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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AYLA, A FILHA DAS CAVERNAS - P.2 / J. M. Auel
AYLA, A FILHA DAS CAVERNAS - P.2 / J. M. Auel

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A caçada do mamute planejada para o princípio do outono, quando os colossais animais de pele lanosa emigravam para o sul, mantinha o clã inteiro excitado. Todo mundo que fosse forte e robusto seria incluído na expedição ao norte, no extremo da península, próximo ao ponto em que esta se ligava ao continente. Durante o tempo em que estivessem fora, estariam excluídas todas as actividades correlacionadas com caças que não fossem o trabalho de esquartejar o animal e lhe preparar a carne e a gordura para serem trazidas à caverna. Não havia a menor segurança de que, chegando ao local, fossem encontrar mamutes e, no caso de achar, de que eles fossem ser bem-sucedidos. Apenas o fato de que, se tivessem sucesso, contariam com um gigantesco animal que lhes daria uma quantidade de carne suficiente para sustentá-los por meses e uma bela provisão de gordura, tão essencial à existência, fazia com que considerassem vantajosa a idéia.

 

 

 

 

No princípio do verão, os caçadores conseguiram uma provisão de caças muito maior do que a usual, de modo que havia carne suficiente para alimentar o clã por todo o inverno, isto é, se fossem parcimoniosos. não poderiam dar-se o luxo de uma caçada de mamute, se não estivessem bem abastecidos para a próxima estação de frio. No entanto, a reunião de clãs se realizaria dentro de dois anos e, naquele verão, praticamente não se caçava. Estariam viajando durante toda a estação. Primeiro, para a caverna do clã hospedeiro, onde se daria o importante acontecimento, lá permanecendo por algum tempo, participando do grande festival e, depois, a viagem de volta. A longa história desses encontros lembrou Brun de que ele devia botar por antecipação o clã armazenando os alimentos e fazendo os suprimentos que os manteriam no inverno seguinte à reunião. Foi essa a razão que o levou a decidir favoravelmente sobre a caçada do mamute. Um bom estoque para o próximo inverno, somado a uma bem-sucedida caçada os poriam na dianteira. Carne- seca, legumes, frutas e cereais, quando estocados de forma correta, poderiam facilmente aguentar dois anos.

O clima de excitação não era apenas pela caçada, havia também pairando no ar o sentimento latente, quase palpável, do medo ao sobrenatural. O sucesso da caçada dependia muito do fator sorte, e sinais de bom ou mau agouro eram vistos nas ocorrências mais banais. Todos se mostravam extremamente cuidadosos em seus atos e, sobretudo, sérios em relação a tudo que dizia respeito, ainda que muito remotamente, aos espíritos. Ninguém queria ser responsável pelo azar provocado por algum espírito zangado. As mulheres chegavam ainda a ser mais cuidadosas do que os homens. Se uma comida queimasse, isso era certamente sinal de mau agouro.

Cada fase do planejamento era acompanhada por cerimônias religiosas, com os homens em ardorosas súplicas para conquistar as boas graças das forças invisíveis que os rodeavam, e o Mog-ur andava ocupadíssimo, decifrando a sorte e fazendo poderosos feitiços. Tudo que saísse bem era tomado como bom sinal, e qualquer obstáculo com que se deparassem era motivo para preocupação. O clã inteiro estava com os nervos à flor da pele, e Brun, desde a sua decisão, podia-se dizer que nunca mais tivera uma boa noite de sono, chegando algumas vezes quase a desejar jamais ter pensado nessa caçada.

Brun convocou uma reunião dos homens para discutir quem iria e quem ficaria. A proteção da caverna era outra importante questão a resolver.

- Estive pensando na idéia de deixar aqui um dos caçadores - começou o chefe a dizer. - Ficaremos fora pelo menos durante todo um ciclo da lua, talvez até dois. Isso é muito tempo para deixar a caverna desprotegida.

Os caçadores evitavam olhar para ele. Ninguém queria ser excluído da caçada. Todos tinham receio de dar de encontro com o olhar do chefe e, com isso, ser a pessoa escolhida para ficar.

- Brun, você vai precisar de todos os seus caçadores - gesticulou Zoug. Minhas pernas podem já não ser bastante rápidas para caçar um mamute, mas meus braços ainda têm força para empunhar uma lança. A funda não é a única arma que posso usar. A visão de Dorv está falhando, mas seus músculos não estão fracos e ele ainda não está cego. Só para proteger a caverna, a maça e a lança dele ainda servem. Enquanto nossa fogueira estiver ardendo, nenhum animal vai chegar muito perto. Você não precisa preocupar-se com a caverna. Nós podemos guardá-la perfeitamente. Você já tem muito em que pensar só com a caçada do mamute. A decisão é claro, não pode ser minha, mas acho que você deveria levar todos os caçadores.

- Concordo, Brun - acrescentou Dorv, inclinando-se para a frente e apertando um pouco os olhos. - Zoug e eu podemos proteger a caverna, enquanto vocês estiverem fora.

Brun olhou primeiro para Zoug e depois para Dorv e, em seguida, para Zoug novamente. Ele não queria deixar nenhum dos caçadores. não gostaria que nada pusesse em risco o sucesso da caçada.

- Você tem razão Zoug - gesticulou Brun, por fim. - O fato de você e Dorv não poderem caçar mamutes não significa que não tenham força bastante para proteger a caverna. O clã tem sorte de que os dois sejam ainda homens muito capazes e eu também tenho sorte, Zoug, que o segundo em comando do chefe que me antecedeu ainda esteja conosco para que eu aproveite de seus bons conselhos. - Não fazia mal que de vez em quando o velho sentisse que ainda era útil e apreciado.

A tensão foi relaxada. Ninguém seria deixado de fora. Sentiam pena de Zoug e Dorv que não poderiam compartilhar com eles da grande honra, mas, ao mesmo tempo, agradecidos aos dois velhos por ficarem guardando a caverna. Estava subentendido que o Mog-ur também não iria na excursão. Ele não era caçador, mas Brun certa vez já vira o velho aleijado brandindo com força seu pesado bordão para defender-se e, mentalmente, acrescentou o feiticeiro na lista dos guardiães da caverna. Sem dúvida, os três podiam fazer tão bem o serviço quanto um único caçador.

- Bem, agora sobre as mulheres. - Quais levaremos conosco? - perguntou Brun. - Ebra irá - acrescentou logo em seguida.

- Ika também - falou Grod. - Ela é forte, tem prática e não há crianças pequenas para cuidar.

- É, Ika é uma boa escolha - aprovou Brun. - E quanto a Obra - perguntou, olhando para Goov.

O acólito concordou com a cabeça.

- Que tal Oga? - indagou, por sua vez, Broud. - Brac já anda e, daqui a pouco tempo, estará desmamado. Ele não vai tomar muito o tempo dela.

Brun pensou por um momento.

- Não vejo por que não. As outras mulheres podem olhar o garoto, e Oga é boa de serviço. Nós podemos usá-la.

Broud mostrava-se feliz. Ele gostava de saber que o chefe tinha sua com panheira em boa conta. Isso era um elogio à educação que ele dava à mulher.

- Algumas mulheres têm de ficar para cuidar das crianças - gesticulou Brun. - Que tal Aga e Ika? Groob e Igra ainda são muito pequenos para fazer uma viagem tão longe.

- Aba e Iza podem ficar cuidando deles - opinou Crug. - Igra não dá muito trabalho para Uka.

A maioria dos homens queria ter as companheiras por perto, nas caçadas que se prolongavam por muito tempo; assim, não precisavam depender da companheira dos outros para serví-los.

- Sobre Ika, eu não sei dizer - comentou Droog. - Mas quanto a Aga, acho que ela gostaria de ficar desta vez. Ela tem três crianças e mesmo que leve Groob, eu sei que Ona vai sentir sua falta. Mas Vorn gostaria de vir conosco.

- Acho que Ága e Ika devem ficar - resolveu Brun. - E Vom também. Ele não vai ter nada para fazer. Ainda não tem idade para caçar e, por outro lado, não vai querer ajudar as mulheres, principalmente sem a mãe por perto para ralhar com ele. Ainda haverá outras caçadas de mamute para Vorn.

O Mog-ur, que até então se tinha conservado calado, achou que chegara sua vez de falar.

- Iza está muito fraca para ir. Além disso, precisa ficar para cuidar de Uba, mas não há razão para Ayla não ir.

- Ela nem mulher ainda é - interpôs Broud. - E depois os espíritos podem não gostar de uma estranha nos acompanhando.

- Ela é forte e maior do que qualquer mulher - contrapôs Droog. - E também é boa para trabalhar, jeitosa com as mãos e os espíritos estão do lado dela. E a caverna? E Ona?

Acho que ela traz sorte para nós.

- Droog tem razão Ayla é rápida no serviço e tem tanta força quanto qualquer mulher. Ela não tem criança para se preocupar e já possui uma certa prática como curandeira. Isso pode nos ser útil. Se bem que, se Iza estivesse mais forte, eu iria preferi-la. Mas Ayla vem conosco - gesticulou Brun, dando a questão por encerrada.

Quando soube que também iria, Ayla ficou tão excitada que não conseguia parar quieta. Enchia Iza de perguntas sobre o que deveria ou não levar, e nos últimos dias antes de marcarem a data da partida, por diversas vezes fez e refez sua cesta.

- Você não precisa levar muita coisa, Ayla. Se a caçada sair bem, você vai ter muito mais peso para carregar na volta. Mas tenho aqui uma coisa para você que eu acho que vai gostar de levar. Acabei de fazer.

Lágrimas de alegria subiram aos olhos de Ayla, quando viu Iza estendendo a mão para lhe entregar uma sacola. Era feita com a pele inteira de uma lontra curtida com os seus pélos e na qual haviam sido deixados intatos os pés, o rabo e a cabeça. Iza tinha pedido a Zoug para arranjar-lhe uma e ela a havia mantido escondida na fogueira de Droog, inclusive na ignorância de Aga e Aba.

- Iza, uma sacola de medicamentos só para mim! - exclamou Ayla, abraçando-a.

Imediatamente, sentou-se para arrumar em fila todos os pequenos saquinhos e embrulhos, tal como vira Iza fazer muitas vezes. Ela abria cada um, cheirava seu conteúdo e voltava a amarrá-lo com o mesmo tipo de nó que tinha antes.

Era difícil diferenciar as muitas qualidades de ervas e raízes secas só pelo cheiro, por isso aquelas particularmente perigosas vinham, em geral, misturadas com uma erva inócua, mas de cheiro bem forte, a fim de evitar acidentes por distração. O verdadeiro sistema de classificação se fazia através do tipo de cordão ou tira de couro que amarrava os pequenos sacos, e por uma intrincada combinação de nós. Certas classes de medicamentos eram amarradas com cordas feitas de crina de cavalo, outras com as de bisão, ou então cordões tecidos com pêlos de diferentes cores e texturas. Havia também os que eram amarrados com nervos, cordas vegetais e tiras de couro. Fazia parte da memorização dos usos de uma determinada planta saber reconhecer o tipo de cordão e o sistema de nós empregado na amarração do saco ou embrulho que a guardava.

Ayla meteu os saquinhos na sacola grande e a amarrou na sua cintura, pondo-se a admirá-la. Depois, tirou-a e a botou ao lado de sua cesta de colher, junto com as sacas que seriam usadas para trazer a carne do mamute. Estava tudo pronto. O único problema preocupando era o que fazer com a funda. Ela não tinha por que levá-la e, por outro lado, deixando-a, estaria correndo o risco de Iza ou Creb encontrá-la. Pensou em esconder na floresta, mas, ficando exposta ao tempo, poderia estragar-se ou ser apanhada por algum animal. Por fim, resolveu levá-la, bem escondida numa dobra da roupa.

Na data da partida, o clã se levantou com o dia ainda escuro e se pôs em marcha quando o céu começava a clarear, mostrando as cores das folhas nas árvores. Mas já passando o morro a leste da caverna, os clarôes do sol nascendo tingiam de vermelho o horizonte, pondo um forte brilho dourado no feno crescido da extensa planície embaixo, O grupo alcançou as estepes ainda com o sol baixo no céu. Brun ia a passos largos, quase tão rapidamente como quando saía só com homens. As cargas das mulheres estavam leves, mas ainda desacostumadas com os rigores da jornada, elas tinham de apressar seus passos para poder acompanhar o ritmo da marcha.

Caminhavam do nascer ao pôr-do-sol, cobrindo uma distância muito maior do que aquela que faziam quando todo o clã estava à procura da caverna. não cozinhavam, afora ferver água para chá e, com isso, não se exigia muito das mulheres. Nenhum animal foi abatido durante o caminho. Ingeriam uma comida preparada para a viagem, a mesma que os homens costumavam levar em suas caçadas: um pequeno bolo feito de carne-seca (moída como uma farinha grossa) misturada com gordura derretida e frutas secas. Era uma comida altamente concentrada, mais do que suficiente para suprir suas necessidades alimentícias.

Fazia frio nos campos abertos e desprotegidos dos ventos, e mais frio foi ficando, à medida que caminhavam rumo ao norte. Contudo, pouco de pois de terem saído pela manhã, começavam a tirar algumas camadas de suas vestimentas. A marcha logo os esquentava, e só quando paravam, para pequenos descansos, sentiam a temperatura fria. Os músculos doloridos dos primeiros dias, sobretudo os das mulheres, deixaram de incomodar após elas acertarem o passo e educarem as pernas, segundo o ritmo da viagem.

O terreno da parte norte da península era bastante acidentado. Vastos platôs subitamente desapareciam em íngremes despenhadeiros ou iam limitar-se com penhascos quase perpendiculares, formados pelos retumbantes cataclismos na violenta terra dos primeiros tempos, sacudindo sua amarração calcária. Estreitas gargantas eram paredôes rochosos de superfícies dentadas: alguns, morrendo no ponto de convergência dos penhascos e outros, dando em áreas cheias de pedregulhos saídos dos pontudos blocos de pedra no chão, que se haviam partido das muralhas nos arredores. De vez em quando, surgia um curso dágua, variando desde os riachos pequeninos e sazonais até os rios de águas caudalosas. Somente perto destes, quebrando a monotonia das estepes, cresciam alguns pinheiros retorcidos pelos ventos e uns tantos lanços e abetos, sufocados pelos salgueiros e vidoeiros que mais pareciam arbustos. Nos raros exemplos de gargantas que iam dar em vales férteis de águas, abrigados das constantes ventanias e supridos com bastante umidade, é que as coníferas e as velhas árvores de pequenas folhagens se aproximavam de suas verdadeiras dimensões.

A jornada transcorria rotineiramente calma. Por 10 dias haviam continuado com passo rápido e firme, quando então Brun começou a despachar seus homens para explorar as redondezas, e o grupo, por alguns dias, passou a progredir mais lentamente em sua marcha. Eles estavam próximos do istmo da península. Se tivessem de encontrar mamutes, dentro de pouco tempo já deveriam começar a vê-los.

Pararam junto a um pequeno rio. Brun tinha enviado Broud e Goov no princípio da tarde, e o chefe, um pouco afastado dos outros, olhava na direção em que os dois haviam partido. Teria de decidir se acampariam ali, ao la do do rio, ou se seguiriam avante, só parando quando fosse hora de dormir. As sombras da tarde já começavam a estender-se e, se os dois rapazes não voltassem logo, a decisão seria tomada por ele. Com os olhos estreitados, encarava diretamente O vento cortante que açoitava sua longa capa de couro, enro lando-a entre suas pernas e achatando no rosto a barba forte e cerrada.

Pensou ver muito a distância um movimento e, enquanto esperava, as figuras dos dois homens correndo foram aparecendo mais distintamente. Sentiu uma pontada de emoção Talvez fosse só intuição ou talvez o sentimento de estar bem afinado com a maneira de as pessoas de seu clã se locomoverem. Eles também viram sua figura solitária e se apressaram ainda mais na corrida, agitando os braços. Brun já sabia o que lhe diziam.

- Mamute, mamute! - gritavam enquanto corriam nadireção do grupo.

Todos se amontoaram em torno dos dois rapazes exultantes de alegria.

- Uma imensa manada, seguindo para leste - gesticulou Broud, excitado.

- A que distância? - perguntou Brun.

Goov apontou o braço reto para cima e depois fez com ele um meio ar co. A umas poucas horas era o que o gesto queria dizer.

- Mostrem o caminho - gesticulou Brun, fazendo depois sinal para que os outros o seguissem.

Ainda havia algumas horas de dia claro e eles poderiam aproveitá-las para aproximar-se mais.

O sol já descia no horizonte, quando viram a distância uma mancha indistinta em movimento. É uma manada das grandes, pensou Brun, ordenando, então alto. Tinham de arranjar-se com a água que trouxeram da última parada; estava muito escuro para procurar por algum córrego ou riacho. No dia seguinte, arrumariam um lugar melhor para acampar. O mais importante é que os mamutes foram encontrados. Agora a coisa era com os caçadores.

Depois que o grupo se mudou para o novo acampamento junto de um riacho delimitado por uma dupla fileira de arbustos de tamanhos diversos ao longo das duas margens, Brun pegou os caçadores e foram examinar de perto as possibilidades. Um mamute não era nenhum bisao ou animal que caísse com pedras de boleadeiras. Para sua caça, tinha-se de imaginar outras táticas. Brun e seus homens foram fazer uma inspeção nas gargantas e desfiladeiros existentes na área. O chefe procurava por um certo tipo especial de formação uma garganta com uma só saída, tendo o outro extremo obstruído por rochas do mesmo tipo das que formavam as paredes laterais e não muito distante da manada que se locomovia vagarosamente.

Cedo, na manhã do dia seguinte, Oga, nervosa, sentou-se de cabeça baixa na frente de Brun, enquanto Ovra e Ayla esperavam, ansiosas, atrás dela.

- O que você quer, Oga? - perguntou Brun, dando-lhe um tapinha no ombro.

- Esta mulher quer fazer um pedido - começou ela, hesitando.

- E qual?

- Esta mulher nunca viu um mamute. Nem Ovra, nem Ayla também. Nosso chefe permitiria que nos aproximássemos um pouco para ver melhor os bichos?

- E Ebra e Ika também querem ver os mamutes?

- Antes que viéssemos aqui pedir, elas falaram que já viram muitos mamutes em suas vidas e que não tinham vontade de ir - respondeu Oga.

- Elas são mulheres de juízo. Mas, enfim, as duas já viram muitos mamutes antes. Bom, como estamos a favor do vento, se vocês não perturbarem os animais e não chegarem muito perto e não andarem em volta deles...

- Nós na vamos chegar muito perto - prometeu Oga.

- É, acho que não vão mesmo. Depois que botarem os olhos neles não vão querer chegar muito perto. Bem, podem ir - decidiu Brun.

Não fazia mal que as mulheres dessem um passeio, pensou ele. Por en quanto não há muito o que fazer e vão estar muito ocupadas dentro em pouco... se os espíritos nos ajudarem.

As três ficaram excitadas com a perspectiva da aventura. Foi Ayla quem tinha conseguido convencer Oga a pedir, embora todas tivessem conversado longamente sobre o assunto. A viagem fez com que ficassem mais íntimas, dan do-lhes oportunidade para se conhecerem melhor. Ovra que, por natureza, era uma moça tranquila e reservada, havia sempre considerado Ayla como fazendo parte do grupo das crianças e não procurava sua companhia. Oga, por sua vez, não encorajava maiores aproximações, sabendo como Broud se sentia em relação a Ayla e, para concluir, nem Oga nem Ovra achavam que tinham muita coisa em comum com a estranha garota. Elas eram mulheres, vivendo com seus companheiros, adultas e donas das fogueiras de seus homens. Ayla não passava de uma criança e não tinha as mesmas responsabilidades delas.

Foi somente naquele verão, quando Ayla assumiu a condição de quase- adulta e que começou a ser levada nas excursões de caça, é que as mulheres passaram a considerá-la como alguma coisa mais do que criança e, sobretudo, na caçada agora do mamute. Ayla era mais alta do que qualquer mulher, o que lhe dava uma aparência adulta e, sob muitos aspectos, era tratada como mulher pelos caçadores. Principalmente Droog e Crug estavam sempre utilizando os seus serviços. Suas companheiras haviam ficado na caverna e Ayla era sozinha, desse modo os seus pedidos eram dirigidos diretamente a ela, sem precisar da permissão de um outro homem, o que, embora informalmente, costumava-se fazer. Com o interesse comum da caçada, uma relação de maior camaradagem começou a formar-se entre as três. Até então foram Iza, Creb e Uba as pessoas com quem Ayla sempre havia mantido contato mais íntimo, e agora estava tendo grande prazer com suas novas amizades.

Pouco depois de os homens haverem saído pela manhã, Oga deixou Brac com Ebra e Ika, e as três saíram para o passeio. Era uma caminhada agradável. Logo estavam conversando animadamente, fazendo rápidos movimentos com as mãos misturados com sons para enfatizar os gestos. Quando começaram a se aproximar dos mamutes, a conversa foi decaindo, até que ficaram completamente mudas. Pararam olhando de boca aberta os animais, cada um deles com um corpanzil colossal.

O mamute, com sua pele coberta de lã estava bem adaptado ao duro clima periglacial de seu meio ambiente. Tinha um couro grosso revestido por uma camada de pêlos densos e macios, à qual se sobrepunha uma cabeleira la nuda, num tom marrom-avermelhado, de mais de 50 centímetros de comprimento. Para maior proteção, possuía ainda uma camada subcutânea de gordura com cerca de oito centímetros de espessura. O frio havia provocado também modificações em sua estrutura física. Era um animal compacto em relação aos outros de sua espécie e media em média três metros de altura, a contar da cemelha. Possuía volumosa cabeça, proporcionalnente grande em relação à altura global - chegando a ter mais da metade do comprimento da tromba - e que se erguia dos ombros numa curvatura extremamente pronunciada. Tinha orelhas pequenas, rabo curto e uma tromba relativamente também pequena, com dois dedos na extremidade, um deles pouco mais acima do que o outro. De perfil, mostrava uma profunda reentrância na nuca de forma abaulada e a corcova de gordura sobre a cemelha. As costas formavam uma descida forte até a pelve e as pernas traseiras, mais curtas do que as dianteiras. Mas o que tinha de realmente impressionante eram as presas longas e recurvas.

- Olhe aquele ali! - disse Oga, apontando para um velho macho. As presas de marfim, nascendo uma junto da outra, desciam abrindo-se numa grande curva para subir outra vez, cruzando-se na frente dele, medindo em total uns Cinco metros.

O mamute ceifava com sua tromba um montão de ervas e capim, uma forragem dura e seca que metia de uma só vez na boca e quebrava como se ele possuísse uma possante grosa para triturar. Um outro, mais jovem, cujas presas não eram tão longas, por isso ainda úteis, arrancou um pé de lanço e se pôs a desmantelar os pequenos galhos e a casca.

- São muito grandes - gesticulou Ovra, tendo um estremecimento - Nunca pensei que um animal pudesse ser desse tamanho. Como vão conseguir matar um deles? não podem nem mesmo atingi-los com uma lança.

- Não sei - respondeu Oga, igualmente apreensiva.

- Chego quase a desejar que a gente não tivesse vindo - falou Ovra. - Vai ser uma caçada perigosa. Alguém pode sair ferido. O que vou fazer, se alguma coisa acontecer a Goov?

- Brun deve ter algum plano - disse Ayla. - Imagino que ele nunca iria tentar uma coisa dessas, se não achasse que os homens pudessem fazer. Gostaria de poder ficar vendo - acrescentou ela, com ar pensativo.

- Eu não - falou Oga. - Nem perto quero estar. Simplesmente vou ficar feliz quando tudo isso acabar. - Lembrou-se de que o companheiro de sua mãe morrera num acidente de caça, pouco antes de o terremoto levar- lhe a mãe. Por melhor que fossem os planejamentos, ela estava bem consciente dos perigos.

- Acho que deveríamos voltar - disse Ovra. - Brun não queria que agente chegasse tão perto. Estamos bem mais perto do que eu pretendia.

As três se viraram para ir embora. Ayla ainda deu algumas olhadas por Cima do ombro enquanto se afastavam. No caminho de volta, estavam mais si lenciosas, cada uma perdida em seu pensamento, sem muito ânimo para conversas.

Quando os homens voltaram, Brun deu ordem às mulheres que levantassem o acampamento e se mudassem após os caçadores haverem saído na manhã do dia seguinte. Elas teriam de ir para algum ponto, fora do campo de ação deles. Na véspera, ele vira o desfiladeiro que procurava. Era o lugar ideal,embora longe dos mamutes. A manada, no entanto, caminhava vagarosamente na direção sudoeste e ele viu nisso um sinal de bom presságio, pois, ao fim do segundo dia, os animais estariam suficientemente perto do lugar, tornando-o exequível para o que tinha em vista.

Uma neve fina e seca açoitada pelas rajadas de ventos do leste saudou o bando de caçadores quando eles, saídos de suas aconchegantes peles, meteram os narizes do lado de fora das pequeninas tendas. O céu cinza e melancólico não conseguiu arrefecer os ânimos excitados pela expectativa. Naquele dia, iriam à caça do mamute. As mulheres se apressavam em fazer o chá. Como todo bom atleta se preparando para o embate final, eles também não comeriam nada. Exercitavam-se caminhando em círculo com passadas firmes e fortes, e davam estocadas no ar com suas lanças, para esticar e relaxar os músculos. A tensão que exalavam era sentida na atmosfera.

Grod pegou uma brasa acesa da fogueira e meteu-a dentro do chifre do auroque atado à sua cintura. Goov pegou outra. As peles estavam enroladas bem seguras em seus corpos. não as pesadas mantas costumeiras, mas uma vestimenta mais leve que não lhes restringisse os movimentos. Ninguém sentia frio. Estavam superexcitados. Brun, pela última vez, passou rapidamente em revista o plano.

Cada um fechava os olhos, segurava no amuleto, pegava uma tocha apagada, preparada na véspera, e depois saía. Ayla observava com vontade de ter coragem bastante para segui-los. Depois, foi juntar-se às outras mulheres que, antes de levantar o acampamento, foram catar capim seco, esterco e madeira para as fogueiras.

Os homens logo alcançaram a manada. Os mamutes, após o descanso da noite, já haviam começado sua lenta marcha. Os caçadores se puseram agachados em meio à relva crescida, enquanto Brun fazia uma estimativa dos animais passando. Ele reparou no velho macho com suas imensas presas recurvas. Este seria um belo animal, disse consigo, mas depois abandonou a idéia. Eles tinham um longo caminho de volta e os marfins iriam pesar desnecessariamente. Um que fosse mais jovem, além de ter a carne mais tenra, possuía também presas mais fáceis de ser transportadas. Isso era mais impor tante do que a glória de ostentar presas colossais.

No entanto, os jovens machos eram mais perigosos. Suas presas não só serviam para escavar árvores, como também se constituíam em poderosas armas. Brun esperava pacientemente. não havia feito todos aqueles preparativos e uma longa viagem para, no último momento, precipitar-se idiotamente. Sabia exatamente o que procurava, e antes voltar no dia seguinte do que pôr em risco suas chances de sucesso. Os outros caçadores também esperavam, nem todos com a mesma paciência.

O sol surgiu, espalhando as nuvens e pondo um pouco de vida no céu, antes sombrio e melancólico. A neve havia parado, deixando ver a luz brilhante nos espaços abertos.

- Quando Brun vai dar o sinal? - gesticulou Broud para Goov. - Veja como o sol já vai alto. De que adiantou sair tão cedo para ficar aqui parado? O que ele está esperando?

Grod viu os gestos de Broud.

- Brum está esperando pelo momento certo. O que você prefere, voltar de mãos vazias ou esperar um pouco mais? Seja mais paciente e aprenda, Broud. Algum dia será sua vez de decidir sobre o momento de dar o sinal. Brun é bom chefe e bom caçador. Você tem sorte de ter um homem como ele para ensiná-lo. Coragem só não basta para ser chefe.

Broud não gostou muito do sermão de Grod. Este, quando eu for o chefe, pensou o rapaz, nunca irá ser o meu segundo em comando. Além do mais, está ficando muito velho. Broud mudou de posição teve um arrepio sentindo o vento frio e se ajeitou para esperar.

O sol já estava alto no céu, quando Brun finalmente fez o sinal: Preparem-se! Todos os caçadores sentiram uma pontada por dentro. Uma fêmea, pesada e com uma cria na barriga, estava na periferia da manada e se afastando do bolo. Era bastante nova, mas pelo comprimento das presas aquela não deveria ser sua primeira gravidez. Já estava muito adiantada nos meses e por isso muito pesada. Iria faltar-lhe agilidade e rapidez, além de que a carne do feto seria também um belo prêmio extra.

A fêmea buscava uma grande moita de capim que os outros animais ainda não tinham visto. Por um instante, ficou sozinha, longe da proteção da manada. Era um momento por que Brun esperava. Deu o sinal.

Grod já estava com a brasa do lado de fora e a tocha a postos. No momento em que viu o sinal de Brun, segurou a tocha junto da brasa e se pôs a soprar até formar as labaredas. Droog acendeu nesta primeira duas outras, dando uma a Brun. Os três caçadores mais jovens, no instante do sinal, haviam corrido na direção do desfiladeiro. Seriam postos em jogo mais tarde. Logo que as tochas se acenderam, Brun e Grod correram atrás da fêmea e tocaram fogo no capim seco.

Os mamutes, depois de adultos - fora o homem - não tinham inimigos naturais. Só os muito pequenos e muito velhos podiam cair nas garras de algum predador. Mas tinham medo do fogo. Os incêndios nos campos, devi dos a causas naturais, às vezes alastravam-se de forma incontrolável, fazendo durante dias estragos incomensuráveis. E aqueles provocados pelo homem não eram menos desvastadores. No instante que percebeu o perigo, a manada instntivamente se juntou. O fogo teria de alastrar-se rápido para que a fêmea não pudesse juntar-se aos demais. Brun e Grod achavam-se entre ela e a manada.

Poderiam correr numa ou noutra direção, ou ser apanhados por um monstruoso estouro.O cheiro da fumaça transformou aqueles animais sempre mansos e por excelência herbívoros numa massa infernal de barrito enlouquecidos. A fêmea se virou na direção da manada, mas era tarde demais. Tinha uma parede de fogo a separá-la. Ela clamava por socorro, mas o vento do leste havia aberto um leque de chamas convergindo sobre os pobres animais. Já iam em debandada, rumo a oeste, tentando deixar para trás as chamas que rapidamente tomavam conta do terreno. Os incêndios nas pradarias eram incontrolável mas isso, para os homens, não se constituía motivo de grandes preocupações. Os ventos se encarregariam de levar as chamas para bem longe do lugar que pretendiam ir.

A elefanta, berrando de medo, ia aos trambolhões na direção leste. Droog esperou que as chamas se espalhassem para então agir. Quando percebeu que o animal se dispunha a investir, ele correu em sua direção, aos gritos e agitando a tocha, fazendo-o virar-se para sudoeste.

Crug, Broud e Goov, mais jovens e rápidos, iam em disparada na frente. Tinham medo de que, mesmo com a dianteira que levavam, a elefanta, em sua fúria, pudesse ultrapassá-los. Brun, Grod e Droog corriam atrás, tentando manter a distância que os separava e esperando que ela não mudasse de rumo. Mas, uma vez dada a partida, o animal correu sempre em frente, inteiramente às cegas.

Os rapazes chegaram à garganta que iria servir de alçapão. Crug entrou nela. Broud e Groov pararam junto ao paredão sul. Nervosos e sem fôlego, Goov pegou o chifre de amoque, fazendo uma prece muda para que o carvão estivesse aceso. Estava. Mas nenhum dos dois tinha bastante fôlego para soprar a brasa na tocha. O vento ajudou. Acenderam duas tochas e cada um pegou uma, dirigindo-se em seguida para o paredão, tentando antecipar-Se ao mamute. não tiveram de esperar muito. Rezando a seus totens, partiram, agitando as tochas, para cercar pela frente o gigantesco animal que, berrando aterrorizado, vinha para cima deles. Era uma tarefa difícil e perigosa a de dirigi-lo para o interior da garganta.

A elefanta, que em pânico já vinha fugindo do fogo numa corrida alucinada, ao sentir o cheiro de fumaça na sua frente, desviou-se, avançando pesadamente na direção da garganta, com Broud e Goov em seu encalço. Soltando berros de medo, ela foi atravessando o terreno-que se estreitava adiante dela, até que teve seu caminho barrado. Sem poder avançar ou girar o enorme corpanzil no reduzido espaço, ela urrou toda a sua frustração.

Broud e Good corriam a todo fôlego. Na mão, Broud levava uma faca, daquelas cuidadosamente esculpidas por Droog e enfeitiçada pelo Mog-Ur e, com presteza e coragem, apanhou a pata esquerda traseira, cortando-lhe os tendões. Um estridente grito de dor varou o ar. O animal não podia ir para a frente, não podia fazer a volta e, agora, também não podia mais andar para trás. Goov seguiu Broud, aleijando a outra pata. O enorme mamute caiu sobre os joelhos.

Crug saltou, então, de trás de um bloco de pedra e enfiou diretamente sua comprida lança pela boca do animal que urrava de dor com o corpo oscilando. Vomitando sangue sobre Crug, agora desarmado, instintivamente, a elefanta ainda tentou esboçar um ataque. Mas Crug não ficou por muito tempo desprotegido. Outras lanças haviam sido escondidas atrás das rochas e, quando Crug pegou uma delas, Brun, Grod e Droog já haviam alcançado a garganta em sua extremidade bloqueada. Pulando sobre as pedras, os três foram ladeando o animal ferido e lançando quase simultaneamente suas lanças sobre ele. A de Brun penetrou num dos olhos, provocando um esguicho de sangue rubro e quente. O animal cambaleava. Num último assomo de vida, soltou um berro desafiador e depois tombou definitivamente.

A compreensão se fez aos poucos. De repente, abateu-se um silêncio. Os homens, exaustos, limitavam-se a olhar uns para os outros. Os corações batiam apressados, mas agora por outras emoções. Uma força indistinta, primitiva, saída das profundezas de seus seres, foi em crescendo até explodir na forma do grito de vitória. Eles o haviam conseguido! Tinham matado o todo-poderoso mamute!

Seis homens, comparativamente fracos e insignificantes, valendo-se de destreza, inteligência, coragem e espírito de cooperação haviam matado um gigantesco animal, fora do alcance de qualquer outro predador. Pouco importava o quanto fossem mais velozes, fortes ou manhosos, nenhum caçador de quatro patas jamais conseguiria igualar-se a eles. Broud pulou para cima da pedra onde se achava Brun, saltando em seguida sobre o animal. Num instante, Brun veio ficar a seu lado, dando-lhe calorosas palmadas sobre o ombro. Depois, arrancou sua lança do olho do mamute, segurando-a bem para o alto. Os outros quatro vieram, rápidos, juntar-se a eles e, ao ritmo das batidas de seus corações pulavam de alegria, dançando em cima do dorso colossal do mamute vencido.

Brun, por fim, saltou e andou em roda do animal, que praticamente ocupava todo o espaço. Nenhum homem ferido. Nem sequer um arranhão. Uma caçada realmente de sorte. Os totens deveriam estar contentes com eles.

- Devemos deixar que os espíritos saibam que estamos agradecidos - falou. - Quando voltarmos, o Mog-ur vai celebrar uma cerimônia especial. Bem, agora vamos tirar o fígado e cada homem terá o seu pedaço e levaremos também um pedaço para Zoug, Dorv e o Mog-ur. O resto será dado ao espírito do mamute. Foi o que o Mog-ur me disse para fazer. Vamos enterrar aqui, no lugar onde ela caiu, e também o fígado do filho que está em sua barriga. OMog-ur disse para não tocarmos no cérebro, que deve ser deixado onde se encontra a fim de que seu espírito possa guardá-lo. Quem acertou o primeiro golpe, Broud ou Goov?

- Broud - respondeu Goov.

- Então cabe a ele o primeiro pedaço do fígado. Mas a caça é mérito de todos.

Broud e Goov foram enviados para buscar as mulheres. Dando uma virada final, os homens terminaram sua tarefa. Daqui por diante, seria com as mulheres. A elas, caberia o tedioso serviço de esquartejar o animal e trabalhar as carnes para serem conservadas. Enquanto esperavam, eles retiraram as vísceras e o feto, quase totalmente formado. Quando as mulheres chegaram, eles ainda as ajudaram a remover a pele. O animal era grande demais, exigindo o esforço de todos. As partes principais e preferidas seriam guardadas nos esconderijos sob as pedras para aí congelarem. O resto das carnes seria colocado ao redor das fogueiras, não só para impedir que se congelasse, como também para afastar os animais que poderiam vir atraídos pelo cheiro do sangue e da carne crua.

Cansados, mas felizes, foram dormir aquela noite sobre suas aconchegantes peles, satisfeitos de comer carne fresca pela primeira vez, desde que haviam saído da caverna. Pela manhã, enquanto as mulheres trabalhavam, os homens se reuniram para reviver as emoções da caçada e admirar cada um a coragem do outro. Havia um riacho perto, mas a uma certa distância da garganta, o que dificultava o trabalho. Entretanto, uma vez que os quartos do animal estivessem separados, eles se mudariam, deixando somente alguns ossos com uns poucos pedaços de carne agarrados para os predadores que rondavam tanto no céu como nas áreas próximas.

O clã aproveitava quase todas as partes do animal. Do couro, poderiam fazer-se calçados, muito mais resistentes e duradouros do que aqueles feitos da pele de outros animais; cortina para quebrar o vento na entrada da caverna, vasilhames de cozinha, tiras fortes para amarrar e barracas. A macia camada lanosa podia ser transformada numa espécie de feltro, usado para enchimento de travesseiros, colchões e até mesmo como absorventes, forrando os cueiros dos bebés. Da crina comprida, dos tendões e dos músculos faziam-se resistentes cordas. A bexiga, o estômago e os intestinos poderiam ser usados como recipientes de água, vasilhas para sopa, sacos para armazenar comida e até mesmo como um impermeável para ser usado nos dias de chuva. Pouca coisa se perdia.Mas além da carne e das outras partes, a gordura era particularmente fundamental à vida deles. A gordura reconstituía o equilíbrio das calorias necessárias para alimentar suas exigências energéticas, tanto para mantê-los aquecidos no inverno, como para sustentar suas intensas actividades do verão Além disso, era usada na curtição de couros, já que vários animais que caçavam - cavalos, veados, coelhos, pássaros e auroques ou bisões, todos animais herbívoros - eram essencialmente magros; servia de combustível para lamparinas de pedra que iluminavam e aqueciam os ambientes; tinha emprego nas impermeabilizações; funcionava como veículo para pomadas, unguentos e emolientes; ajudava a lenha molhada a pegar fogo e a manter as tochas acesas, servindo como combustível na ausência de outros materiais incandescentes. Os usos da gordura eram, portanto, diversos.

Todos os dias, enquanto as mulheres trabalhavam, os homens ficavam observando o céu. Se o tempo se mantivesse claro, a carne dentro de uns sete dias estaria seca, para o que concorriam também os ventos soprando ininterruptamente. não havia necessidade da fumaça das fogueiras, fazia frio e as varejeiras não viriam estragar a carne. Como estava, ia tudo muito bem. O combustível lá era muito mais difícil do que nas encostas, cobertas de mata ou mesmo nas planícies ao sul, mais quentes e com maior quantidade de árvores. Se o céu estivesse sombrio, com nuvens intermitentes e chuvas, as finas tiras de carne levariam três vezes mais tempo para secar. Uma ligeira neve pulvurenta batida pelas rajadas de vento não se constituía em grande problema. O ruim seria tempo úmido com um calor extemporâneo; então sim, o trabalho praticamente parava. Precisavam de tempo seco, claro e frio. A única maneira de transportar a montanha de carne que possuíam era com ela seca.

A pesada e cabeluda pele era limpa de sua grossa camada de gordura e dos vasos sanguíneos, nervos e folículos. Grossas placas de gordura endurecida eram postas sobre as fogueiras em grandes vasilhames de couro e aí se derretiam para ser despejadas dentro das tripas já limpas, que depois de amarradas ficavam como gordas salchichas. O couro ainda com o pêlo era dividido em pedaços com os quais se faziam rolos portáteis, deixados ao tempo para endurecer. Mais tarde, durante o inverno, depois de retirados os pêlos, seria posto para curtir. As presas foram partidas e orgulhosamente exibidas pelo acampamento. Também seriam levadas com eles.

Durante o dia, enquanto as mulheres trabalhavam, os homens, ou saíam para trazer pequenas caças, ou se deixavam ficar por ali, observando vagamente. A mudança para a vizinhança do rio se, por um lado, lhes foi conveniente, por outro, trouxe um problema mais difícil de ser remediado. Os animais, atraídos pela carne fresca, os haviam seguido até o novo local. As tiras de carnes penduradas nas cordas e correias de couro precisavam de vigilância constante, principalmente contra uma enorme hiena sarapintada que era de uma persistência fora do comum. Diversas vezes fora escorraçada, mas teimava em ficar rondando pela periferia do acampamento e escapando das tentativas para matá-la, levadas sem grande empenho. Era astuto bastante para conseguir abocanhar muitas vezes por dia bons nacos de carne. Representava um constante prejuízo.

Ebra e Oga, atarefadas, cortavam em tiras os últimos pedaços de carne que iriam ser postos a secar. Ika e Ovra despejavam gordura dentro das tripas e Ayla estava no riacho lavando outras tantas. Uma crosta de gelo já se havia formado nas margens, mas a água continuava correndo. Os homens, num grupo, discutiam se iriam ou não sair com suas fundas para caçar alguns pequenos roedores.

Brac achava-se sentado perto da mãe e de Ebra, brincando com algumas pedrinhas; depois, cansado, levantou-Se procurando algo mais interessante para fazer. As mulheres, inteiramente concentradas no trabalho, não viram quando ele se afastou, mas outros olhos o estavam vigiando.

De repente, todas az cabeças se voltaram na direção do grito agudo e aterrorizado do menino.

- Meu filho! - gritou Oga. - A hiena pegou o meu filho!

Aquela repulsiva criatura, sempre pronta a atacar jovens incautos e velhos indefesos, havia apanhado Brac pelo braço e rapidamente batia em retirada arrastando consigo a pequenina criança.

- Brac! Brac! - gritou Broud correndo atrás, seguido dos outros homens. Estava longe demais para usar a lança. O rapaz pegou sua funda e se agachou procurando às pressas uma pedra, antes que o animal saísse do alcance.

- Oh, não não - gritou desesperado, quando viu a pedra cair a uma pequena distância do alvo pretendido e a hiena ir-se afastando. - Brac! Braaac!

Subitamente, partido de outra direção o barulho de duas pedras atiradas uma atrás da outra. Os projéteis pegaram em cheio a cabeça do animal que tombou no chão.

Broud, que estava estupefato, de boca aberta, mais ainda ficou ao ver Ayla sair correndo na direção de Brac, que gemia de dor. A garota tinha a funda na mão e mais duas pedras prontas para ser atiradas. A hiena era, por excelência, a sua presa. Ela havia estudado esses animais, conhecia-lhes os hábitos e seus pontos fracos, e tanto se esmerara na sua caça que esta se convertera numa segunda natureza para ela. Quando ouviu o grito de Brac, não mediu as consequências, muito naturalmente pegou na funda e em duas pedras para atirar. A úmica coisa que pensou foi em impedir a hiena de arrastar Brac para longe.Só depois que retirou a criança das garras do animal morto e que virou o rosto, vendo os olhares de assombro, é que ela sentiu o impacto do gesto. O segredo fora revelado. Ela mesma se entregara. Agora, sabiam que a garota podia caçar. Uma onda de medo correu-lhe pelo corpo. O que será que vão fazer comigo?, perguntou-se.

Ayla pôs o menino no colo e, evitando os olhares que pareciam não acreditar no que viam, dirigiu-se ao acampamento. Oga foi a primeira a se recuperar do choque. Saiu correndo com os braços estendidos e, agradecida, pegou o filho do colo da garota que o salvara. Logo que chegaram ao acampamento, Ayla pôs-se a examinar a criança, não só para não ter de enfrentar os olhares das pessoas, como também para ver a extensão do ferimento. O ombro e a parte superior de um dos braços ficaram muito machucados, mas parecia ser uma fratura simples.

Ela nunca havia posto um braço no lugar, mas já vira Iza fazê-lo, e esta lhe tinha explicado como agir em casos de emergência. Iza, entro, pensava estar-se referindo aos caçadores, jamais poderia ocorrer-lhe que alguma coisa pudesse acontecer com o menino. Ayla atiçou o fogo, começou a botar água para ferver e foi buscar sua sacola de medicamentos.

Os homens continuavam em silêncio, ainda atônitos, sem poder ou querer aceitar o que haviam presenciado. Pela primeira vez na vida, Broud sentiu- se grato a Ayla. Seu pensamento, entretanto, não ia além da sensação de alívio pelo fato de o filho de sua companheira ter sido salvo de uma morte certa e pavorosa. Mas o de Brun enxergava mais longe.

Ele cedo percebeu as implicações do ato de Ayla, vendo-se de repente diante de uma decisão impossível. Pela tradição - que na prática tinha o valor de lei - o castigo para qualquer mulher que usasse armas seria nada menos do que sua condenação à morte. Isso estava bem explícito. não havia qualquer atenuante para atender circunstâncias extraordinárias. Um costume tão antigo e tão aceito que, pelo que se podia lembrar, há muitas gerações não era aplicado. Às lendas a que se referiam essa tradição estavam associadas àquelas do tempo em que as mulheres detinham o controle de acesso ao mundo dos espíritos, antes de os homens assumirem o poder.

O costume era uma das forças que marcava bem a diferença entre os homens e as mulheres dos clã já que uma mulher com gosto pela caça, coisa essencialmente masculina, não poderia viver. Há séculos que somente as mulheres com atitudes e comportamento nitidamente femininos é que tinham direito a viver. Em consequência, a faculdade de adaptação - aquilo de que verdadeiramente dependia a sobrevivência - se viu diminuída. Mas tal era o costume ou lei vigorando nos clã apesar de que nunca mais tivesse existido um comportamento feminino desviante. Só que Ayla não era genuinamente filha dos clã.

Brun adorava o filho da companheira de Broud. Apenas junto de Brac, abria um pouco sua rígida guarda. O bebê podia fazer o que quisesse; puxava- lhe a barba, metia os dedos curiosos em seus olhos, às vezes até chegava a vomitar sobre ele. Nada tinha importância. Jamais Brun se mostrava tão complacente como quando o garotinho adormecia em paz, confiante na segurança dos braços do orgulhoso chefe. Ele não tinha dúvida de que Brac não estaria vivo, se não fosse por Ayla. Como poderia condenar à morte a menina que tinha salvo a vida de Brac? Eo salvou com a arma que agora era a causa de sua condenação à morte.

Como teria ela conseguido? perguntava-se, curioso. O animal estava fora do alcance e ela ainda se achava mais distante do bicho do que os homens. Ele foi até onde a hiena jazia morta e tocou no sangue que corria dos ferimentos. Mas, o que é isso? Dois ferimentos? Então os seus olhos não o haviam enganado? Ele realmente no momento achara ter visto duas pedras sendo disparadas. Como teria ela conseguido aprender a manejar a funda com aquela mestria? Nem Zoug ou ninguém de quem soubesse era capaz de atirar duas pedras com tanta rapidez e com tanta pontaria e força. Uma força capaz de matar uma hiena daquela distância!

Além disso, ninguém jamais usara funda para matar hienas. Logo que viu a tentativa de Broud, sabia que seria um gesto inútil. Zoug sempre afirmara que aquilo poderia ser feito, mas Brun particularmente tinha suas dúvidas. Ele nunca contradizia Zoug que continuava sendo um bem muito precioso para o clã e nem por sombra seria o caso de desacreditá-lo. Bem, Zoug provou agora que estava certo. E será que uma funda podia também matar um lobo ou um lince como Zoug atestava com tanta convicção Brun fazia suas conjeturas. De repente, arregalou os olhos e os estreitou em seguida. Um lobo? Um lince? Ou um carcaju, um texugo, um furão, uma onça ou uma hiena? A cabeça de Brun trabalhava depressa. Ou todos aqueles predadores que ultimamente eram encontrados mortos?

Claro! Ele fazia gestos enfatizando o pensamento. Foi ela quem fez aquilo tudo! Ayla já vem caçando há muito tempo. Se não como teria arrumado uma pontaria destas? No entanto, ela aprendeu todos os serviços que uma mulher faz com muita facilidade, como então conseguiu aprender a caçar? E por que predadores? E por que logo os perigosos? E por que tudo isso?

Se ela fosse homem, seria a inveja de todo caçador. Só que não é homem. É mulher, usou uma arma e por isso deve morrer; do contrário, os espíritos ficarão furiosos. Mas se ela está caçando há tanto tempo, por que ainda não ficaram furiosos? Justamente o que eles não têm no momento é raiva. Acabamos de matar um mamute numa caçada tão perfeita que nem um só homem saiu ferido. Os espiritos estão contentes conosco e não furiosos.

Brun, confuso, balançou a cabeça sem compreender. Espíritos! Nunca vou entendê-los. Só desejava que o Mog-ur estivesse aqui. Droog diz que ela nos traz sorte. Quase chego a acreditar que ele tem razão As coisas nunca andaram tão bem para nós como desde que a menina foi encontrada. Mas, se eles estão de seu lado, será que não ficariam desgostosos, se ela fosse condenada à morte? Ele se desesperava. Por que tinha ela de ser achada logo pelo meu clã? Ayla pode significar sorte, mas já me deu mais dores de cabeça do que todo mundo junto. não posso tomar qualquer decisão antes de falar com o Mog-ur. Não tenho nada a fazer, sem esperar até a volta à caverna.

Brun retornou ao acampamento. ayla dera ao garoto um remédio contra a dor que o fez dormir. Em seguida, limpou os machucados, botou o braço no lugar e fez uma tala com cascas úmidas de vidoeiro. Quando secassem, ficariam duras e tesas, firmando os ossos no lugar. Mas teria de ficar sob observação para o caso de o braço inchar demais. Viu quando Brun voltou, depois de examinar a hiena, e tremeu de medo. Mas o chefe passou por ela sem fazer o menor sinal, ignorando-a completamente. A garota percebeu que não ficaria sabendo de seu destino, enquanto não voltassem à caverna.

 

Enquanto o bando de caçadores caminhava para o sul, parecia que as estações do ano estavam andando de trás para a frente. Nuvens ameaçadoras e o cheiro de neve haviam apressado a partida. Eles não tinham o menor desejo de ser apanhados pela primeira nevasca de inverno no norte da península. O tempo mais quente na extremidade sul dava a falsa sensação de primavera se aproximando, trazendo uma certa distorção mental. Só que ao invés de rebentos e flores silvestres desabrochando, as planícies revolviam-se em ondas douradas, e as árvores da floresta temperada ao lado das coníferas faziam um mosaico vermelho, âmbar e verde. No entanto, a vista a distância era enganadora. A maioria das velhas árvores já havia perdido suas folhas, e o inverno, em toda a sua fúria, estava às costas.

Levou muito mais tempo na volta do que na ida até atingirem o local da caçada. As passadas largas que rapidamente devoravam distâncias eram agora impossíveis com o volume da carga trazida. Mas Ayla não se curvava apenas ao peso da carga que transportava. Culpa, ansiedade e depressão eram fardos ainda mais pesados. Ninguém falava do incidente, mas ele não fora esquecido. Diversas vezes seu olhar cruzava com o de outra pessoa que, surpreendida, rapidamente desviava os olhos. Ninguém falava com ela a não ser o necessário. Sentia-se isolada, desamparada e com medo. Pelo pouco das conversas que lhe chegaram, ficou sabendo qual era a pena para seu crime.

Na caverna, as pessoas vigiavam o retorno dos caçadores. Desde que chegou a ocasião prevista para a volta, alguém ficava de vigia, junto do pequeno morro, de onde se tinha uma boa visão da planície. Quase sempre era uma das crianças.

Quando Vorn assumia o posto pela manhã ele começava sempre pondo atenção no panorama a distância, mas depois se aborrecia. não gostava de ficar sozinho ali, onde nem mesmo a companhia de Borg tinha para brincar. Punha-se, então a fantasiar caçadas, e tantas foram as estocadas dadas no chão com a sua pequena lança que a ponta, apesar de endurecida no fogo, desgastara-se. Foi por puro acaso que ele viu o bando de caçadores aparecendo ao longe.

- Presas! Presas! - gritava correndo em direção à caverna.

- Presas? - perguntou Aga. - O que você quer dizer com isso?

- Eles estão de volta - gesticulou Vorn, excitado. - Brun e Droog e todo o resto. Eles estão trazendo as presas!

Todos desceram até a planície para saudar os caçadores. Ao encontrá-los, porém, era visível que alguma coisa saíra errada. A caçada havia sido um sucesso, não havia por que não estarem felicíssimos. Ao contrário, caminhavam pesadamente, de uma maneira contida.

Brun estava soturno, e Iza, com um único olhar para Ayla, percebeu que alguma coisa de terrível relacionado com sua filha deveria ter ocorrido.

Enquanto os componentes da caçada passavam um pouco da carga para aqueles que haviam ficado, a razão do sombrio silêncio foi aparecendo. Ayla, abatida, subia de cabeça baixa a colina, inteiramente distraída dos olhares que lhe eram lançados. Iza estava estarrecida. Se sempre se preocupara com as atitudes pouco ortodoxas de sua filha adotiva, isso não era nada era comparação com o medo paralisante que agora sentia por ela.

Ao chegarem à caverna, Oga e Ebra trouxeram a criança ferida para Iza. Ela retirou a tala e examinou a lesão.

- O braço vai ficar do jeito que era antes. Ficará com uma cicatriz, mas os ferimentos já estão sarando e o braço está bem encanado. Mas é melhor continuar com a tala. Vou botar uma nova.

Oga e Ebra respiraram aliviadas. Sabiam que Ayla não possuía prática, mas não tiveram outro remédio sem deixá-la tratar de Brac. Estavam as duas muito preocupadas. Um caçador precisava ter dois bons braços fortes. Se Brac perdesse um deles, jamais poderia almejar a se tornar o chefe do clã, para o que estava predestinado. E sem poder caçar, nem mesmo homem ele se tornaria, levaria a vida naquela espécie de limbo em que viviam os meninos já crescidos, mas que ainda não passaram pela primeira caçada consagradora do status adulto.

Brun e Broud também se sentiram aliviados. No entanto, no caso de Brun, a notícia foi recebida com um misto de emoção. Sua decisão ficara ainda mais difícil. Ayla não tinha apenas salvo a vida de Brac, ela lhe assegurara uma existência útil e normal. O assunto já estava sendo protelado demais. O chefe chamou o Mog-ur, e os dois se puseram a caminhar juntos.

A história, como Brun a explicou, deixou Creb profundamente perturbado. A responsabilidade de educar e ensinar Ayla era sua e, sem dúvida, ele falhara. Havia, no entanto, uma coisa ainda que o deixava mais inquieto. Quando soube dos animais achados mortos, sentiu na ocasião que aquilo não tinha nada a ver com espíritos. Chegou até a imaginar se Zoug ou um dos outros não estaria fazendo algum tipo de brincadeira com o clã. Isso parecia improvável, mas sua intuição lhe dizia que naquelas mortes deveria haver o dedo de alguém, e bem humano. Além disso, não lhe passaram despercebidas as mudanças em Ayla, que ele, agora, pensando melhor, podia perfeitamente identificar. As mulheres nunca caminham com aquele andar silencioso e furtivo dos caçadores. Estão sempre fazendo barulho, e com boa razão para isso. Mais de uma vez, Ayla o havia surpreendido. Aproximava tão silenciosamente que Creb nem percebeu sua chegada. Havia também outras coisas, certos pequeninos detalhes que poderiam ter levantado suas suspeitas.

Mas, estava cego por seu amor por ela. Nem de leve podia imaginar que Ayla estivesse caçando, as consequências disso eram conhecidas demais. O velho feiticeiro se questionava sobre sua própria integridades sobre sua capacidade de exercer sua função Ele pusera os seus sentimentos pela menina na frente da guarda espiritual do clã. Será que ainda merecia a confiança dos outros? Poderia, com justiça, continuar como mog-ur?

Creb assumiu toda a culpa das ações de Ayla. Ele deveria ter indagado dela; não podia tê-la deixado rondar pelas matas com tanta liberdade; sua disciplina também não fora suficientemente severa. Mas, toda a angústia que sentia pelo que deveria ter feito e não fez não alterava em nada o que ainda teria de fazer. A decisão era de Brun, mas cabia ao Mog-ur pô-la em execução:o dever de matar a menina que ele adorava.

- Por enquanto é só uma conjeturas mas parece que foi ela quem andou matando os animais - disse Brun. - Nós precisamos interrogá-la. Agora, o fato é que a menina tinha uma funda na mão, com a qual matou uma hiena. E para fazer isso, deve ter treinado antes em alguma coisa, do contrário não se explicaria a técnica incrível que possui. Ela chega a ser melhor do que Zoug, Mog-ur, e é mulher! Como teria aprendido? Já pensei até que talvez exista uma parte masculina nela, e não sou o único a imaginar tal coisa. Ela é alta como um homem, e nem mulher ainda é. Você acha que pode haver alguma verdade no que andam dizendo... que ela nunca será mulher?

- Ayla é uma menina, Brun, e algum dia ficará mulher, igual a qualquer outra garota... ou ficaria. Trata-Se apenas de uma mulher com uma arma na mão. - Havia em Creb um ar de determinação, não iria deixar-se levar por falsas ilusões.

- Bem, eu ainda gostaria de saber há quanto tempo ela vem caçando. Mas isso pode esperar até amanhã. Hoje, estamos todos muito cansados, a viagem foi muito comprida. Diga a Ayla que amanhã vamos interrogá-la.

Creb voltou à caverna e parou na sua fogueira só para dizer a Iza que avisasse a Ayla de que ela seria interrogada no dia seguinte. Depois, foi para sua pequena gruta e lá passou toda a noite.

As mulheres, em silêncio, seguiram com os olhos os homens se dirigindo para a mata e Ayla caminhando atrás. Estavam todos perplexos e os sentimentos eram os mais variados. A própria ayla sentia-se confusa. Ela podia desconhecer a gravidade de seu crime, mas sempre soube que caçar era errado. Será que faria alguma diferença se eu soubesse? perguntou-se naquele instante. Não. Eu queria caçar e teria caçado do mesmo jeito. Mas não queria que os maus espíritos me perseguissem até o outro mundo. O pensamento fê-la estremecer.

Tinha tanto medo das invisíveis forças malignas quanto acreditava no poder dos totens protetores. Agora, nem mesmo o Espírito do Leão da Caverna poderia protegê-la contra eles, ou será que podia? Devo ter me equivocado, pensou. Meu totem não iria mandar um aviso para que eu caçasse, sabendo que isso me levaria à morte. Talvez ele me tenha abandonado, quando peguei na funda pela primeira vez. A menina não gostava de pensar sobre isso.

Os homens foram para uma clareira e lá se ajeitaram sobre troncos e pedras, ladeando Brun. Ayla deixou-se cair aos pés do chefe. Este bateu-lhe no ombro, permitindo que ela o olhasse e imediatamente abordou o assunto sem qualquer preâmbulo.

- Foi você, Ayla, quem matou os comedores de carne que os caçadores encontraram?

- Foi - respondeu com a cabeça. não era o caso de esconder mais nada. Seu segredo estava descoberto e eles perceberiam, se procurasse desviar-se das perguntas. Tal como todas as pessoas do clã, ela também não podia mentir.

- Como aprendeu a usar uma funda?

- Aprendi com Zoug.

- Com Zoug? - repetiu Brun. Todas as cabeças se viraram, indignadas, para o velho.

- Nunca ensinei a menina a atirar com funda - gesticulou Zoug, defendendo-se.

- Zoug não sabia que eu estava aprendendo com ele - falou a menina, correndo depressa em defesa do velho caçador. - Eu apenas ficava observando quando ele ensinava Vom.

- Há quanto tempo você caça - foi a próxima pergunta de Brun.

- Agora, faz dois verdes. Mas, no primeiro verão, eu não cacei, só treinei.

- É o tempo que Vom vem treinando - comentou Zoug.

- Eu sei - disse Ayla. - Foi no mesmo dia em que ele começou.

- Como você sabe exatamente quando Vorn começou, Ayla? - perguntou Brun, curioso com o fato de ela estar tão certa.

- Eu estava lá observando.

- O que você quer dizer com lá? La é onde?

No campo de treinamento. Iza havia me mandado buscar algumas cascas de cerejeira, mas, quando cheguei, vocês já estavam na clareira - explicou ela. - Iza precisava das cascas e eu não sabia quanto tempo iriam demorar. Então fui ficando. Zoug dava a Vorn sua primeira lição.

- Você assistiu a Zoug dando a primeira lição a Vorn? - interpôs Broud. - Tem certeza de que era a primeira? - Broud se recordava muito bem daquele dia. Era uma lembrança que ainda o fazia corar de vergonha.

- Tenho, Broud. Estou muito certa disso.

- E o que mais você viu? - Seus olhos se estreitaram e o rapaz se exprimia atrapalhando-Se nos gestos.

Brun também de repente se lembrou do que acontecera no campo de treinamento no dia em que Zoug deu início às aulas de Vorn e não se sentia nem um pouco satisfeito com o fato de uma mulher haver testemunhado o incidente.

Ayla hesitou.

- Vi também outros homens treinando - respondeu, tentando desviar- se da questão. O rosto de Brun, nesse ponto, assumiu uma expressão dura. - E vi também Broud jogando Zong ao chão, e você furioso com ele, Brun.

- Você viu isso! Você viu tudo? perguntou Broud. Estava lívido de raiva e era um constrangimento só. Dentre todo mundo, dentre todas as pessoas do clã, tinha de ser exatamente ela a presenciar a cena! Quanto mais pensava na coisa, mais acabrunhado se sentia e ao mesmo tempo com mais raiva. Aquele fora o cargo mais duro que já recebera de Brun e ela o havia presenciado. Recordou-se, inclusive, de como errara feio os seus tiros e, subitamente lembrou-se também de que errara o tiro na hiena. A hiena que ela matou. Uma mulher, e justamente aquela mulher é que tinha de expor sua vergonha.

Qualquer pensamento mais favorável a ela ou algum laivo de gratidão que já tivera desapareceram naquele instante. Vou ficar feliz quando ela morrer, disse o rapaz consigo. Ela merece a morte. não podia suportar a idéia de Ayla viver, tendo presenciado o supremo momento de vergonha de sua vida.

Brun o observava e, pelas expressões do seu rosto, quase podia ler-lhe o pensamento. Pena, pensou, justamente agora que havia uma chance de terminar a animosidade entre ambos. Bem, mas isto não tem mais importância. E prosseguiu com o interrogatório.

- Você disse que começou a treinar no mesmo dia que Vorn. Fale mais sobre isso.

- Depois que vocês foram embora, atravessei o campo e vi a funda que Broud tinha atirado no chão. Todo mundo se esqueceu dela, quando você ficou furioso com Broud. não sei por que, mas tive curiosidade de saber se conseguiria atirar. Comecei a lembrar da lição de Zoug e passei a tentar. não era fácil, mas fiquei treinando toda a tarde. Cheguei até a me esquecer de que o tempo estava passando. Acertei no poste uma vez, acho que por puro acaso, mas isso me fez pensar que eu poderia conseguir, se me esforçasse. e, assim, guardei a funda.

- Imagino que aprendeu também com Zoug a fazer a arma.

- Sim, foi com ele.

- E você treinou naquele verão?

- Sim.

- E, desse modo, resolveu caçar. Mas por que comedores de carne? São os mais difíceis e perigosos. Já encontramos lobos mortos e até linces. Zoug sempre afirmou que esses bichos poderiam ser mortos com funda e você provou que ele tinha razão, mas por que justamente estes?

- Bem, eu sabia que não podia trazer nada para o clã, sabia que não tinha o direito de tocar numa arma, mas queria caçar, ou pelo menos tentar. Os comedores de carne estão sempre roubando nossa comida. Achei que, se atirasse neles, estaria ajudando. E também não seria um desperdício, já que não comemos esses animais. Foi por isso que resolvi caçá-los.

Isso satisfez a curiosidade de Brun no que dizia respeito às mortes dos predadores, mas ele ainda continuava sem compreender o porquê de ela querer caçar. Era uma mulher e jamais alguma havia tido vontade de caçar.

- Você sabe que é muito perigoso tentar matar uma hiena de grande distância, e se você tivesse acertado em Brac? - falou Brun, querendo testá-la. Ele mesmo esteve a ponto de usar as boleadeiras, apesar de que a chance de matar o garoto com uma pedrada fosse muito grande. Mas uma morte instantânea causada por uma fratura de crânio era preferível à que aguardava o menino e, assim pelo menos, eles teriam o corpo para enterrar, dando a Brac a oportunidade de trilhar seu caminho para o mundo dos espíritos, com todos os rituais devidos. Com sorte, teriam encontrado alguns ossinhos dispersos, se a hiena tivesse levado a melhor.

- Mas eu nunca acertaria em Brac - respondeu Ayla, com simplicidade.

Como podia ter tanta certeza? A hiena estava fora do alcance.

Não do meu. Já havia acertado em animais daquela distância. Quase nunca erro.

- Achei ter visto a marca de duas pedras - gesticulou Brun.

- Atirei duas pedras - confirmou Ayla. - Aprendi a fazer isso depois que fui atacada por um lince.

- Você? Atacada por um lince? - pressionou Brun.

- Fui - confirmou Ayla, com a cabeça. Em seguida, contou o aperto de que se livrara.

- De que distância você consegue acertar? - perguntou Brun. não me precisa dizer. Mostre. Sua funda está com você?

Ayla balançou a cabeça afirmativamente e se levantou. Todos se encaminharam para o ponto extremo da clareira, onde havia um pequeno riacho correndo sobre um leito pedregoso. A garota escolheu algumas pedras de for mato e tamanho convenientes. As redondas eram as que davam melhor pontaria, maior distanciamento, mas pedras dentadas e pontiagudas também serviam.

- Vou acertar naquela pequena pedra branca, junto da grandona, lá do outro lado - falou ela.

Brun fez que sim com a cabeça. Era bem mais de uma distância e meia que qualquer um deles poderia atirar. Ayla mirou cuidadosamente, meteu uma pedra na funda e, no instante seguinte, uma outra já estava na funda e varan do o ar. Zoug saiu correndo para confirmar a pontaria.

- Duas lascas foram arrancadas da pedra branca. Ela acertou no alvo duas vezes seguidas - anunciou ele, voltando um tanto assombrado e com uma pontinha de orgulho.

Ela era mulher, nunca deveria ter encostado a mão numa funda. A tradição a respeito era muito clara, mas... a menina era boa. Com ou sem o seu conhecimento, cabia a ele o mérito de tê-la ensinado, ela mesma o dissera. E essa técnica de duas pedradas, pensou, era um truque que ele gostaria de aprender. O orgulho de Zoug era aquele de um bom professor pelo aluno que depois o ultrapassa; um bom aluno atento que aprendeu bem as lições e superou o mestre. E a menina provou que ele estava certo no que dizia.

O olho de Brun percebeu algo se movendo na clareira.

- Ayla! - gritou. - Um coelho, pegue!

Ela olhou na direção em que ele apontava, viu o animalzinho atravessando o campo aos saltos e o derrubou. Não foi preciso averiguar a pontaria. Brun olhava-a com admiração.

Ela é rápida, disse consigo. A idéia de uma mulher caçando ofendia-lhe o sentido de propriedade. Para ele, em primeiro lugar vinha sempre o clã ou seja, a segurança e prosperidade deste acima de tudo. No entanto, lá no fundo, sentia que grande vantagem seria para o clã, se pudesse contar com Ayla. não Isso é impossível, falou consigo. contra toda a tradição Algo que foge completamente a nossos costumes.

Creb já não via os talentos de Ayla com a mesma admiração Se ainda subsistia alguma dúvida em seu espírito, a demonstração dela acabou por convencê-lo. Ayla realmente vinha caçando.

- Antes de mais nada, por que você teve de pegar na funda? - gesticulou o Mog-ur, com expressão fria e soturna.

- Não sei - disse ela, baixando a cabeça e olhando para o chão Mais do que tudo, odiava causar desgostos a Creb.

- Você fez mais do que simplesmente tocar numa arma. Você caçou e matou com ela, quando sabia que esta era uma coisa proibida.

- Recebi um aviso de meu totem, Creb. Pelo menos achei que era um aviso. - Desatou o laço de seu amuleto. - Resolvi caçar depois que encontrei isso - falou, estendendo o fóssil na direção do Mog-ur.

Um aviso? Seu totem lhe mandou um aviso? Agora, eles se sentiam consternados por ela. A revelação deu uma reviravolta na situação Mas por que resolveu ela caçar? Este era o ponto.

O feiticeiro examinou o fóssil com atenção. Era uma pedra de fato fora do comum. Tinha a forma de um bicho do mar mas, sem dúvida alguma, era pedra. Podia ser um sinal ou aviso, mas não provava nada. Os sinais eram uma coisa que existia só entre a pessoa e seu totem. Ninguém podia entender o aviso dado a um outro. O Mog-ur devolveu-o à menina.

- Creb - implorou ela. - Achei que meu totem estava me botando à prova. Achei que a maneira como Broud me tratava era um teste e que, se eu aprendesse a aceitar isso, meu totem me permitiria caçar. - Os olhares cheios de ironia convergiram na direção de Broud para ver a reação dele. Será que ela pensava mesmo que Broud estava sendo usado pelo totem para pô-la à prova? O rapaz parecia embaraçado. - Achei também que, quando o lince me atacou, isso era outro teste. Então, quase que deixei de caçar, estava com medo. Foi aí que tive a idéia de experimentar com duas pedras. Cheguei mesmo a pensar que foi o totem que me deu tal idéia.

- Estou entendendo - disse o feiticeiro. - Gostaria de ter algum tempo para meditar sobre isso tudo, Brun.

- Talvez todos nós precisemos de tempo para pensar sobre isso. Vamos nos reunir amanhã de manhã - anunciou ele. - Sem a menina.

- O que há mais para pensar? - objetou Broud. - Todos sabemos qual o castigo que ela merece.

- Seu castigo poderá ser perigoso para o clã inteiro, Broud. Antes de condenar, tenho de ter absoluta certeza de que nada foi deixado de lado. Voltaremos a nos reunir amanhã.

Enquanto voltavam à caverna, iam conversando entre eles.

- Nunca soube de uma mulher que quisesse caçar - dizia Droog. - Será que isso tem alguma coisa a ver com o totem dela? Afinal, é totem de homem.

- Jamais quis botar em dúvida o juízo do Mog-ur na ocasião - falou Zoug. - Mas sempre fiquei intrigado, com esse seu Leão da Caverna, mesmo com a marca na perna dela. Agora, não há mais dúvida. Ele estava certo, aliás, sempre está.

- Ela é meio homem? - perguntou Crug. - Comenta-se isso por aí.

- E explicaria esse seu jeito pouco feminino - acrescentou Dorv.

- não ela é mulher mesmo, não resta a menor dúvida e por isso deve morrer. Todo mundo sabe disso - cortou Broud.

- Talvez você esteja certo, Broud - disse Crug.

- Mesmo que ela seja meio homem, não gosto da idéia de uma mulher caçando - comentou Dorv, com dureza. - não gosto nem mesmo da idéia de ela fazer parte do nosso clã. Ela é diferente demais da gente.

- Você sabe que esta sempre foi a minha opinião Dorv - concordou Broud. - não sei por que Brun insiste ainda em falar sobre o assunto. Se eu fosse o chefe, a coisa já estaria feita e acabada.

- Não é uma decisão que se possa tomar correndo, Broud - falou Grod.

- Por que tanta pressa? Um dia a mais não faz a menor diferença.

Broud apressou o passo sem se dar o trabalho de responder. Este velho tem sempre de vir com seus discursos defendendo Brun, pensou. Por que Brun não pode tomar a decisão de uma vez? Já tomei a minha. Para que tanta falação Talvez ele já esteja ficando velho, velho demais para continuar sen do chefe.

Ayla, confusa, seguiu atrás dos homens. Foi direto para a fogueira de Creb na caverna, lá ficando sentada sobre sua pele de dormir, com os olhos perdidos no ar. Iza tentou fazê-la comer, mas a garota simplesmente abanou a cabeça recusando. Uba não entendia direito o que se passava, mas via que algo não ia bem com a garota alta e maravilhosa, a sua muito especial amiga por quem tinha verdadeira adoração Dirigiu-se a Ayla, aconchegando-se em seu colo. A jovem, em silêncio, pôs-se a embalá-la. De certa maneira, Uba sentia ser um consolo para ela. não se contorceu nem uma vez pedindo para descer, deixando-se ficar quieta e ser ninada. Por fim, adormeceu. Iza veio pegar a filha e a levou para a cama. Depois, a curandeira também foi para a dela, mas não dormiu. Seu coração estava demasiadamente amargurado pela estranha garota a que chamava de filha, ali sentada, olhando fixamente para as brasas já quase extintas da fogueira.

O dia amanheceu claro e frio. O gelo formava-se nas beiradas do riacho e uma película fina de água cristalizava-se no lago, alimentado pelo córrego junto da entrada da caverna. Mais tarde, quando o sol estivesse alto no céu, normalmente se derretia. Dentro de muito pouco tempo, o clã estaria confinado à caverna para mais outro de seus invernos.

Iza não sabia se Ayla havia dormido. Quando acordou, a menina ainda se achava sentada sobre a pele, silenciosa, perdida em seu mundo, mal se dando conta do que ia por sua cabeça. Ela simplesmente esperava. Creb, pela segunda noite, não fora para sua fogueira. Iza o vira, arrastando os pés na direção da fenda escura que levava a seu santuário. Só saiu de lá pela manhã Depois de os homens haverem partido, Iza levou um pouco de chá para Ayla, fazendo-lhe algumas perguntas solícitas, mas nenhuma resposta obteve da menina. Quando voltou mais tarde, o chá ainda estava no mesmo lugar, intocado e frio. como se já estivesse morta, pensou Iza. Sua respiração ficou presa na garganta, sentindo como se garras de ferro lhe comprimissem o coração Era mais do que podia aguentar.

Brun levou os homens para um lugar que ficava sob uma enorme rocha, protegido contra as frias rajadas de vento. Ali, mandou que se acendesse uma fogueira, antes de dar início à sessão. O desconforto de estarem sentados ao ar livre poderia levá-los a tomar decisões precipitadas e ele queria avaliar o assunto em toda sua dimensão, sabendo dos sentimentos e opiniões de seus comandados. Quando começou, foi por meio dos símbolos silenciosos empregados para dirigir-se aos espíritos, dizendo, então que não se tratava de uma reunião ordinária, mas de uma sessão oficial.

- A menina Ayla, membro de nosso clã usou uma funda para matar a hiena que atacou Brac. Há três anos já vem usando essa arma. Ayla é mulher e, pela tradição que rege os clã a mulher que fizer uso de armas deve morrer. Alguém tem alguma coisa a dizer?

- Droog gostaria de falar, Brun.

- Que fale, Droog.

- Quando a curandeira encontrou a garota, nós estávamos procurando uma caverna. Os espíritos haviam ficado zangados conosco e enviado um ter remoto para destruir nossa moradia. Talvez até não estivessem tão zangados e quisessem apenas um lugar melhor para viver. Ou talvez, quem sabe, que nós encontrássemos a menina. Ela é estranha, fora do comum, como se fosse um sinal enviado por algum totem. Desde que foi encontrada, nós só tivemos sorte. Acho que ela traz sorte e que esta vem de seu totem.“Já faz parte de sua estranheza o fato de ser escolhida pelo grande Leão da Caverna. Achávamos que ela era diferente por gostar de entrar na água do mar, mas, se não fosse por essa sua particularidade, Ona estaria agora caminhando no mundo dos espíritos. Ona é apenas uma menina e nem mesmo nasceu na minha fogueira, mas passei a amá-la. Teria sentido muito se tivesse desaparecido, sou grato por não ter morrido afogada.

“Para nós, ela é estranha, mas sabemos muito pouco sobre os Outros. Agora, ela faz parte do clã, mas não nasceu de nossa gente. não entendo por que quis caçar nas mulheres do clã isso é errado. Só que talvez, nas mulheres da raça dela, não seja assim. Bom, pouco importa, continua sendo errado do mesmo jeito. Entretanto, se ela não tivesse aprendido a atirar com funda, Brac estaria morto também. E não é nada agradável pensar na morte que teria. Um caçador morto por um comedor de carne é uma coisa, mas Brac é um bebê.

“A morte dele seria uma perda para todo o clã, Brun. Não só para você e Broud. Se ele tivesse morrido, nós não estaríamos aqui sentados nesse momento, tentando decidir o que fazer com a garota que salvou sua vida. Estaríamos de luto pelo menino que algum dia será o chefe desse clã. Acho que a menina tem de ser castigada, mas como condená-la à morte? Bom, eu tenho dito.

- Zoug gostaria de falar, Brun.

- Que fale, Zoug.

- O que Droog diz é verdade. Como pode você condenar a menina que salvou a vida de Brac? Ela é diferente, não nasceu de gente de nossa raça e talvez não pense como deveria uma mulher, mas fora essa questão da funda, ela se comporta como uma boa mulher do clã. Tem sido um modelo de mulher. Obediente, respeitosa.

- Isso não é verdade. Ela é rebelde e insolente - interpôs Broud.

- Sou eu quem estou falando agora, Broud - retrucou Zoug, com raiva.

Brun lançou a Broud um olhar reprovador, e o rapaz teve de conter-se.

- É verdade - prosseguiu Zoug - que, quando a menina era menor, foi insolente com você, Broud. Mas a culpa foi sua que se deixou levar. não seria de estranhar que você, agindo como criança, não fosse tratado como homem, não é verdade? Comigo, ela sempre se mostrou obediente e respeitosa. E também com os outros homens nunca foi insolente.

Broud fuzilou o velho caçador com os olhos, mas refreou-se.

- Ainda que fosse verdade - continuou Zoug - nunca vi ninguém atirar tão bem quanto ela. A menina diz que aprendeu comigo. Nunca soube disso, mas digo francamente a vocês: teria o maior prazer em ter um aluno tão bem-dotado assim, e confesso que hoje só tenho a aprender com ela. A memina quis caçar para ajudar o clã e, como não pôde, procurou um outro modo de nos ajudar. Ela pode ter nascido dos Outros, mas o seu coração está no clã. Sempre pôs os nossos interesses acima dos seus. Ela não pensou no risco que corria, quando foi atrás de Ona. É verdade que consegue movimentar-se dentro d’água, mas eu vi como estava cansada, quando chegou com Ona na margem. O mar poderia tê-la levado também. Ela sabia que era errado caçar e guardou este segredo durante três anos, mas não hesitou um instante quando a vida de Brac estava em perigo.

“Ela tem um bom manejo da arma. É melhor do que qualquer atirador que já conheci em minha vida. Seria uma pena não aproveitarmos esse seu dom. Eu diria que ela se constitui num bem para o clã, que se deveria deixá-la caçar e...

- Não! Não! Não! - exclamou Broud, furioso. - Ela é mulher e não se permite que mulheres cacem.

- Broud - disse o velho e orgulhoso caçador. - Ainda não terminei. Você poderá falar, quando eu tiver acabado.

Deixe que Zoug termine, Broud - advertiu Brun. - Se você não sou ber se comportar numa sessão de caráter oficial, que se retire!

Broud sentou-se, fazendo força para controlar-se.

- A funda não é uma arma importante. Só comecei a desenvolver minha técnica depois que fiquei velho demais para caçar com lança. As verdadeiras armas do homem são outras. E digo que lhe seja permitido caçar, mas que use somente a funda. Que a funda seja daqui por diante a arma dos velhos e das mulheres, ou que pelo menos seja a desta menina. Pronto, eu tenho dito.

- Zoug, você sabe tanto quanto eu que é mais difícil usar uma funda do que uma lança e que, muitas vezes, é você quem nos abastece de carne, quando uma caçada fracassa. não se subestime para favorecer a menina. Para caçar com lanças, basta ter força nos braços - falou Brun.

- E força nas pernas e no coração. Bons pulnões e um bocado de coragem - replicou Zoug.

- O que me pergunto é o quanto de coragem se precisa para enfrentar um lince depois de já ter sofrido o ataque de uma fera dessas... e sozinha, só com uma funda - comentou Droog. - não tenho nada a objetar à sugestão de Zoug, se ela continuar sempre caçando só com funda. Os espíritos também parecem não ter nada contra isso. Ayla continua a nos trazer sorte como sempre trouxe. E a caçada do mamute, vocês estão esquecidos?

- Não tenho muita certeza se é esta a decisão que devemos tomar - disse Brun. - Se já não consigo ver nenhuma saída para deixá-la continuar vivendo, caçar então muito menos. Você conhece nossas tradições Zoug. É uma coisa que nunca se fez antes. Será que realmente os espíritos estão de acordo? Afinal, como uma coisa dessas pode passar por sua cabeça? As mulheres dos clã não caçam.

- É verdade. As mulheres dos clãs não caçam, mas essa mulher sim. Isso nunca teria passado por minha cabeça, se eu não tivesse visto que ela consegue caçar. Tudo o que digo é que deixem a garota fazer o que já vinha fazendo.

- O que você diz, Mog-ur? - perguntou Brun.

- O que você espera que ele diga? Ela vive na fogueira dele! - aparteou Broud, cheio de amargor.

- Broud! - explodiu Brun. - Você está acusando o Mog-ur de botar seus sentimentos e interesses acima dos do clã? não é ele Mog-ur? O Mog-ur? Você por acaso acha que ele não sabe o que é direito e o que é certo?

- Não, Brun. Broud disse algo sensato. Todo mundo conhece bem os meus sentimentos em relação a Ayla. não é fácil esquecer que gosto muito dela. Acho que vocês deviam saber que, apesar disso, tenho procurado botar meus sentimentos de lado. não sei se vou conseguir. Desde que vocês voltaram que venho meditando e estou de jejum. Na noite passada, encontrei um caminho nas memórias que ainda não havia explorado. Talvez porque nunca tivesse procurado por ele.

“Há muito tempo atrás, muito antes de vivermos em clãs, as mulheres ajudavam os homens a caçar. - As expressões se mostravam incrédulas. - É verdade. Nós faremos uma cerimônia, e vou conduzi-los até lá. Quando estávamos aprendendo a fazer armas e ferramentas e que ainda nascíamos com um tipo de conhecimento não propriamente como as memórias, tanto os homens como as mulheres matavam animais para comer. Nem sempre, nessa época, eram os homens que sustentavam as mulheres. Tal como a mãe ursa, a mulher caçava para ela e os filhos.

“Foi muito mais tarde que o homem começou a caçar para a companheira e os filhos dela. E só muito depois que as mulheres com os filhos eram deixados em casa. Quando os homens começaram a cuidar das crianças e a sustentá-las, foi no início da formação dos clã e isto os ajudou a desenvolver-se. Se a mãe morresse durante uma caçada, seu filho também morreria. Mas somente quando as pessoas pararam de lutar entre si, quando aprenderam a cooperar umas com as outras e que os homens passaram a caçar em bando é que os clãs realmente se formaram. Até nessa ocasião algumas mulheres caçavam, no tempo em que eram elas as que detinham o privilégio de comunicar-se com os espíritos.

“Brun, você disse que isso nunca tinha sido feito antes mas, como vê, estava enganado. As mulheres dos clã já caçaram. Os espíritos, então não tinham nada contra, mas aqueles eram velhos espíritos, diferentes dos de hoje, não os dos nossos totens. Espíritos poderosos que há muito tempo estão descansando desse mundo. não tenho muita certeza se eles poderiam legitimamente ser considerados como espíritos dos clã. Não porque não fossem honrados e venerados. Eram mais do que isso, temidos principalmente. Contudo, não eram espíritos maus, diria antes, poderosos.

Estavam todos abismados. O Mog-ur falava de épocas tão remotas, tão pouco lembradas que lhes chegavam a parecer quase como uma novidade. Mas a simples menção desses tempos já foi bastante para lhes evocar o medo na lembrança e alguns então deixaram de estremecer naquele instante.

- Duvido que as mulheres dos clã atualmente mostrem desejo de caçar- prosseguiu o Mog-ur. - Nem sei se conseguiriam. Isso foi há muitíssimo tempo, e tanto as mulheres como os homens mudaram muito desde então Mas Ayla é diferente e os Outros também. Muito mais diferentes do que supomos. Não acredito que o fato de deixá-la caçar vá afetar nossas mulheres. A caçada dela e o seu desejo de caçar foram uma surpresa tão grande para elas quanto para nós. Bem, era só o que tinha a dizer.

- Alguém mais tem o que falar? - perguntou Brun. Se bem que não sabia se teria fôlego para muito mais. Sentia-se confuso, era novidade demais para um dia só.

- Goov gostaria de falar, Brun.

- Que fale, Goov.

- Eu sou apenas um acólito e não sei tanto quanto o Mog-ur, mas acho que ele deixou passar um fato importante. Talvez por querer tanto que os seus sentimentos por Ayla não interferissem em seu julgamento, talvez por medo de que o seu amor por ela falasse mais alto do que sua razão, ele se esqueceu do totem dela.

“Alguém aqui já pensou por que razão iria um poderoso totem masculino escolher uma menina? - Ele mesmo respondeu à sua pergunta de efeito apenas retórico. - Tirando Ursus, o Leão da Caverna é o mais poderoso dos totens. Mais poderoso ainda do que o do mamute. Ele caça o mamute. Mesmo que sejam só os filhotes ou os velhos, ele caça. O Leão da Caverna já não caça mamutes.

- Você não está fazendo sentido, Goov. Primeiro, diz que o Leão da Caverna caça mamute e depois diz que não caça, como é isso? - gesticulou Brun.

- Ele Não, mas ela caça. Nós nos esquecemos disso quando examinamos a questão dos totens protetores; inclusive, o leão da caverna, o macho é o protetor. Mas quem caça? O mais forte dos carnívoros, o mais forte dos caçadores é a leoa! A fêmea! Não é verdade que é ela quem leva a caça para seu companheiro? Ele pode matar, mas sua função propriamente é a de proteger, enquanto ela estiver caçando.

“Não é estranho que um Leão da Caverna tenha escolhido uma menina? Alguém aqui já pensou que talvez o seu totem não seja o leão, mas a leoa? A fêmea? A caçadora? não poderia isso explicar a razão de a menina querer caçar? Por que foi dado a ela um sinal?

Talvez tivesse sido a leoa quem lhe enviou o aviso. Talvez por isso sua marca esteja na perna esquerda. Para ela, caçar seria mais extraordinário do que possuir um totem deste? Não sei se o que estou dizendo é verdade, mas temos de admitir que existe uma lógica muito grande nisso. Que seja o seu totem o leão ou a leoa da caverna, o fato é que não podemos negar que estava predestinada a caçar. Ou será que podemos negar seu poderoso totem? E seria possível que nos atrevêssemos a condená-la por fazer o que o seu totem deseja? Bom, eu tenho dito.

A cabeça de Brun dava voltas. As idéias lhe chegavam aos supetões. Precisava de tempo para pensar, para ordenar tudo o que fora dito. Claro que é a leoa quem caça, mas quando já se ouviu falar de um totem feminino? Os espíritos, as suas essências protetoras, foram sempre masculinos, ou não Somente aqueles que passam dias em elucubrações a respeito dos desígnios dos espíritos poderiam chegar à conclusão de que o totem da menina era o caçador da espécie incorporado no seu totem. Brun, entretanto, preferia que Goov não tivesse levantado a idéia de que eles estariam deixando de atender os desejos de um totem tão poderoso.

Todo o conceito de uma mulher caçadora era tão ímpar, tão perturbador em sua concepção, que muitos ali se sentiram abalados, a ponto de dar um pequeno passo alargando as fronteiras de seu mundo seguro, confortável e bem definido. Cada homem falara de seu ponto de vista daquilo que lhe dizia respeito ou segundo sua área de interesse, e cada um alargara apenas sua fronteira, aquela de seu pequenino e restrito campo de conhecimento. Brun, porém, teria de abarcar todos os domínios e isso era demais, quase impossível. Sentia-se obrigado a examinar cada um dos aspectos, antes de emitir oseu juízo, e gostaria de dispor de tempo para poder mastigar bem as questões. Mas a decisão já não podia ser postergada por muito mais tempo.

- Alguém ainda deseja expressar sua opmião?

- Broud gostaria de falar.

- Que fale Broud.

- Todas essas idéias são interessantes e podem nos fornecer assunto para discutirmos durante os dias frios de inverno, mas as tradições a respeito são muito claras. Nascida ou não dos Outros, a menina pertence aos clã e as nossas mulheres não caçam. não se lhes permite nem tocar em armas e nem também nas ferramentas usadas para fabricá-las. Todos sabemos qual é o castigo. A menina deve morrer. Pouco importa se em épocas passadas mulheres caçavam. O fato de uma ursa ou uma leoa caçar não significa que uma mulher possa fazer o mesmo. não somos nem ursos nem leões. não faz a menor diferença também, se ela tem ou não um totem poderoso ou se ela traz ou não sorte para nós. Igualmente não faz diferença que ela seja uma exímia atiradora e que tenha salvado a vida do filho de minha companheira. Claro que lhe sou grato por isso... todos viram que, no caminho de volta, tive ocasião de me externar muitas vezes neste sentido, mas continuo dizendo que tudo isso não faz a menor diferença. As tradições dos clã não permitem concessões. Uma mulher que usa arma deve morrer. Não podemos alterar o fato. Assim rezam os nossos costumes. Toda essa reunião é uma perda de tempo. Não existe qualquer outra decisão a tomar, Brun. E tenho dito.

- Broud tem razão - disse Dorv. - não compete a nós mudar as tradições dos clã Uma exceção leva a outra. Em breve, não teremos mais nada em que nos apoiar. O castigo é a morte, logo a menina deve morrer.

Algumas cabeças acenaram em assentimento. Brun não respondeu imediatamente. Broud está certo, pensou. Qual outra decisão posso tomar? Ela salvou a vida de Brac, mas, para fazer isso, usou uma arma. Brun estava tão capaz de tomar uma decisão agora como no dia em que Ayla passou a mão numa funda e matou a hiena.

- Antes de tomar minha decisão, levarei em consideração a opinião de todos aqui. Mas quero que cada um neste instante expresse sua resposta de forma objetiva - disse, por fim, o chefe.

Os homens sentavam-se em círculo ao redor da fogueira. Todos mantinham os punhos cerrados em frente do peito. Um movimento para cima e para baixo significava resposta afirmativa e, para o lado, valia como não.

- Grod - falou Brun, iniciando com o segundo em comando - você acha que a menina Ayla deve morrer?

Grod hesitava, estava solidário com seu chefe, vivendo o mesmo dilema. Há anos era o segundo em comando de Brun e quase podia ler os pensamentos de seu chefe e, com o passar dos anos, foi aprendendo a respeitá-lo cada vez mais. Ele não via qualquer outra saída. Levantou a mão fechada para cima e depois para baixo.

- Que outra coisa poderia fazer, Brun - acrescentou.

- Grod diz sim. E você, Droog? - indagou Brun, virando-se na direção do ferramenteiro.

Droog não hesitou, seu punho cerrado fez um movimento atravessan do o peito.

- Droog diz não. Crug, e você?

Crug olhou para Brun, depois para o Mog-ur e finalmente para Broud. Ele foi com a mão para cima.

- Crug diz sim. Que a menina deve morrer - confirmou Brun. - Goov?

O jovem acólito respondeu imediatamente cruzando o peito com sua mão cerrada.

- Goov é da opinião que não deve. Broud?

Broud, antes mesmo de Brun dizer o seu nome, já tinha o punho suspenso para cima. Brun passou logo adiante, era uma resposta mais do que sabida.

- Sim, Zoug?

O velho mestre atirador, cheio de altivez, endireitou o corpo e riscou o peito com seu punho nos dois sentidos, enfaticamente, de modo a não deixar a mais leve sombra de dúvida.

- Zoug é da opinião de que a menina não deve morrer. E você, Dorv, o que acha?

O velho suspendeu sua mão fechada e, antes mesmo que a tivesse abaixado, todos já se haviam voltado na direção do Mog-ur.

- Dorv diz que sim. Mog-ur, qual é a sua opinião? - Perguntou Brun. A respeito dos outros, ele sabia por antecipação o que diriam, mas com relação ao velho feiticeiro não estava muito certo.

Creb se via na maior agonia. Sabia o que rezava a tradição. Culpava-se pelo crime de Ayla, por lhe ter dado demasiada liberdade. Sentia-se também culpado por gostar tanto dela, temendo que isso obscurecesse seu raciocínio, que pudesse pensar primeiro nela, botando seus deveres para com o clã em segundo plano. Pela lógica, decidira que ela devia morrer. Mas antes que se pusesse a fazer o movimento, sua mão foi empurrada para o lado, como se alguém a tivesse agarrado e a movesse por ele. Era-lhe impossível condená-la, se bem que, uma vez a decisão tomada, faria aquilo que era de sua competência. Ele não tinha escolha, isso agora era exclusivamente com Brun e com mais ninguém.

- As opiniões estão igualmente divididas - anunciou o chefe. - De qualquer o modo, a decisão seria mesmo minha. Eu apenas quis saber o que pensavam. Vou precisar de algum tempo para ver com mais clareza o que foi dito aqui hoje. O Mog-ur anunciou uma cerimônia para esta noite. Isso é bom. Estou precisando da ajuda dos espiritos, e todos nós temos necessidade da proteção deles. Vocês saberão da minha decisão amanhã pela manhã. Ayla também saberá. Agora, vocês podem ir e se preparem para a cerimônia.

Brun, sozinho, permaneceu junto da fogueira. As nuvens, trazidas pelos ventos gelados, corriam pelo céu fazendo cair pesados e intermitentes aguaceiros. Brun, entretando, estava alheio à chuva, do mesmo jeito que também não percebia as últimas brasas faiscando na fogueira. Já era quase noite, quando a custo se levantou e foi-se arrastando para a caverna. Viu Ayla ainda sentada no mesmo lugar em que a deixara ao sair pela manhã. Ela espera o pior, disse consigo. Mas que outra coisa poderia esperar?

 

O clã, cedo, reuniu-se do lado de fora da caverna. Do leste vinha um vento frio, prenunciando rajadas mais geladas ainda, mas o céu estava claro com o sol da manhã brilhando por cima do morro, contrastando com os ânimos sombrios das pessoas. Elas evitavam olhar umas para as outras. Na falta de conversa, vinham com os braços caídos arrastando-se até os seus lugares. Naquela manhã, saberiam do destino da estranha menina que haviam adotado em seu meio.

Uba sentia sua mãe tremendo e lhe apertando a mão com tanta força que chegava a doer. A menina percebia que o tremor não era pelo vento frio. Havia algo mais. Creb estava de pé, parado à entrada da caverna. Nunca sua figura esteve tão intimidadora, com seu rosto disforme parecendo esculpido em granito e o único olho mostrando-se impenetrável como uma pedra opaca. A um sinal de Brun, foi coxeando para o interior da caverna, lenta e cansadamente, sucumbido pelo peso de um fardo monstruoso. Ele se dirigiu à sua fogueira e olhou para a menina sentada sobre a pele de dormir. Fazendo um supremo esforço sobre si, obrigou-se a ir para junto dela.

- Ayla, Ayla - disse, com brandura. A menina levantou os olhos. - Chegou o momento. Você deve vir agora. - Ayla tinha o olhar mortiço, parecendo não compreender. - Você precisa vir, Ayla. Brun espera - repetiu Creb.

Ayla acenou com a cabeça, dizendo que compreendera e se levantou com esforço de seu lugar. As pernas estavam duras de tanto tempo ficar sentada, mas ela mal notou. Em silêncio, seguiu Creb, olhando para a terra no chão, marcada por aqueles que haviam passado ali antes: marcas de calcanhar, impressões de dedos, contornos imprecisos de pés envolvidos por couro, a ponta redonda do cajado de Creb e os sulcos deixados por suas passadas trôpegas. Parou, ao dar com uns calçados cobertos de poeira. Eram os de Brun. Ela se deixou, então, cair por terra. A uma pequena pancadinha em seu ombro, procurou forças dentro de si para poder levantar os olhos e olhar a face do chefe do clã.

O impacto lhe devolveu a consciência, despertando um medo indefinido. Era a figura de sempre - fronte baixa, deslizando para trás, sobrancelhas cerradas, nariz adunco e a barba grisalha - mas o olhar orgulhoso, duro e severo desaparecera, substituído por uma franca expressão de pesar e compaixão.

- Ayla - disse alto, para depois prosseguir por meio de gestos formais, usados só em ocasiões solenes - menina dos clã são antigas as nossas tradições. Vivemos conforme estas, praticamente desde que os clãs existem. Você não nasceu de nossa gente, mas é uma de nós e deve viver ou morrer segundo os nossos costumes. Quando estávamos no norte, caçando o mamute, você foi vista usando uma arma e, antes disso, também já a havia usado. Nossas mulheres não podem usar armas, essa é uma de nossas tradições. O castigo também faz parte das tradições. Tais são os nossos costumes e estes não devem ser alterados.

Brun se inclinou para a frente e olhou para Ayla, dentro de seus olhos azuis amedrontados, e então prosseguiu:

- Eu sei por que você usou a funda, Ayla, se bem que até agora não entendo os motivos que a levaram a querer usar uma arma. Brac não estaria vivo, se não fosse você. - Ele endireitou a postura e, com gestos extremamente medidos para que todos pudessem ver, acrescentou: - O chefe deste clã agradece a esta menina por ter salvo a vida do filho da companheira do filho da minha companheira.

Algumas pessoas se entreolharam. Raramente se fazia um reconhecimento como aquele publicamente e mais raro ainda era um chefe admitir sua gratidão uma simples menina.

- Entretanto, as nossas tradições não admitem exceções. - Nesse ponto, ele fez um sinal para o Mog-ur que se dirigiu para a caverna. - E eu não posso agir de outra maneira, Ayla. O Mog-ur neste instante está armando os ossos e dizendo em voz alta os nomes daqueles que não se podem pronunciar, nomes que apenas os mog-urs conhecem. Depois que ele terminar, você morrerá. Ayla, menina dos clã você está amaldiçoada com a maldição de morte.

Ayla sentiu que o sangue lhe fugia do rosto. Iza soltou um grito, prolongado num som agudo e lamentoso, pranteando a morte de sua filha. Ela foi interrompida por Brun, que tinha a sua mão suspensa.

- Ainda não terminei - gesticulou o chefe.

Fez-se súbito silêncio. Os olhares se entrecruzaram rapidamente, todos, curiosos, aguardando o que estava por acontecer. O que mais teria Brun a dizer?

- As tradições dos clã são claras e, como chefe, sou obrigado a seguir nossos costumes. Uma mulher que usa arma deve ter pesando sobre ela a maldição de morte. Entretanto, nenhum costume estabelece por quanto tempo deve durar o castigo. Ayla, sua maldição de morte deve ser por todo o período de uma lua. Se os espíritos concederem a você a graça de voltar do outro mundo, após a lua haver feito todo o seu ciclo, quando novamente estiver na fase em que se encontra agora, você poderá tornar a viver conosco.

Houve um rebuliço geral. Era totalmente inesperado.

- É verdade - gesticulou Zoug. - não existe nada dizendo que a maldição tenha de ser para sempre.

- Mas que diferença faz? Como alguém que ficou morto por tanto tempo pode voltar a viver? Alguns dias ainda vai, mas durante toda uma fase de lua? - perguntou Droog.

- Se a maldição fosse só por alguns dias, não sei se satisfaria as condições do castigo - disse Goov. - Alguns mog-urs acreditam que o espírito não atinge o outro mundo, se a maldição for por prazo curto. Ele fica simplesmente pairando por aí, esperando o tempo passar para regressar, caso consiga fazê-lo. Se o espírito ficar por perto, os malignos também ficarão. Essa é uma maldição de morte limitada, mas é tão prolongada que chega quase a valer como uma definitiva. Ela satisfaz perfeitamente as exigências de nossos costumes.

- Então, por que simplesmente ele não lançou a maldição e deu a coisa por encerrada - gesticulou Broud, com raiva. - Nada em nossas tradições fala de maldição de morte temporária para esse tipo de crime. Ela deveria morrer, e a maldição de morte era para ser o seu fim.

- E você acha que não será, Broud? Acredita realmente que ela possa voltar? - perguntou Goov.

- Não acho nada. Só queria saber por que Brun não lançou simplesmente a maldição Será que já não consegue mais tomar uma simples decizão. Broud se sentiu confuso com o sentido subentendido na pergunta de Goov. Ela punha a descoberto aquilo que todos no seu íntimo estavam pensando. Teria Brun imposto uma maldição de morte temporária, se não soubesse que haveria alguma chance, ainda que muito remotamente, de a menina voltar da morte?

Brun passara a noite toda lutando com seu dilema. Ayla salvara a vida do bebê. não era justo que ela morresse por isso. Ele amava a criança e se sentia profundamente grato à moça, mas a questão ultrapassava seus sentimentos pessoais. As tradições exigiam que a menina morresse. Por outro lado, havia outros costumes: o costume da obrigação aquele que rezava que uma vida se paga com outra vida. Ayla trazia consigo uma parte do espírito de Brac. Ela merecia e lhe era devida uma coisa de igual valor. A ela, estava-se devendo a vida.

Somente quando começou a clarear o dia, conseguira encontrar uma solução. Algumas almas mais fortes haviam voltado depois de uma maldição de morte temporária. Era uma chance longínqua, praticamente nenhuma, apenas uma levíssima esperança. Em troca da vida do bebê, ele lhe dava a única coisa que estava dentro de seu alcance oferecer: uma ínfima possibilidade de viver. Não era o suficiente; mais, entretanto, não lhe era possível, e isso era melhor do que nada.

Subitamente, abateu-se um silêncio mortal. O Mog-ur, de pé nà entrada da caverna, era a própria personificação da morte: velho e encarquilhado. não foi preciso que ele anunciasse que estava tudo acabado. O Mog-ur havia cumprido o seu dever. Ayla estava morta.

Os lamentos de Iza vaiavam o ar. Em seguida, vieram os de Oga e Ebra. Depois, todas as mulheres juntaram suas vozes à de Iza, em pranto solidário. Ao ver a mulher que amava sucumbida pela dor, Ayla correu para consolá-la- Mas no momento em que ia envolvê-la nos braços, Iza, a única mãe de quem se lembrava, afastou-se, evitando o abraço. Era como se Iza não a visse. A menina se achou confusa. Olhou para Ebra inquirindo, mas Ebra olhava como se através dela. Foi para Aga, depois para Ovra, ninguém a via. Quando ela se aproximava, ou se viravam, ou se punham de lado. Não propositadamente para lhe dar caminho, mas como se todos houvessem planejado sair antes que ela pudesse chegar. Ayla correu na direção de Oga.

- Sou eu! Ayla! Estou aqui na sua frente. Você não me vê?

Os olhos de Oga estavam vidrados. Ela deu as costas, afastando-se sem responder, sem fazer qualquer sinal de reconhecê-la; era como se Ayla fosse invisível.

Ayla viu Creb caminhando na direção de Iza. Ela correu para ele.

- Creb! Sou Ayla! Estou aqui - gesticulou, inteiramente fora de si. O velho feiticeiro seguiu seu caminho, afastando-se apenas o suficiente para evitar Ayla, jogada a seus pés, como se ela fosse uma pedra em seu caminho. - Creb - dissera, gemendo. - Por que você não me pode ver? - Levantou-se e correu outra vez para Iza.

- Mãe! mãe Olhe para mim! OLHE PARA MIM! - gesticulou com as mãos na frente dos olhos de Iza, que novamente começou no seu agudo lamento.

- Minha filha, minha filhinha. A minha Ayla está morta. Ela foi embora. Minha pobrezinha. Pobre Ayla. Ela não está mais viva.

Ayla viu Uba, cheia de medo e confusa, abraçada na perna da mãe. Ajoelhou-se na frente da garotinha.

- Você me vê, não é, Uba? Eu estou bem aqui. - Ayla percebeu nos olhos da menina um sinal de reconhecimento, mas, no mesmo momento, Ebra chegou e carregou-a dali.

- Eu quero Ayla - gesticulou Uba, contorcendo-se para descer do colo.

- Ayla está morta, Uba. Ela foi embora. Essa não é Ayla. É só o espírito dela querendo encontrar seu caminho para o outro mundo. Se você tentar falar com ele, se você enxergá-lo, o espírito vai tentar levá-la junto. Não olhe para ele. Dá azar enxergar o espírito. Você não quer ter azar, não é, Uba?

Ayla se deixou abater no chão Ela não sabia o que significava a maldição de morte e imaginara todas as espécies de horrores, mas a realidade era muito pior.

Para o clã, ela deixara de existir. O que faziam não era uma farsa ou encenação para assustá-la. Ayla simplesmente passou a não mais existir. Ela era um espírito que, por alguma razão qualquer, estava visível, continuando a dar uma aparência de vida a seu corpo, mas ela mesma estava morta. Segundo a crença do clã a morte era uma mudança de estado, uma jornada para um outro plano da existência. A força vital se fazia através de um espírito invisível, isso era evidente. Alguém poderia num momento estar vivo e, no outro, morto, sem qualquer mudança visível, fora o fato de que o movimento, a respiração e o que causava a vida tinham desaparecido. A essência da verdadeira Ayla já não fazia mais parte do mundo deles; ela se vira obri gada a passar ao outro. O fato de a parte física que ficara neste mundo estar fria e sem movimento, ou ao contrário, quente e animada, não tinha a menor importância.

Este era apenas um passo a ser dado na expulsão da essência da vida. Se o corpo de Ayla ainda não sabia, muito brevemente compreenderia. Ninguém, na verdade, acreditava que ela voltasse, nem mesmo Brun. Seu corpo, uma concha vazia, jamais poderia ser novamente viável, a não ser que seu espírito fosse autorizado a voltar. Sem o espírito vital, o corpo, não podendo comer nem beber, logo estaria deteriorado. Uma vez acreditando firmemente nesta teoria e os entes queridos não reconhecendo a existência, não havia mais existência e, portanto, nenhuma razão para comer, beber ou viver.

No entanto, enquanto permanecesse o espírito perto da caverna, animando o corpo do qual já não fazia mais parte, as forças que o haviam expulsado continuavam também pairando nas vizinhanças. Essas podiam fazer mal aos vivos e tentar levar consigo alguma vida. Sabia-se de pessoas que receberam a maldição de morte que tiveram companheiros ou familiares mortos pouco tempo depois de haverem sido amaldiçoadas. Ao clã não importava se o espírito levasse consigo o corpo ou se a concha vazia permanecesse no mundo, o que desejavam é que o espírito desaparecesse o mais rapidamente possível.

Ayla observava à sua volta todas aquelas pessoas que lhe eram tão familiares. Elas se afastavam para retomar seus afazeres diários, embora a atmosfera estivesse tensa. Creb e Iza entraram na caverna. Ayla se levantou e os seguiu. Ninguém tentou impedi-la, apenas Uba foi mantida afastada. Acreditava-se que as crianças tivessem proteção especial, mas era melhor não tentar demasiadamente a sorte. Iza reuniu todos os pertences de Ayla, inclusive as peles e as palhas secas que haviam forrado seu lugar de dormir, e levou tudo para fora da caverna. Creb foi com ela e pegou uma brasa da fogueira na entrada da caverna. Depois de depositar as coisas ao lado de uma fogueira apagada que Ayla ainda não havia percebido, Iza voltou para dentro, enquanto Creb tocava fogo na lenha. Em seguida, silenciosamente, ele fez por cima dos objetos e da fogueira uma série de gestos que eram desconhecidos de Ayla.

Com horror cada vez maior, ela via Creb lançando às chamas cada uma de suas coisas. Para Ayla, não haveria cerimônia fúnebre, isto também fazia parte do castigo e da maldição. Mas todo vestígio de sua pessoa tinha de ser destruído, nada que pudesse prendê-la ali deveria restar. A garota viu o seu pau de cavar pegando fogo, depois a cesta de colher, o acolchoado de palhas secas, as roupas, tudo ia sendo atirado ao fogo. Percebeu que as mãos de Creb tremeram, quando pegou sua capa de pele. Por um instante, ele a apertou contra o peito, depois a atirou também ao fogo. Os olhos dela transbordavam de lágrimas.

- Oh, Creb eu gosto tanto de você - disse, gesticulando.

Mas os olhos dele pareciam não ver. Com profundo terror, viu-o pegar sua sacola de remédios, a que Iza fizera pouco antes da malfadada caçada de mamute, e atirá-la também ao fogo.

- Não Creb, não Minha sacola de remédios, não - implorou. Tarde demais, já começara a pegar fogo.

A garota não pôde suportar mais. Chorando sua angústia e solidão pôs- se a correr às tontas, descendo a colina e entrando na mata. não via por onde ia e nem se importava. Os galhos lhe atravessavam o caminho, mas passava por eles sem ver os arranhões que iam ficando nos braços e nas pernas e, patinan do pela água gelada, não se dava conta dos pés empapados e já dormentes. Por fim, tropeçou num tronco, esborrachando-se no chão. Deixou-se ficar estendida sobre a terra fria e molhada, desejando que a morte chegasse depressa, livrando-a daquele sofrimento atroz. não tinha nada: família, clã, motivo para viver. Estava morta. Eles mesmos o haviam dito.

Seu desejo não estava muito longe de tornar-se realidade. Desde o regresso da caçada, há dois dias que, perdida no seu mundo de mágoas e medos, não comia nem bebia. Seus trajes eram leves e os pés doíam com o frio. Fraca e desidratada, era candidata certa a morrer de frio. Havia, entretanto, dentro dela algo que era mais forte do que o desejo da morte, a mesma coisa que já a havia sustentado antes, quando um terremoto devastador deixou uma menina de cinco anos sem amor, família e proteção. Uma inquebrantável vontade de viver, um obstinado instinto de sobrevivência não a deixavam entregar-se, enquanto respirasse e houvesse vida pela frente.

A parada deixou-a mais calma e ela se sentou, tremendo de frio, com os ferimentos sangrando. Quando caíra batera com o rosto contra algumas folhas molhadas e agora lambia os lábios, procurando umedecê-los. Estava sedenta. não se lembrava de ter tido tanta sede na vida. O barulho de uma água próxima colocou-a sobre os pés. Depois de um longo e prolongado gole, já saciada, pôs-se a caminho. O tremor era tanto que ouvia o barulho dos dentes batendo, e os pés gelados e doídos faziam do seu caminhar um penoso sacrifício. Sentia-se enjoada e tonta. O movimento a aqueceu um pouco, mas a baixa temperatura do corpo estava produzindo seus efeitos.

Não sabia direito onde se encontrava, não tinha nenhum destino em mente, mas os pés seguiam um trajeto que de tantas vezes feito e repetido lhe ficara gravado no cérebro. O tempo perdera o significado, ignorava desde quando estava caminhando. Subia margeando a base de um íngreme paredão que ia para além de uma nebulosa cachoeira. Foi então que lhe veio o sentimento de um terreno já conhecido. Saindo de um pequeno bosque de coníferas entremeadas por alguns pés atarracados de vidoeiros e salgueiros, viu-se em sua solitária clareira no alto da montanha.Há quanto tempo, perguntava-se ela, não aparecia por ali. Depois que começara a caçar, a não ser na época em que treinava a técnica dos dois arremessos, raramente fora lá. Sempre havia sido um lugar para treinar, nunca para caçar. Será que durante o verão não cheguei a vir nem uma vez? não se lembrava. Pondo para o lado o denso emaranhado de galhos que, mesmo sem folhas, ocultava a entrada, Ayla entrou na pequena caverna.

Pareceu-lhe menor do que imaginava. Lá está a velha pele de dormir, disse consigo, lembrando-se da época em que a trouxera. Havia sido há muito tempo. Alguns esquilos tinham feito ninhos dela, mas quando ela a trouxe para fora e a sacudiu, reparou que não estava muito estragada. Ficara só um pouco dura com o tempo. O interior seco da caverna ajudara a conservá-la. Ayla se enrolou na pele, dando graças por tê-la e tornou a entrar no pequeno abrigo.

Havia uma peça de couro, uma velha capa que trouxera para botar por cima de palhas e fazer um acolchoado. Gostaria de saber se ainda existe aquela faca, pensou consigo. A prateleira improvisada caiu, mas ela deve estar por perto... ah, aqui está, disse retirando do meio da terra uma faca que, de pois de limpa, usou para cortar a velha capa de couro. Tirou então dos pés os calçados molhados e enfiou uma tira pelos buracos que fez em cada um dos dois círculos cortados do couro. Envolveu os pés no novo calçado, forrando-o antes com palhas secas achadas sob a peça de couro. Estendeu os outros calçados para secar e, em seguida, pôs-se a fazer o inventário da caverna.

Preciso de uma fogueira. A palha seca servirá para ajudar o fogo a pegar. Empurrou-a, fazendo um monte junto da parede. A prateleira está seca, posso também tirar umas lascas nela para fazer fogo e vai servir como base para girar o pau. Agora, preciso encontrar um... ah, ali está a minha cuja devidoeiro, também poderia queimá-la. Não vou precisar dela para guardar água. Esta cesta está toda roída. O que é isso dentro? A minha velha funda. não sabia que tinha ficado aqui. Devo ter feito uma outra. Ela a suspendeu examinando. É muito pequena e os ratos deram nela. Vou precisar de uma nova. Ela parou olhando para a tira de couro que tinha na mão.

Fui amaldiçoada por causa disso. Agora, estou morta. Mas como posso estar aqui pensando em fogueiras e fundas? Eu estou morta. Só que não me sinto morta... O que estou sentindo é muito frio e fome. Pode uma pessoa morta ter fome e frio? O que um morto sente? Será que sou o meu espírito no outro mundo? Mas nem sei o que é o meu espírito. Nunca vi um em toda a minha vida. Creb diz que não se pode ver espíritos, mas ele conversa com eles. Por que não me pôde ver? E por que ninguém mais pôde? Devo estar morta. Então por que penso em fogueiras e fundas? Ora, por que tenho fome!

Será que posso usar uma funda para arranjar comida? Por que não? Já estou amaldiçoada mesmo, eles não podem me fazer mais nada. Mas essa aqui não está boa. O que eu poderia usar para fazer uma outra? A capa? não O couro está muito duro, ficou muito tempo aqui dentro. Preciso achar um couro macio. Ela passou os olhos pela caverna. Sem uma funda para matar um animal, não posso fabricar outra. Onde será que posso encontrar um couro macio? Ela dava voltas na cabeça, procurando por uma solução e acabou sentando-se no chão desesperada.

Ali ficou olhando para as mãos caídas sobre o colo. De repente, viu onde elas estavam apoiadas. Claro, a minha roupa! Posso tirar um pedaço dela. Criou então alma nova, pondo-se outra vez a olhar a caverna, cheia de entusiasmo. Ah, aqui está o meu velho pau de cavar. não me lembrava de o ter deixado aqui. E também alguns pratos. Isso sim, me lembro de quando trouxe essas conchas para cá. Estou morta de fome. Queria que existisse alguma coisa para comer por aqui. Mas espere! Há sim. Este ano, não catei as avelãs, elas devem estar espalhadas pelo chão lá fora.

Ayla ainda não se dera conta, mas começara a viver outra vez. Colheu as avelãs trouxe-as para dentro da caverna e comeu tantas quanto permitiu o seu estômago encolhido pela falta de comida. Em seguida, retirou a roupa e cortou dela um pedaço para fazer a funda. A correia não tinha a bolsa para ajustar as pedras, mas achava que dava para funcionar.

Até então, nunca havia caçado animais para comer, e o coelho era rápido, mas não o bastante para ela. Lembrou-se de haver passado pela casa de um castor na beira da água. Conseguiu pegar o bicho no momento exato em que ele ia esconder-se sob as águas. No caminho de volta, viu uma pequena pedra cinza perto do riacho. Isso é sílex. Tenho certeza de que é. Pegou o nódulo e levou consigo. Meteu o castor e o coelho dentro da caverna e voltou para catar madeira e uma pedra para martelar.

Preciso de um pau para fazer fogo. Ele tem que estar perfeito e seco. Essa madeira está muito molhada. Reparou no pau de cavar. Isso deve servir. Era difícil fazer fogo sem a ajuda de outra pessoa. Estava acostumada a revezar com outra mulher no trabalho de girar o pau sem parar, comprimindo-o contra uma superfície. Depois de muito esforço e concentração uma faísca saiu da combustão da superfície, passando para o monte de acendalhas. Com muito cuidado, foi soprando até que por fim se viu recompensada com pequenas línguas de fogo. Começou, então, a jogar, uma por uma, as lascas de madeira seca para depois botar pedaços maiores tirados da prateleira. Quando o fogo pegou de vez, botou por cima a madeira que havia apanhado do lado de fora e uma alegre fogueira se fez dentro da pequenina caverna.

Vou ter de arrumar uma panela para cozinhar, pensou, enquanto fazia um espeto com o coelho já sem a pele e punha por cima o rabo do castor para enriquecer com sua gordura a carne magra do coelho. Vou precisar também de um novo pau de cavar e de outra cesta. Creb queimou a minha. Queimou tudo, até mesmo a minha sacola de remédios. Por que ele teve de fazer isso? Os olhos se encheram de lágrimas que rolavam pelo rosto. Iza disse que estou morta. Por que ela não conseguia ver que eu estava ali? Ali, bem na frente dela. Por alguns momentos, ficou chorando, depois se sentou endireitando o corpo e enxugou as lágrimas. Se vou ter de fazer um outro pau de cavar, precisarei de uma machadinha, disse, cheia de resoluções.

Enquanto o coelho assava, fabricou o machado à maneira como viu Droog fazendo e com ele cortou um galho verde para servir de pau de cavar. Em seguida, foi apanhar mais lenha que empilhou dentro da caverna. Mal aguentava esperar a carne ficar pronta. O cheiro lhe enchia a boca de água e seu estômago vazio não parava de roncar. A primeira mordida lhe deu a sensação de nunca ter comido nada tão gostoso na vida.

Quando terminou, já estava escuro e ela se sentia feliz com sua fogueira. Botou, então mais lenha por cima, abafando um pouco o fogo para ter certeza de que não apagaria até o dia seguinte e, enrolando-se na velha pele, deitou-se, mas o sono não veio. Olhava as chamas enquanto lhe iam desfilando pela cabeça, numa monstruosa sequência, os horríveis acontecimentos do dia. Nem notava as lágrimas escorrendo pelo rosto. Tinha medo e, ainda por cima, via-se só. Nunca mais passara uma noite sozinha, desde que Iza a encontrara. Por fim, exausta, os olhos se fecharam, mas foi um sono perturbado por pesadelos. Gritava chamando Iza e chamando também, numa língua inteiramente esquecida, por uma outra mulher. Mas ninguém se achava lá para consolar a menina perdida em sua dolorosa solidão.

Os dias de Ayla transcorriam ativos, com ela ocupada nas coisas que lhe garantiriam a sobrevivência. Há muito deixara de ser a garotinha de cinco anos,inexperiente e ignorante. Os anos passados na companhia do clã foram de trabalho duro, mas tinha aprendido bastante durante esse tempo. Teceu cestas impermeáveis, uma outra para colher plantas, curtiu o couro dos animais que caçava, fez forros de pele de coelho para botar dentro dos calçados, arrumou perneiras que amarrava com cordas e luvas que cortava num feitio semelhante aos calçados: pedaços redondos de pele que atava ao redor do pulso, tal como uma bolsa, só que nesta fazia uma fenda para deixar o polegar passar. Fabricou ainda ferramentas de sílex e catou capim para tornar mais macio o seu lugar de dormir.

A clareira também lhe supria com alimentos. O pasto lá estava alto, carregado de sementes e cereais. E num terreno próximo havia nozes, arandos, uvas-de-urso, maçãzinhas verdes, tubérculos e samambaias comestíveis. Ficou feliz por encontrar astrágalos, em sua variedade não venenosa, cujas vagens verdes encerravam fileiras de pequenas sementes arredondadas que muito apreciava. Chegou, inclusive, a moer as duras sementes dos quenopódios secos para juntar com os cereais que cozinhava fazendo uma espécie de mingau. Os terrenos na vizinhança davam, portanto, para satisfazer perfeitamente suas necessidades.

Pouco tempo depois de estar lá, resolveu que precisava de uma nova vestimenta de pele. O inverno ainda não havia mostrado sua verdadeira face, mas já estava bem frio e ela sabia que a neve não tardaria a chegar. O primeiro pensamento foi para uma pele de lince, um animal que tinha especial significado para ela. Mas a carne era incomível, pelo menos para seu gosto. A comida tinha a mesma importância que a pele. Enquanto pudesse caçar, não lhe custava muito satisfazer suas necessidades imediatas, mas precisava armazenar para o futuro, quando a neve iria confiná-la na caverna. A comida, naquele momento, era uma razão para caçar.

Odiava a idéia de ter de matar um daqueles animais tão mansos que por tanto tempo havia dividido com ela o refúgio nas montanhas; além disso, não tinha muita certeza se conseguiria abater um veado com a funda. Ficou surpresa de ver um pequeno bando ainda usando os pastos lá em cima e resolveu que seria melhor aproveitar logo a oportunidade, antes que os animais fossem para terrenos mais baixos. Uma pedra lançada com força a pequena distância pegou numa corça e uma forte paulada na cabeça fez o serviço final.

A pele era grossa e macia - a natureza preparara bem o animal para os rigores do inverno - e o assado, em fogo lento, constituiu-se numa bela ceia. Um carcaju de maus bofes, atraído pelo cheiro de carne crua aproximou-se, mas foi recebido por uma pedrada certeira que a fez lembrar-se do primeiro animal que abatera na vida, o outro carcaju que rondava a caverna do clã para roubar-lhe a comida. Os carcajus para alguma coisa servem disse ela então a Oga. Os bafos frios de nossa respiração não congelam nas peles do carcaju e são essas as que dão melhores capuzes. Desta vez vou fazer um para mim, disse consigo, arrastando o corpo do animal para a caverna.

Armou fogueiras em volta das cordas em que pendurou as carnes para secar, com isso mantendo os carnívoros a distância e apressando o processo de secagem e, além disso, a carne defumada tinha um sabor de que particularmente gostava. No fundo da caverna cavou um buraco raso - era pequena a camada de terra naquele ponto onde se formara a fenda na montanha - forrou-o com pedras trazidas do riacho e armazenou ali os alimentos que cobriu com pedras maiores.

Sua nova pele curtida junto com a carne tinha cheiro de fumo, mas ela a esquentava e a velha serviu para tornar seu lugar de dormir mais aconchegante. Da corça, ainda aproveitou o estômago que, depois de bem lavado, usou como cantil de água, os tendões, que foram usados como cordas, e da corcova sobre o rabo, onde o animal armazenava suas reservas para o inverno, Ayla retirou gordura. Sua preocupação de todos os dias, enquanto a carne secava, era com a neve, e ela dormia do lado de fora, dentro do círculo de fogueiras para poder mantê-las acesas durante a noite. Por fim, ao ver tudo guardado e em segurança, pôde sentir-se mais aliviada e tranquila.

Quando o céu se cobriu com pesadas nuvens escondendo a lua, sua preocupação passou a ser com a contagem do tempo. Lembrava-se exatamente do que Brun dissera: “Se os espíritos concederem a você a graça de voltar do outro mundo, após a lua haver feito todo o seu ciclo, quando novamente estiver na fase em que se encontra agora, você poderá tornar a viver conosco.” Ela não sabia se estava ou não no “outro mundo”, só sabia que mais do que tudo desejava voltar. Também não tinha muita certeza se poderia, ou se voltasse, as pessoas iriam enxergá-la. Brun, no entanto, dissera que ela podia e eram a estas palavras que se apegava. Mas, como saber quando voltar, se as nuvens cobrissem a lua?

Recordou-se que, há muitos anos, Creb lhe mostrara um processo de fazer marcas sobre um pau. Supunha que uma porção de varas com ranhuras que ele guardava num canto da fogueira deles na caverna fosse para contar a quantidade de tempo entre um e outro acontecimento significativo. Certa vez, por curiosidade, ela resolveu também informar-se sobre determinada coisa à maneira como ele fazia, e já que a lua passava sempre por ciclos repetitivos, interessou-se em ver quantas marcas seriam necessárias para se ter um ciclo completo da lua. Creb descobriu e lhe passou um bom cargo. A repreensão serviu para que Ayla guardasse bem na memória que aquela era uma coisa que jamais deveria voltar a fazer, mas, por isso mesmo, nunca se esqueceu da ocasião. Passou um dia inteiro preocupada, sem saber como calcular a época em que deveria estar de volta, até que se lembrou desse fato de tempos atrás e teve a idéia de fazer, todas as noites, uma marca sobre um pau.

Por mais que se esforçasse, as lágrimas lhe vinham sempre aos olhos ao final do dia, quando mais uma marca era acrescentada.

As lágrimas estavam constantemente subindo a seus olhos. Pequeninas coisas traziam-lhe à lembrança detalhes envolvendo momentos de amor e ternura. Um coelho assustado atravessando o caminho fazia-a recordar de suas longas caminhadas com Creb. Adorava seu velho rosto, rude, com um só olho e cheio de cicatrizes. A lembrança dele inundava os seus olhos de lágrimas. Alguma planta medicinal que via punha a garota chorando, cheia de lembranças de Iza, explicando-lhe como usá-la, e a visão de Creb queimando a sacola de remédios provocava outro derramamento de lágrimas. De noite, ainda era pior.

Acostumara-se a ficar sozinha durante o dia em suas andanças pelas matas, colhendo plantas ou caçando, mas, à noite, sempre teve pessoas por perto. Sentada na solidão de sua pequena caverna, com os olhos parados nas chamas refletindo suas sombras dançantes na parede, chorava com saudade daqueles que amava. Sob certos aspectos, era Uba que mais lhe fazia falta. Muitas vezes, abraçada com as peles, punha-se a niná-las e cantar baixinho, tal como fazia com a menina. A natureza satisfazia as exigências de seu corpo, mas não as da alma.

A primeira nevada chegou silenciosamente durante a noite. Ao sair da caverna pela manhã, Ayla exclamou cheia de alegria. Uma brancura ancestral suavizava os contornos da paisagem familiar, criando formas fantásticas e plantas míticas numa terra de sonhos e magia. Os arbustos viam-se enchapelados pela neve macia, as coníferas engalanavam-se com novos trajes brancos e os galhos desfolhados cobriam-se com roupagens brilhantes que desenhavam cada um dos seus ramos contra o azul forte do céu. A garota olhou para as marcas deixadas por seus pés quebrando a uniformidade daquele macio manto luminosamente branco e se pôs a correr cruzando as suas passadas umas sobre as outras, querendo formar um desenho complicado, cujo plano original se perdeu na execução. Começou, então, a seguir a trilha deixada por um pequeno animal, mas de repente mudou de idéia e subiu pelo estreito afloramento na rocha, onde o vento havia varrido a neve.

Por trás dela, a cadeia de montanhas subia formando uma série de majestosos picos cobertos por um branco anilado que faiscava ao sol tal como gigantesca jóia brilhante. A vista, estendendo-se à frente, mostrava até onde alcançara a nevada. O mar verde puxando para o azul, visto por entre as fendas das colinas brancas, revolvia-se em ondas espumosas, mas o terreno na planície do lado leste continuava ainda limpo de neve. Ayla viu diminutas figuras movendo-se pela vastidão branca a seus pés. Havia também nevado na caverna do clã. Uma das silhuetas, lá embaixo, pareceu-lhe arrastar-se num passo coxo e lento. Subitamente, o clima de magia se desvaneceu e ela tornou a descer.

A segunda nevada chegou sem qualquer encantamento. A temperatura baixou bruscamente. Sempre que saía da caverna, os ventos cortantes penetravam-lhe na pele do rosto como afiadas farpas. A tempestade durou quatro dias, amontoando tal quantidade de neve junto à parede da caverna que a entrada praticamente ficou bloqueada. Ela, com as mãos e, às vezes, com o osso do quadril da corça, cavou um túnel e passou todo um dia catando lenha. A secagem da carne consumira inteiramente a madeira que existia caída nos arredores e o andar pesado na neve alta deixou-a exausta. Quanto à comida, não tinha dúvida de que possuía o bastante para mantê-la, mas já não fora tão precavida no que se referia à madeira. não tinha certeza se haveria o suficiente e, se a neve continuasse por muito mais tempo, sua caverna seria soterrada, tornando-lhe impossível a saída.

Pela primeira vez, desde que se encontrava ali, a jovem temeu pela vida. A clareira estava num ponto muito elevado da montanha. Se ficasse prisioneira, não conseguiria sobreviver ao inverno. não tivera tempo de preparar-se para a estação inteira. Voltou aquela tarde à caverna, prometendo-se que pegaria mais madeira no dia seguinte.

A manhã surgiu com outra tempestade que uivava toda sua força, deixando a entrada completamente bloqueada. Sentia-se enclausurada, como se presa numa armadilha e com muito medo. Ficava a imaginar debaixo de quanta neve estaria enterrada. Conseguindo uma vara comprida, meteu-a através dos galhos dos pés de avelã esboroando a neve para dentro da caverna. Sentiu uma certa aragem e olhou, pelo buraco, a neve que caía horizontalmente, açoitada pela força do vento. Deixou a vara mantendo o buraco e veio para junto da fogueira.

Foi uma sorte ter tido a idéia de medir a altura da neve. O furo mantido aberto pela vara permitia o ar entrar no seu diminuto espaço, pois tanto ela como o fogo precisavam de oxigênio. Sem tal providência, poderia ter adormecido e caído num sono do qual nunca mais teria acordado. O perigo era muito maior do que poderia imaginar.

A garota descobriu que não precisava de uma fogueira muito grande para manter a caverna aquecida. A neve, encerrando diminutas partículas de ar entre os seus cristais gelados, era bom isolante. O calor de seu próprio corpo já era quase suficiente para esquentar o ambiente. Mas precisava de água, e o fogo passou a ser mais importante para derreter gelo do que para aquecer.

Sozinha na caverna, iluminada por uma pequena fogueira, diferençava o dia da noite apenas pela fraca luz filtrada através do buraco de ar, e todas as tardes, quando a luz começava a diminuir, tinha o cuidado de fazer a ranhura no pau.

Sem ter o que fazer, a não ser pensar, passava o tempo contemplando o fogo. Ele era quente, tinha movimento e, fechado naquele mundo mais parecido a um túmulo, foi ganhando vida própria. Via-o devorando cada pedaço de lenha até que restasse apenas o resíduo das cinzas. Será que o fogo também tinha espírito?, perguntava-se. Para onde irá o seu espírito depois da morte? Creb diz que quando uma pessoa morre, seu espírito vai para o outro mundo. E eu já não estaria no outro mundo? Não sinto nada diferente. Só me sinto sozinha e nada mais. Seria possível meu espírito estar em outro lugar? Mas como saber? não me dá a impressão que esteja. Bem, pode ser. Acho que meu espírito está com Creb, Iza e Uba. Mas se estou amaldiçoada, devo estar morta.

Por que teria o meu totem me enviado um aviso, sabendo que eu seria amaldiçoada? Por que imaginei que ele me mandou o aviso, se não foi isto o que aconteceu? Achei que ele estava me testando. Talvez este seja outro teste. Ou será que ele me abandonou? Mas, então, por que fui escolhida para depois ser abandonada? Pode ser que não tenha me abandonado. Talvez ele tenha ido para o mundo dos espíritos no meu lugar. Pode até ser que esteja lutando contra os maus espíritos. Ele faria isto melhor do que eu. Talvez me tenha enviado para cá, só para esperar. Será que ele ainda está me protegendo? Mas, se não estou morta, como estou? Sozinha, é como estou, e queria não estar me sentindo tão sozinha.

O fogo está com fome outra vez, está querendo comer mais. Acho que também vou comer alguma coisa. Pegou um pedaço de lenha de sua minguada reserva e alimentou a fogueira. Em seguida, foi checar a passagem de ar. Já está escurecendo, é melhor botar outra marca no pau. Será que essa tempestade vai durar todo o inverno? Pegou o pau, botou a marca e, em seguida cobriu as ranhuras com os dedos. Primeiro, com uma das mãos, depois com os dedos da outra, novamente com os dedos da primeira mão e assim foi fazendo até cobrir todas as marcas. Ontem, seria o último dia. Agora, já posso voltar. Mas como, com essa tempestade? Foi outra vez verificar a passagem de ar. Dava apenas para ver, na escuridão cada vez maior, a neve caindo ainda horizontalmente. Abanou a cabeça e voltou para junto do fogo.

Ao acordar no dia seguinte, a primeira coisa que fez foi ir checar o buraco de ar. A ventania continuava soprando com toda a fúria. Será que nunca vai parar? não pode continuar assim a vida toda. Quero voltar. E se Brun tornar a minha maldição para sempre? E se eu não puder voltar, mesmo que a tempestade pare? Se ainda não estou morta, certamente vou morrer. não houve tempo, só pude abastecer-me para durar uma lua. Jamais iria aguentar o inverno inteiro. não sei por que Brun deu uma maldição de morte limitada. Eu não esperava isso. Será que, ao invés do meu totem, tivesse sido eu quem fosse para o mundo dos espíritos, teria eu voltado? Como posso saber que meu espírito não foi? Talvez meu totem esteja aqui protegendo meu corpo, enquanto meu espírito está em outro lugar. não sei. Simplesmente não tenho noção. A única coisa que sei é que, se Brun não tivesse feito uma maldição temporária, eu nunca teria uma chance.

Uma chance? Será que Brun pensou em me dar uma chance? De repente, tudo se encaixava numa nova e profunda compreensão que revelava sua maior maturidade. Acho que realmente Brun quis dizer isto, quando falou estar agradecido por eu ter salvo a vida de Brac. Ele era, ainda que não quisesse, obrigado a me amaldiçoar por ser esse o costume dos clã Sim, ele quis me dar uma chance. não sei se estou morta. Será que as pessoas mortas comem, dormem e respiram? Ela estremeceu, mas não de frio. Acho que a maioria das pessoas simplesmente não deseja morrer e agora eu sei por quê.

O que me fez, então, escolher viver? Teria sido tão fácil morrer. Bastava ter ficado no lugar onde caí, depois que deixei a caverna. Se Brun não me ti vesse dito que eu poderia voltar, será que me teria levantado? Se não soubesse que havia alguma chance, teria feito tanto esforço? Brun disse que: “Se os espíritos concederem a você a graça...” Mas que espíritos? Alguma coisa me fez querer continuar vivendo. Talvez fosse o meu totem protegendo-me ou, quem sabe, talvez porque eu soubesse que tinha uma chance... ou as duas coisas. Acho que as duas coisas.

Levou algum tempo até que Ayla compreendesse que estava acordada e mesmo assim teve que tocar nos olhos para perceber que estavam abertos. Ela abafou um grito sufocante na escuridão da caverna. Estou morta! Brun me amaldiçoou e eu agora estou morta! Jamais sairei daqui. Nunca voltarei à caverna, é tarde demais. Os maus espíritos me tapearam. Eles me fizeram pensar que estava viva e salva, quando estou morta. Ficaram com raiva por não ter seguido com eles e agora estão me castigando. Eles me levaram a acreditar que estava viva e, na realidade, tenho estado morta durante todo esse tempo. Ela tremia apavorada, encolhida sob a pele, com medo até de mexer-se.

Dormira mal. Acordando a cada instante com sonhos monstruosos, povoados de horrendos espíritos malignos, em meio a terremotos, linces que a atacavam e se transformavam em leões da caverna, e uma neve que caía infindavelmente. A caverna tinha um peculiar cheiro de umidade, mas esse odor foi a primeira coisa que a fez compreender que seus sentidos, além da visão, estavam funcionando. A segunda foi quando, em pânico, deu um salto e bateu com a cabeça contra a parede de pedra.

Onde está o pau?, perguntava, por gestos, na escuridão. Já está de noite e tenho de botar a marca. Ela ia de gatinhas pelo escuro procurando pelo pau como se este fosse a coisa mais importante do mundo. Deveria marcá-lo todas as noites, mas como vou poder fazer isso, se não posso encontrá-lo? Será que eu já pus a marca? Sem o pau, como vou saber quando ir para casa? Não. não é bem isso. Ela abanou a cabeça, querendo clarear as idéias. Eu já posso voltar, o tempo está esgotado. Só que estou morta e a neve não quer parar. Vai continuar sempre nevando, nevando e nevando. Ah, outro pau, onde está o outro pau? Preciso ver a neve. Como vou ver a neve na escuridão?

Arrastando-se às cegas pela caverna, trombando com as coisas, chegou até à entrada e viu um brilho, fraco, emaciado no alto. O pau tem de estar ali em cima. Ela subiu pelos galhos que entravam um pouco para o interior da caverna, sentiu a extremidade de um mais comprido e o puxou. Quando conseguiu arrancá-lo, a neve caiu por cima dela, abrindo a passagem de ar. Ela foi saudada por um bafo de ar fresco e um pedaço de céu azul forte. Finalmente, a tempestade tinha cedido e o vento parara de soprar, mas as últimas neves haviam tampado o buraco.

O ar fresco serviu para clarear suas idéias. Acabou! Parou de nevar! Até que enfim! Agora posso voltar para casa. Mas como vou sair daqui? Com o galho, ela passou a remexer a neve dando cutucadas, querendo alargar a passagem. Um grande torrão da abertura se desprendeu e despencou dentro da caverna, cobrindo-a de neve. Preciso ter cuidado, do contrário acabo enterrada. Tenho de pensar direito como fazer a coisa. Tornou a subir nos galhos e sorriu na direção da luz escoando pelo buraco já mais largo. Estava excitada, louca para sair, mas se forçou a ficar calma e a pensar com mais calma.

Que bom seria se o fogo não se tivesse apagado, gostaria de tomar um pouco de chá. Mas ainda tenho água na sacola. Isso é bom, disse consigo, enquanto tomava um bom gole. Não vou poder cozinhar nada para comer, mas não é por uma refeição a menos que vou morrer. De qualquer maneira, sempre posso comer um pedaço de carne-seca. Isso não precisa ser cozinhado. Deu uma corrida outra vez até a entrada da caverna para se certificar de que o céu continuava azul. Bem, agora o que devo levar comigo? Com comida, não tenho que me preocupar, há uma boa quantidade estocada, principalmente depois da caçada do mamute.

De repente, todos os acontecimentos passaram num átimo por sua cabeça: a caçada de mamute, a hiena, a maldição de morte. Será que eles vão mesmo me aceitar de volta? E se não quiserem? Para onde eu vou? Mas Brun disse que eu poderia voltar. Ele falou isso. Ayla aferrava-se a essa idéia.

Bem, a funda, é claro que não vou levar. E a minha cesta de colher? Creb queimou a outra. Não Só vou precisar dela quando chegar o verão e até lá posso fazer uma. As minhas roupas, vou carregar todas. Vou ter que usá-las e talvez leve também algumas ferramentas. Reuniu tudo quanto tinha que levar e começou a vestir-se. Pôs os dois calçados forrados de pele de coelho, vestindo um sobre o outro, botou as perneiras de couro, meteu as ferramentas nas dobras da roupa que amarrou bem segura, enfiou na cabeça o capuz de carcaju, calçou as luvas forradas de pele e se dirigiu para o buraco. Voltou-se para dar uma última olhada no lugar que fora sua casa por todo um ciclo da lua, mas, então retirou as luvas e voltou.

Não sabia por que, mas era importante para ela deixar a caverna em ordem, isso lhe dava um sentimento de conclusão como se fossem coisas que se guardam depois de usadas. Ayla, por ela mesma, já tinha um sentido muito grande de ordem que Iza veio fortalecer ainda mais com as arrumações sistemáticas de seus depósitos de medicamentos. Rapidamente, pôs tudo em ordem, calçou de novo as luvas e se dirigiu com ar resoluto para a entrada bloqueada. Ia sair, ainda não sabia como, mas estava de volta à caverna do clã.

É melhor tentar passar por cima, nunca vou conseguir abrir um túnel, pensou consigo. Subiu no pé de avelã usando o galho que servira para manter aberta a passagem de ar. Pondo-se nos galhos mais altos que, devido à neve, pouco vergavam com o peso de seu corpo, ela meteu a cabeça para fora do buraco, levando um susto com o que viu. Sua clareira na montanha estava irreconhecível. Do lugar onde se achava via a neve descendo numa suave rampa que se perdia a distância. não conseguia identificar nenhum ponto de referência. Tudo era neve. Como vou poder atravessar isto? Está muito alta. Estava quase se dando por vencida.

Olhando em derredor, começou a determinar sua posição Aqueles vidoeiros perto do pinheiro alto não são muito maiores do que eu. Por ali, a camada não deve ser muito profunda, mas como chegar até lá? Procurou passar de gatinhas pelo buraco, enquanto ia socando a neve para formar uma base mais firme. Ao subir numa saliência, caiu de bruços sobre uma superfície maior, mas o peso se distribuiu por igual, impedindo-a de afundar.

Com muito cuidado, pôs-se primeiro de joelhos e depois de pé, percebendo que o nível da neve nos arredores não era muito profundo. Deu algumas passadas curtas, calcando sempre bem os pés. Seus calçados eram circunferências de couro franzido não muito apertado ao redor dos tornozelos e o segundo que levava por cima fazia o efeito de uma bola de ar, dando-lhe um andar extremamente desajeitado. Embora não fossem exatamente o que conhecemos como sapatos próprios para neve, eles distribuíam o peso sobre uma área maior, impedindo que ela chafurdasse muito na neve fofa.

A marcha, entretanto, era difícil. Sempre socando a neve com os pés, dando passadas pequenas, de vez em quando se afundando até a altura dos quadris, ela foi na direção do lugar onde existira o riacho. A neve que cobria a água gelada não era muito profunda. O vento havia acumulado uma grande quantidade contra a parede da caverna, mas a varrera de outras áreas que pra ticamente estavam limpas. Deteve-se ali, tentando resolver se seguiria o riacho até seu encontro com o outro de que era afluente e, daí, fazendo um longo percurso para chegar à caverna, ou se pegaria o caminho mais difícil, porém mais curto. Estava aflita, mal aguentando esperar pela volta. Decidiu-se pelo mais curto. Só que não imaginava o quanto este era mais perigoso.

Com muita cautela, pôs-se a andar, mas o caminho da descida era difícil. O sol já ia alto no céu e ela praticamente ainda se achava na metade do trecho, coisa que no verão fazia no tempo transcorrido entre as primeiras sombras do crepúsculo e a noite. Estava frio, mas o sol de meio-dia aquecia a neve e a garota começava a ficar cansada e um pouco descuidada.

Estava indo pela crista de um morro inteiramente desguarnecido que dava para uma encosta íngreme e coberta de neve, quando escorregou num determinado trecho. O cascalho solto desprendeu umas pedras maiores que se balançaram em seus lugares, fazendo vibrar, enquanto Ayla achava-se caída, a base instável de um monte de neve. Num segundo, ela se viu rolando pela encosta, despencando-se em meio a uma cascata de neve e ouvindo o rugir trovejante da avalanche.

Creb estava deitado de olho aberto quando Iza, silenciosanente, chegou trazendo-lhe uma conja de chá quente.

- Sabia que estava acordado, Creb. Achei que gostaria de tomar alguma coisa quente, antes de se levantar. A tempestade parou durante essa noite.

- Eu sei, daqui posso ver um pedaço do céu azul.

Os dois se sentaram para tomar chá. Ultimamente ficavam muitas vezes sentados juntos, sem nada dizer. A fogueira parecia vazia sem Ayla. Era difícil de acreditar que uma menina pudesse deixar um vazio tão grande. Creb e Iza tentavam preenchê-lo, procurando a companhia um do outro, querendo consolar-se mutuamente, mas o consolo era pequeno. Uba estava tristonha e rabugenta. Ninguém conseguia convencê-la de que Ayla estava morta. Continuava sempre perguntando por ela. Remexia a comida que desperdiçava quase toda, atirando ou cuspindo no chão. Depois, emburrada, pedia por outra, levando Iza à loucura, até que acabava perdendo a paciência e ralhava, para no momento seguinte estar arrependida. A tosse de Iza havia voltado, mantendo-a acordada boa parte da noite.

Parecia impossível que Creb tivesse envelhecido tanto em tão pouco tempo. Ele nunca mais voltara à sua pequenina caverna, desde que lá arrumara os ossos do urso da caverna em duas fileiras paralelas, com a da esquerda penetrando pela base da caveira e saindo pela cavidade do olho esquerdo. Nessa ocasião, balbuciou alto com sua voz áspera as sílabas dos nomes dos espíritos maus, naqueles instantes reconhecidos e recebendo plenos poderes. Ele não teve coragem de voltar lá para olhar aqueles ossos e nem tinha vontade de comungar com os bons espíritos, através de seus belos e fluidos gestos. Havia pensado seriamente em renunciar e passar suas funções a Goov. Brun, ao tomar conhecimento, tentou convencê-lo a reconsiderar sua decisão.

- O que você irá fazer, Mog-ur?

- E o que faz um homem depois que se aposenta? Estou ficando muito velho para ficar sentado naquela caverna fria. Meu reumatismo está pior.

- Não se precipite, Creb - gesticulara Brun, pedindo calma. - Pense mais um pouco.

Creb pensara e já estava quase decidido a dar a notícia naquele mesmo dia.

- Acho que vou deixar Goov ser o mog-ur, Iza - gesticulou ele para Iza, sentada a seu lado.

- Esta é uma decisão que só pode ser sua, Creb. - Ela não pensava em dissuadi-lo. Sabia que Creb, desde que amaldiçoara Ayla, perdera o gosto para a função apesar de que isso representasse toda a sua vida. - Já passou do prazo, não é, Creb?

- Sim, já passou, Iza.

- E como ela vai saber que já está esgotado? Com aquela tempestade, ninguém podia ver a lua.

Creb se lembrou de quando mostrou para uma garotinha a maneira como ela poderia saber quantos anos levariam ainda para que ela pudesse ter um bebê e também de quando, já mais velha, por ela mesma, contava a duração do ciclo da lua.

- Se estiver viva saberá, Iza.

- Mas a tempestade estava muito forte, Creb. Ninguém iria conseguir sair com um tempo daqueles.

- Não pense mais nisso, Iza. Ayla está morta.

- Eu sei, Creb - falou Iza, com gestos desesperançados.

Creb olhou para sua germana pensando na dor dela, desejando poder fazer alguma coisa, pelo menos um gesto de consolo.

- Não devia dizer isso, Iza, mas tanto o espírito dela, como os dos outros, que são maus, já foram embora deste mundo. O perigo deixou de existir. O espírito dela falou comigo antes de partir. Ele disse que me amava. Era tão real que eu quase me deixei levar naquele instante. O espírito mais perigoso é o do amaldiçoado. Ele procura enganar a pessoa, fazendo com que ela acredite na sua existência para levá-la consigo. Chego quase a desejar ter ido com ela.

- Eu sei, Creb. Quando o espírito dela me chamou di mãe, eu... eu... Iza levantou as mãos não conseguindo continuar.

- O espírito dela implorou para que eu não queimasse a sacola de remédios, Iza. Seus olhos se encheram de água, igual como acontecia com ela viva. Foi o pior momento. Acho que, se já não tivesse atirado a sacola no fogo, eu a teria entregue a ela. Esse foi o último truque; depois disso, o espírito desapareceu.

Creb se levantou, enrolou-se em sua capa e pegou o cajado. Iza o observava. Raramente ele saía da fogueira. O Mog-ur caminhou para a entrada da caverna e lá ficou de pé, olhando, durante muito tempo, o brilho branco da neve. Voltou quando Iza mandou Uba avisá-lo para vir comer. Em seguida, foi para seu posto habitual. Mais tarde, Iza foi juntar-se a ele.

- Está frio aqui, Creb. Você não deve ficar tão exposto assim ao vento

- gesticulou ela.

- É a primeira vez depois de muitos dias que faz céu claro. É um alívio ver uma coisa diferente da tempestade, com seus eternos uivos.

- Pode ser, mas de vez em quando vá para junto do fogo se esquentar um pouco.

Creb ficou indo e vindo da fogueira para a entrada, onde ficava longo tempo contemplando a paisagem de inverno. Mas, à medida que o dia foi avançando, passou a sair cada vez menos da fogueira. Enquanto jantavam, com o dia já quase escuro, ele gesticulou na direção de Iza, dizendo:

- Depois de comermos, darei uma passada na fogueira de Brun. Vou lhe dizer que Goov daqui por diante será o mog-ur.

- Sim, Creb - falou Iza, com a cabeça baixa. Já não havia mais esperança. Agora ela tinha certeza disso.

Creb se levantou, enquanto Iza retirava a comida. De repente, um grito aterrorizado saiu da fogueira de Brun. Iza levantou os olhos. Na entrada da caverna estava uma estranha aparição inteiramente coberta de neve e batendo com os pés no chão para esquentá-los.

- Creb - gritou Iza. - O que é aquilo?

Creb ficou por um instante olhando, já se pondo em guarda contra algum espírito desconhecido dele. Mas, então, seu olho se arregalou.

- É Ayla - gritou, correndo na direção dela, esquecendo cajado, dignidade e o bom-tom proibindo demonstrações públicas de sentimentos, para envolvê-la nos braços e apertá-la contra o peito.

 

- Ayla? É realmente Ayla, Creb? não é o seu espírito? - perguntou Iza, -        enquanto o velho conduzia a garota à fogueira. A mulher tinha medo de acreditar, medo de que aquele corpo tão real pudesse transformar-

se em miragem.

- Ayla - gesticulou Creb. - O prazo terminou. Ela venceu os maus espíritos e voltou para nós.

- Ayla! - exclamou Iza, correndo de braços abertos e envolvendo-a com neve e tudo o mais num forte abraço cheio de amor. Estava molhada, mas não só de neve. Ayla derramava abundantes lágrimas de alegria por todos. Enquanto isso, Uba dava puxões nas vestes de Ayla.

- Ayla, Ayla voltou! Uba sabia que ela não tinha morrido - afirmou a garotinha, com a convicção de quem sabe que, desde o princípio, estava com a razão.

Ayla pegou-a, segurando-a tão apertada que a menina se contorceu, querendo soltar-se para poder respirar.

- Você está molhada! - gesticulou Uba, quando pôde ter os braços livres.

- Ayla, tire essas roupas molhadas! - falou Iza, apressando-se em botar mais lenha na fogueira e achando alguma coisa para a menina vestir. Com isso, dissimulando suas emoções, ao mesmo tempo em que expressava seus cuidados maternais. - Vai acabar morrendo de frio.

Iza, embaraçada, olhou para ela. Subitamente, dera-se conta do que tinha dito. A menina deu um sorriso.

- Tem razão, mãe. Vou acabar pegando uma gripe. - Retirou o capuz e a roupa. Em seguida, sentou-se, lutando para desatar os cordões empapados dos calçados. - Estou morta de fome. Há alguma coisa para comer? não comi o dia inteiro - disse a garota, depois de se ter metido nas velhas roupas de Iza. Estavam muito curtas e um pouco apertadas. - Era para ter chegado mais cedo, mas fui apanhada por uma avalanche enquanto descia a montanha. Tive sorte de não ficar enterrada debaixo de um montão de neve, mas gastei um bocado de tempo até conseguir cavar uma saída.

O espanto de Iza durou só um minuto. Se Ayla dissesse que havia caminhando por entre labaredas, teria acreditado do mesmo jeito. A volta em si já era prova bastante de sua invencibilidade. O que significava uma simples avalanche para ela? Iza começou a estender as mãos para pegar as roupas de Ayla e pendurá-las para secar, mas, de repente, suspendeu o gesto no ar, olhando para o couro de veado que não conhecia.

- Onde você conseguiu essa roupa, Ayla?

- Fui eu quem fiz.

- Ela é... é desse mundo? - indagou, apreensiva.

Ayla tornou a sorrir.

- É. Ela é bem desse mundo. Você se esqueceu? Eu sei caçar.

- não diga isso, Ayla! - exclamou Iza, nervosa. Virou-se de costas para que o clã, que ela sabia estar observando, não a visse, passando então a gesticular muito discretamente.

- Você não tem nenhuma funda, não é?

- não Ela não veio comigo. Mas isso não faz qualquer diferença agora. Todo mundo já sabe, Iza. Eu precisava fazer qualquer coisa depois que Creb queimou tudo que era meu. O único jeito de conseguir uma roupa seria caçando. Peles não crescem em salgueiros ou em cima de pinheiros.

Creb observava em silêncio, sem querer acreditar que ela estava realmente de volta. Havia casos de pessoas que voltavam depois de uma maldição de morte, mas até então ele não achava que fosse possível. Há alguma coisa diferente nela. Está mudada. Parece mais adulta, mais confiante. Não é de admirar, depois de tudo o que passou. E ela se lembra também do que aconteceu. Sabe que queimei as suas coisas. Tinha curiosidade de saber do que mais ela se recorda. Como será no mundo dos espíritos?

- Espíritos! - gesticulou ele, subitamente, lembrando-se de que os ossos ainda estavam armados. Tenho de desmanchar a maldição.Correu, então, para desfazer a figura feita com os ossos de urso, ainda colocados na posição da maldição de morte. Pegou a tocha que ardia do lado de fora da abertura na parede e entrou pela estreita passagem. Chegando ao pequenino recinto, mal pôde respirar, tamanho o seu assombro. A caveira do urso se havia mexido, tirando do lugar o osso comprido que antes saía pela cavidade ocular. A figura estava desmanchada.

Uma quantidade de pequenos roedores, atraídos pelo calor e a comida, dividiam a caverna com o clã. Um desses, possivelmente, havia passado por ali, tirando a caveira de sua posição original. Creb sentiu um calafrio e, fazendo um sinal para se proteger contra os maus espíritos, levou os ossos para uma pilha junto da parede do fundo. Quando saiu, deu com Brun, esperando por ele.

- Brun - gesticulou o Mog-ur - não posso acreditar. Você sabe que nunca mais estive aqui desde que pronunciei a maldição E ninguém mais também esteve. Eu ia desmanchar a maldição mas, quando cheguei, ela já estava desfeita. - Sua expressão era tanto de assombro como de terror.

- O que você acha que aconteceu?

- Deve ter sido o totem dela. Como acabou o prazo, talvez ele tenha desfeito a maldição para que ela pudesse voltar - respondeu o Mog-ur.

- Você deve ter razão. - Brun ia fazer um gesto para prosseguir, mas hesitava.

- Estava querendo falar comigo, Brun?

- Queria falar com você em particular. - O chefe continuava hesitante.

- Desculpe minha intrusão mas não pude deixar de olhar para sua fogueira. A volta da menina foi uma surpresa.

Não era só ele. Todos haviam desrespeitado o costume de não se olhar para a fogueira do vizinho. Era impossível não fazê-lo. Nunca tinham visto ninguém que houvesse voltado do mundo dos mortos.

- Em tais circunstâncias, isso é muito compreensível. não se preocupe- respondeu o Mog-ur, já pronto para ir embora.

- não foi por isso que vim procurá-lo - disse Brun, detendo Creb. - Queria perguntar a você algumas coisas sobre cerimônias. - O feiticeiro esperava, olhando para Brun, enquanto este procurava pelas palavras. - É sobre uma cerimônia... agora que ela está de volta.

- Nenhuma cerimônia será necessária. O perigo não existe mais. Os maus espíritos foram embora. Não há necessidade de pedir por proteção.

- Não estou me referindo a este tipo de cerimônia.

De que tipo então?

Brun continuava hesitando. Resolveu então abordar o assunto por outro lado.

- Observei a menina enquanto ela conversava com você e Iza. Você notou alguma diferença nela, Mog-ur?

- O que você quer dizer com alguma diferença? - gesticulou o Mog-ur, cauteloso, sem atinar com o que Brun estava pretendendo.

- Ela tem um forte totem. Droog sempre diz que a menina traz sorte e que seu totem também traz sorte para nós. Pode ser que ele tenha razão. Ela nunca teria voltado, se não tivesse sorte e também uma forte proteção. Acho que agora ela sabe disso. É nesse sentido que estou falando de diferença.

- Acho que também notei esse tipo de diferença. Mas ainda estou sem entender o que isso tem a ver com cerimônias.

- Lembra-se da reunião que tivemos depois da caçada do mamute?

- Quando você lhe fez as perguntas?

- Na da outra. Quando ela não estava presente. Desde aquela época que venho pensando nessa reunião. Acreditava que a menina não fosse voltar, mas que, isso acontecendo, seria por causa da força de seu totem, uma força muito mais poderosa do que a que imaginamos.

Pensei muito no que deveríamos fazer, caso ela voltasse.

- Mas por quê? não temos necessidade de fazer nada. Os maus espíritos foram embora, Brun. Ela está de volta, igual ao que sempre foi. É a mesma menina, nada mudou nela.

- E se eu quiser promover alguma mudança? Há alguma cerimônia para isso?

O Mog-ur estava inteiramente aturdido.

- Uma cerimônia para quê? Você não precisa de cerimônias para modificar sua maneira de agir em relação a ela. Mas, de que mudança está falando? não posso discutir sobre cerimônias com você, se não sei com que intenção elas vão ser realizadas.

- O totem dela é também um totem do clã não é? não é nossa obrigação fazer com que todos os totens estejam felizes? Eu queria que você celebrasse uma cerimônia, Mog-ur.

Mas queria saber antes se essa cerimônia seria possível.

- Brun, você não está fazendo sentido.

Brun atirou as mãos para cima, desistindo de fazer-se entender. Enquanto ayla estava fora, Brun tivera tempo para ruminar muitas das idéias que foram expostas pelos homens durante a reumião, daí resultando uma série de preocupações que agora ficava remoendo em sua cabeça.

- Se a coisa toda não faz sentido, como vou poder explicar? Afinal, quem esperava que ela fosse voltar? não entendo e nunca entendi de espíritos. não sei o que eles querem e é para isso que você está aqui. Só que não está ajudando muito! Bem, de qualquer modo, era uma idéia ridícula. É melhor eu pensar um pouco mais na coisa.

Girou sobre os calcanhares, deixando Creb parado no lugar, inteiramente sem saber o que pensar. Mas, depois de dar alguns passos, o chefe voltou.

- Diga à garota que quero vê-la. - E dizendo isso, Brun se dirigiu para sua fogueira.

Creb, muito confuso, voltou meneando a cabeça.

- Brun quer ver Ayla - falou, ao chegar na sua fogueira.

- Ele disse que quer vê-la imediatamente? - perguntou Iza, botando mais comida na frente de Ayla. - Ou ela, primeiro, pode acabar de comer?

-Já acabei, mãe. não aguento mais nada. Eu vou agora.

Ayla foi para a fogueira vizinha e se sentou de cabeça baixa aos pés do chefe do clã. Ele estava com os calçados que ela já conhecia, empoeirados e gastos nos mesmos lugares. A última vez que vira aqueles pés, a garota estava aterrorizada. Há muito deixara de sentir-se assim. Para sua surpresa, não se via nem um pouco com medo de Brun, mas seu respeito por ele crescera. Ela aguardava. A espera para seu reconhecimento parecia interminável.

Por fim, ela sentiu a batidinha no ombro e levantou os olhos.

- Vejo que está de volta, Ayla - começou ele, claudicante.

- Sim, Brun.

- Estou surpreso de vê-la. Não esperava.

- Esta menina também não esperava estar de volta.

Brun se via inteiramente perdido. Queria conversar com ela, mas não sabia o que dizer e nem como terminar com aquela entrevista que ele próprio solicitara. Ayla esperava.

Finalmente, fez um gesto pedindo a palavra.

- Esta menina queria falar, Brun.

- Pode falar.

Também ela hesitava, tentando encontrar palavras que exprimissem exatamente o que gostaria de dizer.

- Esta menina se sente feliz por estar de volta. Mais de uma vez, ela teve medo e mais de uma vez chegou a estar certa de que nunca voltaria.

Brun grunhiu qualquer coisa. Disso, eu não duvido, pensou ele.

- Foi difícil, mas acho que meu totem me protegeu. No princípio, havia muito trabalho e eu não tinha muito tempo para pensar. Mas depois fiquei presa sem ter o que fazer.

Hem? Trabalho? Presa? Que espécie de mundo de espíritos é esse? Ele ia perguntar, mas depois mudou de idéia. Na verdade, ele não estava querendo saber.

- Acho que então comecei a entender uma coisa.

Ela se interrompeu, buscando ainda pelas palavras certas. Queria transmitir-lhe uma espécie de sentimento próximo ao da gratidão, mas não aquele normalmente sentido, o da gratidão ligada a uma obrigação ou aquele que toda mulher deve ao homem. Ela queria apenas dizer muito obrigada. Obrigada por me dar uma chance, só que não sabia como.

- Brun... esta menina se sente agradecida. Você já disse isso para mim. Disse que estava agradecido pela vida de Brac e estou agradecida a você pela minha.

Brun inclinou-se para trás, estudando a menina. Alta, cara chata, olhos azuis. A última coisa que esperava dela era gratidão. Ele a havia amaldiçoado. Mas ela não disse que estava agradecida por isso, e sim por sua vida. Será que compreendera que ele não tinha outra alternativa? Que entendera que aquela oportunidade para viver era a única coisa que estava a seu alcance oferecer? Teria esta estranha menina entendido isto melhor do que os seus caçadores? Melhor até do que o Mog-ur? Sim, concluiu consigo, ela entendera. Sentiu por Ayla algo que nenhuma mulher já havia despertado nele. Por um momento, desejou que ela fosse homem. Não tinha mais necessidade de pensar no que queria perguntar ao Mog-ur. Já o sabia.

Capítulo 18

- não sei o que eles estão tramando e nem sei se o resto dos caçadores sabe - falou Ebra. - Tudo que posso dizer é que nunca vi Brun tão nervoso. As mulheres estavam todas sentadas juntas, preparando a comida para uma festa.

Ignoravam o que iriam comemorar. Brun apenas lhes dissera para preparar um banquete para aquela noite, e elas agora crivavam Iza e Ebra de perguntas, querendo descobrir alguma pista.

- O Mog-ur passou o dia inteiro e a metade da noite na gruta dos espíritos. Deve ser alguma cerimônia. Enquanto Ayla esteve fora, ele nem perto passava daquele lugar e agora não sai de lá - comentou Iza. - Quando está metido com essas coisas, fica tão distraído que não se lembra nem de comer. Às vezes, durante as refeições, se esquece até de botar a comida na boca.

- Mas se eles vão fazer uma cerimônia, por que Brun passou a metade do dia limpando o fundo da caverna? - falou Ebra. - Quando me ofereci para fazer o serviço, ele me expulsou. Se existe um lugar deles para cerimônias, por que iria Brun fazer trabalho de limpeza igual a uma mulher?

- Mas que outra coisa poderia ser? - perguntou Iza. - Quando olho para Brun e o Mog-ur, parece que os dois têm a cabeça na mesma coisa. E se me percebem por perto, param de falar e ficam com ar de culpa. O que será que poderiam estar planejando? E por que a festa desta noite? O Mog-ur passa o tempo todo indo no lugar que Brun está limpando e às vezes entra na gruta dos espíritos para sair logo depois. Acho que ele está carregando alguma coisa, mas é tão escuro lá no fundo que não dá para ver.

Ayla se limitava simplesmente a gozar a companhia das outras. Já passara cinco dias, desde que voltara, e ainda quase não acreditava que estivesse novamente na caverna do clã, sentada junto das mulheres e preparando comida, como se nunca tivesse saído de lá. Mas alguma coisa mudara. As mulheres não se sentiam muito à vontade perto dela. Achavam que estivera morta. Seu retorno à vida era visto como um milagre. Elas não sabiam o que conversar com alguém que fora e voltara do mundo dos espíritos. Ayla não se importava, tudo que sabia é que se sentia feliz em estar de volta e isso lhe bastava. Naquele momento, observava Brac querendo subir na mãe para mamar.

- Como está o braço de Brac? - perguntou Ayla a Oga, sentada junto dela.

- Veja por você mesma, Ayla. - E abriu a roupa de Brac, mostrando- lhe o braço e o ombro. - Iza retirou a tala um dia antes de você chegar. O braço está muito bem, a não ser um pouco mais fino do que o outro. Segundo Iza, à medida que o menino for fazendo mais movimentos, o braço vai se fortalecendo.

Ayla examinou as feridas já curadas e apalpou delicadamente o osso, enquanto o menino, com seus olhos muito grandes e uma expressão séria, a olhava. As mulheres tinham o cuidado de evitar qualquer assunto relacionado, ainda que remotamente, com a maldição dela. Muitas vezes, alguma começava uma conversa e depois baixava as mãos no meio da frase, percebendo para onde o assunto se estava encaminhando. Isso retirava a espontaneidade que marcava a prosa delas, quando reunidas para trabalhar.

- As cicatrizes ainda estão vermelhas, mas com o tempo vão esbranquiçando - disse Ayla. - Você é um garoto forte, Brac? - perguntou, olhando para o menino.

Ele fez que sim com a cabeça.

- Mostre o quanto. Será que consegue abaixar meu braço? - disse ela, esticando o braço para a frente. - não com essa mão. Com a outra - corrigiu, ao ver que o menino ia usar o braço bom. Brac trocou de mão e puxou o braço de Ayla para baixo. Ela resistiu só o necessário para sentir qual era a força dele; depois, deixou o braço cair. - Você é um garoto muito forte, Brac. Algum dia vai ser um caçador tão corajoso quanto Broud.

Ela estendeu as mãos na direção dele, querendo ver se o menino viria em seu colo. A primeira reação foi a de afastar-se, mas depois ele mudou de idéia e deixou que Ayla o segurasse. A garota suspendeu-o no ar, colocando-o em seguida no colo.

- Brac é um menino muito grande... é forte e pesado.

Ele ficou quieto por uns momentos, mas, ao descobrir que ela não tinha nada para dar-lhe, contorceu-se, pedindo para voltar ao colo da mãe, onde buscou o seio e se pôs a mamar

com os olhos arregalados para Ayla.

- Você tem muita sorte, Oga. Ele é um lindo bebê.

- não teria essa sorte, se não fosse você, Ayla. - Oga finalmente tocara no assunto que as outras faziam o possível para evitar. - Eu nunca disse o quanto lhe sou agradecida. No princípio, eu estava tão preocupada com ele que nem sabia o que dizer. Você também parecia não querer falar muito e.então você já não estava mais aqui. Ainda não sei o que dizer. Nunca esperei que fosse vê-la novamente. É difícil acreditar que esteja de volta. Você fez mal em usar uma arma e nem entendo por que desejou caçar, mas estou feliz por ter feito isso. não tenho palavras para dizer o quanto. Eu me senti tão mal quando... quando você teve de partir, mas estou contente por estar de volta.

- Eu também - acrescentou Ebra.

E todas as outras mulheres balançaram a cabeça confirmando.

Ayla, extremamente comovida por se ver integralmente aceita, esforçava-se por conter as lágrimas que gostavam de correr com a maior facilidade. Tinha receio de que as mulheres ficassem constrangidas, se seus olhos aguassem.

- Estou feliz por estar de volta - gesticulou, com as lágrimas escapando a seu controle.

Iza, por esse tempo, já sabia que os olhos dela aguavam sempre que alguma coisa lhe tocava muito profundamente e não por se achar doente. As outras mulheres também já estavam acostumadas com essa particularidadee conheciam o significado de suas lágrimas; por isso, simplesmente menearam a cabeça em sinal de compreensão.

- Como foi, Ayla? - perguntou Oga, com expressão embaraçada e ao mesmo tempo sentindo pena.

Ayla pensou por um instante.

- Triste. Uma grande solidão. Tinha saudades de todos. - Os olhos das mulheres estavam cheios de piedade e ela sentiu que precisava dizer algo para levantar o ânimo delas. - Cheguei até a sentir saudade de Broud - acrescentou.

- Huumm - fez Aga. - Devia ser muito triste mesmo. - Olhou, então um pouco

embaraçada para Oga.

- Eu sei que ele às vezes é bem difícil - admitiu Oga. - Mas Broud é meu companheiro. Para mim, ele não é muito mau.

- Oga, não precisa desculpá-lo - falou Ayla, delicadamente. - Todos sabemos que Broud gosta de você. Deve ter orgulho de ser sua companheira. Um dia, ele será o chefe.

Broud é um caçador corajoso e foi, inclusive, quem feriu o mamute em primeiro lugar. Você não tem culpa se ele não gosta de mim. Em parte, sou um pouco culpada disso. Nem sempre me comportei com Broud como devia. não sei como tudo começou e nem sei como vai terminar. Se eu pudesse, faria alguma coisa, mas você não tem de se preocupar, Oga.

- Ele sempre teve um gênio ruim - comentou Ebra. - não se parece com Brun. Sabia que o Mog-ur estava certo ao anunciar que o totem de Broud era o rinoceronte lanoso.

Acho que, de certo modo, Ayla, você ensinou Broud a controlar um pouco mais seu gênio.

Isso o ajudará a ser um bom chefe.

- não sei - falou Ayla, abanando a cabeça. - Acho que quando não estou por perto, ele se controla melhor. Sou eu que faço aparecer seu lado ruim.

Seguiu-se, então, um silêncio constrangedor. Em geral, as mulheres não expunham tão abertamente os defeitos de seus homens, mas a conversa servira para aliviar a atmosfera de tensão que cercava Ayla. Iza, muito sabiamente, viu que era o momento para mudar de assunto.

- Será que alguém sabe onde estão os inhames?

- Acho que estavam no lugar que Brun limpou - respondeu Ebra. - Enquanto o verão não chegar, não vamos conseguir encontrar nenhum inhame.

Broud vira Ayla sentada junto das mulheres e franzira o cenho quando ela pôs Brac no colo. Isso o lembrou de que Ayla salvara a vida do menino, mas também o fez recordar de que ela havia presenciado seu grande momento de humilhação Como todo mundo, ele também estava abismado com o retorno, O primeiro dia, olhava-a com pavor e certa apreensão. A mudança que Creb interpretou como maior maturidade e que Brun viu como uma tomada de consciência da sorte que possuía, Broud, nisso, só enxergou ostensiva insolência. Durante seu período de provação na neve, Ayla não só passara a ter confiança em sua capacidade de sobrevivência, como também aprendera a aceitar com serenidade os fatos desagradáveis da vida. Vencido esse período, quando sua luta foi de vida ou morte, nada tão insignificante como reprimendas, que de tão usadas acabaram por não surtir mais efeito, seria capaz de arranhar sua plácida quietude.

Ayla sentira falta de Broud. Naquele seu completo isolamento, até mesmo a Implicância dele era preferível ao perfeito vazio que se formou com a total ausência das pessoas que amava. Nos dois primeiros dias, ela inegavelmente se comprazia com sua vigilância cerrada, inclusive ostensiva. Ele não se contentava apenas em olhá-la, via cada um dos movimentos que Ayla fazia.

No terceiro dia depois da volta, os velhos padrões de comportamento se restabeleceram por si mesmos, mas com uma diferença. Ayla já não precisava lutar consigo para curvar-se à vontade dele, em suas respostas, já não havia nem mesmo aquele sentido latente de condescendência com que outrora o tratava. Ela realmente não se abalava. Nada que ele pudesse fazer a atingia. Podia bater, praguejar e se deixar levar até o ponto de explodir toda sua violência. Nada surtia efeito. Com paciência, ela condescendia em satisfazer as suas mais absurdas exigências. Embora não intencionalmente e guardando as devidas proporções, relegava Broud ao ostracismo que lhe haviam imposto. O rapaz não conseguia provocar-lhe qualquer reação A mais violenta de suas fúrias, controladas a custo de enorme desgaste, causava menos impacto do que uma picada de mosquito, essa pelo menos ainda coçava. Isso era o pior que ela podia fazer-lhe, deixando-o fora de si.

Ver-se centro de atenções era tudo que Broud almejava, isso o revigorava, sendo uma verdadeira necessidade nele. Nada o frustrava mais do que sentir indiferença no outro.

Pouco lhe importava se a reação das pessoas fosse boa ou má, contanto que houvesse. Estava certo de que a falta de respeito por sua autoridade e a indiferença de Ayla se deviam ao fato de ela o ter visto num momento de vergonha e fracasso. Em parte, ele tinha razão. Ela conhecia os limites do controle que ele podia ter sobre sua pessoa, e também havia posto à prova o valor e a força de seu espírito. Achara as duas coisas insuficientes para merecer-lhe o respeito. Entretanto, não era só o fato de ela não o respei tar ou lhe ser indiferente; Ayla roubava a atenção que ele gostaria de ter.

Já pela própria aparência, ela chamava atenção e tudo nela atraía atenção tinha um poderoso totem, vivia na fogueira do maior dos feiticeiros, que lhe dedicava enorme afeição, estava sendo educada para curandeira, havia salvo a vida de Ona, era exímia na funda, fora ela quem matara a hiena, salvando a vida de Brac e, agora, esse seu retorno do mundo

dos espíritos. Sempre que ele dava mostras de sua grande coragem e que se via justo merecedor da admiração, respeito e atenção do clã ela surgia, relegando-o a segundo plano.

Broud, a distância, fuzilava Ayla com os olhos. Por que teve de voltar? Todo mundo só fala dela, não param um instante de comentar. Quando matei minha primeira caça e me fiz homem, todos falavam desse totem idiota que ela tem. Foi por acaso ela quem enfrentou o ataque do mamute? Quem cor tou os tendões do gigantesco animal? Quem quase morreu esmagado debaixo de uma pata? não Tudo que fez foi atirar duas pedrinhas com uma funda e só por isso não param de pensar nela. Brun com essas suas reuniões, tudo por sua causa. E nem direito ele soube fazer a coisa. Agora, está ela aí de volta e todo mundo outra vez só falando nela. Por que será que Ayla tem sempre de estragar tudo?

- Creb, por que você está tão agitado assim? Nunca o vi tão nervoso. Parece um rapazola indo ao encontro da primeira companheira. Quer que eu faça um chá para acalmar seus nervos? - indagou Iza, depois de vê-lo pela terceira vez correndo para sair e mudando de idéia para voltar a sentar-se novamente.

- Por que você acha que estou nervoso? Apenas estou tentando lembrar-me das coisas e meditando um pouco - respondeu ele, encabulado.

- O que você está precisando lembrar? Há anos que você é Mog-ur, Creb. Pode celebrar de olhos fechados qualquer cerimônia e nunca vi ninguém que meditasse sentando e levantando sem parar. Por que não me deixa fazer um chá?

- Não estou precisando de nenhum chá. Onde está Ayla?

- Está lá adiante, depois da última fogueira, vendo se encontra alguns inhames. Por quê?

- Só queria saber - respondeu Creb, recostando-se no assento.

Pouco depois, apareceu Brun fazendo-lhe sinal. O Mog-ur se levantou e foram os dois se encaminhando para o fundo da caverna. O que será que está acontecendo com eles?,

perguntou-se Iza, espantada e balançando a cabeça sem compreender.

- Já está quase chegando o momento, não é? - indagou Brun, quando chegaram ao lugar que ele havia limpado. - Está tudo arranjado?

- Os preparativos estão prontos, mas acho que o sol tem de estar mais baixo no céu.

- Você acha! Será que não sabe? Pensei ter visto alguém dizer que sabia fazer tudo. Você não disse que havia meditado e encontrado a cerimônia? É necessário que tudo saia absolutamente certo. Como pode falar que acha? - disse Brun, num tom brusco.

- Mas eu meditei - replicou o Mog-ur, defendendo-se. - Só que tudo se passou num lugar diferente e há muito tempo. Não havia nem sinal de neve. Acho que nem mesmo no inverno nevava. É difícil de determinar exatamente qual o momento certo. Só sei dizer que o sol já estava baixo.

- Você não me disse isto! Como é que vai ter certeza de que é o momento certo? Talvez seja melhor esquecermos isso tudo. De qualquer forma, a idéia parece ridícula.

- Já falei com os espíritos. As pedras já estão assentadas. Eles estão nos esperando.

- não gosto também dessa idéia de mexer nas pedras. Talvez fosse melhor que a cerimônia se realizasse na caverna dos espíritos. Tem certeza de que eles não estão aborrecidos por terem sido tirados de seu lugar, Mog-ur?

- Nós já conversamos sobre isso, Brun. Ficou resolvido que seria me lhor mudar as pedras do que levar os velhos espíritos à caverna dos totens. Os mais velhos depois de verem o lugar poderiam não querer mais sair de lá.

- Se eles estão acordados, como você vai saber que foram embora outra vez. É muito perigoso, Mog-ur. Talvez seja melhor cancelarmos.

- Eles podem ficar por algum tempo - reconheceu o feiticeiro. - Mas, depois que tudo estiver arranjado, como era antes, vão ver que não há lugar para eles e ir embora. Mas você é quem resolve; se quiser mudar de idéia, posso tentar apaziguá-los. Pelo fato de que estão esperando a cerimônia, isso não quer dizer que somos obrigados a realizá-la.

- Não Você está certo. É melhor levarmos a coisa adiante, eles já estão esperando. Mas talvez sejam os homens que não vão gostar muito dessa história.

- Quem é o chefe, Brun? Uma vez que entendam, vai dar tudo certo, irão acostumando-se com o fato.

- Você acha, Mog-ur? Será mesmo? Foi há tanto tempo. não estou me referindo agora aos homens. Será que nossos totens aceitariam? Temos tido tanta sorte que chega quase a ser sorte demais. Não consigo deixar de pensar que alguma coisa terrível está por acontecer. Não quero fazer nada que possa deixá-los aborrecidos. Quero fazer só o que desejam. Minha intenção é conservá-los sempre felizes.

- Isso é o que estamos fazendo, Brun - disse o Mog-ur, calmamente. - Tentar fazer o que eles desejam. Satisfazer o desejo de todos eles.

- Mas você acha que os outros vão entender Se alguns foram agradados, os outros não poderio sentir-se menosprezados?

- Não Brun. Tenho certeza de que entenderão. - O feiticeiro sentia a aflição e o estado de tensão por que o chefe estava passando. Sabia como de via ser difícil para ele. - Bom, certeza absoluta, ninguém pode ter. Somos apenas humanos. Mesmo o Mog-ur não passa de um simples homem. O que podemos fazer é tentar. Mas foi você mesmo quem disse que temos tido sorte. Isso deve significar que os espíritos de todos os totens estão felizes. Se estivessem lutando uns contra os outros, você acha que estaríamos tendo toda essa sorte?

Quantas caçadas de mamute já aconteceram, sem que ninguém

saísse ferido? Alguma coisa poderia ter dado errado. Como, por exemplo, ter feito essa longa viagem para nada e estaria perdida uma das melhores épocaspara caçar. Você arriscou e ganhou, Brun.

O chefe olhou o rosto grave do feiticeiro. Então se pôs de pé com o corpo ereto, e um ar resoluto substituiu a expressão indecisa de antes.

- Vou reunir os homens - gesticulou Brun.

As mulheres haviam recebido ordem para se manter afastadas do fundo da caverna e nem mesmo olhar para lá. Iza reparou que Brun convocou os homens, mas ela ignorava o motivo. Seja lá o que estivessem fazendo, isso era com eles. Alguma coisa, entretanto, fé-la levantar os olhos no momento em que dois deles, com as caras pintadas de ocre vermelho, passavam apressados na direção de Ayla. Iza tremeu. O que poderiam estar querendo com ela?

Ayla não havia nem mesmo percebido que os homens se achavam todos com Brun. Ela procurava inhame, revistando um monte de cestas e recipientes de couro cru empilhados desordenadamente atrás da fogueira que ficava mais ao fundo da caverna. Ao ver a cara pintada de vermelho do chefe aparecer subitamente na sua frente, o susto foi tanto que perdeu a respiração.

- não reaja. não faça qualquer barulho - gesticulou Brun.

No princípio, ela não teve medo; só depois, quando lhe puseram uma venda nos olhos e que se sentiu arrastada, meio suspensa no ar.

Quando viram Brun e Goov chegando com Ayla, os homens ficaram apreensivos.

Sabiam tanto quanto as mulheres sobre a cerimônia que Brun e o Mog-ur andavam planejando, só que, no caso deles, a curiosidade no fim acabava sendo satisfeita. O Mog-ur apenas os advertira, depois de já sentados em círculo atrás das pedras trazidas da pequena caverna, para que não fizessem qualquer gesto ou som. Mas a advertência passou a ter

especial significação quando o feiticeiro deu a cada um deles para segurar, na forma de X, dois ossos saídos do esqueleto do urso da caverna. Se eles precisavam de proteção tão extrema, era porque o perigo deveria ser grande. E, ao verem Ayla, passaram a ter uma vaga idéia de qual poderia ser o perigo.

Brun forçou a menina a sentar-se no meio do círculo, de frente para o Mog-ur, e depois foi sentar-se atrás dela. A um sinal do feiticeiro, o chefe retirou a venda. Ayla piscou, querendo clarear a visão. À luz das tochas, viu o Mog-ur sentado atrás de uma caveira de urso, enquanto cada um dos homens tinha nas mãos dois ossos cruzados. Ela se encolheu de medo, com vontade de afundar-se no chão.

O que será que eu fiz? não usei nenhuma funda, pensou, tentando lembrar se cometera algum crime que justificasse sua presença ali. não conseguiu recordar de nenhuma coisa errada nos últimos tempos.

- Não fáção qualquer movimento ou som - tornou a avisar o Mog-ur.

Mesmo que quisesse, ela não conseguiria fazê-lo. Com os olhos arregalados, viu o Mog-ur se levantar, deixando o cajado no chão, e começar certos movimentos ritualísticos suplicando a Ursus e aos espíritos totêmicos para assistí-los. Muitos dos gestos eram desconhecidos para Ayla, o que não impediu que ela observasse extasiada tudo aquilo, não tanto pelo significado da simbologia contida nos gestos, mas principalmente pela figura do velho feiticeiro.

Ela conhecia Creb demasiadamente bem. Um velho aleijado que coxeava, desajeitado, apoiando-se pesadamente sobre um cajado. Era a caricatura assimétrica de um homem: um dos lados ananicados, com atrofia dos múscu los por falta de uso; o outro, superdesenvolvido, para compensar a paralisia que o obrigava a uma dependência extrema de sua metade boa. Ayla já havia reparado, em outras cerimônias públicas, na graça dos seus movimentos, quando usados na linguagem ritualística, abreviada devido à falta do braço, mas plena de sutilezas e complexidades, e carregada de significados. Contudo, os movimentos do homem ali de pé, postado atrás da caveira, revelavam uma face do feiticeiro que ela nunca soube que existisse.

Nem de leve percebiam-se aquelas maneiras desengonçadas, tão absorvidos estavam numa gesticulação de comovedor ritmo hipnótico que fluía com facilidade e obrigava todos os olhares a se concentrarem na pessoa dele. Apesar de que pudessem ser tomados como tais, os movimentos de mão e os sutis efeitos de posturas nada tinham que lembrasse alguma dança de caráter gracioso. O Mog-ur era antes de tudo um orador dotado de uma força persuasiva que Ayla ainda não conhecia, e ele nunca se mostrava tão expressivo como quando se dirigia a seu auditório invisível, às vezes mais real do que os homens sentados à frente dele. E mais de si ainda deu, quando começou a dirigir sua atenção para os venerabilissimos espíritos que desejava convocar para aquela cerimônia, única na vida do clã.

Ó espíritos mais velhos dentre os mais velhos, 6 espíritos não invocados desde os nossos nebulosos primórdios, venham neste momento assistir-nos. Nós os conclamamos.

Queremos render-lhes nossas homenagens e pedir ajuda e proteção Ó grandes espíritos cujos nomes tão venerados são uma sombra em nossas memórias, acordem de seu sono profundo e permitam que os honremos. Temos para vocês uma oferenda, um sacrifício para abrandar seus velhos corações Precisamos que nos dêem sua sanção. Ouçam os seus nomes aqui pronunciados.

- Espíritos dos Ventos, Oooha!

Ayla sentiu um frio na espinha ao ouvir o nome dito em voz alta.

- Espírito das Chuvas, Zheena! Espírito das Neblinas, Eeesha! Atendam os nossos chamados. Vejam-nos com benevolência. Alguém de vocês está conosco. Alguém que caminhou entre as suas sombras e voltou. Voltou pela vontade do Grande Leão da Caverna!

Ele está falando de mim, pensou Ayla, subitamente compreendendo. Isso é uma cerimônia.

E o que estou fazendo no meio de uma cerimônia? Quem são esses espíritos? Nunca ouvi seus nomes sendo mencionados antes. E todos nomes de mulheres. Pensei que os espíritos protetores fossem Sempre masculinos. Ela tremia de medo, mas estava curiosa. Os outros que se achavam lá, todos sentados duros como pedras, também ouviam os nomes pela primeira vez, se bem que a eles não parecessem de todo desconhecidos. Ao escutá-los, qualquer coisa acendeu-se lá no fundo de suas mentes, onde armazenavam uma memória tão antiga como aqueles nomes.

- Veneráveis dentre os mais veneráveis! Os caminhos dos espíritos são mistérios para nós.

Somos simples mortais, ignoramos o motivo que fez essa mulher ser escolhida por espírito tão poderoso, como também não sabemos a razão por que ele a fez trilhar por caminhos tão antigos, mas não podemos ir contra sua vontade. Por ela, ele lutou no mundo das trevas, derrotando os espíritos do mal e enviando-a de volta para que seus desejos fossem conhecidos e para que soubéssemos que não nos podemos opor a ele. O Poderosos Espíritos do Passado, suas vias já foram as mesmas que as dos clã hoje não o são mais. No entanto, devem tornar a sê-lo em nome desta que aqui se acha sentada conosco. Rogamo-lhes, antigos espíritos, que a façam digna dos seus caninhos. Aceitem-na. Protejam-na e dêem também sua proteção ao clã a que ela pertence. - O Mog-ur se virou na direção de Ayla -

Traga a mulher à frente- ordenou.

Ayla se sentiu suspensa do chão pelos braços fortes de Brun e sendo posta de pé na frente do Mog-ur. Com a respiração suspensa, viu que Brun pegava um punhado de seus longos cabelos louros, ao mesmo tempo que lhe em purrava a cabeça para trás. Olhando debaixo para cima, enxergou o Mog-ur tirar uma faca afiada de sua sacola e levantá-la bem ao alto, por cima da cabeçadele. Aterrorizada, olhou para o rosto que se avultava para perto do seu e para a faca empunhada para cima, quando ele, com um súbito movimento, trouxe a faca para junto de sua garganta descoberta.

A garota sentiu uma dor aguda, mas o medo era tanto que não a deixou gritar. O Mog-ur fizera apenas um leve talho na parte inferior da garganta dela.

O fio de sangue que escorreu foi rapidamente chupado por um chumaço de pele de coelho. O feiticeiro esperou primeiro que se empapasse completamente o chumaço, para depois pegar, de uma bacia segurada por Goov, um líquido que ela sentiu arder, mas que enxugou o corte. Brun, então soltou-a.

Fascinada, Ayla viu o Mog-ur botar o chumaço sujo de sangue numa vasilha rasa de pedra, parcialmente cheia de óleo. O acólito entregou uma pequena tocha ao feiticeiro que a usou para tocar fogo no óleo. Ficou, em seguida, em silêncio, observando a pele de coelho queimar, até virar um torrão escuro e quebradiço, cheirando fortemente a azedo. Depois que o fogo se extinguiu, Brun afastou para o lado a roupa dela, deixando-lhe descoberta a coxa esquerda. O Mog-ur mergulhou o dedo no resíduo que ficara na vasilha de pedra e riscou de preto as quatro linhas de sua cicatriz. Ela olhava espantada. Era como a marca de um totem feita durante os ritos de passagem de um rapaz. Sentiu que a levavam para trás. O Mog-ur agora voltara a se dirigir aos espíritos e ela ficou observando-o.

- Aceitem este sacrifício de sangue, Venerabliíssinios Espíritos. Saibam que foi o seu totem, o Espírito do Leão da Caverna quem a escolheu para trilhar os seus antigos caminhos.

Saibam que desejamos honrá-los e lhes render homenagens. Concedam-nos sua graça e voltem ao profundo sono do qual foram acordados, certos de que seus caminhos não foram esquecidos.

Terminou, disse Ayla consigo, soltando um suspiro de alívio ao ver o Mog-ur se sentando novamente. Ainda ignorava por que a fizeram participar de uma cerimônia fora dos padrões usuais. Mas eles ainda não haviam terminado com ela. Brun foi para frente e lhe fez sinal para que se levantasse. Rápido, ela se pôs de pé. Ele meteu a mão dentro de uma dobra da roupa e retirou um pequeno objeto ovalado, tingido de vermelho. Era um pedaço de marfim serrado pouco acima da ponta da presa de um mamute.

- Ayla, por esta única vez, enquanto nos achamos sob a proteção de antiquíssimos espíritos, você está em pé de igualdade com os homens. - Ela não estava muito certa se entendera direito. - Mas tão logo sair deste lugar, nunca mais deverá pensar em você como uma igual a nós. Você é e sempre será uma mulher.

Ayla acenou com a cabeça concordando. Claro que sabia que era mulher, achava-se espantadíssima com tudo.

- Este marfim saiu da presa do mamute que matamos. Foi uma caçada muito feliz. Conseguimos derrubar aquele imenso animal sem que nenhum homem ficasse ferido. Este pedaço aqui está santificado por Ursus e tingido pelo Mog-ur na sagrada cor vermelha. É o poderoso talismã de um caçador. Todos os homens do clã carregam um idêntico dentro de seu amuleto e todo caçador deve trazê-lo consigo.

“Ayla, nenhum menino fica adulto enquanto não mata seu primeiro animal, mas uma vez que tenha matado, já não pode mais voltar à condição de criança. Em épocas muito distantes, nos tempos dos espíritos que hoje nos atenderam, as mulheres dos clã caçavam. Não sabemos por que seu totem a conduziu por caminhos tão distantes no tempo, mas não podemos deixar de reconhecer a vontade do Espírito do Leão da Caverna. Temos, portanto, que permiti-lo. Ayla, você já matou seu primeiro animal, por isso agora deve assumir as responsabilidades de um adulto. Entretanto, você é mulher e não homem e, em todos os sentidos, menos um, continuará como tal. A única arma que poderá usar é a funda, Ayla, mas, doravante, será a Mulher Caçadora.

Ayla sentiu uma onda de sangue subindo-lhe pelo rosto. Seria verdade? Teria realmente entendido as palavras de Brun? Justamente por usar uma funda fora obrigada a passar por uma prova da qual não esperava sair com vida e, agora, permitiam-lhe usar essa arma?

Poderia mesmo caçar? E tudo aberta mente? Mal conseguia acreditar.

- Este talismã é para você. Ponha-o dentro de seu amuleto.

A garota retirou do pescoço o saquinho e, atabalhoadamente, procurou desatar os nós. Em seguida, pegou da mão de Brun o objeto ovalado de cor vermelha, meteu-o junto do torrão de ocre e do fóssil e tornou a fechar a bolsinha de couro, pendurando-a novamente no pescoço.

- Por enquanto não diga nada a ninguém. Darei a notícia antes da festa de hoje à noite.

Esta será em sua honra, Ayla. Em honra do primeiro animal que você matou - falou Brun.

- Espero que o próximo seja mais saboroso do que uma hiena - acrescentou, com uma piscadela bem-humorada. - Agora, vire-se de costas.

Ela fez o que ele lhe mandava e sentiu os olhos novamente sendo vendados. Dois homens a conduziram de volta e, depois, retiraram-lhe a venda. Viu que Brun e Goov retornavam ao círculo dos homens. Será que estou sonhando? Passou a mão na garganta sentindo arder a ferida feita pelo Mog-ur. Depois, pegou o amuleto tateando os três objetos lá dentro. Afastou a roupa para o lado e olhou as linhas de sua cicatriz besuntadas de graxa preta. Uma caçadora! Sou então uma caçadora! Uma caçadora para o clã. Disseram que foi meu totem quem assim desejou e que não podiam negar a vontade dele. Apertou o amuleto entre os dedos, passando a fazer os gestos próprios da linguagem ritualística.

- Ó Grande Leão da Caverna, por que fui duvidar de você? A maldição de morte foi uma dura prova, a pior de todas até agora, mas, para tão grande graça, assim teria de ser. Sou imensamente agradecida por me achar digna. Sei que Creb está certo. Minha vida nunca será fácil, tendo o Grande Leão da Caverna como totem, mas sempre será digna de ser vivida.

A cerimônia fora suficientemente impressionante para convencer os homens de que se deveria deixar Ayla caçar, isto é, impressionante para todos menos um. Broud estava furioso. Se não houvesse ficado tão assustado com a advertência do Mog-ur, teria se levantado e ido embora. não desejava participar de qualquer coisa que concedesse favores especiais àquela mulher. Olhava sombriamente para o Mog-ur, mas sua maior raiva era dirigida a Brun, um ódio que não conseguia passar-lhe pela garganta.

É ele o culpado, pensou Broud consigo. Está sempre protegendo a garota, sempre lhe concedendo privilégios. Imagine que me ameaçou com a maldição de morte, porque eu a castiguei por sua insolência. Logo eu, o filho de sua companheira, e ela merecia o castigo.

O que ele deveria ter feito era puni-la corretamente com uma maldição para sempre. E agora essa: deixá-la caçar. Caçar como se fosse um homem. Como pôde ele fazer uma coisa dessas? Brun está ficando velho. não irá ser chefe para sempre. Algum dia desses, quem vai ser chefe sou eu, e então veremos.

Nessa altura, ela não vai ter ninguém para protegê-la. Vamos ver como vai conseguir seus privilégios. Que trate então de engolir suas insolências.

 

No inverno que marcou seu décimo aniversário, a Mulher Caçadora entrou em plena posse de seu título. Iza sentia-se intimamente satisfeita e aliviada por ver Ayla passando pelas transformações que prenunciavam sua próxima menstruação O alargamento das cadeiras e o maior volume dos seios, mudando os contornos do corpo reto e infantil de Ayla, deram a Iza a certeza de que, afinal, aquela sua muito particular filha não estava destinada a viver eternamente na infância. Aos mamilos inchados e uma ligeira penugem na região púbica e sob os braços, seguiu o fluxo menstrual de Ayla. Era, então, a primeira luta que seu totem travava com o espírito de um outro.

Ayla, a estas alturas, já compreendera que seria muito pouco provável que algum dia tivesse filho. Seu totem era forte demais. Ela desejava ter um bebê. Desde o nascimento de Uba que tinha vontade de ter um filho para amar e cuidar, mas aceitava as penas e restrições impostas pelo poderoso Leão da Caverna. Sempre gostara de cuidar das crianças do clã, quando as mães estavam ocupadas, e ficava sentida ao vê-las saírem de seu colo para mamar em uma outra. Mas pelo menos agora, ela deixara de ser aquela enorme criança, mais alta do que qualquer mulher do clã.

Ela, por empatia, identificava-se com Ovra que, depois do primeiro aborto, tivera diversos outros, embora estes ocorridos no princípio da gravidez e sem maiores complicações O totem de Ovra, o Castor, era, por sua vez, um pouco feroz demais. Parecia que ela estava fadada a uma existência sem filhos. Desde a caçada do mamute e, sobretudo, agora que Ayla ficara adulta, as duas frequentemente eram vistas juntas. Ovra era uma mulher tranquila que não falava muito, naturalmente reservada e o oposto de Ika, de temperamento franco e expansivo. Entretanto, entre Ayla e Ovra foi-se fazendo aos poucos um bom entendimento, que se transformou numa amizade íntima que passou também a incluir Goov. A afeição que ligava o acólito à sua companheira era um fato sabido de todos, e isso fazia com que Ovra fosse objeto de piedade ainda maior. Sabiam que, por ter um companheiro generoso e compreensivo com a incapacidade dela de produzir filhos, Ovra por isso mesmo ainda desejava mais sua maternidade.

Oga estava novamente esperando, para o grande prazer de Broud. Ficara grávida logo depois de Brac ter sido desmamado aos três anos. Tudo levava a crer que ela seria tão fértil quanto Aga e fica. Droog, depois que viu certo dia o filho de dois anos de Aga martelando uma pedra, estava seguro de que a criança seria o ferramenteiro por que ele tanto esperara.

Arrumou um pequeno martelo de pedra de acordo com as mãos rechonchudas de Groob e o deixava por perto enquanto trabalhava, e o menino brincava com uns pedaços de sílex, imitando-lhe os gestos. Igra, a filha de dois anos de Ika, era uma garotinha gorducha, muito dada e alegre, que fazia o encanto de todos no clã e prometia ter o mesmo bom gênio da mãe.

O clã de Brun estava crescendo.

No princípio da primavera, Ayla recebeu a maldição devida à sua condição de mulher e passou alguns dias afastada do clã em seu refúgio no alto da montanha. Depois da maldição de morte, de longe muito mais traumatizante, esta agora parecia quase umas férias.

Aproveitou o tempo para botar as idéias em ordem e para aperfeiçoar seus lançamentos com a funda, depois de haver passado um longo inverno sem atirar, embora a todo instante ainda precisasse lembrar-se de que já não era mais necessário fazer isto em segredo. Seria facílimo para ela arrumar comida. Contudo, aguardava, ansiosa, as visitas diárias de Iza num lugar previamente combinado, perto da caverna do clã. Iza lhe levava mais comida do que ela aguentava comer, mas sua companhia é que era o principal. Ainda era difícil para Ayla passar as noites sozinha, mas o fato de saber que aquele seria um isolamento limitado, apenas de poucos dias, tornava a coisa mais suportável.

Quase sempre as duas ficavam juntas até anoitecer e Ayla precisava valer-se de uma tocha para iluminar o caminho de volta. Iza nunca venceu sua desconfiança quanto à pele de veado que Ayla curtira para usar enquanto estava “morta”, de modo que resolveu guardá-la na pequena caverna. Como toda moça, Ayla também aprendeu com sua mãe tudo aquilo que era necessário uma mulher saber. Iza lhe deu faixas absorventes para serem presas numa correia amarrada na cintura e lhe explicou os símbolos apropriados que deveriam ser feitos quando fosse enterrar na terra os absorventes sujos de sangue. Falou- lhe das posições adequadas que deveria assumir caso algum homem desejasse aliviar suas necessidades nela, dos movimentos que deveriam ser feitos e como depois fazer sua higiene. Ayla era agora uma mulher. Poderia ser solicitada para desempenhar qualquer função exigida de toda mulher adulta do clã. As duas conversaram sobre muitas coisas de interesse feminino,

embora algumas, devi do à educação para curandeira, já fossem do conhecimento de Ayla.

Trocaram idéias sobre gravidez, amamentação e remédios para cólicas. Iza deu-lhe instruções sobre as posições e movimentos que eram considerados como sedutores e a maneira como uma mulher poderia encorajar o homem e excitá-lo para que ele tivesse vontade de aliviar suas necessidades. Falaram ainda das responsabilidades que competiam a uma companheira. Iza lhe disse tudo quanto sua mãe lhe contara, mas, no íntimo, perguntava-se se Ayla, tão pouco atraente como era, iria precisar de todas essas informações.

Apenas um assunto Iza deixou de abordar. A maioria das meninas, quando estavam próximas de se tornar mulheres, em geral, mostrava interesse por algum rapaz em particular. Apesar de que nem mãe nem filha pudessem opinar sobre a matéria, a mãe se tivesse bom relacionamento com o compa nheiro, poderia transmitir-lhe as preferências da filha. O companheiro, por sua vez, querendo, poderia fazer chegar o desejo da garota ao chefe que

tinha a decisão final. não havendo nenhuma outra consideração e, sobretudo, se o rapaz em questão mostrasse também interesse pela menina, o chefe poderia fazer prevalecer a vontade da mulher.

Nem sempre tal acontecia e certamente esse não foi o caso de Iza. De qualquer forma, o assunto não surgiu nas conversas entre as duas, embora fosse, na maioria das vezes, aquele que suscitava maior interesse. No momento, todos os rapazes no clã tinham companheiras, e Iza estava certa de que, mesmo que existissem homens disponíveis, haveria tanta possibilidade de quererem Ayla como a de alguém mostrar-se interessado nela, Iza, para segunda mulher. Ayla, por seu turno, não estava interessada em nenhum deles, inclusive se Iza não tivesse abordado o assunto sobre as responsabifidades da mulher, a jovem nem teria pensado nisso. Mas depois pensou.

Numa manhã ensolarada de primavera, algum tempo depois de haver voltado, Ayla foi encher o cantil no lago alimentado pelo riacho, perto da caverna. Ninguém ainda havia saído. Ela se ajoelhou, curvou o corpo, pronta para mergulhar o cantil dentro, quando subitamente parou. Os raios do sol batiam inclinados sobre a água parada fazendo da superfície um espelho. Ayla ficou com os olhos parados no estranho rosto que a olhava de dentro do lago. Nunca até então vira sua imagem refletida. Quase toda a água existente perto da caverna era a de rios e canais sempre em movimento e, em geral, ela só olhava para dentro do lago depois de já ter mergulhado o recipiente que queria encher, quando a superfície já estava remexida.

Estudou seu rosto. Era algo quadrado, com mandíbulas bem definidas, mas suavizadas por bochechas de adolescente, pômulos altos e pescoço fino e comprido. O queixo se mostrava ligeiramente partido, lábios carnudos e nariz reto, perfeitamente esculpido. Olhos claros, azuis-acinzentados e contornados por pestanas mais escuras do que os cabelos dourados que caíam bem para baixo dos ombros em ondas fartas e suaves, brilhando com os reflexos do sol. Sobrancelhas no mesmo tom que os cílios, arqueadas por cima dos olhos e assentadas sobre uma fronte acetinada, alta e reta, sem qualquer saliência na altura dos supercílios. Ayla se ergueu e foi correndo para a caverna.

- Ayla, o que aconteceu? - gesticulou Iza. Era visível que havia algo perturbando a moça.

- Mãe, acabei de me ver no lago. Eu sou feia! Oh, mãe, por que sou tão feia? - perguntou, exaltada, caindo aos prantos nos braços de Iza. Tanto quanto podia lembrar-se, somente conhecia pessoas da raça dos clã não tinha qualquer termo de comparação O clã se acostumara com ela, mas ela mesma na Via-se diferente de todos, anormalmente diferente.

- Ayla, Ayla - falou Iza abraçando-a, acalmando-a no seu choro.

- Eu não sabia que era tão feia, mãe. Eu não sabia. Que homem vai me querer? Nunca vou ter um companheiro. Nunca vou ter um bebê. Nunca vou ter ninguém. Por que eu tinha de ser tão feia?

- Não sei se você é realmente feia, Ayla. Você é diferente.

- Não Eu sou feia. Feia! - falou, abanando a cabeça e recusando qualquer consolo. -

Olhe para mim! Sou grande demais. Sou mais alta do que Broud ou Goov. Sou quase tão alta quanto Brun! E sou feia. Sou grande, feia e nunca vou ter um companheiro - gesticulou, começando outra vez a chorar.

- Ayla! Pare com isso! - ordenou Iza, sacudindo-a pelos ombros. - Você não tem culpa por parecer como é. Você não nasceu de gente dos clã e sim de gente dos Outros. Seu aspecto é o deles. É uma coisa que você não pode mudar. Tem de se conformar. É verdade que talvez nunca venha a ter com panheiro e, quanto a isso, não podemos fazer nada. Você tem de aprender a aceitar o fato. Mas não é certo, nada é sem esperança. Em breve você será

uma curandeira. Uma curandeira da minha linhagem. Mesmo que não tenha com panheiro, nunca será uma mulher sem status ou insignificante.

“No próximo verão, haverá a reunião de clã. Muitos clã estarA lá. O nosso não é o único que existe. Você poderá encontrar um companheiro que venha de outro clã Talvez não seja um rapazinho ou alguém de status elevado, mas de qualquer forma será um companheiro.

Zoug a tem em alta conta. Pode-se considerar feliz por ele ter tão boa opinião sobre você.

Ele já deu a Creb uma mensagem para levar à reunião. Zoug tem parentes em outro clã. Disse a Creb para falar lá da estima que ele tem por você. Acha que você dará uma boa companheira e deseja que eles pensem em seu caso. Inclusive chegou a dizer que ele a tomaria como companheira, se fosse mais jovem. Lembre-se disso. Este não é o único clã e os homens daqui não são os únicos sobre a ter.

- Zoug disse isso? Mesmo eu sendo feia desse jeito? - gesticulou Ayla, com um brilho de esperança no olhar.

- Disse. Foi exatamente o que Zoug falou. Com a recomendação dele e o meu status, tenho certeza de que algum homem irá querer tomá-la, mesmo com esse seu jeito diferente.

O sorriso que Ayla timidamente esboçava desapareceu.

- Mas isso quer dizer que vou ter de ir embora, não é? De ii para algum outro lugar, não é assim? não quero deixar Creb, você e Uba.

- Ayla, estou velha e Creb também já não é nenhum rapazinho. Dentro de poucos anos, Uba será mulher e vai ter o seu companheiro. E o que você fará então - gesticulou Iza. -

Qualquer dia desses Brun vai passar o comando do clã para Broud, e acho que você não deveria viver mais aqui depois que ele for o chefe. Em minha opinião o melhor seria se você se mudasse e a reunião dos clã poderá ser boa oportunidade para isso.

- Sim, você deve ter razão. Acho que não vou querer viver aqui quando Broud for o chefe, mas é horrível ter de deixá-la - disse, com o rosto franzido. Depois, animou-se. - Mas até o verão que vem, ainda há um ano inteiro pela frente. Até lá não preciso preocupar-me.

Um ano inteiro, disse Iza consigo, ah, minha filha, minha filha, você vai precisar ficar mais velha para saber como passa rápido um ano. Você não me quer deixar? não sabe quanta falta vou sentir de você. Se ao menos houvesse um homem neste clã para tomar conta de você. E se ao menos não fosse Broud o futuro chefe.

Seus pensamentos, entretanto, não chegavam nem de leve a transparecer enquanto Ayla enxugava os olhos e voltava para buscar água. Desta vez, evitando olhar para dentro do lago parado.

Durante a tarde naquele dia, Ayla, saindo da mata, ficou por algum tempo olhando através das folhagens para a caverna do clã. Diversas pessoas estavam do lado de fora trabalhando ou apenas conversando. Ajeitou os dois coelhos que pendurara no ombro, olhou para sua funda enfiada na correia da cintura e a camuflou numa dobra da roupa. Depois, mudou de idéia e voltou a enfiar a funda na correia, deixando-a à mostra. Tornou a olhar para a caverna e foi caminhando, nervosa, para lá.

Brun disse que eu podia, falava consigo. Fizeram uma cerimônia para isso. Sou uma caçadora... a Mulher Caçadora. Botou, então, o queixo para cima e saiu de detrás da cortina de folhagens que a escondia.

Houve um enorme silêncio gelado, com todos parados, olhando para a garota que vinha na direção deles, trazendo dois coelhos pendurados no om bro. Logo que se recuperaram do choque e que perceberam estar em atitudes inconvenientes, desviaram os olhos para outro lado. Ayla tinha o rosto queimando, mas caminhava em frente, com ar decidido, ignorando

os olhares com o rabo dos olhos para ela. Sentiu-se aliviada ao entrar na caverna, depois de passar pelo meio de uma fila dupla de olhares escandalizados, dando graças por a caverna ter seu interior fresco e escuro. Lá dentro, era mais fácil ignorar os olhares das pessoas.

Os olhos de Iza também se arregalaram quando Ayla chegou à fogueira de Creb, mas ela rapidamente se refez do choque e olhou em outra direção sem fazer qualquer menção aos coelhos. Ela não sabia o que dizer. Creb, sentado em sua pele de urso, aparentemente meditava, parecendo nada perceber. Ele vira quando Ayla entrara na caverna e tratou de disfarçar a expressão do rosto no momento em que ela chegou.

Ninguém disse uma palavra, quando Ayla botou os bichos perto do lugar onde estava acesa a fogueira. Instantes depois, entrou Uba correndo e dizendo:

- Você caçou mesmo esses dois coelhos, Ayla?

- Sim - fez Ayla com a cabeça.

- Estão muito bonitos e gordos. É o que vamos comer hoje à noite,

- Bem... acho que sim - respondeu Iza, ainda embaraçada e incerta.

- Vou tirar a pele deles - falou depressa Ayla, pegando sua faca. Por um momento, Iza ficou observando, depois veio e retirou a faca da mão dela.

- Não, Ayla. Você caçou e eu preparo.

Ayla afastou-se para dar lugar a Iza que, rapidamente, tirou as peles dos coelhos e os atravessou com espeto, botando-os para assar sobre o fogo. Ayla se via tão encabulada quanto Iza.

- A comida estava muito boa, Iza - disse mais tarde Creb, ainda evitando qualquer comentário direto sobre os dois coelhos. Uba, entretanto, não teve os mesmos escrúpulos.

- Os coelhos estavam bons, Ayla. Mas da próxima vez por que não vê se pega umas perdizes? - Ela, como Creb, tinha a mesma predileção por essas aves de patas cobertas de penas.

Na vez seguinte em que Ayla trouxe caça para a caverna, já não houve tanto escândalo e, dentro de pouco tempo, suas caçadas passaram a ser encaradas com a maior naturalidade.

Agora, com um caçador na sua fogueira, Creb pôde reduzir a quota que apanhava com os outros caçadores, a não ser quando fossem animais grandes, caçados só por homens.

Ayla esteve ocupadíssima naquela primavera. O fato de caçar não diminuiu seu trabalho junto das mulheres, além de que havia a coleta de plantas para Iza. Mas adorava tudo. Estava cheia de energia, mais feliz do que nunca. Feliz por poder caçar abertamente, feliz por estar vivendo outra vez com o clã, feliz por ter finalmente ficado mulher e também porque agora estava mantendo uma relação de amizade muito mais estreita com as outras mulheres.

Ebra e Ika, as duas mais velhas do grupo, embora não esquecendo de todo as peculiaridades de Ayla, a aceitavam. Ika sempre se mostrara amiga, e Aga, sua mãe, havia mudado completamente de atitude, desde que Ayla salvara Ona de morrer afogada. Ovra se tornara uma confidente, e Oga se afeiçoara a ela apesar de Broud. Sua paixão adolescente por Broud acabou transformando-se ao longo dos anos em hábito e indiferença, esfriada pelas imprevisíveis explosões de temperamento do companheiro. Em compensação o ódio vigativo de Broud por Ayla tornou-se ainda maior depois de ela ter sido aceita como caçadora. Continuava sempre procurando meios para infernizá-la e fazê-la reagir às suas provocações. No entanto, as implicáncias dele passaram a fazer parte de um cotidiano com o qual ela aprendera a conviver e nada a tirava de sua tranquilidade.

A primavera ia em plena floração quando Ayla resolveu caçar algumas perdi zes para que fosse preparado o prato favorito de Creb. Pensou que, enquanto andasse pelos campos, poderia ao mesmo tempo ir dando uma olhada nas plantas crescendo para começar a refazer a farmácia de Iza. Passou a manhã explorando os terrenos próximos e depois se dirigiu para uma extensa campina já nas proximidades das estepes. Ali, fez dois pássaros alçarem vôo para abatê-los no ar com suas pedradas. Em seguida, saiu à procura dos ninhos em meio à relva crescida, na esperança de encontrar os ovos. Creb adorava comer as aves com recheios feitos de seus próprios ovos misturados com ervas e legumes. Soltando uma exclamação de alegria, a moça conseguiu achar o ninho e, com muito cuidado, enrolou os ovos numa camada macia de musgo, metendo- os dentro de uma dobra profunda da roupa. Estava feliz consigo mesma. Por pura alegria, disparou a correr pelo campo, só parando quando chegou, já sem fôlego, no topo de um morro coberto de relva recém-brotada.

Deixou-se cair no chão, deu uma olhada nos ovos para ver se estavam inteiros e depois pegou um pedaço de carne-seca para almoçar. Pôs-se a observar uma cotovia que lançava gloriosamente seu canto do alto de um galho, para depois bater as asas e ir com seu canto pelos ares. Dois pardais de cucurutos dourados, revoando por entre os galhos das amoreiras na fronteira da planíce e, gorjeavam uma canção sombria de notas descendentes. Outro casal de passarinhos com penachos pretos e mantos cinzas, reconhecidos pelo seu piado característico (tic-a-di-di), entrava e saía como flechas dos buracos de seus ninhos num pinheiro perto do riacho, que serpenteava pela densa vegetação no pé do morro. Pequeninas e vivazes cambaxirras marrons espantavam os outros pássaros, enquanto carregavam ramos e musgos secos para um ninho feito na cavidade do tronco retorcido de uma velha macieira que ainda provava sua fecundidade com flocos de flores rosadas.

Ayla adorava esses momentos de solidão. Aquecendo-se ao sol, feliz e relaxada, não pensava nada em particular, exceto na beleza do dia e de quanto feliz se achava.

Encontrava-se inteiramente inconsciente de que alguém pudesse estar por perto, até que viu uma sombra cruzando o chão à sua frente. Assustada, levantou os olhos, dando com a cara amarrada de Broud.

Como nenhuma caçada fora programada para aquele dia, ele resolvera caçar sozinho. Mas não estava muito empenhado na coisa, fora mais um pretexto para poder dar um passeio num dia quente de primavera do que propriamente visando buscar uma carne de que realmente não estava precisando. Vira Ayla descansando no alto do morro e não iria deixar passar aquela oportunidade de ralhar com ela por causa de sua preguiça, surpreendida ali, absolutamente à toa, sem fazer nada.

Ayla logo que o enxergou pulou sobre os pés, mas isso o aborreceu. Ela era mais alta e ele não gostava de suspender a cabeça para olhar para uma mulher. Fez sinal para que ela se sentasse novamente, já preparado para passar uma boa descompustura. Submissa, com uma expressão de indiferença vidrando-lhe os olhos, ela se abaixou e isso o deixou ainda mais irritado. Ele queria pensar em alguma coisa que arrancasse uma reação dela. Se estivesse na caverna, poderia mandá-la fazer qualquer coisa e a veria saltando, apressada, para atender sua ordem.

Broud olhou ao redor e depois para a mulher sentada a seus pés, esperando imperturbável que ele passasse logo o cargo que tinha de passar e seguis se seu caminho. Depois de ter ficado mulher, está pior do que nunca, pensou ele. Bali, Mulher Caçadora... como Brun pôde fazer uma coisa dessas? Viu as perdizes e lembrou que suas mãos estavam vazias. Até o olhar nessa sua cara feia é insolente. Está tripudiando de mim, porque conseguiu pegar alguma coisa e eu Não. O que poderia fazer com ela? não existe nada por aqui que eu possa mandá-la buscar? Espere - agora ela é mulher, não é? Há uma coisa que posso mandar que ela faça.

Broud fez-lhe um sinal e os olhos de Ayla se arregalaram. Aquilo era inesperado. Iza lhe dissera que os homens só queriam essa coisa com mulheres que consideravam atraentes.

Sabia que Broud a achava feia. Ele percebeu que ela ficara surpresa e escandalizada. A reação o animou. Fez novamente o mesmo sinal, categonicamente, para que ela assumisse a postura própria às relações sexuais e ele pudesse aliviar suas necessidades.

ayla sabia o que se esperava dela. não só porque Iza lhe explicara, como também por já ter visto muitas vezes os membros adultos do clã entregues a essa actividade, inclusive todas as crianças também viam. não existia qualquer restrição ou artificialismo na prática do sexo. As crianças aprendiam o comportamento adulto copiando os pais, e o sexo era apenas uma dentre as muitas actividades que imitavam. Isso sempre intrigara Ayla e ela se perguntava qual seria a razão daquela prática, mas não se perturbava quando via algum garoto se remexendo inocentemente por cima de uma menina, numa imitação consciente dos adultos.

Às vezes, não era só imitação Muitas meninas eram defloradas por garotos que, enquanto aguardavam sua primeira caçada, ficavam arrastando suas existências naquela fase de “quase-homem” e não raro também algum homem se deixava levar pela coqueteria de uma “quase-mulher”. A maioria dos rapazes, porém, considerava indigno fazer sexo com suas antigas companheiras de folguedos.

À exceção de Vom, Ayla não tinha companheiros que fossem mais ou menos de sua idade.

Além disso, nunca houve maior aproximação entre eles, desde os tempos em que Aga desencorajava a amizade dos dois. Por seu lado, Ayla não tinha qualquer estima particular por Vorn, que imitava Broud na maneira de tratá-la. Mesmo depois do incidente ocorrido no campo de treinamento, o garoto prosseguiu com sua idolatria por Broud. E Vorn, por sua vez, não tinha a menor vontade de brincar de companheiro com Ayla. Como não restasse mais ninguém, ela nunca se empenhou naquele comportamento imitativo. Assim, dentro de uma sociedade que encarava o sexo com a mesma naturalidade que o ato de respirar, Ayla havia conseguido sobreviver virgem até aquela data.

Sentia-se desajeitada, sabendo que era obrigada a consentir, e Broud se comprazia com sua perturbação Estava feliz por haver lembrado da coisa. Finalmente, conseguira romper-lhe as defesas. A confusão e o embaraço dela excitavam os seus desejos. Aproximou-se ao vê-la

levantar-se. Depois, ela se pôs de joelhos. Ayla não estava acostumada a ter homens tão perto dela. A respiração pesada de Broud a assustava. Ela hesitava.

Ele ficou impaciente, empurrou-a ao chão e pôs para o lado a roupa, deixando seu órgão grosso, latejante, à mostra. O que ela está esperando? É tão feia! Deveria sentir-se honrada, nenhum outro homem iria querê-la, pensou com raiva, agarrando-lhe a vestimenta e removendo-a, sentindo-se cada vez mais excitado.

Mas quando ele estava pronto para desfechar o ataque, alguma coisa se passou nela. não podia fazer aquilo! Simplesmente era impossível. Não enxergava mais nada. Pouco importava se tinha ou não de obedecê-lo. Conseguiu pôr-se de pé e começou a correr.

Broud era mais rápido do que ela. Ele a agarrou, derrubou-a, dando um soco com a mão fechada que lhe partiu os lábios. Estava começando a ter prazer com a coisa. Quantas vezes

ele havia ti do vontade de bater nela e fora obrigado a conter-se e, agora, não existia ninguém ali para impedi-lo. Além disso, havia uma boa razão para fazê-lo. Ela o estava desobedecendo, e de uma forma concreta.

Ayla estava enlouquecida. Tentou levantar-se e ele tornou a bater nela. Conseguira uma reação da parte dela que nunca esperara, e isso lhe acendia ainda mais o desejo. Iria dobrar aquela fêmea insolente. Foi dando-lhe socos um atrás do outro, feliz ao ver que a cada vez que suspendia a mão ela encolhia o corpo.

Ayla sentia a cabeça zumbindo, com o sangue escorrendo pelo nariz e de um canto da boca. Tentava levantar-se, mas ele a mantinha presa nochão. Ela lutava, dando-lhe murros no peito que pareciam não produzir nenhum efeito sobre seu corpo musculoso. A resistência dela, no entanto, levava-o ao auge da excitação Nunca se sentira tão estimulado. A violência aumentava sua paixão e o desejo punha força nos seus socos. Comprazendo-se com aquela resistência, prosseguia sem parar com os murros.

Ela estava quase inconsciente, quando ele a soltou. Sofregamente, arrancou-lhe a roupa e abriu as pernas dela. Numa investida brutal penetrou-a profundamente. O grito de dor que ouviu aumentou seu prazer e ele fez nova arremetida, arrancando-lhe outro doloroso grito, e depois, mais outro, e mais outro e outro... O grau de excitação o instigava, levando-o rapidamente ao ponto de saturação . Na última estocada que arrancou o derradeiro grito de agonia, ele expulsou todo o calor que acumulara.

Por um momento, ficou estendido sobre ela, desprovido de toda energia. Em seguida, ainda ofegante, afastou-se. Ayla soluçava incoerentemente. O sal das lágrimas ardia nas feridas abertas em seu rosto lambuzado de sangue. Um dos olhos estava inchado e já ficando preto.

As coxas estavam manchadas de sangue e ela se sentia toda machucada por dentro. Broud se levantou e a olhou do alto. Sentia-se ótimo. Nunca gostara tanto de nenetrar uma mulher.

Pegou suas armas e se dirigiu à caverna.

Depois de ter parado de soluçar, Ayla permaneceu ainda muito tempo deitada com a cara voltada para a terra. Por fim, levantou-se. Tocou na boca sentindo-lhe a inchação e olhou para o sangue nos dedos. Todo o corpo doía. Por dentro e por fora. Vi o sangue entre as coxas e algumas manchas na relva. Será que meu totem está novamente lutando?, - perguntou-se. Acho que não Ainda não está na época. Broud deve ter me ferido. não sabia que ele me podia bater também por dentro. Mas, as outras mulheres não ficam machucadas, por que o órgão de Broud me deixou tão ferida? Será que há alguma coisa errada comigo?

Vagarosamente, levantou-se e foi até o riacho, sofrendo com cada passo que dava. Lavou-se, mas não adiantou muito, a dor era fortíssima e a cabeça se achava num turbilhão Por que Broud quis que eu fizesse isso? Iza me falou que os homens só querem aliviar suas necessidades com as mulheres que acham atraentes. Eu sou feia. Por que um homem iria ferir uma mulher de quem ele gosta? Mas as mulheres também gostam de fazer isso, sen por que iriam fazer gestos para excitar os homens? Como podem gostar disso? Oga não se importa quando Broud faz com ela e ele faz todos os dias. Às vezes, até mais.

De repente, ela ficou em pânico. Oh, Não! E se Broud me quiser para uma segunda vez? Eu Não vou voltar para o clã. não posso voltar. Mas para onde iria? Minha pequena

caverna? não Lá é muito perto e não posso passar um inverno inteiro presa nela. Vou ter de voltar de qualquer maneira. Nãoposso viver sozinha. Para que outro lugar poderia ir? E além disso, não posso deixar Iza, Creb e Uba. O que vou fazer? Se Broud quiser, eu não vou poder recusar. As outras mulheres não ousariam nem tentar. O que há de errado co migo? Ele nunca quis isto quando eu era menina. Por que tive de ficar mulher? Estava tão feliz por causa disso e agora não me importaria se ficasse menina para o resto da vida. De qualquer jeito, nunca vou ter um bebê. Para que serve ser mulher, se ela não terá um bebê? Principalmente se um homem pode obrigar a gente a fazer coisas desse tipo. De que adianta? Para quê?

O sol já estava baixo no céu, quando Ayla foi a custo descendo pelo morro para procurar por suas perdizes. Os ovos acondicionados tão cuidadosamente haviam quebrado e sujado sua roupa na frente. Olhou na direção do riacho lembrando-se de como se sentia feliz quando observava os passarinhos cantando. Parecia ter sido há séculos. Um outro tempo, um outro lugar. Foi- se arrastando de volta à caverna, com medo de cada passo que dava.

Quando Iza viu o sol desaparecer atrás das árvores do lado oeste, sua ansiedade aumentou. Ela foi por tudo quanto era caminho que existia nas matas por perto e subiu no morro para vasculhar o lado da encosta que descia até a planície. Uma mulher não deve ficar sozinha.

Não gosto de ver Ayla saindo para caçar, pensava consigo. E se ela foi atacada por algum animal? Será que está ferida? Creb também estava preocupado, embora tentasse não o demonstrar. Até mesmo Brun passou a ficar incomodado, quando começou a escurecer.

Foi Iza quem do alto do morro, viu primeiro Ayla. Já estava pronta para começar a ralhar com a moça, mas parou no seu gesto.

- Ayla! Você está ferida! O que aconteceu?

- Broud me bateu - respondeu com a cara sombria.

- Mas por quê?

- Porque eu o desobedeci - gesticulou, enquanto caminhava para a caverna seguindo direto para a fogueira de Creb.

O que será que aconteceu?, perguntou-se Iza. Há anos que Ayla não desobedece Broud. Por que iria rebelar-se contra ele agora? E por que ele não me disse que a tinha visto? Ele sabia que eu estava preocupada. Ao meio-dia, ele já estava aqui e por que Ayla só chegou agora?

Iza lançou um rápido olhar na direção da fogueira do rapaz e viu que ele estava olhando para Ayla por cima do cercado de pedras. Havia nele uma expressão de superioridade e prazer.

Nada passara despercebido a Creb: o rosto ferido e inchado de Ayla, sua extrema desolação, e Broud, com expressão arrogante e escamecedora, observando-a desde o momento em que ela entrara. Ele sabia que o ódio de Broud crescera com o passar dos anos e que a obediência passiva de Ayla o atingia mais do que a rebelião dos tempos de criança. mas alguma coisa havia acontecido que estava dando a Broud uma sensação de poder sobre ela. Por mais perceptivo que Creb fosse, ele não atinou com a causa.

No dia seguinte, Ayla estava com medo de ultrapassar os limites da fogueira e prolongou tanto quanto podia a refeição da manhã. Broud estava esperando por ela. Só em pensar na sua excitação da véspera deixou-o estimulado e ele já estava pronto. Quando ele lhe fez o sinal, por pouco ela não saiu correndo, mas se forçou a fazer a posição. Tentava reprimir os gritos, mas a dor sentida arrancava-os de seus lábios, provocando olhares curiosos daqueles que estavam por perto. não podiam entender aqueles gritos de dor nem as razões do súbito interesse de Broud por ela.

Broud comprazia-se ao máximo com a nova maneira que descobriu para do miná-la e usava Ayla frequentemente, embora as pessoas se perguntassem o que o fazia preferir uma mulher feia, de quem tinha ódio, a Oga, sua graciosa companheira. Passado algum tempo, já não doía mais. Ayla, no entanto, continuava detestando o ato. E era justamente seu ódio que dava prazer a Broud. Ele a havia posto no seu lugar, granjeara a tão almejada superioridade sobre ela e acabou por fim fazendo com que Ayla lhe reagisse. Pouco importava se aquela era uma reação negativa, preferia até que o fosse. Queria vê-la acovardada, sentindo medo e obrigando-se a esta submissão que lhe era odiosa. Só o pensamento disto já era bastante para excitá-lo. Seus impulsos sexuais sempre foram fortes e, agora, estava mais sexualmente ativo do que nunca. Todas as manhãs em que não saía para caçar, ficava esperando por ela. Geralmente, forçava-a outra vez na parte da tarde e às vezes também no meio do dia. Até mesmo de noite, surpreendia-se tendo uma ereção e, neste caso, usava a companheira para aliviar-se. Ele era jovem e saudável, no auge das proezas sexuais, e quanto mais intenso era o ódio de Ayla, mais prazer ele obtinha.

Ayla perdeu o brilho. Estava desanimada, mal-humorada, nada parecia afetá-la. A única coisa que sentia era um ódio mortal por Broud e aquele estupro diário. Tal como uma geleira que se apodera de toda a umidade da terra ao redor, o ódio e a frustração de Ayla anulavam os outros sentimentos.

Ela sempre se conservara limpa, tomando banho e lavando os cabelos no riacho, de modo a evitar piolhos, chegando até a trazer imensas bacias cheias de neve que punha para derreter ao lado da fogueira para poder ter água durante o inverno. Agora, seus cabelos caíam sem vida, cheios de nós gordurentos e dia após dia estava com a mesma roupa, sem se incomodar de lavar os lugares sujos ou botá-la para arejar. Estava relaxada nos serviços domésticos a ponto de que homens que nunca antes haviam ralhado com ela passassem agora a lhe chamar a atenção. Perdera o interesse pela medicina de Iza, nunca falava, a não ser para responder alguma coisa que lhe perguntassem diretamente, quase nunca saía para caçar, e quando o fazia voltava quase sem perguntas e de mãos vazias. Seu desalento contaminava todos que compartilhavam com ela da fogueira de Creb.

A preocupação de Iza deixava-a inteiramente fora de si. Não conseguia entender aquela drástica mudança de Ayla. Sabia que tinha a ver com o inexplicável interesse de Broud por ela, mas por que, realmente, não conseguia compreender. Ela estava sempre rondando Ayla, observando-a e, quando a moça começou a ter enjôos pela manhã, ficou com medo de que o espírito maligno que havia entrado na menina já estivesse firmemente estabelecido dentro dela.

Iza, no entanto, era uma curandeira experiente. Foi a primeira a notar que Ayla não guardava o isolamento exigido às mulheres nos dias em que seus totens entravam em luta e, a partir daí, passou a vigiá-la ainda mais de perto. Era-lhe difícil acreditar no que pensava. Mas quando viu que mais uma lua havia passado e que o verão estava expandindo todo o seu calor, já não teve mais dúvida. Certa tarde em que Creb não se encontrava na fogueira, ela acenou para Ayla.

- Quero falar com você.

- Sim, Iza - respondeu Ayla, levantando-se com esforço de sua pele e se deixando cair no chão perto de Iza.

- Qual foi a última vez que seu totem lutou, Ayla?

- Não sei.

- Ayla, quero que você pense direito sobre isso. Os espíritos lutaram dentro de você, depois de ter havido a primeira batalha?

Ayla procurava lembrar-se.

- não tenho muita certeza. Talvez uma vez.

- Foi o que pensei. Você está tendo enjôos todas as manhãs, não é?

- Estou - respondeu Ayla, com a cabeça. Achava que a causa de seus enjôos fosse Broud que, quando não saía para caçar, estava firme esperando-a, e ela, por odiar tanto a coisa, vomitava a primeira refeição e algumas vezes também a da noite.

- Seus seios estão doloridos?

- Um pouco.

- E também estão aumentando de tamanho, não é?

- Acho que sim. Por que está querendo saber? Para que todas essas perguntas? Iza, séria, olhou para ela.

- Ayla, não sei como aconteceu. Quase não consigo acreditar, mas tenho certeza de que só pode ser uma coisa.

- Que coisa?

- O seu totem foi derrotado. Você vai ter um bebê.

Um bebê? Eu? Meu totem é forte demais, não pode ser - protestou

- Eu sei. Por isso não entendo, mas você vai ter um bebê - repetiu iza.

Nos olhos indiferentes de Ayla apareceu uma expressão de surpresa.

- Será possível? Será que pode ser verdade? Verdade mesmo? Eu, ter um bebê? Oh, mãe, que maravilha!

- Ayla, você não tem companheiro. não creio que haja um só homem neste clã para tomá-la, nem mesmo como segunda mulher. Você na pode ter um filho sem companheiro, isso poderia trazer infelicidade - gesticulou Iza, aflita. - Seria melhor se você tomasse alguma coisa para perder a criança. Acho que um bom remédio seria chá de visco. Você conhece, é aquela planta com frutinhas brancas que cresce no alto dos pés de carvalho. É um remédio que sempre dá resultado, e se for preparado direito não é muito perigoso. Vou fazer para você um chá com as folhas, usando só umas poucas frutinhas. Vai ajudar seu totem a expulsar essa vida nova que se está formando dentro de você. O remédio dá um pouco de enjôo, mas...

- não não! - balançou Ayla a cabeça com firmeza. - Iza, Não! não quero tomar chá de visco. não quero tomar nenhum remédio que faça perder o bebê. Eu quero o meu filho, mãe. Desde que Uba nasceu, sempre quis ter um bebê. Nunca pensei que isso um dia pudesse acontecer.

- Mas, Ayla, e se o bebê for infeliz? Pode até nascer deformado.

- Ele não vai ser infeliz. não vou deixar. Prometo que vou cuidar de mim para que ele seja sadio. não foi você mesma quem disse que os totens fortes ajudam a fazer bebês sadios, depois que são vencidos? E vou também cuidar muito do bebê, quando tiver nascido.

Não quero que nada aconteça, Iza. Preciso ter esse filho, você não compreende? Talvez meu totem nunca mais venha a ser derrotado. Pode ser que essa seja minha única chance.

Iza olhava os olhos suplicantes de Ayla. Era a primeira vez que via um brilho de vida nela, desde o dia em que Broud lhe batera quando estavam fora, caçando. Sabia que devia insistir com Ayla para que tomasse o remédio. Não seria bom deixar uma mulher sem companheiro ter filho, quando se podia fazer algo a respeito. Mas Ayla queria a criança desesperadamente, e seu estado de depressão poderia agravar-se ainda mais, se fosse induzida a desistir do bebê. Sim, talvez Ayla tivesse razão talvez essa fosse sua única chance.

- Está bem, Ayla - concordou Iza. - Se você quer tanto assim. Mas seria melhor por enquanto que não se falasse disso para ninguém. Daqui a pouco, todo mundo ficará sabendo.

- Que bom, Iza - disse Ayla, abraçando-a. À medida que ia conscientizando o milagre daquela impossível gravidez, um leve sorriso começou a esboçar em seu rosto. A moça deu um salto, cheia de energia. não aguentava ficar sentada ali parada, tinha de fazer qualquer coisa.

- Mãe, o que você vai cozinhar para hoje à noite? Deixe que eu ajude.

- Ensopado de auroque - respondeu Iza, espantada com aquela súbita transformação. - Se quiser, pode ir cortando a carne.

Enquanto trabalhavam, Iza ia pensando na alegria que era Ayla, e ela quase já havia esquecido de como poderia ser sua filha. As mãos circulavam pelo ar, conversando e trabalhando ao mesmo tempo. O interesse de Ayla pela medicina voltara.

- Eu não sabia dessa qualidade do visco, mãe - observou Ayla. - Conhecia os esporões de centeio e o capim-cheiroso, mas o visco, eu não sabia que era uma planta que servia para abortar.

- Sempre haverá coisas que eu ainda não falei, Ayla, mas você vai acabar sabendo o suficiente. Além disso, você sabe como fazer o teste, poderá ir aprendendo por sua própria conta. O tanaceto também serve para isso, mas é mais perigoso do que o visco. No caso dessa planta, usa-se tudo. Põe- se para ferver as flores, folhas e raízes. Se você encher de água até aqui - Iza apontou para uma marca feita numa de suas cuias de remédio - e deixar ferver até que fique na quantidade desta outra cuja - ela pegou numa vasilha de osso e mostrou - estará mais ou menos na dose certa. Quase sempre uma cuia é o suficiente. Algumas vezes, as flores de crisântemos também dão resultado. Não são tão perigosas quanto o visco e o tanaceto, mas nem sempre funcionam.

- Eu sei. Elas seriam melhor para mulheres que têm tendência para perder os bebês com facilidade. Quando dão certo, sempre se devem usar coisas mais suaves e menos perigosas.

- Isso mesmo. Ayla... há uma outra coisa que eu também queria que você soubesse. - Iza deu uma olhada à sua volta para ver se Creb estava por perto. - Veja bem, nenhum homem pode saber disso. Este é um segredo conhecido só pelas curandeiras e, mesmo assim, nem por todas. não se deve contar nem mesmo para uma outra mulher, porque, se o companheiro perguntar, ela está na obrigação de lhe responder. Para a curandeira, ninguém faz perguntas. Se um homem descobrir, ele proíbe. Entende o que estou dizendo?

- Sim, mãe - respondeu Ayla balançando a cabeça, surpresa e curiosa com o segredo de Iza.

- Acho que não irá precisar saber disso para você mesma, mas como curandeira não pode ignorar. Às vezes, nos casos de mulheres que têm partos muito difíceis, é melhor que elas nunca mais voltem a esperar filhos. A curandeira pode dar um remédio para uma mulher, sem que ela saiba para que serve. E há outros motivos que fazem com que uma mulher possa não querer um filho. Algumas plantas têm poderes especiais, Ayla. Elas fortalecem o totem da mulher. Fortalecem tanto que impedem até de a vida começar.

- Você conhece alguma mágica para impedir a gravidez, Iza? Será que o totem fraco de uma mulher pode tornar-se forte? Qualquer totem? Mesmo que o Mog-ur faça um feitiço para fortalecer o totem do homem?

- Conheço. Mas um homem jamais deve saber disso. Quando eu tinha

companheiro, usei a mágica em mim. Queria que ele me desse para um outro homem.

Achava que, se eu não tivesse filho, ele não iria querer me conservar- confessou Iza.

- Mas você teve. E Uba?

- Acho que depois de muito tempo de uso, a mágica foi perdendo a força. Talvez meu totem não quisesse mais lutar, ou talvez ele quisesse que eu tivesse um bebê. Não sei. Nada funciona por toda a vida. Existem forças que são mais fortes do que as mágicas, mas, comigo, funcionou por muitos anos. Ninguém entende os espíritos completamente, nem mesmo o Mog-ur. Quem iria achar que seu totem fosse ser vencido, Ayla? - A curandeira passou rapidamente os olhos em derredor. - Escute aqui, antes que Creb volte. Você conhece aquela trepadeira de folhinhas minúsculas e flores amarelas, não é?

- Está falando do cipó-chumbo?

- Isso mesmo. Às vezes, é conhecido também como Cipó-estrangulador porque essa planta mata a outra onde ela cresce. Você, primeiro, põe a planta para secar, depois esmigalha uma certa quantidade na palma da mão e leva então para ferver com uma cuia de osso de água até que o cozimento fique numa cor de palha. Tome dois goles nos dias em que seu totem não está lutando.

- Essa planta também serve para pôr nos curativos usados em mordidas e picadas de bichos, não é?

- Também. Isso lhe dá um bom motivo para ter a planta por perto. Só que os curativos, você põe sobre a pele, do lado de fora do corpo, e no outro caso, para o fortalecimento do totem, você bebe. Há outra coisa que você deve também tomar nos dias em que seu totem está lutando. É raíz de absinto. Pode ser usada seca ou fresca. Ferva e tome uma cuja nos dias em que você estiver em isolamento.

- não é aquela planta de folhas dentadas que serve para a artrite de Creb?

- Essa mesma. Conheço ainda outra, mas eu mesma nunca fiz uso dela. É mágica de outra curandeira. Ela me deu quando estávamos trocando algumas idéias. Existe um certo tipo de inhame que não dá por aqui. Mas vou lhe mostrar as diferenças dele em relação aos outros.

Corte em pedaços, ferva e esmigalhe para fazer uma pasta. Em seguida, deixe secar e soque até virar pó. É preciso uma boa quantidade, uma meia cuia de pó misturado com água para fazer novamente uma pasta, nos dias em que você não estiver isolada, quando os espíritos não estejam em luta.

Creb entrou na caverna e viu as duas envolvidas numa longa conversa. Imediatamente percebeu a diferença em Ayla. Estava animada, prestando atenção e sorridente. Parece que a garota conseguiu reagir, pensou ele, enquanto se dirigia para sua fogueira.

- Iza! - disse em voz alta para chamar a atenção das duas. - Será que um homem precisa passar fome na sua própria casa?

Iza deu um salto, com ar meio culposo, mas Creb não percebeu. Estava tão contente de ver Ayla trabalhando com entusiasmo e novamente conversando que nem olhou para Iza.

- Agora mesmo fica pronto, Creb - gesticulou Ayla, sorrindo e correndo para abraçá-lo. Ele sentiu uma alegria que há muito tempo não tinha. Depois que estava sentado em sua esteira, Uba entrou correndo na caverna.

- Estou com fome - gesticulou a garotinha.

- Você está sempre com fome, Uba - falou Ayla rindo, ao mesmo tempo em que a suspendia para dar um volteio com ela pelo ar. Uba estava encantada. Naquele verão, era a primeira vez que Ayla se achava com espírito para brincadeiras.

Mais tarde, depois da comida, Uba foi aboletar-se no colo de Creb, enquanto Ayla, cantarolando, ajudava Iza na limpeza. Creb suspirou feliz. Sentia-se verdadeiramente em casa. Os meninos são importantes, pensou consigo, mas as meninas são melhores. Elas não precisam ser fortes e corajosas o tempo todo e não têm preconceitos de ser ninadas no colo.

Quase chego a desejar que Ayla não tivesse crescido.

No dia seguinte, Ayla acordou envolvida por um clima de radiosa expectativa. Vou ter um bebê, disse consigo. Ela se abraçou, deitada entre as cobertas de sua pele de dormir. De repente, ficou com vontade de se levantar rápido. Acho que vou descer até o riacho esta manhã. Meus cabelos estão precisando de uma boa lavada. Pulou para fora das cobertas, mas foi atingida por uma onda de náusea. Talvez seja melhor que eu coma alguma coisa sólida, para ver se a comida fica no meu estômago. Se eu quiser um bebê sadio, tenho de comer. A comida, porém, voltou. Depois de algum tempo, tornou a comer e então já se sentiu melhor. Ainda pensando no milagre de sua gravidez, veio para fora da caverna, dirigindo-se para os lados do riacho.

- Ayla! - Era Broud que, com ar escarnecedor, vinha caminhando com toda a arrogância.

Ele lhe fez o sinal.

A moça se assustou. Havia se esquecido completamente de Broud. Tinha coisas mais importantes para pensar como no aconchego dos bebês amamentando, no bebé que daqui a uns meses estaria aninhado junto a seu seio. Ele bem que podia acabar logo com isso, pensou já fazendo a posição para que Broud aliviasse suas necessidades. Tomara que faça depressa, tenho de ir ao riacho lavar meus cabelos.

Broud ficou murcho. Estava faltando alguma coisa. não havia qualquer reação nela. A excitação estava em forçá-la contra sua vontade e ele sentia a falta disso. O ódio transbordante e a amarga frustração que ela nunca conseguira dissimular haviam desaparecido. Já não lutava mais. Agia como se elenão estivesse lá, como se nada sentisse. E realmente ela não sentia. Sua cabeça estava em outras esferas. Percebia tanto aquela penetração como as suas reprimendas ou a violência de seus socos. Aquilo era apenas uma coisa que a jovem tinha de aceitar e se resignar. A calma e o autodomínio haviam voltado.

O prazer de Broud estava em dominá-la e não propriamente no ato sexual. Percebeu que já não havia mais estímulo nela. Estava sendo difícil para ele manter a ereção. Depois de algum tempo sem atingir nenhum clímax, ele se retraiu e por fim desistiu completamente. Era humilhante demais. Entre ela e uma pedra dá tudo no mesmo, pensou ele. Também é tão feia que tanto faz, já gastei muito tempo com ela. não soube nem perceber que honra era ter o interesse do futuro chefe do clã.

Oga, prazerosa, recebeu-o de volta. Sentia-se aliviada, parecia que a inexplicável atração por Ayla fora superada. Ela não ficara com ciúmes, não havia motivos para isso. Broud era o seu companheiro, e ele não dera a menor indicação de que estava disposto a abandoná-la.

Qualquer homem podia aliviar-se com a mulher que bem entendesse, não havia nada de extraordinário no fato. Só não podia entender por que ele dava tanta atenção a Ayla, quando, por alguma estranha razão, a jovem visivelmente não tinha o menor prazer na coisa.

Por mais que quisesse convencer-se do contrário, Broud estava morto de raiva com a súbita indiferença de Ayla. Havia acreditado que por fim encontrara o jeito de romper de uma vez por todas as defesas dela e descobrira que tinha grande prazer nisso. Agora, mais do que nunca, estava na firme determinação de achar novamente outra maneira de atingi-la.

 

A gravidez de Ayla deixou o clã inteiro boquiaberto. Parecia impossível que uma mulher com um totem tão poderoso como o dela pudesse conceber vida. Havia conjeturas de toda ordem sobre a qual dos homens pertenceria o espírito do totem que lograra vencer o todo-poderoso Leão da Caverna, e todos eles gostariam de reivindicar a glória para si. Era algo que reforçava o prestígio. Alguns pensavam que deveria ser uma combinação das diversas essências totêmicas, talvez de toda a população masculina, mas a maioria das opiniões estava dividida em dois campos que se formaram de acordo com a idade das pessoas.

A convivência de perto com a mulher era o fator predominante, aquele que levava praticamente todos os homens a acreditarem que os filhos de suas companheiras resultassem do espírito de seus totens. Inevitavelmente, o homem com quem a mulher passava mais tempo era o dono da fogueira onde ela vivia. A oportunidade de engolir o espírito deste, portanto, era muito maior. Apesar de que o totem de um homem pudesse pedir ajuda ao de outro duran te a batalha que se travaria ou mesmo receber auxílio de algum espírito que casualmente estivesse por perto na ocasião, a força vital do primeiro totem era a que tinha a primazia na reivindicação. Ao espírito auxiliar poderia caber a honra de iniciar a nova vida, mas essa se fizera por vontade do totem que pedira ajuda. Os dois homens que tiveram maior contato com Ayla desde que ela ficara mulher foram o Mog-ur e Broud.

- Eu digo que é o do Mog-ur - afirmou Zoug. - Ele é o único com um totem mais forte do que o Leão da Caverna. E afinal de quem é a fogueira onde ela vive?

- Ursus nunca iria permitir que uma mulher engolisse a essência dele - contrapôs Crug.

O Urso da Caverna escolhe aqueles que protege, tal como fez com o Mog-ur. Você acha que um Cabrito poderia derrotar um Leao da Caverna?

- Com a ajuda de Ursus, sim. não se esquêção de que o Mog-ur tem dois totens. O Cabrito não precisaria ir muito longe para buscar ajuda. Ninguém está dizendo que o Urso deixou nela o espírito dele. Estou apenas dizendo que ele ajudou - respondeu Zoug, acalorado.

- Então por que ela não engravidou no último inverno? Ela já vivia nessa época na fogueira dele. Foi só quando Broud passou a ter esse capricho por ela e não me pergunte o que ele viu na garota. Reparem bem que a vida nova começou depois que ele passou a ficar muito perto dela. O Rinoceronte Lanoso também é um poderoso totem. Com a ajuda de um Outro, poderia vencer o Leão da Caverna - argumentava Crug.

- Acho que é o totem de todos - interpôs Dorv. - Mas a questão principal é quem quer tomá-la para companheira. Todo mundo quer ter a glória, mas quem quer a mulher? Brun já perguntou se alguém vai querê-la? Se ela não tiver companheiro, seu filho será infeliz.

Estou velho demais, embora, neste caso, não lamente muito minha velhice.

- Bem, eu ficaria com ela, se ainda tivesse uma fogueira só minha - gesticulou Zoug. - Ela é feia, mas é boa de serviço e muito respeitadora. Sabe como cuidar de um homem. Isso, no final das contas, é mais importante do que carinha bonita.

- Para mim não - disse Crug, abanando a cabeça. - Na minha fogueira, não quero uma Mulher Caçadora. Isso está bom para o Mog-ur que não caça e também não se importa. Mas imagine voltar de uma caçada de mãos abanando e comer carne trazida pela companheira. Além disso, na minha fogueira já existe gente demais. Já basta Ika, Borg e Igra, o novo bebê. Já me dou por feliz só com Dorv que ainda pode contribuir. E quem

sabe? Ika ainda é muito jovem, é bem capaz de ainda ter mais filhos.

- Já pensei sobre isso - falou Droog. - Só que a minha fogueira está muito cheia. Já estão vivendo lá Aga e Aba, Vorn, Ona e Groob. O que eu iria fazer com mais uma mulher e outra criança? E você, Grod, o que diz?

- Não. A não ser que Brun ordene - respondeu Grod, laconicamente. O segundo em comando nunca conseguiu vencer um certo mal-estar quando se achava perto de ayla, uma mulher nascida fora do clã. não tinha nada contra, apenas ela o deixava pouco à vontade.

- E quanto ao próprio Brun? - indagou Crug. - Foi ele o primeiro a aceitá-la no clã.

- Algumas vezes a prudência manda que se leve em consideração a primeira mulher, antes que se tome uma segunda - comentou Goov. - Vocês sabem como Ebra se sente em relação ao status da curandeira. Iza vem treinando Ayla e se ela se transformar numa curandeira de sua linha, vocês acham que Ebra gostaria de dividir a fogueira com uma mulher mais moça, uma segunda companheira que tem mais status do que ela? Eu por mim tomaria ayla. Quando for o mog-ur, não vou poder caçar muito. não me importo se ela chegar em casa trazendo alguns coelhos ou uns hamsters, afinal são bichinhos pequenos. E também Ovra não se importaria de ter uma se gunda mulher na fogueira com mais status do que ela. As duas se dão muito bem. O único problema é que Ovra quer um filho e deve ser difícil para ela estar dividindo a casa com uma mulher e um bebê recém-nascido. Sobretudo, porque ninguém esperava que Ayla fosse ser mãe. Acho que foi o espírito de Broud que começou a vida. É pena ele Não gostar dela, seria a pessoa indicada para tomá-la.

- Não tenho tanta certeza se foi o de Broud - disse Droog. - E o Mog-ur? não poderia tomá-la para companheira?

O velho feiticeiro observava em silêncio a discussão, como frequentemente o fazia.

- Eu venho pensando no assunto. Não creio que haja sido Ursus ou o Cabrito que tenham começado o bebê de Ayla. E nem tenho muita certeza se foi o totem de Broud também. O totem dela sempre foi um enigma. Ninguém pode dizer ao certo o que ocorreu. Mas ela precisa de um companheiro. Não só porque o bebê poderá ser infeliz, mas porque alguém tem de responsabilizar-se por Ayla e mantê-la. Já estou muito velho e se nascer um menino Não vou poder ensiná-lo a caçar. E nem Ayla, ela só caça com funda. Além do mais, não posso ser o seu companheiro. Seria como se Grod tomasse Ovra para companheira, com Ika na qualidade de primeira mulher na fogueira. Para mim, Ayla é como a filha da companheira de alguém, uma criança de outra fogueira, não uma mulher que eu possa ter como minha.

- Mas isso já tem acontecido - disse Dorv. - A única mulher que um homem não pode tomar é a germana dele.

- não é proibido, mas não é uma coisa bem vista. Além do que, a maioria dos homens não gosta. E depois, nunca tive companheira, já estou muito velho para começar agora. Iza cuida de mim e isso é mais do que suficiente. Eu me sinto confortável com ela. Espera-se que, de vez em quando, os homens aliviem suas necessidades com suas companheiras e há

muitos anos que não tenho mais esse tipo de necessidade. Faz tempo que aprendi a controlá-la. não daria um bom companheiro para uma mulher jovem. Mas talvez Ayla não vá precisar de ninguém. Iza disse que ela pode ter uma gravidez difícil, inclusive já está tendo problemas e talvez não chegue ao término da gestação. Sei que Ayla quer o bebê, mas seria melhor para todo mundo, se ela perdesse a criança.

Tal como foi relatado aos homens pelo Mog-ur, a gravidez de Ayla não ía bem. Iza tinha medo de que as coisas estivessem correndo erradas com o bebê. Muitos abortos se deviam a fetos malformados e, na opinião da curandeira, era melhor perder a criança do que deixá-la nascer e depois a mãe ser obrigada a dispor do filho. O enjôo matinal de Ayla ultrapassou o primeiro trimestre e até mesmo no final do outono, quando já tinha o ventre abaulado, cóntinuáva tendo problemas para reter os alimentos. Ela, então começou a sangrar, expelindo coágulos, e Iza teve de pedir permissão a Brun para dispensá-la das actividades normais, de modo que pudesse ficar repousando na cama. Os problemas de gravidez de Ayla foram cada vez se tornando mais difíceis e com mais medo Iza foi ficando. Estava convencida de que Ayla deveria desistir da criança e não tinha dúvida de que a expulsãb seria fácil, apesar de que o tamanho da barriga demonstrasse que o bebê continuava se desenvolvendo. Ela temia mais por Ayla. O bebê estava exigindo demasiado dela. Os braços e as pernas afinaram, contrastando com o volume do corpo. Não tinha apetite e era com esforço que engolia os alimentos que Iza lhe preparava especialmente. Dois círculos pretos formaram-se ao redor dos olhos e sua abundante e lustrosa cabeleira perdeu todo o viço. Tinha sempre frio, estava sem reservas para manter o calor do corpo e passava grande parte do tempo encolhida, junto da fogueira, enrolada em peles. Quando, entretanto, Iza sugeriu-lhe tomar um remédio para pôr fim à gravidez, ela recusou.

- Iza, quero o meu filho. Ajude-me - implorou. - Eu sei que você pode ajudar, sei que pode. Farei qualquer coisa que você disser, mas me ajude a ter o bebê.

Iza não pôde recusar. Já há algum tempo ela dependia de Ayla para trazer-lhe as plantas de que precisava, raramente ela mesmo saindo para colhêlas. Exercícios mais puxados lhe provocavam acessos violentos de tosse e vinha se mantendo à base de uma medicamentação forte que escondia sua tu berculose, agravada a cada inverno. Mas, por ayla, faria qualquer coisa, e sairia para procurar por determinada raíz preventiva contra aborto.

Certa manhã, deixou a caverna bem cedo e foi procurar pela raíz nas matas no alto da montanha onde havia charnecas escuras e úmidas. Quando saiu, o sol brilhava num céu claro. Iza pensava que seria um daqueles dias quentes que costumava fazer no final do outono, achando que não seria necessário munir-se de uma quantidade extra de roupas.

Além disso, contava estar de volta antes do meio-dia. Pegou, primeiro, o caminho que levava à floresta e depois seguiu por um atalho margeando um córrego, pondo-se, então a subir pela encosta íngreme. Estava mais fraca do que supunha. Com a respiração curta, precisava a todo instante parar para descansar ou esperar que passasse um acesso de tosse que a fazia sacudir-se violentamente. Quando a manhã ia pela metade, o tempo mudou. Do lado este, trazidas por ventos gelados, foram aparecendo pesadas nuvens que, ao atingir o sopé da colina, despencaram na forma de forte aguaceiro misturado com neve. Em poucos momentos, Iza ficou empapada.

A chuva diminuíra, quando conseguiu encontrar a variedade de pinheiro e as plantas por que procurava. Tremendo de frio, sob a chuvazinha fina, cavou o chão para desenterrar as raízes da terra molhada. A tosse durante a volta piorara, sacudindo-lhe o corpo a todo instante e trazendo um sangue espumoso aos lábios. O terreno por onde passava lhe era desconhecido, diferente daquele da antiga caverna que habitavam. Viu-se desorientada, seguindo o córrego errado e sendo obrigada a retornar no caminho para buscar o outro. Já estava perto de escurecer quando, inteiramente molhada e morta de frio, conseguiu achar a trilha que levava à caverna.

- Mãe onde você esteve? - perguntou Ayla. - Está empapada e tremendo de frio .Venha para perto do fogo. Deixe que eu pegue umas roupas secas para você.

- Achei algumas raízes de prenanto, Ayla. Lave e mastigue... - Iza foi obrigada a interromper para tossir, tinha os olhos febris e o rosto vermelho.

- Mastigue as raízes cruas. Isso ajuda a conservar o bebê na barriga.

- Você não saiu debaixo desta chuva só para pegar raízes para mim, não é? Será que não sabe que prefiro perder o bebê do que você? Iza, você sabe que está doente, não pode sair com um tempo deste.

Ayla não ignorava que já há alguns anos Iza não vinha muito bem de saúde, mas até aquela data não havia percebido o quanto realmente a mulher estava doente. A partir daí, Ayla deixou de pensar em sua gravidez, já nem ligava se estava ou na sangrando; esquecia-se de comer, recusando-se a sair da cabeceira de Iza e dormindo numa pele ao lado dela. Uba também mantinha vigilância constante.

Era bastante traumatizante para a menininha esse primeiro contato com uma moléstia grave e justamente numa pessoa que ela amava. Observava tudo que Ayla fazia, ajudava, e com isso foi surgindo a compreensão de seu desti no e do conhecimento que herdara. Uba não era a única a observar Ayla. Todo o clã estava preocupado com a nova curandeira e um pouco desconfiado com sua competência. Ayla, no entanto, mantinha-se alheia a essa apreensão. Toda a sua atenção estava dirigida para a mulher a quem chamava de mãe.

Ela rebuscava em sua cabeça tudo quanto fosse remédio de que Iza lhe falara, indagava de Uba, procurando informar-se com ela sobre os conhecimentos que a menina tinha armazenados em sua memória infantil e aplicava um certo raciocínio lógico que lhe era peculiar. O especial talento que Iza notara nela, a capacidade para descobrir e tratar o problema real da doença era o ponto forte de Ayla. Era boa para diagnosticar. Partindo de pequenos sintomas, era capaz de reconstituir o quadro, tal como um quebra-cabeça, onde preenchia as lacunas com o seu poder de dedução e uma grande intuição. Era uma capacidade à qual somente o seu cérebro estava adequado. A crise de Iza serviu para estimular e aprimorar esse talento que lhe era Inato.

Aplicava todos os remédios que Iza lhe ensinara empregando técnicas novas sugeridas por outros casos, às vezes completamente diferentes. Seja lá como for, se pela força de sua dedicação, se pelos medicamentos, ou se pela vontade de viver de Iza - ou talvez tudo isso junto - o fato é que, quando os ventos gelados de inverno empilharam a neve contra as barreiras à entrada da caverna, Iza já estava suficientemente forte para ocupar-se outra vez com a gravidez de Ayla.

O esforço despendido na recuperação de Iza teve suas consequências. Durante o resto do inverno, Ayla passou perdendo sangue constantemente e com uma dor nas costas que não alargava. No meio da noite, acordava sentindo dor nas pernas e continuava vomitando com frequência. Iza esperava que a qualquer momento ela perdesse a criança. Não compreendia como Ayla ainda conseguia retê-la, e como o bebé, apesar de toda a fraqueza da mãe, podia prosseguir em seu desenvolvimento. A barriga crescia em proporções nunca vistas, e o bebê, dentro, dava tantos pontapés e tão fortes que Ayla mal conseguia dormir. Iza jamais vira uma mulher sofrer tanto com a gravidez.

Ayla nunca se queixava. Tinha medo de que Iza pudesse pensar que ela se achasse disposta a renunciar ao bebê, embora a gravidez já estivesse adiantada demais para que a curandeira considerasse tal possibilidade. E nem ela também a considerava. Seu sofrimento só lhe aumentava a convicção de que, se perdesse esse filho, jamais teria outro.

De sua cama, Ayla via as chuvas de primavera varrerem a neve e a primeira flor de açafrão lhe foi trazida por Uba. Iza não a deixava sair da caverna. Os salgueiros brancos haviam já perdido suas penugens e começando a ter os primeiros brotos, anunciando o verde das folhagens, num dia triste e úmido de princípio de primavera, quando Ayla, aos 11 anos de idade, entrou em trabalho de parto.

As contrações iniciais foram fáceis. Ayla tomava chá de casca de salgueiro, enquanto conversava com Iza e Uba, cheia de animação e feliz por ter finalmente chegado o momento. Tinha certeza de que, no dia seguinte, estaria com o bebê nos braços. iza tinha as suas dúvidas, mas procurava não as deixar transparecer. A conversa entre Iza e as filhas, como frequentemente vinha acontecendo nos últimos tempos, descambou para assuntos ligados a remédios.

- Mãe, que raíz era aquela que você me trouxe no dia em que saiu e ficou doente? - gesticulou Ayla.

- Chama-se prenanto. não é muito usada porque deve ser mastigada crua e só é encontrada no final do outono. É muito boa para impedir abortos. Mas quantas mulheres correm o perigo de abortar somente nesta época? E seca já perde muito de seu valor.

- Como ela é? - perguntou Uba. A doença de Iza despertara nela o interesse pelas plantas medicinais que algum dia teria de usar com seus pacientes, e tanto Iza como Ayla lhe estavam ensinando. Mas treinar Uba não era a mesma coisa que ensinar Ayla. Para conseguir o pleno rendimento de seu cérebro, Uba tinha apenas de ser lembrada daquilo que já sabia e ver como esses seus conhecimentos poderiam ser postos em prática.

- Na verdade, são duas plantas, uma é macho e a outra fêmia. Elas têm um caule comprido que sai de uma penca de folhas dando perto do chão e pequeninas flores na parte de cima que descem até a metade do caule. As flores “lo macho são brancas. As raízes provêm da planta fêmea que tem flores menores e verdes.

- Você disse que dão nas florestas de pinheiros? - gesticulou Ayla.

- Só naquelas com bastante umidade. É uma planta que gosta de lugares frios. Nos pântanos, em clareiras úmidas e quase sempre em terrenos altos.

- Você nunca deveria ter saído naquele dia, Iza. Fiquei tão preocupada... Ei, espere. Está começando outra contração!

A curandeira estudava Ayla. Tentava avaliar a duração das dores. Falta ainda muito, pensou consigo.

- Mas não estava chovendo quando saí - falou Iza. - Achava que seria um dia quente. Errei. O tempo no outono é sempre imprevisível. Eu estava mesmo para perguntar uma coisa, Ayla. Fiquei delirando durante um bom tempo, mas tive a impressão de que você fez um cataplasma para botar no meu peito com as plantas que uso no reumatismo de Creb.

-E fiz.

- Eu não lhe ensinei isso.

- Eu sei. Você tossia tanto e cuspia também tanto sangue que achei que seria bom lhe dar alguma coisa para acalmar os espasmos e que ao mesmo tem po servisse para ajudá-la a botar o catarro para fora, sem ter que fazer muita força. Esse remédio de Creb para reumatismo faz com que o calor penetre profundamente e estimula o sangue. Assim, achei que ele poderia servir também para soltar o catarro, diminuindo seu esforço para expelir, mas, enquanto isso, eu continuava lhe dando os cozimentos para acalmar os espasmos.

Parece que deu certo.

- É. Parece que sim.

Quando Ayla acabou de dar suas explicações, estas pareciam ter um encaminhamento lógico, mas Iza ficou imaginando se lhe teria ocorrido tal procedimento. Eu tinha razão, disse consigo. Ayla é boa curandeira e ainda vai poder melhorar muito mais. Merece o

status das curandeiras de minha linha. Preciso falar isso com Creb. Pode ser que eu não fique muito mais tempo neste mundo. Agora Ayla é mulher, poderia já ser uma curandeira... se é que vai sobreviver a este parto.

Depois da refeição da manhã, Oga chegou com Grev, o seu segundo fi lho e ficou sentada junto de Ayla, dando de mamar à criança. Ovra, pouco de pois, veio juntar-se a elas. As três, entre uma contração e outra, tagarelavam animadas, embora não se falasse do parto iminente. Por toda a manhã, enquanto Ayla estava no primeiro estágio do trabalho, as mulheres vinham visitá-la na fogueira de Creb. Algumas ficavam por instantes, só para dar

algumapoio moral com suas presenças e outras se sentavam, demorando-se mais. Havia sempre alguma mulher ao redor de Ayla, mas Creb não se achava lá. Ele ficava entrando e saindo da caverna, parando de vez em quando para trocar alguns gestos com os homens, reunidos na fogueira de Brun, incapaz de permanecer num só lugar por mais tempo. A caçada planejada para aquele dia fora transferida. Brun dera desculpa de que ainda estava muito úmido para sair, mas todos sabiam qual era a verdadeira razão.

Pelo final da tarde, as dores de Ayla ficaram bem mais fortes. Iza deu- lhe um tipo de inhame cozido que era bom para aliviar as dores de parto. À medida que escurecia, as contrações foram ficando mais fortes e mais próximas uma da outra. Ayla conservava-se deitada na cama, empapada de suor e agarrada na mão de Iza. Tentava sufocar os gritos de dor, mas quando o sol baixou atrás do horizonte, a jovem contorcia-se de dor e gritava a cada contração que lhe sacudia todo o corpo. As mulheres já então não aguentaram ficar mais por perto e, exceto Ebra, todas voltaram para suas respectivas fogueiras. Acharam algum serviço para fazer, levantando os olhos na direção de Ayla, sempre que ouviam seus gritos agoniados. A conversa também parou na fogueira de Brun. Os homens, com expressão negligente, sentavam-se olhando para o chão. Qualquer tentativa de conversa era logo cortada pelos gritos de Ayla.

- As cadeiras dela são muito estreitas - gesticulou Iza. - Impedem a dilatação do canal que não chega a ter uma abertura suficiente.

- Será que, se a bolsa dágua furasse, não adiantaria um pouco o trabalho? Às vezes ajuda - sugeriu Ebra.

- Já tinha pensado nisso, mas não quero fazer logo. Seria difícil para ela aguentar um parto seco. Esperava que a bolsa se rompesse sozinha. Talvez seja melhor fazer isso agora.

Você quer me passar aquele pauzinho de olmo. Ela está começando uma contração, depois eu furo quando terminar.

Ayla arqueou as costas e agarrou a mão das duas mulheres, enquanto de seus lábios saiu um grito em crescendo.

- Ayla, vou tentar ajudá-la - gesticulou Iza, depois que a contração passou. - Você está me ouvindo?

A parturiente silenciosamente confirmou.

- Vou romper a bolsa e depois quero que você fique agachada. Isso aju dará a puxar o bebé para baixo. Será que vai conseguir ficar assim?

- Vou tentar - gesticulou Ayla sem forças.

Iza inseriu a vareta fazendo verter a água da bolsa e provocando nova Contração.

- Agora levante, Ayla - gesticulou a curandeira. Ela e Ebra levantaram Ayla, ajudando-a a ficar agachada sobre um pedaço de couro, preparado para ser colocado embaixo da mulher durante o parto.

- Agora, Ayla. Faça força para baixo.

A moça comprimia os músculos, fazendo força na contração seguinte.

- Ela está muito fraca - observou Ebra. - não consegue fazer bastante força.

- Ayla, você tem de empurrar com mais força - ordenou Iza.

- Não posso - gesticulou Ayla.

- Pode. Tem de poder ou seu bebê vai morrer - falou Iza, sem dizer que também ela poderia morrer. Iza via os músculos se juntando para a próxima contração.

- Agora, Ayla! Agora! Empurre! Empurre com toda a força que puder- dizia, instigando.

Não posso deixar meu bebê morrer. Não posso. Nunca vou ter outro se este morrer, pensou Ayla, querendo arrebanhar suas últimas forças em alguma reserva desconhecida de seu corpo. À medida que a dor aumentava, respirava fundo, agarrada à mão de Iza para apoiar-se.

A força para expelir a criança punha-lhe gotas de suor na testa. Sentia-se tonta, com a cabeça girando. Os ossos pareciam estar partindo, como se estivesse expulsando todas as suas entranhas.

- Ótimo, Ayla! Ótimo! - encorajou Iza. - Acabeçajá está começando a aparecer. Mais um empurrão igual a este!

Ayla inspirou outra golfada de ar e tornou a fazer força. Sentia a pele e os músculos sendo dilacerados, mas continuou fazendo força para a expulsão. Em meio a um jato de sangue encorpado, a cabeça do bebê forçou sua passagem pelo estreito canal de nascimento. Iza segurou-a, retirando-a para fora. O pior havia passado.

- Só um pouquinho mais, Ayla. Só um pouquinho para a placenta.

Ayla fez novamente força, sentindo sua cabeça girar e tudo ficar preto à sua volta, quando perdeu, então, a consciência e desmaiou.

Iza amarrou um pedaço de fibra em volta do cordão umbilical e cortou o resto com os dentes.

Em seguida, pôs-se a dar tapas na sola dos pés da criança até que o choro parecido a um miado se tornasse um berro forte. O bebê está vivo, pensou ela com alívio. Começou, então a limpá-lo. Nisso, seu coração parou. Depois de tanto sofrimento, depois de tudo quanto ela aguentou, por que isso? Ela queria tanto esse bebê. Iza envolveu a criança numa macia pele de coelho e, em seguida, fixou com uma tira de couro uma compressa de raízes trituradas em Ayla, fazendo-a abrir os olhos e soltar um gemido.

- O meu bebê, Iza, é menino ou menina? - perguntou.

- Menino - falou Iza. Depois, foi logo dizendo, querendo cortar de uma vez as

esperanças de Ayla. - Mas é deformado.

O sorriso que começara a esboçar-se no rosto de Ayla transformou-se numa expressão de horror.

- Não, não pode ser! Deixe-me vê-lo.

Iza trouxe-lhe a criança.

- Tinha medo de que isso acontecesse. Frequentemente ocorre quando a mulher tem uma gravidez difícil. Desculpe, Ayla.

Ayla abriu a coberta, olhando para seu minúsculo filho. Os braços e pernas eram mais finos do que os de Uba quando nasceu e também mais com pridos, mas possuía o número correto de dedos e situados nos lugares devidos. O seu pequeno pênis e testículos definiam-lhe o sexo. A cabeça, entretanto, era, sem sombra de dúvida, anormal. De um tamanho fora do comum, justamente o que motivara a dificuldade do parto e se achava um tanto deformada evido à sua angustiante entrada nesse mundo. Isso por si só, porém, não era razão para alarme. Iza sabia que era decorrência da pressão sofrida no momento do nascimento e que rapidamente se corrigiria. Era a forma, na sua configuração básica - algo inalterável - que nascera anormal e também o pescoço fino, descarnado, sem possibilidade de aguentar com o volume da cabeça.

O bebê de Ayla tinha, como as pessoas da raça dos clã os supercílios muito acentuados, mas a cabeça, ao invés de escorregar diretamente para trás, elevava-se alta e reta em cima das sobrancelhas, abaulando-se, tal como Iza a via, até chegar ao alto, para depois escorrer para trás num formato alongado e cheio. A parte posterior, entretanto, não era tão comprida quanto deveria ser. Parecia que o crânio fora empurrado para a frente, a fim de formar a testa abaulada e o alto da cabeça, tornando mais curto e arredondado o lado de trás. A protuberância occipital, aí, existia apenas simbolicamente e as feições da criança mostravam-se alteradas de forma inusual. Tinha olhos grandes e arredondados, mas o nariz era menor do que o normal. Boca grande, mandíbulas não tão acentuadas quanto as das pessoas dos clã e, na parte inferior, uma protuberância óssea desfigurando o rosto, vale dizer, um queixo bem desenvolvido, coisa inexistente na raça dos clã Quando Iza segurou-o pela primeira vez, a cabeça foi para trás e ela automaticamente apoiou.a com a mão. Ela abanou a própria cabeça, que era assentada sobre um pescoço curto e grosso. Duvidava de que algum dia aquela criança fosse firmar a dela e conseguir mantê-la erguida.

Enquanto Ayla tinha o bebê nos braços, ele procurou seu corpo, buscando-lhe o calor, já parecendo querer mamar, como se não fora bem alimentado antes de nascer. A mãe ajudou-o a encontrar o seio.

- Você não devia, Ayla - disse Iza, com brandura. Você não deve aumentar sua vida, quando logo vão tirá-la. Isso só vai tornar as coisas mais difíceis para você, no momento em que tiver de livrar-se dele.

- livrar-me dele? - Ayla olhou aflita. - Como me livrar dele? Êo meu bebê, o meu filho.

- Você não tem outra coisa a fazer, Ayla. É esse o regulamento. A mãe está na obrigação de se desfazer do filho deformado que ela botou no mundo. É melhor você fazer isso imediatamente, antes que Brun ordene.

- Mas Creb é deformado e permitiram que ele vivesse - protestou Ayla.

- A mãe dele era a companheira do chefe do clã que foi quem permitiu isso. Você não tem companheiro, nenhum homem vai interceder por seu filho. Desde o começo que eu avisei que seu filho poderia não ter sorte, se nascesse antes de você ter companheiro. E esse defeito de nascença veio comprovar o que eu já tinha dito, não é? É melhor terminar de uma vez agora - explicou Iza.

Com lágrimas escorrendo, relutante, Ayla afastou o filho do seio.

- Oh, Iza, eu queria tanto um bebê. Um bebê que fosse só meu, como as outras mulheres têm. Nunca pensei que fosse ter um. Eu me sentia tão feliz, nem me importava se estava doente, tudo o que eu queria era o meu bebê. Foi muito difícil, achava que ele nunca iria nascer, mas quando você disse que o bebê poderia morrer, eu dei tudo de mim. E se ele iria ter de morrer de qualquer jeito, por que, então, teve de ser tudo tão difícil? Mãe, quero o meu filho, não obrigue a me desfazer dele.

- Eu sei que não é fácil, Ayla, mas isso terá de ser feito. - Iza morria de pena dela. O bebê procurava o seio que bruscamente lhe tinha sido arrancado, buscando proteger-se e satisfazer sua necessidade de sugar. Ela ainda não tinha leite para lhe dar, isso ainda levaria um ou dois dias, por enquanto só havia o fluido leitoso e grosso que passa ao bebê as imunidades maternas, protegendo-o contra doenças nos seus primeiros meses de vida. O recém-nascido começou a choramingar e logo aprontou um berreiro, agi tando os braços e dando pontapés na coberta. O choro encheu a caverna com a insistente exigência de um bebê vermelho de raiva. Ayla não aguentou. Ela lhe deu o peito novamente.

- não posso fazer isso - gesticulou - e nem vou fazer! Meu filho está vivo e respirando. Ele pode ser deformado, mas é forte. Escutou seu choro? Já ouviu um bebê chorar assim?

Viu os pontapés que ele dá? Veja como mama! Quero meu filho, Iza. Não vou livrar-me

dele. Antes de matá-lo, eu vou embora. Eu posso caçar, posso achar comida. Eu mesma cuidarei dele.

Iza empalideceu.

- Ayla, você não pode dizer isso. Onde você iria? Está muito fraca, perdeu uma grande quantidade de sangue.

- não sei, mãe! Para algum lugar, em qualquer parte. Mas não vou abandonar o bebê. - Falava obstinada, cheia de determinação. Iza não tinha dúvida de que Ayla faria o que dizia. Mas estava muito fraca para ir a qualquer parte. Nãorreria, se tentasse salvar o bebê. Iza via-se assombrada com o desdém de Ayla pelos regulamentos dos clãs e estava certa de que ela cumpriria o que ameaçava fazer.

- Ayla, não fale assim - implorava. - Entregue o bebê para mim. Se você não puder, eu faço por você. Digo a Brun que está muito fraca. Só esse motivo já basta. - Estendeu os braços para pegar a criança. - Deixe-me levá-lo. Depois que ele for embora, fica mais fácil esquecê-lo.

- não é não, Iza! - falou Ayla, abanando a cabeça cheia de convicção e apertando a pequenina trouxa que tinha nos braços. Inclinava-se para a fren te, protegendo a criança com o corpo e falando apenas com uma das mãos na linguagem abreviada de Creb. - Vou ficar com ele. De alguma maneira e seja lá como for. Se para ficar com o bebê for preciso ir embora, eu vou.

Uba achava-se ali, ignorada, observando as duas. Havia visto toda a dificuldade do parto de Ayla e também já vira outras mulheres tendo filhos. Nenhum segredo da vida ou da morte era escondido das crianças. Estas participavam tanto quanto os mais velhos do destino do clã. Uba adorava a menina de cabelos dourados que para ela era uma companheira de brinquedos, amiga, mãe e irmã. O parto doloroso e difícil a havia assustado, mas a conversa sobre ir embora deixava a menina ainda com mais medo. Isso a fez lembrar-se da outra vez que Ayla tinha partido, quando todos diziam que nunca mais voltaria. Uba agora tinha certeza de que Ayla iria embora para nunca mais voltar e ela nunca mais tornaria a vê-la.

- não vá, Ayla - disse, com gestos ansiosos e pondo-se de pé. - Mãe, você não pode deixar Ayla ir embora. não fáça isso outra vez, Ayla.

- não quero ir, Uba. Mas não posso deixar o bebê morrer - falou Ayla.

- Você não pode botá-lo em cima de uma árvore como fez a mãe da história de Aba? Se ele viver sete dias, Brun terá de deixar que você fique com ele - falou Uba.

- A história de Aba não passa de uma lenda - explicou Iza. - Nenhum bebê consegue viver do lado de fora, no frio e sem ter o que comer.

Ayla não prestava atenção ao que Iza dizia. A sugestão de Uba lhe dera uma idéia.- Mãe, uma parte da lenda é verdadeira.

- O que você quer dizer?

- Se meu filho estiver vivo daqui a sete dias, Brun será obrigado a acei tá-lo, não é? - perguntou Ayla, ansiosa.

- O que você está pensando fazer, Ayla? Você não pode botá-lo do lado de fora da caverna e esperar encontrar o bebê com vida daqui a sete dias. Você sabe que isso é impossível.

- não deixar o bebê sozinho do lado de fora, mas ir com ele. Sei de um lugar onde posso me esconder, Iza. Posso ir com meu filho para lá e voltar no dia em que ele irá receber seu nome. Brun seria, então obrigado a deixar que eu ficasse com ele. Existe uma pequena caverna...

- Não, Ayla! não diga essas coisas. Isso é errado. Seria uma desobediência. não posso dar minha aprovação Uma coisa inteiramente contrária aos regulamentos dos clã .Brun ficaria furioso. Ele iria procurar, e você seria achada e trazida de volta. Isso não é correto, Ayla - advertiu Iza. Levantou-Se e ia encaminhar-Se na direção da fogueira mas voltou depois de dar alguns passos.

- E se você for, ele irá me perguntar para onde foi.

Nunca em sua vida, Iza fizera qualquer coisa contra os costumes dos clãs ou contra os desejos de Brun. A idéia em si era estarrecedora. Até mesmo o segredo de seus contraceptivos tinha a sanção das gerações passadas de curandeiras e era uma parte de sua herança cultural. Manter este segredo não se constituía numa desobediência. Nenhuma tradição ou costume proibia seu uso. Ela apenas evitava mencioná-lo. Já o plano de Ayla era simplesmente um ato de rebelião, uma desobediência que nem em sonhos imaginava fazer. não poderia dar sua aprovação.

Por outro lado, sabia o quanto Ayla queria o filho. Doía-lhe o coração pensar no sofrimento de Ayla durante sua longa e penosa gravidez e, agora, só o medo de perder o bebê havia bastado para que ela fosse buscar forças que lhe salvaram a própria vida. Ayla está certa, pensou Iza, olhando para o recém-nascido. Ele é deformado, mas é uma criança forte e sadia. Creb nasceu também deformado e hoje é o Nãog-ur. Além disso, o filho dela é o primogênito, se tivesse companheiro, talvez fosse deixado viver. Não. não iriam deixar, disse consigo, mudando de idéia. Ela não conseguia mentir nem para si nem para os outros.

Mas, podia calar.

Pensou em ir falar com Creb ou com Brun, e sabia que era esse o seu dever, mas não conseguiu resolver-se. não podia aprovar o plano de Ayla, mas podia guardá-lo em segredo. Conscíentemente, foi a pior coisa que já fizera em toda a vida.

Ela pôs algumas pedras quentes numa bacia com água para fazer um chá de esporões de centeio. Quando chegou trazendo o remédio, Ayla dormia com o bebé nos braços. Iza sacudiu-a com brandura.

- Tome isto, Ayla. Já embrulhei a placenta... está ali naquele canto. Esta noite, você pode descansar, mas a placenta tem de ser enterrada amanhã. Brun já sabe. Ebra lhe contou e ele preferia não ter de examinar o bebê e dar a ordem oficialmente. Brun espera que você mesma se encarregue de tudo, quando for esconder os vestígios desse nascimento. - Com isso, Iza avisava Ayla de quanto tempo ela dispunha para levar adiante seu plano.

Depois de Iza sair, Ayla ficou deitada de olhos abertos, pensando no que deveria levar consigo. Vou precisar de minha pele de dormir, peles de coelho para o bebê, plumas de pássaros, umas das mantas extras para trocar. Tiras absorventes para mim, minha funda e algumas facas. Ah, sim, comida também. É melhor levar alguma e também um cantil para água. Se sair depois que o sol estiver alto no céu, dará tempo para que eu esteja com tudo arrumado.

Na manhã seguinte, Iza cozinhou uma quantidade de comida muito maior do que a necessária para uma refeição matinal de quatro pessoas. Creb voltara tarde para a fogueira quando foi dormir. Queria evitar qualquer possibilidade de conversa com Ayla. Não sabia o que lhe dizer. O totem dela é forte demais, nunca será completamente vencido, pensou consigo. Foi por isso que sangrou tanto durante a gravidez e também porque o bebê nasceu deformado. Que tristeza, ela queria tanto esse filho.

- Iza, aqui tem comida para alimentar todo o clã - observou Creb. - Como você acha que vamos dar conta disso tudo?

- É para Ayla - disse, rápido, baixando a cabeça.

Iza devia ter tido um batalhão de filhos, pensou ele. Ela fica muito boba só com essas duas.

Mas Ayla precisa recuperar suas forças. Vai levar ainda muito tempo até que consiga superar tudo isso. O que me pergunto é se ela algum dia irá ter um filho normal.

Quando se levantou, Ayla sentiu sua cabeça rodando e uma quantidade de sangue quente escorrendo. Doía quando caminhava, mesmo dando só alguns passos e para se curvar era um verdadeiro sacrifício. Estava mais fraca do que imaginara e quase entrando em pânico.

Como vou subir até a caverna? Mas tenho de conseguir. Se não fizer isso, Iza pega meu filho e dá fim nele. O que farei se perder meu bebê?

Não vou perdê-lo, disse consigo, cheia de determinação fazendo força para acalmar-se. Subirei lá de qualquer jeito, nem que tenha de ir me arras tando por todo o caminho.

Chuviscava, quando ela saiu da caverna. No fundo da cesta de colher, meteu umas tantas coisas que cobriu com um embrulho malcheiroso, contendo a placenta, e o resto escondeu sob a capa de pele que usava por cima da roupa. O bebê ia seguramente preso contra seu peito por uma manta própria para carregar criança. Logo que se pôs a andar pelo interior da mata, a tonteira passou, mas a náusea ainda persistia. Afastou-se do caminho e penetrou na floresta, onde fez uma parada. Era difícil fazer um buraco com seu pau de cavar. Ela estava muito fraca, mas assim mesmo enterrou o embrulho bem profundamente, tal como Iza lhe recomendara e, em seguida, fez a gesticulação adequada à ocasião. Olhou, então para o filho que dormia um sono profundo, na segurança de seu aconchego. Ninguém vai botá-lo num buraco desses, falou consigo. Depois, começou a subir a íngreme encosta, alheia de que alguém pudesse estar observando-a.

Pouco depois de Ayla ter saído da caverna, Uba saiu de mansinho atrás dela. O inverno que passou aprendendo com a doença da mãe deu-lhe consciência do perigo que Ayla corria. Sabia o quanto ela se achava enfraquecida e tinha medo de que a moça pudesse desmaiar e se tornar uma presa fácil para algum carnívoro atraído pelo cheiro de seu sangue. Uba quase correu de volta para avisar Iza, mas não queria deixar Ayla sozinha, e assim continuou sempre a segui-la. Quando Ayla deixou o caminho, Uba perdeu-a de vista, mas depois voltou a vê-la escalando um lado onde a encosta era desmatada.

Ayla ia subindo, com o corpo pesadamente apoiado sobre seu pau de cavar que lhe servia de cajado. Volta e meia parava para aspirar uma golfada de ar e reprimir a náusea, lutando para não se deixar levar pela tonteira que ameaçava fazê-la perder os sentidos. Sentia o sangue escorrendo pelas pernas, mas não parou para trocar a tira absorvente. Lembrou-se do tempo em que subia por aquela encosta sem parar uma única vez para tomar fôlego. Agora, mal podia acreditar como ainda estava longe da clareira no alto da montanha. As distâncias separando os pontos de referência eram imensas. Fazia o corpo render o máximo e, quando estava no ponto de desmaiar, esforçava-se para manter-se consciente para, então, descansar e prosseguir novamente.

No final da tarde, o bebê começou a chorar e ela o via indistintamente através de uma neblina em seus olhos. Não parou por causa dele, apenas lutava para continuar sempre subindo. Em sua mente, havia só um pensamento:preciso alcançar a clareira, tenho de chegar à caverna. Nem sabia mais exatamente o por quê disso.

Uba a seguia de longe, não querendo que ela a visse. Não sabia que Ay la quase não conseguia enxergar além do próximo passo. Por fim, quando viu surgir a clareira no alto da montanha, a jovem tinha a cabeça girando, com a vista toldada por uma névoa vermelha.

Um pouco mais, disse consigo, só um pouquinho mais. Foi-se arrastando pelo campo, mal conseguindo forças para pôr de lado os galhos e entrou cambaleando para dentro da caverna que, por tantas vezes, já lhe servira de refúgio. Caiu sobre a pele de veado, sem se importar com a roupa molhada no corpo ou se lembrar de dar o peito para o bebê que chorava, sucumbindo finalmente ao peso da exaustão.

Foi uma sorte Uba ter chegado à clareira no momento em que Ayla desaparecia na caverna. Do contrário, pensaria que ela tinha evaporado no ar. A pesada moita de avelaneiras com sua profusão de galhos camuflava completamente o buraco na montanha, mesmo quando estava sem a folhagem do verão. Uba correu de volta. Fora mais longe do que esperava. Ayla demorara muito mais para chegar à pequena caverna do que a menina havia suposto. Tinha medo de que Iza estivesse preocupada e fosse ralhar. Iza, entretanto, não fez caso de seu atraso. Vira quando a filha saiu às escondidas atrás de Ayla, percebendo-lhe a intenção mas preferiu guardar sua dúvida.

- Ela já não devia estar de volta, Iza? - perguntou Creb. O feiticeiro passara toda a tarde entrando e saindo da caverna.

Iza, nervosa, disse que sim com a cabeça, sem tirar os olhos de um quarto de veado que cortava depois de já cozido e frio.

- Ai! - gritou de repente, quando a faca fez um talho no seu dedo. Creb levantou os olhos, não só surpreso com o corte como também com a espontaneidade do grito. Iza usava as facas de pedra com tanta perícia que ele não se lembrava de já tê-la visto cortando-se. Pobre Iza, ando tão preocupado comigo mesmo que me esqueço de como ela também deve estar-se sentindo, pensou, ralhando consigo. Não é de estranhar que esteja nervosa, ela também está preocupada.

- Falei há pouco com Brun, Iza - gesticulou Creb. - Ele ainda acha cedo para ir procurá-la. Ninguém deve saber onde uma mulher se desfaz.

bem, onde ela se acha neste momento. Você sabe quanta desgraça poderia advir para um homem, se ele pusesse os olhos em cima dela. Mas Ayla está tão fraca, ela talvez esteja por aí na chuva, caída no chão Você poderia ir procurá-la, Iza. Você é uma curandeira. Ela não deve ter ido longe. não se preocupe em cozinhar para mim. Eu posso esperar. Por que não sai logo? Daqui a pouco vai ficar escuro.

- não posso - gesticulou Iza, botando o dedo ferido na boca.

- O que você quer dizer com não pode? - Creb estava espantado.

- Não posso encontrá-la.

- Como sabe que não pode encontrá-la, se ainda não procurou? - O velho feiticeiro se via completamente atordoado. Por que Iza não quer procurar por Ayla? Aliás, pensando nisso, por que ela já não teria saído há muito tempo para procurar? A essa altura, Iza deveria estar vasculhando as matas, revirando as pedras para achar Ayla. E ao invés disso, deixa-se ficar aí nervosíssima. Deve estar acontecendo algo errado.

- Iza, por que você não quer procurar Ayla? - perguntou ele.

- não iria adiantar. não poderia encontrá-la.

- Por quê? - pressionou Creb.

Os olhos de Iza estavam cheios de ansiedade e medo.

- Ela está se escondendo - confessou.

- Escondendo! De que ela está se escondendo?

- De todo mundo. De mim, de Brun, de você, de todo o clã.

Creb não sabia o que pensar, e as respostas enigmáticas de Iza só pioravam as coisas- Iza, será que você pode explicar-se melhor? Por que Ayla está se escondendo do clã, de mim ou de você? Principalmente de você, de quem neste momento ela deve estar precisando muitíssimo.

- Ela quer ficar com o filho, Creb - gesticulou Iza, passando a explicar rapidamente, com os olhos suplicantes, pedindo que ele compreendesse. - Eu disse a ela que toda mãe tem obrigação de se desfazer de um filho que nasce deformado, mas ela se recusou a fazer isso.

Você sabe o quanto Ayla queria esse bebé. Falou que iria levá-lo e ficar escondida com ele

até chegar o dia de lhe dar nome, desse modo Brun será obrigado a aceitar a criança.

Creb olhava para Iza com uma expressão dura. Num relance, percebeu todas as consequências que poderiam advir da teimosia de Ayla.

- É verdade, Iza Brun se verá forçado a aceitar o filho dela, mas depois irá amaldiçoá-la por um ato deliberado de desobediência, e dessa vez será para sempre. Você não sabe que, quando uma mulher força um homem contra sua vontade, ele está se rebaixando? Brun Não pode permitir isso. Os homens perderiam para sempre o respeito por ele. Mesmo que amaldiçoasse Ayla, ele ficaria desprestigiado e a reunião dos clã é já neste próximo verão.

Acha que Brun depois disso poderia enfrentar os outros clãs? Todo o nosso clã também será desprestigiado por causa de Ayla - gesticulou Creb, com raiva. - O que deu nela para pensar em fazer uma coisa dessas?

- Foi uma das histórias de Aba sobre a mãe que pôs o filho deformado no alto de uma árvore - respondeu Iza, profundamente perturbada, sem saber o que dizer. Por que não pensara mais sobre tudo isso?

- Ora, histórias de velhotas que não têm o que fazer! - falou Creb, com ar de nojo. - Aba faria melhor se não ficasse enchendo a cabeça de uma moça com essas bobagens.

- Mas não foi só Aba, Creb. Você também.

- Eu? Quando contei histórias desse tipo?

- Você não precisou contar nenhuma história para ela. Você nasceu deformado e lhe foi permitido viver. Hoje é o Mog-ur.

As palavras de Iza atingiram Creb em cheio. Ele conhecia toda a série de acontecimentos fortuitos que haviam possibilitado sua aceitação. Só a sorte tinha preservado a vida do mais sagrado de todos os homens dentre todos os clãs. A mãe de sua mãe certa vez lhe dissera que sua existência simplesmente se devia a um milagre. Será que Ayla está querendo provocar um milagre para seu filho por causa dele? Mas isto nunca dará certo. Jamais

conseguirá forçar

Brun a aceitar seu filho. Isso teria de partir dele, tinha de ser uma decisão sua, exclusivamente sua e de mais ninguém.

- E você, Iza? Será que não disse a ela que era uma coisa errada?

- Pedi a Ayla que não fosse. Disse que eu me encarregaria de dar fim no bebê, se ela não pudesse fazê-lo. Mas, depois disso, Ayla não me deixou mais chegar perto da criança. Ah, Creb, ela sofreu tanto para ter esse filho.

- E por isso você deixou que ela fosse embora, esperando que o plano desse certo. Por que Não contou nada para mim ou Brun?

Iza simplesmente meneou a cabeça. Creb tinha razão eu deveria ter contado a ele. Agora não só o bebê vai morrer, mas Ayla também, pensou consigo.

- Para onde ela foi, Iza? - Creb tinha um olhar de pedra.

- não sei. Falou qualquer coisa sobre uma pequena caverna - respondeu Iza, com o coração apertado.

O feiticeiro deu as costas abruptamente e se dirigiu para a fogueira de Brun.

 

O choro do bebê acabou por fim acordando Ayla de seu sono exausto. Já havia escurecido e a caverna pequenina, sem a fogueira, estava úmiida e fria. Ela foi até o fundo para aliviar-se. O líquido quente e amoniacado ardia em sua carne dilacerada, fazendo-a estremecer de dor. Na escuridão tateou dentro da cesta de colher procurando um absorvente limpo e uma manta seca para enrolar o bebê molhado e sujo. Depois que bebeu um pouco d”água, enrolou-se junto com a criança em sua pele e se recostou para dar de mamar. Quando tornou a acordar, a parede da caverna estava banhada pela luz do sol que se filtrava pelo emaranhado dos galhos das avelaneiras escondendo a entrada. Enquanto o bebê mamava, foi comendo um pouco de comida fria.

O repouso e a comida a reanimaram e ela se sentou com o bebê no colo, pondo-se a pensar meio distraída. Vou precisar arrumar alguma lenha e a comida que tenho não vai durar muito. Tenho de conseguir um pouco mais. A alfafa deve estar brotando, e ela vai ajudar a fortalecer meu sangue. Os trevos novos e os rebentos nos pés de afarroba com certeza também estão no ponto. A seiva deve estar começando a vir à tona nas cascas das árvores, principalmente na do bordo. não O bordo não cresce nessas alturas, mas há vidoeiros e abetos. Vejamos, por aqui deve dar bardana, tussilagem, folhas novas de dente-de-leão e samambaias comestíveis, mas a maioria dessas ainda deve estar fechada. Ah, eu tenho também a minha funda... há uma quantidade de esquilos, castores e coelhos.

Ayla sonhava, vendo à sua frente as delícias que o verão lhe iria propor cionar, mas, quando tentou levantar-se, sentiu um jato de sangue escorrendo, acompanhado de uma vertigem. As pernas estavam empastadas de sangue seco que lhe manchava também os sapatos e a roupa; isso a sacudiu, fazendo-a tomar maior consciência de sua situação desesperadora.

Passada a tonteira, resolveu ir limpar-se e arranjar um pouco de lenha, mas não sabia o que fazer com o bebê. Estava entre levá-lo ou deixá-lo conti nuar dormindo onde estava. As mulheres do clã nunca deixavam bebês sozinhos, eles sempre ficavam sob as vistas de alguém, e Ayla não gostava da idéia de largar o seu ali, inteiramente abandonado. Mas tinha de limpar-se e arrumar mais água. Sem o bebê, poderia também carregar maior quantidade de lenha.

Antes de sair, espiou por entre os galhos desfolhados, querendo ter certeza de que não havia ninguém por lá. Botou, então os galhos de lado e veio para fora da caverna, O chão estava encharcado. Nas proximidades do riacho, o terreno era um pântano de lama escorregadia. Nesgas de neve ainda persistiam nos trechos mais sombrios. Tiritando de frio com o vento que soprava do leste, trazendo mais nuvens de chuva, ela se despiu e entrou na água gelada. Depois, esfregou os lugares nas roupas onde havia manchas de sangue. O couro molhado e pegajoso não ajudava muito a esquentá-la, quando tornou a vesti-lo.

Dirigiu-se ao bosque que cercava a clareira e deu alguns puxões nos galhos secos da parte de baixo de um abeto. Nisso, sentiu que a vertigem apoderava-se dela, os joelhos se dobraram e ela viu-se obrigada a amparar-se numa árvore. A cabeça martelava por dentro, e a moça procurava respirar fundo para não vomitar, enquanto a fraqueza tomava conta de todo o seu corpo. Todas as idéias de caçar e colher plantas desapareceram. Uma gravidez depalperante, um parto devastador e aquela subida extenuante fizeram consideráveis estragos em seu organismo e pouca força lhe havia sobrado.

O bebê chorava quando a jovem mãe entrou de volta na caverna. Lá estava frio e úmido e ele sentia falta da proximidade do calor da mãe. Ayla segurou-o e se lembrou de que deixara o cantil junto do riacho. Precisava de água. Pôs a criança no chão e saiu novamente. Estava começando a chover. Quando voltou, exausta, deixou-se cair e puxou a pele úmida e pesada, cobrindo-se junto com o filho. O sono venceu-a, estava cansada demais para darse conta de que o medo procurava acertá-la com suas farpas.

- Eu não disse que ela era insolente e teimosa? - gesticulou Broud, cheio de si. - Alguém então acreditou em mim? Não. Todos tomaram o seu partido, arrumaram desculpas, deixaram que ela fizesse o que bem entendesse, até mesmo caçar. Pouco estou me importando com o totem forte dela, o que sei é que mulheres não podem caçar. não foi o Leão da Caverna que a levou a fazer isso, trata-se simplesmente de um ato de desobediência. Agora estão vendo o que acontece, quando se dá muita liberdade a uma mulher, não é? Ela está achando que pode forçar o clã a aceitar seu filho deformado. Desta vez, ninguém pode arrumar desculpas. Ela, deliberadamente, foi contra os nossos costumes. Isso é indesculpável.

Finalmente, Broud encontrara uma boa justificativa para os seus atos e não perdia a oportunidade de vangloriar-se com um “eu não disse?”. A insistência era feita com tamanho sentimento de vingança que o chefe acabou franzindo a cara, contrariado. Brun não gostava de se ver desprestigiado e o filho de sua companheira não lhe estava facilitando as coisas.

- Broud, você já disse o que tinha a dizer - falou Brun. - Não há necessidade de ficar repisando sempre a mesma coisa. Quando Ayla voltar, cuidarei dela. Nunca uma mulher irá me forçar a fazer o que não quero e depois sair impunemente. E nenhuma vai começar com isso agora. Amanhã, quando formos procurá-la outra vez - prosseguiu Brun, explicando os motivos por que convocara aquela reunião. - acho que devemos revistar os lugares onde não vamos muito. Iza disse que Ayla sabe da existência de uma pequena caverna. Alguém já viu alguma aqui por perto? não deve ficar muito longe, ela estava fraca demais para andar grandes distâncias. Vamos esquecer a planície ou a floresta e procurar cavernas nos lugares mais prováveis. Com essa chuva, o rastro dela deve ter desaparecido, mas pode ser que haja algumas marcas de pé. Custe o que custar, quero achá-la.

Iza esperava ansiosa pelo fim da reunião. Havia precisado de ganhar coragem para falar com Brun e resolvera que aquela seria a ocasião. Quando viu que os homens tinham saído, dirigiu-se de cabeça baixa para a fogueira dele, sentando-se a seus pés.

- O que você quer, Iza? - perguntou Brun, depois de lhe dar o tapinha no ombro.

- Esta mulher indigna deseja falar com o chefe - começou Iza.

- Pode falar.

- Esta mulher errou ao deixar de procurar o chefe, quando soube dos planos da jovem mulher. - À medida que as emoções tomavam conta dela, Iza foi deixando de usar a linguagem protocolar. - Mas, Brun, ela queria tanto um bebê. Ninguém acreditava que Ayla fosse conceber e muito menos ela própria. Como pensar que o espírito do Leão da Caverna poderia ser vencido? Ela estava muito feliz com isso. Mesmo que sofresse, não se queixava. Quase morreu durante o parto, Brun. Apenas o pensamento de não deixar o bebê morrer é que lhe deu forças para chegar até o final. Ela não pôde suportar a idéia de se desfazer do bebê, mesmo ele sendo deformado. Tinha certeza de que este seria o único filho que teria na vida, O choque e a dor fizeram com que perdesse a cabeça, ela não estava raciocinando bem. Brun, sei que não tenho direito de pedir, mas eu suplico, deixe Ayla viver.

- Por que você não me procurou antes, Iza? Se pensou que agora eu poderia atender seu pedido para poupar a vida dela, por que então não veiologo a mim? Tenho sido, por acaso, tão mau para ela? Eu estava vendo o seu sofrimento.

Pode-se desviar os olhos para não se olhar dentro da fogueira dos outros, mas não se pode fechar os ouvidos. Não há ninguém neste clã que ignore o sofrimento de Ayla, quando estava tendo o filho. Você me acha tão insensível assim, Iza? Se tivesse me procurado, tivesse dito como ela estava se sentindo e o que planejava fazer, você acha que eu não levaria em consideração a vida do bebê? Poderia ter encarado essa ameaça dela de fugir e esconder-se como coisa de uma mulher fora de seu juízo. Eu teria examinado a criança. Mesmo sem um companheiro, se a deformidade não fosse muito flagrante, talvez eu tivesse deixado o bebê viver. Mas você não me deu a menor oportuni dade, já imaginando por antecipação o que eu faria. Isso não é de seu feitio, Iza.

“Nunca a vi faltar com os seus deveres - continuou Brun. - Sempre foi um exemplo para as outras mulheres. Só posso atribuir este seu procedimento à sua doença. Sei que está doente, apesar de você tentar esconder. Em respeito a seus desejos, jamais toquei no assunto, mas, no outono passado, não tinha a menor dúvida de que você estava a ponto de passar para o mundo dos espíritos. Também tinha perfeita consciência de que Ayla imaginava ser essa a sua única chance de ter um filho. Imagino que ela tenha razão Apesar disso, vi como Ayla se esqueceu inteiramente dela para tratar só de você, Iza. não sei como conseguiu isso. Talvez até tenha sido o Mog-ur que tenha aplacado os espíritos que queriam levá-la para junto deles, conseguindo convencê-los a deixá-la ficar. Mas isso não foi obra somente do Moog-ur.

“Eu já estava pronto a atender o seu pedido de deixar Ayla como curandeira. Passei a ter tanto respeito por ela quanto já tive por você, Iza. Ayla, apesar do filho de minha companheira, tem sido uma mulher admirável, um modelo de obediência e de submissão. Isso mesmo, Iza, estou perfeitamente sabendo o modo cruel de Broud tratá-la. Inclusive, sei que aquela sua falta no princípio do verão passado foi de certo modo provocada por ele, embora não entenda muito os motivos dessa coisa. É uma indignidade essa competição de Broud com ela. Afinal, ele é um caçador corajoso e forte e não há nenhuma razão para sentir que sua virilidade esteja sendo ameaçada por uma mulher. Mas talvez ele tenha percebido alguma coisa que desprezei. Talvez ele esteja certo, e eu, durante esse tempo todo, tenha estado cego. Se você tivesse realmente vindo a mim antes, iza, eu poderia levar em consideração seu pedido... poderia ter deixado que o filho de Ayla vivesse. Agora, é tarde demais. Quando ela voltar, no dia de seu filho receber o nome, todos os dois irão morrer, Ayla e o filho.

No dia seguinte, Ayla tentou fazer uma fogueira. Havia ainda alguns paus secos que sobraram de sua última estada. Ajovem pegou um deles e começou agirá-lo entre as palmas da mão sobre um pedaço de madeira, mas não teve forças suficientes para fazê-lo pegar fogo, o que foi uma sorte. Enquanto ela e o bebê dormiam, Droog e Crug encontraram o seu caminho para a clareira na montanha. Certamente os dois iriam sentir o cheiro da fogueira ou o que sobrara de alguma e a teriam achado. Eles chegaram tão perto da caverna que, na situação em que estavam, se o bebê tivesse choramingado em seu sono, teriam ouvido. Mas a entrada do pequeno buraco na rocha estava bem escondida pela pesada moita de avelaneira que eles passaram por ali sem perceber.

A sorte veio sorrir-lhe ainda mais uma vez. As chuvas de primavera, cain do tristemente de um céu cor de chumbo, transformando a margem do pequeno riacho num charco de lama e o chão da clareira num verdadeiro pantanal, podiam deixá-la deprimida, mas, por outro lado, apagaram todos os vestígios de sua presença ali. Os caçadores eram tão hábeis em pegar rastros que podiam identificar as marcas dos pés de cada uma das pessoas do clã e tinham os olhos tão aguçados que facilmente veriam, caso ela estivesse colhendo alimentos, os lugares onde tinha sido partido algum broto ou os pontos onde a terra fora remexida para desenterrar alguma raíz ou bulbo. Graças à sua fraqueza, ela não foi descoberta.

Ao sair mais tarde e ver as pisadas dos homens na lama perto da nascente do riacho, onde haviam parado para tomar um gole d”água, Ayla teve um choque. A partir daí, ficou com medo de deixar a caverna. Levava susto cada vez que o vento sacudia as ramagens em frente da entrada e estava sempre apurando os ouvidos esperando escutar os sons que imaginava estar ou vindo.

A comida que trouxera já havia quase terminado. Deu uma busca nas cestas que fizera para armazenar comida durante sua longa e solitária estada na maldição de morte. Tudo que achou foi algumas nozes estragadas e alguns excrementos de pequenos roedores, denunciando que seu estoque fora descoberto e há muito já não existia. Encontrou também os restos secos e também estragados da comida que Iza lhe trazia durante a sua maldição de mulher, e estavam inservíveis.

Lembrou-se, então, do esconderijo no fundo da caverna, o buraco de pedra onde pusera a carne-seca do veado que tinha matado para fazer com a pele uma roupa quente. Achou o pequeno monte de pedras e as removeu. A carne em conserva estava intata, mas sua alegria durou pouco. Os galhos no buraco da entrada se moveram fazendo seu coração disparar.

- Uba! - gesticulou, surpresa, quando a garota entrou na caverna. - Como você me encontrou?

- Eu a segui de longe no dia em que veio para cá. Tinha medo de que alguma coisa lhe pudesse acontecer. Eu trouxe alguma comida e um pouco de chá para fazer seu leite correr.

Foi a mãe quem preparou.

- Iza sabe onde estou?

- Não. Mas ela sabe que eu sei. Acho que a mãe não quer saber porque sen vai ter de contar a Brun. Ayla, Brun está furioso com você. Os homens todos os dias saem à sua procura.

- Eu vi as pegadas deles perto da nascente, mas eles não conseguiram achar a caverna.

- Broud agora está contando vantagem dizendo que ele sempre soube quem era você.

Desde que você saiu, quase nunca vejo Creb. Ele passa o dia inteiro na gruta dos espíritos e a mãe está muito aflita. Ela quis que eu dissesse a você para não voltar - falou Uba com os olhos arregalados, cheios de medo por Ayla.

- Se iza não falou de mim com você, como é que ela está mandando recado? - perguntou Ayla.

- Ontem de noite e hoje de manhã, ela fez mais comida do que era preciso. não muita... acho que ficou com medo de Creb adivinhar que era para você. E também não comeu a parte dela. Mais tarde, fez o chá e começou a gemer, como se falasse sozinha soltando lamentos por sua causa. Ela está sempre se lamentando desde que você foi embora, mas desta vez olhava diretamente para mim, dizendo: se alguém pudesse dizer a Ayla para não voltar. Minha pobre menina, pobrezinha da minha filha, está tão fraca e sem comida. Ela precisa ter leite para dar ao bebê. E ficou ainda dizendo outras coisas desse tipo. Depois, saiu da fogueira e eu vi que este saco de água estava bem junto do chá e a comida toda embrulhada.

“Ela deve ter visto quando fui atrás de você - prosseguiu Uba. - Imaginei isto porque mamãe não ralhou comigo por eu ter ficado tanto tempo fora. Brun e Creb estão furiosos com ela por não lhes ter contado que você ia esconder-se. Se souberem que ela tem alguma idéia de onde você está e não conta, nem sei o que farão com a mãe. A mim, ninguém vai perguntar. Ninguém presta muita atenção em crianças, principalmente em meninas.

Ayla, sei que devia contar a Creb onde você está, mas não quero que você seja amaldiçoada outra vez por Brun. não quero que você morra, Ayla.

Ayla escutava as batidas de seu coração. O que foi que eu fui fazer? Quando ela ameaçou deixar o clã, não podia imaginar o quanto se achava enfraquecida e como seria difícil sobreviver sozinha com um recém-nascido. Havia contado em poder voltar no dia do seu filho receber o nome. E, agora, o que vou fazer? Tomou o bebê nos braços, segurando-o muito apertado contra o corpo. Mas eu não podia deixar que você morresse, não é?

Uba olhou com pena para Ayla que parecia ter esquecido de sua presença.

- Ayla - disse, hesitando - posso ver o bebê? Ainda não tinha tido oportunidade de dar uma espiada nele.

- Mas claro, Uba - gesticulou Ayla, envergonhada por haver ignorado a garota tanto tempo, principalmente depois de ela haver feito aquela enorme caminhada para lhe trazer o recado de Iza. Se descobrissem que Uba sabia on de ela se encontrava e não contava, seu castigo sería terrível, poderia até ter a vida arruinada.

- Você quer segurá-lo?

- Posso?

Ayla pôs o bebê no colo dela. Uba ia começar a desenrolar a coberta, mas levantou antes os olhos pedindo permissão. Ayla fez que sim com a cabeça.

- A aparência dele não é tão ruim assim, Ayla. É menos aleijado do que Creb. Ele está meio descamado. A cabeça é que parece um pouco diferente. Mas não muito diferente da sua. Você não se parece com ninguém do clã.

- Isso é porque eu não nasci de gente dos clãs. Iza me encontrou, quando eu ainda era pequena. Ela diz que nasci dos Outros. Mas agora eu sou dos clãs - disse com orgulho; logo, entretanto, sobreveio uma expressão de abatimento. - Mas não por muito tempo.

- Você sente falta de sua mãe? Quero dizer, de sua mãe verdadeira, não de Iza? - perguntou Uba.

- Não me lembro de outra mãe que não fosse Iza. não me lembro de nada do que aconteceu antes de vir morar no clã. - De repente, ela ficou pálida. - Uba, para onde irei, se não puder voltar? Com quem vou viver? Nunca voltarei novamente a ver Iza ou Creb. Esta é a última vez que irei vê-la. Mas eu não sabia que outra coisa poderia fazer, não podia deixar meu bebê morrer.

- não sei, Ayla. Mamãe diz que Brun se rebaixaria, se aceitasse seu filho. Por isso é que ele está tão zangado. Ela diz que quando uma mulher obriga um homem a fazer o que ele não quer, o homem nunca mais volta a ter o respeito dos outros. Mesmo que ele venha a amaldiçoá-la, Brun se veria desprestigiado porque foi obrigado a fazer uma coisa contra sua vontade. não quero que você vá embora, Ayla, mas se voltar, morrerá.

Ayla olhou para o rosto angustiado de Uba sem saber que o seu, com as lágrimas escorrendo, tinha a mesma expressão. Às duas caíram ao mesmo tempo uma nos braços da outra.

- É melhor você ir agora, Uba, antes que as coisas piorem.

A garota devolveu o bebê para a mãe e se levantou.

- Uba - chamou Ayla, quando a menina estava na entrada, pondo os galhos de lado - estou contente por ter vindo me ver, pelo menos ainda pude falar com você mais uma vez.

Diga a Iza... diga a minha mãe que eu a amo. - As lágrimas escorriam outra vez. - Diga isso também a Creb.

- Eu vou dizer, Ayla. - Uba se deteve por um instante. - Bom,já vou- falou, saindo rapidamente da caverna.

Depois de Uba ter ido embora, Ayla desempacotou a comida. não havia muita, mas, somada à carne-seca do veado, duraria alguns dias. Mas, e depois? Estava incapaz de pensar, sua cabeça era um torvelinho de confusões que a levava para um buraco escuro, sem qualquer esperança. Todo seu plano tinha dado para trás. não só a vida do filho, mas também a sua estava em risco. Comeu sem sentir o gosto, tomou um pouco do chá e tornou a se deitar com o filho, passando a dormir um sono que lhe apagou tudo da mente. Seu corpo tinha exigências e pedia por descanso.

Era noite, quando voltou a acordar. Tomou mais um pouco do chá e resolveu buscar água.

Na escuridão havia menos chance de ser vista pelos homens que estavam à sua caça. Tateava procurando pelo cantil e, em meio ao completo negrume da caverna, perdeu o sentido de direção entrando por instantes em pânico. As ramagens camuflando a entrada, fazendo uma lúgubre silhueta contra um fundo menos escuro, tornou a orientá-la e imediatamente veio engatinhando para fora.

A lua crescente, brincando de esconde-esconde com as nuvens, esparramava pouca luz, mas o suficiente para que seus olhos muito dilatados pela forte escuridão do interior da caverna percebessem os contornos fantasmagóricos das árvores. O murmúrio das águas na nascente, batendo sobre as pedras, fazia uma cachoeira em miniatura, refletindo os salpicos brilhantes na pálida iridescência. Ayla ainda se achava fraca, mas já não ficava mais tonta quando se punha de pé e caminhava também com mais facilidade.Nenhum homem do clã viu quando ela, protegida pela noite, abaixou- se perto da nascente, mas outros olhos mais afeitos à luz do luar a espreitavam. Alguns predadores noturnos e os bichos que eram as suas presas tomavam água da mesma fonte que ela. Ayla, desde a ocasião em que uma garotinha nua, de cinco anos de idade, ficou perambulando sozinha, nunca estivera tão vulnerável como agora. não tanto devido à fraqueza, mas porque já não estava pensando em termos de sobrevivência. Deixara de estar em guarda contra o exterior, passando a ter os pensamentos voltados para dentro de si. Seria fácil presa para qualquer animal que, atraído pelos seus odores, lhe ficasse à espreita. Ela, no entanto, havia imposto sua presença naquele ambiente. Suas pedradas rápidas, nem sempre mortais, mas dolorosas, tinham deixado marcas. Os carnívoros, cujo território incluía a caverna, preferiam manter uma certa distância. Isso lhe dava uma vantagem, constituindo-se num fator de segurança, numa espécie de fundo de reserva do qual ela passara agora a valer-se seguidamente.

- Deve haver algum sinal dela - gesticulou Brun, furioso. - Mesmo que tivesse levado comida, essa não pode durar para sempre. Logo vai ter de sair do esconderijo onde se meteu. Quero que tornem a revistar todos os lugares que já procuraram antes. Se estiver morta, quero saber. Algum animal a encontraria, deixando uma prova disso. Quero que ela seja achada antes do dia de seu filho receber nome. Só irei à reunião dos clã se ela for encontrada.

- Agora, ela nos vai impedir de ir à reunião de clãs - disse Broud, escarnecendo. - Mas por que, antes de mais nada, ela foi aceita neste clã? Nem mesmo pertence à nossa gente. Se e fosse o chefe, nunca a teria aceito. Jamais teria deixado Iza ficar com ela esse tempo todo. Nem mesmo apanhá-la no meio do caminho, eu teria permitido. Por que ninguém conseguiu ver o que ela realmente era? Vocês sabem, esta não é a primeira vez que ela desobedece. Sempre desprezou nossos costumes e sempre saiu impune. Será que alguém pensou em impedi-la de trazer animais para dentro da caverna? Será que alguém se preocupou com o fato de ela andar por aí sozinha, como nenhuma mulher do clã sequer pensaria em fazer? não é de estranhar que nos espionasse, enquanto estávamos treinando.

E o que aconteceu quando foi apanhada usando uma funda? Apenas uma maldição de morte temporária. E quando voltou? Imagine, recebeu licença para caçar! Sabem o que os outros clãs iriam pensar disso? não me surpreende se não pudermos ir à reunião. É de admirar então que ela tenha pensado que nos poderia forçar a aceitar seu filho?

- Broud, já ouvimos isso antes - gesticulou Brun, farto. - Sua desobediência não passará sem castigo desta vez. Prometo.

A insistência de Broud, sempre batendo na mesma tecla, não estava apenas cansando os nervos de Brun, estava também surtindo efeito. O chefe começara a questionar o seu julgamento, um julgamento que se baseava no apego às tradições e aos costumes de longa data e os quais deixavam pouca mar gem para desvios. No entanto, tal como Broud estava lembrando constante mente, Ayla vinha praticando, sempre impunemente, uma série de transgressões cada vez mais graves, que agora culminava com este deliberado e indesculpável ato de desafio. Tinha sido demasiadamente tolerante com aquela estranha, nascida sem o sentido de retidão inerente à raça clânica... complacente demais. Aproveitara-se dele. Broud tinha razão, ele devia ter sido mais rígido, deveria tê-la obrigado a se submeter às regras, talvez nunca devesse ter permitido a Iza trazê-la com eles. Mas, por que tinha o filho de sua companheira de ficar sempre repisando a mesma coisa?

Os constantes sermões de Broud acabaram também por surtir efeito sobre os outros homens. Quase todos começaram a convencer-se de que haviam, de certo modo, visto Ayla através de uma cortina de fumaça e que só Broud a enxergava tal como era. Quando Brun não estava por perto, Broud punha-se a denegri-lo, insinuando que ele já estava muito velho para chefiá-los. O desprestígio de Brun foi um duro golpe à confiança que ele tinha em si mesmo. Sentia como, aos poucos, os homens lhe iam perdendo respeito e não podia suportar a idéia de enfrentar uma reunião de clã em tais circunstâncias.

Ayla permanecia dentro da caverna, vivendo só de água. Enrolada em peles, conseguia manter-se aquecida mesmo sem uma fogueira. A comida trazida por Uba, ajudada pela velha carne do veado - que, embora tesa como couro e dura de mastigar, tinha alto valor nutritivo - e mais o tempero de sua fome permitiram que ela pudesse sobreviver sem caçar ou colher alimentos. Isso lhe proporcionou o tempo de que estava precisando para descansar. não tendo mas que se exaurir para satisfazer as exigências de um feto quase anormal, seu corpo, jovem e saudável, fortalecido por anos de duros exercícios, começou a recuperar-se. Ela não precisava dormir tanto, mas, de certo modo, o sono ajudava. A confusão de seus pensamentos era um tormento constante. Pelo menos, dormindo, estava livre da ansiedade.

Sentada perto da entrada da caverna, observava o filho dormindo em seus braços. Um fluido branco e aguado escorrendo do canto da boca do bebê e pingando do outro seio, estimulado pela amamentação indicava que o leite havia começado a correr. O sol da tarde, de vez em quando escondido pelas nuvens passando velozes no céu, aquecia a terra, botando manchas de luz na entrada. Ayla olhava a respiração regular de seu filho, às vezes interrompida por um crispar de pálpebras e pequenos sobressaltos que o levavam a fazer movimentos de sugar, para depois voltar a acalmar-se novamente. Ela o observou mais de perto, virando sua cabeça para ver o perfil.

Uba disse que você não tem uma aparência muito ruim, disse consigo. Também acho. É só um pouco diferente, foi o que Uba falou. Você parece diferente, mas não tanto quanto eu.

Subitamente, ela se lembrou de seu rosto refletido no lago de águas tranquilas. Ele não é tão diferente quanto eu!

A moça examinava o rosto do bebê, tentando lembrar-se de seu reflexo. Minha testa é igual à sua, pensou, levando a mão ao rosto. E esse osso debaixo da boca, eu também tenho um.

Mas ele tem supercílios salientes e eu não. As pessoas dos clã é que têm assim. Se sou diferente, por que meu bebê também não seria? Ele deveria parecer-se comigo, não é? E parece um pouco, mas também se assemelha aos bebês do clã. Ele parece dos dois jeitos.

Não nasci num clã, mas meu filho sim. É como se fosse uma mistura deles comigo.

Acho que você não é nem um pouco deformado, meu filho. Se você nasceu de mim e da gente dos clãs, tinha de parecer dos dois modos. Se os espíritos se misturaram, você não teria de parecer com essa mistura? E é assim que você é e como deveria parecer. Mas qual totem teria começado sua vida? Seja lá qual for esse totem, ele deve ter tido alguma ajuda. Nenhum homem tem um totem mais forte do que o meu, exceto Creb. Será que foi o Urso da Caverna que começou sua vida, meu filhinho Eu moro na fogueira de Creb. Não! não pode ser. Creb diz que Ursus jamais deixaria que seu espírito fosse engolido por uma mulher. Ursus sempre escolhe. Bom, se não foi o de Creb, de quem mais eu me aproximei?

De repente, surgiu a imagem de Broud esvoaçando diante dos olhos dela. não Abanava a cabeça, sem querer aceitar a idéia. Broud não Não foi ele quem começou meu bebê. A lembrança do futuro chefe fê-la estremecer de nojo, recordando-se de como ele a forçava a submeter-se a seus desejos. Tenho ódio dele.Odiei todas as vezes que ele chegou perto de mim. Estou feliz por ele não poder mais me incomodar. Espero que ele nunca, nunca mais vá querer outra vez aliviar suas necessidades em mim. Como é que Oga pode suportar isso? E as outras mulheres, como aguentam? Por que será que os homens têm necessidades desse tipo? Por que gostam de botar seus órgão no lugar por onde saem os bebês? Este lugar devia ser só para os bebês nascerem e não para que os órgãos dos homens fizessem aquele melado lá dentro. Os órgãos dos homens nada têm a ver com os bebês, pensou, cheia de indignação.

A incongruência daquele ato que lhe parecia sem sentido lhe ficou no pensamento. Em seguida, outra estranha idéia foi se infiltrando. Ou será que têm? Seria possível o órgão de um homem ter alguma relação com os bebês? Só mulheres podem ter crianças, mas elas têm filhos e filhas, conjeturava consigo. Fico pensando se, quando um homem mete o órgão no lugar por onde saem os bebês, ele não estaria nesse momento começando a vida de um.

E se não for o espírito do totem de um homem e sim o órgão quem começa o bebê? Isso significaria que o bebê pertenceria a ele também? Talvez seja por este motivo que os homens têm essa necessidade, porque desejam começar a vida de um bebê. Talvez seja por isso também que as mulheres gostam. Nunca vi uma mulher engolindo um espírito, mas já vi muitas vezes os homens metendo seus órgãos nas mulheres. Ninguém imaginou que eu fosse ter um filho por causa desse meu totem extremamente forte, mas eu tive, e o bebê começou mais ou menos na ocasião em que Broud estava aliviando suas necessidades em mim.

Não Não é verdade! Isso significaria que meu bebê pertenceria também a Broud, pensou ela com horror. Creb está certo. Ele sempre está. Engoli um espírito que lutou e derrotou meu totem. Talvez eu tenha engolido mais de um, talvez até de todos eles. Abraçou o filho muito apertado, como se quisesse que ele fosse só dela. Você é meu bebê e não de Broud.

E nem é também do espírito do totem de Broud. O bebê se assustou com o movimento inesperado e começou a chorar. Ela se pôs a niná-lo ternamente até que, por fim, ele voltou a ficar quieto.

Talvez meu totem soubesse o quanto eu queria um bebê e por isso se deixou derrotar. Mas por que meu totem me deixou ter um bebê sabendo que ele teria de morrer? Um bebê que tem uma parte minha e outra da gente dos clãs irá sempre parecer diferente. Eles vão sempre dizer que meus filhos são deformados. Mesmo se eu tivesse companheiro, meus bebês não iriam ter uma aparência direita. Nunca vou poder ficar com filho algum. Todos terão de morrer. Mas que diferença faz? De qualquer jeito, eu vou morrer. Nós dois vamos morrer, meu filinho.

Ayla ficou embalando o bebê, apertado no seu colo, enquanto cantarolava baixinho e as lágrimas, sem que percebesse, escorriam-lhe pelas faces. O que vou fazer, meu filhinho? O que vou fazer? Se voltar no dia de você receber nome, Brun vai me amaldiçoar. Iza disse que eu não voltasse, mas para onde poderei ir? Ainda não estou bastante forte para caçar e, mesmo que estivesse, o que eu faria com você? Eu não poderia levá-lo comigo. Como iria caçar com um bebê do lado? Se você chorasse, espantaria os bichos; e ficar sozinho, também não poderia. Talvez eu pudesse ficar sem caçar e a comida eu encontraria. Mas vamos precisar de outras coisas... roupas, peles, capas e calçados.

E onde vamos encontrar uma caverna para morar? Nessa, não podemos. Há muita neve aqui no inverno e ela fica muito perto do clã. Acabariam nos encontrando. Poderia ir embora, mas talvez não achasse uma caverna, além de que os homens poderiam seguir minha pista e me trariam de volta. Mesmo que conseguisse encontrar uma caverna, conseguisse guardar bastante comida para o inverno e pudesse caçar um pouco, nós iríamos ficar muito sozinhos. Você tem de ter outras companhias além de mim. Com quem você iria brincar? Quem o ensinaria a caçar? E se acontecesse alguma coisa a mim? Quem tomaria conta de você? Estaria sozinho, como eu, antes de Iza me encontrar.

Não quero que você fique sozinho e nem eu também quero estar sozinha. Quero voltar para casa, soluçava, enterrando a cabeça na manta que enrolava o bebê. Quero voltar e ver Uba e Creb. Quero a minha mãe. Mas não posso voltar. Brun está furioso comigo. Fiz com que ele se desprestigiasse e por isso tem agora de me amaldiçoar. Eu não sabia que ele iria perder o respeito dos outros por causa disso, apenas desejei que você não morresse. Brun não é má pessoa. Ele me deixou caçar. E se eu não o tivesse forçado? Se tivesse simplesmente lhe pedido que deixasse meu filho viver, como seria? Se eu voltasse agora, ele não ficaria desprestigiado. Ainda há tempo. Está faltando ainda dois dedos para chegar o dia de você receber nome. Talvez assim ele não ficasse tão zangado.

E se ficar? E se disser não? E se o tirar de mim? Se eles me separarem de você agora, não quero continuar vivendo. Se você tiver de morrer, eu quero morrer junto. Se eu voltar e Brun disser que você tem de morrer, peço para que ele me amaldiçoe. Nãorrerei também.

Não quero que você volte para o mundo dos espíritos sozinho, meu bebê. Vou retornar nesse instante e pedir a Brun para me deixar ficar com você. Que outra coisa posso fazer?

Ayla começou a atirar suas coisas para dentro da cesta de colher, enrolou o bebê na manta de carregar, cobriu ambos com a capa usada por fora e empurrou para o lado os ramos que escondiam a pequena caverna. Quando estava saindo, seus olhos bateram numa coisa brilhando ao sol. Uma pedra cinzenta cintilava a seus pés. Ela apanhou. não era uma simples pedra, mas três nódulos de pinta de ferro, colados juntos. Ela a revirou na mão observando o “ouro dos trouxas”. Durante vários anos, inumeras vezes entrara e saíra por aquela abertura e nunca vira uma pedra tão fora do comum naquele lugar.

Ayla fechou-a na mão e cerrou os olhos. Será que isso é um sinal? Um sinal de meu totem?

- Ó Grande Leão da Caverna - gesticulou. - Será que tomei a decisão certa? Você está me dizendo que devo voltar agora? Ó Leão da Caverna, permita que isso seja um sinal seu.

Permita que seja esta pedra um aviso expressando que você me achou digna e que esta foi mais uma prova por que tive de passar. Que seja este um sinal de que meu bebê irá viver.

Os dedos tremiam enquanto desamarravam os nós do saquinho de couro que usava pendurado no pescoço. E a pedra brilhante, de estranho formato, foi juntar-se ao ovo de marfim tingido de vermelho, ao fóssil de gastrópode e ao torrão de ocre. Cheia de medo, com o coração batendo forte e uma louca esperança, começou a descer para a caverna do clã.

 

Uba entrou na caverna, gesticulando tumultuadamente.

- Mãe, mãe! Ayla está de volta! Iza ficou lívida.

- Não! não pode ser. O bebê está com ela? Uba, você foi vê-la? Você disse a ela?

- Fui mãe. Eu vi Ayla. Contei como Brun estava zangado e disse para que não voltasse - gesticulou a menina.

Iza correu para a entrada da caverna e viu Ayla caminhando vagarosamente na direção de Brun. A moça agachou-se a seus pés, com o corpo se curvando sobre o filho para protegê-lo.

- Está adiantada. Deve ter calculado mal o tempo - gesticulou Brun para o feiticeiro, que vinha capengando a toda pressa para fora da caverna.

- Ela não calculou mal, Brun. Ela sabe que está adiantada. Veio por que quis - falou o Mog-ur.

Brun olhou para o velho, sem compreender como ele poderia ter tanta certeza. Em seguida, baixou os olhos na direção de Ayla e voltou a olhar um tanto apreensivo para o Mog-ur.

- Tem certeza de que o feitiço que fez para nos proteger vai funcionar? Ela devia estar isolada. O tempo de sua maldição de mulher ainda não acabou. Sempre custa muito mais depois do parto.

- Os feitiços foram fortes, Brun. Feitos com os ossos de Ursus. Você está protegido. Pode olhar para ela - respondeu o mog-ur.

Brun se virou, olhando para a jovem, que, tremendo de medo, curvava-se sobre o filho.

Devia amaldiçoá-la nesse instante, pensou ele com raiva. Mas ainda não é o dia de a criança receber nome. Se o Mog-ur tiver razão, por que teria ela voltado mais cedo? E com o bebê?

Ele ainda deve estar vivo, do contrário não estaria com ela. Essa desobediência é indesculpável, mas por que teria voltado antes? A curiosidade era grande e ele não aguentou. Deu-lhe o tapinha no ombro.

- Esta indigna mulher tem sido desobediente - gesticulou Ayla, usando a linguagem

protocolar silenciosa- Ela sabia que não deveria estar falando com um homem, que deveria estar isolada, mas ele lhe dera licençacom a pancadinha no ombro. - Esta mulher gostaria de falar com o chefe, se lhe for permitido.

- Você não merece falar, mulher. Mas o Mog-ur invocou proteção para o seu caso. Se eu quiser que você fale, os espíritos permitirão. Você tem razão. Tem sido muito desobediente, o que tem a dizer em seu favor?

- Esta mulher está agradecida. Esta mulher conhece os costumes que regem os clã Ela deveria desfazer-se da criança, tal como a curandeira falou, mas, ao invés disso, fugiu. Esta mulher ia voltar no dia de seu filho receber no me para que o chefe tivesse de aceitá-lo no clã.

- Você voltou cedo demais - gesticulou Brun, triunfante. - Ainda não chegou o dia de ele receber nome. Posso ordenar à curandeira tirá-lo de você nesse instante. - Enquanto falava, percebeu que a tensão que vinha sentindo nas costas desde que Ayla partira havia relaxado, ao mesmo tempo que fazia o apanhado da situação: pelos costumes dos clãs, só se a criança vivesse sete dias é que ele estaria na obrigação de aceitá-la. O prazo ainda não se extinguira, ele não precisava aceitá-la, não perdera ainda o prestígio, estava outra vez em pleno comando.

Ayla, involuntariamente, apertou mais o bebê contra o peito, amarrado a seu corpo por uma cinta e, então, prosseguiu:

- Esta mulher sabe que ainda não chegou o dia de seu filho receber nome. Esta mulher compreendeu que era errado tentar fazer o chefe aceitar a criança. não compete à mulher decidir se seu filho deve morrer ou viver. Só o chefe pode ter essa decisão. Foi por isso que esta mulher voltou.

Brun olhou para o rosto ansioso de Ayla. Pelo menos tomou juízo ainda em tempo, pensou consigo.

- Se você conhecia os nossos costumes, por que voltou então com essa criança deformada? Iza disse que você não seria capaz de cumprir com o seu dever de mãe. Será que já está preparada para desistir do filho? Você quer que a curandeira faça isso por você?

Ayla hesitou, imóvel, curvada sobre o filho.

- Esta mulher desistirá de seu filho se o chefe ordenar. - Ela gesticulava devagar, dolorosamente, fazendo enorme esforço sobre si, como se uma faca estivesse sendo cravada

em seu coração. - Mas esta mulher prometeu a seu filho que não o deixaria ir sozinho para o mundo dos espíritos. Se o chefe decidir que o bebê não poderá viver, ela pede para ser amaldiçoada - dizendo isso, abandonou a linguagem protocolar. - Eu imploro, Brun, deixe meu filho viver. Se ele tiver de morrer, eu não quero mais viver.

A súplica ardorosa de Ayla surpreendeu Brun. Ele sabia de casos de algumas mulheres que, apesar de os filhos haverem nascido deformados e com defeitos físicos graves, queriam conservá-los, a maioria, entretanto, sentia- se aliviada em se desfazer das crianças o quanto antes e o mais discretamente possível. Um filho deformado estigmatizava a mãe Apregoava sua incompetência e a incapacidade para produzir crianças perfeitas. Um fato desses tornava a mulher menos desejável. Ainda que a deformidade fosse pequena e não se constituísse num problema de maior gravidade, havia considerações de ordem de status e de futuros companheiros. Além disso, poderia ser difícil para as mães, se seus filhos ou os companheiros de suas filhas não fossem capazes de mantê-las na velhice. Embora nunca fossem morrer de fome, a vida delas poderia ser bem desgraçada. O pedido de Ayla não tinha precedentes. Amor de mãe é forte, mas tanto assim, a ponto de querer seguir junto com o filho para o outro mundo?

- Você quer morrer junto com seu filho deformado? Por quê? - perguntou Brun.

- Meu filho não é deformado - respondeu ayla, sem qualquer tom de desafio. - Ele é apenas diferente. Eu sou diferente. Eu não pareço com as pessoas da raça dos clãs E meu filho também. Todo bebê que eu tiver vai parecer com este, caso meu totem seja novamente derrotado. Nunca permitirão um filho meu viver. Se todos os meus filhos terão de morrer, eu não quero viver.

Brun olhou na direção do Mog-ur.

- Se uma mulher engolir o espírito do totem de um homem, o bebê não deveria se parecer com ele?

- Deveria, mas não se esqueça de que ela também tem um totem de homem. Talvez seja esse o motivo por que ele tenha lutado tanto. O Leão da Caverna pode ter desejado participar da nova vida. Pode ser que exista qualquer coisa assim como ela diz. Eu teria de meditar sobre isso.

- Mas a criança seria ainda considerada deformada?

- Isso muitas vezes acontece, quando o totem de uma mulher nega a submeter-se completamente. A gravidez dela torna-se difícil e deforma o bebê respondeu o Mog-ur. - Nesse caso, o que mais me surpreende é o fato de a criança ter nascido homem. Quando o totem de uma mulher trava uma batalha muito violenta, normalmente nasce uma criança do sexo feminino. Mas nós ainda não vimos o bebê, Brun. Talvez devêssemos examiná-lo.

Deveria me incomodar com isso?, perguntou-se Brun. Por que não amaldiçoá-la de uma vez, e nos desfazermos logo da criança? A volta antes do tempo e a humildade de Ayla, cheia de arrependimento, fizeram bem ao orgulho ferido do chefe, mas ele ainda estava longe de amolecer. Estivera a ponto de perder sua autoridade por causa dela, e esse não era o primeiro problema que Ayla lhe trazia. Havia voltado, mas o que iria aprontar da próxima vez? Além disso, havia a reunião dos clãs, como Broud não se cansava de avisá-lo.

Uma coisa era deixar Iza pegar uma estranha criança e levá-la para o seu clã, e outra bem diferente era a impressão que causaria nos demais clãs, ele chegando à reunião com uma mulher nascida dos Outros. Agora, olhando retrospectivamente, perguntava-se como tinha podido tomar tantas decisões tão pouco ortodoxas. Cada uma delas, a seu tempo, não parecia tão despropositada. Mesmo deixar uma mulher caçar teve sua lógica na época. Mas, todas somadas e encaradas do ponto de vista de alguém de fora, o efeito era de uma total derrocada dos costumes. Ayla fora desobediente, merecia ser punida, e amaldiçoá-la significava acabar com todos os seus problemas.

Mas uma maldição de morte representava séria ameaça ao clã e ele, já uma vez por causa dela, os havia deixado expostos aos maus espíritos. A volta voluntária impedira que ele caísse em desgraça... Iza provavelmente tinha razão. Ayla, abalada com o parto e a dor, devia ter perdido a cabeça. Ele dissera a Iza que teria levado em consideração um pedido para deixar o bebê viver, caso isso tivesse sido feito. Bom, agora ela estava pedindo. Tinha voltado perfeitamente consciente da falta que cometera, consciente e querendo arcar com a culpa, pedindo pela vida do filho. Brun podia, pelo menos, examinar a criança. Ele não gostava de tomar decisões apressadas. De repente, fez um gesto para Ayla, indicando a fogueira de Creb, e se afastou.

Ayla correu para os braços de Iza que a esperava. Se nada mais fosse possível, teria, quando muito, visto pela última vez a mulher que era a única mãe que conhecera na vida.

- Vocês todos tiveram oportunidade de examinar a criança - disse Brun. - Em circunstâncias normais, não iria incomodá-los. Esta seria uma decisão simples. Mas desejo conhecer a opinião de vocês. A maldição de morte é uma possibilidade a ser seriamente encarada e eu não quero tornar a deixar o clã exposto aos maus espíritos. Se acharem que a criança é aceitável, dificilmente poderei amaldiçoar a mãe. Ela não estando aqui, uma outra mulher teria de tomar o menino que irá viver com qualquer um de vocês que tenha no momento a companheira amamentando. No caso de se permitir ao bebê viver, a punição de Ayla seria menos severa. Amanhã será o dia em que a criança deveria receber o nome. Preciso tomar rapidamente uma decisão e o Mog-ur precisa de algum tempo para preparar a maldição se este for o castigo. Tudo isto tem de ser feito antes do despontar do sol amanhã.

- Não é só a cabeça, Brun - começou Crug a falar. Ika ainda estava amamentando o filho mais novo e Crug não tinha o menor desejo de ter o bebê de Ayla em sua fogueira.

Coisa improvável, mas sempre uma possibilidade. - Ela é bastante defeituosa e ele não consegue mantê-la erguida, porque também está faltando um suporte para aguentá-la. O que será dele quando for homem? Como vai caçar? Nunca conseguirá se sustentar, será um fardo para todo o clã.

- Você acha que existe alguma chance de o pescoço se fortalecer? - perguntou Droog. - Se Ayla morrer, ela levará consigo uma parte do espírito de Ona. Aga deve isto a Ayla... embora eu não creia que realmente ela deseje ter um bebê deformado. Mas se Aga estiver disposta, acho que eu aceitaria, naturalmente se ele não for um fardo para todo o clã.

- O pescoço é tão comprido e magro e a cabeça tão grande que me dá a impressão de que nunca se fortalecerá o suficiente - comentou Crug.

- Na minha fogueira, eu não quero esse menino por nada. Nem vou dar-me ao trabalho de perguntar a Oga o que ela acha disso. Ele não serve para ser germano dos filhos dela. Isso faria do menino irmão de Brac e Grev, coisa que eu jamais permitiria. Brac irá sobreviver ainda que ela carregue um pedacinho de seu espírito. Nem sei por que você está perdendo tempo em discutir este assunto, Brun. Você já estava pronto para amaldiçoá-la. Só porque ela chegou um pouquinho mais cedo, já está disposto a recebê-la de volta e falando em assumir seu filho deformado - gesticulou Broud, cheio de fel.

“Ela o desafiou quando fugiu, o fato de voltar não diminui sua falta. O que há aqui para ser discutido? O bebê é deformado e ela tem de ser amaldiçoada, fora disso não há o que falar.

Por que você está sempre nos fazendo perder tempo com essas reuniões discutindo problemas dela? Se eu fosse chefe, essa mulher já estaria amaldiçoada há muito tempo. É desobediente, insolente e má influência para as outras. Como explicar essa atitude agora de Iza?

- A raiva de Broud ia aumentando e seus gestos cada vez ficavam mais exaltados. - Ela merece ser amaldiçoada, Brun. Como consegue pensar em outra coisa, fora desta possibilidade? Como não pode ver esse fato? Você está cego? Ela nunca prestou. Se eu fosse chefe, antes de mais nada, ela não teria sido aceita neste clã. Se eu fosse chefe.

- Mas você ainda não é, Broud - retrucou Brun, com frieza. - E tal vez nunca seja, se não conseguir controlar-se melhor. Ela é apenas uma mulher, Broud, por que você se sente tão ameaçado por Ayla? O que ela lhe poderia fazer? É obrigada a obedecê-lo. não tem outra alternativa sengo esta. Se você fosse chefe, se você fosse chefe, é tudo quanto sabe dizer? Que chefe é esse que é capaz de pôr em risco todo um clã só porque está com pressa de matar uma mulher? - Brun, por sua vez,estava a ponto de perder o controle. Já aguentara tudo o que podia do filho de sua companheira.

Os homens se sentiam incomodados e ao mesmo tempo escandalizados. Aquela guerra declarada entre o presente e o futuro chefe era um fato lastimável. Broud, certamente, havia passado dos limites, mas eles já estavam acostumados com os seus rompantes. A aflição era por causa de Brun, nunca haviam visto o chefe naquele estado, a ponto de perder o seu controle. E jamais também Brun tinha questionado publicamente as qualificações para chefe do filho de sua companheira.Durante um momento de tensão os dois ficaram se olhando numa guerra de nervos. Broud baixou os olhos primeiro. Já não tendo mais sua autoridade ameaçada, Brun estava novamente firme no comando. Ele era o chefe e ainda não estava preparado para aposentar-se. Isso botou Broud de sobreaviso, suas bases não estavam tão firmes quanto imaginava.

Tratou de dominar o sentimento de impotência e de amarga frustração que se avolumava em seu peito. Ele continua favorecendo-a, pensou Broud. Como é que pode? Eu sou o filho da companheira dele e ela não passa de uma mulher feia. O rapaz lutava para manter a calma e engolir o ressentimento que lhe envenenava a alma.

- Este homem lamenta ter dado motivos para que o chefe interpretasse mal suas palavras - falou Broud, por meio de gestos protocolares. - A preocupação deste homem é em relação aos caçadores que um dia ele irá conduzir, se o chefe atual julgar que este homem tem capacidade para tanto. Mas como alguém que tem uma cabeça que não consegue equilibrar sobre o pescoço poderá caçar?

Brun, furioso, encarava Broud com olhar duro. Os gestos da linguagem formal tinham um sentido de inconsistência que Broud inconscientemente deixava transparecer nas suas expressões e posturas. O sarcasmo contido nas respostas extremamente polidas irritava mais o chefe do que se houvesse, entre os dois, uma disputa franca e aberta. Broud tentava esconder seus sentimentos, e Brun o percebia. Mas o chefe estava envergonhado consigo por ter perdido a calma. Tinha consciência de que Broud com suas observações cada vez mais depreciativas fazia com que se pusesse em dúvida o seu julgamento. Seu orgulho fora tocado num ponto sensível, mas isso não era suficiente desculpa para fazê-lo perder o controle, a ponto de desacreditar na frente de todos o filho de sua companheira.

- Você já disse o que tinha a dizer, Broud - gesticulou Brun, secamente. - Posso imaginar que o menino ao crescer se constituirá num fardo para o chefe que me sucederá e para o outro que virá depois desse, mas a decisão ainda continua sendo minha. Farei o que achar melhor. Eu não disse que o bebê será aceito, Broud, ou que a mulher não será amaldiçoada. Minha preocupação é com o clã não com ela ou com a criança. Uma maldição de morte pode pôr todos nós em perigo. Há espíritos malignos que custam a ir embora, depois de soltos, e isto pode nos trazer azar. Acho que a criança é muito deformada para viver, mas Ayla está inteiramente cega. Ela não consegue ver a deformidade do filho. Talvez o enorme desejo de ter um bebê haja afetado sua cabeça. Quando voltou, pediu-me para amaldiçoá-la, se o filho não fosse aceito. Pedi a opinião de vocês, porque queria saber se alguém mais viu qualquer coisa na criança que eu não percebi. Uma maldição de morte, seja para punir ou atender seu desejo, continua sendo uma decisão que não se pode tomar levianamente.

Broud já não se sentia tão frustrado. Afinal, Brun talvez não a estivesse favorecendo, pensou ele.

- Você está certo, Brun - disse o rapaz, com ar arrependido. - Um chefe precisa sempre pensar nos riscos que podem advir para o clã. Este homem está agradecido por poder contar com um chefe sábio para instruí-lo.

Brun sentiu sua tensão diluir. Nunca pensou seriamente em substituir Broud. Ele continuava sendo o filho de sua companheira, o filho de seu coração. Ter o autodomínio nem sempre é coisa fácil, disse Brun consigo, lembrando-se de sua própria irritação de minutos antes. Broud tem apenas um pouco mais de dificuldade que os outros, mas ele está melhorando.

- Alegra-me ver que compreendeu, Broud. Quando você for o chefe, será responsável pela segurança e o bem-estar do clã. - O comentário de Brun serviu para Broud saber que ainda continuava como herdeiro e também para aliviar a tensão dos caçadores. Dava-lhes segurança saber que os tradicionais critérios que presidiam a hierarquia do clã estavam sendo mantidos. Nada os perturbava mais do que a incerteza em relação ao futuro.

- É no bem-estar do clã que estou pensando, Brun - gesticulou Broud. - não desejo um homem em meu clã que não possa caçar. Para que vai servir o filho de Ayla? A desobediência dela merece um severo castigo e se ela deseja ser amaldiçoada, estamos satisfazendo seu desejo. Estaremos bem melhor sem esses dois aqui. Ayla deliberadamente desafiou nossas tradições portanto, não merece viver, e seu filho é tão deformado que também não merece.

Todos se entreolharam concordando com a cabeça. Brun notou um quê de insinceridade na argumentação extremamente racionalizada de Broud, mas deixou a coisa passar. A animosidade entre os dois desaparecera e ele não queria provocar novamente mais atritos.

Travar uma luta aberta contra o filho de sua companheira perturbava tanto Brun como os outros.

Brun sentiu que devia juntar-se aos outros na concordância, mas alguma coisa o fazia hesitar. É o que se tem a fazer, pensou. Desde o princípio ela se constituiu num problema para todos nós. Naturalmente Iza vai ficar aborrecida, mas não prometi poupar nenhum dos dois. Só disse que ia pensar no assunto. Nem mesmo cheguei a dizer que olharia o bebê, se ela voltasse. E quem, afinal, esperava que fosse voltar? Justamente aí é que reside o problema com ela, nunca se pode prever o que acontecerá. Se a tristeza de Iza deixá-la muito abatida, bom, ainda temos Uba. Afinal de contas, é Uba que realmente pertence à linhagem, e a menina poderá aprender um pouco mais com as outras curandeiras durante a próxima reunião de clãs.

Se uma parte do espírito de Brac morrer com Ayla, será que ele está perdendo um pedaço muito grande do espírito? Mas se Broud não está se importando com isso, por que eu me deveria preocupar? Ele tem razão, ela merece o maior dos castigos. E esse amor tão grande por um bebê não é normal. O que provam essas histórias de mulheres velhas? Ela não consegue nem enxergar que o filho é deformado... deve estar mesmo fora de seu juízo. Será que dói tanto para ter um filho? Os homens passam por piores coisas. Muitos de nós somos obrigados a caminhar feridos, morrendo de dor depois de uma caçada. Claro, ela não passa de uma mulher, não se pode esperar que aguente muita dor. Gostaria de saber até onde ela foi. A caverna de que falou não pode estar muito longe daqui, ou pode? Ela quase morreu para ter a criança, estava fraca demais para andar uma distância muito grande, mas por que será que não encontramos o lugar?

E depois, se eu deixar que ela viva, vou ter que levá-la à reunião de clã O que irão pensar os outros? Pior ainda seria se eu deixasse o filho viver. O certo é fazer isso, todos são dessa opinião e, talvez, já não houvesse tantos problemas com Broud. Pode ser que ela não estando mais aqui, ele aprenda a controlar-se melhor. Broud é um caçador corajoso e dará um bom chefe. Era só ter um pouquínho mais de senso de responsabilidade e um pouquinho mais de controle sobre si. Para o bem de Broud, talvez eu faça isso. Em benefício do filho de minha companheira, seria melhor que ela fosse embora. Sim. isto que é o certo, realmente é. É o que se tem a fazer, não é?

- Cheguei à decisão que tinha de tomar - gesticulou Brun. - Amanhã é o dia de a criança receber nome. Às primeiras luzes, antes do sol romper...

- Brun! - interrompeu o Mog-ur.

Ele se tinha mantido fora da discussão e desde o nascimento do filho de Ayla que as pessoas pouco o viam. Passava a maior parte do tempo na pequena caverna, procurando na sua alma uma explicação para o comportamento de Ayla. Sabia como havia sido dura para Ayla sua luta para aceitar os costumes dos clãs e achara que ela havia conseguido superar suas dificuldades. Estava convencido de que existia alguma coisa mais, alguma coisa que ele não percebeu e que a levou a ato tão extremo.

- Antes que você se comprometa, o Mog-ur pede a palavra.

Brun olhou para o feiticeiro. A expressão era enigmática como sempre. O chefe nunca fora capaz de ler no rosto do Mog-ur. O que terá ele a dizer que eu ainda não saiba? Já estou resolvido a amaldiçoá-la e ele sabia disso.

- Que fale o Mog-ur.

- Ayla não tem companheiro, mas ela sempre foi sustentada por mim. Sou o seu responsável. Se você permitir, falarei na qualidade de companheiro dela.

- Fale, se assim o desejar, Mog-ur. Mas que outra coisa tem a acres centar? Já pensei no grande amor que Ayla tem pela criança e na dor e sofrimento por que teve de passar para ter o filho. Compreendo como deve ser difícil para Iza. Sei também que isso vai abatê-la muitíssimo. Já pensei em todas as razões possíveis para desculpar as ações de Ayla, mas os fatos permanecem. Ela desafiou os costumes dos clã Seu bebê é inaceitável segundo os homens. Broud já deixou bem claro, nenhum dos dois merece viver.

O Mog-ur se pôs de pé, jogando o cajado para o lado. Envolvido pela pesada capa de pele de urso era uma figura imponente. Só os mais velhos e Brun o conheciam como algo que não era o Mog-ur. Ali estava o mais sagrado de todos os homens dentre aqueles que tinham acesso ao mundo dos espíritos, o mais poderoso feiticeiro de todos os clã Quando se deixava levar pela eloquência durante uma cerimônia, era um guardião carismático que inspirava antes de tudo temor. Alguém que afrontava forças invisíveis, muitíssimo mais assustadoras do que qualquer ataque de animal e capazes de transformar o mais corajoso dos caçadores num miserável covarde tremendo de medo. Todos ali sentiam-se seguros por tê-lo como o feiticeiro do clã e não havia nenhum que não tivesse, em algum momento da vida, sentido medo de seu poder e de seus feitiços. Apenas um, Goov, ousava pensar em ocupar seu lugar.

Somente o Mog-ur se punha entre o humano e o terrível desconhecido do qual tornara-se parte por sua aliança com este. Isso o imbuía de uma aura sutil que o acompanhava na vida secular. Mesmo quando dentro dos limites de sua fogueira e cercado por suas mulheres, Não se pensava nele como um homem. Era alguma coisa mais, algo diferente. Ele era o Mog-ur.

Enquanto seu olho sinistro percorria um por um dos que se achavam lá, todos, inclusive Broud, estremeceram no fundo de seus seres, ao se darem conta de repente de que a mulher que estavam condenando à morte vivia em sua fogueira. Raramente, ele fazia valer o peso de sua presença fora de suas funções, mas desta vez usava-a a seu favor, O último que encarou foi Brun.

- O companheiro de uma mulher tem o direito de interceder pela vida de uma criança deformada. Estou-lhes pedindo para poupar a vida do filho de Ayla e, em benefício dele, a vida dela também.

Todas as razões que Brun poucos minutos antes se dera para poupar a vida de Ayla pareceram agora ganhar peso e consistência, e os argumentos contrários mostravam-se insignificantes. Ele quase concordou, baseando-se exclusivamente na força do pedido do Mog-ur, mas para poder provar também a força de seu próprio caráter não o fez. não podia capitular tão facilmente na frente de seus homens; assim, a despeito do enorme desejo de entregar-se à magia daquela poderosa figura, manteve-se firme.

Ao perceber que passara aquele instante de indecisão de Brun e que seu rosto voltara a assumir um ar de firme decisão o Mog-ur se transfigurou diante dos olhos do chefe. Seu caráter sobrenatural desapareceu. Transformou-se na figura de um pobre velho aleijado que vestia uma capa de pele de urso e tentava firmar-se o melhor que podia sobre a perna, sem a ajuda do cajado.

Quando falou, foi por meio de gestos normais, pontuados por algumas palavras grunhidas da fala cotidiana. No rosto, um ar resoluto, mas curiosamente Vulnerável.

- Brun, desde que ayla foi encontrada que ela vem vivendo na minha fogueira. Creio que todos concordarão comigo que as mulheres e as crianças vêem no homem da casa a figura-padrão do homem do clã. Ele é o modelo, o exemplo daquilo que o homem deveria ser. Eu sou o exemplo de Ayla e passo aos olhos dela como o padrão de homem.

“Eu sou deformado, Brun. Você acha tão estranho assim que uma mulher que cresceu tendo como modelo a figura de um homem deformado tivesse tanta dificuldade em perceber a deformidade de seu filho? A mim, falta-me um olho e um braço e a metade do meu corpo é ressequida e imprestável. Sou um homem pela metade, apesar de que Ayla, desde o início, tenha me visto como alguém perfeito. O físico de seu filho se mostra inteiro.

Ele tem dois olhos, dois braços e duas pernas. Como esperar que ela encontrasse alguma deformidade nele?

“Coube a mim a responsabilidade de educá-la. Devo assumir a culpa por suas falhas. Passei por cima de seus pequenos desvios em relação aos nossos costumes. Cheguei inclusive a convencê-lo, Brun, de aceitá-los. Eu sou o Mog-ur. Você confia em mim para interpretar os desejos dos espíritos e passou também a confiar no meu julgamento para outros aspectos da vida. Acho que não erramos tanto assim. Algumas vezes foi muito difícil para Ayla, mas eu achava que ela se tinha tornado uma boa mulher conforme os padrões do clã. Imagino agora que fui muito indulgente. não lhe fiz ver claramente suas responsabilidades. Poucas vezes ralhei com ela e jamais lhe bati. Quase sempre deixava que seguisse seus impulsos. Agora, ela deve pagar por minhas faltas. Mas, Brun, nunca pude ser mais severo com Ayla.

“Jamais tomei uma companheira. Poderia ter escolhido uma mulher e ela teria de viver comigo, mas não o fiz. Sabe por quê? Seria você, Brun, capaz de imaginar como as mulheres olham para mim? O modo como me evitam? Quando jovem, como qualquer Outro homem, também tive a mesma necessidade de aliviar-me, mas aprendi a controlar isso depois que percebi que as mulheres viravam de costas, de modo a não ver os meus sinais. Eu não iria impor, forçar meu corpo disforme e aleijado a uma mulher que fugia de mim, que se virava com nojo de olhar para mim.

“Mas Ayla nunca me deu as costas. Desde o primeiro momento, estendeu a mão querendo tocar-me. não tinha medo, nem repugnância de meu aleijão. Espontaneamente deu-me sua afeição e me abraçou. Como poderia, Brun, eu me zangar com ela?

“Desde que nasci, vivo neste clã, mas nunca aprendi a caçar. Como pode um aleijado, com um único braço caçar? Fui um fardo, objeto de troças e já me chamaram de maricas. Agora, sou o Mog-ur e ninguém me ridiculariza, mas nenhuma cerimônia de passagem foi realizada em minha honra, Brun. Nem homem pela metade eu posso dizer que sou. Não sou homem nenhum. Só Ayla me respeitou e amou, como homem e como um ser integral. E eu a amo como se ela fosse a filha da companheira que não tive.

Creb encolheu o corpo, deixando escorregar a capa que usava para tapar seu físico assimétrico, com um dos lados mal formado e imprestável, e esticou o coto de braço que sempre mantinha escondido.

- Brun, este é o homem que Ayla vê como um todo perfeito. Aquele que estabeleceu para ela um padrão de homem. Este é o homem que ela ama e compara com seu filho. Olhe para mim, meu irmão! Mereço eu viver? O filho de Ayla merece menos a vida do que eu?

O clã começou a reunir-se do lado de fora da caverna à meia penumbra, an tes do alvorecer. Uma chuva fina e brumosa, que punha nas pedras e árvores uma luz cintilante, amontoava-se em diminutas gotículas nas barbas e cabelos das pessoas. Tênues nesgas da neblina que maciçamene cobriam a montanha desciam, coleantes, acumulando-se nas reentrâncias por onde passavam, enquanto massas mais densas de ruço tudo obscureciam, deixando visível só os objetos mais próximos. De forma indistinta, na meia escuridão erguia-se do mar de neblina o morro do lado este, ondulando nos limites da visibilidade.

Na sombra da caverna, Ayla, deitada sobre suas peles, observava Iza e Uba se movendo silenciosamente, alimentando o fogo e fervendo água para preparar o chá matinal. O bebê, a seu lado, fazia em sonhos ruídos de estar mamando. Ela não dormira a noite toda. A primeira alegria de rever Iza rapidamente degenerou num clima de ansiedade e tristeza. As tentativas iniciais de conversa logo esmoreceram, e as três mulheres passaram aquele longo dia, depois da chegada de Ayla, confinadas dentro da fogueira de Creb, compartilhando seus desesperos através de olhares angustiados.

Creb não havia posto os pés em seus domínios, mas Ayla surpreendeu uma vez seu olhar, quando ele saía da gruta para se juntar aos homens na reunião convocada por Brun.

Rapidamente, ele desviou os olhos de seu rosto suplicante, mas não antes de ela ver seu olhar líquido e doce cheio de amor e piedade. Quando, outra vez, ele entrou apressado na gruta, depois da conversa com Brun realizada num ponto retirado da caverna e os dois falando com gestos comedidos, ela e Iza trocaram olhares assustados e comoventes. Brun havia tomado sua decisão e Creb estava indo preparar a parte que lhe competia para sua efetivação. não voltaram, depois disso, a ver o feiticeiro.

Iza trouxe o chá na velha cuja que por muitos anos pertencera a Ayla ese sentou em silêncio a seu lado, enquanto a jovem bebia. Uba veio juntar-se às outras, mas apenas tinha sua presençapara oferecer como consolo.

- Quase todos já saíram. É melhor irmos também - gesticulou Iza, pegando a cuia da mão de Ayla.

A moça fez que sim com a cabeça, levantou e enrolou o filho na manta de carregar. Depois, apanhou a pele da cama e atirou sobre os ombros. Com os olhos brilhando e as lágrimas já prontas para correr, olhou primeiro para Iza, e depois para Uba. Soltando um grito de dor, atirou-se nos braços das duas. Por um instante, as três ficaram abraçadas. Em seguida, num passo arrastado e com o coração pesado, Ayla saiu da caverna.

Olhando para o chão, vendo de vez em quando as marcas de um pé ou de dedos, ou os contornos indistintos de algum calçado, Ayla teve a estranha sensação de estar vivendo há dois anos, quando seguia Creb para enfrentar seu outro julgamento. Brun, naquela ocasião, devia me ter amaldiçoado para sempre, pensou consigo. Devo ter nascido para ser amaldiçoada. Por que teria de passar por tudo isso novamente? Desta vez, vou para o mundo dos espíritos. Conheço uma planta que vai fazer eu e meu filho dormir e nunca mais acordar, não neste mundo. Faremos rápido a travessia e entraremos juntos no outro mundo.

Ela foi para onde Brun se encontrava e deixou-se cair no chão, ficando a olhar aqueles pés já conhecidos, envolvidos por calçados sujos de lama. Já está ficando claro, o sol daqui a pouco vai aparecer. Brun precisa apressar- se, dizia consigo, quando sentiu a pancadinha no ombro. Vagarosamente, suspendeu os olhos para o rosto barbudo de Brun.

Este entrou direto no assunto.

- Mulher, você deliberadamente desafiou os costumes dos clãs e deve por isso ser punida - disse, com gestos severos.

Ayla fez sim com a cabeça.

- Ayla, mulher do clã, você está amaldiçoada. Ninguém irá vê-la ou ouvi-la. Você ficará em total isolamento, segundo reza a maldição feminina. não poderá ultrapassar os limites da fronteira daquele que é o seu provedor, até que a próxima lua esteja na fase em que se acha agora.

Ayla, espantada, sem acreditar, olhou para o chefe com uma expressão severa no rosto. A maldição feminina! não a de morte! Nada de ostracismo total e completo, um isolamento apenas nominal, trancafiada na fogueira de Creb! Que importância havia, se ninguém no clã reconhecesse sua existência, ela tinha Iza,Creb e Uba. E passado este tempo poderia juntar- se ao clã como qualquer outra mulher. Mas Brun ainda não tinha terminado.

- Como extensão do castigo, você está proibida de caçar e até mesmo de falar em caçar, enquanto não tivermos voltado da reunião dos clãs. Até que as folhas hajam caído das árvores, não tem permissão para ir a nenhuma parte, a não ser que isto seja essencial.

Quando for procurar plantas para preparar as mágicas de curar, você terá de me dizer aonde está indo e terá de voltar prontamente, logo que o serviço esteja terminado. Jamais poderá deixar o terreno da caverna sem me pedir licença. Outra coisa. Você me mostrará o local onde se escondeu.

- Claro, claro. Qualquer coisa - disse Ayla, concordando, eufórica, como se pisasse sobre nuvens. As palavras seguintes, entretanto, atingiram-na como uma cutilada de gelo, afogando sua alegria num mar de desespero.

- Resta ainda o problema de seu filho deformado, a causa de sua desobediência. Nunca mais deverá tentar forçar um homem a ir contra sua vontade, sobretudo um chefe. Nenhuma mulher deve tentar forçar um homem a fazer o que ele não quer - falou Brun, fazendo em seguida um aceno.

Ela apertava o filho olhando na mesma direção que Brun. não podia deixar que o levassem. Isso não. O Mog-ur saía da caverna. Ela, incrédula e com o rosto rubro de felicidade, viu o Mog-ur atirar a capa de urso para o lado, deixando à mostra a cesta de vime vermelho que trazia presa entre o cotoco do braço e a cintura. Hesitante, ela se voltou na direção de Brun, sem ter muita certeza se o que estava pensando seria verdade.

- Mas a mulher pode pedir. O Mog-ur está esperando, Ayla. Se seu filho irá ser membro de nosso clã, ele precisa ter um nome - terminou Brun de dizer.

Ayla se pôs de pé e correu para o feiticeiro. Caiu a seus pés, retirando o menino de dentro de sua capa e o levantou na direção dele. O berro agudo da criança, saída do calor do corpo materno para o exterior, frio e molhado, foi saudado pelos primeiros raios de sol que despontavam por cima do morro, escoando através do denso nevoeiro.

Um nome! Ela nem chegara a pensar num nome, nem imaginava que nome poderia Creb ter escolhido para seu filho. Com gestos ritualísticos, o Mog ur invocou os espíritos dos totens do clã para que assistissem aquela cerimônia. Em seguida, estendeu a mão para a cesta, retirando um pouco de pasta vermelha.

- Durc - disse o Mog-ur em voz alta, sobrepondo-se ao berreiro fortedo zangado bebê, que gritava por causa do frio. - O nome do menino é Durc.

- Desenhou, então, uma risca que partia do ponto médio entre os dois olhos e ia até a ponta do pequeno nariz.

- Durc - repetiu Ayla, segurando o filho apertado para aquecê-lo. Durc, como o Durc da lenda, disse consigo. Creb sabe que sempre foi a minha história preferida. Este não era um nome comum entre eles, e muitos se mostraram surpresos ao ouvi-lo. Mas talvez o nome, buscado lá nas profundezas da história e carregado de conotação dúbias, fosse apropriado para um menino cujo início de vida ficara pendente do fiel de uma balança tão oscilante.

- Durc - disse Brun. Ele era o primeiro da fila. Ayla pensou ter visto um brilho de ternura nas feições severas e orgulhosas do chefe, quando ela, agradecida, olhou para ele. A maioria dos rostos era vista como uma mancha através dos olhos embaçados pelas lágrimas.

Por mais que tentasse, não conseguia contê-las, e manteve a cabeça abaixada, fazendo esforço para esconder os olhos molhados. não consigo acreditar, não consigo, pensou. Será mesmo verdade? Você tem um nome, meu filhinho? Brun aceitou o meu bebê? não estou sonhando? Lembrou-se, então dos nódulos brilhantes de pinta que tinha em seu amuleto.

Era um sinal. Este foi um sinal de verdade, Grande Leão da Caverna. De todos os objetos guardados no amuleto, era o que mais prezava.

- Durc ouviu Iza dizendo. Ayla levantou os olhos. A alegria no rosto da mulher, apesar de seus olhos enxutos, não era menor do que a que havia na face da jovem mãe.

- Durc - disse Uba, e acrescentou com um gesto rápido: - Estou muito feliz.

- Durc - ouviu Ayla o nome sendo dito em tom de escárnio. Levantou os olhos a tempo de ainda ver Broud dando as costas. Subitamente, lembrou- se daquela extravagante idéia que lhe ocorreu quando se achava escondida na pequena caverna, a respeito da possibilidade de a vida dos bebês ser iniciada pelos homens. O pensamento de que Broud, de certa forma, pudesse ser responsável pela concepção de seu filho fê-la estremecer. Ela estivera muito ocupada consigo mesma e não tinha percebido a batalha muda travada entre Broud e Brun. O rapaz ia recusar-se a reconhecer o mais novo membro do clã e só o fez quando recebeu ordem expressa do chefe. Ayla observou-o afastando-se do grupo, com os punhos cerrados e as espáduas contraídas.

Como pôde fazer isso? dizia Broud consigo, enfiando-se pela mata para poder estar longe da cena odiosa. Como pôde? Numa vã tentativa de desafogar a frustração ele deu um pontapé num pedaço de madeira, fazendo-o rolar pela encosta. Como pôde? Apanhou, então um galho grosso, pondo-se a bater com ele numa árvore. Como pôde? Como pôde fazer isso? A frase ficava martelando-lhe a cabeça, enquanto dava golpes e mais golpes contra uma pequena subida, esmigalhando o seu revestimento de musgo. Como pôde permitir que ela vivesse e ainda por cima aceitar seu filho? Como pôde fazer isso?

I za, Iza! Venha depressa! Venha ver Durc! - disse Ayla, agarrando o- braço da curandeira e arrastando-a da entrada para dentro da caverna.

- O que aconteceu? - gesticulou Iza, apressando o passo para acompanhar Ayla. - Está sufocando outra vez? Machucou?

- Não. Não está machucado. Olhe! - falou Ayla, orgulhosa; quando chegaram à fogueira de Creb. - Ele está com a cabeça levantada!

O menino estava deitado de barriga para baixo, olhando para as duas com seus olhos grandes e compenetrados, que começavam a perder a cor escura e imprecisa dos recém-nascidos para ter o tom de marrom quase preto dos olhos das pessoas da raça dos clãs. A cabeça oscilou com o esforço e depois voltou a cair sobre a manta de pele. Enfiou, então a munheca na boca, pondo-se a sugá-la ruidosamente, alheio ao rebuliço que seus esforços estavam provocando.

- Se ele consegue fazer isso ainda tão pequeno, vai aguentar firmar a cabeça quando crescer, não acha? - argumentou Ayla.

- não se deixe levar muito pela esperança - respondeu Iza. - Mas já é um bom sinal.

Creb entrou na caverna com uma expressão vaga, distante, parecendo nada ver. O olhar característico que tinha quando se achava perdido em seus pensamentos.

- Creb! - chamou Ayla, correndo em sua direção. Sacudido de seu mundo, o feiticeiro ergueu os olhos voltando à realidade. - Durc levantou a cabeça, não é verdade, Iza?

Iza confirmou.

- Hummn! - grunhiu ele. - Se está ficando tão forte assim, então acho que já é tempo.

- Tempo para quê?

- Andei pensando e acho que deveria celebrar sua cerimônia de totem. Ele ainda é muito pequeno, mas algumas impressões muito fortes têm chegado a meu espírito. O totem dele se tem manifestado a mim. Não há razão para esperar. Daqui a pouco todos vão estar muito ocupados, aprontando-se para a viagem, e a cerimônia deve ser realizada antes da reunião dos clã; não seria bom para o menino viajar com o seu totem ainda sem ter um lar. - Ao olhar para Iza, ele se lembrou de qualquer coisa. - Iza, você tem quantidade que chegue de raízes para a cerimônia? não sei quantos clã vam estar lá. Da última vez, um dos clã que se mudou para uma caverna mais para leste estava pensando em ir à reunião dos clã ao sul das montanhas. A distância é um pouco maior para eles, mas a viagem mais fácil. O velho Mog-ur estava contra, mas seu acólito queria ir. Trate de arrumar uma boa quantidade.- não vou à reunião dos clãs Creb. - O desapontamento dela era visível. - não posso fazer uma viagem tão longa assim. Vou ter que ficar aqui.

Claro, que bobagem a minha, pensou ele, olhando a figura magra de Iza, com os cabelos quase todos brancos. Iza não vai poder ir. Por que não pensei nisso antes? Ela está muito doente. Achei até que fosse nos deixar no último outono. Não sei como Ayla conseguiu botá-la de pé. Mas, e a cerimônia? Somente as curandeiras de sua linhagem conhecem o segredo da bebida especial. Uba é muito pequena. Tem de ser uma mulher... Ayla! Sim, que tal Ayla? Iza poderia ensiná-la antes de partirmos. De qualquer modo já é tempo de ela se transformar em curandeira.

Creb observava Ayla, enquanto a moça se debruçava para pegar o bebê, vendo-a de repente sob um ângulo crítico como há muitos anos não o fazia. Mas será que vão aceitá-la? Tentava enxergá-la tal como os outros clã iriam vê-la. Os cabelos dourados caíam soltos ao redor de seu rosto chato, enfiados atrás das orelhas e partidos mais ou menos ao meio, deixando à mostra sua testa abaulada. O corpo era sem dúvida o de uma mulher, porém mais delgado, fora a barriga um pouco flácida. As pernas eram longas e retas e, de pé, muito mais alta do que ele.

Não se parece com uma mulher dos clã pensou. Vai atrair atenção de mais e tenho medo de que isso não lhe seja muito favorável. Parece que o melhor a fazer é esquecer esta cerimônia. Os outros mog-urs podem não aceitar a bebida preparada por Ayla. Bem, mas não custa tentar. Se ao menos Uba fosse um pouquinho mais velha. Talvez Iza possa ensinar as duas, se bem que não acredito que eles aceitem tanto uma menina como uma mulher nascida dos Outros. Acho que vou ter uma conversa com Brun. Em todo o caso, se vou ter de invocar os espíritos para a cerimônia de Durc, podemos aproveitar a ocasião para fazer de Ayla uma curandeira.

- Preciso ver Brun - gesticulou de repente Creb, indo para a fogueira do chefe, mas antes ainda se virou para Iza, dizendo: - Acho que você deveria ensinar as duas a fazer a bebida. ayla e Uba, só que não sei se vai adiantar muito.

 

- Iza, não consigo encontrar a bacia que você me deu para dar à curandeira do clã hospedeiro - gesticulou Ayla, afobada depois de ter revistado pilhas de comidas, peles e uma série de utensílios amontoados no chão, perto do seu lugar de dormir.

- Já olhei por tudo quanto é canto.

- Você já embrulhou, Ayla. Calma, menina, ainda há tempo. Brun só vai sair depois que acabar de comer. O melhor é você se sentar e também comer. Seu mingau está esfriando.

Uba, você também. Nunca vi tanta confusão. Passamos todas as coisas em revista ontem de noite. Está tudo pronto.

Creb estava sentado sobre a esteira com Durc no colo, observando, divertido, o nervosismo dos últimos momentos.

- Elas não são diferentes de você, Iza. Por que você também não se senta e come?

Iza.

- Vou ter tempo de sobra depois de vocês terem partido - respondeu

Creb apoiou Durc contra o ombro que, naquela posição vantajosa, pôs- se a observar o ambiente a seu redor.

- Veja como o pescoço do bebê está forte - observou Iza. - Ele já não tem a mínima dificuldade em ficar com a cabeça levantada. É incrível, desde a sua cerimônia de totem, dia a dia, vai ficando mais forte. Deixe-me segurálo. não vou poder pegar nele durante todo esse verão.

- Talvez seja por isso que o Lobo Prateado me apressou para celebrar a cerimônia dele - gesticulou Creb. - Ele estava querendo ajudar o menino.

Creb se recostou, pondo-se a observar sua pequena prole. Ele estava ali como o patriarca.

Embora nunca houvesse falado, sempre almejou ter uma família como a dos outros homens. Agora, na idade avançada, tinha duas mulheres adoráveis que faziam tudo o que podiam por seu conforto, uma menina que ia no mesmo caminho das outras e um garotinho para ninar, tal como já tinha feito com as duas meninas. Ele havia conversado com Brun a respeito da educação de Durc. O chefe não podia permitir que um membro varão do seu clã crescesse sem as qualificações necessárias a um caçador. Quando aceitou Durc, sabia que a criança iria viver na fogueira de Creb e se sentia responsável por ela. Ayla ficara muito agradecida a Brun, quando este, durante a cerimônia do totem de Durc, anunciou que ele, pessoalmente, se encarregaria do treinamento do menino, no caso de ele se tornar suficientemente forte para caçar. E ela não podia pensar em ninguém melhor para educar seu filho.

O Lobo Prateado é um bom totem para menino, disse Creb consigo, mas isso me faz pensar. Alguns lobos andam em bandos e outros são solitários. Qual deles seria o totem de Durc?

Depois de tudo embrulhado e posto em trouxas bem amarradas nas costas de Ayla e Uba, eles vieram todos juntos para fora da caverna. Iza deu um último abraço em Durc, com o nariz colado no seu pescoço. Ajudou Ayla a enrolá-lo na manta de carregar bebês e tirou alguma coisa de dentro da dobra de sua roupa.

- Isso é para você levar, Ayla. Você é agora a curandeira do clã - falou ela, dando-lhe o saco vermelho que guardava as raízes especiais. - Vocês se lembram de cada uma das coisas que têm de fazer? Nada pode ser esquecido. Eu queria mostrar como se faz, mas essa mágica não pode ser preparada fora das ocasiões especiais. Ela é sagrada demais e não pode ser jogada fora ou usada em qualquer cerimônia. Só naquelas que são muito importantes. E não se esqueçam disso, não são apenas as raízes que fazem a mágica. Vocês devem se arrumar com o mesmo cuidado com que preparam a bebida.

Uba e Ayla balançavam a cabeça dizendo ter entendido, enquanto Iza apanhava a preciosa relíquia e a metia dentro da sacola de remédios. No dia em que Ayla se havia tornado curandeira, Iza lhe dera sua bolsa de pele de lontra que a fazia lembrar-se da outra que Creb queimara. Ayla pegou no seu amuleto apalpando o quinto objeto que passou a carregar dentro dele: um pedaço preto de dióxido de manganês, que se foi juntar aos três nódulos de pirita de ferro ao ovo vermelho de marfim, ao fóssil de um gastrópode e ao torrão de ocre.

O corpo de Ayla, no dia em que ela se tornou repositório de uma parte dos espíritos de cada membro do clã e, através de Ursus, de todos os clãs espalhados pelo mundo, fora ungido com um unguento feito do pó de uma pedra negra misturado com gordura. Somente para os ritos mais sagrados e importantes o corpo da curandeira era estampado com desenhos pretos e somente as curandeiras carregavam uma pedra negra em seus amuletos.

Ayla desejava que Iza pudesse ir com eles e estava preocupada em dei xá-la. Frequentemente, acessos de tosse estavam fazendo sacudir o corpo frágil da mulher.

- Iza, tem certeza de que vai ficar bem? - gesticulou Ayla, depois de lhe dar um abraço rápido. - Sua tosse está pior.

- Sempre piora no inverno, mas depois melhora no verão. Além disso, você e Uba pegaram tantas raízes de ênula que imagino não ter sobrado mais nenhum pé por aqui.

Provavelmente não vai haver também nesta estação framboesas pretas, com todas aquelas raízes que vocês duas trouxeram para misturar com as flores de meu chá. Vou ficar muito bem. não se preocupem comigo - assegurou Iza.

Ayla, porém, sabia que o alívio dado pelos remédios, na melhor das ipóteses, era temporário. Há anos que Iza vinha se medicando com suas plantas. A tuberculose estava avançada demais para que sua medicina pudesse produzir algum efeito.

- Não deixe de sair quando fizer sol e trate de descansar bastante - insistiu Ayla. - não vai haver muito o que fazer por aqui e há muita comidae lenha. Zoug e Dorv podem manter a fogueira acesa para espantar os bichos e os maus espíritos. A cozinha, você deixa por conta de Aba.

- Está bem, está bem - concordou Iza. - Vá depressa agora. Brun está pronto para partir.

Ayla tomou o seu lugar de sempre na retaguarda, enquanto todos olhavam para ela esperando.

- Ayla - gesticulou Iza - ninguém vai andar enquanto você não for para o seu lugar certo.

Envergonhada, Ayla se dirigiu para a frente do grupo das mulheres. Ela se tinha esquecido de seu novo status. Com o rosto vermelho de embaraço, postou-se no primeiro lugar da fila, à frente de Ebra. Sentia-se sem jeito, não lhe parecendo justo ocupar a primeira posição Acenou, então para a companheira do chefe pedindo desculpas, mas Ebra já estava acostumada com o seu segundo lugar. No entanto, estranhava ter Ayla na frente e não Iza.

Será que ainda terei mais uma reunião de clã depois desta? perguntou-se.

Iza e os outros três que já estavam velhos demais para a viagem acompanharam o clã até o morro e de lá só saíram quando avistavam apenas um pequeno ponlinho na planície embaixo. Voltaram, então para a caverna vazia. Aba e Dorv haviam perdido a última reunião de clã e estavam quase surpresos por estar perdendo uma outra, mas, para Zoug e Iza, aquela era a primeira vez. Apesar de que Zoug, ocasionalmente, ainda saísse com sua funda, cada vez mais estava voltando de mãos vazias, e quanto a Dorv, ele enxergava muito pouco para poder sair.

Os quatro, embora estivesse quente o dia, se encolheram ao redor da fogueira na entrada e ali permaneceram sem fazer qualquer tentativa para iniciar alguma conversa. Subitamente, Iza foi acometida por um acesso forte de tosse que desprendeu uma massa de catarro sangrento. Foi para sua fogueira descansar e, pouco depois, os outros estavam entrando na caverna, cada qual indo para a respectiva fogueira, onde ficaram sentados sem fazer nada. Eles não se viram envolvidos pelo clima de excitação de uma longa viagem ou da expectativa dos reencontros com parentes e amigos de outros clã. Sabiam que teriam um verão triste, insuportavelmente solitário.

A temperatura fresca de princípio de verão na região temperada em que se si tuava a caverna se modificava na planície aberta das estepes continentais do lado este. O verde exuberante das folhagens que revestia os arbustos e as velhas árvores desaparecia, revelando-se apenas no nascer sazonal dos pinheiros com seus vértices em tons mais claros.

Em compensação raízes, brotos novos e pastagem batendo à altura do peito, cujo verdor juvenil perdera-se numa cor indefinida entre o verde e o amarelo, estendiam-se até o horizonte. A vegetação densa e emaranhada da estação passada amortecia os passos, enquanto o clã ia seguindo seu caminho através da pradaria sem fim, deixando atrás de si uma onda denunciadora de sua passagem. Raramente, alguma nuvem manchava o céu a perder de vista, por causa de umas poucas tempestades e, assim mesmo, vistas quase sempre ao longe. A água na superfície era escassa. Paravam em todos os rios que encontravam para encher os cantis, nunca sabendo se achariam algúmà no lugar em que acampariam para dormir.

Brun marcou o ritmo de seu passo, levando em consideração os mem bros mais lentos do grupo, mas sem deixar de pressioná-los a ir sempre em frente. Teriam que percorrer um longo caminho até chegar à caverna do clã hospedeiro, no alto das montanhas do território continental a leste. Era uma dura jornada, principalmente para Creb, mas a expectativa da grande reunião e das cerimônias que iria presidir levantava seu ânimo, dando-lhe forças.

Apesar de ter o corpo aleijado e atrofiado e, ainda por cima, devastado pela artrite, isso em nada diminuía o poder mental do grande feiticeiro. O sol quente e as plantas analgésicas de Ayla ajudavam a aliviar as dores em suas juntas e, após algum tempo, o exercício fortaleceu-lhe os músculos, mesmo os da perna de que ele pouco se servia.

Os viajantes entraram numa rotina monótona, um dia fundindo-se no outro com enfadonha regularidade. O avanço na estação se fazia tão gradual mente que mal perceberam quando o sol se converteu numa bola de fogo abrasadora que torrava a planície, fazendo dela uma paisagem monocrômica de terra amarelada, relva pardacenta e rochedos beges contra um céu empoeirado num tom opaco, quase amarelo. Por três dias tiveram os seus olhos ardendo com a fumaça e cinzas que as correntezas de vento traziam de um incéndio que varrera a planície. À medida que iam caminhando, passavam por dezenas de milhares de animais alimentados pelas pastagens da planície: imensas manadas de bisões, cavalos, asnos, onagros e, mais raramente, bandos de antilopes saigas, com os seus cornos crescendo retos na parte superior da cabeça e ligeiramente curvos na ponta.

Bem antes de aproximar-se do istmo pantanoso que tanto servia como ponto de união da península com o continente, como de escoadouro para o mar, a noroeste, de águas salgadas e pouco profundas, avultou-se diante deles o maciço de montanhas cuja altura era superada apenas por outra no mundo. Mesmo os picos mais baixos revestiam-se de neves eternas que chegavam até a metade das encostas, glacialmente impassíveis diante do calor caustican te na planície. Quando o nível da pradaria começou a fundir-se com o das colinas pequenas e arredondadas, entremeando capim-do-prado e estipe com o vermelho do minério de ferro - o ocre na cor sagrada que fazia dali um terreno santo - Brun compreendeu que a parte pantanosa e salgada já não devia estar muito distante. Esta era uma ligação secundária e mais estreita, pois a conexão principal da península com as terras continentais era a que ficava mais ao norte, formando parte do limite ocidental do mar interno menor.

Por dois dias, lutaram na travessia do pântano pútrido, infestado de mosquitos, de águas estagnadas, cortado por uns poucos canais, antes de alcançarem o território continental.

Cárpeas e carvalhos raquíticos foram logo sucedidos pelas sombras frescas e bem-vindas de um bosque de belos carvalhos. Passaram por um outro bosque quase exclusivamente composto de faias e umas poucas nogueiras e entraram numa floresta de espécies variadas, onde, além dos carvalhos em predominância com os seus troncos ornados de heras e clematites, viam-se buxos e teixos. Os cipós foram rareando, mas ainda subiam por uma ou outra árvore, quando eles atingiram uma zona com abetos e pinheiros misturados com as faias, bordos e cárpeas. A parte ocidental da cadeia de montanhas era a mais úmida, densamente coberta por florestas e on de a linha de neve se encontrava mais baixa.

Ali, surpreenderam bisões da floresta, veados, cabritos monteses e alces. Viram javalis, raposas, texugos, lobos, linces, leopardos, onças e muitos outros animais de pequeno porte, mas nenhum esquilo. Ayla sentia estar faltando qualquer coisa na fauna daquelas montanhas, até que deu pela ausência da quele pequenino bichinho familiar, a qual, no entanto, foi amplamente com pensada pela primeira visão do urso da caverna.

Brun ergueu a mão para cima em sinal de parada, depois apontou para a frente na direção de uma monstruosa massa de pêlos que esfregava as costas contra uma árvore. Até mesmo as crianças perceberam o temor com que os adultos encaravam o enorme vegetariano. Sua presença física era impressionante. Os ursos marrons, existentes tanto nas suas montanhas como naquelas, pesavam em média 150 quilos, enquanto o peso do urso macho da caverna, durante o verã quando estava relativamente magro, chegava perto de 500 quilos. No final do outono, depois de ter acumulado gordura para enfrentar o inverno, possuía volume bem mais avantajado. Era três vezes mais alto do que os homens do clã e, com sua imensa cabeça e seu manto de pêlo alto, parecia ter um volume ainda maior. Ali, preguiçosamente coçando as costas num velho tronco de árvore, mostrava-se alheio às pessoas, à pequena distância dele, inteiramente paralisadas em suas pernas. Ele não tinha muito por que ter medo, simplesmente ignorava presenças estranhas. Sabia-se que os ursos marrons que habitavam os terrenos perto de sua caverna eram capazes de, com um único murro dado com a pata dianteira, quebrar o pescoço de um possan te veado. O que, então não faria aquele ali? Somente um outro macho, durante a época do cio, ou a fêmea da espécie querendo proteger seus filhotes - ousava enfrentá-lo. A fêmea, por sinal, invariavelmente levava a melhor.

Entretanto, não era apenas a fantástica estatura do animal que deixavam o clã inteiramente petrificado. Ali, achava-se Ursus, a figura que personificava os clã. Era um parente deles, e até mais ainda, incorporava-lhes a própria essência. Seus ossos eram tão sagrados que tinham força para desviar o mal. O parentesco que sentiam era um elo espiritual, muito mais significativo do que o de sangue.

Através do espírito de Ursus, todos os clãs se uniam num só, e a reunião a que iam agora assistir, depois de uma longa viagem, devia a ele sua significação. Era a sua essência que os tornava a raça dos clãs, os Clãs do Urso da Caverna.

O urso cansou de coçar-se - ou talvez as comichões tivessem acabado - ergueu-se em posição ereta, deu alguns passos usando só as patas traseiras e, depois, apoiando-se sobre as quatro, com o focinho perto do chão, afastou-se num galope desajeitado e pesadão. Apesar de seu enorme volume, o urso da caverna era basicamente um animal pacífico e raramente atacava, a não ser quando provocado.

- Era Ursus? - perguntou Uba, maravilhada e em alvoroço.

- Sim, era Ursus - confirmou Creb. - E você verá um outro urso da caverna, quando chegarmos ao clã hospedeiro.

- É verdade que o clã que nos vai hospedar tem um urso da caverna vivo preso numa jaula? - perguntou Ayla. - Este é muito grande. - Ela sabia que era costume do clã que sediava a reunião criar enjaulado um filhote de urso da caverna.

- Provavelmente, ele está nesse momento numa jaula do lado de fora da caverna, mas, quando era pequeno, vivia dentro de casa com as pessoas e era criado como uma criança, com todo mundo lhe dando comida na boca. Quase todos os clãs afirmam que seus ursos da caverna chegam até a falar alguma coisa. não posso dizer se é verdade. não me lembro muito disso. Depois de o urso já meio crescido, ele é aprisionado para que não possa ferir ninguém, mas as pessoas continuam lhe dando muitos petiscos para comer e fazendo festinhas nele para que saiba que é amado. Na nossa reunião, ele será festejado na cerimônia do urso e levará nossas mensagens para o mundo dos espíritos - explicou Creb.

Elas já haviam ouvido falar sobre isso, mas a visão de um urso da caver na vivo dava novo significado à história, principalmente para aqueles que eram muito jovens para se lembrar ou que ainda não tinham comparecido a uma reunião dos clãs.

- Quando teremos uma reunião de clãs em nossa caverna, para termos também um urso da caverna morando Conosco? - perguntou Uba.

- Quando chegar a nossa vez, a não ser que na época do clã designado, este não possa sediar a reunião. Mas quase nunca os clãs deixam passar a opor tunidade de hospedar os outros, mesmo que os caçadores tenham de fazer longas viagens para encontrai um filhote de urso da caverna e que seja muito grande o perigo que representa a mãe do ursinho capturado. O clã que agora está hospedando tem sorte. Ainda existem ursos da caverna vivendo perto deles. Os caçadores daqui já ajudaram outros clãs a pegarem ursos, mas agora chegou a sua vez. Onde moramos não sobrou nenhum, mas eles devem ter existido naquela zona, pois, quando encontramos a nossa caverna, os ossos de Ursus estavam lá dentro - respondeu Creb.

- E se alguma coisa acontecer ao clã que vai ser hospedeiro da reunião? O nosso clã, por exemplo, mudou de caverna - indagou Ayla. - Se fosse a nossa vez, como iriam saber onde estamos vivendo?

- Enviaríamos mensageiros aos clãs mais próximos para espalhar a notícia, ou, então, para comunicar que cederíamos nossa vez para um outro clã.

Brum acenou e todos se puseram novamente a caminho. Passando pela árvore usada pelo urso para coçar-se, Creb a examinou muito detidamente e encontrou alguns tufos de pêlo ainda agarrados na casca do tronco. Ajudando com os dentes, ele os embrulhou numa folha e depois guardou numa dobra da roupa. O pêlo de um urso da caverna vivo era capaz de poderosos feitiços.

As gigantescas coníferas nos sopés das colinas logo foram sendo substituídas por uma variedade mais robusta e atarracada, enquanto eles ascendiam no terreno, descortinando a magnífica vista de luminosos cimos montanhosos que viram de longe durante a travessia da planície. Surgiram, então, pequenos bosques de vidoeiros ao lado de zimbros arrastando-se pelo chão e azaléias cor-de-rosa abrindo-se em flores e espalhando suas cores brilhantes pelo verde forte das matas. E mais uma enorme multiplicidade de flores silvestres que acrescentavam outros tons à palheta de cores vibrantes: lírios tigrinos pintados de laranja, aquilégias malvas e rosas, alfarrobas azuis e vermelhas, íris azuladas, gencianas azuis, violetas amarelas, prímulas rosas e o branco em todas as formas e intensidades. A cadeia de montanhas ao sul, tal como a outra na parte baixa da ponta da península, as duas formadas segundo a mesma orogenia, constituía-se num refúgio para a fauna e a flora nesse continente da idade glacial.

Por vezes, surgiam-lhes pela frente alguma camurça ou carneiros de grossos e pesados cornos. Já estavam quase chegando àtaiga montanhosa com suas coníferas ananicadas e raquíticas que margeavam os altiplanos cobertos de capim e relva baixa, quando pegaram uma trilha feita pelas pisadas de muitos pés que estavam sempre atravessando o íngreme aclive. Os homens do clã hospedeiro eram obrigados a andar muito para poder chegar à planície aberta que ficava ao norte das montanhas, mas, por outro lado, a proximidade dos ursos da caverna fazia daquela uma região tão afortunada que, de bom grado, aceitavam a inconveniência. Isso os levava também a ser mais propensos à caça dos esquivos animais que habitavam as florestas.

Ao ver Brun e Grod aparecerem numa curva da trilha, as pessoas correram para saudar a chegada do novo clã, mas pararam de repente ao avistar ayla. Mesmo com a educação de uma vida inteira não conseguiram impedir-se de lançar olhares escandalizados. A posição dela, à frente do grupo de mulheres, enquanto o clã, cansado da viagem, desfilava pela área em frente da caverna, provocava rebuliço e especulação de toda ordem. Creb já a havia avisado, mas ayla não esperava que fosse causar uma comoção tão grande e tampouco estava preparada para enfrentar aquela multidão.

Mais de 200 pessoas, com as fisiononiias espantadas, amontoavam-se ao redor, querendo ver a estranha mulher. A jovem nunca vira tanta gente reunida num só lugar.

Brun e seu clã pararam em frente de uma enorme jaula feita com grossas estacas profundamente cravadas no chão e firmemente amarradas uma à outra. Dentro, achava-se um exemplar do urso que tinham encontrado no caminho, este até maior. Alimentado por três anos a fio com constância e fartura, o gigantesco urso da caverna se tornara um plácido e dócil animal que se recostava indolente e preguiçosamente em sua jaula, quase gordo demais para se levantar. Manter o imenso animal por tanto tempo havia representado para o pequeno clã um trabalho de grande dedicação e amor reverente, não chegando a compensar o esforço e os muitos presentes - comidas, utensílios e peles - trazidos pelos clã visitantes. No entanto, não havia uma só pessoa que não invejasse o clã anfitrião, e cada clã aguardava ansioso sua vez de realizar a mesma tarefa, colhendo os benefícios espirituais e as honrarias do prestigioso evento.

O urso da caverna se remexia dentro da jaula querendo ver o que estava causando tanta agitação, e Uba veio para mais perto de Ayla, tão abismada com o urso como com as pessoas se acotovelando em volta. O chefe e o feiticeiro do clã hospedeiro se aproximaram, fazendo gestos de saudação, logo seguidos por uma pergunta pouco amistosa.

- Por que você trouxe alguém dos Outros para a nossa reumião, Brun? - gesticulou o chefe do clã anfitrião.

- Ela faz parte de nosso clã, Norg. É uma curandeira da linhagem de Iza - respondeu Brun, aparentando mais calma do que realmente sentia. Ou viram-se murmúrios ao redor, enquanto as mãos, excitadas, agitavam-se no ar.

- Isso é impossível! - gesticulou o mog-ur anfitrião - Como pode ser ela uma mulher dos clã. Ela nasceu dos Outros.

- Ela pertence aos clãs - falou o Mog-ur, tão inflexível quanto Brum. E encarou o chefe do clã hospedeiro com o seu olho lúgubre. - Está duvidando de mim, Norg?

O chefe, embaraçado, olhou para o seu mog-ur, mas a expressão confusa neste não o ajudava em nada.

- Norg, fizemos uma longa viagem e estamos cansados - disse Brun. - Este não é o momento apropriado para discutir o assunto. Você nos nega sua hospitalidade?

Era um momento de tensão. Se Norg os recusasse, a única alternativa seria fazer o longo percurso de volta à caverna deles. A descortesia era grande, mas permitir a entrada de Ayla importava em aceitá-la como uma mulher dos clã e isto, no mínimo, já estava dando uma vantagem a Brun. Norg olhou outra vez para o seu mog-ur e, em seguida, para o Mog-ur, o poderoso feiticeiro caolho e por fim novamente para o homem que era o chefe do clã visitante, ocupando a primeira posição na hierarquia dos clã Se o Mog-ur assim o afir mava, que mais lhe restava fazer?

Norg acenou para sua companheira, dizendo que mostrasse ao clã de Brun o lugar reservado a eles, e se pôs a caminhar entre Brun e o Mog-ur. Logo que estivessem acomodados, iria descobrir como pôde uma mulher visivelmente dos Outros ter-se transformado em alguém dos clã

A boca de entrada da caverna do clã anfitrião era menor do que a entrada da deles, e a caverna em si, ao entrar, parecia menor. Mas, ao invés de um enorme recinto com uma pequena gruta anexa para cerimônias religiosas, a caverna se constituía de uma série de ambientes e túneis que penetravam no interior da montanha, a maioria ainda inexplorados. Havia espaço mais do que suficiente para alojar os clã em visita, embora não fossem gozar das vantagens da luz vinda da entrada. O clã de Brun foi conduzido ao segundo ambiente, a partir da entrada, e ocupou ali todo um lado. Era um lugar privilegiado, correspondente à sua elevada posição na hierarquia dos clã Embora já houvesse vários clã instalados mais para o fundo da caverna, aquele local lhes estaria reservado, enquanto não tivessem chegado para o Festival do Urso. Somente depois, quando se tivesse certeza de que não viriam para a reunião, é que o lugar seria dado a outro clã, conforme a ordem de importância.

Os clã como um todo não tinham um chefe supremo, mas havia uma hierarquia que os regulava, tal como a que regia os membros dentro de um clã em particular, e o chefe do clã de posição mais elevada se convertia, de fato, no chefe dos clãs, simplesmente por ser o membro mais importante de todos. No entanto, não havia nenhuma posição de absoluta autoridade. Os clã tinham autonomia suficiente para que isto não acontecesse. Todos eram chefiados por homens independentes e ditatoriais que estavam acostumados a ser, eles próprios, a lei, e que se encontravam a cada sete anos. Eles não se rendiam facilmente a uma autoridade superior, exceto àquela que dizia respeito à tradição e ao mundo dos espíritos. O lugar que competia a cada clã dentro da hierarquia e, consequentemente, ao homem que se reconhecia como chefe de todos os clãs, era decidido nessas reuniões.

Muitos elementos contribuíam para dar status a um clã. As cerimônias não eram a única actividade do festival, as competições tinham igual, se não até maior importância. A necessidade de cooperação dentro de cada clã para a sobrevivência, que impunha uma série de restrições visando à autodisciplina, encontrava sua válvula de escape nas competições endiredas. Estas, de maneira diferente, eram também necessárias à sobrevivência. As disputas controladas evitavam que lutassem entre si e, quando se encontravam, quase tudo se tornava em objeto de competição. As modalidades competitivas dos homens incluíam: luta-livre, arremessos com funda e boleadeiras, força no uso da maça, corrida, corrida conjugada com estocadas de lança, fabricação de ferramentas, dança, narração de histórias, e a combinação desses dois últimos itens na dramatização de cenas de caçadas.

Embora suas competições não tivessem o mesmo peso que as dos homens, as mulheres também davam sua contribuição. O grande banquete era excelente oportunidade para demonstrações de dotes culinários. Os presentes trazidos para o clã hospedeiro eram primeiramente expostos à vista de todos, quando, então, passavam por um julgamento crítico cujo resultado saía do consenso de opiniões. Os artesanatos compreendiam: couros macios e flexíveis; peles luxuosas; cestas impermeáveis; recipientes de couro ou cortiça; cordas trançadas com tendões, ou então feitas de fibras vegetais ou de crina animal; correias compridas e resistentes; bacias de madeiras bem polidas; pratos de osso ou de madeira tirada das seções finas das toras; cujas, sopeiras, conchas e, mais ainda,

capuchos, chapéus, calçados, luvas, sacolas e até mesmo os bebês eram comparados. Entre as mulheres, a premiação não se fazia de forma concreta. Havia um procedimento mais sutil, traduzido nas expressões, gestos ou posturas que discriminavam com finura - mas nem por isso numa distinção perceptiva menos correta do trabalho medíocre de um outro de boa quali dade - e os aplausos se faziam para aqueles que eram realmente bons.

As posições referentes às curandeiras e aos mog-urs de cada clã eram também um fator na determinação do status deste. O prestígio de Iza e Creb muito contribuiu para que o clã de Brun ocupasse a primeira posição. Razões de tradição também influíram: o fato de já encontrar-se nessa posição desde muitas gerações antes dele. Entretanto, ao assumir a liderança, isso represen tou apenas uma ligeira vantagem para Brun. Por mais importantes que fossem todos esses fatores, aquele que realmente decidia era a capacidade de liderança do chefe. E se a competição entre as mulheres se fazia de modo sutil, muito mais sutil ainda era o julgamento para se saber qual dos chefes seria o mais capaz e valoroso.

Uma parte do julgamento dependia do desempenho dos homens nas competições, sendo essa uma maneira para avaliar a competência do chefe em adestrá-los e motivá-los. Outra dependia do quanto as mulheres se empenhassem em seus trabalhos e de como se comportavam, também um modo de demonstrar a mão firme daquele que detinha o poder.

Outra ainda baseava-se na devoção do clã às tradições, mas a posição do chefe e consequentemente a de seu clã dependia, sobretudo, da força de seu caráter. Brun sabia que estava se arriscando demais, e o fato de ter trazido Ayla já o fazia perder terreno.

As reuniões de clã eram também uma oportunidade para o restabelecimento de velhas amizades, rever parentes e contar histórias e fofocas que iriam animar as noites frias dos próximos anos. Além disso, davam ensejo aos jovens, impossibilitados de achar parceiras no seu próprio clã, de rivalizarem- se nos galanteios, apesar de que as uniões só se fariam se a mulher fosse aceita pelo chefe do clã do rapaz. Era uma honra para a moça ver-se escolhida, especialmente se o rapaz pertencesse a um clã com mais status do que o dela, embora a mudança representasse uma violência e ela tivesse de separar-se das pessoas que lhe eram queridas. Mesmo com a recomendação de Zoug e possuindo o status da linhagem de Iza, era duvidoso, na opinião desta, de que Ayla fosse encontrar um companheiro. O fato de possuir um filho poderia facilitar, mas, deformado, frustrava todas as esperanças.

Os pensamentos de Ayla andavam longe de tudo isso. Arrumar coragem para enfrentar aquela multidão de curiosos, olhando desconfiadamente, já era um problema bastante grande. Ela e Uba haviam desfeito os embrulhos e organizado a área da fogueira que seria o lar delas, enquanto durasse a visita. A companheira de Norg providenciara pilhas de pedras que deixou à mão para que se fizesse a demarcação das respectivas fogueiras, e os cantis estavam cheios de água, também à disposição de quem quisesse. Ayla tomara todo o cuidado na arrumação dos presentes que trouxera para o clã, fazendo tal como Iza lhe recomendara, e a qualidade de seus trabalhos já começava a atrair atenção. Ela lavou-se para tirar a sujeira da viagem, trocou a roupa por outra limpa, e depois foi amamentar o filho, enquanto Uba esperava impaciente. A menina estava ansiosa para explorar a área próxima da caverna e ver as pessoas, mas relutava em enfrentá-las sozinha.

- Ayla - gesticulou - todo mundo já está lá fora. não pode dar de mamar depois?

Prefiro muito mais estar sentada ao sol do que ficar dentro dessa caverna escura. Você não?

- Não quero que Durc logo de saída comece a chorar. Você bem sabe como ele berra alto. As pessoas podem pensar que não sou boa mãe - falou Ayla. - não quero que pensem pior de mim do que já estão pensando. Creb disse que iriam ficar surpresos quando me vissem, mas achei que eles não chegassem a ponto de pensar em não nos deixar ficar. E tampouco imaginava que fossem ficar me encarando desse jeito.

- Mas deixaram, e depois que Creb e Brun acabarem de falar com eles, todos vão ficar sabendo que você é uma mulher dos clã. Ande, Ayla. Você não pode ficar presa nessa caverna para sempre. Mais cedo ou mais tarde vai ter de enfrentar toda essa gente. Depois de algum tempo, vão acostumar-se com você do mesmo modo que nós. Afinal, não vejo tanta diferença assim. Eu realmente preciso pensar nisso para ver.

- É que eu já estava no clã quando você nasceu, Uba. E essas pessoas aqui nunca me viram antes. Bem, está certo. É melhor acabar com isso de uma vez. Vamos. Não se esqueça de trazer alguma coisa para o urso da caverna comer.

Ayla se levantou, apoiou Durc contra o ombro e saiu dando-lhe tapinhas nas costas.

Passando pela fogueira de Norg, ela, respeitosamente, cumprimentou a companheira dele.

A mulher respondeu o gesto de saudação e logo voltou ao que fazia, de repente se conscientizando de que havia estado encarando alguém. Ao aproximar-se da entrada, Ayla ergueu um pouco a cabeça e respirou fundo. Estava resolvida a ignorar a curiosidade em torno dela. Era uma mulher dos clã e pertencia a estes tanto como qualquer um ali.

Sua resolução foi posta a toda prova, quando veio para fora da caverna, à plena luz do sol.

Todo mundo havia encontrado alguma razão para ficar por perto da caverna, esperando a saída da estranha mulher. Muitos tentavam ser discretos, mas a maioria esqueceu ou ignorou as mais comezinhas regras de boas maneiras e se pôs a encará-la, pasma, inteiramente boquiaberta. Ayla podia sentir o rubor no rosto. Mudou a posição de Durc no colo e passou a olhar para ele, não precisando enfrentar toda aquela multidão de rostos virados em sua direção.

Foi uma sorte ela olhar para o filho. A atenção passou a focalizar-se nele que, até então passara meio despercebido, diante do impacto causado por sua apariçção. Gestos e certas expressões, alguns não muito discretos, deixavam bem claro o que pensavam de seu filho.

Ele não precisava ser igual a um bebé dos clãs, inclusive teria sido melhor aceito se fosse apenas parecido com ela. A despeito de tudo quanto Brun e o Mog-ur pudessem ter dito, Ayla era da raça dos Outros e o seu bebê se ajustava ao mesmo molde. Só que Durc tinha muitas características próprias da raça clânica que faziam suas peculiaridades parecerem anomalias. Ele era um bebê visivelmente marcado por defeitos de nascença e que não deveria estar vivendo. Isso então só vinha diminuir o prestígio de Ayla como também fazia Brun perder ainda mais terreno.

Ayla deu as costas para todos aqueles rostos de bocas abertas e olhares desconfiados e foi com Uba para a jaula do urso da caverna. O animal ao vê- las se aproximarem atravessou a jaula, vindo sentar-se com o braço estendido através das barras, esperando que lhe dessem alguma coisa gostosa para comer. As duas recuaram diante da monstruosa pata de garras grossas e curtas, mais apropriadas para escavar as raízes e tubérculos de dentro da terra - o que constituía uma boa parte de sua alimentação - do que para levar sua massa enorme para cima das árvores. Ao contrário dos ursos marrons, só os filhotes de sua raça eram ágeis e suficientemente pequenos para conseguir subir em árvores. Ayla e Uba puseram suas maças no chão da jaula, passando um pouco para dentro das grossas estacas, feitas com troncos de árvore de porte razoável.

O animal, criado como uma criança muito querida que jamais passara fome em toda a vida, estava inteiramente domesticado e muito à vontade diante das pessoas. Inteligente, já havia aprendido que certas ações invariavelmente lhe traziam alguns bons petiscos extras. Ele se sentou e pediu mais. Ayla teria rido de seus trejeitos desajeitados, mas se conteve a tempo.

- Agora entendo por que os clãs dizem que os ursos da caverna falam - gesticulou para Uba. - Ele está querendo mais. Você tem outra maçã?

Uba lhe deu uma fruta pequena e arredondada e Ayla desta vez foi até a jaula e lhe entregou na mão. O urso meteu a mação inteira na boca e veio de pois para perto das barras esfregar sua enorme cabeça coberta de pélos contra uma saliência num dos troncos.

- Acho que está querendo que alguém coce por você, não é, seu comedor de mel? - gesticulou Ayla. Ela fora avisada para nunca mencionar em sua presença os nomes urso, urso da caverna ou Ursus, pois, se ele fosse chamado por seus verdadeiros nomes, poderia lembrar-se de sua identidade e saber que não era um membro do clã que o havia criado.

Com isso, tornar-se-ia nova mente selvagem, podendo botar para perder a Cerimônia do Urso e acabando com a razão de ser daquele festival. Ela lhe coçou atrás da orelha.

- Você gosta disso, não é, dorminhoco? - gesticulou Ayla, estendendo a mão para coçar atrás da outra orelha que ele virou em sua direção. - Se quisesse, você mesmo podia coçar suas orelhas. Você só é preguiçoso? Ou será que está querendo festinhas? Hem, seu manhoso?

Ayla acariciava-o, coçando-lhe a imensa cabeça, quando Durc estendeu a mão querendo agarrar um punhado de pêlos e ela deu um passo para trás. Já havia feito aquele mesmo tipo de carinho nos bichos que levava feridos para dentro da caverna deles e ela compreendeu que o urso era um animal como outro qualquer, só que maior e mais manso. Protegida pela forte jaula, imediatamente perdeu o medo, mas, quando se tratava de seu filho, a questão era outra. No instante em que o bebê levou sua mãozinha para pegar um punhado da cabeleira do urso, a imensa boca e as enormes garras se mostraram perigosas.

- Como consegue chegar tão perto dele, Ayla? - perguntou Uba, apa vorada. - Eu teria medo de fazer isso.

- Ele não passa de um bebê grandão, mas me esqueci de Durc. O urso poderia machucá-lo, mesmo que fosse para fazer uma carícia amigável. Ele parece com um bebê só quando está pedindo comida ou querendo chamar atenção, mas não quero nem pensar no que é capaz de fazer, se ficar com raiva - dizia Ayla, enquanto se afastavam da jaula.

Uba não era a única admirada com a coragem de Ayla, todos os clçalia- viam ficado observando-a. A maioria dos visitantes, principalmente no princípio quando chegavam, evitava passar por perto. Tornou-se, inclusive, um jogo entre a rapaziada ver quem punha a mão na jaula ou tocava no urso, como prova de coragem, e quanto aos homens, estes eram orgulhosos demais para, sentindo ou Não, deixar transparecer algum medo. E no que dizia respeito às mulheres, fora as do clã anfitrião, poucas eram as que passavam por perto e nenhuma seria capaz, logo de saída, de meter a mão por entre as grades para acariciar o bicho. Era algo de inteiramente inesperado. Isso, no entanto, não os fez mudar de opinião sobre Ayla, mas os deixou curiosos.

Depois de se haverem fartado bastante de olhar para Ayla, as pessoas foram se afastando, mas ela ainda se sentia olhada sub-repticiamente. Os olhares francos da criançada não chegavam a incomodá-la. Nelas, era a curiosidade natural que toda criança tem por tudo quanto é fora do comum, sem a carga de reprovação ou desconfiança.

Ayla e Uba se dirigiram para a sombra formada por uma rocha que ficava à margem do grande terreno em aclive e desmatado defronte da caverna. Dali, podiam observar discretamente as pessoas, sem transgredir as regras do bom-tom.

Sempre houve uma intimidade de natureza muito especial entre as duas. Ayla havia sido irmã, mãe e companheira de brinquedo da menina. Mas desde que a educação de Uba começou a ser levada a sério e, sobretudo, depois que ela seguiu ayla até a pequena caverna, a amizade delas se transformou mais numa relação de igual para igual. Eram amigas íntimas. Uba já estava com quase seis anos, chegando à idade em que as meninas começam a demonstrar interesse pelo sexo oposto.

Sentaram-se na sombra fresca, enquanto Durc, entre as duas, deitava-se de barriga para baixo sobre a manta de carregar, agitando as pernas e os braços, com a cabeça erguida para olhar em derredor. Durante a viagem, ele havia começado a balbuciar, fazendo um tipo de ruído na garganta que jamais algum bebê do clã fizera. Isso preocupava Ayla, mas, um tanto inexplicavelmente, também lhe agradava. Uba fazia comentários sobre os garotos mais velhos e os rapazes, enquanto Ayla caçoava com simpatia. Como se houvesse um acordo tácito, o assunto de um possível companheiro para Ayla não era tocado, se bem que esta se achasse mais em idade para isso do que Uba. As duas se sentiam felizes por ter terminado a longa viagem e teciam conjeturas a respeito da Cerimônia do Urso, já que nem uma nem outra haviam estado antes numa reunião de clãs. Enquanto conversavam, uma moça aproximou-se e, na linguagem formal conhecida por todos, perguntou se podia juntar-se a elas.

Ayla e Uba a cumprimentaram. Era o primeiro gesto amistoso que recebiam. Um bebê estava dormindo, seguro pela manta de carregar, e a moça não fez qualquer menção de acordá-lo.

- Esta mulher se chama Oda - gesticulou ela, depois de ter se sentado e indicando, então, que gostaria também de saber o nome delas.

- Uba. Esta menina se chama Uba e a mulher é Ayla.

- Aai... Aaigla? Um nome muito diferente. - Oda falava num dialeto que era expressado por gestos um pouco diferentes, mas a essência de sua conversa era perfeitamente compreensível.

- Este não é um nome dos clãs - respondeu Ayla. Ela compreendia a dificuldade que tinham para pronunciar-lhe o nome e, mesmo no seu clã, havia alguns que não conseguiam dizê-lo corretamente.

Oda fez que sim com a cabeça e levantou as mãos como se fosse falar qualquer coisa, mas depois pareceu mudar de idéia. mostrava-se nervosa, pouco à vontade. Por fim, fez um gesto na direção de Durc.

- Esta mulher está vendo que você tem um filho - falou, hesitante. - É menino ou menina?

- Menino. Seu nome é Durc, como o garoto da lenda. A mulher conhe ce essa história?

Os olhos de Oda tinham uma curiosa expressão de alívio.

- Sim. Conheço. Não é um nome muito comum no clã desta mulher.

- Nem também no nosso. Mas esta não é uma criança comum. Dure é diferente. Seu nome é muito apropriado - gesticulou Ayla, com um leve ar de desafio e orgulho.

- Esta mulher tem uma criança. É menina. Seu nome é Ura - disse Oda. Ela ainda parecia nervosa e hesitante. Seguiu-se, então, um silêncio parecendo forçado.

- A menina está dormindo? Esta mulher gostaria de ver Ura, se a mãe permitir - perguntou por fim Ayla, sem saber o que dizer à mulher, cuja cordialidade se fazia tão reticente.

Por um instante, Oda pareceu ficar pensando no pedido. Em seguida, como se tivesse tomado uma súbita decisão, retirou o bebê da manta e o botou nos braços de Ayla, que arregalou os olhos, estupefata. Ura era um bebezinho que no máximo deveria ter nascido há uma lua. Entretanto, não era o que espantava Ayla. Ura parecia com Dure! Parecia tanto com Dure que poderia ser tomada como germana deste. O bebê de Oda poderia, inclusive, ser sua filha!

A cabeça de Ayla dava voltas. O impacto fora grande demais. Como uma mulher da raça dos clãs poderia ter tido um bebê que se parecia com ela? Achava que Durc fosse diferente porque ele tinha uma parte que era da raça dos clãs e outra da dela, mas, neste caso, Brun e Creb é que deveriam estar com a razão durante todo esse tempo. Dure não era diferente como ela pensava, mas deformado, tal como o bebê de Oda. Ela se via inteiramente confusa. Estava tão infeliz que não conseguia pensar em nada para dizer. Uba, por fim, quebrou o longo silêncio.

- Seu bebê parece com Durc, Oda. - Uba se esqueceu de usar a linguagem cerimoniosa, mas Oda compreendeu.

A moça confirmou com a cabeça.

- Esta mulher ficou surpresa, quando viu o bebê de Àaigla. Foi por isso que eu... que esta mulher quis conversar. Eu não sabia se o bebê dela era me nino ou menina, mas estava querendo que fosse menino.

- Por quê? - perguntou Ayla.

- Minha filha é deformada - gesticulou Oda, sem olhar para Ayla. - Tenho medo de que ela não vá conseguir companheiro quando crescer. Que homem iria aceitar uma mulher tão deformada? - Então, olhou para Ayla, com uma expressão suplicante. - Quando eu... - quando esta mulher viu seu filho, desejou que ele fosse homem porque... você sabe, não vai ser fácil também para ele encontrar uma companheira.

Ayla ainda não havia pensado nesse assunto. Oda tinha razão, ele poderá ter problema para achar uma companheira. Entendia agora o motivo por que Oda se aproximara delas.

- Sua filha é um bebê saudável? - perguntou. - Ela é forte?

Oda olhou para as suas mãos antes de responder.

- É uma criança magrinha, mas tem boa saúde. O pescoço é que é muito fraco - gesticulou. - Mas já está ficando forte - acrescentou, pondo ênfase nos gestos.

Ayla olhou com mais atenção o bebê de Oda e depois pediu permissão para remover a manta. Ura era mais troncuda do que Durc, com uma constituição semelhante à dos bebês da raça dos clãs, mas sua ossatura era mais delicada. Tinha a mesma testa alta e a mesma forma geral da cabeça, só que os supercílios se mostravam muito menos Salientes. O nariz era quase pequeno e já se podia perceber claramente que iria ter as mandíbulas muito desenvolvidas e não possuiria queixo. O pescoço era mais curto do que o de Dure, mas sem dúvida alguma bem mais comprido do que o de qualquer bebê dos clãs. Ayla suspendeu a menina, segurando automaticamente a cabeça, e reparou nos seus esforços iniciais - que ,ela vira em Dure - para poder aguentar sua cabeça sobre o pescoço.

- O pescoço dela vai fortalecer, Oda. O de Durc era até mais fraco, quando ele nasceu, e olhe agora.

- Você acha? - respondeu Oda, animada. - Esta mulher pede à curandeira do primeiro clã para considerar esta menina como futura companheira de seu filho - falou, muito formalmente.

- Acho que Ura dará uma boa companheira para Dure, Oda.

- Então seria possível você pedir a seu companheiro para que ele desse o seu consentimento?

- Não tenho companheiro - respondeu Ayla.

- Oh, mas então seu filho é infeliz - gesticulou Oda, desapontada. - Quem vai educá-lo, se você não tem companheiro?

- Durc não é infeliz - insistiu Ayla. - Nem todos os bebês nascidos de mulheres sem companheiros são infelizes. Eu vivo na fogueira do Mog-ur. Ele mesmo não caça, mas Brun prometeu que iria educar meu filho. Durc será um bom caçador e irá poder manter sua fogueira. Além disso, o Mog-ur falou que o totem dele é o Lobo Prateado e este é um bom totem caçador.

- Não tem importância. É melhor um companheiro infeliz do que nenhum -. falou Oda, resignada. - Espero que você tenha razão Nosso mog-ur ainda não revelou o totem de Ura, mas o Lobo Prateado tem bastante força para enfrentar qualquer totem de mulher.

- Menos o de Ayla - interpôs Uba. - O totem dela é o Leão da Caverna. Ela foi escolhida.

- Como você pôde ter um bebê? - perguntou Oda, espantada. - O meu é o Hamster, só que desta vez ele lutou demais. Com a minha primeira filha eu não tive tanto problema.

- Também tive muitos problemas com a gravidez. Mas você tem outra filha? Ela é normal?

- Era. Agora, ela está caminhando no outro mundo - gesticulou Oda, com tristeza.

- Foi por isso que deixaram Ura viver? Estou surpresa por terem permitido que você ficasse com ela - observou ayla.

- Eu não queria ficar com Ura, mas meu companheiro me obrigou. Este é o meu castigo - confessou Oda.

- O seu castigo?

- Sim - confirmou Oda, com a cabeça. - Eu desejava ter uma menina e meu companheiro um menino. Isso porque eu adorava a minha primeira filhinha. Quando ela morreu, eu quis ter uma outra igual a ela. Meu companheiro disse que Ura nasceu deformada, porque tive maus pensamentos durante a gravidez. Ele acha que, se eu tivesse desejado um menino, meu bebê seria normal. Obrigou-me, então, a ficar com ela para que todos soubessem que não sou uma boa mulher. Mas ele não me passou adiante. Talvez porque ninguém mais quisesse ficar comigo.

- Não acho que você seja uma mulher tão má assim - falou Ayla, com um olhar de dó.

- Iza desejou uma menina, quando estava esperando Uba. Ela me disse que todos os dias pedia isso a seu totem. Como foi que sua filha morreu

- Ela foi morta por um homem - disse Oda, ficando vermelha e se sentindo constrangida. - Ele se parecia com você, Aaigla. Era um homem dos Outros.

Um homem dos Outros?, disse consigo Ayla. Um homem que se parece comigo? A jovem sentiu um frio perpassando por sua espinha e os cabelos arrepiando; e percebeu, então, a confusão em que se achava Oda.

- Iza disse que eu nasci dos Outros, Oda, mas eu mesma não tenho qualquer lembrança deles. Agora pertenço aos clãs - falou, para animá-la. - Como foi que aconteceu?

- Nós estávamos numa viagem de caçada. Além de mim, havia mais duas mulheres e os homens. Nosso clã vive ao norte daqui, mas naquela vez caminhamos muito mais para o norte. Nunca havíamos ido tão longe. Os homens saíram cedo do acampamento e nós ficamos catando lenha e capim seco. Havia uma quantidade de varejeiras e nós tínhamos de conservar a fogueira sempre acesa para secar a carne. Inteiramente de surpresa, esses homens entraram em nosso acampamento. Eles queriam aliviar suas necessidades conosco, mas não fizeram nenhum sinal. Se tivessem feito, nós nos poríamos em posição, mas não nos deram a menor chance. Simplesmente nos agarraram e nos jogaram no chão. Foram muito grosseiros. não deram nem tempo para que eu deitasse meu bebê na terra. O que me agarrou, rasgou minha roupa e a manta, deixando o bebê cair, mas ele não percebeu.

- Quando terminou - continuou Oda - um outro homem já vinha me pegar. Foi então que um deles viu o bebê. Ele pegou minha filha do chão e me deu, mas ela já estava morta.

Havia batido com a cabeça numa pedra, quando caiu. Depois, o homem que tinha visto minha filha disse uma porção de palavras em voz alta e todos foram embora. Quando os caçadores voltaram, nós contamos o que tinha acontecido e eles imediatamente nos levaram de volta para a caverna. Meu companheiro foi muito bom para mim, depois que tudo isso aconteceu. Ele também ficou triste por causa da minha filha. Fiquei tão feliz quando descobri que, logo depois de ter perdido minha filhinha, meu totem tinha sido outra vez derrotado. não deu nemtempo para que eu recebesse a maldição de mulher. Achei que meu totem tivesse ficado com pena por eu ter perdido o bebê e por isso havia resolvido me deixar ter um outro para compensar o que eu perdi. Foi por esse motivo que pensei que deveria ter outra menina, só que nunca deveria ter desejado uma coisa dessas.

- Lamento muito - disse Ayla. - Nem sei o que faria, se perdesse Durc. E uma vez quase que isso aconteceu. Vou falar com o Mog-ur sobre Ura. Tenho certeza de que ele vai conversar com Brun sobre o assunto e acho que nosso chefe concordará também. Um arranjo desses seria muito mais fácil do que tentar achar dentro do nosso clã alguém para ser companheira de um homem deformado.

- Esta mulher ficaria agradecida à curandeira e promete educar bem sua filha. Ela será uma boa mulher, não como a mãe. O clã de Brun é o mais importante de todos, acho que meu companheiro vai concordar. Se souber que há um lugar para Ura no clã de Brun, talvez já não fique tão zangado comigo. Ele está sempre me dizendo que minha filha será para o resto da vida um fardo e que nunca conseguirá qualquer status. E quando Ura ficar mais velha,vou lhe dizer que ela não tem de se preocupar por causa de um companheiro. A vida pode ser muito difícil para uma mulher, se nenhum homem quiser aceitá-la.

- Eu sei - disse Ayla. - Logo que eu possa, falo com o Mog-ur.

Depois que Oda foi embora, Ayla ficou pensativa e preocupada. Uba percebeu que ela queria ficar em silêncio e a deixou em paz. Pobre Oda, era feliz, tinha um bom companheiro e uma filha normal. Então tiveram de aparecer esses homens e estragar tudo.

Por que, antes de mais nada, eles não fizeram o sinal? Será que não podiam ver que Oda carregava um bebê? Esses homens dos Outros são tão ruins quanto Broud. Piores até. Pelo menos Broud daria tempo para que ela pusesse seu bebê no chão. Bah, os homens e suas necessidades! Homens dos Outros, homens dos clãs, tudo a mesma coisa.

Perdida em conjeturas, seu pensamento foi-se encaminhando para os Outros. Homens dos Outros, homens que se parecem comigo. Quem são esses Outros? Iza disse que nasci deles, por que eu não me lembro de nada? Nem sei que jeito eles têm. Onde será que vivem?

Tinha curiosidade de saber que aspecto tem um homem dos Outros. Lembrou-se de seu rosto refletido na água e tentou imaginar um homem com sua cara. Mas quando queria pensar num homem, a imagem que lhe vinha à mente era a de Broud e, de repente, como se iluminado por um clarão, todo um turbilhão de idéias confusas que giravam em sua cabeça foi-se encaixando, fazendo sentido.

Homens dos Outros! Claro! Oda disse que um deles aliviou suas necessidades nela e que, depois disso, não foi amaldiçoada nem uma vez. Foi então que ela teve Ura, tal como eu tive Durc, após Broud aliviar suas necessidades em mim. Aquele homem era dos Outros e eu também nasci dessa gente, mas Oda e Broud são ambos da raça dos clãs. Nem Ura nem Durc são deformados. Durc tem uma parte que é minha e outra que é do clã, e a mesma coisa se dá com Ura. Ou seja: uma parte dela é de Oda e a outra pertence ao homem que matou seu bebê. Isso quer dizer que Broud começou Durc... com o seu órgão, não com o espírito de seu totem.

As outras mulheres que estavam com Oda não tiveram bebês deformados, mas se um bebê fosse iniciado todas as vezes que os homens e mulheres fizessem isso, só haveria bebês nesse mundo- Contudo, talvez Creb tenha razão também. O totem da mulher precisa ser derrotado, só que ela não engole a essência do totem, esta é posta por um homem com seu órgão, para depois misturar-se com a essência do totem da mulher. não é somente a essência dos homens que produzem bebês, a das mulheres também.

Por que teve de ser Broud? Eu queria um bebé, o meu Leão da Caverna sabia o quanto eu estava desejando um filho, mas Broud me odeia. E odeia Durc também. Mas podia ser alguém mais? Nenhum outro homem está interessado em mim, eu sou muito feia. Broud só fez isto porque sabia que eu odiava a coisa. Será que meu Leão da Caverna sabia que Broud iria vencer? A essência dele deve ser muito forte. Oga já tem dois filhos. Brac e Grev também devem ter sido começados pelo órgão de Broud, como Durc.

Mas isso significaria que eles são germanos? Irmãos? Como Brun e Creb? Brun também deve ter começado Broud botando sua essência dentro de Ebra. A não ser que isso tivesse sido feito por outro homem. Pode ser qualquer um. Mas, não é provável. Em geral, os homens não fazem sinal para a acompanheira do chefe, seria uma descortesia. Broud não gosta de dividir Oga com os outros. Na caçada do mamute, Crug estava sempre usando Ovra. Todo mundo via quando ele aliviava suas necessidades nela, e Goov se mostrava muito obsequioso. Até Droog fez uma ou duas vezes a mesma coisa.

Se foi Brun quem começou Broud e se foi Broud quem começou Durc, isso não significaria que Durc tem também uma parte de Brun? E ainda de Brac e Grev? Brun e Creb são germanos, nasceram da mesma mãe e provavelmente foram começados pelo mesmo homem. Esse também foi chefe. Então, isto faz com que Durc também tenha uma parte de Creb. E de Iza? Ela é germana. Ayla abanou a cabeça. Tudo muito confuso, disse consigo.

No entanto, fõi Broud quem começou Durc. Será que meu totem induziu Broud a fazer o sinal para mim? Foi horrível, mas isso pode ter sido um teste e. talvez, não houvesse outro jeito. Meu totem devia estar sabendo e planejou tudo. Ele viu o quanto eu queria um bebê e me mandou aquele aviso para que eu soubesse que Durc iria viver. Se Broud soubesse dessas coisas, certamente ficaria furioso. Ele, que me odeia tanto, acabou me dando a coisa que eu mais queria no mundo.

- Ayla - falou Uba, interrompendo a linha de pensamentos da outra. - Acabei de ver Creb e Brun entrando na caverna. Está ficando tarde e temos que começar a preparar alguma coisa para comer. Creb deve estar morrendo de fome.

Durc caíra no sono. Acordou quando Ayla foi pegá-lo, mas logo voltou a dormir, enrolado na manta, sentindo-se bem aconchegado junto do corpo da mãe. Tenho certeza de que Brun vai deixar Ura vir para ser a companheira de Durc, pensou Ayla, enquanto voltavam para a caverna do clã anfitrião. Os dois são muito mais feitos um para o outro do que Oda imagina. Mas e eu? Será que ainda vou encontrar um companheiro que seja também feito para mim?

 

Quando os dois últimos clã chegaram, Ayla foi obrigada, embora em menor escala, a passar por uma segunda provação, igual àquela que teve a saudá-la na sua entrada. A mulher alta e loura era uma aberração entre as quase 250 pessoas dos 10 clãs lá reunidos.

Por onde passava, chamava atenção, e cada um de seus atos era investigado minuciosamente. Entretanto, por mais anormal que parecesse, não se conseguia detectar nenhum desvio em seu comportamento e ela, por sua vez, tomava o máximo de cuidado para que tal não acontecesse.

Não deixava transparecer nenhuma daquelas características que lhe eram tão peculiares e que ainda escapavam, quando se via no ambiente mais relaxado de sua caverna. Não ria e nem mesmo chegava a sorrir. Nenhuma lágrima molhava-lhe os olhos. Nada de passadas desenvoltas ou movimentos livres de braços, balançando, traindo suas tendências pouco femininas. Era o paradigma das virtudes clánicas, um exemplo da jovem matrona... e isso ninguém reparava. Jamais alguém, fora as pessoas de seu clã, tinha visto uma mulher que não agisse desse modo. Mas sua presença estava sendo aceita e, tal como Uba previra, começavam a acostumar-se com ela. Além do que, numa reunião de clãs, havia tanta coisa a fazer que uma mulher sozinha de fora não era novidade suficiente que conseguisse prender a atenção por muito tempo.

Não era fácil manter, por um período muito prolongado, uma quantidade tão grande de gente dentro dos limites fechados da caverna. Eram necessárias cooperação, coordenação e uma boa dose de cortesia. Os chefes dos 10 clãs estavam muitíssimo mais ocupados do que quando tinham apenas os membros de seus respectivos clãs para se preocupar. O número de pessoas reunidas multiplicava os problemas.

Alimentar aquela multidão significava organizar expedição de caça. Se a hierarquia e as normas estabelecidas dentro de um só clã facilitavam a ordenação dos caçadores, já dois ou mais clã reunidos geravam problemas. A posição hierárquica do clã determinava qual seria o chefe na combinação do grupo, mas qual dos homens ocupando o terceiro posto seria o mais competente? No princípio, tentaram diversos esquemas, sempre com o cuidado na troca de posições, de modo que ninguém saísse ofendido. Depois de as competiçõeshaverem começado, já se tornava mais fácil; entretanto, nenhum grupo de caça saía sem antes decidir as posições referentes aos homens.

As expedições das mulheres para colher plantas também levantavam problemas. No caso delas, era o fato de que havia muitas mulheres e todas querendo apanhar os melhores vegetais. Uma área podia rapidamente ser devastada, sem que nenhuma voltasse com tudo que lhe era necessário. A comida em conserva que haviam trazido consigo ajudava na alimentação de cada clã em particular, mas os alimentos frescos eram sempre mais apreciados. O clã hospedeiro, já prevendo o período de reunião, costumava por antecipação fazer suas coletas em terrenos afastados da caverna, mas, mesmo levando em consideração essa cortesia, nunca havia o bastante para satisfazer todas as necessidades.

Se, por um lado, as pessoas desse clã podiam armazenar comida para o inverno durante o tempo em que os Outros perdiam com a viagem,por outro, tinham de ter em estoque uma quantidade extra. Ao término da reunião, os terrenos dos arredores do clã hospedeiro estavam completamente desprovidos de plantas comestíveis.

A água, procedente de um rio perto alimentado por uma geleira, era farta, mas o mesmo já não se podia dizer da lenha. A cozinha, a não ser que chovesse, era feita do lado de fora da caverna e de preferência em conjunto por clã ao invés de cada fogueira ter a sua em separado. Contudo, o consumo de lenha era muito grande, e uma boa parte da madeira seca espalhada pelo chão e árvores que levariam várias estações para serem repostas foram consumidas. O meio ambiente, nas imediações da caverna do clã hospedeiro, após uma reunião de clãs, jamais voltaria a ser o mesmo.

O suprimento não era o único problema a ser solucionado, o lixo era outro de igual importância. Era preciso que se desse fim às sobras e aos detritos. Fora esse havia ainda o problema de espaço. Era necessário que se providenciasse não só espaço no sentido de abrigo dentro da caverna, mas também espaço para cozinhar, reunir, realizar as competições, dançar, dar festas e, en fim, espaço também para se locomover. Organizar todas essas actividades não era tarefa fácil. Cada uma delas implicava discussões e acordos intermináveis, numa atmosfera carregada de espíritos altamente competitivos. Os costumes e as tradições nesse momento representavam importante papel no amortecimento dos choques existentes, e era então que a mente administrativa de Brun mais se salientava.

Não era apenas Creb o único a apreciar as reuniões de clãs que lhe proporcionavam oportunidades para entrar em contato com os seus pares. Também Brun sentia grande prazer no desafio de se bater contra homens com igual poder ao seu. Essa era a sua competição: rivalizar-se com os outros chefes no exercício da autoridade. A interpretação das velhas normas requeria comumente um espírito cheio de filigranas, além de habilidade nas tomadas de decisões e de força de caráter para mantê-las ou saber ceder quando necessário. Não era sem razão que Brun se tornara o primeiro chefe em importância. Ele sabia quando devia ser enérgico ou conciliador, ou quando precisava entrar em acordos ou permanecer isolado em sua posição. Sempre que os clãss se reuniam, em geral surgia a figura de um homem forte capaz de fazer daqueles chefes, impregnados de autoritarismo, seres racionais e maleáveis, pelo menos enquanto durasse a reunião. E Brun era essa figura, um papel que ele representava desde que se convertera no chefe de seu clã.

Tivesse ele perdido seu prestígio, só o fato de duvidar de si mesmo jáo levaria a perder vantagem sobre os outros. Sem uma base de segurança funda mentada no julgamento de sua própria pessoa, a falta de confiança tornaria duvidosas as suas decisões. Em tais circunstâncias, seria impossível enfrentar a reunião e os outros chefes. Foi, entretanto, justamente essa prática do uso da força conjugada com a transigência - sempre dentro das rígidas estruturas da tradição clânica - que lhe permitiu fazer as concessões no caso de Ayla. E, uma vez passada a ameaça, ele começou a vê-la sob um novo ângulo.

Ayla havia tentado forçar uma decisão mas não fez uma coisa que estivesse fora dos costumes dos clã tal como ela os interpretava e, além disso, sua causa não era de todo indigna. Certo, ela era mulher e tinha de entender qual o seu lugar, mas conseguira recuperar o juízo a tempo e reconhecer os erros que cometera. Quando Ayla lhe mostrou o lugar da pequena caverna, ele ficou espantado de que, nas condições de fraqueza em que se achava, a jovem tivesse conseguido chegar até o local. Ele se perguntava se um homem teria conseguido tal êxito, nas mesmas cirtunstâncias, e a masculinidade se media em função da capacidade de suportar a dor e a adversidade. Brun admirava a tenacidade, a coragem e a capacidade de resistência, três virtudes que demonstravam força de caráter.

Apesar de Ayla ser mulher, ele lhe admirava a firmeza de espírito.

- Se Zoug estivesse aqui, teríamos ganho no tiro com funda - falou Crug.

- Ninguém iria conseguir batê-lo.

- A não ser Ayla - comentou Goov, com gestos reservados. - Pena que ela não pudesse competir.

- Não precisamos de mulher para vencer - gesticulou Broud. - E de pois, o tiro com funda não conta tanto assim. Brun vai vencer o lançamento com boleadeiras. Ele nunca perdeu nessa modalidade. E temos ainda também a corrida com lança para ser disputada.

- Mas Voord já ganhou a corrida simples, ele leva muita chance de ganhar esta também.

E Com, por sua vez, se saiu muito bem com a maça - comentou Droog.

- Espere até chegar o momento de mostrarmos nossa caçada de mamute. Nosso clã não pode deixar de vencer - contrapôs Broud.

As reencenações de caçadas faziam também parte de muitas cerimônias e, às vezes, eram levadas sem qualquer preparação após alguma caçada particularmente emocionante. Broud tinha o maior prazer com essas representações. O rapaz sabia que possuía talento para evocar os momentos de dramaticidade e os estados de euforia vividos durante as caçadas.

Além do mais, adorava ver-se como centro das atenções.

As reencenações de caçadas, entretanto, tinham um propósito bem mais importante do que a função única de espetáculo. Eram sobretudo instrutivas. Com uma expressiva pantomima e uns poucos acessórios, eles expunham técnicas e táticas de caça aos mais jovens e aos outros clã. Era um modo de desenvolver e também de compartilhar experiências. Se lhes perguntassem, responderiam que o grande prêmio recebido pelo clã vencedor neste intrincado sistema de competições era status, vale dizer, o prestígio entre os seus pares.

Mas havia ainda outra recompensa, embora não reconhecida. As competições aprimoravam os requisitos necessários à sobrevivência.

- Se você comandar a dança, Broud, nós venceremos - disse Vorn, que era agora um garoto de 10 anos, quase chegando à idade viril e continuando com a mesma admiração pelo futuro chefe.

- Pena que sua corrida não conte pontos, Vom. Fiquei observando, você ia lá na frente enquanto os outros vinham muito atrás. Bem, serve de treino para a próxima vez - falou Broud. O elogio deixou Vorn vermelho de felicidade.

- Nós ainda levamos uma boa chance, apesar de que possa dar tudo errado - falou Droog. - Com é forte e, na luta-livre, ele se saiu muito bem contra você, Broud. não tinha muita certeza se você conseguiria vencê-lo, O segundo de Norg deve estar orgulhoso do filho de sua companheira. Ele cresceu muito desde a última reunião. Tenho impressão de que é o homem de maior físico por aqui.

- É verdade que ele tem força - falou Goov. - Mostrou isso quando venceu a competição de maça, mas Broud é mais ligeiro e quase tão forte quanto ele. Com foi um segundo lugar quase primeiro.

- E Nouz é bom com a funda. Ele observou Zoug na vez passada e deve vir treinando desde aquela época. não estava querendo ser outra vez derrotado por um velho - acrescentou Crug. - Se treinou do mesmo jeito com as boleadeiras, pode dar trabalho a Brun. Voord corre rápido, mas acho que dá para você pegá-lo, Broud. Este também foi um segundo lugar muito perto do primeiro. Você estava só um passo atrás dele.

- Droog faz as melhores ferramentas - gesticulou Grod, que poucas vezes fazia algum comentário espontaneamente,

- Uma coisa, Grod, é fazer uma boa coleção de peças e trazer para cá, e outra é fabricar com todo mundo olhando. Vou precisar de sorte. Esse rapaz do clã de Norg tem muito talento - respondeu Droog.

- Essa é a única competição que o mais velho leva vantagem sobre o mais jovem, Doog.

Ele vai estar nervoso e você já tem experiência de outras competições Consegue concentrar-se melhor - falou Goov, encorajando.

- Mas sempre se precisa de sorte.

- Todos vão precisar - disse Crug. - Continuo achando que o velho Dorv sabe contar uma história melhor do que ninguém.

- É porque você está acostumado com ele - gesticulou Goov. - Essa é uma competição muito difícil de julgar. Mesmo algumas das mulheres sabem contar uma boa história.

- Mas nunca conseguem ser tão emocionantes como nossas danças sobre caçadas. Acho que vi o clã de Norg conversando sobre uma caçada de rinoceronte que eles fizeram, mas, quando me viram por perto, pararam de falar - gesticulou Crug. - É possível que a exibição deles seja sobre essa caçada.

Oga se aproximou timidamente e fez sinais dizendo que a comida estava pronta. Eles acenaram, mandando-a retirar-se. Ela esperava que não demorassem muito para vir comer.

Quanto mais eles se retardassem, mais elas demorariam a ir juntar-se às outras mulheres contando histórias, e Oga não queria perder nenhuma. Em geral, eram as velhas que faziam o relato das histórias e lendas dos clã por meio de pantomimas e representações teatrais.

Quase sempre eram histórias de teor educativo, mas que também entretinham algumas tristes, dilacerantes; outras, alegres, trazendo encantamento e motivação, e ainda as humorísticas que ajudavam a tornar menos ridículos seus próprios momentos embaraçosos.

Oga voltou à fogueira perto da caverna.

- Tenho a impressão de que ainda não estão com fome.

- Mas acho que acabaram resolvendo vir - falou Ovra. - Só espero que não fiquem demorando muito para comer.

- Brun também está vindo. A reunião dos chefes deve ter acabado, mas não sei onde está o Mog-ur - acrescentou Ebra.

- Ele entrou cedo na caverna com os outros mog-urs. Devem estar na gruta dos espíritos. Ninguém pode saber quando vão sair lá de dentro. Devemos esperar por ele? - perguntou Ika.

- Eu separo alguma coisa para ele comer depois - falou Ayla. - Ele sempre se esquece de comer, quando está se preparando para alguma cerimônia. Está tão acostumado a comer comida fria que chego a pensar que até gosta mais assim. Acho que não vai se importar de não esperarmos por ele.

- Veja, já estão começando. Vamos perder as primeiras histórias - gesticulou Ona, decepcionada.

- Não posso fazer nada, Ona - disse Aga. - não podemos ir enquanto os homens não terminarem.

- Mas não vamos perder muitas, Ona - falou Uka, a título de consolo.

- Essas histórias vão continuar pela noite inteira. E amanhã os homens vão representar as melhores caçadas que fizeram e eles nos deixar ver. Não vai ser ótimo?

- Gosto mais das histórias contadas pelas mulheres - falou Ona.

- Broud disse que nosso clã vai levar a caçada do mamute. Ele tem quase certeza de que vamos vencer. Brun deixou que ele conduzisse a dança - gesticulou Oga, com expressão orgulhosa.

- Isso vai ser formidável, Ona. Eu me lembro de que Broud, quando ficou homem, conduziu a dança de sua caçada. Eu ainda não sabia falar e nem entendia nada, mas mesmo assim fiquei emocionada - comentou Ayla.

Depois da comida servida, as mulheres esperaram impacientes, lançando olhares ansiosos para o grupo de mulheres reunidas num ponto afastado da clareira.

- Ebra, vá ouvir as suas histórias que nós temos certas coisas a tratar- gesticulou Brun.

As mulheres pegaram os bebês, arrebanharam as crianças e se dirigiram ao grupo sentado em volta de uma velha que estava no momento principiando uma nova história.

-... e a mãe da Grande moontanha de Gelo...

- Depressa - gesticulava Ayla. - Ela está contando a história de Durc. Não quero perder nem um pedacinho. É a de que eu mais gosto.

- Todo mundo já conhece essa, Ayla - falou Ebra.

As mulhers do clã de Brun arrumaram lugares para sentar-se e, instantes depois, já estavam presas à narrativa da velha.

- Ela conta um pouco diferente - gesticulou Ayla, passado algum tempo.

- Cada clã tem a sua versão e cada pessoa tem o seu jeito de contar, mas a história é a mesma. É que você está acostumada só com o modo de Dorv contar. Ele é homem e por isso sabe melhor como os homens pensam. Quando é uma mulher contando, ela fala mais sobre as partes que se referem às mães. Não apenas da mãe da Grande moontanha de Gelo,

mas de como a mãe e de Durc e de todos os outros ficaram tristes quando eles deixaram o clã - respondeu Ika.

Ayla se lembrou de que o filho de Ika morrera durante o terremoto. Ela também conhecia a dor da mãe que perde seu filho. A nova versão trouxe também para Ayla uma nova vista da história. Por um momento, ficou com a testa franzida, preocupada. O nome de meu filho é Durc, espero que isso não signifique que algum dia eu vá perdê-lo. Abraçou-se com o bebê, Não, não vai acontecer. Uma vez quase perdi meu filho, mas o perigo agora já passou? não é?

Enquanto Brun calculava com muita atenção a distância a separá-lo de um toco de árvore, perto da borda do terreno desmatado em frente da caverna, uma brisa isolada levantou alguns fios soltos de seu cabelo, refrescando por momentos sua testa suada. O que sobrara da árvore, os galhos podados, foi usado para construir uma parte da jaula do urso da caverna. A aragem apenas acariciava, sem trazer qualquer alívio ao sol da tarde sufocante,

incindin do sobre o pátio empoeirado. No entanto, a leve brisa chegava a ter mais movimento do que a multidão que observava, tensa, alinhada na periferia.Brun, de pé com as pernas afastadas, o braço direito pendente e segurando na mão a empunhadura das bolas, achava-se tão imóvel quanto os outros. As três pedras arredondadas, ajustadas dentro de um envoltório apertado de couro e ligadas por cordas de diferentes tamanhos, estavam caídas sobre o chão. Brun queria vencer essa competição, Não só pelo fato de estar competindo - isso também era importante - mas porque precisava provar aos outros chefes que continuava mantendo a vantagem de sempre.

Trazer Ayla à reunião lhe custara um alto preço. Compreendia agora que ele e seu clã estavam muito acostumados com ela. Ayla era algo extremamente anômalo para que as pessoas a aceitassem em tão pouco tempo. Até mesmo o Mog-ur estava tendo trabalho para manter-se em sua posição e ainda não conseguira convencer os outros mog-urs de que ela era uma curandeira da linha de Iza. Eles preferiam até passar sem a bebida especial de raízes do que dar sua permissão para Ayla fabricá-la. A perda do status de Iza representou a retirada de mais um dos alicerces que sustentavam a mais certa posição de Brun.

Nas competições se não chegassem simplesmente em primeiro lugar, ele tinha certeza de que não teriam mais o status de primeiro clã. Embora ainda estivessem concorrendo, o resultado estava longe de poder ser dado como certo. E ainda que vencesse as competições, nada assegurava que o clã continuaria na primeira posição, isso apenas o poria em igualdade com os demais. Havia ainda uma quantidade de outras variáveis a considerar. O

clã hospedeiro sempre levava uma dianteira e, no caso, era o de Norg, aquele justamente que mais estava empenhado na luta. Se este pegasse um segundo lugar, Norg, com isso, já contava com bastante respaldo para ascender à primeira posição. Norg o sabia e era o seu oponente mais implacável. Graças unicamente à sua grande força de vontade, Brun vinha mantendo-se no seu posto.

Brun semicerrou as pálpebras mirando o toco. Esse movimento mínimo bastou para que metade dos observadores prendessem a respiração. No momento seguinte, a figura inteiramente parada converteu-se num movimento alucinante e as três bolas, girando em torno de seu centro, voaram na direção do toco. No instante mesmo que as boleadeiras saíram de sua mão, Brun sabia que perdera o tiro. As pedras bateram no alvo e depois saltaram mais adiante sem que as cordas houvessem enroscado nele.

Brun foi buscar sua arma, enquanto Nouz veio ocupar seu lugar. Se Nouz não atingisse o alvo de forma alguma, Brun venceria. Se batesse no toco, os dois teriam uma segunda chance, mas caso Nouz conseguisse enrolar as boleadeiras no toco, a partida era sua.

Brun se pôs de lado com o rosto impassível, resistindo à vontade de levar a mão ao amuleto, limitando-se apenas a dirigir uma súplica muda a seu totem. Nouz não teve os mesmos escrúpulos. Segurou no saquinho de couro pendurado no pescoço, fechou os olhos e, em seguida, olhou para o toco. Subitamente, explodiu em movimento vertiginoso, fazendo as boleadeiras voarem. Apenas os longos anos de educação impediram Brun de deixar transparecer o desapontamento quando as boleadeiras se enrolaram, prendendo-se no toco. Nouz vencera, e Brun sentiu sua posição lhe escapando mais ainda.

Permaneceu no seu lugar, enquanto três panos de couro eram trazidos para o pátio. Um foi amarrado no pedaço do tronco já apodrecido de uma enorme árvore cujo topo escalavrado era pouco mais alto do que os homens. Outro, foi posto por cima de uma tora e preso no chão com pedras. Era um tronco de tamanho regular, coberto de musgo, que se achava caído no chão, próximo à orla da mata; e o terceiro pano foi estendido sobre o chão e também preso com pedras. Os três couros formavam um triângulo mais ou menos de lados iguais. Cada clã escolheu um homem para essa prova, os quais foram alinhar-se de acordo com a hierarquia clânica, perto do couro estendido no chão. Outros homens, carregando lanças - quase todas feitas de madeira de teixo, vidoeiro, faia ou salgueiro, que para isso também servia - dirigiram-se para os outros alvos.

Dois rapazes provenientes de clãs menos categorizados formaram a primeira parelha.

Esperavam lado a lado, tensos, com os olhos presos em Norg e cada um carregando uma lança. Ao sinal do chefe, eles se lançaram na direção do tronco em pé, no qual enfiaram as lanças através do couro, mirando o ponto onde deveria estar o coração, quando a pele cobria o animal ainda vivo. Em seguida, apanharam uma outra lança com os seus companheiros de clã que aguardavam do lado do alvo. Correram para a tora caída, enterrando nesta a segunda lança. Quando chegou a vez de pegar a terceira, um deles estava nitidamente na dianteira. Esse correu em direção ao ponto de partida, onde se encontrava o couro estendido no chão e aí fincou fundo a lança, procurando acertar bem no meio da pele, quando, então, vitoriosamente, ergueu os braços.

Depois de primeira fase eliminatória, sobraram cinco homens. Três deles vieram postar-se para a segunda corrida, já agora de clãs de maior categoria. Àquele que chegasse por último, dava-se uma outra chance contra os dois restantes. E os dois que chegassem em segundo disputariam entre si, de modo a restar no campo três homens para disputarem a final: os dois primeiros colocados dessas duas últimas disputas, e o vencedor da primeira corrida. Os finalistas foram Broud, Voord e um homem do clã de Norg, chamado Gorn.

Dos três, apenas Gorn havia vencido quatro corridas para ter o seu lugar nas finais, enquanto os outros dois tinham disputado só duas e se achavam razoavelmente descansados. Gorn vencera o primeiro par nas eliminatórias, mas chegou em terceiro na corrida com os três clãs de status mais elevados. Ele tornou a correr com os dois últimos homens e chegou em segundo. Disputou, então, com o homem que foi o segundo colocado na corrida em que ele chegara em terceiro lugar, desta vez vencendo-o. Foi só por pura perseverança e força de vontade que Gorn alcançara as finais, ganhando a admiração de todos que se achavam lá.

Quando os três homens se alinharam para a corrida final, Brun foi para dentro de campo.

- Norg - falou ele - penso que a corrida final teria resultado mais justo, se fosse atrasada para que Com pudesse descansar um pouco. Acho que o filho da companheira de seu segundo em comando merece isso.

As cabeças balançaram em sinal de aprovação e a cotação de Brun subiu um pouco, embora isso fizesse Broud amarrar a cara. A sugestão punha seu clã numa posição mais difícil, fazendo desaparecer a possível vantagem que Broud levava correndo com um homem já cansado, mas mostrava o senso de justiça de Brum, e Norg não tinha por que se opor. Brun rapidamente havia pesado as duas alternativas possíveis: Broud não vencendo, o clã estaria arriscado a perder sua posição; e ganhando, o seu manifesto espírito de justiça lhe restituiria o prestígio, ao mesmo tempo que ele dava uma impressão de confiança que estava longe de sentir. Seria, além disso, uma vitória limpa e já não haveria a desculpa de que Broud vencera pelo fato de Corri estar cansado. E, enfim, era o mais justo.

Já estava entardecendo quando todos voltaram a se reunir em volta do campo. A tensão relaxada durante o intervalo voltou a pesar, inclusive com mais força. Os três rapazes, agora bem descansados, exibiam-Se dando voltas, aquecendo os músculos e suspendendo as lanças para sentir seu ponto de equilíbrio. Goov, com mais dois homens de outros clãs, se dirigiu para o toco de árvore, e Crug, também na companhia de outros dois, encaminhou-se para a tora no chão. Broud, Com e Voord alinharam-se um ao lado do outro com os olhos fixos em Norg. O chefe do clã anfitrião levantou o braço e o abaixou de uma só vez, dando a partida.Voord saltou à frente com Broud em seus calcanhares, enquanto Gorn vinha atrás, dando o máximo que podia. Voord já estava pegando a segunda lança, quando Broud enfiava a sua no tronco de madeira podre. Gomn aumentou sua velocidade, pressionando ilroud na corrida em direção à tora no chão, mas Voord mantinha a dianteira. Ele ia cravar sua lança na tora coberta de couro, no momento exato em que Broud levantava a sua. Voord, no entanto, bateu num nó da madeira e a lança se esborrachou no chão. Quando tornou a pegá-la para enfiá-la novamente, tanto Broud como Gorn já tinham passado à frente. Voord agarrou a terceira lança e os segurou, mas para ele a corrida já estava perdida.

Broud e Gom, com as pernas bambeando e os corações batendo forte, partiram para o último obstáculo. Gorn começou à frente de Broud e passava a ganhar terreno, mas ao ver a figura daquele gigante espadaúdo, fazendo-o comer a poeira de seus pés, Broud encheu-se de raiva. Tinha a impressão de que os pulmões iam estourar, enquanto se lançava adiante, forçando cada músculo e nervo do corpo. Gom alcançou o couro estendido um instante antes de Broud e estava levantando o braço quando Broud se precipitou por baixo, fazendo a lança atravessar o couro e cravar-se no chão, ao mesmo tempo em que ele passava por cima da pele. A lança de Gom foi espetada na batida seguinte do coração, mas tarde demais.

Quando Broud parou, os caçadores do clã de Brum amontoaram-se a seu redor. Brun, com os olhos brilhando de orgulho, observava. Seu coração batia quase tão forte quanto o de Broud. Ele sofrera junto com o filho de sua companheira cada instante da corrida. Durante alguns momentos de grande tensão, estava certo de que ele perderia, mas Broud dera tudo de si e ganhara. Fora uma corrida decisiva, mas, com essa vitória, suas chances melhoraram bastante. Devo estar ficando velho, pensou consigo, perdi o lançamento com as boleadeiras, mas Broud Não. Ele ganhou. Talvez tenha chegado o momento de passar o controle do clã para ele. Poderia convertê-lo no chefe, e dar a notícia aqui mesmo. Lutarei pela primeira posição do clã e deixo Broud voltar para casa com todas as honras. Depois dessa corrida, ele merece isso. E é o que vou fazer. Falarei com ele neste instante!

Brun esperou até que os homens acabassem de dar parabéns a Broud para então aproximar-se, já antevendo a alegria do rapaz, quando soubesse da grande homenagem que seria prestada a ele. Era uma justa recompensa por aquela magnífica corrida. O maior prêmio que poderia dar ao filho de sua companheira.

- Brun! - Broud havia visto o chefe e falou primeiro. - Por que você teve de atrasar a corrida? Eu quase perdi. Poderia ter vencido facilmente, se você não tivesse dado tempo a Gorn para descansar. Você não se importa com a posição do nosso clã? - gesticulou o rapaz, cheio de petulância. - Ou será porque você já está velho demais para ser o chefe na próxima reunião? Se vou ser eu o chefe, o mínimo que você poderia fazer era deixar o clã ocupando a primeira posição, do modo como você o recebeu.

Brun recuou, surpreso diante de tamanha virulência. Fazia força para controlar suas emoções contraditórias. Será que não entende, será que algum dia irá entender?, perguntava-se Brun. Este clã é o primeiro e dependendo de mim continuará sempre sendo.

Mas o que irá acontecer quando você for o chefe, Broud? Por quanto tempo este clã continuará ocupando o primeiro posto? Já não existia mais orgulho nos seus olhos e sim uma grande mágoa que procurava não deixar transparecer. Talvez Broud ainda esteja jovem demais, esteja precisando de um pouco mais de tempo, argumentava consigo - deve estar precisando ainda de um pouco mais de experiência. Será que realmente expliquei direito as coisas a ele? Brun não queria lembrar-se de que, para ele, ninguém havia explicado nada.

- Broud, se Gom estivesse cansado, sua vitória teria sido a mesma? E se os outros clãs achassem que você só venceu porque o outro estava cansado? Desse modo, todos têm certeza de que você de fato ganhou e isso se aplica também a você. Mas você se portou muito bem, filho de minha companheira - gesticulou Brun, com gentileza. - Fez uma bela corrida.

Apesar da amargura, Broud continuava respeitando Brun mais do que qualquer outro homem que já conhecera na vida e não pôde deixar de reagir com um pouco mais de simpatia. Naquele momento, tal como na caçada de sua passagem, Broud sentiu que daria qualquer coisa para ter um elogio de Brun.

- Não tinha pensado nisso, Brun. Desse modo, ninguém pode duvidar de que eu não tenha vencido. Agora sabem que sou melhor do que Gom.

- Com essa corrida e Droog vencendo na fabricação de ferramentas e mais a vitória essa noite com a nossa representação da caçada do mamute, tenho certeza de que chegaremos em primeiro - falou Crug, entusiasmado.

- E você será um dos escolhidos para a Cerimônia do Urso, Broud.

Enquanto caminhava para a caverna, outros homens foram se aproximando para lhe dar os parabéns. Brun ficou observando Broud e depois viu Gorn seguindo atrás, cercado pelo clã de Norg. Um velho dava palmadas no ombro do rapaz, num gesto de encorajamento.

O segundo de Norg tem motivos para estar orgulhoso do filho de sua companheira, pensou Brun. Broud pode ter vencido a corrida, mas tenho certeza de que Gorn, como homem, é melhor. Ele tinha conseguido apenas controlar sua mágoa, mas não vencê-la. Embora se esforçasse por sufocar a tristeza, a dor persistia. Broud continuava sendo o filho de sua companheira, o filho de seu coração.

- Os homens do clã de Norg são caçadores de coragem - admitiu Droog. - Foi um bom plano, esse de cavar um buraco no caminho que o rinoceronte usava para beber água e depois cobri-lo de folhas. Talvez a gente possa tentar a mesma coisa algum dia. Foi preciso muita coragem para arrastá-lo de volta, quando ele tentou fugir. Os rinocerontes são, às vezes, mais bravos do que os mamutes e muito mais imprevisíveis. E os caçadores de Norg representaram muito bem a caçada.

- Mas não chegou a ser tão boa quanto a nossa caçada do mamute. Todo mundo concordou - falou Crug. - Apesar de que Gom merecesse também ser escolhido. A luta quase toda foi entre Broud e Gom. Por um instante, tive medo de que não fôssemos vencer a competição deste ano. O clã de Norg vem num segundo lugar muito perto de primeiro. O que você acha do terceiro homem escolhido, Grod?

- Voord se portou bem, mas eu teria escolhido Nouz - respondeu Grod. - E acho que Brun teria também preferido.

- Foi uma escolha difícil, mas acho que Voord mereceu - comentou Droog.

- Daqui por diante, enquanto o festival não terminar, não vamos ver muito Goov por aqui - disse Crug. - Agora que as competições acabaram, os acólitos vão ficar o tempo todo com os mog-urs. Só espero que as mulheres não pensem que pelo fato de Brun e Goov não virem comer essa noite conosco, não tenham que fazer bastante comida. Vou tratar de comer bem hoje, até a festa amanhã não vai haver, nada.

- Acho que se estivesse no lugar de Broud, eu não iria ter vontade de comer nada - falou Droog. - É uma grande honra essa de ser escolhido para a Cerimônia do Urso, mas, se alguma vez Broud vai precisar ter coragem na vida, será amanhã. E vai precisar de muita.

Os primeiros clarões da manhã já encontraram a caverna vazia. As mulheres estavam de pé, trabalhando à luz vinda das fogueiras, e o resto das pessoas não conseguiu dormir. Os preparativos preliminares para a festa haviam consumido dias, mas isso não era nada em comparação com o trabalho que tinham pela frente. O dia ficara claro bem antes que o sol surgisse por cima dos cumes das montanhas, já alto no céu, quando banhava com o calor de seus raios os terrenos da caverna.

A agitação era palpável, e a tensão insuportável. Uma vez terminadas as competições, os homens se achavam irrequietos, sem nada a fazer até que chegasse a hora das cerimônias, o estado de nervosismo e inquietação se transmitia aos meninos maiores que, por sua vez, deixavam os menores desassossegados, fazendo as mulheres se distraírem do trabalho, com um mundo de homens e crianças esbaforidas atravancando seus caminhos.

A agitação diminuiu por algum tempo, quando elas distribuíram bolinhos de fubá com água, assados sobre pedras quentes. A refeição matinal foi feita numa atmosfera de grande circunspecção. Esses bolinhos eram servidos só neste dia, a cada sete anos e, afora as crianças de peito, seria a única coisa que iriam comer até o momento da festa. Era um alimento quase meramente simbólico, servindo apenas para aguçar o apetite. Quando a manhã já ia pela metade, a fome, estimulada pelos deliciosos aromas vindos das muitas fogueiras, fazia aumentar a agitação levando, à medida que se aproximava a Cerimônia do Urso, o clima de ansiosa expectativa a um estado de extrema tensão.

Creb não se aproximara de Ayla ou de Uba com qualquer instrução no sentido de elas se prepararem para o ritual a ser celebrado pouco depois naquele dia, e elas estavam certas de que os mog-urs não haviam achado nem uma nem outra aceitável. Elas não eram as únicas a lamentar a doença de Iza que a impediu de fazer a viagem. Creb havia usado todo o seu poder de persuasão para convencer os outros feiticeiros a deixarem uma das duas preparar a bebida, mas, apesar de que teriam gostado de ter o ritual com as sensações proporcionadas pela bebida de raízes - uma rara oportunidade para eles - consideraram que Ayla era demasiadamente estranha, e Uba jovem demais para a prática do cerimonial. Os mog-urs recusavam-se a aceitar Ayla como uma mulher dos clã e menos ainda como uma curandeira proveniente da linha de Iza. A celebração de Ursus afetava muitíssimo os clã presentes.

As consequências - boas ou más - de qualquer ritual lá celebrado recairiam sobre todos eles. Os mog-urs não iriam arriscar-se a invocar forças maléficas que poderiam trazerdesgraças para toda a população clânica. Era um risco grande demais.

Eliminar essa tradicional parte do cerimonial contribuiu muito para o rebaixamento de Brun e seu clã. Por mais que seus homens se tivessem esforçado nas competições, a aceitação de Ayla por Brun representava mais ameaça a posição do clã do que qualquer coisa que porventura houvesse acontecido. Era algo inteiramente fora dos padrões. Somente a resistência férrea de Brun diante da oposição crescente mantinha ainda a questão pendente, e ele não se via nem um pouco seguro de que no final fosse sair vitorioso. Não muito depois que os bolinhos foram servidos, os chefes vieram postar-se perto da entrada da caverna. Ali esperaram calmamente que os clãs, reunidos em assembléia, lhes prestassem atenção À medida que se tomava conhecimento da presença deles, o silêncio foi-se propagando tal como as ondas feitas por uma pedra caindo numa superfície de água parada. Os homens rapidamente se arrumaram de acordo com a hierarquia dos clã e a posição social relativa de cada um dentro deste. As mulheres pararam o trabalho, fizeram sinais para que as crianças se comportassem e, em silêncio, elas lhes seguiram o exemplo. A Cerimônia do Urso estava para começar.

A primeira batida num tambor de madeira, parecido a uma gamela que se batia com um pau liso e resistende, ressoou como um trovão em meio ao silêncio de expectativa. O ritmo lento e solene foi seguido pelas pancadas de lanças no chão, fazendo um fundo em surdina, ao mesmo tempo em que as batidas dadas num instrumento de madeira na forma de um tubo comprido e oco construíam em contraponto com as batidas fortes e solenes um tema rítmico aparentemente independente do primeiro. Apesar de os ritmos em staccato serem tocados em tempos diferentes, estes tinham uma batida forte que coincidia - como se por acaso - com as quintas batidas do ritmo básico. Os sons se combinavam, gerando uma sensação cada vez maior de expectativa, quase de ansiedade, até que, num dado momento, todas as batidas passaram a ser ouvidas em uníssono. Cada instante de relaxamento dava partida a novo estado de tensão. num clima de hipnotismo criado por sucessivas ondas de sonoridades e sensações.

Subitamente, numa atmosfera já saturada, todos os sons pararam com um rufar final. Como se houvessem se materializado do ar, os mog-urs, envoltos em suas capas de pele de urso, surgiram, numa fileira de nove, diante da jaula do urso da caverna com o Mog-ur à frente deles. A sensação rítmica ainda repercutia na cabeça das pessoas num ambiente de silêncio opressor. O Mog-ur levava na mão uma placa oval de madeira com uma corda atada numa de suas extremidades. Quando ele começou a girá-la no ar, ouviu-se um zunir fraco que gradativamente foi aumentando com a força cada vez maior de rotação até tornar-se um rugir alto tomando o clima de silêncio. A ressonância obsedante e grave daquele mugir provocava arrepios nas pessoas, tanto por seu significado como pelo timbre sonoro. Era a voz do Espírito do Urso da Caverna avisando os outros espíritos que se afastassem daquela cerimônia dedicada exclusivamente a ele. Nenhum espírito de totem estaria ali para lhes dar assistência, achavam-se todos sob a proteção do Grande Espírito dos Clã.

Um som agudo e chilreado penetrava o outro, baixo e gutural. O uivado alto em tom lamentoso fazia com que até os mais corajosos sentissem seus cabelos arrepiando, enquanto o mugir grave aos poucos emudecia. O uivo fantasmagórico, sobrenatural, bem próprio de algum espírito desencarnado varava a luminosa atmosfera da manhã. Ayla, na fileira da frente, viu que o som saía de qualquer coisa presa na boca de um dos mog-urs.

A flauta feita do osso oco tirado da pata de um pássaro não tinha buracos para os dedos. Controlavam-se os sons tapando e destapando a extremidade aberta. Nas mãos de um bom tocador, esse instrumento extremamente rudimentar podia tocar uma escala pentatônica completa. Para Ayla, bem como para todos ali, a música desconhecida era fruto de magia, soando como alguma coisa jamais ouvida nesse mundo. Vinha, por ordem dos feiticeiros, a mando dos espíritos, exclusivamente para esta cerimônia. Tal como o som parecido com um mugido simbolizava o rugir concreto do urso da caverna, a flauta era a voz espiritual de Ursus.

O próprio feiticeiro que tocava o instrumento sentia, como sagrado, o som saído daquela flauta primitiva, apesar de que fosse ele quem o produzia. Fabricar e tocar a flauta mágica era um segredo esotérico dos feiticeiros de seu clã, segredo que sempre lhes garantiu um alto status na hierarquia dos clãs. Somente o talento inigualável de Creb teria podido desbancar o mog-ur tocador de flauta para o segundo posto, mas um segundo lugar altamente prestigioso. E era justamente esse feiticeiro que mais se opunha à aceitação de Ayla.

O imenso urso da caverna andava de lá para cá dentro da jaula. não lhe tinham dado de comer e ele não estava acostumado a ficar sem comida. Nunca passara um só dia de fome em toda a sua vida. Até mesmo a água lhe havia sido retirada e ele estava morto de sede. A multidão, o cheiro de excitação, a atmosfera tensa, os sons nunca ouvidos de tambores, mugido e flauta, tudo se combinava para deixá-lo nervoso.

Quando viu o Mog-ur se encaminhando para a jaula, firmou seu imenso corpanzil sobre as patas traseiras e rugiu queixoso. Creb automaticamente estremeceu, mas logo se recobrou do susto, conseguindo disfarçar com um trejeito aparentemente normal. Seu rosto, bem como o dos outros mog-urs, estava enegrecido com uma pasta de dióxido de manganês e sua apreensão não transpareceu no momento em que inclinou a cabeça para trás de modo a poder olhar melhor para o pobre animal. Creb carregava um recipiente com água, cuja forma e cor num tom cinza-amarelado não deixavam dúvida de que a cuia era a caveira tirada de um esqueleto humano. Ele pôs o macabro recipiente dentro da jaula e deu alguns passos para trás, enquanto o urso se abaixava para beber.

Nisso, apareceram 21 caçadores jovens que cercaram a jaula, cada um trazendo na mão uma lança recentemente feita. Os chefes dos sete clã que não tiveram a felicidade de ter um dos seus homens escolhido para as honrarias especiais haviam selecionado três dos melhores caçadores de suas fileiras para essa cerimônia. Em seguida, Broud, Gorn e Voord vieram correndo para fora da caverna e se alinharam do lado da porta bem amarrada da jaula. Vestiam apenas uma pequena tanga e tinham os corpos pintados de vermelho e preto.

A pouca quantidade de água não deu para matar a sede do animal, mas ele esperava que os homens próximos da jaula lhe dessem mais e se sentou pedindo, fazendo gestos que nunca haviam ficado antes sem resposta. Ao perceber que seus esforços eram em vão, encaniminhou-se para o homem que se achava mais perto, metendo na sua direção o focinho através das grossas barras da jaula.

A música da flauta parou numa nota desagradavelmente inconclusiva que elevava a expectativa naquele clima de silêncio e ansiedade. Creb retirou a caveira transformada em cuja e veio para o seu lugar em frente dos feiticeiros enfileirados na entrada da caverna. A um gesto invisível, os mog-urs começaram todos ao mesmo tempo a fazer os movimentos usados na linguagem ritualística.

Aceite essa água como testemunho de nossa gratidão, ó Nosso Todo- Poderoso Protetor. Os clãs não esqueceram as lições que você ensinou. A caverna é o nosso lar, protegendo-nos contra a neve e o frio do inverno. Nela, também descansamos em paz, aquecidos por peles e alimentados com a comida colhida no verão. Você tem sido um de nós, vivido conosco e sabe que guardamos os seus preceitos.

Com os rostos pintados de preto e vestidos todos iguais com capas de pele de urso, os feiticeiros lembravam um conjunto bem ensaiado de dança movendo-se num todo, enquanto falavam com gestos ondulantes e solenes. A eloquência do Mog-ur, com seu único braço, casava-se com a dos outros. Embora um pouco diferente, ele a pontuava com movimentos elegantes que lhe davam um maior realce.

- Nós o adoramos, você que é o primeiro dentre todos os espíritos. Pedimos que interceda por nós no mundo dos espíritos, que fale da coragem de nossos homens, da obediência de nossas mulheres e que prepare o nosso lugar para quando retornarmos ao outro mundo.

Imploramos sua proteção contra os espíritos malignos. Nós somos o seu povo, ó Grande Ursus, formamos os clãs do Urso da Caverna. Honra lhe seja feita, ó Espírito de Todos os Espíritos.

Enquanto os mog-urs diziam pela primeira vez na presença do animal dos nomes por que era ele conhecido, os 21 caçadores passaram as suas lanças através dos grossos postes de madeira, ferindo a venerada criatura. Nem todos conseguiram lhe arrancar sangue, a jaula era bastante grande para que todas as lanças pudessem penetrar fundo no corpanzil do animal, mas a dor o enfureceu, fazendo com que soltasse um rugido de raiva que quebrou a atmosfera de silêncio. As pessoas, incontinentemente, deram um pulo para trás.Broud, Gorn e Voord se puseram, então, a escalar a paliçada para remover as cordas que amarravam a porta da jaula. Broud foi o primeiro a chegar em cima, mas Gorn conseguira agarrar uma tora grossa e curta que havia sido posta lá anteriormente. O urso enlouquecido de dor ergueu-se nas patas traseiras e, rugindo sua raiva, foi na direção dos três. Sua colossal cabeça chegava quase à altura dos troncos mais altos da jaula. Ele, então, alcançou a abertura e puxou a porteira espatifando-a no chão. A jaula estava aberta e o monstro, louco de ódio, solto!

Os caçadores com as suas lanças correram para formar uma falange protetora entre a besta exasperada e a platéia tomada de pavor. As mulheres, lutando contra a vontade de fugir, apertavam os bebês nos colos, enquanto as crianças mais velhas se colavam a elas, com os olhos arregalados de terror. Os homens haviam pegado as lanças, prontos para saltar em defesa. Mas ninguém se arredou do lugar.

Quando o animal ferido passou pelo buraco na jaula de madeira, Broud, Gorn e Voord, que se equilibravam na cumeeira da jaula, pularam de surpresa sobre ele. Broud caiu por cima dos ombros e segurou o animal pelos pêlos da cara, pondo-se a dar puxões que lhe suspendiam a cabeça. Nesse meio tempo, Voord, que aterrara nas costas, agarrou a cabeleira e a puxava para baixo, usando todo o peso do corpo, fazendo esticar a pele frouxa ao redor do pescoço do urso. A combinação dessas duas forças obrigava o animal - sempre se debatendo - a ficar com a goela à mostra, e Gom, que estava montado num dos ombros, rápido, lhe enfiou pela boca o lado grosso da tora. O urso parou em seus passos e Broud soltou as mãos para dar safanões no pedaço de madeira, calcando-o bem entre as mandíbulas, impedindo-o de respirar. Uma das armas do urso fora invalidada.

Mas a tática não o desarmou inteiramente. Furioso, meteu a pata numa das criaturas que se agarravam nele. As afiadas garras se cravaram na coxa do homem sobre seu ombro trazendo-o para os seus braços colossais. O grito de agonia de Gor foi subitamente interrompido por um abraço poderosíssimo do urso que lhe partiu a espinha. Quando o corpo do rapaz caiu sem vida, um longo e doloroso gemido partiu da direção de uma das mulheres na assistência.

O urso, cambaleando, avançou para o grupo de homens que tinham as lanças empunhadas ao alto, fazendo seu cerco. Com um violento murro dado com a parte lateral da pata dianteira, o animal abriu um claro, derrubando três e acertando uma violenta cutilada num quarto que teve os músculos da perna rasgados até os ossos. O homem dobrava-se de dor, abalado demais para poder gritar. Os outros passavam por cima ou em volta dele, aglutinando-se perto da fera, de modo a poder alcançá-la com as lanças.

Ayla, horrorizada, abraçava Durc, morta de pavor de o urso chegar até onde estavam. Mas, ao ver o homem caído, com o sangue esparramando pelo chão, não pensou duas vezes.

Meteu o bebê no colo de Uba e se atirou no meio da confusão da luta. Forçando a passagem através do bolo compacto de homens, meio arrastando, meio carregando, conseguiu botar o ferido fora do alcance das pisadas. Com uma das mãos ela apertou o ponto de compressão da artéria na virilha do homem e, com a outra, pegou a extremidade da correia de sua roupa, que botou entre os dentes, partindo um pedaço.Já havia posto o torniquete e limpava o sangue com a manta de seu bebê, quando chegaram duas outras curandeiras, seguindo-lhe o exemplo. Elas, apavoradas, procurando passar ao largo do tumulto, tinham vindo ajudar. As três carregaram o ferido para a caverna e, nos seus desesperados esforços para salvar-lhe a vida, nem repararam que o urso, por fim, havia sucumbido sob as lanças dos caçadores.

No momento em que o animal foi abatido, a companheira de Gorn soltou-se dos braços das pessoas que procuravam consolá-la e correu para o corpo esparramado no chão. Ela se atirou sobre o rapaz, enterrando o rosto no seu peito cabeludo, depois, de joelhos, em gestos desesperados, implorou para que o companheiro se levantasse. Sua mãe e a companheira de Norg tentavam afastá-la, quando se aproximaram os mog-urs. O grande feiticeiro abaixou-se e delicadamente lhe levantou a cabeça para olhá-la.

- Não fique triste por ele - falou o Mog-ur, com expressão terna e compassiva. - Gorn foi agraciado com a maior de todas as honras. Ele foi escolhido por Ursus para acompanhá-lo ao mundo dos espíritos. Seu companheiro ajudará o Grande Espírito a interceder por nós. O Grande Urso da Caverna só escolhe os melhores e os mais corajosos para fazerem a viagem com ele. A festa de Ursus será também a festa de Gorn. Sua coragem e seu espírito de luta se transformarão numa lenda a ser contada em todas as reuniões de clã Tal como Ursus retorna a nós, o espírito de Gorn também voltará. Ele estará esperando por você para que os dois possam regressar juntos, quando então irá tomá-la novamente por companheira. Mas você tem de ser tão corajosa quanto ele. Afaste sua tristeza e participe da alegria de seu companheiro na viagem ao outro mundo. Nesta noite, os mog-urs lhe prestarão uma homenagem especial para que todos possam compartilhar de sua coragem e para que sua valentia seja transmitida a todos os clãs.

A moça visivelmente lutava para controlar a angústia que ia nela e poder mostrar-se tão corajosa como lhe dizia o grande feiticeiro. A figura aleijada do Mog-ur, com seu medonho rosto caolho e temido de todos, afinal não parecia tão assustadora. Com um olhar de agradecimento, a moça se levantou e se encaminhou com o corpo ereto de volta a seu lugar.

Ela precisava ser corajosa. O Mog-ur não lhe dissera que Gorn estaria esperando por ela? Que os dois algum dia voltariam a ser companheiros novamente? Agarrava-se a este pensamento, procurando esquecer o triste vazio que seria daqui por diante sua vida sem ele.

Quando a companheira de Gorn chegou a seu lugar, as mulheres dos chefes e dos segundos em comando começaram o trabalho de retirar a pele do urso. O sangue foi recolhido em bacias e, após os Mog-urs haverem feito sobre estas alguns gestos de sentido religioso, os acólitos foram passando diante dos membros de seus respectivos clã e levando à boca de cada um deles um vasocontendo uma porção do sangue. Todos - homens, mulheres e crianças - provaram do sangue ainda quente, do fluido da vida de Ursus. Até os bebês tiveram suas bocas abertas pelas mãe que, com o dedo, lhes molharam a língua com o sangue fresco. Ayla e as duas curandeiras foram trazidas da caverna para receber as suas porções, e o homem ferido que perdera tanto do dele ganhou um bom gole para restaurar-lhe as forças. Todos participaram da comun com o Grande Ursus que os unia num só povo.

As mulheres trabalhavam rapidamente, enquanto os clã ficavam observando. A grossa camada subcutãnea de gordura, propositadamente criada no animal, foi com muito cuidado raspada da pele. Era uma parte que continha propriedades mágicas, por isso seria derretida e distribuída entre os mog-urs. A cabeça foi deixada presa no couro e levaram a carne para dentro de covas, já preparadas com uma forração de pedras, onde ficaria assando durante todo o dia. Os acólitos penduraram a imensa pele em postes na frente da caverna, num lugar de onde os olhos do animal poderiam observar as festividades. O urso da caverna seria o hóspede de honra numa festa cujo banquete era ele próprio. Depois da pele armada, os mog-urs apanharam o corpo de Gorn e, muito dignos e solenes, o carregaram para os recônditos da caverna. Feito isso, a multidão, a um aceno de Brun, dispersou. O Espírito de Ursus fora posto a caminho, com os dignos rituais.

 

Mas, como pôde ela fazer isso? Nenhuma outra teve coragem de chegar perto e ela não mostrou o menor medo - dizia o mog-ur do clã a que pertencia o homem ferido. - Era quase como se soubesse que Ursus não iria atacá-la. Exatamente como aconteceu no primeiro dia. Acho que o Mog-ur tem razão ela foi aceita por Ursus. É uma mulher dos clãs. Nossa curandeira disse que foi ela quem salvou a vida dele. Além de ter sido bem treinada, ela tem um dom natural, como se tivesse nascido para isso. Acredito que ela seja realmente da estirpe de Iza.

Os mog-urs estavam numa gruta situada bem no interior da montanha. Lâmpadas de pedra e pratos rasos com gordura de urso empapando pavios feito de musgo traçavam um círculo de luzes que quebravam um pouco a absoluta escuridão ao redor deles. As pequeninas chamas iluminavam as facetas escondidas dos cristais de rocha e se refletiam na cintilação das estalactites gotejantes que pendiam do teto, formando pingentes nunca concluídos e ansiosos pelos encontros com as suas contrapartidas crescendo no chão. Os pingos de calcário, filtrados pela pedra secular, concretizavam-se em majestosas colunas, adelgaçadas no centro, que iam do chão ao teto abobadado. Para que uma das estalactites encontrasse sua companheira no beijo substancial estava faltando apenas a espessura de um fio de cabelo, uma ponte, no entanto, que levaria séculos a ser construída.

- Já no primeiro dia, ela surpreendeu a todos quando não demonstrou qualquer medo de Ursus - disse outro feiticeiro. - Mas, se eu concordar, ain da dá tempo para que ela se prepare?

- Se nos apressarmos, sim - respondeu o Mog-ur.

- Ela nasceu dos Outros, como pode ser uma mulher nossa? - questionou o mog-ur tocador de flauta. - Os Outros não são clãs e nunca serão. Você disse que ela já veio com a marca de um totem dos clãs, mas essa não é marca de um totem de mulher. Como pode ter certeza de que é um sinal nosso? O Leão da Caverna nunca foi totem de nossas mulheres.

- Jamais disse que ela nasceu com a marca - falou o Mog-ur, ponderando. - Você está insinuando que um Leão da Caverna não pode escolher uma mulher? O Leão da Caverna escolhe quem ele bem entender. Ela, quando foi encontrada, estava praticamente morta. Iza trouxe-a de volta à vida. Por acaso você imagina que uma garotinha pode escapar de um leão, se não estiver sob a proteção de seu espírito?

Ele botou sua marca na menina para que não houvesse a menor dúvida de sua intenção. A marca na perna dela é a de um totem nosso e isso ninguém pode negar. Por que iria receber uma marca de totem dos clãs, se não estivesse destinada a se tornar uma de nossas mulheres? não sei por que e nem pretendo entender a razão por que os espíritos agem dessa ou daquela maneira. Com a ajuda de Ursus, às vezes, posso interpretar o que eles fazem. Será que algum de vocês pode fazer mais do que isso? Apenas digo que ela conhece o ritual. Iza lhe passou o segredo das raízes que estão dentro da sacola vermelha e Iza não lhe revelaria isso, se ela não fosse sua filha. não há necessidade de desistirmos dessa parte do ritual. Bem, já lhes dei todos os argumentos que eu tinha; agora, decidam. Mas que sejam rápidos.

- Você disse que seu clã acredita que ela seja alguém de sorte - gesticulou o mog-ur de Norg.

- não somente alguém de sorte, mas também que traz sorte. Nós temos sido muito felizes, desde que ela foi encontrada. Droog pensa nela como uma espécie de sinal daqueles que os totens costumam enviar, como alguma coisa rara e fora do comum. Talvez, à sua maneira, ela tenha também sorte.

- Bem, não resta dúvida de que fora do comum ela é. Já basta ser dos Outros e, ao mesmo tempo, ser também uma mulher dos clã - comentou um dos mog-urs.

- Hoje, ela trouxe sorte para nós. O nosso caçador irá viver - falou omog-ur pertencente ao clã do homem atacado pelo urso. - Estou inclinado aconsentir. Seria uma pena nos privarmos da bebida de Iza, quando isso não é necessário.

Muitos acenaram com as cabeças concordando.

- E quanto a você? - perguntou o Mog-ur, dirigindo-se ao feiticeiro logo abaixo dele na hierarquia. - Ainda julga que Ursus ficará descontente, se Ayla fizer a bebida para o ritual?

Todas as cabeças se viraram para olhá-lo. Se o poderoso feiticeiro persistisse na recusa, ele tinha bastante influência para fazer com que outros feiticeiros também impedissem a preparação da bebida. Mesmo que ele ficasse sozinho em sua decisão e o resto concordasse, isso já era o suficiente. Tinha de haver unanimidade, não havia lugar para cisma em suas fileiras. Ele tinha os olhos abaixados, refletindo sobre o problema; depois, olhou o rosto de cada um.

- não se trata de agradar ou não Ursus. É que eu ainda não estou convencido. Existe alguma coisa nela que me incomoda. Mas é evidente que ninguém deseja eliminar essa parte do ritual e parece que ela é a única pessoa disponível. Chego quase a preferir lançar mão da filha verdadeira de Iza,apesar de sua pouca idade. Mas enfim, se todos estiverem de acordo, retiro minha objeção.Não gosto, mas não vou impedir.

O Mog-ur olhou para cada um, recebendo de todos o consentimento. Disfarçando um suspiro de alívio com os esforços que fazia para se pôr de pé, Creb logo em seguida saiu.

Guiado pelas lamparinas foi atravessando diversas passagens abrindo-se em pequenos recintos que novamente tornavam a se estreitar em corredores, até que o caminho, já chegando perto do alojamento dos clã passou a ser iluminado por tochas espaçadas em intervalos regulares.

Ayla estava sentada junto do homem ferido na caverna da frente. Ela tinha Durc no colo e Uba se sentava do outro lado dela. A companheira do homem também se achava ali e, cheia de gratidão, de vez em quando, lançava um olhar para Ayla.

- Ayla, rápido, você tem de se preparar! não há muito tempo - gesticulou o Mog-ur. - Você tem de andar depressa, mas não se esqueça de nenhuma das coisas que tem de fazer.

Quando estiver pronta, procure-me. Uba, leve Durc para Oga lhe dar de mamar. Ayla não vai ter tempo para fazer isso.

As duas, surpresas, olharam para o feiticeiro, espantadas com a súbita mudança nos planos. Durante um instante, ficaram sem compreender, mas então Ayla acenou com a cabeça afirmativamente e correu à fogueira deles na segunda caverna para pegar uma roupa limpa.

O Mog-ur virou-se, em seguida, para a mulher que observava o sono do companheiro.

- O Mog-ur gostaria de saber como vai passando o rapaz.

- Aiiga diz que ele vai viver e caminhar outra vez. Mas sua perna nunca mais será a mesma. - A mulher falava em outro dialeto e a gesticulação de sua linguagem coloquial era tão diferente que Ayla e Uba tinham dificuldade de entendê-la, comunicando-se com ela apenas na linguagem protocolar. O feiti ceiro, entretanto, estava mais acostumado com os dialetos falados nos outros clã embora preferisse a linguagem protocolar para se fazer melhor entendido.

- O Mog-ur gostaria de saber qual o totem deste homem.

- O Cabrito montês - respondeu a mulher.

- As pernas de seu companheiro eram tão boas como as do cabrito montês? - perguntou o feiticeiro.

- Assim diziam - começou ela a falar. - Mas este homem, hoje, não foi muito esperto e agora não sei como ele vai fazer. E se ele nunca mais voltar a andar? Como vai caçar e me sustentar? O que faz um homem que não caça? - Com os nervos muito abalados, quase histérica, ela passou a usar a linguagem coloquial.

- O rapaz vai viver e isso não é o mais importante? - falou o Mog-ur, querendo acalmá-la.

- Mas ele é orgulhoso. Se não puder caçar, talvez até tivesse preferido morrer. Era um bom caçador, poderia, inclusive, chegar um dia a ser o se gundo em comando. Agora, nunca vai subir de posto. Pelo contrário, será rebaixado.

- Mulher! - gesticulou o Mog-ur, pondo um ar severo no rosto. - Nenhum homem escolhido por Ursus é rebaixado. Seu companheiro deu provas de grande coragem. Quase foi escolhido para acompanhar Ursus em sua viagem ao outro mundo. O Espírito de Ursus não escolhe impunemente. O Grande Urso da Caverna resolveu que ele aqui permanecesse, mas carregando consigo sua marca. A esse homem foi dada a honra de poder agora reivindicar Ursus como seu totem. Suas cicatrizes serão as marcas de seu novo totem. Ele deve ostentá-las com orgulho e nunca lhe faltar meios para mantê-la. O Mog-ur falará com seu chefe. Seu companheiro tem o direito de exigir uma fração de cada caça.

Ele pode voltar a caminhar, inclusive poderá até vir a caçar. Talvez, não tenha mais a agilidade do cabrito montês e fique com o caminhar parecido com o dos ursos, mas isso não significa que não volte a caçar. Você pode estar orgulhosa dele, mulher. Tenha orgulho de seu companheiro, um homem eleito por Ursus.

- Ele foi eleito por Ursus? - falou a mulher, com olhar maravilhado. - O Urso da Caverna é agora o seu totem?

- E também o Cabrito montês. Ele tem direito a ter os dois - falou o Mog-ur, que só então notou um pequeno volume sob a roupa da mulher. não é de admirar que esteja tão afoita, pensou consigo. - Essa mulher já tem filhos?

- não Mas a vida já foi iniciada. Estou esperando um filho.

- Você é uma boa mulher e uma boa companheira. Fique perto dele. Quando acordar, conte-lhe tudo quanto o Mog-ur disse.

Ela fez que sim com a cabeça e levantou os olhos, quando Ayla passava por ali a toda pressa.

O pequeno rio próximo à caverna do clã hospedeiro era na primavera uma torrente de águas violentas, arrancando pelas raízes gigantescas árvores e desprendendo pedras colossais do paredão rochoso, fazendo-as rolar pela montanha abaixo. Mesmo em seus momentos de calma, as fortíssimas correntezas - espumando no meio da planície inundada e semeada de pedras, muito mais ampla do que o próprio leito - tinham a coloração esverdeada e a nebulosidade dos desaguadouros glaciais. Ayla e Uba haviam explorado a região perto da caverna, pouco depois de terem chegado, procurando pelas plantas saponáceas necessárias à purificação do corpo, para o caso de que fossem convocadas a participar da cerimônia.

Muito nervosa, Ayla foi colher às pressas as raízes de saboeiro, as cava-linhas e os quenopódios de raíz vermelha. Seu estômago dava voltas enquanto aguardava que a água fervesse numa fogueira para poder desinfetar as cavalinhas. A notícia de que a haviam deixado realizar o ritual rapidamente se espalhou pelos clãs. O fato fez com que todos reformulassem a opinião que tinham sobre a mulher dos clã nascida dos Outros e seu prestígio só fez então aumentar. Isso vinha confirmar que Ayla era de fato filha de iza, fazendo dela a mais bem categorizada de todas as curandeiras. O chefe do clã onde Zoug tinha alguns parentes, que havia de início se recusado peremptoriamente a aceitá-la, resolveu reconsiderar a decisão. Afinal, a recomendação de Zoug podia não ser de todo tão má. Talvez, algum dos homens pudesse assumi-la, senão como companheira, pelo menos como segunda mulher. Ela seria uma boa aquisição.

Mas Ayla estava preocupada demais para reparar nos disse-que-disse à sua volta. Aliás, estava mais do que preocupada. Sentia-se aterrorizada. não vou conseguir fazer isso, dizia-se, apavorada, enquanto corria na direção do rio. não vai dar temrpo para me arrumar.

E se eu esquecer de alguma coisa? E se cometer algum engano? Vou desgraçar Creb e Brun. Vou botar o clã inteiro a perder.

O rio estava gelado, mas a água fria serviu para acalmar-lhe os nervos que estavam a ponto de estourar. Sentiu-se mais relaxada, quando foi sentar-se sobre uma pedra para desembaraçar e secar na suave brisa os seus longos cabelos louros, enquanto observava os cimos rosados das montanhas que, aos poucos, iam enegrecendo com tonalidades vermelho-azuladas sob a luz do sol poente. Os cabelos ainda estavam úmidos, quando tornou a enfiar o amuleto pelo pescoço e vestiu a roupa limpa. Meteu suas ferramentas nas dobras, apanhou a vestimenta que tinha usado e correu à caverna. Passando por Uba com Durc no colo, acenou com a cabeça, confirmando que tudo saíra direito.

As mulheres, num trabalho frenético, não tinham a menor colaboração das crianças, inteiramente descontroladas. O sanguinolento ritual do urso da caverna as deixara excitadíssimas. Isso e mais a fome a que não estavam acostumadas e o apetite estimulado pelo cheiro da comida cozinhando as faziam extremamente irritadiças. Com as mães muito ocupadas, aproveitavam a rara oportunidade de se comportar mal, coisa que pouquíssimas vezes se admitia. Alguns garotos tinham apanhado as correias que foram cortadas da jaula do urso e fizeram braçadeiras que usavam como distintivo de honra. Os outros, que haviam sido menos rápidos, tratavam de arrancá-las e todos corriam por entre as fogueiras. Quando se cansavam da brincadeira, iam provocar as meninas, cuja obrigação era a de estar cuidando dos irmãos menores que, por sua vez, também se achavam aos berros. Eles tanto importunavam que elas se punham a correr atrás ou, então, iam para junto das mães fazer queixas. Era uma confusão, uma casa de loucos. Mesmo quando, vez por outra, aparecia ocompanheiro de alguma mulher tentando assumir uma atitude mais severa, sua voz de comando de pouco servia para conter a criançada numa rebeldia inteiramente inusitada.

As crianças não eram as únicas com fome. A comida, preparada em enormes quantidades fazia com que todos estivessem com água na boca e a expectativa do grande banquete e da cerimônia noturna que se seguiria só aumentava a excitação. Montões de mandiocas, inhames e psorálias cozinhavam lentamente nas panelas de couro sobre as fogueiras.

Aspargos selvagens, raízes de lírio, cebolas, legumes, abobrinhas e cogumelos vinham em muitas combinações e com diferentes temperos. Uma montanha de alface silvestre, bardanas, e folhas de dente-de-leão já estava lavada e pronta para ser servida com molho feito de gordura de urso e temperos diversos; o sal se punha na hora de servir.

A especialidade de um dos clãs era uma combinação de cebolas com cogumelos e ervilhas verdes temperada com um molho à base de certas ervas - mantidas em segredo - e engrossada com pó de líquen. Um outro clã trouxe uma variedade especial de pinhões que davam exclusivamente na área de sua caverna e que, quando assados, soltavam um tipo de noz gosda e saborosa.

O clã de Norg assava as castanhas colhidas aos pés das encostas e as punha para cozinhar em fogo lento, fazendo um caldo grosso ao qual se juntavam frutos de faia esmigalhados, diversos cereais triturados e pedacinhos de maçãazeda. Os terrenos até uma certa distância da caverna estavam desprovidos de seus mirtilos e, nas partes um pouco mais elevadas, também já não se encontravam nem amoras pretas nem framboesas.

As mulheres do clã de Brun passaram dias quebrando e triturando as bolotas de carvalho que trouxeram consigo. A farinha obtida era posta em covas rasas na areia perto do no e ali se despejava água que, por lixiviação, ia retirando o sabor amargo. Com a pasta resultante, faziam-se bolinhos de forma achatada que, depois de assados, eram postos em calda de bordo até ficarem bastante empapados, quando então iam ao sol para secar. O clã hospedeiro, que também extraía a seiva do bordo no princípio da primavera e a punha para ferver durante diversos dias, logo se mostrou interessado na receita, quando viu o açcar de bordo nos costumeiros recipientes de casca de salgueiro. Os bolinhos melosos feitos de bolotas eram uma guloseima que as mulheres do clã de Norg pretendiam fazer mais tarde.

Uba, que ao mesmo tempo vigiava Durc e ajudava as mulheres, olhava para aquela enorme variedade de comida parecendo não ter fim, imaginando como poderiam dar cabo daquilo tudo.

A fumaça subia desaparecendo na escuridão de uma noite calma tão apinhada de estrelas que era como se o céu estivesse revestido por uma teia luminosa. A lua era nova e sua presença nem de leve se insinuava; tinha dado as costas ao planeta em torno do qual girava e foi refletir suas luzes nas frias profundezas do espaço. As chamas das fogueiras iluminavam a área perto da caverna, contrastando com o negrume dos bosques ao redor. A comida já fora tirada de cima do fogo, mas deixada perto das fogueiras para que se conservasse quente. Quase todas as mulheres se haviam retirado para a caverna.

Foram trocar de roupa e descansar um pouco antes que a festa começasse.

Mesmo cansadas como estavam, a excitaçção era grande demais para que pudessem deixar-se ficar por muito tempo dentro da caverna. O terreno em frente começava a fervilhar com uma multidão aguardando, ansiosa, pelo banquete e pelo início da cerimônia que se seguiria. De repente, fez-se silêncio. Os 10 mog-urs com os 10 acólitos saíram em fila da caverna, mas logo em seguida começou o rebuliço com a procura dos lugares. Parecia que os mog-urs se haviam defrontado com uma reunião feita ao acaso. O posicionamento das pessoas não era definido nem pela localização nem pelo relacionamento de uns com os outros. Filas bem ordenadas não eram importantes, apenas que cada um estivesse na frente, atrás ou do lado da pessoa certa. E sempre havia a movimentação de último instante, com aqueles tentando encontrar um lugar melhor dentro de seus círculos de relações.

Com muita solenidade e circunspecção foi acesa a grande fogueira na frente da caverna. Em seguida, removeram-se as pedras cobrindo os fogões cavados na terra. Às companheiras dos chefes de clãs mais categorizados e a do chefe do clã anfitrião tiveram a insigne honra de retirar do fogo os tenros quartos do animal e, nesse instante, o peito de Brun se estufou cheio de orgulho ao ver Ebra dando um passo à frente.

A aceitação de Ayla pelos mog-urs havia finalmente decidido a questão. Brun e seu clã continuavam ocupando a primeira posição e estavam mais fortes do que nunca.

Contrariamente ao que parecera no início, a mulher alta e loura era uma mulher dos clãs e uma curandeira da prestigiosa linha de Iza. Assim ficou provado, graças à obstinada insistência de Brun e à vontade de Ursus. Tivesse ele vacilado um instante, seu prestígio não seria tão grande e sua vitória, menos doce.

Nuvens de vapores suculentos tiravam rosnados dos estômagos vazios, quando a carne do urso foi retirada com forquilhas de madeira. Esse era o si nal para que as outras mulheres começassem a trazer as travessas de osso e madeira e fossem enchendo grandes cuias com a comida que tanto lhes custara preparar. Broud e Voord, carregando cada qual uma bandeja, foram para a frente e pararam diante do Mog-ur.

- Este banquete em homenagem a Ursus é também em honra de Gorn, escolhido pelo Grande Urso da Caverna para acompanhá-lo. Durante o tempo em que ele viveu com o clã de Norg, Ursus ficou sabendo que seu povo sempre guardou os seus preceitos. Ele aprendeu a conhecer Gorn e o achou digno para acompanhá-lo em sua viagem. Broud e Voord, vocês, pela coragem, força e tenacidade, foram escolhidos para mostrar ao Grande Espírito a bravura dos homens de seus clã Ursus, com sua grande força, os pôs à prova e está satisfeito com os dois. Vocês se portaram bem e foram agraciados com o privilégio de levar-lhe a última refeição que ele vai compartilhar com os seus clã até que torne a regressar do mundo dos espíritos. Que o Espírito de Ursus esteja sempre conosco.

Os dois rapazes passaram diante das mulheres postadas ao lado das travessas carregadas de comida e escolheram as melhores partes e guloseimas de cada uma. Só não pegaram carne.

O urso em cativeiro jamais provava carne, embora, nas florestas, vez por outra, ele se permitisse, no caso de encontrá-la à mão. As bandejas foram colocadas na frente do couro suspenso nos postes.

- Vocês beberam do seu sangue, agora comam de sua carne e participem do Espírito de Ursus - falou o Mog-ur.

A bénção marcava o início do banquete. Broud e Voord receberam as primeiras porções da carne do urso, e depois, eles próprios, foram enchendo seus pratos, seguidos pelos outros.

Dando grunhidos e suspiros de prazer, todos se acomodaram para saborear as finas iguanas. A carne do urso vegetariano que teve as suas rações cuidadosamente controladas estava tenra e gorda na medida certa. Os legumes, frutas e cereais preparados com meticulosa atenção eram recebidos prazerosamente. A festa estava digna da longa espera.

- Ayla, você não está comendo. Você sabe que toda a carne tem de ser comida esta noite.

- Eu sei, Ebra, mas não estou com fome.

- Ayla está nervosa - gesticulou Uba, enquanto comia. - Estou alegre por não ter sido escolhida. A comida está deliciosa e eu não iria conseguir comer, se também estivesse nervosa.

- Mas mesmo assim, Ayla, veja se consegue comer um pouco de carne. Você precisa fazer isso. Já deu o caldo para Durc? Ele devia tomar um pouco, isso fará com que fique sempre unido aos clãs.

- Já dei, mas ele não quis tomar muito. Oga acabou de dar-lhe o peito. Oga, Grev ainda está com fome? Meus seios estão tão cheios que chegam a doer.

- Eu devia ter esperado, mas os dois estavam com tanta fome que já dei de mamar, Ayla.

Amanhã você dá.

- Vou ter leite para eles e ainda para mais dois se precisar. Esta noite não vão querer mais nada, estarão dormindo. O chá de datura já está pronto. Quando eles tiverem fome, faça com que tomem isso primeiro para poderem dormir. Uba dirá que quantidade você tem de dar. Logo depois da comida, eu tenho de ver Creb e só estarei de volta depois da cerimônia.

- não demore muito, nossa dança vai começar logo depois que os homens entrarem na caverna. Algumas curandeiras que estão aqui são ótimas para bater o ritmo. A dança das mulheres nas reuniões de clã sempre é mais especial - falou Ebra.

- não sei tocar muito bem. Iza me ensinou um pouco e a curandeira do clã de Norg também me mostrou, mas ainda está me faltando adquirir a necessária prática.

- É porque você tem pouco tempo de curandeira. Iza insistiu para que você aprendesse principalmente as mágicas de curar, mas os ritmos também são mágicos - gesticulou Ovra.

- As curandeiras são obrigadas a saber tanta coisa...

- Queria muito que Iza estivesse aqui - falou Ebra. - Estou contente por você ter sido afinal aceita, Ayla, mas tenho saudades de Iza. Fica tão estranho ela não estar conosco.

- Também queria que estivesse - disse Ayla. - É horrível ela não ter podido vir. Iza está muito mais doente do que deixa transparecer. Espero que esteja descansando bastante e tomando muito sol.

- Quando chegar sua vez de ir para o outro mundo, ela irá. Se os espíritos chamarem, ninguém conseguirá impedi-la de não ir com eles - falou Ebra.

Ayla sentiu um arrepio, embora a noite estivesse quente e, de repente, sentiu algo como um presságio, uma sensação vaga, incômoda, parecida aos ventos frios que prenunciam o fim do verão. O Mog-ur acenou-lhe. A moça rapidamente se levantou, mas o sentimento a acompanhou enquanto caminhava na direção da caverna.

A bacia de Iza com a pátina esbranquiçada do uso de muitas gerações estava sobre sua pele de dormir. Ayla retirou o saco vermelho de dentro da sacola de remédios e o esvaziou. À luz das tochas, pôs-se a examinar as raízes. Apesar de Iza lhe haver explicado muitas vezes como dosar a quantidade exata, ela se sentia insegura do quanto necessitaria para dar a 10 mog urs. A dose não dependia apenas do número de raízes, mas também do tamanho dessas e do seu tempo de envelhecimento.

A moça nunca vira a bebida sendo feita. Iza, por diversas vezes, lhe dissera que era algo sagrado e importante demais para que se pudesse preparar só em caráter experimental. As mulheres dos clã em geral, aprendiam o que sabiam da observação e das explicações que suas mães lhes davam, mas o conhecimento se fazia sobretudo através da memória com que haviam nascido. Ayla, entretanto, não tinha nascido de uma mulher dos clã. Escolheu diversas raízes e depois acrescentou mais uma por segurança, para ter certeza de que a mágica funcionaria. Em seguida, dirigiu-se para um ponto perto da entrada, onde havia um suprimento de água fresca, o lugar em que Creb lhe mandara esperar. Dali, ficou observando a cerimônia que estava apenas começando. Os sons dos tambores de niadeira foram seguidos pelas batidas com oscabos de lanças para depois se fazerem ouvir os staccatos dados nos tambores altos e ocos em forma de tubos. Os acólitos passavam entre os homens carregando vasos com chá de datura e, pouco depois, já estavam todos mexendo seus corpos ao ritmo das batidas. As mulheres se achavam ao fundo, a vez delas chegaria depois. Ayla, ansiosa, com a roupa amarrada frouxamente no corpo, aguardava. A dança dos homens cada vez se tornava mais frenética e ela só se perguntava quanto tempo teria ainda de ficar esperando.

Ao sentir um tapinha no ombro, sobressaltou-se. não percebera os mog-urs vindo do fundo da caverna, mas ao reconhecer Creb, tranquilizou se um pouco. Os feiticeiros, em silêncio, saíram e se postaram ao redor da pele do urso. O Mog-ur estava de frente e, do lugar onde ela se encontrava, sua impressão era a de que o bicho - posto muito aprumado e com a boca

escancarada - estava a ponto de saltar sobre o velho feiticeiro aleijado. Mas era apenas a ilusão de força e ferocidade dada pela figura parecendo flutuar solta no ar, pairando sobre o Mog-ur.

Ela viu quando o feiticeiro-mor acenou aos acólitos que tocavam os tambores. Eles interromperam a cadência rítmica num tempo forte e os homens suspenderam os olhos, surpresos de ver os mog-urs onde um instante antes - ou assim lhes parecia - não havia ninguém. A súbita aparição dos feiticeiros era outra ilusão e agora Ayla sabia como a coisa se processava.

O Mog-ur esperou, criando uma atmosfera de suspense, até ter certeza de que todos estavam com a atenção voltada para a gigantesca figura do urso da caverna, iluminada pelas chamas da fogueira principal e ladeada pelas sagradas figuras dos clã. Seu aceno fora imperceptível, e ele, intencionalmente, ao fazê-lo, olhava em outra direção. Era o sinal por que Ayla esperava. A moça deixou a roupa cair do corpo, encheu a bacia de água, apertou as raízes na mão e, respirando fundo, foi na direção do feiticeiro caolho.

As respirações ficaram todas em suspenso quando Ayla veio para dentro do círculo de luzes. Enrolada na roupa, que era amarrada por uma comprida correia e que lhe escondia as formas em meio a dobras e bolsos, e compor tando-se como qualquer mulher, ela começara a não se distinguir muito das outras. No entanto, sem o disfarce de todos aqueles bolos na vestimenta, sua verdadeira forma fazia vivo contraste com a das mulheres dos clã. Ayla era esguia, com uma estrutura diferente daquela arredondada, quase um barril, dos homens e mulheres dos clã. Vista de perfil, mostrava-se, à exceção dos selos intumescidos de leite, extremamente descarnada. A cintura afundava-se para depois formar as cadeiras roliças, e as pernas e braços eram longos e retos. Nem mesmo os círculos vermelhos e pretos e as outras linhas pintadas sobre seu corpo conseguiam disfarçar-lhe as formas.

Seu rosto, sem as mandíbulas salientes, com o pequenino nariz e a testa alta, lhes parecia agora mais chato do que nunca. Os cabelos louros espessos, emoldurando-lhe as faces com ondas largas e chegando à metade das costas, eram batidos pelos reflexos das chamas e brilhavam como ouro. Uma coroa extravagantemente bela para uma mulher tão feia e sem dúvida alguma alie nígena ao meio deles.

Contudo, o mais surpreendente era a altura. Quando eles a viam, ou era andando em passos apressados, ou num caminhar curvado e arrastado, ou semi sentada a seus pés e, de certo modo, não se tinham dado conta desse detalhe. Mas ali, de pé, frente aos mog-urs, ficava visível demais. Num momento em que ela se inclinou, sua visão foi o alto da cabeça do Mog-ur. Ay la era de longe mais alta do que qualquer homem dos clãs.

O Mog-ur fez uma série de gestos invocando a proteção do Grande Espírito que ainda pairava sobre eles. Em seguida, Ayla enfiou na boca as raízes secas e duras. Era-lhe difícil mastigá-las. não possuía os mesmos dentes enormes e fortes e as possantes mandíbulas da raça clanica. Por mais que Iza a tivesse avisado para não engolir nada do suco que se formava na boca, Ayla não conseguiu evitá-lo. não sabia ao certo quando as raízes estariam realmente no ponto, mas tinha impressão de que deveria ficar mastigando, mastigando sem parar. Ao cuspir o último bagaço, sentia-se tonta. Começou, então, a remexer o liquido dentro da bacia sagrada, até que ele se tornou uma água leitosa que entregou a Goov.

Os acólitos, cada um carregando um vaso com chá de datura, tinham ficado à espera de que Ayla terminasse com seu serviço. Goov entregou ao Mog-ur a bacia com a água esbranquiçada que Ayla lhe dera e apanhou um vaso contendo datura para entregar a ela, ao mesmo tempo em que os outros aprendizes de feiticeiros entregavam também os deles às curandeiras de seus respectivos clã. Uma troca de igual valor e espécie. O Mog-ur tomou um gole.

- Está forte - disse a Goov, por meio de gestos discretos. - não dê muito.

Goov fez que sim com a cabeça e pegou a bacia para levar ao segundo mog-ur na hierarquia clanica.

Ayla e as outras curandeiras carregaram os vasos com datura para as mulheres que esperam e deram a elas e às meninas mais velhas uma quantidade que iam controlando. Por fim, Ayla bebeu as últimas gotas de seu vaso, mas ela já começava a ter uma estranha sensação de distanciamento, como se uma parte sua houvesse desprendido e a observasse de outro ponto. As curandeiras mais velhas apanharam os tambores de madeira e começaram a bater os ritmos de dança das mulheres. Ayla observava, fascinada, o movimento das baquetas. Cada batida produzia um som claro e preciso. A curandeira do clã “de Norg ofereceu-lhe um tambor parecido a uma bacia. Primeiro, ela escutou o ritmo, só batendo de leve, depois, surpreendeu-Se tocando junto com as outras.

O tempo perdera todo o significado. Quando suspendeu os olhos, os homens já haviam ido embora e as mulheres rodopiavam freneticamente, numa movimentação selvagem e erótica.

Teve, então, vontade de juntar-se a elas. Mas quando foi botar o tambor no chão, o instrumento caiu de mau jeito e ficou por um instante rodando como um pião. Ela ficou observando até que o tambor cessasse o movimento. Sua atenção se concentrava na forma do instrumento. Lembrava-lhe a bacia de iza, a preciosa e antiga relíquia que fora confiada à sua guarda. Viu-se, então, olhando para o líquido branco e aguado que ficara revolvendo com os dedos durante um tempo que havia parecido sem fim. Onde está a bacia de Iza?

Perguntava-Se. O que aconteceu com ela? A idéia da bacia não lhe saía, ficava remoendo-a, até que se tornou uma obsessão.

A imagem de Iza lhe veio à mente e seus olhos se encheram de lágrima. A bacia de Iza. Perdi a bacia de Iza. A linda bacia antiga que veio de sua Da mãe de sua mãe e da mãe da mãe de sua mãe. No pensamento via Iza e uma outra Iza atrás desta e ainda uma outra e outra.

Era uma curandeira após outra, todas atrás de Iza e todas segurando uma sagrada bacia de cor esbranquiçada, numa longa fileira penetrando no passado distante e nebuloso. As mulheres desapareceram, e diante de seus olhos surgiu a imagem de uma bacia colossal.

Subitamente, esta se partiu, quebrando-se ao meio em dois pedaços que aos poucos foram sumindo. não não gritou em pensamento. Ela estava completamente desvairada. A bacia de Iza. Tenho de achar a bacia de Iza.

Às tontas, largou as mulheres e foi na direção da caverna cambalean do em seus passos.

Pareceu levar uma eternidade. De gatinhas, ia passando por entre travessas de osso e bacias de madeira com restos de comida endurecida, sempre procurando pela preciosa vasilha de lza. A entrada da caverna, com os seus contornos fracamente delineados pelas tochas do lado de dentro, a atraía e, aos tropeção encaminhou-Se para lá. De repente, viu-se bloqueada no caminho. Caíra numa armadilha, apanhada nas malhas de alguma coisa cabeluda e asquerosa. Olhou para cima e prendeu a respiração. Um rosto monstruoso, com uma imensa boca escancarada a encarava do alto. Ela deu uns passos para trás e correu para dentro da caverna que parecia estar acenando-lhe.

Ao passar pela entrada, seus olhos deram com qualquer coisa branca, perto do lugar onde ficara aguardando o sinal do Mog-ur. Ajoelhou-se e se gurou com cuidado a bacia de lia, aninhando-a nos braços. No fundo havia ainda um pouco da água leitosa banhando os bagaços de raízes. não beberam tudo, disse consigo. Fiz demais Devo ter feito muita quantidade. E agora, o que vou fazer com o resto? Iza disse que não se pode jogar fora. Foi por isso que ela não pôde me mostrar como se preparava e acabei fazendo demais. Preparei a quantidade errada. E se alguém descobrir? Vão pensar que não sou uma curandeira de verdade. E nem uma mulher dos clãs. Podem nos obrigar a ir embora. O que vou fazer? O que vou fazer?

Beber! Sim, é o que vou fazer. Se eu beber, ninguém vai ficar sabendo. Ela levou a bacia aos lábios e a esvaziou. Se já no princípio, a bebida estava forte, agora então muito mais com as raízes empapando a pequena quantidade de líquido que tinha restado. Ela começou a caminhar para a segunda caverna, com a vaga idéia de deixar a bacia em algum lugar seguro, mas até que pudesse chegar à sua fogueira, os efeitos já se faziam sentir.

Estava tão desorientada que nem reparou quando a bacia caiu no chão logo depois da demarcação de pedras da fogueira. Em sua boca, sentia o gosto das velhas florestas em seus primórdios, gosto de terra rica e úmida, de folhas molhadas pela chuva, de gigantescos cogumelos carnudos... As paredes da caverna se dilatavam, recuando-se cada vez para mais longe. Sentia-se um inseto rastejante. Detalhes mínimos eram percebidos com uma clarividência agudíssima: contornos de pisadas, pequeninas pedras, cada grão de póêira. Com o canto dos olhos percebeu algo se mexendo e ficou a observar uma aranha subindo por um fio brilhando à luz da tocha.

A chama era hipnotizadora. Parou os olhos na luz bruxuleante e se pôs a olhar os caracóis de fumaça não subindo ao teto. Ela se aproximou da tocha e viu, então uma segunda atraindo-a. Mas, ao alcançá-la, uma outra adiante já lhe estava acenando. E depois, uma outra e mais outra e outra, sempre arrastando-a cada vez mais para o interior da caverna.

Não reparou quando as tochas começaram a ficar mais espaçadas e tampouco notou quando passou por um grande recinto cheio de homens caídos em profundo transe ou por um outro menor, onde se achavam meninos adolescentes dirigidos pelos acólitos numa cerimônia que lhes fazia sentir um pouco o gosto das experiéncias vividas pelo homem adulto.

Com um só propósito em mente ia em busca da pequenina chama para, entrão, ser atraída pela seguinte. As luzes a conduziam por estreitas passagens que se abriam em ambientes maiores, para voltar a se estreitar novamente. Em certo momento, tropeçou num desnível do chão pondo-se a tatear a parede de pedra molhada que girava a seu redor. Foi, em seguida, dar num corredor que tinha em sua outra extremidade uma forte luz rosada. Era incrivelmente comprido. Parecia não acabar nunca. De vez em quando, era como se estivesse se enxergando de uma grande distância, cambaleando ao longo do túnel, iluminado pelas fracas luzes de lamparinas. Sentia a mente arrastada para longe, para um vazio negro e se encolhia diante da imensidão do nada, lutando para fugir-lhe.

Por fim, alcançou a luz na extremidade do mel e viu diversas figuras sentadas em círculo.

Graças a alguma reserva de prudência que ficara enterrada num ponto qualquer de sua mente, ela se deteve antes de chegar à última das chamas e se escondeu atrás de um pilar de pedra. Em sua cânira secreta, os dez mog-urs estavam inteiramente entregues à celebração de um ritual. Eles apenas tinham dado partida à cerimônia que incluía os homens dos clãs, deixando sua conclusão com os acólitos, e se retiraram para seu sacrossanto recinto. Lá, iriam conduzir rituais secretíssimos, até mesmo para os seus aprendizes.

Envolvidos pelas peles de urso, achavam-se sentados cada um com uma caveira de urso em sua frente. Outras caveiras ainda adornavam os nichos nas paredes. No centro do círculo, havia um objeto cabeludo que Ayla não identificou de pronto, mas, ao perceber do que se tratava, só não gritou porque era grande seu estado de embotamento. Estava ali a cabeça decepada de Gom.

Entre horrorizada e fascinada, viu o mog-ur do clã de Norg pegar a cabeça, virá-la e com uma pedra alargar o buraco occipital (a abertura maior na coluna da espinha). A massa cinza e gelatinosa do cérebro de Gorn ficara exposta. O feiticeiro fez alguns gestos sobre a cabeça e, em seguida, enfiou a mão na abertura retirando uma porção do tecido. Ele segurava a massa que lhe tremulava na mão, enquanto um segundo mog-ur pegava a

cabeça. Mesmo debaixo de seu estupor, Ayla se sentiu profundamente enojada. Contudo, via-se enfeitiçada, olhando os mog-urs, um após outro, ir enfiando a mão dentro da cabeça e arrancar um pedaço do cérebro do homem morto pelo urso.

Com tudo girando em sua volta, uma vertigem a botou à beira do vazio incomensurável.

Engolia o vômito prestes a sair. Desesperada, agarrava-se à borda do enorme vácuo, mas ao ver as grandes e santas figuras dos clãs levarem o cérebro de Gorn às bocas, não se conteve mais. O ato de canibalismo arrastou-a para dentro do abismo negro.

Gritava em silêncio, sem poder escutar-se. não via, não sentia, estava desprovida de qualquer sensação, mas tinha entendimento. Sua mente não era um branco. O vazio era de outra espécie: aterrorizador, essa a qualidade do vazio. E medo. Um medo avassalador que se apoderou dela. Lutava, querendo voltar, gritava mudamente clamando por ajuda, mas cada vez se via mais arrastada para as profundezas. Sentia movimento e isso não deveria estar sentindo. Era cada vez mais veloz, aumentando à medida que ela mergulhava na negritu de do infinito, no vácuo frio da eternidade.

Subitamente, a ilusão do movimento foi diminuindo. Sentia como se houvesse qualquer coisa formigando em seu cérebro, dentro da mente, como uma força contrária que, devagar, puxava-a de volta para fora daquela infinitude abismal. Suas emoções lhe eram estranhas, não eram as dela. A mais for te era a do amor, mas o sentimento vinha misturado com uma profunda raiva e também um grande medo. Mas, então, sentiu uma pontinha de curiosidade.

Com grande surpresa percebeu que o mog ur estava dentro de sua cabeça Em sua mente, sentia os pensamentos e os sentimentos dele com as emoções dela

Fisicamente, era algo diferente como uma sensação de atravancamento, mas sem desconforto, alguma coisa como um contato mais íntimo do que a proximidade física.

As raízes psicotrópicas contidas na sacola vermelha de Iza serviam para

acentuar uma tendência natural nas pessoas clanicas. O instinto nelas havia

evoluido em memoria Noentanto, essa memoria, quando remontava muito

no tempo, tornava-se idêntica em todas, transformada em memória racial. As

memorias raciais dos clãs eram as mesmas e, no caso de as percepções estarem tão extremamente aguçadas, todos podiam compartilhar de idênticas memórias .

Os mog-urs haviam desenvolvido essa natural tendência, através da educação e do esforço consciente. Eles, de certa forma, eram capazes de controlar as memorias que compartilhavam entre si, mas só o Mog ur nascera com um dom que nenhum dos outros possuía.

Não só podia ele compartilhar das memórias e controlá-las, como também tinha a possibilidade de manter a integridade do elo, enquanto os seus pensamentos viajavam através do tempo, do passado ao presente. Os homens de seu clã mais do que quaisquer dos outros, desfrutavam nas cerimônias de uma interrelação muito mais rica e plena. Entretanto, com as mentes bem- educadas dos mog-urs, ele podia, desde o início, estabelecer ligação telepática. Através dele, todos os mog-urs participavam de uma união mais íntima e satisfatória do que qualquer comunicação física, pois o contato era de espíritos. O líquido leitoso da bacia de Iza que lhes aguçava a percepção e abria suas mentes para o Mog-ur havia igualmente permitido a ele, com sua capacidade inigualável, criar uma simbiose com a mente de Ayla.

O parto traumático que lhe prejudicara o cérebro tinha danificado apenas uma parte de sua capacidade física, não o superdesenvolvimento de sua sensibilidade psíquica, onde residia seu grande poder. Mas o velho aleijado era o derradeiro produto de sua espécie. Só nele, a natureza levara ao extremo o curso que estipulara para a raça clânica. No entanto, nessa, já não podia haver mais desenvolvimentos, se não passasse por mudanças essenciais e as suas características tinham perdido a capacidade de adaptação Tal como o gigantesco animal que veneravam e muitos outros daquele meio ambiente, também eles se achavam impossibilitados de sobreviver às mudanças radicais que então se processavam.

Aquela raça de homens que possuía uma consciência social bastante desenvolvida para cuidar e tratar de seus semelhantes quando se achavam doentes ou feridos, que já tinha também um sentido de espiritualidade suficientemente desenvolvido para enterrar os seus mortos e venerar o seu grande totem,aquela raça de homens de enormes cérebros, mas sem lobos frontais, que não fizera qualquer avanço significativo, que praticamente nenhum progresso mostrara em quase cem mil anos de existência, estava marcada para seguir o caminho do mamute lanoso e do grande urso da caverna. Eles não o sabiam, mas tinham os dias contados, estavam todos condenados à extinção. Em Creb, encontrava-se o ponto final da linha.

A sensação de Ayla era como se houvesse uma segunda corrente sanguínea sobrepondo-se à dela. A poderosa mente do grande feiticeiro explorava- lhe as convoluções de natureza diferente da dele, tentando encontrar uma maneira de infiltrar-se. O ajuste era imperfeito, mas ele achava correntes similares e, quando essas não existissem, buscava alternativas, fazendo conexões onde só havia predisposições. Com surpreendente clareza, ela subitamente compreendeu que fora ele quem a tirara do vácuo e, mais ainda, que era ele quem impedia os outros mog-urs de também entrarem em conexão com ela, de tomar conhecimento de sua presença lá. Ayla apenas percebia levemente a ligação dele com os outros feiticeiros, com os quais ela própria não estava conectada. Eles, por sua vez, sabiam que o Mog-ur estabelecera uma ligação com alguém - ou uma coisa qualquer - mas estavam longe de pensar em Ayla.

E logo que ela compreendeu que fora o Mog-ur quem a salvara e que ele continuava ainda protegendo-a, percebeu também, com profundo sentimento de reverência, o ato de canibalismo a que os feiticeiros se haviam entregue e que tanto a enojara. não chegou a apreender seu sentido em toda a extensão e nem tinha como saber que aquilo que presenciara era o ato da comunhão. O motivo das reuniões de clãs era uni-los, fazer deles um só povo. No entanto, existiam mais clãs do que somente os 10 que se achavam lá presentes. Eles sabiam da existência de outros que por viver em zonas muito afastadas não podiam fazer o percurso até o local das reuniões. Iam apenas àquelas que ficavam mais próximas de suas cavernas. Todos os povos clânicos compartilhavam da herança comum armazenada em seus cérebros e quaisquer das cerimônias celebradas nas reuniões tinham o mesmo significado para todos. Os feiticeiros acreditavam que era em benefício dos clãs que absorviam a coragem do rapaz que partira com o Espírito de Ursus, pois já que eram eles que guardavam em seus cérebros poderes especiais, teria de ser através de seu intermédio que a coragem se difundiria a toda população.

Por tradição de longa data, somente os homens podiam participar de cerimônias religiosas.

Tal era a razão da raiva e do medo do Mog-ur. A presença de uma mulher numa cerimônia, mesmo que fosse algum ofício religioso realizado rotineiramente por um clã, significava a condenação deste. E aquela não era uma cerimônia comum, mas um ritual de grande significação para todos os clãs. Ayla era uma mulher, a sua presença lá só podia significar desgraça e calamidade para todos, um fato irredinivel e irreversível.

E nem aos clãs ela pertencia. O Mog-ur agora via isto com uma clareza que não lhe era mais possível negar. No instante em que tomara consciência da presença de Ayla, compreendeu que ela não era uma mulher dos clãs. Imediatamente, viu as consequências que disso resultariam, mas era tarde demais. Seriam implacáveis, ele o sabia. Mas o crime era de tal ordem que ele não tinha idéia do que fazer com ela. Nem mesmo uma maldição de morte era suficiente. Antes de tomar qualquer decisão, quis saber mais a seu respeito e, através dela, sobre os Outros.

Ele fora surpreendido ao sentir seu grito pedindo por socorro. Os Outros eram diferentes, mas era possível que possuíssem algumas semelhanças com a raça clânica. Sentia que para o bem de seu povo ele precisava saber, além do fato de que se sentisse curioso, um tipo de curiosidade que em geral as outras pessoas não tinham. Ela sempre o intrigara. Queria saber

o que a tornava diferente - Decidiu tentar a experiência.

Procurando penetrar nos recessos mais recônditos do pensamento, o poderoso feiticeiro - controlando ao mesmo tempo os nove cérebros condizentes com o seu, que voluntariamente se submetiam a ele e, em separado, um outro, similar, mas guardando diferenças - conduziu todos de volta às origens.

Novamente, Ayla experimentou o sabor das florestas primordiais e sentiu quando esta se transformou no gosto das águas quentes. As suas recordações não eram tão nítidas quanto a dos outros. Para ela, era novo o sentimento de se ver lembrando o alvorecer da vida e a memória disto era vaga, fazendo-se ao nível do inconsciente. No entanto, as camadas mais profundas relativas aos primeiros tempos casavam com as dele. Os primórdios foram iguais, pensou o Mog-ur. Ela se viu em células individualizadas e sentiu quando estas se dividiram e se diferençaram no ambiente das águas quentes que lhe forneceram nutrientes.

Percebeu as suas células crescendo, dividindo, divergindo e se movendo com um propósito definido. Outra vez uma divergência e as tênues pulsações da vida fortaleceram, ganhando figura e forma.

Mais uma divergência e sentiu a dor da primeira explosão do ar respirado pelas criaturas num novo elemento. Uma outra divergência e a terra era rica e argilosa com a vegetação verde e florescente, onde ela cavava tocas para escapar de seres monstruosos, ameaçando esmagá-la. E mais outra divergência, viu-se salva ao estender um de seus membros por cima de uma fenda aberta na crosta da terra. Mas de repente, só calor e aridez e a sede conduzindo-a de volta à orla do mar. E ainda outra divergência, e sobre ela atuaram os vestígios de um elo perdido, deixado no mar, que lhe aumentaram a forma, a desnudaram de pêlos e lhe modificaram os contornos. Um último desvio fez com que seus primos revertessem a uma forma mais primitiva, alongada, que, no entanto, continuou a absorver ar e a alimentar com leite os seus rebentos.

E agora, achava-se ela ali, caminhando ereta, sobre duas pernas, deixando os membros dianteiros livres para manipular, possuindo dois olhos que enxergavam longe e um cérebro anterior em princípio de formação. Estava-se desviando do Mog-ur, tomando um caminho diferente, mas não tão distancia do que não desse para ele seguir-lhe a trilha que ia quase paralela. Ele rompeu o contato com os outros feiticeiros, mas esses já estavam longe demais e poderiam continuar sozinhos. E de qualquer modo já estava mesmo chegando o momento de fazer isso.

Ficaram apenas os dois ligados, o velho feiticeiro dos clã e a mocinha dos Outros. Ele já não estava mais no comando. Continuava prosseguindo na trilha de Ayla, mas ela, por sua vez, seguia-lhe também os passos. Ela viu a terra passando de quente para fria, revestindo-se de gelo, num frio muitissimo mais intenso do que o que conheciam. Era uma terra distante no espaço e no tempo, bem longe, para o lado do ocidente e ela sabia que não ficava muito afastada de um mar muito maior do que aquele que cercava a península.

Ela viu uma caverna, o lar de algum ancestral do grande feiticeiro, de alguém que se parecia muito com ele. Era um quadro nebuloso, visto através da fenda que separava as suas raças. A caverna se localizava sob um íngreme paredão, de frente a um rio e a uma larga planície. No topo do penhasco, uma enorme pedra saía nitidamente do alinhamento.

Era algo com uma coluna ou um bloco de pedra comprido e achatado, inclinando-se na beirada, como se tivesse sido ali congelado no momento em que ia despencar. A pedra vinha de outro lugar, um bloco errático, de material diferente, trazido pelo caudal das águas e tremores de terra, até se localizar na beira do penhasco que abrigava a caverna. A cena era difusa, mas estava guardada em sua lembrança.

Por um momento, foi tomada por imensa tristeza. Depois, viu-se sozinha. O Mog-ur já não podia mais segui-la. Encontrou por si mesma o caminho de volta, mas se havia adiantado um pouco no tempo. Mais uma vez, passou- lhe a visão rápida da caverna seguida por um confuso caleidoscópio de paisagens arranjadas não ao acaso na natureza, mas segundo um planejamento regular. Estruturas em forma de caixas erguendo-se da terra, compridas faixas de pedra estendendo-se em diversas direções e por onde passavam um mundo de estranhos animais em grande velocidade; enormes pássaros voando sem bater asas. E outras cenas mais, tão estranhas que não pôde compreendê-las. Em sua pressa de alcançar o presente, houve uma ligeira ultrapassagem, um pequenino avanço no tempo, exatamente até o ponto onde novamente ela deveria divergir. E, então, sua mente se tornou clara, encontrando-se atrás de um pilar e olhando para os 10 mog-urs sentados em círculo.

O Mog-ur a olhava e ela viu em seus olhos escuros a tristeza que sentira há instantes. Ele forjara no cérebro dela novos e indeléveis caminhos que lhe permitiram ter uma visão futura, mas, consigo mesmo, não podia fazer a mesma coisa. Enquanto a jovem estava tendo uma visão do porvir, ele conseguira um pequeno vislumbre, não do futuro, mas de um sentido do futuro. Um futuro que era dela, não dele.

Ele não percebia o conceito perfeitamente, mas compreendia o sentido potencial, e isso o deixava aterrado.

Creb, praticamente, não tinha o menor poder de abstração Com esforço, conseguia contar até pouco mais de 20. Era-lhe impossível fazer saltos quantitativos ou, por intuição ter algum golpe de gênio. Sua mente - e disso ele sabia - era de longe mais poderosa do que a dela, talvez mais inteligente até. Mas sua capacidade intelectual era de natureza diferente.

Podia identificar-se com as suas origens e as dela. Suas lembranças eram em maior quantidade e muito mais nítidas do que a de qualquer outro homem de sua raça. Podia, inclusive, induzir Ayla a ter lembranças. Entretanto, nela, sentia a juventude, a vitalidade de uma forma mais nova. Ela havia novamente divergido e ele não.

-Saia!

Ayla pulou, ao escutar a ordem dada em tom ríspido, surpresa de ele ter falado tão alto.

Mas em seguida, percebeu que ele não falara. Ela havia sentido, não escutado.

- Saia da caverna! Rápido. Saia, imediatamente.

Ela pulou do seu esconderijo e saiu correndo pela passagem. Algumas lamparinas já estavam apagadas, outras crepitando já quase no fim. A luz, no entanto, era suficiente para guiá-la no caminho. Nenhum som saía dos recintos onde os homens e os meninos, naquele instante, dormiam o sono sem sonhos. Ela encontrou as tochas, algumas também já apagadas, e finalmente correu para fora da caverna.

Ainda estava escuro, mas já se viam os indícios de um novo dia. Ayla tinha o pensamento claro, sem nenhum vestígio mais de droga no organismo, mas sentia-se exausta. Viu as mulheres esparramadas no chão, purgadas e exauridas. Foi deitar-se ao lado de Uba. Tal como as outras, estava também nua e também sem notar o frio da madrugada.

O Mog-ur, com passos mais lentos, saíra logo depois dela e, quando chegou à entrada da caverna, Ayla já estava entregue a um sono profundo e, como o dos outros, igualmente desprovido de sonhos. Veio até onde a moça estava e olhou para a cabeleira loura e esparramada, tão diferente da das outras mulheres quanto ela própria o era. O Mog-ur

sentiu um grande peso abatendo- se sobre sua alma. não devia tê-la deixado sair. Deveria

imediatamente tê-la levado aos homens para que pagasse por seu crime, ali mesmo e naquele instante. Mas de que adiantaria? Isso não iria desfazer a catástrofe ocasionada por sua presença na cerimônia e nem impediria os clã de sofrerem a calamidade que estaria por chegar. De que adiantaria matá-la? Ayla era apenas uma em sua espécie e, além do mais, ele a amava.

 

Goov saiu da caverna, espreguiçando-Se e esfregando os olhos, cego com o sol da manhã .Viu o Mog-ur curvado sobre uma tora, olhando fixamente para o chão. Há tantas lamparinas e tochas apagadas que alguém pode virar errado num daqueles corredores e se perder, pensou consigo. Vou perguntar ao Mog-ur se devo reencher as lamparinas e trazer outras tochas. O acólito ia na direção do feiticeiro, mas parou ao reparar no seu rosto contraído e seus ombros caindo desalentados. Talvez seja melhor não o incomodar. É melhor fazer de uma vez sem perguntar.

O Mog-ur está ficando velho, continuou Goov falando consigo, enquanto voltava à caverna levando sacolas cheias de gordura, novos pavios e algumas tochas. Nunca me lembro de que ele já está velho. A viagem até aqui foi dura e as cerimônias exigiram muito dele. E ainda há a volta. Engraçado, ia o acólito conjeturando nunca havia pensado antes nele como velho.

Alguns outros homens saíram da caverna também esfregando os olhos sonolentos. Ficaram olhando as mulheres estendidas pelo chão e, como sempre, se perguntando o que faziam elas que as deixava em tamanho estado de exaustão. As primeiras mulheres a acordar correram atrás de suas roupas e voltaram para despertar as outras, antes que mais homens aparecessem do lado de fora da caverna.

- Ayla - chamou Uba, sacudindo-a acorde. Acorde, Ayla.

- Huumm - murmurou Ayla, rolando para o outro lado.

- Ayla, Ayla! - chamou Uba outra vez, sacudindo-a com mais força. - Ebra, não consigo fazer Ayla levantar.

- Ayla! - disse a mulher com voz mais alta, sacudindo-a fortemente.

A jovem abriu os olhos e tentou gesticular uma resposta; depois, tornou a fechá-los e enroscou o corpo.

- Ayla! Ayla! - chamou Ebra novamente.

A moça abriu os olhos mais uma vez.

- Vá para a caverna e durma até passar o efeito, Ayla. Você não pode ficar aqui, os homens estão se levantando - ordenou Ebra.

Ayla foi cambaleando para a caverna. Momentos depois, veio para fora, já inteiramente acordada. Ela estava branca como cera.

- O que aconteceu? - gesticulou Uba. - Você está pálida. Parece que viu um espírito.

- Uba... Uba, a bacia - falou Ayla, deixando-se cair no chão e enterrando o rosto nas mãos.

- A bacia? Que bacia? não estou entendendo.

- Está quebrada - conseguiu por fim responder Ayla.

- Quebrada? - disse Ebra. - E por que uma bacia quebrada vai botá-la nesse estado? Você pode fazer outra.

- não Não posso. não como essa. É a bacia de Iza, aquela que veio da mãe dela.

- A bacia da mãe? A bacia de cerimônias? - perguntou Uba, com o rosto aflito.

Depois do uso de muitas gerações, a madeira da antiga relíquia perdera a resistência, tornando-se seca e quebradiça. Sob a pátina branca, formara-se uma linha fina que passara despercebida e, agora, com o choque no chão de pedra, quando caiu da mão de Ayla, a madeira não resistiu e partiu em dois pedaços.

Ayla não percebeu que Creb havia olhado para cima no momento em que ela saía da caverna. A sagrada bacia quebrada veio dar uma lúgubre nota final aos pensamentos do feiticeiro. Tudo se casava. Nunca mais a mágica produzida com aquelas raízes voltará a ser feita. Nunca mais realizarei uma cerimônia com essa bebida e não vou ensinar a Goov o modo de usá-la. Os clãs vão esquecê-la. O velho aleijado apoiou-se pesadamente sobre o cajado e se levantou, sentindo pontadas de dor nas juntas tomadas pela artrite. Já fiquei muito tempo sentado dentro de cavernas úmidas, chegou o tempo de Goov assumir. Ele ainda está moço para isso, mas eu estou muito velho. Se puxar por ele, pode ser que esteja preparado daqui a um ou dois anos. Bom, tem de estar. Quem sabe quanto tempo ainda vou viver?

Brun reparou na mudança por que havia passado o velho feiticeiro. Imaginava que a depressão fosse causada pela queda natural que se segue a períodos de actividades intensas; principalmente sendo aquela sua última reunião de clã. Contudo, Brun preocupava-se.

Não sabia como Creb iria resistir à volta. Certamente, ele iria atrasar-lhes a marcha. Antes de ir embora, Brun resolveu pegar seus caçadores e fazer uma última incursão pelos terrenos próximos à caverna, para depois trocar carne fresca por determinados tipos deprovisões que o clã anfitrião tinha estocado, de modo a aumentar o suprimento deles para a viagem de volta.

Depois de uma caçada bem-sucedida, Brun ficou com pressa de partir logo. Alguns clãs já haviam ido embora. Uma vez terminadas as festividades, seu pensamento se voltou para sua caverna e as pessoas que lá ficaram, mas ele estava de moral elevado. Nunca fora tão grande a disputa por sua posição o que tornava a vitória ainda mais saborosa. Achava-se contente consigo mesmo, contente com seu clã e contente com Ayla. Ela era uma boa curandeira. Ele já tivera prova disso antes. Quando a vida de alguém se achava ameaçada, ela se esquecia de tudo, tal como Iza.

Ele sabia que o Mog-ur contribuíra, procurando convencer os outros feiticeiros, mas fora Ayla por ela mesma quem demonstrara seu valor ao salvar a vida do jovem caçador. Este e sua companheira iriam permanecer com o clã anfitrião até que ele estivesse suficientemente bem para poder viajar, talvez tivessem de passar o inverno todo lá.

O Mog-ur, afora uma única vez, jamais falou da presença de Ayla na câmara dos feiticeiros. Ela estava fazendo os embrulhos, preparando para a partida na manhã do dia seguinte, quando Creb entrou na segunda caverna. Ele a estava evitando, e isso a deixava muito sentida. Ao vê-la, Creb parou brus camente e se virou para ir embora, mas Ayla lhe cortou a frente, jogando-se sentada a seus pés. Ele olhou para sua cabeça abaixada e, soltando um suspiro, bateu-lhe no ombro.

- O que você quer, Ayla? - gesticulou ele.

- Mog-ur, eu... eu - começou ela desajeitada e prosseguindo apressada. - Oh, Creb, Não aguento vê-lo sofrendo desse jeito. O que posso fazer? Se você quiser, vou procurar Brun. Faço tudo o que você pedir. Apenas me diga o que tenho de fazer.

O que você pode fazer, Ayla? pensou ele. Pode mudar sua natureza? pode reparar o mal que causou? Os clãs vão morrer e só restará você e sua gente. Somos um povo antigo, guardamos as nossas tradições, honramos os espíritos e veneramos o Grande Ursus, mas para nós terminou, está tudo acabado. Talvez tivesse de ser assim. Talvez não fosse você, mas sua espécie. Será que foi por isso que você foi enviada a nós? Para me dizer? A terra em que vivemos é bela e rica. Por muitas e muitas gerações, ela nos deu de tudo o que precisávamos. E agora chegou a vez de vocês e veremos como irão dei xá-la. O que pode fazer, ayla?

- Há uma coisa que você pode fazer, Ayla - gesticulou o Mog-ur de vagar, dando ênfase a cada movimento. Seu olho tinha uma expressão fria. - Você pode nunca mais voltar a tocar nesse assunto.

Ele se pôs ereto, tanto quanto lhe possibilitava sua perna sadia, tentando não inclinar muito o corpo sobre o cajado. Em seguida, enfeixando nele todo o orgulho de seu povo, deu as costas e, com o corpo teso, cheio de dignidade, caminhou para fora da caverna.

- Broud!

O rapaz, num passo empertigado, dirigiu-Se ao homem que o cumprimentava. As mulheres do clã de Brun preparavam, apressadas, a refeição da manhã. Haviam programado partir logo depois que tivessem comido e os homens aproveitavam ainda aqueles últimos momentos para conversar. Durante sete anos ficariam sem se ver. Alongavam-se nas conversas, tevivendo alguns detalhes emocionantes da reunião, de modo a fazê-la durar mais um pouco.

- Você se saiu muito bem desta vez, Broud, e já na próxima reunião de verá vir como chefe.

- Na próxima, você também vai se sair muito bem - gesticulou Broud, inflado de orgulho. - Tivemos sorte.

- Você é um homem de sorte. Seu clã é o primeiro, o mog-ur de vocês também é o primeiro e até a curandeira é a primeira. Sabe, Broud, vocês têm sorte de ter Ayla. Nenhuma curandeira iria enfrentar um urso da caverna para salvar a vida de um caçador.

Broud franziu ligeiramente o cenho. Viu, então, Voord e se dirigiu a ele.

- Voord! - acenou, cumprimentando. - Fiquei contente por ter sido você o escolhido e não Nouz. Ele esteve bem, mas sem dúvida você foi melhor.

- E você mereceu a primeira escolha, Broud. Você também fez uma bela corrida. Aliás, seu clã todo merece o primeiro lugar. Até sua curandeira é a melhor, apesar de que, no princípio, eu tivesse minhas dúvidas. Quando você for o chefe, ela será uma boa curandeira para se ter por perto. Só espero que não cresça muito mais. Aqui entre nós, eu me sentiria meio sem graça tendo que levantar os olhos para fitar uma mulher.

- É verdade, ela é muito alta - falou Broud, contrafeito.

- Mas isso não tem importância. O que interessa é que ela seja boa curandeira, certo?

Broud mal assentiu com a cabeça, desconversou e logo depois se afastou. Ayla, Ayla! Já estou começando a ficar farto de Ayla, disse consigo, encaminhando-se para um lugar mais vazio.

- Broud, eu queria conversar com você, antes de partirem - disse um homem, vindo a seu encontro. - Você sabe que tenho no meu clã uma mulher com uma filha deformada parecida com o filho de sua curandeira. Falei com Brun e ele concordou em aceitá-la, mas Brun quis que eu falasse com você também. Quando chegar a ocasião, muito provavelmente você será o chefe. A mãe prometeu educar a filha para ser uma boa mulher, digna do primeiro clã e do filho da primeira curandeira. Você não tem nada a opor, não é?

Seria essa uma união perfeitamente lógica.

- não - respondeu Broud secamente, rodando nos calcanhares. Se não estivesse com tanta raiva, poderia ter objetado, mas não queria entrar em nenhuma discussão sobre Ayla naquele momento.

- A propósito, foi uma boa corrida, Broud.

Ele não viu o comentário, já estava de costas. Enquanto caminhava para a caverna, viu duas mulheres entregues a uma animada conversa. Sabia que devia desviar os olhos para não ver o que diziam, mas foi em frente, fingindo não reparar.

-... simplesmente não acreditava que fosse possível ela ser uma mulher dos clãs e quando vi seu filho então . . mas o modo como ela foi caminhando direto para Ursus, parecia até que fosse alguém do clã anfitrião, sem mostrar nenhum medo dele ou de qualquer coisa. Eu não conseguiria fazer isso.

- Conversei um pouco com ela. É uma pessoa muito agradável e se comporta como todo mundo. Mas não consigo deixar de ficar pensando... será que ela vai conseguir encontrar um companheiro? É muito alta. Qual o homem que quer uma mulher mais alta do que ele? Mesmo que seja a primeira curandeira.

- Alguém me disse que um dos clãs está estudando esse assunto, mas não houve tempo para que se acertassem os detalhes. Em todo caso, querem conversar sobre isso. Disseram que enviariam um mensageiro, se resolvessem aceitá-la.

- Disseram-me também que estão morando numa nova caverna. Parece que foi ela quem encontrou e dizem que é uma caverna muito grande e que trouxe muita sorte para eles.

- Deve ficar perto do mar e os caminhos que levam até lá estão muito visíveis. Imagino que um mensageiro esperto possa achá-los com facilidade.

Broud passou por elas, contendo-se para não dar uns cascudos nas duas tagarelas preguiçosas. Mas nem uma nem outra eram de seu clã. Apesar de ser um direito seu disciplinar qualquer mulher, não era de boa política bater em alguém sem ter a permissão do companheiro ou do chefe, a não ser que a Infração fosse extremamente grave. Aquilo podia ser grave para ele e para outro já não ser.

- Nossa curandeira disse que ela é muito jeitosa - dizia Norg a Brun, enquanto Broud entrava na caverna.

- Bom, você sabe, ela é filha de Iza - falou Brun. - E Iza soube prepará-la muito bem.

- Pena Iza não ter vindo. Soube que está doente.

- É verdade, e essa é uma das razões que me fazem querer chegar lá de pressa. Temos um longo caminho pela frente. Sua hospitalidade foi maravilhosa, Norg, mas a caverna da gente é que é a nossa casa. Esta foi uma das melhores reuniões de clãs a que já assisti. Por muito tempo será lembrada - disse Brun.

Broud virou de costas com os punhos cerrados, antes de ver o cumprimento que Norg lhe estava dirigindo. Ayla, Ayla, sempre Ayla. Todo mundo só fala dela. Chega a parecer que ninguém fez nada nesta reunião a não ser ela. Foi por acaso ela quem teve a honra de ser escolhida em primeiro lugar? Quemestava montado na cabeça do urso, enquanto ela se achava bem protegida no chão? E daí que tivesse salvo a vida daquele caçador? Provavelmente ele nunca voltará mais a andar. Ela é feia, é alta demais e tem um filho deformado. Essa gente devia saber como sabe ser insolente quando está em casa.

Precisamente nesse instante, Ayla passou, apressada, carregando diversas trouxas. Havia tanto ódio no olhar que Broud lhe dirigiu que ela chegou a encolher o corpo. O que será que fiz agora? perguntou-se ela. Mal pus os olhos em Broud durante todo esse tempo que passamos aqui.

Broud era agora um homem feito, mais parrudo do que qualquer outro, e a ameaça que ele representava era muito maior do que simplesmente os estragos que podia fazer com sua enorme força física. Era o filho da companheira do chefe e destinado a ocupar essa posição algum dia. Ele pensava intensamente nisso enquanto observava Ayla botar as trouxas no chão do lado de fora da caverna.

Depois de todos terem acabado de comer, as mulheres rapidamente ensacaram os poucos utensílios usados na refeição. Brun estava impaciente para partir e também elas. Ayla despediu-se de algumas curandeiras, da companheira de Norg e de mais algumas outras mulheres. Enfiou o filho na manta de carregar e foi tomar o lugar que lhe era destinado durante a marcha. Brun deu o sinal e começou a atravessar a área em frente da caverna.

Antes de fazer a curva no caminho, ele parou e todos se viraram para olhar uma última vez.

Norg e todo seu clã estavam de pé na entrada.

- Que Ursus os acompanhe - gesticulou Norg.

Brun fez que sim com a cabeça e se pôs outra vez em marcha. Teriam ainda que transcorrer sete anos para tornarem a ver Norg, ou quem sabe, talvez nunca mais. Só o Espírito do Grande Urso da Caverna saberia dizê-lo.

Tal como Brun imaginara, a viagem estava sendo difícil para Creb. Já sem o sentimento de expectativa para animá-lo e muito deprimido com o segredo que ele guardava e que não parava de remoer em pensamento, volta e meia seu corpo o traía. A preocupação de Brun aumentava, ele nunca vira o grande feiticeiro tão desalentado. Estava sempre ficando para trás. Brun frequentemente tinha que enviar um caçador atrás dele, enquanto ficavam à sua espera. O chefe diminuiu o passo, esperando com isso facilitar a marcha, mas Creb parecia não se importar. As poucas cerimônias noturnas, realizadas por insistência de Brun, careciam de força. O Mog-ur mostrava-se hesitante, com os gestos contrafeitos, como se o coração não estivesse ali. Brun notou também que Creb e Ayla mantinham distância um do outro e que, embora ela não tivesse dificuldade em acompanhar o ritmo da marcha, faltava-lhe vivacidade nos passos. Há alguma coisa errada com esses dois, pensou.

Haviam levado quase toda a manhã passando por entre um capim alto e já meio murcho. Brun olhou para trás e Creb não estava à vista. Ele ia fazer sinal a um dos homens, depois mudou de idéia e caminhou até Ayla.

- Volte e encontre o Mog-ur - gesticulou.

Ela pareceu surpresa, depois assentiu com a cabeça. Entregou Durc a Uba e correu de volta passando pela trilha feita no capim com as pisadas deles. Achou Creb muito atrás, caminhando devagar e se apoiando pesadamente sobre o cajado. Parecia estar sentindo dor.

Quando ela o havia procurado, cheia de remorso e afeto, ficara tão espantada com a resposta que ele dera, que depois disso não soube mais o que lhe falar. Tinha certeza de que ele agora estava padecendo com seu doloroso reumatismo nas juntas. Havia recusado tu do quanto lhe oferecera para aliviar as dores, e ela, depois de se ver repelida umas tantas vezes, deixara de insistir, embora morresse de pena dele. Ao vêla, ele parou.

- O que você está fazendo aqui?

- Brun me mandou procurá-lo.

Creb rosnou qualquer coisa e começou a andar. Ayla ia atrás dele. Obser vava suas passadas lentas e dolorosas, até que não aguentou mais. Passou-lhe, então à frente, arrojando-se a seus pés, obrigando-o a parar. Creb ficou olhando-a por muito tempo, até que por fim lhe bateu no ombro.

- Esta mulher gostaria de saber por que o Mog-ur está zangado.

- não estou zangado, Ayla.

- Então por que você não me deixa ajudá-lo? - perguntou a jovem, suplicando. - Antes, o Mog-ur nunca recusou. - Esforçava-se por manter a calma. - Esta mulher é uma curandeira, ela está preparada para ajudar aqueles que sofrem. É esse o seu dever e o seu ofício. Dói a esta mulher ver o Mog-ur sofrendo e não poder ajudar - ao dizer isso já não conseguiu mais manter a postura formal. - Oh, Creb, deixe-me ajudá-lo. Você não sabe que eu gosto de você? Que para mim você é como o companheiro de minha mãe? Você tem me sustentado, falado por mim, eu lhe devo a minha vida. não sei por que você deixou de gostar de mim, mas não deixei de gostar de você. - As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, num desespero sem fim.

Por que será que sempre surge água nos seus olhos, quando acha que não gosto dela? E por que será que essa fraqueza de olhos sempre me leva a fazer alguma coisa por ela. Será que todos os Outros também têm o mesmo problema? Ela tem razão. Nunca me importei que ela me ajudasse antes, por que iria agora me incomodar? Ela não é uma mulher dos clãs.

Que pensem o que quiserem, mas não é. Nasceu dos Outros e sempre será deles. Ela mesma não sabe disso. Pensa que é uma mulher dos clãs pensa até que é curandeira. Curandeira é.

Pode não ser da linha de Iza, mas é curandeira e tem tentado ser como uma de nossas mulheres, por mais difícil que isso às vezes possa ser para ela. Gostaria de saber até que ponto isso lhe custa. Esta não é a primeira

vez que aparece água em seus olhos, mas quantas vezes não terá lutado para evitar que isso acontecesse? Sempre surge, quando acha que não gosto dela. Será que é uma coisa que pode magoá-la tanto assim? Até que ponto eu me sentiria também magoado, se achasse que ela não gostava de mim? Creb tentava vê-la como uma estranha, como uma mulher do Outros, mas ela continuava sempre sendo Ayla, a filha da companheira que não teve.

- É melhor nos apressarmos, ayla. Brun está esperando. Enxugue seus olhos e, quando fizermos uma parada, você pode preparar-me um chá de salgueiro, ouviu, curandeira?

Um sorriso surgiu em meio às lágrimas. Ela levantou e se pôs outra vez atrás dele. Depois de alguns passos, foi ficar do seu lado. Ele parou por um momento, meneou a cabeça e se apoiou nela.

De imediato, Brun reparou na mudança ocorrida e retomou o passo da marcha, mas sem a presteza que gostaria. Havia um ar de melancolia em Creb. contudo parecia que ele se empenhava mais. Eu sabia que devia estar havendo qualquer coisa com esses dois, disse Brun consigo. Mas parece que deram um jeito de resolvê-la entre eles. Sentia-se satisfeito por ter tido a idéia de mandar Ayla atrás do velho feiticeiro.

Creb deixava que Ayla o ajudasse, mas continuava havendo um distanciamento entre os dois. Fora uma ruptura grande demais para que ele pudesse facilmente dar a volta por cima.

Não conseguia esquecer a diferença de seus destinos, e isso esfriava a relação calorosa de outros tempos.

Enquanto avançavam em seu caminho de volta à caverna, fazia calor durante o dia, mas as noites começavam a ficar frias. A primeira visão das montanhas enciniadas de neve, vista longinquamente a oeste, trouxe novo alento ao clã mas sentiam as distâncias sendo diminuídas devagar e, com o passar dos dias, a cadeia de montanhas no sul da península acabou se tornando uma parte do cenário. Estavam fazendo progressos, ainda que de modo imperceptível. Os dias iam se sucedendo enfadonhamente, enquanto prosseguiam rumo oeste, com as geleiras já então bem caracterizadas por suas profundas rachaduras azuis e os picos avermelhados assumindo as formas das serras e afloramentos.

Eles haviam forçado a marcha até começar a escurecer, quando acamparam pela última vez na planície e já estavam todos acordados com as primeiras luzes do dia seguinte. Os terrenos das estepes fundiam-se com um par que de árvores altas, e a vista de um rinoceronte comedor de pastagens das regiões temperadas, que, sem se dignar a tomar conhecimento da presença deles, prosseguiu no seu caminho, trouxe-lhes a sensação de estar em casa. Ao chegar a uma trilha serpenteando o sopé das colinas, apertaram o passo. Por fim, contornaram o conhecido morro de todos os dias e, com os corações batendo alto, viram a caverna. Estavam em casa.

Aba e Zoug correram ao encontro deles. Aba, cheia de alegria, cumprimentou a filha e Droog, abraçando, em seguida, as crianças mais velhas e depois botou Groob no colo. Zoug fez um cumprimento de cabeça na direção de Ayla e correu para Grod e Ika, e logo depois para Ovra e Goov.

- Onde está Dorv? - gesticulou Ika.

- Está agora caminhando no mundo dos espíritos - respondeu Zoug. - Sua visão ficou tão ruim que já não podia ver o que as pessoas estavam lhe dizendo. Acho que ele se deu por vencido e não quis esperar pela volta de vocês. Quando os espíritos vieram chamá-lo, foi junto com eles. Enterramos Dorv e marcamos o lugar para que o Mog-ur realizasse mais tarde as cerimônias fúnebres.

Ayla, de repente aflita, olhou em derredor.

- Onde está Iza?

- Ela está muito doente, Ayla - respondeu Aba. - Desde a última lua nova que não sai da cama.

- Iza! não Iza! não Não - gritou Ayla, correndo para o interior da caverna. Ao chegar à fogueira de Creb, atirou ao chão as trouxas e correu para junto de Iza, deitada sobre suas peles.

- Iza, Iza! - chamou, em voz alta.

A velha curandeira abriu os olhos.

- Ayla - falou Iza, com sua voz áspera que mal se ouvia. - Os espíritos atenderam os meus desejos - gesticulou, debilmente. - Vocês estão de volta. - Estendeu os braços e Ayla a abraçou, sentindo-lhe o corpo magro e fraco, quase só pele e osso. Os cabelos estavam como a neve, e o rosto enco vado, com os olhos afundados, era um pergaminho seco distendido sobre os ossos. Parecia infinitamente mais velha e tinha pouco mais de 26 anos.

Ayla mal podia enxergar com as lágrimas escorrendo-lhe pelas faces.

- O que eu tive de ir fazer nesta reunião de clãs. Devia ter ficado aqui e tomado conta de você. Sabia que você estava doente, por que tive de ir em bora, sabendo que você iria ficar sozinha aqui?

- Não, não, Ayla - gesticulou Iza. - não se culpe. Você não pode mudar aquilo que tem de acontecer. Eu sabia que estava morrendo quando vocês partiram. Você não ia poder ajudar e ninguém iria também poder. A única coisa que desejava era ainda ver vocês todos mais uma vez, antes de istar-nie aos espíritos.

- Você não pode morrer! não vou deixar que morra, Iza. Cuidarei de você. Vou fazer com que fique boa - gesticulou Ayla, em desespero.

Ayla, Ayla. Há coisas que nem a melhor das curandeiras é capaz de fazer.

O esforço para falar trouxe-lhe um acesso de tosse. Ayla apoiou o corpo de Iza até que a tosse se acalmasse e depois enfiou sua capa de pele por baixo da doente para levantar-lhe o corpo e facilitar a respiração Em seguida, passou a dar uma busca nos remédios que se achavam por perto da cama

- não estou vendo nenhuma ênula por aqui. Onde está?

- Acho que acabou - respondeu, fracamente, Iza. O acesso a deixara exausta. - Tive de usar o que tinha e não pude sair para pegar mais. Aba tentou encontrar, mas acabou trazendo girassóis.

- Eu não devia ter ido - falou Ayla. Em seguida, saiu correndo para fora da caverna, encontrando na entrada Uba com Durc no colo e Creb.

- Iza está muito doente - gesticulou Ayla, completamente transtornada. - E nem remédio tem para tomar. Vou buscar alguns pés de ênula. Ela também está sem fogo, Uba. Por que fui para essa reunião de clã Devia ter ficado aqui com ela. Por que tive de sair daqui?

- Seu rosto, com uma expressão sombria e sujo da viagem, estava riscado de lágrimas, mas ela não havia reparado e tampouco se importava. Desceu às carreiras pela encosta, enquanto Creb e Uba entraram apressados na caverna.

Ayla atravessou o riacho, correu à clareira onde davam as ênulas e com a mão mesmo cavou a terra, arrancando as plantas pelas raízes. De volta, parou no riacho, apenas o tempo suficiente para lavá-las.

Uba já acendera a fogueira, mas a água que pôs para ferver estava apenas morna. Creb, de pé, fazia gestos ritualísticos sobre Iza, fervorosamente, empenhando-se de uma maneira como há muitos dias não o fazia. Invocava cada um dos espíritos que conhecia, implorando-lhes que fortalecessem a essência da vida de Iza e que não a levassem ainda.

Uba havia posto Durc sobre a esteira. O bebê começava a engatinhar, firmando-se sobre as mãos e joelhos e escapulira para o lado da mãe, ocupada cortando as raízes em pedaços, mas ela o afastou quando viu que o garoto queria mamar. não tinha tempo para o filho. Ele se pôs a berrar, enquanto ela despejava as raízes dentro da água, impaciente, pondo mais pedras para que fervesse logo.

- Deixe-me ver Durc - gesticulou Iza. - Ele cresceu tanto!

Uba levou-o até a mãe, botando o bebê no colo dela. Mas o menino não tinha vontade de ser ninado por uma velha de quem não se lembrava e esperneou pedindo para descer.

- Está forte e sadio - disse Iza. - Parece que já não tem nenhum problema para firmar a cabeça sobre o pescoço.

- Já tem até uma companheira - contou Uba. - Um bebezinho que lhe foi prometido.

- Uma companheira? Que clã é esse que prometeu uma companheira para ele? tão pequenino e ainda por cima com este defeito.

- Havia uma mulher na reunião que teve uma filha deformada. Ela veio conversar conosco no primeiro dia - explicou Uba. - O bebê até parece com Durc, pelo menos a cabeça é parecida. As feições não tanto. A mãe perguntou se eles no futuro não poderiam ser companheiros. Oda estava preocupada, com medo de que a filha nunca fosse encontrar um homem em sua vida. Brun e o chefe do clã dela se puseram de acordo. Acho que ela vem para cá, depois da próxima reunião de clãs, mesmo que ainda não tenha ficado mulher. Ebra disse que a menina podia viver com eles, até que os dois tivessem idade para ter uma fogueira. Oda ficou muito feliz, principalmente depois que Ayla fez a bebida para a cerimônia.

Quer dizer que aceitaram Ayla como uma curandeira de minha linha. Tinha minhas duvidas de que isso pudesse acontecer - gesticulou Iza, cansada; mas só de ver as pessoas queridas à sua volta já a animava, pelo menos o espírito. Fez uma pausa e depois perguntou: - Qual o nome da menina?

- Ura - respondeu Uba.

- Gosto do nome. Soa bem. - Tornou a fazer outra pausa e, em seguida, indagou: - E Ayla? não encontrou um companheiro na reunião?

- O clã onde Zoug tem parentes está pensando no caso dela. No princípio, eles recusaram, mas, depois que ela foi aceita como curandeira, disseram que iam pensar no assunto. não houve tempo para que as coisas ficassem acertadas. Eles podem aceitar Ayla, mas não acredito que vão querer Durc.

Iza respondeu só com um sinal afirmativo de cabeça e depois fechou os olhos.

Ayla triturava carne para fazer um caldo para Iza, ao mesmo tempo em que vigiava a água fervendo com as raízes, de modo que a infusão ficasse com a cor e o sabor corretos, impaciente para que ficasse logo pronto. Dure, lamuriando-se, engatinhou para junto dela e novamente ela tornou a repeli-lo.

- Deixe que eu fico com ele, Uba - falou Creb.

Por um instante, Dure ficou quieto sentado no colo do velho, intrigado com sua barba. Mas logo se cansou e começou a esfregar os olhos, lutando para se desvencilhar. De novo no chão, foi direto para a mãe. Estava com sono e fome. Ayla, de pé junto da fogueira, parecia não reparar no bebê choramin gando, querendo subir-lhe pelas pernas. Creb se levantou, deixou cair o cajado e fez sinal a Uba para que pusesse o menino no seu braço. Mancando muito, sem ter onde se apoiar, dirigiu-se para a fogueira de Broud e botou Durc no colo de Oga.

- Durc está com fome e Ayla está ocupada preparando remédios para Iza. Será que você pode dar leite para ele, Oga?

A moça disse sim. Pegou Durc e foi logo dando o peito para o bebê. Broud franziu a cara, mas bastou um olhar duro do Mog-ur para que imediatamente engolisse em seco sua raiva.

Seu ódio por Ayla não se estendia ao homem que a protegia e sustentava. Broud temia demais o Mog-ur para que pudesse ter-lhe ódio. Bem cedo em sua vida, havia descoberto que a sagrada figura do feiticeiro raramente interferia na vida secular do clã. Suas actividades restringiam-se ao mundo dos espíritos. Nunca o Mog-ur impediraBroud de exercer seu poder sobre a jovem que compartilhava de sua fogueira,mas assim mesmo o rapaz não desejava entrar em conflito aberto com o feiticeiro.

Creb, de volta à sua fogueira, começou a revirar as trouxas caídas pelo chão, procurando pela bolsa contendo a gordura do urso da caverna, a parteque lhe tocara na cerimônia do animal. Uba percebeu e se apressou em ajudá-lo. Ele pegou a bolsa contendo a gordura derretida e foi para a gruta dos espíritos. Embora sabendo que não havia qualquer esperança, iria valer-se de toda a mágica a seu alcance para ajudar Ayla a manter Iza viva.

Às raízes por fim ferveram pelo tempo necessário, e Ayla encheu umacuia com o líquido, agora impaciente, esperando que esfriasse depressa. Iza de certa forma havia se reavivado um pouco com o caldo quente que ela lhe dera antes, em pequenos goles e amparando-lhe a cabeça, com os mesmos cuidados que ela própria recebera quando tinha cinco anos e estava à beira da morte. Iza, antes de ficar de cama, estava comendo muito pouco e, depois, praticamente não se alimentou mais. A comida levada para ela ficava intacta. Aquele fora um verão triste e solitário. Sem ninguém por perto para vigiá-la e secertificar de que tinha comido, ela quase sempre se esquecia ou simplesmente não se dava ao incômodo. Os outros três, quando perceberam que ela estava muito caída, tentaram ajudar, mas não sabiam como.

Quando o fim de Dorv estava próximo, Iza se levantou, mas o membro mais velho do clã teve uma morte rápida e pouca coisa ela pôde fazer por ele, afora tentar trazer-lhe um pouco de conforto. Essa morte deixou-os profundamente abatidos. Depois que Dorv se foi, a caverna parecia mais vazia ainda, fazendo lembrá-los do quanto também estavam perto de passar para o outro mundo. Aquela foi a primeira morte, desde o terremoto.

Ayla achava-se sentada perto de Iza, soprando o chá na cuia de osso e,de vez em quando, provando para ver se já estava suficientemente frio. Estava tão concentrada que não percebeu quando Creb saiu com Durc ou quandoo feiticeiro se retirou para a pequena gruta dos espíritos, tampouco via que

Brun se achava lá observando-a. A jovem ouvia o barulho da respiração de Iza e sabia que o fim estava próximo, mas se recusava a acreditar. Procurava lembrar-se de tudo quanto fosse formas de tratamentos.

Um cataplasma de casca de bálsamo, pensou. Sim, isso é bom e também chá de milefólio. Aspirar o vapor também ajuda a melhorar bastante. Amoras e avencas. Não, isso é para gripes sem gravidade. Raízes de bardana? Talvez. Farinha de inhame? Claro, e as raízes são melhores justamente no outono. Estava decidida a encher Iza de chás, cobri-la de cataplasmas e, se necessário, afogá-la em vapores. Tudo e qualquer coisa que prolongasse a vida de sua mãe, a única mãe que conhecera. não suportava a idéia de Iza morrer.

Apesar de Uba estar inteiramente consciente da gravidade da moléstia de sua mãe ela notara a presença de Brun. Não era comum homens visitarem fogueiras de um outro, na ausência do dono, e isso a deixava nervosa. A menina se apressou a catar as trouxas espalhadas pela fogueira, olhando, ora para Brun, ora para sua mãe e para Ayla. Sem ninguém para orientá-la e lhe dizer o que fazer, não sabia como conduzir a visita de Brun. Ninguém tomou conhecimento da presença dele e nem o cumprimentou. O que se esperava que ela fizesse?

Brun observava o trio de mulheres. A velha curandeira; a jovem de caráter forte e primeira curandeira dos clã apesar de ser inteiramente diferente deles, e Uba, destinada também ao mesmo ofício. Ele sempre fora muito apegado à sua germana. Iza tinha sido a menina mimada, querida de todos e também muito bem-vinda, uma vez que havia nascido um garoto forte e saudável para dar continuidade à linhagem de chefes de clã. Ele sempre se

sentiu também como protetor de Iza. Jamais teria escolhido o homem que lhe foi destinado para companheiro. Nunca gostara dele, um fanfarrão que ridicularizava o seu irmão aleijado. Iza não tinha outra alternativa, mas soube manobrar bem a situação. Contudo, havia conseguido ser um pouco mais feliz depois que o companheiro morreu. Ela era uma boa mulher e uma boa curandeira. O clã irá sentir sua falta.

A filha de Iza está crescendo, pensou, observando-a. Logo Uba estará uma mulher. Devo ir começando a pensar num companheiro para ela. Terá de ser um bom homem, alguém com quem combine. O caçador será melhor, se sua companheira lhe for devotada. Mas, à exceção de Vorn, quem mais poderá ser? Tenho também de pensar em Ona, que não pode

ser companheira de Vorn, já que os dois são germanos. Ela terá de esperar até Borg tornar-se homem. Se Ona ficar mulher cedo, pode ser que tenha filho antes de Borg estar pronto para assumir companheira. Talvez eu tenha de puxar um pouco por ele. Borg é mais velho do que Ona. Logo que ele começar a aliviar suas necessidades, terá idade bastante para assumir o status de homem. Será que Vorn dará um bom companheiro para Uba? Droog tem sido boa influência para ele. Talvez haja uma atração entre os dois. Vorn gosta de se pavonear diante dela. Brun tomou nota em sua cabeça de todos esses pensamentos para futuras referências.

O chá de raiz de ênula esfriou e Ayla carinhosamente acordou Iza, apoiando-lhe a cabeça enquanto lhe dava o remédio. não creio que desta vez você consiga botá-la de pé, Ayla, disse Brun consigo, reparando na magreza de Iza. Como ela envelheceu tão depressa assim? Era a mais moça de nós três e agora parece mais velha do que Creb! Eu me lembro da ocasião em que ela encanou meu braço, não devia ser muito mais velha do que Ayla quando tratou do de Brac. Só que nesse tempo Iza já era mulher e tinha companheiro.

Ela também fez um bom trabalho. Nunca me trouxe problemas, a não ser al gumas pontadas ultimamente. Também estou ficando velho. Meus dias de caçador logo irão acabar e vou ter de passar o comando para Broud.

Será que ele está preparado para isto? Na reunião de clãs, portou-se tão bem que quase cheguei a renunciar. Broud é corajoso. Todo mundo me disse que sou um homem de sorte.

E realmente sou, tinha medo de que ele fosse escolhido para acompanhar Ursus. Seria uma honra, mas prefiro passar sem ela. Gorn era um bom homem. Foi duro para o clã de Norg.

Sempre é terrível quando Ursus escolhe. Às vezes, é uma sorte não ser agraciado com tal honraria; o filho de minha companheira ainda está caminhando neste mundo. E Broud é destemido, talvez até demais. Um pouco de ousadia e imprudência ficam bem em rapazolas, mas um chefe de clã tem de ser prudente. Precisa pensar em seus homens. Precisa planejar e avaliar tudo de modo que as caçadas sejam bem-sucedidas, sem que os homens se arrisquem desnecessariamente. Talvez eu devesse deixar Broud dirigir algumas caçadas, para que ele fosse adquirindo experiência. Precisa aprender que um chefe, mais do que ter coragem, tem de saber conduzir. É necessário responsabilidade e autocontrole.

E o que dizer de Ayla que faz vir à tona tudo que existe de ruim nele? Ele se rebaixa competindo com ela. Ayla pode ser um pouco diferente, mas não deixa de ser mulher. E ela é uma mulher de valor, com muita determina ção. Será que o parente de Zoug vai assumi-la? Agora que estamos acostumados com sua presença, isso aqui vai ficar estranho sem ela. É uma boa curandeira também. O clã que contar com ela só tem a ganhar. Farei tudo o que puder para que eles saibam dar-lhe o devido valor. Veja agora, nem o filho, o filho que ela estava pronta para acompanhar ao outro mundo, consegue desviar sua atenção de Iza. Muito pouca gente enfrentaria um urso da caverna para salvar a vida de um homem.

Ela também é corajosa, mas aprendeu a controlar-se. Comportou-se muito bem na reunião. Em todos os sentidos, portou- se como uma verdadeira mulher, diferente de quando era mais criança. Todo mundo só teve elogios para ela, quando chegou no final.

- Brun - chamou Iza, com voz fraca. - Uba, traga chá para o chefe - gesticulou, tentando sentar-se ereta. Ainda era a perfeita dona-de-casa. -ayla, arrume uma pele para Brun se sentar. Esta mulher lamenta não poder ela mesma servir o chefe.

- Iza, não se incomode. não vim para tomar chá. Estou aqui para vê-la- gesticulou Brun, sentando-se ao lado da cama dela.

- Há quanto tempo você está de pé aí? - perguntou Iza.

- Cheguei há pouco. Ayla estava ocupada. Preferi não incomodar e esperar que ela terminasse o que estava fazendo. Sentiram sua falta na reunião, Iza.

- Tudo correu bem?

- Este clã continua sendo o primeiro. Os caçadores se portaram bem. Broud teve a honra de ter sido o primeiro escolhido para a Cerimônia de Ursus, e Ayla também se portou muito bem. Recebeu vários elogios.

- Elogios! Quem precisa de elogios? Quando são demais, os espíritos ficam com ciúme. Se ela se portou direito e honrou o nome do clã, é o quanto basta.

- Ela se comportou como uma perfeita mulher e também foi aceita pelos mog-urs. Ayla é sua filha, Iza, como esperar menos?

- Sim, ela é minha filha, tanto quanto Uba. Tive sorte de os espíritos me concederem duas filhas e ambas ser boas curandeiras. Ayla poderá terminar a educação de Uba.

- não - interrompeu Ayla. - Você é quem vai terminar de educar Uba. Você vai ficar boa. Nós estamos de volta e vamos cuidar de você. Vai sarar, espere e verá - gesticulou aflita, em desespero. - Você tem de ficar boa, mãe.

- Ayla, minha filha, os espíritos estão prontos para me receber. Logo vou ter de acompanhá-los. Eles já atenderam meu último desejo que era o de ver as pessoas que amo. Agora, não posso deixar que eles fiquem esperando por muito mais tempo.

O caldo e o remédio tinham estimulado suas últimas reservas. A febre subia com o heróico esforço de seu corpo lutando contra a doença que exaurira suas energias. O brilho febril dos olhos e a cor das faces lhe emprestavam um falso aspecto de saúde. Mas havia um fulgor translúcido em seu rosto, como se iluminado por uma luz vinda de dentro, que não era brilho de vida. Mostrava-se como qualquer coisa de lúgubre, uma espécie de incandescência espiritual que Brun já vira antes. Era o despertar da força vital preparando para partir.

Oga permaneceu com Durc na fogueira de Broud até tarde, só o trazendo de volta já dormindo, depois de o sol ter desaparecido. Uba estendeu as peles de Ayla e deitou o garoto em cima delas. A menina se via confusa e com medo. não tinha ninguém para apelar. Estava com receio de interromper Ayla nos seus esforços para salvar Iza e também com medo de perturbar a mãe. Creb custou muito a chegar. Ele pintou uns símbolos no corpo de Iza com uma pasta feita de ocre vermelho e gordura de urso, ao mesmo tempo em que fazia alguns gestos sobre ela. Imediatamente depois, voltou para sua pequena caverna e de lá não saiu mais.

Uba desfez os embrulhos e trouxas, pôs a fogueira em ordem, cozinhou uma comida que ninguém tocou e limpou tudo outra vez. Em seguida, silenciosa, foi sentar-se junto do bebê dormindo, querendo pensar em alguma coisa que a mantivesse ocupada. Isso não ia acabar com o terror que sentia no coração mas pelo menos ela estaria fazendo algo. Era melhor do que ficar sentada, vendo a mãe morrer. Por fim, deitou-se na cama de Ayla, enroscando-se bem junto de Durc, numa triste tentativa de buscar alguém que lhe desse um pouco de segurança e calor.Enquanto isso, Ayla atacava a moléstia de Iza por todos os lados, tentando tudo quanto fosse remédio e tratamento que conseguia lembrar. Ficava debruçada sobre ela, temendo sair de perto e ela escapulir durante sua ausência. Ayla não foi a única a guardar vigília naquela noite. Só as crianças pequenas dormiam. Em todas as fogueiras, as pessoas estavam com os olhos parados nas brasas ou deitadas sobre as peles sem dormir.

O céu do lado de fora estava pesado, com as estrelas encobertas e, dentro, a escuridão se fazia cada vez mais forte perto da larga entrada, ocultando todo sinal de vida para mais além da fogueira da caverna. No silêncio da madrugada, com a noite ainda mergulhada inteiramente nas profundezas de suas sombras, Ayla, assustada, levantou a cabeça, acordando de um ligeiro cochilo.

- Ayla - disse Iza, numa voz sussurrada e rouca.

- O quê?

Os olhos de Iza refletiam a luz fraca das brasas na fogueira.

- Quero dizer uma coisa antes de partir - começou a gesticular, mas deixou as mãos caírem.

Era um esforço conseguir movê-las.

- não tente falar, mãe. Descanse. Amanhã, você já vai estar mais forte.

- não filha, tenho de falar agora. Não vou durar até amanhã.

- Vai sim. Você tem de viver, não pode partir.

- Não, Ayla. Estou morrendo. Você tem de aceitar esse fato. Deixe que eu termine, não me resta muito tempo.

Iza fez uma pausa, enquanto Ayla aguardava muda e desesperançada.

- Ayla, sempre gostei mais de você. Não sei por que, mas é a verdade. Quis que você ficasse comigo... quis que você permanecesse no clã Mas breve não estarei mais aqui. Creb também não vai demorar muito a encontrar seu caminho para o mundo dos espíritos e Brun está ficando velho. Broud então será o chefe. Ayla, você não pode permanecer aqui quando chegar essa ocasião. Broud irá encontrar uma maneira de fazer mal a você.

Tornou a fazer outra pausa, fechou os olhos, lutando para respirar e arrumar forças para poder continuar.

- Ayla, minha filha, a minha menina tão estranha e voluntariosa que tanto tem lutado. Eu quis educá-la para curandeira para que você, mesmo sem companheiro, tivesse algum status e pudesse permanecer no clã. Mas você é uma mulher e precisa de um homem que seja seu.

Não pertence à nossa gente, Ayla. Nasceu dos Outros e é a eles que pertence. Você tem de ir embora, criança, encontrar seu povo.

- Ir embora? - gesticulou, confusa. - Para onde eu iria, Iza? Não conheço ninguém dos Outros. Nem sei em que lugar iria procurá-los.

- Há muitos deles ao norte daqui. No continente, passando a península. Minha mãe me disse que o homem que a mâe dela tratou veio do norte. - Iza tornou a parar, depois forçou-se a prosseguir. - Você não pode ficar aqui, Ayla. Vá embora e encontre os Outros, menina.

Encontre sua gente e um companheiro para você.

As mãos de Iza tombaram de repente e seus olhos fecharam. Respirava apenas superficialmente, mas com esforço tornou a pegar uma golfada de ar e abrir os olhos novamente.

- Diga a Uba que eu a amo, Ayla. Mas você sempre esteve em primeiro lugar. Você é a filha de meu coração Sempre amei. - . mais... você. - . - A respiração de Iza foi interrompida por um suspiro entrecortado e não tornou a voltar mais.

- Iza! Iza! - gritou Ayla. - Mãe, não vá embora, não me deixe! Oh, mãe, não vá embora.

Uba acordou com o lamento de Ayla e correu para junto dela.

- mãe Oh, não Minha mãe foi embora! Minha mãe partiu.

As duas ficaram paradas olhando uma para a outra.

- Iza me pediu para dizer a você que ela a amava muito, Uba - falou Ayla. Os olhos estavam secos, o choque ainda não fora inteiramente registrado em seu cérebro. Creb veio na direção delas. Quando Ayla gritou, ele já se achava fora de sua pequena caverna. Com um soluço vindo do fundo do peito, Ayla se dirigiu aos dois e eles se encontraram num abraço doloroso, compartilhando o mesmo desespero. As lágrimas de Ayla molhavam todos. Uba e Creb não choravam, mas a dor deles não era menor.

 

Oga, você poderia alimentar Durc outra vez?

-       A gesticulação de Creb usando apenas uma das mãos era perfeitamente clara para Oga, apesar de ele ter no colo um bebê esperneando.Ayla devia dar de mamar ao menino, pensou Oga. não é bom para ela passar muito tempo sem dar o peito. No rosto do Mog-ur, achavam-se estampadas tanto sua dor pela morte de Iza como sua perplexidade com a reação de Ayla. Ela não podia recusar-lhe o pedido.

- Claro que sim - falou Oga, tomando Durc nos braços.

Creb voltou para sua fogueira, vendo que Ayla ainda não se movera do lugar, apesar de Ebra e Ika já terem levado o corpo de Iza que ia ser preparado para o enterro. Os cabelos de Ayla estavam em desalinho e o rosto borrado ainda com a sujeira da viagem e das lágrimas. Usava a mesma roupa suja e manchada com que fizera a longa caminhada de volta da reunião. Creb pusera Durc em seu colo quando ele começou a gritar, mas ela se mostrava cega e surda às necessidades da criança. Uma mulher teria entendido que, apesar de a dor ser imensa, o choro do bebê acabaria por surtir efeito. Creb, entretanto, tinha pouca experiência de mãe e bebês. Sabia que frequentemente, as mulheres estavam dando de mamar aos filhos de outras e ele não podia deixar uma criança passando fome, quando havia mulheres lá que poderiam alimentá-la. Ele, primeiro, tinha levado Durc para Aga e Uka, mas os filhos destas estavam praticamente sendo desmamados e as duas já não tinham muito leite. Já Grev estava só com pouco mais de um ano e Oga parecia ter leite em abudância, por isso Creb passou a recorrer a ela. Ayla não sentia doer os seus seios duros e empedrados, a dor no coração era maior.

O Mog-ur apanhou o cajado e se dirigiu para o fundo da caverna. Tinha sido levada para lá, para um canto que não era usado, uma pilha de pedras e, no chão de terra, fora aberta uma cova rasa. Iza fora uma curandeira de elevada posição social. Tanto a hierarquia clânica como a intimidade que ela manteve em vida com os espíritos exigiam um lugar dentro

da caverna. Era uma forma de garantir que os espíritos protetores que velavam por ela

ficassem junto de seu clã e ela própria, do seu lar no outro mundo, zelaria por eles. Além de

que, isso evitaria que animais dispersassem os seus ossos.

O feiticeiro espalhou pó de ocre vermelho no fundo da cova, fez alguns gestos e, depois de estar bento o lugar em que Iza seria enterrada, ele se dirigiu para um vulto coberto por um pano de couro. Afastou a coberta, revelan do o corpo cinzento e nu da curandeira. Às pernas e os braços haviam sido do brados na posição fetal e amarrados com cordas

vermelhas feitas de tendões. O Mog-ur fez um gesto, benzendo-se contra os maus espíritos e, em seguida, abaixou-se para passar no corpo já frio o unguento de ocre vermelho com gordura de urso. Curvada na posição fetal e pintada de vermelho como se fossem as manchas de sangue de um bebê ao nascer, Iza seria enviada ao outro mun do da mesma maneira como chegara neste.

Nunca fora tão difícil para Creb executar seu dever. Iza tinha sido mais do que uma simples germana para ele. Ela o conhecia melhor do que ninguém. Sabia da dor que ele suportava sem se queixar e da humilhação que sofrera por causa de seus problemas físicos. Ela entendia sua delicadeza de alma, sua sensibilidade, e sentia prazer com a importância, o poder e o desejo dele de triunfar. Iza havia cozinhado para ele, cuidado de sua pessoa e aliviado seu sofrimento. Com ela, ele conhecera as alegrias de uma vida em família, quase como se fosse um homem normal. Apesar de nunca lhe haver tocado tão intimamente como agora o fazia, ungindo seu corpo, ela fora mais “companheira” para ele do que muitas mulheres tinham sido para os seus homens.

Quando Creb voltou à sua fogueira, tinha o rosto tão cinza quanto o do cadáver antes de ser pintado. Ayla ainda se encontrava junto da cama de Iza, com o olhar vago, perdido no espaço, mas despertou ao perceber Creb remexendo nas coisas de Iza.

- O que está fazendo? - gesticulou, querendo proteger tudo quanto havia pertencido a Iza.

- Estou procurando as bacias e as coisas que foram de Iza. Os instrumentos que ela usou nesta vida devem ser enterrados para que ela tenha os espíritos dessas coisas no outro mundo - explicou Creb.

- Vou apanhá-las - disse Ayla, pondo Creb de lado. A moça reuniu as bacias de madeira, as cuias de osso que Iza usava para preparar e medir as dosagens de seus remédios, pegou uma pedra redonda e outra com a base achatada, usadas para triturar e moer, os pratos pessoais de comer, alguns utensílios e a sacola de remédios. Depois de botar tudo em cima da cama de Iza, Ayla olhou para a pequena pilha de objetos que representavam toda a vida e o trabalho de Iza neste mundo.

- Essas coisas não são os instrumentos de Iza - gesticulou Ayla com raiva. Ela deu um salto e foi correndo para fora da caverna. Creb, sem entender, ficou abanando a cabeça, olhando-a sair. Depois, veio juntar as coisas de Iza.

Ayla cruzou o riacho e correu a uma clareira onde já estivera com Iza.

Lá, deteve-se numa moita constituída de flores de talos finos e graciosos e colheu uma braçada de malvas de diversas cores. Em seguida, pegou uma quantidade de milefólios, uma planta analgésica utilizada em cataplasmas e parecida com a margarida. Corria pelos campos e bosques colhendo as plantas que Iza usava para preparar suas magias curativas: eram os cardos com suas folhas brancas e flores num tom amarelo-claro, as alfazemas amarelas, os tanacetos grandes e dourados e muscaris tão azuis que chegavam quase a ser pretos.

Cada uma das plantas que colhia tivera, em alguma ocasião, um uso na farmacopéia de Iza, mas escolheu apenas as bonitas, com flores coloridas e perfumadas. Com os braços cheios de flores, a jovem fez uma parada na borda da clareira, chorando novamente com a lembrança dos tempos em que saía ao lado de Iza para apanhar plantas. Sem a cesta de colher, seus braços estavam tão carregados que tinha dificuldade para transportar. Algumas flores caíram, ela se agachou para pegá-las de volta. Viu, então, os galhos entrelaçados com cavalinhas com as suas flores miúdas e uma idéia lhe ocorreu, chegan do quase a ter um sorriso nos lábios.

Retirou da dobra da roupa uma faca e cortou um galho da planta. Sobo sol cálido de princípio de outono, ela se sentou e pôs-se a tecer, por entre o emaranhado do galho, os talos das belas flores. Quando terminou o ramo inteiro era uma esplêndida orgia de cores.

O clã se espantou ao ver Ayla entrar na caverna com seu trançado de flores. A jovem seguiu direto para o fundo e o depositou junto do corpo da curandeira, que estava deitado de lado com pedras formando um desenho oval ao redor dele.

- Esses foram os instrumentos de Iza - gesticulou Ayla, afrontando, pronta para enfrentar qualquer desafio que se opusesse à sua vontade.

O velho feiticeiro concordou com a cabeça. Ela tem razão, pensou, foram esses os instrumentos de Iza. Aquilo com que ela trabalhou durante toda a vida e que tão bem conhecia. Iza deve ficar feliz de tê-los no mundo dos espíritos. Será que lá existem plantas com flores?

As ferramentas, os utensílios e as flores foram postas na sepultura junto com Iza, e o clã,

em seguida, começou a empilhar pedras cobrindo o corpo, enquanto o Mog-ur fazia gestos pedindo ao Espírito do Grande Ursus e o do Antílope Saiga que conduzissem em segurança o espírito de Iza ao outro mundo.

- Esperem! - interrompeu, subitamente, Ayla. - Esqueci de uma coisa importante.Correu à fogueira de Creb e retirou de dentro de sua sacola de remédios as duas metades da velha bacia de cerimônias. Voltou e as depositou na sepultura ao lado do corpo de Iza.

- Achei que, talvez, ela gostasse de ter isso também, agora que nunca mais será usada.

O Mog-ur acenou com a cabeça em sinal de aprovação e prosseguiu com os gestos ritualísticos. Após a última pedra ter sido colocada, as mulheres começaram a juntar madeira ao redor e em cima da pilha de pedras. Uma brasa da fogueira da caverna foi usada para acender o fogo que iria cozinhar o banquete fúnebre em memória de Iza. A comida seria feita em cima da sepultura e o fogo ficaria ardendo por sete dias. O calor da fogueira tinha não só a finalidade de desidratar o corpo, mumificando-o, como também a de impedir o mau cheiro.

Quando as chamas se desprenderam, o Mog-ur começou um derradeiro e muito sentido lamento, feito com gestos que tocaram profundamente a alma de todos os membros do clã.

Ele se dirigia ao mundo dos espíritos, falando do amor que tinham pela curandeira que havia cuidado e tratado deles e os ajudado em suas doenças e enfermidades, tão misteriosas para eles quanto a própria morte. Eram gestos ritualísticos, em essência, os mesmos usados em toda cerimônia fúnebre. Alguns, eram reservados principalmente aos rituais masculinos e, por isso, desconhecidos pelas mulheres, mas o significado era perfeita mente compreendido. Embora a forma exteriorizada fosse convencional, o fervor, a convicção e a dor indizível do feiticeiro davam-lhe aos gestos um significado muito mais profundo do que aqueles contidos meramente na forma.

Com os olhos secos, Ayla olhava por cima do fogo crepitando os movimentos elegantes e fluídicos do velho aleijado, sentindo-lhe a intensidade das emoções como se estas fossem suas. O Mog-ur expressava a dor dela, fazendo-a identificar-se com sua pessoa, como se ele estivesse dentro de seu corpo, falando com seu cérebro e sentindo com seu coração Ela então era a única a sentir a dor dele como sua. Ebra também começou a gritar sua dor, e foi logo depois seguida pelas outras mulheres. Uba, que se achava com Durc nos braços, sentiu brotar-lhe na garganta um berro não articulado, agudo, que veio juntar-se aos lamentos que extravasavam a mesma dor que era a sua. Ayla, com uma expressão vazia, olhava em frente, mergulhada num sofrimento grande demais para ser expressado. Nem mesmo o alívio das lágrimas pôde encontrar.

Não soube quanto tempo ficou olhando sem ver as chamas que pareciam hipnotizá-la.

Ebra teve de sacudi-la, até que a jovem a olhasse com uma expressão totalmente inexpressiva.

- Ayla, coma alguma coisa. Esta é a última festa que vamos compartilhar com Iza.

Ela, automaticamente, pegou no prato com comida e botou um pedaço de carne na boca, mas quase vomitou quando tentou engolir. De repente, deu um salto e foi correndo para fora da caverna. Às cegas, ia passando aos tropeções por entre as pedras e o mato no seu caminho. No princípio, seus pés a levaram pela conhecida trilha que ia dar na clareira da montanha, onde havia a pequena caverna que, em outras ocasiões, já lhe havia oferecido abrigo e se gurança. Ela, entretanto, desviou se Desde que mostrara o lugar a Brun, aqui lo já não parecia mais pertencer-lhe e sua última estada ali havia deixado dolorosas recordações. Subiu, então, ao alto da rocha escarpada que protegia a caverna deles contra os ventos do norte uivando pela montanha abaixo no inverno e que desviava as fortes ventanias de outono.

Açoitada pelas rajadas de vento, deixou-se cair de joelhos e, sozinha com sua dor, entregou-se ao sofrimento num canto monótono e queixoso, enquanto se embalava ao ritmo de seu dolorido coração. Creb veio atrás dela e viu sua figura delineada contra os matizes crepusculares das nuvens, escutando-lhe os gemidos fracos e distantes. Por maior que fosse a dor dele, Creb não pôde compreender por que ela, na aflição rejeitava o consolo da companhia e o motivo dessa retirada para dentro de si mesma. A habitual percepção do Mog ur achava-se obscurecida pelo sofrimento. Ele não percebeu que a dor de Ayla ultrapassava o sentimento de perda.

A culpa torturava-lhe a alma. Ela se culpava pela morte de Iza. Havia deixado em desamparo uma mulher doente para ir a uma reunião de clã. Ayla era uma curandeira que abandonara alguém num momento de necessidade e, o pior, alguém que amava. Culpava-se por haver feito Iza escalar a montanha para procurar a planta que impediria o aborto do bebê que desesperadamente desejava ter, daí resultando a moléstia fatal que lhe enfraquecera o organismo. Sentia-se também culpada pelo sofrimento que causara a Creb, quando, inadvertidamente, pôs-se a acompanhar as luzes que levavam à pequena gruta encravada no fundo de uma montanha nas longínquas paragens do leste. No entanto, mais do que culpa e dor, ela se achava fraca e com febre. Estava sem alimentos e o leite empedrado lhe deixava os seios doloridos e inchados. Sobretudo, Ayla estava deprimida, passando por um estado de desânimo que Iza poderia ter ajudado, se estivesse lá. Pois, como curandeira, Ayla tinha por missao salvar vidas e aliviar sofrimentos e ela perdera o seu primeiro paciente.

Contudo, o que Ayla mais estava precisando era do seu filho. Tinha de alimentá-lo e ocupar-se dele para voltar à realidade e poder compreender que a vida continuava. Ao regressar, entretanto, à caverna, Durc já estava dormindo ao lado de Uba. Creb o havia levado novamente para Oga lhe dar de mamar. Ayla se deitou e ficou se remexendo na cama sem conseguir dormir, sem se dar conta de que eram a febre e a dor que a mantinham acordada. Sua mente estava totalmente voltada para dentro, ocupada apenas com o profundo pesar e a culpa.

Quando Creb acordou, ela já havia saído. Ficara, primeiro, rodando um pouco do lado de fora da caverna e depois tornou a subir para o alto da rocha. Creb, ansioso, observava-a de longe, mas não dava para que ele visse seu estado de fraqueza ou soubesse que estava com febre.

- Devo ir atrás dela? - perguntou Brun, tão desconcertado com a reação de Ayla quanto Creb.

- Ela parece que quer ficar sozinha. Talvez seja melhor deixá-la - respondeu Creb.

Quando não pôde mais enxergá-la, ficou preocupado. Já era noite e Ayla ainda não havia voltado. Pediu, então, a Brun para procurá-la, lamentando não ter feito isso antes, ao ver Ayla chegar, carregada no colo de Brun. Depois do mal causado pelo sofrimento e a depressão, a fraqueza e a febre chegaram para completar o serviço. Uba e Ebra trataram da curandeira do clã. Ayla delirava, às vezes tremendo de frio, às vezes ardendo em febre. O menor toque em seus seios fazia-a gritar de dor.

Ela vai perder o leite - falou Ebra para a menina. - É tarde demais para que Durc possa fazer alguma coisa. O leite empedrou, o menino não vai conseguir puxá-lo para fora.

- Mas Dure é muito pequeno para ser desmamado. O que vai acontecer com ele? E com ela?

Não seria tarde demais se Iza estivesse viva ou se Ayla pudesse raciocinar. A própria Uba sabia de certos cataplasmas e de remédios que poderiam ajudar, mas a garota era muito jovem e insegura; por outro lado, Ebra se mostrava tão taxativa que não dava para discutir.

Quando a febre cedeu, o leite de Ayla secara. Já não poderia mais amamentar o filho.

- Não quero esse monstrengo em minha fogueira, Oga! Não quero que ele seja irmão de seus filhos! - Broud estava furioso, brandindo os punhos e Oga se encolhia de medo a seus pés.

- Mas, Broud, ele é apenas um bebê. Precisa de leite. Aga e Ika já não têm mais em quantidade, não adiantaria nada se elas dessem o peito para ele. E tenho de sobra, sempre tive muito leite. Se ele não se alimentar, morrerá, Broud.

- Pouco estou ligando se ele morrer. Antes de mais nada, este garoto não tinha de viver. Aqui nesta casa é que ele não entra.

Oga deixou de tremer e encarou o homem que era o seu companheiro. Ela não acreditava que Broud fosse realmente impedi-la de alimentar o filho de Ayla. Achava que ele fosse gritar e esbravejar, mas que no fim acabaria cedendo. Ele não podia ser tão cruel assim, não podia deixar que um bebê morresse de fome, por mais que odiasse a mãe.

- Broud, Ayla salvou a vida de Brac, como você pode deixar o filho dela morrer?

- Ela já foi bem paga por ter salvo a vida dele, não Está aí vivendo e autorizada até a caçar. Eu não lhe devo nada.

- não é bem assim. Está vivendo, mas recebeu uma maldição de morte e voltou do mundo dos espíritos porque seu totem quis que ela voltasse. Ele protegeu Ayla - protestou Oga.

- Se tivesse sido amaldiçoada como devia, não teria voltado e jamais teria tido esse pirralho. Se seu totem é tão forte, por que, então ela perdeu o leite? Todo mundo disse que o filho dela seria um desgraçado. E que maior desgraça existe do que perder o leite da mãe E agora você quer trazer esse azar para dentro de nossa fogueira. não isso não vou permitir, Oga; assunto encerrado.

Oga se sentou e olhou para Broud, friamente, com toda a calma.

- Não, Broud - gesticulou ela. - O assunto não está encerrado. - Oga já não estava mais com medo, e Broud se via estupefato. - Você pode impedir de Dure viver em sua fogueira, esse é um direito que tem e nada posso fazer contra isso. Mas você não me pode impedir de amamentá-lo. Este é um direito que a mulher tem. Toda mulher pode alimentar o bebê que ela quiser e nenhum homem pode opor-se a isso. Ayla salvou a vida de meu filho e não vou deixar que o dela morra. Durc será irmão de meus filhos, queira você ou não.

Broud estava cheio de espanto. Sua companheira recusar-se a se submeter à vontade dele era algo inteiramente inesperado. Oga jamais fora insolente, faltara-lhe com o respeito, ou deixara transparecer o mais leve sinal de desobediência. Não dava para acreditar. A surpresa transformou-se em fúria.

- Como ousa desafiar seu companheiro, mulher? Você será posta para fora dessa fogueira!

- Nesse caso, pego os meus filhos e saio, Broud. Pedirei a um homem que fique comigo. Talvez o Mog-ur me deixe viver com ele, se ninguém me quiser. Mas vou dar de mamar ao filho de Ayla.

A única resposta do rapaz foi um soco de mão fechada que derrubou a companheira direto no chão. Ele estava dominado demais pela raiva para responder de outra forma e já se preparava para bater novamente, quando de repente deu as costas e saiu pisando duro na direção da fogueira de Brun. Vou tratar dessa clamorosa falta de respeito, disse consigo.

- Primeiro, ela contagiou Iza e agora essa sua impertinência passou também a atingir a minha companheira! - gesticulou Broud, logo que botou os pés dentro da fogueira de Brun. - Falei a Oga que não queria o filho de Ayla em minha fogueira, que não queria aquela criança deformada para irmão dos filhos dela. E sabe o que respondeu? Que iria dar leite para ele de qualquer maneira! Disse que eu não poderia impedi-la. Que o garoto seria irmão dos filhos dela, quisesse eu ou Não! É possível acreditar? Logo Oga? A minha companheira?

- Ela está certa, Broud - falou Brun, calculadamente calmo. - O homem não tem nada a ver com o bebê que sua companheira alimenta. Isso Não é problema dele. O homem tem coisas bem mais importantes com que se preocupar.

Brun não estava nada satisfeito com a violenta recusa de Broud. Era vergonhoso o rapaz envolver-se emocionalmente em assuntos que eram da exclusiva competência da mulher. E depois quem mais, além de Oga, poderia fazer isso? Durc pertencia ao clã, sobretudo depois do festival do urso. E os clãs sempre protegeram os seus membros. Mesmo a mulher que viera de um outro clã e que jamais produzira um só filho nunca foi deixada à míngua depois que o companheiro morreu. Ela podia não ter posição social, ser um fardo para todo mundo, mas, enquanto o clã tivesse comida, ela teria o bastante para sobreviver.

Broud podia recusar Durc em sua fogueira. Isso impunha a responsabilidade de sustentá-lo e educá-lo junto com os filhos de Oga. Brun estava infeliz com o problema, mas não era inesperado. Todo mundo sabia como Broud se sentia em relação a Ayla e a seu filho. Mas por que não deixar sua companheira alimentar o menino? não faziam todos eles parte do mesmo clã?

- Você está me dizendo que Oga pode ser desobediente o quanto quiser e ainda por cima impor sua vontade? - perguntou Brod, furioso.

- E o que tem isso a ver com você, Broud? Por acaso quer que a criança morra? - falou Brun. Broud ficou vermelho, havia um sentido subentendido na pergunta. - Durc pertence a este clã, Broud. Por mais que sua cabeça seja deformada, ele não parece retardado. Vai crescer e será um caçador. Este é o seu clã. Inclusive uma companheira já está prometida para ele e você concordou. Por que se preocupa tanto com o fato de sua companheira amamentar o bebê de outra mulher? Será ainda que é por causa de Ayla? Você é um homem, Broud. Tudo que ordenar, ela é obrigada a fazer. E ela o obedece. Por que compete com uma mulher? Você se rebaixa com isso. Ou será que estou errado? Você é homem, Broud? Bastante para dirigir este clã?

- Simplesmente não quero que uma criança deformada seja irmão dos filhos de minha companheira - gesticulou Broud, de modo pouco convincente. - Era uma desculpa esfarrapada e não lhe passou despercebida a ameaça contida nas palavras de Brun.

- Broud, qual o caçador que nunca salvou a vida de um outro? o homem que não carrega consigo uma parte do espírito de um outro? Existe alguém que não seja irmão de todos os outros? Tem importância o fato de Durc ser irmão dos filhos de sua companheira agora, ou mais tarde, quando ele crescer? Por que está contra isso?

Broud não tinha resposta, pelo menos nenhuma que fosse aceitável pelo chefe. Ele não podia admitir seu ódio de morte por Ayla. Seria o mesmo que admitir que não era capaz de controlar suas emoções e que não era bastante homem para ser chefe de um clã. Estava arrependido de ter procurado Brun.

Devia me lembrar de que ele sempre tomou o partido dela, pensou. Brun estava orgulhoso de mim na reunião e agora, por culpa dela, já está outra vez duvidando de mim.

- Bem, não me incomodo se Oga der de mamar a ele - gesticulou Broud. - Mas não quero essa criança em minha fogueira. - Nesse particular, sabia que estava dentro de seus direitos e não iria ceder. - Você pode pensar que o menino não seja retardado, mas tenho minhas dúvidas. não quero me responsabilizar por sua educação. Ainda não acredito que ele possa vir a caçar.

- Como quiser, Broud. Já assumi a responsabilidade de seu treinamento. Tomei essa decisão antes até de ter aceitado o menino e eu o aceitei. Durc é agora um membro deste clã e será um caçador. Eu me encarrego disso.

Broud ia regressar à sua fogueira, mas viu Creb trazendo Durc para Oga e achou melhor sair da caverna. Seria melhor não explodir sua fúria enquanto estivesse na mira de Brun.

Tudo por culpa desse velho aleijado, disse consigo. Mas tratou logo de desviar o pensamento, com medo de que o feiticeiro, por alguma arte qualquer, pudesse adivinhar o que ia na sua cabeça.

Broud temia os espíritos, talvez mais do que qualquer outro homem no clã e seu medo se estendia àquele que vivia na maior intimidade com essas forças. Afinal, o que podia fazer um caçador sozinho contra uma legião de seres incorpóreos, capazes de trazer desgraça, doenças e mortes? E que podia ele contra o homem que possuía o poder de invocar toda essa horda no momento em que bem entendesse? Fazia pouco tempo que Broud tinha voltado da reunião de clãs e, lá, ele passou muitas noites com a rapaziada dos outros clãs assustan do-se uns aos outros com histórias falando de desgraças causadas pela ira dos mog-urs. Eram lanças que se desviavam no instante preciso em que iam atingir o animal, horríveis enfermidades trazendo dores e sofrimento, chifradas, ferimentos e toda uma série de calamidades por culpa exclusiva de feiticeiros irados. No seu clã mesmo, as histórias de horror não eram muito contadas, mas sempre era bom se precaver, já que o Mog-ur deles era o mais poderoso de todos os feiticeiros.

Apesar de que em certa época Broud o achasse mais digno de troça do que de respeito, o corpo aleijado do Mog-ur com seu rosto terrivelmente mutilado e caolho aumentava-lhe o carisma. Para aqueles que não o conheciam, ele parecia inumano, talvez meio demoníaco.

Broud tinha tirado partido desse medo e, diante das caras incrédulas e admiradas dos outros rapazes, contara vantagem dizendo não temer o Grande Mog-ur. Mas, apesar de toda a sua fanfarronada, ele ficara impressionado com as histórias contadas. O respeito dos clãs pela figura trôpega do velho feiticeiro havia tornado Broud mais consciente de seu poder.

Nos sonhos em que se via como chefe, era Goov que aparecia como o seu mog-ur. Quase de sua idade e companheiro de caçada, Goov, no papel de futuro mog-ur, não podia ser visto como uma figura distante e temerosa. Broud tinha certeza de que conseguiria levá-lo na lábia e coagi-lo nos momentos de decisões, coisa que com o Mog-ur não ousava pensar nem mesmo em sonhos.

Enquanto caminhava pelas matas perto da caverna, Broud tomou uma firme decisão. Jamais tornaria a dar ao chefe motivos para duvidar dele e jamais poria novamente em risco seu futuro, agora tão próximo de ser alcançado. Mas quando for chefe, pensou consigo, serei eu a decidir. Ayla botou Brun contra mim e conseguiu que até mesmo Oga, a minha própria companheira, ficasse contra mim, mas, quando eu for o chefe, isso vai acabar.

Pouco importa se Brun ficar de seu lado, ele já não terá mais como protegê-la. E ele se lembrou, então, de todas as injustiças que sofrera por causa de Ayla, de todas as vezes que ela lhe roubara os momentos de glória e de cada uma das pretensas ofensas infligidas a seu ego. Ficava insistindo nos mesmos fatos, repisando-os e se comprazendo no pensamento de fazê-la pagar por tudo. Ele podia esperar. Algum dia, disse consigo, muito em breve, Ayla vai lamentar ter vindo parar neste clã.

Broud não era o úmico a pôr a culpa no velho aleijado, o próprio Creb se sentia culpado por Ayla ter perdido o leite. De qualquer forma, ainda que fosse dele a responsabilidade do desastre, agora pouca diferença fazia. Creb, simplesmente, não entendia o modo de o organismo feminino se comportar. Sua experiência com mulheres era muito pequena. Só depois de velho é que passou a conviver com uma situação de mãe com filho. Não imaginara que, quan do uma mulher amamentava a criança de uma outra, o favor que estava fazendo era para seu próprio bem e não com o intuito de aliviar a amiga de uma obrigação Nunca ninguém lhe explicara isso e nem tinha por que, e quando ele foi saber já era tarde demais.

Ele se perguntava por que calamidade tão terrível tinha de suceder a Ayla. Seria simplesmente porque seu filho era um desgraçado para a vida? Creb buscava razões e, na sua introspecção culposa, começou a duvidar de seus próprios motivos. Estaria ele realmente preocupado, ou só querendo feri la, do mesmo jeito que ela, sem querer, havia feito com ele? Seria ele digno de seu grande totem? Teria ele um caráter tão baixo, a ponto de desejar vingança tão mesquinha? Se dentre aqueles tidos como os mais santos, era ele a figura exemplar, então talvez o seu povo merecesse morrer. A convicção de que sua raça estava destinada a desaparecer, a morte de Iza e o sentimento de culpa pela desgraça acontecida a Ayla o deixavam abatido e profundamente melancólico. O teste mais difícil do Mog-ur havia chegado quando ele já estava quase no final de sua vida.

Ayla não punha a culpa em Creb, mas sim nela mesma. Ver uma outra mulher amamentando seu filho era para ela algo de insuportável. Oga, Aga e Uka, todas elas vieram oferecer-se para amamentar Durc, mas quase sempre era Uba quem levava o menino para elas, permanecendo em suas fogueiras até que o bebê tivesse terminado. Com o desaparecimento do leite, Ayla perdeu uma importante parte da vida de seu filho. Ainda chorava e se culpava pela morte de Iza, e Creb, por sua vez, estava tão voltado para dentro de si mesmo que ela não conseguia aproximar-se dele, achando-se, inclusive, até com medo de fazê-lo. Mas todas as noites, quando levava Durc para dormir em sua cama, ela se sentia grata a Broud. A recusa dele em aceitá-lo fez com que não perdesse de todo o seu filho.

No final do outono, Ayla voltou a caçar com sua funda, como pretexto para poder ficar sozinha. Caçara tão pouco no último ano que sua técnica parecia enferrujada, mas, com a prática, readquiriu a pontaria e a velocidade. Quase todos os dias, saía cedo e voltava tarde, deixando Durc aos cuidados de Uba. Só lamentava que o inverno estivesse rapidamente se aproximando. O exercício era bom para ela, mas agora precisava vencer uma nova dificuldade que surgira. Pouco havia caçado depois de se ter transformado em mulher e os seios balançando, a cada passo, incomodavam-na quando corria ou saltava. Reparando que os homens usavam uma tanga para proteger as partes sensíveis do corpo, modelou, na forma do seio, uma faixa que amarrava nas costas. Isso a deixava confortável e pouco estava ligando para os olhares curiosos que lhe eram lançados com o dos olhos.

Embora o exercício da caça fortalecesse o corpo e mantivesse, enquanto estava fora, sua mente ocupada, ela continuava carregando sua tristeza e dor. Parecia a Uba que a alegria se fora para sempre da fogueira de Creb. Sentia falta da mãe e tanto Creb como Ayla achavam-se envolvidos por uma aura de perpétua tristeza. Apenas Durc, na sua inocência, trazia uma sombra de felicidade com que a garota estava acostumada. O garoto, inclusive, conseguia de vez em quando que Creb saísse de sua letargia.

Ayla saíra cedo e Uba se achava no fundo da caverna procurando por qualquer coisa. Oga acabara de trazer Durc, deixando-o aos cuidados de Creb. O bebê estava cheio e satisfeito, mas ainda sem sono. Ele veio engatinhando e, apoiando-se em Creb, conseguiu firmar-se sobre as pernas trêmulas e inseguras.

- Com que então rapazinho, você já está começando a caminhar - gesticulou Creb. - Já vai estar correndo por toda a caverna, antes até desse inverno acabar, hem? - Creb falava e lhe cutucava a barriga cheia, de modo a enfatizar os gestos.

Durc abriu a boca emitindo um som que Creb só ouvira numa pessoa.

Durc ria. Creb o cutucou outra vez e ele se dobrou numa risadinha que o fez perder o equilíbrio e cair sentado sobre seu traseiro pequenino e duro. Creb o ajudou a levantar-se e olhou para o menino como se o estivesse vendo pela primeira vez.

As pernas de Durc eram arqueadas, mas não tanto quanto as dos outros bebês do clã e, apesar de gorduchas, Creb pôde perceber que os ossos eram mais compridos e finos. Acho que as pernas de Durc, depois de crescer, serão retas, iguais às de Ayla e também será alto como ela. E o pescoço fino e descarnado que não aguentava com sua cabeça quando nasceu, também se parece com o dela. Mas a cabeça é diferente. Ou será que não Essa testa alta é de Ayla. Ele virou a cabeça de Durc para olhá-lo de perfil. Atesta sem dúvida é, mas as sobrancelhas e os olhos são semelhantes aos da raça dos clãs e a parte de trás da cabeça também é mais parecida com a da nossa gente.

Ayla tinha razão. Durc não é deformado, ele é uma mistura da raça dela com a dos clã O que me pergunto é se seria sempre assim que as coisas se passam. Será que os espíritos se misturariam? Talvez seja isso que fáção nascer mulheres e não totens masculinos fracos.

Será que a vida começaria com a mistura dos espíritos dos totens masculinos com os femininos? Creb abanou a cabeça sem saber responder. Mas isso botou a mente do velho feiticeiro para trabalhar e, naquele frio e solitário inverno, frequentemente se encontrava pensando em Durc. Sentia que Durc era importante, mas por quê? A resposta lhe escapava.

 

Mas, Ayla, eu não sou como você. Eu não caço. Quando ficar escuro, para onde eu vou? - dizia Uba, em tom de súplica. - Eu tenho medo, Ayla.

A expressão amedrontada de Uba fazia com que Ayla sentisse vontade de acompanhá-la.

Uba ainda não tinha oito anos e o pensamento de passar dias sozinha, sem contar com a proteção da caverna deixava-a apavorada. Mas o espírito do totem da garota havia, pela primeira vez, travado uma batalha, de modo que ela era obrigada a cumprir a exigência, não tendo nada a fazer sen só aceitar.

- Você se lembra daquela caverna onde me escondi quando Durc nasceu? Você vai para lá, Uba, pelo menos ali é mais seguro do que ficar ao relento. Todas as tardes eu subirei para vê-la e levar comida para você. É só por uns dias. Não se esqueça de levar uma pele para dormir e um carvão aceso para fazer a fogueira. Existe água perto. Vai ser triste, principalmente de noite, mas lá você não corre perigo. E pense que você agora é uma mulher. Daqui a pouco tempo, já vai estar com um companheiro e também com um bebê só seu - disse Ayla para consolá-la.

- Quem você acha que Brun vai escolher para mim?

- E quem você quer que ele escolha, Uba?

- Vorn é o único que não tem companheira, mas Borg daqui a uns tempos também já vai ter uma. É claro que Brun se quiser pode me dar como segunda mulher para qualquer homem. Acho que gostaria que fosse Borg. Nós dois costumávamos brincar de companheiros, até que um dia ele quis aliviar de verdade suas necessidades em mim. Não deu certo e ele ficou com vergonha. Agora já está quase homem e não gosta mais de brincar com meninas. Mas Ona também já está mulher e Vorn não pode ser seu

companheiro; assim, só resta Borg para ela, a não ser que Brun resolva dar Ona para um homem que já tenha companheira. Dessa forma, tudo indica que Vorn será o meu companheiro.

- Já faz algum tempo que Vorn é homem, provavelmente ele deve estar louco para ter uma companheira - disse Ayla. Ela também havia chegado à mesma conclusão de Uba. - Você gostaria de Vorn para companheiro?

- Ele tenta fingir que não liga para mim, mas, às vezes, fica me olhando. Pode ser que ele não seja tão mau assim.

- Broud gosta dele. Com certeza, algum dia Vorn será o segundo em comando. Você não precisa se preocupar com questões de status, mas isso será bom para os seus filhos. Eu não gostava muito de Vorn quando era pequena, mas acho que você está certa, o rapaz não parece tão mau agora. Inclusive, quando Broud não está por perto, ele se mostra simpático com Durc.

- Fora Broud, todo mundo se mostra simpático com Durc, Ayla. não há quem não goste dele.

- Bom, sem dúvida, Durc está à vontade em todas as fogueiras. Ficou tão acostumado a ser levado cada dia num lugar para mamar que passou a chamar todas as mulheres de mãe - gesticulou Ayla, franzindo ligeiramente o rosto, mas logo um sorriso apagou a expressão de tristeza. - Você se lembra daquela vez que Durc entrou na fogueira de Grod, como se lá fosse a casa dele?

- Lembro. Tentei não olhar, mas não consegui - falou Uba. - Ele passou por Ika, cumprimentou, chamando-a de mãe e foi direto se meter no colo de Grod.

- Foi mesmo. Nunca vi Grod com uma cara de surpresa tão grande - falou Ayla. - Depois, Durc desceu e foi mexer nas lanças de Grod. Achei que este fosse ficar furioso, mas ele não resistiu vendo o danadinho do garoto querendo arrastar a lança maior de todas para fora. Quando Grod foi tirar a arma de sua mão, ele disse: Durc caça igual Grod.

- Acho que se Grod tivesse deixado, Durc teria arrastado mesmo aquela lança para fora da caverna.

- Ele leva todas as noites para a cama a lança de brinquedo que Grod lhe deu - disse Ayla, sorrindo. - Você sabe, Grod não é de falar muito, por isso fiquei admirada quando ele apareceu outro dia em nossa fogueira. Ele mal me cumprimentou, foi direto onde estava Durc e pôs a lança na mão dele, chegando até a mostrar como devia segurá-la. Ao sair, tudo que disse foi: se o menino quer tanto caçar, ele deve ter a sua lança.

- É uma pena Ovra nunca ter tido filhos. Acho que Grod iria adorar se a filha de sua companheira tivesse um bebê - falou Uba. - Talvez Grod goste de Durc porque na verdade ele não é apegado a nenhum homem em particular. Brun também gosta dele, disso eu tenho certeza. E até Zoug já começou a mostrar para ele como se deve usar uma funda. Acho que Durc não vai ter nenhum problema para aprender a caçar, apesar de na nossa fogueira não existir ninguém para ensiná-lo. Pelo jeito de os homens tratarem Durc, chega-se até a pensar que são todos eles companheiros de sua mãe. Exceto, é claro, Broud.

- Uba se interrompeu por um instante. - E talvez sejam, Ayla. Dorv sempre dizia que os totens de todos os homens se aliaram para derrotar o seu Leão da Caverna.

- Acho melhor você ir agora, Uba - falou Ayla, mudando de assunto.

- Andarei com você uma parte do caminho. Parou de chover e acho que os morangos já estão maduros. Há na subida uma área que está carregada. Mais tarde, vou até lá para dar uma olhada em você.

Goov pintou com pasta de ocre amarelo o símbolo do totem de Vorn sobre o de Uba e borrou o dela, como sinal do domínio do homem sobre a mulher.

- Você aceita esta mulher como sua companheira? - gesticulou Creb.

Vorn bateu de leve no ombro de Uba e ela o acompanhou para dentro da caverna. Em seguida, o mesmo ritual foi feito para Borg e Ona, e eles, por sua vez, se dirigiram para a nova fogueira onde iriam começar o período de isolamento. As árvores em suas roupagens de verão ainda em tons flão tão for”tes como aqueles que teriam no final da estação balançavam-se com uma suave brisa, enquanto o clã se dispersava. Ayla pegou Durc nos braços para carregá-lo, mas ele esperneou, querendo descer.

- Está bem, Durc - gesticulou ela. - Você pode andar, mas venha antes tomar sua sopa e um pouco de mingau.

Enquanto ela preparava a comida, Durc saiu e começou a se encaminhar para a nova fogueira ocupada por Vorn e Uba. Ayla correu, trazendo-o de volta.

- Durc quer ver Uba.

- Você não pode, Durk. Por enquanto, ela não pode receber visitas de ninguém. Mas se você ficar bonzinho e tomar o seu mingau, irá caçar comigo.

- Durc vai ficar bonzinho. Por que não pode ver Uba? - perguntou, já mais sossegado com a promessa de acompanhar a mãe. - Por que ela não vem comer com a gente?

- Uba não vive mais aqui, Durc. Agora é companheira de Vorn - explicou Ayla.

Durc não era o único a notar a ausência de Uba. Todos sentiam sua falta, e a fogueira parecia vazia, tornando mais visível o constrangimento de Ayla e Creb. Os dois nunca tinham conseguido superar seus remorsos por se haverem reciprocamente ferido. Muitas vezes, vendo o velho feiticeiro prostrado em profunda melancolia, Ayla tinha vontade de se aproximar, colocar os braços em volta de sua cabeleira branca e abraçá-lo, tal como fazia quando era pequena. Mas a moça se continha, hesitando, não querendo forçar sua presença.

Creb sentia falta de afeto, não imaginando que sua carência deixava-o ainda mais deprimido. Por seu lado, muitas vezes também tinha vontade de aproximar-se dela, quando a via sofrendo, olhando uma outra mulher alimentando seu filho. Se Iza estivesse viva, teria encontrado uma maneira de reuni- los novamente, mas sem sua presença catalisadora, cada um ia para o seu lado,os dois desejosos de mostrar seu amor e não sabendo como romper a barreira que os separava. Na primeira refeição sem Uba, ambos se sentiam pouco à vontade.

- Você quer mais, Creb? - perguntou Ayla.

- não não Por favor não se incomode. Já comi bastante.

Ele a observava fazendo a limpeza, enquanto Durc se servia pela segunda vez, segurando uma concha com as duas mãos Embora estivesse com pouco mais de dois anos, Durc praticamente já tinha sido desmamado. Continuava ainda procurando Oga ou Jka - esta novamente com outro bebê - mais pelo aconchego e o carinho e também porque elas consentiam. Em geral, quando nascia um novo bebê, cortava-se o leite dos outros maiores que ainda mamavam. Ika, no entanto, abriu uma exceção para Durc. Ele parecia compreender e não abusava de seu privilégio. Nunca tomava demais, privando a criança pequena de seu leite. Ficava apenas alguns momentos aninhado junto ao seio, como se para fazer valer os seus direitos.

Oga também se mostrava condescendente com ele. Grev, a rigor, já havia passado da época de mamar, mas se aproveitava da indulgência da mãe. Os dois podiam ser vistos no seu colo, cada um mamando num seio, até que o interesse pela figura um do outro acabava por prevalecer sobre o desejo de ser mimado e se deixavam levar por alguma briga. Durc era tão alto quanto Grev, embora menos corpulento. Nas lutas de brincadeira, quase sempre Grev ganhava; em compensação Dure o vencia facilmente nas corridas. Eram inseparáveis, e toda oportunidade que tinham, lá estavam os dois juntos.

- Você vai levar o menino com você? - perguntou Creb, depois de silêncio embaraçoso.

- Vou - disse Ayla, limpando as mãos e o rosto de Durk. - Prometi levá-lo para caçar comigo. Duvido que consiga caçar alguma coisa com ele, mas preciso apanhar também algumas ervas, e o dia está lindo.

Creb grunhiu qualquer coisa.

- Você também devia sair, Creb - acrescentou ela. - O sol lhe faria bem.

- Sim. Mais tarde eu saio.

Por um momento, Ayla pensou se não deveria insistir e convidá-lo para um passeio junto do riacho como costumavam fazer antes. Mas ele parecia já novamente mergulhado em seus pensamentos. Deixou-o sentado onde ele se achava, pegou Durc e se apressou a sair.

Creb só levantou os olhos quando teve certeza de que ela já tinha ido embora. Pegou o cajado, mas achou que se levantar seria um trabalho grande demais e voltou a botá-lo no chão.

Ayla, ao sair com Dure montado em seu quadril e a cesta de colher amarrada às costas, pensava nele, preocupada. Sentia que as faculdades mentais dele estavam diminuindo.

Creb parecia mais desatento do que nunca e repetindo perguntas que ela já havia respondido. Dificilmente, ele se mexia para sair da

caverna, mesmo que o dia estivesse quente e ensolarado. Ficava constantemente sentado durante um tempo enorme, perdido no que ele chamava meditação e quase sempre acabava dormindo nessa posição.

Logo que a caverna deixou de estar à vista, Ayla alargou suas passadas. A liberdade de poder movimentar-se e o belo dia de verão relegaram suas preocupações para alguma parte mais remota da mente. Ao chegar a uma clareira, botou Durc no chão e fez uma parada para pegar determinadas plantas. O menino ficou observando-a e depois arrancou pelas raízes um punhado de alfafas de flores vermelhas misturadas com capim que apertava em sua munheca, enquanto trazia para a mãe.

- Que boa ajuda você está dando, Dure - disse Ayla, pegando as plantas e atirando-as dentro da cesta a seu lado.

- Dure pega mais - gesticulou, afastando-se.

Ela se sentou sobre os calcanhares e ficou olhando o filho arrancar um punhado ainda maior que, ao se desprender de repente da terra, fez com que o menino caísse sentado.

Franziu o rostinho para chorar, mais pelo inesperado do que pela dor. Ayla correu para apanhá-lo e o jogou no ar, pegando-o de volta no colo. Dure riu deliciado. Botou-o no chão e fingiu que ia pegá-lo.

- Vou pegar Dure - gesticulou ela.

O garoto corria nas suas perminhas ainda de bebê, dando risadinhas. Ayla deixou que ele tomasse dianteira e depois foi atrás de gatinhas, agarrando-o para botá-lo na garupa. Todos os dois riam com a brincadeira e ela lhe fazia cócegas só para vê-lo rir de novo.

Ela só ria com seu filho quando estavam sozinhos, e bem cedo Dure aprendeu que ninguém mais precisava ou aprovava os seus sorrisos e risadas. Embora ele tratasse todas as mulheres do clã de mãe, no seu coração sabia que Ayla era especial. Sempre sentia-se mais feliz com ela do que com as outras e adorava sair sozinho em sua companhia, sem ter mais mulheres por perto. Adorava também as brincadeiras que só ele e sua mãe sabiam fazer.

- Ba-ba-na-na-ne-ne - falou Dure.

- Ba-ba-na-na-ne-ne - repetiu Ayla, imitando-lhe as sílabas sem sentido.

- No-na-ni-ga-gu-la - disse Dure, criando outra série de sons.

Ayla tornou a imitá-lo e lhe fez cócegas. Ficava encantada quando ele ria, e a brincadeira sempre punha um sorriso nos lábios da mãe. Ayla formou a série de sons que mais gostava de ouvi-lo dizer. Ela não sabia por que, apenas sabia que aquilo a enchia de ternura, levando-a quase às lágrimas.

- Ma-ma-ma-ma - disse ela.

- Ma-ma-ma-ma - repetiu Dure. Ayla o envolveu num abraço apertado, e Dure repetiu outra vez: - Ma-ma.

Ele se retorceu querendo libertar-se. Só gostava de abraços demorados, quando se aninhava junto dela para dormir. Ayla enxugou uma lágrima no canto dos olhos. Esta era uma particularidade que ele não possuía. Os grandes olhos castanhos de Dure, assentados sob supercílios salientes, eram iguais aos das pessoas dos clã.

- Ma-ma - falou Durc. Quando estavam sozinhos, quase sempre a chamava assim, principalmente depois de lembrado. - Você vai caçar agora? - indagou por gestos.

As últimas vezes que havia saído com Durc, ela lhe mostrara como usar a funda. Ia fazer uma para ele, mas Zoug lhe passou à frente. O velho já não saía mais. Ayla, no entanto, sentia-se feliz por ver que ele tinha prazer em ensinar Durc. Apesar de muito pequeno, Ayla percebia que o filho saíra com seu jeito para manejar a arma, e Durc tinha tanto orgulho de sua minifunda quanto da pequena lança dada por Grod.

Ele gostava da atenção que atraía, quando, muito empertigado, passava com sua lança na mão e a funda pendurada num cordão amarrado em volta da cintura. Além do amuleto, era toda a sua vestimenta de verão. Foi necessário fazer armas tamanho miniatura também para Grev. Aparelha despertava olhares divertidos e comentários sobre as belas figuras de homenzinhos que faziam. O futuro papel dos dois já começava a definir-se. Ao descobrir que era bem visto ter voz de comando sobre as meninas, e que até mesmo sobre as mulheres grandes era uma coisa olhada com indulgência, Durc nunca hesitava em fazer valer a sua, dentro dos limites permitidos, a única exceção era para a sua mãe.Ele sabia que Ayla era diferente. Apenas ela ria com ele, apenas ela sabia fazer a brincadeira de sons e apenas ela possuía os sedosos cabelos dourados que gostava de acariciar. não se lembrava de ter mamado nela, mas não aceitava dormir com mais ninguém. Sabia que ela era mulher, porque as suas actividades eram as mesmas que as das outras, mas via que era muito mais alta do que qualquer homem e que também caçava. O menino não sabia exatamente o que fosse caçar, percebia que era uma coisa que só os homens e sua mãe faziam. Ela não se ajustava a nenhuma categoria. Era única. O nome pelo qual ele começara a chamá-la, o nome construído com sons, era o que parecia combinar melhor com ela. Era Ma-ma, a deusa de cabelos louros que ele adorava e que não gostava de vê-lo mandando nela.

Ayla segurava a mão dele na funda, tentando mostrar como se atirava. Zoug já fizera o mesmo, e Dure começava a pegar a idéia de como funcionava a coisa. Ela, então, retirou sua funda da cintura e pegou umas pedras que atirou em alvos próximos. Depois, arrumou uma fileira de pedrinhas sobre algumas rochas grandes e se pôs a derrubá-las. Durc achou divertido e foi arrumar mais pedras para vê-la fazendo novamente a coisa. Depois de certo tempo,perdeu o interesse, e ela voltou a colher plantas, enquanto o filho a seguia. Encontraram algumas framboesas e pararam para comer.

- Você está imundo, meu sujão - falou Ayla, rindo de sua figura com o rosto, mãos e barriga manchados de vermelho. Ela o pegou, mantendo-o de baixo do braço e foi com ele até um riacho para lavá-lo. Em seguida, apanhou uma folha grande e fez um cone que encheu de água para os dois beberem. Durc bocejava, esfregando os olhos. Ela estendeu a capa à sombra de um enor me carvalho e se deitou a seu lado, esperando que ele dormisse.

Na quietude da tarde de verão, Ayla foi sentar-se contra um tronco e, ouvindo o canto dos pássaros numa sinfonia de gorjeios, ficou a observar o movimento perpétuo dos insetos zumbindo à sua volta e as borboletas voando e fazendo o seu pouso de asas fechadas. Seu pensamento estava voltado para os acontecimentos da manhã daquele dia. Espero que Uba seja feliz com Voru. Tomara que seja bom para ela. Mesmo que Uba continue perto da gente, a nossa fogueira ficou muito vazia com sua saída. Já não é a mesma coisa. Agora, ela vai cozinhar para o companheiro e dormir com ele, quando acabar o tempo de isolamento. Gostaria que tivesse logo um bebê. Ela ficaria muito feliz com isso.

- Mas, e eu? Ninguém veio daquele clã querendo saber de mim. Talvez seja porque não tenham conseguido encontrar a caverna. Mas talvez seja por que não estavam realmente interessados. Fico contente com isso. não quero para companheiro um homem que não conheço... e nem quero também um que eu conheça. Tanto faz, porque nenhum deles também me quer. Sou muito alta. Até Droog, o mais alto de todos, mal consegue chegar ao meu queixo. Iza ficava imaginando se algum dia eu iria parar de crescer. E começo a imaginar a mesma coisa. Broud odeia minha altura. Não aguenta ver uma mulher mais alta do que ele. Depois que voltamos da reunião de clã ele nunca mais me incomodou. Por que será que tremo todas as vezes que ele olha para mim?

Brun está ficando velho. Ebra ultimamente vem lhe dando remédios para dores musculares. Dentro de pouco tempo, ele irá botar Broud como chefe. Não há a menor dúvida sobre isso. E Goov será o mog-ur. Cada vez mais as cerimônias estão ficando por sua conta. não creio que Creb queira continuar como mog-ur, sabendo que vi o ritual deles. Por que será que tive de ir parar naquela noite na caverna deles? não me lembro de como cheguei lá. Queria nunca ter ido a essa reunião de clãs. Se tivesse ficado, talvez eu conseguisse manter Iza viva por mais alguns anos. Sinto muita saudade dela. não encontrei companheiro, mas Dure sim.

Estranho terem deixado Ura viver, chega quase a parecer que isto só aconteceu para que ela fosse companheira de Dure. Homens dos Outros, foi o que Oda disse. Quem são eles? Iza disse que nasci dos Outros. Por que será que não me lembro? O que terá acontecido com a minha mãe verdadeira? E a seu companheiro? Será que eu tinha germanos? Ayla sentia o estômago en joado, não propriamente náusea, mas um certo mal-estar. Subitamente, seus cabelos arrepiaram ao lembrar-se do que Iza lhe dissera na noite em que morreu. A jovem tinha afastado o pensamento da cabeça, pois era muito penoso pensar na morte de Iza.

Iza me falou para ir embora! Disse que eu não pertencia aos clãs e que tinha nascido dos Outros. Mandou que procurasse a minha gente e que encontrasse um companheiro como eu. Se eu ficar, disse ela, Broud acabaria achando um jeito de me maltratar. No norte, foi onde ela falou que eles vivem, para lá da península, no continente.Mas como vou poder ir embora? Aqui é minha casa. não posso abandonar Creb, e Durc precisa de mim. E se eu não encontrar os Outros? E ainda que ache, talvez não me queiram. Ninguém deseja uma mulher feia. Como vou ter certeza de arrumar um companheiro, mesmo que encontre os Outros?

Creb está ficando velho. O que vai acontecer comigo, quando ele se for? Quem irá me sustentar? não posso viver só com Durc, algum homem vai ter de ficar comigo. Mas qual? Broud? Ele vai ser o chefe e, se ninguém me quiser, a obrigação será sua. O que acontecerá se eu for obrigada a viver com Broud? Ele também não me quer, mas sabe que eu odiaria essa solução e é o que fará porque sabe que abomino a idéia. Eu não iria suportar viver com Broud, prefiro até que um homem de outro clã me leve para viver com ele. Mas eles também não me querem.

Talvez eu devesse ir embora. Pegaria Durc e iríamos os dois. Mas, e se eu não encontrar ninguém dos Outros? E se alguma coisa me acontecer? Quem tomaria conta dele? Ficaria sozinho, do mesmo jeito que eu fiquei. Tive muita sorte de Iza me encontrar. Talvez Durc já não tenha a mesma felicidade. não posso levá-lo, ele nasceu aqui. Ele é dos clãs, apesar de uma parte sua ser minha. Ele já tem até uma companheira prometida. Eo que seria de Ura, se eu levasse Durc embora? Oda está educando a filha para ser companheira dele. Já deve estar lhe dizendo que mesmo que ela seja feia e deformada, há um homem para ser o seu companheiro. Durc também vai precisar de Ura, terá necessidade de uma companheira depois que crescer, e Ura é perfeita para ele.

Mas não posso partir deixando Durc. Prefiro viver com Broud, a ser obrigada a abandonar Durc. Vou ter de ficar, não há outro jeito. Ficarei e, se tiver de ser, viverei com Broud.

Olhou para o menino adormecido e tentou recompor as idéias: iria ser uma boa mulher pelos padrões dos clãs e aceitaria seu destino. Uma mosca pousou no nariz de Durc.

Dormindo, ele se mexeu, esfregou o nariz, e depois voltou a ficar quieto.

De qualquer jeito, não saberia mesmo para onde ir. Para que lado fica o norte? O que isto significa para mim? Tudo está ao norte daqui, menos o mar que fica ao sul. Podia ficar o resto da minha vida perambulando por aí e nunca achar ninguém. E os Outros podem ser tão maus quanto Broud. Oda disse que eles a forçaram, que não deram tempo sequer que ela botasse seu bebê no chão. Será melhor ficar aqui com um Broud que eu conheço do que com algum homem que pode ainda ser até pior.

Está ficando tarde, é melhor ir embora agora. Acordou o filho e, enquanto ia a caminho da caverna, tentou afastar os Outros do pensamento, mas, uma vez despertada a curiosidade, já não pôde mais esquecer-se dos Outros, a interrogação fora posta e, volta e meia, insinuava-se em seu espírito.

 

- Você está ocupada, Ayla? - perguntou Uba, a expressão da garota ao mesmo tempo alegre e acanhada. Ayla imaginava saber por que, mas resolveu deixar que Uba mesma contasse.

- Não, não estou muito ocupada. Estava acabando de fazer uma mistura de hortelã com alfafa e queria saber com que gosto ficaria. Vou ferver um pouco de água para tomarmos um chá.

- Onde está Dure? - perguntou Uba, enquanto Ayla atiçava o fogo botando mais lenha e algumas pedras para esquentar.

- Ele está lá fora com Grev. Oga está vigiando. Esses dois não se largam- gesticulou Ayla.

- Talvez seja porque mamaram juntos. Eles são mais chegados um ao outro do que qualquer irmão. É quase como se fossem gêmeos.

- Mas os gêmeos quase sempre se parecem, e entre esses dois não há nenhuma semelhança. Você se lembra daquela mulher na reunião dos clãs que teve gêmeos? Eu não conseguia saber qual era um e qual era o outro.

- Às vezes, é muito ruim ter dois filhos juntos e, se nascerem três, é certo que não vão deixá-los viver. Afinal, como uma mulher vai poder alimentar três ao mesmo tempo, se ela só tem dois seios, não é? - falou Uba.

- Ajudada por muitas outras. Para a felicidade de Dure, dou graças por Oga ter tido sempre muito leite.

- Espero poder ter muito leite, Ayla - gesticulou Uba. - Vou ter um bebê.

- Eu já imaginava. Desde que foi viver com o seu companheiro, você nunca mais recebeu a maldição de mulher, não é?

- Sim. Acho que o totem de Vorn estava esperando há muito tempo. Ele deve ser muito forte.

- Você já contou para ele?

- Estava esperando até ter certeza, mas acho que Vorn adivinhou. Ele deve ter notado que eu não fiquei isolada. Ficou muito contente - falou Uba, orgulhosa.

- Vom é um bom companheiro, Uba? Você está feliz?

- Ah, estou. Vom é um bom companheiro. Quando descobriu que eu ia ter um bebé, ele me contou que já estava esperando por mim há muito tempo e que se sentia feliz por eu não ter demorado a conceber. Disse que já me havia pedido, antes mesmo de eu me haver tornado mulher.

- Isso é ótimo, Uba - falou Ayla.

Deixou de acrescentar que, no clã, não havia ninguém mais para companheira de Vorn, a não ser ela própria. Mas, por que Vorn iria querer uma mulher como eu? Por que iria preferir uma mulher grande e feia, quando podia ter alguém atraente como Uba e que realmente pertencia à linha de Iza? E que importância tem isso para mim? Nunca quis Vorn para companheiro. Na ver dade, o que me preocupa é o que vai acontecer depois de Creb não estar mais aqui. Vou precisar de cuidar muito dele para que viva bastante tempo.

Parece que o Mog-ur não tem mais vontade de viver. Já quase não põe os pés fora da caverna e, se não fizer exercícios, aí mesmo é que ficará para sempre aqui dentro.

- Em que está pensando, Ayla? Você anda tão silenciosa nos últimos tempos.

- Estava pensando em Creb. Estou preocupada com ele.

- Creb está ficando velho. A mãe era mais moça do que ele e já se foi. Ainda sinto falta dela, Ayla. Vai ser horrível quando Creb também passar para o outro mundo. Não quero nem pensar nisso.

- Nem eu, Uba - gesticulou Ayla, com um mau pressentimento.

Ayla não parava um momento. Se não estivesse caçando, estava trabalhando cheia de energia, e incansável. não suportava ficar parada. Passava em revista seu estoque de remédios, punha tudo em ordem, ia esquadrinhar os campos para se reabastecer ou substituir as plantas velhas por novas, voltava e reorganizava a fogueira toda novamente.

Teceu novas cestas e esteiras, talhou travessas e bacias de madeira, fabricou recipientes de couro e de cortiça, fez capas, roupas, pemeiras, chapéus, protetores para as mãos e os pés, já se preparando para o próximo inverno.Impermeabilizou bexigas e estômagos de animais para servirem como odres, construiu uma nova armação para apoiar as panelas de couro sobre a fogueira, modelou pedras de forma achatada para serem usadas como lamparinas de gordura, fez chumaços com musgo seco, talhou um novo conjunto de facas, raspadores, serrotes, furadeiras e machadinhas, e ainda ia à praia para procurar por conchas que serviriam como cuias, pratos ou colheres. Além disso, quando chegava sua vez, saía com os caçadores para fazer o trabalho de curtir carnes e ainda encontrava tempo também para ir com as mulheres para colher frutas, cereais, sementes e legumes. Em casa, limpava e torrava as sementes e cereais, triturando tudo depois muito fino, de modo a ficar mais fácil para Creb e Durc mastigarem.

Creb se tornou sua grande preocupação. Ela o mimava e cuidava dele como jamais o tinha feito. Preparava-lhe comidas especiais para estimular o apetite, punha-lhe cataplasmas, fazia-o tomar um mundo de beberagens, levava-o para repousar ao sol e o persuadia a dar longas caminhadas para fazer exercício. Ele parecia gostar das atenções e da companhia dela, e, de certa forma, recuperou um pouco da antiga força e entusiasmo. Mas faltava alguma coisa. Aquela intimidade única que existira entre os dois, o afeto caloroso e as longas conversas descontraídas haviam desaparecido. Quase sempre caminhavam em silêncio. A conversa se fazia forçada e sem as demonstrações espontâneas de carinho.

Não era apenas Creb que envelhecia. O dia em que Brun, do alto do morro, foi ver os seus caçadores saírem e lá ficou olhando para eles até que fossem pequeninos pontos na planície embaixo, Ayla subitamente se conscientizou do quanto também o chefe envelhecera.

Sua barba já não estava só com algumas pintas brancas, mas completamente grisalha, tal como o cabelo. Rugas fundas marcavam-lhe o rosto com sulcos fortemente cavados na pele junto aos olhos. Seu corpo rígido e musculoso perdera o tono, a pele estava mais flácida, embora ainda continuasse uma figura vigorosa. Com passos vagarosos, ele se encaminhou para a caverna e passou o resto do dia dentro dos limites de sua fogueira. Na vez seguinte, ele acompanhou os caçadores, mas, já na próxima, nem ele nem Grod, o seu leal segundo em comando, foram.

Certo dia, no final de um verão, Durc entrou correndo na caverna.

- Mama! Mama! Um homem... um homem está vindo para cá.

Ayla e todos os outros correram para a entrada da caverna, querendo ver o estranho que vinha subindo pelo caminho da costa.

- Ayla, será que ele veio buscá-la? - gesticulou Uba, agitada.

- Não posso saber. Sei tanto quanto você, Uba.

Ayla, com os nervos tensos, era um misto de emoções. Tinha esperanças de que o visitante pertencesse ao clã do parente de Zoug e, ao mesmo tempo, tinha medo de que ele fosse tal pessoa. O homem parou para falar com Brun e seguiu depois para a fogueira do chefe.

Passado algum tempo, ayla viu Ebra encaminhando-se diretamente em sua direção.

- Brun quer falar com você - disse Ebra.

O coração batia disparado, os joelhos pareciam de água, e a moça achava que não fosse aguentar-se sobre as pernas, enquanto caminhava para a fogueira de Brun. Deu graças aos espíritos, quando se deixou cair aos pés de Brun. Ele lhe bateu no ombro.

- Este é Vond, Ayla - falou o chefe, apontando para o visitante. Ele veio de longe só para vê-la. Caminhou da caverna de Norg até aqui. Sua mãe está doente e a curandeira deles não tem conseguido melhorar sua saúde. Ela achou que talvez você conhecesse alguma mágica que pudesse ajudar.

Ayla, na reunião dos clã fizera reputação de curandeira dotada de grande saber e perícia. O homem tinha vindo procurar por sua mágica e não por ela. O alívio sentido foi maior do que a tristeza. Vond ficaria por alguns dias. Ele trazia novidades de seu clã. O rapaz que fora ferido pelo urso da caverna havia passado o inverno com eles e partido no princípio da primavera se guinte, caminhando sobre suas pernas e mal se notando que mancava. A mulher dele deu à luz um bebê forte e sadio que recebeu o nome de Creb. Ayla fez algumas perguntas a Vond e lhe preparou um embrulho para que ele levasse ao lado de instruções para serem transmitidas à curandeira deles. Ela não sabia se seu remédio iria ou não adiantar, mas o homem viera de tão longe que não custava pelo menos tentar.

Quando Vond foi embora, Brun se pôs a pensar em Ayla. Ele vinha protelando toda decisão a seu respeito, na esperança de que algum outro clã pudesse julgá-la aceitável. Mas se um mensageiro podia encontrar a caverna deles, outros, se o quisessem, também poderiam. Após tanto tempo, não era mais possível alimentar esperanças. Algum arranjo teria de ser feito para ela dentro de seu clã.

Entretanto, Broud brevemente seria o chefe e a ele caberia assumi-la. Seria melhor que a decisão partisse do próprio Broud e, enquanto vivesse o Mog-ur, não havia necessidade de precipitar os acontecimentos. Brun resolveu passar o problema para o filho de sua companheira. Broud parece ter finalmente conseguido superar seu ódio desmedido por ela, pensou o chefe. Nunca mais voltou a importuná-la. Talvez já esteja preparado... até que enfim parece estar pronto. Mas, lá no íntimo, ainda lhe restava uma pontinha de dúvida.

As cores do verão chegaram ao fim, e o clã se entregou ao ritmo mais vagaroso da estação fria. A gestação de Uba progrediu normalmente até o segundo trimestre, quando, então, foram interrompidos os movimentos de vida. Ela tentava ignorar a dor cada vez mais forte nas costas e o mal-estar provocado por cólicas, mas, ao começar a perder sangue, correu para Ayla.

- Desde quando você deixou de sentir o bebê se mexendo, Uba? - perguntou Ayla, com o rosto visivelmente preocupado.

- Já faz alguns dias. O que vou fazer? Vorn ficou tão feliz comigo, por que fiquei esperando bebê logo depois dele me ter tomado para companheira. não quero perder meu filho. O que teria acontecido de errado? Já está tão perto a primavera agora mesmo está aí.

- não sei, Uba. Você não se lembra se levou algum tombo? Será que não fez esforço para levantar alguma coisa muito pesada?

- Acho que não.

- Vá para sua fogueira, Uba, e se deite. Vou pôr algumas cascas de vidoerro para ferver e levo o chá para você. Queria que estivéssemos no outono, poderia arrumar aquelas raízes de prenanto que Iza encontrou para me dar.

Mas a neve está muito alta, já não se pode ir muito longe daqui. Vou tentar pensar em alguma coisa. E também procure pensar, Uba. Você conhece quase tudo que Iza sabia.

- Tenho pensado, Ayla. Mas não consigo lembrar de nada que faça um bebê mexer depois de ele ter parado os seus movimentos.

Ayla não respondeu. No fundo, sabia tanto quanto Uba que não havia esperança, e estava sentindo a mesma angústia que a jovem.

Nos dias seguintes, Uba permaneceu deitada, na vã esperança de que acontecesse alguma coisa que viesse em sua ajuda, mas sabendo que não havia nada a esperar. A dor nas costas tornou-se quase insuportável, e os únicos remédios que a aliviavam eram aqueles que faziam a moça dormir um sono drogado e intranquilo. As cólicas, entretanto, não se desenvolvendo em contra ções, o trabalho de parto não podia iniciar-se.

Ovra praticamente vivia na fogueira de Vorn para dar seu apôio moral. Ela tantas vezes passara pela mesma provação que mais do que ninguém podia entender a dor e a tristeza de Uba. A companheira de Goov nunca conseguira levar uma gravidez até o fim e, à medida que os anos passavam e ela sempre sem filhos, foi cada vez ficando mais silenciosa e fechada. Ayla sentia-se feliz por saber que Goov era carinhoso com ela. Muitos homens a teriam dispensado ou tomado uma segunda mulher. Mas Goov era extremamente ligado à sua companheira. Ele não iria aumentar-lhe ainda mais a tristeza, tomando outra mulher para ter filhos para ele. Ayla passou, então, a dar a Ovra o remédio se creto que Iza lhe ensinara para impedir o totem da mulher ser derrotado. Era muito duro para uma mulher ter uma gravidez atrás da outra e não resultar em filhos para ela. Ayla não lhe contou para que o remédio servia, mas, de pois de certo tempo, Ovra parou de engravidar e ela imaginou por quê. Era melhor assim.

Numa fria e triste manhã, já no final do inverno, Ayla examinou Uba e tomou uma decisão.

- Uba - chamou com brandura. A garota tinha os olhos rodeados por círculos escuros que os faziam parecer ainda mais mergulhados sob as saliências das sobrancelhas. - Temos de fazer essas contrações começarem. não há nada que possa salvar seu bebê. Se ele não sair, você também pode morrer. Você é muito moça, poderá ter outros filhos - disse Ayla por gestos.

Uba olhou para ela, depois para Ovra e, em seguida, para Ayla outra vez.

Está bem - assentiu com a cabeça. - Você tem razão, não há mais esperanças. Meu bebê está morto.

O trabalho de expulsão de Uba foi difícil. Às contrações custaram a aparecer, e Ayla hesitava em lhe dar alguma coisa mais forte contra dores, com medo de que o trabalho de parto fosse interrompido. As outras mulheres vinham para algumas visitas curtas, querendo encorajar e trazendo sua solidariedade, mas nenhuma tinha vontade de se demorar. Todas sabiam que o esforço e a dor seriam em vão.

Apenas Ovra permaneceu para ajudar Ayla.

Quando o feto saiu, Ayla rapidamente o enrolou junto com a placenta numa manta de couro.

- Era um menino - disse ela a Uba.

- Posso ver?

- Acho melhor que não veja, Uba. Isso só vai fazer com que se sinta pior.

Agora, trate de descansar. Você está muito fraca, eu me desfaço dele por você.

Ayla disse a Brun que Uba se encontrava sem forças e que ela mesma se encarregaria de desfazer-se da criança, abstendo-se de dizer qualquer outra coisa. não tinha sido só um feto que Uba expulsou, e sim dois que não chegaram durante a gravidez a se separar devidamente. Apenas Ovra viu a pobre coisa repugnante que dificilmente se poderia reconhecer como um ser humano, com vários braços e pernas e um rosto desfigurado numa enorme cabeça. Ovra teve de fazer força para não vomitar e Ayla mal também conseguiu conter-se.

Aquelas não eram as modificações surgidas em Dure, resultantes das transformações das características raciais dela e da dos clãs, e sim um caso de anomalia. Ayla deu graças por aquela coisa grotescamente malformada não ter vivido o suficiente para Uba pari-la com vida. Sabia que Ovra jamais comentaria o fato com alguém. Para o bem de Uba, seria melhor deixar o clã na crença de que ela tivera uma criança prematura normal.

Ayla se meteu dentro de agasalhos pesados e saiu abrindo com dificuldade caminho pela neve alta, só parando quando já estava bem afastada da caverna. Desembrulhou a manta de couro, deixando o conteúdo exposto ao tempo. É melhor não deixar qualquer vestígio dessa coisa, pensou consigo. Já no momento mesmo em que se virava para voltar, percebeu com o rabo dos olhos algo que sorrateiramente se movia, O cheiro do sangue já estava surtindo o efeito desejado.

 

Você quer dormir com Uba essa noite, Dure? - perguntou Ayla.

- não disse o menino, balançando veementemente a cabeça. - Durc dorme com Mama.

- Tudo bem, Ayla. Achava mesmo que ele não ia querer, já passou o dia inteiro comigo - falou Uba. - Que nome é esse que ele arrumou para dar a você?

É um nome qualquer que ele inventou para me chamar - respondeo Ayla, virando a cabeça para o lado. A censura ao uso de palavras e sons desnecessários, que sofreu nos primeiros tempos quando chegou, tinha ficado de tal forma entranhada nela que se sentia culpada da brincadeira que fazia com o filho. Uba não insistiu, mas percebeu que Ayla se mostrava reticente.

- Às vezes, quando eu e Dure saímos sozinhos, nós ficamos brincando de fazer sons com a boca - admitiu ela. - E o menino arrumou estes para me chamar. Durc pode tirar uma quantidade grande de sons da garganta.

- E você também, Ayla. Mamãe me disse que você, quando era pequena, principalmente antes de aprender a falar, costumava dizer palavras e fazer tudo quanto era tipo de sons.

Ainda me lembro do som que você fazia para me ninar. Eu adorava escutar.

- Tenho impressão de que fazia, mas não me lembro direito - gesticulou Ayla. - Isso não passa de uma brincadeira entre Dure e eu.

- Acho que não há nada de mal, e depois Dure não é como alguém que faz esses sons porque não aprendeu a falar - disse Uba. - Queria que essas raízes não estivessem tão estragadas - acrescentou, ao jogar fora uma planta que tinha na mao. - A festa amanhã não será grande coisa só com carne seca, peixe e uns legumes já meio passados. Se Brun esperasse mais um pouco, pelo menos a gente poderia ter umas verduras e os brotos de algumas plantas.

- não é só Brun - falou Ayla. - Creb diz que a melhor época é na primeira lua cheia da primavera.

- Não entendo como ele sabe que já chegou a primavera. Um dia de chuva é sempre igual a outro - observou Uba.

- Acho que tem qualquer coisa a ver com o desaparecimento do sol no céu. Há dias que ele vem observando o pôr-do-sol. Mesmo quando chove, é possível ver o ponto em que o sol se esconde para dormir. Além disso, tem havido muitas noites claras de lua. Creb é quem sabe.

- Não queria que Creb já fosse passar o lugar dele para Goov - falou Uba.

- Nem eu. Nesses últimos tempos, ele tem ficado aparentemente sem fazer nada. O que será dele, quando não tiver nem mesmo as cerimônias para celebrar? Sabia que isso teria de acontecer algum dia, mas essa é uma festa que não me deixa nem um pouco alegre.

- Vai ser estranho. Estou tão acostumada a ver Brun como chefe e Creb como Mog-ur, mas Vom acha que já é tempo de os mais moços conduzirem o clã. Ele diz que Broud já esperou demais.

- É possível que ele tenha razão. Vorn sempre admirou Broud - gesticulou Ayla.

- Ele é bom para mim, Ayla. não ficou zangado na ocasião em que perdi meu filho. A única coisa que disse foi que iria pedir ao Mog-ur um feitiço para que seu totem ficasse com muita força e eu pudesse conceber novamente. Ele deve gostar de você também, Ayla. Chegou até a falar comigo para lhe pedir se você não deixaria Durc ficar dormindo com a gente. Acho que ele imagina que eu gosto muito de ter Durc por perto - confidenciou Uba. - Até mesmo Broud não tem sido muito mau para você ultimamente, não é verdade?

- É. De uns tempos para cá, ele não me tem incomodado muito - reconheceu Ayla.

Não sabia explicar por que sentia medo cada vez que Broud olhava em sua direção .

Mesmo que não o estivesse vendo, sua nuca se arrepiava, se ele a estivesse observando.

Naquela noite, Creb ficou com Goov até tarde na gruta dos espíritos. Ayla preparou uma refeição ligeira para ela e Durc, e separou qualquer coisa para Creb quando chegasse depois, se bem que duvidasse de que ele fosse dar-se o trabalho de comer. Ela acordara de manhã sentindo-se ansiosa, e tal sensação só fez aumentar com o transcorrer do dia. A caverna parecia querer engo li-la, e sua boca estava seca como se empoeirada. Conseguiu meter alguma coisa dentro do estômago e, de repente, correu na direção da entrada. O céu estava cor de chumbo, pesado, e a chuva ininterrupta abria pequenas crateras na terra encharcada. Quando voltou para a fogueira, Durc se havia metido na sua cama e dormia.

Logo que sentiu a mãe junto dele, aconchegou-se a ela e, meio inconsciente, fez uns gestos que terminavam com a palavra “Mama.”

Ayla passou o braço à sua volta, ficando abraçada com ele e sentindo- lhe a batida do coração mas o sono custava a chegar. Deitada, ficou olhando os contornos das pedras sombreadas pela luz fraca da fogueira já quase apagada. Estava acordada quando Creb por fim voltou, mas permaneceu quieta escutando-lhe os passos, até que acabou dormindo depois que ele se enfiou na cama.

A moça acordou aos gritos.

- Ayla, Ayla! - era Creb que a sacudia, chamando-a pelo nome para trazê-la à realidade.

- O que aconteceu, menina? - perguntou, preocupado.

- Oh, Creb - disse ela, abraçando-o. - Tive aquele sonho. Há anos que não sonhava desse jeito.

Creb a rodeou com o braço, sentindo-a tremer.

- O que aconteceu com Mama? - perguntou Durc, sentando-se com os olhos muito abertos e cheios de medo. Ele nunca tinha ouvido antes a mãe gritar. Ayla tomou-o nos braços.

- Qual sonho, Ayla? Aquele com o leão da caverna? - perguntou Creb.

- não o outro. Aquele que nunca consigo lembrar direito - falou ela, voltando a tremer.

- Creb, por que será que estou tendo esse sonho agora? Pensava que meus pesadelos tivessem terminado.

Creb tornou a botar o braço ao redor dela, querendo acalmá-la. Ayla o abraçou novamente. Há muito tempo que isso não acontecia, pensaram subitamente os dois, e ficaram abraçados com Durc entre eles.

- Oh, Creb, quantas vezes eu tive vontade de abraçá-lo e não pude. Achava que você não iria querer. Tinha medo de que me fosse repelir como fazia no tempo em que eu era uma menina malcriada. Há uma coisa que eu queria dizer-lhe, Creb: eu o amo muito.

- Ayla, naquela ocasião eu era obrigado a fazer isso. Precisava fazer al guma coisa, pois sen quem faria era Brun. Nunca pude ter raiva de você, Ayla. Eu a amava demais e ainda amo até hoje. Achei que você estava contrariada por ter perdido seu leite por minha causa.

- Mas não foi por sua causa, Creb. A culpa foi minha. Nunca o culpei por isso.

- Mas eu me culpava. Devia ter sabido que um bebê precisava mamar para que o leite da mãe não secasse e você parecia querer ficar sozinha com sua dor.

Como você podia saber? Nenhum homem entende muito de bebês. Só gostam do guri para segurar, brincar, e quando ele está bem cheio e alegre. Mas, ao primeiro resmungo, correm logo para devolvê-lo à mãe. Além do que, isso não fez mal nenhum a Durc. Ele está entrando no ano em que deveria ser desmamado, mas há muito tempo que já deixou de mamar, e veja como está agora, um menino forte e sadio.

- Mas você sofreu muito por causa disso, Ayla.

- Mama está sofrendo? - interrompeu Durc, ainda preocupado com o grito dela.

- Não, Durc. Mama não está mais sofrendo.

- Onde Durc arranjou esse nome que ele dá a você?

- Às vezes, eu e Durc brincamos de fazer sons com a boca e ele resolveu me chamar assim - disse ela, corando um pouco.

Creb acenou com a cabeça, compreendendo. Depois, disse:

- Como ele chama todas as mulheres de mãe acho que precisou arrumar um nome para dar a você. Isso para ele quer dizer mãe.

- Para mim também.

- Quando você chegou, Ayla, também fazia uma porção de sons e falava com a boca. Talvez seu povo se comunique por meio de sons.

- Meu povo é a gente dos clãs. Eu sou uma mulher dos clã.

- não Ayla - gesticulou Creb, pausadamente. - Você não é de nossa raça e sim uma mulher dos Outros.

- Iza me disse a mesma coisa na noite em que morreu. Ela falou que eu era uma mulher dos Outros.

Creb pareceu surpreso.

- Achava que ela não soubesse. Iza era uma mulher muito sábia, Ayla. Só desconfiei disso na noite em que você nos seguiu até aquela caverna.

- Eu não pretendia entrar naquele lugar, Creb. Nem sei como fui parar lá. não sei o que o deixou tão acabrunhado, Creb, mas pensei que você deixou de gostar de mim por eu ter invadido aquela caverna.

- Não Ayla. Jamais deixei de gostar de você. O meu amor por você é muito grande.

- Durc está com fome - interrompeu o menino, ainda confuso com o grito da mãe e, agora, cansado com aquela longa conversa entre ela e Creb.

- Durc está com fome? Vou ver se encontro alguma coisa para você comer.

Ayla se levantou e foi até o fogo, enquanto Creb a observava. Tinha curiosidade de saber por que ela foi mandada para viver conosco. Nasceu dos Outros e sempre foi protegida pelo Leão da Caverna. Por que teria ele enviado Ayla para nós? Por que não a conduziu de volta para os Outros? E por que ele se deixou derrotar, permitindo que tivesse um bebê para depois perder seu leite? As pessoas acham que isto aconteceu porque Durc não pode ser um menino feliz. Mas, veja como ele está agora. Forte, alegre e todo mundo gosta dele.

Talvez Dorv tivesse razão ao dizer que os espíritos dos totens de todos os homens se misturaram com o Leão da Caverna de Ayla. Ela estava certa, Durc não é deformado, ele é uma mistura. Consegue até emitir os mesmos sons que a mãe sabe fazer. Uma parte dele é de Ayla, e outra, de nossa raça.

De repente, Creb sentiu a pele arrepiando e o sangue sumir de seu rosto. Uma parte de Ayla e uma parte de nossa raça! Foi para isso que ela nos foi enviada? Por causa de Durc?

Para gerar um filho? Os clã estão condenados,irão desaparecer, e somente a raça dela sobreviverá.. Eu sei e sinto isso. Mas e Durc? Uma parte sua é dos Outros, por isso ele continuará neste mundo; mas, por outro lado, ele pertence também a nós. E Ura? Ela se parece com Durc. Nasceu pouco depois daquele incidente com os homens dos Outros. Será que os seus totens são tão fortes a ponto de vencer o totem de uma mulher em tão pouco tempo? É possível. Se suas mulheres podem ter o Leão da Caverna como totem, os deles têm de ser fortíssimos. E Ura, será também uma mistura? E se existem Durc e Ura, deve haver mais outros como eles. Crianças provin das da mistura de espíritos, crianças que prosseguirão com a vida, que darão continuidade aos clãs. Talvez não muitas, mas o suficiente.

É possível que os clã já estivessem condenados muito antes de Ayla presenciar a cerimônia sagrada e que ela tenha sido conduzida lá apenas para me fazer compreender isso. Já não estaremos mais aqui, mas, enquanto houver Durcs e Uras, não morreremos. Tinha curiosidade de saber se Durc possui as memórias. Se ele fosse mais velho, o suficiente pelo menos para assistir a uma cerimônia... Bem, não tem importância. Durc tem mais do que memórias, ele carrega nele a vida dos clã. Ayla, a minha boa menina, a filha de meu coração você leva a felicidade consigo e a trouxe para nós. Agora sei por que veio, não para nos trazer a morte, e sim para nos dar a nossa única oportunidade de viver. Nunca será o mesmo, mas já é alguma coisa.

Ayla trouxe para o filho um pedaço de carne fria. Creb parecia perdido em pensamentos, mas, quando ela se sentou, o feiticeiro olhou em sua direção.

- Sabe, Creb - disse ela, pensativa. - Às vezes, imagino que Durc não é filho só meu. Desde que perdi meu leite, ele ficou tão acostumado a ir de fogueira em fogueira para mamar, que hoje ele come em todas e todo mundo lhe dá comida. Ele me faz lembrar um filhote de urso da caverna, é como se Durc fosse filho do clã inteiro.

No olho de Creb, Ayla percebeu a enorme tristeza que lhe ia na alma.

- Durc, Ayla, é o filho do cla. Ele é o único filho dos clãs.

As primeiras luzes do dia começaram a tomar o espaço triangular da entrada e a brilhar no interior da caverna. Ayla, deitada de olhos abertos, observava o filho dormindo a seu lado, enquanto a claridade gradativamente se formava. Ela podia ver Creb em sua cama, sob as peles e, pela respiração regular, sabia que ele também estava dormindo. Fico contente por eu e Creb termos voltado a conversar, pensou ela, sentindo como se um enorme peso tivesse sido tirado de cima de seus ombros, mas o mal-estar que a acompanhara todo o dia anterior e a noite havia piorado. Sentia um nó na garganta e, se permanecesse um instante mais dentro da caverna, achava que ficaria sufocada. Em silêncio, deslizou para fora da coberta, meteu-se rapidamente dentro de uma roupa, cal çou-se e se encaminhou sem ruído para a entrada.

Logo que chegou ao exterior, respirou fundo. O alívio sentido foi tão grande que pouco se importava que a chuva gelada empapasse sua vestimenta de couro. Atravessou o grosso lamaçal em frente da caverna e foi para o riacho, começando subitamente a tremer com o frio. Blocos de neve, enegrecidos pela fuligem das fogueiras, impulsionavam os córregos pelas encostas abaixo, transformando-os em imensos aguaceiros que engrossavam o riacho coberto pelo gelo.

As solas de couro de seu calçado deslizavam no barro vermelho e ela escorregou caindo na ribanceira do riacho. Os cabelos lisos empastados na cabeça se penduravam como cordas grossas fazendo regos que terminavam no barro colado em sua roupa, antes que a chuva pudesse lavá-la. Por longo tempo, ficou parada na margem do riacho, olhando suas águas escuras lutando para se libertar das amarras do gelo e redemoinhando em torno dos blocos que por fim se desprendiam e eram levados de quina para paragens desconhecidas.

Na volta, seus dentes batiam, enquanto a custo subia a encosta escorregadia, observando o céu escuro clareando imperceptivelmente para além do morro próximo da caverna. Ayla teve de esforçar-se para passar pela boca da entrada que parecia bloqueada por uma barreira invisível. No momento em que pisou no interior, voltou-lhe a mesma sensação de mal-estar.

- Ayla, você está ensopada. Por que saiu com um tempo deste? - gesticulou Creb. Ele apanhou um pedaço de lenha e botou na fogueira. - Tire essa roupa molhada e venha para perto do fogo. Vai pegar uma gripe.

Ela trocou de roupa e veio sentar-se perto de Creb junto da fogueira, dando graças por não haver mais o silêncio constrangedor entre ambos.

- Creb, estou tão contente por termos conversado ontem à noite. Fui até o riacho, o gelo está começando a se desprender. O verão vai chegar e vamos poder dar nossos longos passeios outra vez.

- Sim, Ayla, o verão já está chegando. Se você quiser, poderemos dar os nossos passeios novamente... no verão.

Ela se arrepiou com a horrível sensação de que jamais voltariam os dois a passear juntos novamente e teve a impressão de que ele sentia o mesmo. Veio, então, para perto dele e se abraçaram como se fosse pela última vez.

Pelo meio da manhã, a chuva melhorou, transformando-se num chuvisco aborrecido e, à tarde, parou completamente. Um sol frouxo, descorado, atravessou a sólida camada de nuvens, mas não servia muito para aquecer ou secar a terra empapada. Apesar do tempo feio e da pouca comida, o clã se via excitado com a festa, um acontecimento memorável. A mudança de chefe já era algo raro, mas ter ao mesmo tempo a troca de mog-ur fazia daquela uma ocasião excepcional. Oga e Ebra iriam ter um papel especial na cerimônia, bem como Brac, agora com sete anos e o novo herdeiro.

Oga estava um feixe de nervos, correndo a cada momento a tudo quanto fosse fogueira que tivesse comida cozinhando. Ebra procurava acalmá-la, mas ela própria não se via muito tranquila, e Brac, querendo se dar ares de adulto, expedia ordens às crianças menores e às mulheres, todas atarefadíssimas. Por fim, apareceu Brun e o afastou, levando-o para ensaiar mais uma vez seu papel. Uba, para poder tirar as outras crianças do caminho,carregou-as para a fogueira de Vorn e, depois, quando tudo já estava preparado, Ayla veio juntar-se a ela. Além da ajuda na cozinha, seu único papel na cerimônia seria o de preparar a infusão de datura para os homens, já que Creb lhe dissera para não fazer a bebida de raízes.

À noitinha, sobraram apenas algumas nesgas de nuvens que, vez por outra, atravessavam diante da lua cheia iluminando a paisagem erma e inerte. No interior da caverna, ardia uma enorme fogueira na área demarcada por um cír culo de tochas, atrás da última fogueira.

Ayla foi sentar-se sozinha sobre sua pele de dormir com os olhos para dos nas chamas do fogo que estalava perto dela. não conseguira ainda ver-se livre do seu mal-estar. Resolveu ir até a entrada da caverna e lá ficar admirando a lua, enquanto não começasse a festa, mas, no momento em que se levantava, deu com Brun fazendo o sinal e ela se encaminhou na direção oposta. Depois de todos haverem tomado os seus lugares, o Mog-ur, seguido por Goov, saiu da gruta dos espíritos, todos os dois vestindo uma capa de pele de urso.

O grande feiticeiro, pela última vez invocou os espíritos, e era como se os anos não houvessem passado para ele. Seus conhecidos gestos de bela eloquência tinham uma força e graça como há muito o clã não via. Foi uma atuação magistral. Jogava com sua platéia com a mestria de um virtuose, levando-a, sempre dentro de um senso de oportunidade perfeito, a reagir ao crescendo das emoções evocativas até atingir o climax que lhe sugou toda a energia, deixando-o em estado de completa exaustão. Ao lado dele, Goov mostrava-se uma pobre cópia do original. O jovem era um mog-ur correto, bom mesmo, mas longe de poder comparar-se ao Mog-ur. O mais poderoso dos feiticeiros que os clãs conheceram.

havia celebrado a última e a mais bela de suas cerimônias. Quando ele passou o controle para Goov, Ayla não era a única a chorar. O clã tinha os olhos secos, mas chorava com o coração.

Enquanto Goov prosseguia na gesticulação que aposentava Brun e ele vava Broud à posição de chefe, Ayla se achava distraída em seu pensamento. Observando Creb, lembrou-se da primeira vez que o viu, quando ela estendeu a mão para tocar no seu rosto desfigurado pela falta de um olho e marcado por cicatrizes. Lembrou-se da sua paciência, tentando ensiná-la a falar e de como, de repente, se fizera o entendimento. Levou a mão ao amuleto, sentindo a minúscula cicatriz e se lembrou do momento em que ele, com um gesto de grande perícia, lhe abrira na garganta um talho para que seu sangue fosse sacrificado em honra dos velhos espíritos que lhe concederam licenção para caçar. Recordou-se, estremecendo, de sua visita clandestina à pequenina caverna escondida nas profundezas de uma montanha e, por fim, lembrou-se dele na noite anterior, com um olhar cheio de amor e tristeza, fazendo-lhe aquela declaração de sentido estranho e enigmático.

Na festa celebrando a transferência do poder à nova geração ela apenas tocou na comida. Os homens entraram no seu sacrossanto recinto a fim de completar em segredo sua cerimônia, e Ayla distribuiu entre as mulheres a da tura recebida de Goov, já então mog-ur.

A moça, no entanto, não estava com espírito para dançar, os seus ritmos careciam de entusiasmo e tinha tomado tão pouco da bebida cerimonial que os efeitos logo passaram.

Depois de ter dado um tempo conveniente para deixar a festa, foi para sua fogueira e, antes que Creb tivesse voltado, já estava dormindo, mas seu sono não foi tranquilo. Ao chegar, Creb ficou algum tempo observando-a dormir junto do filho e só depois é que foi para a cama.

- Mama, você vai caçar? Durc também quer ir - falou o menino, pulando para fora da cama e se encaminhando na direção da entrada. Poucas pessoas encontravam-se de pé, mas Durc já estava perfeitamente acordado.

- Se tiver de ir, Durc, será depois de comer. Venha cá - falou Ayla, enquanto se levantava para ir pegá-lo. - Talvez hoje não. A primavera chegou, mas o calor ainda nãoDepois de comer, Durc ficou vigiando Grev, e quando correu para a fogueira de Broud já não se lembrava mais de caçar. Ayla, sorrindo com ternura, ficou observando-o afastar-se.

O sorriso, no entanto, logo desapareceu ao ver o olhar que Broud lançou ao menino. Seu cabelo chegou a arrepiar na cabeça. Durc e Grev correram juntos para fora. De repente, ela se viu tomada por uma sensação tão forte de claustrofobia que pensou que vomitaria, se não saísse da caverna. Foi, então para a entrada com o coração batendo apressado e ali sorveu profundos goles de ar.

- Ayla!

Ela pulou ao ouvir seu nome proferido por Broud e deu meia-volta, abaixando a cabeça

para olhar o novo chefe.

- Esta mulher saúda o chefe - disse, através de gestos formais.

Raramente, Broud ficava frente a frente com ela. Ayla era muito mais alta do que qualquer homem do clã e Broud não se achava entre os mais altos. Mal lhe alcançava o ombro. A moça sabia que ele não gostava de olhá-la de baixo para cima.

- Hoje, não vá sair daqui correndo para ir a nenhum lugar. Dentro de alguns minutos, vou fazer uma reunião.

Ayla balançou a cabeça com ar submisso.

Aos poucos, o clã foi-se reunindo. O sol brilhava e eles estavam satisfeitos por Broud ter resolvido realizar a reunião do lado de fora, apesar do chão enlameado. Esperaram por algum tempo, até que Broud surgiu, empertigado, consciente de seu status, e foi tomar o lugar antes ocupado por Brun.

- Como sabem, sou o novo chefe - começou ele. Era a primeira vez que falava ao clã em sua nova posição e traiu seu nervosismo com uma declaração de sentido tão manifestamente óbvio.

“Já que o clã tem novo chefe e novo mog-ur, esta é uma boa ocasião para fazer algumas mudanças por aqui - continuou ele. - Quero que saibam que Vorn de hoje em diante será o meu segundo em comando.

As cabeças acenaram, em sinal de aprovação. Já era esperado. Brun achou que Broud poderia ter aguardado até que Vorn ficasse um pouco mais velho e não passá-lo à frente de caçadores mais experimentados. Em todo caso, todo mundo já sabia que isso iria acontecer. Talvez seja melhor mesmo fazer isso de uma vez, disse o antigo chefe consigo.

- Há ainda outras mudanças - prosseguiu Broud. - Uma mulher neste clã não tem companheiro. - Ayla sentiu que o sangue lhe subia ao rosto. - Alguém precisa sustentá-la e não quero sobrecarregar meus caçadores com mais este fardo. Agora sou o chefe e devo responsabilizar-me por ela. Tomarei Ayla como segunda mulher na minha fogueira.

Ayla já o esperava, mas o fato de saber que estava certa não a deixou nem um pouco feliz.

Ela pode não gostar, mas Broud está fazendo o que é de vido, pensou Brun, olhando, orgulhoso, para o filho de sua companheira. Broud está preparado para o cargo.

- Ela tem um filho deformado - continuou Broud. - Quero que todos saibam que nenhuma criança deformada será de hoje em diante mais aceita neste clã. Faço questão de deixar bem claro que isso nada tem a ver com os meus sentimentos pessoais, quando a próxima for recusada. Se ela tiver uma criança normal, esta será aceita.

Creb, de pé na entrada, meneava tristemente a cabeça ao ver Ayla em palidecendo e curvando-se ainda mais para esconder o rosto. Bem, Broud, você pode ter certeza de que outros filhos eu não vou ter, pelo menos enquanto a mágica de Iza funcionar em mim, pensou ela. não me interessa saber se são os órgãos dos homens ou os seus totens que fazem filhos, só sei que você nunca mais vai fazer um em mim. não vou botar filhos no mundo para você mandar matar, porque acha na sua cabeça que são deformados.

- Já deixei isso bem explícito antes - continuou falando Broud. - De modo que não deve ser surpresa para ninguém. não quero nenhuma criança deformada vivendo em minha fogueira.

Ayla levantou a cabeça. O que significa isso? Se eu mudar para a fogueira dele, meu filho tem de me acompanhar.

- Vom concordou em levar Durc para sua fogueira. Sua companheira gosta do menino, mesmo sendo ele anormal. A criança lá será bem tratada.

Ouviu-se um murmúrio de inquietação enquanto as mãos se agitavam nervosas e apressadas. Toda criança até se tornar adulta vive com sua mãe. Por que Broud assumia Ayla e recusava seu filho? Ayla largou o seu lugar e veio atirar-se aos pés de Broud. Ele lhe bateu no ombro.

- Ainda não terminei, mulher. É falta de respeito interromper a fala do chefe, mas por essa vez passa. Bem, fale.

- Broud, você não pode tirar Durc de mim. Ele é meu filho. Para onde vai a mulher, o filho também vai - gesticulou ela, esquecendo-se em sua ânsia, de introduzir-se cerimoniosamente e falar em tom suplicante. Brun estava furioso, o orgulho que sentira há pouco tinha desaparecido.

- Por acaso, mulher, você está querendo dizer ao chefe o que ele deve fazer? - gesticulou Broud, cheio de sarcasmo. Tinha chegado seu grande momento, há anos o vinha planejando e ela estava se comportando tal como ele esperava. - Você não é mae. Oga é mais mãe de Durc do que você. Quem lhe deu de mamar? Não foi você, pelo que me consta.

O garoto nem sabe quem é a mãe dele. Qualquer mulher deste clã pode ser sua mãe. Que diferença faz onde ele vive? É evidente que Durc pouco está ligando, ele come na fogueira de todo mundo - falou Broud.

- Eu sei que não pude alimentar meu filho, mas você sabe que ele me pertence, Broud. Ele dorme comigo todas as noites.

- Bem, pois comigo é que não vai dormir todas as noites. Você pode negar que a companheira de Vorn não seja “mãe” para ele? Já falei com Goov

quer dizer com o mog-ur. Ele irá celebrar a cerimônia de acasalamento após essa reunião.

Não há mais por que esperar. Esta noite você mudará para a minha fogueira e Durc para a de Vorn. Agora, volte a seu lugar - ordenou. Em seguida, passou os olhos pelo clã e reparou em Creb apoiado sobre seu cajado perto da caverna. O velho tinha uma expressão furiosa.

Mas não tanto quanto a de Brun que estourava de raiva, enquanto observava Ayla voltando a seu lugar. Lutava para poder controlar-se e não interferir. No seu rosto havia mais do que raiva, nele transparecia também a tristeza que lhe ia na alma. O filho de minha companheira, pensou, que eu criei, eduquei e acabo de fazer chefe deste clã usando sua posição para tirar uma vingança pessoal? Vingar-se de uma mulher por motivos que só ele conhece? Por que não vi isso antes? Por que não percebi os seus defeitos? Agora, entendo por que subiu Vorn tão rapidamente de posto. Broud tramou toda a coisa com ele. Vinha planejando fazer isso com Ayla há muito tempo. Broud, Broud, é este o primeiro ato de um novo chefe? Arriscar a vida de seus caçadores com um segundo em comando inexperiente, só para poder vingar-se de uma mulher? Que prazer você pode ter em separar um filho de sua mãe, sabendo que ela é uma mulher que tanto já sofreu? Será que não tem sentimentos, filho de minha companheira? Tudo que essa mulher tem é o filho com quem de noite divide sua cama.

- Ainda não acabei. Há algo mais a dizer - gesticulou Broud, tentando prender a atenção do clã escandalizado e se sentindo muito pouco à vontade. Por fim, as pessoas se aquietaram.- não sou eu o único aqui que ascendeu a uma nova posição. Nós temos também um novo mog-ur. Há certos privilégios que correspondem ao status do indivíduo. Resolvi que Goov... digo o mog-ur se mudará para a fogueira que, por direito, pertence ao feiticeiro do clã. Creb será transferido para o fundo da caverna.

Brun lançou um olhar a Goov. Estaria ele metido também na trama? Goov, com uma expressão de espanto, sacudiu a cabeça recusando.

- Não quero mudar para a fogueira do Mog-ur - disse ele. - O lugar lhe pertence, sempre foi a sua casa, desde que viemos para esta caverna.

O clã já não se sentia só pouco à vontade, começava a ficar bastante intranquilo com seu chefe.

- Eu ordeno que mude! - gesticulou Broud imperiosamente, furioso com a recusa de Goov. No momento em que ele olhara na direção de Creb, compreendeu, subitamente, que o velho aleijado apoiando-se sobre um cajado e o encarando cheio de raiva já não era mais o grande Mog-ur. Que tinha ele a temer de um pobre velho decrépito? Num impulso de momento, tinha feito o oferecimento, esperando que Goov fosse avançar sobre o privilegiado lugar dentro da caverna, tal como acontecera com Vorn, quando ele lhe acenou com a possibilidade de subir de posto. Achou que, com isso, estaria for talecendo a lealdade do novo mog-ur para com ele e fazendo com que o rapaz fosse sentir-se obrigado.

Só que não contara com a fidelidade e o amor de Goov a seu mentor. Brun não conseguiu mais conter-se e já ia interferir, quando Ayla lhe passou à frente.

- Broud! -gritou ela de seu lugar.

Ele levantou, rápido, a cabeça.

- Você não pode fazer isso! não pode obrigar Creb a mudar-se de sua fogueira! - disse justamente indignada e avançando com passos firmes em sua direção - Ele precisa de um lugar que seja abrigado contra o tempo. Há muita corrente de ar no fundo da caverna e você sabe como ele passa mal nos invernos. - Ayla se esquecera de suas maneiras clãmicas, ali se achava apenas a curandeira tentando proteger o paciente. - Você está fazendo isso só para me agredir. Querendo vingar-se de Creb, porque ele tomou conta de mim. Pouco estou ligando para o que você fizer comigo, Broud, mas deixe Creb em paz!

- Encontrava-se de pé na frente dele, dominando-o, gesticulando com as mãos furiosamente diante de seu rosto.

- Quem lhe deu permissão para falar, mulher! - disse Broud colérico, levantando o punho cerrado em sua direção mas ela percebeu a tempo e se desviou do murro. Ele, surpreso, viu-se acertando o ar. A raiva logo substituiu a expressão de espanto e já ia partir para cima dela.

- Broud! - O berro de Brun deixou-o imóvel. Ele estava habituado de mais a obedecer àquela voz, principalmente se erguida em tom de raiva.

- Aquele lugar pertence ao Mog-ur, Broud. E até que ele morra, lá será sempre a sua fogueira. Isso irá acontecer dentro de pouco tempo e não há necessidade de você apressar sua mudança. Por muitos anos ele vem servindo este clã da melhor forma possível. Ele merece viver ali. Que espécie de chefe é você? Que espécie de homem é você, Broud? Um homem que usa sua posição para se vingar de uma mulher? Uma mulher que nunca lhe fez nada e que ainda que quisesse não poderia. Broud, você deixou de ser o chefe!

- não Brun, eu sou o chefe, você é que não é mais. - Passado o primeiro impulso de obedecer, Broud havia recuperado a consciência da posição dele e da de Brun. - Agora, sou eu o chefe! Quem toma daqui por diante as decisões sou eu! Você sempre se pôs contra mim para ficar do lado dela. Sempre a protegeu. Bem, já não vai mais poder protegê-la! - Broud começava a perder o autodomínio, gesticulando furiosamente com a cara vermelha de raiva. - Ela fará o que eu disser, ou do contrário será amaldiçoada! E desta vez não será por tempo limitado. Você acabou de ver a insolência dela e mesmo assim ainda continua tomando sua defesa. não irei tolerar isso! Nunca mais. Ela merece ser amaldiçoada pelo que acaba de fazer. E é o que farei. O que você acha disso, Brun? Goov! Amaldiçoe esta mulher. Agora! Neste instante! Quero que ela seja imediatamente amaldiçoada. Ninguém vai dizer a este chefe o que ele tem a fazer e muito menos esta mulher horrenda. Você me entendeu, Goov? Vamos, faça logo a maldição!

Creb, desde o momento que viu Ayla se precipitando na direção de Broud, procurava atrair-lhe a atenção, querendo avisá-la. Pouco lhe importava se estivesse vivendo no fundo ou na frente da caverna, dava tudo no mesmo. A suspeita tinha começado a surgir no seu espírito, quando Broud disse que tomaria Ayla como segunda mulher. Era uma mudança cheia de implicações, e não seria tomada por Broud, se não houvesse alguma razão por de trás de tudo.

Mas as suas suspeitas não chegaram ao ponto de prepará-lo para a feia cena que se seguiu.

Ao ver Broud dando ordens a Goov para amaldiçoá-la, o pouco ainda que lhe restava de espírito de luta desapareceu. não quis ver mais nada, fez meia-volta e vagarosamente se encaminhou para o interior da caverna. Ayla levantou os olhos no momento em que ele sumia no buraco da entrada.

Creb não era o único a se sentir mal com aquele confronto aberto. O clã inteiro via-se em rebuliço, gesticulando, gritando e andando alvoroçado.

Alguns não aguentavam ver e outros olhavam incrédulos e extasiados o espetáculo que jamais imaginaram presenciar em suas vidas. Sempre haviam vivido de modo muito ordenado, muito protegidos e escudados em suas tradições, costumes e hábitos.

Tinham ficado surpresos com a notícia absurda e inusitada da separação de um filho de sua mãe; em seguida, escandalizados tanto com a atitude de Ayla entrando em confronto direto com o novo chefe quanto com a decisão deste de tirar Creb de sua fogueira e, por fim, estupefatos com a investida colérica de Brun contra o homem que ele acabara de fazer chefe e com o acesso de Broud exigindo a maldição de Ayla. Mas outras surpresas ainda os aguardavam.

Ayla tremia tanto que só percebeu o tremor sob seus pés ao ver as pessoas caindo de bruços, sem conseguir manter-se equilibradas sobre as pernas. Seu rosto espelhava a mesma expressão que se via no dos outros:

primeiro de assombro, depois de medo e por fim de pavor. Foi, então que escutou o rumor grave e aterrorizante vindo das entranhas da terra.

- Duuurc! - gritou, ao mesmo tempo em que via Uba agarrando-o e caindo sobre ele, como se tentasse proteger o corpinho do menino com o dela. Ayla ia correr para onde se achavam quando, de repente, lembrou-se de uma coisa que a encheu de pavor.

- Creb! Ele está dentro da caverna!

De gatinhas, Ayla subiu o aclive do terreno oscilante, tentando alcançar a boca triangular da caverna. Uma enorme pedra rolou do íngreme paredão que sustentava a entrada e caiu a seu lado, desviada por uma árvore que ficou espatifada. A moça não reparou. Estava entorpecida, em estado de choque. As lembranças revividas em seus velhos pesadelos vieram à tona, mas de forma embrulhada e confusa pelo pânico total. Em meio ao rugido do terremoto, não chegou nem mesmo a escutar a palavra saída de seus lábios numa língua já há muito esquecida.

- Mam

Sob seus pés, o chão sumia abaixando-se muitos centímetros, para de pois tornar a elevarse. Ela caía e lutava para se manter de pé, quando viu o teto em abóbada da caverna desmoronando. Blocos de pedras se desprendiam do alto e se esborrachavam no chão com o impacto. E outros mais iam caindo. A seu redor, as pedras ricocheteavam, despencadas da face rochosa da montanha para rolar pelo aclive e ir esboroar-se no riacho congelado. O morro do lado leste partiu-se, e a metade ruiu, também se despencando pela encosta.

Dentro da caverna, era uma chuva de pedras, cascalhos e pó que vinha com o trovejar intermitente de grandes seções da parede e do teto em arcadas. Do lado de fora, os altos pinheiros dançavam como se fossem gigantes desengonçados e as velhas árvores desfolhadas balançavam seus galhos desajeitada- mente, ao ritmo de um réquiem trovejante. Uma rocha na parede, próxima à parte leste da entrada, do lado oposto ao lago, se alargou com estrondo fazendo jorrar as rochas e pedregulios soltos. Sob o chão, abriu-se um outro canal de água que, antes de fazer sua viagem inaugural para o riacho, depositou uma massa de detritos no pórtico da entrada. O rugir da terra e dos rochedos se despedaçando abafavam os gritos aterrorizados do clã. O som era ensurdecedor.

Finalmente, o tremor cedeu. Umas últimas pedras ainda se despencavam da montanha, ricocheteando e rolando até parar em algum ponto. Às tontas, cheias de medo, as pessoas começaram a se pôr de pé e a caminhar a esmo com expressão aparvalhada procurando recobrar a razão. Pouco a pouco, foram se juntando ao redor de Brun. Ele sempre significou garantia e estabilidade para as suas vidas e, agora, gravitavam em torno da segurança que sua figura representava.

Mas Brun nada fez. Estava certo de que em todos os anos dele como chefe, o seu pior erro fora passar o comando do clã a Broud. Naquele imstante, compreendeu o quanto se mostrara cego às falhas de caráter do filho de sua companheira. Até mesmo as virtudes de Broud, a coragem imprudente e os grandes atos de bravata, pareciam-lhe agora como manifestações de um ego inconsequente e de um temperamento impulsivo. Mas não era essa a razão por que Brun se recusava a agir. Broud era agora o chefe, fosse para o bem ou para o mal. Era tarde demais para ele voltar atrás e preparar outro homem para o cargo, embora soubesse que o clã o acompanharia na decisão. A única esperança, tanto para que Broud se tornasse de fato um chefe como para o clã, seria fazê-lo governar. Broud, desafiadoramente, sem o menor domínio de si, disse ser o chefe. Bem, Broud, pois então seja, dê as ordens. Vamos, faça alguma coisa. Doravante, quaisquer que fossem as suas decisões - ou antidecisões - Brun já não mais iria interferir.

Ao se convencer de que Brun não tomaria de novo as rédeas do poder, o clã se voltou para Broud. Eles estavam habituados demais a seguir as tradições com o seu enquadramento hierárquico e Brun fora um chefe extremamente bom, forte e capaz. Achavam-se acostumados com sua voz de comando nos tempos de crise e a depender de seu julgamento cahno e sensato. não sabiam como agir por conta própria e nem tomar decisões por si mesmos na ausência de um chefe. Até Broud esperava que Brun reassumisse, também ele necessitava de apoiar-se em alguém. Quando, por fim, percebeu que o peso da responsabilidade havia recaído sobre si, tentou assumi-lo. E realmente tentou.

- Quem está faltando? Quem está ferido? - perguntou Broud.

Todos deram um ligeiro suspiro de alívio. Finalmente, alguém fazia alguma coisa. Os grupos de família começaram a reunir-se e, à medida que oclã ia se juntando, foram vendo com surpresa as pessoas que temiam ter desaparecido.

Miraculosamente, parecia que ninguém faltava. Apesar de todo o tremor da terra e de toda a quantidade de rochas despencadas, ninguém se achava seriamente ferido. Machucados, cortes, arranhões, mas nenhuma fratura de osso. Isso não era inteiramente verdade.

- Onde está Ayla? - gritou Uba, meio em pânico.

- Aqui - respondeu Ayla, descendo pela encosta, esquecida, por um momento, do motivo por que se encontrava naquele lugar.

- Mama! - gritou Durc, soltando-se das garras protetoras de Uba e correndo. Ayla se precipitou para ele. Suspendeu-o no colo, abraçando-o apertado e vindo com ele de volta.

- Uba, você está bem?

- Sim, nada de sério.

- Onde está Creb? - perguntou Ayla, lembrando-se. Ela meteu Durc no colo de Uba e correu de volta na direção da encosta da montanha.

- Ayla, onde você vai? não entre na caverna! Pode haver mais tremores.

Ela não viu o aviso, mas de qualquer maneira não lhe teria prestado atenção. Entrou na caverna correndo direto para a fogueira de Creb. De vez em quando ainda caíam pedras e cascalhos formando pequenos montes no chão. Exceto algumas pedras e uma camada de poeira, o lugar da fogueira deles permanecera intacto. Creb, entretanto, não se achava lá.

Ayla procurou em uma por uma das fogueiras. Algumas estavam completamente destruídas, mas a maioria ficou com muitas coisas que ainda davam para ser salvas. Creb não se encontrava em nenhuma das fogueiras. Ayla hesitava em passar pela estreita abertura que levava à gruta dos espíritos; depois, decidiu entrar, mas estava muito escuro.

Precisava de uma tocha. Resolveu, então fazer primeiro uma vistoria no restante da caverna.

Uma chuva de pedregulhos caiu sobre ela, fazendo-a dar um pulo para o lado, e um grande bloco dentado passou rente por seu braço antes de espatifar-se na terra. Examinava as paredes, ia e vinha pelo recinto, penetrava nas sombras por trás dos recipientes de armazenar comida na total escuridão da caverna. Já estava pronta para ir buscar uma tocha, quando decidiu procurar num último lugar.

Encontrou Creb ao lado da sepultura de Iza. Deitara-se sobre o lado deformado de seu corpo, com as pernas encolhidas, quase como se tivessem sido amarradas na posição fetal.

O magnífico crânio que guardara seu poderoso cérebro já não o protegia mais. A grande pedra que o havia partido achava-se a alguns centímetros dele. A morte devia ter sido instantânea. Ayla se ajoelhou ao lado de seu corpo e as lágrimas começaram a correr.

- Creb, ó Creb, por que você foi entrar na caverna? - gesticulou se balançando sobre os joelhos e gritando seu nome. Em seguida, por alguma razão inexplicável, pôs-se de pé e passou a gesticular com os movimentos que tinha visto Creb fazer sobre Iza durante o funeral desta. Sozinha na caverna juncada de pedras, a mulher alta e loura, com lágrimas toldando-lhe a visão, silenciosamente deixou que os movimentos de antiquíssima simbologia fluíssem com uma graça e sutileza tão perfeitas quanto as do próprio homem santo. Muitos daqueles movimentos eram de significado desconhecido para ela. E jamais iria entendê-los. Era a última homenagem que prestava ao único pai que conhecera.

- Está morto - gesticulou Ayla, ao sair da caverna, para os rostos que estavam virados em sua direção.

Broud, como todos os outros, tinha os olhos fixos nela. Subitamente, ele se viu tomado por enorme medo. Era ela quem encontrara a caverna, e a ela que os espíritos favoreciam. Logo depois de ele a ter amaldiçoado, as forças invisíveis sacudiram a terra destruindo a caverna que ela achara. Estariam os espíritos zangados com ele por querer sua maldição? Teriam destruído a caverna que ela havia encontrado por se acharem com raiva dele? E se o clã pensasse que fora ele a causa da calamidade que os atingia agora? Nos recônditos de sua alma supersticiosa, tremia com a idéia do mau presságio, apavorado por haver desencadeado a raiva dos espíritos, da qual estava certo ser o responsável. De repente, atravessou-lhe na mente um raciocínio artificioso. Se pusesse a culpa nela antes que os outros o achassem culpado, ninguém poderia dizer que fora ele o causador da desgraça e os espíritos se voltariam contra Ayla.

- Foi ela quem causou isso! A culpa é dela! - gesticulou Broud, subitamente. - Foi ela quem fez os espíritos ficarem com raiva. Ela é a única aqui a desdenhar nossas tradições.

Vocês todos viram. Esta mulher foi insolente e desrespeitosa com o chefe. Tem de ser amaldiçoada para que os espíritos vol tem a ficar felizes. Então, eles verão como saberemos honrá-los e nos conduzirão a uma outra caverna. Melhor ainda que esta e até mais afortunada. Eles irão nos guiar, tenho certeza de que vão. Goov, amaldiçoe esta mulher! Ande, neste instante. Faça isso imediatamente. Amaldiçoe, vamos! Amaldiçoe esta mulher!

Todas as cabeças se viraram na direção de Brun. Ele olhava em frente, com as mandíbulas comprimidas, os punhos cerrados, os músculos das costas latejando com a tensão. Recusava a se mover, a interferir, embora estivesse apelando para todas as suas reservas de força de vontade. As pessoas, inquietas, entreolhavam-se. Depois, olharam seguidamente para Goov e Broud. O acólito, em total perplexidade, encarava Broud. Como pôde ele culpar Ayla? Se algum culpado há aqui é ele próprio. Goov, por fim, caiu em si.

- Goov, eu sou o chefe e você é o mog-ur. Ordeno a maldição desta mulher. A maldição de morte!

Goov deu as costas abruptamente, apanhando um galho de pinho que se queimava na fogueira armada enquanto Ayla estava dentro da caverna e se dirigiu para a encosta, desaparecendo na escuridão da boca triangular. Caminhava com cuidado, evitando os escombros no chão, com a atenção voltada para as pedras e pedregulhos que de vez em quando ainda despencavam, sabendo que um outro terremoto poderia despejar toneladas sobre sua cabeça e desejando que tal acontecesse, antes que consumasse o que lhe havia sido ordenado. Entrou na gruta dos espíritos e arranjou os sagrados ossos do urso da caverna em filas paralelas, fazendo antes um gesto com cada um deles. O último, ele enfiou pela base do crânio, de modo que a outra extremidade saísse pela cavidade ocular. Em seguida, pronunciou em voz alta os terríveis nomes dos espíritos malignos, só conhecidos pelos mog-urs. Com isso, estava reconhecendo a existência deles e lhes dando poder.

Ayla ainda se encontrava de pé em frente à caverna, quando ele passou por ela sem vê-la.

- Eu sou o mog-ur e você o chefe. Você ordenou a maldição de morte de Ayla e o serviço foi executado - gesticulou Goov, dando em seguida as costas ao chefe do clã.

No princípio, ninguém conseguia acreditar. Tinha sido demasiadamente rápido. não era assim que se deveria fazer. Brun, teria primeiro discutido o assunto, argumentado, preparado o clã para o fato. Mas, antes de tudo, ele não teria amaldiçoado Ayla. Afinal, o que a moça tinha feito? Havia sido malcriada com o chefe e essa era uma coisa errada, mas seria motivo para uma maldição de morte? Ela simplesmente estava defendendo Creb. E Broud, o que tinha feito? Tirado seu filho, expulsado o velho feiticeiro de sua fogueira, com o intuito exclusivo de vingar-se dela. Agora, ninguém tinha fogueira. Por que Broud foi fazer isso? Por que foi amaldiçoá-la? Os espíritos sempre estiveram do lado de Ayla. Ela sempre lhes trouxera sorte até o momento de Broud ordenar sua maldição. Fora Broud que lhes tinha trazido desgraça. Agora, o que seria do clã? Broud havia enraivecido os espíritos protetores e deixado os malignos à solta. E o velho feiticeiro estava morto. O Mog-ur já não poderia mais ajudá-los.

Ayla achava-se tão perdida em sua dor que nem notou a rapidez com que se processaram os acontecimentos ao redor dela. Vira quando Broud ordenou sua maldição e vira quando Goov disse que o serviço estava feito, mas, com o pensamento todo voltado para seu sofrimento, não captou o que se estava passando. Aos poucos, a compreensão foi se infiltrando em sua consciência. Quando pôde, por fim, absorver todas as implicações do acontecido, o choque foi arrasador.

Amaldiçoada? Maldição de morte? Por quê? O que foi que eu fiz de tão grave? Como foi isso acontecer tão depressa assim? O clã se mostrava tão lento para entender quanto ela. Eles ainda não se haviam recuperado inteiramente do impacto do terremoto. Ela, curiosamente, sentia-se alheia, observando as pessoas, uma a uma, irem ficando com os olhos vidrados, parecendo cegas. Lá está Crug, quem será o próximo? Ika. Agora é a vez de Droog. Aga ainda não. Ah, agora sim, ela deve ter visto que eu olhava em sua direção.

Ayla somente caiu em si quando os olhos de Uba se tornaram opacos e ela começou com a sua nênia, lamentando a morte da mãe da criança que segurava nos braços. Durc! O meu bebê, o meu filhinho! ´

É eu estou amaldiçoada! O que será dele? Só existe Uba. Ela tomará conta dele, mas o que pode Uba fazer contra Broud? Ele tem ódio de Durc por ser meu filho. Ayla olhava desesperada à sua volta e viu, então, Brun. Brun! Ele pode proteger Durc. Só Brun poderá olhar por ele.

Correu para Brun, o homem forte, sensível e controlado que até a véspera havia chefiado o clã. Ela se deixou cair a seus pés com a cabeça abaixada, levando alguns momentos para compreender que ele jamais lhe iria dar o tapinha no ombro. Quando ergueu os olhos, ele olhava por cima de sua cabeça para a fogueira atrás dela. Se ele quisesse os seus olhos poderiam enxergá-la. Ele pode me ver, disse Ayla consigo. Ele pode me ver, sei que pode.

Creb se lembrava de tudo quanto eu disse, e Iza também.

- Brun, eu sei que você pensa que estou morta. não afaste seus olhos. Eu imploro, não fique olhando para longe. Tudo aconteceu rápido demais! Eu vou embora, prometo que vou. Mas tenho medo por Durc. Broud tem ódio dele, você sabe disso. O que será de meu filho, com Broud como chefe? Durc pertence ao clã, Brun. Você o aceitou. Eu lhe peço, Brun, proteja Durc. Só você pode fazer isso. Não deixe Broud fazer mal a ele.

Brun, sem pressa, virou as costas para ela, pondo-se a olhar em outra direção como se tivesse mudado de posição e não como se tentasse desviar os olhos dela. ayla, entretanto, lhe percebeu nos olhos um brilho ínfimo, sugestivo de que ele tomara conhecimento de sua presença ali. Era uma leve indicação de aquiescência, mas já bastava. Ele iria proteger Durc, assim havia prometido ao espírito de sua mãe. Era fato que tudo se tinha passado depressa demais e ela não tivera tempo de fazer o pedido antes. Sua decisão de não interferir com Broud não chegava a tal ponto. Não permitiria que o filho de sua companheira fizesse mal ao filho de ayla.

A moça se levantou e se encaminhou propositadamente para a caverna. Até falar com Brun ainda não tinha resolvido ir embora, mas depois sim. A dor pela morte de Creb foi relegada a um canto de sua mente para ser sentida mais tarde, quando sua sobrevivência Não estivesse em jogo. Talvez fosse para o mundo dos espíritos, talvez Não, mas não iria de mãos abanando.

Da primeira vez que entrou na caverna não tomara consciência das avarias ocorridas lá e agora olhava como se aquele fosse um lugar desconhecido, dando graças por não haver ninguém dentro no momento do terremoto. Ela respirou fundo e, sem tomar conhecimento das condições de perigo, correu para a fogueira de Creb. Se não pegasse o necessário para sua subsistência, cer tamente morreria.

Retirou uma pedra de sua cama, sacudiu a capa de pele e por cima desta começou a empilhar uma série de coisas: a sacola de remédios, a funda, dois pares de calçados, perneiras, luvas, uma manta forrada de pele, um capuz. E mais: sua cuia, uma bacia, recipientes para água e ferramentas. Em seguida, dirigiu- se para o fundo da caverna e encontrou lá os bolos preparados para viagem feitos de carne-seca, cereais e gordura que tinham alto teor alimentício. Revistando por entre as pedras, achou os potes de madeira contendo açúcar de bor do e ainda frutas secas, diversos tipos de nozes, farinha de cereais, tiras de carne-seca e peixe, e alguns vegetais. A estação já estava no fim e a variedade por isso não era grande, mas, em todo caso, servia. Limpou sua cesta de colher, retirando as pedras e a poeira de dentro e se pôs a enchê-la.

Com lágrimas nos olhos, pegou a manta de carregar Durc e a encostou no rosto. Não ia precisar dela. Durc iria ficar, mas guardou-a. Pelo menos, teria uma coisa que pertencera a seu filho e que tinha estado muito junto dele. Vestiu-se com roupas quentes, iria fazer frio na planície no princípio da estação Talvez ainda fosse inverno no norte. Por enquanto, não tinha tomado nenhuma decisão sobre que direção seguir. Sabia que estava indo para o continente que ficava ao norte da península.

No último momento, resolveu apanhar o couro da barraca que levava quando saía com os homens nas expedições de caça. A rigor, não lhe pertencia. Ela teria direito de levar tudo quanto fosse dela, e o que deixasse seria queimado. Achava que por justiça uma parte dos alimentos lhe pertencia, mas o pano de couro era para uso das pessoas vivendo na fogueira de Creb. Afinal, Creb não estava mais lá e em vida nunca o havia usado. Ela imaginava que ele não fosse se importar.

Botou-o por cima de tudo na cesta, suspendeu às costas aquele pesado volume e amarrou as correias que o firmavam no lugar. De pé, no meio da fogueira de Creb, as lágrimas ameaçavam voltar, olhando para aquilo que fora seu lar, para onde tinha sido levada poucos dias depois de Iza a ter encontrado. Nunca tornaria a vê-lo. Por seus olhos desfilou um turbilhão de lembranças a se atropelarem em sua mente - algumas, mais significativas, detendo-se por um tempo maior. O último pensamento foi para Creb. Gostaria de saber o que causara a ele tanto sofrimento. Talvez um dia eu compreenda, mas fico feliz por termos conversado antes de você partir para o mundo dos espíritos, Creb. Nunca me esquecerei de você, de Iza e do clã. E veio para fora da caverna.

Ninguém olhava, mas todos sabiam que Ayla tinha aparecido. Ao parar Junto do lago para encher os cantis, uma outra lembrança lhe atravessou o espírito. Antes de agitar a superfície mergulhando o recipiente na água, ela se inclinou, querendo ver seu rosto.

Examinou-o com atenção. Desta vez não lhe pareceu tão feio. No entanto, não era nela que estava interessada. Desejava ver um rosto dos outros.

Quando se levantou, Durc lutava para se desprender dos braços de Uba. Alguma coisa que tinha a ver com sua mãe estava acontecendo. não tinha certeza do que fosse, mas sabia que não gostava. Com um safanão, conseguiu soltar-se e correu para Ayla.

- Você está indo embora - falou, acusando. Começava a entender e estava indignado por não lhe terem dito. - Você está vestida e vai embora.

Por uma fração de segundo, Ayla hesitou. Depois, estendeu os braços e Durc voou a seu encontro. Lutando contra as lágrimas, ela o apanhou, abraçando-o apertado. Em seguida, agachou-se para ficar de sua altura e olhou diretamente dentro de seus grandes olhos castanhos.

- É verdade, Durc, eu vou embora. Tenho de ir.

- Mama, me leve com você. Mama, me leve! não me deixe!

- não posso, Durc. Você tem de ficar com Uba Ela vai cuidar de você, e Brun também.

- não quero ficar aqui! - gesticulou Durc, debatendo-se. - Quero ir com você. não vá embora, deixando-me aqui!

Uba aproximou-se. Era preciso. Tinha de tirar Durc das mãos do espírito. Ayla abraçou seu filho novamente.

- Eu o amo, Durc. Nunca se esqueça disso, nunca se esqueça de que sua mãe o ama muito. - Ela pegou o filho e o botou nos braços de Uba. - Tome conta dele para mim, Uba - gesticulou, olhando-a nos olhos cheios de tristeza. Uba devolveu o olhar, tinha visto Ayla. - Cuide dele... minha irmã.

Broud, cada vez mais furioso, observava a cena. Aquela mulher está morta. Ela é um espírito. Por que não está agindo como tal? E por que há pessoas que não a estão tratando como um espírito?

- Ela é um espírito - gesticulou, possesso. - Ela está morta. Será que não sabem que já morreu?

Ayla, com passos firmes, encaminhou-se para Broud e se pôs de pé, a toda altura, na sua frente. Ele estava tendo dificuldade para não enxergá-la. Tentava ignorá-la, mas ela o olhava de cima para baixo, e não sentada a seus pés como uma mulher deveria estar.

- não estou morta, Broud - gesticulou, desafiadoramente. - E nem vou morrer. Você não me pode matar. Pode me forçar a ir embora e pode tirar meu filho de mim, mas não me pode obrigar a morrer!

A raiva e o medo se misturaram, quando ele, tomado por um ímpeto,e o punho fechado para esmurrá-la, mas se conteve, temendo tocar nela. Ela é um truque, disse consigo. não passa de um estratagema do espírito. Ela tá morta, foi amaldiçoada.

- Vamos, Broud, bata em mim. Vamos, reconheça esse espírito que está aqui. Bata e verá que não estou morta.

Broud virou-se para Brun, querendo desviar os olhos do espírito. Depois, abaixou o braço, embaraçado com a posição que podia parecer pouco na tural. não chegara a encostar nela, mas tinha medo de que só o fato de levantar a mão fechada já fosse suficiente para reconhecer-lhe a presença e tentou passar para Brun a responsabilidade do ato que atraía desgraça.

- Não pense que não vi, Brun, quando você respondeu ao espírito antes de ele entrar na caverna. Ela é um espírito, Brun, e você vai atrair desgraça - ameaçou ele.

- Só eu, Broud? E que outra desgraça mais poderia acontecer-me? Mas quando você viu Ayla conversando comigo? Quando a viu entrando na caverna? Por que você ameaçou bater num espírito? Parece que você ainda não entendeu, não é? Você reconheceu sua existência, Broud. E ela o venceu. Você fez tudo que pôde contra ela, até mesmo a amaldiçoá-la chegou e, ainda assim, ela o venceu. Ayla era uma mulher e tinha mais coragem do que você, Broud. Muito mais força de vontade e caráter. Era mais homem do que você. Ayla é que deveria ter sido o filho de minha companheira.

Ayla se viu surpresa com o inesperado elogio de Brun. Durc, novamente, contorcia-se chamando-a. Ela não conseguiu aguentar mais e correu, afastando-se. Ao passar por Brun, abaixou a cabeça e fez um gesto expressando sua gratidão. Chegando ao morro, virou-se para uma última olhada. Viu Brun levantar a mão como se fosse coçar o nariz, mas era como se ele fizesse um certo gesto, o mesmo feito por Norg, quando eles se despediram da reunião de clãs. Pareceu-lhe ver Brun dizendo:

- Que Ursus a acompanhe.

A última coisa que Ayla ouviu, ao desaparecer por trás do morro fendido, foi o grito choroso de Durc:

- Maama! Maaania! Maamaaa!

 

 

                                                                                                    J. M. Auel

 

 

 

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