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O naufrágio do barco de turismo Bateau Mouche IV, no Rio de Janeiro, não foi, na essência, um acidente. Foi o fruto inevitável da desordem criada no país pela debilidade do poder público em fazer respeitar os mais elementares direitos de cidadania dos brasileiros.
A lua cheia desaparecera no céu encoberto. Apesar do vento fraco sul/sudeste, oscilando entre sete e dez nós, o casco do barco batia forte contra a crista das ondas, que aumentavam de tamanho à medida que se aproximavam da saída da barra para enfrentar o mar aberto.
Com a proa subindo e descendo, espalhando água para os lados, a traineira Evelyn & Maurício passou próxima à fortaleza de Santa Cruz, a bombordo, deixando a boreste o rochedo do forte da Laje. Mais adiante, à direita, a fortaleza de São João, na ponta do bairro da Urca.
Chegara o momento da decisão: prosseguir ou voltar. Após avaliar as condições do mar por alguns segundos, o pescador Jorge Viana optou por continuar em frente, rumo a Copacabana. Eles agora estavam ao lado do costão do Pão de Açúcar, tendo a bombordo a ilha de Cotunduba. A meia-noite se aproximava. Se quisesse chegar a tempo de ver o espetáculo de fogos de artifício, teria de se apressar.
Logo à frente, um barco iluminado traçava o mesmo percurso. Não haveria nada de estranho nisso se não fosse o jeito como avançava. As luzes se movimentavam numa espécie de dança estranha, se aproximando perigosamente da superfície agitada do oceano.
O comandante Valentin Lima Ribeiro tinha pressa. O iate estava lotado de convidados e o show de fogos de artifício começaria em alguns minutos. O céu encoberto não ajudava muito, então os potentes holofotes do Casablanca varriam o mar. Justamente no intervalo entre os breves e intensos clarões provocados pelo facho de luz do iate, algo impensável aconteceu. A reação do proprietário do barco foi imediata. Na sala de rádio do Iate Clube do Rio de Janeiro, Flávio Teixeira, de plantão naquela noite, respondeu prontamente ao chamado do Casablanca:
“ECHO 21, ECHO 21, Casablanca.”
“Casablanca, aqui ECHO 21. Feliz Ano-Novo. Prossiga.”
“Atenção, ECHO 21, atenção, está acontecendo uma coisa terrível. Repito, está acontecendo uma tragédia aqui nas proximidades de Cotunduba. Estamos avistando uma embarcação de grande porte, repito, de grande porte, que acabou de adernar. Atenção, ECHO 21, atenção, virou um barco próximo aqui a Cotunduba. Há muita gente na água. Repito: Muita gente caiu na água. Estamos indo para o local.”
Após publicar três livros-reportagem sobre tragédias aéreas — Caixa-preta, Plano de ataque e Perda total —, decidi escrever sobre um naufrágio. Ao contrário do que muitas vezes ocorre com os aviões que se acidentam, o afundamento de um barco ou navio é uma tragédia lenta, dolorosa e angustiante.
Mesmo quando a morte parece certa, ninguém consegue se deixar afundar propositalmente para abreviá-la, como acontece em alguns incêndios, onde as pessoas pulam dos prédios para escapar de um sofrimento mais pavoroso em meio às chamas. Na água, é diferente. O instinto de sobrevivência se manifesta e faz com que a pessoa, tão logo comece a submergir e pare de respirar, se debata para voltar à superfície, até ser totalmente vencida pela exaustão e descer de vez.
A navegação marítima e fluvial não é um meio de transporte extremamente seguro. Embora isso seja verdade quando se trata de grandes transatlânticos — pois o Titanic (abril de 1912), o Andrea Doria (julho de 1956) e o Costa Concordia (janeiro de 2012) são exceções —, todos os anos morrem milhares de pessoas nos mares, rios e lagos do planeta, em tragédias quase sempre provocadas pelo uso de embarcações precárias ou superlotadas, não raro ambas as coisas.
Ora é um barco ou jangada repleta de africanos, bengalis ou birmanes em busca de uma vida melhor em outro país que afunda nas águas do Mediterrâneo ou do oceano Índico, ora um ferryboat que naufraga nas Filipinas, em Bangladesh ou na Indonésia, ora uma das inúmeras embarcações, não por acaso chamadas de gaiolas, que transportam passageiros nos rios e estuários da bacia amazônica. Em quase todos esses desastres, as vítimas costumam ser gente muito pobre que se espreme em velhas banheiras enferrujadas, ou se acomoda do melhor modo possível em redes estendidas e sobrepostas, presas por ganchos nos conveses e nos porões de barcos de madeira pouco confiáveis. Fazem-no por pura necessidade, quando não por completo desespero.
Esses flagelos vergonhosos, em muitas ocasiões provocados pelo descaso das autoridades ou pela ganância sem limites de chefes e integrantes de quadrilhas inescrupulosas que traficam seres humanos em pleno século XXI, estão transformando alguns mares em imensos cemitérios. A navegação, em termos de número de mortos e desaparecidos, não parece muito distante da época das caravelas dos descobridores e dos navios negreiros.
Pobreza e desencanto definitivamente não eram o caso do Bateau Mouche IV, que naufragou logo após ter deixado o abrigo das águas calmas da baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, na noite de réveillon de 1988. Seus ocupantes estavam ali para assistir, do mar, à grande queima de fogos que ocorre todos os anos na praia de Copacabana e celebrar, com ceia, champanhe e música ao vivo, a entrada do novo ano.
O BRASIL CONTRA A MARÉ
31 de dezembro de 1988. Àquela altura, as retrospectivas do ano que terminava já haviam sido exibidas nos jornais, nas revistas e na televisão, com diversas correções e inserções de última hora, pois, para aflição dos editores, cronistas e repórteres, boa parte dos acontecimentos nacionais e internacionais mais importantes se concentrara nos últimos dias.
O noticiário internacional vinha sendo dominado pela melhora nas relações entre as duas superpotências da época. Sob a liderança de Gorbatchev, a União Soviética estendia as mãos para os Estados Unidos de Ronald Reagan. Observadores arriscavam-se a prever o fim da Guerra Fria, iniciada quarenta anos antes.
Na segunda quinzena de janeiro, tomaria posse o 41º presidente dos Estados Unidos, George H. W. Bush, vice de Ronald Reagan. Bush, ao que tudo indicava, daria prosseguimento às conversações de desarmamento com os soviéticos.
Quem não via com bons olhos os sinais crescentes de amizade entre Gorbatchev e os americanos era Fidel Castro, cuja revolução socialista completaria trinta anos no dia 1º de janeiro de 1989. Pudera. Se a União Soviética parasse de comprar açúcar cubano por preços superiores aos do mercado internacional e de vender petróleo subsidiado à ilha caribenha, Cuba poderia enfrentar uma séria crise econômica.
O Império Soviético mostrava sinais inequívocos de declínio. Numa evidência clara disso, o Exército Vermelho, que invadira o Afeganistão nove anos antes, preparava-se para deixar seu posto após sucessivas derrotas infligidas pelos mujahedins, guerrilheiros muçulmanos armados e financiados pelos Estados Unidos, o mesmo país que dava apoio ao ditador iraquiano Saddam Hussein. Na filosofia do Departamento de Estado norte-americano, “os inimigos dos meus inimigos são meus amigos”, política aplicada nesse caso aos rebeldes afegãos, adversários dos soviéticos, e aos iraquianos de Saddam, inimigos do Irã.
Em meio a tantos fatos históricos impactantes, poucos se deram conta de uma notícia que circulou nas páginas internas dos jornais na última semana de 1988. Cientistas americanos desenvolviam uma super-rede que iria interligar computadores de todo o mundo.
Num ano que parecia terminar otimista para a maioria dos povos, o Brasil fez questão de remar contra a maré.
Uma pesquisa efetuada em 35 países pelos institutos de pesquisa Gallup, norte-americano, e Doxa, italiano, pusera os brasileiros em penúltimo lugar em otimismo, só à frente dos turcos. A principal razão do desencanto era a inflação anual de três dígitos e quase sempre ascendente que varrera o país durante a década – já classificada como “perdida” pela então oitava economia do mundo.
Dois anos antes, em 1986, o governo brasileiro lançara o Plano Cruzado, tendo como base o congelamento de preços e salários. Realmente a inflação desapareceu como que num passe de mágica, e o PIB cresceu 7,5%. Mas todos os sonhos caíram por terra logo após as eleições de 15 de novembro, na qual o PMDB, do presidente José Sarney, obteve uma vitória estrondosa. Os preços, represados artificialmente, se soltaram de repente, e os salários voltaram a ser reajustados, não raro mensalmente.
Em meio às notícias das festas de réveillon, O Globo e o Jornal do Brasil anunciavam que no dia 2 de janeiro de 1989 os exemplares vendidos nas bancas sofreriam um aumento de 40%, passando de 250 para 350 cruzados, e 500 nos domingos. Informavam também que as passagens do metrô do Rio subiriam 24%, para 155 cruzados, a nova tarifa já valendo para quem utilizasse os trens no sábado, dia 31 de dezembro, para assistir ao show de fogos na praia de Copacabana.
Os mesmos jornais desfilavam sombrias estatísticas econômicas de fim de ano. Entre elas, via-se que os salários haviam subido 585% em 1988, contra uma inflação anual de 933,6%, configurando um dos maiores arrochos da história do país. Como se não bastasse, o INSS cobria a maior parte de seu déficit corroendo a pensão dos aposentados, usando para isso o estratagema de atrasar os reajustes e os próprios pagamentos dos benefícios, enquanto corrigia mensalmente o recolhimento previdenciário sobre o salário do pessoal ativo.
Para 1989, tudo indicava que o cenário seria ainda pior. A empresa de consultoria Macrométrica, do economista Francisco Lopes, previa para o ano que se iniciava uma inflação, na melhor das hipóteses, de 1500% (o número atingiria 1973%).
Politicamente, o Brasil encontrava-se em compasso de espera, por causa das eleições presidenciais de 1989. Após quase trinta anos de hiato, os brasileiros voltariam a escolher o presidente por voto direto. Uma prévia acontecera em 15 de novembro de 1988: 4307 prefeitos haviam sido eleitos para um mandato de quatro anos e tomariam posse no dia 1º de janeiro. Entre eles, Luiza Erundina, de São Paulo, candidata do PT, que sucedera Jânio Quadros.
Ela se beneficiara de um incidente, ocorrido dias antes das eleições: em Volta Redonda, tropas do Exército atacaram grevistas da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), matando três operários. A ação militar enfraqueceu, na última hora, a candidatura de Paulo Maluf, até então o líder das pesquisas na capital paulista e político muito ligado às Forças Armadas. Por causa do episódio de Volta Redonda, Maluf perdeu por uma significativa diferença de 5,5%.
O Rio também elegera um candidato de esquerda, o pedetista Marcello Alencar, sucedendo outro esquerdista, Saturnino Braga. Alencar prometera regularizar os salários dos funcionários municipais, que não recebiam havia quarenta dias e não trabalhavam havia 101.
Mas não foram as eleições nem a inflação que levaram o Brasil às manchetes da imprensa internacional nos últimos dias de 1988. O acontecimento brasileiro que mais repercutira no exterior foi o assassinato, na quinta-feira, 22 de dezembro, do líder seringueiro e ecológico Francisco Mendes Alves Filho, mais conhecido como Chico Mendes, abatido por uma espingarda calibre .12 no quintal de sua casa em Xapuri, no estado do Acre. No jornal The New York Times, as investigações sobre o caso dividiam a primeira página com a busca pelos terroristas que haviam derrubado o jumbo da Pan Am.
Uma bomba-relógio contendo explosivo plástico, posta no interior de uma valise despachada por um agente de inteligência líbio, Abdelbaset al-Megrahi, e armazenada no porão de bagagens de um Boeing 747-121 da Pan Am, explodiu no ar e derrubou o jumbo — que caiu sobre a cidadezinha de Lockerbie, no sudoeste da Escócia, em 21 de dezembro. E não foi um incidente qualquer. Na tragédia, morreram os 259 passageiros e tripulantes do jato, além de onze pessoas em terra.
Em meio a tantos assuntos controversos, a classe média brasileira se beneficiava de um singular e, talvez, inédito subsídio. Como o dólar no mercado paralelo era negociado com grande ágio em relação à cotação oficial, e como os viajantes ao exterior podiam comprar mil dólares pelo oficial, era possível viajar para Miami ou para o Caribe quase de graça. Bastava comprar, também pelo dólar oficial, a passagem e o pacote terrestre, usufruindo de uma das promoções oferecidas pelas agências de turismo. Depois era só vender, no paralelo, boa parte dos mil dólares subsidiados. Com o lucro, pagava-se o pacote. De quebra, comprinhas em Miami garantiam um lucro extra.
A coisa assumira tal proporção que o governo criou o dólar turismo, que passaria a vigorar a partir do dia 6 de janeiro de 1989, cuja cotação, segundo calculavam os especialistas, seria a mesma do paralelo, pondo um fim à boca-livre. Sabendo que a época da farra cambial estava com os dias contados, nos estertores de 1988 anúncios e mais anúncios de agências de viagem enchiam as páginas dos jornais.
“Comece 89 com o pé direito”, dizia um deles. “Você confirma sua excursão até 6 de janeiro de 1989 e terá direito ainda a comprar mil dólares no câmbio oficial. Carnaval em Aruba, voo direto São Paulo-Aruba-São Paulo pelo DC-10 da Varig. Aruba a um passo do paraíso, por 650 dólares”, prosseguia o reclame.
O subsídio indecoroso, embora perfeitamente legal, desencadeara uma corrida a essas agências, aos bancos que operavam com câmbio (onde a espera nos guichês não raro chegava a cinco horas) e ao setor de emissão de passaportes da Polícia Federal, onde as pessoas dormiam na fila. Algumas empresas aéreas de menor porte — LAP (Paraguai); LAB (Bolívia); Viasa (Venezuela); LAN (Chile) — vendiam passagens por preços promocionais. Velhos Boeings 707 e Douglas DC-8 decolavam abarrotados de São Paulo e do Rio, levando os afortunados turistas para a Disney e para as lojas de Miami.
A classe média, que protegia seu dinheiro aplicando no over (investimento que rendia juros e correção monetária diários), se beneficiava ainda de outras vantagens proporcionadas pela inflação. Quem pagava aluguel, por exemplo, só sofria um reajuste por ano. Com a desvalorização do dinheiro, um apartamento nos melhores bairros da Zona Sul do Rio, nos meses que precediam o de reajuste, não raro custava aos inquilinos menos do que alguns moradores de favelas pagavam por seus barracos, cujos aluguéis não eram regulados por lei alguma.
O ano que se encerrava era também o ano de Cazuza. O espírito do cantor revelava-se mais forte do que o vírus HIV que consumia seu corpo. Com um lenço na testa, sua marca registrada, ele fazia shows e dava entrevistas por todo o país. Sua canção “Brasil”, tema da novela Vale tudo, da TV Globo, tornara-se o hino de um tempo, seu tempo. “Brasil/ Mostra a tua cara/ Quero ver quem paga/ pra gente ficar assim/ Brasil/ Qual é o teu negócio?/ O nome do teu sócio?/ Confie em mim.”
Quem sabe influenciados pela letra de Cazuza, os presidenciáveis de 1989 começavam a mostrar sua cara. Entre eles, o sindicalista Lula, o caudilho Brizola, o senador Mário Covas, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, cuja Constituição fora recém-promulgada, Ulysses Guimarães, e o indefectível Paulo Maluf, que se recuperara de sua derrota paulistana. Dizia-se também que Jânio Quadros e o empresário Senor Abravanel (que o país conhecia como Silvio Santos) iriam se candidatar. Mas tudo ainda era especulação — faltavam mais de dez meses para as eleições. Entretanto, só os mais imaginosos mencionavam o governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello, que começava a surgir no cenário nacional como caçador de marajás – como eram conhecidos alguns funcionários públicos de altos salários que o governador supostamente perseguia.
Na primeira semana de 1989, a Globo exibiria os últimos capítulos de Vale tudo. O Brasil inteiro queria saber quem matara Odete Roitman, personagem vivida pela atriz Beatriz Segall. Mas agora o réveillon se aproximava e a ordem geral era se divertir. Fosse em Miami, à custa dos dólares favorecidos, fosse em São Paulo, vendo a corrida de São Silvestre, em sua 64ª edição, da qual era favorito o equatoriano Ronaldo Vera, fosse na orla do Rio, assistindo aos fogos de artifício em Copacabana.
Estimava-se que 1,5 milhão de pessoas participariam do evento — vinte toneladas de fogos seriam queimadas ao longo dos dez primeiros minutos de 1989 em sete pontos da avenida Atlântica, distribuídos entre o Leme e o Posto Seis. Além disso, haveria uma queima especial patrocinada pela churrascaria Marius e a então já tradicional cascata no hotel Méridien, que completava dez anos.
Havia ainda as homenagens e oferendas a Iemanjá, a rainha das águas, que muitos anos antes do advento da queima de fogos de artifício já ocorriam nas areias de Copacabana, assim como nas demais praias do Rio de Janeiro.
No Leblon, o espetáculo seria diferente, essencialmente musical. O cantor espanhol Julio Iglesias era o principal astro de um show no qual faria dueto com o brasileiro Wando, acompanhados pela bateria e por passistas da escola de samba Mangueira.
Além do grande evento popular na areia da praia, havia as festas dos bem-aventurados. Os socialites se movimentavam ansiosos em busca de convites para os melhores réveillons, entre os inúmeros que teriam lugar nos apartamentos da avenida Atlântica, com direito a visão panorâmica do show pirotécnico e sem risco de pegar chuva nem ter de se misturar ao populacho.
Entre os rega-bofes mais badalados estavam o de Lily de Carvalho, o de Miguel Jambert, o de Regina e Paulo Fernando Marcondes Ferraz e o de Lilibeth Monteiro de Carvalho. Neste último, eram esperados diversos artistas famosos, entre eles Gal Costa, Marina Lima e Caetano Veloso.
Lily, de cortinas novas combinando com as toalhas, receberia, entre outros, Ruth e Roberto Marinho, Laís Gouthier, Isabelle de Ségur, Maitê Quatroni, Silvinha Fraga, Mirtia Gallotti e os Nascimento Silva, todos protegidos por trinta agentes de segurança selecionados a dedo.
Os Marcondes Ferraz contavam com a presença de Maria Alice e José Hugo Celidônio; Miguel Jambert, com a de Marisa Urban; Guilherme Araújo, com a de Betty Faria. Os socialites e artistas mais badalados se debulhavam em ansiedade. Quem convidar? Quem receber? Quem vem? Quem não vem? Para onde ir? Com quem?
Era o Rio de Janeiro borbulhante dos caixas-altas recebendo o novo ano. Alguns, inclusive, veriam os fogos do mar, a bordo de suas lanchas e iates.
O único senão era o tempo. Para desgosto de cariocas e turistas, uma frente fria chegara ao litoral do Sudeste. O serviço de meteorologia anunciava para a noite de réveillon tempo nublado a parcialmente nublado, sujeito a pancadas de chuva, e mar agitado.
DE KAMALOKA A BATEAU MOUCHE
O Bateau Mouche IV não nasceu com este nome, muito menos com as características que teria na noite de seu naufrágio. O barco tinha três conveses, casco de aço, fundo em V, comprimento de 23,90 metros e 2,20 metros de calado, ou seja, o comprimento vertical do casco entre a linha de flutuação e a ponta da quilha, que fica permanentemente debaixo d’água. Foi construído em Fortaleza no início dos anos 1970 pela Indústria Naval do Ceará Ltda. (Inace). O estaleiro, de propriedade de Elisa Bezerra, foi vendido para o francês Paul Mattei, pescador de lagostas, que batizou a embarcação de Kamaloka, nome pouco sugestivo para um pesqueiro.
A capacidade inicial da embarcação era de no máximo vinte pessoas. Mattei ficou com o Kamaloka durante três anos, empregando tripulantes japoneses. As pescarias eram feitas ao longo de toda a costa do Nordeste, inclusive em alto-mar, para o qual o barco não era apropriado, em função do calado pequeno para essa finalidade. Mas nunca houve qualquer acidente ou mesmo incidente digno de nota.
O proprietário seguinte foi o bem-sucedido empresário carioca Alfredo Saade, que o trasladou em outubro de 1976 para o Rio de Janeiro e alterou seu nome para Prelúdio, matriculando-o na Capitania dos Portos do Rio. Saade fez uma reforma completa na embarcação, transformando-a numa espécie de motel flutuante (o nome Kamaloka agora faria mais sentido), que passou a ter quatro suítes no deque principal, além de um luxuoso camarote de 36 metros quadrados. Nenhuma modificação estrutural foi realizada.
A lotação do barco se manteve praticamente a mesma: quinze passageiros, mais os tripulantes. O Prelúdio foi usado em passeios e folguedos pela baía de Guanabara e arredores e viagens costeiras de cruzeiro, tendo ido inclusive — duas vezes — até Salvador, também sem nenhum percalço.
Ainda em 1976, Saade o arrendou para uma companhia francesa de pesquisas científicas oceanográficas que operava ao largo dos portos de Vitória e Tubarão, no Espírito Santo. Nessa época, a embarcação passou a apresentar uma inclinação constante para boreste (lado direito), que lhe emprestava um aspecto deselegante. Finalmente, em 1980, o barco foi vendido para os espanhóis do grupo do então restaurante Sol e Mar, especializado em frutos do mar, muito popular na época pela qualidade da comida.
No final dos anos 1940 e início dos 1950, com a Espanha franquista empobrecida pela Guerra Civil (1936-39) e em seguida pela Segunda Guerra Mundial (1939-45) — em que o país se manteve neutro, mas sofreu as consequências econômicas —, milhões de espanhóis, na falta de empregos e oportunidades em sua terra, emigraram para as Américas do Norte, Central e do Sul, muitos deles para o Brasil. Entre os que vieram para cá, estavam Avelino Rivera, Pedro Gonzales e Ramon Rodriguez Crespo, todos oriundos da Galícia.
Com apenas o dinheiro necessário para a passagem de navio e para os primeiros dias na nova terra, os três galegos desembarcaram no cais da praça Mauá, no Rio de Janeiro, com grande disposição para trabalhar e vontade férrea de enriquecer.
Professor de matemática, Rivera logo conseguiu uma vaga no escritório de contabilidade de Orlando Gandara, um compatriota que agenciava empregos para os espanhóis recém-chegados ao Rio, além de lhes emprestar dinheiro para abrir seus próprios negócios, dos quais Gandara ficava com uma fatia.
O ramo preferido era o de bares e restaurantes, ao qual se acrescentaria, na segunda metade dos anos 1960, o de hotelaria, mais precisamente motéis de alta rotatividade. Eram os primeiros da cidade do Rio de Janeiro, e logo fizeram grande sucesso, certamente beneficiados com o advento das pílulas anticoncepcionais e, por conseguinte, da liberação sexual das mulheres.
Graças a um empurrão proporcionado pelo escritório de Gandara, Pedro Gonzales, amolador de facas de ofício, e o auxiliar de cozinha Ramon Rodriguez Crespo também puderam montar seus próprios negócios. Só que, entre os espanhóis do grupo, não valia a política de “cada um tem o seu”. Cotas de cada empreendimento eram compartilhadas por outros membros da colônia, de tal modo que era difícil precisar quem era dono do quê — a não ser que se tivesse acesso aos livros contábeis e estatutários de Orlando Gandara, onde a composição de todas essas sociedades era pormenorizada.
Os anos se passaram. Rivera, Gonzales e Rodriguez, juntamente com outros sócios menores, prosperaram na vida e, na década de 1970, montaram o restaurante Sol e Mar, uma casa requintada com cozinha excelente à base de peixes, mariscos e crustáceos. Ficava localizado ao lado do cais do Serviço de Salvamento Marítimo do Corpo de Bombeiros (Salvamar), na enseada de Botafogo.
Para tirar ainda mais proveito do sucesso do empreendimento, tiveram a ideia de lançar um barco-restaurante, no qual os fregueses poderiam comer enquanto apreciavam as belezas da baía de Guanabara e das praias situadas fora da barra: ao sul, praia Vermelha, Copacabana, Ipanema e Leblon; ao norte, as praias oceânicas próximas de Niterói.
Surgiu então o primeiro Bateau Mouche, nome inspirado nos barcos estreitos, compridos e baixos que percorrem o rio Sena, em Paris, passando sob as pontes, por entre as colunas. Só que a semelhança terminava no nome. Enquanto os bateaux mouches parisienses eram modernos, longilíneos e elegantes, com cobertura de vidro para proteção contra a chuva e o frio, os bateaux cariocas, desde a primeira unidade, pareciam mais banheironas desengonçadas com os pontos de ferrugem mal disfarçados por camadas ralas de pintura.
A sociedade constituída no início de 1979 para explorar os barcos se chamou Bateau Mouche Rio Turismo, autorizada pela Superintendência Nacional da Marinha Mercante (Sunamam) “a funcionar como empresa de navegação no transporte turístico em enseadas, baías e angras, na baía de Guanabara e adjacências”, autorização protocolada sob o número 1790 em 24 de agosto de 1981.
Apesar da indigência estética das embarcações, a novidade agradou. Ao final de 1988, já estavam em funcionamento os Bateau III e IV, após o I e o II terem sido desativados: o primeiro por causa de um incêndio que o fez afundar nas águas da baía, sem vítimas; e o segundo por comportar poucos passageiros.
Tal como subir o Pão de Açúcar ou o Corcovado, sair a passeio nos Bateau virou um programa quase obrigatório para os turistas que conheciam o Rio, tanto os estrangeiros como os de outros estados. Os ingressos podiam ser adquiridos em quase todos os hotéis da cidade, e ninguém pensava nessas excursões como uma aventura sujeita a riscos.
O Bateau Mouche em frente ao Sol e Mar | O Globo, 20 maio 1982 | Foto de Manoel Soares | Agência O Globo.
O BARCO VIROU NAVIO
Em agosto de 1980, a Bateau Mouche Rio Turismo adquiriu o Prelúdio, antigo Kamaloka. Além de alterarem seu nome para Bateau Mouche IV, os novos donos deram início a uma reforma completa da embarcação, sem autorização prévia da Capitania dos Portos. Entre outras coisas, os camarotes foram desmontados, com a retirada de suas divisórias de madeira, armários embutidos e estantes, dando lugar no espaçoso vão livre aos salões e deques definitivos, tudo equipado com poltronas, sofás, mesas, cadeiras e bancos. No convés superior, estendeu-se um toldo de lona para proteger os passageiros do sol e da chuva. Mais tarde, em dezembro de 1987, a madeira do piso ainda seria substituída por uma plataforma de concreto pesando quatro toneladas.
Uma escada estreita, moldada em ferro batido e no formato de caracol, substituiu a ampla escadaria que unia o deque superior ao principal. A mudança liberou muito espaço para a colocação de mesas, cadeiras e sofás, mas dificultou uma eventual evacuação de emergência.
Em 5 de dezembro de 1984, foi expedido novo cartão de lotação para a embarcação. Como que por encanto, o Bateau era agora um barco de recreio, quase um navio, com capacidade para 153 pessoas. Só que o calado pequeno (máximo de 2,20 metros), o casco fino e os tanques de lastro permaneciam os mesmos do lagosteiro concebido em 1970 para vinte ocupantes. Ao contrário do que se poderia supor, boa parte do novo mobiliário não foi fixada nos deques. Isso representaria grande perigo em caso de mar agitado, quando as peças poderiam se mover, atingindo, derrubando e ferindo quem porventura estivesse por perto.
O Bateau passou a levar turistas em passeios pelo interior da baía de Guanabara e mesmo fora dela, indo até as ilhas Cagarras, em frente à praia de Ipanema. Em 31 de julho de 1987, a Capitania dos Portos ratificou a lotação de 153 pessoas. E a autorização para que o barco saísse da barra (ou seja, navegasse em mar aberto) foi expedida pela Capitania no ano seguinte, em agosto de 1988, quando diversas excursões irregulares já haviam sido feitas.
Após se transformar em barco de passeio para mais de 150 passageiros, o Bateau IV foi palco de um episódio curioso, ocorrido em 1985. O então vice-presidente de Operações da TV Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, resolveu promover um jantar a bordo para convidados da emissora, gente graúda do meio cinematográfico, já que pretendia incluir a Primeira Semana do Filme Brasileiro na programação da emissora.
O jantar seria servido em uma excursão pela baía. Só que, assim que o barco zarpou, ele começou a oscilar e a adernar desagradavelmente mesmo nas águas abrigadas da Guanabara, fazendo com que mesas e cadeiras se movessem nos deques. Boni, experiente em assuntos marinhos, virou-se para o comandante e decretou peremptoriamente: “De volta para o cais.”
Principais características do Bateau Mouche IV.
O rega-bofe não deixou de ser um sucesso. Só que o Bateau Mouche IV não voltou a navegar naquela noite, permanecendo firmemente atracado no píer do Sol e Mar o tempo todo.
Cerca de dez dias antes do réveillon de 1988, algo parecido ocorreu com o francês Jean-Jacques Faust, representante no Brasil do grupo Saint-Gobain. Tendo alugado o Bateau IV para levar alguns compatriotas para conhecer a orla da cidade, Faust se deparou com o mar agitado em Copacabana, o que fez o barco balançar com tanta violência que a maioria dos convidados enjoou ou sentiu medo.
“Vamos voltar agora!”, Jean-Jaques, muito assustado e temendo um naufrágio, ordenou ao comandante. O passeio durou pouco mais de meia hora.
O Bateau Mouche IV não era um barco adequado para enfrentar águas turbulentas. O mínimo de conhecimento de navegação marítima bastava para concluir isso.
RÉVEILLON NO MAR
A Itatiaia Turismo arrendou os dois Bateau Mouche (III e IV) para a festa de réveillon ao largo da praia de Copacabana. Durante o festejo, os barcos ficariam ancorados bem em frente ao hotel Le Méridien. O convite custava 150 mil cruzados por pessoa (algo como duzentos dólares, em valores de 2015), e incluía o passeio, a ceia, o baile e o show de fogos. Pelo fretamento, a Itatiaia pagou à Bateau Mouche Rio Turismo Ltda. a importância de 26 mil dólares.
Além dos turistas e da tripulação, nos dois Bateau Mouche iriam garçons, maîtres, músicos, guias turísticos e convidados especiais. No contrato firmado entre a Itatiaia e os proprietários dos barcos, uma cláusula — motivada pela pouca estabilidade das embarcações — estabelecia que o passeio só se estenderia à Copacabana caso as condições do mar permitissem. Do contrário, o réveillon seria celebrado nas águas protegidas da baía, excluindo-se da festa o espetáculo dos fogos de artifício, sem dúvida a principal e mais esperada atração da noite.
Anúncio publicado no caderno “Viagem” do Jornal do Brasil, p. 12, 30 nov. 1988.
As pessoas que haviam adquirido os convites para o réveillon al mare tinham conhecimento da restrição, que constava nos próprios bilhetes. Em algumas passagens de anos anteriores, a festa acontecera dentro da baía, justamente por causa do mar desfavorável, coisa comum no verão carioca.
Com ou sem ida a Copacabana, o passeio estava previsto para começar às nove horas da noite de sábado, 31 de dezembro, e terminar às duas da manhã de domingo, dia de Ano-Novo.
Durante o show de fogos, o Bateau ficaria ancorado ao lado de dezenas de outras embarcações, entre elas pesqueiros e iates de luxo, além de alguns transatlânticos, a uns cem metros além da arrebentação. Mesmo com tempo ruim, o mar naquele ponto era um pouco mais calmo. Mas no trecho de percurso entre a saída da baía de Guanabara e a ponta do Leme as águas podiam estar bastante agitadas.
O casal Dione Alves Camargo e Amir Abud costumava passar as viradas de ano com parentes e amigos em sua mansão na Barra da Tijuca — onde eles criavam araras e husky siberiano —, mas desta vez os dois decidiram fazer um programa diferente: assistir do mar aos fogos da praia de Copacabana.
Dione, uma mulher sensível e sonhadora de 25 anos, enchia as paredes de seu quarto com poesias e desenhos e gostava de escrever histórias para crianças, tendo uma delas sido encenada no teatro. Dione foi também atriz de Bill, uma colagem de textos de Shakespeare apresentada no fim do curso de teatro do Centro de Artes Calouste Gulbenkian. Nascida em Porto Alegre, havia menos de dois anos conhecera no Rio de Janeiro, no banco onde trabalhava, o empresário e presidente da Prodec Consultoria, Amir, com quem se casou.
Amir, de 53 anos, já tinha uma filha de seu primeiro casamento quando se uniu a Dione. Ele tinha verdadeira obsessão por prolongar a juventude, fazendo ginástica diariamente, consumindo diversos remédios e qualquer tipo de droga experimental que prometesse amenizar os males da velhice. O casal vivia intensamente. Eles saíam quase todas as noites, viajavam regularmente para o exterior e organizavam grandes festas em sua casa de três andares e piscina, que, inclusive, era muito utilizada por Dione, ótima nadadora, ao contrário do marido, que não sabia nadar.
Pouco mais de uma semana antes do réveillon, a atriz de teatro e televisão Yara Amaral, vencedora de três prêmios Molière em 22 anos de carreira, numa conversa à beira da piscina de sua casa na Barra da Tijuca, explicou para os filhos por que tinha medo do mar. Sempre que olhava para a água, ficava com a impressão de que um dia uma onda iria arrastá-la para longe. Isso não impediu que aceitasse, de sua amiga Dirce Grotkowski, dois convites para o réveillon a bordo do Bateau Mouche. Yara decidiu levar sua mãe, Elisa, para assistirem à festa de Copacabana juntas. Dirce estaria acompanhada de seu marido, Sílvio.
Yara, que fora casada com o também ator Luiz Fernando Goulart, de quem continuava grande amiga, já participara de dezenas de peças de teatro, alguns filmes importantes e de novelas das TV Tupi e Globo. Era completamente apaixonada pela profissão e pelos personagens difíceis que recebia para interpretar. Na véspera do Natal de 1988, o ator Sérgio Britto se encontrou com ela e a achou melancólica. Mas ela não disse nada sobre alguma coisa que pudesse estar lhe afligindo naquele momento.
O empresário Augusto Araújo Amato, de 43 anos, pretendia passar o fim de ano em Angra dos Reis, onde possuía uma casa. Mas no dia 27 de dezembro ele desistiu da viagem e comprou, na Itatiaia Turismo, dois ingressos para o réveillon a bordo do Bateau Mouche. Com ele iria sua mulher, Fátima Rocha. Os dois estavam entusiasmados com o programa diferente.
O casal Waldemar e Ruth Fiszman planejava as comemorações de seus 25 anos de casamento. Eles já haviam reservado uma excursão pela Europa e partiriam logo no início do ano. Querendo antecipar as celebrações e insistindo que a família deveria estar toda reunida na noite de Ano-Novo, seus três filhos (Renata, Solange e Eduardo) compraram ingressos para o réveillon a bordo de um dos Bateau Mouche. Waldemar era advogado, e a Itatiaia Turismo, cliente de seu escritório.
Aníbal Teixeira, que começara o ano de 1988 como ministro do Planejamento do governo Sarney, perdera o cargo após uma série de acusações de corrupção, entre elas as de negócios escusos favorecendo parentes, recebimento de propinas de empreiteiros e peculato, tendo sido indiciado pela Polícia Federal. Isso não o impediu de se candidatar a prefeito de Belo Horizonte, recebendo apenas 3% dos votos nas eleições municipais de 15 de novembro.
Teixeira, que negara todas as incriminações, das quais por sinal seria absolvido por falta de provas, resolveu, por insistência de Maria José, sua mulher, esfriar a cabeça no réveillon do Bateau Mouche.
Já era início da tarde quando o tributarista Boris Jaime Lerner, 35 anos, diretor da empresa Arthur Andersen, saiu ao volante de seu Monza da avenida Pasteur e iniciou a descida em curva para a praia de Botafogo. Perdeu a entrada para o cais, mas voltou de marcha a ré pela curva côncava da orla, estacionou o carro e foi até o ancoradouro do restaurante Sol e Mar, na enseada de Botafogo, onde ainda eram vendidos bilhetes para a festa de réveillon a bordo dos Bateau Mouche III e IV. Com ele estavam sua mulher, Irene, e um dos filhos do casal, Eduardo (que todos chamavam de Dudu), de seis anos. Irene e Boris tinham também uma filha, Karina, um bebê de onze meses que passaria a noite de réveillon na casa dos avós maternos, no Leme.
Boris comprou os ingressos num balcão logo na entrada; sete, no total. Junto com os Lerner, participariam da festa os Wajngarten — o casal Alberto e Ruth Regina e suas duas filhas, Camila, também de seis anos, e Luciana, de apenas dois anos. As duas famílias eram amicíssimas. Alberto era engenheiro e Ruth, médica.
Com Dudu sentado no balcão, Boris Lerner perguntou a Francisco Garcia Riveiro, da Itatiaia, que vendia os convites pessoalmente:
“É seguro para as crianças?”
“Totalmente seguro”, respondeu Riveiro. E acrescentou: “Esses são os últimos bilhetes”.
Mas, mesmo considerando as cortesias distribuídas nos dias anteriores, ainda faltavam algumas unidades para a lotação dos barcos, ao menos nas contas da Itatiaia.
Nas vésperas do réveillon, mais precisamente nos dias 28 e 29 de dezembro, o Bateau IV foi inspecionado pela Capitania dos Portos. A vistoria foi conduzida pelo cabo da Marinha Carlos da Silva Ramos. Ele considerou o barco apto para navegação dentro dos limites de sua categoria, G-2-B, imprópria para águas agitadas. Isso significava que o mestre da embarcação, Camilo Faro, só poderia navegar além da baía de Guanabara se o mar estivesse calmo.
As únicas exigências foram as de que se substituísse a vedação de borracha do agulheiro de acesso à praça das máquinas e se fizesse uma nova pintura na linha d’água, além da aquisição de uma buzina portátil e da substituição das cartas náuticas por outras mais atualizadas — providências que foram tomadas no mesmo dia.
O engenheiro civil e eletricista Mario Rodriguez Triller, funcionário da Bateau Mouche Rio Turismo Ltda. e armador-gerente responsável pelos dois Bateau Mouche, acompanhou as inspeções. Triller, que estaria no Bateau IV na noite de réveillon, também tinha o poder — e o dever — de impedir que o barco saísse fora da barra em caso de mar turbulento. Ainda que não tivesse habilitação em Engenharia Naval, era sua responsabilidade supervisionar a manutenção e aferir as condições de navegação do barco.
Nessa inspeção de dois dias, os peritos da Capitania dos Portos não perceberam defeito algum na válvula do vaso sanitário do banheiro, localizado no deque inferior (porão) do Bateau — tal válvula, quando em bom estado, impedia que a água do mar subisse e entrasse na embarcação quando alguém acionava a descarga. Não viram também que uma das escotilhas do porão estava sem o círculo de borracha de vedação e que havia seis furos pequenos no casco, além de duas fendas no trincaniz (peça que corre ao longo da embarcação e serve para escoar água).
A água proveniente do vaso sanitário era drenada para o porão da praça de máquinas, que possuía uma bomba de esgoto acoplada ao motor propulsor de boreste. Essa bomba, que apresentava um desempenho insatisfatório, não foi testada pelos inspetores. Além de não executar o esgotamento de forma adequada, apresentava falhas na vedação, o que afetava a estabilidade do Bateau. Havia coletes salva-vidas em número suficiente para a lotação permitida do barco, mas pelo menos trinta deles estavam com a validade vencida. O acesso dos passageiros do convés superior ao principal, pela estreita escada em caracol, também era inadequado e inseguro, em caso de emergência.
Antes o Bateau Mouche IV já havia sido vistoriado pela empresa classificadora Blue Seas, que considerou boas as condições de navegabilidade da embarcação. A Blue Seas emitia laudos para as companhias de seguro.
A Bateau Mouche Rio Turismo não viu necessidade de renovar uma apólice de responsabilidade civil, feita com a Companhia Paulista de Seguros, que repararia danos causados a terceiros em caso de algum sinistro. Essa apólice expirara em 1988.
EMBARQUE
Como tinha bastante trabalho pela frente naquela noite, Camilo Faro, mestre-arrais do Bateau Mouche IV, telefonou para sua casa às seis horas da tarde para desejar feliz Ano-Novo a todos. Falou sobre o mar agitado, mas não fez nenhum comentário sobre a viagem a Copacabana, nem disse nada a respeito do estado da embarcação. Mas não era segredo para seus parentes mais próximos que ele não andava nada satisfeito.
Camilo tinha 51 anos, 25 de profissão. Marinheiro experiente, vivia preocupado com as péssimas condições dos Bateau Mouche. Costumava comentar com sua mulher, Mariana, que os motores paravam frequentemente durante os passeios e que a bomba de esgoto e o casco dos Bateau estavam em péssimo estado de conservação. Ele, que fora contratado pela Bateau Mouche Rio Turismo havia aproximadamente três anos, dizia que não queria ficar muito mais tempo naquele trabalho, pois a qualquer hora algo poderia acontecer com o barco.
Mas, tal como boa parte dos trabalhadores brasileiros naqueles tempos de inflação galopante, Camilo passava por apertos financeiros. Embora o piso salarial da categoria dos marítimos fosse de 404 mil cruzados, ele recebia mensalmente da Bateau Mouche Rio Turismo apenas 170 mil, aproximadamente 1,5 mil reais em valores de 2015. Mas não reclamava, por medo de perder o emprego, ficar sem renda alguma e não poder sustentar a família.
Mesmo na enseada de Botafogo, onde aconteceria o embarque, e em toda a baía de Guanabara, na qual, de tão tranquilas, as águas abrigadas não raro costumavam se assemelhar a um espelho, era possível perceber pequenas ondas. Flocos brancos de espuma mostravam aos marinheiros mais experientes — e Camilo Faro era um deles — que fora da barra o mar poderia estar agitado. Pouco antes do pôr do sol começou a chover, como se são Pedro estivesse querendo estragar a festa dos cariocas.
Para não se molhar, o músico Paulo Salvador de Carvalho, integrante do conjunto contratado para animar a noite, o Café com Leite, entrou apressadamente no barco. Sua primeira impressão não foi boa. Ao ir ao banheiro, no porão do Bateau IV, sentiu um cheiro de queimado vindo da casa de máquinas. Já passava das oito horas da noite, e em breve os primeiros passageiros começariam a chegar ao cais.
Os passageiros, em sua grande parte vestidos de branco para a virada do ano, começaram a embarcar nos Bateau Mouche III e IV cruzando passarelas móveis estendidas entre as embarcações e o cais. O acesso às pontes era controlado, numa roleta, por Álvaro Pereira da Costa e Faustino Puertas Vidal, sócios da empresa Bateau Mouche Rio Turismo, que conferiam os bilhetes. Cada convidado recebia um colar havaiano e flores brancas para Iemanjá. Não havia checagem de nomes nem listas de passageiros: era só entregar os convites e passar.
Álvaro e Faustino também se encarregavam da distribuição dos turistas, cem para cada barco, além da tripulação e do pessoal de serviço, de modo que não houvesse sobrelotação em nenhum dos dois. A Itatiaia Turismo, que promovia a festa, se comprometera com esse limite de duzentas pessoas. Mas a Bateau Mouche não foi rigorosa. A Itatiaia foi autorizada a vender seis ingressos extras para gente que chegou quase na hora do embarque. Havia uma moça no cais especialmente para isso. O Bateau Mouche III lotou primeiro e teve sua saída liberada. Partiu em seguida.
Os sete membros da família Fiszman — o casal Waldemar e Ruth, os filhos Renata, Solange e Eduardo, além do genro Roberto e o futuro genro, Adriano — chegaram cedo ao cais do Sol e Mar. Estavam prestes a ocupar os últimos sete lugares do Bateau Mouche III quando Waldemar avistou um amigo na fila de embarque, o engenheiro Eduardo Schanzer com a família. Sugeriu então que fossem para o Bateau Mouche IV. Seria mais divertido se pudessem ficar todos juntos.
Durante a espera para embarcar, Solange Fiszman comentou que havia sonhado, na noite anterior, com a morte de uma família de conhecidos por afogamento. Renata, sua irmã, achou incrível a coincidência: ela tinha sonhado com essa mesma família e desfecho. Foi então que Roberto, casado com Solange havia apenas seis meses, contou seu sonho, no qual morria sufocado. Mas ninguém ficou impressionado com essa trinca sinistra de pesadelos. A família Fiszman embarcou no Bateau Mouche IV e foi imediatamente para a parte de cima da embarcação, perto da proa.
Os Lerner e os Wajngarten, quatro adultos e três crianças, também foram uns dos primeiros a embarcar no Bateau Mouche IV. Boris Lerner notou que o barco estava adernado para o lado direito. Vários outros passageiros também não se deixaram enganar pela iluminação feérica e pelo clima de oba-oba do réveillon, mas essa desconfiança não impediu que embarcassem para o passeio.
A exceção foi o gaúcho Georges Bom de Almeida, de 28 anos, que ganhara um bilhete de presente de um dos organizadores do evento. Georges chegou entusiasmadíssimo para o embarque, pois o patrocinador de seu ingresso lhe dissera que muitas atrizes “globais” estariam a bordo. “Só gente bonita. Você vai se esbaldar.” Porém, ele desistiu quando viu que havia passageiros demais, e a presença de tantas crianças pequenas lhe deu a impressão de que o programa seria muito “família”. E dos “baixinhos” Georges queria distância durante as férias, já que trabalhava o ano todo como administrador da creche Estrelinha, em Porto Alegre. Seu negócio agora era agito, paquera, farra... Além de tudo, lhe prometeram uma festa chique, e ele achou os Bateau Mouche fuleiros, enferrujados. Resolveu então ir para a praia de Copacabana, uma caminhada de meia hora através dos túneis do Pasmado e Novo. Lá ele assistiria da terra firme à queima de fogos.
A atriz Yara Amaral, sua mãe Elisa e o casal Dirce e Sílvio Grotkowski, proprietário da fábrica de cosméticos Payot, já haviam se acomodado em uma das mesas. Haveria outra convidada no grupo, a também atriz Yolanda Cardoso, que contracenava com Yara na peça Filumena Marturano. Mas Yolanda não compareceu ao embarque por não ter encontrado um táxi que a levasse à enseada de Botafogo.
O ex-ministro Aníbal Teixeira e Maria José chegaram acompanhados de José Maria Andrade e sua mulher, além de um sobrinho. A esposa de Aníbal, que havia insistido muito para irem ao passeio, estava muito animada.
Dos seis convites vendidos na última hora, cinco ficaram com Plínio Donadio, fotógrafo de São Paulo que chegou ao cais do Sol e Mar com a mulher, os filhos Flávio, de onze anos, e Cláudia, grávida de cinco meses, além do marido dela.
Umas das últimas pessoas a embarcar no Bateau Mouche IV foram dois casais que se apresentaram juntos: Otávio Paulino de Mello Neto e Carlos Alberto Cavalcanti Gonçalves, com suas respectivas mulheres, Sandra da Costa Mello e Maria Angélica Ortiz Gonçalves. Tal como acontecera com Boris Lerner, Otávio estranhou a posição do Bateau Mouche IV, que parecia inclinado para o lado do cais. Também achou o barco cheio demais.
As lâmpadas multicoloridas acesas e as bandeirolas dependuradas nos mastros e nas amuradas do Bateau Mouche IV disfarçavam a indigência da embarcação. Só um observador mais atento, entendido ou desconfiado perceberia os pontos de ferrugem nas partes metálicas do antigo lagosteiro.
Totalmente escondidos dos olhares de quem entrava no barco, havia também os seis furos no casco, as duas fendas no trincaniz e uma bomba de esgotamento velha e maltratada. Para completar, os dois motores Scania Vabis DS 111, de seis cilindros e 230 HP cada um, davam ao Bateau uma relação peso/potência insatisfatória, principalmente se o barco precisasse de torque para cortar com maior segurança e eficiência as ondas fora da barra.
A tripulação já estava a postos no Bateau Mouche IV. Eram muito poucos profissionais para as quase 150 pessoas a bordo: apenas quatro. O mestre-arrais Camilo Faro; o marinheiro Júlio César Carvalho; o mecânico encarregado das máquinas, de nome Edson Gonçalves de Carvalho, mas que todos conheciam como Camarão; e o engenheiro e armador-gerente Mário Triller. Em caso de emergência, apenas eles seriam de alguma utilidade, pois os demais que engrossavam a tripulação eram músicos, garçons e maîtres, sem nenhuma, ou quase nenhuma, experiência marítima.
Por estarem mais preocupados com as condições do mar fora da barra e com um possível excesso de lotação, nem Camilo Faro nem Mário Triller fizeram uma inspeção minuciosa no barco antes da partida. Por isso, desconheciam o fato de que, além dos furos no casco, algumas escotilhas do porão estavam abertas e outras tinham seus fechos com defeito, o que poderia propiciar a entrada de grande quantidade de água caso enfrentassem mar agitado, num fenômeno que os dicionários náuticos chamam de “água aberta”.
Vinte e três anos mais tarde, a água aberta faria naufragar o transatlântico Costa Concordia no litoral italiano de Isola del Giglio, na Toscana, após a enorme embarcação de cruzeiro ter colidido com uma rocha submersa em uma manobra ousada de seu comandante, Francesco Schettino, que tirou um fino na ponta de um promontório a fim de se exibir para uma passageira que ele convidara para a cabine de comando.
Condições do mar ruins e cada vez piores, escotilhas abertas ou mal vedadas no piso de baixo, furos no casco, assento sanitário sem sua válvula de segurança... Tudo conspirava contra o réveillon do Bateau Mouche IV.
PARTIDA
O Bateau Mouche IV zarpou do cais do Sol e Mar com quinze minutos de atraso, às 21h15. O presidente da Itatiaia Turismo, Francisco Riveiro, foi uma das pessoas que testemunharam a partida. Da enseada de Botafogo, o Bateau seguiria até Copacabana, tendo à sua direita (boreste) o Iate Clube do Rio de Janeiro — que ficava num aterro que antes fora o Aeroclube do Brasil —, o bairro da Urca, a fortaleza de São João, o morro da Urca e o costão do Pão de Açúcar até a saída da barra. Lá caberia ao mestre-arrais decidir se sairia para mar aberto ou se os festejos seriam realizados na própria baía de Guanabara.
“... sempre quando o mar permitir...”: esses termos condicionais estavam impressos nos convites do passeio.
O Bateau se compunha de três pavimentos. Um deles, o porão, se situava abaixo da linha d’água. Nele ficavam o banheiro, a casa de máquinas e a estação de bombeamento. O piso superior era um convés aberto, protegido da chuva por toldos — dali os passageiros assistiriam ao show de fogos. Lá havia quinze mesas, das de restaurante: umas eram quadradas, com quatro lugares; outras, redondas, com cinco. Comportavam, portanto, pouco mais de sessenta pessoas.
No deque principal, o do meio, ficava o salão, onde havia o bar, um aparador para bebidas e louças e outro para as sobremesas. Numa grande mesa central, montada com três pranchões de 2,20 metros por 80 centímetros, seria servido o bufê. Nas laterais do salão, seis mesas com tampos de mármore tinham capacidade para quatro pessoas cada uma. Outras duas mesas, também com cobertura de mármore, abrigavam, no total, dezesseis pessoas. Alguns sofás completavam o mobiliário do deque.
Divisão dos compartimentos do Bateau Mouche IV.
Importante repetir que nenhum desses móveis era fixado nos conveses, como se costuma fazer nos navios e barcos em geral, supondo-se que em algum dia tenham de enfrentar uma tempestade ou, no mínimo, uma ressaca. As próprias cadeiras do deque principal do Bateau, feitas em ferro batido e difíceis de serem deslocadas, poderiam se transformar em projéteis altamente perigosos em caso de um movimento mais inesperado da embarcação.
A escada em caracol unia o convés superior ao do meio, ao passo que outra, que passava através de uma abertura, juntava este ao porão. Na escada em espiral, quem subia e descia precisava se espremer para dar passagem ao fluxo contrário.
O Bateau Mouche se revelou uma enorme decepção para quem imaginou virar o ano numa festa chique e sofisticada. Além da decoração pouco refinada, havia no bar apenas uísque nacional, vinho Château Duvalier e cerveja.
A família Fiszman, uma das primeiras a entrar no Bateau, conseguiu uma boa mesa, bem na proa. Mas o barco começou a ficar tão cheio que Roberto, marido de Solange, teve que se levantar para que outros se sentassem.
Dione Camargo, mulher de Amir Abud, que usava um vestido branco, rendado, com luvas do mesmo tecido e da mesma cor, talvez fosse uma das pessoas mais decepcionadas com a falta de luxo do passeio. Mas seu rosto não refletia isso, talvez para que o marido não percebesse sua frustração.
Deveria agradecer por ter conseguido uma mesa, pois muita gente não teve a mesma sorte. Muitas famílias tiveram de se conformar em ficar de pé na parte dianteira do barco, trombando a todo momento com outros passageiros. Ser atendido por um garçom também não era tarefa das mais fáceis e, mesmo sem terem saído da baía, o mar já estava agitado, fazendo com que tudo balançasse e parecesse instável.
Assim que o barco iniciou o passeio, reclamações passaram a pipocar por toda parte, mas era difícil encontrar um responsável para se queixar das condições do Bateau. O pessoal contratado para servir e entreter os convidados, além de muito atarefado, não tinha nem conhecimento nem autonomia para resolver as demandas que surgiam. E a quantidade de turistas estrangeiros no barco só tornava o cenário ainda mais caótico. Alguns passageiros ainda tentavam se animar, mas decididamente a festa não começara bem.
UM SINAL
Contando os cem passageiros que haviam comprado ingressos antes do dia do réveillon, mais os seis que adquiriram os bilhetes em cima da hora do embarque, somados aos quatro tripulantes e aos músicos, maîtres, garçons e funcionários da Itatiaia e da Bateau Mouche, havia 142 ou 143 pessoas a bordo do Bateau IV (o número exato jamais foi determinado, pois a Itatiaia não elaborou uma lista de passageiros e muitos dos que sobreviveram não se apresentaram à Justiça). Os tanques de combustível do barco, cuja capacidade era de 18 mil litros de óleo diesel, carregavam menos da metade disso, 7,2 mil.
Se estivesse levando uma quantidade maior de diesel, o Bateau seria mais estável, uma vez que o centro de gravidade ficaria num plano inferior, já que os tanques se situavam abaixo da linha d’água. Mas, como o barco passaria por reformas logo na primeira semana de 1989, ele foi abastecido com apenas a quantidade necessária para o passeio.
O peso e a lotação não estavam acima do permitido pela Capitania dos Portos no último certificado de navegabilidade, mas eram muito superiores aos calculados no projeto inicial do lagosteiro Kamaloka. Junte-se a isso a colocação do piso de cimento, além de duas caixas d’água no convés superior, que comprometiam ainda mais a estabilidade do barco.
Aos passageiros que reclamavam do excesso de gente na festa, inclusive porque não encontravam lugares para se sentar, David Mizrahi, operador da Itatiaia Turismo que se encontrava a bordo, informava que cabiam 153 pessoas no Bateau. “É a lotação oficial”, argumentava.
Até aquele momento, com o barco no interior da baía, costeando a orla sinuosa do bairro da Urca, Douglas (Doug) Wilson Swain, mestre-amador americano que já possuíra uma embarcação de alto-mar e que fazia o passeio com sua mulher, Sue, não percebera nenhuma situação de insegurança, apenas de desconforto. Apesar do clima um tanto tenso e inamistoso, com as pessoas disputando lugares, bebidas e salgadinhos, o conjunto Café com Leite começou a tocar.
Os casais Boris e Irene Lerner e Alberto e Regina Wajngarten conversavam animadamente, sem tirar os olhos de seus filhos pequenos, que brincavam junto à mesa sob a escada em caracol que levava ao convés superior. Na mesa ao lado estavam Yara Amaral e sua mãe, Elisa, com os Grotkowski.
A atriz paulistana provocava olhares de admiração em quase todos os passageiros que passavam por ali. Entre outras atuações memoráveis, muitos continuavam vendo nela a dona de casa tijucana Celeste, da minissérie Anos dourados, e a odiada matriarca Joana, da novela Fera radical, cujo último episódio fora ao ar pouco mais de um mês antes do réveillon.
O barco continuava adernado para boreste. O ex-ministro Aníbal Teixeira achava o movimento natural, uma vez que a maioria das pessoas se concentrava desse lado para ver as luzes da Urca.
O Bateau IV agora estava fundeado para que os passageiros pudessem se servir do bufê, posto no convés principal. Só após a ceia navegariam para Copacabana. No programa original estava estipulado que o jantar seria servido na enseada da praia Vermelha, mas o mar agitado fez com que Camilo Faro e Mário Triller decidissem antecipá-lo para que acontecesse antes da saída da barra.
A Capitania dos Portos do Estado do Rio de Janeiro organizara uma blitz marítima para verificar se não havia nenhum barco com excesso de passageiros ou piloto embriagado. Dessa inspeção participava uma lancha da Marinha, a Anchova, matrícula 4301, da Polícia Naval da Capitania — comandada pelo primeiro-sargento-arrumador, Antônio Braga de Vasconcelos.
O Bateau Mouche IV foi abordado pela Anchova justamente quando se servia a ceia — peru, farofa, tender e fios de ovos, dispostos em uma mesa que ficava exatamente embaixo de vários coletes salva-vidas presos a um gradeado no teto. Nessa mesma hora, segundo relato de Elane Maciel a Romildo Guerrante, um dos passageiros, ao olhar para cima, pediu imediatamente para usar um deles. “Lá vai o covardão”, teria comentado a senhora ao lado.
Uma garoa fina, o céu encoberto e uma espécie de névoa impediam que os passageiros desfrutassem plenamente a bela paisagem.
Eram 22h15 quando o sargento Vasconcelos, junto com um dos seus subordinados, o também sargento José Reinaldo Franco, passou da Anchova para o Bateau IV. Os dois militares reuniram-se na cabine de comando com o armador-gerente, Mário Triller. Cinco minutos depois, o mestre-arrais Faro, que dera uma circulada pelo convés, reuniu-se a eles. Os patrulheiros Vasconcelos e Franco verificaram a documentação do barco — mais tarde, segundo eles, o termo da vistoria realizada nos dias 28 e 29 não se encontrava a bordo — e a habilitação de Faro, constatando que o mestre estava sóbrio.
Para surpresa dos sargentos, Faro disse que suspeitava que o Bateau estivesse com excesso de lotação, acima dos 153 ocupantes permitidos na licença. A revelação espontânea obrigou os marinheiros a serviço da Capitania a fazer uma contagem minuciosa. Para complicar as coisas, Faro argumentou que isso teria de ser feito no cais de embarque, onde seria possível desembarcar algumas pessoas, caso o excesso se confirmasse. Os sargentos não tiveram como contestar. Sob protestos de Mário Triller, que não concordava com seu arrais, o Bateau Mouche IV regressou ao Sol e Mar, seguido pela Anchova.
Os passageiros, que obviamente tinham acompanhado a abordagem, agora percebiam que o barco voltava para o cais. Um profundo nervosismo tomou conta do Bateau Mouche IV. Os amigos Otávio Paulino e Carlos Alberto Cavalcanti, que comiam em pé porque não conseguiram uma mesa, estavam bem próximos aos oficiais e, apesar de não conseguirem ouvir o que falavam, perceberam que havia algo de errado. Para terem um registro dos acontecimentos, filmaram a movimentação com uma câmera de vídeo.
Enquanto o Bateau Mouche IV retornava para o cais, o rumor de que havia gente demais a bordo começou a circular entre os passageiros.
MEIA-VOLTA
Já eram quase onze horas da noite. Durante o percurso de regresso do Bateau Mouche IV ao ponto de partida, o tributarista Boris Lerner tentou saber de um dos representantes da Itatiaia Turismo o motivo de retornarem ao Sol e Mar:
“O que está acontecendo?”
“Esses caras...”, o rapaz da Itatiaia apontou para os sargentos Vasconcelos e Franco, da Marinha, “... estão querendo estragar nosso réveillon.”
“Umas vinte ou trinta pessoas vão ter que desembarcar”, um dos garçons ouviu de um colega. Ouviu e gostou. Pouco antes, sentira medo ao escutar o mestre-arrais dizer aos sargentos que, se tivesse percebido que tinham posto tanta gente no barco, não teria iniciado o passeio.
No momento em que o Bateau Mouche IV atracava de volta no cais do Sol e Mar, Faro viu que Álvaro Costa, um dos proprietários do barco, ainda estava lá, acompanhado de Francisco Riveiro, dono da Itatiaia. Da cabine de comando, o mestre-arrais gritou para seu patrão que dois sargentos da Capitania estavam a bordo, contando o número de ocupantes. Mas não disse que fora ele que solicitara a contagem.
Assim que o barco encostou no ancoradouro, Riveiro avisou aos passageiros: “Não é para ninguém descer!”. Em seguida, tascou um “sabe-com-quem-está-falando?” nos militares. “Isso traz prejuízo ao turismo brasileiro. Vou me queixar ao governador Moreira Franco!” Seguiu-se uma típica carteirada, quando Francisco Riveiro exibiu aos sargentos sua credencial de membro do Conselho Estadual de Turismo. Perdeu tempo, pois seu procedimento não gerou o efeito intimidador esperado.
A contagem, feita pelo sargento Franco, demorou aproximadamente quinze minutos. Foi feita no “olhômetro”, sem nenhuma precisão, pois os ocupantes do barco se movimentavam para lá e para cá, subiam e desciam a escada.
A situação era inusitada, desagradável, mas não causou pânico. Algumas pessoas podem até ter cogitado abandonar o passeio, mas o fato é que ninguém desembarcou. Waldemar Fiszman até quis fazer isso. Atento ao movimento da polícia marítima desde a intercepção, disse à família que queria ir embora. Ele e Ruth não sabiam nadar e parecia haver alguma coisa errada no Bateau. Mas o coro familiar foi mais forte que a desconfiança de Waldemar. Solange, Renata e Eduardo convenceram os pais a permanecer na festa. A meia-noite se aproximava, o passeio estava pago e oficiais da Marinha estavam a bordo fazendo seu trabalho: supervisionar as condições do barco e seus tripulantes. Será que havia mesmo com o que se preocupar?
Quando o sargento Franco informou ao seu comandante que contara 145 pessoas, o primeiro-sargento Antônio Braga de Vasconcelos, sempre preocupado com o que lhe dissera o mestre-arrais a respeito de excesso de lotação, exigiu que seu subordinado repetisse a contagem. Nessa segunda verificação, o número encontrado foi de 149 ocupantes.
“Posso garantir que agora está certo”, disse Franco com convicção para seu superior. Mas logo não se mostrou tão convicto assim: “Talvez tenha até menos. Na dúvida, contei a mais”.
Antes de liberar o Bateau Mouche IV para retomar a viagem, o sargento Vasconcelos voltou a examinar a documentação de bordo, constatando mais uma vez que o limite que a Capitania fixara era de 153 pessoas.
Durante todo o tempo em que o Bateau permaneceu atracado ao píer, o conjunto Café com Leite continuou tocando. Algumas pessoas, a esta altura já totalmente alheias ao que se passava, procuravam se divertir dançando, bebendo e confraternizando com amigos, familiares e até com desconhecidos. Os garçons, por sua vez, aproveitaram a calmaria do barco atracado para concluir o serviço de ceia.
Completada a vistoria, os militares desceram para o cais e travaram uma ligeira conversa com Riveiro, da Itatiaia, e com Álvaro Costa, da Bateau Mouche.
“O barco está liberado”, Vasconcelos apertou a mão dos empresários e seguiu, com seu subordinado Franco, para a lancha Anchova, que acompanhara o Bateau Mouche IV até o cais e atracara ao lado dele.
A Anchova ainda seguiu o Bateau Mouche IV de perto por uma centena de metros. Depois se dirigiu ao iate Albacora, que também se destinava à praia de Copacabana, para inspecioná-lo.
Se os sargentos da Marinha que abordaram o Bateau Mouche IV tivessem usado ou vistoriado o banheiro no porão, teriam visto que o piso estava inundado e que, quando a descarga era acionada, a água do mar subia pelo interior do vaso sanitário, em vez de escoar. A poça acumulada já era o início do processo de “água aberta”, e com o Bateau ainda imóvel na enseada de Botafogo.
Do lado de fora da baía de Guanabara, as condições do mar haviam piorado, inclusive no trecho entre a boca da enseada retangular da praia Vermelha e a ilha de Cotunduba, por onde o Bateau IV teria de passar em sua rota para Copacabana. Naquele ponto, ondas de meio metro de altura se sucediam a intervalos de 3,5 segundos.
NAS ÁGUAS DA BAÍA
O próprio Álvaro Costa, sócio da Bateau Mouche Rio Turismo, soltou as amarras de proa e o passeio foi reiniciado. Eram 23h30.
Quem não gostou muito foi Faro, que continuava suspeitando de excesso de peso, mas não teve alternativa senão a de exercer o ofício para o qual era pago. Não se sabe se houve alguma conversa entre o mestre-arrais e seus patrões, mas é provável que ele tenha sido repreendido por quase estragar a festa. Imagine o transtorno se a Capitania tivesse retirado alguns passageiros. Eles teriam que lidar com pedidos de devolução do valor dos bilhetes ou até com reclamações na Justiça.
Enquanto o Bateau Mouche IV se preparava para refazer seu percurso ao longo da orla da baía, em terra firme alguns apressadinhos já começavam a soltar rojões comemorativos do ano que logo iria se iniciar. “Oitenta e nove vai ser melhor”, o clichê anual se repetia.
No barco, a animação voltou. A maior parte dos passageiros do Bateau começou a se descontrair e a sentir o efeito da bebida. Muitos dançavam ao som do Café com Leite, que tocava sambas e marchinhas de Carnaval. Apesar da presença de muitas famílias com crianças pequenas, havia, segundo um dos passageiros, vários turistas estrangeiros — italianos, espanhóis, americanos, noruegueses — acompanhados de brasileiras. O espírito do réveillon começava a imperar e tudo fazia crer que a festa a bordo seria das mais animadas. Todos queriam chegar logo a Copacabana para ver o show de fogos de artifício, e o incidente com a Marinha foi deixado de lado.
Mas não por todo mundo.
Além do visivelmente inconformado mestre Faro, algumas outras pessoas continuaram preocupadas com a saída para mar aberto. Enquanto o barco navegava pela baía, o fotógrafo Plínio Donadio procurou localizar os coletes salva-vidas. Achou uns trinta, só que eles estavam amarrados uns aos outros e em prateleiras altas, de difícil acesso. A Bateau Mouche adotava esse procedimento porque muitos turistas já haviam roubado coletes em passeios anteriores.
Diferentemente do que acontece nos aviões antes das decolagens, nenhuma instrução sobre salvamento, incêndio, colisão e abandono do barco havia sido dada aos ocupantes do Bateau, mesmo porque, além de Faro, eram apenas três tripulantes para manejá-lo e atender a toda aquela gente. Mas um dos passageiros, o mestre-amador americano Douglas Swain, começou a se preocupar com as condições do mar. Por precaução, pediu a um dos marinheiros dois coletes salva-vidas, um para ele e outro para a mulher, Sue.
A contragosto, o rapaz pegou os coletes no gradeado e os entregou a Doug. O casal colocou o equipamento. A atitude do estrangeiro afligiu algumas pessoas que estavam por perto. Era um sinal visível de que alguma coisa poderia dar errado na programação.
O comerciante Otávio Paulino sentiu vontade de ir ao banheiro. Como estavam no deque de cima, teve de descer dois pisos, pelas escadas estreitas, até o porão, onde ficava o toalete. No caminho, esbarrou em diversas pessoas, mas finalmente chegou lá embaixo.
O piso estava encharcado e imundo, sujando e molhando seus sapatos. Só depois de usar o vaso sanitário e dar a descarga é que ele percebeu que a água que inundava o recinto era do mar. Outro que desceu foi o ritmista Cléber Sebastião de Oliveira, do Café com Leite, que também se deparou com o mesmo problema. Ambos saíram indignados com a falta de conservação do barco.
O que nenhum deles percebeu é que a água salgada misturada a urina começava a escoar para a praça de máquinas e para a bomba de esgoto, acoplada a um dos motores Scania Vabis, o de boreste, que logo começaria a perder potência.
Isso tudo acontecia ainda nas águas abrigadas da baía. Existe a hipótese, mais do que razoável, de que nem o mestre-arrais nem o armador-gerente foram informados da situação lá embaixo.
O Bateau voltou a passar pelo Iate Clube do Brasil e contornou, a boreste, o bairro e a praia da Urca, com o prédio do antigo cassino se projetando sobre a areia. O mar agora estava ligeiramente encrespado. Nada que pudesse assustar os passageiros, mas, para aqueles que sofriam de enjoo marítimo, a viagem voltou a se tornar desagradável. Alguns chegaram inclusive a ir até o mestre-arrais para reclamar que o barco estava jogando demais.
“Por isso é que nós servimos o jantar no interior da baía”, explicou Faro. E prosseguiu: “A gente só vai chegar a Copacabana em cima da hora dos fogos”. O mestre continuava sem saber que havia água entrando nos porões e alcançando a casa de máquinas.
EVELYN & MAURÍCIO
Passavam alguns minutos das onze horas quando a traineira de pesca Evelyn & Maurício, de 36 pés, saiu da praia de Jurujuba, em Niterói, conduzida pelo proprietário e mestre da embarcação, Jorge Souza Viana, de 28 anos. Jorge comprara o barco havia quatro meses para substituir outro que, por pura cisma, acreditava que lhe trazia azar. A Evelyn era pintada de azul e branco, com detalhes em amarelo. Viana levava a bordo a família e alguns amigos. Seu destino era o mesmo dos Bateau Mouche III e IV e de quase todas as embarcações que saíram ao mar àquela noite no Rio de Janeiro: a praia de Copacabana.
Nascido em Barra de Itabapoana, quase na divisa do estado do Rio com o Espírito Santo, Jorge Viana fora criado em Jurujuba, local onde passara praticamente toda a vida. Tornara-se um membro importante e influente na colônia de pesca local.
Na manhã daquele sábado, 31 de dezembro, ao informar a um colega pescador que pretendia ver a festa do réveillon, Jorge recebera uma advertência:
“Você está louco, rapaz. O mar lá fora tá muito batido.”
“Primo”, Jorge Viana chamava todo mundo de primo, “se na saída da barra o mar estiver ruim, eu volto.”
A festança prometia ser das melhores. O mestre encomendara numa lanchonete do largo da Batalha, em Pendotiba, ali mesmo na região oceânica de Niterói, 10 mil cruzados em salgadinhos, refrigerantes e cerveja. Um rádio de pilha fora sintonizado a todo volume numa emissora que emendava um samba no outro. Jorge era casado havia seis anos com Sandra da Silva Viana, de 25 anos, sua amiga desde a infância. Ela também estava a bordo naquela noite, assim como os filhos deles, Evelyn, de cinco anos, e Maurício, de três, que davam nome à embarcação. Da turma alegre ainda faziam parte os irmãos de Sandra, Enidelma e Marcos Vinicius Lourenço da Silva, a noiva dele, Raquel, além do marido de Enidelma e dois sobrinhos do casal, fora um par de noivos de Jurujuba que havia sido convidado para o passeio. Para completar o grupo, um conhecido de longa data de Jorge, João Batista de Abreu, de 26 anos, uma segunda Raquel e um amigo de Jorge Viana chamado Francisco Carlos Alves de Morais.
Na hora de a traineira zarpar, dois rapazotes, Galo e Jorge Luís, também moradores da comunidade, que haviam ajudado a passar as mulheres e crianças do caiaquinho que as trouxera da areia da praia para o barco, pediram carona.
“Pô, leva a gente, leva a gente.”
“Sobe, sobe.” Jorge Viana não resistira ao apelo. Em Jurujuba todo mundo conhecia todo mundo e não havia como negar um pedido daqueles.
A lotação máxima da embarcação era de doze pessoas e ela carregava dezessete. Mas, como havia crianças, algumas bem pequenas, o peso não estava muito acima do permitido. Mesmo porque a traineira costumava navegar com o porão carregado de gelo e de peixes.
O balanço da Evelyn & Maurício, ainda dentro da baía de Guanabara, começou a incomodar Sandra. Preocupada com os filhos, ela interpelou o marido:
“Não tem perigo?”
Jorge se irritou com a pergunta.
“Isso só vou saber quando chegar na boca da barra. Se o mar estiver ruim, a gente volta. Não esquenta com o balanço. Isso aqui é pra balançar mesmo. Se estiver ruim, a gente volta”, o mestre repetiu, encerrando o assunto.
Havia cinco anos Jorge Viana não deixava de ver a queima de fogos em Copacabana. Ao longo da última semana do ano, ele pressionara os funcionários de um estaleiro de Niterói para concluir um reparo na traineira — que esbarrara em um rochedo submerso ao largo de Itaipu, danificando a quilha na proa — para não perder a sexta festa consecutiva. Mas de modo algum iria arriscar a vida de sua mulher, de seus filhos e amigos se achasse que estivessem correndo perigo.
Apesar do atraso, causado pela mulher de um dos convidados que, na última hora e sem motivo aparente, simplesmente se recusou a entrar no barco, reinava grande animação a bordo. As ondas que se quebravam contra o casco não incomodavam quase ninguém. Eram todos pescadores, filhos de pescadores, netos de pescadores, amigos de pescadores, mulheres e namoradas de pescadores. A única pessoa que continuava insatisfeita era Sandra, que temia expor os filhos pequenos a qualquer tipo de risco.
Como a viagem de Jurujuba até Copacabana levava cerca de quarenta minutos, e a Evelyn & Maurício saíra um pouco atrasada, Jorge estimava chegar ao local do show de fogos quase à meia-noite. Mas, além dos dois Bateau Mouche, o pesqueiro não era o único barco que estava em cima da hora. O iate Casablanca, que partira do Iate Clube do Rio de Janeiro, também se apressava para não perder o show da passagem do ano.
QUEREMOS VOLTAR
À medida que o Bateau se afastava da enseada de Botafogo, rumo ao canal de navegação situado entre a ponta nordeste da fortaleza de São João e o forte da Laje, o mar tornava-se mais encrespado. À frente da embarcação, erguiam-se, na rota para Copacabana, os sólidos e imponentes rochedos dos morros da Urca e do Pão de Açúcar, marcos indeléveis da silhueta curvilínea da orla do Rio de Janeiro. As luzes do Bateau Mouche III, que também aguardara para se dirigir a Copacabana no último instante, podiam ser vistas duzentos ou trezentos metros adiante.
Logo chegaria a hora de o mestre Faro decidir se sairia da barra, na cola do outro barco da empresa, ou se faria a festa nas águas da Guanabara. Para Faro seria difícil justificar sua permanência na baía com o Bateau III indo para Copacabana. Os dois eram uns dos últimos barcos a caminho da festa, pois faltavam apenas 25 minutos para a meia-noite. E os poucos que vinham atrás os ultrapassavam com facilidade.
Enquanto isso, a água continuava entrando no piso inferior, através dos furos no casco, das fendas no trincaniz, das escotilhas abertas ou sem as borrachas de vedação e do vaso sanitário do banheiro. Ao mesmo tempo, nos deques principal e superior, o vaivém do mobiliário solto começou a ficar incontrolável. E o mar batia cada vez mais forte, como é comum no canal estreito e imprensado entre os rochedos ligando a baía ao mar aberto.
Alguns pares ainda teimavam em dançar, mas não era fácil manter o equilíbrio. As bebidas não paravam dentro dos copos. Só restava aos passageiros enchê-los e emborcar de um trago só. No deque superior, alguns poucos gozadores cantavam: “Se a canoa não virar, olê, olê, olá, eu chego lá”, coro puxado por um empresário espanhol radicado no Brasil que, já bastante “alto”, não compreendia bem o que acontecia ao seu redor. Mas, entre os que o acompanhavam na brincadeira, era possível perceber o nervosismo no tom de suas vozes.
Agora, cada pessoa que usava, ou tentava usar, o banheiro procurava em seguida um tripulante ou garçom para reclamar do vazamento e da imundície. Mas os garçons não sabiam absolutamente nada a respeito do funcionamento do barco, e os marinheiros, incluindo o mestre-arrais, estavam ocupados demais com a navegação naquelas condições de tempo para se preocupar com o que parecia ser apenas um detalhe a mais naquele desarranjo geral.
O interesse pelos fogos foi aos poucos sendo substituído por uma angústia crescente. Muitos passageiros do Bateau só queriam estar em terra firme, sentimento que aumentava cada vez que o copo de alguém se espatifava no chão, espalhando cacos de vidro por todos os lados. Volta e meia alguém tropeçava em alguma coisa, caía no deque e tinha dificuldade para se levantar, por causa dos sacolejos provocados pelas ondas.
Aníbal Teixeira e seu grupo se viam obrigados a segurar a mesa e as cadeiras que ocupavam para que os móveis não caíssem no chão, levando-os junto. Naquele instante, o Bateau, que percorria um canal de navegação de 27 metros de profundidade, rota dos navios que saem da baía de Guanabara com direção ao sul, tinha à sua direita o costão oeste do morro da Urca.
Fátima Rocha, acompanhada do marido Augusto Amato, era uma das pessoas mais apreensivas a bordo. Não sem razão. Ao contrário do marido, ela não sabia nadar, e a situação do barco parecia cada vez mais preocupante. Fátima e Augusto eram casados havia menos de um ano.
Davi Rabelo, que viajava acompanhado da mulher, desceu para ir ao banheiro, mas voltou rapidamente, alarmado. Lá embaixo a água já inundava completamente o piso e alcançava a casa de máquinas. Outra pessoa tentou usar o toalete, mas desistiu: a mineira Rosemere Costa. Quando o barco retornara ao Sol e Mar, ela fora advertida por um dos militares da lancha Anchova de que havia passageiros em excesso. Com essa informação em mente, Rosemere saiu do banheiro e, junto com seus acompanhantes e outros passageiros, na mesma hora pediu aos garçons que solicitassem ao comandante que voltasse para o cais. Um maître, sem a menor convicção, lhes disse que estava tudo bem e que o barco não corria perigo algum.
Mais atentos aos sinais de perigo estavam Eduardo Fiszman e Adriano, namorado de Renata Fiszman. Eles também desceram até o banheiro e estranharam a quantidade de água que inundava o porão. Adriano, que tinha formação militar, desconfiou logo da gravidade da situação. Reuniu a família e, do jeito mais calmo que conseguiu, começou a dar instruções: “Se o barco virar, pulem imediatamente na água e tentem alcançar o casco”.
Ainda havia uma última chance de se livrar do mar agitado. Bastava o piloto, em vez de seguir o Bateau Mouche III, dar uma guinada de noventa graus para boreste e entrar na enseada bem protegida, em forma de retângulo, que dava na praia Vermelha. Mas, nesse caso, o réveillon com fogos estava perdido. Faro optou por seguir adiante.
O mestre-arrais não demorou a perceber seu erro de avaliação. Diminuiu a velocidade do barco, na esperança de melhor enfrentar o mar agitado. Tinha de cortar as ondas no ângulo certo; agora era tudo ou nada: a embarcação não podia virar. Haviam chegado a um ponto sem retorno. Uma curva de 180 graus ali se tornara impraticável, pois as ondas atingiriam o Bateau de lado, desestabilizando-o completamente.
O ritmo desigual de rotação dos motores, com o de boreste atingido pela água salgada, não passou despercebido ao americano Douglas Swain, que se desligara totalmente do que acontecia à sua volta e só pensava na segurança dele e da mulher, ambos vestidos com os coletes salva-vidas — coletes esses que muitos passageiros não se preocuparam em vestir e que não foram distribuídos pela tripulação.
Faro agora só queria chegar a Copacabana, onde o mar era mais calmo e onde havia dezenas de embarcações para socorrê-lo numa emergência. Nenhum lugar poderia ser pior do que aquele no qual o Bateau Mouche IV se encontrava.
Com a obediência bovina das máquinas, o Bateau, mesmo aumentando de peso por causa da água que entrava pelos vazamentos, continuou em sua rota para a praia de Copacabana. Nunca chegaria lá.
Na proa da Evelyn & Maurício, que se erguia e despencava ao ritmo das ondas, duas das convidadas de Jorge perceberam que o barco iluminado e com música a todo volume que navegava logo à frente da traineira estava com problemas. A distância entre as embarcações era de aproximadamente 150 metros.
Uma delas gritou para os companheiros:
“Aquele barco está balançando muito. Olha só as luzes.”
João Batista de Abreu, que também estranhou o movimento, mais do que depressa chamou a atenção de seu amigo Jorge, no posto de comando. O mestre procurava manter a traineira o mais próximo possível do costão do morro para minimizar os efeitos do mar agitado. Ao constatar que o outro barco realmente estava adernando demais, Viana, sem pensar duas vezes, entregou a roda do leme para um companheiro e correu para a proa para ver melhor o que acontecia.
JOÃO-TEIMOSO DO MAR
No Bateau IV, todos já haviam se dado conta de que a situação era crítica. O barco adernava cada vez mais para um lado e para o outro. Uns gritavam de puro pavor; outros tentavam conseguir coletes e boias. Havia também os que permaneciam quietos em seus cantos, catatônicos, como se seus movimentos pudessem agravar o problema.
O mecânico Camarão preocupava-se com o funcionamento irregular dos motores. O marinheiro Júlio César estava de pé, em seu posto na proa, observando as ondas à frente. Já não se enxergavam mais as luzes do Bateau Mouche III.
Faltavam vinte minutos para a meia-noite.
Se alguém caminha amparando nos braços uma bacia com água e, em algum momento, por um pequeno descuido, deixa que ela se incline um pouco, a água obviamente correrá para o lado mais baixo. Na tentativa de corrigir a inclinação, a pessoa fará com que a água, agora com mais intensidade, corra para o lado oposto. Era exatamente isso que acontecia no fundo do Bateau Mouche IV.
Quase quatro toneladas de água do mar já haviam entrado no deque inferior do barco, alagando totalmente a casa de máquinas e balançando a embarcação de um lado para o outro, cada vez com mais força e velocidade. O grau de inclinação, tal como no exemplo da bacia, aumentava a cada vez que a massa de água se chocava contra os costados do porão.
O movimento era bastante agravado pelo centro de gravidade do barco, muito alterado em relação ao projeto original do Kamaloka. As reformas de pouco tempo antes — a instalação da plataforma de concreto no convés superior e a colocação de duas caixas d’água metálicas, somando outras quatro toneladas de peso na parte de cima do Bateau — foram decisivas.
No interior de cada uma das caixas, a água repetia o movimento do porão, escorrendo para um lado e para o outro, chocando-se contra as bordas, tudo no mesmo compasso e colaborando com o balanceio geral. Era a “água aberta” em sua plenitude, funcionando com a precisão sinistra de um metrônomo de piano.
Faltavam quinze minutos para a meia-noite.
Havia entre cinquenta e sessenta pessoas no deque superior, e o restante estava no convés principal. Amedrontados, eles se seguravam onde podiam, vendo o mar subir e descer, se aproximar e se afastar das amuradas e escotilhas, conforme o galeio do Bateau IV. As luzes coloridas nas pontas dos mastros pareciam descrever um arco no céu.
No deque de cima, o fotógrafo Plínio Donadio tinha quase certeza de que o barco iria afundar a qualquer momento. Preocupava-se principalmente com a filha Cláudia, grávida de cinco meses, mas também com a mulher, Vitória, que, mareada, descera para o piso inferior com o filho Flávio, de onze anos, e com o genro, João Ricardo.
Ao lado de Plínio, o pânico imperava. Copos, pratos e garrafas agora caíam das mesas num ritmo alucinante e se espatifavam no deque de cimento. E Vitória não regressava lá de baixo. Após procurar coletes salva-vidas por alguns minutos, o fotógrafo finalmente encontrou um conjunto de vinte ou trinta, mas amarrados uns aos outros. Teve de desembaraçá-los.
Outro que pressentiu a tragédia foi Otávio Paulino de Mello Neto, que filmara boa parte do passeio com sua Panasonic. Para que os acontecimentos ficassem registrados, Otávio guardou a câmera, com a respectiva fita, num estojo impermeável.
Todos procuravam pelos coletes salva-vidas. Plínio Donadio conseguiu uma boia para sua filha, que chorava muito. Elisa, mãe de Yara Amaral, era outra que gritava, assustada. No deque intermediário, após grande esforço, Boris Jaime Lerner conseguiu três coletes.
Solange Fiszman também começou a procurar por boias e coletes. Mesmo depois do aviso de Adriano de que o barco poderia afundar, ela permaneceu estranhamente calma. Sua maior preocupação era com os pais, que não sabiam nadar.
No convés de cima, Mário Triller, percebendo que o barco se inclinara demais para a direita, a ponto de a linha d’água chegar à altura da amurada de boreste, gritou com os passageiros, instruindo-os a se deslocar para o lado oposto. Ao leme, Faro tentava desesperadamente evitar que seu barco emborcasse.
Pratos, garrafas, copos, talheres, bandejas, mesas e cadeiras se tornaram armas mortais: feriam as pessoas, que faziam o possível para escapar dos projéteis que voavam para todos os lados. Finalmente os motores pararam, um logo após o outro, quando a água atingiu os filtros de aspiração. O silêncio das máquinas tornou mais audível o barulho das ondas se chocando contra o casco.
Gritos de “O motor parou!”, “O barco vai virar!” passaram a ecoar. Ao mesmo tempo, como se fosse um universo paralelo, ainda se podia ouvir o grupo de bêbados cantando “Se a canoa não virar...”.
A apenas 1,5 quilômetro de distância da extremidade leste da praia, a ponta do Leme, o Bateau Mouche IV quase não se movia para a frente. Limitava-se a balançar de um lado para o outro. Em cada um desses balanços o barco inclinava um pouco mais. Tornara-se uma espécie de joão-teimoso, aquele bonequinho que não tomba nunca, às avessas. Enquanto o brinquedo tem o peso todo em sua parte inferior, o Bateau, por causa do deque de cimento e das duas caixas d’água no piso superior, sobre o qual havia agora mais de cem pessoas, tinha o centro de gravidade muito alto. E o peso nos porões, devido à água do mar que entrara pelo vaso sanitário e pelas escotilhas abertas, não agregava nenhuma estabilidade, pois se movimentava para um lado e para o outro.
O Bateau Mouche IV estava na pior das situações: à deriva, em mar turbulento, tendo no fundo do casco quatro toneladas de água se movendo de bombordo para boreste e vice-versa. E mais água continuava entrando pelas escotilhas.
NAUFRÁGIO
Às 23h50, quando Boris tentava prender um dos complicados coletes salva-vidas em seu filho Dudu, a proa do Bateau Mouche IV se ergueu. A popa submergiu. Em seguida, o barco, empinado, adernou bruscamente para a direita e, num movimento de torção, rolou sobre seu eixo longitudinal e emborcou. Passaram-se alguns segundos e o fundo do casco surgiu, de maneira obscena, na superfície do oceano, parcamente iluminado pelas poucas lâmpadas que ainda permaneciam acesas e pelas luzes que vinham de Copacabana, ao longe, e da praia Vermelha, mais próxima.
A longa jornada do lagosteiro Kamaloka, depois motel flutuante Prelúdio e finalmente barco de turismo Bateau Mouche IV, terminou nas coordenadas geográficas de latitude 22º 57’ 62” Sul e de longitude 43º 09’ 43” Oeste, entre a ponta sul da boca da enseada da praia Vermelha e a extremidade norte da ilha de Cotunduba, a quinhentos metros da boca da barra.
Os ocupantes da traineira Evelyn & Maurício haviam testemunhado tudo. O pescador Jorge Viana, que estava no leme, não perdeu tempo:
“O barco virou. Prepara que nós vamos encostar. Separem alguns coletes para serem lançados ao mar”, ordenou aos seus tripulantes.
Na esteira da Evelyn & Maurício, e também se apressando para chegar a Copacabana antes do show de fogos, havia o iate Casablanca, de propriedade do empresário lojista Oscar Gabriel Júnior. Tanto Oscar como seu comandante, Valentin Lima Ribeiro, além dos marinheiros da embarcação e diversos convidados a bordo do iate, testemunharam a tragédia, embora estivessem mais distantes do Bateau IV do que a Evelyn & Maurício. Oscar Gabriel agiu rápido, chamando a sala de rádio do Iate Clube do Rio de Janeiro para pedir ajuda.
Parte de sua conversa com o Iate Clube foi ouvida na cabine de comando do Bateau Mouche III, que já baixara as âncoras em Copacabana. Várias providências foram tomadas ao mesmo tempo: explicação da emergência aos passageiros, aviso às autoridades e à empresa proprietária dos dois barcos e início do regresso para socorrer o barco irmão, manobra das mais complicadas, pois havia dezenas de embarcações ancoradas ao lado.
Flávio Teixeira da Silva Filho, operador de rádio do Iate Clube, Estação Costeira ECHO 21, que atendeu ao chamado do Casablanca, chegara ao seu posto de trabalho por volta do meio-dia do sábado. Pontualmente à uma da tarde ele iniciou seu plantão.
De sua bancada, onde havia diversos aparelhos de rádio, transmissores e receptores, Flávio tinha uma visão privilegiada da enseada de Botafogo e da boca da barra, esta a aproximadamente 1,5 quilômetro de distância. Ele também podia ver os barcos que chegavam e saíam da marina do clube e comunicar-se com eles. Pela janela envidraçada da esquerda, o operador enxergava o cais do restaurante Sol e Mar e do Salvamar. Um gracioso bebedor de beija-flores, pendurado do lado de fora da sala de rádio, dava um toque de descontração ao ambiente.
Embora normalmente a duração do turno de Flávio Teixeira fosse de seis horas, terminando às sete da noite, naquele réveillon ele triplicaria o serviço, operando o rádio até a manhã do dia seguinte. Ao contrário da maioria de seus colegas de equipe, Flávio era solteiro e não se importava em virar o ano trabalhando. A noite de réveillon seria movimentadíssima, com inúmeros barcos de sócios saindo para ver o show de fogos em Copacabana e depois retornando ao clube, onde haveria uma grande festa que se estenderia até o sol raiar, com café da manhã e tudo.
Flávio era funcionário do Iate havia mais de três décadas, tendo primeiro cursado a escolinha profissionalizante, onde, além de matérias do Ensino Fundamental, estudara Marinharia. Mais tarde se especializara em rádio. Com o passar dos anos, tornara-se uma instituição dentro do clube. Seu nome era conhecido pela maioria dos proprietários dos barcos, assim como por seus comandantes e marinheiros.
O movimento da tarde foi como o de um sábado comum de verão, sem nenhum acontecimento digno de nota. Alguns sócios saíram para pescar; outros, para fazer passeios pela baía e fora dela. Os que regressavam do mar aberto reportavam a Flávio que havia ondas grandes, e ele transmitia a informação para os que saíam.
“Tá mexido, ECHO 21. Tá navegável, mas tá mexido.” A linguagem entre a estação e os barcos era informal.
Já à noite, muito ocupado com as lanchas, veleiros e iates dos sócios do clube, Flávio Teixeira não notou a passagem dos Bateau III e IV, sendo que o segundo desfilou em frente à sala de rádio três vezes: indo, voltando depois da interceptação pela lancha Anchova e saindo de novo após a contagem da lotação.
Ao ser informado do naufrágio, o operador, que, segundo suas próprias palavras, virava o ano apenas na companhia de Deus, tinha de correr contra o tempo. Precisava contatar outros barcos que pudessem seguir para o local onde estava o Casablanca, além de avisar a Marinha, o Corpo de Bombeiros e a direção do próprio Iate Clube.
EM MAR ABERTO
Na emborcação, muita gente se jogou ou foi lançada ao mar. Outros ficaram aprisionados no interior do Bateau. Houve também os que se feriram grave e até fatalmente no choque contra as paredes, amuradas, colunas, teto e escadas do barco. Os tampos de mármore de algumas mesas atuaram como ceifadeiras.
Boris Lerner foi um dos que ficaram presos. Com praticamente nenhuma visibilidade, perdera contato com a mulher, Irene, com o filho, Dudu, e com seus companheiros de mesa, a família Wajngarten. Se Boris não achasse imediatamente uma saída da arapuca onde se encontrava, em pouco mais de um minuto morreria asfixiado. Fazendo o possível para manter a lucidez, ele ficou tateando o costado à procura de uma saída para a superfície do oceano.
A família Fiszman se preparara para o pior. Adriano foi um dos primeiros a pular no mar junto com a namorada, Renata. Em seguida, Waldemar e Ruth, que naqueles últimos momentos de pânico permaneceram agarrados à amurada do barco, encorajados por Adriano, se jogaram também. Solange, que estava ao lado deles, preparada para ampará-los assim que caíssem na água, não conseguiu saltar. Roberto, seu marido, entrou em choque e a segurou com força, impedindo-a de se mover. Com a cabeça voltada para os pais, finalmente Solange se desvencilhou das mãos de Roberto e saltou no mar. Num lance de sorte, caiu exatamente entre Waldemar e Ruth, que já estavam se afogando.
Vários outros ocupantes do Bateau Mouche IV, principalmente os que estavam no convés superior, tiveram tempo de se lançar nas águas frias do Atlântico. Davi Rabelo foi um deles. E, tal como Solange, teve sorte. Não só conseguiu se jogar na água segundos antes da emborcação, como levou junto a mulher e o filho do casal, de quatro anos. O mesmo aconteceu com o italiano Salvatore Russo e seu filho, Massimo. Paulo Salvador de Carvalho, integrante do Café com Leite, pressentiu que a embarcação iria naufragar e, apesar de não saber nadar, se jogou na água com os companheiros.
Já o ex-ministro Aníbal Teixeira caiu no mar. Ele havia ido para o andar de baixo com a mulher, Maria José, e a última coisa de que se lembrava era ter sentido um frio estranho nos pés. Foi quando reparou, assustado, que havia muita água no chão. Agora, enquanto tentava se manter à tona, olhou ao redor buscando a mulher. Mas, como perdera os óculos na queda, não viu nada nem ninguém. Lembrou-se de que pouco antes de o barco virar, ela gritara para ele: “Aníbal, venha para cá!”.
Depois não a viu mais.
Entre os que caíram no mar, poucos estavam com coletes salva-vidas.
Enquanto isso, no convés principal, as pessoas aprisionadas tentavam se proteger em bolsões de ar e procuravam desesperadamente uma porta ou escotilha de saída. Algumas ficaram totalmente emparedadas, sem qualquer chance de sobrevivência; outras precisaram realizar uma manobra complicada, que tinha de ser feita em um ou dois minutos: mergulhar um pouco mais para o fundo para então contornar o casco e aí sim chegar à superfície, como fez Boris Lerner, que, mais do que depressa, bateu as pernas e nadou para fora da embarcação. Deu algumas braçadas em direção ao fundo emborcado do Bateau e subiu, arranhando-se nas cracas grudadas no casco metálico.
O engenheiro Hélio Meirelles Cardoso caiu na água junto da amiga com a qual viajava. Aliviados por não estarem feridos, os dois se seguraram um no outro e conseguiram se manter à tona. Hélio tinha noções de como lidar com pessoas prestes a se afogar, resultado de seus conhecimentos de juventude, época em que era rato de praia em Ipanema. Consciente de que tinha condições de sobreviver, concentrou todas as suas energias no socorro à amiga. Não saía de sua cabeça que lhe prometera um réveillon inesquecível no Rio. Mas, num determinado momento, não conseguiram mais se manter juntos e perderam-se um do outro.
No mar, Solange segurava o pai e a mãe — Waldemar e Ruth Fiszman — com as duas mãos, mas por vezes mantendo sua própria cabeça debaixo d’água. Por alguns segundos ou minutos, ela não sabe precisar, permaneceu assim: subindo e descendo em busca de ar e de forças para continuar mantendo os dois à tona. Não teria aguentado muito tempo se Eduardo, seu irmão, não tivesse aparecido com uma mesa. Ele pulara logo depois dela e, apesar do caos e da escuridão, conseguira encontrar os três.
Ao barulho do mar se juntavam gritos por socorro. Agora as pessoas procuravam desesperadamente qualquer objeto flutuante que pudessem usar como boia, muitas vezes puxando umas às outras para o fundo, no afã de se salvar. Os quatro membros da família Fiszman se seguraram na mesa da melhor forma que puderam, mas Solange e Eduardo sabiam que Waldemar e Ruth não aguentariam muito tempo.
Foi quando Solange viu Adriano, namorado de Renata, empoleirado no casco emborcado. Ela tinha de tirar os pais da água. Nadou até ele e pediu ajuda para trazê-los até o casco. Mas Adriano não ouvia nada. Desesperado, estava à procura de Renata, pois se perderam um do outro depois que pularam do Bateau. Solange tentou chamar sua atenção, mas não havia jeito. Logo desistiu e voltou para perto do irmão e dos pais.
Naquele momento, Waldemar concluiu que era o fim. Não tinha mais forças. Pediu que os filhos o deixassem afundar e salvassem suas próprias vidas. Solange teve forças para chamá-lo de volta à luta. Eles tinham de sobreviver.
Após mergulhar na água, Renata Fiszman conseguira subir rapidamente à tona. Recuperou o fôlego com uma lufada de ar e logo tratou de examinar os náufragos ao seu redor, procurando pela família e por Adriano. Não localizando ninguém, começou a gritar.
Assim como Adriano, Boris Lerner subiu no casco e, preocupadíssimo com o paradeiro de sua mulher e de seu filho, tentava localizá-los no oceano. Mais interessado em encontrar a família, Boris se descuidou de si mesmo, foi varrido por uma onda e voltou para o mar.
A última coisa que Otávio Paulino lembra é de ter olhado para o relógio. Depois foram só gritos e a sensação de sumir na água, reaparecer e afundar de novo. Quando viu que estava próximo ao casco do barco, se aproximou do local e foi puxado por alguém.
O americano Douglas Swain e sua mulher, Sue, ambos com coletes salva-vidas, se afastaram um pouco do Bateau Mouche, para não serem sugados caso o barco submergisse. Excelente nadador, Doug não entrou em pânico em momento algum, o que não era o caso de diversos náufragos nas proximidades do casal. Mesmo não falando português, Sue e Douglas procuravam tranquilizar as pessoas.
Com dois filhos pequenos a bordo da Evelyn & Maurício e sabendo que o pesqueiro já estava com excesso de lotação, Sandra, mulher do mestre Jorge Viana, não conseguia parar de pensar na segurança dos próprios filhos. A traineira se aproximava rapidamente do ponto da tragédia, onde dezenas de pessoas estavam na água ou sobre o casco emborcado.
“Não tem perigo?”, ela interpelou o marido.
“Não tem perigo nenhum. Eu vou encostar. Se todo mundo quiser subir aqui, eu dou ré. Mas antes vou panhar o que puder.”
Pelo tom resoluto de voz de Jorge, Sandra sabia que não tinha nenhuma chance de ele mudar de opinião e se afastar do local.
A única coisa que Jorge Viana temia era começar a recolher mortos. Tinha pavor de defuntos.
Dramas individuais continuavam se sucedendo. Fátima Rocha, que não sabia nadar, se amparava em uma mesa que lhe fora empurrada por um desconhecido. Naquela situação precária, Fátima, que quebrara uma costela e sofrera diversos ferimentos leves no momento em que o barco virou, tentava agora localizar o marido, Augusto Amato. Ela não tinha como saber que Augusto recebera uma fortíssima pancada na testa assim que o Bateau IV emborcou e fora imediatamente tragado pelo mar.
Hélio Cardoso percebeu que dois barcos se aproximavam. Então continuou nadando, à procura da amiga, enquanto empurrava as mesas e cadeiras que boiavam nas imediações em direção às pessoas que estavam se afogando. Para muitas delas, esses móveis foram literalmente tábuas de salvação, uma esperança de sobrevivência no meio do caos. Noêmia Gonçalves, bailarina de 25 anos que não sabia nadar, foi uma dessas.
Dione Camargo e seu marido Amir Abud, ambos sem salva-vidas, afundaram juntos no mar. Ela sabia nadar; ele, não. É possível que Dione tenha tentado salvar Amir e também morrido na tentativa.
Quando a Evelyn & Maurício chegou ao local onde o Bateau Mouche IV adernara, o casco emborcado continuava flutuando. O mestre Jorge Viana encostou a traineira. Desse modo, além dos que foram tirados diretamente do mar, diversos sobreviventes puderam passar de um barco para o outro. A maior dificuldade era que as pessoas não conseguiam subir sozinhas; ele e seus companheiros tinham que puxar uma a uma. Jorge prontamente mandou que jogassem as cordas, para que os náufragos pudessem se segurar. Mesmo assim, as pessoas continuavam se afogando. Ou por não saberem nadar ou simplesmente porque estavam tomados pelo pânico, muitos tentavam tirar o corpo todo de dentro do mar, se desequilibrando e afundando novamente. Só restava aos tripulantes da traineira puxá-los para dentro.
Logo depois da Evelyn encostar, surgiu o iate Casablanca, que, por ser bem maior, pôde salvar mais gente. O cenário era iluminado pelas luzes precárias da traineira e pelos holofotes possantes do iate. O rádio do Casablanca emitia sucessivos e incansáveis apelos, solicitando o comparecimento de todas as lanchas do clube ao local. Por serem mais ágeis, poderiam manobrar para a frente e para trás com mais facilidade. Até onde se sabe, nenhuma compareceu.
Corriam contra o tempo. Cada minuto era precioso.
Os fogos espocavam em Copacabana, comemorando a chegada de 1989. Na areia da praia e nos apartamentos da orla as pessoas trocavam beijos e abraços e brindavam a chegada de 1989. Turistas de todo o Brasil e de diversos países se deslumbravam com o espetáculo.
Não muito longe do clarão e dos estampidos da festa, o Bateau Mouche afundou de vez, pouco antes do décimo minuto de 1989. O Bateau desceu de bico, sua proa indo chocar-se com um fragor seco no fundo arenoso, a 22 metros de profundidade, entre a ilha de Cotunduba e o costão do Leme, em frente à praia Vermelha.
Como é dificílimo escapar de um barco emborcado, que se transforma em uma armadilha mortal, havia ainda em seu interior, aprisionadas, cerca de quarenta pessoas, entre passageiros, tripulantes, músicos e garçons. A atriz Yara Amaral, o mestre-arrais Faro e o armador-gerente Mário Triller estavam entre elas.
ALÍVIO E DESESPERO
Após avisar os passageiros sobre a necessidade de sair de Copacabana para socorrer os náufragos do Bateau Mouche IV, o mestre do Bateau III precisou se desviar lentamente de diversos barcos ancorados em suas proximidades antes de seguir em direção ao local onde o navio irmão se acidentara. A manobra levou quase quinze minutos.
Enquanto isso, na cena do naufrágio, a maioria das pessoas que se debatiam no mar sem salva-vidas afundou antes que tivesse a oportunidade de ser recolhida pela Evelyn & Maurício ou pelo Casablanca. Eventualmente um braço surgia por sobre a crista de uma onda, para desaparecer logo em seguida, tragado pelo oceano.
Em extenso relato sobre o naufrágio para o Jornal do Brasil, publicado no dia 12 de janeiro, Hélio Cardoso, salvo pelo Casablanca, questiona: “Quais eram as possibilidades reais daqueles que não sabiam nadar e dos que, mesmo conhecendo alguns princípios básicos de natação, entraram em pânico e não puderam colocá-los em prática? Para eles, os quinze ou vinte metros que os separavam da Evelyn & Maurício e do Casablanca eram comparáveis à distância entre o céu e a terra”.
Antes de ser resgatado, Hélio, embora esgotado, ainda conseguiu salvar uma mulher que boiava apoiada em um colete salva-vidas preso a um passageiro, um dos muitos que não resistiram ao naufrágio. Boris Lerner, Renata Fiszman, Adriano Pinheiro e Roberto também foram resgatados pelo Casablanca.
“Estamos salvos.” Foram essas as palavras de Eduardo Fiszman quando avistou a Evelyn & Maurício. Solange olhou para trás tentando calcular a distância que teriam de percorrer até a traineira. Eram poucos metros, mas os pais estavam exaustos e não sabiam nadar. Eles não conseguiriam. Ela propôs que fizessem uma espécie de corrente para chegar à embarcação. No meio do caminho, sentiu um puxão e viu o pai se afogando. Alguém arrastava Eduardo para o fundo. A corrente se desfizera. Solange conseguiu segurar o pai e a mãe pelas mãos novamente. Agora faltava pouco para alcançarem a traineira.
A mineira Rosemere Costa, que antevira a tragédia e pedira aos garçons para avisar ao comandante que deveriam voltar para o cais, encontrou uma menina americana agarrada a uma boia e choramingando em inglês. Rosemere manteve-a junto a si o tempo todo. Próxima delas estava Dirce Grotkowski, amiga e companheira de passeio de Yara Amaral. Dirce não sabia nadar e se agarrava a um dos móveis caídos do barco para flutuar.
As ondas não ajudavam em nada aqueles que precisavam se segurar em algo para não ir para o fundo. Volta e meia uma cabeça desaparecia sob elas. Luciana, de apenas dois anos, filha do casal Wajngarten que acompanhava Boris Lerner, lutou bravamente por sua vida. Vestindo um colete salva-vidas colocado por seu pai antes de o barco emborcar, a menininha, após cair na água, agarrou-se aos cabelos de uma mulher e assim se manteve à tona até que a Evelyn & Maurício recolheu as duas.
O tempo era o maior inimigo dos que tentavam resgatar os náufragos. Quando o Bateau Mouche IV afundou de vez, os sobreviventes aboletados em seu casco, que ainda não tinham sido recolhidos pela traineira Evelyn & Maurício ou pelo iate Casablanca, foram puxados para o fundo. Poucos tiveram fôlego para voltar à superfície. Bolhas de ar marcavam o ponto onde o Bateau desaparecera.
A Evelyn & Maurício não parou um segundo de recolher gente. A tarefa não foi fácil. Mesmo contando com o auxílio das cordas que lhes eram lançadas, os náufragos não conseguiam subir pela amurada. Jorge Viana tentava dar prioridade para os que estavam se afogando, enquanto gritava palavras de incentivo para aqueles que conseguiam se manter agarrados às cordas: “Meu amigo, você tá bem? Aguenta um pouquinho aí que eu não vou largar você aí de maneira nenhuma”. Os ocupantes da traineira, com enorme empenho, precisavam pescar uma a uma as pessoas confusas e em estado de choque.
Sandra, mulher de Jorge, foi a primeira a perder a cabeça quando não conseguiu puxar um dos náufragos que tentavam se agarrar ao casco da traineira. Ela o viu afundar para a morte e, em total descontrole, teve de ser acalmada pela cunhada. Isso tudo dificultava e atrasava o trabalho de socorro.
Voz de comando, Jorge tinha de sobra. Ao perceber que o pessoal de seu barco lançava ao mar todos os coletes salva-vidas, e que estes imediatamente se dispersavam nas águas revoltas, o mestre se desesperou:
“Vocês não estão vendo que ninguém vai conseguir apanhar, porra? Ninguém vai conseguir vestir. E nós vamos ficar sem nenhum.”
Não tendo os coletes salva-vidas surtido efeito, Jorge determinou que as boias circulares fossem jogadas no mar. Mas, tal como acontecera com os coletes, os náufragos não conseguiam pegá-las. As ondas simplesmente as engoliam.
Solange e Davi Rabelo, assim como o filho de quatro anos dos dois, foram alguns dos primeiros sobreviventes recolhidos pela Evelyn & Maurício.
Tirando partido da luz de seus holofotes direcionais, o Casablanca continuava pescando sobreviventes. Oscar Gabriel, dono do iate, se movia de um lado para o outro do deque, supervisionando o salvamento, acompanhado do filho.
“Aponta a luz ali”, Oscar disse para Valentim, comandante do barco. “Meu Deus, é muita gente”, ele lamentou, enquanto diversos náufragos se aproximavam de seu costado.
Em Copacabana, a festa se aproximava do fim: uma cascata de fogo dourado se derramava do alto do hotel Méridien, para delírio da multidão.
ÚLTIMOS RESGATES
Jorge Viana não se preocupou muito com a lotação da Evelyn & Maurício. Mais interessado em salvar vidas, continuou estimulando seu pessoal a tirar da água os sobreviventes que se aproximavam, alguns já no limite do fôlego e prestes a se afogar. Em determinado momento, ao se deparar com a cesta de salgadinhos e refrigerantes atravancando o caminho, Jorge jogou tudo no mar.
Solange Fiszman se sentia exausta. O esforço para manter o pai e a mãe na superfície era imenso, mas a traineira já estava muito perto. Um americano apareceu e segurou Waldemar. De repente, ela sentiu um puxão. Içada até a traineira, Solange apontava histericamente para o pai: “Peguem o careca! É o careca!”. O pessoal da traineira demorou um pouco, mas finalmente conseguiu resgatar Waldemar. Já com o pai ao seu lado e percorrendo o mar com os olhos, Solange sentiu uma nova onda de desespero. Onde estariam sua mãe e Eduardo?
Waldemar disse que achara ter visto Ruth ser puxada também. Solange começou a procurá-la, caminhando por entre os náufragos que se aglomeravam no interior da pequena embarcação. Sandra, mulher de Jorge Viana, pediu a Solange para se sentar e ficar quieta. Seguiu-se uma acalorada discussão entre as duas. Solange gritou tanto que Eduardo, que também fora resgatado pela traineira e passava muito mal no canto oposto do barco, reconheceu a voz da irmã e foi ao seu encontro.
Como Ruth não estava no barco, começaram a procurá-la no mar. Havia duas pessoas agarradas a cabos do lado de fora da traineira, e uma delas era Ruth. Com a ajuda de outros náufragos, conseguiram puxá-la. Estavam salvos, os quatro. Mas onde estariam Roberto, Renata e Adriano? Mais uma vez a tripulação da traineira pediu que permanecessem sentados e quietos. Já totalmente sem forças, Solange obedeceu.
Cristina Adam e seu marido, Jean, os italianos Salvatore Massimo e a bailarina Noêmia também foram recolhidos pela Evelyn & Maurício.
Debruçado sobre a amurada da popa da traineira, Jorge Viana viu uma menina pequena se debatendo. Mais do que depressa, Viana a puxou para o interior do barco. Foi desse modo que Luciana Wajngarten, de apenas dois anos, que perdeu a mãe, o pai e a irmã no naufrágio, sobreviveu contra todas as possibilidades ao se agarrar no cabelo de uma mulher.
O ex-ministro Aníbal Teixeira, que tirara a camisa para ter mais liberdade de movimentos, conseguiu se segurar a uma corda lançada por alguém da Evelyn & Maurício. Exausto e tendo engolido muita água, ele não teve forças nem jeito para subir no barco. Francisco de Morais, um dos convidados do mestre Jorge, se abaixou na amurada e conseguiu passar uma corda em volta dele e içá-lo para a traineira.
Na mesma situação se encontrava o engenheiro Eduardo Schanzer. Só que seus 1,90 metro e 120 quilos tornaram a tarefa muito mais difícil. Francisco de Morais conta que “ele nem aguentava subir e nós não conseguíamos puxá-lo devido ao peso. Tivemos que amarrá-lo ao barco por debaixo dos braços, o que levou uns quinze minutos”. Eduardo ficou preso por aquele incômodo cordão umbilical que o mantinha vivo. Além do peso e da exaustão, ele tinha duas placas de metal, uma em cada braço, o que só dificultava ainda mais seus movimentos.
Outros náufragos, por serem mais leves do que Eduardo, principalmente mulheres e crianças, iam sendo içados pela traineira. Jorge Luís e Galo, os rapazotes que haviam pegado carona na embarcação na hora da saída, trabalhavam sem descanso com os cabos de corda, a corda da âncora e duas boias grandes. Não havia tempo a perder. As ondas e as correntes marinhas começavam a levar alguns sobreviventes para longe.
Durante todo esse tempo, Evelyn e Maurício, que davam nome ao barco do pai, dormiam sossegadamente num beliche na casa do leme, sem a menor ideia do que acontecia.
No Casablanca, os esforços de resgate não eram menores. Oscar Gabriel, proprietário do iate, e seu comandante, Valentim Ribeiro, se dividiam nas ordens aos tripulantes e aos convidados da festa. Entre os retirados do mar pelo pessoal do Casablanca estava o marinheiro Camarão, do Bateau.
“Pega tudo quanto for plástico, madeira e isopor e lança no mar”, Oscar precisou berrar para que todos o ouvissem, em meio ao barulho das ondas batendo no casco e à gritaria dos náufragos que permaneciam dentro d’água.
No iate, os trabalhos de resgate ficaram mais fáceis quando Valentim baixou ao mar um bote inflável com um marinheiro que, com rara habilidade, recolhia as pessoas. Uma delas foi Dirce Grotkowski.
Também a bordo do Casablanca, e sem saber que seus pais e irmãos se encontravam sãos e salvos na Evelyn & Maurício, Renata Fiszman, Adriano e Roberto estavam inconsoláveis.
Quando finalmente o Bateau Mouche III chegou ao local, boa parte dos náufragos já tinha se afogado ou sido recolhida pela traineira e pelo iate. Mas um garçom do Bateau III, de nome Heleno, pulou na água e conseguiu resgatar três pessoas prestes a serem engolidas pelas ondas.
Em Copacabana, o show de fogos, assistido por aproximadamente 2 milhões de pessoas, terminara. Agora, dezenas de milhares delas, tanto no asfalto e no calçadão da avenida Atlântica, como nas areias da praia, a maioria vestida de branco, dançavam ao som do “Ilariê” da Xuxa. Nenhuma informação sobre a tragédia que se desenrolava não muito longe dali chegara até a festa.
Na Evelyn & Maurício, as pessoas içadas do mar se movimentavam muito pelo deque à procura de parentes e amigos que pudessem ter sido salvos. Esse vaivém prejudicava as operações. Logo levaram uma bronca do mestre Jorge Viana. “Todo mundo sentado. Caso contrário, vamos virar.” Foram como palavras mágicas, imediatamente obedecidas.
Desde o instante em que fora alçado para o Casablanca, Boris Lerner não teve um segundo sequer de sossego. Desesperado, perscrutava o mar procurando sua mulher e seu filho. Então viu o menino boiando de bruços na superfície das ondas que subiam e desciam nas proximidades do iate. Reconhecendo-o pelo par de tênis, Boris gritou para Oscar Gabriel:
“Dudu, o meu filho. O meu filho! Ele está ali!”
O garotinho foi rapidamente recolhido por alguns marinheiros e entregue ao pai e a um médico, convidado da festa. Ambos tentaram de tudo para reanimá-lo. Massagem cardíaca, respiração boca a boca... Nada. Lerner tomou o corpo carinhosamente nos braços, como já fizera tantas vezes, e fez um afago em seu rosto pálido e gelado.
Eduardo Schanzer continuava preso do lado de fora da traineira, como um peixe grande arpoado. Não conseguia lidar direito com as cordas e, de vez em quando, sua cabeça afundava no mar. Para que ele não morresse afogado, foi preciso que um dos tripulantes da Evelyn & Maurício, num movimento acrobático, retesasse mais o cabo, praticamente pendurando o náufrago na amurada do barco.
A situação ficou muito desconfortável para Eduardo, com as cordas esfolando seu peito e costas nus. Só que agora não corria mais risco de afogamento. Içá-lo a bordo continuava sendo uma tarefa além das possibilidades do pessoal da embarcação. Francisco de Morais conta que ele pediu para que ninguém o segurasse pelo braço.
“Não, pega pelas minhas pernas, pela minha cintura”, implorou Eduardo.
“Senhor, não pode, porque assim sua cabeça vai voltar pra dentro da água”, insistiu Francisco.
Enquanto os demais náufragos colaboravam com seu próprio socorro, com movimentos de braços e pernas, Eduardo, paralisado pelo medo, não conseguia se mover. Em determinado momento, perdeu os sentidos, mas permaneceu ali, preso na corda curta.
No mar, não havia mais ninguém vivo. Só restava ao iate e à traineira irem embora. O Casablanca podia voltar para a baía de Guanabara. Mas, com um náufrago desmaiado e preso no costado de seu barco, Jorge Viana tinha que pensar em outra solução. O mestre decidiu ir para a praia Vermelha, a um quilômetro de onde se encontravam. Lá chegando, poderiam levá-lo até a areia.
Um dos ocupantes da Evelyn & Maurício soprou bem baixinho no ouvido de Jorge:
“Solta ele no mar, Jorginho, solta ele. Esse cara não tem mais salvação.”
O mestre ignorou o conselho. Se o homem ainda estava vivo, tentaria salvá-lo de qualquer maneira.
“Vamos pra praia Vermelha”, decretou. “Quem quiser, pode descer lá. Pula do barco e nada para a areia.”
PRAIA VERMELHA
A Evelyn & Maurício, repleta de sobreviventes do Bateau, seguiu para a praia, o motor a diesel de baixa rotação batendo ritmado, a proa cortando as ondas, o ruído da máquina se misturando às lamúrias dos náufragos — alguns totalmente descontrolados, tentando saber se seus parentes e amigos estavam no Casablanca ou tinham morrido afogados. Para piorar as coisas, muitos vomitavam até as tripas.
Tão logo a traineira passou pela boca da ferradura na entrada da enseada da praia Vermelha, tendo a boreste o enorme rochedo do Pão de Açúcar e a bombordo o costão do morro do Leme, as águas tornaram-se calmas. Reduzindo o ritmo do motor para meia potência, Jorge Viana rumou para a arrebentação, onde as ondas se desmanchavam suavemente. Jorge virou-se para um dos seus convidados, Chiquinho, que era guarda-vidas de piscina em Niterói e nadava muito bem, e nomeou-o para levar, a nado, o homem preso pelas cordas até a areia.
Chiquinho, por sua vez, não gostou nem um pouco de sua escalação como herói.
“Você ficou maluco, Jorginho? Eu? Nadar com esse cara? Não dá, Jorginho. Não dá. Eu não consigo. Olha, ele está quase morto.”
Como se não bastassem todos aqueles problemas, quando a Evelyn & Maurício se aproximou da praia, muita gente quis descer, inclusive Sandra, mulher de Jorge, que não tinha o menor interesse em voltar para mar aberto num barco superlotado. Ela queria que o marido levasse a traineira até a areia e lá, quem quisesse, desembarcaria, inclusive ela e os dois filhos pequenos.
“Eu quero saltar aqui, com as crianças”, Sandra exigiu firmemente de Jorge. Sem sucesso.
O mestre ficou bravo com o início de motim encabeçado pela própria mulher: “Quem não quiser ficar no barco é só pular na água”, esbravejou ele, sabendo que ninguém faria isso, mesmo porque agora havia pouquíssimas boias e coletes salva-vidas a bordo. “Olha, a praia é logo ali”, continuou.
Jorge estava furioso, mas não por simples capricho ou teimosia. Ele sabia que ir com a Evelyn & Maurício além da arrebentação para chegar até a praia era uma manobra arriscada, na qual o barco poderia emborcar, causando uma tragédia ainda maior. A traineira estava cheia de idosos, crianças pequenas, uma mulher grávida e várias pessoas que certamente não conseguiriam nadar em meio às ondas, principalmente no estado de pânico em que se encontravam.
“O Chiquinho vai puxar o homem amarrado até a praia”, o mestre decretou. “O resto fica onde está. Eu vou com todo mundo em segurança para o cais do Salvamar, na enseada de Botafogo.”
Como Chiquinho não se decidia, Jorge Viana, que não era dado a hesitações, passou o comando do barco para um dos seus marinheiros, despiu-se rápida e parcialmente e pulou na água justamente onde estava Eduardo Schanzer. Segurou o náufrago pelas cordas, desprendeu-o da amurada e deu início ao arriscado trabalho de levá-lo para a praia. Ao ver a cena, Chiquinho não perdeu mais tempo. Pegou uma boia circular, saltou também da traineira e uniu-se a Jorge, que retribuiu o gesto com um olhar agradecido.
Jorge e Chiquinho puseram a boia ao redor de Eduardo e passaram a rebocá-lo em direção à areia, às vezes pegando jacaré nas ondas que se quebravam. Embora soubesse nadar, Eduardo, exausto, semiconsciente e sofrendo de hipotermia, não contribuiu em nada com o esforço. Mas seus dois anjos da guarda eram homens fortes e exímios nadadores.
Quanto mais se aproximavam da praia Vermelha, mais fácil ia ficando a tarefa do mestre-arrais e do guarda-vidas. Por fim, algumas pessoas que estavam na areia comemorando o Ano-Novo perceberam o que estava acontecendo e entraram na água para ajudar. Eduardo Schanzer foi levado até a areia, onde o aqueceram com toalhas.
Náufrago salvo, Jorge Viana não perdeu tempo.
“Deem um jeito nele”, pediu Jorge ao pessoal da praia. “Houve um naufrágio, meu barco está cheio de sobreviventes e preciso voltar urgentemente pra lá. Chama a polícia, chama os bombeiros, chama uma ambulância. Cuidem desse cara porque eu preciso voltar pro meu barco”, repetiu.
Chiquinho e Jorge Viana não tiveram a menor dificuldade em regressar nadando até a traineira. Chegando lá, o mestre viu que alguns sobreviventes e convidados do passeio, inclusive sua mulher, Sandra, continuavam querendo ir para a praia.
Jorge mandou todo mundo calar a boca, assumiu o comando, acelerou o motor a diesel e partiu para o mar aberto, única maneira de voltar para a entrada da barra. Se alguém pensou em pular do barco e nadar para a areia, ficou no pensamento. Houve apenas alguns resmungos, que em pouco tempo se transformaram em suspiros conformados.
O único náufrago que ficou na praia Vermelha foi Eduardo.
Ele não tinha como saber, mas sua filha, Samanta, de doze anos, havia sido resgatada por Jorge Viana e estava a salvo na traineira. Com toda a confusão e o choque, ela não viu o pai amarrado ao barco.
Mestre Jorge Viana | Foto de Alexandre Sassaki | Veja, p. 30, n. 1062, 11 jan. 1989 | Abril Comunicações S/A.
AMARGO REGRESSO
Enquanto o Casablanca retornava para a baía de Guanabara, costeando no sentido anti-horário os morros do Pão de Açúcar e da Urca, seus marinheiros e os convidados de Oscar Gabriel Júnior tentavam acalmar os passageiros da melhor forma que podiam. Havia todo tipo de reação e as informações eram desencontradas. Cada um dos sobreviventes vira o naufrágio por um ângulo diferente.
Segundo um deles, o Bateau teria saído para o passeio após a interceptação pela lancha da Marinha, quando os militares receberam um suborno em dinheiro, pago no cais pelo pessoal da Itatiaia Turismo. Mais tarde, durante o inquérito policial que se seguiu à tragédia, essa acusação não seria provada e nem mesmo confirmada.
Apesar da dificuldade representada por seu costado alto, o iate conseguira recolher cerca de meia centena de náufragos do Bateau Mouche.
Boris Lerner não sabia o que tinha acontecido com sua mulher, Irene. Ainda assim, não conseguia parar de pensar na maneira menos dilacerante de contar para ela sobre a morte do filho deles, Dudu.
Quando entrava na barra, o Casablanca se deparou com o saveiro Circe, que se encontrava à deriva nas proximidades da fortaleza de Santa Cruz, tendo o motor avariado, sem que nenhuma das embarcações que passara pelo local o tivesse socorrido.
Oscar Gabriel, em rigorosa observância das tradições marítimas, prometeu ao mestre do saveiro retornar para rebocá-lo, tão logo desembarcasse os sobreviventes do Bateau Mouche IV no Iate Clube do Rio de Janeiro. Quarenta e cinco minutos mais tarde estava de volta para cumprir sua promessa. O Circe foi deixado nas águas calmas da enseada de Botafogo. Dali, seus ocupantes seguiram em um escaler para o cais do Salvamar.
O Bateau Mouche III já ancorara no cais do Sol e Mar, onde desembarcou seus cem turistas e os três sobreviventes recolhidos do mar pelo garçom Heleno, mais um dos heróis quase anônimos daquela noite trágica.
Como sua lotação era muito maior do que a permitida na licença emitida pela Capitania dos Portos, Jorge Viana conduziu a Evelyn & Maurício, abarrotada de náufragos, em marcha reduzida desde a praia Vermelha até a enseada de Botafogo. Na entrada da barra, o mar continuava agitado, mas não houve nenhum incidente a bordo, com exceção do desespero dos sobreviventes, muitos apavorados com a perspectiva de cair no mar novamente. Foi um alívio geral quando voltaram a navegar nas águas protegidas da baía.
Tanto no iate Casablanca quanto na traineira havia muita tristeza e revolta entre os sobreviventes do Bateau. Acusações as mais diversas eram disparadas contra a Itatiaia Turismo, patrocinadora do passeio, a Bateau Mouche Rio Turismo, empresa proprietária da embarcação, e o mestre-arrais Faro, que quase ninguém conhecia pelo nome, muito menos sabia se estava vivo. Os sobreviventes foram deixados no cais do Salvamar, o mesmo do restaurante Sol e Mar, de onde o Bateau Mouche IV zarpara para o fatídico réveillon. A tragédia já era de conhecimento público. Quando a Evelyn & Maurício atracou, diversos amigos e parentes dos passageiros os esperavam, assim como repórteres de jornais, rádios e emissoras de TV.
Todos os sete membros da família Fiszman sobreviveram e voltaram a se reunir no Sol e Mar. O encontro emocionado de Solange e Roberto foi filmado ao vivo pela TV Globo. Renata, a última a ser localizada pelos demais, estava num canto mais afastado porque não conseguia andar. Logo após o naufrágio, quando subia no casco emborcado do Bateau, ela foi puxada por um dos náufragos em desespero. No esforço para não cair, Renata teve o corpo todo lanhado pelas cracas. Em estado de choque, muito machucada, não esboçou reação ao reencontrar a irmã Solange e saber que estavam todos salvos.
Em depoimento ao jornalista Romildo Guerrante, a também jornalista Elane Maciel, resgatada pela traineira, conta que, quando desembarcaram no Sol e Mar, estavam todos em frangalhos e morrendo de frio. No restaurante, ninguém sabia do naufrágio e acontecia uma animada festa de réveillon. Os sobreviventes caminharam até a entrada do salão e foram barrados por um segurança, “mas os garçons perceberam o que estava acontecendo, arrancaram as toalhas das mesas e correram para envolver os náufragos, que invadiram os salões e acabaram com a festa”. Pouco tempo depois, as equipes de diversos jornais e revistas chegaram.
Elane, que estava no Bateau com a irmã, prestou um depoimento emocionado aos seus colegas do Jornal do Brasil, onde trabalhava. A reportagem seria publicada sob o título “Eu nasci de novo”, na edição do dia 2 de janeiro de 1989, em que ela narra o emocionado reencontro com Heloisa, também salva pela Evelyn & Maurício. As duas não se viram durante todo o tempo em que permaneceram no barco:
“Quando desembarquei no cais, vi minha irmã sentada num canto. Ela foi resgatada pela mesma traineira. Finalmente fizemos uma festa. [...] E eu consegui manter intacto, em volta do pescoço, o colar de havaiana”, relembra Elane.
As duas caminharam até o estacionamento para pegar o carro e voltar para casa. Depararam-se com o pedido do guardador: “Cadê o tíquete?”. “‘Sem o tíquete eu não posso entregar a chave, minha senhora’, insistiu o homem. Foi quando ela ouviu um estrondo. Um dos sobreviventes, que também queria suas chaves, arrebentou o armário a socos.”
Ao longo da madrugada, aumentava o número de pessoas no píer do Sol e Mar. Logo foi preciso chamar um grupamento da Polícia Militar para tirar de lá os que estavam presentes apenas por curiosidade mórbida, tal como sempre acontece nessas ocasiões.
Jorge Viana voltou com seus convidados para Jurujuba, do outro lado da baía. Foi um regresso triste e quase não se falou a bordo da traineira. Jorge não tinha a menor ideia de que, nos dias seguintes, se transformaria em um dos heróis da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
O Casablanca levara os sobreviventes que recolhera, assim como o corpo do garotinho Dudu, para o Iate Clube do Brasil. Como o calado do iate não lhe permitia entrar na marina, as pessoas foram transferidas para barcos menores e levadas para o cais. Lá ainda se tentou ressuscitar Dudu, mas sua morte era fato consumado.
Foi a noite mais longa da vida de Boris Jaime Lerner. Ele não tinha a menor noção do paradeiro de sua mulher, Irene. Sequer sabia se ela estava morta ou se sobrevivera ao naufrágio. Como não fora levada para o Iate Clube, e Boris ficou sabendo que alguns náufragos haviam sido deixados no cais do Sol e Mar, ele foi até lá. Havia uma grande aglomeração e não o deixaram entrar.
Do Sol e Mar, seguiu para a marina da Glória, onde localizou o corpo de Regina Wajngarten, sua amiga e companheira de mesa. Lerner resolveu voltar ao Iate Clube. Nada de Irene. Ele foi novamente para o Sol e Mar, onde encontrou a garotinha Luciana, salva pela Evelyn & Maurício, que passou a ser sua prioridade. Levou-a para a Policlínica de Botafogo, praticamente do outro lado da rua.
Após deixar Luciana, que sofrera apenas alguns arranhões, aos cuidados dos médicos, Boris retomou sua busca por Irene. Se a encontrasse viva, teria de lhe avisar sobre a morte de Dudu. Seguiu então para os hospitais Miguel Couto, na Gávea, e Rocha Maia, em Botafogo, e mais uma vez para o Iate Clube. Por fim, tomou a decisão que todos protelam: procurar no Instituto Médico Legal.
O corpo de Irene estava no IML. E sem as joias. Até mesmo uma de suas meias havia sido cortada por alguém que levara a tornozeleira de ouro. Boris Jaime Lerner perdera sua mulher e seu filho num passeio de réveillon. Só lhe restara Karina, que dormia o sono dos bebês na casa dos avós, no Leme.
Otávio Paulino de Mello Neto sobreviveu, assim como sua mulher, Sandra. Dias depois, ainda abalado com a morte do casal de amigos com quem estava no Bateau, Carlos Alberto e Maria Angélica, ele foi até o Grupamento Marítimo de Salvamento do Corpo de Bombeiros procurar seus objetos pessoais, perdidos no naufrágio. Tinha esperança de recuperar a filmadora com que gravara os momentos antecedentes à tragédia. Mas só encontrou a pequena carteira de couro com os documentos, sem o dinheiro, que também havia colocado no estojo impermeável de sua Panasonic.
Procurado pelo Jornal do Brasil, Otávio garantiu que o estojo tinha capacidade de impedir a entrada de água por 48 horas, no mínimo. Ele não acusou ninguém, mas achou estranho que os documentos tivessem sido encontrados e o estojo, não, já que o objeto tinha uma trava especial para impedir que se abrisse sozinho ou sob algum impacto.
O Bateau Mouche IV visto por trás | O Estado de S. Paulo, 26 jul. 1998.
OS QUE FICARAM PARA TRÁS
Após notificar as autoridades e os serviços de socorro, o operador de rádio do Iate Clube do Rio de Janeiro, Flávio Teixeira, chamou seu diretor de radiocomunicações, José Raimundo Nonato, que sempre portava um pequeno aparelho portátil — os celulares ainda não existiam —, e o informou sobre o que ouvira do Casablanca.
Nonato, que participava da festa de réveillon na sede do clube, correu para a marina, onde encontrou a lancha Tatis Flower, de 51 pés, que acabara de atracar. Depois de se identificar e informar sobre a extensão e o local da tragédia, Nonato pediu ao proprietário da embarcação que se dirigisse imediatamente para lá, onde talvez fosse possível resgatar sobreviventes.
Carlos Mathias Ferreira Rodrigues Filho, dono da Tatis, não atendeu ao pedido. Seguiu-se violenta discussão entre Nonato e Mathias, a qual se juntaram, de um lado, os demais ocupantes da lancha e, de outro, sócios do Iate, que acudiram o diretor. O resultado foram socos, chutes e tapas, um deles desferido contra o rosto de Raimundo Nonato. Finalmente surgiram alguns seguranças do clube e apartaram a briga.
Após a recusa de Carlos Mathias, o diretor do Iate Clube conseguiu ajuda de duas lanchas pequenas e velozes. Mas, quando elas chegaram ao local, os ocupantes do Bateau Mouche IV ou já estavam mortos, em sua maioria submersos, ou tinham sido resgatados pela Evelyn & Mauricio, pelo Casablanca e pelo Bateau Mouche III. Nada havia no cenário da tragédia, a não ser alguns móveis, boias e objetos do Bateau IV flutuando nas proximidades do costão de Leme e se chocando contra as pedras. Mais de uma hora já havia se passado desde o afundamento.
Ao longo do domingo, dia de Ano-Novo, o ex-ministro Aníbal Teixeira ainda teve esperanças de reencontrar viva sua mulher, Maria José, de quem se separara na hora em que o Bateau Mouche IV emborcou. As informações eram desencontradas. Quem sabe, pensou Teixeira, teria sido salva pelo barco maior, que levara alguns sobreviventes para o Iate Clube. Só no fim do dia, ao saber que ela não estava entre os recolhidos pelo Casablanca, ele se conscientizou de que sua companheira se fora de vez. As notícias sobre os outros três parentes que estavam com eles no barco foram as mesmas. Apenas ele havia sobrevivido.
No início da tarde de domingo, 1º de janeiro de 1989, chegaram ao píer do Salvamar, trazidos pelas lanchas L-4 do Corpo de Bombeiros e pela embarcação Anequim, da Capitania dos Portos, seis corpos — quatro homens, uma mulher e uma menina (identificada depois como Camila Wajngarten) — recolhidos por mergulhadores a mais de vinte metros de profundidade.
Dezenas de pessoas aguardavam notícias de seus parentes e amigos desaparecidos. Repórteres e curiosos estavam naturalmente em meio a eles. Como não havia lista de passageiros do Bateau Mouche IV e os sobreviventes foram resgatados por três embarcações que os deixaram em locais diferentes, houve certa demora para descobrir quem tinha sido salvo e quem morrera.
No local do naufrágio, o trabalho dos militares fora muito dificultado pelo mar revolto e pelas águas turvas. Além disso, móveis, utensílios e outros objetos soltos obstruíam as portas e escotilhas do Bateau, prejudicando o acesso dos mergulhadores ao interior do barco. Mas deu para constatar, logo de imediato, que várias vigias de ambos os lados do porão do barco estavam abertas.
Embora sua mulher, Vitória, não estivesse entre os primeiros corpos, Plínio Donadio, que estava no píer desde o meio-dia, não nutria a menor esperança de ela ter sobrevivido.
“Ela está lá embaixo”, disse Donadio a um jornalista, apontando para o mar. O sobrevivente apresentava diversas escoriações no corpo.
Também no cais, Fátima Rocha, mulher do empresário Augusto Amato, tinha sentimentos opostos. “Ele não morreu, ele não morreu, ele não morreu”, repetia ela a todo instante para si mesma e para os outros, como se suas palavras tivessem o poder de alterar os acontecimentos. Fátima, que não sabia nadar, fora salva graças a uma mesa que lhe fora passada por um desconhecido.
Nos dias que se seguiram, mais 45 cadáveres foram recuperados do Bateau Mouche IV e levados para o IML, entre eles o da atriz Yara Amaral, do mestre-arrais Camilo, do garçom Antônio de Mesquita, do armador-gerente Mário Rodriguez Triller, de Maria José Andrade de Souza, mulher do ex-ministro Aníbal Teixeira, e os do empresário Amir Abud e de sua mulher, Dione.
Os corpos do mestre Faro e de Mário Triller haviam sido encontrados por mergulhadores do Corpo de Bombeiros na cabine de comando do Bateau, sinal inequívoco de que exerceram suas funções até o fim.
Cenas do resgate das vítimas do naufrágio | O Globo, 1º jan. 1989 | Foto de Otávio Magalhães | Agência O Globo.
O cadáver de Augusto Amato foi dar nas pedras da encosta do bairro da Urca, ainda com a bermuda e blusa brancas, desvanecendo as esperanças de sua mulher. Augusto apresentava um afundamento no frontal, sinalizando que levara uma forte pancada na testa no momento da emborcação do Bateau. Isso lhe tirara as chances de sobrevivência, pois nadava muito bem e poderia ter sido resgatado por um dos três barcos que socorreram os náufragos, não fosse a pancada. A subida da maré trouxera o corpo de Amato para o interior da baía.
Também na orla da Urca foi encontrada a 55ª e última vítima fatal do Bateau Mouche IV. Era o garçom José Oliveira Freitas. O corpo, já em adiantado estado de decomposição, foi recolhido por pescadores. Seu pai, Antônio de Freitas, o reconheceu no IML.
Os nomes e números da tragédia já podiam ser revelados. Mas muita coisa ainda teria de ser descoberta a respeito das causas do naufrágio. Por enquanto, boatos os mais diversos corriam de boca em boca. Mas o que mais se dizia era que o Bateau afundara por causa do excesso de passageiros.
CERIMÔNIAS DE ADEUS
Tendo sido um dos primeiros resgatados, o corpo do empresário Amir Abud, diretor da Prodec Consultoria, foi enterrado no dia 2 de janeiro de 1989 no cemitério Jardim da Saudade. O de sua mulher, Dione Alves Camargo, só foi retirado do interior do Bateau Mouche IV dois dias mais tarde, e então sepultado ao lado do túmulo do marido. A missa de sétimo dia do casal aconteceu na igreja da Candelária.
Também na segunda-feira, dia 2, foram enterrados, no cemitério de Vila Rosali, Irene Lerner e o garotinho Eduardo, o Dudu, respectivamente mulher e filho de Boris Jaime Lerner. Já os restos mortais de Sílvio Grotkowski, um dos companheiros de passeio de Yara Amaral, foram trasladados para São Paulo e sepultados no cemitério do Morumbi.
Supõe-se que os corpos sejam exibidos com recato no necrotério, todos inteiramente cobertos, bastando aos funcionários da instituição levantar o pano ou plástico na altura do rosto do falecido para que um parente faça o reconhecimento oficial, exigido por lei. Pelo menos é assim que se vê a cena nas séries de televisão. Mas não foi isso que aconteceu com Boris Lerner. Irene e Dudu estavam nus no IML do Rio, junto a outros cadáveres, todos procedentes do naufrágio, e com as marcas horríveis das suturas grosseiras da autópsia.
Emblemático para Boris foi um episódio que aconteceu pouco depois. Ele foi convocado a comparecer à polícia, onde um delegado lhe entregou um saquinho contendo as joias de Irene. Elas haviam sido recolhidas por um policial civil, temeroso de que desaparecessem no IML, como não raro acontece, e entregues ao superior.
A cerimônia religiosa judaica de despedida dos Wajngarten, Alberto, Ruth Regina e Camila, aconteceu no dia 5 de janeiro no templo Bene Sidon, na Tijuca. Nessa mesma sinagoga foram realizados os ritos de lamento de Irene Lerner e seu filho.
O enterro mais concorrido foi o de Yara Amaral, no cemitério São João Batista. Entre outras pessoas do meio artístico, lá estavam Sérgio Britto, Mauro Rasi, Nathalia Timberg, Marília Pera, Dina Sfat, Sérgio Mamberti, Paulo Gracindo, Leonardo Villar, Arlete Salles, Marcos Vilaça, Eva Wilma, Betty Faria, Luis Gustavo, Paulo Betti, José Wilker e Yolanda Cardoso, a amiga e colega de Yara que faltara ao embarque no Bateau IV. Bernardo, de quinze anos, e João Mario, de treze, filhos de Yara, estavam inconsoláveis ao lado do pai, Luiz Fernando Goulart.
Vinte anos depois, em depoimento emocionado ao Fantástico, da TV Globo, Bernardo resumiria o legado dessa tragédia em sua vida: “Ela não é mais a atriz de três Molière, ela não é mais a atriz que fez 28 novelas, ela não é mais a atriz que fez cinquenta peças, não é. É a atriz que morreu no Bateau Mouche. Aonde eu vou, na rua: ‘Ah, é o Bernardo, filho daquela atriz que morreu no Bateau Mouche’. Eu não sou mais o Bernardo, filho da Yara Amaral”.
Numa cova humilde na campa 261 do cemitério de Irajá foi enterrado o mestre-arrais do Bateau, Camilo Faro, com a presença de cerca de cem pessoas, entre parentes e amigos que amparavam a viúva, Mariana Sá da Costa, e as três filhas do casal, Marilene, Leda e Vanda.
Em seu depoimento ao delegado Jazimar Tostes, do Departamento de Polícia, Mariana disse que suspeitava que o marido tentara fazer algum reparo no motor do barco antes de deixar o cais do Sol e Mar. As unhas do cadáver estavam impregnadas de graxa, e Camilo costumava tê-las sempre limpas, ainda mais em dia de trabalho.
Ele jamais teria a oportunidade de revelar por que decidira sair da barra na noite do réveillon, enfrentando as águas bravias na rota para Copacabana. O segredo morreu com ele. Mas a hipótese mais viável é a de que se limitou a seguir o Bateau Mouche III, que navegava à sua frente, sem saber que os porões do Bateau IV estavam sendo inundados.
A tragédia marítima do Bateau Mouche IV foi a pior ocorrida no litoral brasileiro em tempos de paz desde 1906, ano em que o encouraçado Aquidabã, da Marinha de Guerra, naufragou na baía de Angra dos Reis matando afogadas, queimadas e despedaçadas 202 pessoas. O Aquidabã era um navio histórico, pois havia sido um dos palcos da Revolta da Armada, em 1894, ocasião em que foi atingido por um torpedo. Doze anos depois, seu naufrágio foi provocado por uma explosão acidental de cordite, um material instável e experimental que o encouraçado transportava em seus porões.
Muitas décadas mais tarde, em 1980, o barco Lima Cardoso afundou ao largo da cidade de Alcântara, no Maranhão, após se chocar contra um recife, deixando 35 mortos. Oito anos depois, foi a vez do Correio do Ararí, que foi a pique no Pará, causando a morte de cinquenta passageiros e tripulantes, sendo excesso de lotação o motivo da tragédia. Um outro naufrágio, o do Silva Dias, na baía de Marajó, acontecido em 1977, deixara um número indeterminado de vítimas, já que ninguém sabia exatamente quantas pessoas havia a bordo.
Outros afundamentos menores haviam ocorrido no século XX. Em 1980, por exemplo, uma baleeira com capacidade para apenas três ocupantes levava doze e afundou na baía de Sepetiba, deixando seis mortos. Quatro anos antes, duas lanchas que faziam o trajeto Rio-Niterói, na baía de Guanabara, se chocaram a trezentos metros do terminal de barcas da praça xv, também matando seis pessoas e ferindo quinze.
A própria empresa Bateau Mouche já se envolvera em outros incidentes, o primeiro deles com o Bateau Mouche I, destruído por um incêndio, sem deixar vítimas. Num episódio insólito, quase cômico, o marinheiro Creminton Vieira Santana, completamente bêbado, se apropriou de outro Bateau Mouche, saiu sozinho com ele e se perdeu. Mais tarde, à deriva, o barco e seu tripulante foram resgatados pelo submarino Amazonas, da Marinha.
Nenhum desses eventos, com exceção talvez do caso do Aquidabã, se equiparou em repercussão ao naufrágio do Bateau Mouche IV.
O nome “Bateau Mouche” é apagado no letreiro da fachada do restaurante Sol e Mar | Veja, p. 39, n. 1063, 18 jan. 1989 | Foto de Marcelo Carnaval | Abril Comunicações S/A.
INQUÉRITOS E PRISÕES
Resgatados os sobreviventes e enterrados os mortos, restava às autoridades policiais investigar se o naufrágio fora apenas uma fatalidade ou um múltiplo homicídio culposo, em que não há intenção de matar, e, em caso positivo, de quem fora a culpa. Se do mestre-arrais do barco, por ter se aventurado fora da baía em condições desfavoráveis do mar, se do armador-gerente, Mário Triller, por ter alterado o centro de gravidade do Bateau, se dos militares da Capitania dos Portos, por haverem renovado a licença do barco e, na noite do réveillon, liberado o passeio, ou se dos responsáveis pela Itatiaia Turismo e pela Bateau Mouche Rio Turismo.
Evidentemente, se a culpa fosse atribuída ao mestre-arrais ou ao armador-gerente, inclusive por não terem percebido as escotilhas abertas e o defeito no vaso sanitário, ela estaria totalmente extinta, uma vez que ambos tinham morrido na tragédia.
Como ninguém gosta de culpar mortos, e os militares têm amplos meios de se defender em função de seu eficiente corporativismo, a polícia, o Ministério Público, a imprensa e a sociedade em geral se voltaram imediatamente contra os sócios e dirigentes da Itatiaia e da Bateau Mouche – a máfia espanhola, que é como muitos passaram a designá-los.
Havia um outro crime, atentado contra a segurança nos meios de transporte, especificado no Código Penal e muito usado nos processos envolvendo acidentes aéreos. Isso poderia contribuir para aumentar a sentença de eventuais culpados do afundamento. Além disso, se surgissem provas contra proprietários e comandantes de embarcações que porventura tivessem se recusado a prestar ajuda ao Bateau IV, eles poderiam ser processados por omissão de socorro.
Um dos suspeitos desse crime de omissão, Carlos Mathias Ferreira Rodrigues Filho, proprietário da lancha Tatis Flower, se apresentou à polícia acompanhado dos advogados Wilson Lopes dos Santos e Marcos Chut. Mathias informou às autoridades que, na noite do réveillon, não foi até o local do naufrágio porque o diretor do Iate Clube que o abordou na marina não lhe explicou direito o que estava acontecendo.
No próprio domingo, dia 1º de janeiro, policiais da 10ª Delegacia Policial tentaram sem sucesso localizar o dono da Itatiaia Turismo, Francisco Riveiro, e Ramon Rodriguez Crespo, um dos sócios da Bateau Mouche. Inicialmente o caso foi designado ao delegado José Gomes Sobrinho, logo substituído pelo diretor do Departamento de Polícia da Capital, delegado Wladimir Reale.
Desde o primeiro dia após o acidente, e antes mesmo que os fatos começassem a ser esclarecidos, os jornais não pouparam adjetivos acusatórios. Uma das manchetes do Jornal do Brasil do dia 2 de janeiro dizia: “Naufrágio criminoso já matou 51”. O mesmo jornal, no caderno Cidade, classificou no mesmo dia o desastre como “a tragédia da irresponsabilidade”.
Não demorou a surgir uma disputa sobre qual instituição governamental deveria conduzir o inquérito. O ministro da Marinha, almirante Henrique Saboia, disse que o caso era de competência da Capitania dos Portos e do Tribunal Marítimo. Com isso não concordaram o governador Wellington Moreira Franco, do estado do Rio de Janeiro, e seu secretário de Polícia Civil, Hélio Saboya. Cada qual queria a Justiça, e a notoriedade, para si.
As investigações do Departamento de Polícia da Capital logo elegeram quatro culpados, todos da dita “máfia” espanhola: Faustino Puertas Vidal, Avelino Rivera, Álvaro Pereira da Costa e Francisco Garcia Riveiro. De seu lado, a Marinha instaurou um inquérito policial-militar (IPM), no qual foram ouvidas 68 testemunhas, visando investigar a hipótese de suborno dos sargentos Vasconcelos e Franco, da lancha Anchova, além de uma eventual negligência na emissão do certificado de navegabilidade do Bateau Mouche IV, concedido por especialistas da Capitania.
Enquanto o governo do estado e a Marinha discutiam jurisdições, o Ministério Público entrou na disputa e indicou a promotora Leny Costa de Assis para acompanhar o inquérito da Polícia Civil. O vice-almirante João Batista Paoliello, do 1º Distrito Naval, também não perdeu tempo em demarcar seu terreno. No local do naufrágio, onde o Bateau permanecia no fundo do mar, o perito Mário Bonfatti, do Instituto de Criminalística Carlos Éboli, foi arbitrária e truculentamente impedido por marinheiros do rebocador Tridente, da Marinha, de mergulhar para fotografar o barco afundado. As autoridades pareciam estar mais interessadas em sua disputa de egos do que na apuração das causas do naufrágio.
A Itatiaia Turismo contratou para defender seus dirigentes os criminalistas Nilo Batista e Felipe Amodeo. Já a Bateau Mouche Rio Turismo nomeou como defensor dos oito sócios da empresa os advogados George Tavares e Evaristo de Moraes Filho. Eram todos nomes de grande prestígio nos meios jurídicos.
Outro criminalista, Ubiratan Cavalcante, foi escolhido pelo primeiro-sargento-arrumador Antônio Braga de Vasconcelos, comandante da Anchova, para assisti-lo durante seu depoimento no Departamento de Polícia da Capital. Vasconcelos disse ao delegado que fora compelido pelos donos do Bateau Mouche a liberar o barco na noite do réveillon, confirmando declarações prestadas por seu subordinado, sargento José Reinaldo Franco. Ambos negaram o recebimento de qualquer suborno e disseram que o Bateau só voltou ao cais após o mestre Camilo Faro ter dito que suspeitava de excesso de lotação no barco.
Os parentes das vítimas também se movimentaram para defender seus direitos. Os filhos de Yara Amaral, por exemplo, representados por seu pai, Luís Fernando Goulart, contrataram quatro jovens advogados: Luís Guilherme Vieira, Fábio Kurtz, Leonardo Orsini de Castro Amarante e João Tancredo de Paula.
Na Marinha, o capitão de corveta Dílson José Pires foi encarregado de presidir o IPM que apuraria o comportamento dos tripulantes da Anchova na noite do naufrágio. Coincidentemente, o capitão Pires era o mesmo oficial que assinara, em 1987, o cartão de lotação do Bateau Mouche IV, habilitando-o a transportar 153 pessoas. Mais tarde Pires foi substituído na condução do IPM pelo contra-almirante Carlos Augusto Bastos de Oliveira, e o objeto da investigação foi ampliado, estendendo-se às causas do naufrágio, principalmente à questão da lotação do barco, inicialmente projetado para transportar vinte pessoas.
A substituição do capitão Dílson Pires pelo contra-almirante Carlos Augusto Oliveira aconteceu por uma questão hierárquica. Entre os interrogados poderia haver um oficial de patente maior, o capitão dos portos, por exemplo, e nenhum militar pode interrogar um superior. Apesar do inquérito da polícia do Rio ainda não estar concluído, o delegado Wladimir Sérgio Reale e a promotora Leny Costa de Assis decidiram pedir à Justiça a prisão preventiva do espanhol Faustino Puertas Vidal e do português Álvaro Costa, ambos da Bateau Mouche Rio Turismo, e do também espanhol Francisco Riveiro, da Itatiaia. Estranhamente, o pedido foi feito num domingo, dia 22 de janeiro de 1989, em pleno recesso do Judiciário. E, mais estranhamente ainda, acatado pelo juiz de plantão no Fórum do Rio, da 7ª Vara de... de “Falências e Concordatas”, Paulo César Salomão. Uma das justificativas do magistrado, em seu despacho, era “a notória e veemente revolta popular” contra os acusados. A decisão nada salomônica de Salomão seria motivo de muita estranheza nos meios forenses do Rio de Janeiro.
Presos em suas casas, Faustino, Álvaro e Francisco foram recolhidos a uma sala da Divisão de Vigilância e Capturas, na avenida Presidente Vargas, centro do Rio, onde a única cama já estava ocupada por outro detento, um ex-prefeito de São João de Meriti, acusado de desvio de dinheiro público. Os empresários tiveram de pedir colchonetes às suas famílias para não dormirem no chão.
O criminalista Evaristo de Moraes Filho declarou à imprensa que as prisões haviam sido “absolutamente ilegais” e revelou sua intenção de entrar com um pedido de habeas corpus no dia seguinte, segunda, 23. O benefício foi concedido na terça pelo juiz da 12ª Vara Criminal, Jasmin Simões da Costa, e os presos, postos imediatamente em liberdade, tendo dormido duas noites na cadeia.
Se o naufrágio do Bateau Mouche IV havia sido rápido, as batalhas judiciais iriam se estender por anos e mais anos a fio, com diversas marchas e contramarchas. Muitos réveillons se passariam antes que a Justiça começasse a se pronunciar em instância definitiva.
PROTESTOS E BADALAÇÕES
Houve grande indignação entre os sócios do Iate Clube do Rio de Janeiro com o comportamento do associado Carlos Mathias, que, no dia da tragédia, não atendeu ao apelo do diretor de radiocomunicações do clube, José Raimundo Nonato, para levar sua lancha, Tatis Flower, até o local do naufrágio, em busca de sobreviventes. O próprio comodoro do Iate, Hamilton Veiga da Silva, revelou à imprensa que a expulsão de Mathias do quadro de associados seria submetida ao Conselho Deliberativo. Como medida preliminar, o comodoro suspendeu o proprietário e condutor da Tatis Flower por noventa dias.
Na outra face da moeda, Jorge Viana, dono e mestre-arrais da Evelyn & Maurício, foi merecidamente tratado como herói pela imprensa e pela opinião pública. Nas semanas que se seguiram ao naufrágio, inúmeros jornalistas o procuraram em Jurujuba e extensas reportagens foram publicadas sobre ele. Jorge foi inclusive a São Paulo, onde apareceu ao vivo num programa vespertino da TV Bandeirantes.
Oscar Gabriel Júnior, proprietário do Casablanca, homem avesso à publicidade, não quis dar entrevistas. Apesar de seu desempenho no naufrágio, salvando a vida de grande número de pessoas, houve pouquíssimas menções a ele na mídia. Outro que permaneceu no anonimato foi o garçom Heleno, do Bateau Mouche III, que também se arriscou para salvar três pessoas.
Um grupo de artistas, indignado com a morte de sua colega, Yara Amaral, foi até o governador Moreira Franco cobrar providências para encontrar logo e processar os culpados. Como seria de esperar, Franco prometeu as devidas punições, doessem a quem doessem.
Políticos da cidade do Rio de Janeiro lideraram uma passeata, de cerca de setenta pessoas, que saiu da frente do restaurante Sol e Mar e terminou em uma concentração na praia Vermelha, na qual foram homenageadas as vítimas do Bateau Mouche. Em discursos inflamados, dois vereadores, Chico Alencar, do PT, e Alfredo Sirkis, do PV, exigiram uma apuração rigorosa das causas do naufrágio. O ato terminou com o lançamento de cravos e margaridas ao mar.
“Boicote total ao restaurante Sol e Mar, à Itatiaia e ao Bateau” eram os dizeres de uma das faixas exibidas no protesto. Uma das pessoas mais criticadas no encontro foi o ministro da Marinha, almirante Henrique Saboia, por ter sido contra o inquérito aberto pela Polícia Civil do Rio de Janeiro para apontar os culpados pela tragédia.
Uma manifestação de artistas se realizou nas escadarias do Teatro Municipal. Lá estavam, além de outros, Fernanda Montenegro, Chico Buarque, Marieta Severo, Dina Sfat, Daniel Filho, Sérgio Britto, Tônia Carrero, Felipe Camargo, Carlos Vereza, Joana Fomm e Aracy Balabanian. Com tantas celebridades presentes, logo uma multidão se concentrou no local, ocupando boa parte da Cinelândia. O ministro Saboia voltou a ser criticado.
“Pelo fim da impunidade”: o eterno clichê brasileiro foi repetido à exaustão. Os artistas, constrangidos, se viram cercados por um batalhão de caçadores de autógrafos. Como as canetas rodavam soltas, improvisou-se um manifesto a ser entregue ao presidente José Sarney, no qual se pedia, entre outras coisas, “prisão para a quadrilha do Bateau Mouche”.
Nem só de críticas e protestos viveu o Rio naqueles dias. A Confraria do Garoto, um grupo alegre e descontraído de treze homens que desfilava pelo centro do Rio às treze horas de todas as sextas-feiras 13, como foi o caso daquela segunda sexta de 1989, homenageou os tripulantes da traineira Evelyn & Maurício, representados no ato por um deles, João Batista de Abreu. Em vez das marchinhas costumeiras, dessa vez a confraria improvisou um réquiem, com um sino badalando treze vezes.
Outras passeatas e reuniões de protestos ocorreram em diversas datas e locais da cidade. Os cariocas queriam ver os culpados — cada pessoa elegia o seu como sendo o verdadeiro — atrás das grades.
Nos últimos dias de janeiro houve a primeira punição. Carlos Mathias, dono da lancha Tatis Flower, foi expulso do quadro de sócios do Iate Clube do Rio de Janeiro sob a acusação de negativa de prestação de socorro a barco acidentado. Curiosamente, foi um dos únicos a ser punidos no caso.
O restaurante Sol e Mar reabriu no dia 10 de janeiro, para almoço, pela primeira vez depois do naufrágio. Apenas três fregueses apareceram. Procurados pelos repórteres, não quiseram se identificar. No cardápio, o “camarão à Bateau Mouche” continuava figurando entre as opções de pratos, a 19,8 mil cruzados.
Em 17 de janeiro de 1989, na seção de Cartas do Jornal do Brasil, o leitor Luiz Carlos Vasco expressa a opinião geral sobre o caso: “Episódios como o do Bateau Mouche nada mais são do que o desembocar das práticas de desonestidade e descaso que campeiam hoje no nosso país, embaladas pelos ventos da impunidade”.
Boris Lerner, em depoimento ao mesmo jornal em 3 de março de 1989, resume o sentimento dos que viveram a tragédia:
“Tantas alegações de isenção de culpa me fazem pensar que não tenha sido apenas vítima, mas que tenha contribuído para a tragédia, quando, inocentemente, comprei as passagens para o passeio da morte. Fomos todos muito ingênuos, entrando no mar através de um barco impróprio, com nossos familiares e amigos. Infelizmente, no país em que vivemos, mais vale desconfiar de tudo e de todos até que se prove o contrário. Não há exagero quando se diz que estamos em terra de corrupção e suborno generalizados, impunidade e falta de respeito para com o próximo.”
No Rio de Janeiro, em janeiro de 1990, protesto contra a absolvição dos acusados do naufrágio do Bateau Mouche | Foto publicada em O Estado de S. Paulo, C4, 26 jul. 1998 | Agência Estado.
RESGATE NO FUNDO DO MAR
Uma cábrea (balsa-guindaste), Superpesa II, com capacidade para erguer até trezentas toneladas, foi emprestada à Marinha pela Petrobras, que havia alugado o equipamento da empresa Superpesa, para içar o Bateau Mouche IV do fundo do oceano. A operação tinha urgência, não só para que se fizesse a perícia no barco antes que a água salgada e as correntezas causassem danos que pudessem invalidar o laudo final, como também porque, no local onde estava, o costão do Leme, o Bateau obstruía um importante canal de navegação, muito usado pelos navios que saíam do porto do Rio de Janeiro em direção ao sul.
Revezando-se no fundo do mar, 28 mergulhadores da base Almirante Castro e Silva “enlaçaram” o Bateau Mouche IV na quarta-feira, 12 de janeiro de 1989, com cabos de aço inoxidável de quatro polegadas de diâmetro e cem metros de comprimento. Operava o guindaste um alagoano de 44 anos chamado José Camilo Filho e mais conhecido como Zezinho. Ele manuseava com grande intimidade as doze alavancas da cábrea.
Depois de alguns percalços e incidentes, como rompimento e deslocamento de cabos, que poderiam ter posto a perder toda a operação de resgate e que a adiaram por diversas vezes, o Bateau foi trazido por Zezinho à superfície no meio da tarde de terça-feira, 17 de janeiro, cinco dias após o início do custoso trabalho. Imediatamente mangueiras de bombas de sucção aspiraram toda a água e areia que se acumulara no interior do barco, inflaram-se balões no deque intermediário e as escotilhas foram tamponadas com peças de madeira.
Após os cabos de aço terem sido retirados, o Bateau Mouche IV voltou a flutuar normalmente. Era como se nada tivesse acontecido, não fosse a morte de 55 de seus ocupantes durante a festa do réveillon.
Balsa-guindaste traz o Bateau Mouche IV à tona | Foto de Homero Sérgio, 16 jan. 1989 | Folhapress.
A jornalista Elane Maciel declarou ao Jornal do Brasil: “Se não houvesse inquérito, bem irracionalmente mesmo, eu gostaria que ele ficasse lá no fundo para sempre”.
Toda a operação de resgate foi transmitida ao vivo pelas emissoras TV Globo e TV Manchete e acompanhada em suspense pelo país inteiro. Os telespectadores se assustaram com o aspecto de banheira velha e enferrujada do Bateau e com seu pequeno tamanho. “Como aquela embarcação poderia transportar 153 pessoas, segundo estabelecia seu laudo de navegabilidade?”, era o que se perguntavam.
Na pista Claudio Coutinho, que margeava o costão do morro da Urca, centenas de pessoas assistiram ao trabalho da cábrea. O surgimento do Bateau IV foi recebido com aplausos e gritos de entusiasmo.
Na madrugada do dia 18, o Bateau Mouche IV foi rebocado para o Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, onde os peritos dariam início aos trabalhos de apuração das causas do naufrágio.
Tal como acontece na maioria dos desastres aéreos, o afundamento do Bateau Mouche IV também se deveu a uma série de razões cumulativas.
Embora a contagem dos sargentos Antônio Braga de Vasconcelos e José Reinaldo Franco, da lancha Anchova, da Marinha, acusasse um total de 149 pessoas (na verdade, é mais provável que houvesse 142 ou 143 a bordo do Bateau na noite de réveillon) e o cartão de lotação emitido pela Capitania dos Portos autorizasse o barco a transportar 153 ocupantes, isso não quer dizer que esse número fosse totalmente seguro, principalmente nas condições do mar fora da barra naquela noite. Entretanto, não foi encontrada nenhuma evidência de que o certificado tenha sido obtido mediante suborno ou concedido por negligência de quem o inspecionou. No entanto, o certo é que o Bateau, em sua primeira versão, fora planejado e construído para transportar vinte pessoas, e causou muita estranheza nos meios náuticos esse desmedido aumento de lotação.
Evidentemente, os móveis não fixados nos conveses e os tampões de mármores soltos de várias mesas se transformaram em projéteis letais no momento da emborcação. Isso fez com que diversos ocupantes do barco fossem atingidos e feridos por essas peças de mobiliário, impossibilitando-os de se salvarem. Mais tarde as autópsias iriam mostrar que algumas lesões haviam sido tão graves que essas vítimas morreram quase que imediatamente.
As principais causas da tragédia foram, com certeza, a ausência da válvula de retenção no vaso sanitário do banheiro, que ficava abaixo da linha d’água, assim como uma escotilha com defeito na borracha de vedação e outras seis deixadas abertas no convés inferior. Somam-se a isso os pequenos furos no casco e as fendas no trincaniz. Com isso, no mínimo quatro toneladas de água entraram no barco quando ele enfrentou mar turbulento na saída da barra.
Essa enorme massa se movimentou de um lado para o outro, indo e vindo cada vez com mais força, provocando mais e mais inclinação, até que o Bateau IV girou no sentido horário em torno de seu próprio eixo longitudinal e emborcou, ficando com o casco totalmente virado para cima.
Um deslocamento de água no fundo de um barco — o já mencionado fenômeno da “água aberta”, também chamado de “superfície livre” — é tão perigoso que nos porta-aviões não se combate incêndio nos hangares inferiores com material líquido — apenas com espumas especiais. Se uma lâmina de alguns centímetros de “água aberta” pode emborcar um porta-aviões, o que não poderá fazer numa meia casquinha de noz como o Bateau Mouche IV.
Claro que nada disso teria acontecido se os sargentos Vasconcelos e Franco tivessem impedido a segunda partida do barco por razões de segurança. Essa atitude foi considerada uma omissão e lhes valeu uma condenação no inquérito policial-militar conduzido pela Marinha, que chegou à conclusão de que eles receberam uma importância entre cem e duzentos dólares para liberar a viagem, ao contrário do que decidira a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.
Outra das razões que contribuíram para o desastre foi a alteração do centro de gravidade do Bateau Mouche IV em relação ao projeto original pela colocação de um piso de argamassa de cimento e de duas caixas d’água metálicas no convés superior, comprometendo a estabilidade da embarcação. Essa deficiência não impediu que a Capitania dos Portos, em procedimento no mínimo estranho, aprovasse o barco na inspeção efetuada nos dias 28 e 29 de dezembro de 1988. Mais tarde, essa inspeção seria considerada insuficiente e suspeita no inquérito levado a cabo pela própria Capitania.
A localização incorreta dos coletes salva-vidas, praticamente escondidos dos usuários do barco, também contribuiu para o aumento do número de mortos, fora o fato de que não houve instruções sobre procedimentos em caso de naufrágio, que poderiam ter sido passadas antes da partida do Bateau ou durante sua permanência nas águas calmas da baía de Guanabara.
É óbvio que o mestre-arrais Camilo Faro teve grande parcela de culpa no naufrágio. Sua responsabilidade ficou bem clara no relatório final sobre o acidente, emitido pela Capitania de Portos do Rio de Janeiro. Faro, como comandante do barco, tinha o poder de abortar a saída para mar aberto e permanecer no interior da baía, mas não o fez. Além disso, não inspecionou com cuidado a embarcação antes da partida, caso em que teria notado pelo menos as escotilhas abertas no porão.
Por outro lado, sabe-se que ele quis voltar para o cais para desembarcar passageiros. Se foi ou não pressionado por seus patrões para manter a programação do réveillon intacta, isso é coisa que jamais se saberá.
Mortos e culpados não falam.
PROCESSOS E JULGAMENTOS
Não é possível pôr um ponto final no que se refere aos processos na Justiça. Eles não acabam nunca, protelados por recursos em diversas instâncias, não raro prevalecendo as prescrições legais. Passado mais de um quarto de século do naufrágio do Bateau Mouche IV, ainda há diversas pendências não resolvidas no Judiciário.
Como a Bateau Mouche Rio Turismo e a Itatiaia Turismo não tinham musculatura financeira para pagar todas as indenizações exigidas pelos advogados dos parentes das vítimas do naufrágio, e nenhuma das duas empresas tinha feito seguro de responsabilidade civil (danos a terceiros), era inevitável que fossem à falência, o que acabou acontecendo. Restava pedir indenização ao governo, sob alegação de negligência dos militares da Capitania dos Portos.
Na área criminal, não sendo possível processar o mestre-arrais do Bateau Mouche IV, Camilo Faro, nem o armador-gerente do barco, Mário Triller, restou ir atrás dos sócios e dirigentes da Bateau Mouche e da Itatiaia Turismo. Acusação: homicídio culposo, com pena de um a três anos. Alguns juristas na época da tragédia chegaram a falar em homicídio doloso (quando há intenção de matar), entre eles o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Márcio Thomaz Bastos. Segundo Bastos, os acusados assumiram o risco de causar as mortes (dolo eventual). A promotora de Justiça Leny Costa de Assis, mulher combativa designada para o caso, declarou aos jornais: “Se depender de mim, os responsáveis irão para a cadeia”.
Entre os acusados, houve a tradicional transferência de culpa. Os advogados Evaristo de Moraes Filho e George Tavares, defensores dos donos do Bateau Mouche IV, Faustino Puertas Vidal e Álvaro Costa, disseram que seus clientes, não sendo homens do mar, “depositaram toda a confiança na Capitania”, além de delegarem as responsabilidades náuticas ao armador-gerente do Bateau, Mário Triller.
Moraes Filho e Tavares reforçaram sua argumentação exibindo laudo da Companhia Paulista de Seguros, baseado em vistoria da empresa classificadora Blue Seas, atestando as condições de navegabilidade do Bateau IV. Isso, segundo os dois criminalistas, eximia seus clientes de qualquer tipo de responsabilidade criminal.
Os debates por escrito entre os celebrados Evaristo de Moraes e George Tavares e a promotora Leny eram acompanhados com enorme atenção pelos estudantes de direito. Em um de seus argumentos de defesa, Moraes e Tavares declararam que “é a tripulação que utiliza o barco, realiza sua manutenção, avalia seu desempenho e aquilata suas necessidades, denunciando eventuais defeitos para a realização de reparos”. E emendavam, na defesa dos réus: “Ora, a presença destas pessoas (o piloto Faro e o armador-gerente Triller) na viagem do réveillon só poderia transmitir aos armadores-proprietários a convicção da existência de perfeitas condições de navegabilidade”.
Já o advogado Nilo Batista, defensor de Francisco Riveiro, dono da Itatiaia Turismo, tinha de lidar com uma acusação séria: a de que seu constituinte subornara os sargentos da lancha Anchova para que o Bateau Mouche IV pudesse seguir para Copacabana. Uma das sobreviventes do naufrágio, Kátia Rangel Elizandro, de 24 anos, que morava em Nova York, declarou, numa entrevista a Rosental Calmon Alves, correspondente do Jornal do Brasil na cidade americana, que vira Riveiro entregar um maço de dinheiro a um dos militares no cais do restaurante Sol e Mar.
O inquérito aberto pela Marinha desenrolara-se rapidamente. Os sargentos Antônio Braga de Vasconcelos e José Reinaldo Franco, tripulantes da lancha Anchova que inspecionaram o Bateau Mouche IV, foram condenados a “até” um ano de prisão. Ambos, entretanto, foram beneficiados com suspensão das sentenças.
Na Justiça civil, as coisas se processaram lentamente. No primeiro julgamento, que ocorreu em novembro de 1990, os empresários acusados pelo naufrágio foram absolvidos pelo juiz Jasmim Simões Costa. Em concordância com a tese dos defensores dos réus, o magistrado responsabilizou pelo naufrágio do Bateau Mouche apenas o armador-gerente Mário Triller e o mestre-arrais Camilo Faro, inimputáveis porquanto mortos no naufrágio.
Com relação ao mestre do Bateau, o relatório final do inquérito aberto pela Capitania dos Portos fora claro, atribuindo o naufrágio à imprudência, negligência e imperícia de Camilo Faro. Mas a opinião pública e a imprensa continuaram preferindo responsabilizar a “gananciosa máfia espanhola” pela tragédia, o que nem sempre coincidia com as decisões do Judiciário.
“Os réus, na sua totalidade, não atuaram dolosa ou culposamente, não previram o naufrágio nem era ele previsível nas circunstâncias, pelo que a hipótese dos autos não é abrangente de ilícito sob o aspecto jurídico”, decretou o juiz em sua sentença, para em seguida concluir:
“Julgo improcedente a ação e absolvo os acusados Álvaro Pereira da Costa, Faustino Puertas Vidal, Francisco Garcia Riveiro, Ramon Rodriguez Crespo, Avelino Rivera e José Ramiro Gandara Fernández da imputação que lhes foi feita, o que assim decido com fulcro no artigo 386, III, do Código de Processo Penal.”
A promotoria recorreu da decisão do magistrado, considerando-a contrária às provas dos autos. Num segundo julgamento, ocorrido em 1993, Álvaro Costa, Avelino Rivera e Faustino Puertas Vidal foram sentenciados, por homicídio culposo, a quatro anos de prisão em regime semiaberto.
No ano seguinte os três réus, valendo-se do fato de que só dormiam na prisão e passavam o dia soltos, fugiram do país — Álvaro para Portugal, que não extradita seus cidadãos, e Avelino e Faustino para a Espanha. Eles assim escapavam de outras condenações por crime de sonegação fiscal, além de se livrar parcialmente do pagamento de indenizações aos parentes das vítimas do Bateau Mouche IV.
Durante muitos anos o Brasil tentou junto à justiça espanhola, sem sucesso, a extradição de Avelino e Faustino.
EPÍLOGO
Se pudesse ter sido vendido logo após o resgate do mar, o Bateau Mouche IV ainda teria valido alguma coisa. Mas disputas judiciais mantiveram o barco a mercê do desgaste provocado pela água salgada, pelo sol e pela chuva num cais do Arsenal de Marinha, fora as avarias preexistentes, aquelas ocorridas na noite da emborcação e do naufrágio. Passado algum tempo, tiveram de amarrar o barco para que não afundasse.
O governo pleiteava que o Bateau fosse leiloado para pagar parte das despesas de seu içamento e de sua manutenção, calculadas em 177 mil dólares. Os advogados das vítimas queriam a embarcação como reforço de garantia da indenização das vítimas e dos parentes dos mortos. Acabou não sobrando nada para ninguém.
Nas investigações para elaboração deste livro, tentei localizar o Bateau IV, nem que fosse para fotografar sua carcaça. Mas ninguém na Capitania dos Portos sabe onde ele se encontra, passados tantos anos de seu naufrágio – informação aliás que não teria maior importância, já que o lagosteiro Kamaloka deve ser hoje não mais do que um monte de ferros retorcidos e enferrujados e de madeira podre, sem serventia para nada. Talvez esteja em algum canto do fundo da baía de Guanabara, colaborando com a poluição do local ou, numa hipótese mais otimista, servindo de toca e de berçário para peixes.
Só em 2008, ou seja, vinte anos após o naufrágio, a Justiça decidiu, em última instância, o pagamento de uma indenização substancial a parentes das vítimas do Bateau Mouche IV. Dois irmãos, Renata Mattos Amato, jornalista, e Bruno Mattos Amato, professor de educação física, receberão cada um da União, em ação patrocinada pelo advogado Paulo Elísio de Souza, um valor equivalente a uma pensão mensal de quinze salários mínimos durante 22 anos, acrescida de juros e correção monetária referentes aos atrasados. Era uma reparação pela morte de seu pai, Augusto Araújo Amato, que os deixou órfãos ainda na adolescência.
Durante boa parte dos vinte anos em que ficaram aguardando o que lhes era devido, Renata e Bruno viveram às custas de parentes.
Para justificar seu ajuizamento contra o Estado, o dr. Elísio de Souza alegou culpa in vigilando da Marinha, por ter a Capitania dos Portos do Rio de Janeiro aprovado, em 1980, e sem exigir um estudo de viabilidade náutica do projeto, o licenciamento do Bateau Mouche IV para transportar 153 pessoas, independentemente da responsabilidade da Itatiaia Turismo e da Bateau Mouche Rio Turismo Ltda., empresas que, por sinal, também foram acionadas pelo advogado.
Elísio de Souza acusou também as autoridades marítimas de negligência nas vistorias realizadas nos dias 28 e 29 de dezembro de 1988, vésperas do naufrágio.
Antes disso, apenas os familiares de um dos mortos conseguiram ser indenizados. Os beneficiários eram parentes de um garçom, José Antônio da Silva, que trabalhava no Bateau IV e morreu no acidente. Foram defendidos pelo advogado João Tancredo. Ele fez um acordo com a empresa Bateau Mouche, que pagou 30 mil reais à família.
Decorridos quase trinta anos do naufrágio, ainda existem inúmeros casos correndo nos tribunais. Durante todo esse tempo, pessoas que dependiam dos mortos na tragédia para viver condignamente, muitas delas menores de idade, tiveram de se conformar com a morosidade do Poder Judiciário, sem contar as que morreram sem ver a cor do dinheiro.
Nos dias 31 de maio e 20 de junho de 2015, entrevistei durante várias horas o tributarista Boris Jaime Lerner, sobrevivente do afundamento do Bateau Mouche IV, no qual perdeu a mulher, Irene, e o filho de seis anos, Eduardo (Dudu). Boris relatou detalhadamente tudo o que aconteceu na noite do naufrágio e falou também sobre sua luta inglória na Justiça para conseguir reparações da União e dos empresários responsáveis pelo barco.
Passados tantos anos da tragédia, os pleitos de Boris continuam tramitando, e vão tramitar ainda por muito tempo. Após ter tido ganho de causa em todas as fases do processo, inclusive no Supremo Tribunal Federal, Boris Lerner viu seus reclamos regressarem à primeira instância, agora para o detalhamento da liquidação, procedimento que se arrasta na 18ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Boris ganhou no mérito, mas não recebeu nada. E sabe Deus quando isso irá acontecer. Pois, também na liquidação, haverá a primeira, a segunda e tantas instâncias quanto a pródiga legislação permitir.
Lerner é um profissional extremamente bem-sucedido e não dependeu de indenização do governo para criar suas duas filhas, Karina, que tinha onze meses no dia do naufrágio (completaria um ano no dia 6 de janeiro de 1989) e não estava no barco, e Carol, filha de um segundo casamento de Boris que tem agora 23 anos. Karina, hoje com 27 anos, é médica, tal como a mãe; e Carol, arquiteta. No apartamento de Boris Lerner, falei por alguns segundos com ela — que estava fazendo uma pós-graduação em design em Milão — pelo FaceTime.
Se, entretanto, Boris tivesse morrido com Irene, e Dudu sobrevivido, ele e sua irmã Karina teriam de ser criados pelos avós ou outros familiares, por conta exclusiva desses parentes, uma vez que as indenizações, mais do que devidas, ficaram presas, e continuam presas, nos labirintos do judiciário.
A morte de Irene e Dudu e as injustiças da Justiça não transformaram Boris Jaime Lerner em uma pessoa inconformada. Muito pelo contrário. Além de suas filhas Karina e Carol, ele cuida de outras três meninas, netas de uma senhora que prestava serviços na casa. Atualmente moram com a avó, com todas as despesas pagas por Lerner. Ele faz isso porque conheceu uma das garotas ainda bebê, doente e subnutrida.
Os Lerner, pai e filhas, só existem por um milagre do acaso. E não estou me referindo ao Bateau Mouche IV. Mordka, pai de Boris Jaime Lerner, sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, onde a taxa de mortalidade foi de aproximadamente 90%. Mordka, que no Brasil virou Marcos, foi resgatado por tropas soviéticas em janeiro de 1945 e veio para o Brasil, onde já vivia seu pai, Chil (Júlio), portanto avô de Boris, em 1946.
Perguntei sobre Luciana Wajngarten, filha do casal de amigos que estava com Boris no Bateau, a única da família a sobreviver. A menina, que na época tinha dois anos, foi criada pelos avós e hoje é nutricionista num hospital do Rio de Janeiro.
A tragédia do Bateau Mouche IV não impediu que o réveillon do Rio de Janeiro continuasse a ser a festa de passagem de ano mais concorrida do mundo, mas sua triste memória reduziu drasticamente o número de embarcações na orla na virada seguinte, de 1989 para 1990 — de quatrocentos barcos, em dezembro de 1988, para apenas vinte, em dezembro de 1989. De todo modo, a cada ano, o show de fogos de artifício se torna mais bonito.
Até 2001, os fogos eram disparados de locais cercados na própria areia da praia. Nesse ano houve um acidente que deixou um morto e 74 pessoas queimadas, algumas com gravidade. A partir de então os rojões passaram a ser disparados de balsas atracadas a quatrocentos metros da praia e respeitando uma distância de 330 metros entre cada uma delas.
Sendo uma festa que chega a atrair 2 milhões de pessoas, e que envolve disparos de potentes explosivos, é impossível garantir que outro acidente não venha a ocorrer. Mas, no réveillon 2014/15, uma das balsas pegou fogo e o sistema de segurança foi posto à prova. Ninguém saiu ferido, nem mesmo levemente.
Além do enorme público que lota a avenida Atlântica e a areia da praia, a maioria dos proprietários dos apartamentos com vista para o mar organiza festas, sempre concorridas.
Pena que o garoto Dudu e Camila (na época, com seis anos), que estavam com seus pais no trágico episódio do Bateau IV, nunca tenham podido assistir aos festejos, para o qual estavam tão animados naquela fatídica noite. Hoje eles teriam 33 anos e talvez estivessem em Copacabana com seus filhos.
Em 2004, o programa Linha direta, da TV Globo, produziu um especial sobre a tragédia do Bateau Mouche. Já haviam se passado dezesseis anos desde o naufrágio. Sobreviventes foram convidados para voltar ao local, junto ao costão do morro do Leme e a ilha de Cotunduba, a bordo de uma lancha fretada pela emissora. Uma homenagem com coroas de flores seria feita aos 55 mortos do naufrágio.
Na hora do embarque, Heloisa, que sobrevivera ao desastre com a irmã Elane, simplesmente não conseguiu subir na lancha. “É um estresse muito grande, que não consigo evitar”, desculpou-se ela na marina da Glória. E voltou para casa.
No início das pesquisas para a elaboração desta narrativa, estive na enseada de Jurujuba, onde conversei longamente com o mestre Jorge Viana, que na época continuava saindo quase que diariamente para pescar em sua nova traineira, a Evelyn & Maurício III. Mais tarde, no dia 1º de maio de 2012, a Evelyn & Maurício III naufragou ao largo de Itaipu, felizmente apenas com perdas materiais. Atualmente Jorge pesca em barcos de terceiros, mas está reformando uma traineira para voltar a ter sua própria embarcação.
Em conversa telefônica comigo, Maurício, filho de Jorge e Sandra, hoje advogado, disse que não se lembra de nada do naufrágio, já que tinha três anos na ocasião e esteve dormindo durante a maior parte do tempo.
Outro dos ocupantes da Evelyn & Maurício naquela noite do naufrágio do Bateau é o pescador Marcos Vinicius Lourenço da Silva, agora com 49 anos. Marcos me levou até a ponta oeste do promontório onde fica a fortaleza de Santa Cruz. Dali até o local do naufrágio são menos de dois quilômetros. Dá para ver nitidamente o estreito entre as pedras onde o navio afundou.
Quando perguntei a Marcos como ele se sentia ao estar ali, tantos anos após a tragédia, ele ficou com a voz embargada e não conseguiu me responder. Parece que isso acontece com boa parte das pessoas que esteve lá naquela noite, seja no barco que naufragou, seja naqueles que o socorreram.
Ivan Sant’Anna
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