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BAIRRO DA LATA / John Steinbeck
BAIRRO DA LATA / John Steinbeck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

BAIRRO DA LATA

 

Cannery Row, em Monterey, na Califórnia, é um poema, um fedor, uma estridência, uma gradação de luz, um som, um vício, uma nostalgia, um sonho. Cannery Row é acumulação e desperdício; lata ferro, ferrugem e gravetos; pavimentos escavados, terrenos de ortigas e amontoados de cordame; fábricas de enlatar sardinhas de chapa ondulada, dancings, restaurantes, bordéis e pequenas mercearias atravancadas; laboratórios e albergues. Os seus habitantes são, como disse o homem certa vez, piegas, alcoviteiras, batoteiros e filhos da mãe, com o que pretendia dizer toda a gente. Tivesse o homem espreitado por outra frincha e talvez dissesse: santos e anjos, mártires e homens bons, e significaria a mesma coisa.

Pela manhã, quando a frota da sardinha fez boa safra, entram as barcaças na baía a apitar, balouçando pesadamente. Cheios a deitar por fora, os barcos acostam ali, onde o rabinho das fábricas mergulha na baía.

A imagem é de avisada escolha, porque se as fábricas mergulhassem a boca na baía as sardinhas enlatadas que emergem do extremo oposto seriam, metaforicamente pelo menos, ainda mais repugnantes. Depois estridulam as sereias das fábricas, e em toda a vila homens e mulheres enfiam as suas andainas e correm direito ao Bairro para dar começo à faina.

Automóveis reluzentes levam as classes superiores, os superintendentes, os guarda-livros, os patrões, que logo desaparecem nos escritórios. Da vila surgem italianos, chineses e polacos em torrente, homens e mulheres de calças, casacos de borracha e aventais de oleado. Chegam correndo para limpar, cortar, lotar, cozinhar e enlatar o peixe. A rua toda rumoreja, geme, guincha, trepida, enquanto os prateados rios de peixe se escoam dos barcos, os quais vão alteando mais e mais até ficarem vazios. As fábricas rumorejam, trepidam e guincham até o último peixe estar limpo, cortado, cozinhado e enlatado; e então estridulam de novo as sereias, e os italianos, os chineses, os polacos, homens e mulheres a pingar, estafados, fedorentos, arrastam-se derreados pelo monte acima a caminho da vila, e Cannery Row volta a ser ele mesmo - tranquilo e encantado. A sua vida normal restabelece-se.

Os ralaços que, indignados, se acolheram debaixo do cipreste negro vão sentar-se nos canos ferrugentos do terreno baldio; as pequenas da Dora saem em busca de um pouco de sol, se o há; o doutor emerge do Laboratório Biológico Ocidental, atravessa a rua e vai à mercearia do Lee Chong por dois quartilhos de cerveja; Henri, o pintor, fareja, qual podengo, por entre a tralha no terreno das ortigas, procurando um pedaço de madeira ou de metal de que carece para o barco que está a construir. Já se infiltra a escuridão; acende-se a luz da rua fronteira à casa da Dora - o lampião que derrama em Cannery Row permanente luar. Ao Biológico Ocidental chegam visitas para o doutor e este atravessa a rua e vai ao Lee Chong por cinco quartilhos de cerveja.

Como emprestar aqui vida ao poema, ao fedor, à estridência, à gradação da luz, à tonalidade, ao vício, ao sonho? Quando se colecionam animais marinhos encontram-se vermes espalmados que de tão frágeis se torna impossível colhê-los intactos porque ao tocar-lhes se partem e desfazem. É preciso deixar que se arrastem e deslizem por si próprios para uma lâmina e dirigi-los então cuidadosamente para dentro do frasco de água do mar. Será esse talvez o processo para escrever este livro - abrir a folha e deixar que as histórias deslizem para ela por si próprias.

A mercearia de Lee Chong, conquanto não fosse um modelo de apuro, era um milagre de fornecimento. Exígua e atravancada, mas no seu único compartimento quem quer podia encontrar tudo o que desejava e do que precisava para viver e ser feliz - roupas, comida, tanto fresca como em latas, alcoóis, tabaco, apetrechos de pesca, máquinas, berços, cordame, bonés, costeletas de porco. Podia-se adquirir na loja de Lee Chong um par de chinelos, um quimono de seda, uma quarta de whisky e um charuto. Podiam-se engendrar combinações que se adequassem a quase todos os estados de espírito. A única comodidade que Lee Chong não possuía podia obter-se no outro lado do terreno, na Dora.

A mercearia abria de madrugada e não fechava enquanto não se despendesse a última moeda errante ou a não retirassem para o repouso da noite. Não que Lee Chong fosse usurário, não era; mas, se alguém se dispunha a gastar dinheiro, estava às ordens. A posição de Lee Chong dentro da comunidade surpreendia-o a ele tanto quanto era susceptível de surpresas.

Com o decorrer dos anos todos em Cannery Row lhe deviam dinheiro. Nunca apertava com os fregueses, mas, se a conta se tornava demasiadamente grande cortava-lhes o crédito. Na contingência de subir o monte até à vila, o freguês geralmente pagava ou fazia o possível para isso. Lee possuía uma cara bolachuda e maneiras delicadas. Falava um inglês enfático, nunca empregando a letra R. Durante as guerras de Tong[1], na Califórnia, encontrou-se Lee uma ou outra vez com a cabeça posta a prêmio. Seguia então secretamente para São Francisco, internando-se num hospital até o perigo ter passado. O que fazia do dinheiro nunca ninguém o soube. Talvez não chegasse a recebê-lo. Talvez a sua riqueza consistisse inteiramente em contas por pagar.

Vivia bem no entanto e gozava do respeito de todos os vizinhos. Ia fiando aos fregueses até o crédito atingir o ridículo. Por vezes fazia negócios furados, mas até esses conseguia transformar em vantagem, em boa vontade, quanto mais não fosse. Assim aconteceu com o Palácio Flophouse e Grill. Qualquer outro que não fosse Lee Chong teria considerado a transação uma perda total.

O posto de Lee Chong na mercearia era por trás do balcão dos charutos. Ficava-lhe assim à esquerda a caixa registradora e à direita o aparador. Dentro do balcão de vidro estavam os charutos castanhos, os cigarros, os Bull Durham, a mistura do Duque os Five Brothers, enquanto, em prateleiras na parede por trás dele, estavam quartilhos, meios quartilhos e quartas de Old Green River, Old Town House, Old Colonel e o favorito - Old Tenessee - mistura de whisky velho de quatro meses garantidos, muito barata e conhecida nas redondezas por Old Tennis Shoes. Não era sem razão que Lee Chong se interpunha entre o whisky e o freguês. Já em várias ocasiões alguns espíritos práticos tinham tentado desviar-lhe a atenção para outros pontos da loja. Na parte restante do estabelecimento atendiam primos, sobrinhos, filhos, noras, mas Lee nunca abandonava o balcão dos charutos. O tampo de vidro constituía a sua secretária. As suas mãos, gordinhas, delicadas, descansavam sobre o vidro, com os dedinhos a agitarem-se quais salsichas irrequietas. Uma larga aliança no dedo médio da mão esquerda era a sua única jóia e com ela dava pancadinhas silenciosas no tapetinho dos trocos cujos dentes de borracha há muito se encontravam gastos. Lee tinha a boca grossa, benevolente, e, quando se ria, o chispar do ouro era magnânimo, cordial.

Usava óculos de meia-lua, e, como observava tudo através deles, recuava a cabeça para ver as coisas a distância. Percentagens, descontos, contas de somar, de subtrair, tudo executava sobre o balcão com os irrequietos dedinhos em forma de salsicha, os benévolos olhos castanhos vagueando pela loja, os dentes faiscando sorrisos aos fregueses.

Uma tarde, no seu pouso, sobre uma camada de jornais destinada a conservar-lhe os pés quentes, revia ele com ironia e tristeza uma transação que efetivara nessa tarde e reefetivara mais tarde no mesmo dia. Saindo da mercearia, atravessando em diagonal o terreno baldio, tateando por entre os enormes canos ferrugentos rejeitados pelas fábricas, encontrar-se-á um caminho entre as ervas.

Siga-se este até ultrapassar o cipreste, atravesse-se a linha férrea subindo o carreiro das galinhas pontilhado de cunhos e alcançar-se-á um edifício comprido e baixo onde de há muito tempo se guarda farinha de peixe.

Era um barracão enorme e pertencia a um atribulado senhor chamado Horace Abbeville, que tinha duas mulheres e seis filhos e durante alguns anos conseguira por meio de lamúrias e persuasão elevar a sua dívida na mercearia a uma soma tal que não havia outra em Monterey que se lhe comparasse. Nessa tarde aparecera na mercearia, e o seu rosto sensível, cansado e triste contraiu-se perante o ar severo que perpassou pela cara de Lee. Os dedos flácidos de Lee tamborilavam no tapetinho de borracha. Horace pôs as mãos de palmas para cima sobre o balcão dos charutos e disse com simplicidade:

- Creio que já lhe estou a dever uma porção de dinheiro.

Os dentes de Lee faiscaram em homenagem a uma entrada tão hábil como jamais ouvira a alguém. Meneou gravemente a cabeça, mas esperou que a habilidade se desenvolvesse.

Horace umedeceu os lábios com a língua em execução perfeita, de canto a canto:

- Não me agrada que essa situação fique suspensa sobre a cabeça dos garotos - disse. – Você se calhar nem um pacotinho de pastilhas de hortelã-pimenta lhes fiava.

A cara de Lee sancionou esta conclusão.

- Polção de massa - disse.

Horace prosseguiu:

- Você conhece aquele meu terreno, para lá do carreiro, onde está a farinha de peixe? - Lee Chong meneou a cabeça. Era dele a farinha de peixe. Horace prosseguiu com gravidade:

- Se eu lhe desse esse terreno saldava a minha dívida para consigo? - Lee Chong recuou a cabeça e fitou Horace através da metade dos óculos, enquanto a sua imaginação adejava por entre cálculos e a mão direita remexia, agitada, no aparador. Considerou a construção, que era fraca, o terreno, que podia valorizar-se se alguma das fábricas se desenvolvesse.

- Sim - disse Lee Chong.

- Bem, traga lá os papéis e passo-lhe uma declaração de venda desse terreno. - Horace parecia apressado.

- Não precisa papel - disse Lee. - Passo recibo de liquidação total.

Concluíram a transação com dignidade e Lee Chong acrescentou-lhe um quartilho de Old Tennis Shoes. Depois Horace Abbeville, muito aprumado, atravessou o terreno, ultrapassou o cipreste, seguiu pelo atalho, subiu o carreiro das galinhas até à construção que fora sua, e com um tiro ficou-se sobre um monte de farinha de peixe. E, embora nada tenha a ver com esta história, nunca mais faltou a nenhum dos pequenos Abbevilles, fosse qual fosse a mãe, uma pastilha de hortelã-pimenta.

Mas, voltando àquela tarde, Horace jazia sobre a marquesa com as agulhas de embalsamar espetadas, e as suas duas mulheres estavam sentadas nos degraus da casa com os braços em volta uma da outra (permaneceram amigas até ao final do enterro, após o qual dividiram as crianças e nunca mais se falaram).

Lee Chong estava por trás do balcão dos charutos com os seus simpáticos olhos castanhos volvidos para o íntimo em perene e tranquila melancolia chinesa. Sabia não lhe ter sido possível evitar aquilo, mas desejava tê-lo sabido e tentado talvez dar-lhe remédio. Fazia parte integrante da bondade e solidariedade de Lee considerar inviolável o direito de um homem se matar; todavia um amigo pode às vezes tornar isso desnecessário. Lee contribuíra logo para o funeral e enviara às famílias atingidas um cesto da lavandaria com gêneros.  Agora Lee Chong era senhor do edifício de Abbeville: um bom telhado, um bom soalho, duas janelas, uma porta. Estava, é certo, cheio até acima de farinha de peixe, cujo cheiro era sutil e penetrante. Lee Chong considerou-o bom para arrecadação de gêneros, espécie de armazém; mas, após segunda reflexão, desistiu. Ficava demasiado distante e qualquer pessoa podia entrar por uma janela. Tamborilava sobre o tapetinho de borracha com a aliança de ouro e considerava o problema quando a porta se abriu e Mack entrou.

Mack era o mais velho, o chefe, o mentor, e em certa medida o explorador de um pequeno grupo de homens que não possuíam ambições entre si nem família, nem dinheiro, nem ambições além das da comida, da bebida e do prazer. Mas enquanto a maior parte dos homens se aniquila na ânsia do prazer e desanimada cai muito aquém do seu alvo, Mack e os amigos topavam com o prazer por casualidade, serenamente, e absorviam-no devagar. Mack e Hazel, jovem de muita força, Eddie, que ocupava o lugar de barman no La Ida, Hughie e Jones, que de tempos a tempos caçavam rãs e gatos para o Biológico Ocidental, viviam habitualmente naqueles enormes canos ferrugentos no terreno contíguo ao de Lee Chong. Isto é, viviam no interior dos canos quando o mau tempo a tal os obrigava; quando estava bom tempo ficavam no alto do terreno à sombra do cipreste. As ramadas formavam um dossel debaixo do qual um homem podia deitar-se e observar o fluxo e a vitalidade de Cannery Row.

Lee Chong retesou-se um tudo-nada à entrada de Mack e os seus olhos percorreram rapidamente o estabelecimento a certificar-se de que o Eddie, o Hazel, o Hughie ou o Jones não tinham também entrado, esgueirando-se por entre a mercadoria.  Mack dispôs as cartas com franqueza aliciante.

- Lee - disse -, eu, o Eddie e os outros ouvimos dizer que você é o dono da casa do Abbeville.

Lee Chong meneou a cabeça e esperou.

- Eu e os meus amigos decidimos perguntar-lhe se nos deixa ir pra lá. Tomávamos-lhe conta da propriedade - acrescentou pressuroso. - Ninguém deixávamos lá entrar, nem estragar coisa alguma. Os garotos são capazes de lhe escaqueirar as janelas, sabe? - avisou Mack. - A casa pode arder se não estiver lá quem esteja de olho nela. Lee recuou a cabeça, fixou os olhos de Mack através dos seus óculos de meia-lua e o tamborilar do dedo diminuía de intensidade à medida que ia refletindo intensamente. Os olhos de Mack traduziam boa vontade, camaradagem e o desejo de fazer a felicidade de todos. Porque se sentiu então vagamente cercado? Porque procuraria o seu espírito uma saída, cautelosamente, como um gato entre cactos? A coisa fora apresentada com gentileza, quase com sentido filantrópico. O espírito de Lee mediu as possibilidades - não as probabilidades e o tamborilar do seu dedo diminuiu ainda mais de intensidade. Viu-se a recusar o pedido de Mack e visionou os vidros das janelas todos partidos. Depois Mack oferecer-se-ia segunda vez para cuidar e olhar pela propriedade de Lee, e à segunda recusa Lee podia já sentir o cheiro do fumo, podia ver as chamazinhas crepitarem pelas paredes acima. E Mack e os amigos ajudariam a extinguir o fogo. O dedo de Lee teve uma pausa ligeira. Fora vencido. Sabia-o. Só lhe restava uma probabilidade: salvar a cara, e aí era Mack suscetível de ser muito generoso. Disse Lee:

- Você paga aluguel da minha casa? Você vive lá como fosse hotel?

Mack sorriu abertamente e foi generoso.

- Toma! - exclamou. - É uma ideia. E é que é mesmo. Quanto? - Lee refletiu. Sabia que não importava o preço. De qualquer modo não o receberia. Já agora valia a pena pedir uma quantia choruda, que realmente lhe limpasse a cara.

- Cinco dolá a semana - disse. Mack continuou o jogo até final.

- Tenho de consultar os rapazes - disse, irresoluto. - Não podia baixar isso pra quatro dólares por semana?

- Cinco dolá! - disse Lee com firmeza.

- Bem, vou ver o que dizem os rapazes - retorquiu Mack.

Foi assim que aconteceu. E todos ficaram satisfeitos. E se se julga que Lee sofreu com isso perda total, ele, pelo menos, não viu o caso assim. As janelas não foram partidas, não houve incêndio, e, embora nunca fosse paga uma só renda, quando os inquilinos tinham dinheiro – e tinham-no muitas vezes -, não lhes ocorria a ideia de o gastar em qualquer outra loja que não fosse a mercearia de Lee Chong.

Ficava assim com um pequeno grupo potencialmente ativo de fregueses encapotados. E a coisa ia mais longe. Se algum bêbedo causava distúrbios na loja, se os garotos irrompiam de Nova Monterey decididos à pilhagem, Lee Chong só tinha de chamar, e os inquilinos apareciam em seu auxílio. Outro pacto foi estabelecido: não se deve roubar o próprio benfeitor. O que Lee Chong economizava em latas de feijão, de tomate, de leite e em melões pagava e repagava a renda. E se se verificava desusado e crescente escoamento nas outras mercearias de Nova Monterey, Lee Chong nada tinha a ver com isso.

Entraram os rapazes e saiu a farinha de peixe.

Ninguém sabe quem deu o nome à casa, que ficou sempre depois a ser conhecida por Palácio Flophouse e Grill. Nos canos e debaixo do cipreste nunca houve espaço para mobília, nem para os pequenos requintes que são não só o indicativo, mas as fronteiras da nossa civilização. Uma vez dentro do Palácio Flophouse, os rapazes deitaram-se a mobilá-lo. Apareceu uma cadeira, uma cama, outra cadeira. Uma drogaria forneceu uma lata de tinta encarnada, sem relutância, porque não se deu conta do fato, e à medida que ia aparecendo ou uma mesa ou um banco eram estes pintados, o que não só os tornava muito bonitos, mas também os mascarava até certo ponto para o caso de o anterior dono por lá passar. Começou então a funcionar o Palácio Flophouse e Grill. Os rapazes podiam sentar-se à soleira da sua porta e alongar a vista pelo carreiro, pelo terreno, pela rua, para dentro mesmo das janelas da frente do Biológico Ocidental. De noite podiam ouvir a música vinda do Laboratório. E os seus olhos seguiram o doutor pela rua fora quando este foi pela cerveja ao Lee Chong. E disse Mack:

- Aquele doutor é um excelente tipo. Nós devíamos fazer qualquer coisa por ele.

 

A Palavra é um símbolo e um deleite que sorve o homem, a paisagem, árvores, plantas, fábricas e pequineses. Então a coisa toma a forma de Palavra e volta de novo a ser Coisa, mas urdida e tecida em fantástico desenho. A Palavra sorve Cannery Row, digere-o, vomita-o, e o Row toma a cintilação do mundo verde, dos mares em que se reflete o céu. Lee Chong já é mais do que um merceeiro chinês. Tem de ser. Talvez desnivelado na balança e sustido pelo bem - planeta asiático preso à sua órbita pelo ímpeto de Lao Tze, e desviado de Lao Tze pela forma centrífuga do aparador e da caixa registradora -, um Lee Chong suspenso, volteando, rodopiando por entre mercadorias e fantasmas. Homem duro tratando-se de uma lata de feijões, homem brando tratando-se das ossadas do avô. É que Lee Chong escavou a sepultura em China Point e encontrou as ossadas amarelentas, o crânio com cabelo viscoso ainda aderente. E Lee empacotou cuidadosamente os ossos, fêmures e tíbias, bem direitos, o crânio ao centro com a pélvis e as clavículas em volta e as costelas em arco de um lado e do outro. Depois Lee Chong enviou o empacotado e quebradiço avô por sobre o mar do Oriente, para que repousasse enfim no solo que os seus antepassados haviam sagrado.

E Mack e os rapazes rodopiavam também nas suas órbitas. São eles a Virtude, a Graça, a Beleza da impetuosa e amalgamada loucura de Monterey; a cósmica Monterey, onde os homens, de fome e de medo, destroem os estômagos na luta para se assegurarem de alimentos certos, onde os homens famintos de amor destroem em si tudo o que possuem de amorável. Mack e os rapazes são a Beleza, a Virtude, a Graça. Num mundo governado por tigres com úlceras, violentado por touros em cio recalcado, revolvido por cegos chacais, Mack e os rapazes jantam requintados com os tigres, acariciam os bezerros excitados e ajuntam as migalhas com que alimentam as gaivotas de Cannery Row. Pois que aproveita ao homem conquistar o mundo todo, e entrar na posse daquilo que conquistou, com uma úlcera gástrica, uma próstata inflamada e bifocado? Mack e os rapazes evitam a armadilha, desconfiam do veneno, saltam por cima da laçada, enquanto uma geração de homens acorrentados, envenenados, laçados, os invetiva e apelida de inúteis, safardanas, nódoas-da-cidade, ladrões, malandros, pulhas. O Pai Nosso que está na natureza, que prodigaliza o dom da sobrevivência ao lobo, ao vulgar rato pardo, ao pardal inglês, à corriqueira mosca e à falena deve albergar uma incomensurável ternura pelos inúteis, pelos que são as nódoas-da-cidade, pelos pulhas e por Mack e pelos rapazes. Virtude, graça, indolência, deleite. Pai Nosso que estais na natureza.

 

A loja de Lee Chong fica à direita do terreno vago (porque se chama vago quando está atulhado de chaleiras velhas, canos ferrugentos, grandes toros quadrados e pilhas de latas de cinco galões, é que ninguém saberá dizer). Por trás do terreno vago fica a linha do comboio e o Palácio Flophouse. Mas no limite, à esquerda do terreno, situa-se a austera e majestosa casa de pegas da Dora Flood; uma casa de prazer decente, asseada, honesta, recatada, onde um homem pode beber uma cerveja entre amigos. Esta não é daquelas casas baratas de pernoitar, de entrar e sair, mas um clube fixe, respeitável, edificado, mantido e sujeito à disciplina da Dora, a qual, senhora e menina nestes cinquenta anos, se tem feito respeitar pelas pessoas inteligentes, cultas e humanas, pelos seus dotes de tato, honestidade, caridade e certo realismo. Por estes mesmos dotes a odeia a intrigante e lasciva irmandade das casadas-solteiras de quem os maridos respeitam os lares mas os não apreciam grandemente.

Dora é uma mulher grande, uma avantajada mulher que tem cabelos alaranjados e uma predileção pelos vestidos de noite, verde-nilo. Mantém um estabelecimento honesto de preço único, não vende bebidas fortes e não permite em sua casa linguagem torpe nem altercações. Das suas pequenas, umas estão inativas devido à idade ou à doença, porém Dora nunca as põe de parte, embora algumas, como diz, não rendam três paus por mês e comam três refeições por dia. Num momento de ternura pelo lugar deu Dora à sua casa o nome de Restaurante Guião do Urso e contam-se várias histórias de pessoas que foram ali pedir um sanduíche. Habitualmente há na casa doze raparigas, contando com as velhas, um cozinheiro grego e um homem que passa por ser o guarda, mas que desempenha toda a espécie de tarefas delicadas e perigosas. Põe termo a zaragatas, expulsa bêbedos, acalma histéricas, cura dores de cabeça e atende o bar. Põe pensos em feridas e contusões, passa o dia com os polícias, e, como grande parte das pequenas, pertence à Ciência Cristã, contribui com a sua parte de leitura da Ciência e Saúde nas manhãs de domingo. O predecessor, homem bem equilibrado, teve mau fim, como relataremos mais  adiante; Alfred, porém, saiu vitorioso do ambiente e levou o ambiente a elevar-se consigo. Ele sabe quais os homens que devem ali ir e os que não devem. Conhece mais da vida íntima dos cidadãos de Monterey do que outro qualquer da cidade. Quanto a Dora - leva vida atribulada. Como vai contra a lei, contra as suas regras pelo menos, tem de acatar duas vezes mais a lei do que outrem. Que não haja bêbedos, zaragatas ou desconchavos, de contrário fecham a casa de Dora. E, como é ilegal, Dora tem de ser particularmente filantrópica. Todos a exploram. Se a polícia organiza um baile a favor da sua caixa de pensões, e toda a gente concorre com um dólar, Dora é obrigada a dar cinquenta dólares. Quando a Câmara de Comércio fez melhoramentos no seu jardim os negociantes deram cinco dólares cada um, mas à Dora pediram cem e ela deu-os. Com todo o resto sucede a mesma coisa; para a Cruz Vermelha, a Caixa Pública, os escuteiros, são os proventos sem loas nem reclamo vergonhosamente sujos, que a Dora aufere do pecado, que vão à cabeça da lista dos donativos. Mas foi por ocasião da crise que ela sofreu mais duramente. Além das habituais obras de caridade, Dora, vendo as crianças esfomeadas de Cannery Row, os pais desempregados e as mães desesperadas, pagou contas de mercearia a torto e a direito durante dois anos e quase falia com essa maneira de proceder. As pequenas de Dora estão bem treinadas e são delicadas. Nunca se dirigem a alguém na rua ainda que ali tivesse estado na noite anterior. Antes do Alfred, o guarda atual, ocupar o lugar, deu-se uma tragédia no Restaurante Guião do Urso que penalizou toda a gente. O antigo guarda chamava-se William e era um homem moreno, de aspecto solitário. De dia, tendo pouco que fazer, enfastiava-se da companhia das mulheres. Da janela enxergava o Mack e os rapazes sentados nos canos do terreno vago balouçando os pés sobre a malva daninha, gozando o sol enquanto discorriam filosófica e paulatinamente sobre assuntos de muito interesse e nenhuma importância. Via-os tirar de quando em quando uma garrafa de Old Tennis Shoes e após um outro limpar-lhe o gargalo com a manga e levá-la à boca, e William entrou de desejar fazer parte daquele grupo simpático. Um dia dirigiu-se ao local e sentou-se no cano. A conversa cessou e um silêncio hostil e inquietante pesou sobre o grupo. Pouco depois William regressou desconsolado ao Guião do Urso e entristeceu-se vendo pela janela que a conversa recomeçara. O rosto tornou-se-lhe sombrio e carrancudo e a boca torceu-se-lhe de rancor.

No dia seguinte voltou lá, levando dessa vez uma garrafa de whisky. Mack e os rapazes beberam o whisky - no fim de contas não eram parvos -, mas só disseram:

- Que sorte e cá estamos.

Passado pouco tempo William voltou para o Guião do Urso, e ao olhar pela janela ouviu Mack dizer em voz alta:

- Má raios se não embirro com alcoviteiros! - Ora isto, evidentemente, era falso, embora William não o soubesse. Mack e os rapazes não gostavam simplesmente de William. O coração de William, porém, despedaçou-se. Os pulhas não o queriam na sua companhia. Achavam-no muito abaixo deles. William fora sempre introspectivo e propenso a censurar-se. Pôs o chapéu, e pela beira-mar seguiu até ao extremo do farol. Quedou-se ali no lindo cemiteriozinho de onde se ouvia perpetuamente marulhar as ondas. William entregou-se a pensamentos negros e tristes.

Ninguém o estimava. Ninguém o queria. Podiam chamar-lhe guarda, mas na realidade era um alcoviteiro - um alcoviteiro nojento, a coisa mais reles do mundo. Depois considerou que tinha tanto direito a viver e ser feliz como qualquer outro. E é que tinha mesmo, por Deus. Regressou em fúria, mas serenou quando chegou ao Guião do Urso e subiu as escadas. Era ao entardecer, a grafonola tocava a Lua de Ceifa, e William recordou que a primeira espertalhona que o pescou gostava daquela canção. Isto antes de ela fugir e ter casado e de se ter sumido. A melodia encheu-o de tristeza. Dora estava na salinha do fundo a tomar uma chávena de chá quando William entrou.

- Que aconteceu? - perguntou. - Está doente?

- Não - respondeu William. - Mas a quanto monta a minha percentagem? Sinto-me neura. Está cá a parecer-me que vou daqui enfrascar-me.

Dora lidara com muitos neuróticos no seu tempo. Tira-se-lhes a má disposição levando a coisa pra paródia - era o seu lema.

- Bem, faz isso nas horas livres e não me emporcalhes os tapetes - disse ela.

Uma nuvem densa e plúmbea abateu-se sobre o coração de William; saiu devagar, atravessou o átrio e bateu à porta de Eva Flanegan. Esta tinha cabelos ruivos e confessava-se todas as semanas. Toda espiritual e com uma família enorme de irmãos e irmãs, era no entanto borrachona incorrigível. Quando ele entrou compreendeu que ela estava indisposta, não consentindo Dora que qualquer rapariga trabalhasse sem estar em forma.

Ela pintava as unhas e fazia-o desastradamente. Tinha verniz nos dedos até à primeira falange e estava furiosa.

- Que te mordeu? - disse. William pôs-se também furioso.

- Vou emborrachar-me - respondeu, violento.

Eva desatou aos gritos:

- Isso é um pecado sujo, reles, nojento – clamava. - E depois: - Não é mesmo teu dar-te na veneta quando mal tenho forças pra dar um passeiozito a Saint-Louis? Meu grande bastardo, que não me prestas pra nada. Berrava ainda quando William fechou a porta atrás de si e se dirigiu para a cozinha.

Estava farto de mulheres. O grego seria um descanso depois das mulheres. De avental amplo e mangas arregaçadas, o cozinheiro fritava costeletas de porco em duas grandes sertãs, virando-as com o picão do gelo.

- Olá, Kits. Como vão as coisas? - As costeletas de porco crepitaram e estralejaram nas sertãs.

- Não sei, Lou - disse William. - Às vezes parece-me que a melhor coisa é cair! - e passou o dedo de um lado ao outro do pescoço!

O grego pousou o picão do gelo sobre o fogão e arregaçou mais as mangas.

- Eu digo o que eu ouve, Kits - disse. - Eu ouve que o tipo que diz nunca faz. - A mão de William adiantou-se para o picão e pegou-lhe naturalmente. Os seus olhos mergulharam com intensidade nos olhos escuros do grego e viram ali incredulidade e ironia, mas enquanto os fixava, os olhos do grego tornaram-se inquietos e depois aflitos. William notou a mudança: viu primeiro que o grego sabia que ele era capaz de o fazer e depois que o grego sabia que o faria. Assim que percebeu isto nos olhos do grego, William compreendeu que tinha de o executar. Ficou triste, porque já lhe parecia idiota. A mão ergueu-se e o picão penetrou-lhe no coração. Foi espantoso como penetrou com tanta facilidade. William foi o guarda antecessor de Alfred.

Todos estimavam Alfred. Ele podia sentar-se nos canos na companhia de Mack e dos rapazes sempre que lhe apetecesse.

Podia até ir de visita ao Palácio Flophouse.

 

À tardinha, mesmo ao anoitecer, acontecia uma coisa singular em Cannery Row. Ocorreria no espaço entre o pôr do Sol e o acender dos lampiões da rua. Havia então um momento de paz breve e nebuloso. No declive do outeiro, passado o Palácio Flophouse, surgia descendo o carreiro das galinhas e atravessando o terreno vago um velho chinês. Usava um antiquado chapéu de palha desabado, terno de ganga - tanto o casaco, como as calças - e sapatos grossos, um dos quais com a sola despregada de forma que estalava no chão ao caminhar.

Levava na mão um cesto de verga tapado. Tinha o rosto negro, tisnado, encordoado, e olhos castanhos - até o branco dos olhos era acastanhado - encovados de tal maneira que olhavam do fundo de uns buracos. Passava mesmo ao escurecer, e, atravessando a rua, metia pela passagem entre o Biológico Ocidental e o hediondo Cannery. Atravessava depois a praiazinha e desaparecia por entre os pilares e os postes de aço que sustentam o embarcadouro. Ninguém voltava a vê-lo antes da madrugada.

Mas de madrugada, à hora em que já apagado o lampião da rua, não surge ainda a luz do dia, o velho chinês engatinhava de entre os pilares, atravessando a praia e a rua. O cesto de verga ia agora pesado, molhado, a pingar. A sola despregada ia estalando no chão. Ele subia pelo monte até à segunda rua, enfiava pela cancela da sebe alta e larga e não voltavam a vê-lo senão à tardinha. Os que dormiam ouviam os estalidos da sola despregada e despertavam por momentos. Durava aquilo havia anos, mas ninguém se habituava. Alguns pensavam que era Deus, os muito velhos pensavam que era a morte e as crianças pensavam que era um chinês velho e engraçado, como sempre pensam as crianças que são engraçadas as coisas velhas e estranhas. No entanto as crianças não o atormentavam ou não lhe gritavam como seria natural, porque ele trazia consigo uma aureolazita de terror. Apenas um rapazinho de dez anos, de Salinas, destemido e lindo, chamado Andy, desafiou uma vez o velho chinês. Andy encontrava-se em Monterey. Viu o velho e entendeu que devia gritar-lhe ainda que não fosse senão por respeito por si próprio; mas até Andy, corajoso embora, sentiu a aureolazita de terror. Andy viu-o passar noite após noite e o dever e o medo travaram luta. Então, uma noite, Andy decidiu-se e, correndo atrás do velho, cantou num falsete esganiçado: “Um chinó, chinó, china, nas grades se sentou. Veio um homem branco e o rabicho lhe cortou.” O velho estacou e voltou-se. Andy parou. Os encovados olhos castanhos fixaram Andy e os lábios delgados moveram-se. O que se passou então nunca mais foi possível a Andy explicar ou esquecer. Porque os tais olhos alargaram-se até deixar de haver chinês para ser só um olho - olho castanho descomunal, tão grande como uma porta de igreja. Andy olhou pela porta castanha e transparente e através dela viu um campo solitário plano ao longo de milhas mas terminando de encontro a uma sequência de montanhas fantásticas do feitio de cabeças de vaca, de cão, de cogumelos, de barracas. Na planície uma erva grossa, rasteira; aqui e ali pequenos diques. Em cada um destes diques estava sentado um bicho parecido com um castor.

E a solidão, a fria desolação da inóspita paisagem fizeram chorar Andy, pois ninguém restava no mundo, só ele ficara.

Andy cerrou os olhos para não continuar a ver; ao abri-los encontrou-se em Cannery Row e o velho chinês ia passando entre o Biológico Ocidental e o hediondo Cannery. Foi Andy o único menino que algum dia ousou fazer isto e não reincidiu.

O Laboratório Biológico Ocidental situava-se mesmo do outro lado da rua, em frente do terreno vago. A mercearia de Lee Chong ficava na esquina em diagonal à esquerda e o Restaurante Guião do Urso, pertencente à Dora, na esquina em diagonal à direita. O Biológico Ocidental negocia em estranhas e belas mercadorias. Vende lindos animais marinhos, esponjas, anêmonas, tunicados, estrelas-sol bivalves, bemacas, minhocas, conchas, rãs e flores vivas do mar; tetrabrânquios e nudibrânquios, bojudos ouriços espinhosos e eriçados, caranguejos e meios-caranguejos, dragõezinhos, frenéticos camarões escuros, tão transparentes que mal projetam sombra. O Biológico Ocidental vende pulgões, caracóis, aranhas, cobras cascavéis ratos, abelhas de mel e lagartos monstros. Estes são todos para venda. Mas há, além destes, pequenos seres humanos em embrião, uns inteiros outros reduzidos a lâminas delgadas e montadas em placas corrediças. E, para os estudantes, tubarões dissecados em cujas veias e artérias foi substituído o sangue por substâncias azuis e amarelas para se lhes poderem seguir os sistemas com um escalpelo. Há ainda gatos com as veias e as artérias coloridas e rãs igualmente. Pode encomendar-se ao Biológico Ocidental um ser vivo seja ele qual for que mais tarde ou mais cedo se virá a recebê-lo.

É um edifício atarracado com frente para a rua. A cave é o armazém, com as prateleiras; prateleiras até ao teto, cheias de frascos que contêm animais. Tem a cave também um tanque e apetrechos para injetar e embalsamar. Vai-se depois pelo pátio das traseiras até um alpendre coberto, elevado sobre estacas acima do mar; aqui estão os tanques para animais mais corpulentos; os tubarões, as raias e os polvos, cada qual no seu tanque de cimento. Do lado de fora do edifício encontra-se uma escadaria e uma porta que dá para o escritório. Neste vê-se uma secretária atravancada de correspondência por abrir, cacifos para os arquivos e um cofre com a porta escancarada. Em certa ocasião o cofre foi fechado sem querer e ninguém sabia o segredo da fechadura. No cofre estava uma lata de sardinhas aberta e um pedaço de queijo Roquefort. Antes de o fabricante ter enviado a chave do segredo deu-se um contratempo no interior do cofre. Foi então que o doutor concebeu um sistema para quem um dia desejasse tirar vingança de algum banco. Alugue-se um cofre num banco, disse, deixe-se lá dentro um salmão fresco inteiro e ausente-se pelo espaço de seis meses. Depois do contratempo com o cofre não mais foi permitido pôr ali comida. Guardava-se nos contadores dos arquivos. Por trás do escritório há um compartimento onde, num aquário, estão muitos animais vivos.

Ali encontram-se também microscópios, lâminas, armários para drogas, caixotes de frascos, bancas de trabalho, pequenos motores e substâncias químicas. Deste quarto emanam cheiros: a formalina, estrelas-do-mar secas, água do mar e mentol, ácido carbônico e ácido acético, cheiro a papel pardo de embrulho, a palha, a cordas; cheiro a clorofórmio, a éter; cheiro ao ozônio dos motores, cheiro a aço puro e ao finíssimo lubrificante dos microscópios; cheiro a óleo de banana e a tubos de borracha, cheiro de meias de lã a secar e a botas, o cheiro forte e acre das cobras cascavéis e o cheiro pestilento e concentrado dos ratos. Ainda pela porta do fundo, o cheiro a algas calcinadas e a borracha quando a maré está baixa e o cheiro a sal e a espuma quando sobe a maré. À esquerda, o escritório abre para uma biblioteca. As paredes desta estão forradas de estantes de livros até ao teto, caixas de panfletos, separatas, livros de toda a espécie; dicionários, enciclopédias, poesia, peças. Encostada à parede uma enorme grafonola e junto dela, alinhados, centos de discos. Por baixo da janela está uma cama de pau-rosa e pelas paredes e nas estantes vêem-se espalhadas reproduções de Daumier, Graham, Ticiano, Leonardo, Picasso, Dali e George Groz penduradas à altura dos olhos, de maneira a poderem ser examinadas. Neste quartinho há cadeiras, bancos, e a cama, claro. Já ali se reuniram quarenta pessoas de uma só vez.

Nas traseiras desta biblioteca, salão de música ou o que queiram chamar-lhe, está a cozinha, um compartimento estreito com um fogão a gás, esquentador e um lavadouro. Mas, enquanto parte da comida é guardada nos contadores dos arquivos, as travessas, as gorduras e os legumes são guardados na cozinha, nas divisórias envidraçadas das estantes. Não foi capricho a origem de tudo isto; aconteceu. Do teto da cozinha pendem bocados de presunto, de salame e chouriço de sangue. Fora da cozinha há um lavatório e um chuveiro. O lavatório verteu água durante anos até um hóspede gentil e amável o vedar com um pedaço de goma elástica.

O doutor é o proprietário e o funcionário do Biológico Ocidental. Sobre o baixo, parecendo pequeno, o doutor é rijo e forte, e, quando assaltado por fúrias de mau gênio, capaz de tornar-se muito violento. O seu rosto, com barbicha, é meio de Cristo meio de sátiro e do seu rosto emana a verdade. Diz-se dele que tem ajudado muita moça a sair de um embaraço para a meter noutro. O doutor tem as mãos de um cirurgião craniologista e espírito lúcido e avisado. Costuma levar a mão ao chapéu quando passa pelos cães, e eles reconhecem-no e sorriem. Capaz de matar seja o que for por necessidade, é todavia incapaz de ferir sentimentos por prazer. Nutre um único receio, o de molhar a cabeça - de modo que tanto de Verão como de Inverno usa chapéu impermeável. Pode meter-se num charco até ao pescoço e não sentir a umidade, mas um pingo de chuva na cabeça deixa-o aterrorizado. No decorrer dos anos afundara-se o doutor a um tal ponto em Cannery Row que nem ele próprio suspeitava. Transformou-se em fonte de filosofia, de ciência, de arte. Foi no laboratório que as pequenas da Dora ouviram pela primeira vez as canções das pradarias e a música gregoriana. Lee ouviu ler Li Po em inglês. Henri, o pintor, tomou pela primeira vez conhecimento com o Livro dos Mortos e tão impressionado ficou que mudou de material. Costumava Henri pintar com cola, ferrugem e coloridas penas de galinha, mas mudou; os quatro quadros seguintes foram executados inteiramente com cascas de noz de diferentes qualidades. O doutor prestava-se a ouvir toda a sorte de asneiras, transformando-as numa espécie de sabedoria.

O seu espírito não tinha horizontes nem óbices a sua simpatia. Conseguia falar às crianças de coisas profundas de forma a que o entendessem. Vivia num mundo de maravilha e de entusiasmos. Era concupiscente como um coelho e carinhoso como ninguém.

Todos os que o conheciam estavam em dívida para com ele. E todos, pensando nele, logo resolviam: Realmente tenho de fazer alguma coisa pelo doutor.

 

O doutor andava na recolha de animais marinhos na lagoa Grande da Maré, na ponta da península. É um lugar de fábula: na maré alta, bacia de ondas revoltas, leitosa de espuma, batida por vagalhões que seguem rolando desde a bóia de apito aos recifes; mas quando a maré vaza, o pequeno mundo aquático torna-se tranquilo e encantador. Fica o mar muito límpido e o fundo apresenta-se fantástico com a sua fauna buliçosa, aguerrida, comilona e procriadora. Correm os caranguejos de fronde em fronde das algas ondulantes. Acaçapam-se estrelas-do-mar sobre mexilhões e lapas aplicando-lhes os seus milhões de ventosas minúsculas que sugam com energia incrível até a presa despegar da rocha projetando-se então o estômago da estrela-do-mar, que envolve o alimento. Estriados, mosqueados; nudibrânquios cor de laranja deslizam graciosos sobre as rochas, os folhos adejando, como saias de bailadeiras espanholas. E cabeças de enguias negras espreitam de entre as fendas aguardando as presas. Os lagostins, em repentes, dão estalidos secos com as pinças. O mundo colorido e encantador apresenta-se vidrado. Caranguejos eremitas, quais crianças assustadas, enfiam pelo fundo da areia. E agora um, descobrindo uma concha de caracol vazia, que prefere à sua, sai, e, expondo por instantes o corpo flácido ao inimigo, recolhe à nova concha. Quebra-se uma onda sobre o dique e por momentos a água vidrina agita-se, provoca um borbulhar na lagoa e retoma a sua limpidez, voltando a ser tranquila, fascinante, mortífera. Aqui um caranguejo arranca uma perna ao seu irmão. As anêmonas, distendendo-se como flores macias e brilhantes, convidam o bichinho cansado e irresoluto a deitar-se um momento em seus braços, e quando um pequeno caranguejo aceita o convite verde e violeta, as pétalas contraem-se, as células aceradas cravam as suas agulhazinhas narcotizantes na presa e esta logo se torna fraca e sonolenta, enquanto os ácidos cauterizantes, cáusticos, digestores, lhe vão dissolvendo o corpo. Ali o tentacular assassino, o polvo, insinua-se voluptuoso, de mansinho, movendo-se como névoa cinzenta, simulando agora um pedaço de alga, logo uma rocha, depois um bocado de carne apodrecida, enquanto os seus olhos maléficos de cobra aguardam friamente. Desliza, flutua direto a um caranguejo, e conforme se aproxima cintilam-lhe os olhos, torna-se-lhe rosado o corpo, da cor palpitante da antecipação e da gula. Corre então, de súbito ligeiro, nas pontas dos tentáculos, tão feroz como um gato no assalto. Avança brutal sobre o caranguejo, despede um jato de líquido negro e o vulto em luta fica obscurecido na nuvem sépia enquanto o polvo assassina o caranguejo. Sobre as rochas expostas gorgolejam as bemacas por trás das suas portas cerradas e ressecam as lapas.

As moscas negras descem até às rochas para comer o que por lá encontram. Os cheiros, ativo das algas, áspero dos corpos calcários e forte da proteína, o odor a esperma, a ova, saturam o ar. Sobre as rochas salientes as estrelas-do-mar depositam sêmen e ovos de entre os seus raios. Os cheiros de vida e seiva, de morte e digestão, de putrefação e germinação enchem o ar. E a babugem salgada é arremessada do dique, onde o oceano aguarda o seu ímpeto de maré cheia que lhe permita entrar de novo na lagoa Grande da Maré. E no topo do recife a bóia de apito muge como um touro triste e pachorrento. Na lagoa o doutor e Hazel trabalham juntos. Hazel vive no Palácio Flophouse com Mack e os rapazes. Recebeu Hazel o seu nome de maneira tão estapafúrdia como estapafúrdia foi desde então a sua vida. A infeliz mãe teve em oito anos sete filhos. Hazel foi o oitavo, e a mãe, quando ele nasceu, estabeleceu confusão quanto ao seu sexo. Estava fraca e cansada de alimentar e vestir sete crianças além do pai. Todos os meios possíveis tentara para fazer dinheiro - flores de papel, cogumelos de cultivo caseiro, coelhos, negociando tanto a carne como a pele -, enquanto o marido, da sua cadeira de lona, lhe ia ministrando todo o auxílio que os seus conselhos, argumentos e críticas podiam oferecer. Tinha ela uma tia-avó chamada Hazel, beneficiária, segundo constava, de um seguro de vida. A última criança recebeu, pois, o nome de Hazel antes de a mãe ter compreendido que Hazel era um rapaz; depois já ela estava habituada ao nome e não se adaptou à ideia de o mudar. Hazel cresceu, fez quatro anos de escola primária, outros quatro de reformatório e nada aprendeu em qualquer deles. Os reformatórios destinam-se a combater o vício e o crime, porém Hazel não prestava atenção suficiente.

Saiu do reformatório tão isento de vício como ignorante de frações e de divisões. Hazel gostava de ouvir falar, mas não ligava o sentido às palavras - só ao tom da conversa. Fazia perguntas não para ouvir as respostas, apenas para manter a corrente. Tinha vinte e seis anos - era moreno, alegre, forte, prestável e leal. Acompanhava frequentemente o doutor nas suas colheitas, desempenhando-se muito bem da sua missão uma vez inteirado do que era preciso procurar. Os seus dedos conseguiam deslizar como um polvo, agarrar e prender como uma anémona. Era firme de pés sobre as rochas escorregadias e adorava a caça. O doutor conservava no trabalho o seu chapéu impermeável e as suas botas altas, mas Hazel chafurdava de um lado para o outro de sapatos de tênis e calções de ganga.

Apanhavam estrelas-do-mar. O doutor recebera uma encomenda de trezentas.  Hazel apanhou do fundo da lagoa uma grande estrela roxa e meteu-a no seu saco de lona, já quase cheio.

- Que fazem com elas? - perguntou.

- Fazem com quê? - perguntou o doutor.

- Com as estrelas-do-mar - disse Hazel. - O senhor vende-as. Despacha uma barrica delas. Que lhes fazem os tipos? Não se podem comer.

- Estudam-nas - respondeu o doutor pacientemente, lembrando-se de ter já elucidado Hazel dúzias de vezes.

Possuía, no entanto, o doutor um hábito mental que não conseguia modificar. Se alguém lhe perguntava qualquer coisa o doutor entendia que era para saber a resposta. Era assim o doutor. Nunca perguntava coisa alguma, a não ser para saber e não concebia um cérebro curioso sem o desejo de conhecimentos. Hazel, todavia, que apenas queria ouvir o som das palavras, adotara o sistema de fazer da resposta a uma pergunta base para outra. Fazia assim prolongar a conversa.  

- Qui é queles lhes acham pra estudar? - continuou Hazel. - São só estrelas-do-mar. Há p'raí milhões. Podia arranjar-lhes um milhão delas.

- São bichos complicados e interessantes - disse o doutor, um pouco na defensiva. - Estes vão para o Oeste Central, para a Universidade do Noroeste.

Hazel aplicou o seu sistema.

- Lá não têm estrelas-do-mar?

- Lá não há mar - disse o doutor.

- Ah! - fez Hazel e procurou ansiosamente um gancho onde, pendurasse outra pergunta. Aborrecia-o ver terminar assim uma conversa. Não era suficientemente rápido. Enquanto procurava uma pergunta já o doutor fazia outra. Hazel embirrava com aquilo; forçava a cabeça a magicar outra pergunta, e magicar era para Hazel como deambular sozinho num museu deserto. A cabeça de Hazel estava atafulhada de espécimes não catalogados. Nunca se esquecia de coisa alguma mas não se dava ao trabalho de pôr em ordem as suas recordações. Estavam todas amalgamadas como apetrechos de pesca no fundo de um bote; anzóis, chumbos, linhas, engodos, arpões, tudo de cambulhada.

O doutor prosseguiu:

- Como vai isso lá pelo Palácio? - Hazel passou os dedos por entre os cabelos negros e espreitou a baralhada do seu espírito.

- Mais ou menos bem - disse. - O Gay parece que vai viver com a gente. A mulher bate-lhe. Ele não se rala quando está acordado, mas ela espera até quele adormeça e depois é que o zurze. Ele chateia-se com aquilo. Tem d’acordar e dar-lhe pancada. Nem descansa; é por isso que vai juntar-se à gente.

- Isso é novidade - respondeu o doutor. - Ela costumava dar parte dele e metê-lo na cadeia.

- Era! - disse Hazel. - Mas isso foi antes de construírem a cadeia nova em Salinas. Trinta dias, e Gay ficava em pulgas pra sair cá p'ra fora; mas esta nova - ele é rádio no refeitório, boas camaratas e o xerife é um tipo simpático. Vai p'ra lá e não quer de lá sair. Gosta tanto daquilo que mulher deixou do mandar prender. Foi por isso que deu em bater-lhe quando o apanha a dormir. É de arrasar os nervos, diz ele. E o senhor sabe tão bem como eu - o Gay não acha piada em andar à tapona à mulher. Só faz é pra se dar ao respeito. Mas está farto. Acho que agora vai viver com a gente.

O doutor endireitou-se. As ondas já rebentavam contra o dique da lagoa Grande da Maré. A maré começava a subir e já escorriam das rochas pequeninos rios. Das bandas da bóia de apito o vento soprava fresco e de além do cabo chegava o latir das morsas. O doutor empurrou o chapéu para o cocuruto.

- Já temos estrelas que cheguem - disse, e prosseguiu: - Olha, Hazel, sei muito bem que levas aí no fundo do saco seis ou sete pequenos búzios. Se formos detidos pelo guarda do defeso vai dizer que me pertencem, que foi com minha licença, não é?

- Oh, cum raio! - exclamou Hazel.

- Olha - disse o doutor com brandura -, imagina que recebo uma encomenda de búzios e que o guarda entende que abuso da licença de colheita? Imagina que ele se convence de que eu os como?

- Oh, com um raio! - repetiu Hazel.

- Dá-se o mesmo com a Junta Industrial dos Alcoóis. São uns desconfiados. Julgam sempre que bebo o álcool. Pensam o mesmo de toda a gente.

- E não o bebe?

- Não muito - disse o doutor. - A zurrapa que lhe misturam tem um gosto horrível e dava muito trabalho destilá-lo de novo.

- A mistura não é má de todo. Qué que lhe botam?

Ia o doutor a responder quando se deu conta de que se tratava mais uma vez do truque de Hazel.

- Vamos indo - disse. Atirou com a sacola das estrelas-do-mar para o ombro. Esquecera os búzios clandestinos do fundo do saco de Hazel.

Hazel seguiu-o engatinhando para fora da lagoa e pelo regueiro escorregadio até chão firme. Pequenos caranguejos espantadiços afastavam-se do caminho. Hazel sentiu que seria melhor cimentar a sepultura sobre a questão dos búzios.

- Aquele tipo, o pintor, voltou prò Palácio - anunciou.

- Sim? - disse o doutor.

- Pois é! Não vê quele tinha feito os nossos retratos todos com penas de galinha e agora diz que tem de fazê-los outra vez com cascas de nozes? Diz ele que mudou o seu med... medium.

Riu-se o doutor.

- Ele continua a construir o barco?

- Pois - disse Hazel. - Mudou tudo. Quer um barco de um gênero completamente diferente. Se calhar desmancha-o todo pro transformar. Ele estará pírulas?

O doutor deixou descair o pesado saco das estrelas até ao chão e quedou-se um pouco ofegante.

- Pírulas? - indagou. - Ah, sim, creio que sim. Pírulas estamos nós todos, mas de maneira diferente.

Nunca ocorrera aquilo a Hazel. Considerava-se uma cristalina lagoa de pureza e a sua vida uma embaciada vidraça de mal compreendida virtude. A afirmação do doutor chocou-o sobremodo.

- Mas o tal barco - exclamou -, queu saiba, há setanos quele anda na construção do barco. Os moutões apodrecem-lhe e vai ele e faz-lhe moutões de cimento. De cada vez que o tem quase pronto faz modificações e torna a começá-lo. Cá pra mim é pírulas. Setanos à roda dum barco!

Sentado no chão, o doutor descalçava as botas de borracha.

- Tu não compreendes - disse com doçura -, Henri adora os barcos, mas tem horror ao mar.

- Então pra que quer ele o barco? - inquiriu Hazel.

- Gosta de barcos - disse o doutor. - Mas imagina que ele acaba o barco? Uma vez acabado, todos lhe vão perguntar: Porque não o mete à água? E se ele o lança à água terá de ir nele e ele odeia a água. Por isso, já vês, nunca acaba o barco para não ter de o lançar à água.

Hazel seguira o raciocínio até certa altura, abandonando-o porém antes da conclusão, e não só o abandonou mas também tentou por qualquer meio mudar de assunto.

- Acho que ele é pírulas - repetiu fracamente.

Pelo solo negro onde floresciam as ervas do orvalho rastejavam centos de carrapatas negras. Muitas delas andavam de rabo alçado.

- Olhe-me pra todas estas carrapatas nojentas - observou Hazel agradecido às carrapatas pela sua presença.

- São muito curiosas - disse o doutor.

- Está bem, mas porque andam elas assim de rabo pro ar?

O doutor enrolou as meias de lã, meteu-as dentro das botas de borracha e tirou da algibeira peúgas lavadas e um par de sandálias leves.

- Não sei porque será - disse. - Li bastante a respeito delas ultimamente; são bichos muito vulgares e o que mais costumam fazer é alçar o rabo. Mas nenhum dos livros que li faz uma única referência ao fato, nem por que razão andam assim.

Hazel virou uma das carrapatas com a ponta do seu sapato molhado de tênis e a carrapata luzidia, desesperada, barafustando com as pernas, tentou endireitar-se. - Veja lá; e a si, porque lhe parece que fazem isto?

- Julgo que estão a rezar - respondeu o doutor.

- Quê?! - admirou-se Hazel, escandalizado.

- O que é extraordinário - disse o doutor - não é elas alçarem o rabo; na realidade a coisa inacreditavelmente surpreendente é nós a acharmos espantosa. Só nos temos a nós mesmos para bitola. Se fizéssemos uma coisa assim tão estranha e inexplicável estaríamos provavelmente a rezar, por isso talvez elas estejam a rezar. - Coa breca - disse Hazel -, vamos mas é pôr-nos daqui pra fora.

 

O Palácio Flophouse não se desenvolveu repentinamente. Em boa verdade, quando Mack e Hazel, o Hughie e Jones para lá foram consideraram-no pouco mais do que um abrigo contra o vento e a chuva um lugar para onde ir quando tudo fechasse ou quando o acolhimento, por demasiado repetido, fosse frio e seco. O Palácio era, à data, apenas um compartimento comprido e nu, fracamente alumiado por duas janelinhas, de paredes de madeira sem pintura e tresandando a farinha de peixe. Na altura não lhes mereceu grande simpatia. Mack compreendeu que se tornava urgente uma organização qualquer, sobretudo num grupo de tão desenfreados individualistas. Um exército em treinos que não tenha sido equipado com canhões, artilharia e tanques, utiliza armas simuladas e canhões fingidos para arremedar um armamento destruidor - e os seus soldados calejados acostumam-se às peças de artilharia manejando madeiros sobre rodas. Mack desenhou no chão com um pedaço de giz cinco retângulos com sete pés de comprimento e cinco de largura, e em cada um escreveu um nome. Estes eram as camas simuladas. Cada um dos homens tinha direitos invioláveis de propriedade dentro do seu espaço. Podia castigar legalmente quem lhe invadisse o quadrilátero. O resto do compartimento era propriedade de todos. Isto foi nos primeiros dias, quando Mack e os rapazes se sentavam no chão, jogavam as cartas de cócoras e dormiam no sobrado duro. Talvez tivessem continuado sempre a viver assim se não fosse um revés do tempo. Porém, uma chuvada sem precedentes, que durou mais de um mês modificou tudo. Enclausurados, os rapazes cansaram-se de ficar agachados no chão. Indignaram-se os seus olhos com a nudez das tábuas das paredes. A casa, porque os abrigava, tornou-se-lhes querida.

Demais, possuía o encanto de nunca experimentar a visita de um ultrajado proprietário. Lee Chong nem por lá passava. Ora uma tarde Hughie apareceu com uma cama de campanha com a lona rasgada. Levou umas duas horas a coser o rasgão com fio de pesca. E nessa noite os outros, deitados no chão nos seus quadriláteros, viram Hughie enfiar-se graciosamente para dentro da sua cama, ouviram-no suspirar de abismal conforto, adormecer e ressonar antes de qualquer deles.

No dia seguinte, Mack, bufando pelo morro acima, carregava com um colchão de arame ferrugento que encontrara num depósito de sucata. Quebrou-se então a apatia. Excediam-se os rapazes uns aos outros no alindamento do Palácio Flophouse, de sorte que em poucos meses este, a bem dizer, regurgitava. Havia pelo chão tapetes velhos, cadeiras com e sem assento. Mack tinha um canapé de verga pintado de vermelho vivo. Havia mesas, um relógio de caixa alta sem mostrador nem máquina. Caiaram as paredes, o que tornou a casa quase clara e com aspecto arejado. Começaram a aparecer quadros - na maior parte calendários onde inverossímeis louras adocicadas exibiam garrafas de coca-cola. Henri contribuiu com dois espécimes do seu período das penas de galinha. A um canto havia um molho de canas de plumas douradas, e pregado na parede, ao lado do relógio, um feixe de penas de pavão. Levaram tempo para adquirir um fogão, e quando finalmente encontraram o que queriam - um monstro todo arabescos prateados com fornos floreados e uma fachada que era mesmo um niquelado jardim de tulipas - tiveram um trabalho insano para o obter. Grande de mais para ser roubado, o seu proprietário recusava separar-se dele para o dar à viúva enferma com oito filhos que Mack inventara e patrocinara a um tempo. O dono queria dólar e meio por ele e não desceu para oitenta cents durante três dias. Os rapazes ficaram-se nos oitenta cents passando-lhe um vale, que ele certamente ainda hoje possui. Esta transação efetuou-se em Seaside e o fogão pesava trezentas libras. Mack e Hughie esgotaram todas as possibilidades de transporte durante dez dias, e só quando concluíram que ninguém lhes levaria o fogão a casa decidiram carregar com ele. Levou três dias a ser transportado até Cannery Row, uma distância de cinco milhas, acampando eles de noite a seu lado. Mas, uma vez instalado no Palácio Flophouse, foi ele a glória, o lar, o centro. As suas flores e folhagem niqueladas espargiam alegria cintilante. Era o dente de ouro do Palácio. Aceso, aquecia todo o compartimento. O seu forno era uma maravilha e sobre a sua chapa negra podiam estrelar-se ovos. Juntamente com o fogão entrou a vaidade, e com a vaidade o Palácio transformou-se em lar. Eddie plantou uns pés de bons-dias para crescerem aos lados da porta e Hazel adquiriu umas fúcsias raras, que, plantadas em bidões de cinco galões, tornavam a entrada um tanto formal e um pouco atravancada. Mack e os rapazes adoravam o Palácio, chegando mesmo a limpá-lo de longe em longe. Escarneciam intimamente das pessoas errantes sem casa onde se acolhessem, e, na sua vaidade, levavam amiúde um convidado para ficar com eles um ou dois dias.

Eddie era assistente de barman no La Ida. Substituía Whitey, o efetivo, quando este adoecia, o que acontecia tantas vezes quantas o Whitey conseguia escapulir-se. Sempre que Eddie o substituía desapareciam umas tantas garrafas; por isso não podia substituí-lo muitas vezes. Todavia, Whitey estimava que fosse o Eddie a ocupar-lhe o lugar, pois estava convencido, e com razão, de que Eddie não era homem para lhe tomar o lugar de vez. Qualquer se podia dar no Eddie até esse ponto. Eddie não precisava de subtrair muito vinho. Conservava por baixo do balcão um jarro de galão e na boca do jarro um funil. Todos os restos que vinham dos copos deitava-os Eddie pelo funil abaixo antes de os lavar. Enquanto se travava uma disputa ou se entoava uma canção no La Ida, ou pela noite dentro, quando a boa camaradagem atingia lógico remate, Eddie despejava no funil copos meio cheios e a dois terços. O ponche resultante que levava para o Palácio era sempre interessante e por vezes surpreendente. A mistura de aguardente, cerveja, bourbon, scotch, vinho, rum e genebra era mais ou menos certa, mas de quando em quando um freguês requintado pedia um licor, um anisete ou um curaçau, e estes toques davam ao ponche um caráter especial. Eddie tinha por hábito misturar sempre um pouco de bitter no jarro antes de sair. Em noites de sorte Eddie obtinha umas três quartas de galão. Era para ele motivo de satisfação que ninguém ficasse a perder. Já observara que um homem tanto se embebeda com meio copo como com um cheio; isto se realmente se está na disposição de se embebedar. Eddie era um ocupante muito apreciado no Palácio Flophouse. Nunca os outros lhe pediam para ajudar às limpezas, e em certa ocasião Hazel lavou quatro pares de meias ao Eddie.

Ora na tarde em que Hazel se encontrava com o doutor na lagoa Grande da Maré estavam os rapazes sentados a beberricar uma recente contribuição de Eddie. Gay, o último membro do grupo, também lá se encontrava. Eddie sorvia contemplativamente golinhos do copo e fazia estalar os beiços.

- Tem piada como se estabelecem correntes disse. - A noite dontem, por exemplo. Plo menos dez tipos pediram manhattans. Há ocasiões em que se passa um mês sem ninguém pedir um manhattan. É a grenadine que dá este gosto a isto. Mack provou o dele - um longo sorvo - e voltou a encher o copo.  

- Sim - disse ele, compenetrado -, são as pequeninas coisas que fazem a diferença. - Circunvagou o olhar para ver como acolhiam os outros esta jóia. Apenas Gay apreendeu todo o sentido.

- É pois. - disse.

- Será.

- Onde parará hoje o Hazel? - perguntou Mack.

- Hazel foi plas estrelas-do-mar com o doutor - informou Jones. Mack maneou, compenetrado, a cabeça.

- Aquele doutor é um tipo legal a valer - disse ele -, capaz de dar uma coroa em qualquer altura. Quando me cortei punha-me uma ligadura nova todos os dias. É um tipo bom a valer.  Os outros afirmaram com a cabeça absoluta concordância.

- Ando cá a magicar há tempo - continuou Mack - qué que gente podia fazer por ele - coisa decente - quele gostasse.  

- Do quele gostava era de uma dama - disse Hughie.

- Damas tem ele já duas ou três - observou Jones.

- A gente sabe logo: corre as cortinas da frente e põe na grafonola aquela espécie de música digreja. - Mack dirigiu-se repreensivamente a Hughie:

- Lá porque anda p'raí de dia p'las ruas com uma dama, pensas que o doutor é celebratário.  

- Qué celebratário? - perguntou Eddie.

- É quando não se consegue arranjar uma dama - respondeu Mack.

- Julguei quera uma espécie de festa - continuou Jones.

Fez-se silêncio. Mack remexeu-se no canapé, Hughie deixou pousar no chão as pernas dianteiras da cadeira. Fitaram o espaço e depois olharam todos para Mack. Este fez:

- Hum!

- Que gênero de festa é que vocês acham quo doutor gostaria? - perguntou Eddie.

- Não há senão um gênero, pois não? - acrescentou Jones.

Mack ponderava:

- O doutor não aprecia esta misturada do jarro com certeza.

- Como sabes tu? - inquiriu Hughie. - Nunca lhofereceste.  

- Ora, sei - disse Mack. - Ele andou na escola. Vi entrar p'rali uma vez uma dama de casaco de peles. Não a vi sair. Eram duas horas quando espreitei a última vez, e a música digreja inda continuava a tocar. Ná, não se lhe pode ofrecer nada disto. - Encheu de novo o copo.

- Isto, depois do terceiro copo, não é nada mau - disse Hughie com entusiasmo.

- Não - disse Mack. - Mas não pro doutor. Tem de ser whisky do autêntico.

- Ele gosta mas é de cerveja - disse Jones. - Passa a vida a ir buscar cerveja ao Lee, às vezes até a meio da noite. - Eu cá acho que quando se compra cerveja compra-se tara a mais. Tomem lá vocês oito por cento da cerveja, pois gasta-se o dinheiro em noventa e dois por cento dágua, corante, lúparo e outras coisas assim. Eddie, achas que podias arranjar aí umas quatro ou cinco garrafas de whisky no La Ida da primeira vez quo Whitey ficar doente? - disse Mack.

- Podia, pois - respondeu Eddie.

- Tá visto que podia, mas acabava-se tudo; lá siam os ovos douro. Mesmo assim, acho quo Johnie já anda desconfiado. No outro dia disse-me: cheiramaqui a um rato chamado Eddie.

- Eu estava com tenção de parar e trazer só o jarro durante algum tempo.

- Eh pá! - exclamou Jones. - Não percas o emprego. Se acontecesse alguma coisa ao Whitey até podias lá ficar uma semana ou mais enquanto não arranjavam outro. Acho que essa gente vai dar uma festa ao doutor, temos de comprar o whisky. Quanto custa cada galão?

- Não sei - disse Hughie. - Eu p'ra mim não compro mais de meio quartilho, duma vez, bem entendido. É sabido; compra-se um quartilho e arranjam-se logo amigos. Mas sa gente comprar meio quartilho, podir bebê-lo prò terreno antes que, ora, antes quapareça uma data de gente.

- Pra fazer uma festa ao doutor inda vai custar muito baguinho - disse Mack. - Sa gente damos a festa, tem de ser festa rija. Devia haver um bolo grande. Quando são os anos dele?

- Não é preciso ele fazer anos pra darmos a festa - retorquiu Jones.

- Não, mas tinha piada - acrescentou Mack. - Acho queram precisas dez ou doze coroas pra dar uma festa ao doutor que não envergonhasse a gente.

Olharam uns para os outros interrogativamente. Hughie sugeriu:

- O Hediondo Cannery contrata rapazes.

- Ná - atalhou Mack. - A gente tem cá a nossa reputação e não vai estragá-la. Qualquer de nós quandarranja um emprego conserva-se lá um mês ou mais; por isso é quarranjamos sempre emprego quando queremos. Imaginem qua gente sempregava só por um dia ou dois; perdíamos logo a reputação de parar nos empregos. E depois quando a gente precisasse dum emprego ninguém nos queria. - Os outros acenaram pressuroso assentimento.

- Tá-me cá a parecer que me vou pôr a trabalhar um par de meses; Novembro e parte de Dezembro - disse Jones. - Sabe bem ter um dinheirito à mão plo Natal. Podíamos assar um peru esti ano.

- E é que podíamos, caramba! - afirmou Mack. - Sei dum lugar lá plas bandas do vale Carmel onde há mil e quinhentos num só bando.

- Vale - apoiou Hughie. - Vocês sabem queu costumava apanhar umas coisas pro doutor lá no vale; tartarugas, caranguejos e rãs. Tirava um níquel em cada rã.

- E eu - acrescentou Gay - uma vez apanhei quinhentas rãs.  

- So doutor precisar de rãs, tá tudo feito - disse Mack. - A gente podia subir ao rio Carmel, ter umas feriazinhas; não se dizia nada ao doutor prò quera e dava-se-se-lhe uma festa darromba.

Um grande entusiasmo pairou no Palácio Flophouse.  

- Gay - disse Mack. - Chegai a espreitar à porta e vê so carro do doutor está lá em frente da casa.

Gay pousou o copo e foi espreitar.

- Inda não - disse.

- Bom, deve estar a rebentar, mais minuto menos minuto - disse Mack. - Agora a gente vai fazer a coisa desta maneira.  

 

Em Abril de 1932 rebentou pela terceira vez no Hediondo Cannery um dos tubos da caldeira, e o conselho da direção, composto por Mr. Randolph e por um estenógrafo, decidiu que saía mais barato comprar uma caldeira nova do que encerrar as portas tão frequentemente. A seu tempo chegou a nova caldeira e a velha foi levada para o terreno vago entre a casa de Lee Chong e o Restaurante Guião do Urso e colocada sobre blocos para aguardar uma inspiração de Mr. Randolph com vistas a extrair dela algum dinheiro.

Gradualmente o engenheiro das máquinas foi tirando a tubagem para consertar com ela outros aparelhos avariados do Hediondo.

A caldeira parecia uma antiquada locomotiva sem rodas. Tinha uma porta grande ao meio da frente e a porta da fornalha. A pouco e pouco foi-se tornando vermelha e esboroando de ferrugem e pouco a pouco ia crescendo a malva daninha à sua volta e as escamas de ferrugem iam alimentando a malva. Pelos lados trepava-lhe a murta em flor e o anis-bravo perfumava o ar em seu redor. Alguém atirou também para ali uma raiz de datura, e a árvore, carnuda e grossa, cresceu; grandes campânulas brancas debruçaram-se sobre a porta da caldeira, e pela noite as flores exalavam o aroma a amor e a agitação, aroma incrivelmente perturbante e deleitável.

Em 1935 Mr. e Mrs. Sam Malloy foram morar para a caldeira. Desaparecida toda a tubagem, era um compartimento espaçoso, aconchegado, seguro. Verdade seja que para se entrar pela porta do forno se tornava necessário fazê-lo de gatas, mas uma vez lá dentro não podia desejar-se lugar mais quente e seco para morar. Forçaram um colchão pela porta do forno e instalaram-se. Mr. Malloy sentia-se ali contente e feliz, dando-se o mesmo com Mrs. Malloy durante bastante tempo. Abaixo da caldeira havia na colina numerosos canos igualmente abandonados pelo Hediondo. Aí pelos fins de 1937, após uma pesca abundante, as fábricas trabalharam noite e dia e deu-se uma crise de habitação. Foi então que Mr. Malloy se meteu a alugar a homens solteiros os canos mais avantajados como quartos de dormir, por um preço assaz razoável. Com um pedaço de papel alcatroado numa das pontas e um quadrado de tapete na outra, formavam quartos confortáveis, muito embora quem estivesse habituado a dormir enroscado fosse obrigado a mudar de hábitos ou a ir-se embora.

Havia quem alegasse que os próprios roncos ecoando pelos canos o acordavam. Mas, de uma maneira geral, Mr. Malloy fazia um negociozinho muito apreciável e sentia-se feliz.

Mrs. Malloy vivia satisfeita enquanto o marido não se tornou senhorio. Depois mudou: primeiro exigiu um tapete, a seguir uma colcha; depois um candeeiro com quebra-luz de seda estampada. E finalmente um dia entrou de pés e mãos na caldeira, pôs-se de pé e disse, um pouco ofegante: - Há um saldo de cortinas no Holman. Cortinas de renda verdadeira debruadas de azul e cor-de-rosa; um dólar e noventa e oito o par com varões incluídos.

Mr. Malloy ergueu-se no colchão.

- Cortinas? - inquiriu. - Santo nome de Deus, para que precisas tu de cortinas?

- Gosto de ter as coisas bonitas - disse Mrs. Malloy. - Sempre gostei de pôr tudo bonito - e o lábio inferior começou a tremer-lhe.

- Mas, minha querida - exclamou Sam Malloy -, eu nada tenho contra as cortinas. Até gosto de cortinas.

- Só um dólar e noventa e oito - insistiu Mrs. Malloy com voz trêmula -, e tu regateias-me um dólar e noventa e oito – e fungou, arrancando suspiros do peito.

- Eu nada regateio - disse Mr. Malloy. - Mas, minha querida, em nome de Cristo, que vamos nós fazer com cortinas? Não temos janelas. - Mrs. Malloy chorou, chorou, e Sam aninhou-a nos braços e acarinhou-a.

- Os homens nada percebem do que sente uma mulher - soluçava ela. - Os homens nunca experimentaram pôr-se no lugar das mulheres. E Sam, deitado a seu lado, acariciou-lhe as costas por muito tempo antes que ela conseguisse adormecer.

 

Quando o carro do doutor regressou ao Laboratório, Mack e os rapazes, ocultos, observaram Hazel, que ajudava a carregar os sacos das estrelas-do-mar. Poucos minutos depois, Hazel, encharcado, subia o carreiro das galinhas até ao Palácio.

Levava os calções ensopados de água do mar até às coxas, e onde esta secava iam-se formando rodelas brancas de sal.

Pesadamente sentou-se na cadeira de balouço que lhe pertencia e arremessou fora os sapatos de tênis.

- Então como vai o doutor? - perguntou-lhe Mack.

- Ótimo - respondeu Hazel. - Não se pesca uma palavra do que diz. Sabes o quele disse das carrapatas? Não, é melhor não te dizer.

- E pareceu-te bem disposto? - perguntou Mack.

- Claro - retorquiu Hazel. - Apanhamos duzentas ou trezentas estrelas. Tá satisfeito.

- Não sei sa gente há-dir todos?, perguntava-se Mack, e respondia a si próprio: Não, parece-me qué melhor ir só um. Se fôssemos todos podia fazer-lhe confusão.

- Qui há? - perguntou Hazel.

- Temos cá uns projetos - disse Mack. - Vou eu mesmo, pra ele não sassustar. Vocês fiquem aqui e esperem. Volto já. - Mack saiu, saltitou pelo carreiro fora e atravessou o terreno.

Mr. Malloy encontrava-se em frente da sua caldeira, sentado num tijolo.

- Como vais, Sam? - perguntou Mack.

- Menos mal.

- Como vai a senhora?

- Menos mal - disse Mr. Malloy. - Sabes dalguma cola com que se possa pegar pano ao ferro? - De ordinário, Mack ter-se-ia engolfado a fundo no problema, mas nessa ocasião não se deixou distrair.

- Não - disse. Meteu pelo terreno vago, atravessou a rua e entrou na cave do Laboratório.

O doutor estava agora sem chapéu, pois não havia praticamente probabilidade de molhar a cabeça a não ser que rebentasse algum cano. Ocupava-se em tirar as estrelas-do-mar de dentro dos sacos molhados e em dispô-las no chão fresco de cimento. As estrelas estavam todas torcidas e emaranhadas, porque as estrelas-do-mar gostam de agarrar-se a qualquer coisa e estas no espaço de uma hora só se tinham encontrado umas às outras. O doutor dispunha-as em filas compridas e elas iam-se endireitando devagar até que se quedavam em estrelas simétricas no chão de cimento.

Enquanto trabalhava, a barba castanha e pontiaguda do doutor umedecia-se de suor. Ergueu, um pouco nervoso, os olhos à entrada de Mack. Não que viesse sempre com ele um contratempo, mas com ele entrava sempre qualquer coisa. – Como tá, doutor? - inquiriu Mack.

- Muito bem - disse o doutor, inquieto.

- Já sabe o que sucedeu à Phyllis Mae, do Guião do Urso? Pregou uma pêra num bêbedo e enterrou-se-lhe um dente na mão e tá infectada até cima ao cotovelo. Mostrou-me o dente; era da dentadura. Um dente falso é venenoso, doutor?

- Acho que tudo o que sai da boca humana é veneno - replicou o doutor como advertência. - Ela já mandou chamar o médico?

- O Mata-Sete já tratou daquilo - disse Mack.

- Vou levar-lhe sulfamidas - disse o doutor, e esperou que rebentasse a tempestade. Sabia que se Mack se achava ali era para qualquer coisa, e Mack estava inteirado de que ele sabia.  

- O doutor não estará a precisar de mais nenhuns bichos? - perguntou Mack. O doutor suspirou de alívio.

- Porquê? - perguntou, na defensiva.

Mack tornou-se franco e confidencial:

- Eu lhe digo, doutor, cá eu mais os rapazes temos quarranjar umas massas; temos, por força. É pra uma causa boa, pode mesmo chamar-se uma causa justa.

- É para o braço de Phyllis Mae?

Mack viu a oportunidade; pesou-a, e desistiu.

- Bem, não é - disse. - Éma coisa mais importante. Não se pode matar uma marafona. Não, a coisé outra. Eu mais os rapazes pensamos, bem a gente pensou que so doutor precisasse de qualquer coisa podíamos arranjá-la pro doutor e fazíamos um negociozito.

Parecia simples, inofensivo. O doutor colocou mais quatro estrelas-do-mar em fila.

- Faziam-me jeito umas trezentas ou quatrocentas rãs - declarou. - Eu próprio podia arranjá-las, mas preciso de ir lá abaixo, a La Jolla, esta noite. Amanhã deve estar boa a maré e tenho de apanhar uns polvos.

- É o mesmo preço plas rãs? - perguntou Mack. - Cinco cents cada uma?

- O mesmo preço - disse o doutor.

Mack tornou-se jovial.

- Lá por via das rãs não tem que se ralar, doutor - disse. - A gente arranja-lhe as rãs todas que quiser. Fique descansado quantas rãs: é quaté se podem trazer lá de cima do rio Carmel. Sei dum lugar.

- Bem - disse o doutor. - Aceito todas as que trouxerem, mas preciso de trezentas.

- Teja descansado, doutor. Não perco sono a matutar nisso. Há-de ter as suas rãs, talvez umas oitocentas. - Já tranquilizado o doutor quanto às rãs, uma nuvenzinha ensombrou o rosto de Mack. - Ó doutor - disse -, a gente, por acaso, não se podia servir do seu carro pra ir ao vale?

- Não - respondeu o doutor. - Já te disse; tenho de ir esta noite a La Jolla para aproveitar a maré de amanhã.

- Oh, - exclamou Mack, desapontado. - Mas espere, não se rale com isso, doutor. Talvez a gente possa ir na chocolateira do Lee Chong.

Dito isto, ganhou repentinamente um ar distante, e acrescentou em seguida:

- Doutor, num negócio como este pode adiantar-se duzentos ou trezentos paus para a gasolina? Tenho a certeza de que o Lee Chong não é tipo para nos fiar uma gota.

- Ná - respondeu o médico. - Em tempo tinha caído numa esparrela semelhante. Certa vez pagara adiantadamente ao Gay uma apanha de tartarugas, foi desembolsando dinheiro durante uma, duas semanas, e ao cabo desse tempo o nosso Gay fora parar à cadeia por uma denúncia lá da mulher dele, e a respeito de tartarugas... viste-las.  

- Bom, sendo assim, desconfio que nada feito - disse Mack, aborrecido. O caso é que o doutor precisava agora de rãs, a todo o custo. Magicava um processo de resolver a questão como se resolve qualquer negócio e não como quem tira dinheiro para um asilo.

- Já sei - exclamou -; passo-te uma requisição para o meu posto de gasolina e vais lá meter dez galões. Está bem assim?

Mack sorriu:

- Legal. Está assente. Eu e a malta começamos o trabalho logo de manhãzinha enquanto o doutor segue pelo sul pomo-nos nós a carregar p'raí rãs que nunca mais acabam.

O doutor foi à secretária e escreveu um bilhete ao Red Williams, da bomba da gasolina, autorizando-o a fornecer dez galões.

- Pronto - disse.

Mack teve um sorriso aberto:

- Doutor, pode dormir descansado e mandar as rãs à fava; quando voltar vai ver a quantidade de bicharada que há p'raí.  O doutor viu-o afastar-se, um pouco apreensivo. Os negócios do doutor com o Mack e os rapazes tinham sido sempre muito interessantes mas raramente proveitosos para ele. Recordava com desgosto certa ocasião em que Mack lhe vendera quinze gatarrões, e os donos, de noite, os tinham levado um a um.

- Olha lá, Mack - perguntara-lhe: - Todos gatos como? 

Respondera-lhe Mack:

- Olhe, doutor, foi cá uma invenção minha, mas explico-lhe por ser um amigo legal. Faz-se uma grande ratoeira d’arame e depois não semprega isca, sabe? Bem, mete-se lá dentro uma gata. É a maneira de s’apanhar toda danada raça de gatos que houver cá pla terra.

Deixando o Laboratório, Mack atravessou a rua e enfiou pelas portas de molas na mercearia do Lee Chong. Mrs. Lee retalhava toucinho sobre o cepo de carniceiro. Um dos primos Lee ajeitava de leve desmaiadas cabeças de alface, como o faz uma jovem a uma madeixa solta. Um gato dormitava sobre uma enorme pilha de laranjas. Lee Chong mantinha-se no seu lugar do costume atrás do balcão dos charutos e à frente das prateleiras das bebidas. O tamborilar no tampo acelerou-se um pouco à entrada de Mack.

Mack não perdeu tempo com rodeios.

- Lee - disse ele. - Lá o doutor andas voltas com um problema. Teve uma encomenda importante de rãs pro museu de Nova Iorque. É muit’importante pro doutor. Sem falarmos na maçaroca, dá muito crédito ter um’encomenda daquelas. O doutor tem dir ao Sul e eu e os rapazes prometemos ajudá-lo. Acho quos amigos quando podem devem ajudar um tipo a tirar-se d’apuros, sobretudo um tipo legal como o doutor. O quê? Aposto em como gastáqui consigo sessenta ou setenta dólares por mês.

Lee Chong permaneceu calado e atento. O seu dedinho gordo mal se movia sobre o tapete de borracha mas oscilava ao de leve, como o rabo tenso de um gato. Mack mergulhou na sua tese.

- Você não deixaria a gente levar a sua camioneta velha pra irmos lá acima ao vale Carmel buscar as rãs pro doutor? Prá’quele bom do velho doutor?

Lee sorriu triunfante:

- Camioneta não bom - disse. - Escangalhou.

Isto desorientou Mack por um momento, mas logo, refazendo-se, desdobrou a requisição de gasolina em cima do balcão dos charutos.

- Olhe! - disse. - O doutor precisa das rãs. Deume’sta nota de requisição pra lhas arranjarmos. Não posso faltar ao doutor. O Gay é bom mecânico; s’ele consertar a sua camioneta e a puser como boa, você não me empresta?

Lee recuou a cabeça para poder observar Mack pelos seus óculos de meia-lua. Nada parecia haver de suspeito na proposta. O carro realmente não funcionava. Gay era de fato um bom mecânico e a requisição de gasolina era definitiva evidência de boa fé.

- Quanto tempo demoram? - perguntou Lee.

- Meio dia talvez, talvez um dia inteiro. O tempo d’apanharmos as rãs.

Lee estava desconfiado, mas não encontrava saída. Os perigos estavam à vista, e Lee bem os conhecia.

- Está bem - disse Lee.

- Belo - disse Mack. - Sabia quo doutor podia contar consigo. Vou já pôr o Gay a trabalhar no carro. - Voltou-se como para sair. A propósito - disse. - O doutor paga cinco cents por cada rã. A gente deve arranjar aí umas setecentas ou oitocentas; que diz a fiar-me um quartilho de Old Tennis Shoes só até a gente voltar com as rãs.

- Não! - respondeu Lee Chong.

 

Frankie começou a ir ao Laboratório Biológico Ocidental quando tinha apenas onze anos de idade. Durante uma semana ou mais limitou-se a ficar de pé do lado de fora da porta e a espreitar. Dez dias depois entrou na cave. Tinha olhos muito grandes e o cabelo era um novelo escuro, sujo e eriçado.

Trazia as mãos imundas. Pegou numa porção de aparas, deitou-as na lata do lixo e volveu os olhos para o doutor, que, concentrado, punha etiquetas nos frascos de ensaio que continham Vilella roxa. Frankie atingiu por fim a banca de trabalho e pousou sobre ela os dedos sujos. Levou a Frankie três semanas para avançar este tanto, e mesmo assim estava pronto a abalar a todo o momento.

Finalmente, um dia o doutor falou-lhe assim:

- Como te chamas, filho?

- Frankie.

- E onde vives?

- Lá pra cima - e apontou o monte.

- Porque não estás na escola?

- Não ando na escola.

- Porquê?

- Não me querem lá.

- Tens as mãos sujas. Nunca te lavas?

Frankie ficou atônito. Depois dirigiu-se para o lavatório e desencascou as mãos, e todos os dias depois disso esfregava as mãos até as pôr quase em carne viva.

E passou a ir todos os dias ao Laboratório. Era uma companhia sem muita conversa. Certificou-se o doutor pelo telefone de ser verdade o que Frankie dissera. Não o queriam na escola. Não conseguia aprender e tinha um pequeno desequilíbrio. Não havia lugar para ele. Não era um doidinho, não era perigoso; nem o pai, nem os parentes lhe pagariam o hospício. Frankie nem sempre dormia no Laboratório, mas passava lá os dias. E às vezes ia de gatas meter-se no forno Excelsior e lá ficava. Isto provavelmente quando havia complicações em casa.

- Porque vens tu para aqui? - perguntou-lhe o doutor.

- O senhor não me bate nem me dá esmola - disse Frankie.

- Em casa batem-te?

- Há tios em todos os lados lá em casa. Uns batem-me e dizem-me pra me pôr a andar e outros dão-me um níquel e dizem-me também pra me pôr a andar.

- Onde está o teu pai?

- Morreu - disse Frankie com ar vago.

- Onde está a tua mãe?

- Com os tios.

O doutor mandou cortar os cabelos a Frankie e acabou-lhe com os piolhos. Comprou-lhe no Lee Chong um par de calças novas e um sweater às riscas e Frankie tornou-se seu escravo.

- Gosto muito de si - disse-lhe uma tarde. - Ai gosto muito de si. Queria trabalhar no Laboratório.

Varria-o todos os dias, mas o resultado era pouco feliz. Não conseguia tornar o soalho verdadeiramente limpo. Quis ajudar a pôr os mariscos por dimensões. Estavam de todos os tamanhos dentro do balde.

Tinham de ser agrupados nos tabuleiros, separados os de três polegadas, os de quatro, e assim por diante. Frankie tentou e o suor borbulhava-lhe na testa, mas não conseguiu. A relatividade das dimensões não penetrava nele. - Não - dizia-lhe o doutor. - Olha, Frankie, põe-nos assim junto do dedo para teres a certeza de que são deste tamanho, vês? Este vai da ponta do teu dedo até à base do polegar. Agora pega noutro que vá da ponta do teu dedo até ao mesmo ponto, e dá sempre certo. Frankie tentou e não foi capaz. Quando o doutor subiu ao andar superior Frankie arrastou-se para dentro do Excelsior e não saiu de lá toda a tarde.

Todavia, Frankie era um pequeno bom, meigo e obediente. Aprendeu a acender os charutos do doutor e só desejava que o doutor fumasse constantemente para poder exercer essas funções.

Acima de tudo Frankie gostava das festas que algumas vezes havia no Laboratório. Quando se reuniam raparigas e rapazes e se sentavam e conversavam, quando a grafonola grande tocava músicas que lhe vibravam no estômago e lhe faziam na cabeça tomar vagamente formas belas e terríveis imagens, Frankie extasiava-se. Encolhia-se então todo num cantinho, atrás de uma cadeira onde ficasse escondido e pudesse ver e ouvir.

Quando se riam de um gracejo Frankie, embora não o percebesse, ria encantado por trás da sua cadeira e quando a conversa versava abstrações, carregava-se-lhe o sobrolho e ficava atento e concentrado. Certa tarde praticou um ato ousado.

Havia uma pequena reunião no Laboratório. Enchia o doutor os copos de cerveja na cozinha quando Frankie apareceu junto dele e deitou a mão a um copo de cerveja; e, disparando porta fora, foi entregá-lo a uma rapariga que estava sentada numa cadeira grande. Ela pegou no copo e disse:

- Ah, muito obrigada - e sorriu-lhe.

E o doutor, assomando à porta, concluiu:

- Sim, Frankie é para mim uma grande ajuda. - Frankie não podia esquecer aquilo.

Na sua mente a cena passava e repassava: como pegara no copo, como estava sentada a rapariga, e depois a voz dela: Ah, muito obrigada, e o doutor: É uma grande ajuda. Sim, Frankie é uma grande ajuda. Ai, meu Deus!  Sabia que ia haver uma grande festa porque o doutor comprara costeletas e uma porção enorme de cerveja, e mais, o doutor deixara-o limpar todo o andar de cima. Mas isto nada era, pois na cabeça de Frankie germinara um grandioso plano que ele via já tornado em realidade. Representava-o e tornava a representá-lo vezes sem conta. Era lindo. Era perfeito.

Começou pois a festa e as pessoas foram sentar-se na sala da frente; meninas, senhoras, homens. Frankie teve de esperar para ficar com a cozinha só para si e com a porta fechada. E passou muito tempo antes que assim sucedesse. Mas por fim ficou sozinho e isolado dos circunstantes. Ouvia o sussurro das conversas e a música da grafonola grande. Agia com muita cautela: primeiro a bandeja, depois tirar os copos sem partir nenhum. Agora deitar-lhes a cerveja, deixar abater um pouco a espuma, acabar de enchê-los.

E estava pronto. Tomou um longo hausto e abriu a porta. A música e a vozearia estrondearam à sua volta. Frankie pegou na bandeja e marchou pela casa dentro. Sabia como era. Foi direito à mesma rapariga que anteriormente lhe agradecera. E então, mesmo em frente dela o desastre deu-se; a coordenação falhou, as mãos embaraçaram-se-lhe, os músculos e os nervos em desordem não estabeleceram ligação eficiente, as reações foram negativas. Bandeja e cerveja escorregaram para o colo da rapariga. Por instantes Frankie quedou-se estático. Depois voltou as costas e fugiu. Estabeleceu-se o silêncio na sala.

Ouviram-no correr pelas escadas e meter-se na cave, o som oco de um tropeçar às apalpadelas, e depois silêncio.

O doutor desceu de manso as escadas até à cave. Frankie achava-se no forno Excelsior, bem encafuado no fundo, com a pilha de aparas por cima dele. O doutor ouvia-o choramingar lá dentro. Esperou um momento e depois regressou devagar ao andar de cima. Nada havia no mundo que pudesse fazer.

 

O modelo T Ford de Lee Chong possuía uma história respeitável. Em 1923 fora carro de turismo do Dr. W. T. Waters. Este utilizou-o durante cinco anos e vendeu-o depois a um agente de seguros de nome Rottle. Mr. Rottle não era homem cuidadoso. Conduzia à bruta o carro que adquirira em ótimo estado. Mr. Rottle bebia nas noites de sábado e o carro ressentia-se. Amolgaram-se e partiram-se o guarda-lamas. O abuso dos travões forçava à substituição frequente das cintas.

Quando Mr. Rottle desviou o dinheiro de um cliente e fugiu na companhia de uma loura espampanante, foi apanhado e engaiolado no espaço de dez dias. A carroçaria estava tão amachucada que o novo proprietário cortou-a em duas e acrescentou-lhe uma pequena caixa de caminhão.

O proprietário seguinte tirou-lhe a parte dianteira da cabina e o pára-brisas. Servia-se dele para arrancar percebes e regalava-se com a brisa fresca na cara.

Chamava-se Francis Almones e levava vida triste, pois ganhava sempre menos uma fração do que precisava para viver. O pai deixara-lhe uns dinheiritos, mas ano após ano, mês após mês, por mais que Francis trabalhasse, por mais cuidado que tivesse, o dinheiro ia diminuindo, até que por fim secou de todo, sumiu-se. Lee Chong recebera a camioneta em troca de uma conta da mercearia. Por essa altura o carro não era mais do que quatro rodas e um motor; e este tão emperrado, tão embezerrado e caturra, que requeria cuidados e estudos especializados.

Lee Chong não lhos proporcionava, do que resultava permanecer o carro na relva por trás da mercearia quase sempre com abóboras a crescerem-lhe entre os raios. Tinha pneus sólidos nas rodas traseiras e uns cepos erguiam do chão as da frente.

É provável que qualquer dos rapazes do Palácio Flophouse pudesse pôr o carro em boa forma, pois eram todos mecânicos competentes e com prática, mas Gay era um mecânico inspirado.

Não há termo aplicável a semelhante mecânico que se compare a mãos de fada, mas devia haver. Porque existiam homens capazes de ver, ouvir, sondar, ajustar, e a máquina funciona. Na verdade, há homens nas mãos dos quais um motor funciona melhor. Assim era Gay. Os seus dedos sobre um distribuidor ou um parafuso de afinação do carburador eram leves, seguros, conhecedores. Conseguira consertar os delicados motores elétricos no Laboratório. Podia, se quisesse, ter sempre trabalho nas fábricas, pois nessa indústria, onde amargamente se queixam quando não realizam cada ano o total do capital em lucros, são muito menos importantes as máquinas do que as declarações fiscais. De fato, se fosse possível enlatar sardinhas com relatórios, os donos ficariam imensamente felizes. Assim, empregavam uns velhos horrores de máquinas decrépitas, trepidantes, necessitando dos cuidados constantes de um homem como Gay. Mack fez os rapazes levantarem-se cedo. Tomaram o seu café e dirigiram-se logo para onde o carro se encontrava, entre as ervas. Gay superintendia. Deu uns pontapés nas rodas encalhadas da frente.

- Vão pedir uma bomba emprestada e encham-me isso - disse.

A seguir meteu um pau no reservatório da gasolina por baixo da prancha que servia de assento. Por milagre havia meia polegada de gasolina no reservatório. Depois Gay passou revista às dificuldades mais prováveis. Tirou fora as caixas das bobinas, raspou os platinados, ajustou a folga e voltou a colocá-los nos seus lugares. Abriu o carburador para certificar-se de que a gasolina chegava lá. Deu à manivela para ter a certeza de que a cambota não gelara de todo e os pistões não estavam enferrujados.

Entretanto chegou a bomba e Eddie e Jones, revezando-se, encheram os pneus. Gay cantarolava - tum-ta ta, tum-ta ta - enquanto trabalhava. Tirou as velas, limpou os elétrodos e raspou o carvão. Depois escorreu um pouco da gasolina para uma lata e deitou alguma em cada um dos cilindros antes de colocar as velas novamente nos seus lugares. Endireitou-se.

- A gente vai precisar dum par de pilhas secas - disse. - Vê se consegues quo Lee Chong tas dê.

Mack partiu e voltou quase a seguir com um não universal, destinado por Lee Chong a cortar quaisquer pedidos futuros. Gay refletiu intensamente.

- Sei ond’há um par delas, bem boas por sinal, mas eu cá não vou buscá-las.

- Onde? - perguntou Mack.

- Na cave lá de casa - disse Gay. - São as que fazem funcionar as campainhas da entrada. S’um de vocês se esgueirar té à cave sem a minha patroa dar por isso, s’tão ao cimo, no tabique à esquerda de quem entrar. Mas por’mor de Deus não se deixem apanhar p’la patroa.

Em conferência, elegeram Eddie para ir, e ele partiu.

- Se fores apanhado não fales em mim - gritou-lhe Gay à partida.

Entretanto experimentava as cintas. O pedal alto e baixo não tocava no chão, por isso concluiu que lhe restava ainda alguma cinta. O pedal do travão, esse sim, encostava completamente no chão, portanto não havia travão; mas o pedal de marcha-atrás ainda conservava muita cinta por gastar. No modelo T do Ford o pedal de marcha-atrás é a tábua de salvação. Quando falha o travão pode utilizar-se a marcha-atrás em sua substituição. E quando a cinta de velocidade baixa está gasta de mais para se poder subir uma ladeira íngreme, então pode dar-se a volta ao carro e metê-lo em marcha-atrás. Gay verificou que a marcha-atrás estava em bom estado e tinha a certeza de que tudo correria bem.

Foi de bom augúrio ter o Eddie regressado sem novidade com as pilhas. Mrs. Gay encontrava-se na cozinha. Eddie ouviu-a a andar de um lado para o outro, mas ela não ouviu o Eddie. Tinha um jeitão para coisas destas o Eddie.

Gay ligou as pilhas, acelerou a gasolina e atrasou a ignição.

- Dá à manivela - disse ele.

Um portento, era este Gay - um mecanicozinho de Deus, o S. Francisco de todas as coisas que rodam, torcem, explodem, o S. Francisco das bobinas, das cambotas e dos carretos. E se algum dia toda a caterva de calhambeques avariados, Lusenbergs, Buicks, De Sottos e Plymouths, Austins americanos e Isotta Fraschinis elevarem num grande coro os seus louvores a Deus - será em grande parte devido a Gay e à sua confraria.

Um jeito, só um jeitinho, e o motor pegou, funcionou, falhou e tornou a pegar. Gay avançou a ignição e desacelerou: Ligou ao magneto e o Ford do Lee Chong gorgolejou, tremelicou e estrondeou feliz como se soubesse que trabalhava para alguém que o amava e compreendia.

Apresentava o carro duas pequeninas dificuldades de técnica legal: não possuía a chapa de licença, recente, nem faróis.

Os rapazes, porém, penduraram sobre a chapa traseira acidentalmente com caráter permanente um trapo que ocultava a sua procedência e besuntaram a chapa da frente com lama grossa, da boa. O equipamento da expedição foi sumário; algumas redes de canas compridas e uns sacos de oleado. Os caçadores da cidade quando vão à caça ajoujam-se de comidas e bebidas. Nanja o Mack. Deduzia, com razão, que do campo vinha a comida. Dois pães e o que sobrou do jarro produtivo de Eddie foi toda a provisão. A rapaziada trepou para a camioneta - Gay a conduzir e Mack a seu lado; contornaram a esquina do Lee Chong aos solavancos e desceram pelo terreiro ziguezagueando por entre os carros. Do seu pouso junto da caldeira. Mr. Malloy acenou-lhes um adeus. Ao transitar pelo passeio, Gay abrandou a marcha e desceu cautelosamente, pois os pneus tinham a tela à mostra em toda a volta. Apesar deste afã, só tarde se puseram a caminho.

O carro abrandou junto do posto do Red Williams. Mack desceu e entregou o papel a Red. Foi dizendo:

- O doutor estava um bocado teso, por isso deite-m’aí cinco galões e passe-me o troco em lugar dos outros cinco galões; é assim quo doutor quer. Ele teve d’ir ó Sul, sabe? Tinha lá um negócio muito importante.

Red sorriu condescendente.

- Sabes, Mack - disse -, o doutor ficou a matutar se não haveria aí marosca e pôs o dedo exatamente no mesmo sitiozinho que tu. O doutor é um tipo finório e telefonou pra cá ontem à noite.

- Bote lá os dez galões - disse Mack. - Olhe, espere aí, pode baldear e vir por fora; meta cinco galões e dê-me os outros cinco numa lata; uma dessas seladas.

Red sorriu satisfeito.

- O doutor a modos que também deu por essa - observou.

- Meta os dez galões - pediu Mack. - E não me deixe nada na mangueira.

A pequena expedição não atravessou o centro de Monterey. Um sinal de delicadeza para com a fiscalização de chapas e faróis levou Gay a escolher as ruas traseiras. Lá chegaria a altura em que, subindo o monte Carmel e descendo para o vale, quatro boas milhas de estrada real ficariam à vista de qualquer polícia que passasse enquanto não descessem pela estrada pouco frequentada do vale de Carmel. Gay escolheu uma rua que os levou à estrada principal por alturas da Cancela de Peter, justamente onde começava a rampa do monte  Carmel. Gay iniciou a rampa com um arranque estrepitoso e cinco minutos depois carregava no pedal para abrandar. Sabia que este não funcionava por ter a cinta muito gasta. Em terreno plano tudo ia bem, mas na subida não. Parou, fez recuar a camioneta e dirigiu-se a direito à descida do monte.

Então acelerou e engrenou em marcha-atrás. A camioneta arrastou-se segura e vagarosamente pelo monte Carmel acima, mas em marcha-atrás.

E por pouco conseguiam. O radiador fervia, claro, mas quase todos os peritos do modelo T estavam convencidos de que este não trabalhava bem sem que a água fervesse.

Alguém devia escrever um ensaio erudito acerca do efeito moral físico e estético do modelo T Ford na nação americana. Duas gerações de americanos sabiam mais sobre a bobina Ford do que sobre o clítoris, o sistema de engrenagem planetária ou do sistema solar das estrelas. Com o modelo T desaparecia parte do conceito sobre a propriedade privada. Os alicates deixavam de ser propriedade exclusiva e uma bomba de pneus pertencia ao último que lhe tivesse deitado a mão. A maioria dos bebês dessa época foi concebida nos modelos T Ford, e não poucos nasceram dentro deles. A teoria do lar anglo-saxão ficou tão desvirtuada que jamais se recompôs por completo. O carro recuou resolutamente pelo monte Carmel acima, passou pela estrada do pico de Jack e encetava o seu último e mais puxado arranque quando o resfolegar do seu motor se adensou, gorgolejou e engasgou. Gay, que de todo o modo enfrentava o declive, desceu os cinquenta pés e meteu pela estrada do pico de Jack.

- Que foi? - perguntou Mack.

- É o carburador, acho eu - disse Gay.

O motor chiou, estralejou de quente e o jacto de vapor que soprou do tubo de descarga do radiador soou como um silvo de jacaré. O carburador do modelo T não é complicado, mas necessita de todas as suas peças para funcionar. Há uma válvula com agulha e esta deve ter uma ponta, a qual assenta na sua ranhura, de contrário o carburador não funciona. Gay pôs a agulha na palma da mão; tinha a ponta partida.

- Como diabo achas tu qui’sto aconteceu? - perguntou.

- Bruxedo - disse Mack. - Bruxedo, puro e simples.

- Não podes consertá-la?

- Céus, não! - exclamou Gay. - Temos d’arranjar outra.

- Quanto custam?

- Praí um dólar, se comprares uma nova, um quarto de dólar no sucateiro.

- Tens o dólar? - perguntou Mack.

- Tenho, mas não é preciso.

- Bem; volta logo que puderes, sim? A gente fica mesmo aqui.  

- Em qualquer dos casos, vocês é que não se podem pôr a mexer sem a válvula - disse Gay.

Avançou para a estrada. Fez sinal a três carros antes que um parasse. Os rapazes viram-no subir e desaparecer na descida, e não o tornaram a ver em cento e oitenta dias. Ah, o infinito das possibilidades. Como aconteceu que o carro que transportava Gay empanou antes de chegar a Monterey? Se Gay não tivesse sido mecânico não teria consertado o carro. E se o não tivesse consertado o dono não lhe teria oferecido uma bebida no Jimmy Brucia. E porque havia de ser o dia do aniversário do Jimmy? De entre tantas possibilidades que havia no mundo - milhões delas só aconteceram coisas que levavam à cadeia de Salinas. O Sparky Enea e o Tiny Colletti tinham feito as pazes e ajudavam a festejar os anos de Jimmy. Entrou uma loura. Discussão musical em frente da Vitrola. O novo amigo de Gay, que conhece um golpe de judô, tenta mostrá-lo a Sparky e parte o pulso por executar o golpe errado. O polícia com dores de barriga.

Tudo pormenores sem relação, desconexos, e contudo correndo todos na mesma direção. O destino não queria simplesmente deixar Gay ir à caçada às rãs, e empregou todo um esforço danado, pessoas e incidentes, para o desviar dela. Quando sobreveio o clímax final, com a fachada da sapataria espatifada e a rapaziada a provar o calçado exposto na montra, foi Gay o único que não ouviu a sereia dos bombeiros. Só o Gay não acorreu ao incêndio, e quando a polícia chegou encontrou-o sozinho, sentado na montra do Holman com um sapato castanho de desporto num pé e um de cerimônia, de verniz, e uma polaina de fazenda cinzenta no outro. Entretanto, lá junto ao carro, os rapazes acenderam uma pequena fogueira logo que começou a escurecer e soprou do mar um friozinho. Ao alto os pinheiros sussurravam na brisa marinha. Deitados na caruma, os rapazes contemplavam o céu distante através dos ramos dos pinheiros.

Durante algum tempo falaram das dificuldades que devia estar a passar Gay para adquirir uma válvula, e depois, pouco a pouco, conforme o tempo foi passando, deixaram de o mencionar.  

- Devia ter ido alguém com ele - disse Mack.

Pelas dez horas Eddie levantou-se.

- Há um acampamento de construtores mais acima - declarou. - Parece-me que vou daqui ver se têm por lá algum modelo T.

 

Monterey é uma cidade de extensa e brilhante tradição literária. Recorda com prazer e certo orgulho que ali viveu Robert Louis Stevenson. A Ilha do Tesouro possui de fato a topografia e o traçado costeiro de Porto Lobos. Mais recentemente tem passado por Carmel uma quantidade de literatos mas não existe já o sabor, a antiga dignidade das verdadeiras belles-lettres. Uma ocasião a cidade escandalizou-se muito com o que os habitantes consideraram uma ofensa a um autor. Foi a propósito da morte de Josh Billings, o grande humorista. Onde está agora o posto dos correios havia então um canal fundo com água corrente e por cima uma pequena ponte. Num dos lados do canal erguia-se um belo edifício e no outro a casa do médico, que tratava de todas as doenças, nascimentos e óbitos da cidade. Também se ocupava de animais, e, tendo estudado em França, ensaiava-se mesmo na prática nova de embalsamar corpos antes de serem enterrados. Muitos dos saudosistas classificaram a prática sentimental, a alguns parecia ociosa e para outros era sacrílega, visto não estar mencionada em qualquer livro sagrado. Mas as famílias mais ricas e mais importantes iam-na adotando e dir-se-ia que passara a ser moda.

Certa manhã o velho Mr. Carriaga desceu da sua casa da colina na direção da Rua Alvarado. Atravessava já a ponte quando lhe chamou a atenção um rapazinho e um cão a tentarem sair do canal. O rapaz levava um fígado e o cão arrastava metros de intestinos na extremidade dos quais ia um estômago pendurado. Mr. Carriaga parou e dirigiu-se amavelmente ao rapazinho:

- Bons dias. - Nesse tempo os rapazinhos eram delicados:

- Bons dias, senhor.

- Onde vais com esse fígado?

- Vou fazer engodo prá’panhar cavalas.

Mr. Carriaga sorriu.

- E o cão também vai apanhar cavalas?  

- O cão achou aquilo. É dele. Encontramos tudo no canal.

Mr. Carriaga sorriu, seguiu o seu caminho e foi então que o cérebro se lhe pôs a trabalhar. Aquilo não é fígado de vaca, é pequeno de mais; também não é fígado de vitela, é excessivamente vermelho. Nem é fígado de carneiro. Agora estava de espírito alerta. À esquina encontrou Mr. Ryan.

- Morreu alguém a noite passada em Monterey? - perguntou.

- Que eu saiba não - disse Mr. Ryan.

- Mataram alguém?

- Não.

Continuaram a andar e Mr. Carriaga contou o que se passara com o rapaz e o cão.

No Bar Adobe encontravam-se reunidos alguns cidadãos para a cavaqueira da manhã. Mr. Carriaga contou novamente a história e acabava de a narrar quando apareceu o chefe da Polícia. Este devia saber se tinha morrido alguém.

- Ninguém morreu em Monterey. - disse. - Mas lá em cima, no Hotel del Monte, morreu Josh Billings. Calaram-se os homens que estavam no bar e o mesmo pensamento acudiu à ideia de todos. Josh Billings era um grande homem, um grande escritor. Honrara Monterey morrendo lá e fora ultrajado. Sem grande discussão formou-se ali mesmo uma comissão com todos os que se encontravam presentes.

Severos, dirigiram-se apressados para o canal, atravessaram a ponte e martelaram na porta do doutor que estudara em França. Este trabalhara até tarde. As pancadas foram arrancá-lo à cama e trouxeram-no à porta da rua, de camisa de noite, com os cabelos e a barba emaranhados. Mr. Carriaga dirigiu-se-lhe rispidamente:

- O senhor embalsamou Josh Billings?

- Embalsamei, sim.

- Que fez às vísceras?

- Mas, deitei-as no canal, como sempre faço.

Fizeram-no vestir-se à pressa e correram para a praia. Se o rapazinho tivesse executado a sua obra com rapidez teria sido demasiado tarde. Entrava já para o barco quando a comissão chegou. Os intestinos andavam no chão, onde o cão os abandonara.

Então fizeram o doutor da França reunir os bocados. Foi obrigado a lavá-los reverentemente e a tirar-lhes a areia tanto quanto possível. Impuseram ao próprio médico a despesa da urna de chumbo do caixão de Josh Billings. Monterey não era cidade que deixasse um homem de letras sofrer um insulto.

 

Mack e os rapazes dormiam tranquilos sobre a caruma. Um pouco antes do alvorecer Eddie regressou. Andara muito, primeiro que topasse com um modelo T, e quando o encontrou ponderou se seria realmente boa a ideia de tirar a agulha do seu lugar.

Podia não ajustar. Por isso tirou todo o carburador. Os rapazes não acordaram à sua chegada. Ele deitou-se junto deles e adormeceu sob os pinheiros. Tinham uma coisa simpática os modelos T. As suas partes componentes eram não só de fácil substituição, como de difícil identificação. Da encosta de Carmel a vista é linda com a curva da baía, as ondas a desfazerem-se em espuma na areia, a expansão das dunas em volta de Seaside e, mesmo no sopé da colina, o conchego morno da cidade. Mack levantou-se de madrugada, puxou atarefado as calças até onde se mantivessem e ficou-se a ver a baía, em baixo. Via entrar alguns dos barcos de arrasto. Mais além, perto de Seaside, um navio-tanque que se abastecia de óleo.

Por trás de Mack remexeram coelhos entre os arbustos. Depois o Sol ergueu-se e sacudiu o morno do ar como quem sacode um tapete. Ao primeiro raio de sol quente Mack arrepiou-se.

Os rapazes comeram um naco de pão enquanto Eddie instalava o novo carburador. Quando ficou tudo pronto empurraram o carro até à estrada até pegar. Então, com Eddie a guiar, subiram a rampa em marcha-atrás, dobraram o topo, deram a volta, seguiram de frente e desceram para além dos prados Hutton. No vale de Carmel as alcachofras apresentavam o seu verde-cinza e ao longo do rio os vimes mostravam todo o seu viço. Viraram à esquerda contornando o vale. A sorte manifestou-se logo de início. Um galo empoleirado, vermelho Rhode Island, que se afastara demasiadamente da granja, atravessava a estrada e Eddie atirou-se de encontro a ele sem sair muito da mão. Inclinando-se para trás no carro, Hazel apanhou-o à passagem e deixou escaparem-se-lhe das mãos penas, manifestando amplamente a evidência, pois que, soprando de Jamesburgo de manhã uma brisazinha, algumas das penas vermelhas foram parar a Porto Lobos e outras voaram mesmo pelo mar fora.

O Carmel é um riozinho delicioso, não muito comprido, mas através do seu curso tem tudo o que compete a um rio. Nasce nas montanhas, precipita-se por elas, corre por entre vaus, deixa-se cercar, forma represa, transborda da represa, saltita entre arredondados seixos, deambula preguiçoso por baixo dos sicômoros, escoa-se para as lagoas onde vivem as trutas, mete-se por entre os bancos que os caranguejos habitam. No Inverno transforma-se em torrente, num riozinho malévolo, feroz, e no Verão é lugar ideal para o chapinhar das crianças e o vagabundear dos pescadores. Saltitam as rãs das suas margens e perto crescem densos fetos. Os gamos e as raposas vão ali beber fugidiamente pela manhã e à noitinha, e às vezes um leão assolapado das montanhas vai lamber as suas águas. As granjas do generoso vale ladeiam o rio, roubando-lhe a água para as suas hortas e pomares. Cantam junto dele as codornizes, e as rolas-bravas, arrulhando, procuram-no ao lusco-fusco. Os raccoons deambulam pelas suas margens procurando rãs. Ele é tudo o que um rio deve ser.  Algumas milhas acima do vale o rio passa sob escarpado rochedo de onde pendem vides e avencas. Nos baixos do rochedo existe uma lagoa verde e profunda e no outro lado da lagoa uma clareirazinha areada onde é um prazer para alguém sentar-se e fazer o jantar. Mack e os rapazes dirigiram-se satisfeitos a esse lugar. Era uma perfeição. A haver rãs deviam estar ali. Era um lugar para se distender os nervos, para se sentir feliz. Durante o trajeto foram-se fornecendo.

Além do grande galo vermelho tinham uma saca cheia de cenouras que tombara de uma carroça com hortaliça e meia dúzia de cebolas que não tinham caído. Mack levava um cartucho de café no bolso. No carro havia ainda uma lata de cinco galões, sem tampo. O jarro das reservas estava quase cheio. Levavam outras coisas, tal como pimenta e sal. Mack e os rapazes entendiam que quem viajava não levando sal, nem pimenta, nem café era sem dúvida muito parvo.

Sem esforço, sem confusão ou muita reflexão apanharam quatro pedras redondas da pequena praia. O galo, que ainda nesse dia desafiara o Sol, jazia aberto e limpo dentro da lata de cinco galões com cebolas descascadas em volta, enquanto uma fogueirinha de ramos secos de abeto crepitava entre as pedras; uma fogueira muito pequena. Só os idiotas fazem fogueiras grandes. Levaria muito tempo a cozer o galaroz, pois muito tempo lhe levara a atingir aquele tamanho e musculatura. Mas ao brando ferver da água que o envolvia começou a cheirar bem logo de início. Mack fez-lhes uma preleção preparatória.

- A melhor hora pràs rãs é à noite - disse ele -, por isso acho quo melhor é a gente estirar-se praí até que’scureça. - Sentaram-se à sombra, e pouco a pouco, um após outro, foram-se estirando e adormeceram.

Mack tinha razão. As rãs não andam muito por fora durante o dia; escondem-se debaixo das avencas e espreitam à sorrelfa de dentro dos buracos nas rochas. A melhor altura de apanhar rãs é à noite com uma lanterna de mão. Os homens dormiam com a consciência de que teriam uma noite de grande atividade.

Apenas Hazel se conservou a pé para alimentar a fogueirinha por baixo do galo, que cozia. Junto do recife não há tardes douradas. Quando, às duas horas, o Sol se inclinou por trás dele, uma sombra sussurrante espalhou-se pela praia. Os sicômoros agitavam-se na aragem da tarde. Pequenas cobras-dágua deslizavam sobre as rochas, depois mergulhavam e atravessavam a lagoa com as cabeças erguidas como pequeninos periscópios, deixando atrás de si esteiras tênues a espraiarem-se. Uma truta enorme mergulhou na lagoa. As melgas e os mosquitos, que evitam o sol, surgiram zumbindo por sobre a água. Todos os insetos amigos do sol, moscas, libelinhas, vespas, zangãos, regressaram a casa. E ao avançar da sombra pela praia, ao chamado da primeira codorniz, Mack e os rapazes despertaram. O aroma do cozinhado cortava o coração. Hazel meteu-lhe dentro uma folha tenra de louro colhida da árvore que se erguia junto do rio. As cenouras também já lá estavam. O café, na sua lata própria, fervilhava docemente sobre a sua própria pedra, suficientemente acima da chama para não ferver demasiado. Mack acordou, pôs-se de pé, espreguiçou-se, dirigiu-se a cambalear até à lagoa, lavou a cara com as mãos em concha, tossiu, cuspiu, bochechou, bufou, apertou o cinto, coçou as pernas, penteou os cabelos com os dedos, bebeu um gole do jarro, arrotou e foi sentar-se junto da fogueira.

- Caramba, isso cheira bem! - exclamou.

Os homens ao acordar executaram todos os mesmos gestos. O processo de Mack foi, por alto, seguido por todos os outros. Depois aproximaram-se da fogueira e felicitaram Hazel. Este espetou o canivete nos músculos do galináceo.

- Não é o que se chama tenro - disse. – P’ra ficar tenro tinha de ferver duas semanas a seguir. Que idade achas tu quele tinha, mais ou menos?

- Eu cá tenho quarenta e oito anos e não estou tão duro com’ele - comentou Mack.

- Quanto tempo imaginas tu que pode durar um bicho destes se não derem cabo dele ou ficar doente, está claro? - perguntou Eddie.  

- Isso é uma coisa que nunca se há-de descobrir. - disse Jones: - Foi um bocado bem passado.

E o jarro, andando de mão em mão, aquecia-os.  

- Eddie, não é pra me queixar, estou só cá a magicar. Imagina que tinhas três arros lá no bar? Imagina que punhas o whisky todo num jarro, o vinho todo noutro, e a cerveja toda noutro. - disse Jones.

Um silêncio reprovador seguiu-se à sugestão.

- Isto não é fazer reparo - atalhou Jones apressadamente -, gosto disto mesmo assim. - Jones começou então a falar muito; sentindo que cometera um erro de diplomacia, não conseguia calar-se. - O que magrada cá neste sistema é a gente nunca saber ao certo que bebedeira é que vai apanhar? - disse ele. - Sa gente toma whisky - prosseguiu atabalhoadamente - sabe mais ou menos o que vai fazer: o tipo brigão briga, o tipo chorão chora, mas isto aqui - disse magnânimo -, credo, uma pessoa não sabe so vai fazer trepar por um pinheiro acima ou se vai pô-lo a nadar até Santa Cruz. Assim é mais legal. - concluiu, desajeitado.

- Agora por nadar - disse Mack para acabar com o cunho pouco hábil da conversa e fazer calar o Jones -, que teria acontecido àquele diabo do Mckinley Moran? Vocês lembram-se do mergulhador?

- Eu lembro-me - disse Hughie. - Andávamos juntos. Não conseguia arranjar trabalho e deu em beber. A modos qué um bocado demais pra um tipo, isto de mergulhar e beber. E começou a empreender. Por fim vendeu o escafandro e a bomba, emborrachou-se com’um danado e depois abalou da cidade. Não sei pra onde se sumiu. Nunca ficou grande coisa depois que trouxe do fundo aquela fúfia que foi arrastada pla âncora do Doze Irmãos. Mckinley mergulhou e arrebentaram-lhe os tímpanos. Nunca mais prestou pra grande coisa depois daquilo. A fúfia é que não sofreu nada com isso.

Mack deu outro avanço ao jarro.

- Fez bom bagaço quando foi da lei seca - disse ele. - Recebia vint’cinco dólares por dia do Governo pra mergulhar e procurar as bebidas lá no fundo e recebia três do Louie p'ra não dar co’elas. Arranjava maneira de trazer acima um caixote por dia prá’gradar ao Governo. Louie não levava a mal. Fez com que não metessem lá outros mergulhadores. Mckinley fazia boas lecas.

- Pois sim - retorquiu Hughie -, mas é comós demais: em apanhando umas massas, querem logo casar. Ele casou três vezes, primeiro que desse vazão à massa. Eu dava logo pla coisa. Ele comprava uma pele de raposa branca, e zás!, a primeira coisa qua gente ouvia dizer é questava casado.

- Que teria acontecido ao Gay? - perguntou Eddie.

Era a primeira vez que o mencionavam.

- O mesmo, se calhar - disse Mack. - Não há maneira de a gente se poder fiar num homem casado. Por mais quele embirre co’a patroa, volta sempre pra ela. Põe-se a cismar, a ficar mazombo e lá vai ele outra vez. Já ninguém pode confiar nele. Ora vejam o Gay - continuou Mack -, a patroa bate-lhe, mas aposto que se o Gay estiver três dias separado dela se lhe mete na cabeça qua culpa é dele e volta logo pra fazer as pazes.

Comeram com todo o descanso e corretamente, espetando com galhos de salgueiro afiados bocados de galo que escorriam enquanto arrefeciam e tasquinhando dos ossos a carne fibrosa.

Espetavam as cenouras com os galhos e por fim passaram a lata à roda e beberam o caldo. À sua volta a tarde foi envolvendo-os, suave como música. As codornizes chamavam-se umas às outras, para junto da água. As trutas davam saltos na lagoa e as falenas voejavam sobre a água, enquanto a escuridão se ia misturando à claridade do dia. Passaram a lata do café de um para o outro e ficaram-se, quentes, repletos, calados. Por fim, Mack disse:

- Raios o partam. Embirro com um aldrabão.

- Quem é que testá aqui a aldrabar? - perguntou Eddie.

- Olha, não se me dá quum tipo me pregue uma lampana pra se safar ou pra fugir à conversa, mas odeio o tipo que saldraba a si próprio.

- Quem no fez? - perguntou Eddie. - disse Mack. - E talvez vocês também. Cá estamos - disse, - Eu compenetrado -, o raio da malta toda. A gente combina dar uma festa ao doutor, e o que faz é vir práqui divertir-se à tripa forra. E depois na volta apanhamos-lhe o dinheiro. A gente somos cinco, e havemos de beber cinco vezes o quele bébe. E é que não tenho a certeza quele. Não estou certo sa gente, sa gente está mesmo a fazer isto pó estamos a fazer isto por nós próprios. O doutor é um tipo bom demais pra se lhe fazer uma coisa destas. É a melhor pessoa que tenho conhecido. Eu não quero ser um desses gajos que tiram proveito dele. Sabem vocês? Uma vez contei-lhe uma arara dos diabos. A meio da história vi quele tinha percebido muito bem quera tudo patranha. E mesmo ali, no meio, disse-lhe: - Olhe, doutor, é tudo uma mentira quadrada! E vai ele meteu a mão no bolso e tirou um dólar. Mack, disse-me ele, está-me cá a parecer quum tipo que precisa tanto dele que tem d’inventar uma história é porque realmente precisa muito dele, e deu-me o dólar. Paguei o dólar no dia seguinte, nem cheguei a gastá-lo. Fiquei coele durante a noite e depois fui lá entregá-lo.

- Não há quem goste de festas com ó doutor. Vamos mas é dar-lhe uma festa. Que diacho há-de ser? - disse Hazel.

- Não sei - respondeu Mack. - Gostava de lhe dar qualquer coisa em queu não viesse a ganhar quase tudo.

- Que dizem vocês a um presente? - sugeriu Hughie. - A gente comprávamos-lhe whisky, por exemplo, e deixava-o fazer co’ele o qu’entendesse.

- Isso é qué falar - acrescentou Mack. - É mesmo o qua gente vai fazer. Damos-lhe o whisky e pisgamo-nos.

- E sabes o que vai acontecer? - perguntou Eddie. - O Henri e os de Carmel dão plo cheiro do whisky e depois, em vez de sermos cá os cinco, aparecem vinte. O doutor até me disse uma vez que quando frita uma costeleta cheiram-lha logo de Cannery Row até mesmo lá baixo à ponta de Sur. Não me parece ucharia. Lucrava mais se fosse a gente mesmo a dar-lhe a festa.

Mack ponderou o argumento.

- Talvez tenhas razão - assentiu finalmente. - E sa gente lhe desse outra coisa sem ser whisky? Uns botões de punho, por exemplo, com as letras dele.

- Ora, trampa - disse Hazel. - O doutor quer lá uma coisa dessas!

Entretanto anoitecera e as estrelas eram pontos brancos no céu. Hazel ateou o fogo, que formou uma clareira de luz no meio da praia. Para lá da colina uma raposa ladrou alto. E com a noite descia dos montes o aroma da salva. A água saltitava sobre as pedras, saindo da lagoa funda. Mack ruminava a última proposta quando o som de passos no caminho o fez voltar. Um homem alto e trigueiro aproximou-se; trazia uma espingarda ao ombro e um perdigueiro tímido e cauteloso seguia-lhe nos calcanhares.

- Que diabo estão vocês aqui a fazer? - perguntou.

- Nada - respondeu Mack.

- A propriedade tem avisos. Não é permitido pescar, caçar, fazer fogueiras nem acampamentos. Ora peguem lá nas suas coisas, apaguem a fogueira e ponham-se daqui pra fora.

Mack levantou-se com ar humilde:

- Não sabia, capitão.

- Há tabuletas por toda a parte; não podiam ter passado sem as ver.

- Olhe, capitão, foi engano e desculpe - disse Mack. Fez uma pausa e mirou atentamente a figura encurvada. - É militar, não é? Vê-se logo. Os militares não têm os ombros comàs outras pessoas em geral. Andei na tropa tanto tempo quos mato logo.

Os ombros do homem endireitaram-se de maneira diferente.

- Não consinto fogueiras nas minhas terras - declarou ele.

- Bem, pedimos-lhe desculpa - disse Mack. - A gente vai já sair, capitão. Não vê qua gente trabalha pra uns doutores. Andamos a ver s’apanhamos umas rãs. Andam no estudo do cancro e a gente ajuda-os fornecendo as rãs.  

O homem hesitou um momento:

- Que fazem eles com as rãs? - perguntou.

- Bom, sabe? - disse Mack. - Pegam o cancro às rãs práo depois poderem estudar e fazer expriências nelas e falta pouco pra descobrirem a coisa. O caso é terem as rãs. Mas so capitão não quer a gente nas suas terras, a gente vai-se já embora; nem tínhamos cá entrado se soubéssemos. - De súbito Mack pareceu reparar pela primeira vez no perdigueiro: - Toma, leva aí uma linda cadelinha - disse com entusiasmo. - É parecida com a Nola, a que ganhou as provas nas corridas em Virgínia o ano passado. O cão é da Virgínia, não?

O guarda hesitou, depois mentiu:

- É - respondeu, lacônico. - Está coxo. Uma carraça ferrou-se-lhe mesmo no lombo.

Mack tornou-se logo solícito.

- Dá licença que veja, capitão? Vem cá, menina. Anda, anda, menina. - A perdigueira ergueu os olhos para o dono e foi-se aproximando de Mack. - Deitaí uns gravetos pra eu poder ver - disse ele a Hazel.  - É num sítio onde não pode lamber - indicou o capitão e debruçou-se sobre o ombro de Mack para ver.

Mack espremeu um pouco de pus do tumor, de mau aspecto.

- Tive um cão que teve uma coisa assim e recolheu e matou-o.  Ela teve há pouco cachorrinhos, não teve?

- Teve - respondeu o capitão. - Seis. Eu já lhe pus aí iodo.  

- Ná - disse Mack. - Isso não faz puxar. Não terá sais de Epsom lá por casa?

- Tenho, há lá uma garrafa grande.

- Então faça um emplastro quente com sais de Epsom e ponha-lho aí. Ela está fraca por ter tido as crias, sabe? É uma pena se fica doente. E perdia os cachorrinhos, inda pra mais.

A perdigueira fixou intensamente os olhos de Mack e depois lambeu-lhe a mão.

- Já sei o que vou fazer, capitão. Vou eu mesmo tratar dela. Com que os sais de Epsom é cura certa. É o melhor que há.

O capitão acariciava a cabeça da cachorra.

- Sabe? Tenho um lago lá perto de casa qu’está tão cheio de rãs que nem consigo dormir de noite. E se as fossem lá apanhar? Berram toda a noite. Muito gostava de me ver livre delas.

- Com certeza. - disse Mack. - Isso é muito simpático da sua parte. Tenho a certeza quos doutores lhe vão ficar muito agradecidos. Mas o queu agora quero é pôr o emplastro a este cão. - E voltando-se para os outros: - Apaguem a fogueira - disse. - Tomem cuidado em não deixar nem uma fagulha e alimpem-me tudo por aí. Não deixem o lugar todo porco. Eu mais o capitão vamos tratar aqui da Nola. Vocês, rapazes, vão lá ter quando tiverem tudo limpo.

Mack e o capitão afastaram-se juntos. Hazel atirou areia com o pé para cima da fogueira.

- Está cá a parecer-me quo Mack conseguia o lugar de presidente dos Estados Unidos da América se lhe desse na gana - comentou.

- E que fazia co’ele, s’o apanhasse? - perguntou Jones.

- Pra ele não era divertimento nenhum.

 

O amanhecer é uma hora de magia em Cannery Row. Na hora cinzenta, depois de despontar a luz e antes de o Sol se erguer, o Row parece suspenso, fora do tempo, na claridade prateada. As luzes da cidade apagam-se e as ervas ficam de um verde brilhante.

As frontarias corroídas das fábricas cintilam com o brilho da platina ou de velhas faianças. Não circulam ainda os automóveis. A rua está vazia de progresso e de negócios. Pode ouvir-se o avançar e o recuar das ondas rebentando por entre as estacas das fábricas. É uma hora de paz intensa, hora deserta, pequena era de tranquilidade. Os gatos saltam das sebes e deslizam como xarope pelo chão em procura de cabeças de peixe. Silenciosos cães madrugadores pavoneiam-se, majestosos, farejando e judiciosamente escolhendo sítio para urinar. Chegam gaivotas batendo as asas e pousam nos telhados das fábricas, onde aguardam o rebotalho do dia. Agacham-se umas junto das outras no alto dos telhados. Das rochas perto da estação marítima de Hopkins vem o ladrar dos leões marinhos, como um ganir de lebréus. O ar está ameno e fresco.

Nos quintais os castores empurram para cima montinhos de terra úmida e fresca, rastejam para fora e arrastam flores para as tocas. Ainda circulam poucas pessoas, apenas as suficientes para fazer parecer tudo mais deserto do que está. Uma das pequenas da Dora regressa a casa após a visita a algum protetor demasiadamente rico ou doente para frequentar o Guião do Urso. Leva a pintura do rosto um pouco pegajosa e os pés doridos. Lee Chong pega nas latas do lixo e vai pô-las na valeta. O velho chinês surge do lado do mar e, chape-chape, atravessa a rua, desaparece na volta do Palácio. Os guardas das fábricas espreitam para fora e piscam os olhos à luz matutina. O moço de recados do Guião do Urso sai para o alpendre em mangas de camisa, espreguiça-se, boceja, coça a barriga. Os roncos dos inquilinos de Mr. Malloy têm deixado sair dos canos ressonâncias cavas de túnel. É a hora-pérola - entre a noite e o dia em que o tempo pára e se interroga. Em manhã igual e em igual claridade deambulavam despreocupados, pelas ruas dois rapazes e duas raparigas. Saíam do La Ida e seguiam cansados e felizes. As raparigas eram umas mocetonas de seios fartos e com cabelos louros em desalinho. Traziam vestidos de cerimônia de algodão estampado, agora amarrotados e a colar-se-lhes aos contornos. Levava cada qual um boné de soldado; uma trazia bem atirado para trás e a outra com a pala quase em cima do nariz. Eram moças de lábios grossos, narinas largas, ancas opulentas e vinham muito cansadas. Os soldados levavam os dólmanes desabotoados e os cintos embrulhados nas dragonas. Tinham alargado um pouco as gravatas para poderem desapertar os colarinhos das camisas e levavam os chapéus na cabeça.

Raparigas levavam um minúsculo chapelinho de palha amarrado com um raminho de margaridas na copa, e o outro, um gorro de ciché branco ao qual estavam colados medalhões de celofane azul. Seguiam de mãos dadas, balouçando os braços em cadência. O soldado da ponta levava um grande embrulho de papel pardo de latas de cerveja gelada. Caminhavam de mansinho na claridade nacarada. Tinham feito uma pândega de arromba e estavam bem dispostos, Sorriam suavemente como crianças moídas à recordação de uma festa.

Entreolhavam-se e sorriam balouçando as mãos. Ao passarem pelo Guião do Urso gritaram «Eh lá!» ao vigilante, que coçava a barriga. Ouvindo os roncos vindos dos canos, riram-se. Chegados ao Lea Chong, pararam a ver a montra atafulhada onde se empilhavam ferramentas, peças de roupa e comestíveis para atrair a atenção. Balançando as mãos e arrastando os pés, atingiram o limite de Cannerry Row e enveredaram pelo atalho do caminho de ferro. As raparigas subiram à linha e seguiram ao longo dela e os soldados enlaçara-lhes as cinturas grossas para impedir que caíssem. Passaram pelos estaleiros e desceram ao recinto ajardinado da estação marítima de Hopkins.

Em frente da estação existe uma pequena praia circular, uma praia em miniatura, entre recifes. Brandas ondas matutinas suspirando de mansinho, beijavam a praia. Das rochas mais expostas evolava-se um cheiro forte de algas. Ao chegarem os quatro à praia, uma faixa de sol incidiu sobre as terras de Tom Work, no outro lado da baía, e dourou a água tornando, as rochas amarelas. As raparigas sentaram-se na praia com compostura, ajeitando as saias sobre os joelhos. Um dos soldados furou quatro latas de cerveja e serviu-as. Depois os homens estenderam-se, deitaram a cabeça no regaço das raparigas e ficaram a olhá-las. Sorrindo uns para os outros trocaram olhares em que se lia um fatigado, tranquilo, maravilhoso segredo.

De perto da estação chegou o ladrar de um cão - o guarda, homem trigueiro, mal-encarado, vira-os, como os vira o seu mal-encarado cocker preto. Gritou-lhes, e, como não se mexessem, desceu à praia enquanto o cão ladrava monotonamente. - Vocês não sabem que é proibido deitarem-se aí? Ponham-se a andar. Isto aqui é propriedade particular.

Os soldados pareciam não o ouvir sequer. Continuavam a sorrir enquanto as raparigas lhes afagavam os cabelos sobre as fontes. Finalmente um dos soldados num movimento lento virou a cabeça de modo que a cara lhe ficou aninhada entre as pernas da rapariga.

- Porque não dá você um voozinho até à Lua? - disse amigavelmente e voltou a mirar a jovem.

O sol iluminava-lhe o cabelo louro e ela acariciava-lhe a orelha. Nem viram o guarda voltar para casa.

 

Quando os rapazes chegaram à granja achava-se Mack na cozinha. A cadelinha estava deitada de lado e Mack mantinha um pano embebido em sais de Epsom apoiado à mordedura da carraça. Entre as pernas dela, os cachorrinhos gorduchos focinhavam procurando o leite, e a cadela fixava humilde o rosto de Mack como se dissesse: Estás a ver? Tentei explicar-lhe, mas ele não percebe.

O capitão segurava a lanterna e observava Mack.

- Ainda bem que aprendi isso - observou.

- Eu cá não me queria intrometer, mas estes cachorros deviam ser desmamados. Ela já não tem lá muito leite e os cachorros tão a dar cabo dela aos poucos - respondeu Mack.

- Bem sei - disse o capitão. - Acho quos devia ter afogado a  todos e deixado só um. Tenho andado tão atarefado a cuidar da propriedade! Já ninguém se interessa por perdigueiros como antigamente. Agora é tudo caniches, boxers e dobermuns.

- É mesmo - disse Mack. - E pra um homem não há como um perdigueiro. Não sei o que deu a esta gente. Mas vossemecê não os afogava, pois não?

- Bom - disse o capitão -, desde qua minha patroa se meteu à política ando meio maluco. Foi eleita p'rá assembléia cá do distrito e quando não há sessão de legislatura anda praí a botar discursos, e quando fica em casa leva o tempo todo a estudar e a passar recibos.

- Deve ser muito chato lá, quero dizer, deve sentir-se um bocado só - disse Mack. - Ora seu tivesse um cachorro como este - pegou num cachorro roliço e de ar pateta - pois aposto como fazia dele um bom cão de caça em menos de três anos. Cá pra mim escolhia uma cadela.

- Você gostava dum? - perguntou o capitão.

Mack ergueu os olhos.

- Quer dizer que me dava um? Oh! Santo nome de Cristo, tá visto que sim!

- Pois escolha um - disse o capitão. - Parece que já ninguém se interessa muito pelos perdigueiros.

Os rapazes permaneceram na cozinha e colheram rápidas impressões. A ausência da mulher era óbvia - as latas abertas, a frigideira com uma franja de ovos pegada às bordas, as migalhas sobre a mesa da cozinha, a caixa dos cartuchos aberta em cima da lata do pão, tudo apregoava aos brados a ausência de uma mulher, enquanto as cortinas brancas, os papéis nas estantes e as duas toalhinhas nos toalheiros atestavam que estivera ali uma mulher. E inconscientemente ficaram contentes por ela lá não estar. O gênero da mulher que punha papéis nas prateleiras e possuía toalhinhas daquelas, instintivamente desconfiava e antipatizava com Mack e os rapazes. Tais mulheres sabem que eles são a pior das ameaças para um lar, pois proporcionam à-vontade, cavaqueira, camaradagem, os opostos do arranjo, da ordem, do asseio. Ficaram bem contentes por ela não estar.

O capitão parecia agora considerar que lhe faziam um favor. Não queria que se fossem embora. Disse, hesitante:

- E se vocês tomassem qualquer coisa pra’quecer antes d’irem às rãs?

Os outros olharam para Mack. Este carregou o sobrolho como se estivesse a estudar o caso.

- A gente qandanda cá na nossa faina científica toma assim como quum compromisso de não tocar em nada - disse, e logo a seguir, como se tivesse ido longe de mais -, mas, atendendo a que foi tão simpático co’a gente, a mim não se me dava de tomar um copito. Ali os rapazes não sei.

Os rapazes afirmaram que também eles se não importariam de tomar um copito. O capitão pegou numa lanterna elétrica e desceu à cave. Podiam ouvi-lo a remexer na lenha e a afastar caixotes. Voltou com um barril de carvalho de cinco galões. Colocou-o sobre a mesa.

- Quando foi da lei seca arranjei um pouco de whisky de milho e tenho-o tido guardado. Está cá a parecer-me que era melhor prová-lo. Já deve estar bastante velho. Quase me ia esquecendo dele. Bem vêem, a minha mulher... - e ficou por ali, pois era evidente que eles percebiam. O capitão fez saltar a bucha de carvalho do fundo do barril e tirou copos da prateleira que tinha papel aos recortes. Cada um deles apanhou um copo de água meio cheio do licor translúcido e acastanhado. Esperaram cerimoniosamente pelo capitão e, então, dizendo - cávai, sobre o rio - emborcaram-no, saborearam-no, engoliram-no, lançaram os beiços e quedaram-se com uma expressão longínqua nos olhos.

Mack espreitou para dentro do seu copo vazio como se uma mensagem sagrada estivesse gravada no fundo. Depois levantou os olhos.

- Deste não há nada a dizer - disse ele -, este não metem eles em garrafas. - Aspirou fundo, sorvendo o ar conforme o ia expelindo. - Acho que nunca provei coisa tão boa comisto - afirmou.

O capitão mostrou-se satisfeito. Deu uma mirada ao barril.  

- É do bom. - disse ele. - Que dizem a tomar mais um copito?  

Mack fitou de novo o seu copo.

- Pois sim, mas um pequenino. - concordou ele. - Não era mais prático deitar uma porção num jarrinho. Assim tá sujeito a entornar-se.

Duas horas depois lembraram-se do que tinham ido fazer. A lagoa das rãs era um quadrado: cinquenta pés de largo por setenta de comprido e quatro de fundo. Nas suas bordas crescia a erva tenra e fresca, um valadozinho conduzia até ela a água do rio, e dali partiam ribeirinhos a regar as hortas. Havia rãs, não havia dúvidas, milhares delas. As suas vozes atroavam a noite, elas berravam, latiam, coaxavam, matraqueavam. Cantavam às estrelas, à Lua evanescente, às ervas ondulantes. Mugiam canções de amor e desafios. Os homens dirigiram-se para a lagoa através da escuridão. O capitão carregava com o barril meio cheio de whisky e cada um levava o seu copo. O capitão arranjou-lhes lanternas que funcionavam. Hughie Jones levavam sacos de lona. Ao aproximarem-se, cautelosos, as rãs pressentiram-nos. A noite ressoava com o seu cantar mas subitamente tornou-se silenciosa. Mack, os rapazes e o capitão sentaram-se no chão para tomar mais um gole e organizarem o ataque. E o plano era ousado.

Durante os milênios em que os homens e rãs têm vivido no mesmo mundo é provável que os homens tenham apanhado sempre rãs. Durante esse tempo tem-se desenvolvido um plano de ataque e de defesa. O homem com rede ou flecha, lança ou espingarda aproxima-se silenciosamente da rã, cuida ele. O plano exige que a rã fique sentada quieta, muito quieta, e espere. As regras do jogo exigem que a rã espere até à última fração de segundo; quando a rede desce, a lança cai no ar, o dedo preme o gatilho, a rã deve saltar, mergulhar na água, nadar até ao fundo e esperar até o homem se ir embora. É assim que se faz, que sempre se fez. As rãs têm todo o direito de esperar que se faça sempre desta maneira. Uma ou outra vez a rede precipita-se cedo demais, a lança fere, o tiro parte e a rã é apanhada, mas é tudo um jogo leal. As rãs não ficam ressentidas. Como podiam elas porém adivinhar o novo método de Mack? Como podiam ter previsto todo o horror que se seguiu? O súbito clarão das luzes, os gritos e berros dos homens.

Todas as rãs saltaram, se precipitaram, sob o estrépito dos passos, na lagoa e nadaram frenéticas para o fundo. Então a fila dos homens arremessou-se dando patadas, revolvendo, movendo-se em fileira desatinada, e atravessou a lagoa barafustando com os pés. As rãs, desalojadas dos seus pousos tranquilos, nadaram histericamente à frente dos aferrados pés em fúria, e os pés avançaram. As rãs são boas nadadoras mas não têm grande resistência. Correram lagoa fora até o limite onde finalmente ficaram encurraladas em monte. E os pés e os corpos em mergulhos precipitados perseguiram-nas.

Algumas perderam a cabeça e, estrebuchando por entre os pés, escaparam-se. Estas salvaram-se. Mas a maior parte decidiu abandonar para sempre a lagoa e procurar novo lar, uma nova pátria, onde coisas como esta não acontecessem. Uma onda de rãs alucinadas e desiludidas, umas grandes, outras pequenas, umas castanhas, outras verdes, rãs machos e rãs fêmeas, uma onda delas, saltou para a margem, arrastando-se, pulando, barafustando. Trepavam à relva, agarravam-se umas às  outras, as pequeninas em cima das grandes. Depois - ah!, horror dos horrores - as lanternas deram com elas. Dois dos homens apanhavam-nas como bagas. A avançada saía da água e, fechando-lhes a retaguarda, colheu-as como batatas.

Dezenas e dezenas delas foram atiradas para dentro dos sacos e estes encheram-se de estafadas, esbaforidas rãs, viscosas, queixosas, a pingar. Algumas atraiçoadas rãs, safaram-se, claro, e outras ficaram a salvo na lagoa. Mas jamais na história das rãs teve lugar execução igual. Rãs às libras, às cinquenta libras. Não as contaram, mas devia haver mais de seiscentas ou setecentas. Mack atou então a boca dos sacos, regalado. Ficaram encharcados, a pingar, e estava frio. Beberam mais um copo sentados na relva antes de regressarem a casa, para não entorpecerem.

É de duvidar que o capitão se tenha algum dia divertido tanto. Ficou em dívida para com Mack e os rapazes. Mais tarde, quando as cortinas arderam e extinguiram o fogo com as toalhinhas, o capitão disse-lhes que não se ralassem. Considerava uma honra queimarem-lhe a casa toda se isso lhes apetecesse.

- A minha mulher é uma pessoa extraordinária - disse, uma espécie de arenga. - Uma mulher fantástica. Devia ter nascido homem. Se fosse homem não tinha eu casado com ela.

- Riu-se muito tempo com isto e repetiu-o três ou quatro vezes resolvido a retê-lo na memória para o contar a outras pessoas. Encheu um jarro de whisky e deu-o a Mack. Queria ir viver com eles para o Palácio Flophouse. Convenceu-se de que a mulher havia de gostar de Mack e dos rapazes se os conhecesse.

Por fim adormeceu no chão com a cabeça entre os cachorros. Mack e os rapazes serviram-se de mais um copo e contemplaram-no muito sérios.

- Ele deu-m'o jarro do whisky, não deu? Vocês ouviram, não ouviram? - perguntou.

- Pois deu - respondeu Eddie. - Eu ouvi.

- E também me deu um cachorro, não foi?

- Pois foi. A flor da ninhada. Ouvimos todos. Porquê?

- Nunca intrujei um borracho e não vou começar agora - disse Mack.

- A gente tem de pôr-se a cavar. Acorda p'raí mal disposto e depois a culpa é nossa. Não m'agrada nada cá estar.

Mack olhou para as cortinas queimadas, o chão viscoso do whisky e da porcaria dos cachorros e a gordura de toucinho coagulada na chapa do fogão. Aproximou-se dos cachorritos, estudou-os com atenção, apalpou-lhes os ossos e a conformação, examinou-lhes os olhos e as goelas e escolheu uma linda cadelinha, bem malhada, com um focinhito cor de mel e olhos espertos, de um amarelo-torrado. “Anda daí, menina”, disse ele. Apagaram o candeeiro para que não pegasse fogo. Despontava a alvorada quando abandonaram a casa.

- Acho que nunca fiz uma passeata tão catita - disse Mack.- Mas veio-m'á ideia qu'a mulher ia aparecer e fiquei arrepiado. - O cão ganiu-lhe nos braços e ele meteu-o debaixo do casaco. - Não há dúvida de que se trata dum bom tipo - continuou Mack.

- S'a gente o põe à vontade, 'tá visto. - Encaminhou-se devagar para o sítio onde tinham arrumado o Ford. - A gente não se deve esquecer que faz isto tudo plo doutor - disse. - Plo jeito quas coisas levam, está-se a ver quele é um gajo com muita sorte.

 

A época de maior atividade para as pequenas do Guião do Urso foi possivelmente aquele Março da grande pesca da sardinha. Não foi apenas por as sardinhas terem afluído aos bilhões e o dinheiro ter acorrido com quase tão grande abundância. Instalara-se no Presídio um regimento, e um novo grupo de soldados efetua um bom número de mercas primeiro que se instale. Dora, ainda por cima, estava desgovernada nessa altura, pois a Eva Flanegan fora ao leste de San Francisco a férias, a Phyllis Mae partira uma perna ao sair do barco costeiro em Santa Cruz e a Elsie Doublebottom concluíra uma novena e para pouco prestava. Os homens das campanhas da sardinha, cheios de dinheiro, entravam e saíam de lá todo o dia. Fazem-se ao mar pela noitinha e pescam toda a noite, por isso têm de divertir-se de dia. À tarde apareciam os soldados do novo regimento e ficavam por ali a tocar a caixa de música, a beber Coca-Cola e a apreciar as raparigas para quando chegasse a altura do pré. Dora andava atrapalhada com os impostos, vendo-se enredada naquela organização que considerava o negócio ilegal e o fazia pagar em conformidade.

A acrescentar a esta frequência extraordinária havia ainda os regulares - fregueses assíduos que frequentavam a casa havia anos: os trabalhadores das pedreiras, os picadores dos ranchos, os empregados dos caminhos de ferro, que entravam pela porta da frente; os funcionários públicos e os homens de negócios em destaque, que iam pelos atalhos e entravam pela porta das traseiras. Para estes estavam reservadas salinhas com cretones. Tudo somado fora um mês terrível, a meio do qual ainda por cima havia de rebentar uma epidemia de gripe. Espalhou-se por toda a cidade. Mrs. Talbot e a filha, do Hotel San Carlos, foram atacadas. Tom Work teve-a. Benjamim Peabody e a mulher também lhe sofreram os efeitos. O mesmo aconteceu à Excelentíssima Maria Antônia Field. Toda a família Gross esteve de cama.

Os médicos de Monterey - e havia-os em número suficiente para os casos de doença vulgar, acidentes e neuroses - andavam doidos. Tinham mais doentes do que os que podiam atender e eram clientes que se não satisfaziam as contas possuíam pelo menos dinheiro para as pagar. Cannery Row, com uma população mais rija do que o resto da cidade, tardou em contrair a gripe, mas por fim também ali chegou. As escolas fecharam. Não havia casa onde não estivessem crianças ou os pais atacados.

Não era uma epidemia mortífera como a de 1917, mas nas crianças tendia a degenerar em mastoidite. A classe médica tinha muito trabalho, e Cannery Row não era considerado um bom trunfo financeiro.

Ora o doutor do Laboratório Biológico Ocidental não estava autorizado a exercer clínica. Não foi por culpa sua que todos os de Cannery Row o foram consultar. Antes de ter dado por isso deu consigo a correr de barraca para barraca, a tirar temperaturas, a receitar remédios, a requerer e a distribuir cobertores e até a levar comida de uma casa para outra, onde, de olhos congestionados, as mães o observavam dos leitos, agradecidas, e depositando nele toda a confiança na cura dos filhos. Quando algum caso se tornava realmente grave telefonava para o médico local, e uma vez por outra ele lá aparecia, em caso de emergência. Não restava pois ao doutor muito tempo para dormir. Alimentava-se a cerveja e sardinhas de lata. Na loja de Lee Chong, aonde fora buscar cerveja, encontrou a Dora, que comprava um alicate para as unhas.

- Parece arrasado - disse Dora.

- E estou - admitiu o doutor. - Já não durmo há perto duma semana.

- Bem sei - volveu Dora. - Dizem que é sério. E também vem em má altura.

- O que vale é que não morreu ninguém ainda - disse o doutor. - Mas algumas crianças estão muito mal. Os pequenos Ransels contraíram todos a mastoidite.

- Eu não poderia ajudar em qualquer coisa? - perguntou Dora.

- Sabe muito bem que sim. As pessoas ficam tão aterrorizadas e sentem-se tão desamparadas... Veja lá os Ransels; andam com medo da morte e têm receio de ficar sozinhos. Bastava que você ou uma das pequenas se sentasse junto deles - respondeu o doutor.

Dora, cuja brandura era macieza de barriguinha de rato, podia ser dura como um carbúnculo. Saiu dali para o Guião do Urso e mobilizou-o. Foi uma época má para Dora, mas ela foi-lhe superior. O cozinheiro grego preparou num caldeirão dez galões de caldo espesso; mantinha-o sempre cheio e conservava-o forte. As pequenas esforçavam-se por manter o negócio, mas iam por turmas fazer companhia às famílias, levando consigo tigelas de caldo. O doutor era chamado constantemente. Dora inquiria dele as necessidades e expedia as raparigas para onde ele designava. E entretanto, no Guião do Urso, o negócio florescia. A caixa de música nunca parava de tocar. Os homens das campanhas e os soldados eram à fila.

As pequenas acabavam o seu trabalho e levavam depois as tigelas do caldo e sentavam-se ao pé dos Ransels, dos McCarthys, dos Ferrias. Esgueiravam-se pela porta das traseiras, e às vezes, ao lado das crianças adormecidas, ficavam-se a dormir sentadas nas cadeiras. Deixaram de se pintar nas horas de trabalho, não lho exigiam. Dora chegou a dizer que até podia ter utilizado o quadro completo do hospício das velhas. Foi uma época de trabalho para as pequenas do Guião do Urso como não se lembravam de outra.

Todos se regozijaram quando terminou.

 

Apesar da sua comunicabilidade e das suas amizades, o doutor era um solitário, um homem à parte. Mack possivelmente notava-o mais do que qualquer outro. Em grupo, ele parecia estar sempre sozinho. Quando acendiam as luzes, corriam as cortinas e tocavam música gregoriana na grafonola grande, Mack, do alto do seu Palácio Flophouse, punha-se a observar o Laboratório. Sabia que com o doutor estava lá uma rapariga; todavia Mack recebia do fato uma impressão de angustioso desamparo porque sentia que mesmo no doce e íntimo contato com uma rapariga o doutor sentir-se-ia só. O doutor era um notívago. As luzes permaneciam acesas toda a noite no Laboratório, e no entanto ele parecia estar também a pé todo o dia. As largas ondas de música saíam do Laboratório a qualquer hora do dia ou da noite. Por vezes, quando tudo estava escuro e parecia finalmente ter chegado o momento do descanso, elevavam-se das janelas do Laboratório as vozes puras dos Meninos do Coro Sistino.

O doutor tinha de renovar as suas coleções. Ao longo da costa aproveitava as marés propícias. As rochas, as praias, constituíam o seu grande centro de fornecimento. Sabia onde se encontrava determinado artigo quando precisava dele. Todas as peças da nomenclatura da sua profissão se encontravam espalhadas na costa, aqui ninhos aquáticos, ali polvos; pólipos num sítio, noutro flores-do-mar. Sabia onde encontrá-las, mas não as podia ir buscar no momento exato em que tinha necessidade delas, porque a natureza era avara das suas peças e só ocasionalmente as libertava. O doutor tinha não só de conhecer as marés, mas de estar ao fato do melhor local em que se manifestariam os seus efeitos. Chegada a altura, carregava o carro com os seus apetrechos; frascos, boiões, pratos, preservativos, e dirigia-se à praia, aos recifes ou aos penedos onde os animais de que precisava estavam em condições de ser apanhados. Nessa ocasião tinha uma encomenda de polvos pequenos e o local mais conveniente para os obter era a zona rochosa entre correntes de La Jolla, a meio caminho de Los Angeles e San Diego. Representava uma viagem de quinhentas milhas nas duas direções e a chegada devia coincidir com a vazante. Os polvos pequenos vivem, entre as rochas, enterrados na areia. Como são novos e tímidos, preferem permanecer no fundo, onde são numerosas as covas, as fendas e os montes de lama em que podem esconder-se da pirataria e proteger-se contra as vagas. Mas na mesma planura existem milhões de viveiros, e o doutor, enquanto apanhava um determinado número de polvos para a encomenda, podia aumentar a sua provisão de viveiros. Naquela quinta-feira a maré baixa era às 5 e 17 da manhã.

Largando de Monterey na manhã de quarta, podia muito bem chegar ali para a maré de quinta. Gostaria de levar alguém para lhe fazer companhia, mas por azar todos estavam ausentes ou ocupados. Mack e os rapazes andavam lá pelo vale Carmel a apanhar as rãs. Três raparigas das suas relações, e que seriam boa companhia, eram empregadas e não podiam ausentar-se no meio da semana. Henri, o pintor, estava ocupado, pois os Armazéns Holman haviam instalado no seu pau de bandeira não um homem sentado, mas um em patins. Num mastro comprido, sobre o telhado do armazém, colocaram uma pequena plataforma e ali, de patins, ele andava a rodar. Já ali estava há três dias e três noites. Propunha-se estabelecer novo record de resistência em patins sobre plataforma. Como o máximo anterior fora de cento e vinte e sete horas, tinha ainda muito que rolar. Henri, fascinado tomara lugar no posto de gasolina do Red Williams, do outro lado da rua. Tencionava fazer uma grande pintura abstrata a que chamaria Sonho Substrato de Um Patinador de Pau de Bandeira. Henri não podia abandonar a cidade enquanto o patinador lá se conservasse argumentando que havia pormenores filosóficos na patinagem sobre um pau de bandeira de que ninguém ainda se ocupara. O pintor, sentado numa cadeira, encostado às grades que encobriam a porta da retrete dos homens no Red Williams, não despregava os olhos da patinagem aérea e, era óbvio, não podia acompanhar o Doutor. Teria este de ir sozinho, pois a maré não esperava.

Manhã cedo arrumou as suas coisas. Os objetos de uso pessoal foram metidos numa pequena sacola. Noutra iam instrumentos e seringas. Pronta a bagagem, penteou e aparou a barba castanha, certificou-se de que os lápis estavam no bolso da camisa e a lente presa à lapela do casaco. Meteu no porta-bagagem tabuleiros, frascos, chapas de vidro, preservativos, botas de borracha e um cobertor. Lavou pratos de três dias e deitou o lixo para a ressaca. Cerrou a porta com o trinco, mas sem a fechar à chave, e às nove pôs-se a caminho.

O doutor levava mais tempo a chegar a qualquer parte do que as outras pessoas. Conduzia devagar e parava constantemente para comer salsichas hamburguesas. No caminho para a Avenida do Farol fez acenos a um cãozinho que o mirou e lhe sorriu.

Ainda em Monterey, antes mesmo de iniciar a viagem, sentiu fome e parou no Herman para comprar uma hamburguesa e uma cerveja. Enquanto comia a sanduíche e beberricava a cerveja veio-lhe à memória certa conversa que tivera. Dissera-lhe Blaisedell, o poeta: Muito gosta você de cerveja! Qualquer dia entra aí e pede um cocktail de cerveja e leite!" Foi apenas uma gracinha, mas preocupara depois o doutor. Punha-se a pensar como seria o resultado da mistura de cerveja com leite. A ideia deixava-o desorientado, mas não o largava. Surgia assim que pegava num copo de cerveja. O leite talharia? Teria de se lhe adicionar açúcar? Era como se se fizesse um sorvete de camarão. Quando qualquer coisa se lhe encasquetava na cabeça não mais o largava. Comeu a sanduíche e pagou ao Herman. Não olhou propositadamente para as  máquinas cromadas de bater o leite alinhadas contra a parede.

Se um homem tinha de pedir um cocktail de cerveja e leite, pensou, seria melhor fazê-lo numa cidade onde não fosse conhecido! Até podiam chamar a Polícia. Aliás um homem de barbas tornava-se sempre mais ou menos suspeito. Não pode dizer que usa barba porque gosta. Ninguém aprecia as pessoas quando dizem a verdade. Teria de dizer que tinha uma cicatriz e não se podia barbear. Em certa ocasião, estando o doutor na Universidade de Chicago, fora preso de inquietação amorosa e trabalhara demais. Pensou que seria bom dar uma longa passeata. Preparou uma malinha e pôs-se a caminhar através da Indiana, do Kentucky, da Carolina do Norte, da Geórgia, até aos confins da Florida. Acamaradou com lavradores, montanheses, gente dos pântanos e pescadores, e em toda a parte lhe perguntavam porque atravessava o país a pé.  Como gostasse da verdade, tentou explicar: que andava nervoso e além disso queria conhecer o país, cheirar a terra, ver a relva, os pássaros, as árvores, apreciar o campo, e que não havia melhor forma de o fazer do que a pé. E as pessoas não gostavam dele porque dizia a verdade. Ou mostravam má cara, ou apontavam e meneavam a cabeça, ou riam-se como se soubessem que era tudo parlapatice e apreciassem um intrujão. E alguns, com receio pelas suas filhas ou pelos seus porcos, davam-lhe de conselho que se pusesse a andar e não se demorasse por ali se tinha amor à pele.

Deixou assim de dizer a verdade. Contara então que fizera uma aposta em que se abalançava a ganhar cem dólares. E todos então o estimaram e acreditaram nele. Convidaram-no para jantar, deram-lhe cama para dormir, prepararam-lhe merendas, desejando-lhe boa sorte, considerando-o um esplêndido camaradão. Ainda tinha amor à verdade, o doutor, mas sabia que ela não era amada de todos e que podia ser uma comprometedora companheira.

O doutor não parou em Salinas para a sua hamburguesa, mas fê-lo em González, na cidade de King e em Paso Robles. Comeu sanduíches e tomou cerveja em Santa Maria - duas em Santa Maria porque era um estirão até Santa Bárbara. Aí comeu uma sopa, uma salada de alface e feijão verde, carne assada com puré, torta de ananás, queijo Roquefort e café, depois do que encheu o depósito da gasolina e dirigiu-se aos lavabos.

Enquanto na estação de serviço vistoriavam o óleo e os pneus, o doutor lavou a cara e penteou a barba. No regresso ao carro esperavam-no vários pretendentes a boleia.

- Vai prò Sul, o senhor?”

O doutor viajara muito pelas estradas. Era um velho sabido. É preciso admitir-se o borlista com cuidado. O melhor é escolher-se um com experiência porque se mantém calado. Os novatos querem pagar a viagem fazendo-se engraçados. Alguns destes já lhe tinham feito perder a paciência. Por isso, depois de se decidir pela companhia, é preciso defender-se dizendo que não se vai muito longe. Se o homem se torna incômodo, deixa-se pelo caminho. Por outro lado, pode ter-se a sorte de encontrar alguém que valha a pena conhecer. O doutor passou um rápido olhar pela fileira de pretendentes e escolheu o seu companheiro, um homem de cara chupada, com aspecto de negociante, de fato azul. Tinha rugas fundas aos cantos da boca e uns olhos escuros e tristes. Encarou o doutor com antipatia.

- Vossemecê vai prò Sul?

- Vou - disse o doutor -, um pouco mais além.

- Importa-se de me levar?

- Entre! - anuiu o doutor.

Quando chegaram a Ventura pouco tempo tinha passado sobre o pesado jantar do doutor; por isso parou apenas para beber cerveja. O da boleia não dera uma palavra. O doutor parou junto de um posto na estrada.

- Vai um gole de cerveja?

- Não - disse o da boleia. - E deixe-me dizer-lhe não ser lá muito boa ideia essa de guiar debaixo da influência do álcool. Nada tenho a ver com o que o senhor faz, mas neste caso o senhor conduz um automóvel, que pode tornar-se em arma assassina nas mãos de um volante embriagado.

De começo o doutor ficara um tanto assustado.

- Saia-me do carro pra fora - ordenou em voz baixa.

- O quê?

- Esmurro-lhe essas ventas - disse o doutor - se não tiver saído do carro antes de eu contar até dez: um, dois, três...

O homem embaraçou-se com a maçaneta da porta e saiu precipitadamente. Mas, uma vez fora, berrou:

- Vou procurar um polícia. Vou mandá-lo prender.

O doutor abriu a caixa da ferramenta e tirou dali a haste de um macaco. O seu convidado viu o gesto e desapareceu, apressado. O doutor, furioso, dirigiu-se para o balcão do posto. A criada, uma beldade loura com um começo de papada, sorriu-lhe:

- Que há-de ser? - Cocktail de cerveja com leite.

- Como?

- Ora cá o temos, e porque não, caramba? Tanto fazia acabar com aquilo ali como mais tarde.

- Está a mangar? - perguntou-lhe a loura.

O doutor compreendeu vagamente que não podia explicar, que não podia dizer a verdade. - Tenho uma doença do fígado - disse - os médicos chamam-lhe bipalychaetorsonectomy. Preciso de tomar  cocktails de leite e cerveja. É receita do médico.

A loura sorriu, sossegando-o:

- Ah, pensei que estivesse a brincar. - observou com malícia. - Diga-me como se prepara. Não sabia que estava doente.

- Muito doente - disse o doutor -, e posso ficar muito pior. Deite o leite e acrescente-lhe meia garrafa de cerveja. Dê-me a outra metade num copo; não ponha açúcar na mistura. Quando ela o serviu, ele provou, enjoado. Afinal não era mau de todo: sabia a cerveja choca e a leite.

- Deve ser horrível - admitiu a loura.

- Não é mau quando se está habituado - disse o doutor. - Já o tomo há dezessete anos.

 

O doutor guiava devagar. Era tarde quando parou em Ventura; tão tarde, de fato, que, ao deter-se em Carpenteria, só comeu um sanduíche de queijo e foi ao lavabo. Além disso tencionava comer um bom jantar em Los Angeles e escurecia quando lá chegou. Atravessou a cidade e parou numa casa de frangos na grelha sua conhecida, e ali comeu frango na frigideira, batatas à Juliana, pãezinhos quentes com mel, uma talhada de ananás e um bocado de queijo. Encheu a térmica com café quente, mandou preparar sanduíches de fiambre e comprou dois quartilhos de cerveja, para o café da manhã.

Não o divertia guiar de noite. Não se viam cães, só a estrada iluminada pelos faróis. O doutor acelerou para apressar a viagem. Eram mais ou menos duas horas quando chegou a La Jolla. Meteu pelo meio da cidade e desceu até ao recife sob o qual ficava o seu areal. Uma vez ali, parou o carro, comeu um sanduíche, bebeu um pouco de cerveja, olhou as luzes e enroscou-se no assento para dormir. Não precisava de relógio. Trabalhava há tanto tempo orientado pelas marés que acompanhava o movimento das ondas  que sempre conseguia dormir, sob a brisa e vaivém das ondas. De madrugada acordou, espreitou pela janela do carro. O mar já se ia afastando do penhascoso areal. Tomou o café quente, comeu três sanduíches e bebeu um quartilho de cerveja.

A maré ia baixando imperceptivelmente. As rochas apareciam como se se erguessem e o mar recuava e deixava pequenas poças, musgo e esponjas; era uma iridescência parda, azul, vermelho-da-china. No fundo jazia o espantoso refugo do mar, conchas partidas, lascadas, pedacitos de esqueletos, pinças, todo um cemitério fantástico onde os seres vivos se afadigam e se debatem.

O doutor calçou as suas botas de borracha e pôs o seu chapéu impermeável às três pancadas. Pegou nas selhas, nos boiões e numa alavanca, meteu os sanduíches numa algibeira e o térmica na outra, desceu pelo recife ao areal e foi seguindo na esteira do mar em retirada. Virava as rochas com a alavanca e de quando em quando mergulhava repentinamente a mão na água quieta e retirava um pequeno polvo, que barafustava, fazendo-se escarlate de raiva e cuspindo-lhe tinta para as mãos. Introduzia-o então num boião com água do mar junto com outros, mostrando-se o recém-chegado tão furibundo que geralmente atacava os companheiros.

Nesse dia a colheita foi esplêndida. Apanhou vinte e dois pequenos polvos e também recolheu alguns centos de viveiros, que meteu na selha. À medida que a maré vazava ele ia-a seguindo e entretanto o dia avançava e o Sol nascia.

O areal estendia-se por uns duzentos metros, acabando numa fileira de rochas musgosas para lá das quais já não havia pé.

O doutor levou as suas pesquisas até junto das rochas. Colhera tudo de quanto precisava e passou o resto do tempo a procurar por baixo de pedras, a debruçar-se e a espreitar para dentro das poças com os seus mosaicos garridos, o seu mundo assustadiço e palpitante. Por fim alcançou a última barreira de rochas, de onde pendiam para o mar algas castanhas, compridas e coriáceas. Sobre as rochas amontoavam-se estrelas-do-mar vermelhas e o mar pulsava para cá e para lá, na esperança de voltar a entrar. Na barreira, entre duas rochas cobertas de musgo, viu o doutor um súbito faiscar esbranquiçado debaixo de água, que logo se cobriu de algas flutuantes. Subiu à rocha escorregadia, firmou-se bem, e cautelosamente debruçou-se e afastou as algas pardas. Ficou siderado. Do fundo olhava-o um rosto de jovem, um rosto pálido e belo de rapariga de cabelos negros. Tinha abertos os olhos translúcidos, o rosto estava sereno e o cabelo ondulava-lhe suavemente em volta da cabeça. O corpo permanecia oculto, metido numa fenda. Os lábios, ligeiramente entreabertos, deixavam os dentes a descoberto e no seu rosto transparecia apenas repouso e tranquilidade. Estava mesmo um pouco abaixo da tona de água e a água límpida emprestava-lhe grande beleza. Pareceu ao doutor tê-la contemplado durante muitos minutos e o rosto gravou-se-lhe na memória visual.

Muito de mansinho retirou a mão e deixou que as algas castanhas flutuassem de novo e cobrissem o rosto. O coração do doutor batia-lhe apressado e tinha a garganta oprimida. Pegou no balde, nos frascos, na alavanca, e vagarosamente regressou à praia pelas rochas viscosas. O rosto da jovem precedia-o. Sentou-se na areia grossa e seca da praia e tirou as botas.

Dentro dos boiões os polvozinhos apertados conservavam-se afastados uns dos outros tanto quanto podiam. Um fio de música soou aos ouvidos do doutor, o som agudo, penetrante e doce de uma flauta trazendo-lhe uma melodia que nunca podia fixar; e contrapondo-se-lhe, um estrondear como que de ressaca, de vento da floresta. A flauta ascendeu a regiões para além do audível, e mesmo até ali levou a sua estranha melodia. O doutor sentiu arrepiar-se-lhe a pele dos braços. Estremeceu e os olhos umedeceram-se-lhe como acontece quando se fixam imagens de rara beleza. Os olhos da jovem eram cinzentos, límpidos, e o cabelo escuro flutuava, perpassara-lhe ao de leve sobre o rosto. A imagem fixara-se para todo o sempre.

Deixou-se ficar ali enquanto o primeiro borrifo de água passava acima do recife trazido pelo fluxo da maré. Ali ficou ouvindo a melodia, enquanto o mar se ia estendendo de novo sobre a planura pedregosa. A mão batia ao ritmo e a flauta terrífica soava-lhe no cérebro. Eram cinzentos os olhos, e a boca sorria um pouco ou, antes, parecia reter a respiração em êxtase. Veio acordá-lo uma voz. Um homem debruçou-se por cima dele.  

- Esteve a pescar?

- Não, ando em pesquisas.

- Ah!, e estes, o que são?

- Polvos pequenos.

- Quer dizer diabos marinhos? Não sabia que havia disso por estes sítios. Tenho vivido aqui toda a vida.

- É preciso procurá-los - disse o doutor alheadamente.

- Mas - tornou o homem -, não se sente bem? Parece que está doente.

De novo se ouviu a flauta, soaram em baixo esforçados violoncelos, e o mar subia, subia pela praia. O doutor sacudiu de si a música, o rosto, o arrepio que lhe trespassava o corpo.

- Haverá por aqui perto um posto de Polícia?

- Só na cidade. Porquê, aconteceu alguma coisa?

- Está um corpo no recife.

- Onde?

- Mesmo naquela direção, entalado entre duas rochas. Uma rapariga.

- Espere lá - disse o homem. - Recebe-se uma gratificação quando se encontra um cadáver. Não estou bem certo de quanto.

- Encarrega-se o senhor de dar parte? Não estou a sentir-me muito bem.

- Apanhou um choque, não? O corpo do afogado está feio, decomposto. 

O doutor voltou as costas.

- Receba o senhor a gratificação - disse -, eu não a quero. - Encaminhou-se para o carro.

Apenas um tênue som da flauta lhe ressoava na cabeça.

 

Nada do que o Departamento dos Armazenistas Holman empreendeu com vista à publicidade atraiu talvez tanto interesse como o chamariz do patinador do mastro. Dia após dia, lá estava ele na sua plataforma circular a patinar à roda, à roda. Também o obrigavam à noite, negro contra o céu, de modo que todos sabiam que ele lá se conservava.

Todavia, era do conhecimento geral que à noite se elevava no centro da plataforma um poste de aço a que se ligava. No entanto não se sentava e ninguém ligava importância ao poste.

Vinha povo de Jamesburgo para o ver e também da costa, de tão longe como do cabo Grimes. De Salinas vinha gente aos magotes e a Mercantil dos Lavradores dessa cidade oferecera-se para a próxima exibição, na qual o patinador tentaria vencer o seu próprio record e proporcionar assim a Salinas o novo máximo mundial. Como não havia muitos patinadores de mastros e como esse era de longe o melhor, levara o ano decorrido a vencer o seu próprio record mundial.  O Holman estava encantado com o sucesso. Fizera saldos de branco, de retalhos, de alumínio e de louças, tudo ao mesmo tempo. Apinhava-se a multidão na rua para ver o homem solitário na sua plataforma.

Ao fim do segundo dia avisou para baixo que alguém lhe estava a dar tiros com uma espingarda de ar comprimido. A seção de propaganda inventou processos de investigação. De ângulos figurados localizou o ofensor. Era o velho Dr. Merivale, que, escondido por trás das cortinas do seu escritório, disparava com uma espingarda Daisy de ar comprimido. Não o denunciaram, e ele prometeu acabar com a graça. Era figura muito proeminente da loja maçônica.

Henri, o pintor, conservava-se na sua cadeira na estação de serviço de Red Williams. Usou de todos os meios filosóficos de aproximação possíveis da situação e chegou à conclusão de que teria de construir uma plataforma em sua própria casa e fazer ele mesmo a experiência. Andavam todos mais ou menos impressionados na cidade com o patinador. Longe da periferia da sua atuação o comércio fraquejava e melhorava conforme se aproximava do Holman. Mack e os rapazes foram até lá, observaram-no por momentos e voltaram para o Palácio. Para eles o patinador não tinha interesse.

Os do Holman instalaram uma cama de casados junto da janela. Assim que o patinador vencesse o máximo mundial devia descer e dormir ali mesmo na montra sem tirar os patins. O nome do fabricante do colchão estava num pequeno cartão aos pés da cama. Por toda a cidade se discutia o acontecimento desportivo, mas, à margem do caso, um ponto havia que, embora ocupasse o espírito de toda a gente, não era comentado. Ninguém o mencionava e no entanto era ele que obcecava toda a gente. Mrs. Trolat, saindo da Padaria Escocesa com um cartucho de biscoitos, ia intrigada. As três meninas Willoughby bufavam de riso cada vez que pensavam nisso. Mas ninguém tinha coragem para o trazer a lume. Richard Frost, moço brilhante e requintado, preocupava-se mais do que qualquer outro. Alucinava-o. Passou a noite de quarta-feira preocupado e nervoso a de quinta. Na sexta-feira embebedou-se e questionou com a mulher. Ela chorou durante algum tempo e depois fingiu que dormia. Sentiu-o sair da cama e ir à cozinha. Ia beber mais. Depois viu-o vestir-se à pressa e sair. Pôs-se de novo a chorar. Era muito tarde. Mrs. Frost convenceu-se de que ele ia ao Guião do Urso. Richard caminhou decidido morro abaixo por entre os pinheiros até que chegou à Avenida do Farol. Voltou à esquerda e seguiu na direção do Holman. Levava a garrafa na algibeira e um momento antes de chegar à loja bebeu um trago.

Tinham baixado as luzes. A cidade estava deserta. Não se via viv’alma. Richard colocou-se no meio da rua e olhou para cima. Descortinou vagamente a figura solitária do patinador no cimo do alto mastro. Bebeu mais um trago. Pôs a mão em concha junto da boca e em voz pastosa gritou:

- Olá! Não houve resposta. - Olá! - gritou mais alto, olhando em volta para ver se os polícias saíam dos seus postos junto do banco.

Lá das alturas do céu chegou a resposta:

- Que deseja?

Richard pôs novamente a mão em concha:

- Como é... como se arranja para ir ao lavabo?

- Tenho aqui um jarro - disse a voz.

Richard retrocedeu pelo mesmo caminho. Percorreu a Avenida do Farol, atravessou o pinhal, alcançou a casa e entrou. Ao despir-se, percebeu que a mulher estava acordada. Ela quando dormia gorgolejava um pouco. Meteu-se na cama e ela fez-lhe lugar.  

- Tem lá um jarro - disse Richard.

 

A meio da manhã a camioneta modelo T deslizou triunfalmente de volta a Cannery Row, galgou o passeio e chocalhou por entre o matagal até ao seu lugar atrás da loja do Lee Chong. Os rapazes calçaram as rodas dianteiras, escorreram quanta gasolina restava para uma lata de cinco galões, pegaram nas rãs, e, moídos, dirigiram-se para o Palácio Flophouse. A seguir, enquanto os rapazes acendiam o lume no fogão grande, Mack fez uma visita cerimoniosa a Lee Chong. Muito digno, Mack agradeceu a Lee a cedência da camioneta. Falou no grande êxito da viagem e nas centenas de rãs que tinham apanhado. Lee, com um sorriso constrangido, aguardou o inevitável.

- Tamos cheios de massa - disse Mack com entusiasmo. - O doutor dá-nos um níquel por cada rã e a gente tem quase mil. - Lee meneou a cabeça. O preço era o da tabela. Todos o sabiam. - O doutor está pra fora - continuou Mack. - Jesus, aquilo é quele vai ficar contente quando vir aquela data de rãs.

Lee meneou novamente a cabeça. Sabia muito bem que o doutor se encontrava ausente e também onde Mack queria chegar com a conversa.

- Olhe lá, a propósito - disse Mack como se se recordasse de repente -, neste momento tamos sem cheta. - Fazia por apresentar a situação como invulgar.

- Não whisky - preveniu Lee Chong, a sorrir.

Mack escandalizou-se.

- Pra que queria a gente o whisky? Temos lá um galão do melhor whisky como você nunca botou à boca; um galão dos diabos a deitar por fora. A propósito - continuou -, eu mais os rapazes queríamos que você fosse até lá tomar uma pinga co’a gente. Eles disseram-me pra lhe pedir.

Contra sua vontade, Lee não pôde deixar de sorrir de satisfação. Não lho ofereceriam se o não tivessem.

- Não - disse Mack. - Vamos lá pôr as coisas nos seus lugares. Eu e mais lá os rapazes estamos completamente tesos e cheios de fome. Você sabe quo preço das rãs é de vinte dólares a selha. Ora o doutor não está cá e a gente estamos esfomeados. Por isso o qua gente pensou foi isto; como não queremos que fique a perder, cedemos-lhe vint’cinco rãs por cada dólar. Fica cum lucro de cinco rãs e ninguém perde nada co negócio.

- Não - disse Lee. - Não dinelo.

- Qu’inferno! Lee, a gente só precisa dumas coisitas de nada. Ora veja: queremos dar uma festa ao doutor quan’dele voltar. Bebida tem a gente que chegue, mas queríamos umas costeletas e outras coisas assim. Ele é um tipo tão simpático! Que diabo, quando a sua senhora teve aquela dor de dentes, quem é que lhe deu o láudano?

Estava nas mãos de Mack. Lee contraíra uma dívida para com o doutor, uma grande dívida. O que Lee tinha dificuldade em compreender era como a sua dívida para com o doutor tornava obrigatório conceder crédito a Mack.

- Não é uma hipoteca qua gente lhe quer fazer co’as rãs - continuou Mack. - A gente entrega-lhe mesmo pras mãos vinte cinco rãs por cada dólar de gêneros que nos der e inda pode vir também à festa.

A imaginação de Lee pôs-se a farejar a proposta qual ratinho num armário de queijos. Não lhe viu inconvenientes. Tudo aquilo era certo. As rãs eram de fato dinheiro, tratando-se do doutor, o preço era o de tabela e Lee tirava lucros a dobrar. Ficava com um excedente de cinco rãs, além da vantagem de vender gêneros da sua loja. Tudo dependia de fato da existência das rãs em seu poder.

- Vamos, vê lá - anuiu por fim.

Já em frente do Palácio, tomou um gole de whisky, inspecionou os sacos úmidos das rãs e concordou com a transação. Estipulou, no entanto, que não levaria rãs mortas.

Mack contou pois cinquenta rãs para dentro de uma lata, voltou à mercearia com o Lee e recebeu o valor de dois dólares em toucinho, pão e ovos. Lee, visionando um negócio rápido, foi buscar um caixote grande e colocou-o na seção dos legumes. Deitou-lhe dentro as rãs e cobriu-o com um saco de serapilheira molhado para manter satisfeitas as suas pupilas.

O negócio, realmente, foi rápido. Eddie, deambulando, entrou e comprou Bull Durhams no valor de duas rãs. Eddie ficou furioso quando o preço da Coca-Cola subiu mais tarde de uma para duas rãs. As costeletas, por exemplo, uma costeleta das melhores não devia custar mais de dez rãs a libra, pois Lee fixou-a em doze e meia. Os pêssegos de conserva foram cotados a altos preços - oito rãs a lata. Lee apertava a corda na garganta dos seus consumidores.

Tinha a certeza de que tanto o Mercado Thrift como o Holman não aprovavam este novo sistema monetário. Se os rapazes queriam costeletas tinham de pagá-las pelos preços fixados por Lee. Os ânimos exaltaram-se quando Hazel, que de há muito cobiçava um par de braçadeiras de seda, foi informado de que, se não se dispunha a dar trinta e cinco rãs por elas, podia ir a outro lado. O veneno da ganância misturava-se já no inocente e louvável convênio mercantil. O azedume ia aumentando, mas também as rãs se iam acumulando no caixote de Lee. O ressentimento mercantil não penetrava fundo no ânimo de Mack e dos rapazes, pois não eram homens de negócios. Não mediam as suas alegrias pelos gêneros vendidos, os seus egos pelos saldos de banco ou as afeições pelo preço por que lhes custavam. Ao mesmo tempo que se irritavam por Lee os levar a uma corrida, quiçá a um salto econômico, tinham já na barriga dois dólares de fiambre e ovos bem acamados sobre uma boa dose de whisky, e, em cima do almoço, outra dose de whisky. Sentaram-se então nas suas cadeiras, na rua, a ver como Darling aprendia a beber leite condensado numa lata de sardinhas. Darling era, e estava destinada a permanecer, uma cadela feliz, pois que naquele grupo de cinco homens havia cinco teorias diferentes sobre o treinamento dos cães, teorias de tal modo opostas que Darling acabou por não receber treino algum. O animal foi desde o princípio uma cadelinha precoce.

Dormia na cama do último que lhe desse suborno. Eles chegavam mesmo a furtar para ela. Cortejavam-na, roubavam-na uns aos outros. Ocasionalmente concordavam todos os cinco em que as coisas tinham de mudar e que Darling devia ser educada, mas na discussão do método a intenção, em geral, dispersava-se.

Viviam em adoração. Achavam encantadoras as poçazinhas que ela deixava pelo chão. Maçavam todos os amigos com as suas gracinhas e tê-la-iam matado à força de comida se ela não tivesse afinal mais bom senso do que eles.

Jones fez-lhe uma caminha na parte inferior do relógio de caixa alta, porém, Darling nunca a utilizou. Dormia ora com um, ora com outro, conforme lho exigia a fantasia. Roía os cobertores, rasgava os colchões, espalhava as penas das almofadas. Borboleteava e acirrava os donos uns contra os outros. Eles consideravam-na maravilhosa. Mack fez boas ideias de ensinar-lhe umas habilidades e apresentá-la em espetáculos, mas não conseguiu domesticá-la sequer.

À tarde sentaram-se a fumar, a fazer a digestão, a pensar e a beberricar do jarro de quando em quando um gole parcimonioso, e recomendavam uns aos outros que não deviam beber demasiado, porque aquilo era para o doutor. Não o deviam esquecer nem por um minuto.

- A que horas calculas tu qu’ele chega? - perguntou Eddie.

- Ele em geral voltaí p’las oito, nove horas - disse Mack.  - A gente o que precisa é de combinar quando se lhá-de dar.  Acho qué melhor dá-la já esta noite.

- É mesmo - concordaram os outros.

- Talvez venha cansado - sugeriu Hazel. - É uma viagem puxada.

- Ora bolas - disse Jones. - Nada há que dê mais descanso a um tipo qu’uma boa pândega. Já me tenho sentido tão estafado que mal m’aguento nas pernas e vou pra paródia e fico fino.

- A gente tem d’estudar bem a coisa - disse Mack. - Onde shá-de fazer a festa? Aqui?

- Bom o doutor gosta lá da sua música. Põe sempre agrafonola a tocar nas festas. Talvez ficasse mais satisfeito se a gente lha desse lá em casa dele.  

- Tens razão - concordou Mack. - Mas tá-me cá a parecer qu’a festa devia ser surpresa. E comé qu’a gente vai arranjar p'ra parcer qué surpresa e que não é só levar-lhe um jarro de whisky?

- E senfeitássemos tudo? - sugeriu Hughie. - Como no 4 de Julho ou no Halloween[2].

Os olhos de Mack perderam-se no espaço e os seus lábios entreabriram-se. Visionava aquilo.

- Hughie - disse - parece qu’acertaste. Nunca pensei que fosses capaz, mas caramba, desta vez acertast’em cheio. - A voz tornou-se-lhe quente e os olhos fixaram-se-lhe no futuro. - Estou mesma ver. - disse. - O doutor chega casa. Vem cansado. Meto carro até à porta. Tá tudo iluminado. Ele cuida qué um assalto. Sobe as escadas e cum raio, a casa tá toda enfeitada; ele é papel de seda, ele são lembranças e mais um grande bolo. Caramba, assim via logo que se tratava duma festa. E não era qualquer porcaria de festa, pois. E a gente deixar-s’estar escondido pra ele não ver logo quem foi. E depois a sair aos gritos. Estão a ver a cara dele? Caramba, Hughie, nem sei como te lembraste.

Hughie corou. A sua concepção fora muito mais modesta, baseada, de fato,na festa de Ano Novo no La Ida, mas se a coisa ia ser assim então Hughie estava pronto a aceitar-lhe a paternidade.

- Achei que seria bonito - disse ele.

- Pois é uma linda ideia - assentiu Mack. - E assim qu’a surpresa passar, hei-de dizer ao doutor de quem foi a ideia.

Repoltreados, estudavam a coisa. E nas suas imaginações o Laboratório ornamentado assemelhava-se à estufa de plantas do Hotel del Monte. Tomaram mais dois copitos para saborear o plano.

Lee Chong possuía um estabelecimento notável. Por exemplo, a maior parte dos estabelecimentos adquire papel de seda amarelo e negro, gatos de papel preto, máscaras e balões em Outubro.

Este comércio intensifica-se muito pelo Halloween, mas depois as coisas desaparecem. Ou são vendidas ou talvez armazenadas, mas em Junho já não é possível comprarem-se. Dá-se o mesmo com os ornamentos para o 4 de Julho: bandeiras, festões, foguetes, onde estão eles em Janeiro? Desaparecem - sabe-se lá para onde. Este não era o sistema de Lee Chong. Na sua loja podiam comprar-se vilancetes de S. Valentim[3] e trevos de quatro folhas em Novembro, machadinhas e cerejas de papel em Agosto. Tinha foguetes que armazenara em 1920. Mistério era também onde guardava esses artigos, pois não era grande o seu armazém. Conservava ali fatos de banho adquiridos quando estavam ainda em moda as saias compridas, as meias pretas e os cachenés. Vendia molas para os ciclistas, lançadeiras de tecelão e jogos de mah-jong; tinha insígnias com os dizeres: Recordação do Maine, e bonés de feltro comemorando o Bob Lutador. Tinha recordações da Exposição Internacional do Panamá-Pacífico de 1915 - pequenas torres de pedrinhas. Outra característica tinha ainda o seu sistema de negócios. Nunca saldava, nunca baixava preços, nunca vendia ao desbarato. Um artigo que em 1912 custava trinta cents mantinha-se a trinta cents, embora parecesse a muita gente que os ratos e as traças lhe haviam diminuído o valor.

Mas estava fora de dúvida que se alguém quisesse decorar o Laboratório na forma do costume sem a preocupação de data assinalável mas que desse o efeito de qualquer coisa entre uma saturnal e uma parada de bandeiras de todas as nações, era na loja do Lee que devia procurar o material. Mack e os rapazes sabiam isto; Mack porém disse:

- Onde vai a gente arranjar um bolo grande? O Lee só lá tem pãezinhos doces.

Hughie, anteriormente tão feliz, tentou sê-lo de novo.

- So Eddie fizesse o bolo? - sugeriu. - O Eddie em tempos foi ajudante de cozinheiro no San Carlos.

O súbito entusiasmo por aquela sugestão não o fez lembrar de que nunca fizera um bolo. Aliás Mack colocou ainda a questão numa base sentimental:

- Prô doutor tinha mais valor - ajuntou. - Não era qualquer destas bodegas de bolos de compra. Era um bolo com alma. À medida que a tarde e o whisky desciam, subia o entusiasmo.  Fizeram-se frequentes visitas ao Lee Chong. As rãs de um dos sacos desapareceram e o caixote de Lee abarrotava. Pelas seis horas tinham dado conta do galão de whisky e começavam a comprar meios quartilhos de Old Tennis Shoes a quinze rãs cada quartilho, mas a pilha de material decorativo amontoava-se no chão do Palácio Flophouse milhas de papel crepe comemorativo de todos os feriados em voga e ainda d’outros em desuso.

Eddie cuidava do forno qual galinha-mãe. Preparava-se para fazer um bolo na bacia da cara. A receita, com a garantia da casa produtora do fermento, não podia falhar. Mas de princípio o bolo comportou-se de maneira esquisita. Depois da massa batida, começou a revolver-se e a resfolegar como se no interior estivessem bichos a contorcer-se e a arrastar-se, e, já dentro do forno, formou uma bolha semelhante a uma bola de basebol, que inchou, esticada e luzidia, e por fim estourou com um silvo. Isto formou tão grande cratera que Eddie fez nova porção de massa para a encher. E então o bolo portou-se de modo curioso, porque, enquanto a parte de baixo esturrava despedindo uma fumarada negra, a de cima crescia e extravasava pegajosa, com uma série de explosõezinhas. Quando Eddie finalmente o pôs a arrefecer parecia uma das miniaturas de Bel Geddes representando uma batalha num campo de lava.

Este bolo não teve sorte, porque, enquanto os rapazes decoravam o Laboratório, Darling comeu dele o que pôde, vomitou e por fim, enroscando-se sobre a massa ainda morna, adormeceu.

Entretanto, Mack e os rapazes, carregados com o papel de seda, as máscaras, as vassouras, os balões, os festões brancos, vermelhos e azuis seguiram pelo terreno, atravessaram a rua e foram para o Laboratório. Empregaram a última rã em um quartilho de Old Tenns Shões e em dois galões de vinho de 49 cents.

- O doutor gosta imenso de vinho - disse Mack. - Acho quaté  gosta mais que de whisky.

O doutor nunca fechava o Laboratório. Baseava-se na teoria de que quando alguém quer assaltar uma casa facilmente o consegue, de que as pessoas são essencialmente honestas e finalmente que nada havia ali que a maioria das pessoas quisesse roubar. De valor havia apenas os livros, os discos, os instrumentos cirúrgicos, as lentes, coisas que não interessam um gatuno de sentido prático. Esta teoria era ajuizada no que dizia respeito a gatunos e a cleptomaníacos, mas completamente ineficaz em relação aos amigos. Os livros eram amiúde levados de empréstimo, nenhuma lata de conserva sobrevivia à sua ausência, e algumas vezes, ao regressar tarde, encontrara hóspedes instalados na sua própria cama.

Os rapazes amontoaram as decorações na casa de entrada e então Mack mandou-os parar e perguntou:

- De qué quo doutor vai gostar mais?

- Da festa! - exclamou Hazel.

- Não - disse Mack.

- Das decorações - aventou Hughie. Sentia-se responsável pelos ornamentos.

- Não - tornou Mack. - Das rãs. Co’elas é qu’ele vai ficar mais satisfeito do que tudo. Se calhar quando cá chegar já o Lee tá fechado e ele nem sequer vê as rãs senão no outro dia.

- Nada, rapazes - exclamou Mack -, as rãs deviam mas era estar aqui, mesmo no meio da casa cuns infeitos e um cartaz a dizer “Bem-vindo seja, doutor”.  

A delegação que em seguida visitou Lee encontrou rígida oposição. Pelo seu cérebro suspeitoso perpassou toda a casta de hipóteses. Foi-lhe explicado que se encontraria na festa e poderia assim velar pelo que era seu e que ninguém lhe contestaria os seus direitos de proprietário. Mack passou um documento em que lhe reconhecia esses direitos para o caso de surgirem dúvidas. Quando a aquiescência foi alcançada, levaram o caixote para o Laboratório, enfeitaram-no com festões vermelhos, brancos e azuis, e, partindo dali, iniciaram a decoração. Por essa altura já tinham dado conta havia muito do whisky e sentiam-se na verdade com disposição festiva. Entrelaçaram as tiras de papel crepe e penduraram os balões. Quem passava pela rua entrava, associava-se à festa e precipitava-se para o Lee, trazendo mais bebidas. Lee Chong também se associou à festa, mas por pouco tempo; tinha o estômago notoriamente fraco, sentia-se agoniado e regressou a casa. Às onze fritaram as costeletas e comeram. Alguém ao remexer nos discos encontrou um álbum com músicas do Conde Basie e a grafonola estridulava. A barulheira chegava a ouvir-se dos estaleiros até o La Ida. Um grupo de fregueses do Guião do Urso tomou o Biológico Ocidental por um estabelecimento congênere e irrompeu escada acima aos gritos de alegria. Foram expulsos pelos anfitriões escandalizados, mas só após uma batalha sangrenta, demorada e jovial, em que foram estilhaçadas duas janelas e arrancada a porta da frente.

O entrechocar dos boiões causava impressão. Hazel, ao atravessar a cozinha para se dirigir aos lavabos, baldeou para o chão e para cima de si a frigideira de azeite quente e ficou muito queimado.

À uma e meia entrou um bêbedo e proferiu um comentário considerado insultuoso para o doutor. Mack pregou-lhe uma sova, ainda hoje lembrada e discutida. O homem, levantado ao ar, descreveu um círculo apertado e foi estatelar-se no caixote, no meio das rãs. Alguém, pretendendo mudar o disco, deixou cair o braço e partiu a agulha. Ninguém estudou ainda a psicologia de um final de festa. Ela pode ser desenfreada, ululante, efervescente, ser atacada de febre; segue-se-lhe fundo silêncio, e então, de repente, muito de repente, termina, os convidados regressam a suas casas, vão deitar-se, ou dirigem-se a outra diversão e deixam atrás de si o silêncio da morte. As luzes do Laboratório resplandeciam. A porta de entrada pendia de esguelha, suspensa de uma só dobradiça. O chão estava coberto de estilhaços de vidro. Havia discos, uns partidos, outros rachados, atirados por toda a parte. Viam-se pratos engordurados, com ossos das costelas, no chão, sobre as estantes, debaixo da cama. Copos servidos a whisky jaziam tombados com ar triste. Alguém tentara subir às estantes, deitara abaixo toda uma seção de livros e deixara-os espalhados pelo chão, deslombados e em grande misturada. E pairava o vazio, estava tudo terminado.

Pela abertura do caixote partido saltou uma rã afrontando o perigo e outra seguiu-a. Aspiravam o ar úmido e convidativo da porta e das janelas partidas. Uma sentou-se sobre o cartão que dizia: “Bem-vindo seja, doutor”, e então, aos saltinhos tímidos, encaminharam-se para a porta. Por largo espaço de tempo um pequeno ribeiro de rãs saltitou pelas escadas, um ribeiro fervilhante e movediço. Por largo espaço de tempo ficou Cannery Row coberto de rãs, inundado de rãs. Um táxi que levava um freguês tardio ao Guião do Urso esmagou cinco rãs no caminho. Mas muito antes de amanhecer tinham todas desaparecido. Umas foram parar ao cano do esgoto, outras fizeram caminho pelo monte até ao reservatório, algumas meteram-se nas represas e outras limitaram-se a esconder-se entre as ervas do terreno baldio. E as luzes resplandeciam no Laboratório, agora completamente abandonado.

 

No quarto traseiro do Laboratório os ratos brancos corriam, espinoteavam, guinchavam nas suas gaiolas. A um canto, numa gaiola à parte, uma rata-mãe aconchegava a sua ninhada de filhos cegos, pelados, e, deixando-os mamar, olhava em volta, nervosa e feroz. Nas suas gaiolas, as cobras cascavéis, com as mandíbulas em descanso sobre os anéis, fitavam com os seus baços olhos negros e perversos um ponto distante. Noutra gaiola um lagarto com a pele como uma bolsa de missanga empinou-se devagar e, pesado, indolente, deitou unhadas às redes. As anêmonas no aquário abriram em flor com tentáculos verdes e roxos, os ventres verde-claro. A pequena bomba de água do mar esguichava de mansinho e a água sibilava ao entrar nos tanques, produzindo filas de bolhas na superfície.

Era a hora-pérola. Lee Chong levou as suas latas do lixo para a valeta. O moço de recados apareceu à entrada do Guião do Urso a coçar a barriga. Sam Malloy arrastou-se para fora da caldeira e, sentando-se no tronco, contemplou o nascente, que se ia iluminando. Ao longe, nas rochas perto da estação marítima de Hopkins, as morsas latiam monotonamente. O velho chinês surgiu do lado do mar com o seu cesto a pingar e caminhou, tape-tape, morro acima.

Foi quando um carro chegou a Cannery Row e o doutor rodou até à entrada do Laboratório. Trazia os olhos vermelhos de fadiga. Os seus movimentos eram lentos, do cansaço. Quando o carro parou quedou-se por momentos, imóvel, para sacudir dos nervos os solavancos da estrada. Depois desceu do carro. Ao som dos seus passos na escada as cobras deitaram as línguas de fora e permaneceram alerta com as línguas bifurcadas oscilando. Os ratos corriam loucos pelas gaiolas. O doutor subiu as escadas. Reparou surpreendido na porta tombada e na janela partida. O torpor pareceu abandoná-lo.

Entrou precipitado. Depois andou de um aposento para outro abrindo caminho por entre os vidros quebrados. Baixou-se rápido, apanhou um disco partido e procurou ler-lhe o título.

Na cozinha a gordura entornada no chão tornara-se branca. Os olhos do doutor injetaram-se, vermelhos de ira. Sentou-se sobre a cama, a cabeça enterrou-se-lhe entre os ombros, o corpo balançou-se um pouco com a fúria.

De súbito pôs-se de pé e destravou a grafonola grande. Colocou um disco e baixou o braço. Apenas se ouviu um som estridente no alto-falante. Retirou o braço, parou a placa giratória e sentou-se novamente sobre a cama. Nas escadas soaram passos trôpegos, incertos, e Mack surgiu à porta. Trazia a cara vermelha. Parou indeciso a meio do quarto.

- Doutor - disse ele -, eu mais os rapazes...

De momento o doutor parecia não o ver. Mas de repente pôs-se de pé. Mack recuou.

- Foste tu quem fez isto?

- Bom, eu e os rapazes... - O punho, pequeno e duro, do doutor avançou e despediu contra a boca de Mack. Os olhos do doutor avermelharam-se de fúria animal. Mack sentou-se no chão pesadamente. O punho do doutor era duro e contundente. Os beiços de Mack tinham fendido de encontro aos dentes e à frente ficou um dente perigosamente inclinado para dentro.

- Levanta-te! - berrou o doutor.

Mack levantou-se cambaleando. Ficou de mãos caídas. O doutor bateu-lhe novamente: um murro matemático, punitivo, na boca. O sangue rebentou dos beiços de Mack e escorreu-lhe pelo queixo. Tentou lamber os beiços.

- Põe as mãos pra cima. Defende-te, filho da mãe - berrou o doutor e bateu-lhe de novo, ouvindo estalarem-lhe os dentes. A cabeça de Mack deu uma sacudidela e ele firmou-se para não cair. E as mãos continuaram inermes aos lados.

- Ande lá, doutor - disse ele por entre os beiços feridos -, qué o qu’eu mereço.

Os ombros do doutor curvaram-se, derrotados.

- Filho da mãe - disse, amargurado. - Safado filho da mãe.  Sentou-se na cama e examinou os punhos feridos.

Mack sentou-se numa cadeira e ficou a olhar para ele. Os seus olhos estavam dilatados e carregados de angústia. Nem sequer limpava o sangue que lhe escorria pelo queixo. Na cabeça do doutor ia surgindo a abertura monótona de Monteverdi Horchel Ciel e La Terra, o triste e resignado carpir de Petrarca por Laura. O doutor via a boca ferida de Mack através da música, a música que lhe pairava no cérebro e pelo ar. Mack permanecia completamente imóvel, como se também ele pudesse ouvir a música. O doutor olhou para o lado do álbum de Monteverdi e lembrou-se então de que a grafonola estava escangalhada. Levantou-se.

- Vai lavar a cara - disse, e saindo desceu as escadas, atravessou a rua e dirigiu-se para o Lee Chong. Lee nem olhava para ele ao tirar da geleira os dois quartilhos de cerveja. Pegou no dinheiro sem proferir palavra. O doutor atravessou a rua e regressou a casa.

Mack estava no lavatório a limpar o sangue da cara com uma toalha molhada. O doutor abriu uma garrafa e encheu devagar um copo, conservando-o inclinado de maneira a que não formasse muita espuma. Encheu outro copo alto e levou os dois para a sala de entrada. Mack voltou chapinhando a boca com a toalha.

O doutor indicou-lhe a cerveja com a cabeça e Mack escancarou as goelas e entornou meio copo sem deglutir. Deu um suspiro explosivo e fixou, embasbacado, a cerveja. O doutor acabou a dele. Foi buscar a garrafa e tornou a encher os copos. Sentou-se no divã.

- Que aconteceu? - perguntou.

Mack fitou o chão e uma gota de sangue pingou-lhe dos beiços para a cerveja. Limpou outra vez a boca.

- Eu mais os rapazes qu’ríamos dar-lhe uma festa. Cuidamos qu’estava de volta ontem à noite.

O doutor meneou a cabeça.

- Ah, bem.

- Foi fora do tempo - disse Mack. - Não adianta dizer qu’estou arrependido. Levo a vida a arrepender-me. Não é d’agora. Foi sempr’assim. - Tomou do copo um longo sorvo. - Eu tinha mulher - continuou. - Foi o mesmo. Tudo o que fazia azedava-se. Ela já não podia com aquilo. Se me metia a fazer qualquer coisa de jeito, havia de s’estragar duma maneira ou doutra. Se lhe dava uma prenda, tinha sempre qualquer defeito. Ela de mim só arrecebia desgostos. Por fim não pôde mais. É o mesmo em toda parte. Só sirvo pra palhaço... Já não sei fazer outra coisa senão palhaçadas. Pra fazer rir os rapazes.

O doutor fez novo aceno. A música voltava a soar-lhe dentro da cabeça; queixume e resignação.

- Eu sei - disse.

- Gostei que me batesse - continuou Mack. - Pensei cá para comigo: talvez isto me sirva d’emenda. Talvez me fique na memória. Mas, diabos, não m’hei-de alembrar de nada, nunca hei-d’aprender nada? Olhe, doutor - exclamou -, eu vi a cois’assim, estávamos todos alegres e divertidos. O doutor ficava contente por a gente lhe ter dad uma festa e cá a gente também ficava satisfeita. Da maneira com’eu vi a coisa, havia de ser uma festa estupenda.

Fez um gesto envolvendo os destroços espalhados no chão.

- Era a mesma coisa quando estava casado. Eu magicava a coisa, mas nunca saía com’a tinha pensado.

- Eu sei - disse o doutor. Abriu o segundo quartilho de cerveja e encheu os copos até acima.

- Doutor - disse Mack. - Eu e os rapazes limpamos-lhe tudo e pagamos-lhas coisas que se partiram. Nem qu’a gente leve cinco anos, havemos de pagar tudo.

O doutor abanou a cabeça devagar e limpou a cerveja do bigode.

- Não - disse -, eu faço a limpeza. Conheço o lugar de cada coisa.

- A gente vai-lhe pagar, doutor.

- Não pagam nada, Mack - disse o doutor. - se tencionam fazê-lo andam a matutar nisso durante algum tempo, mas não hão-de pagar. Há aí talvez uns trezentos dólares de vitrinas partidas. Não me digas que as vais pagar. Isso só servia para os trazer preocupados. Podiam passar-se dois ou três anos que a coisa esquecesse e vocês se sentissem à vontade. E não pagavam à mesma.

- Talvez tenha razão - concordou Mack. - Raios me partam se não tem mesmo razão. Qu’há-de a gente fazer?

- Isto já me passou - disse o doutor. - Esses socos na boca acalmaram-me os nervos. Não se pensa mais nisso. Mack acabou a cerveja e levantou-se.

- Té logo, doutor.

- Até logo. Olha lá, Mack, que aconteceu à tua mulher?

- Não sei - disse Mack. - Foi-se embora. – Desceu desajeitadamente as escadas, tomou a direção do terreno, escalou-o, meteu pelo carreiro das galinhas até ao Palácio Flophouse. Da sua janela o doutor foi-o seguindo em todo o percurso com o olhar. Depois, abatido, foi buscar uma vassoura atrás do esquentador. Levou-lhe o dia todo a limpar aquele chiqueiro.

 

O pintor Henri não era francês e o nome dele não era Henri. Verdadeiramente também não era pintor. Henri imbuíra-se por tal forma das histórias da margem esquerda do Sena, que vivia lá, embora nunca lá tivesse estado. Seguia febrilmente nos jornais os movimentos e manias dadistas, os ciúmes e fervores estranhamente femininos, o obscurantismo da formação e da dispersão de escolas. Revoltava-se periodicamente contra técnicas e matérias antiquadas. Em determinado período pôs de parte a perspectiva. Noutra ocasião abandonou o vermelho, até mesmo como base do roxo. Por fim pôs inteiramente de parte as tintas. Não se sabia se Henri era ou não bom pintor, pois lançava-se com tal veemência em todos os movimentos que não lhe restava muito tempo para pintar fosse o que fosse.

Havia dúvidas quanto à sua pintura. Não se podia muito bem fazer juízo das suas produções com penas de galinha de várias cores e com cascas de nozes. Mas como construtor de barcos era soberbo. Henri era artífice exímio. Anos antes, quando iniciara a construção do seu barco, vivera numa tenda enquanto a galé e o camarote não ficaram suficientemente adiantados para poder ali instalar-se. Mas, uma vez instalado e a seco, foi fazendo o seu barco com vagar. O barco era mais esculpido do que construído. Media trinta e cinco pés de comprido e as suas linhas andavam em constante mutação. Durante um tempo teve uma proa de veleiro e um leque como o de um torpedeiro. Noutra ocasião assemelhava-se vagamente a uma caravela. Como não tinha dinheiro, Henri levava meses para encontrar uma tábua, um bocado de ferro ou uma dúzia de parafusos de latão. Era assim mesmo que ele queria, pois Henri nunca desejou acabar o seu barco.

Este descansava entre pinheiros num terreno que Henri alugara por cinco dólares anuais. O pagamento desta renda contentava o proprietário. O barco assentava sobre bases de cimento. Do costado pendia sempre uma escada de corda. Quando Henri ficava em casa puxava-a e só a descia se apareciam visitas. O pequeno camarote onde vivia tinha um largo assento almofadado em volta dos seus três lados. Ali dormia Henri e se sentavam as visitas. Quando precisava da mesa, puxava uma de desdobrar; do teto pendia uma lanterna. A sua galé era um assombro de condensação, mas também cada peça fora o resultado de meses de reflexão e de labor.

Henri era taciturno e rabugento. Usava boina muito depois de toda a gente ter deixado de a usar, fumava por um cachimbo de cabaceiro e trazia o cabelo preto caído sobre a cara. Tinha muitos amigos, classificando-os com leviandade de amigos que podiam sustentá-lo e de amigos que lhe cabia sustentar. O barco não tinha nome. Dizia Henri que lho poria quando estivesse pronto.

Havia dez anos que Henri construía o barco e vivia nele. Nesse espaço de tempo casara duas vezes e mudara de ligações semipermanentes. E todas essas jovens o tinham abandonado pelo mesmo motivo: o de o camarote ser pequeno de mais para duas pessoas. Magoavam-se com as pancadas que apanhavam na cabeça quando se punham de pé e sentiam sobretudo a falta de retrete.

As retretes de bordo, como é óbvio, não funcionariam num barco fundeado em terra, e Henri, como bom marinheiro, não se decidia por uma retrete de bordo disfarçada. Tanto ele como os amigos adventícios eram obrigados a dar uma volta pelo pinhal.

E assim as suas amadas o foram abandonando uma após outra.  Exatamente depois da última, que se chamava Alice, o ter deixado, aconteceu a Henri uma coisa muito curiosa. Todas as vezes que ficava só pranteava formalmente o sucedido por algum tempo, mas na realidade experimentava uma sensação de alívio.

Ficava satisfeito por se ver livre temporariamente das funções biológicas femininas. Podia estirar-se ao comprido no seu camarote e comer o que lhe apetecesse. Contraíra o costume de comprar um galão de vinho, de se estender no conforto duro do seu banco e de se embebedar cada vez que o abandonavam.

Chorava às vezes um pouco na sua solidão, mas de emoção sensual, e experimentava com isso uma sensação de bem-estar maravilhosa. Lia então Rimbaud em voz alta, com péssimo acento, mas encantado no entanto com a própria fluidez. Foi num dos seus rituais de lamentação pela desaparecida Alice que a estranha coisa começou. Era noite, tinha a lanterna acesa e entrava apenas na embriaguez quando subitamente sentiu que não estava só. Deixou vaguear o olhar cautelosamente pelo camarote, e além, sentado no outro lado, viu um soberbo jovem, moreno e belo. Brilhavam-lhe os olhos de inteligência, de espírito, de energia, e os dentes brancos faiscavam-lhe. No rosto havia algo de atraente e ao mesmo tempo de aterrador. A seu lado estava sentado um rapazinho louro pouco mais de bebê. O jovem baixou o olhar sobre o menino, que lhe retribuiu e sorriu radiante como se alguma coisa de fantástico fosse passar-se. Depois o jovem encarou Henri, sorriu-lhe e voltou a olhar para o menino. Tirou do bolso esquerdo do colete uma antiquada navalha de barba de lâmina direita. Abriu-a e indicou a criança com um gesto de cabeça. Colocou a mão sobre os caracóis da criança, que ria, encantada, e, então, inclinando-lhe a cabeça para trás, cortou a garganta ao menino, continuando este sempre a sorrir. Henri, entretanto dava berros de terror. Levou bastante tempo a convencer-se de que já ali se não encontravam nem homem nem menino.

Quando se acalmou um pouco, precipitou-se para fora do camarote, saltou do barco e abalou monte abaixo por entre os pinheiros. Vagueou durante algumas horas, e por fim encaminhou-se para Cannery Row. Achava-se o doutor na cave na análise de gatos quando Henri por ali rompeu. Continuou a trabalhar enquanto este lhe relatava o sucedido, e quando Henri terminou o doutor fitou-o atentamente para ver quanto de terror e quanto de teatro havia naquilo. Verificou que era tudo medo.

- Acha que é um fantasma? - perguntou Henry. - Será um reflexo de qualquer coisa acontecida, alguma alucinação freudiana, ou estarei completamente zuca? Vi-os, digo-lhe eu, aconteceu mesmo à minha frente, tão nítido como o estou a ver a si.

- Não sei - murmurou o doutor.

- Olhe, quer vir comigo para ver se se repete?

- Não - disse o doutor. - Se eu visse, seria então um fantasma e eu ficava cheio de medo porque não acredito em fantasmas. E se você o visse outra vez e eu não, então seria uma alucinação, e ficava você cheio de medo.

- Mas então que hei-de fazer? - perguntou Henry. - Se torno a vê-lo, sei o que vai acontecer: morro com certeza.

- Não vê que ele não tem ar de criminoso? É simpático. O garoto também é muito simpático e nem um nem outro se rala com aquilo. Mas ele cortou o pescoço ao menino. Vi-o eu.

- Não sei - disse o doutor. - Não sou psiquiatra nem curandeiro e não vou começar a sê-lo agora.

Pela cave ressoou uma voz de rapariga.

- Olá, doutor, posso entrar?

- Entra, entra - disse o doutor.

Era uma rapariga bastante bonita e muito viva. O doutor apresentou-lhe o pintor.

- Anda às voltas com um problema - explicou o doutor. - Julga-se perseguido por um fantasma ou vítima de uma consciência acusadora, não sabe qual. Conte-lhe, Henri.

O pintor tornou a contar a história e os olhos da rapariga cintilaram.

- Mas isso é horrível - disse, quando ele terminou. - Nunca senti na minha vida o cheiro de um fantasma. Vamos até lá para ver se volta.

O doutor, um pouco melindrado, viu-os sair. No fim de contas o encontro era com ele. A rapariga nunca chegou a ver o fantasma, mas afeiçoou-se a Henri e passaram-se cinco meses antes que o exíguo camarote e a falta de retrete a expulsassem.

 

Sobre o Palácio Flophouse abateu uma sombra negra. Toda a alegria o abandonara. Mack voltara do Laboratório com o beiço rasgado e os dentes partidos. Como uma espécie de penitência, não lavou a cara. Meteu-se na cama, cobriu a cabeça com os cobertores e não se levantou todo o dia. Tinha o coração tão dorido como a boca. Rememorou todas as empresas que empreendera e o que fizera na sua vida e tudo se lhe afigurou errado. Ficou muito triste.

Hughie e Jones sentaram-se durante algum tempo a olhar para o vago, depois dirigiram-se, enfastiados, para o Hediondo Cannery, onde pediram emprego e o obtiveram.

Hazel sentiu-se de tal maneira infeliz que marchou até Monterey e ali armou uma zaragata com um soldado e deixou-se vencer propositadamente. Sentiu-se melhor por ser assim vencido por um homem a quem Hazel podia ter estendido sem empregar grande esforço. Darling era o único membro da comunidade que andava feliz. Passou o dia debaixo da cama de Mack a roer-lhe os sapatos, toda satisfeita. Era uma cadelinha hábil e tinha dentes bem afiados. Por duas vezes Mack distraidamente estendeu a mão e a agarrou e meteu na cama para que lhe fizesse companhia, porém ela deslizou para fora e voltou a roer-lhe os sapatos.

Eddie deambulou até o La Ida e ficou a conversar com o seu amigo barman. Conseguiu apanhar-lhe algumas bebidas e uns cobres com que fez tocar cinco vezes o Melancholy Baby na caixa de música. Mack e os rapazes viviam sob uma pesada nuvem e sabiam que o mereciam. Eram réprobos da sociedade.

Todas as suas boas intenções foram ignoradas. O fato de a festa ter sido em honra do doutor, se era conhecido, não se mencionava nem se tomava em consideração. A história correu no Guião do Urso. Contava-se nas fábricas. No La Ida, bêbedos inveterados discutiam-na. Lee Chong recusava-se a fazer-lhe comentários. Sentia-se financeiramente logrado. Quando a história era contada acrescentava que eles tinham roubado bebidas e dinheiro; a sua entrada no Laboratório fora mal intencionada e destruíram sistematicamente o seu conteúdo por pura maldade e maus instintos. Era esta a opinião das pessoas atiladas. Alguns dos bêbedos do La Ida pensaram em ir rebentá-los à pancada para lhes mostrar que não se fazia uma coisa daquelas ao doutor.

Só um sentimento de solidariedade e a faculdade de resistência de Mack e dos rapazes os salvou de represálias. Pessoas que de há muito não possuíam vislumbre de virtude sentiam-se virtuosas quando o caso era falado. O mais feroz era Tom Sheligan, que teria tomado parte na festa se dela tivesse tido conhecimento.

Socialmente, Mack e os rapazes ficaram à margem. Sam Malloy não os cumprimentava quando passavam pela caldeira. Meteram-se consigo mesmos e ninguém podia prever como sairiam daquele pesadelo, porque contra o ostracismo social são possíveis duas reações: ou um homem se ergue resolvido a ser melhor, mais puro, mais generoso, ou se torna ruim, desafia o mundo e comete faltas piores. Esta última é das duas a reação mais vulgar.

Mack e os rapazes balançavam entre o bem e o mal. Eram meigos e carinhosos com a Darling e tolerantes e pacientes uns com os outros. Passada a primeira reação, fizeram uma limpeza cuidadosa ao Palácio Flophouse. Poliram os metais do fogão e lavaram a roupa suja e todos os cobertores.

Financeiramente encontravam-se em situação solvente. Hughie e Jones estavam empregados e entregavam os salários. Compravam os gêneros lá em cima, no Mercado Thrift, porque não suportavam a atitude de reprovação de Lee Chong.

Foi por esta altura que o doutor fez uma observação que seria possivelmente verdadeira mas à qual faltava um fator positivo para a comprovar. Estava o doutor no Laboratório com Richard Frost. Sentados, pela janela deixavam divagar o seu olhar, bebiam cerveja e ouviam os novos discos de Scarlatti. Em frente do Palácio Flophouse havia um grande tronco e nele estavam sentados Mack e os rapazes a apanhar o sol da manhã. Voltados para a vertente da colina, ficavam de frente para o Laboratório.

Começou o doutor:

- Olhe para aqueles. São verdadeiros filósofos. Tenho a impressão de que Mack e os rapazes conhecem tudo o que tem acontecido no mundo e possivelmente tudo o que virá a suceder. Estou convencido de que vivem melhor neste nosso mundo do que as demais criaturas. Numa época em que as pessoas se despedaçam umas às outras por ambição, neurose e cobiça, eles conservam-se tranquilos. Todos os chamados homens importantes são doentes, com estômago e alma ruins; Mack e os rapazes, porém, são saudáveis e notavelmente puros. Podem fazer o que lhes apetecer. Podem satisfazer os seus apetites  sem lhes substituir os nomes. - Este discurso secou de tal modo a garganta do doutor que ele esvaziou o copo de cerveja. Agitou dois dedos no ar e sorriu. - Nada há como este primeiro trago de cerveja. - concluiu.

- A mim parecem-me iguais a quaisquer outros. O que lhes falta é dinheiro - respondeu Richard Frost.

- Podiam adquiri-lo - disse o doutor. - Podiam dar cabo da vida a adquirir dinheiro. Mack possui dotes de gênio. São todos muito espertos quando querem alguma coisa. Mas conhecem demasiadamente a natureza das coisas para se deixarem dominar por essa inferioridade. Soubesse o doutor da tristeza de Mack e dos rapazes e não teria feito a afirmação seguinte; porém não fora informado do ostracismo a que os habitantes do Palácio tinham sido votados. Lentamente deitou cerveja no copo. - Creio que posso dar-lhe uma prova disto - disse. - Está a ver como estão sentados voltados para este lado? Muito bem: daqui a pouco mais ou menos meia hora vai passar a parada do 4 de Julho na Avenida do Farol. Virando apenas a cabeça, podem vê-la; pondo-se de pé, podem segui-la, e se andarem apenas dois quarteirões irão a par dela. Pois eu aposto um quartilho de cerveja em como eles nem sequer voltam a cabeça.

- Também o creio. - disse Richard Frost - Mas que prova isso?

- Que prova? - gritou o doutor. - Que sabem perfeitamente o que acontece na parada. Sabem que o mayor irá na frente, de automóvel, com serpentinas a esvoaçar da capota, seguindo-se-lhe o long bob com a bandeira, no seu cavalo branco. Depois o conselho municipal, após o qual duas companhias de soldados do presídio, depois os elks[4] com sombrinhas roxas, depois os templários com plumas brancas, empunhando espadas. E ainda os cavaleiros de Colombo com plumas vermelhas e de espadas na mão. Mack e os rapazes sabem tudo isto. A banda toca. Já viram aquilo. Não precisam de ver outra vez.

- Não há um único homem que resista a ver uma parada - disse Richard Frost.

- Apostamos?

- Apostamos.

- Sempre me pareceu estranho - disse o doutor. – As qualidades que mais admiramos nas pessoas: bondade, generosidade, franqueza, honestidade, compreensão e sensibilidade, são as concomitantes do fracasso do nosso sistema. E os traços que detestamos: dureza, ganância cobiça, avareza, egoísmo, presunção, são os indicativos do êxito. Ao mesmo tempo que os homens admiram as qualidades dos  primeiros, apreciam o engenho dos segundos.

- Quem pretende ser bom se tem de passar fome. - disse Richard Frost.

- Ora, não é questão de fome. É uma coisa muito diferente. A venda das almas para ganharem em troca os bens do mundo é absolutamente voluntária e quase unânime, mas não de todo. Por toda a parte se encontram Macks e os seus rapazes. Já os vi num vendedor de sorvetes no México e num aleúte do Alasca. Você decerto soube como eles pensaram em dar uma festa em minha honra e como falharam. Mas quiseram dedicar-me a festa. O seu impulso foi esse. Escute - continuou o doutor. - Não é a banda que estou a ouvir? - Encheu apressadamente dois copos com cerveja e ambos se aproximaram da janela.

Mack e os rapazes, muito tristonhos, estavam sentados no tronco, de frente para o Laboratório. O som da banda vinha da Avenida do Farol e era-lhes transmitido pelas paredes. E de súbito o carro do mayor passou, com serpentinas a esvoaçar do radiador, seguido do long bob no seu cavalo branco, levando a bandeira; depois a banda,  os soldados, os elks, os templários, os cavaleiros de Colombo.  Richard e o doutor debruçaram-se com curiosidade, mas somente para observarem a fila dos homens sentados no tronco. Nem uma das cabeças se voltou, não houve um só soerguer de corpo. O cortejo foi passando e desapareceu e eles não se mexeram. O doutor esvaziou o copo e, agitando ao de leve dois dedos no ar, disse:

- Ah! Nada há neste mundo como este primeiro trago de cerveja.

Richard dirigiu-se para a porta.

- Que marca de cerveja quer que lhe traga?

- A mesma - disse o doutor com doçura. Sorria, na direção do monte, para Mack e os companheiros.

É bom dizer-se: o tempo cura tudo, isto também há-de passar; as pessoas hão-de esquecer, e outras coisas no mesmo gênero, quando não estamos metidos nelas; mas quando nos dizem respeito o tempo não passa; as pessoas não esquecem e encontramo-nos no meio de uma coisa que não se modifica. O doutor ignorava a mágoa e a autocrítica destruidora que ia pelo Palácio Flophouse, de contrário teria feito qualquer coisa para as remediar. Também Mack e os rapazes ignoravam o que ele sentia, de contrário andariam de cabeça levantada.

Foi uma temporada horrível. O malefício insinuava-se tenebroso pelo terreno baldio. Sam Malloy teve umas poucas de brigas com a mulher e ela andava sempre a chorar. O eco vindo da caldeira dava a impressão de que chorava debaixo de água. Dir-se-ia que Mack e os rapazes eram o nó da desgraça. O simpático guarda do Guião do Urso atirou com um bêbedo à rua, mas fê-lo com tanta força e tão longe que lhe quebrou o pescoço. Alfred foi obrigado a ir três vezes a Salinas primeiro que a história se apurasse, o que não o trazia muito satisfeito. Era um criado demasiadamente correto para molestar alguém. Os seus golpes eram um milagre de ritmo e elegância. Foi nessa altura que um grupo de senhoras de sentimentos elevados da cidade clamava que se fechassem os tugúrios do vício para se proteger a varonilidade americana. Isto acontecia mais ou menos uma vez por ano no período morto entre o 4 de Julho e a feira do condado. Dora, quando isso acontecia, costumava fechar o Guião do Urso por uma semana. Não era de todo mau.

Gozavam-se umas férias e procedia-se a algumas pequenas reparações na canalização e nas paredes. Mas nesse ano as senhoras empreenderam uma verdadeira cruzada. Ansiavam por escalpelar alguém. O Verão fora monótono e sentiam-se inquietas. Foram tão eficientes que se informaram de quem eram os proprietários das casas onde se praticava o vício, dos rendimentos destes e que consequências econômicas resultariam no caso do seu encerramento. Foi a época em que mais perto estiveram de constituir ameaça grave.

A casa de Dora esteve fechada umas duas boas semanas, e durante elas efetuaram-se três reuniões em Monterey. A notícia espalhou-se e Monterey perdeu cinco assembléias para o ano seguinte. As coisas apresentavam-se feias na verdade. O doutor teve de contrair um empréstimo no banco para poder pagar os vidros partidos durante a festa. Elmer Rechati adormeceu junto da via do Pacífico Sul e ficou sem pernas. Uma tempestade súbita e absolutamente imprevista rebentou as amarras de um arrastão e de três barcos, arremessando-os, esfrangalhados de meter dó, à praia de Del Monte. Não há explicação para uma série de desastres como esta.

Cada um atribui as culpas a si próprio. As pessoas nas suas torvas consciências meditam nos pecados cometidos em segredo e a si mesmas perguntam se não serão a causa desta cadeia maléfica. Um atribuí-la-á a sombras solares, enquanto outro, invocando a lei das probabilidades, não lhe dará fé. Nem os médicos tiraram qualquer proveito, porque, embora ficasse muita gente doente, nenhuma das doenças era das que dão rendimento. Não era coisa que uma boa mezinha ou um remédio registrado não resolvesse.

E para cúmulo adoeceu a Darling. Estava uma cachorrinha esperta e roliça quando caiu doente, mas com cinco dias de febre ficou reduzida a um esqueletozinho com invólucro de pele. O narizito cor de mel ficou cor-de-rosa e as gengivas esbranquiçadas. Os olhos turvaram-se-lhe e todo o seu corpo escaldava, se bem que por vezes tremesse de frio. Não queria comer nem beber, e a gorda barriguinha ia-se-lhe colando à espinha e até no rabito se lhe viam as articulações através da pele. Era sem dúvida esgana. Então apoderou-se do Palácio Flophouse verdadeiro pânico. A Darling tornara-se para eles de importância capital. Hughie e Jones abandonaram imediatamente os seus empregos para poderem prestar auxílio. Velavam por turnos. Mantinham-lhe sobre a testa um pano molhado em água fria e ela ia ficando cada vez mais fraca e doente. Finalmente, embora contra vontade, Hazel e Jones foram designados para procurar o doutor. Encontraram-no a estudar o horário das marés enquanto comia um guisado de galinha cujo principal componente não era galinha, mas pepino. Pareceu-lhes que os encarava um tanto friamente.

- É por via da Darling - disseram. - Está doente.

- Que tem ela?

- Mack diz que é esgana.

- Eu não sou veterinário - disse o doutor. - Não sei tratar essas coisas.

- Não podia ir vê-la, ao menos? Está malzinha qu’eu sei lá - disse Hazel.

Permaneceram à volta enquanto o doutor examinava a Darling. Viu-lhe os olhos, as gengivas e tomou-lhe a febre nas orelhas. Passou a mão pelas costelas salientes como cavilhas e pela espinha descarnada.

- Não quer comer? - perguntou.

- Nem migalha - disse Mack.

- É preciso forçá-la a comer: caldos fortes, ovos e óleo de fígado de bacalhau.

Acharam-no frio e formal. Ele regressou ao seu guisado e ao horário das marés. Mack e os rapazes, porém, tinham agora em que se ocupar. Cozeram carne até o caldo ficar forte como whisky. Puseram-lhe óleo de fígado de bacalhau bem ao fundo da língua de modo que sempre engolia algum. Levantaram-lhe a cabeça e, armando-lhe a boca em funil, deitaram-lhe a sopa para dentro. Tinha de engolir ou sufocava. Davam-lhe de comer de duas em duas horas. Antes dormiam por turnos, agora ninguém dormia. Sentados, aguardavam em silêncio a crise da doença da Darling. Deu-se numa manhã, muito cedo. Os rapazes dormiam sentados nas suas cadeiras e só Mack se conservava alerta com os olhos fixos na cachorra. Viu espevitarem-se-lhe duas vezes as orelhas e alterar-se-lhe o peito. A cair de fraca, pôs-se lentamente sobre as pernitas escanzeladas, arrastou-se até à porta, bebeu dois goles de água e tombou no chão.

Mack gritou para acordar os outros. Dançou desajeitadamente. Gritavam todos uns para os outros. Lee Chong ao levar as latas do lixo, ouviu-os e resmoneou consigo próprio. Ouviu-os Alfred, o guarda, e pensou que festejasse qualquer coisa. Pelas nove horas já Darling comera um ovo cru e meio quartilho de natas batidas. À tardinha engordara visivelmente. No dia seguinte já brincava um pouco e ao cabo de uma semana pusera-se uma cachorra fina. Abria-se finalmente uma brecha na muralha do malefício. Havia índices por toda a parte. O arrastão foi de novo trazido ao lume da água e posto a flutuar. Comunicaram a Dora que podia reabrir o Guião do Urso. Earl Wakefield apanhou um peixe-burro com duas cabeças que vendeu ao museu por oito dólares. A muralha do malefício e de tensão desmoronava-se.

Ruía aos bocados. Correram-se as cortinas do Laboratório e nessa noite ouviu-se música gregoriana até às duas da manhã, e, terminada a música, ninguém de lá saiu. Uma ignota força conquistou o coração de Lee Chong, que num momento oriental perdoou a Mack e aos rapazes e riscou a dívida das rãs que desde o início fora uma dor de cabeça financeira. E, desejoso de provar aos rapazes que lhes perdoava, levou um quartilho de Old Tennis Shoes, com que os presenteou. As compras feitas no Mercado Thrift haviam-no magoado, mas isso eram águas passadas. A visita de Lee coincidiu com o primeiro impulso destruidor da Darling depois que estivera doente. Estava agora de todo estragada com mimo e ninguém pensava já em corrigi-la.

Quando Lee chegou com o presente ocupava-se Darling em destruir sistematicamente o único par de botas de borracha de Hazel, enquanto os donos a aplaudiam com satisfação.  Mack nunca visitara o Guião do Urso profissionalmente. Ter-se-lhe-ia afigurado um incesto. Havia uma casa para os lados do campo de basebol que ele patrocinava. Assim, quando apareceu no bar, todos pensavam que queria uma cerveja. Ele aproximou-se de Alfred.

- A Dora não anda por aí? - perguntou.  

- Que lhe quer? - resmungou Alfred.

- Quero pedir-lhe uma coisa.

- De que se trata?

- Não é da sua conta - disse Mack.

- Tá bem. Como quiser. Vou ver sela quer falar consigo.

Momentos depois encaminhou-se para o santuário. Dora estava sentada a uma secretária americana. Trazia o cabelo cor de laranja em caracóis reunidos num molho no alto da cabeça e tinha uma pala verde sobre os olhos. Com uma esferográfica punha as contas em dia num velho livro de registros duplos. Usava um suntuoso quimono de seda rosa com rendas nos punhos e no pescoço. A entrada de Mack fez rodar a cadeira giratória e encarou-o. Alfred conservou-se à porta e esperou. Mack manteve-se calado até Alfred fechar a porta e retirar-se.  Dora observou-o intrigada.

- Então, em que posso servi-lo? - perguntou por fim.

- Sabe, minha senhora? - disse Mack. - Bem, com certeza já lhe contaram o qu’a gente fez aqui há tempo em casa do doutor.

Dora empurrou a pala para o alto da cabeça e colocou a caneta sobre um antiquado descanso de arame em espiral.

- Se sei! - disse. - Contaram, sim, contaram.

- Bem, madame, a gente fazia’quilo plo doutor. Pode ser que não acredite, mas queríamos-lhe dar uma festa. O qu’aconteceu foi que ele não chegou a casa a tempo e aquilo deu bota.

- Foi o que me contaram - volveu Dora - Bom, e agora que quer que eu faça?

- Bem - disse Mack-; eu mais os rapazes pensamos em pedir-lhe... sabe a consideração qu’a gente tem plo doutor. Queríamos perguntar-lhe o qué qu’a gente há-de fazer pra lha mostrar.

Dora fez: «Hum», desandou a cadeira giratória, cruzou as pernas e ajustou o quimono sobre os joelhos. Tirou do maço um cigarro, sacudiu-o, acendeu-o e pôs-se a refletir.

- Vocês dedicaram-lhe uma festa em que ele não entrou. Porque não lhe oferecem agora uma festa a que ele assista realmente? - sugeriu ela.

- Jesus - disse Mack mais tarde, dirigindo-se aos rapazes. - Foi simples com’isto. Ora aí têm uma mulher dos diabos. Não admira que chegasse a madame. Aquilo é qué uma mulher do diabo.

 

Mary Talbot, ou seja Mrs. Tom Talbot, era linda. Possuía cabelos ruivos de tons esverdeados. Tinha uma pele dourada e olhos verdes pontilhados de ouro, o rosto triangular, largo nos pômulos, os olhos afastados e o queixo em bico. As pernas esguias, pés de bailarina; parecia não tocar o chão quando caminhava. Se se emocionava, e emocionava-se muitas vezes, o seu rosto resplandecia com reflexos dourados. A sua tetravó fora queimada como bruxa.

Acima de tudo o que Mary adorava eram festas. Como Tom Talbot não ganhava muito, Mary não podia estar sempre a dar festas, e então usava de estratagemas para que lhas proporcionassem. Às vezes telefonava a uma amiga e dizia-lhe claramente: Não será tempo de dares uma festa?

Mary dava regularmente seis festas natalícias por ano e ainda organizava festas de máscaras, festas-surpresa e festas de férias. A consoada pelo Natal em casa dela era coisa falada. É que Mary toda resplandecia com as festas e arrastava Tom, o marido, na onda do seu entusiasmo.

À tarde, estando Tom no emprego, Mary organizava às vezes chazinhos para os gatos da vizinhança. Punha chávenas e pires de boneca sobre um banquinho dos pés, juntava os gatos - e havia-os à farta – e mantinha então com eles demoradas e minuciosas conversas. Era uma brincadeira com que se divertia muito - uma espécie de jogo satírico, que fazia Mary esquecer o fato de não ter vestidos muito bonitos e de os Talbots possuírem pouco dinheiro. Viviam nas últimas a maior parte do tempo, e quando finalmente amealhavam alguma coisa Mary gastava-a em qualquer festa. Isso podia ela fazer. Podia contagiar de alegria uma casa inteira, e servia-se desta arma contra o desânimo que lhe rondava constantemente a casa tentando assaltar o Tom. A seu ver, cabia-lhe essa missão: afastar de Tom o desânimo, pois toda a gente sabia que num futuro próximo ele viria a ser uma celebridade. Em geral conseguia afastar de casa as nuvens negras, mas às vezes elas entravam e tomavam conta do marido. Nessas ocasiões ele sentava-se a ruminar horas e horas, enquanto Mary freneticamente compunha girândolas de alegria. Uma vez, era princípio de mês, com os avisos irritantes da Companhia das Águas, a renda por pagar, um manuscrito devolvido pelo Colliers, os desenhos rejeitados pelo The New Yorker e uma pleurisia que atacou o Tom, ele meteu-se no quarto e deitou-se. Mary entrou ali de mansinho, pois que o cambiante cinzento-azul da tristeza dele se escoara por debaixo da porta e pelo buraco da fechadura. Ela levava na mão um raminho de ibéris num invólucro rendilhado.

- Cheira - disse e aproximou-lhe o raminho do nariz. - Ele cheirou as flores, mas nada disse. - Sabes que dia é hoje? - perguntou ela procurando desesperadamente lembrar-se de qualquer coisa que tornasse o dia alegre.

- Porque não havemos de encarar as coisas de frente ao menos uma vez? Estamos nas últimas. Caminhamos para a miséria. Para quê iludirmo-nos? - respondeu-lhe Tom.

- Não estamos - disse Mary. - Somos pessoas com dons mágicos. Fomos sempre. Não te lembras daqueles dez dólares que encontraste dentro de um livro? E não te recordas daquela vez que o teu primo te mandou cinco dólares? Nada de mal nos pode acontecer.

- Pois aconteceu mesmo - disse Tom. - Desculpa, mas desta vez não me iludo com farsas. Estou farto de andar sempre a fingir. Quero ao menos uma vez viver a realidade. Ao menos uma vez.

- Pensei em dar esta noite uma festazinha - disse Mary.

- Com quê? Não vais recortar fiambre de uma ilustração e servi-lo numa travessa, pois não? Estou farto dessas fantochadas. Não é engraçado. É triste.

- Podia ser só uma pequena reunião - insistiu ela. - Uma coisa pacata. Sem toilettes. É o aniversário da fundação da Liga Bloomer; nem te lembravas disso.

- Não insistas - disse Tom. - Bem sei que é egoísmo, mas não consigo reagir. Porque não te vais embora, fechas a porta e me deixas em paz? Ainda acabo por me indispor contigo se não te fores.

Ela fitou-o atentamente e viu que falava a sério. Saiu de mansinho, fechou a porta e Tom virou-se na cama e escondeu a cara entre os braços. Ouvia-a cirandar no quarto ao lado.

Ela enfeitou a porta com coisas velhas do Natal, bolas de vidro e festões e escreveu num cartaz: Sê bem-vindo, Tom, nosso herói." Escutou à porta mas nada ouviu. Um tanto desconsolada foi buscar o banquinho dos pés e estendeu-lhe em cima um guardanapo. Pôs o raminho num copo ao centro do banco e dispôs à roda quatro chávenas e pires. Foi à cozinha, pôs chá no bule e a chaleira ao lume. Depois dirigiu-se ao pátio.  Kitty Randolph gozava o sol na sebe da frente.

Dirigiu-se-lhe:

- Miss Randolph: vou receber uns amigos para o chá; se quiser também pode vir. - Kitty Randolph rebolou-se languidamente de costas e espreguiçou-se ao calor do sol. - Não venha mais tarde do que as quatro - disse-lhe Mary. Meu marido e eu vamos ao hotel à recepção pelo aniversário da Liga Bloomer.

Deu a volta à casa até ao quintal, onde as silvas trepavam pela sebe. Kitty Casini estava ali agachada no chão, a rosnar consigo mesma e a dar ao rabo com fúria.

- Mrs. Casini - começou Mary, e parou, pois vira o que a gata estava a fazer. Kitty Casini tinha um rato. Dava-lhe palmadinhas breves com a pata desarmada e o rato revolvia-se todo desesperadamente, arrastando as patas traseiras paralisadas. A gata deixou-o chegar até quase à entrada das silvas e então estendeu delicadamente a pata, onde já tinham brotado espinhos alvos. Requintadamente, enterrou-os nas costas do rato e aproximou-o, a estrebuchar, de si, enquanto a cauda lhe abanava de puro gozo. Tom devia estar meio adormecido quando ouviu o seu nome repetido várias vezes. Levantou-se de um salto e gritou:

- Que foi? Onde estás? - Ouvia Mary a chorar. Correu para o quintal e verificou o que se passava. - Volta a cabeça - gritou-lhe, e matou o rato. Kitty Casini saltara para a sebe e olhava furiosa para ele. Tom apanhou uma pedra, atirou-lha à barriga e fê-la descer da sebe.

Em casa Mary choramingava ainda. Deitou a água no bule e levou-o para a mesa.

- Senta-te aqui - disse ela a Tom, e ele sentou-se no chão em frente do banquinho.

- Não me dás uma chávena grande? - perguntou ele.

- Não censuro a Kitty Casini - disse Mary. - Bem sei como os gatos são. A culpa não é dela. Mas, oh, Tom! Vai custar-me tanto convidá-la agora outra vez. Mesmo que queira não hei-de poder com ela durante muito tempo. - Olhou de perto para Tom e viu que as rugas lhe tinham desaparecido da testa e que não mostrava carranca. - Mas também ando tão atarefada agora com a Liga Bloomer! - disse. - Nem sei como vou dar conta de tudo.  

Mary Talbot deu nesse ano a festa da gravidez. E diziam todos: “Caramba! Aquele filho vai ter uma vida divertida!”

 

Todo o Cannery Row, sem dúvida, e provavelmente toda a Monterey, sentiu que se dera uma mudança. Compreende-se que não se acredite em sorte nem em enguiços. Não há vantagem em se acreditar neles, ninguém se deve fiar. Cannery Row, como todos os outros, não é supersticioso, mas não passa por baixo de uma escada ou abre um guarda-chuva dentro de casa. O doutor era um verdadeiro homem de ciência e incapaz de ter superstições; no entanto, quando, ao chegar a casa certa noite, se lhe deparou uma fila de flores brancas no limiar da porta ficou aborrecido. A maior parte das pessoas em Cannery Row não acredita em superstições, mas preocupa-se com elas.

Para a compreensão de Mack, não havia dúvida de que uma nuvem negra passara sobre o Palácio Flophouse. Analisara bem o incidente da festa falhada e chegara à conclusão de que o azar penetrara por todos os interstícios, que a pouca sorte lhe caíra em cima como um enxame à noitinha, e que quando se entra num ciclo destes o remédio é meter-se na cama até que passe. Não era possível opor-se-lhe. Não porque Mack fosse supersticioso.

Agora uma espécie de felicidade começou a penetrar no Row e a irradiar dali. O doutor obteve êxitos quase sobrenaturais com uma série de senhoras suas visitantes. E sem nenhum esforço. A cachorrinha do Palácio crescia qual gavinha de feijão, e, como tinha no seu passado milhares de gerações treinadas, começou a emendar-se. Desgostou-se de fazer no chão e passou a ir lá fora. Tornava-se evidente que a Darling ia ser um exemplar ajuizado e simpático. E não contraíra coréia com a esgana.

A influência benigna espalhava-se pelo Row como se fosse gás. Estendeu-se até à loja dos sanduíches do Herman, até ao Hotel San Carlos. Jimmy Brucia foi atingido, como também Johny, o barman cantor. Sparky Enea sentiu-a e participou jovialmente na luta com três novos polícias de fora da cidade. Ela avançou tão longe como a cadeia de Salinas, onde Gay, que levara vida regalada porque deixara sempre o xerife ganhar-lhe às damas, se tornou subitamente atrevido e nunca mais perdeu um jogo. Perdeu, sim, os seus privilégios, mas sentiu-se de novo um homem.

As morsas sentiram-na e o seu latir tomou um tom e uma cadência capazes de alegrar o coração de S. Francisco. As meninas no estudo do catecismo erguiam repentinamente as cabeças e davam risadinhas sem nenhum motivo. É possível que se pudesse aperfeiçoar uma sonda elétrica a ponto de ela adquirir a sensibilidade capaz de localizar a fonte de toda esta alegria e ventura irradiantes, ou talvez que pela triangulação se pudessem localizar no Palácio Flophouse e Grill. Não havia dúvida de que elas fervilhavam no Palácio.

Em Mack e nos rapazes abundavam. Viu-se Jones saltar da cadeira só para executar um acelerado sapateado e sentar-se em seguida. Hazel quedava-se a sorrir para o vago. A alegria era tão geral e tão contagiosa que Mack a grande custo conseguia mantê-la dominada e na direção do seu objetivo.

Eddie, que trabalhara assaz regularmente no La Ida, acumulara aprovisionada garrafeira. Deixou de adicionar cerveja ao jarro provisor. Dava à mistura um gosto choco, segundo dizia. Sam Malloy plantara bons-dias para treparem pela caldeira. Erguera uma pequena latada e frequentemente ele e a mulher sentavam-se à tardinha debaixo dela. A mulher fazia uma colcha de croché.  A alegria penetrara até mesmo no Guião do Urso. O negócio corria bem. A perna da Phyllis Mae consolidava-se e ela achava-se quase em estado de retomar o trabalho. Eva Flanegan voltou do Oeste de St. Louis contente por regressar. Estava calor em St. Louis e não era tão bonito como o recordara. Aliás, na época em que tanto se divertira ali era mais nova.

O conhecimento ou a certeza acerca da festa em honra do doutor não foi obra de momento. Não brotou de repente em flor. Sabiam dela, mas deixavam-na crescer gradualmente, como represália, nos casulos das suas imaginações. Mack, quanto a ela, mostrava-se realista.

- A última vez fez-se à força - disse aos rapazes. - Assim não há festa que preste. É preciso qu'el'entre cá dentro da gente.

- Está bem, e quand'é? - perguntou Jones, impaciente.

- Não sei - respondeu Mack.

- Faz-se uma festa-surpresa? - perguntou Hazel.

- Devia ser, são as melhores - disse Mack.

Darling trouxe-lhe uma bola de tênis que encontrou e ele atirou-a através da porta para as ervas. A cadelinha correu atrás dela.

- S'a gente soubesse quand'é qu'ele faz anos podíamos dar-lhe uma festa d'anos - sugeriu Hazel.

A boca de Mack escancarou-se. O Hazel surpreendia-o constantemente.

- Santo Deus, Hazel, acertaste com a coisa - gritou. - Pois é, sim senhor, se fosse os anos d'ele dávamos-lhe prendas. É isso mesmo. A gente só o que tem de saber é quand'ele os faz.  - Isso deve ser fácil - disse Hughie. - Porqu'é qu'a gente não lhe pergunta?

- Bolas! - exclamou Mack. - Assim ele percebia logo. S'a gente pergunta a um gajo quand'é qu'ele faz anos, e ainda por cima depois da festa que lhe demos, ele quer logo saber pro qui é. Vou mas é até lá cheirar sem lhe dar a perceber.

- Vou contigo - disse Hazel.

- Ná, se fôssemos os dois, podia desconfiar qu'andamos 'ármar alguma.

- Mas que raio! A ideia foi coisa minha - declarou Hazel.  

- Já sei - Mack. - E quand'a gente a fizer não m'hei-de esquecer de dizer ao doutor qu'a ideia foi tua. Mas acho melhor eu ir sozinho.

- Com'está ele, simpático? - perguntou Eddie.

- Está, pois.

Mack foi encontrar o doutor ao fundo, na parte mais baixa do Laboratório. Protegia-se do formol com luvas e um avental de borracha. Injetava uma composição colorida nas veias e nas artérias de pequenos esqualos. O pequeno moinho de esferas girava de roda, misturando a composição azul. A vermelha já se encontrava na seringa. As belas mãos do doutor trabalhavam com precisão, espetando a agulha no sítio próprio e comprimindo o êmbolo, o que forçava a entrada do líquido nas veias. Juntava os peixes injetados em pilha. Teria de voltar a estes para introduzir-lhes o líquido azul nas artérias. Os esqualos eram um bom elemento para o estudo da anatomia.

- Viva, doutor. - exclamou Mack. - Está cheio de trabalho, não?

- Tanto como gosto. - disse o doutor. - Como vai a cachorra?

- Tá-se a pôr fina. Morreria se não fosse o senhor.

Uma onda de prudência perpassou um momento pelo doutor e logo se escoou. Um elogio deixava-o em geral de pé atrás. Conhecia Mack há muito tempo. O tom, porém, traduzia apenas gratidão. Bem sabia a afeição que Mack consagrava à cachorra.

- Como vão as coisas lá pelo Palácio?

- Ótimo, doutor, vai tudo ótimo. Temos duas cadeiras novas. Gostava quo doutor fosse visitar a gente. Aquilo agora tá muito agradável.

- Hei-de lá ir - respondeu o doutor. - O Eddie continua a levar o jarro?

- Tá visto - disse Mack. - Mas já não lhe bota cerveja. E acho qu’assim fica mais forte.

- Forte era ele que chegava - disse o doutor.

Mack esperou pacientemente. Mais tarde ou mais cedo, o doutor lá iria ter e ele aguardava. Se o próprio doutor abeirasse o assunto seria menos suspeito. Foi sempre este o método de Mack.

- Não vejo o Hazel há muito tempo. Não está doente, não?

- Não - exclamou Mack, e iniciou a campanha. - O Hazel tá ótimo. Ele e mais o Hughie andam metidos num raio duma questão que dura há semanas. - Riu-se. - E o que tem mais piada é que nem um nem outro percebe patavina daquilo. Eu cá não me meti porque também não percebo nada. Mas eles não; andam p'rài às turras. Té já s’enxofraram por via disso.

- De que se trata? - perguntou o doutor.

- Bem, doutor - respondeu Mack. - O Hazel leva vida a comprar mapas que há praí que trazem os dias da sorte, as estrelas e droga assim. O Hughie diz qué tudo uma caterva daldrabices e o Hazel acha que s’a gente souber o dia em quum tipo nasce pode descobrir tudo a respeito dele, mas Hughie diz quelas o que querem é vender os mapas ao Hazel a duas c’roas cada um. Cá por mim não pesco nada daquela história. E o doutor, que lhe parece?

- Creio que vou pelo que diz o Hughie - disse o doutor. Fez parar o moinho, lavou a seringa e encheu-a com o líquido azul.  

- Uma noite destas puseram-se a marrar naquilo - disse Mack.  - Perguntaram-me quandé queu tinha nascido e eu cá disse que foi no dia 12 d’Abril e vai daí o Hazel foi comprar um dos tais mapas e leu tudo o que lá dizia de mim. Nalgumas coisas, realmente, pracia que dava certo, mas também só dizia bem, e a gente acredita quando dizem bem da gente. Vinha lá queu era valente e esperto e bom pros amigos. Mas o Hazel diz quisto tudo é verdade. Quando são os seus anos, doutor?

No fim de discurso tão comprido parecia perfeitamente casual. Não se dava pela coisa. Mas é preciso contar que o doutor conhecia o Mack de há muito. Se não fosse isso teria dito 18 de Dezembro, que era o dia do seu aniversário, em vez de 27 de Outubro, que não era.

- 27 de Outubro - disse o doutor. - - Pergunta ao Hazel o que é que lá vem a meu respeito.

- Se calhar são pataratas - disse Mack -, mas o Hazel leva a coisa a sério. Vou-lhe dizer que veja o qué que diz de si.

Quando Mack partiu, o doutor perguntou vagamente a si próprio em que consistiria a farsa. Bem a compreendera como ponto de partida. Conhecia a técnica de Mack, o seu método. Reconhecia-lhe o estilo. E perguntava-se que finalidade teria a informação. Só mais tarde, quando começaram a ouvir-se uns zunzuns, o doutor encadeou toda a história. E sentiu-se um pouco aliviado, pois receava que Mack pretendesse levá-lo à certa.

 

Os dois rapazinhos brincavam no terreiro dos estaleiros até que um gato trepou à sebe. Perseguiram-no imediatamente, enxotando-o para a linha férrea; ali encheram os bolsos com pedras de granito, apanhadas da via. O gato escapou-se-lhes por entre a erva alta, eles porém conservaram as pedras por serem de bom tamanho, forma e peso, para as atirarem. Nunca se sabe quando se vai precisar de uma pedra destas. Desceram na direção de Cannery Row e arremessaram uma à fachada de chapa ondulada da Fábrica Morden. Um homem espreitou assustado pela janela e correu precipitado para a porta, mas os rapazes foram mais rápidos. Já estavam deitados atrás da estacaria de madeira ainda antes mesmo de ele ter chegado à porta. Não os descobriria nem em cem anos.

- Aposto que não dava com a gente nem que procurasse toda vida - disse Joey.

Aborreceram-se de estar escondidos sem ter quem os procurasse. Levantaram-se e continuaram a descer por Cannery Row. Ficaram muito tempo especados diante da montra de Lee a cobiçar os alicates, as serras, os bonés de engenheiro e as bananas. Depois atravessaram a rua e sentaram-se no primeiro degrau das escadas que conduziam ao segundo andar do Laboratório.

- Sabes? Este tipo aqui tem bebês dentro de garrafas. - disse Joey.

- Que espécie de bebês? - perguntou Willard.

- Bebês mesmo, mas sem terem nascido.

- Não acredito - disse Willard.

- Pois é verdade. O miúdo do Sprague viu-os e diz que não são mais grandes quisto e que têm mãos e pés e olhos.

- E cabelo, não têm? - inquiriu Willard.

- Bem, o miúdo do Sprague não falou em cabelo.

- Devias ter-lhe perguntado. Ele o que é um grandaldrabão.  

- Queira Deus quele não te ouça - comentou Joey.

- Pois podes-lhir dizer o queu disse. Não tenho medo dele, e também não tenho medo de ti. Não tenho medo de ninguém.

- Chega-tisto para jogar à tapona? - Joey não respondeu. - Queres ou não?

- Não - disse Joey. - Tou cá a pensar porqué qua gente não vai daqui perguntar ao tipo sele tem bebês em garrafas. Talvez os mostrasse à gente. Se é quos tem.

- Ele não tá cá - disse Willard. - Quando tá deixa o carro aqui. Foi não sei práonde. Cá pra mim, isso é aldrabice, e acho quo miúdo do Sprague é intruja. Tu também mestás a sair aldrabão. E agora queres jogar à púrria ou não queres? - Estava um dia sonolento. Willard ia ter muito trabalho antes que o outro se exaltasse. - E acho também qués medricas. E agora chega-te? - Joey não respondeu. Willard mudou de técnica. - Onde pára o teu pai? - perguntou em ar de conversa.  

- Morreu - disse Joey.

- Ah é? Não sabia. Morreu de quê?

Joey manteve-se calado por momentos. Tinha a certeza de que Willard sabia, mas ele não queria demonstrar o seu conhecimento, para não ter de jogar à pancada com Willard, porque Joey tinha medo do Willard.

- Suicid... matou-se.

- Ah sim? - Willard fez uma cara séria. - E como foi?

- Tomou veneno dos ratos.

Willard desatou às gargalhadas estridentes.

- Qué quele julgava, quera rato?

Joey fingiu achar graça ao dito e também riu forçadamente.

- Naturalmente pensou quera rato - gritou Willard. - Era assim quele andava, não? Olha, Joey, assim? E franzia assim o focinho? E não tinha um rabo assim comprido? – Willard torcia-se de riso. - Porque quele não arranjou antes uma ratoeira e não meteu lá a cabeça? - E perderam-se de riso com esta.

Willard na realidade tinha esgotado o assunto. Tentou então novo gracejo.

- Como ficou ele quando tomou, assim? - Entortou os olhos, escancarou a boca e deitou a língua de fora.

- Esteve mal todo o dia - explicou Joey. - Não morreu senão a meio da noite. Teve muitas dores.

- Porque é que ele fez aquilo? - perguntou Willard.

- Não arranjava emprego. E sabes uma coisa legal? De manhã apareceu lá um tipo pra lhe dar trabalho.

Willard tentou prosseguir com a brincadeira.

- Tou convencido mas é quele imaginava quera rato. - disse.

Mas esta, mesmo vindo do Willard, falhou. Joey levantou-se e meteu as mãos nos bolsos. Viu um brilho de cobre na sarjeta e aproximou-se, mas, ao alcançá-lo, Willard deu-lhe um encontrão e apanhou o dinheiro.

- Eu é quo vi primeiro. - gritou Joey, já zangado.

- É meu.

- Queres jogá-lo à tapona, não? - disse Willard. - Vais mas é comer pó dos ratos.

 

Mack e os rapazes - a Virtude, a Beatitude, a Beleza. Sentaram-se no Palácio Flophouse e eram o seixo caído no lago, o impulso que despedia círculos em todo o Cannery Row e para além dele até à Alameda do Pacífico, até Monterey, mesmo para além da colina, até Carmel.

- Desta vez - disse Mack - temos de fazer com quele vá à festa. Sele não for lá, não se faz.

- Ondé qua gente a vai dar desta vez? - perguntou Jones.

Mack inclinou a cadeira contra a parede e meteu as pernas entre os pés da frente. - Tenho cá estado a matutar nisso - disse. - Claro qua gente podia dá-láqui, mas assim era difícil fazer surpresa. E depois o doutor gosta da sua casa. – Mack lançou um olhar irritado em volta do quarto. - Não sei quem é que lhe partiu a grafonola da última vez - continuou. - Mas s’alguém desta vez lhe põe em cima nem que seja só um dedo, dou-lhe cabo do canastro.

- Se calhar temos de dá-la em casa dele - sugeriu Hughie.  A notícia da festa a ninguém se transmitiu - o conhecimento dela foi-se simplesmente estabelecendo no íntimo de cada um.

Ninguém foi convidado. Iam todos. O dia 27 de Outubro tinha um imaginário círculo vermelho em volta. E desde que se tratava de uma festa de anos era preciso pensar, com tempo, nas prendas.

Tomemos as pequenas de Dora, por exemplo. Todas, mais ou menos, tinham frequentado o Laboratório pedindo conselhos, remédios ou simplesmente um pouco de companhia não profissional. E haviam reparado na cama. Estava coberta com um velho cobertor safado, cheio de rabos-de-raposa, de lobos-de-orelhas e de areia, pois ele levava-o em todas as suas excursões de fornecimento de material.  Se entrava algum dinheiro comprava artigos para o Laboratório. Nunca lhe ocorria adquirir para uso próprio um cobertor novo.

As pequenas de Dora começaram a confeccionar uma colcha de retalhos, uma coisa linda, toda de seda. E como toda a seda de que dispunham provinha das suas roupas interiores e de vestidos de noite, a colcha esplendia nos seus retalhos cor-de-rosa, de orquídea, amarelo-pálido e cereja. Trabalhavam manhã alta e à tarde, antes de os pescadores da sardinha aparecerem. Sob a comunidade do esforço desapareciam por completo todos os rancores e disputas sempre existentes nas casas de mulheres.

Lee Chong saiu e foi inspecionar uma enfiada de foguetes de vinte e cinco pés de comprimento e um grande saco de bolbos de túlipas chinesas. Estas, na sua opinião, eram a coisa mais bonita que se podia apresentar numa festa.

Sam Malloy encasquetara há muito uma teoria sobre as antiguidades. Sabia que as mobílias de outros tempos, os vidros, as faianças, que na sua própria época não valiam grande coisa, atingiam, com o passar do tempo, um valor fora de todas as proporções em relação com a sua beleza ou utilidade. Sam colecionava peças de automóveis históricos e estava convencido de que a sua coleção, depois de o tornar muito rico, viria um dia a repousar sobre veludo negro nos melhores museus. Dedicou longas meditações à festa e por fim passou exame aos seus tesouros guardados numa caixa grande que conservava fechada atrás da caldeira. Decidiu oferecer ao doutor uma das peças mais valiosas - o êmbolo e o pistão de um Chalmers 1916. Esfregou e poliu esta relíquia até ela brilhar como uma armadura antiga. Fez-lhe uma caixinha e forrou-a de pano preto. Mack e os rapazes dedicaram ao problema considerável estudo e chegaram à conclusão de que o doutor tinha sempre necessidade de gatos e dificuldade em obtê-los.

Mack trouxe a sua gaiola dupla. Pediram emprestada uma gatinha nas condições adequadas e colocaram a ratoeira por baixo do cipreste ao cimo do terreno baldio. A um canto do Palácio construíram uma gaiola onde cada noite se acumulavam mais e mais gatarrões assanhados. Jones era obrigado a ir duas vezes por dia às fábricas buscar cabeças de peixe para dar de comer aos seus protegidos. Mack considerava, e acertadamente, que vinte e cinco gatorros constituíam o melhor presente que podiam oferecer.

- Nada de decorações desta vez - recomendou Mack. - Só uma boa festa em termos, com muitas bebidas.

Até na cadeia de Salinas, Gay ouviu falar na festa e concertou com o xerife que este o deixaria sair nessa noite, pedindo-lhe dois dólares emprestados para o bilhete de ida e volta no autocarro. Gay tornara-se prestável ao xerife, que não era homem para o esquecer, especialmente agora, que se aproximavam as eleições, e Gay podia, ou declarava que podia, arranjar bom número de votos. Além de que o Gay era capaz de arranjar má fama à cadeia de Salinas se quisesse.

Henri decidiu de repente que a antiquada almofadinha de alfinetes representava uma modalidade de arte que florescera e atingira a culminância no século XIX e desde então fora esquecida. Fez ressurgir a modalidade e ficou maravilhado ao ver o que era possível conseguir-se com alfinetes de cor. O desenho nunca se completava - podia modificar-se indefinidamente alterando a posição dos alfinetes. Henri executara um grupo destas peças destinado a uma exposição individual quando ouviu falar na festa do doutor, e imediatamente abandonou o seu trabalho para dar começo a uma almofada gigantesca destinada ao doutor. Teria um desenho intrincado e provocante de alfinetes verdes, azuis, amarelos, todos os tons de frescura, e intitular-se-ia Memorial Pré-Cambriano. Eric, o amigo de Henri, douto barbeiro, colecionador de primeiras edições de escritores que jamais tiveram segundas, nem segundas obras, decidiu dar ao doutor uma máquina de remar que adquirira na liquidação da falência de um cliente com uma conta de três anos de barbeiro. A máquina de remar encontrava-se em ótimas condições. Ninguém tinha remado muito com ela. Ninguém utiliza uma máquina de remar. A conspiração tomou incremento e houve idas e vindas intermináveis, discussões a respeito das prendas e dos vinhos, a que horas deviam começar, e que ninguém dissesse coisa alguma ao doutor.  O doutor não saberia dizer quando primeiro se apercebeu de que algo se passava que lhe dizia respeito. Na loja de Lee Chong parava a conversa à sua entrada. A princípio pareceu-lhe que as pessoas se mostravam frias para com ele.

Quando finalmente meia dúzia de pessoas pelo menos lhe perguntaram o que fazia no dia 27 de Outubro ficou intrigado, esquecido já de ter indicado essa data como a do  seu aniversário. Na realidade ficara interessado no horóscopo feito sobre uma data errada; como, porém, Mack nunca mais se referira ao caso, esquecera-o.

Uma tarde entrou na Casa Meio Caminho, porque ali havia uma cerveja, de que gostava, que era conservada na temperatura desejada. Emborcou o primeiro copo e instava-se para saborear o segundo quando ouviu um bêbedo dizer ao dono do bar:

- Você vai à festa?

- Que festa?

- Bem - tornou o bêbedo, confidencialmente: - Você conhece o doutor, o de Cannery Row.

O dono do bar enviezou um olhar até ao fundo do bar e, de volta, para o homem.

- Bem - disse o bêbedo. - Vão dedicar-lhe uma festa d’arromba no dia dos anos.

- Quem?

- Toda gente.

O doutor ruminou naquilo. Nunca vira aquele bêbedo. A sua reação em face da ideia não foi simples. Sentiu-se comovido pela ideia, mas ao mesmo tempo, no íntimo, estremeceu lembrando-se da última festa que lhe haviam dedicado.

Agora tudo se encaixava: a pergunta de Mack e o silêncio quando ele aparecia. Nessa noite, sentado à secretária, refletiu muito sobre o caso. Olhou à sua volta determinando quais os objetos que devia pôr a salvo. Sabia que a festa lhe iria custar caro.

No dia seguinte tomou as suas precauções. Levou os discos melhores para o quarto do fundo, onde podia fechá-los.

Arrecadou igualmente ali todo o material susceptível de se partir. Calculou como aquilo ia ser - os convidados teriam fome e nada levariam para comer. Esgotariam todas as bebidas como sempre. Um pouco enfadado subiu ao Mercado Thrift, onde o homem do talho era simpático e compreensivo. Discutiram o preço dos gêneros durante algum tempo. O doutor encomendou quinze libras de costeletas, dez de tomates, dez alfaces, seis pães grandes, uma grande lata de banha, uma de compota de amoras, cinco galões de vinho e quatro quartilhos de bom whisky, mas sem marca especial. Sabia que ia ter complicações com o banco no princípio do mês. Três ou quatro reuniões destas e perderia o Laboratório, pensou.

Entretanto os projetos no Row iam em crescendo. O doutor tinha razão, ninguém pensava na comida, mas por todos os cantos se viam doses e mais doses de bebidas. A coleção de presentes crescia, e a lista de convidados, a fazer-se, seria qualquer coisa como um recenseamento. No Guião do Urso travava-se constante discussão sobre o que deviam vestir. Não sendo para o trabalho, as raparigas não queriam usar os aparatosos vestidos de cerimônia que constituíam os seus uniformes. Decidiram levar vestidos de passeio. Não era tão simples como parecia. Dora insistia em que ficasse de serviço pelo menos um grupo reduzido para atender os fregueses habituais. As pequenas dividiram-se em turnos, ficariam umas até serem rendidas por outras. Tiraram à sorte quem primeiro deveria ir à festa. As primeiras a ir observariam o doutor quando ele recebesse a linda colcha. Tinham-na, quase pronta, num bastidor na casa de jantar. Mrs. Malloy pusera de parte provisoriamente a sua coberta e fazia seis napperons de crochê para os copos do doutor. Passara no Row o primeiro entusiasmo e uma intensificação surda e coletiva tomou o seu lugar. Havia quinze gatos numa gaiola do Palácio Flophouse e a miadeira que faziam punha a Darling à noite um pouco nervosa.

 

Frankie devia inevitavelmente ouvir falar na festa mais tarde ou mais cedo, pois que Frankie flutuava por ali como uma pequena nuvem. Rondava sempre à volta dos grupos. Ninguém o notava ou lhe prestava atenção. Não se sabia se escutava ou não. Frankie, de fato, ouvira falar na festa e nos presentes, e transbordou nele uma sensação de plenitude e de ansiedade dolorosa.

A montra da Ourivesaria Jacob expunha a coisa mais linda do mundo. Estava ali há muito tempo. Era um relógio de ónix com mostrador de ouro, e a encimá-lo via-se então a tal maravilha.

No topo havia um grupo de figuras de bronze - S. Jorge a matar o dragão: o dragão, com as garras no ar e a lança de S. Jorge enterrada no peito, atacava-o pelas costas. O santo, de armadura, viseira subida, cavalgava nédio corcel de largas ancas. Com a lança mantinha o dragão cravado no chão. Mas a coisa espantosa era ter ele a barba em bico e parecer-se um pouco com o doutor.

Frankie ia várias vezes por semana à Rua Alvarado postar-se em frente da montra para contemplar a maravilha. Sonhava com ela passeando as mãos pelo bronze polido e macio. Descobrira-a muitos meses antes de ouvir falar na festa e nos presentes.  Frankie permaneceu mais de uma hora no passeio fronteiro antes de entrar.

- Então? - disse Mr. Jacob. No golpe de vista que lançou a Frankie quando este entrou verificou que não se encontrariam nele nem 75 cents.

- Quanto custa aquilo? - perguntou Frankie em voz surda.

- O quê?

- Aquilo.

- Queres dizer o relógio? Cinquenta dólares; com o grupo, setenta e cinco. Frankie saiu sem dar resposta. Dirigiu-se para a praia, enfiou para debaixo de um barco que estava virado, e dali ficou a espreitar as ondazinhas. Tinha a maravilha de bronze com tal força metida na cabeça que parecia vê-la sempre à sua frente, e apossou-se dele a angustiosa sensação de ter caído numa armadilha. Tinha de obter aquele encanto. Os olhos tornaram-se-lhe ferozes ao pensar no belo relógio. Permaneceu todo o dia debaixo do barco, e chegada a noite saiu e voltou à Rua Alvarado.

Enquanto as pessoas entravam e saíam dos cinemas e se dirigiam ao Papoula de Ouro, ele andava para trás e para  diante no mesmo quarteirão. Não sentia cansaço, não tinha sono pois a maravilha abrasava-o como fogo.

Por fim as pessoas começaram a rarear, o movimento das ruas desapareceu gradualmente, os automóveis abandonaram os parques e a cidade adormeceu. Um polícia observava Frankie atentamente:

- Que fazes cá por fora? - perguntou-lhe.

Frankie deitou a correr, desapareceu na volta da esquina e foi esconder-se no beco atrás de uma barrica. Às duas e meia acercou-se furtivamente da loja do Jacob e experimentou a maçaneta. Estava fechada a porta. Frankie regressou ao beco e sentou-se atrás da barrica a pensar. Viu um bocado de tijolo junto da barrica e pegou-lhe. O polícia declarou que ouvira um estilhaço de vidro e acorrera. A montra de Jacob estava partida. Vira o prisioneiro afastar-se rapidamente e perseguira-o. Não percebera como o rapaz pode correr tanto e tão depressa carregado com as cinquenta libras que pesavam o relógio e o bronze; o fato é que quase se safara. Se não tivesse metido por engano pelo beco sem saída tinha-se escapado.

O chefe telefonou no dia seguinte ao doutor:

- Pode passar por aqui? Preciso de falar consigo.

Trouxeram Frankie, todo sujo e enxovalhado. Trazia os olhos vermelhos mas mantinha-se de lábios firmes e esboçou mesmo um sorriso de boas vindas ao ver o doutor.

- Que aconteceu, Frankie? - perguntou o doutor.

- Assaltou a loja do Jacob ontem à noite - disse o chefe. - roubou algumas coisas. Já falamos com a mãe. Diz que a culpa não é dela por que ele anda sempre lá pelos seus sítios.

- Olha, Frankie, não devias ter feito isso - disse o doutor, que sentia no coração o peso do penedo do inevitável. - Não mo pode confiar sob palavra? - perguntou ao chefe da polícia.

- Não me parece que o juiz consinta - respondeu o chefe. Temos de apresentar um relatório médico. Sabe que ele sofre de um desequilíbrio?  

- Sim - disse o doutor. - Sei. Sei o que pode vir a acontecer quando atingir a puberdade? - anuiu o doutor, e a pedra pesou-lhe horrivelmente no coração.

- O médico entende que é melhor engavetá-lo. Antes não podíamos fazê-lo, mas agora, culpado de um crime, também concordo.

Enquanto escutava extinguiram-se as boas vindas dos olhos de Frankie.

- Que roubou ele? - perguntou o doutor.

- Um relógio enorme e uma figura de bronze.

- Eu pago isso.

- Oh, já o recuperamos. Não creio que o juiz se convença. Voltará outra vez a reincidir. O senhor sabe isso muito bem.

- Sim - disse o doutor com suavidade. - Bem sei mas talvez... - voltou-se para Frankie e perguntou - porque tiraste o relógio?

Frankie refletiu demoradamente:

- Porque gosto muito de si respondeu.

O doutor saiu precipitadamente, meteu-se no carro e entregou-se às suas pesquisas nas grutas por baixo do Porto Lobos.

 

Às quatro horas do dia 27 de Outubro o doutor, terminado o acondicionamento do último lote de medusas, lavou o jarro de formalina, limpou os fórcepes, tirou e empoou as luvas de borracha. Subiu ao primeiro andar, deu de comer aos ratos e levou alguns dos seus melhores discos e os microscópios para a dependência das traseiras. Fechou-se à chave. Acontecia às vezes a um dos seus convidados mais atrevidos ter o desejo de brincar com as cobras cascavéis. Usando de cautelosas previdências, prevenindo-se contra todas as eventualidades, o doutor contava tornar esta festa o menos prejudicial possível sem a tornar uma sensaboria. Pôs uma cafeteira ao lume, começou a tocar a Grande Fuga na grafonola e tomou uma ducha.

Executou tudo com rapidez, pois tomava a sua chávena de café já com a roupa interior vestida antes de a peça de música ter acabado. Foi à janela espreitar o terreno e o Palácio, mas não se via vivalma. O doutor não sabia quem nem quantas pessoas iriam à sua festa. Sentia no entanto que estava a ser espiado. Durante todo o dia tivera essa impressão, não porque tivesse notado alguém, mas sentia estar sob a vigilância de uma ou mais pessoas. Devia portanto ser uma festa-surpresa. Continuaria como habitualmente, não se dando conta de coisa alguma.

Atravessou a rua até ao Lee Chong e comprou dois quartilhos de cerveja. Como na loja do Lee parecia pairar uma concentrada excitação oriental compreendeu que também estes iriam. Voltou para o Laboratório e encheu um copo de cerveja. Bebeu-o para matar a sede e tornou a encher um segundo para o saborear. O terreno baldio e a rua continuavam desertos.

Mack e os rapazes estavam no Palácio com a porta fechada. Toda a tarde o fogão crepitou, aquecendo água para os banhos. Até a Darling tomou banho e andava com um laçarote vermelho no pescoço.

- A qu’horas acham vocês qua gente há-dir. - perguntou Hazel.

- Acho quantes das oito não - respondeu Mack. - Mas não há mal nenhum em a gente tomar um copito pránimar.

- E não será melhor animar também o doutor? - inquiriu Hughie. - Talvez não fosse má ideia eu levar-lhum jarro como quem não quer a coisa.

- Não - disse Mack. - O doutor foi agora mesmo buscar cerveja ao Lee.

- Achas quele desconfia dalguma coisa? - perguntou Jones.  

- Como? - exclamou Mack.

Ao canto, na gaiola, dois gatos iniciaram uma polêmica e toda a gaiola a cometeu com rosnidos e dorsos arqueados. Havia só vinte e dois gatos. Tinham falhado na cifra.

- Como vamos nós levar pra lá os gatos? - começou Hazel. - Não se pode passar com a gaiola por essa porta.

- E a gente não os leva, pronto - disse Mack. - Não se lembram do qu’aconteceu co’as rãs? Ná, vamos mas é dizer tudo ao doutor. Ele vem cá buscá-los.

Mack levantou-se e destapou um dos jarros das sobras do Eddie.

- Já agora é melhor a gente aquecer um bocado - alvitrou.

Às cinco e meia o velho chinês mais o seu taque taque desceu o monte, passando pelo Palácio. Atravessou o terreiro e a rua e desapareceu entre o Biológico e o Hediondo. No Guião do Urso as raparigas aprontavam-se. Foi escolhida à sorte, por meio de palhinhas, uma espécie de vigia. As que ficavam deviam ser rendidas de hora a hora.

Dóra estava estupenda. O cabelo, recentemente tinto de cor de laranja, ostentava-se-lhe em caracóis no alto da cabeça. Usava a aliança de casamento e um travessão enorme de brilhantes ao peito. O seu vestido era de seda branca com desenhos de bambu a negro. Nos quartos procedia-se de forma inversa à usual.

As que ficavam trajavam vestidos compridos de noite, ao passo que as que saíam levavam vestidos curtos de seda estampada e estavam muito bonitas. A colcha, forrada, dentro de uma caixa de cartão, estava no bar. O criado andava um bocado rabugento porque compreendera não ser possível assistir à festa. Alguém teria de olhar pela casa. Contra o regulamento, cada uma das pequenas tinha o seu quartilho escondido e aguardava o momento de se fortificar um pouco para a festa. Dora encaminhou-se com imponência para o seu escritório e fechou a porta. Deu a volta à chave da gaveta superior da secretária e desta tirou um copo e uma garrafa e tomou um aperitivo. Uma das pequenas que ficou a escutar junto da porta ouviu o tilintar e passou palavra.

Dora não podia agora examinar os seus hálitos as pequenas abalaram para os quartos e tiraram os quartilhos dos esconderijos. O crepúsculo descera sobre Cannery Row, a hora cinza entre a luz do dia e a luz dos lampiões. Phyllis Mae espreitou pela cortina da sala de entrada.

- Consegues vê-lo? - perguntou-lhe Dora.

- Vejo. Tem as luzes acesas. Está sentado como s’estivesse a ler. Credo! O que aquele homem lê. Não sei como não dá cabo da vista. Tem um copo de cerveja na mão.

- Bem - disse Doris -, acho que o melhor é bebermos uns golitos. Phyllis Mae coxeava ainda mas estava como nova. - podia - dizia ela - fazer frente ao conselho municipal em peso.

- Tem piada. Está ele ali sentado e não sabe o que vai passar-se.

- Nunca vem cá - disse Doris com uma ponta de tristeza.

- Há muitos que não querem pagar. - corroborou Phyllis Mae.

- Sai-lhes mais caro mas eles imaginam que não.

- E então? Talvez goste delas.

- Goste de quem?

- Das que lá vão.

- Ah, bem, talvez, realmente. Eu já lá fui e ele não me ligou nenhuma.

- Claro que não - disse Doris. - Isso não quer dizer que no caso de não trabalhares aqui não tivesses de barafustar para sair de lá.

- Queres dizer que ele não gosta da nossa profissão?

- Não, não digo isso. Acha provavelmente que uma rapariga que trabalha tem uma maneira de ser diferente.

Tomaram outro aperitivo. No escritório, Dora serviu-se de nova dose, bebeu-a e tornou a fechar a gaveta. Compôs ao espelho o seu penteado magnífico, inspecionou as unhas escarlates e faiscantes e dirigiu-se para o bar. Alfred, o criado, mostrava-se embezerrado. Não era nada, disse, nem estava de má cara, mas estava embezarrado à mesma. Dora examinou-o friamente.

- Parece que imaginas que te estão a pôr o pé no cachaço, não é?

- Não - disse Alfred. - Não, está tudo muito bem.

Isto pôs Dora completamente fora de si.

- Está bem o quê? Olhe lá, meu caro senhor, olhe que tem aqui um emprego. Quer conservá-lo ou quê?

- Bem, tá bem - respondeu Alfred friamente. - Não estou armar questão. - Pôs os cotovelos sobre o bar e examinou-se atentamente ao espelho. - Pode ir divertir-se à vontade - disse -, cá tomo conta de tudo. Não tem que se preocupar.

Dora abrandou em face do desgosto dele.

- Olha - explicou. - Não gosto de deixar a casa sem um homem. Podia algum bêbedo tornar-se desagradável e as pequenas não sabiam como lidar com ele. Mas, mais tarde, podes ir também e deitas de lá das janelas uma olhadela à casa. Que te parece? Assim podes ver se acontece alguma coisa.

- Bem - disse Alfred. - Eu cá gostava dir. - Acalmara depois da explicação. - Mais tarde apareço lá um ou dois minutos. Ontem veio aí um safardana de um borracho. E não sei, Dora, parece quando cheio de nervoso desde que parti a espinh’àquele tipo. Parece que não tenho mão em mim. Indarranjo praí uma noite destas algum sarilho que me catrafilam.

- Precisas de um descanso - disse Dora. - Talvez eu consiga que o Mack te venha substituir para teres duas semanas de férias. - Dora era uma madama admirável, lá isso era.

No Laboratório o doutor tomou um whisky depois da cerveja. Sentia-se um pouco comovido. Pareceu-lhe uma ideia muito simpática darem-lhe assim uma festa. Tocou a Pavana para Uma Infanta Defunta e sentiu-se sentimental e um tanto triste.

Neste estado de espírito escolheu a seguir Daphnis e Cloé. Havia uma passagem que lhe sugeria outra coisa: os observadores que em Atenas, antes de Maratona anunciam ter visto a larga faixa de poeira ao longo da planície, ouviram o choque das armas e ouviram o cântico eleusiano. Parte dessa música lembrava-lhe esse quadro. No final, tomou outro whisky e ficou-se a debater em mente o Brandeburgo. Isto arrancá-lo-ia ao estado sentimental e mórbido em que estava a cair. Mas que mal havia num tal estado? Era tão agradável.

- Posso bem tocar o que me apetecer - disse alto. - Posso tocar o Clair de Lune ou A Jovem dos Cabelos de Ouro. Sou um homem livre.

Serviu outro whisky e bebeu-o. E decidiu-se pela Sonata ao Luar. Podia ver as luzes de néon do La Ida a acenderem-se e apagarem-se. Depois apareceu a luz na frontaria do Guião do Urso.

Um batalhão de besouros atirou-se de encontro à luz e caiu no chão a espernear e a agitar as antenas. Uma gata vagueou triste ao longo da sarjeta em busca de aventuras. Cogitava sobre o que teria acontecido aos gatos todos que tornavam tão interessante a vida e as noites tão horrendas. Malloy, de bruços, espreitava pela porta da caldeira se já teria ido alguém para a festa. No Palácio os rapazes, sentados, observavam ansiosos os ponteiros negros do despertador.

 

A natureza das festas tem sido estudada imperfeitamente. Entende-se, no entanto, em geral que uma festa tem a sua patologia, que ela é uma espécie de indivíduo, e um indivíduo susceptível de ser bastante perverso. E entende-se também em geral que uma festa nunca resulta da maneira como foi planejada, nem para o fim a que se destinava. Isto, claro, exclui aquelas miserandas festas de escravos, aguilhoadas, controladas e dominadas, que dão certas donas de casa, ogres profissionais. Estas não são de maneira alguma festas, mas atos e demonstrações tão espontâneas como o peristaltismo e com tanto interesse como o da finalidade dos seus lucros.

Provavelmente todos em Cannery Row teriam visionado como seria a festa - as exclamações de boas-vindas, os parabéns, a algazarra e a boa disposição. E afinal não começou assim. Às oito horas em ponto, Mack e os rapazes, lavados e penteados, pegaram nos jarros e desceram o carreiro das galinhas, cortando pelo atalho da via férrea, seguiram pelo terreno baldio, atravessaram a rua e subiram as escadas do Laboratório Biológico Ocidental. Sentiam-se embaraçados. O doutor conservava a porta aberta e Mack proferiu um pequeno discurso:

- Em vistas de ser o seu aniversário, eu e mais os rapazes pensamos em dar-lhe os parabéns e trazemos-lhe vinte e um gatos de presente.

Calou-se e ficaram todos enleados nas escadas.

- Entrem - disse o doutor. - Ora esta... isto, isto é uma surpresa. Eu nem supunha que vocês soubessem que era o dia dos meus anos.

- São todos gatos - disse Hazel. - A gente inda não os trouxemos.

Cerimoniosamente sentaram-se no lado esquerdo da sala. Fez-se um longo silêncio.

- Bem - disse o doutor. - Já que cá estão, que dizem a uma bebidazita?

- Nós trouxemos um mata-bicho - disse Mack, e apontou para os três jarros que Eddie conseguira encher.

- Isto aqui não tem cerveja dentro - acrescentou Eddie.

O doutor dominou a sua relutância.

- Não - disse. - Venham tomar qualquer coisa comigo. Por acaso tenho aí um pouco de whisky.

Estavam cerimoniosamente sentados tomando delicados sorvos de whisky quando Dora e as pequenas entraram. Apresentaram a colcha. O doutor estendeu-a sobre a cama e era linda. Elas aceitaram uma bebidazinha.

Seguiram-se-lhe Mr. e Mrs. Malloy com os seus presentes.

- Há muitas pessoas que não sabem o valor que esta peça há-de um dia vir a ter - disse Sam Malloy tirando da caixa o pistão e o êmbolo Chalmers 1916. - Já não é provável encontrarem-se três destes em todo o mundo.

Começou então a aparecer gente aos magotes. Chegou Henri com uma almofada para alfinetes de quatro pés por três. Quis fazer uma dissertação sobre aquela sua nova modalidade de arte, mas nessa altura a atmosfera de cerimônia desfez-se.

Entraram Mr. e Mrs. Gay. Lee Chong ofereceu a sua comprida enfiada de fogo de artifício e os bulbos das túlipas chinesas. Lá pelas onze horas alguém comeu os bulbos; o fogo, porém, durou mais tempo. Do La Ida apareceu um grupo de estranhos. O formalismo da festa desaparecia rapidamente.  Dora, com o cabelo alaranjado refulgindo, ostentava-se sentada numa espécie de trono. Segurava o copo de whisky com suma gentileza, estendendo o dedo mínimo. E tinha as pequenas debaixo de olho certificando-se de que se comportavam bem. O doutor colocou música de dança na grafonola e meteu-se na cozinha a fritar as costeletas.

A primeira zaragata não foi muito grande. Um dos do grupo do La Ida fez uma proposta imoral a uma das pequenas da Dora. Ela protestou, e Mack e os rapazes, escandalizados com esta quebra de conveniência, puseram-no logo fora e sem partir nada. Sentiram-se desta feita orgulhosos, cônscios da sua co-participação.

Na cozinha o doutor fritava as costeletas em três sertãs, cortava tomates e empilhava fatias de pão. Sentia-se feliz.

Mack tomou a grafonola a seu cargo. Topara com um álbum de trios de Benny Goodman. Iniciou-se a dança; a festa, na verdade, tomava proporções e vigor. Eddie meteu-se no escritório e executou um sapateado. O doutor levara uma garrafa para a cozinha e servia-se dela. Sentia-se de melhor a melhor a cada instante.

Ficaram todos surpreendidos quando ele serviu o assado. Na realidade ninguém tinha apetite mas desapareceu tudo instantaneamente. A comida levou a assistência a uma espécie de opulenta tristeza digestiva. O whisky acabou e o doutor trouxe os seus galões de vinho.

Dora, entronizada, disse:

- Doutor, toque-me um pouco dessa  linda música. Sabe Deus se ando farta da música de caixa lá de casa.

Então o doutor fez ouvir o Bardo e o Amor, do álbum de Monteverdi. E os convidados logo se sentaram e os seus olhos volveram-se para o íntimo. Dora respirava beleza. Dois estranhos subiram as escadas e entraram de mansinho. O doutor sentiu-se envolvido por uma agradável tristeza dourada. Os convidados conservaram-se calados ao terminar a música. O doutor foi buscar um livro e em voz clara e profunda leu:

 

         Inda agora 

         Se vejo na alma a de seios como pomos 

         Em nimbos de ouro, rosto atraindo estrelas 

         Das nossas noites, corpo açoitado pela chama, 

         Lacerado à lança incandescente do amor, 

         Primeira e única por ser de tenros anos, 

         Afunda-se-me vivo o coração na neve.

 

         Inda agora 

         Se viera a mim a de olhos como lótus 

         Dorida ao peso de amor adolescente, 

         De novo a daria à fome destes braços gêmeos 

         E da sua boca beberia o vinho espesso, 

         Como a bojuda abelha em indolente adejo 

         Pousadamente rouba o mel ao nenúfar.

         Inda agora se a vira reclinada de olhos ávidos 

         As emaciadas faces tingidas de colírio 

         Da rosada orelha ao colo ebúrneo 

         Sofrendo assim da minha ausência a febre, 

         Seria o meu amor flores em grinaldas 

         E sobre os seios do dia, a noite, negro amante.

 

         Inda agora 

         Meus olhos que tanto se afadigam a não ver 

         Pintam rostos daquela que perdi.

         Oh! Brincos de ouro 

         Acariciando faces, folhas de magnólias, 

         Oh! brancura de macio pergaminho, onde 

         Meus pobres lábios, ora afastados, escreveram 

         Estrofes de beijos que não mais hão-de escrever.

 

         Inda agora 

         Me envia a morte o tremor de cílios leves 

         Sobre olhos ardentes; a lástima do corpo 

         No cansaço do prazer todo alquebrado;

         As boninas róseas dos seios oscilantes 

         Para meu deleito e para meu tormento 

         Os rubros lábios úmidos que selei por meus.

 

         Inda agora 

         Nos dois bazares lhe murmuraram as fraquezas 

         Dela, tão forte em amar-me.

         E os néscios que vendem, compram, e do ouro são escravos 

         Franzem a pele encovando os olhos; porém

         Nenhum Príncipe das Cidades de Além-Mar 

         Ao leito lúgubre a levou.

         Oh! tão-sozinha.

         Cingias-me como cinge a veste, querida minha...

 

         Inda agora 

         Amo os rasgados olhos de caricias como sedas, 

         Sempre e sempre tristes, olhos sempre alegres, 

         Cílios que baixando espalham doces sombras 

         Sombras mais semelhantes a um olhar dos seus.

         Amo a boca fresca, oh! boca perfumada, 

         Cabelos em anéis evasivos como fumo, 

         E dedos leves e risos de verdes gemas.

 

         Inda agora 

         Acordo ao teu responder apenas murmurando 

         Por sermos uma alma só; a mão nos meus cabelos, 

         O vestígio ardente em volta dos teus lábios:

         Vi amar sacerdotisas ao cair da Lua 

         E nas salas de alcatifas e candeias de ouro 

         Deitaram-se ao acaso e dormirem descuidadas[5]

 

Phyllis Mae chorava sem disfarce quando ele parou e a própria Dora enxugou os olhos. Hazel, de tal maneira empolgado pelo som das palavras, não atentou no seu sentido. Porém um pequenino mundo de tristeza os envolveu. Todos recordaram um passado amor, para todos soou uma evocação.

Mack explodiu:

- Jesus, comé bonito. Faz-me lembrar aquela... - e ficou-se. Encheram de vinho os copos e quedaram-se silenciosos. A festa terminava em doce tristeza.

Eddie dirigiu-se ao escritório, dançou um sapateado, regressou e sentou-se outra vez. A festa parecia ir amodorrando e adormecendo quando se ouviu um tropel de passos na escada. Uma voz estrondosa gritou:

- Onde estão essas raparigas? - Mack ergueu-se quase com alegria e dirigiu-se para a porta com desembaraço. Um sorriso de entusiasmo iluminou os rostos de Hughie e de Jones.

- De que raparigas está você a falar? - perguntou Mack calmamente.

- Então isto aqui não é uma casa de pegas? Gab, o cocheiro disse que havia uma por aqui.

- O senhor está enganado. - A voz de Mack era alegre.

- Bem, então que madamas são essas aí?

E envolveram-se em desordem. Era a equipagem do San Pedro, homens rijos afeitos a jovial e sábia pancadaria. À primeira arremetida penetraram de roldão no meio dos convivas. As pequenas da Dora descalçaram cada uma o seu sapato e seguravam-no pelo bico. No torvelinho da desordem pregavam com o salto fino na cabeça de cada homem que passava. Dora correu à cozinha e aos gritos apareceu munida da máquina de picar carne. Até o próprio doutor estava radiante. Espadanava a torto e a direito o pistão e o êmbolo do Chalmers 1916. Foi uma bela zaragata. Hazel escorregou e levou dois pontapés na cara antes de poder pôr-se de pé. A estufa Franklin foi ao chão com estrondo. Encurralados a um canto, os recém-chegados defendiam-se com pesados livros das estantes. Mas gradualmente foram rechaçados. As duas janelas da frente ficaram em estilhaços. De súbito, Alfred, que do outro lado da rua ouvira o barulho, atacou pelas traseiras com a sua arma favorita, a raqueta de pingue-pongue. A batalha estrepitava pelas escadas, na rua, pelo terreno vago dentro. A porta principal pendia de novo tristemente de uma só dobradiça. A camisa do doutor fora arrancada e o seu ombro seco e forte sangrava de um arranhão.

O inimigo fora repelido até meio caminho do terreno quando soaram as sereias. Os festejadores do aniversário do doutor mal tiveram tempo de introduzir-se no Laboratório, de reforçar a porta rachada e apagar as luzes antes de o carro da Polícia parar. Os agentes nada encontraram, mas os convidados estavam sentados no escuro beberricando vinho em alegre risota. A turma revezou-se no Guião do Urso. O novo contingente rompeu por ali dentro com ímpeto infernal. E foi então que a festa realmente se animou. Os polícias voltaram atrás, espreitaram, e, dando estalinhos com a língua, juntaram-se-lhes.

Mack e os rapazes, servindo-se do carro da Polícia, foram ao Jimmy Bruccia por mais vinho e o Jimmy veio com eles. O estrondo da festa podia ouvir-se de ponta a ponta de Cannery Row. A festa tinha o melhor de uma noite nas barricadas. A equipagem do San Pedro aproximou-se humildemente e juntou-se aos convidados. Foram abraçados e elogiados. Cinco quarteirões adiante uma mulher chamou a Polícia para queixar-se do barulho, mas ninguém os encontrou.

Os guardas deram parte do roubo do seu próprio automóvel e encontraram-no mais tarde na praia. O doutor, sentado de pernas cruzadas em cima da mesa, sorria e tamborilava ao de leve no joelho. Mack e Phyllis Mae faziam luta indiana no meio da casa. E a brisa fresca da baía entrava pelas janelas partidas. Foi então que alguém acendeu a girândola de fogo de artifício de vinte e cinco pés de comprimento.

 

Um gopher[6] bastante desenvolvido instalou a sua residência num maciço de malvas no terreno baldio de Cannery Row. Era um lugar perfeito. As malvas, de um verde intenso, alteavam-se frescas e exuberantes, e à medida que floresciam pendiam, provocadores, os seus queijinhos.

O terreno era ideal para a toca de um gopher: escuro, fofo, tendo mesmo algum barro, que não o deixava esboroar nem afundar os canais. O gopher era gordo e nédio e trazia sempre que comer nas bolsas das bochechas. Tinha as orelhitas asseadas e bem plantadas e os seus olhos eram negros como as cabeças dos alfinetes antigos e pouco mais ou menos do mesmo tamanho. As suas garras eram fortes, o pêlo acastanhado do lombo luzidio e o pêlo ruço do peito extraordinariamente macio e basto. Tinha enormes dentes curvos e amarelos e um rabinho curto. Era, em suma, um lindo gopher, e na flor da vida.

Viera para ali por terra; achou bom o lugar e começou a escavar por baixo de uma pequena elevação de terreno de onde, por entre a folhagem das malvas, podia ver passar em Cannery Row as camionetas. Podia ver os pés de Mack e dos rapazes ao atravessarem o terreno para o Palácio Flophouse. À medida que escavava a terra negra ia-a achando cada vez mais perfeita, pois sob terra havia rocha. Quando fez o grande armazém para as provisões instalou-se sob a rocha, de modo que nunca poderia abater, chovesse o que chovesse. Era um lugar bom para instalar-se e criar um sem-número de famílias, podendo as escavações estender-se em todas as direções.

Era lindo quando, ao amanhecer, ele deitava a cabeça de fora. As malvas deixavam-se atravessar por uma luz verde e os primeiros raios do sol-nascente penetravam na toca, aquecendo-a por tal forma que se deixava ali ficar confortável e contente.

Uma vez escavado o grande armazém, as suas quatro saídas de emergência e o seu quarto, isento de inundações, começou o gopher a armazenar provisões. Cortou ramos de malvas, apenas os mais perfeitos, na medida exata em que os queria, levou-os para a toca, arrumou-os em pilhas no grande armazém, dispondo-os de forma que não fermentassem ou azedassem.

Encontrara o sítio ideal para viver. Não havia jardins por ali perto, por isso ninguém se lembraria de armar-lhe ratoeiras. Gatos havia muitos, mas tão empanturrados com as cabeças e tripas de peixe das fábricas que de há muito se tinham deixado de caçadas. O terreno era bastante arenoso; assim a água nunca ali assentava ou alagava a toca por muito tempo. O gopher labutou, labutou até encher o seu armazém.

Então construiu pequenos quartos anexos para os bebês que os iriam habitar. Em poucos anos seria possível que a sua progênie ascendesse a milhares, baseada nesse lar. Mas o tempo passava e o animal roía-se de impaciência pois nenhum gopher fêmea lhe aparecia. Pela manhã sentava-se à entrada da toca e emitia guinchos penetrantes não audíveis a ouvidos humanos mas perceptíveis no mais fundo da terra por animais da mesma espécie. Mesmo assim não apareceu fêmea alguma. Um dia, a bufar de irritação, subiu o atalho até encontrar outra toca de gopher. Guinchou provocadoramente à entrada. Ouviu um restolho e cheirou-lhe a fêmea; mas saiu da toca um velho gopher maltratado pelas pelejas que o moeu de pancada e mordeu de tal sorte que se arrastou para a sua toca, onde ficou três dias deitado na grande sala a refazer-se e a chorar a sua sorte pela perda de dois dedos de uma das patas dianteiras. De novo se pôs a guinchar junto da sua linda escavação, naquele lugar tão cômodo, mas jamais fêmea alguma apareceu e tempo depois teve de mudar-se. Retirou-se para dois quarteirões mais na colina, para um jardim de dálias onde todas as noites armavam ratoeiras.

 

O doutor acordou aos poucos, atordoado como um homem gordo que emergisse da água de uma piscina. O seu espírito fendeu a superfície e mergulhou várias vezes. Tinha bâton na barba. Abriu um olho, viu as cores garridas da coberta e fechou-o muito depressa. Mas decorrido pouco tempo espreitou de novo.

O olhar passou da coberta para o soalho, para o prato partido a um canto, para os copos tombados sobre a mesa, para o vinho entornado, para os livros que eram como pesadas borboletas mortais. Havia pedacinhos de papel vermelho por toda a parte e o cheiro acre dos foguetes. Via pela porta da cozinha até onde se amontoavam em pilhas os pratos das costeletas e as sertãs coalhadas de gordura. Pontas de cigarro aos centos estavam espezinhadas no chão. E de entre o cheiro dos foguetes sobressaía uma combinação forte de vinho, whisky e perfume. O seu olhar deteve-se um momento sobre uns poucos de ganchos caídos no meio da sala.

Devagar, rolou sobre si mesmo e, apoiando-se num cotovelo, espreitou pela janela partida. Cannery Row apresentava-se tranquilo e luminoso. A porta da caldeira estava aberta, a porta do Palácio Flophouse estava fechada. No terreno baldio um homem dormia sossegadamente. O Guião do Urso conservava-se hermético. O doutor levantou-se e dirigiu-se à cozinha; no percurso acendeu o esquentador para o banho. Depois voltou a sentar-se na beira da cama e contemplou os resultados da catástrofe enquanto ia esfregando os dedos de um pé contra o outro. Do alto da colina vinha até ele o som dos sinos da igreja. Quando a água começou a gorgolejar no esquentador, voltou à casa de banho, tomou uma ducha e vestiu uma camisa de flanela e calças de ganga. A loja do Lee Chong conservava-se encerrada, mas abriu-se quando aquele viu quem estava à porta. Então levou, ao doutor um quartilho de cerveja sem que lho pedissem. O doutor pagou-lhe de imediato.  

- Divertiu-se? - perguntou Lee. Os seus pelpudos olhos castanhos apresentavam-se ligeiramente inchados.

- Diverti-me - respondeu o doutor, e regressou ao Laboratório com a cerveja gelada. Fez um sanduíche com manteiga de amendoim para comer com a cerveja.

Reinava profundo silêncio na rua. Não passava pessoa alguma. O doutor ouvia música dentro da cabeça: violinos, violoncelos... ou era música suave, apaziguante, quase indistinta. Comia o sanduíche, libava a cerveja e sentia a música no seu cérebro. Acabou a cerveja, dirigiu-se para a cozinha e tirou os pratos sujos do lava-louça. Fez correr água quente para dentro deste e foi deitando flocos de sabão na água, de forma que a espuma espessa amontoou-se. Depois pôs-se a reunir os copos que não estavam partidos. Mergulhou-os na água espumosa e quente. Os pratos das costeletas colados uns aos outros pelo molho castanho e a gordura branca formavam enormes pilhas sobre o fogão. O doutor abriu espaço na mesa para colocar os copos conforme os ia lavando. Abriu então a porta do quarto interior e trouxe um álbum de música gregoriana, colocou um Pater Noster e um Agnus Dei no toca-discos e fê-lo rodar. As vozes angelicais e incorpóreas, que eram puras e suaves, invadiram o Laboratório. O doutor cuidadosamente lavava a louça para que o ruído do choque não perturbasse o efeito da música. As vozes dos meninos transbordavam a melodia, ora baixando-a, ora elevando-a com simplicidade mas com a sonoridade que nenhum outro cantar possuía. Ao findar a melodia, o doutor enxugou as mãos e fez parar o toca-discos.

Viu um livro caído debaixo da cama, apanhou-o e sentou-se. Leu um momento para si próprio mas depois os lábios moveram-se em cada linha. Começou a ler em voz alta, pausadamente, parando ao fim de cada linha:

Inda agora lembro a vinda de homens sábios, seu fakir das torres /Onde o pensar lhes consumia a juventude. /Ouvi-los

Não dava o sal do segredar da minha amada /O segredar confuso no meio adormecer, /Vãs palavras do saber, palavras do brincar, /Buliçosas como a água, meladas de anseios.

No lavadouro a espuma branca arrefecia e crepitava com o rebentar das bolhas. Por debaixo do molhe, a maré, muito alta, borrifava com as suas ondas as rochas que há tempo não alcançava.

Inda agora /Lembro-me bem que amei o cipreste e as rosas, /As montanhas azuis, os outeirinhos cinzentos, /O ressoar do mar./ E como em certo dia /Mirei olhos estranhos, mãos como borboletas. /Pela alva vinham do tomilho as cotovias, /E iam banhar-se aos ribeirinhos as crianças.

O doutor fechou o livro. Ouvia as ondas rebentarem sob o molhe e o restolho dos ratos brancos nas gaiolas. Foi à cozinha e verificou a temperatura da água no lavadouro. Deixou correr água quente. Em voz alta dirigiu-se ao lavadouro, aos ratos, a si próprio:

- Inda agora /Sei que saboreei desta vida o gosto quente /Erguendo taças de ouro e taças verdes no festim. /Por um espaço apenas, fugaz e olvidado /Se me encheram os olhos pela bem-amada /Da mais imaculada irradiação da luz eterna.

Enxugou os olhos com as costas da mão. E os ratos brancos iam restolhando, restolhando nas gaiolas. E por detrás dos vidros as serpentes quedavam-se imóveis, fitando o espaço com os seus olhos turvos carregados.

 

[1] Seita chinesa do meio comercial. (N. da T.)

[2] 31 de Outubro, véspera de Todos os Santos, dia em que, na Escócia, rapazes e raparigas observam certos rituais para que lhes sejam desvendados os futuros consortes. (N. da T.)

[3] Valentines - Versos de tom galante e faceto que é uso oferecerem-se os namorados no dia de S. Valentim. (N. da T.)

[4] Membros de uma associação fraternal e beneficente fundada em 1868.

[5] Malmequeres Negros (Tradução do sânscrito de Powys Mathers).(N. da T.)

[6] Mamífero roedor com bolsas nas bochechas que se encontra na América. (N. da T.)

 

                                                                                John Steinbeck  

 

                      

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