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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AZUL NA MEZENA / Patrick O brian
AZUL NA MEZENA / Patrick O brian

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

A esplêndida novela com a qual se fecha o impressionante ciclo de Patrick O’Brian sobre o capitão Jack Aubrey e o cirurgião e espião Stephen Maturin situa-se nos dias posteriores a Waterloo, quando o Chile começa a ver sua independência no horizonte e receba para isso a colaboração dos britânicos, e o leitor mergulha em uma turbilhão de naufrágios, motins, adultério, espionagem, deserções, revoluções...
Este é o vigezimo romance da mais apaixonante série de novelas históricas marítimas jamais publicada; por considerá-lo de indubitável interesse, ainda que os leitores que desejem prescindir disso podem perfeitamente fazê-lo, inclue-se um arquivo adicional com um amplo e detalhado Glossário de termos marítmos.
Foi mantido o sistema de medidas da Armada Real inglesa, como forma habitual de expressão da terminologia náutica.

1 cabo =120 braças = 185,19 metros.
1 celemine= 4,6 litros.
1 estadio= 201,2 metros.
1 jarda = 0, 9144 metros.
1 libra = 0, 45359 quilogramas — 1 kg = 2, 20462 libra.
1 pé = 0, 3048 metros — 1 m = 3, 28084 pés.
1 pinta = 0,47 litros.
1 polegada = 2, 54 centímetros — 1 cm = 0, 3937 polegada.
1 quintal = 112 libras = 50, 802 kg.

 

 

 


 

 

 


CAPÍTULO 1
A Surprise se encontrava no meio do canal, com Gibraltar a meia milha de distância pela alheta de estibordo, fundeada com uma só âncora e com a proa virada para
um vento do noroeste cada vez mais intenso. Apitou-se para a dotação ao dar as quatro badaladas da guarda de doze a quatro da tarde e, ao ouvir-se desde a Ringle,
seu navio de apetrechos, destacada de novo em missão particular por lorde Keith, seus homens aclamaram a bordo enquanto os da Surprise se voltavam com prontidão,
rindo, seus rostos radiantes, dando-se palmadinhas nas costas uns dos outros apesar da certeza da chuva e da dureza do mar. Muitos puseram seus melhores trajes,
abrigos com bordados e lenços de Barcelona ao redor do pescoço, pois os marinheiros da Surprise e seu capitão Jack Aubrey tinham feito uma elegante presa, nada mais
e nada menos que uma galera moura carregada de ouro. Fora a primeira a abrir fogo sobre a Surprise, o que a convertia em embarcação pirata, de tal maneira que o
tribunal de presas reunido a instâncias do almirante lorde Keith, amigo do capitão Aubrey, de imediato a condenara. Era uma presa de lei, e seu carregamento se repartiria
conforme os usos do mar ou, para ser exatos, conforme as leis de presa de 1808.
Estavam todos no convés, radiantes de alegria e formavam olhando para popa no lado de bombordo do castelo de popa, reunidos com a pressa habitual da armada, observando
seu capitão, os oficiais, o contador e o escrevente; ali estavam, na popa e colocados ao longo de ambos os lados, entre os magníficos tonéis. Um destacamento de
Infantes da Marinha os havia subido a bordo rigorosamente fechados; a essas alturas, já careciam de suas correspondentes tampas (numeradas e conservadas pelo toneleiro),
e era óbvio que estavam cheios de moedas. Aquele ouro era pouco convencional, pois depois de capturá-lo tinham descoberto que se tratava de pequenos lingotes de
forma irregular que os ourives gibraltarinos fundiram em lisos e reluzentes discos, em cuja superfície gravaram o peso, cento e trinta grãos Troy: cento e trinta
grãos de peso Troy; contudo, a prata e o cobre conservavam sua forma original.
Cessaram a algaravia e o eco da quarta badalada. O escrevente, depois do capitão consentir, chamou John Anderson. A bordo não havia ninguém mais cujo nome o precedesse
no alfabeto, de modo que o fato de ouvir seu nome não surpreendeu a John Anderson ou a seus companheiros. Ainda que geralmente fosse tímido e lerdo, abandonou a
formação com passo firme até chegar ao cabrestante. Descobriu-se, fez a saudação militar colocando sua mão encima da mecha que caía sobre sua testa e exclamou:
- John Anderson, senhor, com sua permissão. Marinheiro ordinário, guarda de bombordo, popa.
O escrevente comprovou consciencioso os dados em seu livro, apesar de saber de memória.
- Muito bem - disse. - Uma centésima quinquagésima sétima parte da metade. Estenda o chapéu. - Afundou a mão direita no tonel de ouro e pegou um punhado de discos
que contou a medida que os introduzia no chapéu. - Um, dois... Dez. - Voltou a afundar a mão, contou mais sete e disse a Anderson: - Aguarde um instante. - E ordenou
a seu magro assistente, situado junto aos outros dois tonéis: - Dezessete com quatro peniques. - Depois, dirigiu-se de novo a Anderson: - O que soma um total de
dezessete libras, dezessete xelins e quatro peniques. Aqui está a promissória em virtude da qual o senhor solicita que se entreguem trezentas e sessenta e cinco
libras para a senhora Anderson. Satisfeito?
- Oh, Deus bendito, sim - respondeu Anderson rindo. - Oh, sim, senhor, muito, muito contente.
- Em tal caso assine aqui - disse o escrevente. Ao ver que Anderson lhe olhava inseguro, murmurou: - Bem, ponha uma cruz no canto inferior.
E assim continuou o negócio, homem a homem por ordem alfabética. Poucos eram os que não contavam com algum familiar, e estes se retiraram com toda a parte que lhes
correspondia: uma centésima quinquagésima sétima parte da metade de tão esplêndido butim. A maioria dos marinheiros cederam às pressões do capitão e dos oficiais
de divisão, que insistiram em que pelo menos enviassem uma parte do dinheiro para casa. Todos concordaram com a recontagem do escrevente. Stephen Maturin, cirurgião
da fragata, passara um tempo calculando o grau de alfabetização a bordo; contudo, a melancolia, esporeada sem dúvida pelo vento e o chuvisco do mar, fizera-se um
oco em seu coração, e perdeu a conta entre os sobrenomes que começavam com a letra "N".
- Daria o que fosse para ter aqui a William e aos marinheiros da Ringle - disse a Jack quando se produziu uma pausa na narração.
- Eu também. Mas já sabe que na qualidade de navio de apetrechos privado do que na realidade é uma embarcação hidrográfica, não creio que recebessem mais de quatro
peniques. De qualquer maneira, não pude negar a lorde Keith (que não tinha nenhuma outra embarcação a mão) quando me pediu como favor pessoal. Devo muito, a ambos
lhes devo muito.
- Certamente, certamente. É que me agradaria que os jovens aceitassem uma moeda de ouro, para não deixá-los à margem - disse Stephen. - Aumenta o fluxo de ondas!
A escuridão se faz mais espessa.
- Reunir-se-ão conosco em Madeira - disse Jack. - Então poderá dar-lhes suas moedas de ouro. - Conversaram em voz baixa até que Jack reparou em que Willis e Younghusband
tinham recebido sua parte, e em que Moisés Zachary, um dos marinheiros mais veteranos da congregação de Seth, tinha deixado de rir entre os dentes depois de meter
ou de tentar meter todas as moedas em um surtimento tão amplo como inadequado de bolsos pequenos e triangulares. Chegara o momento de pôr mãos à obra.
Mas não houve forma. Apesar da escuridão aumentava e da violenta enxurrada, um dos marinheiros, provavelmente Giles, capitão de gavieiros do traquete, exclamou:
- Tudo graças ao corno de unicórnio, tudo graças à Mão da Glória. Hurra, três hurras pelo doutor!
Santo Deus, de que modo aclamaram ao doutor! Ele fora o responsável de subir a bordo o corno de narval, e também era de sua propriedade a mão cortada, a Mão da Glória.
Ambos objetos simbolizavam (e praticamente garantiam) uma imensa boa sorte, virilidade, salvaguarda contra o veneno ou qualquer doença que pudesse nomear-se. Ambos
tinham demostrado com acréscimo sua valia.
Jack Aubrey era um capitão severo. Aprendera o ofício servindo sob as ordens de comandantes para quem a disciplina e a pontaria com os canhões tinham a mesma importância
em um barco de guerra, ainda que naquela ocasião soube que era melhor não intervir.
- Senhor Harding - disse ao ouvido de seu imediato, - quando as águas voltarem ao seu leito, recolhamos âncoras e ponhamos rumo oés-sudoeste com toda a lona possível.
Se algum barco do rei nos cumprimentar ou fizer sinais, responda que levamos despachos de guerra, e mantenha o rumo sem tocar braça ou escota.
- Oés-sudoeste, senhor; e levamos despachos - disse Harding; Jack, pegando Stephen no ombro (pois a essas alturas a fragata cabeceava com força), conduziu-o para
a câmara, e se sentaram comodamente nos baús acolchoados situados abaixo dos janelões, à luz dos elegantes faróis que davam para o mar.
- Temo que teremos uma noite feia - disse Jack. Levantou-se e com o pé firme do marinheiro acostumado ao mar aproximou-se do barômetro: - Sim - disse. - Mais feia
do que pensava. - voltou ao seu lugar e observou a escuridão cheia de chuva e a espuma que a proa levantava a sua passagem, provocando mais e mais chuvisco a medida
que aumentava sua velocidade. - Contudo - continuou, - não sabe quanto me alegro de voltar a navegar. Houve um momento em que não pensei que fosse possível... Claro
que sem Queenie e lorde Keith jamais teria conseguido. - Os faróis de popa iluminavam o rastro da fragata, excepcionalmente amplo, branco e agitado por tratar-se
de um barco de tão elegantes linhas. A luz que brilhava a popa não o impediu de distinguir com clareza o distante fulgor avermelhado que coroava Gibraltar, cujas
fogueiras ardiam ainda apesar do vento e da chuva.
Pessoalmente estava cansado de tanta algaravia, sobretudo das canções patrióticas, dos elogios própias e das zombarias ao Francês, que afinal de contas caíra lutando,
superado em número e com uma valentia sem par; pulhas que amiúde partiam de quem nada havia tido a ver com essa guerra. Nem sequer Maturin, que sentia um profundo
desprezo por tudo o que representava o sistema napoleônico, era capaz de suportar as obscenas e arrogantes caricaturas de Bonaparte que corriam por toda parte, a
um penique em uma tinta, e até a quatro peniques em colorido.
- Recorda-se de Malta, quando os marinheiros receberam seis dólares por cabeça? - perguntou Jack. - Não, certamente que não. Estava no hospital, cuidando da perna
do pobre Hopkins. Bem, pensei que não teria problemas com uma dotação assentada e firme. E eles o esperavam, pois havia se tirado um saco de prata da cabine do trabácolo
apresado e espalhado seu conteúdo no convés. Mas me equivoquei; quando estiveram em terra não deixaram pedra sobre pedra, e depois a empreenderam com os soldados.
- É claro que me recordo. Meus colegas e eu tivemos que atender a muitos deles. A maioria com contusões, ainda que também houve algumas fraturas graves.
- De modo que... - disse Jack, sacudindo a cabeça. Interrompeu-se então para aguçar o ouvido, e subiu a toda pressa ao convés. Ao regressar, secou a espuma e a chuva
do rosto com o gesto de costume e disse: - Perdemos a polaca por culpa deste condenado vento que não para de girar, e reina uma escuridão que nem o traseiro do diabo.
Ali estava o jovem Wilcox antes de aproximar-me ao castelo de proa; arrebatavam as escotas para popa como se fosse de dia e o mar estivesse calmo qual as águas de
um reservatório. Aí os tem, assim são os marinheiros, capazes de agüentar um temporal de morte, o trabalho duro e situações pouco comuns; são criaturas boas, estáveis,
corajosas e submissas sob o comando de um oficial que possam respeitar. São capazes de suportar tudo isso, e também às vezes os castigos mais duros, os naufrágios
e o escorbuto. Contudo, como as coisas mudam quando contam com muito dinheiro no bolso. Sobe-lhes à cabeça, e se embebedam na menor oportunidade, armam confusão
e desertam aos montes. Em Malta não nos foi tão mau. Com a ajuda das prostitutas seus seis dólares não tardaram em desaparecer, e na ilha não havia possibilidade
de desertar. Agora as coisas são distintas, e todos esses condenados estúpidos com cinqüenta guinéus no bolso estariam bêbados como gambás, derrubados pela sífilis
e desnudos antes do domingo, se não tivéssemos partido a toda pressa. Isso para não mencionar... O que foi, Killick?
- É que teremos que pôr reforços no talhamar através da porta da sobrecâmara, porque o mar verde vem de popa até o cabrestante e piora a cada minuto. Duvido que
possa servir-lhe o queijo fundido seco, a menos que traga o fornilho e o prepare aqui.
- Quem está de guarda?
- O piloto, senhor, e em rumo. Acaba de enviar acima ao senhor Daniel e a um par de marinheiros robustos com uma lanterna de respeito. Pelo visto, a luz do tope
voltou a ir ao fundo. Ah, e senhor - disse dirigindo-se a Stephen, - seu companheiro... Perdoe-me, o doutor Jacob, tal como deveria chamá-lo, há sofrido uma feia
queda. Há sangue por toda a câmara dos oficiais.
Stephen tentou se levantar, mas o balanço do barco o empurrou para trás. Quando fez um nova tentativa foi o balanço de bombordo que o empurrou com força para frente.
Tanto o capitão como o despenseiro tinham a mesma opinião da capacidade do doutor para viver no mar, de modo que ambos o ajudaram a manter-se em pé, e Jack, segurando
o ombro de barlavento, guiou-lhe até a sobrecâmara (ante-sala da câmara) e, dali, ao convés, onde o vendaval, a total escuridão carregada de forte chuva e inclusive
os sólidos chuviscos de água marinha o deixaram sem fôlego, apesar de estar acostumado aos rigores atmosféricos.
- Senhor Woodbine - chamou Jack.
- Senhor - respondeu o piloto, que estava junto à roda, onde Jack pôde distinguir o leve fulgor da bitácula quando seus olhos se acostumaram com a escuridão.
- Como vai com a luz do tope?
- Temo que teremos que despertar o armeiro, senhor. Duvido que o senhor Daniel possa prendê-la sem contar com as ferramentas adequadas. - Levantou a voz e chamou
ao cabo situado a barlavento, tudo isso sem tirar o olho das relingas. - Higgs, chame o tope e pergunte ao senhor Daniel se necessita do armeiro.
Higgs possuía um imponente vozeirão, assim como um ouvido muito sensível. através do gemido do vento na exárcia e seus mutáveis rugidos transmitiu a mensagem e ouviu
a resposta. A essas alturas, Stephen distinguiu a lanterna de mão no alto, entre as velas, todas tão de bolina como pudessem sê-lo, pois a fragata abria passagem
rumo oeste em um mar tumultuoso. Também pôde ver a débil luz procedente da escada do castelinho, e por ela caminhou pouco a pouco, segurando-se a todos as saliências
que podia e se inclinava contra o vento e a cegante chuva. Contudo, a cada temeroso passo que dava o balanço cedia, o que correspondia, ou isso Jack havia lhe contado
em mais de uma ocasião, ao centro de gravidade. E ao abrir a porta de bombordo da iluminada câmara dos oficiais se desenhou ante seu olhar uma cena da mais desonrosa,
pois viu um monte de homens, acostumados a ver sangue desde a infância correr de um lado para o outro como um bando de galinhas, secar o braço de Jacob com o guardanapo,
dar-lhe conselhos, oferecer-lhe taças de vinho, conhaque ou copos de água, desfazer o nó de sua gravata-borboleta, e inclusive desabotoar-lhe os calções no quadril
e joelho. O contador literalmente lhe retorcia as mãos.
- Avisem a Poll Skeeping - exclamou Stephen em um tom de voz imperioso, seco. Afastou-os sem levar em conta classe ou posto, esgrimou uma lanceta que sempre levava
consigo, cortou a manga de Jacob até o ombro, cortou a camisa, e descobriu a borbulhante artéria branquial e outras duas generosas fontes de sangue no mesmo membro.
Pelo visto, depois de efetuar um salto mortal em toda regra e cair sobre uma cadeira e um tamborete com uma taça na mão no momento em que a fragata efetuava um duplo
cabeceio, seguido pelo afundamento de rigor, Jacob não só havia conseguido perder a consciência, como também romper o vidro, cujos amplos cacos afiados lhe cortaram
a artéria e muitos outros vasos sanguíneos que constituíam feridas pequenas mas consideráveis.
Poll chegou correndo, carregada com todo de vendas, agulhas com tripa enfiada e ripas. Stephen, com o polegar no ponto mais importante onde tinha que pressionar,
pediu aos membros da câmara que se afastassem, que se afastassem para o fundo, muito ao fundo. Seguidamente Poll se pôs a limpar, vendar e inclusive assear ao paciente,
antes que o levassem a uma maca da enfermaria.
Tudo isto deu pé a uma série de explicações e comentários. Quando Jack desceu, depois de comentar com o senhor Harding que faziam um bom avanço e que quase não navegavam
a seis quartas do olho do vento, repetiram-se os tediosos pormenores, e os presentes lhe mostraram exatamente o que e como havia sucedido. Foi nesse momento quando
um tremendo estampido pôs em xeque o progresso da fragata, desviou-a do rumo e fez sacudir-se as lanternas com tal violência contra os vaus da coberta que dois caíram
ao solo. O estampido bastou para fazer aos ali presentes esquecerem das feridas sofridas por Jacob, e Jack saiu disparado para o convés seguido por todos os oficiais.
A princípio, foi incapaz de distinguir algo na escuridão. Contudo, Whewell, o oficial de guarda, explicou que o vigia de proa avistado uma luz pela amura de estibordo
segundos antes do impacto, e que ele em pessoa tinha visto um barco enorme, escuro e sem luzes de posição, aproximava-se a uns dez nós ou mais de velocidade e golpeava
a proa da fragata, atravessava a maltratada roda e passava ao longo do costado de bombordo, roçando as vergas e os amantilhos da Surprise e livrando-se por pouco
de ficar preso neles. Imaginava que podia tratar-se de um madereiro pesado escandinavo, ainda que não pôde ver nenhum nome, porto ou bandeira, e tampouco se trocaram
gritos de um barco para o outro. Chamara o carpinteiro e o contramestre (não tardaria em receber seus informes), e o barco respondia ao leme e permanecia imóvel,
ainda que deitasse a sotavento.
Jack correu para a proa para falar com ambos. - Perdemos o gurupés e a maior parte da proa, senhor - informou o carpinteiro.
- E eu não responderia pelo pau do traquete - disse o contramestre.
- Embarcamos água. Cinco toneladas por minuto - disse um segundo do carpinteiro a seu chefe em um tom de voz tão transbordante de inquietação que conseguiu afetar
a todos os que o ouviram.
Harding havia chamado toda a dotação do barco, e ao sair ao convés gaguejando Jack ordenou pôr proa ao vento, aferrar toda a lona com excessão da maior e do traquete,
e pôr-se as bombas. A fragata respondeu lentamente ao leme e navegou com igual lentidão. Contudo, quando Jack a situou com o forte vento e o mar pela incólume alheta
de bombordo, deixou de ter a sensação de que ia afundar a qualquer momento. O carpinteiro, Harding e ele mesmo, armados, todos eles com uma lanterna, levaram a cabo
a inspeção. Não encontraram nada, nada bom: tinham desaparecido por completo o gurupés, a proa e toda a bagagem relacionada, assim como bujarronas e outras, certamente.
Tinha algumas cabeças de prancha arqueadas ali abaixo. Contudo, ao terminar a guarda de meia, enquanto o carpinteiro e seus homens trabalhavam como só pode fazê-lo
quem sabe que o barco embarca água em momentos, as bombas se defendiam com soltura, inclusive ganhavam a contenda.
- Oh, é um remendo provisório, senhor, como o senhor compreenderá - disse o carpinteiro. - Se conseguir levar a fragata ao cais e dali ao estaleiro, renunciarei
à vida de pecador que levo e entregarei todo o dinheiro do butim aos pobres. Somente no estaleiro farão dela uma embarcação capaz de navegar de novo. Queira Deus
que voltemos a entrar naquele adorável cais.
Entraram naquele adorável cais, e ali passaram as horas restantes da noite em relativa calma, enquanto o vento uivava no alto quase sem força para salpicá-los de
espuma ainda que, em ocasiões, empurrava algas para a zona do cais onde ancoraram.
Ao amanhecer, cedo, dirigiram-se ao novo cais e ao estaleiro naval. E ainda que fizeram o possível para dar ao barco um aspecto apresentável, este não deixara de
se parecer com uma mulher atraente a quem tivessem maltratado e cortado o nariz. Jack, depois de perguntar pelo estado de Jacob ("Tolerável, de momento, ainda que
ainda seja cedo para se pronunciar... Ah, e o doutor Maturin pede que o desculpe porque não poderá acompanhá-lo no desjejum"), sentou-se para desfrutar de um bom
bife. Aproveitou enquanto comia para tomar algumas notas em um papel dobrado. Depois, voltou sua atenção para as torradas que lhe correspondiam e também em uma ou
outra das que correspondiam a Stephen, torradas que acompanhou de uma quantidade ingente de café. Já se sentia mais humano, depois de uma noite dura como poucas
em toda sua vida (noite que, por sorte, fora curta), e decidiu chamar o escrevente.
- Senhor Adams - disse, - gostaria de tomar uma xícara de café antes de começarmos a redigir o relatório e a carta ao lorde Barmouth?
- Oh, sim, senhor, se é tão amável. Serviram chá na câmara, o que não constitue precisamente uma compensação para a noite que tivemos.
A carta era a quinta-essência da simplicidade: O capitão Aubrey apresentava seus respeitos e adjuntava o relatório do sucedido na noite passada e dos danos sofridos
pelo barco. Terminava dizendo que o capitão Aubrey se sentiria muito honrado se sua senhoria tivesse a amabilidade de recebê-lo quando fosse possível.
- Por favor, providencie que nosso guarda-marinha mais apresentável a entregue imediatamente.
Adams meditou, sacudiu a cabeça e observou:
- Ouvi descreverem ao senhor Wells como um garoto bonito.
- Pobre diabo. Em fim, quando tenha passado o informe a limpo, informe ao senhor Harding; diga-lhe que é meu desejo que o senhor Wells se lave duas vezes; depois,
porá seu melhor uniforme, chapéu e espadim. Talvez o senhor Harding deseje despachar a... a um marinheiro que o acompanhe na ida e na volta. - Estivera a ponto de
pronunciar o nome de Bonden, e ao conter-se sentiu uma dor lacerante no peito. Perdera muitos companheiros, mas jamais havia sentido tanto uma perda como a de Bonden.
O escolhido por Harding, um cabo muito sério, levou o senhor Wells de volta, e este informou ao capitão Aubrey que o comandante em chefe o receberia às cinco e meia.
Jack compareceu ao encontro com a pontualidade própia da armada, e com a pontualidade da armada pediu lorde Barmouth ao seu secretário que fosse buscá-lo na ante-sala.
Apenas Jack tinha entrado, quando se abriu uma das portas situadas atrás do almirante e entrou sua esposa.
- Amado primo Jack! - exclamou. - Quanto me alegra ver-te de volta tão cedo! Temia que tivesse passado muito mal, depois daquele velhaco mercantão... Barmouth -
disse em um aparte, colocando a mão no braço de seu esposo, - os Keith ficarão encantados, e Queenie me perguntou se o senhor Wright pode acompanhá-los. Primo Jack,
virá, não é? Sei de que modo um marinheiro detesta as refeições tardias, mas prometo que servirão o almoço em uma hora razoavelmente cristã. Tem que nos contar até
o último detalhe. Queenie se preocupou muito ao saber o que a Surprise sofreu. - Isobel Barmouth sempre fora igual de enérgica, e não era fácil fazê-la calar ou
abandonar o aposento. Mas tampouco era tonta e notou que sua insistência a esse respeito podia prejudicar mais a Jack do que qualquer coisa que Barmouth pudesse
idear. O almirante era um homem valente, um marinheiro capacitado; tinha uma carreira destacável, e, tal como seus tutores lhe haviam assinalado, era um partido
excelente. Contudo, apesar de toda sua coragem e suas evidentes virtudes, Isobel sabia que era perfeitamente capaz de mostrar-se injusto.
Quando a porta se fechou a suas costas, Barmouth sentou-se, disposto a revisar o relatório de Jack.
- Dei ordens às poucas embarcações que tenho navegando de cruzeiro para que permaneçam atentas para ver se avistam um barco que se pareça ao que colidiu com sua
proa. A julgar pelos terríveis danos que o senhor sofreu - disse dando palmadinhas no informe, o detalhado relatório de Jack, - não nos custará reconhecê-lo. Mesmo
em um navio de linha seriam visíveis os danos derivados do choque, e pelo que entendi não era mais que um mercante do Báltico sem um grande arqueio. Contudo, isso
é outro assunto, porque o que realmente me preocupa é a situação atual da Surprise. Pergunto-me se o senhor pode mantê-la flutuando.
- Navegamos rapidamente para o cais, milorde, e não abandonamos nem um instante as bombas.
- Sim, sim, estou seguro. O que me preocupa é o seguinte: Depois de cumprir... de cumprir com acréscimo as ordens de lorde Keith, o senhor recuperou sua condição
anterior, a de um barco hidrográfico, um barco alugado cuja missão consiste em explorar o estreito de Magalhães e a costa sul do Chile. Não está submetido ao meu
comando no Mediterrâneo e, ainda que me agradaria... Como dizê-lo?, reconstruir de proa a popa o seu barco, ainda que somente fosse como reconhecimento à enérgica
captura que o senhor fez da condenada galera, não posso fazer uma desfeita a meus barcos de guerra que se encontram à espera de receber urgentes reparos, dando preferência
a um barco hidrográfico. Um barco de guerra sempre é o primeiro.
- Muito bem, milorde - disse Jack. - Porém, permitiria que lhe pedisse pelo menos que nos designasse um ancoradouro mais abrigado?
- É factível - disse o almirante. - Falarei com Hancock a respeito. Agora - disse ao levantar-se, - devo despedir-me do senhor até a hora do almoço.
Jack chegou esmerado para a ocasião. Com pontualidade, certamente, ainda que não tanta como os Keith. Tanto Queenie como Isobel Barmouth o receberam com suma amabilidade
e, com a confiança da relação que os unia desde a infância, separou-se delas para aproximar-se de lorde Keith, a quem agradeceu sua intervenção com os funcionários
do tribunal de presas.
- Não foi nada, não foi nada, não precisava nem ter mencionado, meu querido Aubrey. Não, não, esses cavalheiros são meus conhecidos, e são muito conscientes de como
devem comportar-se comigo e com meus amigos. Ainda que Aubrey, devo pedir-lhe desculpas por arrebatar-lhe a Ringle, que lhe viria a calhar para perseguir aquele
condenado mercantão que com tanta sanha abordou sua proa. Estive observando a Surprise esta manhã, e me perguntava como conseguiu levá-la ao porto.
- Tivemos sorte de desfrutar de um mar e um vento de alheta, milorde. Teria bastado um lenço largado no traquete para fazer avante; mas não foi bem assim, custou-nos
muito.
- Creio que sim - disse Keith, sacudindo a cabeça. - Creio que sim. - Considerou por alguns instantes o assunto, bebendo a taça de genebra de Plymouth, e disse:
- Devo elogiar a conduta desse excelente jovem, William Reade. Governou a escuna de forma admirável, e fez tudo quanto lhe pedi. Mas temo que lhe fez falta quando
teve que aproximar-se ao cais, e também quando quis identificar ao velhaco.
- Sim, senhor. Mas o que me dá mais raiva é saber que, na qualidade de comandante de um navio de apetrechos de propriedade privada, e por estar ausente, o senhor
Reade não toma parte na divisão do butim. Pois a armada sofrerá cortes agora que Boney foi preso, com os barcos desarmados ou abandonados, é muito provável que o
pobre não receba outro comando em um futuro próximo, se é que o consegue algum dia, e a parte correspondente a um tenente ser-lhe-ia muito útil. Sem dúvida a paz
é uma grande coisa, mas...
Nesse momento, lady Barmouth cumprimentou aos recém chegados, o coronel e senhora Roche. Apenas tinha feito as apresentações, quando lhe informaram que a comida
estava servida.
Não era uma reunião formal, pois fora preparada sem grande antecedência, e não havia mulheres suficientes para pôr-se a par dos rumores. Jack se sentou à esquerda
de Isobel, de frente para lorde Keith, com o coronel Roche à direita, que obviamente fazia pouco que chegara.
- Entendi, senhor - disse Jack depois de trocar com ele umas palavras insubstanciais, - que o senhor esteve em Waterloo.
- Sim, senhor - respondeu o soldado, - foi uma experiência muito emocionante.
- Viu muito da batalha? Nas escassas batalhas de linha em que participei, além da do Nilo, fui incapaz de distinguir o que sucedia por culpa da fumaça. Depois, a
maioria de meus companheiros me fizeram relatos muito diversos.
- Tive a honra de ser um dos assessores do duque, que quase sempre se situou em posições das quais tanto ele como seus ajudantes podiam ver um bom trecho do terreno.
Como o senhor saberá, os combates duraram vários dias, algo que, conforme entendi, não costuma suceder com as batalhas navais; a jornada que melhor recordo foi a
do décimo oitavo dia, o 18 de junho, a culminação.
- Agradeceria muito que tivesse a amabilidade de familiarizar-me com o sucedido, sem obviar um só detalhe.
Roche o olhou atentamente, compreendeu que falava sério, que estava muito interessado, e prosseguiu.
- Havia chovido muito durante toda a noite, e as comunicações eram muito difíceis para os dois lados, pois se disparava nos mensageiros quando estes não caiam prisioneiros
ou se perdiam. Sabíamos que os prussianos tinham acertado um bom golpe em Ligny, que perdera doze mil homens e a maioria dos canhões, e que Blücher em pessoa havia
ficado preso debaixo de seu própio cavalo, e enterrado depois por uma carga de cavalaria. Muitos de nós pensamos que os prussianos não poderiam recuperar-se suficientemente
cedo depois de tão fatídica derrota, e que se o fizessem não poderíamos contar com Gneisenau, que substituiria ao malferido Blücher e que não era muito nosso amigo.
Durante a noite, chegou uma mensagem dizendo que Blücher se aproximava com dois ou, possivelmente, com quatro corpos de exército. Teve quem se sentiu comprazido
ao ouvi-lo, mas a maioria de nós não o achamos possível. Acho que o duque sim; de qualquer maneira, decidiu apresentar batalha, ocupamos Mont Saint-Jean, Hougoumont
e La Haye Sainte com uns sessenta e oito mil homens e cento e cinqüenta peças de artilharia, para enfrentar-nos aos setenta e quatro mil de Napoleão, além de seus
duzentos e quarenta canhões. Os regimentos de cavalaria francesa se viram obstados pelo terreno enlamado pelas chuvas, a artilharia ainda mais, e não foi até depois
das onze da manhã que o inimigo, dispersado em três linhas na ladeira da colina oposta, a uns três quartos de milha de distância, despachou uma divisão para atacar
Hougoumont. Foram rechaçados, momento em que começou de verdade o combate, com oitenta canhões franceses posicionados para castigar La Haye Sainte, o centro, e debilitar
as forças situadas ali antes de empreender os combates mais sérios...
- Deseja um pouco mais de sopa, senhor? - perguntou o servente.
- Vá, Wallop, pelo amor de Deus - protestou lorde Barmouth. De fato, toda a mesa prestava atenção ao relato de Roche, que era a fonte mais informada e confiável
que tiveram a oportunidade de conhecer. - Senhor - acrescentou lorde Barmouth depois de Wallop desaparecer, - peço que coloque uma ou duas garrafas, ou algumas migalhas
de pão, nos lugares mais vitais, de tal maneira que nós, simples marinheiros, possamos seguir as evoluções.
- Como não? - disse Roche, puxando a cesta de pão com o braço. - A grandes traços, mas servirá para que os senhores façam uma idéia aproximada: Hougoumont, La Haye
Sainte, o centro do imperador nesse lado da mesa, os bosques de Paris e demais bosques mais lá, no extremo que ocupa lorde Barmouth. Este pedaço de pão representa
Hougoumont, e no cume da colina se encontravam os restos de um antigo moinho. Eu estava ali, observando a disposição das tropas, vendo com a luneta o terreno, quando
vi um curioso movimento na borda do bosque junto a Chapelle Saint-Lambert. Uma massa escura, uma massa azul escuro, azul de Prússia. Contei as formações com tanta
serenidade como pude e corri abaixo. Disse: "Com sua permissão, senhor. Pelo menos um corpo do exército prussiano avança procedente de Saint-Lambert, a umas cinco
milhas de distância." Seriam mais ou menos as quatro e meia. O duque assentiu, pegou minha luneta e a apontou para o imperador. Em questão de minutos, os oficiais
do Estado Maior do Francês galopavam em diversas direções. Os esquadrões de cavalaria e alguma infantaria abandonaram suas posições, movendo-se em direção aos prussianos.
Pouco depois, o marechal Ney atacou o centro aliado. Contudo, seus homens não conseguiram tomar La Haye Sainte e duas das brigadas de cavalaria de lorde Uxbridge
os perseguiram ao retirar-se, capturando duas águias no processo, ainda que sofreram graves perdas quando as esquadras do inimigo, tropas frescas, atacaram-nos pelo
flanco.
- Por favor - disse o senhor Wright, um homem de ciência, - a que correspondem as águias neste contexto?
- Bem, senhor, são mais ou menos o equivalente a nossas bandeiras: supõe uma desgraça perdê-las, e um triunfo capturá-las.
- Obrigado, senhor, obrigado. Espero não tê -lo feito perder o fio. Seria uma catástrofe.
Roche se inclinou levemente e reiniciou seu relato.
- Então, Ney recebeu ordens de atacar de novo La Haye Sainte. Depois do estrondo dos canhões, os aliados se refugiaram, gesto que o Francês interpretou como uma
retirada em toda regra, o que lhe fez lançar quarenta e três esquadrões de cavalaria à carga. Por estar colina acima, terreno difícil, os cavalos não puderam mais
que avançar ao trote, e seus ginetes descobriram que a infantaria aliada havia formado em impenetráveis quadros. Foram varridos a força de mosquete, e a cavalaria
aliada os empurrou depois colina abaixo. A essas alturas, despachou-se os couraceiros franceses e a cavalaria da guarda imperial para proteger a retirada de seus
companheiros: oitenta esquadrões no total. Oitenta esquadrões, senhor! Foi o combate mais furioso que se possa imaginar, em minha vida não havia visto algo igual.
Mas não puderam romper os quadros aliados, e finalmente eles também terminaram colina abaixo. Bülow travou combate com as forças que Napoleão tinha despachado para
detê-lo (mais ou menos às quinze para cinco), e a princípio não lhe foi do tudo mal pois tomou Placenoit, justo junto a essa migalha que há no centro, senhora. Contudo,
os reforços o obrigaram a ceder terreno, e Napoleão ordenou uma vez mais a Ney tomar La Haye Sainte, o que conseguiu, ainda que as tropas que a ocuparam careciam
praticamente de munições. O duque, imperturbável depois da perda desta posição chave, enviou tudo quanto pôde para reforçar o centro. Nesse momento, outros dois
corpos de exército prussianos tinham se unido à batalha. Não entrarei em detalhes, pois estou rouco de tanto falar e temo que minha conversa lhes fará morrer de
fome... Limitar-me-ei a dizer que, com a chegada do corpo do exército prussiano de Zeiten, o duque pôde mobilizar outras duas brigadas de cavalaria, que não haviam
entrado em combate, situadas na ala direita, para reforçar o centro, um ponto da maior importância. Napoleão atacou com toda sua força ao longo da linha, e comprometeu
a guarda imperial, que lutou com grande coragem, ainda que já carecia de efetivos suficientes. Com o recuo da guarda, os prussianos de Zeiten romperam parte da frente
francês, e isso marcou o início do fim. Alguns batalhões da guarda agüentaaram, pelo menos até que também tiveram que se unir aos companheiros na retirada generalizada.
Peço que me perdoe, senhora - disse a Isobel Barmouth.
- Em absoluto, coronel, não há de quê se desculpar. Seu relato me pareceu fascinante, tanto mais quanto entendi o que sucedia em diversos pontos da batalha. Muito,
muitíssimo obrigada. - Inclinou com discrição a cabeça para o atento Wallop, e se reiniciou a refeição.
Quando esta terminou e os homens se sentaram para desfrutar o vinho do porto, os almirantes e o senhor Wright ocuparam a cabeceira da mesa e discutiram os problemas
de limpeza relacionados com o novo cais.
- Não tenho o prazer de conhecer o duque de Wellington - disse Jack a Roche. - Deve ser um grande homem.
- Sim, ele é, e sempre tem as palavras mais adequadas, que pronuncia assim, sem mais, como se as improvisasse.
- Poderia dar-me um ou dois exemplos?
- Ai, lamento admitir que tenho uma memória desastrosa, sobretudo no que concerne a citações. As evoco em plena noite, o que não depende de minha vontade. Contudo,
recordo que enquanto cavalgávamos pelo campo de batalha, depois de ver o desastre em que terminara oquadro formado pelos Inniskillings, e o elevado número de baixas
mortais, ele me disse: "Não há nada pior que uma batalha ganha, exceto uma batalha perdida." Depois, muito depois, quando nos deslocávamos pela França, comentou:
"competitivo, muito competitivo o assunto, pois Blücher e eu perdemos trinta mil homens. Competitivo como poucos, o mais competitivo que já vi na vida... Por Deus!
Duvido que pudesse ser feito se eu não estivesse presente."
Produziu-se uma longa pausa que os marinheiros e o especialista aproveitaram para falar apaixonadamente das diversas correntes que mediavam entre a Europa e as costas
africanas. Jack e Roche passearam pelo terraço, desfrutando de seus charutos. Depois de dar meia dúzia de voltas, Roche disse:
- Recordo-me tê-lo ouvido dizer em uma ocasião que seu exército era formado pela escória do mundo, ou, talvez, pelo mais baixo do mundo. Isso foi muito antes de
Waterloo, e o mencionava amiúde, acho; a princípio o escutei em lábios de outros. Lamentei ouvi-lo, pois eu havia formado uma idéia dos homens aos quais havia mandado,
mas lhe asseguro que tive ocasião de recordá-las em mais de uma ocasião durante a marcha a Paris, escoltando feridos e enfermos para quem não havia espaço em Bruxelas.
A embriaguez, os alvoroços, a insubordinação, o roubo, a pilhagem e, inclusive, os estupros (tendo em conta que éramos um país amigo) me provocaram náuseas. Os homens
do governador de polícia se mostraram muito ativos, e se viram obrigados a colocar os potros diariamente (nós os usamo para dar os açoites, como o senhor bem sabe),
ainda que de nada serviu, e a verdade é que não pude alegrar-me mais ao pô-los nos quartéis de Boligny, e livrar-me de todos eles. Finalmente, cheguei à conclusão
de que qualquer homem submetido a uma férrea disciplina é capaz de comportar-se como um animal quando se livra dela. Seja como for, isso dita minha experiência.
- Sim, sim. Estou seguro - disse Jack, assentindo ao ouvir aquelas palavras. Contudo, seu tom de voz parecia dizer que, se bem podiam ser certas no concernente ao
exército, os marinheiros possuíam, em geral, uma natureza totalmente distinta.
- Apressesse, querido primo - chamou Isobel da porta, - ou nem sequer encontrará o café morno.
No trajeto de ida do cais para a casa de lorde Barmouth, Jack tinha ficado consciente do lúgubre, nebuloso e tenaz nimbo que cobria sua mente. Apesar de sua mais
que tangível presença, conseguira desfrutar da noite. Apreciava muito a Queenie e, ainda que de outra forma, também a Isobel. Saboreara o relato de Roche, e inclusive
a última e microscópica decepção que tinha sido o café morno fora esquecida ao aparecer uma cafeteira bem quente (muito inclusive para ingerir o negro néctar), para
não mencionar a presença de um excelente conhaque.
Contudo, ao dirigir-se às baterias exteriores, o cais e, como não, pela população, voltou a ficar consciente do nimbo, e seu ânimo desabou assim como a ladeira do
caminho. Em conforme que partes o fora alargado à força de explosivos para facilitar a passagem das peças de artilharia, e nas depressões mais profundas se sentiu
ao abrigo do vento e do difuso burburinho da cidade, ainda que não de seu fulgor, refletido nas nuvens altas e uniformes.
Justo ao sentar-se na pedra de um desses abrigados cotovelos do caminho, descobriu que havia dado a Roche o último de seus charutos. Era uma chateação, ainda que
não tinha muita importância, e voltou a pensar nos comentários do soldado com respeito aos homens liberados de uma forte disciplina e dos excessos que cometem.
"Não - disse. - O marinheiro pertence a uma espécie diferente."
Levantou-se e seguiu caminhando; superou o novo cotovelo e ali, na ladeira da colina, o vento arrastou o familiar vozeirão de Higgs.
- Não há lei marcial que valha - gritou o marinheiro, que ao que parece se dirigia a um grupo numeroso, situado no extremo oriental dos ainda inacabados jardins
de Alameda. - Não há lei marcial. A guerra terminou. Em qualquer caso, a Surprise já não é um barco de guerra, mas um navio apetrechado para o levantamento de planos.
Não podem nos fazer nada. Temos nosso dinheiro e podemos fazer o que nos dê vontade. Não há lei marcial, somos livres.
- Por Wilkes e a liberdade! - exclamou alguém, provavelmente o mais bêbado de todos.
- Os mercantes pedem marinheiros a lágrima viva, imploram-nos dispor a mais mãos. Oito libras por mês das de verdade, tabaco grátis e comida de primeira. Eu vou
para casa. - A estas palavras seguiu um rugido que, contudo, ficou de novo afogado pelo vozeirão de Higgs: - Não há lei marcial. Não somos escravos.
- Não somos escravos - gritaram os outros, chutando o solo com certo ritmo.
Essa queda da dotação da fragata, essa desintegração da comunidade, era o motivo do nimbo que Jack havia conseguido afastar de sua mente durante a noitada e a encantadora
tarde que passara em companhia de Isobel e Queenie. Era uma consequência lógica, e Jack o sabia, pois o mar corria por suas veias, conhecia suas correntes e as correntes
que moviam a quem o navegava. Notara o descontentamento que se estendia entre os membros da tripulação, antes mesmo de que se manifestasse. Obviamente, terminada
a guerra, ansiavam regressar ao lar e desfrutar da vida. Contudo, Jack estava disposto a fazer o impossível para evitar perder o barco e a viagem que se propusera
realizar.
Os marinheiros da Surprise constituíam uma grande mistura. O almirante havia tido que apetrechá-la para a guerra sem dispor do tempo necessário quando deu a Jack
o comando da esquadra, e nenhum capitão em seu são julgamento teria cedido a ninguém seus melhores marinheiros. Portanto, alguns dos sujeitos recrutados a força
que apareceram no convés eram mais aptos a desfrutar da ajuda de uma instituição de caridade que a pertencer à dotação de um barco de guerra. A maioria deles eram
os mais grosseiros, estúpidos e desajeitados marinheiros que se havia recrutado, aptos a puxar dos cabos, mas pouco mais. Membros da guarda de popa. Naquele momento,
contudo, com o estômago cheio de genebra e com a admiração que sentiam por Higgs no olhar, formaram atrás dele, e aos poucos partiram para a cidade, uivando: "Não
há lei marcial."
- É verdade, capitão Aubrey? - perguntou uma voz a suas costas. - Por acaso é verdade que não há mais lei marcial?
- Senhor Wright? Quanto me compraz ver-lhe. Com respeito a sua pergunta de natureza legal, tanto neste caso como em outros, eu não poderia ser mais ignorante. Contudo,
se estivesse na Inglaterra, inclinar-me-ia como magistrado a ler em voz alta a Ata de Motins.
Caminharam seguindo os passos dos marinheiros. Até que os gritos referentes à escravidão cessaram de repente ao toparem com uma imensa fogueira na encruzilhada (duas
carroças e inumeráveis tonéis vazios) e com uma multidão que dançava ao redor da fogueira em sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. Então Jack acrescentou:
- Sei que Maturin lamentará muito não ver o senhor. Não posso convidar-lhe para subir ao barco, pois sofreu terríveis danos em consequência de uma abordagem no mar.
Contudo, jantaremos no Crown, e nos encantaria desfrutar de sua companhia.
- O Crown? Será um prazer. Estou alojado no George, e terei que passar antes por ali... Se me desculpa, senhor, esta rua me leva ao pátio posterior, de modo que
poderei evitar a multidão.
- Claro que sim - disse Jack. - Claro que sim. Que acha das dez e meia? Pois não há quem caminhe por estas ruas, Maturin e eu passaremos para pegá-lo.
Jack Aubrey, alto como era, forte, com seu enorme corpaço embutido no uniforme de capitão de navio (as dragonas douradas alargam a envergadura de qualquer, sobretudo
à luz de uma chaminé), abriu-se passagem sem dificuldade entre a turba, em direção ao escritório do inspetor da armada, onde pretendia deixar uma nota se não encontrasse
nenhum dos oficiais presente. Contudo, ao dobrar Irish Town, encontrou a passagem bloqueada por uma compacta e imponente massa e por um estrondo tão dissonante que
inclusive seu corpaço foi incapaz de abrir passagem, e ao cabo também foi incapaz de retroceder. Pelo visto se travava uma briga entre os marinheiros do Canopus
e da Malta, ou pelo menos foi isso o que pôde distinguir, enquanto isso a sua direita um decidido grupo de marinheiros irrompia em uma taberna defendida por guardas
armados e igualmente decididos. Entretanto, observou que ao longe os marinheiros tinham tomado um bordel por assalto, e que quem o habitava fazia o possível para
abandoná-lo nuas, fugindo pelo telhado, perseguidas por marinheiros tanto ou mais decididos que quem se enfrentavam aos guardas da taberna.
Ali de pé, encurralado, incapaz de avançar ou retroceder, tossindo por causa da fumaça que as diversas fogueiras desprendiam, refletiu sobre sua convicção de que
marinheiros e soldados pertenciam a espécies distintas. "Talvez o sejam - pensou. - Ainda que o fato de beber em grandes quantidades possa reduzir as diferenças
a um estado menos evidente."
Naquele momento, soaram a sua direita as ensurdecedoras trompetadas que abriram passagem até os uivos e os gritos que se produziam em meio da multidão. Ao cabo de
alguns minutos, um destacamento composto por disciplinados soldados que marchavam com a baioneta calada, apareceu a passo ligeiro procedente de três ruas distintas;
limparam o lugar com uma eficácia e uma celeridade elogiáveis. A polícia seguiu os soldados para prender os malfeitores mais destacados, a quem arrastaram maniatados
até uma carroça puxada por mulas, utilizada para transportar adubo.
Jack percorreu a silenciosa praça sem deixar de cumprimentar a quantos soldados encontrou a sua passagem. Uma bendita tranqüilidade parecia ter se apoderado de Gibraltar
(ainda que ainda se via o fogo de distantes fogueiras, e ainda podia ouvir-se o que provavelmente obedecia ao também distante estrondo de uma multidão raivosa),
quase perfeita quando os porteiros e os empregados jovens do escritório do inspetor da armada lhe informaram que nenhum dos oficiais de maior responsabilidade tinham
posto um pé no edifício durante as ultimas três horas. A tranqüilidade também havia se apoderado do hospital; ali Jack pôde sentar-se em um banco, e tomar uma mistura
fria de vinho e sucos de laranja e limão através de um canudinho, enquanto via Arturo brilhar com maior clareza a cada minuto que passava.
- Oh, Jack, espero que não tenha esperado muito - disse Stephen ao aparecer de repente. - Essas raposas nem sequer me disseram que estava aqui, e eu ali dentro,
conversando com todos. Querido amigo, vejo que está com o ânimo muito baixo.
- Sim, estou. Foi um almoço estupendo, ao qual não faltou o bom senhor Wright. Por certo que devemos pegá-lo esta tarde para que jante conosco. O coronel Roche,
um dos assessores de Wellington, nos relatou a batalha. Ah, gostaria que tivesse escutado. Contudo, ao voltar caminhando, cruzei com um grupo de marinheiros da Surprise,
e lhe direi algo, Stephen: a dotação da Surprise já não existe como tal. Temo que a chegada dos recrutados e, sobretudo, o inoportuno e excessivo dinheiro do butim,
a arruinaram. Quereria que não nos tivessem privado de nossos Infantes da Marinha. - Guardou silêncio e, um pouco depois, disse: - pensei em me reunir com os oficiais,
e lhes perguntar com quantos membros de cada divisão poderiam contar. Tinha me ocorrido reunir as pessoas e pedir a quem desejasse seguir a bordo que se colocassem
junto ao corrimão de estibordo, e os demais a bombordo. Vamos, pensara um sem-fim de coisas, mas a posição da Surprise nas leis civis ou navais, assim como meus
poderes a bordo de dita embarcação, são confusos, e nada posso fazer antes de falar amanhã pela manhã com lorde Keith.
- Será o melhor - disse Stephen ao ver que Jack não tinha intenção de seguir falando. - Não convém brincar com as leis. Encantar-me-á desfrutar da companhia do senhor
Wright. Creio tê-lo ouvido dizer que temos que pegá-lo na pensão George.
- Isso mesmo. Ordenarei a Killick e a Grimble que o protejam da brigada de recrutamento forçoso.
Na pensão, encontraram o serviço atônito.
- O senhor é o doutor, verdade, senhor? - perguntou a senhora Webber. Stephen assentiu. - Em tal caso, peço que suba para vê-lo. O pobre ancião cavalheiro foi golpeado
e roubado por três marinheiros bêbados diante da porta de nossa própia casa. Webber ameaçou um deles com um pistolão, mas a arma não disparou. Mesmo assim, nossos
moços o pegaram para salvá-lo e levá-lo para cima. Por aqui, senhor, se é o senhor tão amável.
Quando Stephen regressou ao salão, disse em resposta ao olhar interrogativo de Jack:
- Alguns arranhões e uma contusão no ombro, mas me alegra dizer que não tem nada quebrado. Contudo, para um homem de tão avançada idade, a perturbação emocional,
espiritual, constitue quase o equivalente a uma fratura no caso de um jovem. Supera os oitenta anos, creio (foi nomeado para a Royal Society muito antes de você
ou eu usarmos calções) e os anciãos, quando não se abstraem...
Killick se movia inquieto no umbral, mas ao comprovar que o doutor não parecia disposto a calar optou por interrompê-lo:
- A senhora Webber pergunta se o velho cavalheiro desejaria tomar mingau, ou um ponche quente - disse lenta e difusamente, até compreender que sua forma de falar
não era própia do despenseiro de um capitão de navio, momento em que não foi só sua voz que endireitou; depois, quando tinha recebido e entendido a resposta de Stephen,
acrescentou: - Em tal caso, direi a Grimble que vá ao Crown e se encarregue de que sirvam a janta dos senhores em torno de meia hora. Eu irei lhes preparar as camisolas
limpas.
Os marinheiros da Surprise, com seu barco a duras penas habitável, haviam se dispersado por toda a cidade, a maioria dos oficiais se alojavam na pensão Crown, os
segundos do piloto e os oficiais de cargo superiores na Blue Boar, enquanto que a maior parte da dotação da fragata se alojava em quartéis que estavam em desuso,
alojamento pago com o comércio que faziam com os apetrechos roubados de sua própia embarcação: "Nada por nada, e muito pouco por quatro peniques", era a frase cunhada
pela Junta de Víveres. A entrada para tais quartéis era vigiada com certa pompa, o que não sucedia com a lavanderia e a cozinha, que davam para uma suja ruela.
Contudo, o Crown, por ser lugar civilizado onde amiúde Jack se hospedara quando andava bem de dinheiro, lugar que proporcionava tanto a Stephen como a ele uma sala
de estar e um dormitório por cabeça, não era tão diferente de um barco como se possa pensar, de modo que foi mais que natural que o capitão Aubrey convidasse dois
de seus oficiais a desjejuar com ele: Harding, imediato, e Whewell, terceiro tenente. Desde as duas da madrugada, a cidade tinha ficado concentrada em um silêncio
sobrenatural, e assim seguia. Todos os marinheiros tinham adormecido vencidos pelo cansaço de um dia esgotador, e naquele momento desjejuavam exibindo um apetite
excelente.
- Desculpe-me de novo se lhe peço que me passe as salsichas, senhor Whewell - disse Jack, que acrescentou ao pegar o prato: - Bom dia, senhor Somers. O que deseja?
- Bom dia, senhor - disse abalado o jovem. - Lamento ter que incomodar-lhes, lamento muito trazer-lhe tão miseráveis notícias, mas temo que a maioria dos homens
desertou. - Ao apagar das luzes havia me assegurado de que todos estavam em suas macas, excetuando os que tinham licença em terra. Falara com os segundos do contramestre
e os outros cabos responsáveis, e tinha dado as ordens pertinentes ao sargento ao comando dos soldados que custodiavam a porta exterior. Ainda restavam duas dezenas
de veteranos marinheiros da Surprise nos quartéis; estes não faziam mais que queixar-se da comida do porto, mas nada sabiam dos planos de fuga de seus companheiros.
Nada em absoluto.
- Provavelmente tenham cruzado a fronteira com a Espanha - disse Jack. - A maioria deles combinou em conseguir passagem para a Inglaterra. Sente-se, senhor Somers,
e tome pelo menos uma xícara de café e uma torrada. Enviarei uma mensagem ao Convento, cuja gente creio tem notícias dos desertores. Senhor Harding, tenha a amabilidade
de preparar para o meio-dia um passe de revista. Agora, se me desculpam, devo ir apresentar meus respeitos ao almirante.
O almirante em questão não era Barmouth, com quem não simpatizava; tampouco Barmouth era, em assuntos deste aspecto, cheios de ambíguas e estranhas responsabilidades,
uma fonte de sabedoria. Não, Barmouth, não, seria lorde Keith, velho amigo de Jack e pessoa dotada de uma experiência enorme na armada e em seus aspectos administrativos.
Chamou à porta de Keith, e um servente inquieto e cabisbaixo (a quem também conhecia há muito tempo) conduziu-o à salinha do café da manhã, onde encontrou a Queenie
sentada. Que afundava de forma mecânica a colher em uma tijela de mingau.
- Oh, Jack - exclamou, - que más notícias recebemos de Tullyallan...
Tullyallan era uma extensa propriedade escocesa que pertencia ao almirante, uma propriedade que apreciava em grau máximo, e pelo visto o encarregado de administrá-la,
um homem dotado de amplos poderes e responsabilidades, aproveitara a ocasião e fugira com uma considerável soma de dinheiro, deixando Tullyallan a mercê das dívidas.
- Jamais vira Keith tão afetado - disse Queenie. - É como se tivesse adoecido de repente... Está ali, sentado, escrevendo cartas tão rápido como lhe permite o pulso
e a pena, para rasgá-las depois em mil pedaços. Eu lhe direi mais tarde que você veio, querido Jack, não se preocupe.
Acalorado e cansado depois de tão decepcionante caminhada sob um sol abrasador muito próximo ao zênite, vestido com o uniforme de pano fino que mais que uma proteção
parecia um cárcere, Jack voltou a se afundar na mesma ignorância a respeito de seus poderes e da situação legal. O capitão Aubrey encontrou Stephen e o doutor Jacob
sentados na terraço do Crown, fumando um pequeno cachimbo de água. Tanto Stephen como Jack estavam acostumados às súbitas aparições e desaparecimentos de Jacob.
Jack as atribuía ao fato de que se tratava de um naturalista e de um homem de medicina, pois em uma ocasião havia surpreendido Jacob observando uma estaca de meimendro,
cujas qualidades lhe explicou com o mesmo vigor e entusiasmo que amiúde havia apreciado em Stephen. Definitivamente, Jacob era um naturalista que ia e vinha ao seu
desejo.
- Quanto me alegro de ver-lhe, doutor Jacob. Espero que o senhor tenha se recuperado.
- Totalmente, obrigado. Foi uma feridinha de nada.
- Alegra-me ouvir isso - disse ao sentar-se na escada sem dissimular o cansaço que sentia. - Suponho que o doutor Maturin lhe pôs a par de nossas infelicidades.
- Sim, senhor. E eu lhe perguntei para onde terão ido.
- Devem ter cruzado a fronteira, suponho.
- Não exatamente, senhor. Cruzaram toda a Roca até a Baía Catalã, ali os pescadores os embarcaram em três botes e os levaram para a costa espanhola perto de São
Roque, onde desembarcaram. Custou-lhes duas onças e meia de prata por cabeça.
- Diga-me, eu lhe rogo, como descobriu?
- Então, perguntando aos pescadores, senhor.
- Senhor - disse Harding, - desculpe que lhes interrompa, mas a revista que ordenou começará ao meio-dia, se estiver de cordo.
- Estou. Que assim seja, senhor Harding. Se passar pelo balcão, peça se é tão amável uma jarra de sangria gelada com pelo menos quatro copos.
A revista não foi precisamente uma festa. Ao inevitável primeiro nome respondeu um denso e incômodo silêncio, antes de que se anotasse uma "D" maiúscula junto ao
nome de Anderson; primeira letra da palavra "desertor", para um dos poucos desertores que Jack tivera desde que ostentava o comando. Não pedira as cifras exatas;
a julgar pelo tom de voz de seus oficiais, esperava que fosse muito pior. A maioria dos veteranos marinheiros da Surprise seguiam ali, de toda a tripulação os mais
valiosos, e a cada um deles os cumprimentou por seu nome. "Bem, Joe, e como vai?", "Ah, Davies, alegro-me vê-lo, mas será melhor que vá para que o doutor lhe examine
a cabeça." Estes responderam de boa vontade, com tal simpatia que suas vozes conseguiram afogar os silêncios de mais de um bom marinheiro, para não mencionar os
do castelo e os membros da guarda de popa.
Esta estranha e animada revista teve lugar a bordo de um barco fundeado, cujas amuras se encontravam situadas em uma posição impossível para permitir aos carpinteiros
(a alguns hipotéticos carpinteiros) repararem algumas das cabeças de prancha. As agradáveis palavras de Harding deram por concluída a cerimônia:
- Senhor, o senhor Daniel me diz que a Ringle acaba de içar seu número de identificação.
- Alegra-me ouvir isso - admitiu Jack. - Sem dúvida o senhor Reade traz uma mensagem para lorde Keith. Por favor, informe-lhe de que quando a tenha entregado eu
gostaria muito que comesse comigo a bordo. Enquanto isso, vamos com Lascas dar uma espiada na destroçada proa.
E ali estavam, de pé, ou, melhor, de cócoras, na zona da proa e em um lugar que antes bem podia ter-se considerado sob o convés. A essas alturas haviam se acostumado
à escuridão. Com a escassa luz que a lanterna expelia observaram buzardas{1} e bulárcamas{2}, os horríveis destroços sofridos pelas buzardas e bulárcamas, antes
de lançar um suspiro.
- Escute, Lascas - disse Jack ao carpinteiro. - Acredito que o senhor sabe perfeitamente que no estaleiro não moverão um dedo durante muito, muito tempo. Tem algum
amigo carpinteiro no negócio, que disponha da madeira e da destreza necessária para nos permitir zarpar com destino a Funchal, a da Souza?
- Veja, senhor - respondeu o carpinteiro. - Conheço uma modesta empresa particular, situada abaixo da Baía Rosia. Outro dia naveguei até lá acompanhado pelo gavieiro,
que me mostrou a estupenda madeira que têm ali. Contudo, não se entregam a qualquer tarefa, e são muito caros. E para trabalhar aqui, nos estaleiros do rei, teriam
que vir de forma fraudulenta, e satisfazer a mais de um bolso.
- O senhor poderia fazer uma estimativa dos custo?
- Temo que não seria menos de dez guinéus diários, além da madeira.
- De acordo, Lascas, prepare tudo, por favor - pediu Jack, - e prometa a seus amigos um estupendo presente se conseguirem que possamos zarpar antes da lua nova.
Stephen e ele abandonaram o barco e percorreram o cais, observando ao leste a generosa brancura do velame da Ringle, que orçava ao vento e fazia um bom avanço. Como
se encontravam sozinhos, Jack disse:
- Acho ter tomado uma decisão. É muito provável que os amigos de Lascas consigam consertar a embarcação o suficiente como para que cheguemos a Madeira, a um bom
estaleiro, e dali à Inglaterra.
- À Inglaterra, irmão?
- Sim. Em primeiro lugar ao estaleiro de Seppings, ao melhor estaleiro do reino, onde praticamente poderão reconstruí-la. Em segundo lugar, para reunir a dotação
adequada, uma dotação composta por autênticos marinheiros. Nossa travessia sul-americana exigiria de uma dotação competente ainda que não tivéssemos que lidar com
o caso chileno. A exploração, o levantamento dos planos daquelas costas (já conhece o tempo e as correntes do Cabo de Hornos) requerem marinheiros autênticos a bordo
do navio que se entregue a tal obrigação.
- Que pena que esses miseráveis tenham desertado.
- Sim, uma pena. Uma vez dobrado o Cabo de Hornos, tanto o contramestre e seus ajudantes, para não dizer nada de meus oficiais e eu mesmo, teríamos conseguido converter
aqueles lerdos recrutas em algo parecido a marinheiros de verdade. Contudo, não cria que os culpo. Não tínhamos muito o que lhes oferecer, exceto muito trabalho,
escassez e um duro leito, sem possibilidade de butim e sem permissões. É certo que, quando não encontrem trabalho nos mercantes (coisa que sucederá em um ou dois
meses), e quando se tenham gastado o dinheiro (o que sucederá muito, muito antes) todos eles desejarão contar com uma maca na Surprise. No que nos concerne, estou
convencido de que conseguiremos marinheiros de primeira suficientes, despedidos dos barcos do rei depois de declarar-se a paz, de forma a compor uma boa tripulação,
uma dotação combativa. Neste momento podemos governar a fragata com quem nos restou, ainda que não sejamos suficientes para entrar em combate. Não o vejo muito feliz,
meu amigo.
- São os chilenos quem me preocupam. Tudo isto... As reparações, a demora em Madeira, tudo isto nos custou muito tempo. Os chilenos sentem um grande fervor revolucionário,
e anseiam obter resultados imediatos ou quase imediatos. Pergunto se nos esperarão.
- Não têm escolha. Não ocorre todo dia que o Governo apetreche um barco de guerra para cartografar suas águas, para não mencionar tudo o demais que se decidiu fazer
em seu favor.
- Enfim, espero que tenha razão, meu amigo. Não esqueça que não são ingleses.
- Verdade, e isso, pobres desgraçados, joga sem dúvida contra eles. Porém, a julgar pelo que ouvi, estão a alguns anos empenhados em obter a independência. Estão
longe de parecer-me caprichosos ou excessivamente entusiastas. Quando cheguemos a Londres, ou a onde queira que seja, permitir-me-á falar com os cabecilhas da missão,
para expor o caso com as palavras simples de um marinheiro? É impossível que não consiga convencê-los.
CAPÍTULO 2
Teria sido difícil para qualquer pessoa, senão impossível, manter uma relação amorosa em uma comunidade tão fechada e pequena como Gibraltar. Contudo, estava ao
alcance de todo aquele a quem não importasse misturar a frivolidade com o amor, de fato se fazia a uma escala bastante surpreendente. Quando lorde Barmouth soube
por sua amante, mulher de caráter muito violento que odiava Isobel, que sua esposa e Jack Aubrey se encontravam diariamente em um celeiro, ou na casa de um amigo
comum, não se surpreendeu muito. Certo que não lhe acreditou do todo, dado que o afeto e a familiaridade no trato não são fatores que possam surpreender se se dão
entre quem cresceu junto. Contudo, não lhe agradava que se dissesse por aí, posto que, quanto aos cornos concernia, o almirante preferia pô-los a exibi-los, ainda
que isso último só fosse em aparência. Ninguém havia posto em suspeita sua coragem em combate, mas o conflito doméstico constituia um campo de batalha ao qual não
estava acostumado. Não só sua própia conduta era inescusável, como, além disso, Isobel, enfadada, tinha uma sobrada capacidade para o verbo que ele temia; era também
uma mulher valente, e quando seu temperamento alcançava certa cota não havia forma de fazê-la mudar de opinião e se mostrava imperturbável, como um desses cachorros
terrier que antes se deixam matar que soltar a presa. O almirante, a seu modo, sentia-se muito unido a ela, e desejava ser correspondido.
Portanto refletiu sobre a questão. Entre outras coisas que passavam por sua mente, estava o fato de que Aubrey era um dos poucos protegidos de Keith. Este, mesmo
entristecido pelos problemas que sofria nesse momento, desfrutava de uma considerável influência e podia muito bem recorrer aos altos cargos. Depois de caminhar
para cima e para baixo, enviou ao estaleiro dois homens discretos. Confirmaram sua impressão de que quase todos os marinheiros da Surprise presentes participavam
de forma ativa nos trabalhos de calafetar, pintar e enxarciar as embarcações auxiliares; e de que a fragata em si seguia sem condições, apesar da dedicação de seu
capitão, do carpinteiro, e de seus ajudantes e auxiliares.
Pôs uma surrada capa sobre o uniforme, e se dirigiu ao estaleiro, passando junto a todos os barcos que aguardavam reparações, até saltar do cais ao convés da Surprise.
Mais de um seguiu boquiaberto os passos que dirigiram rapidamente o almirante a proa e convés abaixo, até chegar ao estrondoso e abarrotado lugar onde a fragata
havia sofrido os danos mais graves.
- Capitão Aubrey! - gritou, decidido a impor-se ao estrondo dos maços; e no aterrador silêncio que seguiu acrescentou: - Como vai?
- Muito bem, senhor. Obrigado. Alguns dos antigos companheiros de rancho de meu carpinteiro, e também alguns amigos, nos estão dando uma mão. Se me permite mostrar-lhe
com esta lanterna, milorde, peço que olhe estas buzardas. Acho que concordará comigo em que esses homens estão fazendo um grande trabalho.
- Um grande trabalho, sim senhor - admitiu lorde Barmouth, que apreciava a obra com os olhos semicerrados e olhar experimentado. - Um grande, grande trabalho como
só se vê um entre cem. Deixemos que trabalhem, enquanto damos um passeio pelo cais.
No cais, o deserto cais, Barmouth falou sem rodeisos.
- Alegra-me ver que progridem as reparações, primo Jack. Existe certa inquietação em Whitehall a respeito ao destino de sua viagem, e acredito que deveria mostrar-me
mais flexível quanto à preferência das reparações, e adiantar a vez da Surprise mais do que tinha previsto no início. Assim que o senhor considere seguro largar
amarras, envergaremos o pau traquete e o conjunto de amantilhos, e o poremos em rumo carregado de apetrechos, sem esquecer munição, pólvora e bala, tudo isso em
abundância.
- O senhor é muito amável, milorde - disse Jack com a cabeça baixa e um tremendo esforço para afastar o menor indício de suspeita em seu tom de voz e expressão,
coisa que conseguiu com certo êxito. - Anseio zarpar logo.
- Anseio zarpar, eu lhe disse, Stephen. Mas lhe garanto uma coisa: não sabe quanto me custou pronunciar essas palavras. Estava confuso, mudo, surpreso pela estranha
e repentina mudança de seus planos. Contudo, de repente, ocorreu-me que talvez podia ser coisa sua, que podia ter recorrido a esses... Como chamá-los? Contatos?
- De nenhuma maneira, querido - disse Stephen, observando-lhe com sincero afeto, e, em seu foro íntimo, pensou: "por acaso não lhe ocorreu pensar que as liberdades
que temtomado com a esposa do cavalheiro, esses passeios ao entardecer, o banho que tomaram à luz da lua, por mais inocentes que sejam, não passaram desapercebidos
para os luxuriosos habitantes desta povoação que desfruta da paz? Que as boas novas não terão passado de boca em boca?" Já em voz alta, disse: - Ainda que devo confessar
que agora que o falcão peregrino já quebrou a casca, também eu anseio passar a voar. Poremos rumo direto a Serra Leoa?
- Oh, por Deus, não, Stephen. Estas reparações não nos bastarão mais que para chegar ao estaleiro de Madeira, um estaleiro profissional onde receberemos toda a atenção
do mundo, e cujas reparações permitirão à fragata afrontar as latitudes do sul e os grandes gelos. Não terá esquecido o perto que estivemos de afundar ao sul do
Cabo de Hornos, o perto que estivemos de encalhar, nós e aquele condenado barco norte-americano. Vamos a Madeira para submeter-nos a reparos conscienciosos, e talvez
ali poderemos zarpar com uma dotação como Deus manda. Neste momento, apenas podemos governar o barco, e, para governá-lo nas mais duras pairagens do distante Atlântico
sul, necessitaremos de outros quarenta marinheiros de primeira. Não acredito que tenhamos problemas para encontrá-los em Funchal.
- Ah! - disse Stephen.
- Temo tê-lo decepcionado.
- Para dizer a verdade, esperava que pudéssemos pontear a costa de Guinéu, rumo a Serra Leoa, quando estancassem aquelas temíveis vias e substituissem o traquete.
Vamos, que imaginava que bordejaríamos diretamente.
- Querido Stephen, já lhe falei da necessidade desta escala; em mais de uma ocasião lhe adverti de que nada, absolutamente nada na armada, é feito diretamente. -
Fez uma pausa. - Diga-me, por favor, onde aprendeu a expressão "pontear"?
- Por acaso não se trata de uma expressão náutica?
- Estou seguro de que sim, só que não recordo tê-la ouvido nunca.
- Acredito que significa o avanço feito em ziguezague, com vento não de popa, nem mesmo de través, mas de proa ou quase de proa, de tal maneira que o barco avança
ponteando para seu objetivo. Ainda que devo ter me equivocado, sem dúvida empreguei a expressão equivocada.
- Não, não. Eu lhe entendo perfeitamente; é uma excelente expressão. Por favor, não se desanime, Stephen.
- De maneira nenhuma, querido amigo.
Contudo, ao regressar ao seu quarto, onde lhe aguardava a carta que devia terminar, escreveu:
Esta é a terceira vez que faço um acréscimo a esta longa carta, desde o momento em que lhe agradeci o extraordinário detalhe que teve ao enviar o esqueleto de meu
querido poto (esqueleto magnificamente preparado) à Royal Society, como as outras missivas, nas quais celebrava a decisão que a senhora tomara de permanecer em Serra
Leoa até que estivesse mais perto de completar o estudo das aves de Benim ou, pelo menos, daquela zona estudada por nosso ilustre predecessor. Espero seriamente
que as receba, pois as dirigi ao atual governador. Contudo, no que a esta concerne, lamento ter que informar que ainda tardaremos um pouco mais a chegar ao porto.
Talvez não tenha prestado a atenção necessária às explicações do capitão Aubrey (amiúde sucede que quando fala em gíria náutica, tendo a pensar em outra coisa, pelo
o que não retenho os detalhes importantes), porém, se bem estava convencido, ou tinha convencido a mim mesmo, de que ao abandonar este porto poríamos rumar a Freetown,
e que ali teria o prazer de ver a senhora e de escutar seu relato do açor lagartixeiro somali recém saído do ovo, agora descubro que estava errado. Todo este laborioso
martelar, barulho, inclusive a devastação, constituem um simples preliminar de algo ainda pior que terá lugar em Funchal, onde o capitão Aubrey assegura que devemos
ir par pôr o barco em condições para uma viagem de natureza hidrográfica que empreenderemos ao sul, além de recolher a um par de vintenas de marinheiros que possam
domar o barco nas inclemências autrais.
E deste modo, querida senhora, concluo esta insatisfatória e breve mensagem, escrita com a esperança de ampliar a informação dentro de uma ou duas semanas. Entretanto,
tomo a liberdade de enviar-lhe este caranguejo hermafrodita, cujas singularidades creio que um olho experto como o da senhora poderão apreciar. Ao despedir-me, peço
que aceite o mais respeitoso dos cumprimentos, da parte de seu humilde servidor,
S. MATURIN
Ainda que S. Maturin tivesse um saco de lonita à mão, preparado para a ocasião (a correspondência marítima não podia confiar-se ao papel, menos ainda a dirigida
ao Golfo de Benim), não dobrou as páginas diretamente, leu-as com atenção para comprovar que não tivesse expressões familiares demais, apesar do fato de que as primeiras
páginas eram segundas e mesmo terceiras versões, copiadas e recopiadas de páginas já corrigidas.
- Mas, senhor - protestou Killick, - ainda não terminou? Tom Wilden disse que o mercantão já içou a bandeira azul. Não tardará nem uma hora em fazer-se ao mar, e
não creia que terá outra oportunidade como esta em um mês ou seis semanas.
- Oh, meu Deus, meu Deus - murmurou Stephen enquanto lia rápido, mais e mais rápido; tinha medo de dizer algo inapropiado, de dar mostras desautorizadas de afeto,
o que seria impróprio de um homem de sua condição. Contudo, antes de arriscar-se a perder a oportunidade de enviá-las, guardou-as na bolsa de lonita, depressa e
sem tê-las relido como pretendia. Depois, lacrou a bolsa e procedeu a rodeá-la de um barbante.
A dissimulação não era algo precisamente alheia para Maturin, pois a esse fator devia sua existência. Contudo, estava longe de sentir-se familiarizado com a contínua
suppressio veri. Christine Wood tinha permanecido em sua memória, em sua mente, em suas lembranças, desde seu primeiro encontro em Serra Leoa, e não tanto por seu
incrível atrativo (era delgada, de pernas compridas, quase andrógina), mas por sua modéstia, clareza de idéias, e o excepcional conhecimento que tinha, um conhecimento
que abarcava diversas áreas que lhe compraziam.
Stephen era uma pessoa discreta; contudo, apesar de sua discrição parecer mais com frieza, possuía fortes, inclusive muito fortes impulsos masculinos, e a recordação
de Christine nadando nua e inocente em um arroio africano de águas cristalinas para pegar um tapicuru malferido... O modo com que nadava desnuda sob o olhar indiferente
da criada negra, igualmente desnuda, havia voltado amiúde a sua atormentada mente, impedindo-lhe às vezes de conciliar o sono. E mais que sua nudez grega ou africana,
sua pele desnuda depois de nadar, pele carente de mistérios para um anatomista, Stephen recordava a leve mas perceptível pressão de sua mão quando finalmente se
despediram anos atrás, e isso era o que lhe remoía nesse momento no leito da pensão Crown, quando não ensaiava passagens daquela interminável carta, cuja escrita
podia incluir mais de um deslize. Justo antes de ir dormir, a mesm parte da consciência encarregada de ler e reler parágrafo por parágrafo a correspondência chamou
sua atenção para perguntar-lhe que qualidade tinham em comum todas aquelas mulheres pelas quais, sendo adulto, havia sentido um intenso carinho. "Um intenso e amoroso
carinho?" "Certamente, tosco."
"Em todos os casos - disse depois de meditar, - todas elas se comportaram bem. Todas elas, sem pecar de afetação alguma, deram passos de gigante para uma mulher,
caminharam passo a passo na mesma linha que seu companheiro, com uma elegância não isenta de uma total naturalidade."
Todo este acúmulo de recordações tinha sido um trabalho do mais esgotador, e a contemplação de suas apressadas e somente em parte revisadas cartas, cuja redação
quase certo era volúvel, cartas que naquele momento deslizavam pelo mar com vento favorável, havia espremido seu esgotado espírito de tal maneira que pela primeira
vez em muito tempo recorreu a seu velho e controvertido amigo o láudano, a tintura de ópio, e submergiu em um sono, culpado durante as primeiras braças e, depois,
puro como o bálsamo.
- Oh, vamos, senhor - disse o pequeno Wells, cuja voz de adolescente pareceu levantar-se pela indignação. - O senhor perderá tudo, aí roncando...
Stephen pestanejou ante o brilhante sol enquanto o garoto lhe animava a pôr-se em pé, a aproximar-se da janela que ficava situada à esquerda de tudo, desde a qual
se avistava boa parte do estaleiro.
- Ali, senhor, vê?
Sim, claro que via: a Surprise seguia balançando depois de cair de popa com força, mas cada vez estava mais adriçada, com excessão do feio buraco do qual a grua
portuária tinha arrancado o traquete. Wells rememorou o sucedido, com toda sorte de detalhes.
- E se o senhor se inclinar um pouco para aqui, senhor, poderá ver recuar a grua flutuante, igual aos caranguejos, por seu... Ui, como anda rápido... Ah!
E pela calma superfície da água, na distância, chegou com clareza o vozeirão de Harding:
- Silêncio aí. Silêncio de proa a popa! - Voz de comando dita com instância, que, graças ao hábito estabelecido, impôs um instantâneo e considerável silêncio, no
qual se pôde ouvir os passos de Jack.
- Justo a tempo - exclamou. - Ali, Stephen, vê? A grua portuária eleva o mastro macho, desloca-o; firmam-no na base, baixam-no, com brio, com alma agora. Harding,
dê a voz, arborizado! - O resto das operações seguiu o curso habitual: conjunto de amantilhos, estais, cesto da gávea e, depois, o própio mastaréu. - Aí - assinalou
Jack. - Que magnífica precisão. Estou seguro de que teria lamentado perder um só instante.
- Certamente, certamente - disse Stephen.
- E creio que o senhor Wells terá explicado o pouco que ignorava do processo.
- Com perfeita clareza. Suas explicações foram muito satisfatórias.
- Muito bem, excelente. Enfim, em marcha, senhor Wells, e diga ao senhor Harding que o doutor presenciou tudo, e que ficou muito satisfeito. Eu lhe direi do que
se trata, Stephen - continuou quando os passos do garoto se perderam escadas abaixo, como se de uma centena de tijolos se tratasse: - O almirante mudou de rumo para
minha surpresa. Cento e oitenta graus, nem mais nem menos. Neste momento, empurra-nos para fora do porto como se tivéssemos a praga. Como o ouves: neste preciso
instante, trabalham a toque de caixa no armazém de munições e, sem dúvida, quando se esfriem os fogãos, o navio da pólvora se amadrinhará. Usou como pretexto certa
inquietação na Inglaterra por nossa demora em chegar ao Chile.
- Creio que não lhe repreendesse. Afinal de contas, não se pode dizer que tenhamos desperdiçado o tempo em nimiedades nem farras.
- Não. Não acredito que fosse mais que a impaciência oficial da vez. Amiúde se dá certamente que os barcos de sua majestade são capazes de achar-se em dois lugares
ao mesmo tempo, por muita que seja a diferença de longitude. Olha, ali parte uma barcaça cheia de bala rasa. Quanta alegria!
Ao longo do dia seguiram chegando os apetrechos e as munições, de modo que a escassa dotação acabou, se não esgotada, pelo menos sóbria como uma roca. O camarote
de guardas-marinhas se viu reforçada por três jovens cavalheiros: Glover, Shepherd e Store, dois deles filhos de antigos companheiros de rancho de Jack, e o terceiro
imposto por lorde Barmouth. Apesar de suas excelentes roupas novas, o senhor Harding lhes pediu no mesmo instante que "dessem uma mão aí, que encostassem o ombro.
E com alma!, ouviu-me o senhor?"
Poucos minutos depois, quando praticamente o sol acariciava a África, jogaram ao mar a falua de Jack. A embarcação contava com um novo timoneiro chamado Latham,
excelente marinheiro que, contudo, jamais chegaria a substituir Bonden, nem no afeto do capitão, nem no dos companheiros, nem, de fato, no seu mesmo.
- Ainda que não seja um bom momento, devo apresentar meus respeitos a lorde Keith - disse Jack em voz baixa.
- Se me permite lhe acompanhar, também tenho uma mensagem para entregar na cidade - murmurou Stephen. A mensagem era uma crítica nota dirigida ao doutor Jacob, na
qual rogava que lhe enviasse qualquer coisa que tivesse podido averiguar com respeito à presença ou ausência dos Chilenos, e se uma ou outra tinham alguma importância,
além de convidá-lo a reunir-se com ele em Funchal.
Deixou-a no discreto e espaçoso peito de uma mulher da casa, e já passeava de volta pela margem quando ouviu que lhe chamavam por seu nome.
- Doutor Maturin! - Ao virar-se, viu lady Barmouth, acompanhada pelo senhor Wright e seguida por uma criada.
- Que conveniente este encontro - disse o senhor Wright, uma vez realizados os cumprimentos de rigor. - Com sua permissão, lady Barmouth, deixo-a em mãos do doutor
Maturin, pois devo apressar-me para ver o inspetor. - Dito isto se afastou de forma literalmente apressada, perdendo o lenço do bolso.
- Santo Deus, que feroz é para sua idade - comentou Isobel. - Pepita! - exclamou em espanhol, - o cavalheiro perdeu o lenço. Recolha-o e alcance-o, pelo amor de
Deus. Querido doutor Maturin, quanto me alegra ver-lhe. Poderia acompanhar-me para tomar um sorvete na Bomba, aquele local dali? Estou morrendo de sede.
- Também me alegro de vê-la, lady Barmouth - disse Stephen, que lhe ofereceu seu braço, - precisamente pensava na senhora.
- Que galante. Em relação a que assunto, se me permite a curiosidade?
- Perguntava-me se o fato de que nos conhecermos há pouco tempo me impediria de despedir-me, e se dita despedida se consideraria um ato de presunção de minha parte.
- Jamais lhe consideraríamos presunçoso, querido doutor. Porém, em nome do céu, por que está pensando em abandonar-nos? Acreditava que desfrutaríamos do prazer de
sua companhia durante mais tempo.
- Ai, pelo visto partiremos ao anoitecer, se o vento não decepcionar as expectativas do capitão Aubrey. Este foi se despedir dos Keith, e estou seguro de que terá
feito o mesmo no quartel general.
- Quando eu não estava em casa. - Lady Barmouth refletiu e disse: - Lamentaria muito não poder despedir-me dele. Jack Aubrey e eu somos velhos amigos. Talvez o veja
quando volte. Vamos, Pepita. Querido doutor Maturin, muitíssimo obrigado por este delicioso sorvete. Por favor, não se levante.
Mas se levantou, ainda que só fosse um pouco ao afastar-se Isobel, seguida por sua criada, com o grácil passo que a caracterizava.
O mesmo e idêntico passo que reconheceu aquela noite, quando finalmente se entabulou o vento e a Surprise, mareados velacho e gávea do maior, deslizou junto ao cais
enquanto seus faróis iluminaram debilmente as cismadas figuras que havia nele. Uma delas se despedia da embarcação saudando-a com a mão, cena tão comum no cais das
despedidas que não despertaria a atenção de nenhum dos abstraídos, dispersos e imóveis pescadores.
Ao longo dos dias seguintes puderam desfrutar de uma excelente navegação graças ao vento cálido e moderado, cuja única falha era que variava do oés-noroeste ao nor-noroeste,
de modo que às vezes navegavam de bolina e outras a um quarto do través, sempre, isso sim, com um esplêndido surtimento de lona a proa. Doce navegação se não houvesse
tanta pressa. Contudo, o trabalho mais ou menos clandestino efetuado na proa da fragata não lhe havia devolvido as qualidades bolinadoras que a caracterizavam (comentáveis
até aquela condenada abordagem), e uma e outra vez sucedia que a Ringle, embarcação que em qualquer caso contava com aparelho de escuna, tinha que aventar escotas
ou, mesmo, carregar uma vela para não andar mais que a fragata com a qual navegava em conserva; manobras discretas, mas que não passavam desapercebidas. Os marinheiros
da Surprise não achavam nenhuma graça. Apesar de todos estes inconvenientes e a lentidão, foi um período feliz, uma espécie de regresso ao lar e recuperação do que
inclusive para Maturin era uma vida boa e natural, dotada de uma imutável regularidade que não se via afetada pelo tempo, o constante ainda que não muito apetetitoso
alimento, e a relação com homens que, se bem não constituíam uma companhia brilhante, eram todos eles bons marinheiros profissionais, pessoas muito mais agradáveis
que os que se podia encontrar em um grupo de igual tamanho formado ao acaso.
Apesar de todas as desvantagens de viver em um lugar pequeno, da falta de intimidade, e da desesperadora ausência de correio, para não mencionar os livros, jornais
e publicações, aquela constituiu uma volta à ordem, à inquestionável ordem tão ausente da vida, sobretudo da vida em terra. Em muito pouco tempo puderam regressar
à ordem monástica própia do mar, monástica se não fosse pela alarmante insistência da sífilis e suas tristes variedades que mantinham tão ocupado a Stephen, e, de
certa forma, também a Poll, sua assistente.
Quão rápido voltou a impor-se o velho modo de vida, regido pelas badaladas e os apitos do contramestre, o enxugar das cobertas, as guardas, as luzes da costa, os
gritos dos sentinelas e todo o resto. Este "todo o resto" incluía um apetite excelente, sobretudo entre os jovens, que, convidados à mesa do café da manhã do capitão
(o que sucedia amiúde quando estes desempenhavam a responsabilidade da guarda de alvorada), devoravam quatro ovos sem pestanejar, para depois consumir os restos
do prato de bacon. Bom apetite, junto à aflição pela mudança de dieta e, sobretudo entre os marinheiros mais veteranos, o temor de ficar sem apetrechos, de tal maneira
que quando apenas tinham sumido as colinas situadas depois de Rabat, aclamaram ao vigia quando este cumprimentou ao castelo de popa com a notícia de que havia avistado
alguns atuneiros ao longo da costa marroquina. Quando o capitão ordenou rumar aos pesqueiros, inclusive os marinheiros mais grisalhos do castelo de proa se puseram
a fazer cabriolas, loucos como cabras de alegria.
Içou-se a bordo da Surprise um esplêndido exemplar que ainda forcejava. Cortaram-no no castelo de proa, e depois transportaram em cubas os enormes pedaços para a
cozinha; limparam o sangue do convés e, imediatamente, enxugaram sua superfície com pedra arenito até secá-la, tudo isso antes de devorar mais atum que o necessário.
Mas havia muito, muito atum, tanto que, depois do vento rolar para o norte na noite do dia seguinte, ainda restou bastante para o jantar, e assim o fizeram os oficiais,
marinheiros, pagens e as poucas mulheres que se permitiam a bordo, como por exemplo Poll Skeeping e Maggie Tyler (cunhada do contramestre). Jantaram-no com autêntico
deleite e com a escassa cerveja gibraltarina que restava a bordo, e foi então quando ouviram a voz do faminto vigia do tope:
- Convés, convés! Terra pela amura de estibordo. Vê-se algo... avermelhado - acrescentou para si.
- Essa deve de ser nossa parada. Que precisão - disse Jack, consultando muito satisfeito a hora em seu relógio.
Breve satisfação a sua: ao deixar pela metade o ágape - e servir o café no convés, encontraram ali a toda a câmara dos oficiais e à maioria dos integrantes do camarote
dos guardas-marinhas. Ao ver seu capitão, os oficiais se voltaram com olhar culpado para popa, e se dirigiram à proa caminhando junto ao corrimãos de estibordo.
Somente Harding, por ser o oficial de guarda, ficou.
- Talvez não seja tão mau como parece, senhor - disse.
O certo é que parecia mau, muito mau. Aquela espécie de fulgor avermelhado tinha se convertido em uma extensa fogueira que devorava a parte do povoado onde se construíam
os barcos, incluído o famoso estaleiro de Coelho.
Um enorme incêndio de gigantescas labaredas que ascendiam ao céu, e que inclusive se distanciavam entre si para ascender e crepitar solitariamente.
A maré minguante e o vento mantiveram a fragata frente à costa até as primeiras luzes da alvorada; por então, cedeu o incêndio. O vento intensificou um pouco na
margem, e os da Surprise dispuseram o necessário, incluídas bombas e mangueiras. Contudo, os lugareiros tinham a situação sob controle, e não havia nada que os estrangeiros
pudessem fazer para ajudar, com excessão de sair do meio até que o lugar recuperasse a normalidade; isso, claro, se conseguisse. Quase não havia um só homem a bordo
da Surprise que não tivesse visto alguma vez um estaleiro ou um cais devorados pelas chamas, junto à madeira, as velarias e todas as embarcações em construção. Aquilo,
contudo, superava com acréscimo qualquer outro incêndio acontecido durante a última campanha no Adriático ou no Egeu.
Depois de um silencioso desjejum que todos a bordo passaram observando as ruínas enegrecidas e as embarcações queimadas até a linha de flutuação, enquanto a fumaça
negra cobria tudo, aproximaram-se ao bom tenedero{3} onde geralmente costumavam trocar umas palavras com a embarcação do prático antes de cumprimentar da forma apropiada
ao castelo, a força de bombardeios.
As bandeiras ondeavam no alto do castelo, e a bandeira inglesa ainda o fazia junto à portuguesa, como Jack pôde apreciar. Contudo, os artilheiros do castelo, provavelmente
exaustos depois do combate ao fogo, não puderam responder ao cumprimento até transcorridos cinco minutos. Durante esse tempo, um bote pequeno, sujo e extra-oficial
partiu do cais rumo à fragata. Um jovem muito magro, vestido com o que a duras penas podia considerar-se um uniforme da Marinha, subiu pelo costado e, descobrindo-se
ante o capitão Aubrey, disse com voz agitada e extraordinariamente nervosa:
- Wantage, senhor, regresso a bordo, com sua permissão.
- Senhor Wantage - disse Jack, olhando-o fixamente nos olhos, que em parte lhe pareceram os mesmos, e, em parte também, diferentes. - Junto a seu nome figura anotada
uma "D". - O jovem segundo do piloto não havia respondido aos sinais da Surprise quando abandonou Madeira tempo atrás, de modo que haviam partido de Funchal sem
ele a bordo. Entre seus companheiros se dizia que sentia muito afeto por uma pastorzinha que vivia nas colinas, e sua ausência se atribuiu a esta relação.
- Sim, senhor, mas não foi culpa minha. Alguns homens me levaram para as montanhas e me prenderam. A cada domingo iam para golpear-me, faziam-no por turnos, até
que um monge assegurou que aquilo não estava certo. Foram muito cruéis comigo, senhor.
O certo é que estava muito pior, e também muito, muito incomodado. A maioria dos marinheiros que viajavam a bordo tinham certo conhecimento do lugar, e alguns sabiam
das práticas dos pastores, de modo que eram perfeitamente conscientes do que se referia.
- Avisem ao senhor Daniel - ordenou Jack, que acrescentou após alguns instantes: - Senhor Daniel, aqui tem um colega do senhor, de nome Algernon Wantage, segundo
do piloto, retido nas montanhas quando se requereu ao barco em Gibraltar; Wantage acaba de regressar a bordo. Leve-o convés abaixo, apresente-lhe aos novos membros
da câmara dos oficiais, insista em sua antiguidade, e procure que se sinta tão cômodo como lhe permita o pouco espaço de que dispomos.
- À ordem, senhor - disse um.
- Obrigado, senhor - disse o outro.
- E agora que o penso, senhor Wantage - disse quando ambos oficiais tinham se afastado alguns passos, - acho que estivamos seu baú e demais pertences. Jason, faça
com que algum dos cabos se encarregue de buscar tudo. Senhor Harding, quando apresente meus respeitos a sua excelência, acho que deveríamos conversar com o capitão
do porto. Doutor, teria a amabilidade de servir-nos de intérprete, como já fez em ocasiões anteriores?
Stephen inclinou a cabeça; contudo, quando tinham se vestido para a ocasião, disse:
- Creio que quer que lhe sirva de intérprete? Já lhe disse que não falo português, e ainda o entendo menos que os outros. Não há quem entenda o português falado,
a menos que se tenha nascido aqui ou lhe tenham educado para compreender essa estranha, confusa e obscura fala resmungada desde a mais tenra infância, desde antes
de perder os primeiros dentes. Qualquer um com um pouco de latim, inclusive um espanhol ou um catalão, poderia lê-lo sem sérias dificuldades, mas compreender as
expressões coloquiais, a versão rápida, cochichada...
Contudo, o capitão do porto dominava a língua franca falada em boa parte do Mediterrâneo e inclusive além, assim como o catalão antigo, vigente na parte de Sardenha
onde havia nascido sua mãe, de modo que demorou pouco em acabar com todas as esperanças que hospedava Jack Aubrey. Falou com grande loquacidade, ora em uma língua,
ora em outra, e cada nova versão jogava uma luz menos encantadora sobre a anterior. Dirigiu-se todo o tempo par Stephen, mas ao mesmo tempo observou a Jack com uma
preocupação e um assombro sinceros.
- Por acaso o capitão não viu que o estaleiro de Coelho, orgulho de Funchal, de Madeira, do mundo ocidental, ficou completamente destruído? Ignora que não há outro
estaleiro em toda a ilha que possa se comparar? Que nem sequer o de Canteiro poderia acomodar uma embarcação acima das cento e vinte toneladas? - O capitão do porto
sacudiu entristecido a cabeça. Pediu que servissem vinho de Madeira do famoso ano de 1775, e depois de que todos consumiram um par de taças, perguntou com voz suave
ao doutor Maturin, ainda que sem afastar o olhar de Jack, que onde estivera o cavalheiro em sua juventude, assim como durante os anos transcorridos desde então,
para ignorar que nessa época do ano não havia forma de alistar a um só marinheiro em Madeira que conservasse as duas mãos e as duas pernas. As frotas com destino
às índias, as ocidentais e as orientais, haviam se adiantado um pouco à data habitual por culpa de Nostradamus. Todo aquele que não se alistara em seus barcos fazia
a pesca do bacalhau nos Bancos, ou nos atuneiros que costeavam a África. Inclusive os poucos aleijados que restavam não podiam sentir-se atraídos por uma travessia
de natureza hidrográfica ao Cabo de Hornos e a suas terríveis passagens, sem nenhuma oportunidade de obter dinheiro de algum butim.
Aí Stephen fez o possível, com discrição, para dar a entender que, conforme as circunstâncias, não estava totalmente descartada a possibilidade de capturar outros
barcos.
- Afinal de contas, sempre houve piratas além do Estreito de Magalhães (ou, pelo menos, amiúde há sucedido assim), piratas que constituem uma presa de lei.
- Oh, certamente - replicou o capitão do porto. - Presas na costa mais distante do mundo. Além do Estreito de Magalhães. Claro que, meu querido senhor - acrescentou
triunfal, - o senhor recordará o que ocorreu ao própio Magalhães.
- Isso mesmo - disse Stephen, - e não sabe como lamento a prematura morte daquele grande homem. Vejo que terei que decepcionar o meu superior. Permita-me agradecer-lhe
tão diáfano informe da situação, assim como rogar-lhe que aceite este par de meias inglesas de estambre.
- Enfim - disse Jack enquanto passeavam pela parte da cidade que havia se salvado do incêndio; a esquerda, encontraram algumas ruas muito queimadas, nada que pudesse
considerar-se ruinoso, - suponho que não há nada o que fazer. Tivemos muito má sorte ao chegar justo quando as frotas das índias haviam partido. Quem diabo é esse
Nostradamus?
- Oh, uma espécie de profeta, como nosso velho Moore, ainda que não tão sábio. Posso perguntar se já decidiu o que faremos a seguir?
- Claro que sim, e não tenho dúvidas a respeito. Queria obter buzardas e bulárcamas novas, aqui mesmo, no estaleiro de Coelho, além de reforçar a ligação do navio.
Contudo, estou convencido de que a Surprise nos levará ao estaleiro de Seppings, onde se poderão empreender as reparações que nos permitam afrontar o Cabo de Hornos
sem medo, pelo menos sem necessidade de suportar tanto medo a ponto de nos paralizar. E isso, afinal de contas, é o que queria desde o início.
- Meu querido - disse Stephen, titubeando, - pensou na possibilidade de parar em Portugal e em algum porto espanhol da costa Atlântica? Ambas nações desfrutam de
portos de grande fama, e de carpinteiros de ribeira capazes de botar barcos tão magníficos como o Santa Ana, que tanto admirou Nelson em vida.
- Sim - respondeu Jack, - Harding e eu pensamos no assunto muito antes de decidir-nos rumar para Funchal. Naquele momento o vento teria servido a ambos propósitos,
mas agora sopra do leste. Contudo, estou convencido de que Funchal teria sido perfeito, se não fosse por esse condenado incêndio. É verdade que os espanhóis podem
construir excelentes e robustos navios de linha de primeira classe, mas não têm a mesma habilidade quando se trata de fragatas, e de qualquer maneira não acredito
que uma embarcação hidrográfica inglesa fosse bem acolhida em um estaleiro espanhol, nem tampouco que atendessem as reparações em um prazo de tempo razoável. No
tocante à dotação, não me importaria dispor de alguns espanhóis, mas tem havido má sangue durante muito tempo. Os portugueses, contudo, e pelo que me dita a experiência,
são tão bons marinheiros como os espanhóis, e são mais dóceis, menos proclives a deixar-se levar pela cólera... Mais molengas, se entende a que me refiro. Funchal
tinha por costume atender embarcações de arqueio médio destinadas a navegar pelo oceano, embarcações como a Surprise, o que não se pode dizer de Vigo, nem do Groyne.
Não. O que tenho pensado é o que mais nos convém, e consiste em permanecer aqui alguns dias enquanto Lascas, que conhece bem a cidade, procure buscar excelente madeira
nos armazens dos arredores, e, se puder, recrutar também alguns carpinteiros de ribeira. Neste momento, haverá muitos, muitos sem emprego, pobres diabos. Nós os
poremos para trabalhar nas amuras. Depois, rumo ao estaleiro de Seppings, onde aguardaremos enquanto fazem uma revisão completa da quilha, tentaremos conseguir uma
dotação completa de marinheiros do oeste da Inglaterra, e, certamente, ao desfrutar de... - teria acrescentado "Inglaterra, lar, doce lar", se não fosse pelo temor
do que pudessem remover aquelas palavras na mente de Stephen, nas feridas que pudessem lhe causar, pois a expressão de seu rosto distava muito de poder considerar-se
feliz.
De fato, a expressão sombria era causada por seu conhecimento da extrema impaciência que sofria qualquer grupo revolucionário e pela convicção de que, se não chegassem
a um sólido acordo com os chilenos que conhecia, com quem marcara um encrontro naquela mesma cidade, um acordo com datas estabelecidas, procedimentos a seguir e
informes das forças envolvidas, e, sobretudo, se seu barco apetrechado e armado não aparecesse com eles a bordo, estes primeiros chilenos perderiam a fé, podiam
se deixar levar pela impaciência, ou (outra possibilidade) deixar se convencer por outros, impacientes, mais entusiastas, com menos conhecimentos dos fatos. Tudo
isso não era mais que pressentimentos, pressentimentos com uma base mais ampla que a maioria, verdade, mas nada podiam fazer diante da opinião meditada de dois oficiais
da marinha com a experiência de Jack e Harding.
Seguiram passeando, concentrados em suas respectivas reflexões, passando junto a pessoas tristes, sujas e cansadas, muitas das quais tinham passado a noite acordadas.
Contudo, não havia lugar para a alegria, de modo que as risadas tontas que provinham do fundo da rua eram muito mais ofensivas que o habitual. Mais gargalhadas,
às quais seguiu a imitação de uma voz em falsete e outra porção de risadas. Jack observou a multidão e identificou o imitador, o mais robusto, peludo e espinhento
dos novos guardas-marinhas que serviam a bordo, de nome Store, a quem acompanhava um pequenino que o admirava, Shepherd. Por respeito ao pai, antigo companheiro
de rancho, Jack havia convidado Store para almoçar, e havia se surpreendido com o grosseiro e mal-educado silêncio de que tinha feito, pelo menos até recordar que
o almirante Store (o almirante sir Harry Store, para ser exatos) passara a maior parte da guerra nos portos da Índia e África do Sul. Pelo visto, os guardas-marinhas
seguiam a Wantage e ao segundo do carpinteiro, que caminhavam umas cinqüenta jardas na frente, de quem se zombavam abertamente. Jack chamou sua atenção com o vozeirão
de oficial de marinha que lhe caracterizava. O jovem alto se virou com a culpabilidade no olhar, envergonhado, desafiante. Aproximou-se de Jack com passo inseguro,
seguido pelo pequenino, e pelo menos tiveram inteligência suficiente para ficarem em posição de sentido e descobrir-se.
- Quem deu aos senhores permissão para desembarcar? - perguntou Jack.
- O senhor Harding, senhor - responderam em uníssono.
- Pois apresente-se ante ele a passo ligeiro e digam-lhe que ordenei ao senhor subir ao tope do traquete, e ao senhor Shepherd ao da mezena, onde permanecerão de
castigo até meu regresso.
Wantage havia parado ao ouvir a voz de Jack; ao ver que os guardas-marinhas corriam para o cais, aproximou-se do capitão Aubrey.
- O que o traz por aqui, senhor Wantage? - perguntou Jack.
- Senhor, o carpinteiro me pediu que acompanhasse seu ajudante - neste ponto, o segundo do carpinteiro fez a saudação militar, - para regatear pela madeira.
- Em tal caso, suponho o senhor que fala português.
- Sim, senhor. Meu pai era comerciante de vinho aqui em Funchal, e passei algum tempo aqui, aos cuidados de minha avó.
- Ah, que grande sorte, que grande sorte. Eu lhe chamarei, se me permite, quando o barco necessitar de um intérprete. Espero que tenha sorte no regateio, mas não
se encastele por um ou dois dólares, certo?, o barco é vem em primeiro. Que tenha um bom dia.
Seguidamente, respondeu ao cumprimento de seus subordinados e, depois de uma pausa, disse a Stephen:
- Hei aqui um exemplo do que falávamos antes. Pode ser que Wantage não seja um Newton, um Halley ou um Cook (já sabe quanto venero a esse grande marinheiro), mas
quando pequeno passou um tempo com sua avó portuguesa, e agora sabe falar português. Ah, ah, ah! E pensar que eu não o sabia.
- Talvez se deva a nunca ter lhe perguntado - disse Stephen, um pouco incomodado.
- Por outro lado, talvez ele também tenha saído perdendo. Sem seus conhecimentos de português jamais teria posto os cornos no pastor. Ainda que não teria que falar
superficialmente de assuntos tão sérios... falarei isso a Harding.
Voltaram a bordo; realizados os cumprimentos de rigor no convés, dirigiram-se para a câmara, onde Jack solicitou a presença do imediato.
- Senhor Harding. Sente-se, por favor. Deseja uma taça de madeira?
Harding consentiu e depois de dar um primeiro trago, disse: - Um madeira excelente, senhor, excelente. - A verdade é que sim, é bom, verdade? Estou completamente
de acordo, que melhor lugar que Funchal para o vinho Madeira? - Ambos beberam com gravidade, pensativos, saboreando o licor, e, antes de encher de novo a taça, Jack
acrescentou: - Mas lhe direi algo, senhor Harding, nosso camarote de guardas-marinhas não está à altura das circunstâncias.
- Não, senhor. Não o está.
- Eu os tenho observado desde que partimos de Gibraltar. Os recém chegados não têm nem idéia de como cumprir com seu dever. Exceto o pequenino, o que navega pela
primeira vez, nenhum deles deseja aprender a profissão. Contudo, o que realmente me irritou foi a conduta de Store em terra. Seguiu ao pobre infeliz de Wantage cacarejando
como um frango com a voz de um eunuco afeminado. Pelo amor de Deus, o filho de um cavalheiro comportando-se assim em público! Eu lhe disse com toda clareza que se
alguma vez voltar a fazer tal coisa o atarei a um canhão e o açoitarei sem piedade; depois o abandonarei no primeiro porto onde paremos, seja qual for o país ao
qual pertença. Acredito que se acalmou pelo momento, mas exerce uma influência indesejável nos crianções; como não podemos deixá-lo em mãos do condestável, acho
que deveríamos recorrer ao velho truque de pedir-lhe que cuide dos jovens, o que deixa para Daniel, Salmón, Adams (que provavelmente rondem os trinta e tantos),
e a Soames, via livre para orientar Store, para não mencionar ao pobre Wantage, que porá nervoso ao infeliz.
- Estou de acordo, senhor. Não consideraria a possibilidade de desembarcá-lo aqui mesmo?
- Não. Estive pensando, mas seu pai e eu fomos companheiros de rancho. Contudo, à menor reincidência o expulsarei do barco. O senhor, o contramestre e os segundos
do contramestre devem mantê-lo muito ocupado. Nem ao menos domina o ballestrinque{4}. E se se atrever a bater em um marinheiro quer seja com os punhos, os pés ou
uma cavilha, que suba diretamente ao tope. Seja como for, se ao parar na Inglaterra levamos a cabo as mudanças previstas na tripulação depois das reparações, duvido
muito que o convide a seguir a bordo.
- Stephen - disse muito depois, quando ambos tinham terminado uma chata partida de cartas, partida chatíssima desde a primeira mão, na qual só haviam ganhado e perdido
quatro peniques, sentados ambos com uma taça de madeira, - raras vezes quis lhe chatear com as preocupações do comando. Um bom barco é um barco feliz, já sabe, e
ambas coisas vêm a ser o mesmo, pois um barco assim se governa sozinho quando sua gente se acostuma com a rotina, sobretudo se são marinheiros de navio de guerra.
- Verdade. Não é difícil observar em ação tão particular Ethos. O que mais me surpreende sempre é o modo como difere de um barco para outro.
- Ethos não é uma palavra cristã, querido amigo.
- Peço que me perdoe. Teria dito algo parecido no "sentido tribal da conduta apropiada" se não fosse porque os oficiais da Marinha amiúde empregam a palavra "tribal"
para referir-se a um grupo de homens negros ou de pele vermelha a quem se alude somente com fins cômicos ou pitorescos, exceto no que se refere à escravidão. Contudo,
já que não ocorre nada melhor a minha mente enturvada pelo vinho, sigamos empregando o tribal, e usemo-no no nobre sentido dos Icen de Boadicea.
- Não tenho o que objetar.
- Esta natureza tribal - continuou Stephen depois de inclinar a cabeça, - que certamente se torna mais e mais óbvia a medida que avança o tempo de um serviço longo,
pode se parecer com a que se percebe nos clubes londrinos. Ninguém poderia confundir um membro de Boodle com um habitual de Blacks. Não é que se trate necessariamente
de algo melhor ou pior. O camelo bactriano silvestre de duas corcovas é um animal valioso; o árabe somente tem uma, e também é um animal valioso.
- jamais me ocorreria discutir tal coisa, ainda que preferiria que Blacks não tivesse o que se conhece por uma vertente whig, mas eu me referia a que em tempos de
paz tudo se torna mais difícil. Nem sequer cabe a possibilidade de se distinguir, e, ainda que como capitão tem a obrigação de proporcionar o melhor para quem serve
sob seu comando, como consegui-lo? Obter o comando de um barco agora que os desarmam por toda parte é quase impossível, tanto como... - Titubeou, buscando a expressão
adequada.
- Como fazer de uma pulga um elefante?
- Muito pior, Stephen, muito pior. Esses três jovens que subiram a bordo faz pouco puderam fazê-lo graças à influência de seus pais: dois deles foram meus companheiros
de tripulação. Aos garotos, aos jovens com pais influentes, é necessário tratá-los com pinças, sobretudo em tempos de paz. Não, não o digo por mim, Stephen (já lhe
falarei disso no domingo), mas se algum de meus tenentes, o piloto ou quaisquer dos oficiais de carreira que lida com eles e se comporta com dureza, asseguro que
poderia custar-lhe caro. Já o vi antes. Um miserável girino escreve para sua mãe: "O senhor Qualquer me puxou das orelhas na segunda guarda com tanta força que quase
não vejo pelo olho direito." Se o pai do girino vota com o ministério e conhece alguém em Whitehall, eu lhe asseguro que em tempos de guerra o senhor Qualquer já
pode ir pensando que terá que solicitar destino uma e outra vez, até o dia do juízo Final.
Jamais se poderia descrever Jack Aubrey como um entusiasta evangelista, ainda que possuísse uma espécie de crenças difusas, que amiúde se manifestavam como superstição,
às vezes no vozeirão que empregava para cantar seus salmos favoritos, e, às vezes também, em certos rituais particulares, tais como abrir os presentes ou guardar
as boas notícias para os domingos.
Era domingo, dia de descanso para o infernal golpear dos maços e martelos que reparavam os danos da embarcação. Wantage, que conhecia Funchal como a palma de sua
mão, e que pouco a pouco se acostumava aos modos e costumes que regiam a Armada Real, a toda aquela vida que o envolvia de novo, falara a Harding da melhor casa
de refeições da cidade, e ali era onde o imediato servia de anfitrião para Reade, da Ringle, para Wheel, Candish e para Woodbine, da câmara dos oficiais, assim como
para os dois segundos do piloto: Daniel e o própio Wantage. Confiara também em poder convidar a Jack e a Stephen, mas seu servente, que primeiro sondou Killick,
descobrira que o capitão e o doutor tinham decidido almoçar javali, assado conforme o costume de Funchal, nas colinas.
- Por favor, diga-lhe ao senhor que jamais tinha comido porco na vida - disse Jack, com um osso fatiado e branco ao alto. Jack tinha um amplo surtimento de manias
estúpidas, ainda que nenhuma irritasse mais a Stephen que essa suposta graça que possuía para intercalar em cada frase uma ou duas palavras erradas no idioma do
lugar.
- Oh, cuidado com os calções, senhor - observou Killick, que se lançou-se sobre o colo do capitão com um guardanapo, e o fez tarde demais. - Aí a tem, quero ver
como a tiramos agora.
- Não se preocupe - disse Jack, jogando o osso nas brasas. - O que foi? - perguntou ao nervoso guarda-marinha montado a cavalo que apareceu de repente pelo pequeno
vale onde celebravam a refeição campestre.
- Com sua permissão, senhor, o senhor Somers pensou que lhe agradaria saber que acaba de chegar ao porto um paquete procedente de Gibraltar.
- Obrigado, senhor Wells. Regresse a galope e diga-lhe que estamos a ponto de terminar.
Era um paquete, uma embarcação dedicada ao transporte de correio, carregado de cartas inglesas com datas de diversa antiguidade, um enorme pacote com listas para
o contador, o senhor Candish, correio para a cabine, câmara e camarote dos guardas-marinhas, e dois rolos de lonita selados com lacre para o doutor Maturin.
- Desculpe-me - disse Stephen, que ao afastar-se ouviu as ordens dadas para se distribuir o correio pela dotação. Passou um longo tempo antes de regressar. O primeiro
rolo de lonita continha umas curiosas penas de uma ave noturna sem identificar, provavelmente aparentada com o bacurau de pescoço vermelho, além de uma nota muito
agradável de Serra Leoa, escrita antes de que Christine Wood recebesse sua própia carta. O outro rolo de lonita incluía uma mensagem escrita em código por Jacob,
cifrada que obedecia a um sistema raras vezes empregado por Stephen, um sistema em cujo uso Jacob parecia ter extraviado o sentido, pois embora a primeira parte
aludia a certos chilenos e aos preparativos (realizados, pelo visto, com mostras de nervosismo), o segundo parágrafo, o terceiro e o quarto não tinham nenhum significado,
nem sentido apesar de todas as combinações que chegou a aplicar para resolvê-lo.
A tentativa de decifrar o código esgotou boa parte de seu tempo e ânimo, e, muito antes de abandonar toda esperança, a atividade a bordo começou a ferver, e se impuseram
os passos e os gritos por todas as partes, ainda que estes ruídos passaram a um segundo plano ao ler as cartas. Ao entrar na cabine, encontrou Jack sorridente depois
de ler a correspondência que havia recebido.
- Ah, aí está, Stephen - cumprimentou Jack. - Espero que suas cartas sejam tão agradáveis como as minhas. Desfrutei de uma antecipação na sexta-feira, e me propus
reservá-la para hoje, e aqui tem a confirmação - disse sustentando no alto uma folha, - de modo que não vou me conter por mais tempo. Recorda-se de Lawrence, excelente
pessoa como nunca se viu?
- Certamente, acho que jamais esquecerei esse homem que tanto honra a sua profissão. - O senhor Lawrence era o advogado que havia feito o possível para defender
Jack Aubrey quando o acusaram de fraude na bolsa de valores, uma acusação falsa, promovida por quem se aproveitou da fraude e do conseguinte julgamento presidido
por um dos juízes mais parciais e sem escrúpulos que jamais existiu na Inglaterra. Lawrence trabalhara muito duro para salvar Jack, a quem sabia inocente, e seu
fracasso havia lhe marcado.
- Isso mesmo. Costumamos almoçar juntos quando passo alguns dias na cidade. Faz tempo, oh, faz muito tempo, antes inclusive de que partíssemos para Java e Nova Gales
do Sul, ele me disse por casualidade que um de seus sobrinhos, que trabalhara durante anos com Arthur Young, tinha se estabelecido por conta própria como consultor
e agente agrícola, e que encontrava muitas dificuldades para seguir em frente. "Eu sou seu homem", eu lhe disse, e depois falei da modesta propriedade que meu primo
havia me deixado.
- A mesma em cujos pastos, próximos ao rio, abundam as mariposas?
- Isso mesmo. Não tenho nada em contra as mariposas, mas lhe asseguro, Stephen, que seus terrenos inundados, as escassas granjas e as pequenas propriedades não produzem
nada em absoluto com excessão do que os dez ou onze eleitores e suas famílias possam comer. Cada primeiro de agosto me enviam uma petição na qual rogam que perdoe
o aluguel do ano; não somente isso, também me pedem por favor que lhes entregue carregamentos de pedra para o caminho de Old Hog. Aquele terreno me custa meio guinéu
por cada narceja que caço, e não é que vá amiúde. É longe, tem que se percorrer caminhos difíceis para chegar ali, e a paisagem úmida dos terrenos inundados e os
pastos de segunda categoria não justificam o esforço. Meu primo adquiriu a propriedade pela cadeira parlamentar. O distrito estará apodrecido, mas a terra é muito
pior. Killick - disse quase não levantando o tom de voz.
- Senhor? - respondeu este, quase imediatamente.
- Pode pôr uma cafeteira para esquentar?
Depois de uma breve pausa, Jack continuou:
- Seriamente acredito que todo mundo teria que ter um livro de notas, usar um diário. Com a idade é cada vez mais difícil pôr em ordem as idéias. Pelo menos é o
que eu penso. Enfim, falava que o sobrinho (de nome Leicester, por certo, John Leicester) visitou o lugar e informou que a situação era precária, muito precária,
mas não irreversível, e dada a orientação da terra, um processo de drenagem poderia dar bons resultados. Levaria seu tempo, anos provavelmente, e a maioria dos arrendatários
contribuiria com sua parte, conforme um plano de trabalho que ele mesmo tinha elaborado, plano que lhes permitiria trabalhar também em suas própias terras; além
disso, o processo não comportaria um dispêndio considerável. Como naquele momento havia obtido butins vultuosos, disse que levasse a cabo seu plano, mas que nada
de despejo ou embargos...
- A cafeteira, senhor - disse Killick.
- Onde estava? Ah, sim. Disse que seguisse em frente, e ele começou com todo o projeto; então nos fizemos ao mar. Quase tinha esquecido... Sim, Leicester, que também
atuava como agente, mandou-me informes anuais, mas com a quantidade de coisas que sucediam temo que não lhes dei muita atenção até o ano passado, quando me pagou
em inquilinato uma quantidade próxima às quarenta libras. Este ano, comentou a possibilidade de obter uma abundante colheita de trigo. Ah, ah! Contudo, não o mencionei
pelo temor que ao fazê-lo pudesse atrair má sorte, mas hoje recebi a excelente notícia de que ofereceu aos arrendatários um festim de celebração do primeiro de agosto,
entre cujos pratos figuraram o rosbife e o pudim; pelo visto, depois brindaram a minha saúde, e depositou quatrocentas e cinqüenta libras em minha conta bancária.
Stephen! Mais que meu pagamento de capitão de navio. Que lhe parece? Muito boas notícias.
- Extraordinárias, sim, é justo que as recebamos com os braços abertos, querido amigo. Eu lhe felicito de todo coração. Olha-te... Alegro-me muito, de verdade.
E assim era. Contudo, Jack, que não desfrutava precisamente de uma agudeza sobrenatural, detectou certa inquietação, não tanto na expressão de Stephen, mas em sua
atitude tensa, de modo que disse:
- Desculpe-me, Stephen, por chateá-lo com estes assuntos pessoais, e por minha vulgaridade ao falar de dinheiro. Vejo que está incomodado.
- Não. Está equivocado: não me chateou nem um pouco, nem me cansaram suas palavras, às quais prestei atenção. Se me vê incomodado, deve-se a outra causa. Jack, diga-me,
quanto tempo levarão estas reparações antes de podermos zarpar.
- Com dois dias festivos no horizonte e a grande quantidade de trabalho pendente em tantos dos projetos própios dos estaleiros, diria que oito ou nove dias.
- Em tal caso, devo pedir que a Ringle me leve à Inglaterra. Se puder partir esta mesma noite, eu lhe agradecerei ainda mais.
Logo, Jack compreendeu que aquele pedido e o paquete de Gibraltar estavam relacionados. Em lugar de fazer perguntas, chamou imediatamente ao senhor Reade, a quem
disse ao ver-lhe entrar:
- William, em quanto tempo poderia zarpar?
- Em vinte minutos, senhor, se posso permitir-me o luxo de fazê-lo sem meu carpinteiro.
- E seu ajudante?
- O senhor também o tem a bordo, senhor.
- Em tal caso, eu o enviarei diretamente. Boa proa, William, diria que tem o melhor dos ventos.
Quase todas as viagens, desde a da Arca de Noé até o envio dos barcos a Troya, estiveram marcados por atrasos intermináveis, saídas falsas, e ventos e mares caprichosos.
Talvez a escuna Ringle fosse muito insignificante para incluí-la na categoria de digno adversário, porque recolheu suavemente a âncora e, depois, pôs proa norte
quarta leste com um vento que lhe permitiu marear toda a lona que possuía, além, claro, da reservada para o mau tempo ou o temporal.
Foi uma travessia quase perfeita na qual o capitão quase não abandonou o castelo de popa, e todos os marinheiros (corpo seleto a essas alturas) estiveram constantemente
dispostos para aproximar-se a qualquer cabo ou linha que mostrasse a menor inclinação a folgar-se ou entesar-se em demasia, definitivamente, para proporcionar que
o barco rendesse na manobra. Qualquer coisa para não atrasar sequer a oitava parte de um nó na caminhada.
Stephen passou a maior parte do tempo em sua triangular cabine, aplicando em vão diversas fórmulas à absurda mensagem cifrada por Jacob em grupos de sete. Comeu
e jantou em companhia de William Reade, que não deixou de recordar-lhe a maravilhosa e veloz travessia que fizeram Canal acima até alcançar o Nore justo a tempo
para os primeiros suspiros da maré que os ajudou a vencer o Pool, tudo isso em um período tão breve de tempo que Reade fez que diversos marinheiros de provada valia
assinassem o caderno de bitácula, para servirem de testemunhas de semelhante façanha.
- Encantar-me-ia poder igualar a marca anterior, senhor - disse.
- É o que espero, a sério que sim - respondeu Stephen.
Porém, ai, em vão foram todas suas esperanças: O Canal, inóspito como sempre, havia se cansado dos ventos do sudoeste que se apresentaram em todas suas formas e
variantes, de modo que a Ringle ao chegar em suas águas foi recebida com uma forte chuva do nor-noroeste, combinada com marés adversas que escorriam com grande força
e que impediram que sequer se aproximassem da marca anterior. Com a dotação da escuna cansada, desembarcaram o doutor Maturin no Pool, em Londres, com o único consolo
de saber que tão somente lhes esperava a vigilância do barco no porto, um lugar onde os prazeres dos quais costumam desfrutar os marinheiros aguardam a um tiro de
bolacha. Pelo menos, assim seria até que recebessem ordens de Whitehall.
Whitehall, a elegante fachada do Almirantado, com as figuras mitológicas de rigor que decoravam a parte alta, e o carruagem procedente do Pool, carruagem cujo descuidado
aspecto era inegável, junto ao qual se encontrava uma figura igualmente descuidada que separava com infinita lentidão as moedas irlandesas das inglesas, das espanholas
e das marroquinas, para poder pagar ao suspicaz condutor que havia descido do assento com as rédeas sobre o ombro, disposto a assegurar-se de que aquele tipo raro
não lhe trapaceasse.
A extraordinária despedida de Stephen tinha pegado Killick de surpresa. Este, acompanhado de Grimble, seu ajudante, alternava com duas damas de Funchal, e o doutor
desceu ao bote da Ringle pelo costado; fez isso convencido (toda a segurança que possa ter alguém que não pensa muito nisso) de que seu baú de marinheiro estava
em perfeito estado de revista. Durante a travessia de Madeira a Londres, Stephen não tinha considerado adequado futucar no baú, além do compartimento onde guardava
uma esponja usada, a caixinha das lâminas, a escova, o pente, e uma toalha cujo estado de conservação era cada vez mais duvidoso. O restante do tempo dedicara a
forcejar com o cifrado de Jacob, ou a esporear ao barco canal acima com toda a convicção moral da qual era capaz.
Mas quando a Ringle atracou no Pool e um criado de bordo se encarregou de ir buscar um carro de cavalos, o melhor carro que pôde encontrar, Stephen considerou que
chegara o momento de pôr uma roupa mais adequada para realizar uma visita de caráter oficial. Não encontrou roupa elegante, nem camisas limpas; não havia lenços,
calções, nem meias de seda ou algodão. Tampouco encontrou os esperados sapatos de fivela de prata. Tudo, tudo fora confiscado por Killick para uma revisão a consciência.
Um dos porteiros do Almirantado, ao assomar-se pela janelinha, disse:
- Olhe aí, senhor Simpson: o bêbado da vez, empenhado em enganar a um desses cocheiros da Torre. Digo para que dê a volta até a entrada de mercadorias?
Simpson deu uma longa espiada por cima do ombro do subordinado; com os olhos semicerrados, enquanto dava fim aos últimos grãos de aveia. Empurrou o subalterno de
uma cotovelada, e, quando o "bêbado da vez" se aproximou da janelinha, cumprimentou-lhe com um educado "Boa tarde, senhor."
- Boa tarde - respondeu Stephen. - Não trago um cartão de visita. Porém, se por casualidade se encontra aqui sir Joseph, peço que tenha a amabilidade de comunicar-lhe
que o doutor Maturin estaria encantado de poder falar com ele quando mais lhe acomode.
- Certamente, senhor. Não estou seguro, claro, mas diria que está sim. Importar-se-ia de esperar, senhor? Harler, acompanhe o cavalheiro à sala de espera interior,
e não esqueça o baú.
CAPÍTULO 3
- Querido Stephen, quanto me alegro de ver-lhe - exclamou sir Joseph, apertando sua mão com todo o afeto do mundo. - Diga-me, já comeu? Quer ir ao clube para pedirmos
umas costeletas assadas? Bem... - disse ao observar sua vestimenta. - Aqui mesmo disponho de um quarto, modesto, é verdade, mas talvez queira conversar comigo em
particular, e evitar que toda a nação possa informar-se de nossas coitas.
- Seria preferível desfrutar de uma quarto pequeno e privado, sim. Porém, por favor, querido Joseph, poderia encarregar-se de enviar um mensageiro à casa de hospedes
Grapes, nos Liberties de Savoy, para avisar de minha presença a Londres? Não só me alojarei ali, o que ainda ignoram tanto a senhora Broad como as meninas, dado
que vim aqui diretamente desde o barco, como que, além disso, disponho em meu quarto de roupa decente (o senhor deve saber que tenho há muito tempo um quarto na
casa).
Não sou o que ordinariamente se diz um elegante, como o senhor sabe, mas não teria me apresentado aqui desta forma...
- Claro, claro...
-...Se não fosse por ter em mãos um assunto da maior urgência. Ainda que - murmurou observando o punho da camisa, - aqui onde a vê, esta camisa foi muito boa em
seus tempos. Assuntos urgentes, sim - retomou o fio, ao mesmo tempo que tirava do bolso da casaca a mensagem indescifrável, que primeiro colocou na escrivaninha
e, depois, procedeu a alisar.
- Não a entendo - admitiu sir Joseph depois de observar com detalhe o documento. - Que chave os senhores empregam?
- Áyax com uma variação - respondeu Stephen. - Na primeira página funciona às mil maravilhas.
- Não entendo uma só palavra, ainda que conheço bastante bem a chave Áyax com uma variação. - Blaine fez soar a campainha. - Vá buscar o senhor Hepworth - ordenou
a um servente.
O senhor Hepworth olhou para Stephen com discreta curiosidade, e, rapidamente, afastou o olhar.
- Senhor Hepworth - disse sir Joseph, - tenha a amabilidade de estudar este cifrado e averiguar a chave empregada. Acha que demorará mais de meia hora?
- Espero que não, sir Joseph. Acho ver algumas combinações que me são familiares.
- Em tal caso, envie por favor o nome da chave e sua transcrição para a salinha.
Havia demasiada tensão para que pudessem comer as costeletas com autêntico apetite, de modo que abandonaram a comida quando o senhor Hepworth voltou, muito sério
e com o manuscrito na mão.
- O cavalheiro que cifrou esta mensagem, senhor - disse, - empregou o novo livro, e por não estar familiarizado com o livro nem com o código se arrumou como pôde,
tomando-o por uma continuação direta de Áyax três. É muito similar, e, creiam-me, não é a primeira vez que sucede algo parecido; já ocorreu outras vezes, quando
o encarregado do cifrado tinha pressa ou não podia concentrar-se.
- Obrigado, senhor Hepworth - disse Blaine, e, quando a porta se fechou, perguntou a Stephen: - Quer que o leiamos juntos? Temo que nossa previsão não pôde ser mais
acertada.
Puzeram as costeletas de lado (a essas alturas, totalmente frias) e Blaine empurrou a cadeira até situar-se ao lado de Stephen. Leram atentamente, e, a partir daquelas
frases breves, inquietas, descobriram que um grupo importante e bem apetrechado do Chilenos entrara em contato com sir David Lindsay, antigo oficial da Armada Real
e homem empreendedor, que tinha aceitado comandar suas forças navais. O informador incluía detalhes com respeito às suas fontes, e, ainda que Blaine murmurou em
voz alta os nomes (aliados conhecidos ou, possivelmente, agentes) guardou silêncio ao chegar ao nome de Bernardo O’Higgins e José São Martim, a quem Stephen havia
conhecido durante a primeira tentativa - a tentativa que esteve a ponto de resultar ter êxito - de convencer os peruanos a declararem sua independência da Espanha.
Stephen leu comprazido alguns dos nomes (nomes de fontes, não de membros do comitê), outros com desagrado, raiva e, às vezes, desconfiança. Uma vez mais, comprovou
a fragilidade dos movimentos que lutavam pela independência, havia tantas pessoas empenhadas em se tornarem líderes, e tão poucas dispostas a ser prudentes.
- Não me admira que o doutor Jacob equivocasse o código - disse Blaine quando terminaram. - A situação é inquietante: de algum modo sabíamos que isto podia suceder,
mas não que já havia sucedido... Entre.
- Peço que me perdoe, sir Joseph - disse Hepworth. - Achei que gostaria de saber que acabamos de receber o mesmo sinal através do semáforo.
- Obrigado, senhor Hepworth. De onde provém?
- Da Hebe, senhor, em Plymouth.
Produziu-se um silêncio, que Stephen rompeu ao dizer:
- O nome de sir David Lindsay me é familiar, e o relaciono com a armada, ainda que não saberia dizer a que santo.
- É um marinheiro muito capaz, possuidor de uma merecida reputação por causa de alguns duelos navais travados penol a penol. Contudo, temo que pertence a esse tipo
de pessoa que é mais proclive a dar ordens que a obedecê-las, de modo que não se empenhou a fundo para alcançar o cargo de capitão de navio, nem tampouco chegou
a submeter-se à disciplina das manobras da frota. Contam a anedota de um desafio impróprio na Índia (que na verdade foi um assalto), mas as acusações foram retiradas
com a condição de que abandonasse a armada. Não farei afirmação a respeito, o que sei é que o cavalheiro não serviu a bordo de um barco do rei desde então, e que
tem quem dê um respingo só em ouvir seu nome.
- Estou recordando - disse Stephen, consciente de que embora seu amigo lhe dissera a verdade, não era em absoluto toda a verdade.
- Voltando ao deslize do doutor Jacob, pergunto-me, por todos os demônios, como conseguimos evitar que sucedam coisas assim mais amiúde. Acredito estar com a razão
se digo que nenhum dos nomes de seu comitê chileno pertencem aos cavalheiros que recorreram a nós em primeira instância.
- Isso mesmo. Ainda que não conheça o país para poder julgá-lo, poderia muito bem existir certa diferença, tanta como possa haver entre norte e sul.
- É verdade. - Sir Joseph considerou a proposta durante um tempo; então, depois de observar o alongado e fino território do Chile no globo terráqueo, continuou em
um tom de voz muito distinto: - Terei que propor o primeiro que se me ocorra a meus superiores, mas acredito que o sentimento geral será que o capitão Aubrey deveria
continuar com o plano original, apesar do infeliz mas necessário atraso que sofrerá a embarcação no estaleiro de Seppings, e dirigir-se a toda vela a Valparaíso,
onde sem dúvida poderá o senhor investigando o terreno, fazer uma estimativa das possibilidades, e agir conforme as circunstâncias. Saiba que dispomos de um representante
em Buenos Aires, que se dá muito bem com as autoridades, e que poderia assegurar uma comunicação fluida, mais que o restante das mensagens, que não têm outro remédio
do que dobrar o Cabo de Hornos. É bastante improvável que sir David já se encontre ali, mas esteja ou não, seria aconselhável estabelecer certo grau de colaboração
com ele, ainda que não tenha uma disposição oficial. É improvável que sir David disponha de uma embarcação equiparável à Surprise, ainda que devo admitir que, até
que recebamos o relatório do adido naval em Madri, ignoramos a atual força do Governo chileno, assim como o número de mercantes armados de que dispõe. A atitude
do vice-rei peruano é obviamente de grande importância, ainda que isso o senhor sabe tão bem como eu, provavelmente muito melhor. Contudo, deixe-me consultar com
quem devo consultar, e amanhã lhe farei entrega da soma de nossa sabedoria coletiva. Tomará o chá comigo em Shepherds Market? Tenho uma ou duas bugingangas para
lhe mostrar, e talvez depois possamos jantar no Blacks.
- Será um autêntico prazer. Joseph, teria a amabilidade de emprestar-me meia coroa?
Stephen foi recebido com toda a amabilidade do mundo na casa de hospedes Grapes. Suas meninas apadrinhadas, negras como o carvão, Sarah e Emily, tinham dado tal
estirão, e tinham as pernas tão compridas, que não teve que agachar-se para beijá-las. Encontrou ambas de excelente humor, pois passaram a última meia hora em companhia
de William Reade, a quem Stephen havia convidado para jantar. O guarda-marinha lhes mostrara a versão da armada do Puss in the Corner{5}, jogo mais sutil e complexo
do que era normal encontrar no Liberties.
Contudo, a senhora Broad, por melhor que o recebesse, teve um grande desgosto ao ver-lhe com aquele aspecto, mais própio de um trombadinha de segunda.
- Enfim, no que diz respeito a Killick e a seus descuidos - disse quando Stephen lhe explicou o sucedido, - que não espere encontrar um prato à mesa nesta casa,
por servir assim ao doutor. Além do mais, diga-lhe de minha parte... Porém, não, não se incomode, eu mesma lhe direi quando o tenha a oportunidade.
Recuperou então o bom humor que a caracterizava, sobretudo depois de arrumar a roupa elegante que Stephen mandara confeccionar em Londres: roupa negra, de uma elegante
sobriedade, coroada pelas botas de cano longo. Foi dessa esplêndida maneira que sentou-se no salão, enquanto as meninas, inquietas, mostravam-lhe os cadernos de
deveres, as somas e os exercícios de geografia que incluíam detalhados mapas. Com vozes trêmulas, animando-se a uma à outra, recitaram poemas de duvidosa qualidade
em inglês e em francês e, já com maior confiança, mostraram também os exercícios de bordado, ponto e modelo. Não eram muito inteligentes, mas sim muito elegantes:
os cadernos teriam comprazido as incômodas exigências de qualquer gravador. Tinham um grande carinho mútuo, e também gostavam muito da senhora Broad e de Stephen.
Contudo, tinha uma coisa que o intrigava, pois ainda pareciam capazes de falar o inglês da coberta inferior (a essas alturas, infestado do palavreado de Billingsgate,
lugar onde faziam as compras da casa), além do dialeto do castelo de popa, e não tinham maior problema para alternar um ou outro; apesar disso, nenhuma das meninas
era capaz de falar um francês medianamente tolerável.
Foi com motivo da janta que demonstraram seu autêntico e muito elogiável talento. A senhora Broad se achava ausente, e a cozinheira, as garotas que ajudavam na cozinha,
os moços e os garçons, ocupavam-se dos trabalhos habituais em uma pensão concorrida. Stephen e Reade jogavam gamão, e desfrutavam de uma taça de xerez enquanto comentavam
a lamentável situação pela qual passavam seus companheiros naquela armada que estava em vias do desmache, quando Sarah e Emily fizeram ato de presença com seus aventais
longos, e puseram a mesa.
Silêncio.
- Agora, cavalheiros, se são tão amáveis - exclamaram, colocando as cadeiras. Stephen se viu rodeado por um amplo guardanapo. Permitiram que Reade cuidasse de si
mesmo.
O primeiro prato consistiu simplesmente em ervilhas frescas, muito frescas e verdes, que deviam ser comidas com colher. Depois, servido com certa inquietação, chegou
um grande prato ovalado que continha fatias de linguado, e pinças e caldas de lagosta com um ou outro mexilhão enorme, todo o conjunto banhado em creme.
Sarah serviu os pratos; Emily, o vinho, clarete dourado do Reno.
- Oh, minhas queridas- exclamou Stephen depois de observar, cheirar e provar: - que pecaminosa delícia! Que pratos tão saborosos! Queridas, minhas queridas, felicito
a ambas!
- Impossível superar esta delícia - disse William Reade. - Não, nem ao menos se consigo algum dia hastear a bandeira inglesa do mastro maior.
- Espero que tenham tido algo a ver - disse Stephen.
- Senhor - disse Emily. - Sarah e eu preparamos tudo, exceto que Henry se encarregou de abrir as pinças com uma faca de açougueiro.
- Pois me alegro de todo coração. Quanto cresceram e com que dignidade. Têm um talento pouco comum. Benditas sejam por isso.
Tomar o chá com sir Joseph na comodíssima morada que tinha em Shepherds Market não podia comparar-se com um jantar no Grapes, e, ainda que fosse um prazer, era de
uma natureza completamente distinta. Blaine, ao passar por Sommerset House, havia se encarregado de visitar ao consciencioso homem encarregado de cuidar dos espécimes
remitidos à Royal Society por seus membros (tanto Stephen como Blaine o eram), e tinha pego o pacote enviado por Christine Wood ao doutor Maturin. Era um esqueleto
de poto, dissecado e remontado com sumo cuidado. O poto, curioso e raro animalzinho da África Ocidental, pertencia à família dos primatas, ainda que fosse mais tranqüilo,
lento, inofensivo e surpreendentemente carinhoso que estes. Stephen se apegara ao poto, e nesse momento abriu a caixa, observando a anatomia com uma mistura de carinho
e interesse científico; a singular forma do dedo índicador e do baixo tórax lhe trouxeram muitas recordações, sobretudo do afeto que sentira pelo animal.
- Se não recordo mal, o senhor não toma açúcar - disse sir Joseph.
- Nada de açúcar, obrigado - confirmou Stephen ao fechar a caixa e deixar para mais tarde uma inspeção mais atenta, convencido, a julgar pela expressão de Blaine,
e também por sua atitude, de que este se dispunha a tratar um assunto importante.
- Creio que o senhor tem uma relação com o duque de Clarence, o príncipe William - disse sir Joseph em um tom de fingida indiferença, para surpresa de Stephen, que
consentiu.
Apesar de ter tratado o príncipe William em mais de uma ocasião, Stephen não pertencia a essa classe de médicos que compartem com ninguém os casos de seus pacientes.
- Cruzei-me com ele esta manhã no Almirantado - continuou Blaine, incomodado. - Alguém muito indiscreto lhe dissera que a viagem hidrográfica seguiria adiante, com
o capitão Aubrey ao comando. Só isso, pois não mencionou nada de natureza política. O príncipe, ainda que me atreveria a dizer que o senhor já sabe, sente uma admiração
quase reverencial pelo capitão Aubrey, muito respeito como para perguntar assim pelas boas, ainda que geralmente não se mostre nada reservado, nem tímido, em tais
assuntos.
- Limitado, confiado e de língua fácil - disse Maturin em voz muito baixa.
-... E foi amigo íntimo de Nelson, que o apreciava muito. Contudo, o caso é que tem um filho.
- Conheço aos pequenos FitzClarence; pequeno bando de malcriados; coisa rara, tendo em conta o amável, encantadora e, certamente, preciosa mulher que têm por mãe.
- O senhor conhece a senhora Jordán?
- Bastante bem. Amiúde pude vê-la em cena.
- De qualquer maneira, eu não me referia a um de seus filhos, mas a um garoto que teve de outra mulher, um menino ao qual não reconhece abertamente, talvez por temor
de molestar à senhora Jordán. Trata-se de Horatio Fitzroy Hanson. Terá uns catorze ou quinze anos: possue maneiras decentes, uma educação tolerável, e acredito que
é o único de seus filhos ao qual o príncipe William quer de verdade. Devo acrescentar que Horatio não tem nem idéia do parentesco que os une. A relação com Clarence,
com "tio William", se pode chamar-se relação, pois é algo mais que isso, não se oculta de ninguém, ainda que se justifica pelo fato de que o príncipe foi companheiro
de rancho do pai putativo do garoto. Lamento dizer que a mãe era um pouco instável, e se foi ao Canadá quando Horatio tinha dois ou três anos. Foi educado pelo avô,
homem duro do campo. Clarence é exatamente como o senhor o descreve, e sou consciente de que nem o senhor nem o capitão Aubrey poderiam chegar a simpatizar com ele,
mas possue sem dúvida respeitáveis qualidades: é afetuoso, muito desprendido, e bom com os antigos companheiros de tripulação. Além do mais, adora a armada, e sente
grande respeito pelo capitão Aubrey. Definitivamente, ele me pediu que lhe rogue para empregar sua influência com Aubrey, de modo que admita ao garoto no camarote
dos guardas-marinhas para a travessia.
- O senhor Dispõe de mais informação sobre a linhagem de Horatio?
- O senhor Hanson, seu pai legal, foi oficial da Marinha. O príncipe William e ele serviram juntos nas Índias Ocidentais. A mãe de Horatio vivia em Kingston com
alguns parentes. Ela e o senhor Hanson se comprometeram, apesar de que costumavam discutir furiosamente. Dizem que foi um matrimônio mais ou menos irregular. Em
qualquer caso, Hanson morreu na Serapis e sua esposa, grávida, regressou à Inglaterra. Averiguei isto graças a três fontes, mas nenhuma delas pôde proporcionar-me
um relato coerente ou consistente. O único que sei é que Clarence lhe proporcionou consolo e que está convencido de que o filho é seu.
- Estou seguro de que pelo menos Jack dará uma espiada no garoto, ainda que só seja por seu nome de batismo. Falarei com ele quando lhe escreva para informar da
viagem. Talvez seja preferível não mencionar o suposto parentesco. Contudo, diga-me, essa pessoa extraordinariamente indiscreta que contou ao duque que a viagem
hidrográfica seria realizada... tinha razões para dizer tal coisa?
- Oh, é claro... Sinto muito, desculpe-me. Devia ter dito desde o início; afinal de contas, interessa mais ao senhor que a ninguém. De um tempo para cá minha mente
se enturva com uma facilidade espantosa, como o senhor já terá intuído a estas alturas. Admito que os argumentos tanto a favor como contra o projeto, coroados pela
indecente arenga feita em público por Clarence a respeito do garoto, não fizeram mais que incomodar-me. Sim, sim: os senhores irão, isso mesmo. Mas devo advertir-lhe,
Stephen, que agora, terminada a guerra, observa-se um estrito controle da economia, e que o senhor não contará com os meios de que dispôs na aventura peruana.
- Já que devemos ir - disse Stephen depois de consentir, - acho que devo escrever imediatamente ao capitão Aubrey. Seu navio de apetrechos, a Ringle, é uma embarcação
extraordinariamente rápida, e estou convencido de que superará em velocidade a qualquer paquete. Eu a despacharei esta noite mesmo, com a baixa-mar, e pedirei a
Jack que ponha a Surprise em mãos de Seppings para realizar sem perda de tempo as reparações que ainda necessita. Se o senhor puder sugerir a seus colegas que convertam
suas palavras em uma ordem devidamente escrita e selada, eu a incluirei em minha carta.
- E o senhor mesmo não irá?
- Não. Viajo para a campina para ver minha filha Brigid, Sophie Aubrey e seus filhos.
- Por favor, transmita-lhe todo meu carinho. Mas antes de partir, o senhor me acompanhará ao escritório de assuntos Exteriores e ao Tesouro para resolver os tecnicismos
necessários?
- Como não. Creio que poderei ver também a senhora Oakes. Lembra-se dela, sem dúvida.
- Certamente, e com a maior das gratidões, pois nos proporcionou a informação mais clara e valiosa possível. Uma mulher de uma beleza inusual, sim senhor, muito
inusual. Igual a algumas de minhas últimas aquisições, enviadas pelo inteligente cirurgião de um barco que navega pelas Seychelles.
Alguns dos escaravelhos eram extraordinários, mas por beleza Maturin achava que sua filha, Sophie, e inclusive as filhas desta, os superavam em tudo exceto no colorido.
Sua imprevista e extensa entrevista com certas pessoas de Whitehall e arredores lhe impediu de advertir-lhes de antemão de sua chegada, de modo que as surpreendeu
jogando uma espécie de críquete em um pasto recém cortado que havia junto à casa.
Brigid, ao bastão, recebia a bola de George. A menina encontrava-se em melhor posição; viu o carro postal detendo-se no caminho, e durante alguns instantes observou
detalhadamente à figura que descia do interior da carruagem.
- É meu papai! - exclamou jogando o bastão. Passou a correr como uma lebre pela grama, saltando para agarrar-se a seu pescoço sem titubeios, sem pudor, de um modo
que roubou o coração de Stephen.
- Minha querida, como cresceu - disse carinhoso, pondo-a no chão para cumprimentar aos outros.
- Querido Stephen - disse Sophie. - Espero que se conformes com pouco, porque não temos nada na despensa. Amanhã, contudo... Olha, ali está Clarissa, vê o cavalheiro
que a acompanha? É seu esposo, o reitor de Wytherton, homem erudito. Casaram-se no mês passado. Clarissa, não terá esquecido do doutor Maturin, verdade?
- Eu a felicito de todo coração, querida - disse Stephen, beijando-a. - É uma honra, senhor. E minhas mais sinceras felicitações - disse apertando a mão do pároco.
- Queridas, é muito bom vê-las desfrutar do sol, em um verde tão puro. Desculpem-me alguns instantes enquanto recomponho os trajes que sobreviveram à viagem.
- Eu levarei sua bagagem, senhor, se me permite - disse George, que desfrutava de uma licença do Lion, de setenta e quatro canhões, ao comando de Heneage Dundas,
um dos melhores e mais antigos amigos de Jack.
Que agradáveis foram aqueles dias. Verão inglês do melhor, na melhor campina inglesa, suficiente chuva noturna nas colinas para manter o caudal dos arroios onde
saltavam as trutas, além do leve gorjeio que assegurava a presença de uma poupa à qual se havia visto em três ocasiões na paróquia de Chiddingfold. Aquele ano se
viu agraciado com uma abundância inusual de aves (a época de aninhar fora muito favorável), e Stephen e a pequena Brigid passearam pelos pastos, junto aos erguidos
juncos, e ao longo das margens. Maturin teve ocasião de revelar-lhe o nome de inumeráveis insetos, de muitas, muitas aves, entre elas o martim-pescador, o melro-aquático,
o mergulhão-comum e, de vez em quando, a cerceta, além dos galeirões-comuns e das galinhas-de-angola. Também lhe falou das que sem dúvida eram suas aves favoritas:
a aguieta pálida, o gavião, o francelho e, em uma ocasião, o peregrino, um falcão que sobrevoou sua posição quase sem bater as asas. Uma lebre, duas arganazes, uma
desprevenida cria de doninha, além de enormes quantidades de mariposas. Descobriu muito comprazido que ela se mostrava mais receptiva, ainda que não podia esquecer
que ainda era uma menina muito tenra, e não estava totalmente seguro de que desfrutasse da caça, de caçar com escopeta ou de pescar com vara. Contudo, ainda restava
tempo para prová-lo, e ainda podia hospedar certa esperança, em parte pelo exemplo de toda aquela gente, gente que ela amava, de todas aquelas pessoas às quais respeitava
e que, em maior ou em menor medida, desfrutavam de ditas empresas.
E lá estava, também, a agradável, a aprazível vida social. Velhas amizades se reuniram com ele para almoçar em uma ou duas ocasiões; esporádicas visitas matinais;
o senhor e a senhora Andrews que se aproximavam na caleche para passar umas horas na biblioteca, em cujas estantes havia uma excelente coleção, responsabilidade
de certos antepassados da família Aubrey, por cujas veias tinha corrido a tinta negra...
Também sentia certa tristeza, pois o final da guerra implicava que quase todos os soldados e marinheiros, além da infinidade de pessoas que os haviam mantido em
atividade, viam-se obrigados a adotar a vida civil, a buscar trabalho. Obviamente, caiam os salários, isso quando se tinha a sorte de conseguir um. Ao grito de "Economia,
economia!", os impostos tinham alçado vôo até alcançar uma altura extraordinária. Sem ir mais longe, o agente de Jack no imóvel de Milport escreveu, angustiado,
que uma granja de trezentos acres que começava a render depois da drenagem se via na obrigação de pagar trezentas e oitenta e três libras, onze xelins e quatro peniques
em caráter de impostos e taxas. Por sorte, nem as terras do primo Edward nem as de Aubrey foram objeto de cercado algum, de modo que os habitantes e os propietários
das granjas circundantes, junto aos filhos e irmãos mais novos que voltavam da guerra, arrumaram-se bem ao modo tradicional, e o cercado de caça de Jack diminuiu
de repente. Os terrenos de uma propriedade próxima, submetida a um estrito cercado (não um exido sobre o qual não pesavam direitos de pasto), não assomava um só
coelho. Ainda que as leis de rigor se empenharam em manter o preço do trigo a quatro libras, e, certamente, a taxar as importações, chegava por barco muito alimento
americano e continental, quer fosse legal ou ilegalmente, e o cultivo tinha deixado de ser um negócio proveitoso. Os terratenentes acusaram as consequências, e a
maior parte dos granjeiros as acusaram ainda mais. Contudo, as pessoas mais afetadas pela pobreza eram os homens, mulheres e crianças que trabalhavam no campo, aqueles
que, depois do processo de cercamento, não dispunham de um mísero pedaço de terra.
Mas aquele não era o caso de Woolcombe, ainda que afetasse a terras muito próximas, de modo que era impossível sentir-se tão à-vontade como de costume.
Isso para não mencionar que, assim como a maioria das esposas dos oficiais da Marinha, Sophie havia ansiado tanto poder desfrutar de uma paz indefinida em companhia
de seu marido, que, ao informar-se da travessia hidrográfica que levaria Jack a um inóspito canto do globo, não pôde senão manifestar sua desaprovação e confessar
contrariedada que sentia. Stephen, com certa timidez, expôs a vantagem que seria tudo aquilo para que Jack obtivesse uma promoção, a ascensão ao Estado Maior, mas
nem repetindo-se conseguiu causar nela o menor efeito.
- Acho - disse, depois de uma das muitas tentativas de consolo, inúteis e exasperantes, pois o fato de oferecer consolo implica uma maior experiência ou, simplesmente,
inteligência por parte de quem o oferece, superioridade que ninguém tão infeliz podia aceitar, - acredito que esta tarde irei a Shelmerston.
- Não esqueça que os Andrew passarão a noitada em casa.
- Quem são os Andrew?
- Clarissa e seu marido.
- Queridíssimo papai - disse Brigid com o desembaraço que a caracterizava, ainda que o fez em inglês, pois o gaélico não era permitido na casa, mais do que o maltês
se permite a bordo de um barco de guerra, - queridíssimo papai, poderíamos acompanhá-lo se tomar o cabriolé.
- Poderíamos ir os quatro - sugeriu George. - Na parte traseira.
- Cinco - exclamaram as gêmeas. - Somos delgadas e nos apertaremos.
- E o que me dizem de Padeen? - perguntou Sophie, que havia subido pouco no rápido e galhardo cabriolé de rodas elevadas.
- Oh, Padeen correrá junto ao cabriolé - replicaram solícitos, sem o menor indício de zombaria por sua ignorância.
- Acostuma subir na parte posterior do coche - explicou Fanny, - mas quando se trata do cabriolé prefere correr.
- Por acaso não é o melhor corredor de toda Connaught? - perguntou Brigid.
Fazia tempo que Stephen tinha boa relação com o magro, pernão e amarelo cavalo castrado ao qual não distraíam as éguas ou potras, e que tampouco se mostrava volúvel
ante as crianças. Desfrutaram do caminho que os levou à costa, e depois dobraram à esquerda pelos arenosos caminhos que conduziam a Saint Peters Pond, onde já viram
a alguns homens que trabalhavam nos canais que teriam de drenar. Stephen assinalou ao longe, para onde chapinhavam, submergiam e nadavam as inocentes aves aquáticas.
- Ali - disse cheio de satisfação, ao mesmo tempo que fechava com um estalido a luneta, - ali há um ninho da garça imperial; o única casal que há nos três reinos.
As crianças, acostumadas a guardar silêncio e a permanecer imóveis durante estas breves pausas, puderam respirar de novo e riram com estrondo ante a perspectiva
de tomar o chá em Shelmerston, lugar ao qual estavam a ponto de chegar.
Ao cabo de umas milhas, o castrado encarou o focinho ao vento, a aquele vento que lhe trazia o calor do lar, e recompôs o passo. Atrás ficaram os caminhos arenosos,
e a passagem estreita (percorrida com Padeen à frente, a modo de guia) conduziu-lhes serpenteando até uma baía rochosa em cuja costa se encontrava Shelmerston, porto
desperdiçado, habitado por pescadores, marinheiros de altura e outras pessoas do mar; qualquer um deles podia converter-se em hábil contrabandista em um abrir e
fechar de olhos, ou somente ao ver o sinal vindo de um costeiro francês ao longe (bandeiras de dia, faróis de noite), porto com uma peculiar maré enganosa e uma
barra condenadamente mal posta, apesar de ser muito estimada por quem ali vivia. Foi em Shelmerston que Jack Aubrey armou e apetrechou a Surprise para fazer o corso
durante o eclipse naval ao qual seguiu sua restituição ao serviço. Dotou-a não só com os marinheiros de barco da armada que o seguiram ao longo de sua carreira,
como também com os habitantes do lugar, sólidos marinheiros, perfeitos para um navio de guerra. Stephen e ele conheciam bem o povoado e sua gente; os habitantes
de Shelmerston mostraram muito amáveis com suas crianças, menores naquele então, muito capazes, também, de ferirem a si mesmos, de modo que uma viagem, inclusive
uma permanência de uma semana ou mais no povoado costeiro, era tido por mais benéfico que uma visita a Bath ou Lyme.
O castrado entrou no estábulo, e Stephen o fez em Williams Head, enquanto Padeen tentava afastar as crianças das jaulas dos cachorros, junto às quais tinham conseguido
entreter-se ao brincar com alguns fardos de rede.
- Senhora Hake - cumprimentou, - tenha um nom dia. Como está?
- Mas se não é o doutor! - exclamou esta. - Muito bem, senhor, obrigada por seu interesse. Confio em que o senhor também esteja bem.
- Não posso queixar-me, senhora. Ainda que me sentiria ainda melhor se tivesse a amabilidade de alimentar às criaturas que vêm comigo. Estão a meia hora brigando
e queixando-se, de modo que um chá e aquelas coisinhas redondas com creme servirão para melhorar seu temperamento, pois não são geralmente violentos. Vim para saber
se a senhora tem notícias da Surprise e do capitão Aubrey.
- Do capitão Aubrey, senhor? - disse com um olhar se não de horror, sim da mais profunda estupidez tigida de alarme, como se de angústia se tratasse. - Da Surprise
e do capitão Aubrey? - deixou cair todo seu peso em uma cadeira, sem deixar de olhá-lo. - Mas ele esteve aqui esta mesma manhã, e recrutou a uma vintena de antigos
companheiros de rancho. Oh! Ah, ah, ah! E estavam felizes de poder acompanhá-lo, ah, ah! Dobraram a barra com a maré, quando o vento soprava favoravelmente pelo
estaleiro de Seppings. E o senhor sem saber. Oh, ah, ah, ah! - Bateu nos joelhos, incapaz de conter o riso. - Que Deus lhe bendiga, senhor, e por favor, desculpe-me.
darei de comer agora mesmo a essa turba de crianças que o senhor me trouxe. Vamos, crianças - gritou da porta, projetando a voz para o pátio do estábulo. - O chá
ficará pronto imediatamente. - E se voltou de novo para se dirigir mais uma vez a Stephen: - Acho que despachou a um jovem cavalheiro em um pônei para dizer à senhora
Aubrey que estava bem e que iria amanhã para vê-la. - Entrou cozinha, e mesmo dali pôde-se ouvir o que dizia às criadas: - E o doutor vai e me diz: "Vim para saber
se a senhora tinha notícias da Surprise e do capitão Aubrey", e eu lhe disse...
Stephen dirigiu-se àquela praia tão familiar. Havia se espalhado a notícia de sua chegada, e vários de seus antigos companheiros de tripulação, sobretudo aqueles
a quem havia tratado, se aproximaram para apertar sua mão, dar-lhe bom dia e elogiar o bom aspecto da Surprise, apesar das maltratadas amuras. Alguns, além disso,
a maioria, mostraram-se um pouco coibidos, inclusive tímidos, o que lhe surpreendeu. Depois convidou a cinco ou seis homens aos quais conhecia bem para tomar uma
jarra com ele, e ao sentar-se no salão disse ao mais velho, um antigo cabo de bordo:
- O que sucede aqui em Shelmerston? Por que alguns de meus antigos companheiros parecem inquietos?
- O senhor verá, senhor - disse Proctor, - a coisa vai assim: com o final da guerra, com os dois finais da guerra (um quando o senhor estava a bordo do Bellona,
e o outro após Waterloo), muitos daqui deixaram curiosamente de viver em paz. Refiro-me à paz de ter o prato na mesa, por pior que seja a comida, ou umas moedas
para enviar para casa. Deram-nos o pagamento final. Geralmente, para um marinheiro qualquer que vive num porto tradicional, isso implica em buscar outro barco, desde
que o comércio esteja animado. Contudo, este daqui não é um porto tradicional. Com essa maldita barra e nossas condenadas rocas, o comércio quase não passa por esta
costa. Inicialmente fora um povoado de pescadores, mas a pesca caiu porque não havia maneira de manter mais de uma vintena de botes, de modo que nos dedicamos ao
corso; e nos demos bem, senhor, como o senhor saberá, desde que houve inimigos aos quais aprisionar, quer fossem franceses, espanhóis, portugueses, norte-americanos,
holandeses ou dos portos do norte, como Papenburgo e outros. Porém, onde estão agora? Em paz. Agora estão em paz.
- Não se faz o contrabando?
- Bem, senhor, devo admitir que há quem (e observe que não assinalo a ninguém) não põem poréns a praticar em ocasiões o contrabando. Ainda que é necessário ser um
bom marinheiro e ter um barco marinheiro para prosperar no negócio; mesmo assim, acredito que o senhor já sabe do que lhe falo, senhor, pois o conhaque vem a ser
o que poderíamos denominar a sangue que corre pelas veias de Shelmerston.
- E?
- Assome-se o senhor e olhe pela janela, para o sudeste.
- Cúteres?
- Sim, senhor. Os novos cúteres, recém lançados, bem governados e extraordinariamente bem construídos. Ali estão, e creia-me se lhe digo que não sei como se arrumou
o jovem Seppings para fazê-los, verdade que não. Tão marinheiros, que são capazes de roubar o vento de quaisquer de nossas embarcações. E ali em cima, no alto do
precipício, têm um vigia apostado. Os muito cachorros se repartem o butim, tanto o dinheiro como a mercadoria. Basta vê-los aí tão atentos para fazer ferver o sangue
de qualquer um.
- Compreendo.
- Por isso entenderá o senhor que quando avistamos a Surprise esta manhã foi como... Bem, não quero ser irreverente, foi simplesmente maravilhoso. E quando sua senhoria
recrutou uma dúzia dos nossos para que a levassem ao estaleiro... Oh, que contentes nos pusemos ao saber que empreenderia uma longa travessia depois das reparações.
- O capitão Aubrey lhe falou de suas intenções?
- Oh, sim, senhor. Disse que era para levantar planos do Cabo de Hornos, do estreito e da costa chilena; que não havia muitas possibilidades de obter butim, a menos
que topássemos com um barco pirata. Trabalho duro garantido, mas impossível garantir a obtenção de butim. Contudo, aqueles aos quais escolheu... Oh, estavam tão
contentes de viajar com ele! Ouviram algo da sorte do capitão Aubrey, todos ouvimos falar da sorte do capitão Aubrey, e se o senhor pudesse interceder por qualquer
um de nós, senhor, agradeceríamos de todo coração.
Ainda que as crianças se mostraram ansiosas para ir ao estaleiro de Seppings, Stephen não cedeu a seus pedidos, e o cabriolé percorreu de novo a crista rochosa do
caminho que se estendia pela colina para afastar-se de Shelmerston.
- Ali está a capela de Seth - disse, assinalando com uma inclinação de cabeça o edifício branco com as enormes letras brilhantes da fachada: "Seth".
- O que é Seth? Quem é Seth?
- Foi um dos filhos de Adão, irmão de Caín e Abel.
- Oh, olhem! - exclamou Brigid. - Para o horizonte! Aquela é a Ringle!
- Amanhã os veremos a todos - disse Stephen. - Que alegria!
Contudo, antes tiveram que recolher ao jovem cavalheiro da Surprise, o senhor Wells, a quem o pônei que montava havia jogado em uma vala profunda e empedrada, rodeada
de espinheiros, para depois empreender a fuga. Por sorte, Wells era mais pirralho do que costumavam ser os que embarcavam pela primeira vez, de modo que puderam
colocá-lo no cabriolé, ainda que teve que pagar certo pedágio, pois o garoto manchou de sangue o interior.
O lar, a mudança de roupa... O senhor Wells, desnudo, lambuzado de pomada e gordura de porco, terminou engessado e com alguns pontos de sutura aqui e ali. Depois,
foi necessário alimentar a todos, sem esquecer do senhor e da senhora Andrews. Stephen recordava combates navais mais esgotadores, e se retirou para seu quarto muito
cedo.
O doutor Maturin seguia certas práticas que em outros teria tachado de insalubres, hedonistas e inclusive imorais, como por exemplo fumar tabaco e erva indiana (ou
mascar bhang), beber álcool em todas suas formas, desde a cerveja ao conhaque, tomar ópio e coca, e a freqüente inalação de óxido nitroso. Em seu caso, não tinha
nada que objetar a nenhuma destas práticas; além disso, considerava muito benéficos seus efeitos, e isto se devia a que jamais (ou quase nunca) abusar delas. Contudo,
havia outra prática que amiúde tinha abandonado por inapropiada, e que amiúde retomara apesar do peso na consciência. Tratava-se de seu diário, prática, em quase
todos os casos, inofensiva e inclusive benigna; contudo, não podia se considerar assim no caso de um agente de inteligência. Era consciente de que podia cair em
outras mãos, de que poderiam pedir-se explicações, de que inclusive o código em que estava escrito podia ser descifrado, o que exporia tanto a seus colegas como
a seus aliados e informadores. Era uma possibilidade remota, pois conhecia muitas línguas e as empregava todas. Mesmo assim, foi com certo sentimento de culpa que
abriu a bolsa e pegou o livrinho. Com a passagem dos anos, os volumes tinham se tornado cada vez menores, talvez para dispor deles com maior facilidade, e a letra
era tão diminuta que poucos olhos seriam capazes de lê-los, inclusive Stephen necessitava de óculos para fazê-lo.
"Depois de considerá-lo - escreveu, - acho que devo tratar o conjunto dos comentários de Blaine referentes a Horatio, e suas inferências, como confidenciais." Escrito
isto, junto a um resumo do que era permissível, fechou o tinteiro e recostou a costas, e se perguntou se devia limitar sua conversa com Jack a seu sentido náutico.
Pensou muito no caráter de seu amigo, em seus aspectos mais mundanos, em sua franqueza. Depois de caminhar para cima e para baixo durante um tempo, coçou a cabeça
e disse em voz alta:
- Acho que pode ser feito.
E foi dormir.
Amanheceu um dia precioso, com a grama coberta pelo orvalho. Receberam a William Reade, portador de notícias muito animadoras do estaleiro. O jovem senhor Seppings
estava encantado de que os reforços de seu pai tivessem agüentado tão bem. Os fundos, inspecionados com atenção aproveitando a baixa-mar, estavam em tão boas condições
como se cabia desejar, e em dez dias de trabalho faria o impossível para pôr a proa à altura das circunstâncias. Contudo, devia insistir no fato de que não subissem
a bordo oficiais, carpinteiros ou segundos do carpinteiro, assim como contramestres ou segundos do contramestre. Comprometia-se a buscar alojamento adequado para
todos os homens (na própia Pompey para os oficiais, se fosse o caso), mas ele e seus carpinteiros de ribeira não se exporiam a conselhos alheios, por mais bem intencionados
que estes pudessem ser. E se o capitão Aubrey estivesse de acordo, não tinha mais que enviar sua resposta na carroça do peixeiro, para que no dia seguinte pudessem
pôr mãos à obra.
Não havia caça a essas alturas do ano, mas podiam desfrutar do críquete, da pesca e de umas preciosas jornadas que não desperdiçaram. Stephen, que ao fim entendera
os princípios de tão complexo jogo, amortizar sua habilidade para lançar a bola, e assim o fez por todo o campo, além de correr como um alienado, enquanto gritava
a Padeen, que geralmente era seu companheiro de equipe.
Em uma infeliz sexta-feira chegou um mensageiro de Portsmouth, cujo semáforo recebera um sinal pelo qual se requeria imediatamente a presença do capitão Aubrey em
Londres. Seus oficiais, a maioria dos quais se alojavam na casa, junto a alguns dos guardas-marinhas que estavam longe de seu lar e o meio irmão de Jack, Philip,
mostraram sua adesão quando o capitão e o doutor se despediram no carro postal, e asseguraram que fariam o impossível para ganhar por onze pontos da equipe local
no partida que devia ocorrer no dia seguinte.
Aquele não era, contudo, o Almirantado dos tempos de guerra. Havia porteiros no turno da noite, mas um secretário qualquer saiu para receber-lhes, e lhes comunicou
que lamentava muito informar-lhes de que não esperavam por sir Joseph até a segunda-feira, que infelizmente se achava nesse momento na campina. Ele não podia garantir,
mas pelo visto havia algumas dúvidas a respeito de umas cartas náuticas muito recentes.
- Enfim - disse Jack ao sair, - em um mundo tão inconstante como este, confiemos em encontrar pelo menos no Blacks um bom jantar e cama. Wilson - disse ao porteiro,
- tenha a amabilidade de encontrar-nos uma carruagem, por favor? E suba nossa bagagem a bordo.
- Aonde, senhor?
- Oh. Para o Blacks, em Saint James Street.
Ali efetivamente foram recebidos da forma apropiada: reservaram os quartos, e ambos se apressaram a subir ao piso superior para desfrutar de uma taça de vinho enquanto
lhes preparavam o jantar. Ainda que por ser sexta-feira o clube estava vazio, encontraram-se com vários conhecidos, a quem cumprimentaram antes de que os chamassem
à mesa.
- Meu Deus, como me caiu bem - disse Jack, observando com severidade o prato vazio, antes de dirigir-se ao servente: - Charles, seria tão amável de trazer-me umas
torradas de queijo? Estou seguro de que o doutor passará diretamente ao bolo, mas eu comeria encantado umas torradas de queijo, em seu ponto, claro.
Três ou quatro minutos depois que Charles foi embora, Jack se achava observando com atenção a jarra (tinha bebido uma ou duas jarras inteiras?), quando de repente
reparou na presença de um homem alto e corpulento, cuja sombra era projetada sobre a mesa pela luz das velas; um homem que, pelo visto, havia parado a pouca distância
da mesa que ocupavam. Ao levantar o olhar, viu a Liga, reconheceu o rosto de um membro dos Hannover, e se levantou; foi imitado por Stephen.
- Capitão Aubrey, boa noite. Doutor, boa noite. Sou Clarence, senhor - disse a Jack. - Talvez não me recorde, mas tive a honra de lhe conhecer depois que o senhor
aprisionou a Diane.
- Lembro perfeitamente, alteza.
O príncipe William riu um pouco confuso ao ver Charles passar por trás dele, com a bandeja e as torradas de queijo fundido.
- Que casualidade, precisamente estava pensando no senhor esta mesma tarde. E aqui está! Ah, ah! Faz pouco, um amigo do Almirantado disse ao doutor Maturin que me
encarreguei do filho de um falecido companheiro de tripulação. Não sei se o doutor lhe mencionou. Chama-se Horatio...
- Pois não poderia ter melhor nome, senhor - comentou Jack, observando com certa severidade as torradas de queijo fundido, que por momentos adotavam certa flacidez.
- Trata-se de Horatio Hanson. Hanson morreu a bordo da Serapis... - Aqui o príncipe William aproveitou para fazer um inciso com respeito à tormenta que sofreu uma
vez em alto mar, antes de comentar, por alto, o tempo que serviu com Nelson nas Antilhas. Depois, conteve-se e disse: - Mas odiaria interromper seu jantar. Olhem-se,
aí de pé. Seria um crime fazer algo semelhante a um oficial tão distinto como o senhor. Desculpem-me. Dariam-me a honra de tomar café comigo quando terminar? Não
há nenhuma pressa.
Ambos responderam que seria um prazer, e, quando o príncipe se distanciou as três ou quatro jardas de rigor, voltaram a se sentar. Jack se cansou das torradas, bebeu
o restante do vinho, e disse:
- É um nobre gesto ocupar-se do filho de um antigo companheiro de rancho.
- Isso mesmo.
- Não me disse que fazia parte do Almirantado.
- Não o fiz?
- Dá no mesmo, não tem importância. Eu lhe direi o mesmo que disse a você entre Haslemere e Guildford: que não posso me encarregar de nenhum lactante em uma travessia
assim. Ainda que pelo que sei - acrescentou depois de uma pausa, - o duque é muito atento aos velhos companheiros que residem em Greenwich. Vamos?
O duque havia se sentado em um discreto e afastado canto. Ainda que geralmente empregasse um elevado tom de voz, como corresponde a um marinheiro, o aposento poderia
hospedar muito mais gente sem a menor inconveniência. Estava nervoso. Sucede amiúde com os homens gordos que o nervosismo se traduz em transpiração, e esse era seu
caso, pois tinha a testa perolada de suor.
- Roger, condenado sodomita! Onde está aquele fodido café? - Perguntou ao servente com a chegada de Jack e Stephen, a quem se dirigiu da seguinte maneira: - Cavalheiros
- disse, fazendo o gesto de quem parece disposto a se levantar: - permita-me rogar-lhes que tomem um pouco de conhaque. Sentem-se, por favor. Roger, quadrúpede,
traga o melhor e mais envelhecido Nantz.
Chegou o café, imediatamente seguido do conhaque, e se produziu um incômodo silêncio. Depois de tomar um trago de café, Jack tomou a responsabilidade de rompê-lo
ao dizer:
- Alteza, o doutor Maturin me falara de Horatio, e do desejo do senhor de que sentasse praça no camarote dos guardas-marinhas da Surprise.
- Sim. Gostaria que começasse no melhor lugar possível, sob as ordens de um capitão por quem sinto um grande respeito. O mais excelso marinheiro.
- O senhor me honra, senhor. Mas no que concerne a minha capacidade para navegar, não acredito ter nenhum segredo a ensinar ao senhor. - O duque pareceu extraordinariamente
comprazido, e tomou um longo trago de conhaque, trago que Jack aproveitou para continuar: - Porém, senhor, lembro-me ter dito ao doutor o mesmo que lhe direi agora,
se... Enfim, se permite que me expresse com a franqueza recomendável entre marinheiros.
- Bem dito, bem dito - disse Clarence.
- Eu lhe disse que a viagem que nos ocupa é longa e perigosa (cinqüenta e até sessenta graus de latitude sul, senhor, além do resto), e que por conseguinte meu camarote
de guardas-marinhas não será um leito de rosas. Neste momento é ocupado por alguns jovens a quem enviarei para suas casas, por serem muito delicados. Não será um
leito de rosas, e não haverá favoritismos. E, certamente, tenho que dar-lhe antes uma espiada, para comprovar se nos ajustamos ou não. É necessário que haja uma
boa harmonia para ambas as partes, dado que se trata de uma longa travessia. O senhor, senhor, é marinheiro, e tem um grande interesse no porvir deste garoto, e
se o que acabo de dizer não lhe incomoda, permita-me pedir-lhe que mande o jovem ao Grapes, acompanhado por um servente. Trata-se da casa de hóspedes onde costumo
me alojar, fica no Liberties do Savoy.
- E por que não o entrevista aqui?
- Porque, senhor, este lugar geralmente é frequentado por pessoas da vida pública - disse Jack, olhando-lhe nos olhos. - Eu me atreveria a dizer que pelo menos contamos
com a metade da oposição, ou mais, e diversos ministros. Não desejo que achem de jeito nenhum que procuro o favor da corte. Com todo o respeito, alteza, não faço,
repito, não faço nem faria jamais tal coisa. Se Horatio e eu combinarmos, e se o considerar adequado para empreender a travessia e converter-se, com o tempo, em
oficial da Marinha, eu o aceitarei no camarote. De outra forma, não o farei.
- Diabos, senhor, o senhor é a franqueza personificada - disse Clarence surpreendido, observando os dois. Limpou o nariz com o índicador, gesto com o qual Stephen
estava familiarizado e, depois de um curto silêncio, disse: - E eu lhe agradeço. Quando acha coveniente ver o garoto?
- Às duas e meia da segunda-feira, senhor, se não há inconveniente.
Na segunda-feira, passados vinte e nove minutos das duas, Lucy chamou à porta do salão.
- Com sua permissão, senhor, há um homem vestido de negro na entrada, acompanhado de um jovem cavalheiro. Quer que os leve ao salão? - E dirigindo-se a Stephen acrescentou:
- Doutor, o boticário pergunta se o senhor se arrumaria com um áspide engarrafado.
- Trazê-los aqui, por favor - disse Jack.
- Certamente. Que me o mande imediatamente - disse Stephen.
- Senhor Hanson - disse Jack ao entrar as visitas, - sente-se, faça o favor. - E voltando-se ao outro, ao discreto servente: - Provavelmente passe uma hora com o
senhor Hanson. Quer esperá-lo no salãozinho, ou prefere que eu mesmo peça que lhe busquem um coche para voltar?
- Prefiro esperar, senhor, se não é incômodo.
O garoto era um jovem de quinze anos, magro, loiro e bastante atraente; estava, além disso, bastante nervoso (por não mencionar que parecia ter pego um resfriado)
e observou o desaparecimento de seu único aliado com uma angústia que dificilmente pôde dissimular. Contudo, tomou coragem e se dirigiu a Jack.
- Senhor, meu tio William deseja que lhe dê bom dia. Ele me disse que o senhor teve a amabilidade, a grande amabilidade de receber-me, para julgar... - titubeou
antes de continuar: - para julgar se pode me admitir no camarote dos guardas-marinhas.
- Isso mesmo - disse Jack, com toda a amabilidade de que foi capaz. - E antes de mais nada gostaria de fazer algumas perguntas para fazer uma idéia de seus conhecimentos.
Pois o senhor nunca serviu no mar, não lhe importunarei com velas ou aparelhos, ainda que me arriscarei no que às matemáticas concerne. Suponho que o senhor já saberá
que são de primeiríssima importância para um oficial da Marinha.
- Certamente, senhor.
- Estou seguro de que conhecerá os rudimentos da aritmética, mas aprendeu álgebra e geometria?
- Um pouco, senhor. Eu me arrumo bastante bem com a equação de segundo grau, e ando bastante avançado em meus conhecimentos de Euclides.
- Poderia definir uma hipotenusa?
- Oh, sim, senhor - respondeu Horatio, que sorriu pela primeira vez.
- Agora, diga-me como demostrar que o quadrado da hipotenusa equivale aos quadrados dos catetos - disse Jack, depois de desenhar o diagrama correspondente.
Assim o fez Horatio, com voz cada vez mais diáfana, em um tom mais carregado de confiança. Stephen deixou de prestar atenção. Escutou ao garoto, na distância, explicar
a natureza da secante, da cossecante, da tangente e da co-tangente, do seno e seu companheiro; e, quando voltou a concentrar-se neles, observou que falavam com paixão
de todas as façanhas astronômicas que Horatio e o pároco de seu pai, um tal senhor Walker, tinham conseguido com um instrumento de observação caseiro, potente como
para observar as luas de Júpiter, os deliciosos satélites jovianos, em uma noite limpa e sem lua. Stephen não pôde evitar fechar os olhos.
- Senhor - disse Horatio em voz baixa ao ouvido de Stephen, apoiando uma mão em seu braço. - Acho que o capitão lhe está falando.
Stephen não era muito fã da mentira, mas acusava a mesma discordância que qualquer outro homem ante o fato de admitir que tinha adormecido, de modo que afirmou com
precisão que "estivera meditando em algumas das afirmações pitagóricas mais absurdas".
- Doutor - disse Jack, - permita-me lhe pedir que se dirija ao senhor Hanson em latim e grego. Talvez o grego seja pedir demais para um oficial da Marinha. O senhor
sabe grego, senhor Hanson?
- Não, senhor - admitiu o aspirante Horatio, com um sorriso tão encantador como feliz. - Somente o alfabeto; veja, eu ia começar no ano que vem com o senhor Walker.
Grego, e, inclusive, hebraico.
Enquanto Stephen e Hanson conversavam em francês e latim observando a curiosa pronúncia inglesa, Jack esboçou a carta que tinha pendente. Quase a havia terminado,
quando escutou os sons própios de uma conclusão satisfatória do outro lado do salão.
- Vejamos - disse ao levantar-se. - Quase a terminei, e o farei quando o doutor me conte como estão as coisas. De modo que vá passear durante meia hora (achará o
rio e as embarcações rua abaixo), enquanto eu me ocupo de dar forma a este esboço para seu tio William... Porém, a que demônios obedece semelhante estrondo?
Eram Sarah e Emily, que tinham voltado da escola e estavam muito contentes com seus novas e lustrosas botinas. Invadiram o salão, beijaram Stephen, beijaram Jack,
e, depois, voltaram-se ao inesperado Horatio, que lhes devolveu a olhada pelo menos com igual surpresa.
- Minhas queridas - disse Stephen, - este é o senhor Hanson, que talvez se faça ao mar com nosco. Senhor Hanson, estas são minhas afilhadas, Sarah e Emily. Pois
dispõe de meia hora livre, estou seguro de que lhe mostrarão encantadas todos os lugares pouco conhecidos do rio, que por certo conhecem à perfeição.
- Que pressa - disse Jack enquanto se ouvia o estrondo dos butins escadas abaixo. - Cândidas criaturas, parece que foi ontem quando não eram mais que umas coisinhas
pequenas, úteis tão somente para servir de isca. Mais me vale pôr mãos à obra com esta carta... Ainda que antes eu gostaria de saber a sua opinião sobre o garoto.
- Eu o achei um jovem muito bem educado, engenhoso e agradável. Seu conhecimento da língua francesa supera a média de qualquer inglês, e possue um latim aceitável.
- Alegra-me muito ouvir isso. Eu digo ao seu tio que tem uma surpreendente compreensão das matemáticas, sobretudo nos cálculos aplicados à navegação e a astronomia.
Tem a base de um oficial da Marinha. Além disso, diverte-se, mais que divertir-se, tem prazer em estudar matemáticas, e também lhe digo que com a habitual manutenção
de cem anuais e a bagagem apropriada, será um prazer para mim aceitá-lo no camarote, tanto mais quando acaba de me dizer que seu francês é bom e seu latim passável.
Mas antes de comprometer-me totalmente, acho que seria necessária uma entrevista com sua alteza; por ver-me agoniado por causa do tempo, rogarei que me receba amanhã
cedo. Acredita que posso ter esquecido algo?
- Nada em absoluto, querido. Enquanto passas a limpo, vou averiguar o que há para jantar.
Um par de aves. Mas antes de que pudessem pô-las ao fogo, Horatio e as meninas regressaram, que a essas alturas já haviam se tornado grandes amigos. Horatio subiu
apressadamente ao salão.
- Espero, senhor, não chegar nem muito cedo nem muito tarde. Meu tio sempre diz que na armada se exige muito a pontualidade.
- O senhor foi pontual - respondeu Jack. - Aqui tem a carta para seu tio. Nela lhe digo que no que a mim concerne será um prazer ter o senhor a bordo. - O garoto
ruborizou e lhe tremeu o queixo. - Claro que a decisão final depende dele, pois creio que o senhor deseja embarcar. Se estiever de acordo com minhas condições, sugeri
que tomemos juntos o coche que vai a Portsmouth neste próximo sábado. Pegue a carta, também digo nela que me agradaria vê-lo amanhã cedo. Talvez prefira enviar-me
um servente para combinar a hora exata da entrevista. Enfim, o senhor pode ir. Não acredito que seja boa idéia que o interrompa na janta.
Na manhã seguinte, cedo, no hotel Fladong, Clarence aguardava no alto da escada, quando lhe pareceu ver certa preocupação no rosto do capitão Aubrey, rosto geralmente
bronzeado pela ação do vento e do sol, mas que naquele momento se via amarelo, com olheiras e uma expressão que, apesar de guardar as formas, não era tão amistosa
como a do dia anterior. Tudo isso era o resultado de uma festa que tinha durado até tarde com antigos companheiros de tripulação e quantidades ingentes de vinho,
ainda que tal causa não passou pela mente do duque, para quem Jack não só era um dos capitães de combate mais capacitados, mas, também, um modelo de virtudes.
- Por favor, entre e se sente - disse; depois de uma pausa, acrescentou: - Não posso lhe dizer o quanto me satisfez sua carta. Mas permita-me perguntar-lhe diretamente
se o senhor o aceita.
- Veja, senhor, achei o garoto excelente, e me encantaria tê-lo a bordo, mas com a condição de que seja tratado igual a qualquer outro guarda-marinha. Pessoalmente
lamentaria muito contar com a "presença" de um oficial de maior patente quando suba a bordo. - Fazia tempo que Clarence havia ascendido ao Estado Maior. - Poderia
parecer que o garoto goza de certo favoritismo, o que não é bem recebido por parte de uma companhia de jovens que, geralmente, não desfrutam de influências e menos
ainda de dinheiro, e que com toda probabilidade, sobretudo por ser esta sua primeira viagem, fariam que passasse muito mal. Ainda que existem excessões - disse com
uma inclinação de cabeça, - é raro o caso do guarda-marinha privilegiado que se converte em um bom oficial. Ah, e na hora de fazer o exame, tomo a liberdade de aconselhar
que o senhor não recorra a amigos influentes ou a contatos.
- Estou completamente de acordo com o senhor - disse Clarence. - Eu mesmo acusei o peso da influência, e mais de uma vez me disse que jamais teria ascendido ao emprego
de capitão de navio se não fosse por ser filho do rei Jorge.
- Oh, senhor, estou seguro de que nisso se equivoca - disse Jack em resposta à expressão comovente do príncipe. - Recordo que em uma ocasião nos atracamos à Pegasus
nas Índias Ocidentais, e que pensei que não havia fragata mais harmoniosa em toda a frota.
- Oh, isso é muito amável de sua parte, palavra que sim - disse Clarence. - Posso pedir que nos preparem uma cafeteira?
- Para mim não, senhor, mas lhe agradeço.
Clarence levantou o olhar.
- Acho que o garoto aguarda no patamar - disse. - Se essa é sua única condição, saiba o senhor que a aceito sem reservas. - Apertou a mão de Jack, e em continuação
abriu a porta. - entre, Horatio. Chegamos a um acordo, e o capitão Aubrey concorda que embarque na Surprise.
- Oh, obrigado, senhor. Muito obrigado de todo coração - exclamou o garoto muito comovido. - Estou seguro de que meu querido tio terá sentido uma grande alegria
ao sabê-lo.
E assim era, pois se lhe via muito feliz ao mesmo tempo que emocionado quando levou Horatio a White Horse, acompanhados por um servente inclinado sob o peso do baú
do novo marinheiro.
- Alegro-me tanto vê-lo, Aubrey - disse. - Que alegria ter lido de novo sua carta, tão bem escrita. Saiba que acedo a tudo quanto nela diz. Admiravelmente escrita,
sim, senhor. Encantado de saudar-lhe, doutor. Garanto ao senhor que lhe fico eternamente agradecido... Porém, desculpe-me, peço, se me despeço tão cedo. Mornington
está me esperando, e odeio as despedidas. - E assim, depois de sacudir de novo a mão de Jack, passou literalmente a correr, afastando a multidão a sua passagem.
Horatio parecia um tanto perplexo.
- Senhor Daniel! - gritou Jack naquele momento. - Ah, aí está o senhor. Bom dia, o carro já está aguardando, de modo que ponha esse baú para cima e suba à carruagem
de uma vez. Antes permita-me apresentar-lhe ao senhor Hanson, que se alojará no camarote. - Os jovens apertaram as mãos. - Esta será sua primeira viagem, mas se
arruma bem com os números e espero que os senhores se dêem bem.
As pessoas entravam como aranhas sobre um telhado; os amigos bem juntos, alguns despedindo-se de quem restava em terra.
- Afastem-se de meu fodido caminho, condenados cornudos - disse alguém em um tom de voz mais elevado.
E Clarence abriu passagem entre a multidão, subiu pela escada, disse "Que Deus lhe bendiga, Horatio", inclinou-se sobre ele, colocou algo em sua mão e lhe deu as
costas, gaguejando algo para Jack de um presente "que... que... que havia esquecido, e que obrigado... Por... Por... tudo".
Que doloroso ver aquele enorme e pálido rosto coberto de lágrimas.
- Vamos! - gritou o cocheiro. Em um instante, o gigantesco negócio partiu pelo caminho, contribuindo para a generalizada confusão do tráfego daquele sábado, ruidoso
e abarrotado sábado, de tal forma que não foi senão até circular pela estrada recém aplanada e comparativamente silenciosa que se estendia ao longo de Putney Heath,
que se produziu uma conversa de verdade: Horatio, muito emocionado, não tinha articulado palavra exceto para dizer "sim, senhor", "não, senhor". Contudo, naquele
momento, durante o silencioso caminho, e durante uma calmaria na qual pouco se falou, ouviu-se uma campainha dar as onze, e Horatio observou surpreendido o pacote
que o tio William colocara em sua mão. No silêncio expectante que seguiu, o própio relógio de Stephen pronunciou o leve eco da hora do bolso de seu colete.
- Acho, senhor - disse pegando seu relógio, - que devemos de ter a mesma maquinaria. Permite-me compará-las?
Efetivamente. Ambos os relógios eram obra de Breguet, e desfrutavam portanto de uma maravilhosa precisão. O de Stephen lhe acompanhara (às vezes perdido, sempre
recuperado) durante incontáveis anos, e a voz dos ponteiros havia acariciado seu ouvido em mais de uma noite de insônia.
- Quando pararmos para almoçar - disse, - o que, se Deus quiser, sucederá em Guilford, ensinarei como pode ajustar as badaladas do meu para que soem rápidas e lentas,
altas e suaves, a repetição e a alarme. Sua diminuta maquinaria é incrível.
- Certamente, senhor - disse Horatio, que observou o elegante mostrador do relógio e os lentos ponteiros durante quase todo o trajeto a Guilford. Tão somente levantou
o olhar para explicar de vez em quando a Daniel (cuja amabilidade tinha intuído imediatamente) suas dúvidas a respeito da vida na armada.
- De modo que em realidade não sou guarda-marinha - disse aproveitando que os demais estavam concentrados em uma conversa.
- Não. O senhor entrou para formar parte da dotação de uma fragata na qual não há muito espaço disponível, apesar do que passará a formar parte do camarote dos guardas-marinhas;
pois já tem idade, não será tratado como uma criança, por mais que esta seja sua primeira viagem. Contudo, nos livros da Surprise se anotará seu nome na qualidade
de voluntário de primeira classe, um voluntário da primeira classe, e não será ascendido até que o capitão o considere oportuno. Contudo, o senhor usará uniforme
de guarda-marinha, e pode subir ao castelo de popa. Não se encontra ainda no primeiro escalão, verdade, mas já tem um pé nele, e isso é bom.
O estudo das progressões, da aritmética, da geometria, ou da simples física podem ser muito demorados, e no que ao emocionalmente esgotado Horatio Hanson concernia,
o primeiro escalão daquela particular seqüência em concreto teria parecido um lugar eterno se não fosse porque as batidas de seu coração lhe empurravam a acreditar
o contrário. Jack pedira ao cocheiro para fazer uma parada no Hind, onde puderam comer um pouco, antes de acomodar-se em dois carros postais que partiam do lugar
com os baús e os cobertores, dispostos a completar o último trecho até Woolcombe.
Para Horatio fora uma viagem esgotadora, antes de empreendê-la, durante e depois, momento em que foi apresentado à família do capitão e de um numeroso conjunto de
membros que se converteriam em seus futuros companheiros de rancho. Alguns deles, como o piloto, eram muito veteranos, e outros pertenciam ao camarote, como ele.
Depois chegou a janta e o desafio daqueles longos corredores desconhecidos, o enorme e estranho dormitório, e as dúvidas de se poderia utilizar o urinol.
Mas quantas maravilhas pôde proporcionar uma longa noite de descanso. Para não mencionar um abundante desjejum em companhia de membros da armada, nenhum dos quais
se portou mal com ele; inclusive se mostraram simpáticos. A soltura e a tranqüila autoridade das filhas do capitão, assim como a descontração com a qual o jovem
George ia e vinha do aparador, servindo-se de uma improvável quantidade de coisas, impressionaram-lhe muito, mas não tanto como o relato jogada a jogada feito pelo
senhor Whewell, de como a equipe da casa tinha ganhado do povoado (apesar do pároco) por dezoito corridas.
Contudo, este satisfatório relato se viu adiado pela chegada de Harding e de suas palavras: "Flutuando, senhor, flutuando", que imediatamente foram interpretadas
pelo capitão Aubrey e por todos os oficiais como que o senhor Seppings tinha terminado sua obra de arte bastante antes do tempo estipulado, e que a fragata estava
a ponto de jogar-se ao mar, com as gruas portuárias de arborizar dispostas para repor os paus, e o contramestre preparado para aparelhá-la.
Aquelas palavras imbuiram uma extraordinária energia nos marinheiros, e uma tristeza em Sophie que esta soube conter, e que os meninos contiveram com menos convicção,
muito ao contrário de Brigid, a quem tiveram que sacar do aposento. Tudo isso perturbou aos homens, ainda que não interrompeu seus rápidos preparativos, seus coordenados
preparativos. Alguns, mais por instinto que por organização, dirigiram-se a seus postos com toda a rapidez de que foram capazes os cavalos velozes, os veículos ou
as pernas. Outros, os melhores equipados, dirigiram-se a Portsmouth para preparar as, geralmente, lentas mentes do lugar, para que dispusessem os apetrechos, a pólvora,
as balas, o porco e a novilho em salmoura, a cerveja, a bolacha, o rum, a água necessária, as milhas de cabos pequenos, assim como as milhas quadradas de lona, os
apetrechos do carpinteiro, os do contramestre... Todos os inumeráveis objetos que inclusive um modesto barco de guerra necessitava para uma travessia de tal envergadura,
como o purgante de ruibarbo, que ocupava um total de sete tonéis.
CAPÍTULO 4
Ao dar as quatro badaladas da guarda da alvorada, o capitão Aubrey, coberto com uma casaca de lonita, com o cabelo comprido e loiro destrançado ondeando sobre a
alheta de bombordo da fragata, subiu ao convés, observou o céu cinza e coberta de chuva, viu uma elevada onda romper sobre a amura de estibordo, esquivou pelo menos
parte da água que chegou rápida pelo passadiço do castelo, e disse:
- Bom dia, senhor Somers. Diria que hoje poderemos prescindir da cerimônia de baldear as cobertas. Pelo visto os céus se encarregarão de fazê-lo por nós.
- Bom dia, senhor - cumprimentou o segundo tenente. - Sim, senhor. - E projetando seu potente vozeirão para proa, ordenou: - Guardar os esfregões.
Ao voltar-se, Jack viu uma delgada e sorridente figura que lhe cumprimentava.
- Ah, senhor Hanson, como está? Cubra-se, faça o favor. Recuperou-se?
- Sim, senhor. Obrigado, já me encontro bem.
- Alegra-me ouvir isso. Acredito que passamos pela pior parte desta tormenta. Vê clarear o céu a duas quartas pela amura de estibordo? Se o senhor estiver bem antes
das divisões, talvez possamos tentar subir ao tope da mezena.
- Oh, sim, senhor, se é tão amável
Jack, que com a ajuda de uma toalha se secara bastante, voltou à maca que ainda conservava o calor e se deitou com comodidade, acunhado pelos golpes regulares e
a varredura de toneladas de água que rompiam contra a amura de estibordo. A Surprise rumava para sul-sudoeste, e quase navegava de bolina com as gáveas rizadas,
graças a um vento forte mas caprichoso e provavelmente moribundo que soprava do oeste. Por fim haviam deixado para trás o canal, depois de muitas jornadas de dar
esgotadoras bordejadas. Já não tinham a sotavento Ushant e os temíveis arrecifes que tão bem chegara a conhecer durante o bloqueio de Brest. Além da ameaça de um
raio ou de algum mercante alienado, não tinham muito a temer até que estivessem frente ao Cabo Ortegal, cabo onde esteve a ponto de perecer afogado quando servia
como guarda-marinha na Latona, de trinta e oito canhões. Desfrutava de algumas centenas de barlavento, e com tão reconfortante segurança e o tremor e estrondo do
fluxo de ondas, caiu adormecido até as sete badaladas, quando despertou por completo para a brilhante luz do dia, um mar minguado e o desagradável rosto de Killick,
seu despenseiro, com a água quente para barbear. Naquela ocasião, carecia Killick de más notícias que dar-lhe, o que explicava a antipatia e o silêncio com que respondeu
ao cumprimento de Jack, ainda que pensando bem lembrou que o doutor caíra da maca em algum ponto da segunda guarda, e que o senhor Wantage o atara tão forte que
certamente chegaria tarde ao desjejum.
O desjejum, cujo delicioso aroma flutuava na câmara enquanto Jack se barbeava no jardim{6}, era composto por um ágape ao qual amiúde convidava a um dos oficiais
que haviam feito a guarda da alvorada. Contudo, naquele dia, em vista da irritabilidade de Stephen pelo fato de terem lhe atado tão forte (sete voltas), pensou que
o melhor seria que desjejuassem sozinhos.
Assim o fizeram, e os acostumados ovos com bacon, as torradas com a geléia de Sophie, e, sobretudo, cafeteira depois de cafeteira, exerceram sua civilizadora influência,
até tal ponto que ouviu-se o doutor Maturin dizer:
- Acho que me barbearei antes de fazer as rondas.
Diversas respostas engenhosas cruzaram pela mente do capitão Aubrey, porém, dado o precário temperamento de seu amigo, não arriscou nenhuma delas.
- Que acha do estado atual do jovem senhor Hanson? Ontem à noite agüentou a guarda sem maiores problemas.
- Hanson? Ah, sim, Hanson. Recuperou-se logo, o que é muito própio dos jovens. Mas o atribuo também em boa parte a minha jalapa de Veracruz. Submeti a maior parte
de meus pacientes a um tratamento de diversos tipos de ruibarbo, Aleppo e raiz de Esmirna, e também à melhor raiz da Rússia. Talvez meia dúzia deles sigam sofrendo
lamentáveis e contínuas indisposições.
- Não estará fazendo experiências com seus pacientes, Stephen? - protestou Jack.
- É claro que sim, assim como você faz com as diversas combinações de lona, para averiguar o que convém mais ao seu barco. Um barco não tem "três gáveas da mezena
e uma carangueja" escrito na proa; e meus pacientes não têm "ipecacuanha" tatuado na testa. Certamente que experimento. É claro que o faço.
Havia experimentado: constituições distintas requerem remédios diferentes. Mas desde que estourou o virulento brotamento de disenteria (pois parte do porco salgado
servido durante o primeiro dia tinha cruzado o Atlântico nada mais e nada menos que em quatro ocasiões, além de agüentar uma longa pausa em Kingston, Jamaica), fizera-o
com similia similibus, anotando com muito cuidado os diversos efeitos; e observando, também, com cuidado, a temível diminuição em suas reservas. Em uma ocasião,
antes de picar a sonda, três quartos dos marinheiros da Surprise se viram incapazes de cumprir com o dever, mas estavam dispostos e desejosos de ingerir enormes
doses de ruibarbo.
- Mas no que diz respeito ao jovem Hanson, de quem, por certo, devo dizer que me sinto um pouco responsável, e admito ter-lhe certo afeto, faz três dias que está
em condições de cumprir com seu dever.
- Alegra-me ouvi-lo - disse Jack.
Mais tarde, depois de resolver a papelada matinal com a ajuda do contador e de seu secretário, depois também de almoçar, dirigiu-se ao castelo de popa com a xícara
de café na mão. O dia era mais luminoso se cabe, muito mais, e também cálido. As nuvens ameaçavam a oeste, mas o vento caíra, de modo que a Surprise exibia as maiores.
Ao dar as cinco badaladas, jogaram a barquilha.
- Oito nós e uma braça, senhor, com sua permissão - informou o guarda-marinha Shepherd a Whewell, oficial de guarda.
Este se voltou para Jack, descobriu-se e disse:
- Oito nós e uma braça, senhor, com sua permissão.
- Obrigado, senhor Whewell - respondeu Jack, que reparou na pronunciada inclinação dos paus para sotavento. - Talvez poderíamos orçar uma quarta e meia.
- Uma quarta e meia ao vento - disse Whewell, que a seguir repetiu a ordem para o cabo do leme.
Jack se dirigiu ao corrimão e observou o castelo do barco, onde viu o que esperava encontrar. Alguns dos guardas-marinhas mais jovens aprendiam, entre outras coisas,
a governar com vantagem o barco, a fazer os nós correspondentes, a costura longa, um complexo sistema de ganhar o barlavento e, justo ante seus olhos, Joe Plaice
mostrava a Horatio Hanson algumas habilidades fundamentais, como por exemplo a dupla escota, o gorupo, os dois cotes{7} e o lais de guia. Haviam nomeado ao marinheiro
veterano padrinho de mar do garoto, e àquela altura já se mostrava muito loquaz e didático, e lhe ensinava tudo de bom humor e cheio de paciência.
- Senhor Hanson.
- Senhor? - gritou Horatio, que largou os cabos para correr pela escada.
- Como se encontra neste momento? - perguntou Jack, olhando-lhe com atenção.
- Muito bem, senhor, obrigado. Não poderia estar melhor - respondeu bem erguido, com as mãos às costas.
- Recorda aquilo que lhe disse a respeito de que qualquer um em sua primeira travessia devia mostrar-se humilde e mudo no camarote?
- Oh, sim, senhor - respondeu Horatio, ruborizado. - Ainda que, senhor, para dizer a verdade acredito recordar que também me disse que não devia suportar qualquer
coisa.
- Talvez tenha dito.
- De modo que quando um companheiro disse que eu era um filho de puta, achei conveniente mostrar meu desacordo.
- Não se trataria de um oficial superior? Um simples membro do camarote?
- Sim, senhor.
- Em tal caso, obviamente, fez o senhor bem em mostrar seu desacordo. Mostre-me as mãos. Vire-as, quero ver os nós dos dedos. - Deve ter batido forte para arrancar
a pele desse modo. Jack sacudiu a cabeça. - Não, não, não acredito que se repita. Duvido que ninguém mais do camarote volte a falar-lhe naquele tom. A maioria são
tipos cavalheirescos, mas se voltar a se repetir, diga-lhes que já podem insultar-lhe, que seu capitão lhe proibiu de brigar. Vamos, que tem o senhor as mãos atadas.
- Sim, senhor - disse o garoto com a apropiada deferência e uma total falta de convicção.
- Enfim, vejamos. Pois o vento não sopra muito (observe que neste momento os topes não traçam um arco superior aos quarenta graus), talvez pudéssemos subir às cruzetas
da mezena. Recorda o que lhe disse das duas mãos, e que nunca devia olhar para baixo?
- Oh, sim, senhor.
- Em tal caso, para cima, que eu lhe sigo.
Hanson passou a correr para popa, trepou no corrimão, aferrou-se ao terceiro e quarto amantilho da mezena, introduziu-se entre estes até assomar o corpo pela borda,
subiu pelos enfrechates que escorriam perpendiculares entre os grossos cabos, deu um ou dois passos para cima pela escada que formavam, e esperou.
Um instante depois, sentiu que o conjunto de amantilhos se esticava ao suportar o peso do capitão, e logo percebeu as fortes mãos de Jack nos tornozelos, disposto
a mover-lhe os pés passo a passo.
- Não olhe para baixo - disse Jack, - limite-se a olhar para frente, para o mastro. Aí, a proa da ponta da verga, há um moitão.
- Eu o vejo, senhor.
- Conduz a braça de estibordo da gávea maior até o convés. Puxe-a com suavidade quando a tenha ao seu alcance, e verá como a braça responde.
Assim o fez, e foi um puxão dos mais satisfatórios. Estavam perto da parte inferior do cesto da gávea, amplo patamar (colocado na parte superior do mastro macho)
que conduzia ao mastaréu e ao correspondente jogo de amantilhos, estendidos junto às cruzetas até chegar ao mastaréu do joanete e as cruzetas superiores. Justo abaixo
do cesto da gávea, Jack arrumou para que Hanson passasse pela boca de lobo, enquanto que ele o fazia pelas arraigadas, até ir ao cesto da gávea reunir-se com o jovem.
- Nas primeiras sete vezes convém que o senhor entre pela boca de lobo - disse. - Certo, o senhor parecerá um recruta, mas a lei não escrita diz que são sete vezes.
Não tardará em acostumar-se à subida e, superadas estas sagradas sete vezes, se acostumará a trepar-se às arraigadas sem pensar. Agora, permita-me mostrar-lhe como
se organizam as coisas no alto... - E fez isso: desde os tamboretes maiores, aos mastaréus de gávea e de joanete.
Raras vezes Jack aceitava por sua própia iniciativa a um garoto em sua primeira travessia; contudo, alguns subiam a bordo graças à intercessão de alguma autoridade
superior ou a pedido de algum antigo companheiro de rancho, e Jack tinha o costume de acompanhá-los em sua primeira subida ao cesto da gávea. Servia para ter certo
conhecimento mútuo, e, também, costumava permitir-lhe descobrir como era o garoto em questão, o que facilitava depois o fato de que pudesse dar-se uma conversa fluida
entre membros situados nos extremos da cadeia de comando.
Sentaram-se um pouco no cesto da gávea, sentados em um fardo de lona, pausa que Jack aproveitou para explicar a Horatio alguns detalhes importantes da exárcia de
trabalho. O garoto observava tudo maravilhado, e parecia fascinado pela imensa e ordenada complexidade de um barco de guerra, sua extraordinária beleza, e a beleza
superior que o rodeava.
- Acho que os nós de seus dedos estão sangrado - observou Jack, depois de uma pausa.
- Oh, sinto muito, senhor - desculpou-se o garoto, afetado. - Acho que está mesmo. Peço que me desculpe, senhor. Eu os envolverei no lenço.
- O melhor para o sangue - disse Jack com certa autoridade, - é a água fria. Ponha-a em água fria por toda a noite, e pela manhã estará como nova. Mas fale-me do
boxe, pode ser? Já praticou muito?
- Oh, não, senhor. Não fui à escola. Contudo, os garotos a quem o senhor Walker ou meu própio avô preparava para a primeira comunhão, e eu, costumávamos brigar depois
no pátio.
- Usavam luvas?
- Não, senhor, com as mãos envolvidas em tecido, ainda que o filho do cocheiro (cujo tio, um autêntico lutador, propietário da pensão de Clumpton, ensinou-lhe muito)
tinha luvas, e foi ele que me ensinou.
- Tanto melhor - disse Jack. - Quando servi de guarda-marinha em um navio de linha com um monte de jovens no camarote, costumávamos preparar combates e desafiar
também a outros barcos da esquadra. Assim como os marinheiros.
- Devia ser muito divertido.
- Sim era, de fato. Talvez pudéssemos fazer algo... Quanto o senhor pesa?
- Quase cento e vinte e seis libras, senhor.
- Veremos o que pode ser feito. Está cansado de subir?
- Em absoluto, senhor.
- Em tal caso, subamos às cruzetas. Não lhe preocupa a altura?
- Oh, não, senhor. Não me preocupa.
Jack o fez dar a volta, colocou-o em posição, com as mãos firmes, e de novo lhe ordenou subir.
Ambos ascenderam com brio pelo cada vez mais estreito conjunto de cabos, cujos amantilhos se viam tão próximos entre si no alto que Jack se impulsionou até ganhar
os de bombordo, impulsionou-se depois até as cruzetas daquele lado e ofereceu uma mão ao garoto para trepá-lo na outra. Ali permaneceram sentados, um de cada lado
do mastaréu, ambos com o braço ao redor do mesmo. Pareciam encontrar-se a uma altura incrível, pois o mar se estendia quase até o infinito e o céu parecia uma vasta
planície. Horatio tinha aberto a boca para exclamar seu assombro pela etérea beleza do barco e tudo quanto lhe rodeava, quando lembrou das palavras "humilde" e "mudo",
momento em que voltou a fechá-la.
- Se o vento soprar um pouco mais a popa, o senhor verá como largamos as alas. Agora, aferre-se com ambas as mãos às cruzetas quando me coloque debaixo, solte as
pernas e permita-me que lhe coloque os pés em seu lugar.
Abaixo, abaixo, abaixo.
- O senhor foi muito bem - disse Jack, já no convés. - Da próxima vez subirá com um de seus companheiros; com o senhor Daniel, por exemplo. Dentro de uma semana
não terá a menor dificuldade em fazê-lo sozinho.
- Senhor, muito obrigado por acompanhar-me. Em toda minha vida nunca vira nada tão bonito. Gostaria que durasse para sempre.
Lamentou dizer isto último por considerá-lo muito enfático, fora de lugar aos ouvidos de um capitão de navio, mas apenas as tinha pronunciado quando foram afogadas
pelo extraordinário vozeirão do vigia postado na verga do traquete, antigo (e muito passional) baleeiro.
- Por ali sopra! Oh! Por ali sopra! A três quartas pela amura de estibordo. Desculpe-me, senhor - acrescentou em um tom de voz mais moderado, consciente de que aquele
não era um grito da Armada Real.
E por ali soprava, com efeito: escura, enorme fenda na plana superfície do mar, e depois o jorro, e não somente um, mas seis, um atrás do outro. Levantaram logo
seu enorme peso, ofegaram e afundaram em compasso, uma depois da outra, espetáculo que os marinheiros da Surprise aclamaram.
- De que tipo são, Reynolds? - perguntou Jack.
- Baleias, senhor, baleias baleias, ah, ah, ah!
- Por que se diz "baleias baleias"? - perguntou William Salmón, segundo do piloto de derrota, quando os membros da câmara se dispuseram a almoçar, uma câmara reduzida,
dado que Jack havia se livrado dos guardas-marinhas mais indiferentes.
- É porque são baleias em todos os aspectos - respondeu Adams, secretário do capitão Aubrey. - Encontram-se no lugar adequado, frente à Groenlândia, ou na baía,
têm a barba de baleia correspondente, de longe a melhor do mercado, e a adequada quantidade de óleo: seis ou sete toneladas por cabeça. Ah, e também o temperamento
de uma baleia, ou seja, movem-se com lentidão, nada de exibir a barbatana como possa fazê-lo o senhor, ou voltar-se para esmagar seu bote como um vulgar cachalote.
A mais honrada que jamais tenha visto.
- Pois sim - disseram todos, mais atentos ao pudim que entrava pela porta, um enorme cachorro-manchado.
Por viver em época de carestia, os guardas-marinhas comiam o mesmo que os demais marinheiros, mas já que seu capitão insistia no fato de que desfrutassem de uma
considerável mesada, os da Surprise se arrumavam muito melhor, pois dispunham de provisões, gado, e inclusive de uma moderada quantidade de vinho, parte do qual
consumiram ao finalizar a refeição.
- Brindemos por uma boa e próspera viagem - propôs Daniel com a taça no alto.
- Por uma boa e próspera viagem - repetiram os outros.
De certo modo foi boa e próspera, pois embora a brisa soprasse tão pouco que o barco quase não podia anotar na lousa um avanço superior a uma centena de milhas por
singradura, de um meio-dia ao seguinte (uma distância cuidadosamente calculada por Daniel e Hanson), ela lhes era favorável. Por outro lado, a tranqüilidade do mar,
as cobertas quase imóveis, faziam da artilharia um exercício fantástico, e com sua rica variedade de pólvora e bala (que seria renovada em Madeira), Jack exercitou
a dotação com munição de verdade quando haviam endurecido os músculos depois de empurrar e assomar as bocas dos canhões pelas portalós meia dúzia de vezes. Depois,
a dotação teve a prazeirosa oportunidade de destruir certa quantidade de tonéis vazios, rebocados em ocasiões a distâncias consideráveis. A seguir, o repetido estrondo
das descargas; e não a muda prática habitual das divisões, mas o estrondo ensurdecedor do combate, os estalidos, as línguas de fogo, o gemido de cada canhão ao retroceder
carregado de perigo, o forte odor da fumaça da pólvora em todas as cobertas. E ali estava a fragata, a as gáveas de combate, em meio de sua própia nuvem de fumaça
que o vento empurrava para ela, fumaça que surgia de suas própias narinas, além do enorme, quase contínuo rugido fruto do fogo das peças, primeiro as situadas mais
a proa de estibordo, seguidas pelos outros canhões da bateria. Era como se a Surprise travasse uma temível batalha consigo mesma: as mãos no quadril, os lenços ao
redor da testa, graves ante a proximidade da morte, febris, ativos, cuidando-se no retrocesso, aplicando a lanada, metendo o cartucho, empurrando a fundo o canhão,
a tonelada de metal até assomar a boca pela portaló, trincado em bateria com um estampido enquanto o cabo de canhão apontava para o alvo, a retirada, a inclinação,
e os serventes corriam de um lado para o outro com os cartuchos do paiol, tudo isso ao mesmo tempo que tremia o convés e vibrava a tensa enxárcia.
- Bom disparo! - disse Jack quando soou o disparo do canhão localizado mais a popa. - Lanada, mete cartucho e trinca canhão - ordenou. - Paciência enquanto rebocam
os alvos, para ver se com estes três a coisa melhora.
Os homens, a robustez de seus corpos cobertos de suor, ergueram as costas, trocaram uma sorriso de satisfação, secaram o suor da testa e, a maioria, foi às cubas
para desfrutar de um longo e refrescante gole de água.
Quando tudo estava preparado, carregados os canhões e trincados em bateria, Jack ordenou em um tom de voz digno da surdez própia do combate:
- Dispostos os alvos. Fogo a discrição de proa a popa! - O disse relógio em mão. A maioria de seus homens sabiam o que isso significava, e o canhão situado mais
a proa não tardou em cuspir fogo, seguido pelo restante dos canhões do lado, cenário de intensa atividade, pois todos seus veteranos companheiros de dotação eram
conscientes do valor que dava a um fogo preciso e rápido: "Um barco capaz de efetuar três bombardeios a cada cinco minutos não encontra inimigo que possa vencê-lo."
Havia repetido uma e outra vez, e no passado assim tinha demostrado.
O alvo desapareceu em uma nuvem de espuma antes de que finalizasse a primeira descarga; sem que minguasse nem um pouco seu zelo, trabalhando como demônios, as outras
duas descargas deram boa conta dos restos até que o último canhão uivou e um silêncio estrepitoso caiu sobre o mar.
- Bem, companheiros - disse Jack - foi muito bom. Não acho que haja muitos barcos flutuando que possam acusar-nos de lentidão; contudo, para quando cheguemos a Freetown
confio em que possamos fazê-lo melhor.
Os marinheiros da Surprise pareceram um pouco decepcionados, ainda que em realidade nenhum dos experimentados cabos de canhão esperava ouvir outras palavras; mesmo
os mais lentos marinheiros novos haviam reparado no fato de que as peças três e cinco haviam prejudicado a perfeita seqüência das descargas.
- Apesar de tudo, foi muito bom, tendo em conta que se trata de uma dotação que ainda não se conhece - disse Jack ao entrar na câmara. - Mas lhe direi algo, Stephen:
o vento está a ponto de mudar. - Deu alguns golpezinhos no barômetro. - Sim, antes do anoitecer... entre.
- Peço que me perdoe, senhor - disse Wells, o guarda-marinha pirralho, - mas o senhor Harding me pediu que lhe transmita seus melhores desejos, e lhe informe de
que avistamos a Ringle, coberta de lona e com rumo lés-nordeste.
- Obrigado, senhor Wells. Ah, olá, senhor Adams, que é isso que traz?
- Senhor, são os exercícios dos jovens, se é tão amável de dar-lhes uma espiada. O piloto me pediu que trouxesse para o senhor, dado que me pegava de caminho a popa.
Pelo visto tinha que voltar à latrina.
Stephen sacudiu a cabeça: o senhor Woodbine era um de seus casos mais obstinados, existiria, talvez, se não uma causa oculta, algo que contribuísse para agravar
o caso? Os pacientes podiam mostrar-se muito loquazes a respeito dos sintomas que acusavam, taciturnos também, reservados em ocasiões, como se suspeitassem que o
médico tentava estender-lhes uma armadilha, uma armadilha que podia desembocar na intervenção cirúrgica. Quando deu por terminadas estas reflexões, reparou na partitura
do prelúdio e fuga em ré menor para violino e violoncelo que havia composto fazia tempo, e que passara a limpo, aproveitando a calmaria.
Jack, que inspecionava os exercícios dos jovens cavalheiros, exercícios nos quais haviam calculado a altura ao meio-dia do sol, além de outros cálculos, reparou
por sua vez no que chamava a atenção de Stephen.
- Estive praticando um pouco os primeiros compassos do prelúdio - disse, - Porém, meu Deus, Stephen, parecia que tinha os dedos entorpecidos! Quase não tinha arranhado
o violino desde que zarpamos: a maioria das notas me soaram desafinadas, para não falar do curto que fiquei com o arco.
- É verdade. Não tocamos uma só nota já faz muitos dias.
Jack assentiu, sorridente.
- Contudo, tenho algo que lhe comprazerá. - E lhe estendeu duas folhas, ambas com cálculos dispostos em ordenadas filas, e com seus resultados finais que indicavam
a posição da fragata, com apenas alguns segundos de diferença entre si. - Tal como caberia esperar de alguém douto em matemáticas, esta corresponde a John Daniel;
a outra, contudo, é do jovem Hanson, e estou seguro de que não se há copiado. Pequena jóia deve ser esse senhor Walker, tutor do garoto, para ensinar-lhe a calcular
a altitude tão bem. Ainda que creio que o duque lhe proporcionou um instrumento de primeiríssima qualidade. A julgar pelos cálculos de ambos, encontramo-nos a uma
semana de navegação de Madeira, e se persistir este vento, como acredito que fará, ou melhor - e dito isto tocou o braço de madeira da cadeira, - como espero que
suceda, poderemos dizer que completamos a primeira etapa em um bom tempo, apesar de uma saída pouco promissora.
O vento persistiu. Em regra geral, tiveram-no pela alheta de estibordo, tão firme como um alísio. A Surprise pôde portanto largar alas e rastreiras, e a água passou
a grande velocidade pelo costado, salpicando seus membros de tão bom ânimo que, com a troca da última guarda do quartilho, cantavam e dançavam no castelo de proa,
ao som do pífano, do tambor e de uma pequena harpa, tudo isso com uma animação que de longe soava como a feira de Bartolomeu, só que com maior harmonia.
Foi em uma tarde assim, quando se encontravam a um ou dois dias de Madeira, que Jack Aubrey sentou-se à escrivaninha para retomar a carta para Sophie e, talvez,
terminá-la, de tal forma que toda sua documentação estivesse pronta para seu envio por meio do próximo paquete.
Pura navegação - escreveu - navegação com o vento mais favorável do mundo, que empurra o barco que se ama e a uma dotação composta, em sua maioria, por homens a
quem conheço há anos, quase todos eles marinheiros de verdade. - Chegado a este ponto, pegou uma nova folha e prosseguiu: - Sinto-me ingrato ao dizer, mas alguns
de nós sentimos falta da contínua vigilância, da perpétua exploração do horizonte a sotavento, em busca da vela estranha que poderia corresponder a um inimigo ou,
com um pouco de sorte, a uma presa de lei. Mas correm tempos de paz, e os tempos de paz com um vento favorável podem, para a mente ingrata, parecer algo vazio em
certas ocasiões.
Afiou a pena (possuía um canivete afiado como uma lâmina de barbear, capaz também de cortar plumas pelo meio) e revisou as últimas palavras escritas sob um prisma
mais crítico, tudo isso antes de pegar uma nova folha.
É verdade que mesmo alguns de nossos mais antigos companheiros de rancho podem mostrar-se difíceis de vez em quando - continuou. - Aí tem a um de seus favoritos,
Davies o Lerdo, homem cabeçudo como nunca se viu se se cruza com um dos novos. Contudo, em uma abordagem, ou ao assaltar com arma uma posição costeira, esse homem
vale seu peso em ouro, por muito que pese. Sua enorme massa, sua força e agilidade terríficas, a desagradável palidez de seu rosto e o modo em que joga espuma pela
boca quando se agita, tudo isso fazem dele um temível oponente. O que Stephen denomina fúria berserker lhe serve quase para varrer de adversários o convés inimigo.
Também uiva, e tem outras caras: não só é muito útil quando há que guindar os mastaréus e lhe faltam mãos. Recorda-se daquele lastimoso e tímido garoto chamado Horatio
Hanson, com quem tão amável foste em Woolcombe? Pois bem, demostrou possuir uma grande capacidade como navegante, mas ainda carece da estrutura de um bom gavieiro
(e quem poderia repreendê-lo?), de modo que se complicou uma vez ao descer de uma grande altura; acredito que foi na bola do tope de traquete, ou em um lugar similar.
Davies o viu e, pondo de um lado a Joe Plaice (padrinho do mar do garoto em questão), trepou ao alto, agarrou o tornozelo do jovem e o arrastou por força bruta boca
abaixo até o cesto da gávea do tope, onde ficou a salvo, e ali o deixou com um grunhido de irritação...
Deixou de escrever.
- Bem, Stephen, pode-se saber por que está revirando tudo desse modo? - perguntou um pouco irritado.
- Acha que estou mexendo? Na realidade realizo uma exaustiva busca do colofônio, que pretendo encontrar nem que seja no último canto e fenda desta infame coroa,
e Deus sabe que de ambos anda muito rico. É o único pedaço de colofônio que tenho, depois que um rato de baixa estofa se empenhou em devorar os outros. Seria tão
amável de olhar em seu bolso?
- Oh, Stephen - exclamou Jack, cujo olhar de justa indignação desapareceu enquanto seu rosto se cobria de rubor ao sacar o pedaço de colofônio com seu lenço. - Lamento
muito. Realmente sinto muito. Perdoe-me, por favor.
- Esteve tocando? - perguntou Stephen enquanto limpava uma penugenzinha do colofônio.
- Pensara em fazê-lo; de fato, inclusive cheguei a tirar o violino da capa, mas ao pensar em toda a papelada que Adams e eu temos que preparar para quando chegarmos
a Funchal me pareceu melhor terminar a carta para Sophie.
- Acrescente todo meu carinho, se és tão amável - disse Stephen que, ao deter-se sob a dobadiça da porta, acrescentou: - Suponho que saberá que a Ringle se aproxima.
- Desde que limpou o horizonte, os vigias do tope informaram disso guarda sim, guarda também. Com o barômetro tão constante, espero diminuir vela em uma ou duas
horas, para que possamos entrar no porto em Funchal antes do canhonaço da noite.
A primeira vista, a assolada Funchal conservava um ar obscuro e desolado, ainda que do cesto da gávea do maior, mais perto graças à luneta, viram que tinham se iniciado
as reparações, e que embora não houvesse muita agitação no famoso estaleiro de Coelho, havia trabalho. Abundavam as pilhas de madeira recém abatida, e o armazém
de apetrechos da Armada Real se via em bom estado de revista, com o barco de apetrechos a pairar frente ao cais, e as barcaças indo de um lado a outro, enquanto
um paquete espanhol amarrava a espia a um cabo de distância. A Surprise cumprimentou ao castelo e ancorou em seu lugar de costume, acompanhada a sotavento pela Ringle.
O castelo devolveu a saudação com o brio que era de esperar.
- Por favor, meu amigo, encarregue-se de que um bote me deixe no cais quando caia a noite, e que me recolha uma hora depois - pediu Stephen a Jack em voz baixa.
Caiu a noite, e com ela a escuridão, ajudada pelas nuvens procedentes do sudoeste e também pelo chuvisco. Marinheiros e oficiais acostumados, muito acostumados a
suas características cabriolas, levantaram Stephen pela borda como se fosse um cesto cheio de frágil porcelana, e este se viu sentado na bancada de popa junto a
Horatio Hanson, que havia se entregado ao mar com tal vontade e naturalidade que o capitão podia confiar nele a segurança da valiosa canoa e a da ainda mais valiosa
dotação composta de bons marinheiros.
- Desculpe-me, senhor Hanson, mas me esqueci... O senhor disse que não nos acompanhou na travessia desde Gibraltar? - perguntou Maturin.
- Não, senhor, temo que não tive essa sorte.
- Verdade? Pois parece que o senhor faz isto toda a vida.
- Talvez se deva, senhor, a que meu pai era marinheiro - E levantando a voz: - Agüenta sobre os remos, agüenta, agüenta. - A quilha se encontrava perto do fundo
de seixos. Então, o proeiro e seu companheiro aproveitaram a onda seguinte para depositar Stephen no cais sem molhar os pés.
- Obrigado, Evans; obrigado a você também, Richardson - disse, e acrescentou alçando mais a voz: - Senhor Hanson, justo dentro de uma hora, se é tão amável. Sei
que nossos relógios concordam até o último segundo. Se preferir voltar ao barco, aqui mesmo lhe aguardarei por sete minutos.
Adentrou-se na cidade, não sem antes deter-se abaixo de um toldo de cana que lhe resguardou da chuva enquanto desfrutava de um café muito, muito forte, para depois
seguir os giros e voltas que recordava à perfeição, até chegar a um modesto estabelecimento situado na discreta zona mercantil da cidade. Modesto, sim, mas bem protegido
pelo equivalente local dos pugilistas ingleses, pois era frequentado por negociantes de pedras preciosas a quem podia ver-se passar entre si a mercadoria envolvida
em papel, tudo isso acompanhado de sussurros. Como pudera observar Stephen, aqueles que recebiam os pacotinhos pareciam adivinhar o conteúdo graças a um poder sobrenatural,
já que, pelo menos pelo que ele podia ver, nunca chegavam a abri-los. Tampouco variava em sua conversa o tom baixo (que não secreto), discreto e monótono. Outra
coisa na qual reparou, e o fez com uma surpresa que quase não pôde dissimular, foi na presença de seu amigo, colega e aliado Amos Jacob, a quem pretendia deixar
uma mensagem com a esperança de que pudesse recolhê-la em um mês, mais ou menos.
Trocaram um olhar fugidio, vazio, e quando Stephen tomou e pagou a taça de vinho, saiu para a rua deserta e úmida. Havia parado de chover, mas as nuvens seguiam
passando a baixa altura, e se alegrou ao ver que Jacob lhe alcançava com um pára-sól. Abraçaram-se de repente, dando-se palmadas na costas à maneira espanhola, e
se cumprimentaram nesta língua, com a que ambos estavam perfeitamente familiarizados e que, além disso, era habitual o bastante em Funchal para não provocar comentários.
- Sir Blaine lhe envia lembranças - disse Jacob. - Devo lhe informar de que sir Lindsay se fará provavelmente ao a mar no dia 27 deste mês, parará em Funchal (onde
seus agentes, um grupo de perfeitos idiotas, encarregam-se de comprar excedentes de guerra) e, depois, porá proa para o Rio. Não obteve apoio do Almirantado, nem
certamente do departamento hidrográfico. Vem por iniciativa pessoal, convidado por um comitê de particulares, pois as declarações chilenas não foram reconhecidas
oficialmente, nem sequer se lhes há dado acuse de recebimento. Pediu uma modesta corveta, vendida pela Armada Real, assim como outra embarcação chamada Asp, que
estão reparando para ele no Rio. Sua função consiste em adestrar às autoridades chilenas, se pode dar-se tal nome a um enlouquecido e autoproclamado comitê ou conjunto
de comitês que, provavelmente, acabe por dissolver-se a qualquer momento...
- Querido amigo, lamento dizer que acaba de perder o fio.
- Oh, perdoe-me... Adestrar ao projeto da armada chilena, pois a Espanha ainda controla o arquipélago de Chiloé no sul, assim que os barcos de guerra espanhóis de
menor porte, assim como os corsários, agoniam a costa chilena enquanto ao norte, à mão, na base peruana de El Callao, dispõem de embarcações de maior calado.
- Passou bastante tempo desde que pudemos falar com certa intimidade - disse Stephen depois de refletir. - Diga-me, dispões de informação local recente que deveria
conhecer? Qualquer detalhe com respeito à natureza dessa divisão da que me fala?
- Certamente. Estive falando com um contato que tenho nos negócios chilenos, um mercador de jóias especializado em esmeraldas, esmeraldas de Muzo (inclusive lhe
comprei uma bolsinha), e me disse que a ruptura era iminente. As duas facções principais vivem a certa distância uma da outra: Bernardo O’Higgins e seu amigo São
Martim, que venceu aos monárquicos em Chacabuco, como você mesmo recordará, e cujos associados compareceram em um princípio ao capitão Aubrey, são os cabecilhas
da facção norte. São os que vivem no sul que convidaram ao capitão Lindsay.
- Poderia me resumir seus pontos de vista?
- Não poderia resumi-los, porque há tantos com tantos objetivos distintos, e falam tanto disso... Mas poderia lhe dar uma idéia a grandes traços, generalizar, dizer
que os cavalheiros do sul são mais idealistas e que não parecem ter os pés no chão, enquanto que os do norte, ao comando de O’Higgins e São Martim, com objetivos
mais realistas, mostram-se muito mais eficazes. Talvez suas amizades sejam um pouco lamentáveis, mas diria que, em geral, buscam menos o benefício própio.
Stephen lançou um suspiro.
- Parece óbvio que se trata de uma situação complexa - disse, - pelo que as possibilidades de cometer erros graves são inumeráveis. Não sabe o que daria para que
você já estivesse ali, que nos tivesse tomado a dianteira a todos, incluído a Lindsay, para que a nossa relação fosse facilitada pelo fato da Surprise entrar no
porto com toda a informação havida e por haver. Busquemos um paquete ou mercante que se dirija...
- Querido amigo, acho que poderemos nos arrumar sem necessidade de recorrer a paquetes ou mercantes. Sir Blaine nunca lhe mencionou de nosso homem em Buenos Aires?
- O inestimável senhor Bridges, da chancelaria? Sim, com efeito, ainda que acho recordar que o fez por alusão a seu enciclopédico conhecimento de música antiga...
Contudo, às vezes sir Joseph fala em voz baixa para dar ênfase a suas palavras, e nem sempre entendo o que me diz, se a isso somar que não sou dos que gostam de
se repetir, o resultado é que às vezes me vejo obrigado a ler entre linhas.
- Então verá, o cavalheiro também é um eminente montanheiro (já subiu os mais surpreendentes picos andinos) e, com alguns amigos escolhidos (araucanos, conforme
entendi), dos mais ferozes, atravessou toda a cordilheira por ignotos e passagens desertas; com sua ajuda e dos guias poderia chegar até o Chile muito antes de que
vocês superem aquele tedioso estreito, ou dobrem o gélido Cabo de Hornos.
- Fala sério, Amos?
- Isso mesmo. A montanha é meu único amor, e trepo com infinito gozo. Não há pico em Djebel Druse que não conheça.
- Leva bagagem? Meu bote está a caminho. - Jacob assentiu. - Em tal caso, leve-a amanhã ao armazém da armada com toda a discrição possível. Diga que pertence à Surprise
e que quer que preparem sete tonéis de purgante de ruibarbo; depois me encarregarei de pegá-lo por ali quando for pedir outros fármacos. Que Deus lhe bendiga.
- Jack! - exclamou ao irromper na cabine. - Oh, perdoe-me.
- Não se preocupe, querido - disse o capitão Aubrey enquanto fechava o livro. - estava lendo um incômodo ensaio sobre os galateios: faças o que faças, não tem remédio.
Ah, temo que tenha desfiado as meias.
- Sim, enganchei-me com uma daquelas coisas eretas ao subir pela borda como o faria um marinheiro. Jack, já sabe que minha intenção ao desembarcar consistia em deixar
uma mensagem para Amos Jacob para que se reunisse conosco, como desejava sir Joseph. Pois o encontrei em carne e osso, sentado a menos de dez jardas de onde eu estava!
Nós nos reunimos discretamente na praia. Amos já possue muita informação; devido a minha memória não ser mais o que era, pedi que suba a bordo para que possa lhe
informar dos pontos principais. Ele nos acompanhará até o Rio, e de lá irá por terra ao Chile, onde, Deus queira, reunir-se-á de novo conosco. Para lhe tranqüilizar,
adiantarei que sir David não partirá até o dia 27. Pelo visto, dispõe de uma "modesta corveta" vendida pela Armada Real, e de outra embarcação chamada Asp, que reparam
para ele no Rio, onde parará antes de empreender a passagem para o Pacífico (se a memória não me falha) pelo estreito. Jacob lhe dará os pormenores, além de informação
detalhada a respeito das diversas facções chilenas. Lindsay, por certo, dispõe de agentes aqui, e está comprando armas usadas para empregá-las contra seu rival.
Com o fim de evitar no possível chamar a atenção, pedi ao doutor Jacob que compareça com seu baú à primeira hora no armazém de apetrechos; eu lhe disse que se apresentasse
como marinheiro da Surprise e que encomende sete tonéis de purgante de ruibarbo, e que venha no mesmo bote que os traga a bordo.
- Graças a Deus - disse Jack. - Stephen, não sabe quanto me surpreendem estas notícias, quanto me surpreendem e me alegram. Não sei a que se referirá nosso querido
Jacob com "modesta corveta", mas recordo do velho Asp e duvido que seja capaz de agüentar uma só de nossas descargas. De qualquer maneira, temos tempo de sobra,
tempo de sobra para realizar uma longa travessia ao sul e, depois, rumar para o noroeste quando as condições antárticas, e me refiro ao gelo, mostrem-se mais favoráveis
no início do verão, via Cabo de Hornos, a sotavento e, daí, à altura de Valparaíso. A menos que tenhamos muito má sorte com a zona das calmarias equatoriais, temos
tempo de sobra. Chegaremos a Freetown para nos abastecer, e depois...
- Depois, Jack? - perguntou Stephen. - Depois? Por acaso esquecei que ali temos um importante trabalho a fazer? Uma interessantíssima série de averiguações?
- Relacionadas com nossa empresa? Com esta viagem?
- Talvez não de forma direta.
- Recordo que em uma ocasião você mencionou algo relacionado com Freetown. Confiava em que "pudéssemos pontear a costa de Guinéu" diretamente desde Gibraltar. Naquela
ocasião, comentei que, depois das reparações efetuadas no estaleiro, o barquinho não aguentaria a travessia do Chile, e que Madeira era essencial. Depois descobrimos
que Madeira e, sobretudo, o estaleiro de Coelho, fora pasto das chamas, de modo que não tivemos mais remédio que rumar para a Inglaterra, onde a fragata não só foi
reparada com consciência, como que, além disso, recrutamos uma boa parte da dotação. Contudo, se segue empenhado na costa guineana e seus potos, em Serra Leoa e
Freetown, não poderei empregar com tanta alegria aquele "depois". Pergunto-me quanto tempo considera adequado que dure nossa permanência ali.
- Jack - disse Stephen depois de titubear, - somos velhos amigos e não tenho nenhum escrúpulo em lhe dizer. Em confiança, quero pedir a Christine Wood que se case
comigo.
Cheio de consternação, Aubrey abriu bem os olhos; depois se ruborizou. Contudo, seu bom caráter e educação imediatamente lhe permitiram desejar a Stephen "toda a
sorte do mundo", e acrescentar que aquilo lhe parecia estupendo, claro que sim; e que a Surprise pararia ali até encalhar nos ossos da carne em salmoura que jogassem
diariamente pela borda, se Stephen assim quisesse.
- Não, querido - disse este. - Em tal caso, tendo em conta o que estamos falando, acho que bastará um simples "sim" ou "não". Se se dá o primeiro, acredito que me
agradaria ficar uma semana, desde que possamos nos permitir. De outra forma, no que me diz respeito poderíamos zarpar no mesmo dia.
Naquela noite, separaram-se com mútuas expressões de boa vontade. Na primeira hora do dia seguinte, a aparição na câmara do desalinhado doutor Jacob mudou a situação
de forma considerável. Este explicou como estavam as coisas no Chile com grande riqueza de detalhes (muitos dos quais Stephen tinha esquecido por completo, dado
que tinha a cabeça em outra parte), detalhes que Adams, secretário do capitão, anotou com suas própias abreviaturas.
A explicação foi interrompida pela a chegada dos tonéis de ruibarbo; depois, por uma quantidade considerável de bala rasa e bala de corrente (esta última em menor
proporção); mais tarde, também pela necessidade de adentrar-se no canal para atracar-se ao navio que transportava a pólvora quando tivessem apagado não só os fogões
da cozinha, mas também até a última chispa a bordo. O navio faria entrega dos mortíferos barris ao condestável e a seus ajudantes.
Com vento favorável, a Surprise navegou a escotas aventadas, concluída a aguada e com todos os apetrechos a bordo, tudo isso sem desertores e sem que a polícia de
Funchal tivesse detido a ninguém. Navegou rumo sudeste, e quando se acenderam os faróis de popa e as luzes do tope, os marinheiros que preferiam fumar tabaco a mascá-lo
se reuniram no interior, perto do fogão, onde, além de fumar em cachimbo, desfrutavam do prazer da apreciada companhia das mulheres, de mulheres respeitáveis: Poll
Skeeping, assistente de Stephen, e sua amiga Maggie, cunhada do contramestre.
- Parece que regressou a bordo o ajudante do cirurgião - comentou Dawson, cabo da proa, não porque acabasse de informar-se, mas porque o fato de ouvi-lo em voz alta
parecia confirmá-lo.
- Trouxe outra Mão da Glória{8}? Realmente espero que tenha trazido outra Mão da Glória, que Deus o abençoe. Ah, ah, ah!
- Não, melhor, outro corno de unicórnio; isso outro que o deixe para a próxima vez.
Todo marinheiro da Surprise que tinha obtido uma parte do recente e esplêndido butim riu em voz alta; um de Shelmerston, que não estivera presente, disse:
- Contem-me outra vez.
E voltaram a lhe contar. Contaram tudo o relacionado com aqueles esplêndidos tonéis cheios a transbordar de dinheiro do butim, e o fizeram com tal veemência e convicção
(a maioria dos presentes falavam ao mesmo tempo) que quase pareciam ter o refulgente ouro ao alcance das mãos.
- Ah - disse um ao romper o silêncio que seguiu, - jamais voltaremos a viver tempos como aqueles. - Uma pausa, e, depois, um suspiro generalizado com o qual mostraram
sua concordância. Aceitavam sem reservas a crença de que ambos doutores haviam trazido a bordo toda a sorte do mundo.
- Pelo visto nos dirigimos a Freetown - observou Poll Skeeping.
- Isso mesmo - disse Joe Plaice, um dos amigos de Killick, e fonte confiável de informação. - O doutor (nosso doutor) está enamorado pela senhora do governador,
da viúva do governador. Segue vivendo ali, ainda que em uma casa distinta.
- O que me dizem? Feio como é o muito sodomita, apaixonar-se por essa dama - protestou Ebenezer Pierce, gavieiro da guarda de estibordo.
- Deveria se envergonhar de suas palavras, Ebenezer - disse Poll, - esqueceu que lhe salvou o braço?
- O que? - replicou o marinheiro. - Ninguém diz que não possa ser um estupendo doutor sem ser uma beleza. - Em um hostil silêncio se afastou em direção a popa, fingindo
que não se importava o rechaço de seus companheiros, e ali tropeçou com um balde.
- Eu desejo ao doutor toda a sorte do mundo - disse o segundo do carpinteiro. - Tem que passado muito mal.
CAPÍTULO 5
- O governador dá as boas-vindas à Surprise, e lhe comprazeria cumprimentar ao capitão, assim como aos integrantes da câmara dos oficiais e do camarote dos guardas-marinhas,
às quatro e meia - informou o guarda-marinha de sinais ao imediato, que repetiu a mensagem ao capitão Aubrey, situado a três pés de distância.
- Que amável de sua parte - comentou Jack. - Por favor, envie a seguinte mensagem: "Muito obrigado, será um prazer. Surprise." Não, espere aí: "Será um grande prazer.
Surprise." O senhor Conhece o ancoradouro melhor que eu, senhor Harding. Continue, se é tão amável; vigie o fluxo de ondas e cuide de nossos melhores uniformes.
O capitão e os oficiais da fragata tinham sido muito, muito beneficiados com a presa que fizeram do galeão berbere, ainda que também tiveram um meticuloso cuidado
pelas mostras externas de sua classe, insignificantes comparadas com as de seus companheiros do exército (geralmente, mais prósperos economicamente), mas muito importantes
para um marinheiro que vive ou tenta viver de seu pagamento. Outro fato que mitigava a alegria daquele convite era o costume da armada Real de servir o almoço dos
guardas-marinhas ao meio-dia; comer o pouco que comiam, pois não era muito se não se contavam as provisões particulares e os vasos de geléia de casa. Os oficiais
comiam mais tarde, e o capitão quando queria, geralmente mais ou menos a uma ou a uma e meia. Deste modo, recebido o convite oficial, os da Surprise se dirigiram
à sede do governo, arrumados e impolutos, alguns sem apetite, e outros famintos. Pelo menos nesta ocasião, apresentaram-se com os preciosos uniformes imaculados
graças às excelentes condições do novo cais; quando foram apresentados a sir Henry, serviu-se o xerez, sentaram-se (os oficiais com uma acompanhante feminina e os
guardas-marinhas à-vontade), e começaram a recuperar o ânimo.
A acompanhante de Jack era, certamente, lady Morris. Sem considerar a sua humilde classe, Stephen fora sentado ao lado de Christine Wood, o que obviamente obedecia
a uma manobra orquestrada pela própia lady Morris, que ao inclinar a cabeça Stephen e flexionar o joelho Christine disse algo parecido a "os senhores compartem um
interesse comum pelas aves", convencida de que o bom do senhor Harding a desculparia quando lhe apresentasse à preciosa e jovem mulher do assessor, de que a desculparia,
definitivamente, pelo fato de que o doutor e a dama se conheceram fazia tempo, consideração de maior peso que a antiguidade no cargo.
E sim, era verdade que talvez se conheceram há muito tempo, mas o fato é que ambos se mostraram incômodos ao sentar-se, silenciosos, tímidos; limitaram-se a esmigalhar
o pão, e a responder aos corteses comentários de seus vizinhos. Foi assim até que um turaco lançou seu horrível grasnido, e Stephen assinalou:
- Não está muito ao norte essa criatura?
E ela replicou um pouco incomodada que, apesar de Hudson, Dumesnil e companhia, Serra Leoa não podia considerar-se de jeito nenhum fronteira para os turacos, que
dois pares tinham se aninhado aquele ano em seu jardim, e que inclusive tivera notícias de outras do outro lado do rio. Tudo isto restabeleceu a científica calidez
de sua relação, e ele falou do surpreendente trepador do Atlas, da numerosa manada de leões que se reunia para rugir mutuamente desde a margem oposta do rio, da
extraordinária variedade de flamengos. A amizade que os unia, o afeto, e algo mais que o afeto, regressaram como regressam as ondas sobre a areia, de forma imperceptível
mas sem sombra de dúvida. Como seres civilizados, prestaram a devida atenção a seus respectivos vizinhos, ainda que para qualquer um que observasse atentamente ao
grupo, sua intimidade resultava tão evidente, que em uma ocasião ouviu-se a senhora Wilson comentar, cuja filha se sentava à esquerda de Stephen:
- O cavalheiro parece insistente com a senhora Wood. - Seus amigos comentaram que uma viúva rica era, obviamente, um alvo muito desejável para qualquer cirurgião
naval sem um penique no bolso.
- Alegro-me muito de voltar a vê-la - disse ele ao despedir-se. - Lamento admitir que sou muito descuidado na hora de escrever cartas, e sei perfeitamente que minhas
respostas a suas apreciadas missivas (sobretudo a uma delas) não puderam ser mais inadequadas. Permite-me fazer-lhe uma visita amanhã pela manhã? Não vejo o momento
de conhecer seus últimos achados sobre Adanson, e aí temos toda a costa norte do brejo, que forçosamente ficou inexplorada. A senhora finalmente conseguiu estabelecer
nossa Porphyria como espécie reprodutora?
- Será um prazer ver-lhe - disse ela um pouco nervosa. - Digamos que mais ou menos as dez, se seu dever lhe permite. Saberá onde vivo, suponho.
- Não.
- É a casa situada detrás do edifício do Governo, na esquina, talvez a meia milha ao norte, quase na margem. Eu mesma a adquiri como residência de verão; não tem
caráter oficial, e, como disse, fica perto da costa. Eu enviarei Jenny para evitar que o senhor possa se perder.
Bastante antes das dez, Jenny subiu pela borda em um esquife bem governado a remo por Quadrado, o sorridente membro da tribo dos Kroo que tinha acompanhado a Stephen
durante sua visita anterior, e que cumprimentou ao barco com tanta alegria que todos que o ouviram não puderam evitar sorrir de orelha a orelha.
- Meu muito estimado Quadrado, quanto me alegra voltar a ver-lhe - exclamou Stephen enquanto descia com sua elegância habitual, salvado em última instância por uma
mão firme.
- A dama disse que devia subir-lhe a bordo são e salvo; oh, cuidado com a forquilha! - Quadrado voltou a pegá-lo, e de algum modo conseguiu balançar a frágil embarcação
enquanto Jenny chegava até ele para ajudá-lo a se sentar na bancada de popa.
- Devagarzinho, Quadrado - gritou Jack, que deu voz à inquietação de todos a bordo.
E devagarzinho o fez. Depois, puderam ver o doutor Maturin subir os últimos degraus de uma sólida e imóvel escada (a maré estava em pleno apogeu) para depois entrar
com bom passo nas ruelas.
- Ignoro por que não lhe ofereci minha própia falua - disse Jack ao imediato, que negou com a cabeça, incapaz de oferecer-lhe o menor consolo.
- Gostaria de ir em rede, senhor? - perguntou Quadrado, referindo-se a uma daquelas redes acolchoadas presas a um pau, que um par de homens se encarregava de levar
nos ombros e que amiúde se utilizavam em Freetown como liteiras ou carros de aluguel.
- Prefiro caminhar - respondeu Stephen. - Rodearemos o mercado; talvez Jenny tenha a amabilidade de ir comprar cana-de-açúcar.
E fizeram assim, observando a concorrida e vociferante praça à direita, transbordante de fruta e talhadas de pescado com a metade da pesca de todo o Atlântico, assim
como os barracões onde pendia a carne escura e de nome incerto. Longe, à esquerda, salpicado de camelos e asnos, um pasto anônimo se estendia até a margem dos muros:
águas variáveis, salgadas, frescas, além do barro semilíquido que abundava entre mangues, e, a certa distância, o tosco edifício quadrado com seu jardim, já muito
visível.
Stephen presenteou Jenny com uma moeda de prata pela primeira cana-de-açúcar, momento em que dobraram à esquerda para depois abrirem passagem entre uma variedade
tão grande de nativos africanos e europeus como caiba imaginar, além dos numerosos árabes, marroquinos, sírios e cruzas de quase todas estas raças, incluídos alguns
cabelos que não deviam sua cor vermelha precisamente à henna. Quando deixaram a cidade para trás, não encontraram quase ninguém no caminho de suave ladeira. Stephen
caminhava com o olhar posto sobre o horizonte, no céu, onde as correntes de ar quente empurravam as aves para mais alto.
Observava com atenção uma delas: um abutre, certamente; mas que abutre? Um abutre comum, talvez? Orelhudo? Negro? Talvez um exemplar de abutre de Rüpell? Era difícil
dizê-lo com aquela luz, o sol estava mal situado para permitir-lhe distinguir as marcas distintivas da ave, que plainava no alto, levada pelo vento do sudoeste.
- Senhor - disse Quadrado, que havia parado na margem de um arroio de água potável que escorria à direita. Stephen olhou na direção que assinalava o kroo, e viu
o rastro perfeitamente desenhado no barro que um leopardo havia deixado; era a garra anterior esquerda, recente, tanto que inclusive pôde distinguir a leve impressão
de suas garras.
- Há algo chamando a atenção dos cachorros, neste... - disse Jenny. Era verdade, ainda que nem Stephen nem Quadrado consideraram adequado de sua parte dizê-lo, de
modo que a palavra "lugar" não chegou a surgir de seus lábios.
- Isto é muito mais promissor - disse Stephen.
Através de sua luneta observou a superfície da baía salpicada de aves aquáticas, além de algumas aves ancudas que havia ao longe. O ponteiro dos minutos de seu relógio
fez ting (a duras penas podia se considerar uma badalada), e interrompeu a atenta observação dos flamengos.
- Jenny, Quadrado, será melhor que continuemos - disse. - Não devemos chegar tarde.
Franquearam o portão que dava para o pátio do estábulo, onde se reuniam os inquietos e desconfiados cachorros que só Jenny, com sua presença e firmeza de palavra,
pôde conter. Dali saíram ao antepatio, onde a senhora Wood acabava de introduzir com dificuldade as pernas vendadas nas botas de montar.
- Oh! - exclamou. - Peço que me perdoe por não sair ao seu encontro. Passamos toda a noite atentos a um condenado leopardo, e os cachorros continuam muito sensíveis.
Ignoro o que pode ter chamado a atenção desse leopardo, mas... Quer umas botas forradas de lonita? Posso prometer-lhe que veremos alguma ave interessante se sairmos
imediatamente, ainda que teremos que remar ou mesmo beirar um pouco o mangue, porque as sanguessugas são um incômodo.
Disse isto do mesmo modo que seu irmão Edward teria feito, e tanto foi assim que Stephen replicou:
- Querida senhorita Christine, que amável é a senhora. Saiba que detesto as sanguessugas. - E mordeu a língua enquanto ela atava os extremos da venda de lonita com
que cobria seu calçado, pelo menos até acrescentar: - Desculpe se tomei demasiadas confianças, mas é assim mesmo como Edward e eu nos referimos à senhora.
- Ele lhe chama de Stephen, e quando falamos do senhor eu também o faço, de modo que se me permite continuarei assim, pois estou acostumada a isso.
Parecia totalmente acostumada a aquela familiaridade, por certo, e quando chegaram à margem e ela lhe falava das curiosidades daquele ambiente natural, disse sem
se preocupar:
- Olhe ali, Stephen, além daqueles gansos-pigmeus, mas antes dos flamengos...
- Christine, basta a senhora distinguir se aquela ave próxima é um flamengo-rosa, ou pertence à espécie do flamengo-anão?
- Diria que é um flamengo-anão, ainda que teremos ocasião de vê-lo melhor quando nos tenhamos nos aproximado e ele alce o vôo, pois poderemos distinguir seu bico
com maior clareza. Como lhe dizia, entre os gansos pigmeus e esses duvidosos flamengos há um banco de areia que aparecerá dentro de uma hora, mais ou menos. A água
da margem oposta é salobra, enquanto que em nossa margem a água é potável... Bastante potável, pelo menos, exceto com a maré-cheia. Mas se o senhor observar a costa
a sua direita, verá um arroio de água doce que abre passagem entre os juncos. Mais além, há uma margem escura de mangue que afunda no lodo negro, dado que o banco
de areia morde a costa. Depois, detrás, ainda que a duras penas poderá vê-lo daqui, com excessão das árvores que enraízam na beira, escorre outro arroio, de fato
um riacho, que é onde Jenny e eu costumamos nos banhar. - Stephen assentiu. - Há uma enseada além da embocadura, onde espero poder lhe mostrar uma ave esplêndida.
Oh, e muito obrigada pelo caranguejo hermafrodita; há um muito parecido a ele, ou a ela, na modesta baía de que lhe falo. Quer que nos sentemos nesta margem e observemos
as aves? Aqui o vento mantém os mosquitos na linha. Se encontrarmos uma ave atrasada talvez poderíamos capturá-la entre ambos, ou, pelo menos, tomar notas.
Havia uma grande variedade de aves na água, incluídos alguns velhos amigos como a piadeira, o zarro-negrinha, o patinho e o pato-trombeteiro, aves que pareciam achar-se
como em casa entre o próximo ganso-pigmeu, o pato-de-crista e o tui-tui-ferrão, o suiriri-de-garganta-branca e a estranha biguatinga, para não mencionar o pica-peixe-de-peito-azul
que, junto a uma patrulha composta por abutres, sulcava o céu a grande altura.
- Continuamos? - perguntou Christine finalmente. - Não lhe desgostará o mangue?
- Não, em absoluto - respondeu. - Não posso dizer que tenha planejado cultivar um, mas me acostumei a sua existência. A senhora compreenderá que tive que arrastar-me
por mangues como este e suportar seus desprezíveis mosquitos por toda a costa.
- Este mangue conta com muita água doce para prosperar. Contudo, é melhor isto a caminhar pelo espinhal que cobre a ladeira. Acredito que o melhor é que nos seguremos
aos cipós, assim como a qualquer outra coisa que se nos ponha ao alcance da mão. Não é muito digno, verdade, mas é melhor que cair de bruços nesse fedorento lodo
anegrado. Temos que avançar depressa. Começa a mover-se quando o chega esta altura.
Stephen compreendeu que Christine se referia à peculiar criatura que havia prometido mostrar-lhe, criatura que podia ser ave, réptil ou, o mais provável, mamífero.
Não fez perguntas, e não tardou em não ter sequer um respiro para fazê-las, pois voltou toda sua atenção em seguir os passos dela pela sombra.
Infelizmente, com o aumento da altura do sol e a subida da maré, Christine apertou o passo; ia muito rápida para o calçado que usava. Então a atraiçoaram uns cipós,
as varas de cor clara que desciam inertes das copas das árvores, e caiu de bruços sobre o fedorento lodo anegrado, assustando os peixinhos que nadavam na superfície,
a um variado elenco de caranguejos e às tartarugas que se alimentavam tanto de uns como de outros. Stephen se apressou a pegá-la, caiu também, e finalmente, acabaram
deslocando-se os dois de quatro, lentamente, até a margem do mangue, onde a água potável e um fundo limpo lhes permitiu sair à superfície sujos dos pés à cabeça.
Christine ofegou uma desculpa.
- Espero não tê-lo alertado - disse. - Não, o mais provável é que não. Ainda temos duzentas jardas pela frente. Incomoda-se com a nudez?
- Em absoluto. Afinal de contas, ambos somos anatomistas.
- Esplêndido - disse ela. - Afinal de contas, não tem importância. Devemos nos despir, tirar o barro da roupa e as sanguessugas do corpo. Aqui temos água limpa,
graças a Deus. Em meu bolso encontrará sal para as sanguessugas, dentro da garrafinha da tampa de cortiça. Posso ajudá-loa tirar as botas? - Assim o fez, e ele fez
o mesmo por ela. Depois se despiram sem contemplações, lavaram a roupa até tirar o barro, e a estenderam embaixo do sol sobre algumas pedras. Seguidamente, passaram
a se livrar do surpreendente número de famintas sanguessugas que tinham, cada um das costas do outro de um modo totalmente natural.
Além das modelos dos artistas e da gente dos povoados que carecem de roupa, Stephen jamais conhecera alguém a quem lhe importasse tão pouco a nudez. Ao refletir
sobre isso, lembrou do irmão de Christine, Edward, seu amigo íntimo, dizendo-lhe que ela e ele haviam se banhado, tinham estudado a natureza e pescado tal como Deus
os trouxe ao mundo, sem usar nada em absoluto desde crianças até a maturidade, tudo isso em um remoto lago que fazia parte dos terrenos da família. Muito antes,
durante a primeira visita que lhe fez, ela e a menina de raça negra haviam passado desnudas ante seu olhar enquanto observava as aves da distante costa; não só tinha
admirado naquela ocasião sua liberdade, como também a combinação de verdes, negros, cores claras e um branco mais puro que o de uma garça-branca-pequena, se bem
o fez com a mesma objetividade com que observou ao antídeo e ao cormorão. Contudo, agora, àquela altura, elegância e esbelteza de seu corpo se viu enfatizada pelas
lágrimas vermelhas que partiam das mordeduras causadas pelas sanguessugas (não fechavam, dado que as criaturas injetavam uma substância que diluía o sangue e lhe
fazia adquirir um vermelho vivo, e que lhes permitia alimentar-se por mais tempo). Estes fios de sangue realçavam a extraordinária beleza da curva de suas longas
pernas, e o interesse de Maturin, o interesse própio do anatomista, do cientista, começou a abandonar-lhe.
- Os mosquitos não tardarão em ficar incomôdos - disse Christine. - Será melhor pôr-nos a roupa molhada antes de que nos devorem. - Apesar de dizer isto, estendeu
algumas das roupas mais úmidas na rocha banhada pelo calor do sol; secou-se bem rápido, ainda que não antes de que o calor se tornasse insuportável. Vestiram-se
tão bem como puderam, e ela começou a andar murmurando: - Espero que ele não tenha partido.
Chegaram a uma última parede de juncar situada ante a isolada enseada, e naquele momento iniciou vôo uma ave enorme pertencente à família das garças, com a parte
superior azul, o restante castanho, imensas pernas verdes e um grasnido furioso que cobriu o estreito espaço de céu antes de desaparecer no mar, deixando Stephen
totalmente boquiaberto. Beijou Christine com certo ardor para mostrar-lhe todo seu agradecimento, sua mais profunda gratidão.
- Oh, quanto me alegra não tê-lo envergonhado - disse ela, ruborizada. - É sensível como um imperador romano.
- Meu Deus - disse Stephen, - parece impossível que semelhante ave possa voar! Em pensar que é capaz de voar!
Quando se recuperou da surpresa, o que tardou um pouco em suceder, e quando a roupa já tinha secado bastante, observou comprazido que, apesar do fato de que ambos
terem estado desnudos um bom momento, ela não havia abandonado certa coqueteria, como demonstrou ao arrumar o caimento de sua saia.
- Quer que voltemos para casa e tomemos um chá, antes de irmos àqueles refúgios dali? - perguntou ao mesmo tempo que inclinava a cabeça em direção a umas choças
de cana levantadas na costa; - com o pôr do sol, espero poder mostrar-lhe um autêntico prodígio da natureza. O senhor não tem que voltar ao barco agora?
- Oh, não. Se surgisse a bordo algo urgente, mandariam alguém para buscar-me. Pois outro cirurgião se encontra no barco, não acredito que se dê tal circunstância.
- Então, vamos tomar o chá; pelo menos dispomos de uma vereda cristã para voltar para casa. Será melhor pegar alguma arma quando formos ao refúgio. O pobre leopardo
está cada vez mais desesperado, temo, assim como suas insaciáveis crias.
- A senhora teve ocasião de vê-las?
- Sim. Estão abaixo de umas rochas na ladeira da colina, e se o senhor subir no tronco daquela palmeira situada a duzentas jardas, poderá vê-las na alvorada, esperando
a sua progenitora. Cravejei o tronco, e lhe asseguro que pus a perder mais de uma saia ao escorregar.
- Jenny - chamou ao entrar na casa rodeada por uma nuvem de cachorros, - diga a N’Gombe que desejamos um chá, e faça o favor de trazer um pepino bem fresco para
preparar alguns sanduíches. Stephen - acrescentou, - posso oferecer-lhe um roupão?
- Não, obrigado, querida, minha roupa está seca.
- Em tal caso, desculpe-me um segundo enquanto ponho algo decente.
Viu algumas peles estendidas na mesa de trabalho, junto aos montes de notas imprescindíveis para um comentário inteligente com respeito à Adanson, notas que Stephen
folheou com um interesse desprovido de curiosidade, ao mesmo tempo queremoia um desses curiosos problemas relacionados com a ética: pode-se matar um leopardo se
o animal adota uma atitude ameaçadora, condenando portanto suas preciosas crias a uma horrível e lenta morte? Pode disparar e esfolar certa quantidade de rolas-de-fruta
e rola-carpideira sem maior emoção que o experimentado por sir Joseph Blaine ao atravessar uma mariposa com um alfinete. Contudo, ante a pergunta: "Não destruiria
a toda a isca antes de converter-se em sua presa?", só podia responder: "Se tivesse visto uma cria de leopardo, não faria semelhante pergunta."
A porta abriu-se.
- Querida, depois de se limpar e escovar o cabelo tem um aspecto esplêndido. Diga-me, a que animal pertence esta pele? A uma rola, sem dúvida, ainda que não sei
a qual.
- À Treron thomae de Gmelin; este exemplar provém da ilha que há no golfo. Aí está o chá, quanta alegria. Nada como o chá para esquecer o desagradável sabor do lama
do mangue.
O serviu com a devida cerimônia um imenso e sério homem negro; quase imediatamente depois, serviram-se também os sanduíches de pepino e alguns doces redondos, cujo
sabor recordava o maçapão.
Desfrutaram de um bom chá enquanto as peles das aves passavam de mão em mão, tudo isso sem deixar de mencionar as debilidades que tiveram quando crianças: pãozinhos,
bolinhos, torradas com manteiga e anchovas, granizados... Uma conversa que não pôde ser mais agradável. Contudo, por fim, Stephen reparou que ela olhava para a janela
com a inquietação de quem não quer deixar-se surpreender pelo entardecer. Ele recusou outra xícara de chá, e se levantou de repente quando Christine sugeriu que
podiam ir ao refúgio. Disse também que não deviam esquecer as lanternas que iluminaríam o caminho de volta, porque assim poderiam ficar o quanto quisessem.
- Se me permite, confiarei a arma ao senhor - disse ela como se falasse de um pára-sól. Ao chegar ao saguão, pôs de novo as botas e encabeçou a marcha com passo
enérgico.
Desceram pela colina com muita luz e aquela lua crescente que iluminava a África.
- Diria que, em certas ocasiões, esqueço os bons costumes - disse Stephen.
- Não se referirá à escassa resignação que demonstrou ao despir-nos?
- Santo Deus, não. Nossos antepassados o fizeram muito antes que nós, antes sequer de inventar as tangas. Não, o que me mortifica é que nem sequer se me ocorreu
lhe perguntar uma só vez por seus açores-lagartixeiros. Diga-me, como se encontram?
- Ai, Stephen, ai. Uma águia acrobata matou a sua mãe, e não pude criá-los. Creio que conhece a águia acrobata.
- Claro. A águia mais notável, isso desde que demos por certo que se trata de uma águia, o que negam alguns naturalistas.
- Estava no pátio, pendurado no poleiro, e a águia caiu sobre ela com um ruído similar ao que faz um falcão peregrino quando se abate sobre a presa, mas duas vezes
mais alto. Perseguiu-a até o interior do estábulo e a matou imediatamente. Hassan retirou o corpo, pegou a águia com uma rede e ali a deixou, na escuridão. Era (é)
uma ave jovem, feroz ante o menor sinal de ameaça, mas não tardamos em nos dar bem. Tem uma inteligência surpreendente, é capaz inclusive de ser amável; sim, nós
nos damos muito bem. Eu a soltei, e mesmo agora (já que este é seu território) pousa em meu ombro de vez em quando para me perguntar como estou.
- Gostaria muito de vê-la. Pelo menos trata-se de uma ave que ninguém confundiria: não tem calda, carece por completo de calda. Lembra uma guadanha voando a grande
velocidade. Magnífica forma de girar. Diga-me, que me conta dos morcegos?
- Devo confessar que não prestei muita atenção aos morcegos, não tanto como deveria, pelo menos. Existe tal miríade de aves... Uma delas, por certo, alimenta-se
de morcegos, além da petinha. Na realidade é uma espécie de abutre, de tamanho médio mas de uma extraordinária agilidade, como poderá o senhor imaginar. Captura
ao morcego com as garras posteriores, em pleno vôo. Somente conheço dois casais. Já chegamos, e aqui tem esta espécie de terrapleno que leva ao lugar (não me atrevo
a chamá-lo de casa), ao lugar desde o qual meu marido e seus convidados costumavam caçar patos e gansos menores. O senhor pode ficar ali, ver sem ser visto: excelente
lugar se desfruta vendo aves ancudas e outros seres voadores que povoam os juncos. Cuidado com o terrapleno, aqui tem uma corda.
Havia luz no interior da cabana. Seus olhos tinham se acostumado ao resplendor do crepúsculo e em pouco tempo começaram a desfrutar da visão de centenas de gansos
e patos.
- Querido Stephen - disse ela, virando-o suavemente para a margem e as árvores, - deve olhar nesta direção. Oh, desejo com todas minhas forças que a maravilha dos
nove dias não tenha esquecido nosso encontro. Aqui abunda o bacurau, como bem saberá... Ouve o canto de um, a oeste?
- Bendita ave. É nosso bacurau europeu, estou certo?
- Sim, mas me referia ao grave grasnido que soa à esquerda.
Prestou atenção, distinguiu o som e disse:
- Trata-se sem dúvida de alguma espécie de bacurau, creio. É o grasnido de rigor. - Cessou o ruído, e ambos permaneceram imóveis, escutando; de repente, ela lhe
tocou o braço.
- Olhe, aí, aí está minha ave - sussurrou. - Espero que se aproxime.
Stephen reparou no agudo e duradouro arrulho, e ao aguçar o ouvido notou que o canto cedia um tom, de modo que teve a impressão de ouvi-lo mais perto.
- Não se mova - murmurou Christine.
Ambos permaneceram tensos, tensos seus corpos, tensos seus sentidos, tensos. Recortado contra a claridade do entardecer, voou uma ave a vinte jardas do lugar onde
se encontravam. Parecia o vôo de um bacurau, mas era distinto, suas asas tinham duas imensas e alongadas penas de vôo de ambos os lados, penas que pareciam ficar
atrás e que praticamente dobravam sua envergadura. Com uma instantânea mudança de direção, caiu sobre uma traça, capturou-a e voou até perder-se na escuridão das
árvores.
Ela tinha agarrado seu braço; chegado esse ponto, soltou-o.
- Ele veio - disse, - alegro-me tanto. Pôde vê-lo bem, Stephen?
- Com total clareza, e estou assombrado, assombrado. Obrigado, muitíssimo obrigado por mostrar-me, querida Christine. Meu Deus, que beleza! Que exemplar! Fale-me
dele.
- Sei muito pouco. É o Gaprimulgus longipennis de Shaw, pouco comum nesta zona, sobretudo com a plumagem de acasalamento completa. Vi somente dois desde que vivo
aqui. E a assombrosa calda, por certo, é uma das muitas coisas destacáveis nele. Não sei como consegue levantar vôo, sobretudo quando está em terra. Temos outro
bacurau com uma plumagem muito exagerada, trata-se do Macrodypteryx vexillarius, mas as suas são pontiagudas, e não espessas nas extremidades como as de nosso...
exemplar. Em qualquer caso, não tive ocasião de realizar observações confiáveis de ambos, nem de seu parente de calda comprida.
- Não teria perdido por nada. Pensando bem, essa plumagem dificulta a eficácia da ave, assim como ocorre no caso da ridícula calda do pavão real; e o mesmo sucede
com a magnífica flor que desenvolve a bulbácea Ave do Paraíso que, mesmo assim, vive e inclusive floresce, e me pergunto se não serão nossas convicções a respeito
ou, pelo menos minhas própias convicções, que estão erradas.
- Ali está outra vez. E outra, a ave de calda comprida.
Ficaram em silêncio, relaxando pouco a pouco.
- Aí tem o nosso mocho-d’orelhas - disse Maturin. Cruzou um pato, uma piadeira a julgar pelo som de suas asas, que terminou pousando em terra a uma centena de jardas
de distância, com um ruído surpreendente que não fez senão quebrar a quietude do crespúsculo.
- Stephen - disse ela, finalmente. - Temo que o senhor está incomodado. Quer ficar sozinho alguns minutos? Assobie quando queira que volte.
- Não, querida - replicou, - não se trata do habitual caso físico, senão da melhor forma de formular meu pedido de um modo razoável, aceitável. Em resumo, direi
que me alegraria infinitamente que a senhora aceitasse casar comigo. Contudo, antes de que me peça que guarde silêncio, permita-me pelo menos argumentar quanto possa
em meu favor. Admito: estou longe de poder considerar-me atraente, ainda que de um ponto de vista médico estou são, e não possuo vícios comentáveis. No material
acredito poder dizer que sou o que geralmente se tem por próspero, possuo uma casa antiga e uma propriedade considerável na Espanha, e poderia adquirir sem maiores
dificuldades uma morada decente ou umas habitações em Londres, Dublim ou Paris, se for o caso. Tanto em minha profissão como na armada não poderia ir melhor. Meus
piores inimigos mentiriam se afirmassem que sou um folgado, viciado no jogo ou à garrafa. E embora não possa negar que sou filho ilegítimo e que minha Igreja é a
romana, não creio (não gostaria de areditar) que para uma pessoa de sua inteligência constituam um obstáculo estes detalhes, sobretudo tendo em conta que não hospedo
pretenções de nenhum tipo. Finalmente, gostaria de acrescentar que, como a senhora saberá, sou viúvo (sua carta me tocou o coração), e que tenho uma filha.
Após um momento, um momento durante o qual escutaram o arrulho de pelo menos três bacuraus distintos e de uma coruja, Christine disse:
- Stephen, o senhor me honra com seu petido, e me envergonha mais do que posso expressar com palavras ter que pedir-lhe que esqueça o assunto. Fui casada, como o
senhor bem sabe, e meu matrimônio foi muito infeliz. De um ponto de vista médico, também eu estou sã, e também desfruto de uma posição desafogada. Contudo (e sei
que me dirijo a uma pessoa decorosa), meu marido era incapaz de responder aos aspectos físicos do matrimônio e suas vãs tentativas para superar tal defeito me produziram
o que, acredito, seja uma inapagável aversão por tudo o relacionado com este aspecto: todo o conjunto me dá uma sensação um desejo violento e, por certo, inútil,
de posse e de domínio físico. Esta impressão se viu sem dúvida reforçada pelo medo e o desânimo. - E em um tom totalmente distinto, depois de guardar silêncio durante
um tempo, acrescentou: - No transcurso de sua carreira como médico, diria que se trata de algo normal em uma mulher jovem casada?
- Não se pode dizer que tenha me topado com um caso no qual as circunstâncias sejam tão extremas como o da senhora - disse depois de refletir, - mas sei quão amiúde
a tristeza e a dor de um matrimônio surge de uma carência de compreensão física, para não mencionar a inépcia, o egoísmo, uma total ignorância...
- E uma espécie de hostilidade, de ressentimento...
- Verdade, verdade. Por favor, apague de sua mente no possível minhas egoístas e estúpidas palavras. Vejamos se podemos agora nos centrar em trocar impressões com
respeito à Adanson. Creio distinguir duas lanternas que se aproximam por entre as árvores.
- Oh, querido - disse ela, pegando sua mão. - Temo tê-lo ferido, e lamento muito porque é o homem a quem mais aprecio dos que me pediram em matrimônio. Stephen,
lamento tanto...
Ao oeste, o bacurau tinha começado de novo o canto, o arrulho, pelo visto sem tomar ar. Para afastar de seus pensamentos a tristeza que sentia, Stephen tomou-se
o pulso. Contara até setenta e cinco quando a ave cessou seu canto. As luzes se achavam no limite do bosque, e só então se deu conta de que Christine estivera chorando.
De regresso à casa, ela lhe pegou pelo braço e, ao chegar, ambos compartiram uma deliciosa e curiosa janta à base de verdura africana que desconhecia por completo,
além de ovos e um vinho branco tolerável; depois, pudim de amêndoa, seguido por um excelente madeira.
Depois de deixar de um lado os pratos, ela lhe mostrou a assombrosa pele do Caprimulgus longipennis e lhe falou da importância nigromântica daquela peculiar plumagem
nas supersticiosas crenças locais.
- Quanto mais tempo passo na África - comentou enquanto tomavam um café péssimo e um rum excelente, - e quanto mais sei dos africanos, mais perto estou de alcançar
uma espécie de difuso panteísmo.
Após um momento, quando ambos recobraram um pouco o ânimo, voltaram a falar disso.
- Sei que minha teologia angustia muito aos missionários, mas não me preocupam nada, não muito, pelo menos. Às vezes conheço a algum missionário que também é naturalista,
e se se adentra no frondoso pode desfrutar de grandes oportunidades. Estou segura de que o senhor já ouviu falar do pavão real do Congo.
- De fato, ouvi falar amiúde dele, ainda que jamais uma testemunha digna de crédito me o tenha descrito.
- Enfim - disse ela enquanto investigava o interior de uma gaveta, - eu não diria que esta seja uma prova definitiva - disse então, mostrando-lhe uma pena verde,
- mas a ganhei de um velho... franciscano, acho, um católico em qualquer caso, que morreu antes de poder embarcar; disse sem gabar-se em absoluto, sem pretender
impresionar-me, que, estando no Congo, havia arrancado do lombo de um pavão que acabava de morrer. Esqueci o nome do lugar concreto, mas a ave vivia em liberdade.
- Meu Deus, Christine - disse acariciando a pena, - há me surpreendido e enfeitiçado três vezes hoje. A enorme garça, o extravagante e mais que inverossímil bacurau
e agora esta mítica e legendária pena de pavão real do Congo, por cuja autêntica existência estaria disposto a apostar a alma. Lamento muito que não queira casar-se
comigo, mas entendo seus... Como dizer? Sua pouca disposição.
Havia transcorrido um espaço de tempo surpreendente, de tempo emocional, entre o momento em que se declarara e o atual, que ocorria em um contexto totalmente distinto.
Ela sorriu, tomou um trago de rum, deu-lhe uma palmada no joelho e disse:
- Diga-me, Stephen, caso tivesse aceitado sua encantadora proposta, como teria disposto o aspecto puramente material do matrimônio? O senhor mencionou que tem uma
filha. Quantos anos tem?
- Envergonha-me admitir que não o sei. É muito jovem, isso é certo. Não anda perto da pubertade.
- E o senhor se empenhou com seu amigo em uma viagem distante e importante?
- Isso mesmo - respondeu Stephen, que dedicou uma olhada um pouco desolada para um e outro lado. - Acredite, já tinha pensado nisso. Asseguro - apressou-se a acrescentar
- que não fui totalmente egoísta nisto. Tinha uma excelente solução. Veja, minha idéia consistia em que a senhora fosse à Inglaterra, onde poderia conviver com Sophie
Aubrey, uma mulher encantadora e uma velha amiga minha; tem duas filhas e um menino, cuida de Brigid, minha filha, e vive em uma grande casa em Dorset rodeada de
amigos e de um respeitável conjunto de serventes. Depois, acho que tão somente posso qualificar de minha mente difusa (em outras palavras, o conjunto de meus desejos)
que eu voltaria do mar, e que juntos poderíamos planejar que rumo tomariam nossas vidas: Inglaterra, França, Irlanda ou Espanha, ou qualquer combinação das anteriores
conforme seus desejos.
- Meu querido, meu querido - disse Christine com um suspiro, antes de acrescentar depois de escutar a pontual campainha do relógio de Stephen: - É um relógio isso
que ouvi? É possível que sejam as doze?
Stephen pegou o relógio do bolso do colete.
- De fato, são doze horas, conforme a precisa medição da altura do sol que se fez a bordo ao meio-dia.
- Oh, que coisa mais bonita. Voltará a tocar?
E assim o fez.
- Gosta? - perguntou Stephen.
- Acho que é precioso. É o que se conhece por relógio de repetição?
- Sim, senhora.
- É a primeira vez que vejo um.- estava fascinada.
Ele o colocou em sua mão, mostrou para que serviam os botões e disse:
- Querida, é todo seu. Um diminuto gesto de reconhecimento por todo o prazer que me proporcionou hoje.
- Oh, que bobagem, Stephen, querido - replicou ela, contendo um sorriso. - Compreenderá que não posso aceitar semelhante presente, ainda que possa agradecer-lhe
um milhar de vezes pela intenção. - Colocou com suavidade o relógio em cima da mesa, levantou-se e acrescentou: - Vamos, já é tarde. Permita-me mostrar-lhe seu quarto.
O aposento era cômodo e ventilado, e as janelas serviam de marco para a lua minguante.
- Suponho que não terá trazido uma camisola, Stephen - disse ela enquanto corria as cortinas. - Quer que lhe empreste um dos meus?
- Não, por Deus, querida. Vou me contentar em dormir sobre minha pele, como Adão antes de descobrir o pecado.
- Boa noite, Stephen. Aí tem a água, uma toalha e sabão. Confio em que durma bem.
- Boa noite, querida. Partirei antes do amanhecer, pois terei de caminhar para voltar a bordo. Permita-me, portanto, despedir-me da senhora agora.
Não acrescentou nada mais, e durante um longo tempo permaneceu acordado, boca para cima, com a cabeça apoiada em ambas mãos; tinha a sensação de que a absoluta resistência
de Christine havia começado a fraquejar. Repassou mentalmente tudo que havia sucedido naquele dia, enquanto longe, muito longe, dois, três e mesmo quatro bacurau
distintos cantavam em tons diferentes.
Christine se reunira com ele para desjejuar, "Talvez porque me despedi tão precipitadamente...", pensou Stephen.
- Lamento ter lhe entristecido - disse ela incomodada, uma vez trocados os cumprimentos de rigor.
- Desconhecia por completo seus mais que tristíssimos motivos - respondeu ele. - Foi muito pouco perspicaz de minha parte. Mas antes de despedir-me da senhora, permita-me
dizer que pelo que me diz respeito o matrimônio não tem por que comportar necessariamente a posse, nem, muito menos, a dominação.
- Stephen, lastimar-lhe ao senhor seria o último que faria no mundo. Está a ponto de empreender uma longa e espero que frutífera viagem. Permite-me meditar melhor
enquanto o senhor estiver fora? Talvez troque de opinião, talvez também mude ou recupere o modo de pensar e sentir própio de uma mulher normal. Porém, querido -
disse depois de uma longa, longa pausa, - o senhor não deve sentir-se comprometido em nem um pouco; não, em absoluto. - Stephen inclinou a cabeça; depois de servir-lhe
mais café, Christine acrescentou titubeando: - Não me disse que os Aubrey viviam em Dorset? Dentro de um mês partirei para a Inglaterra para visitar alguns primos
que residem perto de Bridport, e se posso servir-lhes de correio, não têm os senhores mais que me pedir.
- A senhora nos faria um grande favor. Sei que o capitão Aubrey tem uma pilha de papel escrito em letra pequena; eu mesmo tenho correspondência. Porém, diga-me uma
coisa, ainda que se trate de uma pergunta pessoal que detesto lhe fazer: Não lhe importa viajar?
- Meu Deus, não, em absoluto. Vou à Inglaterra amiúde. Às vezes Jenny me acompanha, outras viajo totalmente sozinha. Acho que os homens, sobretudo os marinheiros,
mostram-se muito amáveis com as mulheres que se valem por seus própios meios. Basta-me com um só baú. A cada mês ancora na costa um espaçoso e enorme mercantão português.
Ele me desembarcará no Pool, como de costume, e os agentes me levarão e ao baú a Grillons, que é onde costumo me alojar. Depois de um ou dois dias de compras, tomo
um carro postal, simples assim.
- Certamente. Conheci muitas mulheres capazes de viajar sozinhas para e desde a Índia. Não sei por que estúpido deslize me ocorreu pensar que a África Ocidental
se encontrava muito mais longe. Se me permite, eu lhe enviarei nossos pacotes sem mais demora, pois amanhã partiremos.
- Adeus, querido Stephen - disse ela no umbral da porta.
- Adeus, querida Christine. Que Deus a bendiga.
Afastou-se caminhando da casa um pouco depois de sair o sol sem que os cachorros que vagueavam em um extremo do pátio lhe dedicassem mais que uma olhada desaprovadora
ou inquisitiva. Era uma manhã limpa e fria, e uma revoada de rouxinóis voou sobre sua cabeça ao sentar-se a meio caminho colina acima para observar as águas. Os
patos tinham desaparecido, mas os flamengos estavam em plena agitação, e se entreteve pensando que, oculto pelo cinturão formado pelo mangue, quase podia distinguir
a impressionante silhueta do inverossímil Ardea Goliath.
Levantou-se para subir a colina, e o fez a passo lânguido, pois mesmo uma breve temporada no mar tornava árduo o fato de caminhar em terra firme por um tempo. Contudo,
havia algo em seu interior que ardia esperançoso. Apesar de tudo o que tinha meditado com respeito à possibilidade de desfrutar de um futuro feliz, e o modo com
que havia recordado as maravilhas vistas no dia anterior, seu estômago não deixou de protestar, sobretudo ao perceber o aroma do café que surgia da porta sul. Os
serventes de Christine, ainda que leais e tão de confiança que podia ausentar-se da casa sem maiores problemas, careciam da virtude essencial de saber preparar o
café. A servidão tomava chá, e a água suja marrom daquela manhã (o que tinha sobrado do dia anterior) foi a única concessão que fizeram ao convidado, pobre diabo.
Quando atravessou a muralha, caminhou direto para um lugar de aspecto decente situado na esquina do mercado, pediu uma cafeteira, e ouviu Jacob dizer:
- Bom dia, querido colega. Importa-se que o acompanhe?
Stephen respondeu que nada no mundo podia comprazer-lhe mais.
- Se não fosse meu superior - disse Jacob depois de algumas poucas preliminares, - eu me atreveria a dizer que leva um pouco longe a discrição ao não me perguntar
o que faço, em que ando metido, por que estou aqui e quem cuida de nossos pacientes. Mas o caso é que é meu oficial superior, de modo que sem necessidade de que
me formule as perguntas anteriores direi de forma voluntária que outros dois barcos de guerra chegaram pouco depois de você partir com Quadrado e a pequena. Seus
respectivos capitães compareceram a bordo pouco depois, e pela tarde começamos uma competição de três tipos (partidas de críquete, campeonato de boxe e corridas
entre diversos botes). Tinham pensado repetir tão esgotadores esforços hoje mesmo, e inclusive fazê-lo em maior escala, junto a uma competição para determinar quem
aferra antes o aparelho, e uma de pontaria com os canhões. Tudo isso cronometrado, pelo amor de Deus. Não suporto isso, de modo que fugi quando surgiu a ocasião
de fazê-lo. Se me meto no meio, empurram-me, insultam-me e inclusive me maldizem. A respeito dos pacientes, não existem, não há pacientes acamados, todos os enfermos
se declarama si mesmos curados. Nem um só, além de um jovem do Erebus a quem seu amigo Hanson derrubou de um golpe mal-intencionado. Na realidade não é mais que
de uma leve comoção, ainda que seus companheiros de rancho fingem sentir-se infinitamente preocupados e juram que se for mortal passarão pela quilha ao Leão do Atlas,
que é como chamam o nosso campeão, e o farão depois de estripá-lo. O empenho e a animação que se estendeu por estes três barcos, além das diversas exibições de destreza
náutica, superam minha capacidade de compreensão. A maioria dos oficiais se mostram tanto ou mais preocupados com essas questões que os marinheiros, ainda que devo
dizer que o capitão Aubrey parece um pouco agoniado. Talvez se não tivesse assuntos oficiais que resolver em terra, acabaria sucumbindo a todos esses joguinhos incompreensíveis
para mim. - Serviu-se de mais café, arrancou umas seis polegadas de pão brando e, observando com atenção ao seu velho amigo, perguntou: - Stephen, está satisfeito
com a saúde do capitão?
- Com sua saúde física?
- Poderiam ambas separar-se?
- Às vezes, sim, ainda que, para dizer a verdade, ambas costumam ser muito mais que muito relacionadas.
- Suas luzes parecem ter apagado.
- Sua mulher empregou mais ou menos as mesmas palavras.
- Enquanto que as suas, se me permite dizer, Stephen, brilham como um sol resplandecente. Espero, meu amigo, que não lhe desagrade o meu modo de falar. - Como era
habitual, conversavam no Francês de sua juventude. - Afinal de contas, faz anos que nos conhecemos.
- Sim, Amos. E não, não me desagrada em absoluto seu modo de falar. Se provém de você, claro. Tentarei fazer com que o deslustre de suas luzes (fenômeno cuja existência
admito sem reservas) seja mais compreensível: no que concerne à Armada Real, eu, por exemplo, sou um oficial adjunto, folgadamente adjunto, a serviço. Ele, contudo,
pertence em corpo e alma à armada, e o êxito ou o fracasso em sua carreira sempre tiveram, e têm, a maior importância. Conseguiu chegar longe, é capitão de navio
e seu nome se encontra inscrito no alto da lista de capitães de navio. Contudo, encontra-se naquele momento em que alguns membros do grupo com mais ou menos a mesma
antiguidade são escolhidos para ascender ao Estado Maior, na qualidade de contra-almirantes da Esquadra Azul. De jeito nenhum ascenderão todos. Aqueles a quem não
o fazem, aqueles a quem se ignora, são conhecidos em termos coloquiais como almirantes em terra ou almirantes amarelos, almirantes ao comando de uma esquadra inexistente.
E com isso termina a esperança do pobre infeliz, não tem volta. O mérito guarda relação com este passo vital, mas a influência tem mais importância, a influência
política ou familiar, muito, muito mais. Jack Aubrey nem sempre se mostrou "hábil" de um ponto de vista político. Tem um medo atroz de abrir as páginas da Gazette
nos próximos meses e ver que homens mais jovens no serviço obtiveram a insígnia, uma insígnia azul que içar no pau da mezena; se não me falha a memória, trata-se
de uma bandeira muito importante para ele, uma insígnia que perseguiu durante anos com tanto afinco como caiba imaginar. Agora que já não estamos em guerra, agora
que praticamente não existe possibilidade de distinguir-se em combate, é compreensível que suas luzes tenham, pelo menos, atenuado, inclusive existe a possibilidade
real de que se apaguem por completo. Não há nada que possa voltá-las a acender, nada exceto esse condenado retalho de tecido. Nada. - Fez uma pausa, e continuou:
- A doença, o mal que atormenta seu ânimo, é conhecido na armada como insignianitis, e afeta praticamente a totalidade dos capitães de navio ambiciosos que se aproximam
ao momento decisivo. Raras vezes tive a oportunidade de seguir de perto um caso, pois servi sempre sob as ordens de um único oficial, mas amiúde pude falar a respeito
com meus colegas, e estes se mostraram de acordo na hora de dizer que os afetados (ou seja, todos com excessão daqueles oficiais que por êxitos, contatos familiares
ou influências políticas diretas dão por certo sua ascensão) padecem de ansiedade, perda do apetite e joie de vivre, enquanto que amiúde se vêem prejudicadas aquelas
funções que temos por essencialmente masculinas, de tal maneira que os médicos tem observado ou bem uma impotência virtual ou uma atividade insalubre. No caso que
nos ocupa, não se dão os extremos, mas sim há certo afogo, pouca se é que há algo de música, enquanto que tão somente o verá jogando xadrez, baralho ou gamão por
compromisso.
Voltaram a derramar sua atenção ao café, enquanto, sentados, meditavam o assunto.
- Amos - disse finalmente Stephen, - houve um tempo em que sírios e armênios conviveram neste lugar, homens de negócios, agentes. Conhece a algum? Não é de vital
importância, mas me agradaria investigar um mercantão português que passará na Inglaterra, a bordo do qual embarcará uma dama amiga minha.
- É claro, querido amigo - disse Amos, encantado. - Você se refere a meu própio primo, o representante de Lloyds neste porto. Quer que lhe o apresente?
Stephen apalpou o colete em busca do relógio. Não o tinha, claro, em seu lugar sentiu uma pontada de alegria, e o relógio da igreja lhe informou de que eram as nove.
- É muito amável. Porém, quererá ele, ou algum de seus empregados, aceitar um encargo tão modesto? Somente quero encher sua cabine de flores, ou melhor fazer que
a encham de flores. Pois nós partiremos amanhã, e o mercantão não ancorará aqui até dentro de um tempo, as flores terão que ser colocadas por um representante meu.
- Estou convencido de que ficará encantado de fazê-lo. Outra cafeteira?
- Obrigado, mas acho que deveria embarcar quando conheça ao seu amável primo.
- Eu o acompanharei, se me permite. Sua antiguidade, seu olhar austero, talvez sirvam de salvaguarda para o comportamento rude. Seja como for, esta manhã pretendiam
voltar a dedicá-la ao pugilismo, de modo que talvez tenhamos baixas sérias que atender.
Ambos médicos se dirigiram a bordo depois de resolver felizmente o assunto do mercantão e das flores, aproveitando um descanso na febril atividade da Surprise. "Despedace-o,
companheiro, Faça picadinho", gritavam a bordo enquanto se davam e recebiam os apaixonados golpes. Alguns de seus amigos lhes deram uma mão para subir a bordo.
- Obrigado, senhor Hanson - disse Stephen, a salvo já no convés. - Mas - acrescentou, observando o jovem, - temo que o senhor esteve nas guerras.
Tinha um olho inchado e sangue seco no lábio inferior, além de um inchaço na orelha esquerda.
- Veja, senhor - protestou Hanson com um sorriso alegre que deixava ver todos os dentes em seu lugar, - pratiquei um pouco.
- Mesmo assim, será melhor que me acompanhe abaixo e me permita dar um ponto ou dois nessa sobrancelha.
Sentado em um tamborete, enquanto o doutor preparava a agulha, Hanson lhe explicou que seu adversário, um segundo do piloto de derrota do Héctor, ainda que forte
e astuto, não tinha nem idéia da direta de canhota na garganta. "Não no queixo, senhor, mas na garganta. Nada melhor para deixar um oponente fora de combate que
um decidido golpe na garganta."
- Não, suponho que não - disse Stephen. - Agora, tenha a amabilidade de inclinar-se e conter-se quando sinta a espetada. Agora. Bem feito. Voltará a boxear?
- Não até depois de almoçar, senhor; dizem que ele não é má pessoa.
- Mesmo assim, fará bem em afastar-se caso pretenda golpear-lhe a cabeça, afastar a sobrancelha e retroceder como um caranguejo. Agora devo ir ver o capitão. Estará
na cabine, suponho.
- Sim, senhor. Muito obrigado por cuidar de mim.
O capitão Aubrey se encontrava em sua cabine, inclinado sobre pilhas de papelada oficial atadas com fita negra ou vermelha.
- Aí está - exclamou, levantando a cabeça com um sorriso; depois de escrutinar o rosto de Stephen, acrescentou: - Espero que traga boas notícias.
- Isso mesmo - disse Stephen. - Não tão boas como teria desejado, pois a dama, sem que isso possa surpreender-me, recusou minha proposta. Contudo, disse que a consideraria
enquanto estivéssemos de viagem. E se ofereceu para levar nossa correspondência à Inglaterra. Pelo visto planeja visitar alguns primos que residem perto de Bridport,
de modo que lhe rogo, querido Jack, que escreva para Sophie e lhe peça que convide a senhora Wood.
Gostaria que ambas se simpatizassem, e que não apenas conhecesse a Sophie e às crianças, mas também a minha Brigid. Seria tão feliz se se amassem.
- Não vejo motivo para que suceda o contrário. Estou seguro de que a senhora Wood e Sophie, que Deus a bendiga, dar-se-ão muito bem. Brigid é uma criaturinha muito
afetuosa, e agradecerá a amabilidade e a atenção. Minhas meninas, por serem maiores, não lhe escutam como deviam... amiúde pensei em mencioná-lo, porém, como diz
Sophie, ela não as trata de forma distinta. Minhas filhas tendem a se mostrar... ciumentas. É terreno delicado onde adentrar-se, entenda-me. Às vezes um estranho
pode fazer mais que um membro da própia família. Sem dúvida Brigid e a senhora Wood se darão maravilhosamente bem; eu a aprecio muitíssimo, e também a admiro, se
me permite dizer. Quer que Sophie lhe peça que fique com ela até nossa volta? Temos quartos de sobra, sobretudo desde que Clarissa se casou e vive com seu esposo.
- Seria um detalhe muito amável, mas pensa em viajar para Northumberland para visitar seu irmão Edward, muito meu amigo e filósofo natural a quem creio terá visto
de vez em quando nas reuniões da Royal Society. Além disso, duvido que queira abandonar durante tanto tempo sua casa africana. Costuma viajar amiúde, sozinha ou
com um ou dois serventes. Planeja subir a bordo do Gaboon no próximo mês; trata-se de um espaçoso mercantão português, a bordo do qual já navegou em ocasiões anteriores.
O barco a levará a Londres, e se ofereceu para entregar algumas de nossas cartas. Permanecerá ali alguns dias e depois tomará uma carro postal ao sul. Entre nós,
direi que é bastante rica.
- Tanto melhor. Sem dúvida isso facilita a viagem. Meu Deus, Stephen, alegra-me tanto tudo o que me conta. Tomará uma taça de vinho, suponho.
- Se tem a amabilidade. Ficarei encantado de tomar uma taça de vinho contigo, querido, mas antes, Jack, permita-me dizer que o paquete do governo partirá com a maré
alta depois de amanhã, e que se pudesse adjuntar a sua carta para Sophie umas linhas de minha parte, ficaria muito, mais que muito agradecido.
Jack fez soar a campainha, e sem que isso fosse motivo de surpresa a porta se abriu no mesmo instante, por onde apareceu um rosto feio e de expressão interrogativa
que em vão tentou dissimular um sorriso.
- Killick - disse Jack, - o que pusemos para esfriar na rede?
- Três do Reno, senhor, e duas dúzias de champanhe.
- Então levante um duas champanhes, pode ser?, e traga imediatamente meu melhor papel e um tinteiro novo.
- À ordem, senhor. Champanhe e papel (o melhor). Ah, o senhor Hanson está tirando a roupa para sua briga com aquele teimoso gavieiro da Polyphemus.
- Quer vê-lo, Stephen? Um ou dois assaltos, pelo menos - perguntou Jack.
- Claro que sim. Você mesmo me indicará os golpes mais certeiros, mas não permitamos que o vinho perca a frescura que possa ter.
Improvisara-se um aceitável quadrilátero no castelo de proa, graças à bagagem, a cabos pequenos e aos pontais. Ambos os jovens estavam em seus respectivos cantos,
escutando os conselhos de seus maltratados segundos. Ao soar o sino, sentiram um calafrio, aproximaram-se passo a passo ante uma linha imaginária no meio do quadrilátero,
e começaram a se golpear com singular ferocidade. Era o último combate da categoria de peso leve, e ambos ansiavam ganhar o título para seu barco, e também para
eles, ainda que o último parecia menos evidente. O gavieiro da Polyphemus, gordo e forte, gostava de fechar e castigar as costelas, o peito e, se possível, os lados.
O jovem marinheiro da Surprise, mais ágil, mantinha a distância, jogando o punho esquerdo ao rosto ensangüentado de seu adversário. Nos três primeiros assaltos,
não teve oportunidade de alcançar o duro queixo do jovem o bastante para jogar-lhe para trás sua cabeça. As sussurradas orações de Jack e Stephen, e os audíveis
conselhos dos marinheiros, não serviram de nada, pelo menos até o quinto assalto, quando o gavieiro baixou a guarda, fez para evitar um golpe contundente no nariz,
inclinou-se para trás, cabeça e tudo, deixou ao descoberto a garganta e recebeu o último, definitivo e asfixiante golpe.
Jack felicitou aos ofegantes e exaustos lutadores, e fez entrega da taça de prata. Depois descobriu que a Polyphemus havia vencido a Surprise na corrida que os cúteres
tinham realizado nas águas do porto. Desfrutaram com alegria do festim encomendado pela Surprise; presidido por Harding, devido ao capitão estar ocupado com a papelada.
Naquela noite, todos a bordo eram conscientes de que zarparíam com a maré-cheia.
CAPÍTULO 6
- Confiados à sabedoria e piedade do pai eterno Deus nosso Senhor - disse o capitão Aubrey, - entregamos este corpo às profundezas, na espera do dia do juízo, no
qual as almas de todos os homens sejam chamadas na presença de Deus Todo-poderoso. - E Harding, imediato, dirigiu ao contramestre uma inclinação de cabeça quase
não perceptível. Ao descobrirem-se todos, inclinou-se a capa de escotilha para descarregar seu peso em meio ao balanço, e a onda o devorou sem deixar nem rastro.
Foi assim como Henry Wantage, ajudante do piloto de derrota, afundou no ato, costurado à maca e com a companhia de quatro balas redondas a seus pés.
- A última vez que li essas palavras, não tinham passado nem dez dias desde que abandonamos Freetown - disse Jack na cabine, - e sabe Deus que tive que pronunciá-las
depois de mais de um combate; mesmo assim, elas me comovem cada vez que o faço, e sempre, sempre, gaguejo no final. Sobretudo no caso do pobre Wantage, que sofreu
tanto em Funchal.
Stephen lhe serviu mais café.
- Claro - disse, - e eu o sinto por esses dois pobres garotos que perdemos por culpa da febre amarela. No final, Jacob e eu acreditamos que poderíamos salvá-los,
mas não estava escrito que fosse assim.
- Além do que presenciei depois de um combate particularmente sangrento, não recordo ter visto um camarote dos guardas-marinhas tão desfeito. Só dispomos de um segundo
do piloto, e neste momento o pobre senhor Woodbine quase não se mantém em pé para realizar a guarda. - Refletiu enquanto tomava mais café, e finalmente fez soar
a campainha. - Chamem o senhor Hanson - ordenou.
- Ao senhor Hanson, senhor - respondeu, austero, Killick. E aquele nome correu de boca em boca por toda a embarcação.
- Senhor? - perguntou o garoto, o mesmo e muito jovem senhor Hanson em pessoa, que era óbvio que estivera chorando.
- Sente-se, senhor Hanson - disse Jack. - Faz muito pouco, o senhor Adams me assinalou que contava o senhor no rol com muito tempo no mar.
- Sim, senhor. Meu tio teve a amabilidade de apontar meu nome no rol de tripulantes do Phoenix e de alguns outros barcos, antes de que eu pudesse vestir calções.
- Precisamente. Muitos capitães fazem o mesmo. Devido a isso, o senhor é por lei superior em antiguidade a muitos dos jovens que penduram sua maca no camarote, ainda
que seja mais jovem que eles. Pois tem mais conhecimentos de navegação que eles, eu me aproveitarei do espaço de tempo que em teoria o senhor passou no mar para
nomear-lhe segundo do piloto de derrota. O senhor Daniel é mais velho que o senhor, e talvez esteja mais capacitado, mas com o tempo que o senhor conta em seu favor,
não podemos permitir que ele ascenda antes, e estou convencido de que ele conhece o bastante a armada de forma a aceitar essa aparente injustiça sem guardar algum
rancor pelo senhor. Ambos constituirão um grande apoio para o senhor Woodbine. O senhor ocupará hoje o lugar do pobre senhor Wantage na guarda do segundo quartilho.
- À ordem, senhor. Obrigado, muitíssimo obrigado, senhor - disse Horatio, que parecia confuso, incomodado e algo contente.
- Entre, então. Diga ao camarote que dou estas ordens por cumpridas. Talvez não agradem ao senhor, e talvez tampouco a eles lhes agradem, mas terá o senhor que organizar
um banquete no último dia do mês. Se quer convidar os companheiros da Ringle, eu mesmo lhe proporcionarei uma garrafa de vinho por cabeça, pela honra do barco. É
o costume, já sabe. - Quando Horatio se retirou, Jack disse: - É um bom menino. Não lhe agrada minha decisão, e a eles tampouco. Contudo, não acredito que o despedacem
agora que lhes demostrou de que madeira é feito. Seja como for, John Daniel não permitirá; tem autoridade no camarote, ainda que não tenha muito tempo a bordo.
A nomeação foi acolhida com certos burburinhos no camarote, mas se celebrou com a aprovação de todos nas cobertas inferiores, cujos integrantes davam mais valor
à coragem física que aos conhecimentos mais precisos de náutica, embora o senhor Hanson não carecesse deles.
Minha querida Christine - escreveu Stephen na página dezessete de uma carta sequencial que enviaria a Dorset do Rio de Janeiro, ou por mediação dos bons ofícios
de um mercante com o qual se cruzassem, e que navegasse rumo à Inglaterra. - Acho que lhe comprazeria observar os segredos de uma comunidade tão fechada e, finalmente,
tão entrelaçada como a que forma a tripulação de um barco, sobretudo a de um barco de guerra, que dispõe de tanta gente para servir os canhões, e uma hierarquia
mais rígida. Surgem amizades duradouras e muito, muito estreitas, sobretudo em travessias longas; mas mesmo em uma missão tão recente como a nossa o processo é evidente.
O jovem Hanson, a quem já mencionei antes, desfruta, conforme me deu a entender Jack, de um grande talento no que se refere às matemáticas, e o senhor Daniel, um
segundo do piloto, ajudou-lhe na aplicação prática destas na guia do rumo do barco, inclusive para determinar sua posição exata no meio do oceano, ainda que tal
coisa seja difícil de acreditar. Tornaram-se bons amigos, o que não teria podido suceder em terra, pois sua origem, educação e forma de falar distam muito um do
outro. Quando estivemos em Freetown eram inseparáveis, passeavam juntos, tomavam medições de cabos e promontórios, a altura das torres, minaretes, fortificações
e outras, tudo isso sem contar as sondas e marés. Agora, desde que há duas ou três semanas depois que deixamos para trás a costa guineana a saúde do senhor Woodbine
fraquejou, ambos voltaram toda sua atenção nos progressos do barco, em latitudes, longitudes e outros, fatores estes subordinados ao imprevisível capricho dos ventos
que atormentam ao marinheiro que navega o Golfo, pelo menos até alcançar o bendito monção do nordeste, o que ocorreu faz pouco; agora creio que navegamos a dez nós
por hora. Por fim chegou o momento em que ambos podem respirar mais tranqüilos.
Poucas coisas são tão agradáveis de se ver vista como a aparição e fortalecimento de um carinho mútuo, espontâneo e natural, às vezes, amiúde na realidade (como
por exemplo no presente caso), acompanhado por gostos similares, habilidades e estudos. Isto nem sempre sucede, às vezes por uma simples questão de idade, e me encantaria,
ao regressar, descobrir que a senhora e Brigid são amigas. Pouco teria que esforçar-se para superar sua timidez, e sei que não a achará falta de carinho, ainda que
a veja desalentada. As mais velhas não a tratam com demasiada amabilidade, e, ainda que não deve tomar o que direi mais que como uma conjetura, tenho a impressão
de que a consideram uma intrusa. Pois os sentimentos infantis raras vezes se ocultam com habilidade, acho poder dizer que as atenções que sua mãe dedica a Brigid
despertam os ciúmes de suas filhas, a mais corrosiva das paixões, e também a que mais infelizes nos faz. Ai, minha querida, ouço soar o imperioso sino (a nossa é
uma vida regida por badaladas), o que vem a assinalar, entre outras coisas, que devo começar minhas rondas. Se não compareço imediatamente, receberei olhares de
desaprovação, talvez não por parte de Amos Jacob, mas de Poll Skeeping e de seu ajudante, assim como de todos os pacientes, esticados nas macas, com os lençóis arrumados,
seus modestos consolos ocultos, as caras lavadas. Inclusive me olhariam mal os dois gatos de bordo que embarcaram furtivamente em Freetown. Acostumaram-se aos rigores
da vida no mar, desaprovam a menor mudança, e são gatos escrupulosos que visitam com regularidade seus cestinhos de cinza, improvisados na cozinha por um cozinheiro
tanto ou mais severo que eles. Querida, devo despedir-me pelo momento...
Querida, o momento já passou - escreveu bem sentado à escrivaninha para combater os movimentos rítmicos do barco, o balanço e o cabeceio, - e me alegra contar-lhe
a melhora experimentada pela saúde do piloto. Comeu e reteve duas copiosas refeições, a primeira um peixe voador, a segunda uma porção abundante de pudim. Talvez
isto tenha algo que ver com a velocidade, a maior velocidade do barco, e com o ar de satisfação que se respira a bordo, um ar fresco e (apesar da contradição) cálido.
Mas não me agrada mencionar nenhum destes fatores, pois o piloto é um marinheiro curtido, colérico e convencido de seu própio diagnóstico, lepra incipiente, contida
por uma total abstinência de sal, álcool e tabaco. Queria poder transmitir como é agradável navegar a bordo de um barco estanque e bem governado, orientada a razoável
quantidade de lona do melhor modo para aproveitar o forte vento que recebe pela alheta de bombordo. A proa (acho que deveria dizer quebra-mar) joga uma cortina de
espuma a sotavento com cada cabeceio cadenciado, e se respira um ambiente de alegria a bordo. Pois hoje é dia de arranjos, a parte frontal do navio está repleta
de marinheiros entretidos, alguns com tesouras e muitos mais com agulhas, empenhados em cortar a tela de dril e em costurar juntos os retalhos. Como verá, se proporcionam
a roupa de abrigo com uma destreza sem par. Fazem uma pausa cada vez que jogam a barquilha, aguçam o ouvido para escutar o informe do guarda-marinha ao oficial de
guarda: "Nove nós e duas polegadas, senhor, com sua permissão", grasna o pequeno senhor Wells, cuja voz começa a mudar. Uma discreta onda de alegria e satisfação
se estende pelo castelo de proa, e cumprimentam esses dez nós lascando os pés no convés com tal entusiasmo que o oficial de guarda ordena ao seu segundo encarregar-se
"daquele maldito estampido, que parece provocado por um rebanho de vacas bêbadas, loucas por encostar-se ao touro".
No relativo silêncio que seguiu (relativo pois o vento franco, o trabalho do barco e a mesmíssima voz do mar nada importavam ao oficial de guarda), Stephen abandonou
a escrivaninha e se dirigiu com passo de um bom marinheiro ao coroamento, no qual se inclinou para observar a interminável esteira que se estendia para dar forma
a uma turbulenta linha, mas também ao acompanhante do barco, sempre ali, daquele lado do redemoinho, o tubarão azul que parecia maior que a maioria dos exemplares
que já vira. Fez tudo isto como se fosse um engenho mecânico, pois sua mente seguia ocupada por Christine, por suas aves da África Ocidental, por sua elegância,
franqueza e originalidade. Outra parte de sua atenção reparou no violino que estava sendo afinado na cabine situada a seus pés, e, depois, na tentativa de dar começo
a um adágio, adaptado de uma das suítes que Stephen escrevera para violoncelo. O tom era adequadamente solene, o que provocou em Stephen um sentimento encontrado:
prazer pelo que Jack interpretava ao violino, e certa inveja por o interpretar tão bem. Dor ao ouvir que aquilo que Jack interpretava não podia ser mais alheio ao
Jack Aubrey que conhecia, ao homem audaz, otimista, empreendedor, cujo rosto parecia feito para o riso ou, pelo menos, para o sorriso.
Uma sombra atrás dele interrompeu de repente o fio de seus pensamentos.
- Senhor Woodbine - disse ao voltar-se, - quão feliz me faz ver-lhe caminhar por seu própio pé. Como se encontra?
- Regular, senhor, regular. A abstinência, se não se leva a um extremo supersticioso, se basta e se sobra, creia-me. O senhor contempla esse velho e solitário tubarão?
- Sim, piloto. Não está sozinho, não, em absoluto, e mantém a posição abaixo da abobadilha. Olhe, aquilo dali é uma cicatriz, justo detrás, ou a popa de sua alheta
dorsal, tão claro como um cartão de visita. Suspeito que pelo menos o acompanham meia dúzia dos seus na escuridão de nosso casco, e aí seguirão ocultos a menos que
lhes ofereçamos sangue.
- Diga-me, doutor, como o senhor acredita que intuem onde buscar sangue? Pois são capazes disso, inclusive já pude comprovar que percebem o sangue dos peixes.
- O senhor saberá que têm guelras, mais guelras que muitos de sua espécie. Imensas, imensas quantidades de água entram por sua enorme boca e são expulsas por essas
guelras, cobertas de um tecido não muito distinto ao que nós temos no nariz. Nesse lugar, acho, encontra-se a explicação.
- Muito bem, senhor, pode-se saber o que está fazendo? - protestou Killick. - O almoço da câmara está na mesa, e aí está o senhor, vestido com a roupa de trabalho.
O capitão já estava todo pronto com esmero, muito antes de pôr-se a tocar o violino.
Somente então se deu conta um preocupado Stephen de que o piloto usava sua melhor casaca, que se distinguia das demais por uma total ausência de gordura.
- É verdade, receberemos ao capitão? - perguntou alarmado.
- Já lhe disse no café da manhã, senhor - respondeu Killick com a dose justa de insolência.
- E pensar que estive a ponto de esquecê-lo - disse Stephen, que, ainda que amiúde, melhor geralmente, comia na cabine, era membro ex officio da câmara dos oficiais
e, portanto, um dos anfitriões do evento.
- Ei, você, o que acha que está fazendo? - perguntou a voz em grito Killick a um dos ajudantes do cozinheiro, que havia se aproximado não sem certa dificuldade da
popa, pois levava um balde em cada mão.
- Façam lugar aí - respondeu o ajudante do cozinheiro com idêntica raiva, - desde que não queiram ver a coberta feita jodi... Pedaços - e disse ao piloto, com certa
deferência, enquanto lhe oferecia um balde: - Com os cumprimentos do cozinheiro, senhor.
- No alto - assinalou o senhor Woodbine, armado também com um balde que jogou pelo coroamento. O ajudante do cozinheiro fez o mesmo sem deixar cair uma gota no convés.
Em uma fração de segundo, a esteira branca se tornou vermelha, adquiriu uma esplêndida tonalidade vermelha por cerca de trinta jardas a popa, e ao longo dela assomaram
os tubarões à superfície, às vezes rompendo a água, mordendo, açoitando a água com fúria cega, cobiçosos, e quando descobriram que a presa malferida não existia
se voltaram para o tubarão rei, o grandalhão, e uma borbulhante massa de compridos e magros peixes que não mediam nem a metade dele o aferraram e morderam até fazê-lo
em pedaços. Tudo terminou em menos de um minuto.
- Deus nos assista - disse o piloto. - Na vida nunca havia visto nada parecido.
- Vamos, senhor - disse de novo Killick, imperturbável, puxando Stephen pela manga, antes de dirigir-se ao piloto da seguinte forma: - Senhor Woodbine, senhor, por
favor, vá na frente. Eu me encarregarei na cabine de pôr o abrigo no doutor.
Os tenentes acolhiam ao seu convidado com xerez quando Stephen fez ato de presença, e sua entrada foi dissimulada por Candish, o contador, e por Jacob. Então o almoço
começou com a devida cerimônia.
Stephen Maturin teria sido o primeiro em admitir que não podia alardear de sua beleza masculina, mas era capaz de autênticos prodígios e extravagâncias de conduta.
Fora cuidadosamente educado por seu avô catalão, para quem valiam igual a elegância nos modos, o domínio de ambas as línguas (além do francês), a equitação, a destreza
na hora de disparar com pistola, e o saber jogar de espadim. Quando Stephen cometia uma falta grave, como nesta ocasião, ficava triste, mantinha-se mudo e se sentia
agoniado, de modo que só se prestou a fazer os imprescindíveis comentários inofensivos a seus companheiros de mesa.
A ritual panela com sopa de ervilhas, regada com um par de taças de vinho, serviu para animá-lo, e quando por ser o trinchador mais destro da mesa lhe pediram que
desmembrasse um par de patos, compreendeu que o senhor Harding, o imediato, seguia falando de seu betume, do soberbo betume de colheita própia que agüentaria contra
vento, maré e sol os chuviscos e as nocivas influências lunares de forma indefinida, betume que conservaria seu extraordinário brilho até bem entrado o dia do juízo
final. Era composto por erva-bezerra, além de uma série de ingredientes secretos, e sua função consistia em salvaguardar e, sobretudo, embelezar as vergas. Vergas
bem enegrecidas, reluzentes, igualadas em relação ao casco mediante as braças, valor acrescentado ao aspecto de um barco precioso, valor que outras embarcações não
teriam. Ouvira dizer que o príncipe William devia sua insígnia à perfeita ordem que havia conseguido manter na Pegasus: ele abetumava as vergas até não poder mais,
e que conste que não pretendia fazer nenhum jogo de palavras, ah, ah, ah. Se o abetumar as vergas bastava para proporcionar a um uma ascensão, então a perfeição
da tarefa lhe faria ascender ainda mais rápido... Seguiu comentando as peculiaridades de seu invento e, devido a seu entusiasmo, chegou a dizer que estava impaciente
para que chegassem às zonas equatoriais, onde não teria abetumado que valesse, nem sequer para a verga de maior, rizadíssima a gávea. O betume normal gotejaria por
toda parte e poria a perder o convés.
O rosto de Jack adquiriu uma expressão grave e distante. Muito antes de que isto sucedesse, Harding perdera o restante da audiência. Passou a jarra um pouco nervoso,
e disse:
- Peço que me perdoe, senhor, temo que estive dizendo vulgaridades durante um longo, muito longo tempo. A insistência de um pode ser uma grande chateação para o
próximo. Permita-me brindar pelo senhor, senhor.
Era a primeira vez que Stephen via Harding tão afetado. Era doloroso em um oficial tão capaz e respeitado; sabia que esse tipo de conversa (essa liberdade) pertencia
ao tipo de divagações que desagradavam a Jack. Contudo, graças à menção casual e fugaz do duque de Clarence, era evidente que Horatio havia seguido rigorosamente
a advertência que lhe fizera de não mencionar sua influente relação com a realeza, de modo que ninguém suspeitava nem da influência nem da relação. Aquilo serviu
para aumentar o apreço que Stephen sentia pelo garoto. Por ser também ele filho bastardo, conhecia perfeitamente a tentação de falar, e as vantagens que implicava
fazê-lo.
Em todo o tempo que fazia que navegavam juntos, Jack jamais comentara com Stephen nada a respeito de seus oficiais. Afinal de contas, o cirurgião participava das
atividades da câmara, era um deles. Contudo, no camarote dos guardas-marinhas se observavam outros costumes, e, ainda que um ou dois de seus membros tivessem certas
inclinações whig{9}, as palavras de Harding relativas a Clarence foram abertamente censuradas pelos outros membros.
- É verdade - disse Candish, - que não se pode dizer muito dos atuais príncipes da realeza. Porém, afinal de contas, são os filhos de nossos reis. É muito provável
que um deles o suceda no trono, e se impõe certo respeito, creio.
Mas o que realmente emocionou e entristeceu às cobertas inferiores (cujos integrantes foram rapidamente postos a par de tão infeliz mal-estar, graças aos solícitos
serventes da câmara, que formavam de pé ao respaldo de cada uma das cadeiras, ouvidos atentos) foi o muito que o senhor Harding ansiava chegar à zona de calmarias
equatoriais, comentário que tardariam em digerir.
- Pelo visto nunca se assou turno e turno em seu barquinho, sem uma pitada de vento, semana depois de semana, sem mais chuva que a que cai a dez milhas, respirando
os fedores da água que se consome pouco a pouco, verde e fedorenta. O fodido sol bate pesadamente, mortífero que faz com que o breu do aparelho goteje e se abram
as costuras como a porta de um coche.
- Estava bêbado, e eu lhe vi bêbado, Abel Trim, bêbado como um arenque defumado, e mudo, mais de uma vez em Pompey, Rotherhithe e Hackney Wick.
- De acordo, de acordo, o mesmo lhe digo, Joe Plaice. Mas pelo menos não me ocorreu sair por aí chamando o mau tempo com isso de que ansiava as calmarias equatoriais.
Entende?, pedaço de besta.
Minha querida - escreveu Stephen, - encanta-me imaginá-la em Woolcombe, acolhedora casa que conheço tão bem e que constitue um tipo tênue de nexo entre nós. Não
necessariamente tão tênue, pois a alvorada poderia revelar-nos um barco com rumo à Inglaterra, orçando ao monção, desejoso e capaz de transportar nosso correio ao
porto inglês. De modo que permita-me rogar-lhe que se dirija a senhora à biblioteca, e busque no dicionário de Johnson ou no de Bailey a raiz etimológica de "calmaria".
Não sei de onde provém. A noção, o conceito, conheço perfeitamente, pois o sofri, sobretudo com febres a bordo. O que ignoro é como chegou a ter esse nome. Os franceses
o conhecem por le pot au noir, e pode ser muito negro em ocasiões, quando dois ventos monções convergentes abarcam um vasto espaço mais ou menos sobre o Equador,
com nuvens, escuridão, trovões e relâmpagos em ambos hemisférios, norte e sul, uma extensão prodigiosa de espaço que temos que cobrir, um trecho do qual nenhum marinheiro
em seu juízo perfeito zombaria ou faria gozação. Não saberia lhe dizer quando penetraremos em tão desgraçada zona (diria que agora devemos achar-nos perto do limite
norte), assim que irei perguntar ao senhor Daniel.
Encontrou este na cabine do piloto, acompanhado de Horatio Hanson. Costumavam ocupar eles aquele lugar, agora que o senhor Woodbine passava mais tempo abaixo, abstendo-se
de tudo. Estavam enrolando um mapa, empresa solene que abandonaram imediatamente para pôr-se em pé ao ver-lhe entrar.
- Senhor Daniel - disse, - tenha a bondade de dizer-me quando se prevê que entraremos na zona de calmarias equatoriais.
- Senhor - disse Daniel, - recebemos informes de fortes e entabulados monções do sudeste, enquanto que os de nossa posição foram mais moderados. Além do mais, o
barômetro esteve se comportando de um modo muito caprichoso desde a última guarda do quartilho de ontem. - Assinalou uma série de anotações barométricas, prova evidente
da irrefletida conduta do barômetro. - Não me surpreenderia se amanhã cruzarmos seu extremo norte.
- Santo Deus! Tão de repente? - disse alarmado Stephen. - Alegro-me muito de ter-lhe perguntado. Tenho alguns espécimes um pouco delicados de Hydrozoa que deveria
proteger, porque às vezes o mar fica em calmaria, como constrangido pelo peso do ar que tem em cima, e outras, apenas sem vento, perde o ritmo, a razão, e sacode
tudo que há ao seu redor de um modo extraordinário.
- Oh - disse Hanson. - Tenho tanta vontade de vê-lo!
- Devo proteger as caçoletas de Hydrozoa. O senhor avise-me quando tenha a segurança de que nos aproximamos.
A essas alturas, Stephen havia se convertido em um veterano lobo do mar, tanto que a rotina diária da pedra arenito e os esfregões no convés, justo acima de sua
cabeça, não bastavam para importunar-lhe. Pouco depois de que começou a ouvi-los, alguém o sacudiu suave mas persistentemente.
- Senhor, oh, senhor, desculpe-me. - Finalmente, conseguiu que se virasse na maca com um desagradável gemido. Não respondeu. Estirou a coluna na maca, e viu o jovem
Hanson com uma lanterna que iluminava a alegria de seu rosto e seus olhos febris. - Senhor, o senhor pediu que lhe avisasse quando nos aproximássemos das zonas de
calmarias equatoriais. Já o fizemos! Mais ou menos às seis badaladas, as estrelas se fundiram, uma depois da outra no céu, justo antes de começar os ensurdecedores
trovões e ver os relâmpagos, mais intensos que na noite de Guy Fawkes{10}. O mar parece vir de todas as direções. Temos três assombradíssimos alcatrazes no convés,
na popa do cúter azul. Venha para vê-lo, senhor, que já não será o mesmo quando saia o sol.
Mas foi igual ao sair o sol, pois este fez pouco mais que iluminar um trecho mais amplo do espumoso mar. Saiu o sol, sim, mas não conseguiu diminuir o brilho da
quase contínua série de relâmpagos que iluminava de forma igual a parte baixa e escura do teto de nuvens. O berrar dos trovões, de sua parte, quase não permitiu
um instante de silêncio.
- Vê o mar, senhor? - perguntou Hanson ao seu ouvido. - Não lhe parece turvo?
- De certa forma, também me parece horripilante. Por favor, leve-me para ver os alcatrazes.
- Permita-me dar-lhe a mão, senhor - disse Davies, arisco de temperamento, não muito inteligente, que não servia de muito além do combate, mas que mostrava uma absoluta
lealdade tanto por Jack como por Hanson e, inclusive, de um modo condescendente, por Stephen.
Tinham colocado linhas de vida de proa a popa, e Stephen foi conduzido com passo inseguro até o cúter azul. Não havia alcatrazes em nenhuma parte.
- Alcatrazes, senhor? - perguntou um segundo do contramestre que reforçava os dormentes de um bote estivado no convés. - O senhor Harding os jogou pela borda.
- Voaram?
- Perfeitamente. Caíram como chumbo, as criaturas.
- Sabe por que os jogou pela borda?
- Bem, porque eram alcatrazes marrons, senhor. Não se pode permitir passear pelo convés bichos assim de pés-frios.
- Ah, não o sabia.
O segundo do contramestre tomou ar, com o que deu a entender, entre outras coisas, que o doutor, embora devesse possuir certa inteligência, era incapaz de distinguir
bombordo de estibordo, ou o bem do mal.
A partir de tão apocalíptico início, a zona das calmarias equatoriais adotava pouco a pouco uma monótona quietude, sob um céu cinza-chumbo, algo habitual a não ser
pelo exorbitante calor que fazia. As finas nuvens, ainda que baixas, pareciam aumentar a intensidade do sol, uma bola enorme que tão somente podiam ver com os olhos
semicerrados, tão intenso era o calor que, como haviam profetizado os homens, derreteu o breu do aparelho no convés recém limpo e indispôs todos os gatos de bordo.
Estes tinham permanecido silenciosos, dóceis, espantados, ocultos nos cantos, dando as graças pela comodidade de que desfrutavam enquanto o barco dava solavancos
de um lado para outro. Permaneciam como à espreita, miavam às vezes, e outras afundavam as pátas nas gotas de breu para afastá-las rapidamente com miados de irritação,
concentrados na busca perpétua de um canto fresco, canto que não achariam em nenhum lado, nem sequer no mais profundo do casco, entre os tonéis de água.
Sobretudo se queixavam da falta de ar. Com tempo cálido costumavam deitar-se no punho inferior das mangueiras de ventilação de que desfrutava a enfermaria. Contudo,
nesse momento a enfermaria carecia tanto de pacientes como de ar fresco, de modo que se deitavam em vão. As velas do barco caiam flácidas das vergas; a barquilha,
quando se jogava mar, permanecia imóvel e nem rodava o carretel, de tal forma que sempre se informava "Nem nós, nem braças, senhor, com sua permissão", e tanto a
fumaça como o odor da cozinha flutuavam sobre o barco até que se preparava a seguinte refeição.
Mesmo assim, a fragata não permanecia totalmente imóvel. As leves, escuras e amiúde opostas correntes que empurravam as algas para os costados do barco, a proa e
a popa, também o faziam mudar de bordo de forma imperceptível, de tal maneira que às quatro badaladas aproava para o sul, e às seis badaladas o fazia para o norte.
As guardas do quartilho, geralmente distendidas, momentos nos quais se bailava e se interpretava música quando em águas calmas e cálidas, dedicaram-se agora às mostras
de cansaço, à irritabilidade em forma de pulhas a meia voz e à indecorosa nudez.
Mas a imutável seqüência das badaladas anunciando a troca de guarda, o aviso das refeições e o grogue, e a revista, serviam para manter todos a bordo com um pé na
realidade.
- Senhor Harding - disse Jack enquanto via ascender o farol de tope, cuja luz diminuiu até desaparecer sobre a verga do mastaréu de joanete, - amanhã, cedo, momento
em que o mar estará o mais fresco possível nestas latitudes, envergaremos umas gáveas de respeito no castelo, e as encheremos de água a proa e popa de ambos os costados
para que os marinheiros possam chapinhar e refrescar-se um pouco.
No dia seguinte, depois do café da manhã, executaram-se estas ordens. Enquanto Harding, o contramestre e o veleiro se asseguravam na medida do possível de que o
banho fosse inexpugnável, inclusive para as medusas que pudessem praticar um buraco e provocar a dolorosa mordedura que as caracterizava, Stephen disse:
- Querido Jack, não vai tomar seu banho de costume? Olha essa gente - disse assinalando os desnudos e travessos integrantes da guarda de estibordo, - estão se divertindo
pra valer. Eu me proponho a imitá-los se você me acompanhar nadando um pouco.
- Obrigado, mas não será nestas águas. Não são de meu agrado. Recorda que estava de pé no janelão de popa quando seus irmãos despacharam o nosso gigante azul. Mas
vá você, por favor.
- Vela à vista! - gritou o vigia do tope. - Vela a uma quarta pela amura de estibordo.
Não tinha pronunciado a última palavra quando todos repararam nas três espectrais pirâmides de lona que desciam lentamente pelo escasso rumo que a Surprise estava.
Jack deixou de lado o leme e correu para a proa.
- Ah do barco! Ah do barco! Que barco é?
Houve cinco segundos de silêncio. Depois, ouviram a resposta, alta e clara.
- Delaware, US Delaware. Que barco é?
- Surprise, navio hidrográfico de sua majestade britânica. Por favor, tenham cuidado com o leme. Minha gente está se banhando nos lados.
O sopro de ar não somente limpou um pouco a melancolia, senão que, ademais, transportou as vozes norte-americanas com seu característico e nada desagradável sotaque
com tanta clareza como se as tivessem pronunciado a dez jardas de distância.
- Diz que é a Surprise. Cuidado com o leme, Plimpton. Há vento aí, ou ao que seja. Diz que os seus estão se banhando nos lados.
A verdade desta afirmação, dita com certa reserva, pôde constatar-se ao cabo de trinta segundos, quando o sopro de ar, esporeado pelo sol nascente, levou a embarcação
tão perto que os desnudos membros da guarda de estibordo se viram expostos aos olhares brincalhões dos marinheiros da Delaware, assomados pelo costado de sua preciosa
fragata.
Por estar praticamente sem vento, as fragatas corriam perigo de abordar-se ou cair à deriva uma sobre a outra, para depois enredar-se seus gurupés e acabar perjudicando
a perfeita ordem que reinava a bordo de ambas as embarcações. Contudo, desfrutavam de bons marinheiros, de modo que em alguns instantes se resvalaram os botalós,
embolados com esfregões, para evitar que pudessem abordar-se.
Prosseguiu o intercâmbio entre ambos capitães.
- Não é muito provável que o senhor lembre-se de mim, senhor, mas jantamos juntos com o almirante Cabot quando o senhor visitou Boston. Sou Lodge.
- Lembro-me perfeitamente, capitão Lodge. O senhor estava acompanhado por sua mãe, minha vizinha de mesa, e falamos da casa de seus pais em Dorset, não longe da
minha. Confio em que se encontre bem de saúde.
- Muito bem, senhor. Eu lhe agradeço. Antes de zarpar celebramos seu octogésimo quinto aniversário.
- Oitenta e cinco... Uma idade considerável - disse Jack, que no mesmo instante lamentou ter feito tal comentário. A seguir, disse que tanto ele como seus oficiais
estariam encantados de contar com a companhia do capitão Lodge e de sua câmara de oficiais para almoçar a bordo da Surprise no dia seguinte, se o vento e o tempo
permitissem.
O capitão Lodge aceitou, ainda que com a condição de que os da Surprise subissem a bordo da Delaware no dia seguinte. Depois, baixando o tom de voz, perguntou se
podia enviar o piloto naquela mesma tarde. Pelo visto tinham um problema de navegação.
O piloto da Delaware, o senhor Wilkins, chegou a bordo mal-humorado, teimoso e desejando ser ofendido. Seu propósito consistia em expor o problema, e contudo parecia
resistir a isso, ainda que levasse consigo os dois cronômetros do barco e os cálculos e anotações realizados ao longo das últimas semanas.
- Bem, senhor - disse quando o senhor Woodbine o acompanhou ao interior de sua triste e úmida cabine, ambos com uma jarra do grogue do contramestre, - em resumo
lhe direi que todos somos humanos.
- Não poderia estar mais de acordo - admitiu o senhor Woodbine; - além do mais, eu mesmo dei chutes em meu tempo em mais de um chapéu de dois bicos. Em uma ocasião,
navegávamos rumo a Scillie largadas as gáveas e com um vento este-sudeste tão forte que quis ser romano e rezar para são Woodbine para que não topássemos com aquele
maldito arrecife, como ocorreu a sir Cloudesley Shovel.
- Dou por sentado que poderia consertá-lo com um par de medições lunares - disse o norte-americano. - Mas não tem havido lua há alguns dias, e meu capitão é um homem
muito peculiar.
- Pode ser que tenham calculado mal a posição.
- A posição? Francamente, tomando a média de ambos os cronômetros, não há posição que sirva, pelo menos não o que poderíamos entender como tal. Claro que com um
par de lunares poderia consertá-lo... exceto no que se refere à relojoaria... Refiro-me mais ou menos a navegar por entre arrecifes.
Woodbine sabia muito bem a que se referia seu colega, de modo que sugeriu comparar os cronômetros. Assim o fizeram: Os dois Earnshaw da Surprise concordavam com
uma margem de cinco segundos, enquanto que os da Delaware acusavam uma diferença considerável que ia em aumento, de modo que não era surpreendente que o chapéu de
dois bicos, o triângulo de incerteza, variasse tanto. A questão era averiguar em qual de ambas leituras deviam confiar, pois não contavam com a possibilidade de
fazer uma boa observação estelar, ou tomar, o que ainda teria sido melhor, um dos satélites de Júpiter como referência. O dilema seria mais grave se estivessem perto
da costa, mas mesmo no meio do oceano podia um barco topar a dez ou doze nós com um malvado arrecife. Saint Paul Rocks, lugar que maravilhava a Stephen, não se encontrava
a muita distância.
- Eu lhe direi o que vamos fazer, senhor Wilkins - disse Woodbine; vestia a casaca do uniforme, confeccionada com o melhor pano duplo de Bristol, e sofria um calor
horroroso. - Tenho um segundo muito capacitado: Não necessita tábuas nem logarítmos porque os tem na cabeça, e lhe encanta enfrentar-se a problemas como este e resolvê-los
sem dilação. Além do mais, tem a seu cargo um jovem que também é muito brilhante. Aqui dentro estaremos muito apertados, de modo que os convocaremos para cima e
lhes mostraremos os últimos cálculos que o senhor fez. Correspondem ao Rio?
- Ao Rio.
- Deixemos que eles se encarreguem do restante, enquanto tiramos a casaca e sentamos à sombra do castelo. Não há nada melhor para uma mente jovem e ativa.
- Enfim, se insiste, senhor Woodbine, terei que aceitar.
- Então os senhores dobraram Cabo de Hornos, senhor? - perguntou Woodbine enquanto se deitava à sombra em uma pilha de esteiras.
- Pelo Cabo de Hornos, sim, senhor. Não há nada como aquele endiabrado lugar. Refiro-me a que simplifica as coisas, compreende? Nada de tomar porres consumido pela
dúvida, estamos aqui, ou não estamos ainda aqui? Com aquele endiabrado lugar, ou está ou não está. Não existem dúvidas que valham, nada de consultar as cartas até
que seus olhos se fechem. A quantos apodrecidos refúgios estava isso a bombordo? Não, nada disso. Ou se está ali ou não se está ali.
- Há muito gelo nos arredores, senhor?
- Não. Finas camadas de vez em quando, e um torrão desprendido do glaciar que há mais além, mas nunca tivemos que colocar as defesas de exárcia para proteger-nos
dos gelos.
Comentaram o assunto das defesas, das redes, e de alguns objetos muito curiosos empregados pelos baleeiros da Groenlândia. Quando tinham esgotado o tema, o norte-americano,
procedente de Poughkeepsie, disse:
- Esse jovem tão astuto, o ajudante de navegação, é boxeador?
- Santo Deus, não. É um cavalheiro.
- Como? Ah, não pretendia insultá-lo, creia-me. Mas parece acostumado a repartir e encaixar, por essa orelha em forma de couve-flor e outros.
- Não lhe negarei que nossos jovens não fazem ascos à perspectiva de trocar alguns golpes com fins esportivos. O jovem não pesa nem cento e quarenta libras, mas
teria que tê-lo visto quando deu uma boa surra em um gavieiro enorme da Polyphemus, qundo estávamos no golfo. Meu Deus, que baques se deram nos olhos, que baixezas.
Na câmara o chamamos de o Leão do Atlas. Também o conhecem assim nas cobertas inferiores.
Conversaram amistosamente um tempo dos extraordinários combates que tiveram ocasião de ver aoo longo de sua vida, celebrados em feiras, em Blackfriars, em Hockney-in-the-Hole,
onde havia um limpa-chaminés que desafiava a todos os recém chegados que não pesassem catorze libras a mais que ele a lutar por meio guinéu. Um combate justo, nada
de pegar-se pela garganta, deixar cair todo o peso sobre o oponente caído ou apertar-lhe as partes. Não prestavam muita atenção às palavras do outro, mas pelo menos
não havia enfrentamento, altibaixos na conversa, nem surpresas. Por tratar-se de uma conversa entre um homem que desconhecia sua posição, e outro que estava seguro
da sua (com uma margem de erro de dez milhas), o certo é que não tinha precedentes.
- E aí, companheiros - disse Woodbine, interrompendo seu relato do memorável combate celebrado em Coldbath Fields entre Sayers e Darkie, - que estão fazendo?
- Estamos com os relógios, senhor, e o pequeno bostoniano está na hora, pois concorda com nosso Earnshaw com uma margem de cinco segundos.
- Em tal caso, de que vocês se queixam? - perguntou Woodbine, cuja mente, que não trabalhava com muita velocidade, seguia ancorada no Coldbath Fields de outrora.
- Não pretenderá depender de um único cronômetro? - perguntou alarmado Wilkins. - Como? Está falando de confiar todo um barco e sua bagagem, para não mencionar todas
as pessoas que vão nele, a um só cronômetro?
Guardaram silêncio, conscientes do estrago infligido aos bons costumes do mar, sem saber contudo o que podiam fazer para solver a situação.
- Aqui vem o doutor - sussurrou o segundo do armeiro, capaz de trabalhar muito bem o metal, que amiúde ajudava a Stephen com seu instrumental e que às vezes lhe
fazia instrumentos novos. Stephen conhecia poucos homens capazes de fazer um serrote com a mesma precisão que ele.
- Estão muito concentrados com esses relógios - disse Stephen depois de cumprimentar, - máquinas engenhosas como nunca se viu.
- Sim, senhor - disse o segundo do armeiro, - são engenhosas, e muito. Claro que de vez em quando podem rebelar-se, e em tal caso...
- Mas imagino que um artista como o senhor, Webberfore, será capaz de abri-los por dentro e proporcionar que a maquinaria volte a cumprir com sua obrigação.
Produziu-se um rumor generalizado de desaprovação e rechaço.
- Recorde o senhor, senhor - disse Webberfore, - que, conforme as Ordenanças, todo aquele que abra a caixa de um relógio será açoitado até a morte, não se lhe respeitará
a paga atrasada, a viúva ficará sem pensão e ainda será expulso sem dizer uma palavra.
- Não deve abrir um cronômetro, claro que não, se ao final terminará desse modo - opinou o piloto, opinião que os demais deram por válida.
A conversa seguiu por estes rotas um pouco, até que Stephen compreendeu que se aproximava a conclusão.
- Claro que a tampa exterior poderia ser aberta - sugeriu Webberfore, - para que o oficial, geralmente o piloto - disse inclinando a cabeça para Woodbine, - possa
dar corda na maquinaria. Sempre há a possibilidade de que uma peça, por exemplo a palanquita, saia de seu lugar empurrada pelo cabeceio e balanço do barco, o que
prejudicaria a precisão do cronômetro. Pode ser que se afundasse na rosca, e daí somente poderia ser sacada por uma pessoa com um pulso a prova de fogo, armada com
um par de precisas pinças suiças. Poderia pegá-la sem sequer abrir o relógio...
- Muito certo - disse o piloto, que não tirava o olho de Stephen.
- É essa peça que se levanta quando se dá corda ao relógio, verdade?
Todos assentiram.
- Como em um molinete - disse um.
- Ou em um cabrestante - acrescentou outro, - ainda que em tal caso o chamamos lingüeta.
- Claro que se falha a palanquita - disse Stephen, - a roda corre para trás sem controle. Isso, já me ocorreu.
Estava ali, dando corda em meu relógio, e ao sacar a chave se produziu um inquietante chiado e o relógio parou.
- Isso mesmo, senhor - disse Webberfore, - a ponta da palanquita desapareceu, e não houve nada capaz de deter a roda ou o eixo. Ainda que se somente desapareceu
a ponta, algo que às vezes sucede com um metal reaquecido, o resto poderia agüentar, sob tensão, de tal forma que o relógio seguisse funcionando, ainda que a parte
desmontada impediria que o mecanismo desse a hora exata, certamente.
- Estou satisfeito, Webberfore - disse Stephen, - devo felicitar-lhe de todo coração.
- Eu também - exclamou Wilkins. - Meu Deus, isso de navegar com um só cronômetro é... - Sacudiu a cabeça, incapaz de expressar com palavras o horror, a incrível
inquietação que sentia. Então, depois dos outros se retirarem, perguntou a Woodbine se fumavam ou mascavam tabaco. Woodbine respondeu que faziam ambas as coisas,
quando podiam, mas que o barco andava carente de suprimentos, e que desejavam chegar ao Rio para reabastecer.
Wilkins assentiu muito satisfeito, guardou os cronômetros em uma bolsa acolchoada e, ao despedir-se, disse:
- Acho que terei o prazer de almoçar com os senhores amanhã, verdade?
Dizem que amanhã será outro dia, e assim foi, pelo menos conforme o calendário, porque a julgar pelo calor que fez, a força com que o barco cabeceiou sem andamento
e a flacidez das velas, não se distinguiu do anterior. Uma incomodada fregata havia substituído aos alcatrazes, e um tubarão azul menor nadava sob a abobadilha,
mas o breu seguia gotejando e os marinheiros maldiziam e suavam.
- Lamento não avistar ainda à Ringle - disse Stephen, cujos olhos tentavam penetrar na escuridão.
- Eu também sinto - disse Jack. - Ainda que não acredito que deva temer por eles. William é um bom navegante, e seu piloto é ainda melhor. Navegou com Cook. Além
disso, uma escuna tão leve como a Ringle se vê mais afetada por estas correntes variáveis que nós. De qualquer maneira, William sabe muito bem que reabasteceremos
e faremos a aguada no Rio. Perdoe-me, Stephen, mas temns breu nos calções, e nossos convidados não tardarão nem dez minutos em chegar.
Trocaram-se os convites, os almoços foram celebrados abaixo de improvisados toldos que cobriam o convés protegendo os comensais da crueldade de um sol nebuloso e
particularmente tórrido, assim como do breu, cada vez mais líquido. Desfrutaram mais do que teriam achado possível dadas as circunstâncias. Os norte-americanos estavam
em melhor lugar, certamente, pois haviam se apetrechado no Rio e conservavam existências de fruta tropical e verduras. Os da Delaware também haviam visto à Asp reabastecer-se
ali, o que deu pé a uma longa série de descrições técnicas que facilitaram que Stephen se concentrasse em seu própio mundo, por mais que Jack e seus oficiais lhe
assegurassem que aqueles detalhes eram de capital importância.
- Tudo estava delicioso - disse Stephen enquanto a falua regressava para a Surprise através da bruma. O timoneiro rumava guiado pelos disparos efetuados por uma
pistola a cada trinta segundos.
- Tem toda razão - admitiu Jack. Os outros oficiais que os acompanhavam na falua passaram a descrever as diversas delícias servidas, a maioria pertencentes à categoria
tropical; outras, como o bolo de queijo, podiam ser consideradas pedras angulares da cozinha norte-americana. De sua parte, Candish e o piloto admitiram que jamais
tinham bebido tanto vinho na vida.
Depois de uma pausa que aproveitaram para recordar a noitada, Jack disse:
- O capitão Lodge me disse que quando escurecesse e refrescasse um pouco tinha planejado enviar seus botes para frente e rebocar-se lés-nordeste durante uma ou duas
guardas, agora que já conhecem qual é sua verdadeira posição. Acha que há uma corrente estável... Diz tê-la aproveitado antes.
Subiram a bordo e se dirigiram à cabine.
- Foi um prazer conhecer o doutor Evans, e ouvir tudo o que me contou a respeito dos estudos médicos do jovem Herapath e o êxito de seu livro. Que talento o dele
- disse Stephen.
- O jovem Herapath? Sim, boa pessoa como nunca se viu, ainda que não existe poder na Terra capaz de convertê-lo em um marinheiro decente. Diabos, como troveja -
exclamou com seu vozeirão para impor-se ao estrondo do trovão; a cabine se iluminou fugazmente pelos relâmpagos que fendiam o céu, e imediatamente depois caiu no
convés uma tromba d’água. - Esses pobres diabos terminarão empapados até os ossos.
O imenso aguaceiro possuía uma densidade tão monstruosa que quase não se podia respirar sob a chuva. Após dez minutos, puderam distinguir umas sombras que desafiavam
o dilúvio para abrir os condutos que encheriam os tonéis com um água tão limpa e potável como podia esperar-se que caísse do céu. Tudo isso, contudo, incomodou e
aterrorizou aos gatos mais que nenhuma outra coisa pela qual tivessem passado antes. O mais reservado de ambos, um pernilongo com a barriga cor de pêssego, jogou-se
sobre o colo de Stephen, e não houve forma de tranqüilizá-lo.
Era impossível pensar que o dilúvio pudesse durar até a alvorada, porque o céu não agüentaria tanto, mas o caso é que o fez, e ao vê-lo ficaram pasmados, ensurdecidos,
assombrados quando a luz do dia saiu a leste, acompanhada pelas familiares velas da Ringle, que avançava a três ou mesmo quatro nós para eles com uma imperceptível
brisa a popa. Encontraram o convés atapetado, totalmente conforme o lado, de estranhas formas de vida das profundezas do mar. Supuseram que tinham sido absorvidas
por uma distante tromba marinha, para terminar jogadas ali.
Apesar de tudo isto, Jack Aubrey não estava disposto a ceder nem um pingo. A única preocupação da Surprise, e também da Ringle, consistia em sair o quanto antes
daquele odioso canto do mar. Nem sequer desjejuariam até que se encontrassem navegando com os conveses em condições e o aparelho limpo de algas, lulas voadoras e
outros tantos monstros mais. Stephen teve que contentar-se com guardar no bolso as criaturas menos gelatinosas, que imediatamente levou convés abaixo antes de que
aquele capitão de expressão pétrea os fizesse retirar pela força.
Contudo, serviu-se o café da manhã mais ou menos na hora. Para todos, exceto para quem manejava as bombas, que soltavam de ambos os costados enormes jorros de água.
O rosto do capitão Aubrey recuperou sua humanidade, e Stephen, ao vê-lo, aproveitou para perguntar-lhe com certa timidez se acreditava que haviam abandonado a zona
das calmarias equatoriais.
- É o que espero, pelo menos - respondeu Jack. - Quando o cinturão, a convergência, é muito estreita e concentrada como acho que era esta, às vezes termina em uma
raiva violenta como a que acabamos de sofrer, que poderíamos chamar... - Ao cruzar seu olhar com o olhar atento dos gatos, esqueceu o que estava a ponto de dizer.
- "Adeus, espanholas." Killick, Killick!
- Senhor?
- Chame a Poll Skeeping. Desculpe-me, Stephen, por me entrometer em seu terreno.
- Senhor? - perguntou Poll Skeeping ao mesmo tempo que atava às costas um avental novo.
- Tenha a amabilidade de desfazer-se desses gatos. Sabem perfeitamente que não podem entrar na cabine.
Eles sabiam, certamente que sim, e tiveram que resignar-se quando os levaram pendurando de uma pata, esticados, dóceis e com o olhar baixo.
- Que alegria tive ao ver a Ringle - disse Stephen após um tempo.
- Eu também, por Deus. É pequenina, e em ocasiões, o tempo se portou com toda a dureza que cabia esperar dele.
- Seria impróprio ou desafortunado perguntar onde nos encontramos? Quer dizer, basta que me dê uma idéia aproximada.
- Depois de calcular a altura do sol ao meio-dia, o que acredito que conseguiremos, espero poder dizer com maior precisão o que me pede. Por enquanto aventurarei
a suposição de que amanhã pela manhã nos encontraremos desfrutando de um fixo monção do sudeste, a não mais de uma semana de navegação do Rio, conforme sua força.
- Bem, bem. Muito bem. Acaba de me tranqüilizar. Porém, conte-me, Jack, dado que vejo que, apesar de não ter pregado o olho a noite toda, anseia levantar-se para
inspecionar minuciosamente a nave... Conte-me, peço, quando achas que terá uma folga para sentar-se e confiar-me os aspectos menos físicos de nossa empresa.
Jack o olhou pensativo, remuendo os aspectos menos físicos. Então, sorriu e disse:
- Ainda que desfruto de um excelente tenente, há muitos assuntos lá acima que não delegaria a ninguém sem revisá-los em pessoa. Também existem convés abaixo. Que
acha depois de almoçar, quando tomemos um café sozinhos?
Jack Aubrey empurrou para trás o respaldo da cadeira, e desabotoou um par de botões de seu colete.
- Quem diria que estava tão faminto? Temo que ter comido como um ogro.
Pôde ver-se Killick sorrir: o caso era que o apetite de Jack sempre lhe comprazia. Era a única concessão que fazia à amabilidade.
- Oh, vamos - disse Maturin. - Seis costeletas de cordeiro não constituem uma ração excessiva para um homem de sua corpulência. Um ogro abstinente o chamaria de
moderação. Esses benditos norte-americanos disseram que o animal provinha de uma paragem favorecida, e não me admira porque a carne era tenra e suculenta.
Comeram-no com um queijo de Essex um pouco duro, que devoraram com a ajuda de um vinho de Borgonha. Jack, ao recordar o assunto que os tinha levado ali, perguntou
a Stephen se a inspeção tinha sido satisfatória.
- Foi muito bem, obrigado. Não tanto dado que terá que começar de novo com a recuperação de três das fraturas mais recentes. Mas em geral, não tenho por que me queixar.
Sofreram uma sacudida, caíram ao piso, mas a maioria (e não é que tenha muitos pacientes na coberta dos alojamentos), suportaram bem os golpes, o balanço e o cabeceio
do barco. Tive ocasião de comprovar que uma prolongada e violenta enxurrada tende a melhorar meus pacientes. Talvez se deva a que o fato de se constatar a proximidade
da morte devolva à saúde o adequado equilíbrio.
- Killick - chamou Jack. - Pode pôr a cafeteira no fogo?
Tardou mais do usual, e, enquanto o companheiro de Killick, Grimble, sustentava a porta, o despenseiro do capitão fez sua entrada caminhando de costas, protegendo
a bandeja em que levava a cafeteira, as xícaras e uma jarra.
- Com os cumprimentos da Delaware, senhor. Schnapps holandês.
- Voltaram a ganhar-nos pela mão - disse Jack, sacudindo a cabeça. - Teria gostado de poder dar-lhes algo, qualquer coisa.
- Eu arrumei para que lhes levassem em um bote um garrafão de tintura de vassoura negra - disse Stephen, titubeando. - Da melhor vassoura negra - acrescentou, menos
convencido da conveniência de suas palavras.
- Enfim, espero que o aproveitem - disse Jack. - Ainda que não sejam mais que democratas e republicanos, espero que lhe tirem proveito.
- Amém - disse Stephen.
- Está na lua, irmão - disse Jack após um tempo. - Em que está pensando?
- Em meu salto na passagem em dó maior do adágio - respondeu Stephen, que assobiou a melodia.
- Conheço a peça.
- Ocorreu-me, durante a tromba d’água, que estava fora de lugar, que era muito chamativo.
- Por nada do mundo o acusaria de tal coisa. Ainda que talvez esteja fora de lugar.
- Oh, obrigado, Jack. Acho que o eliminarei. Posso agora servir-lhe uma xícara de café e passar ao tema do Rio?
- Certamente.
- Você me falou até certo ponto de sir David Lindsay, ainda que não de um modo continuado, nem do princípio para o fim. O que acha se o comentamos agora? É muito
provável que o cavalheiro represente um papel de grande relevância em nossa empresa.
- Nada mais longe de minha capacidade, como bem sabe, Stephen. Sou capaz de converter um simples despacho de guerra do qual conheça até o último detalhe em uma relação
simplória do sucedido, por mais que Adams ou você tenham a amabilidade de dar-me uma mão.
- Isso mesmo. Um relato frio, destinado a ser publicado em um meio oficial pode ser muito difícil de escrever, e Deus sabe que são poucos os almirantes ou os secretários
que conseguem fazê-lo da forma adequada, fazê-los atraentes, embelezá-los. Mas entre amigos, em um barco que parece navegar de um modo exemplar (equivoco-me ao pensar
que são estes os ventos do sudeste?), poderia explicar-me a grandes traços a que devo ater-me?
- Veja, Stephen - disse Jack, - não se pode dizer dele que seja um mau marinheiro. Tomou parte em dois ou três reputados combates entre corvetas e fragatas, e governa
bem seu barco. O caso é que não parece um marinheiro. Se o visse vestido de civil poderia confundi-lo perfeitamente com um soldado. Creio que se deve a que, por
ser pequeno, mantém-se esticado como um mastro. É um tipo cavalheiresco. Nada sei com respeito à sua família, mas ostentam a categoria de baronetes há duas gerações,
e acredito que vivem no norte do país, talvez na Escócia. Fala... Bem, talvez muito e demais, mas Stephen, não ache que o estou destroçando ante seus olhos, apenas
falo abertamente, e não falaria assim com ninguém mais.
- Entendo, meu amigo.
- Pois não lhe contei grande coisa, direi que ele é muito susceptível, não suporta que o interrompam, e lhe seria insuportável que difamassem seus conhecimentos
do mundo, para não mencionar a sua família. Oh, teria que ter-lhe dito antes que nada que se criou em uma das escolas públicas mais importantes, até que seu tio
o embarcou com a categoria de guarda-marinha, apesar de que já não ser um menino. Durante aquela época leu muito, e aprendeu mais latim e grego que a maioria de
seus companheiros daquele então, o que, sem dúvida, constitue uma das razões de que fale como fala. Mas voltemos a sua susceptibilidade: quando se fala tanto, é
quase seguro que terá quem lhe interrompa ou contradiga, o que, como já disse, não pode suportar.
- Mas deve ter tido que suportá-lo quando ia à escola.
- E também no camarote dos guardas-marinhas. Mas quando teve uma nomeação na armada do rei, e toda a autoridade que esta concede, viu que tinha campo livre. De fato,
era bastante problemático, e não acredito que ninguém como Lindsay tivesse tantas encontros, refiro-me a que era daqueles que saíam com um par de pistolas sob o
braço, para depois tomar sozinho o café. Não acho que isso aumentasse sua reputação de corajoso, provavelmente pelo contrário, pois era forçada e exagerada. Contudo,
é valente, sem dúvida. Ninguém sem a valentia necessária seria capaz de abordar e tomar uma embarcação de igual porte.
- Certo.
- Mas foi sua susceptibilidade, sua incapacidade de morder a língua ou, talvez, seu excesso de coragem, o que foi fatídico para ele. Durante um exercício da frota,
quando forravam com pranchas de cobre os fundos de sua fragata de vinte e oito canhões, designaram-lhe uma corveta, e permitiu que esta abandonasse se posto, o que
decompôs a linha de um modo horrível. O almirante o chamou e, pelo que ouvi, dedicou-lhe uma longa série de sensuras lacerantes. Lindsay lhe escutou sem dizer palavra,
mas pela manhã enviou uma nota de desafio para o almirante. Não sei como conseguiria convencer a alguém de que entregasse semelhante nota, porque desafiar a um oficial
superior (mesmo que não seja um oficial do Estado Maior) é inconcebível na armada. Pedir-lhe explicações por um castigo recebido, uma ordem ou uma censura com a
qual não esteja de acordo é inconcebível, como qualquer amigo de Lindsay poderia ter-lhe recordado. Acho que tem poucos. Falo de amigos. Enfim, seja como for, resultou
que o prenderam, submeteram-no a um conselho de guerra e o expulsaram da armada.
Durante um tempo vagabundeou de um lado para o outro, reclamando justiça e gastando um dinheirão em advogados (pelo visto, tinha herdado) e depois desapareceu, veio
para estes lares, pelo que entendi, com a reputação de ser pessoa que ama a liberdade e que sofreu por ela. Existem muitos bons comerciantes no Chile e Argentina,
e alguns deles ficaram encantados de ter a seu cargo a um baronete de verdade, e alguns deles, repito, e de seus amigos sul-americanos eram partidários da liberdade,
com relação à Espanha, falo, porque a liberdade de poder disparar em seu almirante em pleno Hyde Park já é outra coisa. Seu nome soava como uma espécie de eco desde
que se apelava pela liberdade.
- Certamente, fala espanhol o cavalheiro?
- Oh, extraordinariamente bem, conforme me disseram.
CAPÍTULO 7
Em uma manhã preciosa, ao sul das vis calmarias e do enervante e asfixiante calor, orçou a Surprise ao vento bem longe da emergente costa americana, e Jack, que
caminhava para cima e para baixo com uma torrada na mão, disse:
- Stephen, quer subir ao tope? Com este suave balanço constante os paus quase não se movem.
- É Sugar Loaf o que quer ver?
- Gostaria de ver Loaf, ainda que se lhe sou sincero assoma só quando nos sobem as ondas, mas nesta ocasião não me importa pois o que realmente me preocupa é a atividade
no porto, as idas e vindas, as vergas. Praticamente tudo oculta Sugar Loaf. De qualquer maneira terei que enviar a Ringle, para preparar os suprimentos, a aguada
e a madeira. Gostaria de acompanhá-los?
- Não, em absoluto. Estou mais que disposto a subir a qualquer altura que você deseje.
- Senhor Hanson - chamou Jack. - Senhor Wells. O doutor se dispõe a subir. Os senhores o acompanharão e não hesitem em prestar-lhe toda a ajuda que possa necessitar,
como se fossem dois apoios mais.
- À ordem, senhor, à ordem - responderam. Jack trepou de novo pelo familiar conjunto de amantilhos, enfrechate depois de enfrechate com a facilidade de alguém acostumado
ao exercício, até chegar ao cesto da gávea, onde cumprimentou o vigia e conteve um pouco a respiração para facilitar de algum modo a trabalhosa subida de seu amigo.
Stephen chegou, pálido; não estava exatamente nervoso, mas sim um pouco cansado. Os ajudantes o seguiam. Todos tomaram assento um pouco, observando o continente
e a escuna através da luneta do capitão.
Era verdade. Não podia dizer-se que os paus se movessem. Mesmo assim, na seguinte escada da ascensão, nas vaus, Jack disse que seria necessário subir mais. Olhou
o horizonte um pouco, assinalando diversas elevações do terreno. Então, aferrando-se a um contraestai, sua própia e expeditiva maneira de descer, confiou aos jovens
a tarefa de devolver o doutor são e salvo ao convés quando este quisesse fazê-lo, e, depois, desapareceu.
Posou os pés com um estampido afogado e se encarregou de que o guarda-marinha de sinais içasse o sinal da Ringle, a quem ordenou aproximar-se à voz. Depois, empurrado
pelo aroma do desjejum, dirigiu-se apressadamente para a cabine. Ali Stephen se reuniu com ele, pálido ainda, mas com a segurança de quem caminha de novo por terra
relativamente firme. Killick lhes serviu café, bacón, salsichas e torradas, de modo que não tardou sua cordialidade, inclusive sua alegria, em recuperar também o
equilíbrio usual.
- Espero que o doutor Jacob tenha a amabilidade de acompanhar William ao Rio - disse Jack; - já que fala português, poderia averiguar quanto possa da Asp. William
sabe que perguntas tem que formular, mas será melhor que não seja um inglês a fazê-las, alguém, que por acaso, conheceu a embarcação quando esteve na Valetta, antes
que a indeferissem para o serviço, e que por dita razão se interesse por ela.
- Equivoco-me ao pensar que o melhor seria que William adotasse um papel de passageiro, preocupado com outros assuntos navais, enquanto que Jacob fosse um autêntico
passageiro ocioso, entregue a um passeio pelo porto, para ver um pouco do Brasil, ignorante do mar, mas interessado pelos assuntos terrenos?
- Acertou na mosca, querido amigo. É exatamente isso o que me agradaria ter dito. Outra xícara?
Nesse momento, Killick anunciou três coisas: o desejo do senhor Woodbine de ver o capitão imediatamente ou com a maior brevidade; a cercania da Ringle, e, finalmente,
a notícia de que aqueles gatos africanos haviam comido as mangas.
- E tudo o que não comem, estragam - acrescentou com um brilho malvado e triunfal no olhar.
A única missão do senhor Woodbine consistia em informar da existência de certo desvio dos machos do leme, desvio calibrado durante aquela cristalina calmaria, e
que o senhor Seppings havia prognosticado ao colocar o novo codaste. A correção tinha sido efetuada graças a três cálculos simples, expostos com clareza pelo jovem
Seppings em um desenho que encontraram no interior da caixa onde se guardavam os apetrechos de rigor. A entrevista seguinte não foi tão satisfatória: William Reade
não tinha a impressão de que suas explicações relativas às perguntas simples com respeito à ressuscitada Asp tivessem penetrado as camadas e camadas da imensa lacuna
que tinha o doutor Jacob com relação à linguagem náutica inglesa e portuguesa. Sabia muito bem o que o capitão Aubrey desejava averiguar, mas tinha a impressão de
que, além de apurar os habituais assuntos relacionados com a aguada e os apetrechos, desembarcaria em vão.
- Será como barbear-se com a faca de manteiga - resmungou ao sentar-se junto a um sombrio doutor Jacob na canoa da Ringle.
Jacob, que em vários aspectos se mostrava tão estúpido como o mais parcial dos marinheiros pudesse desejar, era um desenhista de primeira. Evidenciava esta qualidade
a exatidão e beleza de suas lâminas de anatomia, e era capaz de mudar a escala, a atitude e a natureza da descrição. De modo que foi graças a seus esboços e às descrições
técnicas de Reade feitas na cabine, que Jack Aubrey obteve uma idéia clara da renovada, a quase reconstruída Asp.
- Senhor, duvido muito que pudesse reconhecê-la, com aquela linha tão nova - e a seguiu com o dedo no desenho de Jacob. - Devo fazer justiça ao doutor ao dizer que
não poderia tê-la desenhado melhor se ganhasse a vida no ofício. Minha única dúvida é se com esses pés adicionais navegará de bolina tão bem como antes. Creio que
é mais rápida, mas barlaventeará tão bem? Tenho minhas dúvidas.
- Eu me atreveria a dizer que o senhor tem razão. - Jack preferiu não mostrar-se mais específico, ainda que falou com seriedade, e enquanto William Reade retomava
a descrição das melhorias no armamento, incluindo um elegante par de canhões de caça de cobre, a expressão de seu rosto, alegre geralmente, adquiriu uma maior seriedade.
Querida - escreveu Stephen, - passeio anos inteiros navegando os mares, mas raras vezes percebi uma preocupação tão compartida. Não se trata de mera intranqüilidade,
porque a Surprise é estanque, isso todos sabemos, está bem apetrechada e conta com uma dotação de marinheiros acostumados a trabalhar juntos. Contudo, andamos com
falta de alegria, das brincadeiras convencionais, dos insultos jocosos e das agudezas que tanto amenizam a vida a bordo. O que mais me admira é que se trata de algo
específico, mas universal, talvez com a exceção do camarote dos guardas-marinhas e dos pagens de vassoura. A primeira vez que reparei neste fenômeno, foi quando
pairamos no estuário do Rio da Prata. Tinhamos despachado o navio de apetrechos para aquele desolado e imenso território que, pelo menos até onde pude ver, carece
de aves. Buenos Aires. Carregava, entre outras cartas e pacotes, uma nota destinada à senhora, na qual assinalava o extraordinário contraste existente entre os lagos
africanos, onde chapinham familiares e exóticas variedades de patos, gansos, biguatingas e aves ancudas, até a Ardea Goliath, e este enorme deserto, talvez povoado
além do alcance de minha luneta por um pato de água que esteja mudando a pena. Espero de verdade que receba minha nota em Dorset, pois é portadora do maior afeto
que se costuma cobrir-se com lonita.
É verdade que dato a origem de tudo isto (da tristeza, da adversa atmosfera que nos rodeia) no momento em que percorremos o Rio da Prata, e é que por um tempo quis
atribuir nosso humor à ausência de vida animal, o que certamente é uma bobagem. Assim que o navio de apetrechos se reúna conosco, e quando possamos continuar o rumo,
poderemos ver as aves do sul. Além do mais, antes de ancorar aqui observamos umas poucas skúas, e dentro de pouco veremos pingüins por toda parte.
Não, devo encontrar uma explicação mais racional para o humor que nos acompanha. Em parte poderia atribui-lo à natureza in media res da estação, que não corresponde
a uma nem a outra. Talvez mais se deva ao fato por todos conhecido de que navegaremos para o Pacífico via Cabo de Hornos, em lugar de fazê-lo pelo estreito de Magalhães
(do qual Jack Aubrey não é muito amigo) de leste para oeste; os pontos mais afastados requerem manobras que são extraordinariamente perigosas com ventos fortes do
oeste.
Creio que pode-se dizer sem faltar à verdade que ninguém exerce tanta influência em um barco como seu capitão. Acho que a força de sua influência aumenta, e muito,
quando o capitão o comandou durante anos, como ocorre no caso do capitão Aubrey. Sua expressão, seu humor diário, seu tom de voz são observados de modo natural,
automático, por todos. Não por curiosidade ou um interesse intenso e pessoal, mas como ocorre a qualquer um (marinheiro, granjeiro, pescador) que, submetido ao tempo
atmosférico, levante com freqüência o olhar para o céu. Eu não me vejo sujeito ao estado de humor, ao état d’âme deste grande homem, exceto porque é meu amigo, porém,
mesmo assim, me sinto curiosamente afetado...
Neste ponto interrompeu a escrita, que retomou após muitos dias com uma pena distinta, molhada a ponta em um tinteiro diferente, e escrita em uma folha de papel
melhor descolorido.
Querida, não é senão com grande tristeza que contemplo a perda de tantas páginas, maltratadas pela terrível ventania, esmurradas e golpeadas pela entrometida água
do mar que se misturou com gelo e que cobriu a cabine equanto a pobre Surprise jazia tombada de lado em um dos inumeráveis baixios que não aparecem marcados nas
cartas existentes deste ameaçador canto do mundo. Sucedeu quando Poll Skeeping e eu vendávamos e atendiamos a alguns marinheiros, feridos quando um canhão se destrincou
devido à pressão do gelo. Neste momento estamos de novo flutuando, e navegamos com as maiores e gáveas rizadas pela face interna (a sotavento) de uma das incontáveis
ilhas que ornam este desolado canto do mundo.
Estas páginas agora feitas polpa, eram pouco mais que uma espécie de diário, um entretenimento que aproveitava para compartir com a senhora coisas como o avistamento
cada vez mais freqüente de pingüins (entre estes, alguns pingüins imperador), albatrozes, petréis grandes e pequenos, focas, certamente, e leões marinheiros, além
da sinistra criatura conhecida como baleia assassina, às vezes em revoadas numerosas. Incluíam suas páginas uma desculpa por dirigir-me à senhora com tanta familiaridade,
que justificava pelo fato de não ver-me na posição do pretendente total e formalmente recusado, de modo que é permissível certo grau de familiaridade (que por outro
lado não deixa de ser censurável, inclusive grosseiro). Continham também uma passagem que descrevia nossa chegada ao Cabo das Onze Mil Virgens, além do qual se encontra
a embocadura tranqüila e ampla do estreito de Magalhães, talvez de umas doze milhas de largura. Soprava bom vento em nossa alheta de bombordo, apesar do que não
se ordenou trocar lona ou rumo. Os marinheiros se alinharam no costado, com a vista em terra, enquanto viam passar o estreito, a maioria deles com um rosto tão sério
como o de seu capitão. Não se fez comentário algum, o silêncio somente foi quebrado pelo regular tangido do sino.
Desde então, e desde nossa passagem pelo estreito Le Maire, que só conduz de uma parte do oceano para uma parte pior um pouco ao sul, tivemos mau tempo, e a ventania
tem maior componente sul do que o que costumam encontrar a maioria dos barcos. Isto faz do gelo um fator mais perigoso, pois é mais abundante. Há muitos blocos de
gelo, enormes lâminas planas de gelo que não alcançam uma grande profundidade, aos quais dificilmente podem fazer frente nossos destros baleeiros (e contamos a bordo
com alguns) e a defesa que providenciamos. De vez em quando, vemos montanhas de gelo que, em ocasiões, quando o céu está limpo, possuem uma extraordinária beleza
verde, azul e turquesa. Nossos baleeiros afirmam que, a medida que avança a estação, sobretudo com um vento tão do sul como este, veremos mais. De um ponto de vista
puramente estético, constituem um precioso espetáculo, já que estes ventos contínuos levantam ondas monstruosas, talvez de uma centena de pés de altura, e é um grande
espetáculo vê-las romper com todas suas forças contra uma massa de gelo enorme.
Contudo, sua presença, e a presença das gigantescas ondas e os ventos adversos, nos obrigam a avançar para oeste o que podemos ao abrigo de muitas, muitas ilhas
que em ocasiões oferecem uma assombrosa proteção. Sucede às vezes, depois de dias de perpétua e esgotadora luta contra o temporal, que nos refugiamos ao abrigo de
uma baía para descansar, pescar (principalmente em busca do suculento arenque) e recolher os grandes mexilhões que não se encontram a muita profundidade.
É em uma destas baías onde pairamos neste momento. Jack Aubrey e eu acabamos de jantar estes pratos. Suponho que a senhora saberá que quando menino teve relação
com a família Byron. É possível que exista certa relação, ainda que não estou seguro, mas em qualquer caso teve ocasião de conhecer ao almirante (conhecido na armada
pelo apelido de Jack O Tormentoso), a quem admirava muito, e cujas anedotas repete amiúde. A senhora recordará que quando guarda-marinha, o almirante navegou a bordo
do infeliz Wager, um barco da esquadra com o qual Anson fez sua famosa circunavegação. O Wager naufragou no arquipélago de Chonos, e Byron e alguns de seus companheiros
tiveram que conviver com os indígenas desses lares, uma vida dura, muito dura. Digo à senhora que as mulheres, algumas das quais se portaram muito bem com ele, encarregavam-se
de praticamente todo o trabalho. Eram elas que remavam as canoas, por exemplo, embarcações frágeis muito proclives a tombar, e poucos eram os homens que sabiam nadar,
enquanto que as mulheres aprendiam desde meninas. Elas pescavam, jogavam as redes e depois animavam os cachorros a encurralar o pescado até a rede, alguns cachorros
pequenos e pouco inteligentes, capazes contudo de nadar e submergir na água. As mulheres também cozinhavam, e costuravam a escassa roupa que usavam, pois a maioria
deles andavam desnudos, ou se penduravam uma pele de foca para proteger-se do vento. Os homens se aproximavam da praia para recolher lenha, às vezes caçavam, mas
sem muito êxito. Contudo, acendiam o fogo, inclusive quando tudo estava empapado, como costumava suceder. A única comunicação era a que se fazia mediante sinais
de fumaça, sistema que lhes permitia trocar mensagens entre distâncias consideráveis. Contudo, querida... Não sei, chegou o momento de minhas rondas. Acabam de apitar
para os marinheiros recolherem âncora. Reverbera na coberta o estampido ordenado das pisadas, o som metálico das lingüetas ao puxar-se o cabo. Recordo agora que
devíamos aproveitar a maré alta para nos aproximarmos de um promontório do qual poderemos ver o oceano, mar aberto.
Oito badaladas, momento para as habituais rotinas da manhã, uma das quais eram as rondas de Stephen. A enfermaria parecia desabitada naquele momento, mas a maca
na qual descansava um baleeiro sueco chamado Björn tinha visita. Tinha quebrado três costelas devido a um baque recente. A visita era Hanson, companheiro de divisão
do paciente.
- O senhor progride muito bem - disse Stephen com aquele tom alto e claro de voz que mesmo os médicos inteligentes empregam com seus pacientes estrangeiros, - e
se o senhor Hanson avisar a um de seus companheiros para assegurar-nos de que o senhor não caia, poderia subir ao convés um pouco, agora que o barco permanece imóvel.
As cerimônias matutinas também incluíam o café da manhã.
- É um prazer ver como os jovens marinheiros que pertencem a uma mesma divisão cuidam uns dos outros - disse Stephen enquanto tomavam o café. - Desde o temporal
que inundou a enfermaria, não se passou um só dia sem que três ou quatro tenham vindo para perguntar como se encontram seus companheiros.
- Seria este um barco muito estranho e infeliz se não sucedesse tal coisa - disse Jack. - O correto é que os oficiais sintam uma preocupação real por seus homens,
e se tivesse que servir a bordo de outros barcos, creio que descobriria que ocorre o mesmo em todas as partes.
Ainda que Stephen não estivesse muito de acordo, não disse nada. Antes de servir-se da xícara seguinte de café, Whewell, o oficial de guarda, entrou na cabine.
- Peço que desculpem esta interrupção. Senhor, acabamos de franquear o estreito e temo que o vento sopra com força aí fora. O fluxo de ondas entra como empurrado
pelas pás de um moinho, e traz consigo esses fodidos... traz consigo uns condenados blocos de gelo.
- Lamento ouvir isso, senhor Whewell - disse Jack, - mas a menos que tenhamos errado por muito na medição, não tardaremos em encontrar águas mais calmas. Jogue a
âncora pequena, tenha a bondade, e procure manter o vento justo a popa, de tal maneira que possamos observar o estreito sempre que queiramos. Agora mesmo subo ao
convés.
Querida - escreveu Stephen, - eu os segui ao convés. Permanecíamos ao abrigo de um escarpado de paredes negras, a bombordo, quase sem mar para a manobra. Sobre nossas
cabeças, o vento assobiava ao atravessar uma abertura natural nas rocas com um rugido constante e rouco, enquanto que, pela passagem a mar aberto, podíamos ver que
os "condenados blocos de gelo" aos quais o senhor Whewell fez referência eram massas irregulares do tamanho de um palheiro gigantesco; é de supor que correspondam
a fragmentos das montanhas de gelo caídos do escarpado com grande força. Nós (e não incluo a Ringle) poderíamos ter sobrevivido ao golpe de um destes blocos, mas
não parecia que pudéssemos pensar na mesma sorte para a canoa que tentava superar o fluxo de ondas no outro extremo. Refiro-me a nossa mão direita ou lado de estibordo,
onde a corrente corria com força até beijar a margem. Por um instante, não entendi o que sucedia; então, Hanson e seus marinheiros me explicaram com poucas palavras,
e me ofereceram uma luneta. Na canoa tinha uma jovem com uma pele de foca no ombro e um remo nas mãos. Na coberta da canoa, cobertos com redes, meia dúzia de cachorrinhos
à direita de uma anciã completamente nua, que sustentava um cesto cheio de peixes e um bebê tão nu como ela. Estavam todos empapados pela chuva e a espuma do mar,
a ponto de congelar-se. A garota, com uma capacidade extraordinária para manobrar a canoa, tentou uma e outra vez deslizar entre os blocos de gelo, tombando amiúde,
mas sem virar. Observamos a cena com toda a atenção possível, e com inquietação também. Finalmente, já que os blocos flutuavam formando uma espécie de caravana,
fez mudar de bordo a embarcação e se deixou levar pela corrente que desenhava uma curva através do canal até nosso costado, de modo que se pôs à voz. O capitão Aubrey
a chamou e lhe ofereceu um cabo. Ela não quis aceitá-lo, acho que somente o fato de encostar-se teria bastado para que a frágil canoa se despedaçasse. Björn gritou
algo e ela respondeu. Alguém jogou um cobertor, que caiu sem problemas nas mãos da anciã: dizem que esta sorriu, e a embarcação foi então arrastada para a margem
até deter seu caminho em uma prainha de seixos onde vimos um barraco, a fumaça de um fogo e alguns homens nus se dirigiram devagar para elas para recolher o pescado,
os cachorros e o cobertor.
Pouco depois disto, em uma dessas mudanças que parecem própias de um sonho, cessou o fluxo de ondas. Jack chamou à voz a Ringle, que se encontrava a sotavento, e
pediu que desse uma espiada na passagem, no canal, e que informasse depois do estado do mar e do gelo. Então chamou Hanson e Björn para que se reunissem conosco
na cabine. Uma vez ali, ofereceu café, e, falando principalmente por meio de Hanson, que não só era o oficial superior de Björn mas que, além disso, estava acostumado
a seu modo de falar, perguntou que opinião geral tinha formado das circunstâncias atuais. Entre outras coisas, quis saber se Björn falava a língua do lugar.
- Sim, senhor, ele fala; Bem, mais ou menos. Naufragara no Ingeborg, de Malmö, em um trecho ao oeste, em Wigwam Reach ou por ali (o barco ardeu até a linha de flutuação,
e somente cinco homens conseguiram chegar na margem). As pessoas do lugar se mostraram muito amáveis e, ainda que lhes tiraram a maioria de seus pertences, deram-lhes
de comer. Eles se encantavam com as facas, não tinham facas nem metal. Ofereceram-lhes uma menina em troca de sua segunda melhor faca. Após um ou dois anos (pois
perderam a conta), chegou a entendê-los bastante bem. Eram boa gente, ainda que não sabiam o que era a limpeza. Sua língua se chamava Tlashkala. Não, não se falava
em toda a costa, muito pelo contrário. Outro povoado a umas cinqüenta milhas a oeste, e não entendiam nem uma palavra do que diziam. Quando os povoados se encontravam,
costumavam enfrentar-se até a morte, e o bando mais forte saqueava tudo que podia levar de volta ao seu território. Além deste outro povoado, os Wona, tinha outro,
e assim era em todo Wigwam Reach. Alguns deles comiam carne humana, outros não. Mas todos faziam sinais de fumaça a seus amigos. Depois de fazer uma pausa, Björn
perguntou com um burburinho a Hanson se o capitão sabia o que era Wigwam Reach.
Hanson se ruborizou, superou sua confusão e comentou ao capitão Aubrey que Björn se perguntava se sabia o que era Wigwam Reach.
- Por favor, diga-lhe que me conte tudo o que possa - disse o capitão Aubrey.
- Senhor - disse Björn, - não me apostaria o arpão, mas os baleeiros de Malmö e Gothenburg que navegam de volta ao seu lar e sem pressa, procedentes dos distantes
bancos do sul, aproveitam-no amiúde, sobretudo quando têm tanto vento do sul frente a Hornos como sucede agora. Wigwam Reach é uma passagem abrigada, não é a que
agora temos ao oeste, mas a seguinte. Oferece um abrigo constante, e é lento de navegar, mas se estende pelo menos cento e cinqüenta milhas, após Cabo Pilar até
dar no Pacífico. É o extremo do estreito de Magalhães. Sucede que os índios são muitos incômodos, isso é o único que preocupa aos baleeiros. Contudo, um barco de
guerra nada tem que temer.
- Obrigado, senhor Hanson - disse Jack ao mesmo tempo que se levantava. - E obrigado, Björn; espero que logo essas suas três costelas se recuperem.
Stephen continuou escrevendo; desta vez o fez com uma caligrafia desigual, ainda que tanto ele como o tamborete e a escrivaninha estavam tão apertados que nada exceto
seu pulso tinha liberdade de movimentos. Pelo visto, o barco e o mar sobre o qual este flutuava (pelo menos, de momento) haviam anulado seus direitos a este respeito.
Querida, de novo nos achamos em um oceano ilimitado, e abençoados pelo que chamam um vento favorável avançamos como podemos para o noroeste. Já dobramos, como creio
ter lhe contado faz muito em alguma destas páginas confusas e incoerentes, o temível Cabo de Hornos, e agora o capitão Aubrey decidiu que o dever lhe exige não perder
um só minuto na prazerosa navegação pelas águas lentas e abrigadas, e avançar a toda vela por mais que nos açoite a tempestade, nos invista o gelo, percamos paus,
moitões, cabos pequenos... Agora, inclusive, por mais que morramos de fome. Temos de tudo menos água, mas cada vez menos, e menos.
A escassez se deixa sentir na enfermaria, onde as velhas feridas se abrem por nada, onde se evidencia a fraqueza e, talvez, os primeiros sintomas de escorbuto. Três
homens e um garoto morreram de uma simples pneumonia sem complicações, e o pobre senhor Woodbine partirá logo, devido a uma complicação derivada do fato de ele mesmo
ter tratado suas doenças crônicas. O que pode fazer a medicina nestes casos, exceto facilitar o final sem provocá-lo de forma deliberada?
Ele em pessoa, e me refiro a Jack Aubrey, pois ele personifica o barco, tornou-se sério, duro, inacessível. Não pede opinião a ninguém, e tenho a impressão de que
sabe exatamente o que traz entre as mãos. Navega com a mesma determinação e clareza de mente que os albatrozes que nos acompanham em ocasiões, com os olhos semicerrados,
plainam majestosos sobre nossas cabeças.
Ainda que a estas alturas já posso considerar-me um marinheiro veterano, acostumado à vida na armada e no mar, surpreende-me observar a força do tratamento, do costume,
da necessidade, da disciplina. A gente, debilitada pela perda e, agora, pela escassez de comida, trabalha duro para mudar de bordo o barco nestes mares e com estes
ventos, com frio, com muito frio, o que é no mínimo esgotador. Estão fazendo-o tanto a tempo que parece uma eternidade, mas ainda tenho que ouvir uma só queixa,
uma maldição. A alegria desapareceu, é verdade, mas restou a assombrosa fortaleza, inclusive entre os pagens e guardas-marinhas que restam com vida a bordo. Uma
ou outra vez ouvi ao capitão repreender a um de seus oficiais, mas não é algo que suceda todos os dias.
Comemos juntos, como sempre fizemos. Contudo, não é bom momento para manter uma conversa íntima. Faz muito que não conversamos. Na última vez que tomamos café se
limitou a inclinar a cabeça, e também me disse, ao finalizar a guarda da alvorada, que acabava de recordar o presente da Delaware, as garrafas de rum da Jamaica
que seguiam guardadas em uma caixa, em se guarda-comida particular. "Os homens iriam até as portas do Inferno para salvar a Surprise - disse, - mas se lhes tocar
no grogue não serei eu que responda por nenhum deles."
De modo que o grogue está a salvo, pelo menos de momento. Se não interpretei mal a conversa da câmara dos oficiais, a inquietação derivada da escassez de alimentos
(já nos restam poucos barris de novilho salgado) logo se verá aliviada, dado que rumaremos, ou tentaremos rumar, para um conjunto de ilhas cartografadas em três
mapas distintos, situadas perto do que se entende aqui por a costa. Nos encontramos, e custará para a senhora tanto como para mim entendê-lo, no início da primavera
antártica. Começa de novo o ciclo da vida, razão pela qual confiamos conservar a nossa. Apaga-se a escassa luz que havia, ainda que neste entardecer não o faz sob
a habitual nuvem de neve fina, senão debaixo de uma chuva sombria. Assim, querida, desejo-lhe boa noite, e que Deus a abençoe.
Após alguns dias, um cansadíssimo doutor Maturin se acomodou como pôde no mo lugar de escrita, observou suas mãos, e molhou a pena no tinteiro.
Querida, pode ser que não seja verdade, mas conforme ouvi dizer não se permite aos açougueiros formar parte de um júri, devido a que estão tão acostumados ao sangue
que carecem do menor indício de sensibilidade. De minha parte, durante minha fase de estudante de Medicina, não podia estar mais acostumado a dissecar cadáveres.
É verdade que no início tive que superar certa discordância, uma discordância extraordinária, e acreditei tê-la superado por completo. Pelo visto, não é assim. A
carnificina de ontem, e de anteontem, perturbou-me muito mais do que teria achado possível. O tempo se mostrou muito bondoso, e a Surprise e a Ringle, puseram proa
para uma baía resguardada, onde ancoramos em talvez vinte braças de água. Depois, aproximamo-nos em botes com um fluxo de ondas moderado, através do gelo, que não
apresentava uma grande dificuldade. A morte estava à espreita. Junto ao cúter azul no qual eu me sentava surgiu um leão marinho que saltou sobre um dos pingüins
pequenos; este saiu voando como um foguete ou a rolha de uma garrafa, e foi cair em um bloco de gelo. A costa era um espetáculo aterrador, dividida em colônias (como
as chamam) para as diversas famílias de pingüins (alturas distintas para as diferentes espécies), e depois praias, rochosas ou planas, apropiadas para as focas conforme
seja sua espécie, e uma enseada em particular para os elefantes marinheiros, cujos enormes machos, como creio saberá, apresentam uma carnosa tromba, e ao girar lançam
um rugido infernal. Sobre todas estas criaturas, na escassa ervagem da parte superior da ilha, voavam as andorinhas do mar, três ou talvez quatro albatrozes, petréis
e moleiros-grandes. Com a luneta se podiam distinguir centenas de aves. Como acho já ter dito, alguns de nossos homens navegaram a bordo de baleeiros, e portanto
estão acostumados a sangue. Outros, depois dos gritos e do nervosismo iniciais, propuseram-se a perseguir as focas de tamanho médio e golpeá-las na cabeça, enquanto
que os mais familiarizados com o trabalho do açougueiro cortavam a carne em fatias, com a intenção de salgá-las. Não tardou em cessar a algaravia desatada a princípio,
momento em que me dispus a impedir sofrimentos desnecessários com a ajuda do escalpelo. Foi um exercício sanguinário e muito desagradável, executado em sua maior
parte vestido com a roupa de cada dia. A maioria dos garotos ficaram muito angustiados, outros, em troca, pareciam desfrutar. Por sorte, ou talvez deveria dizer
que por prudência, tínhamos sal em abundância. As bodegas, também as da Ringle, estão cheias de barris de foca e leão marinheiro em salgação, carne tão saborosa
e nutritiva como se possa desejar.
Contudo, tive ocasião de observar que, embora tenha desaparecido por completo o medo palpável de se ficar sem provisões no distante mar do sul, ainda agoniava ao
barco certo temor. Temor que desapareceu com o grogue e um esplêndido festim de fatias de foca. Tonto de mim, não me dei conta da quantidade de pessoas que tinham
sido afetadas, ainda que, muitos não se afetaram em absoluto, a maioria conterrâneos acostumados a matar desde a mais tenra infância. Contudo, reparei, já que estávamos
no mesmo bote, que Hanson e seu bom amigo Daniel fizeram quanto puderam para ocultar a inquietação provocada por nossas sangrentas excursões, enquanto os moleiros-grandes
grasnavam no alto.
CAPÍTULO 8
Jack Aubrey se virou depois de pronunciar as últimas palavras para seu companheiro Henry Woodbine. Não tinha percorrido ainda o lado do barco, quando o vigia informou
que avistava o sinal da Ringle ao longe, pelo amplo nor-noroeste.
- Suba imediatamente com uma luneta, senhor Hanson - ordenou. Depois, aguardou imóvel enquanto o jovem trepava a toda pressa até a cruzeta do traquete.
- Senhor! - Sua jovem voz pareceu flutuar até o convés. - A Ringle diz: "Localizamos Cabo Pilar norte e meia ao oeste, talvez trinta e cinco milhas."
Com prudência, mas com o coração se couber mais acelerado, Jack subiu à maior altura, colocou-se comodamente no lugar onde costumava situar-se, e encarou o horizonte
com a luneta, além do lugar onde se perfilava a distante escuna. A fria claridade do ar oferecia uma excelente visibilidade, toda a que permitia a curvatura da superfície
da Terra. Depois de calcular alguns instantes, compreendeu que o que se via do distante tope da Ringle não poderia se ver da Surprise durante boa parte da hora seguinte,
por mais que mantivesse os maravilhosos dez nós em que andava nesse momento.
Seguiu ali, de qualquer maneira, enquanto o frio penetrava em sua enorme capa e no impróprio mas útil gorro de lã. Finalmente, meio se convenceu de que podia distinguir
um encaixe no horizonte, a cinco graus da posição apropiada, um horizonte por outro lado tão esticado como um cabo tenso.
Lentamente e com soltura, dirigiu-se a popa, abrindo passagem ante os olhares inquisitivos de quem estava de guarda no convés (guarda que a morte havia minguado),
até chegar à cabine, em cujo interior encontrou o doutor Maturin. Agitava este uma jarra de clarete com especiarias sobre um fornilho.
- Tome um trago disto, meu amigo - disse Stephen. - Ajudará a combater o frio. Acrescentei uma pitada de genebra às nozes e ao cravo de especiarias.
- Desce maravilhosamente - admitiu Jack, - e se há algo neste mundo capaz de substituir o café, ao bom Mocca recém torrado e moído, deve de ser isto. Muito obrigado.
Já ouviu as notícias?
- Não. Poll, Maggie e um veterinário da guarda de estibordo estiveram administrando enemas a muitos, muitos pacientes afetados do empanzinamento que veio substituir
os sintomas de congelamento, as torções e a fraqueza destes últimos dias. A carne fresca de foca não tem comparação na hora de trastornar o metabolismo do marinheiro,
que suporta melhor a bolacha de barco, o queijo de Essex e um pedaço de porco em salgado (do qual por certo recebe uma ração exígua). A que notícias se refere?
- William fez sinal de que avistou terra a trinta e tantas milhas ao norte. Poderia ser Cabo Pilar, que fica situado mais ou menos nessa posição.
- Sinto muito. Achei que já tinhamos terminado com os cabos. Tome um pouco mais de vinho, cairá bem em seu estômago.
- Se insiste... Mas permita-me dizer, Stephen, que se bem Cabo Pilar ou Cabo Desejado, como alguns o chamam, faça parte da Ilha Desolação (outra Ilha Desolação,
entenda-me) constitue um avistamento favorável para o marinheiro que busca a costa chilena, pois além do bendito cabo se estende o oceano Pacífico.
- Quer dizer que poderíamos sobreviver a este périplo?
- Oh, eu não diria tanto. Contudo, por enquanto ordenarei à Ringle encurtar vela, e pedirei a William que nos acompanhe durante o almoço, depois que tenhamos realizado
uma muito cuidadosa observação da altura do sol. Compararemos posições e nos alegraremos ou nos lamentaremos conforme seja o caso. Killick! Vamos, Killick!
- Senhor?
- Chame o piloto em funções.
- Que chame ao piloto em funções, senhor - replicou Killick com um extraordinário senso de humor, tratando-se dele, claro.
- Ah, e Killick, diga ao cozinheiro que prepare uma refeição tão decente como possamos nos permitir. O capitão da Ringle subirá a bordo. - Quando Killick havia se
retirado, acrescentou: - Stephen, não sei se a enfermaria poderia contribuir para o festim de alguma maneira.
- Talvez possa prescindir de um pouco de sopa em pó, muito pouca, verei - disse Stephen, - e olharei para ver se em minhas existências encontro duas ou três garrafas
de vinho decente. Então você tem quase certeza que se trata do Pacífico.
- A menos que o bom William tenha perdido o juízo por completo, as águas de ambos oceanos se misturam frente à ponta exterior do Cabo Pilar. Recordarás que o Pacífico
banha as costas do Chile e do Peru, estendendo-se até o Istmo de Panamá, e, dali, ao estreito de Nootka e à fria costa canadense. Entre, senhor Daniel. Permita-me
dizer-lhe que uma de suas principais atribuições como segundo do piloto consistem em realizar medições exatas e meticulosas da altura do sol. Eu me atreveria a supor
que já tenha ouvido por aí, mas a Ringle, que anda longe, a proa, fez sinal para nos informar de um provável avistamento de Cabo Pilar, situado quase no lugar adequado.
Por favor, informe ao senhor Harding, sem esquecer de transmitir-lhe meus melhores desejos, que me aaria que largasse toda a lona possível para se aproximar da escuna.
Em questão de segundos, ouviram o rumor de uma intensa atividade no convés. Seguiu o vozeirão cansado do contramestre, que agoniou os marinheiros "a arrebatar e
amarrar", o estampido dos pés em carreira, e o chiado dos moitões, além das inumeráveis notas que contribuiram para elevar o tom e intensidade da voz do barco, enquanto
que o embate das águas que fendiam o quebra-mar parecia cada vez mais urgente.
O mar, se algo ensina, é uma espécie de submissão ante o inevitável muito parecida com a paciência. Todos os envolvidos se contiveram protegidos por essa submissão
disfarçada de virtude durante as claras horas que durou a aproximação. Tanto na cabine como na câmara dos oficiais correu a boa notícia (pelo menos entre quem entendia
de navegação) de que suas posições concordavam totalmente. Depois veio o festim, durante o qual se descobriu que o excelente corpo do borgonha acompanhava perfeitamente
à carne de foca. Contudo, o autêntico motivo de alegria viria depois, quando, rematado o trabalho a com um trago de rum norte-americano, subiram ao a cesto da gávea
do traquete. Ali, Jack Aubrey chamou um a um aos guardas-marinhas, a quem pediu que tomassem nota da alta e pelada montanha que havia na ilha, a proa, a montanha
com dois pilares de roca para o mar, negra a mais alta.
Jamais deviam esquecer aquela peculiar silhueta, que assinalava o extremo ocidental do estreito de Magalhães. Dali, com um pouco de sorte e o vento soprando do oeste
ou noroeste, um barco podia chegar até o Atlântico em uma semana.
Passado Cabo Pilar desfrutaram de um tempo perfeito, com céus limpos, ventos de joanete sem pitada de gelo, e um mar abençoado como nunca se viu, com ondas suaves
que morriam em uma costa tão distante que parecia uma miragem, um mar com alguma ou outra baleia, e pesca em abundância que subiram pela borda. Sobretudo e antes
de tudo, aquele era um mar pacífico: nada de violentos enxurradas que estouravam de repente, nem noites em que tivesse que despertar toda a tripulação e arrancá-la
das macas meio quentes para enfrentar-se a um convés escorregadio pelo gelo, aos cestos das gáveas e as linhas de vida. Voltou pouco a pouco a boa saúde, e com ela
o riso, a brincadeira, o engenho. Finalmente, os gatos africanos abandonaram seu refúgio na cozinha, onde tinham desfrutado do pouco calor que havia ao sul do Cabo
de Hornos.
Este tempo encantador durou de um domingo ao seguinte, quando se prepararam para a missa vestindo-se com os melhores trajes (ainda que poucos baús haviam escapado
da água). Barbearam-se e arrumaram com a ajuda do barbeiro e seu ajudante, escovadas e recompostas as tranças. Por sua parte, os cantores, que compunham o grosso
da tripulação, entoaram com voz forte e animada. Jack leu para eles um dos sermões escritos por Taylor sobre o excesso na bebida, sermão que escutaram com seriedade.
Enquanto, os marinheiros da Ringle, a sotavento, tiveram que ouvir de novo os artigos do Código Militar, devido talvez ao fato de que o senhor Reade não confiava
muito em seus poderes para o comando.
Desde muito antes da alvorada da quarta-feira seguinte, todos a bordo compreenderam que iam voltar a passar mal. Contudo, poucos dos que não repararam na preocupante
queda do barômetro teriam podido imaginar o mal que iam passar, ou o logo que se torceriam as coisas. O vento soprou de novo como não podia suceder de outra forma.
O fez do nor-noroeste, cada vez mais fresco e em contra a corrente e o fluxo de ondas. Ao soar as duas badaladas, chamou-se toda a tripulação para pôr o barco em
pairo. O vento não podia ser mais gélido, colocaram-se toldos e uma estranha corrente cruzada açoitava o costado da fragata, e inundava a cozinha, cujos fogões apagaram.
O frio e o duríssimo esforço de manter o barco assim, com os paus desnudos a proa e com apenas um lenço a popa, enquanto as bombas trabalhavam sem cessar, foi tão
esgotador como qualquer outra prova pela qual tivessem passado, excetuando a ameaça, inclusive mais mortífera, que supunha a gigantesca massa de gelo perfilada ao
sul.
Por fim cessou o vento. Estavam totalmente esgotados. Jack observou com aprovação que a escuna tinha passado bastante bem pela situação. Perdera boa parte das anteparas
de proa, e o gurupés se convertera em uma espécie de toco; também teria que proporcionar-se um botaló novo. Contudo, parecia manter-se flutuando melhor que a Surprise.
Mantiveram-se a pairar naquelas águas violentas e traiçoeiras. Jack comprovou que estavam mais perto da costa do que tinha calculado. Devido às densas nuvens não
pôde ver com clareza, mas ao longo do costado de estibordo viu árvores arrancadas, vegetação, como se a mão de um gigante as tivesse arrancado para levá-las longe.
E na distância, a oeste, chegou a distinguir o que parecia ser uma luz.
- Senhor Whewell - disse ao oficial de guarda, depois de considerar um instante a situação. - Façamos um sinal para a Ringle, para que navegue em volta de por fora
todo o possível. - Viu içar-se as lanternas coloridas, sinal de que haviam recebido a ordem. Ordenou a Harding que a guarda de convés abaixo podia, efetivamente,
retirar-se quando tivessem se servido o grogue e um pedaço razoável de pingüim defumado, tudo isso acompanhado de bolacha de barco.
Reparou no olhar do imediato ao pronunciar a palavra "bolacha", mas sem dar-lhe maior importância se dirigiu à coberta inferior. A enfermaria mostrava o aspecto
que era de esperar, um aspecto pouco encantador, depois do repentino e forte temporal. Não tão mau, pensou ao ver que havia poucas torceduras, fraturas e membros
deslocados ou quebrados. Todos, ademais, eram marinheiros experientes, acostumados aos rigores mais extremos do temporal, e a guardar uma mão para si e outra para
o barco. Fez o que lhe pareceu apropriado em cada caso, e observou que Stephen se mostrara tão generoso como de costume com o láudano, sobretudo naqueles casos onde
a dor representava um papel importante. Ao longo de sua carreira havia conhecido cirurgiões que, devido a uma espécie de ascetismo falso moralista, não administravam
nada mais que linimento para a dor, mesmo nas torceduras mais dolorosas.
- E você? - perguntou em particular a Stephen. - Como se encontra depois do sucedido?
- Bastante bem, meu amigo, obrigado - respondeu Stephen, - ainda que me cairia bem comer um pedaço de bolacha, e tomar um trago de conhaque.
- O do trago podemos arrumar, ainda que só isso, um trago. Mas quanto à bolacha... Quando tenha um minuto, suba ao convés. Há algumas árvores muito curiosas na costa.
Dentro de pouco não haverá luz.
- Eu me reunirei contigo depois de enfaixar as três fraturas que tenho pendentes.
A luz estava a ponto de desaparecer, mas Stephen ainda teve tempo de experimentar a forte impressão que acompanhava o espetáculo daquele oceano desordenado. Acres
cobertos de espuma amarela, ondas irregulares que se entrechocavam amiúde, e restos espalhados por toda a costa, em todas e cada uma das superfícies existentes.
No própio parapeito junto ao qual observava a situação, havia um imenso pinheiro chileno de folha pontiaguda que alguns marinheiros podavam por temor a que as raízes
pudessem enredar-se no leme. Não fazia muito que essas mesmas raízes estariam enraizadas em uma ladeira que, com toda probabilidade, tinha levado consigo.
- É um cenário assombroso - disse Stephen. - Mas com sua permissão acho que voltarei para baixo. Meus pés estão me matando. Não parece que a atmosfera se torna densa?
- Dentro de três minutos acho nem mesmo conseguiremos ver o gurupés. Nestas águas é normal que exista bruma depois do temporal. E que temporal sofremos, por Deus.
Sempre achara justificado que Stephen Maturin desfrutasse de uma longa noite de sono quando ficava esgotado. Se fosse necessário, ingeria para conciliar o sono uma
quantidade apropiada de láudano, ou de qualquer substância que tivesse a mão, suficiente para matar a um cavalo. Foi por essa razão que foi tão difícil acordá-lo
na manhã seguinte.
- Oh, vá ao diabo, papagaio monstruoso - disse exasperado, com ódio, ao virar-se primeiro na maca para depois cobrir sua cabeça com o travesseiro.
Mas de nada serviu. Lentamente, graças à repetição e constância, entendeu a mensagem. O piloto de um baleeiro de Hull, que se encontrava atracado à Surprise, subira
a bordo para pedir sua ajuda para um ferido. Tratava-se de um homem cujo braço sofrera uma terrível ferida há três dias, depois de enganchar-se ao cabo do arpão
cravado em uma baleia que submergia na água.
- Não estou em condições de tratar uma ferida semelhante, como tampouco estou em condições de curar um simples corte em um dedo - disse enquanto se incorporava observando
o pulso de suas mãos. - Que cheiro é esse?
- É café. O baleeiro nos presenteou com um par de libras. Deseja uma xícara?
- Não me cairia mal - respondeu Stephen, com um aspecto ma humano, inclusive com certo brilho de inteligência no olhar. Quando duas ou três xícaras de forte café
negro dissiparam os efeitos da dormideira, o heléboro e o rum da Jamaica, seu senso do dever, do dever médico, profundamente enraizado, começou a assomar. - Como
se chama minha assistente? - perguntou.
- Poll Skeeping - respondeu Jack em tom conciliador.
- O mar está calmo?
- Não como as águas de um reservatório.
- Como?
- Por acaso não ouviu chover toda a noite?
- Não.
- Que quer que eu faça? - perguntou Jack, temendo que pudesse escapar-lhe de novo.
- Peça a ela por favor que dê uma espiada no ferido. É uma mulher muito inteligente... Sim, por muito que se empenhe, existem mulheres desse tipo. Conta com excelentes
referências de meu velho amigo o doutor Teevan, tem experiência, e sem dúvida saberá dar-me os detalhes necessários, ainda que não sei se minha nebulosa e estupefata
mente poderá assimilá-los.
Assim o fez enquanto lhe punha uma camisa limpa e lhe arrumava o cabelo, indicando-lhe que nem são Lucas nem todos seus colegas apóstolos poderiam salvar-lhe o braço
a essas alturas, nem todo o Colégio de Cirurgiões de Dublim. Contudo, achava que sua senhoria, se lhe permitia dizê-lo, talvez pudesse salvar a vida do pobre paciente,
amputando-se do tudo à altura do ombro, pela articulação. Explicara aos baleeiros o que deviam fazer e que deviam esperar. E também tinha preparado o instrumental
adequado.
O tempo que tardou em cruzar duas cobertas para descer para a cabine iluminada onde o paciente jazia deitado combatendo a dor, a tristeza e o medo, bastou para devolver
a vida ao doutor Stephen Maturin. Depois de uma rotineira inspeção que confirmou sem reservas a informação de Poll, realizou uma amputação rápida e inusualmente
satisfatória com excelentes solapas de pele sã, pele com a qual não esperava contar.
- Cá está - murmurou ao ouvido do paciente. - Terminamos. Não tardará em recuperar-se, se repousar e não beber álcool durante uma semana.
- Já terminou, senhor? - perguntou o paciente. - Não percebi nada. Que Deus lhe bendiga.
No convés disse ao piloto do barco:
- Tenha a amabilidade de permanecer por aqui, junto à fragata. Estou bastante otimista por seu homem (seu irmão, verdade?), mas devo trocar sua bandagem amanhã,
e ensinar ao mais inteligente de seus companheiros como deve fazê-lo até que tenha se recuperado totalmente.
- Sempre simpatizei com os baleeiros - disse Jack enquanto cumprimentava com a mão, apesar da meia milha que distanciava os barcos naquela manhã tranqüila, de vento
favorável. - Forçosamente têm que ser bons marinheiros para sobreviver. As pessoas os acusam de aspereza e de quererem se divertir muito quando chegam a um porto,
e creio que são muito capazes de armar confusão em terra, mas levam uma vida muito dura, duríssima. Em generosidade não tem quem os supere, ainda que geralmente
não se pode dizer que nenhum marinheiro seja avarento. Aí tem a Carling, sem ir mais longe: Joseph Carling, capaz de esvaziar sua bodega se chego a permitir. Não
aceitei mais que um par de barris de bolacha, quando soube que há perto um modesto porto abrigado, um ancoradouro, chamado Pillón, onde a maioria dos baleeiros destas
águas vão para apetrechar-se. O lugar é regido um tipo nascido em Hull, casado com uma índia, um homem que sabe perfeitamente o que os marinheiros necessitam. -
Fez uma pausa antes de continuar: - É agradável comprovar como se tratam os marinheiros por todo o mundo. Lamento que estivesses tão ocupado a bordo da Ringle e
com seus pacientes, porque perdeu o almoço com Carling. Teria tido notícias de companheiros nossos, membros da Royal Society. Recorda-se de Dobson, de Austin Dobson?
- O entomólogo?
- O própio.
- É claro que sim. Os exemplares do Proceedings não seriam iguais sem suas contribuições. Existem não menos de três escaravelhos que levam seu nome, Austin Dobson;
é possível que a estas alturas já tenha dado entrada em um quarto.
- Ouviu falar de sua herança?
- Vamos, meu amigo, não nos importunemos mais com perguntas e respostas. Hoje me sinto um pouco brigão, trabalhei muito duro, comi pingüim e foca. E necessitaria
que me fizesse um retrato sem rodeios de nosso colega.
- Muito bem. Vamos nos sentar comodamente. Isso mesmo, aí. Levante os pés e se acomode. Austin Dobson tinha um primo distante a quem não conhecia, que vivia rodeado
de um luxo decadente no norte, em Newcastle, onde se embarca o carvão extraído das ruínas. Pois ocorre que seu primo faleceu, e Dobson herdou uma soma absurda: milhões,
não sei quantos, mas milhões. De repente, ele se dispôs a fazer o que sempre tinha sonhado. Comprou o paquete de Lisboa, um pesado barco em condições, desenhado
para fazer rápidas passagens pela Baía de Vizcaya, contratou uma tripulação adequada, e reuniu cinco ou seis amigos, todos pertencentes à Royal Society, botânicos
ou entomólogos, além de ser uma autoridade em zoologia marinha. Homens, todos eles, possuidores de uma grande curiosidade. Então empreenderam uma viagem para o Cabo
da Índia, Ceilão, As Ilhas das Especiarias e outras, tudo via o Pacífico. Pararam em João Fernández e agora sobem a costa chilena e peruana até o Istmo do Panamá,
onde dois deles pretendem cruzá-lo e tomar um barco do outro lado, com as sementes e os espécimes mais frágeis (pelo visto, têm compromissos universitários), enquanto
Dobson e os demais prosseguirão pelo estreito de Nootka e regressarão via Kamschatka, lugar no qual outros dois deles têm planejado estudar o rato autóctone.
- Que nobre propósito - exclamou Stephen, aplaudindo. - Que ânimo, também, porque por muito cômodo que seja o paquete (e os que eu tive oportunidade de conhecer
eram limpos e cômodos), terão atravessado águas que exigem de uma grande firmeza, uma firmeza que deve renovar-se continuamente entre Câncer e Capricórnio. Inclusive
em um paquete estanque deve de dar-se uma grande monotonia na dieta... Não, não, é um modo excelente de desfrutar de uma herança. Eu o felicito.
- Lamento que não estivesse ali - disse Jack. - Creio que esteja familiarizado com todos os nomes, porque comparece com maior regularidade que eu às reuniões da
Royal Society assim como às jantas. Minhas amizades ali, aqueles cujos ensaios leio com grande atenção, são astrônomos e matemáticos. Pelo contrário, estes dos quais
lhe falo são naturalistas de um ou outro tipo, e quando ambos barcos ancoraram juntos em São Patrício com a intenção de apetrechar-se, fizeram aos baleeiros todo
tipo de perguntas referentes às baleias (as diversas espécies, a altura do jorro, o período de gestação, onde encontrá-las, número de adultos que acompanham as crias,
etcétera). "Onde poderíamos encontrar âmbar cinzento?"
Ambos riram. Em uma ocasião, Stephen havia naufragado em uma ilha de coral, onde sua única companhia, além dos caranguejos, foi um pedaço de âmbar cinzento.
- Por que estamos rindo? Nem sua situação nem nossa inquietação tiveram nada de gracioso - disse Jack.
- Talvez porque me encontrou, de modo que tudo terminou bem. Às vezes o riso tem uma curiosa opacidade. Sorrio desde que recordo os apagados lampejos daquele pedaço
de âmbar cinzento. Espero que nos cruzemos com eles. Sinto um grande respeito por sua curiosidade, e amaria conhecer as respostas de algumas de suas perguntas.
Naquele momento, chamaram Jack ao convés (algo relacionado com as velas, creio) e Stephen se abstraiu em uma agradável reflexão. Talvez não possuía os milhões atribuídos
a Dobson, e é que obviamente se necessitava uma grande soma para semelhante empresa, mas ele era o que muita gente entendia por abastado, ou, no mínimo, endinheirado.
Apesar disso, não tinha feito mais que considerar uma viagem ao deserto de Atacama, para examinar os efeitos da aridez, e outra viagem para estudar a vida do Tetrao
tetrazes caucasiano; contudo, nenhum destes propósitos se materializara. Não havia contribuído em nada para o conhecimento da humanidade. Parte de seu intelecto
ofereceu uma torrente de desculpas, circunstâncias atenuantes, afirmação de seus méritos, seu histórico inquebrantável de respeitar a Quaresma de forma tão estrita
como o faria alguém a ponto de ser ordenado sacerdote. Tudo isso não conseguiu convencer-lhe, e se alegrou ao ver Jack reaparecer com a notícia de que o "fodido
traquete caíu pela borda, ainda que tudo tenha voltado ao seu lugar". As palavras que seguiram ao "fodido" soaram a obscenidade, uma obscenidade muito maior do que
qualquer coisa que Jack tivesse o costume de dizer, e que Stephen seguia tentando apreender e interpretar quando percebeu que lhe estava falando do empenho de Hanson
e Daniel para traçar o rumo ao refúgio que o baleeiro tinha em Pillón, protegido pela ilha. Possuíam as indicações de Joseph Carling, o desenho da ilha de sudoeste
e oeste, suas instruções para achar a entrada para a pequena baía e uma tábua aproximada das marés.
- Com este vento suave deveríamos chegar à costa um pouco antes da maré-cheia das nove - disse Jack. - Pairaremos ao abrigo da ilha, e despacharemos a Ringle com
os dois contadores a bordo. Poderá aproximar-se com maior facilidade que a Surprise, e o canal tem uma curva onde nós poderíamos tocar e ela não. Todos os baleeiros
a conhecem e se cuidam muito ao passar por ali quando vão muito carregados. Desejaria que o céu tivesse melhor aspecto, ainda que estamos a uma parada de navegar
em águas de cem braças, rumo norte e com a bodega cheia.
Todos os baleeiros conheciam a perigosa curva da passagem de Pillón, ainda que ignoravam que a terrível tempestade que assolou a costa se confabulou com um terremoto
(coisa habitual nessa desafortunada zona) que o bloqueou com um considerável corrimento de terras. Os da Ringle avaçaram com alegria rumo à curva, esperando pôr
o leme para o lado chegado o momento quando de repente toparam de frente com as afiadas rochas.
Reade, pálido e agitado, voltou na canoa para informar ao capitão Aubrey.
- Não se preocupe, William - disse este. - Guie-nos, que sondaremos as águas. Veremos se com todas as âncoras a popa e o cabrestante podemos tirar o senhor dali.
A maré está subindo.
Tiraram a escuna dali com um gemido estremecedor justo quando a maré estava no mais alto. Todos os marinheiros e todos os habitantes do pequeno povoado suaram agarrados
às lingüetas. A embarcação recuou para águas mais profundas, ainda que as mostras de alegria foram silenciadas pela subida à superfície dos restos da madeira da
popa e de uma parte do quebra-mar, acompanhado pelo forro de cobre.
Vararam-na sem maiores problemas em um plano criadouro de leões marinheiros. Com a baixa-mar descobriram que as feridas, mesmo sendo terríveis, não eram mortais.
Ambos carpinteiros e os poucos homens destros do assentamento (que o sentiram realmente, e que lhes informaram do leve terremoto acontecido) trabalharam com a maior
concentração possível, e na maré-cheia seguinte a devolveram à água.
Estava claro que seria necessário passar por um estaleiro bem apetrechado. A complexa ensamblagem das amuras, apesar de não estar totalmente destruída, tinha ficado
muito prejudicada. Não podia suportar demasiada pressão no traquete; embora pudesse avançar, desde quando não enfrentasse a um forte fluxo de ondas de proa, necessitaria
de um dique seco e destros cuidados para recuperar a combatibilidade que a caracterizava.
Querida - escreveu outra vez Stephen, sentado nessa ocasião com certa comodidade à escrivaninha, - não me resta dúvida de que a senhora recordará desse jovem extraordinariamente
amável, que em lugar de mão luz um gancho de aço. Chama-se William Reade, e não sei a quantos anos fará que o considero meu amigo. Ai, pobre. Veja, ocorre que estava
ao comando quando a infeliz escuna investiu a todo trapo em alguns arrecifes, que esteve a ponto de perder a embarcação. As águas estavam calmas, e as rochas tinham
aflorado até ficar a menos de um metro da superfície devido a um terremoto que aconteceu muito antes de chegarmos ao porto; de fato, antes também de que um baleeiro
que conhecia muito bem as águas do ancoradouro nos indicasse a posição da passagem ou canal com grande meticulosidade. De modo que o pobre homem não tem motivos
para culpar-se. Ninguém, e menos ainda Jack Aubrey, que praticamente o criou desde que era um criança, e que lhe quer e aprecia, culpa-o pelo sucedido. Contudo,
caminha encurvado, lastrado pelo peso de uma culpa imaginária. Dado que sua embarcação não conta com cirurgião a bordo, eu lhe prescrevi uma modesta purga, e esta
noite dormirá, dormirá e muito, com esta oportuna ajuda de minha parte da substância e da pitada de heléboro que incluirei no preparado. Que Deus o abençoe.
Em outra ordem de coisas devo dizer que, embora as paragens ao sul deste imenso continente sejam ameaçadoras, e tenha nomes tais como Porto Carestia, Cabo Perverso
e Ilha Desolação, se um sobrevive e persevera se alcançam regiões, trechos de costa onde a corrente do sul é constante e favorável, onde a brisa sopra amiúde a favor,
para o norte, mais do que necessitamos para chegar a São Patrício com nossa maltratada Ringle, e, espero, curar a melancolia do bom William. Seu estado de ânimo
comove aos seus de tal maneira que os vi em ocasiões sacudir a cabeça e aplaudir-lhe ao passar por seu lado.
Estas águas tão peculiares, esta extensão de incomensurável oceano, transborda, transborda, repito, inumeráveis peixinhos tão parecidos com as anchovas que duvido
que fosse capaz de distingui-los daquela espécie (ou gênero), a menos que dispusesse de um exemplar da anchova mediterrânea para a comparação. Costumamos lançar
a rede pelo costado, o que nos proporciona em um instante um prato de miuçalha (talvez com peixinhos muito grandes, verdade, mas muito saborosos). Nossos prazeres
em nada podem se comparar aos que experimentam as aves marítimas da zona, sobretudo os pelicanos. Voam em círculo sobre nós, grasnando como abutres, mergulham na
água, pegam suas presas e sobem em vôo, mudos e com a bolsa cheia, antes de repetir a operação. Podemos vê-los nas rochas e promontórios ao longo da costa; é ali
onde, depois da pançada, incapazes de voltar a voar, passam a maior parte do dia e da noite até o amanhecer, momento em que tudo volta a começar, com seus gritos
tão claros e penetrantes como de costume. Estas rocas são totalmente cobertas por uma camada branca de dejetos. Dizem que este depósito, este guano, chega a uma
profundidade superior aos dez pés.
Costeamos sem pressa. Não creio que tenhamos mareado mais que as gáveas duplamente rizadas. A distante e em ocasiões velada costa, com o intermitente lampejo branco
dos distantes Andes, quase não parece se mover. Nossos dedicados navegantes tomam cuidadosas medições a cada guarda, e a cada guarda os alfinetes da carta avançam
de forma perceptível para o norte, para São Patrício, onde confiamos encontrar não menos que três excelentes estaleiros. Estamos tão perto agora que o capitão Aubrey
ordenou limpar e embelezar a falua, de tal forma que ambos possamos nos aproximar do estaleiro escolhido e convencer seus responsáveis a etenderem a Ringle assim
que esta chegue. O capitão me pediu que o acompanhe, e não, como com toda segurança a senhora suporá, para que possa aconselhar-lhe sobre o governo da embarcação,
mas simplesmente por meu domínio do espanhol.
Horatio acaba de chegar para me avisar que avistaram o promontório que assinala o extremo sul do estuário em cujas costas encontra-se São Patrício. Logo o capitão
ordenará jogar a falua. Devo pôr-me elegante, mas antes permita-me dizer que São Patrício, como muitas outras povoações desta incômoda costa, já teve muitos outros
assentamentos, destruídos por terremotos, incêndios ou por outras adversidades, ondas imensas que parecem relacionadas com os terremotos e que não só destroem as
ruínas, como são capazes de arrastar um barco, um barco de oitocentas toneladas, através de toda a povoação, até cravá-lo em terra, como se da mão de um gigante
se tratasse, sobre os restos. Eu lhe advirto que é possível que confunda São Patrício com outras povoações, pois são tantas as que sofreram estas calamidades, para
não mencionar as pestes, as pragas e as incursões dos piratas...
Largaram a âncora da fragata em um bom tenedero, longe, frente à costa, e a falua da Surprise subiu lentamente a confluência de dois rios para São Patrício. Ao adentrar-se
na zona ma habitada da povoação, composta pelos cais e embarcadouros a estibordo, com seus barcos atracados, o timoneiro, geralmente reservado, manifestou seu assombro
da seguinte maneira:
- Por Deus, senhor, ali está aquele velho paquete de Lisboa pintado de azul. Pintado de azul, por Deus. Oh, perdoe, senhor.
- Sim, é ele - disse Jack ao seguir o olhar do timoneiro, gesto que imitaram todos os marinheiros da falua. - É ele. Parece outro pintado dessa cor. Não acho que
o tivesse reconhecido.
- Pelo amor de Deus, senhor. Eu naveguei de menino nesse barco, e era um bom correio. Gostavam de fazer as coisas como na armada, e não há a bordo um só metal, parafuso
ou moitão que não conheça. Olho na remada, proeiro!
Jack se virou para Stephen, que estava absorto contemplando uma revoada de pelicanos.
- Olhe a estibordo. Acho que o quarto desses barcos pertence a seus amigos, a nossos colegas da Royal Society.
- Oh - exclamou Stephen, - mas se o pintaram de azul. Acredita que poderia aproximar a falua para que possamos saudá-los?
Jack deu as ordens necessárias e a embarcação deslizou pelo rio.
- Cuidado com a pintura, sacanas lunáticos - advertiu em espanhol do Chile um homem muito chateado. - cuidado com a pintura, não a toquem pelo que mais queiram.
Diabo, mas se é Maturin! E Aubrey! Que alegria ver-lhes, queridos colegas. Por favor, aproximem-se do cais, pelo outro lado, que está seco, e subam a bordo. Temos
uma limonada de primeira.
Falaram, e muito, e tomaram uma grande quantidade daquela excelente limonada. Ordenou-se à dotação da falua que aguardasse em uma zona de piquenique situado no cais
contíguo, e os membros da Royal Society contaram a ambos os horrores, prazeres e achados de suas respectivas viagens. Vários deles o fizeram ao mesmo tempo, roucos
como sapos até quando Jack se levantou, desculpou-se por ter que ir dar uma espiada nos diversos estaleiros para cuidar de sua maltratada escuna, e convidou a todos
para almoçar a bordo da Surprise no dia seguinte.
- Se me permitem, cavalheiros, também os privarei de Maturin, que ao contrário de mim fala o espanhol, como bem saberão
- Falam muito bem de López - disse Dobson. - O certo é que se mostrou muito solícito com nossa pintura e uma via de água.
- É o segundo estaleiro de reparações à direita, conforme subam o curso do rio - disse um eminente botânico. - O primeiro está ocupado pela armada chilena.
Passaram a andar, ainda que lentamente, em parte porque havia vários estaleiros de reparações de ambos os lados (ainda que eles tinham ouvido dizer que só havia
três), em parte também porque as aves marinhas voavam sobre suas cabeças, às vezes um número considerável delas, e Stephen não deixava de parar para observá-las
e determinar a natureza das mesmas, e para maldizer, de passagem, o fato de ter esquecido a luneta, o que teria facilitado sua tarefa. Ao aproximar-se de outro cais,
Stephen ameaçou fazer outra parada ao ver cruzar no alto uma revoada de aves ancudas e de pescoço comprido, similares ao grou.
- Aubrey! - gritou alguém do extremo oposto do caminho. - Que alegria ver o senhor aqui. Não estará procurando a Asp?
- Lindsay! Que casualidade, fazia anos que não nos víamos.
- Sim, isso mesmo - disse Lindsay, que se aproximou de ambos. Vestia um uniforme muito similar ao da armada Real, com mais adornos talvez. - Aposto que o senhor
está procurando a Asp.
- Estava procurando o estaleiro de López.
- Fica detrás do teatro. Não conhece o lugar?
- Meu Deus, não. É a primeira vez que venho, e, além de tomar limonada com alguns companheiros membros da Royal Society, não fizemos mais que caminhar pelo cais.
- Membros da Royal Society? Aqueles homens que viajam a bordo do que serviu em tempos como paquete de Lisboa? O senhor deve ter se sentido em casa, rodeado de tão
culta companhia.
Sua escassa relação não justificava a familiaridade no tom de Lindsay, de modo que Jack guardou silêncio um instante, antes de dizer:
- Permita-me apresentar o meu conselheiro político, membro também da Royal Society. O doutor Maturin. Doutor Maturin, sir David Lindsay.
- Encantado em conhecê-lo, senhor - disse Lindsay, um pouco confuso. E a Jack: - gostaria de dar uma espiada na Asp? Está ali mesmo, na doca da armada. - Cruzaram
para o outro lado, e com maior confiança Lindsay assinalou as diversas mudanças efetuadas na embarcação, sobretudo o alongamento da coberta para que coubessem mais
canhões por lado. Jack tinha suas reservas, mas não as mencionou; em lugar disso, observou que a Asp devia ter desfrutado de uma passagem notável.
- Por Deus que foi assim, ainda que tinha pressa. Saberá que não sou dos que se acovardam, de modo que tomei o estreito. Alguns dizem que é perigoso e preferem dobrar
Hornos, mas eu não me importo de correr certos riscos, de modo que tomei o estreito. Próximo a um ponto depois de Second Narrows, quando quase andamos de bolina,
o vento começou a rolar antes de dobrar o cabo. Com lágrimas nos olhos, o piloto me rogou que puséssemos a embarcação ao abrigo de uma baía. "Não, estamos aqui pelo
o bônus e pelo o ônus", eu disse, e assim dobramos a ponta com apenas uma braça de margem.
- Muito bem, muito bem - disse Jack, consciente de que isso era o que se esperava dele.
Lindsay passou um tempo saboreando sua façanha, sem deixar de murmurar: "pelo bônus e pelo ônus." Então, uma das aves ancudas que voavam acima de suas cabeças defecou
em seu chapéu. Lindsay o limpou por completo com uma camurça.
- Como compreenderão, tinha pressa - disse depois, já em um tom mais fleumático. - cheguei aqui com um boa margem de tempo. Pude inspecionar quase todas minhas bases,
quase todas as embarcações que tenho sob meu comando. Concepção, algumas das ilhotas conhecidas, Talcahuana, e agora aqui. Ainda que devo lhe dizer, Aubrey - continuou
depois de fazer uma pausa significativa, - devo dizer que a disciplina, o senso de ordem e, certamente, a limpeza elementar, para não mencionar os conhecimentos
de náutica, não são tão bons como desejaríamos. É uma das muitas razões pelas quais me alegro tanto de ter um homem como o senhor, com sua reputação, a minhas ordens.
- Tudo isso que diz é muito amável e bajulador - disse Jack depois de guardar um reflexivo instante de silêncio e olhar de soslaio para um impassível Maturin, -
mas temo muito que aqui haja um mal-entendido. Na qualidade de capitão de navio na lista de oficiais em atividade, a quem se designou do uma missão oficial, estou
sujeito às ordens do Almirantado e de ninguém mais sobre a face da Terra.
Lindsay ficou vermelho como a cochinilha.
- Sou o comandante em chefe das forças navais da junta - disse depois de duas tentativas de réplica frustadas, - e como tal...
- A que junta se refere?
- À combinação de autoridades que moldam a República.
- A república de toda a nação?
- De toda, exceto pelas poucas bases dissidentes do norte, próximas da fronteira peruana que logo serão liberadas. E como tal - repetiu com solenidade: - tenho autoridade
para recrutar forçosamente os seus homens e confiscar sua embarcação.
- Cavalheiros - disse Maturin em um tom que não expressava autoridade nem impaciência, mas que parecia convidar a ambos a falar em um tom mais baixo, adulto e, de
passagem, a abandonar a retórica, - acredito que já é hora de se sentar à sombra. Como não somos muito amigos do chá, tomemos um café ou um mate. Creio ter visto
um local muito agradável perto daqui.
- O cavalheiro, como acredito ter mencionado antes, é meu conselheiro político - observou Jack. Lindsay inclinou de novo a cabeça, e disse que, efetivamente, podia
se tomar café, café gelado, naquele local.
Com evidente alívio superaram aquela crise para sentar-se à sombra de um toldo, pedir café e conversar um tempo como seres humanos normais e comuns. Falaram das
pessoas que conheciam, dos poucos barcos que seguiam em atividade, e do destino dos oficiais, sobretudo dos jovens, encalhados em terra e a meio soldo. Então, Stephen,
para quem Lindsay lhe parecia menos estúpido do que havia acreditado em um princípio, expôs a situação (ou, pelo menos, uma parte selecionada dela), tal como se
via em Londres. O Governo estava a favor da independência do Chile. Não se importava muito com alguns membros da junta sul, ou grupo de juntas, e não tinha se comprometido
a reconhecer nada. Estava em melhores termos com os do norte, e tivera certa troca de intensões, um início de entendimento. Contudo, se qualquer barco remotamente
relacionado com a Armada Real sofresse maltratos ou abusos, as consequências podiam ser desastrosas para a independência chilena. Desastrosas. Pelo contrário, uma
cooperação mais ou menos tácita para eliminar o corso e outras empresas espanholas, para não mencionar a invasão peruana, exerceria um efeito totalmente contrário.
Sem dúvida, sir David era perfeitamente consciente da capacidade da Surprise, de sua reputação de barco combativo, da destra dotação que o tripulava. Sua função
principal era a de levantar planos, uma função hidrográfica, mas no transcurso de suas atividades podia muito bem surgir a oportunidade de ajudar ao nascimento daquela
República, empenhada em dar seus primeiros passos por uma independência reconhecida por todos. Se sir David expusesse todos estes fatos com clareza para os influentes
cavalheiros com quem estava em contato, faria um grande serviço a ambos os países.
Despediram-se com uma troca de desejos de boa vontade e todo tipo de promessas feitas por parte de sir Lindsay. Eles se prestariam uma ajuda discreta em caso de
necessidade. Quando um bom trecho os distanciou, Jack disse:
- Como aquele jovem pôde pensar que poderia pôr-me a suas ordens? É assombroso. Deve ter reparado que não é precisamente nenhum tonto. Mesmo assim, acreditava realmente
no que dizia. Achar que inclusive em tempos de paz um capitão situado no alto da lista e que não se acha em posição de mendigar consentiria com o fato de agir de
forma tão enlouquecida e desautorizada para servir sob suas ordens... É incrível.
- Tem razão. Não posso imaginar nenhuma hipóteses que justifique sua atitude. Ainda que diz o verso, ou, melhor, gagueja, porque não sei se o citarei bem... "Jockey
de Norfolk não seja tão valentão, que compraram e venderam a Dickon, seu senhor." - Passearam em silêncio umas poucas jardas, momento em que acrescentou: - Tenho
certa experiência com as juntas, e devo dizer que amiúde essas combinações constituídas com um objetivo comum trazem à tona o pior dos homens. Sucede que, em geral,
perseguem fins mais particulares que comunitários. E Jack, acho que você também foi comprado e vendido, pois um membro da junta norte que primeiro se aproximou de
você se passou para o sul e transferiu seus serviços para suas novas amizades, como teria feito tratando-se de um mercenário. Falo sem provas, de modo que antes
devo falar com Jacob, cujos contatos e conhecimentos do lugar superam em muito os meus. Espero vê-lo em Santiago. Entretanto, não prejudicamos ninguém.
CAPÍTULO 9
Querido sir Joseph - escreveu Stephen, - daria o que fosse para dispor das palavras adequadas para expressar a admiração que sinto ante a celeridade com que sua
mensagem chegou até aqui, e de sua mais que particular amabilidade ao remeter para Dorset tudo o que pude escrever e enviar-lhe para às damas. Boa parte dessa celeridade
devemos, certamente, ao engenho do senhor Bridges, junto a seu profundo conhecimento das passagens andinas, e à destacada capacidade física dos corredores índios,
mas também à rede de lojas maçônicas que nos localizaram aqui em lugar de fazê-lo em qualquer porto do sul. Contudo, sua amável disposição só posso agradecer ao
senhor e somente ao senhor, e lhe agradeço de todo coração, adjuntando a mais breve das respostas. Na qual fala da situação atual de nossos assuntos, tanto aqui
em Santiago como no resto do Chile, e no que concerne à composição variada das juntas (uma, mais ou menos, por cada considerável extensão de território), assim como
a suas convicções, para não mencionar suas ânsias de poder, saiba que qualquer profecia que possa realizar com os dados de que disponho neste momento é um esforço
que quase não vale o papel no qual está escrito. Mesmo assim, direi que O’Higgins, diretor supremo, parece perder popularidade junto a San Martim, enquanto que os
irmãos Carrera e Martínez de Rozas aumentaram a sua. Quando tenha passado mais tempo aqui em companhia do valiosíssimo doutor Jacob, eu enviarei para o senhor um
informe mais detalhado do mutável, quase incompreensível, panorama político. Contudo, de momento, devo concluir, se me permite, com minhas mais sinceras mostras
de agradecimento pelo aumento da subvenção, e umas palavras a respeito de nossos assuntos navais. A primeira destas palavras é desanimadora, pois refere-se à fragata
pesada de sua muito católica majestade, rebatizada O’Higgins, de não menos de cinqüenta canhões, que se tornou inútil devido a sua antiguidade e mal estado. Ocorre,
além disso, que os portos republicanos andam com falta de apetrechos navais, pelo que parece muito difícil pô-la em dia. Por outro lado, o capitão Aubrey e sir David
Lindsay estabeleceram um acordo de trabalho. A Surprise paira frente a um modesto porto de Chiloé (este ainda em mãos dos monárquicos, que nele desfrutam de uma
base considerável, à qual cabe acrescentar duas ou três mais de capacidade média). O porto em questão tem um caráter comercial, e nele se refugiou um famoso corsário
espanhol; trata-se de uma embarcação que a Surprise se propôs abordar e aprisionar de noite, aproveitando a maré, de tal forma que se caísse o vento pudessem recorrer
ao refluxo para sair. Aubrey conta com a ajuda de três corvetas republicanas, as quais, conforme diz, nada sabem do negócio, mas têm vontade de aprender. Contam
a bordo com a ajuda de um experiente segundo do piloto da armada Real, ou um guarda-marinha com certa antiguidade. Deus sabe que a República tem uma diligente e
urgente necessidade de marinheiros possuidores, pelo menos, dos rudimentos da profissão. Esta necessidade chama mais a atenção quando se considera a força naval
peruana, com os trinta e dois canhões de sua novíssima fragata, com outros barcos antigos mas em condições, com vários bergantins e corvetas tripuladas por um corpo
de oficiais e marinheiros competentes, comandadas, em efeito, por um vice-rei leal ao seu rei e muito ressentido pela derrota que os monárquicos sofreram em Chacabuco.
O Exército peruano poderá estar desacreditado, mas não se pode dizer o mesmo da armada peruana. Enquanto os espanhóis conservem em seu poder o porto sul de Valdivia
e os situados em tão importante ilha do norte, Chiloé, o comércio da República, o comércio marítimo, corre constante perigo, e hordas de corsários, com patente de
corso monárquica ou sem patente alguma, aprisionam quantos barcos podem.
De momento, até que tenha a honra de ampliar detalhes depois de consultar com o doutor Jacob, procederei a listar as juntas de cuja existência tenho conhecimento,
cifrarei toda a carta e, finalmente, com infinita gratidão, querido Joseph, despeço-me com a maior humildade, obediência e agradecimento possíveis,
S. MATURIN
Contudo, antes de codificar toda a carta, S. Maturin observou os dois pedaços de papel que haviam chegado com a mensagem de Blaine. Um dirigido a ele, o outro a
Jack. Ao desdobrar o que lhe correspondia, leu, com infinita emoção: "De parte de duas excelentes amigas de Woolcombe, com todo seu carinho. Brigid e Christine."
Ao ouvir a alguém na porta, guardou a minúscula nota no peito.
O som da porta obedecia à chegada de Jacob. Ao contrário de muitos maçons ortodoxos, Jacob não tinha preconceitos contra as irregulares lojas maçônicas chilenas;
contudo, deplorava sua loquacidade.
- Finalmente - disse ao sentar-se pesadamente na cadeira, e fungar uma pitada de rapé. - Descobri que o jovem O’Higgins, o mesmo com quem tão bem se deu no Peru,
chegará amanhã.
- Ambrosio? Sim, agradou-me, e me encantará vê-lo outra vez. Excelente atirador, e bom botânico. Acha que seria adequado convidá-lo?
Jacob pensou, fungou um pouco mais de rapé e respondeu:
- Ele saberá, certamente. Sobretudo se vamos a Antoine’s. Mas não acredito que nos prejudique, muito pelo contrário.
- Em tal caso o convidarei. Jamais conhecera uma fronteira mais permeável. Suponho que ali contamos com um número razoável de agentes.
- Razoável, razoável... A verdade é que não seria nada mal contar com mais alguns.
- Veja se pode encontrar um par de homens inteligentes e leais que tenham experiência náutica, para que deem uma espiada no estado dos preparativos navais em El
Callao. Há rumores de uma atividade incomum. Amos, desculpe o caráter pessoal da pergunta, por favor, mas inclue folha de coca triturada nesse rapé?
- Não. Sinto um grande respeito pelo septo de meu nariz, de modo que me limito ao tabaco. Admito que não é tão bom, mas me revive depois destas reuniões esgotadoras.
Como vê - disse tocando-o com o dedo, - conservo o septo intacto.
- E que assim seja por muitos anos. Pessoalmente prefiro mascar, ou tragar. Com moderação, com moderação, certamente. Gostaria de dar uma espiada no resumo que elaborei
de seu relatório a respeito das juntas e de suas inclinações políticas?
- Certamente.
- Enquanto isso cifrarei minha carta para Whitehall; depois, Deus queira, almoçaremos juntos. Depois de amanhã, após ver o jovem O’Higgins, pretendo ir a Valparaíso.
O capitão Aubrey terá voltado por então. Você me acompanhará?
- Preferiria ficar, se não se importa. Espero a chegada de dois ou três agentes de Lima.
Stephen fez a viagem no lombo de uma égua de trote suave, cuja pele exibia manchas cinzas. Dobrou uma curva de roca e ali, ante seus olhos, apareceu o oceano, um
mar enorme e magnífico que se perdia no horizonte, e que se estendia ainda além se sua memória não lhe atraiçoava: para China, Tartaria e para as regiões que havia
mais além. Ante ele, contudo, relativamente ao alcance da mão, estava sua querida Surprise, inconfundível por seu elevado mastro maior, própio na realidade de uma
fragata de trinta e seis canhões. Ia acompanhada, o que não era inusual, por uma presa, um barco corsário de bom porte que andava com as orelhas baixas, escoltado
por três corvetas republicanas. Estas embarcações pequenas, novas no negócio, sabiam o bastante do tribunal de presas como para confiscar qualquer coisa de valor
que pudesse ser achada a bordo, estivesse ou não parafusada. Inclusive a aquela distância pôde vê-los no convés acarretando o butim, como formigas saindo do formigueiro.
Nessa etapa, quando os estrangeiros (e nada poderia ter sido mais estrangeiro no Chile que os oficiais, os marinheiros e o própio Jack Aubrey, de cabelo loiro e
de enorme rosto ruborizado) eram considerados aliados valiosos, era um prazer passear por Valparaíso, com seus sorrisos, suas inclinações de cabeça e os constantes
gritos de alegria, com seus desejos de feliz Natal, de boa noite, por toda parte. Quando confiou a égua aos cuidados de um estábulo que o animal pelo visto conhecia,
Stephen se dirigiu a Capricórnio com certa satisfação, senão complacência, sustituída instantaneamente pelo sincero assombro que sentiu ao ver Dobson e seus companheiros
sentados em uma poncheira, divertidos todos por vê-lo tão surpreso. Não tardaram certamente em convidá-lo para sentar.
- Não tinha nem idéia de que tivessem vindo tão ao norte - disse.
- Oh, o Isaac Newton é capaz de alcançar grande velocidade. Contamos com um piloto profissional e com seu ajudante, que o conhece bem da rota de Lisboa, de modo
que inclusive podíamos avançar pela noite.
- Ali está aquele jovem tão amável da escuna, o senhor Reade - disse outro membro da Royal Society, que interrompeu a descrição de uma planta dicotiledônea, até
o momento desconhecida pela ciência. - Guardemos silêncio, para ver que a sua cara ao nos ver.
Seu rosto de assombro alcançou as expectativas que haviam criado, e depois sentaram William Reade à cabeceira da mesa.
- Diga-me, senhor - disse em voz baixa o vizinho de mesa de Stephen, assinalando com a cabeça o gancho de William, -o jovem sente os efeitos da eletricidade ou da
eletricidade estática?
- Não creio, senhor - respondeu Stephen. - Claro que tem uma considerável quantidade de isolante entre o aço e a carne, como o senhor saberá. - Fez uma pausa, e
acrescentou: - Ignoro por completo o particular. Diga-me, existe acaso uma teoria geral da eletricidade? Em que consiste?
- Não que eu saiba. Seus efeitos podem ser vistos e medidos, porém, além disso e de um punhado de afirmações insubstanciais, não acredito que saibamos sequer os
princípios básicos. Talvez Lankester poderia... Veja, ele realizou um grande trabalho no campo do cabo de cobre. Senhor Lankester...
- Ah, Aubrey - exclamou o senhor Dobson, - bem-vindo a terra. Agora só nos faltam Noé, Netuno e um par de tritões, ah, ah, ah. - E pediu outra jarra de ponche.
Com ponche ou sem ele, os presentes escutaram com atenção o breve relato de Jack referente à abordagem do corsário. Realizada pelo costado de bombordo, enquanto
os poucos morteiros da Surprise, servidos com brio, acenderam as luzes no céu, luzes multicoloridas acompanhadas por estrondos estremecedores.
Depois disto concluiram a noitada. Depois de uma janta neblinosa cheia de desvarios, teve que acompanhar até a cama a três ou quatro membros da Royal Society, enquanto
que os demais sentaram-se sob o céu estrelado, para desintoxicar-se com uma bebeida gelada de várias frutas.
- Que danos o barco sofreu? - perguntou Stephen enquanto caminhavam de volta para a pensão onde havia deixado a égua.
- Muito poucos, pouquíssimos - respondeu Jack. - Nada que a boa Poll não pudesse tratar. Nossos acompanhantes, os corsários de Chiloé, não têm nem idéia do que é
um combate: sabem governar o barco, mas no que se refere a combater com ele... Por outro lado, nossos jovens companheiros foram de meu agrado, refiro-me a nossos
chilenos. Governaram suas embarcações com soltura na travessia de ida, e chegado o momento saltaram para a abordagem como autênticos guerreiros, alfanje em mão.
- Regressará amanhã comigo? Tenho que ver dois homens e logo irei.
- Não acredito. Como não falo espanhol, não sirvo de muito em Santiago agora que já fiz o que devia, com sua ajuda, em favor das autoridades. Não. Aqui abaixo posso
ser útil, posso conseguir algo, conforme nosso acordo com o diretor supremo. Têm bons estaleiros, embarcações decentes de até cem toneladas ou quase, e nesta época
do ano os ventos costumam ser entabulados e benévolos. Além do mais, esses jovens têm vontade de aprender, e o fazem rápido. Harding e Whewell falam um pouco o espanhol,
assim como alguns dos suboficiais e marinheiros, mas o melhor é que a maioria deles pegam a idéia graças aos exemplos e à boa vontade. Talvez a volta de um nó não
seja tão simples, pelo menos na primeira vez, mas só tive que ensinar a Pedro uma vez mais para que o aprendesse. Teria que tê-lo visto rir como um condenado, enquanto
se desculpava comigo por isso.
- Alegra-me de todo coração isso que me conta, querido amigo. Talvez tenhamos necessidade de jovens capazes de fazer um nó, quem sabe... Com relação ao riso, ao
riso sincero, aberto, concordo com seu Pedro. Há algo de ofensivo no riso, sobretudo quando não responde a uma diversão genuína. Um grupo de mulheres jovens rindo
em voz alta e fuxicando enquanto agitam seus corpos e extremidades bastaria para fazer que um se retirasse para um monastério. Nossos colegas do Isaac Newton, digamos,
não deram um espetáculo muito edificante.
- Não me dera conta de que os espanhóis nos olhavam com seriedade, e lamento ter encomendado aquela última poncheira. Ainda que por outro lado, a nossa seja uma
sociedade eminente e respeitável. O Proceedings é conhecido em todos os círculos acadêmicos, e os homens do Isaac Newton, por biritados que possam mostrar-se em
ocasiões, contam com recomendações do Governo, do Ministério de assuntos Exteriores e de universidades de todos aqueles países que visitam. Eu lhe asseguro, Stephen,
que nossa relação com eles, com a sociedade em geral, quando seus membros estão sóbrios e ansiosos de compartir o resultado de suas investigações, constitue um grande
benefício para nós.
- Querido, não poderia estar mais de acordo contigo. Mesmo assim, gostaria que não rissem tanto, ou, pelo menos, se realmente algo lhes diverte, que o fizessem como
homens em lugar de eunucos.
"Ah, querido Jack - disse ao deter-se na porta. - Estive a ponto de esquecer uma nota que tenho para você e que chegou no pacote de sir Joseph. - Ao contrário da
nota que Stephen recebera, a de Jack era uma carta de verdade, escrita com letra pequena.
Passou um tempo antes que Stephen regressasse à pensão onde haviam se instalado em Valparaíso. Isso foi devido à feliz descoberta da colônia catalã, cujos membros
encontrou bailando sardanas na praça, frente a São Vicente. Caminhou de volta com um sorriso nos lábios, enquanto aquela música familiar lhe rondava ainda pela cabeça.
Contudo, o sorriso desapareceu de repente ao ver Jack arrasado, triste, com os olhos avermelhados. Stephen deplorara amiúde a tendência do inglês de mostrar abertamente
seus sentimentos, grande fraqueza emocional, mas naquele momento, ao observar com grande atenção o seu amigo, achou ver algo fora do comum. Além disso, Jack se levantou,
soou o nariz e disse:
- Desculpe-me, Stephen. Peço que me perdoe por tão vergonhosa exibição. A carta de Sophie me tocou a alma - disse com as folhas transparentes para cima. - É tão
valente e boa; nunca diz uma palavra mais alta que a outra, nem se queixa, ainda que pelo visto as meninas estiveram muito enfermas, e Heneage Dundas não está muito
satisfeito com a conduta de George no Lion. Carrega todo o lar nas costas, Stephen, e o descreveu maravilhosamente: o pátio, os estábulos, a biblioteca, as terras
e o exido. Diz coisas tão amáveis de Christine e de sua Brigid... Meu Deus, fiquei com tanta saudade dela. Aqui estou, no extremo oposto do mundo, confiando tudo
a seus cuidados... Não tinha nem idéia de quanta saudade sentia.
Stephen lhe tomou o pulso e inspecionou suas pupilas.
- É muito duro, muito, mas em primeiro lugar deve considerar que o bom vento do oeste nos empurrará algum dia pelo estreito, e que depois, o que não é improvável
se acompanha a esquadra, levar-nos-á ao cabo. Ali, com a liberação do Chile a suas costas, poderá trazer Sophie e todas as pessoas que queira para este país delicioso
e saudável, repleto de novas paisagens e de um vinho excelente. Sophie adora o bom vinho, e que Deus a bendiga por isso. Como médico, eu lhe asseguro, Jack, que
nos convém jantar muito bem. Dois bons bifes de novilho, por exemplo, regados com uma grande quantidade de borgonha (sei onde conseguir Chambertin), para depois
tomar um sedante que nos ajude a dormir.
Cavalgou de novo na manhã seguinte, depois de visitar os dois barcos de guerra, em cujas cobertas teve tempo de pensar como era incrível se sentir a bordo como em
casa. Cumprimentou seus velhos camaradas, recordaram uns aos outros as velhas penúrias e privações, o dia em que o doutor se negou a carregar com o cadáver de uma
foca... Finalmente, trocou impressões com Poll e Maggie a respeito dos satisfeitos pacientes que eram tão bem atendidos.
Deixou para trás a empoeirada cidade, e tomou a estrada principal para Santiago, que aquele dia encontrou quase deserta.
Adiante, adiante na lombo da égua, até chegar ao vão de rocha adornado com pequenos e espinhosos cáctus que os lugareiros conheciam pelo nome de Filhote de Leão.
Demorou uma hora, talvez mais, para dobrar esta enorme extensão de terreno e chegar ao lugar onde a estrada serpenteava para cima e para baixo por terras ermas (ermas,
se não fosse por algumas maravilhas da botânica). Aquele lugar contava com um grande surtimento de aves de rapina, desde o falcão até o inevitável condor. A subida
era pelo menos nove décimos do caminho, era um ascensão constante, com alguma ou outra descida tão pronunciada que Stephen se via obrigado a desmontar e guiar a
égua pela embocadura. Em todo este extraordinário caminho que atravessava as montanhas, quer caminhasse quer cavalgasse, ali, ante ele, a diversas distâncias, clara
e diáfana às vezes, fora de foco outras, não via a Christine, mas as diversas curvas que a moldavam. As milhas passaram despercebidas até que a égua se deteve em
seu lugar de descanso habitual e voltou a cabeça para ele, com um brilho de desaprovação no olhar.
No trecho seguinte do caminho, franquearam uma barreira invisível onde batia o ar fresco dos Andes, e aí a tinha de novo. Não eram ilusões, senão percepções: Christine,
clara, melhor definida, sobretudo ao mover-se pela escura parede de rocha. Alta, erguida e ágil, caminhava com soltura. Stephen recordava com clareza como ela, quando
lia, quando tocava música, quando olhava uma ave com a luneta, ou simplesmente quando refletia, parecia ficar ausente, alheia a tudo, em seu própio mundo. Também
recordava o momento em que ela parecia regressar de repente, quer fosse porque ele falasse, ou se movesse. Dois seres completamente distintos; o prazer de sua companhia,
que desfrutava mais ao se recordar, o fruto da felicidade, da consumação da proximidade. Seu desejo era o de um homem, isso certamente, e gostaria de conhecê-la
fisicamente, ainda que isso fosse secundário, uma emoção muito remota comparada com a experimentada ao observar seu fantasma, o espectro, a aparição cuja figura
se desenhava com toda a clareza do mundo na parede rochosa.
Tinha deduzido que Christine não era muito apreciada na colônia, onde embora sua beleza pouco freqüente não passasse despercebida, tampouco era admirada. Em uma
concorrida reunião, ouvira uma mulher que possuía uma beleza convencional dizer: "Não sei o que vêem nela", referindo-se ao grupo de homens jovens e maduros que
raras vezes se afastavam do lugar onde ela se sentava.
Depois de muito pensar, o que mais lhe chamava a atenção nela era aquela mudança que experimentava de repente: a dama de bom berço, pouco dada às críticas pessoais,
às fofocas das colônias, reservada mas nem tanto para ser agressiva, convertia-se de repente, transformava-se em alguém cálida, disposta a trocar simpáticos comentários
com alguém que lhe agradasse. Quando isto sucedia toda sua atitude física se via alterada.
Nunca chegava a mostrar-se hierática, mas naquele momento sua pouse adotava certa flexibilidade. Stephen, que a havia observado com maior atenção que a dedicada
à ave mais peculiar do mundo, era capaz de averiguar a partir da mais leve mudança de postura, se Christine via com agrado a perspectiva de conversar com alguém,
ou não.
- Estou enfeitiçado - disse em voz alta, - mas aquela cumplicidade espontânea...
Não terminou de expressar em voz alta o que pensava. Na curva seguinte apareceu o líder de uma fileira de mulas, um animal velho com um chapéu na cabeça, acompanhado
por um homem que com sua estrondosa voz despertou o eco do abismo ao ordenar a Stephen e a sua égua que se afastassem daquele canto.
Isobel, a égua, sabia exatamente o que devia fazer. Foi uma sorte, porque Stephen estava tão abstraído, tão absorto pela convincente (ainda que distante) miragem,
que ignorava que já fazia um quarto de hora que percorriam a mula e ele um caminho talhado na parede de um penhasco, na borda de um imponente precipício.
- Vá com Deus - cumprimentou o muladeiro ao passar de longo. Não foi o único, pois também lhe cumprimentaram quem: fechava a marcha. Para Stephen lhe pareceu um
gesto reconfortante, tratando-se de um lugar tão inóspito e solitário. Ginete e montaria dobraram a curva e seguiram subindo para o crescente crepúsculo, para depois
atravessar uma bacia mais estreita. Sua ilusão, a miragem, sempre silenciosa, perfeita, havia desaparecido. Não regressou, por mais que a procurasse ou se esforçasse
em imaginá-la. Além do mais, a natureza da paisagem tinha mudado. Mais um giro fechado e, ante ambos, apareceu a ladeira que assinalava a passagem elevada; abaixo,
em uma ladeira, pôde ver as luzes de uma pensão.
Era uma manhã gelada. Cruzaram a passagem para chegar a uma estrada mais povoada, tediosa às vezes, monotonamente uniforme. Outra pensão, com refeição ainda pior.
Acima e abaixo, acima e abaixo... sem miragens nem visões. No final daquela esgotadora jornada, chegaram a Santiago. Isobel, esfregada e alimentada com um refogado
quente, pôde ir dormir no estábulo de costume, com a cabeça baixa. Stephen voltou à pensão, onde encontrou a Jacob presa de um nervosismo inusual nele.
- De modo que já voltou - exclamou.
- Não poderia estar mais de acordo com suas palavras - disse Stephen. - Ajude-me a tirar as botas.
- A menos que esses dois novos agentes não digam mais que mentiras - disse Jacob quando Stephen ficou descalço depois de um último puxão que quase os deixou sem
fôlego, - e acredito poder afirmar que ambos trabalham de forma independente, e que portanto ignoram a empresa do outro, obtivemos urgentes notícias de Lima e El
Callao. O vice-rei decidiu invadir, empreender a invasão, com o consentimento e aprovação do Estado Maior de sua armada, e atacar Valparaíso.
Stephen assentiu, e Jacob continuou:
- Sobretudo na vertente naval do assunto, isto requer mais apetrechos do que possuem, e as pessoas envolvidas, as diversas juntas, correm para cima e para baixo
em busca de cabo, lona, pólvora e outros. Por sorte para nós, muitas dessas pessoas envolvidas, os manufatureiros de cabo, lona e pólvora, aumentaram os preços,
como bem poderá suspeitar, ou ocultado os estoques até que estes alcancem o que se supõe seja o limite.
- É possível? - perguntou Stephen. - Antes de escrever e enviar a todo galope uma advertência ao pobre capitão Aubrey, tenho que almoçar. Senti o cheiro do aroma
caseiro do cozido ao subir as escadas. Comi tantos porquinhos-da-índia fritos como me serviram entre este lugar e Valparaíso, tanto na viagem de ida como na de volta,
e devo dizer com a maior seriedade que necessito almoçar.
- Enfim, se Deus é seu estômago, eu também o adorarei - disse Jacob, que fez soar o sino.
Finalmente chegou a fragrante panela, que conservou a temperatura ao repousar em um fornilho.
Por fim Stephen ficou satisfeito. Empurrou a cadeira para trás e, de um bolso interno, tirou a bolsinha onde guardava as folhas de coca, a lima e o envoltório necessário.
Não tinha vontade nesse momento de mascar a coca, mas sabia que uma refeição tão abundante como a que acabava de desfrutar enturvaria sua mente. E queria encarar
todo aquele assunto com a mente o mais limpa possível.
- Amos, quando recorria à coca em dose consideráveis, apreciou uma diferença na reação conforme a altitude? - perguntou enquanto preparava uma bolinha de fas. -
Sei que os transportadores dos Andes peruanos aumentam muito a dose quando têm que transportar volumes pesados por terreno difícil. Não me pareceu que lhes prejudicasse,
e supus que a energia física, a resistência física e a ausência de apetite constituíam os únicos efeitos. Observou outros?
- Não, pelo menos no norte. Além, é claro, do vício compulsivo. Mas como sabe há muitos tipos de coca: aqui ingerem a Tia Juana. Em pacientes asmáticos ou afetados
de enxaqueca se conhecem casos de alucinações, cuja força e freqüência varia com a altura. Não com o cansaço, mas com a altura.
Stephen separou os ingredientes da bolsinha em seus diferentes compartimentos, e disse:
- Obrigado, querido colega. Ainda que não me agrade a idéia de que uma planta me proporcione minha beatífica visão. Se me permite aguçar a inteligência, multiplicar
sete por doze, acho bom, mas se toca sentimentos sagrados, não. Amos, teremos que partir sem demora para Valparaíso, ainda que só de pensar que devo enfrentar de
novo aquela estrada...
- Se superasse essa mania que tem pelas mulas, como já lhe disse em mais de uma ocasião, poderia lhe mostrar uma via mais rápida e fácil. É verdade que tem muitas
passagens escarpadas que só uma cabra ou uma mula transitaria sem temor, mas você mesmo poderá percorrê-las quando o animal lhe tenha mostrado onde pisar.
- Em tal caso, procuremos excelentes mulas, uma quantidade equivalente de focinhos, e um muladeiro que seja de confiança.
Stephen achou-se no lombo de uma mula amável e dócil, cuja boa vontade se via aumentada em cada parada no caminho com um pequeno pedaço de pão. Contudo, ela também
se excitou e inclinou a cabriolas quando chegaram a Valparaíso. O lugar estava cheio de soldados; os vivas e aclamações evidenciaram o fato de que Bernardo O’Higgins,
o diretor supremo, encontrava-se na cidade com sua potente escolta de soldados escolhidos, muitos dos quais tinham tomado parte da batalha decisiva.
Guiaram as mulas e o muladeiro para a pensão por ruelas pouco transitadas. Ao chegar, encontraram Killick, que arrancou a bagagem de Stephen das mãos do muladeiro
com um olhar suspicaz, e lhes informou que toda a condenada cidade estava abarrotada de fodidos soldados e oficiais, e que só pela força havia conseguido conservar
o quarto do doutor, enquanto que o pobre capitão tivera que ceder o salão para um coronelzinho, com o pretexto de que o coronelzinho falava inglês. A Surprise se
achava no porto, admirada por todo mundo, e o capitão Aubrey havia levado o general O’Higgins para dar uma volta pela baía na Ringle; se sobrevivessem, tinham combinado
almoçar a bordo da Surprise no dia seguinte.
A palavra "amanhã" despertou tal impaciência na mente de Stephen que se perdeu parte da informação que Killick deu a seguir. Mais tarde, Jacob, mais fleumático e
menos preocupado, repetiu-lhe. Lindsay zarpara para proteger o comércio republicano do ataque dos corsários; quatrocentos soldados se dispunham a marchar para Concepção,
o que desafogaria Valparaíso.
A porta do quarto de Stephen abriu-se quando o serviço da pensão fazia a cama, e Killick, chateado, tentava colocar a roupa nos inadequados armários. Stephen assomou
a cabeça, pensou que qualquer coisa seria melhor que suportar aquela atividade, e se retirou. Quase imediatamente, topou-se com um oficial que se deteve, cumprimentou-lhe
com uma inclinação e disse:
- Doutor Maturin e Domanova, suponho. Permita-me que me apresente. Sou Valdés. Costumava visitar Ullastret para a caça do javali, e acredito que poderíamos nos considerar
parentes.
- Ah, o senhor deve de ser o primo Eduardo, de cujo inglês tanto se orgulhava meu avô, e com razão! Alegro-me muito de conhecer-lhe.
- E eu de conhecer ao senhor, primo Stephen. - Abraçaram-se, e Stephen sugeriu que descessem para o pátio e brindassem com vinho por tão feliz encontro.
À luz do dia, Stephen viu que seu primo era coronel, um oficial que estivera em vários combates, um soldado, mas um soldado civilizado, que naquele momento falava
de Jack Aubrey nos termos mais bajuladores, inclusive entusiastas.
-...Que tipo tão extraordinário. Dom Bernardo foi vê-lo imediatamente, e neste momento dão uma volta pela baía na escuna...
- Muito bem, primo. Passou muito, muito tempo, antes de que aprendesse como a chamam: Escuna.
- Ah, ah - riu o coronel, visivelmente satisfeito. - Porém, diga-me, por favor, como se diz "diretor supremo" em inglês?
- Aí me pegou - respondeu Stephen - diretor geral cheira a comércio, e protetor daquele velhaco de Cromwell. Chefe de Estado, talvez?
Trocaram propostas, ainda que nenhuma pareceu satisfazer-lhes quando entraram Jack, vários oficiais e o "diretor supremo" em pessoa. Tinha este bom aspecto, e saltava
à vista sua ascendência irlandesa. Stephen e ele eram velhos amigos, e a conversa continuou em inglês. Depois dos primeiros cumprimentos, o prazer de comprovar as
qualidades marinheiras da Ringle em pessoa, por parte de O’Higgins, as felicitações pelos feitos de armas dos soldados chilenos e etcétera, prosseguiu a conversa.
- Senhor, vim de Santiago em mula - disse Stephen, - em mula - repetiu, - senhor, por uma estrada rápida mas perigosa, quase uma vereda, através destes intrincados
bosques, porque tinha certa informação que pensei devia pôr em seu conhecimento o quanto antes.
O’Higgins estudou a expressão de seu rosto e olhou ao seu redor.
- Acompanhe-me ao ameiado. Por favor, venha o senhor também, capitão Aubrey. E o senhor, coronel. Antes, tenham a bondade de localizar sentinelas que velem pela
intimidade de nossa conversa.
Do alto do ameiado puderam ver a Surprise e a escuna, iluminadas ambas pela preciosa luz do sol. A dotação engalanava a Surprise, devido a que o diretor supremo
almoçaria a bordo no dia seguinte.
Caminharam todos juntos, e Stephen resumiu as notícias que tinha. A decisão de invadir, tada pelo vice-rei peruano, de cruzar a fronteira a cavalo e a pé quando
a armada peruana tivesse destruído os barcos de guerra chilenos em Valparaíso (o desconcerto em Lima e El Callao no que concernia aos apetrechos), a elevada probabilidade
de que os buscassem em Valdivia...
- Obrigado, muito obrigado, doutor - disse O’Higgins. - Tudo isto vem a confirmar os informes de inteligência menos confiáveis e precisos que tinha recebido.
- Senhor - disse Jack Aubrey, - permite-me sugerir que levemos a cabo um reconhecimento imediato? O vento é favorável e o mais certo é que nos traga logo de volta.
Raras vezes vi um vento mais promissor.
- Doutor Maturin - disse O’Higgins, -seus informantes mencionaram em que estado se encontra a armada peruana?
- Não de forma explícita, senhor - respondeu Stephen, - mas por inferência, e pelos elevados preços, parece claro que a única fragata pesada, a Esmeralda, creio
que de cinqüenta canhões, não está preparada para zarpar. Já as embarcações menores, entendi que estão ainda pior.
O diretor supremo refletiu alguns instantes, à luz da informação.
- Se conheço aquela gente de Lima, creio que passarão os próximos dez dias distribuindo minutas e memorandos de ministério em ministério. Dispomos de tempo. Querido
capitão Aubrey, se me permite acompanhar-lhe a bordo durante o almoço, como o senhor sugeriu, estaria bem que, enquanto isso, o barco se movesse com soltura mas
quase de forma imperceptível, até dobrar o promontório sul e, dali, navegar com a máxima celeridade para Valdivia, onde ancoraríamos frente ao porto antes do pôr
do sol, de modo que possamos dar uma espiada com a luz às costas. Levarei todos os mapas, planos e desenhos que tenha.
- Excelente, senhor - disse Jack, incapaz de ocultar a satisfação que sentia.
Foi uma refeição curiosa, da qual se falou muito. No que concerne à dotação do barco, começou com toda a naturalidade do mundo quando, antes de almoçar, a Surprise
e todas sua gente mostravam um estado de higiene sobrenatural. Era natural, em troca, que a proximidade do grande homem se celebrasse com o estrondo dos canhões,
que não deixaram uma só ave na água. O costado estava engalanado quando subiram a bordo com as apitadas do contramestre. Contudo, mesmo nesse ponto houve algo estranho
no modo como atracou a falua do capitão. Chegou o diretor geral, junto com um coronel que, sem dúvida, dignificou sua profissão de soldado ao subir a bordo. Foi
ainda mais estranho o fato de que, uma vez sentados à mesa, se desse a ordem de subir e estivar a falua, e começar a retirar os adornos que tinham posto, recolher
os cabos e arrebatar o barco.
- Eu lhe digo, Maggie - disse Poll Skeeping para sua melhor amiga. - Acho que aqui se ferve algo.
- Quando vi Joe Edwards e seus companheiros recolherem essas linhas de vida, estando o cavalheiro ainda sentado à mesa, senti o cheiro de algo.
Para manter a funcionalidade de um ente tão complexo como um barco de guerra, todos os homens e a maioria da bagagem devia poder afrontar um grande número de acontecimentos
distintos, de circunstâncias e de emergências, e também devia zarpar com rapidez. Em um barco de guerra tão preparado como a Surprise, onde a maioria da tripulação
era constituída por marinheiros de primeira, tudo isto podia fazer-se sem maiores problemas. Contudo, a prática totalidade das emergências que se apresentam no mar
possuem um padrão determinado, uma seqüência, por desagradáveis que sejam. Basta trastornar esse padrão, para minguar a confiança. A retirada dessas linhas de vida
causou muito mais estrago que o fato de estivar a falua em seu lugar habitual no convés, ordem por si mesma estranha, inusual e censurável, não parecia uma loucura,
mas sim algo pior: era um mau augúrio.
Prosseguiu a refeição de Jack sem maiores contratempos, com o habitual tilintar de jarras. Enquanto isso, os marinheiros da fragata confiaram o desassossego que
sentiam ao companheiro de trança, o amigo em cujas mãos punham a trança para ser escovada e posteriormente trançada, ainda que também falaram com outros que inclusive
nada tinham a ver com sua guarda, mas por quem sentiam igual simpatia. Estas amizades estavam longe de poder considerar-se infreqüentes, ainda que algumas fossem
inverossímeis ou inadequadas, como a que havia surgido entre Horatio Hanson e Davies O Lerdo, lerdo não por seus toscos andares, mas pelo furioso que se punha quando
se ofuscava. Ambos trabalhavam em uma nova sondareza, e naquele momento faziam as marcas com a precisão necessária para uma navegação exata.
- Senhor, alguma vez tinha visto recolher as linhas de vida com os convidados a bordo? - perguntou Davies, inquieto e em voz baixa. Ali seguiam os convidados, a
bordo, e suas vozes comentavam os segredos políticos das juntas, comentários que podiam ouvir-se desde o lugar onde trabalhavam Hanson e Davies.
- Oh, com relação a isso... - disse Horatio. - Poll o mencionou quando desci para buscar bucha, e lhe disse que se tranqüilizasse, pois foi o capitão que ordenou.
- Bem, se o capitão ordenou... - disse Davies com um suspiro de alívio.
Pouco depois chegaram novas ordens do capitão, que falou pela boca do pequeno e imaculado guarda-marinha Wells, que dedicou um sorriso nervoso para Hanson, e disse:
- O capitão me enviou com ordens para o senhor Somers. Temos que recolher a âncora.
- Pode encontrá-lo no jardim - disse Hanson.
Pouco depois, chegou a ordem a popa. Deviam preparar-se para recolher âncoras, deslizar com o refluxo da maré e, depois, desrarrizar o velacho até dobrar o promontório.
A atividade se apoderou do barco, uma atividade calma e relativamente plácida. Por fim sabiam onde estavam, pois a Surprise tinha que escorrer-se com o refluxo,
conforme o plano elaborado por seu oficial ao comando, escorrer-se enquanto o sol caía na mesma direção que a cidade para evitar olhares furtivos. Depois, quando
dobrassem o promontório, cobrir-se-iam de lona e poriam rumo com o terral do leste para o lugar que escolhessem, com o regente da nação e seu companheiro a bordo.
Com diligência e discrição, levaram âncoras pequenas, tiveram cuidado na hora de arrizar e pôr tortores na âncora para evitar fazer ruído, e, mesmo assim, observaram
o bote da Ringle que se aproximou para recolher o senhor Reade, que imediatamente embarcou sem a menor cerimônia e animou aos seus a vogar com alma até chegar à
escuna, onde asim que subiu a bordo ordenou imitar a febril e solapada atividade executada na Surprise.
Noite. Por ser lua nova, somente brilhavam as estrelas. Nem a O’Higgins nem ao primo Eduardo interessava muito a astronomia ou a navegação; ambos, guerrilheiros
experientes, conheciam o valor de desfrutar de uma noite de sono. Fumaram um charuto no castelo de popa, jogaram as guimbas acesas na espetacular esteira, e foram
direitinhos para a cama depois de despedir-se de Jack Aubrey, que ensinava a Daniel, Hanson e Shepherd (guarda-marinha este, cuja inteligência por fim começava a
despertar) as luas de Júpiter, não por serem objetos dignos de observação por sua beleza, nem por curiosidade, mas por tratar-se de elementos valiosos para uma boa
navegação.
Na manhã seguinte, durante um café da manhã muito agradável, O’Higgins rogou a Jack que se mantivesse bem ao mar quando passassem à altura de Concepção.
- Meu caro senhor - disse Jack, - isso não é provável que suceda antes das cinco da tarde.
- Verdade? Pois achava que o senhor estava navegando a uma grande velocidade. Claro que pouco sei do mar.
- Alcançamos uma velocidade de dez nós, e poderíamos ter largado mais lona, mas peloque entendi que o senhor queria chegar a Valdivia na última hora, mais ou menos,
da tarde.
- De fato, certamente, e sem dúvida o senhor arrumará para que o consiga.
- Nada é certo no mar, nada em absoluto. Mas o barômetro se mantém constante. O vento tem todo o aspecto de seguir fixo, e se não avistarmos Valdivia antes do pôr
do sol, doarei dez guinéus a qualquer igreja ou obra de caridade que o senhor escolha.
- Ah, que emocionante - disse O’Higgins com um sorriso. - Eu farei o mesmo caso consiga.
Não demorou para que o restante do barco soubesse de tudo, e o fez pelo canal de costume. Ainda que quase não houvesse um só homem em todo o barco que não tivesse
zarpado de Gibraltar carregado de ouro (com o pagamento, pelo menos, de vários anos), a maioria tinha empregado seu nada desdenhável engenho para livrar-se dele.
Era verdade que alguns tinham enviado uma soma importante para seus lares, mas fosse como fosse tinham revivido os antigos valores da dotação, e quando ouviram que
dez guinéus estavam em jogo, mantiveram a fragata em condições com o mesmo empenho que demonstravam quando perseguiam uma presa. Os oficiais e os gavieiros também
estiveram ocupados, ainda que nenhum deles fosse tão bom marinheiro como Harding e os demais marinheiros veteranos, e ainda que ninguém conhecesse melhor o barco.
Antecipavam-se a todas as ordens, e, quando mais ou menos as cinco em ponto da tarde, Stephen e Jacob realizaram as rondas de rigor (duas das habituais hérnias só
necessitavam repouso, e também tinham um par de obstinados casos de sífilis), e tomaram a xícara de chá de costume com Poll e Maggie, escutaram o vozeirão do capitão
Aubrey explicando ao diretor supremo no castelo de popa que aquela nuvem de fumaça, situada a uma quarta pela alheta de estibordo, provinha de Concepção.
- Alegro-me muitíssimo - respondeu O’Higgins, projetando a voz ao céu com toda a força da que foi capaz. - E espero que todos meus homens tenham se instalado comodamente.
Jack Aubrey pretendia aferrar as joanetes e inclusive as gáveas muito antes de rumar para o porto de Valdivia, quando surgisse no oriente o Cabo Corcovado. Contudo,
o vento favorável, a corrente e, sobretudo, o empenho da tripulação, puseram o cabo diante de seus olhos pela amura de bombordo muito antes de que tivesse direito
de chegar-se ali, muito antes de que o sol tivesse descido tal como desejava. Encurtou vela, e quando tudo esteva recolhido, imóvel e aduchado, disse ao diretor
supremo:
- Senhor, ocorreu-me que o senhor e o coronel Valdés talvez quisessem subir ao cesto da gávea, com o fim de preparar-se para o momento em que avistemos Valdivia,
dentro de pouco, quando o sol esteja perto do horizonte.
- Ficaria encantado - disse O’Higgins, e, claro, o coronel Valdés tampouco pôde objetar nada. Ambos ocultaram sua alegria muito bem ao subir mais e mais com grande
estoicismo, até alcançar a modesta altura do cesto da gávea do maior.
- Poderíamos subir mais - disse o capitão.
- Oh, obrigado, mas daqui já o vejo bem - replicou O’Higgins secamente. O coronel Valdés perguntou se seria muito incômodo que lhes subissem algumas lunetas. Pois
nessas desacostumadas ascensões ao alto, existia o perigo de que se produzisse um tremor involuntário, puramente muscular, das mãos se um se via obrigado a subir
e descer repetidas vezes. Estava mais que disposto a ficar no cesto da gávea até que pudessem executar o reconhecimento. E não podia faltar muito, porque já distinguia
vários trechos de costa que lhe eram familiares, e o sol não se achava longe do horizonte.
Em lugar de atrapalhá-los no cesto da gávea, Jack optou por descer pelos enfrechates e regressar à cabine, onde, de novo, estudou as cartas, os mapas e os planos
de Valdivia que O’Higgins tinha levado consigo. As cartas só podiam interessar a um marinheiro, mas fez uma seleção dos outros, enrolou e guardou no peitilho, e
voltou ao convés com um mapa panorâmico bastante grande na mão. Ali, viu Daniel e Hanson marcando as posições de alguns picos. A essas alturas, Hanson havia se convertido
em um dos gavieiros mais ágeis do barco, e Jack lhe disse:
- Senhor Hanson, tenha a amabilidade de pendurar-se isto nas costas, e entregar aos cavalheiros que encontrará no cesto da gávea. Se o senhor tomar o amantilho de
barlavento, eu subirei pelo de sotavento.
Por então, O’Higgins e Valdés já estavam mais tranqüilos e, como se tratava de uma zona que ambos conheciam bem, não deixavam de assinalar as povoações e as igrejas
repartidas pela costa.
- Não falta muito - disse o diretor com a vista para o sul. E assim era. Um cabo, depois outro, e aí estava a meia lua de fortificações que protegiam o porto de
Valdivia. Já em seu declive, o sol jogava uma luz intensa tanto sobre a cidade como sobre o conjunto do porto.
Jack gritou uma ordem para o convés, e o velacho posto em pairo reduziu consideravelmente o avanço do barco. Os chilenos encaravam o porto e a cidade com suas lunetas.
O porto parecia vazio exceto pela presença de alguns botes e um bergantim mercante. Na fortificação a atividade era moderada.
O diretor geral e o coronel Valdés tinham participado de mais de um combate, quer fosse convencional ou de qualquer outro tipo, e quando Valdés cifrou em duzentos
e cinqüenta homens a força adequada para tomar o lugar, Jack acreditou, ainda que lhe pareceu pouco para a quantidade de canhões que havia nas imponentes e escuras
muralhas.
- O senhor poderia me dar sua opinião? - perguntou O’Higgins, voltando-se para ele. - Eu me atreveria a dizer que o senhor tem mais experiência atacando praças fortes
que nós.
- Veja, senhor - respondeu Jack, - a aproximação pelo mar é distinta do modo com que os soldados afrontam o negócio em terra. Estive observando essa imponente fortaleza,
a parte mais exterior da linha defensiva, ante a qual caminham alguns soldados. Creio que se os defensores são um pouco bisonhos e não muito valentes o lugar poderia
ser tomado por um ataque simultâneo pelos doi lados. Se esse forte for tomado, os dois arcos do semicírculo teriam sérias dificuldades para cooperar, para organizar
um contragolpe. Olhem aquela ladeira da praia.
Falaram disso um pouco. Os chilenos, conscientes da qualidade das tropas de Valdivia, convenceram-se da viabilidade do plano de Jack.
- Excelente - disse O’Higgins a Valdés. - Pedirei ao capitão Aubrey que nos leve de volta a Concepção tão rápido como seja possível. Neste barco caberia mais duzentos
e cinqüenta homens? - perguntou a Jack.
- Não sem um grande incômodo, senhor, mas se este maravilhoso vento se mantiver, e acredito que o fará, não teriam que sofrer muito. Sempre podemos recorrer à Ringle
para levar uns vinte. Além disso, permita-me acrescentar que posso oferecer pelo menos cem marinheiros de primeira com experiência em combate, acostumados ao aspecto
naval do assalto que têm em mente.
- Esplêndida contribuição, que aceito de bom grado.
- Muito amável, palavra - disse Valdés.
- E agora - disse O’Higgins, - se pudermos descer ao convés sãos e salvos, e se o barco navegar para Concepção, eu lhe ficaria muito agradecido se nos pusesse a
par de seu plano de ataque combinado por terra e mar.
- De acordo, senhor. Acho que no que concerne à descida, deveríamos dar preferência ao coronel Valdés - e levantando a voz até recuperar o tom habitual: - chamem
Davies e meu timoneiro. - Segundos depois: - acima, acima, aqui, guiem os pés dos cavalheiros. Isto daqui, coronel, é a boca de lobo, e se o senhor se introduzir
por ela, um par de fortes mãos colocarão seus pés em cordas horizontais que fazem as vezes de degraus.
Valdés não respondeu em voz alta, apenas inclinou a cabeça e, com sumo cuidado, introduziu-se pela boca de lobo.
- Com cuidado, com cuidado aí - ordenou Jack; desapareceu o olhar inquieto do coronel, quando mãos competentes rodearam seus tornozelos e apoiaram seus pés nos enfrechates.
- Excelência, sua vez - disse Jack, - e se me permite a sugestão, que acha se descansarem um pouco, estudarem os mapas e, depois do jantar, discutirmos as possibilidades?
- Será um prazer - respondeu O’Higgins, com o rosto mais lívido e decomposto que o do coronel.
Contudo, ambos pareciam muito contentes e satisfeitos quando se retirou a mesa da janta e tomaram lugar com os mapas e planos desdobrados. Tinham o café ao alcance
da mão, em uma mesinha, e também o conhaque para quem o preferisse.
- Senhor, já que me pediu que comece - disse Jack, - começarei dizendo que o condestável e eu consultamos seus apetrechos e que materialmente o plano que vou propor
é factível. Em resumo, é o seguinte: depois de embarcar seus homens em Concepção (escolhidos por sua coragem e agilidade, e também porque não enjoam), nós, a fragata
e a escuna, voltaremos pouco antes da alvorada, e desembarcaremos a todos os soldados e marinheiros acostumados a cravar os canhões e destruir localizações de artilharia,
neste lugar, Enseada Alta. Os botes voltarão ao barco, que seguidamente rumará para um ponto situado em frente ao forte, do qual bombardeará a uma distância que
facilite o fogo de resposta dos defensores. Em nenhum momento a fragata abrirá fogo sobre a porta principal que conduz ao cais. Durante este bombardeio, os soldados
e marinheiros avançarão pelo caminho do interno. Acho que a intensidade e o estrondo do bombardeio impedirá aos defensores (tropas que, conforme me conta o coronel
Valdés, não contam com a experiência que caberia desejar) reparar em dito avanço. O trabalho dos marinheiros consistirá em lançar foguetes e frascos de fogo nas
seteiras, para encher todo o lugar de fedores e fumaças irrespiráveis, assim como para minar todas as localizações dos canhões. Neste momento, os soldados manterão
um fogo constante sobre as posições inimigas, gritando e uivando como súcubos.
- Súcubos? - sussurrou Valdés ao ouvido de Stephen.
- Demônios.
Seguiu uma conversa sussurrada em castelhano, na qual Valdés descreveu o pilar de uma catedral que havia visto de menino, na qual apareciam esculpidos alguns demônios
que uivavam enquanto ardiam no Inferno.
Quando esta conversa terminou, Stephen voltou a pôr toda sua atenção no discurso de Jack Aubrey:
- E meu motivo para não tocar a muralha norte e sua guarita é que estou convencido de que os defensores, a menos que sejam granadeiros veteranos, se encherão logo
do bombardeio, dos gases sulfurosos e do fedor, e passarão a correr pela porta, depois para o cais e para o ponto fortificado que tenham mais perto, senão para a
própia cidade, ou, pelo menos, para os armazens. Enquanto fogem, poderemos atacá-los com metralha e, depois, persegui-los...
Fez uma pausa. Os chilenos trocaram olhares. O’Higgins, convencido de qual seria a resposta, perguntou:
- Coronel, que acha do plano?
- Excelência - respondeu Valdés, - parece uma operação perfeitamente factível.
- Estou de acordo. Querido capitão Aubrey, permita-me pedir-lhe que ordene aos seus levar o barco de volta a Concepção tão rápido como seja possível.
- Certamente, senhor. Ainda que acho que já terá observado que alteramos o aspecto da fragata (excelente para qualquer marinheiro). Para voltar a Concepção com certa
celeridade, teremos antes que pôr os paus do mastro maior. O situado no meio - acrescentou.
- Claro, claro. O mastro central. Pode-se fazer tal coisa no mar?
- Com uma boa dotação e um mar não muito encrespado, sim. Mas leva tempo, e talvez o senhor considere mais prudente enviar as ordens a Concepção a bordo da escuna,
que chegará muito antes. Quando nós cheguemos ao porto, se tudo for bem, encontrará seus homens esperando no cais.
- Devo escrever imediatamente uma carta pensada para mentes vis. Se não recordo mal, devo escolher meus homens por sua coragem, agilidade e por não enjoarem em um
barco.
- Isso mesmo, senhor. Quando a termine, confiarei a documentação com suas ordens ao senhor Reade, comandante da escuna, e pedirei que ponha proa para Concepção sem
perder um minuto. Ali, embarcará os soldados cujos nomes figurem escritos à margem, e voltará na maior brevidade. Quando nos despidamos dele, talvez lhes interesse
ver como se transforma uma fragata manca e abrutada em algo glorioso de verdade, graças ao altíssimo mastro maior própio de um barco de trinta e seis canhões. Quando
tenhamos terminado, cobrir-nos-emos de toda a lona possível, e poremos rumo a Concepção.
Uma nova viagem de ida e volta, graças ao valioso e firme vento de poente e à esplêndida navegação, tão esplêndida que reconciliou com o mar os sombrios soldados
apertados em ambos os barcos, tanto que em ocasiões inclusive se puseram a cantar. Desfrutavam de um grupo de oficiais inteligentes e agradáveis, a quem se revelou
o complexo plano de Valdivia na câmara dos oficiais; apesar de tudo, foi necessário explicar o relativamente simples plano de ataque uma e outra vez. Dois destes
oficiais conheciam bem Valdivia, e assinalaram os armazens situados no extremo do cais, com o tesouro atrás deles.
Pouco antes da alvorada, com Marte a popa, esquentaram-se os fogões dos dois barcos até alcançar temperaturas próximas à incandescência. Os cozinheiros e seus ajudantes
serviram então um desjejum esplêndido a todos os homens: não ficou sem usar nem um só prato de madeira, nem uma jarra.
Àquela altura, as montanhas enchiam uma quarta parte do céu. Em terra se viam algumas luzes dispersas. Os oficiais da Surprise e da Ringle ordenaram jogar os botes
ao mar, que formaram linhas, prontas para vogar. Em proa, Jack encarou a luneta de noite, e viu limpa a Enseada Alta e a fortificação central que se alçava atrás
dela. Havia ordenado encurtar vela, e a dotação do barco guardava um extraordinário silêncio; o único som era o que fazia o vento, cuja força caía a medida que se
aproximavam da margem, o vento que assobiava na exárcia e na água que acariciava os costados.
Com a Enseada Alta já perto, pela amura de bombordo, Jack ordenou soltar a âncora, e os marinheiros jogaram a âncora pequena ao mar. O barco ficou imóvel de lado
das rocas. Os botes se afastaram um depois do outro, com cinco lanternas a bordo de cada um. Os marinheiros vogaram até o leito da maré, formaram as linhas em silêncio,
brilhantes as luzes. Harding, ao comando do destacamento de marinheiros, ordenou:
- Desembarcar. - E desembarcaram, seguidos pelos soldados.
- Âncora pequena - ordenou Jack. - Gente às braças.
Viraram-se as vergas da fragata, as velas caçadas tomaram o vento e a embarcação ganhou caminho, mais e mais rápido, mais rápido até que a fortificação principal
ficou pelo través de bombordo. Não havia luzes, estava cega, exceto por uma solitária janela. Jack se voltou para a popa: ainda não se via nem rastro da coluna de
homens.
- Senhor Benton - gritou ao condestável. - Quanto diria o senhor?
- Umas quinhentas jardas, senhor.
- Prove com uma cunha de pontaria, altura meio alta.
- À ordem, senhor. Meio alta. - A voz do condestável foi interrompida pelo estampido de seu própio canhão e o chiado da carreta ao retroceder. O vento varreu a fumaça
para proa, e todos os olhares se esforçaram para distinguir o impacto, mas não havia nada o que ver naquela escuridão. De repente, a fortaleza adquiriu vida: uma
depois da outra resplandeceram as seteiras.
- Fogo com discrição! - ordenou Jack, que não levantou a voz até acrescentar: - Fogo salpicado aí.
Não era momento de descargas, tampouco para o fogo de proa a popa própio das práticas.
- Não quero prejudicar a madeira do barco - disse em um tom de voz mais alto para os chilenos que se encontravam a suas costas. - Senhor Wells, informe aos cabos
de canhão de que vou mover o barco mais umas cem jardas. - A essa altura, o forte respondia ao fogo com o crepitar dos mosquetes, e uma bala perdida assobiou sobre
sua cabeça.
- Senhor Daniel - chamou, - avante, se é tão amável, até que possamos ver a porta principal e o cais. - E para as brigadas que serviam os canhões: - Fogo com discrição!
Houve três enormes lampejos, línguas de fogo que iluminaram ao mesmo tempo a muralha. O fogo dos canhões fazia seu efeito: duas janelas convertidas em uma, brechas
na muralha, chamas no interior de um aposento e toda a face exterior da parede marcada de varíola pelos impactos. Começaram a iluminar-se mais seteiras, os canhões
abriam fogo depois com alma; contudo, não haviam superado o pau da mezena da Surprise antes de que uma explosão sacudisse a parte posterior da fortaleza, explosão
seguida pelo fogo de mosquete e, depois, por três explosões inclusive mais fortes que a anterior.
Apareceu ante seus olhos a porta principal, e a Surprise, levemente balançada a bombordo, ofendeu o centro com fogo cruzado. Ao longe, as explosões e o fogo de mosquete
aumentaram, até que o eco devolvido pelas montanhas foi ensurdecedor.
- Parece uma batalha de artilharia pesada - disse o coronel Valdés.
- Senhor Wells - gritou Jack, - corra para dizer-lhes que não toquem aquela condenada guarita.
Cedeu o fogo de mosquete procedente do forte, cederam também as explosões.
- É incrível pensar na pólvora que carregavam nas costas - comentou Stephen.
- Sairão a qualquer momento - disse Jack. - Senhor Daniel, proa ao cais quando se abra a porta, entre aquelas duas barquías{11}. Preparado para atracá-las. Senhor
Somers, senhor Somers! Providencie que o armeiro e seus ajudantes distribuam alfanjes, pistolas e machados de abordagem.
O rugido estremecedor que estourou no convés afogou por completo suas últimas palavras. A porta principal se abriu de repente, e uma densa multidão de gente saiu
correndo, tropeçando uns nos outros ao longo do cais.
- Carga de metralha! - ordenou Jack. O inimigo recebeu meia dúzia de disparos antes de que o barco alcançasse o cais.
- Que a guarda de estibordo amarre o barco de proa e popa. Bombordo, à carga.
Os soldados republicanos postados atrás do forte tinham visto a guarnição bater em retirada, e se uniram aos perseguidores. Os marinheiros se desfizeram das lingüetas
e maços para seguir os companheiros com uma velocidade elogiável.
- Não pode ser - disse Stephen ofegando. - É estranho que os perseguidores corram mais que a presa.
Estranho ou não, assim era: quando os fugitivos ganharam o forte seguinte, os sobreviventes se viram obrigados a correr de novo, apanhados e golpeados amiúde. E
assim prosseguiu o combate, forte a forte, até que um número ínfimo de soldados salvou as portas da cidade e abandonou o porto e toda a bagagem à discrição do vencedor.
Neste caso, o vencedor não mostrou discrição alguma. Alguns dos soldados chilenos conheciam bem o porto devido a terem trabalhado ali, e mostraram a seus aliados
um extraordinário tesouro em forma de cabo, lona, moitões, armas de fogo grandes e pequenas, madeira, pólvora, munição, arcas grandes de remédios, e, o que ainda
lhes satisfez mais, o tesouro. Encontrava-se atrás de umas portas encouraçadas, mas os marinheiros, depois de dobrar (sim, dobrar) algumas das ferramentas mais resistentes,
conseguiram reduzir a mera anedota a resistência das portas, assim como os pilares que as prendiam.
No interior havia quatro arcas grandes cheias de prata e um cofre com ouro. O mais curioso era que estavam apenas fechados com cadeado e, ao ver seu conteúdo um
soldado que tinha feito a travessia na Surprise disse que todos haviam arriscado a vida pelo butim, e que em sua opinião todos mereciam uma parte do total que devia
repartir-se imediatamente. Opinião que compartiram vários dos presentes.
- Importa-me um caralho sua opinião - espetou um fiel e rude marinheiro da Surprise, que logo depois disparou impávido no traidor.
Com tantos mortos nos fortes, nos cais e nas fortificações secundárias, este fato não causou uma grande impressão, ainda que sim restaurou a ordem. O capitão Aubrey
comentou ao diretor supremo que legalmente todas aquelas riquezas pertenciam a Valparaíso, e que a Surprise podia transportar as arcas grandes, enquanto que os apetrechos
navais colocados às portas dos paióis podiam embarcar-se em duas barquías de bom arqueio, atracadas perto da fragata.
Quando transportaram as arcas grandes para a Surprise montadas em molinetes, que se içaram a bordo graças a um engenhoso jogo de polias improvisado pelos marinheiros,
a moral começou a fraquejar. Os homens, sobretudo os soldados, olharam os cabos com desagrado, e mostraram certa inclinação por escapulir. Stephen, contudo, pediu
a Jack que confiasse um barril de aguardente chilena ao doutor Jacob. Depois, ordenou-se a todos os presentes em ambas línguas que formassem em filas e que avançassem
por turnos. Feito isto, o doutor Jacob procedeu a encher para cada um deles uma xícara do barril. Stephen, de sua parte, encarregou-se de entregar-lhes uma dose
considerável de coca de primeira qualidade, com os aditamentos de rigor.
Em um tempo surpreendentemente curto, desde que existisse tal noção dadas as circunstâncias e o sucedido no passado recente, a atmosfera mudou por completo. Recuperou-se
a energia, e com ela o bom humor. Os montinhos do tesouro diminuíram até desaparecer por completo nas barquías, cujos donos aceitaram o transporte, animados pela
oferta de ouro. A praia de seixos ficou desnuda sob a indiferente luz da lua.
- Primo - disse o coronel Valdés, abraçando-lhe, sozinhos naqueles cinco acres de praia. - Gloriosa vitória a nossa. Gloriosa vitória.
INTERLÚDIO
Minha querida Christine, se me permite tomar essa liberdade - escreveu Stephen Maturin, - não faz muito tempo obtivemos uma esplêndida vitória em Valdivia, quando
o capitão Aubrey e seus marinheiros, junto ao general O’Higgins e seus soldados, destruiram a fortaleza principal, expulsaram os monárquicos de Valdivia, asseguraram
uma quantidade importante de apetrechos navais e o tesouro, e regressaram vitoriosos para Valparaíso, onde o celebraram com toda a pompa, com fogos de artifícios,
música, três corridas de touros distintas e, certamente, baile. Dos nossos, ninguém perdeu a vida. Os escassos feridos se recuperam bem, e todos os marinheiros estão
que não cabem de gozo, pelo menos em parte pelas riquezas que estão por receber quando se reparta o butim do tesouro. Eu comparto sua alegria, pois a felicidade
é muito contagiosa: celebrei a ocasião presenteando-me com uma esmeralda. Como já saberá, meu querido amigo e colega Amos Jacob provém de uma família de comerciantes
de jóias preciosas. Ele as conhece e as ama, e como muito em sua profissão tem contatos e conhecidos em Golconda e em outros lugares onde se encontram as gemas,
incluído em Muso, nos Andes, perto daqui, lugar reconhecido por suas esmeraldas. Eu lhe pedi que me procurasse um exemplar, e aqui está.
Virou a oblonga jóia na palma da mão, era de um precioso colorido verde.
Eu a envolverei em um pano de joalheiro, a adjuntarei a um pacote que remeto para sir Joseph, e que esta tarde partirá rumo à Inglaterra. Peço que a aceite como
minúscula mostra de meu apreço, em agradecimento pela Ardea Goliath.
Parou chegado a este ponto, sacudiu a cabeça, e caminhou de um lado para outro do aposento, consultando a hora em seu relógio. Para cima e para baixo, de um lado
para o outro. Os atrasos não eram própios de Jack Aubrey e, ainda que o corredor índio não tinha planejado sair antes da alvorada, estava intranqüilo.
Voltou a sentar-se, e a pôr sua atenção na carta.
Mas agora, minha querida, lamento dizer que nossa alegria se viu truncada. A vitória em Valdivia, depois da primeira explosão de júbilo generalizado, deu passagem
a alguns ciúmes e a um ressentimento crescentes. A vitória se considera como um mal crescente, sobretudo por ter sido dos ingleses e de O’Higgins, os primeiros por
serem inimigos tradicionais dos espanhóis (e republicanos ou monárquicos, a grande maioria dos chilenos é basicamente de espanhóis), quer seja por achar-nos bucaneiros
ou como Drake, e inimigos nacionais em tempos de guerra. O segundo, quer dizer O’Higgins, porque simplesmente não agrada, inclusive pode-se dizer que muitos o detestam,
sobretudo os cabecilhas das diversas juntas; isto se deve a que desejam freiar suas pretenções, o respeito que sente pela lei e a ordem, e a sua oposição à presença
de uma Igreja dominante. Até certo ponto, este ressentimento une as juntas, ainda que não sei até que ponto porque Jacob partiu para obter informação. Agora sabemos
que o tesouro capturado não será repartido, os marinheiros não receberão o seu, e estou a alguns dias presenciando atos violentos nas ruas de Valparaíso. O’Higgins,
seus amigos e a guarda se retiraram para Santiago, talvez mais longe. Não temos notícias. Além do mais, e talvez seja o pior, ocorre que sir David Lindsay, por causa
de uma descortesia, foi desafiado para um duelo por um de seus oficiais. Neste momento se batem no campo da honra.
- Estou perdendo o juízo - murmurou para si, desenhando uma linha perfeita ao redor dos parágrafos da carta somente destinados a sir Joseph, em código. Mas não terminou
a linha, porque naquele momento bateram na porta. - Entre.
- Oh, senhor! - exclamou Hanson, nervoso. - Ele foi ferido. O capitão me enviou: o cirurgião disse que não havia esperança.
E não havia esperança.
- Aorta - disse o médico chileno, assinalando o escuro charco que se estendia debaixo do cadáver de Lindsay.
- Não há esperança? - perguntou Jack, e quando viu que Stephen negava com a cabeça, acrescentou: - Senhor Hanson, volte correndo ao barco, e diga ao senhor Harding
que gostaria de dispor de quatro homens fortes e uma maca para transportar o cadáver de sir David. E um lençol para cobri-lo. - E a Stephen: - O sepultaremos à maneira
da armada. À maneira a que está acostumado.
Isto causou certa inquietação entre as amizades chilenas de Lindsay. Seu oponente e os segundos, além de Jack, tinham desaparecido.
- O prefeito do porto terá que ver o cadáver e aprovar o enterro - um deles disse a Stephen.
- É o costume - replicou Stephen com ênfase na última palavra. - Um antigo costume do mar. - Aquela palavra tinha tal peso para os espanhóis, que cessaram os burburinhos.
Permaneceram imóveis até que chegou a maca do porto. Depois de depositá-lo na maca e cobri-lo com um lençol, os soldados e marinheiros cumprimentaram ao modo militar,
e os poucos civis presentes se descobriram. Um deles, situado perto de Stephen, murmurou que sem dúvida isso que iam fazer ofenderia muito ao prefeito.
Jack ordenou a Harding largar amarras e levar o barco longe do cais, a vinte braças de água. Ali, quando tinha recolhido todos os objetos pessoais de Lindsay que
pretendia enviar para sua família, pediu para o veleiro e fez trazer duas balas rasas. Uma vez amortalhado à maneira da armada, Jack sepultou Lindsay na presença
de toda a tripulação, com as honras e com a cerimônia devida a seu antigo cargo, sem esquecer de pronunciar as palavras rituais ao jogá-lo pela borda.
A Surprise retirou as amostras formais de dor, voltou ao porto e a seu ancoradouro habitual.
- Poderia sair daqui com qualquer vento - disse em particular a Stephen. - Já vi o bastante para sentir-me intranqüilo, e não me resta a menor dúvida de que você
viu muito mais.
- Sim - admitiu Stephen. - Estou esperando que Jacob volte com informação completa das juntas do sul, para decidir se devo recomendar de maneira oficial que se retire
da empresa política por completo, para dedicar-se à puramente hidrográfica. O arquipélago Chonos é praticamente desconhecido. - "E quem sabe quantas maravilhas quanto
à flora e fauna poderia revelar-nos", acrescentou para si mesmo.
Estavam na cabine, tomando um chá.
- Stephen - disse Jack depois de um longo silêncio. - Talvez julgue sentimental o que vou dizer, mas alguns desses jovens aos quais estive ensinando me demonstram
diariamente que estão preparados para converter-se em marinheiros de primeira. Por esta razão, entre outras, estive dando voltas e mais voltas em um plano. Como
sabe, só entreguei como um idiota o tesouro de Valdivia às autoridades mas pudemos aproveitar os apetrechos navais para nosso própio benefício, e agora nossa querida
Surprise tem um aparelho praticamente novo, a santa-bárbara transborda de pólvora, e o paiol de bala. Os cabos pequenos foram substituídos, temos lona para vestir
um barco de linha, e provisões de primeira. Meu plano consiste em atacar El Callao e aprisionar a Esmeralda. Propus isso a Lindsay, mas ele me disse que era impossível.
Os fortes da zona nos afundariam antes de jogarmos os arpéus. Disse também que isso de aferrar uma fragata de cinqüenta canhões não era tarefa para uma de vinte
e oito, por mais que Asp a acompanhasse. Ele se opôs ao plano, disse que era uma estupidez, o que me surpreendeu, pois sabia das vezes que esteve em combate e conhecia
sua fama de temerário. Não direi uma só palavra mais a seu respeito, que descanse em paz.
- Que descanse em paz.
- Nada mais... Isso é o que me propus a fazer, Stephen. Gosta de meu plano?
- Querido, eu me saio bem com a cistostomia suprapúbica. Você é o especialista em guerra naval. Para mim sua opinião no primeiro caso não mereceria nenhum respeito.
E a minha para você não deveria merecer mais no segundo. Se isso é o que quer fazer, estou de acordo.
Contudo, o capitão Aubrey seguiu justificandose.
- É verdade que Peru foi uma nação neutra, uma colônia espanhola, mas Peru invadiu repetidamente a república independente do Chile, e se o vice-rei espanhol se sair
bem da próxima vez, a jovem armada chilena (tão promissora e atenciosa) desaparecerá dos mares. Ademais, devo acrescentar que...
- Peço que me perdoe, senhor - disse um guarda-marinha, - mas o senhor Somers deseja que lhe transmita seus respeitos e que lhe informe de que o paquete de Lisboa,
o Isaac Newton, acaba de dobrar o cabo. No convés viu alguém muito parecido ao doutor Jacob, agitando um lenço vermelho.
- Obrigado, senhor Glover. Por favor, diga-lhe que desejaria içar um sinal, conforme convidamos a embarcação para atracar-se.
Jack seguiu falando das vantagens de um ataque surpresa, da quase segura superior habilidade artilheira e dedicação ao dever, até que finalmente ambos escutaram
o suave golpe do paquete contra a defesa, seguido dos habituais gritos de quem jogava e recolhia cabos.
- Santo Deus, senhor - exclamou Jacob, dirigindo-se a Jack. - O que foi armar! O fato de sepultar sir David no mar, que descanse em paz, antes de se realizar um
levantamento do cadáver é ilegal, e proporcionou ao prefeito a desculpa que necessitava: o barco será confiscado ao anoitecer. Sabem disso até em Villanueva, onde
a junta local estava repartindo armas.
- Ele deu a ordem de aprisionar o barco?
- Acredito que sim.
Jack fez soar o sino.
- Vá buscar o senhor Harding. - Depois, disse ao tenente: - Senhor Harding, não haverá permissões em terra esta tarde, e não se permitirá a nenhum bote aproximar-se
ao barco. Vou subir a bordo do paquete.
- Porém, senhor - protestou Jacob, - vejo que me precipitei: devia ter-lhe dito antes que o coronel Valdés marcha com suas tropas de Concepção, e que despacharam
mensageiros para o diretor supremo.
- Mesmo assim, devo levar a cabo meu plano - disse Jack. Abandonou Jacob e Stephen na cabine, dirigiu-se ao convés e saltou pelo costado para o paquete. - Cavalheiros
- disse aos membros da Royal Society, - permitem-me roubar-lhes cinco minutos de seu tempo?
Todos eles murmuraram que sim, e Austin Dobson o convidou a acomodar-se convés abaixo.
- Estou no certo quando suponho que os senhores se dirigem ao Panamá?
- Sim, de fato - respondeu Dobson. - Sclater e Bewick - disse assinalando os ornitólogos com uma inclinação de cabeça - desejam cruzar o istmo o quanto antes, pois
ali existe a possibilidade de encontrar três barcos que partem para a Inglaterra na terceira semana do mês, e gostariam de desfrutar de alguns dias para estudar
as andorinhas do mar do Pacífico.
- Em tal caso, queridos colegas - disse Jack, - poderiam, se quiserem, fazer um grande favor para Maturin e para mim. Estão a par, suponho, da delicada situação
que atravessa este país, e da possibilidade de que O’Higgins seja derrubado, para não mencionar o caos que resultaria e a invasão peruana.
Todos os presentes consentiram.
- Juntas pérfidas - murmurou um dos entomólogos.
- Neste momento a situação está por um fio. Estou disposto a navegar para El Callao esta noite, com a intenção de realizar uma incursão noturna e apresar a Esmeralda,
fragata peruana de cinqüenta canhões, levá-la de volta a Valparaíso e dotá-la de homens escolhidos pertencentes à armada chilena, adestrados pelo infeliz Lindsay
e por mim. Esta ação inclinaria a balança a favor dos republicanos, inclusive antes de que O’Higgins e suas tropas regressem de Concepção.
- Certamente - disse um astrônomo, - ainda que, meu querido senhor e colega, somos homens de ciência, não de armas.
- Precisamente - disse o capitão Aubrey, - mas em qualidade de cientistas são os senhores bons observadores. Logo descobrirão se a batalha está ganha ou perdida,
e a primeira de minhas duas petições é que informem do resultado, por qualquer meio que seja possível, ao Almirantado, e que o façam o quanto antes. Como cientistas
entenderão a importância de minha segunda petição: nosso irmão, Stephen Maturin, abandonou suas coleções em nossa pensão de Valparaíso. Tanto eu como meu barco despertamos
a ira das autoridades locais, de modo que prefiro impedi-lo de desembarcar. Os senhores contam com o amparo da Royal Society de modo que poderão fazê-lo sem temor.
Desfrutem de um agradável jantar no Antiga Sevilha, recolham seus pertences, e reunam-se a meia-noite com a Surprise e seu navio de apetrechos, a escuna Ringle,
a uma milha frente ao porto.
CAPÍTULO 10
Era uma preciosa manhã de novembro, ainda que uma manhã assim, a uns doze graus ao sul do Equador, pouco tenha a ver com fogueiras ou Guy Fawkes. O favorável vento
de joanetes havia limpado a pouca bruma que o céu tivesse podido herdar da noite. Era um dia luminoso, com um céu azul intenso de horizonte a horizonte, e um ar
transparente que permitia ver a considerável distância. Todos aqueles que pudessem proporcionar-se um sextante, quadrante ou um simples pau calculariam a altura
exata do sol, cujos raios podiam fazer do calor um problema, ainda que já tinham à mão mandíbula os toldos que diminuiriam a intensidade. Enquanto o contramestre
e seus ajudantes colocavam os toldos de proa a popa, Jack Aubrey permanecia inclinado no elegante coroamento da Surprise, olhando para o leste da esteira. Aproximava-se
deles o bote da embarcação inscrita com o nome de Isaac Newton, ainda que todos se referiam a ela como o paquete de Lisboa, pelo simples motivo de que esta fora
sua ocupação antes de que o dono anterior (tão desafortunado nas cartas como era no amor) a vendesse a um tacanho entomólogo que havia herdado uma prodigiosa fortuna.
Este entomólogo presenteou a si mesmo e a alguns colegas da Royal Society com um viagem incrível. Um dos que viajava com ele, a maior autoridade européia no que
se referia ao rato-de-água, também estava arrumado, de modo que por ser domingo se dispunha a subir a bordo da fragata para oficiar e, talvez, ler um sermão.
- Não terá uma decepção - disse o capitão depois de dar uma espiada para o alto, para a nívea lona que contrastava com as vergas, brilhantes com o betume do senhor
Harding. As velas ondeavam, dado que a Surprise tinha folgado as escotas para que o bote não tivesse dificuldade em atracar-se.
A pessoa à que havia dirigido este comentário não respondeu mais que com um mal-educado grunhido, fechou a luneta com um estalido, e disse:
- É somente um pássaro extraviado. Creio que aquelas curiosas manchas se devem ao excremento de outro pássaro.
Jack esteve a ponto de oferecer uma de suas respostas engenhosas, mas antes de que pudesse formulá-la e pronunciá-la, o bote atracou. Era necessário receber o convidado
com a devida cerimônia, conduzi-lo convés abaixo para tomar uma taça de xerez, e deixar que se pusesse a sobrepeliz dobrada que lhe passaram desde o bote. Devido
a que o reverendo senhor Haré havia percorrido tantas milhas no mar, era razoável supor que poderia desejar apreciar as peculiaridades do novo aparelho da Surprise.
Mas Jack podia muito bem ter dedicado seu entusiasmo a uma rato de água, porque Hare era impermeável ao breu, assim como ao corte da vela carangueja, no caso. De
fato, temia que chegasse o momento de ler o sermão, e quando se encontrou convés abaixo engoliu o xerez e observou com certa ânsia a jarra.
Mas quando voltou ao convés e se apresentou ante os marinheiros que constituíam a dotação do barco, recém barbeados todos, limpos, com os oficiais suando muito por
estrem vestidos com o grosso pano do uniforme de gala sob o tórrido sol, o grito conhecido de "Rompam filas os judeus e católicos romanos" lhe consolou. Dirigiu-se
com passo firme, acostumado ao balanço do mar, até a arca grande dos rifles que fazia as vezes de pulpito. Os judeus e os católicos romanos rompiam filas mais que
os diversos tipos de muçulmanos, os cristãos ortodoxos ou os simples e ímpios pagãos. A congregação o observou com gravidade, inclusive com uma ausência total de
expressão em seus rostos. Contudo, melhorou seu humor quando o senhor Hare (aspirante a escritor) começou a ler com certo titubeio o sermão do vizinho, baseado em
um texto de Job:
- Oh, que minhas palavras estivessem escritas, oh, que estivessem impressas em um livro. - Seguiram alguns hinos que lhe eram familiares, em cuja interpretação se
destacaram Poll Skeeping e Maggie Tyler, que conheciam as palavras, e um salmo que o própio Davies O Lerdo cantou com uma assombrosa voz de baixo.
O senhor Hare comeu na cabine do capitão, com o imediato e o cirurgião. Foi uma esplêndida refeição, pois tinham obtido abundante carne e apetrechos em Valparaíso,
além de receber um presente de quarenta porcos de excepcional qualidade. De sua parte, o vinho chileno movia ao excesso. E não é que o pároco Hare necessitasse convencer-se,
pois terminado o sermão sentia um profundo alívio ao não ter cometido erros. De modo que não se pôde dizer que seu estado se devesse ao vinho, pois a culpa era do
rum dos Estados Unidos. Algumas garrafas tinham sobrevivido ao frio e às agitadas águas de Cabo de Hornos. Jack Aubrey não era muito dado à censura, exceto quando
esta se aplicava à escassez de conhecimentos marinheiros, pois era muito consciente de seus própios erros no referente aos excessos com o álcool (em mais de uma
ocasião tiveram que levá-lo em carreta), mas quando chegou o momento de despedir-se, disse que ele e Stephen acompanhariam o convidado para casa, não só para cumprimentar
aos companheiros da Royal Society, como também para ver o paquete e perguntar ao piloto por seu comportamento submetido a diversas combinações de lona conforme os
ventos.
A Surprise pairou para que o Isaac Newton pudesse se aproximar, momento em que os três subiram a bordo do paquete. Os marinheiros da fragata tinham agradecido muito
a presença de um autêntico pároco por muito temporal que esta fosse; era um pregador admirável, e ao sentá-lo no gradeado que fazia as vezes de cadeira na hora de
descer alguém pelo costado, aclamaram a princípio com timidez, depois com certa unidade e intensidade, sobretudo quando a falua vogou em direção ao paquete, onde
os companheiros de Hare, conscientes de sua fraqueza, tinham preparado também o que se conhecia como "a cadeira do contramestre" para subi-lo a bordo.
- Que tipo mais serviçal têm de piloto - disse Jack quando sefoi à cabine de Dobson, terminada a inspeção do Isaac Newton. - respondeu todas minhas perguntas como
um bom marinheiro; além do mais, pelo visto já navegou com amigos meus, duros capitães da Marinha. Também me deu detalhes muito interessantes do estreito de Magalhães,
e me contou que o senhor falou com uma barquía que havia ancorado em El Callao, onde havia outros dois mercantes de bom balanço, um procedente de Boston, o outro
pertencente a uma firma de Liverpool. Pelo visto viu também a Esmeralda, atracada no ancoradouro destinado aos barcos de guerra, o que me leva ao favor que devo
pedir-lhe.
- Será um prazer - disse Dobson.
- Na última hora da tarde, amanhã ou depois, tenho intenção de rumar para El Callao, se o vento e as condições meteorológicas permitirem. Lá apesaremos a Esmeralda.
Entraremos no porto não disfarçados, mas sim camuflados sob o aspecto de um aprazível mercante, realizaremos a abordagem de noite e, se for possível, tiraremos do
porto. Levarei comigo todos os homens dos quais a Ringle possa prescindir, mas deixarei suficientes a bordo, pairando, frente ao porto, p que possam informar aos
senhores do resultado da empresa. Ele lhes entregarão um relatório escrito, um despacho de guerra que lhe agradeceria muitíssimo pudesse confiar a seus amigos que
partem par a Inglaterra. Lá deverão entregá-lo no Almirantado.
- É claro que o farei, e lhe asseguro que tenho motivos para responder por meus amigos. Cruzaremos o istmo para a costa atlântica em um dia de navegação, e ali encontraremos
não menos que três barcos dispostos a partir rumo a Londres.
- Que Deus lhes dê um bom vento, e a nós uma feliz entrega.
- Amém, amém, amém.
- Porque se pelo menos é um pouco feliz, gostaria que meus superiores dispusessem dela antes de que decidam que barcos comporão a esquadra sul-africana.
A maioria dos barcos dispõem de um ou dois Killick a bordo. Contudo, a história naval não recolhe a nenhum que tivesse uma curiosidade e uma falta de escrúpulos
tão insaciáveis na hora de empregar suas habilidades. Seu objetivo consistia em ser o único de todos seus companheiros a bordo em saber o que as autoridades, sobretudo
o capitão, tinham planejado fazer, e para conseguir o fim justificava os meios. Os meios incluíam, certamente, aproveitar as frestas das portas para ler os lábios
de quem lia para si a correspondência privada. Nesse caso, teve uma merecida decepção, pois era muito supor que aqueles companheiros das cobertas inferiores, um
bando de veteranos marinheiros de navio de guerra, ignorassem o destino das balas de ferro que haviam passado horas polindo para devolver-lhes uma perfeita forma
esférica e, portanto, facilitar que voassem retas.
Na tarde de quarta-feira, a Surprise, que apresentava um aspecto tão similar ao de um barco mercante como poderia ter sem chamar a atenção, entrou em El Callao com
pouca lona. O Isaac Newton havia ficado a oeste, e a Ringle a uma milha da costa, onde aguardaria um sinal, ainda que a maioria de seus marinheiros de primeira se
achavam a bordo da fragata para ajudar a servir os canhões.
Sem pressa, portanto, a embarcação deslizou com a corrente, e o piloto muito jovem aproando para combate conforme era costume na armada.
- Situe-nos em seu costado de bombordo, senhor Hanson - ordenou Jack. - E apresente os canhões em bateria.
A guarda de bombordo da Surprise preparava os botes para jogá-los ao mar. Iam equipados com alfanjes, pistolas e, em ocasiões, por exemplo no caso de Davies, com
um temível machado de abordagem. A fragata realizou uma virada para a esquerda. Os cabos dos canhões de estibordo os mantiveram apontados com as cunhas de pontaria
até que Jack, ao considerar que tanto a distância como o ângulo de tiro eram os adequados, decidiu dar a ordem.
- De proa a popa, fogo a discrição! - E, a Hanson: - velacho e gávea maior em pairo.
Depois das três primeiras mortíferas descargas, dispararam outra com uma ferocidade e uma velocidade sem par. A princípio, a Esmeralda devolveu quase cada bombardeio.
Mas então, antes de efetuar a seguinte, Jack deu ordens de dar vento às velas e virar o leme, de modo que as dotações que ainda não haviam disparado se enfrentaram
ao mais duro do combate. A cadência de fogo dos peruanos cedeu, o que não era de estranhar devido a que perdera quatro de seus canhões de doze libras.
Guardou silêncio por um espaço de dois minutos. Um acidente no paiol da pólvora impediria carregar de novo os canhões. Quase no início desta arrepiante pausa, Jack
chamu os homens para a abordagem, e saltou sobre sua própia falua. Os botes de bombordo dobraram a popa, dirigiram-se ao costado do peruano, e o grupo de Jack subiu
ao convés inimigo, com Davies o Lerdo à cabeça lançando o horripilante grito que o caracterizava.
Os peruanos se viram atacados de proa e popa, e ainda que recompuseram as filas uma e outra vez não estavam acostumados a esse tipo de combate, ao contrário dos
da Surprise. A prática faz o mestre. Pouco a pouco, a maior parte dos marinheiros da Esmeralda se viram forçados a refugiar-se convés abaixo. Escurecia rapidamente
quando, de repente, abriu fogo a até o momento silenciosa artilharia da fortaleza, encarregada de proteger o porto. Seus canhões pesados desprenderam línguas de
fogo.
Fazia pouco que o uniforme de Jack havia chamado a atenção dos oficiais peruanos. Contudo, seu olhar, o olhar do predador, havia reparado nas luzes de coloridas
içadas nos topes dos dois barcos mercantes que havia no porto: luzes de posição, com um significado combinado de antemão.
Retirou-se da refrega e gritou para seu timoneiro.
- Reúna quantos da falua possa, subam em um bote e remem de volta para o barco como se lhes perseguisse o diabo. Diga ao senhor Whewell de minha parte que ice imediatamente
lanternas coloridas e que vire o barco. Rápido. - Voltou a adentrar-se na densa multidão que combatia com denodo, sobretudo ao redor da escada do castelinho. Uma
bala de pistola alcertou seu ombro esquerdo. Foi umtiro de curta distância, e a força da bala lhe atirou no chão. Um homem de pele morena com um sorriso diabólico
atravessou sua coxa limpamente com a lâmina de uma espada.
Um instante depois, Rosto Moreno caiu morto por um golpe de Davies o Lerdo, um golpe assustador. O jovem Hanson, incólume até o momento, aproximou-se de Jack e tirou
a lâmina de sua coxa. Ambos o arrastaram até o lado castigado pelos canhões da fragata. Uma vez ali, ainda que pelo momento fosse incapaz de se mover, comprovou
com satisfação que os artilheiros das baterias costeiras estavam confusos e disparavam em qualquer coisa. Também viu com alívio, mas não muito surpreso, que os únicos
peruanos que não se refugiaram convés abaixo se rendiam naquele momento. Chamou um grupo de marinheiros da Ringle que conhecia bem, e lhes ordenou desamarrar a embarcação.
Observaram-no com o olhar meio alienado própio de quem acaba de lutar por sua vida.
- Senhor Lewis - disse Jack a um deles, - disponha desses homens para desamarrar a embarcação. E se me emprestar um lenço grande ou a gravata-borboleta para que
eu faça um torniquete, eu lhe agradecerei por toda a vida.
Alguns dos artilheiros que os fustigavam com os canhões da bateria redobraram o fogo. Por sorte, não atinaram muito, e de fato alguns concentraram seus esforços
nos barcos de Boston e Liverpool. Contudo, se realmente queria apresar a Esmeralda, teria que se apressar. Ajudado pelo marinheiro chamado Simón, levantou-se e caminhou
com dificuldade para a amura de estibordo. Ali comprovou que tinham atracado a fragata de forma peculiar ao cais, um só cabo, um cabo grosso.
- Gente a desrarrizar gáveas! - ordenou. Inclinou-se para proa e viu ao jovem Hanson, que com uma cimitarra de absurda curva, mas muito afiada, estava disposto a
cortar o grosso cabo, ajudado por Davies, que o esticou ao atravessá-lo com a lança. Deu um corte, depois outro, encheu de ar os pulmões e deu um terceiro golpe
com todas suas forças. O cabo se partiu, e o barco, a mercê da corrente, afastou-se livre do cais.
Jack se sentiu inundado de uma grande alegria, e inclusive de certa força.
- Desrarrizem as gáveas! - ordenou. - Todos aí, com alma! - Depois, já rouco, acrescentou: - Obrigado, Horatio, o senhor apareceu nahora certa. Agora tire-nos daqui,
pode ser?
E os tirou dali, apesar do barco ter sido atingido em uma ou duas ocasiões, mas sem receber danos consideráveis, levando-lhes longe, para fora do cais e para a escuridão.
Jack sentiu uma agradável sensação de paz que se impôs à dor das feridas, dor que não desapareceu até perder a consciência justo quando o desciam para a coberta
dos alojamentos de seu própio barco.
Não lhe despertou o apito que chamava ao convés a todos os homens, justo antes de começar a segunda guarda, nem os gritos dos segundos do contramestre:
- Guarda de estibordo! A polir e enxugar. Com brio aí! Guarda de estibordo!
Nem tampouco lhe despertou o temível som das oito badaladas, nem mesmo o barulho da limpeza das cobertas e o movimento dos baldes de água, pedras arenito e esfregões.
O que o despertou do incomensurável abismo do sono foi a voz de Stephen, que lhe comentava em sussurros o estado de seu ombro.
- A bala atingiu a fivela do talim, vê? Efetuou uma pressão enorme no metal e na pele, mas deixou o osso intacto.
- Vejo a coroa tatuada na pele. Sim, ah. Pensa na sorte que teve. Nem mesmo o corte da coxa afetou nenhuma artéria importante - comentou Jacob.
- Bom dia, cavalheiros - disse Jack, esporeado pela imensa felicidade que emanava de sua recuperada consciência. - Temos a Esmeralda a sotavento? Nós nos afastamos
da costa?
Um pouco assombrados, responderam que a fragata navegava a sotavento, e que perdera de vista a costa.
- Que alegria - disse Jack. Ele sem dúvida parecia muito alegre, e assim o manifestou com uma riso rouco. - Por favor, dei-me algo de beber. Tenho uma sede terrível.
- Stephen aproximou uma xícara de seus lábios e Jack bebeu como um cavalo sedento.
Observaram-no com certa desaprovação.
- É inexplicável - disse Jacob a Stephen, em um aparte, depois de que ambos lhe tomaram o pulso, - claro que sempre foi um homem de raça. - E em voz mais alta: -
Felicidades pela vitória, senhor. Parabéns.
- Que Deus lhe bendiga, meu amigo - disse Stephen, apertando suavemente sua mão. - Uma grande façanha, sim, senhor. Diga-me, Jack, sente muita dor?
- Não se sigo deitado; tampouco me dói como para impedir-me conciliar o sono. Meu Deus, quanto eu dormi. Agora me dói o ombro, e sinto que me aperta a bandagem da
coxa. Graças a Deus; não me admira, tendo em conta a estocada que me deram. Diga-me, posso comer algo? Um mingau, ainda que seja, mas algo que me ajude a pôr-me
de pé. Tenho que escrever uma carta muito importante.
- Comer? - perguntaram alarmados em uníssono.
- Um mingau não dará nem para começar - disse contudo Stephen, que fazia anos conhecia a férrea constituição de Jack, - mas um ovo batido com leite lhe dará energias.
- Meu Deus, como me caiu bem - disse Jack após alguns minutos. - Killick, vá avisar ao senhor Harding.
- Está a bordo da presa, senhor - replicou Killick, exultante. - Mas o avisaremos.
- É isso que farei. Stephen, levante-me, por favor. Não posso ditar uma carta oficial deitado de costas. Já me lavou o rosto, vejo. Obrigado. Killick, ei, Killick!
Chame também o senhor Adams. - E quando o escrevente e secretário se apresentou, Jack acrescentou: - Senhor Adams, bom dia. Veja, quero escrever uma carta oficial,
de modo que necessitará de um bom papel, excelentes penas e a apropiada tinta negra. Ah, senhor Harding, aqui está o senhor.
- Eu me retiro - disse Jacob. - De novo, senhor, muitas, muitas felicidades.
- Muito agradecido. Não, fique, Stephen. Senhor Harding, bom dia. Como navega a Esmeralda?
- Como um cisne, senhor. Com a mesma naturalidade.
- Não recebeu muitos danos?
- Vejamos, não nego que a obra morta do costado de bombordo tenha saído prejudicada. Uma bala rasa partiu limpamente o mastro macho na altura do cesto da gávea;
além disso, tive que guardar três canhões na bodega. Saiba também que não há quem entre na parte de proa da santa-bárbara. Mas navega estanque, não sofreu danos
abaixo da linha de flutuação e com duplos rizes nas maiores e nas gáveas se arruma bastante bem.
- Alegra-me muito ouvir isso. Agora devo redigir uma carta oficial, de modo que me agradaria dispor do número de baixas sofridas por ambos os lados, assim como dos
outros detalhes. Vejo que o senhor não tem inconveniente em governá-la até Valparaíso.
- Oh, Deus, não. E para a Inglaterra, desde quando a preparemos para a travessia. Temo não ter muito boas notícias a respeito de suas baixas, devido à fodi... à
horrível explosão que sofreu a santa-bárbara. A maioria dos oficiais sobreviveram, ainda que estejam feridos, e agradecem muito as atenções do doutor Jacob. O mesmo
devo dizer dos marinheiros. O contramestre e o segundo do carpinteiro (o carpinteiro titular morreu) fizeram todo o possível pelo pau da mezena, que presumivelmente
agüentará até que entre no dique seco. Nós tivemos poucas baixas, ainda que temo que ninguém nos livrará de lamentar a perda de alguns bons marinheiros. Supus que
a necessitaria, senhor, de modo que fiz uma lista exata do sucedido ao nosso lado, e alguns cálculos aproximados do inimigo, dados que figuram aí, sob o nome de
seu capitão.
- Muito obrigado, senhor Harding. Quando seja possível enviarei minha carta ao Panamá a bordo do paquete, e, dali, a Londres. Caso lhe ocorra algum nome que o senhor
quisesse que destacasse no despacho de guerra?
- Bem, senhor, Linklatter, da brigada do carpinteiro, que nos aferrou a seu costado e perdeu por isso o braço. Também ao senhor Hanson, certamente, que cuidou do
senhor quando lhe dispararam da escada do castelinho, e que demonstrou ser capaz com uma espada, ainda que me atreveria a dizer que o senhor não o terá esquecido.
- Claro que não, ainda que naquele momento estava aturdido. Mencionarei a Linklatter. Obrigado, senhor Harding. E a Ringle, que posição ocupa?
- Está a meia milha pela alheta de bombordo, capitão.
- E o paquete?
- A outra meia milha além da escuna.
- Não poderia pedir mais. - E quando Harding se retirou, acrescentou: - Stephen, não gostaria de perder nem um instante passando esta carta a limpo, de modo que
a ditarei lentamente. Se escutar algo que chame sua atenção, porque não esteja gramaticalmente correto ou por ser vulgar, por favor, levante a mão e o consertaremos
antes de que Adams tenha tempo de escrevê-lo.
- Irmão - disse Stephen depois de titubear um instante, - já pensou sobre as peculiares dificuldades que esta carta explica?
- Oh, não é a primeira que escrevo nestas condições, já sabe. Querido, com anjos guardiães a meu redor como se fossem as torres do xadrez, escrevi em ocasiões até
uma dúzia de cartas, algumas publicadas no Register. São difíceis, não nego, e existem certas fórmulas que se deve aprender. Geralmente começo com a abertura de
rigor, o "Senhor (ou milorde, conforme se aplique), não é senão com a maior satisfação possível que tenho a honra de contar-lhe, para informação dos Milores comissionados
do Almirantado, que..." E etcétera. Sem esquecer a posição, latitude e longitude, e outros.
- Querido - disse Stephen depois de alguns instantes de silêncio. - Esquece que este assunto não corresponde à junta. Você, ao comando da Surprise, anteriormente
embarcação da armada inglesa, a trouxe a este lugar com a desculpa de uma viagem hidrográfica com a condição acrescentada, mas não expressa, de que colabore na medida
do possível com a causa independentista e republicana chilena para formar uma armada. É verdade que algumas das muitas juntas nomearam a Lindsay para o posto, mas
desde sua morte acho que se dá por certo que você comanda todo o contingente naval que possa restar. Estou convencido de que é aos regentes desta nação a quem deveria
escrever. Para dom Bernardo O’Higgins, ao diretor supremo ou a seu sucessor. Afinal de contas, como eu o entendo, tinha intenção de levar a Esmeralda de volta a
Valparaíso. A posse de um barco de guerra tão importante, junto aos que os chilenos possuam neste momento, garante totalmente a independência de seu país. Tudo dependia
da superioridade naval, e agora é nossa. - Com uma tristeza infinita viu como Jack ia envelhecendo ante seus olhos. Não era a palidez que ia em aumento, pois não
poderia ficar mais pálido, mas a alegria de viver é que havia desaparecido de seu rosto. Não achou que Jack Aubrey pudesse ter pior aspecto aos setenta anos. - Não
se entristeça, irmão - seguiu Stephen. - A essência do assunto é imutável. Somente o aspecto parece diferente. Tudo isto ocorreu de acordo com as intenções do Ministério,
intenções que não podiam anunciar-se publicamente, e menos ainda admitir-se por escrito. Creia-me, Jack, o Almirantado ficará encantado com esta vitória, tanto como
se a tivesse obtido contra um inimigo declarado. Não ponho em dúvida que atenderão suas recomendações, e também estou convencido de que o diretor supremo, quando
tenha conhecimento do feliz desenlace, afirmará ante quem quer que seja que não tomou mais iniciativa que a que lhe deram em uma situação da máxima urgência. Peru,
recorde, estava a ponto de invadir este país. Querido Jack, sei destas coisas. Deixe-me escrever uma carta particular a sir Joseph, mandá-la por meio de nossos amigos
do paquete, e depois uma nota em castelhano, na qual anunciarei a vitória chilena que confirma a independência da nação e que enviarei a São Martim e a O’Higgins,
agradecendo a eles e a seus colegas as diretrizes recebidas e seu apoio incondicional. Esta, quando a tenha firmado, chegará antes que nós a Valparaíso.
Jack sorriu, não foi um sorriso forçado, e tampouco tímido, ainda que atraiçoasse um imenso cansaço.
- Peço que me perdoe, Stephen - disse. - Estou aturdido e esqueci minha posição. Agradeceria muito que escrevesse a ambos. E na carta a sir Joseph, se considerar
apropriado, mencione a conduta de Horatio. Afinal de contas, desamarrou a Esmeralda e a tirou do porto sob um fogo cerrado.
- Assim o farei. Minha carta a Valparaíso viajará a bordo da Ringle a toda velocidade porque, se não me equivoco, nós e a presa manteremos esta aprazível marcha.
Mas Jack, querido, você perdeu uma grande quantidade de sangue. Sei que está muito triste, muito mais do que corresponde a esta situação, e minha experiência e conhecimentos
profissionais me dizem que deveria tomar todo o caldo de frango que deseje, e também o preparado que elaborarei para você enquanto esquentam o caldo.
Durante todo aquele tempo ouviu-se na Surprise o leque de ruídos que faziam patente a intenção de devolvê-la a um estado de imaculada perfeição, entre os quais talvez
o mais evidente fosse o produzido pelas porradas dos carpinteiros, estrondo contínuo ao longo do lado que havia entrado em combate. Mas havia um leque, um leque
de uma variedade surpreendente, pois mais da metade da tripulação do barco havia transbordado para a presa, atingida não só pela própia Surprise, como também pelos
canhões de trinta e seis libras da bateria costeira. De modo que Stephen tardou um pouco em encontrar Killick, que fumava escondido sentado no reservado. Quando,
depois repreendê-lo, Stephen tinha solicitado a preparação do caldo, Jacob e ele puseram mãos à obra para redigir e cifrar aquela carta tão difícil.
Em um ponto especialmente crítico do trabalho bateram à porta, e ambos estiveram a ponto de perder a concentração.
- Peço que me perdoem - disse Killick, com timidez para a ocasião, ainda que havia comparecido respaldado por Maggie Tyler. - Poll disse que o caldo está pronto.
- Magnífico - disse Stephen com um olhar furioso. - Maggie, quando esfriar, o dê ao capitão até que não aguente mais nenhuma colherada. Não o obrigue a tomar tudo,
ouviu?
- Sim, senhor - sussurrou Maggie, espantada.
- E deve também tomar este preparado - disse segurando no alto uma ampola púrpura. - Três colheradas, e conte até sessenta entre a primeira e a segunda.
- Até sessenta, senhor. Tudo o que possa tomar, e depois o preparado. Três colheradas deste, e contar até sessenta entre as doses. - jamais havia visto o doutor
com uma expressão tão severa como a que mostrava agora. Flexionou duas vezes os joelhos e se retirou, pisando em Killick.
Outra hora de intensa concentração. Pois ambos utilizavam uma tinta particular que não borrava nem alterava nem empapava, perderam outra hora enquanto a iam passando.
Finalmente, os dois ficaram satisfeitos e nenhum deles expôs queixas do trabalho do companheiro (o que, quando ao cifrado concerne, dizia muito de sua habilidade).
Agradecido, Stephen selou as delgadas folhas e as levou primeiro à cabine para que Jack assinasse ("Não sabia nem o que estava assinando, o pobre diabo", pensou
Stephen) e, depois, foi ao convés.
- Senhor Whewell - disse ao oficial de guarda. - Se for possível gostaria de subir a bordo do Isaac Newton, o paquete de Lisboa. Não creio que valha a pena molestar
à Ringle, sobretudo tendo em conta que o capitão deseja que esta rume para Valparaíso, coberta de toda a lona possível.
- Ah, senhor, jogaremos na água o cúter azul em um instante. É a embarcação auxiliar que mais anda. Senhor Hanson, o cúter azul, se é tão amável. Doutor, permita-me
perguntar-lhe como se encontra o capitão. A gente está intranqüila.
- Não acho que tenham nenhum motivo para isso. Ontem recebeu uma boa, verdade, sobretudo na cabeça e no ombro, e perdeu muito sangue. Hoje comeu com apetite, e acredito
que agora esteja dormindo. Ou logo o fará.
- Graças a Deus - disse Whewell. Vários dos homens que se encontravam perto consentiram satisfeitos.
Mesmo antes de ter começado a considerar-se parte da armada (e isso, devido a estranhas mas amplas áreas de incompetência física, mental e espiritual fora um período
muito longo), inclusive antes de aceitar uma vida tão gregária como a da abelha, Stephen Maturin tinha sentido um grande respeito pela armada e uma espécie de incompreensível
simpatia pelos marinheiros, sobretudo quando estes se encontravam a bordo de suas própias embarcações. Os barcos, extraordinárias e profundas tocas, eram em ocasiões
tão bonitos como incômodos, mas jamais se sentira tão impressionado como naquele momento, quando um barco de guerra ferido depois do combate celebrado apenas um
dia antes jogou ao mar um cúter imaculado sem nenhum esforço por parte do oficial ao comando além de pronunciar três palavras, sublinhadas pelo contramestre com
duas notas do apito. Enganchou-se um pau na carlinga, e um garoto percorreu o costado para ajudar-lhe a embarcar e a sentar-se na bancada de popa, a acolchoada bancada
de popa.
- Aonde vamos, senhor? - perguntou o timoneiro.
- Ao paquete de Lisboa. Mas diga-me, como está seu William?
- Verá, senhor, levou a pior parte, mas o doutor Jacob diz que conservará a perna. Cuidado com a cabeça, senhor, que vamos mudar de bordo.
O piloto do Isaac Newton alterou o rumo para fechar sobre o cúter; após alguns minutos, Stephen subiu a bordo, incapaz de descolar a mão do peito, onde havia guardado
as cartas que tanto lhe custara escrever, e o fez cobrindo de um salto de rã o vazio que separava o cúter do paquete. Por fim esteve a salvo, mas ofegou alguns segundos
enquanto estendia o pacote para Dobson, seu velho amigo e, por ser entomólogo, conhecido de sir Joseph Blaine. Ansiava vê-los partir, sobretudo a Sclater e a seu
amigo, que era quem cruzariam o istmo para pegar um barco em Chagres, na costa atlântica; contudo, agradeceu as felicitações de todos eles, e ele lhes compensou
com uma breve descrição do combate, uma versão particular, certamente, a versão de um cirurgião cujo posto ficava na coberta dos alojamentos.
Ao voltar para a fragata, Stephen foi ver os feridos. Jack, certamente, seguia adormecido, e seguiria dormindo um bom momento se o heléboro conservava suas virtudes.
Seu rosto era o importante, pois tinha recuperado parte de sua jovialidade e alegria: pelo menos já não parecia ferido de morte, e seu ombro, apesar da horrível
contusão, não mostrava indício algum de estar infectado; tampouco sua perna, menos inchada. Stephen lembrou em uma ocasião ter elogiado a capacidade de recuperação
do capitão Aubrey, comparando-a com a de um cachorro jovem. Mas houve algo indefinido, talvez o efeito de alguma superstição marítima, que o empurrou a pôr de lado
tais pensamentos. Entrou apressadamente na enfermaria e pediu a opinião de Jacob, Poll e Maggie, que em geral foi satisfatória. Depois se dirigiu à cabine, onde
começou a redigir com grande entusiasmo e convicção a carta que remeteria para as autoridades chilenas.
- Uma carta esplêndida, querido colega - opinou Jacob. - Ainda que poderia sugerir alguma mudança, creia-me se lhe digo que não o faria, e é porque resumiu a situação
de forma admirável. Insistiu na iminência da invasão peruana, a urgência da petição do diretor supremo e o apoio incondicional dos conselheiros políticos. Porém,
ainda que pudesse sugerir alguma mudança, digo, não o faria, porque sei que deseja despachar imediatamente a Ringle para Valparaíso, e qualquer esforço que tenha
que fazer para passá-la a limpo, digamos que para mudar um simples subjuntivo, irritaria seu ânimo até um ponto intolerável. Lacremos a carta, remetamos-na a São
Martim, e a enviemos sem perder um minuto.
- Agradeço sua consideração, Amos - disse Stephen, apertando sua mão. - Esquente a barra de lacre, por favor. - Após alguns minutos, disse: - Senhor Harding, o capitão
segue adormecido. Em seu estado, dormir, um descanso em silêncio e rodeado de tranqüilidade, é muito importante, e o último que desejaria é importuná-lo. Apesar
disso, as notícias da vitória devem chegar a Valparaíso assim que seja possível, e estou disposto a aceitar toda a responsabilidade por pedir ao senhor que confie
ao senhor Reade a carta dirigida para as autoridades chilenas, e que lhe ordene entregá-la sem dilação.
- Dou por sentado que o capitão estaria de acordo.
- Sim, senhor.
- Em tal caso, içarei imediatamente o número de identificação da Ringle.
Foi uma alegria ver a escuna aproximar-se com rapidez, até situar-se a sotavento da Surprise, enquanto o vento entabulado seguia soprando do oés-noroeste. Recolheu
a mensagem, repetiu as ordens e se perdeu ao sul com tal quantidade de lona que, antes de que Stephen abandonasse o convés, seu casco havia sumido sob o horizonte.
A julgar pelo que se contava, em Valparaíso receberam as novas com toda classe de celebrações. Houve música e baile, dia e noite, discursos, mais discursos, brindes
heróicos por parte dos marinheiros da armada Real, e também por alguns índios do interior, além de extensos arrazoados a favor da infidelidade. Contudo, não tardou
em passar o maravilhoso vento do oeste que Jack Aubrey tinha elogiado tão amiúde por ser perfeito para o estreito de Magalhães, e que empurrou a Ringle a tal velocidade
que em ocasiões chegou a roçar os quinze nós de uma guarda a outra. Caiu totalmete. Tentavam dobrar Cabo Angamos quando a presa perdeu o mastro da mezena com cesto
da gávea e tudo, incidente que atrasou muito sua chegada ao porto.
Contudo, chegaram para presenciar ainda as mostras de entusiasmo, uma vintena de discursos oficiais e, certamente, alguns banquetes extraordinários. Foi enquanto
se preparava para um destes, que devia de ser o último antes da despedida de Carrera, que o mau humor de Jack, o mau humor do inválido, chegou a preocupar muito
a Stephen, pois o considerou uma possível prova de uma complicação derivada de alguma de suas feridas. Mostrara-se muito ativo, havia caminhado muito antes do que
Stephen e Amos julgaram adequado, e se dedicara a supervisionar as reparações da Esmeralda, a reconstrução do O’Higgins e do Asp de Lindsay, assim como o reabastecimento
da modesta esquadra composta pelas corvetas, a bordo das quais ele e alguns de seus oficiais adestravam os jovens chilenos mais capacitados, que formavam um grupo
simpático. Nessa ocasião, pretendia levá-los para executar pelo menos uma parte do levantamento de planos do arquipélago Chonos, ainda que isso dependia de como
saíssem seus planos para a tarde.
Sua atividade fora de fato excessiva, e portanto terminava esgotado, irritável, para não dizer ofuscado. Tinha emagrecido muito, caminhava com uma bengala e estava
mais respondão do que nunca, ou isso diziam os mais veteranos.
- Gostaria que você deixasse de me apertar tanto a chata ferida - disse a Stephen, que lhe vendava de novo a perna antes de subir-lhe os calções. - Está muito branda...
- Calou.
Stephen não fez caso. Havia decidido buscar provas da existência da infecção interna que tanto temia e que vira em outro paciente com uma ferida idêntica. Para não
encontrar nem a confirmação nem a negação, voltou a colocar a venda cruzada com uma assombrosa habilidade.
- Eu não posso fazê-lo - disse Jack quando Stephen terminou. - Eu lhe agradeço muito. Lamento os gritos. É um santo, Stephen... Temo que estes dias necessito toda
a compreensão do mundo. Já notou que qualquer coisa me tira do meu normal, não pelo resultado do combate, talvez porque perdemos muitos bons companheiros e a fragata
recebeu o seu. Mas o que realmente me preocupa, Stephen, é o descontentamento. Os marinheiros não receberam o pagamento, o dinheiro do butim não foi repartido, portanto
não poderão desfrutar da licença em terra. Sabe tão bem como eu o que isso implica. Muito melhor que eu, de fato, por servir aqui abaixo, na enfermaria da coberta
dos alojamentos. Sabem que é perigoso, mas gostam de gastar o que tão merecidamente ganharam, e se não recebem sua parte ficam tontos, tornam-se toscos e, com o
tempo, se amotinam.
- Sei perfeitamente a que se refere.
- Sim, verdade? - perguntou Jack, que o observou fixamente sem fazer mais perguntas. - Sim. Os outros oficiais já presenciaram os primeiros sintomas. Não me preocuparia
se nos encontrássemos em alto mar, mas é provável que passemos um tempo em terra, indo e vindo. O marinheiro em terra se comporta como um asno. Isso para não mencionar
a possibilidade da deserção; além do mais, temos homens muito duros a bordo, além de nossos antigos companheiros. De momento nos sobram os apetrechos, temos para
as próximas semanas, e ordenei a Adams que entregue a todo mundo dois dólares. Contudo, quando os apetrechos terminarem e ficarmos sem dólares...
- Gostaria que não tivesse que ir ao almoço - disse Stephen. - Mas terá cuidado com o vinho, certo?
- Se me vir aceitar meia taça a mais, dá-me um chute.
Não teria sido difícil, pois a prática invariável durante estas cerimônias idênticas umas às outras consistia em sentar o doutor Maturin entre o capitão Aubrey e
o convidado mais importante, para evitar que a ignorância de Jack em matéria de línguas estrangeiras (além de seu paupérrimo francês) pudesse ser um obstáculo.
- Ouço trompetes - disse Jack, e ainda que sempre lhe trataram com todas as honras, nunca tinham tocado os trompetes nem redobrado os tambores, tudo o que, apesar
de seu estado, foi como o eco da alegria.
Receberam aos convidados no grande salão, onde sentaram Jack à direita do presidente da junta, Miguel Carrera, e a Stephen, o mais baixinho deles e sentado também
em uma cadeira mais baixa, entre ambos para facilitar seus trabalhos de intérprete. Jack não chegara a se acostumar ao horário de almoço dos espanhóis, e perdera
o apetite antes de cheirar a sopa. Stephen, que quando pequeno havia comido a essas horas, teve tempo de admirar a paciência de Jack enquanto os pratos se sucediam
lentamente uns a outros na mesa. Falou de vez em quando, por meio de Stephen, geralmente para responder a perguntas relacionadas com os barcos de guerra e a qualidade
dos jovens que adestrava para servir como oficiais da Marinha, que conforme Jack era excelente.
- Excelentíssimo - disse enfaticamente.
Stephen admirava sua constância, os freqüentes sorrisos, ainda que se desalentou quando Jack murmurou discretamente que, depois do esplêndido prato de morangos,
desejava que dissesse ao presidente que o capitão Aubrey solicitava o favor de conversar sozinho com ele, uma vez finalizado o banquete.
- Certamente - respondeu Carrera. - Será uma honra. Por favor, diga ao capitão que tenho muito boas notícias de Santiago. O diretor supremo me informou de que a
concessão de terras foi confirmada por votação unânime. Peço que o felicite de minha parte.
Stephen assim o fez, viu Jack sorrir, inclinar a cabeça para Carrera e pedir que transmitissem ao diretor seu mais sincero agradecimento pelo presente. Apenas traduzidas
estas palavras, o bispo, imitado por todos os presentes, levantou-se para bendizer a mesa e retirar-se.
Os outros aguardaram que se despedissem o bispo e os membros de sua comitiva, inclinando-se ao passar o ancião cavalheiro; então, Carrera conduziu Jack e Stephen
a uma abobadado aposento octogonal, mobiliado com divãs e almofadas mouros, e apetrechada com café e uma jarra cristã de conhaque.
- Alegro-me tanto de ter sido eu o encarregado de dar-lhe a notícia da concessão de terras - disse Carrera quando se sentaram. - Ficam um pouco longe, e seu dono
anterior, certamente um monárquico, as tinha abandonadas. Mas com o rio perto têm grandes possibilidades de irrigação. Afinal de contas, seis mil acres de terra
não são pouca coisa.
Jack escutava a impávida tradução de Stephen com o olhar no piso. Aquilo era uma grosseria surpreendente vindo de um espanhol. Parecia incomodado, e tinha motivos
para estar, pois as terras em questão se encontravam em uma zona árida do país, situada ao sul do rio Bio-Bio, habitada, se é que se podia dizer que era, por índios
araucanos, os mais terríveis e aguerridos de sua raça. As terras eram cobertas de pinheiro chileno, a Araucária.
- Não, claro que não - disse Jack. - Como já disse, gostaria de assegurar-me de que o senhor comunicará ao diretor supremo minha mais sincera gratidão. Contudo,
o que de momento me preocupa são meus homens. O senhor deve saber que não receberam seu pagamento. O tesouro do qual nos apoderamos em Valdivia não foi ainda repartido.
Além disso, os agentes do tribunal de presas afirmam que não se tomará uma decisão a respeito do valor da Esmeralda até o ano que vem. Não, permita-me terminar,
se é tão amável - disse, com a palma da mão levantada; a frieza de sua fúria impressionou tanto a Carrera como a Stephen. - Desde que chegamos a este país - continuou
Jack, - fui dirigido de ministério a secretariado, de responsáveis de altos cargos a amigos influentes, e de volta ao começo. Minha gente não tem um penique no bolso
para tomar parte nas celebrações. Eu lhe direi, senhor, que isto não me satisfaz. O senhor, que tem uma boa posição na República, vai a Santiago. Peço que diga ao
senhor O’Higgins e a seus colegas que isto não me basta. Têm que me pagar, e só uma grande soma satisfará a meus homens e oficiais. Devem receber o que ganharam
no pulso, no final do mês no mais tardar. Entendeu-me, senhor?
- Entendo, senhor - respondeu Carrera, - e permita-me dizer que lamento de verdade a sação atual. Amanhã pela manhã partirei a Santiago, e ali exporei o assunto
ante quem toma as decisões. Contudo, antes de ir queria ter a honra de enviar uma carta a seu barco, a seu distinto barco.
- O senhor é muito amável, senhor - disse Jack, levantando-se com a ajuda do bastão, - agora só me resta agradecer-lhe tão esplêndido banquete, sobretudo no tocante
ao delicioso pudim de Natal, assim como a sua compreensão - acrescentou finalmente, com olhar furioso. - Permita-me pedir que explique a seus colegas que o último
dia deste mês assinala meu dia de sorte ou infortúnio, e que será o que eles decidam. - Apertou sua mão e se despediu.
- Por Deus, que estilo o seu, irmão - disse Stephen quando fecharam a porta do coche.
- Não me é antipático, ainda que seja um político - disse Jack. - Acho que aprecia a armada. Tem um sobrinho a bordo da Gladiator que fala inglês perfeitamente;
já se acha meio marinheiro, e a verdade é que tem motivos para fazê-lo.
À madrugadora metade marinheira do sobrinho lhe foi confiada a carta, que este entregou a bordo da Surprise antes de que Jack tomasse o preparado matinal, que Killick
lhe serviu com pontualidade ao dar as quatro badaladas e que teve que ingerir antes de ler o conteúdo da carta.
- Vá ver onde anda o doutor - disse Jack, - e se o vir, diga que venha quando disponha de um momento.
- Está no mercado, mexendo em lavagantes. Não. Mentira. Esse daí é ele, o que acaba de escorregar no castelinho e maldiz em estrangeiro.
Stephen, desempoado e recomposto, a peruca devolvida a seu lugar, foi conduzido à cabine.
- Bom dia, Stephen. Você se importaria de dar uma espiada nesta carta?
- Claro que não - disse Stephen. - Diz: "Dom Miguel tem o prazer de saudar-lhe, agradecer o fato de ter honrado sua mesa, e tem também a alegria de adjuntar dois
documentos: um dirigido ao tesoureiro chefe, no qual se solicita dele o pagamento de cinco mil moedas de oito a qualquer suboficial a quem o senhor escolha enviar.
O segundo documento é dirigido ao oficial encarregado dos apetrechos navais, a quem se ordena entregar-lhe qualquer coisa que possa necessitar." Depois lhe pede
mil desculpas pela brevidade da carta, mas seu cavalo, animal impaciente, está na porta, agarrado com dificuldade pela embocadura por um par de moços.
- Muito amável de sua parte - exclamou Jack. - assim que tenhamos desjejuado, visitaremos ao bom tesoureiro, acompanhados por um par de transportadores. Depois falaremos
com o piloto, o contador, o contramestre, o condestável e com qualquer um relacionado com os apetrechos para ver de que necessitamos. Sei que temos os guardas-comidas
cheios de teias de aranha. - A segir, Jack se aprofundou nas teias de aranha que alojavam no guarda-comida e em todas as coisas que podiam pedir, e o fez durante
um bom momento, até satisfazer a alegria que sentia.
- Posso dizer algo? - perguntou Stephen, aproveitando uma pausa.
- Certamente. Provavelmente será mais interessante que calcular a quantidade de esfregões que necessitamos.
- Escute. Hoje passei pelo cais onde reparam a fragata pesada chilena.
- A O’Higgins.
- Não, senhor, desculpe-me mas não. Mudaram o nome, ela se chamará São Martim.
- Sério? Por Deus. Nunca se deve fazer isso a um barco. Também poderia trazer má sorte para nós. Pelo visto, estão mudando muito as coisas. O’Higgins era nosso amigo.
Não me agradou o pouco que vi de São Martim, e duvido muito que me aprecie de verdade. Pouco podemos fazer, além de bombardear a cidade com a bala e a pólvora que
nos proporcionem os própios chilenos. O caso é que não me seduz a idéia, tenho amigos ali. Não. Acho que deveríamos continuar os trabalhos de exploração, e se se
mostram desagradáveis, se se rebelam, então que diabos, ao inferno com eles. Eu lhe pedirei que escreva uma amável carta de renúncia, rezarei para ter um bom vento
do oeste e rumaremos para a Inglaterra. Mas antes, até que finalize o mês, devo cumprir minhas promessas e subir a bordo aos jovens, os escolhidos jovens, que levantarão
comigo os planos do arquipélago Chonos, não sem que antes tenhamos enchido o barco de apetrechos.
No dia seguinte, ao dar as quatro badaladas da guarda de oito a doze da manhã, soprava aquele vento do oeste venerado por Jack, um vento que enrugava as águas do
porto. O condestável da Surprise, em resposta a uma inclinação de cabeça de Somers, disparou o canhão situado mais a proa no costado de bombordo. Todos aqueles que
tinham permanecido atentos ao sinal, largaram as amarras de suas embarcações, subiram ao cesto da gávea e observaram a Surprise sem perder um detalhe, seguindo seus
movimentos com um êxito tal que toda a esquadra composta por quatro corvetas e uma fragata percorreu o porto formando uma linha perfeita. Entre os vivas e aplausos
da multidão, saíram para mar aberto, e ali seguiram de novo o exemplo da Surprise ao pôr rumo sudoeste sul e aproveitar o empurrão do fluxo de ondas.
Conforme o costume do lugar, as corvetas tinham dois capitães, um primeiro e um segundo. Jack contava no castelo de popa da fragata com os que naquele momento não
governavam suas embarcações, e assim seria das quatro badaladas da guarda da alvorada até o final da primeira guarda do quartilho. Queria mostrar-lhes como se faziam
as coisas na Armada Real. Três ou quatro deles falavam com fluidez o inglês, sobretudo o jovem José Fernández, sobrinho de Carrera. Era um tritão de nascimento,
se é que já existiu algum. Apesar disso, os monolíngües constituíam um lastro para o doutor Maturin, que se bem conhecia em inglês alguns termos náuticos, como por
exemplo bombordo ou estibordo, não tinha nem idéia de como expressar "juncar as gáveas e maiores" em castelhano ou em qualquer outra língua.
- Eu gostaria que Jacob estivesse aqui - disse Jack um dia frente a Talcahuano.
- Foi com seu consentimento que o deixamos em Valparaíso para a possível entrega de uma mensagem - disse Stephen.
- Tem toda razão. Peço que me perdoe, amigo. O dizia somente pelo alívio de lamentar-me, desleal alívio, por certo.
- Capitão, meu amigo, brindemos por você.
De jovem, Jack Aubrey servira sob as ordens de dois capitães estritos, bastante mesmo para tempos tão rígidos, de modo que quando mencionava o verbo exercitar o
fazia no sentido estrito da palavra, e os jovens terminavam a jornada pálidos, esgotados, capazes de cair rendidos em qualquer parte. Após alguns dias, seus corpos
jovens ganharam força, depois de dormir como mortos e comer como hienas. Sobretudo porque os jovens guardas-marinhas e os oficiais de menor antiguidade os faziam
subir para cima e para baixo de uma altura a outra do barco. Ainda que estavam até certo ponto acostumados ao duro adestramento da armada, o doutor Maturin teve
que tratar mais de uma mão cheia de bolhas, ou as queimaduras nas coxas devidas à fricção dos cabos. Não houve necessidade de tratar com excessiva dureza a ninguém,
algo habitual no mar, e enquanto a alegria e a boa natureza foram compatíveis com rizar o velacho, desfrutaram de alguns dias encantadores. As únicas vezes nas quais
Jack se mostrava menos caridoso era quando os jovens chilenos demonstravam ter uma grande ignorância em matéria de navegação, de calcular a posição e rumo do barco
conforme os princípios da geometria e da astronomia náutica. Em tais casos, tirou partido de Daniel e Hanson, e ainda que a observação lunar fosse mais difícil de
assimilar que o ás de guia, a maior parte dos jovens se convenceram da importância do tema, e vários deles aprenderam a medir a altura do sol ao meio-dia. Foram
convidados, geralmente aos pares, a almoçar na cabine ou na câmara dos oficiais. O idioma pôs certa dificuldade, superada, contudo, pelo voraz apetite do que exibiram.
- Que grupo de jovens mais amáveis - disse Jack Aubrey quando passeava com Stephen pela praia que havia na embocadura do rio Llico. - Muitos deles sabem perfeitamente
de onde sopra o vento e qual a direção da corrente. Pelo menos, meia dúzia serão bons marinheiros. Meu Deus, boa troca depois de tratar com aqueles políticos miseráveis
e indignos de confiança.
- Tem toda a razão. Mas diga-me, Jack, o que fazem na água esses loucos da pobre Surprise?
- Já que o mar está em calmaria e não poderemos franquear a baía até que reponte a maré, ocorreu a Harding ensinar ao restante dos garotos, os que não remaram para
que entrássemos no porto, o que é dar fogo aos fundos. Vê? Olhe, agora a tombaram todo o possível para limpar cuidadosamente os moluscos do casco, e...
Seguiu explicando a operação com todo luxo de detalhes, pelo menos até que viu Stephen observar fixamente uma ave que voava ao longe.
- Perdoe-me, Jack - disse, - mas não sei se era uma narceja, ainda a vê?
- Não. E se a visse tampouco me alteraria. Pelo amor de Deus, uma narceja no Chile. Seria mais lógico ver um castor no Fisco.
- Aquele garoto, José, cujo tio é um excelente atirador, disse que a narceja, maçarico-de-costas-brancas, Gallinago gallinago, a mesma ave que nós temos, foi a primeira
a emigrar para o Chile para aninhar. Bendita seja: aqui estou, maldizendo o dia em que empreendemos esta viagem (e não era a primeira vez que me sucedia), nesse
chato espaço que as aves migratórias aproveitam para fugir do inverno, sem que as da primavera tenham chegado. Agora estou cheio de esperança.
Tinha motivos para ficar. Contudo, dias, inclusive semanas depois, permanecia sentado na pedra cinza de uma ilha, em uma das inumeráveis e frias ilhas de Chonos,
olhando com a luneta não uma exótica ave migratória, mas um ostreiro americano vulgar e comum de patas brancas, que sobrevoava a margem em busca de alimento. Além
havia outro, uma fêmea deslustrada. Nem uma nem a outra demonstraram sentir o menor interesse mútuo. Não era época de acasalamento, por muito que a narceja pudesse
pensar o contrário. Tampouco era época de alegrias, ainda que sim o décimo terceiro dia do mês. No dia seguinte, Jack devia decidir que rumo pensava seguir em um
ou outro sentido, e nenhuma de suas alternativas conduziam à felicidade.
Além do ostreiro, Stephen Maturin encarou um bergantim que dobrava uma das inumeráveis e imponentes rocas, cuja posição tinham anotado cuidadosamente naquela manhã
o capitão Aubrey e seus pupilos. Nesse momento se encontravam um pouco ao sul, levantando no plano outra de aquelas rocas, fora do alcance da luneta de Stephen mas
à vista do bergantim. Este ganhou velocidade ao cobrir-se de mais lona. Aquele bergantim verde parecia familiar para Stephen, pois era usado por um comerciante de
pedras preciosas chileno, um homem rico e muito amável, que residia em Valparaíso e era muito amigo de Jacob.
Olhou-o com a luneta, e pôde com efeito ver Jacob, observando-lhe por sua vez com outra luneta e fazendo-lhe sinais ("grande alegria"?). Fosse o que fosse o que
pretendia expressar, logo desapareceu quando o bergantim dobrou outra roca e aproou para a Surprise, momento em que Stephen voltou sua atenção para dois cisnes de
pescoço negro que voavam para o sul, a baixa altura sobre a água, tão baixa que quase podia ouvir o rítmico bater de suas asas.
- Não posso continuar aqui sentado, observando ao ostreiro de pata branca - disse em voz alta Maturin. - Porém, que outra coisa posso fazer?
Nenhuma outra coisa, pelo menos durante a passagem, sempre do norte para o sul, de três skúas e do carniceiro carcará. Pendurado em seu pescoço, envolvido em uma
bolsinha de seda encerada envolvida por sua vez em outra bolsinha, levava o substituto de um pequeno e precioso cronômetro que anunciou a meia hora, e que teria
anunciado os quarenta e cinco minutos se Stephen não tivesse visto o bote da fragata vogar contra o vento. Levantou-se de um salto, cumprimentou com a mão e deu
vários saltinhos, tudo o que espantou aos ostreiros, qualquer coisa contanto que não lhe abandonassem em terra.
Subiu pelo costado do navio com sua habitual "elegância". Ali lhe cumprimentou o doutor Jacob, em cujo cenho poderia ter lido todo aquele que o conhecesse muito
bem: "Recebido uma mensagem cifrada". Stephen foi conduzido convés abaixo para um dos cantos mais discretos do barco.
- Jaime o entregou, justo depois que o mensageiro do Governo chegou de Santiago- disse Jacob em voz baixa. Ainda que este não estivesse totalmente calmo, estava
convencido de que havia uma seção importante que deviam comunicar imediatamente ao interessado. A julgar pelo modo com que elevou o olhar para as rodas-de-proa,
Stephen compreendeu que se referia a Jack, do que pôde assegurar-se quando Jacob lhe comentou a alegria que teve quando o bergantim alcançou e passou a corveta que
partira de Valparaíso, antes de que esta pudesse achá-los.
- Tem o original e sua transcrição? - perguntou Stephen.
- O original, sim, mas transcrevi muito pouco. Permita-me mostrar onde parei, e por que decidi que devia procurá-los.
Stephen segurou a folha à contraluz do postigo.
- Fez bem, querido Amos. Devemos lhe dizer imediatamente.
- Não. É seu amigo. Aqui está minha cópia do código D2. Há algumas combinações difíceis que restaram pendentes, mas já temos a idéia geral, e o restante podemos
deixar para mais tarde.
Stephen consentiu e apertou sua mão com força. Guardou os papéis no bolso e passou a andar com brio.
- Senhor Adams - disse, a ponto de tropeçar com o secretário, - faça-me um favor, se é tão amável. Gostaria de falar em particular com o capitão. Estarei na cabine.
- Adams o olhou boquiaberto por tão extraordinário pedido.
- Muito bem, senhor - disse ao ver que Stephen se afastava depressa. Seguidamente, o secretário subiu ao convés.
Por sua parte, Stephen tinha a cabeça assomada pela janela de popa quando o capitão entrou, a quem viu surpreso e um pouco preocupado.
- Jack - disse Stephen, - acabamos de receber uma mensagem. Não pudemos decifrá-lo todo, mas a primeira parte é dirigida a seu nome e a seu barco, e se quiser lerei
o que deciframos e tentarei ler a parte que não esteja. "Assim que receba a presente ordem, rumará o senhor ao Rio da Prata, onde se unirá à esquadra Sul-africana.
Subirá a bordo do navio de sua majestade Implacável, em cujo mastro da mezena hasteará sua insígnia, assumindo, portanto, o comando da esquadra azul."
Jack sentou-se e afundou o rosto em suas mãos. Parecia ter perdido a faculdade da fala.
- Poderia lê-lo outra vez, Stephen? - pediu finalmente.
Stephen leu de novo a mensagem.
- Por Deus, Stephen, não sabe quanto me alegro de que seja você a me dar tão boas notícias. Sophie se alegrará tanto. Por Deus, achava que jamais conseguiria hastear
minha insígnia.
- Tem mais coisas. Umas linhas com os parabéns da parte do duque de Clarence pelo combate de El Callao, uma mensagem particular para Horatio Hanson, e um pedido
de que o mande para casa assim que seja possível para que possa realizar o exame de tenente. Há várias considerações políticas de parte de sir Joseph que ainda devo
decifrar... Permita-me também a mim dar-lhe parabéns, querido almirante. - Abraçou a Jack. Foi um gesto natural, e além disso Jack parecia obscurecido.
- Excelente, irmão, alegro-me muito de que estejam tão satisfeitos conosco. Contudo, aqui me tem, lastrado por esta perna. Estou comprometido, atado ao Governo chileno.
Nesse momento o Governo chileno, personificado por Carrera, subia carta em mão pelo costado da Surprise, procedente da corveta mencionada por Jacob. Foi recebido
por Harding com todas as honras, e depois de pedir permissão o conduziram para a cabine, em cujo interior Jack lhe ofereceu um xerez e pediu que lhe desculpasse
enquanto lia a carta.
- Lamento muito o conteúdo - disse Carrera. - Sinto tristeza e vergonha. Os homens de Santiago solicitam mais três meses, momento em que lhe pagarão todas as dívidas.
- Entristeço muito em dizer isto - disse Jack, - mas o senhor recorda perfeitamente o que combinamos. Devo pedir que leve seus jovens, seus excelentes e promissores
jovens, a bordo da corveta. Fui ordenado navegar em outra direção. Antes, contudo, permita-me renovar meus votos de amizade pelo senhor, e meus melhores desejos
pelo futuro da armada chilena.
O transbordo tardou um tempo, ainda que se levou a cabo com alegria e bom humor; finalmente, os barcos se despediram com mostras recíprocas de boa vontade.
Depois do último cumprimento, Jack levantou o olhar para o aparelho. O vento ainda soprava do oeste. Olhou de proa e a popa. A coberta estava limpa, reluzente. Os
marinheiros serviam em seus postos com um amplo sorriso.
- Senhor Hanson - disse ao piloto. - Ponha rumo a Cabo Pilar e ao estreito de Magalhães, se é tão amável.

 

 

 

Glossário

 

{1} Buzarda: Mar. Cada uma das peças curvas com que se liga e fortalece a proa da embarcação.
{2} Bulárcama: Mar. Cada uma das ligações que, de intervalo em intervalo, colocam-se sobre o forro interior do navio, e que, cavilhadas à sobrequilha e às balizas,
servem para reforço destas.
{3} Tenedero: Mar. Paragem do mar, onde se pode prender e firmar-se a âncora.
{4} Ballestrinque: Mar. Nó marinheiro que se forma com duas voltas de cabo, dadas de tal modo que os chicotes ficam cruzados.
{5} Trata-se de um jogo infantil. Um jogador se situa no centro e tenta "roubar" os lugares ou bases dos demais jogadores enquanto estes se deslocam de uma para
outra. Na Armada Real praticavam uma versão mais complexa do jogo.
{6} Jardim: nome dado ao sanitário nos barcos.
{7} Cote: Mar. volta que se dá no chicote de um cabo, em torno de uma base, passando-o por dentro do seio.
{8} Mão da Glória é a mão de um homem que foi enforcado, seca e em conserva , muitas vezes especificada como sendo a mão esquerda. É um amuleto bastante perturbador,
com uma reputação de fazer seu dono invisível e paralisar aqueles que vêem a sua luz.
{9} Whig Party: era o partido que reunia as tendências liberais no Reino Unido, e contrapunha-se ao Tory Party, de linha conservadora.
{10} Noite de Guy Fawkes: em 5 de novembro de 1605 os católicos fracassaram em sua tentativa de voltar ao Parlamento inglês, como protesto às leis ditadas contra
eles e como parte de um complô ("Conspiração da pólvora") para acabar com Jacobo I. Seu lider, Guy Fawkes, foi capturado e executado. Os protestantes comemoram essa
data queimando pela noite um boneco de palha que o representa.
{11} Barquía: Embarcação capaz, ao extremo, de quatro remos em cada lado.

 

 

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