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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BATALHAS NAS RUAS / Simon Scarrow
BATALHAS NAS RUAS / Simon Scarrow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Simon Scarrow retoma a história do jovem aprendiz de gladiador Marcus Cornelius Primus com o segundo volume da série Gladiador: Batalha nas ruas. Vendido como escravo quando tentava vingar a morte do pai e libertar a mãe, escravizada, Marcus acaba sendo comprado por ninguém menos que Gaius Julius Caesar.
Após salvar a vida da sobrinha de Caesar, Portia, que havia caído dentro da arena dos gladiadores, ficando à mercê de lobos vorazes, Marcus é alçado ao posto de guarda-costas na equipe de criados do imperador, mas esse posto é apenas uma fachada. Seu verdadeiro trabalho será trabalhar à paisana para garantir a segurança de Caesar, ameaçado por inimigos interessados em tomar o poder.
Marcus tem, então, que conciliar o treinamento de gladiador e as tarefas impostas por Caesar com seu plano inicial: localizar o general Pompeius, antigo comandante do pai, e pedir-lhe que ajudasse a salvar sua mãe. A tarefa, no entanto, não é tão simples quanto parecia. Marcus descobre que seu verdadeiro pai é o escravo mais odiado e perigoso de todo o Império: Spartacus. Agora, além de não ter como salvar a mãe, deve manter sua identidade em segredo.
Na estimulante aventura, tanto as habilidades físicas quanto a coragem, lealdade e inteligência de Marcus são postas à prova. Com Gladiador - Batalha nas ruas, o autor que antes de se dedicar à literatura foi professor de história em universidades britânicas, compõe uma rica descrição do cenário de intrigas políticas e brutalidade da vida na Roma Antiga.

 

 

 

 

 

 

1
No instante em que se aproximou do canto do pátio, Marcus percebeu que cometera um erro fatal. Sentiu o calcanhar da sandália arranhar na argamassa rachada do muro
e instintivamente deu meio passo adiante, para ganhar um pouco de espaço e poder se mover. Assim o haviam ensinado no treinamento da escola de gladiadores de Porcino:
sempre mantenha espaço livre para se mover durante uma luta, senão você entrega a iniciativa para o oponente, colocando-se à mercê dele. Foi uma lição que Taurus,
o instrutor-chefe cruel e rigoroso, tinha feito os alunos aprenderem à base de pancadas.
Aos 11 anos, Marcus era alto para sua idade, e o treinamento intenso o deixara forte e resistente e o ensinara algumas técnicas com a espada. Mesmo assim, frente
àquele oponente, Marcus sabia que as chances estavam contra ele. O homem, na casa dos trinta, era esguio, porém musculoso, movia-se rapidamente, e seu olhar atento
previa quase todos os movimentos de Marcus durante o combate.
Piscando os olhos para se livrar de uma gota de suor, Marcus deixou de lado a ansiedade. Sabia que sua única esperança seria fazer algo inesperado que deixasse seu
oponente sem saber como reagir. A maneira como ele se movia e controlava a espada curta evidenciava o treinamento pelo qual passara para ser soldado, ou talvez até
mesmo para ser gladiador, assim como Marcus. Ao sacar a espada contra o garoto, o homem começou com algumas investidas e movimentos enganadores. O desdém no rosto
dele desapareceu rapidamente após Marcus defender-se com confiança de seus golpes. Houve uma breve pausa quando o homem se afastou alguns passos para avaliar melhor
seu jovem inimigo.
- Então você não é tão inexperiente assim - grunhiu ele. - Mas mesmo assim não passa de um filhote à procura de um esconderijo. Eu vou ajudar você com isso.
Ele atacou Marcus, e o barulho das duas espadas colidindo ecoou pelos muros do pátio. Da ruela do lado de fora, atrás do pátio, o burburinho chegava baixo aos ouvidos
de Marcus, abafado pelo sangue que latejava em sua cabeça. Não prestou atenção alguma ao ruído e concentrou-se no oponente, alerta para qualquer indicação de movimento
que revelasse o próximo ataque.
O homem era bom. Duraria apenas alguns segundos contra um lutador mais experiente como Taurus, mas era apenas uma questão de tempo para que derrotasse Marcus. Apesar
dos movimentos rápidos e furtivos do garoto, não demorou para que o homem o encurralasse em um canto, contra os muros.
Por um instante, Marcus foi tomado pelo medo de que o homem vencesse, mas logo se repreendeu por ter ficado assim. Obrigando aquele pensamento a sair de sua mente,
ele se agachou na terra batida e nos pedregulhos do pátio. Moveu o peso um pouco para a frente, para se apoiar no peito dos pés, pronto para se lançar para a frente
ou para o lado a qualquer instante. Sua espada estava na horizontal, ao lado de seu corpo, de modo que pudesse atacar ou bloquear qualquer investida que o homem
fizesse. A mão esquerda estava estendida para manter o equilíbrio.
Houve uma breve pausa enquanto eles se encaravam.
Atrás do homem, Marcus percebeu o movimento de uma silhueta que os observava da porta do outro lado do pátio.
Quando seu olhar desviou para o lado, o ataque recomeçou. Com um rugido, o homem lançou-se para a frente com a espada na direção da cabeça de Marcus. O garoto abaixou-se
para um lado, e a ponta da lâmina silvou no ar a alguns centímetros de seu rosto. Rapidamente, ele tentou cortar o braço com o qual seu oponente segurava a espada
e sentiu um leve choque quando a ponta de sua lâmina arranhou a pele do homem.
Soltando um palavrão, o homem caiu para trás e ergueu o braço para ver a ferida. Foi apenas um arranhão superficial, mas o sangue estava escorrendo bastante, e as
gotas formavam linhas cor de carmim em seu antebraço. O homem olhou para a própria carne ferida. Depois, fixou um olhar gélido em Marcus.
- Você vai pagar por isso, garoto. Vai pagar um preço bem alto.
O sangue de Marcus gelou com a ameaça, mas ele manteve o olhar no oponente.
O homem abaixou o braço, empunhando a espada com mais força caso o sangue fluísse até a palma de sua mão e fizesse a arma escorregar. Ele avançou para cima de Marcus,
com os lábios voltados para dentro, rosnando maliciosamente. Marcus não tentou fazê-lo recuar dessa vez. O tinido das espadas ressoou bem alto nos ouvidos de Marcus
enquanto ele era empurrado contra a parede. A ponta da espada atingiu a argamassa de um lado de sua cabeça, e alguns pedaços saíram voando da parede. A lâmina foi
puxada para trás, ainda no alto, pronta para descer e atingir a cabeça de Marcus.
- Pare com isso! - ordenou uma voz cavernosa do outro lado do pátio.
No entanto, o homem estava com o sangue fervendo e mirou mais um golpe em Marcus. No último segundo, o garoto saltou para a frente desesperadamente, para dentro
do arco da lâmina. Abaixou-se, jogando todo o peso do corpo no ataque enquanto batia a guarda da espada na área entre as pernas do homem, bem na virilha dele. Ouviu
um gemido profundo, e o homem cambaleou para trás com expressão de sofrimento. Ele soltou um grito furioso de dor, cerrou o punho esquerdo e o brandiu fortemente.
Marcus tentou se agachar, mas o golpe atingiu seu crânio, lançando sua cabeça para o lado. Centelhas brancas espalharam-se pela visão de Marcus, e seu corpo voou
pelo ar. Caiu no chão com um forte impacto, e todo o ar saiu de seus pulmões. Rolou para ficar de costas, arfando, enquanto os muros e o céu giravam. O homem apareceu
em sua visão, cambaleando e gemendo enquanto se encurvava. Foi então que Marcus sentiu a ponta da espada encostar-se à base ossuda de seu pescoço.
Os olhos do homem estreitaram, e Marcus ficou com medo de ele enfiar a arma completamente na sua garganta, fazendo a ponta cortar o topo da espinha. Ele morreria,
e seu coração ficou cheio de arrependimento e vergonha por não ter conseguido conquistar a liberdade nem encontrar sua mãe. Ela havia sido escravizada na mesma época
de Marcus e levada para uma fazenda em algum lugar da Grécia, onde estaria condenada a passar o resto da vida. Fechando os olhos firmemente, Marcus rezou para os
deuses, pedindo que lhe poupassem a vida.
- Festus! Já basta! - exigiu a voz novamente. - Se cortar o garoto, você vai ser crucificado antes mesmo do pôr do sol.
Houve uma pequena pausa antes que a leve pressão da ponta da espada sumisse, então Marcus ousou abrir os olhos. Deitado de costas no canto do pátio, o medo fazia
seus braços e suas pernas tremerem. Deparou-se com Festus rangendo os dentes de frustração e, atrás dele, o céu manchado pela fumaça. Apesar de ser o fim da primavera,
havia nuvens baixas por cima de Roma, ameaçando chuva. Festus endireitou a postura, virou a espada e a guardou na bainha antes de olhar em direção à porta e inclinar
a cabeça em um sinal de saudação. Marcus levantou-se atrapalhadamente com a respiração acelerada, afastou-se de Festus e também o saudou.
Ao ficar de pé, viu outro homem atravessando o pátio na direção deles, com um discreto sorriso nos lábios. Ele parou na frente de Marcus e olhou para baixo, avaliando-o.
Em seguida, virou-se para Festus, seu guarda-costas principal.
- E então? O que acha dele?
Festus fez uma pausa antes de responder com cuidado:
- Ele é rápido e habilidoso com a lâmina, amo, mas ainda tem muito a aprender.
- Claro que tem. Mas você pode ensiná-lo?
- Se for do seu desejo, amo.
- É sim. - O homem sorriu rapidamente. - Então está decidido. O garoto ficará sob seu comando. Você vai treiná-lo para lutar. Ele tem que aprender a usar outras
armas além da espada. Ele precisa aprender a usar adagas, facas arremessáveis, bastões e as próprias mãos. - O homem olhou para Marcus novamente. Não havia qualquer
sinal de bom humor naqueles olhos frios, e ele prosseguiu: - Um dia o jovem Marcus poderá muito bem ser um excelente gladiador na arena. Até lá, quero que você continue
o treinamento que ele começou na escola de Porcino. Mas você também precisa ensinar-lhe a esperteza das ruas para que ele possa ser um bom guarda-costas para a minha
sobrinha.
- Sim, amo. - Festus concordou com a cabeça.
- Então pode nos deixar. Leve a espada do garoto. Depois vá procurar meu criado-chefe e avise a ele que quero a minha melhor toga limpa e cheirosa para amanhã. A
multidão não espera nada menos de seus cônsules - devaneou ele. - Quero ficar bonito quando estiver ao lado daquele gordo imbecil, Bibulus.
- Sim, amo. - Festus curvou a cabeça em uma nova saudação e atravessou o pátio rapidamente até entrar na casa. Após ele ir embora, o homem concentrou toda a atenção
em Marcus.
- Você sabe que tenho muitos inimigos aqui em Roma, Marcus. Inimigos que fariam mal à minha família e que se atreveriam até a fazer mal a mim, Gaius Julius Caesar.
É por isso que preciso de alguém de confiança para proteger Portia.
- Vou fazer o meu melhor, amo.
- Quero mais do que o seu melhor, garoto - disse Caesar firmemente. - Proteger Portia tem que passar a ser o objetivo principal da sua vida. Em qualquer momento,
seus olhos e ouvidos devem ficar atentos a todos os detalhes ao seu redor e detectar ameaças antes que elas causem algum mal. E não é para usar apenas os olhos e
ouvidos. Você vai precisar usar também o cérebro. Eu sei que você é esperto. Você provou isso lá em Cápua.
Caesar parou por um instante, e os dois ficaram se lembrando da luta em que Marcus derrotou Ferax, um garoto que tinha o dobro do seu tamanho, antes de matar dois
lobos que foram soltos em cima dele porque não queria eliminar o oponente. No entanto, não foi nada disso que conquistou Caesar. A sobrinha dele, Portia, caiu dentro
da arena, ficando à mercê dos lobos vorazes, e Marcus salvou-lhe a vida. Por causa disso, Caesar devia gratidão a Marcus. Ao mesmo tempo, Caesar, sensatamente, enxergou
a oportunidade de investir em um garoto que um dia talvez se tornasse um gladiador popular entre a multidão, e parte dessa popularidade passaria para o dono do gladiador.
Então Marcus foi comprado da escola de gladiadores e transferido de um dono a outro como se fosse um animal qualquer.
Ele se inclinou para a frente e deu um leve tapinha no peito de Marcus.
- Eu posso até ser um cônsul, um dos dois homens mais poderosos de Roma, mas posso ser ferido como qualquer outro. Tenho homens que me protegem e que espiam para
mim, mas tenho a sensação de que você pode vir a ser um dos meus criados mais úteis. Por enquanto, quero que proteja Portia, mas talvez depois você sirva para outras
missões também.
Os olhos de Caesar estreitaram, encarando Marcus. O silêncio deixou o menino desconfortável e ele engoliu em seco. Não tinha certeza do que pensar do novo dono.
Às vezes, Caesar era generoso e fascinante. Outras, parecia impiedoso, severo e até mesmo cruel.
- Outras missões, amo?
Um breve sorriso apareceu nos lábios de Caesar enquanto respondia:
- Em locais onde se suspeitam de homens, um garoto novinho talvez passe despercebido. É quando precisarei que você seja meus olhos e ouvidos. - O cônsul parou e
alisou o próprio queixo.
Marcus sentiu-se um pouco entusiasmado com o elogio implícito e com a confiança que Caesar demonstrou ter nele. No entanto, o prazer passou assim que ele se lembrou
do verdadeiro significado das palavras de Caesar. Marcus seria usado como uma peça menos importante no jogo dele contra seus inimigos políticos. Todavia isso não
era um jogo, percebeu Marcus. Ele se lembrou do que Titus, o homem que outrora pensava ser seu pai, dissera sobre a política de Roma. Os riscos eram altos - literalmente
uma questão de vida ou morte -, e agora Marcus estava bem no meio de tudo. Seria perigoso. No entanto, se Marcus mostrasse seu valor e servisse bem a Caesar, provavelmente
seria recompensado. Era o que tinha descoberto sobre aquele homem: ele era generoso com aqueles que o ajudavam a realizar suas ambições pessoais. O pulso de Marcus
acelerou ao olhar Caesar nos olhos, e o garoto fez sim com a cabeça.
- Estou pronto.
Caesar sorriu e olhou para Marcus, pelo que pareceu um bom tempo, antes de falar outra vez:
- Sabe, você tem algo de misterioso, meu garoto. Você não é um escravo normal. Qualquer pessoa consegue ver isso. Você tem a coragem, a determinação e a resistência
de uma pessoa bem mais velha. O seu pai ficaria orgulhoso de você, onde quer que ele esteja.
Marcus pensou rapidamente. Aquela era a primeira chance que tinha de explicar a injustiça de sua situação para Caesar.
- Meu pai está morto - revelou ele. - Ele foi assassinado, foram ordens de um cobrador de impostos chamado Decimus.
- Foi? - Caesar contraiu os lábios apenas por um instante e deu de ombros. - Que pena. Mas os deuses têm suas razões para permitirem certos acontecimentos.
Marcus sentiu um aperto no coração com a reação seca de seu senhor à sua situação difícil.
- E sua mãe? - perguntou Caesar.
- Ela é uma escrava, amo. Mas não sei onde ela está. - Por mais que Marcus quisesse encontrar a mãe, decidiu que por enquanto seria melhor mentir. Seria mais seguro
se sua mãe continuasse escondida de Caesar. Se a verdadeira identidade dele fosse descoberta, Marcus seria condenado à morte, assim como qualquer parente seu. Caesar,
apesar de toda a gratidão que sentia por Marcus ter salvado a vida de sua sobrinha, o mataria imediatamente se descobrisse que o verdadeiro pai de Marcus era Spartacus,
o gladiador general que comandara o exército rebelde de escravos em oposição a Caesar e a seus amigos de classe social elevada. O gladiador que quase causara a destruição
de Roma e de tudo o que ela representava.
2
Após Caesar dispensá-lo, Marcus saiu do pátio e foi até o alojamento dos escravos nos fundos da casa. Ao chegar lá, Marcus foi levado até o criado-chefe de Caesar,
que explicou as regras a que ele teria de obedecer e lhe mostrou a pequena cela que ele dividiria com dois outros garotos, também escravos. O mais novo tinha mais
ou menos a mesma idade de Marcus e se chamava Corvus. Ele era alto, magro, tinha o nariz torto e um ar triste de resignação. Lupus estava mais perto dos 16 anos
e gostava de escrita e números. Além de ajudar ocasionalmente na cozinha, ele trabalhava como escriba de Caesar. Um escriba era responsável por fazer anotações para
o dono, explicou Lupus com orgulho. Na maioria dos dias, ele acompanhava Caesar em seus negócios oficiais. Lupus, baixinho e magro, com o cabelo preto bem cortado,
era bem mais animado do que seu companheiro mais novo e recebeu de maneira afetuosa o recém-chegado àquelas humildes instalações. A cela não passava de três metros
de comprimento e pouco mais de um metro de largura, e havia uma abertura mais acima que deixava entrar um feixe de luz fraco vindo da rua. Os outros garotos dormiam
em sacos esfarrapados, um do lado do outro, no canto mais longe da porta. Marcus recebeu um saco igualmente desgastado, e disseram para ele dormir junto à entrada
estreita.
Depois disso, foi dada a Marcus uma série de tarefas domésticas de menor importância até a manhã em que Festus mandou chamá-lo para avaliar suas habilidades como
guerreiro. Agora, enquanto voltava para sua acomodação desoladora, escutou os sons de Subura - o bairro que cercava a casa - reduzirem-se a um zumbido abafado. Um
dos escravos mais velhos dissera a Marcus que Subura costumava ser uma vizinhança respeitável na época em que os ancestrais de Caesar decidiram construir suas casas
ali, mas a área tinha decaído muito desde então. Agora havia construções prestes a desmoronar por toda parte, cheias de famílias de fazendeiros desalojadas e obrigadas
a procurar trabalho na cidade. Em seguida, vieram imigrantes de todo o Mediterrâneo: gregos, númidas, gauleses e judeus. Todos se aglomeravam em Subura. As ruas
estreitas enchiam-se de vozes gritando em várias línguas, enquanto os cheiros das diversificadas tradições culinárias misturavam-se, ficando mais intensos do que
o fedor do esgoto e de comida apodrecendo.
Apesar de estar na capital há cerca de dez dias, Marcus ainda se acostumava às ruas fedorentas. A mistura de roupas coloridas, barulho e tumulto da vizinhança abarrotada
de gente o fascinava. Por ter crescido em uma fazenda isolada em uma pequena ilha grega, Marcus só conhecia os prazeres limitados do mercado local da cidade, onde
fazendeiros carrancudos se encontravam três vezes ao mês para fazer trocas. A lembrança mexeu de imediato com seu coração - ele caminhando até o mercado ao lado
do homem que ele acreditava ser seu pai. Titus, um ex-soldado, durão e muitas vezes frio, era bem rigoroso com Marcus na maior parte do tempo. No entanto, algumas
vezes, esse jeito sério fenecia e ele brincava de lutas com Marcus no pequeno pátio da fazenda ou contava histórias de suas aventuras da época de soldado.
Marcus suspirou tristemente ao lembrar o início da infância, dividido entre as recordações boas e as mentiras que lhe contaram. Titus não era seu pai. Marcus descobrira
isso havia menos de um mês, quando saiu da escola de gladiadores e estava na estrada para se juntar ao seu novo dono em Roma. Brixus, antigo seguidor de Spartacus,
seguiu-o e contou-lhe a verdade. Marcus passou a mão por cima do ombro, deixando os dedos entrarem por baixo da gola da túnica para percorrerem a marca gravada em
seu corpo quando era apenas um bebê: a cabeça de um lobo espetada em uma espada, igual à marca secreta que Spartacus e seus seguidores mais próximos possuíam, incluindo
a mulher que ele amava e o filho dos dois - o próprio Marcus. Brixus contara que o destino de Marcus era completar o verdadeiro trabalho do pai, liderando a próxima
revolta de escravos, o levante que finalmente tomaria Roma e libertaria todos os escravos sob domínio de cruéis donos romanos e seus chicotes.
Marcus franziu a testa com raiva. O mundo dele tinha virado de cabeça para baixo. Tudo o que sabia era mentira, e seu coração enchia-se de um turbilhão de emoções.
Ainda amava Titus, o orgulhoso e valente veterano das legiões, mas não havia uma gota de sangue romano nas veias de Marcus. Sua verdadeira linhagem remonta aos milhões
de escravos oprimidos que viviam e morriam acorrentados nas minas, ou aos fazendeiros, que os romanos ricos usavam como lacaios em suas belas vilas ou como objetos
de entretenimento sangrento em jogos gladiatórios. Era essa a verdadeira identidade de Marcus, o que ele sempre tinha sido: apenas um escravo.
Saber desses fatos fazia o coração arder. Sentia-se amargurado por ter sido enganado e não conseguia acreditar que sua mãe escondera a verdade dele durante toda
a sua vida. A raiva que sentia dela foi substituída imediatamente por uma enorme culpa. Ele não se importava com nada no mundo além dela, e o seu único objetivo
na vida era encontrá-la e libertá-la.
O plano de Marcus era localizar o general Pompeius, antigo comandante de Titus, e pedir-lhe que ajudasse a salvar sua mãe. Um favor que um general romano provavelmente
concederia a um de seus antigos oficiais, mas que significaria a sentença de morte de Marcus e de sua mãe caso Pompeius descobrisse que o garoto na verdade era filho
do escravo mais odiado e perigoso de todo o Império. Também seria o que aconteceria caso seu novo dono, Caesar, descobrisse o nome do verdadeiro pai de seu escravo.
Spartacus era inimigo de todos os romanos.
Marcus suspirou novamente, dessa vez frustrado com sua situação aparentemente sem saída. Tinha que encontrar uma maneira de ajudar a mãe sem correr o risco de descobrirem
sua verdadeira identidade. Precisava fazer isso logo...
- Maldito Brixus! - murmurou ele raivosamente enquanto entrava no átrio interno da casa, onde havia uma colunata ao redor de um reservatório d'água pequeno e raso.
Marcus ficou encarando o chão ladrilhado, refletindo profundamente enquanto dava a volta no reservatório.
- Brixus? Quem é esse Brixus que deixa o meu salvador e guarda-costas tão chateado?
Marcus parou e olhou para trás aflito - não devia ter dito o nome de Brixus em voz alta - quando viu uma silhueta esguia surgir de trás das colunas. Era a sobrinha
de Caesar, Portia - uma garota apenas alguns anos mais velha do que ele, de cabelo castanho-claro preso em um rabo de cavalo simples e com os mesmos olhos castanhos
penetrantes do tio. Disseram a Marcus que a mãe de Portia morrera no parto e o pai estava servindo com as legiões na Hispânia, então ela precisou ir morar com o
tio em Roma.
Ele inclinou a cabeça, saudando-a.
- Bom dia, senhorita Portia.
Ela franziu um pouco a testa.
- Senhorita? Precisa ser tão formal assim? - Ela mostrou o átrio à sua volta. - Estamos a sós. Pode falar comigo mais à vontade. Ninguém vai nos ouvir.
Marcus olhou para as entradas do átrio e viu que ela estava falando a verdade. Mesmo assim, ele abaixou a voz enquanto respondia:
- Posso ser punido por me referir a você de maneira desrespeitosa.
- Mas eu não acho desrespeitoso - argumentou Portia com um tom de voz brando. - Só queria que você falasse comigo como se fosse meu amigo, Marcus. Não como se fosse
escravo do meu tio.
Ele a encarou em silêncio. Desde a chegada dele à mansão, falara com Portia apenas algumas vezes, sempre com algum servente por perto. Portia o visitara na escola
de gladiadores quando ele estava se recuperando das feridas sofridas ao salvá-la dos lobos na arena da escola. Ela demonstrou muita gratidão, e Marcus achou que
ela o receberia afetuosamente na casa. No entanto, desde que ele chegara, Portia parecia tratá-lo com a mesma indiferença com que lidava com todos os outros escravos
do serviço doméstico. A mudança em seu comportamento, tão desdenhoso depois daquela demonstração de gratidão, deixara-o confuso e magoado no início.
Então, logo nos primeiros dias, pediram que ele passasse esfregão na área da casa em que Portia morava. Perplexo com o contraste entre sua péssima cela e o conforto
da sobrinha de Caesar, ele percebeu o quanto a vida deles era diferente. Mesmo enquanto se maravilhava com o sofá de dormir dela, tão macio e com tantos cobertores
trançados e estampados, entendia que o abismo social existente entre os dois tinha a mesma imensidão de qualquer oceano do mundo e o mesmo perigo. Ao olhar para
a mobília cara - a mesa de perfumes, um baú de ébano para as joias e uma prateleira com pergaminhos de poesia, histórias e cartas de seu pai -, ficou claro para
ele que dois mundos completamente diferentes coexistiam lado a lado dentro da mesma residência.
Marcus era um escravo, e seu senhor poderia fazer o que quisesse com ele. Como a sobrinha de Caesar poderia ser amiga de um menino escravo? E Caesar não era um mero
cidadão de Roma. A família dele era uma das mais respeitadas da cidade, cujos membros alegavam serem descendentes da própria deusa Vênus. Caesar, portanto, não gostaria
muito de descobrir que um dos escravos tinha falado com sua sobrinha como se ela fosse uma semelhante. Um senhor podia executar um escravo por bem menos.
No entanto, agora Portia parecia estar se comportando como se aquele abismo não existisse. Marcus abriu a boca e pensou em arriscar alguma resposta, mas desistiu
quando não conseguiu encontrar uma maneira apropriada de se dirigir a ela.
Ela notou seu constrangimento e soltou uma leve risada.
- Tudo bem, se você se sentir mais seguro, podemos conversar no jardim. Tem um local mais isolado ali no canto. Venha comigo. - Havia um tom inconfundível de ordem
nas palavras dela, e a garota o guiou pela passagem que levava ao pequeno jardim.
O jardim bem cuidado não tinha mais de trinta metros de comprimento. As gerações passadas da família de Caesar, os Julii, sentiam muito orgulho daquela área, composta
por arbustos cuidadosamente podados, rosas e outras flores claras que cresciam em estruturas de madeira. As estruturas criavam avenidas sombreadas que atravessavam
as laterais do jardim, deixando o ar com uma fragrância agradável. Uma pequena fonte tilintava no centro. Para Marcus, foi difícil acreditar que algo tão bonito
e cheiroso pudesse existir no meio do que ele vira daquela cidade lotada, imunda e fedorenta.
Portia guiou-o por um dos caminhos laterais até o canto onde as paredes de argamassa se encontravam. Lá havia uma pequena área de sentar escondida atrás de uma sebe.
Ela se sentou em um dos dois bancos de madeira que estavam encostados nas paredes inclinadas. Atrás deles, a argamassa tinha sido pintada com a imagem de uma varanda
coberta de hera que ficava de frente para alguns montes e para o mar. Barquinhos de velas claras navegavam nas ondas paradas. Não estão chegando perto do destino
deles, pensou Marcus. Não estão indo a lugar algum. Assim como eu.
Portia deu um tapinha no lugar ao seu lado.
- Venha aqui. Sente-se.
Ele hesitou e olhou por cima do ombro.
- Marcus - disse Portia, dando uma risadinha -, ninguém consegue nos ver aqui dentro. Confie em mim. Sente-se.
Ele respirou fundo e se sentou no banco relutantemente, a meio metro de Portia, o mais próximo que se atrevia.
- Isso é perigoso - disse ele, virando a cabeça a fim de olhar para ela.
- Você está seguro o suficiente. Se alguém aparecer, você se levanta e eu finjo que mandei chamá-lo para pedir alguma bebida.
- E se não acreditarem em você?
Ela ergueu a sobrancelha autoritariamente.
- Sou a sobrinha de um cônsul de Roma. Quem duvidaria da minha palavra, dentro da minha própria casa?
- Seu tio, por exemplo. Duvido que ele fosse gostar de saber que sua nobre sobrinha foi vista batendo papo com um garoto escravo.
- Ah! - Portia fez um gesto de desdém. - Sei entrar no jogo do meu tio se for necessário, mesmo ele sendo um dos homens mais poderosos de Roma, junto com aqueles
ricaços velhos, o Crassus e o vaidoso general Pompeius, que está mais para general Pomposo! - Ela riu da própria piada, e Marcus viu que os dentes dela eram pequenos
e claros.
Escutando as fofocas de outros escravos, Marcus soube que a única filha de Caesar, sua amada Julia, casara-se com o general Pompeius pouco antes de Marcus chegar
a Roma. Agora Caesar parecia estar tratando Portia como uma substituta para a filha que tinha se mudado.
- Enfim - prosseguiu Portia -, não tem perigo você conversar comigo, Marcus.
Ele queria acreditar nela, mas ainda sentia que precisava tomar cuidado.
- Sobre o que vamos conversar então?
Portia pareceu surpresa.
- Bem, você chegou aqui há vários dias e quero saber como está se adaptando. O que acha da nossa casa?
- Casa? - Marcus gesticulou para o jardim ao seu redor. - Achei que isso fosse um palácio. É assim que todos os senhores romanos vivem?
- Aqui é bem simples em comparação às outras casas. - Portia sorriu. - Você tinha que ver as mansões de Crassus e Pompeius. As deles sim são verdadeiros palácios.
Mas tio Gaius prefere morar aqui, cercado de pessoas comuns. Ele diz que assim o povo fica do lado dele. Ele tem outra casa, bem mais grandiosa do que esta, lá perto
do Fórum. Foi um presente de trabalho de quando ele foi eleito pontífice um tempo atrás. Mas aquela casa ele só usa para negócios oficiais. Aqui é o nosso verdadeiro
lar. - Portia deu um tapinha no braço dele afetuosamente. - Enfim, Marcus, converse comigo. Quero saber o que está achando de Roma. É a primeira vez que vem aqui,
não é? - Ela estendeu o braço e acotovelou-o. - Não é empolgante?
- Empolgante? - Marcus ficou surpreso com a pergunta e não pôde deixar de sorrir amarguradamente. - Estou tão empolgado quanto qualquer outro escravo.
- Ah, vamos lá, você faz parte do pessoal doméstico do meu tio. Você não está mais naquela escolinha de gladiadores deprimente onde ele o encontrou. Eu achava que
você teria mais gratidão pelas coisas que aconteceram.
Marcus não gostou do tom da voz dela, e a indignação tomou conta de seu coração.
- E eu achava que o seu tio estava grato por eu ter salvado a sua vida.
Portia estremeceu, abaixou a cabeça e ficou olhando para as mãos sobre o colo. Ela ficou em silêncio por um instante antes de prosseguir humildemente:
- Eu sinto gratidão sim, Marcus. De verdade. O meu tio também, apesar de ele jamais imaginar que deveria tanto a um escravo. Desculpe pela maneira como falei. -
Ela olhou para ele timidamente. - Não quero ser sua inimiga. Quero ser sua amiga. Acho que estou me sentindo um pouco só. Não tenho muitos amigos... por favor, não
me odeie.
- Eu não a odeio - respondeu Marcus seriamente e, em seguida, colocou o dedão na placa de latão que estava pendurada em uma grossa corrente ao redor de seu pescoço.
O nome dele e do seu senhor estavam gravados na superfície reluzente. - É só isso aqui que eu odeio. Eu não devia ser um escravo. Eu nasci livre e era livre até
menos de um ano atrás, quando minha mãe e eu fomos sequestrados por um cobrador de impostos e meu... pai... foi assassinado. Um dia eu vou encontrá-la e libertá-la.
E vou me vingar e matar aquele cobrador, Decimus. Isso eu prometo.
Portia ficou chocada.
- O que aconteceu?
- Meu pai estava endividado. Ele pegou dinheiro emprestado de Decimus e, como não pôde pagar de volta, Decimus mandou os capangas dele atrás do meu pai. O líder
deles, um homem chamado Thermon, matou meu pai e me levou junto com minha mãe para sermos vendidos como escravos para pagar a dívida. - O coração de Marcus encheu-se
de pesar com a lembrança, e ele desviou o olhar.
Portia ficou em silêncio e depois falou suavemente:
- Então você precisa conquistar sua liberdade, Marcus, para poder procurar sua mãe.
Ou eu posso escapar, pensou Marcus. Por um instante, ele considerou essa possibilidade seriamente. No entanto, não conseguiria chegar muito longe com a coleira de
escravo ao redor do pescoço. E, após ser capturado, seria arrastado de volta para a casa de Caesar, que o puniria severamente. Era o que se esperaria do cônsul,
pois assim Marcus serviria de exemplo aos outros escravos da casa e a todos os outros espalhados pelas casas de Roma. Marcus suspirou. Não ganharia muita coisa tentando
escapar naquele momento. Era melhor se ater ao plano original e ver se conseguiria explicar sua situação diretamente para o general Pompeius, mantendo em segredo
sua verdadeira identidade.
Marcus limpou a garganta.
- Se eu servir bem ao seu tio, talvez ele me liberte. Até lá, eu a protegerei com minha própria vida.
Portia sorriu.
- Obrigada. E, Marcus, talvez eu possa ajudá-lo. Eu gostaria de ajudar se eu puder.
Um breve silêncio surgiu entre os dois, e em seguida Marcus falou novamente:
- Talvez. Mas você precisa saber que eu nunca vou poder ser seu amigo de verdade. Não enquanto eu for escravo e você for a sobrinha do cônsul.
Portia fez uma pausa antes de responder:
- Você deve pensar que sou uma fedelha mimada. Assim como todas as outras garotas bobas que andam por aí nas liteiras. Bom, talvez eu seja como elas em alguns aspectos.
Mas meu tio é poderoso, e isso significa que muitos homens e mulheres querem ser amigos dele. Então eles o bajulam, e os filhos e as sobrinhas deles me bajulam.
Ninguém me trata como uma pessoa normal. Para eles, eu sou uma maneira de conquistar a boa vontade do meu tio. Tenho 13 anos. Daqui a um ano, é provável que eu esteja
casada. Meu tio vai querer se aproveitar do casamento para beneficiar suas ambições políticas. - Ela deu um leve sorriso. - Não quero que você fique com pena de
mim. Sempre soube que esse seria o meu destino e aceito isso. Mas, antes que isso aconteça, eu gostaria de ter pelo menos um amigo de verdade, Marcus. Quando caí
na arena, eu enxerguei a minha morte nos olhos daqueles lobos. Mas você me salvou. E isso significa que entre nós há uma ligação, não é?
Marcus lembrou-se do que Titus lhe dissera uma vez: quando um soldado salvava a vida de outro, era como se eles passassem a ser irmãos. No entanto, o que Marcus
sentia por Portia era mais do que isso, apesar de ele praticamente não se atrever a admiti-lo, nem para si mesmo. Ainda que soubesse o quanto suas vidas eram diferentes,
ele queria intensamente que as palavras dela fossem verdade.
- Imagino que sim.
- Então você pode ser meu amigo em segredo e vice-versa. Posso conversar abertamente com você e você comigo. Com o tempo, talvez eu até possa ajudá-lo a conquistar
sua liberdade.
Mais do que tudo, o que Marcus queria era alguém com quem pudesse conversar abertamente, mas não revelaria sua verdadeira identidade para Portia. O fantasma de Spartacus
assombrava o sono dela, de Caesar e de todos os romanos. Spartacus desejava acabar com o estilo de vida que eles levavam.
Ainda assim, ele forçou um sorriso.
- Obrigado, senhorita Portia.
Ela soou magoada.
- Por favor, me chame só de Portia quando estivermos sozinhos.
- Como quiser, Portia.
Ela sorriu.
- Isso! Está resolvido. Somos amigos e vamos conversar assim toda vez que pudermos. Você me conta sobre seu treinamento com Festus, sobre o que está achando de Roma,
e eu lhe conto tudo o que está acontecendo nas casas mais chiques da cidade.
Marcus deu um sorriso forçado.
Portia estava prestes a falar novamente quando um grito atravessou o jardim:
- Marcus! Marcus! Onde está você, garoto?
Marcus reconheceu o tom severo da voz de Flaccus, o criado-chefe da residência, e virou-se para Portia enquanto se levantava do banco.
- Preciso ir.
- Sim. - Ela segurou a mão dele novamente e a apertou meigamente. - Espero que a gente converse de novo em breve.
Marcus concordou com a cabeça enquanto Flaccus berrava o nome dele mais uma vez. O garoto saiu apressadamente do canto recluso e percorreu o caminho na lateral do
jardim. Ao chegar à colunata sombreada que ficava atrás da casa, avistou o criado-chefe - um homem baixinho e gordo que vestia uma túnica verde. Flaccus era careca,
exceto por uma franja bem oleosa que cercava sua cabeça. Ele se virou ao ouvir o barulho dos passos leves de Marcus e suas bochechas balançaram.
- Onde diabos você estava? - perguntou ele, franzindo a testa.
- Aqui no jardim, senhor - respondeu Marcus enquanto parava na frente do homem.
- Bom, não faça isso novamente. Quando seus serviços não forem necessários, você deve ficar no alojamento dos escravos até ser chamado. Entendeu? - Ele estendeu
a mão e deu um tapa na orelha de Marcus.
O golpe lançou a cabeça de Marcus para o lado, e seus ouvidos começaram a zunir. Ele piscou os olhos e fulminou o criado-chefe com o olhar.
- Sim, senhor.
- Espero que tenha entendido, ou da próxima vez você vai levar uma surra que nunca vai esquecer. - O criado-chefe apoiou os dedos gordos nos quadris e ficou encarando
Marcus friamente.
- Eu sei o que você fez na escola de gladiadores e sei que o senhor gosta de você, mas não pense que você é especial só por causa disso. Você é igual a todos os
outros escravos. Eu sou o criado-chefe deste lugar. Você obedece a mim. E, se me desobedecer, vai se arrepender. Vou tratá-lo da mesma maneira como trato os garotos
que ficam na cozinha. Está claro?
- Sim, senhor.
Flaccus enfiou o dedo no peito de Marcus.
- Agora é o seguinte. Nosso senhor está indo para o Senado. Ele deu instruções para que você se junte à comitiva dele. Pegue um manto sem mangas no baú de roupas
dos funcionários e aguarde Caesar na entrada principal. Então, o que está esperando, menino? Vá logo!
3
Marcus juntou-se a um grupo de outros escravos e criados na entrada da casa, todos à espera do senhor. O manto escolhido na pilha do baú da cozinha foi o menos fedido
que encontrou. Mesmo assim, cheirava a suor, e ele decidiu manter o capuz bem abaixado - só o colocaria se fosse necessário. Os outros homens vestiam túnicas e mantos
diferentes, indicando suas posições sociais. Os escravos, como Marcus, vestiam cores apagadas. Festus, um ex-escravo, trajava uma túnica vermelha e um manto marrom,
igual aos homens que ele contratara como guarda-costas de Caesar. Marcus observou-os com suas expressões frias, rostos exauridos e braços musculosos. Imaginou serem
gladiadores ou antigos legionários, como seu pai.
Mas ele não era meu pai, lembrou Marcus. Ele pôs as lembranças de Titus de lado, assim como a mágoa. Não podia deixar os sentimentos falarem mais alto. Se quisesse
salvar sua mãe, não podia ser fraco. Tudo o que importava agora era o treinamento brutal adquirido na escola de gladiadores de Porcino.
- Pegue isso aqui, garoto.
Marcus olhou para cima e viu Festus estendendo um grosso bastão. A haste de madeira afinava-se a partir do topo e era coberta com faixas de couro para que a pessoa
tivesse mais firmeza ao segurá-la. Marcus pegou a clava e a levantou para analisar o peso. Afastou-se de Festus e a brandiu para a frente e para trás, sentindo tratar-se
de uma arma útil e de boas proporções. Festus observou-o com um olhar de aprovação.
- Que bom que você conhece bem os instrumentos de trabalho.
Marcus olhou ao redor e viu que os outros homens ou tinham prendido as clavas nos cintos ou as carregavam pela extremidade mais grossa, como se fossem bengalas.
Ele se virou para Festus.
- Por que eles não estão com espadas?
Festus ergueu as sobrancelhas.
- Ah, claro. Você é novo aqui em Roma. Bem, garoto, a lei dita que ninguém pode carregar uma espada dentro da cidade. As pessoas não prestam tanta atenção a isso,
mas desobedecer à lei em público não é bom para ninguém. Por isso, andamos com clavas e outros objetos. Já usou uma clava?
- Durante o treinamento - contou Marcus. - No primeiro mês, antes de a gente poder usar armas de verdade.
- Isso aqui é uma arma de verdade - grunhiu Festus enquanto erguia a própria clava. - No meio de uma briga, isso é quase tão bom quanto uma espada. E não causa tanta
sujeira. A última coisa que Caesar e os outros grandes homens de Roma querem é que sangue seja derramado nas ruas. Mas lembre-se: arrebente o crânio de um homem
com uma clava e vai ser sujeira para todo lado. - Ele parou de falar e estreitou os olhos na direção de Marcus. - Mais uma coisa. É para me chamar de 'senhor' quando
falar comigo, entendeu?
- Sim... senhor.
- Agora sim. E lembre-se de que é para segurar a clava como uma bengala e ficar com ela assim, a não ser que eu mande você metê-la em alguém. Entendeu?
Marcus concordou com a cabeça, e Festus deu um tapinha no ombro dele.
- Muito bem.
- O amo está chegando! - anunciou uma voz.
Festus e os outros formaram duas fileiras rapidamente, uma de cada lado da entrada da casa. Marcus foi para o fim de uma delas e ficou ao lado de Festus, olhando
para a frente assim como os outros. O barulho das botas nos azulejos ecoava nas paredes enquanto Caesar chegava apressado, com os braços ao redor dos ombros da sobrinha.
Atrás deles estava Lupus, com a bolsa contendo suas tábulas de anotações pendurada no ombro. Marcus arriscou um olhar de relance e viu que seu senhor vestia uma
túnica perfeitamente branca com uma faixa roxa e larga cobrindo uma das pontas dela. Suas botas eram de couro vermelho, com franjas balançando no topo. O cabelo
dele estava bem penteado, com caracóis sobre a testa. Marcus não pôde deixar de ficar espantado com a aparência dele. Era como se Caesar quisesse impressionar o
público. O cônsul parou antes de chegar até a comitiva e se virou para Portia.
- Como estou, minha querida?
Ela sorriu, encantada.
- Parecendo um cônsul da cabeça aos pés, tio. Estou orgulhosa de você.
Marcus entendeu o que Portia quis dizer quando ela afirmou que sabia entrar no jogo do tio.
- E eu de você. - O rosto de Caesar irradiou alegria, e ele se inclinou para beijá-la na testa. Depois virou-se de frente para os homens que o aguardavam e imediatamente
endureceu sua expressão. - Como vocês sabem, eu tenho meus inimigos, mas até agora eles tiveram a sensatez de não encostar o dedo em um cônsul de Roma. Talvez isso
mude. Esta manhã, minha intenção é propor uma nova lei no Senado. Os membros do Senado vão se dividir, e é possível que haja algum tumulto. Apesar de meus inimigos
serem covardes, eu não o sou. É importante que o povo de Roma veja que eu não tenho medo, portanto, vocês ficarão posicionados três metros atrás de mim o tempo inteiro.
Só virão me ajudar se eu pedir. E não vão erguer sequer um dedo contra as pessoas, a não ser que eu ordene isso. Não importa o quanto a multidão se agitar. Está
claro?
- Sim, Caesar! - responderam os homens em uníssono, incluindo Marcus.
Caesar percorreu cada fileira, examinando os homens. Em seguida, parou e apontou a cabeça em direção à porta.
- Leve-os lá para fora, Festus. Eu me junto a vocês em um minuto. Vá também com eles, Lupus.
Marcus virou-se para seguir os outros, mas a mão de alguém pressionou seu ombro.
- Você não, garoto. Espere mais atrás.
Marcus deu um passo para o lado enquanto os outros desciam a escada até chegarem à rua. Seu coração estava inquieto. O que seu senhor queria? Caesar observou-os
ir embora e, após o último sair, virou-se para a sobrinha.
- Portia, pode ir.
- Sim, tio. - Ela concordou com a cabeça, mas, antes de sair em direção aos fundos da casa, lançou um rápido olhar para Marcus e ergueu a sobrancelha.
Caesar encarou Marcus por tempo suficiente para que o garoto ficasse constrangido com o olhar penetrante. Ele olhou para baixo quando um sorriso de satisfação surgiu
nos lábios do cônsul.
- Para todas as pessoas, exceto eu, Festus e você, eu o trouxe para Roma para você proteger minha sobrinha. Você cumprirá esse trabalho todos os dias. Entretanto,
como já mencionei, sua presença aqui também terá outras utilidades para mim. Por isso quero que venha comigo ao Senado hoje, Marcus. É importante conhecer os rostos
dos homens que se dizem meus amigos, assim como os dos meus inimigos. - Ele fez uma pausa. - Você é inteligente e rápido. Também possui uma coragem bruta. Minha
intenção é transformá-lo em um grande gladiador em uma das minhas escolas em Campânia assim que terminar o seu trabalho aqui em Roma.
Marcus não conseguiu disfarçar o desespero. Ele se recompôs rapidamente, mas era tarde demais. Caesar franziu a testa.
- Essa recompensa não agrada você?
Tirando ser escravo, tornar-se gladiador era o que Marcus menos desejaria. No entanto, mesmo tendo isso em mente, ao perceber que seria burrice ofender Caesar, ele
fez sim com a cabeça e respondeu:
- Seria uma honra, amo.
- Claro que seria. Mas você vai ficar aqui por um tempo ainda. Preste bastante atenção no Senado hoje. Você deve ficar assistindo a tudo no meio do público. E coloque
o capuz de seu manto. Com certeza alguns agentes dos meus inimigos nos observarão quando formos embora. Eles ficarão de olho em mim e na minha comitiva. Eles não
prestariam atenção a um garoto, mas não quero arriscar que eles vejam seu rosto e depois sejam capazes de identificá-lo. Digo isso para a sua segurança e pelos meus
próprios interesses, então, é o que quero que faça.
- Sim, amo.
Contendo o desgosto, Marcus puxou o capuz para cima da cabeça, o suficiente para cobrir o rosto. Seu nariz enrugou ao sentir o cheiro azedo que encheu suas narinas.
Caesar fez que sim com a cabeça, satisfeito.
- Ótimo. Vamos.
Seguindo seu senhor para fora da entrada, Marcus apressou-se para assumir o lugar atrás dos outros guarda-costas, que estavam prontos para partir. Uma pequena multidão
reunira-se para ver o cônsul sair de casa, e as pessoas ovacionaram Caesar quando ele apareceu, sorrindo afetuosamente para elas e erguendo a mão em saudação antes
de seguir pela rua em ritmo tranquilo. Como quase todas as ruas de Subura, aquela era estreita e parecia se espremer entre os cortiços desgastados que apareciam
no caminho. A maioria tinha dois ou três andares, mas alguns, até o dobro disso. Marcus não pôde deixar de notar os prédios mais altos e sentir certa tensão. Alguns
já tinham grandes rachaduras de cima a baixo nas paredes. Parecia que desabariam a qualquer momento.
Ao passar pela rua, o cônsul cumprimentava os donos dos pequenos negócios que ladeavam o caminho. Lupus começou a caminhar perto de Marcus e apontou a cabeça em
direção ao amo dos dois.
- Ele faz o maior teatro, não é?
Marcus viu açougueiros pararem o trabalho e acenarem os cutelos ensanguentados para cumprimentar Caesar. Pisoadores paravam de pisar nas roupas dos tanques e ovacionavam.
Um fedor acre chegou ao nariz de Marcus, fazendo-o enrugar o rosto.
- Que cheiro é esse?
- Cheiro? - Lupus olhou para os pisoadores. - Ah, esse cheiro. É urina.
- Urina? Não me diga que eles estão pisando em urina.
- Estão sim. É a melhor maneira de limpar as roupas - explicou Lupus com a voz neutra. Marcus balançou a cabeça, perplexo. Mais à frente, um padeiro corria para
oferecer ao senhor deles uma rodela de pão. Caesar aceitou o presente graciosamente e o passou para Marcus.
- Tome. Pode comer se quiser.
Marcus curvou a cabeça em agradecimento e partiu o pão em dois, entregando metade para Lupus. Ele deu uma mordida na fatia, saboreando o gosto da massa.
A notícia de que Caesar estava a caminho do Senado espalhou-se pelas ruas, e cada vez mais pessoas acompanhavam a comitiva. Marcus chegou a Roma depois de escurecer,
e aquela era a primeira vez que pisava no centro. A única cidade que tinha visto antes foi Nidri, um pacato porto de pesca que mais parecia uma vila. Agora, seus
sentidos eram atacados por todas as direções. Além do fedor intenso da grande cidade, havia os gritos dos vendedores ambulantes e da aglomeração nas favelas dos
dois lados da rua. Também havia o lado fascinante: a grande variedade de roupas das diferentes raças misturando-se. Perto da casa de Caesar havia uma sinagoga com
alguns rabinos na entrada, discutindo em uma língua estranha. O número de lojas aumentava à medida que a crescente comitiva se aproximava do Fórum no centro. Vendiam-se
produtos de todos os tipos, de montes de frutas e grãos a fardos de tecidos de seda e joias.
Marcus também viu cenas que o deixaram horrorizado, como os rostos esqueléticos e encardidos de crianças esfomeadas, que se agarravam às roupas esfarrapadas de mães
descalças, e os cadáveres espalhados pelas ruas como se fossem pilhas de pano jogadas no lixo. Alguns corpos estavam encostados contra a argamassa rachada das paredes,
onde tinham morrido, ou largados em becos escuros para não atrapalhar a passagem dos vivos. Ficariam lá até algum grupo de trabalhadores os levar para uma das valas
comunais localizadas além dos muros da cidade.
Enquanto passava por uma pilha de estrume, que continha lixo além da lama e das fezes, Marcus escutou um choro. Ao se virar na direção do barulho, ele diminuiu o
passo e avistou um bebê abandonado, contorcendo-se lamentavelmente no meio da imundície. Sentiu náuseas ao ver aquilo e teria parado se não fosse pela multidão atrás
dele, obrigando-o a seguir em frente.
Para alívio de Marcus, não demorou para que Caesar e seus seguidores saíssem de Subura e chegassem ao Fórum. Mais uma vez, Marcus ficou impressionado com a grandiosidade
ao redor. Os prédios públicos da grande cidade espalhavam-se ao longo da Via Sacra, a principal rota que levava ao centro de Roma. No lado oposto do Fórum, estava
o Monte Palatino, onde se encontravam as casas das famílias romanas mais ricas, todas com vista para a cidade. Para Marcus, elas mais pareciam palácios com suas
paredes reluzentes de argamassa, tetos altos com telhas e jardins em vários níveis.
Caesar virou à direita, em direção ao enorme Templo de Júpiter e ao amontoado de prédios na base do Monte Capitolino. Marcus lembrou-se de quando Titus lhe disse
que era lá onde o Senado se reunia para debater as leis que governariam Roma. Diante deles estava o grande mercado onde se vendiam os melhores produtos do Império.
Lá também ficavam os escritórios de banqueiros e mercadores. Marcus queria mais tempo para assimilar aquela cena imponente, mas precisava seguir andando. Teve dificuldade
em manter sua posição no meio da multidão que agora seguia Caesar em direção ao local de reunião do Senado. Do meio da aglomeração que se espalhava pelo Fórum, Marcus
conseguiu avistar outros senadores com togas elegantes e suas próprias comitivas, também tentando passar no meio do Fórum lotado.
- Que porcaria! - grunhiu um dos homens de Festus. - Onde estão os lictores hoje? Por que eles não estão aqui para abrir caminho para a gente?
- Porque Caesar os dispensou - respondeu Festus amarguradamente. - Ele não queria que os lictores empurrassem a multidão para os lados, isso chatearia as pessoas.
Marcus foi mais à frente até ficar ao lado de Festus.
- O que são lictores?
- São os guarda-costas oficiais do cônsul. Eles carregam um feixe de varas amarrado a um machado. O dever deles é abrir caminho para os cônsules.
- Então por que eles não estão fazendo o trabalho deles? - prosseguiu o outro homem. - Com certeza o outro cônsul vai fazer seus lictores abrirem o caminho para
ele!
- E é por isso que ele não é o queridinho das massas - explicou Festus. - Não como Caesar. Nosso senhor sabe muito bem cativar as pessoas. Agora cale a boca e pare
de reclamar. - Festus ergueu a voz para que o resto de seus homens o escutasse por cima do burburinho da multidão. - Vocês todos, fiquem alertas para qualquer perigo!
Marcus tentou fazer isso, mas era pequeno demais para ver por cima da massa de gente que o cercava.
Uma multidão densa aglomerara-se na parte externa da Casa do Senado, e os oficiais encontravam dificuldade para liberar os degraus para passagem dos senadores. Quando
uns subiam a escadaria, a multidão comemorava. Outros eram recebidos com silêncio ou vaias.
- O que está acontecendo? - perguntou Marcus para Lupus.
- Bem, existem dois tipos de senadores. Aqueles que querem manter o poder e a riqueza nas mãos dos aristocratas, e os homens como Caesar, que querem ajudar as pessoas
comuns. São estes que o povo está recebendo bem.
Marcus não pôde deixar de se perguntar a respeito da vontade de seu senhor de defender os pobres de Roma. Se ele queria ajudá-los, por que não ajudar os escravos
também?
A comitiva de Caesar prosseguiu em direção à Casa do Senado e finalmente se deparou com o caminho livre ao chegar à base da escada. Caesar subiu os primeiros degraus
e se virou para a multidão. Foi aclamado enquanto erguia a mão direita e sorria, deleitando-se com a ovação antes de descer em direção a Festus. Inclinando-se para
perto do criado, ele deu suas ordens:
- Você e seus homens fiquem aqui. Lupus e Marcus, venham comigo até a entrada e depois encontrem um bom lugar para assistir ao debate. Lupus, explique para Marcus
o procedimento. Quero que ele saiba exatamente quem é quem no elenco de vilões. - Caesar olhou para baixo e piscou para Marcus. Em seguida, virou-se e subiu os degraus
da entrada da Casa do Senado. Lupus aguardou um instante antes de gesticular para que Marcus o acompanhasse, e eles foram para a beirada da escada. Um dos oficiais
os deteve.
- E aonde vocês acham que vão?
- Estamos com o cônsul. Sou o escriba dele. Ele quer que a gente veja o debate.
O oficial inclinou-se para a frente a fim de inspecionar a placa de latão ao redor do pescoço de Lupus, conferindo quem era o dono dele, em seguida, apontou o dedão
para a escada.
- Podem ir até as galerias públicas, mas só até lá. Entenderam?
Lupus assentiu com a cabeça e guiou Marcus pela escada até chegarem à colunata que cercava a câmara de debates. As cortinas das janelas altas tinham sido abertas,
e feixes de luz clareavam as fileiras de bancos de pedra que ficavam de frente para as duas cadeiras adornadas, onde os cônsules se sentavam. Uma das cadeiras já
estava ocupada por um homem grande e de rosto redondo, com cabelo ralo e preto.
- Ah. - Os lábios de Lupus abriram um sorriso de deleite. - O cônsul Bibulus já chegou. Aposto que ele já deve estar impaciente de tanto esperar.
Marcus apoiou-se na grade de madeira e deu uma olhada na câmara. Viu Caesar abrindo caminho no meio dos senadores, apertando mãos e trocando cumprimentos. No entanto,
muitos olhavam para Caesar friamente, e Marcus supôs que aqueles eram os inimigos que ele tinha mencionado, os rostos que Marcus deveria memorizar. Um frio percorreu
sua espinha ao pensar que aqueles senadores foram inimigos mordazes de seu verdadeiro pai, Spartacus. Foram exatamente eles que ordenaram a crucificação dos prisioneiros
após a última batalha de Spartacus. Foram seis mil, dissera Brixus para ele, espalhados pela Via Ápia, de Roma a Cápua.
Caesar atravessou o espaço que havia entre os bancos dos senadores e as cadeiras dos cônsules. Ele cumprimentou Bibulus com a cabeça enquanto se acomodava. Agora
que os dois cônsules estavam presentes, o restante dos senadores sentou-se em seus lugares. Após o último senador chegar, a multidão finalmente pôde entrar. Os oficiais
formaram uma fila na entrada para manter as pessoas fora da câmara enquanto elas subiam as escadas e enchiam as galerias públicas que ficavam de frente para o debate.
- E o que acontece agora? - perguntou Marcus enquanto as pessoas aglomeravam-se ao seu redor, tentando ver melhor os senadores.
- Agora? - Lupus olhou para ele com um sorriso sombrio. - Agora descobrimos quem está do lado de Caesar e quem está contra ele.
4
Marcus inclinou-se para a frente e observou atentamente o escriba principal do Senado limpar a garganta e começar a ler a tábula de cera em suas mãos.
- O primeiro e único item na agenda de hoje foi proposto pelo cônsul Gaius Julius Caesar. - Ele saudou Caesar abaixando a cabeça, voltou para a escrivaninha e pegou
o estilo para gravar comentários importantes do debate para o arquivo oficial do Senado Romano.
Um silêncio cheio de expectativa espalhou-se pela casa. Marcus olhou para seu senhor. Caesar ficou parado por um instante, aproveitando a tensão do público, e, em
seguida, levantou-se lentamente e respirou fundo.
- Como todo cidadão sabe, estamos vivendo uma época de grande prosperidade. A paz voltou a Roma e chegou a hora de honrarmos os enormes sacrifícios de nossos cidadãos
que lutaram pela glória de Roma. Os soldados do general Pompeius, que derrotaram todos os inimigos enviados contra eles...
Os homens que mataram meu pai e aqueles que lutaram ao lado dele para conquistarem a liberdade, pensou Marcus. Não sabia bem como reagir ao que estava escutando.
- Agora eles voltaram e estão esperando que Roma demonstre sua gratidão. - Caesar apontou para os rostos que olhavam das janelas mais acima. - Tenho certeza de que
aqui há muitos ex-soldados do general Pompeius. A eles eu agradeço em nome de todos os cidadãos de Roma. A eles eu digo que é mais do que correto Roma arcar com
os custos de provê-los com assentamentos de terra, algo que merecem imensamente.
Uma série de gritos de aprovação tomou conta do público da colunata e depois se espalhou para dentro do Fórum. Caesar esperou o silêncio voltar e continuou:
- Mas hoje há senadores aqui que se opõem a essa justa recompensa pelo corajoso serviço dos nossos soldados. Não vou dizer quem são, pois vocês descobrirão isso
quando eles se manifestarem contra minha proposta. Eles terão de explicar aos nossos soldados por que não são a favor dela...
Caesar observou ao redor da câmara e depois se sentou abruptamente. No mesmo instante, um senador levantou-se e ergueu a mão para chamar a atenção.
- Eu apoio a proposta do cônsul.
- Que surpresa - disse Lupus com uma risadinha.
- Quem é ele? - perguntou Marcus. Ele olhou para a pessoa alta, de aparência distinta, que continuava manifestando seu apoio ao reassentamento dos veteranos de Pompeius.
- Aquele é Marcus Licinius Crassus. Ele era o homem mais rico de Roma. Fez fortuna vendendo e comprando contratos de cobrança de impostos. Mas depois o general Pompeius
voltou do leste cheio de tesouros que tinha saqueado durante as conquistas. Eles eram inimigos implacáveis.
Marcus franziu a testa. Tinha depositado suas esperanças no general Pompeius. Se Pompeius tinha inimigos, ele precisava descobrir mais sobre isso.
- E por que Crassus está apoiando Pompeius e seus soldados agora?
Lupus sorriu.
- Pode ter certeza de que não é por bondade do coração. Claro que ele fez algum acordo com Pompeius e Caesar. Acho que ele está de olho nos contratos de cobrança
de impostos das províncias que Pompeius criou.
- Entendi. - Por mais um instante, Marcus observou Crassus enumerar as razões pelas quais o Senado deveria votar a favor da nova lei. Em seguida, o garoto virou-se
para Lupus novamente.
- O general Pompeius está aqui?
- Desta vez sim. Normalmente ele não se dá ao trabalho de comparecer. A verdade é que ele é bem melhor como soldado do que como político. O primeiro discurso dele
no Senado foi um desastre, então ele só aparece quando é importante para ele ser visto em público.
Marcus sentiu suas esperanças se renovarem e perguntou entusiasmadamente:
- Onde ele está?
Lupus apontou para um homem grande sentado na fileira da frente. Tinha cabelo loiro, com um ligeiro topete cuidadosamente arrumado sobre a testa, e usava aros dourados
ao redor de seus pulsos peludos e de seu grosso pescoço. Estava recostado, de braços cruzados, e concordava com a cabeça a cada argumento que Crassus mencionava.
Ao redor dele havia um grupo de senadores que o observava atentamente e que complementava os gestos de aprovação do general.
Marcus encarou o famoso general, e seu entusiasmo aumentou. Aquele era o homem por quem Titus havia lutado, cuja vida ele salvara na batalha final contra Spartacus
e seu exército rebelde. Era aquele que poderia ajudar Marcus a libertar sua mãe, o homem que ele queria encontrar quando decidiu ir para Roma. Talvez Portia tivesse
razão - talvez ele realmente devesse sentir gratidão por trabalhar na casa de Caesar. Sem isso, ele nunca teria sabido como achar o general Pompeius.
E agora ele devia encontrar alguma maneira de se aproximar de Pompeius e falar com ele. Se conseguisse fazer isso, Marcus tinha certeza de que o general acabaria
com o sofrimento de sua mãe. Em sua mente, surgiram imagens dela acorrentada a outros escravos. Ele sabia que ela estava sendo obrigada a trabalhar na fazenda de
Decimus, o cobrador de impostos responsável por todo o sofrimento pelo qual Marcus tinha passado desde o dia em que os homens dele apareceram na fazenda de Titus.
Marcus pensou em Titus morrendo nas mãos do capanga de Decimus, Thermon. Em seguida, imaginou o rosto de sua mãe, cansado e com lágrimas. Sentiu um aperto na garganta
e os olhos arderem à medida que suas lágrimas surgiam.
Enxugou-as antes que Lupus percebesse e ficou com raiva de si mesmo. Tinha de ser forte, caso contrário nunca alcançaria a liberdade para sua mãe e para si. Precisava
se lembrar do treinamento de gladiador, durante o qual aprendera a suportar o sofrimento e a aguentar a dor e a injustiça sem reclamar. Esforçando-se, ele conseguiu
afastar as imagens da mãe da cabeça e se concentrou no debate. Precisava pensar em como aquilo ajudaria sua causa pessoal.
Crassus terminou o discurso, e a maioria dos senadores aplaudiu moderadamente, enquanto o público deu gritos de aprovação. Um dos senadores perto de Pompeius levantou-se
para oferecer seu apoio e depois iniciou um longo discurso, elogiando Pompeius. O grande general recebeu as palavras com um modesto aceno de cabeça. Quando o senador
voltou a se sentar, outra pessoa levantou-se. Completamente diferente dos outros senadores, o homem alto e magro vestia uma toga bege e lisa por cima de uma túnica
marrom. Estava com sandálias sem enfeites e cabelo despenteado. O burburinho do público esvaeceu.
- Lá vem encrenca - advertiu Lupus. - Aquele é Cato, um dos inimigos mais implacáveis do nosso dono. E, por acaso, ele é sogro do outro cônsul, Bibulus.
Cato deu uma olhada gélida nos outros senadores e no público antes de fixar os olhos escuros e penetrantes em Caesar.
- Essa medida - iniciou ele com tom de voz frio e insolente - não passa de uma tentativa de Caesar e de seu ventríloquo, Gnaeus Pompeius, de ganhar o apoio do povo
para obter glória política. O fato de o senador Crassus ter inesperadamente demonstrado o seu apoio aos dois indica a existência de uma conspiração contra os membros
desta casa e o povo de Roma!
- Ai - murmurou Lupus. - Caesar não vai gostar nada disso.
Marcus olhou para seu senhor e viu que ele estava parado como uma estátua, com a expressão calma e compenetrada. Se estava chateado ou furioso com a acusação, ninguém
seria capaz de perceber. Marcus sentiu a admiração que tinha por seu senhor crescer.
- A terra que pertence à República é de todas as pessoas! - vociferou Cato. - Não é propriedade de um general para que ele possa dividi-la entre seus soldados, mesmo
se eles merecerem.
Os espectadores perceberam o tom sarcástico, e a multidão perto das janelas soltou gritos raivosos.
- Aristocrata imundo! - gritou uma voz perto de Marcus.
- Eles querem é ficar com a terra! - gritou outra pessoa.
Cato cruzou os braços e esperou os gritos cessarem antes de continuar:
- Por mais que haja méritos em recompensar os nossos soldados, essa medida é uma adaga apontada para o coração de Roma. Caesar e seus aliados querem mais poder.
Cabe a nós, pais da nação. - Cato abriu bem os braços para se referir aos outros senadores. - Cabe a nós enfrentar esses homens, essas pessoas poderosas que conspiram
contra nós no meio das sombras.
Um homem mais velho ao lado dele bateu palmas, aplaudindo fortemente, e outros senadores fizeram o mesmo.
- Aquele é Cicero - explicou Lupus. - Ele é um dos vigaristas mais astutos de Roma. Ele vai argumentar que branco é preto e vai fazer você acreditar nisso, até o
momento em que você descobre a verdade e cai de cara no chão. É bom ficar de olho nele. Pode ter certeza de que qualquer acordo desonesto e secreto que for negociado
em Roma vai contar com a presença dele.
Cato prosseguiu, mas Marcus não pôde deixar de pensar na rivalidade mordaz entre os membros do Senado. Nunca pensara em política antes - em sua vida antiga, Roma
parecia muito distante. Titus sempre desdenhou os políticos e dizia que aqueles homens nunca seriam páreo para o general que marchara com seus exércitos por boa
parte do mundo conhecido. Do pouco que tinha ouvido de Titus enquanto estava crescendo e de outros que encontrara desde que chegara como escravo, achava que o Senado
seria um local onde as mentes mais inteligentes da República se encontrariam para discutir e aprovar novas leis. No entanto, agora que estava na frente daqueles
senadores, o que mais impressionava Marcus era o fato de que eles pareciam se odiar.
Cato continuou falando sem parar. O debate passou da primeira hora, da segunda, chegando até o meio-dia. Eram acusações e insultos intermináveis, e depois ele começou
a divagar com um relato sobre a longa história da resistente tirania que já durava centenas de anos, desde a época em que o povo romano se revoltou contra o último
rei, Tarquinius, o Soberbo, e a República foi instaurada. Passado um bom tempo, as pessoas antes perto das janelas começaram a ir embora. Marcus sentiu o pé doer
e se inclinou para a frente, apoiando o peso na grade de madeira. Tinha parado de escutar Cato e estava entediado. Não era o único. Nos bancos dos senadores, vários
membros mais velhos cochilavam, com as cabeças caídas para a frente. Os roncos de um velho magricela que estava afundado em seu banco ressoavam com nitidez enquanto
Cato prosseguia monotonamente. Marcus percebeu que a paciência demonstrada por Caesar antes começava a desaparecer. Agora ele estava fulminando Cato com o olhar.
- É exatamente o que o nosso senhor esperava - disse Lupus. - Cato está querendo esgotar o tempo da proposta.
- Como assim? - perguntou Marcus.
- Se ele continuar falando até o sol se pôr, o escriba vai ter que deixar o debate para amanhã. Se ele fizer isso de novo amanhã, a medida vai ser adiada mais uma
vez.
- Ele pode fazer isso?
- São as regras. - Lupus deu de ombros. - Está vendo como a política funciona?
- Mas com certeza o nosso senhor não vai deixar ele simplesmente fazer isso.
- Não, não vai. Mas ele também não quer ser visto desobedecendo às regras para fazer a medida passar. Não se ele puder evitar.
Marcus olhou para os dois cônsules sentados em suas cadeiras especiais. Caesar franzia a testa, e seus dedos tamborilavam no braço da cadeira. Bibulus estava sentado
ao lado dele, com um leve sorriso no rosto enquanto unia as mãos satisfeito.
Uma hora depois do meio-dia, Cato parou momentaneamente para se sentar e pediu que o escriba pegasse uma bebida para ele. De imediato, Caesar levantou-se.
- Agradeço ao senador Cato pela sua contribuição ao debate. Tenho certeza de que todos adoraram a aula de História.
Vários senadores riram. Cato levantou-se, balançando a cabeça enquanto erguia os braços para chamar a atenção.
- Eu não terminei meu discurso!
- Terminou sim - insistiu Caesar novamente. - Terminou quando se sentou.
- Era uma mera pausa. Eu não terminei.
- Você já falou mais do que o suficiente, testando os limites da nossa paciência - respondeu Caesar firmemente.
- Só vou ceder o meu direito de falar quando tiver terminado - contestou Cato.
- Você já abusou do seu direito de falar - argumentou Caesar. - Você deixou bem claro para todos que é contra a minha medida. Agora é a vez de outra pessoa.
- Quem decide isso sou eu! Não vou ceder.
- Assim está se recusando a respeitar as regras do Senado. - Caesar sentou-se e estalou os dedos em direção aos lictores que estavam atrás das cadeiras dos cônsules.
- Tirem esse homem da Casa do Senado!
Vários senadores ficaram boquiabertos e começaram a murmurar. Após uma breve hesitação, o líder dos lictores gesticulou para seus homens, e eles andaram a grandes
passos entre os bancos de madeira até alcançarem e cercarem Cato, que cruzou os braços e ficou parado, desafiadoramente. Por ter se recusado a se mover, dois lictores
o seguraram pelos braços e o arrastaram para o corredor.
- Vocês não podem fazer isso! - protestou Bibulus vigorosamente. - Isso é um absurdo!
- E as ações de Cato são contra as regras - respondeu Caesar. - Ele expôs sua opinião e agora está impedindo que o debate livre e justo tenha continuidade. Vamos
prosseguir sem ele.
Perplexo, Marcus observou Cato ser arrastado para fora da câmara e empurrado em direção aos degraus externos. O senador tentou entrar novamente, mas os lictores
barraram seu caminho com firmeza. Dentro da câmara, Bibulus ficou de pé, com o rosto quase roxo de raiva.
- Isso é um escândalo! Um absurdo! É tirania!
- Não, não é - respondeu Caesar calmamente. - Se fosse, com certeza você já estaria morto.
- Atreve-se a me ameaçar? A ameaçar um cônsul de Roma?
- Acalme-se, caro Bibulus, antes que termine prejudicando a si mesmo. Vamos continuar o debate.
- Não! Eu me recuso. - Bibulus levantou seu pesado corpo da cadeira com dificuldade. De cabeça erguida, caminhou a passos largos até a entrada da câmara. - Não vou
concordar com essa tentativa de abuso do poder do Senado. Além disso, vetarei qualquer tentativa de votação dessa medida. - Ele parou e olhou os outros senadores.
- Vocês que valorizam a própria honra, peço que se juntem a mim e ao senador Cato.
Houve uma breve pausa enquanto os senadores se entreolhavam, inibidos. Cicero levantou-se e foi até Bibulus. Mais um senador juntou-se a ele, e depois mais um, e
mais outro, até que, pelas estimativas de Marcus, cerca de um terço do Senado ficou contra Caesar. Enquanto saíam da câmara, Caesar levantou-se.
- Os assuntos de hoje estão encerrados. O debate será retomado amanhã, no Fórum, quando deixarei que o povo decida a questão. - Enquanto concluía, Caesar olhou para
onde Marcus e Lupus estavam. Acenou com a cabeça para Lupus e se virou para guiar o resto dos senadores para fora da câmara.
- Vamos! - Lupus agarrou o braço de Marcus.
- O que foi?
- É uma pequena surpresa que Caesar planejou para o nosso amigo Bibulus mais cedo. Vai ser bem-merecida...
Eles abriram caminho no meio do que restava da multidão e desceram correndo os degraus da frente da Casa do Senado, indo até onde Festus estava aguardando com os
demais guarda-costas de Caesar. Acima deles, senadores das duas facções conversavam na escada. Marcus viu Cato e Bibulus em um protesto inflamado para animar seus
defensores.
Lupus parou na frente de Festus.
- Nosso senhor está pronto para a surpresa.
- Ah, que ótimo! - Festus esfregou as mãos e se virou para um de seus homens. - Tudo pronto?
- Sim, senhor. - O homem deu uma risadinha enquanto inclinava a cabeça em direção a algo atrás dele que Marcus não conseguia enxergar. - Ele vai receber o maior
susto do mundo.
- Então é o seguinte, vamos atacar no momento em que Bibulus descer os degraus. Garotos, fiquem perto de mim. E tomem cuidado. Talvez haja confusão.
- Sim, senhor - respondeu Marcus. - Mas não se preocupe, eu sei cuidar de mim.
- Já percebi isso. Então cuide de Lupus por mim.
Eles aguardaram por um instante até alguém gritar do meio da multidão no Fórum:
- Lá vem ele!
Caesar apareceu à luz da tarde, ladeado por Pompeius e Crassus. Ele apontou o dedo para Cato acusadoramente e exclamou:
- Hoje você se opôs à vontade do povo, meu amigo, mas não vai conseguir impedir que eles recebam suas merecidas recompensas para sempre.
- Veremos! - gritou Cato. - Vamos, Bibulus, o ar aqui está fétido demais.
Virando-se, Cato começou a descer os degraus. Bibulus e o restante da facção apressaram-se atrás dele.
- Lá vamos nós, rapazes! - Festus acenou na direção deles.
Os homens lançaram-se para a frente, gritando ameaças e insultos enquanto subiam os degraus rapidamente. Marcus fez o possível para ficar perto de Lupus e dos homens,
segurando a base de sua clava com firmeza. Os olhos do escriba arregalaram-se de medo, e ele pressionou a bolsa ao lado do corpo enquanto o grupo era golpeado pela
multidão. Marcus enxergou Cato mais à frente. Um medo momentâneo surgiu no rosto do senador. Em seguida, ele parou, endireitou a postura e fulminou o bando de homens
com o olhar. Bibulus e os outros pararam abruptamente.
- Fora Cato! - berrou Festus. - Fora Bibulus!
Os homens de Caesar cercaram os senadores e os empurraram. Os lictores que protegiam Bibulus correram para a frente a fim de acabar com o tumulto.
- Agora! - gritou Festus.
Marcus viu o homem com quem Festus estava falando ir para a frente com um grande balde nas mãos. Ele abriu caminho até chegar ao lado de Bibulus e virou o balde
em cima da cabeça do cônsul. Uma água de esgoto lodosa e encaroçada escorreu por cima dele, cobrindo seu rosto e manchando sua toga branca. O ar encheu-se com um
cheiro podre, e a multidão ao redor de Bibulus se afastou.
Festus e seus homens caíram na gargalhada enquanto se distanciavam, assim como a multidão no Fórum ao ver o que tinha acontecido com o azarado cônsul. Até Lupus
esqueceu o próprio medo e começou a sorrir quando viu Bibulus parado, em estado de choque, antes de tentar limpar o excremento dos olhos.
- Ora, ora! - exclamou Caesar enquanto descia a escada. - Você parece estar atolado até o pescoço em algo cujo nome não posso pronunciar, meu caro amigo.
Bibulus virou-se para ele, apontando o dedo.
- Isso é monstruoso! É um absurdo! E você está por trás disso, seu tirano!
- Eu? - Caesar pôs a mão no próprio peito e fez o melhor para parecer inocente. - Eu nunca pensaria em fazer algo tão vil com uma pessoa de importância tão grande
para Roma, e é fácil ver o quanto você é grande. - Caesar acenou com a cabeça para a enorme barriga de Bibulus.
Os senadores atrás dele começaram a rir junto com a multidão. Morrendo de raiva devido à humilhação, Bibulus avançou pela escada, acompanhado de Cato e dos outros.
A multidão saiu do caminho às pressas, zombando enquanto eles atravessavam o Fórum.
- Pronto. - Caesar acenou com a cabeça, satisfeito, e trocou sorrisos com Pompeius, Crassus e seus amigos.
Marcus gostou do espetáculo humilhante tanto quanto o restante da comitiva de Caesar, mas seu sorriso congelou no instante em que fixou o olhar em um dos que estavam
perto de Crassus - um homem alto, careca, de rosto fino. Exibia um grande sorriso no rosto enquanto parabenizava Caesar. Marcus reconheceu-o de imediato apesar de
os dois terem se encontrado apenas uma vez e bem rapidamente. O coração dele foi tomado por um ódio gélido, e ele apertou a base da clava com mais força.
Caesar voltou sua atenção para outra pessoa, e o homem afastou-se, correndo o olhar pela multidão. Seus olhos passaram por Marcus e pararam em Crassus, que estava
dizendo algo.
Marcus continuou encarando-o, com o corpo tenso, lembrando-se da última vez em que o vira. Quando ele e sua mãe estavam na prisão de escravos de uma pequena cidade
grega, na véspera de serem leiloados, aquele homem apareceu para jogar na cara deles o futuro miserável que os aguardava. Era Decimus, o cobrador de impostos, a
causa de todo o sofrimento deles. Atrás de Decimus, Marcus avistou mais um rosto conhecido e ficou sem ar. Thermon. O assassino de Titus.
5
Marcus mal dormiu naquela noite. Ficou apenas deitado em seu saco de dormir, encarando o pequeno feixe de luar que atravessava a janela lá no alto da parede. Lupus
estava deitado de costas, roncando. Corvus, encurvado sob seu cobertor desgastado, murmurando enquanto sonhava. Os três até então tinham conversado pouco sobre suas
origens. Na volta do Fórum, Lupus contou a Marcus que tinha nascido na casa de Caesar e que sempre fora um escravo. Corvus, por sua vez, contou que seus pais pobres
o venderam para um treinador de gladiadores quando ele ainda era bebê. No entanto, as esperanças do treinador desapareceram quando o garoto quebrou a perna, ficando
manco. O lanista decidiu vendê-lo para um comerciante de escravos que levou o menino para Roma, onde ele foi comprado por Flaccus para ser escravo de cozinha.
Marcus parou de pensar nos companheiros. Desde que vira Decimus e Thermon na parte externa da Casa do Senado, estava com a mente agitada. Por um tempo, seu plano
original de pedir ajuda a Pompeius foi substituído por um desejo intenso de vingança, com planos mirabolantes de encontrar e matar Decimus.
Aos poucos, a raiva foi passando, e Marcus começou a pensar nas implicações da presença do cobrador de impostos em Roma. Se ele apoiava Crassus, aliado de Caesar
e do general Pompeius, a situação ficava mais complicada. Como Marcus pediria ajuda a Pompeius para libertar sua mãe e punir Decimus por ter sequestrado os dois
se o cobrador de impostos era tão próximo do principal aliado de Pompeius? Este, por sua vez, nunca ficaria ao lado de Marcus contra um homem tão poderoso quanto
Crassus.
Mesmo desesperado com a reviravolta, Marcus percebeu que assim teria a oportunidade de saber onde sua mãe estava. Se descobrisse a localização das propriedades de
Decimus pela Grécia, poderia saber para onde sua mãe foi enviada. Naquele instante, Marcus compreendeu a fria realidade de sua situação. Ele não passava de um escravo.
De que adiantaria saber onde ela estava se não seria capaz de libertá-la? E se Pompeius claramente tinha assuntos mais importantes para resolver, por que ele ajudaria
Marcus?
O confronto na Casa do Senado tinha mostrado a Marcus o quanto as famílias poderosas de Roma discordavam entre si. Pelo que vira e escutara naquele dia, o Senado
se dividia devido à disputa dos políticos por poder e pela simpatia do povo. O que mais impressionou Marcus foi a maneira como Caesar abusou de seu poder, ofendendo
seus oponentes propositadamente. Estava claro que ele gostava de correr riscos. Apesar de Marcus entender pouco da política romana, ele achava que homens desse tipo
representavam um perigo para si mesmos e para seus apoiadores.
Marcus virou de lado e fechou os olhos. Por um momento, sua mente ficou devaneando e depois foi parar em Portia. Ela era o mais próximo que ele tinha de uma amizade
havia muito tempo. No início, ficara com medo das consequências de falar com ela a sós, mas, após assumir o trabalho de guarda-costas dela, não via a hora de passar
mais tempo a seu lado. No entanto, primeiro ele teria que completar seu treinamento. Imaginou se os treinos seriam tão difíceis e perigosos quanto na escola de gladiadores
de Porcino. Isto era óbvio: Marcus estava correndo bem mais perigo nas ruas da capital do que quando enfrentou lobos selvagens na arena.
Algumas horas mais tarde, depois de refletir milhares de vezes sobre a equação Crassus, Pompeius e Decimus, sem encontrar resposta, a mente esgotada de Marcus finalmente
se deixou envolver pelo sono.
- Acorde, Marcus, seu tolo preguiçoso! - gritou Festus com ele, pegando a vara e batendo a ponta no ombro dele. Marcus sentiu dor e fez careta ao pular para trás
estendendo a clava à sua frente, pronto para se defender do próximo golpe. Afinal, Festus treinava-o para sobreviver, e o garoto sabia que estava um pouco lento
naquela manhã, pois era difícil se concentrar depois de uma noite tão ruim. No entanto, tinha tomado uma decisão: ele se dedicaria a descobrir como Decimus se encaixava
no mundo de Caesar. Só depois decidiria como agir. Concentrou-se na luta mais uma vez, sabendo que precisava daquelas habilidades para proteger Portia.
- Isso. - Festus assentiu com a cabeça, contente. - Bem melhor, Marcus. Mas continue alerta. Você não pode reagir com lentidão nas ruas. Um ataque pode surgir a
qualquer momento, de qualquer direção. E, a não ser que seus olhos e ouvidos estejam afiadíssimos, será tarde demais para qualquer reação. - Antes de terminar a
frase, a vara dele atacava novamente. Dessa vez, Festus estava mirando o outro ombro de Marcus, fazendo um arco. Era um movimento óbvio, e Marcus moveu-se instintivamente
para bloqueá-lo. Assim que fez isso, Festus virou a vara para cima e a puxou para baixo, fazendo-a sibilar no ar em direção à cabeça de Marcus. O garoto caiu de
joelhos e ergueu a clava para que a vara batesse nela e não em sua cabeça. - Bom garoto - grunhiu Festus em aprovação enquanto se afastava, abaixando a vara. Mais
uma vez, estavam no pequeno pátio na lateral da casa, onde Festus treinava e exercitava seus homens. - Quando estiver na rua, essa clava vai ser a primeira arma
que você usará em uma briga. Qualquer lâmina que estiver carregando estará guardada no cinto ou escondida debaixo da túnica. Elas não vão servir para nada se você
for atacado repentinamente. Elas só servem quando você tiver tempo para sacá-las. Ou quando é você que está atacando ou fazendo uma emboscada. Entendeu?
- Sim, senhor.
- E, claro, existe mais de uma maneira de usar a clava - prosseguiu Festus enquanto levava a vara para cima da cabeça com velocidade. - Quem fica somente balançando
a clava de um lado para o outro são os idiotas ou os lutadores sem treinamento, e, nas ruas, não há diferença entre os dois.
Ele abaixou a vara e projetou a ponta para a frente, diminuindo a força do golpe no último segundo para que a ponta encostasse de leve no peito de Marcus. O jovem
não se contorceu nem piscou os olhos, exatamente como aprendera a agir. Uma vez, Taurus disse que um gladiador vence metade de uma batalha quando faz o oponente
desviar o olhar.
Festus deu uma risadinha de aprovação.
- Acho que o nosso senhor tinha razão. Você é um guerreiro por natureza. Com o treinamento certo, e se viver tempo suficiente, um dia você será um grande gladiador.
O sangue de Marcus congelou ao pensar naquilo. A última coisa que queria era ser forçado a lutar com outra pessoa até a morte só para entreter o povo sedento de
sangue. Dois escravos, um contra o outro, apenas para o prazer de seus senhores.
De repente, Marcus ficou inquieto ao sentir que havia outra pessoa o observando. Olhou ao redor brevemente, mas tudo o que viu foi a argamassa desgastada do muro
do pátio. Mesmo assim, continuou sentindo a presença de algo, de alguém, e um frio percorreu sua espinha. Talvez fosse a sombra de seu pai - seu verdadeiro pai,
Spartacus. O que ele acharia se soubesse que o filho estava trabalhando para um dos homens mais poderosos de Roma, alguém que representava tudo o que ele tentara
destruir?
Marcus percebeu o silêncio que tinha surgido e viu que Festus o estava encarando, irritado. Lembrou-se rapidamente das últimas palavras que o homem dissera e limpou
a garganta rapidamente.
- Sim, senhor. Espero que sim. Vou ser um campeão, e Caesar vai ter orgulho de ser meu dono.
A expressão de Festus relaxou, transformando-se em um sorriso.
- Esse é o espírito, garoto. Você é ambicioso. Gosto disso. Mas a ambição é apenas uma pequena parte da luta rumo à grandeza. Um gladiador precisa de força, disciplina
e habilidade, e tudo isso só surge com dedicação e treinamento intensos. Entendeu? Não existe atalho algum.
Marcus concordou balançando a cabeça, e Festus prosseguiu:
- Agora vamos voltar à aula. É importante que você saiba usar bem a clava antes de proteger a senhorita Portia. Se não conseguir protegê-la direito, pode ter certeza
de que o nosso senhor vai fazer você pagar por isso com a própria vida. Então, se for obrigado a lutar para salvá-la, é bom estar disposto a morrer durante a luta
também, pois dá no mesmo.
- Sim, mestre. - Marcus acenou com a cabeça solenemente. Teve uma breve visão em que ele próprio resgatava Portia mais uma vez, salvando-a de vultos que a atacavam.
Afastou a imagem da cabeça. - Entendi.
- Claro que só se deve lutar se for necessário - explicou Festus. - Escapar é sempre a primeira e melhor opção. Um guarda-costas não deve pensar como um soldado.
Se houver opção entre lutar e fugir, você sempre deve levar a pessoa que está protegendo para longe do perigo. Mas, se não puder evitar a briga, lembre-se de que,
além de poder brandir a clava, você pode atacar com a ponta dela. - Ele enfiou a ponta da vara violentamente no muro ao lado do ombro de Marcus, fazendo a superfície
rachar e pedaços de argamassa voarem. - Está vendo?
Marcus virou-se e viu a depressão no muro, as linhas se espalhando a partir do ponto de impacto em um padrão de teia. Era fácil imaginar os danos que aquele golpe
teria causado em alguém de carne e osso.
- Imagine se fosse o rosto de um homem ou o peito dele - disse Festus. - Se tiver a sorte de atingi-lo no olho, ele fica cego e pode até morrer. De qualquer modo,
ele estaria fora da briga. Um golpe forte com o lado da clava machuca músculos e pode até quebrar ossos, mas é uma técnica grosseira e não tão eficaz. Sempre tente
terminar a luta o mais rápido possível. Não vai ter nenhuma plateia para impressionar, nenhuma glória para ser conquistada. Apenas se livre rápido e leve a senhorita
Portia para um lugar seguro assim que possível.
Os dois treinaram com a clava durante o resto do dia, e Festus não tentou poupar Marcus de sentir dor. Marcus cerrava os dentes e continuava, melhorando a técnica
aos poucos até conseguir bloquear quase todos os golpes e prever os movimentos do treinador. Ao fim da tarde, o garoto até conseguiu atingir Festus, sem se preocupar
em usar menos energia em seus golpes nem em colocar menos força nas investidas com a ponta da clava.
Finalmente, Festus terminou a aula, massageando o punho onde tinha acabado de receber um violento golpe de Marcus. O treinador cumprimentou seu aluno de maneira
relutante.
- Você aprende rápido. Amanhã vamos partir para o bastão. Agora vá para a cozinha. E durma bem. Vamos começar assim que o sol raiar.
6
O sol já tinha se posto em Roma quando Marcus entrou em sua cela tateando e se jogou no saco de dormir, exausto. Tocou as áreas doloridas dos braços e do peito,
pontos em que Festus o golpeara durante o treinamento, e se contorceu. Ganharia muitos outros machucados nos dias seguintes. Deitou-se de costas e fechou os olhos.
Queria muito estar deitado em sua confortável cama na fazenda, com sua mãe e Titus dormindo no quarto ao lado. Livre para perambular pelo terreno do pai e para brincar
com Cerberus. Sentia falta até de ajudar o pastor a reunir os bodes e de depois se sentar e ficar observando os animais enquanto Aristides cantarolava embaixo de
uma oliveira. Na época, ele achava aquilo entediante, mas era tudo tão tranquilo. Ele nem tinha percebido o quanto era feliz.
O barulho de pés se arrastando e de murmúrios perturbaram seu sono, e seus olhos se abriram imediatamente. Sentando-se com o susto, avistou duas sombras passando
por seu saco de dormir e indo até o fundo da cela.
- Desculpe - murmurou Lupus. - Não queria acordá-lo.
Marcus apoiou-se no cotovelo e virou-se na direção deles após os dois garotos se deitarem em seus sacos de dormir.
- Vocês estão vindo dormir tarde. O que aconteceu?
- Flaccus, ele é o motivo - grunhiu Corvus. - Ele colocou nós dois para esfregar o chão do depósito. Os ratos tinham feito cocô por todo canto. Demorou um tempão
para limpar tudo.
- Por isso que também fui chamado - acrescentou Lupus.
- Mas você não, né, Marcus? - reclamou Corvus. - Pelo jeito você é especial. O senhor gosta de você. Que sorte.
Marcus ignorou o tom de desdém.
- Não deixo de ser um escravo... sou igual a você.
- Mas alguns escravos são diferentes, pelo jeito - prosseguiu Corvus. - De um lado, os garotos que ficam na cozinha, como eu e os escrivães como o Lupus aqui, e
do outro, os escravos como você.
- Por que sou diferente? - perguntou Marcus.
- Você está treinando para ser o protetor da senhorita Portia, não é?
- Sim, e daí?
- E daí que você recebe comida melhor que a nossa e é bem-visto pelo nosso dono. Para as pessoas como nós, é diferente. A gente trabalha na cozinha desde antes de
o sol nascer e até ele se pôr, e até mais tarde se o dono estiver recebendo convidados na casa. Duvido que ele saiba que eu existo, então nunca recebo nenhuma recompensa
ou gorjeta. É por isso que somos diferentes.
- Pelo que ouvi falar - interrompeu Lupus -, Caesar já determinou que você será um dos gladiadores dele quando tiver idade suficiente.
- Eu já sou um gladiador - respondeu Marcus.
- Você? - Corvus riu. - Você ainda é um garoto. Como pode ser um gladiador?
- Eu fui treinado em uma escola perto de Cápua.
- Já lutou alguma vez? - perguntou Lupus, sentando-se e abraçando os joelhos. - Tipo, na arena?
- Uma vez.
- Como foi?
Marcus ficou em silêncio por um instante enquanto se lembrava do momento em que entrou na pequena arena de Porcino e atravessou a areia para se apresentar aos romanos
endinheirados que pagaram por um espetáculo particular. Foram quatro pares de homens e dois garotos escolhidos para lutar até a morte. A memória tomou conta de sua
mente de maneira tão vívida que ele conseguiu se lembrar de seus braços e suas pernas trêmulos de pavor, da náusea na barriga e do suor na testa, apesar de o dia
estar frio. Acima, no camarote, os romanos riam, lanchavam e faziam apostas. Lembrou que Caesar estava ocupado conversando com alguém e que reagiu à saudação de
Marcus e seu oponente, Ferax, com um aceno de mão desdenhoso. Portia também estava lá, mas, diferente dos outros, parecia haver certa pena no olhar dela enquanto
assistia ao espetáculo. Depois, chegou o momento em que Marcus se virou para Ferax e se lembrou do brilho cruel e feroz que havia nos olhos do jovem gaulês quando
ele anunciou, com um grunhido de desprezo, que mataria Marcus. Aquele foi o pior momento de todos. Marcus ainda estremecia com a lembrança.
- Como foi? Nunca senti tanto medo na vida - falou Marcus baixinho. - Nem tenho palavras para descrever. Mas fique grato por nunca ter precisado passar por isso.
Houve um breve silêncio, e Corvus exclamou com desdém:
- Mas é para os gladiadores serem valentes!
- Fique quieto - ordenou Lupus, irritado. - Marcus enfrentou a morte. Ele sabe disso.
- Então sorte dele. Se Fortuna sorrir para ele, ou ele vai morrer antes dos 20 anos ou vai conquistar a liberdade antes disso. Você não é como a gente, meu amigo.
Nós nascemos escravos e não seremos nada além de escravos comuns até o dia em que morrermos, ou até o senhor nos colocar na rua para encontrarmos nossa própria cova.
O que temos é uma morte em vida. O seu amigo ali nunca vai saber o que isso significa.
Marcus escutou a conversa com uma sensação de amargura cada vez maior. Diferente dos outros garotos, ele nascera livre e assim o fora durante os primeiros dez anos
de sua vida. Sabia o que tinham tirado dele e sentia essa perda intensamente, todos os dias. Rolou para a frente e se apoiou nos cotovelos, a fim de poder ficar
virado para os outros.
- Vocês não têm esperança de conquistar a liberdade? Nem sonham com isso?
- De que adianta? - Corvus resmungou. - Nunca vou poder comprar minha liberdade. Não vou conseguir chamar a atenção do nosso dono trabalhando muito ou sendo leal.
Não posso fazer nada para mudar minha situação. Tudo o que vou conhecer na vida é esta cela, a cozinha e escravos como você. A única coisa que importa é ficar de
cabeça baixa para não levar surra.
- E você, Lupus? - perguntou Marcus. - Não tem nenhuma esperança?
O escriba ficou em silêncio por um instante enquanto pensava.
- Sempre há esperança. Eu tenho um plano. Eu sei ler, escrever e fazer contas. Se eu fizer um bom trabalho como escriba de Caesar, talvez ele me recompense um dia.
Sei de outras pessoas na mesma situação que a minha e que conseguiram poupar o suficiente para comprar a liberdade. Se eles conseguiram, eu também consigo.
- E depois? - questionou Corvus com desprezo. - Depois de passar a vida como escravo de Caesar e de pagar a ele por ter tido esse privilégio, o que vai fazer?
- Não sei exatamente. Talvez eu possa tentar poupar para comprar um pequeno restaurante, perto do Circo Máximo. Sempre tem gente faminta nas corridas. Posso ter
uma vida decente e até mesmo comprar meus próprios escravos.
Que esperança haveria para o fim da escravidão se os próprios escravos queriam se tornar donos de escravos? Marcus suspirou, mas não disse nada. Sabia que muitos
escravos eram como Corvus, pessoas que preferiam não mexer um único dedo caso isso dificultasse ainda mais a vida. Também existiam aqueles que viviam acorrentados
em grupos, trabalhando até caírem e ficarem cansados demais para pensar em qualquer coisa que não fosse sobreviver até o dia seguinte. Era insuportável pensar que
sua mãe talvez estivesse passando por isso. Talvez Brixus tivesse razão no fim das contas. De todos os males do mundo, a escravidão era o pior. Valia a pena lutar
pelo fim dela e até mesmo morrer por tal causa, se fosse necessário. Marcus voltou a atenção para os companheiros.
- Se vocês dois odeiam tanto a escravidão, por que não fazem algo a respeito?
- O quê? - Corvus riu. - Será que você levou tanta pancada hoje que ficou de miolo mole? Somos apenas escravos domésticos. Não podemos fazer nada, somente aturar
isso.
- Vocês poderiam lutar - sugeriu Marcus baixinho, caso houvesse alguém no corredor que pudesse escutá-lo. - Vocês não seriam os primeiros escravos a se levantarem
contra o dono. Isso já aconteceu antes.
Houve uma pausa tensa antes que Lupus falasse:
- Está falando de Spartacus, não é?
- Claro.
- Você deveria tomar cuidado com o que diz - sussurrou Lupus. - Se Flaccus escutasse isso, ele mandaria darem uma surra em você. Só os deuses sabem o que Caesar
faria se descobrisse. Foi o amigo dele, aquele Crassus, que crucificou os escravos rebeldes ao longo da Via Ápia. Quer que isso aconteça com você, Marcus?
Marcus ouvira falar do terrível castigo imposto por Crassus, um homem que agora era aliado de Caesar e aparentemente de Decimus também. Por mais que tivesse passado
a admirar o novo dono, Marcus desconfiava das ambições dele e dos homens que Caesar chamava de amigos. Ficou em silêncio por um instante antes de continuar:
- Mas e se Spartacus tivesse ganhado? Vocês seriam livres para fazerem o que quisessem, vocês dois. Não vale a pena lutar por isso?
- Talvez. Mas Corvus tem razão, não tem nada que a gente possa fazer.
- Sozinhos não - respondeu Marcus. - Há bandos de escravos nos montes e nas montanhas, sobreviventes da rebelião, e pessoas que escaparam para se juntar a eles.
O que nos está impedindo de fazer isso também?
- Mas de que adianta? - perguntou Corvus. - Por que fugir e viver o resto da vida em uma caverna molhada, sempre com medo de ser capturado e punido? Se chama isso
de liberdade, eu não quero.
- Mas e se surgisse um novo líder que unisse esses bandos de escravos? - sugeriu Marcus. - Um homem como Spartacus? Alguém que os ensinasse a lutar contra as legiões
romanas, assim como ele fez?
- Spartacus está morto - disse Corvus com franqueza. - Não há ninguém para substituí-lo. Os bandos de escravos serão caçados e destruídos um por um. Essa é a verdade,
meu amigo gladiador. Mas, se está tão empolgado com isso, por que não se torna o novo Spartacus, hein? Aceite o desafio. Torne-se o líder dos oprimidos. Por que
não aproveita e põe fim no maior império do mundo também? - Ele deu uma risada mais uma vez, uma risada desagradável e vazia. - Estou cansado. Lupus também. Precisamos
dormir. Guarde seus sonhos ambiciosos para si mesmo, Marcus.
Corvus acomodou-se e encolheu-se debaixo do cobertor. Lupus ficou sentado por um momento e sussurrou:
- Acha que seria possível? Outra revolta? Será que ganharíamos da próxima vez?
Marcus respirou fundo e suspirou.
- Não sei mesmo...
- Que pena - murmurou Lupus. - Eu gostaria de saber como é ser livre.
Ele se abaixou e começou a respirar profundamente e, em seguida, a roncar. Mais uma vez, Marcus percebeu que dormir não seria tão fácil assim. Deitou-se de barriga
para cima e ficou olhando para o teto, refletindo.
7
À medida que os dias da primavera se passavam, Marcus foi aprendendo a usar todas as armas que Festus achava necessárias para que lhe pudesse ser confiada a segurança
de Portia. Não tivera outra oportunidade de ver Pompeius ou de aprender mais sobre o envolvimento de Decimus no círculo político de Caesar. Marcus estava certo de
que a influência dele não podia ser boa, mas não conseguiria provar isso para seu dono, assim como não nutria esperanças de escapar e encontrar a mãe por conta própria.
Por ora, ele se preocuparia apenas em se sair bem em suas tarefas, esperando que Caesar o recompensasse de algum modo que beneficiasse sua causa.
Festus levara Marcus para as ruas algumas vezes, para ensiná-lo a se misturar no meio da multidão e a ficar atento a sinais de que estava sendo seguido ou de que
havia alguma emboscada. Também aprendeu mais sobre o centro de Roma e os bairros que o cercavam. Festus só não levou o rapaz para uma área ao lado do Monte Aventino,
a qual se chamava o Fosso, onde algumas das gangues de ruas mais duronas de Roma se encontravam.
- Vá por mim, Marcus, é melhor nem chegar perto do Fosso. Os homens que moram lá são animais...
Além da clava e do bastão, Marcus aprendeu a usar facas e a arremessá-las. Festus lançara uma faca pelo pátio para que caísse mais ou menos no centro, com o cabo
levemente inclinado.
- Um bom arremesso vai fazer um homem cair se você o atingir perto da espinha ou atrás dos joelhos. Mas isso seria sorte. É bem mais provável que ele só desacelere
ou sangre um pouco antes que você possa chegar perto para matá-lo. Isso se você conseguir atingi-lo.
Festus tirou outra faca dos coldres na parte de trás do seu cinto largo.
- Tome. Tente.
Marcus pegou a faca e sentiu o peso dela. A lâmina tinha menos de 15 centímetros, mas era larga, com uma ponta letalmente afiada. O cabo era fino e coberto com um
material áspero - pele de tubarão, segundo Festus. Ele estava em uma diagonal em relação ao alvo e abriu bem os pés para poder equilibrar o corpo ao jogar a faca.
Em seguida, segurou a lâmina entre o dedão e o indicador, assim como Festus tinha feito um pouco antes. Colocando o braço por trás do ombro, Marcus estreitou os
olhos na direção do alvo de palha e lançou o braço para a frente, soltando a lâmina no último segundo. A faca rodopiou várias vezes pelo pátio, desviou ao bater
no canto do alvo e atingiu o muro com um retinido.
- Nada mau para uma primeira tentativa - observou Festus, entregando outra faca para Marcus. - Tente imaginar que há um cano entre seu olho e o alvo, depois se concentre
em jogar a faca em uma reta pelo centro do cano.
Marcus obedeceu, e sua mira melhorou. No entanto, como tinha se concentrado na precisão e não na força, a lâmina caiu antes do alvo. Após algumas tentativas, ele
começou a atingir o alvo, sentindo orgulho e entusiasmo toda vez que isso acontecia.
- Muito bom - disse Festus, acenando com a cabeça. - Mais algumas vezes e você vai ser capaz de matar alguém de longe. Assim não vai precisar correr o risco de atacar
a pessoa com as próprias mãos.
Marcus sentiu o orgulho se transformar em culpa quando se lembrou do propósito sombrio por trás das novas habilidades que Festus estava lhe ensinando. No entanto,
continuou o treinamento mesmo assim, querendo aprender a dominar as armas de seu ofício com uma determinação sombria. Ele sabia que um dia a vida de Portia dependeria
disso.
Depois das facas, Festus ensinou-o a usar a atiradeira, a boleadeira e a soqueira. Dar um golpe com essa última era complicado, mas o treinamento com ela durou uma
hora inteira. Marcus jogava seu peso nos golpes, indo para cima de uma coluna coberta de couro no meio do pátio. Toda vez, Festus anunciava os alvos com uma voz
monótona.
- Cabeça... barriga... cabeça... barriga... cabeça...
Marcus achava o treinamento brutal e rigoroso, mas pelo menos assim ele esquecia seus problemas pessoais.
Era fim de tarde, e eles estavam quase terminando o treinamento do dia quando o barulho de algum tumulto na rua chegou até o pátio. Havia gritos desesperados no
meio dos berros e zombarias vindas de uma multidão, além do som de barracas sendo reviradas. Os ruídos passaram rapidamente pela lateral da casa e viraram fortes
batidas à porta da frente.
- Vamos! - ordenou Festus, e eles dispararam para dentro da casa, indo pelo corredor até a entrada principal. Caesar acabara de voltar de seus trabalhos na residência
oficial no Fórum e já estava perto da porta. Alguns de seus guarda-costas surgiram armados com espadas e clavas. Ele olhou para trás no instante em que Festus e
Marcus se aproximavam.
- É melhor se prepararem para lutar!
Festus tirou uma faca do cinto e assentiu. Marcus cerrou o punho firmemente ao redor da soqueira, agachando-se.
As fortes batidas à porta se intensificaram, e alguém gritou:
- Tenham piedade, abram essa porta!
- Pelos deuses, eu conheço essa voz! - exclamou Caesar. Ele foi até a porta e escancarou o postigo para espreitar cuidadosamente. - Crassus!
Caesar agarrou a barra de travamento, empurrou-a e ergueu o trinco. De uma vez, a porta foi pressionada para dentro, e o senador Crassus tropeçou pelo saguão, seguido
imediatamente de alguns homens e escravos que carregavam sua liteira. Todos estavam machucados, com sangue escorrendo das feridas nos braços e nas cabeças. Crassus
tinha perdido a toga e sua túnica roxa estava bastante rasgada. Atrás deles, surgiram três de seus guarda-costas. Eram ex-gladiadores imensos que estavam combatendo
a multidão lá fora com grossos bastões, enfiando-os nos rostos das pessoas que os perseguiam e gritavam.
- Me ajudem a fechar a porta! - ordenou Festus enquanto empurrava o ombro contra a madeira fortemente protegida. Alguns guarda-costas correram até ele e firmaram
os pés no chão de azulejos. Festus mudou de posição e ergueu a faca. Marcus juntou-se a ele.
Juntos eles empurraram completamente o madeiramento, e a porta se fechou com um ruído surdo. Imediatamente Caesar segurou a barra de travamento e a empurrou para
dentro do suporte. Por um instante os outros homens continuaram pressionando a porta, como se temessem que ela de repente fosse se abrir, mas as batidas do outro
lado e os gritos raivosos deram em nada, e a porta continuou intacta.
Caesar correu para ajudar Crassus a se levantar do chão.
- Meu caro amigo, você está bem?
- Agora estou. - Crassus sorriu debilmente. - Mas foi por pouco. Tenho certeza de que eles teriam me matado se pudessem.
Caesar balançou a cabeça.
- Eles não se atreveriam.
- É? - Crassus ergueu a sobrancelha e apontou em direção a seus homens. - Perdi cinco guarda-costas e a maior parte dos carregadores da liteira.
- O que aconteceu?
- Estava a caminho de uma reunião com Pompeius. Tínhamos acabado de atravessar o Fórum e estávamos nas proximidades de Subura quando uma multidão bloqueou o caminho
a nossa frente. Antes que pudéssemos reagir, outro grupo bloqueou a rua atrás de nós. Começaram a jogar pedras. Meus carregadores de liteira não puderam fazer nada
para se proteger. Tiveram que colocar a liteira no chão. Assim que saí dela, percebi que estávamos encurralados. Só havia uma maneira de nos livrarmos: indo por
uma ruela que seguia para Subura. A sua casa foi o abrigo mais perto em que consegui pensar, então, aqui estamos... ou o que sobrou de nós.
Crassus tremia quando Caesar segurou seu braço, guiando-o gentilmente para longe da porta.
- Precisamos conversar. Venha para o meu escritório. Festus!
- Sim, amo?
- Cuide desses homens. Trate as feridas deles.
- Sim, amo. - Festus saudou-o com a cabeça e se virou para Marcus. - Você pode me ajudar, Marcus. Está na hora de você aprender a cuidar de feridas além de causá-las.
Mas é melhor tirar esse soco-inglês primeiro, senão vai terminar fazendo mais mal do que bem.
8
Mais tarde naquela noite, após Crassus ir embora sob proteção de todos os homens que Caesar podia dispensar, Marcus foi até os bancos no canto do jardim para pensar.
Estava profundamente frustrado com sua situação, e a visita inesperada de Crassus o lembrara do fracasso em seu objetivo de libertar a mãe. Antes, ele achava que
sua jornada terminaria no instante em que chegasse a Roma. Só precisaria encontrar a casa do general Pompeius, explicar o que tinha acontecido e tudo se resolveria.
Ele e sua mãe seriam libertos, e Decimus, punido. E agora? Não estava nem perto de encontrar uma maneira de explicar sua situação para Pompeius. Para piorar, Decimus
era amigo de Crassus, que, por sua vez, era aliado de Caesar e Pompeius. Sentiu-se estúpido e ingênuo. O mundo era bem mais complicado do que ele pensava - como
tinha achado que seria capaz de usar Pompeius a seu favor? Soltou um suspiro amargurado e amaldiçoou os destinos daqueles que o fizeram chegar tão perto do fim de
sua jornada e não deram o prêmio final.
- Achei que tinha visto você entrar aqui.
Ele olhou para cima e viu Portia parada na brecha da sebe que encobria os bancos. Ela sorriu para ele, aproximou-se e sentou-se.
- Não nos falamos há dias. Começava a achar que você estava me evitando.
- Festus tem me mantido bem ocupado - explicou Marcus. - Ele quer que eu esteja pronto para protegê-la assim que possível. Não tive nenhum descanso. Agora entendo
o motivo.
- O ataque a Crassus?
Marcus fez sim com a cabeça.
- Se aquilo aconteceu com um homem tão poderoso, pode acontecer com qualquer pessoa. Não fazia ideia de que a multidão pudesse ser tão perigosa. Crassus disse que
parecia uma armadilha.
Portia assentiu.
- Eu estava na biblioteca. Ela fica separada do escritório do meu tio por uma cortina, então eu escutei a conversa dele com tio Gaius. No início, eu queria sair
escondida e deixá-los a sós. Mas depois decidi ficar e escutar. Meu tio raramente me conta os planos dele, então, não resisti. Não vejo razão para me tratarem como
uma criança. Já tenho idade suficiente para entender o que está acontecendo. - Ela franziu a testa. - Só porque sou uma garota eles me tratam como se eu fosse uma
boba. Alguém que deve receber um tapinha na cabeça e ser entretida até lhe encontrarem um marido adequado. Tudo que quero é um pouco de liberdade para tomar minhas
próprias decisões. Não é justo...
Marcus viu o lábio dela começar a tremer e se compadeceu. Os dois eram mais parecidos do que ele imaginava.
Ela mordeu o lábio e forçou um sorriso.
- Lembra aquele tumulto por causa da lei que tio Gaius estava tentando aprovar? Aquela que dava terras para os veteranos de Pompeius?
- Não dá para esquecer. - Marcus lembrou-se do confronto entre Bibulus e Caesar e do excremento na cabeça do azarado Bibulus. Não pôde deixar de sorrir com a lembrança.
- Foi a maior sujeira para o outro cônsul.
Portia riu rapidamente.
- Bem, parece que depois daquilo Bibulus voltou para casa e não saiu mais. Ele publicou uma proclamação afirmando que não é seguro um cônsul sair em público enquanto
os capangas de Caesar dominarem as ruas. Ele também disse que vai se recusar a reconhecer qualquer lei aprovada em sua ausência, o que não faz diferença alguma para
meu tio. Ele já deu continuidade aos assuntos da Casa do Senado sem Bibulus, apesar de Cato ter feito tudo o que podia para criar obstáculos. Mas isso não é tudo.
Vários senadores que apoiam meu tio têm sido atacados, como Crassus. Ele acha que isso tem a ver com alguma outra coisa, que não é apenas uma disputa ordinária entre
facções políticas diferentes.
A informação de Portia era interessante. Marcus achava difícil compreender os acontecimentos do mundo de Caesar e mexeu a cabeça pensativamente enquanto se lembrava
das conversas que já tivera com seu dono. Caesar sabia que enfrentaria oponentes perigosos, homens que estavam dispostos a recorrer à violência para conseguir o
que queriam. Até agora parecia que Caesar tinha se contido, mas Marcus sabia que seu dono seria obrigado a adotar a mesma tática de seus inimigos, nem que fosse
apenas para preservar a própria vida e a de seus parentes.
Marcus olhou para Portia.
- Parece que Cato e seus amigos têm instigado o povo.
- É o que meu tio acha. Ele escutou alguém espalhando um boato de que ele tem um plano secreto de controlar Roma junto com o general Pompeius e Crassus.
- É o tipo de boato que os inimigos dele espalhariam.
Os olhos de Portia arregalaram-se enquanto ela se aproximava de Marcus.
- Mas é isso mesmo. Existe sim um plano secreto. Eu escutei meu tio e Crassus falando sobre ele. Até alguns meses atrás, Pompeius e Crassus eram inimigos implacáveis.
Então tio Gaius os convenceu de que eles teriam mais poder se trabalhassem juntos em vez de um atrapalhar o outro. Ele lembrou isso a Crassus essa noite. Em troca
de se apoiarem no Senado, cada um comandará um enorme exército e terá a oportunidade de obter mais glória e mais despojos.
- Mais despojos? - perguntou Marcus, apesar de já saber a resposta.
- Os mesmos despojos de sempre. Ouro, prata, escravos.
Escravos, refletiu ele com amargura. Acrescentando ainda mais miséria àquela suportada pelos milhões de romanos que já eram escravos. Aquela ideia o deixou nauseado.
Por mais que tivesse passado a admirar seu senhor, Marcus lembrou-se de que Caesar era romano dos pés à cabeça e que ele sempre seria um inimigo de tudo o que Spartacus
defendia.
- Enfim - prosseguiu Portia -, essa nem é a parte mais interessante. Tio Gaius e Crassus estavam planejando a melhor maneira de garantir a continuidade do acordo
deles com Pompeius. Meu tio sugeriu que talvez fosse bom manter Pompeius mais próximo dele, fazendo isso por meio de outro casamento. - Portia parou e ficou com
uma expressão sombria. - Meu tio vai sugerir a Pompeius que eu me case com o sobrinho dele para fortalecer o acordo...
- Casar? Você? - Marcus encarou-a, chocado. - Mas você só tem 13 anos, é apenas dois anos mais velha do que eu.
- Tenho quase 14 - respondeu Portia, desanimada. - Mais do que suficiente para ser oferecida em casamento. Muitas garotas se casam com a mesma idade que eu, algumas
até antes. É assim que as coisas funcionam em Roma. Às vezes, o casamento é por amor, mas, na maioria das vezes, é para criar alianças entre famílias influentes.
Marcus assimilou a notícia com uma sensação de desgosto. Como era possível existir um casamento sem afeto, pensou ele. Lembrou-se de sua mãe com Titus. Apesar da
maneira como se conheceram, havia uma ternura genuína entre os dois, até o último momento. Enquanto aceitava a novidade de Portia, sentiu certo desespero ao pensar
que perderia sua amiga tão em breve.
- E o que você acha de se casar? - perguntou Marcus.
Portia entrelaçou os próprios dedos enquanto pensava na resposta.
- Não sei. É tão repentino. Tio Gaius nunca mencionou essa possibilidade para mim. Eu sempre soube que um dia me casaria e que seria obrigada a deixar minha família
e meu lar para trás. Mas esperava que eu fosse ter a sorte de me casar com alguém de quem eu gostasse. - Ela ficou em silêncio por um instante antes de prosseguir
corajosamente: - Mas eu provavelmente deveria pensar que é uma honra casar com alguém de uma família tão ilustre quanto a de Pompeius.
Marcus observou o rosto de Portia enquanto ela contemplava aquela possibilidade e viu a tristeza nos olhos dela. Ele também ficou triste. Sentiria falta da menina.
E depois outro pensamento lhe ocorreu. Se Portia se casasse com o sobrinho de Pompeius, talvez ela pudesse usar sua influência para dar a Marcus a chance de explicar
sua situação para o antigo comandante de Titus. Antes que pudesse pensar melhor nisso, Portia falou novamente.
- Mas tem um problema - disse ela. - Crassus não gostou muito da ideia. Ele disse ao meu tio Gaius que eu deveria me casar com um parente dele, pois seria uma maneira
de pagar de volta todo o dinheiro que meu tio pegou emprestado.
O cérebro de Marcus estava zunindo. Ele precisava pensar. Se Caesar devia a Crassus e Crassus era aliado de Decimus, o que isso significava para Caesar e para o
próprio Marcus?
- O que seu tio respondeu? - indagou Marcus.
- Ele disse que sabia o quanto devia a Crassus e que sempre seria seu amigo fiel. Mas Pompeius não tem essa mesma ligação com ele, e seria bom garantir que o general
não desfaça essa aliança secreta dos três. Crassus não pareceu muito convencido. - Ela franziu a testa brevemente, e os dois ficaram em silêncio mais uma vez. Marcus
pensou em como a vida de ambos estava à mercê das táticas ambiciosas desses supostos "grandes" homens. E isso em benefício de quem? Portia suspirou, e seu sorriso
forçado voltou. - Ficar triste não adianta nada. Acho que é melhor eu ficar contente com essa ideia.
- É, acho que sim. - Ele também forçou um sorriso.
Ela franziu a testa levemente.
- A notícia também deixa você triste?
- Sim... deixa sim - respondeu ele com sinceridade. - A nossa amizade é a primeira que faço em muito tempo. Eu queria ser seu protetor. E agora isso não vai ser
mais possível.
- Talvez seja. Talvez eu possa levá-lo comigo se me casar. Posso pedir a meu tio para vendê-lo para Pompeius.
Marcus retraiu-se com aquelas palavras. Ser vendido novamente. Como uma mula. Pelo menos assim ficaria mais perto de Pompeius, supôs ele.
Portia continuou com um tom de voz neutro:
- Enfim, vai demorar um pouco para as coisas serem combinadas, então há tempo de pensar em algo. Prometo que vou fazer o que puder para convencer tio Julius a deixar
você continuar do meu lado. - Ela bocejou e cobriu a boca. - Estou cansada. O dia foi longo e preciso dormir. Só queria compartilhar essa novidade com você primeiro,
Marcus.
Ela se levantou, e Marcus fez o mesmo.
- Então boa noite - disse ela.
Marcus abaixou a cabeça.
- Boa noite, senhorita.
Ele ficou observando enquanto ela saía da área isolada, e o som dos seus passos esvaecia ao longo do caminho do jardim.
9
Marcus recomeçou o treinamento pela manhã e só viu Portia novamente quando Flaccus mandou chamá-lo na outra semana, no fim da primavera, para avisar que o menino
acompanharia a senhorita até o Fórum no dia seguinte. Caesar faria um pequeno jantar na casa para anunciar o noivado da sobrinha, e ela precisava comprar tecido
para um novo vestido. Decidira-se que a cerimônia de casamento aconteceria no verão.
- Acha que estou pronto para protegê-la, senhor? - perguntou Marcus a Festus ao encontrá-lo depois sentado no pátio, tomando vinho. - Têm acontecido vários tumultos
na rua.
- Nos últimos dias não - argumentou Festus. - Além disso, é uma disputa política entre o nosso dono e os inimigos dele. Se tudo der certo, ninguém vai prestar muita
atenção na sobrinha de Caesar e você só terá que se preocupar com trombadinhas e salteadores. Vai dar tudo certo, garoto. Eu o treinei bem. Se acontecer algum problema,
você saberá como reagir. Mas lembre-se de ficar com o capuz do manto na cabeça. Isso o ajudará a ficar de olho nos arredores sem deixar tão na cara que é isso que
está fazendo. - Festus tomou um gole de vinho. - Fique atento a qualquer sinal de confusão entre os defensores de Cato e os nossos. Se começar algum tumulto, traga
a senhorita de volta para casa imediatamente. Não pare para nada até que ela esteja dentro de casa, em segurança. Fora isso, não se esqueça de ir armado. Uma clava
e algumas facas arremessáveis devem bastar. Talvez seja bom levar um gorro de feltro.
O verão estava chegando e Marcus ficou confuso com aquela sugestão.
- Não acho que vou passar frio, mas obrigado.
- Não é para se aquecer - explicou Festus, colocando a caneca no chão e mexendo dentro da túnica da qual tirou o gorro de feltro. - Está vendo?
Ele abriu o gorro, e Marcus viu que era mais volumoso do que um gorro comum.
- Eu costurei umas tiras grossas de cortiça aqui dentro. Se levar um golpe na cabeça, isso vai amortecer parte do impacto. Tome, pode levar. Vai ficar frouxo, então
dê alguns pontos hoje à noite para que caiba direito. - Ele deu de ombros. - Nunca se sabe, talvez isso salve a sua vida.
Marcus pegou o gorro e ficou sensibilizado diante da generosidade do ranzinza Festus.
- Obrigado, senhor.
Festus esvaziou a caneca e deu um tapinha no ombro de Marcus.
- É melhor ir dormir, meu companheiro. Amanhã vai precisar estar alerta.
- Sim, senhor. - Marcus virou-se e começou a ir em direção ao alojamento dos escravos. Em seguida, o garoto parou e olhou para trás, erguendo o gorro. - E obrigado
por isto.
- Cuide bem dele. - Festus sorriu. - Vou querer de volta, intacto.
Na manhã seguinte, ainda bem cedo, o pequeno grupo saiu da casa de Caesar e foi para a rua. Além de Portia e Marcus, havia os dois ajudantes de cozinha. O cozinheiro
tinha feito uma lista de carnes e frutas necessárias para o banquete, e Lupus e Corvus carregariam as coisas para casa após a senhorita pagar. Foram em direção ao
Fórum, com Portia na frente e os garotos da cozinha atrás. Marcus, atrás, os seguia de perto, de olho em possíveis perigos, sempre pronto para correr para a frente
e proteger a jovem. Portia estava usando um manto liso por cima de sua túnica comprida e não era possível ver sua bolsa. Não havia nada que a diferenciasse de qualquer
outra menina de uma família de boas condições saindo de casa para fazer compras.
A rua já estava cheia de gente, e os comerciantes colocavam mercadorias nas barracas que cobriam a calçada dos dois lados da rua. Os transeuntes precisavam passar
no meio das pilhas de lixo e de excrementos animais e humanos que ficavam entre os pedregulhos até a próxima chuva, quando seriam levados pela água. Marcus mal percebia
o fedor; tenso, concentrava-se em todos os becos, procurando pessoas suspeitas ou qualquer movimento estranho. De vez em quando, olhava para trás para ver se alguém
seguia o grupo. À sua frente, Corvus e Lupus batiam papo, aproveitando o descanso de suas tarefas de costume. Marcus perguntou-se se eles continuariam gostando da
experiência quando estivessem carregando as compras no caminho de volta. Sorriu ao pensar nisso. Agora Marcus tinha se acostumado aos dois garotos, com os quais
dividia a mesma cela, e eles também. Brincavam e provocavam-se todas as noites antes de dormir, e ele não via a hora de zombar deles por terem sido os burros de
carga de Portia.
Chegaram ao Fórum sem nenhum incidente e misturaram-se à multidão dos mercados. Além dos clientes, sempre havia gangues de jovens ao redor das fontes públicas, falando
alto sobre a corrida de biga mais recente e provocando as gangues que torciam por times diferentes. Os mendigos que ficavam na beirada da Via Sacra ou apoiados em
arcos ao lado dos templos pediam esmolas o tempo inteiro, de braços estendidos. Portia, comovida com aquilo, parou para instruir Lupus, que estava com sua bolsa,
a dar algumas moedas pequenas. Marcus foi até o outro lado da rua e fingiu examinar uma fruta em uma barraca enquanto investigava a rua nos dois sentidos.
Naquele momento, surgiu um espaço no meio da multidão, e Marcus avistou dois homens uns cinquenta passos atrás. Eles também tinham parado e, por um instante, ficaram
olhando para a rua na direção de Marcus, antes de voltarem-se um para o outro como se estivessem conversando. Trajavam túnicas marrons, como a maioria das pessoas
de Roma, mas o cabelo deles era curto, e os dois pareciam durões. Havia certa tensão no comportamento deles que causou suspeitas em Marcus. Ele continuou prestando
atenção pelo canto do olho, parado na frente da barraca de frutas.
- Vai comprar alguma coisa ou está só esperando para roubar?
Marcus olhou para a vendedora, uma mulher enorme, de braços gordos e rosto sério. Ele balançou a cabeça e foi até a próxima barraca. Mais adiante na mesma rua, os
dois homens aproximaram-se de uma barraca onde um comerciante de pele escura vendia cintos. Marcus observou-os por mais um instante até Portia guardar a bolsa e
poder seguir em frente. Chegaram à área aberta na frente da Casa do Senado e viraram em direção à basílica, onde os produtos de luxo eram vendidos. Marcus olhou
para trás cuidadosamente, inspecionando a multidão, mas não avistou os dois homens. Perguntou-se se não estaria se assustando por nada, mas depois se lembrou do
conselho de Festus: suspeitar demais fazia parte do trabalho. Marcus deu outra olhada na multidão e, mais uma vez, não os viu, então se apressou para alcançar Portia.
Após a claridade das ruas, Marcus estranhou a escuridão no interior da basílica, e seus olhos precisaram de um momento para se adaptarem. Olhando ao redor, impressionou-se
com a variedade e a qualidade dos produtos à venda: rolos de tecidos de cores vivas, seda reluzente, cestos de frutas secas trazidas de lugares distantes, prateleiras
cheias de jarras dos melhores vinhos, conjuntos de estatuetas entalhadas de soldados, bárbaros e gladiadores romanos - tudo a preços que a grande maioria da população
de Roma não poderia pagar. Marcus nunca vira tanta riqueza em um só lugar.
- Vamos deixar as compras do cozinheiro por último, pois vão ser as coisas mais pesadas - decidiu Portia, sorrindo para Lupus e Corvus. - Não faz sentido vocês ficarem
carregando peso enquanto eu procuro tecidos e perfumes.
- Obrigado, senhorita. - Os dois curvaram a cabeça em gratidão.
- Então vamos - disse Portia, rindo. - Não vamos perder tempo.
Lentamente, eles foram até os balcões cheios de rolos de tecidos. Portia parava de vez em quando para examinar algum tecido que chamasse a sua atenção. Ela terminou
comprando um tecido reluzente cor de esmeralda e pediu que Marcus o carregasse.
Marcus balançou a cabeça.
- Não seria sensato, senhorita.
- Ah, é? - O nariz dela levantou-se indignadamente. - E por quê?
- Por dois motivos. Eu passaria a chamar a atenção e também me atrapalharia caso eu precisasse reagir rapidamente. Festus foi bem enfático quando falou que eu precisava
ser discreto e estar pronto para lutar a qualquer momento.
- Bem, mas Festus não está aqui, está? E isso é tudo bobeira, Marcus. Quem seria burro o suficiente de me atacar no centro do Fórum? E como quer ser discreto se
fica se escondendo atrás de mim?
Antes que Marcus pudesse protestar mais, ela se virou e foi em direção às vendas de perfumes, deixando-o com o rolo de tecido. Ele sibilou entre os dentes, frustrado.
Em seguida, virou-se para os dois garotos. Corvus afastou a mão imediatamente.
- Não adianta olhar pra gente, companheiro. Já vamos ficar com as mãos bem cheias.
- Estou falando sério. - Marcus estendeu o tecido. - Pegue isto. Eu preciso protegê-la.
- De jeito nenhum. Ela disse para você carregar, e a gente não quer arriscar levar uma surra por ter desobedecido às ordens dela. - Corvus puxou o braço do outro
garoto, e eles foram apressadamente atrás de Portia.
Marcus murmurou um palavrão pesado enquanto colocava o tecido debaixo do braço, dando mais uma olhada ao redor antes de segui-los.
Portia ia de loja em loja pela fileira de comerciantes de perfumes, cheirando os frascos de vidro. Após escolher o que queria, ela estendeu o braço para pegar a
bolsa. O comerciante acenou para que ela entrasse, assim poderia escolher um frasco e uma rolha para levar um pouco do perfume.
- Fique esperando aqui - instruiu ela. - Depois que eu terminar, vamos para as lojas de temperos.
Ela desapareceu pela entrada estreita, e Marcus ficou olhando. A porta da loja levava a um cômodo comprido com outra saída para a rua fora da basílica. Lá havia
outra barraca com um jovem assistente que tentava atrair os fregueses que passavam. O comerciante levou Portia até um balcão no qual se exibia uma seleção de frascos
enfeitados de perfumes.
- Por Júpiter - murmurou Lupus. - Achei que ela não decidiria nunca.
- E você viu o preço? - perguntou Corvus, balançando a cabeça. - Dez denários! Não dá para acreditar... só para ficar cheirosa caso alguém chegue perto dela durante
o jantar.
- Você é que devia usar um pouco - disse Lupus, fungando. - Está fedendo a peixe.
- É porque o maldito cozinheiro me colocou para marinar comidas com garum bem cedo. Vá você fazer isso para ver se não fica com o mesmo fedor.
Marcus afastou-se da discussão deles e deu uma olhada pela fileira de lojas, mas não viu sinal algum daqueles dois homens. Decidiu que provavelmente estava se preocupando
à toa. Para garantir, andou um pouco até o fim da outra fileira de barracas de comerciantes antes de voltar para a frente da loja de perfumes. Começou a pensar na
novidade de Portia da semana passada. Após refletir sobre o assunto, Marcus percebeu que aquela era exatamente a oportunidade de que precisava para pedir a ajuda
do general Pompeius. No entanto, a presença de Decimus em Roma e sua proximidade com Crassus não eram bons sinais, e a mente de Marcus estava cheia de dúvidas.
Os pensamentos de Marcus foram interrompidos por um grito de dentro da loja. Ele jogou o rolo de tecido na mesa de frascos de perfume e correu até a entrada.
Corvus ficou assustado.
- O que aconteceu? Marcus?
Marcus ignorou-o e correu até a loja, segurando firmemente a clava. O comerciante estava deitado no chão, com sangue escorrendo de uma ferida na cabeça. Seus olhos
pestanejavam, e o assistente ajoelhado ao seu lado pressionava a mão na ferida, tentando conter o sangramento. Marcus assimilou a cena em um segundo.
- Onde ela está? - perguntou ele.
O assistente olhou para cima com uma expressão confusa e não respondeu.
- ONDE ELA ESTÁ? - gritou Marcus.
O assistente contorceu-se e apontou o dedo trêmulo em direção à porta do outro lado da loja.
- Eles a levaram.
Uma sensação gélida e nauseante tomou conta da barriga de Marcus. Escutou os passos de Lupus e Corvus entrando na loja. Marcus correu em direção a outra porta, gritando:
- Venham atrás de mim!
10
Com o coração disparando de pavor, Marcus saiu correndo para a rua que ficava do lado oposto da basílica, quase esbarrando no grupo de escravos acorrentados que
carregavam peles de animais. Lupus e Corvus seguiam-no com dificuldade. Apesar de a rua ser larga, ela estava cheia de gente, e Marcus não conseguia enxergar muito
à frente em nenhuma direção. Subiu em uma mesa e derrubou uma enorme jarra para o lado, fazendo-a se despedaçar nas lajes. Imediatamente, o ar foi tomado por uma
fragrância doce e floral.
- Ei! - gritou um homem no balcão da loja vizinha. - O que está fazendo, garoto? Vai ter que pagar!
Marcus ignorou-o e continuou vasculhando desesperadamente a rua à sua direita. A multidão estendia-se pela sombra do enorme muro da basílica, mas nada se destoava
na cena. Ele se virou para o outro lado enquanto alguns transeuntes paravam para encará-lo. Marcus estreitou os olhos e avistou os dois homens que tinha visto antes,
a uns cinquenta passos de distância, abrindo caminho à força no meio da multidão. As mãos de Portia batiam nas costas do homem que a segurava. As várias pessoas
que eram empurradas para o lado gritavam raivosamente após eles passarem.
Marcus pôs a mão ao redor da boca e apontou a base da clava para os homens.
- Alguém os detenha!
A voz dele vibrou como um alerta e espalhou-se pela rua. Um dos homens olhou para trás, puxou o braço do companheiro e os dois entraram em um beco lateral, saindo
da vista de Marcus. O garoto pulou de cima da mesa e perseguiu-os, abrindo caminho no meio do povo enquanto Corvus e Lupus se esforçavam para acompanhá-lo. Enquanto
corria, a mente de Marcus estava mais rápida do que seus pés. Ele não podia perder Portia. Como seria capaz de viver consigo mesmo se deixasse algo acontecer com
ela? Além disso, Caesar cobraria um preço caríssimo do responsável pela segurança de sua sobrinha. Ele não aceitaria desculpa alguma. Marcus forçou-se a seguir em
frente o mais rápido que podia.
Os rostos da multidão passavam em um turbilhão, e Marcus ignorou os gritos de surpresa e raiva que ouvia enquanto ele e os outros garotos disparavam pela rua. Um
pouco mais à frente, Marcus avistou a entrada do beco e apontou para lá.
- Lá dentro!
Ele virou a esquina, esperando ver os dois homens o aguardando com facas em punho. Em vez disso, havia uma passagem escura que se inclinava levemente entre os edifícios
espremidos. O chão estava coberto de lixo esmagado e, em intervalos regulares, apareciam pequenas pilhas de entulho encostadas na parede. O cheiro de esgoto dominava
o ar, e um líquido escuro e nojento escorria pelo centro do beco. Havia algumas pessoas lá - uma mãe jovem segurando a mão de uma criança e com um bebê se debatendo
no colo, e logo depois uma idosa sentada nos degraus da entrada de um dos edifícios, desfazendo a costura de um monte de roupas velhas.
Mais à frente, duas silhuetas escuras fugiam, uma delas importunada por Portia. Marcus preparou-se para ir para cima deles. Ouviu os passos dos dois outros garotos,
arfando enquanto tentavam alcançá-lo.
O beco tinha uma esquina mais à frente, e Marcus perdeu Portia e seus sequestradores de vista. Forçou-se a seguir em frente e, ao virar a esquina, avistou-os mais
uma vez, percebendo esperançosamente que ele havia diminuído a distância. Eles correram mais um pouco antes de virarem para dentro de outro beco. Quando Marcus chegou
até lá e se virou, eles tinham sumido de novo. Parou bruscamente, com o fluxo sanguíneo fazendo os ouvidos latejarem. Adiante, um beco ainda menor serpenteava-se
para dentro das favelas. Era tão estreito que duas pessoas mal conseguiriam passar uma do lado da outra. Não havia sinal deles. Havia becos e mais becos dos dois
lados até onde Marcus conseguia enxergar. Seguiu em frente e olhou para baixo no primeiro beco à direita, mas não viu movimento algum. Também não viu ninguém no
beco seguinte à esquerda. Uma pontada de desespero perfurou seu coração. Se eu a perdi, Caesar vai mandar me matarem, ou vai me mandar para as minas...
Escutou o barulho de botas às suas costas; eram Corvus e Lupus que o alcançaram.
- Onde... estão... eles? - perguntou Lupus arfando, inclinando-se para a frente e apoiando as mãos na coxa.
Marcus balançou a cabeça.
- Não sei. Devem estar por perto.
Então, de frente para ele, Marcus viu um idoso encurvado em uma entrada - não o tinha visto antes. Correu até lá.
- O senhor viu dois homens passarem por aqui?
O homem olhou para cima e encarou o beco com seus olhos brancos. Com um aperto no coração, Marcus percebeu que ele era cego. O garoto começou a se virar, mas o velho
deu uma risada rouca.
- Se eu os vi? Não. Mas eu os escutei. E a garota que estava chorando.
- Eles passaram por aqui? Para onde eles foram?
O cego estendeu a mão na direção do beco.
- Para lá, e eu ouvi um jarro quebrando antes de eles continuarem.
- Obrigado. - Marcus deu um tapinha no ombro dele e acenou para que os dois garotos o seguissem. Após uma curta distância, outro beco, ainda mais escuro, virava
à direita. Havia uma pilha de jarros quebrados enchendo quase completamente a curva, e Marcus entrou na passagem sinuosa, apontando para seus companheiros. - Por
aqui.
O beco ficava entre os fundos de duas fileiras de edifícios e havia algumas portas ou aberturas ao longo dele. Marcus e os outros tinham andado apenas um pouco quando
a passagem fez uma curva repentina, permitindo que eles vissem o fim dela, o local onde ela se encontrava com uma rua movimentada. Não havia sinal dos sequestradores.
Marcus parou.
- Para... onde... eles... foram? - perguntou Lupus, arfando.
- Eles devem estar aqui por perto - raciocinou Marcus rapidamente. - Precisamos encontrá-los antes que eles consigam escapar. Vamos nos dividir. Vocês dois voltam
e examinam todas as portas pelas quais passamos, qualquer caminho que leve para fora do beco. Eu vou continuar daqui.
Corvus olhou para ele.
- E o que fazemos se os encontrarmos?
Marcus tinha certeza de que os dois garotos nunca conseguiriam enfrentar aqueles dois homens.
- Gritem por ajuda e rezem para os deuses para que ela chegue logo.
- Que útil - grunhiu Corvus.
Lupus empurrou-o de volta para o beco.
- Vamos. Não podemos perder tempo.
Após eles se afastarem, Marcus andou para a frente lentamente, com os ouvidos atentos a qualquer ruído que pudesse levá-lo aos homens que tinham capturado Portia.
O burburinho constante do Fórum transformara-se em um fraco zunido, com apenas um ou outro grito ocasional vindo do alto dos apartamentos e o pingar da valeta que
escoava por cima do beco. As primeiras portas dos dois lados estavam trancadas por dentro, e ele as chacoalhou. Mais adiante, havia uma abertura à direita que levava
a um pequeno pátio, iluminado fracamente por uma pequena passagem no alto. Várias mulheres estavam sentadas ao lado de uma fonte pública, conversando. Elas olharam
para cima e ficaram em silêncio quando Marcus entrou no pátio. Olhando ao redor, ele pediu silêncio com o dedo nos lábios.
- O que você quer? - perguntou uma mulher mais velha, com a voz áspera.
- Estou procurando uns homens.
- Todas nós estamos, querido - respondeu outra mulher, e suas companheiras soltaram várias risadas esganiçadas.
- Eles estavam com uma garota - insistiu Marcus. - Eles passaram por aqui?
- Uma garota? Então não estamos com sorte, meninas. Parece que os homens já têm dona.
Marcus franziu a testa com raiva e saiu do pátio, continuando sua busca pelo beco. Tentou mais duas portas e, de repente, escutou um grito abafado por perto. Ele
ficou paralisado, com os ouvidos tensos, enquanto prendia a respiração. De novo veio o grito, acompanhado por um grunhido baixo. Marcus andou sorrateiramente na
direção dos ruídos. Havia uma porta à esquerda, e ele se aproximou dela. Estava entreaberta e parecia ter sido arrombada. Marcus escutou sons de briga, uma pancada
e um grito agudo de dor. Ele foi até a porta e parou. Olhou de novo para o beco, mas não havia qualquer sinal dos outros garotos. Não gritaria por eles para não
chamar a atenção dos sequestradores, se é que eram estes atrás da porta. Engolindo em seco nervosamente, Marcus ergueu a clava e, com a outra mão, afastou a porta
com cautela. Lentamente, ela começou a se abrir, revelando um armazém espaçoso com caixas e móveis quebrados, tudo destruído para ser usado em alguma fogueira. Os
dois homens estavam lá dentro, virados de lado para Marcus. O da direita segurava Portia, prendendo os braços dela por trás das costas e cobrindo sua boca.
- Se tentar me morder de novo, sua fedelha, vou quebrar seu pescoço. Entendeu? - Ele puxou os braços dela para cima dolorosamente e Portia soltou um breve gemido
antes de concordar com a cabeça.
- Agora sim - disse o outro. - Você tem que aprender a ser mais educada. Não imaginava que uma jovem de criação tão boa seria tão violenta. Bem, está na hora de
você aprender uma lição. Algo que nunca vai esquecer. Aquele seu tio também não. - Ele tirou a faca do cinto e a ergueu até a altura da bochecha dela. - Quando ele
vir o que aconteceu com você, ele vai saber o preço de ter feitos inimigos no Senado. Não que ele vá passar tanto tempo de luto. Caesar vai se juntar a você no mundo
dos mortos em breve, minha cara dama - concluiu ele com um sorriso desdenhoso.
Os olhos de Portia arregalaram-se de terror. Marcus passou a clava para a mão esquerda e tateou o cinto procurando as quatro facas arremessáveis que estavam escondidas.
Chutando a porta, ele entrou no armazém mal iluminado.
- Soltem-na!
O homem que segurava as pregas da túnica de Portia virou-se raivosamente. No entanto, ao ver Marcus, ele soltou uma risada. Depois seu rosto assumiu uma expressão
de irritação.
- Suma daqui, garoto! Senão...
Marcus brandiu o braço para a frente, e seus dedos soltaram a faca. A lâmina cega reluzia enquanto rodopiava pelo cômodo. Fazendo um estampido forte, ela atingiu
o ombro do homem, com a ponta letal perfurando a carne profundamente. Ele soltou um uivo de dor e surpresa, e Marcus pegou outra faca e a lançou em direção ao rosto
do sequestrador. Dessa vez, ele ergueu o braço para se proteger, e a lâmina furou a palma de sua mão. No entanto, Marcus tinha perdido a vantagem do efeito surpresa,
e o outro homem soltou Portia, empurrando-a para o lado. Ela tropeçou até cair em uma pilha de gravetos. O homem que estava com ela tirou uma adaga debaixo do manto,
com uma lâmina longa e uma ponta mortal. Abaixando-se, ele foi em direção a Marcus. O amigo dele grunhia como um animal selvagem, tentando remover a faca da mão.
Marcus puxou a clava para trás e se concentrou no homem que se aproximava.
- Você vai pagar por isso, garoto - esbravejou o homem, rosnando entre os dentes cerrados. - Vou cortá-lo todinho antes de acabar com você.
11
Marcus tentou conter o pânico de ter que enfrentar dois homens bem maiores que ele. Sabia que, se o medo falasse mais alto, Portia e ele com certeza morreriam. Uma
calma gélida tomou conta dele, e o garoto observou melhor o grandalhão, notando como a parte superior do corpo dele era forte, as cicatrizes no rosto e no antebraço
e a maneira como ele usava mais a perna direita. O homem fez uma finta com a adaga, dirigindo-a em direção ao rosto de Marcus. Ele desviou para o lado e brandiu
a clava, atingindo o homem perto do cotovelo com um ruído surdo.
O sequestrador fez uma careta e correu para a frente, tentando imprensar Marcus contra a parede ao lado da porta. Marcus ficou firme até o último segundo, jogou-se
para o lado com uma cambalhota e se levantou. Imediatamente, o garoto brandiu a clava mais uma vez, mirando no joelho direito do sequestrador. O golpe foi forte,
fazendo-o soltar um grito de dor enquanto caía no chão. O treinamento de Festus ainda estava fresco na cabeça de Marcus. Quando o oponente estava caído, era preciso
atacar rapidamente e aproveitar a iniciativa. Marcus brandiu a clava de novo, atingindo o homem no braço que segurava a faca. Foi um golpe que deixou a mão dele
dormente, fazendo-o abrir os dedos e soltar a faca no chão. Marcus mudou de mira, atingiu o ombro dele e depois a cabeça com um golpe lateral. O sequestrador ergueu
o braço esquerdo, tentando se defender do ataque enquanto procurava o cabo da adaga.
- Marcus, cuidado! - A voz de Portia atravessou o ar úmido.
Ele se virou e viu o homem que tinha ferido com as facas correndo em sua direção, uma pequena clava pontiaguda na mão ilesa. O sangue tinha manchado o tecido ao
redor do rasgão em seu ombro. Berrando e com os olhos cheios de raiva, ele se lançou para cima de Marcus. Sem tempo de desviar, Marcus abaixou-se um segundo antes
de o homem atropelá-lo, derrubando-o no chão. O impacto tirou todo o ar dos pulmões de Marcus. Arfando, ele cambaleou para o lado do cômodo, e seu oponente conseguiu
andar um pouco para a frente. Ele se virou e atacou Marcus novamente, brandindo a clava no ar bem na direção da cabeça do garoto. Apesar de seus reflexos rápidos,
Marcus sabia que era apenas uma questão de tempo para que fosse atingido. A força dos golpes do homem deixariam seus ossos tão estilhaçados quanto os móveis destruídos
espalhados pelos cantos.
Marcus abaixou-se para fugir de um golpe e desviou do próximo, sendo obrigado a ceder terreno até ficar imprensado contra a parede, perto de Portia. Ele ergueu a
clava para se defender das investidas ferozes, mesmo sabendo que perderia a briga. Sentiu vergonha por não ter conseguido proteger Portia e depois raiva por não
ter força suficiente para honrar o trabalho. Apesar do treinamento e da valentia, as chances o desfavoreciam. O homem agigantou-se diante de Marcus, ergueu a clava
e a brandiu na direção da cabeça do garoto. Marcus agarrou a base da própria clava com as mãos e a levantou para bloquear o golpe. Ouviu o estalo de madeiras colidindo,
e a energia selvagem do impacto se espalhou por seus braços dolorosamente. O homem atacou de novo e, dessa vez, a base da clava de Marcus partiu-se.
- Rá! - O sequestrador rugiu triunfalmente, erguendo a clava para dar o golpe mais forte de todos.
- Não! - gritou Portia, e Marcus viu um borrão escuro quando um pedaço de madeira atingiu um lado da cabeça do homem, que a balançou e se virou na direção da garota,
soltando uma rosnada gutural.
- Você vai pagar por isso, menina!
Marcus tinha que detê-lo. Ainda segurando as duas pontas estilhaçadas de sua clava, ele as enfiou na barriga do sequestrador com toda a força que possuía. As pontas
afiadas atravessaram o tecido e depois a carne, perfurando órgãos vitais. O homem gemeu e abaixou os braços enquanto se encurvava, com o rosto a apenas alguns centímetros
do de Marcus. A mandíbula dele relaxou, e o garoto sentiu seu hálito quente de alho. Marcus puxou as pontas da clava para trás e as enfiou novamente, girando-as
dentro do estômago do sequestrador para causar mais danos. Sentiu o sangue quente do oponente jorrar em cima de suas mãos.
Com um gemido atormentado, o homem tentou escapar, andando para trás aos tropeções e tirando as pontas da clava das mãos de Marcus. Enquanto se afastava, ele ficou
encarando os dois pedaços de madeira que saíam da própria barriga, em estado de choque. Marcus ainda estava tentando recuperar o fôlego. Respirando pesadamente,
o garoto ficou de joelhos e olhou para Portia.
- Você... está... bem, Portia? - conseguiu perguntar Marcus, ofegante.
Ela fechou os olhos e estremeceu enquanto fazia sim com a cabeça. Marcus tinha que levá-la para algum lugar seguro o mais rápido possível. Enquanto se aproximava
dela, seu tornozelo foi agarrado com uma força imensa.
- Seu porco! - grunhiu o outro sequestrador.
Marcus olhou para baixo e viu o homem agarrando seu tornozelo com uma das mãos e segurando a adaga que tinha recuperado com a outra. Ele torceu o tornozelo de Marcus,
que caiu para trás com toda a força. Portia gritou. Instintivamente, Marcus atacou com o pé que estava livre e sentiu as tachas de sua sola atingirem o crânio do
homem. Chutava-o sem parar, desesperado, mas o homem estava prendendo seu outro tornozelo, impedindo-o de se levantar, e esmurrou o rosto de Marcus com a mão que
segurava a adaga. Uma luz forte e entorpecente explodiu dentro da cabeça do garoto, fazendo-o se encurvar para trás. O sequestrador empurrou-o para o lado e engatinhou
até Portia. Ela estava acuada no canto do armazém e ficou observando em pânico enquanto o homem se arrastava para perto dela. Ele a puxou para baixo com a mão e
ergueu a adaga, apontando-a na direção do coração dela.
- Dessa vez você vai mesmo morrer - murmurou ele de modo selvagem.
- Não... - Marcus estendeu a mão enquanto sua visão voltava ao normal.
Duas silhuetas bloquearam a luz e criaram um borrão de movimento atrás do homem. Ele parou para olhar por cima do ombro. Corvus reagiu primeiro, agarrando um pedaço
de madeira de uma pilha perto da porta. Lançando-se para frente, ele golpeou a parte de trás da cabeça do homem, que soltou Portia. Enquanto ele se virava para os
dois meninos escravos, Corvus atingiu-o mais uma vez, e o homem o atacou com a adaga. A ponta atingiu o corpo do garoto na lateral, fazendo-o ficar sem ar enquanto
caía contra a parede. Lupus passou na frente dele com outro pedaço de madeira e bateu na cabeça do homem repetidas vezes, com toda a força que tinha. O som dos golpes
ecoou pelo armazém, e o sequestrador caiu inconsciente no chão.
No meio do silêncio que surgiu, Marcus encarava o sequestrador caído no chão, e Lupus deu uma olhada ao redor, perplexo. O único barulho era a respiração ofegante
de Corvus, seguida por um longo gemido de dor. Marcus foi até onde o ajudante de cozinha estava deitado, com a boca abrindo-se lentamente e os olhos arregalados
na direção do teto, em estado de choque.
- Não... consigo... respirar - murmurou Corvus com a voz enrolada e o sangue escorrendo pelo canto dos lábios.
Marcus olhou para baixo e viu o rasgão na túnica dele, que já estava encharcada de sangue. Depois afastou o tecido cuidadosamente e viu a ferida no corpo do companheiro
e o sangue espalhando-se. Apesar do treinamento de Festus, não havia nada que Marcus pudesse fazer para salvá-lo. Dobrou a borda da túnica de Corvus por cima da
ferida e pressionou, tentando estancar o sangue. Corvus gemeu e se contorceu.
- Fique parado, senão vai piorar - ordenou Marcus. - Seja valente, Corvus.
O outro garoto olhou para cima e concordou, balançando levemente a cabeça. Em seguida, ele lambeu os lábios e sussurrou:
- Ela está bem? A senhorita Portia?
- Sim.
Portia escutou seu nome, atravessou o armazém e se ajoelhou ao lado de Marcus. Em silêncio, ela segurou a mão de Corvus. Os olhos dele viraram-se para ela, e ele
sorriu.
- Está vendo só? Estou viva. - Portia forçou um sorriso. - Graças a você.
Houve um breve silêncio antes que Portia apertasse a mão dele e prosseguisse:
- Eu devo a minha vida a você. Vou fazer com que você receba uma recompensa maravilhosa. Prometo. Há poucos escravos que seriam tão leais.
Corvus franziu a testa e se esforçou para responder enquanto lutava para respirar:
- Não fiz isso... porque você... é minha dona. Fiz isso... porque você estava... em perigo.
De repente, ele entrou em convulsão e se soltou de Marcus. Um enorme jato de sangue escorreu para fora da ferida.
- Marcus, faça algo! - gritou Portia, segurando a mão do ajudante de cozinha.
Marcus segurou Corvus contra o chão com uma das mãos e tentou pressionar a ferida com a outra. Corvus começou a tremer, os olhos piscando violentamente. Então ele
soltou um longo suspiro e seu corpo caiu contra o chão, sem vida. Marcus manteve a mão na ferida por mais um instante caso houvesse alguma chance de Corvus ainda
estar vivo. Portia continuou segurando a mão dele, seu lábio inferior tremendo.
Por um instante, ninguém disse nada. O único barulho era o burburinho distante da multidão no Fórum.
- Ele morreu, não foi? - perguntou Lupus, em pé ao lado deles. - Corvus...
Marcus olhou ao redor e viu que o rosto de Lupus estava tomado pelo luto. Ele tentou consolá-lo.
- Ele passou para o mundo das sombras. Agora ele está livre, Lupus.
- Ele está morto - respondeu o garoto amarguradamente. - Uns poucos anos de escravidão e agora morreu.
Lupus abaixou-se e segurou a outra mão de Corvus. Marcus viu as lágrimas reluzindo nos olhos dele.
- Ele era como um irmão para mim. Era toda a família que eu tinha.
Portia olhou para ele, que estava do outro lado do corpo.
- Eu... eu não tinha ideia.
- E como teria? Para você, a gente não passa de parte da mobília da casa do seu tio. E agora... ele simplesmente vai ter que comprar um novo ajudante de cozinha.
Delicadamente, Marcus pôs a mão no ombro dele.
- Mais tarde nós ficamos de luto, Lupus. Agora precisamos tirar a senhorita Portia daqui.
Portia balançou a cabeça.
- Não podemos simplesmente abandoná-lo aqui. Não... não é certo.
- Vamos mandar alguém vir buscá-lo quando chegarmos em casa - respondeu Marcus. - Assim ele poderá ter um enterro digno.
- Sim. - Portia concordou com a cabeça. - Eu mesma cuidarei disso.
Ela se levantou, e Marcus estava tirando Lupus de perto do corpo quando escutaram uma risada baixinha vindo do lado oposto do cômodo.
- Que comovente. - O homem com os pedaços de madeira na barriga deu uma risada seca e se contorceu. - Logo mais vocês todos vão se juntar a esse garoto aí. Vocês,
Caesar e o resto.
Lupus pegou o pedaço de pau que tinha usado para atacar o outro homem, mas Marcus agarrou o braço dele para detê-lo.
- Espere.
- O que foi? - retrucou Lupus raivosamente. - Deixe que eu mate os dois.
- Ele está acabado. - Marcus fez sinal com a cabeça para o homem que sorria desdenhosamente. - O amigo dele também, assim que o dono deles descobrir que eles fracassaram.
- Então não vai fazer nenhuma diferença - insistiu Lupus.
- Vai sim, é o que nos torna diferentes deles, e isso importa mais do que tudo. Além disso, temos que sair daqui. Agora.
Lupus ficou encarando Marcus, confuso. Em seguida, o garoto fez sim com a cabeça lentamente e abaixou o pedaço de madeira. Virou-se para o homem que estava aos seus
pés e cuspiu nele antes de ir em direção à porta. Marcus segurou o braço de Portia delicadamente e a guiou na direção de Lupus. No entanto, antes que chegassem à
porta, o homem os chamou.
- Vocês estão mortos! Sabiam? Mortos. Acham que esse é o fim? Só vamos descansar quando você e seu precioso tio sangrarem até a morte no meio das ruas!
Marcus sentiu Portia estremecer. Em seguida, ela falou com voz baixa e entorpecida:
- Me tire daqui, Marcus. Me leve para casa.
12
- Isso é um ultraje - disse Caesar baixinho quando Marcus terminou o relato do sequestro de Portia.
O cônsul estava sentado em uma cadeira em seu escritório particular com o general Pompeius quando Marcus, Portia e Lupus voltaram, machucados e desgrenhados. Assim
que Marcus explicou para Festus o que acontecera, este mandou um grupo de homens buscar os corpos de Corvus e dos dois sequestradores. Os dois garotos e a dona deles
foram levados até o escritório de Caesar para descrever os acontecimentos com detalhes.
- Realmente um ultraje - concordou Pompeius, balançando a cabeça. - E não foi um incidente isolado. Primeiro, Crassus foi atacado, e agora sua sobrinha. E, pelo
que o seu escravo está dizendo, os inimigos estão querendo ameaçar a sua vida também. Parece que seus oponentes políticos estão jogando mais forte, meu caro Caesar.
E eles vão pagar um preço bastante alto por essa loucura. É só eu dar a ordem que meus veteranos saem pelas ruas fazendo buscas até encontrar os homens por trás
desse ataque covarde.
Caesar recusou com um gesto.
- É exatamente isso que eles querem. No instante em que seus seguidores forem para cima das pessoas, pode ter certeza de que Cato, Cicero e seus nobres amigos do
Senado vão avisar para todo mundo que a tirania está de volta às ruas de Roma. Se as pessoas acreditarem nisso, nós estaremos acabados, você, Crassus e eu. Seremos
chamados para nos explicarmos a respeito das acusações que inventarem contra nós, e pode ter certeza de que o júri vai ter muitos dos nossos inimigos. Nós três seremos
exilados, e nossas propriedades, confiscadas.
- Então o que podemos fazer? - Pompeius levantou as mãos no ar. - Vamos deixar eles se safarem?
- Não, com certeza não. - Caesar balançou a cabeça. - Mas, independentemente do que fizermos, não podemos antagonizar nossos defensores no Senado. Mais tarde lidaremos
com isso. Mas agora...
Ele parou e estendeu a mão para Portia.
- Venha aqui, minha querida.
Portia deu passos leves para a frente e segurou a mão dele. Caesar olhou para ela com o rosto inclinado e pôs a mão na bochecha dela.
- Tem certeza de que eles não a machucaram?
- Estou bem, tio. Abalada, mas não ferida. Graças a Marcus, Lupus e Corvus.
- Ah, sim, o ajudante de cozinha que morreu na luta. Ele é substituível. Você, não.
- Corvus deu a vida para me salvar, tio - disse Portia com cuidado. - Foi muito valente e nobre da parte dele.
- Claro que foi. - Caesar abaixou a mão e fez um carinho no braço dela.
- Marcus também. Ele lutou como um leão e conseguiu se livrar de um dos homens antes de ficar encurralado.
- Ele terá sua recompensa - disse Caesar calmamente, e depois fez sinal com a cabeça para Lupus. - O outro garoto também. Nunca será dito que Caesar era ingrato.
Pompeius soltou uma risada desdenhosa.
- Recompensar o escravo? Por quê? Foi graças a esse jovem tolo que ela foi sequestrada em plena luz do dia. - Ele se inclinou para a frente na cadeira e apontou
o dedo para Marcus. - Era seu dever proteger a sobrinha de Caesar. Que espécie de guarda-costas você acha que é, hein? É para prestar atenção nela o tempo inteiro,
mas Portia foi raptada bem na sua frente. Eu não acho mesmo que você devia ser recompensado. Na verdade, se fosse meu escravo, você seria açoitado ou pregado por
aí para alertar meus outros escravos do preço de não se fazer um trabalho direito.
Marcus escutou tudo em silêncio. Não podia fazer nada. Era escravo e não tinha o direito de se defender. Se fizesse isso, correria grande perigo. Ainda estava tomado
pela vergonha de não ter conseguido proteger Portia e morrendo de raiva da maneira como Pompeius estava falando com ele. Para piorar, aquele era exatamente o homem
de quem ele queria ajuda para encontrar e libertar sua mãe. Agora ele o estava tratando com desprezo e hostilidade. Por que o general o ajudaria?
- Não foi culpa de Marcus - interveio Portia.
Pompeius virou-se para ela, transformando sua expressão de raiva em um olhar gentil de preocupação.
- Eu acho que foi, minha querida. Eu já ficaria com raiva se ele tivesse somente cometido um erro no trabalho. Mas o fato de isso ter acontecido quando ele estava
cuidando da jovem que em breve fará parte da minha família é imperdoável.
- Não. Foi culpa minha aqueles homens terem me capturado sem Marcus saber. Eu mandei que ele e os outros dois ficassem esperando fora da loja. Ele estava apenas
obedecendo às ordens que recebeu. Eu não o culpo. O senhor também não deveria fazer isso.
Pompeius sorriu para ela.
- Você tem um bom coração, menina. Mas você não compreende que um homem, seja qual for a idade dele, não tem nenhuma desculpa para deixar de cumprir seu dever. É
por isso que ele deve ser punido.
Caesar balançou a cabeça.
- Ele não será punido. Eu já estava devendo a Marcus por ele ter salvado minha sobrinha uma vez, e hoje fiquei devendo mais ainda. Olhe só para ele. Está vendo os
machucados e os cortes? Não duvido de que ele tenha arriscado a vida para salvar minha sobrinha. Marcus, mais uma vez, eu lhe agradeço.
Marcus ficou grato por ver que seu dono não pensava igual a Pompeius. Saudou-o com a cabeça e respondeu o mais calmamente possível:
- Sim, Caesar.
- Você será recompensado quando for a hora.
Antes que Marcus pudesse responder, ouviram uma batida brusca à porta e Caesar se endireitou na cadeira.
- Pode entrar!
A porta abriu-se, e Festus entrou no escritório, vermelho por ter voltado correndo da favela. Ele fechou a porta, aproximou-se de Caesar e abaixou a cabeça rapidamente.
- E então? - perguntou Caesar. - O que encontraram?
- Estamos com o corpo do garoto, amo.
- E os dois homens?
- Não havia mais nenhum corpo dentro do armazém. Entretanto, havia uma mancha de sangue que ia até lá fora. Nós seguimos o rastro e encontramos o corpo de um homem
jogado em um beco nas proximidades. Eu mandei os homens o trazerem para cá também.
- E o outro agressor?
- Nenhum sinal dele, amo.
- Que pena. Teria sido útil questioná-lo. Precisamos descobrir quem mandou raptar minha sobrinha. - Ele se virou para Marcus. - Aproveitando que ainda está com a
memória fresca, o que consegue lembrar sobre esses homens?
Marcus pensou.
- Eles não pareciam homens comuns, amo. Eram bem fortes. Tinham cabelos bem curtos, como se fossem soldados ou gladiadores. Moviam-se como lutadores profissionais.
- Gladiadores? - Pompeius ergueu as sobrancelhas. - Acha que nossos oponentes estão chegando ao nível de usar gladiadores contra nós?
- Por que não? - respondeu Caesar. - Faz todo o sentido. Se Cato e os outros estão levando a nossa disputa para as ruas, então por que não empregar homens que sabem
lutar? Na verdade, eu é que devia ter pensado nisso primeiro. Sou dono de várias escolas de gladiadores na Campânia.
- Claro que está brincando - disse Pompeius. - Pense no que os cidadãos achariam se um cônsul soltasse bandos de gladiadores para cima deles. Seria um escândalo.
Pior do que isso, seria um erro.
Caesar refletiu por um instante e abriu um sorriso.
- Tem razão. Eu estava brincando. De todo jeito, vou mandar buscarem alguns dos meus melhores gladiadores e deixá-los aquartelados perto de Roma, só para garantir.
Pompeius inspirou rapidamente.
- É você que vai se dar mal, Caesar. Só não faça com que nosso amigo Crassus e eu paguemos por isso também.
Marcus lembrou-se da conversa que teve com Portia no jardim. Parecia mesmo que a aliança entre aqueles três poderosos aristocratas era instável, baseada em suspeita
mútua, não em afeto. No entanto, Caesar tinha deixado o sobrinho desse homem se casar com sua sobrinha - uma jogada que mostrava que sua ambição era maior do que
seu amor pela família. Caesar podia até ter poupado Marcus da punição dessa vez, mas o garoto não podia se esquecer de que um escravo não significava nada para ele,
e por isso mesmo endureceu seus sentimentos.
Caesar estava alisando o próprio queixo enquanto pensava na situação.
- Se o outro lado decidiu usar gangues para nos enfraquecer, então devemos reagir à força com mais força. O difícil vai ser encontrar uma pessoa intermediária que
tenha ligações com as gangues de rua de Roma. Alguém que possa ser convencido a usar sua influência em nosso benefício. - Ele olhou para cima e fixou os olhos em
Pompeius. - E essa pessoa existe.
Pompeius pensou brevemente, e seus olhos arregalaram-se, alarmados.
- Ele não. Clodius não. Por favor, Clodius não. Aquele homem é um mercenário, é quase tão ruim quanto um criminoso qualquer. Não podemos usá-lo.
- Por que não? Ele pode muito bem ser a resposta para as nossas dificuldades.
- Ou apenas mais uma dificuldade, fazendo tudo piorar.
- Vamos sondá-lo. Vamos trazê-lo até aqui e conversar com ele.
- Sob que pretexto?
Caesar pensou por um instante e sorriu.
- Para que ele possa nos ajudar a identificar o corpo do homem que atacou minha sobrinha. Depois disso, podemos mudar de assunto e ver o que ele diz. O que acha?
Pompeius balançou a cabeça.
- Eu acho que você é louco. Mas... você tem razão, não existe nenhuma pessoa mais bem relacionada com os criminosos de Roma do que Clodius.
Caesar assentiu.
- Então será Clodius mesmo. Agora ele está na vila dele em Baiae. Vou mandar chamarem-no imediatamente.
No silêncio que se seguiu, Portia olhou para Marcus antes de se dirigir ao tio.
- Primeiro temos que cuidar de Corvus.
- O quê?
- O ajudante de cozinha que salvou minha vida - lembrou-o Portia. - Eu prometi que ele teria um enterro digno.
Caesar acenou com a mão desdenhosamente.
- Não é necessário.
- Eu prometi, tio.
Caesar franziu a testa para ela, e Marcus se perguntou se ele recusaria. Caesar deu de ombros e assentiu.
- Tudo bem, pode usar uma das carroças. Faça isso à primeira luz da manhã e volte assim que terminar.
- Sim, tio.
Caesar estalou os dedos para Festus.
- E você vai com eles. Leve dois de seus melhores homens também.
- Sim, amo.
- Agora preciso ficar a sós com o general Pompeius. O restante de vocês pode ir embora.
Eles saíram do escritório, e Marcus olhou para os dois homens que começavam a conversar baixinho. Concentrou-se em Pompeius, forte, vestindo, com elegância, túnica
e manto roxos, escravo do próprio egoísmo. Marcus estava decidido a mostrar a Pompeius que ele tinha cometido um erro ao acusá-lo de não ter conseguido proteger
Portia. Precisava mostrar seu valor a ele de alguma maneira. Só assim seria capaz de pedir a única recompensa que queria de Pompeius ou Caesar - liberdade para ele
e para sua mãe, e, um dia, vingança de Decimus e de seu capanga, Thermon.
13
O sol ainda não tinha nascido, e a carroça já era empurrada pelas ruas frias e silenciosas da capital. Os galos jovens que ficavam dentro dos muros da cidade ainda
não tinham cantado. As incontáveis pessoas aglomeradas nos conjuntos habitacionais e nas casas dormiam. Festus e seus homens lideravam a pequena procissão de silhuetas
encapuzadas. Com uma mula na frente, uma carroça de duas rodas aparecia logo depois, contendo um esquife simples com o corpo de Corvus enrolado em um lençol branco.
Marcus segurava as rédeas da mula, e Portia estava atrás da carroça com Lupus a alguns passos de distância. O corpo estava deitado em cima da lenha que seria usada
na pira, e havia um machado para cortar mais madeira caso fosse necessário. Ninguém disse nada enquanto o grupo atravessava o portão da cidade. Os sentinelas sonolentos
que estavam terminando o turno passaram por eles.
Do lado de fora, uma fina camada de névoa cobria o chão enquanto a carroça chacoalhava pelas ruas que seguiam para o sul, em direção a Campânia. Logo após cruzarem
o portão, passaram por uma enorme vala aberta onde eram deixados os cadáveres de pessoas desconhecidas e abandonadas após serem borrifados com lima. Pequenos montes
nas laterais da estrada indicavam as localizações de valas comunais mais antigas. Um pouco adiante na estrada surgiu o primeiro túmulo. De longe, parecia estar flutuando
no meio da névoa que se movia lentamente. Marcus não pôde deixar de estremecer nervosamente ao ver outros túmulos aparecendo mais à frente, espalhando-se dos dois
lados.
- Que lugar é esse? - perguntou ele, perplexo.
- É a Necrópolis, a cidade dos mortos - explicou Festus baixinho. - É onde são enterrados os restos mortais de gerações de romanos. As leis da cidade proíbem a cremação
e o enterro de mortos dentro da própria cidade para todas as pessoas, exceto para os cidadãos mais honrados.
Marcus fez sim com a cabeça enquanto olhava cautelosamente para os contornos turvos dos túmulos dos dois lados. Continuaram em silêncio por mais um tempo até Festus
parar de andar.
- Ali. - Festus apontou para um monte descoberto a uma pequena distância. Marcus assentiu e direcionou a mula para fora da superfície pavimentada, indo para o terreno
irregular. A carroça balançou, chacoalhando entre os túmulos silenciosos antes de chegar ao terreno aberto. A rota até o monte estava desgastada e havia dois caminhos
até o cume, onde Festus ordenou que parassem. Enquanto levava a mula até o toco seco de uma árvore, Marcus notou que a terra estava com marcas de cremações anteriores.
Festus gesticulou para Lupus e Marcus.
- O costume é que as pessoas mais próximas do falecido façam a pira, mas vocês preferem que eu e meus homens façamos isso?
Marcus olhou para Lupus e percebeu pelos lábios trêmulos do garoto que ele ainda não estava pronto para falar. Marcus limpou a garganta.
- Lupus e eu vamos fazer.
- E eu - acrescentou Portia.
Por um instante pareceu que Festus protestaria, mas ele concordou:
- Como quiser, senhorita.
Enquanto Lupus e Marcus erguiam o esquife da carroça e o carregavam, Portia seguiu-os, colocando ao lado do corpo a lenha que havia pegado.
- Não, não é assim - disse Festus gentilmente. - Deixe que eu mostre a você.
Ele voltou para a carroça e pegou os dois suportes que guardara com a lenha. Com ajuda de seus dois homens, ergueu o esquife e o apoiou nas duas extremidades, deixando-o
na altura de sua cintura.
- A lenha vai embaixo - explicou ele.
Após os dois garotos e Portia colocarem toda a lenha bem unida debaixo do esquife, Festus tirou uma caixa com material inflamável da bolsa e o riscou em cima das
camadas de linho chamuscado. Assim que uma pequena chama se acendeu, ele pôs fogo na pilha de musgo seco embaixo do esquife. As chamas espalharam-se rapidamente
com um leve crepitar, subindo pela lenha e tomando o corpo amortalhado.
Marcus ficou observando por um instante até um brilho distante chamar a sua atenção. Estava a mais de um quilômetro de distância, do lado oposto da estrada ladeada
de túmulos. Ficou confuso com as chamas fantasmagóricas que ondulavam no meio da névoa e então percebeu que estava vendo uma segunda cremação. Em seguida, avistou
mais um brilho, e ainda mais outro do lado oposto do rio Tibre, depois dos tetos com telhas e templos com colunas de Roma. Marcus percebeu que havia outras pessoas
lá, de luto pela morte de um amigo ou parente. A morte era o único fato que tornava todos iguais.
Não, ele se corrigiu. Nem todo mundo. De todas as piras queimando naquela manhã, ele tinha quase certeza de que a de Corvus era a única que honrava a morte de um
escravo. Virou-se para as chamas que consumiam o corpo do garoto. A morte era uma tragédia para aqueles que eram livres. Para os escravos, no entanto, era uma libertação,
percebeu Marcus.
As chamas bramiam ao redor do cadáver de Corvus e subiam, chamuscando a mortalha branca e queimando as beiradas até começar a incinerar a carne morta. O odor da
carne queimando encheu o ar, e Marcus sentiu um aperto no estômago de desgosto e horror. O esquife e os suportes terminaram destruídos, e o corpo caiu no meio das
chamas, fazendo centelhas rodopiarem no ar durante o amanhecer. O sol se erguia diante das colinas ao leste, fazendo o céu se encher de um tom rosado, e o fogo começou
a diminuir. O pequeno grupo ficou em silêncio até as últimas chamas tremeluzirem fracamente e apagarem de vez, deixando finos rastros de fumaça subindo das cinzas
e restos carbonizados.
Festus pegou uma pá e uma pequena urna na carroça, afastou os pedaços maiores de matéria escurecida com a ponta da pá e varreu o resto para dentro da urna. Pressionou
a tampa de volta no topo encerado e estendeu o objeto.
- Quem vai enterrar isto?
Portia balançou a cabeça, e Marcus gesticulou para Lupus.
- Ele era seu amigo.
Lupus assentiu, pegou a urna e a encostou no peito com lágrimas escorrendo pelo rosto.
Marcus tocou no ombro dele.
- Juro por todos os deuses que vamos nos vingar por Corvus. Vamos encontrar os responsáveis pela morte dele, e eles vão pagar com a própria vida.
Marcus não tinha ideia de como faria isso, mas prometeu a si mesmo e a Corvus que faria tudo o que pudesse para concretizar essa vingança.
14
Após o funeral, Caesar decidiu que era perigoso demais Portia sair na rua novamente enquanto a disputa entre as facções políticas estivesse tão mordaz. Ele deu instruções
para ela ficar dentro de casa. Além disso, Portia contara para Marcus, um tanto amargurada, que ela havia sido prometida para o sobrinho do general Pompeius, e era
costume que as damas da nobreza fossem afastadas das tentações durante os preparativos do casamento, a fim de garantir que não fugissem com um novo admirador. Como
Marcus não tinha mais trabalho a fazer, Festus ordenou que ele continuasse o treinamento.
Cada manhã, Marcus ia para o pátio treinar contra a coluna com sua espada e sua clava, e depois com as facas arremessáveis e a atiradeira. Festus saía da casa para
orientar o treinamento, repreendendo Marcus fortemente quando ele não conseguia o resultado necessário, e às vezes dava conselhos ou ensinava-lhe uma nova técnica
de luta de rua. Ao meio-dia, Festus deixava Marcus fazer um intervalo enquanto ia tomar uma bebida com seus homens. Lupus levava para Marcus uma pequena jarra com
vinho bem diluído, além de pão e azeite para os dois dividirem.
Seis dias após o ataque, Marcus estava sentado na carroça durante um desses intervalos e fez uma pergunta que o inquietava havia dias:
- Quando a senhorita Portia se casar, ela vai se mudar daqui?
Lupus mergulhou o pão no azeite enquanto concordava.
- Claro que vai. - Ele rasgou um pedaço de pão e o mastigou vigorosamente. - Por que está perguntando isso?
- Porque ela ainda precisa de proteção. É o meu trabalho. O meu dever.
- Não vai ser mais quando ela se casar. O sobrinho de Pompeius vai cuidar dela. Tenho certeza de que ele tem muitos escravos para protegê-la. - Lupus fez uma pausa,
segurando outro pedaço de pão. - É engraçado, a senhorita Portia fez exatamente a mesma pergunta outro dia. Eu a escutei conversando com Caesar. Ela estava insistindo
que você continuasse com ela.
Marcus ficou mais esperançoso. Ele tinha lançado indiretas para que Portia pedisse que ele fosse com ela para a nova casa. Talvez ainda houvesse chance de ele chegar
perto de Pompeius e pedir ajuda. Marcus engoliu a comida, limpou a garganta e perguntou:
- O que Caesar respondeu?
- Ele disse que não pode fazer isso porque você é valioso demais. - Lupus apontou o dedo para Marcus. - Mas não vá ficar convencido só por causa disso.
- Valioso? Eu? - Marcus ficou confuso. - Por que sou valioso?
- Você pode até ter o trabalho de proteger a senhorita Portia atualmente, mas é óbvio que você tem potencial para ficar famoso na arena, beneficiando a reputação
do seu dono. - Lupus encarou Marcus, observando-o. - Ouvi o senhor dizer que ele nunca viu um garoto tão perfeito para a vida de gladiador. Você dominou todas as
armas que Festus lhe deu. Festus já acha que você é forte e que, com o tempo, será tão forte quanto qualquer outro homem que pisar na arena. Mas ele também disse
que é mais do que isso. Você é rápido e decidido.
- Ele disse isso? - Marcus foi tomado por orgulho.
Lupus fez sim com a cabeça.
- Ele disse que é como se você já tivesse nascido um lutador, que você deve ter puxado ao pai. Imagino que ele era algum tipo de guerreiro, não?
Marcus concordou lentamente com a cabeça enquanto preparava uma mentira.
- Ele era um centurião. Serviu sob o comando do general Pompeius no leste.
Lupus franziu a testa.
- Então como foi que você virou escravo?
Marcus contou a história da morte de Titus nas mãos dos capangas de um cobrador de impostos e que ele e a mãe foram levados para serem vendidos como escravos. Omitiu
propositadamente o fato de que tinha fugido de seu dono inicial antes de ser capturado por Porcino para frequentar sua escola de gladiadores. Também não falou de
Decimus. Marcus gostava de Lupus e achava que podia confiar nele, mas era melhor ficar calado até descobrir por que Decimus estava em Roma e o quanto ele era próximo
de Crassus.
- Que história - respondeu Lupus. - Os deuses aprontaram com você. Agora entendo por que quer ir para a casa de Pompeius.
- Ah, é?
- Não nasci ontem. - Lupus deu uma risadinha. - Você quer que o general goste de você para depois poder contar sua história e ver se ele usa o próprio poder para
ajudá-lo a resgatar sua mãe, não é?
Marcus ficou surpreso. Não tinha percebido que seus motivos eram tão óbvios. Não adiantava negar. Concordou com a cabeça cautelosamente.
- Bom, mesmo se você ficar com a senhorita Portia, acho que vai terminar se desapontando. Pompeius trocou a espada por um lugar no Senado. Duvido que ele vá se preocupar
muito com a esposa de um oficial subalterno que saiu das tropas há uma década. Ele provavelmente nem se lembra do seu pai.
- Duvido de que ele tenha esquecido o meu pai... - respondeu Marcus, pensando em Spartacus momentaneamente. Mas logo lembrou que estava falando de Titus, o homem
que o adotara. - Quer dizer, não depois que ele salvou a vida do general.
- Talvez. - Lupus deu de ombros. - Mas não fique muito esperançoso com isso. Também, vamos ser honestos, parece que Pompeius não é muito seu fã... Enfim, pelo que
ouvi, Caesar quer ficar com você para que siga carreira na arena.
Marcus sentiu um aperto no coração. Odiava não ter controle algum sobre o próprio destino - como é que poderia libertar a mãe enquanto fosse um escravo, tendo o
destino decidido pelo dono? E ficava nauseado com a ideia de uma vida de lutas contra outros escravos em areias ensanguentadas, ouvindo sem parar os gritos selvagens
de uma audiência cruel.
- Marcus!
Eles se viraram para olhar o outro lado do pátio e viram Flaccus acenando.
- O senhor quer que você vá até o escritório dele imediatamente.
Lupus e Marcus trocaram um olhar. Em seguida, Marcus abaixou a caneca e levantou-se.
- Até mais tarde.
Havia mais alguém com Caesar e Festus no escritório quando eles chegaram. Era um homem alto e magro, que vestia uma túnica de estampa chamativa. Usava anéis em todos
os dedos e uma grossa corrente de ouro ao redor do pescoço, de onde pendia uma grande esmeralda em um engaste dourado. Seu cabelo era castanho-claro e meticulosamente
penteado em pequenos cachos perto da raiz. Seu rosto tinha feições delicadas, quase femininas, e olhos vivos que observaram Marcus atentamente quando o garoto entrou
no cômodo.
- É esse o garoto? - perguntou ele.
- Sim - respondeu Caesar. - Você não vai encontrar um aluno tão promissor em nenhum lugar do sul, tampouco de Roma, meu caro Clodius.
O outro homem inclinou-se para a frente na cadeira e analisou Marcus atentamente.
- Hummm. Não tenho certeza. Estou achando ele um pouco magrinho. Aproxime-se, garoto.
Marcus obedeceu e parou perto de Clodius, à distância de um braço. Lembrou-se da conversa de Caesar e Pompeius a respeito do caráter duvidoso dele. Clodius franziu
a testa, irritado.
- Mais.
Marcus chegou mais perto, apesar de o homem ter um cheiro tão doce que o deixava nauseado.
Clodius virou-se para Caesar.
- Posso?
Caesar sorriu indulgentemente.
- À vontade.
Clodius estendeu o braço e apertou o ombro de Marcus com força, que se contorceu um pouco, mas ficou parado, olhando friamente os olhos do homem.
- Ah, não gostou disso, não é? Você tem alguma fibra então. - Clodius riu, abaixou a mão até o bíceps de Marcus e apertou devagar. - Ele tem bom tônus muscular,
Caesar. Duro e firme. Talvez você tenha razão. Está fazendo-o treinar com uma rede e um tridente para ser um reciário?
- Foi o que pensei inicialmente. Mas com uma dieta correta e exercício ele pode ganhar corpo o suficiente para treinar como um lutador pesado. - Caesar respirou
fundo. - Mas já basta desse assunto. Não estamos aqui para falar do futuro de Marcus. Temos outras coisas para resolver. Como estava dizendo, foi Marcus que salvou
a vida da minha sobrinha, duas vezes já.
- Não posso dizer que não estou surpreso - observou Clodius. - Estava esperando alguém um pouco mais... velho.
- Ele tem idade suficiente para os nossos propósitos - respondeu Caesar. Ele se levantou e gesticulou para a porta. - Vamos, vejamos qual vai ser sua opinião a respeito
do nosso, hum, achado. Festus, vá na frente.
- Sim, amo. - Festus abaixou a cabeça e indicou que Marcus devia segui-lo enquanto virava para a porta. Eles foram até o corredor e atravessaram o jardim em direção
ao alojamento dos escravos. Depois da cozinha, havia uma escada estreita que levava a um depósito subterrâneo onde as comidas perecíveis eram armazenadas. Havia
duas câmaras espaçosas com respiradouros que deixavam entrar luz suficiente para que se pudesse enxergar o conteúdo das prateleiras. Ao passarem pela abóbada que
unia os dois cômodos, um cheiro horrendo alcançou o grupo. Marcus enrugou o nariz, enojado.
- Minha nossa, Caesar! - exclamou Clodius. - Sua carne está estragada.
Caesar sorriu sombriamente enquanto levava o grupo para dentro da segunda câmara.
- Lá está a carne.
Havia uma grande mesa encostada na parede oposta, e em cima dela estava o corpo de um dos homens que atacara Portia. A pele dele estava pálida, com manchas azuis
espalhadas. O queixo do homem pendia relaxado, e os olhos arregalavam-se na direção dos tijolos aparentes do teto baixo e arqueado. De perto, o cheiro doce e enjoativo
era insuportável, e Marcus precisou tapar as narinas para evitar o fedor. Ao seu lado, Festus também parecia estar tendo dificuldades para controlar a náusea. Clodius
puxara a borda do manto para cima, cobrindo a boca e o nariz. Apenas Caesar parecia não se incomodar, encarando o corpo friamente por um instante. Depois se virou
para Clodius.
- E então? Você o conhece?
Clodius inclinou-se por cima do cadáver e analisou o rosto.
- Não. Não conheço. Esse sujeito tem uma aparência repugnantemente comum. Parece ser só mais um bandido de rua... - Ele rolou a manga da túnica do cadáver, subindo-a
até o ombro. - Mas veja isso aqui.
Marcus e os outros se inclinaram para a frente. Havia uma tatuagem no ombro do homem morto: duas adagas cruzadas.
Clodius endireitou a postura, acenando a cabeça.
- É o símbolo dos Lâminas, uma das gangues do distrito de Aventino. São figuras péssimas. Normalmente eles prestam serviços de proteção e, pelo preço certo, liquidam
qualquer pessoa de Roma, até mesmo senadores. E, claro, hoje em dia quem manda em tudo é Milo, que foi contratado por Bibulus, Cato e Cicero para ficar contra os
seus defensores, apesar de não ser possível provar isso. Bibulus talvez até seja um tolo, mas ele nunca seria tão burro de deixar rastros de sua conexão com as gangues
mais famosas de Roma. E se ele chegou ao ponto de recorrer aos Lâminas, então você e seus amigos estão em perigo, Caesar. - Ele se virou para Marcus com um olhar
curioso. - Se você conseguiu derrotar esse homem e outro membro da gangue dele, então você é bastante valente, jovem Marcus. E também bastante tolo. Esses homens
teriam matado você em um piscar de olhos. Na verdade, tenho certeza de que eles adorariam fazer isso e da maneira mais lenta possível. - Ele lambeu os lábios ao
pensar nisso.
Marcus conteve a vontade de estremecer e respondeu:
- Eu não duvidei disso na hora, amo. Mas a senhorita Portia estava correndo perigo. O que mais eu poderia fazer?
- Se fosse eu, teria ido atrás de ajuda.
- E minha sobrinha estaria morta - interrompeu Caesar friamente. - Nenhum de nós está mais em segurança. Nossos inimigos são mais determinados e perigosos do que
eu imaginava.
Clodius pressionou os lábios e assentiu.
- Tem razão. Então, o que vai fazer, Caesar? Parece que está precisando de ajuda.
Marcus viu Caesar comprimir os olhos, encarando Clodius.
- Eu sei. É por isso que mandei chamarem você.
Clodius deu um leve sorriso.
- E o que você quer de mim?
- Se nossos inimigos estão usando gangues de rua para intimidar e ferir nossos defensores, então devemos reagir à violência com violência. Nós sabemos das suas conexões
com algumas das gangues e queremos que você arranje apoio para o nosso lado.
Clodius refletiu por um instante antes de responder:
- Posso fazer isso. Mas vou cobrar um preço. Essas gangues são implacáveis, Caesar. Elas fazem de tudo para controlar os distritos. Qualquer pessoa que atrapalhe
o caminho delas é assassinada, muitas vezes esquartejada em plena luz do dia, só para que todo mundo entenda o recado. Se for para eu trabalhar com elas, preciso
contratar minhas próprias gangues. E isso não vai sair barato. - Os olhos dele reluziram.
Caesar deu de ombros.
- Qualquer que seja o preço, Crassus tem dinheiro para pagar os serviços da escória dessas suas gangues de rua.
- Tenho certeza disso. Mas estou falando do meu preço, Caesar.
- Do seu preço? Quanto você quer?
- Nada que você possa pagar. Não quero ouro nem prata de você.
- Então o que você quer? - perguntou Caesar impacientemente.
Houve uma pausa.
- Gosto bastante da ideia de me tornar um tribuno.
Marcus lembrou-se do que Lupus lhe explicara sobre o que era um tribuno - era um cargo em que as pessoas defendiam os direitos dos cidadãos comuns.
Caesar arregalou os olhos, surpreso, e balançou a cabeça.
- Impossível! Assim você controlaria o povo. Além disso, você é um senador, e o cargo de tribuno só pode ser assumido por plebeus.
- Já pensei nisso. E existe uma maneira de desviar-se desse obstáculo. Posso ser adotado por um homem do povo, um plebeu, e você tem o poder de autorizar a minha
adoção. Depois disso, eu serei livre para me candidatar ao cargo de tribuno. E depois, quando eu for tribuno, posso fazer com que o povo fique do seu lado.
Enquanto Caesar pensava na proposta, Festus e Marcus ficaram em silêncio. Marcus não pôde deixar de pensar em como é que aqueles dois homens poderosos conseguiam
traçar seus planos desleais na frente dos escravos, como se eles nem estivessem presentes - como se não passassem de parte da mobília.
- Tudo bem, temos um acordo - concordou Caesar, estendendo a mão para Clodius.
Após apertarem as mãos, Clodius apontou para o cadáver.
- Agora que terminamos os negócios, por que não nos afastamos do nosso companheiro malcheiroso? Uma taça de vinho deve ser o suficiente para tirar esse gosto terrível
que a morte costuma deixar na nossa boca.
- Sim... sim, claro. Festus, não precisamos mais do corpo. Você e o garoto podem se livrar dele.
Caesar pôs as mãos no ombro do convidado e o guiou em direção à escada, a caminho da atmosfera mais saudável da casa. Depois que os passos se distanciaram, Festus
virou-se para o corpo e deixou o ar escapar de suas bochechas.
- Então, Marcus, eu seguro debaixo dos braços e você segura os pés.
Marcus não se mexeu. Ele ficou encarando o cadáver, enjoado. Não era o primeiro corpo sem vida que via de perto, mas nunca tinha tocado em um cadáver, e essa ideia
o repugnava. Além disso, Marcus era o responsável pela morte do homem. A mente do garoto foi tomada pelas lembranças da luta apavorante no armazém, fazendo-o sentir
uma náusea bem no fundo do estômago.
- Ele não vai morder, companheiro - disse Festus mansamente. - É só pensar que não é uma pessoa. É apenas um pedaço de carne podre que vamos jogar fora. Só isso.
Marcus desviou a vista do corpo.
- Carne podre? Valeu, assim ficou muito mais fácil.
Festus riu rapidamente e foi para a extremidade da mesa. Ele deslizou as mãos por baixo dos ombros do cadáver e o lançou no chão. O corpo caiu com um baque e ele
o arrastou até o outro cômodo, em direção aos degraus. Marcus foi atrás dele relutantemente. Quando chegaram à escada, Festus acenou com a cabeça.
- Segure os pés dele.
Marcus rangeu os dentes e conteve o enjoo enquanto erguia a panturrilha fria do homem, um pouco acima da bota. A pele estava tão fria e pegajosa que ele se retraiu,
forçando-se a segurar com mais firmeza.
Com muitos grunhidos e palavrões de Festus, eles subiram a escada com o corpo e depois o arrastaram pelo pequeno corredor que dava no pátio.
- Hora de colocá-lo na carroça - ordenou Festus.
Depois que o corpo foi colocado na pequena carroça, Festus cobriu-o com um pedaço velho de tecido de juta.
- Ainda está de dia, então não podemos pegar a mula. Carroças puxadas por animais não podem passar pelas ruas durante o dia. Se a gente puxar, não deve ter problema.
- Para onde vamos levar... ele? - perguntou Marcus. - Para o local onde fizemos o funeral de Corvus?
- De jeito nenhum. Vamos jogá-lo na primeira abertura de esgoto que encontrarmos. Tem uma logo aqui no fim da rua. Mas precisamos estar sozinhos para poder fazer
isso.
Com cada um puxando de um lado, a carroça rolou até a rua estreita. A maioria das pessoas só soltou um gemido enquanto eles abriam espaço para a carroça passar.
Festus direcionou a carroça para dentro de um beco sem saída que começava em uma pequena praça e parou junto a uma grade de ferro de meio metro de largura. Eles
soltaram a carroça e esperaram o fluxo de tráfego humano pela praça diminuir.
Festus olhou de um lado para outro e puxou o tecido de cima do corpo.
- Rápido, mova a grade!
A grade de ferro era pesada, e Marcus tensionou os músculos para levantá-la, deixando-a cair nos pedregulhos ruidosamente. Eles empurraram o corpo para dentro do
bueiro e escutaram o barulho de quando ele caiu na água do esgoto.
Festus suspirou de cansaço.
- Uma época perigosa nos aguarda, Marcus... Já é péssimo o pessoal de Milo fazendo confusão. Se Clodius e seus capangas forem para as ruas também, vai ter muita
luta e morte. As ruas vão ver muito sangue, escreva o que eu estou dizendo.
- Acha mesmo? - perguntou Marcus. - Não é melhor que as gangues briguem entre si? Assim pode ser que elas deixem a gente em paz...
- Ah, claro que as gangues vão brigar entre si. Mas no restante do tempo elas irão pra cima das pessoas normais, vão interromper reuniões e fazer o que puderem para
intimidar o outro lado a ficar quieto. O trabalho delas é meter medo mesmo, e ninguém vai gostar disso. E, sendo escravos ou não, fazemos parte do pessoal doméstico
de Caesar, então também somos alvos. O mesmo vale para Bibulus e seus camaradas depois que Clodius começar a agir. A coisa vai ficar preta. É melhor tomar cuidado,
Marcus.
- Vou tomar sim - afirmou Marcus, olhando para a grade. Se Festus tivesse razão, o homem que tinham acabado de jogar no esgoto era apenas o primeiro de muitos. Parecia
que Caesar e seus inimigos estavam iniciando uma guerra que devastaria as ruas de Roma. E Marcus teria de lutar para sobreviver, assim como fizera na arena da escola
de gladiadores de Porcino. Só que na época o inimigo o chamava para luta. Agora os inimigos podiam atacar a qualquer instante, até no meio de uma rua lotada. Não
podia mais pensar em escapar de sua situação ou em salvar sua mãe, pelo jeito, ele precisaria de toda a sua inteligência e de todas as habilidades que Festus o ensinara
para sobreviver nas ruas da capital.
15
O verão substituíra a primavera, e a temperatura na cidade estava subindo. O ar frio e úmido que enchia ruas e becos estreitos deu lugar a um calor sufocante que
intensificou o fedor do lixo e do esgoto. As chuvas da primavera tinham passado, e algumas torrentes jorravam pelas ruas, lavando a sujeira. Moscas e mosquitos rodopiavam
no ar parado e aumentavam o desconforto dos habitantes de Roma.
Da mesma maneira, o ânimo das pessoas também estava se alterando. Desde o encontro de Caesar com Clodius, quase todos os dias se ouvia falar de alguma briga entre
as gangues deste e de Milo, muitas vezes tumultuando o distrito que cercava o Fórum e chegando até ao próprio Fórum. Centenas tinham sido espancadas ou esfaqueadas
e outras tantas morreram, cada morte trazendo ainda mais raiva e ataques de vingança. Marcus testemunhara alguns tumultos quando acompanhou Caesar e seus homens
até a Casa do Senado. Festus explicara para Marcus que, em uma época normal, a passagem da comitiva era um modo de demonstrar a influência do político. Agora havia
um pequeno grupo de homens fortes indo à frente de Caesar, abrindo caminho e alerta a possíveis perigos, enquanto o restante de seus defensores estava lá para protegê-lo.
Marcus estava usando seu gorro grosso de couro para proteger a cabeça. Era desconfortável e a fazia suar com o calor das ruas da cidade, mas Festus insistiu que
ele não o tirasse, brincando que era para proteger o "investimento de Caesar". Também carregava uma adaga no cinto sob o manto e uma clava robusta embaixo da manga,
pronta para ser usada a qualquer momento. Até então ninguém tinha se atrevido a atacar o cônsul e sua comitiva. No entanto, Marcus achava que em breve isso mudaria.
Enquanto atravessavam o Fórum, pessoas na multidão insultavam Caesar. Marcus temia que, logo depois, os insultos passassem a ser acompanhados de pedaços de sujeira,
ou legumes podres, em seguida, pedras e tijolos. Por fim, terminaria surgindo uma luta sangrenta no meio dos gritos de gente fugindo.
Naquele dia, havia um clima especialmente sinistro permeando a Casa do Senado. Marcus e Lupus observaram Caesar se sentar em seu lugar. Um grupo de senadores cercava
Cato, murmurando baixinho enquanto esperava a sessão começar. Caesar só acenou com a cabeça para o escriba principal quando os bancos estavam quase todos cheios.
O homem deu um passo para a frente e bateu o bastão no chão de ladrilhos para pedir silêncio.
- Em nome do cônsul, Gaius Julius Caesar, declaro que a sessão de hoje está aberta. O cônsul convida a apresentarem o primeiro item a ser discutido.
Imediatamente, Cato levantou-se de braços erguidos, segurando um pergaminho.
- Tenho uma lei para apresentar!
Cato notou o olhar de aborrecimento de Caesar enquanto gesticulava.
- Prossiga.
Cato assentiu e parou para dar uma olhada pela câmara, criando um ar tenso e cheio de expectativa. Antes que pudesse começar a falar, Caesar tossiu e se dirigiu
à câmara primeiro.
- Se não se incomodar, meu caro Cato, não temos o dia todo para suas brincadeiras teatrais. Por favor, desembuche.
Uma risada leve espalhou-se pelo Senado, e Marcus virou-se para Lupus com um olhar interrogatório.
- Por que eles estão rindo?
- O nosso senhor irritou Cato - disse Lupus, sorrindo. - Os atores são a ralé da ralé em Roma. Para um esnobe como Cato, essa comparação deve ter doído. Olha só
pra ele! Ele está furioso.
Marcus viu que Cato estava franzindo tanto a testa enquanto fulminava o cônsul com o olhar que suas sobrancelhas tinham se unido. Ele esperou as risadas passarem
e voltou a falar com um tom amargurado:
- Vamos ao ponto. Caesar pediu que ele próprio passasse a ter o comando sobre nossas províncias celtas do nosso lado dos Alpes quando suas funções como cônsul acabarem.
Ele já provou que é um excelente comandante na Hispânia, e tenho certeza de que ele seria muito eficaz combatendo as ameaças aos nossos interesses na Gália. Entretanto...
- Cato parou e aguardou o silêncio total antes de prosseguir: - Entretanto, existe uma questão mais urgente precisando das habilidades militares de Caesar. Todos
vocês ouviram falar dos ataques contínuos às vilas e fazendas perpetrados pelos bandos de salteadores que se escondem nas colinas e montanhas do Império. Muitos
desses bandos têm como membros o restante do exército rebelde de Spartacus, escravos foragidos que continuam aterrorizando seus senhores e desafiando a autoridade
de Roma. Enquanto eles viverem, o espírito do próprio Spartacus continuará vivo! - Cato apontou o dedo no ar. - E agora há até relatos de que surgiu um novo líder.
Um calhorda chamado Brixus...
Marcus sentiu um frio percorrer a espinha. Será que era o mesmo Brixus que conhecera na escola de gladiadores? Ele dissera a Marcus que lutaria contra a escravidão
até o último suspiro e insistiu que o garoto se juntasse a ele.
- Até que os últimos defensores de Spartacus sejam eliminados, nós correremos o enorme risco de uma nova revolta explodir! - exclamou Cato. - As consequências serão
bem piores do que na revolta anterior. Portanto, eu proponho que o Senado encarregue Caesar de capturar e eliminar todos os rebeldes e salteadores do Império. Só
assim os romanos respeitáveis vão poder dormir tranquilos à noite, sem ter medo de serem assassinados nas próprias camas por aqueles que ainda seguem os passos de
Spartacus.
Cato sentou-se abruptamente e cruzou os braços enquanto seus defensores aplaudiam intensamente. Marcus viu o sorriso desdenhoso no rosto de Cato e virou-se para
Caesar, que estava bem imóvel na cadeira, fulminando o oponente político com o olhar. Apesar disso, Marcus notou que seu senhor estava com o rosto pálido, e o maxilar
tenso denunciava a raiva que fervia dentro dele. Marcus compreendia sua raiva. Cato não queria que Caesar melhorasse sua reputação militar; ele tentava se livrar
de Caesar mandando-o pacificar o interior. Se os inimigos de Caesar não conseguissem obter sucesso pelo Senado, a que ponto chegariam? Marcus e Lupus tinham escutado
as ameaças dos sequestradores de Portia - a vida de Caesar estava correndo perigo, e Cato acabara de agravar a situação.
O escriba bateu o bastão, pedindo silêncio. Caesar parou por um instante antes de se levantar para responder:
- A proposta do senador Cato me deixou um pouco surpreso, pois a área em que vou trabalhar quando sair do cargo de cônsul já tinha sido definida. Precisarei consultar
os escrivães para ver se há precedentes para uma mudança como essa. O trabalho do Senado ficará em suspenso enquanto eu estiver investigando o assunto.
Cato ergueu-se imediatamente.
- Há precedentes sim. Eu conferi. A única coisa que falta é a proposta ser votada.
Os defensores de Cato gritaram para apoiá-lo. O escriba bateu o bastão mais uma vez e se virou para Caesar.
- Eu mesmo vou investigar isso, e o Senado vai voltar a analisar a proposta à tarde.
As palavras do cônsul foram recebidas com uivos de protestos de Cato e seus defensores, mas ele os ignorou. Os escrivães guardaram os materiais de escrita. Caesar
saiu da câmara e subiu a escada para se juntar a Lupus e Marcus, que assistiram a tudo da galeria pública. Quando se aproximou dos garotos, falou de maneira seca
e rápida. Marcus nunca tinha visto seu senhor tão sério. Quase não conseguiu identificar a emoção no rosto dele. Depois de um tempo, percebeu o que era: Caesar estava
com medo.
- Lupus, vá lá fora e encontre Festus. Diga para ele preparar os seus homens e nos aguardar na parte externa da Casa do Senado. Ele deve fazer o que puder para impedir
os senadores de irem embora antes que eu possa ensinar uma lição a Cato. Depois vá para casa antes de a confusão começar.
- Sim, amo! - Lupus abaixou a cabeça e saiu apressado. Caesar virou-se para Marcus. - Quero que encontre Clodius. Ele provavelmente está na Estalagem Golfinho Azul,
do lado oposto do Fórum. Sabe qual é?
- Sim, amo. Já fui lá uma vez com Festus.
- Ótimo. Então diga a Clodius para reunir os seus homens na área externa do Senado assim que possível. Quero que Cato e todos os seus defensores saibam que passaram
dos limites. Vou embora antes que os capangas de Clodius cheguem. E diga a Clodius para tomar cuidado com as gangues de Milo. Deve haver alguma aqui por perto, aguardando
ordens de Cato.
Marcus olhou ao redor para garantir que ninguém os escutava e abaixou a voz.
- O que você quer que Clodius faça, amo?
Caesar fechou os olhos por um instante enquanto respondia:
- Diga para ele ir com tudo. Eles podem fazer o que quiserem, menos matar. Entendeu?
- Sim, amo.
- Então vá. - Caesar virou-se rapidamente e voltou para a escada, juntando-se ao grupo de senadores que o apoiava, além de Pompeius e Crassus. Marcus notou que eles
estavam inquietos. No entanto, Caesar aproximou-se deles de braços abertos e com um enorme sorriso, projetando calma e segurança.
Marcus abriu caminho entre a multidão na galeria e foi embora do Senado. Atravessou o Fórum apressadamente, indo em direção ao fim do distrito de Subura. Ao chegar
às estalagens da estrada que levava ao Fórum, Marcus avistou grupos de homens de aparência estranha sentados nos bancos externos e agachados contra a argamassa rachada
das paredes. O garoto foi em direção ao pátio da maior estalagem, Golfinho Azul, mas um homem enorme bloqueou seu caminho com um bastão na mão.
- O que veio fazer aqui? - grunhiu ele.
- Vim em nome de Caesar. Preciso falar com Clodius.
O homem observou-o cautelosamente e depois assentiu.
- Venha comigo.
Ele o guiou por uma passagem estreita que dava no pátio. Marcus reconheceu Clodius imediatamente ao vê-lo na ponta de uma mesa comprida com homens entroncados sentados
dos dois lados. Eles estavam mais bem-vestidos do que a maioria dos homens nas ruas e usavam braceletes e correntes de ouro. Alguns tinham cicatrizes ou o nariz
quebrado de quem cresceu aprendendo a usar os punhos. Marcus percebeu que aqueles deviam ser os líderes das gangues de rua que Clodius recrutara.
- Esse aqui está dizendo que foi enviado por Caesar. - O homem apontou o dedão para Marcus.
Clodius olhou para cima e acenou com a cabeça.
- Tudo bem, eu o conheço.
O guarda assentiu e se virou. Marcus respirou fundo e umedeceu os lábios.
- Meu senhor está precisando de você e de seus homens imediatamente.
- Onde?
- No Fórum. Cato está tentando obrigar Caesar a ficar em cima dos salteadores no ano que vem. Caesar está furioso. Ele quer que você dê um susto nos defensores de
Cato, para que eles entendam bem claramente o que vai acontecer se eles votarem junto com Cato quando o Senado se reunir novamente hoje à tarde.
Clodius concordou com a cabeça.
- Caesar deu alguma instrução específica?
Marcus abaixou a voz e falou com cuidado:
- Vale tudo, menos matar.
Clodius ergueu as sobrancelhas.
- Entendi.
Ele se levantou e olhou para os rostos cruéis dos líderes das gangues.
- Vocês escutaram o garoto. Juntem seus homens. Vocês vão para o Senado, e vamos mostrar para Milo e seus comparsas que as gangues de Subura mandam em Roma!
Enquanto os homens se levantavam dos bancos e saíam às ruas para unir as gangues, Clodius virou-se para Marcus.
- É melhor ficar comigo até isso acabar. Vale a pena eu ter todos os lutadores que puder do meu lado. Quer dizer, isso se você aguentar, jovem Marcus.
Marcus endireitou a postura, erguendo-se ao máximo.
- Estou pronto.
- Coragem é uma coisa. Ter as ferramentas necessárias para o trabalho é outra. Está armado?
Marcus deixou a clava deslizar por baixo da manga da túnica, segurou-a e a ergueu.
Clodius sorriu.
- Espero que saiba utilizá-la.
- Sei sim, amo. E não é só isso que tenho. - Marcus passou rapidamente a clava para a mão esquerda e sacou uma das facas arremessáveis com a direita. Houve um borrão
de movimento seguido de um estalo seco, e Clodius olhou para a cadeira no fim da mesa. A faca estava presa no seu respaldo, com o cabo tremendo.
Ele riu e deu um tapinha no ombro de Marcus.
- Você vai se sair bem. Vamos.
16
Não demorou para que eles chegassem ao Fórum. Medo e pânico espalhavam-se pela multidão que tinha acabado de ver os enormes homens armados com clavas e bastões.
Marcus viu mães puxarem os filhos e donos de barracas guardarem mercadorias, empilhando-as apressadamente em carrinhos de mão e rolando-os para algum lugar seguro.
Clodius e Marcus estavam na frente das gangues e, quando chegaram até a multidão que estava fora do Senado, o Fórum já começava a se esvaziar.
Quando subiu em um frontão, Marcus avistou Festus e seus homens avançando contra a entrada da Casa do Senado, onde senadores raivosos pediam passagem. Assim que
viu Clodius e os primeiros membros da gangue dele, Festus gritou uma ordem, e todos os seus homens recuaram. Os senadores conseguiram descer os degraus, formando
um fluxo constante de togas brancas no meio de mantos e túnicas marrons e cinza dos plebeus. Os rostos dos senadores que apoiavam Caesar eram conhecidos, e eles
puderam passar sem nenhum problema enquanto olhavam nervosamente para as hordas de lutadores de aparência selvagem que os cercavam. Os outros senadores foram impedidos
de passar. Os homens de Clodius os empurravam para trás agressivamente, zombando e gritando insultos na cara deles.
Clodius gesticulou para que Marcus o seguisse e passou aos empurrões por seus homens até ficar na fileira que estava bem na frente dos senadores. Ele correu os olhos
pelos rostos diante dele e enfim encontrou o homem que procurava. Pondo a mão ao redor da boca, chamou:
- Cato! Ei, Cato! Aqui!
Marcus viu o homem magro de toga lisa se virar na direção do grito e descer os degraus lentamente até ficar a uma pequena distância de Clodius. Ele parou a um degrau
do chão para que pudesse ver e ser visto pela multidão que se aglomerava diante dele.
- Clodius... - disse ele raivosamente. - É de imaginar que você esteja liderando essa turba. A baixaria não tem limites para você? Você e seus comparsas me causam
repugnância. - Ele endireitou a postura orgulhosamente. - Diga a sua ralé para sair da frente. Vocês não têm o direito de bloquear o caminho de seus superiores.
Afastem-se!
Ouviu-se um assobio agudo e uma vaia, depois mais pessoas se juntaram e formaram um burburinho contínuo de zombaria. Marcus sentiu a tensão aumentando, a violência
prestes a explodir, e ficou com medo. Não era o mesmo medo de quando ficava na frente de outro lutador. Era bem diferente. A multidão parecia uma força da natureza,
fora de controle e perigosa - uma tempestade prestes a cair.
Clodius deu um passo para a frente, ergueu a mão e empurrou Cato para trás.
- Vai ter que me obrigar!
A insolência dele foi recebida com gritos da multidão. Cato estava furioso. Deu um passo para trás e esbofeteou Clodius. O som do golpe silenciou a língua de quem
os estava vendo, mas Clodius só fez erguer a mão e encostá-la no lábio. O dedo ficou com uma pequena mancha vermelha. Ele sorriu.
- Pelo jeito foi você que desferiu o primeiro golpe, Cato. O que acontecer a partir de agora é culpa sua.
- Não seja ridículo... - Foi tudo o que Cato conseguiu responder antes que Clodius esmurrasse o queixo do senador. Cato grunhiu e caiu para trás, em cima da fileira
de seus defensores.
- Agora! - gritou Clodius. - Vamos ensinar uma lição a eles!
Com um rugido, os homens lançaram porcarias, vegetais podres e quaisquer outras munições que tivessem encontrado. As togas brancas dos senadores logo ficaram cheias
de manchas marrons e verdes, e eles ergueram os braços para proteger as cabeças de pedras e pedaços de madeira que caíam em cima deles. Os senadores começaram a
subir de volta os degraus, em direção à entrada da Casa do Senado.
No entanto, Marcus ficou parado; estava paralisado diante do espetáculo. Clodius olhou para ele, surpreso, e se abaixou para falar com o garoto:
- Está esperando o quê, Marcus, um convite? Participe.
- Eu, eu... não posso - gaguejou Marcus.
- Por que não?
- Porque sou um escravo, amo. Se me pegarem machucando um homem livre...
- Não vão pegar você. E por que não se aproveita da situação, hein? E não vá me dizer que um escravo não aproveitaria essa oportunidade para se vingar. Vá logo,
jogue alguma coisa. Jogue em nome dos escravos dos senadores. Jogue por eles. E por você. - Ele deu uma risadinha. - E por Spartacus. Ninguém nunca vai descobrir.
No meio do frenesi do povo, e frustrado com a própria situação, a menção a seu pai fez o coração de Marcus apertar. Um redemoinho de indignação, raiva e ódio de
todas as coisas ruins que sofrera desde que fora raptado de sua casa espalhou-se por seus braços e suas pernas. Antes que percebesse, Marcus tinha pegado uma pedra
na calçada do tamanho de um ovo de codorna. Seu braço brandiu para trás, arremessando-a com força para cima da multidão de homens e togas que tentava fugir para
se abrigar na Casa do Senado. Ele não viu para onde a pedra foi, mas não dava para ter errado o alvo daquela distância. Sentiu um entusiasmo repentino.
Clodius riu enquanto também jogava uma pedra.
- Vamos lá, Marcus! De novo!
Marcus estava pronto para encontrar outra carga ou socar a clava no senador mais próximo. No entanto, ao olhar para cima, viu um brilho insano nos olhos de Clodius,
que entortava os lábios sentindo um prazer cruel. Ele ria como criança quando se inclinava e arremessava, repetidas vezes. Marcus sentiu o fogo dentro de si esvaecer
e ser substituído por um calafrio. Havia algo de assustador em Clodius. Parecia que ele estava fora de controle.
Os pensamentos de Marcus foram interrompidos por um grito que veio de perto.
- Cuidado! Milo chegou!
Ao ouvirem o aviso, os homens de Clodius olharam ao redor. Os senadores aproveitaram a pausa no bombardeio para se refugiarem dentro da Casa do Senado. Um instante
depois, as portas foram fechadas com um estrondo. Marcus, menor do que os homens que o cercavam, sentiu-se sufocado. Precisava ver o que estava acontecendo. Correu
para subir os primeiros degraus e virou-se na direção do Fórum. Os homens de Clodius tinham se virado para os indivíduos que se espalhavam pelo Fórum, chegando da
direção do Monte Aventino. Formou-se um espaço vazio entre os dois grupos, havia apenas estátuas altas e suas sombras compridas, que cobriam as pessoas. Os homens
de Milo estavam armados com clavas, machadinhas, facas e uma variedade de outras armas de aparência mortal.
No entanto, Marcus só teve um segundo para examinar o campo de batalha antes que Clodius o chamasse para o lado e passasse no meio da multidão até chegar ao lado
oposto, na frente da horda que se aproximava. Enquanto protegia bem a cabeça com o gorro, o sangue de Marcus congelou ao avistar as fileiras de lutadores em sua
frente. De repente ele se sentiu encurralado, muito jovem e muito pequeno. Na arena, pelo menos o lutador tinha espaço para se mover. Aquilo ali era diferente. Era
apavorante.
Os gritos dos homens de Clodius foram esvaecendo à medida que os seguidores de Milo se aproximavam. Um silêncio espalhou-se pelo Fórum, sendo interrompido apenas
pelo ruído incômodo dos pregos das botas. À frente das gangues rivais havia um homem alto e largo com um cinto de couro. Ele vestia uma túnica lisa preta e botas
grossas de couro que iam até a metade de suas panturrilhas robustas. Carregava nas mãos uma clava pesada com pregos de ferro cravados. Seu cabelo escuro era curto
e havia uma cicatriz branca que atravessava sua testa, seu nariz e sua bochecha.
Clodius sorriu enquanto murmurava:
- Milo, esplêndido como sempre.
Ao redor de Clodius, os seus homens brandiam suas armas, prontos para usá-las. Marcus deslizou a clava para a mão esquerda.
Quando Milo estava a uns vinte passos de distância, ergueu a mão indicando para seus seguidores pararem. Ele acenou com a cabeça para Clodius.
- Ouvi falar que vocês estavam causando problemas.
- Problemas? - Clodius fingiu ficar ofendido. - Eu? Nem um pouco. O pessoal aqui e eu estávamos apenas defendendo o povo. O único problema é que alguns senadores
não querem escutar.
Milo riu.
- Fica difícil escutar quando a pessoa está sendo apedrejada por uma ralé covarde que saiu dos esgotos de Subura.
Uma onda de murmúrios furiosos espalhou-se pelo grupo de Clodius. Ele levou a mão até a boca.
- Quietos! Deixem o tagarela falar o que está no cérebro dele, afinal não é muita coisa!
Os grunhidos viraram risada, e Milo franziu o rosto enrugado.
- Já basta! - berrou ele. - Tire seus homens daqui do Fórum, Clodius, antes que eu faça isso à força.
- Pffftt! - Clodius sorriu desdenhosamente e puxou o manto para o lado, tirando uma pequena espada, a qual ergueu com a ponta na direção de Milo. - Que seja à força!
Você não é mais o dono das ruas. - Clodius abriu bem os braços. - Nós é que somos! As ruas de Roma pertencem a Clodius e às gangues de Subura!
Seus homens rugiram em aprovação.
Milo ergueu a clava no ar e berrou:
- Pra cima deles!
Ele atravessou o Fórum correndo, e a horda de homens o seguiu. Marcus passou a clava para a mão direita e a ergueu, pronto para atacar. Ele estava ao lado de Clodius,
com o coração disparado, mas não tinha tempo de ficar com medo. O ataque iniciou-se com uma sequência ensurdecedora de estrondos e estalos de armas colidindo. Um
homem alto de barba malfeita investiu na direção de Marcus erguendo uma clava acima da cabeça, sorrindo ferozmente para o que parecia ser uma presa fácil.
Marcus deu um passo para o lado e a clava do homem foi brandida para baixo, batendo nos pedregulhos com um estalo. Imediatamente, ele golpeou a lateral do homem
com a clava, com toda a força que tinha, fazendo-o ficar sem ar e quebrando-lhe uma costela. O homem caiu no chão, ofegante. Marcus escutou um barulho úmido atrás
de si e viu que Clodius tinha enfiado a espada no topo do crânio do homem.
- Belo trabalho, Marcus! - Ele riu enquanto removia a lâmina e chutava o corpo para o chão. Em seguida, pulou para a frente e perfurou outro homem na barriga. Marcus
começou a ser espremido pelos corpos que o empurravam, cercado por brigas violentas. Alguns homens lutavam corpo a corpo e tentavam ficar em uma posição vantajosa.
Outros eram esmagados um para cima do outro e tentavam agarrar o rosto do oponente ou dar cabeçadas. Marcus perdeu-se de Clodius e foi empurrado pelos outros homens
das gangues de Subura que tentavam ir mais para a frente.
Ele se encontrou a uma pequena distância dos homens em combate e parou, perguntando-se o que devia fazer. Seu instinto dizia para lutar, mas, enquanto recobrava
o fôlego, a adrenalina foi substituída pela razão. Ele era pequeno demais para aquilo. Tinha treinado para lutar em um combate individual, não no meio de uma multidão
violenta. Era muito provável que seu crânio fosse esmagado ou que estilhaçassem seus ossos, deixando-o aleijado para o resto da vida, isso se sobrevivesse. Qualquer
esperança de sua mãe voltar a ser livre morreria junto com ele. Marcus queria mostrar o seu valor a Caesar e a Pompeius, mas não desse jeito.
- Marcus! - Uma mão agarrou o ombro dele e o virou. Ele olhou para cima e viu Festus. - Marcus, temos que ir embora. Isso aqui é para Clodius e as gangues dele,
não para a gente. Vamos!
Ele virou Marcus para o outro lado e o empurrou para o fim da multidão. Foram na direção do Fórum, para longe da batalha que acontecia nos arredores da entrada da
Casa do Senado. Virando-se para trás, Marcus deu uma última olhada em Clodius. Ele estava incitando seus homens de cima de um frontão, acenando a lâmina ensanguentada
e rindo como um louco.
17
- O que diabos vocês estavam pensando? - perguntou Caesar de dentes cerrados, dirigindo-se a Clodius, Festus e Marcus no escritório, mais tarde naquele mesmo dia.
- Mais de cem homens mortos e pelo menos o triplo de machucados. Por Júpiter, o Fórum estava coberto de sangue quando vocês terminaram. Era só pressionar os senadores
e fazer eles desistirem de apoiar Cato. - Ele balançou a cabeça e acenou com indignação. - Não esse... banho de sangue.
- Até parece! Você queria um conflito mais intenso, Caesar. Agora que os dois lados estão usando as gangues de rua, a violência é inevitável. E, de qualquer jeito,
eu fui instruído a fazer qualquer coisa que quisesse, menos matar - respondeu Clodius dando de ombros. Ele se virou para Marcus, que estava parado e quieto em um
canto do escritório. - Não foi isso, garoto? Foi isso que Caesar pediu que você me dissesse?
Marcus assentiu e lançou um rápido olhar para Caesar antes de responder:
- Sim, amo.
- Está vendo? - Clodius sorriu ao se virar para Caesar. - Além disso, poucos senadores se feriram. Ninguém muito importante.
- Vinte se feriram. Um está gravemente ferido. Ele rachou o crânio quando tropeçou na escada.
- Então não foi culpa minha - respondeu Clodius desdenhosamente.
- O que quer que você pense, o dano já está feito - rebateu Caesar. - Você causou uma batalha sangrenta bem na frente da Casa do Senado, e Cato vai fazer esse assunto
render. Na reunião do Senado de amanhã, ele vai me chamar de tirano na frente de todo mundo. E a última coisa de que preciso é que mais pessoas fiquem contra mim.
Eles vão decidir por votação se eu devo ir para o meio do nada ou não. Não fiz tudo isso por Roma só para terminar nas montanhas, lutando contra os escravos.
Enquanto Clodius e Caesar discutiam, a mente de Marcus estava focada em uma ideia. O conflito entre Caesar e Bibulus tinha alcançado um estágio crítico. Primeiro
foi o atentado contra a vida de Portia, depois a votação para tirar Caesar de Roma, e agora as gangues de rua derramando sangue no centro da cidade. A vida de Caesar
estava correndo perigo, e só havia uma maneira de descobrir se existia alguma conspiração para assassiná-lo, percebeu Marcus. A verdadeira batalha não ocorreria
por meio de um combate corpo a corpo nas ruas da cidade, disso ele tinha certeza. Um plano tomava forma em seus pensamentos. Se desse certo, Caesar ficaria devendo
mais ainda a Marcus. Ele não podia contar com o plano inicial de pedir ajuda a Pompeius, mas talvez com o novo plano ele pudesse mostrar seu valor para os dois e
obter a única recompensa que realmente queria.
- Ele pode tentar - respondeu Clodius -, mas como Milo também participou, nenhum dos dois lados está em uma situação muito boa. Além disso, acho que vários senadores
ficaram tão abalados que só vão aparecer na Casa do Senado bem depois do fim do ano, quando você e Bibulus tiverem entregado o poder para a próxima dupla de cônsules.
Mas talvez ninguém perceba que Bibulus foi cônsul já que ele nem está indo para o Senado.
- Muito engraçado. - Caesar franziu a testa. - Mas o que Cato fez hoje dificultou minha vida, e o confronto de hoje fará meus oponentes agirem com mais firmeza.
Agora preciso obrigar o Senado a cooperar e descobrir uma maneira de fazer frente ao plano de Cato. Preciso de alguma lei que obrigue o Senado a me obedecer. Mas
assim a situação vai ficar mais perigosa, e Portia e eu correremos mais risco ainda.
- Então precisamos nos proteger contra isso, Caesar - disse Clodius.
- Como podemos fazer isso sem saber onde ou quando eles vão atacar?
Marcus pensou rapidamente enquanto escutava a conversa. Limpou a garganta, criando coragem para falar. O barulho fez Caesar virar-se para ele, erguendo a sobrancelha.
- Você tem algo a dizer, Marcus?
- Sim, amo.
- Então desembuche logo antes de engasgar de vez.
Marcus olhou para os dois homens nervosamente. A ideia dele talvez fosse incomum, mas era a única maneira de avançar a situação.
- Amo, não há nenhuma dúvida a respeito disso. Seus inimigos querem matá-lo. Um dos homens enviados para assassinar sua sobrinha falou isso. Acho que eles estão
planejando mais um atentado contra a vida dela e um contra a sua. Você pode ficar em segurança dentro de casa, como Bibulus, mas o povo acharia que você é um covarde.
- Um olhar sombrio surgiu no rosto de Caesar, e Marcus prosseguiu apressadamente: - Claro que o senhor vai continuar se comportando normalmente, sem demonstrar medo
algum. Mas eles vão continuar conspirando contra o senhor. Essa guerra de gangues não está colaborando. O senhor precisa descobrir os planos deles e preparar uma
reação adequada.
Caesar e os outros apreenderam as palavras de Marcus, que tentou permanecer calmo, mas seu coração estava em disparada. Qual seria a reação de Caesar ao fato de
um mero escravo estar expressando sua opinião assim?
- E o que você sugere para descobrirmos os planos? Milo é que não vai me contar nada - disse Caesar, zombando.
- Alguém precisa se infiltrar na gangue de Milo para descobrir seus planos, amo.
- Acha que não pensei nisso? - indagou Clodius, resmungando. - As gangues de rua são muito unidas. Para entrar em uma, a pessoa tem que provar seu valor muitas e
muitas vezes e depois precisa ir subindo na hierarquia para ficar no grupinho dos líderes. Demora muito tempo, anos. Não temos tanto tempo assim. Além disso, se
um homem aparecer querendo se juntar à gangue no meio de uma guerra de gangues, é claro que vão suspeitar. Não vai dar certo.
Marcus já tinha pensado nisso e concordou com a cabeça.
- É verdade, amo. Mas e se não enviarmos um homem? E se enviarmos um garoto? Alguém que seja tão jovem que talvez passe despercebido.
Clodius e Caesar fixaram a atenção em Marcus, e depois Caesar respondeu:
- Está se referindo a você mesmo.
- Sim, amo. Por que não? Sou bom observador. Sou habilidoso com as armas e não tenho a marca de nenhuma gangue. Poucas pessoas me conhecem em Roma, então não vou
ser reconhecido. Até nas vezes que saí de casa, minha cabeça estava coberta. Se eu puder chegar perto de Milo e sua gangue, talvez eu escute o plano deles, ou pelo
menos descubra quando vai acontecer alguma coisa, amo. - Ele parou ao ver o olhar de dúvida no rosto de Caesar.
- É perigoso demais. E por que você acha que eles vão fazer a bobagem de discutir assuntos importantes com você por perto?
Marcus não pôde deixar de abrir um leve sorriso.
- Porque é exatamente o que o senhor faz, amo. O senhor fala abertamente na frente de seus escravos. Por que Milo seria diferente?
Clodius riu, e Caesar ficou constrangido.
- Ele tem razão! Muitos romanos poderosos são arruinados por provas obtidas pela tortura de seus escravos. Imagino que já devíamos ter aprendido com isso, mas pelo
jeito não. Marcus tem razão, Caesar. Talvez ele consiga fazer o que um adulto não conseguiria. Vale a pena tentar.
Marcus olhou para Caesar atentamente, tentando adivinhar o que se passava na cabeça do cônsul.
- Amo, eu sei que sou capaz de fazer isso - afirmou ele.
Caesar juntou as mãos atrás das costas e ficou andando de um lado para outro. Clodius examinava as unhas de suas mãos ricamente cuidadas. Marcus olhou para ele,
perguntando-se como aquele poderia ser o mesmo homem que se lançara feito um louco no meio de uma violenta briga de rua horas antes.
- Tudo bem - concluiu Caesar. - Vale a pena tentar. Não posso dizer que estou muito contente em colocar um escravo valioso em perigo, mas, como diria meu bom amigo
e parceiro de negócios, Crassus, não há vitória sem riscos. - Ele fixou um olhar firme em Marcus. - Imagino que você vai querer uma recompensa por esse serviço.
- Ficaria grato, sim - respondeu Marcus, sem saber o quanto deveria se aproveitar da situação. Pensou em sua mãe, com frio e faminta, implorando-lhe ajuda.
- Imagino que sim. - Caesar pôs a mão no ombro de Marcus. - Você pode até ser jovem, mas sabe o significado da honra e tem coragem de agir com base nela do início
ao fim. São qualidades raras. Se ficar a meu serviço, um dia você será um gladiador fantástico, Marcus. E eu vou ficar orgulhoso de você.
- E se ele não quiser ser gladiador? - interrompeu Clodius. - E se ele quiser a liberdade?
Marcus tensionou os músculos nervosamente. Era como se Clodius tivesse lido sua mente. Não seria bom Caesar saber o quanto Marcus odiava a ideia de ser um gladiador.
Marcus aprendera que Caesar não aceitava muito bem as opiniões de quem discordava dele.
- Então eu analiso a situação dele de novo quando chegar o momento certo - respondeu Caesar desdenhosamente. - Até lá, Marcus, você vai fazer o possível para me
salvar dos meus inimigos, não é?
- Sim, amo. Quando começo?
- Imediatamente. Não ficaria surpreso se Cato e Bibulus quisessem terminar logo isso de uma vez por todas depois dos acontecimentos de hoje. - Ele fitou Marcus.
- Você precisa ter ciência dos riscos. Se Milo descobrir quem você é, ele não vai ter misericórdia.
Marcus endireitou a postura, ficando o mais alto que podia.
- Eu entendo, amo. Mas já enfrentei perigos antes, e mais de uma vez. Não tenho medo e sei o que estou fazendo.
Caesar soltou uma gargalhada repentina.
- Ah, sabe, é? Eu que queria poder dizer o mesmo!
Festus encarregou Lupus de preparar o disfarce de Marcus. Ele tinha encontrado uma túnica esfarrapada e sandálias velhas para que Marcus ficasse com a aparência
de foragido, pois era o que ele alegaria ser. A placa de escravo ao redor de seu pescoço foi removida, e sua pele precisava ser coberta com uma mistura de fuligem
e tinta para que ele ficasse sujo como um menino de rua. Também cobririam a marca da escola de gladiadores de Porcino.
- Tire sua túnica - ordenou Lupus, pronto para passar um pouco da mistura na pele de Marcus.
Marcus hesitou. Ninguém tinha visto sua cicatriz desde que Brixus a identificara como a marca de Spartacus. E agora lá estava ele, na casa do inimigo mais poderoso
de Spartacus. Deixá-la à mostra ali dentro era incrivelmente perigoso.
- Vamos - repetiu Lupus. - Ou vai querer que Milo descubra quem você é?
Marcus percebeu que não podia recusar sem levantar suspeitas. Prendeu a respiração e tirou a túnica.
- O que é isso no seu ombro? - perguntou Lupus. Ele inclinou a cabeça para ver mais de perto. - Parece... uma espada enfiada na cabeça de um lobo.
Marcus pegou a túnica esfarrapada e, no instante em que ia passá-la pela cabeça, Lupus o interrompeu:
- Espere. Vou ter que cobrir isso também. Fique parado.
Ele ficou em silêncio enquanto espalhava a mistura nas costas de Marcus de maneira irregular para que a sujeira parecesse natural.
- De onde veio essa marca?
- Não sei - mentiu Marcus. Ele mal conseguia respirar; estava morrendo de medo de que sua identidade fosse descoberta. E se Caesar aparecesse bem naquele momento?
- Sempre esteve aí. Desde que me lembro.
- Então deve ter sido marcado quando era bebê. - Lupus balançou a cabeça. - Pelos deuses, quem faria uma coisa dessas com um bebê? Duvido que seu pai usasse uma
imagem tão antipatriota. A loba é o símbolo de Roma. E sua mãe?
Marcus deu de ombros.
- Já disse, não sei nada sobre isso. A gente pode fazer isso mais depressa?
- Bem, quem quer que tenha feito isso era um inimigo de Roma. Agora fique parado.
Lupus terminou de passar a sujeira e parou para admirar seu trabalho antes de se afastar de Marcus.
- Coloque a túnica.
Marcus suspirou aliviado, e Lupus olhou para ele com um sorriso no rosto.
- Você parece o plebeu mais ralé que já saiu direto dos esgotos. Perfeito.
Naquela noite, Lupus e Marcus saíram da casa por um pequeno portão lateral. Lupus tinha sido instruído para levar Marcus até o Fosso, no Monte Aventino, o centro
do distrito controlado por Milo e suas gangues. Por ser conhecido demais para ir com Marcus, Festus achou que os dois garotos teriam maior probabilidade de passarem
despercebidos pelas ruas.
Acompanharam o interior da Muralha Serviana para evitar o centro da cidade, onde os pequenos grupos de gangues rivais ainda estavam perambulando e brigando. Apesar
da estação, o ar estava frio, e Marcus tremia enquanto eles andavam pelas ruas silenciosas. Lá de cima, nas torres que ficavam ao longo da muralha, o brilho das
braseiras iluminava o caminho deles ocasionalmente. Subiram o Monte Célio e desceram pelo lado oposto, onde se amontoavam os cortiços de aparência frágil, assim
como em Subura. Lupus desacelerou o passo e seguiu com mais cautela ao entrarem no distrito de Aventino. Encontraram apenas algumas silhuetas escuras, e todas se
afastavam quando os garotos passavam. Por fim, Lupus parou em uma pracinha, ao lado de uma antiga fonte pública. Ele tirou uma pequena adaga e começou a remover
a argamassa de um enorme tijolo que ficava na base da fonte. Quando o tijolo se soltou, Lupus abriu um furo até a metade dele e afastou os fragmentos. Em seguida,
reposicionou o tijolo cuidadosamente para que ficasse igual aos outros.
- Se precisar enviar alguma mensagem, coloque-a atrás do tijolo. - Ele parou e olhou para Marcus no meio da escuridão. - Você sabe escrever?
- Claro.
- Ótimo. Vou vir aqui conferir quantas vezes eu puder, sempre à noite. Se descobrir algo que precisamos saber urgentemente, Festus disse que é para você ir direto
para casa. Entendeu?
- Sim.
Marcus sentiu Lupus agarrar seus braços e viu o contorno da cabeça dele à luz das estrelas.
- Tem certeza que quer fazer isso, Marcus?
Marcus ficou em silêncio por um instante. Não podia negar que estava com medo. No entanto, não havia outra maneira de fazer Caesar dever algo a ele. Sabia que estava
arriscando a própria vida, mas, se não aproveitasse a oportunidade, continuaria escravo e seria enviado para uma das escolas de gladiadores de Caesar. E nunca salvaria
sua mãe. Não, tinha que ir até o fim. Assentiu com a cabeça.
- Estou pronto.
Lupus apertou levemente o ombro de Marcus.
- Então boa sorte. - Ele começou a se virar para partir.
- Espere, Lupus. Só mais uma coisa. Você pode se despedir da senhorita Portia por mim? - pediu Marcus.
Lupus soltou-o e assentiu. Ele olhou para as ruas silenciosas e foi embora calmamente. Agora Marcus estava sozinho. Ele deu uma olhada cuidadosa pelos arredores
para saber como voltar até a fonte. Em seguida, pegando o bastão - o único objeto que tinha além das roupas desgastadas -, ele se virou em direção ao centro do distrito
de Aventino, entrando no território de Milo.
18
Marcus acordou bruscamente quando a ponta de uma bota o cutucou fortemente. Pegando o bastão, mexeu-se até encostar-se na madeira da porta ao lado da qual havia
dormido. Viu a silhueta de um homem atarracado contra a luz que passava entre os cortiços.
- Saia daqui, menino! Está na frente da minha loja.
Marcus levantou-se, tonto de sono. Estava debaixo de um arco que ficava perto de uma das ruas principais do distrito de Aventino. Lembrou-se de quando encontrou
a loja fechada logo após a trombeta da meia-noite soar, indicando a mudança de guarda nos muros da cidade. Ele havia se acomodado no canto perto da porta e se sentado
abraçando os joelhos, tremendo, até finalmente pegar no sono.
- Vamos, saia logo daqui! - O homem brandiu a bota e atingiu a coxa de Marcus com força. Ele soltou um grito de dor e atravessou o arco para chegar à rua. Ao olhar
para trás, viu que o homem ainda o estava observando, para garantir que Marcus tivesse ido embora antes de destrancar a porta da loja. Quando se encontrava a uma
distância segura do arco, Marcus analisou sua situação. Não estava com fome, pois comera bem antes de sair com Lupus. Também tinha vinte sestércios guardados no
forro falso do cinto, então não passaria fome. Tirando isso, teria que sobreviver com base na inteligência.
Sabia que não estava longe do centro do distrito de Aventino, da área conhecida como o Fosso, onde as estalagens e churrascarias mais baratas aglomeravam-se ao redor
de uma dobra natural na lateral do monte. Era lá que Milo e suas gangues reuniam-se quando não estavam extorquindo dinheiro ou perseguindo os defensores de Caesar,
Crassus e Pompeius. Marcus atravessou o topo do monte e seguiu o caminho para descer do outro lado até chegar a um cruzamento. Uma mulher encurvada estava lavando
panos em uma fonte pública.
- A senhora pode me dizer se estou perto do Fosso? - perguntou Marcus educadamente.
A mulher virou a cabeça.
- É melhor nem saber, meu jovem. Volte pra casa.
- Eu não tenho casa - respondeu Marcus.
- E também não vai encontrar uma no Fosso. - Ela riu, deixando à mostra vários dentes tortos. - Só vai levar uma surra e ser expulso de lá. Você é o quê, um fugitivo?
- Só queria saber se estou na direção certa - respondeu Marcus.
Ela fungou e limpou o nariz no dorso da mão antes de apontar para um beco do lado oposto da fonte.
- Aquele é o caminho mais rápido. Mas é morte certa, menino.
Marcus agradeceu e foi em direção ao beco. A entrada era estreita e escura. A passagem mais à frente espremia-se entre prédios prestes a desmoronar, e eles ficavam
tão próximos um do outro que uma mão estendendo-se da janela de um lado encostaria no prédio encardido do outro lado. Marcus desceu pelo caminho levemente inclinado.
Era tão estreito que ele tinha que se afastar para as pessoas que estavam se aproximando no outro sentido passarem. Andava por cima de uma crosta dura de lixo esmagado
e comida estragada que formava uma superfície irregular.
Lixo não era a única coisa jogada no beco. Havia o cadáver de um velho encostado na parede de um nicho de pouca profundidade. Ele estava vestindo apenas uma tanga,
com os olhos fechados e a mandíbula aberta. Moscas passavam por seus lábios e pela carne descoberta. Marcus apressou-se, com a mão por cima do nariz. Também havia
animais mortos no beco - muitos ratos e alguns cachorros, pisoteados e ignorados pelas pessoas.
Após percorrer uma pequena distância, Marcus escutou gritos e aplausos. Ao virar uma esquina, viu a luz do dia, e o barulho aumentou. Preparando-se, Marcus saiu
do beco e encontrou-se no meio do Fosso.
Era uma área aberta, de uns sessenta metros de largura, que ficava no meio dos prédios de cortiços agigantando-se ao redor dela. A terra descoberta do chão inclinava-se
para dentro de uma bacia natural. Tirando os fios de esgoto que escorriam dos prédios para dentro de uma pequena poça fedorenta, a terra estava ressecada. Nas beiradas
da área aberta, havia várias estalagens. Algumas ficavam nos porões dos prédios com um lado aberto, outras eram feitas de tábuas, colunas antigas e telhas velhas
ou roubadas. Quando Marcus saiu na claridade, piscando os olhos, ele viu que as estalagens estavam quase vazias. Os hóspedes se agrupavam ao redor do centro enlameado
do Fosso, para ver dois homens gigantescos em uma luta corpo a corpo.
Marcus chegou à ladeira e parou para ver por cima das cabeças da multidão mais embaixo. Aproximou-se de um grupo de garotos que estava perto, alguns de sua idade,
mas a maioria mais velha. Um garoto um pouco maior do que ele estava separado dos outros.
- O que está acontecendo? - perguntou Marcus.
- Os Lâminas desafiaram os Chacais para ver quem manda na área - disse o garoto, olhando rapidamente para Marcus antes de se virar de volta para a briga. - Taurus
está atacando Heracles e não está sendo nada bonito!
Marcus olhou para a briga. Os dois homens estavam se atacando, trocando murros que atingiam a carne como se fossem enormes martelos, fazendo os músculos dos torsos
estremecerem com o impacto. Os rostos já tinham sido golpeados, e havia sangue escorrendo das feridas abertas. Marcus olhou para a multidão - a maioria era homem,
tirando umas poucas mulheres que tinham se juntado para ver a disputa e gritavam. Foi fácil avistar Milo, alto e encorpado, na primeira fila da multidão. Os lábios
dele formavam um sorriso selvagem que fazia a cicatriz em seu rosto enrugar. Marcus lembrou-se da batalha sangrenta no Fórum e estremeceu.
- Ei, você!
Marcus virou-se e viu um dos garotos maiores apontando para ele. O menino era menor do que alguns de seus colegas, mas era bem robusto. A cabeça dele parecia se
fundir com os ombros e seu cabelo era curto, assim como o dos homens das gangues. Estava usando uma túnica preta e braceletes de couro com tachas. De punhos apoiados
nos quadris, o garoto aproximou-se e parou na frente de Marcus.
- É com você que estou falando. Aqui é onde minha gangue fica. Encontre seu próprio lugar. Agora se manda daqui!
- Não queria causar problemas - desculpou-se Marcus. - É que escutei o barulho e vim assistir à luta.
- Ah é? Então se manda e vá encontrar outro lugar. - Ele se lançou para a frente e empurrou Marcus, que tropeçou e caiu, o impacto deixando-o ofegante. Os outros
riram. O líder deles colocou a sola da bota no peito de Marcus.
- E só para você não esquecer, meu nome é Kasos, e essa é a minha gangue. A única gangue de jovens do Fosso. Não venha falar com a gente novamente, só se a gente
falar com você primeiro. Sacou?
- Sim. - Marcus assentiu. - Entendi. Desculpe.
Kasos pisou com mais força por um segundo antes de remover a bota e chutar levemente o lado do corpo de Marcus.
- Agora se manda.
Marcus rolou para uma distância segura, levantou-se e correu para o lado oposto da multidão. Teria sido bom tirar aquele olhar convencido do rosto de Kasos, mas
não podia chamar a atenção. Ouviu um grunhido alto vindo do Fosso, e um dos boxeadores cambaleou para trás após receber um forte golpe no rosto. Ele estava parado,
balançando a cabeça. O oponente aproximou-se, ergueu o punho grunhindo e deu o golpe final, lançando a cabeça do homem para trás com um estampido. Ele caiu no chão,
e a maioria da plateia comemorou. As outras pessoas gemeram, desapontadas. Milo deu um passo para a frente e agarrou o pulso do vencedor, erguendo-o.
- Vitória para os Lâminas! A primeira rodada de bebidas é por conta dos Chacais!
Aquilo fez a multidão celebrar mais uma vez e correr em direção aos bares que cercavam o Fosso. Marcus viu Milo dar um tapinha nas costas do vencedor e subir a ladeira
em direção à maior estalagem de todas. Milo sentou-se na ponta de uma mesa comprida que ficava do lado de fora e bateu o punho contra a madeira.
- Vinho! Agora!
Um instante depois, um homem magro e grisalho de avental saiu apressadamente carregando uma jarra enorme em uma das mãos e uma bandeja com cálices prateados na outra.
Colocou-os na mesa e serviu o vinho, entregando o primeiro cálice para Milo e curvando a cabeça. Os lugares ao redor logo foram ocupados por outros homens, e Marcus
lembrou-se de Clodius e seus capangas na Estalagem Golfinho. São todos capangas, só estão de lados diferentes..., pensou ele.
Ao redor do Fosso, havia outros membros de gangues enchendo as estalagens e começando a beber em meio a gritos ocasionais e trocas de insultos. A maioria das pessoas
que assistira à briga estava voltando para os becos, tirando algumas que se agacharam para conversar ou jogar dados. O gigante que perdera a briga tinha sido deixado
onde caíra, dormindo. Marcus foi até uma coluna onde se prendiam mulas, que ficava do lado oposto da estalagem onde Milo estava bebendo. Encostou-se nela e ficou
observando o líder das gangues de Aventino.
A gangue de jovens que Marcus encontrara mais cedo aproximou-se lentamente da estalagem e se encostou na parede ao lado dela, como se fosse parte do círculo interno
de Milo. Assim que a primeira jarra de vinho esvaziou-se, Kasos entrou para pegar outra jarra e encheu os cálices, fazendo questão de encher o de Milo primeiro.
Em seguida, juntou-se novamente aos seus companheiros encostados na parede. Enquanto Marcus observava, um plano começou a se formar em sua cabeça, e ele se acomodou
no chão, sentando de pernas cruzadas para esperar uma oportunidade.
O dia se passou, e o sol estava bem acima dos cortiços, esquentando o ar que ficava preso dentro do Fosso. À medida que foi ficando mais quente, Kasos e seus amigos
desapareceram por um dos becos para procurar água. Marcus levantou-se, e seu coração se acelerou enquanto juntava coragem para colocar o plano em ação. Casualmente,
passou pelas estalagens até chegar perto da parede e se encostar no mesmo lugar em que Kasos estava um pouco antes. Os homens ao redor da mesa de Milo já tinham
tomado muito vinho, e alguns já cochilavam, com a cabeça encostada nos braços e soltando roncos ruidosos. No entanto, Milo e os outros continuavam firmes, e Marcus
viu um deles esvaziar o restante da jarra e franzir a testa, irritado.
Imediatamente, Marcus afastou-se da parece e correu para dentro da pousada. O teto era baixo e havia mesas e bancos mal construídos encostados nas paredes. Marcus
aproximou-se do balcão audaciosamente e bateu as juntas dos dedos nele.
- Mais vinho para Milo!
O dono da pousada saiu de um cômodo nos fundos e olhou para Marcus com suspeita.
- E quem é você, menino? Onde está Kasos?
- Ele teve que sair. Milo me mandou no lugar dele.
- Eu nunca vi você por aqui antes.
- Você está fazendo Milo esperar - respondeu Marcus rapidamente. - É para eu avisar a ele que você não vai me deixar levar o vinho?
- O quê? - Os olhos do homem arregalaram-se, assustados. - Não! Fique aí, jovem.
Ele se virou e saiu apressadamente em direção ao quarto dos fundos, voltando um instante depois com uma jarra nova que empurrou nas mãos de Marcus.
- Tome. Leve para ele o mais rápido possível. Vá logo!
Marcus não pôde deixar de ficar impressionado com o medo que as pessoas sentiam de Milo, e ao mesmo tempo isso fez com que ele percebesse ainda mais o quanto sua
missão era perigosa. O que Milo faria com ele caso descobrisse sua identidade? Marcus tentou livrar-se do medo enquanto saía da pousada e se aproximava da mesa.
Inclinou a jarra para encher o cálice de Milo. O líder da gangue só olhou para cima quando ergueu o cálice para tomar um gole. Ele franziu a testa.
- Quem é você? Cadê aquele vagabundo do Kasos?
- Meu nome é Junius, senhor. Estou substituindo Kasos - respondeu Marcus, usando o nome que Festus tinha escolhido como parte de sua história fictícia.
- Junius, é? - Milo olhou-o da cabeça aos pés. - Eu me lembro bem dos rostos das pessoas. Nunca o vi antes aqui no Fosso, não é?
- Não, senhor. Só cheguei aqui hoje.
- Mesmo? E de onde veio exatamente?
Marcus fez uma pausa antes de responder:
- De Campânia, senhor. Eu fugi de casa.
- Então é um escravo foragido? Se você escapou, vão colocar uma recompensa pela sua captura.
- Não sou um escravo. Sou órfão, fui criado pelo meu tio na fazenda dele. Mas ele me tratava como um escravo, por isso eu fugi.
- E veio para Roma ganhar a vida, claro - disse Milo com uma expressão de curiosidade. - Assim como todos os outros tampinhas famintos que aparecem pelas favelas.
Mas você parece estar em forma. Trabalhar duro na fazenda fez bem pra você.
- Fez mais bem para o meu tio, senhor.
Milo riu.
- Muito bem... agora vá embora, menino.
- Deixe que eu trabalhe para você, senhor - pediu Marcus rapidamente, com um tom de súplica na voz.
- Trabalhar pra mim? Acha que consegue fazer alguma coisa que esses homens não fazem, é? - Ele gesticulou para os homens ao redor da mesa. Aqueles que estavam conscientes
sorriram sonolentos. Milo balançou a cabeça. - Você não seria útil para mim.
- Eu sou muito trabalhador - insistiu Marcus. - Eu sei ler e escrever e sei lutar.
- Bem, você com certeza mostrou coragem ao tomar o lugar de Kasos, isso eu admito. Mas agora é melhor ir embora antes que ele volte. Ah, tarde demais! - Milo deu
uma risadinha enquanto sinalizava com a cabeça na direção da gangue de jovens que saía do beco. - Ei, Kasos! Onde você estava? Se não fosse por esse camarada aqui,
meu cálice teria ficado vazio.
Kasos estava prestes a pedir desculpas, mas parou ao reconhecer Marcus.
- Você... Eu avisei você.
- Você conhece esse garoto? - perguntou Milo.
- Ele estava incomodando meu pessoal mais cedo. Tive que ensinar uma lição para ele e mostrar quem é que manda por aqui. - Kasos parou bruscamente ao perceber o
que tinha dito e abaixou a cabeça em direção a Milo. - Fora você, claro.
- Parece que a sua lição entrou por um ouvido e saiu pelo outro, Kasos. O que vai fazer a respeito disso?
- Eu cuido dele - rosnou Kasos. - De uma vez por todas.
Ele foi direto para cima de Marcus, cerrando os punhos e de olhos irados. Marcus ficou firme e, no último segundo, lançou a jarra nos pés do garoto mais velho. Ela
ainda estava pesada por causa do vinho e esmagou os dedos do pé de Kasos antes de espatifar-se no chão, fazendo os fragmentos afiados da jarra voarem em todas as
direções e deixando Kasos encharcado de vinho tinto. Ele soltou um grito de dor que foi interrompido quando Marcus o esmurrou no queixo com toda a força. A cabeça
de Kasos foi lançada para o lado e ele cambaleou para trás. Marcus golpeou-o inúmeras vezes, colocando todo o seu peso nos murros, que atingiam violentamente o queixo
do garoto. Kasos balançou-se, tentando se recuperar do ataque feroz, e ergueu as mãos para proteger o rosto. Marcus mudou de alvo e golpeou-o mais embaixo, na barriga,
procurando deixar o garoto sem ar e terminar a luta o mais rápido possível.
Os golpes logo começaram a fazer efeito. Kasos ficou ofegante e cambaleou para trás, caindo de joelhos. Marcus começou a bater na cabeça dele novamente até o garoto
cair no chão e erguer as mãos, tentando se proteger de mais golpes.
- Já basta! - vociferou Milo. - Deixe ele em paz.
O sangue subiu à cabeça de Marcus enquanto ele dava um passo para trás, cerrando os punhos, pronto para continuar lutando.
- Que esquentado o senhor! - disse Milo, admirado. - É o primeiro garoto que derrota Kasos em um bom tempo. Você é mesmo um bom lutador, assim como disse. Tenho
muitos lutadores que são bons, mas ter um recruta promissor é sempre algo positivo. Imagino que você não tem casa, então pode ficar aqui na estalagem. Diga ao velho
Demetrius que eu ordenei isso. - Ele fez sinal com a cabeça na direção da estalagem. - É para ele lhe dar um canto para dormir e comida, e você pode me servir vinho
na mesa. Mais tarde penso em que mais você pode ser útil. É como pensei, você é corajoso.
- Obrigado. - Marcus abaixou a cabeça.
- Mas deixe eu lhe dar um conselho - prosseguiu Milo, abaixando a voz enquanto se inclinava para perto de Marcus. - Fique longe de Kasos. Você talvez o tenha derrotado
agora, mas ele vai querer se vingar.
- Vou tomar cuidado com ele.
Milo ergueu o cálice.
- Bem-vindo às gangues do Aventino, Junius!
19
Demetrius aceitou o novo hóspede sem relutância enquanto estava com Milo. Quando ficou a sós com Marcus, apontou para um canto da estalagem que ficava perto do balcão
e grunhiu:
- Você dorme ali. Vai comer mingau de manhã e os restos de comida do dia quando for de noite. E nesse meio-tempo você leva o vinho para os clientes e limpa o lugar.
Marcus olhou para a argamassa manchada das paredes e os restos de comida acumulados ao redor de bases de mesas e bancos e se perguntou se o lugar já teria sido limpo
alguma vez.
- O mais importante de tudo - prosseguiu Demetrius - é deixar Milo contente. Se ele se sentar, você leva bebida para ele sem perguntar nada. Para ele e os homens
dele. Se eles quiserem comida, me avise que eu cuido disso. E depois é só continuar dando bebida até eles irem embora ou apagarem. Está claro?
- Sim.
Demetrius pôs a mão na cabeça dele.
- Sim, senhor. É assim que você responde.
- Sim, senhor.
Demetrius colocou as mãos nos quadris e encarou Marcus.
- Por Júpiter, não sei o que ele viu em você e ouso dizer que em breve essa boa vontade dele vai passar. Isso se aquele pentelho terrível do Kasos não enfiar uma
faca nas suas costas primeiro.
Por um instante, surgiu certa pena no rosto do velho.
- Você não devia ter vindo pra Roma, camarada. Já vi muitos na sua situação. De cada dez que vêm pra cá querendo ganhar a vida, nove terminam morrendo sozinhos nas
sarjetas por aí.
- Eu não tive escolha, senhor - respondeu Marcus.
- Bem, agora já está aqui. É melhor fazer o que pode. Comece varrendo o lugar. Ninguém varre isso aqui há muito tempo. A vassoura está ali no canto.
Marcus passou o restante do dia ocupado, varrendo o chão e levando comida e vinho para Milo e seus homens toda vez que parecia que uma das duas coisas estava acabando.
No fim da tarde, a gangue foi embora para dormir. Quando Marcus saiu para pegar os cálices e o que sobrara do pão e da salsicha, Milo acenou para ele.
- Sim, senhor? - Marcus parou ao lado da cadeira.
Apesar do tanto que tinha bebido ao longo do dia, Milo observou-o atentamente e falou de maneira clara:
- Você se saiu muito bem mais cedo, com Kasos. Você é mais forte do que aparenta.
Marcus sentiu um aperto no estômago, temeroso, mas continuou com a mesma expressão no rosto e não disse nada.
- Você é jovem demais para se unir às gangues agora, mas, se ficar por perto, jovem Junius, você terá um futuro promissor aqui no Fosso.
- Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Milo arrotou bem alto e se levantou com dificuldade.
- Vou dormir. Amanhã vamos trabalhar. - Ele deu uma piscadela e se afastou, desaparecendo por um dos becos que levava até o Fosso. Marcus ficou olhando-o por um
instante, mas logo um grito da direção oposta chamou a sua atenção. Ele se virou e avistou Kasos e seus companheiros encostados à parede de um prédio nas proximidades.
Kasos encarou-o e apontou o dedo com um jeito ameaçador antes de passá-lo horizontalmente na frente do pescoço. Em seguida, acenou brevemente para sua gangue e eles
foram embora, segurando os cintos com os dedões enquanto mulheres, crianças e homens se afastavam para deixar os garotos passarem. Marcus sentiu uma pontada de raiva
e amargura enquanto observava os valentões indo embora de modo convencido. Não estava muito contente em ter virado inimigo de Kasos no seu primeiro dia no Fosso.
No dia seguinte, Marcus acordou assim que amanheceu. Ficou parado por um tempo, assimilando os novos arredores. Já ouvia barulhos - uma conversa entre mulheres que
pegavam água na fonte, os gritos agudos das crianças que as acompanhavam e, do quarto que ficava atrás do balcão, os roncos profundos de Demetrius. Marcus estava
contente por ter encontrado uma maneira de ficar perto de Milo e torcia para que em breve escutasse alguma informação útil para Festus e Caesar. Ainda estava preocupado
achando que fossem desmascarar sua história fictícia, apesar de milhares de garotos como ele irem parar em Roma. E, pelo que ouvira falar, esses garotos sofriam
mais do que os escravos, sempre passando fome e levando surras de arruaceiros. Era irônico, pensou Marcus. Pelo menos garotos como ele e Lupus tinham comida e um
lugar para morar. Percebeu que estava sentindo falta de seu canto na casa de Caesar.
Marcus se levantou e se espreguiçou antes de atravessar o interior escuro da estalagem. Olhou para fora. O Fosso ainda estava no meio das sombras, e a luz do sol
batia apenas nos tetos dos cortiços mais altos. Nas beiradas do Fosso, os primeiros membros de gangues saíam indispostos de suas acomodações. Dos becos, iam em direção
às estalagens, que já estavam abrindo para servir mingau quente de cevada com pedaços de alguma carne que não estivesse podre.
Demetrius mexeu-se e grunhiu, e um instante depois a porta do seu quarto se abriu e ele saiu lentamente, piscando os olhos para afastar o sono, apontando para Marcus.
- O que está fazendo perambulando por aí? Acha que hoje é feriado? Abra as janelas. Acenda o fogo e coloque o mingau para esquentar.
- Sim, senhor.
Marcus estendeu o braço e abriu o trinco de ferro que mantinha fechadas as janelas, comprimindo os olhos quando a luz inundou o lugar. Em seguida foi buscar madeira
e colocou-a na fornalha de pedra que ficava no fim do balcão. Usando a caixa de material inflamável de Demetrius, Marcus acendeu o fogo, e a fumaça subiu da grelha
até a chaminé. Era como se estivesse novamente nas cozinhas da escola de gladiadores de Porcino, pensou Marcus enquanto pegava água da fonte para encher o caldeirão
enegrecido de cobre. Acrescentou cevada e carne com restos de vegetais e misturou tudo. Apesar de o cheiro não estar particularmente bom, Marcus percebeu que estava
com um apetite feroz e encheu contente uma pequena tigela para si. Devorou a refeição com uma pequena colher de madeira antes que Demetrius aparecesse novamente,
vestindo a mesma túnica e o mesmo avental de todos os dias, suspeitou Marcus.
- Não se empanturre, menino! Deixe um pouco para os malditos clientes ou eu vou lhe dar uma surra que vai fazer sua pele cair!
- Desculpe, senhor. Eu estava com fome.
- Não estou nem aí. Não posso deixar um rato de rua comer o meu lucro, aliás, o que sobra dele depois que Milo tira a sua parte.
Os primeiros clientes começaram a entrar na estalagem, a maioria era de trabalhadores do Fórum, do mercado de carnes do Boário e do cais ao longo do Tibre, que ficava
a uma pequena distância dali - lugares que Marcus visitara quando Festus o estava ensinando a caminhar pela cidade. Depois que eles terminaram de comer e pagaram
no balcão com suas moedinhas de bronze, os primeiros membros da gangue de Milo chegaram, muitos ainda sofrendo devido ao vinho consumido no dia anterior. Resmungando,
pediram mingau e vinho diluído, e Demetrius e Marcus os serviram apressadamente.
Vários estavam vestindo túnicas sem mangas para facilitar a visualização das adagas cruzadas em seus ombros. Eram os Lâminas, pensou Marcus temerosamente, a gangue
à qual os dois sequestradores de Portia pertenciam - e um deles escapara. Marcus olhou ao redor cuidadosamente enquanto passava entre as mesas e bancos cheios, mas
não reconheceu rosto algum. Além disso, disse para si mesmo, o homem estava tão ferido que provavelmente morreu depois, mesmo se tivesse conseguido voltar para o
Fosso.
Enquanto carregava uma bandeja com tigelas fumegantes para uma das mesas perto da frente da estalagem, Marcus escutou dois homens conversando.
- Temos outro trabalho hoje. Já soube? - resmungou o homem enquanto estalava as juntas.
- É? Qual? - perguntou o amigo, sentado na frente dele.
- Milo vai levar os Lâminas e os Escorpiões para o Fórum essa manhã. Parece que Cato vai processar um dos defensores de Caesar, Calpurnius Piso. Ele é acusado de
corrupção, claro, na época em que era governador da Sicília. Claro que Clodius vai aparecer com os homens dele para interromper o julgamento. Então precisamos impedi-los
de chegarem perto e vaiar as testemunhas da defesa.
- Não deve ser tão difícil - disse o amigo dele, dando de ombros. - É só dar uma pequena surra neles que isso se resolve.
- Pois é. - O primeiro homem assentiu e olhou para cima bruscamente quando percebeu que Marcus estava rondando a mesa. - O que você quer? Uma gorjeta? Que tal esta:
se manda rapidinho antes que eu quebre a sua cabeça.
- Rá, rá. - O amigo dele riu. - Essa é boa.
Marcus retirou-se rapidamente e continuou servindo os outros clientes até uma corneta soar do lado de fora. A voz de Milo berrou:
- Vamos lá, ralé! Mexam-se! Temos trabalho a fazer. Lâminas e Escorpiões, venham comigo! As outras gangues não vão ser usadas hoje.
Os homens abandonaram o café da manhã e correram lá para fora.
- Ei! - gritou Demetrius para eles. - Vocês não pagaram ainda! Parem! Parem...
Ninguém prestou atenção, e logo a estalagem esvaziou-se, exceto por dois trabalhadores espremidos em um canto que tinham acordado tarde e que comiam o mais rápido
possível. Demetrius franziu a testa para os membros das gangues que se juntavam perto de Milo.
- Ralé...
Imediatamente ele deu uma olhada ao redor para ver se alguém tinha escutado e avistou Marcus.
- Limpe essa bagunça. Raspe o que tiver sobrado no caldeirão.
Enquanto Marcus recolhia as tigelas e cálices, Demetrius foi raivosamente para os fundos da estalagem, resmungando sozinho. Lá fora, Milo estava em cima de uma banheira
virada, falando com seus homens.
- Já vi cadáveres mais vivos do que vocês! Endireitem a postura, fiquem atentos e escutem! Vamos enfrentar Clodius e a escória dele de Subura de novo.
Os homens comemoraram enfurecidamente, e Milo continuou:
- Caesar e seus comparsas querem mandar nas ruas de Roma. Se deixarmos que ele fique poderoso demais, ele vai se voltar contra as gangues e destruir uma de cada
vez até não ter mais ninguém no meio do caminho dele. Irmãos, vamos deixar isso acontecer?
- NÃO! - rugiram seus homens.
- Não! Pelos deuses! - gritou Milo. - Roma pertence às gangues, e eu prefiro morrer a deixar um aristocrata arrogante tomar a cidade de nós.
Marcus queria alertar Festus, mas percebeu que, quando chegasse à casa de Caesar, já seria tarde demais. Além disso, ausentar-se da estalagem levantaria suspeitas.
Precisava se manter firme. E, se conseguisse ficar mais tempo perto de Milo, com certeza descobriria informações ainda mais valiosas para Caesar.
Milo prosseguiu:
- Algumas gangues aceitaram o ouro de Caesar. As gangues de Subura rolaram aos pés de Caesar como verdadeiros cachorros sarnentos. Os únicos homens que sobraram
em Roma estão aqui! Agora peguem suas clavas e lâminas e vamos mostrar à escória de Subura quem é que manda nas ruas. Vão com tudo, sem nenhuma misericórdia. E não
desonrem as tatuagens nos seus ombros. - Ele esmurrou o ar. - Honrem os Lâminas e os Escorpiões! Morte aos nossos inimigos!
Seus homens rugiram em aprovação, e Milo fez sinal para que eles saíssem por um beco que ia do Fosso até o centro da cidade. Ele gritou mais para animá-los antes
de saltar da tina e tomar a direção oposta, subindo o Monte Aventino.
Marcus observou-os irem embora e continuou limpando as mesas. Levou tigelas e cálices para a tina nos fundos da estalagem, onde foram lavados e empilhados rapidamente.
Quando passou por Demetrius, o dono da estalagem murmurou:
- Até que enfim foram embora.
Demetrius deixou Marcus ocupado, primeiro organizando os objetos do café da manhã e depois cortando mais lenha para a pequena chama manter o caldeirão aquecido ao
longo do dia. Marcus não tinha como sair do Fosso e alertar seu senhor sobre os planos de Milo. No entanto, o garoto duvidava que o alerta fizesse alguma diferença.
Ambos os lados se enfrentariam, e Roma daria mais um passo em direção ao caos. Marcus precisava ficar no Fosso até o retorno daqueles homens. Depois serviria a Milo
e aos líderes das gangues de novo, até descobrir os planos secretos deles para destruir Caesar.
20
Ao meio-dia, Marcus terminou os afazeres domésticos e sentou-se no banco de frente para o terreno aberto. O mormaço fizera a maioria das pessoas ficar dentro de
casa, mas Marcus fechou os olhos e aproveitou o calor, lembrando-se brevemente dos anos em que cresceu na fazenda na ilha de Lêucade. Agora os montes que cercavam
a fazenda estariam cobertos de flores, com os ventos jônicos acariciando as ilhas com seu toque refrescante. Ele gostava de se sentar em certo local com o pastor
que cuidava dos bodes. Juntos, observavam as pequenas embarcações comerciais entrarem na baía em Nidri e os barcos mais distantes que passavam entre as belas ilhas
cobertas de árvores que pontilhavam o mar cerúleo resplandecente. Cerberus, seu cachorro, ficava aos pés dele, com a cabeça entre as patas e os olhos fechados de
satisfação. Marcus ficou curtindo a memória, recusando-se a pensar no que aconteceu depois, arruinando tudo.
- E esse sorriso idiota aí, pentelho?
Marcus abriu os olhos e viu que Kasos e sua gangue estavam a uma pequena distância dele. Um calafrio percorreu a nuca de Marcus, mas o garoto se manteve calmo e
tentou não demonstrar medo.
- Você não tem nenhum motivo pra sorrir - prosseguiu Kasos. - Então, tire esse sorriso da cara antes que eu mesmo faça isso.
Marcus encarou-o e notou os machucados no rosto dele.
- Você fala demais.
- O quê? - Kasos estreitou os olhos. - Quer dar uma de espertinho, é?
Marcus deu de ombros.
- É só um fato. Agora, se já tiver terminado, eu estou descansando e não quero que ninguém me perturbe.
Kasos rosnou.
- Eu estou perturbando você. Acho que você me deve um pedido de desculpas.
- Um pedido de desculpas? - Marcus riu.
- Você não luta de maneira justa. Você me atacou quando eu não estava pronto. Isso não é aceitável. Não é aceitável de jeito nenhum.
- Eu não sabia que existiam regras.
- Fique de joelhos e peça desculpas.
Marcus olhou para Kasos e se lembrou de Ferax, o garoto gaulês que o infernizava na escola de treinamento de gladiadores. Marcus só aguentou aquilo por tanto tempo
porque não tinha confiança suficiente para atacar o valentão. Só quando eles se enfrentaram na arena da escola que o medo finalmente desapareceu. Com Kasos, ele
não suportaria aquilo. Marcus levantou-se, deu alguns passos para perto de Kasos e balançou a cabeça.
- Não.
Kasos rangeu os dentes.
- Você vai se arrepender disso, menino do esgoto. Ninguém toma o meu lugar na mesa de Milo e vive para contar a história.
- Bem, eu acho que você está errado - respondeu Marcus friamente, segurando-se para não tremer e com o coração disparado. - Eu fiz isso e estou bem vivo. A não ser
que queira aprender outra lição, sugiro que você pegue seus amigos e vá embora daqui.
- Você é que vai embora. Eu não. Vamos fazer o seguinte: se você se levantar e for embora agora e nunca mais voltar, eu deixo você em paz. Se não, vai ter que lutar
comigo. E dessa vez vai ter que ser uma luta limpa.
- Limpa? - Marcus ergueu a sobrancelha. - Então vai ser só você. Seus amigos não podem se meter.
Kasos riu desdenhosamente.
- Acha que preciso da ajuda deles para dar uma bela surra em você?
- Ontem parecia que sim - respondeu Marcus, irritando o oponente de propósito. Aprendera que a raiva era o pior inimigo de um gladiador. Essa emoção deixava a mente
distraída, justamente quando ela precisava ficar atenta e alerta. Marcus ficou contente quando viu o rosto do garoto empalidecer. - Vamos fazer o seguinte - prosseguiu.
- Vamos chegar a um acordo. Se você ganhar, eu vou embora do Fosso para sempre. Se eu ganhar, eu me torno líder da sua gangue e você vai embora.
- Se eu ganhar, você vai embora pra sempre deste mundo - rosnou Kasos.
- Que armas vai querer usar? - perguntou Marcus. - Punhos, clavas, facas, bastões?
Kasos ergueu a clava e a brandiu no ar. A madeira era escura e endurecida pelo tempo. A base estreitava-se de maneira uniforme, tinha sido feita com bastante cuidado,
e a extremidade mais pesada estava cheia de pregos. A clava tinha uma alça na outra ponta, que cobria o pulso de Kasos. Parecia uma arma fantástica, pensou Marcus
enquanto se virava para ir buscar a própria clava dentro da estalagem. Após se juntar novamente ao grupo, ele se agachou e ergueu a clava.
- Aqui não - disse Kasos. - Ali.
Ele apontou para a pequena bacia no meio do Fosso onde os homens tinham brigado no dia anterior. Marcus viu que a bacia estava cheia de lama espumosa, o que seria
ruim para sua mobilidade. Aquilo não era bom, pois Kasos era bem maior e Marcus precisava ser veloz para ter alguma vantagem sobre o oponente.
- Por que não aqui mesmo?
- É lá que acontecem nossas lutas, menino. É regra de Milo. Se desobedecer, ele quebra sua cara.
Então tinha que ser lá, percebeu Marcus. Não havia escolha.
- Tudo bem, pode ser lá. Vá na frente.
Kasos virou-se para descer a ladeira, e Marcus foi atrás dele um pouco depois, mais ao lado para poder ver Kasos e toda a gangue. Quando se aproximaram da lama na
bacia rasa, sentiram um fedor forte. Kasos chapinhou no meio do terreno e afastou-se alguns passos, analisando o peso da clava na mão. Marcus assumiu sua posição
na frente do líder da gangue, testando o chão sob seus pés. A superfície tinha secado e rachado um pouco, mas logo abaixo da crosta havia uma lama gelatinosa que
sugava suas botas. O restante da gangue formou uma barreira ao redor da bacia para que Marcus não tivesse como escapar antes de a luta acabar.
- Última chance de ajoelhar e pedir desculpas - avisou Kasos.
- É como já disse, você fala demais. Você é grande, mas não está em forma. É melhor poupar o fôlego. Vai precisar dele logo mais.
Foi um comentário premeditado e causou o efeito desejado. Kasos soltou um berro de raiva e correu pela bacia. A imundície borrifou para cima, e de repente Kasos
deslizou, tropeçou, recuperou o equilíbrio e seguiu em frente. Marcus agachou-se segurando a clava com as mãos, pronto para atacar. Kasos, de dentes cerrados, lançou-se
para cima dele e empunhou a sua fazendo um arco grande. Marcus brandiu a clava com uma pequena inclinação para que o golpe fosse repelido para cima, sobre sua cabeça.
Kasos tinha colocado todas as suas forças no ataque e teria derrubado até um adulto se tivesse acertado o alvo. O garoto desequilibrou-se e estendeu a mão esquerda
para não cair na lama. Imediatamente, Marcus ajustou a clava nas mãos e lançou um golpe certeiro com ela, atingindo os ombros de Kasos com bastante força. O garoto
maior soltou uma arfada de susto e dor e rolou para longe, ficando coberto de lama imunda. No entanto, recuperou-se rapidamente e já tinha se levantado de clava
nas mãos antes que Marcus conseguisse se aproximar. Ele reagia mais rapidamente do que Marcus imaginava, mas continuava furioso, e isso terminaria lhe custando a
briga.
- Está parecendo que saiu direto do esgoto - disse Marcus bem alto para que os outros garotos escutassem. Alguns riram discretamente.
- Cale a boca! - vociferou Kasos, e apontou a clava para um membro de sua gangue. - E você! Mais tarde eu cuido de você, depois que eu deixar esse aqui em pedacinhos.
Prometo.
A expressão do membro da gangue congelou-se, e ele ficou pálido. Satisfeito, Kasos voltou a atenção para Marcus. Ele segurou a clava nas mãos mais uma vez.
- Você sabe usar bem essa clava aí, mas isso não vai salvar sua vida.
Marcus não respondeu. Ele fixou os olhos no oponente e ficou parado. Por um instante nenhum dos dois se mexeu, e em seguida Kasos sorriu desdenhosamente, aproximando-se
de Marcus com cuidado. Ele enfiou o topo da clava na direção do rosto de Marcus e, quando este se moveu para bloqueá-la, brandiu a clava para a esquerda e o atingiu
na parte superior do braço, logo abaixo do seu ombro esquerdo. Marcus tentou reprimir a dor pungente e aguda. Deu um passo para trás e cerrou os dentes, forçando-se
a não fazer nenhum ruído.
Um gladiador não demonstra que está sentindo dor, disse Marcus para si mesmo, mantendo o rosto inexpressivo. Ele repetiu na cabeça o mantra do campo de treinamento.
Não vou deixar meu oponente ver que me machuquei. Não vou...
Kasos pareceu surpreso e desapontado por seu golpe não ter surtido nenhum efeito. Atacou de novo, dessa vez com um golpe diagonal na direção da cabeça de Marcus,
que bloqueou novamente, e depois mais uma vez, e outra, até Kasos se afastar, ofegante.
O ataque é a melhor defesa. Marcus escutou a voz de Festus dentro de sua cabeça com bastante clareza. Ataque, Marcus.
Segurando a base da clava com mais firmeza, Marcus saltou para a frente e fez um arco violento na direção da cabeça de Kasos. O outro garoto defendeu-se do golpe,
e Marcus brandiu a clava novamente para o lado. Mais uma vez, a investida foi bloqueada, e Kasos foi obrigado a ceder terreno. Marcus mirou a cabeça dele, assim
como antes, e Kasos instintivamente reagiu da mesma maneira, erguendo a clava para bloquear o ataque. Dessa vez, Marcus mudou de direção enquanto a clava fazia o
arco. Manejou-a desviando da de Kasos e bateu no lado do crânio dele. O golpe lançou a cabeça de Kasos para o lado - a mandíbula dele se abriu, e os olhos se fecharam
por um instante de tanta dor. Kasos cambaleou, piscando sem parar. Marcus atingiu-o novamente, nas juntas da mão que segurava a clava. Os dedos abriram-se por reflexo,
e a arma caiu no chão. Segurando a clava com o máximo de força possível, Marcus enfiou o topo da arma na barriga de Kasos. O garoto encurvou-se para trás, caindo
de costas enquanto ofegava. Marcus deu um passo para a frente, firmando os pés na lama enquanto erguia a clava, pronto para dar o golpe final na cabeça de Kasos.
- Desiste? - grunhiu ele.
Kasos estava perplexo demais para responder. Marcus aguardou um instante para que os olhos do líder da gangue focassem nele novamente. Ele ainda estava arfando,
com a mão no lado da cabeça, onde Marcus tinha golpeado. Kasos encarou Marcus, apavorado.
- Você desiste? - repetiu Marcus, perguntando-se se o garoto não estava mais conseguindo pensar devido às pancadas que tinha levado.
Kasos fez sim com a cabeça desesperadamente, com os olhos implorando por misericórdia.
Houve uma pausa tensa enquanto Marcus ficou parado diante do oponente caído, com a clava erguida no alto, pronto para esmagar o crânio de Kasos.
- Diga em voz alta - insistiu Marcus.
- Você venceu...
Marcus virou-se para a gangue.
- Vocês todos ouviram. Eu venci. Agora vão embora, sumam daqui! - Ele sacudiu a clava na direção dos garotos que estavam mais perto, e eles se afastaram apressadamente,
deixando Marcus e o líder deles sozinhos.
Marcus respirou fundo, deixando Kasos assimilar sua derrota. Ele tinha se sentado de novo, aliviado por ter sido poupado. Quando Marcus falou novamente, foi com
tom de voz inexpressivo e frio:
- Na verdade eu não quero sua gangue. Não preciso deles. Pode ficar com eles.
- O quê? - Kasos olhou para Marcus desconfiado.
- Pode ficar com eles, contanto que você jure, pelo todo-poderoso Júpiter, que vai me deixar em paz e ficar longe da estalagem de Demetrius. Jure, ou então vá embora
do Fosso e nunca mais volte, e eu deixo um dos seus... 'amigos' assumir a liderança.
Kasos não respondeu imediatamente, estava surpreso demais com a oferta. Depois ele disse:
- Você podia ter me matado. Por que não fez isso?
Marcus não respondeu. Ele brandiu a clava.
- E então... vai escolher o quê?
Kasos piscou os olhos nervosamente.
- Juro, pelo todo-poderoso Júpiter, que vou deixar você em paz.
Marcus abaixou a clava e passou-a para a mão esquerda enquanto ajudava Kasos a se levantar. Os dois se olharam por um rápido instante. Kasos foi o primeiro a desviar
o olhar, balançando a cabeça.
- Pelos deuses, nunca vi um lutador como você. Mais alguns anos e você estará no nível do próprio Milo. - Kasos deu uma rápida olhada ao redor, mas não havia ninguém
por perto para escutá-los. - Bem, nem tanto, mas será um lutador de rua excelente. Pode ser meu segundo em comando, se quiser.
Marcus forçou um sorriso.
- Não, obrigado.
- Se não quer se juntar às gangues, por que está aqui?
- Para ter uma vida nova - respondeu Marcus. - Uma vida honesta.
- Bom, então você veio parar no lugar errado. - Kasos moveu o braço para se referir ao Fosso. - Não é aqui que vai achar uma vida honesta.
- Aqui dá pro gasto - insistiu Marcus. - Pelo menos por enquanto. - Ele se virou para ir embora.
Marcus tinha chegado à porta da estalagem quando escutou um grito do outro lado do Fosso. Um homem ensanguentado cambaleou para fora de um beco, com a mão em cima
de uma ferida na cabeça. Outro apareceu, mancando, e depois mais dois segurando um corpo inconsciente. Em seguida surgiram outros. Enquanto os membros dos Lâminas
e dos Escorpiões arrastavam-se para o terreno aberto, o primeiro homem gritou:
- Eles nos enganaram! Parecíamos ratos em uma armadilha...
- Onde está Milo? - gritou uma voz. - Vá logo encontrá-lo. Precisamos nos vingar e criar o maior inferno.
21
- Você primeiro, Spurius - ordenou Milo, de frente para os dois líderes de gangues à mesa fora da estalagem. Marcus levava apressadamente uma jarra de vinho e um
pouco de pão para os homens que chegavam à mesa de Milo.
O líder dos Lâminas estava com um curativo amarrado às pressas ao redor da cabeça, mas o sangue continuava escorrendo. Ele organizou os pensamentos antes de responder:
- Chegamos ao Fórum sem problemas e vimos que o julgamento estava prestes a começar. Cato estava lá, pronto para começar seu discurso de abertura. Calpurnius Piso
nem parecia estar sendo acusado de algo. Ele estava com a barba feita, bem-vestido, sem a aparência distraída e pesarosa de sempre. Ele parecia divertir-se ao lado
do advogado. Eu devia ter percebido que havia uma razão para aquilo. Enfim, uma das gangues de Clodius já estava lá, vaiando Cato. Nós fomos para trás deles e começamos
a empurrá-los para fora do caminho. Foi a mesma confusão de sempre, alguns murros e tal, mas nós nos livramos deles e formamos uma fila ao redor do palco para que
ninguém conseguisse entrar ou sair sem nossa permissão.
Spurius esvaziou o cálice e ergueu-o para Marcus enchê-lo novamente. Em seguida prosseguiu:
- A gangue de Clodius tinha se afastado um pouco e estava gritando insultos, mais alto do que o normal. E então as outras gangues chegaram. Elas deviam estar aguardando
algum sinal, pois todas chegaram na mesma hora. Centenas de homens, saindo de ruas e becos que levavam ao Fórum. Percebi imediatamente que estávamos em uma armadilha
e que, se ficássemos perto da corte, seria o nosso fim. Então disse para o pessoal me seguir e sair correndo. Fomos em direção à saída que levava ao Boário, mas
eles nos alcançaram antes de chegarmos lá. Erguemos as clavas e o que quer que tivéssemos. Eles nos cercaram completamente e tivemos de lutar o caminho inteiro até
chegarmos ao Tibre e nos dividirmos para voltar pra cá. - Ele parou e olhou para o chefe. - Perdemos muitos garotos por lá.
- Quantos?
- Mais de cinquenta, juntando as duas gangues. Acho que não foi muita gente que sobreviveu.
Marcus viu Milo ranger os dentes enquanto assimilava a notícia.
- Droga! Onde foi que Clodius conseguiu tantos homens?
- Eles não eram todos de Subura - comentou o líder dos Escorpiões. - Reconheci os símbolos de algumas gangues do Esquilino, e até algumas do distrito de Janículo.
- Isso não é nada bom. É péssimo - refletiu Milo. - De alguma maneira, Clodius convenceu os outros distritos a fazerem as pazes entre si e lutarem ao lado de Subura...
Agora eles são mais numerosos do que nós. Bem mais.
- Então o que fazemos agora, chefe? - perguntou o segundo líder de gangue.
Milo fitou a mesa, compenetrado. Os outros homens continuaram olhando para ele, mas Marcus viu Spurius se virar e sinalizar com a cabeça para os outros homens, querendo
dizer algo. O companheiro dele balançou a cabeça, e Spurius gesticulou mais insistentemente, incentivando-o. Curvando os ombros, resignado, o líder dos Escorpiões
limpou a garganta. Milo continuou encarando a mesa, franzindo a testa de concentração.
- É... chefe...
Milo ergueu a cabeça, irritado.
- O quê?
O líder dos Escorpiões espalmou as mãos na mesa enquanto tomava coragem.
- Desembucha logo, Brutus!
O tom de voz autoritário fez o homem se contorcer e gaguejar.
- É... é o seguinte, o pessoal andou conversando e...
- O pessoal? - Milo ergueu a sobrancelha. - Quem exatamente?
- Os outros líderes das gangues e eu.
- Entendi. - Milo apoiou os cotovelos na mesa ao se inclinar sobre ela. - Continue. Vocês andaram conversando. E?
Brutus olhou nervosamente para Spurius, querendo ajuda, mas o outro líder ficou em silêncio, e Brutus foi obrigado a falar sozinho:
- Nós, gangues, comandamos o crime organizado das ruas. É o que sempre fizemos. Pegar dinheiro das taxas de proteção, administrar os bordéis e resolver as disputas
dos nossos próprios distritos, não é? Enquanto fizemos isso e as outras gangues ficaram nas áreas delas, todos viviam bem com essa renda. Mas aí essa guerra de gangues
começou. Desde então nós perdemos homens e ficamos ocupados demais para conduzir os negócios de sempre...
Ele parou de falar sob o olhar fulminante de Milo, que, após uma pausa, disse com um tom de voz baixo e frio:
- E daí? As coisas vão voltar ao normal depois que nos livrarmos de Clodius e seus amigos.
Brutus encheu as bochechas de ar.
- É exatamente essa a questão. O pessoal quer que as coisas voltem a ser como eram antes. Eles já se cansaram de lutar contra as outras gangues. Eu disse que pediria
que você anunciasse uma trégua com Clodius, chefe, pondo um fim à guerra das gangues.
- E que impressão isso ia dar? - perguntou Milo, incisivo. - No instante em que as coisas ficam ruins para nós, eu vou correndo até Clodius e imploro que ele pare
de lutar. A gente viraria piada em Roma. Não demoraria para que outras gangues aparecessem no nosso território, e o povo de Aventino não faria nada para impedi-los.
Sabe por quê? Porque eles não teriam mais nenhum medo de nós. Ou pelo menos teriam mais medo das outras gangues. Medo é o que nos mantém no topo aqui no Aventino.
Se cedermos diante de Clodius, será o nosso fim. Temos que continuar lutando e temos que vencer. Não existe nenhuma opção. Entendeu? - Ele parou e prosseguiu com
um tom de voz desdenhoso: - Ou você e seus amigos não pensaram nessas consequências?
Marcus viu o líder de gangue se contorcer diante do olhar fulminante do chefe.
- Milo, se as coisas continuarem assim, não vai sobrar gente suficiente para controlar o Aventino. Não entende isso? Temos que falar com Clodius. Temos que acabar
com isso. Aliás, por que a gente está fazendo o trabalho sujo de um político?
De repente, Milo puxou a jarra de vinho semicheia e a esmagou na cabeça de Brutus. A jarra se espatifou, e os fragmentos e o vinho tinto espalharam-se pela mesa,
caindo em cima de Spurius, Milo e Marcus, que estavam por perto. Brutus caiu de cabeça em cima da mesa, e ele soltou um gemido profundo antes de perder a consciência.
Uma abertura em seu couro cabeludo começou a sangrar bastante, e o líquido se misturou ao vinho derramado. Apesar de seu treinamento, Marcus contorceu-se e deu um
passo para trás. Todos que estavam na mesa ficaram encarando a cena com expressões de medo. As pessoas que se encontravam na beirada do Fosso perceberam que algo
estava acontecendo e olharam para a estalagem. Milo subiu na mesa e olhou para os rostos abaixo. Gritou pelo espaço aberto, com a voz ecoando nas paredes dos prédios.
- Acabei de saber que alguns de vocês estão questionando a minha decisão de guerrear contra as gangues daquele nojento do Clodius. Parece que vocês não estão aguentando
as lutas. Alguns de vocês chegaram a esse nível, foi? Seus vermes covardes, vocês estão com medo demais para defender o que passamos tanto tempo para construir?
Agora não importa mais como essa guerra de gangues começou. Nós já estamos totalmente envolvidos no meio dela e não temos escolha. Temos que lutar e vencer. É assim
que funcionam as coisas aqui no Aventino. - Ele apontou o dedo para baixo, na direção de Brutus. - Esse maricas imprestável me disse que a gente devia dar as costas
para tudo que conquistamos e implorar que Clodius acabasse com a guerra das gangues e nos deixasse em paz... e que paz seria! No instante em que as outras gangues
de Roma ouvirem falar disso, elas não vão nos respeitar mais. Elas vão aproveitar todas as oportunidades que tiverem para provar que as gangues do Aventino são ridículas
e trouxas, assim como esse verme aqui nos meus pés. - Milo ergueu a bota e chutou rancorosamente Brutus, que continuava inconsciente. Ele caiu do banco e foi parar
no chão, bem ao lado de Marcus. - É isso que vai acontecer com todo mundo que não tiver coragem de levar a guerra até o fim. Do meu lado eu quero homens, homens
de verdade para lutar contra aquele canalha do Clodius, não fracotes que saem correndo atrás da mãe no primeiro contratempo que aparece. - Os olhos dele foram parar
em Marcus, e ele acenou para o garoto enquanto falava baixinho: - Suba aqui, menino.
Marcus subiu na mesa, ficando ao lado de Milo. O homem pôs a mão pesada em seu ombro enquanto falava com o público mais uma vez.
- Até este menino é mais homem do que Brutus. Pelo menos ele tem coragem de enfrentar desafios maiores quando precisa e de vencer. Se esse garoto consegue se defender,
todos os homens daqui conseguem.
Marcus sentiu todos os olhos se virando para ele e não pôde deixar de ficar nervoso ao receber tanta atenção. Era para ele ser um espião, não um exemplo para aqueles
homens. E se alguém o reconhecesse de quando ele lutou ao lado de Clodius?
- Vou cortar a garganta do próximo homem que falar de paz com Clodius. Vamos ter paz um dia, eu prometo. Será o dia em que Clodius e os últimos de seus homens caírem
mortos aos meus pés. Até lá nós continuaremos lutando, sem descanso, sem misericórdia e sem duvidar que os deuses estão do lado do Aventino.
Milo esmurrou o ar e soltou um grito entusiasmado. A maioria de seus homens fez o mesmo, mas Marcus viu que muitos estavam meio desanimados e que alguns nem gritaram.
Milo manteve o braço no ar por um instante antes de cutucar Spurius com a ponta da bota e apontar o dedão em direção a Brutus, que estava esparramado no chão, com
a cabeça dentro de uma pequena poça de sangue.
- Tire esse covarde daqui. Quando ele acordar, diga que ele não tem mais nenhum futuro nas gangues do Aventino. Se ele aparecer aqui de novo, vou entalhar o crânio
dele com a lâmina mais afiada que eu tiver.
Spurius contorceu-se e assentiu.
- Sim, Milo, eu cuido disso.
- Não precisamos de mais gente como Brutus - prosseguiu Milo pensativo. - Chegou a hora de sermos mais diretos...
De repente, ele olhou para Marcus.
- E por que ainda está em pé aí? Limpe essa bagunça e me traga uma nova jarra de vinho.
- Sim, senhor. - Marcus logo abaixou a cabeça. Suspirando aliviado, saltou da mesa e passou rapidamente por Spurius, que arrastava Brutus para o beco mais próximo.
Nos fundos da estalagem, Demetrius pôs uma vassoura nas mãos de Marcus e pegou uma nova jarra de vinho para Milo.
- Que pena. - Demetrius suspirou. - Brutus era um dos meus melhores clientes. Ele até pagava as bebidas às vezes.
Milo os aguardava quando os dois saíram da estalagem. Ele gesticulou para Marcus.
- Pode deixar a limpeza para depois. Preciso que encontre Kasos. Tenho uma missão importante para ele...
Era tarde da noite quando Kasos voltou para o Fosso. Ele não estava sozinho. Dois homens o acompanhavam, cada um vestindo um manto com capuz para esconder suas feições.
Um dos capangas de Milo estava vigiando o beco que levava à toca da gangue e escoltou-os por entre os outros que protegiam as entradas do espaço aberto.
A noite na estalagem tinha sido tranquila. A maioria dos clientes tinha se acalmado, especialmente os membros das gangues, que ficaram murmurando entre si e olhando
ao redor ocasionalmente para garantir que não havia ninguém os escutando. Quando a estalagem começou a se esvaziar, Milo apareceu e disse para Demetrius se livrar
dos clientes restantes e fechar as cortinas.
- Mas eles não terminaram de beber ainda - protestou Demetrius.
- Não me importo. Livre-se deles. Agora. Vou esperar lá fora. Me avise quando todos tiverem saído.
Demetrius viu o olhar ameaçador no rosto do líder da gangue e virou-se para Marcus.
- Vamos, garoto, você escutou. Vamos esvaziar o local.
Eles foram de banco em banco dando a instrução. Alguns clientes começaram a reclamar, mas, no instante em que descobriam de quem era a ordem, ficavam quietos, abaixavam
as bebidas e iam embora. Havia um último homem dormindo em uma mesa mais ao fundo. Demetrius chamou Marcus, e os dois arrastaram-no para fora, deixando-o um pouco
mais abaixo na ladeira. Foi então que Marcus avistou Kasos e os dois homens encapuzados atravessando o espaço aberto em direção à estalagem.
- Venha aqui, Demetrius - ordenou Milo. - Preciso conversar a sós com dois convidados meus. Vamos usar sua estalagem. Imagino que você não vai se incomodar se eu
pegar uma jarra de uma das suas melhores bebidas.
- N-Não, Milo. - O dono da estalagem abaixou a cabeça e forçou um sorriso. - Claro que não. Fique à vontade. Sinta-se em casa.
- Também vou precisar de pão, salsicha e azeitonas.
Demetrius gesticulou.
- Eu tenho pão. Mas não tenho salsicha nem azeitonas.
- Então vá comprar. O suficiente para mim e dois amigos.
- Claro, vou pedir para o garoto ir e...
- Não. Vá você. O garoto pode ficar para nos servir o vinho.
Demetrius engoliu o orgulho e assentiu enquanto tirava o avental.
- Volto o mais rápido possível.
- É melhor mesmo - respondeu Milo sombriamente. - Não estou com muita paciência hoje.
- Imediatamente então. - Demetrius assentiu e apressou-se para o quarto dos fundos, de onde retornou com uma bolsa. Parou na porta e olhou para Marcus. - Desça lá
na adega. É lá que ficam os melhores vinhos. Tem uma jarra do Arretiano, a minha última. - Ele ficou triste por perder seu estimado vinho. - Pode pegá-la.
- Você é tão gentil. - Milo sorriu enquanto dava um tapinha no ombro do dono da estalagem. - E use a porta lateral quando voltar. Não querermos ser interrompidos.
Demetrius murmurou uma resposta carrancuda e desapareceu na escuridão. Depois que ele foi embora, Milo virou-se para Marcus.
- Vá buscar o vinho, garoto.
- Imediatamente - disse Marcus, indo em direção aos fundos da estalagem. Quando chegou à entrada do quarto dos fundos, escutou vozes e parou para olhar ao redor.
Milo estava bem na entrada, falando com alguém do lado de fora. - Tome um denário, Kasos. Você fez um bom trabalho. Mas não comente nada disso com ninguém. Agora
vá embora.
Milo deu um passo para o lado e indicou para que os dois homens entrassem. Marcus, dentro do quarto dos fundos, espreitou cuidadosamente da porta para poder continuar
vendo os homens. Seu coração disparava, e sua pele vibrava de excitação. Quem eram aqueles que estavam visitando o Fosso? Talvez descobrisse algo que beneficiaria
Caesar bem agora. Olhou para eles. Um dos homens tinha botas de couro elegantes e uma túnica ricamente bordada. O outro estava vestido de maneira mais simples, usando
botas pesadas de soldado. Um rubi vermelho reluzia no anel que ele tinha na mão. Milo fechou a porta e apontou para uma mesa perto do balcão.
- Agradeço por terem vindo. Com certeza devem ter ouvido falar que meus homens levaram uma bela surra hoje.
- Sim, sabemos disso - respondeu um dos homens de manto. Era impossível Marcus saber qual dos dois tinha falado; ambos estavam com os rostos bem cobertos pelos capuzes.
- E não ficamos contentes, Milo. É para você controlar as ruas. Foi o que nos prometeu. Por isso pagamos tanto dinheiro a você.
- Infelizmente, os patrocinadores de Clodius são bem mais ricos do que vocês - respondeu Milo secamente. - É por isso que ele conseguiu comprar o apoio das outras
gangues. Se tivesse me pagado a mesma quantia, a disputa pelo controle das ruas teria outro resultado. Chegou a hora de mudarmos nossa estratégia.
- Nós concordamos com isso - disse o homem de manto enquanto ele e o companheiro acompanhavam Milo até a mesa e se sentavam. - Precisamos agir de maneira mais direta,
e é por isso que eu trouxe o meu amigo aqui.
- Podem abaixar os capuzes - disse Milo. - Estamos sozinhos.
- Como nós dois nos conhecemos, eu posso fazer isso. Mas a identidade do meu companheiro deve continuar em segredo, até mesmo de você. - O homem ergueu as mãos e
puxou o capuz para trás.
Marcus sentiu o pulso disparar ao reconhecer o homem. O nome dele quase escapou silenciosamente de seus lábios.
- Bibulus...
Se o inimigo mais implacável de Caesar tinha tido coragem de ir até a estalagem para conversar com Milo pessoalmente, estava claro que Bibulus e seus amigos planejavam
algo tão secreto que não dava para confiar em uma pessoa intermediária. Marcus sentiu o pulso acelerar. Foi exatamente para isso que se voluntariou para essa perigosa
tarefa. Finalmente descobriria alguma informação valiosa para Caesar. Algo que fosse ajudá-lo a vencer a disputa de uma vez por todas.
22
- Onde está o nosso vinho? - gritou Milo. - Garoto?
Marcus foi mais para o interior do quarto e cobriu a boca para abafar a resposta.
- Estou indo, senhor!
Na frente dele, no lado do quarto onde Demetrius vivia, dormia, cozinhava e contava o dinheiro, havia uma escada estreita que levava à adega. Ao lado dela, uma porta
para o beco, que Demetrius deixava trancada. Marcus pegou um candeeiro na mesinha onde o dono da estalagem guardava o livro-razão e protegeu a chama enquanto descia
apressadamente os degraus de pedra. O ar estava frio, e o cômodo tinha o teto tão baixo que Marcus mal conseguia ficar em pé. A adega estava repleta de jarras, algumas
vazias, e teias de aranhas reluziam na luz âmbar do candeeiro. Marcus encontrou a jarra com a etiqueta mal pintada da vinícola do Arretium e colocou-a debaixo do
braço com cuidado antes de sair da adega e recolocar o candeeiro no lugar. Os homens estavam falando baixinho, e Marcus entrou no bar para pegar três cálices. Em
seguida, o garoto aproximou-se da mesa. Seu coração disparava de excitação e medo. Era a oportunidade que estava esperando. Tinha que ficar alerta e tomar cuidado.
- Eu sei quem é o homem ideal para esse trabalho - dizia Milo. - O nome dele é Lamina. Ele já fez esse tipo de coisa antes. Mas claro que vou precisar encontrar
uma maneira de fazer ele chegar perto do alvo.
- E como sabemos que ele é melhor do que os dois incompetentes que você mandou atrás da sobrinha de Caesar? - perguntou Bibulus sarcasticamente. - Não, acho que
vamos preferir usar nossos próprios homens. Meu amigo aqui conhece alguém mais apropriado para o que queremos. Os seus homens vão desempenhar outro papel.
Milo estava prestes a responder quando percebeu a presença de Marcus.
- O garoto chegou com o vinho. Conversaremos mais depois que ele for embora - avisou ele para os companheiros.
Marcus pôs os cálices na mesa e tirou a tampa da jarra de vinho, fazendo um odor rico e frutado se espalhar no ar. Em seguida, encheu os cálices. O homem que não
tinha tirado o capuz estava se apoiando nos cotovelos, deixando à mostra apenas o contorno de sua mandíbula. Ele não olhou para cima.
- Pronto. - Milo acenou com a cabeça. - Pode ir embora. Volte para o quarto dos fundos e feche a porta após entrar.
Marcus assentiu e voltou para a porta atrás do balcão. Seu coração não parava de martelar o peito. Precisava escutar a conversa dos três homens. Imediatamente, decidiu
qual seria seu plano. Enquanto passava pela porta, ajoelhou-se e engatinhou sorrateiramente para trás, ficando escondido pelo balcão. Fechou a porta com força suficiente
para que o trinco fizesse barulho.
O silêncio foi interrompido por Bibulus.
- Tem alguma chance de ele ainda estar nos escutando?
- Não - respondeu Milo com segurança. - A porta é grossa, e o garoto estava louco para trabalhar aqui. Ele não vai arriscar o emprego. Estamos em segurança. Você
estava me contando a respeito do seu homem, o que vai cumprir a missão.
- Ah, sim. Sei que você já fez esse tipo de coisa antes, mas agora é diferente. Não podemos correr o risco de ter os seus homens envolvidos nisso. É importantíssimo
que ninguém descubra de maneira alguma que eu estou envolvido nisso. Meu amigo aqui garante que o homem dele é bom. Ele vai fazer o combinado e desaparecer. Milo,
seu papel é criar uma distração e manter os guarda-costas de Caesar ocupados.
- Entendi - respondeu Milo. - Então eu vou querer receber por isso, e receber bem.
- Nós podemos pagar - respondeu Bibulus. - Não é?
O homem encapuzado respondeu baixinho:
- Dinheiro não é problema.
- Ótimo. - Milo deu uma risadinha. - Caesar não é um alvo fácil.
O sangue de Marcus congelou. Aqueles eram os detalhes de uma conspiração contra a vida de Caesar. Era importante que ele escutasse o máximo possível e fosse embora
discretamente na manhã seguinte para contar a Festus. Prendendo a respiração, inclinou-se um pouco para a frente diante da base do balcão. Precisava ficar perto
dos três homens para não deixar de escutar nada. Havia um buraco no balcão onde um nó da madeira tinha caído, e Marcus aproximou-se dele. Inclinou-se e conseguiu
ver Milo e Bibulus, mas, do homem encapuzado, só dava para ver as costas.
- Então vamos falar sobre o plano - prosseguiu Milo. - É melhor atacar quando ele estiver sozinho em um dos quartos da casa dele. Foi o que pensei.
- Não - interrompeu o homem encapuzado. - Tem que ser em público. Caesar está planejando aprovar uma emenda à Lei de Terras daqui a dois dias. Ele vai obrigar todos
os senadores a fazer um juramento dizendo que não vão anular a emenda depois que ela for aprovada. Se eles se recusarem a fazer o juramento, serão considerados culpados
de traição. Vamos deixar Caesar anunciar a emenda antes de o nosso homem atacar. Vou me sentar perto de Bibulus, e o sinal para o matador atacar vai ser quando eu
tirar um lenço vermelho e enxugar a testa. Caesar vai cair enquanto estiver saindo do Senado e atravessando o Fórum.
- Mas essa é uma missão suicida - argumentou Milo. - É impossível.
- Não se suas gangues fizerem confusão para disfarçar a fuga do matador.
Marcus viu Milo coçar o queixo pensativamente.
- É arriscado, mas pode ser que dê certo. Por que não fazer isso da maneira mais fácil e matá-lo na casa dele?
- Porque assim seria assassinato - disse Bibulus, como se estivesse explicando algo para uma criança. - É melhor matar Caesar depois que ele anunciar algo que pode
ser entendido como uma enorme violação dos direitos dos senadores. Assim o fato poderá ser interpretado como a justa morte de um tirano. Entendeu? A última coisa
de que Roma precisa agora é que Caesar seja visto como uma vítima daqueles que se opõem à distribuição de renda aos pobres.
Os homens foram interrompidos por um barulho vindo do beco, como se uma chave estivesse sendo colocada na porta do quarto dos fundos.
- A nossa comida chegou - avisou Milo.
Marcus sentiu o coração parar. Demetrius tinha voltado antes do que imaginava. Se ele encontrasse Marcus escondido atrás do balcão, descobririam que o garoto era
um espião. Ele seria torturado para dar informações e depois assassinado. Marcus tentou desesperadamente pensar em uma maneira de sair daquela situação.
A tranca fez um clique, e a porta rangeu. Quando foi fechada novamente, a tranca chacoalhou mais uma vez. Então Demetrius gritou:
- Junius! Venha aqui, garoto! Preciso que você corte essa salsicha... Junius!
Milo interrompeu o silêncio da mesa:
- Que estranho. Achei que o garoto estava lá dentro. Se ele fugiu para se divertir, Demetrius vai meter o cinto nele.
- Junius! - gritou Demetrius novamente. Ele abriu a porta do quarto dos fundos e entrou na estalagem, parando abruptamente ao ver os três homens. - Me desculpem,
senhores. Vocês viram o garoto?
Marcus pressionou-se contra o lado do balcão e não se atreveu a respirar enquanto olhava para Demetrius, parado ao lado da porta. O dono da estalagem ainda não o
tinha visto.
- O garoto foi para o quarto dos fundos - disse Milo. - Talvez ele tenha saído.
Demetrius franziu a testa.
- Não, isso é impossível. Eu deixo a porta trancada e só eu tenho a chave.
- Então onde ele se meteu? - perguntou Milo.
- Vou ver na adega - disse Demetrius. - Se ele estiver tomando alguma coisa lá embaixo, vou dar a maior surra nele.
Ele se virou e parou quando avistou Marcus.
- Aqui está ele! Dormindo no chão.
Marcus fechou os olhos, querendo que os homens também acreditassem no que Demetrius tinha dito, mas um instante depois um banco foi arrastado e Bibulus grunhiu:
- Dormindo? Eu o vi entrar no quarto. E ele fechou a porta... Ele está espiando a gente...
Mais bancos foram arrastados, e os outros homens se levantaram. Milo soltou um palavrão.
- Ele é um espião. Peguem-no!
Marcus levantou-se imediatamente e saiu correndo na direção da porta do quarto dos fundos. Demetrius demorou para reagir. Estava boquiaberto de surpresa quando Marcus
enrijeceu o pescoço e deu uma cabeçada em sua barriga. Demetrius encurvou-se, cambaleou para trás e caiu pesadamente no chão. Marcus disparou para o quarto dos fundos
e, aliviado, viu que a chave ainda estava na porta que dava no beco. Atrás dele, passos pesados soavam - eram Milo e os outros correndo. Marcus chegou à porta, pegou
a chave e a virou rapidamente antes de tirá-la. Enquanto passava pelo batente pulando, viu Milo do outro lado do quarto. Bateu a porta, enfiou a chave com força
e a virou. Um segundo depois, o líder das gangues se jogou contra a madeira cheia de pregos, fazendo-a balançar.
- Vamos por lá! - gritou Milo. - Pela frente!
Marcus virou-se de costas para o Fosso e disparou pelo beco. Estava a maior escuridão; poucas pessoas que moravam ali tinham condições de deixar os candeeiros acesos.
Correu mais pelo meio do beco, presumindo que não teria lixo lá. Escutou gritos e a voz de Milo atravessando o Fosso ao dar o alerta:
- Lá está ele!
Marcus olhou para trás e notou Bibulus na entrada do beco, apontando para ele. O garoto continuou correndo, viu outro beco à esquerda e virou-se, seguindo em frente
até passar por duas aberturas à direita e escolher a segunda. Marcus estava desesperado para seus perseguidores se perderem dele, mesmo se isso significasse que
ele mesmo ia se perder. Imaginava ir em direção ao centro de Roma, à segurança da casa de Caesar. Os sons da perseguição já estavam mais abafados, mas já havia mais
vozes, homens gritando uns para os outros, ordens sendo dadas.
Correu até os gritos praticamente desaparecerem. Parou para descansar por um instante, encostou-se em uma parede e recobrou o fôlego enquanto pensava. Era fundamental
que ele escapasse e alertasse Caesar. Se fosse capturado, tanto ele quanto seu dono terminariam mortos.
23
Marcus sabia que precisava continuar correndo. Seguiu pelo beco, esperando parar no Fórum. No entanto, não apareceu nenhum outro beco pelos lados e logo mais ele
parou abruptamente diante de um enorme muro de tijolo e pedra. Chocado, Marcus percebeu que era o muro da cidade. Tinha ido na direção errada. Soltando um palavrão
baixinho, ele se virou e correu de volta, em direção ao cruzamento onde escolhera o beco sem saída. Quando chegou lá, avistou a luz de uma tocha no beco à direita.
A uns cinquenta passos de distância, a chama iluminava um grupo de oito ou dez homens.
Marcus virou-se na direção oposta. Grudado no lado do beco, rezou para não tropeçar em nada. Os perseguidores paravam em cada junção para dar uma olhada nos becos.
Isso dava a Marcus uma pequena vantagem enquanto eles estivessem pensando em que caminho pegar.
No entanto, ao olhar para trás, Marcus não notou que havia um homem deitado ao lado. Ele tropeçou e caiu para a frente, ferindo o joelho esquerdo em um tijolo quebrado.
O homem afastou-se e irrompeu com sua voz envelhecida e aguda:
- Ei! Presta atenção pra onde vai, diabos!
Agora os homens estavam olhando para ele. O líder berrou, e eles correram na direção de Marcus e do velho. Tomado pelo pânico, Marcus conseguiu se levantar, mas
uma mão que parecia uma garra prendeu seu tornozelo.
- Não tão rápido! Vamos ver se você tem alguma coisa valiosa.
A outra mão que estava na sua panturrilha subiu para seu cinto. Marcus chutou com a outra perna, passando de raspão no homem. Ajustou a mira e chutou novamente.
O homem deu um berro e largou Marcus por tempo suficiente para ele se soltar e sair correndo.
Um dos perseguidores gritou:
- É ele!
Marcus sentiu uma ardência no joelho e logo depois o sangue escorrendo por sua canela. No treinamento, aprendera que uma ferida jorrando sangue podia enfraquecer
um lutador rapidamente. Precisava se esconder para poder colocar algum pano por cima do corte e estancar o sangramento. Mais uma vez, lançou-se à esquerda no primeiro
beco que encontrou e depois à direita. Mas os homens estavam por perto e viram a mudança de direção. Tentou a tática mais algumas vezes sem sucesso e foi parar em
uma rua mais ampla, ouvindo atrás de si o barulho das botas e os gritos dos homens dizendo para os outros se juntarem à perseguição. Todos os nervos de seu corpo
estavam ardendo de terror e desespero. Avistou uma esquina mais adiante, uma curva fechada à esquerda ao redor do muro de um templo. Fazendo a volta, avistou uma
pequena praça do lado oposto, cercada por vários becos. Também havia um muro baixo na lateral do templo, com escuridão mais à frente. Precisava decidir imediatamente
- Marcus rolou por cima do muro e caiu do lado oposto. Foi uma queda de uns três metros, e o garoto despencou em cima de uma pilha de lixo inclinada que descia até
acabar em um pequeno barranco na encosta da colina. O fedor entranhou-se em suas narinas enquanto ele deslizava e rolava. Os homens entraram na praça, e ele escutou
gritos antes de ver uma tocha brilhando acima do muro.
Uma voz gritou:
- Do outro lado do muro!
- De jeito nenhum - respondeu o homem. - Tem um beco ali. Vamos!
Marcus chegou ao sopé com um baque, o impacto deixando-o ofegante. Agachou-se e apoiou a mão no chão enquanto arfava e olhava ao redor. O barranco terminava em um
depósito de lixo que ficava na pequena área de um terreno aberto. Procurou algo que pudesse usar como atadura e agarrou um pedaço de saco de juta desgastado. Rasgou
uma tira e amarrou-a com firmeza ao redor do joelho. Em seguida, levantou-se mais uma vez. Foi em direção ao beco mais próximo, mas os homens estavam descendo a
colina. Entrou na primeira passagem que levava para longe deles, mas começou a ouvir gritos de outras direções e teve a impressão de que a única rota segura seria
seguir em frente. Marcus saiu correndo por ali o mais rápido possível. Parou bruscamente quando o caminho se abriu, fazendo-o avistar o cais do Tibre. Uns cem passos
à sua direita, havia um grupo de homens sob a luz de uma tocha. O caminho à esquerda parecia livre, então Marcus se virou e saiu em disparada, mais uma vez sendo
forçado a ir para longe do centro da cidade. À direita havia barcaças e outros barcos menores e, à esquerda, armazéns, todos trancados. Um pouco mais à frente, havia
uma ponte com armação de madeira passando por cima do rio, e Marcus correu em sua direção.
Uma pessoa apareceu no meio das sombras. Tomado pelo pânico, Marcus preparou-se para atacar o homem. Era o único caminho que tinha para escapar. Precisava seguir
em frente.
Mas, ao se aproximar, a pessoa falou baixinho:
- Marcus, pare.
- Kasos...? - disse Marcus quando o garoto saiu da escuridão.
- Isso. Eu estava com os homens que viram você descer a colina. Eu sabia que eles bloqueariam o caminho para o Boário. Então este aqui era o único caminho que sobrava
pra você. - Ele sorriu debilmente. - E agora está encurralado.
Marcus preparou-se para atacar o garoto. Kasos manteve-se firme, mas não deu nenhum indício de que o atacaria. Ele sorriu friamente.
- Não é tão legal ficar tão de cara com a morte, é?
- Não vou desistir sem lutar - grunhiu Marcus, rangendo os dentes. - Disso pode ter certeza.
Por um instante, os dois garotos ficaram parados, e então Kasos deu uma risadinha.
- Não se preocupe, estou aqui para ajudá-lo.
- O quê? - Marcus ficou perplexo. - Do que está falando?
- Você podia ter me matado facilmente, ninguém teria impedido - disse Kasos amarguradamente. - Você poupou minha vida, e agora estou retribuindo o favor. Assim ficamos
quites e eu não devo mais nada a você. Agora, se quiser sobreviver, é melhor vir comigo e atravessar a ponte.
Marcus olhou para os dois lados. Mais homens tinham aparecido no cais, nas duas direções.
- Tudo bem - disse ele, assentindo. - Então deixe eu passar.
- Calma - respondeu Kasos. - Eles sabem que eu estou aqui. Eles me mandaram para cá para vigiar. Se você escapar, eles vão saber que eu deixei. Preciso de uma história
para contar para o Milo. - Ele pôs a mão na cintura, e Marcus viu a superfície reluzente de uma lâmina, e estendeu as mãos, pronto para brigar, mas Kasos passou
a lâmina rapidamente no próprio braço.
- O que está fazendo? - sussurrou Marcus.
- Vou dizer que tentei detê-lo. Nós brigamos, você caiu no rio e se afogou.
Marcus viu mais um grupo surgindo no cais. Reconheceu Milo e seus dois convidados, ambos com as cabeças cobertas, avançando sob a tocha. Ele não tinha escolha. Precisava
confiar em Kasos.
- Tudo bem. Mostre o caminho.
Kasos assentiu e virou-se para a ponte. As tábuas pesadas de madeira fizeram ruídos surdos debaixo das botas dos garotos. Atravessaram o suficiente do Tibre para
se distanciarem das embarcações paradas e ficaram por cima do curso principal do rio. Era uma superfície reluzente que refletia as tochas e braseiros acesos pela
cidade.
- Por aqui - disse Kasos, parando. - Passe por cima do lado da ponte e desça até se esconder embaixo dela, na armação. Quando estiver bem escondido, eu chamo os
outros. Vou usar isso para convencê-los de que você caiu dentro d'água. Peguei em uma das embarcações. - Ele deu um leve chute em um saco de cascalho. - Ninguém
vai conseguir vê-lo aqui embaixo. Espere amanhecer, aí vai ser seguro você sair e se juntar à multidão no cais.
Marcus assimilou o plano rapidamente. Em seguida, virou-se para Kasos com uma expressão confusa no rosto, ainda sem saber se podia confiar no outro garoto.
- Qual o verdadeiro motivo de estar fazendo isso?
- Eu já expliquei - respondeu Kasos, rindo baixinho. - Além disso, sem você por lá eu é que vou ser o queridinho de Milo. Só me prometa que nunca, nunca, vai voltar
para o Fosso.
- Prometo. - Marcus sorriu sombriamente e estendeu a mão.
Kasos ficou olhando para ela por um instante e a apertou firmemente.
- Agora vá.
Marcus subiu no parapeito da ponte e desceu cautelosamente até seu pé encontrar um apoio na armação de madeira. Kasos virou-se para ficar de olho no cais enquanto
Marcus ia para baixo da passagem.
No entanto, antes de perder o outro garoto de vista, ele chamou baixinho:
- Kasos!
Kasos virou-se e olhou para baixo.
- Obrigado - disse Marcus.
E então Kasos desapareceu. Marcus encontrou um apoio de madeira mais grosso e segurou-se nele. Instantes depois, escutou o grito de Kasos:
- Aqui! Estou com ele. Aqui!
Marcus escutou o barulho de alguma coisa caindo dentro do rio e depois botas pisando na ponte.
- O que aconteceu? - perguntou Milo. - Onde está ele?
- No Tibre - respondeu Kasos. - A gente estava brigando e eu o empurrei por cima do parapeito.
Os passos estavam bem acima de Marcus. Ele tentou ficar o mais imóvel possível, com respiração superficial e braços e pernas tremendo de exaustão. Aquilo tudo talvez
não passasse de enganação no final das contas - Kasos podia traí-lo a qualquer momento.
- Alguém o viu? - perguntou Milo.
Ninguém respondeu, e as últimas ondulações do saco de cascalho desapareceram. O rio continuou a fluir tranquilamente.
- Ele sumiu - disse uma voz. - Provavelmente se afogou.
- Talvez - respondeu Milo. - Mas vou deixar alguns homens aqui caso ele consiga nadar até um dos barcos. Kasos e o restante, voltem para o cais e nos esperem por
lá.
Passos ressoaram acima de Marcus mais uma vez.
- Se ele se afogou, então podemos seguir em frente com o plano - disse Bibulus. - Caesar vai continuar sem saber de nada.
- Espero que sim - disse a voz familiar do homem cujo capuz continuava erguido. - Meu senhor não vai ficar nada contente se fracassarmos.
- Não vamos fracassar - insistiu Bibulus. - Logo Caesar vai estar morto e eu terei me vingado de todos os insultos e afrontas.
Milo deu uma risadinha.
- E eu achando que eram as gangues de rua que não tinham escrúpulos. Mas é verdade, não existe nada mais letal e desonesto do que um político ressentido.
Os passos esvaeceram, e Marcus ficou tremendo, empoleirado em uma viga de suporte. Seu corpo estava dolorido e machucado devido à queda no barranco. Ele estava exausto,
mas não dormiria para não arriscar cair no rio. Então puxou os joelhos para o peito, pôs os braços ao redor deles e preparou a mente para poder ficar alerta durante
as horas que ainda restavam de escuridão.
24
- Tem certeza de que foi isso que ouviu? - perguntou Caesar. Marcus estava ao lado da mesa da cozinha, vestindo apenas uma tanga enquanto Festus limpava suas feridas.
Até ele ficou surpreso ao tirar a túnica esfarrapada e ver o quanto o garoto tinha se ferido durante a fuga. O joelho era o pior; uma ferida profunda rasgara a carne
e deixaria uma cicatriz bem feia. Marcus não queria remover totalmente a túnica, mas Festus não lhe deu opção. Pelo menos seu ombro não estava virado para o restante
do cômodo. Marcus rezou para que a sujeira que Lupus passara ainda estivesse cobrindo sua marca.
- Sim, amo - respondeu Marcus. - Não tenho dúvida. Eles querem matá-lo depois que o senhor anunciar que os senadores serão obrigados a jurar obediência à nova lei.
- E tem certeza de que era Bibulus que estava com Milo?
- Era Bibulus sim.
- E o outro homem? Ele não mostrou o rosto para você?
- Não, amo, em nenhum momento. Mas a voz dele me pareceu familiar.
- Hummm. - Caesar acariciou o queixo pensativamente. - Que reviravolta. Conheço poucos homens capazes de me matar, mas Bibulus não era um deles. Ele não tem coragem
suficiente para isso. Achei que ele era como Cato, só de fazer algazarra, cheio de princípios. Agora pelo jeito parece que ele também tem certa crueldade. Quem será
que o convenceu a fazer isso?
Ouviu-se uma batida no batente da porta, e Flaccus entrou no cômodo. Ele pareceu surpreso ao ver as feridas espalhadas pelo corpo de Marcus.
- O que foi? - perguntou Caesar.
- Publius Clodius está no átrio, amo. Ele disse que você pediu que o chamassem.
Foi a primeira ordem de Caesar após Marcus voltar logo depois do amanhecer.
- Exatamente. Mande-o entrar.
- Quer recebê-lo no seu escritório, amo?
- Não. Pode mandá-lo para cá.
Flaccus deu uma olhada na cozinha antes de curvar-se e falar com tom de desaprovação:
- Como quiser, amo.
Ele saiu pela porta e logo depois voltou com Clodius. O jovem aristocrata abraçou Caesar antes de voltar a atenção para Marcus.
- Ora, ora, o espião está de volta. E com rapidez. Presumo então que sua missão foi um fracasso.
Antes que Marcus pudesse responder, Caesar o interrompeu:
- De maneira alguma. O jovem Marcus soube de muitas informações antes de ser descoberto e fugir. Agora temos os detalhes dos planos do inimigo.
- Ah, é? - Clodius voltou o olhar para Marcus. - Bem, então é óbvio que você tem mais valor do que aparenta, jovem gladiador. Fez o trabalho de um homem. Está de
parabéns.
Marcus sentiu o coração se encher de orgulho e curvou a cabeça em agradecimento.
Clodius virou-se para Caesar.
- O que eles estão tramando?
Após Caesar descrever brevemente o plano, Clodius ficou pensando por um instante antes de responder:
- Claro que você não pode ir ao Senado e deixar um matador ficar tão perto de você. Terá que adiar a emenda até o perigo passar. Sempre achei exagero insistir que
o Senado fizesse um juramento para nunca rejeitar a Lei de Terras. Você sabe como eles ficam sensíveis quando é colocado poder demais nas mãos de um único indivíduo.
- E você pode imaginar o quanto eu fiquei sensível quando percebi que a política tinha passado a envolver assassinatos. O meu assassinato em particular - respondeu
Caesar.
- Imagino sim. - Clodius deu um risinho. - E o que pretende fazer a respeito?
- Não vou mostrar a eles que estou com medo. Assim eles ficariam mais confiantes ainda. Então vamos continuar agindo normalmente. Eu vou ao Senado propor a emenda
aos senadores.
Festus parou de limpar a sujeira dos cortes de Marcus.
- Não, amo. Por que ficar tão perto da faca de um assassino? O senhor não pode correr esse risco.
- Qualquer vida que vale a pena ser vivida tem seus riscos, meu caro Festus. Mas entendo o que você está dizendo e quero reduzir ao máximo os perigos na minha frente.
Primeiro, vou levar Marcus comigo quando for ao Senado. O outro lado viu o rosto dele, então é melhor ele ir de capuz. Ele precisa ficar de olho no sinal de que
ouviu falar. No instante em que o sinal for dado, você e seus homens me cercam, Festus. Ao mesmo tempo, quero que Clodius e suas gangues controlem as proximidades
da Casa do Senado. Nós não vamos dar a Milo a oportunidade de criar distrações. - Caesar olhou para as outras pessoas. - Se todos forem vigilantes, o perigo vai
ser mínimo.
Clodius deu um risinho.
- A decisão é sua, Caesar.
Marcus perguntou-se se o seu senhor estava mesmo tão calmo quanto parecia. Mas logo foi atingido por uma percepção. De certa maneira, homens como Caesar pareciam-se
com os gladiadores. Criados para enfrentar o perigo sem demonstrar medo, se necessário, encaravam a morte com dignidade diante dos olhos do mundo. As disputas deles
talvez acontecessem em arenas bem diferentes, mas o que estava em jogo eram essencialmente as mesmas coisas: vida e glória, ou morte.
Caesar virou-se para Marcus.
- Mais uma vez, agradeço muito a você. Você tem a bravura dos soldados que comandei, e vou garantir que você seja recompensado quando chegar o momento certo.
Marcus assentiu, com sua esperança mais preciosa reacendendo no coração. No entanto, sabia que precisava esperar a ameaça à vida de Caesar passar, pois só então
o seu senhor estaria com o máximo de boa vontade em relação a ele. Só então poderia pedir sua recompensa.
Caesar virou-se para Festus.
- Já terminou com ele?
Festus espremeu as últimas gotas de água do pano enquanto respondia:
- Sim, amo.
- Então pode ir, Marcus. Vá descansar um pouco.
- Sim, amo.
Ele se virou para ir embora, mas após dar dois passos Caesar o chamou:
- Espere!
Marcus parou e começou a se virar, mas Caesar falou mais uma vez:
- Fique parado. Que marca é essa no seu ombro?
Marcus sentiu um pavor glacial na barriga. Escutou passos atrás de si e depois sentiu o toque dos dedos de Caesar na cicatriz em suas costas. Segurou-se para não
estremecer. Lambeu os lábios e engoliu em seco nervosamente antes de juntar coragem para responder:
- Não sei, amo. Ela sempre esteve aí.
Caesar ficou em silêncio enquanto observava a marca.
- É uma espécie de símbolo. O que é isso? É a cabeça de um lobo... e uma espada... Acho que já vi isso em algum lugar. Marcus, vire-se.
Ele obedeceu e se forçou a olhar calmamente nos olhos penetrantes de Caesar. Marcus sentiu um punho gelado ao redor de seu coração. Está tudo acabado, pensou ele
apavorado, ele descobriu! Foi preciso toda a sua determinação para manter o rosto o mais inexpressivo possível enquanto os olhos de Caesar o examinavam.
- Onde arranjou esse símbolo?
- Não sei, amo. Só fui descobrir que era um símbolo recentemente - respondeu ele com sinceridade. - Sempre achei que fosse uma cicatriz.
- Os seus pais não lhe contaram nada a respeito disso?
- Não, amo.
Caesar ficou encarando-o por um bom tempo, franzindo a testa.
- Eu já vi isso antes. Tenho certeza.
- Ouvi falar que o pai do garoto era um centurião - disse Festus. - Pode ter algo a ver com isso. Você sabe como os soldados são com suas organizações e religiões
secretas, amo.
- Não. - Caesar balançou a cabeça. - Não é isso.
- Bem, tenho certeza de que isso não tem muita relevância agora - interrompeu Clodius, sem paciência. - Temos assuntos mais importantes a tratar.
- Sim. - Caesar assentiu, mas continuou olhando para a marca, confuso. Em seguida, balançou a cabeça. - Você tem razão. Marcus, pode ir.
Marcus saudou-o com a cabeça e foi embora, andando o mais rápido que se atreveu. Seu coração martelava no peito. Lá fora, no corredor, encostou-se na parede e respirou
profundamente enquanto sua mente se acelerava. O símbolo era um segredo muito bem guardado. Somente Spartacus e seu círculo interno tinham aquela marca. Como Caesar
podia reconhecê-la? Talvez ele já tivesse visto algo semelhante. Afinal, o lobo e a espada não eram símbolos tão raros. Marcus rangeu os dentes enquanto afastava
os pensamentos esperançosos da mente. A cabeça de uma loba - a fera que criara Romulus e Remus, os fundadores de Roma - empalada por uma espada de gladiador era
uma nítida afronta à cidade de Roma. O próprio Lupus dissera isso. Caesar também não demoraria em perceber esse fato, mesmo se não soubesse as origens exatas do
símbolo. Marcus ficou nauseado de tanto pavor e seguiu pelo corredor em direção ao alojamento dos escravos.
Lupus não estava lá, e Marcus sentiu-se aliviado a sós com seus pensamentos. Deitou-se no saco de dormir e olhou para o teto. Agora que tinha parado para descansar,
começou a sentir as dores e os machucados, e se contorceu devido ao joelho latejando. Reviveu os acontecimentos da noite anterior, temendo ser descoberto e torturado
para revelar informações. Ele foi tomado por uma imensa gratidão ao retornar para a segurança da casa de Caesar, mas então o cônsul viu a marca de Spartacus e Marcus
lembrou que tudo era apenas uma ilusão. Quando Caesar descobrisse o significado da marca, ele veria que o escravo tinha uma ligação com seu inimigo mais mortal.
Desse modo não haveria recompensa para Marcus. Tanto ele quanto sua mãe seriam assassinados.
Escutou o suave barulho de passos e olhou para a porta. Portia parou na entrada e empalideceu ao olhar para ele.
- Pelos deuses, Marcus! O que fizeram com você?
Marcus pegou o cobertor desgastado ao lado do saco de dormir e cobriu o próprio corpo.
- Estou bem, senhorita. Apenas cansado.
- Onde você estava? Festus disse que você estava em uma tarefa para o meu tio. - Ela comprimiu os olhos. - Você levou uma surra por alguma razão? Foi Flaccus? Me
diga, e eu falo com ele.
- Não, senhorita. Só levei uma queda.
- Uma queda? - Portia ergueu a sobrancelha. - Só uma?
Marcus riu e depois se contorceu por causa dos machucados.
Portia aproximou-se e se agachou ao lado de Marcus, encostando os dedos no ombro dele hesitantemente.
- Você está sentindo dor. Vou pedir que chamem o cirurgião do meu tio.
- Não. Não preciso de nada, somente de descanso - respondeu Marcus. - Você não devia estar aqui, senhorita. Se eles encontrarem você...
- Eu digo que vim ver como está a saúde do meu guarda-costas. Algo completamente inocente. - Ela sorriu. - E pare de me chamar de 'senhorita', por favor. Estamos
sozinhos... provavelmente pela última vez. Devo me casar com o sobrinho de Pompeius assim que esse assunto do Senado passar. Tio Julius está preparando um banquete
para comemorar o sucesso dele e o meu casamento, vai ser daqui a alguns dias.
- Tão rápido assim? O casamento não seria no fim do verão?
- Seria sim. Mas Pompeius pediu que fosse logo. Tio Julius acha que ele quer garantir a aliança entre os dois.
Esse é um golpe duro, pensou Marcus.
- E o seu plano de me levar com você, para ser seu guarda-costas?
Ela balançou a cabeça com tristeza.
- Meu tio não vai deixar você ir.
- Você pediu a ele?
- Pedi sim. Ele disse que você era valioso demais para ele. - Ela forçou um sorriso. - Pelo jeito não sou só eu que tem muita consideração por você.
Marcus suspirou. Era exatamente o que estava pensando; agora tudo dependia de ele conquistar a boa vontade de Caesar. E Marcus sentiria falta da amizade de Portia.
O queixo de Portia estremeceu.
- Parece que tenho que me despedir de tudo que conheci e de você. Devo a você algo que nunca serei capaz de retribuir. Você salvou minha vida.
- Salvei a vida de nós dois. - Marcus retribuiu o sorriso.
Ela o encarou por um instante, depois se inclinou para a frente e o beijou.
- Nunca vou me esquecer de você, Marcus.
Marcus ergueu a mão para ela não falar mais.
- Nem eu de você. Adeus, Portia.
Ela sorriu, virou-se e foi embora. Marcus escutou os passos dela esvaecerem, e logo a casa ficou em silêncio mais uma vez. Havia apenas os sons distantes de outros
escravos conversando enquanto trabalhavam no jardim, por cima do zunido fraco da cidade. Deitou-se novamente no saco de dormir e voltou a encarar o teto, sentindo
o coração ficar pesado devido a mais um fardo. Apesar de todo o treinamento que recebera, Marcus de repente sentiu uma aflição profunda como nunca antes. Era algo
pior do que medo - pior do que o terror de enfrentar um oponente em uma luta, pior do que ser perseguido nas ruas de Roma por uma gangue sanguinária. Ele tinha percebido
que estava sozinho no mundo.
Acomodando-se de lado, ele ficou em posição fetal, sem conseguir mais conter a tristeza que se acumulara durante tanto tempo.
25
- Pelo menos eu não vou enfrentar isso sozinho - disse Caesar confiantemente enquanto saíam da sua casa em Subura. À frente, caminhavam dez dos homens de Festus,
e, ao redor, marchavam os doze lictores que compunham a guarda honorária do cônsul. Outros dez guarda-costas iam mais atrás. Ao lado de Caesar estavam Festus e Marcus,
cada um munido até os dentes com armas escondidas. Lupus andava a alguns passos atrás de seu senhor, indo mais devagar por causa do peso de sua bolsa.
Marcus tinha certeza de que qualquer assassino a fim de matar Caesar teria um trabalho difícil. No entanto, ele estava cansado. Dormira mal, perturbado com a notícia
de Portia e com medo de que Caesar descobrisse o segredo de sua marca. Não tinham tocado mais nesse assunto, e Marcus rezou aos deuses para que Caesar achasse aquilo
irrelevante a ponto de não investigar nada a respeito.
A pequena comitiva seguiu pelas ruas estreitas de Subura até chegar ao Fórum. Era manhã, e o centro da cidade estava abarrotado de pessoas. A maioria fazia compras
nas barracas que cercavam vias e edifícios públicos, mas muitos homens reuniam-se em grupos isolados, observando os transeuntes, conversando e brincando entre si.
Marcus imaginou quantos deles pertenceriam às gangues de rua rivais e quantos teriam comparecido na esperança de presenciar alguma briga.
A maior multidão tinha se reunido ao redor da Casa do Senado, e havia certa expectativa no ar quando Caesar e seus homens se aproximaram dos degraus da entrada.
Marcus estava encarregado de vigiar à esquerda e Festus à direita. Os rostos que cercavam Caesar e seus homens revelavam expressões variadas. A maioria gritava o
nome dele com entusiasmo e acenava. Algumas pessoas vaiavam e balançavam os punhos, e Marcus ficou prestando atenção para ver se avistava o brilho de alguma lâmina.
A multidão diminuiu o ritmo da pequena comitiva, e pareceu que demorou muito tempo para que Caesar e seu grupo chegassem à entrada da construção, longe dos perigos
das gangues lá de fora. A maioria dos guarda-costas e lictores esperava do lado de fora, mas Marcus, Festus e Lupus se juntaram ao pequeno grupo de escrivães que
estava atrás do estrado, local das cadeiras dos cônsules. Enquanto os escrivães se sentavam em bancos e preparavam tábulas enceradas e estilos para fazer as atas
da sessão, Festus e Marcus observavam os senadores, procurando o lenço vermelho que serviria de sinal para o assassino, como os conspiradores combinaram. A maioria
dos senadores já se sentara nos bancos ao redor do estrado. Muitos vestiam togas brancas, e alguns trajavam cores mais vibrantes, especialmente os senadores mais
jovens. Outros, como Cato, vestiam togas lisas e marrons, escolhidas propositadamente para dar a aparência de que as rigorosas tradições de Roma estavam sendo obedecidas.
A cadeira de Bibulus estava vazia, como esteve desde o início do ano, e Caesar ignorou isso ao se sentar e pedir ordem na casa. Marcus não se interessou muito pelos
rituais de rezas e anúncio da agenda. Apenas quando o debate começou ele passou a prestar bastante atenção nas participações e reações dos senadores. Enquanto os
defensores de Caesar, Pompeius e Crassus demonstravam apoio à emenda de Caesar à Lei de Terras, os outros senadores escutavam tudo em um silêncio glacial. Finalmente,
Cato ergueu a mão pedindo permissão para falar. Caesar olhou para ele com frieza e assentiu.
- Cuide para não alongar demais o discurso - alertou Caesar.
Cato levantou-se e ajustou a toga, olhando ao redor para os rostos cheios de expectativa na câmara. Em seguida, começou:
- Os homens que estão aqui nesta Casa representam a vontade do povo romano. Mas eles fazem mais do que isso. Eles possuem o dever sagrado de defender as tradições
que mantiveram a nossa grande República longe da tirania dos reis e daqueles homens que gostariam de ser reis. Portanto é dever de cada um que está aqui votar contra
a proposta de Caesar. A emenda dele fará com que a nossa oposição à Lei de Terras seja crime. Aparentemente hoje temos que escolher entre apoiarmos Caesar ou sermos
declarados inimigos de Roma...
Marcus sabia que Cato e seus aliados estavam lutando para preservar os direitos dos ricos e poderosos, mas não pôde deixar de se perguntar se Cato não estaria certo
em alertar a plateia a respeito das ambições de Caesar. Ele mesmo sabia que seu dono não deixaria que nada o impedisse de conseguir o que queria.
Murmúrios raivosos espalharam-se entre os homens nos bancos ao redor de Cato. Ele esperou os comentários pararem antes de prosseguir:
- Essa medida é um insulto a tudo que esta Casa preza. É pior do que um insulto. É um ataque direto à liberdade de cada um de nós. Desde quando é crime discordar
do cônsul? Desde quando é crime votar contra uma medida da qual a pessoa discorda? Uma coisa eu digo: se cedermos a Caesar hoje, vamos abrir o caminho para uma tirania
surgir amanhã. Talvez nem seja Caesar que vai pressionar sua bota no nosso pescoço, mas será um homem exatamente como ele. A escolha que temos a fazer é simples.
Se valorizarmos nossa liberdade, votaremos contra Caesar. Se não passarmos de cachorros famintos querendo farejar os pés dele, implorando por restos de comida, então
votaremos a favor de Caesar. - Ele se virou para o cônsul e ergueu a sobrancelha. - Espero que eu tenha sido breve o suficiente para você. Talvez este tenha sido
o último discurso livre a ser ouvido nesta Casa...
Cato sentou-se, e os que estavam ao redor dele o ovacionaram ruidosamente, tentando abafar insultos e uivos de protesto dos defensores de Caesar. Marcus espiou os
rostos dos senadores, mas não viu nenhum lenço vermelho indicando que era hora de os inimigos de Caesar agirem. Parecia que o ataque não aconteceria mais dentro
da Casa do Senado, pensou Marcus.
O escriba principal levantou-se e bateu o bastão no chão de mármore, querendo restabelecer a ordem. Quando os senadores ficaram em silêncio, ele se virou e fez reverência
a Caesar. Marcus viu seu senhor se recompor antes de responder:
- Agradeço ao senador Cato por ter nos poupado de sua tática mais comum de nos entediar até a morte antes de uma votação. Essa nova concisão dele nos trouxe um alívio
muito bem-vindo.
Os defensores de Caesar riram, e ele sorriu enquanto acenava para que eles se aquietassem.
- Eu não precisaria incluir tal emenda se não houvesse tantos membros desta Casa preparados para se opor a uma proposta perfeitamente sensata, justa e necessária.
Uma proposta que vai dar aos nossos soldados, a quem tanto devemos, uma recompensa digna por seus trabalhos. Por que aqueles que derramaram sangue por nós não devem
receber um pequeno pedaço de terra onde possam ter uma fazenda e criar uma família? Será que somos tão ingratos a ponto de negar isso a eles? Todos nós sabemos por
que o senador Cato e seus companheiros se opõem à lei. Eles possuem enormes propriedades construídas nas terras baratas que compraram quando as famílias deixadas
para trás pelos soldados não puderam mais dar conta do trabalho na fazenda, sendo obrigadas a vendê-las. - Ele parou de falar, e o rosto tornou-se severo. - Acho
isso condenável. Como as pessoas que se opõem a essa proposta conseguem dormir à noite? Mas, já que elas conseguem, e já que eu exauri todas as vias de discutir
o assunto racionalmente, só me resta uma maneira de garantir que nossos veteranos recebam a pequena recompensa que merecem. Proponho que a votação seja imediata.
- Caesar virou-se na cadeira. - Escrivães, preparem-se para marcar os votos.
Um alvoroço surgiu entre os senadores quando eles perceberam que não haveria mais nenhum debate. Passou-se um tempo até se acalmarem e a votação começar.
- Quantos são a favor da proposta de Caesar? - perguntou o escriba principal. Seus assistentes contaram quantas mãos estavam erguidas e chegaram a um acordo sobre
o total.
- Quantos são contra?
O número foi registrado, e os escrivães se reuniram. O escriba principal deu um passo à frente para anunciar o resultado.
- A favor da emenda, duzentos e oitenta e cinco. Contra... duzentos e oitenta e um. A emenda foi aprovada.
Imediatamente, gritos ensurdecedores de comemoração espalharam-se entre os defensores de Caesar, que se levantou e alongou os braços para chamar a atenção dos senadores.
Cato e seus companheiros observavam, furiosos.
- Assim nossa sessão de hoje se conclui. O Senado se reunirá novamente daqui a dois dias para a votação da Lei de Terras. Tenham um bom dia, e eu agradeço a vocês
em nome dos nossos corajosos veteranos.
Enquanto Caesar se virava, Marcus o viu sorrir de satisfação. Ao redor dele, os escrivães levantavam-se apressadamente. Marcus sentiu sua manga ser puxada e, ao
se virar, viu Lupus sorrindo.
- Então agora acabou. O nosso senhor conseguiu o que queria.
- Ainda não. Falta a outra votação.
Lupus balançou a cabeça.
- A outra é apenas formalidade. Se essa proposta foi aprovada, a Lei de Terras também vai ser. E depois isso acaba. As gangues de rua não terão mais motivo para
brigar, pelo menos não por um tempo. Teremos paz nas ruas.
Marcus voltou o olhar para Cato mais uma vez. O senador não disfarçava o ódio em seus olhos. Marcus não acreditava que os oponentes de Caesar fossem desistir com
tanta facilidade.
- Vamos - ordenou Festus. - Precisamos escoltar o senhor de volta pra casa.
Enquanto Caesar saía da entrada da Casa do Senado, uma explosão ensurdecedora de aplausos surgiu no meio da multidão do lado de fora. Muitas pessoas que apoiavam
Caesar eram veteranos, dava para perceber pela aparência grisalha e cicatrizes nos rostos e braços. Para muitos outros, a votação representava uma vitória dos pobres
e oprimidos sobre os aristocratas que tinham enriquecido com as pilhagens das campanhas lutadas pelos soldados do general Pompeius. Caesar parou para apreciar a
ovação.
- Fique atento - instruiu Festus.
- Vou ficar - respondeu Marcus, pondo a mão ao redor da boca para ser ouvido por cima dos outros barulhos. Estava determinado a não baixar a guarda nem por um segundo.
Sabia que Milo e Bibulus não parariam por nada antes de o plano se completar. - Estou pronto.
Eles esperaram os lictores de Caesar ficarem em formação ao redor dele, e Festus acenou para que os guarda-costas também assumissem suas posições. Marcus avistou
Clodius na base dos degraus, fazendo um movimento circular com o braço erguido acima da cabeça. Com o gesto, pequenos grupos de homens foram abrindo caminho à força
até chegarem à frente do Fórum, juntando os braços para formar uma corrente que mantinha a multidão a distância.
Caesar deu um último aceno e começou a descer os degraus. Os senadores e seus defensores afastaram-se para Caesar e sua comitiva passarem. Seria aquele o momento,
pensou Marcus. O assassino estaria no meio da multidão, segurando a faca e aguardando o sinal. Mesmo assim, Marcus achava que o assassino não ia conseguir passar.
Caesar estava cercado de homens armados. Os membros das gangues de Clodius continham o público. Estavam protegidos por todos os ângulos, Marcus teve certeza enquanto
investigava a multidão mais uma vez.
Muitos rostos entusiasmados, poucos carrancudos. Algumas crianças nos ombros dos pais, celebrando enquanto se seguravam. Uma mulher de véu em cima do pedestal de
uma estátua, acenando. Um homem de pernas deformadas, apoiando-se em muletas, que tinha se arrastado até a frente para gritar, apoiando Caesar.
Caesar chegou à base da escada e começou a atravessar o Fórum. Bem naquele momento, Marcus avistou algo vermelho na parte mais baixa da escada, no meio dos senadores.
Virou a cabeça para ver melhor. A cor tinha desaparecido, e ele ficou encarando o grupo de homens que cercava Crassus. No meio deles estava o cobrador de impostos,
Decimus. No entanto, não prestava atenção na discussão ao seu redor. Ele encarava Caesar, ou na verdade algo atrás de Caesar... Marcus acompanhou o olhar de Decimus,
e seu sangue congelou. A mulher que estava se segurando na estátua colocou o braço para trás, e Marcus viu uma lâmina reluzindo. Ela tirou a faca e mirou.
Marcus não parou para pensar. Lançou-se para a frente e agarrou uma das muletas do aleijado, erguendo-a acima da própria cabeça, entre Caesar e a mulher no pedestal.
Naquele momento, o garoto escutou a madeira quebrar, e a muleta balançou em suas mãos, quase caindo no chão.
- Marcus, o que foi...? - gritou Festus.
Caesar, voltado para outra direção, não percebeu nada. Marcus abaixou a muleta e viu o cabo de uma faca arremessável pesada, vibrando no local onde tinha quebrado
o topo resistente da madeira. Festus também viu aquilo, e seus olhos se arregalaram de susto.
- Quem?
- Uma mulher, ali no pedestal! - Marcus virou-se para apontar, mas ela já tinha desaparecido. - Ela estava ali um segundo atrás. Eu a vi arremessando a faca.
- Venha comigo! - ordenou Festus.
Marcus removeu a faca da madeira e devolveu a muleta para o dono, que soltou um palavrão, achando que o garoto tinha feito uma brincadeira idiota. Festus abriu caminho
à força entre dois homens de Clodius e impeliu-se no meio da multidão, ignorando os gritos raivosos daqueles que empurrava para o lado. Marcus correu atrás dele,
com a faca bem baixa na mão para não machucar ninguém. Chegaram ao pedestal e olharam ao redor, procurando por algum sinal da mulher. Marcus agarrou o homem que
estava mais próximo e apontou para a estátua.
- A mulher que estava ali um instante atrás, para onde ela foi?
- Que mulher? - perguntou o homem. - Cuidado com essa faca, garoto! Vai terminar ferindo alguém!
Marcus e Festus perguntaram a outras pessoas, algumas se lembravam de ver a mulher saltar da estátua, mas nada além disso.
- Ela está por perto, Marcus, tenho certeza - disse Festus enquanto analisava a multidão freneticamente. Bem naquele instante, Marcus sentiu alguma coisa debaixo
dos pés. Olhou para baixo. Havia um manto feminino e um véu perto da base do pedestal.
- Festus! Olha aqui! - Marcus abaixou-se para mostrar a ele. - Acho que não é para procurarmos uma mulher.
Festus olhou ao redor, mas a multidão imensa impedia que pudesse ver alguém escapando. De todo modo, eles não faziam ideia de quem procurar. Ele rangeu os dentes,
frustrado.
- Tarde demais. É melhor voltarmos para perto de Caesar, caso haja outro atentado.
Abriram caminho no meio da multidão e da barreira de Clodius a fim de voltar para perto do senhor deles. Caesar lançou um olhar indagador na direção dos dois, mas
não disse nada e continuou acenando para a multidão. A comitiva demorou bastante para atravessar o Fórum, e já era meio-dia quando eles entraram nas ruas estreitas
de Subura, deixando a multidão para trás.
- O que aconteceu lá trás? - perguntou Caesar à medida que o burburinho do Fórum esvaecia atrás deles. - Eu me virei por um instante, e vocês dois desapareceram.
- Aconteceu um incidente, amo - respondeu Marcus erguendo a faca. Caesar pegou a arma, examinando-a.
- Que horrível.
- Miraram no seu pescoço, amo - explicou Marcus.
- Marcus conseguiu pará-la no meio do caminho - disse Festus. - Caso contrário...
Caesar olhou seriamente para Marcus e abaixou a cabeça em agradecimento.
- Mais uma vez, fico devendo a você. Espero de verdade que tenha sido a última vez, pelo menos por enquanto. Tome, fique com ela como lembrança.
Quando chegaram à rua da casa de Caesar, Marcus avistou uma liteira na frente da porta. Os escravos estavam ao lado dela. Uma escolta de lictores a cercava com seus
carregadores.
- Só existe outro homem em Roma que tem direito a tanta proteção - refletiu Caesar. - O outro cônsul do ano, Bibulus.
De fato, as cortinas da liteira separaram-se, e Bibulus saiu.
- Meu caro Bibulus. - Caesar estendeu a mão sorrindo. - Que bom vê-lo pelas ruas. Tinha começado a me perguntar se você sairia de casa em algum momento, com exceção
das visitas furtivas e ocasionais ao Aventino.
Bibulus assumiu uma expressão fria no rosto e ignorou a mão de Caesar.
- Vou direto ao ponto. Ouvi falar que sua emenda foi aprovada de maneira forçada.
- Houve uma votação livre, sim.
- Votação livre? Não me faça rir.
- É sua prerrogativa.
Bibulus rangeu os dentes.
- Olhe, Caesar, você foi longe demais. Mas eu vim aqui para tratar de outro assunto, para desafiá-lo. Também tenho meus espiões, e parece que você tem um jovem gladiador
da escola de Porcino por aqui. Não é?
- É sim. Na verdade, é este o garoto. - Caesar deu um passo para o lado e apontou para Marcus. Bibulus ficou encarando-o de queixo caído.
- Eu conheço você. Você estava na estalagem! - exclamou Bibulus, mas logo calou a boca quando percebeu o erro que tinha cometido.
- E ainda bem que ele estava lá, não é, Bibulus? - comentou Caesar secamente. - Senão Roma teria perdido um cônsul essa manhã.
Bibulus ficou com o rosto vermelho vivo.
- Não sei do que você está falando. E não estou aqui para falar sobre isso. O garoto é seu lutador. Eu mesmo também adquiri um jovem gladiador, e uma luta entre
gladiadores mais novos interessaria o público mais do que de costume. Então eu o desafio formalmente a uma competição entre nossos lutadores, até a morte, daqui
a dois dias, no Fórum, na frente da Casa do Senado.
Caesar olhou para ele com astúcia.
- Antes da votação. Entendi.
- Já instruí meus homens a pintarem propagandas sobre a luta nos muros do centro da cidade. Se o seu garoto não aparecer, o povo não vai gostar. Eles vão achar que
você está com medo de aceitar o meu desafio.
No rosto de Caesar surgiu uma fúria sombria de quem estava sendo encurralado.
Uma sensação nauseante tomou conta de Marcus. A ideia de enfrentar um oponente na arena mais uma vez deixava-o apavorado. A vontade de recusar o desafio era gigantesca.
No entanto, o preço para se salvar seria perder a boa vontade de Caesar, justamente quando precisava da ajuda dele para libertar sua mãe.
- E então, qual a sua resposta? - exigiu Bibulus.
Marcus respirou fundo para acalmar os nervos quando viu Caesar fixar os olhos nele.
Caesar lançou um olhar de evidente desprezo para o outro cônsul.
- Você só terá minha resposta quando eu estiver pronto para dá-la, e não antes disso.
26
- O que você vai fazer? - perguntou Lupus enquanto os dois estavam sentados em sua cela naquela tarde.
Marcus deu de ombros.
- O que posso fazer? Se o senhor disser que eu tenho que lutar, eu não vou ter escolha. Mas eu daria quase tudo para não precisar lutar como gladiador de novo.
Lupus encarou-o e franziu a testa.
- Por quê? Se odeia tanto ser um escravo como diz, talvez essa seja a maneira mais rápida de conquistar a liberdade. Claro que talvez seja também a maneira mais
rápida de morrer...
- Pois é - respondeu Marcus secamente. Ele parou e depois prosseguiu: - A verdade é que fico apavorado só de pensar nisso.
Lupus não conseguiu disfarçar a surpresa.
- Você com medo? Não acredito. Você arriscou a própria vida para salvar Portia e depois encarou o Fosso. Você não é covarde de jeito nenhum, Marcus.
- Sério? - Marcus sorriu sombriamente. - Meu estômago parece que está cheio de nós, minhas mãos estão suadas e meus braços e minhas pernas tremem o tempo inteiro.
Uma coisa é agir por impulso, como quando resgatei Portia, mas é diferente saber que você vai lutar contra alguém em determinado local, em determinada hora, e até
a morte! - Marcus desviou o olhar, envergonhado. - Estou com medo, Lupus. Achei que a segunda vez seria mais fácil, mas não é. Estou com mais medo do que quando
enfrentei aquele valentão do Ferax na escola de gladiadores.
Lupus ficou em silêncio por um instante e depois falou novamente, com uma voz tranquila e pensativa:
- E mesmo assim você vai lutar, mesmo se o senhor deixar a escolha pra você.
Marcus assentiu.
- É o que preciso fazer. Pela minha mãe.
- Então você não é covarde de jeito nenhum, Marcus. Na minha opinião, uma pessoa que está com tanto medo de uma luta como essa e mesmo assim supera o medo é um herói.
Isso que é coragem.
Marcus pensou e concordou:
- Talvez você tenha razão. Mesmo assim, eu queria que existisse uma maneira de sair dessa situação.
Escutaram o barulho de passos se aproximando, e Flaccus apareceu na entrada.
- O senhor quer vê-lo no escritório dele.
Marcus levantou-se rigidamente e flexionou os ombros. Seguiu Flaccus para fora do alojamento dos escravos e atravessou o pátio até a parte principal da casa. Flaccus
diminuiu o passo até andar lado a lado com Marcus.
- Você se tornou o queridinho por aqui - disse Flaccus amarguradamente.
Não dava para deixar de perceber a inveja dele, e Marcus pensou em como era um absurdo os escravos ficarem uns contra os outros quando na verdade todos eram vítimas
de injustiça.
- Sou um escravo, assim como você - respondeu Marcus. - Nenhum de nós é especial, não passamos de uma propriedade. A única coisa que importa é se a pessoa é escrava
ou livre.
- Hum - desdenhou Flaccus. - Existem tipos diferentes de escravo, garoto. Alguns trabalham muito e demonstram lealdade durante muitos anos antes de receberem qualquer
sinal de boa vontade do senhor. Mas você? Você apareceu aqui e imediatamente virou o bichinho de estimação de Caesar. Isso não é correto.
Marcus riu e ergueu o braço para mostrar a Flaccus as feridas e os machucados.
- E por acaso eu pareço algum bichinho de estimação bem cuidado?
Flaccus olhou para o braço dele e deu de ombros. Seguiram o resto do caminho em silêncio. Marcus não pôde deixar de sentir raiva - que esperança havia para os escravos
se eles se dividiam por causa de invejas tolas e ficavam competindo pela boa vontade do senhor? A não ser que todos os escravos de Roma percebessem que tinham um
interesse em comum, eles nunca conseguiriam conquistar a liberdade.
Chegaram ao escritório, e Flaccus pigarreou antes de bater no batente da porta.
- Amo, o garoto está aqui.
- Mande-o entrar.
Flaccus saudou Caesar e acenou para que Marcus entrasse. No escritório, Marcus avistou Festus sentado em um banco ao lado da escrivaninha do senhor deles. Havia
entre eles um decantador de vinho e duas taças de vidro sopradas com precisão.
Caesar olhou para seu criado-chefe.
- Como estão os preparativos para o banquete?
Várias carnes e frutas exóticas tinham sido entregues na casa mais cedo, e Marcus soubera por Lupus que Caesar estava planejando comemorar a aprovação de sua Lei
de Terras na mesma noite em que anunciaria oficialmente o casamento de Portia com o sobrinho de Pompeius, se a votação fosse positiva.
- Os ingredientes dos pratos já foram pedidos, amo. E o vinho. Mandei chamar dançarinas e músicos. Estou aguardando a confirmação da companhia grega de mímicos.
- Aguardando? - Caesar franziu a testa.
- Sim, amo. Parece que eles não vão conseguir montar e ensaiar o esboço que o senhor passou para eles. Um dos homens do elenco adoeceu, e eles precisaram contratar
uma pessoa nova.
- Então é melhor informá-los de que vão fazer conforme eu requisitei, do jeito que for. Diga a eles que não é muito prudente desapontar um cônsul em serviço se eles
têm algum interesse em continuar trabalhando em Roma.
- Sim, amo.
Caesar acenou com a mão desdenhosamente.
- Pode ir, Flaccus. Faça com que eu não seja desapontado. Feche a porta após sair.
Depois que Flaccus foi embora, Caesar acenou para que Marcus fosse até o banco.
- Sente-se.
Caesar serviu um pouco de vinho para ele, e depois colocou água de uma jarra de cobre em cima.
- Tome.
- Obrigado, amo. - Marcus tomou um gole e apreciou o sabor frutado.
- Não beba muito, viu? - Festus sorriu. - Vai precisar ficar esperto nos próximos dias. Como está se sentindo, garoto?
Marcus pensou em fingir que estava tudo bem, mas decidiu que era mais importante ser sincero tendo em vista a luta que se aproximava.
- Os cortes e arranhões não são nada. Os machucados doem, mas eles não vão me atrapalhar. É só o joelho que me preocupa.
- Deixe-me ver.
Marcus estendeu a perna no banco, e Festus removeu o curativo com cuidado. Uma crosta larga e escura tinha se formado em cima da carne enrugada, com um líquido transparente
escorrendo de um lado. Festus respirou fundo antes de colocar o curativo de volta e disse para Marcus abaixar a perna.
- Vai ser um pouco difícil para ele movimentar a junta - relatou Festus para Caesar. - Duvido que Marcus tenha mobilidade completa daqui a dois dias. Se ele fizer
muita força, ou se a ferida se abrir durante a luta, ele vai sangrar.
- Isso é muito ruim - respondeu Caesar. - Ele tem que lutar. Já pensei sobre o assunto e preciso aceitar o desafio de Bibulus. Se eu recusar, vai parecer que é fraqueza
minha. - Ele fixou a vista em Marcus, com um olhar compassivo. - Marcus, você tem que entender a minha posição. Sei que é você quem vai lutar e confio que você vai
fazer tudo o que pode para vencer. E vai precisar fazer mesmo. Aposto que Bibulus disse para seu gladiador não ter nenhuma misericórdia e não pedir intervalo. É
bem provável que seja mesmo uma luta até a morte, independentemente do que os espectadores quiserem. Quero que entenda isso.
Marcus assentiu.
- Eu entendi, amo.
- Se eu tivesse outra escolha, eu não pediria que você lutasse. Meus oponentes foram inteligentes e me obrigaram a fazer isso. Eles esperam que você seja derrotado,
pois isso me prejudicaria, e assim eles conseguiriam tomar o apoio do povo e dos poucos senadores que precisam para derrubar minha Lei de Terras. - Caesar tomou
um gole de vinho e prosseguiu: - Se ela for rejeitada, os veteranos de Pompeius não vão ter direito às terras que eles veem como uma recompensa justa. Eles vão pressionar
Pompeius a defender os interesses deles. Temo que Pompeius esteja pronto para deixar a cautela de lado e declarar-se ditador de Roma. Marcus, da última vez que um
ditador chegou ao poder, milhares de pessoas morreram. As ruas da cidade ficaram cobertas de sangue. As guerras de gangues que vimos nesses últimos meses não são
nada em comparação. - Caesar contorceu-se com a lembrança. - É por isso que precisamos ganhar a votação, e por isso que nada pode ser deixado ao acaso. Preciso que
você ganhe a luta, Marcus. A vida de milhares de pessoas depende de você. - Ele olhou atentamente para o garoto do outro lado da escrivaninha. - Você é capaz de
fazer isso?
Marcus olhou nos olhos dele calmamente. Perguntou-se se Caesar realmente estava preocupado com os interesses dos cidadãos romanos. No entanto, qualquer que fosse
a verdade, Marcus sabia que os destinos de outras pessoas estavam em jogo e que ele devia lutar por elas.
Em uma luta até a morte, ele faria de tudo para sobreviver. Era um lutador talentoso e Festus o ensinara várias habilidades e técnicas novas. Marcus estava tão preparado
quanto qualquer outro gladiador de sua idade. Mas haveria sempre o acaso. Uma escorregada ou uma distração inesperada poderia lhe custar a luta. E também havia o
seu oponente, que poderia simplesmente ser um gladiador melhor. Havia muitos fatores envolvidos para que Marcus pudesse dar a resposta final. Virou-se para Festus
e perguntou:
- Eles colocaram o nome do meu oponente nos anúncios das ruas?
Festus balançou a cabeça.
- Ele é descrito apenas como o campeão de uma escola de gladiadores da Campânia. Já perguntei a respeito dele, mas Bibulus está mantendo o garoto escondido.
- Nós sabemos que tipo de gladiador ele é?
- Não. Nem isso - respondeu Festus, dando de ombros.
- Entendi. - Marcus suspirou, frustrado. Ele se virou para Caesar. - Amo, vou fazer o meu melhor. É tudo o que posso prometer.
Caesar concordou com a cabeça lentamente.
- E é tudo que posso pedir. Você tem me servido mais do que bem, Marcus, e prometo recompensá-lo quando nossos problemas acabarem. Você vai ver que sou generoso.
Marcus pensou rapidamente. Aquela era sua chance. Em dois dias talvez ele estivesse morto, então não tinha nada a perder se fizesse o pedido naquele momento. Mesmo
que Caesar ficasse com raiva, ele não poderia fazer muito a respeito. Caesar precisava de Marcus, precisava do garoto em boa forma física, então não se atreveria
a puni-lo. Marcus esvaziou a cabeça, concentrando-se apenas nas considerações mais importantes.
- Amo, vou lutar o melhor que puder. Eu quero viver. E entendo o que está em jogo para o senhor e seus aliados no Senado. Se eu ganhar, vou merecer minha recompensa
e vou dizer agora o que quero.
Caesar ergueu as sobrancelhas.
- Vai ousar me dizer o que devo lhe dar?
- Sim, amo. - Marcus engoliu em seco para se acalmar e continuou tão confiante quanto podia. - Se eu ganhar, o senhor terá a sua grande vitória política. Eu salvei
a sua vida e salvei a vida da sua sobrinha duas vezes. Mereço mais do que a sua gratidão.
- Como se atreve a dizer isso! - interrompeu Festus, indignado.
- Deixe-o falar! - ordenou Caesar. - Agora que ele descobriu que tem uma língua, quero ouvir o que ele tem a dizer. Prossiga, Marcus.
Ele assentiu com a cabeça, agradecendo.
- Você conhece a minha história, amo. O senhor sabe a enorme injustiça que minha família sofreu. Meu... pai está morto, minha mãe está acorrentada a outros escravos,
e eu tive que aguentar a dureza do treinamento de gladiador. Se eu ganhar a disputa daqui a dois dias, vou querer minha liberdade. Vou querer a liberdade da minha
mãe e quero justiça para o cobrador de impostos Decimus. São essas as minhas condições.
- Posso prometer a primeira coisa e vou fazer o que puder pela sua mãe - respondeu Caesar. - Mas, para a terceira, vou precisar de provas que eu possa usar contra
Decimus.
- Seja como for - respondeu Marcus firmemente -, eu vou me vingar. De uma maneira ou de outra.
- Isso é uma ameaça? - Caesar não pôde deixar de achar aquilo um pouco cômico.
Marcus não sentiu uma gota de comicidade no sangue e respondeu:
- É uma promessa.
Caesar ficou quieto por um instante e assentiu.
- Tudo bem, eu concordo com as condições.
- Então jure para que isso fique mesmo garantido, amo. Com Festus como testemunha.
Caesar inspirou bruscamente e falou com um tom de voz baixo e frio:
- Tome cuidado, jovem, não force demais as coisas.
- Amo, eu não tenho nada a perder.
Festus mudou de posição na cadeira, constrangido, mas não se atreveu a comentar nada. O rosto de Caesar estava inexpressivo. Marcus já tinha visto aquela expressão...
quando Caesar estava contemplando alguma façanha cruel.
Os três ficaram em silêncio. A tensão era quase insuportável para Marcus. Estava com medo de ter ido longe demais, de que Caesar mandasse castigá-lo, mas não tinha
mais como voltar atrás. Caesar franziu a testa profundamente e por fim falou:
- Eu juro pelos deuses mais sagrados da minha família. - Ele deu uma risada seca. - Quem diria? Um cônsul de Roma fazendo juramento para um mero garoto escravo.
E eu vivi para ver isso...
27
Eles chegaram cedo, uma hora antes do horário marcado para o duelo. Chovera bastante durante a noite, e as lajes do Fórum estavam escorregadias, reluzindo sob a
luz pálida. O ar, normalmente pesado devido ao fedor da cidade, estava fresco, com um leve cheiro de mofo à medida que o sol da manhã fazia evaporar as poças das
ruas sujas.
Marcus estava com Festus e alguns dos guarda-costas dele, que carregavam as armas e o equipamento de Marcus, além de uma pequena liteira para levá-lo de volta à
casa de seu senhor caso perdesse a luta. Caesar ainda não tinha saído para a Casa do Senado, pois reunia-se com Pompeius, Crassus e o restante dos aliados políticos
mais próximos. Independentemente do resultado do duelo, a votação da Lei das Terras aconteceria, e eles tinham que se preparar para possíveis mudanças de voto de
última hora.
Uma multidão enorme já tinha ocupado os melhores locais para assistir à luta. Depois que os homens de Festus guardaram o equipamento, eles começaram a passar um
cordão de isolamento no espaço diante dos degraus da Casa do Senado, improvisando uma arena de quatrocentos metros quadrados.
Marcus ficou perto do equipamento enquanto Festus orientava seus homens. Sentia o mesmo pavor de sua última luta em uma arena, na escola de Porcino, meses antes.
Nauseado, com a tensão aguçando os sentidos. O mundo ao seu redor parecia inundado de cores, luzes e sombras, e os barulhos da cidade, mais nítidos e profundos.
Até seu olfato detectava odores sutis que não percebera até então. Braços e pernas estavam leves, tensos e tremiam um pouco.
- Tome, pegue meu manto - disse Festus, colocando-o em volta de Marcus. - Melhorou?
Marcus fez sim com a cabeça.
- Obrigado.
- Tente não pensar na luta em si. Concentre-se na sua preparação.
Sem saber que armas o outro gladiador usaria, Festus escolheu a opção mais segura e colocou Marcus para lutar como um reciário, um guerreiro de rede. Isso significava
que ele usaria um protetor de ombro e um cinto de couro tachado por cima da barriga. Sua arma seria um pequeno tridente com pontas cruelmente farpadas, além da própria
rede de mais de dois metros de altura, com pesos nas extremidades e presa ao punho de Marcus por uma alça de couro de fácil remoção em caso de necessidade. Apesar
de estar mal protegido, Marcus seria capaz de se mover e atacar com rapidez.
Passaram a véspera treinando no pátio. Durante a manhã, Festus fizera o papel de um samnita muito bem armado que não parava de tentar atacar Marcus e o encurralar.
No entanto, Marcus aprendera a evitar essa armadilha e desviava-se para o lado, lançando a rede para fazer Festus tropeçar ou jogando-a para o alto a fim de prendê-lo
dentro dela. Marcus tomou cuidado com o joelho ferido e foi derrubado duas vezes, o que irritou Festus. Por sua vez, o garoto derrubou o treinador três vezes, deixando
Festus satisfeito e ressentido. À tarde, Festus lutou como um reciário e o duelo ficou mais intenso e focado. Festus usava seu tamanho e sua velocidade para se defender.
Terminaram o dia com calor, cansados e suados, em pé de igualdade.
Apesar de ainda se sentir um pouco enrijecido, Marcus estava pronto para enfrentar o oponente. Seu joelho tinha sido protegido com bastante cuidado para que a ferida
ficasse coberta sem prejudicar muito a mobilidade. Estava confiante em relação às suas armas e tinha escolhido cautelosamente o tridente de peso mais bem distribuído
no pequeno arsenal da casa de Caesar.
- É melhor se aquecer - avisou Festus. Ele pegou um frasco de óleo de alho na bolsa de couro e espalhou um pouco na palma da mão. - Tire o manto.
Marcus obedeceu e estremeceu com o ar frio enquanto Festus massageava seus ombros, braços e pernas, aliviando a tensão dos músculos. Após terminar, Festus devolveu
o manto para Marcus, bem no instante em que Caesar e seus aliados políticos mais próximos chegaram. Lupus estava um pouco atrás de seu senhor e sorriu nervosamente
para Marcus ao se aproximar.
- Já está pronto, Marcus? - perguntou Caesar.
- Sim, amo.
O general Pompeius olhou para Marcus e resmungou por entre os dentes:
- Tem certeza disso, Caesar? Estamos colocando todas as nossas esperanças nesse garoto e, bem, ele não me parece um gladiador invencível. Não foi ele quem deixou
dois membros de gangue sequestrarem minha futura nora?
- Eu conheço bem esse garoto - respondeu Caesar. - Ele tem um coração de leão e consegue atacar com a velocidade de uma pantera. Confie em mim, Pompeius. Sei o que
estou fazendo.
- Espero que sim, pelo bem de todos nós.
Enquanto seus companheiros subiam os degraus para encontrar um lugar para ver a luta, Caesar ficou parado mais atrás. Ele pôs a mão no ombro de Marcus e sorriu.
- O que eu daria para ter um filho como você... Que os deuses o protejam, Marcus. E mais uma coisa. - Ele pôs a mão dentro da toga e tirou um pequeno lenço de seda.
- Portia mandou isso para você. Para dar sorte.
Marcus animou-se ao pegar o lenço. O tecido tinha um cheiro doce de rosas. Cuidadosamente, ele dobrou o lenço formando uma faixa e o amarrou ao redor do pescoço.
Caesar assentiu com a cabeça, satisfeito, e deu um tapinha no ombro de Marcus afetuosamente e foi se juntar aos outros. Marcus perguntou-se se aquele gesto tinha
sido sincero ou se era apenas um dos truques de Caesar para conquistar a lealdade daqueles que o serviam.
Àquela altura, a multidão aumentava e os lictores de Caesar juntaram-se aos homens de Festus para manter as pessoas atrás do perímetro do cordão. Logo antes do início
da luta, Lupus estava na ponta dos pés, esticando o pescoço, olhando para o outro lado do Fórum.
- Lá vêm eles.
Bibulus e seus guarda-costas apareceram no meio da multidão em uma pequena comitiva de aliados que incluía Cato, o lutador e seu treinador. A multidão dividiu-se
diante deles, pois as pessoas procuravam uma visão melhor do gladiador para avaliá-lo antes de apostar no resultado da luta. Marcus tentou avistar seu oponente,
mas havia pessoas demais na sua frente.
Bibulus esperou a corda ser abaixada, atravessou o espaço aberto e estendeu a mão para cumprimentar Caesar. Os dois não disseram nada, mas Bibulus parou na frente
de Marcus e balançou a cabeça em deboche.
- É esse o gladiador que vai salvar a honra de Caesar?
As pessoas que estavam por perto sorriram ou riram do comentário, e Marcus sentiu uma intensa raiva. Rapidamente, conteve o sentimento. Bibulus estava tentando irritá-lo
- mas o que é que tinha aprendido? Que não devia deixar a raiva desestabilizá-lo. Em vez disso, ergueu a voz e respondeu:
- E o que é que esse senador sabe de honra?
A multidão riu novamente, alguns comemoraram, e a expressão contente de Bibulus transformou-se em ódio. Ele se aproximou de Marcus.
- Vamos ver quem vai rir por último depois que meu garoto espremer você no chão e enfiar a lâmina na sua garganta...
Ele se virou repentinamente para falar com a multidão:
- Para honrar os nobres cidadãos de Roma, e como uma oferenda de sangue aos deuses, para que eles guiem o bom senso daqueles que vão votar na lei mais importante
da nossa geração, eu ofereço essa luta entre dois dos melhores jovens gladiadores da República! Lutando por Caesar, temos Marcus, da escola de Porcino na Campânia.
Enfrentando-o, eu apresento o meu campeão, da mesma escola...
Ele gesticulou para o grupo de homens que o acompanhara, e eles se afastaram para deixar o gladiador ir para a frente. Ele era mais alto do que Marcus e bem corpulento.
Já vestia seu equipamento e estava armado como um samnita, com protetor de perna, um escudo quadrado pesado e um capacete de bronze reluzente com duas penas vermelhas
em cada lado. Marcus estava desesperado para vê-lo, mas a parte frontal do capacete encobria o rosto. Não se atreveu a pensar no nome que suspeitava, mas Bibulus
tinha dito que seu oponente era da mesma escola...
O gladiador parou a três metros de Marcus, apoiou o escudo na coxa e ergueu o braço para remover o capacete, bem no instante em que seu senhor anunciou seu nome.
- Ferax, o celta!
Claro. Marcus sorriu sombriamente para o garoto de jeito desdenhoso que infernizara sua vida na escola de gladiadores de Porcino. Quem mais estaria tão determinado
a derrotá-lo e matá-lo? Bibulus tinha escolhido muito bem o oponente de Marcus.
- Meu velho amigo - disse Ferax, dando um risinho. - Há quanto tempo. Rezei todos os dias para os deuses pedindo uma nova chance de enfrentá-lo. Mas, desta vez,
eu vou ganhar e você vai morrer.
- Ferax... - sussurrou Marcus para si mesmo. Por que tinha que ser Ferax?
A lembrança do último encontro deles na arena fez Marcus sentir um frio na espinha. Ferax tinha perdido, e Marcus poupara a vida dele, deixando o celta humilhado.
Festus aproximou-se de Marcus e sussurrou com urgência:
- Controle seu medo. Não deixe que ele veja que você está com medo.
Marcus assentiu com a cabeça. Deu dois passos em direção ao oponente, endireitando a postura.
- Você fala demais, Ferax, como sempre. Eu o derrotei na última vez em que nos encontramos. Nunca devia ter deixado você viver.
- É hora de pagar pelo erro - disse Ferax com um sorriso desdenhoso. - Com sua própria vida.
Percebendo que o confronto não era entre dois desconhecidos, a multidão ficou em silêncio e tentou ouvir todas as palavras da breve conversa dos dois. No entanto,
antes que Marcus pudesse responder, Bibulus ergueu as mãos.
- Que a luta comece! Gladiadores, preparem-se!
Ferax colocou o capacete de volta, sacou a espada e esperou enquanto Festus apertava a proteção em camadas sobrepostas no ombro de Marcus. Após Marcus passar giz
nas mãos para uma empunhadura mais firme, Festus entregou-lhe a rede e o tridente. Enquanto balançava braços e pernas e alongava o pescoço, Marcus percebeu um tumulto
ao lado da área isolada pelo cordão. Um pequeno grupo de garotos tinha se espremido mais para a frente, e quase em uníssono eles gritaram surpresos:
- Olha só, é o Junius!
Marcus olhou para o lado e viu Kasos encarando-o, perplexo. Ele esboçou um discreto sorriso e o cumprimentou com a cabeça.
- Nas suas marcas! - disse uma voz. O juiz da luta deu um passo para a frente e usou o bastão para marcar duas lajes a três metros de distância.
Ferax caminhou calmamente até o local e se virou para bater o lado de sua lâmina na beirada do escudo. Respirando profundamente para se acalmar, Marcus foi para
sua posição e ergueu a mão esquerda para tirar a maior parte da rede do chão. Agarrou fortemente a base do tridente com a mão direita e agachou.
O árbitro olhou para os dois lados e brandiu o bastão no ar enquanto se afastava rapidamente.
- Comecem!
28
Marcus manteve-se firme, observando Ferax como uma águia. Inicialmente, Ferax não se mexeu e ficou apenas batendo na beirada do escudo. Em seguida, ele andou casualmente
para a frente até reduzir a distância entre os dois pela metade. De repente, ele se lançou para a frente e, antes que pudesse se conter, Marcus recuou.
Ferax riu desdenhosamente.
- Vamos lá, homenzinho, pule!
Marcus rangeu os dentes. Lembrou-se do medo que sentia enquanto aturava as provocações sem fim do celta na escola de gladiadores. Já basta! Marcus ficou com raiva
de si mesmo. Estava caindo nas mãos do inimigo. Tinha que deixar o passado para trás. Precisava pensar em Ferax como o oponente do momento e esquecer tudo o que
afetasse sua concentração.
Deu um passo adiante, removendo a rede completamente do chão, e começou a balançá-la para a frente e para trás. Ferax ficou observando com cuidado. Estava claro
que ele não era mais o lutador impulsivo de vários meses antes. Naquela época, Marcus é que era o mais cauteloso. Ele teve uma ideia: será que podia usar a luta
anterior a seu favor? Se Ferax estava esperando que ele fosse cauteloso, Marcus precisava fazer algo repentino e surpreendê-lo. Abruptamente, o garoto precipitou-se
para a frente, mirando o tridente no pescoço descoberto de Ferax. O golpe foi bloqueado com o escudo assim como Marcus esperava e, enquanto puxava o braço direito
para trás, ele jogou a rede para a esquerda, tentando prender o braço de Ferax que estava com a espada. Ferax virou-se agilmente para longe da rede, e os dois ficaram
de frente um para o outro mais uma vez, ofegando e planejando os próximos movimentos.
- Vamos, Junius! - gritou Kasos. Um homem ao lado dele falou algo, irritado. Kasos pareceu ficar surpreso. - Não? É mesmo? Tudo bem então... Vamos, Marcus! Acaba
com ele!
A gangue também começou a gritar. Marcus sorriu amarguradamente e lançou-se para a frente mais uma vez, fingindo que atacaria o pescoço do inimigo. Quando Ferax
ergueu o escudo, Marcus alterou o ângulo da investida em direção à perna do oponente. O dente mais externo feriu a coxa do garoto, e Ferax soltou um grito de dor
e raiva antes de avançar, ficando dentro do alcance da rede, e fazer um arco com a espada mirando no rosto de Marcus, que sentiu o ar se movendo, escutou o chiado
da lâmina, enquanto se agachava debaixo da ponta afiada, escapando por pouco. Rapidamente, enfiou o tridente na axila exposta de Ferax. O golpe não foi muito forte,
mas os dentes formaram três feridas superficiais no lado do corpo. Marcus disparou para a frente, passando do oponente, e girou com rapidez na esperança de poder
atacá-lo por trás. No entanto, Ferax já tinha se virado e levantado a guarda antes que Marcus se equilibrasse o suficiente para usar o tridente.
Um ficou de frente para o outro mais uma vez. Ferax respirava pesadamente dentro do capacete, que escondia sua expressão, deixando-o ainda mais intimidante. Marcus
arrastou a rede para a frente com cuidado, arranhando o chão, tentando inquietar o oponente. O sangue das pequenas feridas na lateral do corpo e na coxa de Ferax
começou a pingar, mas Marcus percebeu que ele não sangrava o suficiente para que isso afetasse sua capacidade de lutar.
- O primeiro golpe foi você quem deu, Marcus - grunhiu o celta. - Eu ia lhe dar a chance de terminar isso com rapidez e sem nenhuma dor, mas agora vou fazê-lo sofrer.
Marcus não respondeu, continuou agachado e começou a ir para o lado, forçando Ferax a ficar de frente para ele e de costas para o canto mais próximo. Marcus fingiu
um golpe com o tridente e lançou baixo a rede na direção dos pés do oponente, forçando Ferax a se distanciar. Repetiu a estratégia, e mais uma vez Ferax cedeu terreno,
ficando a menos de dois metros do canto da área isolada pelo cordão. Atrás do celta, Marcus viu os rostos do povo. Alguns animavam Marcus, contorcendo o rosto com
um entusiasmo cruel. Aqueles que defendiam Ferax gritavam de raiva por ele estar recuando.
Percebendo que estava ficando sem espaço, Ferax preparou-se para atacar. Marcus viu o oponente pôr o peso do corpo para trás um segundo antes de se atirar para cima
dele com um rugido selvagem, as penas oscilando violentamente no topo do capacete reluzente. Ferax empurrou o escudo para a frente e mandou a espada para cima da
cabeça de Marcus, repetindo o golpe em seguida, sempre avançando. Marcus ficou sem escolha e precisou recuar diante da investida. Ferax não lhe deixava tempo para
preparar a rede. Agora era Marcus que estava sendo empurrado em direção ao canto, e ele sabia muito bem o quanto isso era perigoso. Só havia uma coisa a fazer. Assim
que Ferax investiu novamente, Marcus mergulhou e rolou para baixo do escudo dele, e depois rolou de novo antes de se levantar, rangendo os dentes enquanto sentia
a ferida do joelho se abrir. Ferax parou, deslizando nas pedras molhadas, e virou-se enquanto a multidão soltava rugidos de aprovação devido à ousadia de Marcus.
Os gritos pareceram provocar Ferax, e ele bateu o lado da espada contra a borda do escudo enquanto se preparava para atacar mais uma vez. Com um enorme rugido, ele
disparou para a frente, golpeando a base do tridente que Marcus enfiara na direção dele. Marcus saltou para o lado e deixou o celta passar, mas Ferax previu que
ele faria isso e, um instante depois, brandiu o escudo em uma curva para atingi-lo. O canto do escudo acertou o joelho ferido do garoto e uma dor intensa espalhou-se
pela perna dele. Marcus foi para o lado, e os lutadores ficaram bem perto um do outro, com os peitos arfando enquanto os dois se olhavam dos pés à cabeça. Marcus
sentiu algo quente escorrendo por cima da canela e olhou para baixo. O golpe do escudo tinha rasgado o curativo e aberto a ferida. O sangue escorria da carne dilacerada.
- Rá! - gritou Ferax alegremente. - É o seu fim!
Os gritos da multidão diminuíram um pouco à medida que as pessoas notavam um filete de carmim na perna de Marcus. Ele tentou se apoiar cuidadosamente na perna e
sentiu os músculos tremerem. Uma onda de náusea se espalhou pelo corpo do garoto quando a dor se intensificou. Ele cambaleou para trás, rangendo tanto os dentes
que eles doeram.
- Agora sim vou conseguir me vingar - murmurou Ferax. Ele se agachou pronto para atacar novamente.
Marcus pensou rápido. Agora estava em desvantagem. Somente uma coisa seria capaz de salvá-lo: ele não podia deixar o inimigo atacar primeiro. Ignorando a dor no
joelho, Marcus deu um passo para a frente com rapidez, removeu a alça de couro do punho e brandiu a rede acima da cabeça, preparando-se para lançá-la. Com o outro
braço, estendeu o tridente, mirando as pontas no pescoço do oponente. Em seguida, arremessou a rede, e ela voou tão alto que conseguiu cobrir o escudo, a espada
e o capacete de Ferax. Os pesos fizeram as extremidades da rede cercarem o corpo do garoto. Foi um belo arremesso, a multidão ficou boquiaberta, cheia de expectativa
enquanto Marcus segurava a base do tridente com as mãos e avançava.
- Sai! Sai! - gritou Ferax enquanto lutava para se soltar. Ele conseguiu remover a espada da rede, mas o escudo continuou preso. Soltando um palavrão, deixou o escudo
cair junto com a rede. Agora ele estava de frente para Marcus segurando apenas a espada, que era bem mais curta do que o tridente.
Marcus fingiu que ia golpeá-lo, e Ferax cambaleou para longe das pontas afiadas.
- Vamos lá - disse Marcus, sorrindo sombriamente. - Pule...
No entanto, Marcus não via nenhuma graça naquilo e ficou com o rosto sério enquanto investia fortemente contra Ferax. O outro garoto defendeu-se do tridente, e depois
mais uma vez, pois Marcus continuava atacando-o. A excitação da multidão chegou ao auge, e os gritos ficaram ensurdecedores.
- Mate-o! - gritou Kasos.
Marcus segurou a base do tridente com mais firmeza e fez uma ofensiva óbvia e direta contra o peito de Ferax. O celta jogou a espada para cima e, no último instante,
Marcus afastou a arma, apenas o suficiente para que a espada passasse entre duas pontas do tridente. Em seguida, virou a base do tridente para o lado violentamente.
A espada foi arrancada das mãos de Ferax e caiu no chão a uns três metros de distância. Imediatamente, Marcus posicionou-se entre Ferax e sua arma e depois se aproximou,
obrigando Ferax a recuar até encostar-se à multidão. Ouviu-se um grito de susto, e um homem empurrou Ferax para a frente. Nesse momento, o dedão de Ferax ficou preso
no canto da laje e ele caiu de rosto no chão, bem aos pés de Marcus, fazendo a borda do capacete ressoar com o impacto.
Marcus pressionou a bota nas costas de Ferax e empurrou as pontas do tridente no pescoço dele.
- Não se mexa!
Ferax ficou parado e não disse nada, e em seguida um grito terrível de raiva e frustração saiu de seus pulmões.
- Mate-o! - berrou uma voz na multidão. Outros gritaram o mesmo. Marcus sentiu vontade de enfiar o tridente até o fim e matar o seu oponente derrotado, e sabia que
seria ovacionado se fizesse isso. Então se lembrou da última vez que enfrentara Ferax e a mesma repulsa tomou conta de seu coração. Apesar de tudo o que Ferax tinha
feito com ele, os dois eram apenas vítimas do mesmo crime contra a humanidade. Marcus inclinou-se para a frente e falou com urgência na voz:
- Peça misericórdia se quiser viver! Ferax, peça logo, antes que seja tarde demais!
- Morte! Acabe com ele! Mate-o! - Os gritos espalhavam-se pela multidão.
Ferax tirou a mão debaixo do corpo e a ergueu lentamente, estendendo os dois primeiros dedos. Parte da multidão começou a gritar para que a vida dele fosse poupada,
e outras pessoas passaram a fazer o mesmo, deixando o Fórum no meio de gritos contrastantes. Marcus não tinha como saber qual era a vontade da maioria, então olhou
na direção de Caesar para saber qual era a melhor decisão, esperando que Ferax não precisasse morrer.
Seu senhor olhou para a multidão, viu o rosto desapontado de Bibulus e ergueu o dedão. Um alívio tomou conta de Marcus, e ele removeu o tridente do pescoço de Ferax.
Lentamente ele se virou para a multidão, ficando surdo com os milhares de pessoas rugindo seu nome.
- Marcus! Marcus! Marcus!
Ele não pôde deixar de sentir uma excitação por sua vitória e uma alegria contagiante por ter sobrevivido à luta. Marcus brandiu o tridente no ar, e depois mais
uma vez, gritando o próprio nome junto com a multidão. Virou-se e viu Lupus sorrindo para ele. De repente, o sorriso de Lupus desapareceu, e o garoto estendeu a
mão, apontando para trás de Marcus. Ele estava gritando alguma coisa, mas suas palavras se perderam no meio do burburinho.
Marcus franziu a testa, abaixou o tridente e se virou na direção para onde Lupus estava apontando. Viu um borrão de movimento, Ferax com a cabeça descoberta, um
rosnado feroz em seu rosto enquanto pegava a espada. Marcus só teve tempo de erguer o tridente antes que Ferax se jogasse contra ele, esmagando-o contra o chão.
A cabeça de Marcus colidiu com a pedra molhada, e tudo ficou preto.
- Marcus! Marcus...
De repente, a luz começou a tomar conta da escuridão, e um rosto desfocado surgiu diante dele. Marcus piscou, e sua visão começou a ficar mais nítida. Sua cabeça
latejava dolorosamente, e ele se contorceu.
- Marcus, está me ouvindo?
- S-sim - murmurou ele. Agora conseguiu ver vários rostos ao redor, desconhecidos, todos olhando para baixo. Logo reconheceu Lupus e Festus, que o encaravam ansiosamente.
Ele ainda estava na arena. O que tinha acontecido? Festus ajudou-o a se levantar lentamente e o segurou ao redor dos ombros.
- Ferax! - gritou Marcus, assustado.
- Calma - disse Festus. - Você está bem.
- Onde está Ferax? - quis saber Marcus.
- Ali. - Festus apontou para o chão.
Ferax estava de lado, com os olhos arregalados, sem piscar. A boca estava fechada com firmeza, imobilizada devido às pontas do tridente que o espetaram por baixo
do queixo, perfurando o crânio. Marcus ficou encarando o corpo, sentindo-se vazio e nauseado. Festus notou a expressão no rosto do garoto.
- Ele o atacou quando você estava de costas. Foi sorte você ter erguido o tridente a tempo... Enfim, ele teve o que mereceu. Não lamente a morte dele, Marcus.
Antes que Marcus pudesse responder, ele viu outro homem à sua frente. Era Caesar, com um grande sorriso no rosto.
- Muito bem, meu garoto! Que bela vitória. Estou orgulhoso de você. E grato.
Caesar chamou um de seus escravos.
- Traga um saquinho de prata para o meu campeão. E dê o resto para a multidão.
O escravo abaixou a cabeça, pôs a mão na bolsa e tirou um pequeno saco de couro do tamanho de uma pera, que ele colocou nas mãos de Marcus. Depois pôs a mão na bolsa
novamente e tirou um punhado de moedas de bronze que jogou no ar. A multidão gritou entusiasmada enquanto as pessoas agarravam as moedas ou se abaixavam para pegar
as que tinham caído no chão.
- Caesar! - gritou o escravo, jogando o último punhado de moedas. - Caesar!
O grito espalhou-se pela multidão e ecoou pelos muros. Marcus observou Caesar virar-se para a Casa do Senado e subir os degraus de maneira solene. A maioria dos
senadores dos dois lados passou a gritar o nome dele junto com a multidão.
Agora que a luta tinha terminado, Marcus sentiu os braços e as pernas tremerem de alívio enquanto Festus colocava o manto em seus ombros e o virava na direção de
Subura.
- Festus. Eu não queria matá-lo.
- Você não teve escolha, garoto. Olhe, nós já terminamos por aqui, Marcus. Você precisa descansar e depois comer alguma coisa. Talvez não esteja querendo nada disso
agora, mas vai querer depois. Confie em mim.
Marcus não tinha ânimo para discutir. Deixou-se ser guiado por Festus, e quase não percebeu os tapinhas em seu ombro e os carinhos em seu cabelo vindos da multidão
que o parabenizava enquanto ele passava. Marcus ergueu o braço e, com os dedos trêmulos, desatou o lenço de Portia. Inalou o cheiro e ficou impressionado ao perceber
o quanto era bom. Fechando os olhos, rezou para os deuses em agradecimento. Ainda estava vivo.
29
Quando voltaram do Fórum, Festus removeu o curativo ensanguentado do joelho de Marcus e balançou a cabeça ao ver a ferida em carne viva, onde as crostas tinham se
aberto. Ele a limpou tirando o sangue recente, e pôs um novo curativo. Depois disso, pegou um pouco de mingau na cozinha, quente e fumegante, e fez Marcus tomar
a tigela inteira antes de obrigá-lo a ir dormir.
Marcus obedeceu a Festus com alegria. O treinamento duro do dia anterior, a ansiedade de uma noite praticamente sem dormir e a rajada de energia e nervosismo no
meio da luta o deixaram completamente exausto. Acomodou-se no saco de dormir, e Festus o cobriu com seu manto e um cobertor. Depois ele saiu da cela, fechando a
porta. Marcus ficou encarando o teto, atormentado pelas cenas da luta em sua mente. Forçou as visões sombrias a saírem da cabeça e fechou os olhos, respirando profunda
e lentamente até ficar inconsciente.
- Marcus...
Ele sentiu uma mão gentil balançando seu ombro e abriu os olhos imediatamente. Lupus se encontrava agachado ao seu lado. O quarto estava cheio de sombras, e apenas
o fraco feixe de luz da janela no alto iluminava a escuridão. Marcus sentou-se lentamente, gemendo por causa da dor nos músculos. Lupus ficou em silêncio, com um
olhar de admiração no rosto.
- Que horas são? - perguntou Marcus enquanto massageava a parte de trás da cabeça.
- Já passou da sétima hora. Festus pediu para eu vir acordá-lo. Os convidados do senhor chegaram para o banquete.
- A Lei das Terras foi aprovada?
- Sim. Por pouco, mas foi.
Cuidadosamente, Marcus passou a mão no cabelo. Então a crise tinha acabado. Os veteranos de Pompeius teriam suas recompensas, e a ameaça de uma ditadura tinha passado.
Marcus ajudara a tornar isso possível e ficava contente com isso. No entanto, a possibilidade de reivindicar sua recompensa era o que mais importava para ele. Só
quando estivesse livre poderia começar a luta para resgatar sua mãe.
Lupus sorriu.
- Caesar sempre consegue o que quer.
Marcus encarou Lupus, percebendo a fé cega que o garoto tinha em seu senhor.
- Dessa vez, quase não conseguiu.
De fora do alojamento dos escravos, eles escutaram o barulho de passos apressados e gritos - eram os preparativos finais da festa sendo organizados. Os odores ricos
da cozinha chegavam até o corredor. Agora que tinha descansado, Marcus sentia-se esfomeado. Pôs-se de pé e alongou braços e pernas. Lupus também se levantou apressadamente,
ansioso para saber mais.
- O celta que você derrotou era um gigante.
- Ele era maior do que eu - respondeu Marcus. - Mas não era tão rápido.
- E nem tinha tanta honra. Tentar estocá-lo pelas costas daquele jeito...
Marcus lembrou-se do olhar de ódio no rosto de Ferax e estremeceu.
- Foi muito desonesto. - Lupus balançou a cabeça. - Ele mereceu morrer.
Marcus ficou encarando o outro garoto.
- Ele era um escravo, Lupus, assim como você e eu. Nenhum de nós teve escolha. Fomos forçados a lutar por ordem de nossos senhores. - Não era totalmente verdade,
pensou Marcus. Caesar dera a entender que Marcus podia se recusar a lutar, mas o menino não sabia o que aconteceria se fizesse isso. Talvez Caesar fosse inteligente
o suficiente para saber que Marcus aceitaria o desafio. E que era melhor se o garoto aceitasse a luta por vontade própria do que se fosse obrigado a lutar. Marcus
sorriu para si mesmo, compreendendo uma das razões da grandeza de seu senhor: a habilidade de convencer os outros a fazerem o que ele queria, achando que agiam por
vontade própria. Que inteligente. Muito inteligente.
Voltou a pensar no que estava dizendo antes.
- Lupus, ninguém merece morrer só porque é um escravo.
Lupus olhou para ele inexpressivamente e deu de ombros.
- Ouvi falar que a luta foi boa. Festus acha que você vai ser o melhor gladiador de Roma nos próximos anos.
- Ele disse isso, foi?
- Disse sim! - Lupus assentiu entusiasmadamente. - Ele disse que nunca viu ninguém tão promissor.
Marcus não se alegrou tanto com o elogio. Não tinha escolhido ser gladiador, e fazia muito tempo que prometera a si mesmo que conquistaria a liberdade e que depois
nunca mais lutaria para entreter outras pessoas. No entanto, percebeu que havia algo surgindo em seu coração - certo orgulho, e talvez uma sensação de destino. O
sangue de Spartacus fluía em suas veias, e a mesma raiva da injustiça que é a escravidão ocupava sua cabeça.
- Enfim - prosseguiu Lupus -, Festus pediu para eu acordá-lo. Ele disse que é para você comparecer ao banquete e ficar ao lado de Caesar. Isso é uma honra e tanto.
Agora é melhor eu voltar para o jardim. Flaccus me designou como copeiro de Caesar esta noite.
Lupus saiu apressadamente da cela, e Marcus ficou sozinho. O garoto alisou a túnica e o cabelo e depois respirou fundo. Saiu da cela com os músculos tensos, passou
pelo corredor e atravessou o pátio para chegar à casa principal. As nuvens que cobriam Roma mais cedo tinham desaparecido, e o céu noturno estava límpido, com tom
dourado. O banquete aconteceria no jardim, onde sofás temporários foram colocados ladeando os caminhos. Os bancos e os outros móveis do jardim estavam encostados
na parede dos fundos, para não atrapalhar o fluxo.
Os convidados mais importantes sentavam com Caesar no fim do jardim, virados em direção ao átrio. Portia ficava perto do tio, ao lado de um homem incrivelmente encorpado
de cabelo fino e claro. Era incrível como as feições dele eram parecidas com as do general Pompeius. Marcus sentiu um aperto no coração ao perceber que olhava para
o homem com quem Portia iria se casar.
Os candeeiros em cima dos suportes já tinham sido acesos, e a fumaça fina subia até o céu noturno. Os convidados estavam no meio do primeiro prato - havia bandejas
de massas recheadas com carnes temperadas. Os escravos corriam de uma mesa para outra com as jarras de vinho, e a trupe de mímicos gregos organizava-se mais ao lado,
preparando-se para a apresentação. Um membro do grupo separava os acessórios e as fantasias que seriam usados.
Festus, de pé ao lado do sofá de Caesar, viu Marcus se aproximando. Ele encurvou-se e sussurrou no ouvido de seu senhor. Caesar olhou para cima, sorriu, levantou-se
e acenou para Marcus. Ele pegou seu cálice e, ao ver que estava vazio, estendeu-o para o lado. Imediatamente, Lupus, a alguns metros de distância, aproximou-se para
enchê-lo com uma pequena jarra de decorações prateadas e douradas, e depois saiu apressadamente em direção às tinas de vinho para enchê-la.
- Aqui está o meu campeão! - anunciou Caesar bem alto, com a voz atravessando o burburinho das conversas, que rapidamente pararam. Marcus sentiu os olhos de todos
os convidados em cima dele e deu a volta nos sofás onde Pompeius, Crassus e seus amigos mais próximos estavam deitados.
Caesar pôs a mão no ombro de Marcus e o moveu para frente com delicadeza, para que os convidados pudessem vê-lo melhor.
- Meus amigos! Hoje celebramos a vitória da razão e a humilhação daqueles que teriam iniciado uma nova era das trevas em Roma. Bibulus e Cato foram derrotados na
Casa do Senado, e as gangues cruéis daquele monstro deles, Milo, tiradas das ruas. Mas talvez a vitória mais gloriosa tenha sido a destruição do gladiador de Bibulus
pelo meu próprio lutador, Marcus. Apesar de as probabilidades estarem contra ele, teve coragem, determinação e habilidade para vencer. A vitória dele inspirou a
nossa vitória, então peço que ergam seus cálices e façam um brinde ao campeão de Roma.
No jardim e no átrio, os convidados pegaram os cálices apressadamente e ecoaram o nome de Marcus antes de tomarem um gole. Quando os convidados voltaram para suas
conversas, Caesar apontou para um local ao lado do sofá dele.
- Fique ali, Marcus, onde todos possam vê-lo.
- Sim, amo.
Caesar sorriu.
- Logo você não vai mais precisar me chamar assim.
Marcus curvou a cabeça em gratidão e assumiu sua posição. Ficou em pé, de braços cruzados, ao lado do homem mais poderoso de Roma. Seu coração encheu-se de orgulho
por sua aclamada vitória, mais ainda por ter conquistado a liberdade. Foi para isso que tinha ido até Roma. Finalmente poderia começar a próxima fase de sua jornada:
encontrar e libertar sua mãe.
Ao olhar para os convidados, Marcus viu Pompeius sorrindo e gargalhando com seus companheiros mais próximos. A uma pequena distância, Crassus parecia mais calado,
e ele lançou um olhar cauteloso para Pompeius antes de se virar para sua comitiva. Os outros convidados, a maioria de senadores, tribunos e ricos mercadores, pareciam
estar alegres como Caesar. Do outro lado do jardim, os atores gregos, com os rostos bastante maquiados, aguardavam o sinal para começar a apresentação. O homem que
estava cuidando do equipamento tinha chegado perto das tinas de vinho para ter uma vista melhor. Marcus viu Lupus se aproximar das tinas, carregando a jarra pessoal
de Caesar. O grego sorriu, falou com o garoto e pôs o braço ao redor dos ombros dele amigavelmente. Ele apontou para um dos atores e, quando Lupus desviou o olhar,
o vermelho do anel do homem refletiu as chamas de um candeeiro que estava por perto.
Foi um pequeno gesto e, inicialmente, Marcus não teve certeza do que tinha visto. No entanto, achava que os dedos do grego haviam soltado alguma coisa dentro da
jarra de vinho. Antes que pudesse pensar mais no assunto, escutou um grito mais atrás.
- Marcus! - O general Pompeius estava acenando para ele. - Venha aqui, garoto!
Marcus olhou interrogativamente para Caesar, e ele assentiu.
- Pode ir.
Ele foi a passos largos até o sofá de Pompeius e saudou-o com a cabeça. Não conseguia tirar da mente a impressão de que havia algo de errado com o grego que estava
com os mímicos. Havia alguma coisa de familiar nele, apesar da maquiagem teatral.
- Foi uma luta e tanto. - Pompeius sorriu. - Nunca vi um gladiador adulto se mover tão rapidamente, muito menos um garoto! Rá! Caesar tem razão. Você vai ser um
campeão inesquecível. Quanto disso você deve ao seu pai? Ele o criou para ser um lutador?
- Meu pai está morto, senhor. Mas talvez você se lembre dele. Centurião Titus Cornelius. Ele lutou com você na última batalha contra Spartacus. Uma vez ele me disse
que salvou sua vida naquele dia. Um dos escravos estava deitado no chão, fingindo estar morto. Ele pulou depois que você passou por perto e tentou esfaqueá-lo. Meu
pai conseguiu ficar entre vocês dois e matar o escravo.
Pompeius franziu a testa por um instante, tentando lembrar-se. De repente, seus olhos arregalaram-se.
- Pelos deuses, sim, eu me lembro! Foi impressionante. Se não fosse por ele, aquele maldito escravo teria enfiado a lâmina nas minhas costas... E você é filho dele.
Então como foi que virou um escravo?
- Meu pai foi assassinado pelos homens de Decimus, um cobrador de impostos, senhor. Minha mãe e eu fomos sequestrados e vendidos como escravos. Foi assim que me
tornei um gladiador.
Pompeius ficou encarando-o antes de responder:
- Que história terrível, garoto. Se eu soubesse que a família de um dos meus oficiais tinha passado por isso, eu teria feito alguma coisa. Qual é o nome do cobrador
de impostos mesmo?
- Decimus, senhor. Mas foi o servo dele quem matou meu pai.
- E qual o nome do servo?
- Thermon.
Alguma coisa fez as lembranças de Marcus agitarem-se. A voz ríspida e fria de Thermon no dia em que ele chegou à fazenda e matou Titus. Uma voz que achava ter escutado
de novo, mais recentemente...
A verdade o golpeou como uma martelada. O terceiro homem que tinha escutado na estalagem. O que ficou de capuz o tempo inteiro. O homem que estava com um anel de
rubi no dedo da mão direita...
Uma rajada fria de medo subiu pelo pescoço de Marcus. Virou-se e viu que Lupus tinha voltado para o lado de seu senhor e enchido o cálice dele mais uma vez. O grego
que estava perto das tinas de vinho observava Caesar com ansiedade. Marcus deu as costas bruscamente para Pompeius e correu até seu senhor. Caesar afastou o cálice
da jarra e o levou até os lábios.
- Caesar! - gritou Marcus. - Não!
30
O alerta de Marcus foi sufocado pelo retumbar dos tambores dos atores, que corriam para o centro do jardim. Caesar parou, como se achasse que tinha ouvido algo,
e levou o cálice até os lábios. Marcus lançou-se em cima do sofá e empurrou o cálice, fazendo o vinho virar e manchar de vermelho o linho branco do móvel.
- Que diabos! - exclamou Caesar, confuso.
Marcus tirou o cálice das mãos dele com firmeza e o colocou cuidadosamente em cima da mesa.
- Isto está envenenado, amo.
- Envenenado? - Caesar encarou o cálice, horrorizado. Ele olhou para Marcus. - Do que está falando?
Marcus apontou para Thermon, que ainda estava ao lado das tinas de vinho. O grego os observava atentamente.
- Eu o vi colocando alguma coisa no vinho. É ele quem estava conspirando com Milo e Bibulus. O nome dele é Thermon.
Caesar olhou para o jardim. O restante dos convidados continuava assistindo aos mímicos, e apenas aqueles que estavam mais perto do anfitrião tinham percebido o
que acontecera. Caesar virou-se de volta para Marcus.
- Pelos deuses, acho bom você ter razão sobre isso.
Ele endireitou a postura e chamou a atenção de Festus.
- Tire daqui aquele homem, o grego, que está ao lado das tinas de vinho. Faça isso discretamente, acorrente-o dentro da adega e fique vigiando. Assim que a festa
acabar eu vou para lá.
- Sim, amo. - Festus virou-se e deu a volta rapidamente nas mesas alinhadas, gesticulando para que os homens posicionados ao redor do jardim se juntassem a ele.
No entanto, eles chegaram tarde demais. Thermon vira Festus se aproximando e saiu correndo em direção ao muro do jardim.
- Peguem-no! - gritou Caesar. - Festus! Não deixe que ele escape!
Os rostos dos convidados viraram-se para Caesar, e os atores interromperam a apresentação. Marcus viu Thermon correndo em direção ao muro e se perguntou como ele
planejava escalá-lo. Quando Thermon deu a volta e foi em direção aos bancos empilhados, a resposta ficou clara. Festus saiu em disparada, mas era tarde demais. Thermon
alcançou os bancos, subiu neles e se lançou para cima do muro, chutando os bancos para longe. Ele rolou por cima do topo e sumiu de vista.
Festus desistiu de persegui-lo por cima do muro e gritou para que seus homens saíssem pelas ruas e tentassem impedir que ele escapasse. Eles saíram correndo do jardim,
e os convidados ficaram olhando. Apressadamente, Caesar chamou a atenção deles e garantiu que não havia motivos para preocupação. Tinham flagrado um ladrão em ação,
disse ele, antes de pedir aos convidados que continuassem festejando. Depois de uma breve pausa, a apresentação dos mímicos foi reiniciada. Após ter certeza de que
o incidente não perturbaria a festa, Caesar virou-se para Marcus com uma expressão fria no rosto.
- Vá para o meu escritório imediatamente. Fique me esperando.
Marcus ficou sentado à luz fraca de um único candeeiro. Tentava pensar no que tudo aquilo significava. Thermon era servo de Decimus, que, por sua vez, era amigo
de Crassus, um dos aliados mais próximos de Caesar. Por que Thermon tentaria matar Caesar - pela segunda vez agora? Não parecia fazer sentido.
O banquete acabou bem tarde, e Marcus escutou os convidados indo embora e conversando alto ao passarem pela porta do escritório. Aos poucos, os barulhos esvaeceram,
e após um bom tempo ele escutou passos no exterior do cômodo. Festus abriu a porta e deu um passo para o lado para que seu senhor, Pompeius e Crassus entrassem.
Marcus levantou-se do banquinho. Caesar e seus aliados sentaram-se nas cadeiras mais confortáveis ao redor da escrivaninha, e os dois escravos ficaram em pé.
- O que isso significa? - perguntou Crassus. - Por que nos chamou até aqui?
- Tentaram me matar novamente esta noite - respondeu Caesar inexpressivamente.
- Ah! - Pompeius bateu a mão na coxa. - Eu bem que me perguntei o que tinha sido aquele tumulto. Conseguiram capturar o homem?
- Não. Ele fugiu. Mas eu sei o nome dele. Thermon. Não é isso, Marcus?
- Sim, Caesar.
- E o que exatamente você sabe a respeito dele?
Marcus pressionou os lábios.
- Não muita coisa. Foi ele quem matou meu pai e me sequestrou junto de minha mãe na nossa fazenda em Lêucade.
- Então o que ele está fazendo aqui? - perguntou Pompeius. - Por que ele mataria Caesar? Para quem ele está trabalhando?
- Não sei. Ele costumava trabalhar para um cobrador de impostos chamado Decimus. - Marcus olhou para Crassus. - O mesmo Decimus que eu vi ao seu lado lá na parte
de fora da Casa do Senado um tempo atrás, senhor. - Marcus virou-se para Caesar. - E o mesmo Decimus que deu o sinal para tentarem matá-lo, amo.
Caesar ficou encarando-o atentamente.
- Tem certeza?
Marcus sabia que não tinha nenhuma prova sólida, mas precisava contar a Caesar os seus temores - se Crassus estava do lado de Decimus e Thermon, ele também estava
do lado de Bibulus e Milo. A vida de Caesar ainda corria perigo, e Crassus estava longe de ser um aliado. Ele era um inimigo mortal.
- Sim, amo, foi Decimus. Tenho certeza.
Caesar virou-se para Crassus.
- Parece que você está me devendo uma explicação, meu amigo - disse ele firmemente.
Crassus pôs as mãos no colo e respondeu casualmente:
- Decimus é meu parceiro de negócios.
- Onde ele está agora? - perguntou Caesar. - Eu exijo uma conversa com ele.
- Ele foi embora de Roma recentemente. Acho que ele ia voltar para as propriedades dele na Grécia.
- Entendi... Que conveniente. - Caesar continuou encarando Crassus até o outro homem finalmente desviar o olhar. - E você se incomodaria em me dizer por que o servo
do seu parceiro de negócios tentaria me matar?
- Não faço ideia. Você precisa perguntar para esse tal de, hum, Thermon. Se encontrá-lo.
- Ou talvez eu possa conversar com Decimus após descobrir onde ele está.
- Talvez, mas duvido que um homem de negócios honesto como Decimus vá saber alguma coisa sobre um atentado contra sua vida.
Houve um silêncio breve e tenso antes que Caesar suspirasse.
- Crassus... o que você está escondendo de mim? O que você sabe sobre tudo isso? Nós três formamos uma aliança. Nós fizemos um juramento para cuidar dos interesses
um do outro. Dissemos que discutiríamos quaisquer desavenças abertamente para evitar possíveis conflitos. Era para sermos parceiros iguais.
- Sim, foi o que eu tinha entendido também - respondeu Crassus friamente. - Mas já que falou em parceiros iguais, por que você deu sua filha para Pompeius como noiva?
E por que vai fortalecer seus laços com Pompeius fazendo sua sobrinha entrar para a família dele? Um homem sensato talvez questionasse os motivos por trás dessas
escolhas que unem mais ainda as fortunas políticas de vocês. - Os lábios dele pressionaram-se, formando uma linha fina. - Caesar, do meu ponto de vista, parece que
vocês dois estão tentando me transformar em um reles cooperador do nosso acordo.
- Que absurdo! - Pompeius resfolegou. - Se o casamento ajudar a fortalecer a minha relação com Caesar, vai ser algo bom para todos nós. Você está ficando com medo
sem nenhuma razão, Crassus. Parece um oficial subalterno novato!
Crassus estreitou os olhos por um instante antes de voltar a falar com uma voz baixa que Marcus achou ameaçadora:
- Você deve pensar que sou idiota. Eu sei qual é o seu jogo e não vou viver na sua sombra. Nem na de Caesar.
- É por isso que tramou o atentado? - perguntou Caesar diretamente. - Ia mandar me matar só porque a minha família e a de Pompeius estão unidas por um casamento?
Houve mais um silêncio longo e tenso antes que Crassus respondesse:
- Não tenho mais nada a dizer. Não há como você provar nada. Tenho coisas melhores para fazer com o meu tempo. - Ele se levantou. - O fato de eu desaprovar a situação
não é nada pessoal, Caesar. A nossa relação é de negócios. Você não devia se esquecer disso em nenhum momento. Ela só funciona se nós dois dividirmos os lucros e
as oportunidades de negócios de igual para igual. Se um homem faz negócios comigo e depois tenta se aproveitar de mim, ele vai sofrer as consequências. Sugiro que
se lembre disso no futuro. Você também, general Pompeius. - Crassus sorriu friamente. - Desejo sorte na tentativa de capturar o pretenso assassino, Caesar. Boa noite.
Ele saiu a passos largos do cômodo e bateu a porta. Pompeius ficou olhando para a porta, perplexo, enquanto os passos dele esvaeciam com a distância. Por fim, Caesar
limpou a garganta.
- De agora em diante, temos que ter mais cuidado com o nosso parceiro de negócios, meu caro Pompeius.
- Não está com raiva? - perguntou Pompeius, incrédulo. - O homem tentou matá-lo. Ele é seu inimigo, portanto meu inimigo também. Precisamos fazer algo a respeito
dele muito rapidamente.
- Ele não é um inimigo; ele é um político. Ele fez sua jogada e perdeu. Acho que ele vai refletir bastante sobre esse assunto e perceber que simplesmente precisa
aceitar o nosso acordo sobre Portia. Mesmo com o acordo, Crassus tem muito a ganhar com a nossa aliança. Espero que ele consiga enxergar isso.
- E se não conseguir?
- Então, teremos que lidar com ele depois. Os riscos são muito altos aqui, meu amigo. - Caesar alisou o queixo pensativamente. - Talvez aquele ditado seja verdade.
Dois é bom, três é demais. Talvez chegue um momento em que não vai mais haver espaço para três homens como nós aqui em Roma. Até lá, é melhor tomarmos cuidado...
E, diante das circunstâncias, acho que o casamento de Portia com seu sobrinho se tornou algo, como direi... insensato.
Pompeius franziu a testa.
- O que está dizendo? Que devemos cancelá-lo?
- Exatamente.
Pompeius ergueu as sobrancelhas.
- Mas e os preparativos? O que vamos dizer para as pessoas?
- Não me importo com o que as pessoas vão pensar - respondeu Caesar secamente. - Os riscos são maiores do que as vantagens. Não podemos perder o apoio de Crassus.
Ainda não.
Marcus e Festus presenciaram a conversa em silêncio. Marcus mal conseguia acreditar. Não havia quase nenhuma dúvida de que Crassus estava por trás do atentado a
Caesar. E ainda assim o cônsul se recusava a agir contra ele. Marcus não pôde deixar de pensar na frieza daquele trio de homens poderosos. Para eles, casamentos,
política e conspirações eram meras ferramentas para atingir ambições pessoais. Eram extremamente cruéis e mais perigosos do que Marcus jamais imaginara.
Mais uma vez, ele estava diante de outro tipo de combate de gladiadores no mundo de Roma - um tipo que era tão perigoso quanto as lutas da arena. Não sabia o que
isso significava para o seu plano de se vingar de Decimus, mas, se Caesar não o ajudasse, ele se viraria sozinho.
Pompeius refletiu sobre a decisão de Caesar e levantou-se.
- O dia foi bem longo. Estou cansado e bebi demais. Conversaremos novamente quando a poeira baixar.
- Sim. - Caesar assentiu com a cabeça. - É uma boa ideia. Eu o acompanho até lá fora.
- Não precisa, meu amigo. Eu sei o caminho! - Pompeius sorriu. Ele deu a volta na escrivaninha e parou brevemente na frente de Marcus para dar um tapinha na bochecha
dele. - Você seria um soldado e tanto. Sinto falta dos soldados honestos, aquilo sim é um trabalho honrado. Não é como essa falsidade daqui de Roma, hein?
Ele abaixou a mão e saiu pela porta depois de se despedir brevemente de Caesar, que soltou um longo suspiro e pareceu ficar um pouco desanimado.
- Caesar - disse Festus baixinho. - Quer que o deixemos sozinho?
- O quê? - Caesar olhou para cima. - Não. Ainda não. Ainda preciso fazer uma última coisa hoje.
Ele pôs a mão no baú de documentos que estava aberto debaixo da escrivaninha e tirou uma pequena placa de metal. Endireitou a postura e ficou segurando a placa com
as mãos por um instante antes de falar:
- Eu mandei fazerem isso ontem para aumentar a minha confiança de que você ganharia a luta, Marcus. É a sua manumissão. - Ele olhou para cima. - Esta é a sua liberdade.
Você não pertence mais a mim. Não consigo pensar em nenhum outro escravo que mereça isso tanto quanto você. - Ele se levantou e estendeu a placa de metal. - Tome.
Pegue-a.
Marcus ficou parado, sem conseguir acreditar. Tudo pelo que tinha lutado, todo o seu sofrimento na escola de Porcino e os perigos que enfrentara a serviço de Caesar
o levaram àquele momento. Achava que aquilo nunca fosse acontecer, que estivesse condenado a passar o resto da vida sendo propriedade de alguém.
Respirou fundo e deu um passo a frente para pegar a manumissão, uma placa lisa de metal barato com palavras gravadas na superfície. A placa em si não era valiosa,
mas para Marcus aquele era o maior prêmio de todos.
- Obrigado, Caesar. - Ele conteve todas as emoções que surgiram.
- Não, Marcus. Roma e eu lhe agradecemos. Agora vá dormir. De manhã podemos conversar sobre quais serão os primeiros passos para encontrar sua mãe.

As lutas públicas entre gladiadores eram cuidadosamente planejadas para exibir suas habilidades de combate. Mesmo que eles estivessem lutando até a morte, os espectadores
queriam ver uma bela demonstração antes de o perdedor ser morto. Geralmente, dois gladiadores com estilos diferentes de luta eram emparelhados. Quando os recrutas
de Cápua terminavam o treinamento inicial, os instrutores decidiam em que tipo de combate eles deviam se especializar.
(guerreiro com rede)
Vestia armadura leve porque o estilo de luta dependia de movimentos ágeis e velocidade. Usava uma rede, um tridente e uma adaga para prender e matar os oponentes.
(guerreiro que lutava contra animais)
Lutava contra animais selvagens, como tigres, leopardos e leões. Os bestiarii tinham sua própria escola de treinamento, mas alguns dos escravos de Cápua eram treinados
para lutar com animais, e Marcus confronta lobos em sua primeira luta. O bestiarius vestia armadura leve e elmo com visor, e usava uma lança ou faca, um chicote
e às vezes uma jaula. As lutas contra animais eram extremamente populares com o público. As recompensas para esse tipo de guerreiro eram grandes, e para os habilidosos
os combates podiam ser menos perigosos do que entre gladiadores.
A sobrevivência dos gladiadores dependia não só de vencer os oponentes, mas também de agradar o público. Um gladiador que perdesse uma luta e estivesse prestes a
ser morto podia ser salvo se a plateia considerasse que ele havia lutado bem e lhe desse o sinal positivo com o polegar.
O sinal negativo, contudo, significava que ele estava condenado à morte. Os espectadores apostavam em seus gladiadores favoritos. Marcus aprende que um gladiador
que é o favorito para ganhar certamente irá morrer se for derrotado, porque seus torcedores ficarão furiosos por terem perdido dinheiro.

 

 

                                                                  Simon Scarrow

 

 

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