. A companheira não
devia tardar, pensou.
- Aquilo deu-me volta ao miolo. Então aquele danado havia de
matar outro?!. Não!. Fui ao palheiro, peguei na vara de choupo
mais rija e montei na égua. O Desertor pusera-se sòzinho a uma banda. Meti a égua a passo, mostrei-lha bem e quando o vi a jeito para lhe dar a crença para fora, abalei que nem um rabo de vento. Ó toiro!. Ó toiro de um filho da mãe!. Medi-lhe
bem a anca e, quando passei por ele, ferrei-lhe uma varada
capaz de voltar o mundo do avesso. Não sei como aquilo foi.
Corre-me atrás da égua, pegga não pega, eu a furtar-me, ele à
brida, e zás! Baldeia com os dois pela pastagem fora. Não
posso dizer como me safei debaixo da égua. Assim que me vi
solto, medi logo a saída. Depois de dar duas forquilhadas na
montada, endireitou-se comigo. Valeu-me um moirão. cortei-lhe as voltas e atirei-lhe com o barrete. Pisou-o todo. Esfrangalhou-o num ar. Era toiro
danado!. Tinha um sangue ruim. Quando
se foi outra vez à égua, até parece que a mordia. Matou-a
à cornada.
Teve um amargo na fala. Tirou o barrete e sacudiu-o
na mão. Correu os olhos vidrados na manada de bois e
lançou um brado sem saber para quê.
- Os outros toiros vingaram-na. Foram-se a ele nessa
noite e o Desertor nunca mais incomodou ninguém. Eu
não me meti naquilo. Nunca vi uma rixa tão fera.
- Mau bocado, maioral Luís.
- Que não mimportava de passar outra vez. Estar
aqui com mansarrões é que custa. Faz envelhecer ainda
mais. Nem com homens mansos me gosto de ver.
E para disfarçar a angústia foi apalpar a esteira.
Agarrada aos punhos dos remos, Olinda Carramilo
meteu o saveiro à vala, na esperança de saltar em terra
e encontrar alguma madeira para a barraca. Podia calhar,
sabe-se lá onde se encontram tábuas! Mas o sítio viera-lhe à lembrança, porque a última cheia abrira ali
uma boca no valado e talvez a corrente tivesse arrastado
para junto dos choupos alguma coisa que lhe desse jeito.
O filho quisera saltar também, agarrando-se-lhe à saia,
amuado; assim ainda ficava mais bonito, até apetecia
comê-lo com beijos.
- A mãe vem já, não se demora nada. Não tenhas
medo, João.
Medo não sentia ele, não; medo de quê?! Mas desejava ver o
campo e os pássaros, estava farto de olhar o rio, sempre as
mesmas cores e as mesmas coisas. No
campo havia mais pássaros e cavalos. Talvez visse cavalos
pequenos como duma vez numa manada, sim, um era branco, de
pernas muito altas e orelhas grandes, sempre
aos saltos e em corridas, ainda se lembráva-julgara-se
capaz de apanhar o cavalinho branco e correra também
aos gritos, tentando imitar os óis do maioral Luís, seu
amigo. Mas o cavalo fugira-lhe aos relinchos e pusera-se
de longe, a dar às crinas.
- Queria ver os cavalos, mãe! - disse amuado.
- Ficas aí a tomar conta do Malagueiro. Ele pode
fugir e um cão faz falta no barco.
Calou-se. Não arranjava resposta para aquela conversa. Então
a mãe voltou atrás para lhe entregar o chapéu de veludo que
tinha uma pena de pavão à banda e pedras verdes de vidro
bonito mesmo na frente. Sorriu.
O cão pôs-se aos saltos à sua volta; também ele gosta do
chapéu de veludo, pensou João da Vala.
Assim que viu a mãe desaparecer no valado, lembrou-se de
fazer como os caçadores. Levantou-se, começou a cuspir no
chapéu, o Malagueiro dava saltos para cima como nunca vira, e
depois lançou-o para dentro de água.
-Busca! Busca!.
O cão correu até ao bico da proa, de olhar firme para
a presa e pernas tensas; João incitava-o, via o chapéu a fugir levado na corrente e gritou, gritou muito. O Malagueiro
acabou por saltar ao rio, nadando, nadando, parecia que o
chapéu corria mais do que ele, até que em dois saltos dentro
de água o abocanhou. João chamava-o-da
borda, acenando-lhe o boné, mas o cão tomava rumo de
terra, onde depois desapareceu.
- Malagueiro! Vem cá, Malagueiro! Chito, chito!.
"Estou desgraçado!", disse para si. "A minha mãe vai-me
dar uma surra!" E logo se pôs a imaginar o que poderia
dizer para ela acreditar. O pior é que depois apanhava
o cão em lugar dele, e era bem feito, pensou a seguir,
porque um cão bom para a caça vem trazer o que agarra
à mão do dono. Chamou outra vez mais alto, embora receasse que
a mãe o pudesse ouvir.
O Malagueiro apareceu em riba do valado, de orelhas
firmes, mas não trazia o chapéu de veludo. Que tinha
ele na boca? Era a pena, pois, era a pena" Sem artimanha,
rompeu a chorar, cheio de mágoa. O cão apercebeu-se das suas
lágrimas e veio numa carreira até à borda do
Tejo, saltando inquieto para dentro do saveiro e indo
lamber as mãos do dono; antes largara-lhe aos pés a pena
de pavão. O Malagueiro repetia a mesma graça sempre
que João da Vala chorava. Mas desta vez não conseguia
que o dono se calasse e lhe passasse a mão pelo pêlo
branco malhado de castanho, por mais que desse ao rabo
e lhe cheirasse as pernas.
-Sai daqui, cão malandro! Tu és um malandro!.
Lá longe, Olinda Carramilo afoitara-se dentro de uma
emposta que parecia abandonada; já passara o cercado
de cana da horta, à beira de uma aberta donde a cegonha tirava
água para a rega. No terreiro das motas, mais adiante, viu
três carretas de cabeçalho no chão; cheia de ferrugem, uma
charrua velha jazia desmantelada junto à enfardadeira. Da
ramagem de um choupo veio o gorjear de um pássaro cantador, um
pintassilgo, pensou Olinda.
Olhou à volta. Ainda hoje, não percebe como se afoitou até
ali. Não, não ia para roubar; queria encontrar alguém, pedindo
o que não fizesse falta e lhe servisse
para a barraca. Trazia outra criança dentro de si, não
se enganava. E o Tóino iria para a tropa lá para Março,
tinha-lhe dito. O tempo assim é vê-lo correr. Some-se.
Foi depois de dar mais uns passos que ela viu, encostada à
casa do guarda, uma tábua de mais de metro, negra da chuva e
do sol; mas servia-lhe. O coração malhava-lhe no peito, tão
inquieto ficou. A medo, chamou: "Ó gente!" Como não lhe
respondessem, voltou a olhar o terreiro das motas e de
repente, sem perceber que volta lhe deu o juízo, correu para o
madeiro, tomou-o nas mãos e deitou a correr para o lado do
rio, em busca de abrigo
no seu saveiro. Embrenhou-se no carril do valado para
se orientar, mas as flores amarelas da mostarda tapavam-lhe a
vista. Então, rompeu caminho à força, num desespero, de braços
a enlearem-se na teia de ramos e folhas, arbustos e cardos.
Atrás dela estalou a voz de um homem:
- Ah, grande ladra!
Num momento voltou a cabeça e viu a avançar pelo
carril da emposta, lançado numa corrida, o guarda dos
aposentos. Lembrou-se de que, se ele a agarrasse, seria
capaz de levá-la a Benavente ao posto da Guarda. Percebeu que
já não conseguia alcançar o saveiro e desamarrá-lo. Correu
ainda, mas percebeu que o campino lhe ganhava distância. Como
se lhe atirasse um braço, jogou com a tábua para o lado do
guarda e deixou-se resvalar
logo depois pelo declive do valado. Os cardos rasgavam-lhe as
mãos e o rosto.
- João! João!.
Por sorte ficara perto, era só uma corrida. O Malagueiro
veio ao seu encontro, pressentiu o homem e começou a ladrar. Ela já saltara para dentro do barco,
agarrando-se ao filho numa tremura. Adivinhava o homem, mas
não podia erguer o olhar; tanta vergonha, tanta, Mãe
Santíssima! Ele ficara mais calmo quando viu que a
avieira só tinha um menino por companheiro. Só aos sábados ia
a casa por umas horas; faltavam ainda dois meses para que o
rancho do arroz chegasse para a ceifa. Falou de voz branda:
-Podias ter pedido, mulher! Não faço mal a ninguém, mas
tenho contas a dar ao patrão. Pegou na tábua e atirou-lha
para a margem, perto do barco.
- E se precisares de mais, aparece. Arranja-se sempre uma
tábua para uma cara bonita.
Olinda encarou o homem; ele sorria-lhe lá de cima,
numa intimidade que ela percebeu.
-Nunca te vi por aqui; quem és tu?!
Crescia dentro dela uma força de raiva e de desprezo.
Amarrou a cinta num arremesso, saltou para fora do saveiro e
pegou na tábua. Olhou-o de frente, bem de frente, mas ele
ainda lhe sorria. Então, Olinda Carramilo não se conteve;
encostou a tábua ao tronco de um salgueiro
e saltou-lhe para cima com os dois pés. Uma vez, duas,
tantas vezes, até que a madeira cedeu e se abriu a meio.
- O que tu precisavas.
-E o que vossemecê sabe já a mim me esqueceu.
DePois agarrou nos bocados partidos e atirou-os para
cima do valado.
- Faça lume com eles. Aqueça-se com lenha se precisa de
calor.
O cão ladrava novamente para o guarda, mal o viu
levantar o cacete acima da cabeça. Ela chamou-o, meteu-se na
bateira e largou a remar a caminho do mouchão. Amuado no
bico da proa, João da Vala pensava no que iria acontecer
quando a mãe lhe perguntasse pelo chapéu de veludo com a pena
de pavão e as pedras verdes de vidro bonito.
SEMPRE?!.
DE sacos amontoados no fundo da embarcação e as
fateiras do rancho sentadas nas pranchas do lado, não vá
aquilo virar-se, pensam elas, um barco grande entra no
esteiro, já colhidas as velas pelo camarada, enquanto o arrais
manobra atirando com o corpo sobre o leme. Depois o barco
segue caminho, a vara e ombro, até ao Ruivo, como se
deslizasse por dentro dos canaviais cerrados.
Tóino da Vala encostou o saveiro mais à borda, para
que a manobra do outro corresse sem encalhe, e respondeu à
saudação da companha e do pessoal, levando a mão ao barrete.
Fica pasmado para passar o tempo e magica
como seria bom ser arrais de um bote daqueles - um
bote seu, pois então! Mas hoje falta-lhe a fantasia, dormiu
mal, anda atravessado. O gosto da vida já não o embebeda. Puxa
a corda do viveiro onde guarda as enguias, pois só depois de
levantar as nassas da noite mandará a companheira vender o pescado. Um pescado de trampa!
Assim o peixe não amolenta e vivinho bem no querem
os que o compram, sempre arrenegados - talvez julguem
que a gente apanha o peixe à mão e é só metê-lo dentro
dágua e pronto!
A mulher saíra com o filho a dar uma volta pelos valados, à
cata de ervas para encher a panela. Agora os campos estão aí
cheinhos de papoilas, cujas folhas são um apetite para quem não chega a outro conduto. Mas até nisso há concorrência, porque os rabezanos e os Gaibéus também as comem com saramago. Deve-se procurar bem, enjeitando pouco, pois a mostarda começa a ter dono; a Senhora Companhia das Lezírias vende-a por
arrematação e manda os seus guardas vigiar os valados para que os pobres a não colham.
Tóino da Vala agarra na pá e vai lavando o saveiro;
abana os toletes para os sentir bem seguros, verifica as
tarmas dos remos, não o deixem ficar mal no trabalho
da noite, experimenta o buraco do traste que serve para
segurar a vara do mastro, se houver vento, e revê a vela,
molhando-a também. Depois senta-se no fundo do barco a
remendar; tremalho, passando as malhas, uma por uma,
no dedo grande do pé com a agulha cheia de linha para
o porfio das percas. De vez em quando levanta a vista para a
passear pelo rio e pelo valado, sem nada que lhe arranque dos
olhos aquele véu sombrio da manhã. Acordou assim, molesto e
triste. Não lhe sai da alma o mesmo peso
incómodo, assim um peso muito pesado, como se a mão
bruta de alguém lhe apertasse o coração. Leva na cabeça
uma barafunda de vozes distantes a que responde na imaginação
amodorrada; logo se exalta e fala sòzinho, gesticula,
enfurecido, deduz razões muito suas e repara depois que
monologa. Sorri da parvoeira e aquieta-se. Mas ainda diz
palavras soltas:
- Gaita de vida! Uma vida corna, desgraçada.
Ó Tóino, Tóino! Se me caíssem os dois braços, pronto!,
acabava-se tudo! Alguém havia de me dar de comer.
Seringa consigo, rezingão.
Tanta pressa de casar e afinal para quê?!.
-, Sim, pois, para quê?! - repete em voz alta.
Antes mal cuidava da vida, deixava-a correr como ao
Tejo, assim como assim, que pode um homem? Não seria
diferente, não, mas deixava-a andar ao sabor do que acontecia.
Uns dias melhor, outros dias pior. Mas deixava-a correr ao
jeito das coisas. Agora dava-lhe ganas de abalar, fugindo
sòzinho Tejo abaixo, sei lá para onde?, até se
perder nos cais de Lisboa, onde a vida dum homem há-de ser outra por força. Lisboa é coisa boa. Sim, coisa catita
pra ganhar dinheiro e ter onde gastá-lo. Ao menos isso.
Neste silêncio um homem é pouco mais do que um
morto esquecido pelos outros. Tudo se repete na desgraça,
na mesma desgraça parada, igual, sempre na mesma, com
as mesmas palavras e as mesmas coisas todos os dias.
Põe-se a ruminar nessa certeza e repete-a, como se
interrogasse alguém: - Será assim a minha vida para
sempre?!. . Se é assim, estou bem quilhado.
Talvez, pensa depois. Pensa e não se conforma. Por
que raio não hei-de abalar daqui pra fora?. Se nem
tenho uma barraca minha! Pois, sim senhor, será cobardia um
homem fugir; mas então se se deixa ficar assim nesta
pasmaceira, não será ainda pior? Partir deve ser
bom, pois. Mas para onde?!. Lisboa mete-lhe medo.
Subitamente, mete-lhe medo. Fora lá uma vez ver o pai
ao hospital e só se sentira bem dentro do barco para
regressar. O barulho, as pessoas, os carros malucos, parece
que se vão partir contra a gente, as casas por aí arriba,
grandes, feias, até falta o ar a uma pessoa; e uma pessoa
pergunta onde é o hospital e olham uma pessoa de lado, e uma
pessoa desconfia das pessoas a quem fala
porque vamos avisados de que há uns tipos que roubam
os outros, e então perguntam qual hospital?, e a gente
mostra o papel onde leva tudo escrito e acenam a cabeça
à gente e começam a dizer vai por aqui fora e depois volta
à direita e na outra esquina corta à esquerda, e mais
esquerda e direita, e depois encontra um largo e então aí,
então aí já a pessoa não sabe por onde começa, se mete
pela direita ou pela esquerda, e é andar, andar, ainda
por cima calçado com os pés metidos naquela merda dos
sapatos do dia do casamento.
Desiste de Lisboa. Confrangido, porque aí um homem
ganha o seu dinheiro e gasta-o bem. Pode um homem casado
gastar o dinheiro que ganha?.
A brincar muitas cores na água do rio, o Sol desce
no poente. Daí a pouco levantará ferro para colher as
nassas pouco mais do que vazias, se não encontrar alguma
rasgada de ponta a ponta ou só o sítio de qualquer outra
levada pela maré. Lembra-se da que lhe furtou o Remelga. Seria
ele?!. Depois a mulher terá de abalar para a venda, de
madrugada, moidinha de canseira, e voltará à tarde com a bolsa
escorrida e uma parte do comer assente no rol da loja que lhes
fia. Amanhã, depois, nos outros dias todos, estará ali ou
noutro esteiro igual, a remendar as mesmas redes, esperando a
mulher e o filho.
Um bando de pássaros passa em revoada e vai pousar
perto do saveiro, acolhendo-se no emaranhado do caniço,
que a brisa faz ondular num sussurro brando, parecido
com o farfalhado da água nas margens da Lezíria. O Tejo
adormece. É um lago colorido, azul e amarelão, quase
laranja, misturado, talvez um pouco roxo, uma manta
bonita para o Tejo adormecer. Também ele pensa em
adormecer, encostando a nuca na borda do saveiro a ondular.
Dormir de mansinho, sem pensamentos, quieto e sossegado. Os
ruídos da terra e do rio distinguem-se melhor. Parece-lhe que
ambos falam entre si, amigos, sem vozes mais altas. Resolve,
então, levantar o viveiro das enguias e começa a recolher a corda até a ponta lhe chegar à mão; levanta-o em peso, espreita-o pelo entrançado de arame, a certificar-se de que amanhã a mulher irá à venda. Antes aquilo do que nada. E volta a arriar o viveiro para dentro de água, largando o baraço aos poucos e entretendo-se com as bolhas que sobem à superf ície,
onde o poente ruboriza o caniçado do esteiro.
A voz da companheira diz-lhe o nome à distância.
Fica à espera sentado no banco. Sim, o poente é sinal de partida e nos montes da outra banda a luz esmaece.
Ouve passos em corrida no silêncio e a mulher grita-lhe
de lá para ter cuidado com o menino; depois explica-lhe,
a arfar, que o filho passou todo o caminho a fugir-lhe com
vontade de partir com um campino que passara e lhe oferecera
a garupa da égua para dar uma volta.
João da Vala não pudera acompanhar o maioral por
culpa da mãe, que se rira do seu propósito de abalar por
essa terra dentro a correr manadas. Também não conseguira
explicar-lhe que andava farto do saveiro, só a ver água, água
e mais água, quando por terra há tanta coisa
bonita para ver e brincar. No Tejo adregam-se peixes a
saltar dentro das redes, já presos, mas sempre rebeldes
na mão duma pessoa; por terra não faltam pássaros a
oferecerem-se à pontaria de uma pedra bem repuxada,
mostrando-se aos bandos, em voltas e reviravoltas, embora
nenhum viesse pousar ainda perto dele. Um dia será,
pensa o rapaz. àquela hora passam raras asas no céu,
pois sim, mas João da Vala acha sempre com que se entreter.
Assobia-lhes, grita-lhes, bate palmas a saudá-los. Consola-o
um pouco neste regresso ao barco, a cana
que a mãe lhe deu para ele andar a cavalo e a ponta de
caniço velho para trazer sobre o ombro, ao jeito de vara
de campino. Imagina-se a conduzir uma manada de toiros
salpicados, como as feijocas que viu numa loja em Benavente
quando a mãe o deixou acompanhá-la na venda. Caminha a apurar
os passos, levantando os joelhos para imitar cavalo de raça, cavalo fino - foi assim que o pai chamou à montada de um lavrador na feira de Vila Franca.
Atrás dele, já mais sossegada, Olinda sorri ao vê-lo
tão emproado com a fralda da camisa fora do aperto de
um cordel que lhe segura as calças oferecidas por uma
senhora de Marinhais. Lembra-se de quando ele gatinhava
o barco até à caverna para espreitar a sua imagem na
água, e via-o crescer, feito homem, empenhado nas safras
e noutras fainas do rio. Homem sente-se agora João da
Vala; mas guardador de toiros, montado numa égua mais
corredoura do que a do campino que passara e lhe oferecera a garupa para o levar no passeio. Entusiasmado consigo, deita
a correr pelo carril fora, olhando para trás de vez em quando,
não vá algum toiro matreiro furar-lhe a égua; e ergue a mão em
que leva a ponta do caniço, como se espicaçasse a manada naquela vertigem de galgar a distância até à praça de toiros, em que ele, sòzinho, pois então, seria tudo, desde moço de curro a cavaleiro, forcado e capinha. João da Vala gosta do saveiro atracado, porque só assim poderá correr e saltar, enquanto a navegar as coisas lhe parecem iguais e paradas. Sabe que daqui a pouco tempo voltará para a proa do saveiro, onde a manta o espera, mal o joão-pestana, o sono, lhe venha fechar os olhos para dormir. Mas passara um bom bocado lá fora
na companhia da mãe e isso dera-lhe recordações bastantes para
aquela noite, até de novo poder saltar em terra.
Já vê o pai dentro do barco no mesmo jeito costumado
de tristeza. Sabe porém que, quando lá chegar, o pai sorrirá
ao ouvir as suas imaginárias aventuras no campo. Mete a
passo para retardar a chegada; precisa de se mostrar montado
no seu bonito cavalo de cana, bonito e folgado como a melhor
estampa que corre a lezíria.
-Pai! Pai!.
Pelo esteiro além, o barco que levara as gaibéuas
regressa vazio. João da Vala está farto do rio, mas gosta
de seguir aquelas manobras de saída para o Tejo, pois,
que o bote singra por terra, ainda a dois passos, parece ,e isso desvaira-o, pois é coisa maravilhosa para imaginar. Ah, que bom seria se os barcos pudessem andar por riba dos valados e percorrer o campo todo.
- Anda ver, João!
A noite avança. Muitas cores se fundem no Tejo, enquanto no
céu desfalecem os últimos sinais de luz. Tóino da Vala
corresponde à saudação da companha e estende
depois as mãos para o filho. O rapaz entrega-lhe o caniço e a cana, não os perca no salto, e só então se deixa levar
no espaço, parece solto, num voo que lhe faz rodopiar
a cabeça e lhe deixa no corpo um arrepio suave de bem-estar.
- Gostaste do passeio, João?
- Vi um campino, vi.
- E os pássaros? - pergunta-lhe o pai.
João da Vala recorda-se do seu melhor entretém no
barco e não responde. Embezerra. Olha o caniçado e o
céu - nem ùm sinal de asas. Interroga o pai com o olhar e
descobre-lhe o tal sorriso maroto, enquanto lhe abana
os ombros a fingir que não sabe onde param e que nem sequer os viu.
- Eu queria ver - diz João a lamuriar.
- E agora? !.
- Agora o pai manda vir - acrescenta o rapaz, convencido.
Depois de arrumar as ervas apanhadas no bico da
proa, Olinda toma o seu lugar aos remos, embevecida,
a mirar os dois. Entre os braços do pai, João pede-lhe
que interf ira a seu favor.
- Faz-lhe a vontade, Tóino. Enquanto não dormir.
nunca mais larga a gente. Já sabes. .
Então o pai vai pô-lo no colo da mãe e diz-lhe que se
volte para o caniçado. Ele arregala os olhos, é todo olhos,
apertando a mão a que se agarra. Ouve a vara bater na
proa do saveiro e logo dos caniços se ergue, numa convulsão,
um bando de estorninhos que faz uma nuvem negra sobre a sua
cabeça, como o rugido de uma onda bravia, novamente recolhido,
num refluir, no caniçado donde partira. João da Vala excita-se
com o espectáculo. Bate palmas, grita, pula ao colo da mãe.
- Outra vez, mais outra vez!
O pai repete a pancada seca que ecoa no silêncio da
tarde e a que responde nova debandada súbita dos pássaros, entontecidos, os quais regressam ao poiso no mesmo rugir de onda viva.
- Agora os estorninhos vão fazer oó - explica Olinda
Carramilo.
E vai sentar o filho na esteira, cobrindo-lhe as pernas
com a manta lobeira; depois põe-se a ciar com os remos,
enquanto o seu homem a ajuda a sair do esteiro, fincando
a vara no ombro da proa para a ré. João da Vala volve-se
para o lado do caniçado e tenta imitar a nuvem dos pássaros
espantados. A noite roja-se no Tejo, cautelosa.
Companha e AS REDES DO ZÉ MALHO
UMAs semanas antes do Dia de Santos já o Espanta
sabia a companha com que contava para a safra
do sável. Queria pouca gente. Pouca e boa. Gostava dos
murtoseiros que vinham de longe para forrar dinheiro
e abalavam, sem olhar para trás, assim que se entrava em
meados de Março. Alguns nem nome deixavam. Sabia-se
lá quem eram. E no resto do ano não havia preocupações
com eles, se lhes entrasse a doença ou a fome na família.
Sempre a andar, vento fresco, contas feitas e companhias
desfeitas. Cada qual à sua sorte.
O Espanta trabalhava à percentagem, nas redes do
Zé Malho, ia já para dez anos. Zé Malho, o Sr. José da
Silva, com sua licença, viúvo e estanqueiro em Valada
do Ribatejo, dono de redes varinas para a campanha do
sável, nunca pegara, salvo seja, na ponta de uma rede
de alar, mas agora trazia homens por conta sob o mando
do Espanta, seu compadre, sócio de cama, assim o bichanavam as
más-línguas, e forreta, tão forreta, diziam os avieiros, que
se o pai viesse do outro mundo e lhe pedisse que se sentasse
no rebate da sua porta ele judiaria aluguer pelo assento, nem
que recebesse do progenitor um relógio sem ponteiros.
O povo exagerava na mal-querença. Desforrava-se de
dinheiros emprestados a 20 sob fiança de saveiros e redes, que
cobrava, a maior parte das vezes, nas campanhas do sável,
metendo os devedores a trabalhar para o Zé
Malho. Depois queixavam-se ainda por cima, comentava
o Espanta junto da mulher, uma vivaça de 40 anos, capaz de pôr os santos a zaragatear se algum dia lhe dessem entrada no Céu. Mimalha, sim, mimalha para o compadre José da Silva, um bafo de gente que, mal o frio chegava, caía à cama num espirro, e era só caldos, papas de linhaça, mostarda e beijoquices. Nem a Companha do Espanta o arrancava para os laços da pesca afirmava o o povo e acertava, muito atento ao leé tanqueiro, cuja incubação com o das constipações só via a luz quando o Espanta passava os dias à borda do Tejo a pôr ordem no arranjo do compadre.
Do rio sabia ele como poucos; conhecia tanto as artimanhas
do peixe como dos pescadores de quem conhecia a prosápia. E
ufanava-se de ninguém lhe comer as papas na cabeça. Pois,
segundo ele, bastava-lhe ver um homem a andar para perceber
quanto valiam o seu trabalho na lida. Conhecia bem os que
marralhavam tristeza nas pernas e na voz, pouca gana de mãos e
de corpo. Andara anos longos naquela galé. E ainda hoje Por
bem daria o sangue para marido, se a Chiquinha não lhe
pegasse.
talvez por perceber que fazia com ele o que as fervuras do
temperamento lhe pediam qQueria casar. Achava que
ser mulher casada tinha mais senhoria e respeito. E não
andavam há muitos anos e bons.
"Na companha do Zé Malho pouco dinheiro e muito
trabalho", dizia-se pelo Tejo entre Muge e Azambuja, onde as aversões lhe pesavam tanto como os lustros dos
que almejavam ganhar a simpatia do mestre Espanta.
Ambos lhe quadravam, porque no seu falar pachorrento,
um nada cioso, ele asseverava que "na balança da vida
nem os amigos devem pesar muito, nem os inimigos são
precisos em horas de aflição, porque se de uns se precisa
pouco, dos outros há que saber fazê-los também o que se faz de
qualquer homem.
"Não quer ser tomado por párvo ou parrana".
Chiquinha deu-lhe a volta, na sua cama
quando a mulher lhe faltou e, embora ele fervesse de ciúmes,
sabia administrar o marido em proveito do compadre, tudo tão
certinho, sem sustos, que o Zé Malho a pensava com artes de
adivinha ou bruxaria. Ganhara-lhe tanto em amor como em
receio; e até já se metera com tabelião por mor do testamento,
deixando quanto avezava ao afilhado, um menino saído à mãe e
que esta espantara para um colégio interno, na esperança de
fazer dele um doutor de leis.
Neste imbróglio de afectos, o Espanta inchava a vida
e o pecúlio.
Oito homens chegavam para a lida. Metade deles eram
avieiros com mulher e estas ajudavam ao trabalho, embora não
ganhassem parte. Traziam-nas para ficarem juntos, mas também
para assegurarem o contrato da safra
seguinte. O Espanta sabia escolher pessoal, mandriões ao
largo, nada de favores em coisas de obrigação, porque
nisso nem a Chiquinha metia o bedelho, garantia ele.
Bastavam-lhe os seus devedores para lhe pagarem em trabalho o
dinheiro e os juros que emprestava; alguns desses preguiçavam,
e até um deles, o Zé Mira, pai de oito filhos, acabara por lhe
negar a dívida, crente de que escaparia aos compromissos com o Espanta.
Esquecera-se de que o Tubarão, nome de peixe daninho, era
alcunha no Tejo para o fiscal da pesca, que passava por sócio
nas redes do José Malho, dizia-se à boca pequena. A verdade é
que nunca lhe apreendera qualquer arte, por muito que o Espanta atropelasse os regulamentos; para as outras companhas fazia de aventesma, via tudo, sabia tudo, tinha espias de sua conta, e as multas não paravam: a matrícula, as licenças, os números bem pintados, as horas dos lances, leis escritas e leis inventadas por ele, tudo servia ao Tubarão para arranjar castigos a quem não andasse nas suas graças. Caiu-lhe o Zé Mira debaixo da malvadeza e nem a criançalha lhe valeu
para amolentar o coração de pedra do fiscal da pesca.
Pisava-o a sete pés com a sua sombra maligna, sem
cuidar da fome dos meninos nem da doença da Isabel
Mira, um bafo de gente depois da anemia que agarrara
com as sezões. Falam deles os quatro avieiros, enquanto
esperam o lance do fim da tarde. Chico Guerra conta que
o pescador perseguido vive pràs bandas de Alcochete,
sem poiso certo, escondido nos esteiros do Tejo, como se
fosse um ladrão fugido à justiça;
Tóino da Vala diz que o pai o encontrou em Alhandra, magro e velho, parecia! Não há direito!, logo
um bicho monteado, não há direito, depois emendou a palavra
(não vá alguém contar ao Espanta), também o Zé tinha culpa
contas são contas, e não será qualquer que nos ajuda
fica bem negar o que se deve
nas horas de aflição. Arreganha-se com ele o Bogas.
- O homem não se negou, sou eu que te digo. Ouvi
a conversa toda: o Mira mostrou um papel assente com
os dinheiros, e vai daí achou que já não devia nada. E este
queria receber mais cem mil réis de juros e mais não
sei quê.
Olinda Carramilo lembra-se duma conversa do padrinho com a
mulher:
- O Espanta não descansa enquanto não mercar a ponte
de Muge por onde passa o comboio. Quer tudo o que vê, ele é
um garganeiro. Se lhe vendessem a ponte, havia de comprá-la.
- Cala-te aí com conversas adiantadas quando os
homens falam, as mulheres calam-se - intervém o Tóino
da Vala num arrenego.
- Pois sim, Tóino, pois sim!. às mulheres basta
trabalhar e ter filhos, não?!.
- Ninguém te chamou à fala.
Fica o Tóino repeso das más palavras, quando repara
nos olhos tristes da companheira e no silêncio em que
caem os três camaradas. Mas ele levanta o olhar num
leve aceno de cabeça e o grupo de avieiros segue-lhe a
direcção. Ali perto, encostado a um choupo, o Virò Norte
entretém-se a cortar uma côdea a canivete, parece distraído,
ninguém deu por ele a não ser o Tóino; diz-se, dizem os
outros murtoseiros, que o Virò Norte espia a
companha para encher os ouvidos do Espanta com o que
vê, escuta e inventa. Foi ele no fundo que tramou o Zé
Mira há duas safras, chamando-lhe langão à frente do
outro.
Olinda Carramilo percebe a ira do marido; mesmo
assim não lhe perdoa, há muita maneira de dizer as coisas, e
ela acha-se magoada, não, não consente que a trate com
brutezas, como os outros homens do rio fazem às
companheiras. Sabe que por parte da prima, aMaria do
Zé Bogas, só ganhará aquele olhar manso de aconselhar
paciência, quanto mais da Elvira Guerra, com quem anda
às avessas desde a manhã do levantar das redes, quando
os homens delas se ameaçaram com os remos e se encheram de
más palavras. Entre eles já o vinho fez as pazes: o Tóino é
um bom-serás, esquece depressa as ofensas,
da sua banda não viria mal para ninguém; só guarda
para ela aqueles arremessos, como se precisasse de dar
contas aos outros da sua vida.
Sentindo necessidade de se afastar do grupo, Olinda
põe-se a chamar pelo filho, ó João!, vem cá à tua mãe
rico filho!, mas o rapaz anda a correr com o Malagueiro à
volta de um choupo, onde há ninhos de melro que o
Carolas lhe prometeu dar. Perdido e achado, está ao pé
daquele murtoseiro; não conhece agora outra companhia.
O homem paga-lhe na mesma moeda, incapaz de lhe recusar um
capricho, quando não inventa por si o que pode agradar a
João da Vala. Ainda ontem lhe deu um bote de
cortiça com a proa levantada, parece uma fragata, disse
o cachopo, duas velas brancas e até remos. O murtoseiro
anda a ver se o rapaz olvida o ninho, pois nem sequer é
tempo de crias; mas a ideia não lhe sai da cabeça, e
aquela correria em que anda com o cão, fingindo espingardear o choupo, não passa de um ardil para lembrar
ao amigo que bote não vale pássaro vivo, ainda por cima
bom assobiador.
Cabeçudo, entroncado e de perna curta, o Carolas
deslumbra-se com João da Vala, talvez porque, sendo solteiro,
imagine nele um dos filhos que nunca teve. Sim, é feio, ele
sabe que é feio, não precisa que lho digam,
por isso sempre receou arranjar mulher; percebeu-o aos
17 anos quando o levaram às meninas e todas se riram da
sua cara talhada à enxó, ele mesmo confessa, não julguem
os outros que não percebe a fealdade trazida do berço.
Saiu ao pai, e então?! Um homem pode fazer a alma,
ou lá o que é, mas não mexe na cara por mais que
queira - di-lo nas horas de vinho, por chacota, embora
a amargura lhe quebre a voz.
João da Vala é o seu companheiro de conversa. Desabaf a com
o menino que não o entende, só para falar alto que o
atormenta; está cansado de resmoer consigo mesmo; doem mais as
penas que se calam, e então passam juntos os intervalos dos
lances, ou as horas sem fim que crescem e se acrescentam sem
conta, entre o pôr do Sol e a hora
de dormir na barraca de oleado dos murtoseiros, onde
lhe custa a encontrar o sono. Muitas noites passa-as ao
relento, a vagabundear pelo areal, acendendo novo cigarro no
que fuma até ao fim, enquanto as pernas se não amolentam.
Atira-se, então, para a borda do Tejo, na
humidade da babugem do rio, a praguejar contra a solidão ou
a consolar-se nas queixas dos casados, que lhe festejam o
celibato como feito de herói. Carolas sorri. Há nesse
momento certo mistério no seu sorriso. Claro que
não confessa a mágoa onde se mirra; tem as suas
compensações, ora pois não!, ninguém lhe pergunta pelo
dinheiro da féria, gasta-o em qualquer coisa que lhe dê
na cabeça, quase sempre para esquecer o que a outros
sobeja.
Não se lava nem se barbeia - para quê. . Não pre cisa de
parecer bem a quem quer que seja. Desleixa-se por
hostilidade, à espera que alguém aluda ao seu descuido, tem a
resposta já sabida, mas ali não se importam com ele. João da
Vala perguntou-lhe um dia:
"- Estas barbas grandes são de vossemecê?
- São. Tenho-as na minha cara, são minhas. Não
pago nada por elas; é a única coisa que não pago.
- As do meu pai arranham mais e são mais rasinhas.
- É porque as corta. Eu deixo crescer as minhas.
-A minha mãe diz que se o visse a vossemecê de
noite abalava a fugir. Tinha medo de si.
- E tu?! Tens medo de mim?!. .
- Eu, não. Quando for homem, deixo crescer as barbas ainda
maiores do que as suas.
- Porquê?.
- Pra meter medo às pessoas. E vossemecê!.
- Não preciso disso pràs mulheres terem medo de
mim. As mulheres não gostam de mim; nunca gostaram.
Mesmo a minha mãe. As mães gostam de ter filhos bonitos como
tu. Tu és bonito; eu sou um bicho. Os bichos também não cortam
os pêlos; se não fosse por mor do trabalho, deixava crescer as
barbas até onde dessem".
João da Vala imaginou o amigo de barbas pelo chão
e largou a rir, riu sem tempero, riu até lhe doer a barriga.
Ainda há bocadinho lhe perguntou se o cabelo da cara dos
homens pode andar de rojo. O Carolas sorriu, dão boa
companhia um ao outro, e resolveu só ir ao barbeiro
quando regressar à terra, faltam dois meses, se a safra correr
de feição. Já pensou em ficar no Tejo - mas
onde? Não quer arranjar companheira, nunca teve mulher certa,
para quê? Sim, para quê, se é feio, se está farto de saber que
ninguém olha para ele sem uma careta,
mesmo os homens, embora depois se habituem e todos
digam que quem vê caras não vê corações; não, não vêem,
pensa o Carolas, porque se lhe vissem o coração ficariam
com medo. um dia qualquer, quando for preciso, um dia que valha a pena, ele tirará desforra desta fealdade
que o atormenta e que finge não sentir perante os outros.
Tenta passar por um pobre diabo, quem vê caras não vê
corações, é isso mesmo, como se a vida precisasse dos
feios para ser boa, mas esconde um ódio enraizado desde
menino contra alguém que um dia valerá a pena esmagar
nas suas mãos grandes. Um dia. Sim, um dia qualquer,
sem premeditação, um dia há-de calhar a sua desforra.
Conversa com João da Vala sempre que fica livre
e diz-lhe coisas que nunca contou a mais ninguém, porque
nem sequer bebe com frequência, talvez para não falar
no que deseja esconder. O cachopo não o entende, ri-se
das fosquinhas que ele faz, pede-lhe o impossível, como
o ninho de melros que não terá no Inverno, e acompanham-se no
areal com o Malagueiro a correr à sua frente ou a ladrar a
qualquer vulto desconhecido que apareça
por ali. O cão ainda não se habituou com os sáveis que
saem das redes e ficam a saltar na areia, em ânsias da
morte, quase levantados a prumo sobre a boca, sacudindo
o rabo, abrindo as guelras donde escorre sangue para a
praia suja. Ladra-lhes à volta, acomete-os, tem medo e
foge, regressa mais afoito e abala novamente, se o peixe
escabúja em contorções, enquanto os pescadores da rede
varina do Espanta calculam o peso do pescado, contando
a parte que lhes cabe no lance.
Chegou no comboio com os outros três murtoseiros e
pensa regressar com eles. Não tem outro remédio. Não
gosta do Virò Norte, um filho da mãe que manda no grupo
por escolha do Zé Malho. Nem por encomenda o patrão
arranjaria gajo mais torto. Coxo da perna esquerda,
cresceram-lhe as nádagas pelo jeito de andar, cresceram-lhe as
iras por mau jeito da vida que o marcou de infortúnio.
A vida é uma guerra, vocifera ele com frequência,
ressabiado. Dói-se das filhas, nascidas na mala-ventura como
se alguém de mau-olhado lhe quisesse desfeitear a alegria
com que as vira chegar ao mundo. A vida ferrou-lhe duas dentadas fundas no coração. Não as sarou; molestam-no mal se põe a pensar não só na que morreu, como ainda
na que se transviou por Coimbra e Lisboa em andanças
de mulher do fado. Mais tarde escrevia-lhe das ilhas, do
Palácio de Cristal, na Madeira, diziam as cartas recebidas até
há um ano. Agora perdeu-lhe o rasto e faz conjecturas - por
onde andará aquela rapariga?, será porque vive num palácio e
deseja esquecer que é minha filha?
Quando se agarra ao trabalho em fúria maluca, blasfemando
contra os companheiros que não acodem ao serviço como ele
quer, os outros vêem na sua presteza uma maneira de
compensar o aleijão da perna manca; ele diria
que procura entorpecer a lembrança das suas meninas embora não o confesse, porque ninguém gosta dele na companha. Ainda agora mesmo os avieiros se calaram assim que o viram encostado a um choupo, em jeito de bufo; ele aproximara-se, porém, na intenção de conversar um bocado, enquanto não chega a vez para o último lance.
Hoje precisa dos outros; os murtoseiros só lhe resmungam e
ele gostaria de encontrar uma voz que lhe falasse sem
navalhas. Tóino da Vala mira-o de esguelha, faz de
conta que não dá por ele e deixa-se cair para trás pondo
as mãos cruzadas debaixo da nuca. Embirra com os
murtoseiros que andam para ali sem mulher. Bem entende - a
maneira como olham para a sua, quando os apanha de
surpresa a seguirem o balancear da saia da Olinda. Confia
nela, ora essa, mas acha-se desfeiteado com aquela fome de
carinho que alvoram no gume dos olhos. De
parte do Carolas, não, julga o Tóino; é amigo do seu menino,
estraga-o com apaparicos, nunca lhe percebeu uma intenção de
desrespeito para a companheira. Rememora
as noites em que se aproxima do seu saveiro, vindo em
busca de amizade; sorri quando lhe vê a cara barbuda onde luzem os dentes alvos.
A rede do João Lobo não tarda a sair da água. Cai
: um chuvisco frio, frio, frio, na tarde cinzenta os homens alam, alam entre o desespero e a ânsia mindinha de matar
a fome; a companha do Espanta aguarda a sua vez, a
rememorar para ali, todos embuçados em trapos e tropeços,
em tricas e tremores.
AVIEIROS E MURTOSEIROS
TóIno da Vala enlaçou a ponta do ressoeiro no tronco
e fincou os pés na areia, para que o puxão da rede
não o leve de cambulhada. Divide com o Ramalhão o esforço de
aguentar a corda de terra, pesa bem, parece que o corta de
través, enquanto a outra ponta, a mão de barca,
ficou dentro do saveiro, presa ao buraco do traste.
As bóias marcam no Tejo a curva do lance.
O do João Lobo deu sete peixes que espinoteiam na
praia. Brama o Espanta com o chicote da língua malina,
como se culpasse os homens da companha pela escassez
da safra. Mesmo assim, já agarraram hoje quase uma
centena de sáveis; é pouco, dirá o Zé Malho, à noite,
quando o sócio lhe aparecer com a Chiquinha e ambos
deitarem contas às pesadas da sua balança viciada. Chiquinha
virá sem pó-de-arroz, de sapatos de trança e blusa encardida,
para que o amante veja a diferença quando se não apralta para
ele. Derretem-se nos olhos, ali mesmo nas barbas do Espanta,
que é corno desde as virilhas até à ponta dos cabelos, - diz o
Tóino da Vala para o Ramalhão, seu camarada na ponta do
ressoeiro. Diz-lhe em voz baixa, como resposta ao vozeirão do
Espanta, que lhe chama malesso por se arrastar vagarosamente
pelo areal.
Venha ele puxá-la com a cabeça, tem-na rija, levam outros mais
mansarrões as praças das toiradas. O Ramalhão responde num
sorriso; fica-se por aí. Mas o esgar arrepanha-lhe a cicatriz
que vai da boca ao lóbulo da orelha, e é lembrança da sua
última ida ao bacalhau, quando o capitão António Sardo o
assinalou à frente dos camaradas por ter encabeçado uma
revolta contra o rancho do lugre. Agora está sempre queimado
com os companheiros, acha que o atiçam por causa do seu feitio
brigão, e depois largam-no sòzinho aos lobos, como dessa
vez em que ninguém buliu um dedo para se pôr do seu lado.
António Sargo marcou-o por fora; os camaradas marcaram-no por
dentro, resmunga ele, mal bebe um copo a mais. Do
capitão já não tirará desforra, ouviu-o a urrar
em casa com a cirrose, morreu numa desgraça, magro,
só barriga. Ainda o acompanhou à cova para se certificar
de que lá ficava, comenta a rir, mas preferia tê-lo
desfeiteado no dia marcado por ele para a desforra. Arranjara
navalha boa para o serviço; esbeiçara-a com paciência,
abrira-lhe rasgos na lâmina e trouxera-a sempre afiada, não
lhe falhasse a "bonita" quando chegasse a
hora do ajuste. Sou homem de boas contas, diz muita vez.
Não quero levar dívidas para a cova.
Perdeu a hora. A sua. Talvez calhe a outrem o que
caberia ao capitão Sargo, pensa ao fitar o Virò Norte todo salta-pocinhas à sua beira, incitando-o também no
mesmo jeito do Espanta. Alguém pagará, sim, alguém,
fique negro, seja negro.
- Murtoseiros destes deixa-os lá ficar na Ria - comenta o
sócio do Zé Malho. - Mete-os a trabalhar no sal ou enfia-os
numa salmoira bem apertada pra não se estragarem.
Vigia e brama, pôs-se de ponta com o Tinoca, o
avieiro que vai à ré do barco a largar os pandulhos da rede
Já errara o lance duas vezes por sua culpa, raio de gente, o
peixe parece que adivinha as companhas pouco safas e
escapa-se, até se desemalhar.
- Ó Tinoca .
O grito galga o rio e incita os quatro pescadores que
vão no saveiro. Chico Guerra e o murtoseiro Sape-Sape puxam os remos com mais força, deitam-se; na proa, o
Carolas atira as bóias à água e alenta o avieiro da ré - vá
lá, anda!, acerta comigo, certo! Agarrado toda a tarde por
uma febre terçã Tinoca não adianta as mãos, doem-se-lhe os braços, parece que levei uma carga de cachaporra
lamenta em voz baixa, mas o Chico Guerra ajuda-o com
a voz, embora guarde para si o comentário que deixa
para o Espanta.
- Ele andou aí toda a manhã com sezões - explica
o Virò Norte na praia.
- Inda pior - arremete o sócio do Zé Malho.
- Quem não pode, arreia! O patrão só paga trabalho
e se voceses fazem o dele, também rouba a parte de cada
um. - Volta a gritar para o saveiro:
- Ó Tinoca!. Amanhã não pegas na rede !.
O pescador pergunta para um dos remeiros:
- Que disse o gajo?.
- Que amanhã não trabalhas.
Responde num ói desprendido, na aparência; porque o
corpo se lhe abala de raiva, mesmo que não leve por
diante o que pensa: um raio me morda todo, se um dia
não pego na navalha e não corto a rede a estes gajos;
nem deixo uma malha inteira; levem-me depois ao Tubarão para
ele me tirar a cédula e me mandar p'rà prisão.
Lembra-se de Zé Soisa. Ouviu-lhe dizer que a liberdade
também é cadeia quando falta o trabalho aum homem. Põe-se a
cantarolar. Chico Guerra abre-sE num gracejo que só ambos
entendem:
- Um dia cai aí uma chuva de picaretas e apanho
alguns gajos na rua.
- hIá aí gado que fica mocho.
- Vale menos na feira. As donas que se aguentem com a perca.
- Na cama do gado qualquer se deita; pode é cheirar a mijo.
Geme Tóino da Vala no ponto do ressoeiro. Bamboleia ao sabor
da corda tensa, estende depois o peito, pende-lhe a cabeça,
já a Olinda o veio ajudar entre ele e o Ramalhão, finca as
pernas, retesa os músculos.
- Esta danada pesa! Se fosse tudo peixe, alagava-se
Valada só com guelras - comenta o murtoseiro.
- Vai ó! Ó vai .
- Vai com ajuda!.
Cada passo dói mais. Algumas vezes recua, hesita,
firma os pés na areia, foge-Lhe, foge-Lhe, acaba por vir
atrás e alar de dentes cerrados, pende os braços mortos,
geme, resfolega, increpa alguém, não, não é com ela,
responde quando a mulher se queixa, ora essa, com quem há-de
ser?, já é preciso dar o nome aos bois?, então ela
é parva, não entende?
O Espanta descobre a folhagem sob a qual guardaram os sáveis
pescados neste dia; tem ali uns bons peixes, quase trezentos
quilos, não deve andar longe do seu cálculo. Vê as guelras a
alguns e limpa os dedos à manga
da sanarra; vem depois a embrulhar um cigarro até ao
sítio em que resolveu mandar sair a ponta da rede varina.
Irrita-se com o Tinoca; é uma fuga à raiva que o dana.
Por mais que queira, não percebe a mulher, agora com
o testamento já feito pelo Zé Malho; não há maneira de
morrer, o malandro; disse à Chiquinha para o encher
de comida e que o puxasse a seguir para a malandrice,
uma congestão rapa-o naquela idade, e nada de novo.
Começa a desconfiar da mulher.
Grita para o saveiro:
- Essa mão de barca cá pra fora! Vamos depressa!
Está sempre à espera que apareça alguém a dar a notícia,
sim, o seu compadre, coitado!, e nada de novo. Se fosse homem
de sangueiras, aparecia-lhes um dia de
repente, quando estivessem na marmelada. O pior também é que
não se sente capaz de abalar daqueles sítios e embora a
justiça o mandasse em paz, a gente dali iria fazer-lhe a vida negra. Que dirão das idas da mulher a casa do compadre?
Um dos lançadores da rede atira a ponta da corda
para os dois pescadores que a esperam; estes metem-lhe
o tirante e começam a puxá-la pelo areal arriba com a
ajuda das avieiras. Tóino da Vala e o Ramalhão flectem
o ressoeiro para o lado da mão de barca, de maneira a
que a boca da rede varina se feche aos poucos. Encalham
o saveiro os quatro homens que nele começaram o lance,
saltam à água, movem a correia do tirante para a cruzarem bem
no peito e logo se divídem pelas duas cordas, puxando-as,
ala, ala sempre, ala bem, escarvam a areia,
quase gatinham, deixam a corda a fazer aducha; a criançalha
também ajuda. João da Vala gosta de se agarrar às saias da mãe
para ela ir mais depressa, é o que diz, mas
o seu amigo Carolas chama-o num gesto de braço e o rapaz corre
para ele, levando no encalce o ladriscar contente do
Malagueiro. A praia sobe em declive até o valado onde as
areias encontram fronteira. Aí se quedam também os olhares
dos pescadores, rasos como os dos bichos que andam a
quatro, diz o Sape-Sape, ainda noviço nestas lidas pelo
Tejo. A mão de barca não avança e puxam-na seis homens e
mulheres. Vence-os a força da água mais o peixe emalhado. A
grita do rapazio amorna.
- Vá, que a enviada faz-se tarde! - avisa o Espanta.
O pessoal raspa os pés na areia, finca-os depois, levantam a
cabeça todos à uma, como se a expressão dura do mestre lhes
desse a ordem, e uma voz qualquer, talvez
a do Tinoca, rouqueja na tarde:
- Vaaaaá!.
Vencem mais um passo no impulso do brado; logo de
seguida se atropelam em corrida, entre a algazarra da
criançalha e o ladrar contente da canzoada. A corda vai
até à aducha levada a suor. Largam-na, aconchegam os
tirantes, regressam à babugem do rio; param um momento para
avaliar os sáveis presos no saco cujo borbulhido na água os
anima, e novamente se prendem à corda.
- aí vai! aí vai!
arrastando-se pelo areal, A tarde derrama-se sobre o Tejo em
cinza e palhete.
No meio dos dois braços da rede o mestre põe-se a
espreitar a fila de bóias, a água espadana de súbito. traz
peixe e não há-de ser pouco nem
pequeno, pensa o Espanta, enquanto o Tinoca se lembra da
ordem que o outro lhe deu, procurando mostrar-se mais safo do
que os camaradas no alar; Tóino da Vala arrenega-se com a
mulher por mor do Sape-Sape, embora ela não entenda a raiva
das suas palavras, Olha "O homem está doudo, já se viu
uma coisa daquelas. , Jesus, Senhor!" Mas Tóino da
Vala não é cego, bem vê o olhar do murtoseiro a alar a
companheira, aquilo ainda acaba mal, raios o mordam.
homens assim não deviam andar a monte.
As malhas da rede começam a aparecer, o pessoal da
ponta do ressoeiro volta-se para o rio, ala devagar,
brandinho, não assustem algum sável emalhado e lá se escape o
maldito nalgum salto de surpresa. Lá vem um, ó que grande
peixe!, e logo o Virò Norte se mete à água pelos peitos,
filando-o com os dedos para o atirar ao areal. Os outros
excitam-se, espreitam a sua vez para que o Espanta lhes meça a
coragem no trabalho. A companha do João Lobo estende a sua
rede nas varas do tendal. Esses tiraram sete peixes no último
lance.
- Vinte e dois peixes levantaram eles, mais de sessenta
quilos, - garantiu o Chico Guerra.
Olinda Carramilo já saltou para dentro do seu barco
com o filho. A enviada deste dia pertence ao Tóino da
Vala. Cabe-lhe levar o pescado desde o areal até à outra
margem, onde o comprador os espera para fazer as pesagens com
o Espanta. Os sáveis do último lance agitam-se na areia suja
da praia, em convulsões de morte. Alguns erguem-se na cabeça, movendo o rabo em estertores rápidos, tombam
depois e torcem-se, aquietam-se de barbatanas abertas em
leque, tensos, para voltarem aos arquejos dolorosos, aos novos
impulsos sobre a boca. A agonia prolonga-se.
Os quatro pescadores que lançaram a rede levam-na
no saveiro para o largo e começam a lavá-la; batem-na
na água e puxam-na para o bico da proa, onde a acomodam num
monte.
- Eh, mulher! - grita Tóino da Vala para a companheira.
Ela espreita pela borda da bateira e pega nos remos
para se chegar à ponta do areal. Já os outros homens da
companha levam os sáveis pelas guelras, esperando que
a Olinda encalhe o saveiro; depois passam-lhe os peixes
que ela acomoda nos panais. João da Vala senta-se à ré e
assobia para o cão. Atento, não lhe escondam algum sável,
o Espanta vigia o embarque, enquanto o Virò Norte, à
socapa, reconta a safra do dia, o que não passa à malta
da companha, nem mesmo aos que lavam a rede. O Zé
Bogas diz para os camaradas:
-Aquele gajo dava um bom fiscal de pesca - Emenda depois: - Ou um furão para caçar aos coelhos.
Riem-se os outros.
O bater e rebater da rede na água corta o silêncio do
poente. Tóino da Vala galga para dentro da bateira, seguido do
cão, e põe-se a armar a vela. A brisa fá-la trapejar
como num arrepio.
O DONO DO TEJO
umA noite de pinga, para festejar a barraca que fizera no
Escaropim, Chico Guerra disse para os seus amigos, embora a
mãe lhe acenasse a cabeça numa reprimenda e se benzesse a cada
palavra sua, que no Tejo não era Deus quem mandava, mas o
Tubarão, Júlio Gonçalves, o Tubarão, o
homem mais cruel, safardana e danoso que alguém deitara ao
mundo. Pisou e repisou quanto lhe veio à cabeça, sem altear a voz azeda, como se cuspisse todo o fel que lhe entrara no sangue com a prisão de Zé Soisa, seu amigo, quase irmão, de quem nunca falava agora, porque casara e se enchera de filhos, todos a viverem do seu braço, e ele precisava de matar o corpo nas redes do Zé Malho, sócio e amigo do Tubarão. Baldas
da vida: Recriminava-se na intimidade; só ele sabia
quantu lhe amargava a lida sob as ordens do Espanta,
temeroso embora de pegar com ele nas andanças da pesca.
Aprendera muitas coisas com os caçadores que o procuravam
para lhes emprestar a pontaria. Falava bem, falava à
política, comentavam os outros avieiros, mas
emudecia por ali entre os seus. Nessa noite de festa
empregara, porém, palavras destemidas que aterrorizaram as
mulheres e inquietaram os homens. A verdade inquieta.
Ninguém sabe agora, nem talvez o próprio, quanto Chico
Guerra gostaria de ter sempre a voz dessa noite já distante.
O vinho ajudou-o à verdade. Entre o que pensou e o que
disse, pisou e repisou mais ou menos nisto, que ouvira a
outros e a si mesmo:
"Sim, pois, é ele e só ele. No Céu andam muitos,
acho eu cá na miinha; santos é o que não falta por lá, e
se são santos, mandam. Cala-te aí, disse a mãe. Deus pode
castigar-te. Então, se não mandarem, não são santos;
também um homem, se não manda na sua barraca, não é homem,
por mais que grite. Aqui na Leziria quem dá leis - é a
Senhora Companhia, com sua licença; é tudo dela.
Mas no Tejo todo, de riba a baixo, manda o Tubarão. Só
ele manda e mais ninguém. Manda, pois. Mas um dia
acaba-se. Tudo se acaba; mais ao tarde ou mais ao cedo
acaba-se. "
A maioria dos que o ouviram falar naquele jeito pensa
que a razão está do lado da mãe quando diz: "Há
sempre quem mande nos pobres; o mal é dos pobres".
Ainda hoje, nesta noite em que os avieiros da companha do Zé
Malho se entretêm a conversar de barco para barco, enquanto os
da Murtosa se sentam à volta da fogueira que acendem para
espantar o frio, ainda hoje, e não se sabe por quanto tempo, é
o Tubarão quem manda no rio dos avieiros. Pois, como diria o
Chico Guerra. Senhor do rio, das redes, dos barcos e dos
pescadores. Dono do Tejo. Até parece que as cheias lhe pedem
licença para chegar, invadir as terras e destruir o pão,
porque só no tempo das cheias o Sr. Júlio descansa daquela
fúria de espiar quem trabalha. Os homens não podem sair para a
pesca e as licenças já estão pagas. Pagas e repagas. O Tubarão
desaparece; mesmo assim, deixa os criados a vigiar os
pescadores. Parece só um, mas dispõe de muitas sombras que
prantam no Tejo uma nuvem de luto, mesmo que as águas do rio
se tinjam de luz. Os criados fazem, então, vista grossa para quem conta com eles. A tirania fica assim mais barata.
Ninguém diria, mas o Tubarão amargou por ali há já
muitos anos. Deitou redes, alou cordas, roeu fomes. Tanto
as lutas travadas com a má sorte como as injustiças
sofridas, não acharam ninho no seu peito para se lembrar
agora dos antigos companheiros. Enraivou-se, comentam
as pessoas. Sim, esqueceu os camaradas e até parece que
a amargura do passado só arrefece um pouco quando arremete
contra eles. Inventa leis. Tem leis suas, porque em seu
entender não bastam as dos códigos para castigar os
homens do rio. Nada lhe passa.
Conhece os ensejos, adivinha as artes, sabe os sofismas
de varinos e avieiros. Mas sempre encontra onde cevar a
torpeza, porque o pão dos homens-não se adoça sem perigos. O
Tejo é uma barriga de mulher velha, lamentam-se os que dele
vivem. E então recorrem às redes proibidas, caindo na
alçada de quem não os poupa. O Tubarão não poupa ninguém.
Só as artes do Zé Malho não ficam sob a espada da sua
justiça, porque nelas, segundo se propala à boca pequena, o
Júlio Gonçalves ganha parte de dono. Diz-se também,
acrescenta-se, que traz duas mortes às costas, o que lhe não
pesa nem afronta, pois a prova não se fez até hoje. De resto,
não há que achar provas se ninguém se queixa dele; era o que faltava. Quem se aguentaria com o seu ódio?!
Companha que tome de ponta, nunca mais adrega safra
capaz, mesmo que consiga interceder junto da Cassilda de
Muge, a favorita do dono do Tejo por seu ar calhandreiro e
malícia de corpo. A casa da Cassilda tornou-se numa espécie de
templo sacro onde a gente do rio pede protecção e deixa
oferendas. As mulheres vão ali em penitência. Ela nunca
promete, porque o Sr. Júlio Gonçalves, embora amacie no
aconchego dos seus braços, esquece tudo mal regressa às
andanças do ruim ofício. O Tubarão bem sabe que traz
cravadas nas costas as iras dos que domina. Se fossem
navalhas, pensa ele, pensa e di-lo, de há muito que teria caído feito num crivo. Ninguém esquece, porém, que por detrás dele estão forças maiores para vencer-. O Tubarão é o braço. Nada mais do que o braço. Que o diga o Zé Soisa, se ainda for vivo no degredo.
Com a rede apreendida e entregue à companha do Zé Malho,
ficou o pescador sem achega que valesse aos seus. Andou
triste, derramado, resmoeu naquela sina dias e noites, longe
da barraca, e acabou por encontrar a única saída para
não morrer enojado de si. Chico Guerra conta aos outros
pescadores a vingança do Zé Soisa, seu amigo:
- A gente deixou de o ver, a mulher pensava que
ele se tinha botado ao Tejo, que o desgosto lhe dera volta ao
miolo; começámos todos a varrer o Tejo com as redes
a ver se o agarrávamos, antes que as marés o levassem
para o mar largo, ninguém dormia, não se fazia lume a cachopada chorava com a gente, u peixe que vinha nas
redes apodrecia, as mulheres não iam a casa do Zé Soisa.
chegou a notícia; começaram a dizer que matara o Tubarão,
foi uma gritaria de choro e de contentamento, a gente
nem sabia se devia rir, se chorar; depois chegou a verdade
com a desgraça. Tudo acabou em desgraça. Foi esperar o
outro à porta da Cassilda, saltou-lhe ao caminho de
navalha aberta, queria arrumar as contas, foi o que ele
disse à mulher quando ela lhe falou na cadeia, mas u
Tubarão safou-se com uma navalhada no ombru e o Zé Soisa
agarrou degredo.
O Tinoca resmunga consigo. Tóino da Vala irrita-se
com a conversa do Chico Guerra. Então, o outro pareCe que
está a lembrar-lhe o que de facto ele sabe que não
pode, as coisas assim ficam na mesma. O Tubarão apanhou-o a
pescar com o camaroeiro de arrasto emprestado pelo irmão da
Olinda na vala da Casa Branca, a noite passada, e
apreendeu-lho. O Espanta chamuu-o à pedra por cima e
rezou-lhe o responso: "Se mais alguma vez te agarrarem enquanto ainda trabalhares de noite para mim, na Companha do Zé Malho; depois nunca mais falas sem pedir perdão. Quando podes tu, Não mandes a tua mulher".
- Agora nem a gente quer - diz Olinda Carramilo a embalar
o filho.
- Cala-te para aí, mulher!
- Também tu?! Ao menus deixa-me desabafar. Quem dá o cumer
à gente quando tu fores p'rà tropa? Com isso não se ralam
esses desgraçados.
Apercebe Vultos do lado da barraca dos mortozeiros. pensam
no Viró Norte e recomenda para terem cuidado.
- Ao menos que o nosso João tenha uma costela do Zé
Soisa - grita a mulher.
PORQUê, SENHOR, PORQUê?
TALvEz por causa do camaroeiro apreendido, Tóino da
Vala começou a embirrar com os companheiros.
- Fazes-te velho antes de tempo, - brincou a mulher para lhe
ver um sorriso. Mas ele embirrava, embirrava, Com o Chico
Guerra por ter falado do Zé Soisa, como se quisesse
desfeiteá-lo à frente da Olinda: não tinha medo também? olha,
pois não! não andava por ali por conta do Zé Malho, sócio do
Tubarão na boca de todo o povo? e então?! então bastava falar
para se sentir mais do que os outros? cão que ladra não morde,
já toda a gente sabe. Lembrou-se da disputa que houvera entre
eles por mor do galricho da Vala, alguém lho roubara,
sim, galricho e peixe, não bonda o que bonda, quanto
mais os camaradas a empurrarem a vida dum homem
cada vez mais para baixo.
Embirrava, embirrava.
Com o Zé Bogas e a Maria por eles se calarem na
zanga com o Chico Guerra, os da família são às vezes os
piores, parece que só medram quando vêem os outros desgraçados
de todo e depois fingem-se amigos para se lhes agradecer ainda
por cima; o Bogas largou-se a assobiar,
gostava do Tóino, mas a Maria enxofrou-se toda, ardeu
com o peguilho e pôs o outro rasinho como a lama, bastavam-lhe
os filhos e o homem para aturar, quanto mais o aguado do
Tóino, a mãe que o aturasse, já que não soubera ensinar-Lhe o
respeito; não há coisa mais bonita do que o respeito. As
coisas por ali puseram-se negras, porque a Maria moeu e
resmoeu dias a fio, sem nunca mais lhe dar a salvação, nem
mesmo consentir que os dois filhos brincassem com o João.
Olinda foi às boas com a prima, lá se entenderam, mas não
conseguiu virá-la quanto ao marido. Opinosa, a Maria largou gracejo pesado:
- Porque não vai ele ao Reguengo marrar com o comboio?
Já se vê que a Olinda não achou graça à alusão. Quem
marram são os toiros, para o homem dela ser toiro havia ela
de corneá-lo, as palavras enfiam-se umas nas outras, as
azedas ainda pior, e acabaram os quatro derramados de
todo, parecendo que se queimavam mal viam a sombra uns
dos outros.
Com o Tinoca embirrou por melindres no trabalho,
sem se dar conta de que o outro era velho, cansado de
doenças e do mau trato dos filhos, uns soberbos, lá por
que negociavam em melões e andavam na caça com lavradores de
Salvaterra; mas o Tinoca deu-lhe pouco troco, bebia os ares
pela Olinda e receou perder-lhe a amizade, sem amigos um homem
não vale a cabeça dum fósforo, queixava-se o velho, ainda mais
quando os do seu sangue o enjeitam.
Mas o Tóino embirrava, embirrava, reco-reco, parecia
roca de menino em mão irrequieta, e aí voltou ele à
sarrazina com a mulher por mor da maneira como os murtoseiros
a olhavam tão moído de ciumaria que até o pão se lhe enrolava
na boca à hora do comer, contava aquela, mais tarde, au irmão
e à cunhada. E Então com o Manel Sape-Sape, entrava-lhe mesmo
doença ruim, talvez Porque sempre em ar de galaroz porque o
murtoseiro andasse metediço e presumido. Quem vingava o Tóino
era o Carolas, que tratava o outro por Manel Maria, tanto o
irritavam os desvios pelo penteado, como aquela parvoeira de
comprar samor com gula de bicho assim que lhe pagaram as
quinzenas. dois irmãos aos olhos das pessoas, de que Ela se
desculpava, não podia mandar nos Murtoseiros, a mulher, embora
o Tóino a visse preocupada bem mais do que queria parecer.
mudas de roupa e lavagens, sinal de Olinda quando
e a quem? - a ele, respondera-lhe.
ouviu a insinuação, aos outros, caturrava o Tóino, cada vez
mais bisonho. De qualquer modo, aquilo excitava-o, passando a
afastar o barco do mesmo ancoradouro dos outros avieiros
para que os não escutassem nas lidas do amor. Fervia-lhe o
sangue e logo depois pediu mimalhos como o João, lembrava-lhe
a companheira.
Tóino embezoirava com o remoque, falava em desertar da
tropa, fugindo ambos para a Vieira, onde não dariam fé da sua
situação; tinham lá família das duas bandas, sempre seria
melhor do que deixála sòzinha mais as crianças. Consumia-se de
tanto pensar. Chegou o fim da safra e a matação acabou com a
partida dos murtoseiros. Nunca souberam ambos que a zaragata
de murro entre o Carolas e Sape-Sape rebentara, por causa
dela, numa noite em que o primeiro descobriu que
o galaroz espreitava o saveiro do Tóino. O Espanta leu-lhes a
sentença na hora das contas:
- Para o ano pensem noutro patrão; aqui acabou-se o
trabalho. Não recebo gente rufia na minha companha.
Nada feito. Por aqui, nada feito. O Virò Norte já tem ordens.
Abalaram no comboio da manhã, antes do almoço.
Olinda não se despediu deles, porque nessa noite o seu
menino acordou alagado no suor de um febrão que o fez
delirar.
João da Vala não sabe o mal que leva consigo. Recorda-se que
de noite caiu ao Tejo e o Tejo se abriu numa grande fenda por
onde alguém o puxava; virava-se dentro
de água, ora de cabeça para cima ora para baixo, queria
gritar para que a mãe lhe acudisse, mas sabia que se
abrisse a boca começaria a beber água e morreria em
pouco tempo, inchado, como aquele homem que aparecera na vala
do Carregado com os camarões a comerem-Lhe os olhos. Nunca viu
a mão que o arrastava, sentia-a, bem, a agarrá-lo pela camisa;
fincando-lhe as unhas na carne, doía-lhe, doía-lhe, pensava fugir-lhe e não arranjava forças para se lhe furtar, como fazia com o Malagueiro quando o seu cão o perseguia e o filava pela manga ou pelo braço. Quem seria que lhe queria tão mal. Nas conversas do pai e dos outros homens, João da Vala entendeu que só o tal Tubarão podia ser tão fero e capaz !
de levá-lo para as profundezas do Mar; embora nunca
lhe tivessem falado nisso, julgava, era certo, só ele poderia
dispor de força tamanha. Agora tinha a certeza de que era ele
quem afogava as pessoas, havia de contar à mãe
se conseguisse escapar daquela perseguição, para que ela
lhe batesse ou o matasse, já que o tal Zé Soisa não fora
capaz e estava preso, ninguém sabia onde.
Invade-o depois uma modorra que lhe fecha os olhos.
O pesadelo daquela mão que o arrastou até ao fundo
do Tejo confunde-o no momento em que vê o rosto da mãe
junto do seu, a acariciá-lo:
- Que tens tu, filho, meu rico menino. .
Talvez só agora sonhe; talvez esteja afogado nas ágùas
negras e ainda o deixem lembrar-se das brincadeiras no
areal com os companheiros e o Carolas, seu amigo, que
vai sorumbático ao canto da janela da carruagem, a encher-se
das terras e do rio onde não voltará para prometer a João
da Vala, seu amigo, um ninho de melros em riba
de um choupo. Há melros que queiram vir entreter o menino
doente? O Malagueiro percebe, adivinha o que se passa,
talvez ainda mais o que se vai passar, e não ladra; nem
tão-pouco corre o saveiro da proa à ré, inventando caça, ;
inimigos e alegrias de cão jovem. Deitou-se aos pés do
dono, tem os olhos tristes. Têm ambos os olhos tristes...
Levanta a cabeça malhada quando Olinda Carramilo vem
afagar o filho e perguntar-lhe o que sente, mas deixa-se
ficar no mesmo sítio, sem mover o rabo nem erguer as
orelhas de curiosidade. Estremece-lhe o corpo, mal o dono
se encolhe ante a vaga de frio súbito que se segue ao calor
espesso provado até há momentos, como se o Sol nascesse dentro
do menino doente e traspassado pelo gume vivo de uma dor funda que se lhe cravou na cabeça e nas costas; e como o dono geme numa queixa magoada, Malagueiro, o cão, gane baixinho, acorda, dormita, aquieta-se e inquieta-se. Geme também.
Também gemem os remos movidos pela ansiedade de
Olinda. Tem pressa de chegar a Salvaterra para que o
médico veja o filho e lhe tire a dor de que ele se queixa,
embora o marido falasse em chamarem a Ti Maria do
Chico Bolas, muito sabida em rezas afugentadoras de
maus espíritos e dos seus maus-olhados, que se albergam
no corpo das criaturas de Deus. Tirara uma nota de vinte
do dinheiro guardado para fazerem barraca na Toureira
e bem sabia que o doutor custa os olhos da cara, fora
os remédios e os cuidados de boca. O Tóino abalara para
Azambuja, ela metera-se naquela viagem, sem lhe dizer
o que pensava, e agora temia demorar-se, porque não corria uma
brisa capaz de lhe animar a vela do saveiro. Rema, vai
remando, a viagem é longa, doem-lhe os
braços, quebra-se-Lhe o corpo, prossegue, volta-se de vez
em quando para perceber o que se passa com o filho, e
ao reparar na caverna do barco recorda-se do tempo em
que ele julgava ver outro menino na água baldeada para
ali com o peixe colhido das redes, e sorria para a sua
imagem, e tentava agarrá-la, e batia-lhe, amuava,
indignava-se, acabando por carpir ante a impotência de lhe
deitar a mão e mordê-la na raiva dos primeiros dentes.
Agora, que já fala, tem-no quedo, embrulhado na manta
e consumido pela doença. Ignora o seu mal, ele queixava-se da
cabeça e da dor nas costas, já lhe deu café, que vomitou, acha
que o deveria embalar no seu colo
talvez lhe fizesse bem, mas precisa de chegar depressa
a Salvaterra. Receia chegar tarde. Tem medo, sim. Sente
o outro filho a mexer-se no ventre, parece-lhe que o perigo se
aproxima dos dois, está cansada, quase exausta, e lembra-se de
que ficarão sós quando o Tóino for para Santarém.
Como vai ser, então?!. Antes disso precisa de
armar a barraca para não ficarem ao tempo. Vão fazer-lhe falta
os vinte escudos que tirou para o médico.
João da Vala não se mexe. Leva a cabeça tapada pela
manta onde a mãe o enrolou, agrada-lhe o peso que tem
sobre os pés, sim, é o seu cão, ignora tudo o mais. Entrou
em si o torpor da febre, onde voga à deriva sem pensamentos. A
mãe puxa com força a corda da vela grande e com o remo
mergulhado na água aperta o punho entre
o braço e o corpo para servir de leme. No respirar da
maré, o barco avança mais ligeiro, por instantes, e regressa
lentamente à pachorra da calmaria. Segue junto a uma ínsua
alagada, Olinda pensa que arranjará um
pouco de vento mal atinja a veia principal do rio, volta
a meter os remos nos toletes para remar de pé. Estica
a vela do estai e amarra-a à cinta do barco. Rema, vai
remando, retesa os braços à frente, trá-los ao peito, arfa
a marcar o ritmo, sente vertigens, corre a mão pela testa,
tira o lenço da cabeça e pendura-o no punho do remo esquerdo
para descobrir se a aragem anima. A fadiga oprime-lhe o peito,
mas não cede na ânsia de chegar, porque receia, tem medo, sim,
medo de que o médico não esteja, podem-no ter chamado para
outro doente ou, quem sabe, o médico casou com a filha de um lavrador e vão muitas vezes para Lisboa, é o que dizem; irá direita à farmácia, o boticário pode dar-lhe qualquer remédio que faça bem - chegarão os vinte escudos?
A água pesa na pá dos remos. Um bando de estornìnhos passa
sobre o saveiro à procura da outra margem, ela segue-o com o
olhar inquieto, pede uma esperança, talvez corra uma brisa depois da ilhota onde pasta uma manada de éguas apoldradas. O guardador saúda-a de barrete na mão, sem deixar o encosto do cajado, e ela rema com alma nova porque o vulto lhe dá ânimo.
- João! Ouve, João! Como te sentes?.
Está a dormir, pensa ela. A sua voz desperta o Malagueiro,
que geme de mansinho e ergue a cabeça. Na curva surge o
primeiro telhado de Salvaterra, afinal faltava
menos do que julgava, meia hora talvez chegue, encostará
o saveiro a qualquer fragata, saltará fora, irá a correr
até ao largo da igreja, sim, antes perguntará onde mora
o médico, se ele não estiver vou logo direita à botica
olhe, senhor, o meu menino queixa-se de dores de cabeça e
aqui nas costas tem qualquer coisa. quando o volto ele faz
cara de dor, veja lá um remédio bom que não seja
assim muito caro para as posses da gente, a gente é pobre;
mas ainda falta meia hora, meia hora que vai parecer
longa como um dia triste, e Olinda Carramilo abre a blusa,
está a suar. já a arregaçou as mangas e rema, vai remando
à força do hábito de mover os braços, Não repara nas fragatas
que passam ao longe; sequer nas árvores debruçadas sobre o
rio. Há dois remos no seu mundo, o filho enrolado na manta, os
gemidos do cão e ao bico da proa aquele telhado para onde
avança. Tudo o mais lhe foge. Rasga com o barco uma esteira de
água parda. A que horas poderá voltar! O Tóino foi a
Azambuja comprar pregos para a barraca; que dirá ele
quando chegar e a não vir? Talvez se meta no vinho com
algum camarada e demore mais tempo. O pior é se agarra
o vício de beber.
Agora também lhe basta remar um pouco mais, a reponta da
maré não demora e levará o saveiro consigo até ao cais, lá
estão os mastros das fragatas, bem os vejo, para tudo correr
bem seria um milagre se o meu joão não tivesse febre, e então
era só o trabalho de voltar ao mesmo sítio.
Rema, vai remando, muda de posição, talvez se possa
sentar no banco, mal se aguenta de pé, olha, pois não, já
remo há mais de duas horas e na volta ainda me vai custar
mais, ou talvez não, se a dor de cabeça passar ao meu menino.
A vela sacode-se, enrija com a brisa, o estai sacode-se,
enrija com a brisa, agora, sim, graças a Deus vai ser um
instante, quando menos se espera as coisas mudam, estou
farta de dizer ao Tóino que a gente precisa de coragem
para andar sempre, porque de repente, como agora, mudam as
coisas e o rumo das coisas, e então o mal torna-se em bem,
tudo ajuda. Já ouve a voz dos homens que descarregam uma das
fragatas, deve ser adubo, pensa Olinda Carramilo, alguém
canta, não são os homens da descarga
com certeza, porque nunca os ouviu cantar naquele trabalho.
Assim é uma beleza; o saveiro vai na mão ligeira da brisa e
parece que nem toca na água.
Talvez empolgado pela carreira veloz do barco, o
cão acorda da sonolência em que se embaláva, ladra, põe-se a
saltar à volta da manta onde Joãoda Vala adormeceu, acabou
mesmo agora de adormecer depois de o corpo se ter sacudido num
estertor qualquer que a mãe não viu, porque vai a remar de
costas para ele; não admira, falta já tão pouco e é agora que
o maldito do cão começa a uivar.
- Cala-te, Malagueiro! Raio do cão!.
O cão insiste, ela volta-se e vê o bicho com as patas
em cima da manta, que depois puxa à dentada. Olinda
Carramilo larga os remos e afasta o Malagueiro a pontapé. Gane
o cão, geme e uiva, raio do cão!, uiva e regressa quando ela
abre a manta para espreitar o filho e o vê com os olhos
líquidos, espantados a olhar para o céu cinzento. Toca-lhe a
pele e sente um arrepio.
João da Vala adormeceu e está frio. Porquê, Senhor,
porquê?!...
Caminhos
A rota contraditória das suas águas, o Tejo foi depondo e
levando, levando e repondo areias junto do valado real da
Lezíria Grande. Areias e terras doutras margens por onde
passa. Quando o Tejo passa, algo acontece sempre, porque um
rio tem as suas glórias e os seus dramas. Como os homens. Um rio vive, respira, trabalha, constrói e destrói. Também os homens. Mas os homens amam e apaixonam-se. Por belas coisas, às vezes; por coisas mesquinhas, outras tantas. A paixão é o tudo e o nada dos homens. Odienta ou amorosa, a paixão
empolga-o, porque nem só o amor sublima o homem.
Também na luta feroz ele se ultrapassa. A sobrevivência,
por exemplo, é sempre uma luta feroz, mesmo em silêncio. Ou
será ainda maior quando vive no silêncio. Um rio tem as suas
glórias e os seus dramas, mas não se apaixona. O Tejo não pensa -. age. Age ao sabor das circunstâncias. Age e constrói; age e destrói. Como o homem. Mas o homem pensa e conhece a dúvida.
E duvidou quando o Tejo foi depondo areias e terras
junto do valado real da Lezíria Grande. Terras e areias
que fizeram uma praia sem dono. Ou que não devia ter
dono. Mas todos os anos o Tejo depõe ou decompõe praias
iguais que não chegam a criar história. Servem numa
safra para recolher redes, quando muito.
Aquela praia, porém, ficou. E os avieiros sem casa
vagabundos do rio, começaram a erguer por ali as suas
barracas. Pequenas, talvez para que as não vissem; ou
tímidas para que não as mandassem destruir. Ou pequenas e tímidas por causa dos materiais e das agruras do
tempo. As primeiras apareceram à ilharga do rio e voltadas
para o Norte; as que vieram depois foram dispostas lá atrás
numa segunda linha e a aldeia ficou com uma rua estreita, de
areia suja e erva rala, e outra larga, de água, mais larga e
longa do que qualquer avenida de uma grande cidade, porque é o próprio Tejo.
As palhotas são todas iguais. Quatro prumos metidos
no chão e varas de madeira a segurar o telhado coberto
pelo carroicil das abertas, que é a melhor palha nascida
na vegetação da Lezíria. O material das paredes vem da
mesma origem. Apodrece depressa, mas depressa se refaz. E como
o vento do norte sopra rijo e traz frio, os pescadores põem na
parede desse lado latas velhas e pedaços de madeira que
acham nos valados ou as enxurradas trazem no Inverno. Não
espanta que pareçam vergonhosas de ali estarem; e acaçapam-se. Entra-se nelas de cabeça baixa como na vida.
Na parede do fundo, no lado do poente, coloca-se a tarimba onde todos dormem. Ao cutelo se são muitos. Onde os pais amam e os filhos aprendem; onde os doentes se queixam, gemendo, e onde os sãos se queixam, calando. Bastam dois tijolos para se arranjar cozinha; chega o chão varrido para se ter assento e mesa. Aos cantos ou penduradas das varas que seguram o tecto, as artes da pesca: as nassas, os botirões e as tarrafas.
O chão ressumbra humidade das marés do Tejo e
anda no ar um cheiro a bafio. Também nisso as choupanas são
iguais; também não há telhado mais alto a dominar por ali. A
rasoira da sorte nivela as vidas e as
choupanas. As da rua estreita, as que vieram depois,
unem-se às da frente por varas lançadas de telhado para
telhado, amparando-se todas para defrontarem os temporais.
Assim os homens se aconchegassem.
Mas entre eles há ódios por mor dos lances e das Fedes, por
um cão que mordeu noutro, pelos filhos que se bateram por
pedaço de lama, cana ou madeiro. Nuas como vieram ao mundo, as
crianças chapinham na água e rebolam-se na areia suja,
perseguidas ou lambidas pelos cães, seus irmãos e companheiros
de todas as horas. Um cão vale luto. Também um cão pode andar
triste, derrancado de dor, se morre um menino seu dono. O
Malagueiro passa agora os dias à porta da barraca, à espera de
João da Vala. Ainda não se desimaginou de que o dono
vai voltar. E quando anda no saveiro, põe-se de pé ao bico
da proa, de orelhas firmes, à espera de descobri-lo em
riba de um valado ou entre os arbustos das valas e esteiros.
Depois, cansado, resigna-se e dorme. Sonha e geme num gemido,
não ladra a quem se aproxima, porque conhece os passos do dono
e não são os dele que lá vêm pelo carril das oliveiras.
- Só lhe falta falar - diz Tóino da Vala.
Tóino da Vala fez barraquinha na rua estreita da Toureira,
mesmo à babugem do Tejo. A aldeia não se pode alongar para as
bandas do valado; até a praia de lama
e areia que o Tejo ali deixou, tem dono. E quando vier
uma simples aziela, mal o rio agonie com mais água, a
choupana do Tóino e da Olinda terá de ser abandonada.
Ainda ontem, como todas as vezes que a reponta da maré
crescer muito, Olinda Carramilo irá passar a noite para
cima do valado, deixando a filha de mama ao cuidado
da Maria do Zé Bogas, sua prima.
O Tóino anda na tropa. Nem um nem outro percebe
para que o mandaram apresentar em Santarém. E ainda
menos a Olinda, que já viu no seu homem uns modos de
dura gente, quando veio a casa na primeira licença. Adivinha
que ele faz por lá vida de moina, coisas de soldado meias
palavras para os amigos, segredos para ela, e piscadelas de olho por tudo e por nada. Pode ser bazófia. Mas o que sabe
uma mulher quando é melindrosa pelo seu homem e gostaria
de prantar veludo no chão para ele pôr os pés?
Carteiam-se. O Tóino pede que lhe escrevam as suas
letras, onde quase nunca diz o que pensa. Háde aprender a
fazer uns gatafunhos, quanto mais não seja. Agora fala da
Maria, da sua menina de colo, lembra-se do João
e arruína-se-lhe a alma, e nem manda um beijo à mulher, para
que o escrivão, a quem paga dois tostões por carta, não faça
conversa com a outra magalagem. Ela
sossega-o, o pior é ele estar longe, tenha juízo por lá, mas
também não esclarece o que pensa ao escrever aquilo.
Conta-lhe que o João Marujo lhe ofereceu o filho para a
ajudar na safra com as nassas, o peixe morre na mesma,
pouco, já se vê, mas sempre dá para ela viver. A menina
come-lhe do peito, é comer que não se paga, e a prima
toma-lhe conta dela, se precisa de sair para a venda.
O Tóino amua com certas novas.
Tem medo que lha comam pelos caminhos, embora a
Olinda não se esmere agora no vestir, receosa de que os
outros homens se aticem. Ela bem sabe que não há mal
do mundo que a tente. Morrerá fiel ao seu homem. Nem
no ombro qualquer outro lhe tocou. Mas não se enfeita;
vive a meia viuvez da ausência dele, mói-se de saudades
e de trabalho, não pára, mal cerra os olhos à noite na
tarimba, e até começou a fazer uma rede nova para estrear na
saboga, logo que o Tóino volte. Antes de três anos, já
deitou contas, quer ter uma rede varina para a
safra do sável. Até se põe verde de raiva, quando pensa
no tempo que andaram na companha do Zé Malho e do
Espanta. Lá criados toda a vida, isso é que não.
Conta-lhe umas por outras, é claro. Os homens não
podem saber tudo. São uns soberbos de mando, só gostam de
dar ordens. Querem sempre ser reis nem que seja
numa barraca de carroicil, pensa Olinda Carramilo.
E sorri quando medita nessa mania dos homens.
Ainda não lhe disse, por exemplo, que a mãe Lhe mandou
recado para voltar a casa quando quiser, agora que tem o
marido na tropa e uma filha de peito nos braços.
Nem que comesse pedras! Que tudo já esquecera -pois,
sim, mas a mim não me esquece a desfeita - e que o pai
lhe perdoava a ofensa de fugir do barracão. Passam os
anos, mingam as queixas, e o destino de cada um é coisa
em que se não tem mão. Não se fez soberba, é bem de
ver, mas nem que de todos os altares do mundo caíssem
os santos bons ela voltaria atrás com a sua palavra. Sim
senhora, tudo muito bonito, mas só quando o seu homem
voltasse da tropa ela faria as pazes com eles; já que a
tinham esquecido por mor do Tóino, só com o seu marido
a haviam de receber.
Ainda não lhe disse também, por exemplo, que na
aldeia da Toureira vai um falatório por sua causa. Não
se fala noutra coisa nos grupos que vão catar-se para o
sol. Ela bem o sabe, as tripas dão-lhe uma volta quando
os surpreende na cochichada; passa de largo, porque da
sua vida só ela sabe e da sua honra só ela cuida. Mordam
as víboras a própria língua para morrerem de peçonha
com o veneno que deitam, pensa Olinda consigo. Pois,
sim senhora, pedira para ir trabalhar para o campo na
monda do arroz; falara por ela o Joaquim Lecas, que pescava o
arrozal do patrão Agostinho Serra, e a resposta
viera tarde, mas viera. Aparecesse daí por dez dias, mais
coisa menos coisa, metia um rancho de gaibéus e podia
contar com jorna.
O irmão procurou-a alarmado ao saber a notícia. Ela
entrou-lhe há momentos no saveiro, pegou nos remos e
partiu com o Zé para as bandas da vala das Obras. Quer
falar à vontade, já lho disse, longe dos ouvidos das
enredadeiras. Passa junto do malagueiro onde amou o Tóino
pela primeira vez e o coração recorda-o, talvez confrangido; a vida não corre bem, não, mas a culpa a quem
pertence? Rema mais vigorosamente e o barco vence a
reponta da maré, aproximando-se da outra margem.
- Já sei o que te disseram, Zé. Que se uma mulher
do nosso pano: deixa o Mar e vai para o Campo.
- Bonito, não é - responde o irmão sem a encarar.
Ela percebe-lhe o embaraço.
-Olha pra mim, Zé! Olha bem pra mim! Vê bem
se nos meus olhos há maldade.
Fitam-se por instantes; Zé Carramilo retrai-se de
começo, mas depois encara a irmã, encara-a dentro dos
olhos e sorri.
- A gente deve fugir das bocas do mundo, Linda.
E o Tóino não está na tua companhia; as pessoas podem
fazer enleios com vossemecês. E eu não gostava. Sabes
que era um desgosto p'rà gente, se vossemecês se
desentendessem. - Senta-se ao lado da irmã, toma-lhe um dos
remos e seguem com o saveiro pela vala acima. Remam e ciam;
falam e ciciam. O Tejo aconchega-se à sombra dos salgueiros,
choupos e chorões que enterram as raízes nos nateiros das
margens, empanturrados de lentura. Na ínsua
das Obras, freixos e eucaliptos furam o azul do céu.
- Pois sim, Zé. Mas eu não me deixo governar pelas
bocas do mundo, mesmo que elas me chamem galdéria.
Tenho braços pra trabalhar e posso trabalhar, é mais
bonito andar às sopas dos outros?!.
- O Zé Malho empresta dinheiro. A ti, ele empresta.
- Já bonda o que lhe pedi para a rede e paguei. Não quero
ser criada dele e do Espanta o resto da vida. Não, Zé, isso
não! Vou prà monda, vou, sim. E nem o Tóino me desimagina.
- Ele sabe?
- Não. Ainda não. Vou contar-lhe na primeira carta.
Zé Carramilo pensa que se fosse mulher dele já a
tinha calado com dois murros; depois arrepende-se, porque seria capaz de tomar o partido da irmã, se o Tóino lhe batesse à sua frente, e não diz uma palavra, também não
amua, sim, a Olinda é mulher honrada, tem confiança
nela, para que veio meter-se na vida dos outros? Chega-lhe a
sua vida e bem. Mas se é homem e mais velho do que ela, e
ainda para mais seu irmão, não parece mal lembrar-lhe algumas
coisas que se não podem esquecer entre a gente do rio.
- Nunca nenhuma mulher do nosso pano trabalhou no campo.
- Se sou a primeira, não vou ser a última, Zé. - Olinda tem os seus argumentos. - Acho que não vou ser a última. Há agora menos peixe ou não?
- Há menos, sim.
- Os almocreves ganham ou não o quinhão maior do
nosso trabalho?
- E depois? !
- O Tubarão não larga a gente com multas, licenças e
mandados. Mas agora não tenho homem no barco e não fui eu nem
ele quem escolheu a sina da tropa. O Tóino precisa de dinheiro
para o fumo e eu para comer. Se tenho onde ganhá-lo com honra,
vou eu ganhá-lo. Não quero favores de ninguém enquanto tiver dois braços.
Zé Carramilo coça o cabelo crespo, quase se arranha,
mas argumenta sem brio.
- O povo vai falar de ti.
- Pode ser que não, Zé. E se falar cala-se. E quando
se calar, as outras mulheres não vão ter medo de trabalhar no
campo. As mulheres do campo têm tudo o que as nossas têm, nem
mais nem menos.
- Já vi que tens a ideia ferrada na cabeça.
- E que ninguém ma tira de cá. É isso mesmo. nem tu.
Pela maneira como a irmã lhe agarra no braço, Zé
Carramilo percebe que, se a olhar, lhe verá lágrimas nos olhos. Não lhe quer ver as lágrimas; não precisa de
lhas ver.
MONDINA QUE VAI à MONDA
PARTIU de madrugada, ainda a aldeia dormia. Quando
viram o seu vulto, alguns cães ladraram; depois
conheceram-lhe a voz e aquietaram-se. Olinda não descobriu
vivalma, mas adivinhava, tinha a certeza, de que por entre as
frinchas das paredes de palha havia muitos olhos à espera da
sua saída. Nem toda a gente estava agora contra ela, ia
jurá-lo, bem o percebia na maneira como muitas mulheres a
encaravam. Até os homens, um dia, haviam de lhe agradecer
aquele passo. Tinha a certeza. Aventurava-se. Sim, era uma
aventura em que se metia. A noite deu-lhe medo e chamou o seu
cão para a acompanhar. O Malagueiro chegou-se numa corrida,
pulou à sua volta e, num salto, pôs-lhe as patas no peito,
como se quisesse detê-la. Ela falou-lhe num cicio, enquanto
deitava a filha, a Maria, sobre a manta que estendera no fundo
do saveiro. A menina palrou, não quis ficar deitada;
compôs-lhe a touca na cabeça, tinha receio da aragem da
madrugada, porque se lembrou do seu João, que lhe morrera
numas horas e por quem ainda trazia luto no avental. Depois
levantou a âncora, desafiou o Malagueiro para saltar e com um
dos remos afastou o barco da borda. Nas trevas da aldeia já se
distinguiam vultos.
Olinda sorriu, ganhou ânimo; quando o saveiro flutuou,
puxou duas remadas fortes e fez rumo junto à margem sul.
Deitara contas à distância que fica entre a Toureira e
a emposta do Agostinho Serra, resolvendo ir de barco até
perto da Arriaga, onde saltaria para fazer caminho por
um carril mais desafogado. Sabia que tinha de chegar antes
de o Sol nascer e temia-se de algum encontro, nãoporque
receasse de si, pois nunca um homem podia abusar de mulher
que o não quisesse, pensava-o há muito e até
o dissera ao irmão. Mas de uma desfeita ninguém se livra,
reflecte agora enquanto manobra o saveiro.
O marulhar da água do Tejo ressoa nas pedras de de fesa do
valado e no costado da embarcação. Lembra-se das fainas da
pesca e do Tóino. Que dirá ele quando souber. . A Maria rabuja
na manta, deve ser mais um dente a romper ou será alguma
doença? Sobressalta-se com a ideia, pára de remar e deita-se
junto da filha, aproximando o rosto da sua testa para medir a
febre. Não, não : a acha quente, parece fresca; toma-lhe o
pulso, não sabe para quê, não entende para que agarram os
médicos no pulso das pessoas, mas toma a precaução, admitindo
que o calor se meça melhor naquele sítio do corpo. Resolve
dar-lhe de mamar para que se cale. Corre o olhar pelo
céu - que horas serão? Maria da Vala agatanha-lhe o
peito, larga o bico do seio, começa a palrar para o lado
do Malagueiro, que se chegou perto dela e ladra depois
para a Lezíria quando ouve um galo cantar. Olinda regressa aos
remos, quase feliz. Nunca mondou na sua vida, aquilo não é trabalho de avieira, mas tem fé em aprender depressa. Agora só leva essa preocupação. Precisa de saber o que acontecerá
quando lhe ensinarem a arrancar as ervas ruins e ficar
entregue a si mesma sob a vigilância do capataz. Por toda
a parte há capatazes. Será igual ao Espanta o que vai
mandar nela nos dias da monda?
Ainda bem que meditar gasta o tempo, pensa depois.
Já vê a comporta da Arriaga. Deixará ali o seu barco;
sabe até onde o vai amarrar, tantas vezes ali aportou com
o Tóino. Põe-se a remar com frenesi, como se o sol a apanhasse
no carril antes de chegar. A noite clareia. Salta em terra,
ata bem a corda, embrulha a Maria no xaile preto
e mete-se a caminho. O vulto de um campino aparece à
porta de um barracão para lhe gritar bom dia.
- Bom dia! - responde com receio. Depois pergunta: - Leva
muito a chegár ao arrozal do patrão Agostinho Serra?
- Meia hora bem puxada.
Agradece e estuga o passo. O maioral vem para o
meio do terreiro das motas e começa a assobiar. Olinda
resmunga: Ora o parvo! Os homens não podem ver uma
cadela com saias; são uns babosos!
Conclui o mesmo quando o abegão pára à sua frente
e a olha num sorriso maroto, o parvo do homem!
Ela sentara-se no cabeçalho de uma carreta, tão cansada
chegara; se lhe pusessem a mão na boca rebentava, contou à
cunhada dias depois. Pusera no chão o saco do
comer, abrira a blusa para dar mama à filha e logo o abegão
apareceu para lhe perguntar ao que vinha. Sim, o Joaquim Lecas
pedira que lhe dessem trabalho, ela ali
estava, só queria que lhe ensinassem o que tinha a fazer,
não, nunca andara na monda, então, sim senhor, se ele
achava que devia ganhar menos do que as outras, também
servia, o seu homem andava na tropa e ela precisava de
ganhar. E o parvo do abegão põe-se de carinha na água a dizer
que podia dormir num aposento da família, explicando que era
uma casa limpa quando a viu mudar de cara; não senhor, não
senhor, muito obrigada, ia com a sua menina dormir à
barraquinha dela, trouxera o barco, em menos de uma hora
punha-se em casa. Então foi a vez de o abegão ficar mal
encarado e abalar para a mota dos bois.
Ainda ninguém do rancho surgira no terreiro da emposta. A
estrela da aurora ficara no céu à espera do Sol.
Olinda viu-a, e matutava ainda nas palavras do parvo do
abegão, sem reparar que um podengo de guarda rosnava para
ela, preso a uma corrente de ferro junto de um dos
cães e das capoeiras.
Começa a ouvir vozes, alguém canta, cantam logo de
seguida outras mulheres, abre-se uma das portas e aparece um
homem a olhar para as horas que dá o sol. Daí por
instantes saberá quem ele é: Francisco Descalço de sua
raça, capataz do rancho de gaibéus que em mondas e ceifas
serve o patrão Agostinho Serra, com sua licensa. O patrão
ainda não saiu do aposento, mas Olinda há-de vê-lo antes da
hora do almoço. Agostinho Serra nunca falta ao começo das fainas e por isso diz no café da Vila que "lavoira lhe dá chatices e canseiras para encher o rabo da Companhia". Vem por hábito ganho no tempo do pai, rendeiro das terras daquela emposta, embora se diga que aparece à chegada dos ranchos para escolher a rapariga mais do seu agrado. O Francisco Descalço traz sempre um mimo fêmeo para ele meter o dente. Lá se entendem.
Agora o capataz bate no tabuado do barracão com o
pau de marmeleiro que traz sempre consigo e incita:
- Vamos lá que se faz tarde! Ó gente! Vá de trabalhar!.
Olinda ouve-lhe a ordem e recolhe o seio na blusa.
Começa a amarrar o xaile à barriga da filha, prendendo-a
depois ao cabeçalho da carreta para ali ficar até ao seu
regresso. Acaricia-a, beija-a, mas a Maria choraminga ao
reparar no cão que lhe rosna. Tem sono, pensa a mãe
enquanto se aproxima do capataz. Sente-se tonta, parece que à
sua volta as coisas e as pessas estão metidas num nevoeiro.
Mal percebe as palavras, embora as oiça; os gritos dentro da
cabeça vazia. O seu corpo é um coril onde os ecos se atropelam
e confundem, aturdindo-a. Quer reagir, é alguma tola com medo
do trabalho? Ora essa, parece que nunca viu gente! Mas fica estranha No grupo de mulheres que se forma à sua volta e a
interrogam com o olhar. Uma delas pergunta-lhe:
- Aquela cachopinha é sua? - e aponta para Maria
da Vala, já entretida com o cão, que deixou de rosnar e
já saltita, contente, por ver que o vulto não lhe faz mal.
A miúda palra-lhe e bate com as mãos no chão. Daí a
pouco adormecerá, lambuzada de cuspo e terra, sob a
vigília do podengo, que acaba por se deitar de focinho
no chão.
Francisco Descalço parte pelo carril em direcção ao
arrozal; leva o pau de marmeleiro sobre as costas e nas
pontas do qual descansa os braços. Pensa no que lhe disseram o
padeiro e merceeiro onde o rancho se vai aviar. Conseguiu que
lhe dêem o comer durante aquelas duas
semanas, sempre são trinta e duas pessoas do seu pessoal,
ninguém vê os pesos nem as medidas e dá-lhes bem para
o que lhe oferecem. Lembra-se da cara do Lobato da mercearia,
um fona, um avarento, que só se pôs de acordo quando ele o
ameaçou de mandar o rancho servir-se doutra loja.
- Vamos lá depressa! - grita por hábito.
Estuga o passo, quase saltita, e as mulheres acotovelam-se,
empurram-se e riem. Os canteiros do arrozal ainda não se vêem.
Adivinham-no pela figura esgalgada e magra do Ti Arriques, o
arrozeiro, que os espera no capelo
da regadeira mestra. Mais ao longe, o pardaleiro bate na
lata velha com que afugenta a passarada. Vestiu um casaco de
homem que lhe dá pelos joelhos, tem frio, bate
os pés descalços no chão e pensa nas pernas da mulher
que dormiu à sua beira; levou a noite toda a sonhar com
elas, mas viu-as de madrugada quando a mulher se voltou
na esteira e ficou descomposta. Não quer outro sítio para
ficar. Lembra-se disso quando grita aos pássaros que
avançam num bando.
- Éi, éi, iooó. Éi, éi, iooó.
As rãs saltitam dos charcos para a erva, pressentindo
que o Sol vai romper. Francisco Descalço saúda o arrozeiro
com o braço e vai ao seu encontro para combinarem o jeito da
monda. Ti Arriques é que sabe da seara, quer-lhe como aos
filhos, sim, pois, não sou eu que cuido dela desde o armar
da terra até à saída do pão em rolheiros? diz ele muito ancho,
sempre que lhe falam do arrozal. Também não se dá a outra
vaidade. Passa muitas noites em claro à volta dos canteiros,
enquanto os outros dormem, prevendo tudo, imaginando como a
água correrá pela regadeira mestra e pelos boquetes até à
saída, sim.
pois, um arrozal é como o corpo duma pessoa, pode morrer se
lhe falta o sangue, uma pessoa ainda se queixa, mas as plantas
e a terra têm de se perceber pelos sinais que a
gente sabe; a água é o sangue do arroz, nem tão pouca
nem de mais, aquilo manda um porradão de contos, e se
un homem se descuida, bumba! está a coisa perdida e nunca mais se arranja patrão no resto da vida toda.
Fala nisto mesmo com o capataz, enquanto as mondinas
levantam as saias e as repuxam, atando-as entre pernas, em
jeito de calções. Mostram as coxas, trocam ditos malandros, e
Olinda Carramilo fica aturdida com o que vê, nunca andou de
pernas à vela, o que diriam as mulheres da Toureira se a
vissem naquele preparo? Iniste com ela a mondina a quem o
feitor pediu que lhe nsinasse o trabalho, lembra-se que só o
seu homem lhe vira as coxas, tem na esquerda um sinal preto
que o Tóino gostava de ver, mas não tem outra saída, é uma
vergonha mostrar as pernas a todos, sim, pois é, o pior é que
não há-de deixar mal o Joaquim Lecas.
Já entram mulheres nos canteiros da ponta escolhida
pelo Ti Arriques. Francisco Descalço recomenda:
- Entrem devagar! Uma a uma.
Os rapazes do rancho olham as pernas das mulheres,
parecem gulosos, pensa Olinda, e mal sabe que todos esperam
ver as suas, nunca lhas viram, como serão? pensa e puxa as saias, a outra diz-lhe para as subir mais, faz de
propósito, é sempre assim quando uma nova mondina aparece no
rancho e a vêem envergonhada.
- Puxe lá bem as saias, senão molha-se toda e o
capataz ralha. Mais acima, vá: pernas são canelas, merda
p'ra quem olha pra elas.
Riem ambas com aquele dito e Olinda está num fervor;
lembra-se do Tóino quando vê o sinal preto na coxa esquerda. O
pardaleiro aproxima-se dela. Bate na lata
velha, mas não desferra os olhos das pernas da mulher
que dorme à sua beira. Ti Arriques sorri também, mostra
a dentuça de cavalo e traga as cachopas com a vista - ah,
desta vez o malandro do Chico trouxe boa fazenda, sim
senhor! Vai para um mês que não conhece mulher, gaita
p'ra isto!, um homem não é de pau.
- Ó Rosa! - hrada o capataz.
O arrozeiro conhece aquela da última ceifa, é um
mimo, já esteve no aposento do patrão; o patrão sahe
escolher, não é parvo, não senhor. Se ele quiser outra, há-de
puxá-la ao seu jeito, embor a o capataz a tenha posto no
lugar de rainha, à ponta da fila do canteiro maior.
A excitação dá-lhe para a graça:
- Vá lá que o arroz está à espera de vossemecês.
O magano enquanto não vê as pernas às raparigas não
cresce. Não sei que diabo é isto! Depois é um regalo
vê-lo subir. Venham lá depressa! Essas duas daí.
Olinda decide-se. Assim que apanha a outra de costas,
baixa os calções que fez com as saias e põe-se à sua beira
O canteiro rebrilha ao sol na lâmina de água; as mondinas
mergulham as mãos em busca das ervas e dos limos
- raio de vida!, a água é um gelo, até queima os ossos
Quase todas as mulheres puseram canos nas pernas, por
mor dos bichos da água e dasferidas que o frio da água
rasga na pele. A gaibéua que ensina a avieira recomenda-lhe
que traga canos amanhã, senão as pernas ficam numa chaga; a água nas mondas queima, é mais fogo do que
água, verá.
Dobradas sobre os canteiros, aí vão as mondinas.
- Esse limo bem corrido, ó pessoal! - brada o
capataz.
Já não repara no arroz, vê pernas, pernas tísicas ou
gordas, mulheres de rabo alçado, mulheres sem rosto
chape-chape, os dedos procuram as ervas ruins, saltam
rãs, chape-chape, o pardaleiro solta um grito selvagem,
canta uma voz esganiçada, pernas brancas, pernas morenas,
chape-chape, de quem serão aquelas?, doem os rins e os quadris
às mondinas, doem os olhos do verde intenso
dos pés de arroz e da lâmina de água, tão fria!, chape-chape,
dá vontade de arrancar tudo o que vem à mão. ainda por
cima o sol arde nas costas, mulheres de rabo alçado, mulheres
sem rosto, chape-chape, vem o som dos chocalhos duma manada de
éguas que deve correr na Lezíria, que estará o Tóino a fazer a
esta hora?e a Maria? peço ao capataz para ir vê-la, chamá-la.
- ó então, tirem-me bem esse limo!
a hora do almoço nunca mais chega, uma mulher sai da fila e
vai abaixar-se, talvez o corpo só precise de descanso, de que
cor são os olhos da Rosa? pernas tísicas, pernas altas,
chape-chape, quando o Tóino souber disto vai ralhar comigo, e
quem ganha para comer. mulheres sem rosto, a cantiga não pega,
ainda niinguém quer cantar, chape-chape, os dedos apalpam o
fundo dos canteiros, água e ervas, água e frio, onde a
água bate, um pouco acima dos tornozelos, parece que
levaram um golpe, chape-chape, pernas brancas, pernas
com varizes, o pardaleiro bate na lata velha, as rãs coaxam ao
longe "não digas que vais à monda, não digas que vais
mondar", quer pôr-se direita, parece que o corpo
esteve sempre naquela posição de bicho, chape-chape,
atrás dela vai a Rosa, a Rosa rainha, a Rosa que já foi ao
aposento do patrão, passam os limos e a erva para a mão
esquerda, atiram-nos depois para a maracha do canteiro.
pernas morenas, pernas sardentas, chape-chape, mãos
engaranhadas pela água, mete-te aí atrás a passar o trabalho!,
o sol fura as costas, canta a voz duma rapariga "não digas que
vais à monda, não digas que vais mondar".
chape-chape, uma mondina pede água para beber, vem a
sede a todas, fartas de água nas pernas, água fria, água
navalha. Deus nos dê paciência!, a paciência é boa prà
vista, chape-chape.
E a voz do Francisco Descalço grita:
- Almoço!
Ao almoço, as gaibéuas com filhos chegam-se para
junto de Olinda. Querem ver a menina da mondina do rio,
querem saber o que traz ela para conduto, não pôs caldeira no
cambaricho, onde a rapariga que o capataz destacou vigia os
comeres do rancho. Come peixe, pois, ainda ontem o apanhou num
galricho ao pé das Obras. A Maria,
quando se viu solta e de barriga cheia, deu-lhe a palração,
meteu ao carril a gatinhar, logo seguida de um gaibéuzito
de olho azul e barriga de odre vazio que conseguiu agarrá-la e
mordê-la nas mãos, tão moído andava com raiva dos
dentes. Acabam ambos a chorar, riem-se as mães que vão
buscá-los em charola; o Francisco Descalço não tarda
em regressar de relógio bem à mostra, para que o rancho
se lembre de que as horas de descanso são curtas.
No pau atravessado do cambaricho pendem as latas
e marmitas do jantar. A rapariga dos comeres chega lenha
à fogueira; a mulher que ensina a Olinda a mondar vem
pedir à do lume que lhe empreste os canos, não precisa
deles, é só até amanhã. A avieira tem os pés vermelhos
e inchados. massaja-os, sorri para as outras, não quer dar
parte de fraca, está habituada às águas frias do Tejo durante
a safra do sável. E lembra-se do Espanta na voz do Francisco
Descalço quando ele dá ordem:
- Ó gente! Vamos lá a pegar!. São horas!.
Voltam as mondinas mais jovens aos beliscos e às
. corridas. Os aguadeiros vão à frente. Ti Arriques já lá
está no seu lugar, é homem de seiscentos diabos!, comenta
uma velha para Olinda, que se volta a olhar para a filha
posta no mesmo lugar ao pé do cão.
Entram à água.
De cima dos canteiros já mondados, dois homens tiram a
padiola, as ervas e os limos que as mulheres arrancaram da
seara. O patrão quer o arrozal que nem um jardim, diz o
abegão, só os dois sabem porquê: talvez amanhã apareça um
senhor do banco que dá crédito ao Agostinho Serra. Pediu-lhe
mais uma pazada de contos, o arroz faz muita despesa em
pessoal e gasóleo, embora pague bem o dinheiro que se lhe põe
dentro.
Gabarola, Agostinho Serra precisa que o outro diga
na Vila como trata das terras arrendadas. Quer tudo
limpo, um jardim. Não pode ver uma travessa de canteiro
esbarrondada. Outros homens limpam a vala.
Embala o silêncio o marulhar brando da água com os passos
das mondinas.
- Ó gente! Vá gente. Esses limos! Não quero
ver uma milhã por aí!
Canta uma voz de rapariga:
Aqui te arranco um raminho
De ervilhaca e balanco.
Os dois homens da padiola lá vão, lá voltam, no
seu passo Cadenciado na limpeza dos carreiros das rachas.
Olinda já sabe ao fim da tarde quem é o patrão; sabe dele e
muitas coisas mais: que a Rosa já foi ao seu aposento na
última ceifa, que ele separou ao pé outra cachopa e disse ao
capataz que precisa duma rapariga para lhe fazer o serviço da
casa, umas mondinas dão-se daquela precisão do Agostinho
Serra, outras ficam tristes, vai a Maria da Luz, tem uns olhos
bonitos, cabelo ruivo e é airosinha.
O coro repete os dois versos da cantiga:
Aqui te mando um raminho
De ervilhaca e balanco.
PRA QUE TU SAIBAS, AMOR,
QUE EU ANDO à MONDA NO CAMPO
ESCREVEU ao Tóino uma semana depois; só ontem recebeu
resposta. Não achou bem que ela fosse à monda: "agora ficas aí
na boca do mundo. a minha mãe já me tinha mandado dizer. todos
ficaram envergonhados contigo. o meu pai parece que não saiu
da barraquinha uns poucos de dias, parecia assim a modos que
lhe tinha morrido uma pessoa de família".
E ainda nem ele nem ninguém saberia o que se passara numa
noite, durante o caminho que fazia depois do sol-posto até ao
saveiro. Só ela. Bastará que ela nunca
mais o esqueça, por muitos anos que viva.
Pusera a Maria escarranchada no quadril e o saco
do arranjo à cabeça. A filha começara no carpir do
costume, por causa do cão com que se entretinha durante
o dia; só deixaria de serrazinar quando chegasse ao barco
e visse o Malagueiro correr ao seu encontro e saltar-Lhe à
volta. Naquele passo apressado que aprendera nos dias
de venda, calcorreava os carris no sobressalto constante
de quem inventa sombras de gente a cada momento. Quer
distrair-se, sabe que o caminho não é longo até ao porto
da Arriaga; põe-se a pensar na rede varina, agora que
já acabou de fazer a outra para a safra, acha que pode
arranjar trabalho na gamela, acarretando areia do rio,
e que com isso tudo junto, mesmo que passe necessidades, conseguirá fazer uma surpresa ao Tóino. Não resolveu se se
meterá a ceifar trigo ou se comprará umas arcadas de melão e
melancia para vender em Vila Franca; às vezes vale a pena,
noutras ainda se perde dinhheiro, é uma questão de sorte com a
fruta que se arranja. Quem tem medo não passa da cepa torta;
medo não, não tem medo, talvez não seja bem isso; tem medo mas
não dá confiança ao medo.
Se o tivesse, andaria sòzinha por aqueles caminhos de
noite e aos sobressaltos?. .
Levava o corpo a pedir-lhe descanso na tarimba. Nem
valia a pena despir a saia. Com o marido ausente nunca
mais se deitara à vontade, só tirava o lenço da cabeça e
saia de cima, dormia vestida, parecia-lhe nos primeiros
tempos que alguém poderia entrar-lhe pela barraca dentro. Mal
pegava no sono. Tinha pesadelos. Um homem faz falta, pois faz,
na companhia para a vida e no calor para a cama, parece que
com ele as coisas más custam menos a passar, e é bom tê-lo ao
pé quando se está contente, dá alegria, fica tudo mais com
alegria quando ele ri também ali ao alcance da mão. Há-de ser
melhor para a menina assim que ele volte da tropa, já o jurou
nestas noites de solidão. leva o Tóino consigo naquela
solidão, solidão.
calou-se a filha num repente, a menina adivinhou o que se
passa, o anjinho. e surde-lhe mesmo ao lado. quase lhe não
percebe o vulto, de um homem atarracado. tarraco e largo, de
Parecia de barba. devia tê-la crescida, por força, ela
com a menina no ombro. iso viu ela. e de caldeira e saco na
mão. Encolheu-se.
- Jesus Senhor! - Disse.
o vulto proferiu umas palavras que Olinda não percebeu. O
susto fechou-lhe os ouvidos. Nem resposta. Voltou o homem na
noite, insistiu ela em correr o caminho sem poder fazê-lo,
tanto lhe tremiam as pernas.
Sentiu que o vulto a seguia, nunca passos de gente lhe
soaram tão fortes, e resolveu parar quando viu um choupo.
Lembrou-se da sombra do choupo onde se deitara com o
Tóino pela primeira vez.
O homem está bêbado, pensou.
- Quem vai, vai, quem está, está.
- Pois!
Julgou que o podia atemorizar e chamou num grito:
- Ó Tóino! Já vou aí, home! .
Caíram as palavras no silêncio. Riu-se o maltês do
silêncio.
- Ninguém lhe faz mal, mulher!. A esta hora não
há por aqui quem lhe faça mal.
Tinha o corpo num suor. Suor e medo. Grita-lhe o
sangue.
- Preciso de passar para a outra banda - disse o homem,
aproximando-se a bambolear os ombros. Olinda adivinhava-lhe a
cara: olhos matreiros e desconfiados, boca dura, mais pálido,
sim, as pessoas ficam mais pálidas quando pensam em amor.
- Vá ao Cabo, tem lá barco - respondeu ela por fim.
- Que disse vossemecê?!
- Que no Cabo há barco para passar. A pé é aí meia hora.
- Vossemecê vai para lá?!
Via-lhe os olhos nas frinchas do rosto. Não se enganara. O
maltês queria mulher. Ainda hoje não é capaz de se lembrar
da cor dos olhos dele, mas não lhe esquece
a expressão segura de quem vai ter o que deseja.
- Não, eu não vou até lá. Tenho o meu marido à
espera na lancha. - Disse boa noite, voltou-lhe costas;
cresceram novamente os passos do maltês e ela aperta
Maria para si, como se a filha a pudesse defender. Que
diriam na aldeia, se soubessem daquilo?!.
- Espere aí que vamos juntos.
- O Cabo é para baixo! - gritou-lhe exasperada.
A voz dele fez-se gozadora:
- Mas agora, que a encontrei, quero ir para cima.
Apetece-me ir para cima.
- Vá sòzinho.
- Não é bom andar sòzinho. Estou farto disso.
Ri-se do que pensou.
- Homem e mulher nunca se deram mal.
- Nunca se sabe - respondeu-Lhe mais calma.
Calma, quase trocista também. O homem sentiu a
mudança de tom, pôs-se em dois saltos a seu lado e agarrou-Lhe
no braço.
- Sim, nunca se sabe.
Olinda sentia-se calma. Já abrira a navalha dentro do
bolso do avental. Só sacudiu o braço para que o maltês
largasse, não podia gritar, não devia chamar, tinha de
resolver por si aquele encontro.
- Vá à sua vida, homem de Deus! Vá com sorte!
- A sorte não foi má, não.
- Então deixe as pessoas andarem os seus caminhos. Vá
à sua vida.
Viu o maltês largar o saco e a caldeira do comer, viu-o
sorrir, viu-o olhar com confiança, viu-o depois estender a
manta, falar consigo, falar e assobiar, falar e dizer em voz
que ela entendeu:
- Foi uma boa coisa, sim senhor.
Antes que o pressentisse, estava agarrada, as mãos
dele seguravam-lhe as ancas, puxavam-na, sentia-lhe o
bafo da boca avinhada na sua boca, pedir-lhe que pusesse
a filha no chão, não valia a pena fazer força.
- Não faça força, mulher! Não merece a pena. Agora ninguém
te arranca daqui.
Deu ao braço não sabe agora quantas vezes. Sabe que
o homemdeu um grito e lhe atirou uma punhada à cara, e depois
cambaleou, e novamente gritou:
- Ah, corna!.
Sabe que chegou ao saveiro numa corrida; sabe que
remou como nunca; sabe que saltou em terra, sem deixar
o barco amarrado; sabe que se meteu na sua barraquinha
e chorou à entrada da porta o resto da noite. Em silêncio.
Em silêncio para que a aldeia a não ouvisse.
Agora, quando abre a navalha, lembra-se do maltês
que lhe saiu ao caminho. Já esteve para deitar a navalha
fora, mas foi o Tóino que lha deu e pensa que não deve
desfazer-se duma coisa dada por ele. E lhe faz falta.
Ainda.
Ainda terá de andar sòzinha muitos meses. Quantos? !. .
O TEJO LEVA MAIS SAUDADES QUE ÁGUA
NEM o Tóino sabe quantos meses Lhe faltam.
Mata-se de saudades nas Portas do Sol, encostado
à muralha, horas sem conta, a ver o seu rio, a segui-lo
com os olhos por aí abaixo com os barcos que descem.
Não lhe ouve a voz, mas imagina-a, serena, nos costados
das embarcações que o sulcam.
Sempre que o deixam, é ali o seu poiso. Rememora.
Inventa o que está a Olinda a fazer naquelas horas, se
a Maria já quer andar, quanto peixe morre nos botirões
ou nas nasas. Esgueira o olhar lá para os longes. Julga
que aquelas árvores muito altas, muito verdes, sim, as
outras mais ao longe, são as das Obras, e lá perto fica a
Toureira, onde tem a barraquinha. Mete a mão na algibeira, não a mão toda, só dois dedos, e põe-se com eles
a tocar na última carta que a Olinda lhe escreveu. Lê-a
toda com os dedos, embora não saiba uma letra do tamanho de um boi: "a Maria já diz pai e está cada vez mais
parecida contigo, é a tua cara. por uma pena diz toda a
gente até faz uma covinha na face da cara quando se ri;
a monda acabou, ando agora na gamela e hei-de ir ao Doutor,
prometo e não te rales por via da gente, também já falta pouco
para vires a casa".
Sabe lá quanto tempo falta!.
Sabe o que lhe falta, sim, isso sabe bem, mais do que
o preciso.
A gralhada das crianças no jardim recorda-lhe o seu
cão; é sempre a mesma dor que se lhe finca na alma quando
pensa nele. Tem remorsos. Ainda hoje julga que se tem
ficado no saveiro não chegariam tão tarde ao médico.
Essa culpa atormenta-o. Volta a olhar o Tejo, a seguir-lhe as
águas por aí abaixo, agora estão luzinhas, vê-se fundo de
areia, vê-se onde corre mais fundo pelas veias
muito azuis, logo quebra na curva, e então adivinha-o até
, como se as águas lhe levassem as saudades e fossem contá-las
à mulher que devia pôrse à borda do rio, à espera. É outro e
é o mesmo, medita num meio sorriso.
No 107 de ciclistas, que nada tem a ver com Tóino da Vala,
pescador do Tejo no Mar das Obras. Nada. Ou quase nada. Rapara
o cabelo loiro, parece uma bola pelada, teve de guardar a
camisa de castorina, as calças e o boné de astracã no fundo do
saco e deram-Lhe para vestir aquela andaina de rato, atada
com um cinturão de fivela amarela, e botifarras que lhe
pesavam, como se trouxesse o mundo preso aos calcanhares.
Toda a vida de pé ao léu e agora preso àquelas chancas
feias. Já acabara a recruta, sabia correr, sabia dar
tiros, sabia atirar-se para o chão. Então! Que mais
queriam dele agora?!. .
As noites de guarda. A guardar o quê? Cá e lá a pensar,
cá e lá a chatear-se, coisas atravessadas na cabeça de pôr
um homem maluco, espingarda ao ombro, descanso, e nos
outros dias esperar o toque da ordem, jantar, quase ir a
correr até à muralha para ver o Tejo. Não, abaixo não ia.
Ao pé do Tejo, não. Receava meter-se num barco e abalar
por aí fora, à vela ou a remos, como calhasse.
o pior era o forte. As coisas que se diziam do forte!
Não, à borda do Tejo não ia.
Os companheiros enchiam a cidade em grupos. Os
mais abonados metiam-se nas tabernas a comer pão com
torresmos e a beber; outros deitavam até ao Alfange, que
é terra de bailaricos, de boas raparigas, dizem-lhe quando
voltam. Boas raparigas, mulheres da vida, não faltam
na Rua das Linheiras. Os camaradas lá vão, rua abaixo,
rua acima, à espera que num dia de sorte alguma das
mulheres chame qualquer deles. Naquela recruta ninguém
se pode gabar dessa sorte; as raparigas dali não são amásias
de tarimbeiros. Soldado só entra a porta quando mostra
dinheiro. Ou quando faz zaragata para entrar.
Mas há a ronda.
Todos lhe falam da Aninhas. às vezes tentam-no.
Sente vergonha só de pensar que um dia poderia ficar
sòzinho com ela. O que contou na aldeia são coisas que
ouviu aos companheiros. Nem tinha dinheiro, nem seria
capaz de lá entrar. Como faz um homem, se nunca viu
uma mulher daquelas, se não Lhe falou, se não há uma
simpatia, ao menos.
Queria estar na sua barraquinha, isso sim, esperar
a noite. Já é noite. Daí a pouco tem de abalar para o
quartel. Vem aí o tempo do melão e ele longe. Ricos dias
de sol e de fruta!
Quando for à Toureira, de licença, Tóino da Vala irá
escolher um melão ao monte do primeiro meloal que
encontrar na caminhada, há-de escolher um bem feito, assim
comprido, de casca de carvalho; vai tocá-lo com o dedo
polegar, quere-u maduro, bem maduro, e mal o abrir
a canivete e o limpar de pevides há-de mordê-lo na polpa
doirada com a boca toda. deixando que o sumo Lhe pingue
o queixo e a farda, sòzinho, um melão inteiro só para,
ele e um litro de vinho, de vinho cartaxano, quente e espesso
como sangue. Úm elão. Um melão e um litro de vinho para
entrar na aldeia a cantar.
BARCOS FORA DE ÁGUA
Que festão esses ricos dias de sol e de fruta em que
a terra fica grávida de quentura e pujança. Estam cores por
toda a banda onde o homem pôs a mão ou a natureza fez o que
lhe deu na tonteira. Os horizontes alargam-se, as vozes
crescem de tom e de som, só as águas se calam
E mingam os peixes, mortos pelos arrastões que pescam à
entrada da barra do Tejo, pensam os avieiros. Pensam e dizem
que quando o Verão chega aos campos ainda o Inverno traz as
suas redes. Voltam então à vagabundagem de ciganos do rio, de
vala em vala, de esteiro em esteiro, à balda da sorte.
Os que podem comprar fruta espalham-se pelos meloais e
carregam os saveiros para largarem Tejo abaixo até às terras
ribeirinhas onde fazem mercado.
Olinda Carramilo veio estrear-se no negócio. O Zé
levou-a a um meloal, não a enganassem nas pesadas e na
escolha, nada ; comprar melões já maduros, não fossem eles
apodrecer-lhe no barco, e logo ali se puseram a
fazer somas largas, de que ambos se ririam mais tarde.
Cede-lhe a fiLha mais velha para tomar conta da Maria e do
saveiro, quando ela tiver de dar as suas voltas na lida, e
pede-lhe un boné como paga da indicação, diz-lhe por graça.
Mas fica à espera da oferta. Vem num alvoroço pelo Tejo
abaixo, de vela armada, por uma tarde cálida que a põe
feliz a cantar à ré, enquanto passam saveiros ancorados,
sombra de salgueirais ou ainda outros que levam o mesmo
rumo para a Vala do Carregado, Vila Franca ou Alhandra,
sabe-se lá, menos ligeiros que o seu barquinho; alarga mais a
vela, bordeja a margem sul, vê o porto da Arriaga e sorri
agora ao recordar-se do seu encontro à noite com o maltês; nunca dirá esse segredo a ninguém, a ninguém, nem mesmo à hora da morte. Soubera depois que o homem aparecera ferido no hospital, mas também ele não contara o que tinha sucedido. Ela seria capaz de o conhecer pela voz, se algum dia o encontrasse.
Canta
O meu coração é de vidro,
é de vidro, vai na mão.
Canta e a filha quer pular-lhe para o colo, agarra-se
às suas saias, põe-se de pé, depois tenta amarinhar, amarinha
um pouco, ela ri, não a ajuda, e a Maria cai de rabo no fundo
da lanchinha. O Malagueiro salta à sua volta.
Gosta de sol.
O irmão dissera-lhe que o Zé Bogas e a prima estavam
em Vila Franca, ela a vender pelas portas algum peixe
que caía nos galrichos, ambos a negociarem também em
melancia e melão, o que já faziam pela segunda vez, embora se
queixassem de que não valia a pena, de que mal dava para
comprar umas calças ou um avental de riscado.
Uma miséria!. Pois também Olinda vai para ganhar
ou perder, já agora não fica quieta, porque a preguiça
pega-se como a sarna e ela não se resigna a viver no
mesmo jeito dos pais, que só seringam um com o outro,
mas não se aventuram fora dos tratos da pesca. Ela sabe;
o dinheiro que já arrecadou depois que o Tóino foi para
a tropa, tem-no guardado num saquinho entre os seios,
para que ninguém lho veja, e também se lamenta de que
vai uma desgraça no Tejo, uma desgraça tamanha nunca
se viu, Jesus, Senhor!
Traz uma ideia consigo. Há-de falar nela ao Zé Bogas
e a outros; talvez calhe dentro de poucos dias. É uma
questão de jeito e de momento. Sabe esperar. Já conta
com a má vontade de alguns, porque é uma mulher a ter
a ideia, porque têm medo, porque mais isto e mais aquilo,
sim senhor, muito bem, mas essas coisas, feitas pelos pobres,
dão sempre para o torto.
Na margem norte vê alguns saveiros ancorados; está
quase em Vila Franca, basta-lhe virar a vela para a brisa
e fazer rumo. A cortar a corrente da maré vazante, o barco
oscila, empina-se à proa, parece um poldro rebelde, faz
a água ondular à sua volta e uma onda entra a estibordo
salpicando-as; a Maria assusta-se, e ela e a sobrinha riem
com o medo que a miúda tomou. Com a brincadeira distrai-se. O
saveiro descai levado pela vazante, tenta corrigir o
bordo, metendo um remo à popa, mas a corrente puxa-as
para o cais, enquanto de terra o Zé Bogas lhe acena e grita o
nome, ó Olinda!, onde vais tu, mulher?!
Responde: vou até Lisboa que é terra boa!
Responde e arreia a vela, por um pouco não arriba ao
cais de Vila Franca, e depois váde remar contra a maré
- Gaita p'rà brincadeira!, - agora sai-lhe dos braços e das
mãos. Mas nem o esforço lhe pesa tanto que precise de
pedir à sobrinha que reme à sua beira. Rema de tesoura.
devagar, devagarzinho. No Tejo contra a maré, como na
vida, há que saber para onde se vai e não parar. Só assim
se avança e chega, pensa Olinda Carramilo.
Chega daí a bocado, salta em terra, depois aí começa
o cabo dos trabalhos para tirar a fruta do saveiro e preparar
os quatro prumos, bem travados à volta, de maneira a que o
barco se ponha lá em cima por causa das marés vivas.
Dantes atracavam no lodo, ao pé da avenida, e ali
mesmo faziam feira. A gente da vila vinha mercar fruta
de manhã ou nas noites quentes, dê-me aí um melão bom
de dois quilos, é para comer já; tinham esses à partes, bem
duros, sentavam-se em grupos, à vontade, alguns traziam vinho
e era um virote enquanto se via o fundo a um cesto. Fruta boa
era um ar. Por isso o Zé lhe dissera que só comprasse
melão bem crescido de semente espala, mesmo que gastasse mais
alguma coisa. Agora, bém, os barcos foram proibidos de
estacionar junto da avenida. Aquele estendal de proas e
toldos, criançada nua e suja, cães e roupa estendida, tiravam dignidade à avenida, escreveu o jornal da terra. A
Câmara mandou a polícia corrê-los dali às boas. Só a mulher do
Chico Guerra refilou, mas o marido mandou-a calar e lá saíram,
lembrando-se talvez do Zé Soisa.
Agora estão perto do cais da Pedra, passado o esteiro
do Nogueira, entre o valado e o Tejo, numa língua de
terra lamaçenta onde as cabeças de água entram quando
querem. Por isso lá estão os andores para ampararem os
saveiros, alinhados numa rua e de proas voltadas para
o rio. A casa, salvo seja, fica com dois andares: um debaixo
do casco do bote, a cuja sombra se acolhem para se pentearem,
conversar e lavar os filhos - quarto de
banho e sala; para cima sobem por uma escada de ripas"
e lá dormem sob o toldo ou tecto de palha e esteiras.
Vivem ali como na aldeia. Na faixa que vai até ao rio;
cozinham e estendem roupa, secam os galrichos para a pesca;
brincam as crianças e os cães. E no capelo do valado que
barra a passagem às águas vivas do Tejo consertam
e fazem redes para a próxima safra, acolhendo-se à sombra
de oliveiras maneirinhas.
A rapaziada da Vila vem para ali tomar banho e chafurdar no
lodo. Nus, em pêlo, nadam e brincam, correm e desafiam-se,
batem-se e acamaradam, enquanto as fragatas carregam pedra
para Lisboa e os saveiros se esvaziam de melões para as
carroças que vêm buscá-los para o mercado. Agora não se pode
ali vender uma casca de fruta, foi o aviso que a polícia
trouxe.
Quando sobem as águas, os saveiros ficam isolados de terra.
Parece que flutuam ou ficaram ali, atracados
á espera de ensejo para uma féria de lance. Limitado
na sua liberdade, a criansada implica, chora, apanha
tosas e dormem. Os gasolinas que transportam gente do cais da
Vila para o Cabo viajam sempre de uma margem para
a outra. E distrai os olhos.
Olinda passará o dia no mercado até às quatro horas,
esperando que a sineta marque o fim da venda. Zé Bogas
dá-lhe más notícias: com o que pagam de terrado, mais
fruta que se estraga nos transportes, já não vale a pena.
As pessoas regateiam o preço, não vale a pena.
- Distraem-se os olhos - diz Olinda. - Sempre é
melhor do queficar na Toureira à espera que o Inverno chegue.
- Esta safra sem o Tóino.
- Sem o Tóino tenho de viver.
- Pescas sòzinha?
- Ainda não sei. Tenho uma ideia.
Resmói naquela ideia há muitos meses. Já decorou o que
quer dizer aos outros, mas naquele momento cora sem falar no
que pensa e fica calada.
- Uma ideia?!.
- Sim, uma ideia.
- Eu vou prò Zé Malho. Se tu pedires ao Espanta,
; é capaz de te dar o trabalho das enviadas.
Apetece-Lhe responder torto, mas retrai-se para não
espantar o Zé Bogas. Estão ambos a comer um melão verde,, sem
gosto. Cortam-no a canivete.
- Não sei. Ainda não sei. Tenho uma ideia.
A PACIêNCIA NÃO GANHA PÃO
A noite está um fogo.
Cansa respirar. Cansa fazer um gesto. Deitaram-se as
crianças; as que não podem dormir que fiquem dentro do
barco à espera do joão-pestana, à espera que o sono
chegue. As pessoas crescidas têm de falar. O Zé Bogas
pediu que se juntassem, mas só se conhecem pela voz os
que vieram. O luar tarda e no escuro da noite de breu só
se vêem os cigarros dos homens que fumam. Talvez alguns fumem naquela noite pela primeira vez. Que lhes quer o Zé Bogas?!.
Zé Bogas quer falar e gagueja. Olinda Carramilo
está à sua beira, toca-lhe no braço, incita-o, mas ele não
sabe dar começo à conversa, embora ela explicasse bem
o que precisa de dizer.
- Então, Zé? - ouve-se a voz agreste do Chico Guerra. -
Disseste que tinhas uma coisa para dizer.
- Uma ideia - responde Zé Bogas sem convicção - Uma coisa
que a gente pode fazer juntos - arranca por fim.
- Um grupo de bola? - brinca o Manel Escalamão,
pausado. - Se é bola, dá dinheiro; se fosse novo, punha-me aos
coices às bolas. .
- Jogo de bola não é coice, Ti Manel - contrapõe
o João Marujo de pé. Não quer sentar-se na roda, para
quê? desconfia dalguma parvoeira do Zé. Mas como mais
ninguém lhe responde e ainda não disse tudo, rematou:
- Jogo de bola é coisa bonita.
Rumorejam vozes em troca de opiniões, algumas alteiam-se
para que as oiçam melhor e o Zé Bogas cicie à Olinda
que deve ela falar, sabe dizer o que quer até ao fim;
a mulher dele insiste em que fale o seu homem
gostava de o ver escutado pelos outros, porque também
entende que a ideia é boa e nem todos os dias um homem
se pode fazer ouvir. Encosta a cabeça ao seu ombro a dar-lhe coragem, enquanto Tó Lobo, que se deitara ao
comprido com o rosto junto ao chão, ergue a cabeça e diz:
- O Zé quer contar uma história de bruxas à gente
- E ri de gosto. - Acho que encontrou uma bruxa atrás
duma árvore.
O riso do Tó Lobo pega-se a outros e as gargalhadas
correm o grupo. Quando afrouxam, Olinda Carramilo dá
uma achega:
- Deixem o Zé falar; não o atrapalhem. Ele teve uma boa ideia, acho eu. Ele contou-me e eu acho uma boa ideia. ,
Zé Bogas meneia a cabeça, tem o corpo numa brasa
inquieta, mas a voz bonita e confiante da mulher do Tóino
da Vala encoraja-o. Chegam-se mais dois vultos à assembleia.
Ficam à distância, a ver se percebem o que tratam os outros.
Então, Zé Bogas coça os cabelos num frenesi e começa:
- Quando vier a safra do sável, a gente pode ajuntar-se.
- A fazer o quê?! - pergunta o Escalamão na sua
voz sorna e soturna.
- A ver o peixe passar - acrescenta o João Marujo.
Alguns riem.
- Estou a falar a sério. Um homem também pode
faLar a sério. E eu agora falo.
- E se a gente, em vez de sajuntar, for à igreja e
fazer casamento? - junta Tó Lobo, que se sentou.
- Casas duas vezes e vais preso - responde Olinda
a gracejar também. - Mas antes de resolveres, precisas
ouvir o que o Zé tem para dizer.
Sabendo que já os agarrara pela curiosidade, a Carramilo
propõe: - O que temos de ver é se queremos ouvir o Zé ou
cada um vai dormir para dentro do barco. Já se faz tarde.
Volta o burburinho de vozes que interrogam, discutem
remancham. Chico Guerra sobrepõe-se ao murmúrio:
- O Zé que fale. O primeiro que meter a colher na
sopa paga vinho para todos: cinco litros!
- Bem dito, sim senhor. Quem abrir a boca paga cinco
litros. E eu vou buscar o vinho; sei onde há do bom. Um
vinho que manda gaitas - acrescenta o Manel Bogas,
irmão do Zé por banda do pai.
Palavras soltas e xuis, apartes e "calem-se aí, pouca
conversa". Até que se faz silêncio.
- Vá, Zé, fala - diz-lhe a mulher.
Zé Bogas coça a cabeça com a outra mão, baixa os
olhos, hesita de novo:
- Bom!. Eu acho que a gente, os que quiserem,
pode arranjar duas ou três redes varinas. Pescamos
juntos, trabalha-se para o monte. - (Já não sabe que mais
acrescentar) - Querem?!
- Pagam-se menos licenças, poupam-se as redes e o
ganho pode ser maior - corrobora Olinda Carramilo - Quem tiver
redes, ganha uma parte a combinar. O resto é para o monte.
- E quem manda? - interroga o Escalamão, avinagrado.
- Escolhe-se quem manda. Escolhem-se dois ou três
e cada um manda uma semana.
- Panela mexida por muitos dá sopa estragada - insiste o Escalamão na mal-querença. Pensa consigo:
tenho rede minha e posso meter gente, pra que me serve
esta companha toda?
- Se todos estiverem de boa-fé, pode ser bom para
todos, sim senhor - junta Chico Guerra ao que também
estivera a pensar.
De repente, faz-se silêncio.
Todos têm para dizer, mas ninguém fala agora. A proposta
traz-lhes dúvidas. Uma companha aí com vinte pesoas
e três redes acabava por não ter dono. Os mandriões
davam logo para se encostar, os outros chateavam-se, está
bem de ver, e no fim só havia ralhos e ninguém faz
nada.
- Uma rede tem a sua sorte. Ou boa ou má. Há redes
que nem de graça as queria - diz Tó Lobo na sua voz
adamada e gozona. - Sai uma rede dágua sem sombra
de escama e a outra que se segue traz uma porrada
de sáveis como toiros. Coisas de sorte!
- Queres ficar com a sorte da tua?
- Então .
Tó Lobo titubeia. Todos sabem que a sorte é escassa
para ele. Para todos. Em licenças de barcos e redes vai-se
a parte maior do ganho. Manuel Escalamão não o ignora,
mas contraria a ideia.
- E depois era aí uma misturada sem trambelho.
A minha rede custou-me muito suor; não a ponho ao
mando de ninguém. Se algum dia a perder, é na minha faina.
- Quando há peguilho, todas as redes se rasgam - eSclarece
Zé Bogas. - Mas eu antes queria rasgar a minha a canivete.
- Isso é consigo, Ti Manel - intervém Olinda.
O Escalamão queria dizer tudo:
- Antes rasgada a canivete do que pô-la debaixo das
ordens doutro.
O burburinho renova-se. Travam-se diálogos à volta
do círculo, movem-se mãos em gestos exaltados, ninguém se
entende, pensa Zé Bogas, ninguém se entende, diz Tó
Lobo a rir, embora julgue que a tal ideia da Olinda talvez lhe
convenha: rala-se menos, sempre se pode encostar preguiSa,
porque, se a safra for de toda a companha e ele emprestar a
rede varina, a rede ganha a sua parte. é capaz de lhe valer a
pena. Também, se não der a conta Acaba-se depressa. Vira-se
para o Escalamão, encara-o com os seus olhos azuis e
travessos:
- A rede é sempre tua, Manel. Escolhem-se os melhores para
mestres e os outros trabalham com eles como se trabalhassem no
Espanta. Não perdes nada.
- Cantigas de mulher!. Também tu vais em cantigas de
mulher, Tó Lobo?
Tó Lobo sacode a cabeça, como se a voz do outro lhe
ferrasse uma punhada ao meio da testa, e muda de cor:
- A gente está a discutir se quer ou não quer uma
conpanha nossa. O resto não interessa agora; tanto me faz que sejas tu como a Olinda Carramilo a ter a ideia.
Não me dou mal cum mulheres!. - remata num sorriso travesso,
piscando o olho para o João Marujo, seu primo. - Podem contar
com a minha rede; está nova.
- Como tu!. - chalaceia o primo, que já mandou
a mulher recolher ao saveiro com os três filhos ensonados,
todos três de sangue moiro, diz o pai por graça, se um
dia os deixo sòzinhos, comem-se uns aos outros.
Olinda pega na palavra de Tó Lobo e oferece-se para
fazer as enviadas com o seu barco, escusam eles de perder
tempo, talvez possam dar mais um lance todos os dias, porque
ela faz o serviço e até se quiserem trata com
os almocreves; nas contas não a enganam, não.
- Fica bem entregue, sim senhor - acede Chico
Guerra, que ainda não disse o que pensa, para que é preciso
falar?, o que a gente precisa é de fazer alguma coisa contra a
desgraça.
Caturra Manel Escalamão com a mulher, a quem já
atirou dois encontrões com o ombro e brama depois para
que todos o oiçam:
- Os outros não têm melhores olhos do que eu para
mandarem na minha rede. Quando a minha rede for à
água, quem manda nela sou eu.
- Então pesque sòzinho! - diz o Zé Bogas, agravado. - E as
licenças pague-as vossemecê?!.
- Nunca te pedi dinheiro para as pagar. Quando não tiver,
paciência! Rasgo-a. Rasgo-a a canivete.
Está capaz de se atirar à punhada aos outros, porque
ruminava há seis meses em convidar uns tantos para
trabalharem com ele e agora a tal ideia do Bogas, ou lá de
quem era, transtornava-lhe os cálculos.
- A paciência não ganha pão, Ti Manel - responde-lhe
Olinda à mansa. - Eu por miim tanto me faz; nesta
safra não tenho cá o Tóino e para o ano ainda não sei se
somos capazes de ter perca varina.
-E quando a tiveres?! Pensas que o Tóino vai nisto ?. .
- Se o Tóino tiver rede, mete-a na companha. Ponho
as mãos no fogo.
- Na minha casa mandu eu.
- E na do Tóino manda ele, Ti Manel. Mas o que eu
vejo é que a gente se guerreia e os almocreves ganham
misso. A gente podia fazer o nosso preço. E se a gente
não se defender, ninguém olha para a nossa desgraça.
- Não preciso que olhes pela minha! - grita o Escalamão já
de pé, enquanto a mulher o segue, levando um dos netos em
charola pelo braço.
Faz-se um súbito silêncio.
- Mas sempre te quero dizer que no Tejo nunca
ouve uma tonteira dessas. Se fosses do nosso pano, não
falavas nisso. Deixa-te lá de pataranhas!
Olinda Carramilo refreia o ímpeto que sobe por ela,
o que lhe apetece é encher o outro de nomes ruins, e volta ao
mesmo tom brando:
- O Tejo dá pra si, Ti Manel. Não queira saber das
minhas pataranhas; escusa de se zangar porque ninguém o
obriga àquilo que não quer.
- Não, não quero! Fica sabendo que não quero.
- A gente já sabia - intervém Chico Guerra mais
agreste. - Já temos duas redes e pode ser que na Toureira se
arranjem mais algumas.
- Fiquem-se com elas. Boa noite!
- Boa noite!
Ouvem-lhe ainda a voz a afastar-se até ao saveiro. A
lufada quente que vem da banda de terra parece deixar as
palavras suspensas por muito tempo. Os outros iam-se e muitos
deles já resolveram o que vão fazer quando chegar Dezembro.
Acendem-se mais cigarros. Maria Bogas encosta-se ao
ombro do seu homem e sussurra:
- Tiveste uma bonita ideia.
SAFRA
- AH! Puxa! Puxa!.
Na mão de barca e no chicote do ressoeiro não há lugar para
mais tirantes. Toda a aldeia vive agora
no areal a aventura dos que se juntaram para trabalhar
sem amo, pondo quatro redes varinas a pescar em sociedade:
- Oh puxa! Puxa certo!.
O Espanta mandou recado para se apresentarem os
quatro homens da Toureira e nem um deles apareceu na
companha; veio ele depois (então que tráfego era aquele,
não se deixa assim um bom patrão de tantos anos), mas
u Chico Guerra falou-lhe na calma para dizer que não
senhor, não iam, que mandasse vir os murtoseiros para
as redes do Zé Malho, eles pescariam de sua conta, ninguém
podia levar a mal que as pessoas quisessem trabalhar para si.
Ameaçou-os o Espanta com o Tubarão, calou-se o Chico Guerra e
Olinda meteu-se na conversa: "ora essa!, até deve agradecer
que eles não vão para Valada, porque o pessoal da Palhota fica
mais perto".
- Oh! Puxa! Puxa!.
Alam a rede e lembram-se da car a do Espanta, parecia de
cera, diz a Olinda, parecia que engolira fel ou que a
Chiquinha lhe abalara de casa com o dinheiro, emenda
o João Marujo, sempre pícaro e maldoso. Ri do que lhe
ocorre, esbandalha-se a rir quando imagina o Espanta
feito boi da Beira, de cornos grandes e cabanos a amochar-se
com o peso do desgosto. Querem os outros saber
o que pensa, mas o João abala para a babugem da água
a engatar o tirante na corda da mão de barca, pois o Tó
Lobo dá aos braços, a gritar, sinal de que o lance deve
trazer muito peixe.
Vai agora! Puxa! Puxa certo!.
Só o Escalamão, o Maneta e os três irmãos não partiram na
sociedade. Lá estão num grupo, calados e taciturnos, porque a
mulher do Isidro Maneta passa o dia a chingá-los, achando que
deviam todos trabalhar para o mesmo monte, ferrum-fum-fum, não
se cala por mais que o marido a ameace. Vê-se logo que é irmã
do Zé Bogas, comPleta o Manel Escalamão, irado e convencido de
que o diabo da mulher dá mau-olhado aos lances da sua rede.
Exulta o rapazio com os gritos alegres do Tó Lobo.
riem alguns ao lado dos homens até à aducha, regressam a
correr para o Tejo, fazem também balela a incitar-se, à espera
que o Tinoca lhes dê qualquer ordem de ajuda. Zé Bogas bebeu
uma garrafa de litro ao almoço, o vinho buliu-lhe com o feitio
brincalhão e anda armado
- Un palhaço, diz a Maria, sua mulher, que não gosta de
vê-lo a servir de gozo aos da outra companha; eles andam
danádos para que a gente se zangue, ó Jesus!, andamos
cheios da inveja deles, sussurra para a Olinda Carramilo,
sua prima.
- Vai! Oh!. Puxa! Oh!. Puxa certo! Oh!.
A Maria sente ganas de tirar o homem da alagem e
levá-lo para dentro da barraca, beba mijo, beba mijo se
não sabe beber vinho, a prima ri dos seus ditos e do seu
arrenego, mas o Zé anda feliz, a sua alegria e a do Marido
pegam-se a toda a companha, a rede chega num virote às mãos
dos dois homens que se meteram na água para a manter larga e
ajudar o saco a vir direito, e há um borbulhido, um
espadanar no rasto da rede, que põe o Zé mais doudo e o leva
a meter-se ao rio para ter a certeza do que suspeita. O Tinoca
grita-lhe:
- Fora daí, Zé! Fora daí!.
Zé Bogas joga-se num salto para os ombros de Tó
Lobo; caem ambos de cabeça dentro de água, embora
o saltarino tentasse escapar às manápulas que o Tó lhem, mas ao rio se deitou; quando volta à superfície, o Bogas
nada para o largo, de braçada, vem depois a acompanhar
a rede, entre ameàças do Tinoca, que é hoje o mestre da
companha e gosta de se ver respeitado, porque se as pessoas
perdem o respeito umas às outras ninguém se entende.
Cogita castigo a propor à noite depois de entregarem
o peixe ao almocreve, vai haver dança, vai, mas nesse
momento levanta-se vozearia na praia à sua volta; nem
faltam palmas para ajudar à festa. Pensa primeiro que
o Zé fez mais alguma gaifona, é mesmo um palhaceiro,
e só depois repara que o outro traz agarrado nas duas
mãos um sável gordo e bonito que escabuja da cabeça
ao rabo. Dizem-lhe então que o peixe se safara das malhas e
que o Zé o agarrara em pleno salto, é mesmo esperto, o gajo,
mesmo com um copo a mais tem olhos na cara.
- Vai! Oh! Puxa! Oh!.
Zé Bogas chega ao areal antes do saco, a rapaziada
corre até ele para ver o sável e tocar-lhe, dizem que dá
sorte, sorte teve o Zé, comentam as mulheres, e aí vem
o palhaceiro entregar o peixe ao mestre Tinoca, é mesmo
esperto, o gajo. Vê-lhe a cara de poucos amigos, já esperava,
pensa o Zé, mas descobre-lhe um sorriso no olhar
e aí faz ele o seu papel de bom rapaz, tirando o boné da
cabeça para que o outro lhe aceite o respeito.
- Não faças outra dessas, ó Zé!.
Piscam-lhe os olhos, está comovido.
A rasar a praia passa uma gaivota pequena que corta
para o rio e debica a água lá adiante, deixando-se arrastar
depois pelo refego da ondulação.
- Ena! Um garraio! - grita um dos filhos do Chico
Guerra, apontando a gaivota à mãe.
Defronte das cabanas outros remendam as percas de
varinas estendidas no tendal, aproveitando o tempo de
enxugo, enquanto duas mulheres tratam do lume do caldeiro
de dar tinta às redes e um grupo de rapazes e raparigas
pisa a martelo a casca de carrasco, de pinheiro manso e de
salgueiro negral que deve ser cozida na água do caldeiro.
Na praia, o peixe já saracoteia; vem menos do que
parecia, mas deve ser um bom lance. Os porfiadores do tendal
metem as agulhas de pau entre a carapinha do barrete e o
cabelo; embrulham um cigarro e vêm para a borda.
- Quantos, Tinoca?
- Dezasseis! Aí mais de cinquenta quilos!.
- Antigamente numa maré destas dava aí três dobros - diz o
Moncas.
- A gente pesca hoje e a pesca d'hoje é que interessa -
responde o mestre, irritado.
Olinda Carramilo mete o bedelho:
- Com o Tejo embalado como anda, um lance destes, é
prà gente se dar por filhos de Deus.
Um neto do Escalamão escuta a conversa e vai contar
ao avô o que ouviu. Já na ponta do areal saíra outro
saveiro da sociedade. Chico Guerra vai à ré, pronto para
o lance. Leva uma fèzada. Ouve o matraqueio de um
gasolina. Sabe que o Tubarão vem nele. Quase todos sabem.
que é o fiscal da pesca que lhes aparece. Que virá hoje
pergumtar!.
QUEM SE LEMBRA MAIS DO ZÉ SOISA?
pERGuNTa pelas cédulas dos homens, confere as matrículas dos
saveiros, pede as licenças das redes. Espanta disse-Lhe que há
uma rede, pelo menos, que não tem licença, é preciso lixá-los bem, senão começam todos a juntar-se pelo Tejo acima e aí atrasa-se-Lhe o meio, pensa ele. O Tubarão vai aos tendais, conta a rede : sai no lance, mais a outra já a lavar para o primeiro lance de amanhã, e desconfia ainda, confere e reconfere, são quatro redes varinas, está certo, onde terão eles escondido a outra? Exulta Manel Escalamão sempre que o
Tubarão aparece, mas hoje o fiscal volta-se também para a
banda da sua companha e azeda-se-lhe o ânimo, tanto mais que o
Tubarão manda um dos seus criados passar busca à barraca do
Isidro Maneta.
- É uma desfeita que faz à gente - indigna-se em
voz baixa para a mulher, que fica queda e muda por
muito tempo e só resmunga quando ele já se levanta
para falar ao fiscal:
- Não percebes que a Maria do Isidro é irmã do
Zé Soisa?
- Eu não tenho nada a ver com gente dessa.
- Não digas parvoeiras, Manel; Deus pode pôr-te
a boca à banda. O Zé Soisa é da nossa gente.
- Gente dessa não me pertence.
- Deus pode pôrte a boca à banda, Manel.
Ele finge que não ouve a mulher, mas fica a ruminar
naquilo: acha que a maldita está a chamar alguma praga
para cima de si, teme-se, não percebe porquê, acaba por
pensar que o melhor é dar-lhe dois murros quando à ceia, :
na barraca, pegar com ele por via do comer. Há-de amarinhar
pelas paredes, concretiza para se sentir vingado: ) Manel
Escalamão esquece que a sua Maria não é boa de
assoar e já uma vez lhe segurou a ira com um banco no
ombro.
Caminha para o fiscal de barrete na mão, admitiu que
lhe ia cantar das boas, lembrar-lhe, sugerir-lhe ao menos
os favores que já lhe fez, mas, com o encurtar da distância e
a expressão sombria do outro, arrefece-lhe a bravata.
Tremem-lhe as mãos, custa-lhe mais a arrastar a perna coxa.
Que lhe há-de dizer agora?!. Atira um:
boa-tarde frouxo, o Tubarão mal o encara e remenda:
- Está aí uma aragem danada, seu Júlio. Melhor
tempo traga Fevereiro.
- Há-de chover picaretas em cima disto tudo para
ver se vocês ganham juízo.
- Isso não é comigo, de certeza.
- Vocês nasceram todos da mesma barriga; a peste é
igual. Mas digo-te, Manel, que a primeira rede que
saia sem licença a queimo aqui mesmo na praia. Vão depois
chorar para a porta de casa. Joga-lhe a ameaça e afasta-se de
rompante, irado, sente-se-lhe a ira nos ombros inquietos e no
mover desembelhado dos braços, corja de malandros!, agora
todos querem ser donos das coisas! Vocifera estes arrenegos e
outros mais raivosos que Manel Escalamão já não ouve,
porque fica quedo no areal onde agora só há silêncio.
uma criança de colo que choraminga tapa-lhe a boca o
bico do peito dado pela mãe, quase à força; como se os
seres humanos se temessem de avivar o ódio do Tubarão.
Seguem-lhe os gestos e os passos, olham-no de soslaio,
mal suspeitam que ele possa voltar-se, ou fingem seguir
para o saveiro lá no meio do rio, embalado pela voz do Chico
Guerra, grave e pastosa. Chico Guerra canta para não
gritar. Todos conhecem aquela lengalenga, como sinal de
que a raiva o atormenta e não pode deitá-la cá para fora,
nem à porrada, de navalha aberta, até pôr ao sol as tripas
daquele rufia porco que não os larga desde o princípio da safra.
Saíra um bom lance, talvez este ainda fosse melhor,
às vezes calha assim no ensejo vir um cardume de sáveis
pelo Tejo acima, e logo àquele rufia porco Lhe dá para
aparecer. Ia a Fátima, de joelhos, se Deus o trancasse
numa paralisia, palavra!
O criado do Tubarão sai da barraca do Maneta trazendo ao
ombro um camaroeiro de arrasto; mostra-o de longe ao amo, para
quem começa a correr desvairado com a descoberta, embora
saiba que não é aquilo que procuram. Mas não vão regressar
sob a troça silenciosa da cambada, (isso nunca!), precisam de
fazer qualquer coisa para mostrar que há sempre trabalho na fiscalização. mesmo uma chincha de linha podre, é arte proibida porque mata as criações.
Então os rostos voltam-se para o Tubarão. Ele adivinha-lhes
o movimento e olha-os um a um. E cada rosto se desvia,
não de medo, não, agora não, todos sabem que
o Isidro não pesca com aquela arte, ninguém será capaz
de apanhar a escama de um peixe com rede tão velha e
partida; o Tubarão sabe-o também, pois andou muitos
anos por ali antes de ser fiscal. Desviam os ulhos
enraivecidos, pressentindo o que vai acontecer sem que possa
intervir, sequer por palavras, mesmo por simples palavras
de verdade humilde. para que tem um homem a boca, caramba?!
Isidro Maneta treme dos pés à cabeça, agarra as mãos
uma à outra, aperta-as, aperta-as até lhe doerem.
está derrancado, parece que agarrou uma camada de febres
terçãs, acena a cabeça num destempèro de movimentos sacudidos,
enquanto a mulher lhe diz baixo, num sussurro:
- Deixa lá, a rede não presta.
Ele gostaria de lhe lembrar que não é pela perca, que
a guardou, ela sabe-o bem, porque o pai lha deixou.
sim, foi com aquela chincha que ambos pescaram ao pé
do Escaropim, há mais de cinco anos, talvez seis, o pai
vendia saúde, parecia que a tinha ainda para dar e vender.
Voltaram no saveiro, e nessa mesma noite uma dor ruim,
uma grande dor na cabeça, e já não houve remédio.
Quando o doutor chegou, estava morto. Nunca se tinham
dado bem ele e o pai, Deus me perdoe, mas a rede fazia-lhe falta, era a sua lembrança sem queixas, antes de
perceber que o pai gostava mais dos outros irmãos. Nunca
percebeu porquê.
O Tubarão faz uma pergunta ao criado e a pergunta
vai de boca em boca: quando chega ao Isidro Maneta
salta-lhe uma mola do corpo tarraco e aí se põe o homen
de pé, transtornado, só pensa em fugir. Conhece os camínhos
de terra, todo o labirinto de trilhos feitos pelos seus,
mas arreceia-se de que o apanhem depressa, agora já
não faltam guardas em qualquer parte; nem na Charneca
a pessoa está sossegada, Deus do Céu! - queixa-se o
Isidro para a mulher, que se benze e tresbenze.
Os rostos dos avieiros voltam-se para o Tubarão
quando o ouvem gritar:
- O dono da rede que venha falar comigo!
Como o criado, o Varolas, fica atordoado sem entender que
atitude deve tomar, insiste numa berraria tonta:
- Depressa! Tenho mais que fazèr!.
O Varolas pergunta, passa o recado do amo e ninguém Lhe
responde. Olham-no e não respondem. Nem sequer o Manel
Escalamão, que voltou para o seu grupo; ferve-Lhe também o
sangue com o ultraje do Tubarão, finge entreter-se a preparar
a varina para o lance que lhe cabe. Isidro Maneta sabe o que
vai acontecer, todos o sabem, de resto, mas resolve saltar
para um saveiro que não é seu e atravessar o Tejo para a outra
margem. Dali abalará uns dias para qualquer parte, talvez para
as Caneiras, perto de Santarém, onde tem a irmã casada. Olinda
Carramilo percebe-lhe a intenção e empurra o barco. É o
dela, pode levá-lo à vontade, agora não lhe faz falta.
Júlio Gonçalves, o Tubarão, não dá pela saída du
saveiro. Talvez finja não reparar, assim é melhor, porque
receia o silêncio dos pescadores. Não está habituado ao
seu silêncio. E Isidro Maneta rema de travessia, rema e
lágrimas saltam-Lhe dos olhos, não consegue reprimir; ainda
bem que ninguém o vê chorar. Passa perto do barco da outra
companha, Chico Guerra saúda-o, que vá con Deus, e os
outros repetem, vai com Deus, Isidro! Já não de barca
chega a terra, corre o Manel Escalamão com os seus;
combinaram em poucas palavras, pensavam todos o mesmo,
pois, são todos do mesmo pano, diz ele e pedem ao Chico
Guerra que os deixe alar a rede, e a puxam, agora o lance é
da aldeia humilhada.
Olinda Carramilo segue o barco com o olhar. Venta;
A tarde pôs-se turva. Já deve borriçar para o norte. Não
há um pássaro a cruzar o céu.
- Ouve tu, aí! - diz-lhe a voz do Tubarão.
Ela volta-se e traça o xaile no peito, como se sentisse
pudor por encarar o fiscal.
- Sim, tu. De quem é esta chincha?
- Isso não é uma chincha, é uma rede velha.
-Mas de quem é?!.
- É minha.
- O teu homem?
- Está na tropa.
- Não sabes que é proibido pescar com artes de arrasto?
- Ninguém pesca com uma rede dessas. Os peixes
grandes rasgam-na e os pequenos fogem-Lhe. Não serve
para nada.
- Como te chamas?
Hesita em dar-Lhe o nome. Vai levá-la para a cadeia
Então e depois?!.
- Olinda.
- Olinda quê?
- Olinda Carramilo.
- Ah!.
O Varolas aproxima-se, vexado; o amo atira-lhe
a rede, que ele agarra e puxa para o ombro.
- O teu irmão mora no Escaropim?
- Mora, sim senhor.
- Eu falo com ele. Poupo-te a multa, mas já sabes
o castigo.
Puxa da navalha, abre-a e começa a cortar as malhas
da chincha, uma por uma. Os homens param o lance
olham para Júlio Gonçalves, o dono do Tejo. Ninguém
desvia o olhar das suas mãos. As mulheres chegam mais perto.
Olinda Carramilo está lívida, treme-lhe o corpo. Abre a sua
navalha e percebe que o Tubarão estremece
- Quer que o ajude?
As mulheres correm e cercam os três; vão-lhe os filhos
no encalce, numa grita súbita, atropelando-se. Chico
Guerra dá voz de alarme.
-Vai ooó! Oh vai!.
- Puxa! - canta a voz de Tó Lobo.
Júlio Gonçalves larga a rede, o criado segue-lhe o
movimento e ambos saem do círculo em que as mulheres os
envolveram. "Preciso de dizer mais qualquer coisa",
disse o Tubarão. Os olhos das mulheres perturbam-no.
- Que te fique de lição!
Como Olinda o fita de navalha aberta, pergunta-lhe
- Queres mais alguma coisa? !.
Ela só move a cabeça num arrenego. .
- Então guarda lá a navalha.
Olinda Carramilo volta-lhe as costas num impulso e
corre para a mão de barca que os homens alam pela praia
fora. Vai tonta de raiva. Apetece-lhe cravar a lâmina
no costado de um saveiro, já que lhe falta a coragem
do Zé Soisa.
Quem se lembra mais de Zé Soisa?!
QUEM SÓ MUDA DE CAMISA, NÃO MUDA DE MÁ VIDA
A canoa do almocreve já deitou ferro há um bom pedaço.
Trouxe vinho que um saveiro foi carregar, mais no tempo do
sável os homens puxam mais pelo corpo, e senpre ganham alguma
coisa que se veja e o vinho ajuda notrabalho. Corpo avinhado
sente menos a fadiga, comentam os velhos. Depois da ceia ainda
podem beber-se mais as goladas; o Zé Fateixa toca no harmónio as mesmas músicas de sempre, não passa daquilo, mas sempre entrei, e à raparigada fervem os calcanhares para o baile. O corpo não lhes amocha.
Seu Vicente almocreve, come peixe frito com o camarada, à
unha sabe melhor, e bebe-lhe do garrafão, um vinho branco de
Salvaterra que escorre como uma pomadinha, segundo ele diz.
Está sempre de cara na água, sempre num sorriso maroto, embora
nenhuma mulher dali o tenha visto abusador. Gosta de conversa.
Todo faceto, move o corpo magro como um contorcionista incipiente, talvez porque as pernas canejas lhe seguram mal o tronco largo.
Vem carregar o pescado dos lances de hoje e fazer
contas da semana. Olinda Carramilo atraca o saveiro
(bons olhos a vejam, vai uma pinga?), prende-Lhe a
corda à proa e logo rapa dos bilhetes das pesadas da semana
anterior. Seu Vicente traz sempre uma semana atrasada no
pagamento; também se queixa dos seus fiados; não são poucos,
mas o preço cobre-lhe bem os calotes e a
demora.
Com aquela conteira não há enganos, não. Nem nas
somas nem nas puxadas. Faz as contas melhor do que ele,
não lhe escapa uma parcela, como nos tempos do seu
negócio com as companhas isoladas. Caturram um com
o outro, mas nunca amuam. Seu Vicente administra-se
bem e já ofereceu à Olinda um vestido de cassa para
Maria, branco, às rosinhas, muito tufado nas mangas. Ela
percebe-lhe o jogo, pensa, pois sim, anda lá, embora já
fechasse os olhos por duas vezes em pesadas de meter
as mãos do lado do peixe. Não é pelo vestido, aquietados
os melindres da honra, mas há que segurá-lo co almocreve e
dar-lhe lucro para que não deixe de vir levantar o pescado. O
homem tem o seu negócio, mata-se a trabalhar dali até Vila
Franca e muitas vezes até à Ribeira
de Lisboa, quando o preço não lhe convém.
Seu Vicente tira o elástico da carteira de cabedal,
molha as pontas dos dedos, esfrega-as bem, dá aos ombros
magros de trangalhadanças; começa a passar as notas
uma a uma, notas velhas e remendadas que já escolhera o
pagamento. Prefere guardar para si as mais novas, merecem-lhe mais dinheiro do que as outras. O camarada
estendeu-se à proa, a fumar um cigarro.
- Levas aí uma riqueza - diz com mágoa na voz.
- Não dá uma nota para cada barraca, Ti Vicente.
é uma semana inteirinha de trabalho ruim.
- Mas já o recebem. E eu vejo-me parvo para o
arranjar. "
- Lá está vossemecê nas queixas. Assim nem o dinheiro lhe
medra - acrescenta por ironia, enquanto mete o dinheiro à
bolsa, enrolando-o com os papéis das contas.
-Não medra, não, palavra dhonra! Anda quase
falho na mão das vendedeiras e vocês querem-no depressa.
- O ganho é pouco.
- E o teu homem?
- Anda por lá com as correias às costas e lá mo estragam.
Cada vez que aparece, vejo-o mais pinante. Já fuma cigarros de
cartucho, o príncipe.
- Qualquer dia nem te conhece. Casa por lá.
- Não há quem o queira; cheira muito a peixe.
- E tu!. .
- Cheiro a suor e a dor, Ti Vicente.
Ele quer enrolar a conversa, acha-lhe graça, mas
ela furta-lhe a balda da malandrice.
- Safras ruins, seu Vicente. O peixe parece que anda
emalhado em vivo. Vossemecê não vê nos pesos?! As coisas
ládebaixo dágua também não andam bem, não sei porquê, Só
agarramos peixes como a gente: magros e feios
é uma dór dalma.
O almocreve abre a boca num sorriso largo. Olha
e levanta-se depois a esbracejar para a praia:
- Vá lá isso!.
Tira o relógio do colete, mede a maré, percebe que
está a perder mais tempo do que pensava. Uma borriçada
o vento puxa e fustiga-lhe o rosto.
- Deixe lá sair mais aquele lance, seu Vicente - pede-lhe a
conteira.
- É a maré, mulher? Não mando nas marés.
- Deixe lá que não lhe mingam com a ajuda. A canoa
já sabe o caminho todo até Lisboa.
Puxando a saia para cima da cabeça, Olinda vira para o lado
do areal. A voz do Tó Lobo enche a praia conduzindo os homens
atracados pelo tirante. O camarada de bordo baldeia o fundo da
canoa para acamar o peixe em frescura, atira fora a ponta do
cigarro que cospe. lembra ao almocreve:
- Damos aí nalgum lombo dareia e ninguém arranca o barco de
lá.
- Deixa.
Vem a caminho a primeira enviada.
Rente à margem dois homens remam com alma. Seu Vicente traz sempre um barril com boa pinga, vira uma caneca para cada
pescador, mas antes despeja uma para Olinda Carramilo,
é hábito antigo, para se saber que as contas ficam feitas
e bem feitas.
- Ó hooome! - grita um dos remeiros para terra.
A chuva engrossa. O vento encrespa a água varrendo o Tejo, faz ondular as árvores das Obras e da margem norte. A todo o pano, uma fragata surge das bandas da vala de Benavente, parece que navega sem tripulação. até que uma sombra, deitada sobre a cana do leme, ergue um braço.
A enviada atraca à canoa de Ti Vicente. Um dos avieiros, o
Tinoca, começa a passar os peixes para as mãos de Olinda
Carramilo; ela depõe-nos no prato da balança para fazer as
pesadas de cinco quilos. O filho mais novo do Chico Guerra, o
Zé Enxuto, senta-se na borda da canoa, de olhar fito no fiel
da balança, como a pedirr que não precisasse de muito peixe
por cada pesada. A balança, porém, é do almocreve e seu
Vicente bem sabe por que razões a prefere.
- Vá aí um peixe maior, Tinoca.
- Tens medo de dar a conta? - pergunta o almocreve num
gracejo. - Olha que eu não venho até aqui para ver.
- Já eu não digo o mesmo, seu Vicente - responde o
pescador. - Gosto de si. Passa-lhe um sável bem crescido,
ainda a arquejar, o prata viva com reflexos azuis e roxo no
dorso. A balança pende toda para o lado do peixe. Ti Vicente
alivia-a
- Essa agora foi de cambalhão; veja lá a outra! - comenta
Olinda Carramilo a limpar o rosto da chuva. - Dás-me o que
me pertence. - Volta-se para o Tinoca. - Não é assim?!.
Tinoca mostra-lhe a camisa ensopada em suor e chuva:
- Olhe para isto!. O sável é o mar que o dá, mas é
daqui que ele sai.
- É do suor da gente que ele sai - diz a conteira,
contando as pesadas na ponta da prancha da canoa.
u Vicente, de giz em punho, risca também dentro do
costado, não vá a chuva apagar o número de pesadas.
Assustado, Zé Enxuto dá um salto para dentro do saveiro. O
moço da canoa ri-se dele e mostra aos outros a borla do
barrete que lhe cortou com o canivete.
- Estes almas danadas levam tudo à gente! - comenta o
Tinoca num gracejo. E pegam-se de dichotes, enquanto o
camarada acama o sável, ao cutelo, no fundo da embarcação.
Um bando de corvos passa a grasnar em direcção à
outra margem.
- Quatro peixes para fazer uma pesada - desdenha
Olinda Carramilo. - Antigamente isto dava o dobro.
- Se calhar, querias que eu trouxesse uma balança para
pesar ouro em fio.
- Isto é pior: pesa sangue - refila Zé Enxuto, todo
saído à banda da mãe em mal-querença e arrenego.
O moço de bordo encharca um trapo de linhagem e
estende-o por cima das duas carreiras de sáveis. Da praia
já partiu a última enviada. O lance está fora e quatro homens
lavam a rede, preparando-a para o dia seguinte. A primeira
saída da manhã já fica marcada com o saveiro
do Manel Escalamão à ponta do areal.
Passa outro bando de corvos. O Tinoca ergue os olhos
remelgos, seguindo a mancha negra:
- Corvos a passar é safra de geada para pescar.
- E aqui o Ti Vicente já faz sete pesadas de cambalhão. Leva
na canoa a jorna de dois homens - acrescenta a Carramilo de
mau humor. O almocreve não se dá por achado. Assenta outro
risco, mete três peixes gordos no prato da balança e levanta-a bem para que todos a vejam.
- E agora?! Aqui não há nhonhó, ouviste?
E ri, diz tudo a rir, desengonçando-se quando fala.
Quase se parte quando ri.
- Queres mudar de almocreve? - pergunta ainda.
-Para quê?!.
- Sei lá!
- Não senhor, Ti Vicente. Quem só muda de camisa,
não muda de má vida. :
Ti Vicente não gosta do remoque.
- Sabias essa e estavas calada. Quem muda só de
camisa, não muda de má vida. Tens razão, rapariga.
Em remada rija, a outra enviada atraca à canoa. Vem
nela o Zé Bogas e o João Marujo. Um deles diz para o
grupo:
- Com o peixe que vem aqui, o Ti Vicente tem
de dar uma caneca à entrada e outra à saída. E se o vinho
não for valente, quatro canecas de cada vez.
O almocreve espreita o saveiro. Acena a cabeça
entendido.
-Está feito! Vem aí bom peixe.
- Nem sempre pescamos lances-galo - diz o Tinoca a
coçar a barba de oito dias.
LANCE-GALO
LANÇADORES ao bico da proa e à ré, dois homens aos
remos, o saveiro desamarra da ponta norte da praia.
- Ala! - ordena Chico Guerra, de casaco grosso bem
puxado ao peito, - está frio, gaita! - e de barrete bem
enterrado na cabeça grisalha, De chicote amarrado ao tronco,
os homens do ressoeiro seguem a passo pelo areal; pende-lhes a
cabeça sobre o peito, enrijam os músculos para vencerem o
puxão da rede.
- Ó camaradas! Vai! - pede o mestre com calma.
Manel Escalamão voltou a atravessar as conversas com
remoques; ficou pior depois que o Isidro Maneta passou a sua
"varina" para a companha da aldeia e ainda há pouco
pegou com o Isidro, porque o filho Lhe pisou um sável.
Chiico Guerra interveio, são coisas de rapazes!, e mandou
ir o lance. Agora quer mostrar calma.
-Ó camaradas! Vai!.
Amarrada a mão de barca ao buraco do traste, os
dois lançadores vão seguindo o correr da corda; preparam-se
para a altura de largar os pandulhos e as cortiças. Um dos
remeiros canta. Ninguém tem melhor voz do que
Zé Miguel em todo o Tejo, garante o João Marujo, que
conhece a palmos desde a Barquinha até ao Mar da Palha. Quem
canta agora é o Zé Miguel.
Pedi hoje às Três Marias.
Ondula a voz como o peito do remador e o bico do
saveiro, adormecido pelas águas que o embalam. Os camaradas do
ressoeiro caminham levados por aquela trova.
E os que ficaram na praia, sentados, à espera que a mão
de barca chegue a terra, calam-se, alguns talvez sonhem,
descansando a cabeça no punho.
. Pedi hoje às Três Marias
para dizerem ao alvor.
O saveiro voga, reprimido pelo cair dos remos, que
se opõem ao correr da maré. Nos toletes, os remos gemem.
A companha segue a voz do Zé Miguel num sussurro:
. Que o Sol agora só nasce
Na cara do meu amor.
Chico Guerra não se embala na cantiga; está de atalaia,
porque mestre de safra não pode entreter-se. Tem a atenção
posta na corda do chicote do ressoeiro e no barco,
à espreita de ensejo. Os lances correm bem. Se for assim
até ao fim do dia, já o disse à mulher do Tóino da Vala:
à noite há bailarico; até tu danças.
Aí está o momento de dar a ordem. Leva a mão ao
rosto, faz dela um búzio e grita para o saveiro:
- Larga!. Larga!
Os dois lançadores deixam passar os pandulhos e as
cortiças nos dedos, depressa, vá depressa, o ensejo é bom.
As malhas da rede chapinham na água, afundam-se depois com o
peso dos brincos de barro cozido. Marcado pelas bóias, fica no
rio um carreiro de cortiças. Uma vaga-vazia, tocada pela
aragem, faz o barco empinar-se. De mãos ardidas pelo roçar da
corda do ressoeiro, os homens que ficaram a puxá-la de terra
continuam no mesmo passo cadenciado e duro. A rede desenha a
curva, enquanto os que esperam a mão de barca se levantam para
seguir o lance. Ansiosos. Sabem o risco daquele lance onde o
sável se acoita. Mas vale a pena arriscar, tinham resolvido os
quatro homens que se alternam como mestres da companha. Chico
Guerra atiçara-os e os outros três acederam, embora usassem a
rede mais velha para jogar a sorte.
De repente, o saveiro pára, afunda-se uma braçada de
bóias, logo um barco sai com a Olinda Carramilo e o Tó
Lobo para safar a rede presa. Chico Guérra sobressalta-se.
- É um lance danado - diz o Tinoca.
- Mas dá bom peixe.
- Há por ali peguilhos como tordos - insiste o primeiro,
desfazendo nos dentes a ponta do cigarro que fuma. Puxa os
fios de tabaco com os dentes, repassa-os nos lábios e cospe-os
com força. De raiva. O Tinoca começa a arrepender-se de não
ter discutido a ideia de Chico Guerra. Olham-se ambos de
soslaio.
As pás do saveiro que Olinda Carramilo maneja mal
caem na água. Vão num frenesi, em remadas curtas e
rápidas, enquanto Tó Lobo, de pé, incita a remeira e lhe
marca o ritmo com o braço erguido e a cabeça. Sente-se
empolgado, talvez porque lhe caiba ir ali sòzinho na companhia
dela. Não há muito tempo, um mês se tanto, que gosta de tomar
lugar a seu lado nas reuniões da companha, no alar das redes,
perto dela em qualquer sítio onde estejam, sem lhe dizer uma
palavra do que pensa, sem levantar um gesto. Nada mais do que
o frémito da sua presença, muito perto, isso lhe basta, porque
imagina tudo mais que é bom entre homem e mulher - a
companhia, o melhor, a franqueza do olhar, as zangas e as
pazes. Tudo. Se ela não fosse companheira do Tóino da Vala, já
lhe teria dito qualquer coisa do que sente. Há um mês, se
tanto. Há mais tempo, repara agora, quando recorda a ansiedade
e o despeito que provou quando a viu partir para a monda do
arroz. Nessa altura não percebia o porquê da sua zanga, o
rancor das palavras que empregou para maldizer. Pedira até que
lhe escrevessem em Benavente na carta ao Tóino, dando conta do
que se passava. Escondera o nome para não se meter em sarilhos e ela fizera reclamo da carta que o Tóino lhe trouxera, com
pena de não saber quem a notara; esfregava-lha na cara sem
vergonha, era o que pedia uma acção daquelas.
Tó Lobo vai aliviando as cortiças submersas, toda a
cautela é pouca, enquanto os homens do ressoeiro se
voltam para o rio, à espera de receberem ordem do mestre
para continuar a faina. Olinda Carramilo fala para
o camarada:
- Se deu algum rasgão, temos o lance perdido.
Embrenhado em pensamentos, Tó Lobo acena a cabeça, volve o
olhar e furta-lho logo, como se ela adivinhasse o autor da
carta maldosa. Que pode fazer para tirá-la da ideia?
- Está pegada? - pergunta-Lhe Olinda, de remo
dentro do saveiro.
- Não; acho que não.
Ela levanta-se e vai ajudá-lo. Vê que as mãos lhe
tremem, porquê?, põe as suas sobre as dele para o sossegar, e
sente-o agarrar-lhe os dedos, que é isso, Tó Lobo?
mas não diz uma palavra, também ele não a encara, furta a mão,
parece que a pele dele tem lume, voltando a sentar-se. Tó Lobo
grita para o saveiro do lance:
- Ala! Ala depressa!
Os lançadores largam pandulhos e bóias num desafio
de presteza que chapinham na água turva. O sol está baço
O céu turvo.
- Tivemos sorte! "
- Ainda não chegámos ao fim - responde Olinda;
intrigada com a atitude de Tó Lobo.
- Nunca se sabe!
Quer fingir que não notou o que ele fez, embora lhe
apeteça falar disso mesmo. Assustou-se de princípio, não
o quer, não, tem o marido, mas agrada-Lhe pensar que o outro homem se interessa por ela. Rema e cerra os olhos
sobe-lhe pelo corpo um calor que a excita. Tó Lobo enrola
um cigarro depois de guardar a onça de tabaco e as mortalhas
dentro do barrete. Mas não o enfia na cabeça.
enrola-o. Antes de o saveiro chegar à praia, salta fora,
mete-se na água até às coxas e conduz o barco agarrado à
proa, indo vará-lo perto do Chico Guerra, que dá outra
palavra.
- Voltem lá!.
Acena o braço para os lançadores, estes transmitem-na
para os remeiros, e logo a popa faz rumo de terra para fechar
o cerco da rede. Os aladores alegram-se, correm, depois
do susto vem a confiança no lance; há quem aposte vinte
e três peixes que nem toiros, grandes e gordos que nem
iros, o sítio é perigoso mas dá boa pesca, diz o João
Marujo para um grupo onde se juntaram a Olinda e o Tó Lobo,
ambos calados.
Lá ao longe, a água abre -círculos e espirra. É o sítio
do saco, calcula o Tinoca.
- Traz peixe - diz o Zé Bogas a esfregar as mãos.
- Vai ser um lance como não se fez outro igual nesta
Era - confirma o Tinoca.
- É uma coisa cá de dentro que me diz.
- Já ouves vozes dentro de ti? - chalaceiu o Marujo.
Aí vem a mão de barca para alar. O saveiro galga na
vaga, enquanto os grupos se desfazem na pressa de acabar a
ansiedade que ainda os oprime. Preparam os tirantes, arregaçam
as calças, metem-se ao rio. As mulheres esperam no areal.
Olinda corre a espreitar a criançada
para ver se a Maria já acordou; deixou-a deitada na
manta à porta da barraca e o MaLagueiro conhece-lhe os
passos, vem aos saltos à sua procura, a ladrar a ladrar.
Maria da Vala meteu-se na brincadeira com as outras,
sem prestar atenção à chegada da mãe.
No saveiro do lance, um dos lançadores, o Zé Miguel,
amarra a mão de barca e trá-la presa ao pulso para
atirar à praia, mal o barco se chegar mais a terra. Os
que esperam gritam-lhe que atire já, mas ele incita os camaradas dos remos; marcando-lhes o ritmo da remada com
óis! e vai!
Zé Miguel volta a cantar e Tó Lobo acha que aqueles
versos lhe calham agora.
Pedi hoje às Três Marias
para dizerem ao alvor
Que o Sol agora só nasce
Na cara do meu amor.
Procura Olinda Carramilo. Que foi ela fazer?!. .
Regressa de corrida com o Malagueiro a saltar à sua
frente, encontra o olhar de Tó Lobo à sua espera e desvia-se
para o sítio a que se dirige a popa do saveiro. Zé Miguel
lança a mão de barca pelo ar; aí se jogam para agarrá-la o
João Marujo e o Zé Bogas. Leva este a melhor, furtando-se ao
outro, que tenta segurá-lo pelo ombro, num salto doudo;
esparranha-se o João no areal entre a algazarra do rapazio e a
surriada dos companheiros. Vem a aldeia toda alar a rede.
-Oh!. puxa! Puxa. Puxa!
Maria Bogas toma conta da aducha onde os outros
largam a corda, que arrastam pelo areal. Está de seis
meses, não pode fazer força, recomendou-lhe o médico no
último parto, quando a menina morreu e ela se ia apagando
também. Diz a sua graça para cada um que chega - é mesmo um
diabo de saias.
- Certo! Certo? Vai certo!.
Responde a voz do Zé Miguel a marcar o ritmo da alagem.
- Pesa mais que o meu dinheiro! - comenta o
João Marujo, de rastos no areal; vai suspenso no tirante,
balouça o braço direito, parece morto, leva o barrete na
outra mão, agatanha os dedos na praia.
- Vá, rede, que não podes mais do que eu!
- Pode, pode! - responde-Lhe Zé Bogas num repelão que o
atira de cambulhada para cima do Tó Lobo. Os homens do
ressoeiro flectem o chicote para perto da outra ponta; Maria
Bogas espeta uma vara na areia para que eles prendam ali a
ponta da sua corda. Eles amarram bem o chicote e correm para a
mão de barca a ajudar os camaradas. No extremo da praia, outro
saveiro espera ordem do Chico Guerra para largar.
- Falta pouco! Oh puxa! Puxa certo!
- Certo !
Largam o seu pedaço de corda à Maria Bogas, que
enrola na aducha e lá regressam a correr; tomam lugar
na parte mais próxima do rio, atiram o tirante à mão de
barca, aí refazem a caminhada de cabeça baixa, tronco
chegado para diante e dentes cerrados. Os corpos oscilam
como corda. O mestre grita a espaços:
- Vamos!
As bóias desenham o cerco no Tejo. Começa a cair
uma chuva de borrifos tocada pelo vento. No areal largo
serpeiam fios de água onde os pés chapinham. Chico
Guerra dá ordem de largada à outra companha; os dois
homens do ressoeiro daquela rede começam a sua caminhada, a
passo lento. Oscilam, trocam as pernas. Na rede que sai, o trabalho ainda não afrouxa. Encharcados de chuva e suor, os homens e as mulheres passam e tornam a passar. Agora, no regresso da aducha, procuram ver o co da varina, tentando adivinhar a quantidade de peixe que lá vem. Pesa mais que o meu dinheiro, repete o João Marujo em voz baixa.
- Alto! - ordena Chico Guerra.
A areia mesmo molhada e suja convida ao repouso, mas
nem um só homem descansa a tomar alento. Todos descem à
margem a puxar as malhas. Falta pouco. Tó Lobo e Zé Vicente
metem-se ao Tejo com água pelos rins, não venha algum sável
emalhado e não se escape na saída.
O corredor de bóias caminha para os seus braços.
Divididos nos dois lados da rede, uns por dentro
outros por fora, recolhem a rede para trás até chegar
às mãos das mulheres que a puxam para a aducha. Ninguém
fala. Só os braços se movem na ânsia do fim. No saco
da rede nada se agita. Em todos os rostos nasce a mesma
oppressão. As malhas correm nos dedos inquietos. Os dois
homens da entrada vigiam, sem sentirem o gelo da água
que os divide pelos quadris. Só os braços se movem. Um
grito de desespero, Zé Miguel grita:
- Está presa! Ficou presa!
Responde-Lhe um uivo de dor. Atropelam-se os homens
decididos para se atirarem ao rio, logo seguidos de outros que
entram na água, querendo ficar mais perto. Zé Miguel
toma a dianteira, nada de braçada larga, enquanto na
praia todos falam agora numa grita nervosa, entre choros
de crianças a quem as mães bateram porque se queixaram
doutras ou porque se lhes agarram às saias, impedindo-as
de seguir os movimentos do Zé Miguel, que acaba de mergulhar.
Mergulha e abrem-se largos círculos na água. vêem-se-Lhe
os pés a bater, desaparecerem depois, outro homem que
mergulha também, as bóias são sacudidas, deve ser o Zé Miguel
que tenta soltar a parte do saco presa no peguilho, e agora
faz-se algazarra à volta do Chico Guerra, destemperado no
desespero de ordenar o lance num sítio tão perigoso. Bate
punhadas no peito, jura que nunca mais mandará companha
enquanto se lembrar daquele dia, as palavras choram-lhe na voz
agreste, choram-lhe as mãos, choram-lhe os olhos, teatral e
irado.
Os dois mergulhadores voltam à superfície, mas todo
o povo olha para o Zé Miguel, que sacode a cabeça e abre
a boca para se libertar da água. Ele faz sinal para puxarem e
recomenda: devagar!, puxem devagar! Tó Lobo segue a ordem com
cautela. As malhas passam. O corredor de cortiças minga, minga
no Tejo -e nas mãos dos que meteram à água para salvar a rede.
Faz-se um silêncio súbito, como se, de combinação, todos
quisessem ouvir a voz roufenha de Chico Guerra que se
amaldiçoa com pragas e asneiras.
- Não puxem! - pede uma mulher.
- Com a porta aberta do saco não chega nenhum peixe à
praia.
- Pode vir algum nas mangas - lembra Olinda Carramilo.
Ninguém a ouve. Ninguém pega na rede. Olham-na e não lhe
tocam, como se nela viesse a maldição. Zé Vite sai do rio.
Perdeu a força, está exausto, parece cansado. Caminha aos
tropeções pelo areal e deixa-se cair, metendo a cabeça entre
os braços.
As mulheres correm umas para as outras, abraçam-se
- Ai, Jesus! Ai Jesus, Senhor!
- Maldito! Lance-galo maldito!
Quando a vê puxar a rede, Tó Lobo volta à faina.
Pega uma peça rasgada, como se a tivessem cortado a
canivete. O mulherio grita. O uivar das mulheres cobre
a zunida do vento. As mãos de Olinda estremecem, mas
cessam de alar.
- Três peças! Mais de três peças perdidas! - anuncia Tó
Lobo.
- Ai Jesus, Senhor!
- Amaldiçoado!
-Lance-galo amaldiçoado!
Farrapeira, de linhas partidas presas às cordas, a
varina fica agora abandonada na praia. Os rapazes
lembram-se do Ti Lobo, lá longe, na Vala do Carregado.
Outro saveiro larga os pandulhos e as bóias para o último
lance do dia. Na ponta da corda do ressoeiro, João
Marujo e Zé Bogas caminham e alentam-se:
-Vá!. Vá!. Vá.
Apertam a corda ao tronco e rojam-se no areal.
PARVO, GRANDE PARVO!
ANDA há uns poucos de dias a pensar que é um homem
de vergonha, precisa de ser um homem de vergonha, já é pai
de filhos, o mais velho já namora, mói-: com conselhos, há
coisas que não se fazem a um amigo, mas bastou ver nos olhos
dela um certo brilho que conhece nas mulheres para nunca mais
se desimaginar. Anda parvo, diz para si nas horas de sensatez;
anda feliz, repete por longo tempo, e sente-se mais ligeiro,
um pássaro, como a mãe lhe disse quando levou à lenha a que
é hoje sua mulher. Acha que Olinda Carramilo deve ser
diferente das outras e tem tentações de a conhecer nos braços,
dentro dos seus braços, uma só vez, sim, uma só vez lhe
basta. Sem o conseguir uma vez, uma só vez lhe chega,
não dorme sossegado. Entra-lhe a espertina nos olhos.
as noites nunca mais acabam; ouve todos os ruídos com o
silêncio da noite, sai da barraca e vagabundeia pelo areal,
revendo-a nos sítios em que estiveram juntos durante as
fainas da safra. A mulher já o estranhou; todos o estranham.
Que tem ele? ! Mau-olhado, admite a mulher.
Tó Lobo sorri quando a ouve falar de bruxedos e já lhe
respondeu o que precisa: tenho bom olhado, mulher; bom
olhado é que eu tenho.
Queimava-se-lhe o corpo na tarimba. E agora aqui está
na noite chuvosa e fria, de samarra grossa bem agarrada ao
corpo, sem saber o que deve fazer, embora saiba bem o que
deseja fazer. Mete por detrás das barracas que ficam junto do
valado. Quer confundir-se com a escuridão, não vá alguém
descobri-lo; sobe ao carril das oliveiras. esconde-se,
espreita a noite para descobrir qualquer vullto ou luz,
ou ruído. O Tejo marulha de mansinho na areia.
A barraca do Tóino da Vala fica no extremo da aldeia, igual
às outras, de carroicil, telhado de duas águas, da mesma
palha, com porta de madeira. Tem na porta uma cruz pintada de
azul. Uma cruz bem torta. Mas Tó Lobo não precisa desse sinal
para lá chegar. Podiam tapar-lhe os olhos que iria lá direito,
sem um engano. Avança de corpo dobrado, um cão rosna-lhe e
ladra depois, hesita, atira uma pedra que acerta no cão e o
deixa a ganir. Não se lembra de que o cão acordará algumas
pessoas e que as mulheres têm o sono ligeiro e ficarão à
escuta, esperando ouvir os cascos de cavalo de maioral, embora
os cães medrosos ladrem se o vento bole na rama das oliveiras.
Não pára. Não pode parar. Tem o corpo num formigueiro. Segue
um bocado para além da última barraca, segue o valado,
ataranta-se com os arbustos e as ervas altas que afasta,
desvairado, com os braços em fúria, parece que o agarram, o
querem impedir de avançar.
Quando se liberta, alarga o passo, inventa um vulto a
espreitá-lo, esconde-se, bate-lhe o coração às punhadas no
peito; como não ouve mais ruídos, recomeça o caminho
em direcção à barraca onde viu o vulto, porque se o encontrar
de frente já arranjou desculpa para explicar a razão de andar por ali àquela hora.
Afinal está sòzinho. Ainda bem.
Passa uma barraca e outra, espreita sempre quando
atravessa o intervalo entre duas; não precisa de ver a
cruz azul pintada na porta para saber que chegou à do
Tóino da Vala. Quanto tempo terá ele ainda de tropa?
Encosta o ouvido ao carroicil, ouve a respiração dela e
perturba-se. O Malagueiro ladra lá de dentro; arremete
contra a parede, cão ruim, e rosna, rosna, ladra e rosna.
voz de Olinda manda-o calar, ouve-lhe a voz e Tó Lobo
raspa na palha da barraca; quer dar sinal do sítio em que
está, na esperança de que também ela espere a sua chegada.
Veio por isso mesmo. Pressentiu que ela o espera. O olhar que
trocaram na alagem da última rede depois do lance-galo deu-lhe
a certeza de que ela o espera. Assobia. O assobio cai no
silêncio e afunda-se.
Um brado rebenta dentro de si:
- Quem está aí?!
Recua um pouco, domina-se para não fugir, mas a
voz dela insiste:
- Quem está aí?.
Não compreende a pergunta, tão certo veio de que
ela o esperava de porta aberta. Hesita, pensa calar-se,
desaparecer, o sangue bole-lhe no corpo e vence-lhe o
embaraço. Encosta a boca à parede, sussurra:
- Sou eu.
-Eu. quem?!
Olinda quase grita:
- Diga quem é!
Tó Lobo insiste de mansinho, atarantado:
- Abre.
- Não abro a porta a ninguém.
Já lhe conheceu a voz, Deus Senhor, agora que o tem
ali perto de si não o quer, não, nunca admitiu uma coisa
dessas, nunca o julgou capaz de vir desassosegá-la, de ter
assim uma cara estanhada. Pensa açular-lhe o Malagueiro
e essa ideia fá-la sorrir, porque o vê de fugida pela aldeia
fora, perseguido pelo seu cão, que é pequeno mas valente como
nenhum outro. Mas que dirá toda a gente quando souber donde
vem o Tó Lobo?
- Sou o Tó Lobo. Abre.
- Estás enganado na barraca; aqui não há pão doce.
Ele agatanha a palha da parede, mete-lhe os dedos,
talvez consiga agarrar os dela. Ouvem-se respirar, sentem as
mãos um do outro encostadas à palha, tacteiam-na, buscam, e
encontram-se espalmadas com a parede a separá-las. A filha
move-se na tarimba, diz qualquer coisa, o Malagueiro volta a
ladrar, arremetendo contra a porta.
O cão afasta-se a ganir com um pontapé que ela lhe atira:
Os ganidos irritam-na.
- Sou uma mulher de vergonha, ouviste?
Fala num ciciar, mas apetece-lhe romper aos gritos,
suspeita de que a vizinhança já tenha acordado.
- Vai-te embora, Tó Lobo. Que ideia a tua, Tó!.
O coração é um tambor no seu peito assustado. Ouve
ainda a voz do homem dizer palavras que não entende, o
resvalar das mãos dele nas asperezas da palha, o seu respirar
arfante. E depois, logo depois de um silêncio súbito, passos
de pés descalços que se afastam à mansa e Olinda imagina mais
do que ouve. Tó Lobo quase foge, ferido pela vergonha que
sente por si.
A brisa do Tejo arrepia-o. Corta para a margem, vai
sentar-se dentro de um saveiro para se acalmar. O corpo
treme-lhe. Tremem as mãos de Olinda Carramilo quando
pega no púcaro da água que precisa de beber para matar
as securas. Bebe com sofreguidão, deixa a água escorrer-lhe
pelo queixo e murmura a sorrir:
- Parvo! Que grande parvo tu és, Tó Lobo!
O Malagueiro procura-lhe as mãos para as lamber,
saltando à sua volta. Ela atira-se sobre a tarimba onde
a filha dorme e enrola a cabeça na manta; depois levanta-se
num rompão, abre a porta para receber, de olhos fechados e
cabeça erguida, a brisa fria que vem do Tejo.
- Ainda bem que és parvo. - diz num segredo
para a noite.
Ciganos do rio
REGRESSO
APARECERA de surpresa em riba do valado a gritar
"viva a peluda, viva, viva", exuberante, misturara
alegria com vinho, trazia uma bebedeira de caixão à cova,
com muito balanceio mas geniosa e brincadora. Pusera-se
a atirar o seu boné de astracã ao ar, saco de ramagens
Vermelhas cruzado a tiracolo, e tanto pincho dera, antes
de o descobrirem, que o primeiro a vê-lo, o Zé Bogas,
já o encontrou a rir dentro da aberta, a rir como um perdido e
de água malcheirosa pelos peitos, donde não queria sair à
boa-fé, pois resolvera agarrar o que se Lhe chegasse mais à
mão, obrigando-o também a um banho. Nem que fosse o Escalamão,
prometera a si mesmo, havia de jogá-lo na água da aberta e
encher-lhe depois as tripas com vinho que trazia na borracha,
cheia mais uma vez até à boca, numa taberna de Benavente. A
fantasia puxava-lhe para o farelório. Aí estava ele a fazer
arruaça para se tornar notado, já com a aldeia toda em alarme
de graças e de festança pelo seu regresso. A companheira
olhava-o da porta da barraca, pouco disposta a dar-lhe
público. Não gostava de circos, dizia ela quando o via
voltado para a exibição. Tanto mais que já sabia à légua
tudo o que vinha atrás daquele dar nas vistas: franquezas
de fidalgo, gastar à parva, e ela que se amolasse depois
com as diferenças.
Tóino da Vala acusava-a de forreta. Ainda bem que
assim era; não lhe doía a fama. Passava por toda a banda
com a sua cara direita, graças a Deus sem recear nada nem
ninguém.
Crescera o burburinho nos grupos engalfinhados à
bórda da aberta, pois fora o João Marujo o parceiro de
banho do Tóino, embora na luta coubesse ao provocador
o papel mais ingrato: o outro, de boa fisga nas mãos,
onde agarrasse era dele, fizera-o baldear num bate-rabo
espectacular, pondo-o numa sopa da cabeça aos pés. Entre
gáudio e surriadas, ditos e risota, acamaradaram ambos a beber
da borracha, até que o festeiro se derramou das pernas, o que
levou o amigo a pegar nele em charola, metendo-o na barraca ao
pé da mulher e da filha. Estava numa papa. Uma sopa de vinho
tinto, brincava ela numa roda de amigos, depois de o despir,
receosa de que o Tóino estragasse a camisa de castorina nos
ímpetos da bêbeda.
Ele resmungou, ameaçou-a, encheu-a de nomes, caiu depois
num poço de sono pesado durante o resto da tarde até às tantas
da noite. Sonhou com a militança, andou em
exercícios de esquerda volver, direita volver, mas de borracha
ao ombro em lugar da espingarda. Ressabiado, acordou com a
ressaca a azedar-lhe a alma. Não se adiantou nos propósitos de
lhe escovar as costas, porque ela percebeu o jogo da conversa
atravessada; não lhe deu troco. Mas bramou, fez sòzinho uma
teatrada de perguntas e respostas, despeitado por ter
surpreendido uma rede nova que ela compusera na sua ausência.
Ficou cheio de fezes.
Andaram de trombas um com o outro todo o dia.
Falavam-se por intermédio da filha, que não compreendia
aquela birra, embora achasse graça ao serviço de
porta-voz de que a incumbiam.
- Diz aí ao teu pai que são horas de...
à beira um do outro, ignoravam-se.
- Pergunta à tua mãe se não há vinho. Se um homem
nésta barraca não tem direito a vinho!.
- Diz-lhe que sim. Os homens precisam das mulheres e de
sossego; e que um se vende por um copo.
Chegaram às boas. Desejavam-no desde que o Tóino
aparecera no alto do valado aos "vivas à peluda".
Quando viu os pais a rir, de mãos agarradas, Maria
da Vala ficou feliz. Mas não percebeu logo depois, não
percebeu e chorou, por que razão o pai pegou nela às
cavaleiras e foi pedir à Maria Bogas que a deixasse
dormir na sua barraca.
O Tóino vê agora o rio com outros olhos.
Apetece-lhe correr e saltar como os cachopos, rebolar-se no
areal, gritar aos ecos dos malagueiros que voltou, finalmente.
Já tardava, caramba! Na próxima safra do sável haverá mais um
homem na sociedade da companha. Talvez o Escalamão acabe por
se juntar a eles com os dois Manetas. Seria bom!. A aldeia a
trabalhar para o mesmo monte, embora houvesse zangas no
dividir das contas.
O Tó Lobo anda atravessado, pensa o da Vala. Parece
que lhe fala por favor; mas quem não deve, não teme,
nunca lhe fez mal, são amigos há muito tempo, e um dia,
logo que calhe, puxa a conversa para saber o que tem o
Tó Lobo contra si. Já perguntou à Olinda se se pegou
nalguma zanga com a mulher do outro, pois ambas têm
cabelo na venta e são melindrosas de feitio.
Caminha sòzinho pela margem fora a meditar naqueles enleios.
Sem preocupações de maior. Goza a frescura da água do rio nos
pés descalços, mansa, fresca e mansa, como se o ajudasse a
arrancar da pele as botifarras do soldado 107 de Ciclistas.
Depois muda o passeio para o lado da Lezíria até encontrar
erva. Estende-se no chão, cerra os olhos. Não, não vai dormir.
Quer pensar sem companhia no seu regresso. Perceber que vai
ficar ali para sempre com a mulher e a Maria. E mais dois ou
sòzinho; isso não! Precisa de um homem à sua beira;
entende-se melhor com os homens.
Sorri.
Entende-se melhor com os homens no trabalho e na
conversa do trabalho. As mulheres fazem falta. Pois!
Comove-se ao recordar a companheira, uma Maria da Fonte,
tesa como as armas. O que ela fez na sua ausência!
O sol aquece-lhe a cara, afogueia-lhe o corpo, fá-lo
espreguiçar. Abre os braços até lhe doerem os músculos,
boceja com ruído e depois põe-se de pé num salto.
Olha à sua volta para ver se está só, corre para uma
árvore, abraça-a.
- Bom dia!
Grita mais alto para as bandas do Tejo:
- Bom dia!
Larga-se a correr até ao saveiro, desamarra-o, salta-lhe
para dentro, dá com o Malagueiro a lamber- lhe os pés.
- Estás a ficar velho, cão bonito! Os amigos velhos
são os melhores.
Lembra-se outra vez do filho. Está sòzinho e pode
deixar cair a lágrima que lhe saltou.
- Arranjo-te outro menino para lhe dares companhia. Valeu?!
Agora puxa o cão para os joelhos, mete-lhe a cabeça
entre pernas, prime-Lhe as orelhas com os dedos. Malagueiro
chia de gozo e parece dormitar. Tóino da Vala pega nos remos
sem afastar o cão, move-os com toda a gana, ganhando o
rumo do Mouchão da Malandrice, onde se apanham amêijoas para
o isco das nassas.
- Está aí um dia real!.
Soalheiro e quente, de uma quentura branda que lhe
entra nas veias e as enche de confiança em si. O rio e as
margens que o envolvem, E onde ele cresce. O peixe gosta de
amêijoas; o cheiro atrai-o, fazendo com que perca o receio pelas malhas das artes. Como se o cheiro o embriagasse e lhe roubasse o tino.
O Malagueiro foi tomar o bico da proa, seu sítio preferido.
Tóino da Vala rema com força, vá, força; vá, : força!, assobia
alto, virando-se para cada lado do saveiro, de maneira a
descobrir se a navegação está livre. Toma sempre essa
precaução depois que viu uma fragata embater num barco do tio
e atirar-lhe dois filhos ao Tejo. Tinham 10 anos. Os primos
desapareceram na corrente, recorda os gritos do tio Manuel,
nem parecia gritar de gente, ai os meus meninos!, os meus
ricos meninos!, mas ninguém lhes valeu. Andaram três dias a
arrastar o Tejo com redes, varinas, à procura dos corpos; só
apareceram em Alhandra, nos lodos, na madrugada do quarto dia.
Agora olha sempre para um lado e outro do barco, mesmo que
veja as carreiras do Tejo livres de embarcações.
O tio ainda hoje traz luto. Também ele não largou o boné
preto em sinal de sentimento pelo seu João. Uma doença sempre
é doença, são coisas em que se não tem mão; mas um desastre
quando as pessoas vão felizes, até cantam como o tio, e assim
de repente, sem um aviso, já nada, um descuido qualquer, não
se sabe de quem, e dois meninos jogados à morte ali mesmo à
frente das pessoas, sem que ninguém Lhes possa valer, mesmo
que se atirem à água três homens doidos que nadam e gritam e
regressam cansados de impotência, prontos para chorar e
morder as mãos, como se elas fossem culpadas de não apanhar
o que procuravam. Só na madrugada do quarto dia o Tejo
vomitou os dois corpos no lodo.
Encosta o saveiro à margem, amarra-o ao tronco de um
chorão seu conhecido e salta em terra com o Malagueiro.
O cão parte numa carreira. Deve-lhe tér cheirado caça.
O sol filtra-se na folhagem miúda das árvores, largando
manchas de luz naservas do mouchão. O Malagueiro ladra de
longe; ladra mais perto, mais perto, ladra ali mesmo
ao pé dele.
- Cão esperto! Estás a convidar-me prà caça, não é?
Não se apanham rolas velhas à mão.
Fala e despe-se, atirando a roupa para um monte.
Fica em ceroulas, agarra na lata que trouxe para a
colheita, abre caminho por entre as tabugas altas, até que
se põe a tactear com os pés o fundo do Tejo. Conhece bem
o sítio. Por enquanto vai só encontrar lodo macio, paus,
algumas pedras. As navalhas das amêijoas ficam mais
afastadas quando a água lhe chegar aos mamilos. Os salgueiros
atiram uma sombra larga sobre ele, e o rio; sabe-Lhe bem o
contraste da luz. Caminha aos impulsos. Logo que pode firmar
um dos pés, atira-se para a frente, de braço esquerdo levantado para arranjar equilíbrio, enquanto a mão direita empurra a lata que flutua à sua beira. De súbito,
um arrepio vara-lhe o corpo. Então, cruza
os braços sobre o peito, marchando às upas para habituar
o corpo à temperatura da água. Uma abelha vem zunir-lhe
à volta da cabeça. Assusta-se, dá balanço com os braços,
deixa-se afundar, porque o frio lhe toma os ombros e o
obriga a bater os dentes. Atentos, os pés buscam e rebuscam as
navalhas das amêijoas; olha para a margem com a intenção de se
orientar: julga que já passou a zona onde
outrora fazia a apanha. Talvez fique mais para a direita,
pensa.
Experimenta. Bastam-Lhe três passos. O Malagueiro
ladra-lhe da margem.
- Deixa-te estar, Malagueiro! Aí! Quieto!
Baixa os braços ao longo do corpo, mergulha numa
flexão de pernas; procura o marisco com as duas mãos. Quando Tóino da Vala emerge, traz dois punhados de amêijoas, que deita na lata. Vomita depois um gole de água, cospe, pisca os olhos num tremelicar das pálpebras, limpa o rosto. Falta-lhe o hábito. Não respirou a tempo, bebeu uma boa golada. Lembra-se de que ali perto deve aver um viveiro mais fundo e busca-o com os pés, cá estão, sobe-lhe pelo corpo um jacto de alegria, sim, é aqui mesmo, tropeça em pedras de aresta viva, recua um passo, deve sangrar do calcanhar do pé direito, firma-se nuns
seixos, pode dali formar o mergulho para o fundão escavado
pela última cheia. Precisa de arranjar muito isco para a pesca
da noite com as nassas. Quer agarrar peixe que se veja.
Mordam-se os outros de inveja. Porque não vêm agora apanhar
amêijoa para as redes?
Aí vai num salto, de braços bem atirados para a
frente, olhos abertos, abre as pernas, fecha-as depois num
golpe rijo de tesoura, um feixe de tabugas enreda-se-lhe
nos pés, que será?, alguma cobra de água, pensa ainda,
mas o fundo do rio aclara-se, vê tudo à sua volta, como
se do nateiro se filtrasse uma luz clara e forte. Dá novo
golpe de pernas, mas o peito oprime-se-lhe, a zoeira de
um apito entra-lhe nos ouvidos, parece que lhe corre nas
veias, deita as mãos ao viveiro, puxa, puxa, volta a puxar, e
assim que tem duas mãozadas de amêijoas regressa
numa ansiedade, depressa, precisa de ver o sol e as árvores,
numa ansiedade de medo súbito e estranho. Cá fora, respira com
força. Arfa. Lava o marisco do lodo e arfa, puxa a lata
para si e arfa, arfa e abre os braços. Nas costas tisnadas os
músculos desenham-se, reluzindo ao sol pelas camarinhas de
água que escorre. Um amargo de boca fá-lo arrotar e cuspir. A
zoeira dos ouvidos não parou, não pára, não vai parar até à
hora de dormir. Passa um saveiro perto da margem. Não dá
por nada.
Ardem-lhe os olhos. Só se volta quando lhe gritam perto,
mesmo ali:
Acena o braço para Zé Carramilo, que, num golpe da
brisa e da vela, faz o barco guinar perto dele, tomando
o rumo da aldeia.
- Espero-te em casa.
- Trazes vinho?
- Bebe água! A água do Tejo é água de mil fontes.
Não percebe bem o que diz. Volta a meter os dedos
nos ouvidos, sacode a cabeça e volta para a margem,
agarra-se a uns bunhos e sobe, a erva estala-lhe debaixo
dos pés.
Pega na camisa de castorina para limpar o tronco.
O Malagueiro espera à sua frente com o boné de astracã
preto entre dentes, sacudindo a cauda num saricoté de
contentamento.
Tóino da Vala despe as ceroulas, espreme-as nas
mãos, atira-as para cima dos arbustos do mouchão, donde
sai uma nuvem de mosquitos. Um melro assobia-lhe. Ardiloso, o
cão estaca nos meneios e ergue as orelhas, deixando cair o
boné do dono, que se deitara na erva, de borco, a morder a
erva e a cuspi-la, a pensar na mulher, e a mordê-la. Tem-na
fisgada.
Tem-na fisgada e apetece-lhe cantar:
Água e mais água
Mais angústia que água
CANTA agora muitas vezes, embora perca o tom do que
gosta de cantar. Baralha as músicas, desafina, mistura
alhos com bugalhos, mas fez-se cantador, como Lhe
diz o João Marujo nas baldas da conversa atravessada
que tem sempre para enzonar os outros. Olinda, se desabafasse,
diria que o Tóino voltara da tropa amigado com a preguiça.
Fumos e vinhos, todo franquezas para contar-lhe histórias da
tropa em Santarém. Só se sente bem onde não está. Agora
enche as terras por onde andou, aquilo é que são térras:
aquilo é que é gente fidalga pelos cafés, fidalgos e
bares não faltam, há mais gente fina do que sáveis
apanham as redes da gente numa safra inteira.
Presume. O Tóino é um presumido. Gastou o que ganharam a
vender melões e melancias em Vila Franca a pagar e a beber
copos, feito tuna pelas tabernas, encuanto a mulher se amolou
a trabalhar já com outra criança na
barriga. E que mal passou o tempo dessa gravidez!.
Nem ele anda feliz consigo naquele corropio entre o
que deseja com ansiedade e o que enjeita depois quase
enojado. Que raio dhomem sou eu que não sei o que
quero!, brama ele na intimidade contra si. Em certos
dias resolve dar-se ao trabalho para esmagar a peçonha
das contradições. E aí anda ele numa rodaviva, como
hoje, ardente e entusiasmado, um moiro, capaz de aguentar
sòzinho a corda do ressoeiro amarrada ao tronco, agatanhando a
areia com as mãos para arranjar apoio, num pingo de suor, de
cabeça descaída e olhos arregalados,
como se também eles fizessem força naquele alarde de
brio e pesporrência. A noite mostrará o ombro em chaga
e cairá sobre a tarimba, esgotado, contente de si, sonhando-se
mestre da companha pelo exemplo no ardor. Olinda ficará
acordada durante muito tempo, a mirá-lo
na escuridão; perdoa-lhe as bravatas e as fraquezas,
tem-no quase como a um filho que precisa dela, e afaga-lhe o
cabelo, mansamente, para que o Tóino não acorde e não se
faça vaidoso com os sinais do seu amor.
Sorri magoada quando se recorda da noite em que o
Tó Lobo a veio desafiar à barraca. Só ela sabe a razão
de o Tó se ter separado da companha deles, indo acamaradar
com o seu inimigo de largo, deixando aquele bocadão de água que desceu o Tejo em fúria de levar tudo à frente. Um dia
voltará arrependido, pensa Olinda Carramilo. A companha, de
resto, não sofreu com a saída da rede do Tó
Lobo, porque os outros dois irmãos Manetas trouxeram a sua e
qualquer deles vale num braço o corpo todo do outro.
Não é isso, porém, que esta noite lhe põe espertina
na alma. Escuta o vento. Escuta a chuva. Os sinais do céu
não são bons. A Lua entrou de maus rumores em cordas
de água; aí está na mesma, pegajosa e feia, sem parar,
de dia e de noite; não dá uma sota: Deus se amerceie de
quem precisa de ganhar o pão às baldas do tempo! Já
cobríu os cabeços de areia, já cobriu parte da praia onde
eles alam as redes e não parou ainda, não vai parar tão
cedo, admite Olinda naquele despertar doloroso em que
se enfrenesia. Sente o céu baixo. Pesado. Tem-no sobre
o coruto da barraca, a verter água para dentro, a empoçar
ao pé da porta e à beira da tarimba onde o Tóino ressona
e ela medita, acariciando-lhe a cabeça, a medo, não vá
o seu homem acordar, enquanto afaga com a outra mão
o bojo do ventre já cheio de sete meses. Gostava de um
rapaz, a Ana Remelga garante que é um rapaz, a cara
dela não a engana, mas agora não se preocupa com isso.
Rapaz ou rapariga é um filho seu. A hora não lhe parece
boa para meter mais uma boca dentro da barraca. Mas vem... O
vento mete-se pelas paredes de palha de carroicil,
zumbe, zune, zingareia e zomba.
Ela escuta-o e sabe que o vento vem embrulhado em
chuva. Conhece-o bem. O Tejo rumoreja perto da aldeia,
quase lhe bate à porta, e não há maneira de mudar a voz
na última semana. Faz medo. Os avieiros sabem porquê.
Olinda Carramilo melhor ainda. A sua barraca fica no
extremo sul da Toureira, o Tejo visitou-a uma vez, vai
para três anos, logo depois de o Tóino ter abalado para
a tropa. Os sinais não a enganam.
Ainda ontem um barco carregado de cortiça deixou
más notícias. Dizia-se em Santarém que nas Portas de
Ródão a água continua a subir, já vai num ror de metros,
por aquele andar a cheia não tarda; lá ficam os campos
de Almeirim e as ruas da Ribeira de Santarém inundados, passa
tudo a ser caminho de saveiro, até que um dia, Deus nos
acuda!, o Tejo cobrirá o nicho de Santa Iria, e a terra
acabará coberta de água, salvando-se os peixes e os pássaros,
e nem todos.
O Tejo rumoreja na noite. Confunde-se com o vento
e a chuva; e juntam-se num coro de ameaças que daí a
dias é um rol de desgraças. Os avieiros o dizem: o Tejo
ameaça e depois traz desgraça.
Traz ainda uns peixes bons, uns sáveis gordos que
o Ti Vicente leva no seu bote de vela alaranjada. As águas
barras das serras disfarçam as malhas das redes e os peixes
ficam tontos. Caem como tordos na subida do rio onde vêm para
desovar. Mas o maná chega ao fim, é o que diz
o Chico Guerra na reunião que resolveram fazer em cima
do valado real. Diz aquilo e cala-se, porque os olhos que
o olham não querem ouvir a verdade. Fica embaraçado
com tanta interrogação. Coça a barba de quinze dias, coça
a cabeça, coça o pescoço. Parece ter o corpo cheio de
sarna, pior que sarna, ó gente!, pior que sarna, saber um
homem que já está metido numa balsa de desgraça e nem
ter ânimo para fugir, sabendo que talvez perca a casa,
sabendo que depois vai regressar ainda mais pobre para
repor o que perde, porque se deixa o sítio outros virão
tomar-lhe o lugar e ali sempre há uma praia de areia
onde se podem alar redes e alguém que receba uma renda
que justifique o poder ficar parado algum tempo, sem
que o ponham fora.
Há quem os trate por ciganos do Tejo. As mulheres choram quando ouvem essa palavra ruim e eles têm de fazer de conta que não percebem. Se tiram desforço e se metem a bulhar, o Tubarão arranja multas e castigos. Ele
farta-se de dizer que no Tejo só consente gente de vergonha.
Como se o Tejo fosse dele, dana-se Olinda Carramilo quando Lhe
contam que o Espanta os ameaçou com o fiscal da pesca.
- Se o Tejo é dele, que o beba.
- Cala a boca - intervém o Tóino.
- Se o beber, há-de mijá-lo.
- Cala a boca.
- E se não o mijar, rebenta.
- Cala a boca, aí! Já te mandei calar três vezes.
- Se o Tejo lhe passasse dentro do corpo, ficava envenenado;
morria o peixe todo e a gente desimaginava-se.
Diz as últimas palavras já à distância, rabiosa; ferve-lhe o
sangue, inquieta-se com os sinais do céu, arrasta a Maria pela
mão, metendo-se dentro do barco, para onde
passaram a arca das roupas e a comida. A filha rabuja;
o diabo da rapariga é atravessada como o pai, pensa-o
e di-lo em voz baixa, enquanto o Tóino repete a mesma
frase quando as vê afastarem-se, a caminho do extremo da
praia, onde atracaram o saveiro, amarrando-o bem ao
tronco de uma das oliveiras do valado. Se vier uma golada
forte de água, aí vai tudo de escantilhão, Deus Senhor!
De repente ouve-se o chocalhar das manadas e os gritos
dos campinos na Lezíria. Correm o rapazio e algumas;
mulheres até ao combro donde podem avistá-los; agora
ninguém os incita com a voz ou ergue os braços. Ficam
taciturnos, porque nenhum ignora o que vai acontecer dentro de
horas. Os gados abalam para a Charneca; é certeza de que só
eles continuarão à mercê do Tejo e do tempo.
Vai o gado todo, a passo, a passo lento, devagar, a
farejar a terra encharcada. Uma égua relincha, em que
o pescoço se desdobra para as bandas da beira do rio, numa ansiedade quase desesperada, a que responde o
mugir dos bois da terra, pesados, trôpegos. Inquietos, dois
deles ensarilham os cornos e lutam por instantes, sem ganas,
depois correm lado a lado, ganham distância, voltam-se para a
manada, como a desafiarem os
outros. Os campinos gritam-lhe os seus óis neste fim de
tarde cinzenta. Volta a chover. Não acaba a chuva?.
A plangência dos chocalhos entristece Olinda Carramilo
dentro do saveiro. Apetece-lhe chorar; fazia-lhe bem chorar.
No outro extremo da praia sai a última rede.
Chega até ela a voz de Tó Lobo, parvo dhomem, voz cansada e
desafiadora, como se ela não soubesse as razões que o levaram
a trocar de companha. Chico Guerra vem na companhia do João
Marujo à procura do Tóino. Que vão fazer?! O Ti Vicente disse
que não voltaria amanhã. Tem receio. Foi ele que lembrou à
Maria Bogas e ao marido: "Quando as cheias começam, vêm seis
anos a fio. E a última, que é esta, há-de ser a pior. Já hoje
me vi parvo para cá chegar"
Que vão fazer agora?!
O Chico Guerra e o João Marujo perguntam-Lhe pelo
marido, Olinda responde-lhes que não sabe dele; a curiosidade
fá-la indagar o que querem.
- Parar não, parar é morrer - diz-lhes quando a põem ao corrente da conversa do almocreve.
- E a quem se vende?
- Tira-se às sortes e a quem calhar a vez vai a Vila
Franca. A descer o Tejo é depressa.
- O pior é voltar.
- Vem-se à sirga, aos poucos.
Os outros encolhem os ombros e abalam. Olinda fica a
resmungar contra eles; mais talvez contra a chuva que a
obriga a meter-se debaixo do toldo com o cão e a filha.
Faltam dois meses para parir. Pensa nisso e atormenta-se.
O chocalhar das manadas afasta-se. Triste. Porque não
há-de chorar?!
Enrola-se na manta, tapa a cabeça e faz a vontade às
lágrimas.
As nascentes do céu não secaram ainda também.
àquela hora entra nas ruas da Ribeira, sobe depressa,
quase a meio das portas, os barcos começam a safar gente
das casas. As pessoas saem pelas janelas.
Na praia da Toureira, a cheia cresce de madrugada
e começa a cobrir as tarimbas. Traz raiva consigo, a maldita,
arrasta o saveiro do Manel Escalamão que marcara o primeiro
lance da manhã.
O vento do nordeste assobia na vegetação do valado.
Arrepia ouvi-lo. Agoira dias piores.
Da aldeia nada mais se enxerga do que os telhados
de palha, pendidos para o sul ao jeito das águas bravias
e corredouras. Até as marés são atiradas para o mar
diante do impulso da cheia. Nada lhe resiste. Só os avieiros
porfiam. Eles precisam de ficar, porque não conhecem outro
sítio para viver. E se têm de regressar, querendo
defender até ao fim toda a riqueza que juntaram.
Assim que viram os gados abalar para a Charneca
atiraram-se naquela noite ao trabalho de reforçar os prumos
das barracas, já que a palha vai apodrecer e os bocados
de folha de zinco não se aguentam com a corrente
Sabem-no de mais. Até a Maria da Vala e a cachopada
do seu tamanho que amodorra à proa das embarcações, à
espreita do que se passa à sua volta, vivendo no terror
dos olhos a angústia dos dias.
Turvo, redemoinhando nas árvores dos malagueiros
e mouchões, o Tejo arrasta sementeiras, animais mortos,
madeira de pontões e de barcos, maldições e rezas.
Os avieiros tentam ainda defender as casas com os
barcos; juntam-nos, costados contra costados, do lado da
Vala de Benavente. Evitam que a cheia apanhe as barracas sem
defesa, amortecendo-lhe o ímpeto na paliçada de saveiros onde
vivem. Mal calafetados, alguns deles metem água. E aí estão os
avieiros a revezarem-se, de dia e de noite, despejando-a com
os vertedouros, tapando as frinchas maiores com o que conseguem arranjar por ali, nem que seja uma camisa, como fez o João Marujo, há bocado, ao barco pequeno com que costuma caçar aos patos. Improvisa-se tudo. Tudo é provisório. Alguns deles gostariam de abalar para sítio mais seguro; sentem que
ficarão presos na armadilha da cheia se a água continuar a
subir. Basta que a Lezíria fique submersa. E isso é o mais
certo.
O apontador do Torrão mandou dizer que arranja
lugar para algumas famílias, a emposta é desafogada,
não há ranchos agora por lá, e os quartéis do pessoal ficam
na lomba mais alta de todo o campo. Que tivessem em conta. O
valado daquela banda da Toureira não está muito seguro; se
vier uma enxurrada maior, o valado pode abrir uma boca e então
não se salvará ninguém.
Ficam. Querem ficar. Não devem fazer outra coisa
senão ficar.
Os mais velhos ainda lembram:
- É melhor levarem as mulheres e as crianças.
- E os homens?
- Eu não vou sem o meu.
Agarradas aos filhos, as mulheres fazem banzé. Aproveitam
para chorar à vontade, o que antes evitaram para que os
homens não perdessem a coragem. Mas agora estão
livres. O momento presta-se. E os homens atarantam-se.
Pedem-lhes ou ameaçam-nas, que ganham elas em teimar?, escusam
as crianças de estar em perigo, agora só servem de tropeço. E
comer para tanta gente? ! O rio não permite que se vá buscar
mantimentos; se a cheia entrar na Lezíria, corta-se o
caminho pelos valados, a fome maior chegará para todos.
Elas acenam a cabeça, abraçam os filhos, repetem
numa ladainha:
- Eu só abalo daqui com o meu homem.
- Não quero ficar viúva antes de o ser.
Resolvem mandar os mais velhos com as crianças,
mas a cachopada percebe que os separam das mães e é
a vez do seu alarido. Grazinam, esmoncam-se aos gritos.
Gritam mais quando lhes batem, enquanto os cães olham
para todos debaixo dos toldos. Acabam por abalar os casais
mais velhos. E aí vão eles de caixas às costas, enquanto as
mulheres levam os sacos com a comida, arrastadas, recomendando às que ficam que lhe cuidem da barraca se os prumos começarem a aluir. De manhã partem grupos para Benavente a comprar
comer. Pão, café e vinho. Pouco mais. Deixam endurecer
o pão nas arcas, não se pode rilhar muito, faz-se açorda,
fazem-se sopas de café.
Os homens recomendam:
- Dêem vinho às crianças; escusam de perceber esta
desgraça.
Olinda Carramilo apanhou umas enguias nos galrichos que pôs
nas copas das oliveiras e amanha uma sopa para a ceia. Tóino
da Vala dorme com a filha e o Malagueiro debaixo do toldo.
Olinda olha de vez em quando para o valado; a água continua a
crescer.
Daí a meia hora comem os três na mesma malga.
Acordaram alta noite com o ruído da golada de água
que rompeu o valado do Vau. A modos como um tremor
de terra, disse a Maria Bogas. Parecia que o Mar entrava
pela terra dentro, bem no fundo da terra, e levava a gente
para as profundas do Mar Alto.
Mal a luz da manhã aparece entre a morrinha de uma
chuva fria, vão espreitar acima do valado. A Lezíria é um lago donde emergem os corutos dos barracões e das poisadas, os postes telegráficos, as árvores. Na Lezíria há poucas árvores. A Lezíria, que é terra árabe, não gosta de árvores. .
Que se passará com os que foram para o Torrão?!.
Desce a bruma sobre as águas barrentas da cheia.
Uma bruma cinzenta que se iguala ao céu e às álmas.
E que cobre os montes do norte e apaga as margens do
Tejo, como se os avieiros tivessem entrado numa concha
de névoa e dor. Amarrados dentro dela, sem poderem encontrar
outra saída que não seja a das ciladas de um Tejo
desconhecido, onde se apagaram os caminhos aprendidos
desde a infância.
Dêem vinho às crianças.
E se a embriaguez lhes puxa para o desatino e o choro,
batem-lhes e obrigam-nas a dormir. Não há outro remédio. Ainda
ontem um dos filhos do Remelga, o Marcelino, desatou num
pranto por mor de o cão lhe ter morrido. Comoveram-se os pais
com o sentimento do rapaz, eles próprios esconderam da
criançalha algumas lágrimas
que não conseguiram evitar, mas daí a pouco a berraria
pegava-se aos quatro irmãos e logo de seguida a toda a
cachopada dos saveiros. Parecia o fim do mundo. Fazia medo,
senhores! Como se as crianças anunciassem desgraça ainda
maior, juntaram-se num coro de grita
e choro que metia medo. Já as mulheres carpiam, já
os homens se atarantavam, quando o Tinoca se largou
aos berros, calem-se!, calem-se!, e atirou a primeira
estalada a um dos netos do Chico Guerra, e a outro,
a outro mais, como se estivesse doudo; espumava, dava
saltos, de saveiro em saveiro, a distribuir tabefes e ameaças,
até que o alarido amainou e os outros perceberam a raiva
fingida do Tinoca. O Chico Guerra falou com ele
e entenderam-se: não deixem a cachopada chorar, embebedem-nos
com sopas de vinho.
Agora, na névoa, até os homens e as mulheres precisavam de
se embebedar. Mal se vêem uns aos outros. De barco para barco
há silhuetas de bruma que se adivinham, que só se conhecem
quando falam. Não são bons os pressentimentos. Calam-nos.
Que se terá passado com os que foram para o Torrão?!. .
Talvez já estejam a salvo. Ou serão deles os gritos
distantes que chegam até ao valado? Esta cheia é a sexta,
é a última, a tal que deixará história por largos anos. Muitos
avieiros pensam nisso durante o sono aparente que fazem
debaixo do toldo. Alguns ficam alerta, amodorrados. Poucos.
Movem a cabeça com lentidão, param o olhar, não
se percebe aonde, e parece que as mãos não lhe servem, porque
as têm muito quietas ou as agitam num frenesi estranho,
sacudindo-as, como se tencionassem deitá-las fora, separá-las
de si, para impedir que lhes pesem. Ou que lhes mordam.
Ouve-se de vez em quando o ruído de uma derrocada
na aldeia quase submersa. Os corpos estremecem. Alguns
erguem a cabeça da manta, espreitam pela borda do saveiro,
suspiram com esforço, voltam a deitar-se, cobrindo a cabeça
para que não Lhes vejam os olhos. Agora todos
eles gostariam de ter os olhos tapados.
- Enquanto vejo é sinal de que estou vivo - diz o
Zé Bogas para a mulher que tem ao colo a rapariga de
meses.
- Eu tenho medo.
- Não digas que tens medo. Os miúdos podem ouvir.
Ela acena a cabeça desgrenhada. Andava sempre num
apuro, a Maria Bogas. Fazia duas tranças dos seus cabelos
loiros e enrolava-as num grande carrapito que parecia uma
touca. Com aquela água toda à volta, ninguém se
lava, ao menos. Para quê?! Fedem. Cheiram a suor, a porcaria e
a medo. A bodum.
- Os miúdos não sabem o que é ter medo.
- Eu cá acho que sim.
- E tu?.
- Não gosto de falar disso. Mas na idade dele
tinha.
Olinda Carramilo passa para o barco do Zé Bogas
com a ajuda do Tóino. Traz uma barriga capaz de esconder um
par de gémeos. Uma barriga quase em bico, muito empinada, que
a torna mais magra. Está um camelo
velho, como ela própria diz num sorriso amargo. O Malagueiro
quer segui-la, mas limita-se a chegar à borda do saveiro,
porque do outro lhe rosna o Farol, o cão mais
danado e traiçoeiro que mora na Toureira. Rosna de pé,
de orelhas curtas e erectas. O MaLagueiro baixa o olhar
e recua, metendo-se debaixo do toldo ao pé da Maria,
que lhe atira um pontapé. Envergonha-se dele. Já perguntou ao
pai para que querem afinal um cão daqueles. É neste momento
que ouvem o trabalhar de um gasolina ainda ao longe. Deve vir
pela margem do norte, à cautela, talvez para socorrer os
saveiros atracados às margens, talvez para levar comida ao pessoal da Casa Branca, ou, quem sabe, talvez para trazer pessoas que vêm ver a cheia mais ao pé, gente dos jornais; sugere a Olinda Carramilo.
- Ou talvez venham à nossa procura - admite
depois.
- Com a gente ninguém simporta -diz a voz duma
velha. - A gente anda fora das graças e dos caminhos
do mundo.
Agora levantaram-se todos os que se tinham estendido
debaixo dos toldos, a ouvir o matraqueio compassado do
motor que avança. Que avança e se aproxima, e depois
se afasta, e regressa, e se esvai. Não se ouve uma voz.
Há alguém que tosse, mas percebe-se que tenta abafar
o barulho para não perturbar o som da esperança do gasolina. A bruma parece abrir-se um pouco. Parece. Está
igual, cerrada. O som é que a corta e arreda na imaginação dos
que esperam.
- Não vem. Não vem, não, não vem - enraivece
a voz do João Marujo.
Então alguns começam a gritar palavras a esmo num
desespero. E já gritam todos; blasfemam, imploram, assobiam.
Fazem concha com as mãos e rugem.
O batelão ia para Montalvo salvar cabeças de gado
que não saíra a tempo para a Charneca. Entre cavalos,
éguas apoldradas e toiros da terra havia lá uma fortuna
para salvar. A tripulação ouviu a algazarra dos avieiros,
aproximou-se, deixou uns pães e algumas notícias. Notícias
ruins. Não se sabia a sorte de um rancho de valadores que
andava no Parcel a reforçar valados e a limpar valas:
treze homens e seis rapazes, fora o capataz; o abegão da
Gigantinha chegara ao cais de Vila Franca dentro duma
bateira de varinos e parecia morto; tinham-no encontrado
dentro da poisada, agarrado ao cão, em cima duns fardos de
palha; um eguariço do Agostinho Serra, quando vira o golão da
cheia entrar dos lados do Sorraia, montara na égua, metera-a à
maluca, à falhica, em busca de sítio para se salvar, mas a
água levava tudo à frente.
agarrou-os, só os apanharam ao pé do Mar de Cães. Uma
desgraça!
- E no Torrão?. .
Os homens do batelão não sabiam. Ouviram muita
coisa, mas não sabiam dizer nada acerca do pessoal do
Torrão. Despediram-se, ofereceram reboque a quatro saveiros
até Benavente. Um que devia ser o mestre, viu Olinda Carramilo
com barriga de dois gémeos e disse-Lhe
que o primeiro lugar era para ela.
- Obrigada, não senhor, não vou. Há aí gente que
precisa mais.
Respondeu aquilo sem ânimo, mas percebeu logo na
cara do Tóino que devia ficar. Já tinham combinado com
o João Marujo começar o trabalho na noite seguinte.
- Vai, anda - disse-Lhe ainda o marido sem convicção.
- Não, fico contigo. Quero ficar contigo.
Voltou o batelão a desaparecer na bruma; voltou o
silêncio da despedida. Ficaram nove saveiros.
A LEZÍRIA É UM LAGo
As mulheres ajudam a passar os saveiros por cima do
valado, metem-nos na Lezíria à procura do que
calha. São três saveiros para aquela aventura de rapina.
Escolheram os mais leves de carregar, reforçaram-nos
à proa com tábuas grossas, saem agora todas as noites
seis homens. Nos barcos que ficam amarrados às oliveiras do
valado dormem as mulheres, a rapaziada e os três homens
livres. Habituaram-se com o tempo àquela vida. Já não
estranham que na manhã seguinte dêem pelo desaparecimento de mais um telhado ou dois do que antes foi a sua aldeia. O Tejo levou o que quis, à sorte. De quase trinta barracos, vêem-se talvez 10. Do resto não se sabe o que está submerso ou o que a corrente da cheia arrasta por aí abaixo. Como não escolheram morrer de inacção, saem agora à noite três saveiros para apanhar o que encontram na Lezíria. Vão seis homens lá dentro. Tudo dá conta. Acabam por trazer coisas inúteis só pela necessidade de possuírem muitas coisas. Justificam o risco. A Lezíria é um lago.
Acaçapado sobre o bico da proa para não fazer sombra, Tóino
da Vala alça a candeia que leva acesa, atirando sobre as águas uma luz mais amarela e baça do que o barrio da cheia. Ergue o braço, apura o olhar nas trevas, orientando- o remeiro, o João Marujo, que mal enxerga duas braçadas à sua volta. Entendem-se por gestos e grunhidos. Quase só chiam como as ratazanas que ainda encontram dentro das motas do gado e dos quartéis para
o pessoal dos ranchos, e lhes oferecem luta quando eles
aparecem. O Chico Guerra viu-se doudo com a dentada de
uma que lhe surgiu no telhado do barracão do Agostinho
Serra. Devia estar raivosa, porque, embora tivesse puxado
o sangue todo que ela lhe fez com os dentes, a ferida
infectou. Pôs-lhe o braço num trambolho.
João Marujo rema devagar, em remadas curtas, não
só porque o Tóino lhe passou sinal, mas também pelo
ruído da água que se ouve rumorejar cada vez mais perto.
Há por ali aposentos onde a cheia embate, marulha e farfalha.
Tem a certeza. Conhece agora muitos ruídos da Lezíria à noite,
desde o tanger da corrente nos troncos
de uma árvore isolada aos lamentos que arranca aos canaviais e
à vegetação das abertas, ao toque leve nas vedações das
empostas, àquele som entre irado e alegre que percute
nas paredes dos barracões de madeira ou das motas de
palha.
- Tóino! - diz ao companheiro num aviso, não vá
ele distraído com aquele feitio ausente que lhe conhece.
Uma noite, quando foram à Toureira, estiveram a um
triz de naufragar.
- Tóino !
- Sim!
- Vês alguma coisa?
- Oiço!
- Estamos perto da Figueirinha.
- Tens olhos de gato.
- De gato?
- Ou de gata. Vês melhor de noite.
- Palpita-me.
Calam-se por momentos. Tóino da Vala ergue a candeia à
altura da cabeça, fá-la balouçar e confirma que chegaram a uma
emposta. Agora é uma questão de sorte.
Se ainda ali não veio ninguém depois que a cheia rompeu o
valado do Vau, encontrarão muita coisa para levar. Até de
comer. Dava jeito.
- Apetecia-me um bocado de carne.
- Há quanto tempo não comes carne?
- Carne?!. .
- Sim.
- Há para aí dois anos. Desde o casamento da Rosa
do Fateixa. E tu?!.
- Não me lembro. Só sei que agora não me ralava
de comer um bocado.
Amarram o saveiro a um moirão, experimentam com
o remo, não é muita a água, e o Tóino deixa-se cair duma
vez para não sentir tanto o frio. A água dá-lhe pelos peitos e
o João entrega-lhe a candeia. O Tóino, por sua vez, tira um
frasco de aguardente da algibeira da samarra,
bebe duas goladas largas, passa-o para o companheiro,
que se regala a beber o resto por malandrice. Acha graça
ao que faz, mas o Tóino embezoira, jura que nunca mais
lhe passa bebida para as unhas.
- Seja cego, João. Nem que te veja a morrer.
- De noite um homem não vê o que bebe.
- Bebe trampa. Se fosse trampa, não lhe pegavas.
Chegam à porta do aposento do patrão, encontram-na
fechada, metem-Lhe os ombros ao mesmo tempo, vai,
aoó!, a fechadura cede. O João Marujo baldeia, enfiando
de cabeça para dentro de água. Ataranta-se. Quando volta
a cima, vem de olhos arregalados pelo susto. É a vez de
o Tóino da Vala achar graça e esbandalhar-se a rir.
- A água está fria.
- Está boa para cozer um galo.
- Uma gaita!
Interrompem a conversa quando reparam no armário de portas
abertas e vêem alguns cartuchos cheios, ainda não sabem de
quê, há-de ser comer, por força, pensa
o João, mais animado à vista da promessa. Cada um deles traz
um saco a tiracolo e enchem-no do que apanham; quase se
empurram, cai um prato com arroz, gaita!, a
candeia desequilibra-se, trambolha e apaga-se, Tóino da
Vala procura-a com a mão, logo de seguida, mas não a
encontra. João Marujo mia. Tira uma caixa de fósforos
do barrete, ri e mia, tenta acender um dos fósforos, mas
o vento apaga-o.
- Acende lá isso, depressa! - pede o Tóino, inquieto. Na
escuridão parece-lhe descobrir um vulto; até julga ouvir um
riso abafado de quem os conhece e se prepara para fazer
partida. Só pode ser o Zé Bogas ou o Maneta, admite.
João Marujo insiste na brincadeira da miadela e dos fósforos,
é mesmo um gato em Janeiro; já percebeu pelo silêncio do
camarada que o Tóino da Vala continua irritado, tem cagufa,
tem miúfa, não é caso para menos, porque desabou lá fora uma
pancada de chuva e o telhado da casa estremece, sente-o, ambos
o sentem, embora o João ria e mie: é mesmo um palhaceiro.
Tóino da Vala tem agora a certeza do que pensou;
quer arranjar uma frase para desafiar o vulto, tirar-lhe
a iniciativa do gozo, vai dar paródia para o resto da vida,
mas receia o ridículo se não estiver mais ninguém ali
dentro. E então diz para o João Marujo:
- Está ali um gajo àquele canto.
- Onde, Tóino, onde?!
Na voz sobressaltada do Marujo, Tóino da Vala prevê
medo também, o medo pega-se, mas serve-lhe naquele momento
para abrandar o seu, tanto mais que tem a certeza de que só
pode estar ali o Zé Bogas. E o Maneta, onde se
meteu? Sim, onde se meteu aquela pulga saltarina que
parece um cachopo e é valente como as armas? Põe-se às cotoveladas ao João Marujo e ri, finge rir, o outro pergunta
outra vez:
- Onde, Tóino? Onde? !.
Acende um fósforo, por fim, abriga-o na concha das
mãos, ergue-o para levantar a chama e grita. Dá um grito
e abala. Atira a saca fora e grita. Na fuga, Tóino da Vala
passa-lhe à frente.
Ao canto da casa do lavrador há um homem enforcado.
O FESTIM DOS MILHAFRES
A água vai baixando. Deixou de chover há uns dias.
Na Lezíria já não há emposta mais chegada onde
não tenham ido. à medida que a cheia desce, a desolação
aumenta. Os troncos das árvores, a vegetação das abertas,
us barracões, os paus de vedação, tudo o que as águas
tocaram, envolve-se numa cinta de barro viscoso, quase
castanho, como se mãos humanas as tivessem marcado de
maldição. Aluíram palheiros e arribanas. Vêem-se a boiar
coelhos e galinhas das capoeiras arrombadas; e dezenas
de lebres que não puderam escapar à morte da corrida
com a cheia; e pássaros.
Anda no ar um cheiro acre. uma ameaça de mais
fome. Os milhafres planam sobre um festim de miséria.
Mergulham lá do alto, agarram as presas e ahalam. Perdem-se no
horizonte pardo. Na aldeia continuam à espera. Vive-se do
que se espera. Que a praia descubra um pouco, o suficiente
para caminharem nela passos humanos; que acorrente abrande um
pouco, o suf iciente para poderem lançar as redes
varinas. Esperam. Das barracas da ponta sul não há vestígio, a
não ser nos olhos dos donos. Das outras vêem-se telhados
aluídos, paredes derrubadas, interrogações.
Olinda e Tóino estão a vogar com o saveiro no sítio
da sua barraquinha. Ela rema, cia, espreita as águas, enquanto
ele procura perceber com a vara se ficou alguma coisa de pé. A
expressão do Tóino diz que não. Talvez
lá estejam ainda os prumos mestres. Mas o Tóino parece
preferir que tudo se perca. Anda taciturno. De repente,
enraivece, blasfema, injuria. Lembra-se do homem enforcado;
pensa que faria melhor se fizesse o mesmo. Seria o outro tão
desgraçado quanto ele? Ainda não falou nisso
à mulher, mas ela pressente que aquela tristeza derramada não
diz boa coisa.
- Quanto tempo falta?! - pergunta-lhe de súbito.
- O quê?.
- para teres criança.
- Porquê?
- Porque sim. Ora! Porque sim. Quero saber.
Olinda busca-lhe no olhar os motivos da pergunta.
Sorri, faz uma expressão de quem lhe dói o sorriso.
- Duas semanas, talvez mais.
Pensa ele no que virá, coça o cabelo onde lhe apareceu uma
malha branca, move a cabeça à sua volta.
- Ouviste? - pergunta-lhe Olinda.
-O quê?!.
- Se ouviste.
- Ouvi. Estava a pensar (o homem era magro) se
serão duas crianças (e estava descalço, disse o João).
- Não, duas, não; não pode ser, não.
- Não porquê?!. (Que teria levado o homem a
matar-se?) Percebe-se? !...
Olinda pára de remar, ergue-se do banco e tenta ela
própria responder ao que a preocupa, rebuscando nas
águas algum vestígio da sua casa. Teima o Tóino de que
a barraca ficava mais perto do valado, aponta o sítio, já
começa a irritar-se com o raio da mulher, é sempre ela
que tem razão, o diabo a coma! Faz menção de lhe dar uma estalada, arrepende-se depois, mas retira a vara do
rio, atirando-a para o fundo do saveiro.
- Daqui por uns dias a gente tira as teimas, pronto!
- Há-de ser sempre como tu queres; tu é que sabes, tu é que
tens razão!
- Assim arrenegado ficas mais velho, Tóino!
- Devia ficar velho depressa e morrer depressa. Que
anda a gente aqui a fazer? Não me dizes?!.
- à espera de melhores dias.
Uma semana depois lançam a primeira rede à água.
Uma semana depois sabem todos que desapareceram onze
barracas e que a palha das outras começa a apodrecer.
OLHA, TÓINO!
Só agora, que o carroicil das abertas começou a secar
e a dar palha boa para as paredes e os telhados, podem
arranjar as barracas os que se gabam de ter sorte. Passaram
seis meses. Os donos das onze palhoças que a
cheia levou voltaram à vagabundagem no Tejo. Andam
por ali ao sabor das marés e do peixe. Alguns, como o
João Marujo, pensam arranjar trabalho em terra. Em
terra ajeitam-se mal, não os querem. Mas o João Marujo
jura que não vai ficar o resto da vida dentro do rio. Está
f arto.
- Sim, estou farto - diz para Tóino da Vala dentro
do seu saveiro.
- O homem da Figueirinha é que fez bem.
- Cala-te aí com isso; não sabes falar agora noutra
coisa.
- Que anda a gente aqui a fazer?
- Se a gente arranjasse um barco grande, podíamos
vender areia do Tejo para as obras de Lisboa.
- Conheces alguém dessa gente?
- Não!. Mas vou ver se meto conversa em Vila
Franca ou na Póvoa. Não me sai isto da ideia.
João Marujo salta para o seu barco, mete a vara à
margem e abala. Vai à revessa do Valado até onde a
maré o levar.
Tendo-ao colo o filho que nasceu há seis meses, Tóino
da Vala limita-se a um movimento de cabeça para saudar o
amigo. Tem amigos?! à sua frente, imitando-o, a Maria embala a
boneca que a mãe lhe arranjou de um
avental velho, única maneira de conseguir convencê-la a
não trazer o irmão de charola. Resolveu ela pôr-lhe o
nome. Sim, João como o outro. Mas o pai ainda não fez
ao registo; quer lá saber de multas! Qualquer dia trata
disso; não é pressa. Essa gente das leis tem a mania de
se meter em tudo, só pensa em papéis; são papéis para
cada coisa que uma pessoa faz. E o resto?! Cada um que
se amanhe, pois!
Maria da Vala vê o pai de testa franzida e vincos fundos aos
cantos da boca, sem lhe prestar atenção, embora ela cante para
adormecer a sua boneca. Espreita para
terra, a mãe ainda não voltou. Disse que ia apanhar rama
de papoilas para coser com o peixe, já tinha tempo de
ir não sei aonde. Então deita a matrafona em cima da
esteira, tapa-lhe a cara com o seu lenço da cabeça, chega-se
para o pai, afagando os pés do irmão, que dormita. Não bole
uma folha nas oliveiras. Vem um bafo
quente da vegetação do valado.
- Quando o João for homem.
- O que é que acontece?
- Vou com ele a Lisboa.
- Fazer o quê?!
- Ver. Toda a gente fala de Lisboa. Como é Lisboa? !.
- Uma terra grande.
Só lá foi uma vez, pensa Tóino da Vala; mas não o
diz à filha para não se sentir diminuído a seus olhos.
- A mãe contou-me que tem lá um jardim com todos
os bichos que há. Deve ser bonito.
Fica à espera que o pai pegue na conversa; depois
percebe que ele continuará sem vontade de falar, embora ainda
não repare naquela maneira de cuspir as palavras, com desdém
pelas palavras e pela boca que as diz, como se lhe amargassem.
Ele lembra-se das noites de rapina, do homem pendurado, da zanga que teve com Tó Lobo por dez-réis de nada, da divisão do dinheiro no fim desta safra em que todos concordaram que assim não valia a pena, que assim não era para ninguém. Mas também
sabe que em Outubro voltará a juntar-se aos camaradas - no
Espanta ainda se ganha menos. . Agora é o fim de Junho, um
mês ranhoso, doentio, ora calor, ora chuva. A mulher quisera voltar para a ceifa do trigo, não a deixou, não, desculpou-se que a acha muito fraca. A verdade, diga-se, é que não a deseja longe dele na galdeirice dos ranchos. A voz dela chama-o:
- Tóino! Ó Tóino!.
Volta a cabeça, devagar, como se precisasse de fazer
força, enquanto a Maria se debruça na proa do saveiro
à espera da mãe. Olinda desce pelo carreiro quase tapado
por cárdos e tabugas, fala-lhe, acena qualquer coisa: que
traz ela para lhe gritar assim? Parece que anda cego de
amores, o parvo do homem! O Zé já prometeu ajudá-la
a levantar a barraquinha no fim de Agosto; até lá há-de
arranjar mais madeira e folha, palha seca, o que puder.
Vale a pena falar nisso ao Tóino?!. Há homens que só
servem para fazer filhos quando perdem a gana na vida.
É. Pois é. Mas na vida há nós que nunca mais se desatam.
Dá uma corrida até ao barco e grita de novo:
- Olha, Tóino! Para a casa da gente, Tóino!
Alves Redol
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